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IOCOAMA, Sábado: 29 de novembro:
— Passamos pela esquadra há dois dias, Sr. Malcolm, Jamie — disse o capitão do clíper, em tom jovial, disfarçando seu choque pela mudança em Malcolm, que conhecia desde que nascera, com quem rira e bebera apenas três meses antes, em Hong Kong; ele tinha agora as feições pálidas e encovadas, uma estranha expressão nos olhos, precisava de bengalas para andar ou mesmo ficar de pé. — Estávamos com todas as velas içadas, um vento de popa de força seis, navegando bem depressa, enquanto eles seguiam mais devagar, uma providência sensata, para não perder as barcaças de carvão que rebocavam.
Seu nome era Sheeling, e acabara de desembarcar de seu navio, o Dancing Cloud, cuja chegada fora inesperada. Tinha quarenta e dois anos, era alto, barbudo, o rosto curtido, trabalhava para a Casa Nobre há vinte e oito anos.
— Nós apenas os saudamos e continuamos em frente.
— Chá, capitão? — perguntou McFay, servindo automaticamente, sabendo por longa experiência que era a sua bebida predileta.
Enquanto estava no mar, ele sempre tomava chá com açúcar e leite condensado, de dia ou de noite. Estavam na suíte de Malcolm, sentados à mesa grande. Jamie, como o tai-pan, mal prestava atenção ao relato, os olhos fixados na bolsa de correspondência lacrada, com o emblema da Casa Nobre, sob o braço esquerdo de Sheeling.
O capitão tinha um gancho no lugar da mão esquerda. Quando era aspirante da marinha, durante uma viagem pelo rio Yang-tsé, negociando ópio, piratas da frota do Lótus Branco cercaram sua lorcha e, no combate, lhe cortaram a mão esquerda. Depois, ele fora enaltecido por sua bravura. Seu amado ídolo, Dirk Struan, trouxera-o de volta do abismo e o pusera para trabalhar com o comandante de sua frota, Orlov, o Corcunda, que recebera ordens para lhe ensinar tudo o que sabia.
— Claro! — exclamou Sheeling, sorridente. Ele tomou um gole enorme. — Excelente, Jamie! Preferia um uísque, como sabe muito bem, mas isso terá de esperar até Honolulu... planejo partir imediatamente, só vim...
— Honolulu? — disseram Struan e Jamie, quase ao mesmo tempo.
Não era uma escala habitual para os clíperes da companhia, atravessando o Pacífico até San Francisco e voltando o mais depressa possível.
— Qual é sua carga? — indagou Malcolm, quase acrescentando “tio Sheeley”, o nome que usava nos bons tempos de sua infância.
— As coisas de sempre, chá e especiarias para San Francisco. Mas tenho ordens para entregar correspondência a nossos agentes no Havaí.
— Ordens da mãe?
Sheeling acenou com a cabeça, uma expressão de simpatia nos olhos cinza. Ouvira rumores, e se encontrava a par de parte do problema entre mãe e filho — o noivado de Malcolm e a oposição da mãe eram o tema de todas as conversas em Hong Kong —, mas tinha instruções rigorosas para não mencionar o assunto.
— Como estão os negócios no Havaí? — perguntou Malcolm, sentindo nova pontada de ansiedade. — Ela disse?
— Não. A Sra. Struan apenas me ordenou que passasse por lá.
Uma rajada de vento sacudiu as persianas. Eles olharam pela janela. Na baía: o clíper de três mastros estava ancorado, balançando nas ondas, as velas prontas para serem içadas de novo, disposto a se lançar ao mar outra vez, para enfrentar os ventos, bons e maus, qualquer coisa que tivesse pela frente. Os três homens se enfunaram, como velas de orgulho, e Sheeling experimentou intensa satisfação por comandar aquele rei dos mares. Tornou a concentrar sua atenção em Malcolm, coçou o pescoço com o gancho, distraído.
— Recebi a ordem de vir até aqui pelo mesmo motivo: a correspondência. — Ele entregou a bolsa. — Podem me dar um recibo de entrega, por favor?
— Claro. — Malcolm acenou com a cabeça para Jamie, que começou a escrever o recibo. — Quais são as novidades em Hong Kong?
— Eu diria que a maior parte consta da correspondência, mas também trouxe os últimos jornais, de Hong Kong e de Londres... deixei lá embaixo, no seu escritório.
Sheeling tomou o resto do chá, ansioso em partir. Aquela seria sua quarta visita havaiana, ao longo dos anos, e conhecia a beleza de suas mulheres, a natureza excepcional, irradiando alegria, um lugar em que o dinheiro quase não era uma consideração, muito diferente de Hong Kong, Xangai ou qualquer outro porto em que já estivera. Desta vez comprarei alguma terra, em segredo. Sob um nome diferente. Irei para o Havaí no ano que vem, quando me aposentar, e ninguém precisa saber disso. O pensamento de largar a esposa, uma megera consumada, e os filhos vorazes, em Londres, papai me compra isto, papai me compra aquilo — não que os visse com freqüência —, deixou-o contente.
— Eu me referia às notícias locais de Hong Kong — explicou Struan.
— Ah, sim. Primeiro, sua família está muito bem, a Sra. Struan, seu irmão, suas irmãs, embora o jovem Duncan estivesse com outra gripe forte no momento em que parti. Quanto a Hong Kong, as corridas continuam sensacionais, assim como a comida, o estabelecimento da Sra. Fortheringill continua a prosperar, apesar de uma recessão, a Casa Nobre permanece em seu curso, como você já sabe melhor do que eu, bem como os rumores habituais de que sua situação não é das melhores, provavelmente espalhados pelos Brocks, mas isso também é habitual, nunca muda. — Sheeling levantou-se. — Agradeço todas as gentilezas, mas é melhor eu partir agora, aproveitar a maré.
— Não vai pelo menos ficar para almoçar?
— Não, obrigado. É melhor eu...
— Que rumores? — indagou Malcolm, em tom ríspido.
— Nada que valha a pena repetir, Sr. Malcolm.
— Por que não me chama de tai-pan, como todos os outros? — disse Malcolm, irritado, o medo do que podia haver na correspondência a corroê-lo. — Eu sou, não é mesmo?
A expressão de Sheeling não se alterou; gostava de Malcolm, admirava-o, lamentava pelo fardo que ele tinha agora de carregar.
— É, sim, e tem toda razão, chegou a hora de eu parar de chamá-lo de “Sr. Malcolm”. Mas, pedindo perdão, seu pai me disse exatamente a mesma coisa depois que se tornou o tai-pan, quando o tufão matou o... matou o tai-pan, Sr. Dirk. Como sabe, ele era muito especial para mim, e perguntei ao meu comandante, capitão Orlov, se podia conversar com o Sr. Culum. O capitão concordou, e eu disse ao seu pai que sempre chamaria o Sr. Dirk de tai-pan. E indaguei se, como um favor especial, poderia chamá-lo apenas de senhor, ou mister Struan. Ele disse que eu podia. Foi um favor especial. Poderia...
— Pelo que sei, o capitão Orlov chamava meu pai de tai-pan e meu pai também era especial para ele, talvez ainda mais.
— É verdade — murmurou o capitão, empertigando-se. — Quando o capitão Orlov desapareceu, seu pai me pôs no comando da frota. Servi a seu pai com todo o meu empenho, como também servirei a você, e a seu filho, se viver por tanto tempo. Como um favor especial, poderia tratá-lo da mesma maneira que a seu pai?
Sheeling era mais do que valioso para a Casa Nobre. Todos os três sabiam disso. E também conheciam sua inflexibilidade. Malcolm acenou com a cabeça, mas sentia-se magoado.
— Eu lhe desejo uma viagem segura, capitão.
— Obrigado, senhor. E... e boa sorte, Sr. Struan, em tudo. E a você também, Jamie.
Enquanto ele se encaminhava para a porta, Malcolm rompeu o primeiro lacre. Antes que o capitão tocasse na maçaneta, a porta foi aberta pelo outro lado. Era Angelique. Touca, vestido azul marinho, luvas, sombrinha. Todos os três homens prenderam a respiração por sua radiância.
— Oh, desculpe, chéri. Não sabia que estava ocupado...
— Não tem problema, pode entrar. — Malcolm levantou-se com dificuldade. — Quero apresentá-la ao capitão Sheeling, do Dancing Cloud.
— Ah, monsieur, é um lindo navio! Tem muita sorte.
— Também acho, miss. Obrigado — disse Sheeling, retribuindo o sorriso. Por Deus, pensou ele, nunca a tendo visto antes, quem pode culpar Malcolm? — Bom dia, miss.
Ele bateu continência e se retirou, embora não desejasse sair agora, pelo menos por mais algum tempo.
— Desculpe interromper, Malcolm, mas disse que eu viesse buscá-lo para o almoço, que será com Sir William... e espero que não tenha esquecido que marquei uma aula de piano com André esta tarde e combinei para tirarmos nosso daguerreótipo às cinco horas. Olá, Jamie.
— Nosso retrato?
— Isso mesmo. Lembra daquele italiano engraçado que chegou com o último navio de correspondência, procedente de Hong Kong, para passar uma temporada aqui? Ele faz retratos e garante que vamos ficar muito bonitos!
A maior parte da preocupação de Malcolm se dissipou e ele sentiu toda a presença de Angelique, babando por ela, embora a tivesse visto apenas uma hora antes — café em sua suíte às onze horas, um hábito que ela instituíra, e que ele adorava. Durante as últimas duas ou três semanas, a disposição amorosa de Angelique parecia ter desabrochado ainda mais, apesar de ela consumir muito do seu tempo em passeios a cavalo, prática de arco e flecha, aulas de piano, planejando saraus, ou escrevendo seu diário ou cartas, o que era um modo de vida para todos. Mas, a cada momento que passava em sua companhia, ela era tão atenciosa e terna quanto uma mulher podia ser. O amor e a necessidade que sentia dela cresciam a cada dia, sufocando-o com seu poder.
— O almoço será a uma hora, querida, e passa um pouco de meio-dia —disse Malcolm e, por mais que não quisesse que ela se retirasse, acrescentou: — Pode nos dar alguns minutos?
— Claro.
Com extrema graça, Angelique pareceu dançar até ele, beijou-o e foi para sua suíte, ao lado. Seu perfume perdurou como uma lembrança deliciosa.
Os dedos de Malcolm tremeram ao romperem o último lacre. Havia três cartas lá dentro. Duas de sua mãe, uma para ele, outra para Jamie. A terceira carta era de Gordon Chen, o compradore da companhia e seu tio.
— Tome aqui — murmurou ele, entregando a carta para Jamie.
Seu coração batia forte, desejando que Sheeling não tivesse chegado. As outras duas cartas ardiam em seus dedos.
— Vou deixá-lo sozinho — disse Jamie.
— Não. As más notícias precisam de companhia. — Malcolm levantou os olhos. — Abra a sua.
Jamie obedeceu e leu rapidamente. Seu rosto ficou vermelho.
— É particular, Jamie?
— Diz o seguinte: “Caro Jamie”... é a primeira vez que ela usa esse tratamento em muito tempo... “você pode mostrar esta carta a meu filho, se assim o desejar. Estarei enviando Albert MacStruan, assim que puder providenciar, do nosso escritório em Xangai. Deve aceitá-lo como seu sub e lhe ensinar tudo o que puder sobre a nossa operação japonesa, para que, a menos que duas coisas aconteçam, ele possa assumir o comando, quando você deixar a companhia. A primeira coisa é o retorno de meu filho a Hong Kong até o Natal. A segunda é você acompanhá-lo.” — Jamie fitou-o, desolado. — É isso. E mais a assinatura.
— Não, não é isso! — exclamou Malcolm, sentindo que o próprio rosto se tornava quente. — Assim que Albert chegar, terá de voltar no mesmo navio.
— Não há mal nenhum em deixá-lo ficar por alguns dias, dar uma olhada nas coisas. É um bom sujeito.
— A mãe... nunca imaginei que ela pudesse ser tão cruel: se eu não obedecer e me submeter, você está despedido...
Os olhos de Malcolm desviaram-se para a cômoda. Durante as últimas semanas, fizera um imenso esforço para limitar seu consumo a uma vez por dia, mas houvera ocasiões em que fracassara.
— O láudano com moderação, Malcolm — dissera o Dr. Babcott —, é uma panacéia para a dor.
Ele pedira que Malcolm lhe mostrasse o medicamento, não para tirá-lo, apenas para verificar o conteúdo.
— É uma poção bastante forte. Lembre-se de que não é uma cura e, para algumas pessoas, se torna um vício.
— Não para mim. Preciso disso por causa da dor. Acabe com a dor e eu deixarei de tomar.
— Lamento, meu amigo, mas eu bem que gostaria de poder. Seus órgãos internos foram bastante lesionados, não demais, graças a Deus, mas mesmo assim levará algum tempo para uma cura completa.
Tempo demais, pensou Malcolm agora, ou estou pior do que Babcott quer admitir? Ele olhou para as duas cartas, relutando em abri-las. Era muita sordidez usar Jamie como arma.
— Uma indignidade.
— Sua mãe tem certos direitos — murmurou Jamie.
— Ela não é tai-pan, eu é que sou. O testamento do pai foi claro. — A voz de Malcolm era apática, os pensamentos em turbilhão. — Acho que o velho tio Sheeley tinha razão, você tem de fazer jus ao título, não é mesmo?
— Você é o tai-pan. — Jamie falou com extrema gentileza, embora soubesse que não era verdade. — É estranho que Sheeling tenha se referido a Orlov. Há anos que eu não pensava nele. Eu me pergunto o que aconteceu com ele.
— Eu também — disse Malcolm, distraído. — O pobre coitado se tornou um homem marcado depois que explodiu em pleno mar o filho número um de Wu Sung Choi. Deve ter sido seqüestrado pelos piratas do Lótus Branco. Macau é um lugar perigoso, de fácil acesso à China, e o Lótus Branco tem espiões por toda parte. Eu detestaria estar na lista deles...
A voz definhou. Ele baixou os olhos para as cartas, absorto em seus pensamentos. Jamie esperou um pouco e depois disse:
— Dê-me um grito, se eu puder ajudar. Vou examinar o resto da correspondência.
Ele saiu. Malcolm não ouviu a porta fechar. Havia o pós-escrito “eu amo você” na carta da mãe, o que indicava que não continha nenhuma mensagem secreta:
Meu querido mas pródigo filho: Eu planejava viajar no Dancing Cloud, mas decidi contra isso no último minuto, já que Duncan passava mal, com o crupe outra vez. Talvez o que eu tenha a dizer seja melhor por escrito, pois assim não haverá equívocos.
Recebi suas mal-avisadas cartas sobre o que vai fazer e o que não vai fazer, sobre seu “noivado”, Jamie McFay, miss Richaud, etc. — e sobre os cinco mil fuzis. Escrevi imediatamente e cancelei essa encomenda extravagante.
Chegou o momento para decisões às claras. Já que você não se encontra aqui, e não quer fazer o que peço, eu as tomarei. Para o seu conhecimento particular, tenho o direito de fazer isso.
Quando seu pai estava morrendo, pobre homem, não havia tempo de esperar pelo seu retorno, e por isso, quase que no último alento, ele me tornou tai-pan de fato, de acordo com todos os dispositivos no testamento e legado de Dirk —alguns deles terríveis —, todos os quais têm de ser aceitos, diante de Deus, e devem ser mantidos em segredo, de tai-pan para tai-pan. Na ocasião, era nossa expectativa que eu passaria o comando para você, assim que voltasse. Uma das leis fixadas por Dirk diz o seguinte: É dever do tai-pan jurar absoluta convicção na integridade de seu sucessor. Não posso fazer isso por você no momento. Tudo isso, mais o que se segue, repito, é apenas para seu conhecimento particular — prejudicaria a Struan, se fosse divulgado, e por isso deve destruir a carta depois de lê-la.
Pela correspondência de hoje para a Escócia, ofereci o posto de tai-pan a seu primo Lochlin Struan, filho de tio Robb, com quatro condições: primeiro, que ele venha imediatamente para Hong Kong, e passe três meses em treinamento aqui; como você sabe, ele é bem versado nas operações da companhia, mais do que você em tudo o que se refere à Grã-Bretanha, embora você seja de longe mais capacitado e melhor treinado; segundo, que ele concorde em manter tudo isso em segredo; terceiro, que ao final do período de experiência, diante de Deus, farei a escolha final entre vocês dois, e minha decisão será inapelável, é claro; quarto, que se você recuperar o juízo perfeito, ele concorda que eu devo escolhê-lo, mas ele será o seguinte, caso você não tenha filhos, com Duncan em terceiro.
Recuperar seu juízo perfeito, meu filho, significa voltar a Hong Kong de imediato, o mais tardar até o dia de Natal, sozinho, a não ser pela companhia de Jamie McFay (e do Dr. Hoag, caso queira que ele viaje junto), para conversar sobre seus planos futuros, assumir os deveres prementes e se preparar para a posição para a qual foi treinado durante toda a sua vida. Caso você demonstre ser satisfatório, eu o promoverei a tai-pan quando completar vinte e um anos, a 21 de maio.
Mostrei esta carta a Gordon Chen e pedi-lhe que comentasse o que julgasse necessário, pois nosso compradore deve, mas DEVE mesmo, pela Lei de Dirk, participar de todas as discussões sobre o poder. Sua mãe devotada. PS. Eu amo você, e um P.P.S.: Obrigada por sua informação sobre o Parlamento, mais uma manifestação da habitual estupidez deles (via o estranho canal do nosso arquiinimigo Greyforth. Tome cuidado com ele, é um homem que não nos deseja nada de bom, mas você já sabe disso melhor do que eu). Mas é verdade, ouvimos os rumores, embora o governador ainda negue qualquer conhecimento. Escrevi para os nossos parlamentares aos primeiros rumores, dizendo-lhes que acabassem com esse absurdo, se for verdade, e para Bengala, alertando todo mundo ali. Depois de sua carta, escrevi de novo. É realmente hora de você voltar para casa, assumir seu dever e enfrentar nossos crescentes problemas.
— Dever! — gritou Malcolm para a parede.
Ele amassou a carta numa bola, arremessou-a contra a parede com toda força, machucando-se com a própria violência. Levantou-se, cambaleando, claudicou até a cômoda. O vidro continha sua dose noturna. Ele tomou tudo, quebrou o vidro no tampo de carvalho, praguejando, e quase caiu, ao tatear de volta para a cadeira.
— Ela não pode fazer isso! Não pode! Aquela... aquela desgraçada não pode fazer isso... não pode! “Voltar sozinho” significa sem Angel... não farei isso e ela não vai interferir...
Malcolm continuou a meio pensar e meio falar, as imprecações se sucedendo, até que o opiato entrou na corrente sanguínea e começou a proporcionar o alívio letal.
Depois de algum tempo, ele notou a outra carta, do compradore, Gordon Chen meio-irmão de seu pai, um dos muitos filhos ilegítimos de Dirk Struan.
— Conhecemos no mínimo três — disse ele, em voz alta.
Meu querido sobrinho: Já escrevi para dizer o quanto lamento sua desventura, os ferimentos, o acidente. Lamento ainda mais saber que há uma desavença entre você e sua mãe, que pode se tornar perigosa e até desintegrar a Casa Nobre — portanto, é meu dever comentar e aconselhar. Ela me mostrou a carta que escreveu para você. Não lhe mostrei a minha, nem mostrarei. Na minha, tratarei apenas da posição de tai-pan, e darei o meu conselho muito particular sobre a moça: seja chinês.
Fatos: embora você seja formalmente o herdeiro de meu meio-irmão, sua mãe alega corretamente que não passou pela cerimônia obrigatória, confirmações, juramentos e assinaturas determinados pelo testamento e legado de meu honrado pai, que são necessários antes que se torne tai-pan. Para que tudo seja válido, deve ser testemunhado pessoalmente e confirmado por escrito pelo atual compradore, que deve ser do meu ramo da casa de Chen. Só assim o escolhido vira o tai-pan.
Antes de morrer, seu pai designou sua mãe para tai-pan. Foi feito da maneira correta, com todos os detalhes obrigatórios. Eu testemunhei. Ela é tai-pan, legalmente, e tem o poder sobre a Casa Nobre. É verdade que seu pai e sua mãe esperavam que o cargo fosse transmitido logo para você, mas ela também está certa ao dizer que uma das obrigações do tai-pan é atestar diante de Deus a integridade de seu sucessor, e também é verdade que a Casa Nobre só é dirigida por quem o tai-pan, seja homem ou mulher, decidir escolher, cabendo-lhe também determinar o momento da sucessão. Meu único conselho é o seguinte: seja sensato, engula seu orgulho, volte imediatamente, submeta-se, aceite um período de “experiência”, volte a ser um filho obediente, honrando seus ancestrais, para o bem da Casa. Obedeça à tai-pan. Seja chinês.
Malcolm Struan ficou olhando fixamente para a carta, seu futuro em ruínas, tudo mudado. Então ela é tai-pan! A mãe! Se tio Gordon assim o diz, é verdade! Ela me privou do meu direito hereditário, a mãe fez isso comigo!
Mas não é o que ela realmente queria, ao longo dos anos? Não foi ela quem sempre adulou, suplicou, conspirou, fez tudo o que era necessário, para dominar o pai, a mim, a todos nós? Suas irritantes orações familiares todos os dias, a igreja duas vezes aos domingos, nós a seguindo, quando uma única vez é mais do que suficiente. E a bebida? “A embriaguez é uma abominação”, citações da Bíblia o dia inteiro, ao ponto da insanidade, sem qualquer diversão em nossas vidas, a quaresma respeitada ao pé da letra, jejum, censuras à exuberância de Dirk Struan, que Deus o amaldiçoe, sempre dizendo como era terrível ter morrido tão jovem... nunca dizendo que ele morreu no tufão com a amante chinesa nos braços, um fato que era e ainda é o escândalo da Ásia... sempre com sermões sobre os males da carne, a fraqueza do pai, a morte de minha irmã e dos gêmeos...
Subitamente, ele se empertigou na cadeira. Insanidade? É isso mesmo! Eu poderia interná-la num hospício? Talvez ela seja insana. Será que tio Gordon me ajudaria... Pare! Eu é que estou louco. Eu que...
— Malcolm, está na hora do almoço.
Ele levantou os olhos e se descobriu a falar com Angelique, dizendo como ela estava bonita, mas será que se importaria de ir sozinha, pois ainda havia umas poucas coisas importantes a serem decididas, cartas a escrever — não, nada que a afetasse, apenas problemas de negócios —, durante todo tempo recordando o “volte sozinho” e “submeta-se, ela é tai-pan” martelando em sua mente.
— Por favor, Angelique.
— Claro, se é isso o que você quer. Mas tem certeza de que se sente bem, meu amor? Não está com febre, não é?
Malcolm permitiu que ela pusesse a mão em sua testa, puxou-a para seu colo, beijou-a, Angelique retribuiu, soltou uma risada alegre, ajeitou o corpete, disse que voltaria depois da aula de piano, que ele não precisava se preocupar, e deveria usar um traje de noite para o retrato, garanto que vai ficar impressionado com o meu novo vestido de baile.
E depois ele voltou a ficar sozinho, com seus pensamentos, as mesmas palavras remoendo no cérebro: “volte sozinho... Ela é tai-pan.” Como a mãe ousa cancelar a encomenda dos fuzis... o que ela sabe deste mercado?
Tai-pan legalmente. Portanto, ela é quem manda. Com toda certeza, até eu completar vinte e um anos, e mesmo depois. Até que ela não seja mais. Até...
Ah, essa é a solução? Foi o que tio Gordon quis dizer ao escrever “seja chinês”? Ser chinês como? Apenas ser paciente? Como um chinês enfrentaria minha situação?
E pouco antes de mergulhar em seu sono especial, Malcolm sorriu.
Era sábado, uma tarde agradável, e uma partida de futebol fora marcada. A maior parte da colônia foi assistir, com as brigas e histeria habituais, um delírio quando um lado ou outro marcava um gol, exército contra marinha, cinqüenta homens de cada lado. O placar era exército 2 marinha 1, e o primeiro tempo ainda não terminara. As substituições e brigas eram permitidas, quase tudo era permitido, e o único objetivo era forçar a bola a passar entre as estacas do adversário.
Angelique, sentada à altura do campo, entre Sir William e o general, estava cercada pelos demais convidados do almoço — Seratard e os outros ministros, André e Phillip Tyrer —, que haviam decidido assistir ao jogo. Havia ainda ali, disputando sua atenção, oficiais britânicos e franceses, inclusive Settry Pallidar e Marlowe, o único oficial da marinha britânica. Jamie sentava perto. Quando ela voltara apressada para dizer a Malcolm que cancelara a aula de piano, o que era outra desculpa para não ter de ficar sentada com ele, e perguntar se não gostaria de ir ao jogo, encontrara-o dormindo. Por isso, pedira a Jamie para acompanhá-la.
— É melhor mesmo deixá-lo dormir... escreverei um bilhete — dissera Jamie satisfeito por qualquer pretexto para distraí-lo do desastre iminente. — É uma pena que ele não possa assistir ao jogo. Malcolm era um entusiasta dos esportes, como sabe, um grande nadador, excelente no críquete e também no tênis. É triste que ele esteja... que não seja mais como antes.
Angelique percebera que Jamie estava tão sombrio quanto Malcolm, mas não tinha importância, pensara ela, os homens em geral são sérios demais, e era ótimo ter uma companhia, para frustrar os outros. Desde o grande dia, quando a coisa que crescia em seu ventre deixara de existir, e recuperara a saúde e o vigor, sentindo-se melhor do que nunca, ela concluíra que seria uma insensatez ficar a sós com qualquer um deles. Exceto André. Para sua satisfação, ele mudara, não era mais ameaçador, nem se referia à ajuda que lhe prestara, o que ela preferia esquecer. Também não a fitava mais com grosseria, com olhos em que se podia perceber facilmente a crueldade, embora a crueldade ainda espreitasse em seu íntimo.
Era importante mantê-lo como amigo, pensou Angelique, consciente de sua vulnerabilidade. Escute, mas seja cautelosa. Algumas coisas que ele diz são boas: “Esqueça o que aconteceu antes, pois nunca aconteceu.”
André tem razão. Nada aconteceu. Nada, exceto que ele está morto. Amo Malcolm, gerarei seus filhos, serei a esposa perfeita, uma grande anfitriã, e nosso salão em Paris será...
Uma gritaria atraiu sua atenção. Um bando de jogadores da marinha forçara a passagem da bola entre os postes do adversário, mas os homens do exército tiraram a bola lá de dentro, e agora começara um tumulto geral, a marinha insistindo que fora gol, o exército contestando. Dezenas de marujos entraram no campo para se juntar à confusão, seguidos pelos soldados, e logo a briga se tornou generalizada, mercadores e outros aplaudindo e rindo, apreciando o espetáculo, enquanto o árbitro, Lunkchurch, tentava desesperadamente permanecer fora da luta e ao mesmo tempo restabelecer um pouco de ordem no campo.
— Ei, olhem só... o pobre coitado está sendo chutado até a morte!
— Não precisa se preocupar, Angelique, é apenas uma brincadeira mais rude — disse o general. — É claro que não foi gol.
O homem era da marinha e por isso não o interessava. Sir William, no outro lado de Angelique, também se encontrava tão excitado quanto os outros, pois não havia nada como uma boa briga para alegrar os espíritos. Mesmo assim, consciente da presença de Angelique, inclinou-se para o general e disse:
— Não acha que devemos continuar com o jogo, Thomas?
— Tem toda razão. — O general gesticulou para Pallidar. — Acabe com essa briga, por favor... argumente com eles.
Pallidar, dos Dragões, entrou no campo, sacou seu revólver e disparou para o ar. Todos ficaram paralisados.
— Escutem bem! — gritou ele, atraindo a atenção geral. — Todos fora do campo, à exceção dos jogadores. A ordem do general: outra confusão e a partida está cancelada; os envolvidos serão disciplinados. Vamos logo!
O campo começou a se esvaziar, muitos claudicando, os feridos sendo arrastados por seus companheiros.
— E agora, senhor árbitro, foi gol ou não?
— Bom, capitão, sim e não...
— Foi gol ou não?
O silêncio era opressivo. Lunkchurch sabia que qualquer coisa que dissesse seria errada. Decidiu que a verdade era melhor:
— Um gol da marinha!
Entre aplausos e vaias, ameaças e contra-ameaças, Pallidar voltou, empertigado, muito satisfeito consigo mesmo.
— Oh, Settry, que bravura! — exclamou Angelique, com tanta admiração que Marlowe e os outros sentiram-se roídos de ciúme.
— Bom trabalho, meu caro — comentou Marlowe, relutante, enquanto o jogo, a luta, recomeçava, sob aplausos, abafados por vaias e imprecações.
— Um bom jogo, Thomas, não acha? — disse Sir William.
— É evidente que não foi gol. O árbitro...
— Conversa fiada! Cinco guinéus dizem que a marinha vai ganhar.
O pescoço do general assumiu uma tonalidade vermelha mais escura, o que deixou Sir William satisfeito e ajudou-o a superar o mau humor. Ultimamente só havia brigas e discussões na colônia e na cidade dos bêbados, cartas irritantes, protestos do Bakufu e da alfândega, e ele não esquecera a estupidez do general durante o motim.
Aumentando seus pesares, o último navio de correspondência só trouxera mais notícias ruins e prognósticos sombrios do Ministério do Exterior, alertando que a falta de apoio financeiro no Parlamento acarretaria grandes cortes no pessoal diplomático e “embora os cofres do império estejam abarrotados, não haverá aumentos de salário este ano. A guerra americana promete ser a mais brutal da história, por causa da invenção recente da granada, cartucho de bronze, fuzil de carregar pela culatra, metralhadora e canhão de carregar pela culatra; com a derrota das forças da União em Shiloh e na segunda batalha de Bull Run, prevê-se, no momento, que a guerra será vencida pelos Confederados, a maioria dos analistas na City já concluiu que o presidente Lincoln é fraco e ineficaz, mas devo ressaltar, meu caro Willie, que a política de sua majestade continua a mesma: apoiar os dois lados, manter a cabeça abaixada e permanecer fora desse conflito...”
As notícias européias também eram ruins: tropas de cossacos russos haviam massacrado milhares de poloneses em Varsóvia, que realizavam uma manifestação contra o domínio russo; o príncipe Von Bismarck fora designado ministro-presidente da Prússia e corriam rumores de que se preparava para a guerra contra a França expansionista; a Áustria-Hungria e a Rússia pareciam se encontrar à beira da guerra outra vez; era inevitável a ocorrência de mais combates nos Bálcãs...
E assim por diante, ad nauseam, pensou Sir William, franzindo o rosto. Nada muda! E não posso acreditar que o Bakufu fará tudo o que prometeu, o que significa que terei de impor nossa presença aqui. Ensinarei aos japoneses que uma promessa é uma promessa, se feita à soberania britânica, e lembrar a mesma coisa a Zergeyev, Seratard e aos outros.
Bombardear Iedo seria a solução mais simples e mais fácil, o que os tornaria submissos num instante. Mas tenho o problema de Ketterer... talvez sua incursão pelos livros de história o tenha mudado. Que esperança...
— Um rublo por seus pensamentos, Sir William — disse o conde Zergeyev, com um sorriso, oferecendo um frasco de prata com o brasão da família gravado em ouro. — Vodca é bom para pensamentos.
— Obrigado.
Sir William tomou um gole, sentiu o fogo descer pela goela, lembrando-o de todos os momentos maravilhosos na embaixada em São Petersburgo, quando ainda se encontrava na casa dos vinte anos, um centro do poder, não um posto de fronteira como Iocoama, bebendo e se divertindo, bailes, balés, dachas, vida noturna, luxo — para os poucos privilegiados —, excitamento e intriga, jantares maravilhosos e Vertinskya, nunca longe de seus pensamentos.
Por cinco de seus sete anos ali, ela fora sua amante, a filha mais nova de um ourives muito apreciado na corte, uma artista como o pai, que nunca se incomodara com a ligação, a mãe russa do próprio William gostando da moça e querendo o casamento dos dois.
— Sinto muito, mamãe, mas não há a menor possibilidade, por mais que eu deseje. O ministério nunca aprovaria. Terei de casar com Daphne, a filha de Sir William. Sinto muito...
Ele tornou a beber, a angústia pela separação ainda persistente.
— Estava pensando em Vertinskya — disse ele, em russo.
— Ah, sim! As moças da Mãe Rússia são muito especiais — comentou Zergeyev, compadecido, na mesma língua. — O amor delas, se um homem recebe essa bênção, é eterno, duas vezes eterno.
A ligação contara com a indulgência dos círculos diplomáticos e fora bem documentada pela Cheka, a polícia secreta do czar, e por isso parte do dossiê de Sir William, que Zergeyev lera, como não podia deixar de ser. Uma estupidez a moça se matar, pensou ele; nunca tivera certeza se William tomara conhecimento do suicídio, ocorrido pouco depois de seu retorno a Londres. Isso nunca fora parte do plano, nem era seu dever lhe contar. Por que ela fizera isso? Por causa de um homem tão rústico? Não era possível, com toda certeza; mas qualquer que fosse o motivo, era uma pena, pois sua utilidade, para nós dois, teria se prolongado por muitos mais anos.
— Talvez o seu Ministério do Exterior o envie de novo para lá... e há outras Vertinskyas.
— Não há muita possibilidade de que isso venha a acontecer, infelizmente.
— Vamos torcer. A outra esperança, mon ami, é que seu lorde Palmerston veja a lógica que devemos ficar com as Kurilas. Como os Dardanelos... os dois lugares têm de ser russos.
Sir William percebeu o brilho nos olhos escuros.
— Também não há muita possibilidade.
O apito do meio tempo soou, o placar ainda era de dois a dois, com recriminações, elogios e promessas de terríveis punições para os perdedores. No mesmo instante, Marlowe aproximou-se de Jamie.
— Acha que o Sr. Struan e... hum... e miss Angelique gostariam de se juntar a mim a bordo do Pearl para o almoço e um dia de passeio? — Uma pausa, e ele acrescentou, como se fosse um pensamento repentino: — Preciso fazer algumas experiências, assim que a esquadra voltar, e seria um prazer tê-los a bordo.
— Creio que gostariam. Por que não pergunta a ele?
— Quando seria o melhor momento?
— Qualquer dia por volta das onze horas... ou pouco antes do jantar.
— Muito obrigado. — Marlowe estava radiante, mas logo percebeu a palidez de Jamie. — Você está bem?
— Estou, sim, obrigado.
Jamie forçou um sorriso e afastou-se. Estivera considerando seu futuro. Poucas semanas antes, escrevera para Maureen Ross, sua noiva, na Escócia, dizendo que não esperasse mais por ele — quase três anos desde que a vira pela última vez, cinco anos de noivado —, que sentia muito, sabia que fora abominável mantê-la à espera por tanto tempo, mas finalmente se convencera, de forma absoluta, que o Oriente não era lugar para uma dama, e também que a Ásia não era seu lar, nem Iocoama, Hong Kong, Xangai, ou qualquer outro lugar, mas vivia aqui, e não tinha a menor intenção de ir embora. Sabia que fora injusto com ela, mas o noivado estava encerrado. Aquela seria a última carta.
Por dias sentira-se nauseado, antes de escrever, como também depois de escrever, e depois da partida do navio de correspondência. Esse capítulo estava concluído. E agora o capítulo Struan, que parecia tão promissor, com uma promoção inevitável no próximo ano, também vai terminar. Ah, Deus Todo-Poderoso! Não há a menor possibilidade de Malcolm voltar atrás e assim só me restam mais umas poucas semanas para decidir o que fazer... e não posso esquecer que Norbert voltará antes disso. E então? Será que vão mesmo travar um duelo? Farão o que bem quiserem, mas ainda assim você tem de proteger Malcolm, da melhor forma que puder.
E, depois, um novo emprego. Onde? Eu gostaria de ficar aqui, pois tenho Nemi, uma vida boa, com um futuro em aberto para construir. Hong Kong e Xangai já estão em grande parte construídas, com uma forte estrutura instalada — grande se você é um Struan, um Brock, um Cooper, e assim por diante, mas difícil de romper em caso contrário. A primeira opção seria aqui. Com quem? Com Dmitri, na Cooper-Tillman?
Poderiam me aproveitar? Claro, mas não como o homem principal. Na Brock? Claro, também, até pensei nisso nas profundezas da injustiça de Tess Struan, mas não serei o primeiro com Norbert aqui... mas se Malcolm o matasse, que golpe seria, que vingança! Lunkchurch? Com toda certeza, mas quem poderia querer trabalhar para aquele patife grosseiro? Que tal trabalhar por conta própria? Seria o melhor, todavia também o mais arriscado, e quem o patrocinaria? Precisaria de dinheiro. Tenho algum guardado, mas não o suficiente. Precisaria de muito para começar, muito para cumprir os prazos de espera, para cartas de crédito e seguros, tempo para arrumar agentes em Londres, San Francisco, Hong Kong, Xangai e toda a Ásia, Paris... e Londres, São Petersburgo. Não posso esquecer que os russos são grandes compradores de chá, negociarão zibelinas e outras peles, que proporcionam grandes lucros, e ainda têm contatos no Alasca russo e postos comerciais em toda a costa oeste sul-americana. Uma boa idéia, mas arriscada, um prazo prolongado entre a compra, a venda e o lucro, muitos riscos para os navios, as perdas no mar e para a pirataria...
Perto dali, Phillip Tyrer também tinha os olhos perdidos na distância. Pensava em Fujiko, e quase soltou um gemido alto. Na noite anterior, com seu amigo Nakama — Hiraga — para ajudá-lo, tentara iniciar as negociações para a sua exclusividade. Mama-san Raiko revirara os olhos, sacudira a cabeça, dizendo Sinto muito, duvido que seja possível, a moça é muito valiosa, procurada por muitos gai-jin importantes, com a insinuação de que até Sir William era cliente ocasional, embora nunca o mencionasse pelo nome, o que deixara Tyrer inquieto e ainda mais ansioso.
Raiko dissera que antes mesmo de discutir os detalhes financeiros e outros, teria primeiro de perguntar a Fujiko se consideraria a possibilidade, aumentando seu choque ao acrescentar que seria melhor se ele não tornasse a vê-la até e a menos que um contrato fosse acertado. Levara mais meia hora para se chegar a um compromisso, sugerido por Nakama: durante o período de espera, ele poderia se encontrar com Fujiko, mas nunca mencionaria a questão, nem discutiria o problema diretamente com ela, já que a responsabilidade era da mama-san.
Graças a Deus por Nakama, disse ele a si mesmo, num ímpeto de ansiedade, quase estraguei tudo. Se não fosse por Nakama...
Seus olhos focalizaram e ele viu Seratard e André Poncin absorvidos numa conversa particular; não muito longe, Erlicher, o ministro suíço, também mantinha uma conversa particular, com Johann, que se concentrava em cada palavra.
O que é tão urgente e importante para que esses homens discutam durante uma partida de futebol, especulou Tyrer, lembrando a si mesmo que era melhor não se entregar a devaneios, devia ser adulto e consciente de que nem tudo corria bem no Japão; tinha de cumprir seu dever para com a coroa e Sir William... Fujiko podia esperar até a noite, quando talvez obtivesse uma resposta.
Maldito Johann! Agora que o astuto suíço estava deixando seu posto como intérprete, seu fardo aumentava, deixando-lhe pouco tempo para dormir e se divertir. Ainda naquela manhã, Sir William tivera uma explosão, injusta, pensou Tyrer, amargurado:
— Pelo amor de Deus, Phillip, você tem de dedicar mais horas ao trabalho! Quanto mais depressa se tornar fluente, melhor para a coroa; quanto mais depressa Nakama for fluente em inglês, melhor para a coroa. Faça jus ao dinheiro que recebe, pare de relaxar, pressione Nakama, faça-o merecer o seu pão de cada dia ou ele irá embora!
Hiraga estava na legação, lendo em voz alta uma carta que Tyrer escrevera para Sir William, e que ele ajudara a traduzir, para ser entregue no dia seguinte ao Bakufu. Embora não entendesse muitas palavras, sua leitura vinha melhorando depressa.
— Você tem aptidão para o inglês, meu caro Nakama — dissera Tyrer, várias vezes.
Isso o agradara, embora normalmente os elogios ou críticas de um gai-jin não tivessem a menor importância. Ao longo das semanas, a maior parte de suas horas acordado fora consumida em absorver palavras e frases, repetindo-as muitas vezes, a tal ponto que a linguagem de seus sonhos se tornara misturada.
— Por que quebrar a cabeça, primo? — perguntara Akimoto.
— Devo aprender o inglês o mais depressa possível. Há muito pouco tempo, o líder gai-jin é grosseiro e destemperado, e não faço idéia de por quanto tempo mais poderei ficar aqui. Mas, se conseguir aprender a ler, Akimoto, quem sabe quantas informações poderei obter? Não pode acreditar no quanto eles são estúpidos em relação a seus segredos. Há centenas de livros, panfletos e documentos por toda parte. Tenho acesso a tudo, posso ler qualquer coisa e Taira sempre responde às minhas perguntas mais óbvias.
A conversa ocorrera na noite anterior, na casa segura que tinham na aldeia, e ele estava com uma toalha molhada em torno da cabeça dolorida. Não mais se encontrava confinado à legação. Podia agora ficar na aldeia, se assim desejasse, embora em muitas noites se sentisse cansado demais para sair, e dormisse numa cama extra no bangalô que Tyrer partilhava com Babcott. Por necessidade, George Babcott tivera de saber tudo a seu respeito.
— Maravilhoso! Nakama poderá me ajudar também com meu japonês e com o meu dicionário! Vou organizar as aulas, fazer um curso intensivo!
O sistema de Babcott era bastante radical. Aprender era uma diversão, e logo quase se desenvolvera num jogo, um jogo hilariante para determinar quem podia aprender mais depressa, um estilo novo para Hiraga e Tyrer, que encaravam o estudo como uma coisa séria, a ser absorvida pela decoração e repetição.
— As aulas se tornam muito rápidas, Akimoto, e fica mais fácil a cada dia... faremos a mesma coisa em nossas escolas quando sonno-joi assumir o poder.
Akimoto rira.
— Mestres gentis e bondosos? Sem surras? Nunca! Mais importante, o que me diz da fragata?
Ele dissera a Akimoto que Tyrer prometera pedir a um capitão amigo permissão para levar os dois a bordo, explicando que Akimoto era filho de um rico construtor de barcos de Choshu, viria visitá-lo por alguns dias e poderia ser um amigo valioso no futuro.
Pela janela aberta, Hiraga ouvia os gritos da multidão no campo em que se jogava a partida de futebol. Suspirou e pegou o dicionário escrito a mão de Babcott Era o primeiro dicionário que ele já vira e o primeiro inglês-japonês e japonês-inglês que já existira, Babcott o fizera com listas de palavras e frases recolhidas por ele próprio, por mercadores e sacerdotes, tanto católicos quanto protestantes, e com outras traduzidas de equivalentes holandês-japonês. No momento, o dicionário ainda era pequeno. Mas aumentava a cada dia, e o fascinava.
Pelo que se dizia, cerca de dois séculos antes um padre jesuíta chamado Tsukku-san escrevera uma espécie de dicionário português-japonês. Antes disso, jamais existira um dicionário japonês de qualquer tipo. Com o passar do tempo, haviam aparecido uns poucos dicionários holandês-japonês, guardados com o maior cuidado.
— Não precisa trancar isto, Nakama — declarara Babcott no dia anterior, deixando-o espantado. — Esse não é o estilo britânico. Temos de espalhar as informações, deixar que todos aprendam; quanto mais pessoas instruídas, melhor será para o país. — Ele sorrira, antes de acrescentar: — É claro que nem todos concordam comigo. Seja como for, na próxima semana, com a ajuda de nossos prelos...
— Prelos, por favor?
Babcott explicara:
— Muito em breve começaremos a imprimir coisas, e, se prometer escrever uma história de Choshu, prometo que darei uma cópia do meu dicionário só para você.
Uma semana antes, impressionado, Hiraga mostrara a Akimoto um exemplar do Yokohama Guardian.
— São as notícias do dia, do mundo inteiro, e eles preparam uma versão nova todos os dias, com quantas cópias quiserem... milhares, se for necessário...
— Impossível! — protestara Akimoto. — Nossos melhores blocos de impressão não podem...
— Vi eles fazerem, Akimoto. É tudo com máquinas. Arrumam as palavras no que eles chamam de tipos, em linhas, lêem da esquerda para a direita, o oposto de nós, que lemos da direita para a esquerda e para baixo nossas colunas de caracteres, coluna por coluna. É incrível. Vi o homem da máquina fazer palavras com símbolos individuais, chamados “letras romanas”... dizem que todas as palavras em qualquer língua podem ser escritas com apenas vinte e seis desses símbolos e...
— Impossível!
— Escute o resto. Cada letra ou símbolo sempre tem o mesmo som; assim, outra pessoa pode ler as letras individuais ou formar palavras com elas. Para fazer este “papel de notícias”, o impressor usa combinações de pequenas peças de ferro com o símbolo cortado na extremidade... desculpe, não é bem ferro, mas uma espécie de ferro que eles chamam de “aço”. O homem pôs as letras numa caixa, besuntada com tinta, passou o papel por cima, e apareceu uma nova página impressa, que continha uma coisa que eu escrevera um momento antes. E Taira leu exatamente! Um milagre!
— Mas como podemos fazer isso com a nossa língua? Cada palavra é um caractere especial, com até cinco ou sete maneiras diferentes de dizer, nossa escrita é diferente e...
— O doutor gigante escuta quando eu digo uma palavra japonesa, escreve em suas letras romanas, e depois Taira diz a palavra, só lendo os símbolos.
Fora preciso mais explicação de Hiraga para convencer Akimoto. Ao final, ele comentara, exausto:
— Tantas coisas novas, idéias novas, muito difícil para mim compreender, ainda mais explicar. Ori era um tolo por não querer aprender.
— Ainda bem, para nós, que ele morreu, foi enterrado e esquecido pelos gai-jin. Durante dias, pensei que estávamos perdidos.
— Eu também.
Hiraga encontrou a palavra em inglês que procurava, “reparações”. A tradução japonesa era a seguinte: “dinheiro a ser pago por um crime admitido”. Isso o deixou perplexo. O Bakufu não cometera nenhum crime. Dois Satsumas, Ori e Shorin, haviam apenas matado um gai-jin, agora ambos estavam mortos, dois por um gai-jin, nada mais justo. Por que deveriam exigir “reparações”, ele pronunciou a palavra em voz alta, o som mais próximo de que sua língua era capaz.
Levantou-se da mesa, para atenuar a pressão nos joelhos, já que era difícil sentar como um gai-jin durante o dia inteiro, e foi até a janela. Usava suas roupas ocidentais, mas tinha um tabe macio nos pés, pois ainda achava as botinas inglesas desconfortáveis demais. O dia ainda era bom, os navios ancorados, barcos pesqueiros e outras embarcações deslizando de um lado para outro. A fragata o atraía. Seu excitamento aumentou. Muito em breve conheceriam seu interior, veriam as grandes máquinas a vapor de que Taira lhe falara. Ele olhou para uma fotografia recortada de uma revista e pregada na parede, do Grande Navio, um enorme navio de ferro que estava sendo construído na capital britânica, Londres, o maior que ele já vira, vinte vezes maior do que a fragata na baía. Era enorme demais para se conceber... era-lhe impossível compreender até mesmo “fotografar”, quase uma forma de magia. Hiraga estremeceu, depois percebeu que a porta para o corredor se achava entreaberta e, no outro lado, ficava a porta de Sir William. Pelo que ele sabia, não havia ninguém na legação, todos tinham saído para assistir ao jogo de futebol, e não eram esperados até o final da tarde.
Sem fazer barulho, ele foi abrir a porta de Sir William. Havia muitos papéis em cima da escrivaninha requintada, meia centena de livros nas prateleiras desarrumadas, um retrato da rainha deles e outros quadros nas paredes. Uma coisa nova num aparador. Um retrato numa moldura de prata. Hiraga viu apenas feiúra, uma mulher gai-jin vestida de maneira esquisita, com três crianças, e concluiu que devia ser a família de Sir William, a qual Tyrer comentara que deveria chegar em breve.
Ainda bem que sou japonês, e civilizado, com um pai, mãe, irmãos e irmãs bonitos, e com Sumomo para casar, se o casamento for meu karma. Sentiu-se feliz ao pensar que ela se encontrava em sua casa, sã e salva, mas depois, parado ali diante da mesa, a boa sensação logo se dissipou. Recordou todas as ocasiões inquietantes e nauseantes em que se postara de pé diante do líder gai-jin sentado respondendo a perguntas sobre Choshu, Satsuma, Bakufu, Toranagas, as perguntas se estendendo a todos os aspectos de sua vida pessoal e da vida no Nipão, agora quase uma ocorrência diária, os olhos de peixe lhe arrancando a verdade, por mais que preferisse mentir e confundir.
Hiraga teve o cuidado de não tocar em nada, presumindo que havia uma armadilha qualquer à sua espera, como ele teria feito, se deixasse um gai-jin sozinho num lugar importante. Foi nesse instante que ouviu uma voz irada lá fora e voltou apressado à janela de Tyrer para espiar. Para seu espanto, avistou Akimoto no portão, fazendo uma reverência para o guarda, que gritava e lhe apontava seu fuzil com baioneta. Seu primo usava roupas de trabalhador gai-jin e era evidente que estava muito nervoso. Hiraga saiu apressado, com um sorriso no rosto, tirou o chapéu para o guarda.
— Bom dia, senhor sentinela, esse meu amigo.
O guarda conhecia Hiraga de vista, sabia que era uma espécie de intérprete, e tinha passe permanente para entrar e sair da legação. Respondeu em tom cáustico, com palavras incompreensíveis, acenou para que Akimoto se afastasse e ordenou a Hiraga que dissesse “a este macaco para tomar cuidado ou vai levar um tiro na cabeça”. O sorriso de Hiraga manteve-se firme.
— Eu levar ele embora, sinto muito.
Pegando Akimoto pelo braço, Hiraga levou-o apressado por uma viela, que se estendia até a aldeia.
— Você enlouqueceu? Vir aqui...
— Concordo. — Akimoto ainda não se recuperara do susto de uma baioneta a um centímetro de sua garganta. — Concordo, mas o shoya, o ancião da aldeia, pediu que eu viesse chamá-lo, com urgência.
O shoya gesticulou para que Hiraga sentasse no outro lado da mesa baixa. Aqueles aposentos particulares, por trás de sua loja deliberadamente pobre e desarrumada, eram impecáveis, o tatame e os papéis da janela de shoji da melhor qualidade. A gata se refestelava em seu colo, os olhos malignos fixados no intruso. Havia xícaras de porcelana branca e verde em torno de um pequeno bule de chá de ferro.
— Por favor, um pouco de chá, Otami-san, lamento pela inconveniência — disse ele, usando o nome indicado por Hiraga. Serviu o chá, depois afagou a gata, suas orelhas tremeram, numa reação nervosa. — Por favor, peço desculpas por interrompê-lo.
O chá era aromático, de boa qualidade. Hiraga fez um comentário polido a respeito, sentindo-se contrafeito na presença do shoya com suas roupas européias. Era difícil sentar com aquele traje, e a ausência das espadas o perturbava. Depois das cortesias costumeiras, o shoya balançou a cabeça, meio para si mesmo, e fitou seu convidado, os olhos impassíveis na máscara de amabilidade.
— Chegaram notícias de Quioto, e achei que deveria ser informado imediatamente.
A inquietação de Hiraga aumentou.
— Que notícias?
—Parece que dez shishi de Choshu, Satsuma e Tosa atacaram o xógum Nobusada, em Otsu. A tentativa de assassinato fracassou e todos foram mortos.
Hiraga fingiu desinteresse, mas sentiu um calafrio por dentro. Quem seriam os dez e por que haviam fracassado?
— Quando foi isso?
O shoya nada vira para indicar se Hiraga sabia ou não do ataque.
— Há oito dias.
— Como pôde saber em tão pouco tempo?
Para seu espanto, o shoya enfiou a mão na manga e tirou um pequeno cilindro. Lá dentro havia um rolo de papel muito fino.
— Isto chegou hoje. Nossa zaibatsu da Gyokoyama tem pombos-correios para notícias importantes. — A mensagem chegara no dia anterior, mas ele precisara de tempo para decidir como lidaria com Hiraga. — Importante ter informações rápidas e acuradas, neh?
— Foram mencionados nomes?
— Não, nenhum nome, sinto muito.
— É a única informação?
Os olhos faiscaram. Para choque de Hiraga, ele acrescentou:
— Na mesma noite, em Quioto, lorde Yoshi e lorde Ogama, com suas forças, atacaram o quartel-general shishi, surpreendendo a todos e massacrando-os. Quarenta cabeças foram espetadas em chuços diante das ruínas. — O homem mais velho manteve o sorriso fora do rosto. — Otami-sama, quarenta seriam uma porcentagem grande dos nossos bravos shishi?
Hiraga deu de ombros, disse que não sabia, torcendo para que o shoya não pudesse determinar se mentia. Sua cabeça doía ao especular quem teria morrido, quem sobrevivera, quem os traíra, e como inimigos que nem Yoshi e Ogama Podiam agir juntos.
— Por que está me contando tudo isso?
Por um momento, o shoya baixou os olhos para a gata, seus olhos se abrandaram, os dedos começaram a afagar sua cabeça, a gata fechou os olhos em prazer, as unhas se estendendo e retraindo, sem ameaça.
— Parece que nem todos os emboscados foram liquidados — murmurou ele. — Dois escaparam. O líder, às vezes chamado de Corvo, cujo nome verdadeiro é Katsumata, conselheiro de confiança de Sanjiro de Satsuma, e um líder shishi de Choshu chamado Takeda.
Hiraga ficou bastante abalado ao descobrir que se sabia tanto, seus músculos se contraíram, pronto para atacar, matar com as próprias mãos. A boca se abriu mas ele não disse nada.
— Por acaso conhece essa Takeda, Otami-sama?
Hiraga teve um ímpeto de raiva pela impertinência, sentiu que o rosto corava, mas conseguiu manter algum controle.
— Por que me pergunta isso, shoya?
— Meu superior na Gyokoyama mandou, Otami-sama.
— Por quê? O que tudo isso representa para mim?
O shoya, para acalmar os próprios nervos — embora tivesse uma pequena pistola carregada na manga — serviu mais chá para os dois, sabendo que era um jogo perigoso e que não se devia brincar com aquele shishi. Mas ordens eram ordens, e o zaibatsu de Gyokoyama determinara que qualquer coisa fora do normal, em qualquer uma das centenas de sucursais, devia ser comunicada imediatamente. Em particular na sucursal de Iocoama, mais importante agora que a de Nagasáqui, já que se tratava da principal base dos gai-jin, e portanto o melhor posto de observação dos estrangeiros... e ele fora o escolhido para esse cargo de destaque. Por obrigação, enviara através de pombos-correios a notícia da chegada daquele homem, da morte de Ori, de todos os eventos subseqüentes e das ações que ele efetuara... todas as quais haviam sido aprovadas.
— A Gyokoyama...
Ele seguia as instruções, mas com extremo cuidado, pois podia perceber que Hiraga ficara nervoso com as revelações, e fora justamente esse o propósito. Seus superiores em Osaca haviam escrito: Trate de deixar desequilibrado esse shishi, cujo nome verdadeiro é Rezan Hiraga, o mais depressa possível. Os riscos serão grandes. Esteja armado e converse quando ele não estiver...
— ...meus superiores acharam que talvez lhe possam ser úteis, assim como você poderia ser de grande valor para eles.
— Úteis para mim? — Hiraga se encontrava prestes a explodir, a mão direita procurando nervosamente o punho da espada, que não estava ali. — Não posso ordenar impostos. Não tenho nenhum koku. Que proveito tenho para parasitas, pois os emprestadores de dinheiro não passam disso, para a grande Gyokoyama?
— É verdade que os samurais acreditam nisso, sempre acreditaram. Mas temos dúvidas se o seu sensei Taira concordaria.
— Como? — Hiraga ficou aturdido de novo. — O que Taira tem a ver com tudo isso?
— Criada! Saquê! — Tornando a se virar para Hiraga, o shoya acrescentou: — Peço sua paciência, mas meus superiores... Sou um velho.
Ele falava em tom de humildade, autodepreciativo, sabendo que seu poder na Gyokoyama era grande, que seu yang ainda funcionava com perfeição, e que se necessário poderia atirar naquele homem, deixá-lo entrevado e entregá-lo aos vigilantes do Bakufu, que ainda guardavam os portões.
— Sou um velho e vivemos em tempos perigosos.
— É mesmo — murmurou Hiraga, através dos dentes semicerrados.
O saquê chegou num instante, a criada serviu depressa e se retirou logo. Hiraga bebeu, e sentiu-se satisfeito por isso, embora simulasse o contrário, aceitou mais, tomou tudo.
— O que há com Taira? E melhor explicar direito.
O shoya respirou fundo e se lançou ao que sabia que seria a maior oportunidade de sua vida, com várias implicações para o zaibatsu, e todas as suas futuras gerações.
— Desde que chegou aqui, Otami-sama, tem especulado como e por que os gai-jin ingleses dominam grande parte do mundo além de nossas praias, embora sejam de uma pequena ilha-nação, até menor do que a nossa, pelo que ouvi dizer...
Ele fez uma pausa, divertido com a súbita impassibilidade no rosto de Hiraga.
— Ah, sinto muito, mas já devia saber que ouviram as conversas com seu amigo, agora morto, e com seu primo. Mas posso lhe assegurar que suas confidências estão seguras, seus objetivos e os dos shishi são os mesmos da Gyokoyama. Pode ser importante para você... Acreditamos que conhecemos um importante segredo que você procura.
— É mesmo?
— É, sim. Estamos convencidos de que o grande segredo deles é emprestar dinheiro, os serviços de financia...
Sua voz foi abafada quando Hiraga teve um paroxismo de riso desdenhoso. A gata foi arrancada de sua tranqüilidade, suas garras passaram pelo quimono do shoya, foram se cravar na carne. Cauteloso, ele removeu as garras, começou a acalmá-la, controlando sua fúria, ao mesmo tempo em que desejava incutir um pouco de juízo naquele jovem insolente. Mas isso acabaria lhe custando a vida... pois teria depois de enfrentar Akimoto e outros shishi. Obstinado, ele esperou, sabendo que a missão de que fora incumbido por seus superiores era impregnada de perigos: “Sonde esse jovem, descubra quais são seus verdadeiros objetivos, seus verdadeiros pensamentos, desejos e fidelidades, use-o, pois ele pode ser um instrumento perfeito...”
— Você está louco. É tudo conseqüência de suas máquinas, canhões, riquezas e navios.
— Exatamente. Se tivéssemos essas coisas, Hiraga-sama, poderíamos... — No instante em que usou o nome verdadeiro, o que fora deliberado, ele viu todo o riso desaparecer e os olhos entrarem em foco, ameaçadores. — Meus superiores disseram para usar seu nome apenas uma vez, só para que soubesse que merecemos confiança.
— Como eles sabem?
— Mencionou a conta de Shinsaku Otami, o nome em código de seu honrado pai, Toyo Hiraga. Como não podia deixar de ser, isso está escrito nos livros de registros mais confidenciais.
Hiraga foi dominado por uma raiva intensa. Nunca lhe ocorrera que os emprestadores de dinheiro pudessem ter livros confidenciais; como todos, dos mais baixos aos mais altos, precisavam de seus serviços de vez em quando, eles teriam acesso aos conhecimentos mais sigilosos, sempre registrados, sempre perigosos, que podiam usar como instrumento de pressão para obterem novas informações, a que não deveriam ter acesso... como poderiam descobrir alguma coisa sobre os nossos shishi, a não ser por meios escusos... e como esse cão ousa usar isso contra mim? Com toda razão, os mercadores e emprestadores de dinheiro são desprezados, não merecem a menor confiança e devem ser exterminados. Quando sonno-joi se tornar um fato concreto, nosso primeiro pedido ao imperador será uma ordem para a destruição de todos eles.
— Cale-se!
O shoya estava preparado, consciente de que a fronteira entre um súbito ataque desvairado e a sanidade se encontrava esticada ao ponto de rompimento, que nunca se podia confiar num shishi e, por isso, mantivera a mão no bolso na manga. Falou numa voz suave, embora fosse evidente a ameaça ou promessa:
— Meus superiores mandaram lhe dizer que seus segredos e os de seu pai, honrados clientes, embora registrados, são confidenciais, absolutamente confidenciais... entre nós.
Hiraga suspirou, inclinou-se para trás, a ameaça purificando sua cabeça da raiva inútil, e analisou tudo o que o shoya lhe dissera, a ameaça — ou promessa — e todo o resto, o perigo que o próprio homem representava, a Gyokoyama e similares, avaliou sua possível decisão, a herança e o treinamento em jogo.
As opções eram simples: matar ou não matar, escutar ou não escutar. Quando ele era pequeno, a mãe lhe dissera:
— Tome cuidado, meu filho, e jamais se esqueça de uma coisa: matar é fácil, desmatar é impossível.
Por um momento, a mente se fixou na mãe, sempre sábia, sempre o acolhendo com a maior alegria, sempre com os braços estendidos... mesmo quando passara a sentir dores nas articulações, que a deixaram mais e mais entrevada a cada ano.
— Muito bem, shoya, vou escutar, só uma vez.
Foi a vez do shoya suspirar, uma profunda ravina transposta. Ele serviu mais saquê.
— A sonno-joi e aos shishi!
Os dois beberam. Ele tornou a encher os copos.
— Por favor, Otami-sama, seja paciente comigo, mas estamos convencidos de que podemos ter tudo o que os gai-jin possuem. Como sabe, no Nipão o arroz é uma moeda, os mercadores de arroz são banqueiros, emprestam dinheiro a plantadores contra futuras colheitas, para comprar sementes, e assim por diante, sem o dinheiro não haveria colheitas na maioria dos anos e, em conseqüência, também não haveria impostos a coletar; eles emprestam aos samurais e daimios para sua subsistência, contra pagamentos futuros, estipêndios futuros, tributos futuros, e sem esse dinheiro a vida seria difícil. O dinheiro torna qualquer modo de vida possível. O dinheiro, sob a forma de ouro, prata, arroz ou seda, até mesmo esterco, o dinheiro é a roda da vida, faz as engrenagens funcionarem e...
— Vamos direto à questão. O segredo.
— Ah, sinto muito. A questão é que de alguma forma, por mais incrível que possa parecer, os emprestadores de dinheiro gai-jin, os banqueiros... é uma profissão honrada no mundo deles... encontraram um meio de financiar todas as suas indústrias, máquinas, navios, canhões, prédios, exércitos, tudo e qualquer coisa, com lucro, sem usar ouro de verdade. Não poderia haver tamanha quantidade de ouro no mundo inteiro. De algum modo, eles podem efetuar vastos empréstimos usando a promessa de ouro, ou fingir que é ouro, e só isso os torna fortes, pois tudo indica que fazem isso sem aviltar sua moeda, como acontece com os daimios.
— Fingir que é ouro? Mas do que está falando? Seja mais explícito!
O shoya removeu uma gota de suor do lábio, excitado agora, o saquê ajudando sua língua, ainda mais porque, agora, começava a acreditar que era possível que aquele jovem pudesse ajudar a resolver o enigma.
— Desculpe se sou complicado, mas sabemos o que eles fazem, embora ainda não como fazem. Talvez o seu Taira, esse gai-jin que é uma fonte de informações, que você drena com tanta habilidade, talvez ele saiba, e possa explicar como fazem isso, as artimanhas, os segredos. Depois, você nos conta tudo, e poderemos tornar o Nipão tão forte quanto cinco Inglaterras. Quando vocês alcançarem sonno-joi, nós e os outros emprestadores de dinheiro poderemos nos unir para financiar todos os navios e armas de que o Nipão vai precisar...
Cauteloso, ele discorreu sobre o tema, respondendo às perguntas com eloqüência, guiando Hiraga, ajudando-o, lisonjeando-o, enchendo-o de saquê e informações, impressionado com sua inteligência, ao longo das horas, atiçando sua imaginação, até o pôr-do-sol.
— Dinheiro, hem? Eu ad... eu admito, shoya — disse Hiraga, a voz um pouco engrolada, meio tonto do álcool, a cabeça quase explodindo com tantas idéias novas e inquietantes, que conflitavam com muitas convicções profundas — admito que o dinheiro nunca me inte... nunca me interessou. E jamais entendi direito o dinheiro, apenas sua falta.
Um arroto quase o sufocou, e ele continuou:
— Mas acho que posso entender agora e creio que Taira vai me contar tudo.
Hiraga tentou se levantar, mas não conseguiu.
— Posso lhe oferecer um banho e mandar chamar uma massagista?
O shoya persuadiu-o a aceitar com a maior facilidade, chamou um servo para ajudá-lo e entregou Hiraga a mãos fortes e gentis... que logo o fizeram roncar, mergulhar no esquecimento.
— Bom trabalho, Ichi-chan — sussurrou sua esposa, quando era seguro, fitando-o com uma expressão radiante. — Você foi perfeito, neh?
O shoya também se mostrava radiante e falou baixinho:
— Ele é perigoso, sempre será, mas demos o primeiro passo, e essa é a parte mais importante.
Ela acenou com a cabeça, satisfeita porque o marido acatara seu conselho de chamar Hiraga naquela tarde, estar armado, e não ter medo de usar a ameaça. Ambos conheciam os riscos, mas também, ela lembrou a si mesma, o coração ainda batendo forte de escutar a confrontação, esta é uma oportunidade enviada pelos deuses, e os ganhos são proporcionais aos riscos. Com o êxito, refletiu ela, rindo para si mesma, ganharemos a posição de samurais, nossos descendentes serão samurais, e meu Ichi será um dos superiores da Gyokoyama.
— Foi muito sensato ao dizer que apenas dois escaparam, não três, e ao não revelar o que mais sabemos.
— É importante manter alguma coisa em reserva. Para controlá-lo ainda mais.
Ela acariciou o marido, numa atitude maternal, tornou a dizer como ele era esperto, e não o lembrou que isso também fora sugestão sua. Deixou que sua mente vagueasse por um momento, ainda perplexa pela partida dos dois shishi para Iedo, assim se arriscando à captura ou traição. E ainda mais desconcertante era o motivo pelo qual a moça, Sumomo, a possível futura esposa de Hiraga, ingressara na casa de Koiko, a mais famosa cortesã de Iedo, agora a dama de prazer de lorde Yoshi. Não dava para entender. Um pensamento errante desabrochou.
— Ichi-chan — disse ela, suavemente —, uma coisa que falou antes me deixou com vontade de perguntar: se esses gai-jin são tão espertos, banqueiros tão mágicos, não seria sensato para você iniciar um empreendimento cuidadoso com um deles, de maneira discreta, bem discreta?
Os olhos do marido fixaram-se nos seus, ela percebeu o início de um sorriso de intensa satisfação, e acrescentou:
— Toshi tem dezenove anos, o mais esperto dos nossos filhos, e poderia ser o nosso representante, neh?
Segunda-feira, 1o de dezembro:
Norbert Greyforth saiu para o tombadilho do navio de correspondência, contornando o promontório. Vinha de Hong Kong, com escala em Xangai, e agora chegava a Iocoama. Ele acabara de fazer a barba, usava cartola e sobrecasaca contra o frio do amanhecer, e viu o capitão e outros na ponte de comando, na frente da chaminé, com seu rolo de fumaça acre na esteira, os marujos se preparando para ancorar, as velas içadas nos três mastros. Na coberta de proa, por trás de grades trancadas, que os separavam por completo do resto do navio, viajavam os passageiros de terceira classe, a ralé da Ásia, abrigados sob toldos de lona. As grades eram praxe em todos os navios de passageiros, contra qualquer tentativa de pirataria daquela área.
O vento era firme, trazia um cheiro agradável, o ar puro, muito diferente lá de baixo, onde o fedor de óleo e fumaça de carvão impregnava tudo, as vibrações e o barulho do motor deixavam qualquer um com dor de cabeça. O Asian Queen não desenvolvia a velocidade possível há horas, batalhando contra o vento. Por mais que detestasse vapores, Norbert sentia-se satisfeito, pois de outra forma sofreriam vários dias de atraso. Mordeu a extremidade de um charuto, cuspiu no mar, ergueu as mãos em concha para acendê-lo.
A colônia parecia a mesma de sempre. As casas da guarda dos samurais e as alfândegas, ao norte e ao sul, fora da cerca, alcançadas por pequenas pontes, fumaça saindo por várias chaminés, homens andando pelo passeio, cavaleiros exercitando seus pôneis no hipódromo, a cidade dos bêbados na sujeira habitual, com poucos dos danos do incêndio e terremoto reparados, contrastando com as fileiras disciplinadas de barracas do acampamento no penhasco, onde os soldados faziam ordem-unida, o toque de corneta projetando-se pelo mar. E mais adiante, como se espiassem por cima da cerca, os telhados da Yoshiwara. Ele sentiu alguma emoção, nada como o normal, pois ainda se encontrava saciado das aventuras em Xangai, a mais rica, devassa e tumultuada cidade da Ásia, com as melhores corridas, casas de jogo, bordéis e bares, comida européia por toda parte.
Não importa, pensou ele, darei a Sako a peça de seda, isso fará sua arma palpitar... e quem sabe?
Os olhos de Norbert passaram pelos mastros de bandeira das diversas legações, contraíram-se ao ver o prédio da Struan e depois fixaram-se no seu quartel-general. Durante as três semanas de sua ausência, os reparos externos no último andar haviam sido concluídos, ele ficou satisfeito ao constatar, não restava mais qualquer sinal dos danos causados pelo incêndio. Ainda estava muito longe para reconhecer as pessoas que entravam e saíam dos prédios na High Street, mas depois vislumbrou uma touca azul, um vestido de anquinhas e uma sombrinha se encaminhando para a legação francesa. Só havia uma mulher assim, pensou ele. Peitos-de-Anjo! E foi como se pudesse farejar o perfume que a envolvia. Será que ela sabe do duelo? Morgan Brock caíra na gargalhada quando lhe contara.
— Tem o meu consentimento para estourar os miolos dele ou seus colhões. E, em vez de pistolas, use espadas, e fará jus à sua gratificação.
Os barcos já haviam zarpado ao encontro do navio de correspondência. Irritado, ele notou que a lancha a vapor da Struan esperava perto da barra, a primeira da fila, com Jamie McFay na popa. Sua lancha a remos era a segunda. Não importa, pois não vai demorar muito para que aquela lancha seja minha, assim como o prédio, com você e todos os malditos Struans em desgraça ou mortos, embora talvez eu lhe dê um emprego, Jamie, talvez, só por diversão. Ele viu McFay levar o binóculo aos olhos e compreendeu que seria avistado. Ofereceu um aceno, cuspiu para o lado e desceu para seu camarote.
— Bom dia, Sr. Greyforth — disse Edward Gornt, com seu charme sulista. Ele estava parado na porta do camarote no outro lado, um jovem alto, embora um tanto franzino, de boa aparência, da Virgínia, vinte e sete anos, com olhos castanhos, cabelos castanhos. — Estive observando do convés de popa. Nada como Xangai, não é mesmo?
— Sob mais aspectos do que pode imaginar. Já arrumou suas malas?
— Já, sim, senhor. Está tudo pronto.
O sotaque era mínimo, ele falava muito mais como um inglês do que como um sulista.
— Ótimo. Sir Morgan mandou eu lhe entregar isto quando chegássemos. Norbert tirou um envelope de sua valise e entregou-o. Quanto mais pensava a respeito de toda a viagem, mais aturdido ficava. Tyler Brock não fora a Xangai. Em vez disso, enviara um bilhete curto, cumprimentando Greyforth e dizendo-lhe que obedecesse a seu filho, Morgan, como se fosse ele a dar as ordens. Sir Morgan Brock era barrigudo e calvo, não tão rude quanto o pai, mas também barbudo, e com o mesmo temperamento mesquinho. Ao contrário do pai, era treinado em Londres, na Thradneedle Street, o centro dos mercados de valores do mundo, e de todo o comércio internacional. Assim que Greyforth chegara, Morgan expusera os planos para a destruição da Struan.
Era infalível.
Há um ano, ele, o pai e seus associados na diretoria do Victoria Bank, de Hong Kong vinham comprando as promissórias da Struan. Agora, com o apoio de toda diretoria, só precisavam esperar até o dia 30 de janeiro para a execução das dívidas. Não havia a menor possibilidade de a Struan saldar tudo nesse prazo. Na data fatal, o banco passaria a possuir a Struan, com todo o seu patrimônio. Quando Morgan açambarcara o mercado de açúcar havaiano, com uma manobra astuciosa para excluir a Struan, que contava com os lucros anuais dessas operações para pagar o serviço das dívidas, fizera com que a liquidação se tornasse inevitável. E desfechara outro golpe, ainda maior: com extrema habilidade, Morgan negociara essas colheitas com importadores da União e da confederação, em troca de mercadorias do Norte e algodão do Sul para o imenso mercado britânico, que só podia ser atendido, nos termos da lei, por navios britânicos... os navios deles.
— É um esquema genial, Sir Morgan, meus parabéns! — dissera Norbert, impressionado, pois faria com que a Brock se tornasse a mais rica companhia comercial da Ásia, a Casa Nobre, e garantiria seu estipêndio de cinco mil guinéus por ano.
— Compraremos a Struan a dez pennies por libra do banco, isso já foi acertado, Norbert, a frota, tudo — explicara Sir Morgan, a barriga enorme tremendo no riso. — Você poderá se aposentar em breve, e estamos gratos por seus serviços. Se tudo correr bem em Iocoama, pensaremos em mais cinco mil por ano como gratificação. Cuide bem do jovem Edward, mostre-lhe tudo.
— Com que propósito? — indagara Norbert, atordoado pela perspectiva daquela vasta soma todos os anos.
— Com qualquer propósito que eu quiser — respondera Sir Morgan, em tom brusco. — Mas já que pergunta, talvez eu queira que ele assuma o comando no Japão, tome o seu lugar quando você for embora, se tiver condições para isso. A Rothwell está lhe dando um mês de licença... — Era a companhia em que Gornt trabalhava há três anos, uma das mais antigas empresas em Xangai, associada da Cooper-Tillman, a maior companhia comercial americana na China, e com a qual tanto a Brock quanto a Struan mantinham amplas relações de negócios. —... e será tempo suficiente para o rapaz decidir. Talvez ele o substitua quando você se aposentar.
— Acha que ele tem experiência suficiente, Sir Morgan?
— Cuide para que ele tenha até o momento em que você se retirar... é a sua função, ensinar tudo, preparar o rapaz. Mas não pressione demais, pois não quero que ele fique apavorado.
— Quanto devo lhe contar?
Depois de pensar um pouco, Sir Morgan dissera:
— Tudo sobre os nossos negócios no Japão, o plano de vender armas e contrabandear ópio, se aqueles desgraçados no Parlamento conseguirem o que estão querendo. Relate a ele suas idéias sobre a abertura do comércio de ópio, ignorando qualquer embargo, se houver algum, mas não diga nada sobre as provocações a Struan ou sobre o nosso plano para destruí-los. O rapaz já conhece Os Struans, não existe nenhum amor por eles na Rothwell. Sabe que eles são a escória, está a par de todas as iniqüidades cometidas pelo velho Dirk, como assassinar meu meio-irmão, e todo o resto. É um bom rapaz, e por isso pode contar o que quiser... mas não fale sobre o açúcar!
— Como achar melhor, Sir Morgan. O que me diz do dinheiro em espécie e papéis que eu trouxe? Vou precisar de reposição para pagar as armas, sedas e outras mercadorias este ano.
— Mandarei de Hong Kong quando voltar. Outra coisa, Norbert: você fez um bom trabalho ao passar a perna na Struan na oferta dos japas para a exploração de ouro... se isso der resultado, terá uma participação. Quanto a Edward, depois do mês de experiência, mande-o de volta a Hong Kong, com um relatório confidencial para o Velho. Gosto do rapaz, ele é muito bem considerado em Xangai e na Rothwell... e filho de um velho amigo.
Norbert especulara sobre quem seria o “velho amigo” e sobre a dívida que Sir Morgan tinha com o homem para valer tanto empenho, já que era insólito para ele ser gentil com alguma pessoa. Mas era esperto demais para perguntar e se mantivera calado, feliz por saber que o problema de permanecer nas boas graças dos Brocks não o perturbaria por muito mais tempo.
Edward Gornt demonstrara ser bastante simpático, retraído, um bom ouvinte, mais inglês do que americano, inteligente, e um não-bebedor, o que era raro na Ásia. A avaliação imediata de Greyforth fora a de que Gornt era totalmente inadequado ao comércio na China, rude, aventureiro, com muita bebida... um peso-leve em tudo, exceto nas cartas. Gornt era um excepcional jogador de bridge, tinha muita sorte no pôquer, uma tremenda virtude na Ásia, mas mesmo nisso era acadêmico, pois nunca jogava com apostas altas.
Ele estava convencido de que Edward Gornt não agradaria aos Brocks por muito mais tempo e nada na viagem de volta o fizera mudar de idéia. De vez em quando, percebera certa estranheza no fundo de seus olhos. O garoto não passa de um fraco, está fora de sua profundidade, e sabe disso, pensou ele, observando-o ler a carta de Morgan. Mas não importa; se alguém pode fazê-lo crescer, sou eu.
Gornt dobrou a carta, guardou-a no bolso, junto com o maço de dinheiro que o envelope continha.
— Sir Morgan é muito generoso, não acha? — comentou ele, com um sorriso. — Nunca pensei que ele... mal posso esperar para começar, aprender tudo. Gosto de trabalho e ação, farei o melhor que puder para agradá-lo, mas ainda não tenho certeza se devo deixar a Rothwell, e... nunca pensei que ele sequer cogitaria de mim para chefiar a Brock no Japão, se e quando você se aposentar. Nunca.
— Sir Morgan é um patrão exigente, difícil de agradar, como o nosso tai-pan, mas generoso se você fizer o que ele mandar. Um mês será suficiente. Sabe manejar uma arma?
— Claro.
A súbita franqueza deixou Norbert surpreso.
— De que tipo?
— Revólveres, pistolas, rifles, espingardas. — Outro sorriso. — Nunca matei ninguém, nem índios, mas fui o segundo colocado no tiro ao prato em Richmond, há quatro anos. — Um momento de hesitação. — Esse foi o ano em que fui para Londres, a fim de ingressar na Brock.
— E não queria partir? Não gostou de Londres?
— Não e sim. Minha mãe morrera e meu pai achou que seria melhor que eu saísse para o mundo, Londres sendo o centro do mundo, por assim dizer. Londres é espetacular, Sir Morgan foi muito gentil, o homem mais bondoso que já conheci.
Norbert esperou, mas Gornt não ofereceu mais nenhuma informação, absorto em seus pensamentos. Sir Morgan só lhe dissera que Gornt passara um ano satisfatório com a Brock em Londres, junto com o último e mais novo filho de Tyler Brock, Tom. Depois desse ano, ele arrumara o emprego na Rothwell.
— Conhece Dmitri Syborodin, que dirige a Cooper-Tillman aqui?
— Não, senhor. Só de reputação. Meus pais conheciam Judith Tillman, a viúva de um dos sócios originais. — Os olhos de Gornt se contraíram, e Norbert tornou a notar algo estranho neles. — Ela também não gostava de Dirk Struan, odiava-o, para ser mais preciso, culpava-o pela morte de seu marido. Os pecados dos pais passam adiante, não é mesmo?
Norbert riu.
— É verdade.
— Mas falava sobre Dmitri Syborodin, não é, senhor?
— Vai gostar dele, é sulista também. — O sino de desembarque soou. Os olhos de Norbert faiscaram. — Vamos para terra. Haverá ação muito em breve.
— Homem quer ver tai-pan, hem? — disse Ah Tok.
— Fale como civilizada, mãe, não essa algaravia — respondeu Malcolm, em cantonês. Ele estava na janela do escritório, com o binóculo, estivera observando o desembarque dos passageiros do navio de correspondência. Vira Norbert Greyforth, e agora sentia-se muito bem. — Que homem?
— O demônio estrangeiro bonzo que mandou chamar, o bonzo que cheira mal — murmurou ela. — Sua velha mãe está trabalhando demais e seu filho não quer escutar! Devemos voltar para casa.
— Já lhe disse para não mencionar a volta para casa — declarou Malcolm, ríspido. — Faça isso mais uma vez e a mandarei embora na próxima lorcha imunda, onde vai vomitar até seu coração, se tiver um, e no mínimo o deus do mar vai engoli-la! Mande o demônio estrangeiro entrar.
Um sorriso surgiu em seu rosto, e um pouco da sensação agradável retornou. Ah Tok saiu resmungando. Há dias que vinha insistindo na volta a Hong Kong, por mais que ele lhe dissesse para não fazê-lo. Malcolm tinha certeza que ela recebera ordens de Gordon Chen para pressioná-lo.
— Mas não voltarei enquanto não estiver pronto! — disse ele, em voz alta.
Claudicando, foi para sua escrivaninha, contente porque em breve acertaria as contas com Norbert e poria em execução seu glorioso plano.
— Bom dia, reverendo Tweet. Foi muita gentileza sua atender de imediato ao meu chamado. Xerez?
— Obrigado, Sr.... hum... tai-pan. Abençoado seja.
O xerez foi tomado num único gole, nervoso, embora Malcolm tivesse escolhido, deliberadamente, um copo grande.
— Admirável... tai-pan. Ah, quero, sim, obrigado. Mais uma dose, pequena desta vez. — O homem desmazelado acomodou-se na cadeira alta, com um sorriso apreensivo. A barba era toda manchada de tabaco. — Em que posso ajudá-lo?
— É sobre miss Angelique e eu. Quero que nos case. Na próxima semana.
— Como? — O reverendo Michaelmas Tweet quase deixou cair o copo, a dentadura chocalhando, ele balbuciou: — Impossível!
— Não é, não. Há muitos precedentes para reduzir os proclamas que devem ser lidos na igreja em três domingos sucessivos para apenas um.
— Mas eu não posso... você é menor, e ela também, uma católica ainda por cima, não é possível... não posso fazer isso.
— Claro que pode. — Confiante, Malcolm repetiu o que Heatherly Skye mais conhecido por “Heavenly”, o celestial, o único advogado em Iocoama, além de juiz de instrução e agente de seguros, lhe dissera: — O fato de que sou menor de idade só se aplica no Reino Unido, não nas colônias, ou no exterior, e só quando pai está vivo. O fato de ela ser católica não tem importância, se não importa para mim. E ponto final. Terça-feira, dia 9, é uma ocasião auspiciosa para casa. Manteremos tudo na maior discrição até lá.
Para diversão de Malcolm, a boca de Michaelmas Tweet abriu e fechou, com a de um peixe, nenhum som saiu. Trêmulo, o clérigo levantou-se, serviu-se de mais xerez, tornou a arriar na cadeira.
— Não posso.
— Procurei orientação legal e fui informado de que posso. Também tenciono conceder a você e sua igreja um estipêndio extra... quinhentos guinéus por ano.
Ele sabia que o homem ficaria fisgado pela oferta, três ou quatro vezes o seu salário atual, e o dobro do que o advogado aconselhara: Não estrague o velho peidorrento!
— Estaremos na igreja no domingo para ouvirmos a leitura dos proclamas. Terça-feira será o grande dia, e você receberá cem guinéus adiantados por seu trabalho. Obrigado, reverendo.
Ele se levantou, mas Tweet não se mexeu. Havia lágrimas em seus olhos.
— Qual é o problema?
— Não posso fazer o que me pede — balbuciou Tweet. — Não é possível. Deve compreender... mesmo que esse conselho seja correto, o que duvido... sua mãe me escreveu, formalmente, pela última correspondência, dizendo... que seu pai a tornara a guardiã legal dos filhos, e você fora proibido de casar.
As lágrimas escorriam pelas faces, os olhos remelentos estavam injetados.
— Deus do Céu, é tanto dinheiro, mais do que já sonhei, mas não posso, não posso ir contra a lei, nem contra sua mãe. Oh, Deus, não!
— Mil guinéus
— Oh, Deus, não, não... por mais que eu queira o dinheiro... não entende... o casamento não seria legal... é contra a lei da Igreja. Deus sabe que sou um grande pecador, mas não posso fazer isso... se ela escreveu para mim, também escreveu, com toda certeza, para Sir William, que deve sancionar um casamento assim. Deus me perdoe, mas não posso...
Ele saiu da sala, cambaleando. Malcolm ficou olhando para suas costas. Incapaz de falar, a mente atordoada, a sala se transformando de repente num túmulo. O plano, formulado com a ajuda de Heatherly Skye, era perfeito. Fariam um casamento discreto, com a presença apenas de Jamie, talvez Dmitri, e em seguida ele partiria para Hong Kong, depois do duelo, chegando ali antes do Natal, como a mãe pedira, e antes que ela pudesse receber a notícia. Angelique seguiria no navio seguinte.
— Aqueles a quem Deus juntou que nenhum homem... ou mulher... separe — entoara Skye, quando ele o consultara.
— Perfeito!
— Obrigado, tai-pan. Meus honorários são cinqüenta guinéus. Poderia... hum... me dar um adiantamento... em dinheiro, por favor?
Cinqüenta guinéus eram um absurdo. Mesmo assim, Malcolm Struan lhe dera dez soberanos, com vales da Casa Nobre para o restante, e voltara para casa, sentindo-se mais satisfeito que em qualquer outro momento das últimas semanas.
— Parece muito feliz hoje, Malcolm. Boas notícias?
— Isso mesmo, minha querida Angel, mas só partilharei com você amanhã. Quando veremos nosso retrato? Seu vestido estava maravilhoso.
— Demora um pouco para revelar, o que quer que isso signifique. Talvez amanhã. Você estava muito bonito.
— Acho que devemos dar uma festa. Será maravilhoso...
Mas agora, com a festa marcada para aquela noite, não seria tão maravilhoso assim. Malcolm sentia uma profunda depressão. Haveria algum meio de forçar Tweet? Deveria procurá-lo de novo amanhã, depois de passado o choque inicial? Mais dinheiro? Sir William? Uma súbita idéia. Ele tocou a sineta.
— Pois não, tai-pan?
— Vargas, corra até a igreja católica, e procure o padre Leo. Pergunte a ele se pode me fazer uma visita.
— Claro, tai-pan. Quando ele deve vir?
— Agora, o mais depressa possível.
— Agora, tai-pan? Mas é hora do almoço...
— Agora, por Deus! — gritou Malcolm, na maior frustração por ter de pedir a outros as coisas mais simples, que poderia fazer pessoalmente antes da Tokaidô, que Deus amaldiçoe aquele porco, que Deus amaldiçoe a Tokaidô, é como a.C. e d.C para mim, só que o mal é agora, não o bem. — Agora. E trate de se apressar!
Vargas estava pálido ao sair apressado. Enquanto esperava, Malcolm tentou pensar numa maneira de pressionar Tweet, deixou a mente vaguear, enquanto os minutos passavam devagar, e foi se tomando cada vez mais enfurecido e determinado.
— Padre Leo, tai-pan.
Vargas deu um passo para o lado e fechou a porta depois que o sacerdote entrou.
O padre tentou disfarçar seu nervosismo. Por várias vezes se encaminhara para aquele prédio, a fim de discutir a conversão de Struan ao catolicismo, mas sempre parara no meio do caminho, prometendo a si mesmo que voltaria no dia seguinte, mas nunca se aproximando de seu objetivo, com medo de cometer um erro, tropeçar nas palavras. Em desespero, procurara André Poncin, a fim de arrumar um encontro. Sentira-se chocado pela maneira como Poncin e depois o próprio ministro francês — que raramente lhe falava — haviam reagido, dizendo que tal conversa era prematura, que o trabalho de Deus exigia paciência e prudência, proibindo o contato, pelo menos por enquanto.
— Bom dia — murmurou Malcolm.
Era a primeira vez que qualquer um dos mercadores protestantes o convidava para ir a seu escritório. Por todo o mundo protestante, os sentimentos contra os católicos e seus sacerdotes eram antagônicos, com acusações de pogroms sangrentos e guerras religiosas, recentes e jamais esquecidas, lembrando-os do controle implacável que exerciam sobre os convertidos e os países que dominavam... e os protestantes eram igualmente detestados pelos católicos, e ainda por cima hereges segundo as convicções católicas.
— As bênçãos de Deus para você — murmurou padre Leo, hesitante. Antes de deixar seu pequeno bangalô, ao lado da igreja, ele fizera uma prece para que o chamado fosse sobre o que tanto ansiava. — O que deseja, meu filho?
— Quero que celebre meu casamento com miss Angelique.
Malcolm sentiu-se espantado por constatar que sua voz soava muito calma, com uma repentina consternação por ter dito aquilo, até por chamar o padre, compreendendo claramente as implicações do que pedira — A mãe terá um ataque, nossos amigos e todo o nosso mundo vão pensar que enlouqueci...
— Deus seja louvado! — exclamou o padre Leo, extasiado, em português: os olhos fechados, os braços erguidos para o céu. — Como são maravilhosos os caminhos de Deus! Eu agradeço, Senhor, agradeço por ter respondido às minhas preces, e que eu seja digno do Seu favor!
— O que disse? — indagou Malcolm.
— Ah, desculpe, meu filho — disse ele, voltando a falar em inglês. — Apenas agradecia a Deus por ter lhe mostrado a luz, em sua misericórdia.
— Ahn... xerez?
Malcolm não pôde pensar em outra coisa para dizer.
— Obrigado, meu filho... mas, primeiro, não quer rezar comigo?
O padre ajoelhou-se, fechou os olhos, uniu as mãos em oração. Embaraçado pela sinceridade do homem — embora ignorando a oração como insignificante — e de qualquer forma incapaz de se ajoelhar, Malcolm permaneceu sentado, fechou os olhos, fez uma pequena prece a Deus, certo de que Deus compreenderia seu lapso momentâneo, tentando se convencer de que era certo pedir àquele homem para fazer o que era necessário.
Não importava o fato de que a cerimônia provavelmente seria inválida em seu mundo. Seria válida para Angelique. Poderia se unir a ele no leito conjugal com a consciência limpa. E depois que assentasse a tempestade inicial em Hong Kong, e sua mãe fosse conquistada — ou mesmo que não fosse —, assim que ele alcançasse a maioridade, em maio, uma cerimônia apropriada corrigiria qualquer pequeno erro.
Ele entreabriu os olhos. Padre Leo ainda continuava perdido no latim incompreensível. A oração se arrastou, interminável, seguida pela bênção. Quando acabou, padre Leo levantou-se, os olhinhos pretos faiscando, entre as bochechas morenas.
— Por favor, permita que eu sirva o xerez, para poupá-lo da dor, senhor, pois agora sou também seu servidor — disse ele, na maior jovialidade. — Como estão seus ferimentos? Sente-se melhor?
— Um pouco. Agora... — Malcolm descobriu que não era capaz de chamá-lo de “padre”. — Agora, sobre o casamento, eu...
— Será celebrado, meu filho, e celebrado de uma maneira maravilhosa, eu prometo. — Como são extraordinárias as obras de Deus, pensou padre Leo. Não violei a promessa que fiz ao ministro Seratard, e Deus trouxe esse pobre rapaz para mim. — Não se preocupe, senhor, é a vontade de Deus ter me chamado, e tudo será feito pela glória de Deus.
Padre Leo entregou um copo cheio a Malcolm, serviu-se em outro, derramando um pouco.
— À sua futura felicidade e à misericórdia de Deus!
Ele bebeu, depois sentou na cadeira, com tanta benevolência — a mesma cadeira que bem pouco tempo antes fora ocupada com tamanha rejeição —, que Malcolm sentiu-se ainda mais apreensivo.
— Agora, seu casamento será o melhor e o maior jamais realizado. — O padre pôs-se a discorrer a respeito, com um entusiasmo tão intenso que Malcolm ficou ainda mais deprimido, pois queria que aquele casamento temporário fosse o mais discreto possível. — Devemos ter um coro e um órgão, novas vestimentas, taças de prata para a comunhão. Mas antes desses detalhes, meu filho, há muitos planos maravilhosos para acertar. As crianças, por exemplo, agora serão salvas, serão católicas, salvas do purgatório e das agonias das chamas eternas do inferno!
Malcolm limpou a garganta.
— Certo. O casamento deve ser na próxima semana; terça-feira é o melhor dia.
Padre Leo piscou, aturdido.
— Mas temos de pensar na sua conversão, meu filho. Isso leva tempo, e...
— Eu... não quero me converter, ainda não, embora concorde que as crianças serão católicas. — Serão criadas muito bem, serão inteligentes, raciocinou Malcolm, sentindo-se mais angustiado a cada momento. Poderão escolher por si mesmas, quando se tomarem adultas... Mas o que estou pensando? Muito antes disso, casaremos da maneira certa, numa igreja apropriada. — Por favor, na próxima semana. Terça-feira.
Os olhos do padre não mais sorriam.
— Não vai abraçar a verdadeira fé? E a sua alma imortal?
— Não, obrigado, não no momento, mas é claro que pensarei a respeito. As almas das crianças... isso é o importante... — Malcolm tentou parecer mais coerente. — Eu gostaria que o casamento fosse discreto, uma cerimônia simples, na terça-feira...
— E sua alma imortal, meu filho? Deus lhe mostrou a luz, sua alma é ainda mais importante do que esse casamento.
— Já disse que pensarei a respeito. Agora, vamos tratar do casamento. Terça-feira é o dia perfeito.
O padre largou o copo, a mente atordoada com alegrias, esperanças, indagações, medos, sinais de perigo.
— Mas isso não será possível, meu filho, por muitas razões. A moça não é menor de idade? É preciso obter a aprovação do pai dela, com os documentos necessários. E o mesmo acontece com você, não é mesmo?
— O problema de ser menor? — Malcolm forçou uma risada. — Não se aplica ao meu caso, não quando o pai está morto. É a lei inglesa. Verifiquei com... o Sr. Skye.
Ele quase disse Heavenly e se arrependeu no mesmo instante de ter mencionado o advogado, pois recordou que Angelique lhe dissera que o padre Leo detestava o homem, detestava o apelido, considerando-o uma abominação, já que era um agnóstico declarado.
— Essa pessoa? — A voz de padre Leo se tornou dura de repente. — Sua opinião terá de ser confirmada por Sir William, pois ele não merece a menor confiança. Quanto ao pai da senhorita, ele pode vir de Bangkok, não é?
— Ele... Creio que ele voltou para a França. Mas sua presença não será necessária. Tenho certeza que monsieur Seratard poderá representá-lo. Terça-feira será o melhor dia.
— Mas por que a pressa, meu filho? Ambos são jovens, têm muita vida pela frente, e é preciso considerar sua alma. — Padre Leo tentou um sorriso. — Foi a vontade de Deus que o enviou para mim e dentro de um ou dois meses...
— Não, não pode ser dentro de um ou dois meses — insistiu Malcolm, prestes a explodir, a voz estrangulada. — Na terça ou quarta-feira, por favor.
— Reconsidere, meu filho. Sua alma imortal deve...
— Esqueça minha alma... — Malcolm fez uma pausa, para se controlar. — Pensei em oferecer uma doação à igreja, embora não seja... não seja no momento a minha igreja... uma doação generosa.
Padre Leo ouviu o “no momento”, reparou como a palavra “generosa” fora pronunciada, sempre consciente de que o trabalho de Deus neste mundo exigia servidores práticos e soluções pragmáticas. E recursos. E influência. E esses dois fatores essenciais só vinham dos bem-nascidos e ricos, não havia necessidade de lembrá-lo de que o tai-pan da Casa Nobre era as duas coisas, ou que hoje já fora dado um passo gigantesco a serviço de Deus: fora-lhe pedido um favor, e as crianças seriam salvas, mesmo que aquele pobre pecador ardesse no tormento eterno. Um calafrio percorreu-lhe o corpo, em consternação por aquele jovem e todos os que sofriam desnecessariamente tamanho horror por toda a eternidade, quando a salvação era tão fácil de se alcançar.
Ele empurrou esse problema para o lado. A vontade de Deus é a vontade de Deus.
— O casamento será celebrado, meu filho, não se preocupe, eu prometo... mas não na próxima semana, nem na seguinte, pois há muitas barreiras.
Malcolm tinha a sensação de que seu coração estava prestes a explodir.
— Deus Todo-Poderoso, se não pode ser na próxima semana, ou na seguinte, então não adianta. Tem de ser agora... ou nada.
— Mas por quê? E por que um casamento particular, meu filho?
— Tem de ser agora ou nada — repetiu Malcolm, o rosto contraído. — Vai descobrir que sou um bom amigo... preciso de sua ajuda... Pelo amor de Deus, é uma coisa tão simples nos casar!
— É, sim, por Deus, mas não por nós, meu filho. — O padre suspirou, levantou-se. — Pedirei a orientação de Deus. Duvido que... mas talvez. Talvez. Precisarei ter muita certeza.
As palavras pairaram no ar.
— Detesto pôr fezes no seu buquê de rosas, tai-pan — declarou Heavenly Skye, unindo as pontas dos dedos, arriado por trás de sua escrivaninha, na sala pequena e miserável. — Mas já que pede meu conselho profissional, eu diria que seu padre Leo não merece a menor confiança, a menos que se converta. Não há a menor possibilidade de que isso possa ser feito a tempo, e eu não aconselharia, de jeito nenhum. Ele vai se esquivar como um fogo-fátuo, suas datas vitais vão passar, e se sentirá cada vez mais angustiado.
— Mas o que posso fazer, Heavenly?
Skye hesitou, assoou o nariz bulboso, limpou o pince-nez, um recurso predileto para ganhar tempo e se controlar, ou para encobrir um lapso, ou até mesmo, como naquele caso, para conter um sorriso radiante.
Era a primeira vez que alguém importante o consultava desde que abrira seu próprio escritório, H. Skye, Esq., antes Moodle, Putfield & Leech, Procuradores e Advogados, Londres, inicialmente em Calcutá, dez anos antes, depois em Hong Kong, e agora aqui. Depois de tanto tempo, tinha um cliente perfeito, em potencial: rico, dominado pela ansiedade, com um problema simples, que podia se tornar cada vez mais complicado, várias possibilidades a longo prazo, do princípio ao fim. E grandes honorários por uma solução, e eram várias, algumas boas, algumas Violentas.
— Não posso imaginar uma situação mais difícil — disse ele, solene desempenhando seu papel, gostando e admirando o jovem, não apenas como cliente, e depois ofereceu uma chave: — O nó górdio, hem?
Malcolm sentia-se angustiado. Era evidente que Heavenly tinha razão, o padre Leo não merecia confiança. Mesmo que eu me convertesse... não posso, seria demais... Ele levantou os olhos, abruptamente.
— Nó? Nó górdio? Isso foi resolvido! Ulisses cortou-o em dois. Não, foi Hércules.
— Desculpe, mas foi Alexandre, o Grande, em 333 a.C.
— Não importa quem o tenha feito, meu problema é... Heavenly, ajude-me a cortar meu nó, e terá minha eterna gratidão e quinhentos guinéus...
O sinal de aviso do mestre do porto ressoou pela colônia. Eles olharam pelas janelas sujas. O escritório de Skye ficava no prédio e armazém de Lunkchurch, cheio de livros, de frente para o mar. Para a alegria de ambos, a esquadra contornava o promontório, a nave capitânia à frente, bandeiras hasteadas. Sentiram o maior orgulho, e alívio ao mesmo tempo. Salvas de canhões trovejaram da praia e dos navios, o H.M.S. Pearl o mais exuberante, a esquadra respondendo. Os dois homens soltaram gritos de alegria e Skye comentou:
— Podemos agora lidar com os japas e dormir em paz em nossas camas. — Indiretamente, ele voltou ao assunto em questão, invejando-o por Angelique, e determinado a ajudar. — Não é difícil resolver o problema dos japas, Willie precisa apenas ser objetivo e decidido. O velho punho de ferro em luva de ferro, ou veludo, aplica-se na maioria dos casos, se não mesmo em todos. Como acontece com o seu.
Malcolm Struan fitou-o nos olhos.
— Como? Como? Se resolver meu problema, você pode... pode indicar seu preço. — Cansado, ele pegou suas bengalas. — Dentro de limites razoáveis.
— Um momento, tai-pan! — exclamou Skye, limpando os óculos.
Meu preço não será apenas dinheiro, não da Casa Nobre, cuja influência pode me ajudar a ser juiz em Hong Kong, ah, que alegria será! Meu único dilema é se devo revelar a solução agora, ou esperar, e me arriscar a perder a iniciativa. De jeito nenhum! Uma ave na cama vale duas na Yoshiwara.
Não mais solene, ele tornou a ajeitar o pince-nez na ponta do nariz, agora como portas gêmeas dominando o rosto rosado e infantil, que parecia transbordar ao redor.
— Tive uma idéia repentina, tai-pan. Poderia resolver seu problema, no prazo que precisa. Por que não faz a mesma coisa que sua mãe?
Malcolm se mostrou aturdido por um instante e, depois, o significado se tornou claro.
— Ah, fugir para casar? Pensei nisso — disse ele, irritado —, mas ir para onde, e quem iria celebrar a cerimônia, já que estamos a um milhão de quilômetros de Macau?
— O que Macau tem a ver com isso? — indagou Skye.
— Todos sabem que o pai e a mãe fugiram e casaram na igreja anglicana em Macau, a cerimônia realizada depressa, por causa da influência do avô.
Skye sorriu, sacudiu a cabeça.
— Essa é a história publicada, mas não a verdadeira. Seu capitão Orlov casou-os a bordo do clíper China Cloud, em viagem de Macau para Hong Kong... seu avô tornara seu pai mestre para essa curta viagem e, como sabe, a lei do tai-pan é de que no mar o mestre era a lei do navio.
Struan estava espantado.
— Não acredito nisso.
— O primeiro atributo de um bom advogado, e sou um bom advogado, Sr. Struan, é ser um bom ouvinte, o segundo é ter um faro para fatos e segredos, o terceiro, ser discreto. É fundamental saber tudo o que puder sobre seus clientes em potencial mais importantes... o melhor para ajudá-los na adversidade.
Ele aspirou uma pitada de rapé, espirrou.
— A Casa Nobre é a primeira na Ásia, a fonte de lendas, e por isso, quando cheguei a Hong Kong, interessei-me em separar os fatos dos mitos sobre os Struans, os Brocks, os americanos Cooper e seu sócio Wilf Tillman, até mesmo o russo Zergeyev. Eu acho...
Ele parou de falar. Os olhos do jovem haviam se tornado vidrados, perdidos na distância, deixara de escutar, a mente com certeza na solução, à medida que aflorava à superfície, e preenchia seu firmamento.
— Sr. Struan!
— Oh, desculpe... O que estava dizendo?
— Fico satisfeito por lhe oferecer a solução. Há dificuldades, sem dúvida, mas possui navios, dispõe de capitães, e o capitão de um navio britânico, em determinadas situações, pode efetuar um casamento. Como é o tai-pan, pode dar a ordem. Quod erat demonstrandum.
— Heavenly, você é fantástico! — exclamou Malcolm. — Tem certeza sobre minha mãe e meu pai?
— Tenho, sim. Um dos meus informantes foi Morley Skinner, proprietário do Oriental Times, um contemporâneo de Dirk Struan, um velho que adorava contar histórias sobre os velhos tempos. Também obtive informações da Sra. Fortheringill, antes de sua morte, e... Já notou como são poucas as pessoas que se mostram dispostas a escutar os velhos, que testemunham todos os tipos de eventos? Skinner morreu há cerca de oito anos. Chegou a conhecê-lo?
— Não. — Um pouco da esperança de Malcolm se evaporou. — Se essa história fosse verdadeira, todos em Hong Kong a conheceriam.
— Dirk Struan resolveu abafá-la, achando que um “discreto casamento na igreja” era mais conveniente. Era bastante poderoso para conseguir isso e até persuadiu os Brocks a concordarem. Mas a história é verdadeira.
— Mas se ele... — Malcolm fez uma pausa; era um prazer contemplar sua expressão. — Mas não importa se é verdadeira ou falsa, não é mesmo?
— Tem razão. A verdade é muito importante porque lhe proporciona ampla defesa contra sua mãe. Afinal, só está fazendo a mesma coisa que ela, seguindo seu exemplo.
— Por Deus, Heavenly, você tem toda razão outra vez! — E depois, mais excitado: — Dispõe de alguma prova?
Claro, meu tolo rapaz, pensou Skye, mas não vai obter tudo de uma só vez.
— Tenho, sim, em Hong Kong. Precisarei de dinheiro para as despesas, a fim de ir até lá imediatamente... a serem deduzidas dos meus honorários. Digamos cinco mil, incluindo a prova... e sempre desde que minha solução corte o seu nó górdio. Quando você voltar a Hong Kong, depois do casamento, terei todas as provas de que puder precisar.
— E eu pensava que estava perdido!
Malcolm recostou-se na cadeira. Não havia mais nada agora para detê-lo. E aquele fato desanuviava sua mente de muitos demônios, os demônios da noite, do dia e do futuro.
— Que outros “fatos” você conhece a meu respeito e de meu passado?
— Muitos, Sr. Struan — respondeu Skye, sorrindo. — Mas não são para agora, embora preciosos.
Malcolm Struan seguia para casa, mais feliz do que podia se lembrar, as bengalas e a dor não o incomodando tanto quanto de hábito.
E por que não? — ele quase cantou. Casaria na semana seguinte com a moça mais linda do mundo, a mãe envolvida de uma maneira impecável — mal posso esperar para ver sua cara —, tenho uma festa esta noite, que agora será uma autêntica comemoração, e Norbert voltou no momento oportuno para ser enviado ao encontro de seu Criador. — Viva!
Na maior jovialidade, ele cumprimentava e acenava para as pessoas por quem passava. Era popular, além de lastimado, respeitado como o tai-pan da Casa Nobre, ainda mais invejado como o futuro e adorado marido da favorita da colônia.
O sol rompeu pelas nuvens, o que combinava com seu ânimo, fez o mar faiscar, enquanto a esquadra se dispersava na baía, o barco de Sir Wi Hiam aproximando-se da nave capitânia, o navio de correspondência cercado por outras embarcações. Seu próprio navio mercante, Lady Tess, que navegava entre Iocoama, Xangai e Hong Kong, fazia escalas em todos os portos principais até Londres, e depois voltava, estava preparado para zarpar, e deveria partir naquela noite.
Seu capitão era Lavidarc Smith, enorme e ruidoso, há muitos anos na companhia, como a maioria dos nossos capitães, mas jamais gostei muito dele. Preferia que o velho tio Sheley nos casasse e abençoasse. Uma pena que eu não soubesse o que sei agora quando ele passou por aqui. Ora, não importa. De qualquer forma, não posso manter Lavidarc aqui, e amanhã seria impossível, já que preciso primeiro cuidar de Norbert.
E Vincent Strongbow, do Prancing Cloud deve chegar no domingo e partirá para Hong Kong na quarta-feira. Isso me dá bastante tempo para matar Norbert e embarcar antes que Sir William me pegue. Não devo me demorar aqui, estarei muito mais seguro em Hong Kong, onde temos um poder real, e Angel... minha esposa a essa altura... poderá me seguir duas ou três semanas depois.
Portanto, tudo está resolvido. E Heavenly tem razão mais uma vez: devo ter muito cuidado, não contar a ninguém, nem mesmo a Angel, até pouco antes do momento. Posso confiar nele; jurou segredo, e seus honorários serão pagos ao longo do ano, o que me garantirá sua devoção. Ah, cinco mil! Mas não importa, ele me ofereceu a solução, o problema não mais existe, graças a Deus!
Outra decisão: vou reduzir o medicamento, até mesmo me abster por completo. Tenho um dever com Angel, de ficar bom e forte, sem acessórios. E estar em condições de assumir a Casa Nobre. Com Angel ao meu lado, posso...
Cavalos passando a trote interromperam seu devaneio. Ele acenou para os cavaleiros e viu que se encontrava perto da igreja, o sol brilhando na torre, o cheiro do mar, cavalos, terra e vida em suas narinas. Em súbita gratidão, pensou em entrar para fazer uma oração de agradecimento, quando notou a lancha a vapor da companhia aproximando-se do cais, com Jamie na popa, a cabeça inclinada para um jornal, e isso o lembrou da correspondência. Mudou de direção e alcançou o cais antes de a lancha atracar.
— Jamie! — gritou ele, por cima do barulho do motor.
Acenou, enquanto a lancha encostava nas estacas, cheias de algas e cracas. Viu Jamie contrair os olhos contra o vento, e depois acenar em resposta. Um olhar para seu rosto foi suficiente.
— Vou subir a bordo.
Meio desajeitado, ele passou para o convés, pois era difícil andar numa superfície inclinada com duas bengalas, mas conseguiu chegar à popa e permitiu que Jamie o segurasse pelo braço e o ajudasse a descer os três degraus para a cabine. Era espaçosa e privativa, com bancos em torno de uma mesa, armários por baixo. A correspondência estava sobre a mesa, em maços impecáveis, separada em cartas, jornais, revistas e livros. Malcolm viu no mesmo instante uma carta de sua mãe no alto da pilha que lhe era destinada, sua letra inconfundível. Outra carta dela, para Jamie, já se encontrava aberta na mesa.
— Fico contente em vê-lo, tai-pan.
— O que é agora?
— Tome aqui, leia você mesmo.
Para sua informação, meu filho não pode casar até alcançar a maioridade, em quaisquer circunstâncias. Já comuniquei isso ao reverendo Michaelmas Tweet, a Sir William (por esta remessa de correspondência) e publiquei um aviso na edição de hoje do Oriental Times (anexo). Também avisei aos capitães de todos os nossos navios passando por essas águas e ordenei que espalhassem essa informação, e também notifiquei o almirante Ketterer (por esta correspondência), no caso de ele se sentir tentado por uma cerimônia de capitão. O que meu filho fizer depois de completar vinte e um anos passa a ser problema dele, é claro. Até esse momento, diante de Deus, protegerei seus interesses e os nossos da melhor forma que puder.
O ar foi expelido dos pulmões de Malcolm, o sangue se esvaiu do rosto. Abriu sua própria carta. Era quase que uma cópia da outra, só que pessoal, endereçada a Meu querido filho, e terminava assim:
Isto é realmente para o seu próprio bem, meu filho. Lamento dizer que o sangue da moça é ruim: fomos informados de que as autoridades da Indochina francesa agora perseguem o pai dela, por fraude, e você já sabe que um tio se encontra na prisão dos devedores, em Paris. Se precisa tanto dela, faça com que se torne sua amante, por mais que eu desaprove, mas só vai acarretar mais problemas para si mesmo, tenho certeza. E saiba que jamais vou querer conhecê-la.
Confio que terei o prazer de vê-lo antes do Natal, quando toda essa história lamentável talvez já pertença ao passado. Deveria escrever sobre os infames Brocks, mas esse assunto deve ser resolvido aqui, não em Iocoama.
Sua mãe afetuosa.
Havia o “PS. Eu amo você’’, o que indicava a inexistência de uma mensagem secreta.
Lentamente, Malcolm rasgou a carta em pedacinhos. Esse controle agradou-o, mas não dissipou a fúria pelo impasse em que a mãe o deixara, e ele murmurou, sem saber que falava em voz alta:
— Aquela mulher é uma megera... uma megera gerada por demônios, uma bruxa... como ela podia saber...
McFay observava-o e esperava, na maior preocupação. Quando pôde pensar direito, Malcolm perguntou:
— O que diz o jornal?
O aviso era breve:
A Sra. Tess Struan, diretora em exercício da Struan, anunciou hoje que a Casa Nobre promoverá grande comemoração por ocasião do 21o aniversário de seu filho mais velho, Malcolm, e sua posse formal no posto de tai-pan, a 21 de maio do próximo ano.
— Não há muito mais que ela possa fazer para me solapar, não é mesmo. Jamie? — comentou ele, com um sorriso amargo.
— Não — respondeu Jamie, o coração se confrangendo por ele. Malcolm contemplou os navios, o horizonte, com Hong Kong mais além, com todos os seus amigos, e inimigos também. Agora, a mãe se situava no topo da segunda lista.
— É engraçado, de certa forma. Poucos momentos antes, eu me sentia na crista da onda...
Um tanto apático, ele relatou a Jamie sua grande idéia, a recusa de Tweet, e o plano maravilhoso de Heavenly.
— Mas tudo isso é lixo agora.
Jamie sentia um choque tão grande quanto o de Malcolm. Não conseguia pensar direito.
— Talvez... talvez seja possível persuadir Tweet. Quem sabe se uma grande contribuição...
— Ele recusou isso. E o padre Leo também.
— Oh, Deus! Você pediu a ele?
Malcolm relatou o encontro, deixando Jamie ainda mais chocado.
— Se está disposto a chegar a tais limites, tai-pan... talvez... possamos encontrar outro capitão.
— Não há muitas possibilidades agora, Jamie. E, de qualquer forma, Heavenly ressaltou que tudo deveria ser discreto, até acabar, pois Sir William pode proibir, já que Angelique e eu somos menores. E se a mãe enviou um aviso formal a Sir William, ele terá de contar a Seratard. Ela venceu... que Deus a amaldiçoe!
Malcolm tornou a desviar os olhos para o horizonte. No passado, quando uma catástrofe ocorria, como na ocasião em que os gêmeos haviam se afogado — embora a mãe nunca o tivesse dito expressamente, ele sempre achara que ela o culpava, pois nada teria acontecido se estivesse presente —, Malcolm sentia as lágrimas aflorando, como agora, mas tratava de reprimi-las, o que agravava ainda mais o sofrimento. Fazia isso porque “um tai-pan nunca chora”. Ela sempre lhe incutira tal idéia. Era a primeira coisa que podia recordar a mãe dizendo:
— O tai-pan nunca chora, paira acima disso, continua a lutar, como Dirk, nunca chora, suporta o fardo.
Repetira muitas e muitas vezes, embora as lágrimas sempre escorressem dos olhos do pai com a maior facilidade.
E eu jamais compreendi como ela sentia desprezo por ele.
Ela nunca chorou, nem uma única vez, ao que eu possa me lembrar.
Não vou chorar. Suportarei o fardo. Jurei que seria digno de me tornar tai-pan e assim será. Nunca mais ela será a “mãe” para mim. Nunca. Tess. Isso mesmo, Tess, eu suportarei.
Seus olhos focalizaram Jamie. Sentia-se muito velho, muito solitário.
— Vamos desembarcar.
Jamie fez menção de dizer alguma coisa, parou. Sua expressão era estranha.
Depois, ele apontou para o banco no outro lado. Mais pacotes de correspondência ali.
— O que é?
— É... a correspondência de Wee Willie. Bertram, o novo assistente da legação, estava doente, e por isso eu propus... buscar a correspondência para eles
Os dedos de Jamie se mostravam tão trêmulos quanto a voz. Ele pegou o maço de cartas. O cordão cruzado tinha o lacre do governo no centro, mas ainda assim foi fácil folhear pelos cantos, e encontrar as duas cartas de Tess Struan. Para Sir William e o almirante Ketterer.
— Com um pouco de tempo, e sorte, nós... você... eu poderia tirar essas cartas
Os cabelos na nuca de Malcolm se arrepiaram. Roubar o correio real era um crime punido com a forca.
Os dois homens ficaram olhando para o maço de cartas, atordoados, dominados pelo medo. A cabine era claustrofóbica. Malcolm não disse nada, limitou-se a observar Jamie, que também se manteve calado, os dois se sentindo esgotados. Depois, tomando a decisão por ele, os dedos trêmulos de Jamie puxaram o cordão, mas isso levou Malcolm a tomar sua própria decisão. Ele se inclinou para pegar o maço de cartas.
— Não, Jamie, não deve fazer isso.
— É o único jeito, tai-pan.
— Não é, não.
Malcolm ajeitou o cordão, aliviado ao constatar que o lacre não fora rompido, alisou as cartas, e largou o maço sobre o outro, o contato odioso.
— Não é certo — murmurou ele, a voz tão fraca quanto os joelhos, desprezando sua fraqueza... mas seria fraqueza? — Nunca me perdoaria se você... se você fosse apanhado e eu não tenho a coragem... além de achar que não é certo.
O rosto de Jamie ficara molhado de suor.
— Certo ou não, ninguém vai saber. Se não fizermos isso, você não terá a menor chance. Talvez possamos encontrar um capitão... até mesmo da Brock, um navio deles é esperado na próxima semana.
Malcolm sacudiu a cabeça, a mente vazia. Uma onda jogou a lancha contra o cais, fazendo os cabos rangerem. Com um esforço, ele se concentrou. Durante toda a sua vida, sempre que se encontrava num dilema, perguntava a si mesmo o que faria Dirk Struan, o tai-pan... mas nunca obtivera uma resposta concreta. Ao final, exausto, ele indagou:
— O que ele faria, Jamie... o que Dirk Struan faria?
No mesmo instante, a memória de Jamie conjurou o gigante impetuoso, nas poucas vezes em que o vira, ou estivera em sua companhia por alguns minutos... ainda jovem, quando começara a trabalhar na companhia.
— Ele... — Depois de um momento, um sorriso começou a se insinuar. — Ele faria... Dirk... é isso mesmo. Acho que ele mandaria todo mundo desembarcar, e sairia sozinho com a lancha, para “testar alguma coisa que parece errada”, e depois... depois que estivesse longe da praia, em águas profundas, abriria calmamente as válvulas e, enquanto a água entrasse, verificaria se toda esta correspondência estava bem presa, sem o risco de se soltar e flutuar, em seguida iria para a popa, acenderia um charuto, esperaria até a lancha afundar, e nadaria para a praia Ele interferiu com a correspondência? “Mas que idéia, rapaz!” — O sorriso de Jamie era agora seráfico. — Por que não?
Antes da Tokaidô, Malcolm era um excelente nadador. Agora, sabia que afundaria como uma âncora.
— Eu nunca chegaria à praia.
— Mas eu não teria dificuldade, tai-pan.
— Acontece que o problema não é seu, Jamie; e mesmo que o fizesse, isso só me concederia cerca de uma semana, o que não seria grande coisa. Não podemos interferir com o correio real. Vamos esquecer que tudo isso aconteceu. Certo? — Malcolm estendeu a mão. — Você é um amigo de verdade, o melhor que já tive. Lamento tê-lo tratado tão mal.
Jamie sacudiu a mão dele com vigor.
— Não me tratou tão mal assim e mereci tudo o que disse. Não houve conseqüências. Tai-pan... por favor, seria muito fácil.
— Obrigado, mas não.
Pela décima milésima vez, Malcolm compreendeu que não era Dirk Struan e nunca poderia fazer tudo aquilo de que o tai-pan era capaz; naquele caso, remover as cartas sem hesitação ou afundar toda a correspondência. Antes da Tokaidô talvez eu ousasse, mas agora... agora é cinqüenta vezes pior. Tokaidô, sempre a Tokaidô, pensou ele, a palavra gravada a fogo em sua mente, tão frustrado que sentia vontade de gritar.
— Tenho de enfrentar o problema sozinho.
Ele desembarcou, foi para sua suíte, claudicando. O vidro pequeno estava cheio, mas ele não tomou nada, tornou a guardá-lo na gaveta. Sentindo bastante dor, puxou sua cadeira para mais perto da janela e desabou nela, aliviado.
Vou vencer, prometeu a si mesmo. Por favor, Deus, ajude-me. Não sei como, mas hei de ter Angelique, dominar a dor, o ópio, a Tokaidô, Tess, vou vencer de qualquer maneira...
Seu sono foi profundo e repousante. Quando acordou, deparou com Angelique, sentada perto, sorrindo-lhe.
— Boa tarde, querido. Puxa, você dormiu muito bem! Já é quase hora de trocar de roupa para a festa. — Os olhos de Angelique faiscavam. Ela se adiantou, beijou-o, ajoelhou-se ao seu lado. — Como se sente?
— Ver você me deixa muito feliz.
A voz de Malcolm estava impregnada de amor, mas não ocultava a preocupação interior.
Isso a decidiu. Era importante tirá-lo de sua seriedade habitual, a fim de que pudesse desfrutar a festa naquela noite, que prometera que seria uma comemoração.
— Tenho uma surpresa para você — anunciou Angelique, maliciosa.
— O que é?
Ela se levantou, começou a rodopiar, como se estivesse dançando, o vestido de tarde sibilando. De repente, soltou uma risada e exclamou:
— Olhe!
Angelique levantou as saias e as anáguas, revelando toda a extensão das pernas perfeitas, realçadas por meias de seda, ligas elegantes sob os joelhos, uma calcinha rendada em diversas camadas. Ele esperava pelo calção tradicional, que tudo encobria. A visão deixou-o sem fôlego.
— Oh, Deus... — balbuciou ele.
— É para o seu prazer apenas, meu querido — disse ela, inebriada por sua ousadia, rindo do rubor de Malcolm, para depois, contente, levantar as saias por cima da cabeça por um instante, deixando-as cair em seguida, se abanando, esbaforida. — É a última moda, não se usam mais aqueles calções horríveis. O colunista de Le Figaro diz que hoje em dia algumas das mais famosas damas de Paris nem mesmo usam calcinhas na Ópera... em ocasiões especiais... para o prazer secreto de seus amantes!
— Não ouse fazer isso! — exclamou Malcolm, rindo também, arrebatado pela exuberância dela. Ele pegou-a pela mão, puxou-a para seu colo. — O simples pensamento me levaria à loucura.
Angelique comprimiu a cabeça contra seu ombro, satisfeita por seu estratagema ter dado certo.
— Acho que vou sussurrar em seu ouvido durante o jantar, algumas vezes, ou quando estiver dançando, que esqueci de vesti-las... só para provocar meu príncipe encantado, mas apenas depois que casarmos, e só para diverti-lo. Não se importa, não é, chéri... a nova moda, sem aqueles calções horríveis?
— Claro que não — respondeu Malcolm, como um homem experiente, embora secretamente não o fosse. — Se é a moda, então é a moda.
— Disse que a festa desta noite seria uma celebração? A maior parte da jovialidade de Malcolm se desvaneceu.
— Deveria ser, mas... Seja paciente comigo, Angel. Dentro de poucos dias poderei lhe contar o verdadeiro motivo... apenas tive de adiar um pouco. Enquanto isso, saiba que amo você, amo você, amo você...
O tempo mudou à noite, mas isso não arrefeceu o clima da festa de Malcolm. A sala de jantar principal do prédio Struan fora construída para grandes ocasiões e ofuscava todas as outras instalações particulares da colônia, exceto o clube. Prataria faiscante, copos de cristal, a melhor porcelana de Pequim, os trinta e tantos convidados em trajes a rigor ou uniformes de gala. Hoag declinara o convite, pois estava com febre.
O jantar foi lauto, como sempre, e prolongado. Agora, sob aclamações, a mesa comprida foi encostada na parede — uma ocorrência rara, mas quase obrigatória sempre que Angelique se encontrava presente, todos os convidados querendo dançar com ela. Menos Jamie... mas apenas por aquela noite. Como combinara antes com Malcolm, Jamie retirou-se discretamente, durante a confusão do deslocamento da mesa.
— Desculpe, mas não sinto vontade de dançar e vou embora, tai-pan.
— Ambos juramos esquecer o episódio da lancha hoje.
— Não é isso. Quero apenas ordenar meus pensamentos.
Naquela noite, Angelique era a única mulher presente, já que as outras duas como Hoag, estavam lamentavelmente doentes, e ela foi escoltada ao ritmo vertiginoso de valsas e polcas tocadas por André Poncin, num piano de cauda importado sob aplausos gerais na primavera. Uma dança por convidado era a regra, ela tinha permissão para descansar depois de quatro danças, e podia parar sempre que quisesse. Seu rosto resplandecia; usava um vestido novo de seda, vermelho e verde, mas sem a armação de uma saia-balão, o que realçava a cintura fina e o busto cheio, os mamilos quase à mostra, na moda decretada por Paris, deplorada pelo clero ausente, e devorada por todos os homens na sala.
— Já chega, mes amis — anunciou ela, depois de uma hora, sob os lamentos e súplicas daqueles que ainda não haviam dançado, e voltou para Malcolm, abanando-se, exultante.
Ele sentava numa enorme cadeira de carvalho, toda lavrada, à cabeceira da mesa, embalado pelo vinho e conhaque. Gostava de apreciá-la tanto quanto qualquer outro, embora se sentisse, como sempre, profundamente frustrado por não ter reivindicado a primeira dança, nem a última, como seria seu direito. Antes, era um grande dançarino.
Angelique acomodou-se no braço da cadeira. Malcolm passou o braço por sua cintura, enquanto ela estendia o seu pelos ombros dele.
— Você dança maravilhosamente, Angel.
— Nenhum deles é tão bom quanto você — sussurrou ela. — Foi o que primeiro me atraiu em você, príncipe encantado...
Gritos de expectativa interromperam-na. Para seu constrangimento e consternação, os dedos de André iniciaram os primeiros acordes do cancã, lentos e sedutores. Angelique sacudiu a cabeça, não se mexeu.
Para sua surpresa, sob gargalhadas, Pallidar e Marlowe foram para o centro da sala, toalhas presas em torno do uniforme, como saias, o ritmo alegre da música se acelerou, e eles iniciaram uma paródia hilariante da dança que escandalizava o mundo civilizado, fora de Paris, cada vez mais depressa, erguendo as falsas saias mais e mais alto, os pés subindo mais e mais, sob gritos, zombarias e risadas, todos batendo os pés em acompanhamento, até que os dois homens, de rosto vermelho e suando, nos uniformes apertados, tentaram um split e desabaram no chão, aos brados de “bis! bis!” e aplausos ensurdecedores.
Rindo com os outros, Malcolm largou-a, e ela se adiantou para ajudá-los a levantar, dando os parabéns e elogiando seus esforços. Pallidar ofegava e simulou um gemido.
— Acho que entortei as costas para sempre.
— Champanhe para o exército e rum para a marinha! — gritou Angelique.
Ela deu os braços aos dois e levou-os até Malcolm, para mais elogios. Sorrindo para ele, comentou:
— Nada de cancã para mim, não é mesmo, querido?
— Seria demais.
— Concordo — disse Marlowe.
— Também acho — arrematou Malcolm, partilhando o sorriso secreto com a noiva, num agradável excitamento.
Ao recomeçar a tocar, André escolheu uma valsa. Era apenas o suficiente para ela mostrar os tornozelos enquanto rodopiava, mas não o bastante para revelar a ousada ausência das pantalonas. Fora ele quem lhe mostrara o artigo em Le Figaro, encorajara-a, e partilhava o segredo. Durante toda a noite, observara-a e aos homens que a adulavam — Babcott pairando acima de todos os outros, depois os esplendorosos Pallidar e Marlowe, tentando afastá-lo do círculo íntimo —, saboreando seus segredos, e também, no momento, a vida dentro de uma vida que ele levava. Angelique dançava agora com Sir William. Rindo para si mesmo, André deixou a mente vaguear, enquanto os dedos continuavam a tocar. O que fariam todos se soubessem o que sei? Sobre os brincos, o aborto, e como me livrei da prova? Todos se voltariam para ela como se fosse uma leprosa, inclusive o apaixonado Struan, ele mais ainda.
Se as coisas fossem diferentes, e eu estivesse em Paris com ela, apoiado pelo poder e dinheiro da Casa Nobre, com um marido que a adora, mas inválido, quantos segredos poderia obter! Angelique precisaria de um treinamento mais extenso nas artes femininas, não tão gentis quanto se podia imaginar, suas garras teriam de ser afiadas, mas depois se tornaria uma clássica, qualquer salão e qualquer cama a acolheriam com o maior prazer, e depois que experimentasse o Grande Jogo, aquela menina tão astuta haveria de se empenhar com a maior satisfação.
E na minha cama? Agora ou mais tarde, com toda certeza, se eu quisesse pressioná-la, mas não a desejo mais, e não a terei, exceto por vingança. Ela é muito mais divertida como um joguete, e há bem pouca coisa neste mundo para divertir...
— Uma idéia sensacional, André! — exclamou Phillip Tyrer, radiante, ao seu lado. — Settry disse que você tramou tudo com eles.
— O quê?
— O cancã!
— Ah, sim... — Os dedos de André continuaram a tocar a valsa por mais um momento, mas logo pararam. — É tempo para uma pausa. Vamos tomar um drinque.
Ele concluiu que agora, sendo quase público, seria uma ocasião perfeita para controlar Tyrer.
— Ouvi dizer que o contrato de uma certa dama vale o salário de um ministro — comentou ele, em francês.
O rosto de Tyrer se avermelhou em embaraço, ele correu os olhos ao redor André acrescentou:
— Por Deus, Phillip, parece até que eu poderia ser indiscreto a esse ponto Não se preocupe, meu amigo, pois sempre defendo seus interesses. — Ele sorriu recordando o encontro dos dois no castelo em Iedo. — Afinal, as questões do coração nada têm a ver com as questões de Estado, embora eu acredite que a França deveria partilhar os despojos do mundo com a Grã-Bretanha... não concorda?
— Eu... concordo, André. Mas... as negociações não correm muito bem, infelizmente, ainda estamos num impasse.
— Não acha que é melhor falar em francês?
— Tem razão. — Tyrer usou seu lenço como um dândi o faria, para enxugar o suor repentino. — Nunca pensei que seria tão difícil.
André fez um sinal para que ele chegasse mais perto.
— Posso lhe dizer como acertar tudo: não a veja esta noite, embora tenha um encontro marcado. — Ele quase riu quando Tyrer ficou boquiaberto. — Quantas vezes já expliquei que existem bem poucos segredos por aqui? Talvez eu possa ajudar... se você precisar de ajuda.
— Claro que preciso. Seria um grande favor.
— Neste caso...
Os dois olharam para a mesa de roleta, que fora armada na outra extremidade da sala, onde houve uma explosão de risos e aplausos quando Angelique ganhou no duplo zero... não era jogo a dinheiro naquela noite, apenas moedas chinesas de bronze, sem valor. Vargas atuava como crupiê. Tyrer suspirou.
— Sorte no jogo e sorte no amor.
— Ela trabalha para isso — murmurou André, irritado com Angelique. — E você deveria fazer a mesma coisa. Não compareça ao encontro desta noite com Fujiko. Claro que sei que Raiko arrumou tudo por sua súplica... e não foi Raiko quem me contou, diga-se de passagem, mas uma de suas criadas. Não vá, e não mande nenhum aviso, apenas procure outra casa, a estalagem dos Lírios, por exemplo, pegue qualquer moça ali, a mais bonita se chama Yuko.
— Mas eu não quero, André...
— Se não quiser levá-la para a cama, apenas faça com que ela o Sirva por outros meios, trate de se embriagar, ou finja estar bêbado, e pode ter certeza de que não vai desperdiçar seu dinheiro. Amanhã, quando Nakama mencionar Fujiko, ou qualquer coisa sobre o contrato e Raiko, demonstre indiferença, e de noite repita o desempenho.
— Mas...
— Sempre que Nakama mencionar qualquer coisa, banque o indiferente, não diga nada, apenas que a estalagem dos Lírios parece muito promissora, ordene em tom ríspido que ele não torne a falar no assunto. Entendido até aqui?
— Entendido, mas você não acha...
— Não, não acho, a menos que você prefira ser levado à loucura e não queira ter Fujiko a um preço relativamente razoável... e de qualquer maneira, Phillip você vai continuar no impasse. O que não importa. Não é justo que tenha de mendigar, é uma questão de honra. Não discuta esse plano com Nakama, e mantenha o esquema por uma semana, no mínimo.
— Por Deus, André, uma semana?
— O melhor seriam três semanas, meu velho amigo. — André se divertiu com a expressão angustiada de Tyrer. — Não apenas estou lhe poupando muito dinheiro com isso, mas também um oceano de aborrecimentos. É importante que comporte como se não desse a menor importância, que se mostre irritado com as protelações, os encontros desmarcados e o preço absurdo pedido por Raiko... ainda mais por se tratar de alguém tão importante como você! Será uma boa coisa deixar Nakama desconcertado. Mas não muito, pois ele é um sujeito esperto, não é mesmo?
— É, sim... inteligente e perceptivo.
Também acho, pensou André, e muito em breve chegará o momento de partilhar tudo comigo, tanto o que ele lhe contou, como o que consegui descobrir por mim mesmo. É curioso que Nakama fale inglês... graças a Deus que meus espiões têm ouvidos bem abertos, além dos olhos. Isso explica muita coisa, embora eu não entenda por que ele não fala em inglês comigo, nem mesmo em japonês, sempre que o encontro sozinho. Deve ser porque Willie deu essa ordem.
— Tenho certeza que Raiko vai me pedir uma dúzia de vezes para interceder, promover um encontro — continuou André. — Depois de uma semana, concordarei em atendê-la, mas com evidente relutância. Não deixe que Nakama faça isso, não permita que ele entre no jogo. Ao se encontrar com Raiko, banque o duro e aja da mesma forma com Fujiko. Terá de parecer convincente, Phillip.
— Mas...
— Diga a Raiko que ela estava correta ao considerar os interesses de seu cliente, os seus interesses, em primeiro lugar... ainda mais porque você é uma autoridade importante, repise isso... dando-lhe tempo para pensar no assunto com o maior cuidado. E concorde que é melhor ser prudente, que comprar agora o contrato da “mulher” não é uma boa idéia. Diga “mulher”, em vez de Fujiko... não se esqueça que do ponto de vista delas você apenas negocia no momento o preço de uma mercadoria, não a dama que adora. Agradeça a Raiko, declare que com a sua ajuda pôde pensar melhor, e acha agora que seria um erro comprar um contrato. Vai apenas alugar os serviços da “mulher” de vez em quando, e se a “mulher” estiver ocupada, shigata ga nai... não tem importância... a vida é curta, etc.
Tyrer escutava com toda atenção, sabia que André tinha razão, e se angustiou à perspectiva de não ver Fujiko por uma semana, já imaginando-a a sofrer sob o peso de cada gai-jin em Iocoama.
— Eu... concordo com tudo o que disse, André, mas acho que não serei capaz... de fazer a encenação.
— Tem de fazer. Por que não? Afinal, eles representam durante todo o tempo. Ainda não percebeu que essa gente vive a mentira como se fosse a verdade e a verdade como se fosse mentira? As mulheres não têm opção, ainda mais no mundo flutuante. Os homens? São ainda piores. Lembre-se do Bakufu, o Conselho do Anciãos, e também de Nakama, especialmente de Nakama. Eles são mestres consumados no jogo, não se iluda. Por que ser um otário, por que deixar Raiko, humilhá-lo, e ao mesmo tempo entregar em suas mãos um ouro que não tem condições de dispensar... nunca terá... só por que tenta aplacar uma ânsia interminável que Deus implantou em nós?
André estremeceu. Conhecia muito bem essa armadilha. Caíra nela. Raiko o pressionara muito além de seus limites financeiros. Isso não é verdade, disse ele a si mesmo, irritado. Pode distorcer a verdade e a mentira para outras pessoas, mas não faça isso com você próprio, com seu eu secreto, ou estará perdido. A verdade é que me lancei ao limite, fui além, com a maior satisfação. Há dezessete dias.
No instante em que Raiko me apresentou à moça...
No instante em que a vi, com seus cabelos negros, pele de alabastro, olhos fascinantes, compreendi que daria a Raiko até minha alma, e mergulharia no abismo eterno para possuí-la. Eu, André Eduard Poncin, servidor da França, mestre da espionagem, assassino, perito na vileza da natureza humana, eu, o grande cínico, me apaixonei à primeira vista. Uma loucura! Mas a verdade.
Assim que a moça se retirou, eu, desamparado, emocionado, balbuciei:
— Raiko, por favor, pago qualquer coisa que pedir.
— Sinto muito, Furansu-san, mas custará mais dinheiro do que me agrada mencionar, mesmo que ela concorde em ficar com você... o que ainda não ocorreu.
— Pago qualquer dinheiro. Por favor, pergunte se ela aceita.
— Está bem. Por favor, volte amanhã, ao anoitecer.
— Não. Por favor. Pergunte agora... eu espero.
E ele tivera de esperar quase duas horas. Enquanto esperava, angustiado, rezara e torcera, morrera, e tornara a morrer. Quando Raiko voltara, ele vira sua expressão determinada, começara a morrer mais uma vez, mas ressuscitara quando ela dissera:
— O nome dela é Hinodeh, que significa alvorecer. Tem vinte e dois anos, diz que sim, mas há condições. Além do dinheiro.
— Tudo o que Hinodeh quiser.
— É melhor escutar primeiro. — Raiko parecia mais sombria do que ele jamais a vira. — Hinodeh diz que será sua consorte, não cortesã, por um ano e um dia. Se nesse último dia ela decidir continuar com você, vai lhe dar seu inochi, seu espírito, e passará mais um ano em sua companhia, e outro, mais outro, ano a ano, até decidir deixá-lo ou você se cansar dela. Se ela decidir ir embora, você jura que vai liberá-la, sem problemas.
— Concordo. Quando começamos?
— Espere, Furansu-san, há muito mais. Não haverá espelhos em sua casa e você não levará nenhum. Quando ela se despir, o quarto estará sempre no escuro-exceto uma vez, a primeira. Apenas uma vez, Furansu-san, poderá vê-la. Depois, no momento em que qualquer... qualquer marca desfiguradora aparecer, ou quando ela quiser lhe pedir, você deverá sem hesitação fazer uma reverência, abençoá-la, ser sua testemunha, e entregar a taça de veneno, ou faca, assistir e esperar até que ela esteja morta, para honrar seu sacrifício.
A mente de André entrara em vertigem, fora de controle.
— Morta?
— Ela disse que prefere a faca, mas não sabia qual seria a escolha de um gai-jin.
Quando conseguira pôr o cérebro para funcionar, André murmurara:
— Eu... eu serei o juiz... se a marca desfiguradora aparecer?
Raiko dera de ombros.
— Em você ou nela, não importa. Se ela resolver pedir, você deve cumprir sua promessa. Tudo ficará por escrito no contrato. Concorda?
Depois de absorver isso, em todo o seu horror, de aceitar, ele indagara:
— Quer dizer que a doença nela ainda se encontra no início, não há marcas?
Os olhos de Raiko se mostraram implacáveis, a voz era gentil, mas inexorável:
— Hinodeh não tem doença, Furansu-san, absolutamente nenhuma. É imaculada.
A cabeça de André parecia prestes a explodir, com o “é imaculada” ressoando pelo cérebro, junto com o brado para si mesmo “mas você é impuro!”
— Por quê? Por que ela concorda? Por quê? Ela não sabe que estou doente?
Uma criada, esperando lá fora, na varanda, assustara-se com seu grito e abrira a porta de shoji. Raiko acenara com a mão e a criada, obediente, tornara a fechá-la. Com extrema delicadeza, Raiko tomara um gole de saquê.
— Claro que ela sabe, Furansu-san. Sinto muito.
Ele removera a saliva dos cantos da boca.
— Então por que... ela concorda?
Outra vez uma expressão estranha.
— Hinodeh não quis me dizer. Sinto muito. É parte do meu acordo com ela. Não devo pressioná-la para saber, o que deve constar do seu acordo com ela. Não podemos pressioná-la. Ela diz que contará tudo no momento que julgar mais conveniente. — Raiko soltara um suspiro profundo. — Sinto muito, mas você deve concordar com isso, como parte do contrato. É essa a condição final.
— Concordo. Por favor, prepare o contrato...
Depois de uma longa agonia — apenas uns poucos dias —, o contrato fora assinado e lacrado, e André se encontrara com Hinodeh, ele impuro, ela pura, em toda a sua glória, e amanhã haveria outro encontro...
André quase deu um pulo quando alguém pôs a mão em seu ombro e descobriu-se de volta à enorme sala do prédio Struan. Era Phillip, que disse:
— Você está bem, André?
— Como? Ah, claro... — O coração de André palpitava, um suor frio deixava toda a sua pele arrepiada, na lembrança do “imaculada” e “primeira vez”, de todo o horror da situação... temendo o dia seguinte. — Desculpe, eu... senti um súbito calafrio.
No mesmo instante, ele experimentou a sensação de que a sala o pressionava ameaçando sufocá-lo, precisava sair dali, respirar um pouco de ar fresco. Levantou-se, meio trôpego, balbuciando:
— Peça... peça a Henri para tocar... eu... não me sinto bem... tenho de ir embora...
Aturdido, Tyrer observou-o se afastar. Babcott veio da mesa de roleta.
— O que houve com ele? O pobre coitado dá a impressão de que acaba de ver um fantasma.
— Não sei, George. Num momento ele estava bem, no seguinte ficou branco que nem um lençol, o suor escorrendo.
— Foi alguma coisa na conversa?
— Acho que não. Ele apenas me aconselhava sobre o que fazer com Fujiko e Raiko, nada que o envolvesse pessoalmente.
Os dois olharam André se retirar, como se a sala estivesse vazia. Babcott franziu o rosto.
— Uma atitude insólita, pois ele é geralmente afável. — Pobre coitado, deve ser sua aflição... eu bem que gostaria de poder lhe proporcionar uma cura, bem que gostaria que Deus nos oferecesse uma cura.
— Por falar nisso — disse Tyrer —, eu não sabia que você era um dançarino tão hábil.
— Nem eu — respondeu o gigante, com uma risada trovejante. — Fui inspirado... ela inspira qualquer um. Normalmente, danço como um rinoceronte.
Os dois contemplaram Angelique, através da sala.
— Uma constituição extraordinária a dessa moça... e que riso maravilhoso, contagiante!
— Tem razão. Malcolm é mesmo um sujeito de sorte. Com licença. Tenho de pedir a Henri para substituir André...
Tyrer afastou-se. Babcott tornou a observar Angelique. É curioso que um médico possa examinar uma paciente sem se sentir excitado, pensou ele, mesmo sendo uma mulher assim. E não fiquei, nas ocasiões em que ela me consultou em Kanagawa, ou aqui, embora nunca houvesse um exame intimo, pois não havia necessidade, exceto por sua menstruação intensa demais, há poucas semanas, quando um exame mais meticuloso era indicado, só que ela nunca permitiu. Nunca a vi tão pálida, com os lábios tão exangues. Pensando nisso, ela se comportou de maneira estranha, nem me deixou chegar perto, apenas me permitiu entrar no quarto, por um breve instante, quase como um estranho, quando na noite anterior — na ocasião em que lhe devolvi sua cruz — escutei o que havia em seu coração, auscultei seu peito e costas, verifiquei o estômago, e ela reagiu como uma paciente normal. Lembro que tinha a pulsação um pouco acelerada, sem qualquer motivo aparente. Um comportamento curioso.
Será que deixei de perceber alguma coisa? — ele perguntou a si mesmo, observando-a à mesa da roleta, transbordando de vida, batendo palmas com infantil júbilo ao ganhar, no vermelho ou no preto, Zergeyev e os outros lhe ensinando a arte do jogo. E é estranho que ela não use sua cruz, como a maioria dos católicos, ainda mais quando foi um presente da mãe adorada.
— Grande festa, Malcolm — disse Sir William, aproximando-se, a reprimir um bocejo. — Mas é tempo de me recolher.
— Outro conhaque?
Malcolm estava sentado perto do canto da lareira, o fogo agora reduzido a brasas.
— Não, obrigado. Já bebi o suficiente. Grande dama, Malcolm, grande diversão.
— É verdade — concordou Malcolm, orgulhoso.
Ele sentia-se melhor, com o vinho e o conhaque, que amorteciam a dor e acalmavam seu pânico persistente pelo futuro. Não tão forte quanto o medicamento, pensou ele. Mas não tem importância, é um começo.
— Bom... boa noite. — Sir William esticou-se. — Ah, antes que eu me esqueça, você poderia me procurar amanhã, a qualquer hora que quiser.
Malcolm levantou os olhos abruptamente, a lembrança da carta da mãe deixando seu estômago gelado outra vez.
— Por volta de onze horas está bem?
— Perfeito. Se quiser mudar, não tem problema.
— Não. Irei às onze horas. Sobre o que deseja me falar, Sir William?
— Pode esperar. Não há nada que não possa esperar.
— Sobre o que, Sir William?
Ele percebeu a compaixão nos olhos que o estudavam. Seu desconforto aumentou.
— É sobre a carta de minha mãe, não é mesmo... ela disse que lhe escreveria pela correspondência que chegou hoje.
— É isso mesmo, mas apenas em parte. Fui informado que deveria esperar uma carta. O primeiro assunto é Norbert, agora que ele voltou. Espero que já tenham esquecido essa bobagem de duelo.
— Claro.
Sir William soltou um grunhido, sem estar convencido, mas deixou o caso por aí. Não podia fazer mais do que advertir as duas partes e, depois, se insistissem, imporia a lei.
— Vocês dois estão avisados.
— Obrigado. E qual é o segundo assunto?
— Recebi a comunicação oficial do plano do governo de proibir todo o comércio de ópio por cidadãos britânicos, todo o transporte em navios britânicos, destruir as plantações de ópio em Bengala, substituindo-as por chá. Como liderava a delegação para pedir e se queixar dos rumores, eu queria que fosse o primeiro a saber.
— Isso vai arruinar nosso comércio asiático, todo o comércio na China, e transtornar por completo a economia britânica.
— A curto prazo, vai sem dúvida causar um grande problema para o Tesouro mas é o único curso moral possível. Essa providência já deveria ter sido adotada há alguns anos. É claro que compreendo o insolúvel triângulo prata-ópio-chá e o caos que a receita perdida acarretará para o Tesouro.
Sir William assoou o nariz, já cansado do problema que há anos afligia o Ministério do Exterior.
— Acho que peguei um resfriado. Sugiro que convoque uma reunião para a próxima semana, a fim de discutir como podemos reduzir a confusão.
— Está certo.
— Cultivar nosso próprio chá é uma boa idéia, Malcolm — comentou Sir William. — Mais do que isso, uma idéia maravilhosa! Pode interessá-lo saber que as primeiras plantações experimentais em Bengala estão produzindo colheitas de sementes contrabandeadas da China, levadas para Kew Gardens por Sir William Longstaff, o governador de Hong Kong no tempo de seu avô, quando voltou para casa.
— Sei disso, e até provei o chá, que é amargo e preto, sem nada da delicadeza do chá chinês, ou até mesmo do japonês — respondeu Malcolm, impaciente. O chá podia esperar até o dia seguinte. — O que mais?
— Por último, a carta de sua mãe — acrescentou Sir William, mais formal. — Não é política do governo de sua majestade, nem de seus representantes, interferir com a vida particular de seus cidadãos. Mas sua mãe ressalta que você é menor de idade e ela é sua tutora legal. Sou obrigado a não aprovar qualquer casamento sem o consentimento da tutora legal, neste caso das duas partes. Lamento muito, mas é a lei.
— As leis são feitas para serem violadas.
— Algumas leis, Malcolm — disse Sir William, gentilmente. — Não sei qual é o problema entre você e sua mãe, nem desejo saber... ela chamou minha atenção para o aviso no Times, que pode ser interpretado de várias maneiras, nem todas boas. Quando você voltar a Hong Kong, tenho certeza que poderá trazê-la para o seu lado. Além disso, de qualquer forma, você alcançará a maioridade em maio. e não falta muito.
— Errado, Sir William — disse Malcolm, recordando o mesmo conselho de Gordon Chen... um conselho de homens que não sabem o que é o amor, pensou ele, sem rancor, apenas sentindo pena. — Falta um milhão de anos.
— Seja como for. Tenho certeza que tudo acabará dando certo para os dois. Henri também pensa assim.
— Conversou a respeito com ele?
— Em particular, é claro. O cônsul francês em Hong Kong está... hum... a par de Angelique e sua afeição por você, a afeição mútua. Ela é uma pessoa maravilhosa, dará uma esposa maravilhosa, independentemente do problema com seu pai.
Malcolm ficou vermelho.
— Também sabe de tudo a respeito dele?
Os sulcos no rosto de Sir William se tomaram ainda mais profundos.
— As autoridades francesas no Sião estão bastante preocupadas. Como não podia deixar de ser, informaram Henri, que me passou as informações, pedindo ajuda. Lamento, mas é uma questão de interesse oficial. Já deve saber disso. Afinal, qualquer coisa relacionada com a Casa Nobre é uma questão de interesse. — Uma pausa, e ele acrescentou, com alguma tristeza, pois gostava de Malcolm e lamentava o barbarismo na Tokaidô: — O preço da fama, hem?
— Se... se souber de alguma coisa, eu agradeceria se pudesse ouvir primeiro, em particular, o mais depressa possível.
— Está certo, posso mantê-lo informado. Em particular.
Malcolm estendeu a mão para a garrafa de conhaque.
— Tem certeza que não quer?
— Não, não quero. Obrigado.
— Há alguma solução para o meu problema?
— Eu lhe diria se houvesse. — Sir William manteve a voz formal, para encobrir uma súbita irritação. Como se uns poucos meses pudessem fazer alguma diferença, já que a moça não está morta, ao contrário de Vertinskya, e continua a ser maravilhosa. — Seu aniversário é iminente, e Hong Kong fica a apenas oito ou nove dias de viagem. Claro que terei o maior prazer em recebê-lo às onze horas de amanhã, ou em qualquer outra ocasião, mas isso era tudo que eu tinha para falar. Boa noite, Malcolm, e mais uma vez, obrigado pela festa.
Já passava de meia-noite. Malcolm e Angelique beijavam-se ardentemente no corredor, fora de suas suítes adjacentes. O corredor estava escuro, havia apenas umas poucas luzes noturnas. Ela tentava contê-lo, mas também gostava, mais e mais a cada dia, o calor de Malcolm esquentando-a mais do que no dia anterior... e naquela noite a necessidade de ambos era quase irresistível.
— Je taime — murmurou Angelique, sincera.
— Je t’aime aussi, Angel.
Ela tornou a beijá-lo, depois cambaleou para trás, mais uma vez, quando já se encontrava na beira do abismo, e manteve-o a distância, enquanto recuperava o fôlego.
— Je t’aime... foi uma festa adorável.
— Você foi como champanhe.
Ela beijou-o na orelha, seus braços o enlaçaram. Antes da Tokaidô, teria ficado na ponta dos pés. Não notava isso, mas Malcolm sabia.
— Lamento ter de dormirmos separados.
— Eu também, mas não falta muito agora. — Abruptamente, a dor se manifestou, mas ele a suportou por mais um momento. Fitou-a nos olhos. — Só mais um pouco. Durma bem, minha querida.
Os lábios se encontraram, eles murmuraram boa-noite, várias vezes, e depois Angelique se foi. Trancou sua porta. Malcolm pegou as bengalas, claudicou até seus aposentos, feliz e triste, preocupado e sem qualquer preocupação. A noite fora um sucesso. Angelique ficara contente, os convidados haviam se divertido, ele reprimira o desapontamento pelo fracasso de seu plano e confrontara o problema da correspondência, não permitindo que Jamie tomasse a decisão em seu lugar.
E fora a decisão certa, pensou ele, embora Dirk pudesse ter feito melhor. Não importa, nunca poderei ser como ele, Dirk morreu, eu estou vivo, e Heavenly prometeu encontrar uma solução para as cartas dele, dar um novo rumo ao meu destino:
— Deve haver uma solução, tai-pan. Descobrirei alguma coisa antes de partir para Hong Kong, pois precisará daquela prova, independentemente do que venha a acontecer.
Os olhos de Malcolm desviaram-se para a porta de comunicação, ainda trancada à noite, em caráter permanente, por consenso mútuo. Não vou pensar em Angelique, na tranca, ou que ela está sozinha. Nem sobre o meu fracasso ou nosso casamento. Fiz essa promessa antes e a cumprirei. Amanhã cuidarei do amanhã.
A meia garrafa de vinho habitual esperava na mesinha-de-cabeceira, com algumas frutas — entre as quais mangas de Nagasáqui —, queijo inglês, chá frio, que ele sempre tomava em vez de água, um copo e o vidro pequeno. A cama estava preparada, seu camisolão estendido em cima. A porta foi aberta.
— Olá, tai-pan.
Era Chen, seu criado número um, com o sorriso largo, de muitos dentes, que sempre o agradava. Chen cuidava dele desde que podia se lembrar, assim como Ah Tok sempre fora sua ama, ambos de uma lealdade total, possessivos, sempre em desavença. Era um homem atarracado, muito forte, o rabicho exuberante, o rosto redondo, com um sorriso permanente, que nem sempre se transmitia aos olhos.
— Seu banquete foi digno do imperador Kung.
— Ah! — exclamou Malcolm, azedo no mesmo instante, sabendo o que o velho insinuava. — Que a grande vaca possa urinar em suas gerações imediatas. Faça logo o seu trabalho, guarde suas opiniões para si mesmo, e não se comporte como se tivesse nascido sob o signo do macaco.
Era o signo zodiacal para as pessoas espertas. O aparente gracejo de Chen, como a maioria em chinês, possuía muitos significados: o imperador Kung, que reinara na China quase quatro milênios antes, era famoso por três coisas, seus gostos epicuristas, os lautos banquetes que promovia, e seu “livro”.
Naquela época, não havia livros como se conhecia hoje, apenas pergaminhos. Ele preenchera um pergaminho com um tratado detalhado, o primeiro “livro de travesseiro”, a fonte de todos os outros que, por definição, versavam sobre as conjunções de homem e mulher, em todas as suas possibilidades e riscos, como melhorar o momento do orgasmo, os nomes para as diversas posições e suas minúcias, descrições de artefatos, poções, técnicas — arremetidas profundas e superficiais —, como escolher a parceira física certa, e dizendo, entre outras sabedorias:
...obviamente, um homem cujo Monge Caolho tenha o infortúnio de ser pequeno não deve se lançar a um embate com um Portão de Jade como o de uma égua.
Que seja conhecido por todos os tempos, os deuses determinaram que essas partes podem parecer iguais, mas apesar disso variam bastante. Deve-se usar de extremo cuidado para evitar a armadilha dos deuses, que enquanto concediam ao homem os meios, assim como uma necessidade tão forte e tão permanente quanto a agulha que procura a Estrela do Norte, para saborear o Céu na Terra — o momento das Nuvens e da Chuva é assim —, ao mesmo tempo, para sua diversão, criaram múltiplos obstáculos no caminho da busca do yang pela yin, alguns fáceis de evitar, a maioria impossível, todos complexos. Como o homem deve saborear tanto quanto puder do Céu enquanto estiver na Terra — quem sabe se os deuses são realmente deuses —, o Too, o Caminho para a Ravina Deslumbrante, deve ser visto, examinado, perseguido e estudado com uma intensidade maior do que a transmutação de chumbo em ouro...
Chen circulou pelo quarto, magoado, mas ao mesmo tempo satisfeito pelo conhecimento de seu amo. Apenas cumpria seu dever, chamando a atenção para a força da yin, em particular naquela noite, com tanta ostentação, a dança e os beijos, provocando o yang do amo, e sobre isso o imperador fora bastante específico: Um yang nervoso e não satisfeito em qualquer casa, se for o do amo, vai transtornar toda a casa, e por isso todos devem envidar esforços para aliviar o desamparado.
E nossa casa se encontra em turbilhão, pensou Chen, contrariado. Ah Tok se mostra mais difícil do que nunca. Ah Soh resmunga pelo trabalho extra e a preocupação, os cozinheiros se queixam da perda de apetite do amo, os criados lamentam que nada o agrada, e tudo porque essa prostituta bárbara, que mais parece uma vaca, não quer cumprir o seu dever. A opinião geral entre os criados era a de que ela devia possuir uma dessas ravinas vorazes contra as quais o imperador Kung alertara:
Há algumas que os deuses aliaram aos demônios, com uma força magnética tão grande que levam os homens à loucura, e os fazem esquecer uma verdade imortal, a de que uma Yin é como qualquer outra quando a necessidade é intensa, e pior, quando tal Ravina finalmente se abre para receber o Yang, esse Céu se torna o Inferno, pois nunca há suficiente.
— Ah, tai-pan — disse Chen, ajudando-o a se despir —, esta pessoa apenas dizia que seu banquete agradou a todos.
— Seu amo e senhor sabe exatamente o que você quis dizer.
Malcolm tirou a camisa, com alguma dificuldade. Seu tio, Gordon Chen quem muito prezava, instruíra-o sobre a obra do imperador Kung, ressaltando que aquelas informações, assim como outros importantes conhecimentos sobre yang e yin, deveriam ficar entre os dois, sendo mantidos em segredo de sua mãe.
— Você não passa de um patife impertinente — acrescentou Malcolm, em inglês, sua principal defesa contra Chen e Ah Tok. Ele jamais conseguia levar a melhor sobre eles em cantonês, mas enfurecia-os quando falava em inglês — E sei que estava tentando depreciar a ama. Mas, por Deus, é melhor parar com isso.
O rosto redondo se contraiu.
— Tai-pan — disse Chen, em seu melhor cantonês, enquanto o ajudava a deitar —, esta pessoa só tem os interesses do amo acima de qualquer outra coisa.
— Essa não! — escarneceu Malcolm. — Palavras de uma língua viperina são tão preciosas quanto espinhas de peixe mofadas para um homem faminto.
Ele percebeu um envelope na cômoda e perguntou:
— O que é aquilo?
Chen foi buscar, apressado, feliz porque a conversa se desviara de sua pessoa.
— Um demônio estrangeiro chegou esta noite à sua procura. Nosso cambista Vargas o recebeu. O demônio estrangeiro disse que a carta era urgente, por isso Vargas pediu que ele a deixasse aqui, para o caso de nosso ilustre amo querer lê-la de noite.
A letra não era familiar.
— Que demônio estrangeiro?
— Não sei, tai-pan. Deseja mais alguma coisa?
Malcolm sacudiu a cabeça, bocejou, pôs o envelope na mesinha-de-cabeceira e dispensou-o. O vidro de medicamento parecia chamá-lo.
— Não vou tomar — murmurou ele, a voz firme.
Estendeu a mão para diminuir a chama do lampião a óleo, mudou de idéia e abriu a carta, com súbita expectativa, pensando que podia ser de Heavenly, ou mesmo do padre Leo.
Prezado Sr. Struan: Talvez eu possa me apresentar, Edward Gorra, da Rothwell, de Xangai, antes da Virgínia, no momento aqui em Iocoama, para treinamento com o Sr. Norbert Greyforth, a pedido de Sir Morgan Brock.
O Sr. Greyforth pediu-me para representá-lo, como seu padrinho, na questão particular, embora premente, do duelo para o qual o desafiou. Talvez seja melhor eu procurá-lo amanhã? A parte da manhã seria mais conveniente, por volta de meio-dia, digamos? Tenho a honra de ser seu servidor obediente, Edward Gornt.
A assinatura era tão impecável quanto a letra no resto da carta.
Terça-feira, 2 de dezembro:
— Bom dia, Sr. Gornt. Permita que lhe apresente o Sr. McFay, chefe da Struan no Japão. Por favor, fique à vontade... você também, Jamie. Café, chá, xerez, champanhe?
— Nada, obrigado, Sr. Struan.
— O Sr. McFay é um dos meus padrinhos. Os detalhes, pelo que creio, devem ser acertados entre os padrinhos, não é mesmo?
— É, sim, senhor. Já me encontrei com o Sr. Syborodin, mas não conversei nada com ele, de acordo com os desejos do Sr. Greyforth.
Os dois jovens se estudaram. Desde o primeiro instante, ambos haviam experimentado a mesma sensação estranha: uma intensa atração pelo outro. E cada um pensou: É estranho que se possa simpatizar de imediato com algumas pessoas, sem qualquer razão aparente, enquanto se detesta outras, até com uma profunda repulsa, e se ignora muitas. Mesmo assim, ambos tinham certeza que a afinidade inicial, por maior que fosse, não faria a menor diferença. Muito em breve — hoje, amanhã, talvez nos minutos seguintes — alguma coisa faria com que revertessem a normalidade, à confortável hostilidade histórica que unia suas firmas, e se prolongaria pelos tempos afora, descartando aquela primeira afinidade como uma aberração peculiar.
— Em que eu... em que nós podemos servi-lo? — indagou Malcolm.
O sorriso de Gornt era genuíno, os dentes brancos, como os de Malcolm. Ele era da mesma altura, um pouco mais franzino, as roupas menos elegantes, cabelos escuros em contraste com os castanhos-avermelhados de Malcolm, olhos castanhos, não azuis.
— O Sr. Greyforth queria confirmar datas, armas, etc.
Jamie interveio:
— Sabe que tudo isso é contra a lei, Sr. Gornt, e que o duelo foi formalmente proibido por Sir William?
— Sei, sim, Sr. McFay.
Jamie mudou de posição na cadeira, contrafeito, detestando seu envolvimento mais do que nunca, e ainda mais inquieto pelo insólito clima na sala. Não podia entender. Onde deviam prevalecer frieza e hostilidade, parecia mais um momento de expectativa, bastante agradável e predeterminado.
— Isso dito, o que Norbert tem em mente?
— Hoje é terça-feira. Pode ser daqui a uma semana?
— Prefiro na quarta-feira, dia 10 — declarou Malcolm, no mesmo instante
Ele formulara um plano durante a madrugada. Perdera o sono. Lutara contra o dragão que havia no pequeno vidro, e vencera, embora a batalha cobrasse um tributo, e a medida daquela manhã fora um alívio patético.
O Prancing Cloud chegaria no domingo, e deveria partir ao anoitecer da quarta-feira. Combinaria em segredo com o capitão para zarpar assim que ele embarcasse, depois do duelo. Ou já teria enviado Angelique para o navio, ou providenciaria para que Jamie a escoltasse até Hong Kong no próximo navio, o que só seria decidido no último momento, ao final da terça-feira. Talvez fosse melhor levar Jamie junto com Angelique, assim anulando parte da fúria de sua mãe contra Jamie, pela obediência a um dos seus desejos, o que talvez a levasse a revogar sua ordem de demissão... devia isso a Jamie, por tentar ajudá-lo, por todos os meios. Se Angelique estivesse a bordo, talvez encontrasse uma maneira de persuadir o capitão Strongbow a esquecer a ordem de sua mãe.
É uma chance difícil, refletiu ele, mas um coração fraco jamais conquistou uma bela dama, e é o melhor que posso fazer.
— Prefiro a quarta-feira.
— Imagino que não haverá qualquer problema, senhor. Quanto ao lugar, sugerimos que seja ao amanhecer, na terra de ninguém, entre a aldeia e a cidade dos bêbados, não no hipódromo, pois se trata de um lugar público demais, com cavaleiros por ali desde o início da manhã.
Malcolm riu, sem saber por quê.
— Uma boa escolha — disse ele, antes que Jamie pudesse responder. Muito melhor para mim, mais isolado, mais perto do mar, será bem mais fácil seguir para o clíper do cais na cidade dos bêbados. — É evidente que já conhece muito de Iocoama, embora esteja aqui há apenas um dia.
— A sugestão foi do Sr. Greyforth, mas verifiquei os dois locais esta manhã. A terra de ninguém é melhor, mais segura.
— Então isso está combinado. Será difícil para mim caminhar dez passos. Sugiro que devemos assumir nossas posições e, à ordem de alguém, a sua, se assim desejar, podemos apontar e atirar.
— Consultarei o Sr. Greyforth.
— Mais alguma coisa?
Gornt hesitou, depois olhou para Jamie.
— Podemos acertar os outros detalhes mais tarde, como devemos chegar, por que caminhos, em que médico podemos confiar, etc. Por último...
— Parece muito bem informado sobre duelos, Sr. Gornt. — murmurou Jamie. Já esteve envolvido em algum?
— Alguns, Sr. McFay. Como participante uma vez; duas como padrinho, quando estudava na Universidade de Richmond. — Outra vez o sorriso, efusivo, entretanto, sincero. — Levamos muito a sério as questões de honra no Sul, senhor.
Com a agradável irrealidade da conversa e sua convicção de que o tai-pan caíra na armadilha preparada por Greyforth — apesar da obstinação de Malcolm — fizeram com que Jamie perdesse o controle.
— Então deve saber que Norbert estava errado! — exclamou ele, furioso. — Norbert fez tudo o que podia para provocar o tai-pan, agiu assim várias vezes, e não resta a menor dúvida de que deveria pedir desculpas, para podermos pôr um ponto final nessa estupidez!
— Jamie! — protestou Malcolm.
Se não fosse pelo que acontecera no dia anterior, ele teria pedido a Jamie que se retirasse. Mas a dívida de ontem era vasta e eterna, por isso Malcolm limitou-se a dizer ao amigo de verdade que era Jamie:
— Não é problema seu, e sei muito bem como se sente. — Ele tornou a olhar para Gornt. — Jamie está certo. Norbert tem se comportado de uma maneira deplorável.
Gornt não respondeu. Malcolm deu de ombros, sorriu.
— Destino. Também não é problema seu, Sr. Gornt. Portanto, já foi participante uma vez e padrinho duas vezes. É evidente que venceu. E o outro homem?
— Não o matei, senhor, nem tentei matá-lo. Apenas o feri.
Os dois se observaram, avaliando um ao outro. Jamie disse, nervoso:
— Então está tudo acertado.
— Isso mesmo, exceto as armas. O Sr. Greyforth escolhe espadas. Malcolm ficou boquiaberto, Jamie empalideceu.
— Pistolas de duelo foi o combinado — disse Jamie. — Acertamos isso.
— Sinto muito, senhor, mas não foi nada acertado. O Sr. Greyforth, como a parte desafiada, tem o direito de escolher as armas.
— Mas foi acer...
— Jamie, deixe-me cuidar disso — interveio Malcolm, atônito com seu desapego, já esperando alguma sujeira de Norbert. — Sempre foi presumido que éramos cavalheiros e usaríamos pistolas.
Lamento, mas não são essas as minhas instruções, senhor. Quanto a cavalheiros, meu principal assim se considera e escolhe defender sua honra com Uma espada, o que é bastante costumeiro.
— Obviamente, isso não é possível.
— O Sr. Greyforth também disse... devo ressalvar que não aprovo, e foi o que declarei a ele... também disse que se o senhor quiser poderia concordar com facas, espadas ou lanças.
Jamie começou a se levantar, mas Malcolm o deteve.
— No meu atual estado, isso é impossível — disse ele, para depois se controlar e acrescentar, com firmeza: — Se é uma manobra para Norbert resguardar sua honra, me humilhar e cancelar o duelo, então eu o desprezo, e sempre o considerarei indigno.
Jamie admirou e detestou essa explosão, ao mesmo tempo, mas de repente compreendeu que poderia ser um meio de salvar as aparências para ambos.
— Tai-pan, não acha que...
— Não. Sr. Gornt, é evidente que não posso, neste momento, sequer usar uma espada. Por favor, peça a Norbert para aceitar pistolas.
— Pois não, senhor, claro que pedirei. O primeiro dever de um padrinho é tentar promover uma reconciliação e parece-me que há espaço suficiente para os dois cavalheiros na Ásia. Falarei com o Sr. Greyforth.
— Poderá me encontrar aqui a qualquer momento, Sr. Gornt — disse Jamie. — Tudo o que eu puder fazer para ajudar a acabar com essa insanidade, basta me avisar.
Gornt acenou com a cabeça, começou a se levantar, mas parou quando Malcolm indagou:
— Poderíamos ter uma conversa em particular, Sr. Gornt? Não se importa, não é, Jamie?
— Claro que não. — Jamie apertou a mão de Gornt, e acrescentou para Malcolm: — Há uma reunião de todos os mercadores para discutir a bomba de Sir William, ao meio-dia, no clube.
— Eu irei, Jamie, embora tenha certeza de que não haverá qualquer discussão objetiva, apenas muitos gritos e explosões.
— Também acho. Até mais tarde, tai-pan.
Jamie se retirou. A sós na sala, os dois homens se estudaram, mais uma vez.
— Está a par da estupidez do Parlamento?
— Estou, sim, senhor. Todos os governos são estúpidos.
— Gostaria de me acompanhar num copo de champanhe?
— Uma celebração?
— Isso mesmo. Não sei por que, mas me sinto satisfeito por conhecê-lo.
— Ah, então sente a mesma coisa? Não é certo, não acha?
Malcolm sacudiu a cabeça, tocou a sineta. Chen apareceu. Depois que o champanhe foi aberto e servido, ele saiu, os olhinhos escuros saltando de um homem silencioso para outro homem silencioso.
— Saúde!
— Saúde! — respondeu Gornt e saboreou o champanhe.
— Tive a impressão de que você queria me falar em particular.
Gornt riu.
— Queria mesmo. É perigoso um inimigo ser capaz de ler seus pensamentos, hem?
— E muito, só que não precisamos ser inimigos. A Rothwell é uma boa cliente, o ódio e rivalidade entre os Struans e os Brocks não devem afetá-lo, independente do que Tyler ou Morgan possam dizer.
Baixou os olhos para o copo de cristal lapidado e as borbulhas do champanhe indagando-lhes se estava correto ao pensar que o momento oportuno era agora ou se deveria esperar. Os olhos castanhos-amarelados tornaram a avaliar Struan. Decidiu correr o perigo.
— Tem a reputação de gostar de segredos e ser digno de confiança.
— Você também é assim?
— Em questões de honra, sou. Sua reputação... gosta de histórias, legendas?
Malcolm fez um esforço para se concentrar, desconcertado com a irrealidade da reunião e com o homem à sua frente.
— Algumas mais do que outras.
— Estou aqui sob um falso pretexto. — O sorriso repentino de Gornt iluminou a sala. — Por Deus, não posso acreditar que estou de fato aqui, com o futuro tai-pan da Casa Nobre! Esperei e planejei por tanto tempo para esta reunião e agora chegou o momento. Antes de vir para cá, eu não tinha a menor intenção de dizer qualquer coisa agora, exceto o que o Sr. Greyforth me pediu para falar. Mas agora?
Ele ergueu o copo.
— À vingança.
Malcolm pensou a respeito por um instante, sem medo, fascinado, depois bebeu, serviu-se de mais champanhe.
— É um bom brinde na Ásia.
— Em qualquer lugar. Primeiro: preciso de sua palavra de honra, a honra do tai-pan da Casa Nobre, diante de Deus, de que tudo o que eu disser permanecerá em segredo entre nós, até que eu o libere.
Malcolm hesitou.
— Desde que seja uma história. E ele fez o juramento.
— Obrigado. Vamos à história. Estamos seguros aqui? Alguém pode nos ouvir?
— Na Ásia, quase sempre. Sabemos que as portas têm ouvidos, assim como paredes, mas posso dar um jeito. Chen!
Aporta foi aberta no mesmo instante. Em cantonês, Malcolm ordenou:
— Fique longe da porta, mantenha todos afastados, até mesmo Ah Tok!
— Pois não, tai-pan. A porta foi fechada.
— Agora está seguro, Sr. Gornt. Conheço Chen durante toda a minha vida, e não fala inglês... eu acho. Fala xangainês?
— Um pouco, assim como o dialeto Ning poh.
— Estava dizendo?
— É a primeira vez que conto a história a alguém — afirmou Gornt e Malcolm acreditou. — Era uma vez uma família que foi para a Inglaterra, saindo de Montgomery, Alabama... seu lar por gerações... pai, mãe, dois filhos, um garoto e uma menina. Ela tinha quinze anos, seu nome era Alexandra, e o pai era o mais jovem de cinco irmãos, Wilf Tillman o mais velho.
— O co-fundador da Cooper-Tillman? — indagou Malcolm, surpreso.
— Isso mesmo. O pai de Alexandra era um pequeno corretor de chá e algodão, um investidor com o irmão Wilf na Cooper-Tillman. Foi para Londres trabalhar com a Rothwell, num contrato de três anos, como assessor no algodão... a Cooper-Tillman era a maior fornecedora. Permaneceram em Londres pouco menos de um ano. Infelizmente, os pais adoeceram, o que não é de admirar, com o fog, aquele clima horrível. Eu mesmo quase morri quando estive lá... passei dois anos em Londres em treinamento na Brock, e mais um na Rothwell. Mas voltemos à história. Os Tillmans decidiram voltar para casa. No meio do Atlântico, Alexandra descobriu que estava grávida.
— Que coisa terrível! — murmurou Malcolm.
— É verdade. O choque matou seu adorado pai, somando-se à doença. Ele tinha trinta e sete anos. Foi sepultado no mar. O atestado de óbito assinado pelo capitão dizia apenas “convulsão cerebral”, mas tanto ela quanto a mãe sabiam que a verdadeira causa fora a má notícia. Alexandra tinha só dezesseis anos, tão bonita quanto um retrato. Isso foi em 1835, há vinte e sete anos. Alexandra teve um filho, eu. Para uma moça solteira ter um filho ilegítimo, ser uma decaída... ora, Sr. Struan, não preciso lhe dizer que estigma e desastre isso é, ainda mais na região da Bíblia do Alabama, onde vivia a nossa família, e entre os aristocráticos Tillmans. Falamos antes sobre honra. É verdade o que eu disse, que levamos a honra muito a sério, assim como a desonra. Posso?
Gornt gesticulou para a garrafa de champanhe.
— Por favor.
Malcolm não sabia o que dizer. A voz era cadenciada, agradável, imparcial, apenas alguém relatando uma história. Por enquanto, pensou ele, sombrio.
Gornt serviu Struan, depois a si mesmo.
— Minha mãe e a mãe dela foram relegadas ao ostracismo pela sociedade, e também pela família Tillman, até mesmo seu irmão virou-se contra ela. Quando eu tinha três anos, minha mãe conheceu um virginiano, um inglês transplantado... Robert Gornt, um cavalheiro, exportador de tabaco e algodão, um entusiasmado jogador de cartas de Richmond... e os dois se apaixonaram. Deixaram Montgomery, foram casar em Richmond. A história que inventaram foi de que ela era viúva, casada aos dezesseis anos com um oficial de cavalaria ianque, que morrera nas guerras contra os índios sioux. Ela tinha dezenove anos na ocasião. Tudo correu mais ou menos bem por vários anos. Até 1842... um ano depois que Dirk Struan fundou Hong Kong praticamente sozinho, o ano antes de você nascer. 1842 foi um péssimo ano para Hong Kong, com a praga da febre do Happy Valley, a malária, a guerra do ópio com a China, o grande tufão que destruiu a cidade, e ainda pior para a Casa Nobre, porque o mesmo tufão matou o grande Dirk Struan.
Um gole de champanhe.
— Ele foi responsável pela morte de Wilf Tillman e pela ruína da família Tillman.
— Não sei de nada a respeito. Tem certeza?
Gornt exibiu seu sorriso, sem qualquer hostilidade por trás.
— Tenho, sim. Wilf Tillman caiu doente, com a febre do Happy Valley. Dirk Struan tinha quinino, que poderia curá-lo, mas não quis lhe dar, nem vender, pois queria-o morto; assim Como Jeff Cooper. — Um certo nervosismo insinuou-se na voz— o ianque de Boston queria-o morto.
— Por quê? E por que o tai-pan haveria de querer a morte de Tillman?
— Ele o odiava... tinha opiniões diferentes de Wilf. Entre outras razões, Wilf tinha escravos, que não eram ilegais na ocasião, e também não são agora, no Alabama. E para ajudar Cooper a assumir o controle da firma. Depois que Wilf morreu, Jeff Cooper comprou sua parte por uma ninharia e cortou minha família do dinheiro restante. Dirk foi o responsável.
— Temos um empreendimento comum com a Cooper-Tillman na exploração de quinino, Sr. Gornt, e somos amigos antigos. Quanto ao resto, nada sei a respeito, nem acredito. Verificarei essa história assim que voltar a Hong Kong.
Gornt deu de ombros.
— Anos mais tarde, Cooper admitiu que nunca aprovara Wilf Tillman. Suas palavras exatas foram: “Escute, meu jovem, Wilf mereceu tudo o que recebeu, era um escravocrata e um inútil, nunca se empenhou num único dia de trabalho em toda a sua vida, seu cavalheiro sulista era infame. Dirk teve razão ao dar o pouco quinino de que dispunha a outros, que julgava mais merecedores. Foi meu trabalho, só meu, que fez a companhia que pagou sua mãe, seu padrasto e você por todos aqueles anos...”
O rosto de Gornt se contraiu, mas ele logo recuperou a calma. Exteriormente.
— Ele disse mais algumas coisas... que não são importantes agora. Mas cortar os recursos, nosso dinheiro legítimo, foi muito importante. Foi nessa ocasião que começaram as brigas entre o padrasto e a mãe, e nossa vida se deteriorou. Só muitos anos mais tarde é que descobri que ele casou com a mãe por dinheiro, que seus negócios de algodão e tabaco eram imposturas, não passava de um jogador, não dos mais bem-sucedidos, e que ela sempre o encobriu. A mãe me contou tudo isso quando estava morrendo. Mas ele não era mau comigo, apenas me ignorava, fui ignorado durante toda a minha vida. Agora, chegou o momento da vingança.
— Não vejo por que deve me culpar.
— E não o culpo.
Malcolm não entendeu.
— Pensei que “espadas ou punhais” eram apenas o começo.
— Não foi idéia minha, já falei. E disse ao Sr. Greyforth que não daria certo. Todos rirão dele, se tentar insistir.
Depois de uma pausa, Malcolm comentou:
— Fala como se não gostasse dele.
— Não gosto nem desgosto. Estou aqui para aprender, por um mês, e depois assumir o comando, quando ele se aposentar, no próximo ano. Esse é o plano... Se eu decidir ingressar na Brock.
— Pode assumir o comando mais cedo do que imagina. — A voz de Malcolm endurecera. — Na próxima quinta-feira... eu espero.
— Está mesmo decidido em realizar o duelo?
— Estou.
— Posso perguntar o verdadeiro motivo?
— Ele fez de tudo para me provocar, por orientação dos Brocks, com toda certeza. Será melhor para a Struan se ele for removido.
— Tentará me remover quando eu for contra a Struan?
— Vou me opor a você, competir com você, detê-lo se puder... mas não quereria duelar com você. — Malcolm sorriu, um bom sorriso. — É uma conversa maluca, Sr. Gornt. É um absurdo sermos tão francos e sinceros, mas é o que ocorre. Falou em “vingança”. Está mesmo determinado a se vingar de nós, pelo que meu avô teria feito com Wilf Tillman?
— Estou — respondeu Gornt, sorrindo. — No momento oportuno.
— E Jeff Cooper?
O sorriso desapareceu.
— Também cuidarei dele. No momento oportuno. — E depois, por um momento, a voz de Gornt se tornou impregnada de veneno. — Mas isso não é toda a vingança que procuro. Quero destruir Morgan Brock e, para isso, preciso de sua ajuda...
Ele desatou a rir.
— Desculpe, Sr. Struan, mas se pudesse ver a sua cara...
— Morgan? — balbuciou Malcolm.
— Isso mesmo. Não posso fazê-lo sozinho. Preciso de sua ajuda, o que é irônico, não acha?
Malcolm levantou-se, sacudiu-se todo, como um cachorro, esticou-se, tornou a sentar, o coração disparado. Serviu-se de mais champanhe, derramando um pouco na mesa, tomou um gole enorme. Durante todo o tempo, Gornt o observava e esperava, satisfeito com o efeito de suas palavras. Malcolm levou algum tempo para conseguir falar de novo.
— Morgan? Mas por quê?
— Porque ele seduziu minha mãe quando ela tinha quinze anos, arruinou sua vida e a abandonou. A Bíblia diz que matar seu pai, patricídio, é um ato infame. Minha mãe me fez jurar que eu não faria isso, quando me contou toda a verdade, pouco antes de morrer. Por esse motivo, não vou matá-lo, apenas arruiná-lo. — As palavras soavam incisivas, sem emoção. — E para fazer o que tenho de fazer, preciso da Struan.
Malcolm respirou fundo, tornou a sacudir a cabeça. Nada fazia sentido para ele, embora acreditasse em tudo... até mesmo no comportamento de Dirk Struan. Tenho muito que aprender, pensou ele, enquanto Gornt continuava a falar, explicando que Morgan tinha vinte anos na ocasião, era aprendiz na Rothwell, residia na casa da companhia, por isso era fácil para ele se esgueirar até o quarto de Alexandra.
— O que uma garota de quinze anos podia saber, ainda mais uma clássica Idade sulista, resguardada como uma planta rara? Rothwell despediu-o ao descobrir, mas o velho Tyler Brock riu, comprou em segredo o controle da companhia, e...
Malcolm ficou chocado.
— Brock controla a Rothwell?
— Controlou, por algum tempo, apenas o suficiente para demitir Rothwell e todos os seus diretores e nomear novos. Quando Jeff Cooper descobriu, tinha bastante influência para forçar o velho Brock a fazer um acordo particular, meio a meio. Em troca, Jeff dirigiria a companhia e manteria o acordo em segredo, em particular da Struan. O acordo continua em vigor.
— Dmitri sabe?
— Não. Nem o Sr. Greyforth. Descobri os detalhes por acaso, quando estava em Londres.
A mente de Malcolm funcionava a todo vapor. A Struan mantivera seu relacionamento com a Rothwell ao longo dos anos, mas ninguém jamais dissera que haviam sido tratados de uma maneira indevida ou ludibriados. Depois, uma coisa que Gornt dissera aflorou em sua mente.
— Morgan sabe que você descobriu tudo?
— Escrevi para ele em Londres, quando mamãe morreu. Ele respondeu que era tudo novidade, e negou, mas me convidou a visitá-lo, se algum dia fosse a Londres. E eu fui. Mais uma vez, ele negou. Nada tinha a ver com isso, garantiu, fora culpado pelos atos de outro aprendiz, não fizera coisa alguma. Eu passava necessidade na ocasião, por isso ele me arrumou um emprego e depois me ajudou a ingressar na Rothwell.
Gornt suspirou.
— Mamãe me contou que Morgan, ao ser confrontado por Rothwell, disse que “casaria com a vagabunda se seu dote fosse de dez mil libras por ano”. — Um tremor percorreu seu corpo, embora o rosto não se alterasse, nem a voz suave. — Eu poderia perdoar tudo a Morgan, mas nunca isso, nunca “a vagabunda”. Foi Rothwell quem escreveu isso. Ele já morreu, mas sua carta continua intacta. Obrigado por escutar.
Gornt levantou-se, esticou-se todo, encaminhou-se para a porta.
— Espere! — disse Malcolm, surpreso. — Não pode parar nesse ponto!
— Nem tenciono, Sr. Struan, mas esse tipo de conversa, confissão talvez seja uma palavra melhor, é extenuante. E também não devo passar tempo demais aqui ou o Sr. Greyforth pode ficar desconfiado. Acertarei as pistolas, o disparo a vinte passos e voltarei em seguida.
— Espere um pouco, pelo amor de Deus! De que ajuda precisa? E por que eu deveria ajudá-lo? O que quer de mim?
— Não muito, na verdade... você pode matar Norbert Greyforth, mas isso não é essencial. — Gornt riu, mas logo voltou a se mostrar sério. — Mais importante é o que eu posso fazer por você. Antes do final de janeiro, os Brocks destruirão a Struan, mas isso você já sabe ou deveria saber. Posso detê-los, por um preço. Como Deus é testemunha, posso fornecer a informação capaz de virar o ímpeto dos Brocks contra eles próprios e destruir sua companhia para sempre.
Malcolm sentiu-se tonto. Se conseguisse livrar a Struan da situação crítica em que se encontrava, sua mãe concederia tudo o que quisesse. Conhecia-a muito bem. Ela me dará tudo o que eu pedir, qualquer coisa, pensou ele; se eu quisesse que ela se tornasse católica, faria até isso!
Qualquer que fosse o custo, ele sabia que pagaria, e pagaria com a maior satisfação.
— O preço... além da vingança?
— Quando eu voltar.
Malcolm esperou o dia inteiro, mas o estranho não voltou. O que não o preocupou. Jantou sozinho naquela noite. Angelique dissera estar cansada, eram festas demais, muitas noites acordada; dormir cedo lhe faria bem.
— Assim, meu querido Malcolm, vou comer uma refeição leve no quarto, escovar os cabelos e mergulhar nos sonhos. Esta noite eu o amo e o deixo... ficará abandonado.
Ele não se importou. Seu cérebro transbordava com tanta esperança que tinha receio de lhe confidenciar tudo, se ela ficasse... e quando Jamie apareceu, no início da noite, teve de fazer um grande esforço para se controlar e não revelar a fantástica notícia.
— Heavenly encontrou uma solução? — perguntou Jamie.
— Ainda não. Por quê?
— Você parece tão... tão... como se todo o peso do mundo tivesse sido removido de seus ombros. Não o vejo com uma cara tão boa há semanas. Recebeu boas notícias, não é?
Malcolm sorriu.
— Talvez eu tenha superado uma etapa e agora começo a melhorar de fato.
— Espero que sim. Seu acidente por cima de todo o resto... Juro que não sei como você consegue. Com tudo o que aconteceu nas últimas semanas, eu me sinto muito cansado, e o tal de Gornt foi a última gota. Há alguma coisa nele que me assusta.
— Como assim?
— Não sei, apenas um pressentimento. Talvez ele não seja tão inofensivo quanto aparenta. — Jamie hesitou. — Tem um minuto para conversar?
— Claro. Sente-se. Quer um conhaque? Pode se servir.
— Obrigado.
Jamie serviu-se uma dose da garrafa no aparador, depois puxou a outra cadeira de encosto alto para o lado do fogo, sentou diante de Malcolm. As cortinas haviam sido fechadas para a noite, o aposento era aconchegante. A fumaça de lenha exalava um cheiro agradável, e o som dos sinos dos navios da esquadra na baía também soava confortador.
— Duas coisas: de um jeito ou de outro, quero voltar a Hong Kong por alguns dias, antes do Natal.
— Para ver a mãe?
Jamie acenou com a cabeça, tomou um gole do conhaque.
— Gostaria de viajar no Prancing Cloud. Vai atracar... Por que o sorriso?
— Você se pôs um passo à minha frente. Eu já planejava embarcar nele.
Jamie piscou, aturdido, depois sorriu, satisfeito.
— Mudou de idéia e vai fazer o que ela diz?
— Não exatamente.
Malcolm relatou seu plano sobre o Prancing Cloud e viu a euforia de Jamie se dissipar.
— Não se preocupe. Sou muito melhor atirador do que Norbert e, se ele concordar em atirar de vinte passos de distância, sem a caminhada, pode se considerar tão morto quanto o Dodô... se eu decidir matá-lo. Esqueça Norbert. Angelique: se nós não pudermos contrabandeá-la para bordo sem ninguém saber, e digo “nós” porque você sempre participou do plano, terá de levá-la no próximo navio. Portanto, de um jeito ou de outro, estará em Hong Kong antes do Natal.
Jamie hesitou.
— A Sra. Struan ficará na maior irritação ao descobrir que Angelique nos acompanha.
— Deixe que eu me preocupe com isso.
— Vou me preocupar de qualquer maneira. O que me leva à questão essencial: quando eu deixar a Struan, pensei em tentar iniciar minha própria firma, e gostaria de conversar sobre isso. Saber se você tem objeções.
— Ao contrário, eu faria tudo o que pudesse, a companhia também, para ajudá-lo, por todos os meios possíveis. Mas isso não vai acontecer por mais alguns anos.
— Creio que ela já decidiu que eu tenho de sair.
— Eu protestaria contra isso com todo o meu empenho! — exclamou Malcolm, surpreso. — Você merece uma promoção, um aumento, a companhia não vai querer perdê-lo. Ela sabe disso. É uma idéia absurda.
— Pode ser, mas se for necessário... seja paciente comigo, tai-pan, se for necessário, você teria objeções?
— A você se estabelecer por conta própria? Não. Mas detesto a idéia e a Struan sairia perdendo. Juro por Deus que não vai acontecer, e se você me pedisse para sair, eu encontraria um meio de fazê-lo ficar... de persuadi-lo a ficar. Pode ter certeza.
— Muito obrigado.
Jamie tomou um gole grande do conhaque, sentindo-se um pouco melhor. Não pelo calor do conhaque, mas pelo que Malcolm acabara de falar. As últimas semanas haviam sido terríveis. Ontem, por causa da carta da Sra. Struan, tivera de confrontar uma verdade imortal: por mais leal que você seja a uma companhia por mais serviços que preste, a companhia pode e vai dispensá-lo quando quiser sem o menor escrúpulo. E o que é “a companhia”? Apenas um grupo de homens e mulheres. Pessoas. Como a Sra. Struan, por exemplo.
Pessoas constituem “a companhia”, e as que detêm o comando podem e sempre vão se esconder por trás dessa fachada, que “a companhia deve sobreviver” ou “para o bem da companhia” e assim por diante, arruinando ou promovendo por motivos pessoais, hostilidades ou ódios.
E não se esqueça que quase todas as companhias hoje em dia são familiares. Ao final, é a “família” que prevalece. O sangue fala mais alto do que a competência. Eles podem brigar entre si, mas ao final costumam se unir diante do inimigo, que pode ser qualquer um que não pertença à família. Por isso é que Alfred MacStruan foi escolhido para assumir o comando no Japão. E não há nada que eu possa fazer a respeito. Talvez os negócios de família sejam mais humanos, sejam melhores do que as instituições anônimas, burocráticas e impessoais, mas mesmo nelas, talvez ainda mais, você fica sujeito ao círculo da camaradagem. E, de qualquer forma, sai perdendo...
Na noite passada, numa atitude atípica, Jamie se embriagara em sua pequena casa na Yoshiwara, não encontrando conforto em Nemi. Cada vez que pensava na verdade sobre “a companhia” — somando-se ao crime que quase cometera, a injustiça de Tess Struan, a teimosia de Malcolm, e sua própria estupidez, sabendo que se não fosse detido teria violado a correspondência, arrancado as cartas e jogado no mar —, sua cabeça desatava a girar, e só mais um copo de rum interrompia a vertigem, até que nada mais podia controlá-la. Nemi não pudera ajudar.
— Jami, o que houve? Jami! Jami!
— Foi Maquiavel quem disse melhor — murmurara ele, a voz engrolada, as palavras incoerentes. — Não deposite sua confiança em príncipes sanguinários, pois eles sempre podem alegar a conveniência. Príncipes sanguinários, um tai-pan sanguinário, a mãe de um tai-pan, filhos de Dirk Struan e seus netos...
E, depois, ele desatara a chorar. Foi a primeira vez em anos, pensou agora, consternado. A última aconteceu logo depois que cheguei a Hong Kong, há vinte anos, e soube que a mãe morrera, enquanto me encontrava no mar. Ela já devia saber que estava morrendo quando parti.
— Faça uma boa viagem, meu filho querido, ganhe nossa fortuna e escreva todas as semanas...
Se não fosse por ela, todos nós teríamos morrido; foi sua força que nos manteve vivos, até que Struan surgiu e mudou nosso destino.
Chorei até a última lágrima. Como ontem à noite, embora as lágrimas fossem diferentes. Estava chorando por minha inocência perdida. Não posso acreditar que tenha sido tão ingênuo a ponto de acreditar na “companhia”. Dirk teria me deixado na mão? Nunca. O tai-pan não me abandonaria, não poderia fazê-lo, mas ele é apenas uma lenda. Tenho de encontrar a coragem para me estabelecer por conta própria. Estou com trinta e nove anos, velho na Ásia, embora não me sinta velho, como um navio sem leme. E o mesmo ocorre com Malcolm... Ou será que não? Ele fitou-o, ainda notando a mudança. Malcolm está diferente, mais como era antes pensou Jamie. Mais adulto... isso é possível? Não sei, mas de qualquer maneira seu destino já foi determinado, como o meu.
— Fico contente por não termos violado a correspondência... Não tenho palavras para expressar o quanto lamento ela tê-lo bloqueado.
— Eu também.
Malcolm relatara a Jamie o que Sir William dissera sobre o aviso da chegada da carta, e também sobre o ópio e as plantações de Bengala, notícias que haviam se espalhado naquela manhã, deixando a colônia em frenesi. A reunião ao meio-dia no clube fora mais tumultuada que o habitual, com uma moção unânime para que Sir William fosse enforcado ou, no mínimo, afastado do posto, se tentasse impor a estupidez do Parlamento. Malcolm percebeu que Jamie sentia-se muito infeliz e mais uma vez ficou tentado a revelar o novo e maravilhoso fato chamado Gornt. Mas lembrou o juramento.
— Estou muito confiante agora, Jamie. Não se preocupe. Vai à Yoshiwara esta noite?
— Não imediatamente, embora precise ver Nemi. — Jamie sorriu, desconsolado. — Tomei uma bebedeira na noite passada e quero levar um presente para ela. Não que seja necessário, mas Nemi é uma ótima pessoa e me proporciona boas risadas. Primeiro, tenho de conversar com Nakama. Phillip pediu-me para ter uma reunião de meia hora com ele. Parece que Nakama interrogou-o sobre negócios e bancos, capital, essas coisas... Phillip quer que eu lhe explique os rudimentos.
— O que é bastante curioso.
— Também acho. O patife tem uma mente inquisitiva. É uma pena que não seja tão franco conosco.
— Negocie os seus conhecimentos por alguma coisa que queremos saber. Creio que terei uma conversinha com Phillip amanhã. Peça a ele para me procurar, está bem? — A voz de Malcolm endureceu. — Devemos partilhar todas as informações... não foi esse o acordo?
— Foi, sim. — Jamie terminou o conhaque. — Obrigado... e obrigado também pela conversa.
Ele se levantou e acrescentou, com absoluta sinceridade:
— Torço com todo o meu coração para que tudo dê certo para você, Malcolm.
— Sei disso, Jamie. Também vai dar certo para você. Boa noite.
No silêncio do aposento, Malcolm esticou as pernas na direção do fogo, contente, ansioso pelo dia seguinte, na expectativa do novo encontro com Gornt.
Qual poderia ser o preço? especulou ele, contemplando o fogo. Podia ouvir vozes dentro do prédio e também lá fora, na praia. Risos ocasionais, uma ou outra canção. John Marlowe o procurara naquela tarde, trazendo uma mensagem do comandante, se ele poderia ir à nave capitânia no dia seguinte, se não fosse inconveniente, ou então ao escritório de Sir William.
— Posso ir ao gabinete de Sir William. A que horas?
— Meio-dia?
— Combinado. Qual é o problema?
— Não sei — respondera Marlowe. — Mas aposto que não é para conversa sobre o tempo.
Desde que voltara da campanha na baía de Mirs e de Hong Kong, o almirante Ketterer se mostrava furioso com os comentários adversos e críticos nos jornais e ainda mais irritado porque canhões de fabricação britânica haviam disparado contra seus navios.
— Creio que ele não gostou nem um pouco de alguns dos comentários mais rudes na reunião de hoje.
— Ele é mesmo metido a brigão — disse Malcolm, rindo, ainda inebriado pelas informações de Gornt.
Marlowe rira também.
— Pelo amor de Deus, não diga isso em seu convés ou todo o navio explodiria! Antes que eu me esqueça, minha viagem de testes foi aprovada, para segunda ou terça-feira, o tempo permitindo. Qual é o melhor dia para vocês dois?
— Quanto tempo ficaremos no mar?
— Zarparemos ao amanhecer e voltaremos no máximo até o pôr-do-sol.
— Terça-feira.
Um carvão caiu da grade, mas sem qualquer conseqüência. Malcolm empurrou-o com o atiçador, remexeu as brasas. As chamas alaranjadas se elevaram um pouco, mas logo tornaram a morrer, projetando imagens. Imagens positivas. Suas e dela. Malcolm olhou para a porta de comunicação. Não vinha qualquer som do outro lado.
Gornt é a chave para Tess.
É irônico que ele precise de mim, tanto quanto preciso dele, e somos inimigos. Tenho o pressentimento de que sempre será assim. Qual será o seu preço? Deve ser alguma coisa que eu possa oferecer. Gornt é bastante sensato para pedir algo assim. Por que tenho tanta certeza? A vingança é um motivo forte demais, sei disso.
Na estalagem dos Lírios, Phillip Tyrer estava sendo massageado por uma corpulenta japonesa, com braços maciços, os dedos de aço encontrando os pontos de pressão, nos quais ela tocava, como se formassem um teclado, sob os seus gemidos de prazer. A casa não era tão refinada ou cara quanto a das Três Carpas, mas a massagem era a melhor que ele já recebera e servia para afastar seus pensamentos de Fujiko, Nakama, André Poncin e Sir William, que estivera furioso durante toda a manhã, culminando ao meio-dia, quando o veneno violento do clube quase explodira os telhados de Iocoama.
— Como se fosse culpa minha o Parlamento ter enlouquecido! — gritara Sir William à mesa do almoço, com a presença do almirante, igualmente furioso. — Acha que é, Phillip?
— Claro que não, Sir William — respondera ele, participante do almoço contra a sua vontade, o general como o terceiro convidado.
— O Parlamento sempre foi arbitrário e estúpido! Por que não deixa o Ministério do Exterior cuidar das colônias, e acabar logo com toda essa aflição? Quanto a essa gentalha, esses homens que se intitulam mercadores, só posso dizer que me deixam com vontade de vomitar!
O almirante resmungara:
— Cinqüenta vergastadas fariam com que todos entrassem na linha, por Deus! Todos, sem exceção, especialmente os jornalistas! São uns canalhas, todos eles!
O general declarara, presunçoso, ainda agastado pela descompostura que Sir William lhe passara por ocasião do motim:
— O que pode fazer, meu caro Sir William, a não ser suportar como um homem? E no seu caso, almirante, meu velho companheiro, estava realmente pedindo por isso, ao fazer declarações políticas em público. Sempre pensei que a primeira regra para quem se torna almirante ou assume as estrelas de general era a de manter a calma, ser circunspecto nas orações públicas e sofrer em silêncio.
O pescoço do almirante Ketterer se tornou púrpura. Sir William conseguiu interromper a salva seguinte, ao dizer:
— Phillip, tenho certeza que há uma abundância de trabalho à sua espera. Toda a correspondência precisa ser copiada e o protesto ao Bakufu deve ser despachado ainda hoje.
Ele escapara do almoço, agradecido. Nakama o cumprimentara com a maior afabilidade.
— Ah, Taira-sama, espero que esteja se sentindo melhor. Mama-san Raiko me pede para perguntar como está sua saúde, pois não foi ao encontro com Fujiko, que está em lágrimas... que estava em lágrimas e...
— Minha saúde está ótima. Passei momentos muito agradáveis ontem à noite, na estalagem dos Lírios — dissera ele, atônito ao constatar que as predições de André eram acuradas. — Fujiko? Começo a ter dúvidas sobre o contrato.
Ele ficara bastante satisfeito ao perceber o espanto de Nakama, e mais ainda porque podia usar seu susto pelo mau humor de Sir William durante a manhã e no almoço para implementar o plano de André.
— Mas, Taira-sama, eu...
— E não vamos mais falar em inglês, também não quero ouvir perguntas sobre negócios. Pode conversar com McFay-sama da Casa Nobre e ponto final...
Tyrer gemeu alto, quando a massagista apertou-o ainda mais fundo. Os dedos pararam no mesmo instante.
— Iyé, dozo... — murmurou ele, em japonês. — Não, por favor, não pare. A mulher riu e respondeu:
— Não se preocupe, lorde. Quando eu acabar de trabalhar este seu corpo pálido e sem força, estará preparado para três dos melhores lírios da casa.
Tyrer agradeceu, sem compreender, mas também não se importando com isso.
Depois de três horas com Nakama, conversando só em japonês, e de ouvir mais comentários dele sobre Raiko e sua estalagem — como André previra — sua cabeça girava.
Depois de algum tempo, a massagista iniciou os contatos calmantes, com mãos experientes, usando óleo aromático. Ao terminar, enrolou-o com uma toalha quente e se retirou. Tyrer cochilou, mas despertou no instante em que a porta de shoji foi aberta, uma moça entrou, ajoelhou-se ao seu lado. Ela sorriu, Tyrer retribuiu, disse que se sentia cansado, que ela apenas ficasse sentada ali, até que ele acordasse, seguindo as instruções de André. A moça acenou com a cabeça tornou a sorrir, muito contente. Receberia seus honorários de qualquer maneira.
André é um gênio, pensou ele, também contente, mergulhando num sono feliz.
Aquela noite foi a segunda vez que André visitou Hinodeh. Fazia exatamente dez dias, vinte e duas horas e sete minutos que ele a contemplara em toda a sua glória, a noite gravada em sua mente para sempre.
— Boa noite, Furansu-san — dissera ela, tímida, seu japonês melodioso. A ante-sala ficava junto à pequena varanda, o bangalô no meio dos jardins das Três Carpas, tão fragrante quanto a própria Hinodeh. Os dourados e marrons de seu quimono de inverno fizeram movimentos graciosos, quando ela se inclinara e gesticulara para a almofada à sua frente. Por trás dela, a shoji para o quarto se encontrava entreaberta, apenas o suficiente para que ele pudesse ver os futons e cobertas, que seriam o primeiro leito partilhado.
— O saquê está como fui informada que gostaria. Frio. Sempre toma saquê frio?
— Sempre. Gosto melhor assim.
Ele se descobrira a gaguejar, seu japonês saindo um tanto ríspido, as mãos pareciam atrapalhar, as palmas suadas. Ela sorrira.
— Esquisito tomar bebidas frias no inverno. Seu coração é frio no inverno e verão?
— Ah, Hinodeh — murmurara André, a pulsação ressoando nos ouvidos e garganta —, acho meu coração como pedra, por muito tempo agora, pensar em você, não saber se quente, frio, ou o quê. Você é linda.
— Só para o seu prazer.
— Raiko-san contar tudo a você sobre eu?
Os olhos de Hinodeh eram serenos, no rosto alvo, as sobrancelhas arrancadas, com meias-luas pintadas no lugar, a testa alta, bico-de-viúva, cabelos pretos, empilhados, presos com travessas de casco de tartaruga, que André logo ansiara em soltar.
— Esqueci o que Raiko-san me contou. O que você me disse antes da assinatura foi aceito e esquecido. Começamos esta noite. É o nosso primeiro encontro. Deve me falar sobre você, tudo o que quiser que eu saiba. — Os olhos dela absorveram um pouco de luz e se contraíram, divertidos. — Haverá bastante tempo, não é?
— Haverá, sim, por favor. Para sempre, eu espero.
Depois que todas as cláusulas do contrato haviam sido acertadas, ao longo dos dias e postas no papel, lidas e relidas, nos termos mais simples, para que ele pudesse entender, André estava pronto para assinar, na presença de Hinodeh e Raiko. Tivera de recorrer a toda a sua coragem:
— Hinodeh, por favor, desculpe, mas a verdade tem de ser dita. A pior.
— Por favor, não há necessidade. Raiko-san me contou.
— Sim, mas, por favor, desculpe...
As palavras saíram hesitantes, embora as tivesse ensaiado uma dúzia de vezes, novas ondas de náusea invadindo-o.
— Devo dizer uma coisa: peguei doença ruim de minha amante, Hana. Sem cura possível, sinto muito. Nenhuma. Você pegar também, se virar minha consorte, sinto muito.
O céu invisível parecera se abrir para ele, enquanto esperava.
— Compreendo e aceito isso, escrevi no contrato que o absolvo de qualquer culpa em relação a nós, entende?
— Ah, culpa, entendo culpa. Obrigado...
Ele tivera de pedir licença, saíra correndo, com uma náusea violenta, mais nauseado que em qualquer outra ocasião anterior de sua vida, mais do que ao descobrir que estava doente ou depois que encontrara Hana morta. Não se desculpara ao voltar, nem uma desculpa era esperada. As mulheres compreendiam.
— Antes de eu assinar, Furansu-san — dissera ela —, é importante para mim perguntar se promete me dar a faca ou veneno, como está acertado no contrato?
— Sim..
— Obrigada. Ambas as coisas importantes não precisam ser mencionadas de novo. Concorda, por favor?
— Sim — murmurara ele, abençoando-a.
— Então está tudo resolvido. Pronto, já assinei. Assine também, Furansu-san. Raiko-san é nossa testemunha. Ela diz que nossa casa ficará pronta em três dias. No quarto dia, a contar de hoje, me sentirei honrada em recebê-lo.
No quarto dia, sentado diante dela, no refúgio particular dos dois, André ficara atordoado com sua beleza, os lampiões a óleo brilhantes, mas não em excesso.
— Esta casa agradar você, Hinodeh? — indagara ele, tentando parecer interessado, mas apenas obcecado por tê-la sem adornos.
— É mais importante que lhe agrade, Furansu-san.
André sabia que ela apenas fazia aquilo para o que fora treinada, suas respostas ações seriam automáticas, empenhando-se ao máximo para deixá-lo à vontade, independentemente do que sentisse por dentro. Com a maioria dos homens japoneses, ele podia em geral perceber o que pensavam, mas isso quase nunca acontecia com as mulheres... mas também o mesmo ocorre com a maioria das mulheres francesas, pensara ele. As mulheres são muito mais reservadas do que os homens, e também muito mais práticas.
Hinodeh parecia muito serena, sentada ali, imóvel, refletira André. Ela está vulcânica, triste, apavorada... ou com tanto medo e aversão que se tornou entorpecida?
Mãe Santa, perdoe, mas não me importo, não no momento, talvez mais tarde me importe, mas não agora.
Por que ela concordara? Por quê?
Mas isso nunca deve ser perguntado. Jamais. É difícil obedecer a essa cláusula, mas é um tempero adicional, ou a questão que vai me destruir... destruir a nós. Ora, que se dane, tenho de me apressar!
— Gostaria de comer?
— No momento, eu... não sentir fome.
André não conseguia desviar os olhos da moça, nem ocultar seu desejo. O suor escorria pelo corpo.
O sorriso de Hinodeh não se alterara. Um suspiro. Depois, cada movimento lento, os dedos compridos soltaram a obi, ela se levantara, deixara o quimono exterior cair, durante todo o tempo observando-o, tranqüila como uma estátua. O quimono interno também caíra, em seguida a primeira combinação, a segunda, e finalmente a tanga. Ela se virara sem pressa, mostrando-se, parada de frente. Perfeita em tudo.
Mal respirando, André a contemplara a se ajoelhar, pegar seu copo, tomar um gole, mais outro, a pulsação em sua cabeça, pescoço e virilha o pressionando ao limite do controle.
Planejara ao longo dos dias ser galante com as palavras, gestos e movimentos, gaulês e japonês, vivido e prático, o melhor amante que ela já tivera, que jamais teria, sem arrependimentos, que a primeira união fosse uma experiência memorável e maravilhosa. Fora memorável, mas não maravilhosa. Sua vontade ruíra. Agarrara Hinodeh, levara-a às pressas para os futons, e ali se mostrara subumano.
Não a via desde aquela noite, nem a Raiko, evitando-as, abstendo-se de visitar a Yoshiwara. Enviara uma mensagem a Hinodeh no dia seguinte, dizendo que a informaria quando tencionava visitá-la de novo. No intervalo, efetuara outro pagamento em ouro a Raiko, seu salário comprometido por dois anos para cobrir o preço do contrato... e mais ainda.
Ontem, mandara avisar que a visitaria esta noite.
Ele hesitou, no limiar da varanda. Telas de shoji fechadas para a noite. Uma luz dourada no interior parecia chamá-lo. Sua pulsação era disparada; como antes, sentia um aperto na garganta. Vozes interiores se manifestavam, com uma linguagem vil contra ele, clamando que fosse embora, que se matasse... qualquer coisa para evitar os olhos de Hinodeh, a repulsiva imagem refletida de si mesmo que havia ali. Deixe-a em paz!
Todo o seu ser queria fugir, e todo o seu ser queria possuí-la outra vez, de qualquer maneira, por todas as maneiras, pior do que antes, qualquer que fosse o custo, odiando a si mesmo, melhor morrer, acabar com tudo, mas primeiro ela. Não posso evitar.
André forçou os pés a saírem dos sapatos, abriu a porta. Ela se encontrava ajoelhada, exatamente como antes, com a mesma roupa, o mesmo sorriso, a mesma beleza, a mesma mão delicada gesticulando para que ele sentasse, a mesma voz gentil.
— O saquê está como fui informada que gostaria. Frio. Sempre toma saquê frio?
Ele ficou boquiaberto. Os olhos que exprimiam tanto ódio, quando se afastara cambaleando na última vez, agora sorriam, com a doce timidez do primeiro momento.
— Como?
E ela repetiu, como se nunca tivesse falado antes, no mesmo tom:
— O saquê está como fui informada que gostaria. Frio. Sempre toma saquê frio?
— Eu... hum... sim.
André mal ouviu suas palavras, com um troar nos ouvidos. Ela sorriu.
— Esquisito tomar bebidas frias no inverno. Seu coração é frio no inverno e no verão?
Como um papagaio, ele balbuciou as respostas corretas, não encontrando qualquer dificuldade para recordar cada palavra e acontecimento, gravados de forma indelével; e embora sua voz fosse trêmula, Hinodeh parecia não ouvir, apenas se comportava como antes, os olhos serenos.
Nada mudara.
— Gostaria de comer?
— No momento, eu... não sentir fome.
O sorriso de Hinodeh não foi diferente. Nem o suspiro. Ela se levantou. Mas agora apagou os lampiões a óleo, foi para o quarto, apagou também os que haviam ali.
Quando seus olhos ajustaram-se à escuridão, André constatou que havia apenas uma claridade mínima do lampião na varanda, passando pelas telas de shoji, mal dava para divisar os contornos de Hinodeh. Ela estava se despindo. Momentos depois, o som das cobertas sendo puxadas.
André se levantou com algum esforço, foi para o quarto, sabendo que ela tentava salvar as aparências, enquanto ele queria apagar o que nunca poderia ser apagado.
— Da minha mente, nunca — sussurrou ele, dominado pela angústia, o rosto molhado pelas lágrimas. — Não sei sobre você, Hinodeh, mas eu jamais esqueci. Sinto muito, mas muito mesmo. Mon Dieu, como eu gostaria...
— Nan desu ka, Furansu-sama?
André demorou um pouco para se ajustar ao uso do japonês, e depois balbuciou:
— Hinodeh, eu dizer... apenas agradecer, Hinodeh. Por favor, desculpe, sinto muito...
— Mas não há nada para desculpar. Esta noite começamos. É o nosso princípio.
Quarta-feira, 3 de dezembro:
Hiraga percebeu seu reflexo de passagem na janela do açougue e não se reconheceu. Os transeuntes na High Street mal o notavam. Ele voltou, contemplou a imagem meio difusa... seu novo disfarce. Cartola, colarinho alto e gravata, uma sobrecasaca de ombros largos e apertada na cintura, de casimira escura, colete de seda azul, atravessado por uma corrente de aço inoxidável, ligada ao relógio de algibeira, calça justa, botinas de couro. Tudo presente do governo de sua majestade, exceto o relógio, dado por Tyrer... pelos serviços prestados. Hiraga tirou a cartola, tornou a se contemplar, de um lado e de outro. Agora os cabelos cobriam toda a cabeça, crescendo depressa, ainda não tão compridos quanto os de Phillip Tyrer, mas sem dúvida bastante longos para serem considerados europeus. Rosto raspado. A qualidade e o baixo custo das lâminas britânicas haviam-no impressionado bastante, outro exemplo espetacular das proezas industriais.
Ele sorriu para si mesmo, satisfeito com o disfarce, puxou o relógio, admirando-o, verificou a hora: 11:16 h. Como se dezesseis minutos importassem, pensou Hiraga, desdenhoso, embora contente por ter aprendido tão depressa o sistema de determinar a hora dos gai-jin. Aprendi muita coisa. Ainda não o suficiente, mas já é um começo.
— Não quer comprar um bom pernil de carneiro australiano congelado, que veio do porão de gelo do navio de correspondência? Ou que tal um bom toucinho de Hong Kong?
O açougueiro era barrigudo, careca, com braços que pareciam canhões e avental todo manchado de sangue.
— Como? — Hiraga notou as carnes e vísceras penduradas no outro lado da janela, com seus enxames de moscas. — Não, obrigado. Eu apenas olhando. Bom dia, senhor.
Ele esforçou-se para ocultar sua repulsa. Com um floreio, repôs a cartola na cabeça, do jeito como Tyrer ensinara, e continuou a descer pela High Street, na direção da cidade dos bêbados e da aldeia. A todo instante, levantava a cartola polidamente para outros pedestres e cavaleiros, que respondiam da mesma forma. Isso o agradou ainda mais, porque significava aceitação, pelos padrões dos gai-jin, muito diferentes dos costumes japoneses... dos padrões civilizados.
Tolos. Só porque uso suas roupas, e começo a me comportar como eles, pensam que mudei. Ainda são o inimigo, até mesmo Taira. Uma estupidez de Taira mudar de idéia em relação a Fujiko. O que há com ele? Isso não se ajusta ao meu plano.
Hiraga avistou Struan, saindo de seu prédio, claudicando, junto com Jamie McFay, a mulher de Ori entre os dois, numa conversa animada. O que o lembrou de seu encontro com o número dois da Casa Nobre. Sua cabeça ainda girava dos fatos e números ocidentais e ainda se sentia tonto de todas as informações que McFay lhe arrancara, sobre os emprestadores de dinheiro e mercadores de arroz, como a Gyokoyama.
— Jami-san, talvez encontrar um desses homens, se segredo — dissera ele, em desespero para escapar. — Eu intérprete se guardar segredo.
O shoya o esperava. Percebendo a ansiedade do homem em saber de tudo o que descobrira, Hiraga brincou com ele, aceitou o oferecimento de uma massagem. Depois, relaxado numa yukata, e durante um almoço requintado de arroz, lula seca, fatias tão finas quanto folhas de papel de perca-do-mar com soja, daikon — rábano — e saquê, ele disse que conversara com importantes gai-jin, e que haviam respondido às suas perguntas. Tomou um gole de saquê, sem acrescentar mais nada. Informações importantes precisavam de encorajamento. Reciprocidade.
— Quais são as notícias de Quioto?
— É tudo muito estranho — comentou o shoya, contente por receber aquela abertura. — Meus superiores informaram que o xógum e a princesa Yazu chegaram sãos e salvos e já se encontram no interior do palácio. Mais três emboscadas de patrulhas de Ogama a grupos de shishi... não, sinto muito, ainda não tenho detalhes de quantos foram mortos. Lorde Ogama e lorde Yoshi quase não saem de trás de seus muros... Mas samurais do xogunato agora guardam os portões, como no passado.
Os olhos de Hiraga se arregalaram.
— É mesmo?
— É, sim, Otami-sama. — O shoya ficou deliciado por a isca ter sido mordida. — Por mais estranho que possa parecer, há patrulhas secretas de samurais de Ogama nas proximidades e, de vez em quando, os capitães conferenciam em segredo.
Hiraga soltou um grunhido.
— Curioso...
O shoya balançou a cabeça e deu um puxão na linha, como bom pescador que era.
— Ah, sim... talvez não seja de grande importância para você, mas meus superiores acreditam que os dois shishi que mencionei antes, Katsumata e o shishi de Choshu chamado Takeda, escaparam à captura em Quioto e agora viajam pela Tokaidô.
— Para Iedo?
— Meus superiores não disseram. É óbvio que a notícia não tem qualquer valor.
O shoya tomou outro gole de saquê, escondendo seu divertimento pela tentativa de Hiraga de encobrir seu interesse intenso.
— Qualquer coisa relacionada com os shishi pode ser de significado.
— Neste caso... embora seja insensato relatar rumores — disse o shoya simulando embaraço e julgando o momento oportuno para puxar o peixe para terra —, eles avisam que circula uma história pelas estalagens de Quioto de que uma terceira pessoa também escapou da primeira emboscada. Uma mulher, samurai, hábil na arte do shuriken... o que foi, Otami-sama?
— Nada, nada... — Hiraga fez um esforço para manter a compostura, mil perguntas ricocheteando em sua mente. Apenas uma mulher samurai na escola de Katsumata já adquirira essa habilidade. — O que estava dizendo, shoya? Uma mulher de linhagem samurai escapou?
— É apenas um rumor, Otami-sama. Uma tolice. Saquê?
— Obrigado. Essa mulher... dizem mais alguma coisa a seu respeito?
— Não. Mal vale a pena relatar rumor tão tolo.
— Talvez possa descobrir se essa bobagem tem algum fundo de verdade. Eu gostaria de saber. Por favor.
— Neste caso... — murmurou o shoya, registrando a grande concessão do “por favor”, com um vestígio de humildade na voz. — Qualquer serviço para você e sua família, clientes valiosos, é uma honra para a Gyokoyama.
— Obrigado.
Hiraga terminou seu saquê. Sumomo estivera em Quioto com Katsumata. Onde ela se encontra agora? Por que não foi para Shimonoseki, como ordenei? 0 que fazia em Quioto? E onde está agora?
Em retribuição, e com algum esforço ele pôs essas e outras indagações de lado, para análise posterior, e tratou de se concentrar. Tirou do bolso um maço de anotações e começou a explicar, repetindo em parte o que “Taira” e “Mukfey’ haviam lhe dito, ao longo de horas. O shoya escutou com uma total atenção, grato porque a esposa os ouvia escondida e anotava tudo.
Quando Hiraga discorreu sobre empréstimos, financiamentos e atividades bancárias — não dava para entender a maior parte do que ele disse —, o shoya-impressionado com sua memória e percepção de coisas que lhe eram completamente estranhas, não pôde deixar de comentar:
— Extraordinário, Otami-sama.
— Outra questão importante. — Hiraga respirou fundo. — Mukfey disse que os gai-jin têm uma espécie de mercado, shoya, um stoku markit, onde as únicas mercadorias negociadas, compradas e vendidas, são pequenos pedaços de papel impressos, chamados stoku ou sheru, que de alguma forma representam dinheiro, grandes quantidades de dinheiro, cada stoku sendo parte de uma kompeni.
Ele tomou um pouco de chá. Constatando a falta de compreensão do shoya, respirou fundo outra vez.
— Digamos que o daimio Ogama deu toda Choshu, toda a terra e produto da terra a uma kompeni, a Choshu Kompeni, e determinou que a kompeni fosse dividida em dez mil partes iguais, dez mil sheru, entende?
— Eu... acho que sim. Por favor, continue.
— Assim, a stoku da Choshu Kompeni é dez mil sheru. Em seguida, o daimio, por conta da kompeni, oferece todas ou parte das sheru para alguém com dinheiro. Em troca de seu dinheiro, o homem ou mulher recebe esse pedaço de papel dizendo quantas sheru da Choshu Kompeni ele comprou. A pessoa possui assim essa parte da kompeni e, com isso, a mesma proporção de sua riqueza. O dinheiro que ele e outros pagam para a kompeni se torna então o kaipital, acho que foi isso que Mukfey disse, o dinheiro que eles precisavam para dirigir e melhorar a riqueza da kompeni, para pagar estipêndios, reivindicar terras, comprar armas, sementes, melhorar barcos de pesca, para pagar qualquer coisa que seja necessária para aumentar e fazer Choshu prosperar, para tornar mais alto o valor da kompeni.
Hiraga fez uma pausa.
— Mufkey explicou que... Ele disse que em qualquer mercado, shoya, os preços mudam, em tempos de fome até todos os dias, não é mesmo? É o que também acontece todos os dias nesse stoku markit, com centenas de diferentes kompeni, compradores e vendedores. Se a colheita de Choshu é enorme, o valor de cada parte da Choshu Kompeni será alto, se for pequena, fica baixo. O valor de cada sheru também varia. Está entendendo?
— Acho que sim — murmurou o shoya, compreendendo tudo muito bem, discretamente entusiasmado, cheio de idéias e perguntas.
— Ótimo.
Hiraga sentia-se cansado, mas fascinado por aquelas novas idéias, embora às vezes se perdesse em seu labirinto. Nunca barganhara num mercado, ou numa estalagem, apenas pagava o que lhe pediam, quando pediam, nunca em toda a sua vida protestara contra o custo de qualquer coisa ou pelo valor de uma conta... exceto desde que se tornara ronin. As contas eram sempre enviadas para quem recebia seu estipêndio, se você era um samurai. Se solteiro, normalmente para sua mãe. Comprar e cuidar do dinheiro era trabalho de mulher, nunca de homem.
Você comia o que ela — mãe, tia, avó, irmã ou esposa — comprava com seu estipêndio, vestia ou se armava da mesma maneira. Sem estipêndio, passava fome, você e sua família, ou se tornava ronin, ou tinha de renunciar voluntariamente à condição de samurai e se tornar camponês, um trabalhador, senão pior ainda, um mercador.
— Shoya — disse ele, franzindo o rosto —, os preços variam num mercado de comida ou peixe. Mas quem decide o preço?
A guilda de pescadores ou camponeses, o shoya poderia responder, ou mais provavelmente os mercadores, que possuíam de fato a produção, tendo emprestado o dinheiro para comprar as redes ou sementes. Mas ele era cauteloso demais, e a maior parte de sua energia se concentrava em tentar se manter impassível, diante de tantas informações de valor inestimável, mesmo que incompletas.
— Se há muitos peixes, são mais baratos do que na ocasião em que há poucos. Depende da pescaria ou da colheita.
Hiraga balançou a cabeça. Era evidente que o shoya estava sendo desonesto escondendo a verdade ou distorcendo-a. Mas isso é apenas o normal para mercadores e emprestadores de dinheiro, pensou ele, decidindo de repente manter em reserva qualquer encontro entre Mukfey e aquele homem, e também deixar para mais tarde a última informação sobre kompeni, que por algum motivo não podia compreender, e o intrigava mais do que o resto: que se fosse você quem formava a kompeni, decidia quantas stoku reservava para si mesmo, sem pagamento, e se o número equivalesse a cinqüenta e um ou mais de cada cem, então você tinha o poder sobre a kompeni. Mas por que...
Sua cabeça quase explodiu com a súbita compreensão: Sem nenhum desembolso, você se toma o xógum da kompeni, e quanto maior a kompeni, maior o xógum... sem desembolso!
Quando sonno-joi for um fato, pensou ele, nós — o conselho de samurais — vamos recomendar ao imperador que apenas o nosso conselho poderá formar kompeni, e assim, depois de tanto tempo, vamos controlar todos os parasitas, os mercadores e emprestadores de dinheiro!
— Otami-sama — disse o shoya, sem ter percebido qualquer mudança em Hiraga, sua própria mente em turbilhão pelas maravilhosas informações que obtivera —, meus superiores ficarão muito agradecidos, tanto quanto eu. Depois que conseguirmos avaliar todos os seus brilhantes pensamentos e idéias, eu poderia ter uma oportunidade de fazer umas poucas perguntas insignificantes?
— Claro — respondeu Hiraga, exultante com o futuro róseo. Quanto mais perguntas, melhor... pois me obrigarão a compreender primeiro. — Talvez quando tiver mais notícias sobre Ogama e Yoshi, ou os shishi, ou aquela mulher. Shuriken, você disse?
— Farei o melhor que puder — respondeu o shoya, sabendo que um acordo fora fechado. Depois, sua mente levou-o de volta a uma peça essencial do quebra-cabeça que estava faltando. — Por favor, posso perguntar o que é essa kompeni! E como parece?
— Não sei — respondeu Hiraga, também perplexo.
— Ainda bem que foi pontual, Sr. Struan — disse o almirante Ketterer, ríspido.
— Não é o normal para... hum... mercadores. — Ele ia dizer “vendeiros”, mas decidiu que havia tempo mais tarde para uma salva. — Sente-se, por favor. Aceita um xerez?
— Um seco. Obrigado, almirante.
O ordenança serviu um copo, reabasteceu o porto do almirante e se retirou. Eles levantaram o copo, sem qualquer cordialidade. Não havia outros papéis na mesa além de um documento oficial, um envelope aberto, e uma carta. Malcolm reconheceu a letra da mãe.
— Em que posso servi-lo? — perguntou ele.
— Sabe que alguns dos meus marujos foram mortos por piratas chineses, disparando canhões britânicos baseados na praia, durante o combate na baía de Mirs. Canhões britânicos.
— Já li os relatórios a respeito, mas não sei com certeza se eram mesmo de fabricação britânica.
— Pois eu tenho. Certifiquei-me pessoalmente. — Irritado, o almirante pegou o documento. — A investigação inicial do governador sugere que os prováveis culpados foram a Struan ou a Brock.
Malcolm sustentou sem medo o olhar do homem mais velho, de rosto corado.
— Ele pode sugerir o que quiser, almirante, mas é melhor que qualquer acusação formal esteja sustentada por provas, ou ficaríamos muito aborrecidos, e os Brocks apopléticos. Não estou a par de nenhum negócio assim e, de qualquer forma, a venda de armamentos não é proibida pelo Parlamento. Norbert Greyforth sabe de alguma coisa?
Jamie o avisara que Greyforth também fora convocado pelo almirante, às dez e meia, mas só aparecera às onze horas, e que a reunião durara apenas três minutos. O pescoço de Ketterer ficou vermelho, ao recordar a reação inflamada de Greyforth.
— Não. Aquele... aquele sujeitinho impertinente recusou-se a discutir o assunto. E você?
— Não sei o que quer discutir, almirante.
— A questão da importação e venda de armamentos para os nativos aqui. E navios de guerra. E ópio.
Malcolm disse, com o maior cuidado:
— Somos mercadores na China e negociamos de acordo com as leis britânicas. Nenhuma dessas mercadorias é proibida por lei.
— O ópio em breve será.
— Quando isso acontecer, deixará de ser negociado.
— É contra a lei chinesa, agora, e contra a lei nativa aqui!
— A Struan não negocia ópio aqui, deixe-me repetir, não negocia ópio aqui, embora não seja contra a lei britânica.
— Mas reconhece que o comércio é pernicioso e imoral.
— Reconheço, mas no momento é aprovado pelo governo de sua majestade e, infelizmente, é a única mercadoria que podemos negociar pelo chá da China, do qual o Parlamento obtém enormes tributos.
— Conheço muito bem o problema da China. Gostaria que você e sua companhia se antecipassem à lei agora, concordando voluntariamente em nunca importarem ópio para o Japão.
— Não estamos negociando ópio aqui.
— Ainda bem. Se eu descobrir navios transportando ópio, tenciono confiscar a carga e o navio.
— Eu diria que seria um risco legal, almirante. Sir William concordou ou aprovou sua intenção?
— Ainda não. Eu gostaria que você e os outros... mercadores fizessem isso de bom grado. E que o mesmo acontecesse com os fuzis de carregar pela culatra, cartuchos, canhões e navios de guerra.
— Greyforth concordou com uma proposta tão espantosa?
O pescoço tornou a ficar vermelho.
— Não.
Malcolm pensou por um momento. Ele e Jamie haviam concluído antes que seria esse o tema da reunião com o almirante. E mais a carta de sua mãe.
— Teremos uma reunião com Sir William dentro de poucos dias — disse ele. — Eu me sentiria honrado se comparecesse, como meu convidado especial. Todos os mercadores ouviriam o que tem a dizer.
— Minhas posições já são bem conhecidas. Vocês, entre todas as pessoas, deveriam saber de que lado do pão está a manteiga, que sem a esquadra para protegê-los e às suas rotas comerciais, ficariam desamparados. Se abastecem os nativos com canhões, ameaçam a marinha real, ajudam a afundar seus próprios navios, assassinam seus compatriotas e se expõem à ruína!
— Se tomar o exemplo da China ou de qualquer outro...
— É justamente o meu ponto, Sr. Struan! — exclamou o almirante. — Se os nativos não tivessem nossos armamentos, o motim nunca teria ocorrido, as revoltas por toda parte seriam contidas mais depressa, os selvagens no mundo inteiro poderiam ser educados com mais facilidade, o comércio útil seria conduzido em paz e a ordem no mundo floresceria, sob a benevolência da Pax Britannica. E piratas miseráveis não teriam os meios de disparar contra a minha nave capitânia! E sem a marinha real dominando os mares, não há Pax Britannica, não há império britânico, nem comércio, e voltaremos à idade das trevas!
— Confidencialmente, tem toda razão, almirante — disse Malcolm, com um fervor simulado.
Ele seguia o conselho de tio Chen:
— Quando um mandarim está furioso com você, por qualquer motivo, trate logo de concordar “confidencialmente” que ele tem toda razão. Sempre poderá assassiná-lo mais tarde, quando ele estiver dormindo.
Ao longo dos anos, eleja se envolvera na mesma discussão com o exército, marinha e representantes do governo. E testemunhara o pai e a mãe discutindo, o pai pelo livre comércio, a mãe pela moralidade, o pai esbravejando sobre o insolúvel triângulo do ópio, a mãe veemente contra o ópio mesmo assim — e também contra a venda de armas —, a verdade dos dois lados, ambos inflexíveis, a discussão sempre terminando com o pai bebendo até o estupor, a mãe sorrindo, com aquele seu sorriso fixo e irritante, que nada podia dissipar, e sempre a farpa final do pai:
— Meu velho... e seu príncipe encantado... o grande demônio de olhos verdes Dirk foi quem iniciou o comércio, com isso prosperamos e que Deus nos ajude!
Muitas vezes ele especulara — mas nunca ousara perguntar — se a mãe realmente era apaixonada pelo pai, em vez do filho, e só aceitara o filho porque não podia ter o pai. Sabia que nunca perguntaria, e se o fizesse, ela apenas exibiria aquele seu sorriso fixo e responderia: “Ora, Malcolm, não seja absurdo.”
— Confidencialmente, tem toda razão, almirante — repetiu ele.
Ketterer tomou o resto do porto em seu copo, serviu-se de mais.
— Já é alguma coisa, por Deus! — O almirante levantou os olhos. — Sendo assim, vai providenciar para que a Struan não se empenhe na venda de armas aqui?
— Claro que vou levar em consideração tudo o que disse e consultar os outros mercadores.
Ketterer tirou um lenço do bolso, assoou o nariz, aspirou uma pitada de rapé, espirrou, tornou a assoar o nariz. Depois que a cabeça desanuviou, os olhos irados fitaram o jovem, irritado por não perceber qualquer enfraquecimento.
— Pois então deixe-me expor o problema de outra maneira. Confidencialmente, você concorda que ajudar os japas a adquirir canhões, canhões britânicos, qualquer maldito canhão, ou navios de guerra britânicos, é uma estupidez?
— Se eles tivessem uma marinha comparável à nossa seria um er...
— Um desastre! Um desastre total e uma estupidez!
— Concordo.
— Ótimo. Gostaria que persuadisse todos os outros mercadores a partilhar de sua opinião: nada de armas de fogo aqui, canhões em particular, nem ópio. Confidencialmente, é claro.
— Terei o maior prazer em expor essas opiniões, almirante.
Ketterer soltou uma risada. Malcolm começou a se levantar, não querendo ser acuado.
— Um momento, Sr. Struan. Mais outro assunto, antes de se retirar. Um assunto particular. — O almirante gesticulou para o envelope e a carta na mesa. — Aquilo. Da Sra. Struan. Já sabe do que se trata?
— Sei, sim.
Ketterer empurrou a carta para o centro da mesa.
— Sua Casa Nobre é supostamente a primeira da Ásia, embora eu tenha sido informado que a Brock começa a ultrapassá-la agora. Mas não importa qual tenha a Primazia, podem ser um conduto para o bem. Eu gostaria que você e sua companhia estivessem comigo nesta causa justa. Muito justa, Sr. Struan.
Exasperado, Malcolm não disse nada, considerando que já respondera, e não se sentia disposto a ouvir outro sermão. Incisivo, Ketterer acrescentou:
— Confidencialmente, aqui entre nós, não costumo aceitar cartas assim de visitantes, em circunstâncias normais. Nem é preciso dizer que as regras e regulamentos a marinha real só interessam à marinha real. — Um gole do porto, um arroto reprimido. — O jovem Marlowe convidou-o e... à sua noiva para viajarem no Pearl, durante sua viagem de testes. Na terça-feira. Pelo dia inteiro. — Os olhos penetraram fundo pelos de Malcolm. — Não é verdade?
— É, sim, senhor — murmurou Struan, a mente em espasmo, com a sensação de que fora traído pelos ouvidos.
— Claro que minha permissão é necessária. — O almirante deixou a frase flutuar no ar, antes de acrescentar: — Por falar nisso, Sr. Struan, esse tencionado duelo é desaconselhável, e muito.
Malcolm piscou aturdido pelo non sequitur, e tentou se concentrar, enquanto o almirante continuava:
— Por mais que o tal de Greyforth mereça ser mandado desta para a melhor o mais depressa possível, duelar é contra a lei e uma imprudência, sempre pode haver erros. E terríveis. Entendido?
— Sim, senhor. Obrigado pelo conselho, mas estava dizendo...
— Obrigado, Sr. Struan — disse o almirante, levantando-se. — Obrigado por ter vindo me falar. Tenha um bom dia.
Atordoado, Malcolm também se levantou, sem saber se entendera direito.
— Quis dizer que eu...
— Quis dizer apenas o que falei, senhor. — A voz era cáustica, incisiva. — Assim como disse, confidencialmente, que levará em consideração tudo o que falei, também devo ressaltar, confidencialmente, que levarei em consideração tudo o que falar e fizer... até a meia-noite de segunda-feira. Tenha um bom dia.
Lá fora, o ar era puro e agradável, não havia complicações. Malcolm respirou fundo, várias vezes, até que sua força espalhou-se pela cabeça e peito. Esgotado e exultante, arriou no primeiro banco, e ficou olhando fixamente para a esquadra, sem vê-la.
Será que entendi Ketterer direito, Malcolm perguntou a si mesmo, muitas vezes, transbordando de esperança, ele pode estar mesmo disposto a esquecer a carta da mãe, dar permissão a Marlowe de nos receber a bordo e não proibi-lo de nos casar?
— Ketterer repisou o “confidencialmente” — murmurou Malcolm — e acentuou o “aqui entre nós”.
Isso significa que ele vai se manter quieto, se eu fizer a minha parte? O que posso fazer e dizer, antes da noite de segunda-feira, para persuadir o patife, pois é isso que ele é, um chantagista sem moral?
Besteira! É um negócio — ele me ofereceu um acordo —, um negócio maravilhoso para mim, e sem nada de ruim para ele. Eu teria de ser cuidadoso, os outros mercadores não aceitarão de bom grado um embargo voluntário. E tudo terá de ser feito às claras, porque o homem é esperto e não vai se satisfazer com meras promessas.
Em quem posso confiar com essa nova reviravolta no emaranhado da minha vida? Heavenly, Jamie? Marlowe? Claro que ele não. Angel? Não. Não ela. Se tio Chen estivesse aqui, seria ele, mas acontece que não está. Quem, então? Ninguém. É melhor não contar a ninguém!
Tem de fazer tudo sozinho... não é isso o que a mãe comentou que Dirk sempre dizia ao pai sobre ser o tai-pan? “É ficar sozinho, assumir a responsabilidade sozinho essa é a alegria e o sofrimento.” O que posso fazer sobre os canhões e...
— Boa tarde, Sr. Struan.
— Como? Ah, olá, Sr. Gornt.
— Parecia tão triste que não pude deixar de interrompê-lo.
— Não, não estou triste — murmurou Malcolm, cansado. — Apenas pensava.
— Desculpe. Neste caso, é melhor eu deixá-lo sozinho de novo, senhor.
— Não, por favor. Sente-se. Falou num preço, não é mesmo?
Edward Gornt acenou com a cabeça.
— Peço desculpas por não procurá-lo antes, senhor, mas acontece que o Sr. Greyforth não queria... ver a luz. Agora ele concorda com pistolas, pistolas de duelo de cano duplo, e um tiro ou dois, à sua escolha, a vinte passos.
— Ótimo. Que mais?
— Tentei dissuadi-lo do duelo, mas ele insistiu: “Não, a menos que Malcolm Struan peça desculpas publicamente.” Ou outras palavras com esse sentido.
— Certo. Mas vamos falar do outro assunto. Não há paredes ou portas aqui. — Malcolm gesticulou para o passeio quase deserto. — O preço?
— Também achei que este lugar era perfeito, mas não podemos passar muito tempo aqui e precisamos tomar cuidado, pois o Sr. Greyforth pode estar nos observando com um binóculo.
— E está?
— Não sei com certeza, senhor, mas sou capaz de apostar que sim.
— Vamos deixar a conversa para outro lugar? Mais tarde?
— Não. Aqui está bom. Mas ele é muito astuto, e não quero que fique desconfiado. O preço: se minha informação ajudar a frustrar o plano de Morgan para destruí-los, e levar os Brocks à bancarrota.
— Conhece os detalhes?
Gornt riu baixinho.
— Conheço, e muito bem, embora nem Morgan nem o Velho Brock saibam que eu sei. Nem o Sr. Greyforth. — Ele baixou a voz ainda mais, os lábios mal se movendo. — Tudo isso deve ser mantido em segredo entre nós, mas o preço é você liquidar Morgan Brock, pressioná-lo até a bancarrota, levá-lo à prisão, se for Possível... e se for necessário acabar com Tyler também, não me importo, mas dos destroços vai garantir que terei cinqüenta por cento de participação na Rothwell, livres e desimpedidos. Também terá de me ajudar a levantar no Victoria Bank os recursos necessários para comprar a metade de Jeff Cooper. Durante dez anos, não vai me pressionar de outra forma que não como um concorrente normal, proporcionando-me a condição de nação favorecida em todos os negócios... tudo constando de um contrato, escrito e assinado por você. Depois de dez anos, pode tirar as luvas.
— Concordo — respondeu Malcolm no mesmo instante, pois esperava por condições mais difíceis. — Mas os miseráveis do Victoria não são nossos amigos. Foi Brock quem iniciou o banco, e sempre nos excluiu. Portanto, não seremos de grande ajuda nesse ponto.
— Tal situação vai mudar em breve, senhor. Daqui a pouco todos os diretores vão peidar, se lhes disser peidem. Tudo isso deve ser mantido em segredo, é claro. O que planeja fazer depois do duelo?
Malcolm não hesitou, embora estranhasse poder confiar naquele homem tão depressa, e falou sobre o embarque no Prancing Cloud.
— Parto do pressuposto que serei o vencedor e não ficarei gravemente ferido. — Uma pausa e ele acrescentou, confiante: — Depois que chegar a Hong Kong, poderei esfriar as coisas.
— Tem condições de atirar direito apoiado nas bengalas?
— Uma é suficiente para me equilibrar por tão pouco tempo. — Malcolm sorriu. — Tenho praticado.
— Quero propor agora uma manobra para evitar as repercussões legais. Deu certo na Virgínia e o mesmo deve acontecer aqui, caso qualquer dos dois seja morto. Cada um escreve uma carta para o outro, datada e entregue na noite anterior ao duelo, dizendo que concordam, por consenso mútuo, em cancelar o duelo, e que “num encontro amanhã, na terra de ninguém, ambos aceitarão, como cavalheiros, um pedido de desculpas mútuo e simultâneo”. — Gornt sorriu. — Nós, os padrinhos, vamos testemunhar que, tragicamente, enquanto mostravam suas pistolas um ao outro, uma delas disparou, num lamentável acidente.
— Uma boa idéia. Norbert concordou?
— Concordou. Eu lhe entregarei a carta dele na terça-feira. Mande a sua pelo Sr. McFay. Mas é melhor manter em segredo, pois se trata de um estratagema.
“Terça-feira” continuava ecoando na mente de Malcolm, mas ele forçou para o lado. Gornt dizia, descontraído:
— Depois do duelo... seria melhor se o matasse, em vez de apenas feri-lo... irei para o clíper com você. Em troca do contrato escrito, explicarei em detalhes como pode arruinar totalmente a rede de segurança financeira da Brock, com um pacote de cópias autenticadas de cartas e documentos, o suficiente para qualquer tribunal de justiça e outros que lhe proporcionarão os meios de pressionar o Victoria.
Malcolm experimentou uma intensa exultação.
— Por que não agora? Por que esperar até quarta-feira?
— O Sr. Greyforth pode matá-lo — disse Gornt, calmamente. — Neste caso, as informações seriam desperdiçadas e eu correria um risco sem qualquer proveito.
Depois de uma pausa, Malcolm indagou:
— Digamos que ele me mate, ou me deixe gravemente ferido... como obteria a vingança que deseja?
— Procuraria a Sra. Struan imediatamente. Mas não creio que será necessário. Aposto no senhor, não nela.
— Ouvi dizer que não jogava, Sr. Gornt.
— Cartas, a dinheiro, não, senhor, nunca... constatei a inutilidade disso por meu padrasto. Com a vida? Até o limite. — Gornt sentiu que os olhos o fitavam e murmurou: — Alguém nos observa.
Ele olhou ao redor. Era Angelique, saindo do prédio Struan, no outro lado da rua. Ela acenou. Malcolm acenou em resposta e levantou-se. Os dois homens observaram-na se aproximar.
— Olá, Angel — disse Malcolm, afetuoso, as palavras do almirante aflorando em sua mente. — Quero apresentá-la ao Sr. Edward Gornt, da Rothwell, de Xangai. Minha noiva, mademoiselle Richaud.
— Madame!
Gornt pegou a mão de Angelique e beijou-a, galante.
— Sr. Gornt — murmurou ela, lendo seus olhos.
Houve um silêncio abrupto e curioso entre os três, e depois, sem qualquer razão aparente, desataram a rir.
— O que foi? — indagou ela, sentindo o coração acelerar.
— Joie de vivre — disse Gornt.
Angelique fitou-o, gostando do que via, animada pelo sorriso, depois pegou o braço de Malcolm, já relatando o encontro, na carta que interrompera:
Confesso, minha cara Colette, que os vi no passeio, assim resolvi pôr minha melhor touca e pegá-los de surpresa. Tratei logo de passar o braço pelo de Malcolm (DEFENSIVAMENTE), pois esse recém-chegado é alto e bonito, com um brilho malicioso por trás dos olhos, que percebi no mesmo instante, embora Malcolm não devesse estar consciente, ou se mostraria mais ciumento que o habitual, o pobre querido! Eu queria conhecer esse estranho alto casualmente. Ele tem um ligeiro sotaque sulista, ombros largos, cintura estreita, deve ser um esgrimista, e um magnífico dançarino... espero que seja um amigo, pois preciso de muitos por aqui...
— Ah, chéri... — murmurou ela, abanando-se contra o imediato e agradável calor interno, uma reação felina subconsciente à masculinidade de Gornt. — Desculpe, eu não queria interromper uma conversa importante...
— Não interrompeu, Angel — declarou Malcolm.
— Eu já ia embora—acrescentou Gornt. Não havia necessidade de esconder toda a sua admiração. — Foi um prazer conhecê-la, madame. — Ele fez uma reverência. — Bom dia, senhor. Ficarei em contato.
Eles observaram-no se afastar.
— Quem é o Sr. Gornt?
Malcolm disse, mas nada contou sobre o verdadeiro Sr. Gornt, seus pensamentos voltados para a próxima terça-feira.
— Mais porco no molho de feijão preto, irmã mais nova? — perguntou Ah Tok mastigando um pedaço de peixe.
— Obrigada. — Ah Soh inclinou-se com os pauzinhos para reabastecer sua tigela, mas mudou de rumo, optando pelo camarão frito que vinha cobiçando. — Por favor, continue, irmã mais velha.
As duas se encontravam no quarto de Ah Tok, o almoço servido em vários pratos, junto com um bule de chá de jasmim fresco.
— É muito difícil. Ilustre Chen não deu instruções precisas.
— Ele não costuma agir assim. — Ah Soh serviu-se de mais pedaços suculentos de carne de vaca, num molho de ostra. — É muito estranho.
— Concordo, mas também sua nova concubina, a prostituta de Soo Chow vem com certeza absorvendo a maior parte de sua concentração.
— É verdade que ela tem quatorze anos, sem pêlos púbicos?
Ah Tok pegou outra cabeça de peixe, sugou a carne, com satisfação.
— Só o povo do alho de Chosen é que não tem pêlos púbicos.
Ela cuspiu as espinhas no chão, selecionou outro pedaço.
— Interessante. Será por causa de todo o alho que comem? Posso reler a carta dele, irmã mais velha?
A carta dizia:
Saudações, Ah Tok, sexta prima em segundo grau. Fez muito bem ao me consultar de imediato. A rolha do vidro revelou vestígios claros de Escuro da Lua, que deve ser o expulsor da terra do cão no mar Oriental. Um aborto! A prostituta foi sensata e insensata ao usá-lo, o amo sensato e insensato ao propô-lo. Até sabermos se foi ele quem tomou a decisão, ou se foi ela sem o conhecimento do amo, você não deve fazer nada. Prima, escute-o dormindo — ele sempre murmurou no sono, desde criança —, talvez ele diga mais alguma coisa. Instrua Ah Soh afazer a mesma coisa, e as duas serão como morcegos. Obedeçam, e sejam persistentes.
— O que ele quis dizer em ser como morcegos? — indagou Ah Soh, irritada.
— Morcegos são silenciosos, mas guincham. Os morcegos podem voar no escuro, mas são cegos durante a claridade, são invisíveis à noite, desamparados de dia. Seus excrementos são valiosos, mas fedem demais. O que ele quis dizer?
— Olhos, ouvidos e narinas abertos, como um morcego, e vigiar onde larga seu excremento! — Ah Tok soltou uma risada. — Dez mil verões para Chen da Casa Nobre, pois sem ele não saberíamos que o portão de jade da mulher esteve na porta de meu filho!
— Como sabemos que foi ele? — especulou Ah Soh, com um vigoroso arroto. — Como sabemos que foi mesmo o amo, e não algum outro?
Ela baixou a voz, olhou ao redor, como se esperasse que ouvidos estranhos pudessem estar ouvindo. Os pauzinhos de Ah Tok hesitaram em pleno ar.
— Alguém como Nariz Pontudo, o mesmo tipo de demônio estrangeiro que é hem? Os dois são muito íntimos, como piolhos na virilha de um mendigo, e não foi ele quem jogou ao mar o vidro e as outras provas?
A velha Ah Tok não estava mais rindo.
— Fang pi! — exclamou ela, usando a imprecação rara. — É sobre isso que mestre Chen deve ter nos advertido! Morcegos dão voltas enquanto voam, não pousam no primeiro galho, e mesmo depois ficam pendurados de cabeça para baixo Ele está nos dizendo para descobrir que yang possuiu aquela yin! É isso mesmo! Concordo que é possível que Nariz Pontudo tenha feito meu filho usar um chapéu verde!
— O amo enganado! — Ah Soh revirou os olhos para o céu. — É verdade que Nariz Pontudo passou bastante tempo no quarto dela para... Ela parou de falar de repente, boquiaberta, e depois acrescentou:
— Mas é isso mesmo! Lembra o que aconteceu há algumas semanas, quando ela me mandou embora, e mais tarde gritou, porque pensava que alguém tentava entrar em seu quarto por fora, quando era apenas o vento sacudindo as janelas? Recordo tudo agora, cheguei a seu lado mais depressa que um morcego, mas Nariz Pontudo já se encontrava ali, e os dois... agora que penso a respeito, os dois estavam mais brancos que um cadáver de cinco dias! Teria sido a ocasião em que seu yang...
— Quando foi isso, irmã mais nova? O dia? Quando?
— Foi no dia... o dia seguinte ao amo trazer aquela prostituta nativa do bordel no outro lado do canal.
As duas puseram-se a fazer contas, as mentes tão velozes quando o ábaco. Hoje era o décimo segundo mês, quinto dia.
— Seria o décimo mês, décimo oitavo ou décimo nono dia, irmã mais velha.
— Não havia tempo suficiente, a menos que Escuro da Lua tenha sido tomado antes do prazo. — Distraída, Ah Tok sugou mais um pedaço de peixe, depois cuspiu as espinhas, com um ar de convicção. — Eles devem ter deitado juntos antes. A prostituta teve muitas oportunidades, não é mesmo? Ela estava sempre naquela casa bárbara, antes de vocês duas se instalarem aqui.
— Tem razão, como sempre, irmã mais velha. Devemos informar ilustre Chen imediatamente.
— Mas por que ela entregara seu portão de jade a um demônio estrangeiro tão feio, quando meu filho se mostra ansioso em possuí-lo?
Ah Soh deu de ombros.
— Bárbaros! Quem sabe o que eles pensam? Deve contar ao amo.
Tonta de excitamento, Ah Tok olhou para seu bar. Madeira, uísque, conhaque.
— Precisamos de força! — Ela escolheu o uísque, serviu duas doses enormes. — Ao trabalho! Devemos planejar, conspirar e pensar como fazer para que a prostituta e seu amante revelem a verdade!
— Muito bem! Juntas, conseguiremos!
— Mas nenhuma insinuação a meu filho, pois seria insensato para nós sermos portadoras de más notícias. Até termos certeza. — Elas bateram os copos. — Por todos os deuses, grandes e pequenos, ninguém vai enganar meu filho, fazê-lo usar o chapéu verde, e depois levar uma vida longa e feliz!
— Boa noite, padre Leo — disse Angelique, polida.
Ela se ajoelhou e beijou sua mão, descobrindo ser difícil conter a repulsa pelo intenso odor que ele exalava. Estavam sozinhos na pequena igreja, a nave mal iluminada, apenas umas poucas velas ardendo, o sol poente entrando pelo vitral pequeno e malfeito. Havia poucos católicos na colônia, a receita era ínfima, mas mesmo assim o altar e o crucifixo eram suntuosos. Lá fora, ao pôr-do-sol, Vargas esperava, para escoltá-la de volta.
— Queria me falar? — perguntou ela, inocente, sabendo que faltara de novo à missa no domingo. A touca rosa fora escolhida com todo cuidado, assim como o xale comprido de cashmere, caindo sobre o vestido de tarde, de uma seda escura. — Está com uma ótima aparência, padre.
— Fico contente em vê-la, minha criança — disse ele, com seu forte sotaque português. — Não compareceu à missa mais uma vez.
— São os vapores, padre. Ainda me recupero do distúrbio... e o Dr. Babcott aconselhou repouso — respondeu Angelique, pensando no que usaria naquela noite, para o banquete de aniversário do ministro russo, e o que poderia fazer para distrair Malcolm até lá. — Tenho certeza que me sentirei melhor na próxima semana.
Folgo em saber, minha jovem mentirosa, pensou Leo, desgostoso com a perfídia da humanidade. É uma impiedade dançar à noite e mostrar as partes desvestidas.
— Não importa. Ouvirei sua confissão agora.
Angelique quase que poderia bocejar, de tão previsível que ele era. Obediente, seguiu-o ao confessionário, ajoelhou-se, cumpriu o ritual, contente pela tela que os separava, confortada pelo pacto que fizera com a Virgem Maria, repetindo o código, fervorosa, como sempre:
—... e mais uma coisa, padre, esqueci de pedir perdão à Santa Mãe em minhas orações.
A absolvição foi rápida, uma modesta penitência de umas poucas ave-marias, e ela se sentiu melhor por isso. Começou a se levantar...
— Agora, minha criança, um problema particular. Há dois dias, o Sr. Struan mandou me chamar, para uma conversa confidencial, e pediu-me para casar vocês dois.
Angelique ficou boquiaberta, depois exibiu um sorriso glorioso.
— Oh, padre, que maravilha!
— Tem toda razão, minha criança. “Por favor, case-nos o mais depressa possível”, pediu o jovem Sr. Struan. Mas é difícil. — Noite e dia, ele remoera o problema. Enviara no mesmo dia uma carta urgente para o bispo de Macau, líder espiritual católico na Ásia, suplicando conselho, também urgente. — Muito difícil para nós.
— Por que, padre?
— Porque ele não é católico, e...
— Mas ele concordou que nossos filhos serão criados na verdadeira igreja. Foi o que me prometeu.
— É verdade, minha criança, ele me disse a mesma coisa. Mas o jovem Sr. Struan ainda não alcançou a idade para casar sem permissão, nem você. Mas eu queria lhe dizer, em segredo, que mesmo assim solicitei a Sua Eminência permissão para celebrar a cerimônia, pela maior glória de Deus, até mesmo... com ou sem aprovação de seu pai. Soube que seu pai desapareceu, em algum lugar da Indochina francesa ou Sião.
Os detalhes sobre as fraudes e a fuga do pai haviam circulado pela colônia, mas ninguém contara nada a Angelique, por deferência, nem a Struan.
— Se Sua Eminência concordar, tenho certeza que o senhor Seratard, in lócus parentis, também concordará.
O aperto na garganta de Angelique não desapareceu.
— Quanto tempo vai demorar para Sua Eminência responder... conceder sua aprovação?
— Até o Natal, ou pouco depois, antes disso, se estiver em Macau, e não viajando, em visita aos fiéis na China, e se for a vontade de Deus.— Como sempre, ele sentava do outro lado sem olhar para a tela, um ouvido próximo, para garantir a privacidade sussurrada, mas agora virou o rosto e pôde divisá-la, vagamente. — A questão sobre a qual desejo conversar, em particular, é a conversão do senhor Struan.
Ela ficou outra vez aturdida.
— Ele disse que se converteria?
— Não. Ainda não enxergou a luz, e é sobre isso que quero falar.
Padre Leo inclinou-se para mais perto da tela, saboreando a proximidade de Angelique, dominado por um desejo que sabia ser ímpio, enviado por Satã, o mesmo contra o qual lutava todos os dias e noites, de joelhos... o mesmo que enfrentava, com igual tormento, desde que ingressara na Igreja.
Que Deus me dê força, e que me perdoe, pensou ele, quase em lágrimas, querendo estender as mãos, acariciar os seios e o resto da moça, tudo oculto pela tela e o xale, pelo resto das roupas e a ira de Deus.
— Você deve ajudá-lo a adotar a verdadeira fé.
Angelique mantinha-se tão longe da tela quanto podia. Entreabriu as cortinas, Para reduzir a claustrofobia que a estrutura em forma de caixa lhe proporcionava. Os confessionários nunca foram assim, pensou ela, estremecendo. Só depois... depois do que nunca aconteceu.
— Eu ajudarei, padre, faço tudo o que posso — murmurou ela, o nervosismo aumentando, e de novo fez menção de se retirar.
— Espere!
A violência na voz a chocou.
— Padre?
— Por favor... espere, por favor, minha criança.
A voz era afável agora, mas a afabilidade era forçada, e isso a assustou, pois não era a voz de um padre, sacrossanta, num lugar santificado, mas a de um estranho.
— Devemos conversar sobre esse casamento, minha criança, sobre a conversão de seu noivo. É preciso tomar muito cuidado com as influências malignas. A conversão é indispensável, como um preparativo para... para a eternidade.
— “Indispensável”, padre? — murmurou Angelique. — Ia dizer “indispensável como um preparativo para o casamento”!
— Para... para a eternidade.
Ela fitou a sombra no outro lado da tela, convencida de que ele mentia, consternada por sequer considerar essa possibilidade, muito menos acreditar nela.
— Ajudarei em tudo o que puder, padre.
Ela se levantou, abriu as cortinas, em busca de ar. Mas padre Leo postou-se em seu caminho. Angelique notou o suor em sua testa e que ele pairava acima dela, em altura e volume.
— É para o bem dele, para sua própria salvação. A dele, minha criança. Seria melhor... seria melhor antes.
— Está dizendo, padre, que a conversão de Malcolm é indispensável para que possa nos casar? — indagou ela, apavorada.
— Não cabe a mim determinar as condições. O que Sua Eminência decidir vai nos orientar, pois somos servidores fiéis.
— Na igreja de meu noivo, ninguém disse que devo me tornar protestante. É claro que também não posso forçá-lo.
— É preciso que ele enxergue a verdade! Esse casamento é uma dádiva de Deus. Protestante? Essa heresia? Apostasia? Inadmissível! Estaria perdida para sempre, condenada, excomungada, sua alma eterna consignada ao tormento permanente no fogo, ardendo pelos tempos afora!
Angelique manteve os olhos baixos, era quase incoerente.
— Para mim, sim, para ele... milhões de pessoas acreditam de uma forma diferente.
— Todos estão loucos, perdidos, condenados e arderão para sempre! — A voz era ainda mais dura. — É isso mesmo! Devemos converter os pagãos! Malcolm Struan deve se con...
— Tentarei, padre. Adeus. Obrigada... tentarei.
Ela contornou-o, afastou-se apressada. Virou-se ao chegar à porta, por um momento, fez uma genuflexão e saiu para a luz. O padre continuou parado na nave de costas para o altar, sua voz ressoando pela igreja:
— Seja um instrumento de Deus, converta os pagãos, se ama a Deus, salve esse homem, salve-o do purgatório, se ama a Deus, salve-o, ajude-me a salvá-lo das chamas do inferno, salve-o para a glória de Deus, tem de fazer isso... antes de casar, salve-o, deixe-nos salvá-lo...
Naquela noite, uma patrulha de samurais saiu da casa da guarda no portão norte. Eram dez guerreiros, armados com espadas e uma armadura leve de combate, um oficial no comando. Atravessaram a ponte, passaram pela barreira, entraram na colônia. Um homem carregava um estandarte alto e estreito, com caracteres escritos. O samurai na vanguarda erguia uma tocha, que projetava estranhas sombras.
A High Street e o passeio a beira-mar ainda se encontravam bastante movimentados, no princípio de noite agradável. Mercadores, soldados, marujos, lojistas dando uma volta, ou parados em grupos, conversando e rindo, aqui e ali, com umas poucas canções e bêbados, um ou outro cautelosos prostitutos. Na praia, alguns marujos haviam acendido uma fogueira e dançavam uma hornpipe ao redor, embriagados, com um travesti no meio. Podia-se ouvir a distância o clamor habitual na cidade dos bêbados.
A presença ominosa foi logo notada. Todos pararam no mesmo instante. As conversas foram interrompidas no meio de uma frase. E depois cessaram por completo. Todos os olhos se viraram para o norte. Os mais próximos da patrulha trataram de sair da frente. Mais que uns poucos tatearam à procura do revólver e praguejaram por não encontrá-lo no bolso ou no coldre. Outros recuaram e um soldado de folga saiu correndo por uma viela para chamar o plantão noturno dos fuzileiros.
— Qual é o problema, senhor? — perguntou Gornt.
— Ainda nenhum — respondeu Norbert, com uma expressão sombria.
Os dois integravam um grupo no passeio, mas ainda longe dos samurais, que não prestaram qualquer atenção aos homens silenciosos que os observavam, caminhando encurvados, os passos irregulares, como era seu costume. Lunkchurch aproximou-se.
— Está armado, Norbert?
— Não. E você?
— Também não.
— Eu estou, senhor. — Gornt sacou sua pequena pistola. — Mas não fará muita diferença, se eles forem hostis.
— Quando em dúvida, meu jovem — disse Lunkchurch, a voz rouca —, saia correndo, é o que sempre falei.
Ele estendeu a mão para Gornt, antes de se afastar, apressado:
— Barnaby Lunkchurch, Sr. Gornt. Prazer em conhecê-lo. Seja bem-vindo a Yokopoko. Até mais tarde, no clube. Ouvi dizer que joga bridge. Será ótimo sentarmos para uma partida.
Todos trataram de se manter fora do alcance. Os bêbados se tornaram subitamente sóbrios. Cada um se encontrava de guarda, pois era muito bem conhecida a rapidez de uma repentina corrida de samurai brandindo as espadas. Norbert já escolhera uma linha de retirada, caso se tornasse necessário. Depois ele viu o pelotão de fuzileiros sair por uma rua transversal, em passo acelerado, os fuzis de prontidão, um sargento à frente, para assumir uma posição de vigia embora não provocadora. Norbert relaxou e comentou:
— Não há mais nada com que se preocupar agora. Sempre anda com isso Edward?
— Sempre, senhor. Pensei que tinha lhe dito.
— Não, não disse — respondeu Norbert, em tom ríspido. — Posso vê-la?
— Claro. Está carregada.
A pistola era pequena, mas mortífera. Cano duplo. Dois cartuchos de bronze. Coronha revestida de prata. Norbert devolveu-a.
— Muito boa. É americana?
— Francesa. Meu pai me deu quando fui para a Inglaterra. Disse que a ganhara de um jogador num barco no Mississippi, a única coisa que me deu em toda a sua vida. — Gornt riu baixinho, os dois observando os samurais se aproximarem. — Até durmo com ela, senhor, mas só a disparei uma vez. Foi contra uma dama que se esgueirava com minha carteira na calada da noite.
— Acertou-a?
— Não, senhor. Nem estava tentando. Queria apenas assustá-la. Uma dama não deve roubar, não é mesmo, senhor?
Norbert soltou um grunhido e voltou a se fixar nos samurais, considerando Gornt sob uma nova luz, mais perigosa.
A patrulha foi andando pelo meio da rua, as sentinelas na frente das legações britânica, francesa e russa — as únicas com guardas permanentes — aprontando seus fuzis, já alertadas.
— Soltar as travas de segurança! Não atirem, até eu mandar! — resmungou o sargento. — Grimes, vá avisar ao comandante. Ele está com os russos, a terceira casa descendo a rua.
O soldado se afastou. Os lampiões ao longo do passeio piscavam. Todos esperavam, ansiosos. O oficial dos samurais continuou a avançar, impassível.
— Um desgraçado de maus bofes, não acha, sargento? — sussurrou um soldado, as mãos empunhando o fuzil.
— Todos são desgraçados de maus bofes. Trate de se controlar.
O oficial alcançou o prédio da legação britânica e gritou uma ordem. Seus homens pararam, entraram em formação diante do portão. Ele se adiantou, falou ao sargento num japonês gutural. Um silêncio opressivo. Mais palavras, impacientes, imperiosas, obviamente ordens.
— O que você quer? — perguntou o sargento, meio metro mais alto. Outra vez as frases ásperas, mais furiosas.
— Alguém entende o que ele está dizendo? — gritou o sargento.
Não houve resposta, até que Johann, o intérprete, saiu da beira da multidão. fez uma reverência ao oficial dos samurais, que retribuiu de forma superficial, e lhe falou em holandês. O oficial respondeu em holandês, procurando as palavras Johann explicou:
— Ele traz uma mensagem, uma carta para Sir William, e tem de entregá-la pessoalmente.
O oficial começou a se encaminhar para o portão da legação, e todos os fuzis foram erguidos. Ele parou. Uma furiosa tirada contra o sargento e os soldados. Todos os samurais tiraram um quarto das espadas das bainhas, assumiram uma posição defensiva. Ali perto, a patrulha dos fuzileiros assumiu ordem de combate. Todos esperavam pelo primeiro erro.
Nesse momento, Pallidar e dois outros oficiais dos dragões saíram apressados da legação russa, um pouco adiante, em uniformes de gala, com suas espadas.
— Eu assumo o comando, sargento — declarou Pallidar. — Qual é o problema?
Johann informou-o. Pallidar, a esta altura bem versado nos costumes japoneses, fez uma reverência para o oficial samurai, esperou uma retribuição igual.
— Diga a ele que receberei a carta. Sou o ajudante-de-ordens de Sir William.
— Ele diz: Sinto muito, as ordens são para entregar pessoalmente.
— Diga-lhe que estou autorizado...
A voz de Sir William interrompeu-o:
— Capitão Pallidar... espere um momento! Johann, de quem é a carta?
Ele estava parado na entrada da legação russa, com Zergeyev e outros ao seu lado. O oficial apontou para o estandarte, gritou mais algumas palavras, e Johann traduziu:
— Ele diz que é do tairo, mas creio que se refere ao roju, o Conselho dos Anciãos. Recebeu ordem de entregá-la pessoalmente.
— Está certo. Vou recebê-la. Mande ele vir até aqui.
Johann obedeceu. Altivo, o oficial samurai fez sinal para que Sir William se adiantasse. Mas Sir William gritou, ainda mais ríspido, com menos cortesia ainda:
— Diga a ele que estou jantando. Se não quiser vir até aqui imediatamente, pode entregar a carta amanhã.
Johann era muito experiente para traduzir exatamente, e apenas deu ênfase suficiente para transmitir o significado. O oficial samurai respirou fundo, em fúria, depois avançou através do portão russo, passou pelos dois enormes guardas barbudos e parou diante de Sir William, esperando por uma reverência.
— Keirei! — berrou Sir William. Saudação! Era uma das poucas palavras em japonês que ele se permitira aprender. — Keirei!
O oficial corou, mas fez uma reverência, numa reação automática. Inclinou-se Como se fosse um igual, e sentiu-se ainda mais irritado quando Sir William apenas acenou com a cabeça, como se fosse um inferior. Mas também, pensou o oficial, esse homenzinho fétido é o líder gai-jin, com uma reputação de ira tão vil quanto seu cheiro. Quando atacarmos, eu mesmo o matarei.
Ele pegou o pergaminho, deu um passo à frente, entregou-o, recuou, fez uma reverência perfeita, esperou até que houvesse uma retribuição, embora grosseira, satisfeito por ter levado a melhor sobre o inimigo. Para descarregar sua raiva, gritou com seus homens, e afastou-se como se eles não existissem. Todos seguiram-no, também furiosos pela grosseria do gai-jin.
— Onde está Tyrer? — indagou Sir William.
— Mandarei alguém chamá-lo — disse Pallidar.
— Não precisa. Peça a Johann para vir até aqui.
— Se está em holandês, posso ler a mensagem, Sir William — interveio Erlicher, o ministro suíço.
— Obrigado, mas é melhor Johann, já que ele conhece japonês também.
Sir William não queria partilhar, de antemão, nada com ninguém, ainda mais com um estrangeiro que representava uma nação pequena, mas em crescimento com uma bem desenvolvida indústria bélica ansiosa por exportações, com uma reputação baseada na qualidade extraordinária e única de seus relojoeiros, uma das poucas áreas em que os fabricantes britânicos não podiam competir.
A sala de jantar, o maior cômodo do prédio, tinha uma mesa para vinte pessoas, com prataria e louça da melhor qualidade. Todos os ministros ali se encontravam, à exceção de von Heinrich, que continuava doente, além de Struan, Angelique, à cabeceira da mesa, alguns oficiais franceses e britânicos, com dois criados de libré por trás de cada lugar, e mais para servir.
— Posso usar a ante-sala, conde Zergeyev? — perguntou Sir William, em russo.
— Claro.
O conde Zergeyev abriu a porta. Esperaram por um momento, até que Johann entrasse, apressado, e depois ele fechou a porta.
— Boa noite, Sir William — disse Johann, satisfeito por ter sido chamado.
Seria o primeiro a saber qual era o problema e poderia continuar a ser útil para o ministro de seu país. Rompeu o lacre do pergaminho e também sentou-se.
— Em holandês e japonês. É curta.
Ele correu os olhos depressa pela carta, franziu o rosto, releu-a, outra vez, soltou uma risada nervosa.
— Está endereçada ao ministro britânico e diz: “Comunico por este despacho. Por ordem do xógum Nobusada, recebida de Quioto, todos os portos serão fechados imediatamente e todos os estrangeiros expulsos e obrigados a partir, pois não pre...”
— Expulsos? Obrigados a partir?
O berro de Sir William passou pela porta. Os convidados para o jantar caíram num silêncio apreensivo. Johann estremeceu.
— Isso mesmo, senhor. Sinto muito. É o que diz aqui: “...e obrigados a partir, pois não precisamos nem queremos quaisquer negócios entre estrangeiros e nosso povo. Envio este comunicado antes de uma reunião imediata para acertar os detalhes da retirada urgente de Iocoama. Respeitosa comunicação.”
— Respeitosa? Mas que maldita impertinência...
A explosão continuou. Assim que Sir William fez uma pausa para respirar, Johann disse:
— Está assinada por “Nori Anjo... Tairo”. Pelo que sei, Sir William, isso é quase como ditador.
QUIOTO, Quinta-feira, 4 de dezembro:
Yoshi Toranaga estava lívido.
— Quando a designação de tairo foi confirmada?
— Anteontem, Sire, pelo pombo-correio para lorde Anjo, em Iedo. — Wakura, o lorde camarista, chefe dos funcionários do palácio, falava em voz suave, indiferente à ira ostensiva de seu convidado, e disfarçando sua alegria, pois aguardara ansioso por aquele encontro, em seus aposentos, dentro do palácio. — O pergaminho formal, assinado pelo xógum, a pedido do filho do céu, foi enviado, se não me engano, para entrega urgente a lorde Nori Anjo no mesmo dia.
Isso deixou Yoshi ainda mais furioso. Seu ancestral, o xógum Toranaga, determinara que os pombos-correios seriam propriedade exclusiva do xogunato. Ao longo de dois séculos e meio esse método de comunicação entrara em declínio, por ser desnecessário, e agora era usado apenas para anunciar ocorrências vitais, como a morte de um xógum ou de um imperador. O Bakufu optava por ignorar que há anos alguns emprestadores de dinheiro da zaibatsu de Osaca vinham usando pombos-correios em segredo... o que os deixava expostos a medidas punitivas, tributos extras, ou favores, se o Bakufu decidisse impor a lei.
— E quando será entregue o insensato ultimato aos gai-jin? — perguntou Yoshi.
— Imediatamente, Sire. O pedido imperial foi incluído na mesma mensagem por pombo-correio, confirmado pelo xógum Nobusada, e com a ordem para apresentação imediata.
— A ordem é baka, a pressa ainda mais baka! — Yoshi ajeitou o manto alcochoado nos ombros. A chuva miúda que caía nos jardins lá fora acrescentava umidade ao frio. — Mande outro pombo-correio cancelando a ordem.
— Se dependesse de mim, Sire, faria isso sem hesitar, já que está sugerindo Assim que se retirar, Sire, solicitarei permissão, mas imagino que será tarde demais. O líder gai-jin já deve ter recebido a ordem, que pode até ter sido entregue ontem.
Wakura, feliz, manteve o rosto e a atitude de um penitente. Isso era a culminação de anos de intriga em apoio aos desejos do imperador, a opinião da maioria dos daimios, a maioria dos nobres da corte, de Ogama, que no momento detinha o poder em Quioto, embora os portões fossem mais uma vez ostensivamente guardados pelo odiado xogunato — mas apenas com a permissão de Ogama — também da princesa Yazu e, o mais importante de tudo, em apoio às suas próprias posições.
A escolha hábil e sagaz do momento oportuno, poucos dias antes, o deixara na maior satisfação. Abordara a princesa durante seu passeio matutino pelos jardins do palácio e, num único movimento, neutralizara o xogunato, o Bakufu e Yoshi, o mais perigoso de seus inimigos.
— Princesa imperial, soube que alguns cortesãos próximos do divino, com seus interesses em mente, sussurram que o lorde, seu marido, deveria designar lorde Nori Anjo como tairo, o mais depressa possível.
— Anjo? — dissera ela, incrédula.
— Pessoas de sabedoria, princesa, acreditam que deve ser feito depressa, e com absoluta discrição. As conspirações em Iedo abundam e isso evitaria a interferência de... de inimigos ambiciosos, inimigos que tentam a todo instante arruinar seu reverenciado marido e que têm ligações com os infames shishi. Lembre de Otsu!
— Como se eu pudesse esquecer! Mas Anjo... não que eu tenha qualquer influência para conseguir uma coisa assim... é um tolo. Como tairo, ele se tornará ainda mais arrogante.
— É verdade, mas elevá-lo acima dos outros anciãos pode ser um pequeno preço a pagar para fazer com que seu lorde xógum fique mais seguro durante sua minoridade e frustrar seu... seu único rival, lorde Yoshi.
— Um tairo poderia removê-lo de sua posição de guardião?
— Provavelmente, princesa. Outro ponto em favor de Anjo, sussurram os sábios, é o fato de ele ser o instrumento perfeito a se usar contra os gai-jin: simplório, mas obediente às solicitações imperiais. O divino notaria tal lealdade, e sem dúvida recompensaria os serviços prestados. Se for feito depressa, de maneira discreta, pelo que dizem os sábios, seria o melhor.
Fora muito fácil plantar a semente que desabrocharia como uma de minhas orquídeas de estufas superfertilizadas... como fui previdente ao manobrar para o casamento dela. As palavras da princesa nos ouvidos daquele jovem obtuso, a cooperação de alguns nobres dependentes, meus próprios conselhos, logo procurados e prontamente oferecidos, e tudo ficou resolvido.
E agora é a sua vez, Toranaga Yoshi, pensou ele, feliz, Yoshi, o belo, o astuto, forte, o usurpador bem-nascido, esperando e farejando nas asas do poder, pronto para iniciar a guerra civil que eu e todos tememos, à exceção de uns poucos nobres radicais, a guerra que vai esmagar a ressurgência do poder imperial, e mais uma vez deixar a corte imperial sob o tacão de qualquer belipotentado salteador que dominar os portões e poderá, com isso, reduzir nossos estipêndios e nos transformar de novo em mendigos.
Ele conteve um tremor. Há não muitas gerações, o imperador de então tinha de vender sua assinatura nas ruas de Quioto, a fim de levantar dinheiro para comer. Há não muitas gerações, os casamentos na corte eram arrumados para daimios ambiciosos e arrivistas, que mal pertenciam à classe dos samurais, tendo como uma única qualificação para uma posição superior o sucesso na guerra e o dinheiro. Há não muitos anos...
Não, pensou ele, nada disso vai acontecer. Depois que sonno-joi for um fato, nossos leais amigos shishi vão se dispersar e voltar para seus feudos, todos os daimios se submeterão a ele, nós da corte vamos reinar, e nossa época áurea voltará.
Wakura tossiu, ajeitou as mangas enormes do requintado traje da corte mais a seu gosto, observando Yoshi, os olhos contraídos no rosto maquilado, de acordo com o costume da corte.
— Sem dúvida, Sire, a ordem para expulsar os gai-jin é boa. A sábia e antiga aversão do imperador aos gai-jin e aos tratados será concretizada e nossa terra dos deuses se livrará deles para sempre. Isso deve agradá-lo também, lorde Yoshi.
— Se a ordem fosse significativa, sim. Se fosse obedecida, sim. Se tivéssemos os meios para impô-la, sim. Mas nada disso vai acontecer. Por que não fui consultado?
— Você, Sire?
As sobrancelhas pintadas de Wakura se altearam.
— Sou o guardião do herdeiro por designação imperial. O menino é menor de idade, não é responsável por sua assinatura.
— Oh, Sire, sinto muito... se dependesse de mim, é claro que sua aprovação seria procurada em primeiro lugar. Por favor, não me culpe, Sire. Não posso decidir nada, apenas fazer sugestões. Sou apenas um servidor da corte, do imperador.
— Eu deveria ter sido consultado!
— Concordo, Sire, mas estes são tempos estranhos.
O rosto de Yoshi era tenso. Os danos já haviam se consumado. Ele teria de arrancar o xogunato de seu próprio esterco. Idiotas! Como?
Primeiro Anjo... de um jeito ou de outro. Minha esposa tinha razão.
Ah, Hosaki, como sinto falta dos seus conselhos! Pensando na família, seus olhos vaguearam para fora e no mesmo instante a fúria pareceu se dissolver. Além da janela de shoji, avistou seus guardas, esperando ao abrigo do telhado requintado, os jardins por trás, a chuva indulgente, faiscando nos vermelhos, dourados e marrons combinados com o maior cuidado, uma imagem agradável para a vista e a alma... tão diferente de Iedo, pensou ele, distraído. Hosaki gostaria daqui grande mudança em nossa vida austera. Ela aprecia a beleza e gostaria daqui.
Seria muito fácil se deixar embalar, pelo tempo e os jardins, os céus gentis e a chuva delicada, a melhor música, poesia, alimentos exóticos, beldades de pele de alabastro da corte e também do mundo flutuante de Quioto, Shimibara, o mais procurado em todo o Nipão, sem qualquer preocupação no mundo, exceto a de procurar o próximo prazer.
Desde que chegara a Quioto, além da paz temporária com Ogama, pouco realizara, além dos tempos de prazer... tão raros para ele. O prazer com Koiko, o treinamento diário com espada e artes marciais, massagens maravilhosas —Quioto era famosa por isso — banquetes em cada refeição, jogar Go e xadrez escrever poesia.
Como foi sábio meu ancestral ao confinar o imperador e esses sicofantas vestidos com tanto exagero a Quioto, e construir sua própria capital em Iedo, longe de suas seduções e tortuosas manipulações... e como foi sábio ao proibir um xógum de vir para esta armadilha de mel.
Eu deveria ir embora. Mas como posso partir sem Nobusada?
A corte praticamente o afastara dele. E o próprio Nobusada não queria vê-lo. Por duas vezes, o jovem cancelara uma reunião no último momento, alegando um resfriado. O médico confirmara oficialmente o resfriado, mas seus olhos revelavam que era apenas um pretexto.
— Mas a saúde do lorde xógum me preocupa, lorde Yoshi. Sua constituição não é forte e sua virilidade deixa muito a desejar.
— A culpa é da princesa?
— Não, Sire. Ela é vigorosa, sua yin ampla é bastante sedutora para satisfazer o mais exigente yang.
Yoshi interrogara o médico com o maior cuidado. Nobusada nunca fora um espadachim ou caçador, alguém que gostasse da vida ao ar livre, como o pai e os irmãos, preferindo os esportes mais fáceis da falcoaria e arco e flecha, ou, ainda mais, as competições de poesia e caligrafia. Entretanto, não havia nada de errado com isso.
— Seu pai ainda é bastante vigoroso e a família é conhecida pela longevidade. Não há motivo para alarme. Dê-lhe uma de suas poções, convença-o a comer mais peixe, menos arroz polido, menos dos alimentos exóticos que a princesa tanto aprecia.
Ela participara do único encontro que ele tivera com seu pupilo, poucos dias antes. E tudo saíra errado. Nobusada recusara-se a considerar o retorno a Iedo, recusara-se até mesmo a discutir uma possível data, recusara seus conselhos em todas as outras questões, escarnecendo dele com Ogama:
— O Choshu controla as ruas, os homens de Ogama estão eliminando os infames shishi, primo. Não estou seguro cercado por nossos próprios guerreiros. Só me sinto seguro aqui, sob a proteção do imperador!
— Isso é um mito. Só ficará seguro no castelo de Iedo.
— Sinto muito, lorde Yoshi — interviera a princesa, a voz doce e insinuante — mas a umidade em Iedo é muito grande, o clima não se compara com o de Quioto. e a tosse do meu marido precisa de proteção.
— É isso mesmo, Yazu-chan, e eu gosto daqui, primo, pois pela primeira vez na vida estou livre, não confinado àquele castelo horrível! Aqui sou livre para vaguear, cantar, tocar, e me sinto seguro, estamos seguros, a tal ponto que posso ficar para sempre! Por que não? Iedo é uma cidade suja e fedorenta; governar daqui seria maravilhoso!
Yoshi ainda tentara argumentar, mas fora tudo em vão. E de repente Nobusada declarara, impulsivo:
— O que mais preciso, acima de tudo, até alcançar a maioridade, e não falta muito agora, primo, o que preciso é de um líder forte, um tairo. Nori Anjo seria perfeito.
— Ele seria péssimo para você e o xogunato — insistira Yoshi, paciente, e explicara mais uma vez, só que não fizera a menor diferença. — Seria uma insensatez...
— Não concordo, primo. Anjo me escuta, a mim, o que você nunca faz. Eu disse que queria apresentar meus respeitos ao divino, meu cunhado, ele concordou, e aqui estou, enquanto você se opôs! Ele me escuta! A mim! A mim, o xógum! E não se esqueça de que qualquer um é melhor do que você! Nunca será o tairo, nunca mesmo!
E ele deixara os dois, jamais acreditando — apesar da risada desdenhosa e irritante de Nobusada em sua esteira — que o tairo Anjo poderia se tornar uma realidade.
Mas agora é um fato, pensou ele, sombrio, consciente de que o lorde camarista Wakura o observava.
— Deixarei Quioto nos próximos dias — anunciou Yoshi, tomando uma súbita decisão.
— Mas não passou muito tempo aqui, Sire — comentou Wakura, dando os parabéns a si mesmo. — Nossa acolhida foi tão horrível assim?
— Não, não teve nada de horrível. Quais são as outras informações lastimáveis que tem para mim?
— Nenhuma, Sire. Sinto muito se relatei alguma coisa que o desagradou. Wakura tocou uma sineta. No mesmo instante, um criado todo maquilado entrou, com chá e um prato de tâmaras, os dentes também pintados de preto.
— Obrigado, Omi.
O rapaz sorriu para ele e se retirou.
— As tâmaras são as mais doces que já provei. De Satsuma.
Eram grandes, ressecadas ao sol, com mel. Os olhos de Yoshi se contraíram. Pegou uma; não era por coincidência que vinham de Satsuma.
— São excelentes.
— São mesmo. Uma pena que o daimio Sanjiro não seja tão doce quanto as frutas e outros alimentos que seus camponeses-soldados cultivam. É curioso o samurai em Satsuma pode ser as duas coisas sem perda de casta.
Yoshi escolheu outra tâmara.
— Curioso? É apenas o costume antigo deles. Um mau costume. É sempre melhor que os homens sejam samurais ou camponeses, uma coisa ou outra, de acordo com o legado.
— Ah, sim, o legado. Mas também o xógum Toranaga permitiu que a família conservasse seu feudo e suas cabeças, depois de Sekigahara, embora tivessem lutado contra ele. Talvez ele gostasse de suas tâmaras também. Interessante, neh?
— Talvez o xógum Toranaga se satisfizesse por eles terem encostado a cabeça na terra à sua frente, humildemente lhe concedendo o poder sobre Satsuma jurando fidelidade perpétua, e com humildade ainda maior agradeceram quando lhes foi concedido Satsuma como feudo.
— Ele foi um sábio soberano, muito sábio. Mas agora os Satsumas sob Sanjiro não são mais tão humildes.
— Isso também ocorre com outros — murmurou Yoshi.
— Como eu disse, vivemos em tempos estranhos. — Wakura demorou a escolher outra tâmara. — O rumor é de que ele prepara suas legiões para a guerra, apronta todo o feudo para a guerra.
— Satsuma sempre se mantém em pé de guerra. Outro costume antigo. Deve me dar o nome de seu fornecedor de tâmaras. Podemos aproveitar um fornece assim em Iedo.
— Será um prazer — respondeu Wakura, sabendo que nunca revelaria sua rede de espiões. — Alguns sábios conselheiros sugerem que desta vez Sanjiro realmente levará a guerra a todo o território.
— Guerra contra quem, lorde camarista?
— Presumo que contra todos aqueles que Sanjiro considera seus inimigos.
— E quem são eles? — indagou Yoshi, paciente, querendo que Wakura contasse tudo.
— Circulam rumores de que será contra o xogunato. Sinto muito.
— Ele se arrependeria se tentasse a guerra contra a lei da terra, lorde camarista. Esses sábios conselheiros que você mencionou talvez devessem aconselhá-lo a não ser tão estúpido. E os conselheiros também podem ser estúpidos, neh?
— Concordo — disse Wakura, sorrindo apenas com um retorcer da boca.
— E eu concordo que Sanjiro é combativo, mas não é estúpido. E o mesmo se pode dizer de Ogama de Choshu. E de Yodo de Tosa. Todos os lordes exteriores são militantes e manipuladores, sempre foram... como alguns altos funcionários da corte, mal orientados e ambiciosos demais.
— Mesmo que isso fosse verdade, Sire, o que uns poucos cortesãos poderão fazer contra o poderoso xogunato, quando toda a corte não possui exércitos, possui terras, nem koku, e todos dependem da generosidade do xogunato para seus estipêndios?
Yoshi sorriu também, um sorriso torcido.
— Eles promovem o descontentamento entre os daimios ambiciosos. E isso me lembra de uma coisa... — acrescentou ele, concluindo que Wakura fora longe demais e precisava de um açoite —... talvez, neste maravilhoso enclave, vocês ainda não saibam, mas haverá fome por todo o Nipão no próximo ano, inclusive no Kwanto. Corre o rumor de que o estipêndio da corte será cortado, este ano e no próximo, creio que pela metade.
Ele ficou contente ao ver que os olhos de Wakura quase se tornaram vesgos e arrematou:
— Sinto muito.
— Eu também sinto muito, pois seria lamentável. Os tempos já são bastante difíceis agora.
Wakura reprimiu o impulso de gritar e ameaçar, tentando avaliar o poder de Yoshi para promover e impor tal redução. Ele não é o único a querer isso, os daimios vivem se queixando, e é claro que o Conselho de Anciãos concordaria. Mas o tairo Anjo não permitiria, pois tem de fazer o que queremos. Ogama? Aquele cão arrogante aprovaria a redução, assim como Sanjiro e todos os outros. É melhor Anjo impor sua vontade! Wakura exibiu seu melhor sorriso.
— O príncipe conselheiro pergunta se lhe daria suas opiniões num memorial sobre Satsuma, Choshu e Tosa, em particular o perigo que Satsuma representa, e como, no futuro, a corte pode ajudar o xogunato... e evitar mal-entendidos.
— Eu teria o maior prazer — respondeu Yoshi, animando-se um pouco, pois seria uma oportunidade maravilhosa.
— Por último, tenho a honra de comunicar que o divino chamou-o, como seu convidado pessoal, o xógum Nobusada, alguns daimios, inclusive os de Tosa, Choshu e Satsuma, para o Festival do Solstício de Inverno. Os convites para Tosa e Satsuma já foram enviados, o seu e o de lorde Ogama serão apresentados com a devida cerimônia amanhã, mas eu queria ter o prazer de informá-lo.
Yoshi ficou aturdido, pois era uma honra excepcional para qualquer um fora do círculo íntimo. O solstício era naquele mês — o décimo segundo mês —, no vigésimo segundo dia. Dentro de dezesseis dias. As festividades se prolongariam no mínimo por uma semana, talvez mais. Ele poderia partir depois, haveria tempo suficiente para lidar com Anjo.
Espere! Esqueceu o que diz o legado: Tome cuidado ao acampar no covil do céu. Não é para nós. Somos homens, eles são deuses, e os deuses são como pessoas, ciumentos como as pessoas, e a intimidade gera o desprezo deles. A morte de nossa linhagem agradaria a esses falsos deuses. E isso só pode acontecer em seu covil.
Yoshi experimentou um súbito temor. O convite não podia ser recusado.
— Obrigado — murmurou ele, fazendo uma reverência.
Ao meio-dia, o vigia shishi postado diante do quartel-general de Toranaga observou quarenta samurais e porta-estandartes saírem e descerem pela rua, em direção ao portão leste do palácio. Era a troca de guarda rotineira do meio-dia. A maioria levava lanças, todos tinham duas espadas, mantos de chuva, e os chapéus de palha grandes e cônicos.
O shishi bocejou, ajeitou seu próprio manto nos ombros, quando uma chuva leve começou a cair, deslocou seu banco para baixo do toldo da barraca que vendia talharim, sopa e chá e pertencia a um simpatizante. Ele se encontrava de serviço desde o amanhecer. Tinha dezoito anos, uma barba cerrada. Um ronin de Satsuma.
Antes de deixar Quioto, o líder, Katsumata, ordenara uma vigilância rigorosa aos quartéis-generais de Toranaga e Ogama.
— No momento em que houver uma chance de atacar qualquer um dos dois, terá de ser fora de seus muros e com possibilidade concreta de sucesso... será desfechada uma investida de um só homem. Um único homem, não mais do que isso. Os shishi devem ser resguardados, mas também temos de estar preparados, Um ataque de surpresa é a nossa única oportunidade de vingança.
No portão, vários carregadores com cestos de legumes e peixes frescos pararam na barreira. Guardas atentos os inspecionaram, cada um com igual cuidado, e depois gesticularam para que passassem.
O jovem tornou a bocejar. Não havia a menor possibilidade de passar pelas barreiras. Ele especulou por um momento se a moça Sumomo conseguira entrar e se instalar lá dentro, como Katsumata concordara. Fora um milagre aqueles três escaparem pelo túnel. Um autêntico milagre. Mas onde eles estão agora? Não se tivera mais notícias de qualquer um desde a fuga milagrosa. Mas que importância isso tem? Devem estar seguros, como nós... Contamos com protetores importantes. Vamos nos reagrupar mais tarde. Teremos a nossa vingança. Sonno-joi vai acontecer.
Ele observou os guardas virarem a esquina e sumirem de sua vista. Sentia-se cansado agora, mas o pensamento de futons quentes e de sua amante à espera dissipou a maior parte da exaustão.
A patrulha do xogunato chegou ao portão leste. Havia uma casa de guarda encostada nos muros, estendendo-se pelos dois lados do portão, capaz de abrigar quinhentos homens e cavalos, se fosse necessário. O portão tinha seis metros de altura, a madeira reforçada por ferro, com um portão muito menor ao lado, que permanecia aberto. Os muros do perímetro eram mais altos, antigos, de pedra.
Por um instante, os novos guardas se misturaram ruidosamente aos antigos, todos bem agasalhados. Oficiais inspecionaram homens e armas, a guarda de saída começou a entrar em formação. Um oficial e um ashigaru, um infante, do grupo substituto, atravessaram a rua. A chuva parou. O sol irrompeu entre as nuvens. Os dois homens seguiram por outra rua e entraram em outro quartel, igual a muitos que havia em Quioto. Ali se encontravam alojados duzentos samurais de Ogama a alguma distância do portão, mas bastante perto.
— Quarenta homens, aqui estão seus nomes — disse o oficial a seu equivalente, fazendo uma reverência. — Nada de novo a informar.
— Ótimo. Os dois venham comigo, por favor.
O oficial de Ogama estudou a lista de nomes, enquanto os conduzia através a seus homens. Entraram numa sala vazia, com uma porta fechada no outro lado. O oficial bateu, abriu-a em seguida. Na outra sala só havia tatames e uma mesa baixa. Ogama estava de pé na janela, armado, cauteloso, mas sozinho. Os dois oficiais deram passos para os lados e se curvaram.
O ashigaru tirou o chapéu grande e se revelou como Yoshi. Em silêncio, ele entregou a espada longa a seu oficial, mantendo a curta, e entrou na sala. A porta foi fechada. Os dois oficiais deixaram escapar um suspiro. Estavam suados. Dentro da sala, Yoshi fez uma reverência.
— Obrigado por concordar com este encontro.
Ogama retribuiu a reverência, gesticulou para que Yoshi sentasse na sua frente.
— O que é tão urgente e por que tamanho sigilo?
— Más notícias. Você disse que aliados devem partilhar informações confidenciais. Sinto muito, mas Nori Anjo foi designado tairo.
A notícia deixou Ogama visivelmente abalado, e ele escutou com a maior atenção, enquanto Yoshi falava. Quando Yoshi falou sobre o convite imperial, um pouco de sua ira se dissipou.
— Ah, quanta honra e reconhecimento, no momento devido!
— Foi o que também pensei. Até sair do palácio. Só então percebi a profundidade da armadilha.
— Que armadilha?
— Ter os lordes de Satsuma, Tosa, você e eu, todos no mesmo lugar, ao mesmo tempo? Em trajes cerimoniais? Dentro dos muros do palácio? Sem armas nem guardas?
— O que Wakura poderia fazer? Ou qualquer dos outros? Eles não têm samurais... nem exércitos, nem dinheiro, nem armas. Absolutamente nada!
— É verdade, mas pense um pouco: quando nós quatro estivermos diante do filho do céu, juntos, seria o momento certo para alguém... Wakura, príncipe Fujitaka, o xógum Nobusada, ou a princesa... sugerir que, “como um presente para o divino, agora é o momento para os quatro maiores daimios da terra expressarem sua lealdade, oferecendo seus poderes a ele”.
A expressão de Ogama tornou-se sombria.
Nenhum de nós concordaria. Iríamos tergiversar, ganhar tempo, até mesmo mentir...
— Mentir? Para o filho do céu? Nunca. Escute mais: digamos que o príncipe conselheiro, antes da cerimônia, em particular, sugerisse o seguinte: “Lorde Ogama, o filho do céu deseja adotá-lo, torná-lo príncipe Ogama, capitão da guarda Imperial, lorde comandante dos portões, membro do Novo Conselho Imperial dos Dez, que governará no lugar do xogunato Toranaga usurpador. Em troca...”
— Que Conselho de Dez?
— Espere... “em troca precisa apenas reconhecê-lo por quem ele é: o filho do céu, imperador do Nipão, possuidor das insígnias sagradas... orbe, espelho e cetro... descendente dos deuses e com ascendência sobre todos os homens; em troca, você dedica seu feudo e samurais a serviço dele e cumprirá seus desejos que serão exercidos através da Corte Imperial dos Dez!”
Ogama fitava-o aturdido, gotas de suor no lábio superior.
— Eu... eu nunca renunciaria a Choshu!
— Talvez sim, talvez não. Talvez o porta-voz imperial diga também que o imperador o confirmará em seu feudo, como lorde de Choshu, conquistador dos gai-jin, guardião dos estreitos, sujeito apenas a ele, e ao Conselho Imperial dos Dez.
— Quem mais integra o conselho? — perguntou Ogama, a voz rouca.
Yoshi removeu o suor da testa. Todo o plano aflorara de repente, quando chegara a seu quartel. O general Akeda precipitara a conclusão com um comentário casual sobre como era insidioso o pensamento em Quioto, o que parecia impregnar o próprio ar que respiravam, que qualquer coisa considerada um prêmio num instante podia se tornar uma cilada no momento seguinte.
Sentira-se até fisicamente doente, sabendo que se poderia deixar seduzir com a mesma facilidade de qualquer outro... hoje mesmo, pouco antes, deixara-se embair para um falso senso de segurança, até compreender que ficaria isolado.
— Aí está, Ogama-sama, já se sente tentado. Quem mais está no conselho? Como se tivesse alguma importância o que lhe dissessem. Seria um contra os indicados deles. Lorde Sanjiro também. O lorde camarista Wakura e sua laia dominariam.
— Não concordaríamos. Eu não...
— Sinto muito, mas você concordaria... eles podem oferecer honrarias para tentar um kami... a maior tentação sendo a de que pretenderiam substituir o xogunato Toranaga pelo xogunato do Conselho dos Dez! Claro que não me seria oferecido um lugar no Conselho de Dez, nem a qualquer outro Toranaga, à exceção de Nobusada, que já é controlado por eles, por causa daquela princesa, como adverti. — A raiva de Yoshi era intensa. — Anjo é o primeiro passo.
Quanto mais os dois homens consideravam os desdobramentos, mais podiam perceber as incontáveis armadilhas pela frente. Ogama disse, a voz rouca:
— As festividades se prolongariam por semanas ou mais... seríamos obrigados a oferecer banquetes à corte, e uns aos outros. Venenos lentos poderiam ser introduzidos.
Yoshi estremeceu. Durante toda a sua vida, sentira um medo profundo de ser envenenado. Um tio predileto morrera em grande agonia, o médico dizendo “causas naturais”, mas o tio era uma farpa incômoda no flanco de um Bakufu hostil e sua morte fora bastante conveniente. Talvez o envenenamento, talvez não. A morte do xógum anterior, no ano em que Perry voltara, um dia saudável, no outro morto, também muito conveniente para o tairo Li, que o odiava e queria um títere — Nobusada — em seu lugar.
Rumores, jamais comprovados, mas o veneno era uma arte antiga no Nipão, assim como na China. Quanto mais Yoshi argumentava consigo mesmo — se a morte por envenenamento fosse seu karma —, mais cuidava para que seus mais cuidava que seus cozinheiros fossem de confiança, e se mostrava cauteloso com tudo o que comia, mas isso não eliminava o pânico que o dominava de vez em quando.
Abruptamente, Ogama cerrou o punho e bateu forte na palma da outra mão.
— Anjo tairo! Não posso acreditar!
— Nem eu.
Ao enviar o mensageiro para marcar aquele encontro secreto, Yoshi pensara como era irônico que agora ele e Ogama tivessem de fato de trabalhar juntos, se quisessem sobreviver. Não poderiam mais sobreviver isolados. Pelo menos no momento.
— Como podemos impedir que isso aconteça? Posso perceber que eles seriam capazes de me tentar.
Ogama cuspiu no tatame em aversão.
— Eles podem tentar qualquer um, Ogama-domo.
— São como kamis-lobos, isso eu posso entender. Estamos acuados. Se o divino nos convidar, seus sequazes insidiosos vão nos destruir. Vamos reunir as pessoas de quem você falou ou... Mandarei chamar Basushiro, pois sua mente é como a de uma serpente!
— Só estaremos acuados se aceitarmos o convite amanhã. Proponho que ambos deixemos Quioto esta noite, em segredo. Se não estivermos aqui... O que acha da idéia?
O sorriso súbito de Ogama era extasiado, mas se dissipou no instante seguinte. Yoshi percebeu o motivo e acrescentou:
— Uma manobra assim exige uma grande confiança entre nós.
— Tem razão. O que você propõe como precaução contra quaisquer erros?
— Não posso cobrir todas as alternativas, mas isso é temporário: ambos deixaremos Quioto esta noite, concordando em permanecer fora pelo menos por vinte dias. Seguirei imediatamente para Iedo e cuidarei de Anjo, tentando neutralizá-lo, e lá permanecerei até que isso seja consumado. O general Akeda ficará no comando aqui, como sempre, e dirá que tive de voltar de repente para o Dente do Dragão, uma doença na família, mas logo voltarei. Você vai para Fushimi, passa a noite ali. Amanhã, ao pôr-do-sol, depois que o convite deixou de alcançá-lo... porque ninguém, nem mesmo Basushiro, sabe onde se encontra, hem?
— É muito perigoso não contar a ele, mas continue.
— Deixo isso ao seu critério. Mas amanhã, ao pôr-do-sol, você manda entregar uma mensagem ao príncipe Fujitaka, convidando-o para um encontro Particular na manhã seguinte, talvez nas ruínas de Monoyama... — Era um dos lugares prediletos para excursões dos habitantes de Quioto. — Quando se encontrar com ele, manifeste seu espanto pelo “convite” e lamente não estar presente para aceitá-lo. Enquanto isso, é melhor ele garantir que não haverá outros convites até seu retorno. “E quando pretende voltar?” Você não tem certeza. Os gai-jin ameaçam com um iminente desembarque em Osaca. Você precisa ir até lá, fazer planos. Deixe claro para ele que é melhor não haver outros súbitos convite imperiais... por mais que humildemente agradeça... até decidir se vai aceitá-los
Ogama soltou um grunhido. Baixou os olhos para o tatame, perdido em seus pensamentos. Só depois de algum tempo é que falou:
— O que me diz de Sanjiro e de Yodo de Tosa? Eles virão, com uma força militar cerimonial, mas ainda assim com uma força.
— Diga a Fujitaka para providenciar o adiamento de seus convites... ele deve sugerir ao divino que este solstício está carregado de maus presságios.
— Uma boa sugestão. Mas o que fazer se eles não adiarem?
— Fujitaka dará um jeito.
— Se é tão fácil, por que não ficar, até mesmo com os convites? Basta eu dizer a Fujitaka para fazer a sugestão sobre os maus presságios. O festival é cancelado, não é mesmo? Isso pressupõe que Fujitaka tem o poder de sugerir ou dessugerir.
— Com Wakura, ele pode fazer isso. Creio que a insídia em Quioto impregna o ar que respiramos... cairíamos numa cilada.
Era o melhor que ele podia fazer. Não convinha a seus propósitos que Ogama ficasse sozinho em Quioto e ainda havia o problema dos portões a resolver.
— Eu poderia passar vinte dias em Fushimi ou Osaca — murmurou Ogama.
— Não poderia voltar a Choshu, pois isso deixaria minha posição em Quioto... ficaria exposto a um ataque.
— De quem? Não meu... somos aliados. Hiro não estará aqui, nem Sanjiro. Pode ir até Choshu, se assim desejar. Pode confiar em Basushiro para manter sua posição aqui.
— Não se pode confiar tanto assim num vassalo — declarou Ogama, irritado.
— O que me diz dos shishi?
— Basushiro e o meu Akeda continuarão a esmagá-los... nossos espiões do Bakufu continuarão a procurá-los.
Ogama franziu o rosto.
— Quanto mais penso a respeito, menos me agrada. Há perigos demais, Yoshi-dono. Fujitaka vai me dizer, com toda certeza, que seu convite também não foi entregue.
— Vai ficar surpreso. Sugiro que diga que minha desculpa sobre uma doença na família deve ser uma cobertura e que é mais provável que eu esteja correndo para Iedo, a fim de ver o que posso fazer para impedir que os gai-jin concretizem sua ameaça contra Quioto... e para garantir que abandonem Iocoama. — O rosto de Yoshi endureceu. — O que não vai acontecer.
— Então vamos obrigá-los a partir.
— No momento oportuno, Ogama-dono. — O rosto de Yoshi se tornou ainda mais duro. — Tudo o que eu previ aconteceu. Acredite em mim, não conseguiremos forçar os gai-jin a irem embora. Ainda não.
— Então quando?
— Em breve. Mas esse problema deve ser deixado de lado, por enquanto. A coisa mais importante agora é nos protegermos. Duas coisas: devemos partir juntos e voltar juntos. Permanecemos aliados secretos, até que, formalmente, num e encontro pessoal, a sós, decidamos o contrário.
Ogama riu, mas não disse nada. Yoshi acrescentou:
— E por último: durante a minha ausência, nosso acordo sobre os portões continua em vigor.
— Sua mente pula como um gato com espinhos nas patas. — Ogama limpou a garganta, ajeitou os joelhos de uma maneira mais confortável. — Talvez eu concorde, talvez não. Isso é muito importante para decidir de imediato. Preciso conversar com Basushiro.
— Não. Converse comigo. Posso lhe dar conselhos melhores, porque sei mais, e também, ainda mais importante, porque neste caso os seus interesses são meus... e não sou um vassalo que tem de procurar por pequenos favores.
— Só os grandes. Como os portões.
Yoshi riu.
— Este é pequeno, em comparação com alguns que vai me conceder, e eu concederei a você, quando se tornar o tairo.
— Então me conceda um favor agora, enquanto ainda não sou: a cabeça de Sanjiro.
Yoshi fitou-o nos olhos, escondendo sua surpresa. Não esquecera o que Inejin, seu espião-estalajadeiro na estrada para o Dente do Dragão, falara a respeito de Ogama e “céu escarlate”. Inejin contara como Ogama, com o apoio de Sanjiro, ou pelo menos sua neutralidade, prevaleceria sobre o xogunato, com a tática histórica da preferência dos daimios, um ataque de surpresa.
— Poderia se contentar com seus ovos? — indagou Yoshi, expondo o plano que vinha depurando há meses.
Ogama desatou a rir.
A guarnição substituída no portão leste voltou para o quartel, quatro homens lado a lado, Yoshi no meio, disfarçado como um infante. Embora tivessem sido avisados de antemão para tratá-lo como tal, os homens tinham dificuldade para não lançar olhares de esguelha ou pedir desculpas ao chegarem muito perto. Um dos soldados era um informante shishi, chamado Wataki. Não tivera a menor oportunidade para alertar sobre aquela excepcional oportunidade para uma emboscada.
Yoshi sentia-se cansado, mas contente. Ogama acabara concordando com tudo, por isso ele podia agora deixar Quioto, com os portões a salvo, nas mãos do xogunato, e o próprio xogunato a salvo.
Por algum tempo... tempo suficiente, pensou ele. Meu jogo é alto, e o plano cheio de buracos, que vão preocupar Ogama, se por acaso os perceber. Mas não importa, tenho certeza que, de qualquer maneira, ele planeja me trair. Era o melhor que eu podia fazer, e deve funcionar. Impossível para mim aceitar o convite imperial.
O dia melhorara agora, o sol disputava com as nuvens a posse do céu. Yoshi mal notou, assim como não prestava atenção ao ambiente, a mente ocupada com todos os detalhes de sua partida, a quem contar, o que fazer em relação a Koiko e ao general Akeda, quem levar em sua companhia, e sua preocupação geral: chegaria a tempo de atenuar ao mínimo os danos a Iedo?
Primeiro, um banho e massagem, as decisões depois...
Seus olhos focalizaram, e ele se tornou consciente das ruas, enquanto marchavam, os pedestres, barracas, pôneis, kagas, palanquins, as casas e choupanas, crianças e vendedores de peixe, ambulantes diversos, adivinhos, escribas, toda à movimentação dos mercados. Era uma experiência completamente nova para ele ser um entre muitos, incógnito na coluna, e passou a desfrutar aquela perspectiva tão diferente. Não demorou muito para que se tornasse boquiaberto como alguém do interior com as vistas, sons e cheiros da cidade grande, que nunca vira antes querendo parar, misturar-se à multidão, conhecê-la melhor, saber o que as pessoas pensavam, faziam, comiam, onde dormiam.
— Soldado — sussurrou ele para o jovem ao seu lado —, aonde vai quando está de folga?
— Eu, lorde? — balbuciou o homem, e quase deixou cair a lança, apavorado pelo altíssimo lhe dirigir a palavra, querendo se ajoelhar no mesmo instante. — Eu... eu vou beber, Sire.
— Não me chame de “Sire” — sussurrou Yoshi, surpreso pela súbita confusão causada por sua pergunta em todos os que se encontravam perto, alguns dos quais perderam o passo, e quase saíram de formação. — Aja normalmente... não olhe para mim! Todos vocês!
O soldado desculpou-se, e os outros ao redor tentaram fazer o que ele ordenara, achando quase impossível, agora que lorde Yoshi rompera o encantamento da invisibilidade. O sargento olhou ao redor, retornou apressado.
— Está tudo bem, lorde? Há...
— Está, sim, sargento. Volte a seu posto!
Automaticamente, o sargento fez uma reverência e obedeceu, os soldados retomaram o passo e seguiam adiante... o quartel a menos de cem metros de distância. Para alívio de Yoshi, aquela pequena confusão passou despercebida pela multidão, que se inclinava à passagem da coluna.
Mas foi observada por dois homens mais adiante. Eram o vigia shishi, Izuru e seu substituto, Rushan, um jovem ronin de Tosa, que naquele momento chegara à barraca na rua, não muito longe do portão Toranaga.
— Estou bêbado, Rushan? Um sargento fazendo uma reverência para um infante? Um sargento?
— Eu também vi, Izuru — sussurrou o outro. — Olhe para o soldado. Pode vê-lo agora, o mais alto, quase no final da coluna, veja como ele segura a lança. Não está acostumado a isso.
— Certo, mas... O que há com ele?
— Repare como os outros o observam, furtivamente!
Com crescente excitamento, eles ficaram observando o soldado, enquanto a coluna se aproximava. Embora as armas, o uniforme e todo o resto fossem iguais, havia uma grande diferença inequívoca: no porte, no passo, nas qualidades físicas do homem, por mais que ele tentasse se encolher.
— Lorde Yoshi! — murmuraram os dois ao mesmo tempo.
Rushan acrescentou, no instante seguinte:
— Ele é meu.
— Não, meu — protestou Izuru.
— Eu o vi primeiro! — insistiu Rushan, decidido, tão impaciente que mal conseguia falar.
— Nós dois, juntos, teremos uma chance maior.
— Não. Fale baixo. Um homem de cada vez, foi essa a ordem de Katsumata, e concordamos. Ele é meu. Dê o sinal no momento oportuno.
O coração disparado, Rushan esgueirou-se entre os fregueses e pedestres, a fim de assumir uma melhor posição de ataque.
A nova posição de Rushan era à beira da rua. Um último olhar para situar sua presa. Depois, ele sentou no banco, de costas para a coluna, os olhos no amigo Izuru, absolutamente em paz. Seu poema de morte para os pais estava nas mãos do shoya da aldeia, entregue anos antes, quando ele e dez outros estudantes samurais haviam se rebelado. Eram todos goshi e lhes fora negado o ingresso na escola para instrução superior, porque os pais não tinham recursos para pagar os subornos necessários às autoridades locais. Mataram as autoridades, declararam-se ronin, a favor de sonno-joi, e fugiram.
Dos dez, apenas ele continuava vivo. Muito em breve morreria, pensou, exultante, sabendo que se encontrava preparado, treinado, no auge de sua força, e que Izuru seria sua testemunha.
Izuru tinha o mesmo fervor. Já determinara seu próprio plano de ataque, se Rushan falhasse. Confiante, ele se deslocou para uma posição melhor. Seu olhar desviou-se da patrulha, foi se fixar no portão. Os guardas ali se preparavam para o ritual de inspecionar os outros de volta, na passagem pela barricada. Percebeu no mesmo instante que a atividade era maior, com mais ordens gritadas do que o habitual, os homens mais alertas, mais nervosos.
Ele praguejou para si mesmo. Os homens sabem! Claro que sabem, e sabem desde que a coluna partiu! Isso explica por que se mostraram tão irrequietos e irritados durante toda a manhã. Todos sabiam que lorde Yoshi se encontrava lá fora disfarçado. Mas por quê? E onde ele esteve? Ogama! Mas por quê? Planejaram outra emboscada contra nós? Fomos traídos de novo?
Seus olhos se deslocavam de um lado para outro, jamais esquecendo Rushan, avaliando as distâncias e os tempos. Já havia muitas pessoas nas proximidades fazendo a reverência. A qualquer momento o comandante da coluna a faria parar, o oficial no Portão se adiantaria para recebê-lo, ambos fariam uma reverência, juntos inspecionariam os homens que voltavam, que depois seguiriam em frente. O oficial ergueu a mão. A coluna parou. “Agora!”, Izuru quase disse em voz alta, enquanto gesticulava. Rushan viu o sinal e correu para a retaguarda da coluna de vinte metros, a espada comprida empunhada pelas duas mãos.
Ele passou pelos dois primeiros homens, derrubando-os, antes que os samurais sequer compreendessem que estavam sendo atacados, e desferiu um golpe contra Yoshi, que o fitou aturdido por uma fração de segundo. Só o aguçado instinto de Yoshi o levou a arremeter na direção do golpe fatídico, desviando-o para um soldado estupefato ao seu lado, que soltou um grito e caiu.
Gritando “sonno-joi!”, na súbita confusão ao seu redor, Rushan puxou a lâmina, enquanto os outros soldados tentavam abrir espaço, empurrando-se uns aos outros, mais guardas correndo do portão, espectadores por toda parte boquiabertos e paralisados. Wataki, o informante shishi, estava tão surpreso quanto qualquer dos soldados, e apavorado com a perspectiva de ser envolvido ou traído por aquele shishi, que parecia ter surgido do nada.
Wataki viu Rushan golpear de novo, e prendeu a respiração. Mas Yoshi recuperara o equilíbrio, embora ainda não tivesse tido tempo de desembainhar a espada, e por isso usou a haste da lança contra o golpe. A espada de Rushan cortou-a com a maior facilidade, mas a lâmina se desviou, perdeu o impulso, proporcionando a Yoshi apenas o tempo suficiente para se adiantar e segurar o cabo da espada na mão esquerda.
No mesmo instante, Rushan estendeu a mão direita para a espada curta, tirou-a, e desferiu um golpe contra a barriga, uma manobra clássica no combate corpo a corpo. Outra vez Yoshi se achava preparado. Largara a lança, e esticou o antebraço direito contra o pulso de Rushan, desviando a lâmina para seu manto, onde ficou presa. Rushan largou a espada curta, e a mão, agora uma arma mortífera, com dedos que pareciam garras, duros como pedra, as unhas afiadas, avançou para os olhos de Yoshi. As unhas erraram os olhos, mas afundaram logo abaixo.
Yoshi soltou um grito. Um homem menos treinado afrouxaria a pressão no cabo da espada comprida do atacante e logo morreria. Às cegas, ele continuou a segurá-lo, agora com as duas mãos, enquanto o homem se debatia, impotente, agora fora de controle. Isso deu a um soldado por trás de Rushan a abertura para agarrá-lo em torno da garganta, e Wataki, sabendo que a luta estava perdida, apavorado com a possibilidade do shishi ser capturado vivo, enfiou sua espada curta na parte inferior das costas. A força do golpe fez com que a lâmina atravessasse o corpo. Rushan gritou. O sangue saiu pela boca, mas ele continuou a lutar, enquanto a morte o envolvia, até ficar inerte. Mal transcorrera um minuto desde o primeiro ataque.
Embora suas próprias glândulas gerassem o pânico, Yoshi sentiu a vida se esvair do homem. E o súbito peso do corpo contra o seu. Mas não o largou, até ter certeza de que o homem morrera mesmo. Ainda assim, esperou que outras mãos puxassem o cadáver, antes de soltá-lo.
O sangue o cobria. Percebeu num instante que não era seu. A sorte não dissipou sua fúria pela falta de alerta dos homens próximos, que não o cercaram numa rede protetora, deixando-o com o encargo de combater o atacante. Xingou-os, ordenou que toda a patrulha entrasse, ficasse de joelhos, as espadas quebradas, à exceção dos dois que o haviam ajudado. Depois, ofegante, olhou ao redor. A rua movimentada se esvaziara.
Quando os gritos e a escaramuça em torno do solitário atacante foram entendidos e Yoshi se desvencilhara, sendo reconhecido, um murmúrio de espanto passara pela multidão. No mesmo instante, dois ou três se afastaram, desviando os olhos. Outros seguiram o exemplo. O filete cauteloso se transformara numa torrente, ninguém querendo ser mantido como testemunha ou mesmo acusado de cumplicidade.
Izuru foi um dos primeiros a se retirar, ao constatar que não havia qualquer expectativa razoável de êxito num segundo ataque. Rushan se atrapalhara todo no ataque, pensou ele, enquanto seguia pela rua transversal predeterminada, sob a proteção da multidão fugindo do local. O tolo deveria ter cortado a cabeça de um dos dois primeiros, como uma manobra diversionária, e depois, na recuperação, usando a mesma força rápida e brutal para golpear o alvo principal, na altura da cintura. Não haveria a menor probabilidade de Yoshi escapar a um golpe assim. Absolutamente nenhuma. Uma oportunidade excepcional desperdiçada! E quanto a permitir que Yoshi segurasse o cabo da espada, aparando o golpe contra a barriga...
Rushan merecia ser capturado vivo e usado para prática de espada! Espere, talvez tenha sido melhor assim. Se Rushan se mostrara tão inepto em seu supremo duelo, seria bem provável que cedesse sob interrogatório, revelando as casas seguras, as que conhecia. Não se pode confiar no pessoal de Tosa, shishi ou não!
Mas por que Toranaga Yoshi assumira um risco tão grande?
Soaram gritos lá atrás. Soldados perseguiam os retardatários na multidão, a fim de deter algumas testemunhas. Não havia chance de que o pegassem, por isso não precisava se apressar.
A chuva recomeçou. O vento aumentou. Ele aconchegou o manto em torno dos ombros, contente por usá-lo, e também o chapéu. Desceu por uma viela cheia de poças d’água, entrou em outra, atravessou uma ponte, as tábuas escorregadias. Logo se descobriu seguro, num labirinto de ruas pequenas, levando a uma entrada no muro dos fundos de uma enorme residência. O guarda reconheceu-o, deixou-o passar, indicando a casa segura dos shishi, perdida nos vastos jardins. O uniforme do homem exibia a insígnia do lorde camarista Wakura.
Na rua em que ficava o quartel-general de Toranaga, o vendeiro era conduzido para a casa da guarda, protestando aos brados que nada sabia, não era ninguém, e suplicando para que o deixassem ir embora... não ousara desaparecer junto com os outros, pois era bastante conhecido ali. Uns poucos retardatários, apanhados antes de escaparem, eram empurrados atrás dele. O toldo da barraca sacudia ao vento e chuva.
Koiko dava os retoques finais na maquilagem, com a ajuda de um espelho de mão de aço polido. Os dedos tremiam um pouco. Mais uma vez, ela efetuou um esforço consciente para esvaziar a mente e confinar seus medos, por Yoshi e por causa dele, por si mesma e por sua própria causa. As duas outras mulheres, Teko, sua maiko — aprendiz — e Sumomo, observavam atentamente. O quarto era pequeno e funcional, como o resto da suíte, adjacente aos aposentos de Yoshi, o suficiente para ela, quando dormia sozinha, e uma criada. Os outros aposentos, para suas atendentes, ficavam mais adiante.
Ao terminar, ela contemplou seu reflexo. Não podia detectar linhas de preocupação; quando ensaiou um sorriso, a pele do rosto se contraiu apenas no lugares corretos, os olhos eram brancos onde deveriam ser brancos, escuros onde deveriam ser escuros, sem deixar transparecer coisa alguma de sua profunda ansiedade. Isso a agradou. Teve um vislumbre de Sumomo. Sem saber que era observada, Sumomo exibiu por um momento um rosto aberto. Koiko sentiu o estômago revirar, percebendo conflitos demais ali.
Treinamento, treinamento, treinamento, o que seríamos sem isso, pensou ela, e virou-se para fitá-las. Teko, pouco mais que uma criança, pegou o espelho sem que fosse pedido, ajeitou uma mecha desgarrada no lugar, com extrema habilidade.
— É uma beleza, dama Koiko — murmurou Sumomo, fascinada.
Era a primeira vez que ela tinha permissão para entrar nos aposentos particulares de Koiko. Os segredos do processo de beleza haviam sido uma revelação, além de toda a sua experiência.
— É mesmo — concordou Koiko, pensando que ela se referia ao espelho, a perfeição de sua superfície tornando-o de valor quase inestimável. — E é também um espelho generoso. Poucos o são, Sumomo... é essencial nesta vida que uma mulher tenha um espelho generoso para se contemplar.
— Oh, não! Eu falava de toda a imagem que projeta, não disso — explicou Sumomo, embaraçada. — Do quimono ao penteado, a escolha das cores, como maquila os lábios e sobrancelhas, tudo enfim. Obrigada por me permitir testemunhar.
Koiko riu.
— Espero que com ou sem tudo isso o efeito não seja muito diferente!
— É a pessoa mais linda que já conheci! — exclamou Sumomo.
Em comparação com Koiko, ela sentia-se como uma camponesa, sem qualquer sofisticação, inepta, bovina, toda dedos, cotovelos e pés enormes, pela primeira vez em sua vida consciente da falta de feminilidade. O que meu amado Hiraga pode ver em mim? — perguntou a si mesma, consternada. Não sou nada, desgraciosa, nem mesmo uma Choshu, como ele. Não lhe trago terras, nem prestígio, nem dinheiro, e tenho certeza que, no fundo, seus pais me desaprovam — E provavelmente a mais linda que jamais verei!
E Sumomo pensou: Todas as damas do mundo flutuante são como você? Até mesmo a maiko será deslumbrante quando crescer, embora não como sua ama. Não é de admirar que os homens casem com mulheres como eu só para cuidar de suas casas, gerar seus filhos, porque lhes é fácil demais idolatrar em outras partes, desfrutar a beleza em outras partes.
Com a sinceridade, Koiko percebeu a infelicidade e inveja, que não podiam ser escondidas.
— Você também é bonita, Sumomo — murmurou ela, há muito consciente que causava esse efeito em muitas mulheres. —Teko-chan, pode ir agora, mas prepare tudo para mais tarde... e providencie para que não sejamos incomodadas, Sumomo e eu.
— Pois não, ama.
Teko tinha onze anos. Como acontecera com Koiko, seu contrato fora firmado a mama-san da casa da Glicínia por seus pais camponeses, quando tinha sete nos. Sua vida lucrativa começaria quando estivesse com quatorze ou quinze anos. Até lá, e enquanto a mama-san quisesse, o contrato tornava a mama-san responsável por seu sustento, roupas e treinamento para uma vida no mundo flutuante, e também, se ela demonstrasse aptidão, em suas várias artes: como música, dançarina, poeta ou conversadora, se não mesmo todas elas. Se a maiko provasse ser impossível de ser treinada, ou uma pessoa difícil, a mama-san poderia revender o contrato, a seu critério; mas se a escolha fora sábia, como no caso de Koiko, o considerável desembolso financeiro e risco assumido da mama-san teriam uma retribuição abundante, em dinheiro e reputação. Nem todas as mama-sans eram atenciosas, gentis ou pacientes.
— Saia, agora, e vá praticar suas escalas — disse Koiko.
— Pois não, ama.
Teko sabia que fora abençoada ao ser designada para aprendiz com Koiko, a quem adorava, empenhando-se ao máximo para agradá-la. Ela fez uma reverência perfeita e se retirou, com seu charme irrepreensível.
— Muito bem.
Koiko fitou Sumomo, sentindo apreensivo fascínio por ela, seu olhar direto, o comportamento e a força. Desde que concordara em permitir sua estada, cinco dias antes, quase não houvera oportunidade de conversarem a sós. Agora, chegara o momento. Ela abriu um compartimento mental: Katsumata.
Ah, meu amigo, o que fez comigo?
Ele a abordara durante sua visita à mama-san de Quioto, que por instigação de Meikin, sua própria mama-san em Iedo, providenciara criadas, cabeleireira, massagistas, durante sua permanência na cidade. Só Teko e uma criada vieram com ela de Iedo.
— Peço um favor por uma vida inteira — dissera Katsumata.
— Não deve! — protestara ela, chocada ao vê-lo, chocada por saber que ele a deixaria em perigo por aquele encontro clandestino, e chocada por Katsumata lhe pedir um favor que teria, sem dúvida, terríveis conseqüências. Uma vez concedido, nenhum outro favor jamais poderia ser pedido à mesma pessoa, pois a dívida inerente seria enorme. — Concordamos, quando lorde Toranaga Yoshi me acolheu, que todos os contatos pessoais entre nós deveriam cessar, exceto numa emergência.
— É por isso que lhe peço o favor de uma vida inteira.
Sete anos atrás, em Iedo, quando ela tinha quinze anos, Katsumata fora seu primeiro cliente. Logo se tomara muito mais: amigo, guru e mestre extraordinário. Abrira seus olhos para o mundo, para a importância do mundo real, assim com o mundo flutuante. Ao longo dos anos, Katsumata lhe ensinara a cerimônia do chá, a arte do debate, caligrafia, sobre poesia e os significados profusos da literatura política, relatara suas idéias e planos para o futuro, como aquele seu pequeno bando de acólitos samurais dominaria toda a terra, mostrara como havia um lugar vital para ela no quebra-cabeça chamado sonno-joi.
— Como cortesã de suprema classe, você se tornará a confidente de poderosos e como a esposa de um deles, pois assim casará, não se preocupe, terá filhos samurais, será indispensável para o novo futuro, com uma parcela do poder. Nunca se esqueça disso!
Meikin, sua mama-san, era partidária; assim, naturalmente, ela concordara, a imaginação devorada por sua bravura, coragem e seu grupo de shishi, o início de sua fortuna.
— Nossa sorte acabou — dissera ele e relatara a emboscada da noite anterior, sua fuga com mais duas pessoas. — Fomos traídos... não sei por quem, mas temos de nos dispersar... por enquanto.
— As cabeças de quarenta shishi espetadas em chuços? —sussurrara ela, transtornada.
— Isso mesmo, quarenta. E quase todos eram líderes. Só três escapamos, outro shishi, e uma moça... uma pupila minha. Preste atenção, Koiko-chan, pois não há muito tempo. O favor de uma vida inteira que quero lhe pedir é guardar essa moça, enquanto permanecer em Quioto, abrigá-la em sua casa, até mesmo levá-la de volta a Iedo, e...
— Por mais que eu quisesse, sinto muito, seria difícil demais já que o general Akeda é muito rigoroso com as pessoas. Trataria de interrogá-la pessoalmente... foi o que fez com todas as minhas ajudantes.
Koiko falara com o máximo de gentileza que podia, embora por dentro se sentisse horrorizada por ele ousar lhe fazer uma sugestão tão perigosa, a de acolher uma fugitiva shishi, mesmo que inocente.
— Claro que será difícil, mas tenho certeza de que você poderá arrumar tudo sem que ele a veja.
— Não creio que seja possível e temos de pensar também em lorde Yoshi.
Ela deixara esse problema adicional no ar, torcendo frenética para que ele retirasse o pedido de favor. Mas Katsumata insistira, suave, observando-a com seus olhos penetrantes e compulsivos, explicando que Sumomo ficaria segura com Koiko, que era samurai, noiva de um importante shishi, merecia toda confiança.
— Sinto muito, mas tenho de lhe pedir isso, por sonno-joi. Ela é de confiança. E se houver algum problema, mande-a embora. Ela fará qualquer tarefa que mandar... Agora tenho de ir, Koiko-chan. Um favor de uma vida inteira, para um velho amigo.
— Espere. Se... Terei de consultar o general Akeda, mas mesmo que possa evita-lo, devo consultar o resto do meu pessoal. E o que lhes direi? Não conheço essas pessoas de Quioto, não sei como elas são.
—A mama-san garante que merecem toda confiança — dissera Katsumata, com plena convicção. — Falei com ela, e obtive sua aprovação, Koiko, caso contrário não faria a sugestão. Diga a verdade, que Sumomo é uma moça voluntariosa, e que seu guardião... um velho cliente... quer reprimi-la, treiná-la nas úteis artes femininas. Não posso levá-la comigo e quero deixá-la protegida aqui. Tenho uma obrigação com seu noivo. Ela obedecerá a você em tudo.
Koiko estremeceu ao pensar no perigo a que se expunha, e também as pessoas pelas quais era responsável, Teko e suas atendentes, quatro criadas, uma cabeleireira e uma massagista. Felizmente, todas haviam concordado em aceitar aquela estranha e em ajudar a mudar seus hábitos... e o interrogatório de Akeda não descobrira qualquer falha.
Ah, Katsumata, pensou ela, você sabia que eu nada podia lhe recusar. É curioso com que rapidez você foi além de precisar de meu corpo, por uns poucos meses, querendo em vez disso possuir e expandir minha mente. Ainda estou presa por argolas de ferro, tenho uma dívida profunda. Sem você e o conhecimento que me proporcionou, eu não me encontraria no pináculo que alcancei agora... capaz de enganar o maior homem da terra.
— Sente-se, Sumomo. Dispomos de um pouco de tempo agora, antes de eu sair. Ninguém poderá nos ouvir aqui.
— Obrigada.
— Minhas atendentes estão preocupadas com você.
— Por favor, desculpe-me se não tenho sido correta.
Koiko sorriu.
— As criadas indagam se você tem uma língua na cabeça, todas concordam que sua cortesia precisa melhorar, e podem compreender um guardião querendo que mude.
— Preciso mesmo melhorar — murmurou Sumomo, sorrindo também.
Os olhos de Koiko se contraíram. A jovem à sua frente não era desgraciosa, tinha um corpo esguio e forte, o rosto sem maquilagem, o viço da juventude e saúde compensando essa deficiência. Seus cabelos são bons, mas precisam ser arrumados, refletiu ela, crítica. O estilo de Quioto lhe seria conveniente, com bons óleos nas mãos e braços, um pouco de sombra nas faces, um toque de cor nos lábios. A moça promete. Devemos nos banhar juntas, e assim saberei mais, embora duvide que ela possa se adaptar à nossa vida, mesmo que assim quisesse.
— Você é virgem, não é?
A moça corou, soltou uma risada contrafeita.
— Ah, sinto muito, claro que é. Por um momento, esqueci que não pertence ao nosso mundo. Por favor, desculpe, mas é raro para nós conhecermos forasteiras, ainda menos uma dama samurai, e ter uma em nossa casa, mesmo que por um curto período, é quase desconhecido.
— É assim que nos chamam, forasteiras?
— É, sim. Nosso mundo flutuante nos mantém apartadas. Veja a pequena Teko. Muito em breve sua outra vida terá desaparecido e ela só conhecerá a minha. É esse meu dever, treiná-la, mantê-la gentil e generosa, disposta a se sacrificar pelo prazer do homem... não por seu impulso. — Os olhos de Koiko adquiriram um súbito brilho. — É isso o que mantém os homens felizes e contentes, o prazer em todas as suas manifestações, neh?
— Sinto muito, mas não compreendo essas “manifestações”.
— Querem dizer “aparências ou qualidades” para demonstrar prazer em todos os seus graus.
— Ah, obrigado — disse Sumomo, impressionada. — Por favor, desculpe-me. Nunca imaginei que as damas do mundo flutuante eram tão... claro que presumia que eram bonitas, mas nunca tão belas quanto você. Também nunca pensei que pudessem ser tão instruídas e consumadas.
Nos poucos dias que já passara ali, ouvira Koiko cantar, tocar o samisen, e se sentira inspirada pela qualidade incomparável e seu repertório... ela também podia tocar o samisen, apenas um pouco, e sabia como era difícil. Ouvira-a ensinar a Teko a arte do haiku e outras poesias, como refinar uma frase, sobre sedas, como são produzidas, a urdidura, a trama e outros mistérios, os primórdios da história e maravilhas similares, um vasto âmbito de conhecimentos. Sumomo fez uma reverência, em tributo.
— Quero que saiba que me espanta, dama.
Koiko riu suavemente.
— Aprender é a parte mais importante de nosso trabalho. É fácil satisfazer o corpo de um homem... um prazer transitório... mas é difícil agradá-lo por um prazo mais prolongado, envolvê-lo, conservar seu favor. Isso deve vir através dos sentidos da mente. Para consegui-lo, é preciso treinar com extremo cuidado. Você deve começar a fazer isso também.
— “Quando há flores de cerejeira para admirar, quem olharia para pontas de cenoura?”
— Quando um homem está faminto, procura cenouras, não flores de cerejeira, e ele se mostra faminto a maior parte do tempo.
Koiko esperou, divertida. Viu Sumomo baixar os olhos, desorientada.
— Cenoura é comida de camponês, dama — murmurou ela, num fio de voz. — Sinto muito.
— Cerejas são um gosto adquirido, assim como suas flores. As cenouras podem oferecer muitos sabores, se tratadas da forma apropriada.
Mais uma vez ela esperou, mas Sumomo continuou de olhos baixos.
— Não em enigmas, para não deixá-la confusa. Não é sexo que os homens realmente procuram em meu mundo, mas romance... nosso fruto mais proibido.
Sumomo ficou surpresa.
— É mesmo?
— É, sim, para nós. Um fruto venenoso. Os homens procuram romance em seu mundo também, a maioria, e não é proibido para você, não é?
— Não.
— Seu futuro marido não é diferente, também procura romance, onde quer que esteja disponível. É melhor oferecer-lhe isso em casa, o máximo que puder, por tanto tempo quanto puder. — Koiko sorriu. — Assim, poderá ter cerejeiras e também boas cenouras. Os temperos podem ser adquiridos com a maior facilidade.
— Pois então me ensine, por favor.
— Fale- sobre esse homem, seu futuro marido.
— O nome dele é Oda, Rokan Oda — respondeu Sumomo, usando o nome de cobertura que Katsumata lhe fornecera. — O pai é um goshi... e ele vem de Kanagawa, em Satsuma.
— E seu próprio pai?
— É como eu disse, dama. Ele é da linhagem Fujahito. — Sumomo usava o seu novo nome de cobertura. — É de uma aldeia próxima e também goshi.
— Seu guardião diz que Rokan Oda é importante.
— Ele é muito generoso, dama, embora Oda-sama seja um shishi e tenha participado do ataque a lorde Anjo, nos portões de Iedo, e também matado o velho Utani.
Katsumata lhe dissera que seria melhor contar a verdade sempre que possível, pois assim haveria menos mentiras a recordar.
— Onde ele está agora?
— Em Iedo, dama.
— Quanto tempo quer ficar comigo?
— Por mim, dama, tanto tempo quanto puder. Meu guardião disse que Quioto era um lugar perigoso para mim. Não posso voltar para casa, porque meu pai desaprova o que faço, assim como os pais de Oda-sama o desaprovam, por minha causa.
Koiko franziu o rosto.
— Isso tornará a vida impossível.
— É verdade. Karma é karma, e o que tiver de ser será. Apesar de eu não ser de valor para ninguém, e creio que desconhecida para o Bakufu, sensei Katsumata aprova meu Oda-sama e aceitou a responsabilidade. Ele disse que devo lhe obedecer em todas as coisas.
— Melhor seria obedecer a seus pais, Sumomo.
— Sei disso, mas meu Oda-sama proibiu.
Uma boa resposta, pensou Koiko, vendo o orgulho e a convicção. Triste, ela olhou pela janela entreaberta. Aquele romance proibido acabaria com certeza como tantos outros. Em suicídio. Juntos, se Sumomo fosse abençoada. Ou ela sozinha, quando aquele Oda obedecesse a seus pais, como deveria, e tomasse uma esposa aceitável.
Ela suspirou. No jardim, o crepúsculo transformava-se em noite. Uma suave brisa.
— As folhas sussurram umas para as outras. O que estão dizendo?
Sumomo disfarçou sua surpresa, prestou atenção e disse, depois de um momento:
— Sinto muito, mas não sei.
— Fique escutando durante a minha ausência. É importante saber o que as folhas sussurram. Passará esta noite aqui, Sumomo. Talvez eu volte, talvez não Se eu voltar, conversaremos mais um pouco e você me dirá. Se eu não voltar continuaremos a conversa amanhã, e poderá então me dizer. Quando Teko voltar para arrumar os futons, diga a ela que quero que vocês duas façam um haiku. — Koiko pensou por um instante, depois sorriu. — Um haiku sobre uma lesma.
— Olá, Koiko — murmurou Yoshi, apático.
Ele estava de costas para a parede, a mão perto da espada, numa yukata púrpura de seda. Por fora, parecia calmo, mas Koiko percebeu que ele se sentia solitário, assustado, precisando de outras habilidades.
Seu sorriso daria para iluminar o dia mais tenebroso. No mesmo instante, ela viu os olhos de Yoshi abrandarem. Muito bem, o primeiro obstáculo.
— Tenho um poema para você — anunciou ela, com um ar solene, simulado.
Não é fácil
Ter certeza
Que ponta é o que
De uma lesma em repouso!
A risada de Yoshi ressoou pelo aposento. Muito bem, o segundo obstáculo.
— Estou satisfeita por ter me permitido vir para Quioto em sua companhia.
Os olhos de Yoshi assumiram um certo brilho, e ela se animou. Instintivamente, mudou o que ia dizer, que ele era muito bonito nas luzes bruxuleantes da noite. Em vez disso, murmurou o que havia em seu íntimo:
Foram tristes tempos
Quando, sem você,
Contemplei os dias subirem
Para descerem de novo.
Koiko ajoelhara-se à sua frente e ele se inclinou, pegou sua mão. Não havia necessidade de palavras. Para nenhum dos dois. Agora Yoshi sentia-se em paz, a tensão desaparecida, a solidão esquecida, junto com o medo. E Koiko também se sentia em paz. Tanta energia dispensada para tirá-lo de si mesmo. Tanta coisa revelada. Era uma insensatez revelar demais.
Você é muito importante para mim, ele estava dizendo, sem falar, usando a linguagem dos amantes.
E você me concede uma grande honra, respondeu Koiko, um ligeiro franzido na testa. Seus dedos acariciam o dorso da mão de Yoshi, delicados, dizendo eu amo você.
Olhos se encontraram. Ela ergueu a mão de Yoshi, roçou os lábios. O silêncio os envolvia, começou a se tornar opressivo. Num súbito movimento, Koiko foi para o lado dele, abraçou-o com força. Sua risada foi melodiosa.
— Estamos sérios demais para mim, Tora-chan! — Ela abraçou-o de novo, aninhou-se em seu peito. — Você me faz muito feliz.
— Não mais do que eu — murmurou Yoshi, contente porque a tensão se dissipara.— Você é adorada, assim como seus poemas.
— Aquele sobre a lesma era de Kyorai.
Ele riu.
— É de Koiko, o Lírio! É, não era.
Ela se aconchegou ainda mais, apreciando seu calor e força.
— Quase morri quando soube do que aconteceu esta manhã.
— Vida — disse ele. — Eu deveria estar mais alerta, mas me sentia fascinado pela rua.
Yoshi contou como tudo lhe parecera diferente.
— Foi uma experiência excepcional... a sensação de invisibilidade... boa demais para não experimentá-la de novo, por maior que seja o perigo. O perigo acrescenta um tempero? Experimentarei de novo em Iedo. Será mais fácil à noite; treinarei guardas especiais para me acompanharem.
— Por favor, desculpe, mas sugiro que tenha um certo comedimento no consumo dessa droga.
— É o que pretendo. — Os braços de Yoshi a apertaram, ambos se sentindo confortáveis. — Mas pode muito bem se desenvolver num vício.
Yoshi dormia no cômodo ao lado. Como todo o complexo de alojamentos, os aposentos eram masculinos, com um mínimo de móveis, o tatame de primeira qualidade, mas precisando ser trocado. Não terei nenhum desagrado ao sair daqui, pensou ele. Seus ouvidos captaram o som de passos se aproximando, e a mão deslocou-se para o cabo da espada. Os dois ficaram tensos.
— Sire? — disse uma voz abafada.
— O que é? — perguntou Yoshi.
— Sinto muito incomodá-lo, Sire, mas acaba de chegar uma carta do Dente do Dragão.
Sem precisar que lhe fosse pedido, Koiko foi para o lado da porta, fora do caminho, e ali se manteve, de guarda. Yoshi aprontou-se.
— Abra a porta, sentinela — ordenou ele.
A porta foi aberta. O homem hesitou, vendo Yoshi numa posição de defesa-ataque, a espada solta na bainha.
— Entregue o pergaminho à dama Koiko.
O homem obedeceu e se retirou em seguida. Depois que ele chegou ao final do corredor e passou pela porta que havia ali, Koiko fechou a porta do aposento. Foi entregar o pergaminho a Yoshi e ajoelhou-se na sua frente. Ele rompeu o lacre. A carta da esposa indagava por sua saúde, comunicava que os filhos e o resto da família passavam bem e aguardavam ansiosos por seu retorno. Depois, as informações começavam:
Os garimpeiros estiveram viajando diligentes, acompanhados por seu vassalo Misamoto. Ainda não encontraram ouro, mas informam a existência de grandes — a palavra que usaram foi “imensos”— depósitos de carvão de alta qualidade, fácil de extrair, próximo à superfície. Soube que eles dizem que isso é o “ouro negro” e poderia ser lucrativamente negociado com os gai-jin por dinheiro. Eles continuam a procurar. Recebemos a notícia de que Anjo foi feito tairo, e se gaba de que você será em breve convidado a se retirar do Conselho de Anciãos. Próximo assunto, o confidente que você visitou a caminho de Quioto diz o seguinte: a palavra de código que ele lhe deu a respeito de um inimigo é correta, e que há um plano similar pronto, como a política de estado do inimigo.
Céu Escarlate. Portanto, um ataque-relâmpago é “Política de Estado”! Meu acordo com Ogama será mantido?
Ele pôs essa questão de lado, para analisá-la mais tarde, e continuou a ler:
O ronin, Ori, que se tornou um espião gai-jin, morreu no acampamento gai-jin. Acredita-se que o outro ronin, Hiraga, também se encontre ali. Seu espião diz também que interceptou a “criada” que você mandou de volta, como ordenado, e despachou-a para o norte, para um bordel muito pobre. O amante ronin dela foi morto.
Yoshi sorriu. Era a criada de Koiko que sussurrara sobre o encontro secreto de Utani para seu ronin shishi. No meio do caminho para Quioto, ele a dispensara, mandando-a de volta a Iedo, por causa de uma desconsideração imaginária... e é claro que Koiko não fizera qualquer objeção. Ótimo, pensou ele. Utani está vingado, mesmo que em pequena escala.
Próximo assunto, a Gyokoyama: Concluí as negociações de dinheiro. Posso usar a possibilidade de carvão como uma garantia adicional para quaisquer armamentos encomendados? Talvez devêssemos tentar negociar com os gai-jin diretamente, talvez usando Misamoto? Por favor, dê-me seu conselho. Sire, sinto muita falta de sua presença e sábios conselhos. Por último, sinto muito, mas a escassez de víveres começou.
Yoshi releu a carta. Conhecendo Hosaki muito bem, sabia que a maneira como ela usara “garantia adicional” significava que a negociação fora difícil e o preço alto. Não importa, no próximo ano não haverá escassez, e a Gyokoyama, se eles continuarem a viver por tanto tempo nas terras que controlo, será paga.
Ele olhou para Koiko. Ela tinha o olhar perdido no espaço, mergulhada em sonhos que Yoshi sabia que nunca poderia partilhar.
— Koiko?
— Ah... Pois não, Sire?
— Em que está pensando?
— O que as folhas sussurram para as folhas.
Intrigado, ele comentou:
— Depende da árvore.
Ela sorriu, um doce sorriso.
— Um bordo, um bordo vermelho.
— Em que época?
— No nono mês.
— Se estiverem observando, sussurram: “Em breve tombaremos para nunca mais voltar. Mas eles são abençoados. Crescem na árvore da vida. O sangue deles é o nosso sangue.”
Koiko bateu palmas, sorrindo.
— Perfeito! E se fosse um pinheiro, na primavera?
— Não agora, Koiko-chan. Mais tarde.
Percebendo a súbita seriedade, ela também ficou séria.
— Más notícias, Sire?
— Não e sim. Partirei ao amanhecer.
— Para o Dente do Dragão?
Ele hesitou e Koiko especulou se cometera um erro ao perguntar, mas Yoshi pensava no que fazer com ela. Antes, avaliando a necessidade de outra marcha forçada, decidira seguir à frente e ela iria atrás, o mais depressa que pudesse. Agora, contemplando-a, não queria que Koiko ficasse longe. Seu palanquim os atrasaria. Ela sabia cavalgar, embora não muito bem, e a viagem seria árdua. De qualquer forma, o plano que combinara com Akeda persistiria:
— A primeira coluna de quarenta homens, com um duble usando uma das minhas armaduras leves, parte pouco antes do amanhecer, e segue sem pressa, de uma maneira óbvia, para a estrada do Norte. No meio do caminho para Iedo, fará a volta, retornando para cá, meu duble desaparecendo. A segunda coluna, a minha, com os homens que trouxe de Iedo, partirá pouco depois da primeira, e seguirá depressa para a Tokaidô. Marcha forçada, sob o comando do mesmo capitão. Estarei disfarçado como um samurai de cavalaria comum, e assim permanecerei, até me encontrar são e salvo no castelo em Iedo.
— Muito perigoso, Sire — protestara o general Akeda.
— Também acho. Você ficará vigiando Ogama. Será vantajoso para ele se eu conseguir controlar Anjo.
— Tem razão. Mas é um alvo irresistível lá fora e bem fácil. Veja o que aconteceu hoje. Deixe-me acompanhá-lo.
— Impossível. Se Ogama decidir desfechar sua ofensiva, atacará primeiro aqui... é melhor esperar por isso. Deve repeli-lo a qualquer custo.
— Não falharei, Sire — garantira o velho general.
E eu não falharei no empenho de alcançar Iedo, pensou Yoshi, com igual confiança. Quanto ao ataque, só faz me lembrar que não foi o primeiro e não será o último.
Ele constatou que Koiko o observava. É mais fácil ser equilibrado quando ela está perto de mim. A luz do lampião faiscava em seus lábios e olhos, ele admirou a curva das faces, a coluna do pescoço, os cabelos pretos, as dobras impecáveis do quimono, deixando à mostra um pouco de sua pele alva. Curvas suaves, a postura perfeita, as mãos, como flores, pousadas no colo de seda azul.
Ela teria de viajar sem bagagem. E sem criadas. Teria de se contentar com que pudesse encontrar nas sucessivas estalagens. O que a desagradaria, pois ela gosta de perfeição. Talvez rejeite essa desconsideração e o que seria para ela uma pressa desnecessária. Yoshi recordou a primeira vez que sugerira isso.
Acontecera há não muito tempo, logo depois que decidira obter sua exclusividade, e dissera à mama-san, Meikin, que partisse com ela para o Dente do Dragão, a fim de acertar tudo com sua esposa, o mais depressa possível — Hosaki julgara, de forma correta, que precisava se encontrar pessoalmente com a mama-san e Koiko, já que o compromisso financeiro seria enorme.
Meikin disse-lhe que seria preciso pelo menos uma semana para planejar a viagem, pois Koiko levaria sua cabeleireira, a massagista e três criadas.
— Ridículo! — protestara ele, impaciente. — Não há necessidade de tantas atendentes para uma viagem tão curta, e seria uma despesa desnecessária. Vocês duas partirão de imediato.
Elas haviam obedecido. E viajaram sem atendentes. Levaram três dias para chegar à primeira estação de posta, fora de Iedo, mais três dias até a seguinte. Furioso, ele percorrera a mesma distância, a cavalo, do amanhecer ao crepúsculo.
— Lorde Yoshi! — exclamara Meikin, cumprimentando-o efusiva, com uma surpresa simulada. — Que prazer vê-lo aqui!
— Por que tanta demora?
— Demora, Sire? Recebemos a ordem de partir imediatamente. Estamos fazendo o que mandou.
— Mas por que levaram tanto tempo para chegar aqui?
— Tanto tempo, Sire? Não nos ordenou uma marcha forçada.
— Terão de se apressar! — dissera ele, ríspido. — Avise a Koiko que desejo vê-la.
A mama-san fizera uma reverência e seguira apressada para os aposentos de Koiko, deixando-o a ferver de raiva. Ao voltar, ela anunciara, feliz:
— Koiko-san se sentirá honrada em recebê-lo, Sire, o mais depressa possível. Assim que puder arrumar uma criada conveniente para ajudá-la com os cabelos. Ela lamenta, mas seria impertinente recebê-lo sem os devidos preparativos que uma pessoa tão honrada e reverenciada esperaria, e acrescenta, humildemente: “Por favor, tenha a gentileza de esperar, serei tão rápida quanto for possível, assim que as criadas chegarem.”
Irritado, ele compreendera que teria de esperar, não importava o quanto insistisse Seu único recurso era irromper no quarto de Koiko e perder a classe, destruindo toda e qualquer possibilidade de tê-la outra vez à sua disposição.
Quem ela pensa que é? — Yoshi tivera vontade de gritar.
Mas não o fizera. Sorrira para si mesmo. Quando se compra uma espada excepcional, espera-se que seja feita do melhor aço, com o gume mais afiado, como se tivesse um fogo próprio. Ele acenara com a cabeça e dissera, com frieza:
— Mande trazer as criadas... assim como a cabeleireira e a massagista... de Iedo, o mais depressa possível. É culpa sua que não estejam aqui, pois deveria ter me dito como eram importantes para a dama Koiko. Ela está correta ao não me receber de maneira imprópria. Espero que isso nunca mais torne a acontecer!
Meikin o inundara de desculpas, fizera uma reverência abjeta, e ele rira por todo o caminho de volta a Iedo, tendo levado a melhor sobre as duas, fazendo com que ambas se humilhassem e dando uma advertência firme: Nunca mais tentem me manipular.
Os olhos de Koiko não se haviam desviado de seu rosto em momento nenhum, observando e esperando.
— Quando sorri, Sire, isso me deixa muito feliz.
— De que estou sorrindo?
— De mim, Sire. Creio que é porque o ajudo a rir da vida, e embora o tempo do Homem neste mundo seja apenas uma rápida caçada por abrigo, antes de a chuva cair, permite-me de vez em quando que lhe proporcione um abrigo contra a chuva.
— Tem razão — murmurou Yoshi, satisfeito. Se deixá-la aqui, não a verei por semanas, e a vida é apenas uma flor de cerejeira, exposta a um vento instável, que não conhece amo... minha vida, a vida de Koiko, toda e qualquer vida. — Não quero deixá-la aqui.
— Será bom voltar para casa.
Em seu coração secreto, ele pensou em Meikin. Não esqueci que ela é uma informante shishi, assim como sua criada. Foi uma estupidez da mama-san expor você ao perigo, possibilitar o risco de eu pensar que você também faz parte dessa escória assassina.
Algumas de suas criadas sabem cavalgar, Koiko?
— Não sei, Sire. Imagino que pelo menos uma deve saber.
Se você fosse comigo, teria de ir a cavalo também, com apenas uma criada, e viajar sem bagagem, pois um palanquim me atrasaria. Mas posso dar um jeito Para que viaje sem pressa, com todas as criadas, se assim preferir.
Obrigada, mas já que me prefere em sua companhia, sua preferência também é a minha. Se eu me tornar um fardo, poderá então decidir com a maior facilidade. Agradeço a honra de ter me chamado.
— Mas há alguma criada, uma criada aceitável, que possa acompanhá-la a cavalo? Se não houver, você pode partir depois, o mais depressa que for possível.
Mais uma vez, ele oferecia a Koiko a oportunidade de recusar de uma forma graciosa, sem ofensa.
— Há uma, Sire — respondeu ela, num súbito impulso. — Uma nova maiko, não chega a ser uma criada, mas uma aprendiz, e um pouco mais. Seu nome Sumomo Fujahito, filha de um goshi de Satsuma, pupila de um velho amigo, um cliente que foi bom para mim há muitos anos.
Ele escutou, enquanto Koiko falava sobre Sumomo. Era muito bem versado nos costumes do mundo flutuante para indagar sobre o outro cliente. Intrigado, ele mandou chamar a moça.
— Quer dizer que seu pai desaprova seu futuro casamento?
— Sim, lorde.
— É imperdoável não obedecer aos pais.
— Sim, lorde.
— Vai lhes obedecer.
— Sim, lorde. — Ela fitou-o, sem medo. — Já disse a eles, humildemente, que obedecerei, mas que morrerei antes de casar com qualquer outro homem.
— Seu pai deveria tê-la internado num convento por tal impertinência.
Depois de uma pausa, Sumomo murmurou:
— Sim, lorde.
— Por que está aqui, em Quioto, e não em sua terra?
— Eu... fui enviada para ser retreinada por meu guardião.
— Ele tem feito um trabalho ruim, não é?
— Sinto muito, lorde.
Ela inclinou a cabeça para o tatame, polida, com graça, mas Yoshi tinha certeza que sem qualquer penitência. Por que desperdiçar meu tempo? — pensou ele. Talvez porque eu esteja acostumado com a obediência absoluta de todos, exceto Koiko, que deve ser manobrada como um barco instável num vento forte, talvez porque possa ser divertido controlar essa jovem, treiná-la para o punho como o falcão-peregrino implume que ela parece ser, usar seu bico e garras para os meus propósitos, não para o seu lorde de criação Oda.
— O que fará quando esse Oda, esse goshi de Satsuma, decidir obedecer a seus pais, como tem o dever, e tomar outra mulher para esposa?
— Se ele me aceitar como uma consorte, mesmo sem intimidade, ficarei contente. Como uma mulher ocasional, ficarei contente. E no momento em que ele se cansar de mim, ou me dispensar, será o dia em que morrerei.
— É uma moça estúpida.
— Sim, lorde. Por favor, desculpe, esse é o meu karma.
Ela baixou os olhos, permaneceu imóvel. Divertido, Yoshi lançou um olhar para Koiko, que aguardava sua decisão.
— Digamos que seu lorde suserano, Sanjiro, ordenasse que casasse com outro homem e também ordenasse que não cometesse seppuku.
— Sou samurai e obedeceria sem hesitar — disse Sumomo, orgulhosa —, assim como também obedecerei a meu guardião e a Oda-sama. Mas a caminho do banquete de casamento poderia ocorrer um lamentável acidente.
Ele soltou um grunhido.
— Você tem irmãs?
Sumomo se surpreendeu com a pergunta.
— Sim, lorde. Três.
— São tão estúpidas e difíceis quanto você?
— Elas... não, Sire.
— Sabe cavalgar?
— Sei, Sire.
— O suficiente para viajar até Iedo?
— Sim, Sire.
— Koiko, tem certeza que ela pode agradá-la, se eu concordar?
— Acho que sim, Sire. Só receio que possa decepcioná-lo por minha falta de habilidade.
— Nunca vai me decepcionar, Koiko-chan. Muito bem, Sumomo, tem certeza de que será capaz de agradar a dama Koiko?
— Tenho, Sire, e a protegerei com a minha vida.
— Vai também melhorar suas maneiras, tornar-se menos arrogante, mais feminina e menos Domu-Gozen?
Era uma famosa samurai, amante de um xógum, uma assassina impiedosa, que séculos atrás se lançava à batalha ao lado de seu amante, igualmente violento. Ele viu os olhos de Sumomo se arregalarem e ela pareceu ainda mais jovem.
— Oh, não, não sou como ela... de jeito nenhum, lorde. Eu daria qualquer coisa para ser um pouquinho como a dama Koiko. Qualquer coisa.
Yoshi escondeu seu riso, enquanto Sumomo devorava a primeira isca que lhe lançara.
— Pode ir agora. Decidirei mais tarde.
Quando ficaram a sós de novo, ele soltou uma risada.
— Uma aposta, Koiko? Um quimono novo como Sumomo estará treinada quando chegarmos a Iedo... se eu decidir levar as duas comigo.
— Treinada de que modo, Sire?
— Concordará satisfeita em voltar para a casa dos pais, obedecer-lhes e casar sem seppuku.
Koiko balançou a cabeça, sorrindo.
— Sinto muito, mas qualquer que fosse a aposta, Sire, receio que você perderia.
O fato de que ela podia considerar que ele era capaz de cometer um erro de julgamento fez com que Yoshi perdesse um pouco de seu bom humor.
— Um quimono contra um favor — disse ele, ríspido, não pretendendo aquela rispidez.
— Aceito — respondeu Koiko, rindo. — Mas só se, com o presente do quimono, você concordar em receber o favor que vai me pedir.
Os olhos de Yoshi faiscaram de admiração pelo jeito como ela convertera seu equívoco num gracejo. Era um erro tentar uma mulher a uma aposta, qualquer aposta. E um erro se sentir confiante sobre as astúcias de uma mulher... um caminho certo para o desastre.
ALDEIA SAKONOSHITA, Sábado, 6 de dezembro:
Na estrada tokaidô, cerca de sessenta quilômetros a leste de Quioto, nas montanhas, ficava a sexta estação de posta, a aldeia de Sakonoshita. Enquanto o crepúsculo se adensava, o último dos viajantes e carregadores, encurvado contra o vento forte, passou apressado pela barreira, antes que fosse fechada. Todos estavam cansados e ansiosos por comida quente, saquê quente, por calor, até os guardas na barreira, uma meia dúzia, que batiam com os pés calçados com sandálias de palha contra o frio, verificando documentos de identidade ao acaso.
— Vai nevar esta noite — comentou um deles. — Detesto o inverno, detesto o frio, detesto este posto.
— Você detesta tudo.
— Nem tudo. Gosto de comer e fornicar. Na próxima vida, quero nascer filho de um emprestador de dinheiro e mercador de arroz de Osaca. Assim poderei comer, beber e fornicar só o melhor, e me manter aquecido, enquanto meu pai me compra uma posição de hirazamurai ou pelo menos de goshi... não de um mero e desprezado ashigaru.
— Sonhador! Renascerá como um camponês sem terra ou um dócil menino para divertir os outros, num bordel de décima categoria. Feche a barreira.
— Ainda não está escuro.
Deixe os retardatários congelarem, ou pagarem o habitual. Se o capitão ouvir, você vai se descobrir na ilha do Norte, onde dizem que o pau congela quando se tenta mijar.
O guarda olhou pela estrada, que seguia sinuosa na direção de Quioto, agora vazia, sob o céu escuro e ameaçador. Uma rajada de vento sacudiu os mantos de palha.
— Depressa, seu idiota! — gritou ele, impaciente, para um carregador seminu, cambaleando sob uma pesada carga.
Ele baixou a primeira barra, o rosto gretado pelo vento, e depois a segunda tomando a barreira firme, e se afastou em busca de abrigo e de uma sopa quente.
— Ei, olhe ali! — Uma falange de cavaleiros contornava a curva da estrada — Abra a barreira!
— Eles que esperem. Estão atrasados.
O guarda usou o dorso da mão para limpar um persistente corrimento do nariz contraindo os olhos contra o vento. Assim como os outros guardas, examinou os cavaleiros, calculou que eram trinta ou quarenta, cansado demais para contar com precisão. Como não havia estandartes, não devem ser importantes. Cobertos da poeira da viagem, os pôneis escumando. Havia duas mulheres no centro, escarranchadas, usando chapéus grandes com véus, presos por baixo do queixo. Ele riu para si mesmo. Não vão conseguir aposentos esta noite, não poderão dormir aconchegados, pois a aldeia está lotada. Pois que se danem.
Quando o grupo se aproximou, o capitão Abeh, na vanguarda, gritou:
— Abram a barreira!
— Estou indo, estou indo — resmungou o guarda, sem a menor pressa. Arrependeu-se um momento depois. Abeh saltou da sela, O golpe deixou o guarda sem sentidos.
— Abram a barreira! — berrou Abeh de novo, furioso.
Dois outros cavaleiros haviam desmontado também, Yoshi, com um lenço cobrindo o rosto, e Wataki, que fora recompensado por ajudar a salvar a vida de Yoshi. Um oficial saiu da casa da guarda, aturdido ao deparar com seu homem estendido no chão, inconsciente.
— O que está acontecendo aqui? Você está preso!
— Abram logo essa barreira!
— Você está preso!
Abeh contornou a barreira e ninguém podia se equivocar quanto ao perigo.
— Abram a barreira, depressa!
Guardas correram para obedecer, mas o oficial ainda insistiu:
— Quero ver os documentos de identidade, e...
— Escute aqui, seu macaco! — O capitão Abeh foi até o oficial, que ficou paralisado. — Visitantes importantes exigem boas maneiras, sem nenhum atraso numa noite fria, e ainda nem é o pôr-do-sol.
Com isso, ele desferiu um golpe no lado da cabeça do oficial, que cambaleou, para logo ser derrubado com um segundo golpe violento. Para os estupefatos guardas, Abeh acrescentou:
— Digam a esse tolo para se apresentar a mim ao amanhecer, ou vou usá-lo para prática de espada, assim como ao resto de vocês!
Ele acenou para que o cortejo passasse pela barreira, depois tornou a montar, e foi atrás. Poucos minutos mais tarde, já providenciara os melhores aposentos, na melhor estalagem. As pessoas para as quais estavam reservados fizeram reverências enquanto fugiam, gratas pelo privilégio de desocupá-los... ricos mercadores, outros samurais, nenhum dos quais disposto a uma briga até a morte, que seria inevitável se resistissem.
Yoshi tirou o chapéu e o lenço depois que as portas de shoji foram fechadas. O rotundo proprietário da estalagem dos Sonhos Agradáveis se encontrava de joelhos ao lado da porta, cabeça inclinada, esperando por ordens. Sua mente ressoava com imprecações por não ter sido avisado antes para a chegada daqueles retardatários, que iam perturbar sua tranqüilidade... quem quer que fossem. Não reconhecera ninguém e achava estranho que não exibissem estandartes, vestissem uniformes e símbolos simples do Bakufu, e não usassem nomes. Já percebera que até mesmo aquele samurai, agora tratado com tanto respeito em particular pelo infame capitão, recebendo seus aposentos mais caros, não era tratado pelo nome, nem pelo posto. E quem seriam as duas mulheres? A esposa e criada de um daimio? Ou apenas duas prostitutas de alta classe? A notícia da chegada do grupo espalhara-se depressa pela estalagem. O estalajadeiro já oferecera uma recompensa à criada que descobrisse a identidade deles.
— Seu nome, estalajadeiro? — perguntou Yoshi.
— Ichi-jo, Sire.
Ele achou que “Sire” era o título mais seguro.
— Primeiro um banho, depois massagem, a comida em seguida.
— Pois não, Sire. Posso ter a honra de lhe mostrar o caminho pessoalmente?
— Mande uma criada para cuidar disso. Comerei aqui. Obrigado. Pode ir agora.
O homem fez uma reverência untuosa, levantou-se e afastou-se bamboleando.
O capitão Abeh confirmou as disposições de segurança: sentinelas cercariam o bangalô de oito cômodos. Os aposentos de Koiko davam para a varanda, que seria vigiada durante todo o tempo. Entre seus aposentos e os de Yoshi, haveria um cômodo com mais dois guardas.
— Está certo, capitão. E agora vá dormir um pouco.
— Obrigado, mas não me sinto cansado, senhor.
Yoshi ordenara que o tratassem como um goshi comum, exceto em particular, quando o tratariam apenas como “senhor”.
— Mas terá de dormir. Preciso de você alerta. Ainda teremos muitos dias de viagem.
Yoshi percebeu um súbito brilho no fundo dos olhos injetados de fadiga do jovem e indagou:
— Oque é?
Apreensivo, Abeh murmurou:
— Desculpe, por favor, mas se é urgente a viagem para Iedo, seria mais seguro se fosse escoltado à frente da dama.
— Vá dormir — reiterou Yoshi. — Homens cansados cometem erros. Foi também um erro agredir o oficial. O guarda já era suficiente.
Ele dispensou o homem. Abeh fez uma reverência e se retirou, criticando a si mesmo pela estupidez de dizer uma coisa tão óbvia. Por três vezes ele fizera paradas desnecessárias naquele dia e duas no anterior. Foi verificar todas as sentinelas, seguiu para seu quarto e deitou-se. Em poucos momentos, mergulhou em profundo sono.
Depois do banho e da massagem, depois da comida, ingerida devagar, embora estivesse faminto, Yoshi saiu para o corredor. A decisão de trazer Koiko fora fácil. Ocorrera-lhe que ela seria um chamariz perfeito e dissera a Akeda para cuidar que todos soubessem que apenas a enviava sob escolta para Iedo, enquanto ele seguia separado.
— Perfeito! — concordara Akeda.
Ele entrou no cômodo exterior. Estava vazio, a porta de shoji fechada.
— Koiko? — chamou Yoshi, acomodando-se em uma das duas almofadas. A porta de shoji foi aberta. Sumomo se encontrava ajoelhada ali, segurando-a para Koiko, os olhos no tatame, os cabelos levantados, ao estilo de Quioto, as sobrancelhas depiladas, um pouco de maquilagem nos lábios. Uma melhoria agradável, pensou ele.
No momento em que o viu, Koiko também se ajoelhou, e as duas fizeram uma reverência ao mesmo tempo. Yoshi notou que a de Sumomo era perfeita, com a mesma graciosidade de Koiko, e isso também o agradou. Não havia qualquer sinal de que a viagem árdua afetara Sumomo. Ele retribuiu a saudação. As camas de futon já haviam sido arrumadas.
Koiko passou para o outro cômodo, sorrindo, e Sumomo fechou a porta de shoji.
— Como se sente, Tora-chan?
A voz de Koiko era doce, como sempre, o penteado perfeito, mas o quimono era o mesmo da noite anterior, o que jamais acontecera antes. Apreensivo, Yoshi notou um certo desconforto, quando ela se instalou na outra almofada.
— A viagem está sendo difícil demais para você?
— Os primeiros dias não podiam deixar de ser um pouco árduos, mas logo estarei tão resistente quanto... — Havia um brilho divertido nos olhos de Koiko. —... quanto Domu-Gozen.
Ele sorriu, mas sabia que cometera um erro de julgamento. Três estações de posta haviam sido cobertas no dia anterior, e o mesmo hoje, mas em nenhum dos dias fora percorrida a distância que ele desejava. A viagem a extenuava. Cometi um erro que não deveria ter ocorrido. Ela nunca vai se queixar, irá além de seu limite, pode até se prejudicar.
Preciso de tanta pressa? Claro que sim. Ela estará segura num palanquim, com uma escolta de dez homens? Com toda certeza. Seria sensato reduzir minha guarda em tantos homens? Não. Poderia chamar mais homens de Iedo esta noite, mas isso me custaria cinco ou seis dias. O instinto me diz que devo me apressar, os gai-jin são imprevisíveis. Anjo também, e até Ogama... que ameaçou: “Se você não cuidar deles, eu cuidarei.”
— Koiko-chan, vamos para a cama. Amanhã é amanhã.
De madrugada, Sumomo ficou deitada nos futons quentes, debaixo de cobertas, no quarto externo, um braço sob a cabeça, sonolenta, mas não cansada, e tranqüila.
A respiração de Yoshi era irregular, a de Koiko quase imperceptível. Ela podia ouvir os sons da noite lá fora. Um cachorro latindo em algum lugar, insetos noturnos, o vento na folhagem, um guarda murmurando para outro de vez em quando, o barulho de pratos e panelas na cozinha, onde o pessoal começava a trabalhar ainda cedo.
Seu primeiro sono fora ótimo. Os dois dias de exercícios vigorosos e liberdade haviam-na deixado vibrante. E também sentia-se satisfeita com os elogios de Koiko pela maneira como arrumara os cabelos naquela noite —ensinada por Teko — e acrescentara um pouco de cor aos lábios.
Tudo estava dando certo, melhor do que ela sonhara. Seu objetivo imediato fora alcançado. Fora aceita. E se encontrava a caminho de Iedo. Ao encontro de Hiraga. Integrava a comitiva de Yoshi e se mantinha contida. Katsumata lhe dissera:
— Não seja impetuosa. Não assuma nenhum risco, em qualquer circunstância, a menos que haja uma possibilidade de escapar. Perto dele, você é de grande valor. Não arruíne isso, nem envolva Koiko.
— Ela nada saberá a meu respeito?
— Apenas o que eu disse a ela, o mesmo que você sabe.
— O que significa que ela já está envolvida, não é? Falo isso porque o seu Yoshi pode me aceitar.
— Ele é que tomará a decisão, não ela. Seja como for, Sumomo, ela não é sua cúmplice. Se descobrisse suas verdadeiras ligações, em particular com Hiraga, e seus possíveis propósitos, trataria de detê-la... nem poderia agir de outra forma.
— Possíveis propósitos? Por favor, qual é o meu dever principal?
— Estar pronta. Melhor uma espada à espera do que um cadáver.
Não tenho espada, pensou Sumomo. Talvez pudesse tirar uma de um guarda, se conseguisse pegá-lo de surpresa. Tenho três shuriken, com veneno nas pontas, escondidos no fardo ao meu lado, sem falar na faca na obi, que sempre levo para toda parte. Mais do que suficiente, num ataque de surpresa. A vida é mesmo muito estranha. É estranho que eu prefira estar sozinha, com minha própria missão... tão diferente de nossa vida normal, sempre integrando uma unidade, todos pensando como uma só pessoa, concordando como uma só pessoa, em nossa cultura de consenso. Eu gostava de integrar uma unidade de shishi, mas... mas, para ser honesta...
— Seja sempre honesta com você mesma, Sumomo-chan — dissera-lhe o pai, muitas e muitas vezes. — É esse o seu caminho para o futuro, para se tornar uma líder.
Para ser honesta, descubro ser difícil reprimir meu impulso para conduzi-los até mesmo aos shishi, para fazer com que sigam o caminho correto, assumam o pensamento certo.
Será meu karma liderar? Ou morrer irrealizada, porque é uma autêntica estupidez uma mulher desejar ser líder no mundo do Nipão. É estranho querer o impossível. Por que sou assim, não como as outras mulheres? É porque o pai não teve filhos, e tratou a nós, as filhas, como filhos, dizendo-nos que devíamos ser fortes, manter a cabeça erguida, e nunca ter medo, até mesmo me permitindo contra o conselho da mãe, seguir Hiraga e sua estrela, também impossível...
Ela sentou nos futons por um momento, ajeitando os cabelos, para tentar desanuviar a cabeça, e evitar que a mente se turvasse com tantos pensamentos novos e incontroláveis. Tornou a deitar. Mas o sono não veio, apenas permutações de Hiraga, Koiko, Yoshi, Katsumata, ela própria. Muito estranho, sobre Yoshi.
— Devemos matá-lo e ao xógum — dissera Katsumata, ao longo dos anos, muitas e muitas vezes, suas palavras reiteradas por Hiraga. — Não por eles próprios, mas pelo que representam. O poder nunca voltará para o imperador enquanto eles permanecerem vivos. Por isso eles devem ser eliminados, principalmente Yoshi... ele é a cola que segura o xogunato. Sonno-joi é nosso farol, qualquer sacrifício deve ser feito para alcançá-lo!
Uma pena matar lorde Toranaga. Outra pena ele ser um bom homem, não vil, ao contrário de Anjo, embora eu nunca o tenha visto. Talvez Anjo seja também um homem gentil e tudo o que se diz a seu respeito não passe de mentiras de tolos invejosos.
Neste curto período, tenho visto Yoshi como ele é: dinâmico, gentil, forte, sábio e impetuoso. E Koiko? Ela é maravilhosa e me parece muito triste que esteja condenada. Lembre-se do que ela disse:
— A maldição de nosso mundo é que, por mais que nos condicionemos e sejamos treinadas para adquirir todas as defesas, adquirir a determinação de tratar um cliente apenas como um cliente, de vez em quando sempre aparece alguém que transforma sua cabeça em geléia, sua força de vontade em espuma e sua virilha numa bola de fogo. Quando isso acontece, é terrível, de uma forma assustadora e gloriosa. Você fica perdida, Sumomo. Se os deuses a favorecem, os dois morrem juntos. Ou você morre quando ele vai embora ou se permite continuar viva, embora esteja morta por dentro.
— Não permitirei que isso aconteça quando eu crescer — declarara Teko, ouvindo a conversa. — Não comigo. Já teve sua cabeça transformada em geléia, ama?
Koiko rira.
— Muitas vezes, criança, e esqueceu uma de suas lições mais importantes: fechar os ouvidos quando outras pessoas estiverem conversando. Vá se deitar agora.
Será que a cabeça de Koiko virou mesmo geléia? Claro.
Como uma mulher, sei que ela considera lorde Yoshi mais do que um cliente, apesar de ela tentar escondê-lo. Como vai terminar? É triste, muito triste. Ele nunca a fará sua consorte.
E eu? O mesmo acontecerá comigo? Acho que sim — o que eu disse a lorde Yoshi era a verdade: não terei outro marido que não seja Hiraga.
— É a verdade... — murmurou ela, o que a levou por uma espiral descendente — Pare com isso!
E tratou de seguir o método da infância, quando a mãe sempre arrulhava:
— Pense apenas coisas boas, pequena, pois este é o mundo das lágrimas muito em breve. Pense coisas ruins e, num piscar de olhos, estará mergulhada no mais escuro poço do desespero. Pense coisas boas...
Sumomo fez um esforço e mudou a mente: só Hiraga fazia com que sua vida valesse a pena.
Um calafrio percorreu seu corpo, quando um novo conceito aflorou, com a força chocante da realidade: Sonno-joi é uma tolice! Não passa de um lema. Como se pudesse mudar qualquer coisa. Uns poucos líderes mudarão e isso será tudo. Com os novos, as coisas serão melhores? Não, exceto se Hiraga for um deles, talvez se Katsumata for, mas, sinto muito, eles não viverão por tanto tempo assim.
Então por que segui-los?
Uma lágrima escorreu-lhe pela face. Porque Hiraga transforma minha cabeça em geléia, minha virilha...
Ao amanhecer, Yoshi saiu da cama, passou para o cômodo externo, ajeitou a yukata de dormir, a respiração visível no ar frio. Koiko remexeu-se, viu que ele estava bem e voltou a cochilar. No outro cômodo, os futons e cobertas de Sumomo já estavam guardados no armário, a mesa baixa posta para a primeira refeição do dia, as duas almofadas nos lugares corretos.
Lá fora, o frio era mais intenso. Ele calçou as sandálias de palha, atravessou a varanda para ir à privada, acenou com a cabeça para o criado à espera, escolheu um balde vazio na fileira que havia ali e urinou. O fluxo era forte, e isso o agradou. Havia outros homens ao seu lado. Yoshi não lhes dispensou qualquer atenção nem eles o fitaram. Ele dirigiu o fluxo para o constante enxame de moscas, não esperando afogar alguma.
Ao terminar, ele foi para a outra parte, agachou-se sobre um buraco vazio no banco, com homens e algumas mulheres nos dois lados, inclusive Sumomo. Em sua mente, Yoshi se encontrava sozinho, ouvidos, olhos e narinas fechados contra a presença dos outros, que também faziam a mesma coisa. Essa capacidade imperativa era cultivada desde a infância.
— Você deve se empenhar nisso mais do que em qualquer outra coisa ou sua vida se tornará insuportável — haviam incutido nele, como em toda criança. — Ali onde convivemos lado a lado, crianças, pais, avós, criados e outras pessoas, onde todas as paredes são de papel, a privacidade tem de ser cultivada em sua cabeça e só pode existir ali, por você e também como uma polidez essencial aos outros. Só assim poderá permanecer tranqüilo, só assim será civilizado, só assim, conseguirá permanecer são.
Distraído, Yoshi afugentou as moscas. Uma ocasião, quando era pequeno, perdera a paciência com duas ou três moscas que o atormentavam e tentara esmagá-las. O que lhe valera um imediato tapa, a face ardendo em dor, e mais ainda pela vergonha que lhe causara o pesar da mãe, a necessidade de aplicar a punição.
— Sinto muito, meu filho — murmurara ela. — As moscas são como o nascer e o pôr-do-sol, inevitáveis, exceto que podem ser um tormento... se você lhes permitir. Deve aprender a ignorá-las. Todos os dias, pelo tempo que for necessário por quantos dias forem necessários, fique de pé ali, por favor, deixe que as moscas pousem em seu rosto e mãos, sem se mexer. Até que elas se tornem nada. Moscas nada devem ser... use sua vontade, pois é para isso que a possui. Nada devem representar para você, pois assim não arruinarão sua harmonia, nem também, o que é ainda pior, a harmonia dos outros...
Agora, sentado ali, Yoshi sentia as moscas em suas costas e rosto. Não o incomodavam.
Ele acabou num instante. O papel-de-arroz era de boa qualidade. Sentindo-se vivo e bem, Yoshi estendeu as mãos para que o criado despejasse água. Depois que as mãos ficaram limpas, ele molhou o rosto com água de outro recipiente, estremeceu, aceitou uma pequena toalha, enxugou-se, voltou à varanda e conscientemente abriu os sentidos.
Ao seu redor, a estalagem despertava, os poucos pôneis sendo selados e escovados, homens, mulheres, crianças e carregadores já comendo, conversando ruidosamente ou partindo para a próxima etapa da viagem, indo ou vindo de Quioto. Na área comum, perto da entrada, Abeh inspecionava homens e equipamentos. Ao avistar Yoshi, ele foi ao seu encontro.
Porque havia pessoas por perto, o capitão não fez uma reverência, descobrindo que era algo muito difícil. O uniforme era elegante e ele parecia revigorado.
— Bom dia. — Ele teve de fazer um grande esforço para não acrescentar “senhor”. — Já estamos prontos para partir, no momento que desejar.
— Depois da primeira refeição. Providencie um palanquim para a dama Koiko.
— Imediatamente. Para pôneis ou carregadores?
— Pôneis.
Yoshi voltou a seus aposentos e comunicou a Koiko que ela não precisaria cavalgar naquele dia. Viajaria de palanquim, e ao cair da noite ele verificaria o progresso, para decidir como seria o resto da viagem. Sumomo cavalgaria, como antes.
Ao cair da noite, haviam coberto apenas duas estações de posta.
HAMAMATSU
Yoshi escolheu a estalagem das Garças Azuis para a noite, nem a melhor, nem a pior da aldeia, Hamamatsu — um conjunto aprazível de casas e estalagens à beira da Tokaidô, renomada por seu saquê, no ponto em que a estrada dava uma volta e descia em direção ao mar.
Depois de comer sozinho, como sempre fazia, Yoshi foi se juntar a Koiko — se comessem juntos, invariavelmente, pelo costume, ela quase nada comeria, fazendo uma refeição antes, a fim de poder se concentrar nas necessidades dele. Naquela noite, Yoshi estava com vontade de jogar Go. Era um jogo complexo de estratégia, com pedras brancas e pretas, cada um dos dois jogadores tentando bloquear e capturar as pedras do outro.
Ambos eram bons jogadores, mas Koiko era uma virtuose, a tal ponto que podia, quase sempre, vencer ou perder a seu critério. Isso tornava o jogo duas vezes mais difícil para ela. Yoshi lhe ordenara que nunca perdesse deliberadamente, mas ele próprio era mau perdedor. Se ela ganhasse num dia errado, ele ficava irritado. Uma vitória num de seus dias ruins acabava com todo o mau humor. Naquela noite ele venceu, por pouco.
— Oh, Sire, me destruiu por completo! E eu pensava que ia vencer!
Estavam em seu quarto, com as pernas no reduzido espaço sob a mesa baixa, com um pequeno braseiro, envoltos por um grosso pano acolchoado, para impedir a entrada de aragens e manter o calor dentro.
— Está bem aquecido, Sire?
— Estou, sim, Koiko, obrigado. Ainda sente dores?
— Não tenho mais nenhuma. A massagista foi muito eficiente esta noite, — Ela gritou: — Sumomo, saquê e chá, por favor!
No outro cômodo, Sumomo pegou o frasco e o bule de chá em outro braseiro, abriu a porta de shoji e entrou. Serviu os dois e Koiko balançou a cabeça, em satisfação.
— Aprendeu a cerimônia do chá, Sumomo? — perguntou Yoshi.
— Aprendi, Sire, mas receio que me falte habilidade.
— Lorde Yoshi é um mestre — comentou Koiko, tomando um gole de saquê. Suas nádegas e costas doíam dos solavancos no palanquim durante o dia, as coxas de dois dias a cavalgar, e a cabeça do esforço para perder, enquanto dava a impressão de que cobiçava a vitória. Tudo isso ela escondia, e também seu desapontamento pelo pouco progresso naquele dia. Era evidente que isso decepcionara Yoshi. Mas ambos sabíamos que outra marcha forçada não será possível, pensou ela. Ele deve continuar sozinho, e eu o seguirei. E será bom me manter a distância por algum tempo. Esta vida é cansativa, por mais maravilhoso que ele seja. beberam em silêncio, rompido por Yoshi:
— Amanhã, bem cedo, partirei com trinta homens, deixando dez para escolta-la sob o comando de Abeh. Poderá me seguir mais devagar.
— Certo. Com sua permissão, posso segui-lo o mais depressa que puder?
Ele sorriu.
— Isso muito me agradaria, mas desde que chegue sem dores, no corpo ou no espírito.
— Mesmo que tal acontecesse, seu sorriso me curaria no mesmo instante. Outro jogo?
— Boa idéia, mas não Go.
Koiko riu.
— Neste caso, devo fazer alguns preparativos.
Ela se levantou, foi para o aposento externo, fechando a porta de shoji. Yoshi ouviu-a falando com Sumomo, mas não prestou atenção, sua mente absorvida pelo dia seguinte, Iedo e os gai-jin.
Suas vozes se perderam na distância, quando elas saíram. Ele terminou o saquê, apreciando-o, foi para o outro quarto, onde os futons e as colchas se achavam estendidos sobre o tatame impecável. Paisagens de inverno e cores fortes eram os ornamentos predominantes. Yoshi tirou a yukata acolchoada, estremeceu e enfiou-se sob as cobertas.
Quando Koiko voltou, ouviu-a andar por um momento no outro cômodo, e depois entrar no banheiro, onde havia recipientes para a noite, caso fossem necessários, assim como jarros com água para se beber e outros para se lavar.
— Mandei Sumomo dormir em outro quarto esta noite — avisou ela. — Também pedi a Abeh para postar um guarda lá fora, com ordens para não deixar ninguém nos incomodar.
— Por que fez isso?
Ela entrou no quarto.
— É a nossa última noite por algum tempo... mencionei para ele que não viajaria em sua companhia amanhã... e o quero todo para mim.
Sem pressa, Koiko tirou o quimono e aconchegou-se ao seu lado. Embora já a tivesse visto nua muitas vezes, sentido seu contato outras tantas, e dormido com ela em inúmeras ocasiões, aquela noite foi a melhor de todas.
QUIOTO
No palácio em Quioto, um dos espiões do lorde camarista bateu na porta de seu quarto, acordando-o, e entregou o recipiente de mensagem levada por pombo-correio.
— Isto acaba de ser interceptado, lorde.
O pequeno cilindro era endereçado ao conselheiro-chefe do Bakufu no palácio, Saito, e tinha o sinete pessoal do tairo Nori Anjo. Ele hesitou, depois rompeu o lacre com a unha bem cuidada.
Anjo enviara a mensagem ao amanhecer:
O líder gai-jin rejeitou insolentemente a ordem imperial para deixar Iocoama e eles estão se preparando para nos invadir. Prepare a ordem de mobilização nacional para assinatura do imperador; por este documento apresento a solicitação formal para que o imperador a assine de imediato. Depois, mande cópias urgentes para todos os daimios. Providencie para que o xógum Nobusada retorne a Iedo sem demora, a fim de comandar nossas forças. A princesa Yazu pode — e de preferência deve — permanecer em Quioto. Lorde Yoshi também deve receber a solicitação formal para voltar o mais depressa possível.
O lorde camarista pensou por um instante, concluindo presunçoso que a iniciativa de Saito seria indeferida, e o imperador aconselhado a nunca assinar uma ordem de mobilização. Com o maior cuidado, ele repôs a mensagem no cilindro e tornou a lacrá-lo, com sua cópia secreta do sinete.
— Pode levar e providencie a chegada ao destinatário — ordenou ele.
Ao ficar sozinho de novo, Wakura riu. Guerra! Ótimo. Anjo fora a escolha perfeita para tairo. Todos se afogarão em sua própria urina, os gai-jin, Yoshi, todos eles.
Exceto a princesa. Ela ficará para se tomar uma viúva... e quanto mais cedo, melhor.
ALDEIA HAMAMATSU, Segunda-feira, 8 de dezembro:
Sumomo acordou muito antes da primeira claridade. Tivera um pesadelo. Não estava mais na Tokaidô, com Koiko e lorde Yoshi, mas de volta a Quioto, perseguida por soldados do Bakufu, comandados por Abeh, acuada na casa em chamas dos shishi, gritos por toda parte, sangue por toda parte, armas de fogo disparando, espremendo-se em pânico pelo túnel estreito, por trás de Takeda e Katsumata, o buraco mal dando para passar, rastejando, os lados parecendo comprimi-la, deixando-a toda esfolada, cada vez mais estreito. O ar, impregnado de poeira, não era suficiente para sua respiração. Os pés de Takeda logo à frente, enquanto ele se arrastava, ofegando, alguém ou alguma coisa atrás dela, e depois Takeda se transformou em Yoshi, chutando-a, detendo-a, para em seguida desaparecer... e não havia mais nada à frente, apenas um caixão de terra.
Quando o coração se acalmou e os olhos puderam focalizar, na luz tênue da chama do lampião, ela viu um dos guardas observando-a, de seus futons. Ontem à noite ela acompanhara Koiko para uma conversa com Abeh, que lhe dissera para dormir no aposento comunal, havia espaço suficiente para ela num lado, e era um arranjo bastante satisfatório. Quatro guardas usavam o aposento, dois dormindo, dois de vigia. Fora ali que Sumomo arrumara sua cama e não conseguira dormir com facilidade, pois ouvira Yoshi dizer a Koiko que não mais viajariam juntos. Ouvira também Koiko dizer a Abeh:
— Lorde Yoshi decidiu que, a partir de amanhã, eu e meu grupo viajaremos mais devagar.
— O que ele deseja que se faça, dama?
— Ele disse que quer deixá-lo aqui, com dez homens, para me escoltar até Iedo. Sinto muito ser um problema.
— Não é problema para mim, dama, desde que ele esteja seguro.
Seguro e fora de alcance, pensara Sumomo, consternada pela mudança no plano. Muita coisa poderia sair errada dali até Iedo.
Ela acabara dormindo. Para sonhar. Não costumava sonhar. Ao final da noite e no início da manhã ela sempre dizia uma prece, Namu Amida Butsu, apenas o nome do Buda Amida, o que seria suficiente, se houvesse um deus para se orar. Mas esquecera na noite passada. Agora, em silêncio, ela enunciou as palavras e fechou os olhos.
Em momentos, retornou à cabana dos shishi.
Fora a pior experiência de sua vida, o ataque inesperado, os tiros passando pelas paredes, e no instante seguinte a cabeça do jovem ao seu lado explodira, sem tempo para que ele sequer gritasse. Mas outros gritaram, em parte por pânico, em parte por agonia, enquanto as balas continuavam a ser disparadas. Katsumata, paralisado por um instante, logo orientara a defesa, ordenando que alguns atacassem pela frente, outros pelo fundo. As duas cargas foram rechaçadas. Sumomo não sabia onde se esconder, tinha certeza de que estava tudo perdido, as chamas começavam a envolvê-los, mais gritos soavam, mais sangue era derramado, o fim se aproximava. A prece murmurada, Namu Amida Butsu, Namu Amida Butsu, e depois mãos a agarraram rudemente, empurraram-na para o buraco, atrás de Takeda — que, frenético, puxara outro de sua frente, e Katsumata fizera a mesma coisa —, enquanto seu salvador shishi, cujo rosto ela nunca vira, era morto na luta que se seguira, e que bloqueara o caminho de fuga, até que era tarde demais.
De alguma forma, saíra da escuridão impregnada de ódio para o ar puro. A fuga, a corrida em pânico parecendo interminável, o peito prestes a explodir, e Katsumata os levara, dando muitas voltas, até seu refugio de última instância. A porta dos fundos de Iwakura. E ali, sem demora, fora realizado um conselho de guerra shishi.
Sugiro que nos dispersemos por enquanto — propusera Katsumata. — Vamos nos reagrupar e nos reencontrar na primavera, no terceiro ou quarto mês. Lançaremos nova ofensiva na primavera.
— Por que esperar? — indagara alguém.
— Porque fomos traídos, porque há um espião em nosso meio ou entre nossos protetores. Fomos traídos. Agora, devemos nos resguardar e nos dispersar.
E fora o que acontecera.
— Sumomo, você irá para Koiko...
Mas antes disso, sua desorientação fora terrível, com lágrimas inexplicáveis, o coração disparado, o pânico muito fácil.
— Vai passar, Sumomo — garantira Katsumata.
Mais uma vez, ele acertara. Dera-lhe uma poção, que a fizera dormir e a acalmara. Ao se encontrar com Koiko, já voltara a ser como antes... isto é, quase, não de todo.
— Quando sentir o medo retomando, tome o medicamento, mas só um pequeno gole — recomendara ele. — Dentro de uma ou duas semanas, estar perfeita de novo. Lembre-se sempre de que sonno-joi precisa de você perfeita...
Sumomo saiu de seu devaneio, suando outra vez, ameaçada pelo medo. Ainda era noite. Estendeu a mão para o fardo ao lado de sua cabeça, onde guardava o vidrinho. Mas não encontrou o fardo. Não o trouxera, ao trocar de aposentos. Não importa, pensou ela, não preciso disso, posso muito bem dispensá-lo.
Repetiu essa determinação várias vezes, contorcendo-se na cama, as cobertas úmidas e pegajosas ao seu redor. E depois notou que o guarda continuava a observá-la.
— Um pesadelo, neh?— sussurrou ele, gentil.
Ela acenou com a cabeça, sem dizer nada.
— Eu poderia lhe dar bons sonhos.
O guarda puxou sua colcha para o lado, num convite. Sumomo sacudiu a cabeça. Ele deu de ombros, virou-se para o outro lado e esqueceu-a, considerando-a estúpida por rejeitar tal prazer. Sem se sentir ofendida, ela também virou de costas, apenas um pouco divertida. Estendera a mão para a faca na obi, dentro da bainha. O contato proporcionou-lhe a paz de que precisava. Um último Namu Amida Butsu.
Sumomo fechou os olhos e dormiu sem sonhos.
Koiko estava acordada e satisfeita. Ainda não era o amanhecer. Yoshi dormia ao seu lado, sereno. Era agradável ficar deitada ali, à deriva, sabendo que não teria de suportar o desconforto de outro dia num palanquim, aos solavancos, jogada de um lado para outro, por causa de uma pressa inconveniente. E também porque sua noite fora tranqüila. Yoshi mergulhara num sono profundo. De vez em quando um pequeno ronco o sacudia, mas isso não a incomodava.
— Treinem seus ouvidos, damas — dizia sempre a cortesã aposentada, com uma risada desdentada, para todas as maiko na escola. — Passarão suas vidas profissionais em companhia de velhos. Todos os homens roncam, mas os velhos roncam ainda mais, só que não podemos esquecer que são eles que pagam... os jovens levam flores e também roncam.
Entre todos os homens com os quais ela já deitara, Yoshi era o mais sereno no sono. Desperto, era o mais difícil. Para se antecipar. Para satisfazer. Não fisicamente. Em termos físicos, ele era forte e experiente; por mais que Koiko fosse treinada a permanecer alheia dentro de um abraço, ele sempre a atraía, e na maioria das noites ela também alcançava o esplendor do prazer.
Katsumata era mais como um mago. Acariciava sua imaginação e pensamentos, estimulando-a além de qualquer coisa que ela pudesse imaginar. Ficava exultante quando ela adquiria uma nova habilidade... como treinar os ouvidos para captar as palavras quase inaudíveis.
— É onde se encontra o conhecimento dourado, as partes importantes, sinais de perigo, de segurança, do que existe dentro do coração secreto dentro do coração secreto. Lembre-se de que todos nós neste mundo, homens e mulheres, possuímos três corações, um para o mundo inteiro ver, um para a família, e um só para nós. Alguns homens têm seis corações. Yoshi é assim. Ele é seu objetivo, aquele para quem você deve ser o farol.
Ela riu para si mesma, recordando como dissera que lorde Yoshi se encontrava completamente além de seu alcance. Katsumata sorrira, seu sorriso especial, e a exortara a ter paciência.
— Dispõe de bastante tempo. Está com dezoito anos, e não há muito mais que eu possa lhe ensinar. Deve começar a se expandir por si mesma. Como todo estudante devotado, deve seguir a mais importante lei para todos os que aprendem: recompense seu mestre fazendo com que seja seu dever superá-lo! Seja paciente, Koiko. No momento oportuno, sua mama-san e eu providenciaremos para que lorde Yoshi tome conhecimento de sua existência...
E fora o que acontecera. Em um ano. O primeiro convite para ir ao castelo viera seis meses e cinco dias antes. O coração disparado, com medo de fracassar, mas tal não acontecera. Estava preparada, e cumprira seu dever com o mestre.
Mas sou guia para Yoshi? Sei que ele gosta de mim, aprecia minha companhia e minha mente. Para onde devo guiá-lo? Katsumata jamais disse, apenas me falou que se tornaria evidente.
— Sonno-joi resume tudo. Envolva lorde Yoshi. Ajude-o a mudar. Pouco a pouco você o ajudará a se deslocar cada vez mais para o nosso lado. Nunca esqueça, ele não é inimigo; ao contrário, é vital para nós, vai chefiar o novo Bakufu, formado por samurais leais, como tairo... não haverá mais qualquer necessidade de um xógum ou do xogunato... apoiado por nosso novo e permanente Conselho dos Samurais...
Eu me pergunto como será a nova era, se viverei para vê-la, pensou Koiko, deitada ali, confortável. Agora... o que fazer com Sumomo?
Fora desnecessário mandá-la para outro aposento... como se importasse a sua presença no cômodo ao lado, já que não escutaria os gritos e movimentos. Mas não fora esse o motivo. Quando Yoshi dissera que ela não o acompanharia pelo resto da viagem, Koiko tivera a impressão de ouvir movimento no cômodo externo, como se Sumomo chegasse mais perto e tentasse ouvir o que diziam, uma espantosa invasão da privacidade, um comportamento inadmissível.
Só uma intrometida impertinente faria tal coisa, pensara ela. Ou uma espia. Ah! Katsumata se empenha com frieza em um de seus intrincados jogos dentro de Jogos, usando-me para infiltrar uma espia, a fim de vigiar Tora-chan e eu? Lidarei Com ela amanhã; até lá, Sumomo pode dormir em outro lugar.
Isso acertado, dizendo a Sumomo apenas que lorde Yoshi preferia ficar sozinho, ela voltara, revistara apressada o fardo da moça, sem saber por que, pois não tinha certeza se houvera mesmo uma tentativa de espioná-los.
Não havia nada de excepcional ali. Umas poucas roupas, um vidro com algum medicamento, mais nada. O quimono para usar durante o dia, dobrado de uma maneira impecável, era comum, não merecia mais que um olhar superficial.
Aliviada, Koiko arrumara tudo como antes. Quanto ao vidro... poderia ser ala veneno?
Antes de voltar para Yoshi, ela decidira se certificar que não era um veneno. Sumomo tomaria um pouco. Nunca era errado tomar as providências devidas contra um perigo em potencial. Yoshi dissera:
— Foi isso que matou Utani. Ele não postou sentinelas como devia.
Sinto muito, mas o que matou Utani foi a notícia do encontro amoroso sussurrada para a minha criada por um samurai da guarda, e que eu lhe permiti que passasse adiante, para Meikin, que a transmitiu a Hiraga. O que Hiraga anda fazendo neste momento? Como um cliente, nas duas vezes em que o foi, quando eu tinha dezesseis anos, Hiraga não foi melhor ou pior do que os outros anônimos, mas como um shishi, o melhor. Curioso...
Yoshi fungou no sono, mas não despertou. A mão de Koiko o tocou por um instante, absorvendo seu calor. Durma, meu querido, você me agrada mais do que ouso dizer a mim mesma, refletiu ela, e depois continuou a pensar sobre o passado.
Curioso que eu me lembre apenas de dois rostos, entre todos os outros: só Katsumata e Hiraga. Curioso que eu tenha sido preparada para ser a dama de lorde Toranaga Yoshi... por algum tempo. Sou mesmo afortunada. Um ano, talvez dois, não mais do que três, e depois me casarei. Tora-chan escolherá o marido para mim. Quem quer que seja, será um samurai. Quantos filhos terei? A velha adivinha disse três filhos e duas filhas, o monge chinês falou em dois filhos e duas filhas.
Koiko sorriu para si mesma. Serei sensata nos cuidados com a casa de meu marido, uma boa mãe para meus filhos, rigorosa com as filhas, que haverão de casar muito bem.
Ela acordou poucos segundos antes de Yoshi. Ele se levantou prontamente, num momento adormecido, no seguinte pronto para iniciar o dia. Koiko estendeu seu yukata acolchoado, depois ajeitou o próprio quimono, foi abrir uma porta de shoji, depois a outra, ajoelhou-se, ajudou-o a calçar as sandálias de palha. O guarda começou a fazer uma reverência, conteve-se a tempo e observou todos ao redor mais uma vez, enquanto Yoshi saía para a área da privada.
Sumomo estava ajoelhada perto da porta, esperando paciente, uma criada ao seu lado, com um braseiro, chá quente, e as bandejas da primeira refeição.
— Bom dia, ama. Faz frio esta manhã. Posso aprontar o chá?
— Pode, sim, por favor, Sumomo, e depressa como um piscar de olhos. Feche a porta, pois o frio é intenso. — Koiko voltou apressada para o seu aposento interno, acrescentando: — Partiremos no meio da manhã, Sumomo. Podemos trocar para as roupas de viagem na ocasião.
— Pois não, ama.
Sumomo ainda se encontrava parada na porta externa, tentando esconder seu choque. Percebera no mesmo instante que seu fardo fora mexido, o nó que prendi o quadrado de seda não era exatamente igual ao que fizera. Seu quimono do dia estava dobrado ao lado, de um jeito impecável, mas também fora mexido.
Mal respirando, ela esperou que a criada se retirasse, depois desdobrou o quimono. Seu coração só recomeçou a bater quando os dedos sentiram os shuriken escondidos no bolso secreto na manga.
Mas espere, pensou ela, o sangue afluindo ao rosto, só porque continuam no lugar, isso não significa que alguém não os descobriu! Não entre em pânico! Pense! Quem revistaria meu fardo aqui, e por quê? Um ladrão? Nunca! Aheh? Um guarda? Koiko? Yoshi? Se fosse um deles, é lógico concluir que eu já estaria morta a esta altura, ou pelo menos amarrada, respondendo a perguntas, e...
— Sumomo, o chá está pronto?
— Já vou levar, ama...
Apressada, e por causa do frio, ela pôs o quimono por cima do yukata de dormir — já fizera a lavagem matutina, escovara os dentes e os cabelos, ainda presos numa trança convencional —, amarrou a obi e repôs a faca na bainha, a mente funcionando em plena velocidade durante todo o tempo: Foi um deles? Talvez a pessoa que revistou minhas coisas não tenha sido muito meticulosa. Poderia não perceber os shuriken, o que seria fácil se não esperasse encontrá-los. Teria sido alguém sem experiência? Koiko? Por que ela revistaria minhas coisas agora? Claro que isso já ocorrera, por outras criadas, quando se apresentara nos aposentos de Koiko... os shuriken estavam em sua pessoa.
Enquanto a mente disparava, ela ajeitou a papa de arroz para mantê-la quente, fez o chá e levou uma taça para o banheiro, onde Koiko terminava de se banhar dos baldes com água quente, fragrante de extrato de flores. A água era entregue ao amanhecer, através de um pequeno alçapão, a fim de que nada se derramasse nos tatames, e os hóspedes não fossem incomodados. Os recipientes noturnos eram removidos da mesma maneira.
— Vou usar meu quimono marrom com a carpa — disse Koiko, tomando um gole do chá, agradecida, o frio enrugando sua pele, por mais que quisesse fingir que o frio não existia — junto com a obi dourada.
Sumomo afastou-se para cumprir a ordem, o coração ainda pesado, pegou as roupas, ajudou Koiko a se vestir.
Depois que a obi foi amarrada, para sua satisfação, Koiko ajoelhou-se sobre um dos futons. Sumomo ajoelhou-se por trás, a fim de escovar seus cabelos lustrosos, que desciam até a cintura.
— Vai muito bem, Sumomo. Está aprendendo. Mas, por favor, faça os movimentos mais longos e mais suaves.
Lá fora, o ritmo do despertar na estalagem aumentava. Criadas, soldados e outras pessoas gritavam. A voz de Abeh, depois a de Yoshi. As duas mulheres prestaram atenção, mas não conseguiram distinguir o que foi dito. As vozes se afastaram.
— Mais vinte escovadelas, depois vou comer e tomar mais um chá. Sente fome?
— Não, ama, obrigada. Já comi.
— Não dormiu bem? — indagou Koiko, notando um certo nervosismo moça.
— Não, dama Koiko. Sinto muito lhe contar meu problema, mas às vezes tenho dificuldade para dormir e tenho pesadelos quando pego no sono — disse Sumomo, ingenuamente, ainda distraída. — O doutor me deu um medicamento para me acalmar. Esqueci de torná-lo ontem à noite, quando mudei de aposento.
— Ah, é isso? — Koiko escondeu seu alívio. — Talvez devesse tomar um pouco agora.
— Pode esperar e...
— Por favor, eu insisto. É importante que você esteja calma.
Obediente e agradecida, Sumomo foi pegar o vidro. Não fora mexido. Ela tomou um gole, tornou a arrolhar. O calor interior começou a se espalhar quase que no mesmo instante.
— Obrigada, ama — murmurou ela, voltando a escovar os cabelos de Koiko.
Depois da papa de arroz quente, picles, enguia assada fria com molho agridoce e bolinhos de arroz, Koiko disse:
— Sente-se, por favor, Sumomo, e sirva-se de chá.
— Obrigada, Ama.
— Lorde Yoshi decidiu que não devo acompanhá-lo mais, e sim segui-lo de palanquim, num ritmo mais moderado.
— Alguns guardas mencionaram isso, enquanto eu a esperava. Tudo estará pronto para o momento em que desejar partir.
— Ótimo. — Agora que descobrira a verdade sobre o vidro, Koiko sentia-se mais tranqüila, mas isso não alterou sua decisão de ser prudente... seu dever com Katsumata já cumprido. — Agora, já saiu de Quioto, sã e salva.
Ela falou com voz suave e Sumomo sentiu o estômago se contrair. Teria entrado em pânico, não fosse pelo elixir, enquanto Koiko acrescentava:
— É tempo de nos separarmos, Sumomo. Hoje. Tem dinheiro?
— Não, ama. — Sumomo queria dar a impressão de que era indiferente a esse problema. — Mas seria possí...
— Não precisa se preocupar, pois posso lhe dar algum. — Koiko sorriu, não compreendendo a confusão da moça, e continuou, em tom firme: — Seus documentos estão em ordem?
— Estão, sim, mas posso...
— É melhor para nós duas. Considerei todas as possibilidades. Será melhor eu viajar sozinha. Você pode ficar aqui ou voltar para sua casa em Satsuma...eu aconselharia isso... ou seguir sozinha para Iedo.
— Mas, por favor, posso ficar com você?
— É mais sensato você seguir seu caminho agora... claro que compreendo que a aceitei como um favor excepcional para seu guardião. Agora, está sã e salva.
— Mas... o que vai fazer sem criada? Quero servi-la e...
— Tem sido muito boa, mas posso contratar alguém. Por favor, não se preocupe com isso. Pretende voltar a Quioto?
Como Sumomo não respondesse, apenas a fitasse em silêncio, aturdida, Koiko acrescentou, gentilmente:
— O que seu guardião disse que deveria fazer ao me deixar?
— Ele... ele não disse.
Koiko franziu o rosto.
— Mas com certeza deve ter um plano.
— Tenho, sim, ama — balbuciou Sumomo, cada vez mais confusa. — Ele me disse que eu deveria acompanhá-la até Iedo. Depois, se esse fosse o seu desejo, eu deveria ir embora.
— Ir para onde?
— Para... para me encontrar com Oda-sama.
— Claro, claro. Mas em que lugar de Iedo?
— Não sei. Posso servir...
— Não tem certeza, Sumomo? — O rosto de Koiko franziu-se ainda mais.
— Tem outra família com que ficar, se ele não estiver lá?
— Hum... há uma estalagem em que devem saber onde ele está ou encontrarei uma mensagem à minha espera. Juro que não serei um fardo durante a viagem, de jeito nenhum... tem me ensinado tanta coisa...
Quanto mais Koiko escutava a moça insistir — tolamente, pensou ela, pois deve ser óbvio que já tomei minha decisão —, menos gostava do que ouvia, da agitação de Sumomo, da maneira como falava e baixava os olhos.
Ela fechou os ouvidos aos argumentos por um instante e aproveitou o tempo para ordenar seus pensamentos. Tornaram-se mais sombrios.
— Seu guardião também foi para Iedo?
— Não sei. Por favor, deixe-me servir...
— Esse Oda-sama é um Satsuma... faz parte da guarnição de Satsuma?
— Não. — Sumomo se censurou no mesmo instante, pois deveria ter respondido “Não sei”. — Os Satsu...
— Então o que ele está fazendo em Iedo?
— Não sei, dama — murmurou Sumomo, hesitante, sem a necessária rapidez de raciocínio, mais assustada a cada momento. — Não o vejo há quase um ano... apenas me informaram que o encontraria em Iedo.
Os olhos de Koiko penetraram nos dela, a voz se tornou incisiva:
— Seu guardião disse que esse Oda-sam era shishi. Portanto, ele...
A voz murchou, como se, ao pronunciar a palavra em voz alta, a enormidade do que fizera e arriscara, ao concordar em aceitar a companhia daquela moça, a sufocasse.
— Os shishi acham que lorde Yoshi é seu principal inimigo — balbuciou ela. — E se ele é o inimigo...
— Não, dama, ele não é, apenas o xogunato, o Bakufu é o inimigo, ele está acima de tudo isso, não é inimigo — protestou Sumomo, com veemência, a mentira saindo fácil, para depois acrescentar, antes que pudesse se controlar: — Katsu... meu guardião incutiu isso em todos nós.
— Em todos vocês? — O rosto de Koiko ficou branco. — Namu Amida Butsu! Você é um de seus acólitos!
Katsumata lhe dissera que umas poucas moças estavam sendo treinadas por ele para integrarem seu bando de guerreiros.
— Ele... ele também a treinou.
— Sou apenas uma humilde servidora leal, dama — murmurou Sumomo fazendo um esforço para manter o controle e exibir um ar inocente.
Koiko olhou ao redor, na maior incredulidade, sua mente quase parou; o mundo ditoso em que vinha habitando desmoronava de repente.
— Você é um deles!
Sumomo sustentou o olhar, sem saber como se livrar do abismo que se abrira à frente delas.
— Dama, por favor, vamos pensar com clareza. Eu... não sou uma ameaça para você, nem você para mim, vamos deixar assim. Jurei protegê-la, e o farei, a lorde Yoshi também, se necessário. Deixe-me viajar em sua companhia. Juro que irei embora no momento em que alcançar Iedo. Por favor. — Seus olhos suplicavam que Koiko concordasse. — Nunca se arrependerá dessa gentileza. Por favor. Meu guardião pediu um favor de vida inteira. Por favor, eu a servirei...
Koiko mal ouvia as palavras. Observava-a como um camundongo olharia uma serpente pronta para o bote, sem qualquer pensamento em sua cabeça agora a não ser como escapar, como fazer com que tudo aquilo fosse um sonho. É um sonho? Seja sensata, sua vida está em jogo, mais do que sua vida, deve manter o controle.
— Dê-me sua faca.
Sumomo não hesitou. Enfiou a mão por dentro da obi, entregou a faca na bainha. Koiko pegou a lâmina como se estivesse em brasa. Sem saber o que mais fazer com aquilo, jamais tendo manipulado, possuído ou precisado antes de uma faca, todas as armas eram proibidas no mundo flutuante, ela a enfiou em sua própria obi.
— O que quer conosco? — indagou ela, a voz quase inaudível. — Por que está aqui?
— Só desejo viajar em sua companhia, dama — respondeu Sumomo, como se falasse a uma criança, sem compreender que seu rosto se tornara duro. — Apenas viajar em sua companhia, não há outro motivo.
— Fazia parte dos assassinos que atacaram o xógum Nobusada?
— Claro que não. Sou apenas uma leal partidária, uma ami...
— Mas foi você a espia que sussurrou que meu lorde ia deixar seu quartel para se encontrar com Ogama... foi você!
— Não, dama, juro que não fui eu. Já disse que ele não é o inimigo, o atacante não passava de um louco solitário, não era um dos nossos...
— Tem de partir... deve partir... — insistiu Koiko, num fio de voz. — Por favor, vá embora. Agora, por favor. Depressa.
— Não há necessidade de se preocupar ou ter medo. Nenhuma.
— Mas eu sinto. Estou apavorada com a possibilidade de que alguém venha a denunciá-la. Yoshi...
As palavras pareceram ficar suspensas no ar, entre as duas. Os olhos se encontraram, Sumomo determinada, Koiko desamparada e se intimidando sob a força daquele olhar. As duas davam a impressão de terem envelhecido, Koiko angustiada por ter sido tão ingênua, por seu ídolo tê-la usado de uma forma tão insidiosa. Sumomo furiosa por ter sido tão estúpida ao não concordar de imediato quando a prostituta intrometida propusera que ela fosse embora. Tola, tola, as duas pensavam naquele momento.
— Farei o que está dizendo — murmurou Sumomo. — Irei embora, apesar...
A porta de shoji foi aberta. Yoshi entrou, lépido, encaminhou-se para o cômodo interno. O transe das duas se dissipou. Fizeram uma reverência apressada. Ele parou no meio de um passo, todos os sentidos bradando perigo.
— O que houve? — indagou ele, ríspido, pois percebera o instante de medo, antes de as cabeças se inclinarem.
— Na... nada, Sire — respondeu Koiko, recuperando o controle, enquanto Sumomo se apressava para o braseiro, a fim de buscar chá fresco. — Deseja um chá? Talvez a primeira refeição?
Os olhos de Yoshi deslocaram-se de uma mulher para outra.
— O que houve? — perguntou ele de novo, devagar, as palavras como pingentes de gelo.
Sumomo ajoelhou-se, humilde.
— Sentimos muito não podermos acompanhá-lo, Sire. Era por isso que a dama Koiko se mostrava tão triste. Posso servir o chá, Sire?
O silêncio foi se tornando opressivo. Yoshi cerrou os punhos na altura dos quadris, o rosto duro, as pernas nuas bem plantadas no chão.
— Koiko! Diga-me tudo! Agora!
A boca de Koiko começou a se mexer, mas as palavras não saíram. O coração de Sumomo parou, e depois trovejou em seus ouvidos, enquanto Koiko se levantava, lágrimas escorrendo, e balbuciava:
— Deve compreender... ela não é o que...
No mesmo instante, Sumomo ficou de pé, a mão direita entrou na manga e saiu com um shuriken. Yoshi rangeu os dentes ao vê-lo. O braço de Sumomo se contraiu para o lançamento — ele estava desarmado, um alvo aberto, suas espadas no cômodo interno. Yoshi desviou-se para a esquerda, na esperança de que o movimento pudesse confundi-la, preparando-se para arremeter contra a moça, os olhos fixados em sua mão. Imperturbável, Sumomo mirou seu peito e lançou o shuriken.
O círculo de aço com pontas afiadas girou pelo ar. Frenético, Yoshi arqueou corpo, desviou-se. Uma das pontas pegou a beira de seu quimono e cortou o pano, mas não atingiu a carne, desaparecendo pela tela de shoji e se cravando num dos postes do cômodo interno, enquanto Yoshi, desequilibrado pelo esforço extremo, esbarrava numa parede e caía ao chão.
Por um instante, tudo parecia um sonho lento...
Sumomo, estendendo a mão pela manga, a fim de pegar o próximo shuriken via apenas o grande inimigo, caído no chão, impotente, e sua prostituta retardada que causara aquela conclusão desnecessária, a fitá-la boquiaberta, um pilar de medo... mas não sentia medo, apenas exultação, certeza de que o momento era seu zênite, a culminação por que nascera, para a qual fora treinada durante toda a sua vida, e que agora, invencível campeã dos shishi, haveria de consumar, morrendo em seguida, para viver por toda a eternidade na lenda...
Koiko, de pé, paralisada, consternada por ter sido enganada por seu guru, que era como um deus, mas a traíra, só lhe dissera mentiras, a moça também uma impostora, e por causa deles acontecia agora aquela conspiração monstruosa: seu benfeitor morreria, e mesmo que não morresse, ela cairia em desgraça, a morte inevitável, pela mão dele ou dos guardas, tudo nesta vida desperdiçado, jamais casaria com seu samurai, nunca teria filhos, nunca nesta vida, era melhor encerrá-la depressa, por sua própria mão, do que deixar que ele cuidasse disso, mas como, como, e foi então que ela se lembrou da faca de Sumomo...
Yoshi, virando-se no chão, frenético para ver o próximo arremesso, ajeitando os pés sob o corpo para a carga que tinha de fazer, ou morrer, tudo levando muito tempo, a mente explodindo, clamando que acolhera uma víbora, e depois seus olhos divisaram a mão de Sumomo, com o segundo shuriken —quantos ela tinha? —, os lábios dela repuxados, os dentes muito brancos à mostra... E o instante de paralisia terminou.
Sumomo hesitou, exultante no triunfo, mas o momento foi longo demais, e ela viu Koiko sair do transe, a faca em sua mão. Numa reação instintiva, mudou o alvo, conteve-se, hesitou de novo, apontou para Yoshi mais uma vez, iniciou o lançamento, mas nesse instante Koiko arremeteu para a frente, tropeçou na bainha e tombou em sua direção.
O shuriken girando cravou-se no peito de Koiko, que gritou, e isso deu tempo a Yoshi para se lançar do chão contra Sumomo. Ele pegou-a pelo tornozelo, derrubou-a, os dedos procuraram sua garganta, mas ela era como uma enguia, desvencilhou-se, treinada em artes marciais, a mão procurando o último shuriken. Antes que pudesse alcançá-lo, os dedos de ferro de Yoshi agarraram parte de seu quimono, rasgaram metade da manga, inibindo-a. Outra vez Sumomo se desvencilhou, ficou de pé, em um segundo, mas agora ele também se levantara.
Ela soltou um estridente grito de batalha, estendeu a mão para trás, efetuou o lançamento. Ele estava paralisado, morto... só que a mão de Sumomo estava vazia-o movimento era apenas uma finta, o último shuriken ainda preso na manga rasgada. Enquanto tentava pegá-lo, a porta de shoji por trás dela foi aberta pelo guarda.
— Depressa! — gritou ela, apontando para Koiko, a se contorcer e gemer no chão.
E quando o guarda correu para a frente, Sumomo tirou sua espada comprid3 da bainha, ergueu-a, golpeou, feriu-o, e no mesmo movimento se virou para Yoshi. Mas ele saltara um passo para trás, passara por cima do corpo de Koiko, e agora corria para o cômodo interno, em busca de suas espadas, irrompendo pela porta de shoji fechada, com Sumomo em seu encalço.
A espada de Yoshi saiu da bainha. Ele girou, aparou o primeiro golpe violento, deu a volta no espaço restrito. Destemida, Sumomo atacou de novo, o golpe também foi aparado, enquanto os dois avaliavam um ao outro. Outra sucessão de golpes, ela era uma hábil espadachim, assim como Yoshi.
Agora ele atacou, foi contido, os dois recuaram, circularam, e depois Sumomo recuou pela porta, em busca de mais espaço, seguida por Yoshi. Os dois circularam, procurando uma abertura. Soaram gritos lá fora. Guardas convergiam, o samurai ferido bloqueava parcialmente a porta. Sabendo que restava pouco tempo, Sumomo aumentou a pressão, avançou, depois girou, ficando de costas para a porta, e os dois se atacaram, golpe e contragolpe. Yoshi virou-se, forçando-a a dar outra volta, mas perdeu a iniciativa. Ele viu Abeh correr para as costas da moça, a espada erguida, e gritou:
— Não! Deixe-a comigo!
Quase foi decapitado por isso, e recuou, numa desordem temporária. Obediente, Abeh parou. Outra escaramuça furiosa, Yoshi recuperando o equilíbrio bem a tempo. Eram adversários à altura, Yoshi muito mais forte, embora não com tanta prática.
Os punhos das espadas engancharam. Sumomo logo se desvencilhou, sabendo que ele prevaleceria nessa posição, recuou, fez uma finta, avançou numa carga cega, heterodoxa, o gume da espada cortou o ombro de Yoshi. Teria estropiado um lutador menos hábil, mas ele previra o golpe, e sofreu apenas um pequeno ferimento, embora gritasse, baixasse a guarda, simulando uma dor intensa. Descuidada, Sumomo adiantou-se para o golpe de misericórdia. Mas o inimigo não se encontrava exatamente onde esperava. Yoshi ergueu a espada do chão, surpreendendo-a. O golpe cortou o pulso esquerdo de Sumomo, jogando-o longe, com a espada, os dedos ainda presos no punho.
Ela olhou para o coto do braço, aturdida, o sangue esguichando, e soltou um terrível grito. Não havia dor. A outra mão segurou o coto, diminuindo o fluxo. Guardas se adiantaram para agarrá-la, mas outra vez Yoshi mandou que se bastassem, o peito arfando, enquanto tentava recuperar o fôlego, observando-a lentamente.
— Quem é você?
Sumomo Fujahito... shishi — balbuciou ela, a coragem e a força se desvanecendo depressa, para depois, com o último alento, arrematar: — Sonno-joi
Sumomo largou o coto, tateou à procura do último shuriken, encontrou-o, espetou uma das pontas envenenadas no braço, inclinou-se para a frente, a fim de cravá-lo. Mas Yoshi estava preparado.
O golpe violento acertou-a com perfeição, no ponto em que o pescoço se encontrava ao corpo, a lâmina foi cortando, saiu por baixo do braço. Todos os espectadores prenderam a respiração, como se fossem um só, convencidos de que haviam testemunhado um acontecimento que seria transmitido de boca em boca por séculos, provando que aquele homem fora um digno descendente do grande xógum e portador de seu nome. Mas todos ficaram também abalados, à visão de tanto sangue. Abeh foi o primeiro a recuperar a voz.
— O que aconteceu, lorde?
— Eu venci — disse Yoshi, sombrio, examinando seu ombro, o sangue manchando o quimono, uma dor no lado, o coração ainda batendo forte. — Chame um médico... e depois partiremos.
Homens saíram correndo para cumprir sua ordem. Abeh desviou os olhos do cadáver de Sumomo. Koiko gemia e se contorcia no chão, as unhas cortando o tatame. Ele avançou em sua direção, mas parou quando Yoshi disse:
— Cuidado, seu tolo! Ela era parte da conspiração! Cauteloso, Abeh chutou a faca de Sumomo para um lado.
— Vire-a! — ordenou Yoshi.
Ele obedeceu, empurrando-a com o pé. Havia apenas um sinal mínimo de sangue. O shuriken prendera o quimono na pele, estancando a hemorragia, mais da metade do aço cravado. Além da agonia pulsante, que contorcia seu rosto em ondas sucessivas, ela continuava fascinante como antes.
Yoshi sentia um ódio intenso.
Nunca estivera tão perto da morte. O outro ataque não fora nada, em comparação com aquele. Não podia entender como conseguira resistir ao ataque traiçoeiro. Sabia que estivera derrotado em meia dúzia de momentos e o terror à beira do abismo não fora como o imaginara. O terror degrada qualquer um, pensou ele, querendo retalhar Koiko em pedaços, na sua fúria, pela traição, ou deixá-la perecer em agonia.
As mãos de Koiko apertavam o peito, em total impotência, onde a dor profunda se concentrava, numa tentativa de arrancar a coisa que a causava. Mas ela não podia. Um tremor sacudiu seu corpo. Os olhos se abriram, focalizaram Yoshi, parado ali, a mão esquerda deixou o peito, subiu para o rosto, procurou ajeitar os cabelos, para ele.
— Ajude-me, Tora-chan — soluçou ela, as palavras truncadas. — Por favor, ajude-me... dói muito...
— Quem a mandou? E a ela? Quem?
— Ajude-me... por favor... dói, dói muito... tentei salvar... salvar...
A voz definhou, e ela se viu outra vez com a faca na mão, Yoshi indefeso, heroicamente cumprindo seu dever, correndo para entregar a faca que ela própria não podia usar, para impedir a traidora de feri-lo com o aço voador, recebendo-o no lugar dele, salvando sua vida, para que ele a recompensasse e perdoasse, não que fosse culpada de qualquer coisa, apenas de servi-lo, agradá-lo, adorá-lo.
— O que faremos com ela? — perguntou Abeh, contrafeito, certo que o shuriken era envenenado, e que a morte era inevitável, alguns venenos mais cruéis do que outros.
Jogue-a num monte de esterco, foi o pensamento imediato de Yoshi, o estômago cheio de uma bílis amarga, e deixe-a com sua dor, para os cães se divertirem. Ele franziu o rosto, atormentado agora, vendo que Koiko ainda era bela, ainda era desejável, apenas o gemido ressaltando em sua percepção que uma era terminara.
Agora e para sempre, ele estaria sozinho. Koiko destruíra a confiança. Se aquela mulher, a quem dispensara tanta afeição, fora capaz de traí-lo, qualquer outra pessoa também poderia fazê-lo. Nunca mais poderia confiar numa mulher, nem partilhar tanta coisa. Jamais. Koiko destruíra essa parte dele para sempre. Seu rosto se fechou.
— Jogue-a...
E foi então que ele se lembrou dos poemas tolos e dos poemas felizes de Koiko, todo o riso e prazeres que ela lhe proporcionara, os bons conselhos, incontáveis satisfações. Abruptamente, ele foi dominado por uma imensa tristeza pela crueldade da vida. Ainda tinha a espada na mão. O pescoço dela era bem pequeno. O golpe foi gentil.
— Sonno-joi, hem? — murmurou ele, desorientado por sua perda.
Malditos shishi, é culpa deles a morte de Koiko. Quem enviou Sumomo? Katsumata! Só pode ser, os mesmos golpes com a espada, a mesma astúcia. Já por duas vezes seus assassinos quase me mataram. Não haverá uma terceira vez. Exterminarei todos. Até que eu esteja morto, Katsumata é inimigo, todos os shishi são inimigos. Amaldiçoados shishi... e amaldiçoados gai-jin!
É no fundo culpa deles, dos gai-jin. São uma praga. Se não fosse por eles, nada disso teria acontecido, não haveria os repulsivos tratados, nem shishi, nem sonno-joi, nem a ferida infeccionada de Iocoama.
Amaldiçoados gai-jin. Agora eles vão pagar.
IOCOAMA
NA tarde do mesmo dia, Jamie McFay saiu furioso do escritório do Yokohama Guardian. Ajeitou a última edição do jornal debaixo do braço e seguiu apressado pela High Street. A brisa era fria, com o cheiro de maresia, o mar estava encapelado, cinzento e inóspito. As passadas eram tão iradas quanto seu ânimo. Eu bem que gostaria que Malcolm tivesse me contado, pensou McFay. Ele perdeu o juízo, enlouqueceu por completo. Vai dar a maior encrenca.
— Qual é o problema? — perguntou Lunkchurch, vendo o jornal dobrado, preocupado com a pressa incomum de Jamie. Ele próprio ia buscar seu jornal, antes da sesta, e parara por um momento para urinar na sarjeta. — O duelo saiu no jornal, foi noticiado?
— Que duelo? — A voz de McFay era ríspida. Circulavam rumores de que ocorreria a qualquer momento, embora até agora ninguém tivesse sussurrado que seria depois de amanhã, na quarta-feira. — Pelo amor de Deus, pare de espalhar essa história!
— Sem ofensa, meu velho. — O homem enorme e corado abotoou-se, levantou o cinto por cima da pança, só para que escorregasse de novo. — Mas qual é o problema? Ele cutucou o jornal, antes de acrescentar:— O que o porra do Nettlesmith escreveu que o deixou tão irritado?
— Apenas a mesma coisa de sempre — respondeu McFay, evitando o verdadeiro motivo. — Seu editorial afirma que a esquadra está quase pronta para atacar, o exército afia suas baionetas, e dez mil sipaios virão da índia para nos ajudar.
— Tudo mentira!
— E isso mesmo. Ainda por cima, o desgraçado do governador está fazendo tudo o que pode, como sempre, para arruinar a economia de Hong Kong. Nettlesmith republicou um editorial do Times elogiando o plano de queimar nossas plantações de ópio em Bengala, replantar tudo com chá, uma idéia que vai provocar ataques cardíacos por toda a Ásia... como se os paladares em qualquer lugar fossem se satisfazer com aquela porcaria de Darjeeling! Os idiotas vão nos arruinar, e também a economia britânica, ao mesmo tempo. Tenho de ir agora. Vejo-o mais tarde, na reunião.
— Essas porras de reuniões! Uma porra de perda de tempo! A porra do Governo! Devíamos ir para as porras das barricadas, como as porras dos franceses! Deveríamos estar bombardeando Iedo neste momento! Wee Willie não tem colhões e quanto a porra do Ketterer...
Lunkchurch continuou a vociferar por muito tempo depois de Jamie ter se afastado. Outras pessoas nas proximidades franziram o rosto e depois aceleraram os passos, a caminho do escritório do jornal.
Malcolm Struan levantou os olhos quando Jamie bateu na porta. Viu o jornal no mesmo instante.
— Ótimo. Eu já ia perguntar pelo jornal.
— Fui buscar um exemplar. Um passarinho me sussurrou que deveria.
— Ahn... — Malcolm sorriu. — Minha carta foi publicada?
— Deveria ter me avisado, a fim de que eu pudesse pensar numa maneira de diminuir o impacto.
— Acalme-se, pelo amor de Deus! — disse Malcolm, jovial. Ele pegou o jornal, abriu na seção de cartas. — Não há nada de errado em assumir uma posição moral. O ópio é imoral, e o mesmo acontece com o contrabando de armas, e não falei nada antes porque queria surpreendê-lo também.
— E pode ter certeza de que conseguiu! Isto vai enfurecer todos os mercadores por aqui e pelo resto da Ásia e vai provocar reações. Precisamos de amigos, tanto quanto eles precisam de nós.
— Concordo. Mas por que minha carta deve provocar reações? Ah, aqui está!
A carta ocupava a posição principal, com o título em destaque: CASA NOBRE ASSUME POSIÇÃO NOBRE!
— Bom título. Gosto disso.
— Desculpe, mas eu não gosto. Vai provocar reações porque todos sabem que temos de usar essas mercadorias ou estamos perdidos. Você é o tai-pan, mas não pode... — Jamie fez uma pausa. Malcolm sorria, imperturbável. — O que me diz dos fuzis para Choshu? Aceitamos o dinheiro deles, embora você concordasse em preteri-los pelo outro homem, Watanabe, lorde qualquer coisa... e a encomenda que aumentou para cinco mil?
— Tudo no momento oportuno.
Malcolm permanecia calmo, embora lembrasse que a mãe cancelara a encomenda, e que ele a reconfirmara no mesmo instante, pelo correio mais rápido possível. Fora uma tolice da mãe, que nada entendia do Japão. Mas não importa, mais uns poucos dias, e ela será contida.
— Enquanto isso, Jamie — acrescentou ele, descontraído —, não há mal nenhum em assumir uma posição moral em público, não é mesmo? Não acha que devemos nos inclinar aos tempos?
McFay piscou os olhos, aturdido.
— Está querendo dizer que se trata de uma artimanha? Para confundir oposição?
— Inclinar aos tempos — repetiu Malcolm, feliz.
A carta defendia a proscrição do ópio e de armas, conforme o almirante queria e o enquadrava como partidário da veemente posição do almirante e do novo plano proposto pelo governo para a Ásia: Devemos encontrar meios imediatos de alterar nosso comércio, para a maior glória de sua majestade a rainha, Deus a abençoe e de nosso império britânico. A Casa Nobre orgulha-se de tomar a dianteira, escrevera ele, entre outras efusões floreadas, assinando O tai-pan da Struan, como seu pai e avô haviam feito, em cartas para a imprensa.
— Achei que expus tudo muito bem, Jamie. Não concorda?
— Claro que sim. Você me convenceu. Mas se é apenas para... — Ele já ia dizer “amansar”, mas a quem e por quê? — Se é apenas uma manobra, por que fazer isso? Não poderia haver pior momento. Você vai ser contestado na reunião.
— Pois que o façam.
— Vão pensar que enlouqueceu.
— Deixe-os pensar o que quiserem. Dentro de poucas semanas terão esquecido e, de qualquer maneira, já estaremos em Hong Kong a essa altura. —Malcolm estava radiante, no maior bom humor. — Não se preocupe. Sei exatamente o que estou fazendo. Faça-me um favor: mande um recado para o almirante, dizendo que eu gostaria de vê-lo antes do jantar. Também quero falar com Marlowe, assim que ele desembarcar. Os dois jantarão conosco às oito horas, não é?
— É, sim. Ambos aceitaram. — McFay suspirou. — Quer dizer que vai continuar a me manter em suspense sobre o motivo?
— Já disse que não precisa se preocupar. Tudo está perfeito. Agora, muito mais importante, precisamos preparar as encomendas de sedas para a próxima temporada. Cuide para que Vargas tenha os livros atualizados. Quero conversar com o nosso cambista sobre a moeda que usaremos e os recursos para a operação o mais depressa possível... e não se esqueça de que amanhã Angel e eu passaremos o dia inteiro ausentes, com Marlowe, a bordo da Pearl.
Ele teria dançado uma jiga, se pudesse, mas as pernas e a barriga doíam mais do que o habitual. Não tem importância, pensou, amanhã é o grande dia. Já estou quase conseguindo o que quero, e depois que se danem todos.
Jamie achava-o muito estranho, não entendia mais nada. Cada navio procedente de Hong Kong trazia cartas para ambos, de Tess Struan, cada vez mais vituperiosas. Apesar disso, Malcolm se mostrava completamente à vontade, tal como era antes da Tokaidô, bem-humorado, lúcido, atento, dedicado aos negócios, embora ainda em extremo desconforto e andando mal. Ainda por cima, havia o risco iminente do duelo na quarta-feira, depois de amanhã.
Por três vezes, McFay procurara Norbert Greyforth, na tentativa de promover um acordo, até recrutando a ajuda de Gornt, mas nada fora capaz de dissuadi-lo.
— Jamie, diga àquele sujeito que tudo depende dele — respondera Norbert. Afinal, foi ele quem começou esta merda. Se me pedir desculpas, eu aceitarei... se for um pedido público, e põe público nisso!
McFay mordeu o lábio. Seu último recurso era sussurrar a hora e o local para Sir William, mas detestava a idéia de violar seu juramento solene.
— Vou me encontrar com o patife do Gornt para acertar os últimos detalhes, às seis horas.
— Ótimo. Lamento que você não goste de Gornt, Jamie, pois ele é um bom sujeito. É mesmo. Convidei-o para esta noite. — Imitando o sotaque escocês, Malcolm acrescentou, divertido: — O prazer da sua companhia ao jantar.
McFay sorriu, acalmado pela cordialidade.
— Posso...
Uma batida na porta interrompeu-o.
— Entre.
Dmitri entrou, como um furacão, deixando a porta aberta em sua esteira.
— Você enlouqueceu, Malc? Como a Struan pode apoiar esses idiotas sobre o ópio e armas?
— Não há mal nenhum em assumir uma posição moral, Dmitri.
— Mas é mesmo uma loucura! Se a Struan assumir essa posição, nós todos teremos de lutar contra a correnteza! O desgraçado do Wee Willie vai usar isso para...
Ele parou de falar, quando Norbert Greyforth também entrou na sala, sem bater.
— Você ficou louco? — berrou Norbert, inclinando-se sobre a mesa e sacudindo o jornal diante do rosto de Malcolm. — O que diz do nosso acordo para agirmos juntos?
Malcolm fitou-o nos olhos, odiando-o, no mesmo instante lívido.
— Se quer um encontro, marque antes — disse ele, com extrema frieza, mas controlado. — Estou ocupado. E agora saia. Por favor!
Norbert corou, também advertido por Sir William de que deveria se comportar ou sofrer as conseqüências. Seu rosto contraiu-se em raiva.
— Quarta-feira, cedo, por Deus! Não deixe de aparecer! Ele virou-se e saiu, batendo a porta.
— Um desgraçado grosseiro — murmurou Malcolm.
Em circunstâncias normais, Dmitri teria rido, mas agora sentia-se preocupado demais.
— Já que estamos no assunto, é melhor eu lhe dizer logo que não vou participar da “reunião” da quarta-feira.
— Isso não é problema, Dmitri. — A cor começava a voltar ao rosto de Malcolm. — Ainda tenho a sua palavra de honra de cavalheiro de que não vazará coisa alguma.
— Claro. — Dmitri não pôde mais se conter e explodiu: — Mas não faça isso! Pode ser gravemente ferido!
— Já estou gravemente ferido agora, meu caro. Por favor, não se preocupe Se Norbert comparecer ao encontro, ele...
Malcolm ia dizer que ele podia ser considerado um homem morto, e tentou explicar o plano de Gornt a Dmitri — já o explicara a McFay, que o aprovara relutante, como viável —, mas decidiu não fazê-lo. Em vez disso, ele comentou:
— Já ofereci um acordo particular a Norbert, mas ele rejeitou. E não vou rastejar em público. E já que você está aqui, Dmitri, o que pode me dizer sobre a Colt Armaments? Ouvi dizer que a Cooper-Tillman tem um bloco de ações que está querendo vender. Eu gostaria de comprar.
— Mas como soube? — Dmitri lançou um olhar para McFay, também atônito, mas conseguindo esconder. — Onde ouviu essa história?
— Um passarinho me contou.
Malcolm não deixou sua exultação transparecer. Edward Gornt lhe dera essa informação, entre outras sobre a Brock e a Cooper-Tillman, para provar sua sinceridade sobre a grande informação que revelaria a respeito dos Brocks.
— Por que esperar para me contar, Sr. Gornt? — indagara ele. — Se a informação é tão boa quanto diz, será preciso cuidar de tudo imediatamente.
— Tem razão, tai-pan, terá de ser o mais depressa possível. Mas vamos deixar como combinamos. Quarta-feira será o dia. Enquanto isso, já que teremos um relacionamento longo e feliz, por que não abandonamos o “senhor”? Chame-me apenas de Gornt e continuarei a tratá-lo de “tai-pan”, até nos encontrarmos em Xangai ou Hong Kong... depois que Sir Morgan estiver arruinado. Talvez então possamos usar o primeiro nome, está bem?
Malcolm observou Dmitri, seu excitamento aumentando. Havia muitas coisas boas ocorrendo agora.
— O que me diz, companheiro? Jeff Cooper está mesmo disposto a vender e você tem a autoridade necessária para negociar?
— Estou autorizado a negociar, mas...
— Não há nenhum mas. A autorização é por escrito?
— É, sim, e ele pode vender a metade. Ao preço certo... 16,50 por ação.
— Nada disso... é sua proposta de negociante. Dou 13,20, nem um centavo a mais. Podemos assinar uma carta de intenções, com a data de hoje. Quarenta mil ações.
Dmitri ficou espantado, mas logo se recuperou... quarenta mil ações eram exatamente a quantidade certa. O preço de 13,20 era baixo. Oferecera as ações a Morgan Brock, que propusera 12,80, um preço de liquidação, com um ano para pagar, o que tornava a proposta inaceitável, embora fosse quase impossível encontrar um comprador para um bloco de ações tão grande. Onde Malc obtivera a informação?
— O preço de 13,20 está longe de ser suficiente.
— Pago 13,20 hoje, amanhã será 13,10. E na quarta-feira retiro a oferta. — Gornt lhe dissera que Cooper precisava vender depressa, para investir em um novo empreendimento nos Estados Unidos, a fabricação de couraçados... a serem vendidos a qualquer marinha. — Tenho bastante tempo, mas o mesmo não acontece com o velho Jeff.
— O que está querendo dizer com isso?
— Apenas o que eu falei, que tenho tempo, e Jeff não tem. — Uma pausa, e Malcolm acrescentou, jovial: — Nem as marinhas da União ou Confederação, com a guerra indo tão mal para os dois lados.
— Besteira de seus espiões — disse Dmitri. — Não há negócio abaixo de 15,20.
— Sonhador. Pago 13,20 em ouro, um saque à vista em nosso banco, assim que chegar a Boston.
Dmitri abriu a boca, mas Jamie McFay apressou-se em intervir:
— Tai-pan, pode ser uma boa idéia levar em consideração...
—... obter a aprovação de HK — concluiu Malcolm por ele. — Ora, Jamie, já discutimos isso, e resolvemos o assunto de uma vez por todas. — A voz era calma, num tom que não admitia contestação. — Certo?
— Certo. Desculpe.
Ainda muito calmo, Malcolm indagou:
— E então, Dmitri, sim ou não?
Dmitri fitava-o com um respeito renovado. O pagamento imediato já o levara a tomar sua decisão.
— Negócio fechado.
Ele estendeu a mão e Malcolm apertou-a. McFay disse:
— Prepararei o documento esta tarde; ficará pronto para assinarem às cinco horas. Combinado?
— Ótimo. Obrigado por ter vindo, Dmitri. É sempre bem-vindo. Não se esqueça do jantar às oito e meia.
Depois que Dmitri se retirou, McFay não pôde mais se conter.
— É um bocado de dinheiro.
— Dá 528 mil dólares, para ser mais preciso. Mas a Colt tem uma encomenda de cem mil fuzis de um tipo radicalmente novo. Quando nossa carta de crédito chegar a Boston, as ações já terão dobrado de preço e ganharemos meio milhão de dólares.
— Como pode ter certeza?
— Apenas tenho.
— Vai assinar a nota promissória?
— Vou. E se me disser que não tenho autoridade, por causa do que minha mãe disse ou deixou de dizer, não darei a menor atenção, e assinarei de qualquer maneira. — Malcolm acendeu um charuto, e continuou: — Se a nota promissória não for honrada, vai provocar uma reação, e arruinará a Struan como nenhuma outra coisa em nossa história. Sou o tai-pan, quer goste ou não, até renunciar ou morrer, não importa o que ela diga.
Os dois observaram um anel de fumaça subir e desaparecer, e depois McFay acenou com a cabeça, devagar, suas apreensões superadas pela estranha segurança e autoridade de Malcolm, como nunca experimentara antes.
— Sabe o que está fazendo, não é?
Os olhos de Malcolm se iluminaram.
— Sei de muitas coisas que ignorava quando vim para cá. Por exemplo, Se você insistir em sair... Ora, Jamie, tenho certeza de que no fundo do coração já tomou a decisão. Por que não deveria? Foi tratado de maneira vergonhosa, e sei que não o ajudei muito, mas tudo isso já passou. Quero que saiba que eu faria a mesma coisa se estivesse no seu lugar. Já decidiu, não é mesmo?
McFay engoliu em seco, desarmado.
— Já, sim. Vou sair, mas só depois que os negócios da Struan aqui estiverem no nível ideal, daqui a seis meses, ou por aí, a menos que ela me mande embora antes. Por Deus, não quero sair, mas devo!
Malcolm riu.
— Você assumiu uma posição moral.
McFay riu também.
— É uma loucura.
— Não é, não. Eu faria a mesma coisa. E tenho certeza de que será um grande sucesso, tanto que cem mil dos dólares que acabei de ganhar... tenho de fazer isso, Jamie, ninguém pode fazê-lo... serão um investimento na McFay Trading. Por...
Ele ia dizer quarenta e nove por cento das ações, mas resolveu mudar, para permitir que McFay mantivesse as aparências, e pensou: Você merece, meu amigo. Jamais esquecerei aquela correspondência pela qual poderia ser enforcado, pois tenho certeza que Sir William descobriria.
—... uma participação de sessenta por cento?
— Vinte e cinco — disse McFay, sem pensar.
— Cinqüenta e cinco?
— Trinta e cinco.
— Quarenta e nove por cento?
— Negócio fechado!
Os dois riram e Malcolm disse o que McFay estivera pensando:
— Se as ações dobrarem. — E acrescentou, sério: — Se tal não acontecer, encontrarei outro meio.
McFay fitou-o pelo que pareceu um longo tempo, a mente repleta de perguntas, mas sem respostas. Por que Malcolm mudou? Por causa de Heavenly? O negócio da correspondência? O duelo? Claro que não. Por que ele quer conversar com o almirante? Por que gosta de Gornt, que é acima de tudo um astuto?
E por que falei sim, que pretendo ir embora, antes de pensar duas veze, tomando uma decisão em que venho pensando há meses, que devo assumir o risco antes de morrer? Ele viu Malcolm observando-o, fraco no corpo, mas tranqüilo e firme. Retribuiu o sorriso, contente por estar vivo.
— Sei disso. E tenho certeza que vai conseguir.
Angelique fazia sua sesta antes do jantar, um fogo de carvão brilhando alegre no braseiro. As janelas estavam fechadas contra o vento, e ela se enroscava sob as cobertas e lençol de seda, meio adormecida, meio desperta, uma das mãos entre as pernas, como Colette lhe ensinara no convento, quando se deitavam na mesma cama depois que as freiras haviam deixado o dormitório, a roncar por trás das cortinas de seus cubículos. Acariciando-se, beijando-se, sussurrando e rindo sob as cobertas, as duas jovens partilhavam segredos, sonhos e desejos, fingindo serem amantes adultas... como era descrito nos folhetins românticos que circulavam nas ruas, proibidos, mas contrabandeados pelas criadas, e passando de mão em mão entre as alunas, tudo faz-de-conta, saudável, divertido e inofensivo.
Sua mente se projetara para Paris, ao encontro do futuro maravilhoso pela frente, Malcolm contente ao seu lado, ou já tendo saído para o escritório da Struan, agora sediado em Paris, rico e alto, seus problemas de saúde apenas uma lembrança distante, os problemas dela nem sequer uma lembrança, um filho no quarto ao final do corredor da mansão, velado por uma babá e outras criadas, o corpo dela outra vez forte e saudável, como agora, o parto fácil. Faria uma visita com Colette à fábrica de seda fabulosamente bem-sucedida da Struan, que ela persuadira Malcolm a construir, depois de aprender tudo sobre a cultura do bicho-da-seda. Ela acabara de escrever:
Ah, Colette, esses insetos são extraordinários, comem folhas de amoreira como alimento, depois a gente seca os casulos e desenrola a seda... Nunca pensei que pudesse me sentir tão interessada. Vargas é o meu informante secreto, e trouxe o vendedor de seda para me mostrar alguns, mas preciso tomar o maior cuidado. Comecei a falar sobre a minha idéia para uma fábrica com Malcolm e Jamie, e eles riram. Malcolm me disse para não ser tola, a produção de seda era um negócio bastante complexo (como se eu não soubesse) e que não devia preocupar minha cabeça com coisas assim. Acredito que eles querem que sejamos casulos, para nos usarem e abusarem a seu capricho, e isso é tudo. Colette, mande-me todos os livros sobre seda que puder encontrar...
Seria maravilhoso possuir seu próprio escritório, e uma porção de dinheiro, pensou ela. Vivendo em Paris, poderei fazer visitas a Londres, de vez em quando a Hong Kong, com jantares, saraus e bailes espetaculares para meu príncipe encantado e seus amigos especiais...
Ela olhou para a carta, em cima da escrivaninha, já lacrada. Mais segredos partilhados, pelo menos em parte.
Esse Edward Gornt está se tornando um amigo de verdade, encantador e atencioso, um amigo de verdade, não como André. Tenho certeza, minha querida Colette, que ele será um amigo pelo resto da vida, porque Malcolm também parece gostar de sua companhia. O que é muito estranho, já que Edward trabalha para aqueles horríveis Brocks, sobre os quais já lhe escrevi, e para Norbert Greyforth, que parece mais venenoso a cada dia que passa, como o bruxo que ele é! Esta noite teremos outro GRANDE sarau. Todos vão comparecer, André tocará ao piano, Edward é um dançarino e tanto, leve como uma borboleta...
Ela não escrevera que na última vez em que haviam dançado, em um jantar oferecido por Sir William, ele segurara sua mão de maneira diferente, perigosa, com pressões suficientes para serem expressivas, até um momento em que seu dedo mínimo se contraíra para tocar no dela: a linguagem dos amantes, quero você na cama, sim ou não, e quando... não diga não!
Ela retirara a mão, com frieza, firme. Gornt nada dissera, seus olhos sorriam, e ela sabia que ele sabia que não estava realmente zangada, apenas era inacessível, comprometida.
E também não estava zangada com André, zangada de verdade. Poucos dias antes, haviam se encontrado por acaso na legação francesa.
— Você está muito bem, Angelique. Fico contente em vê-la. Podemos conversar por um momento, em particular?
Ela respondera que sim, e quando se encontravam a sós, André falara do dinheiro que lhe emprestara.
— Estou numa situação difícil. Poderia me pagar, por favor?
— Mas pensei... que a outra transação cobriu isso.
O coração de Angelique quase parara, ao lembrar-se do estratagema dos brincos perdidos.
— Lamento, mas não cobriu. Só deu para pagar os conselhos e medicamentos da mama-san.
Ela corara subitamente.
— Combinamos não mencionar o assunto, nunca mais, não se lembra? — murmurara ela, querendo gritar com ele por violar o acordo solene. — Nunca aconteceu, foi isso o que acertamos... não passou de um pesadelo!
— Concordo, nunca aconteceu, mas foi você quem mencionou a transação, Angelique, e eu não falei a respeito, apenas sobre o dinheiro. Sinto muito, mas preciso com urgência.
O rosto de André se tornara frio. Cautelosa, ela reprimira sua raiva, amaldiçoando-o por perturbar sua paz. Convencera-se de que nada jamais acontecera. e exceto pelo único homem que podia contestá-la, nada acontecera mesmo. Essa era a verdade. Exceto para ele.
— Sobre o dinheiro, meu caro amigo, eu o devolverei assim que puder. Malcolm não me dá dinheiro, como sabe, apenas me deixa assinar vales.
—- Neste caso, talvez seja melhor providenciarmos outra “perda”.
— Não! — protestara ela, a voz suave, pondo a mão no braço de André para atenuar o relance de irritação. — Essa não é uma boa idéia.
Embora ela tivesse eliminado todo o incidente da mente, em sua maior parte, sempre que voltava para atormentá-la, em particular à noite, tinha consciência de que fora um erro terrível.
— Talvez eu possa pensar em outro meio.
— Preciso do dinheiro agora, até quarta-feira, o mais tardar. Sinto muito.
— Tentarei arrumá-lo. Juro que tentarei.
E fora o que fizera. No dia anterior falara com Henri Seratard, suplicara em lágrimas, dizendo que precisava do dinheiro para uma surpresa que faria a Malcolm, que sempre ficaria em dívida com ele, e assinara outro papel, apresentando seu anel de noivado de diamante como garantia.
Com toda sensatez, tomara emprestado o dobro do que devia. E naquela manhã pagara André, que lhe agradecera. Não havia motivo para continuar zangada com ele. É um bom amigo, de confiança, e me emprestou o dinheiro. Para que eu precisava? Esqueci, Sans faire rien, era uma dívida saldada. Entregara a metade do resto a McFay.
— Jamie, poderia enviar isto para minha querida tia em Paris? Ela é pobre e meu querido tio também.
Sentira-se satisfeita por finalmente poder ajudá-los, e mais ainda porque, como esperava, McFay contara a Malcolm, que a interrogara a respeito.
— Ah, meu querido, pedi emprestado a monsieur Seratard. Não queria pedir dinheiro a você e não podia mandar um vale assinado. Espero que não se importe, mas ofereci algumas jóias como garantia.
Ele a censurara e dissera que cuidaria da dívida com Seratard, mandaria Jamie providenciar um fundo para ela, contra o qual poderia sacar, bastava avisá-lo do destino do dinheiro, e que dobraria o que desejasse enviar aos tios.
E tudo muito fácil quando se usa a inteligência. Um calor percorreu seu corpo ao recordar como lhe agradecera por sua gentileza, beijando-o afetuosamente e como ele retribuíra. Teria gostado de ir além, muito além.
Seus dedos a distraíram. A sensualidade suave e experiente agradou-a, fechou os olhos e se imaginou com Colette, só que isso não durou muito. Como sempre, ele assomou em primeiro plano à sua mente, intenso, quase vivo, trazendo os detalhes do último encontro, quando ela se tornara deliberadamente devassa e fizera tudo que sonhara ser possível... para salvar sua vida, sem saber que gostaria tanto quanto ele.
Querida Virgem Maria, ambas sabemos que foi apenas para salvar minha vida... não é verdade? Mas também é verdade... ah, como sou afortunada em poder lhe falar com toda franqueza, diretamente, sem ter de passar por aquele horrível padre Leo... mas também é verdade, aqui entre nós, mulheres, que de alguma forma devemos nos livrar dele, da lembrança das duas noites e do êxtase, antes que isso me leveà insanidade.
Raiko estava irritada.
— Furansu-san, aceitarei este pagamento parcial, mas nosso acordo foi bastante claro e objetivo.
— Sei disso. — André detestava ficar devendo, uma fobia, para ela mais do que a qualquer outra pessoa, não apenas porque a obrigação de pagar dentro do prazo vinha lhe causando pesadelos, mas também porque Raiko controlava sua Hinodeh por completo, e suspenderia o relacionamento sem hesitação, caso não cumprisse o acordo. E neste caso ele se mataria. — Muito em breve poderei lhe dar um grande pagamento. Brincos.
— Ah, então é isso? Ótimo. — Raiko sorriu. — Posso presumir que Hinodeh continua a seu gosto, ainda o agrada?
Suas preocupações o abandonaram por um momento abençoado.
— Ela... é tudo com que eu sonhava. Mais até. Raiko sorriu de uma maneira estranha.
— É insensato ser tão franco, meu amigo.
Um dar de ombros gaulês.
— Você me prestou o favor de uma vida inteira. Não tenho palavras suficientes para agradecer.
Os olhos faiscaram no rosto redondo de Raiko, já inchado de tanto beber, embora ainda fosse o crepúsculo. A maquilagem era boa, o quimono caro, o fim de tarde frio, mas seus aposentos eram aquecidos, e toda a estalagem convidativa.
— Ouvi dizer que sua princesa gai-jin anda muito saudável.
— É verdade. — Por um momento, André pensou em Angelique, com sua permanente sexualidade. — Acho que ela daria uma excelente dama da noite.
Raiko inclinou a cabeça para um lado, incapaz de resistir à tentação de levar o comentário a sério.
— Seria muito interessante para mim. Poderia obter os melhores preços... os melhores mesmo... muitos em Iedo pagariam alto para experimentar uma pessoa assim. Conheço um rico mercador de arroz, muito rico e muito velho, ela não teria a menor dificuldade para satisfazê-lo, que pagaria uma grande quantia para ser o primeiro a examinar um portão de jade desse tipo, e seria fácil ensinar a ela como se tornar uma virgem de novo, neh?
André riu.
— Falarei com ela. Talvez um dia...
— Ótimo. O melhor preço e tudo em segredo. Esse mercador de arroz... ak quanto ele pagaria! Ela não apresenta outros sinais?
— Outros sinais? Que tipo de sinais?
— O medicamento varia para diferentes damas. Às vezes pode torná-la muito mais... muito mais ardentes, mais difíceis de satisfazer. Às vezes aumenta a possibilidade de engravidar, às vezes destrói toda e qualquer possibilidade. Estranho, neh?
Ele não se sentia mais divertido.
— Não me contou isso antes.
— Faria alguma diferença?
Depois de um momento, André sacudiu a cabeça. Ela tomou um gole de saquê.
— Por favor, perdoe-me por falar em dinheiro, mas um oban de ouro não compra mais o que deveria comprar. As autoridades aviltaram nossa moeda e fedem, como peixe de oito dias misturado com bosta de cachorro!
— Tem toda razão.
Ele não entendera todas as palavras, mas absorvera o sentido de autoridade e peixe podre e sentia a mesma repulsa. Seratard recusara-se a dar o adiantamento obre o salário que esperava, alegando escassez de fundos na legação.
— Mas só estou pedindo o que terá de me pagar ao longo do ano, Henri. Apenas umas poucas moedas de ouro. Não sou o seu mais valioso assessor aqui?
— Claro que é, meu caro André, mas não se pode tirar vinho de um barril vazio... apenas uma enxaqueca!
Ele bem que tentara outro recurso, mas fora em vão. Portanto, agora só lhe restavam dois caminhos. Angelique ou aquela mama-san.
— Raiko-san, você é muito esperta, eu acho. Deve haver uma maneira de nós dois aumentarmos o dinheiro normal, neh? O que podemos vender?
Ela baixou os olhos para a mesa, a fim de esconder a expressão que havia neles, e indagou:
— Saquê?
Serviu sem esperar por uma resposta. Por ele, o saquê era frio. Os olhos de Raiko eram fendas mínimas, e se perguntou até que ponto podia confiar nele. Como um gato pode confiar num camundongo acuado.
— Informação tem um preço. Neh?
Ela falou em tom de indiferença. André fingiu estar surpreso, deliciado por ela ter mordido a isca com tanta facilidade. Até demais? Provavelmente não. Ela ser apanhada pelo Bakufu, ou ele por seus superiores, acarretava a mesma penalidade: uma morte agoniada.
Sir William pagaria muito bem pela informação certa, Henri não pagaria coisa alguma... que Deus despachasse os dois para o inferno!
— Raiko-san, o que está acontecendo em Iedo?
— Mais importante, o que está acontecendo aqui? — disse ela no mesmo instante, iniciando as negociações. — Guerra, não é? Terrível! A cada dia, mais soldados disparando no estande de tiro, mais canhões atirando, assustando minhas damas.
— Por favor, fale mais devagar.
— Ah, sinto muito.
Raiko passou a falar de forma mais pausada, dizendo como a Yoshiwara se encontrava assustada, descrevendo um quadro local interessante, mas sem nada que ele já não soubesse. E André disse coisas sobre a esquadra e o Exército que tinha certeza que ela também já sabia. Beberam em silêncio, e depois Raiko murmurou:
— Acho que certas autoridades pagariam muito para saber o que o líder gai-jin planeja fazer, e quando.
Ele acenou com a cabeça.
— Sei disso. Também acho que o nosso líder pagaria muito para saber tudo sobre as forças samurais do Nipão, onde se concentram, quem comanda, sobre esse tairo que envia mensagens tão grosseiras.
Raiko exibiu um sorriso radiante, levantou sua taça de porcelana.
— A uma nova sociedade. Muito dinheiro por uma pequena conversa. Ele brindou e disse, cauteloso:
— Uma pequena conversa, sem dúvida, mas deve ser uma pequena coisa importante, para se obter um dinheiro de verdade.
Raiko simulou estar chocada.
— Por acaso sou uma prostituta de terceira classe sem qualquer cérebro? Sem honra? Sem compreensão? Sem ligações, sem... — Mas ela não pôde continuar assim, e soltou uma risada. — Nós dois nos entendemos muito bem. Venha amanhã, ao meio-dia, e conversaremos. Agora, vá ver sua adorável Hinodeh. Aproveite-a, e aproveite também a vida, enquanto todos nós ainda a temos.
— Obrigado, mas não agora. Por favor, avise-a que chegarei mais tarde. — André sorriu para ela, apreciando-a. — E você, Raiko?
— Não tenho nenhuma Hinodeh para procurar, com que sonhar, para escrever poemas, e me encher de êxtase. Outrora foi diferente, mas agora sou mais sensata, gosto de saquê e de ganhar dinheiro, de ganhar dinheiro e saquê. Saia agora. — Ela soltou uma risada brusca. — Mas volte amanhã. Ao meio-dia.
Depois que ele se retirou, Raiko mandou que as criadas trouxessem mais saquê, só que desta vez quente, e não mais a incomodassem. Vendo tanta cordialidade no rosto de André, misturada com a profundeza de sua paixão por Hinodeh, ela experimentara o início da tristeza, e por isso o despachara.
Não podia permitir uma testemunha de sua angústia, das lágrimas abjetas que derramou, incapaz de contê-las, incapaz de controlar seu sofrimento, ao mesmo tempo em que desprezava a fraqueza interior que lhe impunha um frenético anseio por sua juventude, pela moça que já fora, desaparecida há bem pouco tempo atrás, para nunca mais voltar.
Não é justo, não é justo, não é justo, lamentou-se ela, erguendo a taça. Não sou a velha megera que contemplo no espelho, eu sou eu, Raiko, a bela, cortesã de segunda classe, eu sou eu, sou eu, sou eu...
— Ah, Otami-sama — disse o shoya. — Boa noite. Sente-se, por favor. Chá? Saquê? Lamento incomodá-lo de novo, mas acabo de receber uma mensagem de meus superiores. Chá?
Hiraga sentou na almofada em frente, na sala agradável, contendo sua impaciência. Agradeceu e aceitou a xícara obrigatória.
— Como vai? — perguntou ele, polido, o coração batendo mais depressa do que gostaria.
— Preocupado, Otami-sama. Parece que os gai-jin estão muito determinados desta vez, há movimentos de tropas em demasia, os navios preparam seus canhões, correm rumores sobre a chegada de mais navios. Soube alguma coisa de seu gai-jin Taira?
Hiraga já pensara a respeito. Tyrer e todo o pessoal da legação andavam agtados desde o ultimato do tairo Anjo, Sir William gritando mais do que o habitual, Johann o intérprete passando horas trancado com Tyrer, reescrevendo cartas para o Bakufu, só de vez em quando lhe pedindo para refinar uma frase.
— É mais fácil se me mostrar a carta, Taira-sama — dizia ele, sempre, querendo saber o que seria enviado.
— Está certo, mas só esta frase, por enquanto... — sempre respondia Taira, inquieto, todos os dias a mesma coisa, o que aumentava a apreensão de Hiraga.
Era evidente que já não confiavam nele como antes, e isso depois que passara dia e noite trabalhando para aprender a língua deles, e lhes dera uma porção de informações. Cães gai-jin desprezíveis, pensara ele, com medo de que a qualquer dia Sir William pudesse ordenar sua expulsão, já que seu cartaz ainda ocupava lugar de destaque na casa da guarda dos samurais, com as patrulhas de vigilantes verificando todos os japoneses que entravam e saíam da colônia.
As patrulhas de vigilantes não deveriam ser permitidas. Os gai-jin são idiotas demais... com o poder marítimo que possuem, eu não permitiria “guardas inimigos” num raio de uma légua! Anjo também é um idiota, por se enfurecer com eles, usando maneiras tão vis, tanta arrogância, quando a esquadra ainda se encontra aqui. Todos enlouqueceram no Conselho de Anciãos!
— As autoridades gai-jin me dizem muitas coisas, shoya — murmurou ele. — Por sorte, estou a par de seus segredos. É possível que eu possa avisá-lo a tempo se algum perigo lhe ameaçar. Enquanto isso, aconselhei-os a tomarem cuidado para não incomodá-lo, nem à aldeia.
O shoya inclinou-se até o tatame, agradecendo, e depois comentou:
— Estes são momentos terríveis, a guerra é terrível, e os impostos serão aumentados de novo.
Otimo, pensou Hiraga, a cabeça doendo, tem condições de pagar, mas isso não vai fazer com que você ou qualquer outro da Gyokoyama coma ou beba menos, nem que suas esposas e mulheres se vistam com menos luxo, mas apenas seus fregueses. Parasitas! Já estão violando as antigas leis da extravagância ao permitirem que suas mulheres usem cores proibidas nas roupas, como o vermelho, e ao fazerem o que bem quiserem em suas casas, sem qualquer repressão do Bakufu, o que é uma estupidez. Quando assumirmos o poder, haverá um ajuste de contas.
Vamos, velho tolo, fale logo o que quer. Não posso desperdiçar a noite inteira aqui, e não vou me rebaixar e perguntar. Tenho mais estudos a fazer esta noite e outro livro para tentar ler.
Talvez eu possa resguardar seus interesses — disse ele, incisivo.
Mais uma vez, o shoya agradeceu.
A mensagem que recebi se relacionava com a moça sobre a qual você perguntou. Há quatro dias lorde Yoshi deixou Quioto, em segredo, pouco antes do amanhecer, com um pequena escolta, disfarçado como um dos soldados. Ela também foi. No grupo... Está se sentindo bem, Otami-sama?
— Estou, sim — balbuciou Hiraga. — Por favor, continue, shoya.
— Claro. No grupo ainda seguia, montada, a cortesã Koiko, a moça que é sua nova maiko...
— Nova o quê? — murmurou Hiraga, o nome “Koiko”, com tudo o que implicava, ressoando por todos os cantos de sua mente.
— Por favor, posso lhe oferecer chá ou saquê? — indagou o shoya, percebendo o impacto de sua notícia. — Ou talvez uma toalha quente. Posso pedir alguma coisa...
— Não, continue — pediu Hiraga, a voz rouca.
— Não há muito mais. Como sabe, a dama Koiko é a mais famosa das cortesãs de Iedo e, agora, a companheira de lorde Yoshi. A moça lhe foi encaminhada há dez dias.
— Por quem?
— Ainda não sabemos, Otami-sama — disse o shoya, guardando essa informação para outra ocasião. — Parece que a dama Koiko aceitou a moça como maiko depois que ela foi pessoalmente entrevistada e aprovada por lorde Yoshi. É a única outra mulher na comitiva. Seu nome é Sumomo Fujahito.
Não há equívoco, Hiraga teve vontade de gritar, esse é o codinome que Katsumata deu a ela; portanto, ele a despachou para o ninho das vespas, mas por quê?
— Em que direção lorde Yoshi seguiu?
— Há quarenta samurais acompanhando-o, todos montados, mas sem carregar estandartes, e o próprio lorde Yoshi, como eu disse, está disfarçado. Saíram de Quioto pouco antes do amanhecer, há três dias, seguindo pela Tokaidô em marcha forçada, a caminho de Iedo, pelo que presumem meus superiores.
O shoya ocultou seu espanto pela veemência no rosto do jovem.
— Marcha forçada, hem? Quando eles poderiam alcançar Kanagawa? — Era a última estação de posta antes de Iedo. — Daqui a dez ou doze dias?
— É bem provável, embora com duas mulheres viajando... minha mensagem dizia que as duas cavalgavam... mas já mencionei isso... ah, sim, esqueci, lorde Yoshi disfarçava-se como um ashigaru comum. Mas suponho que é possível alcançarem Kanagawa nesse prazo.
Atordoado, Hiraga tomou mais saquê, mal sentindo o gosto, agradeceu pela informação, disse que tornariam a se encontrar no dia seguinte e saiu, seguindo para a choupana na aldeia que partilhava com Akimoto.
As ruas da aldeia estavam quietas. As lojas fechavam ao anoitecer. As luzes por trás das telas de shoji faziam com que as habitações parecessem convidativas. Exausto, em turbilhão pela notícia, ele tirou a cartola, passou os dedos pelos cabelos, coçou o crânio, ainda não de todo acostumado à cabeleira ao estilo europeu, embora já mal notasse o desconforto da calça e do colete e se sentisse contente por usá-los, contra o frio da estação. Nem mesmo coçar vigorosamente atenuou a confusão e a dor na cabeça; por isso, ele sentou num banco próximo — difícil se agachar naquela calça justa — e contemplou o céu.
Koiko! Lembrava-se das duas ocasiões em que estivera com ela, uma ocasião à tarde, e a outra durante a noite. As duas haviam sido caras, bem caras, mas valeram a pena. Katsumata lhe dissera que nunca mais encontraria uma textura de pele assim, nem cabelos tão sedosos, nem tamanha fragrância, nem uma risada tão gentil nos olhos de uma mulher, jamais conseguiria experimentar outra vez tanto calor, explodindo pelo corpo, deixando-o com vontade de morrer, numa alegria intensa.
— Ah, Hiraga, morrer naquele momento — dissera Katsumata —, no auge, e levar isso com você para o além... se é que existe um além... seria a perfeição. Ou se não há nenhum além, ter a certeza ao saltar para o nada que experimentou o melhor, morrer no zênite... não seria uma totalidade de vida?
— É verdade, mas acho que é um tremendo desperdício. Por que treiná-la para Yoshi?
— Porque ele é a grande chave para sonno-joi, a favor ou contra, e porque ela é a única que já conheci que pode encantá-lo e, assim, atraí-lo para o nosso lado ou despachá-lo para o além. Ele pode ser a chave para sonno-joi, a favor ou contra... e esse é um segredo nosso, meu e seu... mas é claro que morrerá de qualquer maneira, no momento que nós decidirmos.
Isso significa que Katsumata enviou Sumomo para ser a adaga do ato? Ou foi para manter Koiko a salvo de traidores? Ou até mesmo para resguardar Yoshi de um traidor interno?
Eram muitas perguntas sem respostas.
Hiraga levantou-se, recomeçou a andar, a cabeça doendo mais do que nunca. Amanhã Akimoto irá com Taira a um navio de guerra. Hiraga pedira para ir também, mas não fora atendido.
— Sinto muito — dissera-lhe Tyrer. — Sir William autorizou seu amigo, Sr. Saito, a me acompanhar, mas só ele. E sem armas, é claro. É verdade que a família dele é a maior construtora de navios de Shimonoseki?
— É, sim, Taira-sama. O pai dele é o chefe da família.
— Mas os samurais não têm permissão para tratar de negócios.
— Isso é correto, Taira-sama — dissera ele, pois Tyrer era um discípulo esperto demais, e tinha de fazer com que a mentira parecesse verdadeira. — Mas muitas famílias de samurais fazem acertos com emprestadores de dinheiro e fazedores de barcos para cuidarem do trabalho, neh? A família dele é muito importante.
Uma semana antes, ele introduzira o caso de Akimoto, com essa ficção, duranteuma de suas intermináveis reuniões com Sir William, na qual ficara de pé, respondendo a perguntas, e descobrindo bem pouca coisa em resposta.
— Seu nome é Saito, Sir William, família rica, vir aqui para ver navios da grande marinha britânica, ouvir grandes histórias sobre a grande marinha britânica. Talvez os dois poder trabalhar juntos, poder fazer fábrica de grandes navios.
Não chegava a ser uma mentira total. Por gerações, os antepassados de Akimoto viveram numa aldeia de pescadores, uma das três famílias de ashigari que agiam ali como uma espécie de policiais para o pai de Hiraga, chefe da família de hirazamurai mais próxima, também há gerações. Akimoto, pessoalmente sempre se interessara pelo mar e navios de guerra. O pai de Hiraga arrumara para que Akimoto ingressasse na escola de samurais de Choshu, ordenando-lhe que aprendesse tudo o que pudesse do marujo holandês que era o sensei, porque muito em breve o daimio Ogama precisaria de oficiais para comandar os navios de Choshu e para liderar sua marinha.
— Ah, primo, ainda não posso acreditar que conseguiu persuadi-los a me deixar aprender seus segredos de guerra — comentara Akimoto anteontem.
Hiraga suspirou. Já percebera que qualquer coisa relacionada com “negócios” atraía a atenção imediata dos gai-jin. Poesia, nem um pouco, caligrafia, muito menos, a fabricação de espadas apenas um pouco, política, sim, mas apenas no que afetava o comércio, mas a oportunidade de fazer alguma coisa para vender por lucro — qualquer coisa, um navio ou um canhão, uma taça, uma faca, uma peça de seda — proporcionava resultados imediatos. Eles são piores que os ricos mercadores! Alimentam-se de dinheiro!
Ontem à noite, Akimoto bebera além da conta, o que era raro, e começara a divagar sobre dinheiro e os gai-jin.
— Você tem razão, Hiraga, esse é um dos segredos deles: o culto ao dinheiro. Dinheiro! Você é muito esperto ao perceber isso tão depressa! Olhe só para aquele cão que é o shoya! Repare como ele se torna todo ouvidos quando você conta o que Taira ou aquele outro cão gai-jin disseram sobre seus métodos sujos de negócios, como extorquem dinheiro dos outros por todos os meios que puderem, chamando de lucro, como se lucro fosse uma palavra pura, alimentando uns aos outros como piolhos. Quando você fala sobre dinheiro, aquele cabeça de peixe podre que é o shoya não oferece seu melhor saquê, para encorajá-lo a dizer mais e mais? Claro que sim. Ele é como os gai-jin, idolatra o dinheiro, arrancando-o de nós, samurais, deixando-nos a cada ano mais endividados, quando não cria nada, absolutamente nada! Deveríamos matá-lo e fazer o que Ori disse, incendiar esta cloaca fedorenta...
— Acalme-se! Qual é o problema?
— Não quero me acalmar. Quero ação, uma luta, ataque! Estou cansado de ficar sentado a esperar.
Akimoto estava afogueado, a respiração pesada, olhos injetados, e não apenas de saquê. Seu punho enorme batera no tatame.
— E estou cansado de ver você estudar durante a noite inteira, a cabeça num livro. Se não tomar cuidado, vai estragar seus olhos, arruinar o braço da espada, e será um homem morto. Atacar, é para isso que estamos aqui... quero sonno-joi agora, não mais tarde!
— Sem conhecimento e paciência... quantas vezes tenho de lhe dizer isso?
Parece com Ori ou aquele tolo do Shorin. Por que se mostra tão ansioso em por a cabeça no garrote dos vigilantes?
— Não é isso, mas... Você tem razão, Hiraga. Por favor, desculpe, mas...
A voz definhara, e Akimoto tomara mais saquê.
— O que lhe está realmente perturbando? A verdade.
Akimoto hesitara.
— Soube por meu pai. — Depois de um momento, as palavras saíram num fluxo rápido. — A carta chegou através da mama-san de Kanagawa... há fome na aldeia, em todo o distrito, sua família também foi afetada, lamento informar. Dois de meus primos pequenos já morreram. Três dos meus tios renunciaram à condição de samurais e suas espadas... venderam-nas como parte do pagamento ao emprestador de dinheiro, espadas que usaram em Sekigahara... para se tornarem pescadores, pelo menos estão trabalhando nas redes para os donos dos barcos, do amanhecer ao anoitecer, só para ganhar um pouco de dinheiro! Tomiko, a filha viúva de uma tia, que vive conosco, teve de vender sua menina pequena para um. corretor de crianças. Recebeu o suficiente para alimentar o resto da família por meio ano... os dois filhos e o pai inválido. Uma semana depois ela deixou o dinheiro no bule do chá, para que minha mãe o encontrasse, e jogou-se do penhasco. O bilhete dizia que tinha o coração partido por ser obrigada a vender a própria filha, mas o dinheiro podia ajudar a família, e não devia ser desperdiçado com outra boca inútil...
As lágrimas escorriam por suas faces, mas não havia qualquer som de choro na voz, apenas raiva.
— Uma ótima moça, excelente esposa de meu amigo Murai... lembra dele, um dos nossos ronin de Choshu, que morreu no ataque ao tairo Li? Estou lhe dizendo, primo, é horrível ser samurai quando você perde a honra, não recebe um estipêndio, não tem para onde ir, e ser ronin é ainda pior. Mesmo assim, eu... mas você tem razão mais uma vez... acho que teremos de imitar os repulsivos gai-jin se quisermos navios de guerra, até eu sei que eles não crescem em arrozais, e devemos encontrar meios para ganhar o sórdido dinheiro e ser como os sórdidos mercadores de arroz e emprestadores de dinheiro. O sórdido dinheiro, os sórdidos gai-jin, os sór...
— Pare com isso! — interrompera-o Hiraga, o tom ríspido, estendendo outro frasco com saquê. — Você está vivo, trabalhando por sonno-joi, amanhã visitará urn navio de guerra para aprender, e isso é suficiente, primo.
Atordoado, Akimoto balançara a cabeça, enxugando as lágrimas.
— Havia mais notícias? De meu pai, minha família?
— Leia você mesmo.
E ele lera: Se Hiraga estiver com você, diga a ele que sua família se encontra numa situação difícil, a mãe está doente, eles não têm dinheiro nem crédito. Se de tiver condições de mandar algum, ou arrumar um crédito, salvará vidas... mas é claro que o pai dele jamais pedirá. Diga-lhe, também, que sua futura esposa ainda não chegou aqui, e que seu pai teme pela segurança dela.
Não há nada que eu possa fazer por eles agora, pensou Hiraga, aproximando-se do refugio na aldeia, outra vez angustiado. O vento da noite aumentou, agitando os telhados de colmo, mais frio do que antes. Não há nada que eu possa fazer, o sórdido dinheiro! Akimoto está certo. Devemos executar o plano de Ori. Uma noite como esta seria ideal. Duas ou três cabanas incendiadas e o vento sopraria as chamas de casa em casa, provocando um grande incêndio. Por que não esta noite? Assim, os sórdidos gai-jin teriam de embarcar em seus navios, e iriam embora Ou será que não? Não estarei apenas me iludindo, e nosso karma é ser dominado por eles?
O que fazer?
Katsumata sempre disse: Quando em dúvida, aja!
Sumomo? A caminho de Iedo? Sua pulsação acelerou, mas nem mesmo a lembrança dela removeu o remorso por sua família. Devemos casar agora, casar aqui, enquanto há tempo? É impossível voltar para casa, a viagem levaria meses, e é vital continuar aqui, o pai compreenderá.
Ou será que não? É mesmo vital ou apenas tento me enganar? E por que Katsumata mandou Sumomo ficar junto de Yoshi? Ele não a arriscaria por nada.
Nada! Eu não sou nada. Do nada para o nada, fome de novo, sem dinheiro, sem crédito, sem qualquer meio de ajudar. Sem sonno-joi, não há nada que possamos fazer...
E, de repente, foi como se uma pele que encobria parte de sua mente se desfizesse, e ele recordou Jamie explicando alguns aspectos dos negócios dos gai-jin que o haviam chocado. Momentos depois, Hiraga bateu de novo na porta do shoya, e sentou-se à sua frente.
— Shoya, achei que deveria mencionar, para que possa se preparar. Creio que persuadi o mestre em negócios dos gai-jin a recebê-lo em sua mansão, depois de amanhã, pela manhã, para responder a perguntas. Serei seu intérprete.
O shoya agradeceu, e se inclinou para ocultar sua intensa satisfação. Hiraga continuou, a voz suave:
— Jami Mukfey me disse que era um costume gai-jin cobrar um pagamento, por isso e por todas as outras informações que já lhe forneceu. O equivalente a dez koku.
Ele enunciou a quantia espetacular como se fosse uma ninharia, e viu o shoyn empalidecer, mas não explodir, como esperava, por ouvir tamanha mentira.
— Impossível! — disse o shoya, a voz estrangulada.
— Foi o que eu disse a ele, mas Mukfey insistiu que você, como homem de negócios e banqueiro, compreenderia como suas informações eram valiosas, e que até consideraria a possibilidade... — Mais uma vez Hiraga fez um esforço para se controlar. —... de ajudá-lo a começar um negócio, o primeiro de seu tipo, ao estilo gai-jin, para negociar com outros países.
Não chegava também a ser uma mentira total. McFay dissera-lhe que teria interesse em se encontrar e conversar com um banqueiro japonês — Hiraga exagerara a importância do shoya e sua posição na Gyokoyama — que mais ou menos qualquer dia seria conveniente, com um aviso prévio de um dia, e que haveria muitas oportunidades para cooperação.
Ele observou o shoya, exultante ao ver tanta transparência, o homem visivelmente excitado pelas oportunidades potenciais de usar os conhecimentos de Mukfey para o lucro e ser o primeiro a realizar um negócio assim.
— Muito importante ser o primeiro — explicara Mukfey. — Seu amigo japonês compreenderá isso, se for de fato um homem de negócios. É fácil para mim ajudá-lo com os nossos negócios com seda e fácil também para seu amigo japonês fazer a mesma coisa com outros produtos e conhecimentos japoneses.
Hiraga precisara fazer um tremendo esforço para compreender o que o homem dizia. Deixou agora o shoya sonhar e se preocupar por um momento, antes de acrescentar:
— Embora eu não entenda as questões de negócios, shoya, talvez consiga reduzir esse preço.
— Se conseguisse isso, Otami-sama, agradaria muito a um pobre velho, um mero servidor da Gyokoyama, pois eu teria de suplicar a permissão de meus superiores para pagar qualquer coisa.
— Talvez eu possa reduzir para três koku.
— Meio koku talvez seja possível.
Hiraga censurou a si mesmo. Esquecera a Regra de Ouro Número Um, como Mukfey a chamara:
— Ao negociar, seja paciente. Sempre pode reduzir o preço, mas nunca pode tornar a subi-lo. Outra coisa: nunca tenha medo de rir, chorar, gritar ou fingir que vai embora.
Agora, ele disse:
— Pedindo dez, duvido que Mukfey queira reduzir abaixo de três.
— Meio já é muito alto.
Se tivesse uma espada, ele poria a mão no punho e diria: “Três ou corto sua cabeça asquerosa!” Em vez disso, balançou a cabeça, com um ar de tristeza.
— Tem toda razão.
Hiraga começou a se levantar.
— Talvez meus superiores concordem com um.
Hiraga já estava quase na porta.
Sinto muito, shoya, mas eu ficaria constrangido se tentasse barganhar tão barato um...
— Três!
O shoya ficara vermelho. Hiraga tornou a sentar. Demorou um pouco a se ajustar ao novo mundo e só depois disse:
— Tentarei fazer o acerto em três. Estes são momentos difíceis. Acabo de saber que há fome na minha aldeia, em Choshu. Terrível, neh?
Ele viu os olhos do shoya se contraírem.
— É, sim, Otami-sama. Muito em breve haverá fome por toda parte, até mesmo aqui.
Hiraga balançou a cabeça.
— Sei disso.
Ele esperou, deixando que o silêncio se tornasse opressivo. Mukfey explicara o valor do silêncio na negociação, que uma boca fechada no momento oportuno faz com que o oponente se sinta nervoso — pois a negociação é uma luta como qualquer outra — e obtém concessões que você nunca sonharia em pedir.
O shoya sabia que se encontrava acuado, mas ainda não determinara qual a extensão da armadilha, nem o preço que teria de pagar. As informações que recebera até agora valiam dez vezes mais que aquela quantia. Mas seja cauteloso, esse homem é perigoso, esse Hiraga Otami-sama aprende muito depressa, pode ou não estar dizendo a verdade, pode ou não ser um mentiroso. De qualquer forma é melhor ter um samurai astuto do seu lado do que contra.
— Nos tempos difíceis, amigos devem ajudar amigos. É possível que a Gyokoyama possa arrumar um pequeno crédito para ajudar. Como já falei antes, Otami-sama, seu pai e a família são clientes respeitados e valiosos.
Hiraga reprimiu as palavras iradas com que, em circunstâncias normais, teria reagido a tratamento tão condescendente.
— Seria esperar demais — disse ele, tateando o caminho naquele novo mundo de lucro e perda... o lucro de uma pessoa é o prejuízo de outra, explicara Mukfey muitas vezes. — Qualquer coisa que a grande Gyokoyama puder fazer contará com meu reconhecimento. Mas a rapidez é muito importante. Posso ter a certeza de que eles compreenderão isso?
— Seria imediato. Providenciarei tudo.
— Obrigado. Talvez até eles considerem um crédito substancial, talvez um empréstimo direto, quem sabe de um koku... — Ele percebeu o brilho de raiva nos olhos, controlado no mesmo instante, e se perguntou se não teria ido longe demais. — ...por serviços prestados pela família.
Outro silêncio, e depois o shoya disse:
— No passado... e no futuro.
Os olhos de Hiraga se tornaram tão frios quanto os do shoya, embora sua boca também sorrisse. E ainda no novo mundo, não sacou o pequeno revólver que agora sempre carregava, não abriu um buraco nele por sua grosseria.
— Claro. — Uma pausa, e Hiraga acrescentou, a voz suave: — Até depois de amanhã, neh?
O shoya acenou com a cabeça, fez uma reverência.
— Até lá, Otami-sama.
Outra vez na rua, oculto pela noite, Hiraga permitiu que seu triunfo se elevasse com sua alma. Um koku inteiro e os créditos, agora só precisava imaginar como trocar os três koku que o gai-jin Mukfey não pedira, nem precisava, em arroz de verdade, ou dinheiro de verdade, que também pudesse enviar para o pai.
Tanto por tão pouco, pensou ele, exultante, ao mesmo tempo em que se sentia conspurcado, precisando de um banho.
Ah, almirante — disse Malcolm Struan —, podemos ter uma conversa em particular?
— Pois não, senhor.
O almirante Ketterer levantou-se, um dos vinte convidados ainda à mesa na sala grande do prédio da Struan, saboreando o porto, que Angelique deixara, antes de se retirar. Ketterer usava o uniforme para a noite, calça até os joelhos, meias brancas de seda, fivelas de prata nos sapatos, mais rubicundo do que o habitual, depois de devorar uma sopa hindu com caril, peixe grelhado, uma porção dupla de rosbife, pastelão de Yorkshire com batatas assadas, legumes importados da Califórnia, um bolo de galinha e faisão, pedaços de salame de porco fritos, seguindo-se uma torta de maçã seca californiana, com bastante do agora famoso creme da Casa Nobre, e, para encerrar, o rerebit, queijo derretido com cerveja e servido sobre torradas. Champanhe, xerez, clarete — Château Lafite de 1837, o ano em que a rainha Victoria subira ao torno —, porto e madeira.
— Bem que estou precisando de respirar um pouco de ar fresco —acrescentou o almirante.
Malcolm seguiu à frente para as portas laterais de vidro, a boa comida e o vinho amortecendo a dor. Fazia um pouco de frio lá fora, mas era revigorante, depois do ar abafado na sala.
— Charuto?
— Obrigado.
Número Um Chen pairava ao fundo com a caixa. Depois que os charutos foram acesos, ele desapareceu na fumaça.
— Viu minha carta hoje no Guardian, senhor?
— Vi, sim. Apresentou seus argumentos muito bem.
Malcolm sorriu.
— Se o ninho de vespas de protestos que agitou na reunião desta tarde serve de indicação, a carta expôs a sua posição com bastante clareza.
— Minha posição? Espero que seja a sua também.
— Claro, claro. Amanhã...
Ketterer interrompeu-o, um tanto brusco:
— Já que partilha uma posição absolutamente correta e moral, eu esperava que um homem com seu incontestável poder e influência assumiria a dianteira, de maneira formal, proibindo todo e qualquer contrabando nos navios da Struan, acabando logo com esse problema.
— Todo o contrabando já foi proscrito, almirante. Mas, devagar se vai bem longe. Dentro de um ou dois meses, isso acontecerá com a maioria.
O almirante limitou-se a altear as sobrancelhas hirsutas, soprou a fumaça do charuto, desviou sua atenção para o mar. A esquadra era imponente, sob as luzes de ancoragem.
— Parece que pode haver uma tempestade esta noite ou amanhã. Eu diria que não é o tempo apropriado para um passeio, ainda mais em se tratando de uma dama.
Ansioso, Malcolm levantou os olhos para o céu, farejou o vento. Não havia sinais de perigo. O tempo no dia seguinte era uma grande preocupação e ele fizera de tudo para verificá-lo. E constatara, para sua alegria, que a previsão era a mesmo dos últimos dias, mar sereno, ventos amenos. Marlowe confirmara antes do jantar e embora ainda não tivesse recebido a aprovação final para zarpar — nem estivesse a par do verdadeiro motivo pelo qual Malcolm precisava embarcar, com Angelique —, a viagem estava marcada, no que lhe dizia respeito.
— É essa a sua previsão, almirante? — perguntou Malcolm.
— Do meu experto em meteorologia, Sr. Struan. Ele aconselhou a cancelar qualquer viagem experimental amanhã. É melhor aproveitar esse tempo para preparar o ataque a Iedo. Não concorda?
O tom do almirante era de jovialidade forçada.
— Sou contra a destruição de Iedo — disse Malcolm, distraído, a mente concentrada naquele novo e inesperado problema, a recusa do almirante em aceitar apenas sua carta, que ele estava confiante que seria mais do que suficiente.
Tudo corre à perfeição, exceto por esse homem, pensou ele, contendo sua raiva, tentando pensar numa saída para o dilema. O Prancing Cloud chegara no prazo previsto e descarregava as mercadorias que trouxera, o capitão Strongbow já informado das novas ordens secretas sobre o horário de partida diferente na quarta-feira, e Edward Gornt também preparado para transmitir a informação sobre os Brocks, assim que o duelo terminasse.
— Também me oponho — disse o almirante. — Não temos ordens formais para a guerra. Mas estou curioso para saber suas razões.
— Usar um martelo para matar uma vespa não apenas é uma tolice, mas também pode provocar hemorróidas.
Ketterer riu.
— Essa é muito boa, Struan! Hemorróidas, hem? Mais da sua filosofia de chinês?
— Não, senhor. Dickens. — Ele esticou as costas, tornou a se apoiar nas bengalas. — Eu ficaria muito satisfeito, senhor, e Angelique também, se pudéssemos embarcar no Pearl, com o capitão Marlowe, e partirmos até ficar fora de vista da terra, amanhã, mesmo que seja por um curto período.
Heavenly o aconselhara: como o precedente que Malcolm vinha usando, o casamento de seus pais, ocorrera entre Macau e Hong Kong, fora de vista da terra, ele deveria fazer a mesma coisa, por medida de segurança.
— Com sua bênção, é claro, almirante.
— Muito me agradaria ver a Casa Nobre tomar a dianteira no Japão. É óbvio que você não dispõe do tempo suficiente. Sugiro que dez dias seriam o necessário para se tomar todas as providências práticas.
Ketterer virou-se para voltar à sala.
— Espere! — exclamou Malcolm, dominado pelo pânico. — Digamos que faça um anúncio neste momento, para todos os presentes, de que vamos cancelar os embarques de armas para o Japão, daqui por diante. Isso o satisfaria?
— Mais importante, isso satisfaria a você? — perguntou o almirante, gostando de ver o homem que representava tudo o que ele desprezava a se contorcer no espeto. — O que me diz?
— O que... o que posso fazer ou dizer, senhor?
— Não cabe a mim dirigir seu “negócio”. — A maneira como Ketterer pronunciou a palavra, impregnada de desdém, fazia com que fosse uma coisa obscena. — Parece-me que tudo o que é bom para o Japão também é bom para a China. Se proibir as armas aqui, por que não fazer a mesma coisa na China, em todos os seus navios... e tomar a mesma decisão em relação ao ópio?
— Não posso fazer isso — disse Malcolm. — Isso acabaria conosco. O ópio não é contra a lei. Mais do que isso, as duas atividades são legais...
— Interessante... — Outra vez, a palavra estava impregnada de sarcasmo. — Devo lhe agradecer por um excelente jantar, como sempre, Sr. Struan. E agora, peço que me dê licença, pois terei muito o que fazer amanhã.
— Espere! — pediu Malcolm, trêmulo. — Por favor, ajude-me. O dia de amanhã é importante demais para mim. Juro que o apoiarei em tudo, seguirei à frente dos outros, mas tem de me ajudar amanhã. Por favor!
O almirante Ketterer contraiu os lábios, pronto para encerrar aquela conversa inútil. Pois não se trata de outra coisa, embora não reste a menor dúvida de que poderia muito bem aproveitar um partidário entre aqueles desgraçados asquerosos, se há um décimo de verdade nas injúrias que teriam dito na tal reunião. Suponho que este não é dos piores, se fosse possível confiar nele... em comparação com os outros, em comparação com aquele monstro do Greyforth.
— Quando é seu duelo?
Malcolm ia responder com a verdade, mas conteve-se a tempo.
— Responderei se insistir, senhor, e lembro o que disse sobre duelos. Mas devo ressaltar que, em questões de honra, minha família tem sido muito séria há pelo menos duas gerações e não quero que pensem que sou deficiente nesse ponto. É uma tradição, como a da marinha, imagino. Muito da magia da marinha real tem a ver com isso, tradição e honra, não é mesmo?
— Sem isso, a marinha real não seria a marinha real.
Ketterer tirou outra baforada do charuto. Pelo menos o jovem patife compreende, embora isso não altere a balança. A verdade é que a mãe do pobre tolo tem toda razão ao desaprovar o casamento... a moça é muito bonita, sem dúvida, mas não a escolha certa, tem sangue ruim, uma linhagem francesa. Estou lhe prestando um favor.
Será mesmo?
Não se lembra de Consuela di Mardos Perez, de Cádiz?
Ele a conhecera quando era um aspirante no Royal Sovereign, durante uma visita de cortesia àquele porto. O almirantado lhe recusara permissão para casar, o pai também se opusera, quando, finalmente, conseguira superar as resistências, e obtivera os conhecimentos necessários, voltara correndo para descobrir que a moça ficara noiva de outro. Ela também era católica, pensou o almirante, triste, ainda a amando, depois de tanto tempo.
O fato de a moça ser católica deixa todo mundo enlouquecido, como a mãe de Struan, sou capaz de apostar. Como se isso fizesse alguma diferença. É verdade que a família de Consuela era boa, o que não acontece com a família dessa moça. E é verdade também que ainda a amo. Depois dela, não houve mais ninguém. Jamais desejei casar, não depois de perdê-la, por algum motivo não podia. O que me levou a empenhar tudo na marinha, o que evitou que minha vida fosse um total desperdício.
Será mesmo?
— Vou tomar outro porto — anunciou o almirante. — O que deve demorar de dez a quinze minutos. O que você pode fazer para assumir uma posição de vanguarda em dez ou quinze minutos?
Gornt desceu apressado os degraus do prédio da Struan e saiu para a noite, seguindo os outros convidados que deixavam a festa, numa conversa animada, agasalhados, segurando o chapéu contra o vento. Criados esperavam com lanternas para guiar alguns até suas casas. Depois de um boa-noite polido, mas apressado, ele foi para o prédio ao lado, o da Brock. O guarda, um sique alto, de turbante, bateu continência, observou-o subir a escada de dois em dois degraus e ir bater na porta de Norbert Greyforth.
— Quem é?
— Sou eu, senhor, Edward. Desculpe, mas é importante.
Houve um resmungo irritado, e depois a tranca foi aberta. Norbert tinha os cabelos desgrenhados, usava um camisolão, touca e meias de dormir.
— O que aconteceu?
— Struan. Ele acaba de anunciar que daqui por diante vai empenhar a Casa Nobre no embargo de todas as armas e de todo o ópio no Japão, ordenar a mesma coisa no comércio com a China, e por toda a Ásia.
— O que é isso? Uma piada?
— Não, Sr. Greyforth, não é uma piada. Foi durante a festa... o que ele disse na presença de todos, há poucos minutos, Sir William, a maioria dos embaixadores estrangeiros, o almirante, Dmitri... as palavras exatas de Struan, senhor: “Quero fazer uma declaração formal. De acordo com a minha carta Publicada hoje no Guardian, decidi que não mais transportaremos armas de fogo ou ópio em nossos navios ou a Struan os negociará, daqui por diante, no Japão e na China.”
Norbert começou a rir.
— Entre. Isso merece uma comemoração. Ele acaba de liquidar a Struan. E nos transformar na Casa Nobre.
Ele estendeu a cabeça para o corredor e chamou seu empregado número um.
— Lee! Champanhe, depressa! Entre, Edward, e feche a porta. Está ventando, e faz bastante frio para congelar os ovos de um macaco de bronze.
Norbert acendeu o lampião a óleo. Seu quarto era grande, com uma vasta cama de dossel, o chão atapetado, óleos nas paredes de navios da Brock... sua frota menor que a da Struan, mas com o dobro de vapores. Alguns quadros haviam sido chamuscados pelo incêndio, e o teto também ainda não fora reparado de todo. Havia livros empilhados nas mesas de canto, e um aberto em cima da cama.
— O pobre coitado endoidou de vez. — Norbert soltou outra risada. — A primeira coisa que temos a fazer é cancelar o duelo, para mantê-lo vivo. Agora, é isso que...
O sorriso desapareceu.
— Ei, espere um pouco, do que estou falando? É tudo uma tempestade num penico. Ele não é o tai-pan da Struan mais do que eu. Você bancou o tolo. Qualquer coisa que ele disser nada significa; e por mais que sua mãe, que não larga a Bíblia deseje fazer isso, jamais concordaria. Nem poderia, pois sabe que tal atitude arruinaria a companhia.
Gornt sorriu.
— Eu discordo.
Norbert fitou-o nos olhos.
— Como?
— Ela vai concordar.
— É mesmo? Por quê?
— Segredo.
— Que tipo de segredo?
Norbert olhou para a porta, aberta nesse instante. Lee, um idoso cantonês, com um rabicho comprido e grosso, vestindo uma libré impecável — casaco branco, calça preta — entrou com os copos, champanhe num balde com gelo, uma toalha no braço. Momentos depois, a champanhe foi servida. Depois que Lee se retirou, fechando a porta, Norbert levantou seu copo.
— Saúde e morte a todos os Struans. Que segredo?
— Disse-me para tentar fazer amizade com ele. Foi o que fiz. Agora, ele confia em mim. Primeiro...
— Confia mesmo?
— Até certo ponto, mas melhora a cada dia que passa. Primeiro, sobre esta noite. O motivo para ele escrever a carta e fazer o anúncio foi obter o favor do almirante, em segredo.
— Como assim?
— Posso?
Gornt apontou para a garrafa de champanhe.
— Claro. Sente-se e explique.
— Ele precisa da aprovação do almirante para embarcar na Pearl e esse é p mo...
— Mas do que está falando?
— Ouvi-os por acaso, conversando em particular... eles saíram depois do jantar. Eu olhava alguns quadros ali perto... tinha notado duas obras de Aristotle Quance... e escutei o que diziam. — Gornt relatou quase que palavra por palavra. — Ao final, Ketterer disse: “Vamos ver o que você pode fazer em dez ou quinze minutos”
— Isso foi tudo? Nada sobre o que há a bordo, o que há de tão importante na Pearl?
— Não, senhor.
— Estranho, muito estranho. O que poderia ser?
— Não sei. Toda a noite foi estranha. Durante o jantar, percebi Struan olhando na direção do almirante por várias vezes, mas nunca seus olhos se encontraram. Era como se o almirante evitasse deliberadamente, mas sem ser óbvio demais. Foi isso que despertou minha curiosidade, senhor.
— Onde o almirante estava sentado?
— Ao lado de Angelique, no lugar de honra, à sua direita, com Sir William no outro lado. Deveria ser o contrário... outro fato curioso. Fiquei ao lado de Marlowe, que contemplava Angelique extasiado, e falou sobre assuntos navais, tudo muito aborrecido, nada sobre qualquer viagem amanhã, embora eu tenha a impressão de que Struan já planejara tudo, na dependência da aprovação do almirante. Depois que o almirante foi embora, puxei conversa com Marlowe sobre amanhã, mas ele disse apenas: “Talvez eu faça uma pequena viagem experimental, meu caro, se o Velho aprovar. Por que pergunta?” Expliquei que gostava de navios e indaguei se podia ir também. Ele riu, disse que arrumaria uma viagem para mim no futuro, e depois se retirou também.
— Nada sobre Struan e a moça?
— Não, senhor. Mas Marlowe não despregava os olhos dela.
— Por causa dos peitos dela. — Norbert soltou um grunhido. — Quando Struan fez o comunicado, o que aconteceu?
— Primeiro, houve silêncio, depois o pandemônio, perguntas, algumas risadas, umas poucas vaias. Marlowe e os outros oficiais da marinha aplaudiram, em meio a muitas manifestações de raiva. McFay empalideceu, Dmitri quase cuspiu, Sir William ficou olhando para Struan, balançou a cabeça, como se o pobre coitado fosse alvo de compaixão. Concentrei-me em Ketterer. Ele não deixou transparecer coisa alguma, não disse nada a Struan, além de murmurar um “Interessante”, levantou-se em seguida, agradeceu o jantar e foi embora. Struan fez menção de detê-lo, começou a perguntar por amanhã, mas o almirante não ouviu, ou fingiu que não ouvia, e saiu, deixando Struan trêmulo. Ao mesmo tempo, senhor, todos falavam, e ninguém escutava, como em um mercado chinês, não poucos furiosos, gritando com Struan que ele era louco, e como podíamos continuar no comércio... sabe como é, o óbvio e a verdade.
Norbert esvaziou seu copo. Gornt pegou a garrafa para servi-lo de novo, mas ele sacudiu a cabeça.
— Não gosto de tomar muito champanhe de noite, pois me faz peidar. Sirva-me um scotch... a garrafa está ali. — O ali era um aparador, de carvalho, escalavrado pelo tempo, com um velho relógio marítimo em cima. — O que há a bordo da Pearl que ele tanto deseja?
— Não sei.
— O que Struan fez depois que Ketterer saiu?
— Apenas sentou, tomou um drinque grande, com o olhar perdido no espaço, murmurou boa noite, distraído, quando as pessoas começaram a se retirar, sem prestar qualquer atenção a Angelique, outro fato esquisito. Quanto a ela, apenas observava tudo de olhos arregalados, deixando de ser por uma vez o centro das atenções, sem entender o que acontecia, o que me leva a supor que Struan nada lhe confidenciara. Achei melhor vir correndo lhe dar a notícia, e por isso não fiquei por mais tempo.
— Falou sobre um segredo, não é mesmo? Que segredo? Por que a megera da Tess Struan concordaria em cometer um suicídio comercial?
— Por causa do plano de Sir Morgan, senhor.
— Como?
— Sir Morgan. — Gornt exibiu um sorriso largo. — Antes de nossa partida de Xangai, Sir Morgan me disse, em particular, que ele e o Sr. Brock haviam planejado e estavam executando um esquema para arruinar a Struan, e acabar com a companhia de uma vez por todas. Contou que o plano envolvia o açúcar havaiano, o Victoria Bank, e...
— O quê? — Norbert estava surpreso, lembrando que Sir Morgan dissera expressamente que não revelara a Gornt nenhum detalhe do golpe, e não queria que ele soubesse de nada, “embora o rapaz seja de confiança, e não haja mal algum em deixá-lo se insinuar no círculo de Struan para ver o que pode descobrir”. — Morgan contou os detalhes? Explicou a operação?
— Não, senhor. Pelo menos só me disse o que tinha de transmitir a Struan, tão secretamente quanto possível.
— Por Deus! — exclamou Norbert, exasperado. — É melhor você começar desde o início.
— Ele disse que eu não deveria lhe contar nada sobre a minha participação até que o consumasse, até fazer tudo o que me mandou. E consegui. Conquistei a confiança de Malcolm Struan, por isso agora posso contar. — Gornt tomou um gole do champanhe. — Excelente champanhe, senhor.
— Fale logo!
— Sir Morgan me mandou contar uma série de histórias a Malcolm Struan... disse que eram bem próximas da verdade, para fisgar Struan, e por seu intermédio a verdadeira tai-pan, Tess Struan. E posso quase garantir, senhor, que o último tai-pan Struan ficou firmemente fisgado. — Em poucas palavras, Gornt relatou a substância do que dissera a Malcolm Struan. Ao final, soltou uma risada e acrescentou: — Devo lhe fornecer “os detalhes secretos” depois do duelo, a caminho de seu navio.
— O que dirá a ele?
O homem mais velho escutou com toda atenção. Conhecendo os detalhes verdadeiros, sentiu-se fascinado ao ouvir mais da astúcia de Morgan. Se Tess Struan agisse sob aquelas falsas informações, proporcionaria a Sir Morgan as poucas semanas extras que ele queria.
— Mas já é infalível agora, Sir Morgan — dissera Norbert em Xangai, ao tomar conhecimento do plano —, não precisa de tempo extra. Posso fazer minha parte em Iocoama antes do Natal.
— Sei que pode e o fará. Mas papai e eu gostamos de ser mais seguros do que seguros; o tempo extra manterá nossos pescoços longe do laço e nossos rabos fora da prisão.
Norbert reprimiu um tremor ao pensamento de ser apanhado. Não haveria o laço do carrasco, mas a prisão por fraude era mais do que provável e a cadeia dos devedores uma certeza. Sir Morgan é mesmo um patife astuto, é típico dele me dizer uma coisa e outra a Gornt. Ele me salvou de um risco, o de matar Struan. Portanto, será a Inglaterra para mim, com cinco mil por ano, mas perco o melhor, um solar, ficar rico. Melhor seguro do que arrependido depois.
Ele suspirou. Aguardava ansioso a oportunidade de meter uma bala em Malcolm e colher o creme. As palavras do velho Brock estavam gravadas em sua memória:
— Norbert, você ficará com o creme na aposentadoria. Sua gratificação será de cinco mil guinéus por ano se o matar. Por um ferimento grave, mil guinéus.
Sorrindo, ele comentou agora:
— Morgan é muito esperto, formulou um plano infalível. — Para se certificar, testando o rapaz, Norbert acrescentou: — Não concorda?
— Como, senhor?
— As pequenas mudanças fazem toda a diferença, não é?
Ele observava Gornt com a maior atenção.
— Lamento, senhor, mas não conheço os detalhes... a não ser o que ele me disse e me mandou transmitir para Struan.
— Vou tomar outro scotch... sirva-se de champanhe — disse Norbert, satisfeito.
Ele bebeu em silêncio, até ter pensado em tudo, antes de voltar a falar:
— Continue a agir como se não tivesse me contado nada. Cancelarei o duelo amanhã. Não posso agora matá-lo, nem deixá-lo fora de ação.
— Tem toda razão, senhor, foi o que também pensei. — Gornt entregou-lhe a carta de Malcolm Struan, igual à que Gornt já assinara. — Ele me pediu para trazer isto. Mas sugiro que não cancele amanhã, pois pode deixá-lo desconfiado... e talez possamos descobrir o que há de tão importante na Pearl, se ele for, ou se nao for.
— É isso mesmo, Edward, boa idéia. — Norbert soltou uma risadinha. — portanto, na quarta-feira, o jovem Struan se lança no caminho do desastre, hem?
Gornt sorriu.
— E segue feliz, senhor. A Casa Nobre deles está liquidada e a nossa começa.
— É verdade. — O calor do scotch misturava-se ao calor do futuro. — Então decidiu se juntar a nós?
— Se me aprovar, senhor. Sir Morgan disse que teria de me aprovar.
— Continue assim, e está aprovado. Fez um bom trabalho hoje, de primeira. Boa noite.
Norbert trancou a porta depois que Gornt saiu. Antes de voltar para a cama, usou o urinol, e sentiu-se ainda melhor. Seu copo estava na mesinha ao lado da cama, sobre uma pilha de livros e revistas, ainda um quarto cheio. Recostou-se nos travesseiros altos que preferia e pegou o livro aberto, Cidade dos Santos, o relato de Burton sobre sua visita aos misteriosos e polígamos mórmons em Salt Lake City, Utah. Burton era o mais famoso aventureiro e explorador do mundo falava trinta ou mais línguas e suas façanhas e idiossincracias eram lidas avidamente nos menores detalhes.
Ele leu alguns parágrafos e depois, distraído, largou o livro. Não é tão bom quanto Peregrinação a El-Medina e Meca, pensou, ou o relato da descoberta do lago Tanganica.
Entre tantas bocetas mórmons, era de se pensar que Burton, defensor ostensivo da poligamia, que qualquer tolo sabe ser a coisa certa, descreveria suas conquistas, pois já fez isso muitas vezes, em outros livros, com detalhes suficientes para deixar um velho todo excitado. Alguns jornais haviam noticiado que ele tivera treze, todas ao mesmo tempo, oferecidas pessoalmente por Brigham Young, líder da Igreja dos “Santos do Último Dia” e governador de Utah. Que mentirosos!
Mas, por Deus, que homem... ele fez mais e viu mais do que qualquer outro inglês vivo, e deixa qualquer um ainda mais orgulhoso de ser inglês. E com toda a liberdade de ir para onde quiser, de viver como quiser, não dá para entender por que tinha de voltar para a Inglaterra e casar com uma boa inglesa, como algum homem normal. É verdade que ele a deixou depois de um mês; dizem que agora se encontra em algum lugar desconhecido, talvez em Hindu Kush, ou na terra secreta no topo do mundo, vivendo com os gigantes da neve...
Norbert tomou mais um gole do scotch e pensou em Gornt. Esse rapaz não é tão esperto quanto pensa. Qualquer um pode perceber o que vai acontecer na Pearl e por quê. Ketterer pode manter em segredo, Wee Willie também, mas Michaelmas Tweet não pode, nem Heavenly, quando bebe demais, e assim tomei conhecimento das cartas de Tess Struan, e que ela pressionou Wee Willie, bloqueou a igreja, bloqueou todos os capitães de navios, e até a marinha, por intermédio de Ketterer... só que ela não tem poder sobre a marinha! E é Marlowe quem manda a bordo da Pearl. Marlowe pode casá-los... se Ketterer permitir.
Norbert riu.
Mas Ketterer odeia os Struans porque eles venderam canhões aos piratas do Lótus Branco, como nós, que vendemos a qualquer maldito belipotentado que quiser comprá-los, e continuaremos a fazer isso, mesmo que a Struan desista, e por que que não? É um negócio legal, e sempre será. O Parlamento precisa das fábricas de armamentos, porque se trata de um grande negócio, e todos os governos gostam da guerra... porque as guerras constituem um grande negócio, e acima de tudo porque a guerra encobre a sua própria incompetência.
Que se danem os governos!
Ketterer odeia a Struan. Apesar de toda a sua arrogância, ele não é nenhum tolo e vai querer resultados práticos por um favor. O que não pode obter — as declarações daquele jovem tolo nada significavam — e por isso faz um jogo de gato e rato com Struan. Talvez deixe que Struan e sua jovem amante embarquem, talvez não, mas de qualquer forma Marlowe não terá permissão para casá-los... Ketterer quer ver Struan rastejar. O patife também me faria rastejar, se tivesse alguma chance, e ainda por cima me presentearia com cem vergastadas.
Um gole grande do bom scotch deixou-o no melhor humor e ele riu. O jovem Struan está bloqueado: não terá um casamento na Pearl e voltará para Hong Kong, com ou sem sua amante, ao controle da mãe. É curioso que eu tenha de deixá-lo vivo, quando planejava obter a recompensa oferecida pelo Velho, que me disse:
— Mas não conte nada a Morgan, Norbert, pois ele é contra mortes, embora queira ver o jovem Struan afundado na merda e a mãe também! Não se esqueça disso ou arrancarei suas tripas para fazer ligas.
Devo suspender o duelo? Pensarei a respeito. Com o maior cuidado. Preciso da gratificação extra.
É típico de Morgan dar instruções secretas a Gornt e me manter na ignorância. O que mais ele disse que Gornt não me contou? Não importa, Morgan é astuto, com toda a coragem do Velho, só que mais insinuante, mais moderno, sem loucuras, sem riscos... sem nenhuma das obsessões brutais e implacáveis de seu pai. Morgan é o nosso verdadeiro tai-pan e será o tai-pan da nova Casa Nobre. Foram necessários apenas vinte anos para destruir a companhia de Dirk, a maior que já existiu na Ásia.
Satisfeito, Norbert terminou de tomar o scotch, apagou a luz e acomodou-se, com um bocejo. Lamento não ter conhecido o Velho em seu auge, nem o tai-pan, O Demônio de Olhos Verdes, que só os ventos malignos do Grande Tufão conseguiram matar. Ainda bem que este jovem tolo não herdou nenhuma de suas qualidades.
O último convidado já se retirara. Apenas Angelique, Jamie McFay e Malcolm continuavam na sala. As brasas na enorme lareira de canto luziam quando uma aragem descia pela chaminé, para depois se apagarem. Malcolm, em silêncio, o rosto franzido, olhava para a lareira, vendo imagens nas brasas. Angelique sentava no braço de sua poltrona, apreensiva. McFay estava encostado na mesa.
Boa noite, tai-pan — disse ele.
Malcolm saiu de seu devaneio.
— Hum... Espere um pouco. — Ele sorriu para Angelique. — Desculpe Angel, mas tenho algumas coisas para discutir com Jamie. Você se importa de nos deixar a sós?
— Claro que não. Boa noite, Jamie. — Ela inclinou-se, beijou Struan afetuosamente. — Boa noite, Malcolm. Durma bem.
— Boa noite, querida. Devemos partir cedo.
— Está bem... mas, por favor, Malcolm, posso perguntar o motivo de toda aquela gritaria? Não entendi nada. Pode me explicar?
— Foi inveja, nada mais.
— Mas é claro! Como você se mostrou forte e moderno! E tem toda razão sobre os canhões e o ópio... foi muito sensato, chéri. Obrigada. — Ela tornou a beijá-lo. — A que horas vamos sair amanhã de manhã? Estou tão excitada... a viagem será uma change superbe.
— Pouco depois do amanhecer. Cuidarei para que seja acordada a tempo, mas não se surpreenda se... se houver uma mudança de plano. Marlowe disse que o tempo pode mudar.
— Mas ele jurou que o vento amainaria e seria um dia maravilhoso para um passeio.
— Eu disse “pode mudar”, Angel. — Malcolm abraçou-a. — Se não for amanhã, será no primeiro dia possível. Ele prometeu.
— Espero que seja amanhã. Je t’aime, chéri.
— Je t’aime.
Depois que ela saiu, o silêncio na sala se tornou ainda mais opressivo. Chen tornou a dar uma espiada pela porta e Malcolm ordenou:
— Feche a droga dessa porta e não volte.
A porta foi fechada com vigor. Jamie fez menção de falar, mas Malcolm levantou a mão.
— Não diga nada sobre navios, canhões ou ópio. Por favor.
— Está bem.
— Sente-se, Jamie.
Malcolm pensara em todas as respostas do almirante e formulara um plano para cada uma das várias possibilidades: se o almirante decidisse que podiam fazer a viagem com sua bênção, ou se a viagem se realizasse, mas com Marlowe proibido de celebrar a cerimônia, ou se a viagem fosse adiada para algum momento do futuro. Por enquanto, ele pôs de lado as contramedidas.
— Gostaria que mandasse nosso cúter a vapor se aproximar da Pearl pouco antes do amanhecer. O contramestre deve descobrir com Marlowe se nossa viagem continua de pé, ou não. Qualquer que seja a resposta, peça ao contramestre para vir até aqui me informar. Certo?
— Claro.
— Escrevi a carta para Norbert e entreguei a Gornt esta noite. Portanto, essa parte ficou resolvida. Esqueci alguma coisa?
— Sobre quartá-feira?
— Isso mesmo.
— Nada, ao que eu saiba. Já definiu os caminhos e horários, as pistolas serão comuns, não haverá médicos presentes, já que tanto Babcott quanto Hoag são considerados inseguros. As cartas são suas únicas defesas. Não haverá testemunhas, além de Gornt e eu.
— Ótimo. Está pronto para partir com o Prancing Cloud?
— Mandarei uma valise para bordo junto com a nossa correspondência amanhã. Ninguém deve notar. E seus baús?
— Só vou levar um. Despache para bordo amanhã... e se alguém disser qualquer coisa, são algumas roupas que estou enviando na frente, à espera do meu retomo a Hong Kong para o Natal.
— Chen vai arrumar tudo para você?
— Não há outro jeito. Pedirei que ele jure segredo, mas é claro que isso só funcionará para a nossa sociedade, não entre os chineses. Terei de levá-lo comigo. Ah Tok é um problema, mas pode permanecer aqui, à espera de nossa “mudança de verdade”. Será preciso revelar o segredo a Ah Soh. Ela irá conosco para Hong Kong.
— E Angelique?
— Não há necessidade de dizer nada a ela. Se sairmos na Pearl, Ah Soh pode arrumar roupas num baú, e mandar para bordo com a mesma desculpa, depois do anoitecer de amanhã, como precaução. Certo?
— Certo.
— Na manhã de quarta-feira, nós dois sairemos pelos fundos, como planejamos. Pouco depois, Chen, Ah Soh e Angelique, usando um capuz, atravessarão a estrada para o nosso cais, onde você terá o cúter a vapor esperando para levá-los ao clíper...
— Desculpe me intrometer, mas se esse é o plano final, acho melhor um cúter a remo, pois faz menos barulho. Por segurança, o cúter a vapor deve ficar à nossa disposição no cais da cidade dos bêbados.
— Tem toda razão, Jamie, é melhor assim. Obrigado. Portanto, um cúter a remo. Depois de resolver o problema de Norbert, iremos para bordo o mais depressa possível. Diga a Vargas amanhã para marcar uma reunião com nossos fornecedores japoneses de seda na sexta-feira. Procure dar a impressão de que ternos uma agenda lotada para o resto desta semana e a outra, certo?
— Certo.
Mais alguma coisa, Jamie?
— Posso fazer uma sugestão?
— Claro.
Depois da viagem de amanhã na Pearl... — McFay hesitou. — Você disse que pode haver uma mudança de plano... por causa do tempo? A previsão é de tempo bom, não é mesmo?
— É, sim. Falei isso apenas para o caso de Marlowe ter de permanecer no porto. Com todos os preparativos da esquadra para bombardear Iedo, ou apenas ameaçar, nunca se sabe o que Ketterer ou Sir William podem decidir. Qual é a sua sugestão, Jamie?
— Para dizer a verdade, tenho duas. Depois que voltar amanhã... Marlowe garantiu que estariam aqui ao pôr-do-sol... por que você e Angelique não vão jantar no Prancing Cloud, com o capitão Strongbow, e até passam a noite a bordo? Ao amanhecer, nós dois poderíamos desembarcar, e...
— Esse plano é melhor, Jamie, muito melhor! — disse Struan no mesmo instante, radiante. — Assim, Angelique já estará a bordo, junto com sua bagagem e não teremos de nos preocupar com ela. Depois de Norbert, poderemos voltar direto. Grande idéia, Jamie. Nossas coisas podem ser mandadas para bordo com Chen e Ah Soh, não há motivo para que eles não fiquem a bordo também. Ninguém deve desconfiar de coisa alguma.
O sorriso de Malcolm era efusivo e genuíno.
— Foi muito hábil de sua parte pensar nisso. Você é inteligente e é por isso que não quero que deixe a Struan.
Jamie deu um sorriso triste.
— Veremos.
— Antes que eu me esqueça, caso haja um acidente — disse Malcolm, os olhos serenos, sem medo. — Se eu for ferido, mas tiver mobilidade suficiente para embarcar, é o que quero fazer. Se houver uma emergência mais grave, chame Babcott ou Hoag. De qualquer forma, planejo levar Hoag para bordo. Vamos levá-lo de volta a Hong Kong.
— Verifiquei na clínica em Kanagawa, mas eles só vão para lá na quinta-feira. Portanto, os dois estarão aqui.
— Você pensa em tudo.
— Nem tudo. Gostaria de poder, e assim encontraria um meio de cancelar o duelo.
— Não haverá nenhum acidente.
— Rezo para que você esteja certo. Mas, independentemente do que acontecer, é melhor eu ficar aqui, até você voltar, ou mandar me chamar.
— Mas a mãe disse em sua carta...
— Eu sei. Vamos ser francos, tai-pan. Estou fora, de um jeito ou de outro. E melhor eu continuar aqui, para lhe dar cobertura, se Norbert escapar, ou se não escapar, e ficar de olho em Gornt. Sinto muito, mas ainda não confio naquele sujeito. Meu trabalho é aqui, não em Hong Kong. Sairei na primavera. É o melhor e devemos combinar tudo agora... e depois esperar até você completar vinte e um anos.
Os dois se fitaram nos olhos. Romperam o contato visual abruptamente, quando carvões em brasa caíram na lareira, faiscando por um momento, e depois morrendo sem perigo.
— Você é um amigo maravilhoso, Jamie. Com toda sinceridade.
— Não sou, não, apenas tento cumprir meu juramento... ao tai-pan da Casa Nobre.
André e Phillip Tyrer estavam na frente da legação britânica.
— A idéia de Malcolm de um embargo, embora moral, seria um desastre para todas as companhias comerciais da Ásia — comentou Tyrer —, inclusive de vocês, mesmo que não sigam o exemplo, nem os alemães, os russos e os ianques.
O vento agitava seus cabelos, mas ele não sentia frio, com todo o álcool que consumira, com o intenso excitamento.
— Sir William duvida que o governador de Hong Kong aprove quaisquer ordens do Parlamento nesse sentido, vai tentar ganhar todo o tempo possível. É claro que não posso falar oficialmente por qualquer dos dois, e além do mais o Parlamento é a própria lei. — Tyrer deixou escapar um bocejo. — Estou exausto. E você?
— Tenho um encontro.
— Ahn... — Tyrer percebeu o brilho de expectativa. — Um homem de sorte! Ultimamente tem parecido mais feliz, muito mais feliz. Estávamos todos preocupados.
André passou para o francês, baixou a voz:
— Estou bem agora, o melhor que já me senti. Não dá para descrever como me sinto feliz. A moça me trata como um rei... é a melhor que já encontrei. Chega de aventuras para mim. Tenho uma exclusiva.
— Isso é ótimo.
— Por falar nisso, como vai você com Fujiko? Raiko está ficando nervosa e ela também. Soube que a pobre moça anda angustiada, chora o tempo todo.
— É mesmo? — Tyrer sentiu uma pontada na virilha. — Então seu conselho foi acertado.
Ele mal percebeu que respondera em francês; passara a maior parte da noite conversando inglês misturado com francês com Seratard, Zergeyev e os outros ministros.
— Eu diria que você foi bastante duro pelo tempo necessário. Não precisa magoar ninguém, pois são boas pessoas. E ambas se arrependem de tê-lo irritado.
Poucas noites antes, Raiko o interceptara, indagando mais uma vez pelo pagamento atrasado. Depois que ele a acalmara com a promessa de que esperava receber fundos substanciais a qualquer momento — apostando que Angelique arrumaria o dinheiro —, Raiko o interrogara sobre Tyrer.
— O que há de errado com o homem? Seria um serviço para ele, para mim, para Fujiko e também para você, velho amigo, corrigir qualquer coisa que precise ser corrigida. É evidente que ele foi seduzido pelas prostitutas da Estalagem dos Lírios. Nestes tempos difíceis, isso nos ajudaria muito, assim como a você, se o convencesse a voltar. A pobre moça já pensa em suicídio.
Ele não acreditara nisso, mas Raiko se mostrara disposta a torcer a faca chamada Hinodeh.
— Phillip, você fez o jogo com perfeição. Marcarei um encontro e reabriremos as negociações.
— Não sei, não, André. Eu... hum... devo confessar que experimentei outra garota, uma vez... a estalagem que você recomendou não é tão ruim assim... e estive pensando que talvez uma mulher permanente não seja uma boa idéia. Afinal é uma despesa enorme e preciso de um pônei para o pólo...
— Há pontos favoráveis e pontos desfavoráveis em ter sua garota exclusiva — disse André, escondendo sua angústia. — Talvez a melhor idéia seja iniciar as conversas para um contrato dependendo de “uma melhoria no relacionamento”.
— Ou seja, pegar o bolo e comê-lo?
— Por que não? Afinal, todas não se encontram ali para o nosso prazer? É verdade que Fujiko e Raiko são muito especiais.
André falava em tom persuasivo, não querendo que Tyrer escapasse do anzol de Fujiko, assim como também não queria ficar submetido a Raiko. Ter uma associação secreta com ela era uma coisa, colocar-se à sua mercê era outra muito diferente. Marcaria o encontro e o resto dependeria delas, teriam de seduzir Tyrer a seu estado de paixão anterior.
— Deixe as duas comigo. Que tal amanhã? Posso prometer que terá uma recepção calorosa.
— É mesmo? Hum... está bem.
— Phillip... — André tornou a olhar ao redor. — Henri está mais do que ansioso em apoiar as iniciativas de Sir William para punir com rigor esse idiota do tairo Anjo... o cretino foi longe demais desta vez. Sir William poderia recebê-lo para uma conversa particular amanhã? Henri tem algumas idéias que gostaria de expor, confidencialmente.
— Tenho certeza que sim.
Tyrer se tornou atento no mesmo instante, esquecendo o cansaço, pois era uma agradável surpresa. De um modo geral, Seratard lançava uma iniciativa francesa, da qual eles só tomavam conhecimento quando se encontrava em execução. Como o convite secreto a lorde Yoshi para visitar a nave capitânea francesa, que haviam acabado de descobrir, por intermédio de suas próprias fontes... criados chineses na legação francesa tinham ouvido André e Seratard planejando, transmitiram a número um Chen, que dissera a Struan, que contara a ele, que relatara tudo a Sir William.
— Um conselho de guerra? Os dois?
— Sugiro nós quatro — disse André. — Eles vão precisar de ajudantes para pôr suas idéias em execução, mas quanto menos gente, melhor. Se mais tarde quiserem chamar o almirante e o general, tudo bem. Mas só mais tarde, entende?
— Uma Entente Cordiale! Falarei com o Velho pela manhã. Que tal às onze horas?
— Não pode ser às dez? Tenho um compromisso ao meio-dia.
André já acertara tudo com Seratard, ao voltar do encontro com Raiko:
— Henri, a reunião pode ser muito importante, e quanto mais a mantivermos em segredo dos outros ministros, melhor. Desta vez temos de fingir que estamos cem por cento com os britânicos. Eles é que têm os navios de guerra, não nós. Devemos encorajá-los a entrarem em guerra.
— Por quê?
— Estou deduzindo, pelas informações que Tyrer obteve de seu samurai domado Nakama... Henri, o japonês de Tyrer é espantosamente bom para o pouco tempo em que ele se encontra aqui. Tyrer possui uma aptidão extraordinária, e por isso devemos observá-lo com atenção, reforçar os laços de amizade. Tyrer descobriu que não há nenhum amor perdido entre esse Anjo e Toranaga Yoshi, que é um aristocrata como você, enquanto Anjo é mais um plebeu.
Divertira-o ver Seratard estufar com a lisonja... e não era mais aristocrata do que ele.
— Secretamente, encorajamos os britânicos a esmagar Anjo, enquanto nos distanciamos no último momento do conflito real, e ao mesmo tempo cultivamos Yoshi, como uma política nacional urgente e sigilosa. Vamos convertê-lo em aliado, devemos fazer isso, e depois, por seu intermédio, jogaremos os britânicos de volta ao esgoto, e controlaremos a presença estrangeira aqui.
— Como faríamos isso, André? Como podemos cultivá-lo?
— Deixe tudo comigo. — Ele apostava de novo que, através de Raiko, fornecendo a ela informações importantes, assim como dinheiro, poderia fazer os contatos certos para se aproximar de Yoshi. — Ele será nossa chave para abrir o Japão. Teremos de investir algum dinheiro, não muito. Mas no bolso certo...
Ele fizera uma pausa, soltara uma risadinha.
— Garanto o sucesso. Ele será nosso cavaleiro da reluzente armadura. Vamos ajudá-lo a se tornar Sir Galahad para arruinar os planos do rei Arthur de Wee Willie.
Por que não, ele disse a si mesmo, mais uma vez, parado ali, com Tyrer, outra peça essencial no tabuleiro de xadrez do domínio francês na Ásia. Phillip vai...
Por Deus! Ele quase explodiu quando a idéia incrível aflorou em sua mente: Se Struan morrer no duelo, e Angelique se tornar uma carta livre, ela poderia vir a ser uma Guinevere para esse japonês Yoshi? Por que não? Talvez ele apreciasse uma iguaria diferente. Através de Raiko, quem sabe se Angelique... pois ela ficaria perigosamente sem recursos e com isso seria vulnerável.
André riu, pôs a idéia de lado, como inebriante demais para considerar naquela noite.
— Phillip — disse ele, querendo que o inglês o considerasse seu melhor amigo —, se pudermos ajudar nossos superiores a chegar a uma solução definitiva e a pusermos em prática... o que acha disso?
— Seria maravilhoso, André!
— Um dia você será o embaixador aqui.
Tyrer riu.
— Não diga bobagem.
— Falo sério. — Apesar do fato de que sempre estariam em lados opostos e de sua necessidade de influenciá-lo, ele gostava sinceramente de Tyrer. — Dentro de um ano, você estará falando e escrevendo um japonês fluente, terá a confiança de Wee Willie, e contará com seu trunfo, Nakama, para ajudá-lo. Por que não?
— Por que não? — repetiu André, sorrindo. — É uma idéia agradável para encerrar uma noite. Bons sonhos, André.
Quase ninguém na colônia dormia tão contente quanto Angelique — a bomba lançada por Struan naquela noite, somada à ansiedade pela guerra iminente, no Japão e na Europa, manteve a maioria acordada.
— Como se não fosse suficiente ter de me preocupar com a nossa própria guerra civil — murmurou Dmitri para seu travesseiro, na profunda escuridão de seu quarto, no prédio da Cooper-Tillman.
As notícias que chegavam dos Estados Unidos eram cada vez piores, qualquer que fosse o lado que se apoiasse, e ele tinha parentes tanto no Sul quanto no Norte.
As baixas eram terríveis nos dois lados, havia pilhagens e incêndios, atrocidades, brutalidades, corrupções, tragédias monstruosas. Um tio escrevera de Maryland para informar que cidades inteiras eram incendiadas e saqueadas pelos guerrilheiros de Quantrill, do Sul, e pelos Jayhawkers, do Norte, e que os homens mais importantes do Norte haviam comprado para si mesmos e para seus filhos, legalmente, a isenção do serviço militar: A guerra está sendo travada pelos pobres, os desnutridos, os mal equipados. É o fim de nosso país, Dmitri...
Seu pai escrevera de Richmond, dizendo a mesma coisa: Não restará mais nada se a guerra se prolongar por outro ano. Absolutamente nada. É terrível ter de lhe contar, meu filho querido, mas seu irmão Janny foi morto na segunda batalha de Buli Run, pobre rapaz, nossa cavalaria foi dizimada, houve uma carnificina...
Dmitri revirava-se na cama, tentando pôr de lado o sofrimento de sua nação, mas não conseguia.
No clube, ainda havia discussões ruidosas e embriagadas entre os poucos mercadores que ainda se encontravam no bar. Uns poucos oficiais do exército e da marinha, Tweet e outros sentavam-se às mesas espalhadas pela sala, tomando o último drinque da noite.
Perto da janela, o conde Zergeyev e o recém-chegado ministro suíço, Fritz Erlicher, sentavam-se a uma mesa. O russo escondia seu divertimento e inclinou-se por cima dos copos de porto.
— São todos tolos, Herr Erlicher — disse ele, acima do burburinho.
— Acha que o jovem Struan pretende mesmo fazer o que disse?
— Ele falou sério, mas resta saber se essa política será ou não implementada. — Falavam em francês e Zergeyev explicou o conflito entre mãe e filho na Struan. — É esse o rumor atual, ela controla tudo, embora ele tenha o título legalmente.
— Se for implementada, seria bom para nós.
— Ah! Tem uma proposta?
— Uma idéia, conde Zergeyev.
Erlicher desfez o nó da gravata, passou a respirar com mais facilidade. O ar no clube era enfumaçado e abafado, o cheiro de cerveja e urina intenso, e a serragem no chão precisava ser trocada.
— Somos uma nação pequena e independente, com poucos recursos, mas com muita coragem e habilidade. Os britânicos, por quem vocês não sentem o menor amor, monopolizam a maior parte da fabricação de armamentos e a venda por toda a Europa... embora a fábrica de Krupp pareça promissora. — O homem barbudo e corpulento sorriu. — Soubemos que a Mãe Rússia possui substancial interesse nessa fábrica.
— Você me espanta.
Erlicher riu.
— Espanto a mim mesmo às vezes, Herr conde. Mas eu queria mencionar que dominamos os fundamentos da fundição de canhões e outras armas. Em particular, posso informá-lo que estamos negociando com a Gatling para fabricar sua metralhadora, sob licença. Já temos condições de abastecê-los com quaisquer armas que possam precisar, a longo prazo.
— Obrigado, meu caro senhor, mas não precisamos disso. O czar Alexandre II é um reformador, amante da paz, no ano passado emancipou nossos escravos, e este ano iniciou a reforma do exército, marinha, burocracia, judiciário, educação, de tudo enfim.
Erlicher sorriu.
— E, enquanto isso, ele preside a maior conquista territorial da história, subjugando mais povos do que qualquer outro soberano, à exceção de Genghis Khan e suas hordas mongóis. Genghis avançou para oeste... — O sorriso se alargou. — ...enquanto as hordas do seu czar espalham-se para leste. Por todo o continente! Imagine só! Por todo o continente, até o mar, através da Sibéria, até a península de Kamchatka. E isso não é o fim, não é mesmo?
— Não é? — murmurou o conde, sorrindo.
— Ouvimos dizer que o czar espera passar por sua nova fortaleza em Vladivostok para as ilhas japonesas, seguir para o norte, até as Kurilas, mais para o norte, até as Aleutas, para fazer a junção com o Alasca russo, que se estenderá até o norte da Califórnia. Enquanto o mundo dorme. Espantoso. — Erlicher tirou do bolso sua caixa de charutos, ofereceu. — Por favor... são os melhores cubanos.
Zergeyev pegou um charuto, cheirou-o, rolou-o entre os dedos, aceitou a chama estendida.
— Obrigado. E mesmo excelente. Todos os suíços são sonhadores como você?
— Não, conde. Somos amantes da paz, bons anfitriões de amantes da paz, mas permanecemos em nossas montanhas, bem-armados, observando o mundo exterior. Por sorte, nossas montanhas são inóspitas para aqueles que aparecem sem serem convidados.
Outra explosão de gritos distraiu-os por um momento, Lunkchurch, Swann, Grimm e outros mais clamorosos do que o habitual.
— Nunca estive na Suíça. Você deveria conhecer a Rússia. Temos muitas vistas para regalar os olhos.
— Já estive em sua linda São Petersburgo. Há três anos, passei alguns meses em nossa embaixada ali. A melhor cidade da Europa, em minha opinião, para quem é da nobreza, rico ou diplomata. Deve sentir muita saudade.
— Morro de saudade, mais do que pode imaginar. — Zergeyev suspirou. — Não demora muito agora para que eu volte. Já fui informado de que meu próximo posto será Londres... e aproveitarei para visitar suas montanhas.
— Eu me sentirei honrado em ser seu anfitrião. — Erlicher puxou o charuto, soltou um anel de fumaça. — Então, minha sugestão de um negócio não o interessa?
— É verdade que os britânicos monopolizam todos os tipos de empreendimentos, todas as rotas marítimas e os mares, todas as riquezas das terras subjugadas... — Não havia qualquer condescendência no sorriso de Zergeyev. — ...coisas que deveriam ser partilhadas.
— Neste caso, não deveríamos voltar a conversar num ambiente mais tranquilo?
— Durante o almoço, por que não? Sem dúvida, eu comunicaria tudo a meus superiores. Se houver uma necessidade futura, onde posso encontrá-lo ou a seus superiores?
— Aqui está meu cartão. Se perguntar por mim em Zurique, não terá qualquer dificuldade para me encontrar.
Erlicher observou-o ler a caligrafia magnífica do novo e milagroso processo de impressão que haviam acabado de inventar. O conde Zergeyev tinha feições elegantes, um aristocrata em todos os poros, com roupas impecáveis, enquanto sabia que as suas eram medíocres e que seus antepassados haviam sido meros camponeses. Mas não o invejava.
Sou um suíço, pensou ele. Sou livre. Não tenho de fazer uma reverência, ajoelhar ou tirar o chapéu para qualquer rei, czar, sacerdote ou homem — se não quiser. De certa forma, este pobre coitado ainda é um servo. Graças a Deus por minhas montanhas e meus vales, por meus irmãos e irmãs, por viver entre eles, todos livres, como eu sou livre, e assim permanecerei.
Perto do balcão, meio bêbado, cambaleando, Lunkchurch apoiava-se comicamente em outro homem e berrava a plenos pulmões:
— Que a porra do Struan perdeu a porra do juízo é uma porra...
— Por favor, Barnaby, pare de usar essa linguagem infame! — gritou o reverendo Tweet, abrindo caminho para a porta, o colarinho um pouco torto, o rosto vermelho e suado. — Quando se pensa a respeito, de um ponto de vista justo e inglês, não se pode deixar de reconhecer que o jovem Struan assumiu a posição moral correta.
Lunkchurch, completamente embriagado, fez um gesto grosseiro para o reverendo.
— Enfie a porra da santimônia na porra do rabo!
Roxo de raiva, o reverendo Tweet cerrou o punho e desferiu um golpe ineficaz. Os mais próximos de Lunkchurch o arrancaram do caminho, como sempre, enquanto outros cercavam Tweet, procurando acalmá-lo. Depois, Charlie Grimm, sempre disposto a aceitar um desafio, qualquer desafio, berrou acima do tumulto, e de seu próprio nevoeiro da embriaguez:
— Barnaby, prepare-se para encontrar seu criador!
Atenciosos, os homens ao redor se afastaram para lhes dar espaço, e os dois, sob aclamações, começaram a se esmurrar, com o maior empenho.
— Drinques por conta da casa! — ordenou o chefe dos barmen, para os que ainda se encontravam no clube. — Scotch para o reverendo, porto para o conde e seu convidado. E agora vocês dois parem de brigar!
Tweet aceitou o uísque e cambaleou para uma mesa bem distante dos dois brigões, que agora rolavam pelo chão, a beligerância ainda intensa. O barman suspirou, esvaziou um balde de água suja sobre eles, contornou o balcão, pegou um em cada mão e expulsou-os para a High Street, sob mais aplausos.
— Senhores, por favor, está na hora de fechar! — anunciou ele, sob vaias que logo cessaram.
Todos terminaram seus drinques e começaram a se retirar. Zergeyev e Fritz Erlicher ergueram o chapéu polidamente para o clérigo.
— Reverendo — disse Swann, o mercador magro que atuava como diácono —, que tal procurar pelos pecadores na cidade dos bêbados?
— Como se diz, Sr. Swann, já estou indo.
Em sua pequena casa, na Yoshiwara, Hinodeh esperava. Furansu-san dissera que viria naquela noite, mas podia se atrasar. Ela estava vestida para se despir, o quimono de noite e os quimonos interiores da melhor qualidade, os cabelos a rebrilhar, travessas de casco de tartaruga e de prata ornamentando o penteado armado, que deixava à mostra a nuca impecável, as travessas ali só para serem tiradas... para permitir que os cabelos caíssem até a cintura, escondendo o erótico.
Gostaria de saber o que há de tão erótico na nuca de uma mulher para excitar os homens, especulou ela; e por que escondê-la é também erótico? Ah, como os homens são estranhos! Mas Hinodeh sabia que deixar os cabelos caírem excitava Furansu-san, tanto quanto qualquer outro cliente, e essa era a sua única concessão ao pacto entre os dois. Não fazia qualquer outra coisa na luz.
No escuro, antes do amanhecer, quando estavam juntos, sua maiko acordava, e ela se vestia sem acender qualquer luz, quer ele despertasse também, ou não. Depois, ia para o outro quarto, fechava a porta, que a maiko ficava vigiando, e voltava a dormir, se por acaso se sentia cansada. Furansu-san concordara que nunca entraria naquele santuário... depois da primeira vez, ela insistira:
— Dessa maneira, a privacidade da noite pode se estender pelo dia.
— Como assim?
— Com isso, o que você viu uma vez nunca vai mudar, não importa o que os deuses determinem.
Um tremor percorreu seu corpo. Por mais que tentasse, não podia reprimir a sensação de que a semente do vil deus Pústula, implantada por Furansu-san dentro dela, estava adquirindo força, crescendo, preparando-se para irromper por toda parte. Todos os dias, ela se examinava. De uma forma meticulosa. Só podia confiar em Raiko para verificar naqueles pontos que ela não podia ver e que ainda continuavam imaculados.
— Todos os dias é demais, Hinodeh — dissera Raiko, antes de concordar com o contrato. — Pode não acontecer nada por anos...
— Sinto muito, Raiko-san. Todos os dias é uma condição.
— Por que resolveu concordar? Tem um bom futuro em nosso mundo. Talvez nunca alcance a primeira classe, mas é instruída, sua mama-san diz que tem uma longa lista de clientes, que está satisfeita com você, disse que poderia casar com um próspero mercador, fazendeiro ou fabricante de espadas, que é sensata, e não lhe faltaria uma boa união.
— Agradeço sua preocupação, Raiko-san, mas acertou com minha mama-san que nunca me interrogaria, nem bisbilhotaria meu passado, para descobrir de onde vim ou procurar explicações. Em troca, partilha com ela uma porcentagem do dinheiro que ganharei este ano, e talvez no outro. Deixe-me repetir: aceitei o contrato porque é o que desejo.
Isso mesmo, é o que desejo, e me sinto afortunada.
Tinha agora vinte e dois anos. Nascera numa fazenda nos arredores de Nagasáqui, na província de Hizen, na ilha do Sul. Aos cinco anos, fora convidada a ingressar no mundo flutuante por uma das muitas intermediárias que viajavam pelo país à procura de crianças que pudessem se tornar gueixas, pessoas das artes, as que podiam ser treinadas, como Koiko, nas artes, e não apenas como uma netsujo-jin, uma pessoa para a paixão. Seus pais concordaram, receberam dinheiro e uma nota promissória para cinco pagamentos anuais, a começar dez anos depois, a quantia dependendo do sucesso da criança.
Como uma pessoa da arte, ela não fora bem-sucedida — nem na samisen, a guitarra de três cordas, no canto, na dança, ou como atriz —, mas como uma pessoa de prazer, desde os quinze anos, quando fizera sua estréia, mais instruída do que suas contemporâneas, logo se tornara importante para sua mama-san e para si mesma. Naquele tempo, seu nome era Gekko, Raio de Luar, e embora houvesse muitos estrangeiros em Nagasáqui na ocasião, ela não conhecia nenhum, pois sua casa atendia apenas a japoneses, da mais alta ordem.
Em certo mês de outubro, o mês sem deuses, ela recebera um novo cliente. Era um ano mais velho do que ela, dezoito anos, um goshi, filho de um goshi — um espadachim médio, soldado médio, mas para ela a pessoa dos sonhos. Seu nome era Shin Komoda.
A paixão entre os dois desabrochara. Por mais que a mama-san tentasse reprimir o magnetismo mútuo — o rapaz era pobre, suas contas não eram pagas —, nada que ela pudesse dizer ou fazer tivera qualquer efeito. Até a primavera do ano seguinte. Sem dizer a Gekko, a mama-san fora à casa do rapaz, fizera uma reverência diante de sua mãe e pedira o pagamento, polidamente. Não havia dinheiro para pagar. A mãe pedira tempo. O rapaz fora proibido de ver Gekko outra vez. Ele simulou acatar a ordem dos pais, mas tal não aconteceu. Uma semana depois, disfarçados, eles fugiram juntos, desaparecendo no vasto porto. Ali, com os nomes trocados, e com algum dinheiro que Gekko guardara, além das jóias que trouxera, compraram passagens de terceira classe num navio de cabotagem que partia naquele dia para Iedo.
Em uma semana, Shin Komoda fora desonrado em sua aldeia e declarado ronin. A mama-san procurara de novo sua mãe. Era uma questão de honra que as contas do filho fossem pagas. Os cabelos compridos e belos constituíam o único bem de valor e o orgulho da mãe. Com a concordância do marido, ela fora a um fabricante de perucas de Nagasáqui. O homem comprara seus cabelos sem hesitação. O dinheiro fora suficiente para saldar as dívidas do filho. Assim, para eles, a honra fora resguardada.
Em Iedo, ao final do dinheiro, Gekko e Shin conseguiram encontrar alojamentos seguros nos cortiços da cidade. E um sacerdote budista para casá-los. Sem documentos, qualquer dos dois, e seu verdadeiro passado apagado, a vida era difícil, quase impossível, mas por um ano viveram felizes, conseguindo se sustentar no limiar da pobreza. O que não importava, pois se deleitavam na companhia um do outro, o amor aumentou e foi frutuoso. Embora o dinheiro de Gekko minguasse até acabar, por mais que ela tentasse ser prudente, e o pagamento de Shin mal desse para alimentá-los — só conseguira arrumar trabalho como guarda bordel de baixa classe, que nem ao menos ficava na Yoshiwara de Iedo —, não tinha importância.
Nada mais importava. Estavam juntos. Sobrevivendo. Ela mantinha os dois pequenos aposentos impecáveis, converteu-os num palácio e santuário para ele e a criança. Por mais que Gekko propusesse, ele sempre recusava.
— Nunca, mas nunca mesmo, nenhum outro homem haverá de conhecê-la! Quero que jure!
E ela jurara. Quando o filho tinha um ano de idade, Shin morrera numa briga. Com sua morte, a luz se apagara em Gekko.
Uma semana depois, a mama-san do bordel lhe fizera uma proposta. Ela agradecera e recusara, dizendo que voltaria para sua casa em Nara. Comprara no mercado uma vela nova, vermelha, e acendera-a naquela noite, quando o menino dormia, para observá-la e pensar no que deveria fazer, até que a chama se extinguisse, prometendo aos deuses que, ao final, decidiria o que era melhor para o filho, pedindo-lhes ajuda para tomar a decisão mais sábia.
A chama se extinguira, e a decisão fora simples e correta: Deveria mandar o filho para os pais de Shin. O menino iria sozinho — fingiria que ela e o marido haviam cometido o jinsai, o suicídio ritual conjunto, como expiação aos pais de Shin pelo sofrimento que haviam lhe causado. Para ser aceito, o filho deveria ter pelo menos um ano de dinheiro, de preferência mais. Deveria estar bem vestido e viajar com uma ama de confiança, o que implicava mais dinheiro. Só assim ele poderia obter sua herança, virar um samurai. Por último, não havia sentido em obedecer ao juramento feito a um morto, quando o futuro do filho vivo se encontrava em jogo.
Pela manhã, ela deixara o filho com uma vizinha, com o resto do dinheiro comprara o melhor quimono e a melhor sombrinha que pudera encontrar no mercado dos ladrões. Depois, sem mais nenhum dinheiro, fora à melhor cabeleireira, perto dos portões da Yoshiwara de Iedo. Ali, trocara um mês de ganhos futuros pelo penteado mais moderno, massagem, maquilagem, manicure, pedicure e outros cuidados... e informações.
As informações custaram mais um mês.
Naquela tarde, ela passara pelos portões, e fora direto para a casa da Glicínia. A mama-san era igual a todas as outras que já conhecera, sempre a perfeição no traje e no penteado, sempre um pouco corpulenta demais, com uma maquilagem que mais parecia uma máscara, olhos gentis com os fregueses, mas que podiam se tornar duros como granito de um momento para outro, olhos que podiam fazer as moças tremerem de medo, e sempre exalando a fragrância do melhor perfume que podia comprar, mas nem assim encobrindo o cheiro persistente de saquê. Aquela mama-san era magra, e seu nome era Meikin.
— Sinto muito, mas não aceito damas sem documentos nem história — dissera a mama-san. — Respeitamos a lei aqui.
— Sinto-me honrada em saber disso, madame, mas tenho uma história, e com sua ajuda posso inventar outra, para satisfazer os mais inquisitivos representantes do Bakufu, e ao mesmo tempo resistir à investigação mais meticulosa de um bisbilhoteiro.
Meikin riu. Os olhos permaneceram sérios.
— Que treinamento você teve, onde? E qual é o seu nome?
— Meu nome é Hinodeh. O onde não tem importância, não é?
Gekko falara sobre as mestras de gueixa, e seu fracasso em corresponder às expectativas. Depois, relatara seu treinamento prático, os tipos de clientes que tivera e quantos.
— Interessante. Mas, sinto muito, não tenho vaga aqui, Hinodeh — dissera a mulher, com extrema gentileza. — Volte amanhã. Farei indagações, talvez alguma amiga possa aceitá-la.
— Por favor, posso pedir que reconsidere? — Claro que no dia seguinte ela também não seria admitida, sob algum pretexto. — Afinal, é a melhor, a mais digna de confiança.
Ela rangera os dentes e acrescentara, a voz suave, torcendo para que a informação fosse correta:
— Até mesmo os shishi sabem disso.
A cor se esvaíra do rosto da mama-san, embora sua expressão não se alterasse.
— Você e seu amante fugiram e agora ele a abandonou?
— Não, madame.
— Neste caso, ele morreu.
— Isso mesmo, madame.
— E teve uma criança ou crianças?
— Um filho.
A mulher mais velha suspirou.
— Um filho. Ele está com você?
— Está com a família do pai.
— Qual é a idade dele?
— Um ano e três meses.
Meikin pedirá chá e beberam em silêncio. Gekko tremia por dentro, com medo de ter ido longe demais na ameaça, convencida de que a outra mulher especulava de onde vinha a informação, e como ela, uma estranha — um fato bastante perigoso, por si só —, tomara conhecimento. Ou se ela era uma espiã do xogunato. Se eu fosse uma espiã, raciocinara Gekko, com toda certeza não diria isso, não na primeira entrevista. Ao final, a mama-san dissera:
— Não poderá ficar aqui, Hinodeh, mas tenho uma irmã que possui uma excelente casa na rua seguinte. Há um preço para a apresentação.
— De antemão, devo lhe agradecer humildemente por ajudar.
— Primeiro, tem de jurar que vai eliminar os maus pensamentos de sua cabeça. Para sempre.
— Por minha vida.
— Pela vida de seu filho é melhor.
— Pela vida de meu filho.
— Segundo, será uma exemplar dama do nosso mundo, calma, obediente, merecedora de confiança.
— Por minha vida e pela vida do meu filho.
— Terceiro... o terceiro pode esperar até sabermos se minha irmã concorda em socorrer a pessoa que vejo diante de mim.
O terceiro era uma questão de dinheiro, a divisão entre as duas mama-sans. Tudo fora acertado de maneira satisfatória. Gekko fizera um acordo financeiro com a vizinha, para que cuidasse de seu filho, visitando-o em segredo a cada duas semanas, pela manhã, no seu dia de folga, a mentira que dissera a Meikin não chegando a ser uma mentira total, já que ele seria enviado mesmo para a família do pai.
E logo, mais uma vez, ela se tornara popular, mas não bastante popular, o pagamento à cabeleireira tornara-se contínuo, o que também acontecia com a massagista, com a mulher que fazia suas roupas. Nunca restava o suficiente para guardar. A esta altura, o filho era um segredo aberto, pois as duas mama-sans a vigiavam, mandaram segui-la. Nunca lhe mencionaram o filho, compreendendo a situação, com compaixão. Até que um dia sua mama-san a chamara e falara sobre o gai-jin que pagaria bastante, adiantado, para enviar o filho ao seu futuro, com dinheiro para dois anos de sustento, no mínimo dois, e ainda restaria o suficiente para garantir sua viagem são e salvo até o lugar em que viveria.
Ela aceitara com alegria.
Depois da primeira noite terrível, sentira vontade de acabar com sua vida, o homem era bestial. Por mais que chorasse e suplicasse, Raiko recusara, implacável, pois avisara-a antes que isso não seria possível, pelo menos por um mês. Por sorte, houvera dias para a recuperação e para as duas planejarem uma defesa. E essa defesa conquistara o animal, como ela se referia ao gai-jin, e conseguira mudá-lo, temporariamente. Agora, ele se mostrava dócil, chorava muito, exigia paixão em todas as suas aberrações, mas por baixo de seu comportamento manso e agradável dava para sentir a violência, ainda borbulhando, pronta para explodir.
No ambiente tranqüilo e agradável, Hinodeh agora esperava, os nervos tensos. No momento em que ele bateu no portão da rua, sua maiko veio correndo para avisá-la. Como ainda tinha tempo, ela sentou na posição do lótus, para meditar, enviou sua mente para zen. E logo estava preparada.
A união com o animal era suportável. Curioso como ele é diferente, pensou Hinodeh, com uma compleição diferente de uma pessoa civilizada, um pouco mais comprido e mais largo, mas sem a firmeza e a força de uma pessoa civilizada.
Muito diferente de Shin, que era doce, suave e forte. Curiosamente, não havia em seu marido qualquer sinal de seu ancestral gai-jin, Anjin-san, que dois séculos e meio antes assumira o nome de Komoda para sua segunda família, em Nagasaqui; a primeira família vivia em Izu, onde ele construíra navios para seu suserano, o xógum Toranaga.
Graças a todos os deuses por ele. Por sua causa, meu Shin pôde nascer, e nasceu samurai, assim como nosso filho.
Ela sorriu, feliz. O filho partira há quase três semanas, com dois criados de confiança. Levavam um título financeiro, a ser sacado da Gyokoyama, em nome da mãe de Shin, para quase três anos de casa e comida para o menino, e também para os avós.
Tudo resolvido, pensou ela, orgulhosa. Cumpri meu dever para com nosso filho, Shin-sama. Protegi sua honra. Tudo estava em ordem. Até mesmo a indagação final de Raiko, antes de acertarem a derradeira cláusula do contrato com o animal:
— Por último, Hinodeh, o que devo fazer com o seu corpo?
— Jogue-o na pilha de estrume, pois nada importa, Raiko-san, ele já está profanado. Deixe-o para os cães.
IOCOAMA, Terça-feira, 9 de dezembro:
Na claridade que antecedia o amanhecer, o cúter da Struan afastou-se da fragata Pearl e voltou para o cais da companhia. Desenvolvia a velocidade máxima, deixando uma trilha de fumaça em sua esteira. O vento era firme, soprando de terra, com o céu nublado, que prometia se abrir por volta de meio-dia.
O binóculo do contramestre fixava as janelas do prédio da Struan. Havia uma luz acesa, mas não dava para determinar se Struan se encontrava ali ou não. E foi nesse momento que o motor engasgou, parou, e seus colhões pareceram subir, atingindo-o no queixo. Toda a vibração do barco cessou. Poucos segundos depois, o motor pegou de novo, mas tornou a engasgar, pegou mais uma vez, só que agora fazia um barulho estranho.
— Deus Todo-Poderoso! Roper, desça para ver o que aconteceu! — gritou ele para o mecânico. — E vocês outros, tratem de pegar remos, para o caso de enguiçarmos... McFay vai nos esfolar vivos se pararmos... Roper, qual é o problema, pelo amor de Deus? Diga logo o que aconteceu!
Outra vez ele fixou o binóculo na janela. Nenhum sinal de ninguém. Mas Struan se encontrava ali, seu binóculo focalizando o cúter. Observava-o desde que alcançara a fragata. Ele praguejou, pois agora podia ver o contramestre com toda clareza, e o homem deveria saber que era observado, poderia facilmente transmitir um sinal, sim ou não.
— A culpa não é dele — murmurou Malcolm. — Foi você quem esqueceu de combinar um sinal. Idiota!
Ora, não tinha importância, pois o tempo era bom, não havia qualquer prenúncio de uma tempestade, e uma pequena chuva não afetaria a Pearl. Ele tornou a focalizar a nave capitânia. Seu cúter voltava de uma visita à Pearl. Devia ter ido até lá para entregar as ordens.
A porta por trás dele foi aberta, e Chen entrou, jovial, trazendo uma xícara de chá fumegante.
— Bom dia, tai-pan. Não está mais dormindo, um bom chá, chop chop?
— Quantas vezes tenho de lhe dizer para falar uma língua civilizada e não pidgin? Seus ouvidos ficaram entupidos com a bosta dos ancestrais e seu cérebro coalhou?
Chen manteve o sorriso no rosto, mas soltou um resmungo interior. Esperava que o gracejo arrancasse uma risada de Struan.
— Ah, sinto muito. — Ele acrescentou a tradicional saudação chinesa, o equivalente a “bom dia”. — Já comeu arroz hoje?
— Obrigado.
Pelo binóculo, Malcolm viu um oficial sair do cúter e subir para a nave capitânia. Nada que indicasse qualquer coisa. Droga!
Ele pegou a xícara.
— Obrigado.
No momento, não sentia qualquer dor especial, apenas a dor constante normal, suportável. Já tomara sua dose matutina. Durante a última semana, conseguira reduzir a quantidade. Agora, tomava uma dose pela manhã e outra à noite, mas...
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