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Quando o porteiro saiu da cabina telefônica 7, uma leve palidez se espalhava em suas faces; procurou o boné, que colocara sobre o aparelho de calefação do compartimento dos telefones.
— Que foi? — perguntou a telefonista, sentada diante do quadro de comutadores, com os fones nos ouvidos e os pinos vermelhos e verdes entre os dedos.
— É que levaram minha mulher às pressas para o hospital. Não sei o que significa isso. Ela está pensando que a coisa já começou. Mas ainda não está no prazo, meu Deus! — disse o porteiro.
A telefonista mal o ouviu, porque tinha de fazer uma ligação.
— Paciência... É preciso não perder a calma, Herr Senf — disse entre uma ligação e outra. — Amanhã cedo há de nascer o seu filho, fique sossegado.
— Muito obrigado por ter-me chamado ao telefone. Na portaria eu não posso anunciar a todos os ventos os meus assuntos particulares. Serviço é serviço.
— É claro. Quando a criança nascer, eu o chamarei — disse a telefonista, distraída.
E continuou a fazer ligações. O porteiro apanhou o boné e se retirou na ponta dos pés. Fê-lo inconscientemente, porque sua mulher estava acamada, para dar à luz. Quando atravessou o corredor, para onde davam as salas de correspondência e de leitura, agora silenciosas e a meia-luz, suspirou profundamente e passou a mão pelo cabelo. Surpreso, percebeu que ela ficara úmida, mas não pensou em lavar as mãos, para não perder tempo. Afinal, não se podia exigir que o movimento do hotel parasse, só porque o porteiro Senf ia ser pai. Do tea-room, na nova ala do hotel, a música vinha vibrando em síncopes saltitantes, ao longo dos espelhos das paredes. O cheiro amanteigado de carne assada, próprio da hora do jantar, evolava-se discretamente, mas, por trás das portas do salão de refeições, ainda estava tudo vazio e silencioso. No salãozinho branco, o garde-manger Mattoni preparava os frios. O porteiro, sentindo uma estranha fraqueza nos joelhos, parou à porta e fitou, atordoado, os globos multicolores de luz elétrica que cintilavam por trás dos blocos de gelo. No corredor, um monteur, de joelhos no chão, fazia um conserto na instalação elétrica. Desde que havia colocado o enorme refletor na fachada do hotel, havia sempre um desarranjo na instalação, sobrecarregada. O porteiro deu uma pequena ordem às suas pernas bambas e dirigiu-se ao seu posto. Deixara a portaria aos cuidados de Georgi, um rapazinho, filho do proprietário de uma grande rede de hotéis. O pai desejava que seu futuro sucessor conhecesse a profissão desde as mais humildes ocupações, e por isso o filho trabalhava ali gratuitamente. Senf, sentindo uma certa angústia, atravessou às pressas o hall, repleto de gente que se movimentava. Ali, a música de jazz do tea-room se misturava aos lânguidos sons dos violinos do jardim de inverno, ao murmúrio do repuxo da fonte luminosa, gotejando numa imitação de bacia veneziana, ao tilintar dos copos nas mesinhas e ao ranger das cadeiras de vime; o mais brando sussurro era o suave frufru das peliças e dos vestidos de seda das senhoras, que se diluía no harmonioso burburinho. Pela porta giratória, a fresca brisa de março penetrava em espirais, em pequenas golfadas, sempre que o groom fazia entrar ou sair os hóspedes.
— All right! — disse Georgi, quando o porteiro Senf, apressando os passos, chegou à portaria, como se chegasse ao refúgio de um porto. — Chegou a correspondência das sete. A senhora do quarto 68 armou um escândalo porque não encontraram logo o chofer. É um tanto histérica essa senhora, hein?
— Quarto 68... é a Grussinskaia — disse o porteiro, enquanto com a mão direita começava a separar a correspondência. — É a bailarina, já estamos acostumados. Há dezoito anos. Todas as noites, antes de apresentar-se em público, fica nervosa e provoca um escândalo.
No hall um senhor levantou-se do seu maple; era um senhor de boa estatura, cujas pernas pareciam atacadas de ancilose. Aproximou-se da portaria de cabeça baixa e deu uns giros pelo hall antes de passar ao vestíbulo, procurando ter o aspecto de alguém que nada espera, mas se aborrece. Observou as revistas na pequena banca de jornais, acendeu um cigarro e aproximou-se do porteiro, perguntando distraído:
— Chegou correspondência para mim?
O porteiro, por seu lado, prontificou-se também a representar uma pequena comédia. Examinou primeiro a caixa 218, antes de responder:
— Desta vez, infelizmente, nada, doutor.
Então o senhor alto movimentou-se de novo a passos lentos, fazendo um caminho complicado para chegar ao seu maple, onde se deixou cair de pernas rígidas, ficando a olhar para o hall com expressão de quem não vê. Seu rosto, aliás, consistia em uma só face, um perfil requintado e agudo de jesuíta, terminando numa orelha muito bem delineada e escondida sob os fios ralos de cabelo grisalho da têmpora. A outra face não existia. Em seu lugar havia apenas uma mescla confusa de traços remendados e ligados desordenadamente. Por entre suturas e cicatrizes, espiava um olho de vidro. O Dr. Otternschlag, quando conversava a sós consigo mesmo, costumava chamar seu rosto de souvenir de Flandres... Ficou sentado a observar os capitéis de gesso dourado das colunas de mármore que já estava farto de conhecer; depois, com o olho que não via, fitou longamente o hall, que se esvaziou rapidamente porque o espetáculo ia começar. Em seguida ergueu-se de novo e, com seu andar desconjuntado de marionete, encaminhou-se para a cabina do porteiro, onde Herr Senf, já desligado de sua vida privada, se desincumbia conscienciosamente dos deveres de seu cargo.
— Ninguém perguntou por mim? — perguntou o Dr. Otternschlag, olhando para o balcão de mogno coberto de vidro, onde o porteiro costumava depositar os bilhetes e recados.
— Ninguém, doutor.
— Algum telegrama? — perguntou em seguida o Dr. Otternschlag. Herr Senf teve a gentileza de procurar de novo na caixa 218, apesar de saber de antemão que nada havia nela.
— Hoje não, doutor — disse ele. Com grande amabilidade acrescentou: — Talvez o doutor queira ir ao teatro. Ainda tenho um camarote para o espetáculo da Grussinskaia, no Teatro do Oeste.
— Da Grussinskaia! — disse o Dr. Otternschlag. Conservou-se ainda um momento imóvel; depois, passando pelo vestíbulo e atravessando o hall numa linha curva, voltou à sua cadeira. "Agora, nem mesmo a Grussinskaia consegue casa cheia", pensou ele. "É natural. Nem eu próprio a quero ver mais..." Cheio de melancolia, enterrou-se de novo na poltrona.
— Este homem cansa a gente — disse o porteiro a Georgi. — Sempre perguntando pela correspondência. Há dez anos que se hospeda aqui por alguns meses, e nunca chegou carta nenhuma para ele nem nenhum gato-pingado perguntou por ele. E um homem desses ainda fica sentado, esperando.
— Quem é que está esperando? — perguntou do compartimento ao lado o chefe de recepção, Herr Rohna, esticando a cabeça meio ruiva por sobre a divisão baixa de vidro. Mas o porteiro não respondeu logo; parecia-lhe estar ouvindo os gritos de sua mulher — transportava para o exterior o que ouvia interiormente. Em seguida, os assuntos privados mergulharam em seu íntimo porque teve que ir ajudar Georgi a explicar em espanhol ao senhor mexicano do quarto 17 uma complicada conexão de trens. O groom 24, com as faces afogueadas e o cabelo bem alisado com água, saiu correndo do elevador, exclamando, alegre e excitado — em voz demasiado alta para um hall tão distinto:
— Mandem chamar o chofer do Barão Gaigern!
Rohna ergueu a mão, num gesto de censura e apaziguamento, como um diretor de orquestra. O porteiro telefonou, chamando o chofer. Georgi arregalou seus olhos de rapazinho, com expressão de curiosidade. Espalhou-se no ar um aroma de alfazema e de cigarro fino. Após o aroma, um homem, cuja aparência chamava a atenção, entrou pelo hall, e várias pessoas o olharam. A senhorita cor de cera da banca de jornais sorriu. O homem também sorriu, sem nenhuma razão aparente, simplesmente porque se sentia satisfeito com sua própria pessoa, conforme parecia. Era de estatura fora do comum e trajava-se muito bem, também de maneira pouco usual. Tinha um andar elástico, como o de um gato ou de jogador de tênis. Não usava sobretudo sobre o smoking, mas um trench coat azul-marinho, que não combinava com o smoking. Toda a sua figura tinha um ar de gracioso desleixo. Deu uma palmadinha no crânio molhado do groom 24, estendeu o braço sobre o balcão do porteiro, sem olhar, e recebeu um punhado de cartas que enfiou simplesmente no bolso, de onde tirou suas luvas de camurça pespontada. Cumprimentou com um gesto amistoso o chefe de recepção, como a um camarada. Pôs na cabeça o chapéu de feltro escuro e, tirando do bolso uma cigarreira, colocou um cigarro entre os lábios, sem o acender. Porém imediatamente se descobriu de novo, afastando-se para deixar passar duas senhoras pela porta giratória. Era a Grussinskaia, delgada e miúda, enfiada até o nariz em uma pele, seguida de uma sombra apagada que ia levando as malas. Quando o encarregado dos carros, lá fora, instalou as duas no automóvel, o simpático senhor de impermeável azul acendeu o cigarro, tornou a enfiar a mão no bolso e meteu uma moeda na mão do boy 11, o encarregado da porta giratória. Depois desapareceu por entre os balouçantes espelhos da porta giratória, com a expressão feliz de um rapazinho a quem deram licença para andar de carrossel.
Quando esse cavalheiro, esse senhor, esse encantador Barão Gaigern saiu do hall, fez-se de súbito enorme silêncio, ouvindo-se então o jorro da fonte luminosa a tombar com um murmúrio fresco e suave na bacia veneziana. É que o hall se esvaziara; o jazz-band do tea-room parará de tocar, a música da sala de refeições ainda não principiara e o trio do Salão Vienense, do jardim de inverno, fazia uma pausa. No súbito silêncio penetrou o ruído excitado e incessante das buzinas dos automóveis que passavam diante da entrada do hotel, em seu movimento noturno. Mas dentro do hall o silêncio permaneceu, como se o barão tivesse carregado consigo a música, o ruído e o burburinho humano. Georgi apontou com a cabeça para a porta giratória e disse: — Bom sujeito. Queira Deus que ele não mude.
O porteiro encolheu os ombros, como bom conhecedor dos homens.
— A questão é saber se é bom de fato. Ele tem um certo jeito... não. Dá-me a impressão de ser uma pessoa leviana. O modo de andar e as gordas gorjetas... parece coisa de cinema. Quem é que viaja hoje em dia com esse luxo — a não ser um vigarista? Se eu fosse o Pilzheim, tratava de abrir os olhos.
Rohna, o chefe de recepção, que tinha os ouvidos em toda parte,- estendeu de novo a cabeça por cima da divisão de vidro; sob os raros fios de cabelo meio ruivo, brilhava-lhe a pele acinzentada do crânio.
— Deixe disso — disse ele; — Gaigern é boa pessoa, eu o conheço. Foi educado em Feldkirch, com meu irmão. Por causa dele não é preciso ir incomodar o Pilzheim. (Pilzheim era o detetive do Grande Hotel).
Senf fez continência, calando-se respeitosamente. Rohna sabia o que estava dizendo. O próprio Rohna era também um conde, um Rohna da Silésia, antigo oficial, um sujeito direito. Senf fez novamente continência, enquanto a cara de galgo de Rohna se afastava e o conde continuava suas ocupações por detrás da parede de vidro fosco, como uma sombra.
O Dr. Otternschlag, lá no seu canto, conservara o busto meio erguido, enquanto o barão estivera no hall, e depois voltara a encolher-se, mais sombrio ainda. Entornou com o cotovelo seu copo de conhaque, com bebida até a metade, mas nem se dignou olhar. Suas mãos magras, amarelecidas pelo fumo, pendiam entre os joelhos abertos, pesadas como se estivessem metidas em luvas de chumbo. Por entre suas compridas botinas de verniz, olhava o tapete que cobria o hall e todas as escadarias, passagens e corredores do Grande Hotel: já estava farto do seu desenho de trepadeiras, com o ananás verde-amarelo por entre as folhas pardacentas, sobre um fundo vermelho-framboesa. Tudo estava morto... A hora estava morta. O hall estava morto. Todos tinham ido cuidar de seus negócios, viver seus prazeres e seus vícios, deixando-o ali abandonado. No meio desse vazio, viu-se de súbito o vulto da encarregada do vestiário aparecer por trás do balcão e alisar com um pente preto o cabelo ralo de sua cabeça de velha. O porteiro saiu do seu cubículo e disparou, sem guardar as conveniências, atravessando o hall em direção ao compartimento dos telefones. Parecia estar pressentindo alguma coisa. O Dr. Otternschlag procurou seu conhaque e não o encontrou. "Vamos agora para o quarto nos deitar?", perguntou a si mesmo. Um fraco e bruxuleante rubor tingiu suas faces e desapareceu, como se ele houvesse traído um segredo, revelando-o a si próprio. "Vamos", respondeu com os seus botões. Mas não se levantou, porque até isso o deixava indiferente. Levantou o indicador amarelo e Rohna, no outro extremo do hall, percebendo o gesto invisível, providenciou auxílio ao doutor.
— Cigarros, jornais — disse ele sem se mover. O menino disparou até a senhorita cataléptica da banca de jornais. Rohna olhou com ar de reprovação aquela intempestiva vivacidade juvenil; depois, Otternschlag tomou os jornais e os maços de cigarro que o groom tinha ido buscar para ele e pagou colocando o dinheiro na mesinha e não na mão do groom, pois costumava sempre conservar distância entre si e os demais, sem o perceber. A metade intacta de sua boca chegou a imitar um sorriso, quando abriu os jornais e começou a ler; esperava sempre encontrar nos jornais qualquer coisa que eles não traziam, tal como acontecia com as cartas, os telegramas e os chamados, que jamais chegavam para ele. Estava terrivelmente só, com uma impressão de vazio, isolado da vida. Às vezes, quando conversava a sós consigo mesmo, costumava fazê-lo em voz alta. "É horrível", dizia-se com frequência, estacando sobre a passadeira cor de framboesa, assustado com sua própria pessoa. "É horrível. Nenhuma vida. Nenhuma espécie de vida. Mas por onde andará ela? Nada acontece. Nada sucede. É uma tristeza. Só velhice e morte. É horrível." As coisas que o rodeavam pareciam miragens. O que ele tocava se desfazia em pó. O mundo era uma coisa inconsistente, impossível de segurar ou reter. Caía-se de um vazio em outro vazio. Carregava-se um saco de trevas dentro de si. O Dr. Otternschlag vivia na mais profunda solidão, apesar de o universo estar povoado por seus semelhantes.
Nos jornais, nada encontrou que o satisfizesse. Um tufão, um terremoto, uma guerra pouco importante entre pretos e brancos. Incêndios, assassinatos, lutas políticas. Nada. Muito pouco. Escândalos, pânico na Bolsa, derrocada de fortunas imensas. Que tinha ele com isso? Que sentimento lhe provocava tudo isso? Um voo através do oceano, recordes de velocidade, notícias sensacionalistas, com títulos de uma polegada de altura. Cada jornal gritava mais que o outro, e finalmente não se ouvia mais nenhum; os homens acabavam por se tornar cegos, surdos e desprovidos de sentimentos, com a ruidosa atividade da época moderna. Figuras de mulheres nuas, coxas, seios, dentes, ofereciam-se abertamente, aos montões. Também o Dr. Otternschlag, noutros tempos, possuíra mulheres! Lembrava-se disso sem saudades, apenas com um friozinho a descer-lhe pela espinha. Deixou que os jornais lhe caíssem simplesmente da mão amarelecida pelo fumo, sobre o tapete de ananases, de tal modo o aborreciam e lhe eram indiferentes. — Não, não acontece nada, absolutamente nada — disse a si mesmo, a meia voz. Noutros tempos, tivera uma gatinha persa, chamada Gurbal; desde que ela fugira com um gato vadio de água-furtada, via-se obrigado a dialogar consigo mesmo.
No momento em que, caminhando em linhas curvas, se dirigia à portaria para ir buscar a chave do quarto, um indivíduo esquisito empurrou a porta giratória, no vestíbulo.
— Senhor, aí está o homem de novo! — disse o porteiro a Georgi, olhando fixamente para o indivíduo, com seu olhar enérgico de primeiro-sargento. Esse indivíduo, o tal homem, destoava completamente no hall do Grande Hotel. Usava um chapéu de feltro, redondo, barato, novo, um pouco largo para a sua cabeça, mas que orelhas caídas seguravam, evitando que escorregasse ainda mais para a frente. Tinha um rosto amarelado, o nariz afilado e tímido, compensado por um bigode imponente, de corte muito apreciado pelos diretores de associações. Vestia um sobretudo estreito, verde-acinzentado, velho e lamentavelmente fora de moda; calçava botinas pretas, que pareciam demasiado grandes para a sua pequena estatura, com os canos a espiarem por baixo das calças pretas, muito curtas. Usava luvas de linha cinzentas e segurava uma mala, imitando couro, que parecia pesada demais para ele; segurava-a pela alça, com ambas as mãos de encontro ao estômago; debaixo do braço trazia ainda um pacote engordurado, envolto em papel marrom. O homem tinha um aspecto realmente grotesco e lamentável; e parecia cansadíssimo. Mas quando o groom 24 tentou tirar de suas mãos a mala, não a entregou, parecendo confuso com essa cortesia do boy. Só defronte do balcão de Herr Senf, colocou a mala no chão, e, meio ofegante, curvou-se à guisa de cumprimento, dizendo com uma voz aguda e agradável:
— Meu nome é Kringelein. Já estive aqui duas vezes. Vim informar-me de novo.
— Faça o favor de dirigir-se aqui ao lado, mas acho que não há nenhum quarto vago — disse o porteiro, apontando Rohna. — Aquele senhor está esperando há dois dias que vague um quarto — explicou, olhando por cima da divisão de vidro.
Rohna, sem voltar os olhos para o recém-chegado, tirara as suas conclusões e, por mera cortesia, fingiu estar folheando o livro de registro de hóspedes. Depois disse:
— Infelizmente, no momento está tudo ocupado. Sinto muitíssimo.
— Ainda está ocupado? Muito bem, e onde vou hospedar-me então? — perguntou o indivíduo.
— O senhor não quer ir ver nos arredores da estação, em direção da Friedrichstrasse? Há ali uma porção de hotéis.
— Não, muito obrigado — disse o homem. Tirou um lenço do bolso do sobretudo e passou-o nervosamente pela testa suada. — Quando cheguei estive num desses hotéis e não gostei. Quero hospedar-me num lugar distinto.
Ao colocar sob o braço esquerdo o guarda-chuva molhado, deixou cair o engordurado pacote que tinha debaixo do braço direito, mostrando algumas fatias de pão com manteiga — já tortas, de tão ressequidas. O Conde Rohna disfarçou um sorriso; Georgi virou-se para o quadro das chaves. O groom 17, corretíssimo, juntou os pedaços de pão seco, que o homem, com os dedos trêmulos, enfiou no bolso. Tirou o chapéu e colocou-o diante de Rohna, sobre o balcão. Tinha a testa alta e enrugada, e as têmporas fundas e azuladas. Seus olhos vesgos, de um azul muito claro, espiavam por trás de um pince-nez que estava sempre a querer escorregar pelo nariz afilado.
— Eu queria ficar hospedado aqui. Afinal há de vagar algum quarto. Faça o favor de reservar-me o primeiro quarto que desocupar. Já é a terceira vez que venho aqui; o senhor pensa que isso me diverte? Não é possível que esteja sempre tudo ocupado, não é mesmo?
Rohna encolheu os ombros, lamentando. Durante um instante ficaram todos calados, e pôde-se ouvir a música da sala vermelha de refeições e o jazz band, que estava agora no pavilhão amarelo. Já se encontravam de novo sentados no hall vários senhores, e alguns deles olharam para o indivíduo com ar de estarem se divertindo, e ao mesmo tempo estranhando sua aparência.
— O senhor conhece o Diretor-Geral Preysing? Ele também se hospeda sempre aqui, quando vem a Berlim, não é verdade? Pois é. Eu também quero me hospedar aqui. Tenho um assunto urgente a tratar, uma conferência importante com Preysing. Aliás, ele próprio me pediu para encontrar-me aqui com ele. Aconselhou-me a hospedar-me aqui. Foi ele quem me recomendou este hotel. Vim por recomendação do Diretor-Geral Preysing. Por favor. Quando vai vagar um quarto?
— Preysing? O Diretor-Geral Preysing? — perguntou Rohna a Senf, do outro lado do vidro.
— De Fredersdorf; da Indústria Algodoeira Saxônia S.A. Eu também sou de Fredersdorf — disse o indivíduo.
— É, sim — lembrou-se o porteiro —, um Herr Preysing já esteve várias vezes aqui.
— Eu acho que pediram um quarto para ele, para amanhã ou depois de amanhã — murmurou Georgi, querendo mostrar-se solícito.
— O senhor quer tentar mais uma vez amanhã, quando Herr Preysing estiver aqui? Ele chega hoje de noite — disse Rohna, depois de folhear os seus livros e de encontrar o pedido de reserva.
Estranhamente, essa notícia pareceu assustar o homem.
— Vai chegar? — disse ele, com uma expressão de angústia, entortando ainda mais os olhos vesgos. — Está bem... vai chegar hoje mesmo. Bem. E há um quarto para ele? Quer dizer que há quartos vagos? Meu Deus, por que será que o diretor-geral tem um quarto e eu não? Que significa isso? É um desaforo que eu não posso admitir! Como? Ele reservou com antecedência? Faça o favor, eu também fiz uma reserva de quarto. É a terceira vez que venho aqui, é a terceira vez que arrasto esta mala pesada, faça o favor. Está chovendo, os ônibus estão cheios, eu não estou passando bem de saúde. Então? Quantas vezes devo fazer ainda esta caminhada? Como? Por quê? Isso não é modo de se tratar ninguém. Este é o melhor hotel de Berlim? Como? É? Pois bem, eu quero hospedar-me no melhor hotel de Berlim. Será que é proibido? — fitou a todos, um a um. — Estou cansado — acrescentou ainda —, estou extremamente cansado — disse. Notava-se seu cansaço e o esforço ridículo para se expressar com termos escolhidos.
De súbito, o Dr. Otternschlag meteu-se na conversa. Durante todo o tempo ele ficara parado, segurando a chave de seu quarto, presa a um grande quadrado de madeira, com o cotovelo fincado no balcão da portaria.
— Se este cavalheiro faz tanta questão, pode ficar com meu quarto — disse Otternschlag. — Para mim não faz diferença morar aqui ou ali. Mandem subir a mala dele. Eu posso mudar-me. Minhas malas estão prontas. Minhas malas estão sempre prontas. É um favor. Vê-se logo que o homem está exausto, doente — acrescentou ainda, cortando a oposição que o Conde Rohna, com eloquentes mãos de maestro, queria fazer.
— Mas doutor — disse Rohna, pressuroso —, nem se fala nisso, não é possível que o senhor ceda seu quarto. Nós vamos tentar... vamos ver... Se o senhor quiser ter a bondade de assinar o seu nome... bem, muito obrigado... 216 — disse Rohna ao porteiro. O porteiro deu ao boy 11 a chave do quarto 216. O indivíduo pegou a caneta-tinteiro que lhe estendiam e assinou o seu nome, com incrível rapidez, no livro de registro de hóspedes.
Otto Kringelein, guarda-livros em Fredersdorf, Sachsen, nascido em Fredersdorf a 14-7-1882.
— Pronto! — disse ele, respirando aliviado. Virou-se e, com os olhos tortos, muito abertos, olhou para o hall.
Encontrava-se, finalmente, no hall do Grande Hotel, ele, o guarda-livros Otto Kringelein, natural de Fredersdorf e residente em Fredersdorf. Ali estava, com o seu velho sobretudo e as ávidas lentes do seu pince-nez a quererem engolir tudo de uma vez. Estava cansado como um corredor que toca com o peito a fita de chegada — e o seu cansaço não era brincadeira; olhava as colunas de mármore com os ornamentos de gesso, a fonte luminosa, as poltronas. Via cavalheiros de fraque e de smoking, elegantes e viajados. Senhoras de braços nus, com vestidos refulgentes, adereços e peliças, mulheres de excepcional beleza, elegantíssimas. Ouvia música ao longe. Sentia o cheiro de café, de cigarros e perfumes; aroma de aspargos, vindo da sala de refeições, e o das flores que se encontravam em vasos em cima de uma mesa, para serem vendidas. Sentia o tapete espesso, vermelho, sob suas botinas lustrosas, tapete que lhe causou, no princípio, a mais forte impressão. Kringelein deslizava cuidadosamente com as solas sobre o tapete, pestanejando. Estava muito claro no hall, uma luz suave e amarelenta; nas paredes havia lampadazinhas avermelhadas com abajures e, na fonte veneziana, verdes repuxos de água.
Um garçom passou apressado, carregando uma bandeja de prata com copos largos e rasos, contendo cada um deles um pouco de conhaque dourado-escuro, onde boiavam pedras de gelo. Mas por que razão, no melhor hotel de Berlim, não enchiam os copos? O criado, segurando a triste mala, despertou Kringelein, que ficara a piscar os olhos tortos, a movimentar-se, quase como um sonâmbulo: o boy 11 passou com ele diante do ascensorista, um maneta rabugento, e o conduziu para cima. Os quartos 216 e 218 eram os piores do hotel; no 218 morava o Dr. Otternschlag, porque era hóspede efetivo, não sendo além disso pessoa de muitas posses, mas sobretudo porque era muito indiferente para exigir outro. O 216 ficava ao lado, no canto à direita, e ambos estavam encravados entre o elevador de serviço, perto da escada da cozinha 4 e o banheiro do terceiro andar. Dentro da parede corria e gorgolejava a água através do encanamento. Kringelein, a quem conduziam por entre ornamentos de palmas, lustres de bronze e quadros de caçadas, a lugares cada vez mais tristonhos do hotel, esgueirou-se lentamente, e desiludido, para dentro do quarto cuja porta uma criada velha e nada bonita lhe abriu.
— Número 216! — disse o boy, colocando a mala no chão; esperou a gorjeta, que não recebeu, e deixou só o silencioso Kringelein. Este sentou-se na beirada da cama e examinou o quarto.
Era comprido e estreito, tinha uma janela apenas, cheirava a charuto apagado e a armários esfregados com pano úmido. O tapete era ralo e puído. Os móveis — Kringelein apalpou-os — eram de nogueira envernizada.
Em Fredersdorf havia móveis iguais a esses. Um retrato de Bismarck estava suspenso à parede, na cabeceira da cama. Kringelein sacudiu a cabeça. Nada tinha contra Bismarck, pois em sua casa também havia um retrato do estadista. Esperava vagamente encontrar no Grande Hotel quadros diferentes sobre as camas, quadros exuberantes, de cores bem vivas, fora do comum, que se admirassem com prazer. Kringelein foi à janela e olhou para fora. Lá embaixo estava claríssimo, o telhado de vidro iluminado do jardim de inverno clareava todo o pátio. Bem defronte havia um muro de incêndio, nu, infindável. Vinha dali um cheiro de cozinha, e subia um vapor morno e desagradável. Kringelein sentiu náuseas e apoiou-se à laje do lavatório. "É que eu não estou muito bem de saúde", pensou com tristeza.
Sentou-se de novo sobre a colcha desbotada, e a sua preocupação foi crescendo, de segundo em segundo. "Aqui não fico", pensou. "Não, aqui não fico de maneira alguma. Não foi para isso que vim aqui. Para isso não adianta nada eu ter vindo. Não é assim que vou começar. Não vou perder o meu tempo em quartos como este. Mas estão me enganando. Decerto eles têm ainda no hotel quartos bem diferentes deste. Preysing deve ficar hospedado em quartos bem melhores, pois não suportaria isto. Preysing havia de fazer barulho — e como! —, vocês ficariam admirados. Se lhe dessem um quarto desses!... Não. Aqui eu não fico." Kringelein fez ponto final em suas reflexões. Concentrou-se. Precisou descansar alguns minutos. Depois tocou a campainha chamando a empregada, e fez um escândalo.
Se levarmos em consideração o fato de que aquela foi a primeira reclamação em tom violento que Kringelein fez na vida, temos de admitir que não se saiu muito mal. A empregada de avental branco, assustada, foi chamar uma camareira; um criado apontou ao longe; o quarteiro, com um prato de frios oscilando na palma da mão, estacou diante do 216 para escutar. Telefonaram a Rohna; este pediu que Herr Kringelein se dirigisse ao pequeno escritório, pois era necessário chamar um dos quatro diretores do hotel. Kringelein, obstinado como um camelo, exigia que lhe dessem um quarto bonito, luxuoso e caro, pelo menos como o de Preysing. Parecia considerar o nome de Preysing uma palavra mágica. Não tirara ainda o sobretudo, conservando as mãos trêmulas nos bolsos, agarradas aos velhos pedaços de pão com manteiga que trouxera de Fredersdorf; entortava os olhos e exigia um quarto caro. Sentia-se cansado e doente, com vontade de chorar. Nas últimas semanas chorava com facilidade, por causa da sua saúde. De repente, justamente quando ia desistir, viu que tinha vencido. Recebeu o 70, um salão com alcova e banheiro a cinquenta marcos por dia. Piscou um pouco quando leu o preço, mas, refletindo, perguntou:
— Bem. Com banho? Quer dizer... posso tomar banho a qualquer hora, todas as vezes que tiver vontade?
O Conde Rohna inclinou a cabeça, imperturbável. Kringelein fez sua segunda mudança.
O quarto 70 servia. Os móveis eram de mogno, havia espelhos de corpo inteiro, cadeiras forradas de seda, escrivaninhas entalhadas, cortinas de renda, quadros de faisões mortos na parede, e na cama um edredom de penas com capa de seda. Kringelein apalpou-o três vezes, incrédulo, sentindo seu brando calor e sua maciez. Sobre a escrivaninha havia um imponente tinteiro de bronze, representando uma águia, cujas asas abertas, ziguezagueantes, protegiam dois recipientes de tinta vazios.
Diante da janela caía uma chuva fresca de março; a atmosfera estava saturada de gasolina; ouviam-se buzinas de automóveis e, bem defronte, na fachada de um edifício, piscava continuamente um anúncio, com letras vermelhas, azuis e brancas; quando terminava de um lado, recomeçava na frente. Kringelein ficou olhando o anúncio durante seis minutos. Lá embaixo revolviam-se guarda-chuvas pretos e pernas claras de mulher, ônibus amarelos, globos de luz elétrica. Havia até mesmo uma árvore, estendendo os galhos não muito longe do hotel, galhos semelhantes aos das árvores de Fredersdorf. Essa árvore berlinense estava plantada numa ilhota de terra, no meio do asfalto, e em redor da terra havia uma cerca, um gradeado, como se ela precisasse de proteção contra a cidade. Kringelein, rodeado por tanta coisa estranha e impressionante, alegrou-se um pouco ao ver a árvore. Em seguida ficou por momentos perplexo, sem saber o que fazer diante do mecanismo niquelado da banheira, que ele não conhecia; porém, de repente, o mecanismo funcionou, escorrendo-lhe água quente nas mãos. Então ele se despiu. Sentiu uma impressão um tanto penosa ao entrar com o corpo nu, débil e macilento, na bacia clara de azulejos. Mas afinal ficou sentado dentro da água por mais de um quarto de hora, sem dores, nenhuma dor; as dores com que ele andava há várias semanas haviam-no abandonado repentinamente. E, a partir desse dia, não queria mais sentir dores.
Por volta das dez horas da noite Kringelein passeava pelo hall; estava muito arrumado, de fraque, colarinho engomado, alto, e uma gravata preta, de nó feito. Não se sentia cansado; pelo contrário, uma agitação febril, uma enorme impaciência se havia apoderado dele. "Agora vai começar", pensava incessantemente, e seus ombros delgados tremiam como as pernas dianteiras de um cachorro nervoso. Comprou uma flor, que enfiou na lapela; deslizou, cheio de prazer, sobre o tapete vermelho-framboesa, e foi queixar-se ao porteiro de que não havia tinta no seu quarto. Um boy conduziu-o à sala de correspondência. Mal Kringelein se encontrou diante daquela quantidade de mesinhas de escrever, vazias, sob a luz agradável dos abajures verdes, perdeu todo o aprumo e tirou a mão do bolso, parecendo sentir-se humilhado. Enfiou os punhos brancos da camisa para dentro das mangas do paletó, com um gesto habitual, antes de sentar-se; depois, começou a escrever com sua caligrafia de guarda-livros, cheia de arabescos:
À Chefia do Pessoal da Indústria Algodoeira Saxônia
S.A., de Fredersdorf.
Prezados senhores,
O abaixo assinado toma a liberdade de comunicar respeitosamente que, de acordo com o atestado médico que acompanha esta — anexo A —, se acha impossibilitado de trabalhar por um período de quatro semanas, até nova ordem. O último salário, vencido em março, o abaixo assinado roga a V. Sas- seja pago a Frau Anna Kringelein, Bahnstrasse n° 4, conforme procuração — anexo B. Caso o abaixo assinado não possa retomar seu serviço após quatro semanas, avisará V. Sas oportunamente. Com a maior estima e consideração,
Otto Kringelein.
A Frau Anna Kringelein, Sachsen, Bahnstrasse n° 4.
Querida Anna — continuou Kringelein a escrever, o A tinha um arrojado arabesco. — Querida Anna, comunico-lhe que o diagnóstico do Professor Dr. Salzmann, após o exame a que me submeti, não foi favorável. Tenho que seguir diretamente daqui para uma casa de saúde, com as despesas a cargo do instituto, mas preciso ainda preencher algumas formalidades. Por enquanto estou hospedado num local muito barato, por recomendação do diretor-geral. Dentro de alguns dias darei notícias mais detalhadas; ainda preciso submeter-me a uma radiografia, antes de saber o diagnóstico definitivo. Lembranças do seu marido
Otto.
Ao tabelião, Herr Kampmann, Fredersdorf, Sachsen, Villa Rosenhein, Mauerstrasse.
Querido Amigo e Colega da Associação Coral — assim começou Kringelein a terceira carta com sua letra legível e delicada olhando para a ponta da pena. — Você vai ficar surpreso ao receber uma longa carta minha de Berlim, mas devo comunicar-lhe importantes modificações na minha vida e conto com sua compreensão e discrição profissional. Infelizmente tenho dificuldades em expressar-me por escrito, mas espero que você, com sua grande cultura e conhecimento dos homens, demonstre a devida compreensão para o que lhe escrevo. Como você sabe, após a operação a que me submeti no verão passado, nunca mais tive saúde e perdi a pouca confiança que depositava no nosso hospital e no nosso médico. Por isso aproveitei a oportunidade de ter recebido a herança de meu pai e vim para cá com esse dinheiro, a fim de fazer um exame e ver do que se tratava. Infelizmente, caro amigo, o resultado não foi bom, e, de acordo com a opinião do professor, tenho pouco tempo de vida
Kringelein permaneceu com a pena no ar, talvez durante um minuto; esqueceu-se de colocar um ponto no fim da frase. Seu bigode, o imponente bigode de diretor de associação, estremeceu de leve, mas ele continuou a escrever animadamente:
Quando se recebe tal comunicação, é natural que muita coisa passe pela nossa cabeça, e não dormi várias noites, mergulhado em minhas reflexões. Cheguei à conclusão de que não pretendo mais voltar para Fredersdorf, e, durante as poucas semanas em que ainda me aguentar de pé, gostaria de aproveitar um pouco a vida. Quando nunca se gozou a vida e se tem de ir para o túmulo com quarenta e seis anos de idade, não é agradável ficar se preocupando, economizando e zangando-se com Herr Pr. na fábrica e com a mulher em casa. É injusto e errado saber que está tudo acabado e que nunca se teve uma alegria verdadeira. Infelizmente, caro Amigo e Colega da Associação Coral, não sei me expressar com correção. Desejo, por isso, apenas comunicar-lhe que o meu testamento, que fiz no verão antes de me operarem, continua válido, mas a situação agora é um pouco diferente. Fiz remeter para cá, através do banco, todas as minhas economias, assim como um empréstimo maior que fiz no seguro de vida e os três mil e quinhentos marcos da herança do meu pai. Desse modo posso viver durante algumas semanas como um homem rico, e é o que pretendo fazer. Por que razão somente os Preysing podem aproveitar a vida, e nós continuamos a ser os tolos, que economizam e amealham? Trouxe comigo a soma de oito mil, quinhentos e quarenta marcos. O que sobrar pode ficar para a Anna; mais do que isso, de acordo com a minha opinião, não lhe devo, pois ela me amargurou bem a vida com as suas brigas, e nem sequer me deu um filho. Porei você a par do lugar em que me encontro e da minha saúde, mas isso é segredo profissional, é um favor que lhe peço. Berlim é uma bela cidade, e cresceu muito para quem não esteve aqui por tantos anos. Pretendo também ir a Paris, porque conheço bem o francês, devido à correspondência. Como você pode perceber, estou firme e há muito tempo não me sinto tão bem.
Abraça-o com amizade o seu fiel Moribundus
Otto Kringelein.
P.S. Basta que você diga à diretoria da Associação que tive de ir para uma casa de saúde de industriários.
Kringelein releu as cartas cujo conteúdo lhe custara duas noites de vigília — não ficou muito contente; pareceu-lhe que na carta para o tabelião faltava alguma coisa importante, mas não conseguia lembrar-se do que se tratava. Kringelein, apesar de possuir uma natureza acanhada e modesta, não era tolo, tinha idealismo e tendência para a cultura. O fato de dar ironicamente a si próprio o nome de Moribundus devia-o à leitura de um livro da biblioteca circulante, onde ele encontrara esse termo; lera o livro com enorme esforço, e o digerira em difíceis conversas com o tabelião. Desde seu nascimento, Kringelein levara a vida normal do pequeno burguês, vida um tanto insípida, sem grandes entusiasmos; vida dispersa de um empregado subalterno numa cidade pequena. Casara-se cedo e sem grande entusiasmo com Fräulein Anna Sauerkatz, filha do merceeiro Sauerkatz, que lhe parecera muito bonita até o dia do casamento, mas logo após se tornou uma pessoa feia, desagradável, sovina, que dava uma enorme importância a coisas mesquinhas. Kringelein recebia um ordenado fixo, e também um pequeno aumento de cinco em cinco anos, mas como sua saúde não fosse das melhores, sua mulher e a família, desde o começo, obrigaram-no a viver com sórdida economia, tendo em mira um problemático "amparo na velhice". Um piano, por exemplo, que Kringelein desejara ardentemente durante toda a vida, nunca o pôde adquirir: vira-se forçado a vender seu cãozinho teckel chamado Zipfel, quando lançaram o imposto sobre os cães. No pescoço tinha sempre arranhões, porque sua pele delicada de anêmico não suportava os velhos e usados colarinhos, com a beirada áspera. Às vezes tinha a impressão de que alguma coisa não estava certa em sua vida, mas não descobria o que era. Em outras ocasiões, na Associação Coral, quando sua voz de tenor, de timbre agudo, tremulante e delicada, sobressaía entre as outras vozes, apossava-se dele um sentimento estranho: parecia-lhe estar vagando no espaço, sentia-se feliz como se voasse. Muitas vezes passeava à noite. Ia caminhando em direção a Mickenau, depois afastava-se das ruas calçadas e ia margeando o fosso úmido dos caminhos, andando por uma trilha que limitava as plantações. Por entre as hastes dos cereais passava um brando sussurro, e quando as espigas roçavam em sua mão ele sentia uma inexplicável alegria. Durante a narcose, no hospital, também sentira essa impressão esquisita e agradável, mas depois a esquecera. Eram coisas insignificantes, que diferenciavam o guarda-livros Otto Kringelein da média de seus concidadãos. E fora isso — juntamente, talvez, com a embriaguez provocada pelos venenos letais destilados pelo seu organismo — o que trouxera o Moribundus até ali, ao mais caro hotel de Berlim, onde escrevera aquelas cartas que continham uma decisão incrível, baseada em motivos fúteis.
Quando Kringelein se ergueu da cadeira, vacilando ligeiramente, e atravessou a sala de leitura com seus três envelopes na mão, encontrou-se com o Dr. Otternschlag, que, para ouvi-lo, virou para ele a face danificada, o que o assustou.
— Então? Já está instalado? — perguntou Otternschlag com indolência; estava de smoking, e olhou para as pontas de seus sapatos de verniz.
— Já estou, sim. Otimamente instalado — respondeu Kringelein com timidez. — Obrigado. Preciso agradecer lhe muitíssimo, cavalheiro. Foi muita bondade sua, de fato...
— Bondade minha? Ora veja! Por causa do quarto? Ora... Sabe, há muito que desejo mudar-me daqui, mas tenho preguiça. Este hotel é uma gaiola miserável. Se o senhor tivesse ficado com o meu quarto, eu estaria a estas horas no rápido para Milão, ou qualquer coisa assim... seria divertidíssimo. Ora, tanto faz. Em março, o tempo é horrível no mundo inteiro. Dá na mesma ficar aqui ou ali. Posso ficar aqui, também.
— O cavalheiro costuma viajar muito? — perguntou Kringelein timidamente, pois imaginava que os hóspedes daquele hotel fossem todos magnatas ou fidalgos. — Se me permite: Kringelein — acrescentou com modéstia, inclinando-se com elegância fredersdorfiana. — O cavalheiro deve conhecer bem o mundo...
— Um pouquinho — disse Otternschlag. — Conheço os lugares mais visitados, os passeios obrigatórios, que todo mundo faz. A Índia, e pouca coisa mais — sorriu ligeiramente ao observar a avidez que se manifestou nos olhos azuis de Kringelein, vesgos por trás do pince-nez.
— Eu também pretendo viajar — disse Kringelein. — O nosso diretor-geral, por exemplo, viaja todos os anos. Há pouco tempo esteve em Saint-Moritz. Na Páscoa do ano passado esteve com a família em Capri. Imagino como tudo isso deve ser maravilhoso!
— O senhor tem família? — perguntou o Dr. Otternschlag, afastando o jornal para o lado. Kringelein refletiu cinco minutos, antes de responder:
— Não, senhor.
— Não tem! — repetiu Otternschlag, e em sua boca essas palavras adquiriram um caráter irrevogável.
— Em primeiro lugar eu gostaria de ir a Paris — disse Kringelein. — Paris deve ser uma beleza, não?
O Dr. Otternschlag, que demonstrara até então um resquício de calor e de interesse, parecia ter ficado sonolento. Ele costumava cair nesse estado de sonolência várias vezes por dia, e contra ele só podia empregar certos meios misteriosos e prejudiciais para a saúde.
— Para Paris o senhor deve ir em maio — murmurou ele.
Kringelein disse rapidamente: — Não disponho de tanto tempo.
Subitamente o Dr. Otternschlag o deixou sozinho.
— Tenho de ir para o quarto deitar-me um pouco — disse ele, mais para si mesmo do que dirigindo-se a Kringelein, que ficou na sala de leitura com as suas três cartas na mão. O jornal que Otternschlag folheara caiu ao chão; estava todo rabiscado com figuras de homenzinhos. Sobre cada figurinha havia uma cruz, desenhada com traços fortes. Kringelein, ligeiramente desiludido, saiu da sala deslizando pelo tapete, com o semblante desconcertado, e dirigiu-se para a sala de refeições de onde vinham os sons fracos mas perceptíveis de uma música lenta e martelada, que ecoava por todas as paredes do enorme hotel.
2
O pano caiu, batendo no soalho do palco com um ruído surdo e pesado de ferro.
A Grussinskaia, que até esse instante girara com leveza de flor por entre as bailarinas, veio se arrastando, ofegante, por trás do primeiro bastidor. Com ar estonteado, apoiou a mão trêmula no braço de um maquinista e soltou o ar dos pulmões, como se estivesse ferida. O suor corria-lhe ao longo das rugas sob os olhos. Os aplausos, fracos como uma chuva distante, avivaram-se de repente, o que significava que o pano abria de novo. Um homem levantava-o com grande esforço, enrolando-o com grandes impulsos de manivela. A Grussinskaia reabriu o seu sorriso, como uma máscara de papelão, e avançou dançando, fazendo curvaturas ao chegar às gambiarras.
Gaigern, que se aborrecera muito, bateu três ligeiras palmas, por pura amabilidade, e esgueirou-se por entre as filas da plateia, dirigindo-se para uma das saídas cheias de gente. Nas primeiras filas e nas galerias, alguns espectadores mais pertinazes gritavam e batiam palmas; mais para trás, todos se apertavam, empurrando-se para chegar quanto antes ao vestiário. Para a Grussinskaia, lá da cena, parecia uma fuga, um pequeno pânico, esse rápido desfilar de peitilhos brancos, de dorsos negros dos senhores, de capas de brocado — todos numa só direção. Ela sorriu, atirando a cabeça para trás, com o pescoço esguio como uma haste de flor; deu uns pulinhos para a direita e para a esquerda e abriu os braços, saudando o público que se preparava para retirar-se. O pano caiu, batendo no solo. O corpo de baile continuava na sua pose, tinha disciplina.
— Levantem o pano! Levantem o pano! — gritava histericamente Pimenoff, o mestre de ballet, que era o encarregado de preparar o êxito dos espetáculos.
A coisa ia devagar, e o homem da manivela fazia esforços desesperados. Algumas pessoas na plateia, que já estavam perto das portas, detiveram-se ainda um momento, com um sorriso amarelo, batendo palmas. Num camarote também aplaudiam. A Grussinskaia apontava para as bailarinas, ninfas de tarlatana agrupadas em seu redor; aparentando a maior modéstia, ela recusava esses fracos aplausos, cedendo-os às insignificantes jovenzinhas. Algumas pessoas que já haviam vestido seus agasalhos surgiram às portas, assistindo, com ar divertido, àquela manifestação tardia de entusiasmo. Witte, o velho maestro alemão, lá embaixo, na orquestra, fazia gestos súplices aos músicos, implorando-lhes que lhe obedecessem; eles já estavam guardando seus instrumentos nas caixas.
— Ninguém saia! — murmurou ele cheio de angústia, trêmulo e suando. — Ninguém saia, por favor, senhores. Talvez tenhamos de repetir a Valsa da primavera!
— Não tenha receio — disse um fagote. — Hoje não há extras. Vai ficar nisso. Então, não lhe disse?
Realmente, os aplausos pingavam. A Grussinskaia ainda pôde ver a bocarra negra e aberta do músico, a rir-se lá embaixo, antes que o pano a separasse dos espectadores. De súbito, os aplausos cessaram, e o repentino silêncio se alargou sinistramente na sala; só se ouvia o ruído que as jovens de tarlatana faziam, com as pontas de seda de seus pés batendo no chão.
— Podemos ir? — murmurou em francês Lucille Lafite, a primeira-bailarina, dirigindo-se às costas trêmulas e pintadas de branco da Grussinskaia.
— Podem. Vão-se embora. Todas. Vão para o diabo! — respondeu a Grussinskaia em russo. Tinha vontade de gritar, mas a voz lhe saiu da garganta num misto de tosse e soluço. Intimidadas, todas saíram correndo. Na ribalta as luzes se apagaram, e durante alguns segundos a Grussinskaia ficou sozinha em cena, a tiritar, sob a iluminação cinzenta de ensaio.
De repente ouviu-se um ruído, como o estalido de um galho partindo-se, o estrupido das patas de um cavalo, um ruído inconfundível — lá na sala deserta, uma pessoa aplaudia sozinha, completamente sozinha. Não havia acontecido milagre nenhum; era Meyerheim, o empresário, que, com a audácia do desespero, procurava salvar o espetáculo. Batia palmas, com suas mãos acústicas, com a máxima energia, aparentando frenético entusiasmo, e ao mesmo tempo lançava olhares iracundos às galerias, pois a claque, esquecida de seus deveres, havia abandonado cedo demais o seu posto. O Barão Gaigern foi o primeiro a ouvir esse ruído isolado, e voltou, curioso e com vontade de zombar. Tirou depressa as luvas e juntou-se freneticamente aos aplausos. E, ao voltarem apressadamente do vestiário uns sujeitos da claque e alguns curiosos, ele chegou a bater os pés, como um estudante entusiasmado. Alguns sujeitos trocistas se reuniram a ele, formando-se um pequeno e divertido ajuntamento, e, finalmente, perto de sessenta pessoas batiam palmas, chamando pela Grussinskaia.
— Pano! Pano! — gritava Pimenoff com voz esganiçada; a Grussinskaia corria de um lado para outro no palco, como uma histérica.
— Michael! Onde está o Michael? Michael tem que sair comigo! — gritou ela a rir-se, com as pestanas cheias de pasta azul, de suor e de lágrimas. Witte empurrou o bailarino Michael para diante dos bastidores; sem fitá-lo, a Grussinskaia pegou a sua mão, tão escorregadia de suor que era difícil segurá-la; diante da caixa do ponto curvaram-se com a harmonia perfeita de corpos acostumados a um trabalho em conjunto. Mal o pano caiu, a Grussinskaia principiou a armar um escândalo, dando largas à sua excitação.
— Você estragou tudo! A culpa foi sua! Vacilou na terceira arabesque! Nunca me teria acontecido uma coisa dessas com o Pimenoff!
— Misericórdia, eu? Mas Gru! — murmurou Michael com seu cômico acento báltico, em tom suplicante. Witte arrastou-o depressa para trás do bastidor 3 e tapou-lhe a boca com sua mão de velho.
— Pelo amor de Deus, não a contradiga; deixe-a! — murmurou ele.
A Grussinskaia recebeu os aplausos sozinha. Nos intervalos destes, quando ia para trás dos bastidores e o pano ainda se conservava descido, ela se punha a vociferar. Amaldiçoava a todos com as mais espantosas maldições, xingava-os de porcos, cães, bando de devassos; chamava Michael de bêbado e Pimenoff de coisa pior ainda, ameaçava despedir o corpo de ballet, que já se ausentara, e jurava ao maestro Witte, que estava presente, calado e desolado, que se suicidaria pelos seus andamentos errados. Enquanto isso, o coração voava-lhe dentro do peito como um passarinho exausto e sem rumo, e as lágrimas corriam-lhe ao longo do sorriso de cera e pintura. Finalmente, o chefe dos eletricistas pôs fim a essa cena, baixando uma grande alavanca; ficou tudo às escuras, e um homem impaciente começou a cobrir com panos cinzentos as filas de cadeiras. O pano ficou descido, o homem da manivela foi para dentro.
— Quantas chamadas, Suzette? — perguntou a Grussinskaia a uma mulher idosa que estava nos bastidores e a ajudou a vestir um casaco de lã desbotado e fora de moda, e em seguida abriu diante dela a porta de ferro do palco. — Sete? Eu contei oito. Você acha que foram sete? É um bom número, não acha? Mas terá sido mesmo um sucesso?
Ouviu com impaciência os protestos de Suzette, que assegurava ter sido um sucesso enorme, quase como em Bruxelas há três anos. Madame se lembrava? Sim, madame se lembrava. Como se fosse possível esquecer um grande sucesso! Madame, sentada no pequeno camarim, olhava fixamente a lâmpada elétrica envolta em uma rede, que pendia sobre o espelho, e recordou-se de tudo. "Não, não foi como em Bruxelas", pensou, taciturna e morta de cansaço. Estirou os membros banhados em suor; como um pugilista estendido no seu canto após um exaustivo round, ficou largada, enquanto Suzette friccionava-a, esfregava-a e tirava-lhe a pintura. O camarim era um canto triste, aquecido demais, sujo, estreito; cheirava a roupa velha, a ranço, a pintura, a centenas de corpos extenuados. Talvez a Grussinskaia tivesse dormitado alguns segundos, porque esteve a caminhar pelo átrio de sua villa do lago de Como — mas a seguir viu-se de novo ao lado de Suzette, às voltas com o penoso descontentamento provocado pelo espetáculo dessa noite. Não tinha sido um grande sucesso, não. Não tinha sido um grande sucesso. E que mundo cruel e incompreensível era esse, que começava a negar a uma artista como a Grussinskaia um grande sucesso?!
Ninguém sabia a idade da Grussinskaia. Alguns velhos senhores russos, aristocratas imigrados que moravam em quartos mobiliados em Wilmersdorf, diziam conhecer a Grussinskaia há quarenta anos — o que era seguramente um exagero. Mas, sem dúvida, seu êxito internacional já datava de vinte anos, e vinte anos de êxito e celebridade representam um tempo infinito.
Às vezes, a Grussinskaia dizia ao velho Witte, seu amigo e companheiro desde o início da sua carreira:
— Witte, sou uma criatura condenada a arrastar uma carga excessiva, sem descanso, a vida inteira.
E Witte respondia, cheio de gravidade:
— Por favor, Elisavieta Alieksandrovna, nunca deixe perceber isso; nunca fale de carga e de peso. O mundo inteiro se fez pesado. Sua missão, Elisavieta, permita-me que o diga, é conservar-se leve. Conserve-se como está! Não mude, seria uma catástrofe mundial.
A Grussinskaia não mudava. Pesava quarenta e oito quilos desde os dezoito anos, e uma boa parte do seu êxito e das suas aptidões era devida a esse fato. Seus partners, habituados à sua leveza, não conseguiam dançar com nenhuma outra bailarina. Seu pescoço, seu corpo, que parecia consistir apenas em articulações, o oval de seu rosto continuavam sempre os mesmos. Seus braços se moviam como disciplinadas asas. Seu sorriso, sob as pálpebras alongadas, era por si só uma obra de arte. Todas as energias da Grussinskaia se concentravam numa única finalidade: conservar-se fiel a si mesma. E ela não notava que era isso precisamente o que começava a aborrecer o público...
Talvez esse público a apreciasse como ela era na realidade, como era nesse momento, sentada no seu camarim: uma pobre mulher, velha, delicada, extenuada, de olhar tristonho, e a carinha consumida e torturada de um ente humano e real. Quando a Grussinskaia não tinha sucesso — e isso costumava acontecer agora, de vez em quando — encolhia-se toda, transformava-se de súbito numa mulherzinha velhíssima, de setenta anos, de cem anos, mais velha ainda. Lá no fundo do camarim, Suzette lamentava-se em voz baixa, em francês, diante do lavatório cinzento, encravado na parede; a torneira de água quente não funcionava muito bem. Afinal ficaram prontas as compressas úmidas para o rosto, e a Grussinskaia entregou-se à sua ardência, enquanto Suzette lhe tirava o colar de pérolas do pescoço, essas pérolas de uma beleza inverossímil, célebres no mundo inteiro, que datavam da época dos grão-duques.
— Pode guardar o colar; não quero mais usá-lo hoje — disse a Grussinskaia, abandonando-se, com a fisionomia concentrada, às pontas dos dedos, às essências de cânfora e à pintura do seu apagado factótum. Tinha de ir ainda a uma ceia que o Clube do Proscênio oferecia em sua honra, e por isso ela se fazia pintar com tanta compunção, como um antigo guerreiro mexicano antes de enfrentar o inimigo.
No corredor, diante do camarim, Witte ia e vinha, como uma paciente sentinela a montar guarda, enquanto arranhava a tampa do relógio, que usava no bolso do fraque, à moda antiga. Em seu rosto envelhecido de músico, liam-se a preocupação e a aflição. Pouco depois veio juntar-se a ele o mestre de ballet, Pimenoff, e finalmente chegou Michael, com as pestanas lustrosas de vaselina, e cheio de pó de arroz.
— Vamos esperar a Gru? Vamos juntos? — perguntou Michael, enchendo-se de coragem.
— Eu o aconselharia a evaporar-se, meu rapaz — disse Witte —, mesmo que você não tivesse vacilado cem vezes, o aconselharia a fazer isso.
— Mas eu não vacilei, Pimenoff! Acha que eu vacilei? — exclamou quase chorando. Pimenoff encolheu os ombros. Era também um homem idoso, com um nariz grande e característico, e tinha um fraco pelas gravatas plastrão da época de Eduardo VII. Ele próprio não dançava mais, apenas dirigia os ensaios e preparava os divertissements para a Grussinskaia. Eram coreografias clássicas, muito difíceis, cheias de pássaros, flores e alegorias, tudo dançado em pontas.
— Vá deitar-se, evite encontrar-se com a Gru, hoje. Lucille também já sumiu — disse ele, prudentemente.
Michael, com expressão de zanga, bateu à porta do camarim da Grussinskaia.
— Boa noite, madame! — exclamou ele. — Não os acompanho hoje. Quando é o ensaio amanhã?
— Naturalmente que você vai conosco. Tem que sentar-se ao meu lado na mesa! — exclamou lá de dentro a Grussinskaia. — Não me faça ficar triste, sweetheart! Sobre o ensaio vamos falar ainda. Espere por mim, ainda não estou pronta.
— Tiens... já passou a crise — murmurou Witte com um gesto de "já não está mais aqui quem falou".
— Larmes, oh, douces larmes! — declamou Pimenoff, com o queixo metido na gola do sobretudo.
— Não quero que o meu pior inimigo dance pas de deux com a Gru! Misericórdia, meu caro! — finalizou Michael, com seu cômico acento báltico.
A Grussinskaia, no camarim, punha perfume atrás da orelha. "Michael tem que estar lá", pensou ela. "Estou sempre rodeada de velhos: Pimenoff, Witte, Lucille, Suzette." De repente, sentiu uma raiva enorme do chapeuzinho surrado que Suzette usava, colocando-o sobre os cabelos cor de cinza, caído para trás. Com um gesto brusco recusou seu auxílio e saiu para o corredor, levando no braço a capa preta e dourada, com arminho. Virou-se de costas para Michael, para que ele lhe colocasse a capa nos ombros. Ele a colocou, com seu jeito habitual, delicado e feminino. Era uma pequena cerimônia de reconciliação; mais do que isso: era um tênue e secreto anseio da Grussinskaia pela companhia desse jovem. Michael era jovem, porque a Grussinskaia estava sempre mudando de primeiro-bailarino, cheia de nervos e de exigência com seus partners pessoais. O resto da troupe envelhecera com ela.
Aliás, ela agora tinha uma aparência magnífica, linda, estranha, exuberante e elástica.
— Elisavieta está encantadora! — disse Witte, com uma reverência do século passado. Ele se habituara a expressar-se num estilo complicado, em primeiro lugar para ocultar seu amor por Gru, por quem se apaixonara desde a mocidade, e depois porque tinha de traduzir logo suas frases, do alemão para o russo ou para o francês. A Grussinskaia também passava constantemente de uma língua para outra, do tu russo ou francês ao você inglês, e também conhecia o alemão; sabia traduzir as principais grosserias e amabilidades para qualquer língua. Nem sempre era fácil seguir sua conversa. Quando entrou no carro, por exemplo, perguntou:
— Você acha que a culpa é das pérolas, Witte?
— As pérolas? Por quê? Culpa de quê? — perguntou Witte, perplexo. A segunda pergunta foi feita apenas por cortesia, porque ele sabia muito bem a que se referia a Grussinskaia.
— Mon Dieu, por que justamente as pérolas? — perguntou também Pimenoff.
— Pois é, o colar de pérolas. Elas me dão azar, essas pérolas — disse ela expressivamente, como uma criança.
Witte batia com uma luva na outra: usava luvas glacées, fora de moda.
— Mas querida!... — disse ele abismado.
— Como? — perguntou Pimenoff. — Durante toda a sua vida essas pérolas lhe deram sorte, eram a sua mascote, o seu talismã! Você não podia dançar sem esse colar! E agora, de repente, as pérolas lhe dão azar? Que ideia, Gru!
— Pois é. Elas dão azar. Já percebi isso há muito tempo — disse Gru, com uma ruga de teimosia entre as sobrancelhas pintadas. — Não sei explicar muito bem, mas pensei muito sobre isso. Enquanto o Grão-Duque Serguei vivia, elas me deram sorte. Voilà. Desde que o assassinaram... azar, azar, azar! A ruptura do tendão no meu tornozelo, o ano passado, em Londres. O déficit em Nice. E, de um modo geral, azar! Não usarei mais esse colar quando dançar. Fiquem sabendo!
— Não vai usá-lo mais? Mas querida, Gru querida, você não pode aparecer em público sem as pérolas, você acreditou a vida inteira que não podia aparecer em cena sem essas pérolas, e agora, de repente...
— Pois é — disse a Grussinskaia —, era uma superstição minha.
Witte principiou a rir.
— Lisa! — exclamou ele — pombinha, minha queridinha, você é mesmo uma criança!
— Vocês não me compreendem. Você não me entende absolutamente, Witte. As pérolas já não me ficam bem. Não devo usá-las mais. Antigamente era diferente. Antigamente ... em São Petersburgo, em Paris, em Viena... era preciso usar joias. Uma bailarina tinha que ter joias e ostentá-las. Agora... quem é que usa um colar de pérolas verdadeiras? Eu sou mulher, sinto melhor essas coisas, tenho flair para essas coisas... Michael, você está dormindo? Fale alguma coisa também!
Michael, sem mover seu corpo delicado, disse, num francês lento:
— Quer saber o que penso, madame? Devia dar seu colar de pérolas às crianças pobres, aos aleijados, ou qualquer coisa parecida, madame.
— O que você está pensando? O colar de pérolas? Dar as pérolas? —- exclamou a Grussinskaia em russo, e a expressão pozertvovati parecia a melodia de alguma canção.
— Chegamos — disse Pimenoff, brecando de súbito.
— En avant! — ordenou a Grussinskaia. — Sejamos elegantes! Alegremo-nos!
Abriu-se uma porta.
Witte, subindo a escada atrás da bailarina, declarou:
— Elisavieta Alieksandrovna só tem um defeito: a paixão pelo imperativo categórico.
A Grussinskaia começou a rir, radiante como uma lâmpada acesa de repente, e assim, alegre e sorridente,entrou no clube, onde trinta fraques, de pé, esperavam pela sua entrada.
O Barão Gaigern tinha sido o último a deixar de aplaudir, mas assim que teve a certeza de que o pano não ia subir mais saiu do teatro com a fisionomia séria de um homem apressado. Não estava mais chovendo, e no asfalto úmido da Kantstrasse se refletiam numerosas luzes brancas e amarelas; o bonde passava ligeiro por entre as casas, guardas davam sinal para a partida, indivíduos desocupados abriam as portas dos automóveis às capas de pele. Gaigern foi andando pela calçada por entre a multidão, infringiu com perigo de vida as regras do trânsito e continuou a caminhar rapidamente por uma rua mais escura, a Fasanenstrasse, onde o seu carro — um modesto carrinho de quatro lugares — estava estacionado. O chofer fumava um cigarro.
— Então? — perguntou Gaigern, com as mãos nos bolsos do impermeável azul.
— Ela já mudou de chofer — respondeu o motorista. — Agora é um inglês. Ela o pescou em Nice, onde o patrão dele o deixou, após arruinar-se. Almocei com ele. Esse não abre a boca para dizer nada.
— Pela centésima vez eu lhe digo para tirar o cigarro da boca quando eu falar com você — disse Gaigern, dissimuladamente.
— Está bem — disse o chofer, jogando fora o cigarro. — Agora ele foi ao teatro, para levá-la ao Clube do Proscênio; daqui a pouco deve chegar lá. Quando deverá ir buscá-la, ainda não sabe.
— Ainda não sabe? — repetiu Gaigern, pensativo, batendo com as luvas na palma da mão. — Bem, está certo. Vou até lá de novo. Vá com o carro para o teatro e espere defronte da entrada.
Gaigern foi-se aproximando de novo do teatro, com a mesma fisionomia de homem ocupadíssimo. Ali, tudo agora estava vazio e vulgar: o enorme luminoso se apagara, as tabuletas olhavam inexpressivas. A entrada do palco não dava para a rua, mas para um pátio em cujos muros de incêndio a hera úmida cintilava. Gaigern se esgueirou por entre uns sujeitos que estavam vagabundeando por ali, e ficou a olhar para a porta de vidro fosco onde a Grussinskaia devia aparecer. Primeiro saíram os bombeiros, depois os maquinistas, de ombros largos, fumando, e em seguida passou algum tempo sem que ninguém aparecesse. Um pouco depois a porta cuspiu para o pátio uma pequena troupe de jovens bailarinas, criaturas magrinhas, com peliças baratas, tagarelando em francês, russo e inglês. Gaigern sorriu, depois que elas passaram; muitas já conhecia de Nice e Paris. Quando sorria, seu lábio superior encurtava, como acontece com os garotinhos, o que o tornava encantador e agradava a muitas mulheres.
"Meu Deus, como hoje isto está demorando de novo", pensou ele, impaciente, quando o pátio dos fundos do teatro adormeceu por completo. Passou-se quase um quarto de hora, até que o chofer se mexeu, no carro da Grussinskaia, como um cão que está sonhando, e ligou o motor. Gaigern, que conhecia o sinal, encolheu-se, ocultando-se na sombra do muro. Quando a Grussinskaia apareceu, finalmente, ele estava invisível.
— Espere-me aqui, Suzette — disse ela voltando-se para a porta —, mando logo o Berkley de volta. Ele a levará para o hotel.
Vestia uma capa magnífica, muito vistosa, dourada e preta, com arminho, que a envolvia até o queixo; a bailarina estava agora tão bonita como nas fotografias em que aparecia nos jornais ilustrados do mundo inteiro. Gaigern, do seu esconderijo, olhou-a com atenção. Quando ela pôs o pé prateado no estribo do carro, a gola de arminho abriu-se, e Gaigern pôde ver seu pescoço, seu célebre pescoço, longo e alvo, semelhante à haste de uma flor, que nessa noite, sobretudo, parecia mais nu do que nunca. Satisfeito, aspirou o ar pelos dentes; nunca havia desejado nada com tanto ardor quanto ver esse pescoço nu...
Mal o automóvel partiu, Suzette apareceu no pátio escuro e deserto seguida pelo porteiro, que fechou a entrada do palco. Conservava a aparência de cópia velha e apagada da sua patroa, pois usava os vestidos e os chapéus velhos da Grussinskaia, quando já haviam passado de moda há muito tempo. Neste momento arrastava-se pelo pátio, metida numa saia comprida, em forma de sino, e usando um casaco desbotado, com uma espécie de gola à Werther. Em cada mão carregava uma mala: na esquerda, uma valise grande e chata; na direita, uma pequena suitcase de verniz preto. Andando com dificuldade, foi até a porta gradeada que separava da rua o pátio do teatro e ali ficou a caminhar de um lado para o outro, sob a luz forte da lâmpada elétrica. Pela cabeça de Gaigern passaram, durante esses poucos segundos, alguns velozes pensamentos, e ele se curvou, no seu canto sombrio, com os nervos tensos, como a se preparar para um salto ou para iniciar uma corrida. Mas nada fez, porque o maldito Berkley, fazendo uma magnífica curva, aproximou-se, e Suzette subiu no carro cinzento. Na Gedaechtniskirche bateram onze e meia, e Gaigern, que se esquecera de respirar um minuto, aspirou profundamente o ar da noite. Assobiou, e seu carrinho surgiu incontinenti.
— Vamos ao hotel, siga-o depressa! — exclamou, sentando-se rápido ao lado do chofer.
— Então? Há esperanças? — perguntou este, que já estava falando de novo de cigarro na boca.
— Esperemos — respondeu Gaigern.
— Mais uma noite inteira à espreita no carro, hein? E cá o degas não precisa dormir mais, não é? — disse o chofer.
Gaigern esticou o indicador, mostrando o carro cinzento que fazia a pequena curva em redor da casinhola iluminada do guarda, na Hitzigbruecke.
— Vá seguindo — disse; o chofer pisou no acelerador; não havia mais guardas na ponte. Berlim borbulhava sua vida noturna pelas ruas, sob um céu vermelho, completamente sem estrelas, sob a claridade de uma noite de primavera.
— A gente até perde a vontade — continuou o chofer com as suas considerações. — Essa história está dando mais despesas do que o lucro que poderá vir. No fim só vai dar prejuízo.
— Faça o que quiser — replicou o barão amavelmente, e seu lábio superior tornou-se minúsculo ao pronunciar estas palavras. — Se você não está contente, pode receber o pagamento e seguir o seu caminho. É um favor.
— Não estou falando por mal — disse o chofer.
— Nem eu — respondeu o barão. Depois ficaram calados até chegar ao hotel.
— Estacione na entrada 6 — observou Gaigern, ao saltar do carro; na porta giratória, que levava do hall de entrada ao grande hall, encontrou-se com um senhor girando em sentido contrário. Gaigern deu um pontapé impaciente na porta e fez com que o carrossel de vidro, com o seu conteúdo, fosse para a frente.
— É nessa direção que ela gira! — disse ele a Kringelein.
— Obrigado. Muito obrigado — replicou Kringelein, que queria sair e ficou de novo girando lá dentro.
Gaigern correu a buscar sua chave, voou ao elevador e, no primeiro andar, pediu ao maneta que esperasse um pouco, pois voltaria em um segundo. Disparou pelo corredor até o seu quarto, o 69, atirou o chapéu e a capa, tirou de um vaso um lindo ramo de orquídeas e correu com ele para o corredor.
— Faça o favor de dizer ao ascensorista que não preciso mais dele — disse a uma criada de quarto que se arrastava ao longo das portas, caindo de sono. A empregada deu o recado ao maneta, que tocou o elevador, resmungando. Quando o elevador chegou ao andar térreo, Suzette já o estava esperando com suas duas malas, para subir. E era isso justamente o que Gaigern queria.
Ao entrar no quarto 68, o quarto da Grussinskaia, Suzette viu atrás de uma palmeira no corredor um bonito jovem, cuja fisionomia tímida e suplicante não lhe era desconhecida.
— Boa noite, mademoiselle. Permita-me dizer-lhe uma palavrinha — disse ele no francês elegante, um tanto antiquado, que se ensina nos colégios de jesuítas. — Só uma palavrinha: madame não está no seu quarto?
— Não sei, cavalheiro... — respondeu Suzette, que era sabida.
— É só porque... desculpe o atrevimento... mas eu gostaria de colocar no quarto de madame uma florzinha para ela. Sou um admirador, estive hoje no teatro... e não perco os seus espetáculos de dança. Olhe, eu li num jornal que madame gosta destas catleias... é verdade?
— É — respondeu Suzette. — Ela gosta de orquídeas. Em nossa estufa de Tremezzo temos uma pequena coleção delas.
— Ah! Posso então entregar-lhe meu raminho e pedir-lhe o favor de colocá-lo no quarto de madame?
— Hoje recebemos uma imensidade de flores. O embaixador francês mandou uma cesta — disse Suzette, ainda amargurada pelo discutível sucesso da noite, olhando com bastante simpatia aquele jovem tímido. Mas não podia pegar o ramo porque estava com as duas mãos ocupadas. Teve até dificuldade em passar a chave para a mão direita a fim de abrir a porta do 68. Gaigern, vendo o apuro em que ela se encontrava, aproximou-se solícito.
— Permita-me! — disse ele, fazendo menção de pegar as duas malas. Suzette entregou-lhe a mala grande. Mas conservou consigo a pequena suitcase, afastando-se num movimento instintivo. "É ali então que se encontram as célebres pérolas", pensou Gaigern, sem dizê-lo, é claro. Abriu a porta externa, depois a interna, e franqueou com passos tímidos e ao mesmo tempo entusiásticos o limiar do quarto onde a Grussinskaia estava hospedada.
O quarto era banal, e estava arrumado com uma elegância empoeirada, como todos os outros. Fazia frio ali dentro, flutuava um perfume estranho e acre, e um aroma de coroas de folhagem, e a porta que dava para o pequeno terraço estava aberta. O cortinado do leito estava aberto, e sobre o tapete encontravam-se uns chinelinhos já bem usados e gastos: chinelos de uma mulher acostumada a dormir sozinha. Gaigern, parado à porta, teve um furtivo e terno sentimento de piedade por esses chinelinhos resignados, junto ao leito de uma linda e célebre mulher. Entrou no quarto segurando seu ramo de orquídeas, com um gesto de súplica. Suzette colocou a suitcase sobre a mesa de toilette, entre os três espelhos, e apanhou finalmente as flores.
— Obrigada, monsieur — disse ela. — Há algum cartão com as flores?
— Que ideia! Eu não sou tão atrevido — disse Gaigern. E ficou a olhar para o rosto enrugado e cor de marfim de Suzette, que mostrava estranha semelhança com o da patroa. — A senhora está cansada? — perguntou ele. — E madame com certeza vai voltar tarde. Precisa esperar por ela?
— Não. Madame é boa pessoa. Diz-me todas as noites: "Pode ir dormir, Suzette, não preciso de você". Mas madame precisa de mim, sim. Vou esperar por ela. Madame nunca chega depois das duas, porque começa a trabalhar às nove horas da manhã. E que trabalho o dela, monsieur — oh, mon Dieu! Não, madame é muito boa.
— Ela deve ser um anjo! — observou Gaigern em tom respeitoso. "Só há um quarto de banho sem janelas entre o 68 e o 69", pensou ele ao mesmo tempo. Seu olhar, vagando por todos os lados, caiu no enorme bocejo de Suzette.
— Boa noite e mil vezes obrigado, mademoiselle — disse ele modestamente. Depois, sorriu e desapareceu.
Suzette fechou as duas portas assim que Gaigern saiu, colocou as orquídeas na garrafa de água e encolheu-se num fauteuil, como uma gata friorenta.
3
Antes da uma da manhã há poucos pares de sapatos diante das portas dos quartos do Grande Hotel. Todo mundo saiu para gozar a noite fervilhante, barulhenta e exuberante de luz elétrica da grande cidade. A criada de quarto da noite boceja a um canto, no pequeno office, ao fim do corredor; em cada andar há uma criada exausta, virtuosa e murcha. Os boys revezaram de turno às dez horas, mas a nova guarnição também tem, sob os bonés colocados de lado, descuidadamente, os mesmos olhos febris e brilhantes de crianças que não foram cedo para a cama. O encarregado do elevador, manda e mal-humorado, foi substituído, à meia-noite, por um outro maneta não menos mal-humorado. Senf entregou também seu posto ao porteiro da noite, e dirigiu-se ao hospital sem refletir, lá pelas onze horas, com os dentes batendo de excitação. O fato de ele ter sido mandado para casa por uma irmã-porteira pouco amável, com a observação de que o nascimento da criança podia demorar ainda vinte e quatro horas, é assunto particularmente seu, e não tem nada a ver com o hotel. No hotel, a estas horas, estão se divertindo a valer. No pavilhão amarelo estão dançando, o bufê de Mattoni já está bem desfalcado e ele sorri com seus olhos de negro enquanto corta fatias do rosbife e mistura maraschino na salada de frutas gelada. Os ventiladores zunem e cospem o ar viciado para os pátios do hotel, e na sala de leitura, no subterrâneo, estão os choferes falando mal dos patrões, porque não os deixam beber durante o serviço. No hall encontram-se sentados os hóspedes provincianos do Reich, assombrados e levemente aborrecidos com os hóspedes de Berlim, esses senhores de chapéu caído para a nuca, com gestos exagerados, e admirados também com a pintura dos rostos das senhoras. Rohna, que acabava de se esfregar com vinaigre de toilette e ia atravessando o hall, pensou: "É verdade que os nossos frequentadores noturnos não são first class. Mas — que voulez-vous? — só essa gente ordinária é que traz dinheiro para a caixa!"
Pouco antes da uma hora, Herr Kringelein chegou ao bar do hotel, onde se imprensou, exausto, atrás de uma mesinha para observar o mundo com olhos enublados. Para falar a verdade, Herr Kringelein estava completamente exausto, mas era voluntarioso como uma criança no dia do seu aniversário — simplesmente não queria ir para a cama. Além disso, tinha a impressão de já estar dormindo, tudo chegava ao seu cérebro de um modo confuso, como um estado de sonho ou de febre; o alarido e o movimento humano, as vozes, a música, tudo isso estava junto dele e ao mesmo tempo muito distante, absolutamente irreal. O mundo burburinhava de modo estranho, mergulhando-o num estado de bebedeira sem álcool. Certa vez, com a idade de dez anos, Kringelein faltara à escola e fugira, com medo de um ditado, numa manhã quente e cheia de neblina, em direção a Mickenau; depois, deixara as ruas calçadas e ficara a vagabundar pelos campos e, enquanto o sol dardejava seus raios ardentes, deitara-se e adormecera com a cabeça sobre uma almofada de trevo. Chegara a uma sebe à margem do rio e encontrara ali uma quantidade enorme de framboesas, que se pôs a devorar. Nunca mais se esqueceu, em toda a sua vida, do zumbido das grandes moscas dos brejos, que chuparam o sangue de suas pernas e de seus dedos perfumados e sujos do suco das framboesas, que tinha apanhado aos punhados, por entre urtigas e espinheiros. Esse sentimento embriagador de plenitude, o medo, o leve e febril mistério, e a alegria maligna da ação reprovável — essa embriaguez do assaltante, tudo isso ele sentia de novo, entre uma e duas da madrugada, no bar do hotel mais caro de Berlim. De certo modo as martirizantes moscas também se encontravam ali; haviam tomado a forma de números, e davam desagradáveis picadas no cérebro de Kringelein, no cérebro de um modesto guarda-livros que, acostumado a fazer contas durante toda a sua vida, não conseguia agora deixar de fazê-las.
Nove marcos era quanto custava uma porção de caviar, por exemplo. Caviar é uma desilusão, na opinião de Kringelein. Tem gosto de arenque e custa nove marcos. Kringelein sentiu calor e frio ao mesmo tempo, quando se viu sentado diante do carrinho com os hors d’oeuvres, observado por três garçons com ar de poucos amigos.
O menu — vinte e dois marcos, com a gorjeta — ficou intacto, porque seu estômago enfermo sentira náuseas. O borgonha era um vinho grosso e ácido deitado numa espécie de carrinho de criança, como um baby. A gente rica tinha um gosto esquisito, parecia. Kringelein, que não era bobo e gostava de aprender, reparara logo que estava mal vestido e usava as várias espécies de talheres de modo errado. Não pudera livrar-se de um maldito tremor nervoso durante toda a noite, que fora rica em embaraços por causa das gorjetas, de saídas por portas erradas, de perguntas confusas e pequeninos tormentos de toda a espécie. Mas tivera também seus grandes momentos, essa noite de um homem rico. A visita às vitrinas, por exemplo. Em Berlim as vitrinas ficam iluminadas durante a noite, e tudo que existe no mundo se encontra ali aos montões. Poder comprar tudo isso era um pensamento novo, febril e embriagador, para um homem como Kringelein. Foi ao cinema (em Berlim ainda se pode ir ao cinema às nove e meia da noite) e comprou um camarote. Em Fredersdorf também se vai ao cinema, pois três vezes por semana há um espetáculo no Salão Zickenmeier, onde a Associação Coral costuma fazer os seus ensaios. Kringelein estivera lá uma ou duas vezes, e sentara-se com sua Anna, que era muito sovina, bem na frente, no lugar mais barato, entre operários de fábricas; esticava a cabeça para cima, como um parafuso, de olhos fixos nas gigantescas e desfiguradas imagens da tela. O filme, visto de um lugar caro, tinha um aspecto completamente diferente, assemelhando-se à vida real, quando se pode pagar; foi esse um dos grandes conhecimentos adquiridos nessa noite. Kringelein, lembrando-se disso, sacudia a cabeça, sorridente. Um parêntese: esse filme de Saint-Moritz mostrava um mundo maravilhoso, mas que não parecia real. Kringelein, naquele canto do bar, resolveu ir para Saint-Moritz. "Estes montes, lagos e vales não existem só para os Preysing", pensa ele. Seu coração palpita com força quando tal pensamento o assalta de novo. Quando as pessoas têm a certeza de que vão morrer, são assaltadas por uma sensação de liberdade, amarga e triunfante. Kringelein, no entanto, não encontra palavras para exprimir o sentimento que às vezes o assalta, e agora o oprime, obrigando-o a suspirar profundamente para recobrar alento.
— Com licença — disse o Dr. Otternschlag em meio às considerações de Kringelein, metendo os joelhos ossudos por debaixo da mesinha em que estava sentado. — Não há mais nenhum lugar livre neste maldito bar. Local completamente obstruído. Louisiana Flip — disse ele ao garçom, pousando os dedos magros sobre a mesa, entre ele e Kringelein, como dez varetas, frias e pesadas, de metal.
— Que prazer — disse Kringelein com elegância. — Tenho imenso prazer em encontrar de novo o cavalheiro. O senhor foi tão bondoso comigo... não pense que me esqueci. Não, realmente não...
Otternschlag, a quem há muitos anos ninguém chamava de bondoso, e com quem, há dez anos, ninguém, absolutamente ninguém, mantivera uma conversa, sentiu um leve desprezo, misturado com certa satisfação, ouvindo os repetidos agradecimentos do senhor de Fredersdorf.
— Bem, bem... saúde! — disse ele, engolindo de um trago o seu Flip. Kringelein pedira uma bebida qualquer, mas não se atrevia a bebê-la, e apenas provou o líquido cor de cobre na taça de metal niquelado.
— No começo, o movimento daqui nos causa confusão — disse timidamente.
— Hum — replicou o Dr. Otternschlag. — No princípio causa. E não melhora, quando somos hóspedes efetivos. Não. Mais um Louisiana Flip.
— Na realidade, tudo é diferente do que imaginamos — respondeu Kringelein, a quem o coquetel forte deixara meditabundo. — Hoje em dia já não se vive na província como se estivéssemos fora do mundo. Lemos os jornais. Mas na realidade é bem diferente. Eu sei, por exemplo, que as banquetas do bar são altas. Mas não acho que sejam tão altas assim. E o negro ali adiante é o mixer, isso eu já sei; mas não é uma coisa tão esquisita, quando ele está perto de nós, apesar de ser o primeiro negro que vi na minha vida. Mas não é nada esquisito. Fala até alemão, e poderíamos pensar que ele está apenas pintado de preto.
— Não, não, é um negro de verdade. Mas não e muito competente. Quem quiser bebidas que façam dormir precisa esperar muito.
Kringelein prestou atenção à confusão de vozes, ao tilintar dos vidros, ao sussurro das pessoas e às gargalhadas das mulheres na frente do bar.
— Essas mulheres não são moças de bar, não é? — perguntou. Otternschlag voltou para ele o lado perfeito do rosto.
— O senhor está sentindo falta do elemento feminino? — perguntou. — Não, essas não são moças de bar; isto aqui é um local sério, respeitável. Só mulheres acompanhadas por cavalheiros. Não são moças de bar, mas também não são senhoras. O senhor está procurando companhia?
Kringelein pigarreou.
— Obrigado, nem penso nisso. Mas se eu quisesse, já teria companhia para hoje. Sim senhor. Pois é. Uma moça me chamou para dançar.
— Ah, é? Ao senhor? Onde? — perguntou o Dr. Otternschlag, entortando metade da boca, num sorriso.
— Eu estava num cassino, não muito longe da Potsdamerplatz — observou Kringelein, procurando imitar o tom desembaraçado e mundano de Otternschlag. — Fantástico, fantástico, é o que lhe digo. Que iluminação feérica! — procurou uma palavra mais expressiva, mas depois se contentou com essa mesmo. — Uma iluminação feérica. Pequenas fontes luminosas, que sempre mudavam de cor. Caro, naturalmente. É preciso beber champanha. Cobram, por uma garrafa, vinte e cinco marcos. Infelizmente eu não aguento beber muito, não tenho muita saúde, o senhor compreende.
— Já sei. Já percebi. Quando alguém usa um colarinho dois centímetros mais largo do que o pescoço, não precisa me dizer mais nada.
— O senhor é médico? — perguntou Kringelein, sentindo um calafrio e um susto, e metendo, sem querer, dois dedos entre o colarinho. — É, está largo demais...
— Fui. Tudo passou. Fui mandado pelo governo para a África do Sul. Clima horroroso. Preso em setembro de 14. Campo de concentração em Nairóbi, na África Oriental Britânica. Horrível. Voltei à pátria porque dei a minha palavra de que nunca mais seria soldado. E, como médico, participei dessa grande porcaria até o fim. Granadas no rosto, e bacilos de difteria no ferimento, de que não me livrei até 1920. Dois anos no isolamento. Pois é. Basta. Ponto final. Tudo pertence ao passado. Quem é que se interessa por essas coisas?
Kringelein, assustado, não desprendia os olhos daquele homem atormentado, cujos dedos rígidos e inanimados estavam pousados sobre a mesa, separando-os. O bar acompanhava a sua conversa com uma espécie de ruído musical; adivinhava-se que tocavam um charleston no pavilhão amarelo. Kringelein pouco compreendera do despacho telegráfico de Otternschlag. Não obstante, subiu-lhe aos olhos uma aguinha quente. Ele se envergonhava de chorar com tanta facilidade, depois que fizera a operação, que aliás não adiantara nada.
— E o senhor, não tem ninguém que... quero dizer... O senhor vive sozinho? — perguntou, sem jeito. E pela primeira vez Otternschlag reparou em sua voz aguda, de timbre agradável, a voz de um homem, uma voz que vibrava, que procurava, que tateava... Estendeu seus dedos frios na mesa e retirou-os em seguida. Kringelein, pensativo, olhava para as inúmeras cicatrizes esbranquiçadas do rosto de Otternschlag, mas de repente abriu-se o começou a falar.
Sozinho — ele sabia o que isso significava, foi mais ou menos o que ele disse; também ele vivia sozinho em Berlim, de um modo geral. Cortara todos os laços, desligara-se de diversos vínculos que o prendiam — usava modos elegantes de expressar-se — e agora estava em Berlim. Quando se vivera em Fredersdorf, ficava-se um pouco perdido numa grande cidade. Ele conhecia pouco a vida, mas agora queria conhecê-la, conhecer a verdadeira vida, a vida propriamente dita, com V maiúsculo, e era para isso que estava ali naquele momento.
— Mas — disse Kringelein —, onde está a verdadeira vida? Eu ainda não a descobri. Estive no cassino, estou no hotel mais caro de Berlim, mas não é só isso o que eu quero. Desconfio de que a vida real, verdadeira, a vida propriamente dita, existe num outro lugar, e tem um aspecto bem diferente. Quando não fazemos parte dela, não é tão fácil atingi-la, o senhor compreende?
— E o que imagina o senhor que a vida seja? — replicou o Dr. Otternschlag. — Existirá mesmo essa vida que o senhor imagina? A coisa propriamente dita existe sempre num lugar diferente. Quando a gente é jovem, pensa: "mais tarde..." Mais tarde, lamentamos: "antigamente é que eu vivia". Quando estamos aqui, imaginamos a vida na Índia, na América, no Popocatepetl ou em outro lugar qualquer. Mas quando nos encontramos lá, a vida acabou de passar por ali e desaparecer, ficando à nossa espera aqui, aqui mesmo, de onde nós fugimos. Com a vida passa-se a mesma coisa que com os caçadores de borboletas e os lepidópteros que tentam pegar. Enquanto estão voando, são uma maravilha. Depois que os apanham, notam que as cores desapareceram e as asas se estragaram.
Kringelein ouvia pela primeira vez da boca do Dr. Otternschlag algumas frases com certa sequência, e isso o impressionou; mas não acreditou no que ele estava dizendo.
— Não acredito nisso — disse com modéstia.
— Pode acreditar. Tudo se passa como com as banquetas de bar — replicou Otternschlag, que apoiara os cotovelos nos joelhos, e cujas mãos, pendentes, tremiam debilmente.
— Que banqueta de bar? — perguntou Kringelein.
— A banqueta de que o senhor falou há pouco. "As banquetas de bar não são tão altas assim", afirmou o senhor há pouco. "Eu imaginei que as banquetas fossem mais altas." Não é verdade? O senhor não disse isso? Pois é. Nós imaginamos tudo maior do que é, antes de vermos as coisas. O senhor acabou de chegar de viagem e veio lá do seu cantinho de província com ideias absurdas sobre a vida. O Grande Hotel, pensou o senhor. O hotel mais caro de Berlim, pensou o senhor. Deus sabe que milagres o senhor espera de um hotel assim. O senhor vai logo ficar sabendo o que é isto. Este hotel não vale nada, Herr Kringelein. A gente chega, fica algum tempo, depois parte. De passagem, compreende? Para uma estada curta, sabe? O que é que o senhor faz num hotel de luxo? Come, dorme, fica vadiando, faz negócios, flerta um pouquinho, dança um pouco, não é? Bem, e o que faz o senhor da sua vida? Centenas de portas num corredor, e ninguém sabe nada a respeito de quem mora ao lado de seu quarto. Quando o senhor vai embora, chega outro sujeito, deita-se na sua cama, e acabou-se. Fique sentado algumas horas no hall e preste bem atenção: ninguém é real. Essa gente não tem fisionomia própria! É tudo uma ilusão. Estão todos mortos e não sabem. É uma arapuca, um hotel de luxo. Grande Hotel, bella vita, hein? Bem, o importante é ter sempre as malas prontas...
Kringelein ficou pensando algum tempo. Teve então a impressão de ter compreendido o que Otternschlag dissera.
— É. Tem razão — disse ele, concordando. Havia seriedade demais nessa afirmativa. Otternschlag, que caíra numa leve sonolência, levou um susto.
— O senhor deseja alguma coisa de mim? Quer que eu o inicie na vida? Boa escolha a sua, magnífica. De qualquer maneira, estou à sua disposição, Herr Kringelein.
— Eu não queria incomodá-lo — respondeu Kringelein, meio atrapalhado e respeitoso. Pôs-se a refletir. Não se aguentava mais, usando essas frases elegantes. Desde que se encontrava no Grande Hotel, movia-se como se estivesse numa terra estranha. Falava o alemão como uma língua estrangeira, que tivesse aprendido em livros e jornais.
— O senhor foi bondosíssimo — disse. — Eu tinha esperanças... mas para o senhor as coisas são diferentes. O senhor já conhece tudo isso. Já está farto. Eu tenho tudo pela frente... então fico impaciente... tenha a bondade de desculpar.
Otternschlag olhou Kringelein com atenção; até sua pálpebra costurada sobre o olho de vidro parecia olhar.
Olhou-o atentamente e viu uma figura magra, com um terno de funcionário, de um tecido de lã encorpado e grosseiro, já um pouco lustroso. Viu, sob o bigode de diretor de associação, os vincos tristonhos e ansiosos ao lado dos lábios anêmicos. Viu o pescoço descarnado dentro do colarinho duro, muito largo e já no fio, as mãos de escriturário, de unhas maltratadas; viu até as botinas pretas, um pouquinho viradas para dentro, sobre o espesso tapete. E, finalmente, viu os olhos de Kringelein, olhos de um homem, azuis, por detrás do pince-nez de guarda-livros, olhos em que se lia uma enorme ansiedade, um sentimento de espera, de admiração, de curiosidade: sede de vida — e certeza da morte.
Só Deus sabe o calor que irradiou desses olhos sobre a existência amortecida do Dr. Otternschlag. Ou talvez tenha sido por mero aborrecimento que ele disse:
— Está certo. Bem. O senhor tem razão. Oh! O senhor tem toda a razão. Eu já passei por tudo isso. Estou farto, sim. Já passei por tudo, até a última e insignificante formalidade. E o senhor pensa que tem tudo pela frente? Está com apetite, hein? Apetite psíquico, quero dizer. O que é que o senhor imagina? O costumeiro paraíso masculino? Champanha? Mulheres? Correr, jogar, beber? Tiens! E foi cair numa arapuca dessas, logo na primeira noite? E encontrou logo companhia? — disse Otternschlag, impassível, mas agradecido pelo calor do olhar vesgo de Kringelein.
— É, logo, logo. Uma moça queria por força dançar comigo. Uma mocinha linda. Talvez não fosse tão linda... quero dizer, era um pouquinho planta de estufa de cidade grande — disse planta de estufa de cidade grande porque estava habituado a ler isso no jornal Mickenauer Tageblatt —, mas elegantíssima. Bem-educada, também.
— Bem-educada, também! Veja só... veja só! E ficaram amigos? — murmurou Otternschlag.
— Infelizmente eu não sei dançar. É preciso saber dançar, parece ser muito importante isso — respondeu Kringelein, a quem o coquetel dera uma atividade febril, tornando-o tristonho, ao mesmo tempo.
— Muito importante. Muito, mesmo. Importantíssimo — replicou o Dr. Otternschlag com uma estranha vivacidade na voz. — É preciso saber dançar. A união de dois corpos no mesmo compasso, girar abraçado ao par, não é verdade? Não se pode dar tábua em uma moça. É preciso saber dançar. Oh! O senhor tem toda a razão, Herr Kringelein. O senhor se chama Kringelein, não é?
Kringelein olhou, com expressão de curiosidade e inquietação, por baixo do seu pince-nez, a fisionomia de Otternschlag.
— Que quer o senhor dizer com isso? — perguntou, convencido de que estavam zombando dele. Mas Otternschlag continuou sério.
— Pode acreditar-me — afirmou. — Pode acreditar-me, Kringelein: quem não tem atividade sexual é um homem morto. Garçom, quero pagar.
Kringelein também pagou, após essa conclusão abrupta, e levantou-se atrapalhado. Foi andando atrás dos ombros esqueléticos do Dr. Otternschlag, metidos em um smoking estreito, e saiu do bar; foi cambaleando até o porteiro e recebeu sua chave.
— Há cartas para mim? — perguntou Otternschlag ao porteiro da noite. O doutor parecia ter-se esquecido por completo de Kringelein.
— Não — respondeu o porteiro, sem verificar, pois este não era como o outro porteiro, e delicadeza de sentimentos não se adquire imediatamente, mal se coloca na cabeça o boné do fardamento.
— A chave de madame, mademoiselle já a levou — disse ele, em francês, a uma senhora; e Kringelein quase o compreendeu, graças ao seu conhecimento de línguas adquirido na prática de correspondência com o exterior.
A senhora passou por ele, e de sua capa dourada evolou-se um perfume tênue agridoce, quando a gola se abriu junto ao pescoço. Kringelein encarou a senhora, esquecendo as regras da boa educação, e ficou completamente pasmado. A senhora tinha os cabelos pretos e lisos, e usava um diadema na cabeça; suas pálpebras eram oblongas, azul-escuras, com um sombreado também azul-escuro sobre os olhos; as fontes, as faces e o queixo eram cor de marfim, com veiazinhas azuis. A boca, cor de carmim, quase roxa, e bem arqueada, com dois arcos bem altos, que se erguiam quase até as narinas. O cabelo caía de cada lado em dois bandos lisos e pretos, avançando sobre as faces e, no ponto em que terminavam, via-se na pele a sombra de uma leve tonalidade ocre, pintada com extrema arte. A senhora parecia alta, apesar de ser de tamanho médio, devido (Kringelein o percebeu) às proporções perfeitas de seu corpo e ao seu andar adejante. Estava acompanhada por um cavalheiro de idade, baixinho, que trazia um chapéu cilíndrico na mão e tinha o aspecto de um músico.
— Você pode estar no teatro amanhã às oito e meia, querido? — perguntou a senhora, no momento exato em que passava diante de Kringelein. — Eu queria trabalhar meia hora antes de começar o ensaio.
Kringelein, que nunca vira ninguém mais elegante do que esta senhora, ficou a sorrir, deliciado, de tanta admiração, e depois puxou Otternschlag pela manga, soprando-lhe a meia voz:
— Que espécie de mulher é essa?
— O senhor não a conhece, homem de Deus?! A Grussinskaia — disse Otternschlag impaciente, dirigindo-se com a sua perna de pau para o elevador. Kringelein ficou parado no meio do hall.
— A Grussinskaia! — "Ó, diabo, a Grussinskaia!", pensou ele. A fama da Grussinskaia era tão grande que chegara até Fredersdorf. "Ela existe realmente. É assim que ela é. Não é só nos jornais que se leem notícias sobre ela. Ela é de carne e osso. Podemos esbarrar nela, tocá-la e aspirar o seu perfume, pois todo o hall fica perfumado quando ela passa. Preciso escrever ao Kampmann."
Apressou os passos para poder ver de novo a Grussinskaia e contemplá-la com atenção. Em frente ao elevador assistiu a uma pequenina cerimônia de troca de cortesias. Um homem de estatura fora do comum, elegante e bonito, afastou-se da porta do elevador, dando dois largos passos e deixando o caminho livre à Grussinskaia, com um gesto de mão negligente e ao mesmo tempo respeitoso, como se não se tratasse da entrada em um elevador, mas em um reino que um conquistador deposita aos pés da sua soberana. Otternschlag, que do outro lado abria alas sozinho, fez uma careta e rosnou consigo mesmo:
"Sir Walter Raleigh1".
1 Navegador e escritor inglês (1552-1618), favorito de Elisabeth I. (N. do E.)
Kringelein, por seu lado, estava tomado de tal pressa que passou diante de Otternschlag e se meteu no elevador logo atrás dos ombros largos daquele amável jovem. Por essa razão, o seu protetor teve que ficar sozinho, pois a lotação do elevador não podia ultrapassar quatro pessoas. Iam todos muito apertados, naquele pequeno cárcere de vidro e madeira. O jovem bonito, principalmente, encolhia-se no seu canto.
— Ah! Está também em Berlim, barão? — perguntou-lhe o velho maestro Witte. E o Barão Gaigern respondeu:
— Pois é. Sim, senhor. Também estou aqui.
Kringelein ouvia cheio de respeito essa conversa entre pessoas distintas. O maneta girou a manivela e o elevador parou no primeiro andar. Sobre a passadeira cor de framboesa, eles se encaminharam aos seus quartos: na frente, a Grussinskaia; atrás dela, Witte; depois o barão, e por último Otto Kringelein. As portas 68, 69 e 70 foram abertas. Eram duas horas da madrugada, que um velho relógio de mesa, na esquina do corredor, bateu ameaçadoramente. Ouvia-se o ruído abafado da música a tocar a última contradança no pavilhão amarelo.
A Grussinskaia parou um momento entre as duas portas do seu quarto.
— Boa noite, querido — disse ela. Quando estava de bom humor falava em alemão com ele. — Muito obrigada por esta noite. Foi ótima, não foi? Oito chamadas. Ah, diga-me: quem era aquele moço? Nós já não o vimos em algum outro lugar? Em Nice?
— É isso, em Nice, Lisa. Ele se apresentou a mim. Jogamos bridge algumas vezes. Parece ser um grande admirador de Elisavieta.
— Ah! — disse a Grussinskaia. Tirou a mão de baixo da capa e acariciou a manga de Witte, distraidamente. — Estamos com um enorme cansaço. Boa noite, querido. Olhe: é o mais belo homem que já vi na minha vida, esse barão — acrescentou em russo. Disse-o com um tom de voz tão frio, como se falasse apenas de um objeto que se expõe em leilão para ser vendido.
Kringelein, que ficara hesitante à entrada de seu quarto, ouviu, sedento e ansioso de aventuras, aqueles sons estranhos. Tinha a nítida sensação de que o mundo era maior e mais excitante, e mais outras coisas do que ele tinha imaginado em Fredersdorf.
Por fim as portas se fecharam, portas duplas de hotel, que se fecham por detrás das pessoas, deixando-as sozinhas com os seus segredos.
Nem o mais leve resquício de movimento mundano se nota entre as oito e as dez da manhã nas salas e corredores do enorme hotel. Não há luzes acesas nem música tocando, não se veem senhoras — a não ser que se queira considerar um modelo de sedução feminina uma mulher de limpeza que, de avental azul, passa a vassoura no hall, sobre a serragem molhada. Mas Rohna não pensa assim. Já está de novo no seu posto, esse esforçado Conde Rohna, calado, obsequioso, bem barbeado, com a ponta do lenço de seda flamulando discretamente no bolsinho do paletó. Ele acha que só num hotel de segunda classe se faz limpeza na presença dos hóspedes, mas infelizmente isso não é da sua competência, mas sim atribuição da inspetora-chefe. Aliás, os hóspedes nem reparam nisso. Os hóspedes que se encontram no hotel pela manhã são todos senhores sérios, ativos, homens de negócios. Sentados no hall, vendem tudo, oferecendo os produtos em todas as línguas do mundo: papel, algodão em rama, lubrificantes en gros, patentes, filmes, terrenos; vendem planos e ideias, sua energia, seu cérebro e sua vida. Sua primeira refeição é muito farta, e a saleta do café fica cheia de fumaça dos charutos e cigarros, apesar de existir um quadrinho com um tímido aviso, fixado no tapete de damasco amarelo da parede, pedindo aos fumantes que fumem de preferência no salãozinho cinzento, ao lado. Em todas as mesas há jornais; as cabinas telefônicas estão todas ocupadas e assediadas, e o porteiro Senf não vê nenhuma possibilidade de receber qualquer notícia do hospital antes de uma hora da tarde. No corredor do quinto andar, atrás da lavanderia, os grooms são submetidos a uma espécie de revista, antes de começarem o serviço; e, defronte do hotel, no espaço que medeia entre a entrada 1 e a 3, o Grande Hotel pode fazer concorrência a uma Bolsa.
Se tomarmos como exemplo Preysing, diretor-geral da Indústria Algodoeira Saxônia S.A., esse enérgico industrial, que representa o tipo médio dos homens de negócios, ficamos a par da atividade dos homens da sua classe, no Grande Hotel, das oito às dez da manhã.
Preysing, homem avantajado, corpulento, pesadão, chegara ao hotel numa hora incrível, às seis e vinte da manhã, porque na infeliz localidade de Fredersdorf só param trens mistos. Até então não lhe fora possível, apesar de todo o empenho, conseguir um trem expresso. Mas ele devia estar satisfeito por ter conseguido para a fábrica uma linha de conexão, para o transporte das mercadorias. Mas voltemos ao assunto. Preysing estava, portanto, cansado e meio tonto pelos solavancos do trem quando chegou ao hotel, ficando pensativo ao tomar conhecimento de que o apartamento que lhe tinham reservado era um dos mais caros. Primeiro andar, com sala e banho, 71; diária de setenta e cinco marcos. Mas Preysing era um homem econômico: tinha por regra não levar seu carro para Berlim, a fim de economizar a hospedagem do chofer. Porém, como tinha mesmo que pagar um preço tão elevado pelo quarto com banheiro, a primeira coisa que fez foi estender-se na banheira, onde se demorou bastante tempo, gozando o prazer do banho. Exatamente como o outro hóspede de Fredersdorf, Herr Kringelein. Em seguida estendeu-se um pouco sobre a cama, mas não conseguiu libertar-se da sensação da noite mal dormida e dos calafrios da viagem. Ergueu-se novamente, vestiu-se, desfez com pedante minuciosidade a sua valise e pendurou os ternos nos cabides portáteis que trouxera consigo. As botinas, a roupa de baixo, os objetos de uso pessoal, cada coisa vinha dentro de um saquinho de linho muito alvo, e em cada um deles havia um monograma bordado com linha vermelha, em ponto de cruz: K. P.
Enquanto dava o nó na gravata, Preysing ficou olhando distraidamente para a rua, mergulhada ainda na névoa matutina. Era muito cedo, não clareara de todo, as máquinas de limpeza das ruas escovavam o asfalto e os ônibus amarelos aproximavam-se como navios, pela madrugada. Preysing ficou olhando para baixo, sem enxergar coisa alguma. O dia que o esperava não ia ser nada fácil. Era preciso concentrar-se e refletir bem sobre os assuntos a tratar. Tocou a campainha chamando o criado e entregou-lhe pessoalmente as botinas para engraxar, e também as graxas marrom e branca que trouxera. O quarto já se enchera com o cheiro indefinível das rápidas viagens de negócios: couro de valises, Odol, água-de-colônia, terebintina, fumo. Preysing, com os gestos pedantes, lentos e precisos que lhe eram característicos, tirou do bolso a carteira e contou o dinheiro. Na divisão interna estava um grosso maço de notas de mil marcos; por ocasião de negócios, nunca se sabia exatamente quanto dinheiro ia ser preciso. Preysing costumava molhar com a língua o polegar e o indicador, ao contar o dinheiro, com o gesto de um homem saído do nada, enriquecido com o próprio trabalho. Meteu no bolso a carteira e, não contente com isso, ainda prendeu com um alfinete de gancho o bolso interno do paletó de lã grosseira, cor de cinza. Andou pelo quarto, de um lado para outro, de chinelos de couro vermelho, próprios para viagem, e ruminando em silêncio os diálogos que iria manter com o pessoal da Malharia de Chemnitz. Procurou um cinzeiro, mas não o encontrou, e, apesar de não gostar de jogar a cinza do charuto no tinteiro, teve de fazê-lo. Neste aposento também havia uma águia de bronze, semelhante à que deixara encantado Herr Kringelein, no 70. O diretor-geral ficou a tamborilar com os dedos durante alguns minutos nas asas abertas da águia, mergulhado em seus pensamentos; entretanto, o criado trouxe-lhe as botinas engraxadas, e às sete horas e cinquenta minutos Preysing pôde sair do quarto, e foi o segundo a chegar ao barbeiro do hotel. Apesar de estar preocupado, ao sentar-se à mesa, para o café, parecia um sujeito bem-humorado, gordo, sério, com o rosto bem barbeado. Às oito e trinta em ponto, conforme haviam combinado, Herr Rothenburger chegou. Era completamente calvo e não tinha sobrancelhas nem pestanas, o que lhe dava um ar de terno espanto que não combinava nada com o ceticismo de sua profissão. Era um misto de corretor da Bolsa e banqueiro, às vezes também intermediário e, além disso, membro do conselho fiscal de empresas menores. Sabia de tudo o que se passava, punha os outros a par de tudo que sabia, e metia-se em tudo.
Tinha sido o primeiro a divulgar a última notícia falsa a respeito da alta da Bolsa, e a espalhar sinistros boatos, que provocaram oscilações do câmbio. Em resumo, era um homem ridículo, perigoso e útil, esse Herr Rothenburger.
— Bom dia, Rothenburger — disse Preysing estendendo-lhe dois dedos, entre os quais segurava o charuto.
— Bom dia, Preysing — respondeu Rothenburger, empurrando o chapéu para a nuca. Depois sentou-se e pôs uma pasta sobre a mesa. — Aqui na terra, de novo?
— É... — disse Preysing. — Foi muito amável em ter vindo. Que quer tomar? Chá, conhaque, presunto com ovos estrelados?
— Vá lá um conhaque. Tudo bem em casa? Sua senhora? A senhorita sua filha? Tudo bem?
— Obrigado, vai-se vivendo. O senhor foi muito amável em enviar felicitações pelas nossas bodas de prata.
— Ora, era mais do que natural. E a firma, como se manifestou?
— Meu Deus, a firma! Deixei o carro velho para os negócios e recebi um novo em troca.
— É isso, é isso. L’état c'est moi. Um Preysing pode dizer: a firma sou eu, E como vai o senhor seu sogro?
— Obrigado. Otimamente. Ainda gosta de fumar o seu charuto.
— Meu Deus! Há quanto tempo eu o conheço! Quando me lembro como ele começou, com seis teares Jacquard num quartinho... e agora! É fantástico!
— É, o negócio vai indo — disse Preysing, com segunda intenção.
— Todos dizem isso. E dizem também que o senhor mandou construir uma villa magnífica, um verdadeiro castelo, com um parque...
— Nem tanto. Ficou bem bonito. Minha mulher gosta dessas coisas; sabe, fica completamente absorvida nisso. É, está bem bonita agora a nossa casa em Fredersdorf. O senhor precisa visitar-nos qualquer dia.
— Obrigado. Muitíssimo obrigado. É muito gentil da sua parte. Quem sabe se será possível realizar uma pequena viagem de negócios... para compensar as despesas.
Depois das formalidades e gentilezas de praxe, os dois cavalheiros passaram ao assunto principal.
— Ontem foi um dia meio inquieto na Bolsa, hein? — perguntou Preysing.
— Inquieto? Obrigado. Dalldorf é uma delícia, comparado a isto. Mas desde a alta das ações da Bega, todo mundo ficou maluco. Todos pensam que podem fazer negócios sem fundos. Mas ontem, vou-lhe dizer, a coisa estourou, baixa de trinta por cento, baixa de quarenta por cento. Há muita gente morta, que ainda não sabe que morreu. Quem se firmou na Bega... O senhor tem ações de lá?
— Tive. Retirei-me a tempo — disse Preysing; era mentira, uma pequena mentira usual nos negócios, e Rothenburger sabia disso.
— Ora, não se aborreça, eles se reerguem logo — disse ele à guisa de consolo, como se a negativa de Preysing significasse uma afirmativa. — Em que a gente pode ter confiança, se um banco como o Kuesel de Düsseldorf também quebra? Um estabelecimento como aquele! A Saxônia também está entre os credores, não é verdade?
— Nós? Não, absolutamente. Por que julga isso?
— Não? Pensei que estava. Ouve-se falar tanta coisa... mas se os senhores não estão perdendo nada com a bancarrota do Kuesel, então não sei realmente por que razão as ações da Indústria Algodoeira Saxônia baixaram tanto!
— É isso mesmo. Também penso como o senhor. Também não sei a razão. Vinte e oito por cento não é nenhuma bagatela. Muitos títulos se mantiveram firmes, estando já em pior situação do que os nossos.
— É certo. Os títulos da Malharia de Chemnitz mantiveram-se firmes — replicou Herr Rothenburger, sem rodeios. Preysing fitou-o através dos anéis de fumaça que separavam seus rostos de homens de negócios.
— Pois então fale em alemão claro — pediu Preysing, após curta pausa.
— O senhor é que precisa falar em alemão claro, eu não tenho segredos, Preysing. O senhor encarregou-me de comprar pelo melhor preço os títulos da Algodoeira Saxônia e eu comprei: títulos da Algodoeira Saxônia para a Algodoeira Saxônia. Bom. Provocamos uma alta considerável, realmente; cento e oitenta e quatro é bastante. Começaram a dizer que o senhor ia firmar um contrato com a Inglaterra, a cotação subiu. Disseram que o senhor ia fazer sociedade com a Malharia de Chemnitz... as ações subiram. De repente, o grupo de Chemnitz lança todas as ações da Saxônia no mercado... a cotação caiu, naturalmente. Caiu muito mais do que se podia esperar, de acordo com a lógica. A Bolsa é sempre ilógica. A Bolsa é uma mulher histérica, Preysing; estou casado com ela há quarenta anos. O senhor perdeu com a bancarrota do Kuesel. Bom. Com a Inglaterra, nada feito. Também não tem importância. Mas, de qualquer modo, vinte e oito por cento de perda, em um só dia, é demais. Já significa alguma coisa.
— Sim, senhor. Mas o que significa? — perguntou Preysing, enquanto uma ponta da cinza do seu charuto caía na xícara de café já frio. Preysing não era um diplomata. Sua pergunta era tola e inoportuna.
— Significa que a Malharia de Chemnitz se retira. O senhor sabe disso tão bem quanto eu. O senhor veio correndo para cá para salvar o que ainda for possível salvar. Mas que posso aconselhar-lhe? O senhor não pode obrigar o grupo de Chemnitz a cair nos seus braços. Se Chemnitz lançou no mercado todas as ações da Saxônia que possuía, isso significa que não tem mais interesse na Algodoeira Saxônia. Agora trata-se de saber o que é possível salvar para o senhor, nesta desagradável situação. O senhor quer continuar a adquirir suas próprias ações? Agora pode comprá-las por preço baixo.
Preysing não respondeu logo, ficando a refletir, o que lhe custou enorme esforço. Era um homem às direitas, o diretor-geral, um homem correto, leal, limpo por dentro e por fora. Mas não era um gênio, como homem de negócios; faltava-lhe fantasia, talento persuasivo, envergadura. Bastava que se exigisse dele uma decisão firme e ficaria a escorregar como se estivesse patinando sobre gelo. Quando dizia uma inverdade, faltava-lhe força convincente. Conseguia apenas inventar umas pequeninas e insignificantes mentiras de ofício, sem nenhum alcance. Punha-se logo a gaguejar, e sob o bigode surgiam-lhe gotinhas de suor.
— Afinal, se o grupo de Chemnitz não aceitar a fusão, isso é com eles; eles precisam mais de nós do que nós deles. E se não tivessem adquirido esse novo processo de tingir, nós não teríamos nisso o menor interesse — disse ele finalmente, pensando ter dado uma resposta muito hábil. Rothenburger ergueu os seus dez grossos dedos e deixou-os cair de novo sobre a mesa do café, bem juntinho ao pote de mel.
— Mas Chemnitz está de posse do processo para tingir. E a Saxônia tem interesse nisso — disse ele amavelmente.
Preysing já tinha dez respostas prontas na ponta da língua. "Nós não perdemos nada com o Kuesel", quis ele dizer. E também: "O negócio com a Inglaterra não está absolutamente fora de cogitação". E ainda: "A Malharia de Chemnitz faz baixar nossas ações exatamente porque quer fazer a fusão: é uma maneira de criar melhores condições para ela". Mas, afinal, não conseguiu dizer nada disso, apenas afirmando:
— Pois é, vamos ver o que acontecerá! Depois de amanhã tenho uma conferência com uns senhores da Chemnitz.
— Pfu! — exclamou Rothenburger, soltando ruidosamente a fumaça da garganta. — Uma conferência? Qual deles vai aparecer? Schweimann? Gerstenkorn? São espertos, esses senhores. Com eles é preciso estar de olho aberto. Para lidar com essa gente o seu sogro é que viria a calhar, não me leve a mal. Bem, quer dizer que a Saxônia ainda não está perdida? Preciso contar isso na Bolsa. Se não ajudar, mal também não faz. Bem, que se vai fazer? O senhor pretende que compremos de novo ações de algodão? Se hoje não aparecer alguém que sustente a coisa, assistiremos a uma bela quebra, é Rothenburger quem lhe diz. Então?
E Herr Rothenburger abriu o fecho da sua pasta e tirou dela uma ordem de pagamento.
Preysing ficara vermelho no alto do nariz, entre as sobrancelhas, quando Rothenburger aludira indelicadamente a seu sogro, e um passageiro rubor deslizou por sobre suas narinas. Tirou do bolso a caneta-tinteiro e, após ligeira hesitação, assinou o papel.
— Até quarenta mil, limitada por cento e setenta — disse com frieza, pondo um traço largo e arrogante sob sua assinatura. Era um protesto contra seu sogro e contra Herr Rothenburger.
4
Preysing ficou de péssimo humor na saleta do café, quando se viu só. Sentia um leve zunido nos ouvidos, pois sua pressão não estava em ordem; com frequência, durante conversas importantes, sentia um peso na nuca. No ano anterior ele tivera alguns contratempos, e o de agora também não parecia ser dos mais agradáveis. Não era coisa muito fácil continuar firme, agora que na Chemnitz queriam tirar o corpo fora. E o velho, sentado lá em casa na cadeira de rodas, nos seus acessos de caduquice, ficava a estourar de prazer sempre que acontecia algum contratempo ao genro. As negociações com as estradas de ferro estaduais a respeito do expresso não tinham levado a nada. O novo processo de tingir, que permitia dar a tecidos baratos cores que até então só se usavam para tecidos de primeira, tinha sido furtado sob suas barbas pela S.A. Malharia de Chemnitz. Com o contrato da Inglaterra lidavam há meses sem resultado, e Preysing já estivera por duas vezes em Manchester; cada vez que voltava as negociações iam de mal a pior, podendo considerá-las desde já como rompidas. O velho ficara sabendo da história com a firma de Chemnitz e tratara de fazer astutamente negociações preliminares; Gerstenkorn fora a Fredersdorf, visitar as instalações da fábrica, e trocaram um palavreado que não conduziu a nada. O célebre jurista Dr. Zinnowitz, perito em matéria comercial, apresentara um projeto de contrato, que não tinha sido firmado ainda: para cada duas ações do grupo de Chemnitz, uma da Saxônia. Era um bom negócio para a fábrica — e também não era muito mau para a firma de Chemnitz —, a Bolsa estava a par disso e o mundo de negócios têxteis também. De repente, a firma de Chemnitz começou a querer tirar proveito sozinha. E justamente agora, que a coisa estava mesmo uma porcaria, o velho mandava o pobre Preysing para remendar os rasgões.
— Diabo do inferno! — disse Preysing, que por descuido tomara um gole de café frio misturado com a cinza do charuto. Em seguida se levantou. Tinha as costas moídas, por causa da viagem no trem misto; bocejou com as mandíbulas contraídas e sentiu os olhos molhados. Desanimado e desejando ser confortado, dirigiu-se ao compartimento dos telefones, pedindo uma ligação urgente com Fredersdorf 48.
Fredersdorf 48 não era o telefone da fábrica, mas da villa de Preysing. A ligação não foi muito demorada, e Preysing colocou comodamente o cotovelo sobre a mesinha do aparelho, para acalmar-se, conversando com sua mulher.
— Bom dia, Mulle — disse ele. — É, sou eu. Você estava dormindo, Mulle? Ainda está na cama?
— Que é que você está pensando? — respondeu o telefone com uma voz longínqua, mas de timbre arredondado e cheio, uma voz que o diretor-geral amava sincera e fielmente. — Já são nove e meia! Já tomei café e já reguei minhas plantas. E você?
— All right — respondeu Preysing, com exagerado entusiasmo. — Vou ter daqui a pouco uma conferência com o Zinnowitz. Está bonito o dia aí? Está sol?
— Está — a voz tinha um ligeiro acento saxão, conhecido e familiar. — O tempo está bom. Imagine só, as flores de açafrão abriram todas de uma vez esta noite.
Preysing via, através do telefone, as flores de açafrão, a sala do café com os móveis de vime, o abafador de ráfia sobre a cafeteira, a mesa posta, com os capuchinhos de tricô sobre os copinhos dos ovos. Via Mulle também, com o roupão azul e de chinelos, segurando o regador dos cactos, de bico pontudo.
— Sabe, Mulle, isto aqui está muito sem graça — disse ele. — Você devia ter vindo comigo. Sinceramente.
— Ora, deixe disso — respondeu o telefone satisfeito, rindo-se com a risada simpática de Mulle.
— Estou tão acostumado com você... Olhe, esqueci-me do aparelho de barbear, vou ter que ir diariamente ao barbeiro.
— Eu já sabia. Você o esqueceu no banheiro. Sabe, compre outro; em qualquer loja se pode comprar barato um aparelho; não é mais caro do que ir ao barbeiro todos os dias, e é mais agradável.
— É, sim... é verdade. Você tem razão — disse Preysing, agradecido. — Onde estão as meninas? Gostaria de dizer-lhes bom-dia.
O telefone sussurrou qualquer coisa incompreensível, muito de longe, e depois exclamou em tom claro:
— Bom dia, Peps!
— Bom dia, Pepsin! — respondeu Preysing, alegre. — Como vai?
— Bem! E você?
— Também vou bem. Babe está aí?
Sim, Babe também estava lá, e também perguntou, com sua voz de dezessete anos, como ele ia passando, se o tempo estava bom, e se lhe levaria de Berlim algum presente; as flores de açafrão tinham aberto; Mulle não a deixava jogar tênis; estava fazendo muito calor e Schmidt talvez pudesse preparar o campo, não? Mulle disse depois qualquer coisa, em seguida Pepsin, e por fim o telefone disparou aos gritos e risadas com três vozes diferentes, até que a telefonista se meteu na conversa e Preysing desligou. Continuou por um instante na cabina e, sem que ele próprio o conseguisse explicar, teve a impressão de estar tomando sol no parapeito morno de uma janela, segurando nas mãos aquecidas um ramo de açafrão azul.
Sentiu-se aliviado, ao sair da cabina. Muitos diziam que o diretor-geral vivia preso às saias da mulher, e não deixavam de ter uma certa razão. Muito excitado, fez nova ligação, desta vez para o banco, a fim de tratar da cobertura para os quarenta mil marcos, uma quantia absurda, cuja ordem de pagamento ele, em desespero, assinara por conta própria a Herr Rothenburger. Durante os desagradáveis dez minutos em que o diretor-geral ocupou a cabina 4, Kringelein descera a escadaria do hotel, deliciando-se a cada passo que dava sobre o tapete vermelho-framboesa, sobre o qual podia andar com tanta distinção. Chegou, finalmente, à portaria. Trazia de novo uma flor na lapela, a mesma da noite anterior, que ele colocara no copo da escova de dentes, e se conservara relativamente fresca — um cravo branco. Kringelein considerava o seu aroma penetrante um complemento indispensável à sua elegância.
— O cavalheiro pelo qual o senhor perguntou ontem acaba de chegar — avisou o porteiro.
— Que cavalheiro? — admirou-se Kringelein.
O porteiro examinou o livro de registros de entradas.
— Preysing, o Diretor-Geral Preysing, de Fredersdorf — disse ele, olhando atentamente para o rosto miúdo e afilado do guarda-livros.
Kringelein respirou tão violentamente que mais parecia ter soltado um suspiro.
— Ah, sim. Está bem. E onde posso encontrá-lo? — perguntou, com os lábios pálidos.
— Deve estar na saleta do café.
Kringelein afastou-se, num estado de extrema tensão nervosa. Sua espinha se encurvou para trás, tal a sua excitação. "Bom dia, Herr Preysing", pensou. "Está bom o café? Pois é, eu também sou hóspede do Grande Hotel. É isso mesmo! Será que o senhor tem alguma coisa contra isso? Talvez seja proibido a pessoas como eu hospedarem-se aqui? Olhe! Também temos o direito de viver como bem entendemos."
"Ah!", pensou a seguir, "por que hei de ter medo de Preysing? Ele não pode fazer nada contra mim. Vou morrer logo, ninguém pode me prejudicar." Assaltou-o a mesma sensação sutil de liberdade que sentira na mata de Mickenau, com as framboesas. Cheio de coragem, entrou na saleta do café, movimentando-se já com bastante segurança naquelas dependências fashionable. Procurou Preysing. Queria falar com Preysing a todo custo. Tinha contas a ajustar com Preysing. Aliás, era por isso que estava no Grande Hotel. "Bom dia, Herr Preysing!", diria.
Mas Preysing não estava na saleta do café. Kringelein foi-se arrastando pelo corredor, meteu a cabeça na sala de correspondência, no salão de leitura, procurou no boxe dos jornais, chegando ao exagero de perguntar ao groom 14 por Herr Preysing. Por toda a parte sacudiam a cabeça, ignoravam onde ele se encontrava. Kringelein, que já se aborrecera e estava quase estourando com a quantidade de coisas que queria desabafar, chegou à entrada de uma dependência que não conhecia ainda.
— Tenha a bondade de desculpar, conhece Herr Preysing, de Fredersdorf? — perguntou à telefonista.
Esta apenas inclinou a cabeça, sem dar resposta, porque estava muito ocupada. Apontou com o polegar por sobre o ombro. Kringelein ficou vermelho e em seguida empalideceu. Nesse momento, Preysing, pensativo, saía da cabina 4.
Então aconteceu o seguinte: Kringelein encolheu-se todo, curvou a nuca, sua cabeça inclinou-se, a espinha, que estava bem aprumada, afrouxou, as pontas dos sapatos se encolheram, a gola do paletó subiu até a nuca, os joelhos amoleceram e as calças formaram pregas transversais sobre as pernas bambas. No espaço de um segundo, o rico e distinto Herr Kringelein transformou-se em um pobre e insignificante guarda-livros; um ser subalterno que parecia esquecer-se de que dentro de poucas semanas não viveria mais, e portanto gozava de inúmeras vantagens em relação a Herr Preysing, que ainda teria que atormentar-se e consumir-se por anos e anos, com milhares de coisas aborrecidas. O guarda-livros Kringelein afastou-se, com as costas coladas à porta da cabina 2, atencioso, e murmurou com a cabeça inclinada, exatamente como na fábrica:
— Bom dia, senhor diretor-geral.
— Bom dia — respondeu Preysing, passando por ele sem lhe dirigir o olhar. Kringelein continuou ainda um minuto colado à parede, engolindo, cheio de vergonha, a saliva amarga. Sentia dores de novo, dores que pareciam perfurar-lhe o estômago, sua metade de estômago, enferma e moribunda, que destilava secretamente, e quando bem lhe parecia, os venenos de uma morte lenta.
Nesse ínterim, Preysing continuava o seu caminho, dirigindo-se ao hall, onde o conhecido advogado, Dr. Zinnowitz, especialista em assuntos comerciais, já estava à sua espera.
Há duas horas que o Dr. Zinnowitz e o Diretor-Geral Preysing se conservavam sentados num recanto sossegado do jardim de inverno, curvados sobre documentos. A pasta de Preysing esvaziara-se, o cinzeiro ao seu lado enchera-se de pontas de charutos e as costas de suas mãos estavam ligeiramente suarentas, como costumavam ficar por ocasião de negociações difíceis. O Dr. Zinnowitz era um senhor idoso, baixote, com o semblante de um mágico chinês; pigarreou, como a se preparar para começar um discurso. Com atitude professoral, colocou a mão sobre a pasta, e disse:
— Caro Preysing, resumindo: vamos à conferência de amanhã com enormes desvantagens. É péssima a cotação de nossas ações — e ao dizer isso batia com os dedos sobre um bilhete que um boy lhe entregara um pouco antes do meio-dia, o qual trazia a notícia de uma nova baixa de sete por cento para as ações da Algodoeira Saxônia. — Nossas ações estão em má situação, e o momento psicológico, se assim me posso exprimir, foi mal escolhido para um encontro tão importante como este. O senhor também sabe que, se amanhã o grupo de Chemnitz disser não, a fusão vai por água abaixo. Não se pode tentar mais uma vez. E é possível, em vista da situação atual, que eles digam não. Não o quero afirmar com segurança, mas é natural que o façam, é muito provável, mesmo.
Preysing escutava, cheio de impaciência; estava nervoso. As palavras formais do advogado o irritavam. Zinnowitz falava como se estivesse sempre em assembleia-geral, mesmo quando estava completamente só. Quando ele apoiou as articulações dos dedos sobre a mesa, a leve mesinha de vime do jardim de inverno transformou-se em uma mesa de conferências, coberta de feltro verde, prenhe de decisões importantes e definitivas.
— Não será melhor bater em retirada?
— Não se pode bater em retirada sem causar uma péssima impressão. É preciso considerar também se, com uma prorrogação, iremos ganhar ou perder. De qualquer modo, ainda há algumas chances, que temos de abandonar por completo caso se bata em retirada.
— Que chances? — perguntou Preysing.
Ele não podia livrar-se do péssimo hábito de perguntar coisas que estava farto de saber. Por esse motivo, as negociações com Preysing se prolongavam indefinidamente, tornando-se pedantes e confusas.
— O senhor conhece as chances tão bem quanto eu — afirmou o Dr. Zinnowitz, em tom de censura. — Trata-se, como sempre, da situação em que se encontram as negociações com a Inglaterra. Conforme a minha opinião, Manchester, Burleigh & Son, de Manchester, é o ponto principal. A Malharia de Chemnitz quer ganhar o mercado para seus produtos manufaturados. Burleigh & Son tem, em grande parte, esse mercado nas mãos, e recebe continuamente grandes encomendas de produtos de malha manufaturados. Eles próprios só produzem a matéria-prima, mas gostariam de exportar o seu algodão para a Alemanha, recebendo em troca, na Inglaterra, o produto manufaturado de Chemnitz. Eles têm grande interesse em comerciar com Chemnitz. A razão por que não fazem isso diretamente o senhor sabe tão bem quanto eu, meu caro Preysing: a firma de Chemnitz não dá aos ingleses a impressão de ser muito sólida. Estes estão hesitantes, porque o negócio não lhes parece ter uma base muito segura. A coisa muda de figura, caso a Saxônia S.A. se associe a Chemnitz. Burleigh & Son deposita grandes esperanças nisso. Parece que eles pensam, desculpe, meu caro, que o seu negócio, um pouco parado, receberia um impulso, e o grupo de Chemnitz, que é demasiado afoito, se consolidaria mais. Por conseguinte, Burleigh & Son só tem interesse na Saxônia caso ela se alie à Malharia de Chemnitz. E Chemnitz, por seu lado, só quer a fusão se o senhor fizer contrato com Burleigh & Son, assegurando assim o mercado inglês. Agora, cada firma está à espera de que o contrato entre o senhor e o outro esteja firmado. Quer saber a minha opinião? As negociações foram conduzidas de maneira desastrosa, do contrário não estaríamos neste beco sem saída. Quem entrou em negociações com Manchester?
— Meu sogro — respondeu Preysing apressadamente. Isso não era exato, e Zinnowitz, que estava bem informado a respeito da luta pela direção na Algodoeira Saxônia, sabia perfeitamente que Preysing não estava dizendo a verdade. Passou a palma da mão sobre a mesa, ignorando a resposta de Preysing. Seu gesto significava: deixemos isso de lado.
— Tenho mantido — continuou ele — permanente contato com o grupo de Chemnitz — Zinnowitz gostava de usar as expressões enérgicas do seu tempo de capitão da reserva —, e posso descrever-lhe com exatidão a disposição em que ele se encontra. Schweimann desistiu por completo da fusão, e Gerstenkorn já está vacilante. Por quê? A importante firma Companhias Reunidas S. J. R. fez sondagens com o grupo de Chemnitz, para saber se eles venderiam sem exigir a fusão. Se venderiam sem mais delongas. Naturalmente, nesse caso, Schweimann e Gerstenkorn participariam do conselho fiscal, e teriam, além disso, postos remunerados à parte, ao passo que agora ainda correm algum riscos. Pelo contrário, se o negócio com Burleigh estivesse esclarecido, então o que eu acredito que aconteceria — é esta a minha humilde opinião — é que eles recusariam a oferta da S. J. R., e optariam pela fusão com o senhor. É esta a situação em que eles se encontram. Quanto à sua situação, Preysing, com respeito a Manchester, não estou muito bem informado. Seu sogro escreveu-me, mas de modo pouco claro...
Preysing cortou de novo as claras considerações do jurista.
— Essa história da oferta da S. J. R. é um fato ou apenas falatório? Quanto ofereceram a Chemnitz? — perguntou ele.
— Isso não vem ao caso — respondeu Zinnowitz, que o ignorava.
Preysing esticou para a frente o lábio inferior, onde se apoiava um charuto, e ficou a refletir. "Vem ao caso, sim", pensou, sem conseguir esclarecer, a si próprio e ao outro, qual a razão.
— O negócio com Burleigh não vai indo tão mal assim — disse ele, hesitante.
— Muito bem também não, ao que parece — replicou prontamente o jurista.
Preysing apanhou a pasta, largou-a, tornou a pegá-la, tirou o charuto da boca — já com a ponta toda mordiscada — e só no terceiro assalto tirou da pasta de couro um dossiê de papelão azul, onde se encontravam algumas cartas e cópias de outras.
— Aqui está a correspondência mantida com Manchester — disse apressadamente, estendendo ao jurista o dossiê. Arrependesse depressa. Nova camada de suor frio porejou nas costas de suas mãos; tentou fazer girar a aliança no dedo, num gesto que lhe era habitual, e não o conseguiu. — Mas tenho de pedir-lhe a máxima reserva, isto é estritamente confidencial — disse ele em tom implorante.
Zinnowitz lançou-lhe apenas um olhar enviesado, sem tomar conhecimento das cartas. Preysing calou-se. Podiam ouvir-se as delicadas batidas das toalhas, ao serem colocadas sobre as mesas, no salão de refeições. Sentia-se o cheiro característico de todos os hotéis do mundo, antes da comida: um leve cheiro de carne assada, que abre o apetite antes da refeição, e depois se torna insuportável. Preysing sentia fome. Lembrou-se, subitamente, de Mulle e da mesa posta, com as filhas em volta.
— É — disse o Dr. Zinnowitz, afastando as cartas e fitando, com olhar pensativo e absorto, a base do nariz de Preysing.
— Então? — perguntou Preysing.
— Volto agora — continuou Zinnowitz — ao ponto de partida. Por enquanto, as negociações com Burleigh & Son continuam e, por conseguinte, temos ainda essa chance importante nas mãos, para exercer pressão sobre o grupo de Chemnitz. Se adiarmos a conferência e Burleigh se retirar, o que é bem possível, de acordo com sua última carta, de... de 27 de fevereiro, perderemos essa chance. Então perderemos todas as chances, a bem dizer. Assim, em vez de nos sentarmos sobre duas cadeiras, sentaremos entre duas cadeiras.
De súbito, a testa de Preysing ficou roxa; uma onda de sangue subiu sob a sua pele ligeiramente enrugada, engrossando as veias. Às vezes ele tinha esses acessos de furor, esse afluxos de sangue, esses violentos acessos de cólera.
— Toda essa conversa não conduz a nada. Temos que conseguir a fusão — afirmou ele, elevando a voz e dando um murro em cima da mesa. O Dr. Zinnowitz esperou um instante para responder.
— Acho que a Saxônia não irá à falência, sem essa fusão.
— Não. É claro que não. Ninguém está falando em falência — respondeu Preysing, excitado. — Mas teríamos que diminuir nossos gastos. Teríamos de despedir operários na fiação. Teríamos de... sabe o que mais? Tenho de consegui-lo, e acabou-se. Há ainda o fato de... há outras razões. Trata-se de minha autoridade dentro da fábrica, o senhor compreende? Afinal, toda a organização da fábrica é obra minha. E a gente quer conservar o prestígio, também. O velho está ficando idoso demais. E com meu cunhado eu não me dou bem. Digo-lhe com toda a franqueza, o senhor conhece o rapaz, não me dou bem com ele. Esse rapaz trouxe certos costumes de Lyon que não aprecio nos negócios. Não gosto de blefes. Não gosto desses fogos de artifício. Meus negócios são feitos com base. Não construo castelos de cartas! Por enquanto eu estou lá, e quem manda sou eu!
O Dr. Zinnowitz olhava com interesse para o excitado diretor-geral, a dizer coisas que iam além do que ele podia garantir.
— O senhor é conhecido no seu ramo como um homem de negócios exemplar — observou ele, cortesmente; notava-se em suas palavras um leve tom de piedade.
Preysing parou de falar. Pegou em seu dossiê azul, e meteu-o, com os dedos trêmulos, na pasta de couro.
— Então estamos de acordo — disse Zinnowitz. — A conferência será realizada amanhã, e vamos procurar por todos os meios forçar a assinatura do contrato prévio. Mas eu gostaria de saber... Ouça — disse ele daí a um minuto, após haver refletido em silêncio. — E se o senhor me entregasse algumas cartas? As mais importantes, compreende, do início das negociações? Vou falar à tarde com Schweimann e Gerstenkorn. Não prejudicaria coisa alguma, se eu as mostrasse... naturalmente não mostraria todas, mas apenas algumas.
— É impossível — respondeu Preysing. — Prometemos a Burleigh & Son a maior discrição.
Zinnowitz sorriu ao ouvir isso.
— É a história de sempre — declarou. — Mas faça o que julgar melhor. A responsabilidade é sua. Hic Rhodus, hic salta. Se soubermos conduzir com jeito as negociações em Manchester, ganharemos a partida. Esse é o único ponto que poderia compensar o negócio quase perdido com Chemnitz. Seria necessário pôr nas mãos de Schweimann algumas cartas, como uma coisa sem importância e casual. As mais importantes, compreende? Algumas cópias. Mas faça o que quiser. O senhor é o responsável.
— Não me agrada fazer isso, é uma coisa pouco limpa — respondeu Preysing. A cobertura de quarenta mil marcos para Rothenburger comprar ações ainda lhe estava a dificultar a digestão; sentia de fato azia, de tanta excitação, e suas têmporas zuniam, acaloradas. — As negociações com Chemnitz começaram antes do caso de Burleigh. Entre nós e Gerstenkorn nunca foi trocada uma só palavra a esse respeito. De repente tudo vira para esse lado. Se o grupo de Chemnitz nos quer aceitar apenas como um negócio dependente do assunto com a Inglaterra, e a coisa parece ser essa, como poderemos justificar a nossa correspondência? Não! Isso eu não faço.
"É teimoso como um jumento", pensou o Dr. Zinnowitz, e apertou o fecho da sua pasta, cuja fechadura deu um leve estalido.
— Com licença — disse ele. E, cerrando os lábios, pôs-se de pé.
De súbito, Preysing resolveu concordar.
— O senhor tem alguém que possa copiar algumas dessas cartas? De qualquer maneira eu poderia entregar-lhe duas cópias de cada. Os originais não saem de minhas mãos — disse ele apressadamente e elevando a voz, como se procurasse encobrir a de seu interlocutor. — É preciso que seja uma pessoa discreta e de confiança. Preciso ditar também um outro assunto de que necessito para a conferência. As datilógrafas arranjadas por intermédio do hotel não me agradam. Ficamos com a impressão de que elas vão contar ao porteiro os segredos comerciais. É preciso que seja logo depois do almoço.
— Infelizmente nenhum dos empregados do meu escritório dispõe de tempo — disse Zinnowitz com frieza, e ligeiramente surpreendido. — Ficamos com alguns assuntos importantes em atraso, e o meu pessoal há várias semanas tem feito trabalho extra. Mas espere um pouco... podia-se mandar a Flaemmchen para o senhor. A Flaemmchen serve-lhe. Vou mandar telefonar para ela.
— Para quem? — perguntou Preysing, chocado com o diminutivo.
— Para a Flaemmchen. A Flamm número dois. A irmã da minha secretária, a Flamm número um, que o senhor conhece, não é? Há vinte anos que está trabalhando comigo. A Flamm número dois nos tem auxiliado muitas vezes quando temos excesso de trabalho de cópias no escritório. Já a levei também numa viagem, porque a Flamm número um não podia ir. Ela é muito ativa e inteligente. Tenho que ter as cópias até as cinco horas. Farei isso como uma coisa à parte das negociações oficiais, durante o jantar com os senhores de Chemnitz. A Flaemmchen pode levar-me as cópias diretamente. Vou telefonar já à Flamm número um para que ela mande a irmã. Para que horas ficou marcada a conferência de amanhã?
O Dr. Zinnowitz e o Diretor-Geral Preysing, dois senhores corretos, com pastas já bem usadas debaixo do braço, saíram do jardim de inverno, atravessaram o corredor e, passando diante da portaria, chegaram ao hall onde se encontravam muitos outros senhores parecidos com eles, com pastas idênticas e conversando de maneira semelhante à deles. Algumas senhoras apareciam de novo; acabavam de sair do banho e vinham perfumadas, com os lábios pintados recentemente. Com um gesto elegante e despreocupado, calçavam as luvas antes de passar pela porta giratória e sair para a rua, cujo asfalto escuro estava banhado pelo clarão amarelo do sol.
No momento em que atravessava o hall para ir ao compartimento telefônico, Preysing ouviu alguém pronunciar seu nome. O groom 18 veio correndo pelos corredores, chamando com sua voz clara e aguda de menino, a intervalos regulares:
— Senhor Diretor Preysing! Senhor Diretor Preysing, de Fredersdorf! Senhor Diretor Preysing!
— Estou aqui! — exclamou Preysing, estendendo a mão para pegar um telegrama. — Com licença — disse ele; abriu o telegrama e leu-o, enquanto atravessava o hall ao lado do Dr. Zinnowitz. Esfriou até a raiz dos cabelos, durante a leitura, e com um gesto mecânico colocou na cabeça o chapéu-coco.
O telegrama dizia:
As negociações com Burleigh & Son fracassaram totalmente. Broesemann.
Não adiantava mais. "Não é mais preciso mandar a moça, Dr. Zinnowitz. Não adianta. Ponto final com Manchester", pensou Preysing, continuando a caminhar em direção ao compartimento telefônico. Meteu o telegrama no bolso do sobretudo, apertando-o entre o polegar e o indicador. "Não adianta mais. Não preciso mais mandar fazer as cópias", pensou ele, pretendendo dizê-lo também.
Mas não o disse. Pigarreou, pois tinha ainda na garganta a fuligem da viagem noturna.
— O tempo ficou magnífico — disse ele.
— Já estamos em fins de março — retrucou Zinnowitz, que afastara as preocupações com os negócios e voltava a ser um particular que gostava de apreciar "meias de seda" a caminhar.
— A cabina 2 vai vagar logo — informou a telefonista, colocando os pinos vermelhos e verdes nos orifícios. Preysing apoiou-se à porta acolchoada da cabina, e seus olhos fixaram-se mecanicamente no postigo, num dorso largo que se encontrava lá dentro. Zinnowitz falou qualquer coisa que ele não compreendeu. Sentiu um ódio violento por Broesemann, e o sangue lhe subiu à cabeça. Ódio daquela vaca, daquele procurador que enviava um telegrama desses, justamente quando era preciso ter a cabeça bem erguida para um negócio tão difícil. Evidentemente, o velho estava por trás daquele telegrama, aquele velho caduco, com a sua maldade e a sua rabugice: a porcaria está feita, mostre agora do que é capaz. Estava realmente desesperado o pobre diretor-geral, com seus nervos arrasados, a cabeça cheia de preocupações e sua consciência tranquila, em meio a negócios confusos e complicações tremendas. Procurou concentrar os pensamentos, que giravam, dispersos, em todas as direções. O Dr. Zinnowitz falava ao seu lado, no tom de um gozador empedernido, a respeito de uma nova revista toda prateada, tudo de prata. A porta da cabina contra a qual Preysing se apoiara cheio de desânimo fez pressão contra suas omoplatas. Depois forçaram suavemente a porta, e um homem alto, de excepcional beleza e amabilidade, vestido com uma capa azul, forçou a saída. Em vez de reclamar, o homem ainda se desculpou com algumas palavras corteses. Preysing, completamente absorto, fixou os olhos no rosto do homem que ele enxergava com toda a clareza, estranhamente próximo, e também se desculpou, conforme a praxe. Zinnowitz já estava dentro da cabina, pedindo ligação para a Flamm número dois, a Flaemmchen, talvez uma solteirona competente, que ia copiar cartas que já não tinham sentido nenhum, absolutamente nenhum. Preysing sabia que devia pôr um ponto final nisso tudo, mas não conseguiu reunir as energias necessárias para isso.
— Tudo arranjado — informou o Dr. Zinnowitz, saindo da cabina. — Às três horas a Flaemmchen estará aqui. Máquinas de escrever há em quantidade no hotel. Às cinco horas eu recebo as cartas. Ainda falarei com o senhor por telefone, antes de vencer esta dificuldade. Até logo, e bom apetite.
— Bom apetite — repetiu Preysing, dirigindo-se para as folhas de espelho da porta giratória em movimento, que levou o advogado para a rua. Lá fora fazia sol. Na rua, um pobre homenzinho vendia violetas. Ninguém se preocupava com fusões e acordos difíceis. Preysing tirou do bolso do sobretudo a mão direita, e com a esquerda pegou o telegrama, aquele telegrama que ele mantivera agarrado entre os dedos, até que o Dr. Zinnowitz desaparecesse num táxi. Dirigiu-se para uma mesa do hall, alisou cuidadosamente o papel, dobrou-o com cuidado e meteu-o no bolso interno de seu terno cinza-escuro, impecável.
Às três horas e cinco minutos, a campainha do telefone despertou Herr Preysing da sua sesta. Levantou-se da chaise-longue (descalçara as botinas, tirara o colarinho e o paletó), com a sensação de desamparo e desgosto que costuma sobrevir após uns minutos de sono roubado, nos hotéis. As cortinas amarelas estavam fechadas, o calor seco do aquecimento central enchia o aposento. Preysing tinha na face direita a marca do seu travesseiro de viagem. O telefone tilintava com impaciência. Uma senhora esperava pelo senhor diretor no hall, avisou o porteiro.
— Mande essa senhora subir — disse Preysing, ar-rumando-se às pressas. Dificuldades inesperadas foram comunicadas pelo telefone, com a máxima cortesia. O hotel tinha princípios e regulamentos. O chefe de recepção em pessoa, desculpando-se, e com o sorriso compungido de um homem traquejado, comunicou-o a Herr Preysing. Não era permitido receber visitas de senhoras nos aposentos, e infelizmente não se podiam fazer exceções.
— Mas, meu Deus do céu, não se trata de uma visita. Essa moça é minha secretária, preciso trabalhar com ela, o senhor precisa compreender — disse Preysing, impaciente.
O sorriso telefônico do chefe de recepção acentuou-se. Rogava-se ao senhor diretor que tivesse a bondade de dirigir-se com essa senhora à sala de ditados, que estava à disposição dos hóspedes para esse fim. Preysing desligou, batendo com o fone no gancho. Sentia-se completamente fora de seus hábitos; era horrível. Lavou as mãos, gargarejou com água dentifrícia, lutou com o botão do colarinho e a gravata, e em seguida desceu para o hall.
Ali estava sentada a Flaemmchen, Fräulein Flamm número dois, irmã de Fräulein Flamm número um. Não era possível existir no mundo duas irmãs mais diferentes. Preysing recordava-se vagamente da Flamm número um como de uma pessoa de confiança, com cabelos incolores, um punho protetor na manga direita, um maço de papel sob o braço esquerdo, que, na sala de espera, com cara de poucos amigos, barrava a entrada aos visitantes indesejáveis, no escritório do Dr. Zinnowitz. A Flamm número dois, pelo contrário, não possuía absolutamente essa segurança. Estava sentada comodamente em uma poltrona maple, como se estivesse em casa, balouçando os pés calçados com sapatos de verniz azul; dava a aparência de alguém que se preparava para divertir-se à larga, e teria no máximo vinte anos de idade.
— O Dr. Zinnowitz mandou-me para bater as cópias. Sou a Flaemmchen, que ele prometeu mandar-lhe — informou ela, sem cerimônias.
Bem no centro da boca, a Flaemmchen pintara uma mancha redonda de batom, descuidadamente, às pressas, apenas porque estava na moda. Quando se levantou, viu-se que era mais alta do que o diretor-geral; tinha longas pernas, usava, na cintura extremamente fina, um cinto de couro bem apertado, e suas formas eram magníficas, da cabeça aos pés. Preysing ficou furioso com Zinnowitz, que o punha em situações idiotas assim. Compreendeu os escrúpulos do chefe de recepção. Ela estava perfumada, além do mais. Teve desejos de mandá-la embora.
— Acho que precisamos apressar-nos — disse ela com uma voz de timbre grave e ligeiramente rouco, que as menininhas costumam ter. Pepsin, a filha mais velha do diretor-geral, tinha uma voz assim, quando era pequena. — Então a senhora é a irmã de Fräulein Flamm? Eu conheço Fräulein Flamm — disse ele, num tom mais de grosseria que de surpresa.
Flamm número dois estendeu um pouquinho o lábio inferior e soprou um cacho de cabelo que lhe caía na testa, por debaixo da sua boinazinha de feltro. O caracolzinho dourado elevou-se e tornou a cair lentamente sobre a testa. Preysing não o queria ver, mas não pôde deixar de fazê-lo.
— Irmã só por parte de pai — disse a Flaemmchen. — Eu sou filha da segunda mulher de meu pai. Mas nos damos muito bem.
— Ah, sim — disse Preysing, olhando-a com a vista turva.
Ela teria agora que copiar cartas que haviam perdido todo o sentido, todo o significado. Há vários meses ele vinha combinando tudo a respeito da sociedade com Burleigh & Son; não conseguia mudar subitamente o rumo de seus pensamentos. Não conseguia, de modo algum, riscar e apagar todo esse assunto. "Fracassaram totalmente. Broesemann. Totalmente." Era preciso ditar uma carta dirigida ao Broesemann, uma carta cheia de fel. Ao velho também, por causa dos quarenta mil marcos. Se Chemnitz desistisse, no dia seguinte, os quarenta mil para sustentar o câmbio teriam sido atirados à rua.
— Vamos. Vamos então para a sala de correspondência — disse Preysing, com expressão sombria, caminhando na frente dela pelo corredor. A Flaemmchen riu-se, divertida, atrás da nuca gorducha de Preysing.
A distância já se ouviam as máquinas de escrever, como um fogo distante de fuzilaria, e os sininhos tilintavam a espaços regulares. Quando Preysing abriu a porta, a fumaça dos cigarros saiu como uma enorme serpente azul.
— Ótima acústica — disse a Flaemmchen, erguendo as asas arredondadas de suas narinas.
Lá dentro, um senhor andava de um lado para outro, de mãos nas costas, o chapéu tombado para a nuca, ditando num americano mastigado. Era o manager de uma empresa cinematográfica; lançou à Flaemmchen um rápido olhar de conhecedor, e continuou a ditar.
— Qual! — disse Preysing, fechando a porta. — Não é possível. Quero um gabinete só para mim. Estas eternas chicanas aqui no hotel!
Desta vez foi caminhando atrás da Flaemmchen, pelo corredor. Estava agora encolerizadíssimo, e, em meio ao seu ódio, o balancear dos quadris da Flaemmchen provocava-lhe uma suave ardência no sangue.
No hall, a Flaemmchen também foi observada com admiração. Era um exemplar magnífico do seu sexo, quanto a isso não havia dúvida. Preysing achava desagradabilíssimo atravessar o hall com uma criatura tão espetacular, e deixou-a sozinha, indo conversar com Rohna sobre a possibilidade de não ser perturbado no compartimento das máquinas de escrever. A Flaemmchen, completamente indiferente aos olhares de que era alvo — santo Deus, estava tão acostumada a isso! — passou pó de arroz no nariz, descuidadamente, de pé, no meio do hall, depois tirou uma pequena cigarreira do bolso do casaco, com gestos de rapazinho, e se pôs a fumar. Preysing aproximou-se dela como de uma moita de urtigas.
— Temos de esperar dez minutos — disse ele.
— Bem — disse a Flaemmchen. — Mas depois precisamos trabalhar depressa. Tenho de estar às cinco no escritório de Zinnowitz.
— A senhora é tão pontual assim? — perguntou Preysing, de mau humor.
— Se sou!... — replicou a Flaemmchen com um sorriso travesso. Seu nariz ficou curto como o de um nenenzinho, e as meninas de seus olhos castanho-claros rolaram para os ângulos das pálpebras.
— Bem, então sente-se, enquanto isso — convidou Preysing. — E peça ao garçom qualquer coisa. Garçom, sirva esta moça — mandou ele, sem qualquer delicadeza, afastando-se em seguida.
— Um sorvete de pêssego Melba — pediu a Flaemmchen, inclinando a cabeça, satisfeita.
Soprou de novo a madeixa de cabelo, sem êxito. A Flaemmchen tinha formas perfeitas, como as de um cavalo de raça, e a impaciente impertinência de um cachorrinho novo.
O Barão Gaigern, que perambulava pelo hall há algum tempo, contemplou-a a distância, encantado. Após um instante, aproximou-se dela, cumprimentou-a e disse a meia voz:
— Posso sentar-me ao seu lado, minha senhora? Mas vejo que não está me reconhecendo. Nós dançamos juntos em Baden-Baden, lembra-se?
— Não é possível! Nunca estive em Baden-Baden — disse a Flaemmchen, olhando o jovem com atenção.
— Ah, minha senhora! Desculpe-me! Agora estou vendo que... devo ter-me enganado. Confundi-a com outra pessoa! — exclamou o barão, com ar hipócrita.
A Flaemmchen deu uma risada.
— Não é a mim que o senhor engana com esse velho truque — disse ela com secura.
Gaigern deu uma gargalhada.
— Então deixemo-nos de truques. Posso ficar sentado a seu lado? Posso? A senhora tem razão, não é possível confundi-la com ninguém. Como a senhora, só é possível existir no mundo uma pessoa, minha senhora. Mora aqui? Vem dançar no chá das cinco? Por favor, por favor, gostaria tanto de dançar com a senhora... Quer?
Colocou as mãos sobre a mesa. As da Flaemmchen já ali estavam pousadas. Havia um pequeno espaço entre os dedos dele e os dela, e o ar que os separava começou a vibrar. Os dois se olharam, simpatizaram mutuamente, e ambos se compreenderam, os belos jovens.
— Meu Deus, como o senhor é rápido! — exclamou a Flaemmchen, encantada.
Igualmente encantado, Gaigern respondeu:
— A senhora promete? Vem ao chá das cinco?
— Ao chá não posso. Tenho o que fazer. Mas à noite estou livre.
— Oh! Oh! À noite eu não posso. Mas amanhã, ou depois de amanhã... Às cinco horas? Aqui? No pavilhão amarelo? Com certeza?
A Flaemmchen lambeu a colher do sorvete e calou-se, com ar brejeiro. Para que muitas palavras? Trava-se conhecimento com alguém como se acende um cigarro.
Tiram-se umas tragadas somente para tomar o gosto, e depois a faísca se acende.
— Como se chama a senhora? — perguntou logo Gaigern.
Nesse momento, Preysing aproximou-se da mesa com ares de proprietário. Gaigern ergueu-se, cumprimentou-o e, com atitude amável, colocou-se por trás da cadeira.
— Já podemos começar — disse Preysing, aborrecido. A Flaemmchen estendeu a mão enluvada a Gaigern, enquanto Preysing olhava a cena com ar de desagrado. Reconheceu o jovem da cabina telefônica, e via novamente esse rosto com toda a nitidez, com todos os seus poros, com os menores detalhes.
— Quem é esse sujeito? — perguntou ele, caminhando meio de viés ao lado da Flaemmchen, com um andar bamboleante.
— Ah!... um conhecido — respondeu ela.
— É? A senhora deve ter muitos conhecidos, não?
— Assim, assim. A gente deve fazer-se um pouco de rogada. E não é sempre que tenho tempo.
Por motivos obscuros, esta resposta agradou ao diretor-geral.
— A senhora está empregada? — perguntou ele.
— No momento, não. No momento estou procurando emprego. Ora, logo se arranja. Sempre acabo arranjando alguma coisa — disse a Flaemmchen, com filosofia. — Eu gostaria de trabalhar no cinema. Mas é tão difícil o início da carreira... Se eu conseguisse começar, depois podia me arranjar. Mas o início da carreira é dificílimo!...
Olhou de frente para Herr Preysing com uma expressão preocupada e cômica. Agora, a Flaemmchen tinha o ar de uma gatinha. Toda a graciosidade felina parecia ter-se concentrado em seu rosto, numa expressão cambiante. Preysing, completamente alheio a esses conhecimentos, abriu a máquina de escrever, perguntando:
— Por que justamente o cinema? Todas vocês têm a mania do cinema — nesse "todas" incluía também sua filha Babe, de quinze anos, que era louca pela sétima arte.
— Ora, porque sim! Mas não tenho ilusões a esse respeito. Sou muito fotogênica, é o que todos dizem — continuou a Flaemmchen, tirando o casaco. — Devo estenografar ou escrever diretamente na máquina?
— Na máquina, faça o favor — respondeu Preysing. Sentia-se agora um pouco mais animado e de melhor humor. Afastara do cérebro o fato de Manchester ter ido por água abaixo, e, ao retirar do dossiê as tão promissoras cartas dessa correspondência, sentiu uma agradável impressão. A Flaemmchen continuava a falar sobre os seus assuntos particulares.
— Sou sempre fotografada para jornais e revistas, e também já posei para anúncios de sabonete. Como se consegue isso? Meu Deus! Um fotógrafo conta ao outro. Sou um ótimo nu artístico, sabe? Mas pagam pouquíssimo. Dez marcos por fotografia. Imagine o senhor. Ora! O que eu preferia era que alguém me levasse nesta primavera, de novo, como secretária, em alguma viagem. No ano passado estive em Florença com um senhor que trabalhava em um livro, um professor. Um encanto de homem! Talvez este ano apareça também qualquer coisa — disse ela, endireitando a máquina na mesa.
Era evidente que a Flaemmchen tinha preocupações, mas essas preocupações não pesavam mais do que o caracol da sua testa, que ela afastava com um sopro, de instante a instante. Preysing, que não conseguia introduzir no círculo de suas ideias a observação objetiva a respeito do nu artístico, quis falar qualquer coisa sobre negócios. Em vez de fazê-lo, pôs-se a observar atentamente as mãos da Flaemmchen, que colocavam na máquina a folha de papel, e disse:
— Que mãos morenas a senhora tem! Onde toma tanto sol assim?
A Flaemmchen observou com atenção as próprias mãos, levantou um pouco as mangas e fitou sua pele de cor parda com ar sério.
— É da neve, ainda. Fui esquiar em Vorarlberg. Um conhecido me levou. Uma beleza. O senhor devia ter-me visto quando eu voltei! ... Então, podemos começar?
Preysing dirigiu-se, por entre a fumaceira dos charutos, ao canto mais afastado da sala, e começou a ditar:
— A data, já pôs a data, senhorita? Prezado Herr Broesemann, Broese ... já escreveu? Com relação ao seu telegrama desta manhã, devo comunicar-lhe...
A Flaemmchen continuou a escrever com a mão direita, enquanto tirava com a esquerda o gorrinho, que parecia incomodá-la. A sala dava para um escuro poço de ventilação, as lâmpadas verdes do escritório estavam acesas. Em meio ao assunto comercial, Preysing pôs-se a pensar em uma cômoda antiga, uma velha cômoda de bétula, que se encontrava no vestíbulo, em Fredersdorf.
Só à noite se lembrou disso novamente, quando sonhou com a Flaemmchen e despertou. Seu cabelo tinha a cor e a cintilação da madeira antiga de bétula, com reflexos claros e escuros. Deitado em sua cama, à noite, via esse cabelo com toda a nitidez, enquanto respirava o ar seco do quarto de hotel, vendo desfilar rapidamente as luzes do anúncio contínuo, nas cortinas fechadas. A pasta em cima da mesa, naquele quarto escuro, o enervava. Levantou-se de novo para fechá-la na mala; em seguida, gargarejou com Odol e lavou as mãos outra vez.
Este apartamento aborrece-o, é caro e sem conforto; consiste apenas em uma saleta minúscula com sofá, mesa e cadeiras, um quartinho de dormir estreito, e, ao lado, o banheiro. A torneira está pingando um pouco; pinga, pinga, por entre o sono de Preysing. Levanta-se novamente, sobressaltado, e vai acertar o despertador. Esqueceu-se de comprar o aparelho de barbear e precisa ir cedo ao barbeiro. Adormece mais uma vez, e torna a sonhar com a datilografa e seus cabelos cor de bétula. Desperta, e enxerga novamente o anúncio correndo sem cessar pelas cortinas; a noite passada numa cama estranha, angustiosa, dá-lhe uma impressão de nojo e confusão. Ele sente um medo incrível da conferência com Schweimann e Gerstenkorn; seu peito bate com um ruído surdo. Desde o momento em que mostrou as cartas da Inglaterra, não pode livrar-se de um sentimento estranho, como se as palmas de suas mãos estivessem sujas. Finalmente, já quase adormecendo de novo, ouve alguém andando lá fora, pisando na passadeira e assobiando baixinho. Ouve também o senhor do 69 colocando uns pares de despreocupados sapatos rasos, de verniz, diante da porta, como se a vida fosse um divertimento.
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Kringelein, no 70, também o ouviu e despertou com o ruído. Havia sonhado com a Grussinskaia. Ela surgira na tesouraria onde ele trabalhava, apresentando contas atrasadas. Kringelein, o guarda-livros de Fredersdorf, que está sofrendo de claustrofobia, quer ainda agarrar a vida por uma fímbria, antes de morrer. Sente uma fome desmesurada, mas suporta muito pouco alimento. Com frequência, durante esses dias, seu corpo debilitado apodera-se da direção e o força a recolher-se ao quarto, em meio a todo aquele tumulto. Kringelein começa a odiar sua enfermidade, apesar de ela lhe ter dado coragem para sair de Fredersdorf. Comprou um remédio: Bálsamo de Vida do Dr. Hundt. A intervalos regulares toma um gole, cheio de esperanças, esforçando-se por não sentir o gosto amargo de canela, e em seguida sente algum alívio.
Distende os dedos enregelados, na escuridão, e se põe a fazer cálculos. É desagradável o fato de seus dedos terem tendência para morrer enquanto está dormindo. Esgueiram-se números no quarto, de rostos baixos, até que ele acende a luz e desperta completamente. É pena que o rico Herr Kringelein não possa libertar-se de um costume de Herr Kringelein pobre: ter de fazer contas. Dentro de sua cabeça os números desfilam incessantemente, maldosos, colocando-se em colunas, e somando-se e diminuindo-se sem o auxílio de Kringelein. Kringelein possui um caderninho que trouxe de Fredersdorf, diante do qual fica sentado durante horas. Nele anota as suas despesas, as despesas absurdas de um homem que aprende a gozar a vida, que gasta em dois dias o ordenado de um mês. Sente com frequência tonturas tão fortes que tem a impressão de ver as paredes forradas com tapeçaria de tulipas caírem em cima dele. Por vezes fica sentado na borda da cama, pensando que vai morrer em breve. Seu pensamento vai-se concretizando, e então, assustado, fica com as orelhas geladas, entortando os olhos, cheio de medo e angústia. Não consegue, entretanto, fazer a mínima ideia do que é a morte. Tem esperanças de que não seja muito diversa de uma narcose, com a diferença de que, após a narcose, a gente desperta, sente náuseas, e sobrevêm as dores (Kringelein batizou-as secretamente de dores azuis); espera também que todos esses vexames, bem seus conhecidos, sejam sofridos antes, e não depois. Depois de meditar em tudo isso, principiou a tremer; de fato, sucede por vezes a Kringelein tremer com medo da morte, apesar de não conseguir imaginar como ela seja.
Há muita insônia por detrás das portas duplas fechadas do hotel adormecido. Precisamente a essa hora, o Dr. Otternschlag coloca no lavatório uma pequenina ampola de injeção, joga-se na cama e esvai-se na leve nebulosidade das regiões morfínicas. Mas o Maestro Witte, cujo quarto, o 221, fica na ala esquerda, não consegue adormecer. Os velhos dormem pouco. Seu aposento fica exatamente defronte ao do Dr. Otternschlag, e em sua parede também gorgoleja a água; o elevador ronca aos solavancos. É quase um quarto de empregados, o quarto onde se hospeda. Sentado à janela, encosta na vidraça a testa abaulada de músico e fica olhando fixamente a parede fronteiriça. Trechos de uma sinfonia de Beethoven vêm-lhe à memória — nunca a dirigiu. Ouve Bach — o monumental "Crucifica-o", da Paixão de São Mateus. "Malbaratei a minha vida!", pensa o velho Witte. E toda a música que não foi cantada em sua vida se concentra em sua garganta, num aglomerado amargoso, que ele traga com esforço. Às oito e meia da manhã é o ensaio. Sentado ao piano, precisa repetir sempre a mesma marcha para os pliés das mocinhas, sempre a mesma Valsa da primavera, a Mazurka, a Bacanal. "Devia ter abandonado Elisavieta enquanto era tempo", pensa ele; agora não era mais possível. Elisavieta já estava velha e não se podia abandonar uma mulher idosa. Agora era preciso aguentar junto dela o pouco tempo que ainda restava.
E Elisavieta Alieksandrovna Grussinskaia também não consegue dormir, sentindo o tempo correr, no meio da noite, apressado, incessante; há dois relógios a tiquetaquear no quarto escuro: um de bronze, na escrivaninha, e o reloginho-pulseira, no criado-mudo. Ambos marcam os mesmos segundos e, no entanto, um bate mais depressa do que o outro, o que provoca palpitações do coração, quando se presta atenção ao seu tique-taque. Grussinskaia acende a luz, levanta-se, enfia os pés nos chinelos acalcanhados e vai até o espelho. No espelho também se evidencia o tempo, principalmente no espelho. Evidencia-se ainda nas críticas, na horrível falta de delicadeza da imprensa, no sucesso das bailarinas feias e com luxações, que estão agora na moda, no déficit das tournées, nos fracos aplausos, na maneira vulgar com que Meyerheim, o manager, se exprime — em toda parte, em toda parte se evidencia o tempo. Nas articulações fatigadas dos pés estão os anos passados a dançar; também na respiração opressa à trigésima segunda pirueta clássica; e também no sangue que, com frequência, nas ondas de calor da idade crítica, atravessa a garganta e aflui às faces. Faz calor no quarto, apesar de estar aberta a porta da varanda. Lá fora, as buzinas dos automóveis gritam durante toda a noite. A Grussinskaia tira seu adereço de pérolas da pequena suitcase, dois punhados de pérolas frias, e encosta-as ao rosto. Não adianta; as pálpebras continuam quentes, coloridas pela pintura e a iluminação da ribalta; os pensamentos são como gumes penetrantes; os dois relógios disparam como cavalos a galope. Sob o queixo, a Grussinskaia tem uma atadura de borracha; suas mãos e lábios estão cheios de creme. Olha-se ao espelho quando passa por ele, e acha-se tão feia que apaga depressa a luz. No escuro, engole um veronal e desata num choro enraivecido, o pranto de uma mulher inconsolável e apaixonada. Depois, tomba sobre nuvens, e finalmente cai no sono.
Ao lado chegou alguém, no elevador, talvez o jovem de Nice. A Grussinskaia arrasta-o consigo em seu sonho pesado, sob a ação do veronal; o senhor do 69 — o homem mais belo que ela já viu em toda a sua vida.
Quando ele chega, vem assobiando baixinho, um assobio nada desagradável, exprimindo simplesmente alegria. Ao entrar no quarto fica mais cauteloso, veste o pijama e calça uns chinelos bonitos de couro azul; depois, desliza em silêncio, como um ser intermediário entre gato montes e moço bonito. Quando passa pelo hall, é como se num aposento gelado se abrisse uma janela ensolarada. Dança maravilhosamente bem, com frieza e paixão. Tem sempre no quarto algumas flores — adora as flores e gosta de sentir o seu perfume. Chega, por vezes, a lamber as suas pétalas tenras — como um bicho. Na rua, acompanha as moças com um andar bamboleante de pugilista, contentando-se, por vezes, em olhá-las, com enorme prazer; a umas, dirige algumas palavras, e a outras acompanha até a casa ou leva a um hotel de segunda classe. E quando, pela manhã, com uma expressão santarrona de gatão, entra no hall quase vazio do Grande Hotel, com ar distinto e morigerado, e pede a chave do quarto ao porteiro, este não pode deixar de sorrir. Às vezes vem bêbado, com uma bebedeira discreta e cheia de animação, que ninguém pode levar a mal. De manhã torna-se um pouco desagradável para quem está hospedado no quarto debaixo do seu, porque faz ginástica; ouve-se seu corpo cair no solo com um ruído suave, compassadamente. Usa pequeninas gravatas-borboleta, moles, e paletós bem folgados. Suas roupas caem sobre os músculos tão confortavelmente como a pele dos cachorros de raça pura. Por vezes sai em disparada no seu carrinho de quatro lugares, e não é visto durante dois dias. Passa horas e horas a perambular pelas agências de automóveis, observando os carros; enfia a cabeça sob a tampa, para ver o motor; aspira gasolina, óleo, metal em combustão; bate nos pneus; alisa a pintura brilhante, o couro da carroçaria — azul, vermelho, bege — e, se o deixassem sozinho, era capaz, talvez, de lamber tudo. Compra cordões de calçado a vendedores ambulantes, isqueiros inúteis, pequenas galinhas de borracha e dez caixas de fósforos. De repente tem desejos de ver cavalos; levanta-se às seis horas da manhã, vai de ônibus até Tattersall, fareja o ar repleto de poeira de serragem, de cheiro de arreios, estéreo e suor, trava amizade com algum cavalo, monta e vai até o jardim zoológico, fartando-se de passear em meio à neblina cinzenta da manhã, que paira sobre as árvores de março, e retorna mais calmo ao hotel. Já o encontraram no pátio dos empregados, atrás da escada de serviço, parado junto de uma lata cheia de água de lavagem e restos de comida, olhando para cima, para os cinco andares do hotel, até o lugar em que a antena está presa, sob o céu descolorido. Talvez tivesse alguma pretensão de conquistar a única camareira bonita do hotel; bonita, imoral e já despedida. Trava muitos conhecimentos entre os hóspedes do hotel, distribui selos, aconselha, no caso de excursões, leva em seu carro senhoras idosas, serve de parceiro no jogo de bridge, e é grande conhecedor dos vinhos do hotel. No dedo indicador da mão direita usa um anel com sinete de lápis-lazúli, com o brasão dos Gaigern, um falcão sobre ondas. À noite, quando se deita, conversa com os seus travesseiros, em dialeto bávaro. "Gruess Gott", diz ele, aproximadamente, "boa noite, você é muito boazinha, minha querida cama, e muito ajuizada." Adormece logo, e nunca incomoda os vizinhos com roncos inconvenientes, gargarejos e botinas atiradas ao chão. Seu chofer costuma contar, lá embaixo, na sala dos despachos, que o barão é um homem muito correto, mas bastante simplório. No entanto, também um Barão Gaigern, por detrás de portas duplas, tem seus segredos e seus escaninhos ocultos.
— Não há nada de novo? — perguntou ao chofer. O barão está no meio do tapete, completamente nu, fazendo massagem nas coxas. Tem uma plástica magnífica, com a caixa torácica um tanto abaulada, como a dos pugilistas; a pele de seus ombros e das pernas é morena, e só entre as coxas e o tronco há uma zona clara, no lugar em que um maio lhe cobriu o corpo durante o verão. — Então, você não sabe de nenhuma novidade?
— Ora, basta! — respondeu o chofer, que estava deitado na chaise-longue coberta com uma imitação de Kilim, o cigarro colado ao lábio inferior, pois estava fumando. — Você pensa que eles vão ficar esperando eternamente em Amsterdam? Schalhorn já desembolsou cinco mil marcos, você pensa que isso vai continuar indefinidamente? Emmy está entocada há um mês em Springe, à espera da nossa encomenda. Em Paris foi uma porcaria. Em Nice foi uma porcaria. Se você hoje não conseguir nada, vai ser de novo uma porcaria. Se Schalhorn não receber os cinco mil, vai achatar-nos.
— Schalhorn é o chefe? — perguntou o barão calmamente, despejando água-de-colônia nas palmas das mãos.
— Um chefe tem de ser atirado, é o que eu digo — rosnou o chofer.
— Tem de ser atirado quando está na hora de agir, é verdade. Não gosto da maneira como você e Schalhorn trabalham, não concordo. É por essa razão que acontece sempre alguma coisa com vocês. Comigo nunca aconteceu nada e Schalhorn sempre recebeu a parte que lhe cabe. Se Emmy está nervosa em Springe, não me serve, foi o que lhe disse a última vez. Se ela nem é capaz de ficar sossegada na sua loja de objetos de arte aplicada, enquanto manda Moehl copiar os engastes antigos...
—- Pouco nos importam os engastes antigos. Trate antes de trazer as pérolas, depois pode mandar fazer os engastes antigos. Isso tudo foi ideia sua. Primeiro, parecia que tudo ia dar certo, as pérolas valem meio milhão. Bom, se descontarmos dois meses de despesas, ainda sobra alguma coisa. Talvez seja mais fácil livrar-se delas em engastes antigos, bom, concordo. Agora, Moehl, lá em Springe, está copiando as joias da sua avó, Emmy está ficando maluca, Schalhorn está ficando louco. Não confie nessa mulher; ela é bem capaz de lhe pregar uma peça, se perder a paciência. Então, quando vai ser a coisa? Quando é que o senhor barão vai parar de divertir-se e começar a trabalhar um pouquinho de novo?
— Você já está com apetite, hein? Já se esqueceu dos vinte e dois mil marcos de Nice, e está se arriscando a levar uma grande descompostura — disse o barão, ainda com bastante amabilidade; já tinha calçado meias de seda pretas, presas com ligas brancas de seda, e elegantes sapatos de verniz, com que costumava dançar. Mas ainda estava nu.
Qualquer coisa na sua nudez despreocupada e sem cerimônia excitava o chofer; talvez a queda suave dos ombros, ou o modo macio de as costelas se elevarem por sob a pele, enchendo de ar os pulmões. O chofer cuspiu a ponta do cigarro no meio do quarto e levantou-se.
— Quer saber de uma coisa? — disse ele, inclinando-se sobre a mesa. — Já estamos fartos de você. Você não é dos nossos. Você não leva nada a sério, compreendeu? Para você, tanto faz ir jogar ou apostar nas corridas de cavalos, surripiar com toda a gentileza a uma velha solteirona vinte e dois mil marcos ou ir buscar pérolas no valor de meio milhão; para você tanto faz. É tudo a mesma coisa, pensa você. Mas há uma diferença em tudo isso, quando alguém não sabe bancar o chefe. E se você não for embora por livre e espontânea vontade, será forçado a fazê-lo, compreendeu?
— Deita, já! — disse Gaigern amavelmente, e com um silencioso golpezinho de jiu-jítsu torceu o pulso do chofer. — Para ir-me embora não preciso de você. Preciso somente que você prepare o nosso álibi hoje à noite. Esta noite, às doze e vinte e oito, você pode partir para Springe com as pérolas, e de manhã, às oito e dezesseis, estará de volta. Às nove, mando que toquem a campainha no seu quarto, e você precisa ir logo para o batente; depois convidaremos qualquer pessoa para passear conosco. Se você pestanejar durante o escândalo que vai haver no hotel, amanhã, mando prendê-lo. Agora há pouco perguntei-lhe se havia alguma novidade.
O chofer, com estrias vermelhas em volta do pulso, pôs de novo a mão no bolso. Dava a impressão de não querer responder — mas respondeu.
— Ela agora costuma chegar ao teatro só às seis e meia, porque anda nervosa — rosnou ele, dominando-se a custo. — Depois do espetáculo há uma ceia de despedida na casa do embaixador francês. Não vai além das duas da madrugada. Amanhã, às onze, ela viaja, fica dois dias em Praga, depois segue para Viena. Estou realmente curioso para ver quando é que você vai surripiar as pérolas dela, entre o espetáculo e a ceia, se tudo correr sem percalços. Não existe no mundo um buraco tão favorável como esse pátio de teatro sem iluminação — acrescentou ele. Quis resmungar ainda qualquer coisa mas não olhou mais para o barão, que, nesse meio tempo, se transformara em um senhor de smoking.
— Ela não está mais usando as pérolas. Deixa-as no hotel — afirmou Gaigern, prendendo a gravata preta.
— Ela própria o contou a um repórter idiota que a foi entrevistar, você pode ler nos jornais.
— O quê? Ela as deixa simplesmente no quarto... não as entregou no hotel para serem guardadas no cofre? Como? Pode-se ir ao seu quarto buscá-las?
— É mais ou menos isso — disse o Barão Gaigern.
— Agora quero que me deixem em paz — disse ele cortesmente à boca idiota e espantada do seu companheiro. Via uma goela de um vermelho escuro e duas falhas de dentes. Sentiu um ódio ardente e repentino por aquela espécie de gente a que se ligara. Os músculos do seu pescoço se contraíram violentamente.
— Vamos — foi só o que disse. — Às oito, quero o carro em frente à porta principal.
O chofer, humilhado, olhou o rosto de Gaigern, e retirou-se, não dizendo nada do que queria dizer e que ficou entalado na sua garganta.
— O senhor do quarto 70 é inofensivo — murmurou como uma última consideração; e, com um movimento subserviente de lacaio, apanhou no chão o pijama azul.
— É um ricaço esquisitão, recebeu uma herança enorme e agora está esbanjando a fortuna.
O barão já não o ouvia mais. O chofer, supersticioso, parando entre as duas portas, cuspiu três vezes para trás; depois fechou o trinco sem fazer barulho.
Pouco antes das oito da noite, o barão apareceu no hall, animado e muito bem disposto, vestido de smoking e de impermeável azul. Nem mesmo Pilzheim, o detetive do hotel, desconfia que esse Apoio amável está preparando um álibi. O Dr. Otternschlag, que está bebendo café no hall com o extenuado Kringelein, antes de irem juntos ao espetáculo da Grussinskaia, com o dedo erguido em riste, aponta para o barão.
— Olhe, Kringelein: era assim que deveríamos ser
— disse ele, zombeteiramente e com inveja.
O barão põe um marco na mão do groom 18 e diz:
— Meus cumprimentos à senhorita sua noiva! — e se aproxima da portaria. O porteiro Senf olha para ele com expressão obsequiosa, mas sonolenta. É já a terceira noite que o porteiro Senf tem que esconder suas preocupações pessoais, por ter a mulher no hospital.
— O senhor arranjou para mim as entradas para o teatro? Quinze marcos? Muito bem — disse ele ao porteiro. — Se alguém perguntar por mim, estou no Teatro Alemão, e depois no Clube do Oeste. Vou ao Clube do Oeste — disse, e, dando dois passos, dirigiu-se ao Conde Rohna: — Imagine o senhor quem eu encontrei lá: Ruetzow, aquele sujeito alto! Ele esteve com o senhor e o meu irmão no batalhão Ulanos de 74. Está trabalhando agora no ramo de automóveis. Vocês todos são pessoas trabalhadoras; só eu é que sou um boa-vida, um lírio do campo, hein? O meu chofer está lá fora, porteiro?
Com o barão, entrou uma brisa quente pela porta giratória, e o hall sorriu com agrado para ele. Entrou no seu carrinho e partiu, atrás do álibi. Às dez e meia deram um telefonema para o hotel, do Clube do Oeste.
— Aqui fala o Barão Gaigern. Alguém perguntou por mim? Estou no Clube do Oeste, e só daqui a duas horas, ou um pouco mais tarde, chegarei ao hotel. Meu chofer pode ir deitar-se.
Ao mesmo tempo que essa voz preparava cavalheiresca e precavidamente um álibi, Gaigern estava colado à parede da frente do Grande Hotel, entre duas pedras que imitavam cantaria. Sua situação não era das mais cômodas, mas ele se sentia alegre, com a satisfação entusiástica do caçador, do lutador e do alpinista. Conservava para a sua empresa o pijama azul-escuro, despreocupadamente; calçava leves sapatos de pugilista, com solas de cromo, e por precaução enfiara, sobre eles, meias de lã, meias para esportes de inverno, que evitavam indesejáveis pegadas. Gaigern calculara o caminho para o quarto da Grussinskaia, da sua própria janela; devia ter pouco menos de sete metros, e ele já estava no meio do caminho. As pedras imitando cantaria do Grande Hotel eram cópias das lajes ásperas do Palazzo Pitti, e tinham uma aparência pomposa; se não se partissem agora, estava tudo bem. Gaigern colocava as pontas dos pés, cuidadosamente, nas reentrâncias do reboco. Usava luvas, que durante o percurso o estavam atrapalhando. Não podia tirá-las, enquanto subia pela parede do segundo andar como um escaravelho.
— Diabo! — exclamou ele, quando a argamassa e o reboco se quebraram sob as suas mãos, indo bater com um ruído seco no andar de baixo, no parapeito de metal de uma janela.
Sentiu a garganta seca e controlou a respiração, como um corredor da Aschenbahn. Firmou-se de novo, balanceou o corpo, durante um instante, sobre a ponta do dedo maior, com perigo de vida, e impeliu a outra perna meio metro para a frente. Assobiou baixinho. Estava agora excitadíssimo e por isso assobiava, fingindo sangue-frio, como um meninote. No principal, que eram as pérolas, ele não pensava de modo algum durante esses minutos. Afinal de contas, essas pérolas poderiam ser conseguidas também de outra maneira. Um soco na cabeça de Suzette, sobre seu chapeuzinho de feltro já cocado, quando ela saísse à noite do teatro, com a suitcase. Um assalto à noite ao quarto da Grussinskaia; finalmente, quatro passos pelo corredor, uma chave falsa e uma expressão inocente, ao ser descoberto em um quarto em que entrara por engano. Mas não era do seu feitio fazer isso, não o fazia de modo algum. "Cada um deve agir conforme a sua natureza", tinha dito Gaigern ao seu bando, procurando explicar-lhes seu modo de agir. Esse bando era um grupo de espertalhões, que há dois anos ele procurava conservar unido, mas estava sempre à beira da revolta. "Não gosto de pegar a caça na armadilha; não subo montanhas com corda. O que não posso ir buscar com minhas próprias mãos, tenho a impressão de que não é meu."
É natural que essa conversa provocasse uma atmosfera de incompreensão entre ele e o seu bando. A palavra "coragem" não era de uso corrente entre eles, apesar de cada um deles possuir uma boa dose de coragem. Emmy, em Springe, com sua cabeça dura como um coco, procurara certa vez explicar o que acontecia com Gaigern. "Para ele isso é um esporte", afirmava ela; e como tinha muita intimidade com Gaigern, devia ter razão. Pelo menos, nesse momento, às dez e vinte da noite, escalando a fachada do Grande Hotel, ele tinha o aspecto de um esportista, um turista numa passagem difícil, um chefe de expedição, avançando em local perigoso.
O lugar perigoso era a reentrância angulosa, por trás do banheiro da Grussinskaia. Ali, a fantasia do arquiteto idealizara uma superfície lisa: também não havia cornija na janela, o banheiro escondia-se numa reentrância, dando para aquele pátio, onde certa vez o barão foi visto a observar as antenas. Mas, depois desses dois metros e meio lisos, começavam já as barras de ferro da grade da varanda do 68. Ligeiramente arquejante, ora assobiando, ora soltando pragas, Gaigern parou na última saliência que lhe podia oferecer segurança, antes do trecho liso que se seguia. Os músculos de suas coxas tremiam, e nas articulações dos pés sentia a vibração quente e latejante provocada pelo violento esforço. Afora isso, estava satisfeito com a situação, pois tudo correspondia ao que ele calculara uma centena de vezes.
Gaigern não podia ser visto lá de baixo, naquela rua formigante de gente da grande cidade, porque estava completamente protegido pelo enorme refletor que o hotel mandara colocar na fachada, há pouco tempo. Quem olhasse para cima ficaria ofuscado pelos feixes claros da luz. Era completamente impossível perceber uma figurinha azul-escura, por detrás dessa luz agressiva, a se mover na sombra. Gaigern tinha visto, num teatro de revistas, o truque de um mágico que enviara na direção do público uma luz ofuscante como essa, enquanto, diante do pano de fundo de veludo escuro, executava suas mágicas, serrando moças ao meio e fazendo voar esqueletos no palco. Gaigern descansou atrás do segundo refletor e olhou para a rua, lá embaixo; do ponto em que estava, enxergava aquele trechinho do mundo completamente contorcido e achatado. A parede que descia reta olhava para ele com uma aparência hostil e maldosa. Inclinou a cabeça justamente nesse momento, e olhou para baixo, prendendo a respiração, sem piscar sequer. Não tinha a menor sensação de vertigem; apenas no pulso, por debaixo das luvas, a vibração suave e excitante, bem conhecida dos alpinistas. A torre redonda de Ried, no castelinho de Gaigern, era mais alta ainda. Quando ele fugia à noite de Feldkirch, era preciso escorregar pelo para-raios. Os Drei Zinnen, nos Dolomitos, também não eram brincadeira. Os dois metros e meio até o terraço não eram fáceis de atravessar, mas havia coisa pior. Gaigern não olhou mais para baixo, e ergueu os olhos por um momento. Defronte, um anúncio luminoso, contínuo, passava no telhado, e de uma taça de champanha borbulhavam lâmpadas elétricas, como espuma. Céu, não havia; a cidade terminava ali mesmo, junto aos telhados, fios e antenas. Gaigern moveu os dedos dentro da luva; estavam colados, provavelmente sangravam. Experimentou respirar, e conseguiu de novo. Concentrou suas forças, retesou os músculos e, com um salto de peixe-voador, lançou-se no vácuo. O ar zuniu de encontro aos seus ouvidos, e em seguida suas mãos agarraram as barras de ferro da varanda, que lhe cortaram os dedos, com suas arestas. Deixou-se ficar pendurado durante um segundo, com o coração a palpitar com força, e depois, com um impulso, pulou por sobre a varanda e soltou o corpo. Sim, agora se encontrava na varanda, diante da porta aberta do quarto da Grussinskaia.
— Até que enfim! — exclamou satisfeito, deixando-se ficar onde tinha caído, no pavimento de pedra da varandinha; aspirou profundamente o ar, abrindo a boca; ouviu um avião roncar bem por cima dele, e viu acima de seus olhos abertos os reflexos redondos da luz da cabina passando silenciosamente por entre as nuvens avermelhadas da grande cidade. A rua mandava para cima um ruído compacto e cheio — Gaigern sentiu-se por uns instantes em uma ilha de cansaço e de semi-inconsciência —, lá embaixo as buzinas dos automóveis disputavam a passagem, porque a Liga dos Filantropos dava uma festa, no pequeno salão, e muitas capas de noite se moviam como escaravelhos dourados, saindo pelas portas dos carros, subindo três degraus e entrando pelo portal. "Santo Deus, o que eu daria agora por um cigarro!", pensou Gaigern com os nervos frouxos; mas de modo algum podia pensar nisso agora. Ainda deitado, puxou a luva da mão direita e começou a chupar o corte do indicador; uma pata sangrando não tinha a menor utilidade para o seu trabalho. Engoliu com raiva o gosto sutil de metal, e suas costas úmidas sentiram o frescor agradável do pavimento de pedras. Por entre as grades da varanda, mediu o trecho que percorrera, e calculou o difícil retorno. Trouxera uma corda. Depois, seria preciso sair depressa da varanda, e, com um impulso de pêndulo, cair do outro lado. "Parabéns!", disse a si mesmo, no tom amável de oficial de Exército da sua vida passada. Tornou a calçar as luvas, como a se preparar para uma visita de cerimônia, levantou-se e passou da varanda para o quarto da Grussinskaia. A porta não se moveu, apenas a cortina ficou levemente enfunada; as tábuas do soalho também se conservaram caladas e acolhedoras. No quarto às escuras, tiquetaqueavam dois relógios, um quase duas vezes mais depressa do que o outro. Havia um cheiro forte de enterro e de forno crematório. Do anúncio luminoso do lado oposto caía um clarão triangular amarelado sobre o chão, até à borda do tapete. Gaigern tirou do bolso uma lanterna barata de forma cilíndrica, como essas que as cozinheiras usam, nas suas levianas rondas noturnas, e iluminou o quarto com cuidado. Graças ao seu curto diálogo com Suzette, à entrada do aposento, já conhecia a disposição dos móveis. Dispusera-se a descobrir todas as perfídias desse quarto, a procurar as pérolas em todos os esconderijos, a forçar fechaduras de malas, a arrombar portas de armários e a decifrar segredos de fechaduras. Mas, ao seguir o fio de luz oval da lâmpada de bolso e avistar a própria imagem triplicada no espelho, em sua frente, ficou agradavelmente surpreendido, com uma surpresa quase cômica.
Na mesinha do espelho estava pousada a suitcase, calma e desprotegida, e o filete de luz brincava inocentemente sobre o seu couro. "Vamos com calma!", pensou Gaigern, e isso significava uma ordem de comando, porque sentia a febre do caçador ferver dentro de sua cabeça. Primeiro enfiou no bolso a mão direita sangrando, como se fosse um objeto; tinha de conservá-la ali dentro, pois era preciso impedi-la de fazer qualquer travessura e de deixar vestígios. Colocou a lanterna na boca. Com a mão esquerda enluvada, pegou cuidadosamente a suitcase. De fato lá estava ela, podia apalpar com os dedos o seu couro de um brilho fosco. Ergueu a malinha, que não estava vazia. Apagou a lanterna, largou-a, e ficou pensando um momento. O quarto cheirava a enterro, um cheiro que fazia parar a respiração, um cheiro de avô morto e de solene panegírico de cerimônia fúnebre. Gaigern pôs-se a rir no escuro, quando compreendeu. "Louros!", pensou ele, fazendo suas as palavras de Suzette. "Madame recebe muitos louros, monsieur. O embaixador francês enviou-nos uma enorme cesta de louros." Ajoelhou-se diante do guarda-roupa — mas, dessa vez, as tábuas rangeram, maldosas e vivas — e com a mão esquerda agarrou a maleta no escuro. "Não, não", pensou ele, largando-a de novo. Essas coisas dão azar. Pastas, malas, carteiras de dinheiro são coisas nefastas; custam a queimar, flutuam nos rios em que são atiradas, são encontradas nas águas do esgoto pelos encarregados da limpeza dos canais, e acabam parando nas mesas dos tribunais, como desagradáveis corpos de delito. Além disso, uma suitcase pesando cerca de dois quilos não era nada cômoda de se carregar nos dentes, quando era preciso atravessar dois metros e meio de uma fachada lisa e escorregadia. Gaigern retirou a mão e pôs-se a refletir. Acendeu a lanterna e ficou olhando a fechadura dupla da maleta, absorto. Deus sabe que segredos a Grussinskaia teria para fechar o seu tesouro. Gaigern pegou as ferramentas e empurrou o disco redondo e metálico da fechadura.
A fechadura abriu.
A maleta não estava fechada a chave.
Gaigern assustou-se com o pequeno estalido, que não esperava em absoluto; ficou com uma cara de imbecil.
— Ora vejam, ótimo! — disse ele duas ou três vezes. — Ora vejam, ótimo! — levantou a tampa e apertou o botão do estojo de joias; de fato, lá estavam as pérolas da Grussinskaia. Afinal, não eram tantas assim, apenas um punhadinho de bolinhas cintilantes, caso se prestasse bem atenção; de modo algum correspondiam à lenda que haviam espalhado a respeito desse presente de um grão-duque assassinado, para enfeitar o pescoço de uma bailarina. Um lindo e antiquado sautoir, um colar de pérolas de tamanho médio, mas bem iguais, três anéis, um par de brincos de pérolas enormes, incrivelmente redondas; preguiçosamente pousadas no seu leitozinho de veludo, elas descansavam, enquanto a lanterna as fazia cintilar com um brilho amortecido. Com extrema precaução, Gaigern tirou-as do estojo com a mão esquerda enluvada e enfiou-as no bolso. Parecia-lhe sumamente ridículo encontrar as pérolas largadas em uma maleta aberta, e chegou a sentir uma espécie de desilusão ou indiferença, o cansaço de uma exagerada tensão que não teria sido necessária. Durante um instante ficou pensando se não seria melhor experimentar sair simplesmente do quarto, regressando ao seu aposento pelo corredor. "Talvez essas mulheres tenham deixado também a porta do quarto aberta", pensou ele, com o mesmo sorriso de incredulidade que punha a descoberto seus dentes superiores, dando ao seu rosto uma expressão tola e infantil, desde que avistara as pérolas.
Porém a porta estava fechada. No corredor ouvia-se, a espaços irregulares, o elevador subir e — clique — fechar a grade, porque o quarto 68 ficava defronte dele, em diagonal. Gaigern sentou-se por uns minutos em um fauteuil, no escuro, recuperando forças para o retorno. Sentia um enorme desejo de fumar, o que era impossível naquele momento, para não deixar vestígios de cheiro do cigarro. Tinha a precaução de um selvagem a guardar o seu tabu. Pensou em uma infinidade de coisas ao mesmo tempo, e, com mais lucidez, no armário de armas de seu pai. Na prateleira superior, ficavam sempre as grandes latas de tabaco herzegovino, e em dias alternados o velho Barão Gaigern colocava em cada lata uma fatia de cenoura. Gaigern sentiu por momentos o perfume adocicado e penetrante daquele tabaco, e retornou ao lar, descendo as escadas lustrosas de Ried, deixando-se ficar esquecido, durante um bom tempo, a recordar-se do tempo em que era ainda um voluntário de dezessete anos e fumava fechado em seu quarto. Sem usar de delicadezas, tratou de retornar ao seu empreendimento. — Atenção! — disse a si mesmo. — Nada de cochilos. Vamos! — Pôs-se a chamar-se por apelidos, dirigindo-se a si próprio com amizade e carinho, elogiando e xingando os membros de seu corpo.
— Seu porco — repreendeu o dedo cortado, que estava colando e sangrava; — seu porco, não pode me deixar em paz? — E dando palmadinhas nas coxas, como se acariciasse cavalos, elogiava-as: — Vocês são muito boazinhas, são animais valentes, bons animais. Atenção!
Afastou-se do aroma de louros do 68, meteu o nariz na varanda, farejando, e suas narinas aspiraram aquele indefinível odor de Berlim, em março, um cheiro de gasolina e de umidade de jardim zoológico. Enquanto se enfiava por entre as cortinas levemente enfunadas, pôde observar que as coisas não se apresentavam exatamente como deviam. Só após alguns segundos percebeu com clareza que batia agora em seu rosto e seu corpo uma claridade que há pouco não havia ali; viu os reflexos sedosos nas mangas do seu pijama, e insensivelmente voltou com toda a presteza para a escuridão do quarto, como um animal atingido por uma réstia de luz, que se esgueira, a farejar, na escuridão da mata. Estacou, ofegante e com os músculos tensos. Ouvia com extrema nitidez o tique-taque dos dois relógios, e em seguida, muito ao longe, e a distância, na enorme cidade, o relógio da torre de uma igreja bater onze horas. As paredes das casas do outro lado da rua ora se iluminavam, ora escureciam, pestanejando e fazendo prestidigitações.
— Que porcaria! — rosnou Gaigern, indo para a varanda, e mostrando-se impaciente desta vez, e muito senhor de si, como se estivesse em casa, no 68.
Os refletores haviam desaparecido. A nova instalação elétrica estava mais uma vez a fazer das suas; no salãozinho de festas, a Liga dos Filantropos estava no escuro, e no porão os eletricistas se esforçavam inutilmente por descobrir o que havia na instalação elétrica. Lá embaixo, na rua, um punhado de gente olhava divertida para a fachada do hotel, onde os quatro refletores se acendiam e se apagavam alternadamente. Um guarda acorrera. Os automóveis excitavam-se, porque o leito da rua não estava livre. O anúncio luminoso, do outro lado, cintilava graciosamente, derramando champanha em profusão no meio da noite, esforçando-se por iluminar a fachada do hotel e torná-la visível. Finalmente, dois homens de blusão azul saíram se arrastando de uma janela da sobreloja, sentaram-se sobre a coberta de vidro, que avançava do portal, e começaram a examinar a instalação que não funcionava. O caminho de volta, pelos sete metros da fachada do hotel, que agora criara vida, estava fechado. "Parabéns!", pensou Gaigern de novo, rindo com raiva. "Agora tenho que ficar aqui dentro. Agora tenho de arrombar a porta, se quiser sair daqui."
Foi buscar sua ferramenta e a lâmpada, experimentou com todo o cuidado desprender a fechadura, em redor do buraco da chave do 68, mas sem êxito. Um penteador ao lado da porta criou vida, caindo com um deslizar sedoso sobre o seu rosto, assustando-o horrivelmente. Ele sentiu as artérias do pescoço agitarem-se como máquinas. O corredor também despertara. Estava cheio de ruído de passos, de tosse, o elevador rangia, subia, descia, subia, descia. Uma camareira falou qualquer coisa, passou correndo, outra respondeu. Gaigern abandonou a fechadura enfeitiçada, e se esgueirou de novo para a varanda. Três metros abaixo dele os eletricistas cavalgavam a coberta de vidro, com fios na boca, muito admirados lá da rua. Gaigern fez uma das suas grandes brincadeiras. Inclinou-se sobre o parapeito e gritou:
— O que aconteceu com a luz?
— Curto-circuito — respondeu um eletricista.
— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Gaigern.
Lá de baixo, encolheram os ombros. "Idiotas", pensou Gaigern, furioso. O modo fanfarrão e convencido desses dois sujeitos impertinentes, sobre a coberta de vidro, desgostava-o profundamente. "Em dez minutos eles vão desistir", pensou; olhou ainda um momento para baixo, e depois entrou de novo no quarto. De repente, teve a sensação de estar em perigo, mas isso durou apenas um segundo — e desapareceu. Ficou parado no meio do quarto, com suas meias de lã que não deixavam pegadas.
"Só não posso pensar em dormir", pensou ele. Para conservar-se desperto, tirou do bolso as pérolas, que estavam quentes pelo contato de seu corpo, e descalçou as luvas, porque sentiu desejos de apalpar aquela superfície lisa e preciosa. Seus dedos se deliciaram. Ao mesmo tempo lembrou-se de que o chofer não conseguiria apanhar o trem para Springe, e era preciso fazer outros planos. Estava saindo tudo diferente do que ele tinha planejado. As pérolas não estavam fechadas na maleta, não lhe haviam dado nenhum trabalho, e a pequena escalada tinha sido demasiada para isso. Em meio aos seus pensamentos, veio-lhe uma ideia que o fez sorrir. "Que espécie de mulher é essa?", pensou ele. "Que espécie de mulher é essa, que simplesmente deixa suas pérolas largadas no quarto?" Sacudiu a cabeça, admirado, e deu uma risada surda. Conhecia muitas mulheres; mulheres agradáveis, mas que não provocavam nenhuma admiração. Uma mulher que saía, deixando tudo o que possuía perto da porta da varanda, aberta, ao alcance de qualquer um, era para ele uma coisa fantástica. "Deve ser desleixada como um cigano", pensou. "Ou deve ter um grande coração." Apesar de tudo, sentia sono. Por entre a escuridão, encaminhou-se para a porta, levantou do chão o penteador que tinha caído e o cheirou com curiosidade. Um perfume desconhecido, sutil e acre, muito tênue, se desprendia dele, e não combinava com a mulher de tarlatana que aborrecera tantas vezes Gaigern nos espetáculos de balé. Aliás, ele desejava a essa Grussinskaia tudo de bom, não sentia antipatia por ela. Pendurou o penteador negligentemente, deixando dez levianas marcas digitais na seda, e se encaminhou lentamente para a varanda. Lá embaixo os dois morcegos azuis ainda batiam as asas em torno do seu curto-circuito. "Bom divertimento!", desejou Gaigern a si próprio — e conservou-se, até segunda ordem, de pé, entre o reposteiro e a cortina de renda, ereto e desperto como um soldado na guarita.
Kringelein olhava para o palco, por detrás das suas lunetas. Lá em cima passavam-se coisas muito estranhas, e com enorme rapidez. Ele gostaria de observar com mais atenção uma das moças, a moreninha da segunda fila, que sorria sempre, mas não era possível. Não havia intervalo no ballet da Grussinskaia, tudo cintilava e saltitava incessantemente, em enorme confusão. Por vezes as moças vinham em fila para os dois lados do palco, colocando as mãos, pendentes das articulações dos pulsos, sobre a fímbria dos saiotes, para ceder lugar à própria Grussinskaia.
Depois, ela veio se aproximando a voltejar, com o rosto e os braços de um branco de cera, sobre as pontas dos pés que se fincavam nas tábuas do palco com tanta firmeza e segurança como se estivesse sendo fixada ali, com uma chave de parafuso. Finalmente, desapareceu por completo o seu rosto, e ela se transformou em um pião branco com listras prateadas. Kringelein sentiu o estômago um pouco enjoado, antes mesmo que a dança terminasse.
— Magnífico! — disse ele, admirado. — Ótimo! Que agilidade ela tem nas pernas! É perfeita. É de se ficar mesmo extasiado! — Sentiu uma grata admiração, apesar de não estar passando muito bem.
— O senhor está gostando realmente? — perguntou o Dr. Otternschlag, aborrecido. Estava sentado no camarote, com a face metralhada virada para o palco, e o seu aspecto, aos reflexos amarelos da luz dos refletores vinda do palco, era de arrepiar. Realmente, era difícil a Kringelein responder a essa pergunta.
Para ele, desde o momento em que entrara no quarto 70, tudo no mundo parecia irreal. Tudo tinha sabor de sonho e de febre. Tudo se movimentava depressa demais, sem cessar, não chegando a satisfazê-lo completamente. Otternschlag, em vista de seus contínuos pedidos de conselho e de companhia, arrastara-o desde manhãzinha por todas as excursões costumeiras, um giro em redor da cidade de Berlim, museus, Potsdam e, no fim, a subida à torre da emissora, onde o vento soprava a três vozes, e donde se divisava Berlim estendida sob um lençol de névoa de fuligem, bordado de luzes. Kringelein não se admiraria nada se acaso despertasse e se encontrasse de novo, após uma pesada narcose, no leito do hospital. Sentia os pés gelados; tinha as mãos endurecidas pelo frio e o queixo rijo. Sua cabeça era um globo quente, dentro do qual haviam atirado coisas demais, e começava a sibilar e derreter-se.
— Está satisfeito agora? Sente-se feliz? Está contente com a vida? — perguntava Otternschlag de tempos em tempos. E Kringelein respondia, atento e obediente:
— Sim, senhor.
O teatro, nessa noite do quinto espetáculo da Grussinskaia, tinha pouca gente, estava praticamente vazio. A plateia, com raros espectadores, parecia carpida, como se tivesse sido comida pelas traças. Na primeira fila, a gente sentia frio e se envergonhava, no meio de tantas cadeiras vazias. Kringelein sentia frio e vergonha. Além da frisa do proscênio, que tinham comprado a conselho de Otternschlag — Kringelein desse momento em diante só queria ocupar os melhores lugares, no cinema bem atrás, no teatro bem na frente, e no ballet na primeira fila —, além da frisa deles, que custara quarenta marcos, só havia mais uma ocupada, a do empresário Meyerheim, que nessa noite economizara a claque, que não adiantava mais: o déficit já era bem grande. Antes do intervalo principal uns escassos aplausos. Pimenoff mandou subir depressa o pano e a Grussinskaia apareceu e sorriu: sorriu para uma plateia silenciosa, porque os fracos aplausos haviam morrido ao nascer, e já todos se dirigiam, apressados, para a saída que dava para o bufê. No semblante da Grussinskaia também parecia ter morrido alguma coisa, quando ela ficou no palco agradecendo aplausos que já haviam cessado. Por sob o suor e a pintura, sua pele enregelou. Witte pôs de lado a batuta e subiu correndo pela escadinha que levava ao palco. Estava preocupado com Elisavieta. Lá em cima, Pimenoff dava a impressão de estar assistindo a um enterro, os operários do palco roçavam armações de cenário nas costas do seu velho fraque, curvado e justo no corpo __todas as noites ele vestia para os espetáculos o seu fraque, como se o Grão-Duque Serguei ainda fosse chamá-lo à frisa. Michael, com uma pelezinha pintalgada, imitando pele de leopardo, sobre o ombro esquerdo, e as coxas nuas e empoadas, esperava ao lado do inspetor, em atitude humilde. Todos tremiam de medo, esperando um dos acessos de cólera da Grussinskaia; os joelhos, as mãos, os ombros e os dentes de todos eles tremiam realmente.
— Desculpe-me, madame — sussurrou Michael —, pardonnez-moi. O culpado fui eu. Eu a fiz irritar-se.
A Grussinskaia, que vinha se aproximando com o olhar absorto, arrastando atrás de si o velho casaco de lã, por entre a poeira e o ruído do palco onde estavam desmontando o cenário, parou ao lado dele e o olhou com uma doçura que assustou a todos.
— Você? Não, querido — disse ela em voz baixa, pois necessitava concentrar e fortificar a voz, que se debilitara com o cansaço e que ela ainda não recuperara após o esforço da última e dificílima dança. — Você foi muito bem. Está hoje em ótima forma. Eu também. Nós todos nos portamos muito bem...
Virou-se de repente e caminhou apressadamente para longe dali, levando consigo a frase inacabada, até a escuridão do fundo do palco. Witte não teve coragem de segui-la. A Grussinskaia sentou-se no degrau de uma escada de madeira pintada de dourado, largada lá atrás, no meio de um montão de trastes, e ali ficou, durante todo o tempo que durou a montagem do novo cenário. Primeiro colocou as mãos sobre a malha de seda cor de carne que cobria suas panturrilhas, amarrou mais uma vez, mecanicamente, os cordéis cruzados das sapatilhas e em seguida acariciou durante alguns minutos a perna fatigada, coberta de seda e levemente suja, distraída e com certa piedade, como se fosse um animal estranho. Depois tirou as mãos da perna e pousou-as no pescoço nu. Sentia uma enorme falta das pérolas. Para acalmar-se costumava passa-las pelos dedos, como um rosário. "Que mais? Que mais? Que querem vocês ainda?", pensou ela no seu íntimo. "Não posso dançar melhor do que dancei hoje. Nunca dancei tão bem como agora. Nem quando era jovem, nem em São Petersburgo, nem em Paris, nem na América. Naquele tempo eu era tola, e não me esforçava muito. Agora
— oh, agora eu trabalho realmente. Agora eu sei o que faço. Agora sei dançar. Que querem de mim? Mais ainda? Mais do que isso eu não tenho. Deverei dar de presente as pérolas? Devo doá-las? Pois que seja, Ah! Deixem-me em paz, vocês todos. Estou cansada."
— Michael — murmurou ela, ao ver esgueirar-se uma sombra que reconheceu por trás do pano de fundo descido.
— Madame? — perguntou Michael, com tato e timidez. Já tinha trocado de roupa, agora vestia um gibãozinho de veludo e trazia o arco e a flecha na mão, porque, após o intervalo, tinha de principiar a Dança do arqueiro.
— Não quer ir aprontar-se, Gru? — perguntou ele, esforçando-se o mais possível por não deixar transparecer na voz qualquer sentimento de piedade ao avistar a Grussinskaia, pequenina e aniquilada, encolhida no meio de todos aqueles trastes. As campainhas dos inspetores tocaram em oito pontos diferentes ao mesmo tempo.
— Michael, estou cansada — disse a Grussinskaia.
— Estou com vontade de ir para o hotel. A Lucille que dance o meu número. Ninguém se incomodará com isso. Para essa gente, tanto faz eu como qualquer outra dançar.
Michael levou tal susto, que todos os músculos de seu corpo se retesaram. A Grussinskaia, ali no seu degrau, tinha os olhos perto dos joelhos do moço, e viu que o músculo da sua coxa se arredondou, contraindo-se sob a pele. O movimento inconsciente desse corpo que ela conhecia tão bem consolou-a um pouco. Michael, pálido sob a pintura, disse:
— Nonsense!
O susto o fez tornar-se indelicado. A Grussinskaia pôs-se a sorrir docemente, estendeu um dedo e tocou a perna de Michael.
— Quantas vezes eu já lhe disse que você devia dançar de malha — replicou ela com estranha amabilidade, você nunca ficará bem agasalhado nem suficientemente flexível, sem a malha. Acredite em mim, seu revolucionário.
Deixou a mão, durante alguns segundos, pousada sobre a pele quente e empoada daquele moço de vinte anos, sob a qual os músculos se moviam. Não, sua carícia não encontrou nenhuma repercussão. As campainhas tocaram pela terceira vez; no palco, atrás do pano de fundo com seus pequenos templos pintados, as sapatilhas das bailarinas já se aparelhavam sobre o tablado. No corredor do camarim, a medrosa Suzette corria de um lado para outro como uma galinha assustada, porque madame se deixava ficar sentada num canto, em vez de ir trocar de roupa. Witte, que já estava embaixo, no seu púlpito, pegou na batuta com mão trêmula, e, com o olhar fixo, ficou à espera do sinal vermelho para começar a próxima dança, que já estava atrasada.
— Em que o senhor está pensando? — perguntou o Dr. Otternschlag, lá em cima, na frisa. Kringelein havia se lembrado ligeiramente de Fredersdorf, da mancha de sol que costumava cintilar nas tardes de verão na parede lateral de um verde sujo da escura tesouraria, mas voltou imediatamente e com agrado a Berlim, ao Teatro do Oeste, à profusão de dourados que datavam da fundação do teatro, e à frisa de veludo vermelho, que custara quarenta marcos.
— Está com saudades? — perguntou Otternschlag.
— Nem penso nisso — replicou Kringelein com non-chalance e absoluta frieza. Embaixo, Witte levantou sua batuta, e a música começou.
— Que porcaria de orquestra — disse Otternschlag, a quem o papel de amável mentor, nessa triste noite de espetáculo de bailado, causava engulhos. Mas dessa vez Kringelein não se deixou influenciar. Estava gostando da música. Mergulhou na música como no banho quente do hotel. Sentia no estômago uma sensação de peso e de frio, como se tivesse nas vísceras uma bola de metal. Isso era apenas o sintoma grave, dissera o médico. Nem causava dores; conservava-se sempre no desagradável estado em que se espera uma dor que não vem. Isso era tudo. E uma coisa tão insignificante provocava a morte. A música vinha chegando até ele e o consolava um pouco, com os planíssimos das flautas sobre os trêmulos das violas. Kringelein, esquecendo-se de suas mazelas, mergulhou no mundo dos sons e elevou-se nas asas da música a uma atmosfera azulada de luar, com um pequeno templo pintado numa costa marítima. Lá embaixo, o programa continuava. Michael apareceu com seu traje de arqueiro, de coxas brancas como farinha e um gibãozinho de veludo marrom; distendia seu corpo de efebo, a pular em disparada pelo palco, com saltos de peixe-voador; elevava-se com elasticidade e subia aos ares como se estivesse a saltar sobre cordas esticadas. Pelos seus gestos alegóricos, percebia-se que ele queria atirar em um pássaro, uma pomba que pertencia ao pequeno templo. Atirou sobre o palco um fogo de artifício de saltos e de piruetas, e finalmente saiu correndo atrás de sua flecha, que atirara em direção do bastidor da direita.
Aplausos. Pizzicato na orquestra. A Grussinskaia aparece em cena. Ofegante e apressadamente, vestiu afinal o traje de pomba ferida, com uma enorme gota de sangue cor de rubi a oscilar em seu corpete de seda branca. Está mortalmente cansada, mas sente-se muito leve, levíssima, e corre com tênues e tremulantes batidas de braços, imitando asas, na direção da sua comovedora morte. Esforça-se, três vezes seguidas, para elevar-se aos ares, mas não consegue mais voar. Por fim, seu delicado e longo pescoço tomba para a frente, ela pousa a cabeça sobre o joelho, e morre, pobre pomba ferida mortalmente. E sobre o enorme ferimento em seu coração, o eletricista envia um efeito de luz, com um disco azul.
Desce o pano. Aplausos. Bastantes aplausos mesmo, considerando-se que o teatro está vazio, e que há muito poucas mãos para fazerem ruído.
— Da capo? — pergunta a Grussinskaia, que continua tombada no centro do palco.
— Não — murmura-lhe Pimenoff com um sussurro alto, desesperado e agudo, lá dos bastidores.
Os aplausos pararam. Acabou-se. A Grussinskaia jaz ali durante alguns minutos, leve como uma pluma, morta na dança, e cheia da poeira do tablado nas mãos, nos braços e nas têmporas. Pela primeira vez em sua vida não houve um da capo depois dessa dança. "Não posso mais", pensou ela. "Não, já chega o que eu fiz, não posso mais."
— Intervalo para desmanchar o cenário! — grita o chefe dos maquinistas. A Grussinskaia não tem vontade de levantar-se, deseja ficar ali caída, no meio do tablado, e adormecer, afastando-se de tudo com o sono. Finalmente, Michael aproximou-se dela, levantou-a e a fez ficar de pé.
— Spassibo — ("obrigada"), diz ela em russo, e, endireitando o corpo, afasta-se, dirigindo-se ao camarim das senhoras. Michael encaminha-se para o primeiro bastidor à esquerda e prepara-se para o pas de deux.
A Grussinskaia esgueira-se até seu camarim e, com a ponta da sapatilha, abre a porta; lá dentro, cai sentada na cadeira, diante do espelho, e fica a olhar, de olhos estarrecidos, para a ponta de seda empoeirada e ligeiramente puída da sapatilha. Seus pés estão cansados, indescritivelmente cansados, pesados, fartos, fartíssimos de dançar. Sob a luz forte da lâmpada do espelho aproxima-se o rosto envelhecido e preocupado de Suzette, com um frufru do traje para o pas de deux.
— Deixe-me — murmurou a Grussinskaia em tom seco. — Estou me sentindo mal. Não posso. Deixe-me! Deixem-me, todos vocês!... Dê-me qualquer coisa para beber — acrescentou ainda; tinha vontade de dar um tapa no rosto perplexo e murcho de Suzette, porque de repente achou que ele tinha uma semelhança, difícil de definir, com sua própria fisionomia. — Fiche-moi la paix! — disse ela em tom imperioso.
Suzette sumiu. A Grussinskaia ainda ficou ali largada alguns minutos; depois arrancou dos pés, de repente, as sapatilhas de seda. "Basta!", pensou, "basta! basta!"
De malha, com o traje de pomba, a Grussinskaia resolveu fugir — uma estranha fuga. Arrancara apenas os sapatos de ballet, calçando outros, e jogara aos ombros o velho casaco; e assim, com a garganta repleta de angústia, saiu do teatro. Suzette, ao vir correndo da cantina com um copo de vinho do Porto, encontrou o camarim vazio e em silêncio. No espelho estava um bilhete: "Não posso mais. A Lucille que dance em meu lugar". Suzette saiu pelo palco a tropeçar; em seguida, todos no teatro ficaram tresloucados durante dez minutos, mas depois o pano subiu e o programa foi executado, como em todas as noites: com danças nacionais russas, pas de deux e Bacanal. Pimenoff e Witte dirigiram o espetáculo como dois velhos generais, cujo soberano desertara, necessitando ocultar a retirada, após a derrota.
Mas enquanto no palco o corpo de ballet agitava seus véus bacânticos de musselina, espargindo no tablado, à medida que dançava, quatrocentas rosas de papel, enquanto Michael executava saltos faunescos e Suzette, no escritório do teatro, mantinha conversações perplexas com o chofer inglês Berkley — enquanto se passava tudo isso —, a Grussinskaia, cega, desesperada, empreendia a sua fuga, a tropeçar pela Tauentzinstrasse.
Berlim estava clara, ruidosa e repleta de gente. Berlim olhava para ela com curiosidade e ironia, observando seu rosto desfigurado, meio inconsciente. Berlim era uma cidade cruel, e a Grussinskaia, atravessando a rua, já mais calma, amaldiçoou a cidade. Apossara-se dela um tremor convulsivo, apesar de nessa noite de março a atmosfera estar cheia de umidade tépida, e seu velho casaco de lã estar desprendendo vapor. A Grussinskaia proferia breves palavras, soltas, soluçantes, que ficavam entaladas na garganta, causando dor. Ela pensou que estava chorando, mas não estava. Seus olhos, sob as pálpebras azuis, pintadas para a cena, ficavam cada vez mais quentes, cada vez mais secos. "Nunca mais", pensou a Grussinskaia, "nunca mais. Nunca mais. Basta. Acabou-se. Nunca mais." Caminhava rapidamente, com passos vacilantes, como se esse pensamento a perseguisse, abandonada pelas Graças, sem domínio sobre o corpo, que inclinava a cada passo que ela dava. A luz branca de uma loja de flores se estendia diante de seus pés, e ela parou e ficou olhando. Grandes jarros com ramos de magnólias, cactos, vasos sinuosos onde cresciam orquídeas. Um consolo? Não, não lhe vinha o mínimo consolo da suave beleza das flores. Tinha as mãos frias, só então percebeu, e começou a procurar as luvas nos bolsos do velho casaco. Era um gesto completamente sem sentido, porque há oito anos que só usava esse casaco no palco, para proteger-se contra a corrente de ar que sopra em todos os teatros do mundo. Teve uma visão de gambiarras, de portas de ferro sob a luz de lâmpadas muito fracas, de um declive forte e escorregadio do tablado, diante de seus pés. "Nunca mais!", pensou ela, "nunca mais! nunca mais!" O casaco fora de moda era comprido e cobria seu traje de bailado, mas atrapalhava-lhe os passos. Levantou-o um pouco quando se afastou da vitrina das flores e tomou inconscientemente o caminho de ruas mais calmas. Na sua caminhada, viu um Buda no mostrador de outra vitrina, querendo apaziguar o mundo da Grussinskaia, que se esboroava. "Nunca mais vou dançar, nunca mais, nunca mais." Para consolar-se, lembrou-se de nomes, que saíam como soluços de sua garganta. — Serguei! — exclamou ela — Gabriel, Gaston! — chamava pelos nomes de seus poucos amantes, por Anastásia, sua filha, e finalmente por Pompon, o seu netinho de Paris, que nunca tinha visto. Mas continuou sozinha e ninguém a consolou. De repente, parou, assustada. "Mas que estou fazendo?", pensou ela. "Saí fugida do teatro? Não pode ser. Não é possível. Vou voltar." No relógio de uma igreja soaram onze badaladas, pausadas e nítidas, bem perto dali, apesar de não se avistar nenhum campanário. A Grussinskaia tirou as mãos dos bolsos do casaco e deixou-as caídas diante de si; havia algo da morte da pomba ferida nesse gesto. É tarde demais, diziam as mãos. O espetáculo devia estar quase terminando. Endireitou a cabeça de novo, e olhou a rua em que sua fuga a atirara. Não sabia onde estava. Um portalzinho tinha uma moldura com letras amarelas, e o letreiro dizia: Bar Russo. Atravessou a rua, parou na entrada do bar, limpou o nariz como uma criança e se pôs a pensar. "Bar Russo", pensou ela, "e se eu entrasse? Eles me reconheceriam. Os membros da orquestra, vestindo blusas vermelhas, tocariam a Valsa Grussinskaia. Que sensação!"
"Sensação nenhuma", pensou logo depois, morta de tristeza. "Não posso entrar. Que aspecto eu tenho agora? Talvez ninguém me reconheça mais. E se me reconhecerem — como eu estou agora —, tant pis."
Fez sinal para uma pequena e mísera carruagem de aluguel, e com repentina expressão de frieza e fixidez no rosto, mandou seguir para o hotel.
Gaigern continuava ereto como uma sentinela, entre a cortina e o store do quarto 68, à espera de que os homens de blusão azul terminassem seu trabalho. Mas eles não terminavam. Arrastavam-se de um lado para outro pelas cortinas das janelas do primeiro andar, tinham trazido fios e pequenas tenazes, e gritavam com enorme afã "oh" e "aha", mas os refletores continuavam apagados. Em compensação, toda a fachada do hotel estava iluminadíssima pelos arcos voltaicos, pelas luzes da entrada dos cinco portões e do anúncio contínuo, lá defronte, que ora anunciava uma marca de champanha, ora um chocolate especial. Aliás, devia fazer uns vinte minutos que Gaigern estava esperando, quando a porta do quarto 68 se abriu e a luz se acendeu, e a Grussinskaia apareceu com um aspecto completamente normal e de acordo com o hotel.
6
Do ponto de vista de Gaigern, isso era uma porcaria em toda a extensão da palavra, um negócio imundo. O susto atravessou-o como uma faca gelada, enterrando-se pelas suas costelas e pelo estômago. Com os diabos, que tinha essa mulher que fazer no hotel, às onze e vinte da noite? Onde se iria parar, quando não se podia mais ter certeza absoluta da duração de um espetáculo teatral? "Que azar", pensou Gaigern, rangendo os dentes. De azar, ele tinha medo. E todas essas malditas complicações davam mesmo a impressão de que ele se encontrava numa incômoda e azarenta armadilha. Os reflexos do lustre coavam-se pela cortina de rendas, atrás da qual ele se encontrava, estendendo na varanda a sombra do desenho contorcido. Gaigern ordenou a si próprio calma e bom humor. O colar de pérolas, em seu bolso, adquirira calor humano. As pérolas corriam entre seus dedos, como ervilhas. Durante um instante teve a impressão de que era completamente absurdo e sem sentido julgar que esse punhado de bolinhas redondas de madrepérola valia uma fortuna. Quatro meses à espreita, sete metros em perigo de vida — e quando este perigo passasse, viria um outro, uma sequência de perigos. Uma cadeia de perigos, era isso a sua vida. Um colar de pérolas — a vida da Grussinskaia. Gaigern, sorridente, sacudiu a cabeça em meio à situação complicada em que se encontrava. Não era um pensador. Costumava sorrir para a vida com esse sorriso admirado e divertido, quase maluco. Sorria para a vida, que era uma coisa que ele não compreendia. No entanto, controlou-se, voltou-se por trás da cortina de rendas, pondo-se de frente para o quarto, e ficou à espera.
A Grussinskaia, primeiro, ficou parada quase um minuto no meio do quarto, bem debaixo das taças de vidro do lustre, e seu rosto dava a impressão de que se tinha enganado de quarto. Esperou até que o casaco de lã caísse pelo próprio peso ao longo de seus braços pendentes, e em seguida, passando por cima dele, aproximou-se da mesinha do telefone. Passaram-se alguns minutos até que ela conseguisse ligação para o Teatro do Oeste, e mais alguns minutos até que Pimenoff viesse ao aparelho; mas ela estava de tal modo cansada que não lhe era possível sentir impaciência.
— Alô, Pimenoff? É, sou eu, Gru. Sim, estou no hotel. Desculpe-me, sim? É, de repente me senti mal. O coração, compreende? Fiquei sem respiração. Sim, exatamente como em Scheveningen. Não, agora estou melhor. Deixei você em apuros, eu sei. Como dançou a Lucille? Como? Ah, regularmente. E o público? Que é que você disse? Não, não fico nervosa, você pode dizer se houve escândalo. Não? Nenhum escândalo? Tudo calmo? Poucos aplausos? Você está pensando em outro programa? Bom, depois falaremos nisso. Não, vou me deitar. Não, por favor, não mande o médico, nem Witte. Não, não, não! Não quero que venha ninguém, nem a Suzette. Quero apenas sossego. Vocês me façam o favor de ir à Embaixada da França, e peçam desculpas por mim. Obrigada. Boa noite, querido! Boa noite, Pimenoff! Escute, Pimenoff: dê lembranças a Witte. Ao Michael também. É, lembranças a todos. Não, não se preocupe comigo. Amanhã estará tudo bem de novo. Boa noite!
Colocou o fone no gancho.
— Boa noite, querido — disse mais uma vez, com voz muito baixa, julgando-se completamente só, naquele quarto de hotel.
Tinha sido o coração; "ela se sentiu mal", pensou Gaigern, que seguira a muito custo, e com atenção, aquelas frases apressadas, ditas em francês. "É por isso que ela veio de repente para cá, na pior hora. Está com uma aparência miserável, mesmo. Paciência. Ela vai se deitar, e então espero poder despedir-me. É preciso não perder a calma." Encostou-se com cuidado ao parapeito da varanda, e olhou para baixo. Os dois idiotas azuis continuavam lá, a se consultar. Haviam pendurado duas bonitas lanternas e parecia que estavam preparados para trabalhar muitas horas extras, durante toda a noite. O desejo que Gaigern tinha de fumar começou a aumentar doentiamente. Abriu a boca num bocejo, que se encheu de fumaça úmida de gasolina. A Grussinskaia, dentro do quarto, aproximou-se nesse momento do espelho de três folhas, em cujo aparador estava a suitcase vazia... A caixa torácica de Gaigern pareceu querer estourar, tão fortes eram as batidas de seu coração — mas ela empurrou a maletinha de couro para um lado, sem olhar para ela, acendeu a lâmpada sobre o espelho central, e se agarrou com as duas mãos à moldura do espelho, aproximando-se tanto dele, que dava a impressão de querer atirar-se por ele abaixo. A atenção com que observou seu próprio rosto tinha algo de penetrante, de ávido, de cruel. "Que animais esquisitos são as mulheres", pensou Gaigern, atrás da sua cortina. "Animais estranhíssimos. O que é que ela está vendo no espelho, para estar com uma expressão de tanto horror?"
Ele estava vendo uma mulher bela, incontestavelmente bela, apesar da pintura que lhe escorria pelas faces. Seu pescoço, principalmente, refletido duas vezes pelos espelhos laterais, era de uma delicadeza e de um torneado sem par. A Grussinskaia, de olhos fixos em seu próprio rosto, parecia olhar o rosto de uma inimiga. Com pavor, ela enxergava os anos, as rugas, a pele frouxa, o esforço demasiado, o emurchecer; as fontes já começavam a deprimir-se, as comissuras dos lábios tombavam, as pálpebras, sob a pintura azul, estavam enrugadas como papel de seda. Enquanto se via no espelho, foi tomada de um novo tremor de frio, mais forte ainda do que o tremor que a assaltara na rua. Experimentou controlar os lábios, mas não conseguiu. Apressadamente, caminhou pelo quarto e foi apagar a luz fria do lustre, acendendo em seguida o abajur, mas isso não bastou para aquecer o ambiente. Com gestos impacientes arrancou do corpo seu traje de palco, atirou-o no chão, e com o busto nu e a malha até acima das coxas, aproximou-se do aparelho de aquecimento central e encostou o peito no encanamento pintado de cinzento. Fez isso quase irrefletidamente, procurando apenas calor. "Basta", pensou ela, "basta! Nunca mais. Acabou-se. Basta." Balbuciava em todas as línguas, por entre os dentes a bater de frio, palavras definitivas, irrevogáveis. Foi ao banheiro, despiu-se completamente e pôs as mãos debaixo da torneira de água quente, deixando o calor escorrer pelas veias de seus pulsos, até lhe causar dor. Apanhou uma escova e com ela esfregou os ombros; mas, de súbito, cheia de tédio, desistiu de tudo, veio para o quarto, nua e a tremer de frio, e pegou no telefone. Por duas vezes precisou começar, com seus lábios trêmulos, até conseguir falar.
— Chá — pediu ela. — Bastante chá. Bastante açúcar.
Aproximou-se de novo do espelho, nua como estava, e observou-se com severidade. Mas seu corpo era de uma beleza perfeita e única. Era o corpo de uma aluna de ballet de dezesseis anos, que o trabalho disciplinado e duro de uma vida inteira havia conservado intacto. De repente, o ódio que sentia por si própria transformou-se em ternura. Colocou as mãos nos ombros e acariciou seu brilho fosco. Beijou a curva do braço direito. Colocou os seios, pequeninos e perfeitos, nas palmas das mãos, como em duas taças, acariciou a depressão delicada do ventre e as sombras esguias das coxas. Inclinou a cabeça até os joelhos e beijou aqueles pobres joelhos, magros e duros como ferro, como se fossem uns filhinhos enfermos e muito queridos.
— Biednaiaia, malenkaia — murmurou ao mesmo tempo; era uma designação carinhosa dos tempos passados. Biednaiaia, malenkaia. Coitada, pequenina, era o que significavam essas palavras.
O rosto de Gaigern, por entre as cortinas, adquiriu inconscientemente uma expressão atenciosa e compassiva. O que se apresentava aos seus olhos deixava-o confuso. Ele conhecia muitas mulheres, mas nunca vira nenhuma com um corpo tão delicado e perfeito como esta. Mas isso, a bem dizer, era coisa de somenos importância. O que o enchia de suave e doce opressão, fazendo-o arder até as orelhas, era o desamparo, o tremor, a expressão desesperançada, confusa e lastimosa da Grussinskaia diante do espelho. Apesar de ser um sujeito que se desviara do bom caminho, e de ter no bolso pérolas roubadas no valor de quinhentos mil marcos, Gaigern estava muito longe de ser um homem desnaturado. Largou as pérolas que segurava e tirou as mãos dos bolsos. Sentiu passar pelas palmas das mãos, pelos braços, um ansioso desejo de erguer essa pequenina e solitária mulher, de levá-la dali, de consolá-la e aquecê-la, para fazer cessar aquele horrível tremor de frio e o murmúrio quase insensato que se desprendia de seus lábios.
O criado de quarto bateu na porta dupla, e a Grussinskaia pegou no seu penteador — o mesmo que havia assustado Gaigern na escuridão — e enfiou os pés nos míseros chinelos. O criado ofereceu o chá, discretamente, pela porta. A Grussinskaia fechou-a atrás do garçom, que se afastava. "Agora já está na hora", pensou ela. Encheu a xícara de chá, e foi buscar a caixinha de veronal. Engoliu um pozinho e bebeu o chá; depois tomou mais uma xícara. Levantou-se e começou a andar pelo quarto de um lado para outro, muito depressa, como se fugisse, de uma parede até a outra, quatro metros para lá, quatro para cá.
"Para que tudo isso?", pensava ela. "Para que viver? Que posso esperar ainda? Para que tantos tormentos? Oh, estou cansada, vocês não sabem como estou cansada. Prometi a mim mesma afastar-me do palco, quando chegasse o tempo. Tiens. Já é tempo. Devo esperar até que assobiem para mim da plateia?
"Já é tempo, malenkaia, coitada, pequenina. Gru não vai partir amanhã para Viena, Gru vai desistir. Gru vai dormir. Vocês não sabem como a gente sente frio, quando é célebre. Não há ninguém que me faça companhia, ninguém. Possibilitei a tanta gente um meio de vida, e nunca ninguém viveu para mim. Ninguém. Nem uma só pessoa. Só conheço pessoas vaidosas ou medrosas. Estive sempre sozinha. Oh, e quem vai se interessar por uma Grussinskaia que não dança mais? Acabou-se. Não ficarei passeando em Monte Cario, com o corpo rijo, gorda e velha como todas essas velhas célebres. Sozinha eu sempre vivi. Eles deviam ter-me visto no tempo em que o Grão-Duque Serguei ainda vivia! Não, essa vida não me serve. E para onde deverei ir? Cultivar orquídeas em Tremezzo, criar dois pavões brancos, ter preocupações de dinheiro, ficar completamente só, em completa decadência, e morrer? É isso: finalmente a morte. Nijínski está no hospício esperando a morte. Pobre Nijínski! Pobre Gru! Não quero esperar. Demora tanto... Depressa, depressa, depressa." Ela ficou parada, atenta, como se alguém a estivesse chamando. Em seus ouvidos já soava o sonolento zumbido do veronal, a indiferença que o agradável narcótico trazia. "Gaston!", pensou ela, dirigindo-se à mesa. "Pobre Gaston, você foi bom para mim, outrora. Como você era jovem! Há quanto tempo isso aconteceu! Agora você é ministro, barrigudo, com barba e careca. Adieu, Gaston! Adieu pour jamais, n'est-ce pas? Existe um meio tão fácil para não se ficar velha..." Encheu de novo a xícara de chá. Agora fazia um pouquinho de pose, representava uma pequena comédia, triste e doce. Havia forma e graça no seu desespero e na sua decisão. Com um movimento brusco, pegou o vidrinho de veronal e jogou todos os tabletes no chá, esperando até que se derretessem. Estava demorando muito. Impaciente, bateu com a colher na xícara. Levantou-se, aproximou-se de novo do espelho e passou mecanicamente pó de arroz no rosto, que de repente se cobrira de um suor fino e frio. Seus lábios deixaram de tremer e sorriram, um sorriso fixo, como no palco. Cobriu o rosto com as mãos e sussurrou:
— Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!
Ela também sentia agora o cheiro de enterro que subia das cestas de flores e pairava murcho no quarto. Foi-se arrastando lentamente até a mesa onde estava o chá, e o provou com a ponta da colher. Tinha um gosto muito amargo. Com a pinça pegou vários tabletes de açúcar e mergulhou-os no chá, esperando até que eles se dissolvessem. Devia ter durado um minuto, talvez mais. Os dois relógios apostavam corrida em meio ao silêncio.
A Grussinskaia levantou-se e foi à porta da varanda. Respirava com dificuldade. Tinha desejos de ver o céu. Afastou a cortina de renda e deu de encontro com uma sombra.
— Por favor, não se assuste, minha senhora — disse Gaigern, inclinando-se.
O primeiro movimento que a Grussinskaia fez não foi de susto, mas — estranho — de pudor. Fechou mais o quimono e olhou para Gaigern, atônita e calada. "O que é isso?", pensou ela. "Já vi coisa parecida?" Talvez sentisse até um certo alívio, porque ocorrera um adiamento entre ela e a xícara de veronal. Ficou parada diante de Gaigern quase um minuto, a olhá-lo e a observar suas sobrancelhas arqueadas e finas, que se juntavam na base do nariz. Os lábios da Grussinskaia continuavam tremendo e uma respiração cada vez mais rápida e ofegante se pôs entre ela e o moço.
Os dentes de Gaigern também pareciam querer bater uns nos outros, mas ele os conservou bem firmes. Nunca se encontrara em situação tão perigosa como nesse momento. Todos os seus empreendimentos, até então — haviam sido somente três ou quatro —, tinham sido muito bem preparados, e executados com tal cuidado que nunca caíra sobre ele a menor suspeita. Mas ali estava ele agora, com pérolas no valor de quinhentos mil marcos no bolso, apanhado num aposento alheio; entre ele e a penitenciária havia apenas a campainha branca do hotel, com o pequeno letreiro de esmalte, pedindo que batessem duas vezes para chamar o criado de quarto. Um ódio ardente, insensato, irrompeu dentro dele; Gaigern não o deixou explodir, mas concentrou-o em seu íntimo, até que se transformou em força e calma. Precisou de um grande esforço sobre si próprio para não derrubar essa mulher. Parecia uma enorme locomotiva sob nuvens de vapor, cheia de combustível, e com uma pressão de muitas atmosferas vibrando interiormente, e pronta a passar em disparada por cima de tudo. No momento, limitou-se a inclinar-se. Poderia ter tentado uma fuga desesperada pela fachada do hotel. Poderia ter matado a Grussinskaia, poderia tê-la feito calar-se, com ameaças. Fora o instinto da sua natureza amável que, em vez de violência e de um assassinato, o fizera inclinar-se numa curvatura irrefletida mas elegantíssima. Ignorava que suas olheiras estavam azuladas; muito vagamente, chegava a sentir prazer no perigo, uma sensação de embriaguez ou de queda infindável, como num sonho.
— Quem é o senhor? Como veio parar aqui? — perguntou a Grussinskaia em alemão. Seu tom de voz era quase cortês.
— Desculpe-me, minha senhora; entrei sorrateiramente no seu quarto. Eu estou... É horrível a senhora ter-me encontrado aqui. A senhora veio mais cedo para o hotel do que de costume. Foi um azar. Que desgraça! Não posso lhe explicar nada.
A Grussinskaia retrocedeu uns passos dentro do quarto, sem perdê-lo de vista, e girou o comutador do lustre, que se acendeu com sua luz fria. É possível que ela tivesse gritado por socorro, se encontrasse no terraço um homem desgrenhado e feio. Mas o homem que estava ali era o mais belo homem que ela vira em toda a sua vida — recordou-se sob o efeito do veronal —, e esse homem não lhe causava medo. O que a enchia estranhamente de confiança, antes de mais nada, era o bonito pijama de seda que Gaigern vestia.
— Mas o que o senhor veio fazer aqui? — perguntou ela, passando insensivelmente a falar francês, língua mais mundana.
— Nada. Queria apenas me sentar aqui. Só queria estar em seu quarto — disse Gaigern em voz baixa.
Encheu o peito de ar, dilatando a caixa torácica. Agora tratava-se de contar histórias a essa senhora — percebeu ele com leve esperança. As meias de ladrão por cima de seus sapatos o atrapalhavam. Com um movimento habilidoso, tirou-as dos pés às escondidas. A Grussinskaia meneou a cabeça.
— No meu quarto? Meu Deus... mas para quê? — perguntou ela com sua voz russa, de passarinho, aguda e frágil, e um ar de estranha expectativa refletiu-se em seu rosto.
Gaigern, que ainda se encontrava no balcão, respondeu:
— Vou dizer a verdade, minha senhora. Não é a primeira vez que entro no seu quarto. Estive aqui diversas vezes, muitas vezes mesmo, quando a senhora estava no teatro. Fiquei respirando este ar. Coloquei na jarra uma florzinha para a senhora. Perdoe-me.
CONTINUA
Quando o porteiro saiu da cabina telefônica 7, uma leve palidez se espalhava em suas faces; procurou o boné, que colocara sobre o aparelho de calefação do compartimento dos telefones.
— Que foi? — perguntou a telefonista, sentada diante do quadro de comutadores, com os fones nos ouvidos e os pinos vermelhos e verdes entre os dedos.
— É que levaram minha mulher às pressas para o hospital. Não sei o que significa isso. Ela está pensando que a coisa já começou. Mas ainda não está no prazo, meu Deus! — disse o porteiro.
A telefonista mal o ouviu, porque tinha de fazer uma ligação.
— Paciência... É preciso não perder a calma, Herr Senf — disse entre uma ligação e outra. — Amanhã cedo há de nascer o seu filho, fique sossegado.
— Muito obrigado por ter-me chamado ao telefone. Na portaria eu não posso anunciar a todos os ventos os meus assuntos particulares. Serviço é serviço.
— É claro. Quando a criança nascer, eu o chamarei — disse a telefonista, distraída.
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E continuou a fazer ligações. O porteiro apanhou o boné e se retirou na ponta dos pés. Fê-lo inconscientemente, porque sua mulher estava acamada, para dar à luz. Quando atravessou o corredor, para onde davam as salas de correspondência e de leitura, agora silenciosas e a meia-luz, suspirou profundamente e passou a mão pelo cabelo. Surpreso, percebeu que ela ficara úmida, mas não pensou em lavar as mãos, para não perder tempo. Afinal, não se podia exigir que o movimento do hotel parasse, só porque o porteiro Senf ia ser pai. Do tea-room, na nova ala do hotel, a música vinha vibrando em síncopes saltitantes, ao longo dos espelhos das paredes. O cheiro amanteigado de carne assada, próprio da hora do jantar, evolava-se discretamente, mas, por trás das portas do salão de refeições, ainda estava tudo vazio e silencioso. No salãozinho branco, o garde-manger Mattoni preparava os frios. O porteiro, sentindo uma estranha fraqueza nos joelhos, parou à porta e fitou, atordoado, os globos multicolores de luz elétrica que cintilavam por trás dos blocos de gelo. No corredor, um monteur, de joelhos no chão, fazia um conserto na instalação elétrica. Desde que havia colocado o enorme refletor na fachada do hotel, havia sempre um desarranjo na instalação, sobrecarregada. O porteiro deu uma pequena ordem às suas pernas bambas e dirigiu-se ao seu posto. Deixara a portaria aos cuidados de Georgi, um rapazinho, filho do proprietário de uma grande rede de hotéis. O pai desejava que seu futuro sucessor conhecesse a profissão desde as mais humildes ocupações, e por isso o filho trabalhava ali gratuitamente. Senf, sentindo uma certa angústia, atravessou às pressas o hall, repleto de gente que se movimentava. Ali, a música de jazz do tea-room se misturava aos lânguidos sons dos violinos do jardim de inverno, ao murmúrio do repuxo da fonte luminosa, gotejando numa imitação de bacia veneziana, ao tilintar dos copos nas mesinhas e ao ranger das cadeiras de vime; o mais brando sussurro era o suave frufru das peliças e dos vestidos de seda das senhoras, que se diluía no harmonioso burburinho. Pela porta giratória, a fresca brisa de março penetrava em espirais, em pequenas golfadas, sempre que o groom fazia entrar ou sair os hóspedes.
— All right! — disse Georgi, quando o porteiro Senf, apressando os passos, chegou à portaria, como se chegasse ao refúgio de um porto. — Chegou a correspondência das sete. A senhora do quarto 68 armou um escândalo porque não encontraram logo o chofer. É um tanto histérica essa senhora, hein?
— Quarto 68... é a Grussinskaia — disse o porteiro, enquanto com a mão direita começava a separar a correspondência. — É a bailarina, já estamos acostumados. Há dezoito anos. Todas as noites, antes de apresentar-se em público, fica nervosa e provoca um escândalo.
No hall um senhor levantou-se do seu maple; era um senhor de boa estatura, cujas pernas pareciam atacadas de ancilose. Aproximou-se da portaria de cabeça baixa e deu uns giros pelo hall antes de passar ao vestíbulo, procurando ter o aspecto de alguém que nada espera, mas se aborrece. Observou as revistas na pequena banca de jornais, acendeu um cigarro e aproximou-se do porteiro, perguntando distraído:
— Chegou correspondência para mim?
O porteiro, por seu lado, prontificou-se também a representar uma pequena comédia. Examinou primeiro a caixa 218, antes de responder:
— Desta vez, infelizmente, nada, doutor.
Então o senhor alto movimentou-se de novo a passos lentos, fazendo um caminho complicado para chegar ao seu maple, onde se deixou cair de pernas rígidas, ficando a olhar para o hall com expressão de quem não vê. Seu rosto, aliás, consistia em uma só face, um perfil requintado e agudo de jesuíta, terminando numa orelha muito bem delineada e escondida sob os fios ralos de cabelo grisalho da têmpora. A outra face não existia. Em seu lugar havia apenas uma mescla confusa de traços remendados e ligados desordenadamente. Por entre suturas e cicatrizes, espiava um olho de vidro. O Dr. Otternschlag, quando conversava a sós consigo mesmo, costumava chamar seu rosto de souvenir de Flandres... Ficou sentado a observar os capitéis de gesso dourado das colunas de mármore que já estava farto de conhecer; depois, com o olho que não via, fitou longamente o hall, que se esvaziou rapidamente porque o espetáculo ia começar. Em seguida ergueu-se de novo e, com seu andar desconjuntado de marionete, encaminhou-se para a cabina do porteiro, onde Herr Senf, já desligado de sua vida privada, se desincumbia conscienciosamente dos deveres de seu cargo.
— Ninguém perguntou por mim? — perguntou o Dr. Otternschlag, olhando para o balcão de mogno coberto de vidro, onde o porteiro costumava depositar os bilhetes e recados.
— Ninguém, doutor.
— Algum telegrama? — perguntou em seguida o Dr. Otternschlag. Herr Senf teve a gentileza de procurar de novo na caixa 218, apesar de saber de antemão que nada havia nela.
— Hoje não, doutor — disse ele. Com grande amabilidade acrescentou: — Talvez o doutor queira ir ao teatro. Ainda tenho um camarote para o espetáculo da Grussinskaia, no Teatro do Oeste.
— Da Grussinskaia! — disse o Dr. Otternschlag. Conservou-se ainda um momento imóvel; depois, passando pelo vestíbulo e atravessando o hall numa linha curva, voltou à sua cadeira. "Agora, nem mesmo a Grussinskaia consegue casa cheia", pensou ele. "É natural. Nem eu próprio a quero ver mais..." Cheio de melancolia, enterrou-se de novo na poltrona.
— Este homem cansa a gente — disse o porteiro a Georgi. — Sempre perguntando pela correspondência. Há dez anos que se hospeda aqui por alguns meses, e nunca chegou carta nenhuma para ele nem nenhum gato-pingado perguntou por ele. E um homem desses ainda fica sentado, esperando.
— Quem é que está esperando? — perguntou do compartimento ao lado o chefe de recepção, Herr Rohna, esticando a cabeça meio ruiva por sobre a divisão baixa de vidro. Mas o porteiro não respondeu logo; parecia-lhe estar ouvindo os gritos de sua mulher — transportava para o exterior o que ouvia interiormente. Em seguida, os assuntos privados mergulharam em seu íntimo porque teve que ir ajudar Georgi a explicar em espanhol ao senhor mexicano do quarto 17 uma complicada conexão de trens. O groom 24, com as faces afogueadas e o cabelo bem alisado com água, saiu correndo do elevador, exclamando, alegre e excitado — em voz demasiado alta para um hall tão distinto:
— Mandem chamar o chofer do Barão Gaigern!
Rohna ergueu a mão, num gesto de censura e apaziguamento, como um diretor de orquestra. O porteiro telefonou, chamando o chofer. Georgi arregalou seus olhos de rapazinho, com expressão de curiosidade. Espalhou-se no ar um aroma de alfazema e de cigarro fino. Após o aroma, um homem, cuja aparência chamava a atenção, entrou pelo hall, e várias pessoas o olharam. A senhorita cor de cera da banca de jornais sorriu. O homem também sorriu, sem nenhuma razão aparente, simplesmente porque se sentia satisfeito com sua própria pessoa, conforme parecia. Era de estatura fora do comum e trajava-se muito bem, também de maneira pouco usual. Tinha um andar elástico, como o de um gato ou de jogador de tênis. Não usava sobretudo sobre o smoking, mas um trench coat azul-marinho, que não combinava com o smoking. Toda a sua figura tinha um ar de gracioso desleixo. Deu uma palmadinha no crânio molhado do groom 24, estendeu o braço sobre o balcão do porteiro, sem olhar, e recebeu um punhado de cartas que enfiou simplesmente no bolso, de onde tirou suas luvas de camurça pespontada. Cumprimentou com um gesto amistoso o chefe de recepção, como a um camarada. Pôs na cabeça o chapéu de feltro escuro e, tirando do bolso uma cigarreira, colocou um cigarro entre os lábios, sem o acender. Porém imediatamente se descobriu de novo, afastando-se para deixar passar duas senhoras pela porta giratória. Era a Grussinskaia, delgada e miúda, enfiada até o nariz em uma pele, seguida de uma sombra apagada que ia levando as malas. Quando o encarregado dos carros, lá fora, instalou as duas no automóvel, o simpático senhor de impermeável azul acendeu o cigarro, tornou a enfiar a mão no bolso e meteu uma moeda na mão do boy 11, o encarregado da porta giratória. Depois desapareceu por entre os balouçantes espelhos da porta giratória, com a expressão feliz de um rapazinho a quem deram licença para andar de carrossel.
Quando esse cavalheiro, esse senhor, esse encantador Barão Gaigern saiu do hall, fez-se de súbito enorme silêncio, ouvindo-se então o jorro da fonte luminosa a tombar com um murmúrio fresco e suave na bacia veneziana. É que o hall se esvaziara; o jazz-band do tea-room parará de tocar, a música da sala de refeições ainda não principiara e o trio do Salão Vienense, do jardim de inverno, fazia uma pausa. No súbito silêncio penetrou o ruído excitado e incessante das buzinas dos automóveis que passavam diante da entrada do hotel, em seu movimento noturno. Mas dentro do hall o silêncio permaneceu, como se o barão tivesse carregado consigo a música, o ruído e o burburinho humano. Georgi apontou com a cabeça para a porta giratória e disse: — Bom sujeito. Queira Deus que ele não mude.
O porteiro encolheu os ombros, como bom conhecedor dos homens.
— A questão é saber se é bom de fato. Ele tem um certo jeito... não. Dá-me a impressão de ser uma pessoa leviana. O modo de andar e as gordas gorjetas... parece coisa de cinema. Quem é que viaja hoje em dia com esse luxo — a não ser um vigarista? Se eu fosse o Pilzheim, tratava de abrir os olhos.
Rohna, o chefe de recepção, que tinha os ouvidos em toda parte,- estendeu de novo a cabeça por cima da divisão de vidro; sob os raros fios de cabelo meio ruivo, brilhava-lhe a pele acinzentada do crânio.
— Deixe disso — disse ele; — Gaigern é boa pessoa, eu o conheço. Foi educado em Feldkirch, com meu irmão. Por causa dele não é preciso ir incomodar o Pilzheim. (Pilzheim era o detetive do Grande Hotel).
Senf fez continência, calando-se respeitosamente. Rohna sabia o que estava dizendo. O próprio Rohna era também um conde, um Rohna da Silésia, antigo oficial, um sujeito direito. Senf fez novamente continência, enquanto a cara de galgo de Rohna se afastava e o conde continuava suas ocupações por detrás da parede de vidro fosco, como uma sombra.
O Dr. Otternschlag, lá no seu canto, conservara o busto meio erguido, enquanto o barão estivera no hall, e depois voltara a encolher-se, mais sombrio ainda. Entornou com o cotovelo seu copo de conhaque, com bebida até a metade, mas nem se dignou olhar. Suas mãos magras, amarelecidas pelo fumo, pendiam entre os joelhos abertos, pesadas como se estivessem metidas em luvas de chumbo. Por entre suas compridas botinas de verniz, olhava o tapete que cobria o hall e todas as escadarias, passagens e corredores do Grande Hotel: já estava farto do seu desenho de trepadeiras, com o ananás verde-amarelo por entre as folhas pardacentas, sobre um fundo vermelho-framboesa. Tudo estava morto... A hora estava morta. O hall estava morto. Todos tinham ido cuidar de seus negócios, viver seus prazeres e seus vícios, deixando-o ali abandonado. No meio desse vazio, viu-se de súbito o vulto da encarregada do vestiário aparecer por trás do balcão e alisar com um pente preto o cabelo ralo de sua cabeça de velha. O porteiro saiu do seu cubículo e disparou, sem guardar as conveniências, atravessando o hall em direção ao compartimento dos telefones. Parecia estar pressentindo alguma coisa. O Dr. Otternschlag procurou seu conhaque e não o encontrou. "Vamos agora para o quarto nos deitar?", perguntou a si mesmo. Um fraco e bruxuleante rubor tingiu suas faces e desapareceu, como se ele houvesse traído um segredo, revelando-o a si próprio. "Vamos", respondeu com os seus botões. Mas não se levantou, porque até isso o deixava indiferente. Levantou o indicador amarelo e Rohna, no outro extremo do hall, percebendo o gesto invisível, providenciou auxílio ao doutor.
— Cigarros, jornais — disse ele sem se mover. O menino disparou até a senhorita cataléptica da banca de jornais. Rohna olhou com ar de reprovação aquela intempestiva vivacidade juvenil; depois, Otternschlag tomou os jornais e os maços de cigarro que o groom tinha ido buscar para ele e pagou colocando o dinheiro na mesinha e não na mão do groom, pois costumava sempre conservar distância entre si e os demais, sem o perceber. A metade intacta de sua boca chegou a imitar um sorriso, quando abriu os jornais e começou a ler; esperava sempre encontrar nos jornais qualquer coisa que eles não traziam, tal como acontecia com as cartas, os telegramas e os chamados, que jamais chegavam para ele. Estava terrivelmente só, com uma impressão de vazio, isolado da vida. Às vezes, quando conversava a sós consigo mesmo, costumava fazê-lo em voz alta. "É horrível", dizia-se com frequência, estacando sobre a passadeira cor de framboesa, assustado com sua própria pessoa. "É horrível. Nenhuma vida. Nenhuma espécie de vida. Mas por onde andará ela? Nada acontece. Nada sucede. É uma tristeza. Só velhice e morte. É horrível." As coisas que o rodeavam pareciam miragens. O que ele tocava se desfazia em pó. O mundo era uma coisa inconsistente, impossível de segurar ou reter. Caía-se de um vazio em outro vazio. Carregava-se um saco de trevas dentro de si. O Dr. Otternschlag vivia na mais profunda solidão, apesar de o universo estar povoado por seus semelhantes.
Nos jornais, nada encontrou que o satisfizesse. Um tufão, um terremoto, uma guerra pouco importante entre pretos e brancos. Incêndios, assassinatos, lutas políticas. Nada. Muito pouco. Escândalos, pânico na Bolsa, derrocada de fortunas imensas. Que tinha ele com isso? Que sentimento lhe provocava tudo isso? Um voo através do oceano, recordes de velocidade, notícias sensacionalistas, com títulos de uma polegada de altura. Cada jornal gritava mais que o outro, e finalmente não se ouvia mais nenhum; os homens acabavam por se tornar cegos, surdos e desprovidos de sentimentos, com a ruidosa atividade da época moderna. Figuras de mulheres nuas, coxas, seios, dentes, ofereciam-se abertamente, aos montões. Também o Dr. Otternschlag, noutros tempos, possuíra mulheres! Lembrava-se disso sem saudades, apenas com um friozinho a descer-lhe pela espinha. Deixou que os jornais lhe caíssem simplesmente da mão amarelecida pelo fumo, sobre o tapete de ananases, de tal modo o aborreciam e lhe eram indiferentes. — Não, não acontece nada, absolutamente nada — disse a si mesmo, a meia voz. Noutros tempos, tivera uma gatinha persa, chamada Gurbal; desde que ela fugira com um gato vadio de água-furtada, via-se obrigado a dialogar consigo mesmo.
No momento em que, caminhando em linhas curvas, se dirigia à portaria para ir buscar a chave do quarto, um indivíduo esquisito empurrou a porta giratória, no vestíbulo.
— Senhor, aí está o homem de novo! — disse o porteiro a Georgi, olhando fixamente para o indivíduo, com seu olhar enérgico de primeiro-sargento. Esse indivíduo, o tal homem, destoava completamente no hall do Grande Hotel. Usava um chapéu de feltro, redondo, barato, novo, um pouco largo para a sua cabeça, mas que orelhas caídas seguravam, evitando que escorregasse ainda mais para a frente. Tinha um rosto amarelado, o nariz afilado e tímido, compensado por um bigode imponente, de corte muito apreciado pelos diretores de associações. Vestia um sobretudo estreito, verde-acinzentado, velho e lamentavelmente fora de moda; calçava botinas pretas, que pareciam demasiado grandes para a sua pequena estatura, com os canos a espiarem por baixo das calças pretas, muito curtas. Usava luvas de linha cinzentas e segurava uma mala, imitando couro, que parecia pesada demais para ele; segurava-a pela alça, com ambas as mãos de encontro ao estômago; debaixo do braço trazia ainda um pacote engordurado, envolto em papel marrom. O homem tinha um aspecto realmente grotesco e lamentável; e parecia cansadíssimo. Mas quando o groom 24 tentou tirar de suas mãos a mala, não a entregou, parecendo confuso com essa cortesia do boy. Só defronte do balcão de Herr Senf, colocou a mala no chão, e, meio ofegante, curvou-se à guisa de cumprimento, dizendo com uma voz aguda e agradável:
— Meu nome é Kringelein. Já estive aqui duas vezes. Vim informar-me de novo.
— Faça o favor de dirigir-se aqui ao lado, mas acho que não há nenhum quarto vago — disse o porteiro, apontando Rohna. — Aquele senhor está esperando há dois dias que vague um quarto — explicou, olhando por cima da divisão de vidro.
Rohna, sem voltar os olhos para o recém-chegado, tirara as suas conclusões e, por mera cortesia, fingiu estar folheando o livro de registro de hóspedes. Depois disse:
— Infelizmente, no momento está tudo ocupado. Sinto muitíssimo.
— Ainda está ocupado? Muito bem, e onde vou hospedar-me então? — perguntou o indivíduo.
— O senhor não quer ir ver nos arredores da estação, em direção da Friedrichstrasse? Há ali uma porção de hotéis.
— Não, muito obrigado — disse o homem. Tirou um lenço do bolso do sobretudo e passou-o nervosamente pela testa suada. — Quando cheguei estive num desses hotéis e não gostei. Quero hospedar-me num lugar distinto.
Ao colocar sob o braço esquerdo o guarda-chuva molhado, deixou cair o engordurado pacote que tinha debaixo do braço direito, mostrando algumas fatias de pão com manteiga — já tortas, de tão ressequidas. O Conde Rohna disfarçou um sorriso; Georgi virou-se para o quadro das chaves. O groom 17, corretíssimo, juntou os pedaços de pão seco, que o homem, com os dedos trêmulos, enfiou no bolso. Tirou o chapéu e colocou-o diante de Rohna, sobre o balcão. Tinha a testa alta e enrugada, e as têmporas fundas e azuladas. Seus olhos vesgos, de um azul muito claro, espiavam por trás de um pince-nez que estava sempre a querer escorregar pelo nariz afilado.
— Eu queria ficar hospedado aqui. Afinal há de vagar algum quarto. Faça o favor de reservar-me o primeiro quarto que desocupar. Já é a terceira vez que venho aqui; o senhor pensa que isso me diverte? Não é possível que esteja sempre tudo ocupado, não é mesmo?
Rohna encolheu os ombros, lamentando. Durante um instante ficaram todos calados, e pôde-se ouvir a música da sala vermelha de refeições e o jazz band, que estava agora no pavilhão amarelo. Já se encontravam de novo sentados no hall vários senhores, e alguns deles olharam para o indivíduo com ar de estarem se divertindo, e ao mesmo tempo estranhando sua aparência.
— O senhor conhece o Diretor-Geral Preysing? Ele também se hospeda sempre aqui, quando vem a Berlim, não é verdade? Pois é. Eu também quero me hospedar aqui. Tenho um assunto urgente a tratar, uma conferência importante com Preysing. Aliás, ele próprio me pediu para encontrar-me aqui com ele. Aconselhou-me a hospedar-me aqui. Foi ele quem me recomendou este hotel. Vim por recomendação do Diretor-Geral Preysing. Por favor. Quando vai vagar um quarto?
— Preysing? O Diretor-Geral Preysing? — perguntou Rohna a Senf, do outro lado do vidro.
— De Fredersdorf; da Indústria Algodoeira Saxônia S.A. Eu também sou de Fredersdorf — disse o indivíduo.
— É, sim — lembrou-se o porteiro —, um Herr Preysing já esteve várias vezes aqui.
— Eu acho que pediram um quarto para ele, para amanhã ou depois de amanhã — murmurou Georgi, querendo mostrar-se solícito.
— O senhor quer tentar mais uma vez amanhã, quando Herr Preysing estiver aqui? Ele chega hoje de noite — disse Rohna, depois de folhear os seus livros e de encontrar o pedido de reserva.
Estranhamente, essa notícia pareceu assustar o homem.
— Vai chegar? — disse ele, com uma expressão de angústia, entortando ainda mais os olhos vesgos. — Está bem... vai chegar hoje mesmo. Bem. E há um quarto para ele? Quer dizer que há quartos vagos? Meu Deus, por que será que o diretor-geral tem um quarto e eu não? Que significa isso? É um desaforo que eu não posso admitir! Como? Ele reservou com antecedência? Faça o favor, eu também fiz uma reserva de quarto. É a terceira vez que venho aqui, é a terceira vez que arrasto esta mala pesada, faça o favor. Está chovendo, os ônibus estão cheios, eu não estou passando bem de saúde. Então? Quantas vezes devo fazer ainda esta caminhada? Como? Por quê? Isso não é modo de se tratar ninguém. Este é o melhor hotel de Berlim? Como? É? Pois bem, eu quero hospedar-me no melhor hotel de Berlim. Será que é proibido? — fitou a todos, um a um. — Estou cansado — acrescentou ainda —, estou extremamente cansado — disse. Notava-se seu cansaço e o esforço ridículo para se expressar com termos escolhidos.
De súbito, o Dr. Otternschlag meteu-se na conversa. Durante todo o tempo ele ficara parado, segurando a chave de seu quarto, presa a um grande quadrado de madeira, com o cotovelo fincado no balcão da portaria.
— Se este cavalheiro faz tanta questão, pode ficar com meu quarto — disse Otternschlag. — Para mim não faz diferença morar aqui ou ali. Mandem subir a mala dele. Eu posso mudar-me. Minhas malas estão prontas. Minhas malas estão sempre prontas. É um favor. Vê-se logo que o homem está exausto, doente — acrescentou ainda, cortando a oposição que o Conde Rohna, com eloquentes mãos de maestro, queria fazer.
— Mas doutor — disse Rohna, pressuroso —, nem se fala nisso, não é possível que o senhor ceda seu quarto. Nós vamos tentar... vamos ver... Se o senhor quiser ter a bondade de assinar o seu nome... bem, muito obrigado... 216 — disse Rohna ao porteiro. O porteiro deu ao boy 11 a chave do quarto 216. O indivíduo pegou a caneta-tinteiro que lhe estendiam e assinou o seu nome, com incrível rapidez, no livro de registro de hóspedes.
Otto Kringelein, guarda-livros em Fredersdorf, Sachsen, nascido em Fredersdorf a 14-7-1882.
— Pronto! — disse ele, respirando aliviado. Virou-se e, com os olhos tortos, muito abertos, olhou para o hall.
Encontrava-se, finalmente, no hall do Grande Hotel, ele, o guarda-livros Otto Kringelein, natural de Fredersdorf e residente em Fredersdorf. Ali estava, com o seu velho sobretudo e as ávidas lentes do seu pince-nez a quererem engolir tudo de uma vez. Estava cansado como um corredor que toca com o peito a fita de chegada — e o seu cansaço não era brincadeira; olhava as colunas de mármore com os ornamentos de gesso, a fonte luminosa, as poltronas. Via cavalheiros de fraque e de smoking, elegantes e viajados. Senhoras de braços nus, com vestidos refulgentes, adereços e peliças, mulheres de excepcional beleza, elegantíssimas. Ouvia música ao longe. Sentia o cheiro de café, de cigarros e perfumes; aroma de aspargos, vindo da sala de refeições, e o das flores que se encontravam em vasos em cima de uma mesa, para serem vendidas. Sentia o tapete espesso, vermelho, sob suas botinas lustrosas, tapete que lhe causou, no princípio, a mais forte impressão. Kringelein deslizava cuidadosamente com as solas sobre o tapete, pestanejando. Estava muito claro no hall, uma luz suave e amarelenta; nas paredes havia lampadazinhas avermelhadas com abajures e, na fonte veneziana, verdes repuxos de água.
Um garçom passou apressado, carregando uma bandeja de prata com copos largos e rasos, contendo cada um deles um pouco de conhaque dourado-escuro, onde boiavam pedras de gelo. Mas por que razão, no melhor hotel de Berlim, não enchiam os copos? O criado, segurando a triste mala, despertou Kringelein, que ficara a piscar os olhos tortos, a movimentar-se, quase como um sonâmbulo: o boy 11 passou com ele diante do ascensorista, um maneta rabugento, e o conduziu para cima. Os quartos 216 e 218 eram os piores do hotel; no 218 morava o Dr. Otternschlag, porque era hóspede efetivo, não sendo além disso pessoa de muitas posses, mas sobretudo porque era muito indiferente para exigir outro. O 216 ficava ao lado, no canto à direita, e ambos estavam encravados entre o elevador de serviço, perto da escada da cozinha 4 e o banheiro do terceiro andar. Dentro da parede corria e gorgolejava a água através do encanamento. Kringelein, a quem conduziam por entre ornamentos de palmas, lustres de bronze e quadros de caçadas, a lugares cada vez mais tristonhos do hotel, esgueirou-se lentamente, e desiludido, para dentro do quarto cuja porta uma criada velha e nada bonita lhe abriu.
— Número 216! — disse o boy, colocando a mala no chão; esperou a gorjeta, que não recebeu, e deixou só o silencioso Kringelein. Este sentou-se na beirada da cama e examinou o quarto.
Era comprido e estreito, tinha uma janela apenas, cheirava a charuto apagado e a armários esfregados com pano úmido. O tapete era ralo e puído. Os móveis — Kringelein apalpou-os — eram de nogueira envernizada.
Em Fredersdorf havia móveis iguais a esses. Um retrato de Bismarck estava suspenso à parede, na cabeceira da cama. Kringelein sacudiu a cabeça. Nada tinha contra Bismarck, pois em sua casa também havia um retrato do estadista. Esperava vagamente encontrar no Grande Hotel quadros diferentes sobre as camas, quadros exuberantes, de cores bem vivas, fora do comum, que se admirassem com prazer. Kringelein foi à janela e olhou para fora. Lá embaixo estava claríssimo, o telhado de vidro iluminado do jardim de inverno clareava todo o pátio. Bem defronte havia um muro de incêndio, nu, infindável. Vinha dali um cheiro de cozinha, e subia um vapor morno e desagradável. Kringelein sentiu náuseas e apoiou-se à laje do lavatório. "É que eu não estou muito bem de saúde", pensou com tristeza.
Sentou-se de novo sobre a colcha desbotada, e a sua preocupação foi crescendo, de segundo em segundo. "Aqui não fico", pensou. "Não, aqui não fico de maneira alguma. Não foi para isso que vim aqui. Para isso não adianta nada eu ter vindo. Não é assim que vou começar. Não vou perder o meu tempo em quartos como este. Mas estão me enganando. Decerto eles têm ainda no hotel quartos bem diferentes deste. Preysing deve ficar hospedado em quartos bem melhores, pois não suportaria isto. Preysing havia de fazer barulho — e como! —, vocês ficariam admirados. Se lhe dessem um quarto desses!... Não. Aqui eu não fico." Kringelein fez ponto final em suas reflexões. Concentrou-se. Precisou descansar alguns minutos. Depois tocou a campainha chamando a empregada, e fez um escândalo.
Se levarmos em consideração o fato de que aquela foi a primeira reclamação em tom violento que Kringelein fez na vida, temos de admitir que não se saiu muito mal. A empregada de avental branco, assustada, foi chamar uma camareira; um criado apontou ao longe; o quarteiro, com um prato de frios oscilando na palma da mão, estacou diante do 216 para escutar. Telefonaram a Rohna; este pediu que Herr Kringelein se dirigisse ao pequeno escritório, pois era necessário chamar um dos quatro diretores do hotel. Kringelein, obstinado como um camelo, exigia que lhe dessem um quarto bonito, luxuoso e caro, pelo menos como o de Preysing. Parecia considerar o nome de Preysing uma palavra mágica. Não tirara ainda o sobretudo, conservando as mãos trêmulas nos bolsos, agarradas aos velhos pedaços de pão com manteiga que trouxera de Fredersdorf; entortava os olhos e exigia um quarto caro. Sentia-se cansado e doente, com vontade de chorar. Nas últimas semanas chorava com facilidade, por causa da sua saúde. De repente, justamente quando ia desistir, viu que tinha vencido. Recebeu o 70, um salão com alcova e banheiro a cinquenta marcos por dia. Piscou um pouco quando leu o preço, mas, refletindo, perguntou:
— Bem. Com banho? Quer dizer... posso tomar banho a qualquer hora, todas as vezes que tiver vontade?
O Conde Rohna inclinou a cabeça, imperturbável. Kringelein fez sua segunda mudança.
O quarto 70 servia. Os móveis eram de mogno, havia espelhos de corpo inteiro, cadeiras forradas de seda, escrivaninhas entalhadas, cortinas de renda, quadros de faisões mortos na parede, e na cama um edredom de penas com capa de seda. Kringelein apalpou-o três vezes, incrédulo, sentindo seu brando calor e sua maciez. Sobre a escrivaninha havia um imponente tinteiro de bronze, representando uma águia, cujas asas abertas, ziguezagueantes, protegiam dois recipientes de tinta vazios.
Diante da janela caía uma chuva fresca de março; a atmosfera estava saturada de gasolina; ouviam-se buzinas de automóveis e, bem defronte, na fachada de um edifício, piscava continuamente um anúncio, com letras vermelhas, azuis e brancas; quando terminava de um lado, recomeçava na frente. Kringelein ficou olhando o anúncio durante seis minutos. Lá embaixo revolviam-se guarda-chuvas pretos e pernas claras de mulher, ônibus amarelos, globos de luz elétrica. Havia até mesmo uma árvore, estendendo os galhos não muito longe do hotel, galhos semelhantes aos das árvores de Fredersdorf. Essa árvore berlinense estava plantada numa ilhota de terra, no meio do asfalto, e em redor da terra havia uma cerca, um gradeado, como se ela precisasse de proteção contra a cidade. Kringelein, rodeado por tanta coisa estranha e impressionante, alegrou-se um pouco ao ver a árvore. Em seguida ficou por momentos perplexo, sem saber o que fazer diante do mecanismo niquelado da banheira, que ele não conhecia; porém, de repente, o mecanismo funcionou, escorrendo-lhe água quente nas mãos. Então ele se despiu. Sentiu uma impressão um tanto penosa ao entrar com o corpo nu, débil e macilento, na bacia clara de azulejos. Mas afinal ficou sentado dentro da água por mais de um quarto de hora, sem dores, nenhuma dor; as dores com que ele andava há várias semanas haviam-no abandonado repentinamente. E, a partir desse dia, não queria mais sentir dores.
Por volta das dez horas da noite Kringelein passeava pelo hall; estava muito arrumado, de fraque, colarinho engomado, alto, e uma gravata preta, de nó feito. Não se sentia cansado; pelo contrário, uma agitação febril, uma enorme impaciência se havia apoderado dele. "Agora vai começar", pensava incessantemente, e seus ombros delgados tremiam como as pernas dianteiras de um cachorro nervoso. Comprou uma flor, que enfiou na lapela; deslizou, cheio de prazer, sobre o tapete vermelho-framboesa, e foi queixar-se ao porteiro de que não havia tinta no seu quarto. Um boy conduziu-o à sala de correspondência. Mal Kringelein se encontrou diante daquela quantidade de mesinhas de escrever, vazias, sob a luz agradável dos abajures verdes, perdeu todo o aprumo e tirou a mão do bolso, parecendo sentir-se humilhado. Enfiou os punhos brancos da camisa para dentro das mangas do paletó, com um gesto habitual, antes de sentar-se; depois, começou a escrever com sua caligrafia de guarda-livros, cheia de arabescos:
À Chefia do Pessoal da Indústria Algodoeira Saxônia
S.A., de Fredersdorf.
Prezados senhores,
O abaixo assinado toma a liberdade de comunicar respeitosamente que, de acordo com o atestado médico que acompanha esta — anexo A —, se acha impossibilitado de trabalhar por um período de quatro semanas, até nova ordem. O último salário, vencido em março, o abaixo assinado roga a V. Sas- seja pago a Frau Anna Kringelein, Bahnstrasse n° 4, conforme procuração — anexo B. Caso o abaixo assinado não possa retomar seu serviço após quatro semanas, avisará V. Sas oportunamente. Com a maior estima e consideração,
Otto Kringelein.
A Frau Anna Kringelein, Sachsen, Bahnstrasse n° 4.
Querida Anna — continuou Kringelein a escrever, o A tinha um arrojado arabesco. — Querida Anna, comunico-lhe que o diagnóstico do Professor Dr. Salzmann, após o exame a que me submeti, não foi favorável. Tenho que seguir diretamente daqui para uma casa de saúde, com as despesas a cargo do instituto, mas preciso ainda preencher algumas formalidades. Por enquanto estou hospedado num local muito barato, por recomendação do diretor-geral. Dentro de alguns dias darei notícias mais detalhadas; ainda preciso submeter-me a uma radiografia, antes de saber o diagnóstico definitivo. Lembranças do seu marido
Otto.
Ao tabelião, Herr Kampmann, Fredersdorf, Sachsen, Villa Rosenhein, Mauerstrasse.
Querido Amigo e Colega da Associação Coral — assim começou Kringelein a terceira carta com sua letra legível e delicada olhando para a ponta da pena. — Você vai ficar surpreso ao receber uma longa carta minha de Berlim, mas devo comunicar-lhe importantes modificações na minha vida e conto com sua compreensão e discrição profissional. Infelizmente tenho dificuldades em expressar-me por escrito, mas espero que você, com sua grande cultura e conhecimento dos homens, demonstre a devida compreensão para o que lhe escrevo. Como você sabe, após a operação a que me submeti no verão passado, nunca mais tive saúde e perdi a pouca confiança que depositava no nosso hospital e no nosso médico. Por isso aproveitei a oportunidade de ter recebido a herança de meu pai e vim para cá com esse dinheiro, a fim de fazer um exame e ver do que se tratava. Infelizmente, caro amigo, o resultado não foi bom, e, de acordo com a opinião do professor, tenho pouco tempo de vida
Kringelein permaneceu com a pena no ar, talvez durante um minuto; esqueceu-se de colocar um ponto no fim da frase. Seu bigode, o imponente bigode de diretor de associação, estremeceu de leve, mas ele continuou a escrever animadamente:
Quando se recebe tal comunicação, é natural que muita coisa passe pela nossa cabeça, e não dormi várias noites, mergulhado em minhas reflexões. Cheguei à conclusão de que não pretendo mais voltar para Fredersdorf, e, durante as poucas semanas em que ainda me aguentar de pé, gostaria de aproveitar um pouco a vida. Quando nunca se gozou a vida e se tem de ir para o túmulo com quarenta e seis anos de idade, não é agradável ficar se preocupando, economizando e zangando-se com Herr Pr. na fábrica e com a mulher em casa. É injusto e errado saber que está tudo acabado e que nunca se teve uma alegria verdadeira. Infelizmente, caro Amigo e Colega da Associação Coral, não sei me expressar com correção. Desejo, por isso, apenas comunicar-lhe que o meu testamento, que fiz no verão antes de me operarem, continua válido, mas a situação agora é um pouco diferente. Fiz remeter para cá, através do banco, todas as minhas economias, assim como um empréstimo maior que fiz no seguro de vida e os três mil e quinhentos marcos da herança do meu pai. Desse modo posso viver durante algumas semanas como um homem rico, e é o que pretendo fazer. Por que razão somente os Preysing podem aproveitar a vida, e nós continuamos a ser os tolos, que economizam e amealham? Trouxe comigo a soma de oito mil, quinhentos e quarenta marcos. O que sobrar pode ficar para a Anna; mais do que isso, de acordo com a minha opinião, não lhe devo, pois ela me amargurou bem a vida com as suas brigas, e nem sequer me deu um filho. Porei você a par do lugar em que me encontro e da minha saúde, mas isso é segredo profissional, é um favor que lhe peço. Berlim é uma bela cidade, e cresceu muito para quem não esteve aqui por tantos anos. Pretendo também ir a Paris, porque conheço bem o francês, devido à correspondência. Como você pode perceber, estou firme e há muito tempo não me sinto tão bem.
Abraça-o com amizade o seu fiel Moribundus
Otto Kringelein.
P.S. Basta que você diga à diretoria da Associação que tive de ir para uma casa de saúde de industriários.
Kringelein releu as cartas cujo conteúdo lhe custara duas noites de vigília — não ficou muito contente; pareceu-lhe que na carta para o tabelião faltava alguma coisa importante, mas não conseguia lembrar-se do que se tratava. Kringelein, apesar de possuir uma natureza acanhada e modesta, não era tolo, tinha idealismo e tendência para a cultura. O fato de dar ironicamente a si próprio o nome de Moribundus devia-o à leitura de um livro da biblioteca circulante, onde ele encontrara esse termo; lera o livro com enorme esforço, e o digerira em difíceis conversas com o tabelião. Desde seu nascimento, Kringelein levara a vida normal do pequeno burguês, vida um tanto insípida, sem grandes entusiasmos; vida dispersa de um empregado subalterno numa cidade pequena. Casara-se cedo e sem grande entusiasmo com Fräulein Anna Sauerkatz, filha do merceeiro Sauerkatz, que lhe parecera muito bonita até o dia do casamento, mas logo após se tornou uma pessoa feia, desagradável, sovina, que dava uma enorme importância a coisas mesquinhas. Kringelein recebia um ordenado fixo, e também um pequeno aumento de cinco em cinco anos, mas como sua saúde não fosse das melhores, sua mulher e a família, desde o começo, obrigaram-no a viver com sórdida economia, tendo em mira um problemático "amparo na velhice". Um piano, por exemplo, que Kringelein desejara ardentemente durante toda a vida, nunca o pôde adquirir: vira-se forçado a vender seu cãozinho teckel chamado Zipfel, quando lançaram o imposto sobre os cães. No pescoço tinha sempre arranhões, porque sua pele delicada de anêmico não suportava os velhos e usados colarinhos, com a beirada áspera. Às vezes tinha a impressão de que alguma coisa não estava certa em sua vida, mas não descobria o que era. Em outras ocasiões, na Associação Coral, quando sua voz de tenor, de timbre agudo, tremulante e delicada, sobressaía entre as outras vozes, apossava-se dele um sentimento estranho: parecia-lhe estar vagando no espaço, sentia-se feliz como se voasse. Muitas vezes passeava à noite. Ia caminhando em direção a Mickenau, depois afastava-se das ruas calçadas e ia margeando o fosso úmido dos caminhos, andando por uma trilha que limitava as plantações. Por entre as hastes dos cereais passava um brando sussurro, e quando as espigas roçavam em sua mão ele sentia uma inexplicável alegria. Durante a narcose, no hospital, também sentira essa impressão esquisita e agradável, mas depois a esquecera. Eram coisas insignificantes, que diferenciavam o guarda-livros Otto Kringelein da média de seus concidadãos. E fora isso — juntamente, talvez, com a embriaguez provocada pelos venenos letais destilados pelo seu organismo — o que trouxera o Moribundus até ali, ao mais caro hotel de Berlim, onde escrevera aquelas cartas que continham uma decisão incrível, baseada em motivos fúteis.
Quando Kringelein se ergueu da cadeira, vacilando ligeiramente, e atravessou a sala de leitura com seus três envelopes na mão, encontrou-se com o Dr. Otternschlag, que, para ouvi-lo, virou para ele a face danificada, o que o assustou.
— Então? Já está instalado? — perguntou Otternschlag com indolência; estava de smoking, e olhou para as pontas de seus sapatos de verniz.
— Já estou, sim. Otimamente instalado — respondeu Kringelein com timidez. — Obrigado. Preciso agradecer lhe muitíssimo, cavalheiro. Foi muita bondade sua, de fato...
— Bondade minha? Ora veja! Por causa do quarto? Ora... Sabe, há muito que desejo mudar-me daqui, mas tenho preguiça. Este hotel é uma gaiola miserável. Se o senhor tivesse ficado com o meu quarto, eu estaria a estas horas no rápido para Milão, ou qualquer coisa assim... seria divertidíssimo. Ora, tanto faz. Em março, o tempo é horrível no mundo inteiro. Dá na mesma ficar aqui ou ali. Posso ficar aqui, também.
— O cavalheiro costuma viajar muito? — perguntou Kringelein timidamente, pois imaginava que os hóspedes daquele hotel fossem todos magnatas ou fidalgos. — Se me permite: Kringelein — acrescentou com modéstia, inclinando-se com elegância fredersdorfiana. — O cavalheiro deve conhecer bem o mundo...
— Um pouquinho — disse Otternschlag. — Conheço os lugares mais visitados, os passeios obrigatórios, que todo mundo faz. A Índia, e pouca coisa mais — sorriu ligeiramente ao observar a avidez que se manifestou nos olhos azuis de Kringelein, vesgos por trás do pince-nez.
— Eu também pretendo viajar — disse Kringelein. — O nosso diretor-geral, por exemplo, viaja todos os anos. Há pouco tempo esteve em Saint-Moritz. Na Páscoa do ano passado esteve com a família em Capri. Imagino como tudo isso deve ser maravilhoso!
— O senhor tem família? — perguntou o Dr. Otternschlag, afastando o jornal para o lado. Kringelein refletiu cinco minutos, antes de responder:
— Não, senhor.
— Não tem! — repetiu Otternschlag, e em sua boca essas palavras adquiriram um caráter irrevogável.
— Em primeiro lugar eu gostaria de ir a Paris — disse Kringelein. — Paris deve ser uma beleza, não?
O Dr. Otternschlag, que demonstrara até então um resquício de calor e de interesse, parecia ter ficado sonolento. Ele costumava cair nesse estado de sonolência várias vezes por dia, e contra ele só podia empregar certos meios misteriosos e prejudiciais para a saúde.
— Para Paris o senhor deve ir em maio — murmurou ele.
Kringelein disse rapidamente: — Não disponho de tanto tempo.
Subitamente o Dr. Otternschlag o deixou sozinho.
— Tenho de ir para o quarto deitar-me um pouco — disse ele, mais para si mesmo do que dirigindo-se a Kringelein, que ficou na sala de leitura com as suas três cartas na mão. O jornal que Otternschlag folheara caiu ao chão; estava todo rabiscado com figuras de homenzinhos. Sobre cada figurinha havia uma cruz, desenhada com traços fortes. Kringelein, ligeiramente desiludido, saiu da sala deslizando pelo tapete, com o semblante desconcertado, e dirigiu-se para a sala de refeições de onde vinham os sons fracos mas perceptíveis de uma música lenta e martelada, que ecoava por todas as paredes do enorme hotel.
2
O pano caiu, batendo no soalho do palco com um ruído surdo e pesado de ferro.
A Grussinskaia, que até esse instante girara com leveza de flor por entre as bailarinas, veio se arrastando, ofegante, por trás do primeiro bastidor. Com ar estonteado, apoiou a mão trêmula no braço de um maquinista e soltou o ar dos pulmões, como se estivesse ferida. O suor corria-lhe ao longo das rugas sob os olhos. Os aplausos, fracos como uma chuva distante, avivaram-se de repente, o que significava que o pano abria de novo. Um homem levantava-o com grande esforço, enrolando-o com grandes impulsos de manivela. A Grussinskaia reabriu o seu sorriso, como uma máscara de papelão, e avançou dançando, fazendo curvaturas ao chegar às gambiarras.
Gaigern, que se aborrecera muito, bateu três ligeiras palmas, por pura amabilidade, e esgueirou-se por entre as filas da plateia, dirigindo-se para uma das saídas cheias de gente. Nas primeiras filas e nas galerias, alguns espectadores mais pertinazes gritavam e batiam palmas; mais para trás, todos se apertavam, empurrando-se para chegar quanto antes ao vestiário. Para a Grussinskaia, lá da cena, parecia uma fuga, um pequeno pânico, esse rápido desfilar de peitilhos brancos, de dorsos negros dos senhores, de capas de brocado — todos numa só direção. Ela sorriu, atirando a cabeça para trás, com o pescoço esguio como uma haste de flor; deu uns pulinhos para a direita e para a esquerda e abriu os braços, saudando o público que se preparava para retirar-se. O pano caiu, batendo no solo. O corpo de baile continuava na sua pose, tinha disciplina.
— Levantem o pano! Levantem o pano! — gritava histericamente Pimenoff, o mestre de ballet, que era o encarregado de preparar o êxito dos espetáculos.
A coisa ia devagar, e o homem da manivela fazia esforços desesperados. Algumas pessoas na plateia, que já estavam perto das portas, detiveram-se ainda um momento, com um sorriso amarelo, batendo palmas. Num camarote também aplaudiam. A Grussinskaia apontava para as bailarinas, ninfas de tarlatana agrupadas em seu redor; aparentando a maior modéstia, ela recusava esses fracos aplausos, cedendo-os às insignificantes jovenzinhas. Algumas pessoas que já haviam vestido seus agasalhos surgiram às portas, assistindo, com ar divertido, àquela manifestação tardia de entusiasmo. Witte, o velho maestro alemão, lá embaixo, na orquestra, fazia gestos súplices aos músicos, implorando-lhes que lhe obedecessem; eles já estavam guardando seus instrumentos nas caixas.
— Ninguém saia! — murmurou ele cheio de angústia, trêmulo e suando. — Ninguém saia, por favor, senhores. Talvez tenhamos de repetir a Valsa da primavera!
— Não tenha receio — disse um fagote. — Hoje não há extras. Vai ficar nisso. Então, não lhe disse?
Realmente, os aplausos pingavam. A Grussinskaia ainda pôde ver a bocarra negra e aberta do músico, a rir-se lá embaixo, antes que o pano a separasse dos espectadores. De súbito, os aplausos cessaram, e o repentino silêncio se alargou sinistramente na sala; só se ouvia o ruído que as jovens de tarlatana faziam, com as pontas de seda de seus pés batendo no chão.
— Podemos ir? — murmurou em francês Lucille Lafite, a primeira-bailarina, dirigindo-se às costas trêmulas e pintadas de branco da Grussinskaia.
— Podem. Vão-se embora. Todas. Vão para o diabo! — respondeu a Grussinskaia em russo. Tinha vontade de gritar, mas a voz lhe saiu da garganta num misto de tosse e soluço. Intimidadas, todas saíram correndo. Na ribalta as luzes se apagaram, e durante alguns segundos a Grussinskaia ficou sozinha em cena, a tiritar, sob a iluminação cinzenta de ensaio.
De repente ouviu-se um ruído, como o estalido de um galho partindo-se, o estrupido das patas de um cavalo, um ruído inconfundível — lá na sala deserta, uma pessoa aplaudia sozinha, completamente sozinha. Não havia acontecido milagre nenhum; era Meyerheim, o empresário, que, com a audácia do desespero, procurava salvar o espetáculo. Batia palmas, com suas mãos acústicas, com a máxima energia, aparentando frenético entusiasmo, e ao mesmo tempo lançava olhares iracundos às galerias, pois a claque, esquecida de seus deveres, havia abandonado cedo demais o seu posto. O Barão Gaigern foi o primeiro a ouvir esse ruído isolado, e voltou, curioso e com vontade de zombar. Tirou depressa as luvas e juntou-se freneticamente aos aplausos. E, ao voltarem apressadamente do vestiário uns sujeitos da claque e alguns curiosos, ele chegou a bater os pés, como um estudante entusiasmado. Alguns sujeitos trocistas se reuniram a ele, formando-se um pequeno e divertido ajuntamento, e, finalmente, perto de sessenta pessoas batiam palmas, chamando pela Grussinskaia.
— Pano! Pano! — gritava Pimenoff com voz esganiçada; a Grussinskaia corria de um lado para outro no palco, como uma histérica.
— Michael! Onde está o Michael? Michael tem que sair comigo! — gritou ela a rir-se, com as pestanas cheias de pasta azul, de suor e de lágrimas. Witte empurrou o bailarino Michael para diante dos bastidores; sem fitá-lo, a Grussinskaia pegou a sua mão, tão escorregadia de suor que era difícil segurá-la; diante da caixa do ponto curvaram-se com a harmonia perfeita de corpos acostumados a um trabalho em conjunto. Mal o pano caiu, a Grussinskaia principiou a armar um escândalo, dando largas à sua excitação.
— Você estragou tudo! A culpa foi sua! Vacilou na terceira arabesque! Nunca me teria acontecido uma coisa dessas com o Pimenoff!
— Misericórdia, eu? Mas Gru! — murmurou Michael com seu cômico acento báltico, em tom suplicante. Witte arrastou-o depressa para trás do bastidor 3 e tapou-lhe a boca com sua mão de velho.
— Pelo amor de Deus, não a contradiga; deixe-a! — murmurou ele.
A Grussinskaia recebeu os aplausos sozinha. Nos intervalos destes, quando ia para trás dos bastidores e o pano ainda se conservava descido, ela se punha a vociferar. Amaldiçoava a todos com as mais espantosas maldições, xingava-os de porcos, cães, bando de devassos; chamava Michael de bêbado e Pimenoff de coisa pior ainda, ameaçava despedir o corpo de ballet, que já se ausentara, e jurava ao maestro Witte, que estava presente, calado e desolado, que se suicidaria pelos seus andamentos errados. Enquanto isso, o coração voava-lhe dentro do peito como um passarinho exausto e sem rumo, e as lágrimas corriam-lhe ao longo do sorriso de cera e pintura. Finalmente, o chefe dos eletricistas pôs fim a essa cena, baixando uma grande alavanca; ficou tudo às escuras, e um homem impaciente começou a cobrir com panos cinzentos as filas de cadeiras. O pano ficou descido, o homem da manivela foi para dentro.
— Quantas chamadas, Suzette? — perguntou a Grussinskaia a uma mulher idosa que estava nos bastidores e a ajudou a vestir um casaco de lã desbotado e fora de moda, e em seguida abriu diante dela a porta de ferro do palco. — Sete? Eu contei oito. Você acha que foram sete? É um bom número, não acha? Mas terá sido mesmo um sucesso?
Ouviu com impaciência os protestos de Suzette, que assegurava ter sido um sucesso enorme, quase como em Bruxelas há três anos. Madame se lembrava? Sim, madame se lembrava. Como se fosse possível esquecer um grande sucesso! Madame, sentada no pequeno camarim, olhava fixamente a lâmpada elétrica envolta em uma rede, que pendia sobre o espelho, e recordou-se de tudo. "Não, não foi como em Bruxelas", pensou, taciturna e morta de cansaço. Estirou os membros banhados em suor; como um pugilista estendido no seu canto após um exaustivo round, ficou largada, enquanto Suzette friccionava-a, esfregava-a e tirava-lhe a pintura. O camarim era um canto triste, aquecido demais, sujo, estreito; cheirava a roupa velha, a ranço, a pintura, a centenas de corpos extenuados. Talvez a Grussinskaia tivesse dormitado alguns segundos, porque esteve a caminhar pelo átrio de sua villa do lago de Como — mas a seguir viu-se de novo ao lado de Suzette, às voltas com o penoso descontentamento provocado pelo espetáculo dessa noite. Não tinha sido um grande sucesso, não. Não tinha sido um grande sucesso. E que mundo cruel e incompreensível era esse, que começava a negar a uma artista como a Grussinskaia um grande sucesso?!
Ninguém sabia a idade da Grussinskaia. Alguns velhos senhores russos, aristocratas imigrados que moravam em quartos mobiliados em Wilmersdorf, diziam conhecer a Grussinskaia há quarenta anos — o que era seguramente um exagero. Mas, sem dúvida, seu êxito internacional já datava de vinte anos, e vinte anos de êxito e celebridade representam um tempo infinito.
Às vezes, a Grussinskaia dizia ao velho Witte, seu amigo e companheiro desde o início da sua carreira:
— Witte, sou uma criatura condenada a arrastar uma carga excessiva, sem descanso, a vida inteira.
E Witte respondia, cheio de gravidade:
— Por favor, Elisavieta Alieksandrovna, nunca deixe perceber isso; nunca fale de carga e de peso. O mundo inteiro se fez pesado. Sua missão, Elisavieta, permita-me que o diga, é conservar-se leve. Conserve-se como está! Não mude, seria uma catástrofe mundial.
A Grussinskaia não mudava. Pesava quarenta e oito quilos desde os dezoito anos, e uma boa parte do seu êxito e das suas aptidões era devida a esse fato. Seus partners, habituados à sua leveza, não conseguiam dançar com nenhuma outra bailarina. Seu pescoço, seu corpo, que parecia consistir apenas em articulações, o oval de seu rosto continuavam sempre os mesmos. Seus braços se moviam como disciplinadas asas. Seu sorriso, sob as pálpebras alongadas, era por si só uma obra de arte. Todas as energias da Grussinskaia se concentravam numa única finalidade: conservar-se fiel a si mesma. E ela não notava que era isso precisamente o que começava a aborrecer o público...
Talvez esse público a apreciasse como ela era na realidade, como era nesse momento, sentada no seu camarim: uma pobre mulher, velha, delicada, extenuada, de olhar tristonho, e a carinha consumida e torturada de um ente humano e real. Quando a Grussinskaia não tinha sucesso — e isso costumava acontecer agora, de vez em quando — encolhia-se toda, transformava-se de súbito numa mulherzinha velhíssima, de setenta anos, de cem anos, mais velha ainda. Lá no fundo do camarim, Suzette lamentava-se em voz baixa, em francês, diante do lavatório cinzento, encravado na parede; a torneira de água quente não funcionava muito bem. Afinal ficaram prontas as compressas úmidas para o rosto, e a Grussinskaia entregou-se à sua ardência, enquanto Suzette lhe tirava o colar de pérolas do pescoço, essas pérolas de uma beleza inverossímil, célebres no mundo inteiro, que datavam da época dos grão-duques.
— Pode guardar o colar; não quero mais usá-lo hoje — disse a Grussinskaia, abandonando-se, com a fisionomia concentrada, às pontas dos dedos, às essências de cânfora e à pintura do seu apagado factótum. Tinha de ir ainda a uma ceia que o Clube do Proscênio oferecia em sua honra, e por isso ela se fazia pintar com tanta compunção, como um antigo guerreiro mexicano antes de enfrentar o inimigo.
No corredor, diante do camarim, Witte ia e vinha, como uma paciente sentinela a montar guarda, enquanto arranhava a tampa do relógio, que usava no bolso do fraque, à moda antiga. Em seu rosto envelhecido de músico, liam-se a preocupação e a aflição. Pouco depois veio juntar-se a ele o mestre de ballet, Pimenoff, e finalmente chegou Michael, com as pestanas lustrosas de vaselina, e cheio de pó de arroz.
— Vamos esperar a Gru? Vamos juntos? — perguntou Michael, enchendo-se de coragem.
— Eu o aconselharia a evaporar-se, meu rapaz — disse Witte —, mesmo que você não tivesse vacilado cem vezes, o aconselharia a fazer isso.
— Mas eu não vacilei, Pimenoff! Acha que eu vacilei? — exclamou quase chorando. Pimenoff encolheu os ombros. Era também um homem idoso, com um nariz grande e característico, e tinha um fraco pelas gravatas plastrão da época de Eduardo VII. Ele próprio não dançava mais, apenas dirigia os ensaios e preparava os divertissements para a Grussinskaia. Eram coreografias clássicas, muito difíceis, cheias de pássaros, flores e alegorias, tudo dançado em pontas.
— Vá deitar-se, evite encontrar-se com a Gru, hoje. Lucille também já sumiu — disse ele, prudentemente.
Michael, com expressão de zanga, bateu à porta do camarim da Grussinskaia.
— Boa noite, madame! — exclamou ele. — Não os acompanho hoje. Quando é o ensaio amanhã?
— Naturalmente que você vai conosco. Tem que sentar-se ao meu lado na mesa! — exclamou lá de dentro a Grussinskaia. — Não me faça ficar triste, sweetheart! Sobre o ensaio vamos falar ainda. Espere por mim, ainda não estou pronta.
— Tiens... já passou a crise — murmurou Witte com um gesto de "já não está mais aqui quem falou".
— Larmes, oh, douces larmes! — declamou Pimenoff, com o queixo metido na gola do sobretudo.
— Não quero que o meu pior inimigo dance pas de deux com a Gru! Misericórdia, meu caro! — finalizou Michael, com seu cômico acento báltico.
A Grussinskaia, no camarim, punha perfume atrás da orelha. "Michael tem que estar lá", pensou ela. "Estou sempre rodeada de velhos: Pimenoff, Witte, Lucille, Suzette." De repente, sentiu uma raiva enorme do chapeuzinho surrado que Suzette usava, colocando-o sobre os cabelos cor de cinza, caído para trás. Com um gesto brusco recusou seu auxílio e saiu para o corredor, levando no braço a capa preta e dourada, com arminho. Virou-se de costas para Michael, para que ele lhe colocasse a capa nos ombros. Ele a colocou, com seu jeito habitual, delicado e feminino. Era uma pequena cerimônia de reconciliação; mais do que isso: era um tênue e secreto anseio da Grussinskaia pela companhia desse jovem. Michael era jovem, porque a Grussinskaia estava sempre mudando de primeiro-bailarino, cheia de nervos e de exigência com seus partners pessoais. O resto da troupe envelhecera com ela.
Aliás, ela agora tinha uma aparência magnífica, linda, estranha, exuberante e elástica.
— Elisavieta está encantadora! — disse Witte, com uma reverência do século passado. Ele se habituara a expressar-se num estilo complicado, em primeiro lugar para ocultar seu amor por Gru, por quem se apaixonara desde a mocidade, e depois porque tinha de traduzir logo suas frases, do alemão para o russo ou para o francês. A Grussinskaia também passava constantemente de uma língua para outra, do tu russo ou francês ao você inglês, e também conhecia o alemão; sabia traduzir as principais grosserias e amabilidades para qualquer língua. Nem sempre era fácil seguir sua conversa. Quando entrou no carro, por exemplo, perguntou:
— Você acha que a culpa é das pérolas, Witte?
— As pérolas? Por quê? Culpa de quê? — perguntou Witte, perplexo. A segunda pergunta foi feita apenas por cortesia, porque ele sabia muito bem a que se referia a Grussinskaia.
— Mon Dieu, por que justamente as pérolas? — perguntou também Pimenoff.
— Pois é, o colar de pérolas. Elas me dão azar, essas pérolas — disse ela expressivamente, como uma criança.
Witte batia com uma luva na outra: usava luvas glacées, fora de moda.
— Mas querida!... — disse ele abismado.
— Como? — perguntou Pimenoff. — Durante toda a sua vida essas pérolas lhe deram sorte, eram a sua mascote, o seu talismã! Você não podia dançar sem esse colar! E agora, de repente, as pérolas lhe dão azar? Que ideia, Gru!
— Pois é. Elas dão azar. Já percebi isso há muito tempo — disse Gru, com uma ruga de teimosia entre as sobrancelhas pintadas. — Não sei explicar muito bem, mas pensei muito sobre isso. Enquanto o Grão-Duque Serguei vivia, elas me deram sorte. Voilà. Desde que o assassinaram... azar, azar, azar! A ruptura do tendão no meu tornozelo, o ano passado, em Londres. O déficit em Nice. E, de um modo geral, azar! Não usarei mais esse colar quando dançar. Fiquem sabendo!
— Não vai usá-lo mais? Mas querida, Gru querida, você não pode aparecer em público sem as pérolas, você acreditou a vida inteira que não podia aparecer em cena sem essas pérolas, e agora, de repente...
— Pois é — disse a Grussinskaia —, era uma superstição minha.
Witte principiou a rir.
— Lisa! — exclamou ele — pombinha, minha queridinha, você é mesmo uma criança!
— Vocês não me compreendem. Você não me entende absolutamente, Witte. As pérolas já não me ficam bem. Não devo usá-las mais. Antigamente era diferente. Antigamente ... em São Petersburgo, em Paris, em Viena... era preciso usar joias. Uma bailarina tinha que ter joias e ostentá-las. Agora... quem é que usa um colar de pérolas verdadeiras? Eu sou mulher, sinto melhor essas coisas, tenho flair para essas coisas... Michael, você está dormindo? Fale alguma coisa também!
Michael, sem mover seu corpo delicado, disse, num francês lento:
— Quer saber o que penso, madame? Devia dar seu colar de pérolas às crianças pobres, aos aleijados, ou qualquer coisa parecida, madame.
— O que você está pensando? O colar de pérolas? Dar as pérolas? —- exclamou a Grussinskaia em russo, e a expressão pozertvovati parecia a melodia de alguma canção.
— Chegamos — disse Pimenoff, brecando de súbito.
— En avant! — ordenou a Grussinskaia. — Sejamos elegantes! Alegremo-nos!
Abriu-se uma porta.
Witte, subindo a escada atrás da bailarina, declarou:
— Elisavieta Alieksandrovna só tem um defeito: a paixão pelo imperativo categórico.
A Grussinskaia começou a rir, radiante como uma lâmpada acesa de repente, e assim, alegre e sorridente,entrou no clube, onde trinta fraques, de pé, esperavam pela sua entrada.
O Barão Gaigern tinha sido o último a deixar de aplaudir, mas assim que teve a certeza de que o pano não ia subir mais saiu do teatro com a fisionomia séria de um homem apressado. Não estava mais chovendo, e no asfalto úmido da Kantstrasse se refletiam numerosas luzes brancas e amarelas; o bonde passava ligeiro por entre as casas, guardas davam sinal para a partida, indivíduos desocupados abriam as portas dos automóveis às capas de pele. Gaigern foi andando pela calçada por entre a multidão, infringiu com perigo de vida as regras do trânsito e continuou a caminhar rapidamente por uma rua mais escura, a Fasanenstrasse, onde o seu carro — um modesto carrinho de quatro lugares — estava estacionado. O chofer fumava um cigarro.
— Então? — perguntou Gaigern, com as mãos nos bolsos do impermeável azul.
— Ela já mudou de chofer — respondeu o motorista. — Agora é um inglês. Ela o pescou em Nice, onde o patrão dele o deixou, após arruinar-se. Almocei com ele. Esse não abre a boca para dizer nada.
— Pela centésima vez eu lhe digo para tirar o cigarro da boca quando eu falar com você — disse Gaigern, dissimuladamente.
— Está bem — disse o chofer, jogando fora o cigarro. — Agora ele foi ao teatro, para levá-la ao Clube do Proscênio; daqui a pouco deve chegar lá. Quando deverá ir buscá-la, ainda não sabe.
— Ainda não sabe? — repetiu Gaigern, pensativo, batendo com as luvas na palma da mão. — Bem, está certo. Vou até lá de novo. Vá com o carro para o teatro e espere defronte da entrada.
Gaigern foi-se aproximando de novo do teatro, com a mesma fisionomia de homem ocupadíssimo. Ali, tudo agora estava vazio e vulgar: o enorme luminoso se apagara, as tabuletas olhavam inexpressivas. A entrada do palco não dava para a rua, mas para um pátio em cujos muros de incêndio a hera úmida cintilava. Gaigern se esgueirou por entre uns sujeitos que estavam vagabundeando por ali, e ficou a olhar para a porta de vidro fosco onde a Grussinskaia devia aparecer. Primeiro saíram os bombeiros, depois os maquinistas, de ombros largos, fumando, e em seguida passou algum tempo sem que ninguém aparecesse. Um pouco depois a porta cuspiu para o pátio uma pequena troupe de jovens bailarinas, criaturas magrinhas, com peliças baratas, tagarelando em francês, russo e inglês. Gaigern sorriu, depois que elas passaram; muitas já conhecia de Nice e Paris. Quando sorria, seu lábio superior encurtava, como acontece com os garotinhos, o que o tornava encantador e agradava a muitas mulheres.
"Meu Deus, como hoje isto está demorando de novo", pensou ele, impaciente, quando o pátio dos fundos do teatro adormeceu por completo. Passou-se quase um quarto de hora, até que o chofer se mexeu, no carro da Grussinskaia, como um cão que está sonhando, e ligou o motor. Gaigern, que conhecia o sinal, encolheu-se, ocultando-se na sombra do muro. Quando a Grussinskaia apareceu, finalmente, ele estava invisível.
— Espere-me aqui, Suzette — disse ela voltando-se para a porta —, mando logo o Berkley de volta. Ele a levará para o hotel.
Vestia uma capa magnífica, muito vistosa, dourada e preta, com arminho, que a envolvia até o queixo; a bailarina estava agora tão bonita como nas fotografias em que aparecia nos jornais ilustrados do mundo inteiro. Gaigern, do seu esconderijo, olhou-a com atenção. Quando ela pôs o pé prateado no estribo do carro, a gola de arminho abriu-se, e Gaigern pôde ver seu pescoço, seu célebre pescoço, longo e alvo, semelhante à haste de uma flor, que nessa noite, sobretudo, parecia mais nu do que nunca. Satisfeito, aspirou o ar pelos dentes; nunca havia desejado nada com tanto ardor quanto ver esse pescoço nu...
Mal o automóvel partiu, Suzette apareceu no pátio escuro e deserto seguida pelo porteiro, que fechou a entrada do palco. Conservava a aparência de cópia velha e apagada da sua patroa, pois usava os vestidos e os chapéus velhos da Grussinskaia, quando já haviam passado de moda há muito tempo. Neste momento arrastava-se pelo pátio, metida numa saia comprida, em forma de sino, e usando um casaco desbotado, com uma espécie de gola à Werther. Em cada mão carregava uma mala: na esquerda, uma valise grande e chata; na direita, uma pequena suitcase de verniz preto. Andando com dificuldade, foi até a porta gradeada que separava da rua o pátio do teatro e ali ficou a caminhar de um lado para o outro, sob a luz forte da lâmpada elétrica. Pela cabeça de Gaigern passaram, durante esses poucos segundos, alguns velozes pensamentos, e ele se curvou, no seu canto sombrio, com os nervos tensos, como a se preparar para um salto ou para iniciar uma corrida. Mas nada fez, porque o maldito Berkley, fazendo uma magnífica curva, aproximou-se, e Suzette subiu no carro cinzento. Na Gedaechtniskirche bateram onze e meia, e Gaigern, que se esquecera de respirar um minuto, aspirou profundamente o ar da noite. Assobiou, e seu carrinho surgiu incontinenti.
— Vamos ao hotel, siga-o depressa! — exclamou, sentando-se rápido ao lado do chofer.
— Então? Há esperanças? — perguntou este, que já estava falando de novo de cigarro na boca.
— Esperemos — respondeu Gaigern.
— Mais uma noite inteira à espreita no carro, hein? E cá o degas não precisa dormir mais, não é? — disse o chofer.
Gaigern esticou o indicador, mostrando o carro cinzento que fazia a pequena curva em redor da casinhola iluminada do guarda, na Hitzigbruecke.
— Vá seguindo — disse; o chofer pisou no acelerador; não havia mais guardas na ponte. Berlim borbulhava sua vida noturna pelas ruas, sob um céu vermelho, completamente sem estrelas, sob a claridade de uma noite de primavera.
— A gente até perde a vontade — continuou o chofer com as suas considerações. — Essa história está dando mais despesas do que o lucro que poderá vir. No fim só vai dar prejuízo.
— Faça o que quiser — replicou o barão amavelmente, e seu lábio superior tornou-se minúsculo ao pronunciar estas palavras. — Se você não está contente, pode receber o pagamento e seguir o seu caminho. É um favor.
— Não estou falando por mal — disse o chofer.
— Nem eu — respondeu o barão. Depois ficaram calados até chegar ao hotel.
— Estacione na entrada 6 — observou Gaigern, ao saltar do carro; na porta giratória, que levava do hall de entrada ao grande hall, encontrou-se com um senhor girando em sentido contrário. Gaigern deu um pontapé impaciente na porta e fez com que o carrossel de vidro, com o seu conteúdo, fosse para a frente.
— É nessa direção que ela gira! — disse ele a Kringelein.
— Obrigado. Muito obrigado — replicou Kringelein, que queria sair e ficou de novo girando lá dentro.
Gaigern correu a buscar sua chave, voou ao elevador e, no primeiro andar, pediu ao maneta que esperasse um pouco, pois voltaria em um segundo. Disparou pelo corredor até o seu quarto, o 69, atirou o chapéu e a capa, tirou de um vaso um lindo ramo de orquídeas e correu com ele para o corredor.
— Faça o favor de dizer ao ascensorista que não preciso mais dele — disse a uma criada de quarto que se arrastava ao longo das portas, caindo de sono. A empregada deu o recado ao maneta, que tocou o elevador, resmungando. Quando o elevador chegou ao andar térreo, Suzette já o estava esperando com suas duas malas, para subir. E era isso justamente o que Gaigern queria.
Ao entrar no quarto 68, o quarto da Grussinskaia, Suzette viu atrás de uma palmeira no corredor um bonito jovem, cuja fisionomia tímida e suplicante não lhe era desconhecida.
— Boa noite, mademoiselle. Permita-me dizer-lhe uma palavrinha — disse ele no francês elegante, um tanto antiquado, que se ensina nos colégios de jesuítas. — Só uma palavrinha: madame não está no seu quarto?
— Não sei, cavalheiro... — respondeu Suzette, que era sabida.
— É só porque... desculpe o atrevimento... mas eu gostaria de colocar no quarto de madame uma florzinha para ela. Sou um admirador, estive hoje no teatro... e não perco os seus espetáculos de dança. Olhe, eu li num jornal que madame gosta destas catleias... é verdade?
— É — respondeu Suzette. — Ela gosta de orquídeas. Em nossa estufa de Tremezzo temos uma pequena coleção delas.
— Ah! Posso então entregar-lhe meu raminho e pedir-lhe o favor de colocá-lo no quarto de madame?
— Hoje recebemos uma imensidade de flores. O embaixador francês mandou uma cesta — disse Suzette, ainda amargurada pelo discutível sucesso da noite, olhando com bastante simpatia aquele jovem tímido. Mas não podia pegar o ramo porque estava com as duas mãos ocupadas. Teve até dificuldade em passar a chave para a mão direita a fim de abrir a porta do 68. Gaigern, vendo o apuro em que ela se encontrava, aproximou-se solícito.
— Permita-me! — disse ele, fazendo menção de pegar as duas malas. Suzette entregou-lhe a mala grande. Mas conservou consigo a pequena suitcase, afastando-se num movimento instintivo. "É ali então que se encontram as célebres pérolas", pensou Gaigern, sem dizê-lo, é claro. Abriu a porta externa, depois a interna, e franqueou com passos tímidos e ao mesmo tempo entusiásticos o limiar do quarto onde a Grussinskaia estava hospedada.
O quarto era banal, e estava arrumado com uma elegância empoeirada, como todos os outros. Fazia frio ali dentro, flutuava um perfume estranho e acre, e um aroma de coroas de folhagem, e a porta que dava para o pequeno terraço estava aberta. O cortinado do leito estava aberto, e sobre o tapete encontravam-se uns chinelinhos já bem usados e gastos: chinelos de uma mulher acostumada a dormir sozinha. Gaigern, parado à porta, teve um furtivo e terno sentimento de piedade por esses chinelinhos resignados, junto ao leito de uma linda e célebre mulher. Entrou no quarto segurando seu ramo de orquídeas, com um gesto de súplica. Suzette colocou a suitcase sobre a mesa de toilette, entre os três espelhos, e apanhou finalmente as flores.
— Obrigada, monsieur — disse ela. — Há algum cartão com as flores?
— Que ideia! Eu não sou tão atrevido — disse Gaigern. E ficou a olhar para o rosto enrugado e cor de marfim de Suzette, que mostrava estranha semelhança com o da patroa. — A senhora está cansada? — perguntou ele. — E madame com certeza vai voltar tarde. Precisa esperar por ela?
— Não. Madame é boa pessoa. Diz-me todas as noites: "Pode ir dormir, Suzette, não preciso de você". Mas madame precisa de mim, sim. Vou esperar por ela. Madame nunca chega depois das duas, porque começa a trabalhar às nove horas da manhã. E que trabalho o dela, monsieur — oh, mon Dieu! Não, madame é muito boa.
— Ela deve ser um anjo! — observou Gaigern em tom respeitoso. "Só há um quarto de banho sem janelas entre o 68 e o 69", pensou ele ao mesmo tempo. Seu olhar, vagando por todos os lados, caiu no enorme bocejo de Suzette.
— Boa noite e mil vezes obrigado, mademoiselle — disse ele modestamente. Depois, sorriu e desapareceu.
Suzette fechou as duas portas assim que Gaigern saiu, colocou as orquídeas na garrafa de água e encolheu-se num fauteuil, como uma gata friorenta.
3
Antes da uma da manhã há poucos pares de sapatos diante das portas dos quartos do Grande Hotel. Todo mundo saiu para gozar a noite fervilhante, barulhenta e exuberante de luz elétrica da grande cidade. A criada de quarto da noite boceja a um canto, no pequeno office, ao fim do corredor; em cada andar há uma criada exausta, virtuosa e murcha. Os boys revezaram de turno às dez horas, mas a nova guarnição também tem, sob os bonés colocados de lado, descuidadamente, os mesmos olhos febris e brilhantes de crianças que não foram cedo para a cama. O encarregado do elevador, manda e mal-humorado, foi substituído, à meia-noite, por um outro maneta não menos mal-humorado. Senf entregou também seu posto ao porteiro da noite, e dirigiu-se ao hospital sem refletir, lá pelas onze horas, com os dentes batendo de excitação. O fato de ele ter sido mandado para casa por uma irmã-porteira pouco amável, com a observação de que o nascimento da criança podia demorar ainda vinte e quatro horas, é assunto particularmente seu, e não tem nada a ver com o hotel. No hotel, a estas horas, estão se divertindo a valer. No pavilhão amarelo estão dançando, o bufê de Mattoni já está bem desfalcado e ele sorri com seus olhos de negro enquanto corta fatias do rosbife e mistura maraschino na salada de frutas gelada. Os ventiladores zunem e cospem o ar viciado para os pátios do hotel, e na sala de leitura, no subterrâneo, estão os choferes falando mal dos patrões, porque não os deixam beber durante o serviço. No hall encontram-se sentados os hóspedes provincianos do Reich, assombrados e levemente aborrecidos com os hóspedes de Berlim, esses senhores de chapéu caído para a nuca, com gestos exagerados, e admirados também com a pintura dos rostos das senhoras. Rohna, que acabava de se esfregar com vinaigre de toilette e ia atravessando o hall, pensou: "É verdade que os nossos frequentadores noturnos não são first class. Mas — que voulez-vous? — só essa gente ordinária é que traz dinheiro para a caixa!"
Pouco antes da uma hora, Herr Kringelein chegou ao bar do hotel, onde se imprensou, exausto, atrás de uma mesinha para observar o mundo com olhos enublados. Para falar a verdade, Herr Kringelein estava completamente exausto, mas era voluntarioso como uma criança no dia do seu aniversário — simplesmente não queria ir para a cama. Além disso, tinha a impressão de já estar dormindo, tudo chegava ao seu cérebro de um modo confuso, como um estado de sonho ou de febre; o alarido e o movimento humano, as vozes, a música, tudo isso estava junto dele e ao mesmo tempo muito distante, absolutamente irreal. O mundo burburinhava de modo estranho, mergulhando-o num estado de bebedeira sem álcool. Certa vez, com a idade de dez anos, Kringelein faltara à escola e fugira, com medo de um ditado, numa manhã quente e cheia de neblina, em direção a Mickenau; depois, deixara as ruas calçadas e ficara a vagabundar pelos campos e, enquanto o sol dardejava seus raios ardentes, deitara-se e adormecera com a cabeça sobre uma almofada de trevo. Chegara a uma sebe à margem do rio e encontrara ali uma quantidade enorme de framboesas, que se pôs a devorar. Nunca mais se esqueceu, em toda a sua vida, do zumbido das grandes moscas dos brejos, que chuparam o sangue de suas pernas e de seus dedos perfumados e sujos do suco das framboesas, que tinha apanhado aos punhados, por entre urtigas e espinheiros. Esse sentimento embriagador de plenitude, o medo, o leve e febril mistério, e a alegria maligna da ação reprovável — essa embriaguez do assaltante, tudo isso ele sentia de novo, entre uma e duas da madrugada, no bar do hotel mais caro de Berlim. De certo modo as martirizantes moscas também se encontravam ali; haviam tomado a forma de números, e davam desagradáveis picadas no cérebro de Kringelein, no cérebro de um modesto guarda-livros que, acostumado a fazer contas durante toda a sua vida, não conseguia agora deixar de fazê-las.
Nove marcos era quanto custava uma porção de caviar, por exemplo. Caviar é uma desilusão, na opinião de Kringelein. Tem gosto de arenque e custa nove marcos. Kringelein sentiu calor e frio ao mesmo tempo, quando se viu sentado diante do carrinho com os hors d’oeuvres, observado por três garçons com ar de poucos amigos.
O menu — vinte e dois marcos, com a gorjeta — ficou intacto, porque seu estômago enfermo sentira náuseas. O borgonha era um vinho grosso e ácido deitado numa espécie de carrinho de criança, como um baby. A gente rica tinha um gosto esquisito, parecia. Kringelein, que não era bobo e gostava de aprender, reparara logo que estava mal vestido e usava as várias espécies de talheres de modo errado. Não pudera livrar-se de um maldito tremor nervoso durante toda a noite, que fora rica em embaraços por causa das gorjetas, de saídas por portas erradas, de perguntas confusas e pequeninos tormentos de toda a espécie. Mas tivera também seus grandes momentos, essa noite de um homem rico. A visita às vitrinas, por exemplo. Em Berlim as vitrinas ficam iluminadas durante a noite, e tudo que existe no mundo se encontra ali aos montões. Poder comprar tudo isso era um pensamento novo, febril e embriagador, para um homem como Kringelein. Foi ao cinema (em Berlim ainda se pode ir ao cinema às nove e meia da noite) e comprou um camarote. Em Fredersdorf também se vai ao cinema, pois três vezes por semana há um espetáculo no Salão Zickenmeier, onde a Associação Coral costuma fazer os seus ensaios. Kringelein estivera lá uma ou duas vezes, e sentara-se com sua Anna, que era muito sovina, bem na frente, no lugar mais barato, entre operários de fábricas; esticava a cabeça para cima, como um parafuso, de olhos fixos nas gigantescas e desfiguradas imagens da tela. O filme, visto de um lugar caro, tinha um aspecto completamente diferente, assemelhando-se à vida real, quando se pode pagar; foi esse um dos grandes conhecimentos adquiridos nessa noite. Kringelein, lembrando-se disso, sacudia a cabeça, sorridente. Um parêntese: esse filme de Saint-Moritz mostrava um mundo maravilhoso, mas que não parecia real. Kringelein, naquele canto do bar, resolveu ir para Saint-Moritz. "Estes montes, lagos e vales não existem só para os Preysing", pensa ele. Seu coração palpita com força quando tal pensamento o assalta de novo. Quando as pessoas têm a certeza de que vão morrer, são assaltadas por uma sensação de liberdade, amarga e triunfante. Kringelein, no entanto, não encontra palavras para exprimir o sentimento que às vezes o assalta, e agora o oprime, obrigando-o a suspirar profundamente para recobrar alento.
— Com licença — disse o Dr. Otternschlag em meio às considerações de Kringelein, metendo os joelhos ossudos por debaixo da mesinha em que estava sentado. — Não há mais nenhum lugar livre neste maldito bar. Local completamente obstruído. Louisiana Flip — disse ele ao garçom, pousando os dedos magros sobre a mesa, entre ele e Kringelein, como dez varetas, frias e pesadas, de metal.
— Que prazer — disse Kringelein com elegância. — Tenho imenso prazer em encontrar de novo o cavalheiro. O senhor foi tão bondoso comigo... não pense que me esqueci. Não, realmente não...
Otternschlag, a quem há muitos anos ninguém chamava de bondoso, e com quem, há dez anos, ninguém, absolutamente ninguém, mantivera uma conversa, sentiu um leve desprezo, misturado com certa satisfação, ouvindo os repetidos agradecimentos do senhor de Fredersdorf.
— Bem, bem... saúde! — disse ele, engolindo de um trago o seu Flip. Kringelein pedira uma bebida qualquer, mas não se atrevia a bebê-la, e apenas provou o líquido cor de cobre na taça de metal niquelado.
— No começo, o movimento daqui nos causa confusão — disse timidamente.
— Hum — replicou o Dr. Otternschlag. — No princípio causa. E não melhora, quando somos hóspedes efetivos. Não. Mais um Louisiana Flip.
— Na realidade, tudo é diferente do que imaginamos — respondeu Kringelein, a quem o coquetel forte deixara meditabundo. — Hoje em dia já não se vive na província como se estivéssemos fora do mundo. Lemos os jornais. Mas na realidade é bem diferente. Eu sei, por exemplo, que as banquetas do bar são altas. Mas não acho que sejam tão altas assim. E o negro ali adiante é o mixer, isso eu já sei; mas não é uma coisa tão esquisita, quando ele está perto de nós, apesar de ser o primeiro negro que vi na minha vida. Mas não é nada esquisito. Fala até alemão, e poderíamos pensar que ele está apenas pintado de preto.
— Não, não, é um negro de verdade. Mas não e muito competente. Quem quiser bebidas que façam dormir precisa esperar muito.
Kringelein prestou atenção à confusão de vozes, ao tilintar dos vidros, ao sussurro das pessoas e às gargalhadas das mulheres na frente do bar.
— Essas mulheres não são moças de bar, não é? — perguntou. Otternschlag voltou para ele o lado perfeito do rosto.
— O senhor está sentindo falta do elemento feminino? — perguntou. — Não, essas não são moças de bar; isto aqui é um local sério, respeitável. Só mulheres acompanhadas por cavalheiros. Não são moças de bar, mas também não são senhoras. O senhor está procurando companhia?
Kringelein pigarreou.
— Obrigado, nem penso nisso. Mas se eu quisesse, já teria companhia para hoje. Sim senhor. Pois é. Uma moça me chamou para dançar.
— Ah, é? Ao senhor? Onde? — perguntou o Dr. Otternschlag, entortando metade da boca, num sorriso.
— Eu estava num cassino, não muito longe da Potsdamerplatz — observou Kringelein, procurando imitar o tom desembaraçado e mundano de Otternschlag. — Fantástico, fantástico, é o que lhe digo. Que iluminação feérica! — procurou uma palavra mais expressiva, mas depois se contentou com essa mesmo. — Uma iluminação feérica. Pequenas fontes luminosas, que sempre mudavam de cor. Caro, naturalmente. É preciso beber champanha. Cobram, por uma garrafa, vinte e cinco marcos. Infelizmente eu não aguento beber muito, não tenho muita saúde, o senhor compreende.
— Já sei. Já percebi. Quando alguém usa um colarinho dois centímetros mais largo do que o pescoço, não precisa me dizer mais nada.
— O senhor é médico? — perguntou Kringelein, sentindo um calafrio e um susto, e metendo, sem querer, dois dedos entre o colarinho. — É, está largo demais...
— Fui. Tudo passou. Fui mandado pelo governo para a África do Sul. Clima horroroso. Preso em setembro de 14. Campo de concentração em Nairóbi, na África Oriental Britânica. Horrível. Voltei à pátria porque dei a minha palavra de que nunca mais seria soldado. E, como médico, participei dessa grande porcaria até o fim. Granadas no rosto, e bacilos de difteria no ferimento, de que não me livrei até 1920. Dois anos no isolamento. Pois é. Basta. Ponto final. Tudo pertence ao passado. Quem é que se interessa por essas coisas?
Kringelein, assustado, não desprendia os olhos daquele homem atormentado, cujos dedos rígidos e inanimados estavam pousados sobre a mesa, separando-os. O bar acompanhava a sua conversa com uma espécie de ruído musical; adivinhava-se que tocavam um charleston no pavilhão amarelo. Kringelein pouco compreendera do despacho telegráfico de Otternschlag. Não obstante, subiu-lhe aos olhos uma aguinha quente. Ele se envergonhava de chorar com tanta facilidade, depois que fizera a operação, que aliás não adiantara nada.
— E o senhor, não tem ninguém que... quero dizer... O senhor vive sozinho? — perguntou, sem jeito. E pela primeira vez Otternschlag reparou em sua voz aguda, de timbre agradável, a voz de um homem, uma voz que vibrava, que procurava, que tateava... Estendeu seus dedos frios na mesa e retirou-os em seguida. Kringelein, pensativo, olhava para as inúmeras cicatrizes esbranquiçadas do rosto de Otternschlag, mas de repente abriu-se o começou a falar.
Sozinho — ele sabia o que isso significava, foi mais ou menos o que ele disse; também ele vivia sozinho em Berlim, de um modo geral. Cortara todos os laços, desligara-se de diversos vínculos que o prendiam — usava modos elegantes de expressar-se — e agora estava em Berlim. Quando se vivera em Fredersdorf, ficava-se um pouco perdido numa grande cidade. Ele conhecia pouco a vida, mas agora queria conhecê-la, conhecer a verdadeira vida, a vida propriamente dita, com V maiúsculo, e era para isso que estava ali naquele momento.
— Mas — disse Kringelein —, onde está a verdadeira vida? Eu ainda não a descobri. Estive no cassino, estou no hotel mais caro de Berlim, mas não é só isso o que eu quero. Desconfio de que a vida real, verdadeira, a vida propriamente dita, existe num outro lugar, e tem um aspecto bem diferente. Quando não fazemos parte dela, não é tão fácil atingi-la, o senhor compreende?
— E o que imagina o senhor que a vida seja? — replicou o Dr. Otternschlag. — Existirá mesmo essa vida que o senhor imagina? A coisa propriamente dita existe sempre num lugar diferente. Quando a gente é jovem, pensa: "mais tarde..." Mais tarde, lamentamos: "antigamente é que eu vivia". Quando estamos aqui, imaginamos a vida na Índia, na América, no Popocatepetl ou em outro lugar qualquer. Mas quando nos encontramos lá, a vida acabou de passar por ali e desaparecer, ficando à nossa espera aqui, aqui mesmo, de onde nós fugimos. Com a vida passa-se a mesma coisa que com os caçadores de borboletas e os lepidópteros que tentam pegar. Enquanto estão voando, são uma maravilha. Depois que os apanham, notam que as cores desapareceram e as asas se estragaram.
Kringelein ouvia pela primeira vez da boca do Dr. Otternschlag algumas frases com certa sequência, e isso o impressionou; mas não acreditou no que ele estava dizendo.
— Não acredito nisso — disse com modéstia.
— Pode acreditar. Tudo se passa como com as banquetas de bar — replicou Otternschlag, que apoiara os cotovelos nos joelhos, e cujas mãos, pendentes, tremiam debilmente.
— Que banqueta de bar? — perguntou Kringelein.
— A banqueta de que o senhor falou há pouco. "As banquetas de bar não são tão altas assim", afirmou o senhor há pouco. "Eu imaginei que as banquetas fossem mais altas." Não é verdade? O senhor não disse isso? Pois é. Nós imaginamos tudo maior do que é, antes de vermos as coisas. O senhor acabou de chegar de viagem e veio lá do seu cantinho de província com ideias absurdas sobre a vida. O Grande Hotel, pensou o senhor. O hotel mais caro de Berlim, pensou o senhor. Deus sabe que milagres o senhor espera de um hotel assim. O senhor vai logo ficar sabendo o que é isto. Este hotel não vale nada, Herr Kringelein. A gente chega, fica algum tempo, depois parte. De passagem, compreende? Para uma estada curta, sabe? O que é que o senhor faz num hotel de luxo? Come, dorme, fica vadiando, faz negócios, flerta um pouquinho, dança um pouco, não é? Bem, e o que faz o senhor da sua vida? Centenas de portas num corredor, e ninguém sabe nada a respeito de quem mora ao lado de seu quarto. Quando o senhor vai embora, chega outro sujeito, deita-se na sua cama, e acabou-se. Fique sentado algumas horas no hall e preste bem atenção: ninguém é real. Essa gente não tem fisionomia própria! É tudo uma ilusão. Estão todos mortos e não sabem. É uma arapuca, um hotel de luxo. Grande Hotel, bella vita, hein? Bem, o importante é ter sempre as malas prontas...
Kringelein ficou pensando algum tempo. Teve então a impressão de ter compreendido o que Otternschlag dissera.
— É. Tem razão — disse ele, concordando. Havia seriedade demais nessa afirmativa. Otternschlag, que caíra numa leve sonolência, levou um susto.
— O senhor deseja alguma coisa de mim? Quer que eu o inicie na vida? Boa escolha a sua, magnífica. De qualquer maneira, estou à sua disposição, Herr Kringelein.
— Eu não queria incomodá-lo — respondeu Kringelein, meio atrapalhado e respeitoso. Pôs-se a refletir. Não se aguentava mais, usando essas frases elegantes. Desde que se encontrava no Grande Hotel, movia-se como se estivesse numa terra estranha. Falava o alemão como uma língua estrangeira, que tivesse aprendido em livros e jornais.
— O senhor foi bondosíssimo — disse. — Eu tinha esperanças... mas para o senhor as coisas são diferentes. O senhor já conhece tudo isso. Já está farto. Eu tenho tudo pela frente... então fico impaciente... tenha a bondade de desculpar.
Otternschlag olhou Kringelein com atenção; até sua pálpebra costurada sobre o olho de vidro parecia olhar.
Olhou-o atentamente e viu uma figura magra, com um terno de funcionário, de um tecido de lã encorpado e grosseiro, já um pouco lustroso. Viu, sob o bigode de diretor de associação, os vincos tristonhos e ansiosos ao lado dos lábios anêmicos. Viu o pescoço descarnado dentro do colarinho duro, muito largo e já no fio, as mãos de escriturário, de unhas maltratadas; viu até as botinas pretas, um pouquinho viradas para dentro, sobre o espesso tapete. E, finalmente, viu os olhos de Kringelein, olhos de um homem, azuis, por detrás do pince-nez de guarda-livros, olhos em que se lia uma enorme ansiedade, um sentimento de espera, de admiração, de curiosidade: sede de vida — e certeza da morte.
Só Deus sabe o calor que irradiou desses olhos sobre a existência amortecida do Dr. Otternschlag. Ou talvez tenha sido por mero aborrecimento que ele disse:
— Está certo. Bem. O senhor tem razão. Oh! O senhor tem toda a razão. Eu já passei por tudo isso. Estou farto, sim. Já passei por tudo, até a última e insignificante formalidade. E o senhor pensa que tem tudo pela frente? Está com apetite, hein? Apetite psíquico, quero dizer. O que é que o senhor imagina? O costumeiro paraíso masculino? Champanha? Mulheres? Correr, jogar, beber? Tiens! E foi cair numa arapuca dessas, logo na primeira noite? E encontrou logo companhia? — disse Otternschlag, impassível, mas agradecido pelo calor do olhar vesgo de Kringelein.
— É, logo, logo. Uma moça queria por força dançar comigo. Uma mocinha linda. Talvez não fosse tão linda... quero dizer, era um pouquinho planta de estufa de cidade grande — disse planta de estufa de cidade grande porque estava habituado a ler isso no jornal Mickenauer Tageblatt —, mas elegantíssima. Bem-educada, também.
— Bem-educada, também! Veja só... veja só! E ficaram amigos? — murmurou Otternschlag.
— Infelizmente eu não sei dançar. É preciso saber dançar, parece ser muito importante isso — respondeu Kringelein, a quem o coquetel dera uma atividade febril, tornando-o tristonho, ao mesmo tempo.
— Muito importante. Muito, mesmo. Importantíssimo — replicou o Dr. Otternschlag com uma estranha vivacidade na voz. — É preciso saber dançar. A união de dois corpos no mesmo compasso, girar abraçado ao par, não é verdade? Não se pode dar tábua em uma moça. É preciso saber dançar. Oh! O senhor tem toda a razão, Herr Kringelein. O senhor se chama Kringelein, não é?
Kringelein olhou, com expressão de curiosidade e inquietação, por baixo do seu pince-nez, a fisionomia de Otternschlag.
— Que quer o senhor dizer com isso? — perguntou, convencido de que estavam zombando dele. Mas Otternschlag continuou sério.
— Pode acreditar-me — afirmou. — Pode acreditar-me, Kringelein: quem não tem atividade sexual é um homem morto. Garçom, quero pagar.
Kringelein também pagou, após essa conclusão abrupta, e levantou-se atrapalhado. Foi andando atrás dos ombros esqueléticos do Dr. Otternschlag, metidos em um smoking estreito, e saiu do bar; foi cambaleando até o porteiro e recebeu sua chave.
— Há cartas para mim? — perguntou Otternschlag ao porteiro da noite. O doutor parecia ter-se esquecido por completo de Kringelein.
— Não — respondeu o porteiro, sem verificar, pois este não era como o outro porteiro, e delicadeza de sentimentos não se adquire imediatamente, mal se coloca na cabeça o boné do fardamento.
— A chave de madame, mademoiselle já a levou — disse ele, em francês, a uma senhora; e Kringelein quase o compreendeu, graças ao seu conhecimento de línguas adquirido na prática de correspondência com o exterior.
A senhora passou por ele, e de sua capa dourada evolou-se um perfume tênue agridoce, quando a gola se abriu junto ao pescoço. Kringelein encarou a senhora, esquecendo as regras da boa educação, e ficou completamente pasmado. A senhora tinha os cabelos pretos e lisos, e usava um diadema na cabeça; suas pálpebras eram oblongas, azul-escuras, com um sombreado também azul-escuro sobre os olhos; as fontes, as faces e o queixo eram cor de marfim, com veiazinhas azuis. A boca, cor de carmim, quase roxa, e bem arqueada, com dois arcos bem altos, que se erguiam quase até as narinas. O cabelo caía de cada lado em dois bandos lisos e pretos, avançando sobre as faces e, no ponto em que terminavam, via-se na pele a sombra de uma leve tonalidade ocre, pintada com extrema arte. A senhora parecia alta, apesar de ser de tamanho médio, devido (Kringelein o percebeu) às proporções perfeitas de seu corpo e ao seu andar adejante. Estava acompanhada por um cavalheiro de idade, baixinho, que trazia um chapéu cilíndrico na mão e tinha o aspecto de um músico.
— Você pode estar no teatro amanhã às oito e meia, querido? — perguntou a senhora, no momento exato em que passava diante de Kringelein. — Eu queria trabalhar meia hora antes de começar o ensaio.
Kringelein, que nunca vira ninguém mais elegante do que esta senhora, ficou a sorrir, deliciado, de tanta admiração, e depois puxou Otternschlag pela manga, soprando-lhe a meia voz:
— Que espécie de mulher é essa?
— O senhor não a conhece, homem de Deus?! A Grussinskaia — disse Otternschlag impaciente, dirigindo-se com a sua perna de pau para o elevador. Kringelein ficou parado no meio do hall.
— A Grussinskaia! — "Ó, diabo, a Grussinskaia!", pensou ele. A fama da Grussinskaia era tão grande que chegara até Fredersdorf. "Ela existe realmente. É assim que ela é. Não é só nos jornais que se leem notícias sobre ela. Ela é de carne e osso. Podemos esbarrar nela, tocá-la e aspirar o seu perfume, pois todo o hall fica perfumado quando ela passa. Preciso escrever ao Kampmann."
Apressou os passos para poder ver de novo a Grussinskaia e contemplá-la com atenção. Em frente ao elevador assistiu a uma pequenina cerimônia de troca de cortesias. Um homem de estatura fora do comum, elegante e bonito, afastou-se da porta do elevador, dando dois largos passos e deixando o caminho livre à Grussinskaia, com um gesto de mão negligente e ao mesmo tempo respeitoso, como se não se tratasse da entrada em um elevador, mas em um reino que um conquistador deposita aos pés da sua soberana. Otternschlag, que do outro lado abria alas sozinho, fez uma careta e rosnou consigo mesmo:
"Sir Walter Raleigh1".
1 Navegador e escritor inglês (1552-1618), favorito de Elisabeth I. (N. do E.)
Kringelein, por seu lado, estava tomado de tal pressa que passou diante de Otternschlag e se meteu no elevador logo atrás dos ombros largos daquele amável jovem. Por essa razão, o seu protetor teve que ficar sozinho, pois a lotação do elevador não podia ultrapassar quatro pessoas. Iam todos muito apertados, naquele pequeno cárcere de vidro e madeira. O jovem bonito, principalmente, encolhia-se no seu canto.
— Ah! Está também em Berlim, barão? — perguntou-lhe o velho maestro Witte. E o Barão Gaigern respondeu:
— Pois é. Sim, senhor. Também estou aqui.
Kringelein ouvia cheio de respeito essa conversa entre pessoas distintas. O maneta girou a manivela e o elevador parou no primeiro andar. Sobre a passadeira cor de framboesa, eles se encaminharam aos seus quartos: na frente, a Grussinskaia; atrás dela, Witte; depois o barão, e por último Otto Kringelein. As portas 68, 69 e 70 foram abertas. Eram duas horas da madrugada, que um velho relógio de mesa, na esquina do corredor, bateu ameaçadoramente. Ouvia-se o ruído abafado da música a tocar a última contradança no pavilhão amarelo.
A Grussinskaia parou um momento entre as duas portas do seu quarto.
— Boa noite, querido — disse ela. Quando estava de bom humor falava em alemão com ele. — Muito obrigada por esta noite. Foi ótima, não foi? Oito chamadas. Ah, diga-me: quem era aquele moço? Nós já não o vimos em algum outro lugar? Em Nice?
— É isso, em Nice, Lisa. Ele se apresentou a mim. Jogamos bridge algumas vezes. Parece ser um grande admirador de Elisavieta.
— Ah! — disse a Grussinskaia. Tirou a mão de baixo da capa e acariciou a manga de Witte, distraidamente. — Estamos com um enorme cansaço. Boa noite, querido. Olhe: é o mais belo homem que já vi na minha vida, esse barão — acrescentou em russo. Disse-o com um tom de voz tão frio, como se falasse apenas de um objeto que se expõe em leilão para ser vendido.
Kringelein, que ficara hesitante à entrada de seu quarto, ouviu, sedento e ansioso de aventuras, aqueles sons estranhos. Tinha a nítida sensação de que o mundo era maior e mais excitante, e mais outras coisas do que ele tinha imaginado em Fredersdorf.
Por fim as portas se fecharam, portas duplas de hotel, que se fecham por detrás das pessoas, deixando-as sozinhas com os seus segredos.
Nem o mais leve resquício de movimento mundano se nota entre as oito e as dez da manhã nas salas e corredores do enorme hotel. Não há luzes acesas nem música tocando, não se veem senhoras — a não ser que se queira considerar um modelo de sedução feminina uma mulher de limpeza que, de avental azul, passa a vassoura no hall, sobre a serragem molhada. Mas Rohna não pensa assim. Já está de novo no seu posto, esse esforçado Conde Rohna, calado, obsequioso, bem barbeado, com a ponta do lenço de seda flamulando discretamente no bolsinho do paletó. Ele acha que só num hotel de segunda classe se faz limpeza na presença dos hóspedes, mas infelizmente isso não é da sua competência, mas sim atribuição da inspetora-chefe. Aliás, os hóspedes nem reparam nisso. Os hóspedes que se encontram no hotel pela manhã são todos senhores sérios, ativos, homens de negócios. Sentados no hall, vendem tudo, oferecendo os produtos em todas as línguas do mundo: papel, algodão em rama, lubrificantes en gros, patentes, filmes, terrenos; vendem planos e ideias, sua energia, seu cérebro e sua vida. Sua primeira refeição é muito farta, e a saleta do café fica cheia de fumaça dos charutos e cigarros, apesar de existir um quadrinho com um tímido aviso, fixado no tapete de damasco amarelo da parede, pedindo aos fumantes que fumem de preferência no salãozinho cinzento, ao lado. Em todas as mesas há jornais; as cabinas telefônicas estão todas ocupadas e assediadas, e o porteiro Senf não vê nenhuma possibilidade de receber qualquer notícia do hospital antes de uma hora da tarde. No corredor do quinto andar, atrás da lavanderia, os grooms são submetidos a uma espécie de revista, antes de começarem o serviço; e, defronte do hotel, no espaço que medeia entre a entrada 1 e a 3, o Grande Hotel pode fazer concorrência a uma Bolsa.
Se tomarmos como exemplo Preysing, diretor-geral da Indústria Algodoeira Saxônia S.A., esse enérgico industrial, que representa o tipo médio dos homens de negócios, ficamos a par da atividade dos homens da sua classe, no Grande Hotel, das oito às dez da manhã.
Preysing, homem avantajado, corpulento, pesadão, chegara ao hotel numa hora incrível, às seis e vinte da manhã, porque na infeliz localidade de Fredersdorf só param trens mistos. Até então não lhe fora possível, apesar de todo o empenho, conseguir um trem expresso. Mas ele devia estar satisfeito por ter conseguido para a fábrica uma linha de conexão, para o transporte das mercadorias. Mas voltemos ao assunto. Preysing estava, portanto, cansado e meio tonto pelos solavancos do trem quando chegou ao hotel, ficando pensativo ao tomar conhecimento de que o apartamento que lhe tinham reservado era um dos mais caros. Primeiro andar, com sala e banho, 71; diária de setenta e cinco marcos. Mas Preysing era um homem econômico: tinha por regra não levar seu carro para Berlim, a fim de economizar a hospedagem do chofer. Porém, como tinha mesmo que pagar um preço tão elevado pelo quarto com banheiro, a primeira coisa que fez foi estender-se na banheira, onde se demorou bastante tempo, gozando o prazer do banho. Exatamente como o outro hóspede de Fredersdorf, Herr Kringelein. Em seguida estendeu-se um pouco sobre a cama, mas não conseguiu libertar-se da sensação da noite mal dormida e dos calafrios da viagem. Ergueu-se novamente, vestiu-se, desfez com pedante minuciosidade a sua valise e pendurou os ternos nos cabides portáteis que trouxera consigo. As botinas, a roupa de baixo, os objetos de uso pessoal, cada coisa vinha dentro de um saquinho de linho muito alvo, e em cada um deles havia um monograma bordado com linha vermelha, em ponto de cruz: K. P.
Enquanto dava o nó na gravata, Preysing ficou olhando distraidamente para a rua, mergulhada ainda na névoa matutina. Era muito cedo, não clareara de todo, as máquinas de limpeza das ruas escovavam o asfalto e os ônibus amarelos aproximavam-se como navios, pela madrugada. Preysing ficou olhando para baixo, sem enxergar coisa alguma. O dia que o esperava não ia ser nada fácil. Era preciso concentrar-se e refletir bem sobre os assuntos a tratar. Tocou a campainha chamando o criado e entregou-lhe pessoalmente as botinas para engraxar, e também as graxas marrom e branca que trouxera. O quarto já se enchera com o cheiro indefinível das rápidas viagens de negócios: couro de valises, Odol, água-de-colônia, terebintina, fumo. Preysing, com os gestos pedantes, lentos e precisos que lhe eram característicos, tirou do bolso a carteira e contou o dinheiro. Na divisão interna estava um grosso maço de notas de mil marcos; por ocasião de negócios, nunca se sabia exatamente quanto dinheiro ia ser preciso. Preysing costumava molhar com a língua o polegar e o indicador, ao contar o dinheiro, com o gesto de um homem saído do nada, enriquecido com o próprio trabalho. Meteu no bolso a carteira e, não contente com isso, ainda prendeu com um alfinete de gancho o bolso interno do paletó de lã grosseira, cor de cinza. Andou pelo quarto, de um lado para outro, de chinelos de couro vermelho, próprios para viagem, e ruminando em silêncio os diálogos que iria manter com o pessoal da Malharia de Chemnitz. Procurou um cinzeiro, mas não o encontrou, e, apesar de não gostar de jogar a cinza do charuto no tinteiro, teve de fazê-lo. Neste aposento também havia uma águia de bronze, semelhante à que deixara encantado Herr Kringelein, no 70. O diretor-geral ficou a tamborilar com os dedos durante alguns minutos nas asas abertas da águia, mergulhado em seus pensamentos; entretanto, o criado trouxe-lhe as botinas engraxadas, e às sete horas e cinquenta minutos Preysing pôde sair do quarto, e foi o segundo a chegar ao barbeiro do hotel. Apesar de estar preocupado, ao sentar-se à mesa, para o café, parecia um sujeito bem-humorado, gordo, sério, com o rosto bem barbeado. Às oito e trinta em ponto, conforme haviam combinado, Herr Rothenburger chegou. Era completamente calvo e não tinha sobrancelhas nem pestanas, o que lhe dava um ar de terno espanto que não combinava nada com o ceticismo de sua profissão. Era um misto de corretor da Bolsa e banqueiro, às vezes também intermediário e, além disso, membro do conselho fiscal de empresas menores. Sabia de tudo o que se passava, punha os outros a par de tudo que sabia, e metia-se em tudo.
Tinha sido o primeiro a divulgar a última notícia falsa a respeito da alta da Bolsa, e a espalhar sinistros boatos, que provocaram oscilações do câmbio. Em resumo, era um homem ridículo, perigoso e útil, esse Herr Rothenburger.
— Bom dia, Rothenburger — disse Preysing estendendo-lhe dois dedos, entre os quais segurava o charuto.
— Bom dia, Preysing — respondeu Rothenburger, empurrando o chapéu para a nuca. Depois sentou-se e pôs uma pasta sobre a mesa. — Aqui na terra, de novo?
— É... — disse Preysing. — Foi muito amável em ter vindo. Que quer tomar? Chá, conhaque, presunto com ovos estrelados?
— Vá lá um conhaque. Tudo bem em casa? Sua senhora? A senhorita sua filha? Tudo bem?
— Obrigado, vai-se vivendo. O senhor foi muito amável em enviar felicitações pelas nossas bodas de prata.
— Ora, era mais do que natural. E a firma, como se manifestou?
— Meu Deus, a firma! Deixei o carro velho para os negócios e recebi um novo em troca.
— É isso, é isso. L’état c'est moi. Um Preysing pode dizer: a firma sou eu, E como vai o senhor seu sogro?
— Obrigado. Otimamente. Ainda gosta de fumar o seu charuto.
— Meu Deus! Há quanto tempo eu o conheço! Quando me lembro como ele começou, com seis teares Jacquard num quartinho... e agora! É fantástico!
— É, o negócio vai indo — disse Preysing, com segunda intenção.
— Todos dizem isso. E dizem também que o senhor mandou construir uma villa magnífica, um verdadeiro castelo, com um parque...
— Nem tanto. Ficou bem bonito. Minha mulher gosta dessas coisas; sabe, fica completamente absorvida nisso. É, está bem bonita agora a nossa casa em Fredersdorf. O senhor precisa visitar-nos qualquer dia.
— Obrigado. Muitíssimo obrigado. É muito gentil da sua parte. Quem sabe se será possível realizar uma pequena viagem de negócios... para compensar as despesas.
Depois das formalidades e gentilezas de praxe, os dois cavalheiros passaram ao assunto principal.
— Ontem foi um dia meio inquieto na Bolsa, hein? — perguntou Preysing.
— Inquieto? Obrigado. Dalldorf é uma delícia, comparado a isto. Mas desde a alta das ações da Bega, todo mundo ficou maluco. Todos pensam que podem fazer negócios sem fundos. Mas ontem, vou-lhe dizer, a coisa estourou, baixa de trinta por cento, baixa de quarenta por cento. Há muita gente morta, que ainda não sabe que morreu. Quem se firmou na Bega... O senhor tem ações de lá?
— Tive. Retirei-me a tempo — disse Preysing; era mentira, uma pequena mentira usual nos negócios, e Rothenburger sabia disso.
— Ora, não se aborreça, eles se reerguem logo — disse ele à guisa de consolo, como se a negativa de Preysing significasse uma afirmativa. — Em que a gente pode ter confiança, se um banco como o Kuesel de Düsseldorf também quebra? Um estabelecimento como aquele! A Saxônia também está entre os credores, não é verdade?
— Nós? Não, absolutamente. Por que julga isso?
— Não? Pensei que estava. Ouve-se falar tanta coisa... mas se os senhores não estão perdendo nada com a bancarrota do Kuesel, então não sei realmente por que razão as ações da Indústria Algodoeira Saxônia baixaram tanto!
— É isso mesmo. Também penso como o senhor. Também não sei a razão. Vinte e oito por cento não é nenhuma bagatela. Muitos títulos se mantiveram firmes, estando já em pior situação do que os nossos.
— É certo. Os títulos da Malharia de Chemnitz mantiveram-se firmes — replicou Herr Rothenburger, sem rodeios. Preysing fitou-o através dos anéis de fumaça que separavam seus rostos de homens de negócios.
— Pois então fale em alemão claro — pediu Preysing, após curta pausa.
— O senhor é que precisa falar em alemão claro, eu não tenho segredos, Preysing. O senhor encarregou-me de comprar pelo melhor preço os títulos da Algodoeira Saxônia e eu comprei: títulos da Algodoeira Saxônia para a Algodoeira Saxônia. Bom. Provocamos uma alta considerável, realmente; cento e oitenta e quatro é bastante. Começaram a dizer que o senhor ia firmar um contrato com a Inglaterra, a cotação subiu. Disseram que o senhor ia fazer sociedade com a Malharia de Chemnitz... as ações subiram. De repente, o grupo de Chemnitz lança todas as ações da Saxônia no mercado... a cotação caiu, naturalmente. Caiu muito mais do que se podia esperar, de acordo com a lógica. A Bolsa é sempre ilógica. A Bolsa é uma mulher histérica, Preysing; estou casado com ela há quarenta anos. O senhor perdeu com a bancarrota do Kuesel. Bom. Com a Inglaterra, nada feito. Também não tem importância. Mas, de qualquer modo, vinte e oito por cento de perda, em um só dia, é demais. Já significa alguma coisa.
— Sim, senhor. Mas o que significa? — perguntou Preysing, enquanto uma ponta da cinza do seu charuto caía na xícara de café já frio. Preysing não era um diplomata. Sua pergunta era tola e inoportuna.
— Significa que a Malharia de Chemnitz se retira. O senhor sabe disso tão bem quanto eu. O senhor veio correndo para cá para salvar o que ainda for possível salvar. Mas que posso aconselhar-lhe? O senhor não pode obrigar o grupo de Chemnitz a cair nos seus braços. Se Chemnitz lançou no mercado todas as ações da Saxônia que possuía, isso significa que não tem mais interesse na Algodoeira Saxônia. Agora trata-se de saber o que é possível salvar para o senhor, nesta desagradável situação. O senhor quer continuar a adquirir suas próprias ações? Agora pode comprá-las por preço baixo.
Preysing não respondeu logo, ficando a refletir, o que lhe custou enorme esforço. Era um homem às direitas, o diretor-geral, um homem correto, leal, limpo por dentro e por fora. Mas não era um gênio, como homem de negócios; faltava-lhe fantasia, talento persuasivo, envergadura. Bastava que se exigisse dele uma decisão firme e ficaria a escorregar como se estivesse patinando sobre gelo. Quando dizia uma inverdade, faltava-lhe força convincente. Conseguia apenas inventar umas pequeninas e insignificantes mentiras de ofício, sem nenhum alcance. Punha-se logo a gaguejar, e sob o bigode surgiam-lhe gotinhas de suor.
— Afinal, se o grupo de Chemnitz não aceitar a fusão, isso é com eles; eles precisam mais de nós do que nós deles. E se não tivessem adquirido esse novo processo de tingir, nós não teríamos nisso o menor interesse — disse ele finalmente, pensando ter dado uma resposta muito hábil. Rothenburger ergueu os seus dez grossos dedos e deixou-os cair de novo sobre a mesa do café, bem juntinho ao pote de mel.
— Mas Chemnitz está de posse do processo para tingir. E a Saxônia tem interesse nisso — disse ele amavelmente.
Preysing já tinha dez respostas prontas na ponta da língua. "Nós não perdemos nada com o Kuesel", quis ele dizer. E também: "O negócio com a Inglaterra não está absolutamente fora de cogitação". E ainda: "A Malharia de Chemnitz faz baixar nossas ações exatamente porque quer fazer a fusão: é uma maneira de criar melhores condições para ela". Mas, afinal, não conseguiu dizer nada disso, apenas afirmando:
— Pois é, vamos ver o que acontecerá! Depois de amanhã tenho uma conferência com uns senhores da Chemnitz.
— Pfu! — exclamou Rothenburger, soltando ruidosamente a fumaça da garganta. — Uma conferência? Qual deles vai aparecer? Schweimann? Gerstenkorn? São espertos, esses senhores. Com eles é preciso estar de olho aberto. Para lidar com essa gente o seu sogro é que viria a calhar, não me leve a mal. Bem, quer dizer que a Saxônia ainda não está perdida? Preciso contar isso na Bolsa. Se não ajudar, mal também não faz. Bem, que se vai fazer? O senhor pretende que compremos de novo ações de algodão? Se hoje não aparecer alguém que sustente a coisa, assistiremos a uma bela quebra, é Rothenburger quem lhe diz. Então?
E Herr Rothenburger abriu o fecho da sua pasta e tirou dela uma ordem de pagamento.
Preysing ficara vermelho no alto do nariz, entre as sobrancelhas, quando Rothenburger aludira indelicadamente a seu sogro, e um passageiro rubor deslizou por sobre suas narinas. Tirou do bolso a caneta-tinteiro e, após ligeira hesitação, assinou o papel.
— Até quarenta mil, limitada por cento e setenta — disse com frieza, pondo um traço largo e arrogante sob sua assinatura. Era um protesto contra seu sogro e contra Herr Rothenburger.
4
Preysing ficou de péssimo humor na saleta do café, quando se viu só. Sentia um leve zunido nos ouvidos, pois sua pressão não estava em ordem; com frequência, durante conversas importantes, sentia um peso na nuca. No ano anterior ele tivera alguns contratempos, e o de agora também não parecia ser dos mais agradáveis. Não era coisa muito fácil continuar firme, agora que na Chemnitz queriam tirar o corpo fora. E o velho, sentado lá em casa na cadeira de rodas, nos seus acessos de caduquice, ficava a estourar de prazer sempre que acontecia algum contratempo ao genro. As negociações com as estradas de ferro estaduais a respeito do expresso não tinham levado a nada. O novo processo de tingir, que permitia dar a tecidos baratos cores que até então só se usavam para tecidos de primeira, tinha sido furtado sob suas barbas pela S.A. Malharia de Chemnitz. Com o contrato da Inglaterra lidavam há meses sem resultado, e Preysing já estivera por duas vezes em Manchester; cada vez que voltava as negociações iam de mal a pior, podendo considerá-las desde já como rompidas. O velho ficara sabendo da história com a firma de Chemnitz e tratara de fazer astutamente negociações preliminares; Gerstenkorn fora a Fredersdorf, visitar as instalações da fábrica, e trocaram um palavreado que não conduziu a nada. O célebre jurista Dr. Zinnowitz, perito em matéria comercial, apresentara um projeto de contrato, que não tinha sido firmado ainda: para cada duas ações do grupo de Chemnitz, uma da Saxônia. Era um bom negócio para a fábrica — e também não era muito mau para a firma de Chemnitz —, a Bolsa estava a par disso e o mundo de negócios têxteis também. De repente, a firma de Chemnitz começou a querer tirar proveito sozinha. E justamente agora, que a coisa estava mesmo uma porcaria, o velho mandava o pobre Preysing para remendar os rasgões.
— Diabo do inferno! — disse Preysing, que por descuido tomara um gole de café frio misturado com a cinza do charuto. Em seguida se levantou. Tinha as costas moídas, por causa da viagem no trem misto; bocejou com as mandíbulas contraídas e sentiu os olhos molhados. Desanimado e desejando ser confortado, dirigiu-se ao compartimento dos telefones, pedindo uma ligação urgente com Fredersdorf 48.
Fredersdorf 48 não era o telefone da fábrica, mas da villa de Preysing. A ligação não foi muito demorada, e Preysing colocou comodamente o cotovelo sobre a mesinha do aparelho, para acalmar-se, conversando com sua mulher.
— Bom dia, Mulle — disse ele. — É, sou eu. Você estava dormindo, Mulle? Ainda está na cama?
— Que é que você está pensando? — respondeu o telefone com uma voz longínqua, mas de timbre arredondado e cheio, uma voz que o diretor-geral amava sincera e fielmente. — Já são nove e meia! Já tomei café e já reguei minhas plantas. E você?
— All right — respondeu Preysing, com exagerado entusiasmo. — Vou ter daqui a pouco uma conferência com o Zinnowitz. Está bonito o dia aí? Está sol?
— Está — a voz tinha um ligeiro acento saxão, conhecido e familiar. — O tempo está bom. Imagine só, as flores de açafrão abriram todas de uma vez esta noite.
Preysing via, através do telefone, as flores de açafrão, a sala do café com os móveis de vime, o abafador de ráfia sobre a cafeteira, a mesa posta, com os capuchinhos de tricô sobre os copinhos dos ovos. Via Mulle também, com o roupão azul e de chinelos, segurando o regador dos cactos, de bico pontudo.
— Sabe, Mulle, isto aqui está muito sem graça — disse ele. — Você devia ter vindo comigo. Sinceramente.
— Ora, deixe disso — respondeu o telefone satisfeito, rindo-se com a risada simpática de Mulle.
— Estou tão acostumado com você... Olhe, esqueci-me do aparelho de barbear, vou ter que ir diariamente ao barbeiro.
— Eu já sabia. Você o esqueceu no banheiro. Sabe, compre outro; em qualquer loja se pode comprar barato um aparelho; não é mais caro do que ir ao barbeiro todos os dias, e é mais agradável.
— É, sim... é verdade. Você tem razão — disse Preysing, agradecido. — Onde estão as meninas? Gostaria de dizer-lhes bom-dia.
O telefone sussurrou qualquer coisa incompreensível, muito de longe, e depois exclamou em tom claro:
— Bom dia, Peps!
— Bom dia, Pepsin! — respondeu Preysing, alegre. — Como vai?
— Bem! E você?
— Também vou bem. Babe está aí?
Sim, Babe também estava lá, e também perguntou, com sua voz de dezessete anos, como ele ia passando, se o tempo estava bom, e se lhe levaria de Berlim algum presente; as flores de açafrão tinham aberto; Mulle não a deixava jogar tênis; estava fazendo muito calor e Schmidt talvez pudesse preparar o campo, não? Mulle disse depois qualquer coisa, em seguida Pepsin, e por fim o telefone disparou aos gritos e risadas com três vozes diferentes, até que a telefonista se meteu na conversa e Preysing desligou. Continuou por um instante na cabina e, sem que ele próprio o conseguisse explicar, teve a impressão de estar tomando sol no parapeito morno de uma janela, segurando nas mãos aquecidas um ramo de açafrão azul.
Sentiu-se aliviado, ao sair da cabina. Muitos diziam que o diretor-geral vivia preso às saias da mulher, e não deixavam de ter uma certa razão. Muito excitado, fez nova ligação, desta vez para o banco, a fim de tratar da cobertura para os quarenta mil marcos, uma quantia absurda, cuja ordem de pagamento ele, em desespero, assinara por conta própria a Herr Rothenburger. Durante os desagradáveis dez minutos em que o diretor-geral ocupou a cabina 4, Kringelein descera a escadaria do hotel, deliciando-se a cada passo que dava sobre o tapete vermelho-framboesa, sobre o qual podia andar com tanta distinção. Chegou, finalmente, à portaria. Trazia de novo uma flor na lapela, a mesma da noite anterior, que ele colocara no copo da escova de dentes, e se conservara relativamente fresca — um cravo branco. Kringelein considerava o seu aroma penetrante um complemento indispensável à sua elegância.
— O cavalheiro pelo qual o senhor perguntou ontem acaba de chegar — avisou o porteiro.
— Que cavalheiro? — admirou-se Kringelein.
O porteiro examinou o livro de registros de entradas.
— Preysing, o Diretor-Geral Preysing, de Fredersdorf — disse ele, olhando atentamente para o rosto miúdo e afilado do guarda-livros.
Kringelein respirou tão violentamente que mais parecia ter soltado um suspiro.
— Ah, sim. Está bem. E onde posso encontrá-lo? — perguntou, com os lábios pálidos.
— Deve estar na saleta do café.
Kringelein afastou-se, num estado de extrema tensão nervosa. Sua espinha se encurvou para trás, tal a sua excitação. "Bom dia, Herr Preysing", pensou. "Está bom o café? Pois é, eu também sou hóspede do Grande Hotel. É isso mesmo! Será que o senhor tem alguma coisa contra isso? Talvez seja proibido a pessoas como eu hospedarem-se aqui? Olhe! Também temos o direito de viver como bem entendemos."
"Ah!", pensou a seguir, "por que hei de ter medo de Preysing? Ele não pode fazer nada contra mim. Vou morrer logo, ninguém pode me prejudicar." Assaltou-o a mesma sensação sutil de liberdade que sentira na mata de Mickenau, com as framboesas. Cheio de coragem, entrou na saleta do café, movimentando-se já com bastante segurança naquelas dependências fashionable. Procurou Preysing. Queria falar com Preysing a todo custo. Tinha contas a ajustar com Preysing. Aliás, era por isso que estava no Grande Hotel. "Bom dia, Herr Preysing!", diria.
Mas Preysing não estava na saleta do café. Kringelein foi-se arrastando pelo corredor, meteu a cabeça na sala de correspondência, no salão de leitura, procurou no boxe dos jornais, chegando ao exagero de perguntar ao groom 14 por Herr Preysing. Por toda a parte sacudiam a cabeça, ignoravam onde ele se encontrava. Kringelein, que já se aborrecera e estava quase estourando com a quantidade de coisas que queria desabafar, chegou à entrada de uma dependência que não conhecia ainda.
— Tenha a bondade de desculpar, conhece Herr Preysing, de Fredersdorf? — perguntou à telefonista.
Esta apenas inclinou a cabeça, sem dar resposta, porque estava muito ocupada. Apontou com o polegar por sobre o ombro. Kringelein ficou vermelho e em seguida empalideceu. Nesse momento, Preysing, pensativo, saía da cabina 4.
Então aconteceu o seguinte: Kringelein encolheu-se todo, curvou a nuca, sua cabeça inclinou-se, a espinha, que estava bem aprumada, afrouxou, as pontas dos sapatos se encolheram, a gola do paletó subiu até a nuca, os joelhos amoleceram e as calças formaram pregas transversais sobre as pernas bambas. No espaço de um segundo, o rico e distinto Herr Kringelein transformou-se em um pobre e insignificante guarda-livros; um ser subalterno que parecia esquecer-se de que dentro de poucas semanas não viveria mais, e portanto gozava de inúmeras vantagens em relação a Herr Preysing, que ainda teria que atormentar-se e consumir-se por anos e anos, com milhares de coisas aborrecidas. O guarda-livros Kringelein afastou-se, com as costas coladas à porta da cabina 2, atencioso, e murmurou com a cabeça inclinada, exatamente como na fábrica:
— Bom dia, senhor diretor-geral.
— Bom dia — respondeu Preysing, passando por ele sem lhe dirigir o olhar. Kringelein continuou ainda um minuto colado à parede, engolindo, cheio de vergonha, a saliva amarga. Sentia dores de novo, dores que pareciam perfurar-lhe o estômago, sua metade de estômago, enferma e moribunda, que destilava secretamente, e quando bem lhe parecia, os venenos de uma morte lenta.
Nesse ínterim, Preysing continuava o seu caminho, dirigindo-se ao hall, onde o conhecido advogado, Dr. Zinnowitz, especialista em assuntos comerciais, já estava à sua espera.
Há duas horas que o Dr. Zinnowitz e o Diretor-Geral Preysing se conservavam sentados num recanto sossegado do jardim de inverno, curvados sobre documentos. A pasta de Preysing esvaziara-se, o cinzeiro ao seu lado enchera-se de pontas de charutos e as costas de suas mãos estavam ligeiramente suarentas, como costumavam ficar por ocasião de negociações difíceis. O Dr. Zinnowitz era um senhor idoso, baixote, com o semblante de um mágico chinês; pigarreou, como a se preparar para começar um discurso. Com atitude professoral, colocou a mão sobre a pasta, e disse:
— Caro Preysing, resumindo: vamos à conferência de amanhã com enormes desvantagens. É péssima a cotação de nossas ações — e ao dizer isso batia com os dedos sobre um bilhete que um boy lhe entregara um pouco antes do meio-dia, o qual trazia a notícia de uma nova baixa de sete por cento para as ações da Algodoeira Saxônia. — Nossas ações estão em má situação, e o momento psicológico, se assim me posso exprimir, foi mal escolhido para um encontro tão importante como este. O senhor também sabe que, se amanhã o grupo de Chemnitz disser não, a fusão vai por água abaixo. Não se pode tentar mais uma vez. E é possível, em vista da situação atual, que eles digam não. Não o quero afirmar com segurança, mas é natural que o façam, é muito provável, mesmo.
Preysing escutava, cheio de impaciência; estava nervoso. As palavras formais do advogado o irritavam. Zinnowitz falava como se estivesse sempre em assembleia-geral, mesmo quando estava completamente só. Quando ele apoiou as articulações dos dedos sobre a mesa, a leve mesinha de vime do jardim de inverno transformou-se em uma mesa de conferências, coberta de feltro verde, prenhe de decisões importantes e definitivas.
— Não será melhor bater em retirada?
— Não se pode bater em retirada sem causar uma péssima impressão. É preciso considerar também se, com uma prorrogação, iremos ganhar ou perder. De qualquer modo, ainda há algumas chances, que temos de abandonar por completo caso se bata em retirada.
— Que chances? — perguntou Preysing.
Ele não podia livrar-se do péssimo hábito de perguntar coisas que estava farto de saber. Por esse motivo, as negociações com Preysing se prolongavam indefinidamente, tornando-se pedantes e confusas.
— O senhor conhece as chances tão bem quanto eu — afirmou o Dr. Zinnowitz, em tom de censura. — Trata-se, como sempre, da situação em que se encontram as negociações com a Inglaterra. Conforme a minha opinião, Manchester, Burleigh & Son, de Manchester, é o ponto principal. A Malharia de Chemnitz quer ganhar o mercado para seus produtos manufaturados. Burleigh & Son tem, em grande parte, esse mercado nas mãos, e recebe continuamente grandes encomendas de produtos de malha manufaturados. Eles próprios só produzem a matéria-prima, mas gostariam de exportar o seu algodão para a Alemanha, recebendo em troca, na Inglaterra, o produto manufaturado de Chemnitz. Eles têm grande interesse em comerciar com Chemnitz. A razão por que não fazem isso diretamente o senhor sabe tão bem quanto eu, meu caro Preysing: a firma de Chemnitz não dá aos ingleses a impressão de ser muito sólida. Estes estão hesitantes, porque o negócio não lhes parece ter uma base muito segura. A coisa muda de figura, caso a Saxônia S.A. se associe a Chemnitz. Burleigh & Son deposita grandes esperanças nisso. Parece que eles pensam, desculpe, meu caro, que o seu negócio, um pouco parado, receberia um impulso, e o grupo de Chemnitz, que é demasiado afoito, se consolidaria mais. Por conseguinte, Burleigh & Son só tem interesse na Saxônia caso ela se alie à Malharia de Chemnitz. E Chemnitz, por seu lado, só quer a fusão se o senhor fizer contrato com Burleigh & Son, assegurando assim o mercado inglês. Agora, cada firma está à espera de que o contrato entre o senhor e o outro esteja firmado. Quer saber a minha opinião? As negociações foram conduzidas de maneira desastrosa, do contrário não estaríamos neste beco sem saída. Quem entrou em negociações com Manchester?
— Meu sogro — respondeu Preysing apressadamente. Isso não era exato, e Zinnowitz, que estava bem informado a respeito da luta pela direção na Algodoeira Saxônia, sabia perfeitamente que Preysing não estava dizendo a verdade. Passou a palma da mão sobre a mesa, ignorando a resposta de Preysing. Seu gesto significava: deixemos isso de lado.
— Tenho mantido — continuou ele — permanente contato com o grupo de Chemnitz — Zinnowitz gostava de usar as expressões enérgicas do seu tempo de capitão da reserva —, e posso descrever-lhe com exatidão a disposição em que ele se encontra. Schweimann desistiu por completo da fusão, e Gerstenkorn já está vacilante. Por quê? A importante firma Companhias Reunidas S. J. R. fez sondagens com o grupo de Chemnitz, para saber se eles venderiam sem exigir a fusão. Se venderiam sem mais delongas. Naturalmente, nesse caso, Schweimann e Gerstenkorn participariam do conselho fiscal, e teriam, além disso, postos remunerados à parte, ao passo que agora ainda correm algum riscos. Pelo contrário, se o negócio com Burleigh estivesse esclarecido, então o que eu acredito que aconteceria — é esta a minha humilde opinião — é que eles recusariam a oferta da S. J. R., e optariam pela fusão com o senhor. É esta a situação em que eles se encontram. Quanto à sua situação, Preysing, com respeito a Manchester, não estou muito bem informado. Seu sogro escreveu-me, mas de modo pouco claro...
Preysing cortou de novo as claras considerações do jurista.
— Essa história da oferta da S. J. R. é um fato ou apenas falatório? Quanto ofereceram a Chemnitz? — perguntou ele.
— Isso não vem ao caso — respondeu Zinnowitz, que o ignorava.
Preysing esticou para a frente o lábio inferior, onde se apoiava um charuto, e ficou a refletir. "Vem ao caso, sim", pensou, sem conseguir esclarecer, a si próprio e ao outro, qual a razão.
— O negócio com Burleigh não vai indo tão mal assim — disse ele, hesitante.
— Muito bem também não, ao que parece — replicou prontamente o jurista.
Preysing apanhou a pasta, largou-a, tornou a pegá-la, tirou o charuto da boca — já com a ponta toda mordiscada — e só no terceiro assalto tirou da pasta de couro um dossiê de papelão azul, onde se encontravam algumas cartas e cópias de outras.
— Aqui está a correspondência mantida com Manchester — disse apressadamente, estendendo ao jurista o dossiê. Arrependesse depressa. Nova camada de suor frio porejou nas costas de suas mãos; tentou fazer girar a aliança no dedo, num gesto que lhe era habitual, e não o conseguiu. — Mas tenho de pedir-lhe a máxima reserva, isto é estritamente confidencial — disse ele em tom implorante.
Zinnowitz lançou-lhe apenas um olhar enviesado, sem tomar conhecimento das cartas. Preysing calou-se. Podiam ouvir-se as delicadas batidas das toalhas, ao serem colocadas sobre as mesas, no salão de refeições. Sentia-se o cheiro característico de todos os hotéis do mundo, antes da comida: um leve cheiro de carne assada, que abre o apetite antes da refeição, e depois se torna insuportável. Preysing sentia fome. Lembrou-se, subitamente, de Mulle e da mesa posta, com as filhas em volta.
— É — disse o Dr. Zinnowitz, afastando as cartas e fitando, com olhar pensativo e absorto, a base do nariz de Preysing.
— Então? — perguntou Preysing.
— Volto agora — continuou Zinnowitz — ao ponto de partida. Por enquanto, as negociações com Burleigh & Son continuam e, por conseguinte, temos ainda essa chance importante nas mãos, para exercer pressão sobre o grupo de Chemnitz. Se adiarmos a conferência e Burleigh se retirar, o que é bem possível, de acordo com sua última carta, de... de 27 de fevereiro, perderemos essa chance. Então perderemos todas as chances, a bem dizer. Assim, em vez de nos sentarmos sobre duas cadeiras, sentaremos entre duas cadeiras.
De súbito, a testa de Preysing ficou roxa; uma onda de sangue subiu sob a sua pele ligeiramente enrugada, engrossando as veias. Às vezes ele tinha esses acessos de furor, esse afluxos de sangue, esses violentos acessos de cólera.
— Toda essa conversa não conduz a nada. Temos que conseguir a fusão — afirmou ele, elevando a voz e dando um murro em cima da mesa. O Dr. Zinnowitz esperou um instante para responder.
— Acho que a Saxônia não irá à falência, sem essa fusão.
— Não. É claro que não. Ninguém está falando em falência — respondeu Preysing, excitado. — Mas teríamos que diminuir nossos gastos. Teríamos de despedir operários na fiação. Teríamos de... sabe o que mais? Tenho de consegui-lo, e acabou-se. Há ainda o fato de... há outras razões. Trata-se de minha autoridade dentro da fábrica, o senhor compreende? Afinal, toda a organização da fábrica é obra minha. E a gente quer conservar o prestígio, também. O velho está ficando idoso demais. E com meu cunhado eu não me dou bem. Digo-lhe com toda a franqueza, o senhor conhece o rapaz, não me dou bem com ele. Esse rapaz trouxe certos costumes de Lyon que não aprecio nos negócios. Não gosto de blefes. Não gosto desses fogos de artifício. Meus negócios são feitos com base. Não construo castelos de cartas! Por enquanto eu estou lá, e quem manda sou eu!
O Dr. Zinnowitz olhava com interesse para o excitado diretor-geral, a dizer coisas que iam além do que ele podia garantir.
— O senhor é conhecido no seu ramo como um homem de negócios exemplar — observou ele, cortesmente; notava-se em suas palavras um leve tom de piedade.
Preysing parou de falar. Pegou em seu dossiê azul, e meteu-o, com os dedos trêmulos, na pasta de couro.
— Então estamos de acordo — disse Zinnowitz. — A conferência será realizada amanhã, e vamos procurar por todos os meios forçar a assinatura do contrato prévio. Mas eu gostaria de saber... Ouça — disse ele daí a um minuto, após haver refletido em silêncio. — E se o senhor me entregasse algumas cartas? As mais importantes, compreende, do início das negociações? Vou falar à tarde com Schweimann e Gerstenkorn. Não prejudicaria coisa alguma, se eu as mostrasse... naturalmente não mostraria todas, mas apenas algumas.
— É impossível — respondeu Preysing. — Prometemos a Burleigh & Son a maior discrição.
Zinnowitz sorriu ao ouvir isso.
— É a história de sempre — declarou. — Mas faça o que julgar melhor. A responsabilidade é sua. Hic Rhodus, hic salta. Se soubermos conduzir com jeito as negociações em Manchester, ganharemos a partida. Esse é o único ponto que poderia compensar o negócio quase perdido com Chemnitz. Seria necessário pôr nas mãos de Schweimann algumas cartas, como uma coisa sem importância e casual. As mais importantes, compreende? Algumas cópias. Mas faça o que quiser. O senhor é o responsável.
— Não me agrada fazer isso, é uma coisa pouco limpa — respondeu Preysing. A cobertura de quarenta mil marcos para Rothenburger comprar ações ainda lhe estava a dificultar a digestão; sentia de fato azia, de tanta excitação, e suas têmporas zuniam, acaloradas. — As negociações com Chemnitz começaram antes do caso de Burleigh. Entre nós e Gerstenkorn nunca foi trocada uma só palavra a esse respeito. De repente tudo vira para esse lado. Se o grupo de Chemnitz nos quer aceitar apenas como um negócio dependente do assunto com a Inglaterra, e a coisa parece ser essa, como poderemos justificar a nossa correspondência? Não! Isso eu não faço.
"É teimoso como um jumento", pensou o Dr. Zinnowitz, e apertou o fecho da sua pasta, cuja fechadura deu um leve estalido.
— Com licença — disse ele. E, cerrando os lábios, pôs-se de pé.
De súbito, Preysing resolveu concordar.
— O senhor tem alguém que possa copiar algumas dessas cartas? De qualquer maneira eu poderia entregar-lhe duas cópias de cada. Os originais não saem de minhas mãos — disse ele apressadamente e elevando a voz, como se procurasse encobrir a de seu interlocutor. — É preciso que seja uma pessoa discreta e de confiança. Preciso ditar também um outro assunto de que necessito para a conferência. As datilógrafas arranjadas por intermédio do hotel não me agradam. Ficamos com a impressão de que elas vão contar ao porteiro os segredos comerciais. É preciso que seja logo depois do almoço.
— Infelizmente nenhum dos empregados do meu escritório dispõe de tempo — disse Zinnowitz com frieza, e ligeiramente surpreendido. — Ficamos com alguns assuntos importantes em atraso, e o meu pessoal há várias semanas tem feito trabalho extra. Mas espere um pouco... podia-se mandar a Flaemmchen para o senhor. A Flaemmchen serve-lhe. Vou mandar telefonar para ela.
— Para quem? — perguntou Preysing, chocado com o diminutivo.
— Para a Flaemmchen. A Flamm número dois. A irmã da minha secretária, a Flamm número um, que o senhor conhece, não é? Há vinte anos que está trabalhando comigo. A Flamm número dois nos tem auxiliado muitas vezes quando temos excesso de trabalho de cópias no escritório. Já a levei também numa viagem, porque a Flamm número um não podia ir. Ela é muito ativa e inteligente. Tenho que ter as cópias até as cinco horas. Farei isso como uma coisa à parte das negociações oficiais, durante o jantar com os senhores de Chemnitz. A Flaemmchen pode levar-me as cópias diretamente. Vou telefonar já à Flamm número um para que ela mande a irmã. Para que horas ficou marcada a conferência de amanhã?
O Dr. Zinnowitz e o Diretor-Geral Preysing, dois senhores corretos, com pastas já bem usadas debaixo do braço, saíram do jardim de inverno, atravessaram o corredor e, passando diante da portaria, chegaram ao hall onde se encontravam muitos outros senhores parecidos com eles, com pastas idênticas e conversando de maneira semelhante à deles. Algumas senhoras apareciam de novo; acabavam de sair do banho e vinham perfumadas, com os lábios pintados recentemente. Com um gesto elegante e despreocupado, calçavam as luvas antes de passar pela porta giratória e sair para a rua, cujo asfalto escuro estava banhado pelo clarão amarelo do sol.
No momento em que atravessava o hall para ir ao compartimento telefônico, Preysing ouviu alguém pronunciar seu nome. O groom 18 veio correndo pelos corredores, chamando com sua voz clara e aguda de menino, a intervalos regulares:
— Senhor Diretor Preysing! Senhor Diretor Preysing, de Fredersdorf! Senhor Diretor Preysing!
— Estou aqui! — exclamou Preysing, estendendo a mão para pegar um telegrama. — Com licença — disse ele; abriu o telegrama e leu-o, enquanto atravessava o hall ao lado do Dr. Zinnowitz. Esfriou até a raiz dos cabelos, durante a leitura, e com um gesto mecânico colocou na cabeça o chapéu-coco.
O telegrama dizia:
As negociações com Burleigh & Son fracassaram totalmente. Broesemann.
Não adiantava mais. "Não é mais preciso mandar a moça, Dr. Zinnowitz. Não adianta. Ponto final com Manchester", pensou Preysing, continuando a caminhar em direção ao compartimento telefônico. Meteu o telegrama no bolso do sobretudo, apertando-o entre o polegar e o indicador. "Não adianta mais. Não preciso mais mandar fazer as cópias", pensou ele, pretendendo dizê-lo também.
Mas não o disse. Pigarreou, pois tinha ainda na garganta a fuligem da viagem noturna.
— O tempo ficou magnífico — disse ele.
— Já estamos em fins de março — retrucou Zinnowitz, que afastara as preocupações com os negócios e voltava a ser um particular que gostava de apreciar "meias de seda" a caminhar.
— A cabina 2 vai vagar logo — informou a telefonista, colocando os pinos vermelhos e verdes nos orifícios. Preysing apoiou-se à porta acolchoada da cabina, e seus olhos fixaram-se mecanicamente no postigo, num dorso largo que se encontrava lá dentro. Zinnowitz falou qualquer coisa que ele não compreendeu. Sentiu um ódio violento por Broesemann, e o sangue lhe subiu à cabeça. Ódio daquela vaca, daquele procurador que enviava um telegrama desses, justamente quando era preciso ter a cabeça bem erguida para um negócio tão difícil. Evidentemente, o velho estava por trás daquele telegrama, aquele velho caduco, com a sua maldade e a sua rabugice: a porcaria está feita, mostre agora do que é capaz. Estava realmente desesperado o pobre diretor-geral, com seus nervos arrasados, a cabeça cheia de preocupações e sua consciência tranquila, em meio a negócios confusos e complicações tremendas. Procurou concentrar os pensamentos, que giravam, dispersos, em todas as direções. O Dr. Zinnowitz falava ao seu lado, no tom de um gozador empedernido, a respeito de uma nova revista toda prateada, tudo de prata. A porta da cabina contra a qual Preysing se apoiara cheio de desânimo fez pressão contra suas omoplatas. Depois forçaram suavemente a porta, e um homem alto, de excepcional beleza e amabilidade, vestido com uma capa azul, forçou a saída. Em vez de reclamar, o homem ainda se desculpou com algumas palavras corteses. Preysing, completamente absorto, fixou os olhos no rosto do homem que ele enxergava com toda a clareza, estranhamente próximo, e também se desculpou, conforme a praxe. Zinnowitz já estava dentro da cabina, pedindo ligação para a Flamm número dois, a Flaemmchen, talvez uma solteirona competente, que ia copiar cartas que já não tinham sentido nenhum, absolutamente nenhum. Preysing sabia que devia pôr um ponto final nisso tudo, mas não conseguiu reunir as energias necessárias para isso.
— Tudo arranjado — informou o Dr. Zinnowitz, saindo da cabina. — Às três horas a Flaemmchen estará aqui. Máquinas de escrever há em quantidade no hotel. Às cinco horas eu recebo as cartas. Ainda falarei com o senhor por telefone, antes de vencer esta dificuldade. Até logo, e bom apetite.
— Bom apetite — repetiu Preysing, dirigindo-se para as folhas de espelho da porta giratória em movimento, que levou o advogado para a rua. Lá fora fazia sol. Na rua, um pobre homenzinho vendia violetas. Ninguém se preocupava com fusões e acordos difíceis. Preysing tirou do bolso do sobretudo a mão direita, e com a esquerda pegou o telegrama, aquele telegrama que ele mantivera agarrado entre os dedos, até que o Dr. Zinnowitz desaparecesse num táxi. Dirigiu-se para uma mesa do hall, alisou cuidadosamente o papel, dobrou-o com cuidado e meteu-o no bolso interno de seu terno cinza-escuro, impecável.
Às três horas e cinco minutos, a campainha do telefone despertou Herr Preysing da sua sesta. Levantou-se da chaise-longue (descalçara as botinas, tirara o colarinho e o paletó), com a sensação de desamparo e desgosto que costuma sobrevir após uns minutos de sono roubado, nos hotéis. As cortinas amarelas estavam fechadas, o calor seco do aquecimento central enchia o aposento. Preysing tinha na face direita a marca do seu travesseiro de viagem. O telefone tilintava com impaciência. Uma senhora esperava pelo senhor diretor no hall, avisou o porteiro.
— Mande essa senhora subir — disse Preysing, ar-rumando-se às pressas. Dificuldades inesperadas foram comunicadas pelo telefone, com a máxima cortesia. O hotel tinha princípios e regulamentos. O chefe de recepção em pessoa, desculpando-se, e com o sorriso compungido de um homem traquejado, comunicou-o a Herr Preysing. Não era permitido receber visitas de senhoras nos aposentos, e infelizmente não se podiam fazer exceções.
— Mas, meu Deus do céu, não se trata de uma visita. Essa moça é minha secretária, preciso trabalhar com ela, o senhor precisa compreender — disse Preysing, impaciente.
O sorriso telefônico do chefe de recepção acentuou-se. Rogava-se ao senhor diretor que tivesse a bondade de dirigir-se com essa senhora à sala de ditados, que estava à disposição dos hóspedes para esse fim. Preysing desligou, batendo com o fone no gancho. Sentia-se completamente fora de seus hábitos; era horrível. Lavou as mãos, gargarejou com água dentifrícia, lutou com o botão do colarinho e a gravata, e em seguida desceu para o hall.
Ali estava sentada a Flaemmchen, Fräulein Flamm número dois, irmã de Fräulein Flamm número um. Não era possível existir no mundo duas irmãs mais diferentes. Preysing recordava-se vagamente da Flamm número um como de uma pessoa de confiança, com cabelos incolores, um punho protetor na manga direita, um maço de papel sob o braço esquerdo, que, na sala de espera, com cara de poucos amigos, barrava a entrada aos visitantes indesejáveis, no escritório do Dr. Zinnowitz. A Flamm número dois, pelo contrário, não possuía absolutamente essa segurança. Estava sentada comodamente em uma poltrona maple, como se estivesse em casa, balouçando os pés calçados com sapatos de verniz azul; dava a aparência de alguém que se preparava para divertir-se à larga, e teria no máximo vinte anos de idade.
— O Dr. Zinnowitz mandou-me para bater as cópias. Sou a Flaemmchen, que ele prometeu mandar-lhe — informou ela, sem cerimônias.
Bem no centro da boca, a Flaemmchen pintara uma mancha redonda de batom, descuidadamente, às pressas, apenas porque estava na moda. Quando se levantou, viu-se que era mais alta do que o diretor-geral; tinha longas pernas, usava, na cintura extremamente fina, um cinto de couro bem apertado, e suas formas eram magníficas, da cabeça aos pés. Preysing ficou furioso com Zinnowitz, que o punha em situações idiotas assim. Compreendeu os escrúpulos do chefe de recepção. Ela estava perfumada, além do mais. Teve desejos de mandá-la embora.
— Acho que precisamos apressar-nos — disse ela com uma voz de timbre grave e ligeiramente rouco, que as menininhas costumam ter. Pepsin, a filha mais velha do diretor-geral, tinha uma voz assim, quando era pequena. — Então a senhora é a irmã de Fräulein Flamm? Eu conheço Fräulein Flamm — disse ele, num tom mais de grosseria que de surpresa.
Flamm número dois estendeu um pouquinho o lábio inferior e soprou um cacho de cabelo que lhe caía na testa, por debaixo da sua boinazinha de feltro. O caracolzinho dourado elevou-se e tornou a cair lentamente sobre a testa. Preysing não o queria ver, mas não pôde deixar de fazê-lo.
— Irmã só por parte de pai — disse a Flaemmchen. — Eu sou filha da segunda mulher de meu pai. Mas nos damos muito bem.
— Ah, sim — disse Preysing, olhando-a com a vista turva.
Ela teria agora que copiar cartas que haviam perdido todo o sentido, todo o significado. Há vários meses ele vinha combinando tudo a respeito da sociedade com Burleigh & Son; não conseguia mudar subitamente o rumo de seus pensamentos. Não conseguia, de modo algum, riscar e apagar todo esse assunto. "Fracassaram totalmente. Broesemann. Totalmente." Era preciso ditar uma carta dirigida ao Broesemann, uma carta cheia de fel. Ao velho também, por causa dos quarenta mil marcos. Se Chemnitz desistisse, no dia seguinte, os quarenta mil para sustentar o câmbio teriam sido atirados à rua.
— Vamos. Vamos então para a sala de correspondência — disse Preysing, com expressão sombria, caminhando na frente dela pelo corredor. A Flaemmchen riu-se, divertida, atrás da nuca gorducha de Preysing.
A distância já se ouviam as máquinas de escrever, como um fogo distante de fuzilaria, e os sininhos tilintavam a espaços regulares. Quando Preysing abriu a porta, a fumaça dos cigarros saiu como uma enorme serpente azul.
— Ótima acústica — disse a Flaemmchen, erguendo as asas arredondadas de suas narinas.
Lá dentro, um senhor andava de um lado para outro, de mãos nas costas, o chapéu tombado para a nuca, ditando num americano mastigado. Era o manager de uma empresa cinematográfica; lançou à Flaemmchen um rápido olhar de conhecedor, e continuou a ditar.
— Qual! — disse Preysing, fechando a porta. — Não é possível. Quero um gabinete só para mim. Estas eternas chicanas aqui no hotel!
Desta vez foi caminhando atrás da Flaemmchen, pelo corredor. Estava agora encolerizadíssimo, e, em meio ao seu ódio, o balancear dos quadris da Flaemmchen provocava-lhe uma suave ardência no sangue.
No hall, a Flaemmchen também foi observada com admiração. Era um exemplar magnífico do seu sexo, quanto a isso não havia dúvida. Preysing achava desagradabilíssimo atravessar o hall com uma criatura tão espetacular, e deixou-a sozinha, indo conversar com Rohna sobre a possibilidade de não ser perturbado no compartimento das máquinas de escrever. A Flaemmchen, completamente indiferente aos olhares de que era alvo — santo Deus, estava tão acostumada a isso! — passou pó de arroz no nariz, descuidadamente, de pé, no meio do hall, depois tirou uma pequena cigarreira do bolso do casaco, com gestos de rapazinho, e se pôs a fumar. Preysing aproximou-se dela como de uma moita de urtigas.
— Temos de esperar dez minutos — disse ele.
— Bem — disse a Flaemmchen. — Mas depois precisamos trabalhar depressa. Tenho de estar às cinco no escritório de Zinnowitz.
— A senhora é tão pontual assim? — perguntou Preysing, de mau humor.
— Se sou!... — replicou a Flaemmchen com um sorriso travesso. Seu nariz ficou curto como o de um nenenzinho, e as meninas de seus olhos castanho-claros rolaram para os ângulos das pálpebras.
— Bem, então sente-se, enquanto isso — convidou Preysing. — E peça ao garçom qualquer coisa. Garçom, sirva esta moça — mandou ele, sem qualquer delicadeza, afastando-se em seguida.
— Um sorvete de pêssego Melba — pediu a Flaemmchen, inclinando a cabeça, satisfeita.
Soprou de novo a madeixa de cabelo, sem êxito. A Flaemmchen tinha formas perfeitas, como as de um cavalo de raça, e a impaciente impertinência de um cachorrinho novo.
O Barão Gaigern, que perambulava pelo hall há algum tempo, contemplou-a a distância, encantado. Após um instante, aproximou-se dela, cumprimentou-a e disse a meia voz:
— Posso sentar-me ao seu lado, minha senhora? Mas vejo que não está me reconhecendo. Nós dançamos juntos em Baden-Baden, lembra-se?
— Não é possível! Nunca estive em Baden-Baden — disse a Flaemmchen, olhando o jovem com atenção.
— Ah, minha senhora! Desculpe-me! Agora estou vendo que... devo ter-me enganado. Confundi-a com outra pessoa! — exclamou o barão, com ar hipócrita.
A Flaemmchen deu uma risada.
— Não é a mim que o senhor engana com esse velho truque — disse ela com secura.
Gaigern deu uma gargalhada.
— Então deixemo-nos de truques. Posso ficar sentado a seu lado? Posso? A senhora tem razão, não é possível confundi-la com ninguém. Como a senhora, só é possível existir no mundo uma pessoa, minha senhora. Mora aqui? Vem dançar no chá das cinco? Por favor, por favor, gostaria tanto de dançar com a senhora... Quer?
Colocou as mãos sobre a mesa. As da Flaemmchen já ali estavam pousadas. Havia um pequeno espaço entre os dedos dele e os dela, e o ar que os separava começou a vibrar. Os dois se olharam, simpatizaram mutuamente, e ambos se compreenderam, os belos jovens.
— Meu Deus, como o senhor é rápido! — exclamou a Flaemmchen, encantada.
Igualmente encantado, Gaigern respondeu:
— A senhora promete? Vem ao chá das cinco?
— Ao chá não posso. Tenho o que fazer. Mas à noite estou livre.
— Oh! Oh! À noite eu não posso. Mas amanhã, ou depois de amanhã... Às cinco horas? Aqui? No pavilhão amarelo? Com certeza?
A Flaemmchen lambeu a colher do sorvete e calou-se, com ar brejeiro. Para que muitas palavras? Trava-se conhecimento com alguém como se acende um cigarro.
Tiram-se umas tragadas somente para tomar o gosto, e depois a faísca se acende.
— Como se chama a senhora? — perguntou logo Gaigern.
Nesse momento, Preysing aproximou-se da mesa com ares de proprietário. Gaigern ergueu-se, cumprimentou-o e, com atitude amável, colocou-se por trás da cadeira.
— Já podemos começar — disse Preysing, aborrecido. A Flaemmchen estendeu a mão enluvada a Gaigern, enquanto Preysing olhava a cena com ar de desagrado. Reconheceu o jovem da cabina telefônica, e via novamente esse rosto com toda a nitidez, com todos os seus poros, com os menores detalhes.
— Quem é esse sujeito? — perguntou ele, caminhando meio de viés ao lado da Flaemmchen, com um andar bamboleante.
— Ah!... um conhecido — respondeu ela.
— É? A senhora deve ter muitos conhecidos, não?
— Assim, assim. A gente deve fazer-se um pouco de rogada. E não é sempre que tenho tempo.
Por motivos obscuros, esta resposta agradou ao diretor-geral.
— A senhora está empregada? — perguntou ele.
— No momento, não. No momento estou procurando emprego. Ora, logo se arranja. Sempre acabo arranjando alguma coisa — disse a Flaemmchen, com filosofia. — Eu gostaria de trabalhar no cinema. Mas é tão difícil o início da carreira... Se eu conseguisse começar, depois podia me arranjar. Mas o início da carreira é dificílimo!...
Olhou de frente para Herr Preysing com uma expressão preocupada e cômica. Agora, a Flaemmchen tinha o ar de uma gatinha. Toda a graciosidade felina parecia ter-se concentrado em seu rosto, numa expressão cambiante. Preysing, completamente alheio a esses conhecimentos, abriu a máquina de escrever, perguntando:
— Por que justamente o cinema? Todas vocês têm a mania do cinema — nesse "todas" incluía também sua filha Babe, de quinze anos, que era louca pela sétima arte.
— Ora, porque sim! Mas não tenho ilusões a esse respeito. Sou muito fotogênica, é o que todos dizem — continuou a Flaemmchen, tirando o casaco. — Devo estenografar ou escrever diretamente na máquina?
— Na máquina, faça o favor — respondeu Preysing. Sentia-se agora um pouco mais animado e de melhor humor. Afastara do cérebro o fato de Manchester ter ido por água abaixo, e, ao retirar do dossiê as tão promissoras cartas dessa correspondência, sentiu uma agradável impressão. A Flaemmchen continuava a falar sobre os seus assuntos particulares.
— Sou sempre fotografada para jornais e revistas, e também já posei para anúncios de sabonete. Como se consegue isso? Meu Deus! Um fotógrafo conta ao outro. Sou um ótimo nu artístico, sabe? Mas pagam pouquíssimo. Dez marcos por fotografia. Imagine o senhor. Ora! O que eu preferia era que alguém me levasse nesta primavera, de novo, como secretária, em alguma viagem. No ano passado estive em Florença com um senhor que trabalhava em um livro, um professor. Um encanto de homem! Talvez este ano apareça também qualquer coisa — disse ela, endireitando a máquina na mesa.
Era evidente que a Flaemmchen tinha preocupações, mas essas preocupações não pesavam mais do que o caracol da sua testa, que ela afastava com um sopro, de instante a instante. Preysing, que não conseguia introduzir no círculo de suas ideias a observação objetiva a respeito do nu artístico, quis falar qualquer coisa sobre negócios. Em vez de fazê-lo, pôs-se a observar atentamente as mãos da Flaemmchen, que colocavam na máquina a folha de papel, e disse:
— Que mãos morenas a senhora tem! Onde toma tanto sol assim?
A Flaemmchen observou com atenção as próprias mãos, levantou um pouco as mangas e fitou sua pele de cor parda com ar sério.
— É da neve, ainda. Fui esquiar em Vorarlberg. Um conhecido me levou. Uma beleza. O senhor devia ter-me visto quando eu voltei! ... Então, podemos começar?
Preysing dirigiu-se, por entre a fumaceira dos charutos, ao canto mais afastado da sala, e começou a ditar:
— A data, já pôs a data, senhorita? Prezado Herr Broesemann, Broese ... já escreveu? Com relação ao seu telegrama desta manhã, devo comunicar-lhe...
A Flaemmchen continuou a escrever com a mão direita, enquanto tirava com a esquerda o gorrinho, que parecia incomodá-la. A sala dava para um escuro poço de ventilação, as lâmpadas verdes do escritório estavam acesas. Em meio ao assunto comercial, Preysing pôs-se a pensar em uma cômoda antiga, uma velha cômoda de bétula, que se encontrava no vestíbulo, em Fredersdorf.
Só à noite se lembrou disso novamente, quando sonhou com a Flaemmchen e despertou. Seu cabelo tinha a cor e a cintilação da madeira antiga de bétula, com reflexos claros e escuros. Deitado em sua cama, à noite, via esse cabelo com toda a nitidez, enquanto respirava o ar seco do quarto de hotel, vendo desfilar rapidamente as luzes do anúncio contínuo, nas cortinas fechadas. A pasta em cima da mesa, naquele quarto escuro, o enervava. Levantou-se de novo para fechá-la na mala; em seguida, gargarejou com Odol e lavou as mãos outra vez.
Este apartamento aborrece-o, é caro e sem conforto; consiste apenas em uma saleta minúscula com sofá, mesa e cadeiras, um quartinho de dormir estreito, e, ao lado, o banheiro. A torneira está pingando um pouco; pinga, pinga, por entre o sono de Preysing. Levanta-se novamente, sobressaltado, e vai acertar o despertador. Esqueceu-se de comprar o aparelho de barbear e precisa ir cedo ao barbeiro. Adormece mais uma vez, e torna a sonhar com a datilografa e seus cabelos cor de bétula. Desperta, e enxerga novamente o anúncio correndo sem cessar pelas cortinas; a noite passada numa cama estranha, angustiosa, dá-lhe uma impressão de nojo e confusão. Ele sente um medo incrível da conferência com Schweimann e Gerstenkorn; seu peito bate com um ruído surdo. Desde o momento em que mostrou as cartas da Inglaterra, não pode livrar-se de um sentimento estranho, como se as palmas de suas mãos estivessem sujas. Finalmente, já quase adormecendo de novo, ouve alguém andando lá fora, pisando na passadeira e assobiando baixinho. Ouve também o senhor do 69 colocando uns pares de despreocupados sapatos rasos, de verniz, diante da porta, como se a vida fosse um divertimento.
5
Kringelein, no 70, também o ouviu e despertou com o ruído. Havia sonhado com a Grussinskaia. Ela surgira na tesouraria onde ele trabalhava, apresentando contas atrasadas. Kringelein, o guarda-livros de Fredersdorf, que está sofrendo de claustrofobia, quer ainda agarrar a vida por uma fímbria, antes de morrer. Sente uma fome desmesurada, mas suporta muito pouco alimento. Com frequência, durante esses dias, seu corpo debilitado apodera-se da direção e o força a recolher-se ao quarto, em meio a todo aquele tumulto. Kringelein começa a odiar sua enfermidade, apesar de ela lhe ter dado coragem para sair de Fredersdorf. Comprou um remédio: Bálsamo de Vida do Dr. Hundt. A intervalos regulares toma um gole, cheio de esperanças, esforçando-se por não sentir o gosto amargo de canela, e em seguida sente algum alívio.
Distende os dedos enregelados, na escuridão, e se põe a fazer cálculos. É desagradável o fato de seus dedos terem tendência para morrer enquanto está dormindo. Esgueiram-se números no quarto, de rostos baixos, até que ele acende a luz e desperta completamente. É pena que o rico Herr Kringelein não possa libertar-se de um costume de Herr Kringelein pobre: ter de fazer contas. Dentro de sua cabeça os números desfilam incessantemente, maldosos, colocando-se em colunas, e somando-se e diminuindo-se sem o auxílio de Kringelein. Kringelein possui um caderninho que trouxe de Fredersdorf, diante do qual fica sentado durante horas. Nele anota as suas despesas, as despesas absurdas de um homem que aprende a gozar a vida, que gasta em dois dias o ordenado de um mês. Sente com frequência tonturas tão fortes que tem a impressão de ver as paredes forradas com tapeçaria de tulipas caírem em cima dele. Por vezes fica sentado na borda da cama, pensando que vai morrer em breve. Seu pensamento vai-se concretizando, e então, assustado, fica com as orelhas geladas, entortando os olhos, cheio de medo e angústia. Não consegue, entretanto, fazer a mínima ideia do que é a morte. Tem esperanças de que não seja muito diversa de uma narcose, com a diferença de que, após a narcose, a gente desperta, sente náuseas, e sobrevêm as dores (Kringelein batizou-as secretamente de dores azuis); espera também que todos esses vexames, bem seus conhecidos, sejam sofridos antes, e não depois. Depois de meditar em tudo isso, principiou a tremer; de fato, sucede por vezes a Kringelein tremer com medo da morte, apesar de não conseguir imaginar como ela seja.
Há muita insônia por detrás das portas duplas fechadas do hotel adormecido. Precisamente a essa hora, o Dr. Otternschlag coloca no lavatório uma pequenina ampola de injeção, joga-se na cama e esvai-se na leve nebulosidade das regiões morfínicas. Mas o Maestro Witte, cujo quarto, o 221, fica na ala esquerda, não consegue adormecer. Os velhos dormem pouco. Seu aposento fica exatamente defronte ao do Dr. Otternschlag, e em sua parede também gorgoleja a água; o elevador ronca aos solavancos. É quase um quarto de empregados, o quarto onde se hospeda. Sentado à janela, encosta na vidraça a testa abaulada de músico e fica olhando fixamente a parede fronteiriça. Trechos de uma sinfonia de Beethoven vêm-lhe à memória — nunca a dirigiu. Ouve Bach — o monumental "Crucifica-o", da Paixão de São Mateus. "Malbaratei a minha vida!", pensa o velho Witte. E toda a música que não foi cantada em sua vida se concentra em sua garganta, num aglomerado amargoso, que ele traga com esforço. Às oito e meia da manhã é o ensaio. Sentado ao piano, precisa repetir sempre a mesma marcha para os pliés das mocinhas, sempre a mesma Valsa da primavera, a Mazurka, a Bacanal. "Devia ter abandonado Elisavieta enquanto era tempo", pensa ele; agora não era mais possível. Elisavieta já estava velha e não se podia abandonar uma mulher idosa. Agora era preciso aguentar junto dela o pouco tempo que ainda restava.
E Elisavieta Alieksandrovna Grussinskaia também não consegue dormir, sentindo o tempo correr, no meio da noite, apressado, incessante; há dois relógios a tiquetaquear no quarto escuro: um de bronze, na escrivaninha, e o reloginho-pulseira, no criado-mudo. Ambos marcam os mesmos segundos e, no entanto, um bate mais depressa do que o outro, o que provoca palpitações do coração, quando se presta atenção ao seu tique-taque. Grussinskaia acende a luz, levanta-se, enfia os pés nos chinelos acalcanhados e vai até o espelho. No espelho também se evidencia o tempo, principalmente no espelho. Evidencia-se ainda nas críticas, na horrível falta de delicadeza da imprensa, no sucesso das bailarinas feias e com luxações, que estão agora na moda, no déficit das tournées, nos fracos aplausos, na maneira vulgar com que Meyerheim, o manager, se exprime — em toda parte, em toda parte se evidencia o tempo. Nas articulações fatigadas dos pés estão os anos passados a dançar; também na respiração opressa à trigésima segunda pirueta clássica; e também no sangue que, com frequência, nas ondas de calor da idade crítica, atravessa a garganta e aflui às faces. Faz calor no quarto, apesar de estar aberta a porta da varanda. Lá fora, as buzinas dos automóveis gritam durante toda a noite. A Grussinskaia tira seu adereço de pérolas da pequena suitcase, dois punhados de pérolas frias, e encosta-as ao rosto. Não adianta; as pálpebras continuam quentes, coloridas pela pintura e a iluminação da ribalta; os pensamentos são como gumes penetrantes; os dois relógios disparam como cavalos a galope. Sob o queixo, a Grussinskaia tem uma atadura de borracha; suas mãos e lábios estão cheios de creme. Olha-se ao espelho quando passa por ele, e acha-se tão feia que apaga depressa a luz. No escuro, engole um veronal e desata num choro enraivecido, o pranto de uma mulher inconsolável e apaixonada. Depois, tomba sobre nuvens, e finalmente cai no sono.
Ao lado chegou alguém, no elevador, talvez o jovem de Nice. A Grussinskaia arrasta-o consigo em seu sonho pesado, sob a ação do veronal; o senhor do 69 — o homem mais belo que ela já viu em toda a sua vida.
Quando ele chega, vem assobiando baixinho, um assobio nada desagradável, exprimindo simplesmente alegria. Ao entrar no quarto fica mais cauteloso, veste o pijama e calça uns chinelos bonitos de couro azul; depois, desliza em silêncio, como um ser intermediário entre gato montes e moço bonito. Quando passa pelo hall, é como se num aposento gelado se abrisse uma janela ensolarada. Dança maravilhosamente bem, com frieza e paixão. Tem sempre no quarto algumas flores — adora as flores e gosta de sentir o seu perfume. Chega, por vezes, a lamber as suas pétalas tenras — como um bicho. Na rua, acompanha as moças com um andar bamboleante de pugilista, contentando-se, por vezes, em olhá-las, com enorme prazer; a umas, dirige algumas palavras, e a outras acompanha até a casa ou leva a um hotel de segunda classe. E quando, pela manhã, com uma expressão santarrona de gatão, entra no hall quase vazio do Grande Hotel, com ar distinto e morigerado, e pede a chave do quarto ao porteiro, este não pode deixar de sorrir. Às vezes vem bêbado, com uma bebedeira discreta e cheia de animação, que ninguém pode levar a mal. De manhã torna-se um pouco desagradável para quem está hospedado no quarto debaixo do seu, porque faz ginástica; ouve-se seu corpo cair no solo com um ruído suave, compassadamente. Usa pequeninas gravatas-borboleta, moles, e paletós bem folgados. Suas roupas caem sobre os músculos tão confortavelmente como a pele dos cachorros de raça pura. Por vezes sai em disparada no seu carrinho de quatro lugares, e não é visto durante dois dias. Passa horas e horas a perambular pelas agências de automóveis, observando os carros; enfia a cabeça sob a tampa, para ver o motor; aspira gasolina, óleo, metal em combustão; bate nos pneus; alisa a pintura brilhante, o couro da carroçaria — azul, vermelho, bege — e, se o deixassem sozinho, era capaz, talvez, de lamber tudo. Compra cordões de calçado a vendedores ambulantes, isqueiros inúteis, pequenas galinhas de borracha e dez caixas de fósforos. De repente tem desejos de ver cavalos; levanta-se às seis horas da manhã, vai de ônibus até Tattersall, fareja o ar repleto de poeira de serragem, de cheiro de arreios, estéreo e suor, trava amizade com algum cavalo, monta e vai até o jardim zoológico, fartando-se de passear em meio à neblina cinzenta da manhã, que paira sobre as árvores de março, e retorna mais calmo ao hotel. Já o encontraram no pátio dos empregados, atrás da escada de serviço, parado junto de uma lata cheia de água de lavagem e restos de comida, olhando para cima, para os cinco andares do hotel, até o lugar em que a antena está presa, sob o céu descolorido. Talvez tivesse alguma pretensão de conquistar a única camareira bonita do hotel; bonita, imoral e já despedida. Trava muitos conhecimentos entre os hóspedes do hotel, distribui selos, aconselha, no caso de excursões, leva em seu carro senhoras idosas, serve de parceiro no jogo de bridge, e é grande conhecedor dos vinhos do hotel. No dedo indicador da mão direita usa um anel com sinete de lápis-lazúli, com o brasão dos Gaigern, um falcão sobre ondas. À noite, quando se deita, conversa com os seus travesseiros, em dialeto bávaro. "Gruess Gott", diz ele, aproximadamente, "boa noite, você é muito boazinha, minha querida cama, e muito ajuizada." Adormece logo, e nunca incomoda os vizinhos com roncos inconvenientes, gargarejos e botinas atiradas ao chão. Seu chofer costuma contar, lá embaixo, na sala dos despachos, que o barão é um homem muito correto, mas bastante simplório. No entanto, também um Barão Gaigern, por detrás de portas duplas, tem seus segredos e seus escaninhos ocultos.
— Não há nada de novo? — perguntou ao chofer. O barão está no meio do tapete, completamente nu, fazendo massagem nas coxas. Tem uma plástica magnífica, com a caixa torácica um tanto abaulada, como a dos pugilistas; a pele de seus ombros e das pernas é morena, e só entre as coxas e o tronco há uma zona clara, no lugar em que um maio lhe cobriu o corpo durante o verão. — Então, você não sabe de nenhuma novidade?
— Ora, basta! — respondeu o chofer, que estava deitado na chaise-longue coberta com uma imitação de Kilim, o cigarro colado ao lábio inferior, pois estava fumando. — Você pensa que eles vão ficar esperando eternamente em Amsterdam? Schalhorn já desembolsou cinco mil marcos, você pensa que isso vai continuar indefinidamente? Emmy está entocada há um mês em Springe, à espera da nossa encomenda. Em Paris foi uma porcaria. Em Nice foi uma porcaria. Se você hoje não conseguir nada, vai ser de novo uma porcaria. Se Schalhorn não receber os cinco mil, vai achatar-nos.
— Schalhorn é o chefe? — perguntou o barão calmamente, despejando água-de-colônia nas palmas das mãos.
— Um chefe tem de ser atirado, é o que eu digo — rosnou o chofer.
— Tem de ser atirado quando está na hora de agir, é verdade. Não gosto da maneira como você e Schalhorn trabalham, não concordo. É por essa razão que acontece sempre alguma coisa com vocês. Comigo nunca aconteceu nada e Schalhorn sempre recebeu a parte que lhe cabe. Se Emmy está nervosa em Springe, não me serve, foi o que lhe disse a última vez. Se ela nem é capaz de ficar sossegada na sua loja de objetos de arte aplicada, enquanto manda Moehl copiar os engastes antigos...
—- Pouco nos importam os engastes antigos. Trate antes de trazer as pérolas, depois pode mandar fazer os engastes antigos. Isso tudo foi ideia sua. Primeiro, parecia que tudo ia dar certo, as pérolas valem meio milhão. Bom, se descontarmos dois meses de despesas, ainda sobra alguma coisa. Talvez seja mais fácil livrar-se delas em engastes antigos, bom, concordo. Agora, Moehl, lá em Springe, está copiando as joias da sua avó, Emmy está ficando maluca, Schalhorn está ficando louco. Não confie nessa mulher; ela é bem capaz de lhe pregar uma peça, se perder a paciência. Então, quando vai ser a coisa? Quando é que o senhor barão vai parar de divertir-se e começar a trabalhar um pouquinho de novo?
— Você já está com apetite, hein? Já se esqueceu dos vinte e dois mil marcos de Nice, e está se arriscando a levar uma grande descompostura — disse o barão, ainda com bastante amabilidade; já tinha calçado meias de seda pretas, presas com ligas brancas de seda, e elegantes sapatos de verniz, com que costumava dançar. Mas ainda estava nu.
Qualquer coisa na sua nudez despreocupada e sem cerimônia excitava o chofer; talvez a queda suave dos ombros, ou o modo macio de as costelas se elevarem por sob a pele, enchendo de ar os pulmões. O chofer cuspiu a ponta do cigarro no meio do quarto e levantou-se.
— Quer saber de uma coisa? — disse ele, inclinando-se sobre a mesa. — Já estamos fartos de você. Você não é dos nossos. Você não leva nada a sério, compreendeu? Para você, tanto faz ir jogar ou apostar nas corridas de cavalos, surripiar com toda a gentileza a uma velha solteirona vinte e dois mil marcos ou ir buscar pérolas no valor de meio milhão; para você tanto faz. É tudo a mesma coisa, pensa você. Mas há uma diferença em tudo isso, quando alguém não sabe bancar o chefe. E se você não for embora por livre e espontânea vontade, será forçado a fazê-lo, compreendeu?
— Deita, já! — disse Gaigern amavelmente, e com um silencioso golpezinho de jiu-jítsu torceu o pulso do chofer. — Para ir-me embora não preciso de você. Preciso somente que você prepare o nosso álibi hoje à noite. Esta noite, às doze e vinte e oito, você pode partir para Springe com as pérolas, e de manhã, às oito e dezesseis, estará de volta. Às nove, mando que toquem a campainha no seu quarto, e você precisa ir logo para o batente; depois convidaremos qualquer pessoa para passear conosco. Se você pestanejar durante o escândalo que vai haver no hotel, amanhã, mando prendê-lo. Agora há pouco perguntei-lhe se havia alguma novidade.
O chofer, com estrias vermelhas em volta do pulso, pôs de novo a mão no bolso. Dava a impressão de não querer responder — mas respondeu.
— Ela agora costuma chegar ao teatro só às seis e meia, porque anda nervosa — rosnou ele, dominando-se a custo. — Depois do espetáculo há uma ceia de despedida na casa do embaixador francês. Não vai além das duas da madrugada. Amanhã, às onze, ela viaja, fica dois dias em Praga, depois segue para Viena. Estou realmente curioso para ver quando é que você vai surripiar as pérolas dela, entre o espetáculo e a ceia, se tudo correr sem percalços. Não existe no mundo um buraco tão favorável como esse pátio de teatro sem iluminação — acrescentou ele. Quis resmungar ainda qualquer coisa mas não olhou mais para o barão, que, nesse meio tempo, se transformara em um senhor de smoking.
— Ela não está mais usando as pérolas. Deixa-as no hotel — afirmou Gaigern, prendendo a gravata preta.
— Ela própria o contou a um repórter idiota que a foi entrevistar, você pode ler nos jornais.
— O quê? Ela as deixa simplesmente no quarto... não as entregou no hotel para serem guardadas no cofre? Como? Pode-se ir ao seu quarto buscá-las?
— É mais ou menos isso — disse o Barão Gaigern.
— Agora quero que me deixem em paz — disse ele cortesmente à boca idiota e espantada do seu companheiro. Via uma goela de um vermelho escuro e duas falhas de dentes. Sentiu um ódio ardente e repentino por aquela espécie de gente a que se ligara. Os músculos do seu pescoço se contraíram violentamente.
— Vamos — foi só o que disse. — Às oito, quero o carro em frente à porta principal.
O chofer, humilhado, olhou o rosto de Gaigern, e retirou-se, não dizendo nada do que queria dizer e que ficou entalado na sua garganta.
— O senhor do quarto 70 é inofensivo — murmurou como uma última consideração; e, com um movimento subserviente de lacaio, apanhou no chão o pijama azul.
— É um ricaço esquisitão, recebeu uma herança enorme e agora está esbanjando a fortuna.
O barão já não o ouvia mais. O chofer, supersticioso, parando entre as duas portas, cuspiu três vezes para trás; depois fechou o trinco sem fazer barulho.
Pouco antes das oito da noite, o barão apareceu no hall, animado e muito bem disposto, vestido de smoking e de impermeável azul. Nem mesmo Pilzheim, o detetive do hotel, desconfia que esse Apoio amável está preparando um álibi. O Dr. Otternschlag, que está bebendo café no hall com o extenuado Kringelein, antes de irem juntos ao espetáculo da Grussinskaia, com o dedo erguido em riste, aponta para o barão.
— Olhe, Kringelein: era assim que deveríamos ser
— disse ele, zombeteiramente e com inveja.
O barão põe um marco na mão do groom 18 e diz:
— Meus cumprimentos à senhorita sua noiva! — e se aproxima da portaria. O porteiro Senf olha para ele com expressão obsequiosa, mas sonolenta. É já a terceira noite que o porteiro Senf tem que esconder suas preocupações pessoais, por ter a mulher no hospital.
— O senhor arranjou para mim as entradas para o teatro? Quinze marcos? Muito bem — disse ele ao porteiro. — Se alguém perguntar por mim, estou no Teatro Alemão, e depois no Clube do Oeste. Vou ao Clube do Oeste — disse, e, dando dois passos, dirigiu-se ao Conde Rohna: — Imagine o senhor quem eu encontrei lá: Ruetzow, aquele sujeito alto! Ele esteve com o senhor e o meu irmão no batalhão Ulanos de 74. Está trabalhando agora no ramo de automóveis. Vocês todos são pessoas trabalhadoras; só eu é que sou um boa-vida, um lírio do campo, hein? O meu chofer está lá fora, porteiro?
Com o barão, entrou uma brisa quente pela porta giratória, e o hall sorriu com agrado para ele. Entrou no seu carrinho e partiu, atrás do álibi. Às dez e meia deram um telefonema para o hotel, do Clube do Oeste.
— Aqui fala o Barão Gaigern. Alguém perguntou por mim? Estou no Clube do Oeste, e só daqui a duas horas, ou um pouco mais tarde, chegarei ao hotel. Meu chofer pode ir deitar-se.
Ao mesmo tempo que essa voz preparava cavalheiresca e precavidamente um álibi, Gaigern estava colado à parede da frente do Grande Hotel, entre duas pedras que imitavam cantaria. Sua situação não era das mais cômodas, mas ele se sentia alegre, com a satisfação entusiástica do caçador, do lutador e do alpinista. Conservava para a sua empresa o pijama azul-escuro, despreocupadamente; calçava leves sapatos de pugilista, com solas de cromo, e por precaução enfiara, sobre eles, meias de lã, meias para esportes de inverno, que evitavam indesejáveis pegadas. Gaigern calculara o caminho para o quarto da Grussinskaia, da sua própria janela; devia ter pouco menos de sete metros, e ele já estava no meio do caminho. As pedras imitando cantaria do Grande Hotel eram cópias das lajes ásperas do Palazzo Pitti, e tinham uma aparência pomposa; se não se partissem agora, estava tudo bem. Gaigern colocava as pontas dos pés, cuidadosamente, nas reentrâncias do reboco. Usava luvas, que durante o percurso o estavam atrapalhando. Não podia tirá-las, enquanto subia pela parede do segundo andar como um escaravelho.
— Diabo! — exclamou ele, quando a argamassa e o reboco se quebraram sob as suas mãos, indo bater com um ruído seco no andar de baixo, no parapeito de metal de uma janela.
Sentiu a garganta seca e controlou a respiração, como um corredor da Aschenbahn. Firmou-se de novo, balanceou o corpo, durante um instante, sobre a ponta do dedo maior, com perigo de vida, e impeliu a outra perna meio metro para a frente. Assobiou baixinho. Estava agora excitadíssimo e por isso assobiava, fingindo sangue-frio, como um meninote. No principal, que eram as pérolas, ele não pensava de modo algum durante esses minutos. Afinal de contas, essas pérolas poderiam ser conseguidas também de outra maneira. Um soco na cabeça de Suzette, sobre seu chapeuzinho de feltro já cocado, quando ela saísse à noite do teatro, com a suitcase. Um assalto à noite ao quarto da Grussinskaia; finalmente, quatro passos pelo corredor, uma chave falsa e uma expressão inocente, ao ser descoberto em um quarto em que entrara por engano. Mas não era do seu feitio fazer isso, não o fazia de modo algum. "Cada um deve agir conforme a sua natureza", tinha dito Gaigern ao seu bando, procurando explicar-lhes seu modo de agir. Esse bando era um grupo de espertalhões, que há dois anos ele procurava conservar unido, mas estava sempre à beira da revolta. "Não gosto de pegar a caça na armadilha; não subo montanhas com corda. O que não posso ir buscar com minhas próprias mãos, tenho a impressão de que não é meu."
É natural que essa conversa provocasse uma atmosfera de incompreensão entre ele e o seu bando. A palavra "coragem" não era de uso corrente entre eles, apesar de cada um deles possuir uma boa dose de coragem. Emmy, em Springe, com sua cabeça dura como um coco, procurara certa vez explicar o que acontecia com Gaigern. "Para ele isso é um esporte", afirmava ela; e como tinha muita intimidade com Gaigern, devia ter razão. Pelo menos, nesse momento, às dez e vinte da noite, escalando a fachada do Grande Hotel, ele tinha o aspecto de um esportista, um turista numa passagem difícil, um chefe de expedição, avançando em local perigoso.
O lugar perigoso era a reentrância angulosa, por trás do banheiro da Grussinskaia. Ali, a fantasia do arquiteto idealizara uma superfície lisa: também não havia cornija na janela, o banheiro escondia-se numa reentrância, dando para aquele pátio, onde certa vez o barão foi visto a observar as antenas. Mas, depois desses dois metros e meio lisos, começavam já as barras de ferro da grade da varanda do 68. Ligeiramente arquejante, ora assobiando, ora soltando pragas, Gaigern parou na última saliência que lhe podia oferecer segurança, antes do trecho liso que se seguia. Os músculos de suas coxas tremiam, e nas articulações dos pés sentia a vibração quente e latejante provocada pelo violento esforço. Afora isso, estava satisfeito com a situação, pois tudo correspondia ao que ele calculara uma centena de vezes.
Gaigern não podia ser visto lá de baixo, naquela rua formigante de gente da grande cidade, porque estava completamente protegido pelo enorme refletor que o hotel mandara colocar na fachada, há pouco tempo. Quem olhasse para cima ficaria ofuscado pelos feixes claros da luz. Era completamente impossível perceber uma figurinha azul-escura, por detrás dessa luz agressiva, a se mover na sombra. Gaigern tinha visto, num teatro de revistas, o truque de um mágico que enviara na direção do público uma luz ofuscante como essa, enquanto, diante do pano de fundo de veludo escuro, executava suas mágicas, serrando moças ao meio e fazendo voar esqueletos no palco. Gaigern descansou atrás do segundo refletor e olhou para a rua, lá embaixo; do ponto em que estava, enxergava aquele trechinho do mundo completamente contorcido e achatado. A parede que descia reta olhava para ele com uma aparência hostil e maldosa. Inclinou a cabeça justamente nesse momento, e olhou para baixo, prendendo a respiração, sem piscar sequer. Não tinha a menor sensação de vertigem; apenas no pulso, por debaixo das luvas, a vibração suave e excitante, bem conhecida dos alpinistas. A torre redonda de Ried, no castelinho de Gaigern, era mais alta ainda. Quando ele fugia à noite de Feldkirch, era preciso escorregar pelo para-raios. Os Drei Zinnen, nos Dolomitos, também não eram brincadeira. Os dois metros e meio até o terraço não eram fáceis de atravessar, mas havia coisa pior. Gaigern não olhou mais para baixo, e ergueu os olhos por um momento. Defronte, um anúncio luminoso, contínuo, passava no telhado, e de uma taça de champanha borbulhavam lâmpadas elétricas, como espuma. Céu, não havia; a cidade terminava ali mesmo, junto aos telhados, fios e antenas. Gaigern moveu os dedos dentro da luva; estavam colados, provavelmente sangravam. Experimentou respirar, e conseguiu de novo. Concentrou suas forças, retesou os músculos e, com um salto de peixe-voador, lançou-se no vácuo. O ar zuniu de encontro aos seus ouvidos, e em seguida suas mãos agarraram as barras de ferro da varanda, que lhe cortaram os dedos, com suas arestas. Deixou-se ficar pendurado durante um segundo, com o coração a palpitar com força, e depois, com um impulso, pulou por sobre a varanda e soltou o corpo. Sim, agora se encontrava na varanda, diante da porta aberta do quarto da Grussinskaia.
— Até que enfim! — exclamou satisfeito, deixando-se ficar onde tinha caído, no pavimento de pedra da varandinha; aspirou profundamente o ar, abrindo a boca; ouviu um avião roncar bem por cima dele, e viu acima de seus olhos abertos os reflexos redondos da luz da cabina passando silenciosamente por entre as nuvens avermelhadas da grande cidade. A rua mandava para cima um ruído compacto e cheio — Gaigern sentiu-se por uns instantes em uma ilha de cansaço e de semi-inconsciência —, lá embaixo as buzinas dos automóveis disputavam a passagem, porque a Liga dos Filantropos dava uma festa, no pequeno salão, e muitas capas de noite se moviam como escaravelhos dourados, saindo pelas portas dos carros, subindo três degraus e entrando pelo portal. "Santo Deus, o que eu daria agora por um cigarro!", pensou Gaigern com os nervos frouxos; mas de modo algum podia pensar nisso agora. Ainda deitado, puxou a luva da mão direita e começou a chupar o corte do indicador; uma pata sangrando não tinha a menor utilidade para o seu trabalho. Engoliu com raiva o gosto sutil de metal, e suas costas úmidas sentiram o frescor agradável do pavimento de pedras. Por entre as grades da varanda, mediu o trecho que percorrera, e calculou o difícil retorno. Trouxera uma corda. Depois, seria preciso sair depressa da varanda, e, com um impulso de pêndulo, cair do outro lado. "Parabéns!", disse a si mesmo, no tom amável de oficial de Exército da sua vida passada. Tornou a calçar as luvas, como a se preparar para uma visita de cerimônia, levantou-se e passou da varanda para o quarto da Grussinskaia. A porta não se moveu, apenas a cortina ficou levemente enfunada; as tábuas do soalho também se conservaram caladas e acolhedoras. No quarto às escuras, tiquetaqueavam dois relógios, um quase duas vezes mais depressa do que o outro. Havia um cheiro forte de enterro e de forno crematório. Do anúncio luminoso do lado oposto caía um clarão triangular amarelado sobre o chão, até à borda do tapete. Gaigern tirou do bolso uma lanterna barata de forma cilíndrica, como essas que as cozinheiras usam, nas suas levianas rondas noturnas, e iluminou o quarto com cuidado. Graças ao seu curto diálogo com Suzette, à entrada do aposento, já conhecia a disposição dos móveis. Dispusera-se a descobrir todas as perfídias desse quarto, a procurar as pérolas em todos os esconderijos, a forçar fechaduras de malas, a arrombar portas de armários e a decifrar segredos de fechaduras. Mas, ao seguir o fio de luz oval da lâmpada de bolso e avistar a própria imagem triplicada no espelho, em sua frente, ficou agradavelmente surpreendido, com uma surpresa quase cômica.
Na mesinha do espelho estava pousada a suitcase, calma e desprotegida, e o filete de luz brincava inocentemente sobre o seu couro. "Vamos com calma!", pensou Gaigern, e isso significava uma ordem de comando, porque sentia a febre do caçador ferver dentro de sua cabeça. Primeiro enfiou no bolso a mão direita sangrando, como se fosse um objeto; tinha de conservá-la ali dentro, pois era preciso impedi-la de fazer qualquer travessura e de deixar vestígios. Colocou a lanterna na boca. Com a mão esquerda enluvada, pegou cuidadosamente a suitcase. De fato lá estava ela, podia apalpar com os dedos o seu couro de um brilho fosco. Ergueu a malinha, que não estava vazia. Apagou a lanterna, largou-a, e ficou pensando um momento. O quarto cheirava a enterro, um cheiro que fazia parar a respiração, um cheiro de avô morto e de solene panegírico de cerimônia fúnebre. Gaigern pôs-se a rir no escuro, quando compreendeu. "Louros!", pensou ele, fazendo suas as palavras de Suzette. "Madame recebe muitos louros, monsieur. O embaixador francês enviou-nos uma enorme cesta de louros." Ajoelhou-se diante do guarda-roupa — mas, dessa vez, as tábuas rangeram, maldosas e vivas — e com a mão esquerda agarrou a maleta no escuro. "Não, não", pensou ele, largando-a de novo. Essas coisas dão azar. Pastas, malas, carteiras de dinheiro são coisas nefastas; custam a queimar, flutuam nos rios em que são atiradas, são encontradas nas águas do esgoto pelos encarregados da limpeza dos canais, e acabam parando nas mesas dos tribunais, como desagradáveis corpos de delito. Além disso, uma suitcase pesando cerca de dois quilos não era nada cômoda de se carregar nos dentes, quando era preciso atravessar dois metros e meio de uma fachada lisa e escorregadia. Gaigern retirou a mão e pôs-se a refletir. Acendeu a lanterna e ficou olhando a fechadura dupla da maleta, absorto. Deus sabe que segredos a Grussinskaia teria para fechar o seu tesouro. Gaigern pegou as ferramentas e empurrou o disco redondo e metálico da fechadura.
A fechadura abriu.
A maleta não estava fechada a chave.
Gaigern assustou-se com o pequeno estalido, que não esperava em absoluto; ficou com uma cara de imbecil.
— Ora vejam, ótimo! — disse ele duas ou três vezes. — Ora vejam, ótimo! — levantou a tampa e apertou o botão do estojo de joias; de fato, lá estavam as pérolas da Grussinskaia. Afinal, não eram tantas assim, apenas um punhadinho de bolinhas cintilantes, caso se prestasse bem atenção; de modo algum correspondiam à lenda que haviam espalhado a respeito desse presente de um grão-duque assassinado, para enfeitar o pescoço de uma bailarina. Um lindo e antiquado sautoir, um colar de pérolas de tamanho médio, mas bem iguais, três anéis, um par de brincos de pérolas enormes, incrivelmente redondas; preguiçosamente pousadas no seu leitozinho de veludo, elas descansavam, enquanto a lanterna as fazia cintilar com um brilho amortecido. Com extrema precaução, Gaigern tirou-as do estojo com a mão esquerda enluvada e enfiou-as no bolso. Parecia-lhe sumamente ridículo encontrar as pérolas largadas em uma maleta aberta, e chegou a sentir uma espécie de desilusão ou indiferença, o cansaço de uma exagerada tensão que não teria sido necessária. Durante um instante ficou pensando se não seria melhor experimentar sair simplesmente do quarto, regressando ao seu aposento pelo corredor. "Talvez essas mulheres tenham deixado também a porta do quarto aberta", pensou ele, com o mesmo sorriso de incredulidade que punha a descoberto seus dentes superiores, dando ao seu rosto uma expressão tola e infantil, desde que avistara as pérolas.
Porém a porta estava fechada. No corredor ouvia-se, a espaços irregulares, o elevador subir e — clique — fechar a grade, porque o quarto 68 ficava defronte dele, em diagonal. Gaigern sentou-se por uns minutos em um fauteuil, no escuro, recuperando forças para o retorno. Sentia um enorme desejo de fumar, o que era impossível naquele momento, para não deixar vestígios de cheiro do cigarro. Tinha a precaução de um selvagem a guardar o seu tabu. Pensou em uma infinidade de coisas ao mesmo tempo, e, com mais lucidez, no armário de armas de seu pai. Na prateleira superior, ficavam sempre as grandes latas de tabaco herzegovino, e em dias alternados o velho Barão Gaigern colocava em cada lata uma fatia de cenoura. Gaigern sentiu por momentos o perfume adocicado e penetrante daquele tabaco, e retornou ao lar, descendo as escadas lustrosas de Ried, deixando-se ficar esquecido, durante um bom tempo, a recordar-se do tempo em que era ainda um voluntário de dezessete anos e fumava fechado em seu quarto. Sem usar de delicadezas, tratou de retornar ao seu empreendimento. — Atenção! — disse a si mesmo. — Nada de cochilos. Vamos! — Pôs-se a chamar-se por apelidos, dirigindo-se a si próprio com amizade e carinho, elogiando e xingando os membros de seu corpo.
— Seu porco — repreendeu o dedo cortado, que estava colando e sangrava; — seu porco, não pode me deixar em paz? — E dando palmadinhas nas coxas, como se acariciasse cavalos, elogiava-as: — Vocês são muito boazinhas, são animais valentes, bons animais. Atenção!
Afastou-se do aroma de louros do 68, meteu o nariz na varanda, farejando, e suas narinas aspiraram aquele indefinível odor de Berlim, em março, um cheiro de gasolina e de umidade de jardim zoológico. Enquanto se enfiava por entre as cortinas levemente enfunadas, pôde observar que as coisas não se apresentavam exatamente como deviam. Só após alguns segundos percebeu com clareza que batia agora em seu rosto e seu corpo uma claridade que há pouco não havia ali; viu os reflexos sedosos nas mangas do seu pijama, e insensivelmente voltou com toda a presteza para a escuridão do quarto, como um animal atingido por uma réstia de luz, que se esgueira, a farejar, na escuridão da mata. Estacou, ofegante e com os músculos tensos. Ouvia com extrema nitidez o tique-taque dos dois relógios, e em seguida, muito ao longe, e a distância, na enorme cidade, o relógio da torre de uma igreja bater onze horas. As paredes das casas do outro lado da rua ora se iluminavam, ora escureciam, pestanejando e fazendo prestidigitações.
— Que porcaria! — rosnou Gaigern, indo para a varanda, e mostrando-se impaciente desta vez, e muito senhor de si, como se estivesse em casa, no 68.
Os refletores haviam desaparecido. A nova instalação elétrica estava mais uma vez a fazer das suas; no salãozinho de festas, a Liga dos Filantropos estava no escuro, e no porão os eletricistas se esforçavam inutilmente por descobrir o que havia na instalação elétrica. Lá embaixo, na rua, um punhado de gente olhava divertida para a fachada do hotel, onde os quatro refletores se acendiam e se apagavam alternadamente. Um guarda acorrera. Os automóveis excitavam-se, porque o leito da rua não estava livre. O anúncio luminoso, do outro lado, cintilava graciosamente, derramando champanha em profusão no meio da noite, esforçando-se por iluminar a fachada do hotel e torná-la visível. Finalmente, dois homens de blusão azul saíram se arrastando de uma janela da sobreloja, sentaram-se sobre a coberta de vidro, que avançava do portal, e começaram a examinar a instalação que não funcionava. O caminho de volta, pelos sete metros da fachada do hotel, que agora criara vida, estava fechado. "Parabéns!", pensou Gaigern de novo, rindo com raiva. "Agora tenho que ficar aqui dentro. Agora tenho de arrombar a porta, se quiser sair daqui."
Foi buscar sua ferramenta e a lâmpada, experimentou com todo o cuidado desprender a fechadura, em redor do buraco da chave do 68, mas sem êxito. Um penteador ao lado da porta criou vida, caindo com um deslizar sedoso sobre o seu rosto, assustando-o horrivelmente. Ele sentiu as artérias do pescoço agitarem-se como máquinas. O corredor também despertara. Estava cheio de ruído de passos, de tosse, o elevador rangia, subia, descia, subia, descia. Uma camareira falou qualquer coisa, passou correndo, outra respondeu. Gaigern abandonou a fechadura enfeitiçada, e se esgueirou de novo para a varanda. Três metros abaixo dele os eletricistas cavalgavam a coberta de vidro, com fios na boca, muito admirados lá da rua. Gaigern fez uma das suas grandes brincadeiras. Inclinou-se sobre o parapeito e gritou:
— O que aconteceu com a luz?
— Curto-circuito — respondeu um eletricista.
— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Gaigern.
Lá de baixo, encolheram os ombros. "Idiotas", pensou Gaigern, furioso. O modo fanfarrão e convencido desses dois sujeitos impertinentes, sobre a coberta de vidro, desgostava-o profundamente. "Em dez minutos eles vão desistir", pensou; olhou ainda um momento para baixo, e depois entrou de novo no quarto. De repente, teve a sensação de estar em perigo, mas isso durou apenas um segundo — e desapareceu. Ficou parado no meio do quarto, com suas meias de lã que não deixavam pegadas.
"Só não posso pensar em dormir", pensou ele. Para conservar-se desperto, tirou do bolso as pérolas, que estavam quentes pelo contato de seu corpo, e descalçou as luvas, porque sentiu desejos de apalpar aquela superfície lisa e preciosa. Seus dedos se deliciaram. Ao mesmo tempo lembrou-se de que o chofer não conseguiria apanhar o trem para Springe, e era preciso fazer outros planos. Estava saindo tudo diferente do que ele tinha planejado. As pérolas não estavam fechadas na maleta, não lhe haviam dado nenhum trabalho, e a pequena escalada tinha sido demasiada para isso. Em meio aos seus pensamentos, veio-lhe uma ideia que o fez sorrir. "Que espécie de mulher é essa?", pensou ele. "Que espécie de mulher é essa, que simplesmente deixa suas pérolas largadas no quarto?" Sacudiu a cabeça, admirado, e deu uma risada surda. Conhecia muitas mulheres; mulheres agradáveis, mas que não provocavam nenhuma admiração. Uma mulher que saía, deixando tudo o que possuía perto da porta da varanda, aberta, ao alcance de qualquer um, era para ele uma coisa fantástica. "Deve ser desleixada como um cigano", pensou. "Ou deve ter um grande coração." Apesar de tudo, sentia sono. Por entre a escuridão, encaminhou-se para a porta, levantou do chão o penteador que tinha caído e o cheirou com curiosidade. Um perfume desconhecido, sutil e acre, muito tênue, se desprendia dele, e não combinava com a mulher de tarlatana que aborrecera tantas vezes Gaigern nos espetáculos de balé. Aliás, ele desejava a essa Grussinskaia tudo de bom, não sentia antipatia por ela. Pendurou o penteador negligentemente, deixando dez levianas marcas digitais na seda, e se encaminhou lentamente para a varanda. Lá embaixo os dois morcegos azuis ainda batiam as asas em torno do seu curto-circuito. "Bom divertimento!", desejou Gaigern a si próprio — e conservou-se, até segunda ordem, de pé, entre o reposteiro e a cortina de renda, ereto e desperto como um soldado na guarita.
Kringelein olhava para o palco, por detrás das suas lunetas. Lá em cima passavam-se coisas muito estranhas, e com enorme rapidez. Ele gostaria de observar com mais atenção uma das moças, a moreninha da segunda fila, que sorria sempre, mas não era possível. Não havia intervalo no ballet da Grussinskaia, tudo cintilava e saltitava incessantemente, em enorme confusão. Por vezes as moças vinham em fila para os dois lados do palco, colocando as mãos, pendentes das articulações dos pulsos, sobre a fímbria dos saiotes, para ceder lugar à própria Grussinskaia.
Depois, ela veio se aproximando a voltejar, com o rosto e os braços de um branco de cera, sobre as pontas dos pés que se fincavam nas tábuas do palco com tanta firmeza e segurança como se estivesse sendo fixada ali, com uma chave de parafuso. Finalmente, desapareceu por completo o seu rosto, e ela se transformou em um pião branco com listras prateadas. Kringelein sentiu o estômago um pouco enjoado, antes mesmo que a dança terminasse.
— Magnífico! — disse ele, admirado. — Ótimo! Que agilidade ela tem nas pernas! É perfeita. É de se ficar mesmo extasiado! — Sentiu uma grata admiração, apesar de não estar passando muito bem.
— O senhor está gostando realmente? — perguntou o Dr. Otternschlag, aborrecido. Estava sentado no camarote, com a face metralhada virada para o palco, e o seu aspecto, aos reflexos amarelos da luz dos refletores vinda do palco, era de arrepiar. Realmente, era difícil a Kringelein responder a essa pergunta.
Para ele, desde o momento em que entrara no quarto 70, tudo no mundo parecia irreal. Tudo tinha sabor de sonho e de febre. Tudo se movimentava depressa demais, sem cessar, não chegando a satisfazê-lo completamente. Otternschlag, em vista de seus contínuos pedidos de conselho e de companhia, arrastara-o desde manhãzinha por todas as excursões costumeiras, um giro em redor da cidade de Berlim, museus, Potsdam e, no fim, a subida à torre da emissora, onde o vento soprava a três vozes, e donde se divisava Berlim estendida sob um lençol de névoa de fuligem, bordado de luzes. Kringelein não se admiraria nada se acaso despertasse e se encontrasse de novo, após uma pesada narcose, no leito do hospital. Sentia os pés gelados; tinha as mãos endurecidas pelo frio e o queixo rijo. Sua cabeça era um globo quente, dentro do qual haviam atirado coisas demais, e começava a sibilar e derreter-se.
— Está satisfeito agora? Sente-se feliz? Está contente com a vida? — perguntava Otternschlag de tempos em tempos. E Kringelein respondia, atento e obediente:
— Sim, senhor.
O teatro, nessa noite do quinto espetáculo da Grussinskaia, tinha pouca gente, estava praticamente vazio. A plateia, com raros espectadores, parecia carpida, como se tivesse sido comida pelas traças. Na primeira fila, a gente sentia frio e se envergonhava, no meio de tantas cadeiras vazias. Kringelein sentia frio e vergonha. Além da frisa do proscênio, que tinham comprado a conselho de Otternschlag — Kringelein desse momento em diante só queria ocupar os melhores lugares, no cinema bem atrás, no teatro bem na frente, e no ballet na primeira fila —, além da frisa deles, que custara quarenta marcos, só havia mais uma ocupada, a do empresário Meyerheim, que nessa noite economizara a claque, que não adiantava mais: o déficit já era bem grande. Antes do intervalo principal uns escassos aplausos. Pimenoff mandou subir depressa o pano e a Grussinskaia apareceu e sorriu: sorriu para uma plateia silenciosa, porque os fracos aplausos haviam morrido ao nascer, e já todos se dirigiam, apressados, para a saída que dava para o bufê. No semblante da Grussinskaia também parecia ter morrido alguma coisa, quando ela ficou no palco agradecendo aplausos que já haviam cessado. Por sob o suor e a pintura, sua pele enregelou. Witte pôs de lado a batuta e subiu correndo pela escadinha que levava ao palco. Estava preocupado com Elisavieta. Lá em cima, Pimenoff dava a impressão de estar assistindo a um enterro, os operários do palco roçavam armações de cenário nas costas do seu velho fraque, curvado e justo no corpo __todas as noites ele vestia para os espetáculos o seu fraque, como se o Grão-Duque Serguei ainda fosse chamá-lo à frisa. Michael, com uma pelezinha pintalgada, imitando pele de leopardo, sobre o ombro esquerdo, e as coxas nuas e empoadas, esperava ao lado do inspetor, em atitude humilde. Todos tremiam de medo, esperando um dos acessos de cólera da Grussinskaia; os joelhos, as mãos, os ombros e os dentes de todos eles tremiam realmente.
— Desculpe-me, madame — sussurrou Michael —, pardonnez-moi. O culpado fui eu. Eu a fiz irritar-se.
A Grussinskaia, que vinha se aproximando com o olhar absorto, arrastando atrás de si o velho casaco de lã, por entre a poeira e o ruído do palco onde estavam desmontando o cenário, parou ao lado dele e o olhou com uma doçura que assustou a todos.
— Você? Não, querido — disse ela em voz baixa, pois necessitava concentrar e fortificar a voz, que se debilitara com o cansaço e que ela ainda não recuperara após o esforço da última e dificílima dança. — Você foi muito bem. Está hoje em ótima forma. Eu também. Nós todos nos portamos muito bem...
Virou-se de repente e caminhou apressadamente para longe dali, levando consigo a frase inacabada, até a escuridão do fundo do palco. Witte não teve coragem de segui-la. A Grussinskaia sentou-se no degrau de uma escada de madeira pintada de dourado, largada lá atrás, no meio de um montão de trastes, e ali ficou, durante todo o tempo que durou a montagem do novo cenário. Primeiro colocou as mãos sobre a malha de seda cor de carne que cobria suas panturrilhas, amarrou mais uma vez, mecanicamente, os cordéis cruzados das sapatilhas e em seguida acariciou durante alguns minutos a perna fatigada, coberta de seda e levemente suja, distraída e com certa piedade, como se fosse um animal estranho. Depois tirou as mãos da perna e pousou-as no pescoço nu. Sentia uma enorme falta das pérolas. Para acalmar-se costumava passa-las pelos dedos, como um rosário. "Que mais? Que mais? Que querem vocês ainda?", pensou ela no seu íntimo. "Não posso dançar melhor do que dancei hoje. Nunca dancei tão bem como agora. Nem quando era jovem, nem em São Petersburgo, nem em Paris, nem na América. Naquele tempo eu era tola, e não me esforçava muito. Agora
— oh, agora eu trabalho realmente. Agora eu sei o que faço. Agora sei dançar. Que querem de mim? Mais ainda? Mais do que isso eu não tenho. Deverei dar de presente as pérolas? Devo doá-las? Pois que seja, Ah! Deixem-me em paz, vocês todos. Estou cansada."
— Michael — murmurou ela, ao ver esgueirar-se uma sombra que reconheceu por trás do pano de fundo descido.
— Madame? — perguntou Michael, com tato e timidez. Já tinha trocado de roupa, agora vestia um gibãozinho de veludo e trazia o arco e a flecha na mão, porque, após o intervalo, tinha de principiar a Dança do arqueiro.
— Não quer ir aprontar-se, Gru? — perguntou ele, esforçando-se o mais possível por não deixar transparecer na voz qualquer sentimento de piedade ao avistar a Grussinskaia, pequenina e aniquilada, encolhida no meio de todos aqueles trastes. As campainhas dos inspetores tocaram em oito pontos diferentes ao mesmo tempo.
— Michael, estou cansada — disse a Grussinskaia.
— Estou com vontade de ir para o hotel. A Lucille que dance o meu número. Ninguém se incomodará com isso. Para essa gente, tanto faz eu como qualquer outra dançar.
Michael levou tal susto, que todos os músculos de seu corpo se retesaram. A Grussinskaia, ali no seu degrau, tinha os olhos perto dos joelhos do moço, e viu que o músculo da sua coxa se arredondou, contraindo-se sob a pele. O movimento inconsciente desse corpo que ela conhecia tão bem consolou-a um pouco. Michael, pálido sob a pintura, disse:
— Nonsense!
O susto o fez tornar-se indelicado. A Grussinskaia pôs-se a sorrir docemente, estendeu um dedo e tocou a perna de Michael.
— Quantas vezes eu já lhe disse que você devia dançar de malha — replicou ela com estranha amabilidade, você nunca ficará bem agasalhado nem suficientemente flexível, sem a malha. Acredite em mim, seu revolucionário.
Deixou a mão, durante alguns segundos, pousada sobre a pele quente e empoada daquele moço de vinte anos, sob a qual os músculos se moviam. Não, sua carícia não encontrou nenhuma repercussão. As campainhas tocaram pela terceira vez; no palco, atrás do pano de fundo com seus pequenos templos pintados, as sapatilhas das bailarinas já se aparelhavam sobre o tablado. No corredor do camarim, a medrosa Suzette corria de um lado para outro como uma galinha assustada, porque madame se deixava ficar sentada num canto, em vez de ir trocar de roupa. Witte, que já estava embaixo, no seu púlpito, pegou na batuta com mão trêmula, e, com o olhar fixo, ficou à espera do sinal vermelho para começar a próxima dança, que já estava atrasada.
— Em que o senhor está pensando? — perguntou o Dr. Otternschlag, lá em cima, na frisa. Kringelein havia se lembrado ligeiramente de Fredersdorf, da mancha de sol que costumava cintilar nas tardes de verão na parede lateral de um verde sujo da escura tesouraria, mas voltou imediatamente e com agrado a Berlim, ao Teatro do Oeste, à profusão de dourados que datavam da fundação do teatro, e à frisa de veludo vermelho, que custara quarenta marcos.
— Está com saudades? — perguntou Otternschlag.
— Nem penso nisso — replicou Kringelein com non-chalance e absoluta frieza. Embaixo, Witte levantou sua batuta, e a música começou.
— Que porcaria de orquestra — disse Otternschlag, a quem o papel de amável mentor, nessa triste noite de espetáculo de bailado, causava engulhos. Mas dessa vez Kringelein não se deixou influenciar. Estava gostando da música. Mergulhou na música como no banho quente do hotel. Sentia no estômago uma sensação de peso e de frio, como se tivesse nas vísceras uma bola de metal. Isso era apenas o sintoma grave, dissera o médico. Nem causava dores; conservava-se sempre no desagradável estado em que se espera uma dor que não vem. Isso era tudo. E uma coisa tão insignificante provocava a morte. A música vinha chegando até ele e o consolava um pouco, com os planíssimos das flautas sobre os trêmulos das violas. Kringelein, esquecendo-se de suas mazelas, mergulhou no mundo dos sons e elevou-se nas asas da música a uma atmosfera azulada de luar, com um pequeno templo pintado numa costa marítima. Lá embaixo, o programa continuava. Michael apareceu com seu traje de arqueiro, de coxas brancas como farinha e um gibãozinho de veludo marrom; distendia seu corpo de efebo, a pular em disparada pelo palco, com saltos de peixe-voador; elevava-se com elasticidade e subia aos ares como se estivesse a saltar sobre cordas esticadas. Pelos seus gestos alegóricos, percebia-se que ele queria atirar em um pássaro, uma pomba que pertencia ao pequeno templo. Atirou sobre o palco um fogo de artifício de saltos e de piruetas, e finalmente saiu correndo atrás de sua flecha, que atirara em direção do bastidor da direita.
Aplausos. Pizzicato na orquestra. A Grussinskaia aparece em cena. Ofegante e apressadamente, vestiu afinal o traje de pomba ferida, com uma enorme gota de sangue cor de rubi a oscilar em seu corpete de seda branca. Está mortalmente cansada, mas sente-se muito leve, levíssima, e corre com tênues e tremulantes batidas de braços, imitando asas, na direção da sua comovedora morte. Esforça-se, três vezes seguidas, para elevar-se aos ares, mas não consegue mais voar. Por fim, seu delicado e longo pescoço tomba para a frente, ela pousa a cabeça sobre o joelho, e morre, pobre pomba ferida mortalmente. E sobre o enorme ferimento em seu coração, o eletricista envia um efeito de luz, com um disco azul.
Desce o pano. Aplausos. Bastantes aplausos mesmo, considerando-se que o teatro está vazio, e que há muito poucas mãos para fazerem ruído.
— Da capo? — pergunta a Grussinskaia, que continua tombada no centro do palco.
— Não — murmura-lhe Pimenoff com um sussurro alto, desesperado e agudo, lá dos bastidores.
Os aplausos pararam. Acabou-se. A Grussinskaia jaz ali durante alguns minutos, leve como uma pluma, morta na dança, e cheia da poeira do tablado nas mãos, nos braços e nas têmporas. Pela primeira vez em sua vida não houve um da capo depois dessa dança. "Não posso mais", pensou ela. "Não, já chega o que eu fiz, não posso mais."
— Intervalo para desmanchar o cenário! — grita o chefe dos maquinistas. A Grussinskaia não tem vontade de levantar-se, deseja ficar ali caída, no meio do tablado, e adormecer, afastando-se de tudo com o sono. Finalmente, Michael aproximou-se dela, levantou-a e a fez ficar de pé.
— Spassibo — ("obrigada"), diz ela em russo, e, endireitando o corpo, afasta-se, dirigindo-se ao camarim das senhoras. Michael encaminha-se para o primeiro bastidor à esquerda e prepara-se para o pas de deux.
A Grussinskaia esgueira-se até seu camarim e, com a ponta da sapatilha, abre a porta; lá dentro, cai sentada na cadeira, diante do espelho, e fica a olhar, de olhos estarrecidos, para a ponta de seda empoeirada e ligeiramente puída da sapatilha. Seus pés estão cansados, indescritivelmente cansados, pesados, fartos, fartíssimos de dançar. Sob a luz forte da lâmpada do espelho aproxima-se o rosto envelhecido e preocupado de Suzette, com um frufru do traje para o pas de deux.
— Deixe-me — murmurou a Grussinskaia em tom seco. — Estou me sentindo mal. Não posso. Deixe-me! Deixem-me, todos vocês!... Dê-me qualquer coisa para beber — acrescentou ainda; tinha vontade de dar um tapa no rosto perplexo e murcho de Suzette, porque de repente achou que ele tinha uma semelhança, difícil de definir, com sua própria fisionomia. — Fiche-moi la paix! — disse ela em tom imperioso.
Suzette sumiu. A Grussinskaia ainda ficou ali largada alguns minutos; depois arrancou dos pés, de repente, as sapatilhas de seda. "Basta!", pensou, "basta! basta!"
De malha, com o traje de pomba, a Grussinskaia resolveu fugir — uma estranha fuga. Arrancara apenas os sapatos de ballet, calçando outros, e jogara aos ombros o velho casaco; e assim, com a garganta repleta de angústia, saiu do teatro. Suzette, ao vir correndo da cantina com um copo de vinho do Porto, encontrou o camarim vazio e em silêncio. No espelho estava um bilhete: "Não posso mais. A Lucille que dance em meu lugar". Suzette saiu pelo palco a tropeçar; em seguida, todos no teatro ficaram tresloucados durante dez minutos, mas depois o pano subiu e o programa foi executado, como em todas as noites: com danças nacionais russas, pas de deux e Bacanal. Pimenoff e Witte dirigiram o espetáculo como dois velhos generais, cujo soberano desertara, necessitando ocultar a retirada, após a derrota.
Mas enquanto no palco o corpo de ballet agitava seus véus bacânticos de musselina, espargindo no tablado, à medida que dançava, quatrocentas rosas de papel, enquanto Michael executava saltos faunescos e Suzette, no escritório do teatro, mantinha conversações perplexas com o chofer inglês Berkley — enquanto se passava tudo isso —, a Grussinskaia, cega, desesperada, empreendia a sua fuga, a tropeçar pela Tauentzinstrasse.
Berlim estava clara, ruidosa e repleta de gente. Berlim olhava para ela com curiosidade e ironia, observando seu rosto desfigurado, meio inconsciente. Berlim era uma cidade cruel, e a Grussinskaia, atravessando a rua, já mais calma, amaldiçoou a cidade. Apossara-se dela um tremor convulsivo, apesar de nessa noite de março a atmosfera estar cheia de umidade tépida, e seu velho casaco de lã estar desprendendo vapor. A Grussinskaia proferia breves palavras, soltas, soluçantes, que ficavam entaladas na garganta, causando dor. Ela pensou que estava chorando, mas não estava. Seus olhos, sob as pálpebras azuis, pintadas para a cena, ficavam cada vez mais quentes, cada vez mais secos. "Nunca mais", pensou a Grussinskaia, "nunca mais. Nunca mais. Basta. Acabou-se. Nunca mais." Caminhava rapidamente, com passos vacilantes, como se esse pensamento a perseguisse, abandonada pelas Graças, sem domínio sobre o corpo, que inclinava a cada passo que ela dava. A luz branca de uma loja de flores se estendia diante de seus pés, e ela parou e ficou olhando. Grandes jarros com ramos de magnólias, cactos, vasos sinuosos onde cresciam orquídeas. Um consolo? Não, não lhe vinha o mínimo consolo da suave beleza das flores. Tinha as mãos frias, só então percebeu, e começou a procurar as luvas nos bolsos do velho casaco. Era um gesto completamente sem sentido, porque há oito anos que só usava esse casaco no palco, para proteger-se contra a corrente de ar que sopra em todos os teatros do mundo. Teve uma visão de gambiarras, de portas de ferro sob a luz de lâmpadas muito fracas, de um declive forte e escorregadio do tablado, diante de seus pés. "Nunca mais!", pensou ela, "nunca mais! nunca mais!" O casaco fora de moda era comprido e cobria seu traje de bailado, mas atrapalhava-lhe os passos. Levantou-o um pouco quando se afastou da vitrina das flores e tomou inconscientemente o caminho de ruas mais calmas. Na sua caminhada, viu um Buda no mostrador de outra vitrina, querendo apaziguar o mundo da Grussinskaia, que se esboroava. "Nunca mais vou dançar, nunca mais, nunca mais." Para consolar-se, lembrou-se de nomes, que saíam como soluços de sua garganta. — Serguei! — exclamou ela — Gabriel, Gaston! — chamava pelos nomes de seus poucos amantes, por Anastásia, sua filha, e finalmente por Pompon, o seu netinho de Paris, que nunca tinha visto. Mas continuou sozinha e ninguém a consolou. De repente, parou, assustada. "Mas que estou fazendo?", pensou ela. "Saí fugida do teatro? Não pode ser. Não é possível. Vou voltar." No relógio de uma igreja soaram onze badaladas, pausadas e nítidas, bem perto dali, apesar de não se avistar nenhum campanário. A Grussinskaia tirou as mãos dos bolsos do casaco e deixou-as caídas diante de si; havia algo da morte da pomba ferida nesse gesto. É tarde demais, diziam as mãos. O espetáculo devia estar quase terminando. Endireitou a cabeça de novo, e olhou a rua em que sua fuga a atirara. Não sabia onde estava. Um portalzinho tinha uma moldura com letras amarelas, e o letreiro dizia: Bar Russo. Atravessou a rua, parou na entrada do bar, limpou o nariz como uma criança e se pôs a pensar. "Bar Russo", pensou ela, "e se eu entrasse? Eles me reconheceriam. Os membros da orquestra, vestindo blusas vermelhas, tocariam a Valsa Grussinskaia. Que sensação!"
"Sensação nenhuma", pensou logo depois, morta de tristeza. "Não posso entrar. Que aspecto eu tenho agora? Talvez ninguém me reconheça mais. E se me reconhecerem — como eu estou agora —, tant pis."
Fez sinal para uma pequena e mísera carruagem de aluguel, e com repentina expressão de frieza e fixidez no rosto, mandou seguir para o hotel.
Gaigern continuava ereto como uma sentinela, entre a cortina e o store do quarto 68, à espera de que os homens de blusão azul terminassem seu trabalho. Mas eles não terminavam. Arrastavam-se de um lado para outro pelas cortinas das janelas do primeiro andar, tinham trazido fios e pequenas tenazes, e gritavam com enorme afã "oh" e "aha", mas os refletores continuavam apagados. Em compensação, toda a fachada do hotel estava iluminadíssima pelos arcos voltaicos, pelas luzes da entrada dos cinco portões e do anúncio contínuo, lá defronte, que ora anunciava uma marca de champanha, ora um chocolate especial. Aliás, devia fazer uns vinte minutos que Gaigern estava esperando, quando a porta do quarto 68 se abriu e a luz se acendeu, e a Grussinskaia apareceu com um aspecto completamente normal e de acordo com o hotel.
6
Do ponto de vista de Gaigern, isso era uma porcaria em toda a extensão da palavra, um negócio imundo. O susto atravessou-o como uma faca gelada, enterrando-se pelas suas costelas e pelo estômago. Com os diabos, que tinha essa mulher que fazer no hotel, às onze e vinte da noite? Onde se iria parar, quando não se podia mais ter certeza absoluta da duração de um espetáculo teatral? "Que azar", pensou Gaigern, rangendo os dentes. De azar, ele tinha medo. E todas essas malditas complicações davam mesmo a impressão de que ele se encontrava numa incômoda e azarenta armadilha. Os reflexos do lustre coavam-se pela cortina de rendas, atrás da qual ele se encontrava, estendendo na varanda a sombra do desenho contorcido. Gaigern ordenou a si próprio calma e bom humor. O colar de pérolas, em seu bolso, adquirira calor humano. As pérolas corriam entre seus dedos, como ervilhas. Durante um instante teve a impressão de que era completamente absurdo e sem sentido julgar que esse punhado de bolinhas redondas de madrepérola valia uma fortuna. Quatro meses à espreita, sete metros em perigo de vida — e quando este perigo passasse, viria um outro, uma sequência de perigos. Uma cadeia de perigos, era isso a sua vida. Um colar de pérolas — a vida da Grussinskaia. Gaigern, sorridente, sacudiu a cabeça em meio à situação complicada em que se encontrava. Não era um pensador. Costumava sorrir para a vida com esse sorriso admirado e divertido, quase maluco. Sorria para a vida, que era uma coisa que ele não compreendia. No entanto, controlou-se, voltou-se por trás da cortina de rendas, pondo-se de frente para o quarto, e ficou à espera.
A Grussinskaia, primeiro, ficou parada quase um minuto no meio do quarto, bem debaixo das taças de vidro do lustre, e seu rosto dava a impressão de que se tinha enganado de quarto. Esperou até que o casaco de lã caísse pelo próprio peso ao longo de seus braços pendentes, e em seguida, passando por cima dele, aproximou-se da mesinha do telefone. Passaram-se alguns minutos até que ela conseguisse ligação para o Teatro do Oeste, e mais alguns minutos até que Pimenoff viesse ao aparelho; mas ela estava de tal modo cansada que não lhe era possível sentir impaciência.
— Alô, Pimenoff? É, sou eu, Gru. Sim, estou no hotel. Desculpe-me, sim? É, de repente me senti mal. O coração, compreende? Fiquei sem respiração. Sim, exatamente como em Scheveningen. Não, agora estou melhor. Deixei você em apuros, eu sei. Como dançou a Lucille? Como? Ah, regularmente. E o público? Que é que você disse? Não, não fico nervosa, você pode dizer se houve escândalo. Não? Nenhum escândalo? Tudo calmo? Poucos aplausos? Você está pensando em outro programa? Bom, depois falaremos nisso. Não, vou me deitar. Não, por favor, não mande o médico, nem Witte. Não, não, não! Não quero que venha ninguém, nem a Suzette. Quero apenas sossego. Vocês me façam o favor de ir à Embaixada da França, e peçam desculpas por mim. Obrigada. Boa noite, querido! Boa noite, Pimenoff! Escute, Pimenoff: dê lembranças a Witte. Ao Michael também. É, lembranças a todos. Não, não se preocupe comigo. Amanhã estará tudo bem de novo. Boa noite!
Colocou o fone no gancho.
— Boa noite, querido — disse mais uma vez, com voz muito baixa, julgando-se completamente só, naquele quarto de hotel.
Tinha sido o coração; "ela se sentiu mal", pensou Gaigern, que seguira a muito custo, e com atenção, aquelas frases apressadas, ditas em francês. "É por isso que ela veio de repente para cá, na pior hora. Está com uma aparência miserável, mesmo. Paciência. Ela vai se deitar, e então espero poder despedir-me. É preciso não perder a calma." Encostou-se com cuidado ao parapeito da varanda, e olhou para baixo. Os dois idiotas azuis continuavam lá, a se consultar. Haviam pendurado duas bonitas lanternas e parecia que estavam preparados para trabalhar muitas horas extras, durante toda a noite. O desejo que Gaigern tinha de fumar começou a aumentar doentiamente. Abriu a boca num bocejo, que se encheu de fumaça úmida de gasolina. A Grussinskaia, dentro do quarto, aproximou-se nesse momento do espelho de três folhas, em cujo aparador estava a suitcase vazia... A caixa torácica de Gaigern pareceu querer estourar, tão fortes eram as batidas de seu coração — mas ela empurrou a maletinha de couro para um lado, sem olhar para ela, acendeu a lâmpada sobre o espelho central, e se agarrou com as duas mãos à moldura do espelho, aproximando-se tanto dele, que dava a impressão de querer atirar-se por ele abaixo. A atenção com que observou seu próprio rosto tinha algo de penetrante, de ávido, de cruel. "Que animais esquisitos são as mulheres", pensou Gaigern, atrás da sua cortina. "Animais estranhíssimos. O que é que ela está vendo no espelho, para estar com uma expressão de tanto horror?"
Ele estava vendo uma mulher bela, incontestavelmente bela, apesar da pintura que lhe escorria pelas faces. Seu pescoço, principalmente, refletido duas vezes pelos espelhos laterais, era de uma delicadeza e de um torneado sem par. A Grussinskaia, de olhos fixos em seu próprio rosto, parecia olhar o rosto de uma inimiga. Com pavor, ela enxergava os anos, as rugas, a pele frouxa, o esforço demasiado, o emurchecer; as fontes já começavam a deprimir-se, as comissuras dos lábios tombavam, as pálpebras, sob a pintura azul, estavam enrugadas como papel de seda. Enquanto se via no espelho, foi tomada de um novo tremor de frio, mais forte ainda do que o tremor que a assaltara na rua. Experimentou controlar os lábios, mas não conseguiu. Apressadamente, caminhou pelo quarto e foi apagar a luz fria do lustre, acendendo em seguida o abajur, mas isso não bastou para aquecer o ambiente. Com gestos impacientes arrancou do corpo seu traje de palco, atirou-o no chão, e com o busto nu e a malha até acima das coxas, aproximou-se do aparelho de aquecimento central e encostou o peito no encanamento pintado de cinzento. Fez isso quase irrefletidamente, procurando apenas calor. "Basta", pensou ela, "basta! Nunca mais. Acabou-se. Basta." Balbuciava em todas as línguas, por entre os dentes a bater de frio, palavras definitivas, irrevogáveis. Foi ao banheiro, despiu-se completamente e pôs as mãos debaixo da torneira de água quente, deixando o calor escorrer pelas veias de seus pulsos, até lhe causar dor. Apanhou uma escova e com ela esfregou os ombros; mas, de súbito, cheia de tédio, desistiu de tudo, veio para o quarto, nua e a tremer de frio, e pegou no telefone. Por duas vezes precisou começar, com seus lábios trêmulos, até conseguir falar.
— Chá — pediu ela. — Bastante chá. Bastante açúcar.
Aproximou-se de novo do espelho, nua como estava, e observou-se com severidade. Mas seu corpo era de uma beleza perfeita e única. Era o corpo de uma aluna de ballet de dezesseis anos, que o trabalho disciplinado e duro de uma vida inteira havia conservado intacto. De repente, o ódio que sentia por si própria transformou-se em ternura. Colocou as mãos nos ombros e acariciou seu brilho fosco. Beijou a curva do braço direito. Colocou os seios, pequeninos e perfeitos, nas palmas das mãos, como em duas taças, acariciou a depressão delicada do ventre e as sombras esguias das coxas. Inclinou a cabeça até os joelhos e beijou aqueles pobres joelhos, magros e duros como ferro, como se fossem uns filhinhos enfermos e muito queridos.
— Biednaiaia, malenkaia — murmurou ao mesmo tempo; era uma designação carinhosa dos tempos passados. Biednaiaia, malenkaia. Coitada, pequenina, era o que significavam essas palavras.
O rosto de Gaigern, por entre as cortinas, adquiriu inconscientemente uma expressão atenciosa e compassiva. O que se apresentava aos seus olhos deixava-o confuso. Ele conhecia muitas mulheres, mas nunca vira nenhuma com um corpo tão delicado e perfeito como esta. Mas isso, a bem dizer, era coisa de somenos importância. O que o enchia de suave e doce opressão, fazendo-o arder até as orelhas, era o desamparo, o tremor, a expressão desesperançada, confusa e lastimosa da Grussinskaia diante do espelho. Apesar de ser um sujeito que se desviara do bom caminho, e de ter no bolso pérolas roubadas no valor de quinhentos mil marcos, Gaigern estava muito longe de ser um homem desnaturado. Largou as pérolas que segurava e tirou as mãos dos bolsos. Sentiu passar pelas palmas das mãos, pelos braços, um ansioso desejo de erguer essa pequenina e solitária mulher, de levá-la dali, de consolá-la e aquecê-la, para fazer cessar aquele horrível tremor de frio e o murmúrio quase insensato que se desprendia de seus lábios.
O criado de quarto bateu na porta dupla, e a Grussinskaia pegou no seu penteador — o mesmo que havia assustado Gaigern na escuridão — e enfiou os pés nos míseros chinelos. O criado ofereceu o chá, discretamente, pela porta. A Grussinskaia fechou-a atrás do garçom, que se afastava. "Agora já está na hora", pensou ela. Encheu a xícara de chá, e foi buscar a caixinha de veronal. Engoliu um pozinho e bebeu o chá; depois tomou mais uma xícara. Levantou-se e começou a andar pelo quarto de um lado para outro, muito depressa, como se fugisse, de uma parede até a outra, quatro metros para lá, quatro para cá.
"Para que tudo isso?", pensava ela. "Para que viver? Que posso esperar ainda? Para que tantos tormentos? Oh, estou cansada, vocês não sabem como estou cansada. Prometi a mim mesma afastar-me do palco, quando chegasse o tempo. Tiens. Já é tempo. Devo esperar até que assobiem para mim da plateia?
"Já é tempo, malenkaia, coitada, pequenina. Gru não vai partir amanhã para Viena, Gru vai desistir. Gru vai dormir. Vocês não sabem como a gente sente frio, quando é célebre. Não há ninguém que me faça companhia, ninguém. Possibilitei a tanta gente um meio de vida, e nunca ninguém viveu para mim. Ninguém. Nem uma só pessoa. Só conheço pessoas vaidosas ou medrosas. Estive sempre sozinha. Oh, e quem vai se interessar por uma Grussinskaia que não dança mais? Acabou-se. Não ficarei passeando em Monte Cario, com o corpo rijo, gorda e velha como todas essas velhas célebres. Sozinha eu sempre vivi. Eles deviam ter-me visto no tempo em que o Grão-Duque Serguei ainda vivia! Não, essa vida não me serve. E para onde deverei ir? Cultivar orquídeas em Tremezzo, criar dois pavões brancos, ter preocupações de dinheiro, ficar completamente só, em completa decadência, e morrer? É isso: finalmente a morte. Nijínski está no hospício esperando a morte. Pobre Nijínski! Pobre Gru! Não quero esperar. Demora tanto... Depressa, depressa, depressa." Ela ficou parada, atenta, como se alguém a estivesse chamando. Em seus ouvidos já soava o sonolento zumbido do veronal, a indiferença que o agradável narcótico trazia. "Gaston!", pensou ela, dirigindo-se à mesa. "Pobre Gaston, você foi bom para mim, outrora. Como você era jovem! Há quanto tempo isso aconteceu! Agora você é ministro, barrigudo, com barba e careca. Adieu, Gaston! Adieu pour jamais, n'est-ce pas? Existe um meio tão fácil para não se ficar velha..." Encheu de novo a xícara de chá. Agora fazia um pouquinho de pose, representava uma pequena comédia, triste e doce. Havia forma e graça no seu desespero e na sua decisão. Com um movimento brusco, pegou o vidrinho de veronal e jogou todos os tabletes no chá, esperando até que se derretessem. Estava demorando muito. Impaciente, bateu com a colher na xícara. Levantou-se, aproximou-se de novo do espelho e passou mecanicamente pó de arroz no rosto, que de repente se cobrira de um suor fino e frio. Seus lábios deixaram de tremer e sorriram, um sorriso fixo, como no palco. Cobriu o rosto com as mãos e sussurrou:
— Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!
Ela também sentia agora o cheiro de enterro que subia das cestas de flores e pairava murcho no quarto. Foi-se arrastando lentamente até a mesa onde estava o chá, e o provou com a ponta da colher. Tinha um gosto muito amargo. Com a pinça pegou vários tabletes de açúcar e mergulhou-os no chá, esperando até que eles se dissolvessem. Devia ter durado um minuto, talvez mais. Os dois relógios apostavam corrida em meio ao silêncio.
A Grussinskaia levantou-se e foi à porta da varanda. Respirava com dificuldade. Tinha desejos de ver o céu. Afastou a cortina de renda e deu de encontro com uma sombra.
— Por favor, não se assuste, minha senhora — disse Gaigern, inclinando-se.
O primeiro movimento que a Grussinskaia fez não foi de susto, mas — estranho — de pudor. Fechou mais o quimono e olhou para Gaigern, atônita e calada. "O que é isso?", pensou ela. "Já vi coisa parecida?" Talvez sentisse até um certo alívio, porque ocorrera um adiamento entre ela e a xícara de veronal. Ficou parada diante de Gaigern quase um minuto, a olhá-lo e a observar suas sobrancelhas arqueadas e finas, que se juntavam na base do nariz. Os lábios da Grussinskaia continuavam tremendo e uma respiração cada vez mais rápida e ofegante se pôs entre ela e o moço.
Os dentes de Gaigern também pareciam querer bater uns nos outros, mas ele os conservou bem firmes. Nunca se encontrara em situação tão perigosa como nesse momento. Todos os seus empreendimentos, até então — haviam sido somente três ou quatro —, tinham sido muito bem preparados, e executados com tal cuidado que nunca caíra sobre ele a menor suspeita. Mas ali estava ele agora, com pérolas no valor de quinhentos mil marcos no bolso, apanhado num aposento alheio; entre ele e a penitenciária havia apenas a campainha branca do hotel, com o pequeno letreiro de esmalte, pedindo que batessem duas vezes para chamar o criado de quarto. Um ódio ardente, insensato, irrompeu dentro dele; Gaigern não o deixou explodir, mas concentrou-o em seu íntimo, até que se transformou em força e calma. Precisou de um grande esforço sobre si próprio para não derrubar essa mulher. Parecia uma enorme locomotiva sob nuvens de vapor, cheia de combustível, e com uma pressão de muitas atmosferas vibrando interiormente, e pronta a passar em disparada por cima de tudo. No momento, limitou-se a inclinar-se. Poderia ter tentado uma fuga desesperada pela fachada do hotel. Poderia ter matado a Grussinskaia, poderia tê-la feito calar-se, com ameaças. Fora o instinto da sua natureza amável que, em vez de violência e de um assassinato, o fizera inclinar-se numa curvatura irrefletida mas elegantíssima. Ignorava que suas olheiras estavam azuladas; muito vagamente, chegava a sentir prazer no perigo, uma sensação de embriaguez ou de queda infindável, como num sonho.
— Quem é o senhor? Como veio parar aqui? — perguntou a Grussinskaia em alemão. Seu tom de voz era quase cortês.
— Desculpe-me, minha senhora; entrei sorrateiramente no seu quarto. Eu estou... É horrível a senhora ter-me encontrado aqui. A senhora veio mais cedo para o hotel do que de costume. Foi um azar. Que desgraça! Não posso lhe explicar nada.
A Grussinskaia retrocedeu uns passos dentro do quarto, sem perdê-lo de vista, e girou o comutador do lustre, que se acendeu com sua luz fria. É possível que ela tivesse gritado por socorro, se encontrasse no terraço um homem desgrenhado e feio. Mas o homem que estava ali era o mais belo homem que ela vira em toda a sua vida — recordou-se sob o efeito do veronal —, e esse homem não lhe causava medo. O que a enchia estranhamente de confiança, antes de mais nada, era o bonito pijama de seda que Gaigern vestia.
— Mas o que o senhor veio fazer aqui? — perguntou ela, passando insensivelmente a falar francês, língua mais mundana.
— Nada. Queria apenas me sentar aqui. Só queria estar em seu quarto — disse Gaigern em voz baixa.
Encheu o peito de ar, dilatando a caixa torácica. Agora tratava-se de contar histórias a essa senhora — percebeu ele com leve esperança. As meias de ladrão por cima de seus sapatos o atrapalhavam. Com um movimento habilidoso, tirou-as dos pés às escondidas. A Grussinskaia meneou a cabeça.
— No meu quarto? Meu Deus... mas para quê? — perguntou ela com sua voz russa, de passarinho, aguda e frágil, e um ar de estranha expectativa refletiu-se em seu rosto.
Gaigern, que ainda se encontrava no balcão, respondeu:
— Vou dizer a verdade, minha senhora. Não é a primeira vez que entro no seu quarto. Estive aqui diversas vezes, muitas vezes mesmo, quando a senhora estava no teatro. Fiquei respirando este ar. Coloquei na jarra uma florzinha para a senhora. Perdoe-me.
CONTINUA
Quando o porteiro saiu da cabina telefônica 7, uma leve palidez se espalhava em suas faces; procurou o boné, que colocara sobre o aparelho de calefação do compartimento dos telefones.
— Que foi? — perguntou a telefonista, sentada diante do quadro de comutadores, com os fones nos ouvidos e os pinos vermelhos e verdes entre os dedos.
— É que levaram minha mulher às pressas para o hospital. Não sei o que significa isso. Ela está pensando que a coisa já começou. Mas ainda não está no prazo, meu Deus! — disse o porteiro.
A telefonista mal o ouviu, porque tinha de fazer uma ligação.
— Paciência... É preciso não perder a calma, Herr Senf — disse entre uma ligação e outra. — Amanhã cedo há de nascer o seu filho, fique sossegado.
— Muito obrigado por ter-me chamado ao telefone. Na portaria eu não posso anunciar a todos os ventos os meus assuntos particulares. Serviço é serviço.
— É claro. Quando a criança nascer, eu o chamarei — disse a telefonista, distraída.
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E continuou a fazer ligações. O porteiro apanhou o boné e se retirou na ponta dos pés. Fê-lo inconscientemente, porque sua mulher estava acamada, para dar à luz. Quando atravessou o corredor, para onde davam as salas de correspondência e de leitura, agora silenciosas e a meia-luz, suspirou profundamente e passou a mão pelo cabelo. Surpreso, percebeu que ela ficara úmida, mas não pensou em lavar as mãos, para não perder tempo. Afinal, não se podia exigir que o movimento do hotel parasse, só porque o porteiro Senf ia ser pai. Do tea-room, na nova ala do hotel, a música vinha vibrando em síncopes saltitantes, ao longo dos espelhos das paredes. O cheiro amanteigado de carne assada, próprio da hora do jantar, evolava-se discretamente, mas, por trás das portas do salão de refeições, ainda estava tudo vazio e silencioso. No salãozinho branco, o garde-manger Mattoni preparava os frios. O porteiro, sentindo uma estranha fraqueza nos joelhos, parou à porta e fitou, atordoado, os globos multicolores de luz elétrica que cintilavam por trás dos blocos de gelo. No corredor, um monteur, de joelhos no chão, fazia um conserto na instalação elétrica. Desde que havia colocado o enorme refletor na fachada do hotel, havia sempre um desarranjo na instalação, sobrecarregada. O porteiro deu uma pequena ordem às suas pernas bambas e dirigiu-se ao seu posto. Deixara a portaria aos cuidados de Georgi, um rapazinho, filho do proprietário de uma grande rede de hotéis. O pai desejava que seu futuro sucessor conhecesse a profissão desde as mais humildes ocupações, e por isso o filho trabalhava ali gratuitamente. Senf, sentindo uma certa angústia, atravessou às pressas o hall, repleto de gente que se movimentava. Ali, a música de jazz do tea-room se misturava aos lânguidos sons dos violinos do jardim de inverno, ao murmúrio do repuxo da fonte luminosa, gotejando numa imitação de bacia veneziana, ao tilintar dos copos nas mesinhas e ao ranger das cadeiras de vime; o mais brando sussurro era o suave frufru das peliças e dos vestidos de seda das senhoras, que se diluía no harmonioso burburinho. Pela porta giratória, a fresca brisa de março penetrava em espirais, em pequenas golfadas, sempre que o groom fazia entrar ou sair os hóspedes.
— All right! — disse Georgi, quando o porteiro Senf, apressando os passos, chegou à portaria, como se chegasse ao refúgio de um porto. — Chegou a correspondência das sete. A senhora do quarto 68 armou um escândalo porque não encontraram logo o chofer. É um tanto histérica essa senhora, hein?
— Quarto 68... é a Grussinskaia — disse o porteiro, enquanto com a mão direita começava a separar a correspondência. — É a bailarina, já estamos acostumados. Há dezoito anos. Todas as noites, antes de apresentar-se em público, fica nervosa e provoca um escândalo.
No hall um senhor levantou-se do seu maple; era um senhor de boa estatura, cujas pernas pareciam atacadas de ancilose. Aproximou-se da portaria de cabeça baixa e deu uns giros pelo hall antes de passar ao vestíbulo, procurando ter o aspecto de alguém que nada espera, mas se aborrece. Observou as revistas na pequena banca de jornais, acendeu um cigarro e aproximou-se do porteiro, perguntando distraído:
— Chegou correspondência para mim?
O porteiro, por seu lado, prontificou-se também a representar uma pequena comédia. Examinou primeiro a caixa 218, antes de responder:
— Desta vez, infelizmente, nada, doutor.
Então o senhor alto movimentou-se de novo a passos lentos, fazendo um caminho complicado para chegar ao seu maple, onde se deixou cair de pernas rígidas, ficando a olhar para o hall com expressão de quem não vê. Seu rosto, aliás, consistia em uma só face, um perfil requintado e agudo de jesuíta, terminando numa orelha muito bem delineada e escondida sob os fios ralos de cabelo grisalho da têmpora. A outra face não existia. Em seu lugar havia apenas uma mescla confusa de traços remendados e ligados desordenadamente. Por entre suturas e cicatrizes, espiava um olho de vidro. O Dr. Otternschlag, quando conversava a sós consigo mesmo, costumava chamar seu rosto de souvenir de Flandres... Ficou sentado a observar os capitéis de gesso dourado das colunas de mármore que já estava farto de conhecer; depois, com o olho que não via, fitou longamente o hall, que se esvaziou rapidamente porque o espetáculo ia começar. Em seguida ergueu-se de novo e, com seu andar desconjuntado de marionete, encaminhou-se para a cabina do porteiro, onde Herr Senf, já desligado de sua vida privada, se desincumbia conscienciosamente dos deveres de seu cargo.
— Ninguém perguntou por mim? — perguntou o Dr. Otternschlag, olhando para o balcão de mogno coberto de vidro, onde o porteiro costumava depositar os bilhetes e recados.
— Ninguém, doutor.
— Algum telegrama? — perguntou em seguida o Dr. Otternschlag. Herr Senf teve a gentileza de procurar de novo na caixa 218, apesar de saber de antemão que nada havia nela.
— Hoje não, doutor — disse ele. Com grande amabilidade acrescentou: — Talvez o doutor queira ir ao teatro. Ainda tenho um camarote para o espetáculo da Grussinskaia, no Teatro do Oeste.
— Da Grussinskaia! — disse o Dr. Otternschlag. Conservou-se ainda um momento imóvel; depois, passando pelo vestíbulo e atravessando o hall numa linha curva, voltou à sua cadeira. "Agora, nem mesmo a Grussinskaia consegue casa cheia", pensou ele. "É natural. Nem eu próprio a quero ver mais..." Cheio de melancolia, enterrou-se de novo na poltrona.
— Este homem cansa a gente — disse o porteiro a Georgi. — Sempre perguntando pela correspondência. Há dez anos que se hospeda aqui por alguns meses, e nunca chegou carta nenhuma para ele nem nenhum gato-pingado perguntou por ele. E um homem desses ainda fica sentado, esperando.
— Quem é que está esperando? — perguntou do compartimento ao lado o chefe de recepção, Herr Rohna, esticando a cabeça meio ruiva por sobre a divisão baixa de vidro. Mas o porteiro não respondeu logo; parecia-lhe estar ouvindo os gritos de sua mulher — transportava para o exterior o que ouvia interiormente. Em seguida, os assuntos privados mergulharam em seu íntimo porque teve que ir ajudar Georgi a explicar em espanhol ao senhor mexicano do quarto 17 uma complicada conexão de trens. O groom 24, com as faces afogueadas e o cabelo bem alisado com água, saiu correndo do elevador, exclamando, alegre e excitado — em voz demasiado alta para um hall tão distinto:
— Mandem chamar o chofer do Barão Gaigern!
Rohna ergueu a mão, num gesto de censura e apaziguamento, como um diretor de orquestra. O porteiro telefonou, chamando o chofer. Georgi arregalou seus olhos de rapazinho, com expressão de curiosidade. Espalhou-se no ar um aroma de alfazema e de cigarro fino. Após o aroma, um homem, cuja aparência chamava a atenção, entrou pelo hall, e várias pessoas o olharam. A senhorita cor de cera da banca de jornais sorriu. O homem também sorriu, sem nenhuma razão aparente, simplesmente porque se sentia satisfeito com sua própria pessoa, conforme parecia. Era de estatura fora do comum e trajava-se muito bem, também de maneira pouco usual. Tinha um andar elástico, como o de um gato ou de jogador de tênis. Não usava sobretudo sobre o smoking, mas um trench coat azul-marinho, que não combinava com o smoking. Toda a sua figura tinha um ar de gracioso desleixo. Deu uma palmadinha no crânio molhado do groom 24, estendeu o braço sobre o balcão do porteiro, sem olhar, e recebeu um punhado de cartas que enfiou simplesmente no bolso, de onde tirou suas luvas de camurça pespontada. Cumprimentou com um gesto amistoso o chefe de recepção, como a um camarada. Pôs na cabeça o chapéu de feltro escuro e, tirando do bolso uma cigarreira, colocou um cigarro entre os lábios, sem o acender. Porém imediatamente se descobriu de novo, afastando-se para deixar passar duas senhoras pela porta giratória. Era a Grussinskaia, delgada e miúda, enfiada até o nariz em uma pele, seguida de uma sombra apagada que ia levando as malas. Quando o encarregado dos carros, lá fora, instalou as duas no automóvel, o simpático senhor de impermeável azul acendeu o cigarro, tornou a enfiar a mão no bolso e meteu uma moeda na mão do boy 11, o encarregado da porta giratória. Depois desapareceu por entre os balouçantes espelhos da porta giratória, com a expressão feliz de um rapazinho a quem deram licença para andar de carrossel.
Quando esse cavalheiro, esse senhor, esse encantador Barão Gaigern saiu do hall, fez-se de súbito enorme silêncio, ouvindo-se então o jorro da fonte luminosa a tombar com um murmúrio fresco e suave na bacia veneziana. É que o hall se esvaziara; o jazz-band do tea-room parará de tocar, a música da sala de refeições ainda não principiara e o trio do Salão Vienense, do jardim de inverno, fazia uma pausa. No súbito silêncio penetrou o ruído excitado e incessante das buzinas dos automóveis que passavam diante da entrada do hotel, em seu movimento noturno. Mas dentro do hall o silêncio permaneceu, como se o barão tivesse carregado consigo a música, o ruído e o burburinho humano. Georgi apontou com a cabeça para a porta giratória e disse: — Bom sujeito. Queira Deus que ele não mude.
O porteiro encolheu os ombros, como bom conhecedor dos homens.
— A questão é saber se é bom de fato. Ele tem um certo jeito... não. Dá-me a impressão de ser uma pessoa leviana. O modo de andar e as gordas gorjetas... parece coisa de cinema. Quem é que viaja hoje em dia com esse luxo — a não ser um vigarista? Se eu fosse o Pilzheim, tratava de abrir os olhos.
Rohna, o chefe de recepção, que tinha os ouvidos em toda parte,- estendeu de novo a cabeça por cima da divisão de vidro; sob os raros fios de cabelo meio ruivo, brilhava-lhe a pele acinzentada do crânio.
— Deixe disso — disse ele; — Gaigern é boa pessoa, eu o conheço. Foi educado em Feldkirch, com meu irmão. Por causa dele não é preciso ir incomodar o Pilzheim. (Pilzheim era o detetive do Grande Hotel).
Senf fez continência, calando-se respeitosamente. Rohna sabia o que estava dizendo. O próprio Rohna era também um conde, um Rohna da Silésia, antigo oficial, um sujeito direito. Senf fez novamente continência, enquanto a cara de galgo de Rohna se afastava e o conde continuava suas ocupações por detrás da parede de vidro fosco, como uma sombra.
O Dr. Otternschlag, lá no seu canto, conservara o busto meio erguido, enquanto o barão estivera no hall, e depois voltara a encolher-se, mais sombrio ainda. Entornou com o cotovelo seu copo de conhaque, com bebida até a metade, mas nem se dignou olhar. Suas mãos magras, amarelecidas pelo fumo, pendiam entre os joelhos abertos, pesadas como se estivessem metidas em luvas de chumbo. Por entre suas compridas botinas de verniz, olhava o tapete que cobria o hall e todas as escadarias, passagens e corredores do Grande Hotel: já estava farto do seu desenho de trepadeiras, com o ananás verde-amarelo por entre as folhas pardacentas, sobre um fundo vermelho-framboesa. Tudo estava morto... A hora estava morta. O hall estava morto. Todos tinham ido cuidar de seus negócios, viver seus prazeres e seus vícios, deixando-o ali abandonado. No meio desse vazio, viu-se de súbito o vulto da encarregada do vestiário aparecer por trás do balcão e alisar com um pente preto o cabelo ralo de sua cabeça de velha. O porteiro saiu do seu cubículo e disparou, sem guardar as conveniências, atravessando o hall em direção ao compartimento dos telefones. Parecia estar pressentindo alguma coisa. O Dr. Otternschlag procurou seu conhaque e não o encontrou. "Vamos agora para o quarto nos deitar?", perguntou a si mesmo. Um fraco e bruxuleante rubor tingiu suas faces e desapareceu, como se ele houvesse traído um segredo, revelando-o a si próprio. "Vamos", respondeu com os seus botões. Mas não se levantou, porque até isso o deixava indiferente. Levantou o indicador amarelo e Rohna, no outro extremo do hall, percebendo o gesto invisível, providenciou auxílio ao doutor.
— Cigarros, jornais — disse ele sem se mover. O menino disparou até a senhorita cataléptica da banca de jornais. Rohna olhou com ar de reprovação aquela intempestiva vivacidade juvenil; depois, Otternschlag tomou os jornais e os maços de cigarro que o groom tinha ido buscar para ele e pagou colocando o dinheiro na mesinha e não na mão do groom, pois costumava sempre conservar distância entre si e os demais, sem o perceber. A metade intacta de sua boca chegou a imitar um sorriso, quando abriu os jornais e começou a ler; esperava sempre encontrar nos jornais qualquer coisa que eles não traziam, tal como acontecia com as cartas, os telegramas e os chamados, que jamais chegavam para ele. Estava terrivelmente só, com uma impressão de vazio, isolado da vida. Às vezes, quando conversava a sós consigo mesmo, costumava fazê-lo em voz alta. "É horrível", dizia-se com frequência, estacando sobre a passadeira cor de framboesa, assustado com sua própria pessoa. "É horrível. Nenhuma vida. Nenhuma espécie de vida. Mas por onde andará ela? Nada acontece. Nada sucede. É uma tristeza. Só velhice e morte. É horrível." As coisas que o rodeavam pareciam miragens. O que ele tocava se desfazia em pó. O mundo era uma coisa inconsistente, impossível de segurar ou reter. Caía-se de um vazio em outro vazio. Carregava-se um saco de trevas dentro de si. O Dr. Otternschlag vivia na mais profunda solidão, apesar de o universo estar povoado por seus semelhantes.
Nos jornais, nada encontrou que o satisfizesse. Um tufão, um terremoto, uma guerra pouco importante entre pretos e brancos. Incêndios, assassinatos, lutas políticas. Nada. Muito pouco. Escândalos, pânico na Bolsa, derrocada de fortunas imensas. Que tinha ele com isso? Que sentimento lhe provocava tudo isso? Um voo através do oceano, recordes de velocidade, notícias sensacionalistas, com títulos de uma polegada de altura. Cada jornal gritava mais que o outro, e finalmente não se ouvia mais nenhum; os homens acabavam por se tornar cegos, surdos e desprovidos de sentimentos, com a ruidosa atividade da época moderna. Figuras de mulheres nuas, coxas, seios, dentes, ofereciam-se abertamente, aos montões. Também o Dr. Otternschlag, noutros tempos, possuíra mulheres! Lembrava-se disso sem saudades, apenas com um friozinho a descer-lhe pela espinha. Deixou que os jornais lhe caíssem simplesmente da mão amarelecida pelo fumo, sobre o tapete de ananases, de tal modo o aborreciam e lhe eram indiferentes. — Não, não acontece nada, absolutamente nada — disse a si mesmo, a meia voz. Noutros tempos, tivera uma gatinha persa, chamada Gurbal; desde que ela fugira com um gato vadio de água-furtada, via-se obrigado a dialogar consigo mesmo.
No momento em que, caminhando em linhas curvas, se dirigia à portaria para ir buscar a chave do quarto, um indivíduo esquisito empurrou a porta giratória, no vestíbulo.
— Senhor, aí está o homem de novo! — disse o porteiro a Georgi, olhando fixamente para o indivíduo, com seu olhar enérgico de primeiro-sargento. Esse indivíduo, o tal homem, destoava completamente no hall do Grande Hotel. Usava um chapéu de feltro, redondo, barato, novo, um pouco largo para a sua cabeça, mas que orelhas caídas seguravam, evitando que escorregasse ainda mais para a frente. Tinha um rosto amarelado, o nariz afilado e tímido, compensado por um bigode imponente, de corte muito apreciado pelos diretores de associações. Vestia um sobretudo estreito, verde-acinzentado, velho e lamentavelmente fora de moda; calçava botinas pretas, que pareciam demasiado grandes para a sua pequena estatura, com os canos a espiarem por baixo das calças pretas, muito curtas. Usava luvas de linha cinzentas e segurava uma mala, imitando couro, que parecia pesada demais para ele; segurava-a pela alça, com ambas as mãos de encontro ao estômago; debaixo do braço trazia ainda um pacote engordurado, envolto em papel marrom. O homem tinha um aspecto realmente grotesco e lamentável; e parecia cansadíssimo. Mas quando o groom 24 tentou tirar de suas mãos a mala, não a entregou, parecendo confuso com essa cortesia do boy. Só defronte do balcão de Herr Senf, colocou a mala no chão, e, meio ofegante, curvou-se à guisa de cumprimento, dizendo com uma voz aguda e agradável:
— Meu nome é Kringelein. Já estive aqui duas vezes. Vim informar-me de novo.
— Faça o favor de dirigir-se aqui ao lado, mas acho que não há nenhum quarto vago — disse o porteiro, apontando Rohna. — Aquele senhor está esperando há dois dias que vague um quarto — explicou, olhando por cima da divisão de vidro.
Rohna, sem voltar os olhos para o recém-chegado, tirara as suas conclusões e, por mera cortesia, fingiu estar folheando o livro de registro de hóspedes. Depois disse:
— Infelizmente, no momento está tudo ocupado. Sinto muitíssimo.
— Ainda está ocupado? Muito bem, e onde vou hospedar-me então? — perguntou o indivíduo.
— O senhor não quer ir ver nos arredores da estação, em direção da Friedrichstrasse? Há ali uma porção de hotéis.
— Não, muito obrigado — disse o homem. Tirou um lenço do bolso do sobretudo e passou-o nervosamente pela testa suada. — Quando cheguei estive num desses hotéis e não gostei. Quero hospedar-me num lugar distinto.
Ao colocar sob o braço esquerdo o guarda-chuva molhado, deixou cair o engordurado pacote que tinha debaixo do braço direito, mostrando algumas fatias de pão com manteiga — já tortas, de tão ressequidas. O Conde Rohna disfarçou um sorriso; Georgi virou-se para o quadro das chaves. O groom 17, corretíssimo, juntou os pedaços de pão seco, que o homem, com os dedos trêmulos, enfiou no bolso. Tirou o chapéu e colocou-o diante de Rohna, sobre o balcão. Tinha a testa alta e enrugada, e as têmporas fundas e azuladas. Seus olhos vesgos, de um azul muito claro, espiavam por trás de um pince-nez que estava sempre a querer escorregar pelo nariz afilado.
— Eu queria ficar hospedado aqui. Afinal há de vagar algum quarto. Faça o favor de reservar-me o primeiro quarto que desocupar. Já é a terceira vez que venho aqui; o senhor pensa que isso me diverte? Não é possível que esteja sempre tudo ocupado, não é mesmo?
Rohna encolheu os ombros, lamentando. Durante um instante ficaram todos calados, e pôde-se ouvir a música da sala vermelha de refeições e o jazz band, que estava agora no pavilhão amarelo. Já se encontravam de novo sentados no hall vários senhores, e alguns deles olharam para o indivíduo com ar de estarem se divertindo, e ao mesmo tempo estranhando sua aparência.
— O senhor conhece o Diretor-Geral Preysing? Ele também se hospeda sempre aqui, quando vem a Berlim, não é verdade? Pois é. Eu também quero me hospedar aqui. Tenho um assunto urgente a tratar, uma conferência importante com Preysing. Aliás, ele próprio me pediu para encontrar-me aqui com ele. Aconselhou-me a hospedar-me aqui. Foi ele quem me recomendou este hotel. Vim por recomendação do Diretor-Geral Preysing. Por favor. Quando vai vagar um quarto?
— Preysing? O Diretor-Geral Preysing? — perguntou Rohna a Senf, do outro lado do vidro.
— De Fredersdorf; da Indústria Algodoeira Saxônia S.A. Eu também sou de Fredersdorf — disse o indivíduo.
— É, sim — lembrou-se o porteiro —, um Herr Preysing já esteve várias vezes aqui.
— Eu acho que pediram um quarto para ele, para amanhã ou depois de amanhã — murmurou Georgi, querendo mostrar-se solícito.
— O senhor quer tentar mais uma vez amanhã, quando Herr Preysing estiver aqui? Ele chega hoje de noite — disse Rohna, depois de folhear os seus livros e de encontrar o pedido de reserva.
Estranhamente, essa notícia pareceu assustar o homem.
— Vai chegar? — disse ele, com uma expressão de angústia, entortando ainda mais os olhos vesgos. — Está bem... vai chegar hoje mesmo. Bem. E há um quarto para ele? Quer dizer que há quartos vagos? Meu Deus, por que será que o diretor-geral tem um quarto e eu não? Que significa isso? É um desaforo que eu não posso admitir! Como? Ele reservou com antecedência? Faça o favor, eu também fiz uma reserva de quarto. É a terceira vez que venho aqui, é a terceira vez que arrasto esta mala pesada, faça o favor. Está chovendo, os ônibus estão cheios, eu não estou passando bem de saúde. Então? Quantas vezes devo fazer ainda esta caminhada? Como? Por quê? Isso não é modo de se tratar ninguém. Este é o melhor hotel de Berlim? Como? É? Pois bem, eu quero hospedar-me no melhor hotel de Berlim. Será que é proibido? — fitou a todos, um a um. — Estou cansado — acrescentou ainda —, estou extremamente cansado — disse. Notava-se seu cansaço e o esforço ridículo para se expressar com termos escolhidos.
De súbito, o Dr. Otternschlag meteu-se na conversa. Durante todo o tempo ele ficara parado, segurando a chave de seu quarto, presa a um grande quadrado de madeira, com o cotovelo fincado no balcão da portaria.
— Se este cavalheiro faz tanta questão, pode ficar com meu quarto — disse Otternschlag. — Para mim não faz diferença morar aqui ou ali. Mandem subir a mala dele. Eu posso mudar-me. Minhas malas estão prontas. Minhas malas estão sempre prontas. É um favor. Vê-se logo que o homem está exausto, doente — acrescentou ainda, cortando a oposição que o Conde Rohna, com eloquentes mãos de maestro, queria fazer.
— Mas doutor — disse Rohna, pressuroso —, nem se fala nisso, não é possível que o senhor ceda seu quarto. Nós vamos tentar... vamos ver... Se o senhor quiser ter a bondade de assinar o seu nome... bem, muito obrigado... 216 — disse Rohna ao porteiro. O porteiro deu ao boy 11 a chave do quarto 216. O indivíduo pegou a caneta-tinteiro que lhe estendiam e assinou o seu nome, com incrível rapidez, no livro de registro de hóspedes.
Otto Kringelein, guarda-livros em Fredersdorf, Sachsen, nascido em Fredersdorf a 14-7-1882.
— Pronto! — disse ele, respirando aliviado. Virou-se e, com os olhos tortos, muito abertos, olhou para o hall.
Encontrava-se, finalmente, no hall do Grande Hotel, ele, o guarda-livros Otto Kringelein, natural de Fredersdorf e residente em Fredersdorf. Ali estava, com o seu velho sobretudo e as ávidas lentes do seu pince-nez a quererem engolir tudo de uma vez. Estava cansado como um corredor que toca com o peito a fita de chegada — e o seu cansaço não era brincadeira; olhava as colunas de mármore com os ornamentos de gesso, a fonte luminosa, as poltronas. Via cavalheiros de fraque e de smoking, elegantes e viajados. Senhoras de braços nus, com vestidos refulgentes, adereços e peliças, mulheres de excepcional beleza, elegantíssimas. Ouvia música ao longe. Sentia o cheiro de café, de cigarros e perfumes; aroma de aspargos, vindo da sala de refeições, e o das flores que se encontravam em vasos em cima de uma mesa, para serem vendidas. Sentia o tapete espesso, vermelho, sob suas botinas lustrosas, tapete que lhe causou, no princípio, a mais forte impressão. Kringelein deslizava cuidadosamente com as solas sobre o tapete, pestanejando. Estava muito claro no hall, uma luz suave e amarelenta; nas paredes havia lampadazinhas avermelhadas com abajures e, na fonte veneziana, verdes repuxos de água.
Um garçom passou apressado, carregando uma bandeja de prata com copos largos e rasos, contendo cada um deles um pouco de conhaque dourado-escuro, onde boiavam pedras de gelo. Mas por que razão, no melhor hotel de Berlim, não enchiam os copos? O criado, segurando a triste mala, despertou Kringelein, que ficara a piscar os olhos tortos, a movimentar-se, quase como um sonâmbulo: o boy 11 passou com ele diante do ascensorista, um maneta rabugento, e o conduziu para cima. Os quartos 216 e 218 eram os piores do hotel; no 218 morava o Dr. Otternschlag, porque era hóspede efetivo, não sendo além disso pessoa de muitas posses, mas sobretudo porque era muito indiferente para exigir outro. O 216 ficava ao lado, no canto à direita, e ambos estavam encravados entre o elevador de serviço, perto da escada da cozinha 4 e o banheiro do terceiro andar. Dentro da parede corria e gorgolejava a água através do encanamento. Kringelein, a quem conduziam por entre ornamentos de palmas, lustres de bronze e quadros de caçadas, a lugares cada vez mais tristonhos do hotel, esgueirou-se lentamente, e desiludido, para dentro do quarto cuja porta uma criada velha e nada bonita lhe abriu.
— Número 216! — disse o boy, colocando a mala no chão; esperou a gorjeta, que não recebeu, e deixou só o silencioso Kringelein. Este sentou-se na beirada da cama e examinou o quarto.
Era comprido e estreito, tinha uma janela apenas, cheirava a charuto apagado e a armários esfregados com pano úmido. O tapete era ralo e puído. Os móveis — Kringelein apalpou-os — eram de nogueira envernizada.
Em Fredersdorf havia móveis iguais a esses. Um retrato de Bismarck estava suspenso à parede, na cabeceira da cama. Kringelein sacudiu a cabeça. Nada tinha contra Bismarck, pois em sua casa também havia um retrato do estadista. Esperava vagamente encontrar no Grande Hotel quadros diferentes sobre as camas, quadros exuberantes, de cores bem vivas, fora do comum, que se admirassem com prazer. Kringelein foi à janela e olhou para fora. Lá embaixo estava claríssimo, o telhado de vidro iluminado do jardim de inverno clareava todo o pátio. Bem defronte havia um muro de incêndio, nu, infindável. Vinha dali um cheiro de cozinha, e subia um vapor morno e desagradável. Kringelein sentiu náuseas e apoiou-se à laje do lavatório. "É que eu não estou muito bem de saúde", pensou com tristeza.
Sentou-se de novo sobre a colcha desbotada, e a sua preocupação foi crescendo, de segundo em segundo. "Aqui não fico", pensou. "Não, aqui não fico de maneira alguma. Não foi para isso que vim aqui. Para isso não adianta nada eu ter vindo. Não é assim que vou começar. Não vou perder o meu tempo em quartos como este. Mas estão me enganando. Decerto eles têm ainda no hotel quartos bem diferentes deste. Preysing deve ficar hospedado em quartos bem melhores, pois não suportaria isto. Preysing havia de fazer barulho — e como! —, vocês ficariam admirados. Se lhe dessem um quarto desses!... Não. Aqui eu não fico." Kringelein fez ponto final em suas reflexões. Concentrou-se. Precisou descansar alguns minutos. Depois tocou a campainha chamando a empregada, e fez um escândalo.
Se levarmos em consideração o fato de que aquela foi a primeira reclamação em tom violento que Kringelein fez na vida, temos de admitir que não se saiu muito mal. A empregada de avental branco, assustada, foi chamar uma camareira; um criado apontou ao longe; o quarteiro, com um prato de frios oscilando na palma da mão, estacou diante do 216 para escutar. Telefonaram a Rohna; este pediu que Herr Kringelein se dirigisse ao pequeno escritório, pois era necessário chamar um dos quatro diretores do hotel. Kringelein, obstinado como um camelo, exigia que lhe dessem um quarto bonito, luxuoso e caro, pelo menos como o de Preysing. Parecia considerar o nome de Preysing uma palavra mágica. Não tirara ainda o sobretudo, conservando as mãos trêmulas nos bolsos, agarradas aos velhos pedaços de pão com manteiga que trouxera de Fredersdorf; entortava os olhos e exigia um quarto caro. Sentia-se cansado e doente, com vontade de chorar. Nas últimas semanas chorava com facilidade, por causa da sua saúde. De repente, justamente quando ia desistir, viu que tinha vencido. Recebeu o 70, um salão com alcova e banheiro a cinquenta marcos por dia. Piscou um pouco quando leu o preço, mas, refletindo, perguntou:
— Bem. Com banho? Quer dizer... posso tomar banho a qualquer hora, todas as vezes que tiver vontade?
O Conde Rohna inclinou a cabeça, imperturbável. Kringelein fez sua segunda mudança.
O quarto 70 servia. Os móveis eram de mogno, havia espelhos de corpo inteiro, cadeiras forradas de seda, escrivaninhas entalhadas, cortinas de renda, quadros de faisões mortos na parede, e na cama um edredom de penas com capa de seda. Kringelein apalpou-o três vezes, incrédulo, sentindo seu brando calor e sua maciez. Sobre a escrivaninha havia um imponente tinteiro de bronze, representando uma águia, cujas asas abertas, ziguezagueantes, protegiam dois recipientes de tinta vazios.
Diante da janela caía uma chuva fresca de março; a atmosfera estava saturada de gasolina; ouviam-se buzinas de automóveis e, bem defronte, na fachada de um edifício, piscava continuamente um anúncio, com letras vermelhas, azuis e brancas; quando terminava de um lado, recomeçava na frente. Kringelein ficou olhando o anúncio durante seis minutos. Lá embaixo revolviam-se guarda-chuvas pretos e pernas claras de mulher, ônibus amarelos, globos de luz elétrica. Havia até mesmo uma árvore, estendendo os galhos não muito longe do hotel, galhos semelhantes aos das árvores de Fredersdorf. Essa árvore berlinense estava plantada numa ilhota de terra, no meio do asfalto, e em redor da terra havia uma cerca, um gradeado, como se ela precisasse de proteção contra a cidade. Kringelein, rodeado por tanta coisa estranha e impressionante, alegrou-se um pouco ao ver a árvore. Em seguida ficou por momentos perplexo, sem saber o que fazer diante do mecanismo niquelado da banheira, que ele não conhecia; porém, de repente, o mecanismo funcionou, escorrendo-lhe água quente nas mãos. Então ele se despiu. Sentiu uma impressão um tanto penosa ao entrar com o corpo nu, débil e macilento, na bacia clara de azulejos. Mas afinal ficou sentado dentro da água por mais de um quarto de hora, sem dores, nenhuma dor; as dores com que ele andava há várias semanas haviam-no abandonado repentinamente. E, a partir desse dia, não queria mais sentir dores.
Por volta das dez horas da noite Kringelein passeava pelo hall; estava muito arrumado, de fraque, colarinho engomado, alto, e uma gravata preta, de nó feito. Não se sentia cansado; pelo contrário, uma agitação febril, uma enorme impaciência se havia apoderado dele. "Agora vai começar", pensava incessantemente, e seus ombros delgados tremiam como as pernas dianteiras de um cachorro nervoso. Comprou uma flor, que enfiou na lapela; deslizou, cheio de prazer, sobre o tapete vermelho-framboesa, e foi queixar-se ao porteiro de que não havia tinta no seu quarto. Um boy conduziu-o à sala de correspondência. Mal Kringelein se encontrou diante daquela quantidade de mesinhas de escrever, vazias, sob a luz agradável dos abajures verdes, perdeu todo o aprumo e tirou a mão do bolso, parecendo sentir-se humilhado. Enfiou os punhos brancos da camisa para dentro das mangas do paletó, com um gesto habitual, antes de sentar-se; depois, começou a escrever com sua caligrafia de guarda-livros, cheia de arabescos:
À Chefia do Pessoal da Indústria Algodoeira Saxônia
S.A., de Fredersdorf.
Prezados senhores,
O abaixo assinado toma a liberdade de comunicar respeitosamente que, de acordo com o atestado médico que acompanha esta — anexo A —, se acha impossibilitado de trabalhar por um período de quatro semanas, até nova ordem. O último salário, vencido em março, o abaixo assinado roga a V. Sas- seja pago a Frau Anna Kringelein, Bahnstrasse n° 4, conforme procuração — anexo B. Caso o abaixo assinado não possa retomar seu serviço após quatro semanas, avisará V. Sas oportunamente. Com a maior estima e consideração,
Otto Kringelein.
A Frau Anna Kringelein, Sachsen, Bahnstrasse n° 4.
Querida Anna — continuou Kringelein a escrever, o A tinha um arrojado arabesco. — Querida Anna, comunico-lhe que o diagnóstico do Professor Dr. Salzmann, após o exame a que me submeti, não foi favorável. Tenho que seguir diretamente daqui para uma casa de saúde, com as despesas a cargo do instituto, mas preciso ainda preencher algumas formalidades. Por enquanto estou hospedado num local muito barato, por recomendação do diretor-geral. Dentro de alguns dias darei notícias mais detalhadas; ainda preciso submeter-me a uma radiografia, antes de saber o diagnóstico definitivo. Lembranças do seu marido
Otto.
Ao tabelião, Herr Kampmann, Fredersdorf, Sachsen, Villa Rosenhein, Mauerstrasse.
Querido Amigo e Colega da Associação Coral — assim começou Kringelein a terceira carta com sua letra legível e delicada olhando para a ponta da pena. — Você vai ficar surpreso ao receber uma longa carta minha de Berlim, mas devo comunicar-lhe importantes modificações na minha vida e conto com sua compreensão e discrição profissional. Infelizmente tenho dificuldades em expressar-me por escrito, mas espero que você, com sua grande cultura e conhecimento dos homens, demonstre a devida compreensão para o que lhe escrevo. Como você sabe, após a operação a que me submeti no verão passado, nunca mais tive saúde e perdi a pouca confiança que depositava no nosso hospital e no nosso médico. Por isso aproveitei a oportunidade de ter recebido a herança de meu pai e vim para cá com esse dinheiro, a fim de fazer um exame e ver do que se tratava. Infelizmente, caro amigo, o resultado não foi bom, e, de acordo com a opinião do professor, tenho pouco tempo de vida
Kringelein permaneceu com a pena no ar, talvez durante um minuto; esqueceu-se de colocar um ponto no fim da frase. Seu bigode, o imponente bigode de diretor de associação, estremeceu de leve, mas ele continuou a escrever animadamente:
Quando se recebe tal comunicação, é natural que muita coisa passe pela nossa cabeça, e não dormi várias noites, mergulhado em minhas reflexões. Cheguei à conclusão de que não pretendo mais voltar para Fredersdorf, e, durante as poucas semanas em que ainda me aguentar de pé, gostaria de aproveitar um pouco a vida. Quando nunca se gozou a vida e se tem de ir para o túmulo com quarenta e seis anos de idade, não é agradável ficar se preocupando, economizando e zangando-se com Herr Pr. na fábrica e com a mulher em casa. É injusto e errado saber que está tudo acabado e que nunca se teve uma alegria verdadeira. Infelizmente, caro Amigo e Colega da Associação Coral, não sei me expressar com correção. Desejo, por isso, apenas comunicar-lhe que o meu testamento, que fiz no verão antes de me operarem, continua válido, mas a situação agora é um pouco diferente. Fiz remeter para cá, através do banco, todas as minhas economias, assim como um empréstimo maior que fiz no seguro de vida e os três mil e quinhentos marcos da herança do meu pai. Desse modo posso viver durante algumas semanas como um homem rico, e é o que pretendo fazer. Por que razão somente os Preysing podem aproveitar a vida, e nós continuamos a ser os tolos, que economizam e amealham? Trouxe comigo a soma de oito mil, quinhentos e quarenta marcos. O que sobrar pode ficar para a Anna; mais do que isso, de acordo com a minha opinião, não lhe devo, pois ela me amargurou bem a vida com as suas brigas, e nem sequer me deu um filho. Porei você a par do lugar em que me encontro e da minha saúde, mas isso é segredo profissional, é um favor que lhe peço. Berlim é uma bela cidade, e cresceu muito para quem não esteve aqui por tantos anos. Pretendo também ir a Paris, porque conheço bem o francês, devido à correspondência. Como você pode perceber, estou firme e há muito tempo não me sinto tão bem.
Abraça-o com amizade o seu fiel Moribundus
Otto Kringelein.
P.S. Basta que você diga à diretoria da Associação que tive de ir para uma casa de saúde de industriários.
Kringelein releu as cartas cujo conteúdo lhe custara duas noites de vigília — não ficou muito contente; pareceu-lhe que na carta para o tabelião faltava alguma coisa importante, mas não conseguia lembrar-se do que se tratava. Kringelein, apesar de possuir uma natureza acanhada e modesta, não era tolo, tinha idealismo e tendência para a cultura. O fato de dar ironicamente a si próprio o nome de Moribundus devia-o à leitura de um livro da biblioteca circulante, onde ele encontrara esse termo; lera o livro com enorme esforço, e o digerira em difíceis conversas com o tabelião. Desde seu nascimento, Kringelein levara a vida normal do pequeno burguês, vida um tanto insípida, sem grandes entusiasmos; vida dispersa de um empregado subalterno numa cidade pequena. Casara-se cedo e sem grande entusiasmo com Fräulein Anna Sauerkatz, filha do merceeiro Sauerkatz, que lhe parecera muito bonita até o dia do casamento, mas logo após se tornou uma pessoa feia, desagradável, sovina, que dava uma enorme importância a coisas mesquinhas. Kringelein recebia um ordenado fixo, e também um pequeno aumento de cinco em cinco anos, mas como sua saúde não fosse das melhores, sua mulher e a família, desde o começo, obrigaram-no a viver com sórdida economia, tendo em mira um problemático "amparo na velhice". Um piano, por exemplo, que Kringelein desejara ardentemente durante toda a vida, nunca o pôde adquirir: vira-se forçado a vender seu cãozinho teckel chamado Zipfel, quando lançaram o imposto sobre os cães. No pescoço tinha sempre arranhões, porque sua pele delicada de anêmico não suportava os velhos e usados colarinhos, com a beirada áspera. Às vezes tinha a impressão de que alguma coisa não estava certa em sua vida, mas não descobria o que era. Em outras ocasiões, na Associação Coral, quando sua voz de tenor, de timbre agudo, tremulante e delicada, sobressaía entre as outras vozes, apossava-se dele um sentimento estranho: parecia-lhe estar vagando no espaço, sentia-se feliz como se voasse. Muitas vezes passeava à noite. Ia caminhando em direção a Mickenau, depois afastava-se das ruas calçadas e ia margeando o fosso úmido dos caminhos, andando por uma trilha que limitava as plantações. Por entre as hastes dos cereais passava um brando sussurro, e quando as espigas roçavam em sua mão ele sentia uma inexplicável alegria. Durante a narcose, no hospital, também sentira essa impressão esquisita e agradável, mas depois a esquecera. Eram coisas insignificantes, que diferenciavam o guarda-livros Otto Kringelein da média de seus concidadãos. E fora isso — juntamente, talvez, com a embriaguez provocada pelos venenos letais destilados pelo seu organismo — o que trouxera o Moribundus até ali, ao mais caro hotel de Berlim, onde escrevera aquelas cartas que continham uma decisão incrível, baseada em motivos fúteis.
Quando Kringelein se ergueu da cadeira, vacilando ligeiramente, e atravessou a sala de leitura com seus três envelopes na mão, encontrou-se com o Dr. Otternschlag, que, para ouvi-lo, virou para ele a face danificada, o que o assustou.
— Então? Já está instalado? — perguntou Otternschlag com indolência; estava de smoking, e olhou para as pontas de seus sapatos de verniz.
— Já estou, sim. Otimamente instalado — respondeu Kringelein com timidez. — Obrigado. Preciso agradecer lhe muitíssimo, cavalheiro. Foi muita bondade sua, de fato...
— Bondade minha? Ora veja! Por causa do quarto? Ora... Sabe, há muito que desejo mudar-me daqui, mas tenho preguiça. Este hotel é uma gaiola miserável. Se o senhor tivesse ficado com o meu quarto, eu estaria a estas horas no rápido para Milão, ou qualquer coisa assim... seria divertidíssimo. Ora, tanto faz. Em março, o tempo é horrível no mundo inteiro. Dá na mesma ficar aqui ou ali. Posso ficar aqui, também.
— O cavalheiro costuma viajar muito? — perguntou Kringelein timidamente, pois imaginava que os hóspedes daquele hotel fossem todos magnatas ou fidalgos. — Se me permite: Kringelein — acrescentou com modéstia, inclinando-se com elegância fredersdorfiana. — O cavalheiro deve conhecer bem o mundo...
— Um pouquinho — disse Otternschlag. — Conheço os lugares mais visitados, os passeios obrigatórios, que todo mundo faz. A Índia, e pouca coisa mais — sorriu ligeiramente ao observar a avidez que se manifestou nos olhos azuis de Kringelein, vesgos por trás do pince-nez.
— Eu também pretendo viajar — disse Kringelein. — O nosso diretor-geral, por exemplo, viaja todos os anos. Há pouco tempo esteve em Saint-Moritz. Na Páscoa do ano passado esteve com a família em Capri. Imagino como tudo isso deve ser maravilhoso!
— O senhor tem família? — perguntou o Dr. Otternschlag, afastando o jornal para o lado. Kringelein refletiu cinco minutos, antes de responder:
— Não, senhor.
— Não tem! — repetiu Otternschlag, e em sua boca essas palavras adquiriram um caráter irrevogável.
— Em primeiro lugar eu gostaria de ir a Paris — disse Kringelein. — Paris deve ser uma beleza, não?
O Dr. Otternschlag, que demonstrara até então um resquício de calor e de interesse, parecia ter ficado sonolento. Ele costumava cair nesse estado de sonolência várias vezes por dia, e contra ele só podia empregar certos meios misteriosos e prejudiciais para a saúde.
— Para Paris o senhor deve ir em maio — murmurou ele.
Kringelein disse rapidamente: — Não disponho de tanto tempo.
Subitamente o Dr. Otternschlag o deixou sozinho.
— Tenho de ir para o quarto deitar-me um pouco — disse ele, mais para si mesmo do que dirigindo-se a Kringelein, que ficou na sala de leitura com as suas três cartas na mão. O jornal que Otternschlag folheara caiu ao chão; estava todo rabiscado com figuras de homenzinhos. Sobre cada figurinha havia uma cruz, desenhada com traços fortes. Kringelein, ligeiramente desiludido, saiu da sala deslizando pelo tapete, com o semblante desconcertado, e dirigiu-se para a sala de refeições de onde vinham os sons fracos mas perceptíveis de uma música lenta e martelada, que ecoava por todas as paredes do enorme hotel.
2
O pano caiu, batendo no soalho do palco com um ruído surdo e pesado de ferro.
A Grussinskaia, que até esse instante girara com leveza de flor por entre as bailarinas, veio se arrastando, ofegante, por trás do primeiro bastidor. Com ar estonteado, apoiou a mão trêmula no braço de um maquinista e soltou o ar dos pulmões, como se estivesse ferida. O suor corria-lhe ao longo das rugas sob os olhos. Os aplausos, fracos como uma chuva distante, avivaram-se de repente, o que significava que o pano abria de novo. Um homem levantava-o com grande esforço, enrolando-o com grandes impulsos de manivela. A Grussinskaia reabriu o seu sorriso, como uma máscara de papelão, e avançou dançando, fazendo curvaturas ao chegar às gambiarras.
Gaigern, que se aborrecera muito, bateu três ligeiras palmas, por pura amabilidade, e esgueirou-se por entre as filas da plateia, dirigindo-se para uma das saídas cheias de gente. Nas primeiras filas e nas galerias, alguns espectadores mais pertinazes gritavam e batiam palmas; mais para trás, todos se apertavam, empurrando-se para chegar quanto antes ao vestiário. Para a Grussinskaia, lá da cena, parecia uma fuga, um pequeno pânico, esse rápido desfilar de peitilhos brancos, de dorsos negros dos senhores, de capas de brocado — todos numa só direção. Ela sorriu, atirando a cabeça para trás, com o pescoço esguio como uma haste de flor; deu uns pulinhos para a direita e para a esquerda e abriu os braços, saudando o público que se preparava para retirar-se. O pano caiu, batendo no solo. O corpo de baile continuava na sua pose, tinha disciplina.
— Levantem o pano! Levantem o pano! — gritava histericamente Pimenoff, o mestre de ballet, que era o encarregado de preparar o êxito dos espetáculos.
A coisa ia devagar, e o homem da manivela fazia esforços desesperados. Algumas pessoas na plateia, que já estavam perto das portas, detiveram-se ainda um momento, com um sorriso amarelo, batendo palmas. Num camarote também aplaudiam. A Grussinskaia apontava para as bailarinas, ninfas de tarlatana agrupadas em seu redor; aparentando a maior modéstia, ela recusava esses fracos aplausos, cedendo-os às insignificantes jovenzinhas. Algumas pessoas que já haviam vestido seus agasalhos surgiram às portas, assistindo, com ar divertido, àquela manifestação tardia de entusiasmo. Witte, o velho maestro alemão, lá embaixo, na orquestra, fazia gestos súplices aos músicos, implorando-lhes que lhe obedecessem; eles já estavam guardando seus instrumentos nas caixas.
— Ninguém saia! — murmurou ele cheio de angústia, trêmulo e suando. — Ninguém saia, por favor, senhores. Talvez tenhamos de repetir a Valsa da primavera!
— Não tenha receio — disse um fagote. — Hoje não há extras. Vai ficar nisso. Então, não lhe disse?
Realmente, os aplausos pingavam. A Grussinskaia ainda pôde ver a bocarra negra e aberta do músico, a rir-se lá embaixo, antes que o pano a separasse dos espectadores. De súbito, os aplausos cessaram, e o repentino silêncio se alargou sinistramente na sala; só se ouvia o ruído que as jovens de tarlatana faziam, com as pontas de seda de seus pés batendo no chão.
— Podemos ir? — murmurou em francês Lucille Lafite, a primeira-bailarina, dirigindo-se às costas trêmulas e pintadas de branco da Grussinskaia.
— Podem. Vão-se embora. Todas. Vão para o diabo! — respondeu a Grussinskaia em russo. Tinha vontade de gritar, mas a voz lhe saiu da garganta num misto de tosse e soluço. Intimidadas, todas saíram correndo. Na ribalta as luzes se apagaram, e durante alguns segundos a Grussinskaia ficou sozinha em cena, a tiritar, sob a iluminação cinzenta de ensaio.
De repente ouviu-se um ruído, como o estalido de um galho partindo-se, o estrupido das patas de um cavalo, um ruído inconfundível — lá na sala deserta, uma pessoa aplaudia sozinha, completamente sozinha. Não havia acontecido milagre nenhum; era Meyerheim, o empresário, que, com a audácia do desespero, procurava salvar o espetáculo. Batia palmas, com suas mãos acústicas, com a máxima energia, aparentando frenético entusiasmo, e ao mesmo tempo lançava olhares iracundos às galerias, pois a claque, esquecida de seus deveres, havia abandonado cedo demais o seu posto. O Barão Gaigern foi o primeiro a ouvir esse ruído isolado, e voltou, curioso e com vontade de zombar. Tirou depressa as luvas e juntou-se freneticamente aos aplausos. E, ao voltarem apressadamente do vestiário uns sujeitos da claque e alguns curiosos, ele chegou a bater os pés, como um estudante entusiasmado. Alguns sujeitos trocistas se reuniram a ele, formando-se um pequeno e divertido ajuntamento, e, finalmente, perto de sessenta pessoas batiam palmas, chamando pela Grussinskaia.
— Pano! Pano! — gritava Pimenoff com voz esganiçada; a Grussinskaia corria de um lado para outro no palco, como uma histérica.
— Michael! Onde está o Michael? Michael tem que sair comigo! — gritou ela a rir-se, com as pestanas cheias de pasta azul, de suor e de lágrimas. Witte empurrou o bailarino Michael para diante dos bastidores; sem fitá-lo, a Grussinskaia pegou a sua mão, tão escorregadia de suor que era difícil segurá-la; diante da caixa do ponto curvaram-se com a harmonia perfeita de corpos acostumados a um trabalho em conjunto. Mal o pano caiu, a Grussinskaia principiou a armar um escândalo, dando largas à sua excitação.
— Você estragou tudo! A culpa foi sua! Vacilou na terceira arabesque! Nunca me teria acontecido uma coisa dessas com o Pimenoff!
— Misericórdia, eu? Mas Gru! — murmurou Michael com seu cômico acento báltico, em tom suplicante. Witte arrastou-o depressa para trás do bastidor 3 e tapou-lhe a boca com sua mão de velho.
— Pelo amor de Deus, não a contradiga; deixe-a! — murmurou ele.
A Grussinskaia recebeu os aplausos sozinha. Nos intervalos destes, quando ia para trás dos bastidores e o pano ainda se conservava descido, ela se punha a vociferar. Amaldiçoava a todos com as mais espantosas maldições, xingava-os de porcos, cães, bando de devassos; chamava Michael de bêbado e Pimenoff de coisa pior ainda, ameaçava despedir o corpo de ballet, que já se ausentara, e jurava ao maestro Witte, que estava presente, calado e desolado, que se suicidaria pelos seus andamentos errados. Enquanto isso, o coração voava-lhe dentro do peito como um passarinho exausto e sem rumo, e as lágrimas corriam-lhe ao longo do sorriso de cera e pintura. Finalmente, o chefe dos eletricistas pôs fim a essa cena, baixando uma grande alavanca; ficou tudo às escuras, e um homem impaciente começou a cobrir com panos cinzentos as filas de cadeiras. O pano ficou descido, o homem da manivela foi para dentro.
— Quantas chamadas, Suzette? — perguntou a Grussinskaia a uma mulher idosa que estava nos bastidores e a ajudou a vestir um casaco de lã desbotado e fora de moda, e em seguida abriu diante dela a porta de ferro do palco. — Sete? Eu contei oito. Você acha que foram sete? É um bom número, não acha? Mas terá sido mesmo um sucesso?
Ouviu com impaciência os protestos de Suzette, que assegurava ter sido um sucesso enorme, quase como em Bruxelas há três anos. Madame se lembrava? Sim, madame se lembrava. Como se fosse possível esquecer um grande sucesso! Madame, sentada no pequeno camarim, olhava fixamente a lâmpada elétrica envolta em uma rede, que pendia sobre o espelho, e recordou-se de tudo. "Não, não foi como em Bruxelas", pensou, taciturna e morta de cansaço. Estirou os membros banhados em suor; como um pugilista estendido no seu canto após um exaustivo round, ficou largada, enquanto Suzette friccionava-a, esfregava-a e tirava-lhe a pintura. O camarim era um canto triste, aquecido demais, sujo, estreito; cheirava a roupa velha, a ranço, a pintura, a centenas de corpos extenuados. Talvez a Grussinskaia tivesse dormitado alguns segundos, porque esteve a caminhar pelo átrio de sua villa do lago de Como — mas a seguir viu-se de novo ao lado de Suzette, às voltas com o penoso descontentamento provocado pelo espetáculo dessa noite. Não tinha sido um grande sucesso, não. Não tinha sido um grande sucesso. E que mundo cruel e incompreensível era esse, que começava a negar a uma artista como a Grussinskaia um grande sucesso?!
Ninguém sabia a idade da Grussinskaia. Alguns velhos senhores russos, aristocratas imigrados que moravam em quartos mobiliados em Wilmersdorf, diziam conhecer a Grussinskaia há quarenta anos — o que era seguramente um exagero. Mas, sem dúvida, seu êxito internacional já datava de vinte anos, e vinte anos de êxito e celebridade representam um tempo infinito.
Às vezes, a Grussinskaia dizia ao velho Witte, seu amigo e companheiro desde o início da sua carreira:
— Witte, sou uma criatura condenada a arrastar uma carga excessiva, sem descanso, a vida inteira.
E Witte respondia, cheio de gravidade:
— Por favor, Elisavieta Alieksandrovna, nunca deixe perceber isso; nunca fale de carga e de peso. O mundo inteiro se fez pesado. Sua missão, Elisavieta, permita-me que o diga, é conservar-se leve. Conserve-se como está! Não mude, seria uma catástrofe mundial.
A Grussinskaia não mudava. Pesava quarenta e oito quilos desde os dezoito anos, e uma boa parte do seu êxito e das suas aptidões era devida a esse fato. Seus partners, habituados à sua leveza, não conseguiam dançar com nenhuma outra bailarina. Seu pescoço, seu corpo, que parecia consistir apenas em articulações, o oval de seu rosto continuavam sempre os mesmos. Seus braços se moviam como disciplinadas asas. Seu sorriso, sob as pálpebras alongadas, era por si só uma obra de arte. Todas as energias da Grussinskaia se concentravam numa única finalidade: conservar-se fiel a si mesma. E ela não notava que era isso precisamente o que começava a aborrecer o público...
Talvez esse público a apreciasse como ela era na realidade, como era nesse momento, sentada no seu camarim: uma pobre mulher, velha, delicada, extenuada, de olhar tristonho, e a carinha consumida e torturada de um ente humano e real. Quando a Grussinskaia não tinha sucesso — e isso costumava acontecer agora, de vez em quando — encolhia-se toda, transformava-se de súbito numa mulherzinha velhíssima, de setenta anos, de cem anos, mais velha ainda. Lá no fundo do camarim, Suzette lamentava-se em voz baixa, em francês, diante do lavatório cinzento, encravado na parede; a torneira de água quente não funcionava muito bem. Afinal ficaram prontas as compressas úmidas para o rosto, e a Grussinskaia entregou-se à sua ardência, enquanto Suzette lhe tirava o colar de pérolas do pescoço, essas pérolas de uma beleza inverossímil, célebres no mundo inteiro, que datavam da época dos grão-duques.
— Pode guardar o colar; não quero mais usá-lo hoje — disse a Grussinskaia, abandonando-se, com a fisionomia concentrada, às pontas dos dedos, às essências de cânfora e à pintura do seu apagado factótum. Tinha de ir ainda a uma ceia que o Clube do Proscênio oferecia em sua honra, e por isso ela se fazia pintar com tanta compunção, como um antigo guerreiro mexicano antes de enfrentar o inimigo.
No corredor, diante do camarim, Witte ia e vinha, como uma paciente sentinela a montar guarda, enquanto arranhava a tampa do relógio, que usava no bolso do fraque, à moda antiga. Em seu rosto envelhecido de músico, liam-se a preocupação e a aflição. Pouco depois veio juntar-se a ele o mestre de ballet, Pimenoff, e finalmente chegou Michael, com as pestanas lustrosas de vaselina, e cheio de pó de arroz.
— Vamos esperar a Gru? Vamos juntos? — perguntou Michael, enchendo-se de coragem.
— Eu o aconselharia a evaporar-se, meu rapaz — disse Witte —, mesmo que você não tivesse vacilado cem vezes, o aconselharia a fazer isso.
— Mas eu não vacilei, Pimenoff! Acha que eu vacilei? — exclamou quase chorando. Pimenoff encolheu os ombros. Era também um homem idoso, com um nariz grande e característico, e tinha um fraco pelas gravatas plastrão da época de Eduardo VII. Ele próprio não dançava mais, apenas dirigia os ensaios e preparava os divertissements para a Grussinskaia. Eram coreografias clássicas, muito difíceis, cheias de pássaros, flores e alegorias, tudo dançado em pontas.
— Vá deitar-se, evite encontrar-se com a Gru, hoje. Lucille também já sumiu — disse ele, prudentemente.
Michael, com expressão de zanga, bateu à porta do camarim da Grussinskaia.
— Boa noite, madame! — exclamou ele. — Não os acompanho hoje. Quando é o ensaio amanhã?
— Naturalmente que você vai conosco. Tem que sentar-se ao meu lado na mesa! — exclamou lá de dentro a Grussinskaia. — Não me faça ficar triste, sweetheart! Sobre o ensaio vamos falar ainda. Espere por mim, ainda não estou pronta.
— Tiens... já passou a crise — murmurou Witte com um gesto de "já não está mais aqui quem falou".
— Larmes, oh, douces larmes! — declamou Pimenoff, com o queixo metido na gola do sobretudo.
— Não quero que o meu pior inimigo dance pas de deux com a Gru! Misericórdia, meu caro! — finalizou Michael, com seu cômico acento báltico.
A Grussinskaia, no camarim, punha perfume atrás da orelha. "Michael tem que estar lá", pensou ela. "Estou sempre rodeada de velhos: Pimenoff, Witte, Lucille, Suzette." De repente, sentiu uma raiva enorme do chapeuzinho surrado que Suzette usava, colocando-o sobre os cabelos cor de cinza, caído para trás. Com um gesto brusco recusou seu auxílio e saiu para o corredor, levando no braço a capa preta e dourada, com arminho. Virou-se de costas para Michael, para que ele lhe colocasse a capa nos ombros. Ele a colocou, com seu jeito habitual, delicado e feminino. Era uma pequena cerimônia de reconciliação; mais do que isso: era um tênue e secreto anseio da Grussinskaia pela companhia desse jovem. Michael era jovem, porque a Grussinskaia estava sempre mudando de primeiro-bailarino, cheia de nervos e de exigência com seus partners pessoais. O resto da troupe envelhecera com ela.
Aliás, ela agora tinha uma aparência magnífica, linda, estranha, exuberante e elástica.
— Elisavieta está encantadora! — disse Witte, com uma reverência do século passado. Ele se habituara a expressar-se num estilo complicado, em primeiro lugar para ocultar seu amor por Gru, por quem se apaixonara desde a mocidade, e depois porque tinha de traduzir logo suas frases, do alemão para o russo ou para o francês. A Grussinskaia também passava constantemente de uma língua para outra, do tu russo ou francês ao você inglês, e também conhecia o alemão; sabia traduzir as principais grosserias e amabilidades para qualquer língua. Nem sempre era fácil seguir sua conversa. Quando entrou no carro, por exemplo, perguntou:
— Você acha que a culpa é das pérolas, Witte?
— As pérolas? Por quê? Culpa de quê? — perguntou Witte, perplexo. A segunda pergunta foi feita apenas por cortesia, porque ele sabia muito bem a que se referia a Grussinskaia.
— Mon Dieu, por que justamente as pérolas? — perguntou também Pimenoff.
— Pois é, o colar de pérolas. Elas me dão azar, essas pérolas — disse ela expressivamente, como uma criança.
Witte batia com uma luva na outra: usava luvas glacées, fora de moda.
— Mas querida!... — disse ele abismado.
— Como? — perguntou Pimenoff. — Durante toda a sua vida essas pérolas lhe deram sorte, eram a sua mascote, o seu talismã! Você não podia dançar sem esse colar! E agora, de repente, as pérolas lhe dão azar? Que ideia, Gru!
— Pois é. Elas dão azar. Já percebi isso há muito tempo — disse Gru, com uma ruga de teimosia entre as sobrancelhas pintadas. — Não sei explicar muito bem, mas pensei muito sobre isso. Enquanto o Grão-Duque Serguei vivia, elas me deram sorte. Voilà. Desde que o assassinaram... azar, azar, azar! A ruptura do tendão no meu tornozelo, o ano passado, em Londres. O déficit em Nice. E, de um modo geral, azar! Não usarei mais esse colar quando dançar. Fiquem sabendo!
— Não vai usá-lo mais? Mas querida, Gru querida, você não pode aparecer em público sem as pérolas, você acreditou a vida inteira que não podia aparecer em cena sem essas pérolas, e agora, de repente...
— Pois é — disse a Grussinskaia —, era uma superstição minha.
Witte principiou a rir.
— Lisa! — exclamou ele — pombinha, minha queridinha, você é mesmo uma criança!
— Vocês não me compreendem. Você não me entende absolutamente, Witte. As pérolas já não me ficam bem. Não devo usá-las mais. Antigamente era diferente. Antigamente ... em São Petersburgo, em Paris, em Viena... era preciso usar joias. Uma bailarina tinha que ter joias e ostentá-las. Agora... quem é que usa um colar de pérolas verdadeiras? Eu sou mulher, sinto melhor essas coisas, tenho flair para essas coisas... Michael, você está dormindo? Fale alguma coisa também!
Michael, sem mover seu corpo delicado, disse, num francês lento:
— Quer saber o que penso, madame? Devia dar seu colar de pérolas às crianças pobres, aos aleijados, ou qualquer coisa parecida, madame.
— O que você está pensando? O colar de pérolas? Dar as pérolas? —- exclamou a Grussinskaia em russo, e a expressão pozertvovati parecia a melodia de alguma canção.
— Chegamos — disse Pimenoff, brecando de súbito.
— En avant! — ordenou a Grussinskaia. — Sejamos elegantes! Alegremo-nos!
Abriu-se uma porta.
Witte, subindo a escada atrás da bailarina, declarou:
— Elisavieta Alieksandrovna só tem um defeito: a paixão pelo imperativo categórico.
A Grussinskaia começou a rir, radiante como uma lâmpada acesa de repente, e assim, alegre e sorridente,entrou no clube, onde trinta fraques, de pé, esperavam pela sua entrada.
O Barão Gaigern tinha sido o último a deixar de aplaudir, mas assim que teve a certeza de que o pano não ia subir mais saiu do teatro com a fisionomia séria de um homem apressado. Não estava mais chovendo, e no asfalto úmido da Kantstrasse se refletiam numerosas luzes brancas e amarelas; o bonde passava ligeiro por entre as casas, guardas davam sinal para a partida, indivíduos desocupados abriam as portas dos automóveis às capas de pele. Gaigern foi andando pela calçada por entre a multidão, infringiu com perigo de vida as regras do trânsito e continuou a caminhar rapidamente por uma rua mais escura, a Fasanenstrasse, onde o seu carro — um modesto carrinho de quatro lugares — estava estacionado. O chofer fumava um cigarro.
— Então? — perguntou Gaigern, com as mãos nos bolsos do impermeável azul.
— Ela já mudou de chofer — respondeu o motorista. — Agora é um inglês. Ela o pescou em Nice, onde o patrão dele o deixou, após arruinar-se. Almocei com ele. Esse não abre a boca para dizer nada.
— Pela centésima vez eu lhe digo para tirar o cigarro da boca quando eu falar com você — disse Gaigern, dissimuladamente.
— Está bem — disse o chofer, jogando fora o cigarro. — Agora ele foi ao teatro, para levá-la ao Clube do Proscênio; daqui a pouco deve chegar lá. Quando deverá ir buscá-la, ainda não sabe.
— Ainda não sabe? — repetiu Gaigern, pensativo, batendo com as luvas na palma da mão. — Bem, está certo. Vou até lá de novo. Vá com o carro para o teatro e espere defronte da entrada.
Gaigern foi-se aproximando de novo do teatro, com a mesma fisionomia de homem ocupadíssimo. Ali, tudo agora estava vazio e vulgar: o enorme luminoso se apagara, as tabuletas olhavam inexpressivas. A entrada do palco não dava para a rua, mas para um pátio em cujos muros de incêndio a hera úmida cintilava. Gaigern se esgueirou por entre uns sujeitos que estavam vagabundeando por ali, e ficou a olhar para a porta de vidro fosco onde a Grussinskaia devia aparecer. Primeiro saíram os bombeiros, depois os maquinistas, de ombros largos, fumando, e em seguida passou algum tempo sem que ninguém aparecesse. Um pouco depois a porta cuspiu para o pátio uma pequena troupe de jovens bailarinas, criaturas magrinhas, com peliças baratas, tagarelando em francês, russo e inglês. Gaigern sorriu, depois que elas passaram; muitas já conhecia de Nice e Paris. Quando sorria, seu lábio superior encurtava, como acontece com os garotinhos, o que o tornava encantador e agradava a muitas mulheres.
"Meu Deus, como hoje isto está demorando de novo", pensou ele, impaciente, quando o pátio dos fundos do teatro adormeceu por completo. Passou-se quase um quarto de hora, até que o chofer se mexeu, no carro da Grussinskaia, como um cão que está sonhando, e ligou o motor. Gaigern, que conhecia o sinal, encolheu-se, ocultando-se na sombra do muro. Quando a Grussinskaia apareceu, finalmente, ele estava invisível.
— Espere-me aqui, Suzette — disse ela voltando-se para a porta —, mando logo o Berkley de volta. Ele a levará para o hotel.
Vestia uma capa magnífica, muito vistosa, dourada e preta, com arminho, que a envolvia até o queixo; a bailarina estava agora tão bonita como nas fotografias em que aparecia nos jornais ilustrados do mundo inteiro. Gaigern, do seu esconderijo, olhou-a com atenção. Quando ela pôs o pé prateado no estribo do carro, a gola de arminho abriu-se, e Gaigern pôde ver seu pescoço, seu célebre pescoço, longo e alvo, semelhante à haste de uma flor, que nessa noite, sobretudo, parecia mais nu do que nunca. Satisfeito, aspirou o ar pelos dentes; nunca havia desejado nada com tanto ardor quanto ver esse pescoço nu...
Mal o automóvel partiu, Suzette apareceu no pátio escuro e deserto seguida pelo porteiro, que fechou a entrada do palco. Conservava a aparência de cópia velha e apagada da sua patroa, pois usava os vestidos e os chapéus velhos da Grussinskaia, quando já haviam passado de moda há muito tempo. Neste momento arrastava-se pelo pátio, metida numa saia comprida, em forma de sino, e usando um casaco desbotado, com uma espécie de gola à Werther. Em cada mão carregava uma mala: na esquerda, uma valise grande e chata; na direita, uma pequena suitcase de verniz preto. Andando com dificuldade, foi até a porta gradeada que separava da rua o pátio do teatro e ali ficou a caminhar de um lado para o outro, sob a luz forte da lâmpada elétrica. Pela cabeça de Gaigern passaram, durante esses poucos segundos, alguns velozes pensamentos, e ele se curvou, no seu canto sombrio, com os nervos tensos, como a se preparar para um salto ou para iniciar uma corrida. Mas nada fez, porque o maldito Berkley, fazendo uma magnífica curva, aproximou-se, e Suzette subiu no carro cinzento. Na Gedaechtniskirche bateram onze e meia, e Gaigern, que se esquecera de respirar um minuto, aspirou profundamente o ar da noite. Assobiou, e seu carrinho surgiu incontinenti.
— Vamos ao hotel, siga-o depressa! — exclamou, sentando-se rápido ao lado do chofer.
— Então? Há esperanças? — perguntou este, que já estava falando de novo de cigarro na boca.
— Esperemos — respondeu Gaigern.
— Mais uma noite inteira à espreita no carro, hein? E cá o degas não precisa dormir mais, não é? — disse o chofer.
Gaigern esticou o indicador, mostrando o carro cinzento que fazia a pequena curva em redor da casinhola iluminada do guarda, na Hitzigbruecke.
— Vá seguindo — disse; o chofer pisou no acelerador; não havia mais guardas na ponte. Berlim borbulhava sua vida noturna pelas ruas, sob um céu vermelho, completamente sem estrelas, sob a claridade de uma noite de primavera.
— A gente até perde a vontade — continuou o chofer com as suas considerações. — Essa história está dando mais despesas do que o lucro que poderá vir. No fim só vai dar prejuízo.
— Faça o que quiser — replicou o barão amavelmente, e seu lábio superior tornou-se minúsculo ao pronunciar estas palavras. — Se você não está contente, pode receber o pagamento e seguir o seu caminho. É um favor.
— Não estou falando por mal — disse o chofer.
— Nem eu — respondeu o barão. Depois ficaram calados até chegar ao hotel.
— Estacione na entrada 6 — observou Gaigern, ao saltar do carro; na porta giratória, que levava do hall de entrada ao grande hall, encontrou-se com um senhor girando em sentido contrário. Gaigern deu um pontapé impaciente na porta e fez com que o carrossel de vidro, com o seu conteúdo, fosse para a frente.
— É nessa direção que ela gira! — disse ele a Kringelein.
— Obrigado. Muito obrigado — replicou Kringelein, que queria sair e ficou de novo girando lá dentro.
Gaigern correu a buscar sua chave, voou ao elevador e, no primeiro andar, pediu ao maneta que esperasse um pouco, pois voltaria em um segundo. Disparou pelo corredor até o seu quarto, o 69, atirou o chapéu e a capa, tirou de um vaso um lindo ramo de orquídeas e correu com ele para o corredor.
— Faça o favor de dizer ao ascensorista que não preciso mais dele — disse a uma criada de quarto que se arrastava ao longo das portas, caindo de sono. A empregada deu o recado ao maneta, que tocou o elevador, resmungando. Quando o elevador chegou ao andar térreo, Suzette já o estava esperando com suas duas malas, para subir. E era isso justamente o que Gaigern queria.
Ao entrar no quarto 68, o quarto da Grussinskaia, Suzette viu atrás de uma palmeira no corredor um bonito jovem, cuja fisionomia tímida e suplicante não lhe era desconhecida.
— Boa noite, mademoiselle. Permita-me dizer-lhe uma palavrinha — disse ele no francês elegante, um tanto antiquado, que se ensina nos colégios de jesuítas. — Só uma palavrinha: madame não está no seu quarto?
— Não sei, cavalheiro... — respondeu Suzette, que era sabida.
— É só porque... desculpe o atrevimento... mas eu gostaria de colocar no quarto de madame uma florzinha para ela. Sou um admirador, estive hoje no teatro... e não perco os seus espetáculos de dança. Olhe, eu li num jornal que madame gosta destas catleias... é verdade?
— É — respondeu Suzette. — Ela gosta de orquídeas. Em nossa estufa de Tremezzo temos uma pequena coleção delas.
— Ah! Posso então entregar-lhe meu raminho e pedir-lhe o favor de colocá-lo no quarto de madame?
— Hoje recebemos uma imensidade de flores. O embaixador francês mandou uma cesta — disse Suzette, ainda amargurada pelo discutível sucesso da noite, olhando com bastante simpatia aquele jovem tímido. Mas não podia pegar o ramo porque estava com as duas mãos ocupadas. Teve até dificuldade em passar a chave para a mão direita a fim de abrir a porta do 68. Gaigern, vendo o apuro em que ela se encontrava, aproximou-se solícito.
— Permita-me! — disse ele, fazendo menção de pegar as duas malas. Suzette entregou-lhe a mala grande. Mas conservou consigo a pequena suitcase, afastando-se num movimento instintivo. "É ali então que se encontram as célebres pérolas", pensou Gaigern, sem dizê-lo, é claro. Abriu a porta externa, depois a interna, e franqueou com passos tímidos e ao mesmo tempo entusiásticos o limiar do quarto onde a Grussinskaia estava hospedada.
O quarto era banal, e estava arrumado com uma elegância empoeirada, como todos os outros. Fazia frio ali dentro, flutuava um perfume estranho e acre, e um aroma de coroas de folhagem, e a porta que dava para o pequeno terraço estava aberta. O cortinado do leito estava aberto, e sobre o tapete encontravam-se uns chinelinhos já bem usados e gastos: chinelos de uma mulher acostumada a dormir sozinha. Gaigern, parado à porta, teve um furtivo e terno sentimento de piedade por esses chinelinhos resignados, junto ao leito de uma linda e célebre mulher. Entrou no quarto segurando seu ramo de orquídeas, com um gesto de súplica. Suzette colocou a suitcase sobre a mesa de toilette, entre os três espelhos, e apanhou finalmente as flores.
— Obrigada, monsieur — disse ela. — Há algum cartão com as flores?
— Que ideia! Eu não sou tão atrevido — disse Gaigern. E ficou a olhar para o rosto enrugado e cor de marfim de Suzette, que mostrava estranha semelhança com o da patroa. — A senhora está cansada? — perguntou ele. — E madame com certeza vai voltar tarde. Precisa esperar por ela?
— Não. Madame é boa pessoa. Diz-me todas as noites: "Pode ir dormir, Suzette, não preciso de você". Mas madame precisa de mim, sim. Vou esperar por ela. Madame nunca chega depois das duas, porque começa a trabalhar às nove horas da manhã. E que trabalho o dela, monsieur — oh, mon Dieu! Não, madame é muito boa.
— Ela deve ser um anjo! — observou Gaigern em tom respeitoso. "Só há um quarto de banho sem janelas entre o 68 e o 69", pensou ele ao mesmo tempo. Seu olhar, vagando por todos os lados, caiu no enorme bocejo de Suzette.
— Boa noite e mil vezes obrigado, mademoiselle — disse ele modestamente. Depois, sorriu e desapareceu.
Suzette fechou as duas portas assim que Gaigern saiu, colocou as orquídeas na garrafa de água e encolheu-se num fauteuil, como uma gata friorenta.
3
Antes da uma da manhã há poucos pares de sapatos diante das portas dos quartos do Grande Hotel. Todo mundo saiu para gozar a noite fervilhante, barulhenta e exuberante de luz elétrica da grande cidade. A criada de quarto da noite boceja a um canto, no pequeno office, ao fim do corredor; em cada andar há uma criada exausta, virtuosa e murcha. Os boys revezaram de turno às dez horas, mas a nova guarnição também tem, sob os bonés colocados de lado, descuidadamente, os mesmos olhos febris e brilhantes de crianças que não foram cedo para a cama. O encarregado do elevador, manda e mal-humorado, foi substituído, à meia-noite, por um outro maneta não menos mal-humorado. Senf entregou também seu posto ao porteiro da noite, e dirigiu-se ao hospital sem refletir, lá pelas onze horas, com os dentes batendo de excitação. O fato de ele ter sido mandado para casa por uma irmã-porteira pouco amável, com a observação de que o nascimento da criança podia demorar ainda vinte e quatro horas, é assunto particularmente seu, e não tem nada a ver com o hotel. No hotel, a estas horas, estão se divertindo a valer. No pavilhão amarelo estão dançando, o bufê de Mattoni já está bem desfalcado e ele sorri com seus olhos de negro enquanto corta fatias do rosbife e mistura maraschino na salada de frutas gelada. Os ventiladores zunem e cospem o ar viciado para os pátios do hotel, e na sala de leitura, no subterrâneo, estão os choferes falando mal dos patrões, porque não os deixam beber durante o serviço. No hall encontram-se sentados os hóspedes provincianos do Reich, assombrados e levemente aborrecidos com os hóspedes de Berlim, esses senhores de chapéu caído para a nuca, com gestos exagerados, e admirados também com a pintura dos rostos das senhoras. Rohna, que acabava de se esfregar com vinaigre de toilette e ia atravessando o hall, pensou: "É verdade que os nossos frequentadores noturnos não são first class. Mas — que voulez-vous? — só essa gente ordinária é que traz dinheiro para a caixa!"
Pouco antes da uma hora, Herr Kringelein chegou ao bar do hotel, onde se imprensou, exausto, atrás de uma mesinha para observar o mundo com olhos enublados. Para falar a verdade, Herr Kringelein estava completamente exausto, mas era voluntarioso como uma criança no dia do seu aniversário — simplesmente não queria ir para a cama. Além disso, tinha a impressão de já estar dormindo, tudo chegava ao seu cérebro de um modo confuso, como um estado de sonho ou de febre; o alarido e o movimento humano, as vozes, a música, tudo isso estava junto dele e ao mesmo tempo muito distante, absolutamente irreal. O mundo burburinhava de modo estranho, mergulhando-o num estado de bebedeira sem álcool. Certa vez, com a idade de dez anos, Kringelein faltara à escola e fugira, com medo de um ditado, numa manhã quente e cheia de neblina, em direção a Mickenau; depois, deixara as ruas calçadas e ficara a vagabundar pelos campos e, enquanto o sol dardejava seus raios ardentes, deitara-se e adormecera com a cabeça sobre uma almofada de trevo. Chegara a uma sebe à margem do rio e encontrara ali uma quantidade enorme de framboesas, que se pôs a devorar. Nunca mais se esqueceu, em toda a sua vida, do zumbido das grandes moscas dos brejos, que chuparam o sangue de suas pernas e de seus dedos perfumados e sujos do suco das framboesas, que tinha apanhado aos punhados, por entre urtigas e espinheiros. Esse sentimento embriagador de plenitude, o medo, o leve e febril mistério, e a alegria maligna da ação reprovável — essa embriaguez do assaltante, tudo isso ele sentia de novo, entre uma e duas da madrugada, no bar do hotel mais caro de Berlim. De certo modo as martirizantes moscas também se encontravam ali; haviam tomado a forma de números, e davam desagradáveis picadas no cérebro de Kringelein, no cérebro de um modesto guarda-livros que, acostumado a fazer contas durante toda a sua vida, não conseguia agora deixar de fazê-las.
Nove marcos era quanto custava uma porção de caviar, por exemplo. Caviar é uma desilusão, na opinião de Kringelein. Tem gosto de arenque e custa nove marcos. Kringelein sentiu calor e frio ao mesmo tempo, quando se viu sentado diante do carrinho com os hors d’oeuvres, observado por três garçons com ar de poucos amigos.
O menu — vinte e dois marcos, com a gorjeta — ficou intacto, porque seu estômago enfermo sentira náuseas. O borgonha era um vinho grosso e ácido deitado numa espécie de carrinho de criança, como um baby. A gente rica tinha um gosto esquisito, parecia. Kringelein, que não era bobo e gostava de aprender, reparara logo que estava mal vestido e usava as várias espécies de talheres de modo errado. Não pudera livrar-se de um maldito tremor nervoso durante toda a noite, que fora rica em embaraços por causa das gorjetas, de saídas por portas erradas, de perguntas confusas e pequeninos tormentos de toda a espécie. Mas tivera também seus grandes momentos, essa noite de um homem rico. A visita às vitrinas, por exemplo. Em Berlim as vitrinas ficam iluminadas durante a noite, e tudo que existe no mundo se encontra ali aos montões. Poder comprar tudo isso era um pensamento novo, febril e embriagador, para um homem como Kringelein. Foi ao cinema (em Berlim ainda se pode ir ao cinema às nove e meia da noite) e comprou um camarote. Em Fredersdorf também se vai ao cinema, pois três vezes por semana há um espetáculo no Salão Zickenmeier, onde a Associação Coral costuma fazer os seus ensaios. Kringelein estivera lá uma ou duas vezes, e sentara-se com sua Anna, que era muito sovina, bem na frente, no lugar mais barato, entre operários de fábricas; esticava a cabeça para cima, como um parafuso, de olhos fixos nas gigantescas e desfiguradas imagens da tela. O filme, visto de um lugar caro, tinha um aspecto completamente diferente, assemelhando-se à vida real, quando se pode pagar; foi esse um dos grandes conhecimentos adquiridos nessa noite. Kringelein, lembrando-se disso, sacudia a cabeça, sorridente. Um parêntese: esse filme de Saint-Moritz mostrava um mundo maravilhoso, mas que não parecia real. Kringelein, naquele canto do bar, resolveu ir para Saint-Moritz. "Estes montes, lagos e vales não existem só para os Preysing", pensa ele. Seu coração palpita com força quando tal pensamento o assalta de novo. Quando as pessoas têm a certeza de que vão morrer, são assaltadas por uma sensação de liberdade, amarga e triunfante. Kringelein, no entanto, não encontra palavras para exprimir o sentimento que às vezes o assalta, e agora o oprime, obrigando-o a suspirar profundamente para recobrar alento.
— Com licença — disse o Dr. Otternschlag em meio às considerações de Kringelein, metendo os joelhos ossudos por debaixo da mesinha em que estava sentado. — Não há mais nenhum lugar livre neste maldito bar. Local completamente obstruído. Louisiana Flip — disse ele ao garçom, pousando os dedos magros sobre a mesa, entre ele e Kringelein, como dez varetas, frias e pesadas, de metal.
— Que prazer — disse Kringelein com elegância. — Tenho imenso prazer em encontrar de novo o cavalheiro. O senhor foi tão bondoso comigo... não pense que me esqueci. Não, realmente não...
Otternschlag, a quem há muitos anos ninguém chamava de bondoso, e com quem, há dez anos, ninguém, absolutamente ninguém, mantivera uma conversa, sentiu um leve desprezo, misturado com certa satisfação, ouvindo os repetidos agradecimentos do senhor de Fredersdorf.
— Bem, bem... saúde! — disse ele, engolindo de um trago o seu Flip. Kringelein pedira uma bebida qualquer, mas não se atrevia a bebê-la, e apenas provou o líquido cor de cobre na taça de metal niquelado.
— No começo, o movimento daqui nos causa confusão — disse timidamente.
— Hum — replicou o Dr. Otternschlag. — No princípio causa. E não melhora, quando somos hóspedes efetivos. Não. Mais um Louisiana Flip.
— Na realidade, tudo é diferente do que imaginamos — respondeu Kringelein, a quem o coquetel forte deixara meditabundo. — Hoje em dia já não se vive na província como se estivéssemos fora do mundo. Lemos os jornais. Mas na realidade é bem diferente. Eu sei, por exemplo, que as banquetas do bar são altas. Mas não acho que sejam tão altas assim. E o negro ali adiante é o mixer, isso eu já sei; mas não é uma coisa tão esquisita, quando ele está perto de nós, apesar de ser o primeiro negro que vi na minha vida. Mas não é nada esquisito. Fala até alemão, e poderíamos pensar que ele está apenas pintado de preto.
— Não, não, é um negro de verdade. Mas não e muito competente. Quem quiser bebidas que façam dormir precisa esperar muito.
Kringelein prestou atenção à confusão de vozes, ao tilintar dos vidros, ao sussurro das pessoas e às gargalhadas das mulheres na frente do bar.
— Essas mulheres não são moças de bar, não é? — perguntou. Otternschlag voltou para ele o lado perfeito do rosto.
— O senhor está sentindo falta do elemento feminino? — perguntou. — Não, essas não são moças de bar; isto aqui é um local sério, respeitável. Só mulheres acompanhadas por cavalheiros. Não são moças de bar, mas também não são senhoras. O senhor está procurando companhia?
Kringelein pigarreou.
— Obrigado, nem penso nisso. Mas se eu quisesse, já teria companhia para hoje. Sim senhor. Pois é. Uma moça me chamou para dançar.
— Ah, é? Ao senhor? Onde? — perguntou o Dr. Otternschlag, entortando metade da boca, num sorriso.
— Eu estava num cassino, não muito longe da Potsdamerplatz — observou Kringelein, procurando imitar o tom desembaraçado e mundano de Otternschlag. — Fantástico, fantástico, é o que lhe digo. Que iluminação feérica! — procurou uma palavra mais expressiva, mas depois se contentou com essa mesmo. — Uma iluminação feérica. Pequenas fontes luminosas, que sempre mudavam de cor. Caro, naturalmente. É preciso beber champanha. Cobram, por uma garrafa, vinte e cinco marcos. Infelizmente eu não aguento beber muito, não tenho muita saúde, o senhor compreende.
— Já sei. Já percebi. Quando alguém usa um colarinho dois centímetros mais largo do que o pescoço, não precisa me dizer mais nada.
— O senhor é médico? — perguntou Kringelein, sentindo um calafrio e um susto, e metendo, sem querer, dois dedos entre o colarinho. — É, está largo demais...
— Fui. Tudo passou. Fui mandado pelo governo para a África do Sul. Clima horroroso. Preso em setembro de 14. Campo de concentração em Nairóbi, na África Oriental Britânica. Horrível. Voltei à pátria porque dei a minha palavra de que nunca mais seria soldado. E, como médico, participei dessa grande porcaria até o fim. Granadas no rosto, e bacilos de difteria no ferimento, de que não me livrei até 1920. Dois anos no isolamento. Pois é. Basta. Ponto final. Tudo pertence ao passado. Quem é que se interessa por essas coisas?
Kringelein, assustado, não desprendia os olhos daquele homem atormentado, cujos dedos rígidos e inanimados estavam pousados sobre a mesa, separando-os. O bar acompanhava a sua conversa com uma espécie de ruído musical; adivinhava-se que tocavam um charleston no pavilhão amarelo. Kringelein pouco compreendera do despacho telegráfico de Otternschlag. Não obstante, subiu-lhe aos olhos uma aguinha quente. Ele se envergonhava de chorar com tanta facilidade, depois que fizera a operação, que aliás não adiantara nada.
— E o senhor, não tem ninguém que... quero dizer... O senhor vive sozinho? — perguntou, sem jeito. E pela primeira vez Otternschlag reparou em sua voz aguda, de timbre agradável, a voz de um homem, uma voz que vibrava, que procurava, que tateava... Estendeu seus dedos frios na mesa e retirou-os em seguida. Kringelein, pensativo, olhava para as inúmeras cicatrizes esbranquiçadas do rosto de Otternschlag, mas de repente abriu-se o começou a falar.
Sozinho — ele sabia o que isso significava, foi mais ou menos o que ele disse; também ele vivia sozinho em Berlim, de um modo geral. Cortara todos os laços, desligara-se de diversos vínculos que o prendiam — usava modos elegantes de expressar-se — e agora estava em Berlim. Quando se vivera em Fredersdorf, ficava-se um pouco perdido numa grande cidade. Ele conhecia pouco a vida, mas agora queria conhecê-la, conhecer a verdadeira vida, a vida propriamente dita, com V maiúsculo, e era para isso que estava ali naquele momento.
— Mas — disse Kringelein —, onde está a verdadeira vida? Eu ainda não a descobri. Estive no cassino, estou no hotel mais caro de Berlim, mas não é só isso o que eu quero. Desconfio de que a vida real, verdadeira, a vida propriamente dita, existe num outro lugar, e tem um aspecto bem diferente. Quando não fazemos parte dela, não é tão fácil atingi-la, o senhor compreende?
— E o que imagina o senhor que a vida seja? — replicou o Dr. Otternschlag. — Existirá mesmo essa vida que o senhor imagina? A coisa propriamente dita existe sempre num lugar diferente. Quando a gente é jovem, pensa: "mais tarde..." Mais tarde, lamentamos: "antigamente é que eu vivia". Quando estamos aqui, imaginamos a vida na Índia, na América, no Popocatepetl ou em outro lugar qualquer. Mas quando nos encontramos lá, a vida acabou de passar por ali e desaparecer, ficando à nossa espera aqui, aqui mesmo, de onde nós fugimos. Com a vida passa-se a mesma coisa que com os caçadores de borboletas e os lepidópteros que tentam pegar. Enquanto estão voando, são uma maravilha. Depois que os apanham, notam que as cores desapareceram e as asas se estragaram.
Kringelein ouvia pela primeira vez da boca do Dr. Otternschlag algumas frases com certa sequência, e isso o impressionou; mas não acreditou no que ele estava dizendo.
— Não acredito nisso — disse com modéstia.
— Pode acreditar. Tudo se passa como com as banquetas de bar — replicou Otternschlag, que apoiara os cotovelos nos joelhos, e cujas mãos, pendentes, tremiam debilmente.
— Que banqueta de bar? — perguntou Kringelein.
— A banqueta de que o senhor falou há pouco. "As banquetas de bar não são tão altas assim", afirmou o senhor há pouco. "Eu imaginei que as banquetas fossem mais altas." Não é verdade? O senhor não disse isso? Pois é. Nós imaginamos tudo maior do que é, antes de vermos as coisas. O senhor acabou de chegar de viagem e veio lá do seu cantinho de província com ideias absurdas sobre a vida. O Grande Hotel, pensou o senhor. O hotel mais caro de Berlim, pensou o senhor. Deus sabe que milagres o senhor espera de um hotel assim. O senhor vai logo ficar sabendo o que é isto. Este hotel não vale nada, Herr Kringelein. A gente chega, fica algum tempo, depois parte. De passagem, compreende? Para uma estada curta, sabe? O que é que o senhor faz num hotel de luxo? Come, dorme, fica vadiando, faz negócios, flerta um pouquinho, dança um pouco, não é? Bem, e o que faz o senhor da sua vida? Centenas de portas num corredor, e ninguém sabe nada a respeito de quem mora ao lado de seu quarto. Quando o senhor vai embora, chega outro sujeito, deita-se na sua cama, e acabou-se. Fique sentado algumas horas no hall e preste bem atenção: ninguém é real. Essa gente não tem fisionomia própria! É tudo uma ilusão. Estão todos mortos e não sabem. É uma arapuca, um hotel de luxo. Grande Hotel, bella vita, hein? Bem, o importante é ter sempre as malas prontas...
Kringelein ficou pensando algum tempo. Teve então a impressão de ter compreendido o que Otternschlag dissera.
— É. Tem razão — disse ele, concordando. Havia seriedade demais nessa afirmativa. Otternschlag, que caíra numa leve sonolência, levou um susto.
— O senhor deseja alguma coisa de mim? Quer que eu o inicie na vida? Boa escolha a sua, magnífica. De qualquer maneira, estou à sua disposição, Herr Kringelein.
— Eu não queria incomodá-lo — respondeu Kringelein, meio atrapalhado e respeitoso. Pôs-se a refletir. Não se aguentava mais, usando essas frases elegantes. Desde que se encontrava no Grande Hotel, movia-se como se estivesse numa terra estranha. Falava o alemão como uma língua estrangeira, que tivesse aprendido em livros e jornais.
— O senhor foi bondosíssimo — disse. — Eu tinha esperanças... mas para o senhor as coisas são diferentes. O senhor já conhece tudo isso. Já está farto. Eu tenho tudo pela frente... então fico impaciente... tenha a bondade de desculpar.
Otternschlag olhou Kringelein com atenção; até sua pálpebra costurada sobre o olho de vidro parecia olhar.
Olhou-o atentamente e viu uma figura magra, com um terno de funcionário, de um tecido de lã encorpado e grosseiro, já um pouco lustroso. Viu, sob o bigode de diretor de associação, os vincos tristonhos e ansiosos ao lado dos lábios anêmicos. Viu o pescoço descarnado dentro do colarinho duro, muito largo e já no fio, as mãos de escriturário, de unhas maltratadas; viu até as botinas pretas, um pouquinho viradas para dentro, sobre o espesso tapete. E, finalmente, viu os olhos de Kringelein, olhos de um homem, azuis, por detrás do pince-nez de guarda-livros, olhos em que se lia uma enorme ansiedade, um sentimento de espera, de admiração, de curiosidade: sede de vida — e certeza da morte.
Só Deus sabe o calor que irradiou desses olhos sobre a existência amortecida do Dr. Otternschlag. Ou talvez tenha sido por mero aborrecimento que ele disse:
— Está certo. Bem. O senhor tem razão. Oh! O senhor tem toda a razão. Eu já passei por tudo isso. Estou farto, sim. Já passei por tudo, até a última e insignificante formalidade. E o senhor pensa que tem tudo pela frente? Está com apetite, hein? Apetite psíquico, quero dizer. O que é que o senhor imagina? O costumeiro paraíso masculino? Champanha? Mulheres? Correr, jogar, beber? Tiens! E foi cair numa arapuca dessas, logo na primeira noite? E encontrou logo companhia? — disse Otternschlag, impassível, mas agradecido pelo calor do olhar vesgo de Kringelein.
— É, logo, logo. Uma moça queria por força dançar comigo. Uma mocinha linda. Talvez não fosse tão linda... quero dizer, era um pouquinho planta de estufa de cidade grande — disse planta de estufa de cidade grande porque estava habituado a ler isso no jornal Mickenauer Tageblatt —, mas elegantíssima. Bem-educada, também.
— Bem-educada, também! Veja só... veja só! E ficaram amigos? — murmurou Otternschlag.
— Infelizmente eu não sei dançar. É preciso saber dançar, parece ser muito importante isso — respondeu Kringelein, a quem o coquetel dera uma atividade febril, tornando-o tristonho, ao mesmo tempo.
— Muito importante. Muito, mesmo. Importantíssimo — replicou o Dr. Otternschlag com uma estranha vivacidade na voz. — É preciso saber dançar. A união de dois corpos no mesmo compasso, girar abraçado ao par, não é verdade? Não se pode dar tábua em uma moça. É preciso saber dançar. Oh! O senhor tem toda a razão, Herr Kringelein. O senhor se chama Kringelein, não é?
Kringelein olhou, com expressão de curiosidade e inquietação, por baixo do seu pince-nez, a fisionomia de Otternschlag.
— Que quer o senhor dizer com isso? — perguntou, convencido de que estavam zombando dele. Mas Otternschlag continuou sério.
— Pode acreditar-me — afirmou. — Pode acreditar-me, Kringelein: quem não tem atividade sexual é um homem morto. Garçom, quero pagar.
Kringelein também pagou, após essa conclusão abrupta, e levantou-se atrapalhado. Foi andando atrás dos ombros esqueléticos do Dr. Otternschlag, metidos em um smoking estreito, e saiu do bar; foi cambaleando até o porteiro e recebeu sua chave.
— Há cartas para mim? — perguntou Otternschlag ao porteiro da noite. O doutor parecia ter-se esquecido por completo de Kringelein.
— Não — respondeu o porteiro, sem verificar, pois este não era como o outro porteiro, e delicadeza de sentimentos não se adquire imediatamente, mal se coloca na cabeça o boné do fardamento.
— A chave de madame, mademoiselle já a levou — disse ele, em francês, a uma senhora; e Kringelein quase o compreendeu, graças ao seu conhecimento de línguas adquirido na prática de correspondência com o exterior.
A senhora passou por ele, e de sua capa dourada evolou-se um perfume tênue agridoce, quando a gola se abriu junto ao pescoço. Kringelein encarou a senhora, esquecendo as regras da boa educação, e ficou completamente pasmado. A senhora tinha os cabelos pretos e lisos, e usava um diadema na cabeça; suas pálpebras eram oblongas, azul-escuras, com um sombreado também azul-escuro sobre os olhos; as fontes, as faces e o queixo eram cor de marfim, com veiazinhas azuis. A boca, cor de carmim, quase roxa, e bem arqueada, com dois arcos bem altos, que se erguiam quase até as narinas. O cabelo caía de cada lado em dois bandos lisos e pretos, avançando sobre as faces e, no ponto em que terminavam, via-se na pele a sombra de uma leve tonalidade ocre, pintada com extrema arte. A senhora parecia alta, apesar de ser de tamanho médio, devido (Kringelein o percebeu) às proporções perfeitas de seu corpo e ao seu andar adejante. Estava acompanhada por um cavalheiro de idade, baixinho, que trazia um chapéu cilíndrico na mão e tinha o aspecto de um músico.
— Você pode estar no teatro amanhã às oito e meia, querido? — perguntou a senhora, no momento exato em que passava diante de Kringelein. — Eu queria trabalhar meia hora antes de começar o ensaio.
Kringelein, que nunca vira ninguém mais elegante do que esta senhora, ficou a sorrir, deliciado, de tanta admiração, e depois puxou Otternschlag pela manga, soprando-lhe a meia voz:
— Que espécie de mulher é essa?
— O senhor não a conhece, homem de Deus?! A Grussinskaia — disse Otternschlag impaciente, dirigindo-se com a sua perna de pau para o elevador. Kringelein ficou parado no meio do hall.
— A Grussinskaia! — "Ó, diabo, a Grussinskaia!", pensou ele. A fama da Grussinskaia era tão grande que chegara até Fredersdorf. "Ela existe realmente. É assim que ela é. Não é só nos jornais que se leem notícias sobre ela. Ela é de carne e osso. Podemos esbarrar nela, tocá-la e aspirar o seu perfume, pois todo o hall fica perfumado quando ela passa. Preciso escrever ao Kampmann."
Apressou os passos para poder ver de novo a Grussinskaia e contemplá-la com atenção. Em frente ao elevador assistiu a uma pequenina cerimônia de troca de cortesias. Um homem de estatura fora do comum, elegante e bonito, afastou-se da porta do elevador, dando dois largos passos e deixando o caminho livre à Grussinskaia, com um gesto de mão negligente e ao mesmo tempo respeitoso, como se não se tratasse da entrada em um elevador, mas em um reino que um conquistador deposita aos pés da sua soberana. Otternschlag, que do outro lado abria alas sozinho, fez uma careta e rosnou consigo mesmo:
"Sir Walter Raleigh1".
1 Navegador e escritor inglês (1552-1618), favorito de Elisabeth I. (N. do E.)
Kringelein, por seu lado, estava tomado de tal pressa que passou diante de Otternschlag e se meteu no elevador logo atrás dos ombros largos daquele amável jovem. Por essa razão, o seu protetor teve que ficar sozinho, pois a lotação do elevador não podia ultrapassar quatro pessoas. Iam todos muito apertados, naquele pequeno cárcere de vidro e madeira. O jovem bonito, principalmente, encolhia-se no seu canto.
— Ah! Está também em Berlim, barão? — perguntou-lhe o velho maestro Witte. E o Barão Gaigern respondeu:
— Pois é. Sim, senhor. Também estou aqui.
Kringelein ouvia cheio de respeito essa conversa entre pessoas distintas. O maneta girou a manivela e o elevador parou no primeiro andar. Sobre a passadeira cor de framboesa, eles se encaminharam aos seus quartos: na frente, a Grussinskaia; atrás dela, Witte; depois o barão, e por último Otto Kringelein. As portas 68, 69 e 70 foram abertas. Eram duas horas da madrugada, que um velho relógio de mesa, na esquina do corredor, bateu ameaçadoramente. Ouvia-se o ruído abafado da música a tocar a última contradança no pavilhão amarelo.
A Grussinskaia parou um momento entre as duas portas do seu quarto.
— Boa noite, querido — disse ela. Quando estava de bom humor falava em alemão com ele. — Muito obrigada por esta noite. Foi ótima, não foi? Oito chamadas. Ah, diga-me: quem era aquele moço? Nós já não o vimos em algum outro lugar? Em Nice?
— É isso, em Nice, Lisa. Ele se apresentou a mim. Jogamos bridge algumas vezes. Parece ser um grande admirador de Elisavieta.
— Ah! — disse a Grussinskaia. Tirou a mão de baixo da capa e acariciou a manga de Witte, distraidamente. — Estamos com um enorme cansaço. Boa noite, querido. Olhe: é o mais belo homem que já vi na minha vida, esse barão — acrescentou em russo. Disse-o com um tom de voz tão frio, como se falasse apenas de um objeto que se expõe em leilão para ser vendido.
Kringelein, que ficara hesitante à entrada de seu quarto, ouviu, sedento e ansioso de aventuras, aqueles sons estranhos. Tinha a nítida sensação de que o mundo era maior e mais excitante, e mais outras coisas do que ele tinha imaginado em Fredersdorf.
Por fim as portas se fecharam, portas duplas de hotel, que se fecham por detrás das pessoas, deixando-as sozinhas com os seus segredos.
Nem o mais leve resquício de movimento mundano se nota entre as oito e as dez da manhã nas salas e corredores do enorme hotel. Não há luzes acesas nem música tocando, não se veem senhoras — a não ser que se queira considerar um modelo de sedução feminina uma mulher de limpeza que, de avental azul, passa a vassoura no hall, sobre a serragem molhada. Mas Rohna não pensa assim. Já está de novo no seu posto, esse esforçado Conde Rohna, calado, obsequioso, bem barbeado, com a ponta do lenço de seda flamulando discretamente no bolsinho do paletó. Ele acha que só num hotel de segunda classe se faz limpeza na presença dos hóspedes, mas infelizmente isso não é da sua competência, mas sim atribuição da inspetora-chefe. Aliás, os hóspedes nem reparam nisso. Os hóspedes que se encontram no hotel pela manhã são todos senhores sérios, ativos, homens de negócios. Sentados no hall, vendem tudo, oferecendo os produtos em todas as línguas do mundo: papel, algodão em rama, lubrificantes en gros, patentes, filmes, terrenos; vendem planos e ideias, sua energia, seu cérebro e sua vida. Sua primeira refeição é muito farta, e a saleta do café fica cheia de fumaça dos charutos e cigarros, apesar de existir um quadrinho com um tímido aviso, fixado no tapete de damasco amarelo da parede, pedindo aos fumantes que fumem de preferência no salãozinho cinzento, ao lado. Em todas as mesas há jornais; as cabinas telefônicas estão todas ocupadas e assediadas, e o porteiro Senf não vê nenhuma possibilidade de receber qualquer notícia do hospital antes de uma hora da tarde. No corredor do quinto andar, atrás da lavanderia, os grooms são submetidos a uma espécie de revista, antes de começarem o serviço; e, defronte do hotel, no espaço que medeia entre a entrada 1 e a 3, o Grande Hotel pode fazer concorrência a uma Bolsa.
Se tomarmos como exemplo Preysing, diretor-geral da Indústria Algodoeira Saxônia S.A., esse enérgico industrial, que representa o tipo médio dos homens de negócios, ficamos a par da atividade dos homens da sua classe, no Grande Hotel, das oito às dez da manhã.
Preysing, homem avantajado, corpulento, pesadão, chegara ao hotel numa hora incrível, às seis e vinte da manhã, porque na infeliz localidade de Fredersdorf só param trens mistos. Até então não lhe fora possível, apesar de todo o empenho, conseguir um trem expresso. Mas ele devia estar satisfeito por ter conseguido para a fábrica uma linha de conexão, para o transporte das mercadorias. Mas voltemos ao assunto. Preysing estava, portanto, cansado e meio tonto pelos solavancos do trem quando chegou ao hotel, ficando pensativo ao tomar conhecimento de que o apartamento que lhe tinham reservado era um dos mais caros. Primeiro andar, com sala e banho, 71; diária de setenta e cinco marcos. Mas Preysing era um homem econômico: tinha por regra não levar seu carro para Berlim, a fim de economizar a hospedagem do chofer. Porém, como tinha mesmo que pagar um preço tão elevado pelo quarto com banheiro, a primeira coisa que fez foi estender-se na banheira, onde se demorou bastante tempo, gozando o prazer do banho. Exatamente como o outro hóspede de Fredersdorf, Herr Kringelein. Em seguida estendeu-se um pouco sobre a cama, mas não conseguiu libertar-se da sensação da noite mal dormida e dos calafrios da viagem. Ergueu-se novamente, vestiu-se, desfez com pedante minuciosidade a sua valise e pendurou os ternos nos cabides portáteis que trouxera consigo. As botinas, a roupa de baixo, os objetos de uso pessoal, cada coisa vinha dentro de um saquinho de linho muito alvo, e em cada um deles havia um monograma bordado com linha vermelha, em ponto de cruz: K. P.
Enquanto dava o nó na gravata, Preysing ficou olhando distraidamente para a rua, mergulhada ainda na névoa matutina. Era muito cedo, não clareara de todo, as máquinas de limpeza das ruas escovavam o asfalto e os ônibus amarelos aproximavam-se como navios, pela madrugada. Preysing ficou olhando para baixo, sem enxergar coisa alguma. O dia que o esperava não ia ser nada fácil. Era preciso concentrar-se e refletir bem sobre os assuntos a tratar. Tocou a campainha chamando o criado e entregou-lhe pessoalmente as botinas para engraxar, e também as graxas marrom e branca que trouxera. O quarto já se enchera com o cheiro indefinível das rápidas viagens de negócios: couro de valises, Odol, água-de-colônia, terebintina, fumo. Preysing, com os gestos pedantes, lentos e precisos que lhe eram característicos, tirou do bolso a carteira e contou o dinheiro. Na divisão interna estava um grosso maço de notas de mil marcos; por ocasião de negócios, nunca se sabia exatamente quanto dinheiro ia ser preciso. Preysing costumava molhar com a língua o polegar e o indicador, ao contar o dinheiro, com o gesto de um homem saído do nada, enriquecido com o próprio trabalho. Meteu no bolso a carteira e, não contente com isso, ainda prendeu com um alfinete de gancho o bolso interno do paletó de lã grosseira, cor de cinza. Andou pelo quarto, de um lado para outro, de chinelos de couro vermelho, próprios para viagem, e ruminando em silêncio os diálogos que iria manter com o pessoal da Malharia de Chemnitz. Procurou um cinzeiro, mas não o encontrou, e, apesar de não gostar de jogar a cinza do charuto no tinteiro, teve de fazê-lo. Neste aposento também havia uma águia de bronze, semelhante à que deixara encantado Herr Kringelein, no 70. O diretor-geral ficou a tamborilar com os dedos durante alguns minutos nas asas abertas da águia, mergulhado em seus pensamentos; entretanto, o criado trouxe-lhe as botinas engraxadas, e às sete horas e cinquenta minutos Preysing pôde sair do quarto, e foi o segundo a chegar ao barbeiro do hotel. Apesar de estar preocupado, ao sentar-se à mesa, para o café, parecia um sujeito bem-humorado, gordo, sério, com o rosto bem barbeado. Às oito e trinta em ponto, conforme haviam combinado, Herr Rothenburger chegou. Era completamente calvo e não tinha sobrancelhas nem pestanas, o que lhe dava um ar de terno espanto que não combinava nada com o ceticismo de sua profissão. Era um misto de corretor da Bolsa e banqueiro, às vezes também intermediário e, além disso, membro do conselho fiscal de empresas menores. Sabia de tudo o que se passava, punha os outros a par de tudo que sabia, e metia-se em tudo.
Tinha sido o primeiro a divulgar a última notícia falsa a respeito da alta da Bolsa, e a espalhar sinistros boatos, que provocaram oscilações do câmbio. Em resumo, era um homem ridículo, perigoso e útil, esse Herr Rothenburger.
— Bom dia, Rothenburger — disse Preysing estendendo-lhe dois dedos, entre os quais segurava o charuto.
— Bom dia, Preysing — respondeu Rothenburger, empurrando o chapéu para a nuca. Depois sentou-se e pôs uma pasta sobre a mesa. — Aqui na terra, de novo?
— É... — disse Preysing. — Foi muito amável em ter vindo. Que quer tomar? Chá, conhaque, presunto com ovos estrelados?
— Vá lá um conhaque. Tudo bem em casa? Sua senhora? A senhorita sua filha? Tudo bem?
— Obrigado, vai-se vivendo. O senhor foi muito amável em enviar felicitações pelas nossas bodas de prata.
— Ora, era mais do que natural. E a firma, como se manifestou?
— Meu Deus, a firma! Deixei o carro velho para os negócios e recebi um novo em troca.
— É isso, é isso. L’état c'est moi. Um Preysing pode dizer: a firma sou eu, E como vai o senhor seu sogro?
— Obrigado. Otimamente. Ainda gosta de fumar o seu charuto.
— Meu Deus! Há quanto tempo eu o conheço! Quando me lembro como ele começou, com seis teares Jacquard num quartinho... e agora! É fantástico!
— É, o negócio vai indo — disse Preysing, com segunda intenção.
— Todos dizem isso. E dizem também que o senhor mandou construir uma villa magnífica, um verdadeiro castelo, com um parque...
— Nem tanto. Ficou bem bonito. Minha mulher gosta dessas coisas; sabe, fica completamente absorvida nisso. É, está bem bonita agora a nossa casa em Fredersdorf. O senhor precisa visitar-nos qualquer dia.
— Obrigado. Muitíssimo obrigado. É muito gentil da sua parte. Quem sabe se será possível realizar uma pequena viagem de negócios... para compensar as despesas.
Depois das formalidades e gentilezas de praxe, os dois cavalheiros passaram ao assunto principal.
— Ontem foi um dia meio inquieto na Bolsa, hein? — perguntou Preysing.
— Inquieto? Obrigado. Dalldorf é uma delícia, comparado a isto. Mas desde a alta das ações da Bega, todo mundo ficou maluco. Todos pensam que podem fazer negócios sem fundos. Mas ontem, vou-lhe dizer, a coisa estourou, baixa de trinta por cento, baixa de quarenta por cento. Há muita gente morta, que ainda não sabe que morreu. Quem se firmou na Bega... O senhor tem ações de lá?
— Tive. Retirei-me a tempo — disse Preysing; era mentira, uma pequena mentira usual nos negócios, e Rothenburger sabia disso.
— Ora, não se aborreça, eles se reerguem logo — disse ele à guisa de consolo, como se a negativa de Preysing significasse uma afirmativa. — Em que a gente pode ter confiança, se um banco como o Kuesel de Düsseldorf também quebra? Um estabelecimento como aquele! A Saxônia também está entre os credores, não é verdade?
— Nós? Não, absolutamente. Por que julga isso?
— Não? Pensei que estava. Ouve-se falar tanta coisa... mas se os senhores não estão perdendo nada com a bancarrota do Kuesel, então não sei realmente por que razão as ações da Indústria Algodoeira Saxônia baixaram tanto!
— É isso mesmo. Também penso como o senhor. Também não sei a razão. Vinte e oito por cento não é nenhuma bagatela. Muitos títulos se mantiveram firmes, estando já em pior situação do que os nossos.
— É certo. Os títulos da Malharia de Chemnitz mantiveram-se firmes — replicou Herr Rothenburger, sem rodeios. Preysing fitou-o através dos anéis de fumaça que separavam seus rostos de homens de negócios.
— Pois então fale em alemão claro — pediu Preysing, após curta pausa.
— O senhor é que precisa falar em alemão claro, eu não tenho segredos, Preysing. O senhor encarregou-me de comprar pelo melhor preço os títulos da Algodoeira Saxônia e eu comprei: títulos da Algodoeira Saxônia para a Algodoeira Saxônia. Bom. Provocamos uma alta considerável, realmente; cento e oitenta e quatro é bastante. Começaram a dizer que o senhor ia firmar um contrato com a Inglaterra, a cotação subiu. Disseram que o senhor ia fazer sociedade com a Malharia de Chemnitz... as ações subiram. De repente, o grupo de Chemnitz lança todas as ações da Saxônia no mercado... a cotação caiu, naturalmente. Caiu muito mais do que se podia esperar, de acordo com a lógica. A Bolsa é sempre ilógica. A Bolsa é uma mulher histérica, Preysing; estou casado com ela há quarenta anos. O senhor perdeu com a bancarrota do Kuesel. Bom. Com a Inglaterra, nada feito. Também não tem importância. Mas, de qualquer modo, vinte e oito por cento de perda, em um só dia, é demais. Já significa alguma coisa.
— Sim, senhor. Mas o que significa? — perguntou Preysing, enquanto uma ponta da cinza do seu charuto caía na xícara de café já frio. Preysing não era um diplomata. Sua pergunta era tola e inoportuna.
— Significa que a Malharia de Chemnitz se retira. O senhor sabe disso tão bem quanto eu. O senhor veio correndo para cá para salvar o que ainda for possível salvar. Mas que posso aconselhar-lhe? O senhor não pode obrigar o grupo de Chemnitz a cair nos seus braços. Se Chemnitz lançou no mercado todas as ações da Saxônia que possuía, isso significa que não tem mais interesse na Algodoeira Saxônia. Agora trata-se de saber o que é possível salvar para o senhor, nesta desagradável situação. O senhor quer continuar a adquirir suas próprias ações? Agora pode comprá-las por preço baixo.
Preysing não respondeu logo, ficando a refletir, o que lhe custou enorme esforço. Era um homem às direitas, o diretor-geral, um homem correto, leal, limpo por dentro e por fora. Mas não era um gênio, como homem de negócios; faltava-lhe fantasia, talento persuasivo, envergadura. Bastava que se exigisse dele uma decisão firme e ficaria a escorregar como se estivesse patinando sobre gelo. Quando dizia uma inverdade, faltava-lhe força convincente. Conseguia apenas inventar umas pequeninas e insignificantes mentiras de ofício, sem nenhum alcance. Punha-se logo a gaguejar, e sob o bigode surgiam-lhe gotinhas de suor.
— Afinal, se o grupo de Chemnitz não aceitar a fusão, isso é com eles; eles precisam mais de nós do que nós deles. E se não tivessem adquirido esse novo processo de tingir, nós não teríamos nisso o menor interesse — disse ele finalmente, pensando ter dado uma resposta muito hábil. Rothenburger ergueu os seus dez grossos dedos e deixou-os cair de novo sobre a mesa do café, bem juntinho ao pote de mel.
— Mas Chemnitz está de posse do processo para tingir. E a Saxônia tem interesse nisso — disse ele amavelmente.
Preysing já tinha dez respostas prontas na ponta da língua. "Nós não perdemos nada com o Kuesel", quis ele dizer. E também: "O negócio com a Inglaterra não está absolutamente fora de cogitação". E ainda: "A Malharia de Chemnitz faz baixar nossas ações exatamente porque quer fazer a fusão: é uma maneira de criar melhores condições para ela". Mas, afinal, não conseguiu dizer nada disso, apenas afirmando:
— Pois é, vamos ver o que acontecerá! Depois de amanhã tenho uma conferência com uns senhores da Chemnitz.
— Pfu! — exclamou Rothenburger, soltando ruidosamente a fumaça da garganta. — Uma conferência? Qual deles vai aparecer? Schweimann? Gerstenkorn? São espertos, esses senhores. Com eles é preciso estar de olho aberto. Para lidar com essa gente o seu sogro é que viria a calhar, não me leve a mal. Bem, quer dizer que a Saxônia ainda não está perdida? Preciso contar isso na Bolsa. Se não ajudar, mal também não faz. Bem, que se vai fazer? O senhor pretende que compremos de novo ações de algodão? Se hoje não aparecer alguém que sustente a coisa, assistiremos a uma bela quebra, é Rothenburger quem lhe diz. Então?
E Herr Rothenburger abriu o fecho da sua pasta e tirou dela uma ordem de pagamento.
Preysing ficara vermelho no alto do nariz, entre as sobrancelhas, quando Rothenburger aludira indelicadamente a seu sogro, e um passageiro rubor deslizou por sobre suas narinas. Tirou do bolso a caneta-tinteiro e, após ligeira hesitação, assinou o papel.
— Até quarenta mil, limitada por cento e setenta — disse com frieza, pondo um traço largo e arrogante sob sua assinatura. Era um protesto contra seu sogro e contra Herr Rothenburger.
4
Preysing ficou de péssimo humor na saleta do café, quando se viu só. Sentia um leve zunido nos ouvidos, pois sua pressão não estava em ordem; com frequência, durante conversas importantes, sentia um peso na nuca. No ano anterior ele tivera alguns contratempos, e o de agora também não parecia ser dos mais agradáveis. Não era coisa muito fácil continuar firme, agora que na Chemnitz queriam tirar o corpo fora. E o velho, sentado lá em casa na cadeira de rodas, nos seus acessos de caduquice, ficava a estourar de prazer sempre que acontecia algum contratempo ao genro. As negociações com as estradas de ferro estaduais a respeito do expresso não tinham levado a nada. O novo processo de tingir, que permitia dar a tecidos baratos cores que até então só se usavam para tecidos de primeira, tinha sido furtado sob suas barbas pela S.A. Malharia de Chemnitz. Com o contrato da Inglaterra lidavam há meses sem resultado, e Preysing já estivera por duas vezes em Manchester; cada vez que voltava as negociações iam de mal a pior, podendo considerá-las desde já como rompidas. O velho ficara sabendo da história com a firma de Chemnitz e tratara de fazer astutamente negociações preliminares; Gerstenkorn fora a Fredersdorf, visitar as instalações da fábrica, e trocaram um palavreado que não conduziu a nada. O célebre jurista Dr. Zinnowitz, perito em matéria comercial, apresentara um projeto de contrato, que não tinha sido firmado ainda: para cada duas ações do grupo de Chemnitz, uma da Saxônia. Era um bom negócio para a fábrica — e também não era muito mau para a firma de Chemnitz —, a Bolsa estava a par disso e o mundo de negócios têxteis também. De repente, a firma de Chemnitz começou a querer tirar proveito sozinha. E justamente agora, que a coisa estava mesmo uma porcaria, o velho mandava o pobre Preysing para remendar os rasgões.
— Diabo do inferno! — disse Preysing, que por descuido tomara um gole de café frio misturado com a cinza do charuto. Em seguida se levantou. Tinha as costas moídas, por causa da viagem no trem misto; bocejou com as mandíbulas contraídas e sentiu os olhos molhados. Desanimado e desejando ser confortado, dirigiu-se ao compartimento dos telefones, pedindo uma ligação urgente com Fredersdorf 48.
Fredersdorf 48 não era o telefone da fábrica, mas da villa de Preysing. A ligação não foi muito demorada, e Preysing colocou comodamente o cotovelo sobre a mesinha do aparelho, para acalmar-se, conversando com sua mulher.
— Bom dia, Mulle — disse ele. — É, sou eu. Você estava dormindo, Mulle? Ainda está na cama?
— Que é que você está pensando? — respondeu o telefone com uma voz longínqua, mas de timbre arredondado e cheio, uma voz que o diretor-geral amava sincera e fielmente. — Já são nove e meia! Já tomei café e já reguei minhas plantas. E você?
— All right — respondeu Preysing, com exagerado entusiasmo. — Vou ter daqui a pouco uma conferência com o Zinnowitz. Está bonito o dia aí? Está sol?
— Está — a voz tinha um ligeiro acento saxão, conhecido e familiar. — O tempo está bom. Imagine só, as flores de açafrão abriram todas de uma vez esta noite.
Preysing via, através do telefone, as flores de açafrão, a sala do café com os móveis de vime, o abafador de ráfia sobre a cafeteira, a mesa posta, com os capuchinhos de tricô sobre os copinhos dos ovos. Via Mulle também, com o roupão azul e de chinelos, segurando o regador dos cactos, de bico pontudo.
— Sabe, Mulle, isto aqui está muito sem graça — disse ele. — Você devia ter vindo comigo. Sinceramente.
— Ora, deixe disso — respondeu o telefone satisfeito, rindo-se com a risada simpática de Mulle.
— Estou tão acostumado com você... Olhe, esqueci-me do aparelho de barbear, vou ter que ir diariamente ao barbeiro.
— Eu já sabia. Você o esqueceu no banheiro. Sabe, compre outro; em qualquer loja se pode comprar barato um aparelho; não é mais caro do que ir ao barbeiro todos os dias, e é mais agradável.
— É, sim... é verdade. Você tem razão — disse Preysing, agradecido. — Onde estão as meninas? Gostaria de dizer-lhes bom-dia.
O telefone sussurrou qualquer coisa incompreensível, muito de longe, e depois exclamou em tom claro:
— Bom dia, Peps!
— Bom dia, Pepsin! — respondeu Preysing, alegre. — Como vai?
— Bem! E você?
— Também vou bem. Babe está aí?
Sim, Babe também estava lá, e também perguntou, com sua voz de dezessete anos, como ele ia passando, se o tempo estava bom, e se lhe levaria de Berlim algum presente; as flores de açafrão tinham aberto; Mulle não a deixava jogar tênis; estava fazendo muito calor e Schmidt talvez pudesse preparar o campo, não? Mulle disse depois qualquer coisa, em seguida Pepsin, e por fim o telefone disparou aos gritos e risadas com três vozes diferentes, até que a telefonista se meteu na conversa e Preysing desligou. Continuou por um instante na cabina e, sem que ele próprio o conseguisse explicar, teve a impressão de estar tomando sol no parapeito morno de uma janela, segurando nas mãos aquecidas um ramo de açafrão azul.
Sentiu-se aliviado, ao sair da cabina. Muitos diziam que o diretor-geral vivia preso às saias da mulher, e não deixavam de ter uma certa razão. Muito excitado, fez nova ligação, desta vez para o banco, a fim de tratar da cobertura para os quarenta mil marcos, uma quantia absurda, cuja ordem de pagamento ele, em desespero, assinara por conta própria a Herr Rothenburger. Durante os desagradáveis dez minutos em que o diretor-geral ocupou a cabina 4, Kringelein descera a escadaria do hotel, deliciando-se a cada passo que dava sobre o tapete vermelho-framboesa, sobre o qual podia andar com tanta distinção. Chegou, finalmente, à portaria. Trazia de novo uma flor na lapela, a mesma da noite anterior, que ele colocara no copo da escova de dentes, e se conservara relativamente fresca — um cravo branco. Kringelein considerava o seu aroma penetrante um complemento indispensável à sua elegância.
— O cavalheiro pelo qual o senhor perguntou ontem acaba de chegar — avisou o porteiro.
— Que cavalheiro? — admirou-se Kringelein.
O porteiro examinou o livro de registros de entradas.
— Preysing, o Diretor-Geral Preysing, de Fredersdorf — disse ele, olhando atentamente para o rosto miúdo e afilado do guarda-livros.
Kringelein respirou tão violentamente que mais parecia ter soltado um suspiro.
— Ah, sim. Está bem. E onde posso encontrá-lo? — perguntou, com os lábios pálidos.
— Deve estar na saleta do café.
Kringelein afastou-se, num estado de extrema tensão nervosa. Sua espinha se encurvou para trás, tal a sua excitação. "Bom dia, Herr Preysing", pensou. "Está bom o café? Pois é, eu também sou hóspede do Grande Hotel. É isso mesmo! Será que o senhor tem alguma coisa contra isso? Talvez seja proibido a pessoas como eu hospedarem-se aqui? Olhe! Também temos o direito de viver como bem entendemos."
"Ah!", pensou a seguir, "por que hei de ter medo de Preysing? Ele não pode fazer nada contra mim. Vou morrer logo, ninguém pode me prejudicar." Assaltou-o a mesma sensação sutil de liberdade que sentira na mata de Mickenau, com as framboesas. Cheio de coragem, entrou na saleta do café, movimentando-se já com bastante segurança naquelas dependências fashionable. Procurou Preysing. Queria falar com Preysing a todo custo. Tinha contas a ajustar com Preysing. Aliás, era por isso que estava no Grande Hotel. "Bom dia, Herr Preysing!", diria.
Mas Preysing não estava na saleta do café. Kringelein foi-se arrastando pelo corredor, meteu a cabeça na sala de correspondência, no salão de leitura, procurou no boxe dos jornais, chegando ao exagero de perguntar ao groom 14 por Herr Preysing. Por toda a parte sacudiam a cabeça, ignoravam onde ele se encontrava. Kringelein, que já se aborrecera e estava quase estourando com a quantidade de coisas que queria desabafar, chegou à entrada de uma dependência que não conhecia ainda.
— Tenha a bondade de desculpar, conhece Herr Preysing, de Fredersdorf? — perguntou à telefonista.
Esta apenas inclinou a cabeça, sem dar resposta, porque estava muito ocupada. Apontou com o polegar por sobre o ombro. Kringelein ficou vermelho e em seguida empalideceu. Nesse momento, Preysing, pensativo, saía da cabina 4.
Então aconteceu o seguinte: Kringelein encolheu-se todo, curvou a nuca, sua cabeça inclinou-se, a espinha, que estava bem aprumada, afrouxou, as pontas dos sapatos se encolheram, a gola do paletó subiu até a nuca, os joelhos amoleceram e as calças formaram pregas transversais sobre as pernas bambas. No espaço de um segundo, o rico e distinto Herr Kringelein transformou-se em um pobre e insignificante guarda-livros; um ser subalterno que parecia esquecer-se de que dentro de poucas semanas não viveria mais, e portanto gozava de inúmeras vantagens em relação a Herr Preysing, que ainda teria que atormentar-se e consumir-se por anos e anos, com milhares de coisas aborrecidas. O guarda-livros Kringelein afastou-se, com as costas coladas à porta da cabina 2, atencioso, e murmurou com a cabeça inclinada, exatamente como na fábrica:
— Bom dia, senhor diretor-geral.
— Bom dia — respondeu Preysing, passando por ele sem lhe dirigir o olhar. Kringelein continuou ainda um minuto colado à parede, engolindo, cheio de vergonha, a saliva amarga. Sentia dores de novo, dores que pareciam perfurar-lhe o estômago, sua metade de estômago, enferma e moribunda, que destilava secretamente, e quando bem lhe parecia, os venenos de uma morte lenta.
Nesse ínterim, Preysing continuava o seu caminho, dirigindo-se ao hall, onde o conhecido advogado, Dr. Zinnowitz, especialista em assuntos comerciais, já estava à sua espera.
Há duas horas que o Dr. Zinnowitz e o Diretor-Geral Preysing se conservavam sentados num recanto sossegado do jardim de inverno, curvados sobre documentos. A pasta de Preysing esvaziara-se, o cinzeiro ao seu lado enchera-se de pontas de charutos e as costas de suas mãos estavam ligeiramente suarentas, como costumavam ficar por ocasião de negociações difíceis. O Dr. Zinnowitz era um senhor idoso, baixote, com o semblante de um mágico chinês; pigarreou, como a se preparar para começar um discurso. Com atitude professoral, colocou a mão sobre a pasta, e disse:
— Caro Preysing, resumindo: vamos à conferência de amanhã com enormes desvantagens. É péssima a cotação de nossas ações — e ao dizer isso batia com os dedos sobre um bilhete que um boy lhe entregara um pouco antes do meio-dia, o qual trazia a notícia de uma nova baixa de sete por cento para as ações da Algodoeira Saxônia. — Nossas ações estão em má situação, e o momento psicológico, se assim me posso exprimir, foi mal escolhido para um encontro tão importante como este. O senhor também sabe que, se amanhã o grupo de Chemnitz disser não, a fusão vai por água abaixo. Não se pode tentar mais uma vez. E é possível, em vista da situação atual, que eles digam não. Não o quero afirmar com segurança, mas é natural que o façam, é muito provável, mesmo.
Preysing escutava, cheio de impaciência; estava nervoso. As palavras formais do advogado o irritavam. Zinnowitz falava como se estivesse sempre em assembleia-geral, mesmo quando estava completamente só. Quando ele apoiou as articulações dos dedos sobre a mesa, a leve mesinha de vime do jardim de inverno transformou-se em uma mesa de conferências, coberta de feltro verde, prenhe de decisões importantes e definitivas.
— Não será melhor bater em retirada?
— Não se pode bater em retirada sem causar uma péssima impressão. É preciso considerar também se, com uma prorrogação, iremos ganhar ou perder. De qualquer modo, ainda há algumas chances, que temos de abandonar por completo caso se bata em retirada.
— Que chances? — perguntou Preysing.
Ele não podia livrar-se do péssimo hábito de perguntar coisas que estava farto de saber. Por esse motivo, as negociações com Preysing se prolongavam indefinidamente, tornando-se pedantes e confusas.
— O senhor conhece as chances tão bem quanto eu — afirmou o Dr. Zinnowitz, em tom de censura. — Trata-se, como sempre, da situação em que se encontram as negociações com a Inglaterra. Conforme a minha opinião, Manchester, Burleigh & Son, de Manchester, é o ponto principal. A Malharia de Chemnitz quer ganhar o mercado para seus produtos manufaturados. Burleigh & Son tem, em grande parte, esse mercado nas mãos, e recebe continuamente grandes encomendas de produtos de malha manufaturados. Eles próprios só produzem a matéria-prima, mas gostariam de exportar o seu algodão para a Alemanha, recebendo em troca, na Inglaterra, o produto manufaturado de Chemnitz. Eles têm grande interesse em comerciar com Chemnitz. A razão por que não fazem isso diretamente o senhor sabe tão bem quanto eu, meu caro Preysing: a firma de Chemnitz não dá aos ingleses a impressão de ser muito sólida. Estes estão hesitantes, porque o negócio não lhes parece ter uma base muito segura. A coisa muda de figura, caso a Saxônia S.A. se associe a Chemnitz. Burleigh & Son deposita grandes esperanças nisso. Parece que eles pensam, desculpe, meu caro, que o seu negócio, um pouco parado, receberia um impulso, e o grupo de Chemnitz, que é demasiado afoito, se consolidaria mais. Por conseguinte, Burleigh & Son só tem interesse na Saxônia caso ela se alie à Malharia de Chemnitz. E Chemnitz, por seu lado, só quer a fusão se o senhor fizer contrato com Burleigh & Son, assegurando assim o mercado inglês. Agora, cada firma está à espera de que o contrato entre o senhor e o outro esteja firmado. Quer saber a minha opinião? As negociações foram conduzidas de maneira desastrosa, do contrário não estaríamos neste beco sem saída. Quem entrou em negociações com Manchester?
— Meu sogro — respondeu Preysing apressadamente. Isso não era exato, e Zinnowitz, que estava bem informado a respeito da luta pela direção na Algodoeira Saxônia, sabia perfeitamente que Preysing não estava dizendo a verdade. Passou a palma da mão sobre a mesa, ignorando a resposta de Preysing. Seu gesto significava: deixemos isso de lado.
— Tenho mantido — continuou ele — permanente contato com o grupo de Chemnitz — Zinnowitz gostava de usar as expressões enérgicas do seu tempo de capitão da reserva —, e posso descrever-lhe com exatidão a disposição em que ele se encontra. Schweimann desistiu por completo da fusão, e Gerstenkorn já está vacilante. Por quê? A importante firma Companhias Reunidas S. J. R. fez sondagens com o grupo de Chemnitz, para saber se eles venderiam sem exigir a fusão. Se venderiam sem mais delongas. Naturalmente, nesse caso, Schweimann e Gerstenkorn participariam do conselho fiscal, e teriam, além disso, postos remunerados à parte, ao passo que agora ainda correm algum riscos. Pelo contrário, se o negócio com Burleigh estivesse esclarecido, então o que eu acredito que aconteceria — é esta a minha humilde opinião — é que eles recusariam a oferta da S. J. R., e optariam pela fusão com o senhor. É esta a situação em que eles se encontram. Quanto à sua situação, Preysing, com respeito a Manchester, não estou muito bem informado. Seu sogro escreveu-me, mas de modo pouco claro...
Preysing cortou de novo as claras considerações do jurista.
— Essa história da oferta da S. J. R. é um fato ou apenas falatório? Quanto ofereceram a Chemnitz? — perguntou ele.
— Isso não vem ao caso — respondeu Zinnowitz, que o ignorava.
Preysing esticou para a frente o lábio inferior, onde se apoiava um charuto, e ficou a refletir. "Vem ao caso, sim", pensou, sem conseguir esclarecer, a si próprio e ao outro, qual a razão.
— O negócio com Burleigh não vai indo tão mal assim — disse ele, hesitante.
— Muito bem também não, ao que parece — replicou prontamente o jurista.
Preysing apanhou a pasta, largou-a, tornou a pegá-la, tirou o charuto da boca — já com a ponta toda mordiscada — e só no terceiro assalto tirou da pasta de couro um dossiê de papelão azul, onde se encontravam algumas cartas e cópias de outras.
— Aqui está a correspondência mantida com Manchester — disse apressadamente, estendendo ao jurista o dossiê. Arrependesse depressa. Nova camada de suor frio porejou nas costas de suas mãos; tentou fazer girar a aliança no dedo, num gesto que lhe era habitual, e não o conseguiu. — Mas tenho de pedir-lhe a máxima reserva, isto é estritamente confidencial — disse ele em tom implorante.
Zinnowitz lançou-lhe apenas um olhar enviesado, sem tomar conhecimento das cartas. Preysing calou-se. Podiam ouvir-se as delicadas batidas das toalhas, ao serem colocadas sobre as mesas, no salão de refeições. Sentia-se o cheiro característico de todos os hotéis do mundo, antes da comida: um leve cheiro de carne assada, que abre o apetite antes da refeição, e depois se torna insuportável. Preysing sentia fome. Lembrou-se, subitamente, de Mulle e da mesa posta, com as filhas em volta.
— É — disse o Dr. Zinnowitz, afastando as cartas e fitando, com olhar pensativo e absorto, a base do nariz de Preysing.
— Então? — perguntou Preysing.
— Volto agora — continuou Zinnowitz — ao ponto de partida. Por enquanto, as negociações com Burleigh & Son continuam e, por conseguinte, temos ainda essa chance importante nas mãos, para exercer pressão sobre o grupo de Chemnitz. Se adiarmos a conferência e Burleigh se retirar, o que é bem possível, de acordo com sua última carta, de... de 27 de fevereiro, perderemos essa chance. Então perderemos todas as chances, a bem dizer. Assim, em vez de nos sentarmos sobre duas cadeiras, sentaremos entre duas cadeiras.
De súbito, a testa de Preysing ficou roxa; uma onda de sangue subiu sob a sua pele ligeiramente enrugada, engrossando as veias. Às vezes ele tinha esses acessos de furor, esse afluxos de sangue, esses violentos acessos de cólera.
— Toda essa conversa não conduz a nada. Temos que conseguir a fusão — afirmou ele, elevando a voz e dando um murro em cima da mesa. O Dr. Zinnowitz esperou um instante para responder.
— Acho que a Saxônia não irá à falência, sem essa fusão.
— Não. É claro que não. Ninguém está falando em falência — respondeu Preysing, excitado. — Mas teríamos que diminuir nossos gastos. Teríamos de despedir operários na fiação. Teríamos de... sabe o que mais? Tenho de consegui-lo, e acabou-se. Há ainda o fato de... há outras razões. Trata-se de minha autoridade dentro da fábrica, o senhor compreende? Afinal, toda a organização da fábrica é obra minha. E a gente quer conservar o prestígio, também. O velho está ficando idoso demais. E com meu cunhado eu não me dou bem. Digo-lhe com toda a franqueza, o senhor conhece o rapaz, não me dou bem com ele. Esse rapaz trouxe certos costumes de Lyon que não aprecio nos negócios. Não gosto de blefes. Não gosto desses fogos de artifício. Meus negócios são feitos com base. Não construo castelos de cartas! Por enquanto eu estou lá, e quem manda sou eu!
O Dr. Zinnowitz olhava com interesse para o excitado diretor-geral, a dizer coisas que iam além do que ele podia garantir.
— O senhor é conhecido no seu ramo como um homem de negócios exemplar — observou ele, cortesmente; notava-se em suas palavras um leve tom de piedade.
Preysing parou de falar. Pegou em seu dossiê azul, e meteu-o, com os dedos trêmulos, na pasta de couro.
— Então estamos de acordo — disse Zinnowitz. — A conferência será realizada amanhã, e vamos procurar por todos os meios forçar a assinatura do contrato prévio. Mas eu gostaria de saber... Ouça — disse ele daí a um minuto, após haver refletido em silêncio. — E se o senhor me entregasse algumas cartas? As mais importantes, compreende, do início das negociações? Vou falar à tarde com Schweimann e Gerstenkorn. Não prejudicaria coisa alguma, se eu as mostrasse... naturalmente não mostraria todas, mas apenas algumas.
— É impossível — respondeu Preysing. — Prometemos a Burleigh & Son a maior discrição.
Zinnowitz sorriu ao ouvir isso.
— É a história de sempre — declarou. — Mas faça o que julgar melhor. A responsabilidade é sua. Hic Rhodus, hic salta. Se soubermos conduzir com jeito as negociações em Manchester, ganharemos a partida. Esse é o único ponto que poderia compensar o negócio quase perdido com Chemnitz. Seria necessário pôr nas mãos de Schweimann algumas cartas, como uma coisa sem importância e casual. As mais importantes, compreende? Algumas cópias. Mas faça o que quiser. O senhor é o responsável.
— Não me agrada fazer isso, é uma coisa pouco limpa — respondeu Preysing. A cobertura de quarenta mil marcos para Rothenburger comprar ações ainda lhe estava a dificultar a digestão; sentia de fato azia, de tanta excitação, e suas têmporas zuniam, acaloradas. — As negociações com Chemnitz começaram antes do caso de Burleigh. Entre nós e Gerstenkorn nunca foi trocada uma só palavra a esse respeito. De repente tudo vira para esse lado. Se o grupo de Chemnitz nos quer aceitar apenas como um negócio dependente do assunto com a Inglaterra, e a coisa parece ser essa, como poderemos justificar a nossa correspondência? Não! Isso eu não faço.
"É teimoso como um jumento", pensou o Dr. Zinnowitz, e apertou o fecho da sua pasta, cuja fechadura deu um leve estalido.
— Com licença — disse ele. E, cerrando os lábios, pôs-se de pé.
De súbito, Preysing resolveu concordar.
— O senhor tem alguém que possa copiar algumas dessas cartas? De qualquer maneira eu poderia entregar-lhe duas cópias de cada. Os originais não saem de minhas mãos — disse ele apressadamente e elevando a voz, como se procurasse encobrir a de seu interlocutor. — É preciso que seja uma pessoa discreta e de confiança. Preciso ditar também um outro assunto de que necessito para a conferência. As datilógrafas arranjadas por intermédio do hotel não me agradam. Ficamos com a impressão de que elas vão contar ao porteiro os segredos comerciais. É preciso que seja logo depois do almoço.
— Infelizmente nenhum dos empregados do meu escritório dispõe de tempo — disse Zinnowitz com frieza, e ligeiramente surpreendido. — Ficamos com alguns assuntos importantes em atraso, e o meu pessoal há várias semanas tem feito trabalho extra. Mas espere um pouco... podia-se mandar a Flaemmchen para o senhor. A Flaemmchen serve-lhe. Vou mandar telefonar para ela.
— Para quem? — perguntou Preysing, chocado com o diminutivo.
— Para a Flaemmchen. A Flamm número dois. A irmã da minha secretária, a Flamm número um, que o senhor conhece, não é? Há vinte anos que está trabalhando comigo. A Flamm número dois nos tem auxiliado muitas vezes quando temos excesso de trabalho de cópias no escritório. Já a levei também numa viagem, porque a Flamm número um não podia ir. Ela é muito ativa e inteligente. Tenho que ter as cópias até as cinco horas. Farei isso como uma coisa à parte das negociações oficiais, durante o jantar com os senhores de Chemnitz. A Flaemmchen pode levar-me as cópias diretamente. Vou telefonar já à Flamm número um para que ela mande a irmã. Para que horas ficou marcada a conferência de amanhã?
O Dr. Zinnowitz e o Diretor-Geral Preysing, dois senhores corretos, com pastas já bem usadas debaixo do braço, saíram do jardim de inverno, atravessaram o corredor e, passando diante da portaria, chegaram ao hall onde se encontravam muitos outros senhores parecidos com eles, com pastas idênticas e conversando de maneira semelhante à deles. Algumas senhoras apareciam de novo; acabavam de sair do banho e vinham perfumadas, com os lábios pintados recentemente. Com um gesto elegante e despreocupado, calçavam as luvas antes de passar pela porta giratória e sair para a rua, cujo asfalto escuro estava banhado pelo clarão amarelo do sol.
No momento em que atravessava o hall para ir ao compartimento telefônico, Preysing ouviu alguém pronunciar seu nome. O groom 18 veio correndo pelos corredores, chamando com sua voz clara e aguda de menino, a intervalos regulares:
— Senhor Diretor Preysing! Senhor Diretor Preysing, de Fredersdorf! Senhor Diretor Preysing!
— Estou aqui! — exclamou Preysing, estendendo a mão para pegar um telegrama. — Com licença — disse ele; abriu o telegrama e leu-o, enquanto atravessava o hall ao lado do Dr. Zinnowitz. Esfriou até a raiz dos cabelos, durante a leitura, e com um gesto mecânico colocou na cabeça o chapéu-coco.
O telegrama dizia:
As negociações com Burleigh & Son fracassaram totalmente. Broesemann.
Não adiantava mais. "Não é mais preciso mandar a moça, Dr. Zinnowitz. Não adianta. Ponto final com Manchester", pensou Preysing, continuando a caminhar em direção ao compartimento telefônico. Meteu o telegrama no bolso do sobretudo, apertando-o entre o polegar e o indicador. "Não adianta mais. Não preciso mais mandar fazer as cópias", pensou ele, pretendendo dizê-lo também.
Mas não o disse. Pigarreou, pois tinha ainda na garganta a fuligem da viagem noturna.
— O tempo ficou magnífico — disse ele.
— Já estamos em fins de março — retrucou Zinnowitz, que afastara as preocupações com os negócios e voltava a ser um particular que gostava de apreciar "meias de seda" a caminhar.
— A cabina 2 vai vagar logo — informou a telefonista, colocando os pinos vermelhos e verdes nos orifícios. Preysing apoiou-se à porta acolchoada da cabina, e seus olhos fixaram-se mecanicamente no postigo, num dorso largo que se encontrava lá dentro. Zinnowitz falou qualquer coisa que ele não compreendeu. Sentiu um ódio violento por Broesemann, e o sangue lhe subiu à cabeça. Ódio daquela vaca, daquele procurador que enviava um telegrama desses, justamente quando era preciso ter a cabeça bem erguida para um negócio tão difícil. Evidentemente, o velho estava por trás daquele telegrama, aquele velho caduco, com a sua maldade e a sua rabugice: a porcaria está feita, mostre agora do que é capaz. Estava realmente desesperado o pobre diretor-geral, com seus nervos arrasados, a cabeça cheia de preocupações e sua consciência tranquila, em meio a negócios confusos e complicações tremendas. Procurou concentrar os pensamentos, que giravam, dispersos, em todas as direções. O Dr. Zinnowitz falava ao seu lado, no tom de um gozador empedernido, a respeito de uma nova revista toda prateada, tudo de prata. A porta da cabina contra a qual Preysing se apoiara cheio de desânimo fez pressão contra suas omoplatas. Depois forçaram suavemente a porta, e um homem alto, de excepcional beleza e amabilidade, vestido com uma capa azul, forçou a saída. Em vez de reclamar, o homem ainda se desculpou com algumas palavras corteses. Preysing, completamente absorto, fixou os olhos no rosto do homem que ele enxergava com toda a clareza, estranhamente próximo, e também se desculpou, conforme a praxe. Zinnowitz já estava dentro da cabina, pedindo ligação para a Flamm número dois, a Flaemmchen, talvez uma solteirona competente, que ia copiar cartas que já não tinham sentido nenhum, absolutamente nenhum. Preysing sabia que devia pôr um ponto final nisso tudo, mas não conseguiu reunir as energias necessárias para isso.
— Tudo arranjado — informou o Dr. Zinnowitz, saindo da cabina. — Às três horas a Flaemmchen estará aqui. Máquinas de escrever há em quantidade no hotel. Às cinco horas eu recebo as cartas. Ainda falarei com o senhor por telefone, antes de vencer esta dificuldade. Até logo, e bom apetite.
— Bom apetite — repetiu Preysing, dirigindo-se para as folhas de espelho da porta giratória em movimento, que levou o advogado para a rua. Lá fora fazia sol. Na rua, um pobre homenzinho vendia violetas. Ninguém se preocupava com fusões e acordos difíceis. Preysing tirou do bolso do sobretudo a mão direita, e com a esquerda pegou o telegrama, aquele telegrama que ele mantivera agarrado entre os dedos, até que o Dr. Zinnowitz desaparecesse num táxi. Dirigiu-se para uma mesa do hall, alisou cuidadosamente o papel, dobrou-o com cuidado e meteu-o no bolso interno de seu terno cinza-escuro, impecável.
Às três horas e cinco minutos, a campainha do telefone despertou Herr Preysing da sua sesta. Levantou-se da chaise-longue (descalçara as botinas, tirara o colarinho e o paletó), com a sensação de desamparo e desgosto que costuma sobrevir após uns minutos de sono roubado, nos hotéis. As cortinas amarelas estavam fechadas, o calor seco do aquecimento central enchia o aposento. Preysing tinha na face direita a marca do seu travesseiro de viagem. O telefone tilintava com impaciência. Uma senhora esperava pelo senhor diretor no hall, avisou o porteiro.
— Mande essa senhora subir — disse Preysing, ar-rumando-se às pressas. Dificuldades inesperadas foram comunicadas pelo telefone, com a máxima cortesia. O hotel tinha princípios e regulamentos. O chefe de recepção em pessoa, desculpando-se, e com o sorriso compungido de um homem traquejado, comunicou-o a Herr Preysing. Não era permitido receber visitas de senhoras nos aposentos, e infelizmente não se podiam fazer exceções.
— Mas, meu Deus do céu, não se trata de uma visita. Essa moça é minha secretária, preciso trabalhar com ela, o senhor precisa compreender — disse Preysing, impaciente.
O sorriso telefônico do chefe de recepção acentuou-se. Rogava-se ao senhor diretor que tivesse a bondade de dirigir-se com essa senhora à sala de ditados, que estava à disposição dos hóspedes para esse fim. Preysing desligou, batendo com o fone no gancho. Sentia-se completamente fora de seus hábitos; era horrível. Lavou as mãos, gargarejou com água dentifrícia, lutou com o botão do colarinho e a gravata, e em seguida desceu para o hall.
Ali estava sentada a Flaemmchen, Fräulein Flamm número dois, irmã de Fräulein Flamm número um. Não era possível existir no mundo duas irmãs mais diferentes. Preysing recordava-se vagamente da Flamm número um como de uma pessoa de confiança, com cabelos incolores, um punho protetor na manga direita, um maço de papel sob o braço esquerdo, que, na sala de espera, com cara de poucos amigos, barrava a entrada aos visitantes indesejáveis, no escritório do Dr. Zinnowitz. A Flamm número dois, pelo contrário, não possuía absolutamente essa segurança. Estava sentada comodamente em uma poltrona maple, como se estivesse em casa, balouçando os pés calçados com sapatos de verniz azul; dava a aparência de alguém que se preparava para divertir-se à larga, e teria no máximo vinte anos de idade.
— O Dr. Zinnowitz mandou-me para bater as cópias. Sou a Flaemmchen, que ele prometeu mandar-lhe — informou ela, sem cerimônias.
Bem no centro da boca, a Flaemmchen pintara uma mancha redonda de batom, descuidadamente, às pressas, apenas porque estava na moda. Quando se levantou, viu-se que era mais alta do que o diretor-geral; tinha longas pernas, usava, na cintura extremamente fina, um cinto de couro bem apertado, e suas formas eram magníficas, da cabeça aos pés. Preysing ficou furioso com Zinnowitz, que o punha em situações idiotas assim. Compreendeu os escrúpulos do chefe de recepção. Ela estava perfumada, além do mais. Teve desejos de mandá-la embora.
— Acho que precisamos apressar-nos — disse ela com uma voz de timbre grave e ligeiramente rouco, que as menininhas costumam ter. Pepsin, a filha mais velha do diretor-geral, tinha uma voz assim, quando era pequena. — Então a senhora é a irmã de Fräulein Flamm? Eu conheço Fräulein Flamm — disse ele, num tom mais de grosseria que de surpresa.
Flamm número dois estendeu um pouquinho o lábio inferior e soprou um cacho de cabelo que lhe caía na testa, por debaixo da sua boinazinha de feltro. O caracolzinho dourado elevou-se e tornou a cair lentamente sobre a testa. Preysing não o queria ver, mas não pôde deixar de fazê-lo.
— Irmã só por parte de pai — disse a Flaemmchen. — Eu sou filha da segunda mulher de meu pai. Mas nos damos muito bem.
— Ah, sim — disse Preysing, olhando-a com a vista turva.
Ela teria agora que copiar cartas que haviam perdido todo o sentido, todo o significado. Há vários meses ele vinha combinando tudo a respeito da sociedade com Burleigh & Son; não conseguia mudar subitamente o rumo de seus pensamentos. Não conseguia, de modo algum, riscar e apagar todo esse assunto. "Fracassaram totalmente. Broesemann. Totalmente." Era preciso ditar uma carta dirigida ao Broesemann, uma carta cheia de fel. Ao velho também, por causa dos quarenta mil marcos. Se Chemnitz desistisse, no dia seguinte, os quarenta mil para sustentar o câmbio teriam sido atirados à rua.
— Vamos. Vamos então para a sala de correspondência — disse Preysing, com expressão sombria, caminhando na frente dela pelo corredor. A Flaemmchen riu-se, divertida, atrás da nuca gorducha de Preysing.
A distância já se ouviam as máquinas de escrever, como um fogo distante de fuzilaria, e os sininhos tilintavam a espaços regulares. Quando Preysing abriu a porta, a fumaça dos cigarros saiu como uma enorme serpente azul.
— Ótima acústica — disse a Flaemmchen, erguendo as asas arredondadas de suas narinas.
Lá dentro, um senhor andava de um lado para outro, de mãos nas costas, o chapéu tombado para a nuca, ditando num americano mastigado. Era o manager de uma empresa cinematográfica; lançou à Flaemmchen um rápido olhar de conhecedor, e continuou a ditar.
— Qual! — disse Preysing, fechando a porta. — Não é possível. Quero um gabinete só para mim. Estas eternas chicanas aqui no hotel!
Desta vez foi caminhando atrás da Flaemmchen, pelo corredor. Estava agora encolerizadíssimo, e, em meio ao seu ódio, o balancear dos quadris da Flaemmchen provocava-lhe uma suave ardência no sangue.
No hall, a Flaemmchen também foi observada com admiração. Era um exemplar magnífico do seu sexo, quanto a isso não havia dúvida. Preysing achava desagradabilíssimo atravessar o hall com uma criatura tão espetacular, e deixou-a sozinha, indo conversar com Rohna sobre a possibilidade de não ser perturbado no compartimento das máquinas de escrever. A Flaemmchen, completamente indiferente aos olhares de que era alvo — santo Deus, estava tão acostumada a isso! — passou pó de arroz no nariz, descuidadamente, de pé, no meio do hall, depois tirou uma pequena cigarreira do bolso do casaco, com gestos de rapazinho, e se pôs a fumar. Preysing aproximou-se dela como de uma moita de urtigas.
— Temos de esperar dez minutos — disse ele.
— Bem — disse a Flaemmchen. — Mas depois precisamos trabalhar depressa. Tenho de estar às cinco no escritório de Zinnowitz.
— A senhora é tão pontual assim? — perguntou Preysing, de mau humor.
— Se sou!... — replicou a Flaemmchen com um sorriso travesso. Seu nariz ficou curto como o de um nenenzinho, e as meninas de seus olhos castanho-claros rolaram para os ângulos das pálpebras.
— Bem, então sente-se, enquanto isso — convidou Preysing. — E peça ao garçom qualquer coisa. Garçom, sirva esta moça — mandou ele, sem qualquer delicadeza, afastando-se em seguida.
— Um sorvete de pêssego Melba — pediu a Flaemmchen, inclinando a cabeça, satisfeita.
Soprou de novo a madeixa de cabelo, sem êxito. A Flaemmchen tinha formas perfeitas, como as de um cavalo de raça, e a impaciente impertinência de um cachorrinho novo.
O Barão Gaigern, que perambulava pelo hall há algum tempo, contemplou-a a distância, encantado. Após um instante, aproximou-se dela, cumprimentou-a e disse a meia voz:
— Posso sentar-me ao seu lado, minha senhora? Mas vejo que não está me reconhecendo. Nós dançamos juntos em Baden-Baden, lembra-se?
— Não é possível! Nunca estive em Baden-Baden — disse a Flaemmchen, olhando o jovem com atenção.
— Ah, minha senhora! Desculpe-me! Agora estou vendo que... devo ter-me enganado. Confundi-a com outra pessoa! — exclamou o barão, com ar hipócrita.
A Flaemmchen deu uma risada.
— Não é a mim que o senhor engana com esse velho truque — disse ela com secura.
Gaigern deu uma gargalhada.
— Então deixemo-nos de truques. Posso ficar sentado a seu lado? Posso? A senhora tem razão, não é possível confundi-la com ninguém. Como a senhora, só é possível existir no mundo uma pessoa, minha senhora. Mora aqui? Vem dançar no chá das cinco? Por favor, por favor, gostaria tanto de dançar com a senhora... Quer?
Colocou as mãos sobre a mesa. As da Flaemmchen já ali estavam pousadas. Havia um pequeno espaço entre os dedos dele e os dela, e o ar que os separava começou a vibrar. Os dois se olharam, simpatizaram mutuamente, e ambos se compreenderam, os belos jovens.
— Meu Deus, como o senhor é rápido! — exclamou a Flaemmchen, encantada.
Igualmente encantado, Gaigern respondeu:
— A senhora promete? Vem ao chá das cinco?
— Ao chá não posso. Tenho o que fazer. Mas à noite estou livre.
— Oh! Oh! À noite eu não posso. Mas amanhã, ou depois de amanhã... Às cinco horas? Aqui? No pavilhão amarelo? Com certeza?
A Flaemmchen lambeu a colher do sorvete e calou-se, com ar brejeiro. Para que muitas palavras? Trava-se conhecimento com alguém como se acende um cigarro.
Tiram-se umas tragadas somente para tomar o gosto, e depois a faísca se acende.
— Como se chama a senhora? — perguntou logo Gaigern.
Nesse momento, Preysing aproximou-se da mesa com ares de proprietário. Gaigern ergueu-se, cumprimentou-o e, com atitude amável, colocou-se por trás da cadeira.
— Já podemos começar — disse Preysing, aborrecido. A Flaemmchen estendeu a mão enluvada a Gaigern, enquanto Preysing olhava a cena com ar de desagrado. Reconheceu o jovem da cabina telefônica, e via novamente esse rosto com toda a nitidez, com todos os seus poros, com os menores detalhes.
— Quem é esse sujeito? — perguntou ele, caminhando meio de viés ao lado da Flaemmchen, com um andar bamboleante.
— Ah!... um conhecido — respondeu ela.
— É? A senhora deve ter muitos conhecidos, não?
— Assim, assim. A gente deve fazer-se um pouco de rogada. E não é sempre que tenho tempo.
Por motivos obscuros, esta resposta agradou ao diretor-geral.
— A senhora está empregada? — perguntou ele.
— No momento, não. No momento estou procurando emprego. Ora, logo se arranja. Sempre acabo arranjando alguma coisa — disse a Flaemmchen, com filosofia. — Eu gostaria de trabalhar no cinema. Mas é tão difícil o início da carreira... Se eu conseguisse começar, depois podia me arranjar. Mas o início da carreira é dificílimo!...
Olhou de frente para Herr Preysing com uma expressão preocupada e cômica. Agora, a Flaemmchen tinha o ar de uma gatinha. Toda a graciosidade felina parecia ter-se concentrado em seu rosto, numa expressão cambiante. Preysing, completamente alheio a esses conhecimentos, abriu a máquina de escrever, perguntando:
— Por que justamente o cinema? Todas vocês têm a mania do cinema — nesse "todas" incluía também sua filha Babe, de quinze anos, que era louca pela sétima arte.
— Ora, porque sim! Mas não tenho ilusões a esse respeito. Sou muito fotogênica, é o que todos dizem — continuou a Flaemmchen, tirando o casaco. — Devo estenografar ou escrever diretamente na máquina?
— Na máquina, faça o favor — respondeu Preysing. Sentia-se agora um pouco mais animado e de melhor humor. Afastara do cérebro o fato de Manchester ter ido por água abaixo, e, ao retirar do dossiê as tão promissoras cartas dessa correspondência, sentiu uma agradável impressão. A Flaemmchen continuava a falar sobre os seus assuntos particulares.
— Sou sempre fotografada para jornais e revistas, e também já posei para anúncios de sabonete. Como se consegue isso? Meu Deus! Um fotógrafo conta ao outro. Sou um ótimo nu artístico, sabe? Mas pagam pouquíssimo. Dez marcos por fotografia. Imagine o senhor. Ora! O que eu preferia era que alguém me levasse nesta primavera, de novo, como secretária, em alguma viagem. No ano passado estive em Florença com um senhor que trabalhava em um livro, um professor. Um encanto de homem! Talvez este ano apareça também qualquer coisa — disse ela, endireitando a máquina na mesa.
Era evidente que a Flaemmchen tinha preocupações, mas essas preocupações não pesavam mais do que o caracol da sua testa, que ela afastava com um sopro, de instante a instante. Preysing, que não conseguia introduzir no círculo de suas ideias a observação objetiva a respeito do nu artístico, quis falar qualquer coisa sobre negócios. Em vez de fazê-lo, pôs-se a observar atentamente as mãos da Flaemmchen, que colocavam na máquina a folha de papel, e disse:
— Que mãos morenas a senhora tem! Onde toma tanto sol assim?
A Flaemmchen observou com atenção as próprias mãos, levantou um pouco as mangas e fitou sua pele de cor parda com ar sério.
— É da neve, ainda. Fui esquiar em Vorarlberg. Um conhecido me levou. Uma beleza. O senhor devia ter-me visto quando eu voltei! ... Então, podemos começar?
Preysing dirigiu-se, por entre a fumaceira dos charutos, ao canto mais afastado da sala, e começou a ditar:
— A data, já pôs a data, senhorita? Prezado Herr Broesemann, Broese ... já escreveu? Com relação ao seu telegrama desta manhã, devo comunicar-lhe...
A Flaemmchen continuou a escrever com a mão direita, enquanto tirava com a esquerda o gorrinho, que parecia incomodá-la. A sala dava para um escuro poço de ventilação, as lâmpadas verdes do escritório estavam acesas. Em meio ao assunto comercial, Preysing pôs-se a pensar em uma cômoda antiga, uma velha cômoda de bétula, que se encontrava no vestíbulo, em Fredersdorf.
Só à noite se lembrou disso novamente, quando sonhou com a Flaemmchen e despertou. Seu cabelo tinha a cor e a cintilação da madeira antiga de bétula, com reflexos claros e escuros. Deitado em sua cama, à noite, via esse cabelo com toda a nitidez, enquanto respirava o ar seco do quarto de hotel, vendo desfilar rapidamente as luzes do anúncio contínuo, nas cortinas fechadas. A pasta em cima da mesa, naquele quarto escuro, o enervava. Levantou-se de novo para fechá-la na mala; em seguida, gargarejou com Odol e lavou as mãos outra vez.
Este apartamento aborrece-o, é caro e sem conforto; consiste apenas em uma saleta minúscula com sofá, mesa e cadeiras, um quartinho de dormir estreito, e, ao lado, o banheiro. A torneira está pingando um pouco; pinga, pinga, por entre o sono de Preysing. Levanta-se novamente, sobressaltado, e vai acertar o despertador. Esqueceu-se de comprar o aparelho de barbear e precisa ir cedo ao barbeiro. Adormece mais uma vez, e torna a sonhar com a datilografa e seus cabelos cor de bétula. Desperta, e enxerga novamente o anúncio correndo sem cessar pelas cortinas; a noite passada numa cama estranha, angustiosa, dá-lhe uma impressão de nojo e confusão. Ele sente um medo incrível da conferência com Schweimann e Gerstenkorn; seu peito bate com um ruído surdo. Desde o momento em que mostrou as cartas da Inglaterra, não pode livrar-se de um sentimento estranho, como se as palmas de suas mãos estivessem sujas. Finalmente, já quase adormecendo de novo, ouve alguém andando lá fora, pisando na passadeira e assobiando baixinho. Ouve também o senhor do 69 colocando uns pares de despreocupados sapatos rasos, de verniz, diante da porta, como se a vida fosse um divertimento.
5
Kringelein, no 70, também o ouviu e despertou com o ruído. Havia sonhado com a Grussinskaia. Ela surgira na tesouraria onde ele trabalhava, apresentando contas atrasadas. Kringelein, o guarda-livros de Fredersdorf, que está sofrendo de claustrofobia, quer ainda agarrar a vida por uma fímbria, antes de morrer. Sente uma fome desmesurada, mas suporta muito pouco alimento. Com frequência, durante esses dias, seu corpo debilitado apodera-se da direção e o força a recolher-se ao quarto, em meio a todo aquele tumulto. Kringelein começa a odiar sua enfermidade, apesar de ela lhe ter dado coragem para sair de Fredersdorf. Comprou um remédio: Bálsamo de Vida do Dr. Hundt. A intervalos regulares toma um gole, cheio de esperanças, esforçando-se por não sentir o gosto amargo de canela, e em seguida sente algum alívio.
Distende os dedos enregelados, na escuridão, e se põe a fazer cálculos. É desagradável o fato de seus dedos terem tendência para morrer enquanto está dormindo. Esgueiram-se números no quarto, de rostos baixos, até que ele acende a luz e desperta completamente. É pena que o rico Herr Kringelein não possa libertar-se de um costume de Herr Kringelein pobre: ter de fazer contas. Dentro de sua cabeça os números desfilam incessantemente, maldosos, colocando-se em colunas, e somando-se e diminuindo-se sem o auxílio de Kringelein. Kringelein possui um caderninho que trouxe de Fredersdorf, diante do qual fica sentado durante horas. Nele anota as suas despesas, as despesas absurdas de um homem que aprende a gozar a vida, que gasta em dois dias o ordenado de um mês. Sente com frequência tonturas tão fortes que tem a impressão de ver as paredes forradas com tapeçaria de tulipas caírem em cima dele. Por vezes fica sentado na borda da cama, pensando que vai morrer em breve. Seu pensamento vai-se concretizando, e então, assustado, fica com as orelhas geladas, entortando os olhos, cheio de medo e angústia. Não consegue, entretanto, fazer a mínima ideia do que é a morte. Tem esperanças de que não seja muito diversa de uma narcose, com a diferença de que, após a narcose, a gente desperta, sente náuseas, e sobrevêm as dores (Kringelein batizou-as secretamente de dores azuis); espera também que todos esses vexames, bem seus conhecidos, sejam sofridos antes, e não depois. Depois de meditar em tudo isso, principiou a tremer; de fato, sucede por vezes a Kringelein tremer com medo da morte, apesar de não conseguir imaginar como ela seja.
Há muita insônia por detrás das portas duplas fechadas do hotel adormecido. Precisamente a essa hora, o Dr. Otternschlag coloca no lavatório uma pequenina ampola de injeção, joga-se na cama e esvai-se na leve nebulosidade das regiões morfínicas. Mas o Maestro Witte, cujo quarto, o 221, fica na ala esquerda, não consegue adormecer. Os velhos dormem pouco. Seu aposento fica exatamente defronte ao do Dr. Otternschlag, e em sua parede também gorgoleja a água; o elevador ronca aos solavancos. É quase um quarto de empregados, o quarto onde se hospeda. Sentado à janela, encosta na vidraça a testa abaulada de músico e fica olhando fixamente a parede fronteiriça. Trechos de uma sinfonia de Beethoven vêm-lhe à memória — nunca a dirigiu. Ouve Bach — o monumental "Crucifica-o", da Paixão de São Mateus. "Malbaratei a minha vida!", pensa o velho Witte. E toda a música que não foi cantada em sua vida se concentra em sua garganta, num aglomerado amargoso, que ele traga com esforço. Às oito e meia da manhã é o ensaio. Sentado ao piano, precisa repetir sempre a mesma marcha para os pliés das mocinhas, sempre a mesma Valsa da primavera, a Mazurka, a Bacanal. "Devia ter abandonado Elisavieta enquanto era tempo", pensa ele; agora não era mais possível. Elisavieta já estava velha e não se podia abandonar uma mulher idosa. Agora era preciso aguentar junto dela o pouco tempo que ainda restava.
E Elisavieta Alieksandrovna Grussinskaia também não consegue dormir, sentindo o tempo correr, no meio da noite, apressado, incessante; há dois relógios a tiquetaquear no quarto escuro: um de bronze, na escrivaninha, e o reloginho-pulseira, no criado-mudo. Ambos marcam os mesmos segundos e, no entanto, um bate mais depressa do que o outro, o que provoca palpitações do coração, quando se presta atenção ao seu tique-taque. Grussinskaia acende a luz, levanta-se, enfia os pés nos chinelos acalcanhados e vai até o espelho. No espelho também se evidencia o tempo, principalmente no espelho. Evidencia-se ainda nas críticas, na horrível falta de delicadeza da imprensa, no sucesso das bailarinas feias e com luxações, que estão agora na moda, no déficit das tournées, nos fracos aplausos, na maneira vulgar com que Meyerheim, o manager, se exprime — em toda parte, em toda parte se evidencia o tempo. Nas articulações fatigadas dos pés estão os anos passados a dançar; também na respiração opressa à trigésima segunda pirueta clássica; e também no sangue que, com frequência, nas ondas de calor da idade crítica, atravessa a garganta e aflui às faces. Faz calor no quarto, apesar de estar aberta a porta da varanda. Lá fora, as buzinas dos automóveis gritam durante toda a noite. A Grussinskaia tira seu adereço de pérolas da pequena suitcase, dois punhados de pérolas frias, e encosta-as ao rosto. Não adianta; as pálpebras continuam quentes, coloridas pela pintura e a iluminação da ribalta; os pensamentos são como gumes penetrantes; os dois relógios disparam como cavalos a galope. Sob o queixo, a Grussinskaia tem uma atadura de borracha; suas mãos e lábios estão cheios de creme. Olha-se ao espelho quando passa por ele, e acha-se tão feia que apaga depressa a luz. No escuro, engole um veronal e desata num choro enraivecido, o pranto de uma mulher inconsolável e apaixonada. Depois, tomba sobre nuvens, e finalmente cai no sono.
Ao lado chegou alguém, no elevador, talvez o jovem de Nice. A Grussinskaia arrasta-o consigo em seu sonho pesado, sob a ação do veronal; o senhor do 69 — o homem mais belo que ela já viu em toda a sua vida.
Quando ele chega, vem assobiando baixinho, um assobio nada desagradável, exprimindo simplesmente alegria. Ao entrar no quarto fica mais cauteloso, veste o pijama e calça uns chinelos bonitos de couro azul; depois, desliza em silêncio, como um ser intermediário entre gato montes e moço bonito. Quando passa pelo hall, é como se num aposento gelado se abrisse uma janela ensolarada. Dança maravilhosamente bem, com frieza e paixão. Tem sempre no quarto algumas flores — adora as flores e gosta de sentir o seu perfume. Chega, por vezes, a lamber as suas pétalas tenras — como um bicho. Na rua, acompanha as moças com um andar bamboleante de pugilista, contentando-se, por vezes, em olhá-las, com enorme prazer; a umas, dirige algumas palavras, e a outras acompanha até a casa ou leva a um hotel de segunda classe. E quando, pela manhã, com uma expressão santarrona de gatão, entra no hall quase vazio do Grande Hotel, com ar distinto e morigerado, e pede a chave do quarto ao porteiro, este não pode deixar de sorrir. Às vezes vem bêbado, com uma bebedeira discreta e cheia de animação, que ninguém pode levar a mal. De manhã torna-se um pouco desagradável para quem está hospedado no quarto debaixo do seu, porque faz ginástica; ouve-se seu corpo cair no solo com um ruído suave, compassadamente. Usa pequeninas gravatas-borboleta, moles, e paletós bem folgados. Suas roupas caem sobre os músculos tão confortavelmente como a pele dos cachorros de raça pura. Por vezes sai em disparada no seu carrinho de quatro lugares, e não é visto durante dois dias. Passa horas e horas a perambular pelas agências de automóveis, observando os carros; enfia a cabeça sob a tampa, para ver o motor; aspira gasolina, óleo, metal em combustão; bate nos pneus; alisa a pintura brilhante, o couro da carroçaria — azul, vermelho, bege — e, se o deixassem sozinho, era capaz, talvez, de lamber tudo. Compra cordões de calçado a vendedores ambulantes, isqueiros inúteis, pequenas galinhas de borracha e dez caixas de fósforos. De repente tem desejos de ver cavalos; levanta-se às seis horas da manhã, vai de ônibus até Tattersall, fareja o ar repleto de poeira de serragem, de cheiro de arreios, estéreo e suor, trava amizade com algum cavalo, monta e vai até o jardim zoológico, fartando-se de passear em meio à neblina cinzenta da manhã, que paira sobre as árvores de março, e retorna mais calmo ao hotel. Já o encontraram no pátio dos empregados, atrás da escada de serviço, parado junto de uma lata cheia de água de lavagem e restos de comida, olhando para cima, para os cinco andares do hotel, até o lugar em que a antena está presa, sob o céu descolorido. Talvez tivesse alguma pretensão de conquistar a única camareira bonita do hotel; bonita, imoral e já despedida. Trava muitos conhecimentos entre os hóspedes do hotel, distribui selos, aconselha, no caso de excursões, leva em seu carro senhoras idosas, serve de parceiro no jogo de bridge, e é grande conhecedor dos vinhos do hotel. No dedo indicador da mão direita usa um anel com sinete de lápis-lazúli, com o brasão dos Gaigern, um falcão sobre ondas. À noite, quando se deita, conversa com os seus travesseiros, em dialeto bávaro. "Gruess Gott", diz ele, aproximadamente, "boa noite, você é muito boazinha, minha querida cama, e muito ajuizada." Adormece logo, e nunca incomoda os vizinhos com roncos inconvenientes, gargarejos e botinas atiradas ao chão. Seu chofer costuma contar, lá embaixo, na sala dos despachos, que o barão é um homem muito correto, mas bastante simplório. No entanto, também um Barão Gaigern, por detrás de portas duplas, tem seus segredos e seus escaninhos ocultos.
— Não há nada de novo? — perguntou ao chofer. O barão está no meio do tapete, completamente nu, fazendo massagem nas coxas. Tem uma plástica magnífica, com a caixa torácica um tanto abaulada, como a dos pugilistas; a pele de seus ombros e das pernas é morena, e só entre as coxas e o tronco há uma zona clara, no lugar em que um maio lhe cobriu o corpo durante o verão. — Então, você não sabe de nenhuma novidade?
— Ora, basta! — respondeu o chofer, que estava deitado na chaise-longue coberta com uma imitação de Kilim, o cigarro colado ao lábio inferior, pois estava fumando. — Você pensa que eles vão ficar esperando eternamente em Amsterdam? Schalhorn já desembolsou cinco mil marcos, você pensa que isso vai continuar indefinidamente? Emmy está entocada há um mês em Springe, à espera da nossa encomenda. Em Paris foi uma porcaria. Em Nice foi uma porcaria. Se você hoje não conseguir nada, vai ser de novo uma porcaria. Se Schalhorn não receber os cinco mil, vai achatar-nos.
— Schalhorn é o chefe? — perguntou o barão calmamente, despejando água-de-colônia nas palmas das mãos.
— Um chefe tem de ser atirado, é o que eu digo — rosnou o chofer.
— Tem de ser atirado quando está na hora de agir, é verdade. Não gosto da maneira como você e Schalhorn trabalham, não concordo. É por essa razão que acontece sempre alguma coisa com vocês. Comigo nunca aconteceu nada e Schalhorn sempre recebeu a parte que lhe cabe. Se Emmy está nervosa em Springe, não me serve, foi o que lhe disse a última vez. Se ela nem é capaz de ficar sossegada na sua loja de objetos de arte aplicada, enquanto manda Moehl copiar os engastes antigos...
—- Pouco nos importam os engastes antigos. Trate antes de trazer as pérolas, depois pode mandar fazer os engastes antigos. Isso tudo foi ideia sua. Primeiro, parecia que tudo ia dar certo, as pérolas valem meio milhão. Bom, se descontarmos dois meses de despesas, ainda sobra alguma coisa. Talvez seja mais fácil livrar-se delas em engastes antigos, bom, concordo. Agora, Moehl, lá em Springe, está copiando as joias da sua avó, Emmy está ficando maluca, Schalhorn está ficando louco. Não confie nessa mulher; ela é bem capaz de lhe pregar uma peça, se perder a paciência. Então, quando vai ser a coisa? Quando é que o senhor barão vai parar de divertir-se e começar a trabalhar um pouquinho de novo?
— Você já está com apetite, hein? Já se esqueceu dos vinte e dois mil marcos de Nice, e está se arriscando a levar uma grande descompostura — disse o barão, ainda com bastante amabilidade; já tinha calçado meias de seda pretas, presas com ligas brancas de seda, e elegantes sapatos de verniz, com que costumava dançar. Mas ainda estava nu.
Qualquer coisa na sua nudez despreocupada e sem cerimônia excitava o chofer; talvez a queda suave dos ombros, ou o modo macio de as costelas se elevarem por sob a pele, enchendo de ar os pulmões. O chofer cuspiu a ponta do cigarro no meio do quarto e levantou-se.
— Quer saber de uma coisa? — disse ele, inclinando-se sobre a mesa. — Já estamos fartos de você. Você não é dos nossos. Você não leva nada a sério, compreendeu? Para você, tanto faz ir jogar ou apostar nas corridas de cavalos, surripiar com toda a gentileza a uma velha solteirona vinte e dois mil marcos ou ir buscar pérolas no valor de meio milhão; para você tanto faz. É tudo a mesma coisa, pensa você. Mas há uma diferença em tudo isso, quando alguém não sabe bancar o chefe. E se você não for embora por livre e espontânea vontade, será forçado a fazê-lo, compreendeu?
— Deita, já! — disse Gaigern amavelmente, e com um silencioso golpezinho de jiu-jítsu torceu o pulso do chofer. — Para ir-me embora não preciso de você. Preciso somente que você prepare o nosso álibi hoje à noite. Esta noite, às doze e vinte e oito, você pode partir para Springe com as pérolas, e de manhã, às oito e dezesseis, estará de volta. Às nove, mando que toquem a campainha no seu quarto, e você precisa ir logo para o batente; depois convidaremos qualquer pessoa para passear conosco. Se você pestanejar durante o escândalo que vai haver no hotel, amanhã, mando prendê-lo. Agora há pouco perguntei-lhe se havia alguma novidade.
O chofer, com estrias vermelhas em volta do pulso, pôs de novo a mão no bolso. Dava a impressão de não querer responder — mas respondeu.
— Ela agora costuma chegar ao teatro só às seis e meia, porque anda nervosa — rosnou ele, dominando-se a custo. — Depois do espetáculo há uma ceia de despedida na casa do embaixador francês. Não vai além das duas da madrugada. Amanhã, às onze, ela viaja, fica dois dias em Praga, depois segue para Viena. Estou realmente curioso para ver quando é que você vai surripiar as pérolas dela, entre o espetáculo e a ceia, se tudo correr sem percalços. Não existe no mundo um buraco tão favorável como esse pátio de teatro sem iluminação — acrescentou ele. Quis resmungar ainda qualquer coisa mas não olhou mais para o barão, que, nesse meio tempo, se transformara em um senhor de smoking.
— Ela não está mais usando as pérolas. Deixa-as no hotel — afirmou Gaigern, prendendo a gravata preta.
— Ela própria o contou a um repórter idiota que a foi entrevistar, você pode ler nos jornais.
— O quê? Ela as deixa simplesmente no quarto... não as entregou no hotel para serem guardadas no cofre? Como? Pode-se ir ao seu quarto buscá-las?
— É mais ou menos isso — disse o Barão Gaigern.
— Agora quero que me deixem em paz — disse ele cortesmente à boca idiota e espantada do seu companheiro. Via uma goela de um vermelho escuro e duas falhas de dentes. Sentiu um ódio ardente e repentino por aquela espécie de gente a que se ligara. Os músculos do seu pescoço se contraíram violentamente.
— Vamos — foi só o que disse. — Às oito, quero o carro em frente à porta principal.
O chofer, humilhado, olhou o rosto de Gaigern, e retirou-se, não dizendo nada do que queria dizer e que ficou entalado na sua garganta.
— O senhor do quarto 70 é inofensivo — murmurou como uma última consideração; e, com um movimento subserviente de lacaio, apanhou no chão o pijama azul.
— É um ricaço esquisitão, recebeu uma herança enorme e agora está esbanjando a fortuna.
O barão já não o ouvia mais. O chofer, supersticioso, parando entre as duas portas, cuspiu três vezes para trás; depois fechou o trinco sem fazer barulho.
Pouco antes das oito da noite, o barão apareceu no hall, animado e muito bem disposto, vestido de smoking e de impermeável azul. Nem mesmo Pilzheim, o detetive do hotel, desconfia que esse Apoio amável está preparando um álibi. O Dr. Otternschlag, que está bebendo café no hall com o extenuado Kringelein, antes de irem juntos ao espetáculo da Grussinskaia, com o dedo erguido em riste, aponta para o barão.
— Olhe, Kringelein: era assim que deveríamos ser
— disse ele, zombeteiramente e com inveja.
O barão põe um marco na mão do groom 18 e diz:
— Meus cumprimentos à senhorita sua noiva! — e se aproxima da portaria. O porteiro Senf olha para ele com expressão obsequiosa, mas sonolenta. É já a terceira noite que o porteiro Senf tem que esconder suas preocupações pessoais, por ter a mulher no hospital.
— O senhor arranjou para mim as entradas para o teatro? Quinze marcos? Muito bem — disse ele ao porteiro. — Se alguém perguntar por mim, estou no Teatro Alemão, e depois no Clube do Oeste. Vou ao Clube do Oeste — disse, e, dando dois passos, dirigiu-se ao Conde Rohna: — Imagine o senhor quem eu encontrei lá: Ruetzow, aquele sujeito alto! Ele esteve com o senhor e o meu irmão no batalhão Ulanos de 74. Está trabalhando agora no ramo de automóveis. Vocês todos são pessoas trabalhadoras; só eu é que sou um boa-vida, um lírio do campo, hein? O meu chofer está lá fora, porteiro?
Com o barão, entrou uma brisa quente pela porta giratória, e o hall sorriu com agrado para ele. Entrou no seu carrinho e partiu, atrás do álibi. Às dez e meia deram um telefonema para o hotel, do Clube do Oeste.
— Aqui fala o Barão Gaigern. Alguém perguntou por mim? Estou no Clube do Oeste, e só daqui a duas horas, ou um pouco mais tarde, chegarei ao hotel. Meu chofer pode ir deitar-se.
Ao mesmo tempo que essa voz preparava cavalheiresca e precavidamente um álibi, Gaigern estava colado à parede da frente do Grande Hotel, entre duas pedras que imitavam cantaria. Sua situação não era das mais cômodas, mas ele se sentia alegre, com a satisfação entusiástica do caçador, do lutador e do alpinista. Conservava para a sua empresa o pijama azul-escuro, despreocupadamente; calçava leves sapatos de pugilista, com solas de cromo, e por precaução enfiara, sobre eles, meias de lã, meias para esportes de inverno, que evitavam indesejáveis pegadas. Gaigern calculara o caminho para o quarto da Grussinskaia, da sua própria janela; devia ter pouco menos de sete metros, e ele já estava no meio do caminho. As pedras imitando cantaria do Grande Hotel eram cópias das lajes ásperas do Palazzo Pitti, e tinham uma aparência pomposa; se não se partissem agora, estava tudo bem. Gaigern colocava as pontas dos pés, cuidadosamente, nas reentrâncias do reboco. Usava luvas, que durante o percurso o estavam atrapalhando. Não podia tirá-las, enquanto subia pela parede do segundo andar como um escaravelho.
— Diabo! — exclamou ele, quando a argamassa e o reboco se quebraram sob as suas mãos, indo bater com um ruído seco no andar de baixo, no parapeito de metal de uma janela.
Sentiu a garganta seca e controlou a respiração, como um corredor da Aschenbahn. Firmou-se de novo, balanceou o corpo, durante um instante, sobre a ponta do dedo maior, com perigo de vida, e impeliu a outra perna meio metro para a frente. Assobiou baixinho. Estava agora excitadíssimo e por isso assobiava, fingindo sangue-frio, como um meninote. No principal, que eram as pérolas, ele não pensava de modo algum durante esses minutos. Afinal de contas, essas pérolas poderiam ser conseguidas também de outra maneira. Um soco na cabeça de Suzette, sobre seu chapeuzinho de feltro já cocado, quando ela saísse à noite do teatro, com a suitcase. Um assalto à noite ao quarto da Grussinskaia; finalmente, quatro passos pelo corredor, uma chave falsa e uma expressão inocente, ao ser descoberto em um quarto em que entrara por engano. Mas não era do seu feitio fazer isso, não o fazia de modo algum. "Cada um deve agir conforme a sua natureza", tinha dito Gaigern ao seu bando, procurando explicar-lhes seu modo de agir. Esse bando era um grupo de espertalhões, que há dois anos ele procurava conservar unido, mas estava sempre à beira da revolta. "Não gosto de pegar a caça na armadilha; não subo montanhas com corda. O que não posso ir buscar com minhas próprias mãos, tenho a impressão de que não é meu."
É natural que essa conversa provocasse uma atmosfera de incompreensão entre ele e o seu bando. A palavra "coragem" não era de uso corrente entre eles, apesar de cada um deles possuir uma boa dose de coragem. Emmy, em Springe, com sua cabeça dura como um coco, procurara certa vez explicar o que acontecia com Gaigern. "Para ele isso é um esporte", afirmava ela; e como tinha muita intimidade com Gaigern, devia ter razão. Pelo menos, nesse momento, às dez e vinte da noite, escalando a fachada do Grande Hotel, ele tinha o aspecto de um esportista, um turista numa passagem difícil, um chefe de expedição, avançando em local perigoso.
O lugar perigoso era a reentrância angulosa, por trás do banheiro da Grussinskaia. Ali, a fantasia do arquiteto idealizara uma superfície lisa: também não havia cornija na janela, o banheiro escondia-se numa reentrância, dando para aquele pátio, onde certa vez o barão foi visto a observar as antenas. Mas, depois desses dois metros e meio lisos, começavam já as barras de ferro da grade da varanda do 68. Ligeiramente arquejante, ora assobiando, ora soltando pragas, Gaigern parou na última saliência que lhe podia oferecer segurança, antes do trecho liso que se seguia. Os músculos de suas coxas tremiam, e nas articulações dos pés sentia a vibração quente e latejante provocada pelo violento esforço. Afora isso, estava satisfeito com a situação, pois tudo correspondia ao que ele calculara uma centena de vezes.
Gaigern não podia ser visto lá de baixo, naquela rua formigante de gente da grande cidade, porque estava completamente protegido pelo enorme refletor que o hotel mandara colocar na fachada, há pouco tempo. Quem olhasse para cima ficaria ofuscado pelos feixes claros da luz. Era completamente impossível perceber uma figurinha azul-escura, por detrás dessa luz agressiva, a se mover na sombra. Gaigern tinha visto, num teatro de revistas, o truque de um mágico que enviara na direção do público uma luz ofuscante como essa, enquanto, diante do pano de fundo de veludo escuro, executava suas mágicas, serrando moças ao meio e fazendo voar esqueletos no palco. Gaigern descansou atrás do segundo refletor e olhou para a rua, lá embaixo; do ponto em que estava, enxergava aquele trechinho do mundo completamente contorcido e achatado. A parede que descia reta olhava para ele com uma aparência hostil e maldosa. Inclinou a cabeça justamente nesse momento, e olhou para baixo, prendendo a respiração, sem piscar sequer. Não tinha a menor sensação de vertigem; apenas no pulso, por debaixo das luvas, a vibração suave e excitante, bem conhecida dos alpinistas. A torre redonda de Ried, no castelinho de Gaigern, era mais alta ainda. Quando ele fugia à noite de Feldkirch, era preciso escorregar pelo para-raios. Os Drei Zinnen, nos Dolomitos, também não eram brincadeira. Os dois metros e meio até o terraço não eram fáceis de atravessar, mas havia coisa pior. Gaigern não olhou mais para baixo, e ergueu os olhos por um momento. Defronte, um anúncio luminoso, contínuo, passava no telhado, e de uma taça de champanha borbulhavam lâmpadas elétricas, como espuma. Céu, não havia; a cidade terminava ali mesmo, junto aos telhados, fios e antenas. Gaigern moveu os dedos dentro da luva; estavam colados, provavelmente sangravam. Experimentou respirar, e conseguiu de novo. Concentrou suas forças, retesou os músculos e, com um salto de peixe-voador, lançou-se no vácuo. O ar zuniu de encontro aos seus ouvidos, e em seguida suas mãos agarraram as barras de ferro da varanda, que lhe cortaram os dedos, com suas arestas. Deixou-se ficar pendurado durante um segundo, com o coração a palpitar com força, e depois, com um impulso, pulou por sobre a varanda e soltou o corpo. Sim, agora se encontrava na varanda, diante da porta aberta do quarto da Grussinskaia.
— Até que enfim! — exclamou satisfeito, deixando-se ficar onde tinha caído, no pavimento de pedra da varandinha; aspirou profundamente o ar, abrindo a boca; ouviu um avião roncar bem por cima dele, e viu acima de seus olhos abertos os reflexos redondos da luz da cabina passando silenciosamente por entre as nuvens avermelhadas da grande cidade. A rua mandava para cima um ruído compacto e cheio — Gaigern sentiu-se por uns instantes em uma ilha de cansaço e de semi-inconsciência —, lá embaixo as buzinas dos automóveis disputavam a passagem, porque a Liga dos Filantropos dava uma festa, no pequeno salão, e muitas capas de noite se moviam como escaravelhos dourados, saindo pelas portas dos carros, subindo três degraus e entrando pelo portal. "Santo Deus, o que eu daria agora por um cigarro!", pensou Gaigern com os nervos frouxos; mas de modo algum podia pensar nisso agora. Ainda deitado, puxou a luva da mão direita e começou a chupar o corte do indicador; uma pata sangrando não tinha a menor utilidade para o seu trabalho. Engoliu com raiva o gosto sutil de metal, e suas costas úmidas sentiram o frescor agradável do pavimento de pedras. Por entre as grades da varanda, mediu o trecho que percorrera, e calculou o difícil retorno. Trouxera uma corda. Depois, seria preciso sair depressa da varanda, e, com um impulso de pêndulo, cair do outro lado. "Parabéns!", disse a si mesmo, no tom amável de oficial de Exército da sua vida passada. Tornou a calçar as luvas, como a se preparar para uma visita de cerimônia, levantou-se e passou da varanda para o quarto da Grussinskaia. A porta não se moveu, apenas a cortina ficou levemente enfunada; as tábuas do soalho também se conservaram caladas e acolhedoras. No quarto às escuras, tiquetaqueavam dois relógios, um quase duas vezes mais depressa do que o outro. Havia um cheiro forte de enterro e de forno crematório. Do anúncio luminoso do lado oposto caía um clarão triangular amarelado sobre o chão, até à borda do tapete. Gaigern tirou do bolso uma lanterna barata de forma cilíndrica, como essas que as cozinheiras usam, nas suas levianas rondas noturnas, e iluminou o quarto com cuidado. Graças ao seu curto diálogo com Suzette, à entrada do aposento, já conhecia a disposição dos móveis. Dispusera-se a descobrir todas as perfídias desse quarto, a procurar as pérolas em todos os esconderijos, a forçar fechaduras de malas, a arrombar portas de armários e a decifrar segredos de fechaduras. Mas, ao seguir o fio de luz oval da lâmpada de bolso e avistar a própria imagem triplicada no espelho, em sua frente, ficou agradavelmente surpreendido, com uma surpresa quase cômica.
Na mesinha do espelho estava pousada a suitcase, calma e desprotegida, e o filete de luz brincava inocentemente sobre o seu couro. "Vamos com calma!", pensou Gaigern, e isso significava uma ordem de comando, porque sentia a febre do caçador ferver dentro de sua cabeça. Primeiro enfiou no bolso a mão direita sangrando, como se fosse um objeto; tinha de conservá-la ali dentro, pois era preciso impedi-la de fazer qualquer travessura e de deixar vestígios. Colocou a lanterna na boca. Com a mão esquerda enluvada, pegou cuidadosamente a suitcase. De fato lá estava ela, podia apalpar com os dedos o seu couro de um brilho fosco. Ergueu a malinha, que não estava vazia. Apagou a lanterna, largou-a, e ficou pensando um momento. O quarto cheirava a enterro, um cheiro que fazia parar a respiração, um cheiro de avô morto e de solene panegírico de cerimônia fúnebre. Gaigern pôs-se a rir no escuro, quando compreendeu. "Louros!", pensou ele, fazendo suas as palavras de Suzette. "Madame recebe muitos louros, monsieur. O embaixador francês enviou-nos uma enorme cesta de louros." Ajoelhou-se diante do guarda-roupa — mas, dessa vez, as tábuas rangeram, maldosas e vivas — e com a mão esquerda agarrou a maleta no escuro. "Não, não", pensou ele, largando-a de novo. Essas coisas dão azar. Pastas, malas, carteiras de dinheiro são coisas nefastas; custam a queimar, flutuam nos rios em que são atiradas, são encontradas nas águas do esgoto pelos encarregados da limpeza dos canais, e acabam parando nas mesas dos tribunais, como desagradáveis corpos de delito. Além disso, uma suitcase pesando cerca de dois quilos não era nada cômoda de se carregar nos dentes, quando era preciso atravessar dois metros e meio de uma fachada lisa e escorregadia. Gaigern retirou a mão e pôs-se a refletir. Acendeu a lanterna e ficou olhando a fechadura dupla da maleta, absorto. Deus sabe que segredos a Grussinskaia teria para fechar o seu tesouro. Gaigern pegou as ferramentas e empurrou o disco redondo e metálico da fechadura.
A fechadura abriu.
A maleta não estava fechada a chave.
Gaigern assustou-se com o pequeno estalido, que não esperava em absoluto; ficou com uma cara de imbecil.
— Ora vejam, ótimo! — disse ele duas ou três vezes. — Ora vejam, ótimo! — levantou a tampa e apertou o botão do estojo de joias; de fato, lá estavam as pérolas da Grussinskaia. Afinal, não eram tantas assim, apenas um punhadinho de bolinhas cintilantes, caso se prestasse bem atenção; de modo algum correspondiam à lenda que haviam espalhado a respeito desse presente de um grão-duque assassinado, para enfeitar o pescoço de uma bailarina. Um lindo e antiquado sautoir, um colar de pérolas de tamanho médio, mas bem iguais, três anéis, um par de brincos de pérolas enormes, incrivelmente redondas; preguiçosamente pousadas no seu leitozinho de veludo, elas descansavam, enquanto a lanterna as fazia cintilar com um brilho amortecido. Com extrema precaução, Gaigern tirou-as do estojo com a mão esquerda enluvada e enfiou-as no bolso. Parecia-lhe sumamente ridículo encontrar as pérolas largadas em uma maleta aberta, e chegou a sentir uma espécie de desilusão ou indiferença, o cansaço de uma exagerada tensão que não teria sido necessária. Durante um instante ficou pensando se não seria melhor experimentar sair simplesmente do quarto, regressando ao seu aposento pelo corredor. "Talvez essas mulheres tenham deixado também a porta do quarto aberta", pensou ele, com o mesmo sorriso de incredulidade que punha a descoberto seus dentes superiores, dando ao seu rosto uma expressão tola e infantil, desde que avistara as pérolas.
Porém a porta estava fechada. No corredor ouvia-se, a espaços irregulares, o elevador subir e — clique — fechar a grade, porque o quarto 68 ficava defronte dele, em diagonal. Gaigern sentou-se por uns minutos em um fauteuil, no escuro, recuperando forças para o retorno. Sentia um enorme desejo de fumar, o que era impossível naquele momento, para não deixar vestígios de cheiro do cigarro. Tinha a precaução de um selvagem a guardar o seu tabu. Pensou em uma infinidade de coisas ao mesmo tempo, e, com mais lucidez, no armário de armas de seu pai. Na prateleira superior, ficavam sempre as grandes latas de tabaco herzegovino, e em dias alternados o velho Barão Gaigern colocava em cada lata uma fatia de cenoura. Gaigern sentiu por momentos o perfume adocicado e penetrante daquele tabaco, e retornou ao lar, descendo as escadas lustrosas de Ried, deixando-se ficar esquecido, durante um bom tempo, a recordar-se do tempo em que era ainda um voluntário de dezessete anos e fumava fechado em seu quarto. Sem usar de delicadezas, tratou de retornar ao seu empreendimento. — Atenção! — disse a si mesmo. — Nada de cochilos. Vamos! — Pôs-se a chamar-se por apelidos, dirigindo-se a si próprio com amizade e carinho, elogiando e xingando os membros de seu corpo.
— Seu porco — repreendeu o dedo cortado, que estava colando e sangrava; — seu porco, não pode me deixar em paz? — E dando palmadinhas nas coxas, como se acariciasse cavalos, elogiava-as: — Vocês são muito boazinhas, são animais valentes, bons animais. Atenção!
Afastou-se do aroma de louros do 68, meteu o nariz na varanda, farejando, e suas narinas aspiraram aquele indefinível odor de Berlim, em março, um cheiro de gasolina e de umidade de jardim zoológico. Enquanto se enfiava por entre as cortinas levemente enfunadas, pôde observar que as coisas não se apresentavam exatamente como deviam. Só após alguns segundos percebeu com clareza que batia agora em seu rosto e seu corpo uma claridade que há pouco não havia ali; viu os reflexos sedosos nas mangas do seu pijama, e insensivelmente voltou com toda a presteza para a escuridão do quarto, como um animal atingido por uma réstia de luz, que se esgueira, a farejar, na escuridão da mata. Estacou, ofegante e com os músculos tensos. Ouvia com extrema nitidez o tique-taque dos dois relógios, e em seguida, muito ao longe, e a distância, na enorme cidade, o relógio da torre de uma igreja bater onze horas. As paredes das casas do outro lado da rua ora se iluminavam, ora escureciam, pestanejando e fazendo prestidigitações.
— Que porcaria! — rosnou Gaigern, indo para a varanda, e mostrando-se impaciente desta vez, e muito senhor de si, como se estivesse em casa, no 68.
Os refletores haviam desaparecido. A nova instalação elétrica estava mais uma vez a fazer das suas; no salãozinho de festas, a Liga dos Filantropos estava no escuro, e no porão os eletricistas se esforçavam inutilmente por descobrir o que havia na instalação elétrica. Lá embaixo, na rua, um punhado de gente olhava divertida para a fachada do hotel, onde os quatro refletores se acendiam e se apagavam alternadamente. Um guarda acorrera. Os automóveis excitavam-se, porque o leito da rua não estava livre. O anúncio luminoso, do outro lado, cintilava graciosamente, derramando champanha em profusão no meio da noite, esforçando-se por iluminar a fachada do hotel e torná-la visível. Finalmente, dois homens de blusão azul saíram se arrastando de uma janela da sobreloja, sentaram-se sobre a coberta de vidro, que avançava do portal, e começaram a examinar a instalação que não funcionava. O caminho de volta, pelos sete metros da fachada do hotel, que agora criara vida, estava fechado. "Parabéns!", pensou Gaigern de novo, rindo com raiva. "Agora tenho que ficar aqui dentro. Agora tenho de arrombar a porta, se quiser sair daqui."
Foi buscar sua ferramenta e a lâmpada, experimentou com todo o cuidado desprender a fechadura, em redor do buraco da chave do 68, mas sem êxito. Um penteador ao lado da porta criou vida, caindo com um deslizar sedoso sobre o seu rosto, assustando-o horrivelmente. Ele sentiu as artérias do pescoço agitarem-se como máquinas. O corredor também despertara. Estava cheio de ruído de passos, de tosse, o elevador rangia, subia, descia, subia, descia. Uma camareira falou qualquer coisa, passou correndo, outra respondeu. Gaigern abandonou a fechadura enfeitiçada, e se esgueirou de novo para a varanda. Três metros abaixo dele os eletricistas cavalgavam a coberta de vidro, com fios na boca, muito admirados lá da rua. Gaigern fez uma das suas grandes brincadeiras. Inclinou-se sobre o parapeito e gritou:
— O que aconteceu com a luz?
— Curto-circuito — respondeu um eletricista.
— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Gaigern.
Lá de baixo, encolheram os ombros. "Idiotas", pensou Gaigern, furioso. O modo fanfarrão e convencido desses dois sujeitos impertinentes, sobre a coberta de vidro, desgostava-o profundamente. "Em dez minutos eles vão desistir", pensou; olhou ainda um momento para baixo, e depois entrou de novo no quarto. De repente, teve a sensação de estar em perigo, mas isso durou apenas um segundo — e desapareceu. Ficou parado no meio do quarto, com suas meias de lã que não deixavam pegadas.
"Só não posso pensar em dormir", pensou ele. Para conservar-se desperto, tirou do bolso as pérolas, que estavam quentes pelo contato de seu corpo, e descalçou as luvas, porque sentiu desejos de apalpar aquela superfície lisa e preciosa. Seus dedos se deliciaram. Ao mesmo tempo lembrou-se de que o chofer não conseguiria apanhar o trem para Springe, e era preciso fazer outros planos. Estava saindo tudo diferente do que ele tinha planejado. As pérolas não estavam fechadas na maleta, não lhe haviam dado nenhum trabalho, e a pequena escalada tinha sido demasiada para isso. Em meio aos seus pensamentos, veio-lhe uma ideia que o fez sorrir. "Que espécie de mulher é essa?", pensou ele. "Que espécie de mulher é essa, que simplesmente deixa suas pérolas largadas no quarto?" Sacudiu a cabeça, admirado, e deu uma risada surda. Conhecia muitas mulheres; mulheres agradáveis, mas que não provocavam nenhuma admiração. Uma mulher que saía, deixando tudo o que possuía perto da porta da varanda, aberta, ao alcance de qualquer um, era para ele uma coisa fantástica. "Deve ser desleixada como um cigano", pensou. "Ou deve ter um grande coração." Apesar de tudo, sentia sono. Por entre a escuridão, encaminhou-se para a porta, levantou do chão o penteador que tinha caído e o cheirou com curiosidade. Um perfume desconhecido, sutil e acre, muito tênue, se desprendia dele, e não combinava com a mulher de tarlatana que aborrecera tantas vezes Gaigern nos espetáculos de balé. Aliás, ele desejava a essa Grussinskaia tudo de bom, não sentia antipatia por ela. Pendurou o penteador negligentemente, deixando dez levianas marcas digitais na seda, e se encaminhou lentamente para a varanda. Lá embaixo os dois morcegos azuis ainda batiam as asas em torno do seu curto-circuito. "Bom divertimento!", desejou Gaigern a si próprio — e conservou-se, até segunda ordem, de pé, entre o reposteiro e a cortina de renda, ereto e desperto como um soldado na guarita.
Kringelein olhava para o palco, por detrás das suas lunetas. Lá em cima passavam-se coisas muito estranhas, e com enorme rapidez. Ele gostaria de observar com mais atenção uma das moças, a moreninha da segunda fila, que sorria sempre, mas não era possível. Não havia intervalo no ballet da Grussinskaia, tudo cintilava e saltitava incessantemente, em enorme confusão. Por vezes as moças vinham em fila para os dois lados do palco, colocando as mãos, pendentes das articulações dos pulsos, sobre a fímbria dos saiotes, para ceder lugar à própria Grussinskaia.
Depois, ela veio se aproximando a voltejar, com o rosto e os braços de um branco de cera, sobre as pontas dos pés que se fincavam nas tábuas do palco com tanta firmeza e segurança como se estivesse sendo fixada ali, com uma chave de parafuso. Finalmente, desapareceu por completo o seu rosto, e ela se transformou em um pião branco com listras prateadas. Kringelein sentiu o estômago um pouco enjoado, antes mesmo que a dança terminasse.
— Magnífico! — disse ele, admirado. — Ótimo! Que agilidade ela tem nas pernas! É perfeita. É de se ficar mesmo extasiado! — Sentiu uma grata admiração, apesar de não estar passando muito bem.
— O senhor está gostando realmente? — perguntou o Dr. Otternschlag, aborrecido. Estava sentado no camarote, com a face metralhada virada para o palco, e o seu aspecto, aos reflexos amarelos da luz dos refletores vinda do palco, era de arrepiar. Realmente, era difícil a Kringelein responder a essa pergunta.
Para ele, desde o momento em que entrara no quarto 70, tudo no mundo parecia irreal. Tudo tinha sabor de sonho e de febre. Tudo se movimentava depressa demais, sem cessar, não chegando a satisfazê-lo completamente. Otternschlag, em vista de seus contínuos pedidos de conselho e de companhia, arrastara-o desde manhãzinha por todas as excursões costumeiras, um giro em redor da cidade de Berlim, museus, Potsdam e, no fim, a subida à torre da emissora, onde o vento soprava a três vozes, e donde se divisava Berlim estendida sob um lençol de névoa de fuligem, bordado de luzes. Kringelein não se admiraria nada se acaso despertasse e se encontrasse de novo, após uma pesada narcose, no leito do hospital. Sentia os pés gelados; tinha as mãos endurecidas pelo frio e o queixo rijo. Sua cabeça era um globo quente, dentro do qual haviam atirado coisas demais, e começava a sibilar e derreter-se.
— Está satisfeito agora? Sente-se feliz? Está contente com a vida? — perguntava Otternschlag de tempos em tempos. E Kringelein respondia, atento e obediente:
— Sim, senhor.
O teatro, nessa noite do quinto espetáculo da Grussinskaia, tinha pouca gente, estava praticamente vazio. A plateia, com raros espectadores, parecia carpida, como se tivesse sido comida pelas traças. Na primeira fila, a gente sentia frio e se envergonhava, no meio de tantas cadeiras vazias. Kringelein sentia frio e vergonha. Além da frisa do proscênio, que tinham comprado a conselho de Otternschlag — Kringelein desse momento em diante só queria ocupar os melhores lugares, no cinema bem atrás, no teatro bem na frente, e no ballet na primeira fila —, além da frisa deles, que custara quarenta marcos, só havia mais uma ocupada, a do empresário Meyerheim, que nessa noite economizara a claque, que não adiantava mais: o déficit já era bem grande. Antes do intervalo principal uns escassos aplausos. Pimenoff mandou subir depressa o pano e a Grussinskaia apareceu e sorriu: sorriu para uma plateia silenciosa, porque os fracos aplausos haviam morrido ao nascer, e já todos se dirigiam, apressados, para a saída que dava para o bufê. No semblante da Grussinskaia também parecia ter morrido alguma coisa, quando ela ficou no palco agradecendo aplausos que já haviam cessado. Por sob o suor e a pintura, sua pele enregelou. Witte pôs de lado a batuta e subiu correndo pela escadinha que levava ao palco. Estava preocupado com Elisavieta. Lá em cima, Pimenoff dava a impressão de estar assistindo a um enterro, os operários do palco roçavam armações de cenário nas costas do seu velho fraque, curvado e justo no corpo __todas as noites ele vestia para os espetáculos o seu fraque, como se o Grão-Duque Serguei ainda fosse chamá-lo à frisa. Michael, com uma pelezinha pintalgada, imitando pele de leopardo, sobre o ombro esquerdo, e as coxas nuas e empoadas, esperava ao lado do inspetor, em atitude humilde. Todos tremiam de medo, esperando um dos acessos de cólera da Grussinskaia; os joelhos, as mãos, os ombros e os dentes de todos eles tremiam realmente.
— Desculpe-me, madame — sussurrou Michael —, pardonnez-moi. O culpado fui eu. Eu a fiz irritar-se.
A Grussinskaia, que vinha se aproximando com o olhar absorto, arrastando atrás de si o velho casaco de lã, por entre a poeira e o ruído do palco onde estavam desmontando o cenário, parou ao lado dele e o olhou com uma doçura que assustou a todos.
— Você? Não, querido — disse ela em voz baixa, pois necessitava concentrar e fortificar a voz, que se debilitara com o cansaço e que ela ainda não recuperara após o esforço da última e dificílima dança. — Você foi muito bem. Está hoje em ótima forma. Eu também. Nós todos nos portamos muito bem...
Virou-se de repente e caminhou apressadamente para longe dali, levando consigo a frase inacabada, até a escuridão do fundo do palco. Witte não teve coragem de segui-la. A Grussinskaia sentou-se no degrau de uma escada de madeira pintada de dourado, largada lá atrás, no meio de um montão de trastes, e ali ficou, durante todo o tempo que durou a montagem do novo cenário. Primeiro colocou as mãos sobre a malha de seda cor de carne que cobria suas panturrilhas, amarrou mais uma vez, mecanicamente, os cordéis cruzados das sapatilhas e em seguida acariciou durante alguns minutos a perna fatigada, coberta de seda e levemente suja, distraída e com certa piedade, como se fosse um animal estranho. Depois tirou as mãos da perna e pousou-as no pescoço nu. Sentia uma enorme falta das pérolas. Para acalmar-se costumava passa-las pelos dedos, como um rosário. "Que mais? Que mais? Que querem vocês ainda?", pensou ela no seu íntimo. "Não posso dançar melhor do que dancei hoje. Nunca dancei tão bem como agora. Nem quando era jovem, nem em São Petersburgo, nem em Paris, nem na América. Naquele tempo eu era tola, e não me esforçava muito. Agora
— oh, agora eu trabalho realmente. Agora eu sei o que faço. Agora sei dançar. Que querem de mim? Mais ainda? Mais do que isso eu não tenho. Deverei dar de presente as pérolas? Devo doá-las? Pois que seja, Ah! Deixem-me em paz, vocês todos. Estou cansada."
— Michael — murmurou ela, ao ver esgueirar-se uma sombra que reconheceu por trás do pano de fundo descido.
— Madame? — perguntou Michael, com tato e timidez. Já tinha trocado de roupa, agora vestia um gibãozinho de veludo e trazia o arco e a flecha na mão, porque, após o intervalo, tinha de principiar a Dança do arqueiro.
— Não quer ir aprontar-se, Gru? — perguntou ele, esforçando-se o mais possível por não deixar transparecer na voz qualquer sentimento de piedade ao avistar a Grussinskaia, pequenina e aniquilada, encolhida no meio de todos aqueles trastes. As campainhas dos inspetores tocaram em oito pontos diferentes ao mesmo tempo.
— Michael, estou cansada — disse a Grussinskaia.
— Estou com vontade de ir para o hotel. A Lucille que dance o meu número. Ninguém se incomodará com isso. Para essa gente, tanto faz eu como qualquer outra dançar.
Michael levou tal susto, que todos os músculos de seu corpo se retesaram. A Grussinskaia, ali no seu degrau, tinha os olhos perto dos joelhos do moço, e viu que o músculo da sua coxa se arredondou, contraindo-se sob a pele. O movimento inconsciente desse corpo que ela conhecia tão bem consolou-a um pouco. Michael, pálido sob a pintura, disse:
— Nonsense!
O susto o fez tornar-se indelicado. A Grussinskaia pôs-se a sorrir docemente, estendeu um dedo e tocou a perna de Michael.
— Quantas vezes eu já lhe disse que você devia dançar de malha — replicou ela com estranha amabilidade, você nunca ficará bem agasalhado nem suficientemente flexível, sem a malha. Acredite em mim, seu revolucionário.
Deixou a mão, durante alguns segundos, pousada sobre a pele quente e empoada daquele moço de vinte anos, sob a qual os músculos se moviam. Não, sua carícia não encontrou nenhuma repercussão. As campainhas tocaram pela terceira vez; no palco, atrás do pano de fundo com seus pequenos templos pintados, as sapatilhas das bailarinas já se aparelhavam sobre o tablado. No corredor do camarim, a medrosa Suzette corria de um lado para outro como uma galinha assustada, porque madame se deixava ficar sentada num canto, em vez de ir trocar de roupa. Witte, que já estava embaixo, no seu púlpito, pegou na batuta com mão trêmula, e, com o olhar fixo, ficou à espera do sinal vermelho para começar a próxima dança, que já estava atrasada.
— Em que o senhor está pensando? — perguntou o Dr. Otternschlag, lá em cima, na frisa. Kringelein havia se lembrado ligeiramente de Fredersdorf, da mancha de sol que costumava cintilar nas tardes de verão na parede lateral de um verde sujo da escura tesouraria, mas voltou imediatamente e com agrado a Berlim, ao Teatro do Oeste, à profusão de dourados que datavam da fundação do teatro, e à frisa de veludo vermelho, que custara quarenta marcos.
— Está com saudades? — perguntou Otternschlag.
— Nem penso nisso — replicou Kringelein com non-chalance e absoluta frieza. Embaixo, Witte levantou sua batuta, e a música começou.
— Que porcaria de orquestra — disse Otternschlag, a quem o papel de amável mentor, nessa triste noite de espetáculo de bailado, causava engulhos. Mas dessa vez Kringelein não se deixou influenciar. Estava gostando da música. Mergulhou na música como no banho quente do hotel. Sentia no estômago uma sensação de peso e de frio, como se tivesse nas vísceras uma bola de metal. Isso era apenas o sintoma grave, dissera o médico. Nem causava dores; conservava-se sempre no desagradável estado em que se espera uma dor que não vem. Isso era tudo. E uma coisa tão insignificante provocava a morte. A música vinha chegando até ele e o consolava um pouco, com os planíssimos das flautas sobre os trêmulos das violas. Kringelein, esquecendo-se de suas mazelas, mergulhou no mundo dos sons e elevou-se nas asas da música a uma atmosfera azulada de luar, com um pequeno templo pintado numa costa marítima. Lá embaixo, o programa continuava. Michael apareceu com seu traje de arqueiro, de coxas brancas como farinha e um gibãozinho de veludo marrom; distendia seu corpo de efebo, a pular em disparada pelo palco, com saltos de peixe-voador; elevava-se com elasticidade e subia aos ares como se estivesse a saltar sobre cordas esticadas. Pelos seus gestos alegóricos, percebia-se que ele queria atirar em um pássaro, uma pomba que pertencia ao pequeno templo. Atirou sobre o palco um fogo de artifício de saltos e de piruetas, e finalmente saiu correndo atrás de sua flecha, que atirara em direção do bastidor da direita.
Aplausos. Pizzicato na orquestra. A Grussinskaia aparece em cena. Ofegante e apressadamente, vestiu afinal o traje de pomba ferida, com uma enorme gota de sangue cor de rubi a oscilar em seu corpete de seda branca. Está mortalmente cansada, mas sente-se muito leve, levíssima, e corre com tênues e tremulantes batidas de braços, imitando asas, na direção da sua comovedora morte. Esforça-se, três vezes seguidas, para elevar-se aos ares, mas não consegue mais voar. Por fim, seu delicado e longo pescoço tomba para a frente, ela pousa a cabeça sobre o joelho, e morre, pobre pomba ferida mortalmente. E sobre o enorme ferimento em seu coração, o eletricista envia um efeito de luz, com um disco azul.
Desce o pano. Aplausos. Bastantes aplausos mesmo, considerando-se que o teatro está vazio, e que há muito poucas mãos para fazerem ruído.
— Da capo? — pergunta a Grussinskaia, que continua tombada no centro do palco.
— Não — murmura-lhe Pimenoff com um sussurro alto, desesperado e agudo, lá dos bastidores.
Os aplausos pararam. Acabou-se. A Grussinskaia jaz ali durante alguns minutos, leve como uma pluma, morta na dança, e cheia da poeira do tablado nas mãos, nos braços e nas têmporas. Pela primeira vez em sua vida não houve um da capo depois dessa dança. "Não posso mais", pensou ela. "Não, já chega o que eu fiz, não posso mais."
— Intervalo para desmanchar o cenário! — grita o chefe dos maquinistas. A Grussinskaia não tem vontade de levantar-se, deseja ficar ali caída, no meio do tablado, e adormecer, afastando-se de tudo com o sono. Finalmente, Michael aproximou-se dela, levantou-a e a fez ficar de pé.
— Spassibo — ("obrigada"), diz ela em russo, e, endireitando o corpo, afasta-se, dirigindo-se ao camarim das senhoras. Michael encaminha-se para o primeiro bastidor à esquerda e prepara-se para o pas de deux.
A Grussinskaia esgueira-se até seu camarim e, com a ponta da sapatilha, abre a porta; lá dentro, cai sentada na cadeira, diante do espelho, e fica a olhar, de olhos estarrecidos, para a ponta de seda empoeirada e ligeiramente puída da sapatilha. Seus pés estão cansados, indescritivelmente cansados, pesados, fartos, fartíssimos de dançar. Sob a luz forte da lâmpada do espelho aproxima-se o rosto envelhecido e preocupado de Suzette, com um frufru do traje para o pas de deux.
— Deixe-me — murmurou a Grussinskaia em tom seco. — Estou me sentindo mal. Não posso. Deixe-me! Deixem-me, todos vocês!... Dê-me qualquer coisa para beber — acrescentou ainda; tinha vontade de dar um tapa no rosto perplexo e murcho de Suzette, porque de repente achou que ele tinha uma semelhança, difícil de definir, com sua própria fisionomia. — Fiche-moi la paix! — disse ela em tom imperioso.
Suzette sumiu. A Grussinskaia ainda ficou ali largada alguns minutos; depois arrancou dos pés, de repente, as sapatilhas de seda. "Basta!", pensou, "basta! basta!"
De malha, com o traje de pomba, a Grussinskaia resolveu fugir — uma estranha fuga. Arrancara apenas os sapatos de ballet, calçando outros, e jogara aos ombros o velho casaco; e assim, com a garganta repleta de angústia, saiu do teatro. Suzette, ao vir correndo da cantina com um copo de vinho do Porto, encontrou o camarim vazio e em silêncio. No espelho estava um bilhete: "Não posso mais. A Lucille que dance em meu lugar". Suzette saiu pelo palco a tropeçar; em seguida, todos no teatro ficaram tresloucados durante dez minutos, mas depois o pano subiu e o programa foi executado, como em todas as noites: com danças nacionais russas, pas de deux e Bacanal. Pimenoff e Witte dirigiram o espetáculo como dois velhos generais, cujo soberano desertara, necessitando ocultar a retirada, após a derrota.
Mas enquanto no palco o corpo de ballet agitava seus véus bacânticos de musselina, espargindo no tablado, à medida que dançava, quatrocentas rosas de papel, enquanto Michael executava saltos faunescos e Suzette, no escritório do teatro, mantinha conversações perplexas com o chofer inglês Berkley — enquanto se passava tudo isso —, a Grussinskaia, cega, desesperada, empreendia a sua fuga, a tropeçar pela Tauentzinstrasse.
Berlim estava clara, ruidosa e repleta de gente. Berlim olhava para ela com curiosidade e ironia, observando seu rosto desfigurado, meio inconsciente. Berlim era uma cidade cruel, e a Grussinskaia, atravessando a rua, já mais calma, amaldiçoou a cidade. Apossara-se dela um tremor convulsivo, apesar de nessa noite de março a atmosfera estar cheia de umidade tépida, e seu velho casaco de lã estar desprendendo vapor. A Grussinskaia proferia breves palavras, soltas, soluçantes, que ficavam entaladas na garganta, causando dor. Ela pensou que estava chorando, mas não estava. Seus olhos, sob as pálpebras azuis, pintadas para a cena, ficavam cada vez mais quentes, cada vez mais secos. "Nunca mais", pensou a Grussinskaia, "nunca mais. Nunca mais. Basta. Acabou-se. Nunca mais." Caminhava rapidamente, com passos vacilantes, como se esse pensamento a perseguisse, abandonada pelas Graças, sem domínio sobre o corpo, que inclinava a cada passo que ela dava. A luz branca de uma loja de flores se estendia diante de seus pés, e ela parou e ficou olhando. Grandes jarros com ramos de magnólias, cactos, vasos sinuosos onde cresciam orquídeas. Um consolo? Não, não lhe vinha o mínimo consolo da suave beleza das flores. Tinha as mãos frias, só então percebeu, e começou a procurar as luvas nos bolsos do velho casaco. Era um gesto completamente sem sentido, porque há oito anos que só usava esse casaco no palco, para proteger-se contra a corrente de ar que sopra em todos os teatros do mundo. Teve uma visão de gambiarras, de portas de ferro sob a luz de lâmpadas muito fracas, de um declive forte e escorregadio do tablado, diante de seus pés. "Nunca mais!", pensou ela, "nunca mais! nunca mais!" O casaco fora de moda era comprido e cobria seu traje de bailado, mas atrapalhava-lhe os passos. Levantou-o um pouco quando se afastou da vitrina das flores e tomou inconscientemente o caminho de ruas mais calmas. Na sua caminhada, viu um Buda no mostrador de outra vitrina, querendo apaziguar o mundo da Grussinskaia, que se esboroava. "Nunca mais vou dançar, nunca mais, nunca mais." Para consolar-se, lembrou-se de nomes, que saíam como soluços de sua garganta. — Serguei! — exclamou ela — Gabriel, Gaston! — chamava pelos nomes de seus poucos amantes, por Anastásia, sua filha, e finalmente por Pompon, o seu netinho de Paris, que nunca tinha visto. Mas continuou sozinha e ninguém a consolou. De repente, parou, assustada. "Mas que estou fazendo?", pensou ela. "Saí fugida do teatro? Não pode ser. Não é possível. Vou voltar." No relógio de uma igreja soaram onze badaladas, pausadas e nítidas, bem perto dali, apesar de não se avistar nenhum campanário. A Grussinskaia tirou as mãos dos bolsos do casaco e deixou-as caídas diante de si; havia algo da morte da pomba ferida nesse gesto. É tarde demais, diziam as mãos. O espetáculo devia estar quase terminando. Endireitou a cabeça de novo, e olhou a rua em que sua fuga a atirara. Não sabia onde estava. Um portalzinho tinha uma moldura com letras amarelas, e o letreiro dizia: Bar Russo. Atravessou a rua, parou na entrada do bar, limpou o nariz como uma criança e se pôs a pensar. "Bar Russo", pensou ela, "e se eu entrasse? Eles me reconheceriam. Os membros da orquestra, vestindo blusas vermelhas, tocariam a Valsa Grussinskaia. Que sensação!"
"Sensação nenhuma", pensou logo depois, morta de tristeza. "Não posso entrar. Que aspecto eu tenho agora? Talvez ninguém me reconheça mais. E se me reconhecerem — como eu estou agora —, tant pis."
Fez sinal para uma pequena e mísera carruagem de aluguel, e com repentina expressão de frieza e fixidez no rosto, mandou seguir para o hotel.
Gaigern continuava ereto como uma sentinela, entre a cortina e o store do quarto 68, à espera de que os homens de blusão azul terminassem seu trabalho. Mas eles não terminavam. Arrastavam-se de um lado para outro pelas cortinas das janelas do primeiro andar, tinham trazido fios e pequenas tenazes, e gritavam com enorme afã "oh" e "aha", mas os refletores continuavam apagados. Em compensação, toda a fachada do hotel estava iluminadíssima pelos arcos voltaicos, pelas luzes da entrada dos cinco portões e do anúncio contínuo, lá defronte, que ora anunciava uma marca de champanha, ora um chocolate especial. Aliás, devia fazer uns vinte minutos que Gaigern estava esperando, quando a porta do quarto 68 se abriu e a luz se acendeu, e a Grussinskaia apareceu com um aspecto completamente normal e de acordo com o hotel.
6
Do ponto de vista de Gaigern, isso era uma porcaria em toda a extensão da palavra, um negócio imundo. O susto atravessou-o como uma faca gelada, enterrando-se pelas suas costelas e pelo estômago. Com os diabos, que tinha essa mulher que fazer no hotel, às onze e vinte da noite? Onde se iria parar, quando não se podia mais ter certeza absoluta da duração de um espetáculo teatral? "Que azar", pensou Gaigern, rangendo os dentes. De azar, ele tinha medo. E todas essas malditas complicações davam mesmo a impressão de que ele se encontrava numa incômoda e azarenta armadilha. Os reflexos do lustre coavam-se pela cortina de rendas, atrás da qual ele se encontrava, estendendo na varanda a sombra do desenho contorcido. Gaigern ordenou a si próprio calma e bom humor. O colar de pérolas, em seu bolso, adquirira calor humano. As pérolas corriam entre seus dedos, como ervilhas. Durante um instante teve a impressão de que era completamente absurdo e sem sentido julgar que esse punhado de bolinhas redondas de madrepérola valia uma fortuna. Quatro meses à espreita, sete metros em perigo de vida — e quando este perigo passasse, viria um outro, uma sequência de perigos. Uma cadeia de perigos, era isso a sua vida. Um colar de pérolas — a vida da Grussinskaia. Gaigern, sorridente, sacudiu a cabeça em meio à situação complicada em que se encontrava. Não era um pensador. Costumava sorrir para a vida com esse sorriso admirado e divertido, quase maluco. Sorria para a vida, que era uma coisa que ele não compreendia. No entanto, controlou-se, voltou-se por trás da cortina de rendas, pondo-se de frente para o quarto, e ficou à espera.
A Grussinskaia, primeiro, ficou parada quase um minuto no meio do quarto, bem debaixo das taças de vidro do lustre, e seu rosto dava a impressão de que se tinha enganado de quarto. Esperou até que o casaco de lã caísse pelo próprio peso ao longo de seus braços pendentes, e em seguida, passando por cima dele, aproximou-se da mesinha do telefone. Passaram-se alguns minutos até que ela conseguisse ligação para o Teatro do Oeste, e mais alguns minutos até que Pimenoff viesse ao aparelho; mas ela estava de tal modo cansada que não lhe era possível sentir impaciência.
— Alô, Pimenoff? É, sou eu, Gru. Sim, estou no hotel. Desculpe-me, sim? É, de repente me senti mal. O coração, compreende? Fiquei sem respiração. Sim, exatamente como em Scheveningen. Não, agora estou melhor. Deixei você em apuros, eu sei. Como dançou a Lucille? Como? Ah, regularmente. E o público? Que é que você disse? Não, não fico nervosa, você pode dizer se houve escândalo. Não? Nenhum escândalo? Tudo calmo? Poucos aplausos? Você está pensando em outro programa? Bom, depois falaremos nisso. Não, vou me deitar. Não, por favor, não mande o médico, nem Witte. Não, não, não! Não quero que venha ninguém, nem a Suzette. Quero apenas sossego. Vocês me façam o favor de ir à Embaixada da França, e peçam desculpas por mim. Obrigada. Boa noite, querido! Boa noite, Pimenoff! Escute, Pimenoff: dê lembranças a Witte. Ao Michael também. É, lembranças a todos. Não, não se preocupe comigo. Amanhã estará tudo bem de novo. Boa noite!
Colocou o fone no gancho.
— Boa noite, querido — disse mais uma vez, com voz muito baixa, julgando-se completamente só, naquele quarto de hotel.
Tinha sido o coração; "ela se sentiu mal", pensou Gaigern, que seguira a muito custo, e com atenção, aquelas frases apressadas, ditas em francês. "É por isso que ela veio de repente para cá, na pior hora. Está com uma aparência miserável, mesmo. Paciência. Ela vai se deitar, e então espero poder despedir-me. É preciso não perder a calma." Encostou-se com cuidado ao parapeito da varanda, e olhou para baixo. Os dois idiotas azuis continuavam lá, a se consultar. Haviam pendurado duas bonitas lanternas e parecia que estavam preparados para trabalhar muitas horas extras, durante toda a noite. O desejo que Gaigern tinha de fumar começou a aumentar doentiamente. Abriu a boca num bocejo, que se encheu de fumaça úmida de gasolina. A Grussinskaia, dentro do quarto, aproximou-se nesse momento do espelho de três folhas, em cujo aparador estava a suitcase vazia... A caixa torácica de Gaigern pareceu querer estourar, tão fortes eram as batidas de seu coração — mas ela empurrou a maletinha de couro para um lado, sem olhar para ela, acendeu a lâmpada sobre o espelho central, e se agarrou com as duas mãos à moldura do espelho, aproximando-se tanto dele, que dava a impressão de querer atirar-se por ele abaixo. A atenção com que observou seu próprio rosto tinha algo de penetrante, de ávido, de cruel. "Que animais esquisitos são as mulheres", pensou Gaigern, atrás da sua cortina. "Animais estranhíssimos. O que é que ela está vendo no espelho, para estar com uma expressão de tanto horror?"
Ele estava vendo uma mulher bela, incontestavelmente bela, apesar da pintura que lhe escorria pelas faces. Seu pescoço, principalmente, refletido duas vezes pelos espelhos laterais, era de uma delicadeza e de um torneado sem par. A Grussinskaia, de olhos fixos em seu próprio rosto, parecia olhar o rosto de uma inimiga. Com pavor, ela enxergava os anos, as rugas, a pele frouxa, o esforço demasiado, o emurchecer; as fontes já começavam a deprimir-se, as comissuras dos lábios tombavam, as pálpebras, sob a pintura azul, estavam enrugadas como papel de seda. Enquanto se via no espelho, foi tomada de um novo tremor de frio, mais forte ainda do que o tremor que a assaltara na rua. Experimentou controlar os lábios, mas não conseguiu. Apressadamente, caminhou pelo quarto e foi apagar a luz fria do lustre, acendendo em seguida o abajur, mas isso não bastou para aquecer o ambiente. Com gestos impacientes arrancou do corpo seu traje de palco, atirou-o no chão, e com o busto nu e a malha até acima das coxas, aproximou-se do aparelho de aquecimento central e encostou o peito no encanamento pintado de cinzento. Fez isso quase irrefletidamente, procurando apenas calor. "Basta", pensou ela, "basta! Nunca mais. Acabou-se. Basta." Balbuciava em todas as línguas, por entre os dentes a bater de frio, palavras definitivas, irrevogáveis. Foi ao banheiro, despiu-se completamente e pôs as mãos debaixo da torneira de água quente, deixando o calor escorrer pelas veias de seus pulsos, até lhe causar dor. Apanhou uma escova e com ela esfregou os ombros; mas, de súbito, cheia de tédio, desistiu de tudo, veio para o quarto, nua e a tremer de frio, e pegou no telefone. Por duas vezes precisou começar, com seus lábios trêmulos, até conseguir falar.
— Chá — pediu ela. — Bastante chá. Bastante açúcar.
Aproximou-se de novo do espelho, nua como estava, e observou-se com severidade. Mas seu corpo era de uma beleza perfeita e única. Era o corpo de uma aluna de ballet de dezesseis anos, que o trabalho disciplinado e duro de uma vida inteira havia conservado intacto. De repente, o ódio que sentia por si própria transformou-se em ternura. Colocou as mãos nos ombros e acariciou seu brilho fosco. Beijou a curva do braço direito. Colocou os seios, pequeninos e perfeitos, nas palmas das mãos, como em duas taças, acariciou a depressão delicada do ventre e as sombras esguias das coxas. Inclinou a cabeça até os joelhos e beijou aqueles pobres joelhos, magros e duros como ferro, como se fossem uns filhinhos enfermos e muito queridos.
— Biednaiaia, malenkaia — murmurou ao mesmo tempo; era uma designação carinhosa dos tempos passados. Biednaiaia, malenkaia. Coitada, pequenina, era o que significavam essas palavras.
O rosto de Gaigern, por entre as cortinas, adquiriu inconscientemente uma expressão atenciosa e compassiva. O que se apresentava aos seus olhos deixava-o confuso. Ele conhecia muitas mulheres, mas nunca vira nenhuma com um corpo tão delicado e perfeito como esta. Mas isso, a bem dizer, era coisa de somenos importância. O que o enchia de suave e doce opressão, fazendo-o arder até as orelhas, era o desamparo, o tremor, a expressão desesperançada, confusa e lastimosa da Grussinskaia diante do espelho. Apesar de ser um sujeito que se desviara do bom caminho, e de ter no bolso pérolas roubadas no valor de quinhentos mil marcos, Gaigern estava muito longe de ser um homem desnaturado. Largou as pérolas que segurava e tirou as mãos dos bolsos. Sentiu passar pelas palmas das mãos, pelos braços, um ansioso desejo de erguer essa pequenina e solitária mulher, de levá-la dali, de consolá-la e aquecê-la, para fazer cessar aquele horrível tremor de frio e o murmúrio quase insensato que se desprendia de seus lábios.
O criado de quarto bateu na porta dupla, e a Grussinskaia pegou no seu penteador — o mesmo que havia assustado Gaigern na escuridão — e enfiou os pés nos míseros chinelos. O criado ofereceu o chá, discretamente, pela porta. A Grussinskaia fechou-a atrás do garçom, que se afastava. "Agora já está na hora", pensou ela. Encheu a xícara de chá, e foi buscar a caixinha de veronal. Engoliu um pozinho e bebeu o chá; depois tomou mais uma xícara. Levantou-se e começou a andar pelo quarto de um lado para outro, muito depressa, como se fugisse, de uma parede até a outra, quatro metros para lá, quatro para cá.
"Para que tudo isso?", pensava ela. "Para que viver? Que posso esperar ainda? Para que tantos tormentos? Oh, estou cansada, vocês não sabem como estou cansada. Prometi a mim mesma afastar-me do palco, quando chegasse o tempo. Tiens. Já é tempo. Devo esperar até que assobiem para mim da plateia?
"Já é tempo, malenkaia, coitada, pequenina. Gru não vai partir amanhã para Viena, Gru vai desistir. Gru vai dormir. Vocês não sabem como a gente sente frio, quando é célebre. Não há ninguém que me faça companhia, ninguém. Possibilitei a tanta gente um meio de vida, e nunca ninguém viveu para mim. Ninguém. Nem uma só pessoa. Só conheço pessoas vaidosas ou medrosas. Estive sempre sozinha. Oh, e quem vai se interessar por uma Grussinskaia que não dança mais? Acabou-se. Não ficarei passeando em Monte Cario, com o corpo rijo, gorda e velha como todas essas velhas célebres. Sozinha eu sempre vivi. Eles deviam ter-me visto no tempo em que o Grão-Duque Serguei ainda vivia! Não, essa vida não me serve. E para onde deverei ir? Cultivar orquídeas em Tremezzo, criar dois pavões brancos, ter preocupações de dinheiro, ficar completamente só, em completa decadência, e morrer? É isso: finalmente a morte. Nijínski está no hospício esperando a morte. Pobre Nijínski! Pobre Gru! Não quero esperar. Demora tanto... Depressa, depressa, depressa." Ela ficou parada, atenta, como se alguém a estivesse chamando. Em seus ouvidos já soava o sonolento zumbido do veronal, a indiferença que o agradável narcótico trazia. "Gaston!", pensou ela, dirigindo-se à mesa. "Pobre Gaston, você foi bom para mim, outrora. Como você era jovem! Há quanto tempo isso aconteceu! Agora você é ministro, barrigudo, com barba e careca. Adieu, Gaston! Adieu pour jamais, n'est-ce pas? Existe um meio tão fácil para não se ficar velha..." Encheu de novo a xícara de chá. Agora fazia um pouquinho de pose, representava uma pequena comédia, triste e doce. Havia forma e graça no seu desespero e na sua decisão. Com um movimento brusco, pegou o vidrinho de veronal e jogou todos os tabletes no chá, esperando até que se derretessem. Estava demorando muito. Impaciente, bateu com a colher na xícara. Levantou-se, aproximou-se de novo do espelho e passou mecanicamente pó de arroz no rosto, que de repente se cobrira de um suor fino e frio. Seus lábios deixaram de tremer e sorriram, um sorriso fixo, como no palco. Cobriu o rosto com as mãos e sussurrou:
— Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!
Ela também sentia agora o cheiro de enterro que subia das cestas de flores e pairava murcho no quarto. Foi-se arrastando lentamente até a mesa onde estava o chá, e o provou com a ponta da colher. Tinha um gosto muito amargo. Com a pinça pegou vários tabletes de açúcar e mergulhou-os no chá, esperando até que eles se dissolvessem. Devia ter durado um minuto, talvez mais. Os dois relógios apostavam corrida em meio ao silêncio.
A Grussinskaia levantou-se e foi à porta da varanda. Respirava com dificuldade. Tinha desejos de ver o céu. Afastou a cortina de renda e deu de encontro com uma sombra.
— Por favor, não se assuste, minha senhora — disse Gaigern, inclinando-se.
O primeiro movimento que a Grussinskaia fez não foi de susto, mas — estranho — de pudor. Fechou mais o quimono e olhou para Gaigern, atônita e calada. "O que é isso?", pensou ela. "Já vi coisa parecida?" Talvez sentisse até um certo alívio, porque ocorrera um adiamento entre ela e a xícara de veronal. Ficou parada diante de Gaigern quase um minuto, a olhá-lo e a observar suas sobrancelhas arqueadas e finas, que se juntavam na base do nariz. Os lábios da Grussinskaia continuavam tremendo e uma respiração cada vez mais rápida e ofegante se pôs entre ela e o moço.
Os dentes de Gaigern também pareciam querer bater uns nos outros, mas ele os conservou bem firmes. Nunca se encontrara em situação tão perigosa como nesse momento. Todos os seus empreendimentos, até então — haviam sido somente três ou quatro —, tinham sido muito bem preparados, e executados com tal cuidado que nunca caíra sobre ele a menor suspeita. Mas ali estava ele agora, com pérolas no valor de quinhentos mil marcos no bolso, apanhado num aposento alheio; entre ele e a penitenciária havia apenas a campainha branca do hotel, com o pequeno letreiro de esmalte, pedindo que batessem duas vezes para chamar o criado de quarto. Um ódio ardente, insensato, irrompeu dentro dele; Gaigern não o deixou explodir, mas concentrou-o em seu íntimo, até que se transformou em força e calma. Precisou de um grande esforço sobre si próprio para não derrubar essa mulher. Parecia uma enorme locomotiva sob nuvens de vapor, cheia de combustível, e com uma pressão de muitas atmosferas vibrando interiormente, e pronta a passar em disparada por cima de tudo. No momento, limitou-se a inclinar-se. Poderia ter tentado uma fuga desesperada pela fachada do hotel. Poderia ter matado a Grussinskaia, poderia tê-la feito calar-se, com ameaças. Fora o instinto da sua natureza amável que, em vez de violência e de um assassinato, o fizera inclinar-se numa curvatura irrefletida mas elegantíssima. Ignorava que suas olheiras estavam azuladas; muito vagamente, chegava a sentir prazer no perigo, uma sensação de embriaguez ou de queda infindável, como num sonho.
— Quem é o senhor? Como veio parar aqui? — perguntou a Grussinskaia em alemão. Seu tom de voz era quase cortês.
— Desculpe-me, minha senhora; entrei sorrateiramente no seu quarto. Eu estou... É horrível a senhora ter-me encontrado aqui. A senhora veio mais cedo para o hotel do que de costume. Foi um azar. Que desgraça! Não posso lhe explicar nada.
A Grussinskaia retrocedeu uns passos dentro do quarto, sem perdê-lo de vista, e girou o comutador do lustre, que se acendeu com sua luz fria. É possível que ela tivesse gritado por socorro, se encontrasse no terraço um homem desgrenhado e feio. Mas o homem que estava ali era o mais belo homem que ela vira em toda a sua vida — recordou-se sob o efeito do veronal —, e esse homem não lhe causava medo. O que a enchia estranhamente de confiança, antes de mais nada, era o bonito pijama de seda que Gaigern vestia.
— Mas o que o senhor veio fazer aqui? — perguntou ela, passando insensivelmente a falar francês, língua mais mundana.
— Nada. Queria apenas me sentar aqui. Só queria estar em seu quarto — disse Gaigern em voz baixa.
Encheu o peito de ar, dilatando a caixa torácica. Agora tratava-se de contar histórias a essa senhora — percebeu ele com leve esperança. As meias de ladrão por cima de seus sapatos o atrapalhavam. Com um movimento habilidoso, tirou-as dos pés às escondidas. A Grussinskaia meneou a cabeça.
— No meu quarto? Meu Deus... mas para quê? — perguntou ela com sua voz russa, de passarinho, aguda e frágil, e um ar de estranha expectativa refletiu-se em seu rosto.
Gaigern, que ainda se encontrava no balcão, respondeu:
— Vou dizer a verdade, minha senhora. Não é a primeira vez que entro no seu quarto. Estive aqui diversas vezes, muitas vezes mesmo, quando a senhora estava no teatro. Fiquei respirando este ar. Coloquei na jarra uma florzinha para a senhora. Perdoe-me.
CONTINUA
Quando o porteiro saiu da cabina telefônica 7, uma leve palidez se espalhava em suas faces; procurou o boné, que colocara sobre o aparelho de calefação do compartimento dos telefones.
— Que foi? — perguntou a telefonista, sentada diante do quadro de comutadores, com os fones nos ouvidos e os pinos vermelhos e verdes entre os dedos.
— É que levaram minha mulher às pressas para o hospital. Não sei o que significa isso. Ela está pensando que a coisa já começou. Mas ainda não está no prazo, meu Deus! — disse o porteiro.
A telefonista mal o ouviu, porque tinha de fazer uma ligação.
— Paciência... É preciso não perder a calma, Herr Senf — disse entre uma ligação e outra. — Amanhã cedo há de nascer o seu filho, fique sossegado.
— Muito obrigado por ter-me chamado ao telefone. Na portaria eu não posso anunciar a todos os ventos os meus assuntos particulares. Serviço é serviço.
— É claro. Quando a criança nascer, eu o chamarei — disse a telefonista, distraída.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/GRANDE_HOTEL.jpg
E continuou a fazer ligações. O porteiro apanhou o boné e se retirou na ponta dos pés. Fê-lo inconscientemente, porque sua mulher estava acamada, para dar à luz. Quando atravessou o corredor, para onde davam as salas de correspondência e de leitura, agora silenciosas e a meia-luz, suspirou profundamente e passou a mão pelo cabelo. Surpreso, percebeu que ela ficara úmida, mas não pensou em lavar as mãos, para não perder tempo. Afinal, não se podia exigir que o movimento do hotel parasse, só porque o porteiro Senf ia ser pai. Do tea-room, na nova ala do hotel, a música vinha vibrando em síncopes saltitantes, ao longo dos espelhos das paredes. O cheiro amanteigado de carne assada, próprio da hora do jantar, evolava-se discretamente, mas, por trás das portas do salão de refeições, ainda estava tudo vazio e silencioso. No salãozinho branco, o garde-manger Mattoni preparava os frios. O porteiro, sentindo uma estranha fraqueza nos joelhos, parou à porta e fitou, atordoado, os globos multicolores de luz elétrica que cintilavam por trás dos blocos de gelo. No corredor, um monteur, de joelhos no chão, fazia um conserto na instalação elétrica. Desde que havia colocado o enorme refletor na fachada do hotel, havia sempre um desarranjo na instalação, sobrecarregada. O porteiro deu uma pequena ordem às suas pernas bambas e dirigiu-se ao seu posto. Deixara a portaria aos cuidados de Georgi, um rapazinho, filho do proprietário de uma grande rede de hotéis. O pai desejava que seu futuro sucessor conhecesse a profissão desde as mais humildes ocupações, e por isso o filho trabalhava ali gratuitamente. Senf, sentindo uma certa angústia, atravessou às pressas o hall, repleto de gente que se movimentava. Ali, a música de jazz do tea-room se misturava aos lânguidos sons dos violinos do jardim de inverno, ao murmúrio do repuxo da fonte luminosa, gotejando numa imitação de bacia veneziana, ao tilintar dos copos nas mesinhas e ao ranger das cadeiras de vime; o mais brando sussurro era o suave frufru das peliças e dos vestidos de seda das senhoras, que se diluía no harmonioso burburinho. Pela porta giratória, a fresca brisa de março penetrava em espirais, em pequenas golfadas, sempre que o groom fazia entrar ou sair os hóspedes.
— All right! — disse Georgi, quando o porteiro Senf, apressando os passos, chegou à portaria, como se chegasse ao refúgio de um porto. — Chegou a correspondência das sete. A senhora do quarto 68 armou um escândalo porque não encontraram logo o chofer. É um tanto histérica essa senhora, hein?
— Quarto 68... é a Grussinskaia — disse o porteiro, enquanto com a mão direita começava a separar a correspondência. — É a bailarina, já estamos acostumados. Há dezoito anos. Todas as noites, antes de apresentar-se em público, fica nervosa e provoca um escândalo.
No hall um senhor levantou-se do seu maple; era um senhor de boa estatura, cujas pernas pareciam atacadas de ancilose. Aproximou-se da portaria de cabeça baixa e deu uns giros pelo hall antes de passar ao vestíbulo, procurando ter o aspecto de alguém que nada espera, mas se aborrece. Observou as revistas na pequena banca de jornais, acendeu um cigarro e aproximou-se do porteiro, perguntando distraído:
— Chegou correspondência para mim?
O porteiro, por seu lado, prontificou-se também a representar uma pequena comédia. Examinou primeiro a caixa 218, antes de responder:
— Desta vez, infelizmente, nada, doutor.
Então o senhor alto movimentou-se de novo a passos lentos, fazendo um caminho complicado para chegar ao seu maple, onde se deixou cair de pernas rígidas, ficando a olhar para o hall com expressão de quem não vê. Seu rosto, aliás, consistia em uma só face, um perfil requintado e agudo de jesuíta, terminando numa orelha muito bem delineada e escondida sob os fios ralos de cabelo grisalho da têmpora. A outra face não existia. Em seu lugar havia apenas uma mescla confusa de traços remendados e ligados desordenadamente. Por entre suturas e cicatrizes, espiava um olho de vidro. O Dr. Otternschlag, quando conversava a sós consigo mesmo, costumava chamar seu rosto de souvenir de Flandres... Ficou sentado a observar os capitéis de gesso dourado das colunas de mármore que já estava farto de conhecer; depois, com o olho que não via, fitou longamente o hall, que se esvaziou rapidamente porque o espetáculo ia começar. Em seguida ergueu-se de novo e, com seu andar desconjuntado de marionete, encaminhou-se para a cabina do porteiro, onde Herr Senf, já desligado de sua vida privada, se desincumbia conscienciosamente dos deveres de seu cargo.
— Ninguém perguntou por mim? — perguntou o Dr. Otternschlag, olhando para o balcão de mogno coberto de vidro, onde o porteiro costumava depositar os bilhetes e recados.
— Ninguém, doutor.
— Algum telegrama? — perguntou em seguida o Dr. Otternschlag. Herr Senf teve a gentileza de procurar de novo na caixa 218, apesar de saber de antemão que nada havia nela.
— Hoje não, doutor — disse ele. Com grande amabilidade acrescentou: — Talvez o doutor queira ir ao teatro. Ainda tenho um camarote para o espetáculo da Grussinskaia, no Teatro do Oeste.
— Da Grussinskaia! — disse o Dr. Otternschlag. Conservou-se ainda um momento imóvel; depois, passando pelo vestíbulo e atravessando o hall numa linha curva, voltou à sua cadeira. "Agora, nem mesmo a Grussinskaia consegue casa cheia", pensou ele. "É natural. Nem eu próprio a quero ver mais..." Cheio de melancolia, enterrou-se de novo na poltrona.
— Este homem cansa a gente — disse o porteiro a Georgi. — Sempre perguntando pela correspondência. Há dez anos que se hospeda aqui por alguns meses, e nunca chegou carta nenhuma para ele nem nenhum gato-pingado perguntou por ele. E um homem desses ainda fica sentado, esperando.
— Quem é que está esperando? — perguntou do compartimento ao lado o chefe de recepção, Herr Rohna, esticando a cabeça meio ruiva por sobre a divisão baixa de vidro. Mas o porteiro não respondeu logo; parecia-lhe estar ouvindo os gritos de sua mulher — transportava para o exterior o que ouvia interiormente. Em seguida, os assuntos privados mergulharam em seu íntimo porque teve que ir ajudar Georgi a explicar em espanhol ao senhor mexicano do quarto 17 uma complicada conexão de trens. O groom 24, com as faces afogueadas e o cabelo bem alisado com água, saiu correndo do elevador, exclamando, alegre e excitado — em voz demasiado alta para um hall tão distinto:
— Mandem chamar o chofer do Barão Gaigern!
Rohna ergueu a mão, num gesto de censura e apaziguamento, como um diretor de orquestra. O porteiro telefonou, chamando o chofer. Georgi arregalou seus olhos de rapazinho, com expressão de curiosidade. Espalhou-se no ar um aroma de alfazema e de cigarro fino. Após o aroma, um homem, cuja aparência chamava a atenção, entrou pelo hall, e várias pessoas o olharam. A senhorita cor de cera da banca de jornais sorriu. O homem também sorriu, sem nenhuma razão aparente, simplesmente porque se sentia satisfeito com sua própria pessoa, conforme parecia. Era de estatura fora do comum e trajava-se muito bem, também de maneira pouco usual. Tinha um andar elástico, como o de um gato ou de jogador de tênis. Não usava sobretudo sobre o smoking, mas um trench coat azul-marinho, que não combinava com o smoking. Toda a sua figura tinha um ar de gracioso desleixo. Deu uma palmadinha no crânio molhado do groom 24, estendeu o braço sobre o balcão do porteiro, sem olhar, e recebeu um punhado de cartas que enfiou simplesmente no bolso, de onde tirou suas luvas de camurça pespontada. Cumprimentou com um gesto amistoso o chefe de recepção, como a um camarada. Pôs na cabeça o chapéu de feltro escuro e, tirando do bolso uma cigarreira, colocou um cigarro entre os lábios, sem o acender. Porém imediatamente se descobriu de novo, afastando-se para deixar passar duas senhoras pela porta giratória. Era a Grussinskaia, delgada e miúda, enfiada até o nariz em uma pele, seguida de uma sombra apagada que ia levando as malas. Quando o encarregado dos carros, lá fora, instalou as duas no automóvel, o simpático senhor de impermeável azul acendeu o cigarro, tornou a enfiar a mão no bolso e meteu uma moeda na mão do boy 11, o encarregado da porta giratória. Depois desapareceu por entre os balouçantes espelhos da porta giratória, com a expressão feliz de um rapazinho a quem deram licença para andar de carrossel.
Quando esse cavalheiro, esse senhor, esse encantador Barão Gaigern saiu do hall, fez-se de súbito enorme silêncio, ouvindo-se então o jorro da fonte luminosa a tombar com um murmúrio fresco e suave na bacia veneziana. É que o hall se esvaziara; o jazz-band do tea-room parará de tocar, a música da sala de refeições ainda não principiara e o trio do Salão Vienense, do jardim de inverno, fazia uma pausa. No súbito silêncio penetrou o ruído excitado e incessante das buzinas dos automóveis que passavam diante da entrada do hotel, em seu movimento noturno. Mas dentro do hall o silêncio permaneceu, como se o barão tivesse carregado consigo a música, o ruído e o burburinho humano. Georgi apontou com a cabeça para a porta giratória e disse: — Bom sujeito. Queira Deus que ele não mude.
O porteiro encolheu os ombros, como bom conhecedor dos homens.
— A questão é saber se é bom de fato. Ele tem um certo jeito... não. Dá-me a impressão de ser uma pessoa leviana. O modo de andar e as gordas gorjetas... parece coisa de cinema. Quem é que viaja hoje em dia com esse luxo — a não ser um vigarista? Se eu fosse o Pilzheim, tratava de abrir os olhos.
Rohna, o chefe de recepção, que tinha os ouvidos em toda parte,- estendeu de novo a cabeça por cima da divisão de vidro; sob os raros fios de cabelo meio ruivo, brilhava-lhe a pele acinzentada do crânio.
— Deixe disso — disse ele; — Gaigern é boa pessoa, eu o conheço. Foi educado em Feldkirch, com meu irmão. Por causa dele não é preciso ir incomodar o Pilzheim. (Pilzheim era o detetive do Grande Hotel).
Senf fez continência, calando-se respeitosamente. Rohna sabia o que estava dizendo. O próprio Rohna era também um conde, um Rohna da Silésia, antigo oficial, um sujeito direito. Senf fez novamente continência, enquanto a cara de galgo de Rohna se afastava e o conde continuava suas ocupações por detrás da parede de vidro fosco, como uma sombra.
O Dr. Otternschlag, lá no seu canto, conservara o busto meio erguido, enquanto o barão estivera no hall, e depois voltara a encolher-se, mais sombrio ainda. Entornou com o cotovelo seu copo de conhaque, com bebida até a metade, mas nem se dignou olhar. Suas mãos magras, amarelecidas pelo fumo, pendiam entre os joelhos abertos, pesadas como se estivessem metidas em luvas de chumbo. Por entre suas compridas botinas de verniz, olhava o tapete que cobria o hall e todas as escadarias, passagens e corredores do Grande Hotel: já estava farto do seu desenho de trepadeiras, com o ananás verde-amarelo por entre as folhas pardacentas, sobre um fundo vermelho-framboesa. Tudo estava morto... A hora estava morta. O hall estava morto. Todos tinham ido cuidar de seus negócios, viver seus prazeres e seus vícios, deixando-o ali abandonado. No meio desse vazio, viu-se de súbito o vulto da encarregada do vestiário aparecer por trás do balcão e alisar com um pente preto o cabelo ralo de sua cabeça de velha. O porteiro saiu do seu cubículo e disparou, sem guardar as conveniências, atravessando o hall em direção ao compartimento dos telefones. Parecia estar pressentindo alguma coisa. O Dr. Otternschlag procurou seu conhaque e não o encontrou. "Vamos agora para o quarto nos deitar?", perguntou a si mesmo. Um fraco e bruxuleante rubor tingiu suas faces e desapareceu, como se ele houvesse traído um segredo, revelando-o a si próprio. "Vamos", respondeu com os seus botões. Mas não se levantou, porque até isso o deixava indiferente. Levantou o indicador amarelo e Rohna, no outro extremo do hall, percebendo o gesto invisível, providenciou auxílio ao doutor.
— Cigarros, jornais — disse ele sem se mover. O menino disparou até a senhorita cataléptica da banca de jornais. Rohna olhou com ar de reprovação aquela intempestiva vivacidade juvenil; depois, Otternschlag tomou os jornais e os maços de cigarro que o groom tinha ido buscar para ele e pagou colocando o dinheiro na mesinha e não na mão do groom, pois costumava sempre conservar distância entre si e os demais, sem o perceber. A metade intacta de sua boca chegou a imitar um sorriso, quando abriu os jornais e começou a ler; esperava sempre encontrar nos jornais qualquer coisa que eles não traziam, tal como acontecia com as cartas, os telegramas e os chamados, que jamais chegavam para ele. Estava terrivelmente só, com uma impressão de vazio, isolado da vida. Às vezes, quando conversava a sós consigo mesmo, costumava fazê-lo em voz alta. "É horrível", dizia-se com frequência, estacando sobre a passadeira cor de framboesa, assustado com sua própria pessoa. "É horrível. Nenhuma vida. Nenhuma espécie de vida. Mas por onde andará ela? Nada acontece. Nada sucede. É uma tristeza. Só velhice e morte. É horrível." As coisas que o rodeavam pareciam miragens. O que ele tocava se desfazia em pó. O mundo era uma coisa inconsistente, impossível de segurar ou reter. Caía-se de um vazio em outro vazio. Carregava-se um saco de trevas dentro de si. O Dr. Otternschlag vivia na mais profunda solidão, apesar de o universo estar povoado por seus semelhantes.
Nos jornais, nada encontrou que o satisfizesse. Um tufão, um terremoto, uma guerra pouco importante entre pretos e brancos. Incêndios, assassinatos, lutas políticas. Nada. Muito pouco. Escândalos, pânico na Bolsa, derrocada de fortunas imensas. Que tinha ele com isso? Que sentimento lhe provocava tudo isso? Um voo através do oceano, recordes de velocidade, notícias sensacionalistas, com títulos de uma polegada de altura. Cada jornal gritava mais que o outro, e finalmente não se ouvia mais nenhum; os homens acabavam por se tornar cegos, surdos e desprovidos de sentimentos, com a ruidosa atividade da época moderna. Figuras de mulheres nuas, coxas, seios, dentes, ofereciam-se abertamente, aos montões. Também o Dr. Otternschlag, noutros tempos, possuíra mulheres! Lembrava-se disso sem saudades, apenas com um friozinho a descer-lhe pela espinha. Deixou que os jornais lhe caíssem simplesmente da mão amarelecida pelo fumo, sobre o tapete de ananases, de tal modo o aborreciam e lhe eram indiferentes. — Não, não acontece nada, absolutamente nada — disse a si mesmo, a meia voz. Noutros tempos, tivera uma gatinha persa, chamada Gurbal; desde que ela fugira com um gato vadio de água-furtada, via-se obrigado a dialogar consigo mesmo.
No momento em que, caminhando em linhas curvas, se dirigia à portaria para ir buscar a chave do quarto, um indivíduo esquisito empurrou a porta giratória, no vestíbulo.
— Senhor, aí está o homem de novo! — disse o porteiro a Georgi, olhando fixamente para o indivíduo, com seu olhar enérgico de primeiro-sargento. Esse indivíduo, o tal homem, destoava completamente no hall do Grande Hotel. Usava um chapéu de feltro, redondo, barato, novo, um pouco largo para a sua cabeça, mas que orelhas caídas seguravam, evitando que escorregasse ainda mais para a frente. Tinha um rosto amarelado, o nariz afilado e tímido, compensado por um bigode imponente, de corte muito apreciado pelos diretores de associações. Vestia um sobretudo estreito, verde-acinzentado, velho e lamentavelmente fora de moda; calçava botinas pretas, que pareciam demasiado grandes para a sua pequena estatura, com os canos a espiarem por baixo das calças pretas, muito curtas. Usava luvas de linha cinzentas e segurava uma mala, imitando couro, que parecia pesada demais para ele; segurava-a pela alça, com ambas as mãos de encontro ao estômago; debaixo do braço trazia ainda um pacote engordurado, envolto em papel marrom. O homem tinha um aspecto realmente grotesco e lamentável; e parecia cansadíssimo. Mas quando o groom 24 tentou tirar de suas mãos a mala, não a entregou, parecendo confuso com essa cortesia do boy. Só defronte do balcão de Herr Senf, colocou a mala no chão, e, meio ofegante, curvou-se à guisa de cumprimento, dizendo com uma voz aguda e agradável:
— Meu nome é Kringelein. Já estive aqui duas vezes. Vim informar-me de novo.
— Faça o favor de dirigir-se aqui ao lado, mas acho que não há nenhum quarto vago — disse o porteiro, apontando Rohna. — Aquele senhor está esperando há dois dias que vague um quarto — explicou, olhando por cima da divisão de vidro.
Rohna, sem voltar os olhos para o recém-chegado, tirara as suas conclusões e, por mera cortesia, fingiu estar folheando o livro de registro de hóspedes. Depois disse:
— Infelizmente, no momento está tudo ocupado. Sinto muitíssimo.
— Ainda está ocupado? Muito bem, e onde vou hospedar-me então? — perguntou o indivíduo.
— O senhor não quer ir ver nos arredores da estação, em direção da Friedrichstrasse? Há ali uma porção de hotéis.
— Não, muito obrigado — disse o homem. Tirou um lenço do bolso do sobretudo e passou-o nervosamente pela testa suada. — Quando cheguei estive num desses hotéis e não gostei. Quero hospedar-me num lugar distinto.
Ao colocar sob o braço esquerdo o guarda-chuva molhado, deixou cair o engordurado pacote que tinha debaixo do braço direito, mostrando algumas fatias de pão com manteiga — já tortas, de tão ressequidas. O Conde Rohna disfarçou um sorriso; Georgi virou-se para o quadro das chaves. O groom 17, corretíssimo, juntou os pedaços de pão seco, que o homem, com os dedos trêmulos, enfiou no bolso. Tirou o chapéu e colocou-o diante de Rohna, sobre o balcão. Tinha a testa alta e enrugada, e as têmporas fundas e azuladas. Seus olhos vesgos, de um azul muito claro, espiavam por trás de um pince-nez que estava sempre a querer escorregar pelo nariz afilado.
— Eu queria ficar hospedado aqui. Afinal há de vagar algum quarto. Faça o favor de reservar-me o primeiro quarto que desocupar. Já é a terceira vez que venho aqui; o senhor pensa que isso me diverte? Não é possível que esteja sempre tudo ocupado, não é mesmo?
Rohna encolheu os ombros, lamentando. Durante um instante ficaram todos calados, e pôde-se ouvir a música da sala vermelha de refeições e o jazz band, que estava agora no pavilhão amarelo. Já se encontravam de novo sentados no hall vários senhores, e alguns deles olharam para o indivíduo com ar de estarem se divertindo, e ao mesmo tempo estranhando sua aparência.
— O senhor conhece o Diretor-Geral Preysing? Ele também se hospeda sempre aqui, quando vem a Berlim, não é verdade? Pois é. Eu também quero me hospedar aqui. Tenho um assunto urgente a tratar, uma conferência importante com Preysing. Aliás, ele próprio me pediu para encontrar-me aqui com ele. Aconselhou-me a hospedar-me aqui. Foi ele quem me recomendou este hotel. Vim por recomendação do Diretor-Geral Preysing. Por favor. Quando vai vagar um quarto?
— Preysing? O Diretor-Geral Preysing? — perguntou Rohna a Senf, do outro lado do vidro.
— De Fredersdorf; da Indústria Algodoeira Saxônia S.A. Eu também sou de Fredersdorf — disse o indivíduo.
— É, sim — lembrou-se o porteiro —, um Herr Preysing já esteve várias vezes aqui.
— Eu acho que pediram um quarto para ele, para amanhã ou depois de amanhã — murmurou Georgi, querendo mostrar-se solícito.
— O senhor quer tentar mais uma vez amanhã, quando Herr Preysing estiver aqui? Ele chega hoje de noite — disse Rohna, depois de folhear os seus livros e de encontrar o pedido de reserva.
Estranhamente, essa notícia pareceu assustar o homem.
— Vai chegar? — disse ele, com uma expressão de angústia, entortando ainda mais os olhos vesgos. — Está bem... vai chegar hoje mesmo. Bem. E há um quarto para ele? Quer dizer que há quartos vagos? Meu Deus, por que será que o diretor-geral tem um quarto e eu não? Que significa isso? É um desaforo que eu não posso admitir! Como? Ele reservou com antecedência? Faça o favor, eu também fiz uma reserva de quarto. É a terceira vez que venho aqui, é a terceira vez que arrasto esta mala pesada, faça o favor. Está chovendo, os ônibus estão cheios, eu não estou passando bem de saúde. Então? Quantas vezes devo fazer ainda esta caminhada? Como? Por quê? Isso não é modo de se tratar ninguém. Este é o melhor hotel de Berlim? Como? É? Pois bem, eu quero hospedar-me no melhor hotel de Berlim. Será que é proibido? — fitou a todos, um a um. — Estou cansado — acrescentou ainda —, estou extremamente cansado — disse. Notava-se seu cansaço e o esforço ridículo para se expressar com termos escolhidos.
De súbito, o Dr. Otternschlag meteu-se na conversa. Durante todo o tempo ele ficara parado, segurando a chave de seu quarto, presa a um grande quadrado de madeira, com o cotovelo fincado no balcão da portaria.
— Se este cavalheiro faz tanta questão, pode ficar com meu quarto — disse Otternschlag. — Para mim não faz diferença morar aqui ou ali. Mandem subir a mala dele. Eu posso mudar-me. Minhas malas estão prontas. Minhas malas estão sempre prontas. É um favor. Vê-se logo que o homem está exausto, doente — acrescentou ainda, cortando a oposição que o Conde Rohna, com eloquentes mãos de maestro, queria fazer.
— Mas doutor — disse Rohna, pressuroso —, nem se fala nisso, não é possível que o senhor ceda seu quarto. Nós vamos tentar... vamos ver... Se o senhor quiser ter a bondade de assinar o seu nome... bem, muito obrigado... 216 — disse Rohna ao porteiro. O porteiro deu ao boy 11 a chave do quarto 216. O indivíduo pegou a caneta-tinteiro que lhe estendiam e assinou o seu nome, com incrível rapidez, no livro de registro de hóspedes.
Otto Kringelein, guarda-livros em Fredersdorf, Sachsen, nascido em Fredersdorf a 14-7-1882.
— Pronto! — disse ele, respirando aliviado. Virou-se e, com os olhos tortos, muito abertos, olhou para o hall.
Encontrava-se, finalmente, no hall do Grande Hotel, ele, o guarda-livros Otto Kringelein, natural de Fredersdorf e residente em Fredersdorf. Ali estava, com o seu velho sobretudo e as ávidas lentes do seu pince-nez a quererem engolir tudo de uma vez. Estava cansado como um corredor que toca com o peito a fita de chegada — e o seu cansaço não era brincadeira; olhava as colunas de mármore com os ornamentos de gesso, a fonte luminosa, as poltronas. Via cavalheiros de fraque e de smoking, elegantes e viajados. Senhoras de braços nus, com vestidos refulgentes, adereços e peliças, mulheres de excepcional beleza, elegantíssimas. Ouvia música ao longe. Sentia o cheiro de café, de cigarros e perfumes; aroma de aspargos, vindo da sala de refeições, e o das flores que se encontravam em vasos em cima de uma mesa, para serem vendidas. Sentia o tapete espesso, vermelho, sob suas botinas lustrosas, tapete que lhe causou, no princípio, a mais forte impressão. Kringelein deslizava cuidadosamente com as solas sobre o tapete, pestanejando. Estava muito claro no hall, uma luz suave e amarelenta; nas paredes havia lampadazinhas avermelhadas com abajures e, na fonte veneziana, verdes repuxos de água.
Um garçom passou apressado, carregando uma bandeja de prata com copos largos e rasos, contendo cada um deles um pouco de conhaque dourado-escuro, onde boiavam pedras de gelo. Mas por que razão, no melhor hotel de Berlim, não enchiam os copos? O criado, segurando a triste mala, despertou Kringelein, que ficara a piscar os olhos tortos, a movimentar-se, quase como um sonâmbulo: o boy 11 passou com ele diante do ascensorista, um maneta rabugento, e o conduziu para cima. Os quartos 216 e 218 eram os piores do hotel; no 218 morava o Dr. Otternschlag, porque era hóspede efetivo, não sendo além disso pessoa de muitas posses, mas sobretudo porque era muito indiferente para exigir outro. O 216 ficava ao lado, no canto à direita, e ambos estavam encravados entre o elevador de serviço, perto da escada da cozinha 4 e o banheiro do terceiro andar. Dentro da parede corria e gorgolejava a água através do encanamento. Kringelein, a quem conduziam por entre ornamentos de palmas, lustres de bronze e quadros de caçadas, a lugares cada vez mais tristonhos do hotel, esgueirou-se lentamente, e desiludido, para dentro do quarto cuja porta uma criada velha e nada bonita lhe abriu.
— Número 216! — disse o boy, colocando a mala no chão; esperou a gorjeta, que não recebeu, e deixou só o silencioso Kringelein. Este sentou-se na beirada da cama e examinou o quarto.
Era comprido e estreito, tinha uma janela apenas, cheirava a charuto apagado e a armários esfregados com pano úmido. O tapete era ralo e puído. Os móveis — Kringelein apalpou-os — eram de nogueira envernizada.
Em Fredersdorf havia móveis iguais a esses. Um retrato de Bismarck estava suspenso à parede, na cabeceira da cama. Kringelein sacudiu a cabeça. Nada tinha contra Bismarck, pois em sua casa também havia um retrato do estadista. Esperava vagamente encontrar no Grande Hotel quadros diferentes sobre as camas, quadros exuberantes, de cores bem vivas, fora do comum, que se admirassem com prazer. Kringelein foi à janela e olhou para fora. Lá embaixo estava claríssimo, o telhado de vidro iluminado do jardim de inverno clareava todo o pátio. Bem defronte havia um muro de incêndio, nu, infindável. Vinha dali um cheiro de cozinha, e subia um vapor morno e desagradável. Kringelein sentiu náuseas e apoiou-se à laje do lavatório. "É que eu não estou muito bem de saúde", pensou com tristeza.
Sentou-se de novo sobre a colcha desbotada, e a sua preocupação foi crescendo, de segundo em segundo. "Aqui não fico", pensou. "Não, aqui não fico de maneira alguma. Não foi para isso que vim aqui. Para isso não adianta nada eu ter vindo. Não é assim que vou começar. Não vou perder o meu tempo em quartos como este. Mas estão me enganando. Decerto eles têm ainda no hotel quartos bem diferentes deste. Preysing deve ficar hospedado em quartos bem melhores, pois não suportaria isto. Preysing havia de fazer barulho — e como! —, vocês ficariam admirados. Se lhe dessem um quarto desses!... Não. Aqui eu não fico." Kringelein fez ponto final em suas reflexões. Concentrou-se. Precisou descansar alguns minutos. Depois tocou a campainha chamando a empregada, e fez um escândalo.
Se levarmos em consideração o fato de que aquela foi a primeira reclamação em tom violento que Kringelein fez na vida, temos de admitir que não se saiu muito mal. A empregada de avental branco, assustada, foi chamar uma camareira; um criado apontou ao longe; o quarteiro, com um prato de frios oscilando na palma da mão, estacou diante do 216 para escutar. Telefonaram a Rohna; este pediu que Herr Kringelein se dirigisse ao pequeno escritório, pois era necessário chamar um dos quatro diretores do hotel. Kringelein, obstinado como um camelo, exigia que lhe dessem um quarto bonito, luxuoso e caro, pelo menos como o de Preysing. Parecia considerar o nome de Preysing uma palavra mágica. Não tirara ainda o sobretudo, conservando as mãos trêmulas nos bolsos, agarradas aos velhos pedaços de pão com manteiga que trouxera de Fredersdorf; entortava os olhos e exigia um quarto caro. Sentia-se cansado e doente, com vontade de chorar. Nas últimas semanas chorava com facilidade, por causa da sua saúde. De repente, justamente quando ia desistir, viu que tinha vencido. Recebeu o 70, um salão com alcova e banheiro a cinquenta marcos por dia. Piscou um pouco quando leu o preço, mas, refletindo, perguntou:
— Bem. Com banho? Quer dizer... posso tomar banho a qualquer hora, todas as vezes que tiver vontade?
O Conde Rohna inclinou a cabeça, imperturbável. Kringelein fez sua segunda mudança.
O quarto 70 servia. Os móveis eram de mogno, havia espelhos de corpo inteiro, cadeiras forradas de seda, escrivaninhas entalhadas, cortinas de renda, quadros de faisões mortos na parede, e na cama um edredom de penas com capa de seda. Kringelein apalpou-o três vezes, incrédulo, sentindo seu brando calor e sua maciez. Sobre a escrivaninha havia um imponente tinteiro de bronze, representando uma águia, cujas asas abertas, ziguezagueantes, protegiam dois recipientes de tinta vazios.
Diante da janela caía uma chuva fresca de março; a atmosfera estava saturada de gasolina; ouviam-se buzinas de automóveis e, bem defronte, na fachada de um edifício, piscava continuamente um anúncio, com letras vermelhas, azuis e brancas; quando terminava de um lado, recomeçava na frente. Kringelein ficou olhando o anúncio durante seis minutos. Lá embaixo revolviam-se guarda-chuvas pretos e pernas claras de mulher, ônibus amarelos, globos de luz elétrica. Havia até mesmo uma árvore, estendendo os galhos não muito longe do hotel, galhos semelhantes aos das árvores de Fredersdorf. Essa árvore berlinense estava plantada numa ilhota de terra, no meio do asfalto, e em redor da terra havia uma cerca, um gradeado, como se ela precisasse de proteção contra a cidade. Kringelein, rodeado por tanta coisa estranha e impressionante, alegrou-se um pouco ao ver a árvore. Em seguida ficou por momentos perplexo, sem saber o que fazer diante do mecanismo niquelado da banheira, que ele não conhecia; porém, de repente, o mecanismo funcionou, escorrendo-lhe água quente nas mãos. Então ele se despiu. Sentiu uma impressão um tanto penosa ao entrar com o corpo nu, débil e macilento, na bacia clara de azulejos. Mas afinal ficou sentado dentro da água por mais de um quarto de hora, sem dores, nenhuma dor; as dores com que ele andava há várias semanas haviam-no abandonado repentinamente. E, a partir desse dia, não queria mais sentir dores.
Por volta das dez horas da noite Kringelein passeava pelo hall; estava muito arrumado, de fraque, colarinho engomado, alto, e uma gravata preta, de nó feito. Não se sentia cansado; pelo contrário, uma agitação febril, uma enorme impaciência se havia apoderado dele. "Agora vai começar", pensava incessantemente, e seus ombros delgados tremiam como as pernas dianteiras de um cachorro nervoso. Comprou uma flor, que enfiou na lapela; deslizou, cheio de prazer, sobre o tapete vermelho-framboesa, e foi queixar-se ao porteiro de que não havia tinta no seu quarto. Um boy conduziu-o à sala de correspondência. Mal Kringelein se encontrou diante daquela quantidade de mesinhas de escrever, vazias, sob a luz agradável dos abajures verdes, perdeu todo o aprumo e tirou a mão do bolso, parecendo sentir-se humilhado. Enfiou os punhos brancos da camisa para dentro das mangas do paletó, com um gesto habitual, antes de sentar-se; depois, começou a escrever com sua caligrafia de guarda-livros, cheia de arabescos:
À Chefia do Pessoal da Indústria Algodoeira Saxônia
S.A., de Fredersdorf.
Prezados senhores,
O abaixo assinado toma a liberdade de comunicar respeitosamente que, de acordo com o atestado médico que acompanha esta — anexo A —, se acha impossibilitado de trabalhar por um período de quatro semanas, até nova ordem. O último salário, vencido em março, o abaixo assinado roga a V. Sas- seja pago a Frau Anna Kringelein, Bahnstrasse n° 4, conforme procuração — anexo B. Caso o abaixo assinado não possa retomar seu serviço após quatro semanas, avisará V. Sas oportunamente. Com a maior estima e consideração,
Otto Kringelein.
A Frau Anna Kringelein, Sachsen, Bahnstrasse n° 4.
Querida Anna — continuou Kringelein a escrever, o A tinha um arrojado arabesco. — Querida Anna, comunico-lhe que o diagnóstico do Professor Dr. Salzmann, após o exame a que me submeti, não foi favorável. Tenho que seguir diretamente daqui para uma casa de saúde, com as despesas a cargo do instituto, mas preciso ainda preencher algumas formalidades. Por enquanto estou hospedado num local muito barato, por recomendação do diretor-geral. Dentro de alguns dias darei notícias mais detalhadas; ainda preciso submeter-me a uma radiografia, antes de saber o diagnóstico definitivo. Lembranças do seu marido
Otto.
Ao tabelião, Herr Kampmann, Fredersdorf, Sachsen, Villa Rosenhein, Mauerstrasse.
Querido Amigo e Colega da Associação Coral — assim começou Kringelein a terceira carta com sua letra legível e delicada olhando para a ponta da pena. — Você vai ficar surpreso ao receber uma longa carta minha de Berlim, mas devo comunicar-lhe importantes modificações na minha vida e conto com sua compreensão e discrição profissional. Infelizmente tenho dificuldades em expressar-me por escrito, mas espero que você, com sua grande cultura e conhecimento dos homens, demonstre a devida compreensão para o que lhe escrevo. Como você sabe, após a operação a que me submeti no verão passado, nunca mais tive saúde e perdi a pouca confiança que depositava no nosso hospital e no nosso médico. Por isso aproveitei a oportunidade de ter recebido a herança de meu pai e vim para cá com esse dinheiro, a fim de fazer um exame e ver do que se tratava. Infelizmente, caro amigo, o resultado não foi bom, e, de acordo com a opinião do professor, tenho pouco tempo de vida
Kringelein permaneceu com a pena no ar, talvez durante um minuto; esqueceu-se de colocar um ponto no fim da frase. Seu bigode, o imponente bigode de diretor de associação, estremeceu de leve, mas ele continuou a escrever animadamente:
Quando se recebe tal comunicação, é natural que muita coisa passe pela nossa cabeça, e não dormi várias noites, mergulhado em minhas reflexões. Cheguei à conclusão de que não pretendo mais voltar para Fredersdorf, e, durante as poucas semanas em que ainda me aguentar de pé, gostaria de aproveitar um pouco a vida. Quando nunca se gozou a vida e se tem de ir para o túmulo com quarenta e seis anos de idade, não é agradável ficar se preocupando, economizando e zangando-se com Herr Pr. na fábrica e com a mulher em casa. É injusto e errado saber que está tudo acabado e que nunca se teve uma alegria verdadeira. Infelizmente, caro Amigo e Colega da Associação Coral, não sei me expressar com correção. Desejo, por isso, apenas comunicar-lhe que o meu testamento, que fiz no verão antes de me operarem, continua válido, mas a situação agora é um pouco diferente. Fiz remeter para cá, através do banco, todas as minhas economias, assim como um empréstimo maior que fiz no seguro de vida e os três mil e quinhentos marcos da herança do meu pai. Desse modo posso viver durante algumas semanas como um homem rico, e é o que pretendo fazer. Por que razão somente os Preysing podem aproveitar a vida, e nós continuamos a ser os tolos, que economizam e amealham? Trouxe comigo a soma de oito mil, quinhentos e quarenta marcos. O que sobrar pode ficar para a Anna; mais do que isso, de acordo com a minha opinião, não lhe devo, pois ela me amargurou bem a vida com as suas brigas, e nem sequer me deu um filho. Porei você a par do lugar em que me encontro e da minha saúde, mas isso é segredo profissional, é um favor que lhe peço. Berlim é uma bela cidade, e cresceu muito para quem não esteve aqui por tantos anos. Pretendo também ir a Paris, porque conheço bem o francês, devido à correspondência. Como você pode perceber, estou firme e há muito tempo não me sinto tão bem.
Abraça-o com amizade o seu fiel Moribundus
Otto Kringelein.
P.S. Basta que você diga à diretoria da Associação que tive de ir para uma casa de saúde de industriários.
Kringelein releu as cartas cujo conteúdo lhe custara duas noites de vigília — não ficou muito contente; pareceu-lhe que na carta para o tabelião faltava alguma coisa importante, mas não conseguia lembrar-se do que se tratava. Kringelein, apesar de possuir uma natureza acanhada e modesta, não era tolo, tinha idealismo e tendência para a cultura. O fato de dar ironicamente a si próprio o nome de Moribundus devia-o à leitura de um livro da biblioteca circulante, onde ele encontrara esse termo; lera o livro com enorme esforço, e o digerira em difíceis conversas com o tabelião. Desde seu nascimento, Kringelein levara a vida normal do pequeno burguês, vida um tanto insípida, sem grandes entusiasmos; vida dispersa de um empregado subalterno numa cidade pequena. Casara-se cedo e sem grande entusiasmo com Fräulein Anna Sauerkatz, filha do merceeiro Sauerkatz, que lhe parecera muito bonita até o dia do casamento, mas logo após se tornou uma pessoa feia, desagradável, sovina, que dava uma enorme importância a coisas mesquinhas. Kringelein recebia um ordenado fixo, e também um pequeno aumento de cinco em cinco anos, mas como sua saúde não fosse das melhores, sua mulher e a família, desde o começo, obrigaram-no a viver com sórdida economia, tendo em mira um problemático "amparo na velhice". Um piano, por exemplo, que Kringelein desejara ardentemente durante toda a vida, nunca o pôde adquirir: vira-se forçado a vender seu cãozinho teckel chamado Zipfel, quando lançaram o imposto sobre os cães. No pescoço tinha sempre arranhões, porque sua pele delicada de anêmico não suportava os velhos e usados colarinhos, com a beirada áspera. Às vezes tinha a impressão de que alguma coisa não estava certa em sua vida, mas não descobria o que era. Em outras ocasiões, na Associação Coral, quando sua voz de tenor, de timbre agudo, tremulante e delicada, sobressaía entre as outras vozes, apossava-se dele um sentimento estranho: parecia-lhe estar vagando no espaço, sentia-se feliz como se voasse. Muitas vezes passeava à noite. Ia caminhando em direção a Mickenau, depois afastava-se das ruas calçadas e ia margeando o fosso úmido dos caminhos, andando por uma trilha que limitava as plantações. Por entre as hastes dos cereais passava um brando sussurro, e quando as espigas roçavam em sua mão ele sentia uma inexplicável alegria. Durante a narcose, no hospital, também sentira essa impressão esquisita e agradável, mas depois a esquecera. Eram coisas insignificantes, que diferenciavam o guarda-livros Otto Kringelein da média de seus concidadãos. E fora isso — juntamente, talvez, com a embriaguez provocada pelos venenos letais destilados pelo seu organismo — o que trouxera o Moribundus até ali, ao mais caro hotel de Berlim, onde escrevera aquelas cartas que continham uma decisão incrível, baseada em motivos fúteis.
Quando Kringelein se ergueu da cadeira, vacilando ligeiramente, e atravessou a sala de leitura com seus três envelopes na mão, encontrou-se com o Dr. Otternschlag, que, para ouvi-lo, virou para ele a face danificada, o que o assustou.
— Então? Já está instalado? — perguntou Otternschlag com indolência; estava de smoking, e olhou para as pontas de seus sapatos de verniz.
— Já estou, sim. Otimamente instalado — respondeu Kringelein com timidez. — Obrigado. Preciso agradecer lhe muitíssimo, cavalheiro. Foi muita bondade sua, de fato...
— Bondade minha? Ora veja! Por causa do quarto? Ora... Sabe, há muito que desejo mudar-me daqui, mas tenho preguiça. Este hotel é uma gaiola miserável. Se o senhor tivesse ficado com o meu quarto, eu estaria a estas horas no rápido para Milão, ou qualquer coisa assim... seria divertidíssimo. Ora, tanto faz. Em março, o tempo é horrível no mundo inteiro. Dá na mesma ficar aqui ou ali. Posso ficar aqui, também.
— O cavalheiro costuma viajar muito? — perguntou Kringelein timidamente, pois imaginava que os hóspedes daquele hotel fossem todos magnatas ou fidalgos. — Se me permite: Kringelein — acrescentou com modéstia, inclinando-se com elegância fredersdorfiana. — O cavalheiro deve conhecer bem o mundo...
— Um pouquinho — disse Otternschlag. — Conheço os lugares mais visitados, os passeios obrigatórios, que todo mundo faz. A Índia, e pouca coisa mais — sorriu ligeiramente ao observar a avidez que se manifestou nos olhos azuis de Kringelein, vesgos por trás do pince-nez.
— Eu também pretendo viajar — disse Kringelein. — O nosso diretor-geral, por exemplo, viaja todos os anos. Há pouco tempo esteve em Saint-Moritz. Na Páscoa do ano passado esteve com a família em Capri. Imagino como tudo isso deve ser maravilhoso!
— O senhor tem família? — perguntou o Dr. Otternschlag, afastando o jornal para o lado. Kringelein refletiu cinco minutos, antes de responder:
— Não, senhor.
— Não tem! — repetiu Otternschlag, e em sua boca essas palavras adquiriram um caráter irrevogável.
— Em primeiro lugar eu gostaria de ir a Paris — disse Kringelein. — Paris deve ser uma beleza, não?
O Dr. Otternschlag, que demonstrara até então um resquício de calor e de interesse, parecia ter ficado sonolento. Ele costumava cair nesse estado de sonolência várias vezes por dia, e contra ele só podia empregar certos meios misteriosos e prejudiciais para a saúde.
— Para Paris o senhor deve ir em maio — murmurou ele.
Kringelein disse rapidamente: — Não disponho de tanto tempo.
Subitamente o Dr. Otternschlag o deixou sozinho.
— Tenho de ir para o quarto deitar-me um pouco — disse ele, mais para si mesmo do que dirigindo-se a Kringelein, que ficou na sala de leitura com as suas três cartas na mão. O jornal que Otternschlag folheara caiu ao chão; estava todo rabiscado com figuras de homenzinhos. Sobre cada figurinha havia uma cruz, desenhada com traços fortes. Kringelein, ligeiramente desiludido, saiu da sala deslizando pelo tapete, com o semblante desconcertado, e dirigiu-se para a sala de refeições de onde vinham os sons fracos mas perceptíveis de uma música lenta e martelada, que ecoava por todas as paredes do enorme hotel.
2
O pano caiu, batendo no soalho do palco com um ruído surdo e pesado de ferro.
A Grussinskaia, que até esse instante girara com leveza de flor por entre as bailarinas, veio se arrastando, ofegante, por trás do primeiro bastidor. Com ar estonteado, apoiou a mão trêmula no braço de um maquinista e soltou o ar dos pulmões, como se estivesse ferida. O suor corria-lhe ao longo das rugas sob os olhos. Os aplausos, fracos como uma chuva distante, avivaram-se de repente, o que significava que o pano abria de novo. Um homem levantava-o com grande esforço, enrolando-o com grandes impulsos de manivela. A Grussinskaia reabriu o seu sorriso, como uma máscara de papelão, e avançou dançando, fazendo curvaturas ao chegar às gambiarras.
Gaigern, que se aborrecera muito, bateu três ligeiras palmas, por pura amabilidade, e esgueirou-se por entre as filas da plateia, dirigindo-se para uma das saídas cheias de gente. Nas primeiras filas e nas galerias, alguns espectadores mais pertinazes gritavam e batiam palmas; mais para trás, todos se apertavam, empurrando-se para chegar quanto antes ao vestiário. Para a Grussinskaia, lá da cena, parecia uma fuga, um pequeno pânico, esse rápido desfilar de peitilhos brancos, de dorsos negros dos senhores, de capas de brocado — todos numa só direção. Ela sorriu, atirando a cabeça para trás, com o pescoço esguio como uma haste de flor; deu uns pulinhos para a direita e para a esquerda e abriu os braços, saudando o público que se preparava para retirar-se. O pano caiu, batendo no solo. O corpo de baile continuava na sua pose, tinha disciplina.
— Levantem o pano! Levantem o pano! — gritava histericamente Pimenoff, o mestre de ballet, que era o encarregado de preparar o êxito dos espetáculos.
A coisa ia devagar, e o homem da manivela fazia esforços desesperados. Algumas pessoas na plateia, que já estavam perto das portas, detiveram-se ainda um momento, com um sorriso amarelo, batendo palmas. Num camarote também aplaudiam. A Grussinskaia apontava para as bailarinas, ninfas de tarlatana agrupadas em seu redor; aparentando a maior modéstia, ela recusava esses fracos aplausos, cedendo-os às insignificantes jovenzinhas. Algumas pessoas que já haviam vestido seus agasalhos surgiram às portas, assistindo, com ar divertido, àquela manifestação tardia de entusiasmo. Witte, o velho maestro alemão, lá embaixo, na orquestra, fazia gestos súplices aos músicos, implorando-lhes que lhe obedecessem; eles já estavam guardando seus instrumentos nas caixas.
— Ninguém saia! — murmurou ele cheio de angústia, trêmulo e suando. — Ninguém saia, por favor, senhores. Talvez tenhamos de repetir a Valsa da primavera!
— Não tenha receio — disse um fagote. — Hoje não há extras. Vai ficar nisso. Então, não lhe disse?
Realmente, os aplausos pingavam. A Grussinskaia ainda pôde ver a bocarra negra e aberta do músico, a rir-se lá embaixo, antes que o pano a separasse dos espectadores. De súbito, os aplausos cessaram, e o repentino silêncio se alargou sinistramente na sala; só se ouvia o ruído que as jovens de tarlatana faziam, com as pontas de seda de seus pés batendo no chão.
— Podemos ir? — murmurou em francês Lucille Lafite, a primeira-bailarina, dirigindo-se às costas trêmulas e pintadas de branco da Grussinskaia.
— Podem. Vão-se embora. Todas. Vão para o diabo! — respondeu a Grussinskaia em russo. Tinha vontade de gritar, mas a voz lhe saiu da garganta num misto de tosse e soluço. Intimidadas, todas saíram correndo. Na ribalta as luzes se apagaram, e durante alguns segundos a Grussinskaia ficou sozinha em cena, a tiritar, sob a iluminação cinzenta de ensaio.
De repente ouviu-se um ruído, como o estalido de um galho partindo-se, o estrupido das patas de um cavalo, um ruído inconfundível — lá na sala deserta, uma pessoa aplaudia sozinha, completamente sozinha. Não havia acontecido milagre nenhum; era Meyerheim, o empresário, que, com a audácia do desespero, procurava salvar o espetáculo. Batia palmas, com suas mãos acústicas, com a máxima energia, aparentando frenético entusiasmo, e ao mesmo tempo lançava olhares iracundos às galerias, pois a claque, esquecida de seus deveres, havia abandonado cedo demais o seu posto. O Barão Gaigern foi o primeiro a ouvir esse ruído isolado, e voltou, curioso e com vontade de zombar. Tirou depressa as luvas e juntou-se freneticamente aos aplausos. E, ao voltarem apressadamente do vestiário uns sujeitos da claque e alguns curiosos, ele chegou a bater os pés, como um estudante entusiasmado. Alguns sujeitos trocistas se reuniram a ele, formando-se um pequeno e divertido ajuntamento, e, finalmente, perto de sessenta pessoas batiam palmas, chamando pela Grussinskaia.
— Pano! Pano! — gritava Pimenoff com voz esganiçada; a Grussinskaia corria de um lado para outro no palco, como uma histérica.
— Michael! Onde está o Michael? Michael tem que sair comigo! — gritou ela a rir-se, com as pestanas cheias de pasta azul, de suor e de lágrimas. Witte empurrou o bailarino Michael para diante dos bastidores; sem fitá-lo, a Grussinskaia pegou a sua mão, tão escorregadia de suor que era difícil segurá-la; diante da caixa do ponto curvaram-se com a harmonia perfeita de corpos acostumados a um trabalho em conjunto. Mal o pano caiu, a Grussinskaia principiou a armar um escândalo, dando largas à sua excitação.
— Você estragou tudo! A culpa foi sua! Vacilou na terceira arabesque! Nunca me teria acontecido uma coisa dessas com o Pimenoff!
— Misericórdia, eu? Mas Gru! — murmurou Michael com seu cômico acento báltico, em tom suplicante. Witte arrastou-o depressa para trás do bastidor 3 e tapou-lhe a boca com sua mão de velho.
— Pelo amor de Deus, não a contradiga; deixe-a! — murmurou ele.
A Grussinskaia recebeu os aplausos sozinha. Nos intervalos destes, quando ia para trás dos bastidores e o pano ainda se conservava descido, ela se punha a vociferar. Amaldiçoava a todos com as mais espantosas maldições, xingava-os de porcos, cães, bando de devassos; chamava Michael de bêbado e Pimenoff de coisa pior ainda, ameaçava despedir o corpo de ballet, que já se ausentara, e jurava ao maestro Witte, que estava presente, calado e desolado, que se suicidaria pelos seus andamentos errados. Enquanto isso, o coração voava-lhe dentro do peito como um passarinho exausto e sem rumo, e as lágrimas corriam-lhe ao longo do sorriso de cera e pintura. Finalmente, o chefe dos eletricistas pôs fim a essa cena, baixando uma grande alavanca; ficou tudo às escuras, e um homem impaciente começou a cobrir com panos cinzentos as filas de cadeiras. O pano ficou descido, o homem da manivela foi para dentro.
— Quantas chamadas, Suzette? — perguntou a Grussinskaia a uma mulher idosa que estava nos bastidores e a ajudou a vestir um casaco de lã desbotado e fora de moda, e em seguida abriu diante dela a porta de ferro do palco. — Sete? Eu contei oito. Você acha que foram sete? É um bom número, não acha? Mas terá sido mesmo um sucesso?
Ouviu com impaciência os protestos de Suzette, que assegurava ter sido um sucesso enorme, quase como em Bruxelas há três anos. Madame se lembrava? Sim, madame se lembrava. Como se fosse possível esquecer um grande sucesso! Madame, sentada no pequeno camarim, olhava fixamente a lâmpada elétrica envolta em uma rede, que pendia sobre o espelho, e recordou-se de tudo. "Não, não foi como em Bruxelas", pensou, taciturna e morta de cansaço. Estirou os membros banhados em suor; como um pugilista estendido no seu canto após um exaustivo round, ficou largada, enquanto Suzette friccionava-a, esfregava-a e tirava-lhe a pintura. O camarim era um canto triste, aquecido demais, sujo, estreito; cheirava a roupa velha, a ranço, a pintura, a centenas de corpos extenuados. Talvez a Grussinskaia tivesse dormitado alguns segundos, porque esteve a caminhar pelo átrio de sua villa do lago de Como — mas a seguir viu-se de novo ao lado de Suzette, às voltas com o penoso descontentamento provocado pelo espetáculo dessa noite. Não tinha sido um grande sucesso, não. Não tinha sido um grande sucesso. E que mundo cruel e incompreensível era esse, que começava a negar a uma artista como a Grussinskaia um grande sucesso?!
Ninguém sabia a idade da Grussinskaia. Alguns velhos senhores russos, aristocratas imigrados que moravam em quartos mobiliados em Wilmersdorf, diziam conhecer a Grussinskaia há quarenta anos — o que era seguramente um exagero. Mas, sem dúvida, seu êxito internacional já datava de vinte anos, e vinte anos de êxito e celebridade representam um tempo infinito.
Às vezes, a Grussinskaia dizia ao velho Witte, seu amigo e companheiro desde o início da sua carreira:
— Witte, sou uma criatura condenada a arrastar uma carga excessiva, sem descanso, a vida inteira.
E Witte respondia, cheio de gravidade:
— Por favor, Elisavieta Alieksandrovna, nunca deixe perceber isso; nunca fale de carga e de peso. O mundo inteiro se fez pesado. Sua missão, Elisavieta, permita-me que o diga, é conservar-se leve. Conserve-se como está! Não mude, seria uma catástrofe mundial.
A Grussinskaia não mudava. Pesava quarenta e oito quilos desde os dezoito anos, e uma boa parte do seu êxito e das suas aptidões era devida a esse fato. Seus partners, habituados à sua leveza, não conseguiam dançar com nenhuma outra bailarina. Seu pescoço, seu corpo, que parecia consistir apenas em articulações, o oval de seu rosto continuavam sempre os mesmos. Seus braços se moviam como disciplinadas asas. Seu sorriso, sob as pálpebras alongadas, era por si só uma obra de arte. Todas as energias da Grussinskaia se concentravam numa única finalidade: conservar-se fiel a si mesma. E ela não notava que era isso precisamente o que começava a aborrecer o público...
Talvez esse público a apreciasse como ela era na realidade, como era nesse momento, sentada no seu camarim: uma pobre mulher, velha, delicada, extenuada, de olhar tristonho, e a carinha consumida e torturada de um ente humano e real. Quando a Grussinskaia não tinha sucesso — e isso costumava acontecer agora, de vez em quando — encolhia-se toda, transformava-se de súbito numa mulherzinha velhíssima, de setenta anos, de cem anos, mais velha ainda. Lá no fundo do camarim, Suzette lamentava-se em voz baixa, em francês, diante do lavatório cinzento, encravado na parede; a torneira de água quente não funcionava muito bem. Afinal ficaram prontas as compressas úmidas para o rosto, e a Grussinskaia entregou-se à sua ardência, enquanto Suzette lhe tirava o colar de pérolas do pescoço, essas pérolas de uma beleza inverossímil, célebres no mundo inteiro, que datavam da época dos grão-duques.
— Pode guardar o colar; não quero mais usá-lo hoje — disse a Grussinskaia, abandonando-se, com a fisionomia concentrada, às pontas dos dedos, às essências de cânfora e à pintura do seu apagado factótum. Tinha de ir ainda a uma ceia que o Clube do Proscênio oferecia em sua honra, e por isso ela se fazia pintar com tanta compunção, como um antigo guerreiro mexicano antes de enfrentar o inimigo.
No corredor, diante do camarim, Witte ia e vinha, como uma paciente sentinela a montar guarda, enquanto arranhava a tampa do relógio, que usava no bolso do fraque, à moda antiga. Em seu rosto envelhecido de músico, liam-se a preocupação e a aflição. Pouco depois veio juntar-se a ele o mestre de ballet, Pimenoff, e finalmente chegou Michael, com as pestanas lustrosas de vaselina, e cheio de pó de arroz.
— Vamos esperar a Gru? Vamos juntos? — perguntou Michael, enchendo-se de coragem.
— Eu o aconselharia a evaporar-se, meu rapaz — disse Witte —, mesmo que você não tivesse vacilado cem vezes, o aconselharia a fazer isso.
— Mas eu não vacilei, Pimenoff! Acha que eu vacilei? — exclamou quase chorando. Pimenoff encolheu os ombros. Era também um homem idoso, com um nariz grande e característico, e tinha um fraco pelas gravatas plastrão da época de Eduardo VII. Ele próprio não dançava mais, apenas dirigia os ensaios e preparava os divertissements para a Grussinskaia. Eram coreografias clássicas, muito difíceis, cheias de pássaros, flores e alegorias, tudo dançado em pontas.
— Vá deitar-se, evite encontrar-se com a Gru, hoje. Lucille também já sumiu — disse ele, prudentemente.
Michael, com expressão de zanga, bateu à porta do camarim da Grussinskaia.
— Boa noite, madame! — exclamou ele. — Não os acompanho hoje. Quando é o ensaio amanhã?
— Naturalmente que você vai conosco. Tem que sentar-se ao meu lado na mesa! — exclamou lá de dentro a Grussinskaia. — Não me faça ficar triste, sweetheart! Sobre o ensaio vamos falar ainda. Espere por mim, ainda não estou pronta.
— Tiens... já passou a crise — murmurou Witte com um gesto de "já não está mais aqui quem falou".
— Larmes, oh, douces larmes! — declamou Pimenoff, com o queixo metido na gola do sobretudo.
— Não quero que o meu pior inimigo dance pas de deux com a Gru! Misericórdia, meu caro! — finalizou Michael, com seu cômico acento báltico.
A Grussinskaia, no camarim, punha perfume atrás da orelha. "Michael tem que estar lá", pensou ela. "Estou sempre rodeada de velhos: Pimenoff, Witte, Lucille, Suzette." De repente, sentiu uma raiva enorme do chapeuzinho surrado que Suzette usava, colocando-o sobre os cabelos cor de cinza, caído para trás. Com um gesto brusco recusou seu auxílio e saiu para o corredor, levando no braço a capa preta e dourada, com arminho. Virou-se de costas para Michael, para que ele lhe colocasse a capa nos ombros. Ele a colocou, com seu jeito habitual, delicado e feminino. Era uma pequena cerimônia de reconciliação; mais do que isso: era um tênue e secreto anseio da Grussinskaia pela companhia desse jovem. Michael era jovem, porque a Grussinskaia estava sempre mudando de primeiro-bailarino, cheia de nervos e de exigência com seus partners pessoais. O resto da troupe envelhecera com ela.
Aliás, ela agora tinha uma aparência magnífica, linda, estranha, exuberante e elástica.
— Elisavieta está encantadora! — disse Witte, com uma reverência do século passado. Ele se habituara a expressar-se num estilo complicado, em primeiro lugar para ocultar seu amor por Gru, por quem se apaixonara desde a mocidade, e depois porque tinha de traduzir logo suas frases, do alemão para o russo ou para o francês. A Grussinskaia também passava constantemente de uma língua para outra, do tu russo ou francês ao você inglês, e também conhecia o alemão; sabia traduzir as principais grosserias e amabilidades para qualquer língua. Nem sempre era fácil seguir sua conversa. Quando entrou no carro, por exemplo, perguntou:
— Você acha que a culpa é das pérolas, Witte?
— As pérolas? Por quê? Culpa de quê? — perguntou Witte, perplexo. A segunda pergunta foi feita apenas por cortesia, porque ele sabia muito bem a que se referia a Grussinskaia.
— Mon Dieu, por que justamente as pérolas? — perguntou também Pimenoff.
— Pois é, o colar de pérolas. Elas me dão azar, essas pérolas — disse ela expressivamente, como uma criança.
Witte batia com uma luva na outra: usava luvas glacées, fora de moda.
— Mas querida!... — disse ele abismado.
— Como? — perguntou Pimenoff. — Durante toda a sua vida essas pérolas lhe deram sorte, eram a sua mascote, o seu talismã! Você não podia dançar sem esse colar! E agora, de repente, as pérolas lhe dão azar? Que ideia, Gru!
— Pois é. Elas dão azar. Já percebi isso há muito tempo — disse Gru, com uma ruga de teimosia entre as sobrancelhas pintadas. — Não sei explicar muito bem, mas pensei muito sobre isso. Enquanto o Grão-Duque Serguei vivia, elas me deram sorte. Voilà. Desde que o assassinaram... azar, azar, azar! A ruptura do tendão no meu tornozelo, o ano passado, em Londres. O déficit em Nice. E, de um modo geral, azar! Não usarei mais esse colar quando dançar. Fiquem sabendo!
— Não vai usá-lo mais? Mas querida, Gru querida, você não pode aparecer em público sem as pérolas, você acreditou a vida inteira que não podia aparecer em cena sem essas pérolas, e agora, de repente...
— Pois é — disse a Grussinskaia —, era uma superstição minha.
Witte principiou a rir.
— Lisa! — exclamou ele — pombinha, minha queridinha, você é mesmo uma criança!
— Vocês não me compreendem. Você não me entende absolutamente, Witte. As pérolas já não me ficam bem. Não devo usá-las mais. Antigamente era diferente. Antigamente ... em São Petersburgo, em Paris, em Viena... era preciso usar joias. Uma bailarina tinha que ter joias e ostentá-las. Agora... quem é que usa um colar de pérolas verdadeiras? Eu sou mulher, sinto melhor essas coisas, tenho flair para essas coisas... Michael, você está dormindo? Fale alguma coisa também!
Michael, sem mover seu corpo delicado, disse, num francês lento:
— Quer saber o que penso, madame? Devia dar seu colar de pérolas às crianças pobres, aos aleijados, ou qualquer coisa parecida, madame.
— O que você está pensando? O colar de pérolas? Dar as pérolas? —- exclamou a Grussinskaia em russo, e a expressão pozertvovati parecia a melodia de alguma canção.
— Chegamos — disse Pimenoff, brecando de súbito.
— En avant! — ordenou a Grussinskaia. — Sejamos elegantes! Alegremo-nos!
Abriu-se uma porta.
Witte, subindo a escada atrás da bailarina, declarou:
— Elisavieta Alieksandrovna só tem um defeito: a paixão pelo imperativo categórico.
A Grussinskaia começou a rir, radiante como uma lâmpada acesa de repente, e assim, alegre e sorridente,entrou no clube, onde trinta fraques, de pé, esperavam pela sua entrada.
O Barão Gaigern tinha sido o último a deixar de aplaudir, mas assim que teve a certeza de que o pano não ia subir mais saiu do teatro com a fisionomia séria de um homem apressado. Não estava mais chovendo, e no asfalto úmido da Kantstrasse se refletiam numerosas luzes brancas e amarelas; o bonde passava ligeiro por entre as casas, guardas davam sinal para a partida, indivíduos desocupados abriam as portas dos automóveis às capas de pele. Gaigern foi andando pela calçada por entre a multidão, infringiu com perigo de vida as regras do trânsito e continuou a caminhar rapidamente por uma rua mais escura, a Fasanenstrasse, onde o seu carro — um modesto carrinho de quatro lugares — estava estacionado. O chofer fumava um cigarro.
— Então? — perguntou Gaigern, com as mãos nos bolsos do impermeável azul.
— Ela já mudou de chofer — respondeu o motorista. — Agora é um inglês. Ela o pescou em Nice, onde o patrão dele o deixou, após arruinar-se. Almocei com ele. Esse não abre a boca para dizer nada.
— Pela centésima vez eu lhe digo para tirar o cigarro da boca quando eu falar com você — disse Gaigern, dissimuladamente.
— Está bem — disse o chofer, jogando fora o cigarro. — Agora ele foi ao teatro, para levá-la ao Clube do Proscênio; daqui a pouco deve chegar lá. Quando deverá ir buscá-la, ainda não sabe.
— Ainda não sabe? — repetiu Gaigern, pensativo, batendo com as luvas na palma da mão. — Bem, está certo. Vou até lá de novo. Vá com o carro para o teatro e espere defronte da entrada.
Gaigern foi-se aproximando de novo do teatro, com a mesma fisionomia de homem ocupadíssimo. Ali, tudo agora estava vazio e vulgar: o enorme luminoso se apagara, as tabuletas olhavam inexpressivas. A entrada do palco não dava para a rua, mas para um pátio em cujos muros de incêndio a hera úmida cintilava. Gaigern se esgueirou por entre uns sujeitos que estavam vagabundeando por ali, e ficou a olhar para a porta de vidro fosco onde a Grussinskaia devia aparecer. Primeiro saíram os bombeiros, depois os maquinistas, de ombros largos, fumando, e em seguida passou algum tempo sem que ninguém aparecesse. Um pouco depois a porta cuspiu para o pátio uma pequena troupe de jovens bailarinas, criaturas magrinhas, com peliças baratas, tagarelando em francês, russo e inglês. Gaigern sorriu, depois que elas passaram; muitas já conhecia de Nice e Paris. Quando sorria, seu lábio superior encurtava, como acontece com os garotinhos, o que o tornava encantador e agradava a muitas mulheres.
"Meu Deus, como hoje isto está demorando de novo", pensou ele, impaciente, quando o pátio dos fundos do teatro adormeceu por completo. Passou-se quase um quarto de hora, até que o chofer se mexeu, no carro da Grussinskaia, como um cão que está sonhando, e ligou o motor. Gaigern, que conhecia o sinal, encolheu-se, ocultando-se na sombra do muro. Quando a Grussinskaia apareceu, finalmente, ele estava invisível.
— Espere-me aqui, Suzette — disse ela voltando-se para a porta —, mando logo o Berkley de volta. Ele a levará para o hotel.
Vestia uma capa magnífica, muito vistosa, dourada e preta, com arminho, que a envolvia até o queixo; a bailarina estava agora tão bonita como nas fotografias em que aparecia nos jornais ilustrados do mundo inteiro. Gaigern, do seu esconderijo, olhou-a com atenção. Quando ela pôs o pé prateado no estribo do carro, a gola de arminho abriu-se, e Gaigern pôde ver seu pescoço, seu célebre pescoço, longo e alvo, semelhante à haste de uma flor, que nessa noite, sobretudo, parecia mais nu do que nunca. Satisfeito, aspirou o ar pelos dentes; nunca havia desejado nada com tanto ardor quanto ver esse pescoço nu...
Mal o automóvel partiu, Suzette apareceu no pátio escuro e deserto seguida pelo porteiro, que fechou a entrada do palco. Conservava a aparência de cópia velha e apagada da sua patroa, pois usava os vestidos e os chapéus velhos da Grussinskaia, quando já haviam passado de moda há muito tempo. Neste momento arrastava-se pelo pátio, metida numa saia comprida, em forma de sino, e usando um casaco desbotado, com uma espécie de gola à Werther. Em cada mão carregava uma mala: na esquerda, uma valise grande e chata; na direita, uma pequena suitcase de verniz preto. Andando com dificuldade, foi até a porta gradeada que separava da rua o pátio do teatro e ali ficou a caminhar de um lado para o outro, sob a luz forte da lâmpada elétrica. Pela cabeça de Gaigern passaram, durante esses poucos segundos, alguns velozes pensamentos, e ele se curvou, no seu canto sombrio, com os nervos tensos, como a se preparar para um salto ou para iniciar uma corrida. Mas nada fez, porque o maldito Berkley, fazendo uma magnífica curva, aproximou-se, e Suzette subiu no carro cinzento. Na Gedaechtniskirche bateram onze e meia, e Gaigern, que se esquecera de respirar um minuto, aspirou profundamente o ar da noite. Assobiou, e seu carrinho surgiu incontinenti.
— Vamos ao hotel, siga-o depressa! — exclamou, sentando-se rápido ao lado do chofer.
— Então? Há esperanças? — perguntou este, que já estava falando de novo de cigarro na boca.
— Esperemos — respondeu Gaigern.
— Mais uma noite inteira à espreita no carro, hein? E cá o degas não precisa dormir mais, não é? — disse o chofer.
Gaigern esticou o indicador, mostrando o carro cinzento que fazia a pequena curva em redor da casinhola iluminada do guarda, na Hitzigbruecke.
— Vá seguindo — disse; o chofer pisou no acelerador; não havia mais guardas na ponte. Berlim borbulhava sua vida noturna pelas ruas, sob um céu vermelho, completamente sem estrelas, sob a claridade de uma noite de primavera.
— A gente até perde a vontade — continuou o chofer com as suas considerações. — Essa história está dando mais despesas do que o lucro que poderá vir. No fim só vai dar prejuízo.
— Faça o que quiser — replicou o barão amavelmente, e seu lábio superior tornou-se minúsculo ao pronunciar estas palavras. — Se você não está contente, pode receber o pagamento e seguir o seu caminho. É um favor.
— Não estou falando por mal — disse o chofer.
— Nem eu — respondeu o barão. Depois ficaram calados até chegar ao hotel.
— Estacione na entrada 6 — observou Gaigern, ao saltar do carro; na porta giratória, que levava do hall de entrada ao grande hall, encontrou-se com um senhor girando em sentido contrário. Gaigern deu um pontapé impaciente na porta e fez com que o carrossel de vidro, com o seu conteúdo, fosse para a frente.
— É nessa direção que ela gira! — disse ele a Kringelein.
— Obrigado. Muito obrigado — replicou Kringelein, que queria sair e ficou de novo girando lá dentro.
Gaigern correu a buscar sua chave, voou ao elevador e, no primeiro andar, pediu ao maneta que esperasse um pouco, pois voltaria em um segundo. Disparou pelo corredor até o seu quarto, o 69, atirou o chapéu e a capa, tirou de um vaso um lindo ramo de orquídeas e correu com ele para o corredor.
— Faça o favor de dizer ao ascensorista que não preciso mais dele — disse a uma criada de quarto que se arrastava ao longo das portas, caindo de sono. A empregada deu o recado ao maneta, que tocou o elevador, resmungando. Quando o elevador chegou ao andar térreo, Suzette já o estava esperando com suas duas malas, para subir. E era isso justamente o que Gaigern queria.
Ao entrar no quarto 68, o quarto da Grussinskaia, Suzette viu atrás de uma palmeira no corredor um bonito jovem, cuja fisionomia tímida e suplicante não lhe era desconhecida.
— Boa noite, mademoiselle. Permita-me dizer-lhe uma palavrinha — disse ele no francês elegante, um tanto antiquado, que se ensina nos colégios de jesuítas. — Só uma palavrinha: madame não está no seu quarto?
— Não sei, cavalheiro... — respondeu Suzette, que era sabida.
— É só porque... desculpe o atrevimento... mas eu gostaria de colocar no quarto de madame uma florzinha para ela. Sou um admirador, estive hoje no teatro... e não perco os seus espetáculos de dança. Olhe, eu li num jornal que madame gosta destas catleias... é verdade?
— É — respondeu Suzette. — Ela gosta de orquídeas. Em nossa estufa de Tremezzo temos uma pequena coleção delas.
— Ah! Posso então entregar-lhe meu raminho e pedir-lhe o favor de colocá-lo no quarto de madame?
— Hoje recebemos uma imensidade de flores. O embaixador francês mandou uma cesta — disse Suzette, ainda amargurada pelo discutível sucesso da noite, olhando com bastante simpatia aquele jovem tímido. Mas não podia pegar o ramo porque estava com as duas mãos ocupadas. Teve até dificuldade em passar a chave para a mão direita a fim de abrir a porta do 68. Gaigern, vendo o apuro em que ela se encontrava, aproximou-se solícito.
— Permita-me! — disse ele, fazendo menção de pegar as duas malas. Suzette entregou-lhe a mala grande. Mas conservou consigo a pequena suitcase, afastando-se num movimento instintivo. "É ali então que se encontram as célebres pérolas", pensou Gaigern, sem dizê-lo, é claro. Abriu a porta externa, depois a interna, e franqueou com passos tímidos e ao mesmo tempo entusiásticos o limiar do quarto onde a Grussinskaia estava hospedada.
O quarto era banal, e estava arrumado com uma elegância empoeirada, como todos os outros. Fazia frio ali dentro, flutuava um perfume estranho e acre, e um aroma de coroas de folhagem, e a porta que dava para o pequeno terraço estava aberta. O cortinado do leito estava aberto, e sobre o tapete encontravam-se uns chinelinhos já bem usados e gastos: chinelos de uma mulher acostumada a dormir sozinha. Gaigern, parado à porta, teve um furtivo e terno sentimento de piedade por esses chinelinhos resignados, junto ao leito de uma linda e célebre mulher. Entrou no quarto segurando seu ramo de orquídeas, com um gesto de súplica. Suzette colocou a suitcase sobre a mesa de toilette, entre os três espelhos, e apanhou finalmente as flores.
— Obrigada, monsieur — disse ela. — Há algum cartão com as flores?
— Que ideia! Eu não sou tão atrevido — disse Gaigern. E ficou a olhar para o rosto enrugado e cor de marfim de Suzette, que mostrava estranha semelhança com o da patroa. — A senhora está cansada? — perguntou ele. — E madame com certeza vai voltar tarde. Precisa esperar por ela?
— Não. Madame é boa pessoa. Diz-me todas as noites: "Pode ir dormir, Suzette, não preciso de você". Mas madame precisa de mim, sim. Vou esperar por ela. Madame nunca chega depois das duas, porque começa a trabalhar às nove horas da manhã. E que trabalho o dela, monsieur — oh, mon Dieu! Não, madame é muito boa.
— Ela deve ser um anjo! — observou Gaigern em tom respeitoso. "Só há um quarto de banho sem janelas entre o 68 e o 69", pensou ele ao mesmo tempo. Seu olhar, vagando por todos os lados, caiu no enorme bocejo de Suzette.
— Boa noite e mil vezes obrigado, mademoiselle — disse ele modestamente. Depois, sorriu e desapareceu.
Suzette fechou as duas portas assim que Gaigern saiu, colocou as orquídeas na garrafa de água e encolheu-se num fauteuil, como uma gata friorenta.
3
Antes da uma da manhã há poucos pares de sapatos diante das portas dos quartos do Grande Hotel. Todo mundo saiu para gozar a noite fervilhante, barulhenta e exuberante de luz elétrica da grande cidade. A criada de quarto da noite boceja a um canto, no pequeno office, ao fim do corredor; em cada andar há uma criada exausta, virtuosa e murcha. Os boys revezaram de turno às dez horas, mas a nova guarnição também tem, sob os bonés colocados de lado, descuidadamente, os mesmos olhos febris e brilhantes de crianças que não foram cedo para a cama. O encarregado do elevador, manda e mal-humorado, foi substituído, à meia-noite, por um outro maneta não menos mal-humorado. Senf entregou também seu posto ao porteiro da noite, e dirigiu-se ao hospital sem refletir, lá pelas onze horas, com os dentes batendo de excitação. O fato de ele ter sido mandado para casa por uma irmã-porteira pouco amável, com a observação de que o nascimento da criança podia demorar ainda vinte e quatro horas, é assunto particularmente seu, e não tem nada a ver com o hotel. No hotel, a estas horas, estão se divertindo a valer. No pavilhão amarelo estão dançando, o bufê de Mattoni já está bem desfalcado e ele sorri com seus olhos de negro enquanto corta fatias do rosbife e mistura maraschino na salada de frutas gelada. Os ventiladores zunem e cospem o ar viciado para os pátios do hotel, e na sala de leitura, no subterrâneo, estão os choferes falando mal dos patrões, porque não os deixam beber durante o serviço. No hall encontram-se sentados os hóspedes provincianos do Reich, assombrados e levemente aborrecidos com os hóspedes de Berlim, esses senhores de chapéu caído para a nuca, com gestos exagerados, e admirados também com a pintura dos rostos das senhoras. Rohna, que acabava de se esfregar com vinaigre de toilette e ia atravessando o hall, pensou: "É verdade que os nossos frequentadores noturnos não são first class. Mas — que voulez-vous? — só essa gente ordinária é que traz dinheiro para a caixa!"
Pouco antes da uma hora, Herr Kringelein chegou ao bar do hotel, onde se imprensou, exausto, atrás de uma mesinha para observar o mundo com olhos enublados. Para falar a verdade, Herr Kringelein estava completamente exausto, mas era voluntarioso como uma criança no dia do seu aniversário — simplesmente não queria ir para a cama. Além disso, tinha a impressão de já estar dormindo, tudo chegava ao seu cérebro de um modo confuso, como um estado de sonho ou de febre; o alarido e o movimento humano, as vozes, a música, tudo isso estava junto dele e ao mesmo tempo muito distante, absolutamente irreal. O mundo burburinhava de modo estranho, mergulhando-o num estado de bebedeira sem álcool. Certa vez, com a idade de dez anos, Kringelein faltara à escola e fugira, com medo de um ditado, numa manhã quente e cheia de neblina, em direção a Mickenau; depois, deixara as ruas calçadas e ficara a vagabundar pelos campos e, enquanto o sol dardejava seus raios ardentes, deitara-se e adormecera com a cabeça sobre uma almofada de trevo. Chegara a uma sebe à margem do rio e encontrara ali uma quantidade enorme de framboesas, que se pôs a devorar. Nunca mais se esqueceu, em toda a sua vida, do zumbido das grandes moscas dos brejos, que chuparam o sangue de suas pernas e de seus dedos perfumados e sujos do suco das framboesas, que tinha apanhado aos punhados, por entre urtigas e espinheiros. Esse sentimento embriagador de plenitude, o medo, o leve e febril mistério, e a alegria maligna da ação reprovável — essa embriaguez do assaltante, tudo isso ele sentia de novo, entre uma e duas da madrugada, no bar do hotel mais caro de Berlim. De certo modo as martirizantes moscas também se encontravam ali; haviam tomado a forma de números, e davam desagradáveis picadas no cérebro de Kringelein, no cérebro de um modesto guarda-livros que, acostumado a fazer contas durante toda a sua vida, não conseguia agora deixar de fazê-las.
Nove marcos era quanto custava uma porção de caviar, por exemplo. Caviar é uma desilusão, na opinião de Kringelein. Tem gosto de arenque e custa nove marcos. Kringelein sentiu calor e frio ao mesmo tempo, quando se viu sentado diante do carrinho com os hors d’oeuvres, observado por três garçons com ar de poucos amigos.
O menu — vinte e dois marcos, com a gorjeta — ficou intacto, porque seu estômago enfermo sentira náuseas. O borgonha era um vinho grosso e ácido deitado numa espécie de carrinho de criança, como um baby. A gente rica tinha um gosto esquisito, parecia. Kringelein, que não era bobo e gostava de aprender, reparara logo que estava mal vestido e usava as várias espécies de talheres de modo errado. Não pudera livrar-se de um maldito tremor nervoso durante toda a noite, que fora rica em embaraços por causa das gorjetas, de saídas por portas erradas, de perguntas confusas e pequeninos tormentos de toda a espécie. Mas tivera também seus grandes momentos, essa noite de um homem rico. A visita às vitrinas, por exemplo. Em Berlim as vitrinas ficam iluminadas durante a noite, e tudo que existe no mundo se encontra ali aos montões. Poder comprar tudo isso era um pensamento novo, febril e embriagador, para um homem como Kringelein. Foi ao cinema (em Berlim ainda se pode ir ao cinema às nove e meia da noite) e comprou um camarote. Em Fredersdorf também se vai ao cinema, pois três vezes por semana há um espetáculo no Salão Zickenmeier, onde a Associação Coral costuma fazer os seus ensaios. Kringelein estivera lá uma ou duas vezes, e sentara-se com sua Anna, que era muito sovina, bem na frente, no lugar mais barato, entre operários de fábricas; esticava a cabeça para cima, como um parafuso, de olhos fixos nas gigantescas e desfiguradas imagens da tela. O filme, visto de um lugar caro, tinha um aspecto completamente diferente, assemelhando-se à vida real, quando se pode pagar; foi esse um dos grandes conhecimentos adquiridos nessa noite. Kringelein, lembrando-se disso, sacudia a cabeça, sorridente. Um parêntese: esse filme de Saint-Moritz mostrava um mundo maravilhoso, mas que não parecia real. Kringelein, naquele canto do bar, resolveu ir para Saint-Moritz. "Estes montes, lagos e vales não existem só para os Preysing", pensa ele. Seu coração palpita com força quando tal pensamento o assalta de novo. Quando as pessoas têm a certeza de que vão morrer, são assaltadas por uma sensação de liberdade, amarga e triunfante. Kringelein, no entanto, não encontra palavras para exprimir o sentimento que às vezes o assalta, e agora o oprime, obrigando-o a suspirar profundamente para recobrar alento.
— Com licença — disse o Dr. Otternschlag em meio às considerações de Kringelein, metendo os joelhos ossudos por debaixo da mesinha em que estava sentado. — Não há mais nenhum lugar livre neste maldito bar. Local completamente obstruído. Louisiana Flip — disse ele ao garçom, pousando os dedos magros sobre a mesa, entre ele e Kringelein, como dez varetas, frias e pesadas, de metal.
— Que prazer — disse Kringelein com elegância. — Tenho imenso prazer em encontrar de novo o cavalheiro. O senhor foi tão bondoso comigo... não pense que me esqueci. Não, realmente não...
Otternschlag, a quem há muitos anos ninguém chamava de bondoso, e com quem, há dez anos, ninguém, absolutamente ninguém, mantivera uma conversa, sentiu um leve desprezo, misturado com certa satisfação, ouvindo os repetidos agradecimentos do senhor de Fredersdorf.
— Bem, bem... saúde! — disse ele, engolindo de um trago o seu Flip. Kringelein pedira uma bebida qualquer, mas não se atrevia a bebê-la, e apenas provou o líquido cor de cobre na taça de metal niquelado.
— No começo, o movimento daqui nos causa confusão — disse timidamente.
— Hum — replicou o Dr. Otternschlag. — No princípio causa. E não melhora, quando somos hóspedes efetivos. Não. Mais um Louisiana Flip.
— Na realidade, tudo é diferente do que imaginamos — respondeu Kringelein, a quem o coquetel forte deixara meditabundo. — Hoje em dia já não se vive na província como se estivéssemos fora do mundo. Lemos os jornais. Mas na realidade é bem diferente. Eu sei, por exemplo, que as banquetas do bar são altas. Mas não acho que sejam tão altas assim. E o negro ali adiante é o mixer, isso eu já sei; mas não é uma coisa tão esquisita, quando ele está perto de nós, apesar de ser o primeiro negro que vi na minha vida. Mas não é nada esquisito. Fala até alemão, e poderíamos pensar que ele está apenas pintado de preto.
— Não, não, é um negro de verdade. Mas não e muito competente. Quem quiser bebidas que façam dormir precisa esperar muito.
Kringelein prestou atenção à confusão de vozes, ao tilintar dos vidros, ao sussurro das pessoas e às gargalhadas das mulheres na frente do bar.
— Essas mulheres não são moças de bar, não é? — perguntou. Otternschlag voltou para ele o lado perfeito do rosto.
— O senhor está sentindo falta do elemento feminino? — perguntou. — Não, essas não são moças de bar; isto aqui é um local sério, respeitável. Só mulheres acompanhadas por cavalheiros. Não são moças de bar, mas também não são senhoras. O senhor está procurando companhia?
Kringelein pigarreou.
— Obrigado, nem penso nisso. Mas se eu quisesse, já teria companhia para hoje. Sim senhor. Pois é. Uma moça me chamou para dançar.
— Ah, é? Ao senhor? Onde? — perguntou o Dr. Otternschlag, entortando metade da boca, num sorriso.
— Eu estava num cassino, não muito longe da Potsdamerplatz — observou Kringelein, procurando imitar o tom desembaraçado e mundano de Otternschlag. — Fantástico, fantástico, é o que lhe digo. Que iluminação feérica! — procurou uma palavra mais expressiva, mas depois se contentou com essa mesmo. — Uma iluminação feérica. Pequenas fontes luminosas, que sempre mudavam de cor. Caro, naturalmente. É preciso beber champanha. Cobram, por uma garrafa, vinte e cinco marcos. Infelizmente eu não aguento beber muito, não tenho muita saúde, o senhor compreende.
— Já sei. Já percebi. Quando alguém usa um colarinho dois centímetros mais largo do que o pescoço, não precisa me dizer mais nada.
— O senhor é médico? — perguntou Kringelein, sentindo um calafrio e um susto, e metendo, sem querer, dois dedos entre o colarinho. — É, está largo demais...
— Fui. Tudo passou. Fui mandado pelo governo para a África do Sul. Clima horroroso. Preso em setembro de 14. Campo de concentração em Nairóbi, na África Oriental Britânica. Horrível. Voltei à pátria porque dei a minha palavra de que nunca mais seria soldado. E, como médico, participei dessa grande porcaria até o fim. Granadas no rosto, e bacilos de difteria no ferimento, de que não me livrei até 1920. Dois anos no isolamento. Pois é. Basta. Ponto final. Tudo pertence ao passado. Quem é que se interessa por essas coisas?
Kringelein, assustado, não desprendia os olhos daquele homem atormentado, cujos dedos rígidos e inanimados estavam pousados sobre a mesa, separando-os. O bar acompanhava a sua conversa com uma espécie de ruído musical; adivinhava-se que tocavam um charleston no pavilhão amarelo. Kringelein pouco compreendera do despacho telegráfico de Otternschlag. Não obstante, subiu-lhe aos olhos uma aguinha quente. Ele se envergonhava de chorar com tanta facilidade, depois que fizera a operação, que aliás não adiantara nada.
— E o senhor, não tem ninguém que... quero dizer... O senhor vive sozinho? — perguntou, sem jeito. E pela primeira vez Otternschlag reparou em sua voz aguda, de timbre agradável, a voz de um homem, uma voz que vibrava, que procurava, que tateava... Estendeu seus dedos frios na mesa e retirou-os em seguida. Kringelein, pensativo, olhava para as inúmeras cicatrizes esbranquiçadas do rosto de Otternschlag, mas de repente abriu-se o começou a falar.
Sozinho — ele sabia o que isso significava, foi mais ou menos o que ele disse; também ele vivia sozinho em Berlim, de um modo geral. Cortara todos os laços, desligara-se de diversos vínculos que o prendiam — usava modos elegantes de expressar-se — e agora estava em Berlim. Quando se vivera em Fredersdorf, ficava-se um pouco perdido numa grande cidade. Ele conhecia pouco a vida, mas agora queria conhecê-la, conhecer a verdadeira vida, a vida propriamente dita, com V maiúsculo, e era para isso que estava ali naquele momento.
— Mas — disse Kringelein —, onde está a verdadeira vida? Eu ainda não a descobri. Estive no cassino, estou no hotel mais caro de Berlim, mas não é só isso o que eu quero. Desconfio de que a vida real, verdadeira, a vida propriamente dita, existe num outro lugar, e tem um aspecto bem diferente. Quando não fazemos parte dela, não é tão fácil atingi-la, o senhor compreende?
— E o que imagina o senhor que a vida seja? — replicou o Dr. Otternschlag. — Existirá mesmo essa vida que o senhor imagina? A coisa propriamente dita existe sempre num lugar diferente. Quando a gente é jovem, pensa: "mais tarde..." Mais tarde, lamentamos: "antigamente é que eu vivia". Quando estamos aqui, imaginamos a vida na Índia, na América, no Popocatepetl ou em outro lugar qualquer. Mas quando nos encontramos lá, a vida acabou de passar por ali e desaparecer, ficando à nossa espera aqui, aqui mesmo, de onde nós fugimos. Com a vida passa-se a mesma coisa que com os caçadores de borboletas e os lepidópteros que tentam pegar. Enquanto estão voando, são uma maravilha. Depois que os apanham, notam que as cores desapareceram e as asas se estragaram.
Kringelein ouvia pela primeira vez da boca do Dr. Otternschlag algumas frases com certa sequência, e isso o impressionou; mas não acreditou no que ele estava dizendo.
— Não acredito nisso — disse com modéstia.
— Pode acreditar. Tudo se passa como com as banquetas de bar — replicou Otternschlag, que apoiara os cotovelos nos joelhos, e cujas mãos, pendentes, tremiam debilmente.
— Que banqueta de bar? — perguntou Kringelein.
— A banqueta de que o senhor falou há pouco. "As banquetas de bar não são tão altas assim", afirmou o senhor há pouco. "Eu imaginei que as banquetas fossem mais altas." Não é verdade? O senhor não disse isso? Pois é. Nós imaginamos tudo maior do que é, antes de vermos as coisas. O senhor acabou de chegar de viagem e veio lá do seu cantinho de província com ideias absurdas sobre a vida. O Grande Hotel, pensou o senhor. O hotel mais caro de Berlim, pensou o senhor. Deus sabe que milagres o senhor espera de um hotel assim. O senhor vai logo ficar sabendo o que é isto. Este hotel não vale nada, Herr Kringelein. A gente chega, fica algum tempo, depois parte. De passagem, compreende? Para uma estada curta, sabe? O que é que o senhor faz num hotel de luxo? Come, dorme, fica vadiando, faz negócios, flerta um pouquinho, dança um pouco, não é? Bem, e o que faz o senhor da sua vida? Centenas de portas num corredor, e ninguém sabe nada a respeito de quem mora ao lado de seu quarto. Quando o senhor vai embora, chega outro sujeito, deita-se na sua cama, e acabou-se. Fique sentado algumas horas no hall e preste bem atenção: ninguém é real. Essa gente não tem fisionomia própria! É tudo uma ilusão. Estão todos mortos e não sabem. É uma arapuca, um hotel de luxo. Grande Hotel, bella vita, hein? Bem, o importante é ter sempre as malas prontas...
Kringelein ficou pensando algum tempo. Teve então a impressão de ter compreendido o que Otternschlag dissera.
— É. Tem razão — disse ele, concordando. Havia seriedade demais nessa afirmativa. Otternschlag, que caíra numa leve sonolência, levou um susto.
— O senhor deseja alguma coisa de mim? Quer que eu o inicie na vida? Boa escolha a sua, magnífica. De qualquer maneira, estou à sua disposição, Herr Kringelein.
— Eu não queria incomodá-lo — respondeu Kringelein, meio atrapalhado e respeitoso. Pôs-se a refletir. Não se aguentava mais, usando essas frases elegantes. Desde que se encontrava no Grande Hotel, movia-se como se estivesse numa terra estranha. Falava o alemão como uma língua estrangeira, que tivesse aprendido em livros e jornais.
— O senhor foi bondosíssimo — disse. — Eu tinha esperanças... mas para o senhor as coisas são diferentes. O senhor já conhece tudo isso. Já está farto. Eu tenho tudo pela frente... então fico impaciente... tenha a bondade de desculpar.
Otternschlag olhou Kringelein com atenção; até sua pálpebra costurada sobre o olho de vidro parecia olhar.
Olhou-o atentamente e viu uma figura magra, com um terno de funcionário, de um tecido de lã encorpado e grosseiro, já um pouco lustroso. Viu, sob o bigode de diretor de associação, os vincos tristonhos e ansiosos ao lado dos lábios anêmicos. Viu o pescoço descarnado dentro do colarinho duro, muito largo e já no fio, as mãos de escriturário, de unhas maltratadas; viu até as botinas pretas, um pouquinho viradas para dentro, sobre o espesso tapete. E, finalmente, viu os olhos de Kringelein, olhos de um homem, azuis, por detrás do pince-nez de guarda-livros, olhos em que se lia uma enorme ansiedade, um sentimento de espera, de admiração, de curiosidade: sede de vida — e certeza da morte.
Só Deus sabe o calor que irradiou desses olhos sobre a existência amortecida do Dr. Otternschlag. Ou talvez tenha sido por mero aborrecimento que ele disse:
— Está certo. Bem. O senhor tem razão. Oh! O senhor tem toda a razão. Eu já passei por tudo isso. Estou farto, sim. Já passei por tudo, até a última e insignificante formalidade. E o senhor pensa que tem tudo pela frente? Está com apetite, hein? Apetite psíquico, quero dizer. O que é que o senhor imagina? O costumeiro paraíso masculino? Champanha? Mulheres? Correr, jogar, beber? Tiens! E foi cair numa arapuca dessas, logo na primeira noite? E encontrou logo companhia? — disse Otternschlag, impassível, mas agradecido pelo calor do olhar vesgo de Kringelein.
— É, logo, logo. Uma moça queria por força dançar comigo. Uma mocinha linda. Talvez não fosse tão linda... quero dizer, era um pouquinho planta de estufa de cidade grande — disse planta de estufa de cidade grande porque estava habituado a ler isso no jornal Mickenauer Tageblatt —, mas elegantíssima. Bem-educada, também.
— Bem-educada, também! Veja só... veja só! E ficaram amigos? — murmurou Otternschlag.
— Infelizmente eu não sei dançar. É preciso saber dançar, parece ser muito importante isso — respondeu Kringelein, a quem o coquetel dera uma atividade febril, tornando-o tristonho, ao mesmo tempo.
— Muito importante. Muito, mesmo. Importantíssimo — replicou o Dr. Otternschlag com uma estranha vivacidade na voz. — É preciso saber dançar. A união de dois corpos no mesmo compasso, girar abraçado ao par, não é verdade? Não se pode dar tábua em uma moça. É preciso saber dançar. Oh! O senhor tem toda a razão, Herr Kringelein. O senhor se chama Kringelein, não é?
Kringelein olhou, com expressão de curiosidade e inquietação, por baixo do seu pince-nez, a fisionomia de Otternschlag.
— Que quer o senhor dizer com isso? — perguntou, convencido de que estavam zombando dele. Mas Otternschlag continuou sério.
— Pode acreditar-me — afirmou. — Pode acreditar-me, Kringelein: quem não tem atividade sexual é um homem morto. Garçom, quero pagar.
Kringelein também pagou, após essa conclusão abrupta, e levantou-se atrapalhado. Foi andando atrás dos ombros esqueléticos do Dr. Otternschlag, metidos em um smoking estreito, e saiu do bar; foi cambaleando até o porteiro e recebeu sua chave.
— Há cartas para mim? — perguntou Otternschlag ao porteiro da noite. O doutor parecia ter-se esquecido por completo de Kringelein.
— Não — respondeu o porteiro, sem verificar, pois este não era como o outro porteiro, e delicadeza de sentimentos não se adquire imediatamente, mal se coloca na cabeça o boné do fardamento.
— A chave de madame, mademoiselle já a levou — disse ele, em francês, a uma senhora; e Kringelein quase o compreendeu, graças ao seu conhecimento de línguas adquirido na prática de correspondência com o exterior.
A senhora passou por ele, e de sua capa dourada evolou-se um perfume tênue agridoce, quando a gola se abriu junto ao pescoço. Kringelein encarou a senhora, esquecendo as regras da boa educação, e ficou completamente pasmado. A senhora tinha os cabelos pretos e lisos, e usava um diadema na cabeça; suas pálpebras eram oblongas, azul-escuras, com um sombreado também azul-escuro sobre os olhos; as fontes, as faces e o queixo eram cor de marfim, com veiazinhas azuis. A boca, cor de carmim, quase roxa, e bem arqueada, com dois arcos bem altos, que se erguiam quase até as narinas. O cabelo caía de cada lado em dois bandos lisos e pretos, avançando sobre as faces e, no ponto em que terminavam, via-se na pele a sombra de uma leve tonalidade ocre, pintada com extrema arte. A senhora parecia alta, apesar de ser de tamanho médio, devido (Kringelein o percebeu) às proporções perfeitas de seu corpo e ao seu andar adejante. Estava acompanhada por um cavalheiro de idade, baixinho, que trazia um chapéu cilíndrico na mão e tinha o aspecto de um músico.
— Você pode estar no teatro amanhã às oito e meia, querido? — perguntou a senhora, no momento exato em que passava diante de Kringelein. — Eu queria trabalhar meia hora antes de começar o ensaio.
Kringelein, que nunca vira ninguém mais elegante do que esta senhora, ficou a sorrir, deliciado, de tanta admiração, e depois puxou Otternschlag pela manga, soprando-lhe a meia voz:
— Que espécie de mulher é essa?
— O senhor não a conhece, homem de Deus?! A Grussinskaia — disse Otternschlag impaciente, dirigindo-se com a sua perna de pau para o elevador. Kringelein ficou parado no meio do hall.
— A Grussinskaia! — "Ó, diabo, a Grussinskaia!", pensou ele. A fama da Grussinskaia era tão grande que chegara até Fredersdorf. "Ela existe realmente. É assim que ela é. Não é só nos jornais que se leem notícias sobre ela. Ela é de carne e osso. Podemos esbarrar nela, tocá-la e aspirar o seu perfume, pois todo o hall fica perfumado quando ela passa. Preciso escrever ao Kampmann."
Apressou os passos para poder ver de novo a Grussinskaia e contemplá-la com atenção. Em frente ao elevador assistiu a uma pequenina cerimônia de troca de cortesias. Um homem de estatura fora do comum, elegante e bonito, afastou-se da porta do elevador, dando dois largos passos e deixando o caminho livre à Grussinskaia, com um gesto de mão negligente e ao mesmo tempo respeitoso, como se não se tratasse da entrada em um elevador, mas em um reino que um conquistador deposita aos pés da sua soberana. Otternschlag, que do outro lado abria alas sozinho, fez uma careta e rosnou consigo mesmo:
"Sir Walter Raleigh1".
1 Navegador e escritor inglês (1552-1618), favorito de Elisabeth I. (N. do E.)
Kringelein, por seu lado, estava tomado de tal pressa que passou diante de Otternschlag e se meteu no elevador logo atrás dos ombros largos daquele amável jovem. Por essa razão, o seu protetor teve que ficar sozinho, pois a lotação do elevador não podia ultrapassar quatro pessoas. Iam todos muito apertados, naquele pequeno cárcere de vidro e madeira. O jovem bonito, principalmente, encolhia-se no seu canto.
— Ah! Está também em Berlim, barão? — perguntou-lhe o velho maestro Witte. E o Barão Gaigern respondeu:
— Pois é. Sim, senhor. Também estou aqui.
Kringelein ouvia cheio de respeito essa conversa entre pessoas distintas. O maneta girou a manivela e o elevador parou no primeiro andar. Sobre a passadeira cor de framboesa, eles se encaminharam aos seus quartos: na frente, a Grussinskaia; atrás dela, Witte; depois o barão, e por último Otto Kringelein. As portas 68, 69 e 70 foram abertas. Eram duas horas da madrugada, que um velho relógio de mesa, na esquina do corredor, bateu ameaçadoramente. Ouvia-se o ruído abafado da música a tocar a última contradança no pavilhão amarelo.
A Grussinskaia parou um momento entre as duas portas do seu quarto.
— Boa noite, querido — disse ela. Quando estava de bom humor falava em alemão com ele. — Muito obrigada por esta noite. Foi ótima, não foi? Oito chamadas. Ah, diga-me: quem era aquele moço? Nós já não o vimos em algum outro lugar? Em Nice?
— É isso, em Nice, Lisa. Ele se apresentou a mim. Jogamos bridge algumas vezes. Parece ser um grande admirador de Elisavieta.
— Ah! — disse a Grussinskaia. Tirou a mão de baixo da capa e acariciou a manga de Witte, distraidamente. — Estamos com um enorme cansaço. Boa noite, querido. Olhe: é o mais belo homem que já vi na minha vida, esse barão — acrescentou em russo. Disse-o com um tom de voz tão frio, como se falasse apenas de um objeto que se expõe em leilão para ser vendido.
Kringelein, que ficara hesitante à entrada de seu quarto, ouviu, sedento e ansioso de aventuras, aqueles sons estranhos. Tinha a nítida sensação de que o mundo era maior e mais excitante, e mais outras coisas do que ele tinha imaginado em Fredersdorf.
Por fim as portas se fecharam, portas duplas de hotel, que se fecham por detrás das pessoas, deixando-as sozinhas com os seus segredos.
Nem o mais leve resquício de movimento mundano se nota entre as oito e as dez da manhã nas salas e corredores do enorme hotel. Não há luzes acesas nem música tocando, não se veem senhoras — a não ser que se queira considerar um modelo de sedução feminina uma mulher de limpeza que, de avental azul, passa a vassoura no hall, sobre a serragem molhada. Mas Rohna não pensa assim. Já está de novo no seu posto, esse esforçado Conde Rohna, calado, obsequioso, bem barbeado, com a ponta do lenço de seda flamulando discretamente no bolsinho do paletó. Ele acha que só num hotel de segunda classe se faz limpeza na presença dos hóspedes, mas infelizmente isso não é da sua competência, mas sim atribuição da inspetora-chefe. Aliás, os hóspedes nem reparam nisso. Os hóspedes que se encontram no hotel pela manhã são todos senhores sérios, ativos, homens de negócios. Sentados no hall, vendem tudo, oferecendo os produtos em todas as línguas do mundo: papel, algodão em rama, lubrificantes en gros, patentes, filmes, terrenos; vendem planos e ideias, sua energia, seu cérebro e sua vida. Sua primeira refeição é muito farta, e a saleta do café fica cheia de fumaça dos charutos e cigarros, apesar de existir um quadrinho com um tímido aviso, fixado no tapete de damasco amarelo da parede, pedindo aos fumantes que fumem de preferência no salãozinho cinzento, ao lado. Em todas as mesas há jornais; as cabinas telefônicas estão todas ocupadas e assediadas, e o porteiro Senf não vê nenhuma possibilidade de receber qualquer notícia do hospital antes de uma hora da tarde. No corredor do quinto andar, atrás da lavanderia, os grooms são submetidos a uma espécie de revista, antes de começarem o serviço; e, defronte do hotel, no espaço que medeia entre a entrada 1 e a 3, o Grande Hotel pode fazer concorrência a uma Bolsa.
Se tomarmos como exemplo Preysing, diretor-geral da Indústria Algodoeira Saxônia S.A., esse enérgico industrial, que representa o tipo médio dos homens de negócios, ficamos a par da atividade dos homens da sua classe, no Grande Hotel, das oito às dez da manhã.
Preysing, homem avantajado, corpulento, pesadão, chegara ao hotel numa hora incrível, às seis e vinte da manhã, porque na infeliz localidade de Fredersdorf só param trens mistos. Até então não lhe fora possível, apesar de todo o empenho, conseguir um trem expresso. Mas ele devia estar satisfeito por ter conseguido para a fábrica uma linha de conexão, para o transporte das mercadorias. Mas voltemos ao assunto. Preysing estava, portanto, cansado e meio tonto pelos solavancos do trem quando chegou ao hotel, ficando pensativo ao tomar conhecimento de que o apartamento que lhe tinham reservado era um dos mais caros. Primeiro andar, com sala e banho, 71; diária de setenta e cinco marcos. Mas Preysing era um homem econômico: tinha por regra não levar seu carro para Berlim, a fim de economizar a hospedagem do chofer. Porém, como tinha mesmo que pagar um preço tão elevado pelo quarto com banheiro, a primeira coisa que fez foi estender-se na banheira, onde se demorou bastante tempo, gozando o prazer do banho. Exatamente como o outro hóspede de Fredersdorf, Herr Kringelein. Em seguida estendeu-se um pouco sobre a cama, mas não conseguiu libertar-se da sensação da noite mal dormida e dos calafrios da viagem. Ergueu-se novamente, vestiu-se, desfez com pedante minuciosidade a sua valise e pendurou os ternos nos cabides portáteis que trouxera consigo. As botinas, a roupa de baixo, os objetos de uso pessoal, cada coisa vinha dentro de um saquinho de linho muito alvo, e em cada um deles havia um monograma bordado com linha vermelha, em ponto de cruz: K. P.
Enquanto dava o nó na gravata, Preysing ficou olhando distraidamente para a rua, mergulhada ainda na névoa matutina. Era muito cedo, não clareara de todo, as máquinas de limpeza das ruas escovavam o asfalto e os ônibus amarelos aproximavam-se como navios, pela madrugada. Preysing ficou olhando para baixo, sem enxergar coisa alguma. O dia que o esperava não ia ser nada fácil. Era preciso concentrar-se e refletir bem sobre os assuntos a tratar. Tocou a campainha chamando o criado e entregou-lhe pessoalmente as botinas para engraxar, e também as graxas marrom e branca que trouxera. O quarto já se enchera com o cheiro indefinível das rápidas viagens de negócios: couro de valises, Odol, água-de-colônia, terebintina, fumo. Preysing, com os gestos pedantes, lentos e precisos que lhe eram característicos, tirou do bolso a carteira e contou o dinheiro. Na divisão interna estava um grosso maço de notas de mil marcos; por ocasião de negócios, nunca se sabia exatamente quanto dinheiro ia ser preciso. Preysing costumava molhar com a língua o polegar e o indicador, ao contar o dinheiro, com o gesto de um homem saído do nada, enriquecido com o próprio trabalho. Meteu no bolso a carteira e, não contente com isso, ainda prendeu com um alfinete de gancho o bolso interno do paletó de lã grosseira, cor de cinza. Andou pelo quarto, de um lado para outro, de chinelos de couro vermelho, próprios para viagem, e ruminando em silêncio os diálogos que iria manter com o pessoal da Malharia de Chemnitz. Procurou um cinzeiro, mas não o encontrou, e, apesar de não gostar de jogar a cinza do charuto no tinteiro, teve de fazê-lo. Neste aposento também havia uma águia de bronze, semelhante à que deixara encantado Herr Kringelein, no 70. O diretor-geral ficou a tamborilar com os dedos durante alguns minutos nas asas abertas da águia, mergulhado em seus pensamentos; entretanto, o criado trouxe-lhe as botinas engraxadas, e às sete horas e cinquenta minutos Preysing pôde sair do quarto, e foi o segundo a chegar ao barbeiro do hotel. Apesar de estar preocupado, ao sentar-se à mesa, para o café, parecia um sujeito bem-humorado, gordo, sério, com o rosto bem barbeado. Às oito e trinta em ponto, conforme haviam combinado, Herr Rothenburger chegou. Era completamente calvo e não tinha sobrancelhas nem pestanas, o que lhe dava um ar de terno espanto que não combinava nada com o ceticismo de sua profissão. Era um misto de corretor da Bolsa e banqueiro, às vezes também intermediário e, além disso, membro do conselho fiscal de empresas menores. Sabia de tudo o que se passava, punha os outros a par de tudo que sabia, e metia-se em tudo.
Tinha sido o primeiro a divulgar a última notícia falsa a respeito da alta da Bolsa, e a espalhar sinistros boatos, que provocaram oscilações do câmbio. Em resumo, era um homem ridículo, perigoso e útil, esse Herr Rothenburger.
— Bom dia, Rothenburger — disse Preysing estendendo-lhe dois dedos, entre os quais segurava o charuto.
— Bom dia, Preysing — respondeu Rothenburger, empurrando o chapéu para a nuca. Depois sentou-se e pôs uma pasta sobre a mesa. — Aqui na terra, de novo?
— É... — disse Preysing. — Foi muito amável em ter vindo. Que quer tomar? Chá, conhaque, presunto com ovos estrelados?
— Vá lá um conhaque. Tudo bem em casa? Sua senhora? A senhorita sua filha? Tudo bem?
— Obrigado, vai-se vivendo. O senhor foi muito amável em enviar felicitações pelas nossas bodas de prata.
— Ora, era mais do que natural. E a firma, como se manifestou?
— Meu Deus, a firma! Deixei o carro velho para os negócios e recebi um novo em troca.
— É isso, é isso. L’état c'est moi. Um Preysing pode dizer: a firma sou eu, E como vai o senhor seu sogro?
— Obrigado. Otimamente. Ainda gosta de fumar o seu charuto.
— Meu Deus! Há quanto tempo eu o conheço! Quando me lembro como ele começou, com seis teares Jacquard num quartinho... e agora! É fantástico!
— É, o negócio vai indo — disse Preysing, com segunda intenção.
— Todos dizem isso. E dizem também que o senhor mandou construir uma villa magnífica, um verdadeiro castelo, com um parque...
— Nem tanto. Ficou bem bonito. Minha mulher gosta dessas coisas; sabe, fica completamente absorvida nisso. É, está bem bonita agora a nossa casa em Fredersdorf. O senhor precisa visitar-nos qualquer dia.
— Obrigado. Muitíssimo obrigado. É muito gentil da sua parte. Quem sabe se será possível realizar uma pequena viagem de negócios... para compensar as despesas.
Depois das formalidades e gentilezas de praxe, os dois cavalheiros passaram ao assunto principal.
— Ontem foi um dia meio inquieto na Bolsa, hein? — perguntou Preysing.
— Inquieto? Obrigado. Dalldorf é uma delícia, comparado a isto. Mas desde a alta das ações da Bega, todo mundo ficou maluco. Todos pensam que podem fazer negócios sem fundos. Mas ontem, vou-lhe dizer, a coisa estourou, baixa de trinta por cento, baixa de quarenta por cento. Há muita gente morta, que ainda não sabe que morreu. Quem se firmou na Bega... O senhor tem ações de lá?
— Tive. Retirei-me a tempo — disse Preysing; era mentira, uma pequena mentira usual nos negócios, e Rothenburger sabia disso.
— Ora, não se aborreça, eles se reerguem logo — disse ele à guisa de consolo, como se a negativa de Preysing significasse uma afirmativa. — Em que a gente pode ter confiança, se um banco como o Kuesel de Düsseldorf também quebra? Um estabelecimento como aquele! A Saxônia também está entre os credores, não é verdade?
— Nós? Não, absolutamente. Por que julga isso?
— Não? Pensei que estava. Ouve-se falar tanta coisa... mas se os senhores não estão perdendo nada com a bancarrota do Kuesel, então não sei realmente por que razão as ações da Indústria Algodoeira Saxônia baixaram tanto!
— É isso mesmo. Também penso como o senhor. Também não sei a razão. Vinte e oito por cento não é nenhuma bagatela. Muitos títulos se mantiveram firmes, estando já em pior situação do que os nossos.
— É certo. Os títulos da Malharia de Chemnitz mantiveram-se firmes — replicou Herr Rothenburger, sem rodeios. Preysing fitou-o através dos anéis de fumaça que separavam seus rostos de homens de negócios.
— Pois então fale em alemão claro — pediu Preysing, após curta pausa.
— O senhor é que precisa falar em alemão claro, eu não tenho segredos, Preysing. O senhor encarregou-me de comprar pelo melhor preço os títulos da Algodoeira Saxônia e eu comprei: títulos da Algodoeira Saxônia para a Algodoeira Saxônia. Bom. Provocamos uma alta considerável, realmente; cento e oitenta e quatro é bastante. Começaram a dizer que o senhor ia firmar um contrato com a Inglaterra, a cotação subiu. Disseram que o senhor ia fazer sociedade com a Malharia de Chemnitz... as ações subiram. De repente, o grupo de Chemnitz lança todas as ações da Saxônia no mercado... a cotação caiu, naturalmente. Caiu muito mais do que se podia esperar, de acordo com a lógica. A Bolsa é sempre ilógica. A Bolsa é uma mulher histérica, Preysing; estou casado com ela há quarenta anos. O senhor perdeu com a bancarrota do Kuesel. Bom. Com a Inglaterra, nada feito. Também não tem importância. Mas, de qualquer modo, vinte e oito por cento de perda, em um só dia, é demais. Já significa alguma coisa.
— Sim, senhor. Mas o que significa? — perguntou Preysing, enquanto uma ponta da cinza do seu charuto caía na xícara de café já frio. Preysing não era um diplomata. Sua pergunta era tola e inoportuna.
— Significa que a Malharia de Chemnitz se retira. O senhor sabe disso tão bem quanto eu. O senhor veio correndo para cá para salvar o que ainda for possível salvar. Mas que posso aconselhar-lhe? O senhor não pode obrigar o grupo de Chemnitz a cair nos seus braços. Se Chemnitz lançou no mercado todas as ações da Saxônia que possuía, isso significa que não tem mais interesse na Algodoeira Saxônia. Agora trata-se de saber o que é possível salvar para o senhor, nesta desagradável situação. O senhor quer continuar a adquirir suas próprias ações? Agora pode comprá-las por preço baixo.
Preysing não respondeu logo, ficando a refletir, o que lhe custou enorme esforço. Era um homem às direitas, o diretor-geral, um homem correto, leal, limpo por dentro e por fora. Mas não era um gênio, como homem de negócios; faltava-lhe fantasia, talento persuasivo, envergadura. Bastava que se exigisse dele uma decisão firme e ficaria a escorregar como se estivesse patinando sobre gelo. Quando dizia uma inverdade, faltava-lhe força convincente. Conseguia apenas inventar umas pequeninas e insignificantes mentiras de ofício, sem nenhum alcance. Punha-se logo a gaguejar, e sob o bigode surgiam-lhe gotinhas de suor.
— Afinal, se o grupo de Chemnitz não aceitar a fusão, isso é com eles; eles precisam mais de nós do que nós deles. E se não tivessem adquirido esse novo processo de tingir, nós não teríamos nisso o menor interesse — disse ele finalmente, pensando ter dado uma resposta muito hábil. Rothenburger ergueu os seus dez grossos dedos e deixou-os cair de novo sobre a mesa do café, bem juntinho ao pote de mel.
— Mas Chemnitz está de posse do processo para tingir. E a Saxônia tem interesse nisso — disse ele amavelmente.
Preysing já tinha dez respostas prontas na ponta da língua. "Nós não perdemos nada com o Kuesel", quis ele dizer. E também: "O negócio com a Inglaterra não está absolutamente fora de cogitação". E ainda: "A Malharia de Chemnitz faz baixar nossas ações exatamente porque quer fazer a fusão: é uma maneira de criar melhores condições para ela". Mas, afinal, não conseguiu dizer nada disso, apenas afirmando:
— Pois é, vamos ver o que acontecerá! Depois de amanhã tenho uma conferência com uns senhores da Chemnitz.
— Pfu! — exclamou Rothenburger, soltando ruidosamente a fumaça da garganta. — Uma conferência? Qual deles vai aparecer? Schweimann? Gerstenkorn? São espertos, esses senhores. Com eles é preciso estar de olho aberto. Para lidar com essa gente o seu sogro é que viria a calhar, não me leve a mal. Bem, quer dizer que a Saxônia ainda não está perdida? Preciso contar isso na Bolsa. Se não ajudar, mal também não faz. Bem, que se vai fazer? O senhor pretende que compremos de novo ações de algodão? Se hoje não aparecer alguém que sustente a coisa, assistiremos a uma bela quebra, é Rothenburger quem lhe diz. Então?
E Herr Rothenburger abriu o fecho da sua pasta e tirou dela uma ordem de pagamento.
Preysing ficara vermelho no alto do nariz, entre as sobrancelhas, quando Rothenburger aludira indelicadamente a seu sogro, e um passageiro rubor deslizou por sobre suas narinas. Tirou do bolso a caneta-tinteiro e, após ligeira hesitação, assinou o papel.
— Até quarenta mil, limitada por cento e setenta — disse com frieza, pondo um traço largo e arrogante sob sua assinatura. Era um protesto contra seu sogro e contra Herr Rothenburger.
4
Preysing ficou de péssimo humor na saleta do café, quando se viu só. Sentia um leve zunido nos ouvidos, pois sua pressão não estava em ordem; com frequência, durante conversas importantes, sentia um peso na nuca. No ano anterior ele tivera alguns contratempos, e o de agora também não parecia ser dos mais agradáveis. Não era coisa muito fácil continuar firme, agora que na Chemnitz queriam tirar o corpo fora. E o velho, sentado lá em casa na cadeira de rodas, nos seus acessos de caduquice, ficava a estourar de prazer sempre que acontecia algum contratempo ao genro. As negociações com as estradas de ferro estaduais a respeito do expresso não tinham levado a nada. O novo processo de tingir, que permitia dar a tecidos baratos cores que até então só se usavam para tecidos de primeira, tinha sido furtado sob suas barbas pela S.A. Malharia de Chemnitz. Com o contrato da Inglaterra lidavam há meses sem resultado, e Preysing já estivera por duas vezes em Manchester; cada vez que voltava as negociações iam de mal a pior, podendo considerá-las desde já como rompidas. O velho ficara sabendo da história com a firma de Chemnitz e tratara de fazer astutamente negociações preliminares; Gerstenkorn fora a Fredersdorf, visitar as instalações da fábrica, e trocaram um palavreado que não conduziu a nada. O célebre jurista Dr. Zinnowitz, perito em matéria comercial, apresentara um projeto de contrato, que não tinha sido firmado ainda: para cada duas ações do grupo de Chemnitz, uma da Saxônia. Era um bom negócio para a fábrica — e também não era muito mau para a firma de Chemnitz —, a Bolsa estava a par disso e o mundo de negócios têxteis também. De repente, a firma de Chemnitz começou a querer tirar proveito sozinha. E justamente agora, que a coisa estava mesmo uma porcaria, o velho mandava o pobre Preysing para remendar os rasgões.
— Diabo do inferno! — disse Preysing, que por descuido tomara um gole de café frio misturado com a cinza do charuto. Em seguida se levantou. Tinha as costas moídas, por causa da viagem no trem misto; bocejou com as mandíbulas contraídas e sentiu os olhos molhados. Desanimado e desejando ser confortado, dirigiu-se ao compartimento dos telefones, pedindo uma ligação urgente com Fredersdorf 48.
Fredersdorf 48 não era o telefone da fábrica, mas da villa de Preysing. A ligação não foi muito demorada, e Preysing colocou comodamente o cotovelo sobre a mesinha do aparelho, para acalmar-se, conversando com sua mulher.
— Bom dia, Mulle — disse ele. — É, sou eu. Você estava dormindo, Mulle? Ainda está na cama?
— Que é que você está pensando? — respondeu o telefone com uma voz longínqua, mas de timbre arredondado e cheio, uma voz que o diretor-geral amava sincera e fielmente. — Já são nove e meia! Já tomei café e já reguei minhas plantas. E você?
— All right — respondeu Preysing, com exagerado entusiasmo. — Vou ter daqui a pouco uma conferência com o Zinnowitz. Está bonito o dia aí? Está sol?
— Está — a voz tinha um ligeiro acento saxão, conhecido e familiar. — O tempo está bom. Imagine só, as flores de açafrão abriram todas de uma vez esta noite.
Preysing via, através do telefone, as flores de açafrão, a sala do café com os móveis de vime, o abafador de ráfia sobre a cafeteira, a mesa posta, com os capuchinhos de tricô sobre os copinhos dos ovos. Via Mulle também, com o roupão azul e de chinelos, segurando o regador dos cactos, de bico pontudo.
— Sabe, Mulle, isto aqui está muito sem graça — disse ele. — Você devia ter vindo comigo. Sinceramente.
— Ora, deixe disso — respondeu o telefone satisfeito, rindo-se com a risada simpática de Mulle.
— Estou tão acostumado com você... Olhe, esqueci-me do aparelho de barbear, vou ter que ir diariamente ao barbeiro.
— Eu já sabia. Você o esqueceu no banheiro. Sabe, compre outro; em qualquer loja se pode comprar barato um aparelho; não é mais caro do que ir ao barbeiro todos os dias, e é mais agradável.
— É, sim... é verdade. Você tem razão — disse Preysing, agradecido. — Onde estão as meninas? Gostaria de dizer-lhes bom-dia.
O telefone sussurrou qualquer coisa incompreensível, muito de longe, e depois exclamou em tom claro:
— Bom dia, Peps!
— Bom dia, Pepsin! — respondeu Preysing, alegre. — Como vai?
— Bem! E você?
— Também vou bem. Babe está aí?
Sim, Babe também estava lá, e também perguntou, com sua voz de dezessete anos, como ele ia passando, se o tempo estava bom, e se lhe levaria de Berlim algum presente; as flores de açafrão tinham aberto; Mulle não a deixava jogar tênis; estava fazendo muito calor e Schmidt talvez pudesse preparar o campo, não? Mulle disse depois qualquer coisa, em seguida Pepsin, e por fim o telefone disparou aos gritos e risadas com três vozes diferentes, até que a telefonista se meteu na conversa e Preysing desligou. Continuou por um instante na cabina e, sem que ele próprio o conseguisse explicar, teve a impressão de estar tomando sol no parapeito morno de uma janela, segurando nas mãos aquecidas um ramo de açafrão azul.
Sentiu-se aliviado, ao sair da cabina. Muitos diziam que o diretor-geral vivia preso às saias da mulher, e não deixavam de ter uma certa razão. Muito excitado, fez nova ligação, desta vez para o banco, a fim de tratar da cobertura para os quarenta mil marcos, uma quantia absurda, cuja ordem de pagamento ele, em desespero, assinara por conta própria a Herr Rothenburger. Durante os desagradáveis dez minutos em que o diretor-geral ocupou a cabina 4, Kringelein descera a escadaria do hotel, deliciando-se a cada passo que dava sobre o tapete vermelho-framboesa, sobre o qual podia andar com tanta distinção. Chegou, finalmente, à portaria. Trazia de novo uma flor na lapela, a mesma da noite anterior, que ele colocara no copo da escova de dentes, e se conservara relativamente fresca — um cravo branco. Kringelein considerava o seu aroma penetrante um complemento indispensável à sua elegância.
— O cavalheiro pelo qual o senhor perguntou ontem acaba de chegar — avisou o porteiro.
— Que cavalheiro? — admirou-se Kringelein.
O porteiro examinou o livro de registros de entradas.
— Preysing, o Diretor-Geral Preysing, de Fredersdorf — disse ele, olhando atentamente para o rosto miúdo e afilado do guarda-livros.
Kringelein respirou tão violentamente que mais parecia ter soltado um suspiro.
— Ah, sim. Está bem. E onde posso encontrá-lo? — perguntou, com os lábios pálidos.
— Deve estar na saleta do café.
Kringelein afastou-se, num estado de extrema tensão nervosa. Sua espinha se encurvou para trás, tal a sua excitação. "Bom dia, Herr Preysing", pensou. "Está bom o café? Pois é, eu também sou hóspede do Grande Hotel. É isso mesmo! Será que o senhor tem alguma coisa contra isso? Talvez seja proibido a pessoas como eu hospedarem-se aqui? Olhe! Também temos o direito de viver como bem entendemos."
"Ah!", pensou a seguir, "por que hei de ter medo de Preysing? Ele não pode fazer nada contra mim. Vou morrer logo, ninguém pode me prejudicar." Assaltou-o a mesma sensação sutil de liberdade que sentira na mata de Mickenau, com as framboesas. Cheio de coragem, entrou na saleta do café, movimentando-se já com bastante segurança naquelas dependências fashionable. Procurou Preysing. Queria falar com Preysing a todo custo. Tinha contas a ajustar com Preysing. Aliás, era por isso que estava no Grande Hotel. "Bom dia, Herr Preysing!", diria.
Mas Preysing não estava na saleta do café. Kringelein foi-se arrastando pelo corredor, meteu a cabeça na sala de correspondência, no salão de leitura, procurou no boxe dos jornais, chegando ao exagero de perguntar ao groom 14 por Herr Preysing. Por toda a parte sacudiam a cabeça, ignoravam onde ele se encontrava. Kringelein, que já se aborrecera e estava quase estourando com a quantidade de coisas que queria desabafar, chegou à entrada de uma dependência que não conhecia ainda.
— Tenha a bondade de desculpar, conhece Herr Preysing, de Fredersdorf? — perguntou à telefonista.
Esta apenas inclinou a cabeça, sem dar resposta, porque estava muito ocupada. Apontou com o polegar por sobre o ombro. Kringelein ficou vermelho e em seguida empalideceu. Nesse momento, Preysing, pensativo, saía da cabina 4.
Então aconteceu o seguinte: Kringelein encolheu-se todo, curvou a nuca, sua cabeça inclinou-se, a espinha, que estava bem aprumada, afrouxou, as pontas dos sapatos se encolheram, a gola do paletó subiu até a nuca, os joelhos amoleceram e as calças formaram pregas transversais sobre as pernas bambas. No espaço de um segundo, o rico e distinto Herr Kringelein transformou-se em um pobre e insignificante guarda-livros; um ser subalterno que parecia esquecer-se de que dentro de poucas semanas não viveria mais, e portanto gozava de inúmeras vantagens em relação a Herr Preysing, que ainda teria que atormentar-se e consumir-se por anos e anos, com milhares de coisas aborrecidas. O guarda-livros Kringelein afastou-se, com as costas coladas à porta da cabina 2, atencioso, e murmurou com a cabeça inclinada, exatamente como na fábrica:
— Bom dia, senhor diretor-geral.
— Bom dia — respondeu Preysing, passando por ele sem lhe dirigir o olhar. Kringelein continuou ainda um minuto colado à parede, engolindo, cheio de vergonha, a saliva amarga. Sentia dores de novo, dores que pareciam perfurar-lhe o estômago, sua metade de estômago, enferma e moribunda, que destilava secretamente, e quando bem lhe parecia, os venenos de uma morte lenta.
Nesse ínterim, Preysing continuava o seu caminho, dirigindo-se ao hall, onde o conhecido advogado, Dr. Zinnowitz, especialista em assuntos comerciais, já estava à sua espera.
Há duas horas que o Dr. Zinnowitz e o Diretor-Geral Preysing se conservavam sentados num recanto sossegado do jardim de inverno, curvados sobre documentos. A pasta de Preysing esvaziara-se, o cinzeiro ao seu lado enchera-se de pontas de charutos e as costas de suas mãos estavam ligeiramente suarentas, como costumavam ficar por ocasião de negociações difíceis. O Dr. Zinnowitz era um senhor idoso, baixote, com o semblante de um mágico chinês; pigarreou, como a se preparar para começar um discurso. Com atitude professoral, colocou a mão sobre a pasta, e disse:
— Caro Preysing, resumindo: vamos à conferência de amanhã com enormes desvantagens. É péssima a cotação de nossas ações — e ao dizer isso batia com os dedos sobre um bilhete que um boy lhe entregara um pouco antes do meio-dia, o qual trazia a notícia de uma nova baixa de sete por cento para as ações da Algodoeira Saxônia. — Nossas ações estão em má situação, e o momento psicológico, se assim me posso exprimir, foi mal escolhido para um encontro tão importante como este. O senhor também sabe que, se amanhã o grupo de Chemnitz disser não, a fusão vai por água abaixo. Não se pode tentar mais uma vez. E é possível, em vista da situação atual, que eles digam não. Não o quero afirmar com segurança, mas é natural que o façam, é muito provável, mesmo.
Preysing escutava, cheio de impaciência; estava nervoso. As palavras formais do advogado o irritavam. Zinnowitz falava como se estivesse sempre em assembleia-geral, mesmo quando estava completamente só. Quando ele apoiou as articulações dos dedos sobre a mesa, a leve mesinha de vime do jardim de inverno transformou-se em uma mesa de conferências, coberta de feltro verde, prenhe de decisões importantes e definitivas.
— Não será melhor bater em retirada?
— Não se pode bater em retirada sem causar uma péssima impressão. É preciso considerar também se, com uma prorrogação, iremos ganhar ou perder. De qualquer modo, ainda há algumas chances, que temos de abandonar por completo caso se bata em retirada.
— Que chances? — perguntou Preysing.
Ele não podia livrar-se do péssimo hábito de perguntar coisas que estava farto de saber. Por esse motivo, as negociações com Preysing se prolongavam indefinidamente, tornando-se pedantes e confusas.
— O senhor conhece as chances tão bem quanto eu — afirmou o Dr. Zinnowitz, em tom de censura. — Trata-se, como sempre, da situação em que se encontram as negociações com a Inglaterra. Conforme a minha opinião, Manchester, Burleigh & Son, de Manchester, é o ponto principal. A Malharia de Chemnitz quer ganhar o mercado para seus produtos manufaturados. Burleigh & Son tem, em grande parte, esse mercado nas mãos, e recebe continuamente grandes encomendas de produtos de malha manufaturados. Eles próprios só produzem a matéria-prima, mas gostariam de exportar o seu algodão para a Alemanha, recebendo em troca, na Inglaterra, o produto manufaturado de Chemnitz. Eles têm grande interesse em comerciar com Chemnitz. A razão por que não fazem isso diretamente o senhor sabe tão bem quanto eu, meu caro Preysing: a firma de Chemnitz não dá aos ingleses a impressão de ser muito sólida. Estes estão hesitantes, porque o negócio não lhes parece ter uma base muito segura. A coisa muda de figura, caso a Saxônia S.A. se associe a Chemnitz. Burleigh & Son deposita grandes esperanças nisso. Parece que eles pensam, desculpe, meu caro, que o seu negócio, um pouco parado, receberia um impulso, e o grupo de Chemnitz, que é demasiado afoito, se consolidaria mais. Por conseguinte, Burleigh & Son só tem interesse na Saxônia caso ela se alie à Malharia de Chemnitz. E Chemnitz, por seu lado, só quer a fusão se o senhor fizer contrato com Burleigh & Son, assegurando assim o mercado inglês. Agora, cada firma está à espera de que o contrato entre o senhor e o outro esteja firmado. Quer saber a minha opinião? As negociações foram conduzidas de maneira desastrosa, do contrário não estaríamos neste beco sem saída. Quem entrou em negociações com Manchester?
— Meu sogro — respondeu Preysing apressadamente. Isso não era exato, e Zinnowitz, que estava bem informado a respeito da luta pela direção na Algodoeira Saxônia, sabia perfeitamente que Preysing não estava dizendo a verdade. Passou a palma da mão sobre a mesa, ignorando a resposta de Preysing. Seu gesto significava: deixemos isso de lado.
— Tenho mantido — continuou ele — permanente contato com o grupo de Chemnitz — Zinnowitz gostava de usar as expressões enérgicas do seu tempo de capitão da reserva —, e posso descrever-lhe com exatidão a disposição em que ele se encontra. Schweimann desistiu por completo da fusão, e Gerstenkorn já está vacilante. Por quê? A importante firma Companhias Reunidas S. J. R. fez sondagens com o grupo de Chemnitz, para saber se eles venderiam sem exigir a fusão. Se venderiam sem mais delongas. Naturalmente, nesse caso, Schweimann e Gerstenkorn participariam do conselho fiscal, e teriam, além disso, postos remunerados à parte, ao passo que agora ainda correm algum riscos. Pelo contrário, se o negócio com Burleigh estivesse esclarecido, então o que eu acredito que aconteceria — é esta a minha humilde opinião — é que eles recusariam a oferta da S. J. R., e optariam pela fusão com o senhor. É esta a situação em que eles se encontram. Quanto à sua situação, Preysing, com respeito a Manchester, não estou muito bem informado. Seu sogro escreveu-me, mas de modo pouco claro...
Preysing cortou de novo as claras considerações do jurista.
— Essa história da oferta da S. J. R. é um fato ou apenas falatório? Quanto ofereceram a Chemnitz? — perguntou ele.
— Isso não vem ao caso — respondeu Zinnowitz, que o ignorava.
Preysing esticou para a frente o lábio inferior, onde se apoiava um charuto, e ficou a refletir. "Vem ao caso, sim", pensou, sem conseguir esclarecer, a si próprio e ao outro, qual a razão.
— O negócio com Burleigh não vai indo tão mal assim — disse ele, hesitante.
— Muito bem também não, ao que parece — replicou prontamente o jurista.
Preysing apanhou a pasta, largou-a, tornou a pegá-la, tirou o charuto da boca — já com a ponta toda mordiscada — e só no terceiro assalto tirou da pasta de couro um dossiê de papelão azul, onde se encontravam algumas cartas e cópias de outras.
— Aqui está a correspondência mantida com Manchester — disse apressadamente, estendendo ao jurista o dossiê. Arrependesse depressa. Nova camada de suor frio porejou nas costas de suas mãos; tentou fazer girar a aliança no dedo, num gesto que lhe era habitual, e não o conseguiu. — Mas tenho de pedir-lhe a máxima reserva, isto é estritamente confidencial — disse ele em tom implorante.
Zinnowitz lançou-lhe apenas um olhar enviesado, sem tomar conhecimento das cartas. Preysing calou-se. Podiam ouvir-se as delicadas batidas das toalhas, ao serem colocadas sobre as mesas, no salão de refeições. Sentia-se o cheiro característico de todos os hotéis do mundo, antes da comida: um leve cheiro de carne assada, que abre o apetite antes da refeição, e depois se torna insuportável. Preysing sentia fome. Lembrou-se, subitamente, de Mulle e da mesa posta, com as filhas em volta.
— É — disse o Dr. Zinnowitz, afastando as cartas e fitando, com olhar pensativo e absorto, a base do nariz de Preysing.
— Então? — perguntou Preysing.
— Volto agora — continuou Zinnowitz — ao ponto de partida. Por enquanto, as negociações com Burleigh & Son continuam e, por conseguinte, temos ainda essa chance importante nas mãos, para exercer pressão sobre o grupo de Chemnitz. Se adiarmos a conferência e Burleigh se retirar, o que é bem possível, de acordo com sua última carta, de... de 27 de fevereiro, perderemos essa chance. Então perderemos todas as chances, a bem dizer. Assim, em vez de nos sentarmos sobre duas cadeiras, sentaremos entre duas cadeiras.
De súbito, a testa de Preysing ficou roxa; uma onda de sangue subiu sob a sua pele ligeiramente enrugada, engrossando as veias. Às vezes ele tinha esses acessos de furor, esse afluxos de sangue, esses violentos acessos de cólera.
— Toda essa conversa não conduz a nada. Temos que conseguir a fusão — afirmou ele, elevando a voz e dando um murro em cima da mesa. O Dr. Zinnowitz esperou um instante para responder.
— Acho que a Saxônia não irá à falência, sem essa fusão.
— Não. É claro que não. Ninguém está falando em falência — respondeu Preysing, excitado. — Mas teríamos que diminuir nossos gastos. Teríamos de despedir operários na fiação. Teríamos de... sabe o que mais? Tenho de consegui-lo, e acabou-se. Há ainda o fato de... há outras razões. Trata-se de minha autoridade dentro da fábrica, o senhor compreende? Afinal, toda a organização da fábrica é obra minha. E a gente quer conservar o prestígio, também. O velho está ficando idoso demais. E com meu cunhado eu não me dou bem. Digo-lhe com toda a franqueza, o senhor conhece o rapaz, não me dou bem com ele. Esse rapaz trouxe certos costumes de Lyon que não aprecio nos negócios. Não gosto de blefes. Não gosto desses fogos de artifício. Meus negócios são feitos com base. Não construo castelos de cartas! Por enquanto eu estou lá, e quem manda sou eu!
O Dr. Zinnowitz olhava com interesse para o excitado diretor-geral, a dizer coisas que iam além do que ele podia garantir.
— O senhor é conhecido no seu ramo como um homem de negócios exemplar — observou ele, cortesmente; notava-se em suas palavras um leve tom de piedade.
Preysing parou de falar. Pegou em seu dossiê azul, e meteu-o, com os dedos trêmulos, na pasta de couro.
— Então estamos de acordo — disse Zinnowitz. — A conferência será realizada amanhã, e vamos procurar por todos os meios forçar a assinatura do contrato prévio. Mas eu gostaria de saber... Ouça — disse ele daí a um minuto, após haver refletido em silêncio. — E se o senhor me entregasse algumas cartas? As mais importantes, compreende, do início das negociações? Vou falar à tarde com Schweimann e Gerstenkorn. Não prejudicaria coisa alguma, se eu as mostrasse... naturalmente não mostraria todas, mas apenas algumas.
— É impossível — respondeu Preysing. — Prometemos a Burleigh & Son a maior discrição.
Zinnowitz sorriu ao ouvir isso.
— É a história de sempre — declarou. — Mas faça o que julgar melhor. A responsabilidade é sua. Hic Rhodus, hic salta. Se soubermos conduzir com jeito as negociações em Manchester, ganharemos a partida. Esse é o único ponto que poderia compensar o negócio quase perdido com Chemnitz. Seria necessário pôr nas mãos de Schweimann algumas cartas, como uma coisa sem importância e casual. As mais importantes, compreende? Algumas cópias. Mas faça o que quiser. O senhor é o responsável.
— Não me agrada fazer isso, é uma coisa pouco limpa — respondeu Preysing. A cobertura de quarenta mil marcos para Rothenburger comprar ações ainda lhe estava a dificultar a digestão; sentia de fato azia, de tanta excitação, e suas têmporas zuniam, acaloradas. — As negociações com Chemnitz começaram antes do caso de Burleigh. Entre nós e Gerstenkorn nunca foi trocada uma só palavra a esse respeito. De repente tudo vira para esse lado. Se o grupo de Chemnitz nos quer aceitar apenas como um negócio dependente do assunto com a Inglaterra, e a coisa parece ser essa, como poderemos justificar a nossa correspondência? Não! Isso eu não faço.
"É teimoso como um jumento", pensou o Dr. Zinnowitz, e apertou o fecho da sua pasta, cuja fechadura deu um leve estalido.
— Com licença — disse ele. E, cerrando os lábios, pôs-se de pé.
De súbito, Preysing resolveu concordar.
— O senhor tem alguém que possa copiar algumas dessas cartas? De qualquer maneira eu poderia entregar-lhe duas cópias de cada. Os originais não saem de minhas mãos — disse ele apressadamente e elevando a voz, como se procurasse encobrir a de seu interlocutor. — É preciso que seja uma pessoa discreta e de confiança. Preciso ditar também um outro assunto de que necessito para a conferência. As datilógrafas arranjadas por intermédio do hotel não me agradam. Ficamos com a impressão de que elas vão contar ao porteiro os segredos comerciais. É preciso que seja logo depois do almoço.
— Infelizmente nenhum dos empregados do meu escritório dispõe de tempo — disse Zinnowitz com frieza, e ligeiramente surpreendido. — Ficamos com alguns assuntos importantes em atraso, e o meu pessoal há várias semanas tem feito trabalho extra. Mas espere um pouco... podia-se mandar a Flaemmchen para o senhor. A Flaemmchen serve-lhe. Vou mandar telefonar para ela.
— Para quem? — perguntou Preysing, chocado com o diminutivo.
— Para a Flaemmchen. A Flamm número dois. A irmã da minha secretária, a Flamm número um, que o senhor conhece, não é? Há vinte anos que está trabalhando comigo. A Flamm número dois nos tem auxiliado muitas vezes quando temos excesso de trabalho de cópias no escritório. Já a levei também numa viagem, porque a Flamm número um não podia ir. Ela é muito ativa e inteligente. Tenho que ter as cópias até as cinco horas. Farei isso como uma coisa à parte das negociações oficiais, durante o jantar com os senhores de Chemnitz. A Flaemmchen pode levar-me as cópias diretamente. Vou telefonar já à Flamm número um para que ela mande a irmã. Para que horas ficou marcada a conferência de amanhã?
O Dr. Zinnowitz e o Diretor-Geral Preysing, dois senhores corretos, com pastas já bem usadas debaixo do braço, saíram do jardim de inverno, atravessaram o corredor e, passando diante da portaria, chegaram ao hall onde se encontravam muitos outros senhores parecidos com eles, com pastas idênticas e conversando de maneira semelhante à deles. Algumas senhoras apareciam de novo; acabavam de sair do banho e vinham perfumadas, com os lábios pintados recentemente. Com um gesto elegante e despreocupado, calçavam as luvas antes de passar pela porta giratória e sair para a rua, cujo asfalto escuro estava banhado pelo clarão amarelo do sol.
No momento em que atravessava o hall para ir ao compartimento telefônico, Preysing ouviu alguém pronunciar seu nome. O groom 18 veio correndo pelos corredores, chamando com sua voz clara e aguda de menino, a intervalos regulares:
— Senhor Diretor Preysing! Senhor Diretor Preysing, de Fredersdorf! Senhor Diretor Preysing!
— Estou aqui! — exclamou Preysing, estendendo a mão para pegar um telegrama. — Com licença — disse ele; abriu o telegrama e leu-o, enquanto atravessava o hall ao lado do Dr. Zinnowitz. Esfriou até a raiz dos cabelos, durante a leitura, e com um gesto mecânico colocou na cabeça o chapéu-coco.
O telegrama dizia:
As negociações com Burleigh & Son fracassaram totalmente. Broesemann.
Não adiantava mais. "Não é mais preciso mandar a moça, Dr. Zinnowitz. Não adianta. Ponto final com Manchester", pensou Preysing, continuando a caminhar em direção ao compartimento telefônico. Meteu o telegrama no bolso do sobretudo, apertando-o entre o polegar e o indicador. "Não adianta mais. Não preciso mais mandar fazer as cópias", pensou ele, pretendendo dizê-lo também.
Mas não o disse. Pigarreou, pois tinha ainda na garganta a fuligem da viagem noturna.
— O tempo ficou magnífico — disse ele.
— Já estamos em fins de março — retrucou Zinnowitz, que afastara as preocupações com os negócios e voltava a ser um particular que gostava de apreciar "meias de seda" a caminhar.
— A cabina 2 vai vagar logo — informou a telefonista, colocando os pinos vermelhos e verdes nos orifícios. Preysing apoiou-se à porta acolchoada da cabina, e seus olhos fixaram-se mecanicamente no postigo, num dorso largo que se encontrava lá dentro. Zinnowitz falou qualquer coisa que ele não compreendeu. Sentiu um ódio violento por Broesemann, e o sangue lhe subiu à cabeça. Ódio daquela vaca, daquele procurador que enviava um telegrama desses, justamente quando era preciso ter a cabeça bem erguida para um negócio tão difícil. Evidentemente, o velho estava por trás daquele telegrama, aquele velho caduco, com a sua maldade e a sua rabugice: a porcaria está feita, mostre agora do que é capaz. Estava realmente desesperado o pobre diretor-geral, com seus nervos arrasados, a cabeça cheia de preocupações e sua consciência tranquila, em meio a negócios confusos e complicações tremendas. Procurou concentrar os pensamentos, que giravam, dispersos, em todas as direções. O Dr. Zinnowitz falava ao seu lado, no tom de um gozador empedernido, a respeito de uma nova revista toda prateada, tudo de prata. A porta da cabina contra a qual Preysing se apoiara cheio de desânimo fez pressão contra suas omoplatas. Depois forçaram suavemente a porta, e um homem alto, de excepcional beleza e amabilidade, vestido com uma capa azul, forçou a saída. Em vez de reclamar, o homem ainda se desculpou com algumas palavras corteses. Preysing, completamente absorto, fixou os olhos no rosto do homem que ele enxergava com toda a clareza, estranhamente próximo, e também se desculpou, conforme a praxe. Zinnowitz já estava dentro da cabina, pedindo ligação para a Flamm número dois, a Flaemmchen, talvez uma solteirona competente, que ia copiar cartas que já não tinham sentido nenhum, absolutamente nenhum. Preysing sabia que devia pôr um ponto final nisso tudo, mas não conseguiu reunir as energias necessárias para isso.
— Tudo arranjado — informou o Dr. Zinnowitz, saindo da cabina. — Às três horas a Flaemmchen estará aqui. Máquinas de escrever há em quantidade no hotel. Às cinco horas eu recebo as cartas. Ainda falarei com o senhor por telefone, antes de vencer esta dificuldade. Até logo, e bom apetite.
— Bom apetite — repetiu Preysing, dirigindo-se para as folhas de espelho da porta giratória em movimento, que levou o advogado para a rua. Lá fora fazia sol. Na rua, um pobre homenzinho vendia violetas. Ninguém se preocupava com fusões e acordos difíceis. Preysing tirou do bolso do sobretudo a mão direita, e com a esquerda pegou o telegrama, aquele telegrama que ele mantivera agarrado entre os dedos, até que o Dr. Zinnowitz desaparecesse num táxi. Dirigiu-se para uma mesa do hall, alisou cuidadosamente o papel, dobrou-o com cuidado e meteu-o no bolso interno de seu terno cinza-escuro, impecável.
Às três horas e cinco minutos, a campainha do telefone despertou Herr Preysing da sua sesta. Levantou-se da chaise-longue (descalçara as botinas, tirara o colarinho e o paletó), com a sensação de desamparo e desgosto que costuma sobrevir após uns minutos de sono roubado, nos hotéis. As cortinas amarelas estavam fechadas, o calor seco do aquecimento central enchia o aposento. Preysing tinha na face direita a marca do seu travesseiro de viagem. O telefone tilintava com impaciência. Uma senhora esperava pelo senhor diretor no hall, avisou o porteiro.
— Mande essa senhora subir — disse Preysing, ar-rumando-se às pressas. Dificuldades inesperadas foram comunicadas pelo telefone, com a máxima cortesia. O hotel tinha princípios e regulamentos. O chefe de recepção em pessoa, desculpando-se, e com o sorriso compungido de um homem traquejado, comunicou-o a Herr Preysing. Não era permitido receber visitas de senhoras nos aposentos, e infelizmente não se podiam fazer exceções.
— Mas, meu Deus do céu, não se trata de uma visita. Essa moça é minha secretária, preciso trabalhar com ela, o senhor precisa compreender — disse Preysing, impaciente.
O sorriso telefônico do chefe de recepção acentuou-se. Rogava-se ao senhor diretor que tivesse a bondade de dirigir-se com essa senhora à sala de ditados, que estava à disposição dos hóspedes para esse fim. Preysing desligou, batendo com o fone no gancho. Sentia-se completamente fora de seus hábitos; era horrível. Lavou as mãos, gargarejou com água dentifrícia, lutou com o botão do colarinho e a gravata, e em seguida desceu para o hall.
Ali estava sentada a Flaemmchen, Fräulein Flamm número dois, irmã de Fräulein Flamm número um. Não era possível existir no mundo duas irmãs mais diferentes. Preysing recordava-se vagamente da Flamm número um como de uma pessoa de confiança, com cabelos incolores, um punho protetor na manga direita, um maço de papel sob o braço esquerdo, que, na sala de espera, com cara de poucos amigos, barrava a entrada aos visitantes indesejáveis, no escritório do Dr. Zinnowitz. A Flamm número dois, pelo contrário, não possuía absolutamente essa segurança. Estava sentada comodamente em uma poltrona maple, como se estivesse em casa, balouçando os pés calçados com sapatos de verniz azul; dava a aparência de alguém que se preparava para divertir-se à larga, e teria no máximo vinte anos de idade.
— O Dr. Zinnowitz mandou-me para bater as cópias. Sou a Flaemmchen, que ele prometeu mandar-lhe — informou ela, sem cerimônias.
Bem no centro da boca, a Flaemmchen pintara uma mancha redonda de batom, descuidadamente, às pressas, apenas porque estava na moda. Quando se levantou, viu-se que era mais alta do que o diretor-geral; tinha longas pernas, usava, na cintura extremamente fina, um cinto de couro bem apertado, e suas formas eram magníficas, da cabeça aos pés. Preysing ficou furioso com Zinnowitz, que o punha em situações idiotas assim. Compreendeu os escrúpulos do chefe de recepção. Ela estava perfumada, além do mais. Teve desejos de mandá-la embora.
— Acho que precisamos apressar-nos — disse ela com uma voz de timbre grave e ligeiramente rouco, que as menininhas costumam ter. Pepsin, a filha mais velha do diretor-geral, tinha uma voz assim, quando era pequena. — Então a senhora é a irmã de Fräulein Flamm? Eu conheço Fräulein Flamm — disse ele, num tom mais de grosseria que de surpresa.
Flamm número dois estendeu um pouquinho o lábio inferior e soprou um cacho de cabelo que lhe caía na testa, por debaixo da sua boinazinha de feltro. O caracolzinho dourado elevou-se e tornou a cair lentamente sobre a testa. Preysing não o queria ver, mas não pôde deixar de fazê-lo.
— Irmã só por parte de pai — disse a Flaemmchen. — Eu sou filha da segunda mulher de meu pai. Mas nos damos muito bem.
— Ah, sim — disse Preysing, olhando-a com a vista turva.
Ela teria agora que copiar cartas que haviam perdido todo o sentido, todo o significado. Há vários meses ele vinha combinando tudo a respeito da sociedade com Burleigh & Son; não conseguia mudar subitamente o rumo de seus pensamentos. Não conseguia, de modo algum, riscar e apagar todo esse assunto. "Fracassaram totalmente. Broesemann. Totalmente." Era preciso ditar uma carta dirigida ao Broesemann, uma carta cheia de fel. Ao velho também, por causa dos quarenta mil marcos. Se Chemnitz desistisse, no dia seguinte, os quarenta mil para sustentar o câmbio teriam sido atirados à rua.
— Vamos. Vamos então para a sala de correspondência — disse Preysing, com expressão sombria, caminhando na frente dela pelo corredor. A Flaemmchen riu-se, divertida, atrás da nuca gorducha de Preysing.
A distância já se ouviam as máquinas de escrever, como um fogo distante de fuzilaria, e os sininhos tilintavam a espaços regulares. Quando Preysing abriu a porta, a fumaça dos cigarros saiu como uma enorme serpente azul.
— Ótima acústica — disse a Flaemmchen, erguendo as asas arredondadas de suas narinas.
Lá dentro, um senhor andava de um lado para outro, de mãos nas costas, o chapéu tombado para a nuca, ditando num americano mastigado. Era o manager de uma empresa cinematográfica; lançou à Flaemmchen um rápido olhar de conhecedor, e continuou a ditar.
— Qual! — disse Preysing, fechando a porta. — Não é possível. Quero um gabinete só para mim. Estas eternas chicanas aqui no hotel!
Desta vez foi caminhando atrás da Flaemmchen, pelo corredor. Estava agora encolerizadíssimo, e, em meio ao seu ódio, o balancear dos quadris da Flaemmchen provocava-lhe uma suave ardência no sangue.
No hall, a Flaemmchen também foi observada com admiração. Era um exemplar magnífico do seu sexo, quanto a isso não havia dúvida. Preysing achava desagradabilíssimo atravessar o hall com uma criatura tão espetacular, e deixou-a sozinha, indo conversar com Rohna sobre a possibilidade de não ser perturbado no compartimento das máquinas de escrever. A Flaemmchen, completamente indiferente aos olhares de que era alvo — santo Deus, estava tão acostumada a isso! — passou pó de arroz no nariz, descuidadamente, de pé, no meio do hall, depois tirou uma pequena cigarreira do bolso do casaco, com gestos de rapazinho, e se pôs a fumar. Preysing aproximou-se dela como de uma moita de urtigas.
— Temos de esperar dez minutos — disse ele.
— Bem — disse a Flaemmchen. — Mas depois precisamos trabalhar depressa. Tenho de estar às cinco no escritório de Zinnowitz.
— A senhora é tão pontual assim? — perguntou Preysing, de mau humor.
— Se sou!... — replicou a Flaemmchen com um sorriso travesso. Seu nariz ficou curto como o de um nenenzinho, e as meninas de seus olhos castanho-claros rolaram para os ângulos das pálpebras.
— Bem, então sente-se, enquanto isso — convidou Preysing. — E peça ao garçom qualquer coisa. Garçom, sirva esta moça — mandou ele, sem qualquer delicadeza, afastando-se em seguida.
— Um sorvete de pêssego Melba — pediu a Flaemmchen, inclinando a cabeça, satisfeita.
Soprou de novo a madeixa de cabelo, sem êxito. A Flaemmchen tinha formas perfeitas, como as de um cavalo de raça, e a impaciente impertinência de um cachorrinho novo.
O Barão Gaigern, que perambulava pelo hall há algum tempo, contemplou-a a distância, encantado. Após um instante, aproximou-se dela, cumprimentou-a e disse a meia voz:
— Posso sentar-me ao seu lado, minha senhora? Mas vejo que não está me reconhecendo. Nós dançamos juntos em Baden-Baden, lembra-se?
— Não é possível! Nunca estive em Baden-Baden — disse a Flaemmchen, olhando o jovem com atenção.
— Ah, minha senhora! Desculpe-me! Agora estou vendo que... devo ter-me enganado. Confundi-a com outra pessoa! — exclamou o barão, com ar hipócrita.
A Flaemmchen deu uma risada.
— Não é a mim que o senhor engana com esse velho truque — disse ela com secura.
Gaigern deu uma gargalhada.
— Então deixemo-nos de truques. Posso ficar sentado a seu lado? Posso? A senhora tem razão, não é possível confundi-la com ninguém. Como a senhora, só é possível existir no mundo uma pessoa, minha senhora. Mora aqui? Vem dançar no chá das cinco? Por favor, por favor, gostaria tanto de dançar com a senhora... Quer?
Colocou as mãos sobre a mesa. As da Flaemmchen já ali estavam pousadas. Havia um pequeno espaço entre os dedos dele e os dela, e o ar que os separava começou a vibrar. Os dois se olharam, simpatizaram mutuamente, e ambos se compreenderam, os belos jovens.
— Meu Deus, como o senhor é rápido! — exclamou a Flaemmchen, encantada.
Igualmente encantado, Gaigern respondeu:
— A senhora promete? Vem ao chá das cinco?
— Ao chá não posso. Tenho o que fazer. Mas à noite estou livre.
— Oh! Oh! À noite eu não posso. Mas amanhã, ou depois de amanhã... Às cinco horas? Aqui? No pavilhão amarelo? Com certeza?
A Flaemmchen lambeu a colher do sorvete e calou-se, com ar brejeiro. Para que muitas palavras? Trava-se conhecimento com alguém como se acende um cigarro.
Tiram-se umas tragadas somente para tomar o gosto, e depois a faísca se acende.
— Como se chama a senhora? — perguntou logo Gaigern.
Nesse momento, Preysing aproximou-se da mesa com ares de proprietário. Gaigern ergueu-se, cumprimentou-o e, com atitude amável, colocou-se por trás da cadeira.
— Já podemos começar — disse Preysing, aborrecido. A Flaemmchen estendeu a mão enluvada a Gaigern, enquanto Preysing olhava a cena com ar de desagrado. Reconheceu o jovem da cabina telefônica, e via novamente esse rosto com toda a nitidez, com todos os seus poros, com os menores detalhes.
— Quem é esse sujeito? — perguntou ele, caminhando meio de viés ao lado da Flaemmchen, com um andar bamboleante.
— Ah!... um conhecido — respondeu ela.
— É? A senhora deve ter muitos conhecidos, não?
— Assim, assim. A gente deve fazer-se um pouco de rogada. E não é sempre que tenho tempo.
Por motivos obscuros, esta resposta agradou ao diretor-geral.
— A senhora está empregada? — perguntou ele.
— No momento, não. No momento estou procurando emprego. Ora, logo se arranja. Sempre acabo arranjando alguma coisa — disse a Flaemmchen, com filosofia. — Eu gostaria de trabalhar no cinema. Mas é tão difícil o início da carreira... Se eu conseguisse começar, depois podia me arranjar. Mas o início da carreira é dificílimo!...
Olhou de frente para Herr Preysing com uma expressão preocupada e cômica. Agora, a Flaemmchen tinha o ar de uma gatinha. Toda a graciosidade felina parecia ter-se concentrado em seu rosto, numa expressão cambiante. Preysing, completamente alheio a esses conhecimentos, abriu a máquina de escrever, perguntando:
— Por que justamente o cinema? Todas vocês têm a mania do cinema — nesse "todas" incluía também sua filha Babe, de quinze anos, que era louca pela sétima arte.
— Ora, porque sim! Mas não tenho ilusões a esse respeito. Sou muito fotogênica, é o que todos dizem — continuou a Flaemmchen, tirando o casaco. — Devo estenografar ou escrever diretamente na máquina?
— Na máquina, faça o favor — respondeu Preysing. Sentia-se agora um pouco mais animado e de melhor humor. Afastara do cérebro o fato de Manchester ter ido por água abaixo, e, ao retirar do dossiê as tão promissoras cartas dessa correspondência, sentiu uma agradável impressão. A Flaemmchen continuava a falar sobre os seus assuntos particulares.
— Sou sempre fotografada para jornais e revistas, e também já posei para anúncios de sabonete. Como se consegue isso? Meu Deus! Um fotógrafo conta ao outro. Sou um ótimo nu artístico, sabe? Mas pagam pouquíssimo. Dez marcos por fotografia. Imagine o senhor. Ora! O que eu preferia era que alguém me levasse nesta primavera, de novo, como secretária, em alguma viagem. No ano passado estive em Florença com um senhor que trabalhava em um livro, um professor. Um encanto de homem! Talvez este ano apareça também qualquer coisa — disse ela, endireitando a máquina na mesa.
Era evidente que a Flaemmchen tinha preocupações, mas essas preocupações não pesavam mais do que o caracol da sua testa, que ela afastava com um sopro, de instante a instante. Preysing, que não conseguia introduzir no círculo de suas ideias a observação objetiva a respeito do nu artístico, quis falar qualquer coisa sobre negócios. Em vez de fazê-lo, pôs-se a observar atentamente as mãos da Flaemmchen, que colocavam na máquina a folha de papel, e disse:
— Que mãos morenas a senhora tem! Onde toma tanto sol assim?
A Flaemmchen observou com atenção as próprias mãos, levantou um pouco as mangas e fitou sua pele de cor parda com ar sério.
— É da neve, ainda. Fui esquiar em Vorarlberg. Um conhecido me levou. Uma beleza. O senhor devia ter-me visto quando eu voltei! ... Então, podemos começar?
Preysing dirigiu-se, por entre a fumaceira dos charutos, ao canto mais afastado da sala, e começou a ditar:
— A data, já pôs a data, senhorita? Prezado Herr Broesemann, Broese ... já escreveu? Com relação ao seu telegrama desta manhã, devo comunicar-lhe...
A Flaemmchen continuou a escrever com a mão direita, enquanto tirava com a esquerda o gorrinho, que parecia incomodá-la. A sala dava para um escuro poço de ventilação, as lâmpadas verdes do escritório estavam acesas. Em meio ao assunto comercial, Preysing pôs-se a pensar em uma cômoda antiga, uma velha cômoda de bétula, que se encontrava no vestíbulo, em Fredersdorf.
Só à noite se lembrou disso novamente, quando sonhou com a Flaemmchen e despertou. Seu cabelo tinha a cor e a cintilação da madeira antiga de bétula, com reflexos claros e escuros. Deitado em sua cama, à noite, via esse cabelo com toda a nitidez, enquanto respirava o ar seco do quarto de hotel, vendo desfilar rapidamente as luzes do anúncio contínuo, nas cortinas fechadas. A pasta em cima da mesa, naquele quarto escuro, o enervava. Levantou-se de novo para fechá-la na mala; em seguida, gargarejou com Odol e lavou as mãos outra vez.
Este apartamento aborrece-o, é caro e sem conforto; consiste apenas em uma saleta minúscula com sofá, mesa e cadeiras, um quartinho de dormir estreito, e, ao lado, o banheiro. A torneira está pingando um pouco; pinga, pinga, por entre o sono de Preysing. Levanta-se novamente, sobressaltado, e vai acertar o despertador. Esqueceu-se de comprar o aparelho de barbear e precisa ir cedo ao barbeiro. Adormece mais uma vez, e torna a sonhar com a datilografa e seus cabelos cor de bétula. Desperta, e enxerga novamente o anúncio correndo sem cessar pelas cortinas; a noite passada numa cama estranha, angustiosa, dá-lhe uma impressão de nojo e confusão. Ele sente um medo incrível da conferência com Schweimann e Gerstenkorn; seu peito bate com um ruído surdo. Desde o momento em que mostrou as cartas da Inglaterra, não pode livrar-se de um sentimento estranho, como se as palmas de suas mãos estivessem sujas. Finalmente, já quase adormecendo de novo, ouve alguém andando lá fora, pisando na passadeira e assobiando baixinho. Ouve também o senhor do 69 colocando uns pares de despreocupados sapatos rasos, de verniz, diante da porta, como se a vida fosse um divertimento.
5
Kringelein, no 70, também o ouviu e despertou com o ruído. Havia sonhado com a Grussinskaia. Ela surgira na tesouraria onde ele trabalhava, apresentando contas atrasadas. Kringelein, o guarda-livros de Fredersdorf, que está sofrendo de claustrofobia, quer ainda agarrar a vida por uma fímbria, antes de morrer. Sente uma fome desmesurada, mas suporta muito pouco alimento. Com frequência, durante esses dias, seu corpo debilitado apodera-se da direção e o força a recolher-se ao quarto, em meio a todo aquele tumulto. Kringelein começa a odiar sua enfermidade, apesar de ela lhe ter dado coragem para sair de Fredersdorf. Comprou um remédio: Bálsamo de Vida do Dr. Hundt. A intervalos regulares toma um gole, cheio de esperanças, esforçando-se por não sentir o gosto amargo de canela, e em seguida sente algum alívio.
Distende os dedos enregelados, na escuridão, e se põe a fazer cálculos. É desagradável o fato de seus dedos terem tendência para morrer enquanto está dormindo. Esgueiram-se números no quarto, de rostos baixos, até que ele acende a luz e desperta completamente. É pena que o rico Herr Kringelein não possa libertar-se de um costume de Herr Kringelein pobre: ter de fazer contas. Dentro de sua cabeça os números desfilam incessantemente, maldosos, colocando-se em colunas, e somando-se e diminuindo-se sem o auxílio de Kringelein. Kringelein possui um caderninho que trouxe de Fredersdorf, diante do qual fica sentado durante horas. Nele anota as suas despesas, as despesas absurdas de um homem que aprende a gozar a vida, que gasta em dois dias o ordenado de um mês. Sente com frequência tonturas tão fortes que tem a impressão de ver as paredes forradas com tapeçaria de tulipas caírem em cima dele. Por vezes fica sentado na borda da cama, pensando que vai morrer em breve. Seu pensamento vai-se concretizando, e então, assustado, fica com as orelhas geladas, entortando os olhos, cheio de medo e angústia. Não consegue, entretanto, fazer a mínima ideia do que é a morte. Tem esperanças de que não seja muito diversa de uma narcose, com a diferença de que, após a narcose, a gente desperta, sente náuseas, e sobrevêm as dores (Kringelein batizou-as secretamente de dores azuis); espera também que todos esses vexames, bem seus conhecidos, sejam sofridos antes, e não depois. Depois de meditar em tudo isso, principiou a tremer; de fato, sucede por vezes a Kringelein tremer com medo da morte, apesar de não conseguir imaginar como ela seja.
Há muita insônia por detrás das portas duplas fechadas do hotel adormecido. Precisamente a essa hora, o Dr. Otternschlag coloca no lavatório uma pequenina ampola de injeção, joga-se na cama e esvai-se na leve nebulosidade das regiões morfínicas. Mas o Maestro Witte, cujo quarto, o 221, fica na ala esquerda, não consegue adormecer. Os velhos dormem pouco. Seu aposento fica exatamente defronte ao do Dr. Otternschlag, e em sua parede também gorgoleja a água; o elevador ronca aos solavancos. É quase um quarto de empregados, o quarto onde se hospeda. Sentado à janela, encosta na vidraça a testa abaulada de músico e fica olhando fixamente a parede fronteiriça. Trechos de uma sinfonia de Beethoven vêm-lhe à memória — nunca a dirigiu. Ouve Bach — o monumental "Crucifica-o", da Paixão de São Mateus. "Malbaratei a minha vida!", pensa o velho Witte. E toda a música que não foi cantada em sua vida se concentra em sua garganta, num aglomerado amargoso, que ele traga com esforço. Às oito e meia da manhã é o ensaio. Sentado ao piano, precisa repetir sempre a mesma marcha para os pliés das mocinhas, sempre a mesma Valsa da primavera, a Mazurka, a Bacanal. "Devia ter abandonado Elisavieta enquanto era tempo", pensa ele; agora não era mais possível. Elisavieta já estava velha e não se podia abandonar uma mulher idosa. Agora era preciso aguentar junto dela o pouco tempo que ainda restava.
E Elisavieta Alieksandrovna Grussinskaia também não consegue dormir, sentindo o tempo correr, no meio da noite, apressado, incessante; há dois relógios a tiquetaquear no quarto escuro: um de bronze, na escrivaninha, e o reloginho-pulseira, no criado-mudo. Ambos marcam os mesmos segundos e, no entanto, um bate mais depressa do que o outro, o que provoca palpitações do coração, quando se presta atenção ao seu tique-taque. Grussinskaia acende a luz, levanta-se, enfia os pés nos chinelos acalcanhados e vai até o espelho. No espelho também se evidencia o tempo, principalmente no espelho. Evidencia-se ainda nas críticas, na horrível falta de delicadeza da imprensa, no sucesso das bailarinas feias e com luxações, que estão agora na moda, no déficit das tournées, nos fracos aplausos, na maneira vulgar com que Meyerheim, o manager, se exprime — em toda parte, em toda parte se evidencia o tempo. Nas articulações fatigadas dos pés estão os anos passados a dançar; também na respiração opressa à trigésima segunda pirueta clássica; e também no sangue que, com frequência, nas ondas de calor da idade crítica, atravessa a garganta e aflui às faces. Faz calor no quarto, apesar de estar aberta a porta da varanda. Lá fora, as buzinas dos automóveis gritam durante toda a noite. A Grussinskaia tira seu adereço de pérolas da pequena suitcase, dois punhados de pérolas frias, e encosta-as ao rosto. Não adianta; as pálpebras continuam quentes, coloridas pela pintura e a iluminação da ribalta; os pensamentos são como gumes penetrantes; os dois relógios disparam como cavalos a galope. Sob o queixo, a Grussinskaia tem uma atadura de borracha; suas mãos e lábios estão cheios de creme. Olha-se ao espelho quando passa por ele, e acha-se tão feia que apaga depressa a luz. No escuro, engole um veronal e desata num choro enraivecido, o pranto de uma mulher inconsolável e apaixonada. Depois, tomba sobre nuvens, e finalmente cai no sono.
Ao lado chegou alguém, no elevador, talvez o jovem de Nice. A Grussinskaia arrasta-o consigo em seu sonho pesado, sob a ação do veronal; o senhor do 69 — o homem mais belo que ela já viu em toda a sua vida.
Quando ele chega, vem assobiando baixinho, um assobio nada desagradável, exprimindo simplesmente alegria. Ao entrar no quarto fica mais cauteloso, veste o pijama e calça uns chinelos bonitos de couro azul; depois, desliza em silêncio, como um ser intermediário entre gato montes e moço bonito. Quando passa pelo hall, é como se num aposento gelado se abrisse uma janela ensolarada. Dança maravilhosamente bem, com frieza e paixão. Tem sempre no quarto algumas flores — adora as flores e gosta de sentir o seu perfume. Chega, por vezes, a lamber as suas pétalas tenras — como um bicho. Na rua, acompanha as moças com um andar bamboleante de pugilista, contentando-se, por vezes, em olhá-las, com enorme prazer; a umas, dirige algumas palavras, e a outras acompanha até a casa ou leva a um hotel de segunda classe. E quando, pela manhã, com uma expressão santarrona de gatão, entra no hall quase vazio do Grande Hotel, com ar distinto e morigerado, e pede a chave do quarto ao porteiro, este não pode deixar de sorrir. Às vezes vem bêbado, com uma bebedeira discreta e cheia de animação, que ninguém pode levar a mal. De manhã torna-se um pouco desagradável para quem está hospedado no quarto debaixo do seu, porque faz ginástica; ouve-se seu corpo cair no solo com um ruído suave, compassadamente. Usa pequeninas gravatas-borboleta, moles, e paletós bem folgados. Suas roupas caem sobre os músculos tão confortavelmente como a pele dos cachorros de raça pura. Por vezes sai em disparada no seu carrinho de quatro lugares, e não é visto durante dois dias. Passa horas e horas a perambular pelas agências de automóveis, observando os carros; enfia a cabeça sob a tampa, para ver o motor; aspira gasolina, óleo, metal em combustão; bate nos pneus; alisa a pintura brilhante, o couro da carroçaria — azul, vermelho, bege — e, se o deixassem sozinho, era capaz, talvez, de lamber tudo. Compra cordões de calçado a vendedores ambulantes, isqueiros inúteis, pequenas galinhas de borracha e dez caixas de fósforos. De repente tem desejos de ver cavalos; levanta-se às seis horas da manhã, vai de ônibus até Tattersall, fareja o ar repleto de poeira de serragem, de cheiro de arreios, estéreo e suor, trava amizade com algum cavalo, monta e vai até o jardim zoológico, fartando-se de passear em meio à neblina cinzenta da manhã, que paira sobre as árvores de março, e retorna mais calmo ao hotel. Já o encontraram no pátio dos empregados, atrás da escada de serviço, parado junto de uma lata cheia de água de lavagem e restos de comida, olhando para cima, para os cinco andares do hotel, até o lugar em que a antena está presa, sob o céu descolorido. Talvez tivesse alguma pretensão de conquistar a única camareira bonita do hotel; bonita, imoral e já despedida. Trava muitos conhecimentos entre os hóspedes do hotel, distribui selos, aconselha, no caso de excursões, leva em seu carro senhoras idosas, serve de parceiro no jogo de bridge, e é grande conhecedor dos vinhos do hotel. No dedo indicador da mão direita usa um anel com sinete de lápis-lazúli, com o brasão dos Gaigern, um falcão sobre ondas. À noite, quando se deita, conversa com os seus travesseiros, em dialeto bávaro. "Gruess Gott", diz ele, aproximadamente, "boa noite, você é muito boazinha, minha querida cama, e muito ajuizada." Adormece logo, e nunca incomoda os vizinhos com roncos inconvenientes, gargarejos e botinas atiradas ao chão. Seu chofer costuma contar, lá embaixo, na sala dos despachos, que o barão é um homem muito correto, mas bastante simplório. No entanto, também um Barão Gaigern, por detrás de portas duplas, tem seus segredos e seus escaninhos ocultos.
— Não há nada de novo? — perguntou ao chofer. O barão está no meio do tapete, completamente nu, fazendo massagem nas coxas. Tem uma plástica magnífica, com a caixa torácica um tanto abaulada, como a dos pugilistas; a pele de seus ombros e das pernas é morena, e só entre as coxas e o tronco há uma zona clara, no lugar em que um maio lhe cobriu o corpo durante o verão. — Então, você não sabe de nenhuma novidade?
— Ora, basta! — respondeu o chofer, que estava deitado na chaise-longue coberta com uma imitação de Kilim, o cigarro colado ao lábio inferior, pois estava fumando. — Você pensa que eles vão ficar esperando eternamente em Amsterdam? Schalhorn já desembolsou cinco mil marcos, você pensa que isso vai continuar indefinidamente? Emmy está entocada há um mês em Springe, à espera da nossa encomenda. Em Paris foi uma porcaria. Em Nice foi uma porcaria. Se você hoje não conseguir nada, vai ser de novo uma porcaria. Se Schalhorn não receber os cinco mil, vai achatar-nos.
— Schalhorn é o chefe? — perguntou o barão calmamente, despejando água-de-colônia nas palmas das mãos.
— Um chefe tem de ser atirado, é o que eu digo — rosnou o chofer.
— Tem de ser atirado quando está na hora de agir, é verdade. Não gosto da maneira como você e Schalhorn trabalham, não concordo. É por essa razão que acontece sempre alguma coisa com vocês. Comigo nunca aconteceu nada e Schalhorn sempre recebeu a parte que lhe cabe. Se Emmy está nervosa em Springe, não me serve, foi o que lhe disse a última vez. Se ela nem é capaz de ficar sossegada na sua loja de objetos de arte aplicada, enquanto manda Moehl copiar os engastes antigos...
—- Pouco nos importam os engastes antigos. Trate antes de trazer as pérolas, depois pode mandar fazer os engastes antigos. Isso tudo foi ideia sua. Primeiro, parecia que tudo ia dar certo, as pérolas valem meio milhão. Bom, se descontarmos dois meses de despesas, ainda sobra alguma coisa. Talvez seja mais fácil livrar-se delas em engastes antigos, bom, concordo. Agora, Moehl, lá em Springe, está copiando as joias da sua avó, Emmy está ficando maluca, Schalhorn está ficando louco. Não confie nessa mulher; ela é bem capaz de lhe pregar uma peça, se perder a paciência. Então, quando vai ser a coisa? Quando é que o senhor barão vai parar de divertir-se e começar a trabalhar um pouquinho de novo?
— Você já está com apetite, hein? Já se esqueceu dos vinte e dois mil marcos de Nice, e está se arriscando a levar uma grande descompostura — disse o barão, ainda com bastante amabilidade; já tinha calçado meias de seda pretas, presas com ligas brancas de seda, e elegantes sapatos de verniz, com que costumava dançar. Mas ainda estava nu.
Qualquer coisa na sua nudez despreocupada e sem cerimônia excitava o chofer; talvez a queda suave dos ombros, ou o modo macio de as costelas se elevarem por sob a pele, enchendo de ar os pulmões. O chofer cuspiu a ponta do cigarro no meio do quarto e levantou-se.
— Quer saber de uma coisa? — disse ele, inclinando-se sobre a mesa. — Já estamos fartos de você. Você não é dos nossos. Você não leva nada a sério, compreendeu? Para você, tanto faz ir jogar ou apostar nas corridas de cavalos, surripiar com toda a gentileza a uma velha solteirona vinte e dois mil marcos ou ir buscar pérolas no valor de meio milhão; para você tanto faz. É tudo a mesma coisa, pensa você. Mas há uma diferença em tudo isso, quando alguém não sabe bancar o chefe. E se você não for embora por livre e espontânea vontade, será forçado a fazê-lo, compreendeu?
— Deita, já! — disse Gaigern amavelmente, e com um silencioso golpezinho de jiu-jítsu torceu o pulso do chofer. — Para ir-me embora não preciso de você. Preciso somente que você prepare o nosso álibi hoje à noite. Esta noite, às doze e vinte e oito, você pode partir para Springe com as pérolas, e de manhã, às oito e dezesseis, estará de volta. Às nove, mando que toquem a campainha no seu quarto, e você precisa ir logo para o batente; depois convidaremos qualquer pessoa para passear conosco. Se você pestanejar durante o escândalo que vai haver no hotel, amanhã, mando prendê-lo. Agora há pouco perguntei-lhe se havia alguma novidade.
O chofer, com estrias vermelhas em volta do pulso, pôs de novo a mão no bolso. Dava a impressão de não querer responder — mas respondeu.
— Ela agora costuma chegar ao teatro só às seis e meia, porque anda nervosa — rosnou ele, dominando-se a custo. — Depois do espetáculo há uma ceia de despedida na casa do embaixador francês. Não vai além das duas da madrugada. Amanhã, às onze, ela viaja, fica dois dias em Praga, depois segue para Viena. Estou realmente curioso para ver quando é que você vai surripiar as pérolas dela, entre o espetáculo e a ceia, se tudo correr sem percalços. Não existe no mundo um buraco tão favorável como esse pátio de teatro sem iluminação — acrescentou ele. Quis resmungar ainda qualquer coisa mas não olhou mais para o barão, que, nesse meio tempo, se transformara em um senhor de smoking.
— Ela não está mais usando as pérolas. Deixa-as no hotel — afirmou Gaigern, prendendo a gravata preta.
— Ela própria o contou a um repórter idiota que a foi entrevistar, você pode ler nos jornais.
— O quê? Ela as deixa simplesmente no quarto... não as entregou no hotel para serem guardadas no cofre? Como? Pode-se ir ao seu quarto buscá-las?
— É mais ou menos isso — disse o Barão Gaigern.
— Agora quero que me deixem em paz — disse ele cortesmente à boca idiota e espantada do seu companheiro. Via uma goela de um vermelho escuro e duas falhas de dentes. Sentiu um ódio ardente e repentino por aquela espécie de gente a que se ligara. Os músculos do seu pescoço se contraíram violentamente.
— Vamos — foi só o que disse. — Às oito, quero o carro em frente à porta principal.
O chofer, humilhado, olhou o rosto de Gaigern, e retirou-se, não dizendo nada do que queria dizer e que ficou entalado na sua garganta.
— O senhor do quarto 70 é inofensivo — murmurou como uma última consideração; e, com um movimento subserviente de lacaio, apanhou no chão o pijama azul.
— É um ricaço esquisitão, recebeu uma herança enorme e agora está esbanjando a fortuna.
O barão já não o ouvia mais. O chofer, supersticioso, parando entre as duas portas, cuspiu três vezes para trás; depois fechou o trinco sem fazer barulho.
Pouco antes das oito da noite, o barão apareceu no hall, animado e muito bem disposto, vestido de smoking e de impermeável azul. Nem mesmo Pilzheim, o detetive do hotel, desconfia que esse Apoio amável está preparando um álibi. O Dr. Otternschlag, que está bebendo café no hall com o extenuado Kringelein, antes de irem juntos ao espetáculo da Grussinskaia, com o dedo erguido em riste, aponta para o barão.
— Olhe, Kringelein: era assim que deveríamos ser
— disse ele, zombeteiramente e com inveja.
O barão põe um marco na mão do groom 18 e diz:
— Meus cumprimentos à senhorita sua noiva! — e se aproxima da portaria. O porteiro Senf olha para ele com expressão obsequiosa, mas sonolenta. É já a terceira noite que o porteiro Senf tem que esconder suas preocupações pessoais, por ter a mulher no hospital.
— O senhor arranjou para mim as entradas para o teatro? Quinze marcos? Muito bem — disse ele ao porteiro. — Se alguém perguntar por mim, estou no Teatro Alemão, e depois no Clube do Oeste. Vou ao Clube do Oeste — disse, e, dando dois passos, dirigiu-se ao Conde Rohna: — Imagine o senhor quem eu encontrei lá: Ruetzow, aquele sujeito alto! Ele esteve com o senhor e o meu irmão no batalhão Ulanos de 74. Está trabalhando agora no ramo de automóveis. Vocês todos são pessoas trabalhadoras; só eu é que sou um boa-vida, um lírio do campo, hein? O meu chofer está lá fora, porteiro?
Com o barão, entrou uma brisa quente pela porta giratória, e o hall sorriu com agrado para ele. Entrou no seu carrinho e partiu, atrás do álibi. Às dez e meia deram um telefonema para o hotel, do Clube do Oeste.
— Aqui fala o Barão Gaigern. Alguém perguntou por mim? Estou no Clube do Oeste, e só daqui a duas horas, ou um pouco mais tarde, chegarei ao hotel. Meu chofer pode ir deitar-se.
Ao mesmo tempo que essa voz preparava cavalheiresca e precavidamente um álibi, Gaigern estava colado à parede da frente do Grande Hotel, entre duas pedras que imitavam cantaria. Sua situação não era das mais cômodas, mas ele se sentia alegre, com a satisfação entusiástica do caçador, do lutador e do alpinista. Conservava para a sua empresa o pijama azul-escuro, despreocupadamente; calçava leves sapatos de pugilista, com solas de cromo, e por precaução enfiara, sobre eles, meias de lã, meias para esportes de inverno, que evitavam indesejáveis pegadas. Gaigern calculara o caminho para o quarto da Grussinskaia, da sua própria janela; devia ter pouco menos de sete metros, e ele já estava no meio do caminho. As pedras imitando cantaria do Grande Hotel eram cópias das lajes ásperas do Palazzo Pitti, e tinham uma aparência pomposa; se não se partissem agora, estava tudo bem. Gaigern colocava as pontas dos pés, cuidadosamente, nas reentrâncias do reboco. Usava luvas, que durante o percurso o estavam atrapalhando. Não podia tirá-las, enquanto subia pela parede do segundo andar como um escaravelho.
— Diabo! — exclamou ele, quando a argamassa e o reboco se quebraram sob as suas mãos, indo bater com um ruído seco no andar de baixo, no parapeito de metal de uma janela.
Sentiu a garganta seca e controlou a respiração, como um corredor da Aschenbahn. Firmou-se de novo, balanceou o corpo, durante um instante, sobre a ponta do dedo maior, com perigo de vida, e impeliu a outra perna meio metro para a frente. Assobiou baixinho. Estava agora excitadíssimo e por isso assobiava, fingindo sangue-frio, como um meninote. No principal, que eram as pérolas, ele não pensava de modo algum durante esses minutos. Afinal de contas, essas pérolas poderiam ser conseguidas também de outra maneira. Um soco na cabeça de Suzette, sobre seu chapeuzinho de feltro já cocado, quando ela saísse à noite do teatro, com a suitcase. Um assalto à noite ao quarto da Grussinskaia; finalmente, quatro passos pelo corredor, uma chave falsa e uma expressão inocente, ao ser descoberto em um quarto em que entrara por engano. Mas não era do seu feitio fazer isso, não o fazia de modo algum. "Cada um deve agir conforme a sua natureza", tinha dito Gaigern ao seu bando, procurando explicar-lhes seu modo de agir. Esse bando era um grupo de espertalhões, que há dois anos ele procurava conservar unido, mas estava sempre à beira da revolta. "Não gosto de pegar a caça na armadilha; não subo montanhas com corda. O que não posso ir buscar com minhas próprias mãos, tenho a impressão de que não é meu."
É natural que essa conversa provocasse uma atmosfera de incompreensão entre ele e o seu bando. A palavra "coragem" não era de uso corrente entre eles, apesar de cada um deles possuir uma boa dose de coragem. Emmy, em Springe, com sua cabeça dura como um coco, procurara certa vez explicar o que acontecia com Gaigern. "Para ele isso é um esporte", afirmava ela; e como tinha muita intimidade com Gaigern, devia ter razão. Pelo menos, nesse momento, às dez e vinte da noite, escalando a fachada do Grande Hotel, ele tinha o aspecto de um esportista, um turista numa passagem difícil, um chefe de expedição, avançando em local perigoso.
O lugar perigoso era a reentrância angulosa, por trás do banheiro da Grussinskaia. Ali, a fantasia do arquiteto idealizara uma superfície lisa: também não havia cornija na janela, o banheiro escondia-se numa reentrância, dando para aquele pátio, onde certa vez o barão foi visto a observar as antenas. Mas, depois desses dois metros e meio lisos, começavam já as barras de ferro da grade da varanda do 68. Ligeiramente arquejante, ora assobiando, ora soltando pragas, Gaigern parou na última saliência que lhe podia oferecer segurança, antes do trecho liso que se seguia. Os músculos de suas coxas tremiam, e nas articulações dos pés sentia a vibração quente e latejante provocada pelo violento esforço. Afora isso, estava satisfeito com a situação, pois tudo correspondia ao que ele calculara uma centena de vezes.
Gaigern não podia ser visto lá de baixo, naquela rua formigante de gente da grande cidade, porque estava completamente protegido pelo enorme refletor que o hotel mandara colocar na fachada, há pouco tempo. Quem olhasse para cima ficaria ofuscado pelos feixes claros da luz. Era completamente impossível perceber uma figurinha azul-escura, por detrás dessa luz agressiva, a se mover na sombra. Gaigern tinha visto, num teatro de revistas, o truque de um mágico que enviara na direção do público uma luz ofuscante como essa, enquanto, diante do pano de fundo de veludo escuro, executava suas mágicas, serrando moças ao meio e fazendo voar esqueletos no palco. Gaigern descansou atrás do segundo refletor e olhou para a rua, lá embaixo; do ponto em que estava, enxergava aquele trechinho do mundo completamente contorcido e achatado. A parede que descia reta olhava para ele com uma aparência hostil e maldosa. Inclinou a cabeça justamente nesse momento, e olhou para baixo, prendendo a respiração, sem piscar sequer. Não tinha a menor sensação de vertigem; apenas no pulso, por debaixo das luvas, a vibração suave e excitante, bem conhecida dos alpinistas. A torre redonda de Ried, no castelinho de Gaigern, era mais alta ainda. Quando ele fugia à noite de Feldkirch, era preciso escorregar pelo para-raios. Os Drei Zinnen, nos Dolomitos, também não eram brincadeira. Os dois metros e meio até o terraço não eram fáceis de atravessar, mas havia coisa pior. Gaigern não olhou mais para baixo, e ergueu os olhos por um momento. Defronte, um anúncio luminoso, contínuo, passava no telhado, e de uma taça de champanha borbulhavam lâmpadas elétricas, como espuma. Céu, não havia; a cidade terminava ali mesmo, junto aos telhados, fios e antenas. Gaigern moveu os dedos dentro da luva; estavam colados, provavelmente sangravam. Experimentou respirar, e conseguiu de novo. Concentrou suas forças, retesou os músculos e, com um salto de peixe-voador, lançou-se no vácuo. O ar zuniu de encontro aos seus ouvidos, e em seguida suas mãos agarraram as barras de ferro da varanda, que lhe cortaram os dedos, com suas arestas. Deixou-se ficar pendurado durante um segundo, com o coração a palpitar com força, e depois, com um impulso, pulou por sobre a varanda e soltou o corpo. Sim, agora se encontrava na varanda, diante da porta aberta do quarto da Grussinskaia.
— Até que enfim! — exclamou satisfeito, deixando-se ficar onde tinha caído, no pavimento de pedra da varandinha; aspirou profundamente o ar, abrindo a boca; ouviu um avião roncar bem por cima dele, e viu acima de seus olhos abertos os reflexos redondos da luz da cabina passando silenciosamente por entre as nuvens avermelhadas da grande cidade. A rua mandava para cima um ruído compacto e cheio — Gaigern sentiu-se por uns instantes em uma ilha de cansaço e de semi-inconsciência —, lá embaixo as buzinas dos automóveis disputavam a passagem, porque a Liga dos Filantropos dava uma festa, no pequeno salão, e muitas capas de noite se moviam como escaravelhos dourados, saindo pelas portas dos carros, subindo três degraus e entrando pelo portal. "Santo Deus, o que eu daria agora por um cigarro!", pensou Gaigern com os nervos frouxos; mas de modo algum podia pensar nisso agora. Ainda deitado, puxou a luva da mão direita e começou a chupar o corte do indicador; uma pata sangrando não tinha a menor utilidade para o seu trabalho. Engoliu com raiva o gosto sutil de metal, e suas costas úmidas sentiram o frescor agradável do pavimento de pedras. Por entre as grades da varanda, mediu o trecho que percorrera, e calculou o difícil retorno. Trouxera uma corda. Depois, seria preciso sair depressa da varanda, e, com um impulso de pêndulo, cair do outro lado. "Parabéns!", disse a si mesmo, no tom amável de oficial de Exército da sua vida passada. Tornou a calçar as luvas, como a se preparar para uma visita de cerimônia, levantou-se e passou da varanda para o quarto da Grussinskaia. A porta não se moveu, apenas a cortina ficou levemente enfunada; as tábuas do soalho também se conservaram caladas e acolhedoras. No quarto às escuras, tiquetaqueavam dois relógios, um quase duas vezes mais depressa do que o outro. Havia um cheiro forte de enterro e de forno crematório. Do anúncio luminoso do lado oposto caía um clarão triangular amarelado sobre o chão, até à borda do tapete. Gaigern tirou do bolso uma lanterna barata de forma cilíndrica, como essas que as cozinheiras usam, nas suas levianas rondas noturnas, e iluminou o quarto com cuidado. Graças ao seu curto diálogo com Suzette, à entrada do aposento, já conhecia a disposição dos móveis. Dispusera-se a descobrir todas as perfídias desse quarto, a procurar as pérolas em todos os esconderijos, a forçar fechaduras de malas, a arrombar portas de armários e a decifrar segredos de fechaduras. Mas, ao seguir o fio de luz oval da lâmpada de bolso e avistar a própria imagem triplicada no espelho, em sua frente, ficou agradavelmente surpreendido, com uma surpresa quase cômica.
Na mesinha do espelho estava pousada a suitcase, calma e desprotegida, e o filete de luz brincava inocentemente sobre o seu couro. "Vamos com calma!", pensou Gaigern, e isso significava uma ordem de comando, porque sentia a febre do caçador ferver dentro de sua cabeça. Primeiro enfiou no bolso a mão direita sangrando, como se fosse um objeto; tinha de conservá-la ali dentro, pois era preciso impedi-la de fazer qualquer travessura e de deixar vestígios. Colocou a lanterna na boca. Com a mão esquerda enluvada, pegou cuidadosamente a suitcase. De fato lá estava ela, podia apalpar com os dedos o seu couro de um brilho fosco. Ergueu a malinha, que não estava vazia. Apagou a lanterna, largou-a, e ficou pensando um momento. O quarto cheirava a enterro, um cheiro que fazia parar a respiração, um cheiro de avô morto e de solene panegírico de cerimônia fúnebre. Gaigern pôs-se a rir no escuro, quando compreendeu. "Louros!", pensou ele, fazendo suas as palavras de Suzette. "Madame recebe muitos louros, monsieur. O embaixador francês enviou-nos uma enorme cesta de louros." Ajoelhou-se diante do guarda-roupa — mas, dessa vez, as tábuas rangeram, maldosas e vivas — e com a mão esquerda agarrou a maleta no escuro. "Não, não", pensou ele, largando-a de novo. Essas coisas dão azar. Pastas, malas, carteiras de dinheiro são coisas nefastas; custam a queimar, flutuam nos rios em que são atiradas, são encontradas nas águas do esgoto pelos encarregados da limpeza dos canais, e acabam parando nas mesas dos tribunais, como desagradáveis corpos de delito. Além disso, uma suitcase pesando cerca de dois quilos não era nada cômoda de se carregar nos dentes, quando era preciso atravessar dois metros e meio de uma fachada lisa e escorregadia. Gaigern retirou a mão e pôs-se a refletir. Acendeu a lanterna e ficou olhando a fechadura dupla da maleta, absorto. Deus sabe que segredos a Grussinskaia teria para fechar o seu tesouro. Gaigern pegou as ferramentas e empurrou o disco redondo e metálico da fechadura.
A fechadura abriu.
A maleta não estava fechada a chave.
Gaigern assustou-se com o pequeno estalido, que não esperava em absoluto; ficou com uma cara de imbecil.
— Ora vejam, ótimo! — disse ele duas ou três vezes. — Ora vejam, ótimo! — levantou a tampa e apertou o botão do estojo de joias; de fato, lá estavam as pérolas da Grussinskaia. Afinal, não eram tantas assim, apenas um punhadinho de bolinhas cintilantes, caso se prestasse bem atenção; de modo algum correspondiam à lenda que haviam espalhado a respeito desse presente de um grão-duque assassinado, para enfeitar o pescoço de uma bailarina. Um lindo e antiquado sautoir, um colar de pérolas de tamanho médio, mas bem iguais, três anéis, um par de brincos de pérolas enormes, incrivelmente redondas; preguiçosamente pousadas no seu leitozinho de veludo, elas descansavam, enquanto a lanterna as fazia cintilar com um brilho amortecido. Com extrema precaução, Gaigern tirou-as do estojo com a mão esquerda enluvada e enfiou-as no bolso. Parecia-lhe sumamente ridículo encontrar as pérolas largadas em uma maleta aberta, e chegou a sentir uma espécie de desilusão ou indiferença, o cansaço de uma exagerada tensão que não teria sido necessária. Durante um instante ficou pensando se não seria melhor experimentar sair simplesmente do quarto, regressando ao seu aposento pelo corredor. "Talvez essas mulheres tenham deixado também a porta do quarto aberta", pensou ele, com o mesmo sorriso de incredulidade que punha a descoberto seus dentes superiores, dando ao seu rosto uma expressão tola e infantil, desde que avistara as pérolas.
Porém a porta estava fechada. No corredor ouvia-se, a espaços irregulares, o elevador subir e — clique — fechar a grade, porque o quarto 68 ficava defronte dele, em diagonal. Gaigern sentou-se por uns minutos em um fauteuil, no escuro, recuperando forças para o retorno. Sentia um enorme desejo de fumar, o que era impossível naquele momento, para não deixar vestígios de cheiro do cigarro. Tinha a precaução de um selvagem a guardar o seu tabu. Pensou em uma infinidade de coisas ao mesmo tempo, e, com mais lucidez, no armário de armas de seu pai. Na prateleira superior, ficavam sempre as grandes latas de tabaco herzegovino, e em dias alternados o velho Barão Gaigern colocava em cada lata uma fatia de cenoura. Gaigern sentiu por momentos o perfume adocicado e penetrante daquele tabaco, e retornou ao lar, descendo as escadas lustrosas de Ried, deixando-se ficar esquecido, durante um bom tempo, a recordar-se do tempo em que era ainda um voluntário de dezessete anos e fumava fechado em seu quarto. Sem usar de delicadezas, tratou de retornar ao seu empreendimento. — Atenção! — disse a si mesmo. — Nada de cochilos. Vamos! — Pôs-se a chamar-se por apelidos, dirigindo-se a si próprio com amizade e carinho, elogiando e xingando os membros de seu corpo.
— Seu porco — repreendeu o dedo cortado, que estava colando e sangrava; — seu porco, não pode me deixar em paz? — E dando palmadinhas nas coxas, como se acariciasse cavalos, elogiava-as: — Vocês são muito boazinhas, são animais valentes, bons animais. Atenção!
Afastou-se do aroma de louros do 68, meteu o nariz na varanda, farejando, e suas narinas aspiraram aquele indefinível odor de Berlim, em março, um cheiro de gasolina e de umidade de jardim zoológico. Enquanto se enfiava por entre as cortinas levemente enfunadas, pôde observar que as coisas não se apresentavam exatamente como deviam. Só após alguns segundos percebeu com clareza que batia agora em seu rosto e seu corpo uma claridade que há pouco não havia ali; viu os reflexos sedosos nas mangas do seu pijama, e insensivelmente voltou com toda a presteza para a escuridão do quarto, como um animal atingido por uma réstia de luz, que se esgueira, a farejar, na escuridão da mata. Estacou, ofegante e com os músculos tensos. Ouvia com extrema nitidez o tique-taque dos dois relógios, e em seguida, muito ao longe, e a distância, na enorme cidade, o relógio da torre de uma igreja bater onze horas. As paredes das casas do outro lado da rua ora se iluminavam, ora escureciam, pestanejando e fazendo prestidigitações.
— Que porcaria! — rosnou Gaigern, indo para a varanda, e mostrando-se impaciente desta vez, e muito senhor de si, como se estivesse em casa, no 68.
Os refletores haviam desaparecido. A nova instalação elétrica estava mais uma vez a fazer das suas; no salãozinho de festas, a Liga dos Filantropos estava no escuro, e no porão os eletricistas se esforçavam inutilmente por descobrir o que havia na instalação elétrica. Lá embaixo, na rua, um punhado de gente olhava divertida para a fachada do hotel, onde os quatro refletores se acendiam e se apagavam alternadamente. Um guarda acorrera. Os automóveis excitavam-se, porque o leito da rua não estava livre. O anúncio luminoso, do outro lado, cintilava graciosamente, derramando champanha em profusão no meio da noite, esforçando-se por iluminar a fachada do hotel e torná-la visível. Finalmente, dois homens de blusão azul saíram se arrastando de uma janela da sobreloja, sentaram-se sobre a coberta de vidro, que avançava do portal, e começaram a examinar a instalação que não funcionava. O caminho de volta, pelos sete metros da fachada do hotel, que agora criara vida, estava fechado. "Parabéns!", pensou Gaigern de novo, rindo com raiva. "Agora tenho que ficar aqui dentro. Agora tenho de arrombar a porta, se quiser sair daqui."
Foi buscar sua ferramenta e a lâmpada, experimentou com todo o cuidado desprender a fechadura, em redor do buraco da chave do 68, mas sem êxito. Um penteador ao lado da porta criou vida, caindo com um deslizar sedoso sobre o seu rosto, assustando-o horrivelmente. Ele sentiu as artérias do pescoço agitarem-se como máquinas. O corredor também despertara. Estava cheio de ruído de passos, de tosse, o elevador rangia, subia, descia, subia, descia. Uma camareira falou qualquer coisa, passou correndo, outra respondeu. Gaigern abandonou a fechadura enfeitiçada, e se esgueirou de novo para a varanda. Três metros abaixo dele os eletricistas cavalgavam a coberta de vidro, com fios na boca, muito admirados lá da rua. Gaigern fez uma das suas grandes brincadeiras. Inclinou-se sobre o parapeito e gritou:
— O que aconteceu com a luz?
— Curto-circuito — respondeu um eletricista.
— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Gaigern.
Lá de baixo, encolheram os ombros. "Idiotas", pensou Gaigern, furioso. O modo fanfarrão e convencido desses dois sujeitos impertinentes, sobre a coberta de vidro, desgostava-o profundamente. "Em dez minutos eles vão desistir", pensou; olhou ainda um momento para baixo, e depois entrou de novo no quarto. De repente, teve a sensação de estar em perigo, mas isso durou apenas um segundo — e desapareceu. Ficou parado no meio do quarto, com suas meias de lã que não deixavam pegadas.
"Só não posso pensar em dormir", pensou ele. Para conservar-se desperto, tirou do bolso as pérolas, que estavam quentes pelo contato de seu corpo, e descalçou as luvas, porque sentiu desejos de apalpar aquela superfície lisa e preciosa. Seus dedos se deliciaram. Ao mesmo tempo lembrou-se de que o chofer não conseguiria apanhar o trem para Springe, e era preciso fazer outros planos. Estava saindo tudo diferente do que ele tinha planejado. As pérolas não estavam fechadas na maleta, não lhe haviam dado nenhum trabalho, e a pequena escalada tinha sido demasiada para isso. Em meio aos seus pensamentos, veio-lhe uma ideia que o fez sorrir. "Que espécie de mulher é essa?", pensou ele. "Que espécie de mulher é essa, que simplesmente deixa suas pérolas largadas no quarto?" Sacudiu a cabeça, admirado, e deu uma risada surda. Conhecia muitas mulheres; mulheres agradáveis, mas que não provocavam nenhuma admiração. Uma mulher que saía, deixando tudo o que possuía perto da porta da varanda, aberta, ao alcance de qualquer um, era para ele uma coisa fantástica. "Deve ser desleixada como um cigano", pensou. "Ou deve ter um grande coração." Apesar de tudo, sentia sono. Por entre a escuridão, encaminhou-se para a porta, levantou do chão o penteador que tinha caído e o cheirou com curiosidade. Um perfume desconhecido, sutil e acre, muito tênue, se desprendia dele, e não combinava com a mulher de tarlatana que aborrecera tantas vezes Gaigern nos espetáculos de balé. Aliás, ele desejava a essa Grussinskaia tudo de bom, não sentia antipatia por ela. Pendurou o penteador negligentemente, deixando dez levianas marcas digitais na seda, e se encaminhou lentamente para a varanda. Lá embaixo os dois morcegos azuis ainda batiam as asas em torno do seu curto-circuito. "Bom divertimento!", desejou Gaigern a si próprio — e conservou-se, até segunda ordem, de pé, entre o reposteiro e a cortina de renda, ereto e desperto como um soldado na guarita.
Kringelein olhava para o palco, por detrás das suas lunetas. Lá em cima passavam-se coisas muito estranhas, e com enorme rapidez. Ele gostaria de observar com mais atenção uma das moças, a moreninha da segunda fila, que sorria sempre, mas não era possível. Não havia intervalo no ballet da Grussinskaia, tudo cintilava e saltitava incessantemente, em enorme confusão. Por vezes as moças vinham em fila para os dois lados do palco, colocando as mãos, pendentes das articulações dos pulsos, sobre a fímbria dos saiotes, para ceder lugar à própria Grussinskaia.
Depois, ela veio se aproximando a voltejar, com o rosto e os braços de um branco de cera, sobre as pontas dos pés que se fincavam nas tábuas do palco com tanta firmeza e segurança como se estivesse sendo fixada ali, com uma chave de parafuso. Finalmente, desapareceu por completo o seu rosto, e ela se transformou em um pião branco com listras prateadas. Kringelein sentiu o estômago um pouco enjoado, antes mesmo que a dança terminasse.
— Magnífico! — disse ele, admirado. — Ótimo! Que agilidade ela tem nas pernas! É perfeita. É de se ficar mesmo extasiado! — Sentiu uma grata admiração, apesar de não estar passando muito bem.
— O senhor está gostando realmente? — perguntou o Dr. Otternschlag, aborrecido. Estava sentado no camarote, com a face metralhada virada para o palco, e o seu aspecto, aos reflexos amarelos da luz dos refletores vinda do palco, era de arrepiar. Realmente, era difícil a Kringelein responder a essa pergunta.
Para ele, desde o momento em que entrara no quarto 70, tudo no mundo parecia irreal. Tudo tinha sabor de sonho e de febre. Tudo se movimentava depressa demais, sem cessar, não chegando a satisfazê-lo completamente. Otternschlag, em vista de seus contínuos pedidos de conselho e de companhia, arrastara-o desde manhãzinha por todas as excursões costumeiras, um giro em redor da cidade de Berlim, museus, Potsdam e, no fim, a subida à torre da emissora, onde o vento soprava a três vozes, e donde se divisava Berlim estendida sob um lençol de névoa de fuligem, bordado de luzes. Kringelein não se admiraria nada se acaso despertasse e se encontrasse de novo, após uma pesada narcose, no leito do hospital. Sentia os pés gelados; tinha as mãos endurecidas pelo frio e o queixo rijo. Sua cabeça era um globo quente, dentro do qual haviam atirado coisas demais, e começava a sibilar e derreter-se.
— Está satisfeito agora? Sente-se feliz? Está contente com a vida? — perguntava Otternschlag de tempos em tempos. E Kringelein respondia, atento e obediente:
— Sim, senhor.
O teatro, nessa noite do quinto espetáculo da Grussinskaia, tinha pouca gente, estava praticamente vazio. A plateia, com raros espectadores, parecia carpida, como se tivesse sido comida pelas traças. Na primeira fila, a gente sentia frio e se envergonhava, no meio de tantas cadeiras vazias. Kringelein sentia frio e vergonha. Além da frisa do proscênio, que tinham comprado a conselho de Otternschlag — Kringelein desse momento em diante só queria ocupar os melhores lugares, no cinema bem atrás, no teatro bem na frente, e no ballet na primeira fila —, além da frisa deles, que custara quarenta marcos, só havia mais uma ocupada, a do empresário Meyerheim, que nessa noite economizara a claque, que não adiantava mais: o déficit já era bem grande. Antes do intervalo principal uns escassos aplausos. Pimenoff mandou subir depressa o pano e a Grussinskaia apareceu e sorriu: sorriu para uma plateia silenciosa, porque os fracos aplausos haviam morrido ao nascer, e já todos se dirigiam, apressados, para a saída que dava para o bufê. No semblante da Grussinskaia também parecia ter morrido alguma coisa, quando ela ficou no palco agradecendo aplausos que já haviam cessado. Por sob o suor e a pintura, sua pele enregelou. Witte pôs de lado a batuta e subiu correndo pela escadinha que levava ao palco. Estava preocupado com Elisavieta. Lá em cima, Pimenoff dava a impressão de estar assistindo a um enterro, os operários do palco roçavam armações de cenário nas costas do seu velho fraque, curvado e justo no corpo __todas as noites ele vestia para os espetáculos o seu fraque, como se o Grão-Duque Serguei ainda fosse chamá-lo à frisa. Michael, com uma pelezinha pintalgada, imitando pele de leopardo, sobre o ombro esquerdo, e as coxas nuas e empoadas, esperava ao lado do inspetor, em atitude humilde. Todos tremiam de medo, esperando um dos acessos de cólera da Grussinskaia; os joelhos, as mãos, os ombros e os dentes de todos eles tremiam realmente.
— Desculpe-me, madame — sussurrou Michael —, pardonnez-moi. O culpado fui eu. Eu a fiz irritar-se.
A Grussinskaia, que vinha se aproximando com o olhar absorto, arrastando atrás de si o velho casaco de lã, por entre a poeira e o ruído do palco onde estavam desmontando o cenário, parou ao lado dele e o olhou com uma doçura que assustou a todos.
— Você? Não, querido — disse ela em voz baixa, pois necessitava concentrar e fortificar a voz, que se debilitara com o cansaço e que ela ainda não recuperara após o esforço da última e dificílima dança. — Você foi muito bem. Está hoje em ótima forma. Eu também. Nós todos nos portamos muito bem...
Virou-se de repente e caminhou apressadamente para longe dali, levando consigo a frase inacabada, até a escuridão do fundo do palco. Witte não teve coragem de segui-la. A Grussinskaia sentou-se no degrau de uma escada de madeira pintada de dourado, largada lá atrás, no meio de um montão de trastes, e ali ficou, durante todo o tempo que durou a montagem do novo cenário. Primeiro colocou as mãos sobre a malha de seda cor de carne que cobria suas panturrilhas, amarrou mais uma vez, mecanicamente, os cordéis cruzados das sapatilhas e em seguida acariciou durante alguns minutos a perna fatigada, coberta de seda e levemente suja, distraída e com certa piedade, como se fosse um animal estranho. Depois tirou as mãos da perna e pousou-as no pescoço nu. Sentia uma enorme falta das pérolas. Para acalmar-se costumava passa-las pelos dedos, como um rosário. "Que mais? Que mais? Que querem vocês ainda?", pensou ela no seu íntimo. "Não posso dançar melhor do que dancei hoje. Nunca dancei tão bem como agora. Nem quando era jovem, nem em São Petersburgo, nem em Paris, nem na América. Naquele tempo eu era tola, e não me esforçava muito. Agora
— oh, agora eu trabalho realmente. Agora eu sei o que faço. Agora sei dançar. Que querem de mim? Mais ainda? Mais do que isso eu não tenho. Deverei dar de presente as pérolas? Devo doá-las? Pois que seja, Ah! Deixem-me em paz, vocês todos. Estou cansada."
— Michael — murmurou ela, ao ver esgueirar-se uma sombra que reconheceu por trás do pano de fundo descido.
— Madame? — perguntou Michael, com tato e timidez. Já tinha trocado de roupa, agora vestia um gibãozinho de veludo e trazia o arco e a flecha na mão, porque, após o intervalo, tinha de principiar a Dança do arqueiro.
— Não quer ir aprontar-se, Gru? — perguntou ele, esforçando-se o mais possível por não deixar transparecer na voz qualquer sentimento de piedade ao avistar a Grussinskaia, pequenina e aniquilada, encolhida no meio de todos aqueles trastes. As campainhas dos inspetores tocaram em oito pontos diferentes ao mesmo tempo.
— Michael, estou cansada — disse a Grussinskaia.
— Estou com vontade de ir para o hotel. A Lucille que dance o meu número. Ninguém se incomodará com isso. Para essa gente, tanto faz eu como qualquer outra dançar.
Michael levou tal susto, que todos os músculos de seu corpo se retesaram. A Grussinskaia, ali no seu degrau, tinha os olhos perto dos joelhos do moço, e viu que o músculo da sua coxa se arredondou, contraindo-se sob a pele. O movimento inconsciente desse corpo que ela conhecia tão bem consolou-a um pouco. Michael, pálido sob a pintura, disse:
— Nonsense!
O susto o fez tornar-se indelicado. A Grussinskaia pôs-se a sorrir docemente, estendeu um dedo e tocou a perna de Michael.
— Quantas vezes eu já lhe disse que você devia dançar de malha — replicou ela com estranha amabilidade, você nunca ficará bem agasalhado nem suficientemente flexível, sem a malha. Acredite em mim, seu revolucionário.
Deixou a mão, durante alguns segundos, pousada sobre a pele quente e empoada daquele moço de vinte anos, sob a qual os músculos se moviam. Não, sua carícia não encontrou nenhuma repercussão. As campainhas tocaram pela terceira vez; no palco, atrás do pano de fundo com seus pequenos templos pintados, as sapatilhas das bailarinas já se aparelhavam sobre o tablado. No corredor do camarim, a medrosa Suzette corria de um lado para outro como uma galinha assustada, porque madame se deixava ficar sentada num canto, em vez de ir trocar de roupa. Witte, que já estava embaixo, no seu púlpito, pegou na batuta com mão trêmula, e, com o olhar fixo, ficou à espera do sinal vermelho para começar a próxima dança, que já estava atrasada.
— Em que o senhor está pensando? — perguntou o Dr. Otternschlag, lá em cima, na frisa. Kringelein havia se lembrado ligeiramente de Fredersdorf, da mancha de sol que costumava cintilar nas tardes de verão na parede lateral de um verde sujo da escura tesouraria, mas voltou imediatamente e com agrado a Berlim, ao Teatro do Oeste, à profusão de dourados que datavam da fundação do teatro, e à frisa de veludo vermelho, que custara quarenta marcos.
— Está com saudades? — perguntou Otternschlag.
— Nem penso nisso — replicou Kringelein com non-chalance e absoluta frieza. Embaixo, Witte levantou sua batuta, e a música começou.
— Que porcaria de orquestra — disse Otternschlag, a quem o papel de amável mentor, nessa triste noite de espetáculo de bailado, causava engulhos. Mas dessa vez Kringelein não se deixou influenciar. Estava gostando da música. Mergulhou na música como no banho quente do hotel. Sentia no estômago uma sensação de peso e de frio, como se tivesse nas vísceras uma bola de metal. Isso era apenas o sintoma grave, dissera o médico. Nem causava dores; conservava-se sempre no desagradável estado em que se espera uma dor que não vem. Isso era tudo. E uma coisa tão insignificante provocava a morte. A música vinha chegando até ele e o consolava um pouco, com os planíssimos das flautas sobre os trêmulos das violas. Kringelein, esquecendo-se de suas mazelas, mergulhou no mundo dos sons e elevou-se nas asas da música a uma atmosfera azulada de luar, com um pequeno templo pintado numa costa marítima. Lá embaixo, o programa continuava. Michael apareceu com seu traje de arqueiro, de coxas brancas como farinha e um gibãozinho de veludo marrom; distendia seu corpo de efebo, a pular em disparada pelo palco, com saltos de peixe-voador; elevava-se com elasticidade e subia aos ares como se estivesse a saltar sobre cordas esticadas. Pelos seus gestos alegóricos, percebia-se que ele queria atirar em um pássaro, uma pomba que pertencia ao pequeno templo. Atirou sobre o palco um fogo de artifício de saltos e de piruetas, e finalmente saiu correndo atrás de sua flecha, que atirara em direção do bastidor da direita.
Aplausos. Pizzicato na orquestra. A Grussinskaia aparece em cena. Ofegante e apressadamente, vestiu afinal o traje de pomba ferida, com uma enorme gota de sangue cor de rubi a oscilar em seu corpete de seda branca. Está mortalmente cansada, mas sente-se muito leve, levíssima, e corre com tênues e tremulantes batidas de braços, imitando asas, na direção da sua comovedora morte. Esforça-se, três vezes seguidas, para elevar-se aos ares, mas não consegue mais voar. Por fim, seu delicado e longo pescoço tomba para a frente, ela pousa a cabeça sobre o joelho, e morre, pobre pomba ferida mortalmente. E sobre o enorme ferimento em seu coração, o eletricista envia um efeito de luz, com um disco azul.
Desce o pano. Aplausos. Bastantes aplausos mesmo, considerando-se que o teatro está vazio, e que há muito poucas mãos para fazerem ruído.
— Da capo? — pergunta a Grussinskaia, que continua tombada no centro do palco.
— Não — murmura-lhe Pimenoff com um sussurro alto, desesperado e agudo, lá dos bastidores.
Os aplausos pararam. Acabou-se. A Grussinskaia jaz ali durante alguns minutos, leve como uma pluma, morta na dança, e cheia da poeira do tablado nas mãos, nos braços e nas têmporas. Pela primeira vez em sua vida não houve um da capo depois dessa dança. "Não posso mais", pensou ela. "Não, já chega o que eu fiz, não posso mais."
— Intervalo para desmanchar o cenário! — grita o chefe dos maquinistas. A Grussinskaia não tem vontade de levantar-se, deseja ficar ali caída, no meio do tablado, e adormecer, afastando-se de tudo com o sono. Finalmente, Michael aproximou-se dela, levantou-a e a fez ficar de pé.
— Spassibo — ("obrigada"), diz ela em russo, e, endireitando o corpo, afasta-se, dirigindo-se ao camarim das senhoras. Michael encaminha-se para o primeiro bastidor à esquerda e prepara-se para o pas de deux.
A Grussinskaia esgueira-se até seu camarim e, com a ponta da sapatilha, abre a porta; lá dentro, cai sentada na cadeira, diante do espelho, e fica a olhar, de olhos estarrecidos, para a ponta de seda empoeirada e ligeiramente puída da sapatilha. Seus pés estão cansados, indescritivelmente cansados, pesados, fartos, fartíssimos de dançar. Sob a luz forte da lâmpada do espelho aproxima-se o rosto envelhecido e preocupado de Suzette, com um frufru do traje para o pas de deux.
— Deixe-me — murmurou a Grussinskaia em tom seco. — Estou me sentindo mal. Não posso. Deixe-me! Deixem-me, todos vocês!... Dê-me qualquer coisa para beber — acrescentou ainda; tinha vontade de dar um tapa no rosto perplexo e murcho de Suzette, porque de repente achou que ele tinha uma semelhança, difícil de definir, com sua própria fisionomia. — Fiche-moi la paix! — disse ela em tom imperioso.
Suzette sumiu. A Grussinskaia ainda ficou ali largada alguns minutos; depois arrancou dos pés, de repente, as sapatilhas de seda. "Basta!", pensou, "basta! basta!"
De malha, com o traje de pomba, a Grussinskaia resolveu fugir — uma estranha fuga. Arrancara apenas os sapatos de ballet, calçando outros, e jogara aos ombros o velho casaco; e assim, com a garganta repleta de angústia, saiu do teatro. Suzette, ao vir correndo da cantina com um copo de vinho do Porto, encontrou o camarim vazio e em silêncio. No espelho estava um bilhete: "Não posso mais. A Lucille que dance em meu lugar". Suzette saiu pelo palco a tropeçar; em seguida, todos no teatro ficaram tresloucados durante dez minutos, mas depois o pano subiu e o programa foi executado, como em todas as noites: com danças nacionais russas, pas de deux e Bacanal. Pimenoff e Witte dirigiram o espetáculo como dois velhos generais, cujo soberano desertara, necessitando ocultar a retirada, após a derrota.
Mas enquanto no palco o corpo de ballet agitava seus véus bacânticos de musselina, espargindo no tablado, à medida que dançava, quatrocentas rosas de papel, enquanto Michael executava saltos faunescos e Suzette, no escritório do teatro, mantinha conversações perplexas com o chofer inglês Berkley — enquanto se passava tudo isso —, a Grussinskaia, cega, desesperada, empreendia a sua fuga, a tropeçar pela Tauentzinstrasse.
Berlim estava clara, ruidosa e repleta de gente. Berlim olhava para ela com curiosidade e ironia, observando seu rosto desfigurado, meio inconsciente. Berlim era uma cidade cruel, e a Grussinskaia, atravessando a rua, já mais calma, amaldiçoou a cidade. Apossara-se dela um tremor convulsivo, apesar de nessa noite de março a atmosfera estar cheia de umidade tépida, e seu velho casaco de lã estar desprendendo vapor. A Grussinskaia proferia breves palavras, soltas, soluçantes, que ficavam entaladas na garganta, causando dor. Ela pensou que estava chorando, mas não estava. Seus olhos, sob as pálpebras azuis, pintadas para a cena, ficavam cada vez mais quentes, cada vez mais secos. "Nunca mais", pensou a Grussinskaia, "nunca mais. Nunca mais. Basta. Acabou-se. Nunca mais." Caminhava rapidamente, com passos vacilantes, como se esse pensamento a perseguisse, abandonada pelas Graças, sem domínio sobre o corpo, que inclinava a cada passo que ela dava. A luz branca de uma loja de flores se estendia diante de seus pés, e ela parou e ficou olhando. Grandes jarros com ramos de magnólias, cactos, vasos sinuosos onde cresciam orquídeas. Um consolo? Não, não lhe vinha o mínimo consolo da suave beleza das flores. Tinha as mãos frias, só então percebeu, e começou a procurar as luvas nos bolsos do velho casaco. Era um gesto completamente sem sentido, porque há oito anos que só usava esse casaco no palco, para proteger-se contra a corrente de ar que sopra em todos os teatros do mundo. Teve uma visão de gambiarras, de portas de ferro sob a luz de lâmpadas muito fracas, de um declive forte e escorregadio do tablado, diante de seus pés. "Nunca mais!", pensou ela, "nunca mais! nunca mais!" O casaco fora de moda era comprido e cobria seu traje de bailado, mas atrapalhava-lhe os passos. Levantou-o um pouco quando se afastou da vitrina das flores e tomou inconscientemente o caminho de ruas mais calmas. Na sua caminhada, viu um Buda no mostrador de outra vitrina, querendo apaziguar o mundo da Grussinskaia, que se esboroava. "Nunca mais vou dançar, nunca mais, nunca mais." Para consolar-se, lembrou-se de nomes, que saíam como soluços de sua garganta. — Serguei! — exclamou ela — Gabriel, Gaston! — chamava pelos nomes de seus poucos amantes, por Anastásia, sua filha, e finalmente por Pompon, o seu netinho de Paris, que nunca tinha visto. Mas continuou sozinha e ninguém a consolou. De repente, parou, assustada. "Mas que estou fazendo?", pensou ela. "Saí fugida do teatro? Não pode ser. Não é possível. Vou voltar." No relógio de uma igreja soaram onze badaladas, pausadas e nítidas, bem perto dali, apesar de não se avistar nenhum campanário. A Grussinskaia tirou as mãos dos bolsos do casaco e deixou-as caídas diante de si; havia algo da morte da pomba ferida nesse gesto. É tarde demais, diziam as mãos. O espetáculo devia estar quase terminando. Endireitou a cabeça de novo, e olhou a rua em que sua fuga a atirara. Não sabia onde estava. Um portalzinho tinha uma moldura com letras amarelas, e o letreiro dizia: Bar Russo. Atravessou a rua, parou na entrada do bar, limpou o nariz como uma criança e se pôs a pensar. "Bar Russo", pensou ela, "e se eu entrasse? Eles me reconheceriam. Os membros da orquestra, vestindo blusas vermelhas, tocariam a Valsa Grussinskaia. Que sensação!"
"Sensação nenhuma", pensou logo depois, morta de tristeza. "Não posso entrar. Que aspecto eu tenho agora? Talvez ninguém me reconheça mais. E se me reconhecerem — como eu estou agora —, tant pis."
Fez sinal para uma pequena e mísera carruagem de aluguel, e com repentina expressão de frieza e fixidez no rosto, mandou seguir para o hotel.
Gaigern continuava ereto como uma sentinela, entre a cortina e o store do quarto 68, à espera de que os homens de blusão azul terminassem seu trabalho. Mas eles não terminavam. Arrastavam-se de um lado para outro pelas cortinas das janelas do primeiro andar, tinham trazido fios e pequenas tenazes, e gritavam com enorme afã "oh" e "aha", mas os refletores continuavam apagados. Em compensação, toda a fachada do hotel estava iluminadíssima pelos arcos voltaicos, pelas luzes da entrada dos cinco portões e do anúncio contínuo, lá defronte, que ora anunciava uma marca de champanha, ora um chocolate especial. Aliás, devia fazer uns vinte minutos que Gaigern estava esperando, quando a porta do quarto 68 se abriu e a luz se acendeu, e a Grussinskaia apareceu com um aspecto completamente normal e de acordo com o hotel.
6
Do ponto de vista de Gaigern, isso era uma porcaria em toda a extensão da palavra, um negócio imundo. O susto atravessou-o como uma faca gelada, enterrando-se pelas suas costelas e pelo estômago. Com os diabos, que tinha essa mulher que fazer no hotel, às onze e vinte da noite? Onde se iria parar, quando não se podia mais ter certeza absoluta da duração de um espetáculo teatral? "Que azar", pensou Gaigern, rangendo os dentes. De azar, ele tinha medo. E todas essas malditas complicações davam mesmo a impressão de que ele se encontrava numa incômoda e azarenta armadilha. Os reflexos do lustre coavam-se pela cortina de rendas, atrás da qual ele se encontrava, estendendo na varanda a sombra do desenho contorcido. Gaigern ordenou a si próprio calma e bom humor. O colar de pérolas, em seu bolso, adquirira calor humano. As pérolas corriam entre seus dedos, como ervilhas. Durante um instante teve a impressão de que era completamente absurdo e sem sentido julgar que esse punhado de bolinhas redondas de madrepérola valia uma fortuna. Quatro meses à espreita, sete metros em perigo de vida — e quando este perigo passasse, viria um outro, uma sequência de perigos. Uma cadeia de perigos, era isso a sua vida. Um colar de pérolas — a vida da Grussinskaia. Gaigern, sorridente, sacudiu a cabeça em meio à situação complicada em que se encontrava. Não era um pensador. Costumava sorrir para a vida com esse sorriso admirado e divertido, quase maluco. Sorria para a vida, que era uma coisa que ele não compreendia. No entanto, controlou-se, voltou-se por trás da cortina de rendas, pondo-se de frente para o quarto, e ficou à espera.
A Grussinskaia, primeiro, ficou parada quase um minuto no meio do quarto, bem debaixo das taças de vidro do lustre, e seu rosto dava a impressão de que se tinha enganado de quarto. Esperou até que o casaco de lã caísse pelo próprio peso ao longo de seus braços pendentes, e em seguida, passando por cima dele, aproximou-se da mesinha do telefone. Passaram-se alguns minutos até que ela conseguisse ligação para o Teatro do Oeste, e mais alguns minutos até que Pimenoff viesse ao aparelho; mas ela estava de tal modo cansada que não lhe era possível sentir impaciência.
— Alô, Pimenoff? É, sou eu, Gru. Sim, estou no hotel. Desculpe-me, sim? É, de repente me senti mal. O coração, compreende? Fiquei sem respiração. Sim, exatamente como em Scheveningen. Não, agora estou melhor. Deixei você em apuros, eu sei. Como dançou a Lucille? Como? Ah, regularmente. E o público? Que é que você disse? Não, não fico nervosa, você pode dizer se houve escândalo. Não? Nenhum escândalo? Tudo calmo? Poucos aplausos? Você está pensando em outro programa? Bom, depois falaremos nisso. Não, vou me deitar. Não, por favor, não mande o médico, nem Witte. Não, não, não! Não quero que venha ninguém, nem a Suzette. Quero apenas sossego. Vocês me façam o favor de ir à Embaixada da França, e peçam desculpas por mim. Obrigada. Boa noite, querido! Boa noite, Pimenoff! Escute, Pimenoff: dê lembranças a Witte. Ao Michael também. É, lembranças a todos. Não, não se preocupe comigo. Amanhã estará tudo bem de novo. Boa noite!
Colocou o fone no gancho.
— Boa noite, querido — disse mais uma vez, com voz muito baixa, julgando-se completamente só, naquele quarto de hotel.
Tinha sido o coração; "ela se sentiu mal", pensou Gaigern, que seguira a muito custo, e com atenção, aquelas frases apressadas, ditas em francês. "É por isso que ela veio de repente para cá, na pior hora. Está com uma aparência miserável, mesmo. Paciência. Ela vai se deitar, e então espero poder despedir-me. É preciso não perder a calma." Encostou-se com cuidado ao parapeito da varanda, e olhou para baixo. Os dois idiotas azuis continuavam lá, a se consultar. Haviam pendurado duas bonitas lanternas e parecia que estavam preparados para trabalhar muitas horas extras, durante toda a noite. O desejo que Gaigern tinha de fumar começou a aumentar doentiamente. Abriu a boca num bocejo, que se encheu de fumaça úmida de gasolina. A Grussinskaia, dentro do quarto, aproximou-se nesse momento do espelho de três folhas, em cujo aparador estava a suitcase vazia... A caixa torácica de Gaigern pareceu querer estourar, tão fortes eram as batidas de seu coração — mas ela empurrou a maletinha de couro para um lado, sem olhar para ela, acendeu a lâmpada sobre o espelho central, e se agarrou com as duas mãos à moldura do espelho, aproximando-se tanto dele, que dava a impressão de querer atirar-se por ele abaixo. A atenção com que observou seu próprio rosto tinha algo de penetrante, de ávido, de cruel. "Que animais esquisitos são as mulheres", pensou Gaigern, atrás da sua cortina. "Animais estranhíssimos. O que é que ela está vendo no espelho, para estar com uma expressão de tanto horror?"
Ele estava vendo uma mulher bela, incontestavelmente bela, apesar da pintura que lhe escorria pelas faces. Seu pescoço, principalmente, refletido duas vezes pelos espelhos laterais, era de uma delicadeza e de um torneado sem par. A Grussinskaia, de olhos fixos em seu próprio rosto, parecia olhar o rosto de uma inimiga. Com pavor, ela enxergava os anos, as rugas, a pele frouxa, o esforço demasiado, o emurchecer; as fontes já começavam a deprimir-se, as comissuras dos lábios tombavam, as pálpebras, sob a pintura azul, estavam enrugadas como papel de seda. Enquanto se via no espelho, foi tomada de um novo tremor de frio, mais forte ainda do que o tremor que a assaltara na rua. Experimentou controlar os lábios, mas não conseguiu. Apressadamente, caminhou pelo quarto e foi apagar a luz fria do lustre, acendendo em seguida o abajur, mas isso não bastou para aquecer o ambiente. Com gestos impacientes arrancou do corpo seu traje de palco, atirou-o no chão, e com o busto nu e a malha até acima das coxas, aproximou-se do aparelho de aquecimento central e encostou o peito no encanamento pintado de cinzento. Fez isso quase irrefletidamente, procurando apenas calor. "Basta", pensou ela, "basta! Nunca mais. Acabou-se. Basta." Balbuciava em todas as línguas, por entre os dentes a bater de frio, palavras definitivas, irrevogáveis. Foi ao banheiro, despiu-se completamente e pôs as mãos debaixo da torneira de água quente, deixando o calor escorrer pelas veias de seus pulsos, até lhe causar dor. Apanhou uma escova e com ela esfregou os ombros; mas, de súbito, cheia de tédio, desistiu de tudo, veio para o quarto, nua e a tremer de frio, e pegou no telefone. Por duas vezes precisou começar, com seus lábios trêmulos, até conseguir falar.
— Chá — pediu ela. — Bastante chá. Bastante açúcar.
Aproximou-se de novo do espelho, nua como estava, e observou-se com severidade. Mas seu corpo era de uma beleza perfeita e única. Era o corpo de uma aluna de ballet de dezesseis anos, que o trabalho disciplinado e duro de uma vida inteira havia conservado intacto. De repente, o ódio que sentia por si própria transformou-se em ternura. Colocou as mãos nos ombros e acariciou seu brilho fosco. Beijou a curva do braço direito. Colocou os seios, pequeninos e perfeitos, nas palmas das mãos, como em duas taças, acariciou a depressão delicada do ventre e as sombras esguias das coxas. Inclinou a cabeça até os joelhos e beijou aqueles pobres joelhos, magros e duros como ferro, como se fossem uns filhinhos enfermos e muito queridos.
— Biednaiaia, malenkaia — murmurou ao mesmo tempo; era uma designação carinhosa dos tempos passados. Biednaiaia, malenkaia. Coitada, pequenina, era o que significavam essas palavras.
O rosto de Gaigern, por entre as cortinas, adquiriu inconscientemente uma expressão atenciosa e compassiva. O que se apresentava aos seus olhos deixava-o confuso. Ele conhecia muitas mulheres, mas nunca vira nenhuma com um corpo tão delicado e perfeito como esta. Mas isso, a bem dizer, era coisa de somenos importância. O que o enchia de suave e doce opressão, fazendo-o arder até as orelhas, era o desamparo, o tremor, a expressão desesperançada, confusa e lastimosa da Grussinskaia diante do espelho. Apesar de ser um sujeito que se desviara do bom caminho, e de ter no bolso pérolas roubadas no valor de quinhentos mil marcos, Gaigern estava muito longe de ser um homem desnaturado. Largou as pérolas que segurava e tirou as mãos dos bolsos. Sentiu passar pelas palmas das mãos, pelos braços, um ansioso desejo de erguer essa pequenina e solitária mulher, de levá-la dali, de consolá-la e aquecê-la, para fazer cessar aquele horrível tremor de frio e o murmúrio quase insensato que se desprendia de seus lábios.
O criado de quarto bateu na porta dupla, e a Grussinskaia pegou no seu penteador — o mesmo que havia assustado Gaigern na escuridão — e enfiou os pés nos míseros chinelos. O criado ofereceu o chá, discretamente, pela porta. A Grussinskaia fechou-a atrás do garçom, que se afastava. "Agora já está na hora", pensou ela. Encheu a xícara de chá, e foi buscar a caixinha de veronal. Engoliu um pozinho e bebeu o chá; depois tomou mais uma xícara. Levantou-se e começou a andar pelo quarto de um lado para outro, muito depressa, como se fugisse, de uma parede até a outra, quatro metros para lá, quatro para cá.
"Para que tudo isso?", pensava ela. "Para que viver? Que posso esperar ainda? Para que tantos tormentos? Oh, estou cansada, vocês não sabem como estou cansada. Prometi a mim mesma afastar-me do palco, quando chegasse o tempo. Tiens. Já é tempo. Devo esperar até que assobiem para mim da plateia?
"Já é tempo, malenkaia, coitada, pequenina. Gru não vai partir amanhã para Viena, Gru vai desistir. Gru vai dormir. Vocês não sabem como a gente sente frio, quando é célebre. Não há ninguém que me faça companhia, ninguém. Possibilitei a tanta gente um meio de vida, e nunca ninguém viveu para mim. Ninguém. Nem uma só pessoa. Só conheço pessoas vaidosas ou medrosas. Estive sempre sozinha. Oh, e quem vai se interessar por uma Grussinskaia que não dança mais? Acabou-se. Não ficarei passeando em Monte Cario, com o corpo rijo, gorda e velha como todas essas velhas célebres. Sozinha eu sempre vivi. Eles deviam ter-me visto no tempo em que o Grão-Duque Serguei ainda vivia! Não, essa vida não me serve. E para onde deverei ir? Cultivar orquídeas em Tremezzo, criar dois pavões brancos, ter preocupações de dinheiro, ficar completamente só, em completa decadência, e morrer? É isso: finalmente a morte. Nijínski está no hospício esperando a morte. Pobre Nijínski! Pobre Gru! Não quero esperar. Demora tanto... Depressa, depressa, depressa." Ela ficou parada, atenta, como se alguém a estivesse chamando. Em seus ouvidos já soava o sonolento zumbido do veronal, a indiferença que o agradável narcótico trazia. "Gaston!", pensou ela, dirigindo-se à mesa. "Pobre Gaston, você foi bom para mim, outrora. Como você era jovem! Há quanto tempo isso aconteceu! Agora você é ministro, barrigudo, com barba e careca. Adieu, Gaston! Adieu pour jamais, n'est-ce pas? Existe um meio tão fácil para não se ficar velha..." Encheu de novo a xícara de chá. Agora fazia um pouquinho de pose, representava uma pequena comédia, triste e doce. Havia forma e graça no seu desespero e na sua decisão. Com um movimento brusco, pegou o vidrinho de veronal e jogou todos os tabletes no chá, esperando até que se derretessem. Estava demorando muito. Impaciente, bateu com a colher na xícara. Levantou-se, aproximou-se de novo do espelho e passou mecanicamente pó de arroz no rosto, que de repente se cobrira de um suor fino e frio. Seus lábios deixaram de tremer e sorriram, um sorriso fixo, como no palco. Cobriu o rosto com as mãos e sussurrou:
— Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!
Ela também sentia agora o cheiro de enterro que subia das cestas de flores e pairava murcho no quarto. Foi-se arrastando lentamente até a mesa onde estava o chá, e o provou com a ponta da colher. Tinha um gosto muito amargo. Com a pinça pegou vários tabletes de açúcar e mergulhou-os no chá, esperando até que eles se dissolvessem. Devia ter durado um minuto, talvez mais. Os dois relógios apostavam corrida em meio ao silêncio.
A Grussinskaia levantou-se e foi à porta da varanda. Respirava com dificuldade. Tinha desejos de ver o céu. Afastou a cortina de renda e deu de encontro com uma sombra.
— Por favor, não se assuste, minha senhora — disse Gaigern, inclinando-se.
O primeiro movimento que a Grussinskaia fez não foi de susto, mas — estranho — de pudor. Fechou mais o quimono e olhou para Gaigern, atônita e calada. "O que é isso?", pensou ela. "Já vi coisa parecida?" Talvez sentisse até um certo alívio, porque ocorrera um adiamento entre ela e a xícara de veronal. Ficou parada diante de Gaigern quase um minuto, a olhá-lo e a observar suas sobrancelhas arqueadas e finas, que se juntavam na base do nariz. Os lábios da Grussinskaia continuavam tremendo e uma respiração cada vez mais rápida e ofegante se pôs entre ela e o moço.
Os dentes de Gaigern também pareciam querer bater uns nos outros, mas ele os conservou bem firmes. Nunca se encontrara em situação tão perigosa como nesse momento. Todos os seus empreendimentos, até então — haviam sido somente três ou quatro —, tinham sido muito bem preparados, e executados com tal cuidado que nunca caíra sobre ele a menor suspeita. Mas ali estava ele agora, com pérolas no valor de quinhentos mil marcos no bolso, apanhado num aposento alheio; entre ele e a penitenciária havia apenas a campainha branca do hotel, com o pequeno letreiro de esmalte, pedindo que batessem duas vezes para chamar o criado de quarto. Um ódio ardente, insensato, irrompeu dentro dele; Gaigern não o deixou explodir, mas concentrou-o em seu íntimo, até que se transformou em força e calma. Precisou de um grande esforço sobre si próprio para não derrubar essa mulher. Parecia uma enorme locomotiva sob nuvens de vapor, cheia de combustível, e com uma pressão de muitas atmosferas vibrando interiormente, e pronta a passar em disparada por cima de tudo. No momento, limitou-se a inclinar-se. Poderia ter tentado uma fuga desesperada pela fachada do hotel. Poderia ter matado a Grussinskaia, poderia tê-la feito calar-se, com ameaças. Fora o instinto da sua natureza amável que, em vez de violência e de um assassinato, o fizera inclinar-se numa curvatura irrefletida mas elegantíssima. Ignorava que suas olheiras estavam azuladas; muito vagamente, chegava a sentir prazer no perigo, uma sensação de embriaguez ou de queda infindável, como num sonho.
— Quem é o senhor? Como veio parar aqui? — perguntou a Grussinskaia em alemão. Seu tom de voz era quase cortês.
— Desculpe-me, minha senhora; entrei sorrateiramente no seu quarto. Eu estou... É horrível a senhora ter-me encontrado aqui. A senhora veio mais cedo para o hotel do que de costume. Foi um azar. Que desgraça! Não posso lhe explicar nada.
A Grussinskaia retrocedeu uns passos dentro do quarto, sem perdê-lo de vista, e girou o comutador do lustre, que se acendeu com sua luz fria. É possível que ela tivesse gritado por socorro, se encontrasse no terraço um homem desgrenhado e feio. Mas o homem que estava ali era o mais belo homem que ela vira em toda a sua vida — recordou-se sob o efeito do veronal —, e esse homem não lhe causava medo. O que a enchia estranhamente de confiança, antes de mais nada, era o bonito pijama de seda que Gaigern vestia.
— Mas o que o senhor veio fazer aqui? — perguntou ela, passando insensivelmente a falar francês, língua mais mundana.
— Nada. Queria apenas me sentar aqui. Só queria estar em seu quarto — disse Gaigern em voz baixa.
Encheu o peito de ar, dilatando a caixa torácica. Agora tratava-se de contar histórias a essa senhora — percebeu ele com leve esperança. As meias de ladrão por cima de seus sapatos o atrapalhavam. Com um movimento habilidoso, tirou-as dos pés às escondidas. A Grussinskaia meneou a cabeça.
— No meu quarto? Meu Deus... mas para quê? — perguntou ela com sua voz russa, de passarinho, aguda e frágil, e um ar de estranha expectativa refletiu-se em seu rosto.
Gaigern, que ainda se encontrava no balcão, respondeu:
— Vou dizer a verdade, minha senhora. Não é a primeira vez que entro no seu quarto. Estive aqui diversas vezes, muitas vezes mesmo, quando a senhora estava no teatro. Fiquei respirando este ar. Coloquei na jarra uma florzinha para a senhora. Perdoe-me.
CONTINUA
Quando o porteiro saiu da cabina telefônica 7, uma leve palidez se espalhava em suas faces; procurou o boné, que colocara sobre o aparelho de calefação do compartimento dos telefones.
— Que foi? — perguntou a telefonista, sentada diante do quadro de comutadores, com os fones nos ouvidos e os pinos vermelhos e verdes entre os dedos.
— É que levaram minha mulher às pressas para o hospital. Não sei o que significa isso. Ela está pensando que a coisa já começou. Mas ainda não está no prazo, meu Deus! — disse o porteiro.
A telefonista mal o ouviu, porque tinha de fazer uma ligação.
— Paciência... É preciso não perder a calma, Herr Senf — disse entre uma ligação e outra. — Amanhã cedo há de nascer o seu filho, fique sossegado.
— Muito obrigado por ter-me chamado ao telefone. Na portaria eu não posso anunciar a todos os ventos os meus assuntos particulares. Serviço é serviço.
— É claro. Quando a criança nascer, eu o chamarei — disse a telefonista, distraída.
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E continuou a fazer ligações. O porteiro apanhou o boné e se retirou na ponta dos pés. Fê-lo inconscientemente, porque sua mulher estava acamada, para dar à luz. Quando atravessou o corredor, para onde davam as salas de correspondência e de leitura, agora silenciosas e a meia-luz, suspirou profundamente e passou a mão pelo cabelo. Surpreso, percebeu que ela ficara úmida, mas não pensou em lavar as mãos, para não perder tempo. Afinal, não se podia exigir que o movimento do hotel parasse, só porque o porteiro Senf ia ser pai. Do tea-room, na nova ala do hotel, a música vinha vibrando em síncopes saltitantes, ao longo dos espelhos das paredes. O cheiro amanteigado de carne assada, próprio da hora do jantar, evolava-se discretamente, mas, por trás das portas do salão de refeições, ainda estava tudo vazio e silencioso. No salãozinho branco, o garde-manger Mattoni preparava os frios. O porteiro, sentindo uma estranha fraqueza nos joelhos, parou à porta e fitou, atordoado, os globos multicolores de luz elétrica que cintilavam por trás dos blocos de gelo. No corredor, um monteur, de joelhos no chão, fazia um conserto na instalação elétrica. Desde que havia colocado o enorme refletor na fachada do hotel, havia sempre um desarranjo na instalação, sobrecarregada. O porteiro deu uma pequena ordem às suas pernas bambas e dirigiu-se ao seu posto. Deixara a portaria aos cuidados de Georgi, um rapazinho, filho do proprietário de uma grande rede de hotéis. O pai desejava que seu futuro sucessor conhecesse a profissão desde as mais humildes ocupações, e por isso o filho trabalhava ali gratuitamente. Senf, sentindo uma certa angústia, atravessou às pressas o hall, repleto de gente que se movimentava. Ali, a música de jazz do tea-room se misturava aos lânguidos sons dos violinos do jardim de inverno, ao murmúrio do repuxo da fonte luminosa, gotejando numa imitação de bacia veneziana, ao tilintar dos copos nas mesinhas e ao ranger das cadeiras de vime; o mais brando sussurro era o suave frufru das peliças e dos vestidos de seda das senhoras, que se diluía no harmonioso burburinho. Pela porta giratória, a fresca brisa de março penetrava em espirais, em pequenas golfadas, sempre que o groom fazia entrar ou sair os hóspedes.
— All right! — disse Georgi, quando o porteiro Senf, apressando os passos, chegou à portaria, como se chegasse ao refúgio de um porto. — Chegou a correspondência das sete. A senhora do quarto 68 armou um escândalo porque não encontraram logo o chofer. É um tanto histérica essa senhora, hein?
— Quarto 68... é a Grussinskaia — disse o porteiro, enquanto com a mão direita começava a separar a correspondência. — É a bailarina, já estamos acostumados. Há dezoito anos. Todas as noites, antes de apresentar-se em público, fica nervosa e provoca um escândalo.
No hall um senhor levantou-se do seu maple; era um senhor de boa estatura, cujas pernas pareciam atacadas de ancilose. Aproximou-se da portaria de cabeça baixa e deu uns giros pelo hall antes de passar ao vestíbulo, procurando ter o aspecto de alguém que nada espera, mas se aborrece. Observou as revistas na pequena banca de jornais, acendeu um cigarro e aproximou-se do porteiro, perguntando distraído:
— Chegou correspondência para mim?
O porteiro, por seu lado, prontificou-se também a representar uma pequena comédia. Examinou primeiro a caixa 218, antes de responder:
— Desta vez, infelizmente, nada, doutor.
Então o senhor alto movimentou-se de novo a passos lentos, fazendo um caminho complicado para chegar ao seu maple, onde se deixou cair de pernas rígidas, ficando a olhar para o hall com expressão de quem não vê. Seu rosto, aliás, consistia em uma só face, um perfil requintado e agudo de jesuíta, terminando numa orelha muito bem delineada e escondida sob os fios ralos de cabelo grisalho da têmpora. A outra face não existia. Em seu lugar havia apenas uma mescla confusa de traços remendados e ligados desordenadamente. Por entre suturas e cicatrizes, espiava um olho de vidro. O Dr. Otternschlag, quando conversava a sós consigo mesmo, costumava chamar seu rosto de souvenir de Flandres... Ficou sentado a observar os capitéis de gesso dourado das colunas de mármore que já estava farto de conhecer; depois, com o olho que não via, fitou longamente o hall, que se esvaziou rapidamente porque o espetáculo ia começar. Em seguida ergueu-se de novo e, com seu andar desconjuntado de marionete, encaminhou-se para a cabina do porteiro, onde Herr Senf, já desligado de sua vida privada, se desincumbia conscienciosamente dos deveres de seu cargo.
— Ninguém perguntou por mim? — perguntou o Dr. Otternschlag, olhando para o balcão de mogno coberto de vidro, onde o porteiro costumava depositar os bilhetes e recados.
— Ninguém, doutor.
— Algum telegrama? — perguntou em seguida o Dr. Otternschlag. Herr Senf teve a gentileza de procurar de novo na caixa 218, apesar de saber de antemão que nada havia nela.
— Hoje não, doutor — disse ele. Com grande amabilidade acrescentou: — Talvez o doutor queira ir ao teatro. Ainda tenho um camarote para o espetáculo da Grussinskaia, no Teatro do Oeste.
— Da Grussinskaia! — disse o Dr. Otternschlag. Conservou-se ainda um momento imóvel; depois, passando pelo vestíbulo e atravessando o hall numa linha curva, voltou à sua cadeira. "Agora, nem mesmo a Grussinskaia consegue casa cheia", pensou ele. "É natural. Nem eu próprio a quero ver mais..." Cheio de melancolia, enterrou-se de novo na poltrona.
— Este homem cansa a gente — disse o porteiro a Georgi. — Sempre perguntando pela correspondência. Há dez anos que se hospeda aqui por alguns meses, e nunca chegou carta nenhuma para ele nem nenhum gato-pingado perguntou por ele. E um homem desses ainda fica sentado, esperando.
— Quem é que está esperando? — perguntou do compartimento ao lado o chefe de recepção, Herr Rohna, esticando a cabeça meio ruiva por sobre a divisão baixa de vidro. Mas o porteiro não respondeu logo; parecia-lhe estar ouvindo os gritos de sua mulher — transportava para o exterior o que ouvia interiormente. Em seguida, os assuntos privados mergulharam em seu íntimo porque teve que ir ajudar Georgi a explicar em espanhol ao senhor mexicano do quarto 17 uma complicada conexão de trens. O groom 24, com as faces afogueadas e o cabelo bem alisado com água, saiu correndo do elevador, exclamando, alegre e excitado — em voz demasiado alta para um hall tão distinto:
— Mandem chamar o chofer do Barão Gaigern!
Rohna ergueu a mão, num gesto de censura e apaziguamento, como um diretor de orquestra. O porteiro telefonou, chamando o chofer. Georgi arregalou seus olhos de rapazinho, com expressão de curiosidade. Espalhou-se no ar um aroma de alfazema e de cigarro fino. Após o aroma, um homem, cuja aparência chamava a atenção, entrou pelo hall, e várias pessoas o olharam. A senhorita cor de cera da banca de jornais sorriu. O homem também sorriu, sem nenhuma razão aparente, simplesmente porque se sentia satisfeito com sua própria pessoa, conforme parecia. Era de estatura fora do comum e trajava-se muito bem, também de maneira pouco usual. Tinha um andar elástico, como o de um gato ou de jogador de tênis. Não usava sobretudo sobre o smoking, mas um trench coat azul-marinho, que não combinava com o smoking. Toda a sua figura tinha um ar de gracioso desleixo. Deu uma palmadinha no crânio molhado do groom 24, estendeu o braço sobre o balcão do porteiro, sem olhar, e recebeu um punhado de cartas que enfiou simplesmente no bolso, de onde tirou suas luvas de camurça pespontada. Cumprimentou com um gesto amistoso o chefe de recepção, como a um camarada. Pôs na cabeça o chapéu de feltro escuro e, tirando do bolso uma cigarreira, colocou um cigarro entre os lábios, sem o acender. Porém imediatamente se descobriu de novo, afastando-se para deixar passar duas senhoras pela porta giratória. Era a Grussinskaia, delgada e miúda, enfiada até o nariz em uma pele, seguida de uma sombra apagada que ia levando as malas. Quando o encarregado dos carros, lá fora, instalou as duas no automóvel, o simpático senhor de impermeável azul acendeu o cigarro, tornou a enfiar a mão no bolso e meteu uma moeda na mão do boy 11, o encarregado da porta giratória. Depois desapareceu por entre os balouçantes espelhos da porta giratória, com a expressão feliz de um rapazinho a quem deram licença para andar de carrossel.
Quando esse cavalheiro, esse senhor, esse encantador Barão Gaigern saiu do hall, fez-se de súbito enorme silêncio, ouvindo-se então o jorro da fonte luminosa a tombar com um murmúrio fresco e suave na bacia veneziana. É que o hall se esvaziara; o jazz-band do tea-room parará de tocar, a música da sala de refeições ainda não principiara e o trio do Salão Vienense, do jardim de inverno, fazia uma pausa. No súbito silêncio penetrou o ruído excitado e incessante das buzinas dos automóveis que passavam diante da entrada do hotel, em seu movimento noturno. Mas dentro do hall o silêncio permaneceu, como se o barão tivesse carregado consigo a música, o ruído e o burburinho humano. Georgi apontou com a cabeça para a porta giratória e disse: — Bom sujeito. Queira Deus que ele não mude.
O porteiro encolheu os ombros, como bom conhecedor dos homens.
— A questão é saber se é bom de fato. Ele tem um certo jeito... não. Dá-me a impressão de ser uma pessoa leviana. O modo de andar e as gordas gorjetas... parece coisa de cinema. Quem é que viaja hoje em dia com esse luxo — a não ser um vigarista? Se eu fosse o Pilzheim, tratava de abrir os olhos.
Rohna, o chefe de recepção, que tinha os ouvidos em toda parte,- estendeu de novo a cabeça por cima da divisão de vidro; sob os raros fios de cabelo meio ruivo, brilhava-lhe a pele acinzentada do crânio.
— Deixe disso — disse ele; — Gaigern é boa pessoa, eu o conheço. Foi educado em Feldkirch, com meu irmão. Por causa dele não é preciso ir incomodar o Pilzheim. (Pilzheim era o detetive do Grande Hotel).
Senf fez continência, calando-se respeitosamente. Rohna sabia o que estava dizendo. O próprio Rohna era também um conde, um Rohna da Silésia, antigo oficial, um sujeito direito. Senf fez novamente continência, enquanto a cara de galgo de Rohna se afastava e o conde continuava suas ocupações por detrás da parede de vidro fosco, como uma sombra.
O Dr. Otternschlag, lá no seu canto, conservara o busto meio erguido, enquanto o barão estivera no hall, e depois voltara a encolher-se, mais sombrio ainda. Entornou com o cotovelo seu copo de conhaque, com bebida até a metade, mas nem se dignou olhar. Suas mãos magras, amarelecidas pelo fumo, pendiam entre os joelhos abertos, pesadas como se estivessem metidas em luvas de chumbo. Por entre suas compridas botinas de verniz, olhava o tapete que cobria o hall e todas as escadarias, passagens e corredores do Grande Hotel: já estava farto do seu desenho de trepadeiras, com o ananás verde-amarelo por entre as folhas pardacentas, sobre um fundo vermelho-framboesa. Tudo estava morto... A hora estava morta. O hall estava morto. Todos tinham ido cuidar de seus negócios, viver seus prazeres e seus vícios, deixando-o ali abandonado. No meio desse vazio, viu-se de súbito o vulto da encarregada do vestiário aparecer por trás do balcão e alisar com um pente preto o cabelo ralo de sua cabeça de velha. O porteiro saiu do seu cubículo e disparou, sem guardar as conveniências, atravessando o hall em direção ao compartimento dos telefones. Parecia estar pressentindo alguma coisa. O Dr. Otternschlag procurou seu conhaque e não o encontrou. "Vamos agora para o quarto nos deitar?", perguntou a si mesmo. Um fraco e bruxuleante rubor tingiu suas faces e desapareceu, como se ele houvesse traído um segredo, revelando-o a si próprio. "Vamos", respondeu com os seus botões. Mas não se levantou, porque até isso o deixava indiferente. Levantou o indicador amarelo e Rohna, no outro extremo do hall, percebendo o gesto invisível, providenciou auxílio ao doutor.
— Cigarros, jornais — disse ele sem se mover. O menino disparou até a senhorita cataléptica da banca de jornais. Rohna olhou com ar de reprovação aquela intempestiva vivacidade juvenil; depois, Otternschlag tomou os jornais e os maços de cigarro que o groom tinha ido buscar para ele e pagou colocando o dinheiro na mesinha e não na mão do groom, pois costumava sempre conservar distância entre si e os demais, sem o perceber. A metade intacta de sua boca chegou a imitar um sorriso, quando abriu os jornais e começou a ler; esperava sempre encontrar nos jornais qualquer coisa que eles não traziam, tal como acontecia com as cartas, os telegramas e os chamados, que jamais chegavam para ele. Estava terrivelmente só, com uma impressão de vazio, isolado da vida. Às vezes, quando conversava a sós consigo mesmo, costumava fazê-lo em voz alta. "É horrível", dizia-se com frequência, estacando sobre a passadeira cor de framboesa, assustado com sua própria pessoa. "É horrível. Nenhuma vida. Nenhuma espécie de vida. Mas por onde andará ela? Nada acontece. Nada sucede. É uma tristeza. Só velhice e morte. É horrível." As coisas que o rodeavam pareciam miragens. O que ele tocava se desfazia em pó. O mundo era uma coisa inconsistente, impossível de segurar ou reter. Caía-se de um vazio em outro vazio. Carregava-se um saco de trevas dentro de si. O Dr. Otternschlag vivia na mais profunda solidão, apesar de o universo estar povoado por seus semelhantes.
Nos jornais, nada encontrou que o satisfizesse. Um tufão, um terremoto, uma guerra pouco importante entre pretos e brancos. Incêndios, assassinatos, lutas políticas. Nada. Muito pouco. Escândalos, pânico na Bolsa, derrocada de fortunas imensas. Que tinha ele com isso? Que sentimento lhe provocava tudo isso? Um voo através do oceano, recordes de velocidade, notícias sensacionalistas, com títulos de uma polegada de altura. Cada jornal gritava mais que o outro, e finalmente não se ouvia mais nenhum; os homens acabavam por se tornar cegos, surdos e desprovidos de sentimentos, com a ruidosa atividade da época moderna. Figuras de mulheres nuas, coxas, seios, dentes, ofereciam-se abertamente, aos montões. Também o Dr. Otternschlag, noutros tempos, possuíra mulheres! Lembrava-se disso sem saudades, apenas com um friozinho a descer-lhe pela espinha. Deixou que os jornais lhe caíssem simplesmente da mão amarelecida pelo fumo, sobre o tapete de ananases, de tal modo o aborreciam e lhe eram indiferentes. — Não, não acontece nada, absolutamente nada — disse a si mesmo, a meia voz. Noutros tempos, tivera uma gatinha persa, chamada Gurbal; desde que ela fugira com um gato vadio de água-furtada, via-se obrigado a dialogar consigo mesmo.
No momento em que, caminhando em linhas curvas, se dirigia à portaria para ir buscar a chave do quarto, um indivíduo esquisito empurrou a porta giratória, no vestíbulo.
— Senhor, aí está o homem de novo! — disse o porteiro a Georgi, olhando fixamente para o indivíduo, com seu olhar enérgico de primeiro-sargento. Esse indivíduo, o tal homem, destoava completamente no hall do Grande Hotel. Usava um chapéu de feltro, redondo, barato, novo, um pouco largo para a sua cabeça, mas que orelhas caídas seguravam, evitando que escorregasse ainda mais para a frente. Tinha um rosto amarelado, o nariz afilado e tímido, compensado por um bigode imponente, de corte muito apreciado pelos diretores de associações. Vestia um sobretudo estreito, verde-acinzentado, velho e lamentavelmente fora de moda; calçava botinas pretas, que pareciam demasiado grandes para a sua pequena estatura, com os canos a espiarem por baixo das calças pretas, muito curtas. Usava luvas de linha cinzentas e segurava uma mala, imitando couro, que parecia pesada demais para ele; segurava-a pela alça, com ambas as mãos de encontro ao estômago; debaixo do braço trazia ainda um pacote engordurado, envolto em papel marrom. O homem tinha um aspecto realmente grotesco e lamentável; e parecia cansadíssimo. Mas quando o groom 24 tentou tirar de suas mãos a mala, não a entregou, parecendo confuso com essa cortesia do boy. Só defronte do balcão de Herr Senf, colocou a mala no chão, e, meio ofegante, curvou-se à guisa de cumprimento, dizendo com uma voz aguda e agradável:
— Meu nome é Kringelein. Já estive aqui duas vezes. Vim informar-me de novo.
— Faça o favor de dirigir-se aqui ao lado, mas acho que não há nenhum quarto vago — disse o porteiro, apontando Rohna. — Aquele senhor está esperando há dois dias que vague um quarto — explicou, olhando por cima da divisão de vidro.
Rohna, sem voltar os olhos para o recém-chegado, tirara as suas conclusões e, por mera cortesia, fingiu estar folheando o livro de registro de hóspedes. Depois disse:
— Infelizmente, no momento está tudo ocupado. Sinto muitíssimo.
— Ainda está ocupado? Muito bem, e onde vou hospedar-me então? — perguntou o indivíduo.
— O senhor não quer ir ver nos arredores da estação, em direção da Friedrichstrasse? Há ali uma porção de hotéis.
— Não, muito obrigado — disse o homem. Tirou um lenço do bolso do sobretudo e passou-o nervosamente pela testa suada. — Quando cheguei estive num desses hotéis e não gostei. Quero hospedar-me num lugar distinto.
Ao colocar sob o braço esquerdo o guarda-chuva molhado, deixou cair o engordurado pacote que tinha debaixo do braço direito, mostrando algumas fatias de pão com manteiga — já tortas, de tão ressequidas. O Conde Rohna disfarçou um sorriso; Georgi virou-se para o quadro das chaves. O groom 17, corretíssimo, juntou os pedaços de pão seco, que o homem, com os dedos trêmulos, enfiou no bolso. Tirou o chapéu e colocou-o diante de Rohna, sobre o balcão. Tinha a testa alta e enrugada, e as têmporas fundas e azuladas. Seus olhos vesgos, de um azul muito claro, espiavam por trás de um pince-nez que estava sempre a querer escorregar pelo nariz afilado.
— Eu queria ficar hospedado aqui. Afinal há de vagar algum quarto. Faça o favor de reservar-me o primeiro quarto que desocupar. Já é a terceira vez que venho aqui; o senhor pensa que isso me diverte? Não é possível que esteja sempre tudo ocupado, não é mesmo?
Rohna encolheu os ombros, lamentando. Durante um instante ficaram todos calados, e pôde-se ouvir a música da sala vermelha de refeições e o jazz band, que estava agora no pavilhão amarelo. Já se encontravam de novo sentados no hall vários senhores, e alguns deles olharam para o indivíduo com ar de estarem se divertindo, e ao mesmo tempo estranhando sua aparência.
— O senhor conhece o Diretor-Geral Preysing? Ele também se hospeda sempre aqui, quando vem a Berlim, não é verdade? Pois é. Eu também quero me hospedar aqui. Tenho um assunto urgente a tratar, uma conferência importante com Preysing. Aliás, ele próprio me pediu para encontrar-me aqui com ele. Aconselhou-me a hospedar-me aqui. Foi ele quem me recomendou este hotel. Vim por recomendação do Diretor-Geral Preysing. Por favor. Quando vai vagar um quarto?
— Preysing? O Diretor-Geral Preysing? — perguntou Rohna a Senf, do outro lado do vidro.
— De Fredersdorf; da Indústria Algodoeira Saxônia S.A. Eu também sou de Fredersdorf — disse o indivíduo.
— É, sim — lembrou-se o porteiro —, um Herr Preysing já esteve várias vezes aqui.
— Eu acho que pediram um quarto para ele, para amanhã ou depois de amanhã — murmurou Georgi, querendo mostrar-se solícito.
— O senhor quer tentar mais uma vez amanhã, quando Herr Preysing estiver aqui? Ele chega hoje de noite — disse Rohna, depois de folhear os seus livros e de encontrar o pedido de reserva.
Estranhamente, essa notícia pareceu assustar o homem.
— Vai chegar? — disse ele, com uma expressão de angústia, entortando ainda mais os olhos vesgos. — Está bem... vai chegar hoje mesmo. Bem. E há um quarto para ele? Quer dizer que há quartos vagos? Meu Deus, por que será que o diretor-geral tem um quarto e eu não? Que significa isso? É um desaforo que eu não posso admitir! Como? Ele reservou com antecedência? Faça o favor, eu também fiz uma reserva de quarto. É a terceira vez que venho aqui, é a terceira vez que arrasto esta mala pesada, faça o favor. Está chovendo, os ônibus estão cheios, eu não estou passando bem de saúde. Então? Quantas vezes devo fazer ainda esta caminhada? Como? Por quê? Isso não é modo de se tratar ninguém. Este é o melhor hotel de Berlim? Como? É? Pois bem, eu quero hospedar-me no melhor hotel de Berlim. Será que é proibido? — fitou a todos, um a um. — Estou cansado — acrescentou ainda —, estou extremamente cansado — disse. Notava-se seu cansaço e o esforço ridículo para se expressar com termos escolhidos.
De súbito, o Dr. Otternschlag meteu-se na conversa. Durante todo o tempo ele ficara parado, segurando a chave de seu quarto, presa a um grande quadrado de madeira, com o cotovelo fincado no balcão da portaria.
— Se este cavalheiro faz tanta questão, pode ficar com meu quarto — disse Otternschlag. — Para mim não faz diferença morar aqui ou ali. Mandem subir a mala dele. Eu posso mudar-me. Minhas malas estão prontas. Minhas malas estão sempre prontas. É um favor. Vê-se logo que o homem está exausto, doente — acrescentou ainda, cortando a oposição que o Conde Rohna, com eloquentes mãos de maestro, queria fazer.
— Mas doutor — disse Rohna, pressuroso —, nem se fala nisso, não é possível que o senhor ceda seu quarto. Nós vamos tentar... vamos ver... Se o senhor quiser ter a bondade de assinar o seu nome... bem, muito obrigado... 216 — disse Rohna ao porteiro. O porteiro deu ao boy 11 a chave do quarto 216. O indivíduo pegou a caneta-tinteiro que lhe estendiam e assinou o seu nome, com incrível rapidez, no livro de registro de hóspedes.
Otto Kringelein, guarda-livros em Fredersdorf, Sachsen, nascido em Fredersdorf a 14-7-1882.
— Pronto! — disse ele, respirando aliviado. Virou-se e, com os olhos tortos, muito abertos, olhou para o hall.
Encontrava-se, finalmente, no hall do Grande Hotel, ele, o guarda-livros Otto Kringelein, natural de Fredersdorf e residente em Fredersdorf. Ali estava, com o seu velho sobretudo e as ávidas lentes do seu pince-nez a quererem engolir tudo de uma vez. Estava cansado como um corredor que toca com o peito a fita de chegada — e o seu cansaço não era brincadeira; olhava as colunas de mármore com os ornamentos de gesso, a fonte luminosa, as poltronas. Via cavalheiros de fraque e de smoking, elegantes e viajados. Senhoras de braços nus, com vestidos refulgentes, adereços e peliças, mulheres de excepcional beleza, elegantíssimas. Ouvia música ao longe. Sentia o cheiro de café, de cigarros e perfumes; aroma de aspargos, vindo da sala de refeições, e o das flores que se encontravam em vasos em cima de uma mesa, para serem vendidas. Sentia o tapete espesso, vermelho, sob suas botinas lustrosas, tapete que lhe causou, no princípio, a mais forte impressão. Kringelein deslizava cuidadosamente com as solas sobre o tapete, pestanejando. Estava muito claro no hall, uma luz suave e amarelenta; nas paredes havia lampadazinhas avermelhadas com abajures e, na fonte veneziana, verdes repuxos de água.
Um garçom passou apressado, carregando uma bandeja de prata com copos largos e rasos, contendo cada um deles um pouco de conhaque dourado-escuro, onde boiavam pedras de gelo. Mas por que razão, no melhor hotel de Berlim, não enchiam os copos? O criado, segurando a triste mala, despertou Kringelein, que ficara a piscar os olhos tortos, a movimentar-se, quase como um sonâmbulo: o boy 11 passou com ele diante do ascensorista, um maneta rabugento, e o conduziu para cima. Os quartos 216 e 218 eram os piores do hotel; no 218 morava o Dr. Otternschlag, porque era hóspede efetivo, não sendo além disso pessoa de muitas posses, mas sobretudo porque era muito indiferente para exigir outro. O 216 ficava ao lado, no canto à direita, e ambos estavam encravados entre o elevador de serviço, perto da escada da cozinha 4 e o banheiro do terceiro andar. Dentro da parede corria e gorgolejava a água através do encanamento. Kringelein, a quem conduziam por entre ornamentos de palmas, lustres de bronze e quadros de caçadas, a lugares cada vez mais tristonhos do hotel, esgueirou-se lentamente, e desiludido, para dentro do quarto cuja porta uma criada velha e nada bonita lhe abriu.
— Número 216! — disse o boy, colocando a mala no chão; esperou a gorjeta, que não recebeu, e deixou só o silencioso Kringelein. Este sentou-se na beirada da cama e examinou o quarto.
Era comprido e estreito, tinha uma janela apenas, cheirava a charuto apagado e a armários esfregados com pano úmido. O tapete era ralo e puído. Os móveis — Kringelein apalpou-os — eram de nogueira envernizada.
Em Fredersdorf havia móveis iguais a esses. Um retrato de Bismarck estava suspenso à parede, na cabeceira da cama. Kringelein sacudiu a cabeça. Nada tinha contra Bismarck, pois em sua casa também havia um retrato do estadista. Esperava vagamente encontrar no Grande Hotel quadros diferentes sobre as camas, quadros exuberantes, de cores bem vivas, fora do comum, que se admirassem com prazer. Kringelein foi à janela e olhou para fora. Lá embaixo estava claríssimo, o telhado de vidro iluminado do jardim de inverno clareava todo o pátio. Bem defronte havia um muro de incêndio, nu, infindável. Vinha dali um cheiro de cozinha, e subia um vapor morno e desagradável. Kringelein sentiu náuseas e apoiou-se à laje do lavatório. "É que eu não estou muito bem de saúde", pensou com tristeza.
Sentou-se de novo sobre a colcha desbotada, e a sua preocupação foi crescendo, de segundo em segundo. "Aqui não fico", pensou. "Não, aqui não fico de maneira alguma. Não foi para isso que vim aqui. Para isso não adianta nada eu ter vindo. Não é assim que vou começar. Não vou perder o meu tempo em quartos como este. Mas estão me enganando. Decerto eles têm ainda no hotel quartos bem diferentes deste. Preysing deve ficar hospedado em quartos bem melhores, pois não suportaria isto. Preysing havia de fazer barulho — e como! —, vocês ficariam admirados. Se lhe dessem um quarto desses!... Não. Aqui eu não fico." Kringelein fez ponto final em suas reflexões. Concentrou-se. Precisou descansar alguns minutos. Depois tocou a campainha chamando a empregada, e fez um escândalo.
Se levarmos em consideração o fato de que aquela foi a primeira reclamação em tom violento que Kringelein fez na vida, temos de admitir que não se saiu muito mal. A empregada de avental branco, assustada, foi chamar uma camareira; um criado apontou ao longe; o quarteiro, com um prato de frios oscilando na palma da mão, estacou diante do 216 para escutar. Telefonaram a Rohna; este pediu que Herr Kringelein se dirigisse ao pequeno escritório, pois era necessário chamar um dos quatro diretores do hotel. Kringelein, obstinado como um camelo, exigia que lhe dessem um quarto bonito, luxuoso e caro, pelo menos como o de Preysing. Parecia considerar o nome de Preysing uma palavra mágica. Não tirara ainda o sobretudo, conservando as mãos trêmulas nos bolsos, agarradas aos velhos pedaços de pão com manteiga que trouxera de Fredersdorf; entortava os olhos e exigia um quarto caro. Sentia-se cansado e doente, com vontade de chorar. Nas últimas semanas chorava com facilidade, por causa da sua saúde. De repente, justamente quando ia desistir, viu que tinha vencido. Recebeu o 70, um salão com alcova e banheiro a cinquenta marcos por dia. Piscou um pouco quando leu o preço, mas, refletindo, perguntou:
— Bem. Com banho? Quer dizer... posso tomar banho a qualquer hora, todas as vezes que tiver vontade?
O Conde Rohna inclinou a cabeça, imperturbável. Kringelein fez sua segunda mudança.
O quarto 70 servia. Os móveis eram de mogno, havia espelhos de corpo inteiro, cadeiras forradas de seda, escrivaninhas entalhadas, cortinas de renda, quadros de faisões mortos na parede, e na cama um edredom de penas com capa de seda. Kringelein apalpou-o três vezes, incrédulo, sentindo seu brando calor e sua maciez. Sobre a escrivaninha havia um imponente tinteiro de bronze, representando uma águia, cujas asas abertas, ziguezagueantes, protegiam dois recipientes de tinta vazios.
Diante da janela caía uma chuva fresca de março; a atmosfera estava saturada de gasolina; ouviam-se buzinas de automóveis e, bem defronte, na fachada de um edifício, piscava continuamente um anúncio, com letras vermelhas, azuis e brancas; quando terminava de um lado, recomeçava na frente. Kringelein ficou olhando o anúncio durante seis minutos. Lá embaixo revolviam-se guarda-chuvas pretos e pernas claras de mulher, ônibus amarelos, globos de luz elétrica. Havia até mesmo uma árvore, estendendo os galhos não muito longe do hotel, galhos semelhantes aos das árvores de Fredersdorf. Essa árvore berlinense estava plantada numa ilhota de terra, no meio do asfalto, e em redor da terra havia uma cerca, um gradeado, como se ela precisasse de proteção contra a cidade. Kringelein, rodeado por tanta coisa estranha e impressionante, alegrou-se um pouco ao ver a árvore. Em seguida ficou por momentos perplexo, sem saber o que fazer diante do mecanismo niquelado da banheira, que ele não conhecia; porém, de repente, o mecanismo funcionou, escorrendo-lhe água quente nas mãos. Então ele se despiu. Sentiu uma impressão um tanto penosa ao entrar com o corpo nu, débil e macilento, na bacia clara de azulejos. Mas afinal ficou sentado dentro da água por mais de um quarto de hora, sem dores, nenhuma dor; as dores com que ele andava há várias semanas haviam-no abandonado repentinamente. E, a partir desse dia, não queria mais sentir dores.
Por volta das dez horas da noite Kringelein passeava pelo hall; estava muito arrumado, de fraque, colarinho engomado, alto, e uma gravata preta, de nó feito. Não se sentia cansado; pelo contrário, uma agitação febril, uma enorme impaciência se havia apoderado dele. "Agora vai começar", pensava incessantemente, e seus ombros delgados tremiam como as pernas dianteiras de um cachorro nervoso. Comprou uma flor, que enfiou na lapela; deslizou, cheio de prazer, sobre o tapete vermelho-framboesa, e foi queixar-se ao porteiro de que não havia tinta no seu quarto. Um boy conduziu-o à sala de correspondência. Mal Kringelein se encontrou diante daquela quantidade de mesinhas de escrever, vazias, sob a luz agradável dos abajures verdes, perdeu todo o aprumo e tirou a mão do bolso, parecendo sentir-se humilhado. Enfiou os punhos brancos da camisa para dentro das mangas do paletó, com um gesto habitual, antes de sentar-se; depois, começou a escrever com sua caligrafia de guarda-livros, cheia de arabescos:
À Chefia do Pessoal da Indústria Algodoeira Saxônia
S.A., de Fredersdorf.
Prezados senhores,
O abaixo assinado toma a liberdade de comunicar respeitosamente que, de acordo com o atestado médico que acompanha esta — anexo A —, se acha impossibilitado de trabalhar por um período de quatro semanas, até nova ordem. O último salário, vencido em março, o abaixo assinado roga a V. Sas- seja pago a Frau Anna Kringelein, Bahnstrasse n° 4, conforme procuração — anexo B. Caso o abaixo assinado não possa retomar seu serviço após quatro semanas, avisará V. Sas oportunamente. Com a maior estima e consideração,
Otto Kringelein.
A Frau Anna Kringelein, Sachsen, Bahnstrasse n° 4.
Querida Anna — continuou Kringelein a escrever, o A tinha um arrojado arabesco. — Querida Anna, comunico-lhe que o diagnóstico do Professor Dr. Salzmann, após o exame a que me submeti, não foi favorável. Tenho que seguir diretamente daqui para uma casa de saúde, com as despesas a cargo do instituto, mas preciso ainda preencher algumas formalidades. Por enquanto estou hospedado num local muito barato, por recomendação do diretor-geral. Dentro de alguns dias darei notícias mais detalhadas; ainda preciso submeter-me a uma radiografia, antes de saber o diagnóstico definitivo. Lembranças do seu marido
Otto.
Ao tabelião, Herr Kampmann, Fredersdorf, Sachsen, Villa Rosenhein, Mauerstrasse.
Querido Amigo e Colega da Associação Coral — assim começou Kringelein a terceira carta com sua letra legível e delicada olhando para a ponta da pena. — Você vai ficar surpreso ao receber uma longa carta minha de Berlim, mas devo comunicar-lhe importantes modificações na minha vida e conto com sua compreensão e discrição profissional. Infelizmente tenho dificuldades em expressar-me por escrito, mas espero que você, com sua grande cultura e conhecimento dos homens, demonstre a devida compreensão para o que lhe escrevo. Como você sabe, após a operação a que me submeti no verão passado, nunca mais tive saúde e perdi a pouca confiança que depositava no nosso hospital e no nosso médico. Por isso aproveitei a oportunidade de ter recebido a herança de meu pai e vim para cá com esse dinheiro, a fim de fazer um exame e ver do que se tratava. Infelizmente, caro amigo, o resultado não foi bom, e, de acordo com a opinião do professor, tenho pouco tempo de vida
Kringelein permaneceu com a pena no ar, talvez durante um minuto; esqueceu-se de colocar um ponto no fim da frase. Seu bigode, o imponente bigode de diretor de associação, estremeceu de leve, mas ele continuou a escrever animadamente:
Quando se recebe tal comunicação, é natural que muita coisa passe pela nossa cabeça, e não dormi várias noites, mergulhado em minhas reflexões. Cheguei à conclusão de que não pretendo mais voltar para Fredersdorf, e, durante as poucas semanas em que ainda me aguentar de pé, gostaria de aproveitar um pouco a vida. Quando nunca se gozou a vida e se tem de ir para o túmulo com quarenta e seis anos de idade, não é agradável ficar se preocupando, economizando e zangando-se com Herr Pr. na fábrica e com a mulher em casa. É injusto e errado saber que está tudo acabado e que nunca se teve uma alegria verdadeira. Infelizmente, caro Amigo e Colega da Associação Coral, não sei me expressar com correção. Desejo, por isso, apenas comunicar-lhe que o meu testamento, que fiz no verão antes de me operarem, continua válido, mas a situação agora é um pouco diferente. Fiz remeter para cá, através do banco, todas as minhas economias, assim como um empréstimo maior que fiz no seguro de vida e os três mil e quinhentos marcos da herança do meu pai. Desse modo posso viver durante algumas semanas como um homem rico, e é o que pretendo fazer. Por que razão somente os Preysing podem aproveitar a vida, e nós continuamos a ser os tolos, que economizam e amealham? Trouxe comigo a soma de oito mil, quinhentos e quarenta marcos. O que sobrar pode ficar para a Anna; mais do que isso, de acordo com a minha opinião, não lhe devo, pois ela me amargurou bem a vida com as suas brigas, e nem sequer me deu um filho. Porei você a par do lugar em que me encontro e da minha saúde, mas isso é segredo profissional, é um favor que lhe peço. Berlim é uma bela cidade, e cresceu muito para quem não esteve aqui por tantos anos. Pretendo também ir a Paris, porque conheço bem o francês, devido à correspondência. Como você pode perceber, estou firme e há muito tempo não me sinto tão bem.
Abraça-o com amizade o seu fiel Moribundus
Otto Kringelein.
P.S. Basta que você diga à diretoria da Associação que tive de ir para uma casa de saúde de industriários.
Kringelein releu as cartas cujo conteúdo lhe custara duas noites de vigília — não ficou muito contente; pareceu-lhe que na carta para o tabelião faltava alguma coisa importante, mas não conseguia lembrar-se do que se tratava. Kringelein, apesar de possuir uma natureza acanhada e modesta, não era tolo, tinha idealismo e tendência para a cultura. O fato de dar ironicamente a si próprio o nome de Moribundus devia-o à leitura de um livro da biblioteca circulante, onde ele encontrara esse termo; lera o livro com enorme esforço, e o digerira em difíceis conversas com o tabelião. Desde seu nascimento, Kringelein levara a vida normal do pequeno burguês, vida um tanto insípida, sem grandes entusiasmos; vida dispersa de um empregado subalterno numa cidade pequena. Casara-se cedo e sem grande entusiasmo com Fräulein Anna Sauerkatz, filha do merceeiro Sauerkatz, que lhe parecera muito bonita até o dia do casamento, mas logo após se tornou uma pessoa feia, desagradável, sovina, que dava uma enorme importância a coisas mesquinhas. Kringelein recebia um ordenado fixo, e também um pequeno aumento de cinco em cinco anos, mas como sua saúde não fosse das melhores, sua mulher e a família, desde o começo, obrigaram-no a viver com sórdida economia, tendo em mira um problemático "amparo na velhice". Um piano, por exemplo, que Kringelein desejara ardentemente durante toda a vida, nunca o pôde adquirir: vira-se forçado a vender seu cãozinho teckel chamado Zipfel, quando lançaram o imposto sobre os cães. No pescoço tinha sempre arranhões, porque sua pele delicada de anêmico não suportava os velhos e usados colarinhos, com a beirada áspera. Às vezes tinha a impressão de que alguma coisa não estava certa em sua vida, mas não descobria o que era. Em outras ocasiões, na Associação Coral, quando sua voz de tenor, de timbre agudo, tremulante e delicada, sobressaía entre as outras vozes, apossava-se dele um sentimento estranho: parecia-lhe estar vagando no espaço, sentia-se feliz como se voasse. Muitas vezes passeava à noite. Ia caminhando em direção a Mickenau, depois afastava-se das ruas calçadas e ia margeando o fosso úmido dos caminhos, andando por uma trilha que limitava as plantações. Por entre as hastes dos cereais passava um brando sussurro, e quando as espigas roçavam em sua mão ele sentia uma inexplicável alegria. Durante a narcose, no hospital, também sentira essa impressão esquisita e agradável, mas depois a esquecera. Eram coisas insignificantes, que diferenciavam o guarda-livros Otto Kringelein da média de seus concidadãos. E fora isso — juntamente, talvez, com a embriaguez provocada pelos venenos letais destilados pelo seu organismo — o que trouxera o Moribundus até ali, ao mais caro hotel de Berlim, onde escrevera aquelas cartas que continham uma decisão incrível, baseada em motivos fúteis.
Quando Kringelein se ergueu da cadeira, vacilando ligeiramente, e atravessou a sala de leitura com seus três envelopes na mão, encontrou-se com o Dr. Otternschlag, que, para ouvi-lo, virou para ele a face danificada, o que o assustou.
— Então? Já está instalado? — perguntou Otternschlag com indolência; estava de smoking, e olhou para as pontas de seus sapatos de verniz.
— Já estou, sim. Otimamente instalado — respondeu Kringelein com timidez. — Obrigado. Preciso agradecer lhe muitíssimo, cavalheiro. Foi muita bondade sua, de fato...
— Bondade minha? Ora veja! Por causa do quarto? Ora... Sabe, há muito que desejo mudar-me daqui, mas tenho preguiça. Este hotel é uma gaiola miserável. Se o senhor tivesse ficado com o meu quarto, eu estaria a estas horas no rápido para Milão, ou qualquer coisa assim... seria divertidíssimo. Ora, tanto faz. Em março, o tempo é horrível no mundo inteiro. Dá na mesma ficar aqui ou ali. Posso ficar aqui, também.
— O cavalheiro costuma viajar muito? — perguntou Kringelein timidamente, pois imaginava que os hóspedes daquele hotel fossem todos magnatas ou fidalgos. — Se me permite: Kringelein — acrescentou com modéstia, inclinando-se com elegância fredersdorfiana. — O cavalheiro deve conhecer bem o mundo...
— Um pouquinho — disse Otternschlag. — Conheço os lugares mais visitados, os passeios obrigatórios, que todo mundo faz. A Índia, e pouca coisa mais — sorriu ligeiramente ao observar a avidez que se manifestou nos olhos azuis de Kringelein, vesgos por trás do pince-nez.
— Eu também pretendo viajar — disse Kringelein. — O nosso diretor-geral, por exemplo, viaja todos os anos. Há pouco tempo esteve em Saint-Moritz. Na Páscoa do ano passado esteve com a família em Capri. Imagino como tudo isso deve ser maravilhoso!
— O senhor tem família? — perguntou o Dr. Otternschlag, afastando o jornal para o lado. Kringelein refletiu cinco minutos, antes de responder:
— Não, senhor.
— Não tem! — repetiu Otternschlag, e em sua boca essas palavras adquiriram um caráter irrevogável.
— Em primeiro lugar eu gostaria de ir a Paris — disse Kringelein. — Paris deve ser uma beleza, não?
O Dr. Otternschlag, que demonstrara até então um resquício de calor e de interesse, parecia ter ficado sonolento. Ele costumava cair nesse estado de sonolência várias vezes por dia, e contra ele só podia empregar certos meios misteriosos e prejudiciais para a saúde.
— Para Paris o senhor deve ir em maio — murmurou ele.
Kringelein disse rapidamente: — Não disponho de tanto tempo.
Subitamente o Dr. Otternschlag o deixou sozinho.
— Tenho de ir para o quarto deitar-me um pouco — disse ele, mais para si mesmo do que dirigindo-se a Kringelein, que ficou na sala de leitura com as suas três cartas na mão. O jornal que Otternschlag folheara caiu ao chão; estava todo rabiscado com figuras de homenzinhos. Sobre cada figurinha havia uma cruz, desenhada com traços fortes. Kringelein, ligeiramente desiludido, saiu da sala deslizando pelo tapete, com o semblante desconcertado, e dirigiu-se para a sala de refeições de onde vinham os sons fracos mas perceptíveis de uma música lenta e martelada, que ecoava por todas as paredes do enorme hotel.
2
O pano caiu, batendo no soalho do palco com um ruído surdo e pesado de ferro.
A Grussinskaia, que até esse instante girara com leveza de flor por entre as bailarinas, veio se arrastando, ofegante, por trás do primeiro bastidor. Com ar estonteado, apoiou a mão trêmula no braço de um maquinista e soltou o ar dos pulmões, como se estivesse ferida. O suor corria-lhe ao longo das rugas sob os olhos. Os aplausos, fracos como uma chuva distante, avivaram-se de repente, o que significava que o pano abria de novo. Um homem levantava-o com grande esforço, enrolando-o com grandes impulsos de manivela. A Grussinskaia reabriu o seu sorriso, como uma máscara de papelão, e avançou dançando, fazendo curvaturas ao chegar às gambiarras.
Gaigern, que se aborrecera muito, bateu três ligeiras palmas, por pura amabilidade, e esgueirou-se por entre as filas da plateia, dirigindo-se para uma das saídas cheias de gente. Nas primeiras filas e nas galerias, alguns espectadores mais pertinazes gritavam e batiam palmas; mais para trás, todos se apertavam, empurrando-se para chegar quanto antes ao vestiário. Para a Grussinskaia, lá da cena, parecia uma fuga, um pequeno pânico, esse rápido desfilar de peitilhos brancos, de dorsos negros dos senhores, de capas de brocado — todos numa só direção. Ela sorriu, atirando a cabeça para trás, com o pescoço esguio como uma haste de flor; deu uns pulinhos para a direita e para a esquerda e abriu os braços, saudando o público que se preparava para retirar-se. O pano caiu, batendo no solo. O corpo de baile continuava na sua pose, tinha disciplina.
— Levantem o pano! Levantem o pano! — gritava histericamente Pimenoff, o mestre de ballet, que era o encarregado de preparar o êxito dos espetáculos.
A coisa ia devagar, e o homem da manivela fazia esforços desesperados. Algumas pessoas na plateia, que já estavam perto das portas, detiveram-se ainda um momento, com um sorriso amarelo, batendo palmas. Num camarote também aplaudiam. A Grussinskaia apontava para as bailarinas, ninfas de tarlatana agrupadas em seu redor; aparentando a maior modéstia, ela recusava esses fracos aplausos, cedendo-os às insignificantes jovenzinhas. Algumas pessoas que já haviam vestido seus agasalhos surgiram às portas, assistindo, com ar divertido, àquela manifestação tardia de entusiasmo. Witte, o velho maestro alemão, lá embaixo, na orquestra, fazia gestos súplices aos músicos, implorando-lhes que lhe obedecessem; eles já estavam guardando seus instrumentos nas caixas.
— Ninguém saia! — murmurou ele cheio de angústia, trêmulo e suando. — Ninguém saia, por favor, senhores. Talvez tenhamos de repetir a Valsa da primavera!
— Não tenha receio — disse um fagote. — Hoje não há extras. Vai ficar nisso. Então, não lhe disse?
Realmente, os aplausos pingavam. A Grussinskaia ainda pôde ver a bocarra negra e aberta do músico, a rir-se lá embaixo, antes que o pano a separasse dos espectadores. De súbito, os aplausos cessaram, e o repentino silêncio se alargou sinistramente na sala; só se ouvia o ruído que as jovens de tarlatana faziam, com as pontas de seda de seus pés batendo no chão.
— Podemos ir? — murmurou em francês Lucille Lafite, a primeira-bailarina, dirigindo-se às costas trêmulas e pintadas de branco da Grussinskaia.
— Podem. Vão-se embora. Todas. Vão para o diabo! — respondeu a Grussinskaia em russo. Tinha vontade de gritar, mas a voz lhe saiu da garganta num misto de tosse e soluço. Intimidadas, todas saíram correndo. Na ribalta as luzes se apagaram, e durante alguns segundos a Grussinskaia ficou sozinha em cena, a tiritar, sob a iluminação cinzenta de ensaio.
De repente ouviu-se um ruído, como o estalido de um galho partindo-se, o estrupido das patas de um cavalo, um ruído inconfundível — lá na sala deserta, uma pessoa aplaudia sozinha, completamente sozinha. Não havia acontecido milagre nenhum; era Meyerheim, o empresário, que, com a audácia do desespero, procurava salvar o espetáculo. Batia palmas, com suas mãos acústicas, com a máxima energia, aparentando frenético entusiasmo, e ao mesmo tempo lançava olhares iracundos às galerias, pois a claque, esquecida de seus deveres, havia abandonado cedo demais o seu posto. O Barão Gaigern foi o primeiro a ouvir esse ruído isolado, e voltou, curioso e com vontade de zombar. Tirou depressa as luvas e juntou-se freneticamente aos aplausos. E, ao voltarem apressadamente do vestiário uns sujeitos da claque e alguns curiosos, ele chegou a bater os pés, como um estudante entusiasmado. Alguns sujeitos trocistas se reuniram a ele, formando-se um pequeno e divertido ajuntamento, e, finalmente, perto de sessenta pessoas batiam palmas, chamando pela Grussinskaia.
— Pano! Pano! — gritava Pimenoff com voz esganiçada; a Grussinskaia corria de um lado para outro no palco, como uma histérica.
— Michael! Onde está o Michael? Michael tem que sair comigo! — gritou ela a rir-se, com as pestanas cheias de pasta azul, de suor e de lágrimas. Witte empurrou o bailarino Michael para diante dos bastidores; sem fitá-lo, a Grussinskaia pegou a sua mão, tão escorregadia de suor que era difícil segurá-la; diante da caixa do ponto curvaram-se com a harmonia perfeita de corpos acostumados a um trabalho em conjunto. Mal o pano caiu, a Grussinskaia principiou a armar um escândalo, dando largas à sua excitação.
— Você estragou tudo! A culpa foi sua! Vacilou na terceira arabesque! Nunca me teria acontecido uma coisa dessas com o Pimenoff!
— Misericórdia, eu? Mas Gru! — murmurou Michael com seu cômico acento báltico, em tom suplicante. Witte arrastou-o depressa para trás do bastidor 3 e tapou-lhe a boca com sua mão de velho.
— Pelo amor de Deus, não a contradiga; deixe-a! — murmurou ele.
A Grussinskaia recebeu os aplausos sozinha. Nos intervalos destes, quando ia para trás dos bastidores e o pano ainda se conservava descido, ela se punha a vociferar. Amaldiçoava a todos com as mais espantosas maldições, xingava-os de porcos, cães, bando de devassos; chamava Michael de bêbado e Pimenoff de coisa pior ainda, ameaçava despedir o corpo de ballet, que já se ausentara, e jurava ao maestro Witte, que estava presente, calado e desolado, que se suicidaria pelos seus andamentos errados. Enquanto isso, o coração voava-lhe dentro do peito como um passarinho exausto e sem rumo, e as lágrimas corriam-lhe ao longo do sorriso de cera e pintura. Finalmente, o chefe dos eletricistas pôs fim a essa cena, baixando uma grande alavanca; ficou tudo às escuras, e um homem impaciente começou a cobrir com panos cinzentos as filas de cadeiras. O pano ficou descido, o homem da manivela foi para dentro.
— Quantas chamadas, Suzette? — perguntou a Grussinskaia a uma mulher idosa que estava nos bastidores e a ajudou a vestir um casaco de lã desbotado e fora de moda, e em seguida abriu diante dela a porta de ferro do palco. — Sete? Eu contei oito. Você acha que foram sete? É um bom número, não acha? Mas terá sido mesmo um sucesso?
Ouviu com impaciência os protestos de Suzette, que assegurava ter sido um sucesso enorme, quase como em Bruxelas há três anos. Madame se lembrava? Sim, madame se lembrava. Como se fosse possível esquecer um grande sucesso! Madame, sentada no pequeno camarim, olhava fixamente a lâmpada elétrica envolta em uma rede, que pendia sobre o espelho, e recordou-se de tudo. "Não, não foi como em Bruxelas", pensou, taciturna e morta de cansaço. Estirou os membros banhados em suor; como um pugilista estendido no seu canto após um exaustivo round, ficou largada, enquanto Suzette friccionava-a, esfregava-a e tirava-lhe a pintura. O camarim era um canto triste, aquecido demais, sujo, estreito; cheirava a roupa velha, a ranço, a pintura, a centenas de corpos extenuados. Talvez a Grussinskaia tivesse dormitado alguns segundos, porque esteve a caminhar pelo átrio de sua villa do lago de Como — mas a seguir viu-se de novo ao lado de Suzette, às voltas com o penoso descontentamento provocado pelo espetáculo dessa noite. Não tinha sido um grande sucesso, não. Não tinha sido um grande sucesso. E que mundo cruel e incompreensível era esse, que começava a negar a uma artista como a Grussinskaia um grande sucesso?!
Ninguém sabia a idade da Grussinskaia. Alguns velhos senhores russos, aristocratas imigrados que moravam em quartos mobiliados em Wilmersdorf, diziam conhecer a Grussinskaia há quarenta anos — o que era seguramente um exagero. Mas, sem dúvida, seu êxito internacional já datava de vinte anos, e vinte anos de êxito e celebridade representam um tempo infinito.
Às vezes, a Grussinskaia dizia ao velho Witte, seu amigo e companheiro desde o início da sua carreira:
— Witte, sou uma criatura condenada a arrastar uma carga excessiva, sem descanso, a vida inteira.
E Witte respondia, cheio de gravidade:
— Por favor, Elisavieta Alieksandrovna, nunca deixe perceber isso; nunca fale de carga e de peso. O mundo inteiro se fez pesado. Sua missão, Elisavieta, permita-me que o diga, é conservar-se leve. Conserve-se como está! Não mude, seria uma catástrofe mundial.
A Grussinskaia não mudava. Pesava quarenta e oito quilos desde os dezoito anos, e uma boa parte do seu êxito e das suas aptidões era devida a esse fato. Seus partners, habituados à sua leveza, não conseguiam dançar com nenhuma outra bailarina. Seu pescoço, seu corpo, que parecia consistir apenas em articulações, o oval de seu rosto continuavam sempre os mesmos. Seus braços se moviam como disciplinadas asas. Seu sorriso, sob as pálpebras alongadas, era por si só uma obra de arte. Todas as energias da Grussinskaia se concentravam numa única finalidade: conservar-se fiel a si mesma. E ela não notava que era isso precisamente o que começava a aborrecer o público...
Talvez esse público a apreciasse como ela era na realidade, como era nesse momento, sentada no seu camarim: uma pobre mulher, velha, delicada, extenuada, de olhar tristonho, e a carinha consumida e torturada de um ente humano e real. Quando a Grussinskaia não tinha sucesso — e isso costumava acontecer agora, de vez em quando — encolhia-se toda, transformava-se de súbito numa mulherzinha velhíssima, de setenta anos, de cem anos, mais velha ainda. Lá no fundo do camarim, Suzette lamentava-se em voz baixa, em francês, diante do lavatório cinzento, encravado na parede; a torneira de água quente não funcionava muito bem. Afinal ficaram prontas as compressas úmidas para o rosto, e a Grussinskaia entregou-se à sua ardência, enquanto Suzette lhe tirava o colar de pérolas do pescoço, essas pérolas de uma beleza inverossímil, célebres no mundo inteiro, que datavam da época dos grão-duques.
— Pode guardar o colar; não quero mais usá-lo hoje — disse a Grussinskaia, abandonando-se, com a fisionomia concentrada, às pontas dos dedos, às essências de cânfora e à pintura do seu apagado factótum. Tinha de ir ainda a uma ceia que o Clube do Proscênio oferecia em sua honra, e por isso ela se fazia pintar com tanta compunção, como um antigo guerreiro mexicano antes de enfrentar o inimigo.
No corredor, diante do camarim, Witte ia e vinha, como uma paciente sentinela a montar guarda, enquanto arranhava a tampa do relógio, que usava no bolso do fraque, à moda antiga. Em seu rosto envelhecido de músico, liam-se a preocupação e a aflição. Pouco depois veio juntar-se a ele o mestre de ballet, Pimenoff, e finalmente chegou Michael, com as pestanas lustrosas de vaselina, e cheio de pó de arroz.
— Vamos esperar a Gru? Vamos juntos? — perguntou Michael, enchendo-se de coragem.
— Eu o aconselharia a evaporar-se, meu rapaz — disse Witte —, mesmo que você não tivesse vacilado cem vezes, o aconselharia a fazer isso.
— Mas eu não vacilei, Pimenoff! Acha que eu vacilei? — exclamou quase chorando. Pimenoff encolheu os ombros. Era também um homem idoso, com um nariz grande e característico, e tinha um fraco pelas gravatas plastrão da época de Eduardo VII. Ele próprio não dançava mais, apenas dirigia os ensaios e preparava os divertissements para a Grussinskaia. Eram coreografias clássicas, muito difíceis, cheias de pássaros, flores e alegorias, tudo dançado em pontas.
— Vá deitar-se, evite encontrar-se com a Gru, hoje. Lucille também já sumiu — disse ele, prudentemente.
Michael, com expressão de zanga, bateu à porta do camarim da Grussinskaia.
— Boa noite, madame! — exclamou ele. — Não os acompanho hoje. Quando é o ensaio amanhã?
— Naturalmente que você vai conosco. Tem que sentar-se ao meu lado na mesa! — exclamou lá de dentro a Grussinskaia. — Não me faça ficar triste, sweetheart! Sobre o ensaio vamos falar ainda. Espere por mim, ainda não estou pronta.
— Tiens... já passou a crise — murmurou Witte com um gesto de "já não está mais aqui quem falou".
— Larmes, oh, douces larmes! — declamou Pimenoff, com o queixo metido na gola do sobretudo.
— Não quero que o meu pior inimigo dance pas de deux com a Gru! Misericórdia, meu caro! — finalizou Michael, com seu cômico acento báltico.
A Grussinskaia, no camarim, punha perfume atrás da orelha. "Michael tem que estar lá", pensou ela. "Estou sempre rodeada de velhos: Pimenoff, Witte, Lucille, Suzette." De repente, sentiu uma raiva enorme do chapeuzinho surrado que Suzette usava, colocando-o sobre os cabelos cor de cinza, caído para trás. Com um gesto brusco recusou seu auxílio e saiu para o corredor, levando no braço a capa preta e dourada, com arminho. Virou-se de costas para Michael, para que ele lhe colocasse a capa nos ombros. Ele a colocou, com seu jeito habitual, delicado e feminino. Era uma pequena cerimônia de reconciliação; mais do que isso: era um tênue e secreto anseio da Grussinskaia pela companhia desse jovem. Michael era jovem, porque a Grussinskaia estava sempre mudando de primeiro-bailarino, cheia de nervos e de exigência com seus partners pessoais. O resto da troupe envelhecera com ela.
Aliás, ela agora tinha uma aparência magnífica, linda, estranha, exuberante e elástica.
— Elisavieta está encantadora! — disse Witte, com uma reverência do século passado. Ele se habituara a expressar-se num estilo complicado, em primeiro lugar para ocultar seu amor por Gru, por quem se apaixonara desde a mocidade, e depois porque tinha de traduzir logo suas frases, do alemão para o russo ou para o francês. A Grussinskaia também passava constantemente de uma língua para outra, do tu russo ou francês ao você inglês, e também conhecia o alemão; sabia traduzir as principais grosserias e amabilidades para qualquer língua. Nem sempre era fácil seguir sua conversa. Quando entrou no carro, por exemplo, perguntou:
— Você acha que a culpa é das pérolas, Witte?
— As pérolas? Por quê? Culpa de quê? — perguntou Witte, perplexo. A segunda pergunta foi feita apenas por cortesia, porque ele sabia muito bem a que se referia a Grussinskaia.
— Mon Dieu, por que justamente as pérolas? — perguntou também Pimenoff.
— Pois é, o colar de pérolas. Elas me dão azar, essas pérolas — disse ela expressivamente, como uma criança.
Witte batia com uma luva na outra: usava luvas glacées, fora de moda.
— Mas querida!... — disse ele abismado.
— Como? — perguntou Pimenoff. — Durante toda a sua vida essas pérolas lhe deram sorte, eram a sua mascote, o seu talismã! Você não podia dançar sem esse colar! E agora, de repente, as pérolas lhe dão azar? Que ideia, Gru!
— Pois é. Elas dão azar. Já percebi isso há muito tempo — disse Gru, com uma ruga de teimosia entre as sobrancelhas pintadas. — Não sei explicar muito bem, mas pensei muito sobre isso. Enquanto o Grão-Duque Serguei vivia, elas me deram sorte. Voilà. Desde que o assassinaram... azar, azar, azar! A ruptura do tendão no meu tornozelo, o ano passado, em Londres. O déficit em Nice. E, de um modo geral, azar! Não usarei mais esse colar quando dançar. Fiquem sabendo!
— Não vai usá-lo mais? Mas querida, Gru querida, você não pode aparecer em público sem as pérolas, você acreditou a vida inteira que não podia aparecer em cena sem essas pérolas, e agora, de repente...
— Pois é — disse a Grussinskaia —, era uma superstição minha.
Witte principiou a rir.
— Lisa! — exclamou ele — pombinha, minha queridinha, você é mesmo uma criança!
— Vocês não me compreendem. Você não me entende absolutamente, Witte. As pérolas já não me ficam bem. Não devo usá-las mais. Antigamente era diferente. Antigamente ... em São Petersburgo, em Paris, em Viena... era preciso usar joias. Uma bailarina tinha que ter joias e ostentá-las. Agora... quem é que usa um colar de pérolas verdadeiras? Eu sou mulher, sinto melhor essas coisas, tenho flair para essas coisas... Michael, você está dormindo? Fale alguma coisa também!
Michael, sem mover seu corpo delicado, disse, num francês lento:
— Quer saber o que penso, madame? Devia dar seu colar de pérolas às crianças pobres, aos aleijados, ou qualquer coisa parecida, madame.
— O que você está pensando? O colar de pérolas? Dar as pérolas? —- exclamou a Grussinskaia em russo, e a expressão pozertvovati parecia a melodia de alguma canção.
— Chegamos — disse Pimenoff, brecando de súbito.
— En avant! — ordenou a Grussinskaia. — Sejamos elegantes! Alegremo-nos!
Abriu-se uma porta.
Witte, subindo a escada atrás da bailarina, declarou:
— Elisavieta Alieksandrovna só tem um defeito: a paixão pelo imperativo categórico.
A Grussinskaia começou a rir, radiante como uma lâmpada acesa de repente, e assim, alegre e sorridente,entrou no clube, onde trinta fraques, de pé, esperavam pela sua entrada.
O Barão Gaigern tinha sido o último a deixar de aplaudir, mas assim que teve a certeza de que o pano não ia subir mais saiu do teatro com a fisionomia séria de um homem apressado. Não estava mais chovendo, e no asfalto úmido da Kantstrasse se refletiam numerosas luzes brancas e amarelas; o bonde passava ligeiro por entre as casas, guardas davam sinal para a partida, indivíduos desocupados abriam as portas dos automóveis às capas de pele. Gaigern foi andando pela calçada por entre a multidão, infringiu com perigo de vida as regras do trânsito e continuou a caminhar rapidamente por uma rua mais escura, a Fasanenstrasse, onde o seu carro — um modesto carrinho de quatro lugares — estava estacionado. O chofer fumava um cigarro.
— Então? — perguntou Gaigern, com as mãos nos bolsos do impermeável azul.
— Ela já mudou de chofer — respondeu o motorista. — Agora é um inglês. Ela o pescou em Nice, onde o patrão dele o deixou, após arruinar-se. Almocei com ele. Esse não abre a boca para dizer nada.
— Pela centésima vez eu lhe digo para tirar o cigarro da boca quando eu falar com você — disse Gaigern, dissimuladamente.
— Está bem — disse o chofer, jogando fora o cigarro. — Agora ele foi ao teatro, para levá-la ao Clube do Proscênio; daqui a pouco deve chegar lá. Quando deverá ir buscá-la, ainda não sabe.
— Ainda não sabe? — repetiu Gaigern, pensativo, batendo com as luvas na palma da mão. — Bem, está certo. Vou até lá de novo. Vá com o carro para o teatro e espere defronte da entrada.
Gaigern foi-se aproximando de novo do teatro, com a mesma fisionomia de homem ocupadíssimo. Ali, tudo agora estava vazio e vulgar: o enorme luminoso se apagara, as tabuletas olhavam inexpressivas. A entrada do palco não dava para a rua, mas para um pátio em cujos muros de incêndio a hera úmida cintilava. Gaigern se esgueirou por entre uns sujeitos que estavam vagabundeando por ali, e ficou a olhar para a porta de vidro fosco onde a Grussinskaia devia aparecer. Primeiro saíram os bombeiros, depois os maquinistas, de ombros largos, fumando, e em seguida passou algum tempo sem que ninguém aparecesse. Um pouco depois a porta cuspiu para o pátio uma pequena troupe de jovens bailarinas, criaturas magrinhas, com peliças baratas, tagarelando em francês, russo e inglês. Gaigern sorriu, depois que elas passaram; muitas já conhecia de Nice e Paris. Quando sorria, seu lábio superior encurtava, como acontece com os garotinhos, o que o tornava encantador e agradava a muitas mulheres.
"Meu Deus, como hoje isto está demorando de novo", pensou ele, impaciente, quando o pátio dos fundos do teatro adormeceu por completo. Passou-se quase um quarto de hora, até que o chofer se mexeu, no carro da Grussinskaia, como um cão que está sonhando, e ligou o motor. Gaigern, que conhecia o sinal, encolheu-se, ocultando-se na sombra do muro. Quando a Grussinskaia apareceu, finalmente, ele estava invisível.
— Espere-me aqui, Suzette — disse ela voltando-se para a porta —, mando logo o Berkley de volta. Ele a levará para o hotel.
Vestia uma capa magnífica, muito vistosa, dourada e preta, com arminho, que a envolvia até o queixo; a bailarina estava agora tão bonita como nas fotografias em que aparecia nos jornais ilustrados do mundo inteiro. Gaigern, do seu esconderijo, olhou-a com atenção. Quando ela pôs o pé prateado no estribo do carro, a gola de arminho abriu-se, e Gaigern pôde ver seu pescoço, seu célebre pescoço, longo e alvo, semelhante à haste de uma flor, que nessa noite, sobretudo, parecia mais nu do que nunca. Satisfeito, aspirou o ar pelos dentes; nunca havia desejado nada com tanto ardor quanto ver esse pescoço nu...
Mal o automóvel partiu, Suzette apareceu no pátio escuro e deserto seguida pelo porteiro, que fechou a entrada do palco. Conservava a aparência de cópia velha e apagada da sua patroa, pois usava os vestidos e os chapéus velhos da Grussinskaia, quando já haviam passado de moda há muito tempo. Neste momento arrastava-se pelo pátio, metida numa saia comprida, em forma de sino, e usando um casaco desbotado, com uma espécie de gola à Werther. Em cada mão carregava uma mala: na esquerda, uma valise grande e chata; na direita, uma pequena suitcase de verniz preto. Andando com dificuldade, foi até a porta gradeada que separava da rua o pátio do teatro e ali ficou a caminhar de um lado para o outro, sob a luz forte da lâmpada elétrica. Pela cabeça de Gaigern passaram, durante esses poucos segundos, alguns velozes pensamentos, e ele se curvou, no seu canto sombrio, com os nervos tensos, como a se preparar para um salto ou para iniciar uma corrida. Mas nada fez, porque o maldito Berkley, fazendo uma magnífica curva, aproximou-se, e Suzette subiu no carro cinzento. Na Gedaechtniskirche bateram onze e meia, e Gaigern, que se esquecera de respirar um minuto, aspirou profundamente o ar da noite. Assobiou, e seu carrinho surgiu incontinenti.
— Vamos ao hotel, siga-o depressa! — exclamou, sentando-se rápido ao lado do chofer.
— Então? Há esperanças? — perguntou este, que já estava falando de novo de cigarro na boca.
— Esperemos — respondeu Gaigern.
— Mais uma noite inteira à espreita no carro, hein? E cá o degas não precisa dormir mais, não é? — disse o chofer.
Gaigern esticou o indicador, mostrando o carro cinzento que fazia a pequena curva em redor da casinhola iluminada do guarda, na Hitzigbruecke.
— Vá seguindo — disse; o chofer pisou no acelerador; não havia mais guardas na ponte. Berlim borbulhava sua vida noturna pelas ruas, sob um céu vermelho, completamente sem estrelas, sob a claridade de uma noite de primavera.
— A gente até perde a vontade — continuou o chofer com as suas considerações. — Essa história está dando mais despesas do que o lucro que poderá vir. No fim só vai dar prejuízo.
— Faça o que quiser — replicou o barão amavelmente, e seu lábio superior tornou-se minúsculo ao pronunciar estas palavras. — Se você não está contente, pode receber o pagamento e seguir o seu caminho. É um favor.
— Não estou falando por mal — disse o chofer.
— Nem eu — respondeu o barão. Depois ficaram calados até chegar ao hotel.
— Estacione na entrada 6 — observou Gaigern, ao saltar do carro; na porta giratória, que levava do hall de entrada ao grande hall, encontrou-se com um senhor girando em sentido contrário. Gaigern deu um pontapé impaciente na porta e fez com que o carrossel de vidro, com o seu conteúdo, fosse para a frente.
— É nessa direção que ela gira! — disse ele a Kringelein.
— Obrigado. Muito obrigado — replicou Kringelein, que queria sair e ficou de novo girando lá dentro.
Gaigern correu a buscar sua chave, voou ao elevador e, no primeiro andar, pediu ao maneta que esperasse um pouco, pois voltaria em um segundo. Disparou pelo corredor até o seu quarto, o 69, atirou o chapéu e a capa, tirou de um vaso um lindo ramo de orquídeas e correu com ele para o corredor.
— Faça o favor de dizer ao ascensorista que não preciso mais dele — disse a uma criada de quarto que se arrastava ao longo das portas, caindo de sono. A empregada deu o recado ao maneta, que tocou o elevador, resmungando. Quando o elevador chegou ao andar térreo, Suzette já o estava esperando com suas duas malas, para subir. E era isso justamente o que Gaigern queria.
Ao entrar no quarto 68, o quarto da Grussinskaia, Suzette viu atrás de uma palmeira no corredor um bonito jovem, cuja fisionomia tímida e suplicante não lhe era desconhecida.
— Boa noite, mademoiselle. Permita-me dizer-lhe uma palavrinha — disse ele no francês elegante, um tanto antiquado, que se ensina nos colégios de jesuítas. — Só uma palavrinha: madame não está no seu quarto?
— Não sei, cavalheiro... — respondeu Suzette, que era sabida.
— É só porque... desculpe o atrevimento... mas eu gostaria de colocar no quarto de madame uma florzinha para ela. Sou um admirador, estive hoje no teatro... e não perco os seus espetáculos de dança. Olhe, eu li num jornal que madame gosta destas catleias... é verdade?
— É — respondeu Suzette. — Ela gosta de orquídeas. Em nossa estufa de Tremezzo temos uma pequena coleção delas.
— Ah! Posso então entregar-lhe meu raminho e pedir-lhe o favor de colocá-lo no quarto de madame?
— Hoje recebemos uma imensidade de flores. O embaixador francês mandou uma cesta — disse Suzette, ainda amargurada pelo discutível sucesso da noite, olhando com bastante simpatia aquele jovem tímido. Mas não podia pegar o ramo porque estava com as duas mãos ocupadas. Teve até dificuldade em passar a chave para a mão direita a fim de abrir a porta do 68. Gaigern, vendo o apuro em que ela se encontrava, aproximou-se solícito.
— Permita-me! — disse ele, fazendo menção de pegar as duas malas. Suzette entregou-lhe a mala grande. Mas conservou consigo a pequena suitcase, afastando-se num movimento instintivo. "É ali então que se encontram as célebres pérolas", pensou Gaigern, sem dizê-lo, é claro. Abriu a porta externa, depois a interna, e franqueou com passos tímidos e ao mesmo tempo entusiásticos o limiar do quarto onde a Grussinskaia estava hospedada.
O quarto era banal, e estava arrumado com uma elegância empoeirada, como todos os outros. Fazia frio ali dentro, flutuava um perfume estranho e acre, e um aroma de coroas de folhagem, e a porta que dava para o pequeno terraço estava aberta. O cortinado do leito estava aberto, e sobre o tapete encontravam-se uns chinelinhos já bem usados e gastos: chinelos de uma mulher acostumada a dormir sozinha. Gaigern, parado à porta, teve um furtivo e terno sentimento de piedade por esses chinelinhos resignados, junto ao leito de uma linda e célebre mulher. Entrou no quarto segurando seu ramo de orquídeas, com um gesto de súplica. Suzette colocou a suitcase sobre a mesa de toilette, entre os três espelhos, e apanhou finalmente as flores.
— Obrigada, monsieur — disse ela. — Há algum cartão com as flores?
— Que ideia! Eu não sou tão atrevido — disse Gaigern. E ficou a olhar para o rosto enrugado e cor de marfim de Suzette, que mostrava estranha semelhança com o da patroa. — A senhora está cansada? — perguntou ele. — E madame com certeza vai voltar tarde. Precisa esperar por ela?
— Não. Madame é boa pessoa. Diz-me todas as noites: "Pode ir dormir, Suzette, não preciso de você". Mas madame precisa de mim, sim. Vou esperar por ela. Madame nunca chega depois das duas, porque começa a trabalhar às nove horas da manhã. E que trabalho o dela, monsieur — oh, mon Dieu! Não, madame é muito boa.
— Ela deve ser um anjo! — observou Gaigern em tom respeitoso. "Só há um quarto de banho sem janelas entre o 68 e o 69", pensou ele ao mesmo tempo. Seu olhar, vagando por todos os lados, caiu no enorme bocejo de Suzette.
— Boa noite e mil vezes obrigado, mademoiselle — disse ele modestamente. Depois, sorriu e desapareceu.
Suzette fechou as duas portas assim que Gaigern saiu, colocou as orquídeas na garrafa de água e encolheu-se num fauteuil, como uma gata friorenta.
3
Antes da uma da manhã há poucos pares de sapatos diante das portas dos quartos do Grande Hotel. Todo mundo saiu para gozar a noite fervilhante, barulhenta e exuberante de luz elétrica da grande cidade. A criada de quarto da noite boceja a um canto, no pequeno office, ao fim do corredor; em cada andar há uma criada exausta, virtuosa e murcha. Os boys revezaram de turno às dez horas, mas a nova guarnição também tem, sob os bonés colocados de lado, descuidadamente, os mesmos olhos febris e brilhantes de crianças que não foram cedo para a cama. O encarregado do elevador, manda e mal-humorado, foi substituído, à meia-noite, por um outro maneta não menos mal-humorado. Senf entregou também seu posto ao porteiro da noite, e dirigiu-se ao hospital sem refletir, lá pelas onze horas, com os dentes batendo de excitação. O fato de ele ter sido mandado para casa por uma irmã-porteira pouco amável, com a observação de que o nascimento da criança podia demorar ainda vinte e quatro horas, é assunto particularmente seu, e não tem nada a ver com o hotel. No hotel, a estas horas, estão se divertindo a valer. No pavilhão amarelo estão dançando, o bufê de Mattoni já está bem desfalcado e ele sorri com seus olhos de negro enquanto corta fatias do rosbife e mistura maraschino na salada de frutas gelada. Os ventiladores zunem e cospem o ar viciado para os pátios do hotel, e na sala de leitura, no subterrâneo, estão os choferes falando mal dos patrões, porque não os deixam beber durante o serviço. No hall encontram-se sentados os hóspedes provincianos do Reich, assombrados e levemente aborrecidos com os hóspedes de Berlim, esses senhores de chapéu caído para a nuca, com gestos exagerados, e admirados também com a pintura dos rostos das senhoras. Rohna, que acabava de se esfregar com vinaigre de toilette e ia atravessando o hall, pensou: "É verdade que os nossos frequentadores noturnos não são first class. Mas — que voulez-vous? — só essa gente ordinária é que traz dinheiro para a caixa!"
Pouco antes da uma hora, Herr Kringelein chegou ao bar do hotel, onde se imprensou, exausto, atrás de uma mesinha para observar o mundo com olhos enublados. Para falar a verdade, Herr Kringelein estava completamente exausto, mas era voluntarioso como uma criança no dia do seu aniversário — simplesmente não queria ir para a cama. Além disso, tinha a impressão de já estar dormindo, tudo chegava ao seu cérebro de um modo confuso, como um estado de sonho ou de febre; o alarido e o movimento humano, as vozes, a música, tudo isso estava junto dele e ao mesmo tempo muito distante, absolutamente irreal. O mundo burburinhava de modo estranho, mergulhando-o num estado de bebedeira sem álcool. Certa vez, com a idade de dez anos, Kringelein faltara à escola e fugira, com medo de um ditado, numa manhã quente e cheia de neblina, em direção a Mickenau; depois, deixara as ruas calçadas e ficara a vagabundar pelos campos e, enquanto o sol dardejava seus raios ardentes, deitara-se e adormecera com a cabeça sobre uma almofada de trevo. Chegara a uma sebe à margem do rio e encontrara ali uma quantidade enorme de framboesas, que se pôs a devorar. Nunca mais se esqueceu, em toda a sua vida, do zumbido das grandes moscas dos brejos, que chuparam o sangue de suas pernas e de seus dedos perfumados e sujos do suco das framboesas, que tinha apanhado aos punhados, por entre urtigas e espinheiros. Esse sentimento embriagador de plenitude, o medo, o leve e febril mistério, e a alegria maligna da ação reprovável — essa embriaguez do assaltante, tudo isso ele sentia de novo, entre uma e duas da madrugada, no bar do hotel mais caro de Berlim. De certo modo as martirizantes moscas também se encontravam ali; haviam tomado a forma de números, e davam desagradáveis picadas no cérebro de Kringelein, no cérebro de um modesto guarda-livros que, acostumado a fazer contas durante toda a sua vida, não conseguia agora deixar de fazê-las.
Nove marcos era quanto custava uma porção de caviar, por exemplo. Caviar é uma desilusão, na opinião de Kringelein. Tem gosto de arenque e custa nove marcos. Kringelein sentiu calor e frio ao mesmo tempo, quando se viu sentado diante do carrinho com os hors d’oeuvres, observado por três garçons com ar de poucos amigos.
O menu — vinte e dois marcos, com a gorjeta — ficou intacto, porque seu estômago enfermo sentira náuseas. O borgonha era um vinho grosso e ácido deitado numa espécie de carrinho de criança, como um baby. A gente rica tinha um gosto esquisito, parecia. Kringelein, que não era bobo e gostava de aprender, reparara logo que estava mal vestido e usava as várias espécies de talheres de modo errado. Não pudera livrar-se de um maldito tremor nervoso durante toda a noite, que fora rica em embaraços por causa das gorjetas, de saídas por portas erradas, de perguntas confusas e pequeninos tormentos de toda a espécie. Mas tivera também seus grandes momentos, essa noite de um homem rico. A visita às vitrinas, por exemplo. Em Berlim as vitrinas ficam iluminadas durante a noite, e tudo que existe no mundo se encontra ali aos montões. Poder comprar tudo isso era um pensamento novo, febril e embriagador, para um homem como Kringelein. Foi ao cinema (em Berlim ainda se pode ir ao cinema às nove e meia da noite) e comprou um camarote. Em Fredersdorf também se vai ao cinema, pois três vezes por semana há um espetáculo no Salão Zickenmeier, onde a Associação Coral costuma fazer os seus ensaios. Kringelein estivera lá uma ou duas vezes, e sentara-se com sua Anna, que era muito sovina, bem na frente, no lugar mais barato, entre operários de fábricas; esticava a cabeça para cima, como um parafuso, de olhos fixos nas gigantescas e desfiguradas imagens da tela. O filme, visto de um lugar caro, tinha um aspecto completamente diferente, assemelhando-se à vida real, quando se pode pagar; foi esse um dos grandes conhecimentos adquiridos nessa noite. Kringelein, lembrando-se disso, sacudia a cabeça, sorridente. Um parêntese: esse filme de Saint-Moritz mostrava um mundo maravilhoso, mas que não parecia real. Kringelein, naquele canto do bar, resolveu ir para Saint-Moritz. "Estes montes, lagos e vales não existem só para os Preysing", pensa ele. Seu coração palpita com força quando tal pensamento o assalta de novo. Quando as pessoas têm a certeza de que vão morrer, são assaltadas por uma sensação de liberdade, amarga e triunfante. Kringelein, no entanto, não encontra palavras para exprimir o sentimento que às vezes o assalta, e agora o oprime, obrigando-o a suspirar profundamente para recobrar alento.
— Com licença — disse o Dr. Otternschlag em meio às considerações de Kringelein, metendo os joelhos ossudos por debaixo da mesinha em que estava sentado. — Não há mais nenhum lugar livre neste maldito bar. Local completamente obstruído. Louisiana Flip — disse ele ao garçom, pousando os dedos magros sobre a mesa, entre ele e Kringelein, como dez varetas, frias e pesadas, de metal.
— Que prazer — disse Kringelein com elegância. — Tenho imenso prazer em encontrar de novo o cavalheiro. O senhor foi tão bondoso comigo... não pense que me esqueci. Não, realmente não...
Otternschlag, a quem há muitos anos ninguém chamava de bondoso, e com quem, há dez anos, ninguém, absolutamente ninguém, mantivera uma conversa, sentiu um leve desprezo, misturado com certa satisfação, ouvindo os repetidos agradecimentos do senhor de Fredersdorf.
— Bem, bem... saúde! — disse ele, engolindo de um trago o seu Flip. Kringelein pedira uma bebida qualquer, mas não se atrevia a bebê-la, e apenas provou o líquido cor de cobre na taça de metal niquelado.
— No começo, o movimento daqui nos causa confusão — disse timidamente.
— Hum — replicou o Dr. Otternschlag. — No princípio causa. E não melhora, quando somos hóspedes efetivos. Não. Mais um Louisiana Flip.
— Na realidade, tudo é diferente do que imaginamos — respondeu Kringelein, a quem o coquetel forte deixara meditabundo. — Hoje em dia já não se vive na província como se estivéssemos fora do mundo. Lemos os jornais. Mas na realidade é bem diferente. Eu sei, por exemplo, que as banquetas do bar são altas. Mas não acho que sejam tão altas assim. E o negro ali adiante é o mixer, isso eu já sei; mas não é uma coisa tão esquisita, quando ele está perto de nós, apesar de ser o primeiro negro que vi na minha vida. Mas não é nada esquisito. Fala até alemão, e poderíamos pensar que ele está apenas pintado de preto.
— Não, não, é um negro de verdade. Mas não e muito competente. Quem quiser bebidas que façam dormir precisa esperar muito.
Kringelein prestou atenção à confusão de vozes, ao tilintar dos vidros, ao sussurro das pessoas e às gargalhadas das mulheres na frente do bar.
— Essas mulheres não são moças de bar, não é? — perguntou. Otternschlag voltou para ele o lado perfeito do rosto.
— O senhor está sentindo falta do elemento feminino? — perguntou. — Não, essas não são moças de bar; isto aqui é um local sério, respeitável. Só mulheres acompanhadas por cavalheiros. Não são moças de bar, mas também não são senhoras. O senhor está procurando companhia?
Kringelein pigarreou.
— Obrigado, nem penso nisso. Mas se eu quisesse, já teria companhia para hoje. Sim senhor. Pois é. Uma moça me chamou para dançar.
— Ah, é? Ao senhor? Onde? — perguntou o Dr. Otternschlag, entortando metade da boca, num sorriso.
— Eu estava num cassino, não muito longe da Potsdamerplatz — observou Kringelein, procurando imitar o tom desembaraçado e mundano de Otternschlag. — Fantástico, fantástico, é o que lhe digo. Que iluminação feérica! — procurou uma palavra mais expressiva, mas depois se contentou com essa mesmo. — Uma iluminação feérica. Pequenas fontes luminosas, que sempre mudavam de cor. Caro, naturalmente. É preciso beber champanha. Cobram, por uma garrafa, vinte e cinco marcos. Infelizmente eu não aguento beber muito, não tenho muita saúde, o senhor compreende.
— Já sei. Já percebi. Quando alguém usa um colarinho dois centímetros mais largo do que o pescoço, não precisa me dizer mais nada.
— O senhor é médico? — perguntou Kringelein, sentindo um calafrio e um susto, e metendo, sem querer, dois dedos entre o colarinho. — É, está largo demais...
— Fui. Tudo passou. Fui mandado pelo governo para a África do Sul. Clima horroroso. Preso em setembro de 14. Campo de concentração em Nairóbi, na África Oriental Britânica. Horrível. Voltei à pátria porque dei a minha palavra de que nunca mais seria soldado. E, como médico, participei dessa grande porcaria até o fim. Granadas no rosto, e bacilos de difteria no ferimento, de que não me livrei até 1920. Dois anos no isolamento. Pois é. Basta. Ponto final. Tudo pertence ao passado. Quem é que se interessa por essas coisas?
Kringelein, assustado, não desprendia os olhos daquele homem atormentado, cujos dedos rígidos e inanimados estavam pousados sobre a mesa, separando-os. O bar acompanhava a sua conversa com uma espécie de ruído musical; adivinhava-se que tocavam um charleston no pavilhão amarelo. Kringelein pouco compreendera do despacho telegráfico de Otternschlag. Não obstante, subiu-lhe aos olhos uma aguinha quente. Ele se envergonhava de chorar com tanta facilidade, depois que fizera a operação, que aliás não adiantara nada.
— E o senhor, não tem ninguém que... quero dizer... O senhor vive sozinho? — perguntou, sem jeito. E pela primeira vez Otternschlag reparou em sua voz aguda, de timbre agradável, a voz de um homem, uma voz que vibrava, que procurava, que tateava... Estendeu seus dedos frios na mesa e retirou-os em seguida. Kringelein, pensativo, olhava para as inúmeras cicatrizes esbranquiçadas do rosto de Otternschlag, mas de repente abriu-se o começou a falar.
Sozinho — ele sabia o que isso significava, foi mais ou menos o que ele disse; também ele vivia sozinho em Berlim, de um modo geral. Cortara todos os laços, desligara-se de diversos vínculos que o prendiam — usava modos elegantes de expressar-se — e agora estava em Berlim. Quando se vivera em Fredersdorf, ficava-se um pouco perdido numa grande cidade. Ele conhecia pouco a vida, mas agora queria conhecê-la, conhecer a verdadeira vida, a vida propriamente dita, com V maiúsculo, e era para isso que estava ali naquele momento.
— Mas — disse Kringelein —, onde está a verdadeira vida? Eu ainda não a descobri. Estive no cassino, estou no hotel mais caro de Berlim, mas não é só isso o que eu quero. Desconfio de que a vida real, verdadeira, a vida propriamente dita, existe num outro lugar, e tem um aspecto bem diferente. Quando não fazemos parte dela, não é tão fácil atingi-la, o senhor compreende?
— E o que imagina o senhor que a vida seja? — replicou o Dr. Otternschlag. — Existirá mesmo essa vida que o senhor imagina? A coisa propriamente dita existe sempre num lugar diferente. Quando a gente é jovem, pensa: "mais tarde..." Mais tarde, lamentamos: "antigamente é que eu vivia". Quando estamos aqui, imaginamos a vida na Índia, na América, no Popocatepetl ou em outro lugar qualquer. Mas quando nos encontramos lá, a vida acabou de passar por ali e desaparecer, ficando à nossa espera aqui, aqui mesmo, de onde nós fugimos. Com a vida passa-se a mesma coisa que com os caçadores de borboletas e os lepidópteros que tentam pegar. Enquanto estão voando, são uma maravilha. Depois que os apanham, notam que as cores desapareceram e as asas se estragaram.
Kringelein ouvia pela primeira vez da boca do Dr. Otternschlag algumas frases com certa sequência, e isso o impressionou; mas não acreditou no que ele estava dizendo.
— Não acredito nisso — disse com modéstia.
— Pode acreditar. Tudo se passa como com as banquetas de bar — replicou Otternschlag, que apoiara os cotovelos nos joelhos, e cujas mãos, pendentes, tremiam debilmente.
— Que banqueta de bar? — perguntou Kringelein.
— A banqueta de que o senhor falou há pouco. "As banquetas de bar não são tão altas assim", afirmou o senhor há pouco. "Eu imaginei que as banquetas fossem mais altas." Não é verdade? O senhor não disse isso? Pois é. Nós imaginamos tudo maior do que é, antes de vermos as coisas. O senhor acabou de chegar de viagem e veio lá do seu cantinho de província com ideias absurdas sobre a vida. O Grande Hotel, pensou o senhor. O hotel mais caro de Berlim, pensou o senhor. Deus sabe que milagres o senhor espera de um hotel assim. O senhor vai logo ficar sabendo o que é isto. Este hotel não vale nada, Herr Kringelein. A gente chega, fica algum tempo, depois parte. De passagem, compreende? Para uma estada curta, sabe? O que é que o senhor faz num hotel de luxo? Come, dorme, fica vadiando, faz negócios, flerta um pouquinho, dança um pouco, não é? Bem, e o que faz o senhor da sua vida? Centenas de portas num corredor, e ninguém sabe nada a respeito de quem mora ao lado de seu quarto. Quando o senhor vai embora, chega outro sujeito, deita-se na sua cama, e acabou-se. Fique sentado algumas horas no hall e preste bem atenção: ninguém é real. Essa gente não tem fisionomia própria! É tudo uma ilusão. Estão todos mortos e não sabem. É uma arapuca, um hotel de luxo. Grande Hotel, bella vita, hein? Bem, o importante é ter sempre as malas prontas...
Kringelein ficou pensando algum tempo. Teve então a impressão de ter compreendido o que Otternschlag dissera.
— É. Tem razão — disse ele, concordando. Havia seriedade demais nessa afirmativa. Otternschlag, que caíra numa leve sonolência, levou um susto.
— O senhor deseja alguma coisa de mim? Quer que eu o inicie na vida? Boa escolha a sua, magnífica. De qualquer maneira, estou à sua disposição, Herr Kringelein.
— Eu não queria incomodá-lo — respondeu Kringelein, meio atrapalhado e respeitoso. Pôs-se a refletir. Não se aguentava mais, usando essas frases elegantes. Desde que se encontrava no Grande Hotel, movia-se como se estivesse numa terra estranha. Falava o alemão como uma língua estrangeira, que tivesse aprendido em livros e jornais.
— O senhor foi bondosíssimo — disse. — Eu tinha esperanças... mas para o senhor as coisas são diferentes. O senhor já conhece tudo isso. Já está farto. Eu tenho tudo pela frente... então fico impaciente... tenha a bondade de desculpar.
Otternschlag olhou Kringelein com atenção; até sua pálpebra costurada sobre o olho de vidro parecia olhar.
Olhou-o atentamente e viu uma figura magra, com um terno de funcionário, de um tecido de lã encorpado e grosseiro, já um pouco lustroso. Viu, sob o bigode de diretor de associação, os vincos tristonhos e ansiosos ao lado dos lábios anêmicos. Viu o pescoço descarnado dentro do colarinho duro, muito largo e já no fio, as mãos de escriturário, de unhas maltratadas; viu até as botinas pretas, um pouquinho viradas para dentro, sobre o espesso tapete. E, finalmente, viu os olhos de Kringelein, olhos de um homem, azuis, por detrás do pince-nez de guarda-livros, olhos em que se lia uma enorme ansiedade, um sentimento de espera, de admiração, de curiosidade: sede de vida — e certeza da morte.
Só Deus sabe o calor que irradiou desses olhos sobre a existência amortecida do Dr. Otternschlag. Ou talvez tenha sido por mero aborrecimento que ele disse:
— Está certo. Bem. O senhor tem razão. Oh! O senhor tem toda a razão. Eu já passei por tudo isso. Estou farto, sim. Já passei por tudo, até a última e insignificante formalidade. E o senhor pensa que tem tudo pela frente? Está com apetite, hein? Apetite psíquico, quero dizer. O que é que o senhor imagina? O costumeiro paraíso masculino? Champanha? Mulheres? Correr, jogar, beber? Tiens! E foi cair numa arapuca dessas, logo na primeira noite? E encontrou logo companhia? — disse Otternschlag, impassível, mas agradecido pelo calor do olhar vesgo de Kringelein.
— É, logo, logo. Uma moça queria por força dançar comigo. Uma mocinha linda. Talvez não fosse tão linda... quero dizer, era um pouquinho planta de estufa de cidade grande — disse planta de estufa de cidade grande porque estava habituado a ler isso no jornal Mickenauer Tageblatt —, mas elegantíssima. Bem-educada, também.
— Bem-educada, também! Veja só... veja só! E ficaram amigos? — murmurou Otternschlag.
— Infelizmente eu não sei dançar. É preciso saber dançar, parece ser muito importante isso — respondeu Kringelein, a quem o coquetel dera uma atividade febril, tornando-o tristonho, ao mesmo tempo.
— Muito importante. Muito, mesmo. Importantíssimo — replicou o Dr. Otternschlag com uma estranha vivacidade na voz. — É preciso saber dançar. A união de dois corpos no mesmo compasso, girar abraçado ao par, não é verdade? Não se pode dar tábua em uma moça. É preciso saber dançar. Oh! O senhor tem toda a razão, Herr Kringelein. O senhor se chama Kringelein, não é?
Kringelein olhou, com expressão de curiosidade e inquietação, por baixo do seu pince-nez, a fisionomia de Otternschlag.
— Que quer o senhor dizer com isso? — perguntou, convencido de que estavam zombando dele. Mas Otternschlag continuou sério.
— Pode acreditar-me — afirmou. — Pode acreditar-me, Kringelein: quem não tem atividade sexual é um homem morto. Garçom, quero pagar.
Kringelein também pagou, após essa conclusão abrupta, e levantou-se atrapalhado. Foi andando atrás dos ombros esqueléticos do Dr. Otternschlag, metidos em um smoking estreito, e saiu do bar; foi cambaleando até o porteiro e recebeu sua chave.
— Há cartas para mim? — perguntou Otternschlag ao porteiro da noite. O doutor parecia ter-se esquecido por completo de Kringelein.
— Não — respondeu o porteiro, sem verificar, pois este não era como o outro porteiro, e delicadeza de sentimentos não se adquire imediatamente, mal se coloca na cabeça o boné do fardamento.
— A chave de madame, mademoiselle já a levou — disse ele, em francês, a uma senhora; e Kringelein quase o compreendeu, graças ao seu conhecimento de línguas adquirido na prática de correspondência com o exterior.
A senhora passou por ele, e de sua capa dourada evolou-se um perfume tênue agridoce, quando a gola se abriu junto ao pescoço. Kringelein encarou a senhora, esquecendo as regras da boa educação, e ficou completamente pasmado. A senhora tinha os cabelos pretos e lisos, e usava um diadema na cabeça; suas pálpebras eram oblongas, azul-escuras, com um sombreado também azul-escuro sobre os olhos; as fontes, as faces e o queixo eram cor de marfim, com veiazinhas azuis. A boca, cor de carmim, quase roxa, e bem arqueada, com dois arcos bem altos, que se erguiam quase até as narinas. O cabelo caía de cada lado em dois bandos lisos e pretos, avançando sobre as faces e, no ponto em que terminavam, via-se na pele a sombra de uma leve tonalidade ocre, pintada com extrema arte. A senhora parecia alta, apesar de ser de tamanho médio, devido (Kringelein o percebeu) às proporções perfeitas de seu corpo e ao seu andar adejante. Estava acompanhada por um cavalheiro de idade, baixinho, que trazia um chapéu cilíndrico na mão e tinha o aspecto de um músico.
— Você pode estar no teatro amanhã às oito e meia, querido? — perguntou a senhora, no momento exato em que passava diante de Kringelein. — Eu queria trabalhar meia hora antes de começar o ensaio.
Kringelein, que nunca vira ninguém mais elegante do que esta senhora, ficou a sorrir, deliciado, de tanta admiração, e depois puxou Otternschlag pela manga, soprando-lhe a meia voz:
— Que espécie de mulher é essa?
— O senhor não a conhece, homem de Deus?! A Grussinskaia — disse Otternschlag impaciente, dirigindo-se com a sua perna de pau para o elevador. Kringelein ficou parado no meio do hall.
— A Grussinskaia! — "Ó, diabo, a Grussinskaia!", pensou ele. A fama da Grussinskaia era tão grande que chegara até Fredersdorf. "Ela existe realmente. É assim que ela é. Não é só nos jornais que se leem notícias sobre ela. Ela é de carne e osso. Podemos esbarrar nela, tocá-la e aspirar o seu perfume, pois todo o hall fica perfumado quando ela passa. Preciso escrever ao Kampmann."
Apressou os passos para poder ver de novo a Grussinskaia e contemplá-la com atenção. Em frente ao elevador assistiu a uma pequenina cerimônia de troca de cortesias. Um homem de estatura fora do comum, elegante e bonito, afastou-se da porta do elevador, dando dois largos passos e deixando o caminho livre à Grussinskaia, com um gesto de mão negligente e ao mesmo tempo respeitoso, como se não se tratasse da entrada em um elevador, mas em um reino que um conquistador deposita aos pés da sua soberana. Otternschlag, que do outro lado abria alas sozinho, fez uma careta e rosnou consigo mesmo:
"Sir Walter Raleigh1".
1 Navegador e escritor inglês (1552-1618), favorito de Elisabeth I. (N. do E.)
Kringelein, por seu lado, estava tomado de tal pressa que passou diante de Otternschlag e se meteu no elevador logo atrás dos ombros largos daquele amável jovem. Por essa razão, o seu protetor teve que ficar sozinho, pois a lotação do elevador não podia ultrapassar quatro pessoas. Iam todos muito apertados, naquele pequeno cárcere de vidro e madeira. O jovem bonito, principalmente, encolhia-se no seu canto.
— Ah! Está também em Berlim, barão? — perguntou-lhe o velho maestro Witte. E o Barão Gaigern respondeu:
— Pois é. Sim, senhor. Também estou aqui.
Kringelein ouvia cheio de respeito essa conversa entre pessoas distintas. O maneta girou a manivela e o elevador parou no primeiro andar. Sobre a passadeira cor de framboesa, eles se encaminharam aos seus quartos: na frente, a Grussinskaia; atrás dela, Witte; depois o barão, e por último Otto Kringelein. As portas 68, 69 e 70 foram abertas. Eram duas horas da madrugada, que um velho relógio de mesa, na esquina do corredor, bateu ameaçadoramente. Ouvia-se o ruído abafado da música a tocar a última contradança no pavilhão amarelo.
A Grussinskaia parou um momento entre as duas portas do seu quarto.
— Boa noite, querido — disse ela. Quando estava de bom humor falava em alemão com ele. — Muito obrigada por esta noite. Foi ótima, não foi? Oito chamadas. Ah, diga-me: quem era aquele moço? Nós já não o vimos em algum outro lugar? Em Nice?
— É isso, em Nice, Lisa. Ele se apresentou a mim. Jogamos bridge algumas vezes. Parece ser um grande admirador de Elisavieta.
— Ah! — disse a Grussinskaia. Tirou a mão de baixo da capa e acariciou a manga de Witte, distraidamente. — Estamos com um enorme cansaço. Boa noite, querido. Olhe: é o mais belo homem que já vi na minha vida, esse barão — acrescentou em russo. Disse-o com um tom de voz tão frio, como se falasse apenas de um objeto que se expõe em leilão para ser vendido.
Kringelein, que ficara hesitante à entrada de seu quarto, ouviu, sedento e ansioso de aventuras, aqueles sons estranhos. Tinha a nítida sensação de que o mundo era maior e mais excitante, e mais outras coisas do que ele tinha imaginado em Fredersdorf.
Por fim as portas se fecharam, portas duplas de hotel, que se fecham por detrás das pessoas, deixando-as sozinhas com os seus segredos.
Nem o mais leve resquício de movimento mundano se nota entre as oito e as dez da manhã nas salas e corredores do enorme hotel. Não há luzes acesas nem música tocando, não se veem senhoras — a não ser que se queira considerar um modelo de sedução feminina uma mulher de limpeza que, de avental azul, passa a vassoura no hall, sobre a serragem molhada. Mas Rohna não pensa assim. Já está de novo no seu posto, esse esforçado Conde Rohna, calado, obsequioso, bem barbeado, com a ponta do lenço de seda flamulando discretamente no bolsinho do paletó. Ele acha que só num hotel de segunda classe se faz limpeza na presença dos hóspedes, mas infelizmente isso não é da sua competência, mas sim atribuição da inspetora-chefe. Aliás, os hóspedes nem reparam nisso. Os hóspedes que se encontram no hotel pela manhã são todos senhores sérios, ativos, homens de negócios. Sentados no hall, vendem tudo, oferecendo os produtos em todas as línguas do mundo: papel, algodão em rama, lubrificantes en gros, patentes, filmes, terrenos; vendem planos e ideias, sua energia, seu cérebro e sua vida. Sua primeira refeição é muito farta, e a saleta do café fica cheia de fumaça dos charutos e cigarros, apesar de existir um quadrinho com um tímido aviso, fixado no tapete de damasco amarelo da parede, pedindo aos fumantes que fumem de preferência no salãozinho cinzento, ao lado. Em todas as mesas há jornais; as cabinas telefônicas estão todas ocupadas e assediadas, e o porteiro Senf não vê nenhuma possibilidade de receber qualquer notícia do hospital antes de uma hora da tarde. No corredor do quinto andar, atrás da lavanderia, os grooms são submetidos a uma espécie de revista, antes de começarem o serviço; e, defronte do hotel, no espaço que medeia entre a entrada 1 e a 3, o Grande Hotel pode fazer concorrência a uma Bolsa.
Se tomarmos como exemplo Preysing, diretor-geral da Indústria Algodoeira Saxônia S.A., esse enérgico industrial, que representa o tipo médio dos homens de negócios, ficamos a par da atividade dos homens da sua classe, no Grande Hotel, das oito às dez da manhã.
Preysing, homem avantajado, corpulento, pesadão, chegara ao hotel numa hora incrível, às seis e vinte da manhã, porque na infeliz localidade de Fredersdorf só param trens mistos. Até então não lhe fora possível, apesar de todo o empenho, conseguir um trem expresso. Mas ele devia estar satisfeito por ter conseguido para a fábrica uma linha de conexão, para o transporte das mercadorias. Mas voltemos ao assunto. Preysing estava, portanto, cansado e meio tonto pelos solavancos do trem quando chegou ao hotel, ficando pensativo ao tomar conhecimento de que o apartamento que lhe tinham reservado era um dos mais caros. Primeiro andar, com sala e banho, 71; diária de setenta e cinco marcos. Mas Preysing era um homem econômico: tinha por regra não levar seu carro para Berlim, a fim de economizar a hospedagem do chofer. Porém, como tinha mesmo que pagar um preço tão elevado pelo quarto com banheiro, a primeira coisa que fez foi estender-se na banheira, onde se demorou bastante tempo, gozando o prazer do banho. Exatamente como o outro hóspede de Fredersdorf, Herr Kringelein. Em seguida estendeu-se um pouco sobre a cama, mas não conseguiu libertar-se da sensação da noite mal dormida e dos calafrios da viagem. Ergueu-se novamente, vestiu-se, desfez com pedante minuciosidade a sua valise e pendurou os ternos nos cabides portáteis que trouxera consigo. As botinas, a roupa de baixo, os objetos de uso pessoal, cada coisa vinha dentro de um saquinho de linho muito alvo, e em cada um deles havia um monograma bordado com linha vermelha, em ponto de cruz: K. P.
Enquanto dava o nó na gravata, Preysing ficou olhando distraidamente para a rua, mergulhada ainda na névoa matutina. Era muito cedo, não clareara de todo, as máquinas de limpeza das ruas escovavam o asfalto e os ônibus amarelos aproximavam-se como navios, pela madrugada. Preysing ficou olhando para baixo, sem enxergar coisa alguma. O dia que o esperava não ia ser nada fácil. Era preciso concentrar-se e refletir bem sobre os assuntos a tratar. Tocou a campainha chamando o criado e entregou-lhe pessoalmente as botinas para engraxar, e também as graxas marrom e branca que trouxera. O quarto já se enchera com o cheiro indefinível das rápidas viagens de negócios: couro de valises, Odol, água-de-colônia, terebintina, fumo. Preysing, com os gestos pedantes, lentos e precisos que lhe eram característicos, tirou do bolso a carteira e contou o dinheiro. Na divisão interna estava um grosso maço de notas de mil marcos; por ocasião de negócios, nunca se sabia exatamente quanto dinheiro ia ser preciso. Preysing costumava molhar com a língua o polegar e o indicador, ao contar o dinheiro, com o gesto de um homem saído do nada, enriquecido com o próprio trabalho. Meteu no bolso a carteira e, não contente com isso, ainda prendeu com um alfinete de gancho o bolso interno do paletó de lã grosseira, cor de cinza. Andou pelo quarto, de um lado para outro, de chinelos de couro vermelho, próprios para viagem, e ruminando em silêncio os diálogos que iria manter com o pessoal da Malharia de Chemnitz. Procurou um cinzeiro, mas não o encontrou, e, apesar de não gostar de jogar a cinza do charuto no tinteiro, teve de fazê-lo. Neste aposento também havia uma águia de bronze, semelhante à que deixara encantado Herr Kringelein, no 70. O diretor-geral ficou a tamborilar com os dedos durante alguns minutos nas asas abertas da águia, mergulhado em seus pensamentos; entretanto, o criado trouxe-lhe as botinas engraxadas, e às sete horas e cinquenta minutos Preysing pôde sair do quarto, e foi o segundo a chegar ao barbeiro do hotel. Apesar de estar preocupado, ao sentar-se à mesa, para o café, parecia um sujeito bem-humorado, gordo, sério, com o rosto bem barbeado. Às oito e trinta em ponto, conforme haviam combinado, Herr Rothenburger chegou. Era completamente calvo e não tinha sobrancelhas nem pestanas, o que lhe dava um ar de terno espanto que não combinava nada com o ceticismo de sua profissão. Era um misto de corretor da Bolsa e banqueiro, às vezes também intermediário e, além disso, membro do conselho fiscal de empresas menores. Sabia de tudo o que se passava, punha os outros a par de tudo que sabia, e metia-se em tudo.
Tinha sido o primeiro a divulgar a última notícia falsa a respeito da alta da Bolsa, e a espalhar sinistros boatos, que provocaram oscilações do câmbio. Em resumo, era um homem ridículo, perigoso e útil, esse Herr Rothenburger.
— Bom dia, Rothenburger — disse Preysing estendendo-lhe dois dedos, entre os quais segurava o charuto.
— Bom dia, Preysing — respondeu Rothenburger, empurrando o chapéu para a nuca. Depois sentou-se e pôs uma pasta sobre a mesa. — Aqui na terra, de novo?
— É... — disse Preysing. — Foi muito amável em ter vindo. Que quer tomar? Chá, conhaque, presunto com ovos estrelados?
— Vá lá um conhaque. Tudo bem em casa? Sua senhora? A senhorita sua filha? Tudo bem?
— Obrigado, vai-se vivendo. O senhor foi muito amável em enviar felicitações pelas nossas bodas de prata.
— Ora, era mais do que natural. E a firma, como se manifestou?
— Meu Deus, a firma! Deixei o carro velho para os negócios e recebi um novo em troca.
— É isso, é isso. L’état c'est moi. Um Preysing pode dizer: a firma sou eu, E como vai o senhor seu sogro?
— Obrigado. Otimamente. Ainda gosta de fumar o seu charuto.
— Meu Deus! Há quanto tempo eu o conheço! Quando me lembro como ele começou, com seis teares Jacquard num quartinho... e agora! É fantástico!
— É, o negócio vai indo — disse Preysing, com segunda intenção.
— Todos dizem isso. E dizem também que o senhor mandou construir uma villa magnífica, um verdadeiro castelo, com um parque...
— Nem tanto. Ficou bem bonito. Minha mulher gosta dessas coisas; sabe, fica completamente absorvida nisso. É, está bem bonita agora a nossa casa em Fredersdorf. O senhor precisa visitar-nos qualquer dia.
— Obrigado. Muitíssimo obrigado. É muito gentil da sua parte. Quem sabe se será possível realizar uma pequena viagem de negócios... para compensar as despesas.
Depois das formalidades e gentilezas de praxe, os dois cavalheiros passaram ao assunto principal.
— Ontem foi um dia meio inquieto na Bolsa, hein? — perguntou Preysing.
— Inquieto? Obrigado. Dalldorf é uma delícia, comparado a isto. Mas desde a alta das ações da Bega, todo mundo ficou maluco. Todos pensam que podem fazer negócios sem fundos. Mas ontem, vou-lhe dizer, a coisa estourou, baixa de trinta por cento, baixa de quarenta por cento. Há muita gente morta, que ainda não sabe que morreu. Quem se firmou na Bega... O senhor tem ações de lá?
— Tive. Retirei-me a tempo — disse Preysing; era mentira, uma pequena mentira usual nos negócios, e Rothenburger sabia disso.
— Ora, não se aborreça, eles se reerguem logo — disse ele à guisa de consolo, como se a negativa de Preysing significasse uma afirmativa. — Em que a gente pode ter confiança, se um banco como o Kuesel de Düsseldorf também quebra? Um estabelecimento como aquele! A Saxônia também está entre os credores, não é verdade?
— Nós? Não, absolutamente. Por que julga isso?
— Não? Pensei que estava. Ouve-se falar tanta coisa... mas se os senhores não estão perdendo nada com a bancarrota do Kuesel, então não sei realmente por que razão as ações da Indústria Algodoeira Saxônia baixaram tanto!
— É isso mesmo. Também penso como o senhor. Também não sei a razão. Vinte e oito por cento não é nenhuma bagatela. Muitos títulos se mantiveram firmes, estando já em pior situação do que os nossos.
— É certo. Os títulos da Malharia de Chemnitz mantiveram-se firmes — replicou Herr Rothenburger, sem rodeios. Preysing fitou-o através dos anéis de fumaça que separavam seus rostos de homens de negócios.
— Pois então fale em alemão claro — pediu Preysing, após curta pausa.
— O senhor é que precisa falar em alemão claro, eu não tenho segredos, Preysing. O senhor encarregou-me de comprar pelo melhor preço os títulos da Algodoeira Saxônia e eu comprei: títulos da Algodoeira Saxônia para a Algodoeira Saxônia. Bom. Provocamos uma alta considerável, realmente; cento e oitenta e quatro é bastante. Começaram a dizer que o senhor ia firmar um contrato com a Inglaterra, a cotação subiu. Disseram que o senhor ia fazer sociedade com a Malharia de Chemnitz... as ações subiram. De repente, o grupo de Chemnitz lança todas as ações da Saxônia no mercado... a cotação caiu, naturalmente. Caiu muito mais do que se podia esperar, de acordo com a lógica. A Bolsa é sempre ilógica. A Bolsa é uma mulher histérica, Preysing; estou casado com ela há quarenta anos. O senhor perdeu com a bancarrota do Kuesel. Bom. Com a Inglaterra, nada feito. Também não tem importância. Mas, de qualquer modo, vinte e oito por cento de perda, em um só dia, é demais. Já significa alguma coisa.
— Sim, senhor. Mas o que significa? — perguntou Preysing, enquanto uma ponta da cinza do seu charuto caía na xícara de café já frio. Preysing não era um diplomata. Sua pergunta era tola e inoportuna.
— Significa que a Malharia de Chemnitz se retira. O senhor sabe disso tão bem quanto eu. O senhor veio correndo para cá para salvar o que ainda for possível salvar. Mas que posso aconselhar-lhe? O senhor não pode obrigar o grupo de Chemnitz a cair nos seus braços. Se Chemnitz lançou no mercado todas as ações da Saxônia que possuía, isso significa que não tem mais interesse na Algodoeira Saxônia. Agora trata-se de saber o que é possível salvar para o senhor, nesta desagradável situação. O senhor quer continuar a adquirir suas próprias ações? Agora pode comprá-las por preço baixo.
Preysing não respondeu logo, ficando a refletir, o que lhe custou enorme esforço. Era um homem às direitas, o diretor-geral, um homem correto, leal, limpo por dentro e por fora. Mas não era um gênio, como homem de negócios; faltava-lhe fantasia, talento persuasivo, envergadura. Bastava que se exigisse dele uma decisão firme e ficaria a escorregar como se estivesse patinando sobre gelo. Quando dizia uma inverdade, faltava-lhe força convincente. Conseguia apenas inventar umas pequeninas e insignificantes mentiras de ofício, sem nenhum alcance. Punha-se logo a gaguejar, e sob o bigode surgiam-lhe gotinhas de suor.
— Afinal, se o grupo de Chemnitz não aceitar a fusão, isso é com eles; eles precisam mais de nós do que nós deles. E se não tivessem adquirido esse novo processo de tingir, nós não teríamos nisso o menor interesse — disse ele finalmente, pensando ter dado uma resposta muito hábil. Rothenburger ergueu os seus dez grossos dedos e deixou-os cair de novo sobre a mesa do café, bem juntinho ao pote de mel.
— Mas Chemnitz está de posse do processo para tingir. E a Saxônia tem interesse nisso — disse ele amavelmente.
Preysing já tinha dez respostas prontas na ponta da língua. "Nós não perdemos nada com o Kuesel", quis ele dizer. E também: "O negócio com a Inglaterra não está absolutamente fora de cogitação". E ainda: "A Malharia de Chemnitz faz baixar nossas ações exatamente porque quer fazer a fusão: é uma maneira de criar melhores condições para ela". Mas, afinal, não conseguiu dizer nada disso, apenas afirmando:
— Pois é, vamos ver o que acontecerá! Depois de amanhã tenho uma conferência com uns senhores da Chemnitz.
— Pfu! — exclamou Rothenburger, soltando ruidosamente a fumaça da garganta. — Uma conferência? Qual deles vai aparecer? Schweimann? Gerstenkorn? São espertos, esses senhores. Com eles é preciso estar de olho aberto. Para lidar com essa gente o seu sogro é que viria a calhar, não me leve a mal. Bem, quer dizer que a Saxônia ainda não está perdida? Preciso contar isso na Bolsa. Se não ajudar, mal também não faz. Bem, que se vai fazer? O senhor pretende que compremos de novo ações de algodão? Se hoje não aparecer alguém que sustente a coisa, assistiremos a uma bela quebra, é Rothenburger quem lhe diz. Então?
E Herr Rothenburger abriu o fecho da sua pasta e tirou dela uma ordem de pagamento.
Preysing ficara vermelho no alto do nariz, entre as sobrancelhas, quando Rothenburger aludira indelicadamente a seu sogro, e um passageiro rubor deslizou por sobre suas narinas. Tirou do bolso a caneta-tinteiro e, após ligeira hesitação, assinou o papel.
— Até quarenta mil, limitada por cento e setenta — disse com frieza, pondo um traço largo e arrogante sob sua assinatura. Era um protesto contra seu sogro e contra Herr Rothenburger.
4
Preysing ficou de péssimo humor na saleta do café, quando se viu só. Sentia um leve zunido nos ouvidos, pois sua pressão não estava em ordem; com frequência, durante conversas importantes, sentia um peso na nuca. No ano anterior ele tivera alguns contratempos, e o de agora também não parecia ser dos mais agradáveis. Não era coisa muito fácil continuar firme, agora que na Chemnitz queriam tirar o corpo fora. E o velho, sentado lá em casa na cadeira de rodas, nos seus acessos de caduquice, ficava a estourar de prazer sempre que acontecia algum contratempo ao genro. As negociações com as estradas de ferro estaduais a respeito do expresso não tinham levado a nada. O novo processo de tingir, que permitia dar a tecidos baratos cores que até então só se usavam para tecidos de primeira, tinha sido furtado sob suas barbas pela S.A. Malharia de Chemnitz. Com o contrato da Inglaterra lidavam há meses sem resultado, e Preysing já estivera por duas vezes em Manchester; cada vez que voltava as negociações iam de mal a pior, podendo considerá-las desde já como rompidas. O velho ficara sabendo da história com a firma de Chemnitz e tratara de fazer astutamente negociações preliminares; Gerstenkorn fora a Fredersdorf, visitar as instalações da fábrica, e trocaram um palavreado que não conduziu a nada. O célebre jurista Dr. Zinnowitz, perito em matéria comercial, apresentara um projeto de contrato, que não tinha sido firmado ainda: para cada duas ações do grupo de Chemnitz, uma da Saxônia. Era um bom negócio para a fábrica — e também não era muito mau para a firma de Chemnitz —, a Bolsa estava a par disso e o mundo de negócios têxteis também. De repente, a firma de Chemnitz começou a querer tirar proveito sozinha. E justamente agora, que a coisa estava mesmo uma porcaria, o velho mandava o pobre Preysing para remendar os rasgões.
— Diabo do inferno! — disse Preysing, que por descuido tomara um gole de café frio misturado com a cinza do charuto. Em seguida se levantou. Tinha as costas moídas, por causa da viagem no trem misto; bocejou com as mandíbulas contraídas e sentiu os olhos molhados. Desanimado e desejando ser confortado, dirigiu-se ao compartimento dos telefones, pedindo uma ligação urgente com Fredersdorf 48.
Fredersdorf 48 não era o telefone da fábrica, mas da villa de Preysing. A ligação não foi muito demorada, e Preysing colocou comodamente o cotovelo sobre a mesinha do aparelho, para acalmar-se, conversando com sua mulher.
— Bom dia, Mulle — disse ele. — É, sou eu. Você estava dormindo, Mulle? Ainda está na cama?
— Que é que você está pensando? — respondeu o telefone com uma voz longínqua, mas de timbre arredondado e cheio, uma voz que o diretor-geral amava sincera e fielmente. — Já são nove e meia! Já tomei café e já reguei minhas plantas. E você?
— All right — respondeu Preysing, com exagerado entusiasmo. — Vou ter daqui a pouco uma conferência com o Zinnowitz. Está bonito o dia aí? Está sol?
— Está — a voz tinha um ligeiro acento saxão, conhecido e familiar. — O tempo está bom. Imagine só, as flores de açafrão abriram todas de uma vez esta noite.
Preysing via, através do telefone, as flores de açafrão, a sala do café com os móveis de vime, o abafador de ráfia sobre a cafeteira, a mesa posta, com os capuchinhos de tricô sobre os copinhos dos ovos. Via Mulle também, com o roupão azul e de chinelos, segurando o regador dos cactos, de bico pontudo.
— Sabe, Mulle, isto aqui está muito sem graça — disse ele. — Você devia ter vindo comigo. Sinceramente.
— Ora, deixe disso — respondeu o telefone satisfeito, rindo-se com a risada simpática de Mulle.
— Estou tão acostumado com você... Olhe, esqueci-me do aparelho de barbear, vou ter que ir diariamente ao barbeiro.
— Eu já sabia. Você o esqueceu no banheiro. Sabe, compre outro; em qualquer loja se pode comprar barato um aparelho; não é mais caro do que ir ao barbeiro todos os dias, e é mais agradável.
— É, sim... é verdade. Você tem razão — disse Preysing, agradecido. — Onde estão as meninas? Gostaria de dizer-lhes bom-dia.
O telefone sussurrou qualquer coisa incompreensível, muito de longe, e depois exclamou em tom claro:
— Bom dia, Peps!
— Bom dia, Pepsin! — respondeu Preysing, alegre. — Como vai?
— Bem! E você?
— Também vou bem. Babe está aí?
Sim, Babe também estava lá, e também perguntou, com sua voz de dezessete anos, como ele ia passando, se o tempo estava bom, e se lhe levaria de Berlim algum presente; as flores de açafrão tinham aberto; Mulle não a deixava jogar tênis; estava fazendo muito calor e Schmidt talvez pudesse preparar o campo, não? Mulle disse depois qualquer coisa, em seguida Pepsin, e por fim o telefone disparou aos gritos e risadas com três vozes diferentes, até que a telefonista se meteu na conversa e Preysing desligou. Continuou por um instante na cabina e, sem que ele próprio o conseguisse explicar, teve a impressão de estar tomando sol no parapeito morno de uma janela, segurando nas mãos aquecidas um ramo de açafrão azul.
Sentiu-se aliviado, ao sair da cabina. Muitos diziam que o diretor-geral vivia preso às saias da mulher, e não deixavam de ter uma certa razão. Muito excitado, fez nova ligação, desta vez para o banco, a fim de tratar da cobertura para os quarenta mil marcos, uma quantia absurda, cuja ordem de pagamento ele, em desespero, assinara por conta própria a Herr Rothenburger. Durante os desagradáveis dez minutos em que o diretor-geral ocupou a cabina 4, Kringelein descera a escadaria do hotel, deliciando-se a cada passo que dava sobre o tapete vermelho-framboesa, sobre o qual podia andar com tanta distinção. Chegou, finalmente, à portaria. Trazia de novo uma flor na lapela, a mesma da noite anterior, que ele colocara no copo da escova de dentes, e se conservara relativamente fresca — um cravo branco. Kringelein considerava o seu aroma penetrante um complemento indispensável à sua elegância.
— O cavalheiro pelo qual o senhor perguntou ontem acaba de chegar — avisou o porteiro.
— Que cavalheiro? — admirou-se Kringelein.
O porteiro examinou o livro de registros de entradas.
— Preysing, o Diretor-Geral Preysing, de Fredersdorf — disse ele, olhando atentamente para o rosto miúdo e afilado do guarda-livros.
Kringelein respirou tão violentamente que mais parecia ter soltado um suspiro.
— Ah, sim. Está bem. E onde posso encontrá-lo? — perguntou, com os lábios pálidos.
— Deve estar na saleta do café.
Kringelein afastou-se, num estado de extrema tensão nervosa. Sua espinha se encurvou para trás, tal a sua excitação. "Bom dia, Herr Preysing", pensou. "Está bom o café? Pois é, eu também sou hóspede do Grande Hotel. É isso mesmo! Será que o senhor tem alguma coisa contra isso? Talvez seja proibido a pessoas como eu hospedarem-se aqui? Olhe! Também temos o direito de viver como bem entendemos."
"Ah!", pensou a seguir, "por que hei de ter medo de Preysing? Ele não pode fazer nada contra mim. Vou morrer logo, ninguém pode me prejudicar." Assaltou-o a mesma sensação sutil de liberdade que sentira na mata de Mickenau, com as framboesas. Cheio de coragem, entrou na saleta do café, movimentando-se já com bastante segurança naquelas dependências fashionable. Procurou Preysing. Queria falar com Preysing a todo custo. Tinha contas a ajustar com Preysing. Aliás, era por isso que estava no Grande Hotel. "Bom dia, Herr Preysing!", diria.
Mas Preysing não estava na saleta do café. Kringelein foi-se arrastando pelo corredor, meteu a cabeça na sala de correspondência, no salão de leitura, procurou no boxe dos jornais, chegando ao exagero de perguntar ao groom 14 por Herr Preysing. Por toda a parte sacudiam a cabeça, ignoravam onde ele se encontrava. Kringelein, que já se aborrecera e estava quase estourando com a quantidade de coisas que queria desabafar, chegou à entrada de uma dependência que não conhecia ainda.
— Tenha a bondade de desculpar, conhece Herr Preysing, de Fredersdorf? — perguntou à telefonista.
Esta apenas inclinou a cabeça, sem dar resposta, porque estava muito ocupada. Apontou com o polegar por sobre o ombro. Kringelein ficou vermelho e em seguida empalideceu. Nesse momento, Preysing, pensativo, saía da cabina 4.
Então aconteceu o seguinte: Kringelein encolheu-se todo, curvou a nuca, sua cabeça inclinou-se, a espinha, que estava bem aprumada, afrouxou, as pontas dos sapatos se encolheram, a gola do paletó subiu até a nuca, os joelhos amoleceram e as calças formaram pregas transversais sobre as pernas bambas. No espaço de um segundo, o rico e distinto Herr Kringelein transformou-se em um pobre e insignificante guarda-livros; um ser subalterno que parecia esquecer-se de que dentro de poucas semanas não viveria mais, e portanto gozava de inúmeras vantagens em relação a Herr Preysing, que ainda teria que atormentar-se e consumir-se por anos e anos, com milhares de coisas aborrecidas. O guarda-livros Kringelein afastou-se, com as costas coladas à porta da cabina 2, atencioso, e murmurou com a cabeça inclinada, exatamente como na fábrica:
— Bom dia, senhor diretor-geral.
— Bom dia — respondeu Preysing, passando por ele sem lhe dirigir o olhar. Kringelein continuou ainda um minuto colado à parede, engolindo, cheio de vergonha, a saliva amarga. Sentia dores de novo, dores que pareciam perfurar-lhe o estômago, sua metade de estômago, enferma e moribunda, que destilava secretamente, e quando bem lhe parecia, os venenos de uma morte lenta.
Nesse ínterim, Preysing continuava o seu caminho, dirigindo-se ao hall, onde o conhecido advogado, Dr. Zinnowitz, especialista em assuntos comerciais, já estava à sua espera.
Há duas horas que o Dr. Zinnowitz e o Diretor-Geral Preysing se conservavam sentados num recanto sossegado do jardim de inverno, curvados sobre documentos. A pasta de Preysing esvaziara-se, o cinzeiro ao seu lado enchera-se de pontas de charutos e as costas de suas mãos estavam ligeiramente suarentas, como costumavam ficar por ocasião de negociações difíceis. O Dr. Zinnowitz era um senhor idoso, baixote, com o semblante de um mágico chinês; pigarreou, como a se preparar para começar um discurso. Com atitude professoral, colocou a mão sobre a pasta, e disse:
— Caro Preysing, resumindo: vamos à conferência de amanhã com enormes desvantagens. É péssima a cotação de nossas ações — e ao dizer isso batia com os dedos sobre um bilhete que um boy lhe entregara um pouco antes do meio-dia, o qual trazia a notícia de uma nova baixa de sete por cento para as ações da Algodoeira Saxônia. — Nossas ações estão em má situação, e o momento psicológico, se assim me posso exprimir, foi mal escolhido para um encontro tão importante como este. O senhor também sabe que, se amanhã o grupo de Chemnitz disser não, a fusão vai por água abaixo. Não se pode tentar mais uma vez. E é possível, em vista da situação atual, que eles digam não. Não o quero afirmar com segurança, mas é natural que o façam, é muito provável, mesmo.
Preysing escutava, cheio de impaciência; estava nervoso. As palavras formais do advogado o irritavam. Zinnowitz falava como se estivesse sempre em assembleia-geral, mesmo quando estava completamente só. Quando ele apoiou as articulações dos dedos sobre a mesa, a leve mesinha de vime do jardim de inverno transformou-se em uma mesa de conferências, coberta de feltro verde, prenhe de decisões importantes e definitivas.
— Não será melhor bater em retirada?
— Não se pode bater em retirada sem causar uma péssima impressão. É preciso considerar também se, com uma prorrogação, iremos ganhar ou perder. De qualquer modo, ainda há algumas chances, que temos de abandonar por completo caso se bata em retirada.
— Que chances? — perguntou Preysing.
Ele não podia livrar-se do péssimo hábito de perguntar coisas que estava farto de saber. Por esse motivo, as negociações com Preysing se prolongavam indefinidamente, tornando-se pedantes e confusas.
— O senhor conhece as chances tão bem quanto eu — afirmou o Dr. Zinnowitz, em tom de censura. — Trata-se, como sempre, da situação em que se encontram as negociações com a Inglaterra. Conforme a minha opinião, Manchester, Burleigh & Son, de Manchester, é o ponto principal. A Malharia de Chemnitz quer ganhar o mercado para seus produtos manufaturados. Burleigh & Son tem, em grande parte, esse mercado nas mãos, e recebe continuamente grandes encomendas de produtos de malha manufaturados. Eles próprios só produzem a matéria-prima, mas gostariam de exportar o seu algodão para a Alemanha, recebendo em troca, na Inglaterra, o produto manufaturado de Chemnitz. Eles têm grande interesse em comerciar com Chemnitz. A razão por que não fazem isso diretamente o senhor sabe tão bem quanto eu, meu caro Preysing: a firma de Chemnitz não dá aos ingleses a impressão de ser muito sólida. Estes estão hesitantes, porque o negócio não lhes parece ter uma base muito segura. A coisa muda de figura, caso a Saxônia S.A. se associe a Chemnitz. Burleigh & Son deposita grandes esperanças nisso. Parece que eles pensam, desculpe, meu caro, que o seu negócio, um pouco parado, receberia um impulso, e o grupo de Chemnitz, que é demasiado afoito, se consolidaria mais. Por conseguinte, Burleigh & Son só tem interesse na Saxônia caso ela se alie à Malharia de Chemnitz. E Chemnitz, por seu lado, só quer a fusão se o senhor fizer contrato com Burleigh & Son, assegurando assim o mercado inglês. Agora, cada firma está à espera de que o contrato entre o senhor e o outro esteja firmado. Quer saber a minha opinião? As negociações foram conduzidas de maneira desastrosa, do contrário não estaríamos neste beco sem saída. Quem entrou em negociações com Manchester?
— Meu sogro — respondeu Preysing apressadamente. Isso não era exato, e Zinnowitz, que estava bem informado a respeito da luta pela direção na Algodoeira Saxônia, sabia perfeitamente que Preysing não estava dizendo a verdade. Passou a palma da mão sobre a mesa, ignorando a resposta de Preysing. Seu gesto significava: deixemos isso de lado.
— Tenho mantido — continuou ele — permanente contato com o grupo de Chemnitz — Zinnowitz gostava de usar as expressões enérgicas do seu tempo de capitão da reserva —, e posso descrever-lhe com exatidão a disposição em que ele se encontra. Schweimann desistiu por completo da fusão, e Gerstenkorn já está vacilante. Por quê? A importante firma Companhias Reunidas S. J. R. fez sondagens com o grupo de Chemnitz, para saber se eles venderiam sem exigir a fusão. Se venderiam sem mais delongas. Naturalmente, nesse caso, Schweimann e Gerstenkorn participariam do conselho fiscal, e teriam, além disso, postos remunerados à parte, ao passo que agora ainda correm algum riscos. Pelo contrário, se o negócio com Burleigh estivesse esclarecido, então o que eu acredito que aconteceria — é esta a minha humilde opinião — é que eles recusariam a oferta da S. J. R., e optariam pela fusão com o senhor. É esta a situação em que eles se encontram. Quanto à sua situação, Preysing, com respeito a Manchester, não estou muito bem informado. Seu sogro escreveu-me, mas de modo pouco claro...
Preysing cortou de novo as claras considerações do jurista.
— Essa história da oferta da S. J. R. é um fato ou apenas falatório? Quanto ofereceram a Chemnitz? — perguntou ele.
— Isso não vem ao caso — respondeu Zinnowitz, que o ignorava.
Preysing esticou para a frente o lábio inferior, onde se apoiava um charuto, e ficou a refletir. "Vem ao caso, sim", pensou, sem conseguir esclarecer, a si próprio e ao outro, qual a razão.
— O negócio com Burleigh não vai indo tão mal assim — disse ele, hesitante.
— Muito bem também não, ao que parece — replicou prontamente o jurista.
Preysing apanhou a pasta, largou-a, tornou a pegá-la, tirou o charuto da boca — já com a ponta toda mordiscada — e só no terceiro assalto tirou da pasta de couro um dossiê de papelão azul, onde se encontravam algumas cartas e cópias de outras.
— Aqui está a correspondência mantida com Manchester — disse apressadamente, estendendo ao jurista o dossiê. Arrependesse depressa. Nova camada de suor frio porejou nas costas de suas mãos; tentou fazer girar a aliança no dedo, num gesto que lhe era habitual, e não o conseguiu. — Mas tenho de pedir-lhe a máxima reserva, isto é estritamente confidencial — disse ele em tom implorante.
Zinnowitz lançou-lhe apenas um olhar enviesado, sem tomar conhecimento das cartas. Preysing calou-se. Podiam ouvir-se as delicadas batidas das toalhas, ao serem colocadas sobre as mesas, no salão de refeições. Sentia-se o cheiro característico de todos os hotéis do mundo, antes da comida: um leve cheiro de carne assada, que abre o apetite antes da refeição, e depois se torna insuportável. Preysing sentia fome. Lembrou-se, subitamente, de Mulle e da mesa posta, com as filhas em volta.
— É — disse o Dr. Zinnowitz, afastando as cartas e fitando, com olhar pensativo e absorto, a base do nariz de Preysing.
— Então? — perguntou Preysing.
— Volto agora — continuou Zinnowitz — ao ponto de partida. Por enquanto, as negociações com Burleigh & Son continuam e, por conseguinte, temos ainda essa chance importante nas mãos, para exercer pressão sobre o grupo de Chemnitz. Se adiarmos a conferência e Burleigh se retirar, o que é bem possível, de acordo com sua última carta, de... de 27 de fevereiro, perderemos essa chance. Então perderemos todas as chances, a bem dizer. Assim, em vez de nos sentarmos sobre duas cadeiras, sentaremos entre duas cadeiras.
De súbito, a testa de Preysing ficou roxa; uma onda de sangue subiu sob a sua pele ligeiramente enrugada, engrossando as veias. Às vezes ele tinha esses acessos de furor, esse afluxos de sangue, esses violentos acessos de cólera.
— Toda essa conversa não conduz a nada. Temos que conseguir a fusão — afirmou ele, elevando a voz e dando um murro em cima da mesa. O Dr. Zinnowitz esperou um instante para responder.
— Acho que a Saxônia não irá à falência, sem essa fusão.
— Não. É claro que não. Ninguém está falando em falência — respondeu Preysing, excitado. — Mas teríamos que diminuir nossos gastos. Teríamos de despedir operários na fiação. Teríamos de... sabe o que mais? Tenho de consegui-lo, e acabou-se. Há ainda o fato de... há outras razões. Trata-se de minha autoridade dentro da fábrica, o senhor compreende? Afinal, toda a organização da fábrica é obra minha. E a gente quer conservar o prestígio, também. O velho está ficando idoso demais. E com meu cunhado eu não me dou bem. Digo-lhe com toda a franqueza, o senhor conhece o rapaz, não me dou bem com ele. Esse rapaz trouxe certos costumes de Lyon que não aprecio nos negócios. Não gosto de blefes. Não gosto desses fogos de artifício. Meus negócios são feitos com base. Não construo castelos de cartas! Por enquanto eu estou lá, e quem manda sou eu!
O Dr. Zinnowitz olhava com interesse para o excitado diretor-geral, a dizer coisas que iam além do que ele podia garantir.
— O senhor é conhecido no seu ramo como um homem de negócios exemplar — observou ele, cortesmente; notava-se em suas palavras um leve tom de piedade.
Preysing parou de falar. Pegou em seu dossiê azul, e meteu-o, com os dedos trêmulos, na pasta de couro.
— Então estamos de acordo — disse Zinnowitz. — A conferência será realizada amanhã, e vamos procurar por todos os meios forçar a assinatura do contrato prévio. Mas eu gostaria de saber... Ouça — disse ele daí a um minuto, após haver refletido em silêncio. — E se o senhor me entregasse algumas cartas? As mais importantes, compreende, do início das negociações? Vou falar à tarde com Schweimann e Gerstenkorn. Não prejudicaria coisa alguma, se eu as mostrasse... naturalmente não mostraria todas, mas apenas algumas.
— É impossível — respondeu Preysing. — Prometemos a Burleigh & Son a maior discrição.
Zinnowitz sorriu ao ouvir isso.
— É a história de sempre — declarou. — Mas faça o que julgar melhor. A responsabilidade é sua. Hic Rhodus, hic salta. Se soubermos conduzir com jeito as negociações em Manchester, ganharemos a partida. Esse é o único ponto que poderia compensar o negócio quase perdido com Chemnitz. Seria necessário pôr nas mãos de Schweimann algumas cartas, como uma coisa sem importância e casual. As mais importantes, compreende? Algumas cópias. Mas faça o que quiser. O senhor é o responsável.
— Não me agrada fazer isso, é uma coisa pouco limpa — respondeu Preysing. A cobertura de quarenta mil marcos para Rothenburger comprar ações ainda lhe estava a dificultar a digestão; sentia de fato azia, de tanta excitação, e suas têmporas zuniam, acaloradas. — As negociações com Chemnitz começaram antes do caso de Burleigh. Entre nós e Gerstenkorn nunca foi trocada uma só palavra a esse respeito. De repente tudo vira para esse lado. Se o grupo de Chemnitz nos quer aceitar apenas como um negócio dependente do assunto com a Inglaterra, e a coisa parece ser essa, como poderemos justificar a nossa correspondência? Não! Isso eu não faço.
"É teimoso como um jumento", pensou o Dr. Zinnowitz, e apertou o fecho da sua pasta, cuja fechadura deu um leve estalido.
— Com licença — disse ele. E, cerrando os lábios, pôs-se de pé.
De súbito, Preysing resolveu concordar.
— O senhor tem alguém que possa copiar algumas dessas cartas? De qualquer maneira eu poderia entregar-lhe duas cópias de cada. Os originais não saem de minhas mãos — disse ele apressadamente e elevando a voz, como se procurasse encobrir a de seu interlocutor. — É preciso que seja uma pessoa discreta e de confiança. Preciso ditar também um outro assunto de que necessito para a conferência. As datilógrafas arranjadas por intermédio do hotel não me agradam. Ficamos com a impressão de que elas vão contar ao porteiro os segredos comerciais. É preciso que seja logo depois do almoço.
— Infelizmente nenhum dos empregados do meu escritório dispõe de tempo — disse Zinnowitz com frieza, e ligeiramente surpreendido. — Ficamos com alguns assuntos importantes em atraso, e o meu pessoal há várias semanas tem feito trabalho extra. Mas espere um pouco... podia-se mandar a Flaemmchen para o senhor. A Flaemmchen serve-lhe. Vou mandar telefonar para ela.
— Para quem? — perguntou Preysing, chocado com o diminutivo.
— Para a Flaemmchen. A Flamm número dois. A irmã da minha secretária, a Flamm número um, que o senhor conhece, não é? Há vinte anos que está trabalhando comigo. A Flamm número dois nos tem auxiliado muitas vezes quando temos excesso de trabalho de cópias no escritório. Já a levei também numa viagem, porque a Flamm número um não podia ir. Ela é muito ativa e inteligente. Tenho que ter as cópias até as cinco horas. Farei isso como uma coisa à parte das negociações oficiais, durante o jantar com os senhores de Chemnitz. A Flaemmchen pode levar-me as cópias diretamente. Vou telefonar já à Flamm número um para que ela mande a irmã. Para que horas ficou marcada a conferência de amanhã?
O Dr. Zinnowitz e o Diretor-Geral Preysing, dois senhores corretos, com pastas já bem usadas debaixo do braço, saíram do jardim de inverno, atravessaram o corredor e, passando diante da portaria, chegaram ao hall onde se encontravam muitos outros senhores parecidos com eles, com pastas idênticas e conversando de maneira semelhante à deles. Algumas senhoras apareciam de novo; acabavam de sair do banho e vinham perfumadas, com os lábios pintados recentemente. Com um gesto elegante e despreocupado, calçavam as luvas antes de passar pela porta giratória e sair para a rua, cujo asfalto escuro estava banhado pelo clarão amarelo do sol.
No momento em que atravessava o hall para ir ao compartimento telefônico, Preysing ouviu alguém pronunciar seu nome. O groom 18 veio correndo pelos corredores, chamando com sua voz clara e aguda de menino, a intervalos regulares:
— Senhor Diretor Preysing! Senhor Diretor Preysing, de Fredersdorf! Senhor Diretor Preysing!
— Estou aqui! — exclamou Preysing, estendendo a mão para pegar um telegrama. — Com licença — disse ele; abriu o telegrama e leu-o, enquanto atravessava o hall ao lado do Dr. Zinnowitz. Esfriou até a raiz dos cabelos, durante a leitura, e com um gesto mecânico colocou na cabeça o chapéu-coco.
O telegrama dizia:
As negociações com Burleigh & Son fracassaram totalmente. Broesemann.
Não adiantava mais. "Não é mais preciso mandar a moça, Dr. Zinnowitz. Não adianta. Ponto final com Manchester", pensou Preysing, continuando a caminhar em direção ao compartimento telefônico. Meteu o telegrama no bolso do sobretudo, apertando-o entre o polegar e o indicador. "Não adianta mais. Não preciso mais mandar fazer as cópias", pensou ele, pretendendo dizê-lo também.
Mas não o disse. Pigarreou, pois tinha ainda na garganta a fuligem da viagem noturna.
— O tempo ficou magnífico — disse ele.
— Já estamos em fins de março — retrucou Zinnowitz, que afastara as preocupações com os negócios e voltava a ser um particular que gostava de apreciar "meias de seda" a caminhar.
— A cabina 2 vai vagar logo — informou a telefonista, colocando os pinos vermelhos e verdes nos orifícios. Preysing apoiou-se à porta acolchoada da cabina, e seus olhos fixaram-se mecanicamente no postigo, num dorso largo que se encontrava lá dentro. Zinnowitz falou qualquer coisa que ele não compreendeu. Sentiu um ódio violento por Broesemann, e o sangue lhe subiu à cabeça. Ódio daquela vaca, daquele procurador que enviava um telegrama desses, justamente quando era preciso ter a cabeça bem erguida para um negócio tão difícil. Evidentemente, o velho estava por trás daquele telegrama, aquele velho caduco, com a sua maldade e a sua rabugice: a porcaria está feita, mostre agora do que é capaz. Estava realmente desesperado o pobre diretor-geral, com seus nervos arrasados, a cabeça cheia de preocupações e sua consciência tranquila, em meio a negócios confusos e complicações tremendas. Procurou concentrar os pensamentos, que giravam, dispersos, em todas as direções. O Dr. Zinnowitz falava ao seu lado, no tom de um gozador empedernido, a respeito de uma nova revista toda prateada, tudo de prata. A porta da cabina contra a qual Preysing se apoiara cheio de desânimo fez pressão contra suas omoplatas. Depois forçaram suavemente a porta, e um homem alto, de excepcional beleza e amabilidade, vestido com uma capa azul, forçou a saída. Em vez de reclamar, o homem ainda se desculpou com algumas palavras corteses. Preysing, completamente absorto, fixou os olhos no rosto do homem que ele enxergava com toda a clareza, estranhamente próximo, e também se desculpou, conforme a praxe. Zinnowitz já estava dentro da cabina, pedindo ligação para a Flamm número dois, a Flaemmchen, talvez uma solteirona competente, que ia copiar cartas que já não tinham sentido nenhum, absolutamente nenhum. Preysing sabia que devia pôr um ponto final nisso tudo, mas não conseguiu reunir as energias necessárias para isso.
— Tudo arranjado — informou o Dr. Zinnowitz, saindo da cabina. — Às três horas a Flaemmchen estará aqui. Máquinas de escrever há em quantidade no hotel. Às cinco horas eu recebo as cartas. Ainda falarei com o senhor por telefone, antes de vencer esta dificuldade. Até logo, e bom apetite.
— Bom apetite — repetiu Preysing, dirigindo-se para as folhas de espelho da porta giratória em movimento, que levou o advogado para a rua. Lá fora fazia sol. Na rua, um pobre homenzinho vendia violetas. Ninguém se preocupava com fusões e acordos difíceis. Preysing tirou do bolso do sobretudo a mão direita, e com a esquerda pegou o telegrama, aquele telegrama que ele mantivera agarrado entre os dedos, até que o Dr. Zinnowitz desaparecesse num táxi. Dirigiu-se para uma mesa do hall, alisou cuidadosamente o papel, dobrou-o com cuidado e meteu-o no bolso interno de seu terno cinza-escuro, impecável.
Às três horas e cinco minutos, a campainha do telefone despertou Herr Preysing da sua sesta. Levantou-se da chaise-longue (descalçara as botinas, tirara o colarinho e o paletó), com a sensação de desamparo e desgosto que costuma sobrevir após uns minutos de sono roubado, nos hotéis. As cortinas amarelas estavam fechadas, o calor seco do aquecimento central enchia o aposento. Preysing tinha na face direita a marca do seu travesseiro de viagem. O telefone tilintava com impaciência. Uma senhora esperava pelo senhor diretor no hall, avisou o porteiro.
— Mande essa senhora subir — disse Preysing, ar-rumando-se às pressas. Dificuldades inesperadas foram comunicadas pelo telefone, com a máxima cortesia. O hotel tinha princípios e regulamentos. O chefe de recepção em pessoa, desculpando-se, e com o sorriso compungido de um homem traquejado, comunicou-o a Herr Preysing. Não era permitido receber visitas de senhoras nos aposentos, e infelizmente não se podiam fazer exceções.
— Mas, meu Deus do céu, não se trata de uma visita. Essa moça é minha secretária, preciso trabalhar com ela, o senhor precisa compreender — disse Preysing, impaciente.
O sorriso telefônico do chefe de recepção acentuou-se. Rogava-se ao senhor diretor que tivesse a bondade de dirigir-se com essa senhora à sala de ditados, que estava à disposição dos hóspedes para esse fim. Preysing desligou, batendo com o fone no gancho. Sentia-se completamente fora de seus hábitos; era horrível. Lavou as mãos, gargarejou com água dentifrícia, lutou com o botão do colarinho e a gravata, e em seguida desceu para o hall.
Ali estava sentada a Flaemmchen, Fräulein Flamm número dois, irmã de Fräulein Flamm número um. Não era possível existir no mundo duas irmãs mais diferentes. Preysing recordava-se vagamente da Flamm número um como de uma pessoa de confiança, com cabelos incolores, um punho protetor na manga direita, um maço de papel sob o braço esquerdo, que, na sala de espera, com cara de poucos amigos, barrava a entrada aos visitantes indesejáveis, no escritório do Dr. Zinnowitz. A Flamm número dois, pelo contrário, não possuía absolutamente essa segurança. Estava sentada comodamente em uma poltrona maple, como se estivesse em casa, balouçando os pés calçados com sapatos de verniz azul; dava a aparência de alguém que se preparava para divertir-se à larga, e teria no máximo vinte anos de idade.
— O Dr. Zinnowitz mandou-me para bater as cópias. Sou a Flaemmchen, que ele prometeu mandar-lhe — informou ela, sem cerimônias.
Bem no centro da boca, a Flaemmchen pintara uma mancha redonda de batom, descuidadamente, às pressas, apenas porque estava na moda. Quando se levantou, viu-se que era mais alta do que o diretor-geral; tinha longas pernas, usava, na cintura extremamente fina, um cinto de couro bem apertado, e suas formas eram magníficas, da cabeça aos pés. Preysing ficou furioso com Zinnowitz, que o punha em situações idiotas assim. Compreendeu os escrúpulos do chefe de recepção. Ela estava perfumada, além do mais. Teve desejos de mandá-la embora.
— Acho que precisamos apressar-nos — disse ela com uma voz de timbre grave e ligeiramente rouco, que as menininhas costumam ter. Pepsin, a filha mais velha do diretor-geral, tinha uma voz assim, quando era pequena. — Então a senhora é a irmã de Fräulein Flamm? Eu conheço Fräulein Flamm — disse ele, num tom mais de grosseria que de surpresa.
Flamm número dois estendeu um pouquinho o lábio inferior e soprou um cacho de cabelo que lhe caía na testa, por debaixo da sua boinazinha de feltro. O caracolzinho dourado elevou-se e tornou a cair lentamente sobre a testa. Preysing não o queria ver, mas não pôde deixar de fazê-lo.
— Irmã só por parte de pai — disse a Flaemmchen. — Eu sou filha da segunda mulher de meu pai. Mas nos damos muito bem.
— Ah, sim — disse Preysing, olhando-a com a vista turva.
Ela teria agora que copiar cartas que haviam perdido todo o sentido, todo o significado. Há vários meses ele vinha combinando tudo a respeito da sociedade com Burleigh & Son; não conseguia mudar subitamente o rumo de seus pensamentos. Não conseguia, de modo algum, riscar e apagar todo esse assunto. "Fracassaram totalmente. Broesemann. Totalmente." Era preciso ditar uma carta dirigida ao Broesemann, uma carta cheia de fel. Ao velho também, por causa dos quarenta mil marcos. Se Chemnitz desistisse, no dia seguinte, os quarenta mil para sustentar o câmbio teriam sido atirados à rua.
— Vamos. Vamos então para a sala de correspondência — disse Preysing, com expressão sombria, caminhando na frente dela pelo corredor. A Flaemmchen riu-se, divertida, atrás da nuca gorducha de Preysing.
A distância já se ouviam as máquinas de escrever, como um fogo distante de fuzilaria, e os sininhos tilintavam a espaços regulares. Quando Preysing abriu a porta, a fumaça dos cigarros saiu como uma enorme serpente azul.
— Ótima acústica — disse a Flaemmchen, erguendo as asas arredondadas de suas narinas.
Lá dentro, um senhor andava de um lado para outro, de mãos nas costas, o chapéu tombado para a nuca, ditando num americano mastigado. Era o manager de uma empresa cinematográfica; lançou à Flaemmchen um rápido olhar de conhecedor, e continuou a ditar.
— Qual! — disse Preysing, fechando a porta. — Não é possível. Quero um gabinete só para mim. Estas eternas chicanas aqui no hotel!
Desta vez foi caminhando atrás da Flaemmchen, pelo corredor. Estava agora encolerizadíssimo, e, em meio ao seu ódio, o balancear dos quadris da Flaemmchen provocava-lhe uma suave ardência no sangue.
No hall, a Flaemmchen também foi observada com admiração. Era um exemplar magnífico do seu sexo, quanto a isso não havia dúvida. Preysing achava desagradabilíssimo atravessar o hall com uma criatura tão espetacular, e deixou-a sozinha, indo conversar com Rohna sobre a possibilidade de não ser perturbado no compartimento das máquinas de escrever. A Flaemmchen, completamente indiferente aos olhares de que era alvo — santo Deus, estava tão acostumada a isso! — passou pó de arroz no nariz, descuidadamente, de pé, no meio do hall, depois tirou uma pequena cigarreira do bolso do casaco, com gestos de rapazinho, e se pôs a fumar. Preysing aproximou-se dela como de uma moita de urtigas.
— Temos de esperar dez minutos — disse ele.
— Bem — disse a Flaemmchen. — Mas depois precisamos trabalhar depressa. Tenho de estar às cinco no escritório de Zinnowitz.
— A senhora é tão pontual assim? — perguntou Preysing, de mau humor.
— Se sou!... — replicou a Flaemmchen com um sorriso travesso. Seu nariz ficou curto como o de um nenenzinho, e as meninas de seus olhos castanho-claros rolaram para os ângulos das pálpebras.
— Bem, então sente-se, enquanto isso — convidou Preysing. — E peça ao garçom qualquer coisa. Garçom, sirva esta moça — mandou ele, sem qualquer delicadeza, afastando-se em seguida.
— Um sorvete de pêssego Melba — pediu a Flaemmchen, inclinando a cabeça, satisfeita.
Soprou de novo a madeixa de cabelo, sem êxito. A Flaemmchen tinha formas perfeitas, como as de um cavalo de raça, e a impaciente impertinência de um cachorrinho novo.
O Barão Gaigern, que perambulava pelo hall há algum tempo, contemplou-a a distância, encantado. Após um instante, aproximou-se dela, cumprimentou-a e disse a meia voz:
— Posso sentar-me ao seu lado, minha senhora? Mas vejo que não está me reconhecendo. Nós dançamos juntos em Baden-Baden, lembra-se?
— Não é possível! Nunca estive em Baden-Baden — disse a Flaemmchen, olhando o jovem com atenção.
— Ah, minha senhora! Desculpe-me! Agora estou vendo que... devo ter-me enganado. Confundi-a com outra pessoa! — exclamou o barão, com ar hipócrita.
A Flaemmchen deu uma risada.
— Não é a mim que o senhor engana com esse velho truque — disse ela com secura.
Gaigern deu uma gargalhada.
— Então deixemo-nos de truques. Posso ficar sentado a seu lado? Posso? A senhora tem razão, não é possível confundi-la com ninguém. Como a senhora, só é possível existir no mundo uma pessoa, minha senhora. Mora aqui? Vem dançar no chá das cinco? Por favor, por favor, gostaria tanto de dançar com a senhora... Quer?
Colocou as mãos sobre a mesa. As da Flaemmchen já ali estavam pousadas. Havia um pequeno espaço entre os dedos dele e os dela, e o ar que os separava começou a vibrar. Os dois se olharam, simpatizaram mutuamente, e ambos se compreenderam, os belos jovens.
— Meu Deus, como o senhor é rápido! — exclamou a Flaemmchen, encantada.
Igualmente encantado, Gaigern respondeu:
— A senhora promete? Vem ao chá das cinco?
— Ao chá não posso. Tenho o que fazer. Mas à noite estou livre.
— Oh! Oh! À noite eu não posso. Mas amanhã, ou depois de amanhã... Às cinco horas? Aqui? No pavilhão amarelo? Com certeza?
A Flaemmchen lambeu a colher do sorvete e calou-se, com ar brejeiro. Para que muitas palavras? Trava-se conhecimento com alguém como se acende um cigarro.
Tiram-se umas tragadas somente para tomar o gosto, e depois a faísca se acende.
— Como se chama a senhora? — perguntou logo Gaigern.
Nesse momento, Preysing aproximou-se da mesa com ares de proprietário. Gaigern ergueu-se, cumprimentou-o e, com atitude amável, colocou-se por trás da cadeira.
— Já podemos começar — disse Preysing, aborrecido. A Flaemmchen estendeu a mão enluvada a Gaigern, enquanto Preysing olhava a cena com ar de desagrado. Reconheceu o jovem da cabina telefônica, e via novamente esse rosto com toda a nitidez, com todos os seus poros, com os menores detalhes.
— Quem é esse sujeito? — perguntou ele, caminhando meio de viés ao lado da Flaemmchen, com um andar bamboleante.
— Ah!... um conhecido — respondeu ela.
— É? A senhora deve ter muitos conhecidos, não?
— Assim, assim. A gente deve fazer-se um pouco de rogada. E não é sempre que tenho tempo.
Por motivos obscuros, esta resposta agradou ao diretor-geral.
— A senhora está empregada? — perguntou ele.
— No momento, não. No momento estou procurando emprego. Ora, logo se arranja. Sempre acabo arranjando alguma coisa — disse a Flaemmchen, com filosofia. — Eu gostaria de trabalhar no cinema. Mas é tão difícil o início da carreira... Se eu conseguisse começar, depois podia me arranjar. Mas o início da carreira é dificílimo!...
Olhou de frente para Herr Preysing com uma expressão preocupada e cômica. Agora, a Flaemmchen tinha o ar de uma gatinha. Toda a graciosidade felina parecia ter-se concentrado em seu rosto, numa expressão cambiante. Preysing, completamente alheio a esses conhecimentos, abriu a máquina de escrever, perguntando:
— Por que justamente o cinema? Todas vocês têm a mania do cinema — nesse "todas" incluía também sua filha Babe, de quinze anos, que era louca pela sétima arte.
— Ora, porque sim! Mas não tenho ilusões a esse respeito. Sou muito fotogênica, é o que todos dizem — continuou a Flaemmchen, tirando o casaco. — Devo estenografar ou escrever diretamente na máquina?
— Na máquina, faça o favor — respondeu Preysing. Sentia-se agora um pouco mais animado e de melhor humor. Afastara do cérebro o fato de Manchester ter ido por água abaixo, e, ao retirar do dossiê as tão promissoras cartas dessa correspondência, sentiu uma agradável impressão. A Flaemmchen continuava a falar sobre os seus assuntos particulares.
— Sou sempre fotografada para jornais e revistas, e também já posei para anúncios de sabonete. Como se consegue isso? Meu Deus! Um fotógrafo conta ao outro. Sou um ótimo nu artístico, sabe? Mas pagam pouquíssimo. Dez marcos por fotografia. Imagine o senhor. Ora! O que eu preferia era que alguém me levasse nesta primavera, de novo, como secretária, em alguma viagem. No ano passado estive em Florença com um senhor que trabalhava em um livro, um professor. Um encanto de homem! Talvez este ano apareça também qualquer coisa — disse ela, endireitando a máquina na mesa.
Era evidente que a Flaemmchen tinha preocupações, mas essas preocupações não pesavam mais do que o caracol da sua testa, que ela afastava com um sopro, de instante a instante. Preysing, que não conseguia introduzir no círculo de suas ideias a observação objetiva a respeito do nu artístico, quis falar qualquer coisa sobre negócios. Em vez de fazê-lo, pôs-se a observar atentamente as mãos da Flaemmchen, que colocavam na máquina a folha de papel, e disse:
— Que mãos morenas a senhora tem! Onde toma tanto sol assim?
A Flaemmchen observou com atenção as próprias mãos, levantou um pouco as mangas e fitou sua pele de cor parda com ar sério.
— É da neve, ainda. Fui esquiar em Vorarlberg. Um conhecido me levou. Uma beleza. O senhor devia ter-me visto quando eu voltei! ... Então, podemos começar?
Preysing dirigiu-se, por entre a fumaceira dos charutos, ao canto mais afastado da sala, e começou a ditar:
— A data, já pôs a data, senhorita? Prezado Herr Broesemann, Broese ... já escreveu? Com relação ao seu telegrama desta manhã, devo comunicar-lhe...
A Flaemmchen continuou a escrever com a mão direita, enquanto tirava com a esquerda o gorrinho, que parecia incomodá-la. A sala dava para um escuro poço de ventilação, as lâmpadas verdes do escritório estavam acesas. Em meio ao assunto comercial, Preysing pôs-se a pensar em uma cômoda antiga, uma velha cômoda de bétula, que se encontrava no vestíbulo, em Fredersdorf.
Só à noite se lembrou disso novamente, quando sonhou com a Flaemmchen e despertou. Seu cabelo tinha a cor e a cintilação da madeira antiga de bétula, com reflexos claros e escuros. Deitado em sua cama, à noite, via esse cabelo com toda a nitidez, enquanto respirava o ar seco do quarto de hotel, vendo desfilar rapidamente as luzes do anúncio contínuo, nas cortinas fechadas. A pasta em cima da mesa, naquele quarto escuro, o enervava. Levantou-se de novo para fechá-la na mala; em seguida, gargarejou com Odol e lavou as mãos outra vez.
Este apartamento aborrece-o, é caro e sem conforto; consiste apenas em uma saleta minúscula com sofá, mesa e cadeiras, um quartinho de dormir estreito, e, ao lado, o banheiro. A torneira está pingando um pouco; pinga, pinga, por entre o sono de Preysing. Levanta-se novamente, sobressaltado, e vai acertar o despertador. Esqueceu-se de comprar o aparelho de barbear e precisa ir cedo ao barbeiro. Adormece mais uma vez, e torna a sonhar com a datilografa e seus cabelos cor de bétula. Desperta, e enxerga novamente o anúncio correndo sem cessar pelas cortinas; a noite passada numa cama estranha, angustiosa, dá-lhe uma impressão de nojo e confusão. Ele sente um medo incrível da conferência com Schweimann e Gerstenkorn; seu peito bate com um ruído surdo. Desde o momento em que mostrou as cartas da Inglaterra, não pode livrar-se de um sentimento estranho, como se as palmas de suas mãos estivessem sujas. Finalmente, já quase adormecendo de novo, ouve alguém andando lá fora, pisando na passadeira e assobiando baixinho. Ouve também o senhor do 69 colocando uns pares de despreocupados sapatos rasos, de verniz, diante da porta, como se a vida fosse um divertimento.
5
Kringelein, no 70, também o ouviu e despertou com o ruído. Havia sonhado com a Grussinskaia. Ela surgira na tesouraria onde ele trabalhava, apresentando contas atrasadas. Kringelein, o guarda-livros de Fredersdorf, que está sofrendo de claustrofobia, quer ainda agarrar a vida por uma fímbria, antes de morrer. Sente uma fome desmesurada, mas suporta muito pouco alimento. Com frequência, durante esses dias, seu corpo debilitado apodera-se da direção e o força a recolher-se ao quarto, em meio a todo aquele tumulto. Kringelein começa a odiar sua enfermidade, apesar de ela lhe ter dado coragem para sair de Fredersdorf. Comprou um remédio: Bálsamo de Vida do Dr. Hundt. A intervalos regulares toma um gole, cheio de esperanças, esforçando-se por não sentir o gosto amargo de canela, e em seguida sente algum alívio.
Distende os dedos enregelados, na escuridão, e se põe a fazer cálculos. É desagradável o fato de seus dedos terem tendência para morrer enquanto está dormindo. Esgueiram-se números no quarto, de rostos baixos, até que ele acende a luz e desperta completamente. É pena que o rico Herr Kringelein não possa libertar-se de um costume de Herr Kringelein pobre: ter de fazer contas. Dentro de sua cabeça os números desfilam incessantemente, maldosos, colocando-se em colunas, e somando-se e diminuindo-se sem o auxílio de Kringelein. Kringelein possui um caderninho que trouxe de Fredersdorf, diante do qual fica sentado durante horas. Nele anota as suas despesas, as despesas absurdas de um homem que aprende a gozar a vida, que gasta em dois dias o ordenado de um mês. Sente com frequência tonturas tão fortes que tem a impressão de ver as paredes forradas com tapeçaria de tulipas caírem em cima dele. Por vezes fica sentado na borda da cama, pensando que vai morrer em breve. Seu pensamento vai-se concretizando, e então, assustado, fica com as orelhas geladas, entortando os olhos, cheio de medo e angústia. Não consegue, entretanto, fazer a mínima ideia do que é a morte. Tem esperanças de que não seja muito diversa de uma narcose, com a diferença de que, após a narcose, a gente desperta, sente náuseas, e sobrevêm as dores (Kringelein batizou-as secretamente de dores azuis); espera também que todos esses vexames, bem seus conhecidos, sejam sofridos antes, e não depois. Depois de meditar em tudo isso, principiou a tremer; de fato, sucede por vezes a Kringelein tremer com medo da morte, apesar de não conseguir imaginar como ela seja.
Há muita insônia por detrás das portas duplas fechadas do hotel adormecido. Precisamente a essa hora, o Dr. Otternschlag coloca no lavatório uma pequenina ampola de injeção, joga-se na cama e esvai-se na leve nebulosidade das regiões morfínicas. Mas o Maestro Witte, cujo quarto, o 221, fica na ala esquerda, não consegue adormecer. Os velhos dormem pouco. Seu aposento fica exatamente defronte ao do Dr. Otternschlag, e em sua parede também gorgoleja a água; o elevador ronca aos solavancos. É quase um quarto de empregados, o quarto onde se hospeda. Sentado à janela, encosta na vidraça a testa abaulada de músico e fica olhando fixamente a parede fronteiriça. Trechos de uma sinfonia de Beethoven vêm-lhe à memória — nunca a dirigiu. Ouve Bach — o monumental "Crucifica-o", da Paixão de São Mateus. "Malbaratei a minha vida!", pensa o velho Witte. E toda a música que não foi cantada em sua vida se concentra em sua garganta, num aglomerado amargoso, que ele traga com esforço. Às oito e meia da manhã é o ensaio. Sentado ao piano, precisa repetir sempre a mesma marcha para os pliés das mocinhas, sempre a mesma Valsa da primavera, a Mazurka, a Bacanal. "Devia ter abandonado Elisavieta enquanto era tempo", pensa ele; agora não era mais possível. Elisavieta já estava velha e não se podia abandonar uma mulher idosa. Agora era preciso aguentar junto dela o pouco tempo que ainda restava.
E Elisavieta Alieksandrovna Grussinskaia também não consegue dormir, sentindo o tempo correr, no meio da noite, apressado, incessante; há dois relógios a tiquetaquear no quarto escuro: um de bronze, na escrivaninha, e o reloginho-pulseira, no criado-mudo. Ambos marcam os mesmos segundos e, no entanto, um bate mais depressa do que o outro, o que provoca palpitações do coração, quando se presta atenção ao seu tique-taque. Grussinskaia acende a luz, levanta-se, enfia os pés nos chinelos acalcanhados e vai até o espelho. No espelho também se evidencia o tempo, principalmente no espelho. Evidencia-se ainda nas críticas, na horrível falta de delicadeza da imprensa, no sucesso das bailarinas feias e com luxações, que estão agora na moda, no déficit das tournées, nos fracos aplausos, na maneira vulgar com que Meyerheim, o manager, se exprime — em toda parte, em toda parte se evidencia o tempo. Nas articulações fatigadas dos pés estão os anos passados a dançar; também na respiração opressa à trigésima segunda pirueta clássica; e também no sangue que, com frequência, nas ondas de calor da idade crítica, atravessa a garganta e aflui às faces. Faz calor no quarto, apesar de estar aberta a porta da varanda. Lá fora, as buzinas dos automóveis gritam durante toda a noite. A Grussinskaia tira seu adereço de pérolas da pequena suitcase, dois punhados de pérolas frias, e encosta-as ao rosto. Não adianta; as pálpebras continuam quentes, coloridas pela pintura e a iluminação da ribalta; os pensamentos são como gumes penetrantes; os dois relógios disparam como cavalos a galope. Sob o queixo, a Grussinskaia tem uma atadura de borracha; suas mãos e lábios estão cheios de creme. Olha-se ao espelho quando passa por ele, e acha-se tão feia que apaga depressa a luz. No escuro, engole um veronal e desata num choro enraivecido, o pranto de uma mulher inconsolável e apaixonada. Depois, tomba sobre nuvens, e finalmente cai no sono.
Ao lado chegou alguém, no elevador, talvez o jovem de Nice. A Grussinskaia arrasta-o consigo em seu sonho pesado, sob a ação do veronal; o senhor do 69 — o homem mais belo que ela já viu em toda a sua vida.
Quando ele chega, vem assobiando baixinho, um assobio nada desagradável, exprimindo simplesmente alegria. Ao entrar no quarto fica mais cauteloso, veste o pijama e calça uns chinelos bonitos de couro azul; depois, desliza em silêncio, como um ser intermediário entre gato montes e moço bonito. Quando passa pelo hall, é como se num aposento gelado se abrisse uma janela ensolarada. Dança maravilhosamente bem, com frieza e paixão. Tem sempre no quarto algumas flores — adora as flores e gosta de sentir o seu perfume. Chega, por vezes, a lamber as suas pétalas tenras — como um bicho. Na rua, acompanha as moças com um andar bamboleante de pugilista, contentando-se, por vezes, em olhá-las, com enorme prazer; a umas, dirige algumas palavras, e a outras acompanha até a casa ou leva a um hotel de segunda classe. E quando, pela manhã, com uma expressão santarrona de gatão, entra no hall quase vazio do Grande Hotel, com ar distinto e morigerado, e pede a chave do quarto ao porteiro, este não pode deixar de sorrir. Às vezes vem bêbado, com uma bebedeira discreta e cheia de animação, que ninguém pode levar a mal. De manhã torna-se um pouco desagradável para quem está hospedado no quarto debaixo do seu, porque faz ginástica; ouve-se seu corpo cair no solo com um ruído suave, compassadamente. Usa pequeninas gravatas-borboleta, moles, e paletós bem folgados. Suas roupas caem sobre os músculos tão confortavelmente como a pele dos cachorros de raça pura. Por vezes sai em disparada no seu carrinho de quatro lugares, e não é visto durante dois dias. Passa horas e horas a perambular pelas agências de automóveis, observando os carros; enfia a cabeça sob a tampa, para ver o motor; aspira gasolina, óleo, metal em combustão; bate nos pneus; alisa a pintura brilhante, o couro da carroçaria — azul, vermelho, bege — e, se o deixassem sozinho, era capaz, talvez, de lamber tudo. Compra cordões de calçado a vendedores ambulantes, isqueiros inúteis, pequenas galinhas de borracha e dez caixas de fósforos. De repente tem desejos de ver cavalos; levanta-se às seis horas da manhã, vai de ônibus até Tattersall, fareja o ar repleto de poeira de serragem, de cheiro de arreios, estéreo e suor, trava amizade com algum cavalo, monta e vai até o jardim zoológico, fartando-se de passear em meio à neblina cinzenta da manhã, que paira sobre as árvores de março, e retorna mais calmo ao hotel. Já o encontraram no pátio dos empregados, atrás da escada de serviço, parado junto de uma lata cheia de água de lavagem e restos de comida, olhando para cima, para os cinco andares do hotel, até o lugar em que a antena está presa, sob o céu descolorido. Talvez tivesse alguma pretensão de conquistar a única camareira bonita do hotel; bonita, imoral e já despedida. Trava muitos conhecimentos entre os hóspedes do hotel, distribui selos, aconselha, no caso de excursões, leva em seu carro senhoras idosas, serve de parceiro no jogo de bridge, e é grande conhecedor dos vinhos do hotel. No dedo indicador da mão direita usa um anel com sinete de lápis-lazúli, com o brasão dos Gaigern, um falcão sobre ondas. À noite, quando se deita, conversa com os seus travesseiros, em dialeto bávaro. "Gruess Gott", diz ele, aproximadamente, "boa noite, você é muito boazinha, minha querida cama, e muito ajuizada." Adormece logo, e nunca incomoda os vizinhos com roncos inconvenientes, gargarejos e botinas atiradas ao chão. Seu chofer costuma contar, lá embaixo, na sala dos despachos, que o barão é um homem muito correto, mas bastante simplório. No entanto, também um Barão Gaigern, por detrás de portas duplas, tem seus segredos e seus escaninhos ocultos.
— Não há nada de novo? — perguntou ao chofer. O barão está no meio do tapete, completamente nu, fazendo massagem nas coxas. Tem uma plástica magnífica, com a caixa torácica um tanto abaulada, como a dos pugilistas; a pele de seus ombros e das pernas é morena, e só entre as coxas e o tronco há uma zona clara, no lugar em que um maio lhe cobriu o corpo durante o verão. — Então, você não sabe de nenhuma novidade?
— Ora, basta! — respondeu o chofer, que estava deitado na chaise-longue coberta com uma imitação de Kilim, o cigarro colado ao lábio inferior, pois estava fumando. — Você pensa que eles vão ficar esperando eternamente em Amsterdam? Schalhorn já desembolsou cinco mil marcos, você pensa que isso vai continuar indefinidamente? Emmy está entocada há um mês em Springe, à espera da nossa encomenda. Em Paris foi uma porcaria. Em Nice foi uma porcaria. Se você hoje não conseguir nada, vai ser de novo uma porcaria. Se Schalhorn não receber os cinco mil, vai achatar-nos.
— Schalhorn é o chefe? — perguntou o barão calmamente, despejando água-de-colônia nas palmas das mãos.
— Um chefe tem de ser atirado, é o que eu digo — rosnou o chofer.
— Tem de ser atirado quando está na hora de agir, é verdade. Não gosto da maneira como você e Schalhorn trabalham, não concordo. É por essa razão que acontece sempre alguma coisa com vocês. Comigo nunca aconteceu nada e Schalhorn sempre recebeu a parte que lhe cabe. Se Emmy está nervosa em Springe, não me serve, foi o que lhe disse a última vez. Se ela nem é capaz de ficar sossegada na sua loja de objetos de arte aplicada, enquanto manda Moehl copiar os engastes antigos...
—- Pouco nos importam os engastes antigos. Trate antes de trazer as pérolas, depois pode mandar fazer os engastes antigos. Isso tudo foi ideia sua. Primeiro, parecia que tudo ia dar certo, as pérolas valem meio milhão. Bom, se descontarmos dois meses de despesas, ainda sobra alguma coisa. Talvez seja mais fácil livrar-se delas em engastes antigos, bom, concordo. Agora, Moehl, lá em Springe, está copiando as joias da sua avó, Emmy está ficando maluca, Schalhorn está ficando louco. Não confie nessa mulher; ela é bem capaz de lhe pregar uma peça, se perder a paciência. Então, quando vai ser a coisa? Quando é que o senhor barão vai parar de divertir-se e começar a trabalhar um pouquinho de novo?
— Você já está com apetite, hein? Já se esqueceu dos vinte e dois mil marcos de Nice, e está se arriscando a levar uma grande descompostura — disse o barão, ainda com bastante amabilidade; já tinha calçado meias de seda pretas, presas com ligas brancas de seda, e elegantes sapatos de verniz, com que costumava dançar. Mas ainda estava nu.
Qualquer coisa na sua nudez despreocupada e sem cerimônia excitava o chofer; talvez a queda suave dos ombros, ou o modo macio de as costelas se elevarem por sob a pele, enchendo de ar os pulmões. O chofer cuspiu a ponta do cigarro no meio do quarto e levantou-se.
— Quer saber de uma coisa? — disse ele, inclinando-se sobre a mesa. — Já estamos fartos de você. Você não é dos nossos. Você não leva nada a sério, compreendeu? Para você, tanto faz ir jogar ou apostar nas corridas de cavalos, surripiar com toda a gentileza a uma velha solteirona vinte e dois mil marcos ou ir buscar pérolas no valor de meio milhão; para você tanto faz. É tudo a mesma coisa, pensa você. Mas há uma diferença em tudo isso, quando alguém não sabe bancar o chefe. E se você não for embora por livre e espontânea vontade, será forçado a fazê-lo, compreendeu?
— Deita, já! — disse Gaigern amavelmente, e com um silencioso golpezinho de jiu-jítsu torceu o pulso do chofer. — Para ir-me embora não preciso de você. Preciso somente que você prepare o nosso álibi hoje à noite. Esta noite, às doze e vinte e oito, você pode partir para Springe com as pérolas, e de manhã, às oito e dezesseis, estará de volta. Às nove, mando que toquem a campainha no seu quarto, e você precisa ir logo para o batente; depois convidaremos qualquer pessoa para passear conosco. Se você pestanejar durante o escândalo que vai haver no hotel, amanhã, mando prendê-lo. Agora há pouco perguntei-lhe se havia alguma novidade.
O chofer, com estrias vermelhas em volta do pulso, pôs de novo a mão no bolso. Dava a impressão de não querer responder — mas respondeu.
— Ela agora costuma chegar ao teatro só às seis e meia, porque anda nervosa — rosnou ele, dominando-se a custo. — Depois do espetáculo há uma ceia de despedida na casa do embaixador francês. Não vai além das duas da madrugada. Amanhã, às onze, ela viaja, fica dois dias em Praga, depois segue para Viena. Estou realmente curioso para ver quando é que você vai surripiar as pérolas dela, entre o espetáculo e a ceia, se tudo correr sem percalços. Não existe no mundo um buraco tão favorável como esse pátio de teatro sem iluminação — acrescentou ele. Quis resmungar ainda qualquer coisa mas não olhou mais para o barão, que, nesse meio tempo, se transformara em um senhor de smoking.
— Ela não está mais usando as pérolas. Deixa-as no hotel — afirmou Gaigern, prendendo a gravata preta.
— Ela própria o contou a um repórter idiota que a foi entrevistar, você pode ler nos jornais.
— O quê? Ela as deixa simplesmente no quarto... não as entregou no hotel para serem guardadas no cofre? Como? Pode-se ir ao seu quarto buscá-las?
— É mais ou menos isso — disse o Barão Gaigern.
— Agora quero que me deixem em paz — disse ele cortesmente à boca idiota e espantada do seu companheiro. Via uma goela de um vermelho escuro e duas falhas de dentes. Sentiu um ódio ardente e repentino por aquela espécie de gente a que se ligara. Os músculos do seu pescoço se contraíram violentamente.
— Vamos — foi só o que disse. — Às oito, quero o carro em frente à porta principal.
O chofer, humilhado, olhou o rosto de Gaigern, e retirou-se, não dizendo nada do que queria dizer e que ficou entalado na sua garganta.
— O senhor do quarto 70 é inofensivo — murmurou como uma última consideração; e, com um movimento subserviente de lacaio, apanhou no chão o pijama azul.
— É um ricaço esquisitão, recebeu uma herança enorme e agora está esbanjando a fortuna.
O barão já não o ouvia mais. O chofer, supersticioso, parando entre as duas portas, cuspiu três vezes para trás; depois fechou o trinco sem fazer barulho.
Pouco antes das oito da noite, o barão apareceu no hall, animado e muito bem disposto, vestido de smoking e de impermeável azul. Nem mesmo Pilzheim, o detetive do hotel, desconfia que esse Apoio amável está preparando um álibi. O Dr. Otternschlag, que está bebendo café no hall com o extenuado Kringelein, antes de irem juntos ao espetáculo da Grussinskaia, com o dedo erguido em riste, aponta para o barão.
— Olhe, Kringelein: era assim que deveríamos ser
— disse ele, zombeteiramente e com inveja.
O barão põe um marco na mão do groom 18 e diz:
— Meus cumprimentos à senhorita sua noiva! — e se aproxima da portaria. O porteiro Senf olha para ele com expressão obsequiosa, mas sonolenta. É já a terceira noite que o porteiro Senf tem que esconder suas preocupações pessoais, por ter a mulher no hospital.
— O senhor arranjou para mim as entradas para o teatro? Quinze marcos? Muito bem — disse ele ao porteiro. — Se alguém perguntar por mim, estou no Teatro Alemão, e depois no Clube do Oeste. Vou ao Clube do Oeste — disse, e, dando dois passos, dirigiu-se ao Conde Rohna: — Imagine o senhor quem eu encontrei lá: Ruetzow, aquele sujeito alto! Ele esteve com o senhor e o meu irmão no batalhão Ulanos de 74. Está trabalhando agora no ramo de automóveis. Vocês todos são pessoas trabalhadoras; só eu é que sou um boa-vida, um lírio do campo, hein? O meu chofer está lá fora, porteiro?
Com o barão, entrou uma brisa quente pela porta giratória, e o hall sorriu com agrado para ele. Entrou no seu carrinho e partiu, atrás do álibi. Às dez e meia deram um telefonema para o hotel, do Clube do Oeste.
— Aqui fala o Barão Gaigern. Alguém perguntou por mim? Estou no Clube do Oeste, e só daqui a duas horas, ou um pouco mais tarde, chegarei ao hotel. Meu chofer pode ir deitar-se.
Ao mesmo tempo que essa voz preparava cavalheiresca e precavidamente um álibi, Gaigern estava colado à parede da frente do Grande Hotel, entre duas pedras que imitavam cantaria. Sua situação não era das mais cômodas, mas ele se sentia alegre, com a satisfação entusiástica do caçador, do lutador e do alpinista. Conservava para a sua empresa o pijama azul-escuro, despreocupadamente; calçava leves sapatos de pugilista, com solas de cromo, e por precaução enfiara, sobre eles, meias de lã, meias para esportes de inverno, que evitavam indesejáveis pegadas. Gaigern calculara o caminho para o quarto da Grussinskaia, da sua própria janela; devia ter pouco menos de sete metros, e ele já estava no meio do caminho. As pedras imitando cantaria do Grande Hotel eram cópias das lajes ásperas do Palazzo Pitti, e tinham uma aparência pomposa; se não se partissem agora, estava tudo bem. Gaigern colocava as pontas dos pés, cuidadosamente, nas reentrâncias do reboco. Usava luvas, que durante o percurso o estavam atrapalhando. Não podia tirá-las, enquanto subia pela parede do segundo andar como um escaravelho.
— Diabo! — exclamou ele, quando a argamassa e o reboco se quebraram sob as suas mãos, indo bater com um ruído seco no andar de baixo, no parapeito de metal de uma janela.
Sentiu a garganta seca e controlou a respiração, como um corredor da Aschenbahn. Firmou-se de novo, balanceou o corpo, durante um instante, sobre a ponta do dedo maior, com perigo de vida, e impeliu a outra perna meio metro para a frente. Assobiou baixinho. Estava agora excitadíssimo e por isso assobiava, fingindo sangue-frio, como um meninote. No principal, que eram as pérolas, ele não pensava de modo algum durante esses minutos. Afinal de contas, essas pérolas poderiam ser conseguidas também de outra maneira. Um soco na cabeça de Suzette, sobre seu chapeuzinho de feltro já cocado, quando ela saísse à noite do teatro, com a suitcase. Um assalto à noite ao quarto da Grussinskaia; finalmente, quatro passos pelo corredor, uma chave falsa e uma expressão inocente, ao ser descoberto em um quarto em que entrara por engano. Mas não era do seu feitio fazer isso, não o fazia de modo algum. "Cada um deve agir conforme a sua natureza", tinha dito Gaigern ao seu bando, procurando explicar-lhes seu modo de agir. Esse bando era um grupo de espertalhões, que há dois anos ele procurava conservar unido, mas estava sempre à beira da revolta. "Não gosto de pegar a caça na armadilha; não subo montanhas com corda. O que não posso ir buscar com minhas próprias mãos, tenho a impressão de que não é meu."
É natural que essa conversa provocasse uma atmosfera de incompreensão entre ele e o seu bando. A palavra "coragem" não era de uso corrente entre eles, apesar de cada um deles possuir uma boa dose de coragem. Emmy, em Springe, com sua cabeça dura como um coco, procurara certa vez explicar o que acontecia com Gaigern. "Para ele isso é um esporte", afirmava ela; e como tinha muita intimidade com Gaigern, devia ter razão. Pelo menos, nesse momento, às dez e vinte da noite, escalando a fachada do Grande Hotel, ele tinha o aspecto de um esportista, um turista numa passagem difícil, um chefe de expedição, avançando em local perigoso.
O lugar perigoso era a reentrância angulosa, por trás do banheiro da Grussinskaia. Ali, a fantasia do arquiteto idealizara uma superfície lisa: também não havia cornija na janela, o banheiro escondia-se numa reentrância, dando para aquele pátio, onde certa vez o barão foi visto a observar as antenas. Mas, depois desses dois metros e meio lisos, começavam já as barras de ferro da grade da varanda do 68. Ligeiramente arquejante, ora assobiando, ora soltando pragas, Gaigern parou na última saliência que lhe podia oferecer segurança, antes do trecho liso que se seguia. Os músculos de suas coxas tremiam, e nas articulações dos pés sentia a vibração quente e latejante provocada pelo violento esforço. Afora isso, estava satisfeito com a situação, pois tudo correspondia ao que ele calculara uma centena de vezes.
Gaigern não podia ser visto lá de baixo, naquela rua formigante de gente da grande cidade, porque estava completamente protegido pelo enorme refletor que o hotel mandara colocar na fachada, há pouco tempo. Quem olhasse para cima ficaria ofuscado pelos feixes claros da luz. Era completamente impossível perceber uma figurinha azul-escura, por detrás dessa luz agressiva, a se mover na sombra. Gaigern tinha visto, num teatro de revistas, o truque de um mágico que enviara na direção do público uma luz ofuscante como essa, enquanto, diante do pano de fundo de veludo escuro, executava suas mágicas, serrando moças ao meio e fazendo voar esqueletos no palco. Gaigern descansou atrás do segundo refletor e olhou para a rua, lá embaixo; do ponto em que estava, enxergava aquele trechinho do mundo completamente contorcido e achatado. A parede que descia reta olhava para ele com uma aparência hostil e maldosa. Inclinou a cabeça justamente nesse momento, e olhou para baixo, prendendo a respiração, sem piscar sequer. Não tinha a menor sensação de vertigem; apenas no pulso, por debaixo das luvas, a vibração suave e excitante, bem conhecida dos alpinistas. A torre redonda de Ried, no castelinho de Gaigern, era mais alta ainda. Quando ele fugia à noite de Feldkirch, era preciso escorregar pelo para-raios. Os Drei Zinnen, nos Dolomitos, também não eram brincadeira. Os dois metros e meio até o terraço não eram fáceis de atravessar, mas havia coisa pior. Gaigern não olhou mais para baixo, e ergueu os olhos por um momento. Defronte, um anúncio luminoso, contínuo, passava no telhado, e de uma taça de champanha borbulhavam lâmpadas elétricas, como espuma. Céu, não havia; a cidade terminava ali mesmo, junto aos telhados, fios e antenas. Gaigern moveu os dedos dentro da luva; estavam colados, provavelmente sangravam. Experimentou respirar, e conseguiu de novo. Concentrou suas forças, retesou os músculos e, com um salto de peixe-voador, lançou-se no vácuo. O ar zuniu de encontro aos seus ouvidos, e em seguida suas mãos agarraram as barras de ferro da varanda, que lhe cortaram os dedos, com suas arestas. Deixou-se ficar pendurado durante um segundo, com o coração a palpitar com força, e depois, com um impulso, pulou por sobre a varanda e soltou o corpo. Sim, agora se encontrava na varanda, diante da porta aberta do quarto da Grussinskaia.
— Até que enfim! — exclamou satisfeito, deixando-se ficar onde tinha caído, no pavimento de pedra da varandinha; aspirou profundamente o ar, abrindo a boca; ouviu um avião roncar bem por cima dele, e viu acima de seus olhos abertos os reflexos redondos da luz da cabina passando silenciosamente por entre as nuvens avermelhadas da grande cidade. A rua mandava para cima um ruído compacto e cheio — Gaigern sentiu-se por uns instantes em uma ilha de cansaço e de semi-inconsciência —, lá embaixo as buzinas dos automóveis disputavam a passagem, porque a Liga dos Filantropos dava uma festa, no pequeno salão, e muitas capas de noite se moviam como escaravelhos dourados, saindo pelas portas dos carros, subindo três degraus e entrando pelo portal. "Santo Deus, o que eu daria agora por um cigarro!", pensou Gaigern com os nervos frouxos; mas de modo algum podia pensar nisso agora. Ainda deitado, puxou a luva da mão direita e começou a chupar o corte do indicador; uma pata sangrando não tinha a menor utilidade para o seu trabalho. Engoliu com raiva o gosto sutil de metal, e suas costas úmidas sentiram o frescor agradável do pavimento de pedras. Por entre as grades da varanda, mediu o trecho que percorrera, e calculou o difícil retorno. Trouxera uma corda. Depois, seria preciso sair depressa da varanda, e, com um impulso de pêndulo, cair do outro lado. "Parabéns!", disse a si mesmo, no tom amável de oficial de Exército da sua vida passada. Tornou a calçar as luvas, como a se preparar para uma visita de cerimônia, levantou-se e passou da varanda para o quarto da Grussinskaia. A porta não se moveu, apenas a cortina ficou levemente enfunada; as tábuas do soalho também se conservaram caladas e acolhedoras. No quarto às escuras, tiquetaqueavam dois relógios, um quase duas vezes mais depressa do que o outro. Havia um cheiro forte de enterro e de forno crematório. Do anúncio luminoso do lado oposto caía um clarão triangular amarelado sobre o chão, até à borda do tapete. Gaigern tirou do bolso uma lanterna barata de forma cilíndrica, como essas que as cozinheiras usam, nas suas levianas rondas noturnas, e iluminou o quarto com cuidado. Graças ao seu curto diálogo com Suzette, à entrada do aposento, já conhecia a disposição dos móveis. Dispusera-se a descobrir todas as perfídias desse quarto, a procurar as pérolas em todos os esconderijos, a forçar fechaduras de malas, a arrombar portas de armários e a decifrar segredos de fechaduras. Mas, ao seguir o fio de luz oval da lâmpada de bolso e avistar a própria imagem triplicada no espelho, em sua frente, ficou agradavelmente surpreendido, com uma surpresa quase cômica.
Na mesinha do espelho estava pousada a suitcase, calma e desprotegida, e o filete de luz brincava inocentemente sobre o seu couro. "Vamos com calma!", pensou Gaigern, e isso significava uma ordem de comando, porque sentia a febre do caçador ferver dentro de sua cabeça. Primeiro enfiou no bolso a mão direita sangrando, como se fosse um objeto; tinha de conservá-la ali dentro, pois era preciso impedi-la de fazer qualquer travessura e de deixar vestígios. Colocou a lanterna na boca. Com a mão esquerda enluvada, pegou cuidadosamente a suitcase. De fato lá estava ela, podia apalpar com os dedos o seu couro de um brilho fosco. Ergueu a malinha, que não estava vazia. Apagou a lanterna, largou-a, e ficou pensando um momento. O quarto cheirava a enterro, um cheiro que fazia parar a respiração, um cheiro de avô morto e de solene panegírico de cerimônia fúnebre. Gaigern pôs-se a rir no escuro, quando compreendeu. "Louros!", pensou ele, fazendo suas as palavras de Suzette. "Madame recebe muitos louros, monsieur. O embaixador francês enviou-nos uma enorme cesta de louros." Ajoelhou-se diante do guarda-roupa — mas, dessa vez, as tábuas rangeram, maldosas e vivas — e com a mão esquerda agarrou a maleta no escuro. "Não, não", pensou ele, largando-a de novo. Essas coisas dão azar. Pastas, malas, carteiras de dinheiro são coisas nefastas; custam a queimar, flutuam nos rios em que são atiradas, são encontradas nas águas do esgoto pelos encarregados da limpeza dos canais, e acabam parando nas mesas dos tribunais, como desagradáveis corpos de delito. Além disso, uma suitcase pesando cerca de dois quilos não era nada cômoda de se carregar nos dentes, quando era preciso atravessar dois metros e meio de uma fachada lisa e escorregadia. Gaigern retirou a mão e pôs-se a refletir. Acendeu a lanterna e ficou olhando a fechadura dupla da maleta, absorto. Deus sabe que segredos a Grussinskaia teria para fechar o seu tesouro. Gaigern pegou as ferramentas e empurrou o disco redondo e metálico da fechadura.
A fechadura abriu.
A maleta não estava fechada a chave.
Gaigern assustou-se com o pequeno estalido, que não esperava em absoluto; ficou com uma cara de imbecil.
— Ora vejam, ótimo! — disse ele duas ou três vezes. — Ora vejam, ótimo! — levantou a tampa e apertou o botão do estojo de joias; de fato, lá estavam as pérolas da Grussinskaia. Afinal, não eram tantas assim, apenas um punhadinho de bolinhas cintilantes, caso se prestasse bem atenção; de modo algum correspondiam à lenda que haviam espalhado a respeito desse presente de um grão-duque assassinado, para enfeitar o pescoço de uma bailarina. Um lindo e antiquado sautoir, um colar de pérolas de tamanho médio, mas bem iguais, três anéis, um par de brincos de pérolas enormes, incrivelmente redondas; preguiçosamente pousadas no seu leitozinho de veludo, elas descansavam, enquanto a lanterna as fazia cintilar com um brilho amortecido. Com extrema precaução, Gaigern tirou-as do estojo com a mão esquerda enluvada e enfiou-as no bolso. Parecia-lhe sumamente ridículo encontrar as pérolas largadas em uma maleta aberta, e chegou a sentir uma espécie de desilusão ou indiferença, o cansaço de uma exagerada tensão que não teria sido necessária. Durante um instante ficou pensando se não seria melhor experimentar sair simplesmente do quarto, regressando ao seu aposento pelo corredor. "Talvez essas mulheres tenham deixado também a porta do quarto aberta", pensou ele, com o mesmo sorriso de incredulidade que punha a descoberto seus dentes superiores, dando ao seu rosto uma expressão tola e infantil, desde que avistara as pérolas.
Porém a porta estava fechada. No corredor ouvia-se, a espaços irregulares, o elevador subir e — clique — fechar a grade, porque o quarto 68 ficava defronte dele, em diagonal. Gaigern sentou-se por uns minutos em um fauteuil, no escuro, recuperando forças para o retorno. Sentia um enorme desejo de fumar, o que era impossível naquele momento, para não deixar vestígios de cheiro do cigarro. Tinha a precaução de um selvagem a guardar o seu tabu. Pensou em uma infinidade de coisas ao mesmo tempo, e, com mais lucidez, no armário de armas de seu pai. Na prateleira superior, ficavam sempre as grandes latas de tabaco herzegovino, e em dias alternados o velho Barão Gaigern colocava em cada lata uma fatia de cenoura. Gaigern sentiu por momentos o perfume adocicado e penetrante daquele tabaco, e retornou ao lar, descendo as escadas lustrosas de Ried, deixando-se ficar esquecido, durante um bom tempo, a recordar-se do tempo em que era ainda um voluntário de dezessete anos e fumava fechado em seu quarto. Sem usar de delicadezas, tratou de retornar ao seu empreendimento. — Atenção! — disse a si mesmo. — Nada de cochilos. Vamos! — Pôs-se a chamar-se por apelidos, dirigindo-se a si próprio com amizade e carinho, elogiando e xingando os membros de seu corpo.
— Seu porco — repreendeu o dedo cortado, que estava colando e sangrava; — seu porco, não pode me deixar em paz? — E dando palmadinhas nas coxas, como se acariciasse cavalos, elogiava-as: — Vocês são muito boazinhas, são animais valentes, bons animais. Atenção!
Afastou-se do aroma de louros do 68, meteu o nariz na varanda, farejando, e suas narinas aspiraram aquele indefinível odor de Berlim, em março, um cheiro de gasolina e de umidade de jardim zoológico. Enquanto se enfiava por entre as cortinas levemente enfunadas, pôde observar que as coisas não se apresentavam exatamente como deviam. Só após alguns segundos percebeu com clareza que batia agora em seu rosto e seu corpo uma claridade que há pouco não havia ali; viu os reflexos sedosos nas mangas do seu pijama, e insensivelmente voltou com toda a presteza para a escuridão do quarto, como um animal atingido por uma réstia de luz, que se esgueira, a farejar, na escuridão da mata. Estacou, ofegante e com os músculos tensos. Ouvia com extrema nitidez o tique-taque dos dois relógios, e em seguida, muito ao longe, e a distância, na enorme cidade, o relógio da torre de uma igreja bater onze horas. As paredes das casas do outro lado da rua ora se iluminavam, ora escureciam, pestanejando e fazendo prestidigitações.
— Que porcaria! — rosnou Gaigern, indo para a varanda, e mostrando-se impaciente desta vez, e muito senhor de si, como se estivesse em casa, no 68.
Os refletores haviam desaparecido. A nova instalação elétrica estava mais uma vez a fazer das suas; no salãozinho de festas, a Liga dos Filantropos estava no escuro, e no porão os eletricistas se esforçavam inutilmente por descobrir o que havia na instalação elétrica. Lá embaixo, na rua, um punhado de gente olhava divertida para a fachada do hotel, onde os quatro refletores se acendiam e se apagavam alternadamente. Um guarda acorrera. Os automóveis excitavam-se, porque o leito da rua não estava livre. O anúncio luminoso, do outro lado, cintilava graciosamente, derramando champanha em profusão no meio da noite, esforçando-se por iluminar a fachada do hotel e torná-la visível. Finalmente, dois homens de blusão azul saíram se arrastando de uma janela da sobreloja, sentaram-se sobre a coberta de vidro, que avançava do portal, e começaram a examinar a instalação que não funcionava. O caminho de volta, pelos sete metros da fachada do hotel, que agora criara vida, estava fechado. "Parabéns!", pensou Gaigern de novo, rindo com raiva. "Agora tenho que ficar aqui dentro. Agora tenho de arrombar a porta, se quiser sair daqui."
Foi buscar sua ferramenta e a lâmpada, experimentou com todo o cuidado desprender a fechadura, em redor do buraco da chave do 68, mas sem êxito. Um penteador ao lado da porta criou vida, caindo com um deslizar sedoso sobre o seu rosto, assustando-o horrivelmente. Ele sentiu as artérias do pescoço agitarem-se como máquinas. O corredor também despertara. Estava cheio de ruído de passos, de tosse, o elevador rangia, subia, descia, subia, descia. Uma camareira falou qualquer coisa, passou correndo, outra respondeu. Gaigern abandonou a fechadura enfeitiçada, e se esgueirou de novo para a varanda. Três metros abaixo dele os eletricistas cavalgavam a coberta de vidro, com fios na boca, muito admirados lá da rua. Gaigern fez uma das suas grandes brincadeiras. Inclinou-se sobre o parapeito e gritou:
— O que aconteceu com a luz?
— Curto-circuito — respondeu um eletricista.
— Quanto tempo vai demorar? — perguntou Gaigern.
Lá de baixo, encolheram os ombros. "Idiotas", pensou Gaigern, furioso. O modo fanfarrão e convencido desses dois sujeitos impertinentes, sobre a coberta de vidro, desgostava-o profundamente. "Em dez minutos eles vão desistir", pensou; olhou ainda um momento para baixo, e depois entrou de novo no quarto. De repente, teve a sensação de estar em perigo, mas isso durou apenas um segundo — e desapareceu. Ficou parado no meio do quarto, com suas meias de lã que não deixavam pegadas.
"Só não posso pensar em dormir", pensou ele. Para conservar-se desperto, tirou do bolso as pérolas, que estavam quentes pelo contato de seu corpo, e descalçou as luvas, porque sentiu desejos de apalpar aquela superfície lisa e preciosa. Seus dedos se deliciaram. Ao mesmo tempo lembrou-se de que o chofer não conseguiria apanhar o trem para Springe, e era preciso fazer outros planos. Estava saindo tudo diferente do que ele tinha planejado. As pérolas não estavam fechadas na maleta, não lhe haviam dado nenhum trabalho, e a pequena escalada tinha sido demasiada para isso. Em meio aos seus pensamentos, veio-lhe uma ideia que o fez sorrir. "Que espécie de mulher é essa?", pensou ele. "Que espécie de mulher é essa, que simplesmente deixa suas pérolas largadas no quarto?" Sacudiu a cabeça, admirado, e deu uma risada surda. Conhecia muitas mulheres; mulheres agradáveis, mas que não provocavam nenhuma admiração. Uma mulher que saía, deixando tudo o que possuía perto da porta da varanda, aberta, ao alcance de qualquer um, era para ele uma coisa fantástica. "Deve ser desleixada como um cigano", pensou. "Ou deve ter um grande coração." Apesar de tudo, sentia sono. Por entre a escuridão, encaminhou-se para a porta, levantou do chão o penteador que tinha caído e o cheirou com curiosidade. Um perfume desconhecido, sutil e acre, muito tênue, se desprendia dele, e não combinava com a mulher de tarlatana que aborrecera tantas vezes Gaigern nos espetáculos de balé. Aliás, ele desejava a essa Grussinskaia tudo de bom, não sentia antipatia por ela. Pendurou o penteador negligentemente, deixando dez levianas marcas digitais na seda, e se encaminhou lentamente para a varanda. Lá embaixo os dois morcegos azuis ainda batiam as asas em torno do seu curto-circuito. "Bom divertimento!", desejou Gaigern a si próprio — e conservou-se, até segunda ordem, de pé, entre o reposteiro e a cortina de renda, ereto e desperto como um soldado na guarita.
Kringelein olhava para o palco, por detrás das suas lunetas. Lá em cima passavam-se coisas muito estranhas, e com enorme rapidez. Ele gostaria de observar com mais atenção uma das moças, a moreninha da segunda fila, que sorria sempre, mas não era possível. Não havia intervalo no ballet da Grussinskaia, tudo cintilava e saltitava incessantemente, em enorme confusão. Por vezes as moças vinham em fila para os dois lados do palco, colocando as mãos, pendentes das articulações dos pulsos, sobre a fímbria dos saiotes, para ceder lugar à própria Grussinskaia.
Depois, ela veio se aproximando a voltejar, com o rosto e os braços de um branco de cera, sobre as pontas dos pés que se fincavam nas tábuas do palco com tanta firmeza e segurança como se estivesse sendo fixada ali, com uma chave de parafuso. Finalmente, desapareceu por completo o seu rosto, e ela se transformou em um pião branco com listras prateadas. Kringelein sentiu o estômago um pouco enjoado, antes mesmo que a dança terminasse.
— Magnífico! — disse ele, admirado. — Ótimo! Que agilidade ela tem nas pernas! É perfeita. É de se ficar mesmo extasiado! — Sentiu uma grata admiração, apesar de não estar passando muito bem.
— O senhor está gostando realmente? — perguntou o Dr. Otternschlag, aborrecido. Estava sentado no camarote, com a face metralhada virada para o palco, e o seu aspecto, aos reflexos amarelos da luz dos refletores vinda do palco, era de arrepiar. Realmente, era difícil a Kringelein responder a essa pergunta.
Para ele, desde o momento em que entrara no quarto 70, tudo no mundo parecia irreal. Tudo tinha sabor de sonho e de febre. Tudo se movimentava depressa demais, sem cessar, não chegando a satisfazê-lo completamente. Otternschlag, em vista de seus contínuos pedidos de conselho e de companhia, arrastara-o desde manhãzinha por todas as excursões costumeiras, um giro em redor da cidade de Berlim, museus, Potsdam e, no fim, a subida à torre da emissora, onde o vento soprava a três vozes, e donde se divisava Berlim estendida sob um lençol de névoa de fuligem, bordado de luzes. Kringelein não se admiraria nada se acaso despertasse e se encontrasse de novo, após uma pesada narcose, no leito do hospital. Sentia os pés gelados; tinha as mãos endurecidas pelo frio e o queixo rijo. Sua cabeça era um globo quente, dentro do qual haviam atirado coisas demais, e começava a sibilar e derreter-se.
— Está satisfeito agora? Sente-se feliz? Está contente com a vida? — perguntava Otternschlag de tempos em tempos. E Kringelein respondia, atento e obediente:
— Sim, senhor.
O teatro, nessa noite do quinto espetáculo da Grussinskaia, tinha pouca gente, estava praticamente vazio. A plateia, com raros espectadores, parecia carpida, como se tivesse sido comida pelas traças. Na primeira fila, a gente sentia frio e se envergonhava, no meio de tantas cadeiras vazias. Kringelein sentia frio e vergonha. Além da frisa do proscênio, que tinham comprado a conselho de Otternschlag — Kringelein desse momento em diante só queria ocupar os melhores lugares, no cinema bem atrás, no teatro bem na frente, e no ballet na primeira fila —, além da frisa deles, que custara quarenta marcos, só havia mais uma ocupada, a do empresário Meyerheim, que nessa noite economizara a claque, que não adiantava mais: o déficit já era bem grande. Antes do intervalo principal uns escassos aplausos. Pimenoff mandou subir depressa o pano e a Grussinskaia apareceu e sorriu: sorriu para uma plateia silenciosa, porque os fracos aplausos haviam morrido ao nascer, e já todos se dirigiam, apressados, para a saída que dava para o bufê. No semblante da Grussinskaia também parecia ter morrido alguma coisa, quando ela ficou no palco agradecendo aplausos que já haviam cessado. Por sob o suor e a pintura, sua pele enregelou. Witte pôs de lado a batuta e subiu correndo pela escadinha que levava ao palco. Estava preocupado com Elisavieta. Lá em cima, Pimenoff dava a impressão de estar assistindo a um enterro, os operários do palco roçavam armações de cenário nas costas do seu velho fraque, curvado e justo no corpo __todas as noites ele vestia para os espetáculos o seu fraque, como se o Grão-Duque Serguei ainda fosse chamá-lo à frisa. Michael, com uma pelezinha pintalgada, imitando pele de leopardo, sobre o ombro esquerdo, e as coxas nuas e empoadas, esperava ao lado do inspetor, em atitude humilde. Todos tremiam de medo, esperando um dos acessos de cólera da Grussinskaia; os joelhos, as mãos, os ombros e os dentes de todos eles tremiam realmente.
— Desculpe-me, madame — sussurrou Michael —, pardonnez-moi. O culpado fui eu. Eu a fiz irritar-se.
A Grussinskaia, que vinha se aproximando com o olhar absorto, arrastando atrás de si o velho casaco de lã, por entre a poeira e o ruído do palco onde estavam desmontando o cenário, parou ao lado dele e o olhou com uma doçura que assustou a todos.
— Você? Não, querido — disse ela em voz baixa, pois necessitava concentrar e fortificar a voz, que se debilitara com o cansaço e que ela ainda não recuperara após o esforço da última e dificílima dança. — Você foi muito bem. Está hoje em ótima forma. Eu também. Nós todos nos portamos muito bem...
Virou-se de repente e caminhou apressadamente para longe dali, levando consigo a frase inacabada, até a escuridão do fundo do palco. Witte não teve coragem de segui-la. A Grussinskaia sentou-se no degrau de uma escada de madeira pintada de dourado, largada lá atrás, no meio de um montão de trastes, e ali ficou, durante todo o tempo que durou a montagem do novo cenário. Primeiro colocou as mãos sobre a malha de seda cor de carne que cobria suas panturrilhas, amarrou mais uma vez, mecanicamente, os cordéis cruzados das sapatilhas e em seguida acariciou durante alguns minutos a perna fatigada, coberta de seda e levemente suja, distraída e com certa piedade, como se fosse um animal estranho. Depois tirou as mãos da perna e pousou-as no pescoço nu. Sentia uma enorme falta das pérolas. Para acalmar-se costumava passa-las pelos dedos, como um rosário. "Que mais? Que mais? Que querem vocês ainda?", pensou ela no seu íntimo. "Não posso dançar melhor do que dancei hoje. Nunca dancei tão bem como agora. Nem quando era jovem, nem em São Petersburgo, nem em Paris, nem na América. Naquele tempo eu era tola, e não me esforçava muito. Agora
— oh, agora eu trabalho realmente. Agora eu sei o que faço. Agora sei dançar. Que querem de mim? Mais ainda? Mais do que isso eu não tenho. Deverei dar de presente as pérolas? Devo doá-las? Pois que seja, Ah! Deixem-me em paz, vocês todos. Estou cansada."
— Michael — murmurou ela, ao ver esgueirar-se uma sombra que reconheceu por trás do pano de fundo descido.
— Madame? — perguntou Michael, com tato e timidez. Já tinha trocado de roupa, agora vestia um gibãozinho de veludo e trazia o arco e a flecha na mão, porque, após o intervalo, tinha de principiar a Dança do arqueiro.
— Não quer ir aprontar-se, Gru? — perguntou ele, esforçando-se o mais possível por não deixar transparecer na voz qualquer sentimento de piedade ao avistar a Grussinskaia, pequenina e aniquilada, encolhida no meio de todos aqueles trastes. As campainhas dos inspetores tocaram em oito pontos diferentes ao mesmo tempo.
— Michael, estou cansada — disse a Grussinskaia.
— Estou com vontade de ir para o hotel. A Lucille que dance o meu número. Ninguém se incomodará com isso. Para essa gente, tanto faz eu como qualquer outra dançar.
Michael levou tal susto, que todos os músculos de seu corpo se retesaram. A Grussinskaia, ali no seu degrau, tinha os olhos perto dos joelhos do moço, e viu que o músculo da sua coxa se arredondou, contraindo-se sob a pele. O movimento inconsciente desse corpo que ela conhecia tão bem consolou-a um pouco. Michael, pálido sob a pintura, disse:
— Nonsense!
O susto o fez tornar-se indelicado. A Grussinskaia pôs-se a sorrir docemente, estendeu um dedo e tocou a perna de Michael.
— Quantas vezes eu já lhe disse que você devia dançar de malha — replicou ela com estranha amabilidade, você nunca ficará bem agasalhado nem suficientemente flexível, sem a malha. Acredite em mim, seu revolucionário.
Deixou a mão, durante alguns segundos, pousada sobre a pele quente e empoada daquele moço de vinte anos, sob a qual os músculos se moviam. Não, sua carícia não encontrou nenhuma repercussão. As campainhas tocaram pela terceira vez; no palco, atrás do pano de fundo com seus pequenos templos pintados, as sapatilhas das bailarinas já se aparelhavam sobre o tablado. No corredor do camarim, a medrosa Suzette corria de um lado para outro como uma galinha assustada, porque madame se deixava ficar sentada num canto, em vez de ir trocar de roupa. Witte, que já estava embaixo, no seu púlpito, pegou na batuta com mão trêmula, e, com o olhar fixo, ficou à espera do sinal vermelho para começar a próxima dança, que já estava atrasada.
— Em que o senhor está pensando? — perguntou o Dr. Otternschlag, lá em cima, na frisa. Kringelein havia se lembrado ligeiramente de Fredersdorf, da mancha de sol que costumava cintilar nas tardes de verão na parede lateral de um verde sujo da escura tesouraria, mas voltou imediatamente e com agrado a Berlim, ao Teatro do Oeste, à profusão de dourados que datavam da fundação do teatro, e à frisa de veludo vermelho, que custara quarenta marcos.
— Está com saudades? — perguntou Otternschlag.
— Nem penso nisso — replicou Kringelein com non-chalance e absoluta frieza. Embaixo, Witte levantou sua batuta, e a música começou.
— Que porcaria de orquestra — disse Otternschlag, a quem o papel de amável mentor, nessa triste noite de espetáculo de bailado, causava engulhos. Mas dessa vez Kringelein não se deixou influenciar. Estava gostando da música. Mergulhou na música como no banho quente do hotel. Sentia no estômago uma sensação de peso e de frio, como se tivesse nas vísceras uma bola de metal. Isso era apenas o sintoma grave, dissera o médico. Nem causava dores; conservava-se sempre no desagradável estado em que se espera uma dor que não vem. Isso era tudo. E uma coisa tão insignificante provocava a morte. A música vinha chegando até ele e o consolava um pouco, com os planíssimos das flautas sobre os trêmulos das violas. Kringelein, esquecendo-se de suas mazelas, mergulhou no mundo dos sons e elevou-se nas asas da música a uma atmosfera azulada de luar, com um pequeno templo pintado numa costa marítima. Lá embaixo, o programa continuava. Michael apareceu com seu traje de arqueiro, de coxas brancas como farinha e um gibãozinho de veludo marrom; distendia seu corpo de efebo, a pular em disparada pelo palco, com saltos de peixe-voador; elevava-se com elasticidade e subia aos ares como se estivesse a saltar sobre cordas esticadas. Pelos seus gestos alegóricos, percebia-se que ele queria atirar em um pássaro, uma pomba que pertencia ao pequeno templo. Atirou sobre o palco um fogo de artifício de saltos e de piruetas, e finalmente saiu correndo atrás de sua flecha, que atirara em direção do bastidor da direita.
Aplausos. Pizzicato na orquestra. A Grussinskaia aparece em cena. Ofegante e apressadamente, vestiu afinal o traje de pomba ferida, com uma enorme gota de sangue cor de rubi a oscilar em seu corpete de seda branca. Está mortalmente cansada, mas sente-se muito leve, levíssima, e corre com tênues e tremulantes batidas de braços, imitando asas, na direção da sua comovedora morte. Esforça-se, três vezes seguidas, para elevar-se aos ares, mas não consegue mais voar. Por fim, seu delicado e longo pescoço tomba para a frente, ela pousa a cabeça sobre o joelho, e morre, pobre pomba ferida mortalmente. E sobre o enorme ferimento em seu coração, o eletricista envia um efeito de luz, com um disco azul.
Desce o pano. Aplausos. Bastantes aplausos mesmo, considerando-se que o teatro está vazio, e que há muito poucas mãos para fazerem ruído.
— Da capo? — pergunta a Grussinskaia, que continua tombada no centro do palco.
— Não — murmura-lhe Pimenoff com um sussurro alto, desesperado e agudo, lá dos bastidores.
Os aplausos pararam. Acabou-se. A Grussinskaia jaz ali durante alguns minutos, leve como uma pluma, morta na dança, e cheia da poeira do tablado nas mãos, nos braços e nas têmporas. Pela primeira vez em sua vida não houve um da capo depois dessa dança. "Não posso mais", pensou ela. "Não, já chega o que eu fiz, não posso mais."
— Intervalo para desmanchar o cenário! — grita o chefe dos maquinistas. A Grussinskaia não tem vontade de levantar-se, deseja ficar ali caída, no meio do tablado, e adormecer, afastando-se de tudo com o sono. Finalmente, Michael aproximou-se dela, levantou-a e a fez ficar de pé.
— Spassibo — ("obrigada"), diz ela em russo, e, endireitando o corpo, afasta-se, dirigindo-se ao camarim das senhoras. Michael encaminha-se para o primeiro bastidor à esquerda e prepara-se para o pas de deux.
A Grussinskaia esgueira-se até seu camarim e, com a ponta da sapatilha, abre a porta; lá dentro, cai sentada na cadeira, diante do espelho, e fica a olhar, de olhos estarrecidos, para a ponta de seda empoeirada e ligeiramente puída da sapatilha. Seus pés estão cansados, indescritivelmente cansados, pesados, fartos, fartíssimos de dançar. Sob a luz forte da lâmpada do espelho aproxima-se o rosto envelhecido e preocupado de Suzette, com um frufru do traje para o pas de deux.
— Deixe-me — murmurou a Grussinskaia em tom seco. — Estou me sentindo mal. Não posso. Deixe-me! Deixem-me, todos vocês!... Dê-me qualquer coisa para beber — acrescentou ainda; tinha vontade de dar um tapa no rosto perplexo e murcho de Suzette, porque de repente achou que ele tinha uma semelhança, difícil de definir, com sua própria fisionomia. — Fiche-moi la paix! — disse ela em tom imperioso.
Suzette sumiu. A Grussinskaia ainda ficou ali largada alguns minutos; depois arrancou dos pés, de repente, as sapatilhas de seda. "Basta!", pensou, "basta! basta!"
De malha, com o traje de pomba, a Grussinskaia resolveu fugir — uma estranha fuga. Arrancara apenas os sapatos de ballet, calçando outros, e jogara aos ombros o velho casaco; e assim, com a garganta repleta de angústia, saiu do teatro. Suzette, ao vir correndo da cantina com um copo de vinho do Porto, encontrou o camarim vazio e em silêncio. No espelho estava um bilhete: "Não posso mais. A Lucille que dance em meu lugar". Suzette saiu pelo palco a tropeçar; em seguida, todos no teatro ficaram tresloucados durante dez minutos, mas depois o pano subiu e o programa foi executado, como em todas as noites: com danças nacionais russas, pas de deux e Bacanal. Pimenoff e Witte dirigiram o espetáculo como dois velhos generais, cujo soberano desertara, necessitando ocultar a retirada, após a derrota.
Mas enquanto no palco o corpo de ballet agitava seus véus bacânticos de musselina, espargindo no tablado, à medida que dançava, quatrocentas rosas de papel, enquanto Michael executava saltos faunescos e Suzette, no escritório do teatro, mantinha conversações perplexas com o chofer inglês Berkley — enquanto se passava tudo isso —, a Grussinskaia, cega, desesperada, empreendia a sua fuga, a tropeçar pela Tauentzinstrasse.
Berlim estava clara, ruidosa e repleta de gente. Berlim olhava para ela com curiosidade e ironia, observando seu rosto desfigurado, meio inconsciente. Berlim era uma cidade cruel, e a Grussinskaia, atravessando a rua, já mais calma, amaldiçoou a cidade. Apossara-se dela um tremor convulsivo, apesar de nessa noite de março a atmosfera estar cheia de umidade tépida, e seu velho casaco de lã estar desprendendo vapor. A Grussinskaia proferia breves palavras, soltas, soluçantes, que ficavam entaladas na garganta, causando dor. Ela pensou que estava chorando, mas não estava. Seus olhos, sob as pálpebras azuis, pintadas para a cena, ficavam cada vez mais quentes, cada vez mais secos. "Nunca mais", pensou a Grussinskaia, "nunca mais. Nunca mais. Basta. Acabou-se. Nunca mais." Caminhava rapidamente, com passos vacilantes, como se esse pensamento a perseguisse, abandonada pelas Graças, sem domínio sobre o corpo, que inclinava a cada passo que ela dava. A luz branca de uma loja de flores se estendia diante de seus pés, e ela parou e ficou olhando. Grandes jarros com ramos de magnólias, cactos, vasos sinuosos onde cresciam orquídeas. Um consolo? Não, não lhe vinha o mínimo consolo da suave beleza das flores. Tinha as mãos frias, só então percebeu, e começou a procurar as luvas nos bolsos do velho casaco. Era um gesto completamente sem sentido, porque há oito anos que só usava esse casaco no palco, para proteger-se contra a corrente de ar que sopra em todos os teatros do mundo. Teve uma visão de gambiarras, de portas de ferro sob a luz de lâmpadas muito fracas, de um declive forte e escorregadio do tablado, diante de seus pés. "Nunca mais!", pensou ela, "nunca mais! nunca mais!" O casaco fora de moda era comprido e cobria seu traje de bailado, mas atrapalhava-lhe os passos. Levantou-o um pouco quando se afastou da vitrina das flores e tomou inconscientemente o caminho de ruas mais calmas. Na sua caminhada, viu um Buda no mostrador de outra vitrina, querendo apaziguar o mundo da Grussinskaia, que se esboroava. "Nunca mais vou dançar, nunca mais, nunca mais." Para consolar-se, lembrou-se de nomes, que saíam como soluços de sua garganta. — Serguei! — exclamou ela — Gabriel, Gaston! — chamava pelos nomes de seus poucos amantes, por Anastásia, sua filha, e finalmente por Pompon, o seu netinho de Paris, que nunca tinha visto. Mas continuou sozinha e ninguém a consolou. De repente, parou, assustada. "Mas que estou fazendo?", pensou ela. "Saí fugida do teatro? Não pode ser. Não é possível. Vou voltar." No relógio de uma igreja soaram onze badaladas, pausadas e nítidas, bem perto dali, apesar de não se avistar nenhum campanário. A Grussinskaia tirou as mãos dos bolsos do casaco e deixou-as caídas diante de si; havia algo da morte da pomba ferida nesse gesto. É tarde demais, diziam as mãos. O espetáculo devia estar quase terminando. Endireitou a cabeça de novo, e olhou a rua em que sua fuga a atirara. Não sabia onde estava. Um portalzinho tinha uma moldura com letras amarelas, e o letreiro dizia: Bar Russo. Atravessou a rua, parou na entrada do bar, limpou o nariz como uma criança e se pôs a pensar. "Bar Russo", pensou ela, "e se eu entrasse? Eles me reconheceriam. Os membros da orquestra, vestindo blusas vermelhas, tocariam a Valsa Grussinskaia. Que sensação!"
"Sensação nenhuma", pensou logo depois, morta de tristeza. "Não posso entrar. Que aspecto eu tenho agora? Talvez ninguém me reconheça mais. E se me reconhecerem — como eu estou agora —, tant pis."
Fez sinal para uma pequena e mísera carruagem de aluguel, e com repentina expressão de frieza e fixidez no rosto, mandou seguir para o hotel.
Gaigern continuava ereto como uma sentinela, entre a cortina e o store do quarto 68, à espera de que os homens de blusão azul terminassem seu trabalho. Mas eles não terminavam. Arrastavam-se de um lado para outro pelas cortinas das janelas do primeiro andar, tinham trazido fios e pequenas tenazes, e gritavam com enorme afã "oh" e "aha", mas os refletores continuavam apagados. Em compensação, toda a fachada do hotel estava iluminadíssima pelos arcos voltaicos, pelas luzes da entrada dos cinco portões e do anúncio contínuo, lá defronte, que ora anunciava uma marca de champanha, ora um chocolate especial. Aliás, devia fazer uns vinte minutos que Gaigern estava esperando, quando a porta do quarto 68 se abriu e a luz se acendeu, e a Grussinskaia apareceu com um aspecto completamente normal e de acordo com o hotel.
6
Do ponto de vista de Gaigern, isso era uma porcaria em toda a extensão da palavra, um negócio imundo. O susto atravessou-o como uma faca gelada, enterrando-se pelas suas costelas e pelo estômago. Com os diabos, que tinha essa mulher que fazer no hotel, às onze e vinte da noite? Onde se iria parar, quando não se podia mais ter certeza absoluta da duração de um espetáculo teatral? "Que azar", pensou Gaigern, rangendo os dentes. De azar, ele tinha medo. E todas essas malditas complicações davam mesmo a impressão de que ele se encontrava numa incômoda e azarenta armadilha. Os reflexos do lustre coavam-se pela cortina de rendas, atrás da qual ele se encontrava, estendendo na varanda a sombra do desenho contorcido. Gaigern ordenou a si próprio calma e bom humor. O colar de pérolas, em seu bolso, adquirira calor humano. As pérolas corriam entre seus dedos, como ervilhas. Durante um instante teve a impressão de que era completamente absurdo e sem sentido julgar que esse punhado de bolinhas redondas de madrepérola valia uma fortuna. Quatro meses à espreita, sete metros em perigo de vida — e quando este perigo passasse, viria um outro, uma sequência de perigos. Uma cadeia de perigos, era isso a sua vida. Um colar de pérolas — a vida da Grussinskaia. Gaigern, sorridente, sacudiu a cabeça em meio à situação complicada em que se encontrava. Não era um pensador. Costumava sorrir para a vida com esse sorriso admirado e divertido, quase maluco. Sorria para a vida, que era uma coisa que ele não compreendia. No entanto, controlou-se, voltou-se por trás da cortina de rendas, pondo-se de frente para o quarto, e ficou à espera.
A Grussinskaia, primeiro, ficou parada quase um minuto no meio do quarto, bem debaixo das taças de vidro do lustre, e seu rosto dava a impressão de que se tinha enganado de quarto. Esperou até que o casaco de lã caísse pelo próprio peso ao longo de seus braços pendentes, e em seguida, passando por cima dele, aproximou-se da mesinha do telefone. Passaram-se alguns minutos até que ela conseguisse ligação para o Teatro do Oeste, e mais alguns minutos até que Pimenoff viesse ao aparelho; mas ela estava de tal modo cansada que não lhe era possível sentir impaciência.
— Alô, Pimenoff? É, sou eu, Gru. Sim, estou no hotel. Desculpe-me, sim? É, de repente me senti mal. O coração, compreende? Fiquei sem respiração. Sim, exatamente como em Scheveningen. Não, agora estou melhor. Deixei você em apuros, eu sei. Como dançou a Lucille? Como? Ah, regularmente. E o público? Que é que você disse? Não, não fico nervosa, você pode dizer se houve escândalo. Não? Nenhum escândalo? Tudo calmo? Poucos aplausos? Você está pensando em outro programa? Bom, depois falaremos nisso. Não, vou me deitar. Não, por favor, não mande o médico, nem Witte. Não, não, não! Não quero que venha ninguém, nem a Suzette. Quero apenas sossego. Vocês me façam o favor de ir à Embaixada da França, e peçam desculpas por mim. Obrigada. Boa noite, querido! Boa noite, Pimenoff! Escute, Pimenoff: dê lembranças a Witte. Ao Michael também. É, lembranças a todos. Não, não se preocupe comigo. Amanhã estará tudo bem de novo. Boa noite!
Colocou o fone no gancho.
— Boa noite, querido — disse mais uma vez, com voz muito baixa, julgando-se completamente só, naquele quarto de hotel.
Tinha sido o coração; "ela se sentiu mal", pensou Gaigern, que seguira a muito custo, e com atenção, aquelas frases apressadas, ditas em francês. "É por isso que ela veio de repente para cá, na pior hora. Está com uma aparência miserável, mesmo. Paciência. Ela vai se deitar, e então espero poder despedir-me. É preciso não perder a calma." Encostou-se com cuidado ao parapeito da varanda, e olhou para baixo. Os dois idiotas azuis continuavam lá, a se consultar. Haviam pendurado duas bonitas lanternas e parecia que estavam preparados para trabalhar muitas horas extras, durante toda a noite. O desejo que Gaigern tinha de fumar começou a aumentar doentiamente. Abriu a boca num bocejo, que se encheu de fumaça úmida de gasolina. A Grussinskaia, dentro do quarto, aproximou-se nesse momento do espelho de três folhas, em cujo aparador estava a suitcase vazia... A caixa torácica de Gaigern pareceu querer estourar, tão fortes eram as batidas de seu coração — mas ela empurrou a maletinha de couro para um lado, sem olhar para ela, acendeu a lâmpada sobre o espelho central, e se agarrou com as duas mãos à moldura do espelho, aproximando-se tanto dele, que dava a impressão de querer atirar-se por ele abaixo. A atenção com que observou seu próprio rosto tinha algo de penetrante, de ávido, de cruel. "Que animais esquisitos são as mulheres", pensou Gaigern, atrás da sua cortina. "Animais estranhíssimos. O que é que ela está vendo no espelho, para estar com uma expressão de tanto horror?"
Ele estava vendo uma mulher bela, incontestavelmente bela, apesar da pintura que lhe escorria pelas faces. Seu pescoço, principalmente, refletido duas vezes pelos espelhos laterais, era de uma delicadeza e de um torneado sem par. A Grussinskaia, de olhos fixos em seu próprio rosto, parecia olhar o rosto de uma inimiga. Com pavor, ela enxergava os anos, as rugas, a pele frouxa, o esforço demasiado, o emurchecer; as fontes já começavam a deprimir-se, as comissuras dos lábios tombavam, as pálpebras, sob a pintura azul, estavam enrugadas como papel de seda. Enquanto se via no espelho, foi tomada de um novo tremor de frio, mais forte ainda do que o tremor que a assaltara na rua. Experimentou controlar os lábios, mas não conseguiu. Apressadamente, caminhou pelo quarto e foi apagar a luz fria do lustre, acendendo em seguida o abajur, mas isso não bastou para aquecer o ambiente. Com gestos impacientes arrancou do corpo seu traje de palco, atirou-o no chão, e com o busto nu e a malha até acima das coxas, aproximou-se do aparelho de aquecimento central e encostou o peito no encanamento pintado de cinzento. Fez isso quase irrefletidamente, procurando apenas calor. "Basta", pensou ela, "basta! Nunca mais. Acabou-se. Basta." Balbuciava em todas as línguas, por entre os dentes a bater de frio, palavras definitivas, irrevogáveis. Foi ao banheiro, despiu-se completamente e pôs as mãos debaixo da torneira de água quente, deixando o calor escorrer pelas veias de seus pulsos, até lhe causar dor. Apanhou uma escova e com ela esfregou os ombros; mas, de súbito, cheia de tédio, desistiu de tudo, veio para o quarto, nua e a tremer de frio, e pegou no telefone. Por duas vezes precisou começar, com seus lábios trêmulos, até conseguir falar.
— Chá — pediu ela. — Bastante chá. Bastante açúcar.
Aproximou-se de novo do espelho, nua como estava, e observou-se com severidade. Mas seu corpo era de uma beleza perfeita e única. Era o corpo de uma aluna de ballet de dezesseis anos, que o trabalho disciplinado e duro de uma vida inteira havia conservado intacto. De repente, o ódio que sentia por si própria transformou-se em ternura. Colocou as mãos nos ombros e acariciou seu brilho fosco. Beijou a curva do braço direito. Colocou os seios, pequeninos e perfeitos, nas palmas das mãos, como em duas taças, acariciou a depressão delicada do ventre e as sombras esguias das coxas. Inclinou a cabeça até os joelhos e beijou aqueles pobres joelhos, magros e duros como ferro, como se fossem uns filhinhos enfermos e muito queridos.
— Biednaiaia, malenkaia — murmurou ao mesmo tempo; era uma designação carinhosa dos tempos passados. Biednaiaia, malenkaia. Coitada, pequenina, era o que significavam essas palavras.
O rosto de Gaigern, por entre as cortinas, adquiriu inconscientemente uma expressão atenciosa e compassiva. O que se apresentava aos seus olhos deixava-o confuso. Ele conhecia muitas mulheres, mas nunca vira nenhuma com um corpo tão delicado e perfeito como esta. Mas isso, a bem dizer, era coisa de somenos importância. O que o enchia de suave e doce opressão, fazendo-o arder até as orelhas, era o desamparo, o tremor, a expressão desesperançada, confusa e lastimosa da Grussinskaia diante do espelho. Apesar de ser um sujeito que se desviara do bom caminho, e de ter no bolso pérolas roubadas no valor de quinhentos mil marcos, Gaigern estava muito longe de ser um homem desnaturado. Largou as pérolas que segurava e tirou as mãos dos bolsos. Sentiu passar pelas palmas das mãos, pelos braços, um ansioso desejo de erguer essa pequenina e solitária mulher, de levá-la dali, de consolá-la e aquecê-la, para fazer cessar aquele horrível tremor de frio e o murmúrio quase insensato que se desprendia de seus lábios.
O criado de quarto bateu na porta dupla, e a Grussinskaia pegou no seu penteador — o mesmo que havia assustado Gaigern na escuridão — e enfiou os pés nos míseros chinelos. O criado ofereceu o chá, discretamente, pela porta. A Grussinskaia fechou-a atrás do garçom, que se afastava. "Agora já está na hora", pensou ela. Encheu a xícara de chá, e foi buscar a caixinha de veronal. Engoliu um pozinho e bebeu o chá; depois tomou mais uma xícara. Levantou-se e começou a andar pelo quarto de um lado para outro, muito depressa, como se fugisse, de uma parede até a outra, quatro metros para lá, quatro para cá.
"Para que tudo isso?", pensava ela. "Para que viver? Que posso esperar ainda? Para que tantos tormentos? Oh, estou cansada, vocês não sabem como estou cansada. Prometi a mim mesma afastar-me do palco, quando chegasse o tempo. Tiens. Já é tempo. Devo esperar até que assobiem para mim da plateia?
"Já é tempo, malenkaia, coitada, pequenina. Gru não vai partir amanhã para Viena, Gru vai desistir. Gru vai dormir. Vocês não sabem como a gente sente frio, quando é célebre. Não há ninguém que me faça companhia, ninguém. Possibilitei a tanta gente um meio de vida, e nunca ninguém viveu para mim. Ninguém. Nem uma só pessoa. Só conheço pessoas vaidosas ou medrosas. Estive sempre sozinha. Oh, e quem vai se interessar por uma Grussinskaia que não dança mais? Acabou-se. Não ficarei passeando em Monte Cario, com o corpo rijo, gorda e velha como todas essas velhas célebres. Sozinha eu sempre vivi. Eles deviam ter-me visto no tempo em que o Grão-Duque Serguei ainda vivia! Não, essa vida não me serve. E para onde deverei ir? Cultivar orquídeas em Tremezzo, criar dois pavões brancos, ter preocupações de dinheiro, ficar completamente só, em completa decadência, e morrer? É isso: finalmente a morte. Nijínski está no hospício esperando a morte. Pobre Nijínski! Pobre Gru! Não quero esperar. Demora tanto... Depressa, depressa, depressa." Ela ficou parada, atenta, como se alguém a estivesse chamando. Em seus ouvidos já soava o sonolento zumbido do veronal, a indiferença que o agradável narcótico trazia. "Gaston!", pensou ela, dirigindo-se à mesa. "Pobre Gaston, você foi bom para mim, outrora. Como você era jovem! Há quanto tempo isso aconteceu! Agora você é ministro, barrigudo, com barba e careca. Adieu, Gaston! Adieu pour jamais, n'est-ce pas? Existe um meio tão fácil para não se ficar velha..." Encheu de novo a xícara de chá. Agora fazia um pouquinho de pose, representava uma pequena comédia, triste e doce. Havia forma e graça no seu desespero e na sua decisão. Com um movimento brusco, pegou o vidrinho de veronal e jogou todos os tabletes no chá, esperando até que se derretessem. Estava demorando muito. Impaciente, bateu com a colher na xícara. Levantou-se, aproximou-se de novo do espelho e passou mecanicamente pó de arroz no rosto, que de repente se cobrira de um suor fino e frio. Seus lábios deixaram de tremer e sorriram, um sorriso fixo, como no palco. Cobriu o rosto com as mãos e sussurrou:
— Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!
Ela também sentia agora o cheiro de enterro que subia das cestas de flores e pairava murcho no quarto. Foi-se arrastando lentamente até a mesa onde estava o chá, e o provou com a ponta da colher. Tinha um gosto muito amargo. Com a pinça pegou vários tabletes de açúcar e mergulhou-os no chá, esperando até que eles se dissolvessem. Devia ter durado um minuto, talvez mais. Os dois relógios apostavam corrida em meio ao silêncio.
A Grussinskaia levantou-se e foi à porta da varanda. Respirava com dificuldade. Tinha desejos de ver o céu. Afastou a cortina de renda e deu de encontro com uma sombra.
— Por favor, não se assuste, minha senhora — disse Gaigern, inclinando-se.
O primeiro movimento que a Grussinskaia fez não foi de susto, mas — estranho — de pudor. Fechou mais o quimono e olhou para Gaigern, atônita e calada. "O que é isso?", pensou ela. "Já vi coisa parecida?" Talvez sentisse até um certo alívio, porque ocorrera um adiamento entre ela e a xícara de veronal. Ficou parada diante de Gaigern quase um minuto, a olhá-lo e a observar suas sobrancelhas arqueadas e finas, que se juntavam na base do nariz. Os lábios da Grussinskaia continuavam tremendo e uma respiração cada vez mais rápida e ofegante se pôs entre ela e o moço.
Os dentes de Gaigern também pareciam querer bater uns nos outros, mas ele os conservou bem firmes. Nunca se encontrara em situação tão perigosa como nesse momento. Todos os seus empreendimentos, até então — haviam sido somente três ou quatro —, tinham sido muito bem preparados, e executados com tal cuidado que nunca caíra sobre ele a menor suspeita. Mas ali estava ele agora, com pérolas no valor de quinhentos mil marcos no bolso, apanhado num aposento alheio; entre ele e a penitenciária havia apenas a campainha branca do hotel, com o pequeno letreiro de esmalte, pedindo que batessem duas vezes para chamar o criado de quarto. Um ódio ardente, insensato, irrompeu dentro dele; Gaigern não o deixou explodir, mas concentrou-o em seu íntimo, até que se transformou em força e calma. Precisou de um grande esforço sobre si próprio para não derrubar essa mulher. Parecia uma enorme locomotiva sob nuvens de vapor, cheia de combustível, e com uma pressão de muitas atmosferas vibrando interiormente, e pronta a passar em disparada por cima de tudo. No momento, limitou-se a inclinar-se. Poderia ter tentado uma fuga desesperada pela fachada do hotel. Poderia ter matado a Grussinskaia, poderia tê-la feito calar-se, com ameaças. Fora o instinto da sua natureza amável que, em vez de violência e de um assassinato, o fizera inclinar-se numa curvatura irrefletida mas elegantíssima. Ignorava que suas olheiras estavam azuladas; muito vagamente, chegava a sentir prazer no perigo, uma sensação de embriaguez ou de queda infindável, como num sonho.
— Quem é o senhor? Como veio parar aqui? — perguntou a Grussinskaia em alemão. Seu tom de voz era quase cortês.
— Desculpe-me, minha senhora; entrei sorrateiramente no seu quarto. Eu estou... É horrível a senhora ter-me encontrado aqui. A senhora veio mais cedo para o hotel do que de costume. Foi um azar. Que desgraça! Não posso lhe explicar nada.
A Grussinskaia retrocedeu uns passos dentro do quarto, sem perdê-lo de vista, e girou o comutador do lustre, que se acendeu com sua luz fria. É possível que ela tivesse gritado por socorro, se encontrasse no terraço um homem desgrenhado e feio. Mas o homem que estava ali era o mais belo homem que ela vira em toda a sua vida — recordou-se sob o efeito do veronal —, e esse homem não lhe causava medo. O que a enchia estranhamente de confiança, antes de mais nada, era o bonito pijama de seda que Gaigern vestia.
— Mas o que o senhor veio fazer aqui? — perguntou ela, passando insensivelmente a falar francês, língua mais mundana.
— Nada. Queria apenas me sentar aqui. Só queria estar em seu quarto — disse Gaigern em voz baixa.
Encheu o peito de ar, dilatando a caixa torácica. Agora tratava-se de contar histórias a essa senhora — percebeu ele com leve esperança. As meias de ladrão por cima de seus sapatos o atrapalhavam. Com um movimento habilidoso, tirou-as dos pés às escondidas. A Grussinskaia meneou a cabeça.
— No meu quarto? Meu Deus... mas para quê? — perguntou ela com sua voz russa, de passarinho, aguda e frágil, e um ar de estranha expectativa refletiu-se em seu rosto.
Gaigern, que ainda se encontrava no balcão, respondeu:
— Vou dizer a verdade, minha senhora. Não é a primeira vez que entro no seu quarto. Estive aqui diversas vezes, muitas vezes mesmo, quando a senhora estava no teatro. Fiquei respirando este ar. Coloquei na jarra uma florzinha para a senhora. Perdoe-me.