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GRANDE HOTEL
GRANDE HOTEL

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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7

 

O chá com veronal esfriara. A Grussinskaia sorriu ligeiramente, mas quando o percebeu, parou de sorrir e perguntou com ar severo:

— Quem o deixou entrar? A criada de quarto? Ou a Suzette? Como conseguiu entrar?

Gaigern tentou um golpe arriscado. Apontou por sobre o ombro para a atmosfera noturna da rua.

— Por ali — disse ele. — Vim do balcão do meu quarto.

De novo a Grussinskaia teve a impressão de já ter passado por aventura semelhante. De repente, veio-lhe a recordação. Num dos castelinhos de veraneio, no sul, em Abas-Tuman, aonde o Grão-Duque Serguei costumava levá-la, escondera-se certa noite em seu quarto um homem, um oficial bem jovem ainda. Arriscara a vida nessa tentativa; mais tarde ele veio de fato a falecer num acidente de caça pouco esclarecido. Isso tinha acontecido pelo menos há trinta anos. Enquanto a Grussinskaia ia para o balcão e olhava na direção em que a mão de Gaigern apontava, de repente o passado se apresentou de novo com toda a clareza. Ela via o rosto do jovem oficial. Chamava-se Pavel Jerilinkov. Lembrou-se de seus olhos e de alguns beijos. Estava enregelada, e sentiu que o homem ao lado dela no balcãozinho irradiava calor. Olhou rapidamente para os sete metros da fachada do hotel, que ficavam entre o balcão do seu quarto e o do quarto vizinho.

— Mas isso é perigoso — observou ela inadvertidamente, recordando-se mais de Jerilinkov do que pensando no momento presente.

— Não é tanto assim — replicou Gaigern.

— Está fazendo frio. Feche a porta — disse a Grussinskaia, passando depressa diante dele e entrando de novo no quarto. Gaigern obedeceu, e foi caminhando atrás dela; fechou a porta, puxou as duas cortinas, e depois ficou com as mãos pendentes: não passava de um jovem belíssimo, modesto mas um pouco amalucado, que fazia garotices românticas, para entrar no quarto de uma bailarina célebre. Afinal de contas, ele também possuía um pouco de talento para ator, o que era uma exigência da sua profissão. E agora representava, por uma questão de vida ou de morte. A Grussinskaia curvou-se, levantou o traje de ballet que atirara no chão, e o levou para o banheiro. A gota de sangue, de contas vermelhas de vidro lapidado, cintilou. Ela sentiu uma dor cortante e aguda. Nenhum da capo. Nenhum escândalo, quando uma outra dançava. Um público cruel. Berlim era cruel. Solidão cruel. Ela já havia sobrepujado um pouquinho essa dor — e agora a dor a acometia de novo, causando-lhe uma angústia no peito. Durante alguns segundos esqueceu-se por completo do intruso, que se parecia com o falecido Jerilinkov, mas de repente virou-se para ele e perguntou, sem olhá-lo:

— Por que fez isso? Por que faz coisas perigosas? Por que está escondido no meu quarto? Deseja alguma coisa de mim?

Gaigern fez uma investida e preparou-se para o ataque. — "Hop-là, avante!", pensou Gaigern. Não ergueu os olhos para ela.

— A senhora já sabe a razão, é porque a amo — respondeu em voz baixa.

Disse isso em francês, porque se o dissesse em alemão teria sido extremamente penoso. Depois ficou esperando em silêncio pelo resultado. "É simplesmente idiota", pensou ao mesmo tempo. Essa comédia lhe causava uma vergonha atroz, humilhante. Tinha horror de tudo o que feria o bom gosto. De qualquer modo, se ela não chamasse pelo camareiro, talvez ele estivesse salvo.

A Grussinskaia engoliu essas breves palavras francesas com a boca bem aberta. Absorveu-as como um remédio; dentro de poucos segundos até o tremor de frio cessou. Pobre Grussinskaia! Há muitos anos que ninguém lhe dizia coisa semelhante. Sua vida corria diante dela como um trem expresso vazio. Ensaios, trabalho, contratos, carros-dormitórios, quartos de hotel, excitação no palco, uma excitação cruel, e mais trabalho e mais ensaios. Sucesso, fracasso, críticas, entrevistas, recepções oficiais, discussões com empresários. Três horas de exercícios de solista, quatro horas de ensaios de ballet, quatro horas de espetáculo; os dias se seguiam um ao outro sempre iguais. O velho Pimenoff. O velho Witte. A velha Suzette. A não ser essas pessoas, mais ninguém, nenhum calor, nunca, nunca. Colocava as mãos nos canos de aquecimento central dos hotéis, e pronto. E depois, quando estava tudo terminado, quando o fim de tudo e da vida estava iminente, encontrava-se um homem à noite no quarto, e esse homem pronunciava palavras há muito desaparecidas, de que outrora

o mundo estivera repleto. A Grussinskaia não suportava mais. Sentia um sofrimento atroz, como se estivesse prestes a dar à luz. Mas foram apenas duas lágrimas que finalmente brotaram da tensão dessa noite, e ela as sentiu em seu corpo inteiro, nos artelhos e nas pontas dos dedos das mãos, depois no coração, e por fim elas chegaram aos seus olhos; rolaram pelas longas e rígidas pestanas pretas de pintura, caindo nas palmas abertas de suas mãos.

Gaigern assistiu à evolução desse fenômeno, e encheu-se de calor. "Pobre animalzinho", pensou ele. "Pobre bichinha. Está chorando, agora. Que coisa idiota!"

Depois que a Grussinskaia deu à luz essas duas lágrimas dolorosas, a coisa se tornou mais fácil. Começou com um leve aguaceiro, ao mesmo tempo cálido e fresco como uma chuva de verão — Gaigern pôs-se a pensar nos canteiros de hortênsias do jardim de Ried, sem saber por quê. Depois, esse aguaceiro se transformou numa torrente apaixonada, uma torrente negra, porque a pintura das sobrancelhas se dissolveu por completo. E, por fim, a Grussinskaia atirou-se ao leito, soluçando um tropel de palavras russas nas mãos em concha, que conservava encostadas à boca. Gaigern, ao assistir a essa cena, transformou-se. De ladrão de hotel, prestes a tirar a vida de uma mulher, passou a ser simplesmente um homem, um sujeito grandão, simples e bondoso, que não podia ver uma mulher chorar sem querer auxiliá-la. Agora não sentia mais medo, absolutamente nenhum; agora, o que o fazia sentir o coração pequeno e palpitante era a simples compaixão. Inclinou-se sobre o leito, pondo os braços dos dois lados do pequenino corpo a soluçar, e assim, curvado sobre a Grussinskaia, principiou a sussurrar em meio aos seus soluços. Não era nada de especial o que ele dizia; com as mesmas palavras teria consolado uma criança a chorar, ou um cão enfermo.

— Coitadinha — foi mais ou menos o que ele disse —, pobrezinha, pobrezinha da Grussinskaia, ela está chorando. Faz bem chorar assim, faz? Pois então chore, pode chorar. Que foi que lhe fizeram? Foram maus para você? Você gosta que eu esteja ao seu lado? Posso ficar aqui? Está com medo? É por isso que está chorando, é? Você... bobinha!

Levantou um dos braços que apoiara ao leito, tirou da boca da Grussinskaia as mãos que ela apertava de encontro aos lábios e beijou-as; estavam molhadas de lágrimas e pretas como as de uma menininha; seu rosto também estava todo lambuzado das lágrimas negras caídas dos seus olhos pintados. Gaigern não pôde deixar de rir. Apesar de continuar a chorar, a Grussinskaia viu o movimento bondoso, próprio dos homens fortes, o movimento de ombros que fazem quando riem. Gaigern afastara-se do leito e tinha ido ao banheiro. Voltou com uma esponja e enxugou com muito cuidado o rosto da bailarina; tinha trazido também um lenço. A Grussinskaia tinha parado de chorar, e conservou-se deitada tranqüilamente, enquanto ele lhe limpava o rosto. Gaigern sentou-se à beira da cama e sorriu para ela.

— E então? — perguntou ele.

A Grussinskaia murmurou qualquer coisa que ele não compreendeu.

— Fale em alemão — pediu Gaigern.

— Você... criatura... — sussurrou a Grussinskaia.

Essas palavras o comoveram. Chocaram-se de encontro ao seu coração como uma bolinha de tênis atirada com força, e quase o magoaram. As damas com as quais ele tinha relações não costumavam usar palavras carinhosas. Para elas, a gente se chamava coisinha, menininho, queridinho, ou "o barão grandão". Gaigern percebeu o sentimento contido nesse apelo, que despertou em seu íntimo recordações da infância, vindas de uma esfera que ele abandonara. Afastou-o de si. "Se ao menos eu tivesse um cigarro", pensou ele, cheio de languidez. A Grussinskaia tinha olhado para ele um momento, com um olhar que exprimia confusão e quase felicidade. Depois ela se sentou, estendeu seus longos artelhos à procura dos chinelos que haviam caído e de repente se transformou em uma senhora.

— Ora essa! — disse ela. — Que sentimentalismo! A Grussinskaia está chorando? Como? É uma coisa que vale a pena ver. Há muito tempo, há anos que ela não chorava. Monsieur me assustou. Monsieur é o culpado por esta triste cena.

Falava na terceira pessoa, queria criar distância, retirar o repentino "você", mas esse homem já estava muito próximo dela, para que o pudesse chamar de "senhor". Gaigern nada pôde responder.

— É horrível como o teatro ataca os nervos — continuou ela em alemão, com a impressão de que ele não a tinha compreendido. —- Disciplina! Isso sim, disciplina nós temos. A disciplina é um coisa penosa e difícil. Disciplina é fazer sempre o que não se deseja, como posso explicar... o que a gente não gosta de fazer. Você sabe o que significa ficar exausto por excesso de disciplina?

— Eu? Eu não. Faço sempre o que quero — disse Gaigern.

A Grussinskaia ergueu a mão, com um gesto em que todas as Graças haviam retornado.

— Sim, monsieur. Sente-se vontade de entrar no quarto de uma senhora... e entra-se. Sente-se vontade de pular varandas, com risco de vida... e faz-se o que se quer. E qual é o desejo de monsieur, agora?

— Eu gostaria de fumar — respondeu Gaigern francamente. A Grussinskaia esperava outra resposta, e achou que o pedido era cavalheiresco e gentil. Foi até a escrivaninha e ofereceu a Gaigern sua pequena cigarreira. Com o quimono chinês, já muito usado, mas legítimo, e os chinelos acalcanhados, tinha a mesma aparência de há vinte anos, quando viajava por todos os continentes, cheia de uma graciosidade cristalina e tilintante. Parecia ter-se esquecido de seus olhos avermelhados, e de seu aspecto lamentável.

— Pois então fumemos o cachimbo da paz — disse ela, erguendo para Gaigern as pálpebras amarfanhadas. — E depois faremos a nossa despedida!

Gaigern tragou avidamente a fumaça pelo nariz e pelo pulmão. Sentiu-se aliviado, apesar de sua situação ser ainda delicada. Não podia abandonar esse quarto com as pérolas no bolso, quanto a isso não havia dúvidas. Se conservasse as pérolas, agora que conhecia a bailarina, teria que fugir nessa mesma noite, e no dia seguinte pela manhã a polícia o estaria perseguindo. Isso não fazia absolutamente parte dos seus planos. Agora tratava-se de ficar ali a qualquer preço, até que as pérolas pudessem retornar ao seu estojo. A Grussinskaia sentara-se diante do espelho e empoava o rosto, com expressão séria. Esfregou alguns riscos e pontinhos da pele e ficou novamente linda. Gaigern aproximou-se dela, pondo-se, com seu grande vulto entre a suitcase vazia e a mulher. Fitando seus ombros, ele dirigiu-lhe um sorriso tentador, doce como mel.

— Por que esse sorriso? — perguntou ela ao espelho.

— Porque vejo no espelho uma coisa que você não pode ver — disse Gaigern.

Dizia simplesmente: "você". O cigarro lhe tinha dado coragem, e ele se animou. "Avante", pensou ele, encorajando-se.

— Estou vendo de novo o que estava vendo há pouco, lá do balcão — disse ele inclinando-se sobre a mulher —, estou vendo no espelho uma mulher belíssima, como nunca vi outra igual. Essa mulher está triste. E está nua... Ela é... não, não posso dizê-lo, isso me faz ficar louco. Não sabia que era tão perigoso espiar em um quarto alheio uma mulher que se despe.

E, realmente, enquanto Gaigern formava no seu francês convencional essas frases galantes, via a imagem da Grussinskaia no espelho, como há pouco, e sentia ao vê-la a mesma admiração e o mesmo calor que sentira no balcão. A Grussinskaia ouviu-o atenta e com expressão inquiridora. "Como me tornei fria", pensou com tristeza, percebendo que não estremecia ao ouvir aquelas palavras entusiásticas. Sentia a intensa vergonha das mulheres frias. Voltou-se para Gaigern com um movimento elegante e calculado do longo pescoço. Gaigern segurou os pequenos ombros da mulher com suas mãos quentes e hábeis, e em seguida beijou-a no lindo sulco entre as omoplatas, como um conhecedor.

Esse beijo, principiado com frieza entre dois corpos estranhos, prolongou-se. Mergulhou como uma agulhazinha quente na espinha dorsal da mulher, cujo coração começou a palpitar com força. Seu sangue correu mais pesado e doce; sim, esse coração que já esfriara agora palpitava, e começou a vibrar; seus olhos se fecharam; ela tremia. Gaigern tremia também, quando a largou e endireitou o corpo; uma veia intumesceu, muito azul, na sua testa. De repente sentiu a Grussinskaia dentro dele. inteirinha, sua pele, seu perfume acre, seu estremecimento ansioso de prazer, que fora despertando aos poucos. "Com os diabos!", pensou ele de repente. Suas mãos estavam cheias de avidez, e ele as estendeu.

— Eu acho que o senhor deve retirar-se agora — disse a Grussinskaia com voz fraca, à imagem do moço no espelho. — A chave está na porta.

Sim, lá estava a malfadada chave; agora era possível retirar-se quando quisesse. Mas Gaigern não desejava retirar-se — por várias razões.

— Não — disse ele, com súbito sentimento de dominador, como o macho de uma pequenina mulher, trêmula como um violino a vibrar. — Não vou embora. Você sabe que não vou. Você pensa realmente que vou deixá-la agora aqui sozinha? Que vou abandoná-la ao lado de uma xícara de chá cheia de veronal? Você pensa que eu ignoro o que se passa com você? Eu vou ficar aqui. Está dito.

— Está dito? Está dito? Mas eu quero ficar sozinha....

Gaigern aproximou-se rapidamente da Grussinskaia, que estava de pé no meio do quarto, e puxou até seu peito os pulsos da bailarina.

— Não — disse ele com veemência. — Isso não é verdade. Você não quer ficar sozinha. Você tem um medo pavoroso de ficar sozinha, percebo perfeitamente o medo que você sente. Sei o que você está sentindo, eu a conheço, pequerrucha, mulher estranha. Você está representando uma pequena comédia para me enganar. O seu cenário é de vidro, eu vejo através dele. Há pouco você estava desesperada. Peça para eu ficar com você, peça!

Pôs-se a sacudir as mãos dela. Segurou-a pelos ombros e sacudiu-a. Pela dor que sentiu, ela pôde perceber a excitação do moço; Jerilinkov havia implorado, lembrou-se ela; este ordenava. Fraca e aliviada, ela deixou cair a cabeça sobre o peito coberto pelo pijama de seda azul.

— Sim, fique mais um minuto — murmurou ela. Gaigern, a olhar por cima de seus cabelos, respirava ofegante, soltando o ar por entre os dentes cerrados. Sua tensão de medo começou a se distender; um turbilhão de imagens desfilou rapidamente, cinematograficamente, diante dele; a Grussinskaia, morta em seu leito, com uma dose violenta de veronal no sangue, ele a fugir pelos telhados, investigações na casa de Springe, penitenciária — ele não fazia a menor ideia do aspecto de uma penitenciária, no entanto enxergava tudo perfeitamente, e também viu sua mãe, morrendo de novo, apesar de já estar morta há muito tempo. Quando voltou ao quarto 68, o medo e o perigo já vencidos transformaram-se de repente em embriaguez. Tomou nos braços o corpo leve da Grussinskaia, levou-o até a cama, onde a deitou como uma criança.

— Venha, venha, venha — murmurou ele de encontro às fontes da mulher, com uma voz subitamente grave e profunda.

A Grussinskaia há muito tempo não sentia o próprio corpo, e agora estava sentindo-o. Durante muitos anos não fora mulher, e agora sentia-se mulher. Um céu negro e sonoro começou a girar sobre ela, e ela se atirou nele com ímpeto. Um gemido brando de passarinho, expelido por uma boca entreaberta, transportou Gaigern, de uma fingida paixão, a profundidades de prazer que ele desconhecia. A xícara de chá, na mesa do hotel, estremecia de leve todas as vezes que passava algum automóvel. Primeiramente, a luz branca do lustre se refletiu no líquido envenenado; depois, apenas o vermelho da lâmpada de cabeceira, depois apenas a luz cambiante do anúncio móvel que penetrava pelas cortinas. Dois relógios apostavam corrida; o elevador rangia no corredor; a torre longínqua da igreja badalou uma hora, por entre as buzinas noturnas dos automóveis — e dez minutos mais tarde já cintilavam novamente os refletores, na fachada do Grande Hotel.

— Você está dormindo?

— Não!

— Está bem acomodado?

— Estou.

— Agora você está de olhos abertos. Sinto suas pestanas no meu braço, quando você abre e fecha os olhos. Que engraçado! Um homem tão grande, com pestanas de criança. Diga-me, você está satisfeito?

— Nunca me senti tão feliz como agora.

— Que é que você disse?

— Nunca me senti tão feliz com uma mulher como agora.

— Repita isso de novo, repita!

— Nunca me senti tão feliz — murmurou Gaigern de encontro à carne fresca e branca do braço em que sua cabeça repousava. Ele estava dizendo a verdade. Sentia-se indescritivelmente repousado e agradecido. Nunca sentira coisa semelhante em suas aventuras de amor barato; essa embriaguez sem ressaibos, esse repouso trêmulo após o amplexo, essa profunda confiança do próprio corpo em outro corpo. Seus membros repousavam, distendidos e satisfeitos, ao lado dos membros da mulher; havia profunda compreensão mútua entre a pele dela e a sua. Sentia qualquer coisa que não tinha nome, nem mesmo o nome de amor: um retorno, após prolongada ausência. Ele ainda era jovem, mas nos braços da Grussinskaia, já perto da velhice, sob a ação de suas carícias amorosas, suaves, conscientes e delicadas, tornava-se mais jovem ainda.

— Que pena... — murmura de encontro ao braço da mulher; levanta um pouco a cabeça, e a pousa no ninho da axila da companheira, um pequenino e cálido lar, com aroma de mãe e de prado.

— Pelo seu perfume eu a encontraria em qualquer parte do mundo, de olhos vendados — diz ele, farejando como um cãozinho. — Que perfume é esse?

— Deixe disso, e diga-me: pena por quê? Você... Deixe esse perfume... tem o nome de uma florzinha que cresce nas campinas: Neuwjada. Não sei como se chama em alemão. Tomilho? É feito em Paris para mim. Diga, pena por quê?

— Pena que se comece sempre com a mulher errada. Que se continue idiota durante uma infinidade de noites, pensando que é assim que se goza, que o prazer é essa coisa corrupta, e depois fria e desagradável como um estômago enjoado. E é pena que a primeira mulher com quem dormi não tivesse sido como você.

— Deixe disso... menino mimado — murmura a Grussinskaia, pousando os lábios nos cabelos dele, naquela peliça dura, espessa e quente, cheirando a macho e a cigarro, sempre bem penteada e alisada, e agora completamente em desordem. Ele roça com as pontas dos dedos, a respirar docemente, o flanco da sua companheira.

— Sabe? Você é tão leve! Levíssima! Um pouco de espuma numa taça de champanha — diz ele com carinho e admiração.

— Pois é. É preciso ser leve — responde a Grussinskaia.

— Estou com vontade de vê-la, agora. Posso acender a luz?

— Não, não! — exclama ela afastando dele o ombro. Ele percebe que a assustou, que assustou essa mulher, cuja idade ninguém sabe com certeza. Sente novamente uma compaixão simples e espontânea. Vai escorregando o corpo para junto dela, e por fim os dois ficam em silêncio, pensando. A luz da rua paira no forro, como um reflexo, estreito e agudo como uma espada, penetrando no quarto pela abertura das cortinas. Quando passa lá embaixo um automóvel uma sombra se espalha rápida no reflexo do forro.

"As pérolas", pensa Gaigern, "para o diabo. Se eu tiver sorte e tudo correr bem, posso metê-las de novo no estojo, quando ela dormir. Vai haver um escândalo com o meu pessoal, se eu for me encontrar com eles sem as pérolas. Contanto que o chofer não faça alguma loucura, contanto que esse animal não tome hoje de noite uma bebedeira de raiva e me estrague tudo... Que azar! Só Deus sabe onde é que vamos arranjar dinheiro, agora. Talvez seja possível sangrar esse herdeiro de província, que geme durante a noite no quarto ao lado, no -70. Ora! Que diabo! Não adianta ficar pensando nisso. Talvez eu possa simplesmente lhe pedir as pérolas. Talvez amanhã eu lhe conte simplesmente do que se trata. Se eu souber fazer as coisas direitinho, não será ela quem me mandará prender amanhã, não fará isso, essa pequerrucha leve e maluca. Deixar as pérolas rolando, numa maleta aberta! Que mulher engraçada, agora eu a conheço. Nem se importa com pérolas! Para ela, nada tem importância, tudo é indiferente. Se eu não tivesse aparecido, ela já não precisaria mais se incomodar com as joias. Para que ainda precisa de pérolas? Deve me fazer presente das pérolas, ela é tão boa... Ah, como é boa! Parece uma mãe, uma minúscula mamãezinha, com quem a gente pode dormir."

A Grussinskaia pensa: "Às onze horas o trem parte para Praga. Contanto que esteja tudo em ordem! Hoje eu abandonei tudo, e amanhã nada estará em ordem. Pimenoff é muito mole para lidar com a troupe; as meninas o levam pela ponta do nariz. Mas quem perder o trem amanhã será despedido, com certeza. Se Pimenoff esta noite não se preocupou com os cenários, amanhã eles não estarão empacotados; os empregados do palco deveriam ter trabalhado horas extras à noite. Mas as coisas que eu não faço ficam sempre por fazer. E as contas a acertar com Meyerheim? Meu Deus, como é possível que eu tenha abandonado tudo? Witte, se a gente não presta atenção nele, esquece até a própria cabeça no hotel. Preciso sempre pensar por todos, e esta noite não estive lá. Vai haver uma débâcle horrorosa. A Lucille há muito tempo que tem vontade de se revoltar. Para vocês nunca são suficientemente grandes as letras dos seus nomes nos cartazes, não é verdade? Sua propaganda nunca é bem feita. Mas vocês, sozinhos, não fazem nada, é preciso fazê-los trabalhar com o knut, para que vocês se conservem em forma. Vocês me fizeram ficar má, convencida e cansada. Meu Deus, como eu estava cansada ontem... Faltou muito pouco para vocês verem se são capazes de alguma coisa sem a Grussinskaia. Mas agora não me sinto cansada, agora poderia me levantar e dançar todo o programa, ou mesmo um outro programa, um bailado novo. Preciso falar com Pimenoff, ele precisa criar um novo bailado: a dança do medo. Oh, essa dança eu poderia dançar agora para vocês. Primeiro num lugar só, apenas um tremor, e depois três círculos nas pontas, ou mesmo sem ser nas pontas, talvez uma coisa completamente diferente.

''Mas estou viva", pensa ela, abalada, "estou viva, e vou criar novos bailados, vou ter sucesso. Uma mulher que é amada tem sempre sucesso. Vocês me fizeram passar fome desde... há mais de dez anos, foi isso. É estranho que um bobinho que pulou o balcão para vir aqui possa dar à gente tanta energia! Um rapaz simpático, que do amor só conhece o jargon das mocinhas..."

Ela puxa o cobertor e cobre Gaigern, como se ele fosse uma criancinha. Ele sussurra, agradecido, faz-se pequenino e fraco, e enfia o nariz na carne dela. Seus corpos já se conhecem, mas seus pensamentos se distanciam para lados distintos, dentro da noite. Em todos os leitos do mundo, os amantes ficam deitados muito unidos, mas tão separados!...

É a mulher quem primeiro procura adivinhar o que se passa na outra alma. Toma a cabeça do homem nas mãos, como se fosse um fruto grande e pesado colhido ao sol, e murmura em seu ouvido:

— Eu ainda não sei como você se chama, meu amigo.

— Costumam chamar-me de Felix. Meu nome todo é: Felix Amadei Benvenuto, Barão von Gaigern. Mas você precisa me dar um novo nome, precisa me batizar também. Quero ter um nome dado por você.

A Grussinskaia pensa um pouco, depois dá uma risadinha.

— Sua mãe devia ter esperado muita coisa de você, quando você nasceu, para lhe dar nomes tão bonitos — disse ela. — O venturoso. O amado de Deus. O bem-vindo. Você chorou ao ser batizado?

— Não me lembro muito bem.

— Ah! Sabe? Eu também tenho uma filha. Que idade você tem, Benvenuto?

— Hoje, tenho dezessete anos, de novo. Estou pela primeira vez com uma mulher. Mas minha idade comum é trinta anos.

Aumentou um pouco a idade, por estranha delicadeza para com a mulher que sente medo da luz elétrica e da própria idade. Apesar disso, ela se sente magoada. "Ele poderia ser o pai do meu neto Pompon, de oito anos", pensa a Grussinskaia sem querer. "Passons!", ordena a si mesma.

— Como era você em criança? Muito bonito? Ah, é claro, era muito bonito.

— Simplesmente encantador. Cheio de sardas, de galos e arranhões, e muitas vezes cheio de piolhos também. Tínhamos ciganos para tratar dos nossos cavalos; isso é muito comum na fronteira, onde ficava a nossa propriedade. Os meninos ciganos eram meus amigos. Eles me passavam toda espécie de bichos e de sarna. Quando me lembro da minha infância, sinto sempre um cheiro de estéreo de cavalo. Depois me tornei durante alguns anos o terror de vários companheiros de seminário. Por fim estive por pouco tempo na guerra. Da guerra eu gostei. Na guerra eu me senti em casa. Por mim, tudo podia ter sido muito pior do que foi. Se houver guerra de novo, tudo estará bem para mim, novamente.

— Agora as coisas não vão bem para você, seu condottiere? Que vida você leva? Que espécie de indivíduo é você?

— E você? Que espécie de mulher é? Nunca conheci nenhuma como você. Em geral as mulheres não têm muitos segredos. Mas a você tenho curiosidade de conhecer, preciso perguntar-lhe muitas coisas. Você é muito diferente das outras.

— Sou apenas antiquada. Sou de um outro mundo", de um século diferente do seu, é apenas isso — disse a Grussinskaia com voz sonhadora. Ao mesmo tempo sorriu nas trevas, e lágrimas ardentes lhe vieram aos olhos. — Educaram-nos como soldadinhos, a nós, bailarinas, com severidade, com pulso de ferro, no Instituto de Ballet Imperial de São Petersburgo. Pequenos regimentos de recrutas para o leito dos grão-duques, é o que nós éramos. Dizem que, nas meninas que aos quinze anos começavam a engordar, colocavam argolas de aço em volta dos seios, para que eles não crescessem mais. Eu era pequena e magra, mas dura como um diamante. Orgulhosa, sabe; tinha o orgulho no sangue, como pimenta e sal. Uma máquina do dever, trabalhando, trabalhando, trabalhando. Sem descanso, sem tempo para descansar, nunca! E depois: quem se torna célebre fica completamente só. Com o sucesso, a gente se sente gelada e solitária como no pólo norte. Sabe o que significa ter sempre sucesso, durante três, cinco, dez, vinte anos, sempre, sempre? Mas o que é que eu lhe estou contando? Você está me compreendendo? Ouça: muitas vezes a gente passa por uma estação de estrada de ferro, ou à noite passa de automóvel por uma pequena cidade. As famílias estão sentadas diante das portas, todos muito rígidos, com cara de idiota, com as manoplas pousadas no colo, e ninguém se move. É isso, veja, é isso! É isso o que nós desejamos: sentirmo-nos fatigados, e ficar simplesmente sentados, com as mãos imóveis, pousadas no colo. Mas se você for uma pessoa célebre, procure desaparecer do mundo, descanse, deixe que as outras bailarinas dancem, essas alemãs feias e com luxações nos músculos, essas negras, toda essa gente que não sabe nada; deixe que elas dancem, descanse! Veja, Benvenuto, isso não é possível, é absolutamente impossível. Odeia-se o trabalho, amaldiçoa-se o trabalho, mas não se pode existir sem o trabalho. Três dias de descanso, e vem o medo: vou perder a forma, estou ficando pesada, minha técnica está indo embora. É preciso dançar, como uma loucura, nem a morfina e a cocaína, nenhum vício no mundo é tão venenoso como o trabalho e o sucesso, acredite-me. É preciso dançar, somos obrigados a dançar. E isso também é importante. Se eu parar de dançar, não existe mais ninguém no mundo que saiba realmente dançar, acredite-me. Todas as outras são diletantes; mas é preciso que haja alguém que saiba dançar, que saiba o que significa a dança, em meio a um realismo histérico, horrível! Eu aprendi com as antigas celebridades; com a Kocressínskaia, com a Trefilovna, e elas, por sua vez, aprenderam com os grandes do bailado, há quarenta, há sessenta anos. Às vezes tenho a impressão de que tenho de dançar contra o mundo inteiro, contra o brado de "atualidade!" De um lado, estão vocês, um teatro repleto de ganhadores da vida e homens-máquinas, participantes da guerra e acionistas... e do outro, estou eu. Uma pobre e pequenina Grussinskaia, velha, não é verdade? Tão sentimental, tão antiquada, com os seus passos já conhecidos há duzentos anos. E, no entanto, eu os atraio ainda, e vocês choram, riem, desesperam-se e extasiam-se; e tudo por quê? Por causa desse balezinho fora da moda? Será tão importante, isso? Certamente, porque só tem sucesso mundial aquilo que tem importância para o mundo, aquilo de que o mundo precisa. Mas, ao lado disso, tudo se despedaça, dentro de nós nada mais resta. Nem marido, nem filhos, nenhum sentimento, nenhum conteúdo. Deixamos de ser indivíduos humanos como os outros, compreende? Não somos mulheres, somos apenas uma migalha esgotada de responsabilidade, que perambula pelo mundo. No dia em que termina o sucesso, no dia em que perdemos a crença de que somos indispensáveis, a vida acaba para nós. Você está me ouvindo? Está me compreendendo? Gostaria tanto que você me compreendesse — disse a Grussinskaia, em tom implorante.

— Não compreendi tudo... mas quase tudo. Você fala francês muito depressa — respondeu Gaigern.

Durante os meses em que ficou à espreita, atrás das pérolas, ele frequentou inúmeras vezes os espetáculos de ballet da Grussinskaia, aborrecendo-se sempre, em geral. Ficou profundamente admirado ao saber que a Grussinskaia, conforme parecia, arrastava consigo, como um martírio, os rodopios do ballet. Ela está colada com tanta leveza às coxas de Gaigern, tem uma vozinha delicada, com um gorjeio colorido e modulado e fala coisas tão sérias!... Que se pode responder a isso? Ele suspira. Fica pensando.

— Foi muito bonito o que você disse das pessoas à noite, com as mãos imóveis. Você devia dançar isso — declarou ele finalmente, confuso.

A Grussinskaia contentou-se em rir.

— Dançar isso? Mas não se pode dançar uma coisa assim, monsieur. A não ser que me queiram ver no papel de uma velha com um pano na cabeça, com gota nos dedos, dura como um pau, apenas repousando...

Cortou a frase no meio. Enquanto falava, seu corpo já tinha se apossado da imagem, contraindo-se e enrijecendo. Ela já estava vendo o cenário, conhecia um jovem pintor amalucado, em Paris, que poderia pintar uma coisa assim; já via o bailado, já o sentia nas mãos e na nuca curvada. Ficou calada, com a boca entreaberta, na escuridão. Nem respirava, tal a excitação que sentia. O quarto se encheu de personagens que ela nunca dançara, e que poderiam ser dançadas, de centenas de vultos reais e viventes. Uma mendiga a tremer, estendendo os braços, uma velha campônia dançando mais uma vez no casamento da filha... Diante de um balcão de feira encontrava-se uma mulher magra, apresentando umas míseras prestidigitações, uma prostituta esperava por homens sob uma lanterna. Uma menininha, que havia quebrado uma chave e levava uma surra; uma criança de quinze anos, que era forçada a dançar nua diante de um homem imponente, enorme e cintilante, um senhor, um grão-duque, e também a espinhosa paródia de uma governanta; uma mulher que corria como se a estivessem perseguindo, apesar de não ser esse o caso; uma outra que queria dormir e não podia; uma que tinha medo de espelho; e ainda uma outra que bebia veneno e morria.

— Fique quieto... não diga nada... não se mexa — sussurrou a Grussinskaia olhando para o forro, em que se via a espada luminosa. O aposento adquirira o aspecto estranho e misterioso que os quartos de hotel às vezes gostam de apresentar. Lá embaixo os automóveis lançavam fumaça pelo escapamento, buzinavam, parecendo animais, porque a Liga dos Filantropos terminara a sua festa, e começava a saída pelo portão 2. A noite esfriou. Do turbilhão das ideias e dos rostos, a Grussinskaia voltou ao quarto com um leve arrepio. "Pimenoff vai pensar que eu estou louca, ele, com seus baileis de borboletas. Quem sabe se estou louca mesmo?" Da sua divagação de um minuto, havia retornado ao leito, como se voltasse de uma longa viagem. Gaigern ainda continuava deitado. Ela quase se assustou ao encontrar de novo o homem encostado ao seu ombro, com seus cabelos, suas mãos e sua respiração.

— Que espécie de homem é você? — perguntou ela mais uma vez, nas trevas, com o rosto bem sobre o dele. Ela sentia intimamente, nesse instante, o espanto de se encontrar tão próxima de uma coisa tão estranha e diferente dela. — Ontem eu ainda não o conhecia. Quem é você? — perguntou ela de encontro à cálida umidade da boca do homem.

Gaigern, que já estava quase adormecendo, deixou os dois braços tombarem sobre as costas da mulher, e ela teve a impressão de ser a esguia cadela galga de sua casa, a Biche.

— Eu? Não há muita coisa a contar — respondeu ele, obediente, mas sem abrir os olhos. — Sou um filho pródigo. Sou uma ovelha negra de um bom curral. Sou um mauvais sujet, e vou acabar na forca.

— É verdade? — perguntou ela, dando uma risadinha arrulhante.

— É verdade — disse Gaigern, convencido. Começara a cantarolar como uma ladainha, e por brincadeira, aquelas velhas frases e advertências dos professores do seminário; mas, ao perfume cálido de tomilho daquela cama, veio-lhe o desejo de confessar-se e de ser sincero.

— Sou um devasso — continuou ele a falar na escuridão. — Não tenho caráter, e sou de uma curiosidade incrível. Não consigo me adaptar a nada, sou um sujeito inútil. Em casa aprendi a montar e a ser o senhor. No seminário aprendi a rezar e a mentir. Na guerra, a atirar e a procurar pôr-me a salvo. Mais do que isso não sei fazer. Sou um cigano, um marginal, um aventureiro.

— Ah, você... E o que mais?

— Sou um jogador, e não me importo de fazer trapaças. Também já roubei. A bem dizer, eu devia estar é na prisão. Mas ando por aí, e me sinto às mil maravilhas, e faço tudo o que me dá na veneta fazer. Às vezes me embebedo também. E, além do mais, sou preguiçoso de nascença.

— Continue — murmurou a Grussinskaia, encantada. Sua garganta estava vibrando, de tanto conter o riso.

— Pois bem, sou um criminoso. Um homem que escala muros de fachadas — disse Gaigern, sonolento —, um assaltante.

— E que mais ainda? Talvez um assassino, também?

— Isso mesmo. É claro. Um assassino também. Estive a ponto de matá-la — afirmou ele.

A Grussinskaia ainda se riu, um pouco inclinada sobre o rosto de Gaigern, que ela sentia, apesar de não o ver, mas de repente ficou muito séria. Cruzou as mãos por detrás do pescoço dele e murmurou em surdina ao seu ouvido:

— Se você não tivesse vindo ontem, eu não estaria viva agora!

"Ontem?", pensou Gaigern. "Agora?" A noite no 68 parecia ter durado uma eternidade, devia ter sido há alguns anos que ele estivera no balcão e enxergara a mulher no quarto. Levou um susto. Apertou-a em seus braços com força, como um lutador de luta livre: os músculos flexíveis da bailarina resistiram — ele o sentiu com estranho prazer.

— Você nunca mais deve fazer uma coisa dessas.

Você tem de ficar aqui. Não a deixarei ir-se embora mais. Preciso de você — afirmou.

E ficou a ouvir a própria voz, ao pronunciar tão curiosas palavras, com uma voz diferente, rouca, que parecia provir do fundo palpitante de seu coração.

— Não, agora tudo mudou. Agora está tudo bem. Agora você está comigo — murmurou a Grussinskaia; mas Gaigern não a compreendeu, porque ela falou em russo.

Ele sorveu a entonação da sua voz, e a noite começou de novo a rumorejar. Pássaros de sonho saíram das trepadeiras da tapeçaria que forrava as paredes do hotel... O homem se esqueceu das pérolas no bolso do seu pijama azul e a mulher se esqueceu do insucesso e dos veronais na xícara de chá.

Nenhum dos dois se atreve a pronunciar esta palavra caduca: "amor". Juntos, deslizam no confuso turbilhão da noite de amor, passando dos abraços aos murmúrios, dos sussurros a um breve sono e aos sonhos, e dos sonhos a um novo abraço: duas pessoas vindas de dois pontos opostos do mundo, para encontrar-se por algumas horas no leito do quarto 68, onde tanta gente já dormiu...


8

 

Na vida da Grussinskaia o amor não havia representado um papel importante. Tudo o que o corpo e a alma possuíam de paixão fluía para a dança. Tinha tido alguns amantes, porque isso fazia parte da vida de uma bailarina célebre, assim como as pérolas, o automóvel, os vestidos das boas casas de moda de Paris e de Viena. Rodeada de admiradores, requisitada e perseguida por apaixonados, não acreditava apesar de tudo na existência do amor. Ele não lhe parecia mais real do que os cenários pintados, os templos de amor e as sebes de roseiras diante dos quais seus bailados eram executados. Apesar de permanecer fria e de não conseguir entusiasmar-se, passava por uma amante maravilhosa, única. Por seu lado, praticava o amor como um dever da sua profissão, como uma peça de teatro, por vezes agradável, mas sempre exaustiva, requerendo uma arte requintada. Toda a flexibilidade do seu corpo, seu flutuar etéreo, a sutilidade, o requinte, a delicadeza e a suavidade, o impulso e o arrojo, a emoção e a debilidade, todos os impecáveis requisitos da sua dança, ela levava consigo para os amigos com quem passava as noites. Sabia embriagar de prazer, mas não se embriagava a si mesma. Na dança, era capaz de enlouquecer, de esquecer-se de si própria, e por vezes seus partners ouviam-na soltar gritinhos abafados, como um passarinho, durante as posições mais difíceis e movimentadas. No amor, porém, nunca perdia a consciência de si mesma, estava sempre se observando. Era estranho: não acreditava no amor — e no entanto não podia viver sem amor.

Porque o amor — ela o sabia — era uma parte do sucesso. Enquanto fora jovem, e seu camarim transbordava de flores e de cartas, enquanto em todo o seu percurso os homens se postavam, prontos a arruinar-se, a fazer por ela qualquer espécie de loucura, a abandonar a fortuna e a família, ela sentia que o sucesso a bafejava. Nas confissões de amor, nas ameaças de suicídio, nas perseguições por toda parte, pelo valor dos presentes que recebia dos conquistadores podia-se perceber o sucesso, do mesmo modo que nos aplausos, nas críticas e no número de chamadas ao proscênio. Ela não o sabia, mas o amante que a encantava e lhe causava prazer era, a bem dizer, um público perante o qual ela tinha sucesso. E pela primeira vez percebeu, horrorizada, que o sucesso diminuía, quando Gaston a abandonou, para casar-se com uma moça sem muitos dotes, mas de boa família. A atmosfera que a rodeara durante anos esfriou e se tornou sombria, uma atmosfera noturna, incompreensível. Era uma escadaria que ia descendo por centenas de degrauzinhos, tão pequenos que quase não a deixavam aperceber-se dela. E, no entanto, era vastíssimo o caminho que conduzia aquela Grussinskaia de antes da guerra, que dançara para um mundo cheio de romantismo e de êxtase, à atual Grussinskaia, que mendigava um pouco de aplauso de um punhado de pessoas céticas, indiferentes e maldosas. O seu fim, como última consequência, era a completa solidão, e uma dose forte de veronal.

Por essa razão, o homem do balcão significava para a Grussinskaia mais do que um simples homem. Era um milagre que acontecia no último instante no 68, para salvá-la; era o sucesso evidente que a procurava; o mundo que penetrava cheio de ardor em seu quarto; era a prova de que os tempos românticos ainda não haviam passado, os tempos em que um jovem Jerilinkov se deixava matar com um tiro por ela. Ela se deixara cair, mas encontrara alguém que a erguia do solo.

Havia no programa da Grussinskaia um bailado em que a morte dançava um pas de deux com o amor; os poetas que lhe escreviam, por vezes, enviavam-lhe versos em que voltava sempre o banal pensamento de que a morte e o amor eram irmãos. Nessa noite, a Grussinskaia comprovava em si própria a verdade desse lugar-comum. A vertigem dolorosa da noite passada transformou-se em embriaguez, num torvelinho de gratidão, num anseio febril de receber e de dar, de sentir e conservar. Os anos gelados se derretiam. O vergonhoso segredo da sua frieza, que escondera durante toda a vida, desfazia-se, deixava de existir. Há tantos anos se sentia de tal modo pobre e solitária, que às vezes mendigava à pele jovem e cálida do seu partner, Michael, uma esmola de calor. Nessa noite, nesse quarto indiferente de hotel, nessa cama comum de metal brilhante, ela se sentia arder, transformava-se, descobria o amor, que não acreditava que existisse.

Os quartos 68 e 69 eram tão parecidos que, ao despertar, Gaigern não sabia muito bem onde se encontrava. Quis virar-se para a parede do seu quarto, mas encontrou o vulto pequenino da Grussinskaia, que dormia e respirava docemente. Recordou-se. A maravilhosa e profunda confiança do primeiro sono dormido junto repousava em seus membros como um peso suave. Retirou seu braço, que adormecera debaixo do pescoço da mulher, e com leve e ' solene comoção rememorou os acontecimentos dessa noite. Não havia dúvida — estava apaixonado, e além disso, de um modo completamente novo e grato. Sem que as pérolas influíssem no seu sentimento, não podia deixar de pensar, envergonhado: somos uns porcos. Não era a história gorada das pérolas que influía no seu sentimento. Sobe-se a um quarto alheio: inventa-se uma comédia atroz, representa-se — e a mulher acredita em tudo. Faz questão de acreditar. Os homens representam e as mulheres acreditam neles. A bem dizer, no começo a gente é sempre um embusteiro e um assaltante; mas em seguida, a mentira transforma-se em verdade. "Eu gosto muito de você, pequenina Mouna, querida e boa Neuwjada, eu te amo, je t’aime, je t'aime. Você fez uma bela conquista, mulherzinha, você..."

Fazia frio no quarto; lá fora já devia estar amanhecendo; a rua estava silenciosa, uma réstia de luz crepuscular penetrava por entre as cortinas, e o desenho da tapeçaria das paredes começava a esgueirar-se pela madrugada. Gaigern levantou-se com o maior cuidado. A Grussinskaia dormia profundamente, com o queixo enterrado no próprio ombro. Agora, que passara o tumulto da noite, as duas cápsulas de veronal pareciam estar fazendo efeito. Gaigern tomou-lhe a mão, que pendia para fora do leito, repousou na sua palma as pálpebras quentes, e depois enfiou aquela mãozinha frouxa sob o cobertor, como se a Grussinskaia fosse um bebezinho. Foi caminhando com cuidado, na meia escuridão do quarto, até o balcão, e abriu lentamente as cortinas. A Grussinskaia não despertou. "Agora tenho que pôr em ordem o negócio das pérolas", pensou Gaigern. Admirou-se de sentir-se satisfeito com a solução. "Um round perdido", pensou ele sem se aborrecer. Gostava de usar essas expressões de esporte, em seus empreendimentos aventureiros. Tateou à procura do pijama, e sorriu ao encontrar as diversas partes do seu vestuário atiradas por todo o quarto; em seguida entrou no banheiro. Ao contato da água, o ferimento da sua mão direita começou a arder e a sangrar; lambeu-o com indiferença e não se importou mais com isso. O aroma acre e murcho de louros, no aposento, acentuara-se. Gaigern, desejoso de respirar ar fresco, foi ao balcão e aspirou profundamente; seu peito ainda estava repleto de uma doce e desconhecida angústia.

Lá fora paira, sobre a rua que desperta, uma neblina fria que o vento leva. Nem automóveis nem gente. A distância, ouve-se o sibilar de um bonde a correr nos trilhos. Não surgiu ainda o sol, mas há uma luz leitosa e igual. Uns passos martelados, na esquina, e novamente o silêncio. Um pedaço de papel flutua como um passarinho enfermo sobre o asfalto, e depois pousa no chão. A árvore plantada não muito longe do portão 2 balouça os galhos sonhadores. Um sonolento passarinho de março, bem lá em cima, pousado na haste delicada de um botão, experimenta a voz no tumulto da grande cidade. Um caminhão cheio de caixas com garrafas de leite segue aos solavancos, muito cheio de si; a neblina que desliza cheira a maresia e a gasolina; a grade do balcão tem um brilho úmido. Gaigern encontra suas meias de larápio no balcão, e enfia-as depressa no bolso, junto das luvas, da lanterna de bolso e das pérolas de quinhentos mil marcos, de que ainda precisa se livrar. Torna a entrar no quarto, deixando as cortinas abertas; a luz pálida cai em triângulo no tapete, estendendo-se até o leito em que dorme a Grussinskaia.

Agora ela está estendida de costas, com a cabeça tombada de lado, dando a impressão de que a cama é grande demais para o seu corpo delicado e pequenino. Gaigern, para quem a maioria das camas de hotel são curtas, achou graça e sentiu-se comovido. Teve um súbito pensamento, uma ideia carinhosa. Foi buscar a xícara de veronal na mesinha e também os tubinhos de vidro vazios, e dirigiu-se com eles ao banheiro. Com os cuidados de uma ama, lavou a xícara, depois de esvaziá-la, e secou-a com um lenço. Ao encontrar o roupão de banho da Grussinskaia, com um gesto infantil, beijou-o na manga. Não havendo lugar para colocar os vidrinhos, guardou-os no bolso, junto das pérolas. A Grussinskaia suspirou dormindo, quando ele se aproximou de novo da cama. Inclinou-se sobre ela, franzindo a testa, mas ela continuou a dormir. Já clareara um pouco. Agora ele podia ver bem de perto, e com clareza, o rosto dela. Os cabelos caíam para trás, muito lisos, deixando descobertas as fontes reentrantes, estreitas e sombreadas. Por baixo dos olhos fechados evidenciava-se a idade, em dois sulcos profundos. Gaigern o percebeu, porém sem desgosto. A boca era linda, acima do queixo delicado, mas já murcho. Um pouco do pó de arroz pálido ainda ficara em sua testa, perto da franjinha. Gaigern lembrou-se, divertido, de que durante a noite ela tirara de baixo do travesseiro um estojinho de pó de arroz, antes de permitir-lhe que acendesse a lâmpada. "Agora eu a estou vendo bem", pensou ele com o sentimento primitivo de triunfo de um assaltante de mulheres. Começou a observar o rosto da mulher, como se fosse uma paisagem desconhecida, em que se passeia à procura de aventuras. Observou duas misteriosas riscas simétricas que partiam das fontes, ao longo das orelhas, indo até a garganta, uma linhazinha mais clara do que o resto da pele. Passou o dedo com cuidado sobre a linha; era uma delicada cicatriz que rodeava seu rosto, como a fímbria de uma máscara. De repente, Gaigern compreendeu do que se tratava. Eram as cicatrizes da vaidade, cortes na pele para esticá-la e rejuvenescer — ele já lera qualquer coisa a esse respeito. Sorrindo, sacudiu a cabeça, com um ar de incredulidade. Sem querer, apalpou suas próprias têmporas, que eram bem lisas, e vibravam com batidas fortes e saudáveis.

Encostou com a maior delicadeza o seu rosto no da Grussinskaia, como se pudesse assim transmitir um pouco do seu ser para a companheira. Admirou-se ao perceber quanto a amava nesse momento, com um amor terno e compassivo. Teve a impressão de estar sendo um sujeito limpo e correto, ligeiramente ridículo, sem dúvida, nos sentimentos que dedicava à pobre mulher, cujos segredos ele tinha descoberto.

Afastou-se da cama e ficou por uns minutos diante do espelho, com a testa enrugada, a boca ligeiramente aberta, mergulhado em pensamentos. Estava pensando se não seria possível, apesar de tudo, ficar com as pérolas. Não, não era possível. Por enquanto, ele continuava a ser o Barão von Gaigern, um homem um tanto leviano, que convivia com uma gente ordinária. Com dívidas, sim, mas ainda digno de confiança. Se saísse do quarto com as pérolas, então a polícia seria avisada dentro de poucos minutos e sua existência de cavalheiro estaria terminada. Seria um criminoso perseguido pela polícia, como qualquer outro. Isso não lhe convinha, em absoluto. Não fazia parte do seu programa ter-se tornado o amante da Grussinskaia, mas era um fato consumado, e modificava todo o resto. Pesou as chances, como teria pesado as chances de um pugilista ou de um tenista. Empreendimentos como esse das pérolas eram o seu esporte e, desta vez, o jogo lhe estava sendo desfavorável. Não era possível roubar essas pérolas; na situação atual, só poderia recebê-las de presente, caso tivesse paciência. "E preciso esperar", pensou Gaigern, suspirando profundamente. Suas reflexões eram objetivas e realistas, mas ele não queria admitir que no fundo havia ainda outra coisa por trás disso tudo. Não queria ter a consciência do próprio ridículo, e detestava sentimentalismos. Olhou para o espelho e fez uma careta para si próprio. "Em resumo", pensou aborrecido, "não é do meu feitio roubar o adereço de pérolas de uma mulher com quem dormi. Agora não tenho a mínima vontade de fazer tal coisa. Eu sofreria com isso — e acabou-se!

"Neuwjada", pensou ele com súbito carinho, olhando para a cama; "bondosa Mouna, eu preferia poder oferecer-lhe algum presente, muitos presentes, uma coisa bonita e valiosa, alguma coisa que lhe causasse prazer, pobrezinha." Puxou de dentro do bolso o colar de pérolas, com precaução e sem ruído. Já não gostava mais delas. Talvez até fossem falsas, apesar de todas as lendas dos jornais; talvez nem fossem tão valiosas como a propaganda dizia. De qualquer modo, ele se separava agora delas com a maior facilidade.

Quando a Grussinskaia procurou despertar, sua cabeça estava envolta no sono como em espessos véus. "É o veronal", pensou, continuando com os olhos fechados. Nos últimos tempos ela tinha medo de despertar, tinha medo do choque que sentia ao defrontar-se com os aborrecimentos da vida. Tinha a vaga sensação de que nessa manhã alguma coisa boa e agradável a esperava, mas não descobriu logo do que se tratava. Lambeu os lábios, pensando encontrar neles o gosto sonolento e seco da noite. Movimentou os dedos das mãos, como um cão a mover-se em sonhos. Seu corpo estava cansado, exausto, mas satisfeito, como após um enorme sucesso, após uma noite com muitos da capo, em que é preciso esgotar completamente as forças. Sentiu sobre as pálpebras fechadas a claridade matutina, e por um instante pensou que estava em Tremezzo com os reflexos da superfície do lago, em seu quarto de dormir cinzento-rosado. Decidiu abrir os olhos.

Primeiro, viu sobre os joelhos um cobertor que não conhecia, da altura de uma montanha; depois, a tapeçaria das paredes do hotel, com o desenho de frutas tropicais vermelhas, pendentes de frágeis hastes, um desenho que dava a impressão de observá-la fixamente, com um olhar febril e absorto.

Nessas tapeçarias das paredes dos hotéis colava-se todo o tédio da sua vida sem parada. O canto perto da escrivaninha estava sombrio; ali, a cortina estava fechada e não podia saber as horas. A porta do balcão estava aberta e deixava entrar uma brisa fresca. Ao lado da mesa do espelho, virada para a claridade da varanda, a Grussinskaia, ainda sonolenta, percebeu a silhueta larga e escura de um homem. Estava de costas, com as pernas meio abertas, firme e imóvel, com a cabeça inclinada, observando qualquer coisa que ela não podia ver. "Sonhei com alguma coisa parecida há pouco", pensou primeiro, ainda meio apalermada de sono, sem se assustar. "Já aconteceu coisa parecida na minha vida", pensou em seguida. "Jerilinkov", pensou finalmente. De repente, seu coração disparou como um motor, ela acordou totalmente, e lembrou de tudo.

Respirou com a boca fechada, sem ruído, mas profundamente, e com o ar que aspirou ocorreu-lhe a lembrança de tudo o que se passara durante a noite. Retirou um braço de baixo do cobertor, sentindo-o muito leve, com vontade de voar. Tateou, à procura do estojinho de pó de arroz, e, dirigindo um olhar sério ao minúsculo espelho redondo, começou a se arrumar. O delicado perfume do pó de arroz lhe causou prazer; sua imagem agradou-lhe. Sentia amor por si própria, como há muitos anos não sentia. Segurou seus pequeninos seios, como costumava fazer, mas nessa manhã isso lhe causou um prazer especial. Gostou de sentir a própria pele, lisa, fresca e satisfeita. "Benvenuto", disse em pensamento; e em russo "Chelani". Mas como só pronunciou esse nome para si mesma, o homem não pôde ouvi-la. Lá estava ele, de pernas abertas, com seus belos ombros, como um dos carrascos de Signorelli — descobriu a Grussinskaia, encantada —, ocupado com algum objeto pousado na mesinha do espelho. Ela se levantou e olhou-o sorrindo.

 

Gaigern estava com as mãos dentro da maleta em que se encontravam suas pérolas. Ela ouviu claramente o ruído de um dos estojos, reconhecendo o estalido agudo e surdo; era o estojo comprido de veludo azul, onde ficava o colar de cinquenta e duas pérolas de tamanho médio. No primeiro momento a Grussinskaia não percebeu por que razão esse ruído a assustava mortalmente. Seu coração parou, e depois voltou a bater com pancadas pesadas e sonoras, que ecoavam dolorosamente por todo o corpo. Doíam-lhe as pontas dos dedos, que se tornaram rígidas. Os lábios também. Mas ainda continuava a sorrir; esquecera-se de retirar da boca o sorriso, que permaneceu, enquanto seu rosto esfriava, tornando-se branco como papel. "É um ladrão", pensou a Grussinskaia, adivinhando tudo. E esse era um estranho pensamento, silencioso e definitivo, como um corte que lhe atravessasse o coração. Julgou perder a consciência, desejando-o com ardor, mas ao invés de acontecer isso, uma infinidade de pensamentos lhe passou pela cabeça durante um segundo, claros, cortantes, entrecruzando-se, entrechocando-se; um duelo de pensamentos.

O sentimento torturante de ter sido enganada atrozmente; vergonha, medo, ódio, cólera, uma dor medonha. E, ao mesmo tempo, uma fraqueza profunda como um abismo; não queria ver, não queria compreender, não queria acreditar na verdade, só desejava abrigar-se na piedade da mentira.

— Que faites-vous? — murmurou às costas do carrasco. Pensou que estava gritando, mas apenas sussurrou por entre os lábios rígidos: — Que está fazendo?

Gaigern levou tal susto que sua cabeça se virou de súbito; e seu susto era uma confissão de culpa. Na mão ele guardava o estojinho cúbico de um dos anéis; a suitcase estava aberta, o colar de pérolas estendia-se sobre a placa de vidro da mesinha do espelho.

— O que está fazendo aí? — sussurrou mais uma vez a Grussinskaia, causando dó, realmente, vê-la sorrir, com o rosto pálido e desfigurado.

Gaigern compreendeu-a logo, de novo se encheu de piedade, uma piedade ardente, que ele sentia palpitar nas têmporas. Dominou-se com energia, e conteve-se.

— Bom dia, Mouna — disse amavelmente. — Encontrei aqui um tesouro, enquanto você dormia.

— Como é que encontrou as minhas pérolas? — perguntou a Grussinskaia, com voz rouca. "Minta, minta", pedia seu olhar esgazeado.

Gaigern aproximou-se dela, e pousou a mão sobre seus olhos, como um guarda-sol. "Pobre bichinho, pobre femeazinha."

— Estive remexendo em suas coisas. Estava procurando um adesivo, um pedaço de atadura, qualquer coisa... imaginei que iria encontrar alguma coisa na valise. E lá estava o seu tesouro. Tenho a impressão de ser Aladim na gruta.

Até mesmo a cor dos olhos dela desaparecera; eles pareciam agora de chumbo, e só pouco a pouco lhes foi voltando sua cor negra azulada. Gaigern estendeu diante dela a palma da mão ferida, a sangrar ligeiramente, como prova do que dizia.. A Grussinskaia, lânguida e com os nervos frouxos, pousou nessa mão os lábios. Gaigern pousou a outra em seus cabelos, e puxou sua cabeça de encontro ao peito aberto do pijama de seda azul. Ele podia mostrar-se bastante brutal e ordinário com as mulheres com quem costumava encontrar-se. Mas esta, sabe o Diabo por quê, despertava nele todos os bons instintos. Era tão frágil, tão maltratada pela vida, necessitava tanto de auxílio — e ao mesmo tempo era tão forte... Pela existência que ele levava, que parecia estar sempre a pender de um fio, Gaigern compreendia a dela.

— Bobinha — disse ele com carinho. — Será que você pensou que eu estava cobiçando as suas pérolas?

— Não — mentiu a Grussinskaia. Essas duas inverdades foram a ponte sobre a qual os dois amantes se puderam encontrar. — Aliás, eu não as uso mais — acrescentou ela, respirando aliviada.

— Não as usa mais? E por quê?...

— Você não compreende essas coisas. É uma superstição. Antigamente elas me davam sorte. Depois me trouxeram infelicidade. E agora que deixei de usá-las, me dão sorte de novo.

— É mesmo? — perguntou Gaigern pensativo, procurando vencer o mal-estar e o acanhamento que sentia.

As pérolas repousavam de novo, em ordem, em seu pequeno leito. "Adieu!" Até logo, pensou ele, como uma criança. Meteu as mãos nos bolsos, num gesto decidido; lá se encontravam as ferramentas de ladrão, mas nenhuma presa. Sentia-se felicíssimo, com uma sensação de leveza e de satisfação, espantosamente renovado e farto. Abriu bem a boca e soltou uma exclamação de júbilo, emitindo um som forte e cheio. A Grussinskaia começou a rir. Gaigern atravessou o quarto correndo, aproximou-se dela e mergulhou em sua pele seu grito de prazer, deixando-se cair sobre a mulher, com a boca, o olhar e o sentimento. Ela tomou suas mãos e beijou-as; esse gesto exprimia uma gratidão humilde, em parte real, em parte representada.

— Está sangrando — disse ela, com a boca sobre o pequeno ferimento.

— Seus lábios são como os de um cavalo — respondeu Gaigern —, macios como um potrinho preto, de magnífico pedigree.

E ajoelhou-se, abraçando os joelhos da mulher, cujos tendões vibravam por baixo da pele. Justamente quando a Grussinskaia fez menção de se curvar sobre ele, alguma coisa ronronou na escrivaninha; um tilintar breve, depois longo, novamente breve.

— O telefone — disse a Grussinskaia.

— O telefone? — repetiu Gaigern.

A Grussinskaia suspirou profundamente. Não adianta, exprimia a sua fisionomia, ao erguer o fone do gancho com um gesto cansado, como se ele pesasse uma tonelada. Suzette estava ao telefone.

— São sete horas — anunciou sua voz matinal rouca. — Madame precisa levantar-se. É preciso arrumar as malas. Posso mandar o chá? E se madame quiser que lhe faça massagem, já está na hora — e Herr Pimenoff pede que lhe telefone imediatamente, assim que madame se levantar.

Madame ficou pensando durante um segundo.

— Daqui a dez minutos, Suzette... não, dentro de quinze minutos você pode trazer o chá, e depois faremos um pouco de massagem.

Colocou o fone no gancho, mas continuou a segurá-lo, enquanto estendia a outra mão a Gaigern, que ficara no meio do quarto, a balançar o corpo sobre as solas finas de cromo dos seus sapatos de pugilista. Ela ergueu imediatamente o fone, de novo, e lá de baixo o porteiro respondeu com uma voz diligente e serviçal, apesar de não ter pregado olho durante toda a noite, porque sua mulher não estava passando muito bem na clínica.

— Que número, por favor? — disse ele com voz enérgica.

— Wilhelm, sete, zero, dez! Com Herr Pimenoff! Pimenoff não estava hospedado no hotel, mas numa pensão de segunda classe, que uma família de imigrantes russos abrira no quarto andar de uma casa em Charlottenburg. Parece que lá ainda estavam dormindo. Enquanto a Grussinskaia esperava, viu em espírito o velho Pimenoff, correndo ao telefone com seu surradíssimo pijama de seda, com os pés magros, que ele mantinha sempre com as pontas um pouco abertas para fora, como se estivesse fazendo a quinta posição. Finalmente ele atendeu, com sua voz delicada e nervosa de velho.

— Ah, Pimenoff, é você? Bom dia, dobroie utro, meu caro! Sim, obrigada, dormi bem, não, não tomei muito veronal, só dois comprimidos; obrigada, tudo ali right, coração, cabeça, etc, etc. Como? O que aconteceu? O Michael está com um derrame de sangue no joelho? Mas, meu Deus, por que é que você não me disse isso ontem à noite? É horrível! Custa muito a passar, muito mesmo... Nós sabemos o quanto demora! E que providências você tomou? Como? Não fez nada, ainda? Mas é preciso mandar imediatamente um telegrama ao Tcherenov, ouviu? Imediatamente, ele precisa vir ajudar. Meyerheim que vá telegrafar. Onde está metido o Meyerheim? Vou chamá-lo logo pelo telefone. É cedo demais? Com licença, querido, por que razão para nós não é cedo demais, e para Herr Meyerheim... Não, por favor! E os cenários, já foram levados para a estação? Mas, por favor, com o primeiro despacho, quando começa a ser feito o primeiro despacho? Às seis? Se os cenários não estiverem lá, você é o responsável, Pimenoff. Nem uma palavra mais, você é o mestre de bailei, é quem deve cuidar dos cenários; não tenho nada que ver com isso. É, espero sua resposta dentro de meia hora no máximo, vá você mesmo à estação. Adieu!

Dessa vez ela nem chegou a pousar o fone; apenas fez pressão no gancho com dois dedos. Chamou Witte, que costumava levantar-se pela manhã um pouco apalermado, e que, apesar dos inúmeros anos de tournées, ficava sempre como uma pilha, e fazia uma confusão medonha. Depois, a Grussinskaia chamou Michael, que estava hospedado num hotelzinho e se pôs a lamentar-se como um cãozinho pisado, sobre o derrame de sangue. A Grussinskaia gritou-lhe severas ordens e conselhos pelo telefone; ela ficava furiosa, e era injusta sempre que qualquer elemento da troupe adoecia. Chamou três médicos, antes de encontrar um que pudesse ir ver logo o Michael, para dispensar-lhe os cuidados necessários e levar-lhe ligaduras com compressas de terra argilosa e vinagre. Chamou Meyerheim ao telefone, discutiu com ele num francês excitado, e intimou-o a comparecer às oito e meia no hotel para acertar as contas. Enviou pelo telefone um telegrama a Tcherenov e, por precaução, outro a um jovem bailarino, que dançava bem e estava sem contrato em Paris. Em seguida, com o auxílio do porteiro Senf, ligou para o expresso de Paris, pelo qual o jovem bailarino poderia chegar a tempo em Praga, e depois procurou passar um terceiro telegrama.

— Por favor, chéri, abra a torneira do banheiro — disse ela apressadamente a Gaigern, entre uma ligação e outra, matraqueando em seguida uma série de ordens em inglês, pelo telefone, ao chofer Berkley, porque o carro não devia seguir com eles, mas nesse meio tempo ir para uma garagem, a fim de ser limpo. Gaigern foi ao banheiro e obedeceu-lhe, abrindo a torneira. Fez mais ainda: estendeu sobre o aparelho de calefação o roupão de banho, para aquecê-lo. Procurou a esponja com que no dia anterior lavara o rosto desfigurado da Grussinskaia e levou-a para o banheiro, enquanto ela continuava a falar no telefone. Encontrou sais de banho e jogou um punhado na água, que já estava transbordando. Teria de bom grado feito mais alguma coisa para ela, mas não encontrou mais nada para fazer. A Grussinskaia também parecia ter terminado, por enquanto, seus telefonemas.

— Você está vendo?... todos os dias é assim — disse ela, procurando dar à voz uma entonação de queixa; mas sua voz só exprimia uma vitalidade exuberante e o prazer de arrumar as malas para a viagem.

— É preciso fazer isso tudo. E depois o Michael diz: há sempre espalhafato em torno da Grussinskaia. Ele dá a isso o nome de chi-chi, como se tudo não passasse de uma brincadeira.

Gaigern, de pé diante dela, estava faminto por um pouco de carinho, de intimidade, e estendeu-lhe ambas as mãos; mas ela estava distraída. Pensava no derrame de Michael. Ouvia de novo o tique-taque dos dois relógios.

Tomou depressa do telefone e chamou Suzette mais uma vez.

— Espere mais dez minutos, Suzette — pediu ela com muita cortesia, e com a consciência da própria culpa.

Seu olhar aflorou à mesa e à xícara de chá da noite anterior. Lá estava a xícara, muito bem lavada, com uma expressão de profunda inocência e candura, o brasão dourado do hotel a cintilar na porcelana grossa.

"Que noite maluca", pensou a Grussinskaia. "Não, essas coisas não se fazem. E bailados como os que imaginei hoje não se podem dançar. Foi apenas o resultado de uma excitação nervosa. Os vienenses me vaiariam se eu apresentasse bailados como imaginei, em vez da pomba ferida e das borboletas. Em Viena o público é diferente do de Berlim; lá eles sabem o que é ballet."

Apesar de Gaigern a estar olhando fixamente, de frente, ela não o via. Ele sentiu uma ligeira dor, desconhecida até então, uma dor estranha e viva, que lhe cortava a respiração.

— Tomilho! Neuwjada! — disse ele baixinho, indo buscar as palavras no profundo tumulto da noite. Elas conservavam seu perfume agridoce, e a inesquecível recordação. E, realmente, ao ouvir-se chamar desse modo, a Grussinskaia voltou a olhar para ele, e sua fisionomia assumiu uma expressão tensa de sofrimento, embora sorrisse.

— Acho que precisamos nos separar agora, querido — disse ela com um tom de voz propositadamente forte e inflexível, para evitar que a voz se quebrasse.

Havia esquecido, apagado por completo as lembranças das pérolas. Tinha apenas um sentimento de apego e aconchego, por essa mulher, um desejo infinito de ser bom para ela, muito, muito bom. Com uma sensação de desamparo, girou no dedo o anel de sinete com o brasão dos Gaigern, em lápis-lazúli.

— Tome — disse ele estendendo a mão e oferecendo-lhe o anel, com um gesto desajeitado de menino. — É para que você não se esqueça de mim.

"Não o verei mais?", pensou a Grussinskaia. Esse pensamento a fez sentir um ardor nos olhos, e a fisionomia bonita de Gaigern foi desaparecendo em meio das suas lágrimas. Esse era um pensamento que não se devia exprimir. Ela ficou esperando. "Deixe-me ficar com você. Vou ser muito bom para você", pensou Gaigern. Apertou os lábios com força e obstinação e não disse nada.

— Você vai para Viena? — perguntou ele.

— Primeiro para Praga, por três dias. Depois catorze dias em Viena. Vou ficar hospedada no Bristol — acrescentou.

Silêncio. Tique-taque de relógios. Buzinas de automóveis diante do hotel. Cheiro de enterro. O arfar da respiração.

— Você não pode viajar comigo, querido? Preciso de você — disse finalmente a Grussinskaia.

— Eu... para Praga não posso ir. Não tenho dinheiro. Preciso primeiro arranjar o dinheiro.

— Eu lhe dou — respondeu ela prontamente. Com a mesma pressa Gaigern respondeu:

— Não sou um gigolô!

De repente caíram ambos nos braços um do outro, impulsionados por qualquer coisa de grande, num abraço forte, unidos no momento em que tinham de se separar.

— Obrigado — disseram ao mesmo tempo —, obrigado, obrigado — repetiram em três línguas: alemão, russo e francês, num balbucio confuso, num tom de soluço, num sussurro .choroso, em júbilo: — Obrigada, merci, bolchoie spassibo, danke.

Nesse instante Suzette está recebendo das mãos do criado de quarto, com ar de ofendido, a bandeja com o chá. São sete horas e vinte e oito minutos. O relógio na escrivaninha corre, sem fôlego; o outro, de cansaço, parou. Continue, continue, continue, bate ele, em tom de reprimenda.

— Então, em Viena? — diz a Grussinskaia, com as bordas das pestanas úmidas. — Daqui a três dias? Você segue depois que eu partir. E depois se encontra comigo em Tremezzo; vai ser ótimo, vai ser maravilhoso estarmos juntos! Vou tirar umas férias, de seis a oito semanas, e nós vamos*viver, querido, vamos somente viver, deixando tudo para trás, tudo isso que não tem sentido; vamos apenas viver, ficaremos idiotas de tanta preguiça e felicidade; e depois você vai comigo para a América do Sul. Você já conhece o Rio? Eu... não, chega. Está na hora. Vá! Vá! Querido! Obrigada!

— Daqui a três dias o mais tardar — diz Gaigern. A Grussinskaia ainda faz pairar em seu redor, às pressas, um pouco da sua graça de dama da alta-roda.

— Tome cuidado para chegar ao seu quarto sem me comprometer muito — pediu ela, fechando as duas portas, uma após a outra.

Quando Gaigern, em silêncio, soltou a mão da mão dela, sentiu-a dolorida. Sangrava de novo. O corredor está silencioso, as inúmeras portas vão-se perdendo na longa perspectiva. Nas soleiras, as botinas dormem, com as orelhas pendidas. O elevador vem descendo e, no terceiro andar, alguém corre para não perder o trem. No hall da escada, uma das janelas de vidro leitoso está aberta, deixando sair para o pátio a fumaça dos cigarros dessa noite. Gaigern se esgueira, com suas solas de pugilista, por sobre o tapete de ananases; entra no 69, seu próprio quarto, e fecha a porta com uma gazua. A chave ainda está na caixa, na portaria.

A Grussinskaia, depois de tomar banho, deita-se de bom grado, para entregar-se às mãos de massagista de Suzette. Sente-se forte, elástica e cheia de energia. Tem uma vontade enorme de dançar, e está ansiosa pelo próximo espetáculo. Sente que terá sucesso agora, pois em Viena se tem sempre sucesso; ela o sente nas pernas, nas mãos, no pescoço, que inclina para trás, repentinamente, e na boca, que tem sempre desejos de sorrir. Veste-se e sai correndo, como um pião. Com enorme élan, atira-se às ocupações da manhã, à discussão com Meyerheim, à luta subterrânea com as perfídias da troupe, ao trabalho paciente com Pimenoff e Witte.


9

 

 

Às nove horas o groom 18 traz um buquê de rosas: "Até logo, querida boca", está escrito num pedacinho rasgado de papel do hotel. A Grussinskaia beija o anel de sinete com o brasão dos Gaigern. — Porte-bonheur — sussurra, como a falar com um velho conhecido. Agora ela já tem de novo um talismã. "Michael tem razão. Vou doar as pérolas... para as crianças pobres", pensa ela. Suzette segura com luvas de tricô a alça da suitcase, enquanto o criado leva o resto da bagagem. Sem saudades, a Grussinskaia deixa o quarto do hotel, tão cheio de aventuras, com aquela tapeçaria da parede que lhe fazia mal aos nervos. No Hotel Imperial de Praga já está reservado para ela um outro quarto com banheiro privativo dando para o pátio, o número 184. Também no Rio, em Paris, em Londres, em Buenos Aires, em Roma foi feita igual reserva; espera-a uma infindável perspectiva de quartos de hotel com portas duplas e água corrente, e o cheiro indefinível de incessante movimento e de coisas desconhecidas.

Às nove horas e dez a camareira, que não dormiu durante a noite, tira muito mal o pó do quarto 68, joga fora as cestas de flores secas, leva a xícara de chá e finalmente traz roupa de cama limpa — ainda úmida da passagem a ferro — para o próximo hóspede.

 

O relógio, pérfido como todos os despertadores, deixou de acordar o Diretor-Geral Preysing, com seu tilintar pontual e enérgico. Às sete e meia tilintou apenas durante um segundo, e isso foi tudo. Preysing, que dormia com a boca aberta e seca, mexeu-se ligeiramente, as molas do colchão gemeram, e por trás do reposteiro amarelo o sol brilhou um pouco. Às oito horas o porteiro, muito cumpridor de seus deveres, despertou o diretor chamando-o ao telefone, mas já era tardíssimo. Preysing pôs a cabeça meio tonta de sono embaixo da ducha, praguejando baixinho por ter-se esquecido de trazer o aparelho de barbear. Um pedante como ele perdia toda a alegria com uma coisa assim. Apesar de estar atrasado, levou alguns minutos escolhendo o terno que ia vestir. Depois de já ter escolhido o cut, despiu-o com raiva. Calculou — e talvez com razão — que não seria vantajoso vestir o cut; o terno cinzento de viagem, pelo contrário, demonstraria imediatamente aos senhores de Chemnitz que não estava tão interessado assim por todo aquele negócio. Apressou-se o mais que pôde, mas até que arrumasse todos os saquinhos e estojos, que procurasse todas as chavinhas, as encontrasse e enfiasse nas fechaduras, folheasse mais uma vez seus documentos e contasse mais uma vez o dinheiro, já eram mais de nove horas. Com a cabeça quente, saiu correndo do apartamento e, no corredor, deu um encontrão em um homem.

— Desculpe! — disse Preysing, parando diante da porta de seu quarto, para conseguir enfiar o outro braço no casaco.

— Não foi nada! — replicou o cavalheiro, continuando seu caminho sobre a passadeira. Preysing julgou reconhecer esse modo de manter as costas. Quando chegou ao elevador, o homem já ia descendo; o diretor pôde vê-lo também de frente e julgou reconhecê-lo igualmente, sem se recordar de onde. Teve a impressão de que ele sorria zombeteiramente, enquanto descia no elevador, diante do seu nariz. Preysing, excitado e impaciente, desceu a escada correndo e foi em disparada pelos corredores até o subterrâneo de azulejos, onde o barbeiro do hotel tinha o seu salão; ali cheirava a água estagnada de porão e a Peau d'Espagne. No salão estavam sentados muitos cavalheiros, metidos em batas brancas, como babies esperançosos, entregues às manipulações dos barbeiros vestidos com jaquetas brancas. Preysing, impaciente, começou a dançar sobre suas grossas solas de crepe.

— Vai demorar muito para chegar a minha vez? — perguntou ele, roçando o rosto por barbear, nas palmas das mãos.

— No máximo dez minutos. Há só um senhor na sua frente — responderam-lhe.

O tal senhor que havia chegado antes dele era o homem que descera no elevador, e Preysing olhou-o com desagrado. Era um sujeitinho insignificante, magro e modesto, meio vesgo por trás de uns óculos a escorregarem, e com o nariz pontudo inclinado sobre um jornal. Preysing tinha uma vaga ideia de já ter tratado de negócios com esse homem, mas não conseguia recordar-se em que circunstâncias. Postou-se diante dele, fez uma leve curvatura, e procurando ser amável disse:

— Por favor, o senhor podia me fazer a gentileza de me ceder a sua vez? Estou com muita pressa.

Kringelein, que se encolhera todo atrás do jornal, juntou suas forças. Mostrou a cara por trás do artigo de fundo, estendeu o pescoço fino, voltou-se para o diretor-geral olhando-o de frente e respondeu:

— Não!

— Desculpe... mas é que estou com muita pressa — tartamudeou Preysing em tom de reprimenda.

— Eu também — replicou Kringelein. Preysing, furioso, virou as costas e saiu do salão de barbeiro. Como um vencedor, um herói, mas completamente exausto e vazio pela desmedida tensão nervosa, Kringelein, ofegante, continuou sentado, envolto no aroma das essências dos sabões de barbear.

Atrasado, com a barba por fazer e com a ponta da língua doendo, por tê-la queimado no café fervendo, o diretor-geral entrou na sala de conferências. Os outros senhores já tinham soltado na sala uma bela fumaceira azul de charuto. A sala, com seu pano de mesa verde, a imitação de tapeçaria de damasco nas paredes e o retrato a óleo do fundador do Grande Hotel, tinha um aspecto de conforto e solidez. O Dr. Zinnowitz já havia colocado seus documentos na mesa, na sua frente; o velho Gerstenkorn estava sentado na cabeceira da compridíssima mesa, presidindo a sessão, e, para cumprimentar, ergueu apenas a metade do corpo, porque ele pertencia à geração robusta do sogro de Preysing, conhecera o diretor-geral ainda moço e não o tinha em grande conta.

— Está atrasado, Preysing? — perguntou ele. — Quarto de hora acadêmico? Não passou bem ontem de noite? É isso, Berlim tem dessas coisas! — riu-se com a tosse grossa e encatarrada dos bronquíticos, e apontou para a cadeira a seu lado.

Preysing sentou-se defronte de Schweimann com a desagradável impressão de ter levantado com o pé esquerdo, e seu lábio superior, sob o bigode, estava úmido antes mesmo de começar a luta. Schweimann, que tinha pálpebras espessas e uma boca grande e de lábios grossos, uma boca elástica de macaco, apresentou um terceiro senhor:

— O nosso síndico, o Dr. Waitz — disse ele.

O Dr. Waitz era jovem ainda; tinha um ar distraído, mas não o era em absoluto, e durante as conversações podia tornar-se bem desagradável, com sua voz dominadora e agressiva de trombeta. Tinha sido trazido também pelos senhores de Chemnitz.

— Nós já nos conhecemos — disse Preysing com pouco entusiasmo.

Schweimann ofereceu, por sobre a mesa, um charuto ao diretor-geral. O Dr. Zinnowitz tirou do bolso do colete uma caneta-tinteiro e a colocou à sua frente, ao lado dos documentos. Bem afastada, sentada à mesa, do outro lado da garrafa de água e dos copos que ofuscavam facilmente os olhos e vibravam sobre uma bandeja preta, sempre que passava lá fora algum ônibus, estava uma personagem apagada: a Flamm número um, com o bloco de estenografia na mão, envelhecida e insignificante, com uma leve penugem branca de traça nas faces, calada, cumpridora dos seus deveres, impossível de ser confundida com a Flamm número dois.

— Bonita caneta — observou Schweimann a Zinnowitz. — De que marca é? Muito bonita.

— Gosta? Recebi-a de Londres. É bonita, não é verdade? — respondeu Zinnowitz, escrevendo sua assinatura fluente num caderninho de notas. Todos olharam.

— Quanto custa uma caneta assim, se me permite perguntar-lhe? — informou-se Preysing, tirando sua própria caneta do bolso do colete e colocando-a na mesa. E todos os presentes olharam também para a caneta inglesa.

— Umas três libras, sem pagar a alfândega. Um conhecido me trouxe — esclareceu o Dr. Zinnowitz.

— Que coisa prática! Muito prática.

Todos estenderam as cabeças por sobre a mesa, como meninos de escola, e observaram a caneta-tinteiro de malaquita verde, de Londres. Esse objeto merecia de fato que cinco participantes adultos de uma conferência se ocupassem dele durante três minutos.

— Bem, agora vamos tratar de negócios — disse afinal o velho Gerstenkorn com sua voz encatarrada, e imediatamente o conselheiro Zinnowitz apoiou seus dedos alvacentos sobre a coberta verde da mesa e começou, com palavras fluentes e preparadas de antemão, uma exposição do assunto, fazendo ressoar a voz na atmosfera azul da sala de conferências.

Preysing permitiu-se uma pequena pausa para se acalmar. Ele próprio não era bom orador, e se sentia agradecido por Zinnowitz ter assumido essa tarefa, e por suas frases se ensarilharem, fluentes e claras, como atiradas por uma máquina. E isso não era mais que a introdução. Primeiro falou de coisas que já haviam sido há muito tempo ruminadas em negociações preliminares. Expôs mais uma vez a situação em que as negociações estavam, enquanto ia pescando, na pasta dos documentos, ora este ora aquele papel, levando as longas colunas de números bem próximo dos olhos míopes para poder lê-las com mais facilidade.

Tornando a repetir, era este o ponto em que estavam as negociações: a Algodoeira Saxônia S.A., que fabricava principalmente tecidos de algodão e cobertores, e com o refugo fabricava uma qualidade muito apreciada de serapilheira, era uma firma de boa envergadura e grande capital. Seu ativo em terrenos, prédios e maquinaria, em mercadorias em bruto e manufaturadas, em patentes, etc, e principalmente em crédito, totalizava um capital considerável. Os impostos anuais e o produto líquido conservavam-se numa sólida média, os dividendos haviam somado, ainda no ano passado, nove e meio por cento.

Zinnowitz ia lendo as cifras, mais ou menos satisfatórias, e Preysing o ouvia com agrado. No seu empreendimento estava tudo limpo e em ordem, e a produção com o refugo, que sozinha trazia trezentos mil em bruto, fora organizada por ele. Olhou para Gerstenkorn. Este, com a maneira pensativa e meio simplória dos velhos manhosos, balançava de um para outro lado a cabeça grisalha, à escovinha. Schweimann aspirava seu charuto, parecendo não estar ouvindo. Waitz controlava as cifras que eram lidas, uma a uma, olhando para um caderninho com capa de couro, onde ele tomara notas. A Flamm número um, verdadeira mestra, na arte da secretária particular, em não fazer notar sua presença, com olhar fixo fitava os reflexos na água, em que a caneta tomava o aspecto tremulante de uma pequena e aguda baioneta. Zinnowitz tirou outro maço de papéis de entre os documentos colocados uns sobre os outros e passou então a tratar da situação da Malharia de Chemnitz. Sua barba longa e fina de chinês subia e descia quando ele falava.

A Malharia de Chemnitz era — deduzia-se das cifras — um empreendimento muito menor. Mal possuía a metade desse ativo, e seu balanço demonstrava uma situação bastante precária. Ele tinha anotado apenas o principal, mas, não obstante, tivera de lançar uma elevadíssima participação de lucros. Os impostos anuais eram altos. O lucro líquido mal chegava à altura dos impostos. Considerando tudo isso, as cifras do balanço da Chemnitz mantinham-se espantosamente elevadas. Zinnowitz colocou um amável e pequeno sinal de interrogação por trás das últimas cifras que lera, e fitou o velho Gerstenkorn.

— Suba. Pode arredondar para duzentos e cinquenta mil marcos, pode fazê-lo.

— O senhor não pode fazer as contas assim — observou Preysing, que tinha ficado nervoso. — O senhor precisa amortizar o preço das novas máquinas para o novo processo. Nesse caso, o senhor não poderá anotar nem mesmo suas velhas máquinas.

— Mesmo assim. Mesmo assim — insistiu Gerstenkorn, teimoso.

O Dr. Waitz trombeteou:

— Poderemos considerar as nossas cifras muito mais desvalorizadas do que valorizadas.

O Dr. Zinnowitz pôs em cima da mesa um papel para o diretor-geral, e este, forçando a vista, aprofundou-se nos seus cálculos. O resultado ele já conhecia. A Malharia de Chemnitz era um empreendimento de pouca solidez, fundado com pouco capital, e com o crédito quase estourando. Mas impunha-se, tinha bons lucros, parecia estar se desenvolvendo, tinha as conjunturas a seu favor. Enquanto isso, a Algodoeira Saxônia ficava para trás, ia adormecendo, sólida e bem fundada como era. Algodão, cobertores e serapilheira. O mundo não se interessava, no momento, por cobertores e serapilheira. E o velho de Fredersdorf sabia por que razão ele insistia, nas atuais circunstâncias, em agarrar a oportunidade dos tecidos de malha, e trazer assim um lucro para o seu empreendimento.

— Isso não tem importância. Vamos adiante — disse o diretor, com a condescendência de um homem que está em posição inferior. Gerstenkorn tirou da mão dele o balanço e, alisando delicadamente o papel, tossiu uma risada.

Zinnowitz, com palavras fluentes, já havia tratado da situação das ações, havendo, nesse ponto, um erro evidente. O capital efetivo da Saxônia era quase duas vezes maior do que o ativo dos senhores de Chemnitz. Partindo dessa premissa, todas as outras negociações preliminares haviam decorrido de modo que, na fusão das duas firmas, duas ações da Chemnitz equivalessem a uma ação da Saxônia. Mas as ações da Chemnitz haviam subido, as da Saxônia baixado, o equilíbrio tinha-se modificado sensivelmente, e o Dr. Zinnowitz, com um gesto conciliante da mão, teve que conceder — a base das trocas se modificara, em razão da espantosa subida das ações da Malharia de Chemnitz. Preysing ouvia com desagrado a voz polida do seu advogado, que com muitas frases, impecáveis e condicionais, trazia à luz uma quantidade de coisas desagradáveis, que ele estava farto de saber. Seu charuto já não lhe dava mais prazer; tirou ainda algumas baforadas enérgicas, e acabou pondo-o de lado. Num certo ponto da exposição de Zinnowitz, o Dr. Waitz saltou, como um ator na sua deixa, bateu rapidamente com a palma da mão no pano verde da mesa, e opôs suas objeções. Começou a ler cifras no seu caderno de notas, sem olhá-lo sequer, novos números, números diferentes — Preysing contraiu de tal modo os músculos da testa, que seus olhos saltaram das órbitas, tal o esforço que fazia para conservar na memória todas aquelas coisas, para perceber tudo e não perder de vista o aspecto geral do assunto. Puxou para o seu lado alguns papéis de carta do hotel, que estavam em cima da mesa, e se pôs a rabiscar notas às escondidas, e excitado como um mau aluno. O conselheiro Zinnowitz, por seu lado, havia apenas lançado um olhar à Flamm número um, e a boa moça já estava a estenografar as agressivas palavras e provas no seu bloco, com riscos azuis. O Dr. Waitz apresentou o conjunto de suas trombeteadas objeções: não, não era possível exigir dos acionistas da Malharia de Chemnitz um prejuízo de metade do seu capital, no caso de tal fusão. Conforme sua opinião, não havia nenhum motivo plausível para, no caso de uma eventual fusão — ele frisou o "eventual", como um ator de província —, conceder a primazia à Saxônia, com relação à sociedade de Chemnitz, para de certo modo colocar num plano de dependência essa firma em plena florescência, para pô-la simplesmente a um canto.

Zinnowitz olhou para Preysing, e este, obediente, se pôs a falar. Tinha o hábito de falar de coisas importantes com voz nasal e abafada, num tom aborrecido e monótono; pelo fato de se sentir intimamente um homem pouco seguro de si, empregava tais meios para demonstrar aos outros calma e superioridade. As palmas de suas mãos estavam úmidas, quando se atirou à luta. Os olhos de Schweimann arrastaram-se para fora das órbitas vermelhas em que habitavam, como camundonguinhos cinzentos, e Gerstenkorn colocou os polegares nas cavas do colete, com a expressão de uma pessoa que está se divertindo. As paredes de damasco falso ouviam tudo, com indiferença. Conferências como essa se realizavam diariamente no Grande Hotel; nesse enorme Kaff eram cozidas muitas sopas, que em seguida os acionistas tinham que engolir. O açúcar subia de preço, as meias de seda barateavam, o carvão desaparecia, tudo isso e milhares de coisas mais dependiam do decorrer dessas lutas na sala de conferências do Grande Hotel.

Preysing ia falando. Quanto mais ele falava, com uma voz que ressoava como se a tivesse posto sobre a neve, e quanto mais minucioso se tornava, tanto mais perdia terreno. As interrupções breves e concludentes de Gerstenkorn assobiavam por entre suas frases como balas de revólver. Houve momentos em que Preysing teria de bom grado fugido dali, meia-volta, marchar, marchar, abandonando toda essa história imunda de fusão, para voltar para a companhia de Mulle, Pepsin e Babe, em Fredersdorf. Mas era um diretor-geral, e o mundo não era um negócio tão simples assim; dessa fusão muito se esperava para a fábrica, e dela dependia tudo para a sua própria posição dentro da fábrica, pelo que aguentou o repuxo. Puxou mais uma vez do seu ativo, essa prova mais do que sólida de um empreendimento mais do que sólido, e se agarrou a isso com unhas e dentes. Caceteou os senhores da Chemnitz, caindo em pormenores excessivos, e o conselheiro precisou por várias vezes pô-lo em movimento, como a um barco encalhado e lento. Preysing fazia uma confusão medonha, insistia em alguns pontos secundários, teimava sem a mínima razão; caceteava os senhores da Chemnitz com minuciosas descrições da fabricação de tecido de serapilheira, feito com refugo do material, pois era do que mais gostava de falar, esquecendo-se de aludir a assuntos importantes que tinha sublinhado no papel de carta diante dele. Finalmente ficou parado no meio de uma frase que começara como. uma fanfarra e terminou num beco sem saída. Tirou do bolso o lenço e enxugou o suor do bigode; pôs na boca um novo charuto, que tinha gosto de feno. De repente teve a impressão de estar sentado em uma mesa entre contrabandistas, pessoas sem seriedade e sem princípios; sentiu a amargura do homem honesto que e tido por tolo.

Então, Gerstenkorn tirou das cavas do colete seus dedos redondos de burguês atrasado e começou a expor a sua opinião. Esse senhor Gerstenkorn, com sua cabeça quadrada à escovinha e sua voz bronquial, era um orador claro e combativo. Empregava toda espécie de dialetos, para dizer sem rodeios o que queria dizer. Saxão, berlinês, iídiche e mecklemburguês eram o tempero da sua conversa sobre negócios.

— Agora o senhor faça ponto final, e deixe os adultos falarem — observou ele, conservando na boca o charuto, o que tornava sua linguagem, comumente vulgar, mais vulgar ainda, e era o que ele queria. — As coisas de que a Saxônia é capaz o senhor já nos contou, e nós já sabíamos disso tudo. Música também ela não sabe fazer. Já repetimos e tornamos a repetir isso tudo aos nossos principais acionistas, e qual foi o resultado? Receio, um enorme receio, um fundamentado receio da fusão. É engraçado, como é que os acionistas, por causa do seu algodão, iriam meter a mão no caldeirão para tirar as salsichas quentes? Em poucas palavras: a nossa situação melhorou muito desde a primeira vez que o senhor se dirigiu a nós. A sua situação não se modificou, se quisermos ser amáveis e não dissermos que piorou. Nessas condições, nós, falo em alemão claro, meu prezado Preysing, perdemos o interesse na fusão. E estamos aqui com a incumbência de parar com as negociações, nessas circunstâncias. Quando o senhor se dirigiu a nós, as perspectivas eram outras.

— Mas nós não nos dirigimos aos senhores — disse Preysing com rapidez.

— Homem de Deus, o que aconteceu com o senhor? Dirigiram-se a nós, sim! Dr. Waitz, faça o favor de me passar os dados. O senhor dirigiu-se a nós em... aqui está... em 14 de setembro, por carta.

— Não é verdade — teimou Preysing, puxando o maço de documentos que estava diante do conselheiro Zinnowitz. — Nós não nos dirigimos aos senhores. Antes dessa carta já tinha havido uma troca pessoal de impressões, pedida pelos senhores.

— Trata-se disso? Pois um mês antes o seu velho já tinha batido à minha porta, a título particular, com toda a amabilidade.

— Nós não nos dirigimos em primeiro lugar — respondeu Preysing, apegando-se a esse fato absolutamente sem importância, como se isso pudesse salvar alguma coisa. Zinnowitz bateu com os pés estreitos debaixo da mesa, pedindo socorro. De repente, Gerstenkorn pôs fim à discussão, e passou a palma da mão quadrada sobre o pano verde da mesa.

— Está bem — disse ele —, bon. Pois então não se dirigiram, se assim lhe agrada. E, tenham ou não se dirigido, as circunstâncias naquela época eram diferentes, o senhor tem que concordar, Herr diretor-geral — ele disse "Herr diretor-geral", e a mudança da maneira amistosa de falar para esse tom oficial soava ameaçadoramente. — Naquela época tínhamos motivos para desejar uma sociedade com a Algodoeira Saxônia. Hoje, que motivos temos?

— Os senhores precisam de um capital maior — disse Preysing, com toda a razão.

Gerstenkorn, com dois dedos, varreu da mesa a objeção.

— Capital! Capital! Se emitirmos hoje novas ações nos atirarão quanto dinheiro quisermos. Capital! O senhor se esquece de uma coisa: o seu bom tempo foi durante a guerra, naquela ocasião a gente podia arranjar a vida fazendo tecido para o Exército e cobertores. Agora o tempo está bom para nós, entende? Nós não precisamos de capital. Precisamos de matéria-prima barata, para aproveitar o nosso novo processo, e precisamos de novos mercados no exterior. Digo-lhe com toda a franqueza, e diretamente, a opinião da nossa sociedade, Herr diretor-geral. Se a fusão com os senhores for proveitosa para nós, então a concretizaremos. Do contrário, não a faremos. Faça o favor, diga o que pensa sobre isso.

Pobre Preysing! Tinha que expor o seu pensamento. Agora haviam chegado naquele ponto que o amedrontava, desde que pisara o trem misto em Fredersdorf. Lançou um olhar de coelho a Zinnowitz, mas este olhou com um ar de recusa as próprias unhas, bem tratadas e pálidas.

— Não é nenhum segredo o fato de possuirmos ótimas relações no exterior. Só para os Bálcãs exportamos anualmente sessenta e cinco mil marcos de tecido de serapilheira — observou ele. — É natural que, no caso de uma fusão, faríamos o possível para atrair ainda o mercado externo para o produto de malha manufaturado.

— Quais são os motivos que o levam a afirmar isso com tanta certeza? — perguntou o Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, erguendo um pouco o busto, conforme um antigo hábito seu, do tempo em que fora juiz criminal. Dava a impressão de ainda usar a toga, e falava num tom de voz próprio para intimidar a testemunha insegura. O diretor-geral se deixou intimidar.

— Não sei a que motivos se refere — respondeu ele, com seu lamentável costume de perguntar coisas que estava farto de saber.

Schweimann, bem em frente dele, ainda não tinha aberto sua enorme e elástica boca de macaco. Agora a abria.

— Trata-se da planejada sociedade com Burleigh & Son — afirmou ele, sem rodeios.

Gerstenkorn balançava com a máxima atenção a longa ponta de cinza do seu charuto.

— Infelizmente, não estou em condições de dar informações a esse respeito — respondeu Preysing imediatamente. Preparara de antemão essa resposta, e a sabia de cor.

— Que pena! — disse o velho Gerstenkorn.

Em seguida ficaram todos calados durante alguns minutos.

A garrafa de água tilintou levemente na bandeja, porque lá fora passava um ônibus, e o reflexo estreito e contorcido do sol batendo na água parada tremulou na parede sobre a moldura do retrato a óleo do fundador do Grande Hotel. Preysing, durante alguns segundos, se pôs a refletir febrilmente. Não sabia se o Dr. Zinnowitz havia mostrado ao pessoal da Chemnitz as cópias daquelas cartas agourentas, sem o menor valor e importância. Sentia novamente nas mãos aquela impressão de falta de asseio e de trato. Seu rosto por barbear começou a cocar de um modo ridículo. Lançou um olhar inquiridor e implorante ao conselheiro, lá na ponta da mesa. Zinnowitz, procurando acalmá-lo, baixou as pálpebras oblíquas e inteligentes de seus olhos de chinês, um movimento quase invisível, que tanto podia significar sim, como não, ou mesmo não significar absolutamente nada. Preysing dominou-se. "Preciso consegui-lo", pensou ele; era mais um sentimento do que um pensamento.

— Meus senhores — disse ele, levantando-se; é que o forro esticado de veludo da cadeira causava no seu traseiro uma sensação desagradável de calor —, mas, meus senhores, vamos tratar do que importa. A base sobre a qual foram feitas até agora todas as negociações entre nós foi o balanço e a situação da fábrica de Fredersdorf. Os senhores puderam fazer uma ideia bem clara da situação, o senhor conselheiro comercial Gerstenkorn pôde certificar-se pessoalmente das condições em que se encontra a nossa fábrica, e eu faço questão de que hoje não se trate de coisas vagas e imponderáveis nas nossas negociações. Não somos especuladores, eu não sou um especulador, em absoluto, trabalho com fatos e não com boatos. Não passa de um boato da Bolsa, isso de que vamos fazer sociedade com Burleigh & Son, em Manchester. Mandei desmentir isso, não posso permitir que...

— O senhor não vai querer ensinar uma lebre velha a correr, não é? Nós sabemos muito bem o que significa um démenti — replicou Gerstenkorn.

Schweimann agora estava animado; farejava, com as suas narinas dilatadas e a boca de macaco, como se já cheirasse a possibilidade do mercado inglês. Preysing foi-se enfurecendo.

— Não aceito! — exclamou ele. — Não aceito que considerem como um fator importante nos nossos negócios esse assunto da Inglaterra; não aceito isso. Não faço cálculos com castelos na Lua, nunca fiz isso, a nossa fábrica não tem necessidade de fazer semelhante coisa. Conto com coisas reais, com fatos, com cifras, com o nosso balanço, aqui está — exclamou ele batendo três vezes com a palma da mão na pilha de documentos que se encontrava diante dele —, é isso que tem valor... e não permito que se trate de outra coisa. Nós oferecemos agora o que oferecemos desde o primeiro dia, e se isso de repente não basta para a sua firma, sinto muito!

Parou espantado, pois tinha galopado como se corresse sobre um pântano. "Estou assustando os outros com a minha gritaria", pensou ele horrorizado, "preciso atraí-los, e em vez disso estou estragando tudo." Encheu o copo de água e bebeu. Era um líquido grosso, morno e sem sabor, como óleo de rícino. O conselheiro Zinnowitz deu uma risadinha e tentou endireitar a coisa.

— O diretor-geral Preysing é de uma consciência modelar — declarou ele. — Não sei, mas talvez os seus receios de levar de certo modo em consideração o negócio com Manchester sejam injustificados, pelo menos exagerados. Por que não se poderá deixar pesar na balança uma coisa que oferece tão boas perspectivas, mesmo que isso ainda não esteja em preto no branco? Por que...

— Por quê? Porque não posso me responsabilizar por isso — interrompeu-o Preysing. Zinnowitz, que teria de bom grado lhe pisado no pé, mas não o podia fazer, ergueu a voz, dirigindo-se ao diretor-geral. Preysing sentou-se de novo no assento quente da cadeira de veludo, e não disse mais nada. Esteve a ponto de declarar a verdade. Bom, se Zinnowitz não o deixava falar, então o célebre perito em matéria comercial que se arranjasse como pudesse. "A coisa vai mal", pensou Preysing, "já não tem mais conserto, está tudo acabado, morto e enterrado. As negociações fracassaram definitivamente. Está bem." Oferecera a todo mundo uma firma sólida, e tudo que um homem correto pode oferecer. Mas o mundo não queria coisas assim. O mundo queria mercados fictícios, boatos falsos, especulações, por trás dos quais nada havia, a não ser um pouquinho de fanfarronice. Artigos de malha, jumper e sweater, meias de cores variadas de Chemnitz, pensou o diretor-geral, amargurado... E chegou a ver realmente, nesse momento, tais coisas, modernas, coloridas e levianas, que conquistavam o mundo no corpo de moças também levianas.

Zinnowitz continuava o seu sermão; Flamm caíra de novo em sua letargia profissional. Gerstenkorn e Schweimann, no entanto, mal ouviam; com a cabeça metida entre os ombros, conversavam sem nenhuma delicadeza, a meia voz, sobre um assunto qualquer.

— O nosso amigo Preysing — recomeçou o conselheiro — talvez vá um pouco longe demais com os seus escrúpulos. Dizem que a sua fábrica está para firmar um contrato muito vantajoso com a próspera e antiga firma Burleigh & Son. E que faz o nosso caro Preysing? Procura negar isso, como se acaso se tratasse de uma bancarrota. Considerando que se trate apenas de um boato... não há boato algum que não contenha um fundo de verdade, todos nós sabemos. E um velho homem de negócios como o conselheiro comercial Gerstenkorn há de concordar que há boatos que têm mais valor do que muito contrato pronto e assinado. Mas como antigo advogado da fábrica de Fredersdorf, posso afirmar: isso é mais do que um boato, há certos ajustes por trás disso. Desculpe-me, caro Preysing, se não guardo a discrição férrea que o senhor guarda. Não tem nenhum sentido insistir em negar, desde que já se realizaram inúmeros entendimentos a esse respeito. Talvez hoje ainda não se possa saber com certeza se eles conduziram a um resultado positivo. Mas isso é um fato, e um fato menos desfavorável do que o seu balanço. Acho extremamente correto e delicado Herr Preysing não querer juntar ao ativo da sua fábrica esse fato, acho isso realmente de uma correção e distinção fora do comum. Mas dessa maneira não se vai para a frente. Desculpe-me, portanto, se eu confio essas coisas a estes senhores.

Zinnowitz continuou a murmurar um palavreado conciliante, com muitos "no entanto" e "como também" e “se acaso" e "por outro lado". Preysing tinha empalidecido; teve a sensação, ao sentir nas fontes uma pontada do sangue a fugir, o sentimento de que havia realmente empalidecido. "Ele lhes mostrou as cartas", pensou. "Mas, Deus do céu, isso já é intriga, já é quase uma fraude. Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann", pensou ele, enxergando as letras azul-escuras e apagadas do telegrama. Meteu a mão no bolso do colete do seu terno cinzento de funcionário, onde guardara o telegrama, mas retirou-a no mesmo instante, como se a tivesse metido num forno quente. "Se eu agora não me levantar imediatamente, e não disser o que está se passando, então a coisa está perdida", pensou, levantando-se. "Porém, se eu falar agora, estes senhores se afastarão, a fusão vai por água abaixo e eu voltarei para Fredersdorf completamente desacreditado", refletiu, sentando-se de novo. Procurou disfarçar seus movimentos indecisos e inoportunos, e, colocando água num copo até o meio, sorveu-a, como se fosse um remédio.

Enquanto isso, Schweimann e Gerstenkorn tinham-se animado. Eram duas cabeças de comerciantes, finórias e lustrosas de unção. Sua atenção foi despertada para o fato de Preysing ter negado com tanta veemência o negócio com a Inglaterra, tentando pôr de lado o assunto. Seu olfato sentia alguma outra coisa por trás disso: mercados, proveitos, talvez concorrência. Gerstenkorn teve uma ideia, que murmurou à enorme orelha direita de Schweimann:

— Se se tratasse de qualquer outra pessoa, um desmentido assim seria quase o mesmo que uma afirmação. Mas com esse animal que é o Preysing, é possível até que ele esteja falando a verdade.

Gerstenkorn deu uma investida brutal.

— Não adianta o conselheiro estar gastando o seu latim — disse ele, inclinando-se sobre a mesa. — Antes de continuarmos a nossa conversação, quero pedir a Herr Preysing o favor de nos dizer sem rodeios até que ponto chegaram as negociações com Burleigh & Son.

— Recuso-me a isso — afirmou Preysing.

— Insisto, caso continuemos a negociar — retrucou Gerstenkorn.

— Então — replicou Preysing — peço-lhe que, no decorrer das negociações, esse assunto seja dado por encerrado.

— Nesse caso preciso admitir que as perspectivas de sociedade com Burleigh & Son malograram? — perguntou Gerstenkorn.

— Admita o que bem lhe parecer — respondeu Preysing.

Em seguida todos se calaram por quase um minuto. Flamm número um folheou discretamente o seu bloco de estenografia, e o ruído delicado das folhas de papel que ela virava ressoou no silêncio da sala de conferências. Preysing parecia um bebezinho zangado; às vezes, sucedia meter a cabeça por trás da fisionomia do diretor-geral um menino cabeçudo e teimoso. Zinnowitz, com a sua caneta de malaquita, desenhava resignados triângulos na capa de um documento.

— Acho que por enquanto não tem sentido nenhum continuarmos a nossa conversa — disse finalmente Gerstenkorn. — Acho que podemos continuar a nos entender por escrito.

Ele se levantou, e a sua cadeira deixou sulcos fundos no tapete espesso, legítimo, da sólida sala de conferências. Mas Preysing continuou sentado. Tirou cuidadosamente um charuto do bolso, cortou-lhe a ponta cerimoniosamente, acendeu, tirou uma tragada e começou a fumar, com uma expressão absorta e profundamente pensativa; suas bochechas se tinham avermelhado, cheias de veiazinhas salientes.

Não há dúvida de que o Diretor-Geral Preysing é um homem honestíssimo, de caráter, bom esposo e bom pai, um homem ordeiro e organizado, da mais consolidada burguesia. Sua vida está toda em ordem, tudo registrado e em cartas, oferecendo um aspecto agradável: uma vida de caixas de fichas, de pastas de documentos, de muitas gavetas e muito trabalho. Preysing nunca cometeu a mínima falta de correção. No entanto, deve existir nele um ponto fraco, onde a vida o quer segurar e abater; uma insignificante inflamação, uma manchinha microscópica na limpeza burguesa de seus trajes, deve existir, no entanto...

Ele não chamou por socorro, nesse momento em que a conferência se interrompeu, apesar de se sentir muito mal, com a sensação de que precisava pedir auxílio e gritar por socorro. Levantou-se com o charuto na boca, segurando-o fortemente entre os dentes, e teve a impressão perfeita de estar bêbado, quando pôs as mãos nos bolsos.

— Que pena — disse ele negligentemente, admirando-se do tom despreocupado dessa frase que roçou subitamente o charuto em sua boca. — É realmente pena. Adiar é o mesmo que terminar. Pois então, ponto final. E agora que os senhores desistiram do negócio, posso dizer-lhes que o contrato com Burleigh & Son está firmado. Desde ontem à noite. Recebi hoje de manhã a notícia.

Tirou a mão do bolso do colete, e nela estava metido o telegrama dobrado: Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann. Foi tomado de um infantil e triunfal prazer de enganar os outros, enquanto dizia aquela mentira enorme, que raiava a fraude, e punha o telegrama sobre o pano verde da mesa. Ele próprio não sabia se queria passar um blefe nos outros ou estava procurando uma boa saída para sua posição desacreditada. Schweimann, o mais indisciplinado dos dois homens da Chemnitz, estendeu o braço, num movimento instintivo para pegar o telegrama. Preysing, muito calmo, abriu o telegrama, dobrou-o novamente, e, com um gesto calmo e refletido, meteu-o de novo no bolso do colete. O Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, fez uma cara de idiota. O conselheiro Zinnowitz soltou um assobio leve e agudo, realmente estranhável, partindo da sua boca sábia de chinês.

Gerstenkorn começou a rir, com acessos de tosse bronquial.

— Meu caro — tossiu ele —, caríssimo! O senhor é muito mais sabido do que parece! Homem de Deus! O senhor nos pregou uma boa! Olhe aqui, precisamos conversar sobre isso!

Gerstenkorn se sentou. O diretor-geral, ainda por alguns segundos com um sentimento de vazio, como se todos os seus ossos tivessem ficado ocos e como se sentisse um esquisito e brando tremor nos joelhos, sentou-se também. Tinha mentido pela primeira vez na vida, e ainda por cima de um modo idiota, completamente simplório e sem base. E com essa mentira — justamente com ela — havia conseguido pela primeira vez, após tantos fracassos, impor-se de novo. De repente ouviu a própria voz a falar, e a falar bem. Sentiu-se tomado de uma estranha e desconhecida embriaguez; ouvia a própria voz, e tudo o que dizia tinha pés e cabeça, energia e visão. O fundador do Grande Hotel olhava fixamente para ele, muito admirado, lá do alto do seu retrato a óleo, com seus olhos pintados cintilantes. A Flamm número um curvara o rosto penugento sobre o bloco de estenografia, e estenografava rapidamente — porque agora, parecia, chegariam a um acordo final, cada palavra proferida se tornava importante.

Até o fim da conferência, que durou ainda três horas e vinte minutos, Preysing conservou-se nesse novo estado de ânimo, que lhe dava a impressão de estar voando. E só quando pegou a caneta-tinteiro de malaquita verde para assinar seu nome ao lado da assinatura de Gerstenkorn, no contrato prévio, notou que as suas mãos estavam úmidas e estranhamente sujas.


10

— O 218 quer que o despertem às nove horas — disse o porteiro ao praticante Georgi.

— Ele vai embora? — perguntou o rapazinho.

— Embora por quê? Qual nada, ele vai ficar.

— Pensei que ia. Ele nunca pediu que o acordassem ... — disse Georgi.

— Pois agora pode acordá-lo — respondeu o porteiro.

E assim, às nove horas em ponto, o telefone tilintou no quartinho ridiculamente minúsculo do Dr. Otternschlag.

Apressado como um homem cheio de ocupações, Otternschlag esforçou-se por libertar-se da nebulosidade dos sonhos e despertar, e em seguida admirou-se de estar acordado.

— O que foi? — perguntou a si próprio e ao telefone. — O que foi?

Depois ficou em silêncio durante alguns minutos, concentrando-se e procurando lembrar-se, com o rosto desfigurado encostado no linho macio do travesseiro do hotel. "Atenção", pensou ele, "é aquele homem, é o Kringelein, esse coitado. Precisamos mostrar-lhe o que é a vida. Ele está à minha espera. Já está sentado à mesa, na sala do café, esperando."

— Vamos levantar-nos e nos aprontar? — perguntou a si mesmo. — Vamos sim — respondeu depois de fazer um esforço, porque ainda tinha uma bela dose de morfina nos ossos. Apesar disso, seu rosto e seus movimentos, enquanto se vestia, pareciam exprimir um certo entusiasmo. Alguém esperava por ele. Alguém precisava dele. Alguém lhe demonstrava gratidão. Com um pé de meia na mão, sentado na beira da cama, começou a fazer planos e decidir o que fazer. Fez o programa para o dia, ocupado como um guia de viagens, um mentor, um homem importante e procurado. A camareira que tinha ido buscar no quarto vizinho ao 218 a vassoura e o balde ouviu, admiradíssima, o Dr. Otternschlag cantarolar com voz incerta uma melodia, enquanto ia escovando os dentes.

Entretanto, Kringelein se encontrava na sala de café, ainda exausto, excitado e animado, após sua cansativa vitória sobre o senhor Diretor-Geral Preysing, no barbeiro; há dez minutos tinha travado relações, com extremo prazer, com o Barão von Gaigern, relações distintas, encantadoras. Gaigern tinha agido depressa. Saíra da noite com a Grussinskaia sem as pérolas, e passara diretamente a uma explicação murmurada, mas dura como granito, com o chofer. Logo em seguida — após tomar banho, fazer ginástica e friccionar o corpo com água de alfazema — atirara-se sobre o senhor provinciano do 70, com o qual ele talvez pudesse arranjar de um modo ou de outro os milhares de marcos de que precisava com mais premência. Estava transbordando de impaciência, uma impaciência radiante de felicidade, tensa e ardente. Havia-se separado da Grussinskaia há uma hora apenas, e já sentia uma saudade louca, uma saudade alegre e delicada. Sua cabeça queria estar de novo com ela, sua pele, seus dedos, seus lábios, tudo a desejava novamente, o mais depressa possível. Gaigern sorveu, faminto de vida e de energia, esse sentimento desconhecido como costumava acolher dentro de si as novas experiências. O élan com que ele aguardava a tentativa com Kringelein era enorme. Com uma rapidez que se poderia chamar de tempo recorde, em quinze minutos conseguiu ganhar uma grande dose de confiança. Esmagado, Kringelein abriu sua pequena alma de funcionário, indecisa, ansiosa de vida e preparada para a morte — e o que ele não disse ou não soube exprimir Gaigern adivinhou. Quando Kringelein, às nove horas e catorze minutos, limpou no pequeno guardanapo do hotel o seu esforçado bigode, os dois já eram amigos.

— Imagine, senhor barão — dizia Kringelein —, imagine que eu tenha recebido por acaso algum dinheiro, depois de ter vivido sempre uma vida modestíssima, realmente modestíssima. Uma pessoa como o senhor barão não pode fazer sequer uma ideia de uma vida assim. É o medo da conta do carvão, o senhor compreende? Ou então não se pode ir ao dentista, vai-se deixando de um ano para outro, e de repente perdem-se quase todos os dentes, não se sabe como. Mas não quero falar dessas coisas. Anteontem comi pela primeira vez na vida caviar, ou coisa parecida. Quando o nosso diretor-geral tem reuniões em casa, manda vir caviar de Dresden, aos quilos. Bem, caviar, champanha e todos esses luxos não são a vida, dirá o senhor barão. Mas o que é a vida? Veja, barão, eu não sou mais um homem moço, sou meio doente, e de repente fiquei com receio de não poder aproveitar a vida. Eu não quero deixar passar a vida sem aproveitá-la, o senhor compreende?

— Nunca deixamos de aproveitar a vida! Ela está sempre ao nosso dispor, nós vivemos e é quanto basta. A gente vai vivendo, é isso — disse Gaigern.

Kringelein fitou aquele moço bonito e animado, e talvez suas olheiras, por detrás dos óculos, se tenham ruborizado um pouco.

— Pois é. Naturalmente, para o senhor, a vida está sempre presente, cada minuto que passa. Mas para gente como nós...? — disse ele baixinho.

— É engraçado. O senhor fala da vida como se ela fosse um trem que vai passando, e que o deixa para trás. Há quanto tempo o senhor anda atrás dela? Há três dias? E ainda não conseguiu pegá-la pela cauda, apesar do champanha e do caviar? O que o senhor fez ontem, por exemplo? Museu Kaiser-Friedrich, Potsdam, à noite teatro? Meu Deus do céu! Do que foi que mais gostou? De que quadro? Como? Não reparou... naturalmente. E no teatro... a Grussinskaia? É... a Grussinskaia — repetiu Gaigern, sentindo no coração, ao pronunciar esse nome, um calor repentino, como se fosse um rapazinho tolo. — O que está dizendo? O senhor ficou triste, era tão poético? Pois é, é mais ou menos isso. Mas tudo isso não tem nada que ver com a vida, senhor diretor. — Dizia "senhor diretor" por pura amabilidade, porque não gostou do nome de Kringelein, ridículo e desataviado; e Kringelein corou, feliz e intrujão. — A vida, a vida é... veja: às vezes encontram-se na rua esses caldeirões de piche, fervendo, em ebulição, soltando fumaça, fedendo como a peste a quilômetros de distância. Mas aproxime-se de um caldeirão desses e conserve a cabeça sobre ele, meta o nariz na fumaceira do alcatrão. É uma coisa estupenda, quente, com um cheiro forte e acre, que quase nos derruba no chão, e as gotas grossas e pretas brilham, e há força ali dentro, nada de doçuras nem de coisas insossas. Ah! Caviar! O senhor quer aproveitar a vida, e se eu lhe perguntar que cor têm os bondes de Berlim, o senhor não sabe, porque nunca reparou neles. Aliás, ouça, senhor diretor: com uma gravata como a sua, o senhor nunca poderá tomar o trem da vida; dentro de um terno como o seu ninguém pode se sentir feliz. Digo-lhe isso abertamente, porque não tem sentido nenhum ficar fazendo cumprimentos. Se o senhor confiar um pouco em mim, para apressar as coisas, precisamos primeiro ir ao alfaiate. O senhor está com dinheiro, livro de cheques... não. Faça o favor de arranjar dinheiro, mesmo! Enquanto isso eu vou buscar o meu carro na garagem. O meu chofer está de licença, deixei que o rapaz fosse ver a noiva em Springe; eu mesmo vou guiar.

Kringelein tinha a impressão de que um vento forte lhe batia nos ouvidos. A observação a respeito da sua gravata — comprada por dois marcos e cinquenta — e o seu bonito terno, na verdade, o haviam magoado. Pôs timidamente a mão no colarinho, largo demais.

— Pois é — disse Gaigern —, é muito grande, e vê-se o botão. Assim não pode, naturalmente!

— É que eu pensei... Eu não queria gastar dinheiro em roupa — murmurou Kringelein, vendo bailar vertiginosamente as cifras em seu caderno de notas. — Em outras coisas eu gasto de boa vontade, mas não em roupa.

— E por que não em roupa? Isso é o principal.

— Porque... não vale mais a pena — respondeu Kringelein, baixinho, com as amaldiçoadas lágrimas soltas a queimar-lhe de novo o canto dos olhos. Que maldição! Ele não podia se lembrar do seu fim próximo sem ficar comovido. Gaigern olhou para ele, descontente. — Não vale a pena, realmente... quero dizer... não terei por muito tempo a oportunidade de usar roupas novas. Pensei que... que as velhas ainda fossem servindo — sussurrou com um sentimento de culpa.

"Meu Deus, será que todos os homens têm uma xícara de chá com veronal preparada para tomar?", pensou Gaigern, a quem as carícias dessa noite haviam tornado sensível.

— Não se deve calcular assim — disse ele amavelmente. — Não se deve calcular, Herr Kringelein. Os cálculos nos saem errados. No momento adequado o senhor deve estar com a disposição adequada. Eu sou um homem do momento, e tenho-me dado bem com isso. Vamos, ponha no bolso algumas notas de mil marcos, e depois veremos se a vida não é uma coisa divertida. Avante!

Kringelein se levantou, obediente; tinha a sensação de rodopiar perigosamente dentro do turbilhão de uma cratera. "Algumas notas de mil marcos", pensou ele, como se estivesse atrás de um nevoeiro. Já estava acompanhando Gaigern, enquanto seus pensamentos ainda resistiam, e as paredes da sala de café dançavam à sua volta. Os pés desenraizados de Kringelein, metidos nas botinas de cano alto, iam tropeçando passivamente pelos corredores do hotel; ele sentia medo. Sentia um medo doido de Gaigern, das despesas, do alfaiate caro, tinha medo do automóvel cinza-claro, em que se meteram no assento da frente, perto da direção, tinha medo da vida que, no entanto, não queria deixar de aproveitar. Apertou com energia seus molares estragados, calçou as luvas de tricô, e começou seu dia feliz.

O Dr. Otternschlag, que às dez para as dez andava ao longo das paredes do hall, à procura de Kringelein, recebeu do porteiro uma carta entregue pessoalmente.

Prezado Dr. Otternschlag! — estava escrito. — Infelizmente, por motivos imprevistos, vejo-me impedido de comparecer ao nosso encontro. Saudações respeitosas do amigo At. Obr. Otto Kringelein.

O estilo era de Kringelein, ainda, mas sua ortografia tinha-se modificado um pouco. Na escrita fluente de guarda-livros, haviam-se imiscuído uns traços informes, e os pingos dos ii pareciam querer voar como balões que se desprendem do fio para estourar nos céus, solitários e com um pequenino e trágico estampido que ninguém ouve.

O Dr. Otternschlag ficou com a mão estendida, segurando a carta. O hall era um deserto, cheio de horas infindáveis e vazias. Passou pelo balcão dos jornais, pelas flores, por pessoas que saíam do elevador, pelas colunas, até chegar ao seu lugar habitual. "Horrível", pensou ele. "Terrível. Medonho." As pontas de seus dedos, plúmbeas e cor de fumo, lhe pendiam das mãos, e com o olho cego ele fitava a mulher da limpeza que, em desacordo com os regulamentos, começava a varrer com serragem úmida, em pleno dia, o hall do Grande Hotel.

É intensa a angústia que Kringelein sente, de pé, na sala de provas da enorme alfaiataria para homens. Três elegantes cavalheiros estão ao seu redor, ocupadíssimos, e doze Kringelein deploráveis refletem-se nos espelhos, aproximando-se uns dos outros em ângulos agudos. Um senhor elegante está ao lado, observando Herr Kringelein com as pálpebras meio cerradas, um olhar de conhecedor, e murmurando palavras incompreensíveis. Sentado num banquinho estofado, sob os retratos de artistas de cinema incrivelmente belos, está o Barão Gaigern, batendo as luvas pespontadas na palma da mão, e desviando de Kringelein o olhar, como se se envergonhasse dele.

Começaram a vir à luz coisas lamentáveis, segredos do guarda-livros Otto Kringelein, de Fredersdorf. Seus suspensórios estão rasgados, costurados, rasgados de novo, e finalmente muito mal consertados, com um barbante. O colete, que lhe ficara muito largo, fora ajustado por Anna, que lhe fez nas costas duas pregas costuradas ao enchimento por meio de pespontos.

Kringelein usa as camisas de seu pai, grandes demais para ele, pelo que meteu umas ligas na parte superior dos braços, para arregaçar as mangas compridíssimas. Usa abotoaduras de tempos pré-históricos, redondas, do tamanho de discos de chapa de fogão, tendo no centro uma esfinge de esmalte vermelho diante de uma pirâmide de esmalte azul. A gigantesca camisa é de um tecido grosso de cor indefinível, tendo na frente apenas um pedacinho de zefir listrado, como uma pequena vitrina na fachada principal. Debaixo da camisa de lã espia ainda qualquer outra coisa também de lã, um coletinho já no fio, cerzido com pontos grosseiros. Por baixo disso, um pedacinho de pele de gato, o que parece ser bom contra dores de estômago e calafrios misteriosos. Os cavalheiros elegantes não mudam de expressão — Kringelein teria preferido que fizessem caçoada dele ou o consolassem.

— Nunca me incomodei muito com a moda. Sou um homem antiquado — diz ele em tom implorante, desculpando-se diante da cortesia gelada dos homens. Ninguém lhe responde. Vão lhe tirando as camadas, uma após outra, como de uma cebola. É um tanto cruel o que está sucedendo com Kringelein, completamente indefeso. Pouco a pouco ele vai se sentindo mal, como na sala de operações, pois agora também há uma claridade vítrea nas coisas, e tudo parece estar muito próximo dele. Depois, os três cavalheiros começam a vesti-lo.

Gaigern se anima, e dá conselhos.

— Fique com isso — diz ele; e —, não fique com isso.

Parece que não é possível contrariar as suas decisões. Kringelein olha de lado para os papeluchos com o preço, presos às peças de vestiário, reparando sempre apenas no preço; não ousa fazer perguntas, a princípio, mas por fim se enche de coragem e começa a querer saber os preços.

Assusta-se de tal modo que tem vontade de sair correndo; a sala de provas parece uma cela com quatro guardas severos e paredes de espelho. Kringelein está todo suado, apesar de o terem libertado de seus agasalhos de lã, que estão enrolados num montinho sobre uma cadeira, com um aspecto de ilimitada miséria, repulsivos. De repente, eles deixaram de pertencer a Kringelein; causam-lhe nojo tais peças de vestuário, remendadas, suarentas e de cor indefinível, essa roupa de um pobre-diabo. Mas, de um momento para outro, qualquer coisa se passa com ele. Fica gostando da camisa de seda que o forçaram a vestir.

— Ah! — diz Kringelein, com a cabeça inclinada e a boca aberta, como se fosse ouvir algum segredo. — Ah, ah!

Sua pele se alegra e trava amizade, gostosamente, com a camisa de seda de delicado padrão. O colarinho se ajusta exatamente ao pescoço, não esfrega, não é nem largo nem apertado demais, a gravata nova cai lisa e macia sobre o peito de Kringelein, onde o coração bate agora como em misteriosa festa — forte, um tanto dorido, mas aliviado. Agora colocam diante dele meias e sapatos, com grande solicitude; Gaigern explicou, em poucas palavras, que o senhor diretor está enfermo, e então trazem dos quatro andares da casa de artigos para homens tudo o que um homem distinto precisa para se vestir. Kringelein envergonha-se medonhamente de seus pés; de súbito tem a impressão de que toda a miséria e o aperto da sua vida estão visíveis nesses pés com joanetes crescidos, pelo que procura se esgueirar com as novas meias e botinas para um canto, coloca suas costas curvas entre si mesmo e os outros, como uma parede, e começa, sem nenhuma prática, a lutar com os cordões. Em seguida vestem-lhe um novo terno, escolhido pelo barão.

— O senhor diretor está com uma aparência maravilhosa — diz um daqueles cavalheiros. — Assenta-lhe como se fosse feito sob medida.

— Não é preciso modificar nada — diz o segundo.

— Perfeito. Nós temos poucos fregueses com um corpo tão esbelto — afirma o terceiro.

Empurram Kringelein para a frente do espelho, e o obrigam a girar no seu eixo como se fosse uma boneca de madeira, magra e paciente.


11

 

E, justamente no momento em que Kringelein voltou do espelho para o seu interior, sentiu pela primeira vez, como um pressentimento, que estava vivendo. Sim, tinha a sensação de existir, conhecia-se a si mesmo, com um abalo tão violento como se o atingisse um raio. Nesse momento, um homem estranho, de porte delicado e distinto, aproximou-se dele com expressão confusa, um homem que era ele próprio, de modo extremamente íntimo, o verdadeiro Kringelein, o Kringelein enterrado, de Fredersdorf — mas isso logo passou. No instante seguinte já não era novidade, o milagre da transformação já se dera.

Kringelein respirou profundamente, com energia, porque parecia querer despertar em seu corpo uma dorzinha aguda.

— Acho que este terno me fica bem, não? — perguntou ele, de modo infantil, a Gaigern.

O barão ainda fez mais; aproximou-se e, com suas próprias mãos, grandes e quentes, arrumou o novo terno nos ombros de Kringelein.

— Sou de opinião que este terno é o suficiente — disse Kringelein aos três cavalheiros.

Apalpou o tecido com os dedos, às escondidas, porque entendia bastante de tecidos, isso se sabia em Fredersdorf, mesmo quando só se trabalhava no escritório.

— É um bom tecido; sou conhecedor — afirmou ele, respeitosamente.

— Artigo inglês legítimo. Nós mandamos trazê-lo diretamente de Londres, de Parker Brother & Co. — respondeu o senhor de pálpebras fechadas.

"Preysing não usa tecidos assim", pensou Kringelein. Os ternos de Preysing costumavam ser daquele mesmo tecido sólido de estamenha cinzenta, de que a fábrica ainda possuía um estoque antigo, e todos os anos, pouco antes do Natal, era vendido aos empregados por baixo preço. Kringelein decidiu-se. Tomou posse desse terno, enfiando ambas as mãos nos bolsos novos e limpos.

Seu medo transformou-se repentinamente na felicidade de comprar e de possuir; pela primeira vez na vida Kringelein tem a sensação de vertiginosa leveza que acompanha o ato de gastar dinheiro. Ele passa através dos muros, por trás dos quais ele morou toda a vida. Compra, compra, sem perguntar o preço, vai comprando. Apalpa tecidos, sedas, alisa abas de chapéus, experimenta coletes, gravatas, cintos, coloca uma cor perto de outra e sorve com delícia a combinação harmoniosa de tons.

— O senhor diretor tem um extraordinário bom gosto — diz um dos cavalheiros.

— Um gosto delicado — afirmou o outro —, correto, distintíssimo.

Gaigern assiste a tudo sorrindo, um tanto impaciente, e faz elogios. Caceteado, olha as próprias mãos; a direita está tão vazia, desde que ele deu o anel de sinete de presente... Disfarçadamente, leva-as até o rosto, para ver se ainda conservam um pouco do perfume dessa noite, agridoce, ao mesmo tempo perigo e calma, Neuwjada, a florzinha que cresce nas campinas.

Kringelein compra um terno marrom, muito confortável, de um tecido cardado inglês, uma calça cinza-escura, com delicadas listras claras, que combina com um paletó estreito; compra também um smoking, no qual é preciso mudar apenas alguns botões; roupa de baixo, camisas, colarinhos, meias, gravatas, uma capa igual à de Gaigern, um chapéu macio, espantosamente leve, com a marca dourada de uma firma de Florença, e finalmente, pegando um par de luvas de camurça pespontadas, iguais às de Gaigern, dirige-se à caixa. Ali estão a fazer uma conta amabilíssima — Kringelein fala com rapidez e facilidade, porque ouve o jargão dos livros-caixa, tão seu conhecido, desde o livro-razão ao livro-matriz. Paga mil marcos à vista, e o resto em três prestações.

— Então! — exclamou Gaigern, satisfeito.

Uma fila de dorsos inclinados, numa saudação, acompanha Kringelein, encantado e transformado, até a porta de espelhos da loja. Lá fora faz sol, mas está frio. O ar tem um sabor de vinho gelado, acha Kringelein, de passagem. Até agora ele sempre se arrastou. Agora ele anda. Tem que dar três passos, da entrada da loja de primeira ordem até a limusine cinza-clara, e ergue três vezes, do calçamento da rua, as solas novas dos seus sapatos.

— Está satisfeito? — pergunta Gaigern, rindo-se e dando a deixa. — Está notando alguma coisa? Sente uma sensação agradável?

— Fantástico! Maravilhoso! Ótimo! — replica Kringelein, tomando a expressão de um homem experimentado, sentado ao volante do carro.

Tira os óculos e esfrega com o polegar e o indicador a beirada dos olhos; é um gesto cansado e que lhe é habitual.

Vem-lhe ao pensamento a ideia de que não estará mais vivo, quando vencer a última prestação.

 

Gaigern sentia a impaciência nos dedos, causava-lhe comichão como ácido carbônico, entre as mãos e a direção. Nos cruzamentos das ruas havia lâmpadas vermelhas, verdes e amarelas, guardas que o ameaçavam com a mão, sorridentes. O carro passava em disparada pelas casas, pelas árvores, colunas de cartazes, ajuntamentos de pessoas nas esquinas, pelas carroças de frutas, muros com cartazes e velhas senhoras amedrontadas, que, com passos miúdos, andavam no leito da rua sem observar o sinal de trânsito, velhas senhoras vestidas de preto e de saias compridas, em pleno mês de março. O sol brilhava, úmido e amarelo, no asfalto. Quando um ônibus pesadão impedia o caminho, o carrinho de quatro lugares gritava com duas buzinas; parecia o latido de cães excitados.

Em Fredersdorf havia muita gente que nunca tinha andado de automóvel. Anna, por exemplo, nunca tinha andado de carro. Mas Kringelein estava andando. Apertou os lábios com força, inteiriçou os músculos sob as axilas, e seus olhos ficaram lacrimejantes pelas correntes de ar. Assustava-se nas curvas, e seu coração arfava sob a camisa de seda nova. Era o mesmo prazer medroso da infância, quando na feira anual de Mickenau, no outono, se podia andar de carrossel três vezes seguidas, por um groschon.

Kringelein arregalava os olhos para ver Berlim, que rapidamente se entremostrava sob aspectos deformados. Ainda se recordava bem da grande cidade. A Porta de Brandenburgo, por exemplo, reconheceu-a de longe, assim como a Gedaechtniskirche, à qual dirigiu um olhar respeitoso.

— Para onde estamos indo? — gritou ele ao ouvido direito de Gaigern. O ronco do motor lhe parecia fortíssimo, e ele se sentia no meio de estrondos e de uma tempestade.

— Para os arredores da cidade, a fim de almoçar. Para lá do Avus — respondeu Gaigern com jovialidade.

A rua parecia penetrar dentro do carro, cada vez com mais velocidade. Chegaram às proximidades da torre da emissora. Kringelein já estivera ali no dia anterior, com o Dr. Otternschlag, numa noite nublada, cansado, impossibilitado de receber novas impressões. Os estranhos átrios, lisos, novos e por terminar, na parte exterior, o haviam acompanhado nos sonhos e, agora, a realidade e o sonho se apresentavam em duas camadas sobrepostas, um tanto ameaçadoras e incompreensíveis.

— Ainda vão terminar isso? — gritou Kringelein apontando para os átrios da exposição.

— Já está pronto — foi a resposta.

Kringelein admirou-se. Era tudo nu como uma fábrica, mas não feia, como a de Fredersdorf.

— Que cidade engraçada — exclamou ele, sacudindo a cabeça e ficando ainda mais vesgo.

Levou um choque com um solavanco do carro, e a pele do seu crânio se encolheu, mas foi coisa sem importância. É que Gaigern havia parado na porta norte do Avus, e em seguida continuaram de novo a viagem.

— Agora nós vamos mesmo — afirmou Gaigern; e, antes que Kringelein pudesse perceber do que se tratava, ele partiu.

Começou com uma corrente de ar que foi esfriando lentamente, e que batia contra o rosto de Kringelein cada vez com mais força, como bofetadas. O carro começou a cantar com um som grave que se foi elevando, e ao mesmo tempo aconteceu uma coisa pavorosa com as pernas de Kringelein. Ele tinha a sensação de que elas se enchiam de ar, cujas bolhas lhe subiam aos joelhos, que pareciam querer estourar. Por vários segundos incríveis ele não podia respirar mais, e durante um instante pensou que iria morrer.

— Isto é a morte. Vou morrer.

Com o peito comprimido, aspirava o ar com dificuldade; o carro deslizava por coisas irreconhecíveis, vermelhas, verdes, azuis; árvores que se atiravam de encontro aos seus óculos; depois, um ponto vermelho se transformou em um automóvel e, logo a seguir, caiu no vazio, por trás do seu carro — e Kringelein continuava sem conseguir respirar. Seu diafragma conhecia agora novas sensações, nunca antes imaginadas. Kringelein tentou virar o rosto em direção a Gaigern, e, vejam só, conseguiu virá-lo sem se machucar. Gaigern estava meio inclinado sobre a direção, e tinha calçado as luvas de camurça, mas sem abotoá-las; por qualquer motivo, isso dava a sensação de calma e ausência de perigo. Justamente quando o pedacinho de estômago que restava a Kringelein queria começar a subir à garganta, Gaigern se pôs a rir com os lábios fechados. Apontou com o queixo, sem tirar os olhos do fuso sibilante da estrada do Avus, para um lugar qualquer, e Kringelein lançou um olhar obediente. Como não era tolo, compreendeu, após refletir um pouco, que havia sido o marcador dos quilômetros, diante dele. O ponteirinho vibrava de leve, mostrando o número 110. "Que diabo!", pensou Kringelein. Engoliu seu amedrontado pomo-de-adão e inclinou-se para a frente, entregando-se ao impulso da velocidade. Súbito tomou posse dele o prazer da sensação de perigo, um prazer penetrante e assustador. Mais depressa! pedia dentro dele um novo Kringelein, desconhecido e delirante. O carro concordou: 115. Durante alguns segundos parou nos 118, e Kringelein desistiu, de uma vez, de respirar. Tinha vontade de se precipitar, sibilando, nas trevas. "Avante, para a frente, explosão, choque, ponto final da corrida desenfreada!", era o pensamento que lhe ocorria. "Nada de leito de hospital," pensou; "é preferível uma fratura no crânio." À passagem do carro, em disparada, ainda continuavam a bramir os anúncios; as distâncias entre eles foram aumentando; depois, os trapos cinzentos ao lado da estrada se transformaram em bosques de pinheiros. Kringelein via árvores que se iam aproximando e em seguida se desviavam do carro. Era como no carrossel de Mickenau pouco antes de parar. Nas tabuletas de anúncios ele lia agora nomes de marcas de óleos, de pneus e de automóveis; a correnteza de ar tornou-se mais branda, e deslizava por sua garganta adentro. O ponteiro caiu para 60, a agulha oscilou um instante ainda, entre 50 e 45, e eles deixaram o Avus pela porta sul, desfilando burguesmente por entre as villas do Wannsee.

— Puxa, agora me sinto mais leve! — disse Gaigern, abrindo o rosto num sorriso. Kringelein tirou as mãos das almofadas de couro em que se agarrara até então, e foi relaxando com todo o cuidado os músculos contraídos das mandíbulas, dos ombros e dos joelhos. Sentia-se completamente exausto e absolutamente feliz.

— Eu também — respondeu ele, e estava dizendo a verdade.

Falou muito pouco enquanto estiveram sentados no terraço envidraçado, completamente vazio, de um restaurante à margem do Wannsee, olhando os barcos a vela cobertos com lonas, balançando à tona da água. Precisava refletir sobre a sensação que experimentara, o que não era assim tão fácil. "O que é a velocidade?", pensou. "Não a vemos nem tocamos, e isso de medi-la deve ser uma impostura. Como é possível que ela vá passando, e seja mais linda do que a música?" Ainda sentia tudo girando, mas era uma sensação agradável. Tinha trazido o frasquinho de Bálsamo de Vida do Dr. Hundt, mas não tomou o remédio.

— Preciso agradecer-lhe este passeio maravilhoso — disse ele, procurando com ar solene expressões escolhidas, de acordo com os ambientes em que estava vivendo agora.

Gaigern, que só comia alimentos baratos, espinafre com ovos, sacudiu a cabeça: — Eu me divirto com essas coisas — disse ele. — O senhor sente isso pela primeira vez. É raríssimo encontrarmos pessoas que tenham uma sensação pela primeira vez...

— Mas o senhor também não dá a impressão de ser um homem blasé, se me permite esta observação — replicou Kringelein com desembaraço.

Já se sentia à vontade em suas novas roupas, já estava em casa dentro da sua camisa de seda; sentava-se de outra maneira, comia de outra maneira, e suas mãos, que lhe pareciam mais delgadas, avançando pelos punhos da camisa, com as unhas feitas por uma bonita manicura, no subterrâneo do hotel, lhe davam enorme prazer.

— Meu Deus do céu, eu, blasé? — exclamou Gaigern, satisfeito. — Não. De modo nenhum. Mas é que gente como eu tem uma vida cheia. — Não pôde deixar de sorrir. "O senhor tem razão. Para gente como eu também existem coisas inteiramente novas, que se experimentam pela primeira vez, coisas engraçadas...", acrescentou consigo mesmo.

Bateu de leve seus bonitos dentes uns nos outros, pensando na Grussinskaia. Seus ossos estavam cheios de ávida impaciência. O tempo que tinha de esperar para que pudesse ter de novo em seus braços a figurinha delicada, tão necessitada de amparo, e ouvir novamente seu gorjeio tristonho de passarinho, parecia-lhe uma extensão imensurável e deserta. Deu um prazo de três dias a si próprio, sapateando, interiormente, de impaciência, para arranjar de qualquer modo alguns milhares de marcos que acalmariam seus companheiros e lhe facultariam a viagem a Viena. Por enquanto, empenhava-se, com a maior amabilidade, em agradar Kringelein, com a esperança em qualquer solução favorável.

— E agora, qual é a continuação do programa? — perguntou Kringelein, dirigindo para ele uns olhos fiéis e agradecidos. Gaigern simpatizava com esse provinciano calmo, sentado diante dele como uma criança durante a distribuição dos presentes de Natal. A amabilidade e a simpatia humanas estavam de tal modo enraizadas na personalidade de Gaigern, que suas vítimas recebiam sempre uma boa parte do seu calor.

— Agora vamos voar — disse ele, com o tom acalentador de uma ama de leite. — É muito agradável e não tem o menor perigo, é muito menos perigoso do que uma corrida desenfreada de automóvel.

— Corremos perigo, há pouco? — - perguntou Kringelein, admirado.

O medo que sentira parecia-lhe agora quase um prazer, depois de vencido.

— Sem dúvida — afirmou Gaigern. — Cento e dezoito quilômetros não é brincadeira, e a estrada estava úmida... Parece incrível que, com um tempo destes, ela fique tão escorregadia. Não há dúvida de que o carro corre sempre o risco de derrapar. A conta — disse, voltando-se com cortesia para o garçom, e pagando seu espinafre com ovos. Sobravam-lhe na carteira apenas vinte e quatro marcos.

Kringelein também pagou; havia tomado apenas umas colheradas, de sopa, porque não confiava ao seu estômago coisas excitantes e indigestas. Quando meteu no bolso a carteira que trouxera ainda de Fredersdorf, teve a visão fugaz e agora pouco importante do seu caderno de despesas, com capa de oleado. Até esse dia havia anotado suas despesas, Pfennig por Pfennig, desde os nove anos de idade, em caderninhos assim. Agora acabou-se. Nunca mais faria isso de novo. Mil marcos numa tarde não era possível anotar. Uma parte da ordem do mundo concebida por Kringelein tinha se destruído, numa derrocada silenciosa e sem estardalhaço. Kringelein, que Gaigern foi seguindo pelo terraço vazio do restaurante até o carro, movia os ombros com delícia, sob o novo sobretudo, o novo terno e a nova camisa. Agora, por onde quer que ele passasse, havia indivíduos que se inclinavam. "Bom dia, senhor diretor-geral", pensou ele, vendo-se colado a uma parede, a parede caiada de verde-cinza do segundo andar dos escritórios de Fredersdorf. Guardou no bolso os óculos ao sentar ao lado de Gaigern, expondo os olhos nus à fresca e cintilante atmosfera de março, e com um vivo sentimento de simpatia e de confiante gratidão ouviu o ruído do motor.

— A Chaussee ou o Avus de novo? — perguntou Gaigern.

— O Avus, de novo — respondeu Kringelein. — E na mesma velocidade — acrescentou em voz baixa.

— Ah!... O senhor tem coragem — disse Gaigern, pondo o pé no acelerador.

— É... coragem eu tenho — respondeu Kringelein, com os músculos tensos e o corpo inclinado para a frente, de lábios entreabertos, preparado para entregar-se inteiramente à vida.

 

Kringelein, debruçado na grade branca e vermelha do aeroporto, procura habituar-se a esse mundo assombroso que, desde a manhã desse dia, vem ao encontro dele. Ontem — há um século — ele subia no elevador, para ir ao restaurante da torre da emissora, fatigado, sonolento, imerso em sonhos; não estava se divertindo, e os comentários pessimistas do Dr. Otternschlag ainda tornavam tudo mais problemático e fantasmagórico. Anteontem — há mil anos — ele era um auxiliar de guarda-livros no escritório de contabilidade da Algodoeira Saxônia S.A., de Fredersdorf, um empregadinho enfezado, entre trezentos outros empregadinhos enfezados, de terno de sarja cinzenta e com um ordenado minguado, do qual era preciso tirar ainda o desconto para a Caixa de Previdência. Hoje, agora, ele está à espera do piloto que, por um alto preço, vai levá-lo em um enorme voo circular, em viagem especial. É um desses pensamentos impossíveis de serem levados até as últimas consequências, apesar de Kringelein se sentir animado e concentrado como nunca.

É uma enorme mentira, a sua coragem. Tem um medo de cão, um medo horrível do divertimento que o espera. Ele não quer voar, não quer voar de modo algum. Tem desejos de voltar para casa — não, para Fredersdorf não, mas para o hotel, para o seu quarto 70, com os móveis de mogno e a colcha de seda; gostaria de estar deitado e não precisar voar.

Quando Kringelein saiu de casa para ir à procura da vida, pairava diante dele uma ideia nebulosa e informe; mas era uma coisa acolchoada e fofa, com pregueados e franjas, e arabescos enormes; leitos macios, pratos cheios, mulheres sensuais, em quadros e reais. Agora, que está experimentando a vida, e que, aparentemente, mergulhou em cheio nela, tudo se apresenta sob um aspecto diferente; é preciso satisfazer a uma série de exigências, a ventania corta-lhe as orelhas, e é preciso forçar paredões de angústias e de perigo para conseguir chegar a uma doce e embriagante gota de gozo da vida. "Voar", pensa Kringelein. Ele conhece a sensação do voo que se tem em sonhos. Seu sonho se apresenta assim: Kringelein se encontra no tablado da sala de Zickenmeyer; ao seu redor está o coral da associação, e ele canta um solo. Ouve sua bonita voz de tenor, canta notas agudas, cada vez mais agudas, cada vez mais. É facílimo, ele não precisa fazer nenhum esforço, é um prazer puro, fácil e naturalíssimo.

Finalmente, ele se deita no som mais agudo e suave, e voa sobre ele, acompanhado pela música das nuvens. A Associação Coral o acompanha com o olhar; primeiro, ele sobrevoa ainda abaixo do telhado local de Zickenmeyer, depois voa completamente só, à sua volta não se vê mais nada, e só bem no finzinho ele percebe que tudo não passou de um sonho, e que precisa voltar ao seu leito matrimonial, onde Anna dorme o sono deletério dos seus quarenta anos maltratados e rixentos. A queda é medonha, e o despertar é um grito na escuridão do quarto abafado, com as pequeninas vidraças, os armários cheirando a naftalina e o pequeno fogareiro de ferro, apagado, com uma panela cheia de água em cima.

Kringelein põe-se a piscar. "Voar", pensa ele retornando ao Aeroporto de Tempelhof. Ali também há cores fortes, como na torre da emissora e ao longo do Avus; amarelo, azul, vermelho e verde, em tons bem vivos. Torres misteriosas erguem-se no ar, tudo é simples e econômico, um vento cheio de poeira sopra sobre as manchas de asfalto do outro lado da grade, e as sombras das nuvens se apressam, para atingir a pista de decolagem. O pequeno aparelho que vai decolar já está pronto, três homens estão atarefados em torno dele; o motor ronca, sua hélice gira apenas por brincadeira. Diante de suas rodas baixas há uns blocos, suas asas prateadas, com estrias, estão vibrando. Outros pássaros pousam, saudados pelos gritos roucos de uma sereia — é assim que a fábrica de Fredersdorf chama, às sete horas da manhã — ou talvez tudo isso tenha sido apenas um sonho?... Outros pássaros se elevam, baixam pesados à terra, e erguem-se, muito leves, ao ar, ora cor de chumbo prateado, ora dourados, com firmes asas de madeira, e outros ainda, brancos, enormes, com quatro asas, e três hélices girando. O campo de pouso é tão grande, tão estranhamente silencioso... Os homens que estão ali são todos esbeltos, queimados de sol, alegres e calados, envolvidos em seus ternos folgados e seus barretes justos. Só os aparelhos têm voz, e latem com um latido rouco, como cães enormes, quando vão rodando sobre o campo.

Gaigern aproxima-se com o piloto, um senhor amável, com as pernas em O de antigo oficial de cavalaria.

Gaigern parece um cliente habitual, todos o cumprimentam e o conhecem.

— Vai partir logo — anuncia Gaigern. Kringelein, que já sabe por experiência própria o que significa o "partir" de Gaigern, leva um susto. "Socorro", pensa ele, "socorro, não quero voar!", mas não o diz, de forma alguma.

— Já vamos decolar? — perguntou com ar de homem experimentado, orgulhando-se da palavra que está usando pela primeira vez na vida.

Depois, Otto Kringelein senta-se, amarrado pela cintura com uma correia, em uma cômoda cadeira de couro, e arregala os olhos para o céu azul-cinza de março. Ao seu lado está Gaigern, assobiando baixinho, e isso o consola, nesse momento de debilidade total.

No começo, não é diferente de uma viagem de automóvel, aos solavancos; depois, o aparelho começa a fazer um ruído, rápido, infernal. De repente bate no solo com um solavanco, para trás, e eleva-se no ar. Não paira no espaço, tem mais dificuldades do que o tenor Kringelein, a cantar e a voar no seu sonho; o aparelho salta por impulsos no ar, como sobre degraus de vácuo; salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai. Agora a sensação desagradável não é nas pernas, como na viagem a cento e vinte quilômetros por hora, mas na cabeça. Os ossos do crânio de Kringelein zumbem, tornam-se muito delgados, completamente vítreos, de modo que ele precisa fechar os olhos por um momento.

— Está enjoado? — pergunta Gaigern gritando em seu ouvido, pensando se seria possível, ali no avião, conseguir que Herr Kringelein lhe desse cinco mil marcos, ou mesmo três mil, ou que seja tudo pelo amor de Deus, cento e cinquenta que fossem, que já dariam para pagar a conta do hotel e a viagem até Viena. — Está se sentindo mal? Acha que basta de voar? — pergunta ele com muita cortesia.

Kringelein faz um violento e corajoso esforço para dominar-se, e responde um animado "não". Abre os olhos, a cabeça zune, vítrea; prende-os primeiro ao chão do avião, como a um ponto firme, depois vai subindo, até chegar à vidracinha oval da parede fronteiriça. Lá estão de novo os números e as agulhas trêmulas. O piloto vira o rosto de traços fortes para trás, e sorri para Herr Kringelein como para um bom amigo e camarada. Kringelein recebe esse olhar como um tônico e uma honra.

— Trezentos metros de altitude, cento e oitenta de velocidade! — grita Gaigern ao seu ouvido, que zune e crepita.

De repente, tudo se torna macio, leve e liso. O aparelho não se eleva mais, vai cantando com a voz metálica dos seus motores, fazendo uma curva, deslizando como um pássaro sobre a cidade, agora pequenina. Kringelein cria coragem e olha para fora.

Primeiro vê as asas estriadas, expostas ao sol, que parecem ter criado vida, e, bem embaixo, Berlim, dividida em quadradinhos, cúpulas verdes, uma ridícula estação, em meio à exposição de brinquedos. Uma manchinha verde é o jardim zoológico, uma manchinha cor de chumbo, com quatro pontinhos brancos de velas, é o Wannsee. Os limites do pequenino mundo ficam bem longe, o terreno vai subindo em suaves elevações, há também montanhas, florestas, terras lavradas pardacentas, Kringelein abre num sorriso infantil os lábios comprimidos. Está voando. Conseguiu suportar o voo. Sente-se muito bem, e tem uma sensação diferente de si próprio, enérgica e nova. Pela terceira vez lhe acontece, nesse dia, perder o medo, e ver esse medo transformar-se em prazer.

Toca de leve no ombro de Gaigern, e em resposta ao seu olhar inquiridor diz qualquer coisa que o ruído dos motores devora.

— Não é tão mau assim — respondeu Kringelein. — Não é preciso ter medo, não é nada mau.

Com essas palavras, Kringelein refere-se não só à conta elevada do alfaiate, à viagem ao longo do Avus e ao voo — mas a tudo isso junto, e mais alguma coisa; é que ele vai morrer em breve e, com a morte, afastar-se desse pequeno mundo, abandonar o grande medo, elevar-se, se for possível, acima dos aviões.

 

As ruas por trás do campo de Tempelhof, quando eles vieram de volta, falaram ao coração do novo Kringelein. Assemelhavam-se às melancólicas ruas de Fredersdorf, com as chaminés crescendo por trás dos caminhos, e ele alargou as narinas para sentir o cheiro de cola da seção de imprensagem dos tecidos. Com vivacidade duplicada, ele sentia, ao avistar essas pobres ruas, que usava um sobretudo novo, e se encontrava num automóvel. Procurou palavras que exprimissem esse duplo sentimento, mas não encontrou. Somente na porta do hangar ele se animou de novo — tiveram de esperar meio minuto —, o vôo ainda lhe pesava nos membros como uma silenciosa mas forte embriaguez, e, ansioso e amável, perguntou:

— Quais são agora os planos do senhor barão?

— Agora preciso cuidar de negócios particulares, no hotel. Tenho um encontro às cinco horas. Venha comigo, vou dançar um pouquinho — acrescentou ao perceber nos olhos de Kringelein uma expressão de desânimo e de real aflição.

— Muitíssimo obrigado. Acompanho-o de bom grado. Gosto de ver os outros dançar. Infelizmente não sei dançar.

— Ora, qual! Qualquer pessoa sabe dançar! Kringelein foi pensando nisso até chegarem à Friedrichstrasse.

— E depois? Que se poderia fazer depois? — perguntou insistente, na sua insaciabilidade.

Gaigern não deu resposta, mas acelerou a marcha até o próximo solavanco, quando travou o freio diante da lâmpada vermelha da Leipzigstrasse.

— Diga uma coisa, senhor diretor — perguntou ele, durante a parada do carro. — O senhor é casado ou não?

Kringelein ficou a refletir por tanto tempo que, enquanto isso, as lâmpadas amarela e verde se acenderam, e já estavam de novo a caminho, quando ele respondeu:

— Fui casado. Já fui casado, senhor barão. Separei-me de minha mulher. Pois é. Conquistei a liberdade, se posso falar assim. Há casamentos, senhor barão, em que cada cônjuge é um peso para o outro, um chega a enojar-se do outro, não pode ver a cara do outro sem se enfurecer. Não podemos ver o pente com os fios de cabelo da mulher, de manhã cedo, sem que isso nos estrague o dia; isso não é justo, é claro, ela não tem culpa de que seus cabelos caiam... Ou quando se quer ler um pouco à noite, a mulher se põe a falar sem parar, e quando não fala, canta na cozinha. E se a gente gosta de música, essa gritaria nos deixa doente. E toda noite, quando a gente está cansado, e quer ler, ouve-se a mesma cantilena: "Vá cortar lenha para amanhã cedo". Custa apenas oito Pfennige a mais cada feixe de lenha picado, o que faz dois Pfennige por dia, mas isso não é possível, de modo nenhum. "Você é um gastador", diz a mulher, "se a gente fosse pela sua cabeça, acabaria esticando as canelas." E olhe que o sogro tem um armazém que a mulher vai herdar, de modo que ela está com o futuro garantido. Então achei melhor conquistar minha liberdade. Minha mulher nunca combinou comigo, essa é a verdade, porque eu sempre gostei das coisas boas, e isso ela nunca me pôde perdoar. Quando meu amigo Kampmann me deu de presente cinco velhas coleções da revista Kosmos, minha mulher vendeu-as como papel velho; recebeu por elas catorze Pfennige. É este o retrato acabado dessa mulher, senhor barão. Agora eu me separei dela. Não faz muita diferença, umas semanas a mais ou a menos, já que ela tem mesmo que se arranjar sem mim. Então ela poderá ir de novo às lojas, vender aos empregados solteiros arenques enrolados e salsichas para o jantar. Foi assim que eu a conheci. Talvez ainda encontre outro trouxa. Quando me casei com ela, eu era completamente idiota, não fazia nenhuma ideia da vida, nenhuma ideia do que é uma mulher. Desde que cheguei a Berlim, e estou vendo tantas senhoras lindas, elegantes e amáveis, é que meus olhos estão se abrindo. Mas para essas coisas já é tarde demais.

 

Tal confissão, que partiu do fundo do coração de Kringelein, durou desde a Leipzigstrasse até a Unter den Linden.

— O dia inteiro não é noite — replicou Gaigern, meio distraído, porque estava atravessando um trecho difícil do caminho, na Porta de Brandenburgo, e diante dele seguia um chofer que não sabia dirigir. A atmosfera de uma cozinha minúscula e miserável, que se evolava das palavras de Kringelein, o sufocava, tirando-lhe o entusiasmo com que ele estivera prestes a pedir emprestados três mil marcos.

Esse Kringelein de camisa de seda, que andava de automóvel, teria também de boa vontade retirado parte daquilo que revelara com as suas palavras.

— Então nós vamos dançar — disse ele com desembaraço, para disfarçar. — Ficarei gratíssimo, se o senhor barão me tomar sob sua proteção. E que se poderia fazer à noite?

Kringelein tinha a esperança oculta de receber uma resposta que correspondesse a desejos irrealizados dentro de si, alguma coisa semelhante a certos quadros de museus, porém mais palpável, o que, nos jornais que ele lia, denominavam orgia. Tinha o pressentimento de que homens distintos da cidade guardavam a chave e a entrada de coisas assim. No dia anterior o Dr. Otternschlag havia acedido ao seu vago desejo de feminilidade, levando-o ao bailei da Grussinskaia. Pois é. Isso — julgava Kringelein — tinha sido errado; o ballet era lindo, mas poético, comovente, e demasiado maravilhoso; ficava-se cansado, com sono, sentimental, e finalmente sentia-se dor de estômago. Mas hoje...

— A melhor coisa que o senhor poderá fazer hoje é ir comigo à grande luta de boxe no Sporthalle — disse Gaigern. — Vamos ver se o porteiro ainda tem entradas.

— Não me interesso muito por boxe — respondeu Kringelein, com o orgulho do leitor do Kosmos.

— Não se interessa? O senhor já assistiu a alguma luta? Então! Pois vá, que há de se interessar — garantiu Gaigern peremptoriamente.

— O senhor também vai, senhor barão? — perguntou Kringelein, afobado. Sentia-se muito bem disposto, depois da viagem de automóvel e do voo, animado e enérgico, preparado para o que desse e viesse, mas tinha a impressão de que despencaria como uma arvorezinha de borracha no instante em que o barão o abandonasse.

— Tenho uma vontade louca de ir também — replicou Gaigern. — Mas infelizmente não posso. Não tenho dinheiro.

Nesse ínterim haviam se afastado das ramagens floridas do jardim zoológico, e a fachada do hotel já aparecia, lá embaixo. Gaigern deixou a velocidade cair para doze quilômetros, a fim de dar tempo a que Herr Kringelein se manifestasse. Kringelein ficou a remoer a observação sorridente de Gaigern. Pararam defronte ao portão 5, subiram, e ele não conseguira se livrar daquilo.

— Vou levar o carro à garagem! — exclamou Gaigern, depois que fez Kringelein descer do carro, com as pernas um tanto rijas e adormecidas; por fim desapareceu na esquina.

Kringelein meteu-se, pensativo, na porta giratória, cujo mecanismo já não o deixava mais estupefato. "Não tem dinheiro", pensou ele. "Está sem dinheiro. É preciso fazer alguma coisa."

Rohna, o porteiro, os boys, e até o maneta do elevador, notaram a transformação que ele sofrerá, mas, discretamente, não o deram a perceber. O hall, de onde se evolava um aroma de mokka, estava repleto de pessoas que conversavam. O relógio marcava quatro horas e cinquenta minutos. O Dr. Otternschlag estava sentado em sua habitual cadeira maple, tendo ao lado, no solo, uma pilha de jornais. Fitou Kringelein com uma expressão indefinível de ironia e tristeza. Kringelein, não muito seguro de si, aproximou-se dele e estendeu-lhe a mão.

— O novo Adão — observou Otternschlag sem lhe estender a sua, que estava fria e úmida, o que o tornava tímido. — A borboleta saiu do casulo. E por onde esteve voando, se me permite perguntar-lhe?

— Fiz umas compras. Fui passear de automóvel pelo Avus, almocei no Wannsee. Depois fiz um voo de avião — respondeu Kringelein. Seu tom de voz, ao falar com Otternschlag, mudara um pouco, sem que ele próprio o percebesse.

— Magnífico — disse Otternschlag. — E agora?

— Às cinco tenho um encontro. Vou dançar. — Ah! e depois?

— Depois, estou com vontade de ir a uma grande luta de boxe, no Sporthalle.

— Ah, é? — retorquiu Otternschlag. Disse apenas isso. Pôs o jornal diante dos olhos e começou a ler, ofendido. Na China houvera tremores de terra, mas a bagatela de quarenta mil mortos não bastava para fazer desaparecer o aborrecimento de Otternschlag.

Quando Gaigern chegou ao segundo andar para trocar de roupa, encontrou Kringelein diante da porta de seu quarto, à sua espera.

— Então? — perguntou impaciente. Pouco a pouco lhe atacava os nervos estar preso a esse homenzinho exótico.

— O senhor barão estava caçoando de mim ou é verdade que está em dificuldades financeiras? — perguntou Kringelein, repentinamente. Foi uma das frases mais difíceis que jamais pronunciou, e apesar de a ter preparado de antemão, disse-a gaguejando.

— É a absoluta verdade, senhor diretor. Estou arrasado, com um azar dos diabos, só tenho no bolso vinte e dois marcos e trinta Pfennige, e amanhã sou obrigado a enforcar-me no jardim zoológico — disse Gaigern, abrindo o rosto bonito em um largo sorriso. — Mas o pior de tudo é que preciso estar em Viena dentro de três dias; apaixonei-me por uma mulher, sabe, de um modo incrível, uma paixão fulminante, e tenho que acompanhá-la por onde ela andar. E estou numa pendura completa. Se pelo menos alguém me emprestasse algum dinheiro que desse para eu arriscar hoje no jogo...

— Também estou com vontade de jogar — observou Kringelein, pressuroso, com verdadeiro entusiasmo. Sentiu de novo a sensação dos cento e vinte quilômetros por hora, do voo do avião, e disparou, zunindo, pelo espaço infindável.

— Tiens! Eu vou buscá-lo no Sporthalle, e vamos a um clube elegante. O senhor arrisca mil marcos e eu vinte e dois! — exclamou Gaigern. Dizendo isto, fechou a porta do seu quarto e deixou Kringelein sozinho, do lado de fora. Por enquanto estava farto dele. Atirou-se, vestido, para cima da cama, e fechou os olhos. Foi tomado de um sentimento de desânimo e enfado. Procurou recordar-se da menina do cachinho louro na testa, com quem tinha marcado um encontro às cinco horas, no pavilhão amarelo, mas não o conseguiu. Apresentava-se sempre uma outra recordação, o abajur da Grussinskaia, a grade do balcão, uma nesga do Avus, uma nesga do campo de aviação, o suspensório rasgado de Herr Kringelein. "Dormi pouco hoje à noite", pensou ele, acalorado, contente e com os nervos frouxos. Caiu num sono de três minutos, num saco de trevas e de restauração, como aprendera a fazer na guerra. Uma camareira bateu à porta, despertando-o; era uma carta de Kringelein.

 

Prezado senhor barão!, escrevia Kringelein. Permitiria que o abaixo-assinado o considerasse hoje à noite seu convidado, e ao mesmo tempo me faria a fineza de aceitar o insignificante empréstimo que junto a esta? Peço-lhe apenas que me mande um recibo. Seria uma honra para mim poder ser-lhe útil, e, no meu caso, o dinheiro já nada significa. Cumprimentos respeitosos do seu

Amgo. Crdo. Obr.

Otto Kringelein Anexo: uma entrada

duzentos marcos.


12

 

O envelope com o endereço do hotel continha um bilhete alaranjado para a luta de boxe no Sportpalast, e duas cédulas amarrotadas de cem marcos, numeradas a tinta num dos cantos. Na assinatura de Kringelein faltavam os pingos nos ii. Ele os perdera definitivamente no turbilhão insano que o arrastara nesse dia memorável.

Preysing, com os ossos ocos e vazios, ficou no hall depois de terminada a conferência, depois de assinado o contrato prévio, e da despedida do Dr. Zinnowitz, desejando-lhe felicidade e sorte. A sensação de uma grande vitória, a consciência de haver passado um blefe nos cavalheiros da Chemnitz, a tensão nervosa de discursar e de vencer sob uma base insegura, tudo isso era completamente novo para o diretor-geral, e o transportou a um estranho estado de atordoamento, nada desagradável. Olhou para o relógio do hotel — já passava das três horas —, encaminhou-se mecanicamente para a cabina telefônica, a fim de pedir uma ligação com a fábrica, e depois demorou-se bastante no banheiro dos homens, deixando escorrer água quente pelas mãos, enquanto se olhava no espelho com um sorriso idiota. Passou por último à sala de refeições, que estava quase vazia, e escolheu o menu sem prestar atenção; durante os dois minutos de espera até chegar o consommé, impacientou-se e pôs-se a fumar um charuto, que lhe pareceu delicioso, acima de qualquer crítica. Enquanto observava a lista dos vinhos, trauteou uma melodia, e sentiu desejos bem definidos de beber vinho doce, que aquecesse a língua; encontrou um Wachencheimer Mandelgarten 1921, que lhe pareceu prometedor. Pouco depois surpreendeu-se a sorver ruidosamente a sopa; quando ficava distraído, acontecia-lhe, por vezes, praticar algum mau costume do começo da sua vida. Sentia que estava numa situação feliz, mas de imprevisíveis consequências. O embuste — ele próprio usava essa expressão forte, que o transportava estranhamente a uma nova espécie de sensação de orgulho — que ele usara durante a conversação só poderia valer, no melhor dos casos, por três dias. Nesses três dias era preciso acontecer alguma coisa, se não quisesse sofrer as consequências de uma catástrofe. A assinatura do contrato prévio poderia ser retirada dentro de catorze dias. Preysing, que vertera depressa demais, pela goela seca, os dois primeiros copos do vinho frio e excitante, adoçado pelo sol, ficou meio tonto, e, em meio à sua tontura, viu a chaminé principal da fábrica explodir, separando-se em três pedaços. Isso não tinha importância, era uma reminiscência de um sonho que Preysing, a intervalos regulares, costumava ter. Estava comendo o peixe, quando um groom gritou "Chamada interurbana para Herr Preysing!" por entre o burburinho da discreta sala de refeições. Preysing ainda engoliu rapidamente um gole de vinho e dirigiu-se à cabina telefônica 4. Esqueceu-se de acender a luz, e na escuridão postou-se diante do fone com a sua mais férrea expressão de diretor da fábrica, famosa em Fredersdorf. Por entre o assobio agudo de um pequeno desarranjo na linha, anunciou-se Fredersdorf.

— Com Herr Broesemann — disse o diretor-geral, com a voz inexpressiva que usava no desempenho de suas funções. Demorou meio minuto até que encontrassem o gerente. Preysing considerou uma ofensa essa demora, e bateu com o salto do sapato no assoalho.

— Puxa... finalmente! — exclamou ele, quando Broesemann atendeu.

Adivinhavam-se, através do telefone, as curvaturas de Broesemann, e Preysing as recebeu como um merecido tributo.

— O que há de novo, Broesemann, além do telegrama inútil de ontem? Não... ao telefone não, sobre isso falaremos depois. Por enquanto eu me esforço por considerar esse assunto como inexistente, compreendeu? Ouça, Broesemann, agora eu quero falar com o velho. Está dormindo? Sinto muito, é preciso acordá-lo. Não, sinto muito. É, sim, imediatamente. Até logo, Broesemann. Não, as outras ordens o senhor as receberá por escrito. Estou esperando.

Preysing ficou à espera. Arranhou a tábua da estante do telefone com as unhas, tomou a caneta-tinteiro e pôs-se a tamborilar com ela na parede, pigarreou, e seu coração disparou triunfalmente, com batidas claras e definidas. O bocal do telefone, diante de sua boca, cheirava a desinfetante e, ao passar a mão por ele na escuridão, sentiu que a beirada estava lascada. Então o velho falou, lá de Fredersdorf.

— Alô, bom dia, papai, desculpe incomodá-lo. A conferência durou até agora, pensei que o senhor se interessaria em saber logo do resultado. Trata-se do seguinte: o contrato prévio está assinado... não, assinado, assinado ... — disse ele gritando, porque o velho tinha o teimoso costume de fingir-se mais surdo do que era realmente.

— Difícil, o senhor acha? Ora, mais ou menos. Obrigado, obrigado, não preciso de aplausos. Ouça, papai: preciso viajar imediatamente para Manchester; é, é absolutamente necessário, absolutamente. Vou para Manchester, bom, bom, eu lhe escrevo a esse respeito com mais pormenores. Como? O senhor está satisfeito? Eu também. Sim, senhorita, terminei. Até logo.

Preysing continuou na cabina escura, e só então se lembrou de apertar o botão da lampadazinha. "Mas, que história é essa?", pensou, espantado. "Como é que vou viajar para Manchester? Como foi que essa ideia me ocorreu? É isso mesmo... vou para Manchester. Aqui eu aguentei firme, lá também vou aguentar. É muito simples. Muito simples", pensou ele, sentindo-se novamente mais seguro de si, e enfunando-se como um balão. Um êxito casual, insignificante e incerto, transformara um homem hesitante, de terno de sarja cinzenta, em um sujeito empreendedor e aventureiro, de princípios vacilantes e dúbios.

— A ligação custa nove marcos e vinte — avisou a telefonista.

— Ponha na conta — respondeu Preysing, caminhando imerso em pensamentos.

Sentia uma estranha antipatia em falar com Mulle. Na sala de refeições de sua casa fazia agora um calor excessivo; Mulle gostava de quartos bem aquecidos; Preysing teve a impressão de que a sala de refeições de Fredersdorf cheirava a couve-flor; teve a impressão de ver nas faces cheias e sonolentas de Mulle a marca vermelha das pregas do travesseiro, no momento em que ela segurava o fone, após a sesta. Não se decidiu. Não a chamou. Voltou à sala de refeições, onde, entretanto, um garçom perfeito colocara para ele o vinho no gelo, e pratos limpos e aquecidos sobre a mesa.

Preysing comeu, esvaziou seu copo de vinho, acendeu o charuto e, com as têmporas acaloradas e os pés frios, voltou ao quarto. Tinha uma sensação estranha, agradável e nebulosa, mas ao mesmo tempo sentia-se completamente vazio, em consequência da conferência. Teve vontade de tomar um banho bem quente, e abriu a torneira do banheiro. Justamente quando fez menção de despir-se, refletiu melhor, lembrando-se de que não é bom tomar banho com o estômago cheio; sentiu, no espaço de um instante de medo, as palpitações que o ameaçavam na banheira esmaltada, e soltou de novo a água, cheia de vapor. A impressão de cansaço e desconforto que sentiu materializou-se numa coceira no rosto e, quando tentou coçar-se, percebeu que não estava barbeado. Apanhou o chapéu e o sobretudo, como ao preparar-se para um negócio importante; não quis ir ao barbeiro do subterrâneo do hotel, com quem ainda estava zangado, por causa do que acontecera de manhã, e procurou nas ruas circunvizinhas um barbeiro de mais confiança.

Então o Diretor-Geral Preysing viveu uma experiência notável; esse homem de princípios sólidos, mas sem aparelho de barba, teve uma experiência; esse homem de intenções corretas, mas que, apesar de tudo, praticara uma ação duvidosa, um azarado, a quem pela primeira vez o êxito bafejara, ao qual esse bafejo levava... para onde? Podia parecer um acaso, talvez fosse o destino que lhe estava reservado. A experiência foi esta:

A pequena barbearia em que Preysing entrou era asseada e simpática. Havia quatro cadeiras, e dois senhores sentados; um deles era servido por um empregado jovem, simpático, de cabelos encaracolados, e o outro pelo dono da barbearia, um homem idoso, com a aparência e os modos de um camareiro imperial. Preysing foi cumprimentado, alojado na terceira cadeira e envolvido numa capa e num peitilho. O cavalheiro que tivesse um momento de paciência, o primeiro oficial de barbeiro tinha ido almoçar, foi o que lhe participaram com toda a cortesia, pondo-lhe em seguida, nas mãos, um pesado maço de revistas ilustradas. Preysing, excessivamente cansado para opor qualquer resistência, reclinou a cabeça no pequeno encosto da cadeira, e respirou o aroma agradável que pairava na barbearia. Depois, com os nervos acalmados pelo ruído das tesouras, começou a folhear as revistas.

Primeiro pôs-se a ler, de uma maneira indiferente, quase a contragosto, porque não apreciava esse passatempo leviano, preferindo leituras instrutivas e sérias. Mas, após uns instantes, ele já se ria com uma ou outra piada, soltando uma risadinha curta e nasal; voltou as folhas para trás, para observar melhor uma mulher decotada, e em seguida virou uma página, e deixou-a aberta durante todo o tempo em que ficou sentado na cadeira de barbeiro. Realmente, concentrou-se de tal modo na observação dessa gravura, dessa fotografia de revista, que se sentiu estorvado quando o primeiro oficial voltou da sua refeição e se preparou para barbeá-lo.

A fotografia que o atraía desse modo nada tinha de especial; fotografias como essa eram encontradas às centenas em revistas cuja orientação desagradava a Preysing. A gravura representava uma mocinha nua, nas pontas dos pés, tentando olhar por sobre um biombo muito mais alto do que ela. Seus braços estavam levantados, e os delicadíssimos seios, com esse movimento, erguiam-se com uma graça especial, de modo tentador. No dorso esguio via-se o desenho delicado da musculatura. Na cintura, esse corpo se estreitava de um modo incrível, e abaixo do dorso delgado os quadris se encurvavam suavemente, prolongando-se nas linhas das coxas. Aqui, o corpo virava-se ligeiramente de lado, de modo que o ventre da mocinha mal se adivinhava como uma sombra suave, enquanto as coxas e os joelhos se distendiam, como a exprimir uma elástica curiosidade. Essa figura encantadora de mulher, de formas invulgarmente perfeitas, tinha também um rosto; e o que tornava a gravura extremamente excitante para o diretor-geral é que ele conhecia esse rosto. Era a carinha de gata da Flaemmchen, de nariz curto, com uma expressão animada e inocente, era o sorriso meigo de Flamm número dois, era o seu caracolzinho na testa, sobre o qual o esperto fotógrafo colocara um propositado reflexo luminoso; e, antes de mais nada, era a completa naturalidade, o modo simples e ingênuo com que ela o chamara de modo objetivo e modesto — Preysing recordou-se nesse instante — de um "bom nu". Preysing corou, enquanto teve diante dos olhos essa gravura; um súbito e ardente rubor subiu à sua testa, impedindo-o de pensar com clareza, como lhe acontecia nos seus acessos de cólera, que faziam tremer toda a fábrica. Depois, suas veias, uma a uma, começaram a latejar dentro dele, ele o sentia, sentia o sangue a refluir nas veias, como há muito tempo não lhe acontecia.

Preysing era um homem de cinquenta e cinco anos; não era um velho, mas uma pessoa pacata, o esposo pouco exigente de Mulle, mulher já envelhecida, papaizinho inocente de filhas crescidas. Trotara atrás da Flamm número dois pelo corredor do hotel sem sentir a mínima excitação, e o borbulhar suave de seu sangue, nessa ocasião, aplacara-se de modo próprio. Agora, diante desse nu artístico, mal podia respirar.

— Com licença, cavalheiro — disse o barbeiro; e, com um gesto elegante, pousou o fio da navalha em sua face.

Preysing conservou a revista na mão, enquanto se reclinava para trás e fechava os olhos. Primeiro viu tudo vermelho, e depois enxergou a Flaemmchen. Não a Flaemmchen vestida, diante da máquina de escrever, nem a Flaemmchen despida da fotografia cinzenta, mas uma mistura vivaz e excitante de ambas. Uma Flaemmchen de carne e osso, de pele moreno-dourada e sangue rubro e palpitante, que continuava nua, com o busto erguido, a olhar com curiosidade por cima de um biombo. O Diretor-Geral Preysing não estava habituado a deixar sua fantasia trabalhar. Mas agora ela trabalhava. Havia soltado a manivela, desde que ele, pela manhã, colocara na mesa o telegrama, dizendo, de um modo descarado, uma mentira absurda. Agora sua imaginação se afastava rapidamente com ele, o que era apavorante e embriagador ao mesmo tempo. Enquanto a navalha deslizava com leveza e perícia em seu rosto, Preysing sentia coisas incríveis, coisas fantásticas, com a Flaemmchen nua, coisas incríveis consigo mesmo, que ele nunca julgara que pudessem acontecer.

— Quer que lhe raspe o bigode? — perguntou o barbeiro.

— Não — disse Preysing, estorvado em meio aos seus pensamentos. — Por quê?

— É que as pontas estão um pouco grisalhas, e isso envelhece. Se me permite um conselho, o cavalheiro aparentaria dez anos menos, sem bigode — sussurrou o barbeiro, com o sorriso bajulador de todos os barbeiros a refletir-se no espelho.

"Mas eu não posso me apresentar a Mulle sem bigode, como um macaco", pensou Preysing, olhando-se no espelho. Realmente, seu bigode estava grisalho, e sob o bigode havia sempre gotas de suor no lábio superior. "Ora, a Mulle...", pensou ele — e nesse instante, a bem dizer, o adultério já estava cometido.

— Está bem, pode raspá-lo. A qualquer momento posso deixar crescer de novo o bigode.

— É claro, é facílimo — concordou o barbeiro, indo buscar em seguida mais sabão de barbear, para o grande empreendimento.

Preysing levantou a revista para olhar de novo a fotografia — mas isso só já não lhe bastava. Ele não queria mais ver, queria pegar, queria apalpar, queria sentir a Flaemmchen, palpitante e ardente.

No hotel repararam imediatamente no que acontecera ao bigode, mas não deram a perceber. Meu Deus do céu, estavam tão acostumados a observar as estranhas metamorfoses pelas quais passavam os cavalheiros que vinham da província para ficar uns dias no hotel... Preysing, que perguntava, apressado e ofegante, se havia correspondência para ele, recebeu uma carta de Mulle, que lhe colocaram na mão. Meteu-a simplesmente no bolso, sem a ler, e sem nenhum sentimento de carinho. Dirigiu-se então à cabina telefônica. "Preciso falar com Mulle", pensou, "mas posso chamá-la mais tarde." Entrou na cabina para ligações locais, pediu para falar com o gabinete do conselheiro Zinnowitz, e teve uma breve conversa com a Flamm número um. Desejava saber se a senhorita sua irmã estaria por acaso no gabinete.

Não, não estava mais.

Desejaria saber onde poderia ser encontrada.

Ah, respondeu a Flamm número um, hesitante, talvez ela se houvesse atrasado um pouco. Mas, nesse caso, a qualquer momento ela apareceria no hotel.

Preysing, diante do fone, ficou com uma cara de idiota.

— No hotel? Aqui? No Grande Hotel? Por quê?

— Pois é — disse a Flamm número um, precavida e indecisa. Isso pelo menos é o que ela entendera. Flaemmchen tinha ido para o hotel, e então ela, a Flamm número um, julgara que a irmã fora chamada de novo para datilografar. Mas talvez a Flaemmchen tivesse algum encontro, o que nunca se podia saber com certeza, pois, nesse ponto, a Flaemmchen era muito esquisita, muito diferente dela, a Flamm número um. Mas pontual ela era; quando prometia qualquer coisa, cumpria o prometido; por isso, iria com certeza ao hotel.

Preysing agradeceu e pôs o fone no gancho, atrapalhado. Dirigiu-se de novo, inquieto, à portaria, atravessando o hall. Ouvia-se perfeitamente a música saltitante que vinha do pavilhão amarelo.

— Minha secretária perguntou por mim? — informou-se ele com Herr Senf. O porteiro voltou para ele o rosto muito atento e tolo.

— Quem, por favor?

— Minha secretária. A senhorita a quem eu ditei cartas ontem — informou Preysing, excitado.

O pequeno Georgi meteu-se na conversa.

— Ela não perguntou nada, mas esteve no hall, há uns dez minutos, a moça loura, magra, não é isso? Eu acho que ela está no chá das cinco, no pavilhão amarelo, do outro lado do hall, segundo corredor atrás do elevador; o senhor vai perceber pela música.

Seria próprio de um diretor-geral, vestido com um terno de sarja, andar atrás dos sons apimentados de uma orquestra de jazz, através de corredores desconhecidos, à procura de uma jovem e leviana datilografa, com quem ele nada tinha que ver, do ponto de vista jurídico? Mas é que Preysing está quase a desviar-se do bom caminho, quase a escorregar, e não o percebe. Só percebe que seu sangue corre de modo diferente do costume, diferente dos quinze ou vinte últimos anos, e ele quer a qualquer preço agarrar-se a esse sentimento, tirar proveito dele. O bigode está raspado, não foi feita nenhuma ligação telefônica para a Mulle, e, quando ele abre a porta do pavilhão amarelo e sente a atmosfera desconhecida dessa sala, o assunto complicado com Chemnitz e Manchester, incerto e ainda por esclarecer, fica quase esquecido.

A essa hora, às cinco horas e vinte minutos, o pavilhão amarelo está diariamente entupido de gente. As cortinas de seda amarela, franzidas vaporosamente, estão fechadas diante das janelas altas; nas paredes estão acesas lampadazinhas amarelas, e nas mesinhas também há lampadazinhas acesas, com abajures amarelos. Está quente, ali dentro; dois ventiladores zunem, e paira no ar o burburinho humano. As pessoas estão sentadas bem perto umas das outras; cada um sente o calor do seu vizinho, porque uniram as mesinhas, para dar mais espaço aos que estão dançando no centro da sala. No forro abobadado estão pintadas formas vagas de bailarinos, em lilás e prateado; por vezes, quando tudo se movimenta, o forro causa a impressão de um espelho embaciado, em que se refletem os dançarinos cá de baixo. Tudo o que se passa ali dá uma impressão estranha de ângulos e de ziguezagues; a dança não é circular, mas apenas um estremecimento que se eleva e abaixa; e Preysing, que foi soprado até ali pelos rumores de seu sangue, para procurar uma certa Flaemmchen, ficou completamente tonto. Não via mais as pessoas inteiras, mas tudo se separava em confusão, só tinham cabeça ou coxas, como certa espécie de quadros modernos, que Preysing, em razão da loucura que representavam, não podia suportar. Porém, o mais importante e digno de reparo no pavilhão amarelo era a música. Era executada por sete cavalheiros indescritivelmente satisfeitos, de camisas brancas e calças curtas, a célebre Eastman Jazzband, cuja música era de uma vivacidade maluca, tamborilava sob as solas dos pés, fazia cócegas nos músculos dos quadris. Havia dois saxofones que choramingavam e outros dois que zombavam deles com um jeito satírico e sarcástico. O jazz serrava, estalava, teimava, matraqueava, cacarejava, pondo ovos sobre a melodia, ovos que eram em seguida esmagados — e quem caísse dentro do círculo dessa música ficava prisioneiro do ritmo convulsivo da sala, parecia até enfeitiçado.

Preysing, no entanto — empurrado de um lado para o outro pelos garçons que levavam bandejas cheias de taças com gelo —, ficara parado à porta, e reparou que começou a contrair os músculos das pernas enquanto, mal-humorado, procurava enxergar a Flamm número dois. Seu lábio superior, nu e remoçado, cobriu-se novamente de suor; ele tirou do bolso o lenço, enxugou o rosto, e depois meteu o lenço no bolsinho exterior do paletó, onde em geral só costumava guardar a caneta-tinteiro. Com um olhar de esguelha, muito encabulado, arranjou a ponta do lenço, deixando-o cair como uma graciosa bandeirola; isso parecia legitimar o seu direito de pertencer a essa parte animada do Grande Hotel. Aliás, ninguém se importava com ele. Poderia ficar ali o tempo que quisesse, e procurar entre duzentas jovens e esbeltas dançarinas uma determinada senhorita.

— Quando vi que o senhor não estava aqui às cinco e dez pensei: ele vai dar um bolo. Você vai ver, ele vai dar um bolo, pensei — disse a Flaemmchen, que estava dançando com Gaigern uma lânguida variação do charleston, uma dança nova, com uma pequena síncope, que dava um golpe na perna. Seus corpos se ajustavam plenamente na dança.

— Absolutamente. Pensei o dia inteiro na senhora, e me alegro de poder revê-la — disse Gaigern.

Essa frase lhe saiu com a mesma leveza e languidez, com a mesma facilidade com que ele dançava. Gaigern era apenas alguns centímetros mais alto do que a Flaemmchen, e fitou com um leve e amável sorriso os olhos de gatinha da moça. Ela estava vestida com um vestidinho de seda leve, azul; ao pescoço trazia um colar de contas de vidro lapidado, e usava um chapeuzinho, desses fabricados em série e vendidos por um marco e noventa. Estava encantadora, com os requisitos de uma elegância rebuscada.

— É verdade mesmo que o senhor se alegrou? — perguntou ela.

— Metade verdade, metade invenção — replicou Gaigern com sinceridade. — Passei o dia hoje caceteadíssimo — acrescentou suspirando. — Estou servindo de cicerone para um senhor de idade, por necessidade, é claro.

— E por que faz isso?

— Preciso conseguir uma coisa dele.

— Ah! — disse a Flaemmchen, compreensiva.

— A senhora também precisa dançar com ele — disse Gaigern, apertando-a de leve.

— Que nada!

— Não é isso. Mas eu vou lhe pedir encarecidamente. Ele não sabe dançar, compreende? Mas tem tanta vontade de aprender! A senhora dá apenas algumas voltas com ele — para me fazer um favor.

— Bem, vamos ver! — prometeu a Flaemmchen. Continuaram a dançar, calados. Gaigern trouxe mais para perto o corpo da moça, sentindo que as costas dela obedeciam documente aos movimentos de sua mão. Isso, porém, não o alegrava, pelo contrário, causava-lhe raiva, até.

— Então, que aconteceu? — perguntou a Flaemmchen, pressentindo o que se passava.

— Ah!... Não é nada! — resmungou Gaigern, sentindo ódio de si próprio.

— Que está querendo? — perguntou a Flaemmchen com solicitude. Achava-o lindo, com aquela boca, e a cicatriz no queixo... E os olhos também, um pouco oblíquos. Sentia forte inclinação por ele.

— A gente tem vontade de fazer qualquer coisa maluca, já que não acontece nada. Agora tenho vontade de mordê-la, ou de brigar com a senhora. Ou de esmurrá-la, até. Ora! Hoje à noite vou à luta de boxe; ali, pelo menos, acontece alguma coisa.

— Ah, é? — disse a Flaemmchen. — O senhor vai hoje à noite à luta de boxe? Ah, sei.

— Com aquele senhor de idade — afirmou Gaigern.

— Se o senhor... acabou — disse a Flaemmchen, quando a música parou. Ela se pôs então a bater palmas freneticamente, deixando-se ficar onde estava. Gaigern fez menção de tirá-la do meio da sala e levá-la a uma mesinha, onde ele deixara Kringelein diante de uma xícara de café. A música começou de novo, quando os dois já se encontravam a meio caminho, entre a confusão e o aperto.

— Tango! — exclamou a Flaemmchen, excitada.

E a moça tomou posse de Gaigern, simplesmente. A palma de sua mão encostava-se à dele, implorando e aquiescendo. Suas coxas já se emparelhavam no passo lânguido e arrastado do tango. Fez-se um vazio na sala, em redor deles, porque dava prazer vê-los dançar.

— O senhor conduz otimamente — sussurrou a Flaemmchen, como se fizesse uma declaração de amor. Gaigern nada tinha a replicar. — Ontem o senhor estava tão diferente... — disse um pouco mais tarde.

— É... ontem — respondeu Gaigern. Disse isso como se estivesse a dizer: há cem anos. — Aconteceu uma coisa de ontem para hoje — acrescentou.

Sentia que uma compreensão simples e natural os unia, e de repente teve desejos de se confiar a ela.

— Esta noite eu me apaixonei, uma paixão muito séria, compreende? — disse ele baixinho, dançando o tango que vibrava no ar. — Isso vira a cabeça da gente. É um sentimento avassalador. É como se...

— Mas isso não é nada de extraordinário — observou a Flaemmchen, ironicamente, sentindo-se triste, desiludida.

— É sim, é uma coisa extraordinária. A gente tem vontade de se transformar por completo, compreende? De repente acha que só existe uma mulher no mundo, só essa mulher, e o resto não tem mais nenhum valor. A gente acha que não é mais capaz de dormir, a não ser com essa mulher. É como se passasse por nós um furacão. Como se nos tivessem posto dentro de um canhão, e depois atirado à Lua ou a outro lugar qualquer, onde tudo é diferente.

— E como é ela? — perguntou a Flaemmchen — e qualquer outra em seu lugar teria perguntado o mesmo.

— Ah! Como ela é? Aí é que está... É muito velha e magra, muito leve, sou capaz de levantá-la do chão com um dedo. Tem rugas, aqui e aqui, e olhos pisados. E fala numa linguagem de baixo calão, como um clown; tem-se vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo, ao ouvi-la. E isso tudo me agrada de um modo incrível, não há nada a fazer. É o grande amor.

— O grande amor? Mas isso não existe — disse a Flaemmchen. Ao afirmar isto, ela tinha uma carinha espantada e teimosa de gata, como às vezes os amores-perfeitos têm nos canteiros.

— Como não, como não? Existe, sim — disse Gaigern.

A Flaemmchen ficou tão impressionada com essas palavras, que parou um segundo, em meio ao tango, e sacudindo a cabeça olhou Gaigern.

— São frases, apenas — murmurou ela ao mesmo tempo.

Nesse momento exato os olhos de Preysing descobriram finalmente o vulto procurado, no meio da confusão erótica e lânguida do tango. Com um sentimento de zanga e extrema impaciência, esperou que a dança lenta terminasse e depois foi-se espremendo entre os pares, até a mesinha em que a Flaemmchen tomara lugar entre dois senhores, que Preysing tinha a impressão de conhecer. No hotel, essa espécie de conhecimentos de vista eram correntes; passava-se por alguém no elevador, encontrava-se com alguém na sala de refeições, no banheiro e no bar, girava-se um diante do outro na porta giratória, nessa porta que estava sempre a rodar, deixando entrar e sair gente, para dentro e para fora do hotel.

— Boa tarde, Fräulein Flamm — disse o diretor-geral com a voz tornada rouca e grosseira pela timidez; postou-se ao lado da cadeira da moça, encolhendo a barriga para dar passagem ao garçom.

A Flamm número dois apertou as pálpebras, até conseguir registrar a presença imprevista de Preysing.

— Ah, é o senhor diretor — disse então, amavelmente. — O senhor também dança? — ela olhou a fisionomia contraída dos três homens; estava habituada a ver essa expressão nos semblantes dos homens que a rodeavam. — Os senhores já se conhecem? — perguntou com um gesto distinto de mão, que copiara de uma estrela de cinema.

Não podia apresentá-los, porque não sabia como se chamavam os seus cavalheiros. Preysing e Gaigern murmuraram algo, e o diretor-geral apoiou na mesa uma mão repleta de sentimento de posse, enquanto passava rente a ele, à altura da cabeça, uma perigosa bandeja com copos de laranjada, que o garçom equilibrava.

— Boa tarde, Herr Preysing — disse de repente Kringelein, sem erguer-se da cadeira.

Cada uma das suas vértebras lhe doía, por causa do enorme esforço que teve de fazer para não ser atacado de tremedeira e não cair estatelado, voltando a ser o miserável Kringelein da caixa da fábrica. Ficou de ombros contraídos; tudo nele se contraiu; lábios, dentes, até mesmo as narinas, que tomaram um aspecto redondo e feio, como as dos cavalos. Mas ele se portou à altura do grave momento; forças nunca pressentidas fluíam do seu jaquetão preto de corte impecável, da sua roupa de baixo, da sua gravata, de suas unhas bem cuidadas, enchendo-o de energia. O que quase o fez perder o aplomb foi o fato de Preysing também ter se transformado; continuava a usar o mesmo terno de Fredersdorf, mas não tinha mais bigode.

— Não sei bem... desculpe-me... mas acho que já nos conhecemos... — disse Preysing com a maior amabilidade que lhe permitia a excitação que sentia por causa da Flaemmchen.

— Sim, senhor. Kringelein — afirmou este. — Trabalho na fábrica.

— Ah — disse Preysing, esfriando. — Kringelein. Nosso representante, não é? — acrescentou, reparando na elegância de Kringelein.

— Não. Guarda-livros. Auxiliar de guarda-livros no bureau de pagamentos. Sala 23. Edifício C. Terceiro andar — informou Kringelein conscienciosamente, mas sem devoção.

— Ah — repetiu Preysing, pensativo. Seu desejo era afastar nesse momento a aparição indesejável e incompreensível de um auxiliar de guarda-livros de Fredersdorf no pavilhão amarelo do Grande Hotel. — Preciso falar com a senhora, Fräulein Flamm — disse ele, retirando a mão do encosto da cadeira da Flaemmchen. — Trata-se de um novo serviço de datilografia — acrescentou num tom de chefe, que feriu os ouvidos do sujeito de Fredersdorf.

— Está bem — concordou a Flaemmchen. — Quando é melhor para o senhor? Às sete, sete e meia?

— Não, já — disse Preysing em tom ditatorial, enxugando o suor do rosto.

Aquele indivíduo de Fredersdorf tinha também um lenço no bolso do paletó, uma flamulazinha de seda, revolucionária e leviana.

— Infelizmente, já, já não é possível — disse a Flaemmchen amavelmente. — Já estou comprometida. Não posso deixar estes senhores aqui. Ainda preciso dançar uma vez com Herr Kringelein.

— Herr Kringelein vai ter a amabilidade de desculpá-la — disse Preysing, contendo-se. Era uma ordem. Kringelein sentiu que os vinte e cinco anos de um sorriso subalterno queriam insinuar-se em seus lábios paralisados. Controlou-o, fazendo-o recuar para a pele do rosto, engelhada e quase fria. Procurou auxílio e forças em Gaigern. O barão tinha um cigarro no canto da boca, e a fumaça subia ao longo das pestanas de seu olho esquerdo, que ele piscou com expressão brejeira e compreensiva.

— Não penso absolutamente em desistir — comentou Kringelein. Após lhe escaparem estas palavras, ficou imóvel como uma lebre, que finge estar morta no carreiro de um campo. De repente, Preysing, ao ver aquela expressão obstinada, recordou-se de um relatório a respeito de Kringelein, que lhe haviam apresentado há poucos dias.

— É estranho — disse ele com a voz nasal e temida da fábrica. — É estranhíssimo. Agora já sei do que se trata. O senhor participou à fábrica que estava doente, não é? Herr Kringelein, hein? Sua mulher pediu um subsídio ao Fundo de Auxílio aos Doentes, por causa de moléstia grave. Nós lhe demos férias de seis semanas, pagas. E o senhor se encontra em Berlim, divertindo-se, hein? Anda atrás de divertimentos que não condizem nem com a sua posição nem com o seu ordenado. É muito estranho. Estranhíssimo, Herr Kringelein. Nós vamos rever com cuidado os seus livros, pode estar certo disso. Vamos deixar de pagar-lhe as férias, já que o senhor está tão bem de saúde, Herr Kringelein! Vamos...

— Olhem, meninos, nada de brigas aqui. Vão entender-se no seu escritório — disse a Flaemmchen, com modos afáveis e conciliantes. — Nós estamos aqui para nos divertir. Vamos, Herr Kringelein, agora vamos dançar.

Kringelein firmou-se nas pernas, esticando os joelhos, que pareciam de borracha, mas que se consolidaram a olhos vistos quando a Flaemmchen colocou o braço no ombro dele. A música tocava aos solavancos uma coisa rapidíssima, algo semelhante à corrida de automóvel a cento e quinze quilômetros por hora, e ao motor de avião. Isso lhe deu forças para dizer as frases que vinha preparando há vinte e cinco anos, em sua vida de empregado subalterno. Arrastado pela Flaemmchen para o meio da sala, falou em voz alta, virando a cabeça para trás:

— Quem sabe se o mundo pertence só ao senhor, hein, Herr Preysing? O senhor será diferente de mim? Quem sabe se as pessoas como eu não têm o direito de viver?

— Que é isso, que é isso! — exclamou a Flaemmchen. — Aqui não se fala aos berros, aqui se dança. E agora, não olhe para os pés, olhe para o meu rosto, e vá andando, vá andando calmamente, vou guiá-lo.

— Mas que impostor! — rangeu Preysing por entre os dentes, por trás deles. E ficou diante da mesa, trêmulo de cólera. Gaigern, a fumar, ouvindo essas palavras, sentiu um impulso raro, uma espécie de compassivo coleguismo, misturado a uma repulsa, violenta e sarcástica, pelo corpulento e suarento diretor-geral. "Era preciso colocar-lhe um par de sanguessugas na pele, amiguinho", pensou ele.

— Deixe que o pobre-diabo se divirta! — disse a meia voz. — Basta olhar para a cara dele para ver que está às portas da morte.

"Não lhe pedi nenhum conselho", pensou Preysing, mas não teve coragem de dizê-lo, porque sentia obscuramente a raça superior do barão.

— Peço-lhe o favor de dizer a Fräulein Flamm que a espero no hall, para um assunto urgente. Se ela não aparecer até as seis, dou o assunto por terminado — disse ele, curvando-se ligeiramente. Em seguida retirou-se.

Intimidada por esse ultimato, a Flaemmchen apareceu no hall três minutos antes das seis. Preysing ergueu-se das brasas ardentes em que estivera sentado nesse ínterim, e sorriu com profunda satisfação. Como ele sorria raramente, essa amabilidade o tornou mais bonito, e causou efeito imprevisto.

— Cá está a senhora — disse ele, estonteado.

Há muitas horas ele se contorcia, se martirizava, ardia, com um único pensamento: saber se a Flaemmchen era conquistável. Suas experiências com mulheres eram modestas, e datavam de muitos anos atrás. Dessa geração nova de mocinhas, ele fazia apenas uma ideia vaga, apesar de, nas reuniões masculinas, e em conversas íntimas nas viagens profissionais, dizerem com frequência que essa espécie de meninas era fácil de conquistar. Pôs-se a observar a Flaemmchen, as suas pernas cruzadas, com meias de seda, o colar de pedras de vidro imitando cristal, sua pintura, que ela nesse instante renovava, apertando os lábios, e ficou sem saber em que se basear, nessa pessoa despreocupada, para as suas suposições.

A Flaemmchen fechou o estojinho de pó de arroz e perguntou:

— Então, de que se trata?

Preysing apertou o charuto entre os dedos, e desembuchou:

— Trata-se do seguinte — começou ele: — preciso viajar para a Inglaterra, e preciso levar comigo uma secretária. Em primeiro lugar, por causa da correspondência; depois, porque desejaria ter com quem conversar durante a viagem. Sou muito nervoso, muito nervoso, mesmo — afirmou, apelando inconscientemente para a compaixão da moça —, e preciso ter alguém na viagem que se ocupe de mim. Não sei se a senhora me compreende. Ofereço-lhe um emprego de confiança, em que a senhora... em que..

— Já estou compreendendo — disse a Flaemmchen, baixinho, ao perceber a atrapalhação dele.

— Acho que nos daremos bem na viagem — afirmou Preysing.

O delicioso fluir e latejar do seu sangue nas veias diminuíra durante tão difíceis negociações, mas quando ele fitou a Flaemmchen consolou-se, sentindo que ela iria fazer com que tudo isso despertasse de novo, assim que o desejasse.

— A senhora contou-me que no ano passado também viajou com um cavalheiro, e isso me fez ter esta ideia... eu acho que seria muito agradável, se a senhora quisesse. A senhora quer?

A Flaemmchen pensou durante cinco longos minutos.

— Preciso pensar primeiro — respondeu ela, com expressão ajuizada e preocupada, fumando o seu indefectível cigarro. — Para a Inglaterra? — perguntou depois. A cor moreno-dourada da sua pele clareou um pouco, o que talvez significasse que empalidecera. — Ainda não conheço a Inglaterra. E por quanto tempo?

— Por... não sei lhe dizer ainda com exatidão. Isso depende. Se os meus negócios lá correrem bem, tiro talvez mais catorze dias de férias, e podemos ficar em Londres, ou ir para Paris.

— Bom, pode-se arranjar; já sei mais ou menos do que se trata, pelas cartas — disse a Flaemmchen com segurança.

O otimismo era o elemento em que ela se movia. Preysing sentiu-se animado ao perceber que ela estava a par dos seus negócios, e profetizava o sucesso.

— A senhora ainda precisa me dizer quanto quer de ordenado — declarou ele, com o tom de quem dizia um galanteio.

Desta vez demorou mais, até que a Flaemmchen respondesse. Tinha que fazer um extenso balanço. A renúncia à aventura principiada com o belo barão se incluía nele, os pesados cinquenta anos de Preysing, sua gordura, seu fôlego curto. Pequenas dívidas aqui e ali. A necessidade de roupa de baixo nova, de sapatos bonitos — os azuis não iam durar muito. O pequeno capital de que necessitava para iniciar carreira no cinema, na revista, em qualquer parte. A Flaemmchen pesou calmamente e sem sentimentalismo a oportunidade do negócio que lhe era proposto.

— Mil marcos — disse ela, achando que era suficiente; não tinha ilusões a respeito das quantias que hoje em dia se depunham aos pés das mulheres bonitas. — Talvez um pouquinho mais para a roupa de viagem — acrescentou, um pouco mais tímida do que de costume. — O senhor há de querer que eu tenha uma bonita aparência...

— Para isso a senhora não precisa se vestir. Pelo contrário — disse Preysing, excitado. Ele julgou que tinha dito uma frase espirituosa. A Flaemmchen sorria melancolicamente, o que deu um aspecto estranho à sua saudável carinha de amor-perfeito. — Então está combinado? -— perguntou Preysing. — Amanhã ainda tenho umas coisas a fazer aqui; é preciso também arranjar os passaportes, e poderemos viajar depois de amanhã. Está contente por ir conhecer a Inglaterra?

— Muito — respondeu a Flaemmchen. — Então amanhã eu trago a minha máquina de escrever portátil e o senhor pode ir logo ditando.

— E hoje à noite... se a senhora concordar... pensei que hoje à noite poderíamos ir a um teatro... Temos que tomar um copo de vinho para festejar o nosso contrato, não é? O que acha?

— Hoje, já? — disse a Flaemmchen. — Bom. Hoje, já.

Ela soprou o seu caracolzinho para cima, e atirou o cigarro amassado no cinzeiro. Podia ouvir perfeitamente a música do pavilhão amarelo. "Não se pode ter tudo", pensou. "Mil marcos. Vestidos novos. E Londres também não é para desprezar."

— Preciso telefonar para minha irmã — disse ela, levantando-se. Preysing sentiu-se percorrido por uma onda de calor, apaixonada e grata, que o inundou completamente; colocou-se então por trás dela e pegou delicadamente, com ambas as mãos, seus cotovelos, que ela apertava de encontro ao corpo.

— Quer ser boazinha para mim? — perguntou ele em voz baixa.

E igualmente baixinho, com os olhos voltados para a passadeira cor de amora, a Flaemmchen respondeu:

— Se não tiver muita pressa...


CONTINUA

7

 

O chá com veronal esfriara. A Grussinskaia sorriu ligeiramente, mas quando o percebeu, parou de sorrir e perguntou com ar severo:

— Quem o deixou entrar? A criada de quarto? Ou a Suzette? Como conseguiu entrar?

Gaigern tentou um golpe arriscado. Apontou por sobre o ombro para a atmosfera noturna da rua.

— Por ali — disse ele. — Vim do balcão do meu quarto.

De novo a Grussinskaia teve a impressão de já ter passado por aventura semelhante. De repente, veio-lhe a recordação. Num dos castelinhos de veraneio, no sul, em Abas-Tuman, aonde o Grão-Duque Serguei costumava levá-la, escondera-se certa noite em seu quarto um homem, um oficial bem jovem ainda. Arriscara a vida nessa tentativa; mais tarde ele veio de fato a falecer num acidente de caça pouco esclarecido. Isso tinha acontecido pelo menos há trinta anos. Enquanto a Grussinskaia ia para o balcão e olhava na direção em que a mão de Gaigern apontava, de repente o passado se apresentou de novo com toda a clareza. Ela via o rosto do jovem oficial. Chamava-se Pavel Jerilinkov. Lembrou-se de seus olhos e de alguns beijos. Estava enregelada, e sentiu que o homem ao lado dela no balcãozinho irradiava calor. Olhou rapidamente para os sete metros da fachada do hotel, que ficavam entre o balcão do seu quarto e o do quarto vizinho.

— Mas isso é perigoso — observou ela inadvertidamente, recordando-se mais de Jerilinkov do que pensando no momento presente.

— Não é tanto assim — replicou Gaigern.

— Está fazendo frio. Feche a porta — disse a Grussinskaia, passando depressa diante dele e entrando de novo no quarto. Gaigern obedeceu, e foi caminhando atrás dela; fechou a porta, puxou as duas cortinas, e depois ficou com as mãos pendentes: não passava de um jovem belíssimo, modesto mas um pouco amalucado, que fazia garotices românticas, para entrar no quarto de uma bailarina célebre. Afinal de contas, ele também possuía um pouco de talento para ator, o que era uma exigência da sua profissão. E agora representava, por uma questão de vida ou de morte. A Grussinskaia curvou-se, levantou o traje de ballet que atirara no chão, e o levou para o banheiro. A gota de sangue, de contas vermelhas de vidro lapidado, cintilou. Ela sentiu uma dor cortante e aguda. Nenhum da capo. Nenhum escândalo, quando uma outra dançava. Um público cruel. Berlim era cruel. Solidão cruel. Ela já havia sobrepujado um pouquinho essa dor — e agora a dor a acometia de novo, causando-lhe uma angústia no peito. Durante alguns segundos esqueceu-se por completo do intruso, que se parecia com o falecido Jerilinkov, mas de repente virou-se para ele e perguntou, sem olhá-lo:

— Por que fez isso? Por que faz coisas perigosas? Por que está escondido no meu quarto? Deseja alguma coisa de mim?

Gaigern fez uma investida e preparou-se para o ataque. — "Hop-là, avante!", pensou Gaigern. Não ergueu os olhos para ela.

— A senhora já sabe a razão, é porque a amo — respondeu em voz baixa.

Disse isso em francês, porque se o dissesse em alemão teria sido extremamente penoso. Depois ficou esperando em silêncio pelo resultado. "É simplesmente idiota", pensou ao mesmo tempo. Essa comédia lhe causava uma vergonha atroz, humilhante. Tinha horror de tudo o que feria o bom gosto. De qualquer modo, se ela não chamasse pelo camareiro, talvez ele estivesse salvo.

A Grussinskaia engoliu essas breves palavras francesas com a boca bem aberta. Absorveu-as como um remédio; dentro de poucos segundos até o tremor de frio cessou. Pobre Grussinskaia! Há muitos anos que ninguém lhe dizia coisa semelhante. Sua vida corria diante dela como um trem expresso vazio. Ensaios, trabalho, contratos, carros-dormitórios, quartos de hotel, excitação no palco, uma excitação cruel, e mais trabalho e mais ensaios. Sucesso, fracasso, críticas, entrevistas, recepções oficiais, discussões com empresários. Três horas de exercícios de solista, quatro horas de ensaios de ballet, quatro horas de espetáculo; os dias se seguiam um ao outro sempre iguais. O velho Pimenoff. O velho Witte. A velha Suzette. A não ser essas pessoas, mais ninguém, nenhum calor, nunca, nunca. Colocava as mãos nos canos de aquecimento central dos hotéis, e pronto. E depois, quando estava tudo terminado, quando o fim de tudo e da vida estava iminente, encontrava-se um homem à noite no quarto, e esse homem pronunciava palavras há muito desaparecidas, de que outrora

o mundo estivera repleto. A Grussinskaia não suportava mais. Sentia um sofrimento atroz, como se estivesse prestes a dar à luz. Mas foram apenas duas lágrimas que finalmente brotaram da tensão dessa noite, e ela as sentiu em seu corpo inteiro, nos artelhos e nas pontas dos dedos das mãos, depois no coração, e por fim elas chegaram aos seus olhos; rolaram pelas longas e rígidas pestanas pretas de pintura, caindo nas palmas abertas de suas mãos.

Gaigern assistiu à evolução desse fenômeno, e encheu-se de calor. "Pobre animalzinho", pensou ele. "Pobre bichinha. Está chorando, agora. Que coisa idiota!"

Depois que a Grussinskaia deu à luz essas duas lágrimas dolorosas, a coisa se tornou mais fácil. Começou com um leve aguaceiro, ao mesmo tempo cálido e fresco como uma chuva de verão — Gaigern pôs-se a pensar nos canteiros de hortênsias do jardim de Ried, sem saber por quê. Depois, esse aguaceiro se transformou numa torrente apaixonada, uma torrente negra, porque a pintura das sobrancelhas se dissolveu por completo. E, por fim, a Grussinskaia atirou-se ao leito, soluçando um tropel de palavras russas nas mãos em concha, que conservava encostadas à boca. Gaigern, ao assistir a essa cena, transformou-se. De ladrão de hotel, prestes a tirar a vida de uma mulher, passou a ser simplesmente um homem, um sujeito grandão, simples e bondoso, que não podia ver uma mulher chorar sem querer auxiliá-la. Agora não sentia mais medo, absolutamente nenhum; agora, o que o fazia sentir o coração pequeno e palpitante era a simples compaixão. Inclinou-se sobre o leito, pondo os braços dos dois lados do pequenino corpo a soluçar, e assim, curvado sobre a Grussinskaia, principiou a sussurrar em meio aos seus soluços. Não era nada de especial o que ele dizia; com as mesmas palavras teria consolado uma criança a chorar, ou um cão enfermo.

— Coitadinha — foi mais ou menos o que ele disse —, pobrezinha, pobrezinha da Grussinskaia, ela está chorando. Faz bem chorar assim, faz? Pois então chore, pode chorar. Que foi que lhe fizeram? Foram maus para você? Você gosta que eu esteja ao seu lado? Posso ficar aqui? Está com medo? É por isso que está chorando, é? Você... bobinha!

Levantou um dos braços que apoiara ao leito, tirou da boca da Grussinskaia as mãos que ela apertava de encontro aos lábios e beijou-as; estavam molhadas de lágrimas e pretas como as de uma menininha; seu rosto também estava todo lambuzado das lágrimas negras caídas dos seus olhos pintados. Gaigern não pôde deixar de rir. Apesar de continuar a chorar, a Grussinskaia viu o movimento bondoso, próprio dos homens fortes, o movimento de ombros que fazem quando riem. Gaigern afastara-se do leito e tinha ido ao banheiro. Voltou com uma esponja e enxugou com muito cuidado o rosto da bailarina; tinha trazido também um lenço. A Grussinskaia tinha parado de chorar, e conservou-se deitada tranqüilamente, enquanto ele lhe limpava o rosto. Gaigern sentou-se à beira da cama e sorriu para ela.

— E então? — perguntou ele.

A Grussinskaia murmurou qualquer coisa que ele não compreendeu.

— Fale em alemão — pediu Gaigern.

— Você... criatura... — sussurrou a Grussinskaia.

Essas palavras o comoveram. Chocaram-se de encontro ao seu coração como uma bolinha de tênis atirada com força, e quase o magoaram. As damas com as quais ele tinha relações não costumavam usar palavras carinhosas. Para elas, a gente se chamava coisinha, menininho, queridinho, ou "o barão grandão". Gaigern percebeu o sentimento contido nesse apelo, que despertou em seu íntimo recordações da infância, vindas de uma esfera que ele abandonara. Afastou-o de si. "Se ao menos eu tivesse um cigarro", pensou ele, cheio de languidez. A Grussinskaia tinha olhado para ele um momento, com um olhar que exprimia confusão e quase felicidade. Depois ela se sentou, estendeu seus longos artelhos à procura dos chinelos que haviam caído e de repente se transformou em uma senhora.

— Ora essa! — disse ela. — Que sentimentalismo! A Grussinskaia está chorando? Como? É uma coisa que vale a pena ver. Há muito tempo, há anos que ela não chorava. Monsieur me assustou. Monsieur é o culpado por esta triste cena.

Falava na terceira pessoa, queria criar distância, retirar o repentino "você", mas esse homem já estava muito próximo dela, para que o pudesse chamar de "senhor". Gaigern nada pôde responder.

— É horrível como o teatro ataca os nervos — continuou ela em alemão, com a impressão de que ele não a tinha compreendido. —- Disciplina! Isso sim, disciplina nós temos. A disciplina é um coisa penosa e difícil. Disciplina é fazer sempre o que não se deseja, como posso explicar... o que a gente não gosta de fazer. Você sabe o que significa ficar exausto por excesso de disciplina?

— Eu? Eu não. Faço sempre o que quero — disse Gaigern.

A Grussinskaia ergueu a mão, com um gesto em que todas as Graças haviam retornado.

— Sim, monsieur. Sente-se vontade de entrar no quarto de uma senhora... e entra-se. Sente-se vontade de pular varandas, com risco de vida... e faz-se o que se quer. E qual é o desejo de monsieur, agora?

— Eu gostaria de fumar — respondeu Gaigern francamente. A Grussinskaia esperava outra resposta, e achou que o pedido era cavalheiresco e gentil. Foi até a escrivaninha e ofereceu a Gaigern sua pequena cigarreira. Com o quimono chinês, já muito usado, mas legítimo, e os chinelos acalcanhados, tinha a mesma aparência de há vinte anos, quando viajava por todos os continentes, cheia de uma graciosidade cristalina e tilintante. Parecia ter-se esquecido de seus olhos avermelhados, e de seu aspecto lamentável.

— Pois então fumemos o cachimbo da paz — disse ela, erguendo para Gaigern as pálpebras amarfanhadas. — E depois faremos a nossa despedida!

Gaigern tragou avidamente a fumaça pelo nariz e pelo pulmão. Sentiu-se aliviado, apesar de sua situação ser ainda delicada. Não podia abandonar esse quarto com as pérolas no bolso, quanto a isso não havia dúvidas. Se conservasse as pérolas, agora que conhecia a bailarina, teria que fugir nessa mesma noite, e no dia seguinte pela manhã a polícia o estaria perseguindo. Isso não fazia absolutamente parte dos seus planos. Agora tratava-se de ficar ali a qualquer preço, até que as pérolas pudessem retornar ao seu estojo. A Grussinskaia sentara-se diante do espelho e empoava o rosto, com expressão séria. Esfregou alguns riscos e pontinhos da pele e ficou novamente linda. Gaigern aproximou-se dela, pondo-se, com seu grande vulto entre a suitcase vazia e a mulher. Fitando seus ombros, ele dirigiu-lhe um sorriso tentador, doce como mel.

— Por que esse sorriso? — perguntou ela ao espelho.

— Porque vejo no espelho uma coisa que você não pode ver — disse Gaigern.

Dizia simplesmente: "você". O cigarro lhe tinha dado coragem, e ele se animou. "Avante", pensou ele, encorajando-se.

— Estou vendo de novo o que estava vendo há pouco, lá do balcão — disse ele inclinando-se sobre a mulher —, estou vendo no espelho uma mulher belíssima, como nunca vi outra igual. Essa mulher está triste. E está nua... Ela é... não, não posso dizê-lo, isso me faz ficar louco. Não sabia que era tão perigoso espiar em um quarto alheio uma mulher que se despe.

E, realmente, enquanto Gaigern formava no seu francês convencional essas frases galantes, via a imagem da Grussinskaia no espelho, como há pouco, e sentia ao vê-la a mesma admiração e o mesmo calor que sentira no balcão. A Grussinskaia ouviu-o atenta e com expressão inquiridora. "Como me tornei fria", pensou com tristeza, percebendo que não estremecia ao ouvir aquelas palavras entusiásticas. Sentia a intensa vergonha das mulheres frias. Voltou-se para Gaigern com um movimento elegante e calculado do longo pescoço. Gaigern segurou os pequenos ombros da mulher com suas mãos quentes e hábeis, e em seguida beijou-a no lindo sulco entre as omoplatas, como um conhecedor.

Esse beijo, principiado com frieza entre dois corpos estranhos, prolongou-se. Mergulhou como uma agulhazinha quente na espinha dorsal da mulher, cujo coração começou a palpitar com força. Seu sangue correu mais pesado e doce; sim, esse coração que já esfriara agora palpitava, e começou a vibrar; seus olhos se fecharam; ela tremia. Gaigern tremia também, quando a largou e endireitou o corpo; uma veia intumesceu, muito azul, na sua testa. De repente sentiu a Grussinskaia dentro dele. inteirinha, sua pele, seu perfume acre, seu estremecimento ansioso de prazer, que fora despertando aos poucos. "Com os diabos!", pensou ele de repente. Suas mãos estavam cheias de avidez, e ele as estendeu.

— Eu acho que o senhor deve retirar-se agora — disse a Grussinskaia com voz fraca, à imagem do moço no espelho. — A chave está na porta.

Sim, lá estava a malfadada chave; agora era possível retirar-se quando quisesse. Mas Gaigern não desejava retirar-se — por várias razões.

— Não — disse ele, com súbito sentimento de dominador, como o macho de uma pequenina mulher, trêmula como um violino a vibrar. — Não vou embora. Você sabe que não vou. Você pensa realmente que vou deixá-la agora aqui sozinha? Que vou abandoná-la ao lado de uma xícara de chá cheia de veronal? Você pensa que eu ignoro o que se passa com você? Eu vou ficar aqui. Está dito.

— Está dito? Está dito? Mas eu quero ficar sozinha....

Gaigern aproximou-se rapidamente da Grussinskaia, que estava de pé no meio do quarto, e puxou até seu peito os pulsos da bailarina.

— Não — disse ele com veemência. — Isso não é verdade. Você não quer ficar sozinha. Você tem um medo pavoroso de ficar sozinha, percebo perfeitamente o medo que você sente. Sei o que você está sentindo, eu a conheço, pequerrucha, mulher estranha. Você está representando uma pequena comédia para me enganar. O seu cenário é de vidro, eu vejo através dele. Há pouco você estava desesperada. Peça para eu ficar com você, peça!

Pôs-se a sacudir as mãos dela. Segurou-a pelos ombros e sacudiu-a. Pela dor que sentiu, ela pôde perceber a excitação do moço; Jerilinkov havia implorado, lembrou-se ela; este ordenava. Fraca e aliviada, ela deixou cair a cabeça sobre o peito coberto pelo pijama de seda azul.

— Sim, fique mais um minuto — murmurou ela. Gaigern, a olhar por cima de seus cabelos, respirava ofegante, soltando o ar por entre os dentes cerrados. Sua tensão de medo começou a se distender; um turbilhão de imagens desfilou rapidamente, cinematograficamente, diante dele; a Grussinskaia, morta em seu leito, com uma dose violenta de veronal no sangue, ele a fugir pelos telhados, investigações na casa de Springe, penitenciária — ele não fazia a menor ideia do aspecto de uma penitenciária, no entanto enxergava tudo perfeitamente, e também viu sua mãe, morrendo de novo, apesar de já estar morta há muito tempo. Quando voltou ao quarto 68, o medo e o perigo já vencidos transformaram-se de repente em embriaguez. Tomou nos braços o corpo leve da Grussinskaia, levou-o até a cama, onde a deitou como uma criança.

— Venha, venha, venha — murmurou ele de encontro às fontes da mulher, com uma voz subitamente grave e profunda.

A Grussinskaia há muito tempo não sentia o próprio corpo, e agora estava sentindo-o. Durante muitos anos não fora mulher, e agora sentia-se mulher. Um céu negro e sonoro começou a girar sobre ela, e ela se atirou nele com ímpeto. Um gemido brando de passarinho, expelido por uma boca entreaberta, transportou Gaigern, de uma fingida paixão, a profundidades de prazer que ele desconhecia. A xícara de chá, na mesa do hotel, estremecia de leve todas as vezes que passava algum automóvel. Primeiramente, a luz branca do lustre se refletiu no líquido envenenado; depois, apenas o vermelho da lâmpada de cabeceira, depois apenas a luz cambiante do anúncio móvel que penetrava pelas cortinas. Dois relógios apostavam corrida; o elevador rangia no corredor; a torre longínqua da igreja badalou uma hora, por entre as buzinas noturnas dos automóveis — e dez minutos mais tarde já cintilavam novamente os refletores, na fachada do Grande Hotel.

— Você está dormindo?

— Não!

— Está bem acomodado?

— Estou.

— Agora você está de olhos abertos. Sinto suas pestanas no meu braço, quando você abre e fecha os olhos. Que engraçado! Um homem tão grande, com pestanas de criança. Diga-me, você está satisfeito?

— Nunca me senti tão feliz como agora.

— Que é que você disse?

— Nunca me senti tão feliz com uma mulher como agora.

— Repita isso de novo, repita!

— Nunca me senti tão feliz — murmurou Gaigern de encontro à carne fresca e branca do braço em que sua cabeça repousava. Ele estava dizendo a verdade. Sentia-se indescritivelmente repousado e agradecido. Nunca sentira coisa semelhante em suas aventuras de amor barato; essa embriaguez sem ressaibos, esse repouso trêmulo após o amplexo, essa profunda confiança do próprio corpo em outro corpo. Seus membros repousavam, distendidos e satisfeitos, ao lado dos membros da mulher; havia profunda compreensão mútua entre a pele dela e a sua. Sentia qualquer coisa que não tinha nome, nem mesmo o nome de amor: um retorno, após prolongada ausência. Ele ainda era jovem, mas nos braços da Grussinskaia, já perto da velhice, sob a ação de suas carícias amorosas, suaves, conscientes e delicadas, tornava-se mais jovem ainda.

— Que pena... — murmura de encontro ao braço da mulher; levanta um pouco a cabeça, e a pousa no ninho da axila da companheira, um pequenino e cálido lar, com aroma de mãe e de prado.

— Pelo seu perfume eu a encontraria em qualquer parte do mundo, de olhos vendados — diz ele, farejando como um cãozinho. — Que perfume é esse?

— Deixe disso, e diga-me: pena por quê? Você... Deixe esse perfume... tem o nome de uma florzinha que cresce nas campinas: Neuwjada. Não sei como se chama em alemão. Tomilho? É feito em Paris para mim. Diga, pena por quê?

— Pena que se comece sempre com a mulher errada. Que se continue idiota durante uma infinidade de noites, pensando que é assim que se goza, que o prazer é essa coisa corrupta, e depois fria e desagradável como um estômago enjoado. E é pena que a primeira mulher com quem dormi não tivesse sido como você.

— Deixe disso... menino mimado — murmura a Grussinskaia, pousando os lábios nos cabelos dele, naquela peliça dura, espessa e quente, cheirando a macho e a cigarro, sempre bem penteada e alisada, e agora completamente em desordem. Ele roça com as pontas dos dedos, a respirar docemente, o flanco da sua companheira.

— Sabe? Você é tão leve! Levíssima! Um pouco de espuma numa taça de champanha — diz ele com carinho e admiração.

— Pois é. É preciso ser leve — responde a Grussinskaia.

— Estou com vontade de vê-la, agora. Posso acender a luz?

— Não, não! — exclama ela afastando dele o ombro. Ele percebe que a assustou, que assustou essa mulher, cuja idade ninguém sabe com certeza. Sente novamente uma compaixão simples e espontânea. Vai escorregando o corpo para junto dela, e por fim os dois ficam em silêncio, pensando. A luz da rua paira no forro, como um reflexo, estreito e agudo como uma espada, penetrando no quarto pela abertura das cortinas. Quando passa lá embaixo um automóvel uma sombra se espalha rápida no reflexo do forro.

"As pérolas", pensa Gaigern, "para o diabo. Se eu tiver sorte e tudo correr bem, posso metê-las de novo no estojo, quando ela dormir. Vai haver um escândalo com o meu pessoal, se eu for me encontrar com eles sem as pérolas. Contanto que o chofer não faça alguma loucura, contanto que esse animal não tome hoje de noite uma bebedeira de raiva e me estrague tudo... Que azar! Só Deus sabe onde é que vamos arranjar dinheiro, agora. Talvez seja possível sangrar esse herdeiro de província, que geme durante a noite no quarto ao lado, no -70. Ora! Que diabo! Não adianta ficar pensando nisso. Talvez eu possa simplesmente lhe pedir as pérolas. Talvez amanhã eu lhe conte simplesmente do que se trata. Se eu souber fazer as coisas direitinho, não será ela quem me mandará prender amanhã, não fará isso, essa pequerrucha leve e maluca. Deixar as pérolas rolando, numa maleta aberta! Que mulher engraçada, agora eu a conheço. Nem se importa com pérolas! Para ela, nada tem importância, tudo é indiferente. Se eu não tivesse aparecido, ela já não precisaria mais se incomodar com as joias. Para que ainda precisa de pérolas? Deve me fazer presente das pérolas, ela é tão boa... Ah, como é boa! Parece uma mãe, uma minúscula mamãezinha, com quem a gente pode dormir."

A Grussinskaia pensa: "Às onze horas o trem parte para Praga. Contanto que esteja tudo em ordem! Hoje eu abandonei tudo, e amanhã nada estará em ordem. Pimenoff é muito mole para lidar com a troupe; as meninas o levam pela ponta do nariz. Mas quem perder o trem amanhã será despedido, com certeza. Se Pimenoff esta noite não se preocupou com os cenários, amanhã eles não estarão empacotados; os empregados do palco deveriam ter trabalhado horas extras à noite. Mas as coisas que eu não faço ficam sempre por fazer. E as contas a acertar com Meyerheim? Meu Deus, como é possível que eu tenha abandonado tudo? Witte, se a gente não presta atenção nele, esquece até a própria cabeça no hotel. Preciso sempre pensar por todos, e esta noite não estive lá. Vai haver uma débâcle horrorosa. A Lucille há muito tempo que tem vontade de se revoltar. Para vocês nunca são suficientemente grandes as letras dos seus nomes nos cartazes, não é verdade? Sua propaganda nunca é bem feita. Mas vocês, sozinhos, não fazem nada, é preciso fazê-los trabalhar com o knut, para que vocês se conservem em forma. Vocês me fizeram ficar má, convencida e cansada. Meu Deus, como eu estava cansada ontem... Faltou muito pouco para vocês verem se são capazes de alguma coisa sem a Grussinskaia. Mas agora não me sinto cansada, agora poderia me levantar e dançar todo o programa, ou mesmo um outro programa, um bailado novo. Preciso falar com Pimenoff, ele precisa criar um novo bailado: a dança do medo. Oh, essa dança eu poderia dançar agora para vocês. Primeiro num lugar só, apenas um tremor, e depois três círculos nas pontas, ou mesmo sem ser nas pontas, talvez uma coisa completamente diferente.

''Mas estou viva", pensa ela, abalada, "estou viva, e vou criar novos bailados, vou ter sucesso. Uma mulher que é amada tem sempre sucesso. Vocês me fizeram passar fome desde... há mais de dez anos, foi isso. É estranho que um bobinho que pulou o balcão para vir aqui possa dar à gente tanta energia! Um rapaz simpático, que do amor só conhece o jargon das mocinhas..."

Ela puxa o cobertor e cobre Gaigern, como se ele fosse uma criancinha. Ele sussurra, agradecido, faz-se pequenino e fraco, e enfia o nariz na carne dela. Seus corpos já se conhecem, mas seus pensamentos se distanciam para lados distintos, dentro da noite. Em todos os leitos do mundo, os amantes ficam deitados muito unidos, mas tão separados!...

É a mulher quem primeiro procura adivinhar o que se passa na outra alma. Toma a cabeça do homem nas mãos, como se fosse um fruto grande e pesado colhido ao sol, e murmura em seu ouvido:

— Eu ainda não sei como você se chama, meu amigo.

— Costumam chamar-me de Felix. Meu nome todo é: Felix Amadei Benvenuto, Barão von Gaigern. Mas você precisa me dar um novo nome, precisa me batizar também. Quero ter um nome dado por você.

A Grussinskaia pensa um pouco, depois dá uma risadinha.

— Sua mãe devia ter esperado muita coisa de você, quando você nasceu, para lhe dar nomes tão bonitos — disse ela. — O venturoso. O amado de Deus. O bem-vindo. Você chorou ao ser batizado?

— Não me lembro muito bem.

— Ah! Sabe? Eu também tenho uma filha. Que idade você tem, Benvenuto?

— Hoje, tenho dezessete anos, de novo. Estou pela primeira vez com uma mulher. Mas minha idade comum é trinta anos.

Aumentou um pouco a idade, por estranha delicadeza para com a mulher que sente medo da luz elétrica e da própria idade. Apesar disso, ela se sente magoada. "Ele poderia ser o pai do meu neto Pompon, de oito anos", pensa a Grussinskaia sem querer. "Passons!", ordena a si mesma.

— Como era você em criança? Muito bonito? Ah, é claro, era muito bonito.

— Simplesmente encantador. Cheio de sardas, de galos e arranhões, e muitas vezes cheio de piolhos também. Tínhamos ciganos para tratar dos nossos cavalos; isso é muito comum na fronteira, onde ficava a nossa propriedade. Os meninos ciganos eram meus amigos. Eles me passavam toda espécie de bichos e de sarna. Quando me lembro da minha infância, sinto sempre um cheiro de estéreo de cavalo. Depois me tornei durante alguns anos o terror de vários companheiros de seminário. Por fim estive por pouco tempo na guerra. Da guerra eu gostei. Na guerra eu me senti em casa. Por mim, tudo podia ter sido muito pior do que foi. Se houver guerra de novo, tudo estará bem para mim, novamente.

— Agora as coisas não vão bem para você, seu condottiere? Que vida você leva? Que espécie de indivíduo é você?

— E você? Que espécie de mulher é? Nunca conheci nenhuma como você. Em geral as mulheres não têm muitos segredos. Mas a você tenho curiosidade de conhecer, preciso perguntar-lhe muitas coisas. Você é muito diferente das outras.

— Sou apenas antiquada. Sou de um outro mundo", de um século diferente do seu, é apenas isso — disse a Grussinskaia com voz sonhadora. Ao mesmo tempo sorriu nas trevas, e lágrimas ardentes lhe vieram aos olhos. — Educaram-nos como soldadinhos, a nós, bailarinas, com severidade, com pulso de ferro, no Instituto de Ballet Imperial de São Petersburgo. Pequenos regimentos de recrutas para o leito dos grão-duques, é o que nós éramos. Dizem que, nas meninas que aos quinze anos começavam a engordar, colocavam argolas de aço em volta dos seios, para que eles não crescessem mais. Eu era pequena e magra, mas dura como um diamante. Orgulhosa, sabe; tinha o orgulho no sangue, como pimenta e sal. Uma máquina do dever, trabalhando, trabalhando, trabalhando. Sem descanso, sem tempo para descansar, nunca! E depois: quem se torna célebre fica completamente só. Com o sucesso, a gente se sente gelada e solitária como no pólo norte. Sabe o que significa ter sempre sucesso, durante três, cinco, dez, vinte anos, sempre, sempre? Mas o que é que eu lhe estou contando? Você está me compreendendo? Ouça: muitas vezes a gente passa por uma estação de estrada de ferro, ou à noite passa de automóvel por uma pequena cidade. As famílias estão sentadas diante das portas, todos muito rígidos, com cara de idiota, com as manoplas pousadas no colo, e ninguém se move. É isso, veja, é isso! É isso o que nós desejamos: sentirmo-nos fatigados, e ficar simplesmente sentados, com as mãos imóveis, pousadas no colo. Mas se você for uma pessoa célebre, procure desaparecer do mundo, descanse, deixe que as outras bailarinas dancem, essas alemãs feias e com luxações nos músculos, essas negras, toda essa gente que não sabe nada; deixe que elas dancem, descanse! Veja, Benvenuto, isso não é possível, é absolutamente impossível. Odeia-se o trabalho, amaldiçoa-se o trabalho, mas não se pode existir sem o trabalho. Três dias de descanso, e vem o medo: vou perder a forma, estou ficando pesada, minha técnica está indo embora. É preciso dançar, como uma loucura, nem a morfina e a cocaína, nenhum vício no mundo é tão venenoso como o trabalho e o sucesso, acredite-me. É preciso dançar, somos obrigados a dançar. E isso também é importante. Se eu parar de dançar, não existe mais ninguém no mundo que saiba realmente dançar, acredite-me. Todas as outras são diletantes; mas é preciso que haja alguém que saiba dançar, que saiba o que significa a dança, em meio a um realismo histérico, horrível! Eu aprendi com as antigas celebridades; com a Kocressínskaia, com a Trefilovna, e elas, por sua vez, aprenderam com os grandes do bailado, há quarenta, há sessenta anos. Às vezes tenho a impressão de que tenho de dançar contra o mundo inteiro, contra o brado de "atualidade!" De um lado, estão vocês, um teatro repleto de ganhadores da vida e homens-máquinas, participantes da guerra e acionistas... e do outro, estou eu. Uma pobre e pequenina Grussinskaia, velha, não é verdade? Tão sentimental, tão antiquada, com os seus passos já conhecidos há duzentos anos. E, no entanto, eu os atraio ainda, e vocês choram, riem, desesperam-se e extasiam-se; e tudo por quê? Por causa desse balezinho fora da moda? Será tão importante, isso? Certamente, porque só tem sucesso mundial aquilo que tem importância para o mundo, aquilo de que o mundo precisa. Mas, ao lado disso, tudo se despedaça, dentro de nós nada mais resta. Nem marido, nem filhos, nenhum sentimento, nenhum conteúdo. Deixamos de ser indivíduos humanos como os outros, compreende? Não somos mulheres, somos apenas uma migalha esgotada de responsabilidade, que perambula pelo mundo. No dia em que termina o sucesso, no dia em que perdemos a crença de que somos indispensáveis, a vida acaba para nós. Você está me ouvindo? Está me compreendendo? Gostaria tanto que você me compreendesse — disse a Grussinskaia, em tom implorante.

— Não compreendi tudo... mas quase tudo. Você fala francês muito depressa — respondeu Gaigern.

Durante os meses em que ficou à espreita, atrás das pérolas, ele frequentou inúmeras vezes os espetáculos de ballet da Grussinskaia, aborrecendo-se sempre, em geral. Ficou profundamente admirado ao saber que a Grussinskaia, conforme parecia, arrastava consigo, como um martírio, os rodopios do ballet. Ela está colada com tanta leveza às coxas de Gaigern, tem uma vozinha delicada, com um gorjeio colorido e modulado e fala coisas tão sérias!... Que se pode responder a isso? Ele suspira. Fica pensando.

— Foi muito bonito o que você disse das pessoas à noite, com as mãos imóveis. Você devia dançar isso — declarou ele finalmente, confuso.

A Grussinskaia contentou-se em rir.

— Dançar isso? Mas não se pode dançar uma coisa assim, monsieur. A não ser que me queiram ver no papel de uma velha com um pano na cabeça, com gota nos dedos, dura como um pau, apenas repousando...

Cortou a frase no meio. Enquanto falava, seu corpo já tinha se apossado da imagem, contraindo-se e enrijecendo. Ela já estava vendo o cenário, conhecia um jovem pintor amalucado, em Paris, que poderia pintar uma coisa assim; já via o bailado, já o sentia nas mãos e na nuca curvada. Ficou calada, com a boca entreaberta, na escuridão. Nem respirava, tal a excitação que sentia. O quarto se encheu de personagens que ela nunca dançara, e que poderiam ser dançadas, de centenas de vultos reais e viventes. Uma mendiga a tremer, estendendo os braços, uma velha campônia dançando mais uma vez no casamento da filha... Diante de um balcão de feira encontrava-se uma mulher magra, apresentando umas míseras prestidigitações, uma prostituta esperava por homens sob uma lanterna. Uma menininha, que havia quebrado uma chave e levava uma surra; uma criança de quinze anos, que era forçada a dançar nua diante de um homem imponente, enorme e cintilante, um senhor, um grão-duque, e também a espinhosa paródia de uma governanta; uma mulher que corria como se a estivessem perseguindo, apesar de não ser esse o caso; uma outra que queria dormir e não podia; uma que tinha medo de espelho; e ainda uma outra que bebia veneno e morria.

— Fique quieto... não diga nada... não se mexa — sussurrou a Grussinskaia olhando para o forro, em que se via a espada luminosa. O aposento adquirira o aspecto estranho e misterioso que os quartos de hotel às vezes gostam de apresentar. Lá embaixo os automóveis lançavam fumaça pelo escapamento, buzinavam, parecendo animais, porque a Liga dos Filantropos terminara a sua festa, e começava a saída pelo portão 2. A noite esfriou. Do turbilhão das ideias e dos rostos, a Grussinskaia voltou ao quarto com um leve arrepio. "Pimenoff vai pensar que eu estou louca, ele, com seus baileis de borboletas. Quem sabe se estou louca mesmo?" Da sua divagação de um minuto, havia retornado ao leito, como se voltasse de uma longa viagem. Gaigern ainda continuava deitado. Ela quase se assustou ao encontrar de novo o homem encostado ao seu ombro, com seus cabelos, suas mãos e sua respiração.

— Que espécie de homem é você? — perguntou ela mais uma vez, nas trevas, com o rosto bem sobre o dele. Ela sentia intimamente, nesse instante, o espanto de se encontrar tão próxima de uma coisa tão estranha e diferente dela. — Ontem eu ainda não o conhecia. Quem é você? — perguntou ela de encontro à cálida umidade da boca do homem.

Gaigern, que já estava quase adormecendo, deixou os dois braços tombarem sobre as costas da mulher, e ela teve a impressão de ser a esguia cadela galga de sua casa, a Biche.

— Eu? Não há muita coisa a contar — respondeu ele, obediente, mas sem abrir os olhos. — Sou um filho pródigo. Sou uma ovelha negra de um bom curral. Sou um mauvais sujet, e vou acabar na forca.

— É verdade? — perguntou ela, dando uma risadinha arrulhante.

— É verdade — disse Gaigern, convencido. Começara a cantarolar como uma ladainha, e por brincadeira, aquelas velhas frases e advertências dos professores do seminário; mas, ao perfume cálido de tomilho daquela cama, veio-lhe o desejo de confessar-se e de ser sincero.

— Sou um devasso — continuou ele a falar na escuridão. — Não tenho caráter, e sou de uma curiosidade incrível. Não consigo me adaptar a nada, sou um sujeito inútil. Em casa aprendi a montar e a ser o senhor. No seminário aprendi a rezar e a mentir. Na guerra, a atirar e a procurar pôr-me a salvo. Mais do que isso não sei fazer. Sou um cigano, um marginal, um aventureiro.

— Ah, você... E o que mais?

— Sou um jogador, e não me importo de fazer trapaças. Também já roubei. A bem dizer, eu devia estar é na prisão. Mas ando por aí, e me sinto às mil maravilhas, e faço tudo o que me dá na veneta fazer. Às vezes me embebedo também. E, além do mais, sou preguiçoso de nascença.

— Continue — murmurou a Grussinskaia, encantada. Sua garganta estava vibrando, de tanto conter o riso.

— Pois bem, sou um criminoso. Um homem que escala muros de fachadas — disse Gaigern, sonolento —, um assaltante.

— E que mais ainda? Talvez um assassino, também?

— Isso mesmo. É claro. Um assassino também. Estive a ponto de matá-la — afirmou ele.

A Grussinskaia ainda se riu, um pouco inclinada sobre o rosto de Gaigern, que ela sentia, apesar de não o ver, mas de repente ficou muito séria. Cruzou as mãos por detrás do pescoço dele e murmurou em surdina ao seu ouvido:

— Se você não tivesse vindo ontem, eu não estaria viva agora!

"Ontem?", pensou Gaigern. "Agora?" A noite no 68 parecia ter durado uma eternidade, devia ter sido há alguns anos que ele estivera no balcão e enxergara a mulher no quarto. Levou um susto. Apertou-a em seus braços com força, como um lutador de luta livre: os músculos flexíveis da bailarina resistiram — ele o sentiu com estranho prazer.

— Você nunca mais deve fazer uma coisa dessas.

Você tem de ficar aqui. Não a deixarei ir-se embora mais. Preciso de você — afirmou.

E ficou a ouvir a própria voz, ao pronunciar tão curiosas palavras, com uma voz diferente, rouca, que parecia provir do fundo palpitante de seu coração.

— Não, agora tudo mudou. Agora está tudo bem. Agora você está comigo — murmurou a Grussinskaia; mas Gaigern não a compreendeu, porque ela falou em russo.

Ele sorveu a entonação da sua voz, e a noite começou de novo a rumorejar. Pássaros de sonho saíram das trepadeiras da tapeçaria que forrava as paredes do hotel... O homem se esqueceu das pérolas no bolso do seu pijama azul e a mulher se esqueceu do insucesso e dos veronais na xícara de chá.

Nenhum dos dois se atreve a pronunciar esta palavra caduca: "amor". Juntos, deslizam no confuso turbilhão da noite de amor, passando dos abraços aos murmúrios, dos sussurros a um breve sono e aos sonhos, e dos sonhos a um novo abraço: duas pessoas vindas de dois pontos opostos do mundo, para encontrar-se por algumas horas no leito do quarto 68, onde tanta gente já dormiu...


8

 

Na vida da Grussinskaia o amor não havia representado um papel importante. Tudo o que o corpo e a alma possuíam de paixão fluía para a dança. Tinha tido alguns amantes, porque isso fazia parte da vida de uma bailarina célebre, assim como as pérolas, o automóvel, os vestidos das boas casas de moda de Paris e de Viena. Rodeada de admiradores, requisitada e perseguida por apaixonados, não acreditava apesar de tudo na existência do amor. Ele não lhe parecia mais real do que os cenários pintados, os templos de amor e as sebes de roseiras diante dos quais seus bailados eram executados. Apesar de permanecer fria e de não conseguir entusiasmar-se, passava por uma amante maravilhosa, única. Por seu lado, praticava o amor como um dever da sua profissão, como uma peça de teatro, por vezes agradável, mas sempre exaustiva, requerendo uma arte requintada. Toda a flexibilidade do seu corpo, seu flutuar etéreo, a sutilidade, o requinte, a delicadeza e a suavidade, o impulso e o arrojo, a emoção e a debilidade, todos os impecáveis requisitos da sua dança, ela levava consigo para os amigos com quem passava as noites. Sabia embriagar de prazer, mas não se embriagava a si mesma. Na dança, era capaz de enlouquecer, de esquecer-se de si própria, e por vezes seus partners ouviam-na soltar gritinhos abafados, como um passarinho, durante as posições mais difíceis e movimentadas. No amor, porém, nunca perdia a consciência de si mesma, estava sempre se observando. Era estranho: não acreditava no amor — e no entanto não podia viver sem amor.

Porque o amor — ela o sabia — era uma parte do sucesso. Enquanto fora jovem, e seu camarim transbordava de flores e de cartas, enquanto em todo o seu percurso os homens se postavam, prontos a arruinar-se, a fazer por ela qualquer espécie de loucura, a abandonar a fortuna e a família, ela sentia que o sucesso a bafejava. Nas confissões de amor, nas ameaças de suicídio, nas perseguições por toda parte, pelo valor dos presentes que recebia dos conquistadores podia-se perceber o sucesso, do mesmo modo que nos aplausos, nas críticas e no número de chamadas ao proscênio. Ela não o sabia, mas o amante que a encantava e lhe causava prazer era, a bem dizer, um público perante o qual ela tinha sucesso. E pela primeira vez percebeu, horrorizada, que o sucesso diminuía, quando Gaston a abandonou, para casar-se com uma moça sem muitos dotes, mas de boa família. A atmosfera que a rodeara durante anos esfriou e se tornou sombria, uma atmosfera noturna, incompreensível. Era uma escadaria que ia descendo por centenas de degrauzinhos, tão pequenos que quase não a deixavam aperceber-se dela. E, no entanto, era vastíssimo o caminho que conduzia aquela Grussinskaia de antes da guerra, que dançara para um mundo cheio de romantismo e de êxtase, à atual Grussinskaia, que mendigava um pouco de aplauso de um punhado de pessoas céticas, indiferentes e maldosas. O seu fim, como última consequência, era a completa solidão, e uma dose forte de veronal.

Por essa razão, o homem do balcão significava para a Grussinskaia mais do que um simples homem. Era um milagre que acontecia no último instante no 68, para salvá-la; era o sucesso evidente que a procurava; o mundo que penetrava cheio de ardor em seu quarto; era a prova de que os tempos românticos ainda não haviam passado, os tempos em que um jovem Jerilinkov se deixava matar com um tiro por ela. Ela se deixara cair, mas encontrara alguém que a erguia do solo.

Havia no programa da Grussinskaia um bailado em que a morte dançava um pas de deux com o amor; os poetas que lhe escreviam, por vezes, enviavam-lhe versos em que voltava sempre o banal pensamento de que a morte e o amor eram irmãos. Nessa noite, a Grussinskaia comprovava em si própria a verdade desse lugar-comum. A vertigem dolorosa da noite passada transformou-se em embriaguez, num torvelinho de gratidão, num anseio febril de receber e de dar, de sentir e conservar. Os anos gelados se derretiam. O vergonhoso segredo da sua frieza, que escondera durante toda a vida, desfazia-se, deixava de existir. Há tantos anos se sentia de tal modo pobre e solitária, que às vezes mendigava à pele jovem e cálida do seu partner, Michael, uma esmola de calor. Nessa noite, nesse quarto indiferente de hotel, nessa cama comum de metal brilhante, ela se sentia arder, transformava-se, descobria o amor, que não acreditava que existisse.

Os quartos 68 e 69 eram tão parecidos que, ao despertar, Gaigern não sabia muito bem onde se encontrava. Quis virar-se para a parede do seu quarto, mas encontrou o vulto pequenino da Grussinskaia, que dormia e respirava docemente. Recordou-se. A maravilhosa e profunda confiança do primeiro sono dormido junto repousava em seus membros como um peso suave. Retirou seu braço, que adormecera debaixo do pescoço da mulher, e com leve e ' solene comoção rememorou os acontecimentos dessa noite. Não havia dúvida — estava apaixonado, e além disso, de um modo completamente novo e grato. Sem que as pérolas influíssem no seu sentimento, não podia deixar de pensar, envergonhado: somos uns porcos. Não era a história gorada das pérolas que influía no seu sentimento. Sobe-se a um quarto alheio: inventa-se uma comédia atroz, representa-se — e a mulher acredita em tudo. Faz questão de acreditar. Os homens representam e as mulheres acreditam neles. A bem dizer, no começo a gente é sempre um embusteiro e um assaltante; mas em seguida, a mentira transforma-se em verdade. "Eu gosto muito de você, pequenina Mouna, querida e boa Neuwjada, eu te amo, je t’aime, je t'aime. Você fez uma bela conquista, mulherzinha, você..."

Fazia frio no quarto; lá fora já devia estar amanhecendo; a rua estava silenciosa, uma réstia de luz crepuscular penetrava por entre as cortinas, e o desenho da tapeçaria das paredes começava a esgueirar-se pela madrugada. Gaigern levantou-se com o maior cuidado. A Grussinskaia dormia profundamente, com o queixo enterrado no próprio ombro. Agora, que passara o tumulto da noite, as duas cápsulas de veronal pareciam estar fazendo efeito. Gaigern tomou-lhe a mão, que pendia para fora do leito, repousou na sua palma as pálpebras quentes, e depois enfiou aquela mãozinha frouxa sob o cobertor, como se a Grussinskaia fosse um bebezinho. Foi caminhando com cuidado, na meia escuridão do quarto, até o balcão, e abriu lentamente as cortinas. A Grussinskaia não despertou. "Agora tenho que pôr em ordem o negócio das pérolas", pensou Gaigern. Admirou-se de sentir-se satisfeito com a solução. "Um round perdido", pensou ele sem se aborrecer. Gostava de usar essas expressões de esporte, em seus empreendimentos aventureiros. Tateou à procura do pijama, e sorriu ao encontrar as diversas partes do seu vestuário atiradas por todo o quarto; em seguida entrou no banheiro. Ao contato da água, o ferimento da sua mão direita começou a arder e a sangrar; lambeu-o com indiferença e não se importou mais com isso. O aroma acre e murcho de louros, no aposento, acentuara-se. Gaigern, desejoso de respirar ar fresco, foi ao balcão e aspirou profundamente; seu peito ainda estava repleto de uma doce e desconhecida angústia.

Lá fora paira, sobre a rua que desperta, uma neblina fria que o vento leva. Nem automóveis nem gente. A distância, ouve-se o sibilar de um bonde a correr nos trilhos. Não surgiu ainda o sol, mas há uma luz leitosa e igual. Uns passos martelados, na esquina, e novamente o silêncio. Um pedaço de papel flutua como um passarinho enfermo sobre o asfalto, e depois pousa no chão. A árvore plantada não muito longe do portão 2 balouça os galhos sonhadores. Um sonolento passarinho de março, bem lá em cima, pousado na haste delicada de um botão, experimenta a voz no tumulto da grande cidade. Um caminhão cheio de caixas com garrafas de leite segue aos solavancos, muito cheio de si; a neblina que desliza cheira a maresia e a gasolina; a grade do balcão tem um brilho úmido. Gaigern encontra suas meias de larápio no balcão, e enfia-as depressa no bolso, junto das luvas, da lanterna de bolso e das pérolas de quinhentos mil marcos, de que ainda precisa se livrar. Torna a entrar no quarto, deixando as cortinas abertas; a luz pálida cai em triângulo no tapete, estendendo-se até o leito em que dorme a Grussinskaia.

Agora ela está estendida de costas, com a cabeça tombada de lado, dando a impressão de que a cama é grande demais para o seu corpo delicado e pequenino. Gaigern, para quem a maioria das camas de hotel são curtas, achou graça e sentiu-se comovido. Teve um súbito pensamento, uma ideia carinhosa. Foi buscar a xícara de veronal na mesinha e também os tubinhos de vidro vazios, e dirigiu-se com eles ao banheiro. Com os cuidados de uma ama, lavou a xícara, depois de esvaziá-la, e secou-a com um lenço. Ao encontrar o roupão de banho da Grussinskaia, com um gesto infantil, beijou-o na manga. Não havendo lugar para colocar os vidrinhos, guardou-os no bolso, junto das pérolas. A Grussinskaia suspirou dormindo, quando ele se aproximou de novo da cama. Inclinou-se sobre ela, franzindo a testa, mas ela continuou a dormir. Já clareara um pouco. Agora ele podia ver bem de perto, e com clareza, o rosto dela. Os cabelos caíam para trás, muito lisos, deixando descobertas as fontes reentrantes, estreitas e sombreadas. Por baixo dos olhos fechados evidenciava-se a idade, em dois sulcos profundos. Gaigern o percebeu, porém sem desgosto. A boca era linda, acima do queixo delicado, mas já murcho. Um pouco do pó de arroz pálido ainda ficara em sua testa, perto da franjinha. Gaigern lembrou-se, divertido, de que durante a noite ela tirara de baixo do travesseiro um estojinho de pó de arroz, antes de permitir-lhe que acendesse a lâmpada. "Agora eu a estou vendo bem", pensou ele com o sentimento primitivo de triunfo de um assaltante de mulheres. Começou a observar o rosto da mulher, como se fosse uma paisagem desconhecida, em que se passeia à procura de aventuras. Observou duas misteriosas riscas simétricas que partiam das fontes, ao longo das orelhas, indo até a garganta, uma linhazinha mais clara do que o resto da pele. Passou o dedo com cuidado sobre a linha; era uma delicada cicatriz que rodeava seu rosto, como a fímbria de uma máscara. De repente, Gaigern compreendeu do que se tratava. Eram as cicatrizes da vaidade, cortes na pele para esticá-la e rejuvenescer — ele já lera qualquer coisa a esse respeito. Sorrindo, sacudiu a cabeça, com um ar de incredulidade. Sem querer, apalpou suas próprias têmporas, que eram bem lisas, e vibravam com batidas fortes e saudáveis.

Encostou com a maior delicadeza o seu rosto no da Grussinskaia, como se pudesse assim transmitir um pouco do seu ser para a companheira. Admirou-se ao perceber quanto a amava nesse momento, com um amor terno e compassivo. Teve a impressão de estar sendo um sujeito limpo e correto, ligeiramente ridículo, sem dúvida, nos sentimentos que dedicava à pobre mulher, cujos segredos ele tinha descoberto.

Afastou-se da cama e ficou por uns minutos diante do espelho, com a testa enrugada, a boca ligeiramente aberta, mergulhado em pensamentos. Estava pensando se não seria possível, apesar de tudo, ficar com as pérolas. Não, não era possível. Por enquanto, ele continuava a ser o Barão von Gaigern, um homem um tanto leviano, que convivia com uma gente ordinária. Com dívidas, sim, mas ainda digno de confiança. Se saísse do quarto com as pérolas, então a polícia seria avisada dentro de poucos minutos e sua existência de cavalheiro estaria terminada. Seria um criminoso perseguido pela polícia, como qualquer outro. Isso não lhe convinha, em absoluto. Não fazia parte do seu programa ter-se tornado o amante da Grussinskaia, mas era um fato consumado, e modificava todo o resto. Pesou as chances, como teria pesado as chances de um pugilista ou de um tenista. Empreendimentos como esse das pérolas eram o seu esporte e, desta vez, o jogo lhe estava sendo desfavorável. Não era possível roubar essas pérolas; na situação atual, só poderia recebê-las de presente, caso tivesse paciência. "E preciso esperar", pensou Gaigern, suspirando profundamente. Suas reflexões eram objetivas e realistas, mas ele não queria admitir que no fundo havia ainda outra coisa por trás disso tudo. Não queria ter a consciência do próprio ridículo, e detestava sentimentalismos. Olhou para o espelho e fez uma careta para si próprio. "Em resumo", pensou aborrecido, "não é do meu feitio roubar o adereço de pérolas de uma mulher com quem dormi. Agora não tenho a mínima vontade de fazer tal coisa. Eu sofreria com isso — e acabou-se!

"Neuwjada", pensou ele com súbito carinho, olhando para a cama; "bondosa Mouna, eu preferia poder oferecer-lhe algum presente, muitos presentes, uma coisa bonita e valiosa, alguma coisa que lhe causasse prazer, pobrezinha." Puxou de dentro do bolso o colar de pérolas, com precaução e sem ruído. Já não gostava mais delas. Talvez até fossem falsas, apesar de todas as lendas dos jornais; talvez nem fossem tão valiosas como a propaganda dizia. De qualquer modo, ele se separava agora delas com a maior facilidade.

Quando a Grussinskaia procurou despertar, sua cabeça estava envolta no sono como em espessos véus. "É o veronal", pensou, continuando com os olhos fechados. Nos últimos tempos ela tinha medo de despertar, tinha medo do choque que sentia ao defrontar-se com os aborrecimentos da vida. Tinha a vaga sensação de que nessa manhã alguma coisa boa e agradável a esperava, mas não descobriu logo do que se tratava. Lambeu os lábios, pensando encontrar neles o gosto sonolento e seco da noite. Movimentou os dedos das mãos, como um cão a mover-se em sonhos. Seu corpo estava cansado, exausto, mas satisfeito, como após um enorme sucesso, após uma noite com muitos da capo, em que é preciso esgotar completamente as forças. Sentiu sobre as pálpebras fechadas a claridade matutina, e por um instante pensou que estava em Tremezzo com os reflexos da superfície do lago, em seu quarto de dormir cinzento-rosado. Decidiu abrir os olhos.

Primeiro, viu sobre os joelhos um cobertor que não conhecia, da altura de uma montanha; depois, a tapeçaria das paredes do hotel, com o desenho de frutas tropicais vermelhas, pendentes de frágeis hastes, um desenho que dava a impressão de observá-la fixamente, com um olhar febril e absorto.

Nessas tapeçarias das paredes dos hotéis colava-se todo o tédio da sua vida sem parada. O canto perto da escrivaninha estava sombrio; ali, a cortina estava fechada e não podia saber as horas. A porta do balcão estava aberta e deixava entrar uma brisa fresca. Ao lado da mesa do espelho, virada para a claridade da varanda, a Grussinskaia, ainda sonolenta, percebeu a silhueta larga e escura de um homem. Estava de costas, com as pernas meio abertas, firme e imóvel, com a cabeça inclinada, observando qualquer coisa que ela não podia ver. "Sonhei com alguma coisa parecida há pouco", pensou primeiro, ainda meio apalermada de sono, sem se assustar. "Já aconteceu coisa parecida na minha vida", pensou em seguida. "Jerilinkov", pensou finalmente. De repente, seu coração disparou como um motor, ela acordou totalmente, e lembrou de tudo.

Respirou com a boca fechada, sem ruído, mas profundamente, e com o ar que aspirou ocorreu-lhe a lembrança de tudo o que se passara durante a noite. Retirou um braço de baixo do cobertor, sentindo-o muito leve, com vontade de voar. Tateou, à procura do estojinho de pó de arroz, e, dirigindo um olhar sério ao minúsculo espelho redondo, começou a se arrumar. O delicado perfume do pó de arroz lhe causou prazer; sua imagem agradou-lhe. Sentia amor por si própria, como há muitos anos não sentia. Segurou seus pequeninos seios, como costumava fazer, mas nessa manhã isso lhe causou um prazer especial. Gostou de sentir a própria pele, lisa, fresca e satisfeita. "Benvenuto", disse em pensamento; e em russo "Chelani". Mas como só pronunciou esse nome para si mesma, o homem não pôde ouvi-la. Lá estava ele, de pernas abertas, com seus belos ombros, como um dos carrascos de Signorelli — descobriu a Grussinskaia, encantada —, ocupado com algum objeto pousado na mesinha do espelho. Ela se levantou e olhou-o sorrindo.

 

Gaigern estava com as mãos dentro da maleta em que se encontravam suas pérolas. Ela ouviu claramente o ruído de um dos estojos, reconhecendo o estalido agudo e surdo; era o estojo comprido de veludo azul, onde ficava o colar de cinquenta e duas pérolas de tamanho médio. No primeiro momento a Grussinskaia não percebeu por que razão esse ruído a assustava mortalmente. Seu coração parou, e depois voltou a bater com pancadas pesadas e sonoras, que ecoavam dolorosamente por todo o corpo. Doíam-lhe as pontas dos dedos, que se tornaram rígidas. Os lábios também. Mas ainda continuava a sorrir; esquecera-se de retirar da boca o sorriso, que permaneceu, enquanto seu rosto esfriava, tornando-se branco como papel. "É um ladrão", pensou a Grussinskaia, adivinhando tudo. E esse era um estranho pensamento, silencioso e definitivo, como um corte que lhe atravessasse o coração. Julgou perder a consciência, desejando-o com ardor, mas ao invés de acontecer isso, uma infinidade de pensamentos lhe passou pela cabeça durante um segundo, claros, cortantes, entrecruzando-se, entrechocando-se; um duelo de pensamentos.

O sentimento torturante de ter sido enganada atrozmente; vergonha, medo, ódio, cólera, uma dor medonha. E, ao mesmo tempo, uma fraqueza profunda como um abismo; não queria ver, não queria compreender, não queria acreditar na verdade, só desejava abrigar-se na piedade da mentira.

— Que faites-vous? — murmurou às costas do carrasco. Pensou que estava gritando, mas apenas sussurrou por entre os lábios rígidos: — Que está fazendo?

Gaigern levou tal susto que sua cabeça se virou de súbito; e seu susto era uma confissão de culpa. Na mão ele guardava o estojinho cúbico de um dos anéis; a suitcase estava aberta, o colar de pérolas estendia-se sobre a placa de vidro da mesinha do espelho.

— O que está fazendo aí? — sussurrou mais uma vez a Grussinskaia, causando dó, realmente, vê-la sorrir, com o rosto pálido e desfigurado.

Gaigern compreendeu-a logo, de novo se encheu de piedade, uma piedade ardente, que ele sentia palpitar nas têmporas. Dominou-se com energia, e conteve-se.

— Bom dia, Mouna — disse amavelmente. — Encontrei aqui um tesouro, enquanto você dormia.

— Como é que encontrou as minhas pérolas? — perguntou a Grussinskaia, com voz rouca. "Minta, minta", pedia seu olhar esgazeado.

Gaigern aproximou-se dela, e pousou a mão sobre seus olhos, como um guarda-sol. "Pobre bichinho, pobre femeazinha."

— Estive remexendo em suas coisas. Estava procurando um adesivo, um pedaço de atadura, qualquer coisa... imaginei que iria encontrar alguma coisa na valise. E lá estava o seu tesouro. Tenho a impressão de ser Aladim na gruta.

Até mesmo a cor dos olhos dela desaparecera; eles pareciam agora de chumbo, e só pouco a pouco lhes foi voltando sua cor negra azulada. Gaigern estendeu diante dela a palma da mão ferida, a sangrar ligeiramente, como prova do que dizia.. A Grussinskaia, lânguida e com os nervos frouxos, pousou nessa mão os lábios. Gaigern pousou a outra em seus cabelos, e puxou sua cabeça de encontro ao peito aberto do pijama de seda azul. Ele podia mostrar-se bastante brutal e ordinário com as mulheres com quem costumava encontrar-se. Mas esta, sabe o Diabo por quê, despertava nele todos os bons instintos. Era tão frágil, tão maltratada pela vida, necessitava tanto de auxílio — e ao mesmo tempo era tão forte... Pela existência que ele levava, que parecia estar sempre a pender de um fio, Gaigern compreendia a dela.

— Bobinha — disse ele com carinho. — Será que você pensou que eu estava cobiçando as suas pérolas?

— Não — mentiu a Grussinskaia. Essas duas inverdades foram a ponte sobre a qual os dois amantes se puderam encontrar. — Aliás, eu não as uso mais — acrescentou ela, respirando aliviada.

— Não as usa mais? E por quê?...

— Você não compreende essas coisas. É uma superstição. Antigamente elas me davam sorte. Depois me trouxeram infelicidade. E agora que deixei de usá-las, me dão sorte de novo.

— É mesmo? — perguntou Gaigern pensativo, procurando vencer o mal-estar e o acanhamento que sentia.

As pérolas repousavam de novo, em ordem, em seu pequeno leito. "Adieu!" Até logo, pensou ele, como uma criança. Meteu as mãos nos bolsos, num gesto decidido; lá se encontravam as ferramentas de ladrão, mas nenhuma presa. Sentia-se felicíssimo, com uma sensação de leveza e de satisfação, espantosamente renovado e farto. Abriu bem a boca e soltou uma exclamação de júbilo, emitindo um som forte e cheio. A Grussinskaia começou a rir. Gaigern atravessou o quarto correndo, aproximou-se dela e mergulhou em sua pele seu grito de prazer, deixando-se cair sobre a mulher, com a boca, o olhar e o sentimento. Ela tomou suas mãos e beijou-as; esse gesto exprimia uma gratidão humilde, em parte real, em parte representada.

— Está sangrando — disse ela, com a boca sobre o pequeno ferimento.

— Seus lábios são como os de um cavalo — respondeu Gaigern —, macios como um potrinho preto, de magnífico pedigree.

E ajoelhou-se, abraçando os joelhos da mulher, cujos tendões vibravam por baixo da pele. Justamente quando a Grussinskaia fez menção de se curvar sobre ele, alguma coisa ronronou na escrivaninha; um tilintar breve, depois longo, novamente breve.

— O telefone — disse a Grussinskaia.

— O telefone? — repetiu Gaigern.

A Grussinskaia suspirou profundamente. Não adianta, exprimia a sua fisionomia, ao erguer o fone do gancho com um gesto cansado, como se ele pesasse uma tonelada. Suzette estava ao telefone.

— São sete horas — anunciou sua voz matinal rouca. — Madame precisa levantar-se. É preciso arrumar as malas. Posso mandar o chá? E se madame quiser que lhe faça massagem, já está na hora — e Herr Pimenoff pede que lhe telefone imediatamente, assim que madame se levantar.

Madame ficou pensando durante um segundo.

— Daqui a dez minutos, Suzette... não, dentro de quinze minutos você pode trazer o chá, e depois faremos um pouco de massagem.

Colocou o fone no gancho, mas continuou a segurá-lo, enquanto estendia a outra mão a Gaigern, que ficara no meio do quarto, a balançar o corpo sobre as solas finas de cromo dos seus sapatos de pugilista. Ela ergueu imediatamente o fone, de novo, e lá de baixo o porteiro respondeu com uma voz diligente e serviçal, apesar de não ter pregado olho durante toda a noite, porque sua mulher não estava passando muito bem na clínica.

— Que número, por favor? — disse ele com voz enérgica.

— Wilhelm, sete, zero, dez! Com Herr Pimenoff! Pimenoff não estava hospedado no hotel, mas numa pensão de segunda classe, que uma família de imigrantes russos abrira no quarto andar de uma casa em Charlottenburg. Parece que lá ainda estavam dormindo. Enquanto a Grussinskaia esperava, viu em espírito o velho Pimenoff, correndo ao telefone com seu surradíssimo pijama de seda, com os pés magros, que ele mantinha sempre com as pontas um pouco abertas para fora, como se estivesse fazendo a quinta posição. Finalmente ele atendeu, com sua voz delicada e nervosa de velho.

— Ah, Pimenoff, é você? Bom dia, dobroie utro, meu caro! Sim, obrigada, dormi bem, não, não tomei muito veronal, só dois comprimidos; obrigada, tudo ali right, coração, cabeça, etc, etc. Como? O que aconteceu? O Michael está com um derrame de sangue no joelho? Mas, meu Deus, por que é que você não me disse isso ontem à noite? É horrível! Custa muito a passar, muito mesmo... Nós sabemos o quanto demora! E que providências você tomou? Como? Não fez nada, ainda? Mas é preciso mandar imediatamente um telegrama ao Tcherenov, ouviu? Imediatamente, ele precisa vir ajudar. Meyerheim que vá telegrafar. Onde está metido o Meyerheim? Vou chamá-lo logo pelo telefone. É cedo demais? Com licença, querido, por que razão para nós não é cedo demais, e para Herr Meyerheim... Não, por favor! E os cenários, já foram levados para a estação? Mas, por favor, com o primeiro despacho, quando começa a ser feito o primeiro despacho? Às seis? Se os cenários não estiverem lá, você é o responsável, Pimenoff. Nem uma palavra mais, você é o mestre de bailei, é quem deve cuidar dos cenários; não tenho nada que ver com isso. É, espero sua resposta dentro de meia hora no máximo, vá você mesmo à estação. Adieu!

Dessa vez ela nem chegou a pousar o fone; apenas fez pressão no gancho com dois dedos. Chamou Witte, que costumava levantar-se pela manhã um pouco apalermado, e que, apesar dos inúmeros anos de tournées, ficava sempre como uma pilha, e fazia uma confusão medonha. Depois, a Grussinskaia chamou Michael, que estava hospedado num hotelzinho e se pôs a lamentar-se como um cãozinho pisado, sobre o derrame de sangue. A Grussinskaia gritou-lhe severas ordens e conselhos pelo telefone; ela ficava furiosa, e era injusta sempre que qualquer elemento da troupe adoecia. Chamou três médicos, antes de encontrar um que pudesse ir ver logo o Michael, para dispensar-lhe os cuidados necessários e levar-lhe ligaduras com compressas de terra argilosa e vinagre. Chamou Meyerheim ao telefone, discutiu com ele num francês excitado, e intimou-o a comparecer às oito e meia no hotel para acertar as contas. Enviou pelo telefone um telegrama a Tcherenov e, por precaução, outro a um jovem bailarino, que dançava bem e estava sem contrato em Paris. Em seguida, com o auxílio do porteiro Senf, ligou para o expresso de Paris, pelo qual o jovem bailarino poderia chegar a tempo em Praga, e depois procurou passar um terceiro telegrama.

— Por favor, chéri, abra a torneira do banheiro — disse ela apressadamente a Gaigern, entre uma ligação e outra, matraqueando em seguida uma série de ordens em inglês, pelo telefone, ao chofer Berkley, porque o carro não devia seguir com eles, mas nesse meio tempo ir para uma garagem, a fim de ser limpo. Gaigern foi ao banheiro e obedeceu-lhe, abrindo a torneira. Fez mais ainda: estendeu sobre o aparelho de calefação o roupão de banho, para aquecê-lo. Procurou a esponja com que no dia anterior lavara o rosto desfigurado da Grussinskaia e levou-a para o banheiro, enquanto ela continuava a falar no telefone. Encontrou sais de banho e jogou um punhado na água, que já estava transbordando. Teria de bom grado feito mais alguma coisa para ela, mas não encontrou mais nada para fazer. A Grussinskaia também parecia ter terminado, por enquanto, seus telefonemas.

— Você está vendo?... todos os dias é assim — disse ela, procurando dar à voz uma entonação de queixa; mas sua voz só exprimia uma vitalidade exuberante e o prazer de arrumar as malas para a viagem.

— É preciso fazer isso tudo. E depois o Michael diz: há sempre espalhafato em torno da Grussinskaia. Ele dá a isso o nome de chi-chi, como se tudo não passasse de uma brincadeira.

Gaigern, de pé diante dela, estava faminto por um pouco de carinho, de intimidade, e estendeu-lhe ambas as mãos; mas ela estava distraída. Pensava no derrame de Michael. Ouvia de novo o tique-taque dos dois relógios.

Tomou depressa do telefone e chamou Suzette mais uma vez.

— Espere mais dez minutos, Suzette — pediu ela com muita cortesia, e com a consciência da própria culpa.

Seu olhar aflorou à mesa e à xícara de chá da noite anterior. Lá estava a xícara, muito bem lavada, com uma expressão de profunda inocência e candura, o brasão dourado do hotel a cintilar na porcelana grossa.

"Que noite maluca", pensou a Grussinskaia. "Não, essas coisas não se fazem. E bailados como os que imaginei hoje não se podem dançar. Foi apenas o resultado de uma excitação nervosa. Os vienenses me vaiariam se eu apresentasse bailados como imaginei, em vez da pomba ferida e das borboletas. Em Viena o público é diferente do de Berlim; lá eles sabem o que é ballet."

Apesar de Gaigern a estar olhando fixamente, de frente, ela não o via. Ele sentiu uma ligeira dor, desconhecida até então, uma dor estranha e viva, que lhe cortava a respiração.

— Tomilho! Neuwjada! — disse ele baixinho, indo buscar as palavras no profundo tumulto da noite. Elas conservavam seu perfume agridoce, e a inesquecível recordação. E, realmente, ao ouvir-se chamar desse modo, a Grussinskaia voltou a olhar para ele, e sua fisionomia assumiu uma expressão tensa de sofrimento, embora sorrisse.

— Acho que precisamos nos separar agora, querido — disse ela com um tom de voz propositadamente forte e inflexível, para evitar que a voz se quebrasse.

Havia esquecido, apagado por completo as lembranças das pérolas. Tinha apenas um sentimento de apego e aconchego, por essa mulher, um desejo infinito de ser bom para ela, muito, muito bom. Com uma sensação de desamparo, girou no dedo o anel de sinete com o brasão dos Gaigern, em lápis-lazúli.

— Tome — disse ele estendendo a mão e oferecendo-lhe o anel, com um gesto desajeitado de menino. — É para que você não se esqueça de mim.

"Não o verei mais?", pensou a Grussinskaia. Esse pensamento a fez sentir um ardor nos olhos, e a fisionomia bonita de Gaigern foi desaparecendo em meio das suas lágrimas. Esse era um pensamento que não se devia exprimir. Ela ficou esperando. "Deixe-me ficar com você. Vou ser muito bom para você", pensou Gaigern. Apertou os lábios com força e obstinação e não disse nada.

— Você vai para Viena? — perguntou ele.

— Primeiro para Praga, por três dias. Depois catorze dias em Viena. Vou ficar hospedada no Bristol — acrescentou.

Silêncio. Tique-taque de relógios. Buzinas de automóveis diante do hotel. Cheiro de enterro. O arfar da respiração.

— Você não pode viajar comigo, querido? Preciso de você — disse finalmente a Grussinskaia.

— Eu... para Praga não posso ir. Não tenho dinheiro. Preciso primeiro arranjar o dinheiro.

— Eu lhe dou — respondeu ela prontamente. Com a mesma pressa Gaigern respondeu:

— Não sou um gigolô!

De repente caíram ambos nos braços um do outro, impulsionados por qualquer coisa de grande, num abraço forte, unidos no momento em que tinham de se separar.

— Obrigado — disseram ao mesmo tempo —, obrigado, obrigado — repetiram em três línguas: alemão, russo e francês, num balbucio confuso, num tom de soluço, num sussurro .choroso, em júbilo: — Obrigada, merci, bolchoie spassibo, danke.

Nesse instante Suzette está recebendo das mãos do criado de quarto, com ar de ofendido, a bandeja com o chá. São sete horas e vinte e oito minutos. O relógio na escrivaninha corre, sem fôlego; o outro, de cansaço, parou. Continue, continue, continue, bate ele, em tom de reprimenda.

— Então, em Viena? — diz a Grussinskaia, com as bordas das pestanas úmidas. — Daqui a três dias? Você segue depois que eu partir. E depois se encontra comigo em Tremezzo; vai ser ótimo, vai ser maravilhoso estarmos juntos! Vou tirar umas férias, de seis a oito semanas, e nós vamos*viver, querido, vamos somente viver, deixando tudo para trás, tudo isso que não tem sentido; vamos apenas viver, ficaremos idiotas de tanta preguiça e felicidade; e depois você vai comigo para a América do Sul. Você já conhece o Rio? Eu... não, chega. Está na hora. Vá! Vá! Querido! Obrigada!

— Daqui a três dias o mais tardar — diz Gaigern. A Grussinskaia ainda faz pairar em seu redor, às pressas, um pouco da sua graça de dama da alta-roda.

— Tome cuidado para chegar ao seu quarto sem me comprometer muito — pediu ela, fechando as duas portas, uma após a outra.

Quando Gaigern, em silêncio, soltou a mão da mão dela, sentiu-a dolorida. Sangrava de novo. O corredor está silencioso, as inúmeras portas vão-se perdendo na longa perspectiva. Nas soleiras, as botinas dormem, com as orelhas pendidas. O elevador vem descendo e, no terceiro andar, alguém corre para não perder o trem. No hall da escada, uma das janelas de vidro leitoso está aberta, deixando sair para o pátio a fumaça dos cigarros dessa noite. Gaigern se esgueira, com suas solas de pugilista, por sobre o tapete de ananases; entra no 69, seu próprio quarto, e fecha a porta com uma gazua. A chave ainda está na caixa, na portaria.

A Grussinskaia, depois de tomar banho, deita-se de bom grado, para entregar-se às mãos de massagista de Suzette. Sente-se forte, elástica e cheia de energia. Tem uma vontade enorme de dançar, e está ansiosa pelo próximo espetáculo. Sente que terá sucesso agora, pois em Viena se tem sempre sucesso; ela o sente nas pernas, nas mãos, no pescoço, que inclina para trás, repentinamente, e na boca, que tem sempre desejos de sorrir. Veste-se e sai correndo, como um pião. Com enorme élan, atira-se às ocupações da manhã, à discussão com Meyerheim, à luta subterrânea com as perfídias da troupe, ao trabalho paciente com Pimenoff e Witte.


9

 

 

Às nove horas o groom 18 traz um buquê de rosas: "Até logo, querida boca", está escrito num pedacinho rasgado de papel do hotel. A Grussinskaia beija o anel de sinete com o brasão dos Gaigern. — Porte-bonheur — sussurra, como a falar com um velho conhecido. Agora ela já tem de novo um talismã. "Michael tem razão. Vou doar as pérolas... para as crianças pobres", pensa ela. Suzette segura com luvas de tricô a alça da suitcase, enquanto o criado leva o resto da bagagem. Sem saudades, a Grussinskaia deixa o quarto do hotel, tão cheio de aventuras, com aquela tapeçaria da parede que lhe fazia mal aos nervos. No Hotel Imperial de Praga já está reservado para ela um outro quarto com banheiro privativo dando para o pátio, o número 184. Também no Rio, em Paris, em Londres, em Buenos Aires, em Roma foi feita igual reserva; espera-a uma infindável perspectiva de quartos de hotel com portas duplas e água corrente, e o cheiro indefinível de incessante movimento e de coisas desconhecidas.

Às nove horas e dez a camareira, que não dormiu durante a noite, tira muito mal o pó do quarto 68, joga fora as cestas de flores secas, leva a xícara de chá e finalmente traz roupa de cama limpa — ainda úmida da passagem a ferro — para o próximo hóspede.

 

O relógio, pérfido como todos os despertadores, deixou de acordar o Diretor-Geral Preysing, com seu tilintar pontual e enérgico. Às sete e meia tilintou apenas durante um segundo, e isso foi tudo. Preysing, que dormia com a boca aberta e seca, mexeu-se ligeiramente, as molas do colchão gemeram, e por trás do reposteiro amarelo o sol brilhou um pouco. Às oito horas o porteiro, muito cumpridor de seus deveres, despertou o diretor chamando-o ao telefone, mas já era tardíssimo. Preysing pôs a cabeça meio tonta de sono embaixo da ducha, praguejando baixinho por ter-se esquecido de trazer o aparelho de barbear. Um pedante como ele perdia toda a alegria com uma coisa assim. Apesar de estar atrasado, levou alguns minutos escolhendo o terno que ia vestir. Depois de já ter escolhido o cut, despiu-o com raiva. Calculou — e talvez com razão — que não seria vantajoso vestir o cut; o terno cinzento de viagem, pelo contrário, demonstraria imediatamente aos senhores de Chemnitz que não estava tão interessado assim por todo aquele negócio. Apressou-se o mais que pôde, mas até que arrumasse todos os saquinhos e estojos, que procurasse todas as chavinhas, as encontrasse e enfiasse nas fechaduras, folheasse mais uma vez seus documentos e contasse mais uma vez o dinheiro, já eram mais de nove horas. Com a cabeça quente, saiu correndo do apartamento e, no corredor, deu um encontrão em um homem.

— Desculpe! — disse Preysing, parando diante da porta de seu quarto, para conseguir enfiar o outro braço no casaco.

— Não foi nada! — replicou o cavalheiro, continuando seu caminho sobre a passadeira. Preysing julgou reconhecer esse modo de manter as costas. Quando chegou ao elevador, o homem já ia descendo; o diretor pôde vê-lo também de frente e julgou reconhecê-lo igualmente, sem se recordar de onde. Teve a impressão de que ele sorria zombeteiramente, enquanto descia no elevador, diante do seu nariz. Preysing, excitado e impaciente, desceu a escada correndo e foi em disparada pelos corredores até o subterrâneo de azulejos, onde o barbeiro do hotel tinha o seu salão; ali cheirava a água estagnada de porão e a Peau d'Espagne. No salão estavam sentados muitos cavalheiros, metidos em batas brancas, como babies esperançosos, entregues às manipulações dos barbeiros vestidos com jaquetas brancas. Preysing, impaciente, começou a dançar sobre suas grossas solas de crepe.

— Vai demorar muito para chegar a minha vez? — perguntou ele, roçando o rosto por barbear, nas palmas das mãos.

— No máximo dez minutos. Há só um senhor na sua frente — responderam-lhe.

O tal senhor que havia chegado antes dele era o homem que descera no elevador, e Preysing olhou-o com desagrado. Era um sujeitinho insignificante, magro e modesto, meio vesgo por trás de uns óculos a escorregarem, e com o nariz pontudo inclinado sobre um jornal. Preysing tinha uma vaga ideia de já ter tratado de negócios com esse homem, mas não conseguia recordar-se em que circunstâncias. Postou-se diante dele, fez uma leve curvatura, e procurando ser amável disse:

— Por favor, o senhor podia me fazer a gentileza de me ceder a sua vez? Estou com muita pressa.

Kringelein, que se encolhera todo atrás do jornal, juntou suas forças. Mostrou a cara por trás do artigo de fundo, estendeu o pescoço fino, voltou-se para o diretor-geral olhando-o de frente e respondeu:

— Não!

— Desculpe... mas é que estou com muita pressa — tartamudeou Preysing em tom de reprimenda.

— Eu também — replicou Kringelein. Preysing, furioso, virou as costas e saiu do salão de barbeiro. Como um vencedor, um herói, mas completamente exausto e vazio pela desmedida tensão nervosa, Kringelein, ofegante, continuou sentado, envolto no aroma das essências dos sabões de barbear.

Atrasado, com a barba por fazer e com a ponta da língua doendo, por tê-la queimado no café fervendo, o diretor-geral entrou na sala de conferências. Os outros senhores já tinham soltado na sala uma bela fumaceira azul de charuto. A sala, com seu pano de mesa verde, a imitação de tapeçaria de damasco nas paredes e o retrato a óleo do fundador do Grande Hotel, tinha um aspecto de conforto e solidez. O Dr. Zinnowitz já havia colocado seus documentos na mesa, na sua frente; o velho Gerstenkorn estava sentado na cabeceira da compridíssima mesa, presidindo a sessão, e, para cumprimentar, ergueu apenas a metade do corpo, porque ele pertencia à geração robusta do sogro de Preysing, conhecera o diretor-geral ainda moço e não o tinha em grande conta.

— Está atrasado, Preysing? — perguntou ele. — Quarto de hora acadêmico? Não passou bem ontem de noite? É isso, Berlim tem dessas coisas! — riu-se com a tosse grossa e encatarrada dos bronquíticos, e apontou para a cadeira a seu lado.

Preysing sentou-se defronte de Schweimann com a desagradável impressão de ter levantado com o pé esquerdo, e seu lábio superior, sob o bigode, estava úmido antes mesmo de começar a luta. Schweimann, que tinha pálpebras espessas e uma boca grande e de lábios grossos, uma boca elástica de macaco, apresentou um terceiro senhor:

— O nosso síndico, o Dr. Waitz — disse ele.

O Dr. Waitz era jovem ainda; tinha um ar distraído, mas não o era em absoluto, e durante as conversações podia tornar-se bem desagradável, com sua voz dominadora e agressiva de trombeta. Tinha sido trazido também pelos senhores de Chemnitz.

— Nós já nos conhecemos — disse Preysing com pouco entusiasmo.

Schweimann ofereceu, por sobre a mesa, um charuto ao diretor-geral. O Dr. Zinnowitz tirou do bolso do colete uma caneta-tinteiro e a colocou à sua frente, ao lado dos documentos. Bem afastada, sentada à mesa, do outro lado da garrafa de água e dos copos que ofuscavam facilmente os olhos e vibravam sobre uma bandeja preta, sempre que passava lá fora algum ônibus, estava uma personagem apagada: a Flamm número um, com o bloco de estenografia na mão, envelhecida e insignificante, com uma leve penugem branca de traça nas faces, calada, cumpridora dos seus deveres, impossível de ser confundida com a Flamm número dois.

— Bonita caneta — observou Schweimann a Zinnowitz. — De que marca é? Muito bonita.

— Gosta? Recebi-a de Londres. É bonita, não é verdade? — respondeu Zinnowitz, escrevendo sua assinatura fluente num caderninho de notas. Todos olharam.

— Quanto custa uma caneta assim, se me permite perguntar-lhe? — informou-se Preysing, tirando sua própria caneta do bolso do colete e colocando-a na mesa. E todos os presentes olharam também para a caneta inglesa.

— Umas três libras, sem pagar a alfândega. Um conhecido me trouxe — esclareceu o Dr. Zinnowitz.

— Que coisa prática! Muito prática.

Todos estenderam as cabeças por sobre a mesa, como meninos de escola, e observaram a caneta-tinteiro de malaquita verde, de Londres. Esse objeto merecia de fato que cinco participantes adultos de uma conferência se ocupassem dele durante três minutos.

— Bem, agora vamos tratar de negócios — disse afinal o velho Gerstenkorn com sua voz encatarrada, e imediatamente o conselheiro Zinnowitz apoiou seus dedos alvacentos sobre a coberta verde da mesa e começou, com palavras fluentes e preparadas de antemão, uma exposição do assunto, fazendo ressoar a voz na atmosfera azul da sala de conferências.

Preysing permitiu-se uma pequena pausa para se acalmar. Ele próprio não era bom orador, e se sentia agradecido por Zinnowitz ter assumido essa tarefa, e por suas frases se ensarilharem, fluentes e claras, como atiradas por uma máquina. E isso não era mais que a introdução. Primeiro falou de coisas que já haviam sido há muito tempo ruminadas em negociações preliminares. Expôs mais uma vez a situação em que as negociações estavam, enquanto ia pescando, na pasta dos documentos, ora este ora aquele papel, levando as longas colunas de números bem próximo dos olhos míopes para poder lê-las com mais facilidade.

Tornando a repetir, era este o ponto em que estavam as negociações: a Algodoeira Saxônia S.A., que fabricava principalmente tecidos de algodão e cobertores, e com o refugo fabricava uma qualidade muito apreciada de serapilheira, era uma firma de boa envergadura e grande capital. Seu ativo em terrenos, prédios e maquinaria, em mercadorias em bruto e manufaturadas, em patentes, etc, e principalmente em crédito, totalizava um capital considerável. Os impostos anuais e o produto líquido conservavam-se numa sólida média, os dividendos haviam somado, ainda no ano passado, nove e meio por cento.

Zinnowitz ia lendo as cifras, mais ou menos satisfatórias, e Preysing o ouvia com agrado. No seu empreendimento estava tudo limpo e em ordem, e a produção com o refugo, que sozinha trazia trezentos mil em bruto, fora organizada por ele. Olhou para Gerstenkorn. Este, com a maneira pensativa e meio simplória dos velhos manhosos, balançava de um para outro lado a cabeça grisalha, à escovinha. Schweimann aspirava seu charuto, parecendo não estar ouvindo. Waitz controlava as cifras que eram lidas, uma a uma, olhando para um caderninho com capa de couro, onde ele tomara notas. A Flamm número um, verdadeira mestra, na arte da secretária particular, em não fazer notar sua presença, com olhar fixo fitava os reflexos na água, em que a caneta tomava o aspecto tremulante de uma pequena e aguda baioneta. Zinnowitz tirou outro maço de papéis de entre os documentos colocados uns sobre os outros e passou então a tratar da situação da Malharia de Chemnitz. Sua barba longa e fina de chinês subia e descia quando ele falava.

A Malharia de Chemnitz era — deduzia-se das cifras — um empreendimento muito menor. Mal possuía a metade desse ativo, e seu balanço demonstrava uma situação bastante precária. Ele tinha anotado apenas o principal, mas, não obstante, tivera de lançar uma elevadíssima participação de lucros. Os impostos anuais eram altos. O lucro líquido mal chegava à altura dos impostos. Considerando tudo isso, as cifras do balanço da Chemnitz mantinham-se espantosamente elevadas. Zinnowitz colocou um amável e pequeno sinal de interrogação por trás das últimas cifras que lera, e fitou o velho Gerstenkorn.

— Suba. Pode arredondar para duzentos e cinquenta mil marcos, pode fazê-lo.

— O senhor não pode fazer as contas assim — observou Preysing, que tinha ficado nervoso. — O senhor precisa amortizar o preço das novas máquinas para o novo processo. Nesse caso, o senhor não poderá anotar nem mesmo suas velhas máquinas.

— Mesmo assim. Mesmo assim — insistiu Gerstenkorn, teimoso.

O Dr. Waitz trombeteou:

— Poderemos considerar as nossas cifras muito mais desvalorizadas do que valorizadas.

O Dr. Zinnowitz pôs em cima da mesa um papel para o diretor-geral, e este, forçando a vista, aprofundou-se nos seus cálculos. O resultado ele já conhecia. A Malharia de Chemnitz era um empreendimento de pouca solidez, fundado com pouco capital, e com o crédito quase estourando. Mas impunha-se, tinha bons lucros, parecia estar se desenvolvendo, tinha as conjunturas a seu favor. Enquanto isso, a Algodoeira Saxônia ficava para trás, ia adormecendo, sólida e bem fundada como era. Algodão, cobertores e serapilheira. O mundo não se interessava, no momento, por cobertores e serapilheira. E o velho de Fredersdorf sabia por que razão ele insistia, nas atuais circunstâncias, em agarrar a oportunidade dos tecidos de malha, e trazer assim um lucro para o seu empreendimento.

— Isso não tem importância. Vamos adiante — disse o diretor, com a condescendência de um homem que está em posição inferior. Gerstenkorn tirou da mão dele o balanço e, alisando delicadamente o papel, tossiu uma risada.

Zinnowitz, com palavras fluentes, já havia tratado da situação das ações, havendo, nesse ponto, um erro evidente. O capital efetivo da Saxônia era quase duas vezes maior do que o ativo dos senhores de Chemnitz. Partindo dessa premissa, todas as outras negociações preliminares haviam decorrido de modo que, na fusão das duas firmas, duas ações da Chemnitz equivalessem a uma ação da Saxônia. Mas as ações da Chemnitz haviam subido, as da Saxônia baixado, o equilíbrio tinha-se modificado sensivelmente, e o Dr. Zinnowitz, com um gesto conciliante da mão, teve que conceder — a base das trocas se modificara, em razão da espantosa subida das ações da Malharia de Chemnitz. Preysing ouvia com desagrado a voz polida do seu advogado, que com muitas frases, impecáveis e condicionais, trazia à luz uma quantidade de coisas desagradáveis, que ele estava farto de saber. Seu charuto já não lhe dava mais prazer; tirou ainda algumas baforadas enérgicas, e acabou pondo-o de lado. Num certo ponto da exposição de Zinnowitz, o Dr. Waitz saltou, como um ator na sua deixa, bateu rapidamente com a palma da mão no pano verde da mesa, e opôs suas objeções. Começou a ler cifras no seu caderno de notas, sem olhá-lo sequer, novos números, números diferentes — Preysing contraiu de tal modo os músculos da testa, que seus olhos saltaram das órbitas, tal o esforço que fazia para conservar na memória todas aquelas coisas, para perceber tudo e não perder de vista o aspecto geral do assunto. Puxou para o seu lado alguns papéis de carta do hotel, que estavam em cima da mesa, e se pôs a rabiscar notas às escondidas, e excitado como um mau aluno. O conselheiro Zinnowitz, por seu lado, havia apenas lançado um olhar à Flamm número um, e a boa moça já estava a estenografar as agressivas palavras e provas no seu bloco, com riscos azuis. O Dr. Waitz apresentou o conjunto de suas trombeteadas objeções: não, não era possível exigir dos acionistas da Malharia de Chemnitz um prejuízo de metade do seu capital, no caso de tal fusão. Conforme sua opinião, não havia nenhum motivo plausível para, no caso de uma eventual fusão — ele frisou o "eventual", como um ator de província —, conceder a primazia à Saxônia, com relação à sociedade de Chemnitz, para de certo modo colocar num plano de dependência essa firma em plena florescência, para pô-la simplesmente a um canto.

Zinnowitz olhou para Preysing, e este, obediente, se pôs a falar. Tinha o hábito de falar de coisas importantes com voz nasal e abafada, num tom aborrecido e monótono; pelo fato de se sentir intimamente um homem pouco seguro de si, empregava tais meios para demonstrar aos outros calma e superioridade. As palmas de suas mãos estavam úmidas, quando se atirou à luta. Os olhos de Schweimann arrastaram-se para fora das órbitas vermelhas em que habitavam, como camundonguinhos cinzentos, e Gerstenkorn colocou os polegares nas cavas do colete, com a expressão de uma pessoa que está se divertindo. As paredes de damasco falso ouviam tudo, com indiferença. Conferências como essa se realizavam diariamente no Grande Hotel; nesse enorme Kaff eram cozidas muitas sopas, que em seguida os acionistas tinham que engolir. O açúcar subia de preço, as meias de seda barateavam, o carvão desaparecia, tudo isso e milhares de coisas mais dependiam do decorrer dessas lutas na sala de conferências do Grande Hotel.

Preysing ia falando. Quanto mais ele falava, com uma voz que ressoava como se a tivesse posto sobre a neve, e quanto mais minucioso se tornava, tanto mais perdia terreno. As interrupções breves e concludentes de Gerstenkorn assobiavam por entre suas frases como balas de revólver. Houve momentos em que Preysing teria de bom grado fugido dali, meia-volta, marchar, marchar, abandonando toda essa história imunda de fusão, para voltar para a companhia de Mulle, Pepsin e Babe, em Fredersdorf. Mas era um diretor-geral, e o mundo não era um negócio tão simples assim; dessa fusão muito se esperava para a fábrica, e dela dependia tudo para a sua própria posição dentro da fábrica, pelo que aguentou o repuxo. Puxou mais uma vez do seu ativo, essa prova mais do que sólida de um empreendimento mais do que sólido, e se agarrou a isso com unhas e dentes. Caceteou os senhores da Chemnitz, caindo em pormenores excessivos, e o conselheiro precisou por várias vezes pô-lo em movimento, como a um barco encalhado e lento. Preysing fazia uma confusão medonha, insistia em alguns pontos secundários, teimava sem a mínima razão; caceteava os senhores da Chemnitz com minuciosas descrições da fabricação de tecido de serapilheira, feito com refugo do material, pois era do que mais gostava de falar, esquecendo-se de aludir a assuntos importantes que tinha sublinhado no papel de carta diante dele. Finalmente ficou parado no meio de uma frase que começara como. uma fanfarra e terminou num beco sem saída. Tirou do bolso o lenço e enxugou o suor do bigode; pôs na boca um novo charuto, que tinha gosto de feno. De repente teve a impressão de estar sentado em uma mesa entre contrabandistas, pessoas sem seriedade e sem princípios; sentiu a amargura do homem honesto que e tido por tolo.

Então, Gerstenkorn tirou das cavas do colete seus dedos redondos de burguês atrasado e começou a expor a sua opinião. Esse senhor Gerstenkorn, com sua cabeça quadrada à escovinha e sua voz bronquial, era um orador claro e combativo. Empregava toda espécie de dialetos, para dizer sem rodeios o que queria dizer. Saxão, berlinês, iídiche e mecklemburguês eram o tempero da sua conversa sobre negócios.

— Agora o senhor faça ponto final, e deixe os adultos falarem — observou ele, conservando na boca o charuto, o que tornava sua linguagem, comumente vulgar, mais vulgar ainda, e era o que ele queria. — As coisas de que a Saxônia é capaz o senhor já nos contou, e nós já sabíamos disso tudo. Música também ela não sabe fazer. Já repetimos e tornamos a repetir isso tudo aos nossos principais acionistas, e qual foi o resultado? Receio, um enorme receio, um fundamentado receio da fusão. É engraçado, como é que os acionistas, por causa do seu algodão, iriam meter a mão no caldeirão para tirar as salsichas quentes? Em poucas palavras: a nossa situação melhorou muito desde a primeira vez que o senhor se dirigiu a nós. A sua situação não se modificou, se quisermos ser amáveis e não dissermos que piorou. Nessas condições, nós, falo em alemão claro, meu prezado Preysing, perdemos o interesse na fusão. E estamos aqui com a incumbência de parar com as negociações, nessas circunstâncias. Quando o senhor se dirigiu a nós, as perspectivas eram outras.

— Mas nós não nos dirigimos aos senhores — disse Preysing com rapidez.

— Homem de Deus, o que aconteceu com o senhor? Dirigiram-se a nós, sim! Dr. Waitz, faça o favor de me passar os dados. O senhor dirigiu-se a nós em... aqui está... em 14 de setembro, por carta.

— Não é verdade — teimou Preysing, puxando o maço de documentos que estava diante do conselheiro Zinnowitz. — Nós não nos dirigimos aos senhores. Antes dessa carta já tinha havido uma troca pessoal de impressões, pedida pelos senhores.

— Trata-se disso? Pois um mês antes o seu velho já tinha batido à minha porta, a título particular, com toda a amabilidade.

— Nós não nos dirigimos em primeiro lugar — respondeu Preysing, apegando-se a esse fato absolutamente sem importância, como se isso pudesse salvar alguma coisa. Zinnowitz bateu com os pés estreitos debaixo da mesa, pedindo socorro. De repente, Gerstenkorn pôs fim à discussão, e passou a palma da mão quadrada sobre o pano verde da mesa.

— Está bem — disse ele —, bon. Pois então não se dirigiram, se assim lhe agrada. E, tenham ou não se dirigido, as circunstâncias naquela época eram diferentes, o senhor tem que concordar, Herr diretor-geral — ele disse "Herr diretor-geral", e a mudança da maneira amistosa de falar para esse tom oficial soava ameaçadoramente. — Naquela época tínhamos motivos para desejar uma sociedade com a Algodoeira Saxônia. Hoje, que motivos temos?

— Os senhores precisam de um capital maior — disse Preysing, com toda a razão.

Gerstenkorn, com dois dedos, varreu da mesa a objeção.

— Capital! Capital! Se emitirmos hoje novas ações nos atirarão quanto dinheiro quisermos. Capital! O senhor se esquece de uma coisa: o seu bom tempo foi durante a guerra, naquela ocasião a gente podia arranjar a vida fazendo tecido para o Exército e cobertores. Agora o tempo está bom para nós, entende? Nós não precisamos de capital. Precisamos de matéria-prima barata, para aproveitar o nosso novo processo, e precisamos de novos mercados no exterior. Digo-lhe com toda a franqueza, e diretamente, a opinião da nossa sociedade, Herr diretor-geral. Se a fusão com os senhores for proveitosa para nós, então a concretizaremos. Do contrário, não a faremos. Faça o favor, diga o que pensa sobre isso.

Pobre Preysing! Tinha que expor o seu pensamento. Agora haviam chegado naquele ponto que o amedrontava, desde que pisara o trem misto em Fredersdorf. Lançou um olhar de coelho a Zinnowitz, mas este olhou com um ar de recusa as próprias unhas, bem tratadas e pálidas.

— Não é nenhum segredo o fato de possuirmos ótimas relações no exterior. Só para os Bálcãs exportamos anualmente sessenta e cinco mil marcos de tecido de serapilheira — observou ele. — É natural que, no caso de uma fusão, faríamos o possível para atrair ainda o mercado externo para o produto de malha manufaturado.

— Quais são os motivos que o levam a afirmar isso com tanta certeza? — perguntou o Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, erguendo um pouco o busto, conforme um antigo hábito seu, do tempo em que fora juiz criminal. Dava a impressão de ainda usar a toga, e falava num tom de voz próprio para intimidar a testemunha insegura. O diretor-geral se deixou intimidar.

— Não sei a que motivos se refere — respondeu ele, com seu lamentável costume de perguntar coisas que estava farto de saber.

Schweimann, bem em frente dele, ainda não tinha aberto sua enorme e elástica boca de macaco. Agora a abria.

— Trata-se da planejada sociedade com Burleigh & Son — afirmou ele, sem rodeios.

Gerstenkorn balançava com a máxima atenção a longa ponta de cinza do seu charuto.

— Infelizmente, não estou em condições de dar informações a esse respeito — respondeu Preysing imediatamente. Preparara de antemão essa resposta, e a sabia de cor.

— Que pena! — disse o velho Gerstenkorn.

Em seguida ficaram todos calados durante alguns minutos.

A garrafa de água tilintou levemente na bandeja, porque lá fora passava um ônibus, e o reflexo estreito e contorcido do sol batendo na água parada tremulou na parede sobre a moldura do retrato a óleo do fundador do Grande Hotel. Preysing, durante alguns segundos, se pôs a refletir febrilmente. Não sabia se o Dr. Zinnowitz havia mostrado ao pessoal da Chemnitz as cópias daquelas cartas agourentas, sem o menor valor e importância. Sentia novamente nas mãos aquela impressão de falta de asseio e de trato. Seu rosto por barbear começou a cocar de um modo ridículo. Lançou um olhar inquiridor e implorante ao conselheiro, lá na ponta da mesa. Zinnowitz, procurando acalmá-lo, baixou as pálpebras oblíquas e inteligentes de seus olhos de chinês, um movimento quase invisível, que tanto podia significar sim, como não, ou mesmo não significar absolutamente nada. Preysing dominou-se. "Preciso consegui-lo", pensou ele; era mais um sentimento do que um pensamento.

— Meus senhores — disse ele, levantando-se; é que o forro esticado de veludo da cadeira causava no seu traseiro uma sensação desagradável de calor —, mas, meus senhores, vamos tratar do que importa. A base sobre a qual foram feitas até agora todas as negociações entre nós foi o balanço e a situação da fábrica de Fredersdorf. Os senhores puderam fazer uma ideia bem clara da situação, o senhor conselheiro comercial Gerstenkorn pôde certificar-se pessoalmente das condições em que se encontra a nossa fábrica, e eu faço questão de que hoje não se trate de coisas vagas e imponderáveis nas nossas negociações. Não somos especuladores, eu não sou um especulador, em absoluto, trabalho com fatos e não com boatos. Não passa de um boato da Bolsa, isso de que vamos fazer sociedade com Burleigh & Son, em Manchester. Mandei desmentir isso, não posso permitir que...

— O senhor não vai querer ensinar uma lebre velha a correr, não é? Nós sabemos muito bem o que significa um démenti — replicou Gerstenkorn.

Schweimann agora estava animado; farejava, com as suas narinas dilatadas e a boca de macaco, como se já cheirasse a possibilidade do mercado inglês. Preysing foi-se enfurecendo.

— Não aceito! — exclamou ele. — Não aceito que considerem como um fator importante nos nossos negócios esse assunto da Inglaterra; não aceito isso. Não faço cálculos com castelos na Lua, nunca fiz isso, a nossa fábrica não tem necessidade de fazer semelhante coisa. Conto com coisas reais, com fatos, com cifras, com o nosso balanço, aqui está — exclamou ele batendo três vezes com a palma da mão na pilha de documentos que se encontrava diante dele —, é isso que tem valor... e não permito que se trate de outra coisa. Nós oferecemos agora o que oferecemos desde o primeiro dia, e se isso de repente não basta para a sua firma, sinto muito!

Parou espantado, pois tinha galopado como se corresse sobre um pântano. "Estou assustando os outros com a minha gritaria", pensou ele horrorizado, "preciso atraí-los, e em vez disso estou estragando tudo." Encheu o copo de água e bebeu. Era um líquido grosso, morno e sem sabor, como óleo de rícino. O conselheiro Zinnowitz deu uma risadinha e tentou endireitar a coisa.

— O diretor-geral Preysing é de uma consciência modelar — declarou ele. — Não sei, mas talvez os seus receios de levar de certo modo em consideração o negócio com Manchester sejam injustificados, pelo menos exagerados. Por que não se poderá deixar pesar na balança uma coisa que oferece tão boas perspectivas, mesmo que isso ainda não esteja em preto no branco? Por que...

— Por quê? Porque não posso me responsabilizar por isso — interrompeu-o Preysing. Zinnowitz, que teria de bom grado lhe pisado no pé, mas não o podia fazer, ergueu a voz, dirigindo-se ao diretor-geral. Preysing sentou-se de novo no assento quente da cadeira de veludo, e não disse mais nada. Esteve a ponto de declarar a verdade. Bom, se Zinnowitz não o deixava falar, então o célebre perito em matéria comercial que se arranjasse como pudesse. "A coisa vai mal", pensou Preysing, "já não tem mais conserto, está tudo acabado, morto e enterrado. As negociações fracassaram definitivamente. Está bem." Oferecera a todo mundo uma firma sólida, e tudo que um homem correto pode oferecer. Mas o mundo não queria coisas assim. O mundo queria mercados fictícios, boatos falsos, especulações, por trás dos quais nada havia, a não ser um pouquinho de fanfarronice. Artigos de malha, jumper e sweater, meias de cores variadas de Chemnitz, pensou o diretor-geral, amargurado... E chegou a ver realmente, nesse momento, tais coisas, modernas, coloridas e levianas, que conquistavam o mundo no corpo de moças também levianas.

Zinnowitz continuava o seu sermão; Flamm caíra de novo em sua letargia profissional. Gerstenkorn e Schweimann, no entanto, mal ouviam; com a cabeça metida entre os ombros, conversavam sem nenhuma delicadeza, a meia voz, sobre um assunto qualquer.

— O nosso amigo Preysing — recomeçou o conselheiro — talvez vá um pouco longe demais com os seus escrúpulos. Dizem que a sua fábrica está para firmar um contrato muito vantajoso com a próspera e antiga firma Burleigh & Son. E que faz o nosso caro Preysing? Procura negar isso, como se acaso se tratasse de uma bancarrota. Considerando que se trate apenas de um boato... não há boato algum que não contenha um fundo de verdade, todos nós sabemos. E um velho homem de negócios como o conselheiro comercial Gerstenkorn há de concordar que há boatos que têm mais valor do que muito contrato pronto e assinado. Mas como antigo advogado da fábrica de Fredersdorf, posso afirmar: isso é mais do que um boato, há certos ajustes por trás disso. Desculpe-me, caro Preysing, se não guardo a discrição férrea que o senhor guarda. Não tem nenhum sentido insistir em negar, desde que já se realizaram inúmeros entendimentos a esse respeito. Talvez hoje ainda não se possa saber com certeza se eles conduziram a um resultado positivo. Mas isso é um fato, e um fato menos desfavorável do que o seu balanço. Acho extremamente correto e delicado Herr Preysing não querer juntar ao ativo da sua fábrica esse fato, acho isso realmente de uma correção e distinção fora do comum. Mas dessa maneira não se vai para a frente. Desculpe-me, portanto, se eu confio essas coisas a estes senhores.

Zinnowitz continuou a murmurar um palavreado conciliante, com muitos "no entanto" e "como também" e “se acaso" e "por outro lado". Preysing tinha empalidecido; teve a sensação, ao sentir nas fontes uma pontada do sangue a fugir, o sentimento de que havia realmente empalidecido. "Ele lhes mostrou as cartas", pensou. "Mas, Deus do céu, isso já é intriga, já é quase uma fraude. Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann", pensou ele, enxergando as letras azul-escuras e apagadas do telegrama. Meteu a mão no bolso do colete do seu terno cinzento de funcionário, onde guardara o telegrama, mas retirou-a no mesmo instante, como se a tivesse metido num forno quente. "Se eu agora não me levantar imediatamente, e não disser o que está se passando, então a coisa está perdida", pensou, levantando-se. "Porém, se eu falar agora, estes senhores se afastarão, a fusão vai por água abaixo e eu voltarei para Fredersdorf completamente desacreditado", refletiu, sentando-se de novo. Procurou disfarçar seus movimentos indecisos e inoportunos, e, colocando água num copo até o meio, sorveu-a, como se fosse um remédio.

Enquanto isso, Schweimann e Gerstenkorn tinham-se animado. Eram duas cabeças de comerciantes, finórias e lustrosas de unção. Sua atenção foi despertada para o fato de Preysing ter negado com tanta veemência o negócio com a Inglaterra, tentando pôr de lado o assunto. Seu olfato sentia alguma outra coisa por trás disso: mercados, proveitos, talvez concorrência. Gerstenkorn teve uma ideia, que murmurou à enorme orelha direita de Schweimann:

— Se se tratasse de qualquer outra pessoa, um desmentido assim seria quase o mesmo que uma afirmação. Mas com esse animal que é o Preysing, é possível até que ele esteja falando a verdade.

Gerstenkorn deu uma investida brutal.

— Não adianta o conselheiro estar gastando o seu latim — disse ele, inclinando-se sobre a mesa. — Antes de continuarmos a nossa conversação, quero pedir a Herr Preysing o favor de nos dizer sem rodeios até que ponto chegaram as negociações com Burleigh & Son.

— Recuso-me a isso — afirmou Preysing.

— Insisto, caso continuemos a negociar — retrucou Gerstenkorn.

— Então — replicou Preysing — peço-lhe que, no decorrer das negociações, esse assunto seja dado por encerrado.

— Nesse caso preciso admitir que as perspectivas de sociedade com Burleigh & Son malograram? — perguntou Gerstenkorn.

— Admita o que bem lhe parecer — respondeu Preysing.

Em seguida todos se calaram por quase um minuto. Flamm número um folheou discretamente o seu bloco de estenografia, e o ruído delicado das folhas de papel que ela virava ressoou no silêncio da sala de conferências. Preysing parecia um bebezinho zangado; às vezes, sucedia meter a cabeça por trás da fisionomia do diretor-geral um menino cabeçudo e teimoso. Zinnowitz, com a sua caneta de malaquita, desenhava resignados triângulos na capa de um documento.

— Acho que por enquanto não tem sentido nenhum continuarmos a nossa conversa — disse finalmente Gerstenkorn. — Acho que podemos continuar a nos entender por escrito.

Ele se levantou, e a sua cadeira deixou sulcos fundos no tapete espesso, legítimo, da sólida sala de conferências. Mas Preysing continuou sentado. Tirou cuidadosamente um charuto do bolso, cortou-lhe a ponta cerimoniosamente, acendeu, tirou uma tragada e começou a fumar, com uma expressão absorta e profundamente pensativa; suas bochechas se tinham avermelhado, cheias de veiazinhas salientes.

Não há dúvida de que o Diretor-Geral Preysing é um homem honestíssimo, de caráter, bom esposo e bom pai, um homem ordeiro e organizado, da mais consolidada burguesia. Sua vida está toda em ordem, tudo registrado e em cartas, oferecendo um aspecto agradável: uma vida de caixas de fichas, de pastas de documentos, de muitas gavetas e muito trabalho. Preysing nunca cometeu a mínima falta de correção. No entanto, deve existir nele um ponto fraco, onde a vida o quer segurar e abater; uma insignificante inflamação, uma manchinha microscópica na limpeza burguesa de seus trajes, deve existir, no entanto...

Ele não chamou por socorro, nesse momento em que a conferência se interrompeu, apesar de se sentir muito mal, com a sensação de que precisava pedir auxílio e gritar por socorro. Levantou-se com o charuto na boca, segurando-o fortemente entre os dentes, e teve a impressão perfeita de estar bêbado, quando pôs as mãos nos bolsos.

— Que pena — disse ele negligentemente, admirando-se do tom despreocupado dessa frase que roçou subitamente o charuto em sua boca. — É realmente pena. Adiar é o mesmo que terminar. Pois então, ponto final. E agora que os senhores desistiram do negócio, posso dizer-lhes que o contrato com Burleigh & Son está firmado. Desde ontem à noite. Recebi hoje de manhã a notícia.

Tirou a mão do bolso do colete, e nela estava metido o telegrama dobrado: Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann. Foi tomado de um infantil e triunfal prazer de enganar os outros, enquanto dizia aquela mentira enorme, que raiava a fraude, e punha o telegrama sobre o pano verde da mesa. Ele próprio não sabia se queria passar um blefe nos outros ou estava procurando uma boa saída para sua posição desacreditada. Schweimann, o mais indisciplinado dos dois homens da Chemnitz, estendeu o braço, num movimento instintivo para pegar o telegrama. Preysing, muito calmo, abriu o telegrama, dobrou-o novamente, e, com um gesto calmo e refletido, meteu-o de novo no bolso do colete. O Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, fez uma cara de idiota. O conselheiro Zinnowitz soltou um assobio leve e agudo, realmente estranhável, partindo da sua boca sábia de chinês.

Gerstenkorn começou a rir, com acessos de tosse bronquial.

— Meu caro — tossiu ele —, caríssimo! O senhor é muito mais sabido do que parece! Homem de Deus! O senhor nos pregou uma boa! Olhe aqui, precisamos conversar sobre isso!

Gerstenkorn se sentou. O diretor-geral, ainda por alguns segundos com um sentimento de vazio, como se todos os seus ossos tivessem ficado ocos e como se sentisse um esquisito e brando tremor nos joelhos, sentou-se também. Tinha mentido pela primeira vez na vida, e ainda por cima de um modo idiota, completamente simplório e sem base. E com essa mentira — justamente com ela — havia conseguido pela primeira vez, após tantos fracassos, impor-se de novo. De repente ouviu a própria voz a falar, e a falar bem. Sentiu-se tomado de uma estranha e desconhecida embriaguez; ouvia a própria voz, e tudo o que dizia tinha pés e cabeça, energia e visão. O fundador do Grande Hotel olhava fixamente para ele, muito admirado, lá do alto do seu retrato a óleo, com seus olhos pintados cintilantes. A Flamm número um curvara o rosto penugento sobre o bloco de estenografia, e estenografava rapidamente — porque agora, parecia, chegariam a um acordo final, cada palavra proferida se tornava importante.

Até o fim da conferência, que durou ainda três horas e vinte minutos, Preysing conservou-se nesse novo estado de ânimo, que lhe dava a impressão de estar voando. E só quando pegou a caneta-tinteiro de malaquita verde para assinar seu nome ao lado da assinatura de Gerstenkorn, no contrato prévio, notou que as suas mãos estavam úmidas e estranhamente sujas.


10

— O 218 quer que o despertem às nove horas — disse o porteiro ao praticante Georgi.

— Ele vai embora? — perguntou o rapazinho.

— Embora por quê? Qual nada, ele vai ficar.

— Pensei que ia. Ele nunca pediu que o acordassem ... — disse Georgi.

— Pois agora pode acordá-lo — respondeu o porteiro.

E assim, às nove horas em ponto, o telefone tilintou no quartinho ridiculamente minúsculo do Dr. Otternschlag.

Apressado como um homem cheio de ocupações, Otternschlag esforçou-se por libertar-se da nebulosidade dos sonhos e despertar, e em seguida admirou-se de estar acordado.

— O que foi? — perguntou a si próprio e ao telefone. — O que foi?

Depois ficou em silêncio durante alguns minutos, concentrando-se e procurando lembrar-se, com o rosto desfigurado encostado no linho macio do travesseiro do hotel. "Atenção", pensou ele, "é aquele homem, é o Kringelein, esse coitado. Precisamos mostrar-lhe o que é a vida. Ele está à minha espera. Já está sentado à mesa, na sala do café, esperando."

— Vamos levantar-nos e nos aprontar? — perguntou a si mesmo. — Vamos sim — respondeu depois de fazer um esforço, porque ainda tinha uma bela dose de morfina nos ossos. Apesar disso, seu rosto e seus movimentos, enquanto se vestia, pareciam exprimir um certo entusiasmo. Alguém esperava por ele. Alguém precisava dele. Alguém lhe demonstrava gratidão. Com um pé de meia na mão, sentado na beira da cama, começou a fazer planos e decidir o que fazer. Fez o programa para o dia, ocupado como um guia de viagens, um mentor, um homem importante e procurado. A camareira que tinha ido buscar no quarto vizinho ao 218 a vassoura e o balde ouviu, admiradíssima, o Dr. Otternschlag cantarolar com voz incerta uma melodia, enquanto ia escovando os dentes.

Entretanto, Kringelein se encontrava na sala de café, ainda exausto, excitado e animado, após sua cansativa vitória sobre o senhor Diretor-Geral Preysing, no barbeiro; há dez minutos tinha travado relações, com extremo prazer, com o Barão von Gaigern, relações distintas, encantadoras. Gaigern tinha agido depressa. Saíra da noite com a Grussinskaia sem as pérolas, e passara diretamente a uma explicação murmurada, mas dura como granito, com o chofer. Logo em seguida — após tomar banho, fazer ginástica e friccionar o corpo com água de alfazema — atirara-se sobre o senhor provinciano do 70, com o qual ele talvez pudesse arranjar de um modo ou de outro os milhares de marcos de que precisava com mais premência. Estava transbordando de impaciência, uma impaciência radiante de felicidade, tensa e ardente. Havia-se separado da Grussinskaia há uma hora apenas, e já sentia uma saudade louca, uma saudade alegre e delicada. Sua cabeça queria estar de novo com ela, sua pele, seus dedos, seus lábios, tudo a desejava novamente, o mais depressa possível. Gaigern sorveu, faminto de vida e de energia, esse sentimento desconhecido como costumava acolher dentro de si as novas experiências. O élan com que ele aguardava a tentativa com Kringelein era enorme. Com uma rapidez que se poderia chamar de tempo recorde, em quinze minutos conseguiu ganhar uma grande dose de confiança. Esmagado, Kringelein abriu sua pequena alma de funcionário, indecisa, ansiosa de vida e preparada para a morte — e o que ele não disse ou não soube exprimir Gaigern adivinhou. Quando Kringelein, às nove horas e catorze minutos, limpou no pequeno guardanapo do hotel o seu esforçado bigode, os dois já eram amigos.

— Imagine, senhor barão — dizia Kringelein —, imagine que eu tenha recebido por acaso algum dinheiro, depois de ter vivido sempre uma vida modestíssima, realmente modestíssima. Uma pessoa como o senhor barão não pode fazer sequer uma ideia de uma vida assim. É o medo da conta do carvão, o senhor compreende? Ou então não se pode ir ao dentista, vai-se deixando de um ano para outro, e de repente perdem-se quase todos os dentes, não se sabe como. Mas não quero falar dessas coisas. Anteontem comi pela primeira vez na vida caviar, ou coisa parecida. Quando o nosso diretor-geral tem reuniões em casa, manda vir caviar de Dresden, aos quilos. Bem, caviar, champanha e todos esses luxos não são a vida, dirá o senhor barão. Mas o que é a vida? Veja, barão, eu não sou mais um homem moço, sou meio doente, e de repente fiquei com receio de não poder aproveitar a vida. Eu não quero deixar passar a vida sem aproveitá-la, o senhor compreende?

— Nunca deixamos de aproveitar a vida! Ela está sempre ao nosso dispor, nós vivemos e é quanto basta. A gente vai vivendo, é isso — disse Gaigern.

Kringelein fitou aquele moço bonito e animado, e talvez suas olheiras, por detrás dos óculos, se tenham ruborizado um pouco.

— Pois é. Naturalmente, para o senhor, a vida está sempre presente, cada minuto que passa. Mas para gente como nós...? — disse ele baixinho.

— É engraçado. O senhor fala da vida como se ela fosse um trem que vai passando, e que o deixa para trás. Há quanto tempo o senhor anda atrás dela? Há três dias? E ainda não conseguiu pegá-la pela cauda, apesar do champanha e do caviar? O que o senhor fez ontem, por exemplo? Museu Kaiser-Friedrich, Potsdam, à noite teatro? Meu Deus do céu! Do que foi que mais gostou? De que quadro? Como? Não reparou... naturalmente. E no teatro... a Grussinskaia? É... a Grussinskaia — repetiu Gaigern, sentindo no coração, ao pronunciar esse nome, um calor repentino, como se fosse um rapazinho tolo. — O que está dizendo? O senhor ficou triste, era tão poético? Pois é, é mais ou menos isso. Mas tudo isso não tem nada que ver com a vida, senhor diretor. — Dizia "senhor diretor" por pura amabilidade, porque não gostou do nome de Kringelein, ridículo e desataviado; e Kringelein corou, feliz e intrujão. — A vida, a vida é... veja: às vezes encontram-se na rua esses caldeirões de piche, fervendo, em ebulição, soltando fumaça, fedendo como a peste a quilômetros de distância. Mas aproxime-se de um caldeirão desses e conserve a cabeça sobre ele, meta o nariz na fumaceira do alcatrão. É uma coisa estupenda, quente, com um cheiro forte e acre, que quase nos derruba no chão, e as gotas grossas e pretas brilham, e há força ali dentro, nada de doçuras nem de coisas insossas. Ah! Caviar! O senhor quer aproveitar a vida, e se eu lhe perguntar que cor têm os bondes de Berlim, o senhor não sabe, porque nunca reparou neles. Aliás, ouça, senhor diretor: com uma gravata como a sua, o senhor nunca poderá tomar o trem da vida; dentro de um terno como o seu ninguém pode se sentir feliz. Digo-lhe isso abertamente, porque não tem sentido nenhum ficar fazendo cumprimentos. Se o senhor confiar um pouco em mim, para apressar as coisas, precisamos primeiro ir ao alfaiate. O senhor está com dinheiro, livro de cheques... não. Faça o favor de arranjar dinheiro, mesmo! Enquanto isso eu vou buscar o meu carro na garagem. O meu chofer está de licença, deixei que o rapaz fosse ver a noiva em Springe; eu mesmo vou guiar.

Kringelein tinha a impressão de que um vento forte lhe batia nos ouvidos. A observação a respeito da sua gravata — comprada por dois marcos e cinquenta — e o seu bonito terno, na verdade, o haviam magoado. Pôs timidamente a mão no colarinho, largo demais.

— Pois é — disse Gaigern —, é muito grande, e vê-se o botão. Assim não pode, naturalmente!

— É que eu pensei... Eu não queria gastar dinheiro em roupa — murmurou Kringelein, vendo bailar vertiginosamente as cifras em seu caderno de notas. — Em outras coisas eu gasto de boa vontade, mas não em roupa.

— E por que não em roupa? Isso é o principal.

— Porque... não vale mais a pena — respondeu Kringelein, baixinho, com as amaldiçoadas lágrimas soltas a queimar-lhe de novo o canto dos olhos. Que maldição! Ele não podia se lembrar do seu fim próximo sem ficar comovido. Gaigern olhou para ele, descontente. — Não vale a pena, realmente... quero dizer... não terei por muito tempo a oportunidade de usar roupas novas. Pensei que... que as velhas ainda fossem servindo — sussurrou com um sentimento de culpa.

"Meu Deus, será que todos os homens têm uma xícara de chá com veronal preparada para tomar?", pensou Gaigern, a quem as carícias dessa noite haviam tornado sensível.

— Não se deve calcular assim — disse ele amavelmente. — Não se deve calcular, Herr Kringelein. Os cálculos nos saem errados. No momento adequado o senhor deve estar com a disposição adequada. Eu sou um homem do momento, e tenho-me dado bem com isso. Vamos, ponha no bolso algumas notas de mil marcos, e depois veremos se a vida não é uma coisa divertida. Avante!

Kringelein se levantou, obediente; tinha a sensação de rodopiar perigosamente dentro do turbilhão de uma cratera. "Algumas notas de mil marcos", pensou ele, como se estivesse atrás de um nevoeiro. Já estava acompanhando Gaigern, enquanto seus pensamentos ainda resistiam, e as paredes da sala de café dançavam à sua volta. Os pés desenraizados de Kringelein, metidos nas botinas de cano alto, iam tropeçando passivamente pelos corredores do hotel; ele sentia medo. Sentia um medo doido de Gaigern, das despesas, do alfaiate caro, tinha medo do automóvel cinza-claro, em que se meteram no assento da frente, perto da direção, tinha medo da vida que, no entanto, não queria deixar de aproveitar. Apertou com energia seus molares estragados, calçou as luvas de tricô, e começou seu dia feliz.

O Dr. Otternschlag, que às dez para as dez andava ao longo das paredes do hall, à procura de Kringelein, recebeu do porteiro uma carta entregue pessoalmente.

Prezado Dr. Otternschlag! — estava escrito. — Infelizmente, por motivos imprevistos, vejo-me impedido de comparecer ao nosso encontro. Saudações respeitosas do amigo At. Obr. Otto Kringelein.

O estilo era de Kringelein, ainda, mas sua ortografia tinha-se modificado um pouco. Na escrita fluente de guarda-livros, haviam-se imiscuído uns traços informes, e os pingos dos ii pareciam querer voar como balões que se desprendem do fio para estourar nos céus, solitários e com um pequenino e trágico estampido que ninguém ouve.

O Dr. Otternschlag ficou com a mão estendida, segurando a carta. O hall era um deserto, cheio de horas infindáveis e vazias. Passou pelo balcão dos jornais, pelas flores, por pessoas que saíam do elevador, pelas colunas, até chegar ao seu lugar habitual. "Horrível", pensou ele. "Terrível. Medonho." As pontas de seus dedos, plúmbeas e cor de fumo, lhe pendiam das mãos, e com o olho cego ele fitava a mulher da limpeza que, em desacordo com os regulamentos, começava a varrer com serragem úmida, em pleno dia, o hall do Grande Hotel.

É intensa a angústia que Kringelein sente, de pé, na sala de provas da enorme alfaiataria para homens. Três elegantes cavalheiros estão ao seu redor, ocupadíssimos, e doze Kringelein deploráveis refletem-se nos espelhos, aproximando-se uns dos outros em ângulos agudos. Um senhor elegante está ao lado, observando Herr Kringelein com as pálpebras meio cerradas, um olhar de conhecedor, e murmurando palavras incompreensíveis. Sentado num banquinho estofado, sob os retratos de artistas de cinema incrivelmente belos, está o Barão Gaigern, batendo as luvas pespontadas na palma da mão, e desviando de Kringelein o olhar, como se se envergonhasse dele.

Começaram a vir à luz coisas lamentáveis, segredos do guarda-livros Otto Kringelein, de Fredersdorf. Seus suspensórios estão rasgados, costurados, rasgados de novo, e finalmente muito mal consertados, com um barbante. O colete, que lhe ficara muito largo, fora ajustado por Anna, que lhe fez nas costas duas pregas costuradas ao enchimento por meio de pespontos.

Kringelein usa as camisas de seu pai, grandes demais para ele, pelo que meteu umas ligas na parte superior dos braços, para arregaçar as mangas compridíssimas. Usa abotoaduras de tempos pré-históricos, redondas, do tamanho de discos de chapa de fogão, tendo no centro uma esfinge de esmalte vermelho diante de uma pirâmide de esmalte azul. A gigantesca camisa é de um tecido grosso de cor indefinível, tendo na frente apenas um pedacinho de zefir listrado, como uma pequena vitrina na fachada principal. Debaixo da camisa de lã espia ainda qualquer outra coisa também de lã, um coletinho já no fio, cerzido com pontos grosseiros. Por baixo disso, um pedacinho de pele de gato, o que parece ser bom contra dores de estômago e calafrios misteriosos. Os cavalheiros elegantes não mudam de expressão — Kringelein teria preferido que fizessem caçoada dele ou o consolassem.

— Nunca me incomodei muito com a moda. Sou um homem antiquado — diz ele em tom implorante, desculpando-se diante da cortesia gelada dos homens. Ninguém lhe responde. Vão lhe tirando as camadas, uma após outra, como de uma cebola. É um tanto cruel o que está sucedendo com Kringelein, completamente indefeso. Pouco a pouco ele vai se sentindo mal, como na sala de operações, pois agora também há uma claridade vítrea nas coisas, e tudo parece estar muito próximo dele. Depois, os três cavalheiros começam a vesti-lo.

Gaigern se anima, e dá conselhos.

— Fique com isso — diz ele; e —, não fique com isso.

Parece que não é possível contrariar as suas decisões. Kringelein olha de lado para os papeluchos com o preço, presos às peças de vestiário, reparando sempre apenas no preço; não ousa fazer perguntas, a princípio, mas por fim se enche de coragem e começa a querer saber os preços.

Assusta-se de tal modo que tem vontade de sair correndo; a sala de provas parece uma cela com quatro guardas severos e paredes de espelho. Kringelein está todo suado, apesar de o terem libertado de seus agasalhos de lã, que estão enrolados num montinho sobre uma cadeira, com um aspecto de ilimitada miséria, repulsivos. De repente, eles deixaram de pertencer a Kringelein; causam-lhe nojo tais peças de vestuário, remendadas, suarentas e de cor indefinível, essa roupa de um pobre-diabo. Mas, de um momento para outro, qualquer coisa se passa com ele. Fica gostando da camisa de seda que o forçaram a vestir.

— Ah! — diz Kringelein, com a cabeça inclinada e a boca aberta, como se fosse ouvir algum segredo. — Ah, ah!

Sua pele se alegra e trava amizade, gostosamente, com a camisa de seda de delicado padrão. O colarinho se ajusta exatamente ao pescoço, não esfrega, não é nem largo nem apertado demais, a gravata nova cai lisa e macia sobre o peito de Kringelein, onde o coração bate agora como em misteriosa festa — forte, um tanto dorido, mas aliviado. Agora colocam diante dele meias e sapatos, com grande solicitude; Gaigern explicou, em poucas palavras, que o senhor diretor está enfermo, e então trazem dos quatro andares da casa de artigos para homens tudo o que um homem distinto precisa para se vestir. Kringelein envergonha-se medonhamente de seus pés; de súbito tem a impressão de que toda a miséria e o aperto da sua vida estão visíveis nesses pés com joanetes crescidos, pelo que procura se esgueirar com as novas meias e botinas para um canto, coloca suas costas curvas entre si mesmo e os outros, como uma parede, e começa, sem nenhuma prática, a lutar com os cordões. Em seguida vestem-lhe um novo terno, escolhido pelo barão.

— O senhor diretor está com uma aparência maravilhosa — diz um daqueles cavalheiros. — Assenta-lhe como se fosse feito sob medida.

— Não é preciso modificar nada — diz o segundo.

— Perfeito. Nós temos poucos fregueses com um corpo tão esbelto — afirma o terceiro.

Empurram Kringelein para a frente do espelho, e o obrigam a girar no seu eixo como se fosse uma boneca de madeira, magra e paciente.


11

 

E, justamente no momento em que Kringelein voltou do espelho para o seu interior, sentiu pela primeira vez, como um pressentimento, que estava vivendo. Sim, tinha a sensação de existir, conhecia-se a si mesmo, com um abalo tão violento como se o atingisse um raio. Nesse momento, um homem estranho, de porte delicado e distinto, aproximou-se dele com expressão confusa, um homem que era ele próprio, de modo extremamente íntimo, o verdadeiro Kringelein, o Kringelein enterrado, de Fredersdorf — mas isso logo passou. No instante seguinte já não era novidade, o milagre da transformação já se dera.

Kringelein respirou profundamente, com energia, porque parecia querer despertar em seu corpo uma dorzinha aguda.

— Acho que este terno me fica bem, não? — perguntou ele, de modo infantil, a Gaigern.

O barão ainda fez mais; aproximou-se e, com suas próprias mãos, grandes e quentes, arrumou o novo terno nos ombros de Kringelein.

— Sou de opinião que este terno é o suficiente — disse Kringelein aos três cavalheiros.

Apalpou o tecido com os dedos, às escondidas, porque entendia bastante de tecidos, isso se sabia em Fredersdorf, mesmo quando só se trabalhava no escritório.

— É um bom tecido; sou conhecedor — afirmou ele, respeitosamente.

— Artigo inglês legítimo. Nós mandamos trazê-lo diretamente de Londres, de Parker Brother & Co. — respondeu o senhor de pálpebras fechadas.

"Preysing não usa tecidos assim", pensou Kringelein. Os ternos de Preysing costumavam ser daquele mesmo tecido sólido de estamenha cinzenta, de que a fábrica ainda possuía um estoque antigo, e todos os anos, pouco antes do Natal, era vendido aos empregados por baixo preço. Kringelein decidiu-se. Tomou posse desse terno, enfiando ambas as mãos nos bolsos novos e limpos.

Seu medo transformou-se repentinamente na felicidade de comprar e de possuir; pela primeira vez na vida Kringelein tem a sensação de vertiginosa leveza que acompanha o ato de gastar dinheiro. Ele passa através dos muros, por trás dos quais ele morou toda a vida. Compra, compra, sem perguntar o preço, vai comprando. Apalpa tecidos, sedas, alisa abas de chapéus, experimenta coletes, gravatas, cintos, coloca uma cor perto de outra e sorve com delícia a combinação harmoniosa de tons.

— O senhor diretor tem um extraordinário bom gosto — diz um dos cavalheiros.

— Um gosto delicado — afirmou o outro —, correto, distintíssimo.

Gaigern assiste a tudo sorrindo, um tanto impaciente, e faz elogios. Caceteado, olha as próprias mãos; a direita está tão vazia, desde que ele deu o anel de sinete de presente... Disfarçadamente, leva-as até o rosto, para ver se ainda conservam um pouco do perfume dessa noite, agridoce, ao mesmo tempo perigo e calma, Neuwjada, a florzinha que cresce nas campinas.

Kringelein compra um terno marrom, muito confortável, de um tecido cardado inglês, uma calça cinza-escura, com delicadas listras claras, que combina com um paletó estreito; compra também um smoking, no qual é preciso mudar apenas alguns botões; roupa de baixo, camisas, colarinhos, meias, gravatas, uma capa igual à de Gaigern, um chapéu macio, espantosamente leve, com a marca dourada de uma firma de Florença, e finalmente, pegando um par de luvas de camurça pespontadas, iguais às de Gaigern, dirige-se à caixa. Ali estão a fazer uma conta amabilíssima — Kringelein fala com rapidez e facilidade, porque ouve o jargão dos livros-caixa, tão seu conhecido, desde o livro-razão ao livro-matriz. Paga mil marcos à vista, e o resto em três prestações.

— Então! — exclamou Gaigern, satisfeito.

Uma fila de dorsos inclinados, numa saudação, acompanha Kringelein, encantado e transformado, até a porta de espelhos da loja. Lá fora faz sol, mas está frio. O ar tem um sabor de vinho gelado, acha Kringelein, de passagem. Até agora ele sempre se arrastou. Agora ele anda. Tem que dar três passos, da entrada da loja de primeira ordem até a limusine cinza-clara, e ergue três vezes, do calçamento da rua, as solas novas dos seus sapatos.

— Está satisfeito? — pergunta Gaigern, rindo-se e dando a deixa. — Está notando alguma coisa? Sente uma sensação agradável?

— Fantástico! Maravilhoso! Ótimo! — replica Kringelein, tomando a expressão de um homem experimentado, sentado ao volante do carro.

Tira os óculos e esfrega com o polegar e o indicador a beirada dos olhos; é um gesto cansado e que lhe é habitual.

Vem-lhe ao pensamento a ideia de que não estará mais vivo, quando vencer a última prestação.

 

Gaigern sentia a impaciência nos dedos, causava-lhe comichão como ácido carbônico, entre as mãos e a direção. Nos cruzamentos das ruas havia lâmpadas vermelhas, verdes e amarelas, guardas que o ameaçavam com a mão, sorridentes. O carro passava em disparada pelas casas, pelas árvores, colunas de cartazes, ajuntamentos de pessoas nas esquinas, pelas carroças de frutas, muros com cartazes e velhas senhoras amedrontadas, que, com passos miúdos, andavam no leito da rua sem observar o sinal de trânsito, velhas senhoras vestidas de preto e de saias compridas, em pleno mês de março. O sol brilhava, úmido e amarelo, no asfalto. Quando um ônibus pesadão impedia o caminho, o carrinho de quatro lugares gritava com duas buzinas; parecia o latido de cães excitados.

Em Fredersdorf havia muita gente que nunca tinha andado de automóvel. Anna, por exemplo, nunca tinha andado de carro. Mas Kringelein estava andando. Apertou os lábios com força, inteiriçou os músculos sob as axilas, e seus olhos ficaram lacrimejantes pelas correntes de ar. Assustava-se nas curvas, e seu coração arfava sob a camisa de seda nova. Era o mesmo prazer medroso da infância, quando na feira anual de Mickenau, no outono, se podia andar de carrossel três vezes seguidas, por um groschon.

Kringelein arregalava os olhos para ver Berlim, que rapidamente se entremostrava sob aspectos deformados. Ainda se recordava bem da grande cidade. A Porta de Brandenburgo, por exemplo, reconheceu-a de longe, assim como a Gedaechtniskirche, à qual dirigiu um olhar respeitoso.

— Para onde estamos indo? — gritou ele ao ouvido direito de Gaigern. O ronco do motor lhe parecia fortíssimo, e ele se sentia no meio de estrondos e de uma tempestade.

— Para os arredores da cidade, a fim de almoçar. Para lá do Avus — respondeu Gaigern com jovialidade.

A rua parecia penetrar dentro do carro, cada vez com mais velocidade. Chegaram às proximidades da torre da emissora. Kringelein já estivera ali no dia anterior, com o Dr. Otternschlag, numa noite nublada, cansado, impossibilitado de receber novas impressões. Os estranhos átrios, lisos, novos e por terminar, na parte exterior, o haviam acompanhado nos sonhos e, agora, a realidade e o sonho se apresentavam em duas camadas sobrepostas, um tanto ameaçadoras e incompreensíveis.

— Ainda vão terminar isso? — gritou Kringelein apontando para os átrios da exposição.

— Já está pronto — foi a resposta.

Kringelein admirou-se. Era tudo nu como uma fábrica, mas não feia, como a de Fredersdorf.

— Que cidade engraçada — exclamou ele, sacudindo a cabeça e ficando ainda mais vesgo.

Levou um choque com um solavanco do carro, e a pele do seu crânio se encolheu, mas foi coisa sem importância. É que Gaigern havia parado na porta norte do Avus, e em seguida continuaram de novo a viagem.

— Agora nós vamos mesmo — afirmou Gaigern; e, antes que Kringelein pudesse perceber do que se tratava, ele partiu.

Começou com uma corrente de ar que foi esfriando lentamente, e que batia contra o rosto de Kringelein cada vez com mais força, como bofetadas. O carro começou a cantar com um som grave que se foi elevando, e ao mesmo tempo aconteceu uma coisa pavorosa com as pernas de Kringelein. Ele tinha a sensação de que elas se enchiam de ar, cujas bolhas lhe subiam aos joelhos, que pareciam querer estourar. Por vários segundos incríveis ele não podia respirar mais, e durante um instante pensou que iria morrer.

— Isto é a morte. Vou morrer.

Com o peito comprimido, aspirava o ar com dificuldade; o carro deslizava por coisas irreconhecíveis, vermelhas, verdes, azuis; árvores que se atiravam de encontro aos seus óculos; depois, um ponto vermelho se transformou em um automóvel e, logo a seguir, caiu no vazio, por trás do seu carro — e Kringelein continuava sem conseguir respirar. Seu diafragma conhecia agora novas sensações, nunca antes imaginadas. Kringelein tentou virar o rosto em direção a Gaigern, e, vejam só, conseguiu virá-lo sem se machucar. Gaigern estava meio inclinado sobre a direção, e tinha calçado as luvas de camurça, mas sem abotoá-las; por qualquer motivo, isso dava a sensação de calma e ausência de perigo. Justamente quando o pedacinho de estômago que restava a Kringelein queria começar a subir à garganta, Gaigern se pôs a rir com os lábios fechados. Apontou com o queixo, sem tirar os olhos do fuso sibilante da estrada do Avus, para um lugar qualquer, e Kringelein lançou um olhar obediente. Como não era tolo, compreendeu, após refletir um pouco, que havia sido o marcador dos quilômetros, diante dele. O ponteirinho vibrava de leve, mostrando o número 110. "Que diabo!", pensou Kringelein. Engoliu seu amedrontado pomo-de-adão e inclinou-se para a frente, entregando-se ao impulso da velocidade. Súbito tomou posse dele o prazer da sensação de perigo, um prazer penetrante e assustador. Mais depressa! pedia dentro dele um novo Kringelein, desconhecido e delirante. O carro concordou: 115. Durante alguns segundos parou nos 118, e Kringelein desistiu, de uma vez, de respirar. Tinha vontade de se precipitar, sibilando, nas trevas. "Avante, para a frente, explosão, choque, ponto final da corrida desenfreada!", era o pensamento que lhe ocorria. "Nada de leito de hospital," pensou; "é preferível uma fratura no crânio." À passagem do carro, em disparada, ainda continuavam a bramir os anúncios; as distâncias entre eles foram aumentando; depois, os trapos cinzentos ao lado da estrada se transformaram em bosques de pinheiros. Kringelein via árvores que se iam aproximando e em seguida se desviavam do carro. Era como no carrossel de Mickenau pouco antes de parar. Nas tabuletas de anúncios ele lia agora nomes de marcas de óleos, de pneus e de automóveis; a correnteza de ar tornou-se mais branda, e deslizava por sua garganta adentro. O ponteiro caiu para 60, a agulha oscilou um instante ainda, entre 50 e 45, e eles deixaram o Avus pela porta sul, desfilando burguesmente por entre as villas do Wannsee.

— Puxa, agora me sinto mais leve! — disse Gaigern, abrindo o rosto num sorriso. Kringelein tirou as mãos das almofadas de couro em que se agarrara até então, e foi relaxando com todo o cuidado os músculos contraídos das mandíbulas, dos ombros e dos joelhos. Sentia-se completamente exausto e absolutamente feliz.

— Eu também — respondeu ele, e estava dizendo a verdade.

Falou muito pouco enquanto estiveram sentados no terraço envidraçado, completamente vazio, de um restaurante à margem do Wannsee, olhando os barcos a vela cobertos com lonas, balançando à tona da água. Precisava refletir sobre a sensação que experimentara, o que não era assim tão fácil. "O que é a velocidade?", pensou. "Não a vemos nem tocamos, e isso de medi-la deve ser uma impostura. Como é possível que ela vá passando, e seja mais linda do que a música?" Ainda sentia tudo girando, mas era uma sensação agradável. Tinha trazido o frasquinho de Bálsamo de Vida do Dr. Hundt, mas não tomou o remédio.

— Preciso agradecer-lhe este passeio maravilhoso — disse ele, procurando com ar solene expressões escolhidas, de acordo com os ambientes em que estava vivendo agora.

Gaigern, que só comia alimentos baratos, espinafre com ovos, sacudiu a cabeça: — Eu me divirto com essas coisas — disse ele. — O senhor sente isso pela primeira vez. É raríssimo encontrarmos pessoas que tenham uma sensação pela primeira vez...

— Mas o senhor também não dá a impressão de ser um homem blasé, se me permite esta observação — replicou Kringelein com desembaraço.

Já se sentia à vontade em suas novas roupas, já estava em casa dentro da sua camisa de seda; sentava-se de outra maneira, comia de outra maneira, e suas mãos, que lhe pareciam mais delgadas, avançando pelos punhos da camisa, com as unhas feitas por uma bonita manicura, no subterrâneo do hotel, lhe davam enorme prazer.

— Meu Deus do céu, eu, blasé? — exclamou Gaigern, satisfeito. — Não. De modo nenhum. Mas é que gente como eu tem uma vida cheia. — Não pôde deixar de sorrir. "O senhor tem razão. Para gente como eu também existem coisas inteiramente novas, que se experimentam pela primeira vez, coisas engraçadas...", acrescentou consigo mesmo.

Bateu de leve seus bonitos dentes uns nos outros, pensando na Grussinskaia. Seus ossos estavam cheios de ávida impaciência. O tempo que tinha de esperar para que pudesse ter de novo em seus braços a figurinha delicada, tão necessitada de amparo, e ouvir novamente seu gorjeio tristonho de passarinho, parecia-lhe uma extensão imensurável e deserta. Deu um prazo de três dias a si próprio, sapateando, interiormente, de impaciência, para arranjar de qualquer modo alguns milhares de marcos que acalmariam seus companheiros e lhe facultariam a viagem a Viena. Por enquanto, empenhava-se, com a maior amabilidade, em agradar Kringelein, com a esperança em qualquer solução favorável.

— E agora, qual é a continuação do programa? — perguntou Kringelein, dirigindo para ele uns olhos fiéis e agradecidos. Gaigern simpatizava com esse provinciano calmo, sentado diante dele como uma criança durante a distribuição dos presentes de Natal. A amabilidade e a simpatia humanas estavam de tal modo enraizadas na personalidade de Gaigern, que suas vítimas recebiam sempre uma boa parte do seu calor.

— Agora vamos voar — disse ele, com o tom acalentador de uma ama de leite. — É muito agradável e não tem o menor perigo, é muito menos perigoso do que uma corrida desenfreada de automóvel.

— Corremos perigo, há pouco? — - perguntou Kringelein, admirado.

O medo que sentira parecia-lhe agora quase um prazer, depois de vencido.

— Sem dúvida — afirmou Gaigern. — Cento e dezoito quilômetros não é brincadeira, e a estrada estava úmida... Parece incrível que, com um tempo destes, ela fique tão escorregadia. Não há dúvida de que o carro corre sempre o risco de derrapar. A conta — disse, voltando-se com cortesia para o garçom, e pagando seu espinafre com ovos. Sobravam-lhe na carteira apenas vinte e quatro marcos.

Kringelein também pagou; havia tomado apenas umas colheradas, de sopa, porque não confiava ao seu estômago coisas excitantes e indigestas. Quando meteu no bolso a carteira que trouxera ainda de Fredersdorf, teve a visão fugaz e agora pouco importante do seu caderno de despesas, com capa de oleado. Até esse dia havia anotado suas despesas, Pfennig por Pfennig, desde os nove anos de idade, em caderninhos assim. Agora acabou-se. Nunca mais faria isso de novo. Mil marcos numa tarde não era possível anotar. Uma parte da ordem do mundo concebida por Kringelein tinha se destruído, numa derrocada silenciosa e sem estardalhaço. Kringelein, que Gaigern foi seguindo pelo terraço vazio do restaurante até o carro, movia os ombros com delícia, sob o novo sobretudo, o novo terno e a nova camisa. Agora, por onde quer que ele passasse, havia indivíduos que se inclinavam. "Bom dia, senhor diretor-geral", pensou ele, vendo-se colado a uma parede, a parede caiada de verde-cinza do segundo andar dos escritórios de Fredersdorf. Guardou no bolso os óculos ao sentar ao lado de Gaigern, expondo os olhos nus à fresca e cintilante atmosfera de março, e com um vivo sentimento de simpatia e de confiante gratidão ouviu o ruído do motor.

— A Chaussee ou o Avus de novo? — perguntou Gaigern.

— O Avus, de novo — respondeu Kringelein. — E na mesma velocidade — acrescentou em voz baixa.

— Ah!... O senhor tem coragem — disse Gaigern, pondo o pé no acelerador.

— É... coragem eu tenho — respondeu Kringelein, com os músculos tensos e o corpo inclinado para a frente, de lábios entreabertos, preparado para entregar-se inteiramente à vida.

 

Kringelein, debruçado na grade branca e vermelha do aeroporto, procura habituar-se a esse mundo assombroso que, desde a manhã desse dia, vem ao encontro dele. Ontem — há um século — ele subia no elevador, para ir ao restaurante da torre da emissora, fatigado, sonolento, imerso em sonhos; não estava se divertindo, e os comentários pessimistas do Dr. Otternschlag ainda tornavam tudo mais problemático e fantasmagórico. Anteontem — há mil anos — ele era um auxiliar de guarda-livros no escritório de contabilidade da Algodoeira Saxônia S.A., de Fredersdorf, um empregadinho enfezado, entre trezentos outros empregadinhos enfezados, de terno de sarja cinzenta e com um ordenado minguado, do qual era preciso tirar ainda o desconto para a Caixa de Previdência. Hoje, agora, ele está à espera do piloto que, por um alto preço, vai levá-lo em um enorme voo circular, em viagem especial. É um desses pensamentos impossíveis de serem levados até as últimas consequências, apesar de Kringelein se sentir animado e concentrado como nunca.

É uma enorme mentira, a sua coragem. Tem um medo de cão, um medo horrível do divertimento que o espera. Ele não quer voar, não quer voar de modo algum. Tem desejos de voltar para casa — não, para Fredersdorf não, mas para o hotel, para o seu quarto 70, com os móveis de mogno e a colcha de seda; gostaria de estar deitado e não precisar voar.

Quando Kringelein saiu de casa para ir à procura da vida, pairava diante dele uma ideia nebulosa e informe; mas era uma coisa acolchoada e fofa, com pregueados e franjas, e arabescos enormes; leitos macios, pratos cheios, mulheres sensuais, em quadros e reais. Agora, que está experimentando a vida, e que, aparentemente, mergulhou em cheio nela, tudo se apresenta sob um aspecto diferente; é preciso satisfazer a uma série de exigências, a ventania corta-lhe as orelhas, e é preciso forçar paredões de angústias e de perigo para conseguir chegar a uma doce e embriagante gota de gozo da vida. "Voar", pensa Kringelein. Ele conhece a sensação do voo que se tem em sonhos. Seu sonho se apresenta assim: Kringelein se encontra no tablado da sala de Zickenmeyer; ao seu redor está o coral da associação, e ele canta um solo. Ouve sua bonita voz de tenor, canta notas agudas, cada vez mais agudas, cada vez mais. É facílimo, ele não precisa fazer nenhum esforço, é um prazer puro, fácil e naturalíssimo.

Finalmente, ele se deita no som mais agudo e suave, e voa sobre ele, acompanhado pela música das nuvens. A Associação Coral o acompanha com o olhar; primeiro, ele sobrevoa ainda abaixo do telhado local de Zickenmeyer, depois voa completamente só, à sua volta não se vê mais nada, e só bem no finzinho ele percebe que tudo não passou de um sonho, e que precisa voltar ao seu leito matrimonial, onde Anna dorme o sono deletério dos seus quarenta anos maltratados e rixentos. A queda é medonha, e o despertar é um grito na escuridão do quarto abafado, com as pequeninas vidraças, os armários cheirando a naftalina e o pequeno fogareiro de ferro, apagado, com uma panela cheia de água em cima.

Kringelein põe-se a piscar. "Voar", pensa ele retornando ao Aeroporto de Tempelhof. Ali também há cores fortes, como na torre da emissora e ao longo do Avus; amarelo, azul, vermelho e verde, em tons bem vivos. Torres misteriosas erguem-se no ar, tudo é simples e econômico, um vento cheio de poeira sopra sobre as manchas de asfalto do outro lado da grade, e as sombras das nuvens se apressam, para atingir a pista de decolagem. O pequeno aparelho que vai decolar já está pronto, três homens estão atarefados em torno dele; o motor ronca, sua hélice gira apenas por brincadeira. Diante de suas rodas baixas há uns blocos, suas asas prateadas, com estrias, estão vibrando. Outros pássaros pousam, saudados pelos gritos roucos de uma sereia — é assim que a fábrica de Fredersdorf chama, às sete horas da manhã — ou talvez tudo isso tenha sido apenas um sonho?... Outros pássaros se elevam, baixam pesados à terra, e erguem-se, muito leves, ao ar, ora cor de chumbo prateado, ora dourados, com firmes asas de madeira, e outros ainda, brancos, enormes, com quatro asas, e três hélices girando. O campo de pouso é tão grande, tão estranhamente silencioso... Os homens que estão ali são todos esbeltos, queimados de sol, alegres e calados, envolvidos em seus ternos folgados e seus barretes justos. Só os aparelhos têm voz, e latem com um latido rouco, como cães enormes, quando vão rodando sobre o campo.

Gaigern aproxima-se com o piloto, um senhor amável, com as pernas em O de antigo oficial de cavalaria.

Gaigern parece um cliente habitual, todos o cumprimentam e o conhecem.

— Vai partir logo — anuncia Gaigern. Kringelein, que já sabe por experiência própria o que significa o "partir" de Gaigern, leva um susto. "Socorro", pensa ele, "socorro, não quero voar!", mas não o diz, de forma alguma.

— Já vamos decolar? — perguntou com ar de homem experimentado, orgulhando-se da palavra que está usando pela primeira vez na vida.

Depois, Otto Kringelein senta-se, amarrado pela cintura com uma correia, em uma cômoda cadeira de couro, e arregala os olhos para o céu azul-cinza de março. Ao seu lado está Gaigern, assobiando baixinho, e isso o consola, nesse momento de debilidade total.

No começo, não é diferente de uma viagem de automóvel, aos solavancos; depois, o aparelho começa a fazer um ruído, rápido, infernal. De repente bate no solo com um solavanco, para trás, e eleva-se no ar. Não paira no espaço, tem mais dificuldades do que o tenor Kringelein, a cantar e a voar no seu sonho; o aparelho salta por impulsos no ar, como sobre degraus de vácuo; salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai. Agora a sensação desagradável não é nas pernas, como na viagem a cento e vinte quilômetros por hora, mas na cabeça. Os ossos do crânio de Kringelein zumbem, tornam-se muito delgados, completamente vítreos, de modo que ele precisa fechar os olhos por um momento.

— Está enjoado? — pergunta Gaigern gritando em seu ouvido, pensando se seria possível, ali no avião, conseguir que Herr Kringelein lhe desse cinco mil marcos, ou mesmo três mil, ou que seja tudo pelo amor de Deus, cento e cinquenta que fossem, que já dariam para pagar a conta do hotel e a viagem até Viena. — Está se sentindo mal? Acha que basta de voar? — pergunta ele com muita cortesia.

Kringelein faz um violento e corajoso esforço para dominar-se, e responde um animado "não". Abre os olhos, a cabeça zune, vítrea; prende-os primeiro ao chão do avião, como a um ponto firme, depois vai subindo, até chegar à vidracinha oval da parede fronteiriça. Lá estão de novo os números e as agulhas trêmulas. O piloto vira o rosto de traços fortes para trás, e sorri para Herr Kringelein como para um bom amigo e camarada. Kringelein recebe esse olhar como um tônico e uma honra.

— Trezentos metros de altitude, cento e oitenta de velocidade! — grita Gaigern ao seu ouvido, que zune e crepita.

De repente, tudo se torna macio, leve e liso. O aparelho não se eleva mais, vai cantando com a voz metálica dos seus motores, fazendo uma curva, deslizando como um pássaro sobre a cidade, agora pequenina. Kringelein cria coragem e olha para fora.

Primeiro vê as asas estriadas, expostas ao sol, que parecem ter criado vida, e, bem embaixo, Berlim, dividida em quadradinhos, cúpulas verdes, uma ridícula estação, em meio à exposição de brinquedos. Uma manchinha verde é o jardim zoológico, uma manchinha cor de chumbo, com quatro pontinhos brancos de velas, é o Wannsee. Os limites do pequenino mundo ficam bem longe, o terreno vai subindo em suaves elevações, há também montanhas, florestas, terras lavradas pardacentas, Kringelein abre num sorriso infantil os lábios comprimidos. Está voando. Conseguiu suportar o voo. Sente-se muito bem, e tem uma sensação diferente de si próprio, enérgica e nova. Pela terceira vez lhe acontece, nesse dia, perder o medo, e ver esse medo transformar-se em prazer.

Toca de leve no ombro de Gaigern, e em resposta ao seu olhar inquiridor diz qualquer coisa que o ruído dos motores devora.

— Não é tão mau assim — respondeu Kringelein. — Não é preciso ter medo, não é nada mau.

Com essas palavras, Kringelein refere-se não só à conta elevada do alfaiate, à viagem ao longo do Avus e ao voo — mas a tudo isso junto, e mais alguma coisa; é que ele vai morrer em breve e, com a morte, afastar-se desse pequeno mundo, abandonar o grande medo, elevar-se, se for possível, acima dos aviões.

 

As ruas por trás do campo de Tempelhof, quando eles vieram de volta, falaram ao coração do novo Kringelein. Assemelhavam-se às melancólicas ruas de Fredersdorf, com as chaminés crescendo por trás dos caminhos, e ele alargou as narinas para sentir o cheiro de cola da seção de imprensagem dos tecidos. Com vivacidade duplicada, ele sentia, ao avistar essas pobres ruas, que usava um sobretudo novo, e se encontrava num automóvel. Procurou palavras que exprimissem esse duplo sentimento, mas não encontrou. Somente na porta do hangar ele se animou de novo — tiveram de esperar meio minuto —, o vôo ainda lhe pesava nos membros como uma silenciosa mas forte embriaguez, e, ansioso e amável, perguntou:

— Quais são agora os planos do senhor barão?

— Agora preciso cuidar de negócios particulares, no hotel. Tenho um encontro às cinco horas. Venha comigo, vou dançar um pouquinho — acrescentou ao perceber nos olhos de Kringelein uma expressão de desânimo e de real aflição.

— Muitíssimo obrigado. Acompanho-o de bom grado. Gosto de ver os outros dançar. Infelizmente não sei dançar.

— Ora, qual! Qualquer pessoa sabe dançar! Kringelein foi pensando nisso até chegarem à Friedrichstrasse.

— E depois? Que se poderia fazer depois? — perguntou insistente, na sua insaciabilidade.

Gaigern não deu resposta, mas acelerou a marcha até o próximo solavanco, quando travou o freio diante da lâmpada vermelha da Leipzigstrasse.

— Diga uma coisa, senhor diretor — perguntou ele, durante a parada do carro. — O senhor é casado ou não?

Kringelein ficou a refletir por tanto tempo que, enquanto isso, as lâmpadas amarela e verde se acenderam, e já estavam de novo a caminho, quando ele respondeu:

— Fui casado. Já fui casado, senhor barão. Separei-me de minha mulher. Pois é. Conquistei a liberdade, se posso falar assim. Há casamentos, senhor barão, em que cada cônjuge é um peso para o outro, um chega a enojar-se do outro, não pode ver a cara do outro sem se enfurecer. Não podemos ver o pente com os fios de cabelo da mulher, de manhã cedo, sem que isso nos estrague o dia; isso não é justo, é claro, ela não tem culpa de que seus cabelos caiam... Ou quando se quer ler um pouco à noite, a mulher se põe a falar sem parar, e quando não fala, canta na cozinha. E se a gente gosta de música, essa gritaria nos deixa doente. E toda noite, quando a gente está cansado, e quer ler, ouve-se a mesma cantilena: "Vá cortar lenha para amanhã cedo". Custa apenas oito Pfennige a mais cada feixe de lenha picado, o que faz dois Pfennige por dia, mas isso não é possível, de modo nenhum. "Você é um gastador", diz a mulher, "se a gente fosse pela sua cabeça, acabaria esticando as canelas." E olhe que o sogro tem um armazém que a mulher vai herdar, de modo que ela está com o futuro garantido. Então achei melhor conquistar minha liberdade. Minha mulher nunca combinou comigo, essa é a verdade, porque eu sempre gostei das coisas boas, e isso ela nunca me pôde perdoar. Quando meu amigo Kampmann me deu de presente cinco velhas coleções da revista Kosmos, minha mulher vendeu-as como papel velho; recebeu por elas catorze Pfennige. É este o retrato acabado dessa mulher, senhor barão. Agora eu me separei dela. Não faz muita diferença, umas semanas a mais ou a menos, já que ela tem mesmo que se arranjar sem mim. Então ela poderá ir de novo às lojas, vender aos empregados solteiros arenques enrolados e salsichas para o jantar. Foi assim que eu a conheci. Talvez ainda encontre outro trouxa. Quando me casei com ela, eu era completamente idiota, não fazia nenhuma ideia da vida, nenhuma ideia do que é uma mulher. Desde que cheguei a Berlim, e estou vendo tantas senhoras lindas, elegantes e amáveis, é que meus olhos estão se abrindo. Mas para essas coisas já é tarde demais.

 

Tal confissão, que partiu do fundo do coração de Kringelein, durou desde a Leipzigstrasse até a Unter den Linden.

— O dia inteiro não é noite — replicou Gaigern, meio distraído, porque estava atravessando um trecho difícil do caminho, na Porta de Brandenburgo, e diante dele seguia um chofer que não sabia dirigir. A atmosfera de uma cozinha minúscula e miserável, que se evolava das palavras de Kringelein, o sufocava, tirando-lhe o entusiasmo com que ele estivera prestes a pedir emprestados três mil marcos.

Esse Kringelein de camisa de seda, que andava de automóvel, teria também de boa vontade retirado parte daquilo que revelara com as suas palavras.

— Então nós vamos dançar — disse ele com desembaraço, para disfarçar. — Ficarei gratíssimo, se o senhor barão me tomar sob sua proteção. E que se poderia fazer à noite?

Kringelein tinha a esperança oculta de receber uma resposta que correspondesse a desejos irrealizados dentro de si, alguma coisa semelhante a certos quadros de museus, porém mais palpável, o que, nos jornais que ele lia, denominavam orgia. Tinha o pressentimento de que homens distintos da cidade guardavam a chave e a entrada de coisas assim. No dia anterior o Dr. Otternschlag havia acedido ao seu vago desejo de feminilidade, levando-o ao bailei da Grussinskaia. Pois é. Isso — julgava Kringelein — tinha sido errado; o ballet era lindo, mas poético, comovente, e demasiado maravilhoso; ficava-se cansado, com sono, sentimental, e finalmente sentia-se dor de estômago. Mas hoje...

— A melhor coisa que o senhor poderá fazer hoje é ir comigo à grande luta de boxe no Sporthalle — disse Gaigern. — Vamos ver se o porteiro ainda tem entradas.

— Não me interesso muito por boxe — respondeu Kringelein, com o orgulho do leitor do Kosmos.

— Não se interessa? O senhor já assistiu a alguma luta? Então! Pois vá, que há de se interessar — garantiu Gaigern peremptoriamente.

— O senhor também vai, senhor barão? — perguntou Kringelein, afobado. Sentia-se muito bem disposto, depois da viagem de automóvel e do voo, animado e enérgico, preparado para o que desse e viesse, mas tinha a impressão de que despencaria como uma arvorezinha de borracha no instante em que o barão o abandonasse.

— Tenho uma vontade louca de ir também — replicou Gaigern. — Mas infelizmente não posso. Não tenho dinheiro.

Nesse ínterim haviam se afastado das ramagens floridas do jardim zoológico, e a fachada do hotel já aparecia, lá embaixo. Gaigern deixou a velocidade cair para doze quilômetros, a fim de dar tempo a que Herr Kringelein se manifestasse. Kringelein ficou a remoer a observação sorridente de Gaigern. Pararam defronte ao portão 5, subiram, e ele não conseguira se livrar daquilo.

— Vou levar o carro à garagem! — exclamou Gaigern, depois que fez Kringelein descer do carro, com as pernas um tanto rijas e adormecidas; por fim desapareceu na esquina.

Kringelein meteu-se, pensativo, na porta giratória, cujo mecanismo já não o deixava mais estupefato. "Não tem dinheiro", pensou ele. "Está sem dinheiro. É preciso fazer alguma coisa."

Rohna, o porteiro, os boys, e até o maneta do elevador, notaram a transformação que ele sofrerá, mas, discretamente, não o deram a perceber. O hall, de onde se evolava um aroma de mokka, estava repleto de pessoas que conversavam. O relógio marcava quatro horas e cinquenta minutos. O Dr. Otternschlag estava sentado em sua habitual cadeira maple, tendo ao lado, no solo, uma pilha de jornais. Fitou Kringelein com uma expressão indefinível de ironia e tristeza. Kringelein, não muito seguro de si, aproximou-se dele e estendeu-lhe a mão.

— O novo Adão — observou Otternschlag sem lhe estender a sua, que estava fria e úmida, o que o tornava tímido. — A borboleta saiu do casulo. E por onde esteve voando, se me permite perguntar-lhe?

— Fiz umas compras. Fui passear de automóvel pelo Avus, almocei no Wannsee. Depois fiz um voo de avião — respondeu Kringelein. Seu tom de voz, ao falar com Otternschlag, mudara um pouco, sem que ele próprio o percebesse.

— Magnífico — disse Otternschlag. — E agora?

— Às cinco tenho um encontro. Vou dançar. — Ah! e depois?

— Depois, estou com vontade de ir a uma grande luta de boxe, no Sporthalle.

— Ah, é? — retorquiu Otternschlag. Disse apenas isso. Pôs o jornal diante dos olhos e começou a ler, ofendido. Na China houvera tremores de terra, mas a bagatela de quarenta mil mortos não bastava para fazer desaparecer o aborrecimento de Otternschlag.

Quando Gaigern chegou ao segundo andar para trocar de roupa, encontrou Kringelein diante da porta de seu quarto, à sua espera.

— Então? — perguntou impaciente. Pouco a pouco lhe atacava os nervos estar preso a esse homenzinho exótico.

— O senhor barão estava caçoando de mim ou é verdade que está em dificuldades financeiras? — perguntou Kringelein, repentinamente. Foi uma das frases mais difíceis que jamais pronunciou, e apesar de a ter preparado de antemão, disse-a gaguejando.

— É a absoluta verdade, senhor diretor. Estou arrasado, com um azar dos diabos, só tenho no bolso vinte e dois marcos e trinta Pfennige, e amanhã sou obrigado a enforcar-me no jardim zoológico — disse Gaigern, abrindo o rosto bonito em um largo sorriso. — Mas o pior de tudo é que preciso estar em Viena dentro de três dias; apaixonei-me por uma mulher, sabe, de um modo incrível, uma paixão fulminante, e tenho que acompanhá-la por onde ela andar. E estou numa pendura completa. Se pelo menos alguém me emprestasse algum dinheiro que desse para eu arriscar hoje no jogo...

— Também estou com vontade de jogar — observou Kringelein, pressuroso, com verdadeiro entusiasmo. Sentiu de novo a sensação dos cento e vinte quilômetros por hora, do voo do avião, e disparou, zunindo, pelo espaço infindável.

— Tiens! Eu vou buscá-lo no Sporthalle, e vamos a um clube elegante. O senhor arrisca mil marcos e eu vinte e dois! — exclamou Gaigern. Dizendo isto, fechou a porta do seu quarto e deixou Kringelein sozinho, do lado de fora. Por enquanto estava farto dele. Atirou-se, vestido, para cima da cama, e fechou os olhos. Foi tomado de um sentimento de desânimo e enfado. Procurou recordar-se da menina do cachinho louro na testa, com quem tinha marcado um encontro às cinco horas, no pavilhão amarelo, mas não o conseguiu. Apresentava-se sempre uma outra recordação, o abajur da Grussinskaia, a grade do balcão, uma nesga do Avus, uma nesga do campo de aviação, o suspensório rasgado de Herr Kringelein. "Dormi pouco hoje à noite", pensou ele, acalorado, contente e com os nervos frouxos. Caiu num sono de três minutos, num saco de trevas e de restauração, como aprendera a fazer na guerra. Uma camareira bateu à porta, despertando-o; era uma carta de Kringelein.

 

Prezado senhor barão!, escrevia Kringelein. Permitiria que o abaixo-assinado o considerasse hoje à noite seu convidado, e ao mesmo tempo me faria a fineza de aceitar o insignificante empréstimo que junto a esta? Peço-lhe apenas que me mande um recibo. Seria uma honra para mim poder ser-lhe útil, e, no meu caso, o dinheiro já nada significa. Cumprimentos respeitosos do seu

Amgo. Crdo. Obr.

Otto Kringelein Anexo: uma entrada

duzentos marcos.


12

 

O envelope com o endereço do hotel continha um bilhete alaranjado para a luta de boxe no Sportpalast, e duas cédulas amarrotadas de cem marcos, numeradas a tinta num dos cantos. Na assinatura de Kringelein faltavam os pingos nos ii. Ele os perdera definitivamente no turbilhão insano que o arrastara nesse dia memorável.

Preysing, com os ossos ocos e vazios, ficou no hall depois de terminada a conferência, depois de assinado o contrato prévio, e da despedida do Dr. Zinnowitz, desejando-lhe felicidade e sorte. A sensação de uma grande vitória, a consciência de haver passado um blefe nos cavalheiros da Chemnitz, a tensão nervosa de discursar e de vencer sob uma base insegura, tudo isso era completamente novo para o diretor-geral, e o transportou a um estranho estado de atordoamento, nada desagradável. Olhou para o relógio do hotel — já passava das três horas —, encaminhou-se mecanicamente para a cabina telefônica, a fim de pedir uma ligação com a fábrica, e depois demorou-se bastante no banheiro dos homens, deixando escorrer água quente pelas mãos, enquanto se olhava no espelho com um sorriso idiota. Passou por último à sala de refeições, que estava quase vazia, e escolheu o menu sem prestar atenção; durante os dois minutos de espera até chegar o consommé, impacientou-se e pôs-se a fumar um charuto, que lhe pareceu delicioso, acima de qualquer crítica. Enquanto observava a lista dos vinhos, trauteou uma melodia, e sentiu desejos bem definidos de beber vinho doce, que aquecesse a língua; encontrou um Wachencheimer Mandelgarten 1921, que lhe pareceu prometedor. Pouco depois surpreendeu-se a sorver ruidosamente a sopa; quando ficava distraído, acontecia-lhe, por vezes, praticar algum mau costume do começo da sua vida. Sentia que estava numa situação feliz, mas de imprevisíveis consequências. O embuste — ele próprio usava essa expressão forte, que o transportava estranhamente a uma nova espécie de sensação de orgulho — que ele usara durante a conversação só poderia valer, no melhor dos casos, por três dias. Nesses três dias era preciso acontecer alguma coisa, se não quisesse sofrer as consequências de uma catástrofe. A assinatura do contrato prévio poderia ser retirada dentro de catorze dias. Preysing, que vertera depressa demais, pela goela seca, os dois primeiros copos do vinho frio e excitante, adoçado pelo sol, ficou meio tonto, e, em meio à sua tontura, viu a chaminé principal da fábrica explodir, separando-se em três pedaços. Isso não tinha importância, era uma reminiscência de um sonho que Preysing, a intervalos regulares, costumava ter. Estava comendo o peixe, quando um groom gritou "Chamada interurbana para Herr Preysing!" por entre o burburinho da discreta sala de refeições. Preysing ainda engoliu rapidamente um gole de vinho e dirigiu-se à cabina telefônica 4. Esqueceu-se de acender a luz, e na escuridão postou-se diante do fone com a sua mais férrea expressão de diretor da fábrica, famosa em Fredersdorf. Por entre o assobio agudo de um pequeno desarranjo na linha, anunciou-se Fredersdorf.

— Com Herr Broesemann — disse o diretor-geral, com a voz inexpressiva que usava no desempenho de suas funções. Demorou meio minuto até que encontrassem o gerente. Preysing considerou uma ofensa essa demora, e bateu com o salto do sapato no assoalho.

— Puxa... finalmente! — exclamou ele, quando Broesemann atendeu.

Adivinhavam-se, através do telefone, as curvaturas de Broesemann, e Preysing as recebeu como um merecido tributo.

— O que há de novo, Broesemann, além do telegrama inútil de ontem? Não... ao telefone não, sobre isso falaremos depois. Por enquanto eu me esforço por considerar esse assunto como inexistente, compreendeu? Ouça, Broesemann, agora eu quero falar com o velho. Está dormindo? Sinto muito, é preciso acordá-lo. Não, sinto muito. É, sim, imediatamente. Até logo, Broesemann. Não, as outras ordens o senhor as receberá por escrito. Estou esperando.

Preysing ficou à espera. Arranhou a tábua da estante do telefone com as unhas, tomou a caneta-tinteiro e pôs-se a tamborilar com ela na parede, pigarreou, e seu coração disparou triunfalmente, com batidas claras e definidas. O bocal do telefone, diante de sua boca, cheirava a desinfetante e, ao passar a mão por ele na escuridão, sentiu que a beirada estava lascada. Então o velho falou, lá de Fredersdorf.

— Alô, bom dia, papai, desculpe incomodá-lo. A conferência durou até agora, pensei que o senhor se interessaria em saber logo do resultado. Trata-se do seguinte: o contrato prévio está assinado... não, assinado, assinado ... — disse ele gritando, porque o velho tinha o teimoso costume de fingir-se mais surdo do que era realmente.

— Difícil, o senhor acha? Ora, mais ou menos. Obrigado, obrigado, não preciso de aplausos. Ouça, papai: preciso viajar imediatamente para Manchester; é, é absolutamente necessário, absolutamente. Vou para Manchester, bom, bom, eu lhe escrevo a esse respeito com mais pormenores. Como? O senhor está satisfeito? Eu também. Sim, senhorita, terminei. Até logo.

Preysing continuou na cabina escura, e só então se lembrou de apertar o botão da lampadazinha. "Mas, que história é essa?", pensou, espantado. "Como é que vou viajar para Manchester? Como foi que essa ideia me ocorreu? É isso mesmo... vou para Manchester. Aqui eu aguentei firme, lá também vou aguentar. É muito simples. Muito simples", pensou ele, sentindo-se novamente mais seguro de si, e enfunando-se como um balão. Um êxito casual, insignificante e incerto, transformara um homem hesitante, de terno de sarja cinzenta, em um sujeito empreendedor e aventureiro, de princípios vacilantes e dúbios.

— A ligação custa nove marcos e vinte — avisou a telefonista.

— Ponha na conta — respondeu Preysing, caminhando imerso em pensamentos.

Sentia uma estranha antipatia em falar com Mulle. Na sala de refeições de sua casa fazia agora um calor excessivo; Mulle gostava de quartos bem aquecidos; Preysing teve a impressão de que a sala de refeições de Fredersdorf cheirava a couve-flor; teve a impressão de ver nas faces cheias e sonolentas de Mulle a marca vermelha das pregas do travesseiro, no momento em que ela segurava o fone, após a sesta. Não se decidiu. Não a chamou. Voltou à sala de refeições, onde, entretanto, um garçom perfeito colocara para ele o vinho no gelo, e pratos limpos e aquecidos sobre a mesa.

Preysing comeu, esvaziou seu copo de vinho, acendeu o charuto e, com as têmporas acaloradas e os pés frios, voltou ao quarto. Tinha uma sensação estranha, agradável e nebulosa, mas ao mesmo tempo sentia-se completamente vazio, em consequência da conferência. Teve vontade de tomar um banho bem quente, e abriu a torneira do banheiro. Justamente quando fez menção de despir-se, refletiu melhor, lembrando-se de que não é bom tomar banho com o estômago cheio; sentiu, no espaço de um instante de medo, as palpitações que o ameaçavam na banheira esmaltada, e soltou de novo a água, cheia de vapor. A impressão de cansaço e desconforto que sentiu materializou-se numa coceira no rosto e, quando tentou coçar-se, percebeu que não estava barbeado. Apanhou o chapéu e o sobretudo, como ao preparar-se para um negócio importante; não quis ir ao barbeiro do subterrâneo do hotel, com quem ainda estava zangado, por causa do que acontecera de manhã, e procurou nas ruas circunvizinhas um barbeiro de mais confiança.

Então o Diretor-Geral Preysing viveu uma experiência notável; esse homem de princípios sólidos, mas sem aparelho de barba, teve uma experiência; esse homem de intenções corretas, mas que, apesar de tudo, praticara uma ação duvidosa, um azarado, a quem pela primeira vez o êxito bafejara, ao qual esse bafejo levava... para onde? Podia parecer um acaso, talvez fosse o destino que lhe estava reservado. A experiência foi esta:

A pequena barbearia em que Preysing entrou era asseada e simpática. Havia quatro cadeiras, e dois senhores sentados; um deles era servido por um empregado jovem, simpático, de cabelos encaracolados, e o outro pelo dono da barbearia, um homem idoso, com a aparência e os modos de um camareiro imperial. Preysing foi cumprimentado, alojado na terceira cadeira e envolvido numa capa e num peitilho. O cavalheiro que tivesse um momento de paciência, o primeiro oficial de barbeiro tinha ido almoçar, foi o que lhe participaram com toda a cortesia, pondo-lhe em seguida, nas mãos, um pesado maço de revistas ilustradas. Preysing, excessivamente cansado para opor qualquer resistência, reclinou a cabeça no pequeno encosto da cadeira, e respirou o aroma agradável que pairava na barbearia. Depois, com os nervos acalmados pelo ruído das tesouras, começou a folhear as revistas.

Primeiro pôs-se a ler, de uma maneira indiferente, quase a contragosto, porque não apreciava esse passatempo leviano, preferindo leituras instrutivas e sérias. Mas, após uns instantes, ele já se ria com uma ou outra piada, soltando uma risadinha curta e nasal; voltou as folhas para trás, para observar melhor uma mulher decotada, e em seguida virou uma página, e deixou-a aberta durante todo o tempo em que ficou sentado na cadeira de barbeiro. Realmente, concentrou-se de tal modo na observação dessa gravura, dessa fotografia de revista, que se sentiu estorvado quando o primeiro oficial voltou da sua refeição e se preparou para barbeá-lo.

A fotografia que o atraía desse modo nada tinha de especial; fotografias como essa eram encontradas às centenas em revistas cuja orientação desagradava a Preysing. A gravura representava uma mocinha nua, nas pontas dos pés, tentando olhar por sobre um biombo muito mais alto do que ela. Seus braços estavam levantados, e os delicadíssimos seios, com esse movimento, erguiam-se com uma graça especial, de modo tentador. No dorso esguio via-se o desenho delicado da musculatura. Na cintura, esse corpo se estreitava de um modo incrível, e abaixo do dorso delgado os quadris se encurvavam suavemente, prolongando-se nas linhas das coxas. Aqui, o corpo virava-se ligeiramente de lado, de modo que o ventre da mocinha mal se adivinhava como uma sombra suave, enquanto as coxas e os joelhos se distendiam, como a exprimir uma elástica curiosidade. Essa figura encantadora de mulher, de formas invulgarmente perfeitas, tinha também um rosto; e o que tornava a gravura extremamente excitante para o diretor-geral é que ele conhecia esse rosto. Era a carinha de gata da Flaemmchen, de nariz curto, com uma expressão animada e inocente, era o sorriso meigo de Flamm número dois, era o seu caracolzinho na testa, sobre o qual o esperto fotógrafo colocara um propositado reflexo luminoso; e, antes de mais nada, era a completa naturalidade, o modo simples e ingênuo com que ela o chamara de modo objetivo e modesto — Preysing recordou-se nesse instante — de um "bom nu". Preysing corou, enquanto teve diante dos olhos essa gravura; um súbito e ardente rubor subiu à sua testa, impedindo-o de pensar com clareza, como lhe acontecia nos seus acessos de cólera, que faziam tremer toda a fábrica. Depois, suas veias, uma a uma, começaram a latejar dentro dele, ele o sentia, sentia o sangue a refluir nas veias, como há muito tempo não lhe acontecia.

Preysing era um homem de cinquenta e cinco anos; não era um velho, mas uma pessoa pacata, o esposo pouco exigente de Mulle, mulher já envelhecida, papaizinho inocente de filhas crescidas. Trotara atrás da Flamm número dois pelo corredor do hotel sem sentir a mínima excitação, e o borbulhar suave de seu sangue, nessa ocasião, aplacara-se de modo próprio. Agora, diante desse nu artístico, mal podia respirar.

— Com licença, cavalheiro — disse o barbeiro; e, com um gesto elegante, pousou o fio da navalha em sua face.

Preysing conservou a revista na mão, enquanto se reclinava para trás e fechava os olhos. Primeiro viu tudo vermelho, e depois enxergou a Flaemmchen. Não a Flaemmchen vestida, diante da máquina de escrever, nem a Flaemmchen despida da fotografia cinzenta, mas uma mistura vivaz e excitante de ambas. Uma Flaemmchen de carne e osso, de pele moreno-dourada e sangue rubro e palpitante, que continuava nua, com o busto erguido, a olhar com curiosidade por cima de um biombo. O Diretor-Geral Preysing não estava habituado a deixar sua fantasia trabalhar. Mas agora ela trabalhava. Havia soltado a manivela, desde que ele, pela manhã, colocara na mesa o telegrama, dizendo, de um modo descarado, uma mentira absurda. Agora sua imaginação se afastava rapidamente com ele, o que era apavorante e embriagador ao mesmo tempo. Enquanto a navalha deslizava com leveza e perícia em seu rosto, Preysing sentia coisas incríveis, coisas fantásticas, com a Flaemmchen nua, coisas incríveis consigo mesmo, que ele nunca julgara que pudessem acontecer.

— Quer que lhe raspe o bigode? — perguntou o barbeiro.

— Não — disse Preysing, estorvado em meio aos seus pensamentos. — Por quê?

— É que as pontas estão um pouco grisalhas, e isso envelhece. Se me permite um conselho, o cavalheiro aparentaria dez anos menos, sem bigode — sussurrou o barbeiro, com o sorriso bajulador de todos os barbeiros a refletir-se no espelho.

"Mas eu não posso me apresentar a Mulle sem bigode, como um macaco", pensou Preysing, olhando-se no espelho. Realmente, seu bigode estava grisalho, e sob o bigode havia sempre gotas de suor no lábio superior. "Ora, a Mulle...", pensou ele — e nesse instante, a bem dizer, o adultério já estava cometido.

— Está bem, pode raspá-lo. A qualquer momento posso deixar crescer de novo o bigode.

— É claro, é facílimo — concordou o barbeiro, indo buscar em seguida mais sabão de barbear, para o grande empreendimento.

Preysing levantou a revista para olhar de novo a fotografia — mas isso só já não lhe bastava. Ele não queria mais ver, queria pegar, queria apalpar, queria sentir a Flaemmchen, palpitante e ardente.

No hotel repararam imediatamente no que acontecera ao bigode, mas não deram a perceber. Meu Deus do céu, estavam tão acostumados a observar as estranhas metamorfoses pelas quais passavam os cavalheiros que vinham da província para ficar uns dias no hotel... Preysing, que perguntava, apressado e ofegante, se havia correspondência para ele, recebeu uma carta de Mulle, que lhe colocaram na mão. Meteu-a simplesmente no bolso, sem a ler, e sem nenhum sentimento de carinho. Dirigiu-se então à cabina telefônica. "Preciso falar com Mulle", pensou, "mas posso chamá-la mais tarde." Entrou na cabina para ligações locais, pediu para falar com o gabinete do conselheiro Zinnowitz, e teve uma breve conversa com a Flamm número um. Desejava saber se a senhorita sua irmã estaria por acaso no gabinete.

Não, não estava mais.

Desejaria saber onde poderia ser encontrada.

Ah, respondeu a Flamm número um, hesitante, talvez ela se houvesse atrasado um pouco. Mas, nesse caso, a qualquer momento ela apareceria no hotel.

Preysing, diante do fone, ficou com uma cara de idiota.

— No hotel? Aqui? No Grande Hotel? Por quê?

— Pois é — disse a Flamm número um, precavida e indecisa. Isso pelo menos é o que ela entendera. Flaemmchen tinha ido para o hotel, e então ela, a Flamm número um, julgara que a irmã fora chamada de novo para datilografar. Mas talvez a Flaemmchen tivesse algum encontro, o que nunca se podia saber com certeza, pois, nesse ponto, a Flaemmchen era muito esquisita, muito diferente dela, a Flamm número um. Mas pontual ela era; quando prometia qualquer coisa, cumpria o prometido; por isso, iria com certeza ao hotel.

Preysing agradeceu e pôs o fone no gancho, atrapalhado. Dirigiu-se de novo, inquieto, à portaria, atravessando o hall. Ouvia-se perfeitamente a música saltitante que vinha do pavilhão amarelo.

— Minha secretária perguntou por mim? — informou-se ele com Herr Senf. O porteiro voltou para ele o rosto muito atento e tolo.

— Quem, por favor?

— Minha secretária. A senhorita a quem eu ditei cartas ontem — informou Preysing, excitado.

O pequeno Georgi meteu-se na conversa.

— Ela não perguntou nada, mas esteve no hall, há uns dez minutos, a moça loura, magra, não é isso? Eu acho que ela está no chá das cinco, no pavilhão amarelo, do outro lado do hall, segundo corredor atrás do elevador; o senhor vai perceber pela música.

Seria próprio de um diretor-geral, vestido com um terno de sarja, andar atrás dos sons apimentados de uma orquestra de jazz, através de corredores desconhecidos, à procura de uma jovem e leviana datilografa, com quem ele nada tinha que ver, do ponto de vista jurídico? Mas é que Preysing está quase a desviar-se do bom caminho, quase a escorregar, e não o percebe. Só percebe que seu sangue corre de modo diferente do costume, diferente dos quinze ou vinte últimos anos, e ele quer a qualquer preço agarrar-se a esse sentimento, tirar proveito dele. O bigode está raspado, não foi feita nenhuma ligação telefônica para a Mulle, e, quando ele abre a porta do pavilhão amarelo e sente a atmosfera desconhecida dessa sala, o assunto complicado com Chemnitz e Manchester, incerto e ainda por esclarecer, fica quase esquecido.

A essa hora, às cinco horas e vinte minutos, o pavilhão amarelo está diariamente entupido de gente. As cortinas de seda amarela, franzidas vaporosamente, estão fechadas diante das janelas altas; nas paredes estão acesas lampadazinhas amarelas, e nas mesinhas também há lampadazinhas acesas, com abajures amarelos. Está quente, ali dentro; dois ventiladores zunem, e paira no ar o burburinho humano. As pessoas estão sentadas bem perto umas das outras; cada um sente o calor do seu vizinho, porque uniram as mesinhas, para dar mais espaço aos que estão dançando no centro da sala. No forro abobadado estão pintadas formas vagas de bailarinos, em lilás e prateado; por vezes, quando tudo se movimenta, o forro causa a impressão de um espelho embaciado, em que se refletem os dançarinos cá de baixo. Tudo o que se passa ali dá uma impressão estranha de ângulos e de ziguezagues; a dança não é circular, mas apenas um estremecimento que se eleva e abaixa; e Preysing, que foi soprado até ali pelos rumores de seu sangue, para procurar uma certa Flaemmchen, ficou completamente tonto. Não via mais as pessoas inteiras, mas tudo se separava em confusão, só tinham cabeça ou coxas, como certa espécie de quadros modernos, que Preysing, em razão da loucura que representavam, não podia suportar. Porém, o mais importante e digno de reparo no pavilhão amarelo era a música. Era executada por sete cavalheiros indescritivelmente satisfeitos, de camisas brancas e calças curtas, a célebre Eastman Jazzband, cuja música era de uma vivacidade maluca, tamborilava sob as solas dos pés, fazia cócegas nos músculos dos quadris. Havia dois saxofones que choramingavam e outros dois que zombavam deles com um jeito satírico e sarcástico. O jazz serrava, estalava, teimava, matraqueava, cacarejava, pondo ovos sobre a melodia, ovos que eram em seguida esmagados — e quem caísse dentro do círculo dessa música ficava prisioneiro do ritmo convulsivo da sala, parecia até enfeitiçado.

Preysing, no entanto — empurrado de um lado para o outro pelos garçons que levavam bandejas cheias de taças com gelo —, ficara parado à porta, e reparou que começou a contrair os músculos das pernas enquanto, mal-humorado, procurava enxergar a Flamm número dois. Seu lábio superior, nu e remoçado, cobriu-se novamente de suor; ele tirou do bolso o lenço, enxugou o rosto, e depois meteu o lenço no bolsinho exterior do paletó, onde em geral só costumava guardar a caneta-tinteiro. Com um olhar de esguelha, muito encabulado, arranjou a ponta do lenço, deixando-o cair como uma graciosa bandeirola; isso parecia legitimar o seu direito de pertencer a essa parte animada do Grande Hotel. Aliás, ninguém se importava com ele. Poderia ficar ali o tempo que quisesse, e procurar entre duzentas jovens e esbeltas dançarinas uma determinada senhorita.

— Quando vi que o senhor não estava aqui às cinco e dez pensei: ele vai dar um bolo. Você vai ver, ele vai dar um bolo, pensei — disse a Flaemmchen, que estava dançando com Gaigern uma lânguida variação do charleston, uma dança nova, com uma pequena síncope, que dava um golpe na perna. Seus corpos se ajustavam plenamente na dança.

— Absolutamente. Pensei o dia inteiro na senhora, e me alegro de poder revê-la — disse Gaigern.

Essa frase lhe saiu com a mesma leveza e languidez, com a mesma facilidade com que ele dançava. Gaigern era apenas alguns centímetros mais alto do que a Flaemmchen, e fitou com um leve e amável sorriso os olhos de gatinha da moça. Ela estava vestida com um vestidinho de seda leve, azul; ao pescoço trazia um colar de contas de vidro lapidado, e usava um chapeuzinho, desses fabricados em série e vendidos por um marco e noventa. Estava encantadora, com os requisitos de uma elegância rebuscada.

— É verdade mesmo que o senhor se alegrou? — perguntou ela.

— Metade verdade, metade invenção — replicou Gaigern com sinceridade. — Passei o dia hoje caceteadíssimo — acrescentou suspirando. — Estou servindo de cicerone para um senhor de idade, por necessidade, é claro.

— E por que faz isso?

— Preciso conseguir uma coisa dele.

— Ah! — disse a Flaemmchen, compreensiva.

— A senhora também precisa dançar com ele — disse Gaigern, apertando-a de leve.

— Que nada!

— Não é isso. Mas eu vou lhe pedir encarecidamente. Ele não sabe dançar, compreende? Mas tem tanta vontade de aprender! A senhora dá apenas algumas voltas com ele — para me fazer um favor.

— Bem, vamos ver! — prometeu a Flaemmchen. Continuaram a dançar, calados. Gaigern trouxe mais para perto o corpo da moça, sentindo que as costas dela obedeciam documente aos movimentos de sua mão. Isso, porém, não o alegrava, pelo contrário, causava-lhe raiva, até.

— Então, que aconteceu? — perguntou a Flaemmchen, pressentindo o que se passava.

— Ah!... Não é nada! — resmungou Gaigern, sentindo ódio de si próprio.

— Que está querendo? — perguntou a Flaemmchen com solicitude. Achava-o lindo, com aquela boca, e a cicatriz no queixo... E os olhos também, um pouco oblíquos. Sentia forte inclinação por ele.

— A gente tem vontade de fazer qualquer coisa maluca, já que não acontece nada. Agora tenho vontade de mordê-la, ou de brigar com a senhora. Ou de esmurrá-la, até. Ora! Hoje à noite vou à luta de boxe; ali, pelo menos, acontece alguma coisa.

— Ah, é? — disse a Flaemmchen. — O senhor vai hoje à noite à luta de boxe? Ah, sei.

— Com aquele senhor de idade — afirmou Gaigern.

— Se o senhor... acabou — disse a Flaemmchen, quando a música parou. Ela se pôs então a bater palmas freneticamente, deixando-se ficar onde estava. Gaigern fez menção de tirá-la do meio da sala e levá-la a uma mesinha, onde ele deixara Kringelein diante de uma xícara de café. A música começou de novo, quando os dois já se encontravam a meio caminho, entre a confusão e o aperto.

— Tango! — exclamou a Flaemmchen, excitada.

E a moça tomou posse de Gaigern, simplesmente. A palma de sua mão encostava-se à dele, implorando e aquiescendo. Suas coxas já se emparelhavam no passo lânguido e arrastado do tango. Fez-se um vazio na sala, em redor deles, porque dava prazer vê-los dançar.

— O senhor conduz otimamente — sussurrou a Flaemmchen, como se fizesse uma declaração de amor. Gaigern nada tinha a replicar. — Ontem o senhor estava tão diferente... — disse um pouco mais tarde.

— É... ontem — respondeu Gaigern. Disse isso como se estivesse a dizer: há cem anos. — Aconteceu uma coisa de ontem para hoje — acrescentou.

Sentia que uma compreensão simples e natural os unia, e de repente teve desejos de se confiar a ela.

— Esta noite eu me apaixonei, uma paixão muito séria, compreende? — disse ele baixinho, dançando o tango que vibrava no ar. — Isso vira a cabeça da gente. É um sentimento avassalador. É como se...

— Mas isso não é nada de extraordinário — observou a Flaemmchen, ironicamente, sentindo-se triste, desiludida.

— É sim, é uma coisa extraordinária. A gente tem vontade de se transformar por completo, compreende? De repente acha que só existe uma mulher no mundo, só essa mulher, e o resto não tem mais nenhum valor. A gente acha que não é mais capaz de dormir, a não ser com essa mulher. É como se passasse por nós um furacão. Como se nos tivessem posto dentro de um canhão, e depois atirado à Lua ou a outro lugar qualquer, onde tudo é diferente.

— E como é ela? — perguntou a Flaemmchen — e qualquer outra em seu lugar teria perguntado o mesmo.

— Ah! Como ela é? Aí é que está... É muito velha e magra, muito leve, sou capaz de levantá-la do chão com um dedo. Tem rugas, aqui e aqui, e olhos pisados. E fala numa linguagem de baixo calão, como um clown; tem-se vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo, ao ouvi-la. E isso tudo me agrada de um modo incrível, não há nada a fazer. É o grande amor.

— O grande amor? Mas isso não existe — disse a Flaemmchen. Ao afirmar isto, ela tinha uma carinha espantada e teimosa de gata, como às vezes os amores-perfeitos têm nos canteiros.

— Como não, como não? Existe, sim — disse Gaigern.

A Flaemmchen ficou tão impressionada com essas palavras, que parou um segundo, em meio ao tango, e sacudindo a cabeça olhou Gaigern.

— São frases, apenas — murmurou ela ao mesmo tempo.

Nesse momento exato os olhos de Preysing descobriram finalmente o vulto procurado, no meio da confusão erótica e lânguida do tango. Com um sentimento de zanga e extrema impaciência, esperou que a dança lenta terminasse e depois foi-se espremendo entre os pares, até a mesinha em que a Flaemmchen tomara lugar entre dois senhores, que Preysing tinha a impressão de conhecer. No hotel, essa espécie de conhecimentos de vista eram correntes; passava-se por alguém no elevador, encontrava-se com alguém na sala de refeições, no banheiro e no bar, girava-se um diante do outro na porta giratória, nessa porta que estava sempre a rodar, deixando entrar e sair gente, para dentro e para fora do hotel.

— Boa tarde, Fräulein Flamm — disse o diretor-geral com a voz tornada rouca e grosseira pela timidez; postou-se ao lado da cadeira da moça, encolhendo a barriga para dar passagem ao garçom.

A Flamm número dois apertou as pálpebras, até conseguir registrar a presença imprevista de Preysing.

— Ah, é o senhor diretor — disse então, amavelmente. — O senhor também dança? — ela olhou a fisionomia contraída dos três homens; estava habituada a ver essa expressão nos semblantes dos homens que a rodeavam. — Os senhores já se conhecem? — perguntou com um gesto distinto de mão, que copiara de uma estrela de cinema.

Não podia apresentá-los, porque não sabia como se chamavam os seus cavalheiros. Preysing e Gaigern murmuraram algo, e o diretor-geral apoiou na mesa uma mão repleta de sentimento de posse, enquanto passava rente a ele, à altura da cabeça, uma perigosa bandeja com copos de laranjada, que o garçom equilibrava.

— Boa tarde, Herr Preysing — disse de repente Kringelein, sem erguer-se da cadeira.

Cada uma das suas vértebras lhe doía, por causa do enorme esforço que teve de fazer para não ser atacado de tremedeira e não cair estatelado, voltando a ser o miserável Kringelein da caixa da fábrica. Ficou de ombros contraídos; tudo nele se contraiu; lábios, dentes, até mesmo as narinas, que tomaram um aspecto redondo e feio, como as dos cavalos. Mas ele se portou à altura do grave momento; forças nunca pressentidas fluíam do seu jaquetão preto de corte impecável, da sua roupa de baixo, da sua gravata, de suas unhas bem cuidadas, enchendo-o de energia. O que quase o fez perder o aplomb foi o fato de Preysing também ter se transformado; continuava a usar o mesmo terno de Fredersdorf, mas não tinha mais bigode.

— Não sei bem... desculpe-me... mas acho que já nos conhecemos... — disse Preysing com a maior amabilidade que lhe permitia a excitação que sentia por causa da Flaemmchen.

— Sim, senhor. Kringelein — afirmou este. — Trabalho na fábrica.

— Ah — disse Preysing, esfriando. — Kringelein. Nosso representante, não é? — acrescentou, reparando na elegância de Kringelein.

— Não. Guarda-livros. Auxiliar de guarda-livros no bureau de pagamentos. Sala 23. Edifício C. Terceiro andar — informou Kringelein conscienciosamente, mas sem devoção.

— Ah — repetiu Preysing, pensativo. Seu desejo era afastar nesse momento a aparição indesejável e incompreensível de um auxiliar de guarda-livros de Fredersdorf no pavilhão amarelo do Grande Hotel. — Preciso falar com a senhora, Fräulein Flamm — disse ele, retirando a mão do encosto da cadeira da Flaemmchen. — Trata-se de um novo serviço de datilografia — acrescentou num tom de chefe, que feriu os ouvidos do sujeito de Fredersdorf.

— Está bem — concordou a Flaemmchen. — Quando é melhor para o senhor? Às sete, sete e meia?

— Não, já — disse Preysing em tom ditatorial, enxugando o suor do rosto.

Aquele indivíduo de Fredersdorf tinha também um lenço no bolso do paletó, uma flamulazinha de seda, revolucionária e leviana.

— Infelizmente, já, já não é possível — disse a Flaemmchen amavelmente. — Já estou comprometida. Não posso deixar estes senhores aqui. Ainda preciso dançar uma vez com Herr Kringelein.

— Herr Kringelein vai ter a amabilidade de desculpá-la — disse Preysing, contendo-se. Era uma ordem. Kringelein sentiu que os vinte e cinco anos de um sorriso subalterno queriam insinuar-se em seus lábios paralisados. Controlou-o, fazendo-o recuar para a pele do rosto, engelhada e quase fria. Procurou auxílio e forças em Gaigern. O barão tinha um cigarro no canto da boca, e a fumaça subia ao longo das pestanas de seu olho esquerdo, que ele piscou com expressão brejeira e compreensiva.

— Não penso absolutamente em desistir — comentou Kringelein. Após lhe escaparem estas palavras, ficou imóvel como uma lebre, que finge estar morta no carreiro de um campo. De repente, Preysing, ao ver aquela expressão obstinada, recordou-se de um relatório a respeito de Kringelein, que lhe haviam apresentado há poucos dias.

— É estranho — disse ele com a voz nasal e temida da fábrica. — É estranhíssimo. Agora já sei do que se trata. O senhor participou à fábrica que estava doente, não é? Herr Kringelein, hein? Sua mulher pediu um subsídio ao Fundo de Auxílio aos Doentes, por causa de moléstia grave. Nós lhe demos férias de seis semanas, pagas. E o senhor se encontra em Berlim, divertindo-se, hein? Anda atrás de divertimentos que não condizem nem com a sua posição nem com o seu ordenado. É muito estranho. Estranhíssimo, Herr Kringelein. Nós vamos rever com cuidado os seus livros, pode estar certo disso. Vamos deixar de pagar-lhe as férias, já que o senhor está tão bem de saúde, Herr Kringelein! Vamos...

— Olhem, meninos, nada de brigas aqui. Vão entender-se no seu escritório — disse a Flaemmchen, com modos afáveis e conciliantes. — Nós estamos aqui para nos divertir. Vamos, Herr Kringelein, agora vamos dançar.

Kringelein firmou-se nas pernas, esticando os joelhos, que pareciam de borracha, mas que se consolidaram a olhos vistos quando a Flaemmchen colocou o braço no ombro dele. A música tocava aos solavancos uma coisa rapidíssima, algo semelhante à corrida de automóvel a cento e quinze quilômetros por hora, e ao motor de avião. Isso lhe deu forças para dizer as frases que vinha preparando há vinte e cinco anos, em sua vida de empregado subalterno. Arrastado pela Flaemmchen para o meio da sala, falou em voz alta, virando a cabeça para trás:

— Quem sabe se o mundo pertence só ao senhor, hein, Herr Preysing? O senhor será diferente de mim? Quem sabe se as pessoas como eu não têm o direito de viver?

— Que é isso, que é isso! — exclamou a Flaemmchen. — Aqui não se fala aos berros, aqui se dança. E agora, não olhe para os pés, olhe para o meu rosto, e vá andando, vá andando calmamente, vou guiá-lo.

— Mas que impostor! — rangeu Preysing por entre os dentes, por trás deles. E ficou diante da mesa, trêmulo de cólera. Gaigern, a fumar, ouvindo essas palavras, sentiu um impulso raro, uma espécie de compassivo coleguismo, misturado a uma repulsa, violenta e sarcástica, pelo corpulento e suarento diretor-geral. "Era preciso colocar-lhe um par de sanguessugas na pele, amiguinho", pensou ele.

— Deixe que o pobre-diabo se divirta! — disse a meia voz. — Basta olhar para a cara dele para ver que está às portas da morte.

"Não lhe pedi nenhum conselho", pensou Preysing, mas não teve coragem de dizê-lo, porque sentia obscuramente a raça superior do barão.

— Peço-lhe o favor de dizer a Fräulein Flamm que a espero no hall, para um assunto urgente. Se ela não aparecer até as seis, dou o assunto por terminado — disse ele, curvando-se ligeiramente. Em seguida retirou-se.

Intimidada por esse ultimato, a Flaemmchen apareceu no hall três minutos antes das seis. Preysing ergueu-se das brasas ardentes em que estivera sentado nesse ínterim, e sorriu com profunda satisfação. Como ele sorria raramente, essa amabilidade o tornou mais bonito, e causou efeito imprevisto.

— Cá está a senhora — disse ele, estonteado.

Há muitas horas ele se contorcia, se martirizava, ardia, com um único pensamento: saber se a Flaemmchen era conquistável. Suas experiências com mulheres eram modestas, e datavam de muitos anos atrás. Dessa geração nova de mocinhas, ele fazia apenas uma ideia vaga, apesar de, nas reuniões masculinas, e em conversas íntimas nas viagens profissionais, dizerem com frequência que essa espécie de meninas era fácil de conquistar. Pôs-se a observar a Flaemmchen, as suas pernas cruzadas, com meias de seda, o colar de pedras de vidro imitando cristal, sua pintura, que ela nesse instante renovava, apertando os lábios, e ficou sem saber em que se basear, nessa pessoa despreocupada, para as suas suposições.

A Flaemmchen fechou o estojinho de pó de arroz e perguntou:

— Então, de que se trata?

Preysing apertou o charuto entre os dedos, e desembuchou:

— Trata-se do seguinte — começou ele: — preciso viajar para a Inglaterra, e preciso levar comigo uma secretária. Em primeiro lugar, por causa da correspondência; depois, porque desejaria ter com quem conversar durante a viagem. Sou muito nervoso, muito nervoso, mesmo — afirmou, apelando inconscientemente para a compaixão da moça —, e preciso ter alguém na viagem que se ocupe de mim. Não sei se a senhora me compreende. Ofereço-lhe um emprego de confiança, em que a senhora... em que..

— Já estou compreendendo — disse a Flaemmchen, baixinho, ao perceber a atrapalhação dele.

— Acho que nos daremos bem na viagem — afirmou Preysing.

O delicioso fluir e latejar do seu sangue nas veias diminuíra durante tão difíceis negociações, mas quando ele fitou a Flaemmchen consolou-se, sentindo que ela iria fazer com que tudo isso despertasse de novo, assim que o desejasse.

— A senhora contou-me que no ano passado também viajou com um cavalheiro, e isso me fez ter esta ideia... eu acho que seria muito agradável, se a senhora quisesse. A senhora quer?

A Flaemmchen pensou durante cinco longos minutos.

— Preciso pensar primeiro — respondeu ela, com expressão ajuizada e preocupada, fumando o seu indefectível cigarro. — Para a Inglaterra? — perguntou depois. A cor moreno-dourada da sua pele clareou um pouco, o que talvez significasse que empalidecera. — Ainda não conheço a Inglaterra. E por quanto tempo?

— Por... não sei lhe dizer ainda com exatidão. Isso depende. Se os meus negócios lá correrem bem, tiro talvez mais catorze dias de férias, e podemos ficar em Londres, ou ir para Paris.

— Bom, pode-se arranjar; já sei mais ou menos do que se trata, pelas cartas — disse a Flaemmchen com segurança.

O otimismo era o elemento em que ela se movia. Preysing sentiu-se animado ao perceber que ela estava a par dos seus negócios, e profetizava o sucesso.

— A senhora ainda precisa me dizer quanto quer de ordenado — declarou ele, com o tom de quem dizia um galanteio.

Desta vez demorou mais, até que a Flaemmchen respondesse. Tinha que fazer um extenso balanço. A renúncia à aventura principiada com o belo barão se incluía nele, os pesados cinquenta anos de Preysing, sua gordura, seu fôlego curto. Pequenas dívidas aqui e ali. A necessidade de roupa de baixo nova, de sapatos bonitos — os azuis não iam durar muito. O pequeno capital de que necessitava para iniciar carreira no cinema, na revista, em qualquer parte. A Flaemmchen pesou calmamente e sem sentimentalismo a oportunidade do negócio que lhe era proposto.

— Mil marcos — disse ela, achando que era suficiente; não tinha ilusões a respeito das quantias que hoje em dia se depunham aos pés das mulheres bonitas. — Talvez um pouquinho mais para a roupa de viagem — acrescentou, um pouco mais tímida do que de costume. — O senhor há de querer que eu tenha uma bonita aparência...

— Para isso a senhora não precisa se vestir. Pelo contrário — disse Preysing, excitado. Ele julgou que tinha dito uma frase espirituosa. A Flaemmchen sorria melancolicamente, o que deu um aspecto estranho à sua saudável carinha de amor-perfeito. — Então está combinado? -— perguntou Preysing. — Amanhã ainda tenho umas coisas a fazer aqui; é preciso também arranjar os passaportes, e poderemos viajar depois de amanhã. Está contente por ir conhecer a Inglaterra?

— Muito — respondeu a Flaemmchen. — Então amanhã eu trago a minha máquina de escrever portátil e o senhor pode ir logo ditando.

— E hoje à noite... se a senhora concordar... pensei que hoje à noite poderíamos ir a um teatro... Temos que tomar um copo de vinho para festejar o nosso contrato, não é? O que acha?

— Hoje, já? — disse a Flaemmchen. — Bom. Hoje, já.

Ela soprou o seu caracolzinho para cima, e atirou o cigarro amassado no cinzeiro. Podia ouvir perfeitamente a música do pavilhão amarelo. "Não se pode ter tudo", pensou. "Mil marcos. Vestidos novos. E Londres também não é para desprezar."

— Preciso telefonar para minha irmã — disse ela, levantando-se. Preysing sentiu-se percorrido por uma onda de calor, apaixonada e grata, que o inundou completamente; colocou-se então por trás dela e pegou delicadamente, com ambas as mãos, seus cotovelos, que ela apertava de encontro ao corpo.

— Quer ser boazinha para mim? — perguntou ele em voz baixa.

E igualmente baixinho, com os olhos voltados para a passadeira cor de amora, a Flaemmchen respondeu:

— Se não tiver muita pressa...


CONTINUA

7

 

O chá com veronal esfriara. A Grussinskaia sorriu ligeiramente, mas quando o percebeu, parou de sorrir e perguntou com ar severo:

— Quem o deixou entrar? A criada de quarto? Ou a Suzette? Como conseguiu entrar?

Gaigern tentou um golpe arriscado. Apontou por sobre o ombro para a atmosfera noturna da rua.

— Por ali — disse ele. — Vim do balcão do meu quarto.

De novo a Grussinskaia teve a impressão de já ter passado por aventura semelhante. De repente, veio-lhe a recordação. Num dos castelinhos de veraneio, no sul, em Abas-Tuman, aonde o Grão-Duque Serguei costumava levá-la, escondera-se certa noite em seu quarto um homem, um oficial bem jovem ainda. Arriscara a vida nessa tentativa; mais tarde ele veio de fato a falecer num acidente de caça pouco esclarecido. Isso tinha acontecido pelo menos há trinta anos. Enquanto a Grussinskaia ia para o balcão e olhava na direção em que a mão de Gaigern apontava, de repente o passado se apresentou de novo com toda a clareza. Ela via o rosto do jovem oficial. Chamava-se Pavel Jerilinkov. Lembrou-se de seus olhos e de alguns beijos. Estava enregelada, e sentiu que o homem ao lado dela no balcãozinho irradiava calor. Olhou rapidamente para os sete metros da fachada do hotel, que ficavam entre o balcão do seu quarto e o do quarto vizinho.

— Mas isso é perigoso — observou ela inadvertidamente, recordando-se mais de Jerilinkov do que pensando no momento presente.

— Não é tanto assim — replicou Gaigern.

— Está fazendo frio. Feche a porta — disse a Grussinskaia, passando depressa diante dele e entrando de novo no quarto. Gaigern obedeceu, e foi caminhando atrás dela; fechou a porta, puxou as duas cortinas, e depois ficou com as mãos pendentes: não passava de um jovem belíssimo, modesto mas um pouco amalucado, que fazia garotices românticas, para entrar no quarto de uma bailarina célebre. Afinal de contas, ele também possuía um pouco de talento para ator, o que era uma exigência da sua profissão. E agora representava, por uma questão de vida ou de morte. A Grussinskaia curvou-se, levantou o traje de ballet que atirara no chão, e o levou para o banheiro. A gota de sangue, de contas vermelhas de vidro lapidado, cintilou. Ela sentiu uma dor cortante e aguda. Nenhum da capo. Nenhum escândalo, quando uma outra dançava. Um público cruel. Berlim era cruel. Solidão cruel. Ela já havia sobrepujado um pouquinho essa dor — e agora a dor a acometia de novo, causando-lhe uma angústia no peito. Durante alguns segundos esqueceu-se por completo do intruso, que se parecia com o falecido Jerilinkov, mas de repente virou-se para ele e perguntou, sem olhá-lo:

— Por que fez isso? Por que faz coisas perigosas? Por que está escondido no meu quarto? Deseja alguma coisa de mim?

Gaigern fez uma investida e preparou-se para o ataque. — "Hop-là, avante!", pensou Gaigern. Não ergueu os olhos para ela.

— A senhora já sabe a razão, é porque a amo — respondeu em voz baixa.

Disse isso em francês, porque se o dissesse em alemão teria sido extremamente penoso. Depois ficou esperando em silêncio pelo resultado. "É simplesmente idiota", pensou ao mesmo tempo. Essa comédia lhe causava uma vergonha atroz, humilhante. Tinha horror de tudo o que feria o bom gosto. De qualquer modo, se ela não chamasse pelo camareiro, talvez ele estivesse salvo.

A Grussinskaia engoliu essas breves palavras francesas com a boca bem aberta. Absorveu-as como um remédio; dentro de poucos segundos até o tremor de frio cessou. Pobre Grussinskaia! Há muitos anos que ninguém lhe dizia coisa semelhante. Sua vida corria diante dela como um trem expresso vazio. Ensaios, trabalho, contratos, carros-dormitórios, quartos de hotel, excitação no palco, uma excitação cruel, e mais trabalho e mais ensaios. Sucesso, fracasso, críticas, entrevistas, recepções oficiais, discussões com empresários. Três horas de exercícios de solista, quatro horas de ensaios de ballet, quatro horas de espetáculo; os dias se seguiam um ao outro sempre iguais. O velho Pimenoff. O velho Witte. A velha Suzette. A não ser essas pessoas, mais ninguém, nenhum calor, nunca, nunca. Colocava as mãos nos canos de aquecimento central dos hotéis, e pronto. E depois, quando estava tudo terminado, quando o fim de tudo e da vida estava iminente, encontrava-se um homem à noite no quarto, e esse homem pronunciava palavras há muito desaparecidas, de que outrora

o mundo estivera repleto. A Grussinskaia não suportava mais. Sentia um sofrimento atroz, como se estivesse prestes a dar à luz. Mas foram apenas duas lágrimas que finalmente brotaram da tensão dessa noite, e ela as sentiu em seu corpo inteiro, nos artelhos e nas pontas dos dedos das mãos, depois no coração, e por fim elas chegaram aos seus olhos; rolaram pelas longas e rígidas pestanas pretas de pintura, caindo nas palmas abertas de suas mãos.

Gaigern assistiu à evolução desse fenômeno, e encheu-se de calor. "Pobre animalzinho", pensou ele. "Pobre bichinha. Está chorando, agora. Que coisa idiota!"

Depois que a Grussinskaia deu à luz essas duas lágrimas dolorosas, a coisa se tornou mais fácil. Começou com um leve aguaceiro, ao mesmo tempo cálido e fresco como uma chuva de verão — Gaigern pôs-se a pensar nos canteiros de hortênsias do jardim de Ried, sem saber por quê. Depois, esse aguaceiro se transformou numa torrente apaixonada, uma torrente negra, porque a pintura das sobrancelhas se dissolveu por completo. E, por fim, a Grussinskaia atirou-se ao leito, soluçando um tropel de palavras russas nas mãos em concha, que conservava encostadas à boca. Gaigern, ao assistir a essa cena, transformou-se. De ladrão de hotel, prestes a tirar a vida de uma mulher, passou a ser simplesmente um homem, um sujeito grandão, simples e bondoso, que não podia ver uma mulher chorar sem querer auxiliá-la. Agora não sentia mais medo, absolutamente nenhum; agora, o que o fazia sentir o coração pequeno e palpitante era a simples compaixão. Inclinou-se sobre o leito, pondo os braços dos dois lados do pequenino corpo a soluçar, e assim, curvado sobre a Grussinskaia, principiou a sussurrar em meio aos seus soluços. Não era nada de especial o que ele dizia; com as mesmas palavras teria consolado uma criança a chorar, ou um cão enfermo.

— Coitadinha — foi mais ou menos o que ele disse —, pobrezinha, pobrezinha da Grussinskaia, ela está chorando. Faz bem chorar assim, faz? Pois então chore, pode chorar. Que foi que lhe fizeram? Foram maus para você? Você gosta que eu esteja ao seu lado? Posso ficar aqui? Está com medo? É por isso que está chorando, é? Você... bobinha!

Levantou um dos braços que apoiara ao leito, tirou da boca da Grussinskaia as mãos que ela apertava de encontro aos lábios e beijou-as; estavam molhadas de lágrimas e pretas como as de uma menininha; seu rosto também estava todo lambuzado das lágrimas negras caídas dos seus olhos pintados. Gaigern não pôde deixar de rir. Apesar de continuar a chorar, a Grussinskaia viu o movimento bondoso, próprio dos homens fortes, o movimento de ombros que fazem quando riem. Gaigern afastara-se do leito e tinha ido ao banheiro. Voltou com uma esponja e enxugou com muito cuidado o rosto da bailarina; tinha trazido também um lenço. A Grussinskaia tinha parado de chorar, e conservou-se deitada tranqüilamente, enquanto ele lhe limpava o rosto. Gaigern sentou-se à beira da cama e sorriu para ela.

— E então? — perguntou ele.

A Grussinskaia murmurou qualquer coisa que ele não compreendeu.

— Fale em alemão — pediu Gaigern.

— Você... criatura... — sussurrou a Grussinskaia.

Essas palavras o comoveram. Chocaram-se de encontro ao seu coração como uma bolinha de tênis atirada com força, e quase o magoaram. As damas com as quais ele tinha relações não costumavam usar palavras carinhosas. Para elas, a gente se chamava coisinha, menininho, queridinho, ou "o barão grandão". Gaigern percebeu o sentimento contido nesse apelo, que despertou em seu íntimo recordações da infância, vindas de uma esfera que ele abandonara. Afastou-o de si. "Se ao menos eu tivesse um cigarro", pensou ele, cheio de languidez. A Grussinskaia tinha olhado para ele um momento, com um olhar que exprimia confusão e quase felicidade. Depois ela se sentou, estendeu seus longos artelhos à procura dos chinelos que haviam caído e de repente se transformou em uma senhora.

— Ora essa! — disse ela. — Que sentimentalismo! A Grussinskaia está chorando? Como? É uma coisa que vale a pena ver. Há muito tempo, há anos que ela não chorava. Monsieur me assustou. Monsieur é o culpado por esta triste cena.

Falava na terceira pessoa, queria criar distância, retirar o repentino "você", mas esse homem já estava muito próximo dela, para que o pudesse chamar de "senhor". Gaigern nada pôde responder.

— É horrível como o teatro ataca os nervos — continuou ela em alemão, com a impressão de que ele não a tinha compreendido. —- Disciplina! Isso sim, disciplina nós temos. A disciplina é um coisa penosa e difícil. Disciplina é fazer sempre o que não se deseja, como posso explicar... o que a gente não gosta de fazer. Você sabe o que significa ficar exausto por excesso de disciplina?

— Eu? Eu não. Faço sempre o que quero — disse Gaigern.

A Grussinskaia ergueu a mão, com um gesto em que todas as Graças haviam retornado.

— Sim, monsieur. Sente-se vontade de entrar no quarto de uma senhora... e entra-se. Sente-se vontade de pular varandas, com risco de vida... e faz-se o que se quer. E qual é o desejo de monsieur, agora?

— Eu gostaria de fumar — respondeu Gaigern francamente. A Grussinskaia esperava outra resposta, e achou que o pedido era cavalheiresco e gentil. Foi até a escrivaninha e ofereceu a Gaigern sua pequena cigarreira. Com o quimono chinês, já muito usado, mas legítimo, e os chinelos acalcanhados, tinha a mesma aparência de há vinte anos, quando viajava por todos os continentes, cheia de uma graciosidade cristalina e tilintante. Parecia ter-se esquecido de seus olhos avermelhados, e de seu aspecto lamentável.

— Pois então fumemos o cachimbo da paz — disse ela, erguendo para Gaigern as pálpebras amarfanhadas. — E depois faremos a nossa despedida!

Gaigern tragou avidamente a fumaça pelo nariz e pelo pulmão. Sentiu-se aliviado, apesar de sua situação ser ainda delicada. Não podia abandonar esse quarto com as pérolas no bolso, quanto a isso não havia dúvidas. Se conservasse as pérolas, agora que conhecia a bailarina, teria que fugir nessa mesma noite, e no dia seguinte pela manhã a polícia o estaria perseguindo. Isso não fazia absolutamente parte dos seus planos. Agora tratava-se de ficar ali a qualquer preço, até que as pérolas pudessem retornar ao seu estojo. A Grussinskaia sentara-se diante do espelho e empoava o rosto, com expressão séria. Esfregou alguns riscos e pontinhos da pele e ficou novamente linda. Gaigern aproximou-se dela, pondo-se, com seu grande vulto entre a suitcase vazia e a mulher. Fitando seus ombros, ele dirigiu-lhe um sorriso tentador, doce como mel.

— Por que esse sorriso? — perguntou ela ao espelho.

— Porque vejo no espelho uma coisa que você não pode ver — disse Gaigern.

Dizia simplesmente: "você". O cigarro lhe tinha dado coragem, e ele se animou. "Avante", pensou ele, encorajando-se.

— Estou vendo de novo o que estava vendo há pouco, lá do balcão — disse ele inclinando-se sobre a mulher —, estou vendo no espelho uma mulher belíssima, como nunca vi outra igual. Essa mulher está triste. E está nua... Ela é... não, não posso dizê-lo, isso me faz ficar louco. Não sabia que era tão perigoso espiar em um quarto alheio uma mulher que se despe.

E, realmente, enquanto Gaigern formava no seu francês convencional essas frases galantes, via a imagem da Grussinskaia no espelho, como há pouco, e sentia ao vê-la a mesma admiração e o mesmo calor que sentira no balcão. A Grussinskaia ouviu-o atenta e com expressão inquiridora. "Como me tornei fria", pensou com tristeza, percebendo que não estremecia ao ouvir aquelas palavras entusiásticas. Sentia a intensa vergonha das mulheres frias. Voltou-se para Gaigern com um movimento elegante e calculado do longo pescoço. Gaigern segurou os pequenos ombros da mulher com suas mãos quentes e hábeis, e em seguida beijou-a no lindo sulco entre as omoplatas, como um conhecedor.

Esse beijo, principiado com frieza entre dois corpos estranhos, prolongou-se. Mergulhou como uma agulhazinha quente na espinha dorsal da mulher, cujo coração começou a palpitar com força. Seu sangue correu mais pesado e doce; sim, esse coração que já esfriara agora palpitava, e começou a vibrar; seus olhos se fecharam; ela tremia. Gaigern tremia também, quando a largou e endireitou o corpo; uma veia intumesceu, muito azul, na sua testa. De repente sentiu a Grussinskaia dentro dele. inteirinha, sua pele, seu perfume acre, seu estremecimento ansioso de prazer, que fora despertando aos poucos. "Com os diabos!", pensou ele de repente. Suas mãos estavam cheias de avidez, e ele as estendeu.

— Eu acho que o senhor deve retirar-se agora — disse a Grussinskaia com voz fraca, à imagem do moço no espelho. — A chave está na porta.

Sim, lá estava a malfadada chave; agora era possível retirar-se quando quisesse. Mas Gaigern não desejava retirar-se — por várias razões.

— Não — disse ele, com súbito sentimento de dominador, como o macho de uma pequenina mulher, trêmula como um violino a vibrar. — Não vou embora. Você sabe que não vou. Você pensa realmente que vou deixá-la agora aqui sozinha? Que vou abandoná-la ao lado de uma xícara de chá cheia de veronal? Você pensa que eu ignoro o que se passa com você? Eu vou ficar aqui. Está dito.

— Está dito? Está dito? Mas eu quero ficar sozinha....

Gaigern aproximou-se rapidamente da Grussinskaia, que estava de pé no meio do quarto, e puxou até seu peito os pulsos da bailarina.

— Não — disse ele com veemência. — Isso não é verdade. Você não quer ficar sozinha. Você tem um medo pavoroso de ficar sozinha, percebo perfeitamente o medo que você sente. Sei o que você está sentindo, eu a conheço, pequerrucha, mulher estranha. Você está representando uma pequena comédia para me enganar. O seu cenário é de vidro, eu vejo através dele. Há pouco você estava desesperada. Peça para eu ficar com você, peça!

Pôs-se a sacudir as mãos dela. Segurou-a pelos ombros e sacudiu-a. Pela dor que sentiu, ela pôde perceber a excitação do moço; Jerilinkov havia implorado, lembrou-se ela; este ordenava. Fraca e aliviada, ela deixou cair a cabeça sobre o peito coberto pelo pijama de seda azul.

— Sim, fique mais um minuto — murmurou ela. Gaigern, a olhar por cima de seus cabelos, respirava ofegante, soltando o ar por entre os dentes cerrados. Sua tensão de medo começou a se distender; um turbilhão de imagens desfilou rapidamente, cinematograficamente, diante dele; a Grussinskaia, morta em seu leito, com uma dose violenta de veronal no sangue, ele a fugir pelos telhados, investigações na casa de Springe, penitenciária — ele não fazia a menor ideia do aspecto de uma penitenciária, no entanto enxergava tudo perfeitamente, e também viu sua mãe, morrendo de novo, apesar de já estar morta há muito tempo. Quando voltou ao quarto 68, o medo e o perigo já vencidos transformaram-se de repente em embriaguez. Tomou nos braços o corpo leve da Grussinskaia, levou-o até a cama, onde a deitou como uma criança.

— Venha, venha, venha — murmurou ele de encontro às fontes da mulher, com uma voz subitamente grave e profunda.

A Grussinskaia há muito tempo não sentia o próprio corpo, e agora estava sentindo-o. Durante muitos anos não fora mulher, e agora sentia-se mulher. Um céu negro e sonoro começou a girar sobre ela, e ela se atirou nele com ímpeto. Um gemido brando de passarinho, expelido por uma boca entreaberta, transportou Gaigern, de uma fingida paixão, a profundidades de prazer que ele desconhecia. A xícara de chá, na mesa do hotel, estremecia de leve todas as vezes que passava algum automóvel. Primeiramente, a luz branca do lustre se refletiu no líquido envenenado; depois, apenas o vermelho da lâmpada de cabeceira, depois apenas a luz cambiante do anúncio móvel que penetrava pelas cortinas. Dois relógios apostavam corrida; o elevador rangia no corredor; a torre longínqua da igreja badalou uma hora, por entre as buzinas noturnas dos automóveis — e dez minutos mais tarde já cintilavam novamente os refletores, na fachada do Grande Hotel.

— Você está dormindo?

— Não!

— Está bem acomodado?

— Estou.

— Agora você está de olhos abertos. Sinto suas pestanas no meu braço, quando você abre e fecha os olhos. Que engraçado! Um homem tão grande, com pestanas de criança. Diga-me, você está satisfeito?

— Nunca me senti tão feliz como agora.

— Que é que você disse?

— Nunca me senti tão feliz com uma mulher como agora.

— Repita isso de novo, repita!

— Nunca me senti tão feliz — murmurou Gaigern de encontro à carne fresca e branca do braço em que sua cabeça repousava. Ele estava dizendo a verdade. Sentia-se indescritivelmente repousado e agradecido. Nunca sentira coisa semelhante em suas aventuras de amor barato; essa embriaguez sem ressaibos, esse repouso trêmulo após o amplexo, essa profunda confiança do próprio corpo em outro corpo. Seus membros repousavam, distendidos e satisfeitos, ao lado dos membros da mulher; havia profunda compreensão mútua entre a pele dela e a sua. Sentia qualquer coisa que não tinha nome, nem mesmo o nome de amor: um retorno, após prolongada ausência. Ele ainda era jovem, mas nos braços da Grussinskaia, já perto da velhice, sob a ação de suas carícias amorosas, suaves, conscientes e delicadas, tornava-se mais jovem ainda.

— Que pena... — murmura de encontro ao braço da mulher; levanta um pouco a cabeça, e a pousa no ninho da axila da companheira, um pequenino e cálido lar, com aroma de mãe e de prado.

— Pelo seu perfume eu a encontraria em qualquer parte do mundo, de olhos vendados — diz ele, farejando como um cãozinho. — Que perfume é esse?

— Deixe disso, e diga-me: pena por quê? Você... Deixe esse perfume... tem o nome de uma florzinha que cresce nas campinas: Neuwjada. Não sei como se chama em alemão. Tomilho? É feito em Paris para mim. Diga, pena por quê?

— Pena que se comece sempre com a mulher errada. Que se continue idiota durante uma infinidade de noites, pensando que é assim que se goza, que o prazer é essa coisa corrupta, e depois fria e desagradável como um estômago enjoado. E é pena que a primeira mulher com quem dormi não tivesse sido como você.

— Deixe disso... menino mimado — murmura a Grussinskaia, pousando os lábios nos cabelos dele, naquela peliça dura, espessa e quente, cheirando a macho e a cigarro, sempre bem penteada e alisada, e agora completamente em desordem. Ele roça com as pontas dos dedos, a respirar docemente, o flanco da sua companheira.

— Sabe? Você é tão leve! Levíssima! Um pouco de espuma numa taça de champanha — diz ele com carinho e admiração.

— Pois é. É preciso ser leve — responde a Grussinskaia.

— Estou com vontade de vê-la, agora. Posso acender a luz?

— Não, não! — exclama ela afastando dele o ombro. Ele percebe que a assustou, que assustou essa mulher, cuja idade ninguém sabe com certeza. Sente novamente uma compaixão simples e espontânea. Vai escorregando o corpo para junto dela, e por fim os dois ficam em silêncio, pensando. A luz da rua paira no forro, como um reflexo, estreito e agudo como uma espada, penetrando no quarto pela abertura das cortinas. Quando passa lá embaixo um automóvel uma sombra se espalha rápida no reflexo do forro.

"As pérolas", pensa Gaigern, "para o diabo. Se eu tiver sorte e tudo correr bem, posso metê-las de novo no estojo, quando ela dormir. Vai haver um escândalo com o meu pessoal, se eu for me encontrar com eles sem as pérolas. Contanto que o chofer não faça alguma loucura, contanto que esse animal não tome hoje de noite uma bebedeira de raiva e me estrague tudo... Que azar! Só Deus sabe onde é que vamos arranjar dinheiro, agora. Talvez seja possível sangrar esse herdeiro de província, que geme durante a noite no quarto ao lado, no -70. Ora! Que diabo! Não adianta ficar pensando nisso. Talvez eu possa simplesmente lhe pedir as pérolas. Talvez amanhã eu lhe conte simplesmente do que se trata. Se eu souber fazer as coisas direitinho, não será ela quem me mandará prender amanhã, não fará isso, essa pequerrucha leve e maluca. Deixar as pérolas rolando, numa maleta aberta! Que mulher engraçada, agora eu a conheço. Nem se importa com pérolas! Para ela, nada tem importância, tudo é indiferente. Se eu não tivesse aparecido, ela já não precisaria mais se incomodar com as joias. Para que ainda precisa de pérolas? Deve me fazer presente das pérolas, ela é tão boa... Ah, como é boa! Parece uma mãe, uma minúscula mamãezinha, com quem a gente pode dormir."

A Grussinskaia pensa: "Às onze horas o trem parte para Praga. Contanto que esteja tudo em ordem! Hoje eu abandonei tudo, e amanhã nada estará em ordem. Pimenoff é muito mole para lidar com a troupe; as meninas o levam pela ponta do nariz. Mas quem perder o trem amanhã será despedido, com certeza. Se Pimenoff esta noite não se preocupou com os cenários, amanhã eles não estarão empacotados; os empregados do palco deveriam ter trabalhado horas extras à noite. Mas as coisas que eu não faço ficam sempre por fazer. E as contas a acertar com Meyerheim? Meu Deus, como é possível que eu tenha abandonado tudo? Witte, se a gente não presta atenção nele, esquece até a própria cabeça no hotel. Preciso sempre pensar por todos, e esta noite não estive lá. Vai haver uma débâcle horrorosa. A Lucille há muito tempo que tem vontade de se revoltar. Para vocês nunca são suficientemente grandes as letras dos seus nomes nos cartazes, não é verdade? Sua propaganda nunca é bem feita. Mas vocês, sozinhos, não fazem nada, é preciso fazê-los trabalhar com o knut, para que vocês se conservem em forma. Vocês me fizeram ficar má, convencida e cansada. Meu Deus, como eu estava cansada ontem... Faltou muito pouco para vocês verem se são capazes de alguma coisa sem a Grussinskaia. Mas agora não me sinto cansada, agora poderia me levantar e dançar todo o programa, ou mesmo um outro programa, um bailado novo. Preciso falar com Pimenoff, ele precisa criar um novo bailado: a dança do medo. Oh, essa dança eu poderia dançar agora para vocês. Primeiro num lugar só, apenas um tremor, e depois três círculos nas pontas, ou mesmo sem ser nas pontas, talvez uma coisa completamente diferente.

''Mas estou viva", pensa ela, abalada, "estou viva, e vou criar novos bailados, vou ter sucesso. Uma mulher que é amada tem sempre sucesso. Vocês me fizeram passar fome desde... há mais de dez anos, foi isso. É estranho que um bobinho que pulou o balcão para vir aqui possa dar à gente tanta energia! Um rapaz simpático, que do amor só conhece o jargon das mocinhas..."

Ela puxa o cobertor e cobre Gaigern, como se ele fosse uma criancinha. Ele sussurra, agradecido, faz-se pequenino e fraco, e enfia o nariz na carne dela. Seus corpos já se conhecem, mas seus pensamentos se distanciam para lados distintos, dentro da noite. Em todos os leitos do mundo, os amantes ficam deitados muito unidos, mas tão separados!...

É a mulher quem primeiro procura adivinhar o que se passa na outra alma. Toma a cabeça do homem nas mãos, como se fosse um fruto grande e pesado colhido ao sol, e murmura em seu ouvido:

— Eu ainda não sei como você se chama, meu amigo.

— Costumam chamar-me de Felix. Meu nome todo é: Felix Amadei Benvenuto, Barão von Gaigern. Mas você precisa me dar um novo nome, precisa me batizar também. Quero ter um nome dado por você.

A Grussinskaia pensa um pouco, depois dá uma risadinha.

— Sua mãe devia ter esperado muita coisa de você, quando você nasceu, para lhe dar nomes tão bonitos — disse ela. — O venturoso. O amado de Deus. O bem-vindo. Você chorou ao ser batizado?

— Não me lembro muito bem.

— Ah! Sabe? Eu também tenho uma filha. Que idade você tem, Benvenuto?

— Hoje, tenho dezessete anos, de novo. Estou pela primeira vez com uma mulher. Mas minha idade comum é trinta anos.

Aumentou um pouco a idade, por estranha delicadeza para com a mulher que sente medo da luz elétrica e da própria idade. Apesar disso, ela se sente magoada. "Ele poderia ser o pai do meu neto Pompon, de oito anos", pensa a Grussinskaia sem querer. "Passons!", ordena a si mesma.

— Como era você em criança? Muito bonito? Ah, é claro, era muito bonito.

— Simplesmente encantador. Cheio de sardas, de galos e arranhões, e muitas vezes cheio de piolhos também. Tínhamos ciganos para tratar dos nossos cavalos; isso é muito comum na fronteira, onde ficava a nossa propriedade. Os meninos ciganos eram meus amigos. Eles me passavam toda espécie de bichos e de sarna. Quando me lembro da minha infância, sinto sempre um cheiro de estéreo de cavalo. Depois me tornei durante alguns anos o terror de vários companheiros de seminário. Por fim estive por pouco tempo na guerra. Da guerra eu gostei. Na guerra eu me senti em casa. Por mim, tudo podia ter sido muito pior do que foi. Se houver guerra de novo, tudo estará bem para mim, novamente.

— Agora as coisas não vão bem para você, seu condottiere? Que vida você leva? Que espécie de indivíduo é você?

— E você? Que espécie de mulher é? Nunca conheci nenhuma como você. Em geral as mulheres não têm muitos segredos. Mas a você tenho curiosidade de conhecer, preciso perguntar-lhe muitas coisas. Você é muito diferente das outras.

— Sou apenas antiquada. Sou de um outro mundo", de um século diferente do seu, é apenas isso — disse a Grussinskaia com voz sonhadora. Ao mesmo tempo sorriu nas trevas, e lágrimas ardentes lhe vieram aos olhos. — Educaram-nos como soldadinhos, a nós, bailarinas, com severidade, com pulso de ferro, no Instituto de Ballet Imperial de São Petersburgo. Pequenos regimentos de recrutas para o leito dos grão-duques, é o que nós éramos. Dizem que, nas meninas que aos quinze anos começavam a engordar, colocavam argolas de aço em volta dos seios, para que eles não crescessem mais. Eu era pequena e magra, mas dura como um diamante. Orgulhosa, sabe; tinha o orgulho no sangue, como pimenta e sal. Uma máquina do dever, trabalhando, trabalhando, trabalhando. Sem descanso, sem tempo para descansar, nunca! E depois: quem se torna célebre fica completamente só. Com o sucesso, a gente se sente gelada e solitária como no pólo norte. Sabe o que significa ter sempre sucesso, durante três, cinco, dez, vinte anos, sempre, sempre? Mas o que é que eu lhe estou contando? Você está me compreendendo? Ouça: muitas vezes a gente passa por uma estação de estrada de ferro, ou à noite passa de automóvel por uma pequena cidade. As famílias estão sentadas diante das portas, todos muito rígidos, com cara de idiota, com as manoplas pousadas no colo, e ninguém se move. É isso, veja, é isso! É isso o que nós desejamos: sentirmo-nos fatigados, e ficar simplesmente sentados, com as mãos imóveis, pousadas no colo. Mas se você for uma pessoa célebre, procure desaparecer do mundo, descanse, deixe que as outras bailarinas dancem, essas alemãs feias e com luxações nos músculos, essas negras, toda essa gente que não sabe nada; deixe que elas dancem, descanse! Veja, Benvenuto, isso não é possível, é absolutamente impossível. Odeia-se o trabalho, amaldiçoa-se o trabalho, mas não se pode existir sem o trabalho. Três dias de descanso, e vem o medo: vou perder a forma, estou ficando pesada, minha técnica está indo embora. É preciso dançar, como uma loucura, nem a morfina e a cocaína, nenhum vício no mundo é tão venenoso como o trabalho e o sucesso, acredite-me. É preciso dançar, somos obrigados a dançar. E isso também é importante. Se eu parar de dançar, não existe mais ninguém no mundo que saiba realmente dançar, acredite-me. Todas as outras são diletantes; mas é preciso que haja alguém que saiba dançar, que saiba o que significa a dança, em meio a um realismo histérico, horrível! Eu aprendi com as antigas celebridades; com a Kocressínskaia, com a Trefilovna, e elas, por sua vez, aprenderam com os grandes do bailado, há quarenta, há sessenta anos. Às vezes tenho a impressão de que tenho de dançar contra o mundo inteiro, contra o brado de "atualidade!" De um lado, estão vocês, um teatro repleto de ganhadores da vida e homens-máquinas, participantes da guerra e acionistas... e do outro, estou eu. Uma pobre e pequenina Grussinskaia, velha, não é verdade? Tão sentimental, tão antiquada, com os seus passos já conhecidos há duzentos anos. E, no entanto, eu os atraio ainda, e vocês choram, riem, desesperam-se e extasiam-se; e tudo por quê? Por causa desse balezinho fora da moda? Será tão importante, isso? Certamente, porque só tem sucesso mundial aquilo que tem importância para o mundo, aquilo de que o mundo precisa. Mas, ao lado disso, tudo se despedaça, dentro de nós nada mais resta. Nem marido, nem filhos, nenhum sentimento, nenhum conteúdo. Deixamos de ser indivíduos humanos como os outros, compreende? Não somos mulheres, somos apenas uma migalha esgotada de responsabilidade, que perambula pelo mundo. No dia em que termina o sucesso, no dia em que perdemos a crença de que somos indispensáveis, a vida acaba para nós. Você está me ouvindo? Está me compreendendo? Gostaria tanto que você me compreendesse — disse a Grussinskaia, em tom implorante.

— Não compreendi tudo... mas quase tudo. Você fala francês muito depressa — respondeu Gaigern.

Durante os meses em que ficou à espreita, atrás das pérolas, ele frequentou inúmeras vezes os espetáculos de ballet da Grussinskaia, aborrecendo-se sempre, em geral. Ficou profundamente admirado ao saber que a Grussinskaia, conforme parecia, arrastava consigo, como um martírio, os rodopios do ballet. Ela está colada com tanta leveza às coxas de Gaigern, tem uma vozinha delicada, com um gorjeio colorido e modulado e fala coisas tão sérias!... Que se pode responder a isso? Ele suspira. Fica pensando.

— Foi muito bonito o que você disse das pessoas à noite, com as mãos imóveis. Você devia dançar isso — declarou ele finalmente, confuso.

A Grussinskaia contentou-se em rir.

— Dançar isso? Mas não se pode dançar uma coisa assim, monsieur. A não ser que me queiram ver no papel de uma velha com um pano na cabeça, com gota nos dedos, dura como um pau, apenas repousando...

Cortou a frase no meio. Enquanto falava, seu corpo já tinha se apossado da imagem, contraindo-se e enrijecendo. Ela já estava vendo o cenário, conhecia um jovem pintor amalucado, em Paris, que poderia pintar uma coisa assim; já via o bailado, já o sentia nas mãos e na nuca curvada. Ficou calada, com a boca entreaberta, na escuridão. Nem respirava, tal a excitação que sentia. O quarto se encheu de personagens que ela nunca dançara, e que poderiam ser dançadas, de centenas de vultos reais e viventes. Uma mendiga a tremer, estendendo os braços, uma velha campônia dançando mais uma vez no casamento da filha... Diante de um balcão de feira encontrava-se uma mulher magra, apresentando umas míseras prestidigitações, uma prostituta esperava por homens sob uma lanterna. Uma menininha, que havia quebrado uma chave e levava uma surra; uma criança de quinze anos, que era forçada a dançar nua diante de um homem imponente, enorme e cintilante, um senhor, um grão-duque, e também a espinhosa paródia de uma governanta; uma mulher que corria como se a estivessem perseguindo, apesar de não ser esse o caso; uma outra que queria dormir e não podia; uma que tinha medo de espelho; e ainda uma outra que bebia veneno e morria.

— Fique quieto... não diga nada... não se mexa — sussurrou a Grussinskaia olhando para o forro, em que se via a espada luminosa. O aposento adquirira o aspecto estranho e misterioso que os quartos de hotel às vezes gostam de apresentar. Lá embaixo os automóveis lançavam fumaça pelo escapamento, buzinavam, parecendo animais, porque a Liga dos Filantropos terminara a sua festa, e começava a saída pelo portão 2. A noite esfriou. Do turbilhão das ideias e dos rostos, a Grussinskaia voltou ao quarto com um leve arrepio. "Pimenoff vai pensar que eu estou louca, ele, com seus baileis de borboletas. Quem sabe se estou louca mesmo?" Da sua divagação de um minuto, havia retornado ao leito, como se voltasse de uma longa viagem. Gaigern ainda continuava deitado. Ela quase se assustou ao encontrar de novo o homem encostado ao seu ombro, com seus cabelos, suas mãos e sua respiração.

— Que espécie de homem é você? — perguntou ela mais uma vez, nas trevas, com o rosto bem sobre o dele. Ela sentia intimamente, nesse instante, o espanto de se encontrar tão próxima de uma coisa tão estranha e diferente dela. — Ontem eu ainda não o conhecia. Quem é você? — perguntou ela de encontro à cálida umidade da boca do homem.

Gaigern, que já estava quase adormecendo, deixou os dois braços tombarem sobre as costas da mulher, e ela teve a impressão de ser a esguia cadela galga de sua casa, a Biche.

— Eu? Não há muita coisa a contar — respondeu ele, obediente, mas sem abrir os olhos. — Sou um filho pródigo. Sou uma ovelha negra de um bom curral. Sou um mauvais sujet, e vou acabar na forca.

— É verdade? — perguntou ela, dando uma risadinha arrulhante.

— É verdade — disse Gaigern, convencido. Começara a cantarolar como uma ladainha, e por brincadeira, aquelas velhas frases e advertências dos professores do seminário; mas, ao perfume cálido de tomilho daquela cama, veio-lhe o desejo de confessar-se e de ser sincero.

— Sou um devasso — continuou ele a falar na escuridão. — Não tenho caráter, e sou de uma curiosidade incrível. Não consigo me adaptar a nada, sou um sujeito inútil. Em casa aprendi a montar e a ser o senhor. No seminário aprendi a rezar e a mentir. Na guerra, a atirar e a procurar pôr-me a salvo. Mais do que isso não sei fazer. Sou um cigano, um marginal, um aventureiro.

— Ah, você... E o que mais?

— Sou um jogador, e não me importo de fazer trapaças. Também já roubei. A bem dizer, eu devia estar é na prisão. Mas ando por aí, e me sinto às mil maravilhas, e faço tudo o que me dá na veneta fazer. Às vezes me embebedo também. E, além do mais, sou preguiçoso de nascença.

— Continue — murmurou a Grussinskaia, encantada. Sua garganta estava vibrando, de tanto conter o riso.

— Pois bem, sou um criminoso. Um homem que escala muros de fachadas — disse Gaigern, sonolento —, um assaltante.

— E que mais ainda? Talvez um assassino, também?

— Isso mesmo. É claro. Um assassino também. Estive a ponto de matá-la — afirmou ele.

A Grussinskaia ainda se riu, um pouco inclinada sobre o rosto de Gaigern, que ela sentia, apesar de não o ver, mas de repente ficou muito séria. Cruzou as mãos por detrás do pescoço dele e murmurou em surdina ao seu ouvido:

— Se você não tivesse vindo ontem, eu não estaria viva agora!

"Ontem?", pensou Gaigern. "Agora?" A noite no 68 parecia ter durado uma eternidade, devia ter sido há alguns anos que ele estivera no balcão e enxergara a mulher no quarto. Levou um susto. Apertou-a em seus braços com força, como um lutador de luta livre: os músculos flexíveis da bailarina resistiram — ele o sentiu com estranho prazer.

— Você nunca mais deve fazer uma coisa dessas.

Você tem de ficar aqui. Não a deixarei ir-se embora mais. Preciso de você — afirmou.

E ficou a ouvir a própria voz, ao pronunciar tão curiosas palavras, com uma voz diferente, rouca, que parecia provir do fundo palpitante de seu coração.

— Não, agora tudo mudou. Agora está tudo bem. Agora você está comigo — murmurou a Grussinskaia; mas Gaigern não a compreendeu, porque ela falou em russo.

Ele sorveu a entonação da sua voz, e a noite começou de novo a rumorejar. Pássaros de sonho saíram das trepadeiras da tapeçaria que forrava as paredes do hotel... O homem se esqueceu das pérolas no bolso do seu pijama azul e a mulher se esqueceu do insucesso e dos veronais na xícara de chá.

Nenhum dos dois se atreve a pronunciar esta palavra caduca: "amor". Juntos, deslizam no confuso turbilhão da noite de amor, passando dos abraços aos murmúrios, dos sussurros a um breve sono e aos sonhos, e dos sonhos a um novo abraço: duas pessoas vindas de dois pontos opostos do mundo, para encontrar-se por algumas horas no leito do quarto 68, onde tanta gente já dormiu...


8

 

Na vida da Grussinskaia o amor não havia representado um papel importante. Tudo o que o corpo e a alma possuíam de paixão fluía para a dança. Tinha tido alguns amantes, porque isso fazia parte da vida de uma bailarina célebre, assim como as pérolas, o automóvel, os vestidos das boas casas de moda de Paris e de Viena. Rodeada de admiradores, requisitada e perseguida por apaixonados, não acreditava apesar de tudo na existência do amor. Ele não lhe parecia mais real do que os cenários pintados, os templos de amor e as sebes de roseiras diante dos quais seus bailados eram executados. Apesar de permanecer fria e de não conseguir entusiasmar-se, passava por uma amante maravilhosa, única. Por seu lado, praticava o amor como um dever da sua profissão, como uma peça de teatro, por vezes agradável, mas sempre exaustiva, requerendo uma arte requintada. Toda a flexibilidade do seu corpo, seu flutuar etéreo, a sutilidade, o requinte, a delicadeza e a suavidade, o impulso e o arrojo, a emoção e a debilidade, todos os impecáveis requisitos da sua dança, ela levava consigo para os amigos com quem passava as noites. Sabia embriagar de prazer, mas não se embriagava a si mesma. Na dança, era capaz de enlouquecer, de esquecer-se de si própria, e por vezes seus partners ouviam-na soltar gritinhos abafados, como um passarinho, durante as posições mais difíceis e movimentadas. No amor, porém, nunca perdia a consciência de si mesma, estava sempre se observando. Era estranho: não acreditava no amor — e no entanto não podia viver sem amor.

Porque o amor — ela o sabia — era uma parte do sucesso. Enquanto fora jovem, e seu camarim transbordava de flores e de cartas, enquanto em todo o seu percurso os homens se postavam, prontos a arruinar-se, a fazer por ela qualquer espécie de loucura, a abandonar a fortuna e a família, ela sentia que o sucesso a bafejava. Nas confissões de amor, nas ameaças de suicídio, nas perseguições por toda parte, pelo valor dos presentes que recebia dos conquistadores podia-se perceber o sucesso, do mesmo modo que nos aplausos, nas críticas e no número de chamadas ao proscênio. Ela não o sabia, mas o amante que a encantava e lhe causava prazer era, a bem dizer, um público perante o qual ela tinha sucesso. E pela primeira vez percebeu, horrorizada, que o sucesso diminuía, quando Gaston a abandonou, para casar-se com uma moça sem muitos dotes, mas de boa família. A atmosfera que a rodeara durante anos esfriou e se tornou sombria, uma atmosfera noturna, incompreensível. Era uma escadaria que ia descendo por centenas de degrauzinhos, tão pequenos que quase não a deixavam aperceber-se dela. E, no entanto, era vastíssimo o caminho que conduzia aquela Grussinskaia de antes da guerra, que dançara para um mundo cheio de romantismo e de êxtase, à atual Grussinskaia, que mendigava um pouco de aplauso de um punhado de pessoas céticas, indiferentes e maldosas. O seu fim, como última consequência, era a completa solidão, e uma dose forte de veronal.

Por essa razão, o homem do balcão significava para a Grussinskaia mais do que um simples homem. Era um milagre que acontecia no último instante no 68, para salvá-la; era o sucesso evidente que a procurava; o mundo que penetrava cheio de ardor em seu quarto; era a prova de que os tempos românticos ainda não haviam passado, os tempos em que um jovem Jerilinkov se deixava matar com um tiro por ela. Ela se deixara cair, mas encontrara alguém que a erguia do solo.

Havia no programa da Grussinskaia um bailado em que a morte dançava um pas de deux com o amor; os poetas que lhe escreviam, por vezes, enviavam-lhe versos em que voltava sempre o banal pensamento de que a morte e o amor eram irmãos. Nessa noite, a Grussinskaia comprovava em si própria a verdade desse lugar-comum. A vertigem dolorosa da noite passada transformou-se em embriaguez, num torvelinho de gratidão, num anseio febril de receber e de dar, de sentir e conservar. Os anos gelados se derretiam. O vergonhoso segredo da sua frieza, que escondera durante toda a vida, desfazia-se, deixava de existir. Há tantos anos se sentia de tal modo pobre e solitária, que às vezes mendigava à pele jovem e cálida do seu partner, Michael, uma esmola de calor. Nessa noite, nesse quarto indiferente de hotel, nessa cama comum de metal brilhante, ela se sentia arder, transformava-se, descobria o amor, que não acreditava que existisse.

Os quartos 68 e 69 eram tão parecidos que, ao despertar, Gaigern não sabia muito bem onde se encontrava. Quis virar-se para a parede do seu quarto, mas encontrou o vulto pequenino da Grussinskaia, que dormia e respirava docemente. Recordou-se. A maravilhosa e profunda confiança do primeiro sono dormido junto repousava em seus membros como um peso suave. Retirou seu braço, que adormecera debaixo do pescoço da mulher, e com leve e ' solene comoção rememorou os acontecimentos dessa noite. Não havia dúvida — estava apaixonado, e além disso, de um modo completamente novo e grato. Sem que as pérolas influíssem no seu sentimento, não podia deixar de pensar, envergonhado: somos uns porcos. Não era a história gorada das pérolas que influía no seu sentimento. Sobe-se a um quarto alheio: inventa-se uma comédia atroz, representa-se — e a mulher acredita em tudo. Faz questão de acreditar. Os homens representam e as mulheres acreditam neles. A bem dizer, no começo a gente é sempre um embusteiro e um assaltante; mas em seguida, a mentira transforma-se em verdade. "Eu gosto muito de você, pequenina Mouna, querida e boa Neuwjada, eu te amo, je t’aime, je t'aime. Você fez uma bela conquista, mulherzinha, você..."

Fazia frio no quarto; lá fora já devia estar amanhecendo; a rua estava silenciosa, uma réstia de luz crepuscular penetrava por entre as cortinas, e o desenho da tapeçaria das paredes começava a esgueirar-se pela madrugada. Gaigern levantou-se com o maior cuidado. A Grussinskaia dormia profundamente, com o queixo enterrado no próprio ombro. Agora, que passara o tumulto da noite, as duas cápsulas de veronal pareciam estar fazendo efeito. Gaigern tomou-lhe a mão, que pendia para fora do leito, repousou na sua palma as pálpebras quentes, e depois enfiou aquela mãozinha frouxa sob o cobertor, como se a Grussinskaia fosse um bebezinho. Foi caminhando com cuidado, na meia escuridão do quarto, até o balcão, e abriu lentamente as cortinas. A Grussinskaia não despertou. "Agora tenho que pôr em ordem o negócio das pérolas", pensou Gaigern. Admirou-se de sentir-se satisfeito com a solução. "Um round perdido", pensou ele sem se aborrecer. Gostava de usar essas expressões de esporte, em seus empreendimentos aventureiros. Tateou à procura do pijama, e sorriu ao encontrar as diversas partes do seu vestuário atiradas por todo o quarto; em seguida entrou no banheiro. Ao contato da água, o ferimento da sua mão direita começou a arder e a sangrar; lambeu-o com indiferença e não se importou mais com isso. O aroma acre e murcho de louros, no aposento, acentuara-se. Gaigern, desejoso de respirar ar fresco, foi ao balcão e aspirou profundamente; seu peito ainda estava repleto de uma doce e desconhecida angústia.

Lá fora paira, sobre a rua que desperta, uma neblina fria que o vento leva. Nem automóveis nem gente. A distância, ouve-se o sibilar de um bonde a correr nos trilhos. Não surgiu ainda o sol, mas há uma luz leitosa e igual. Uns passos martelados, na esquina, e novamente o silêncio. Um pedaço de papel flutua como um passarinho enfermo sobre o asfalto, e depois pousa no chão. A árvore plantada não muito longe do portão 2 balouça os galhos sonhadores. Um sonolento passarinho de março, bem lá em cima, pousado na haste delicada de um botão, experimenta a voz no tumulto da grande cidade. Um caminhão cheio de caixas com garrafas de leite segue aos solavancos, muito cheio de si; a neblina que desliza cheira a maresia e a gasolina; a grade do balcão tem um brilho úmido. Gaigern encontra suas meias de larápio no balcão, e enfia-as depressa no bolso, junto das luvas, da lanterna de bolso e das pérolas de quinhentos mil marcos, de que ainda precisa se livrar. Torna a entrar no quarto, deixando as cortinas abertas; a luz pálida cai em triângulo no tapete, estendendo-se até o leito em que dorme a Grussinskaia.

Agora ela está estendida de costas, com a cabeça tombada de lado, dando a impressão de que a cama é grande demais para o seu corpo delicado e pequenino. Gaigern, para quem a maioria das camas de hotel são curtas, achou graça e sentiu-se comovido. Teve um súbito pensamento, uma ideia carinhosa. Foi buscar a xícara de veronal na mesinha e também os tubinhos de vidro vazios, e dirigiu-se com eles ao banheiro. Com os cuidados de uma ama, lavou a xícara, depois de esvaziá-la, e secou-a com um lenço. Ao encontrar o roupão de banho da Grussinskaia, com um gesto infantil, beijou-o na manga. Não havendo lugar para colocar os vidrinhos, guardou-os no bolso, junto das pérolas. A Grussinskaia suspirou dormindo, quando ele se aproximou de novo da cama. Inclinou-se sobre ela, franzindo a testa, mas ela continuou a dormir. Já clareara um pouco. Agora ele podia ver bem de perto, e com clareza, o rosto dela. Os cabelos caíam para trás, muito lisos, deixando descobertas as fontes reentrantes, estreitas e sombreadas. Por baixo dos olhos fechados evidenciava-se a idade, em dois sulcos profundos. Gaigern o percebeu, porém sem desgosto. A boca era linda, acima do queixo delicado, mas já murcho. Um pouco do pó de arroz pálido ainda ficara em sua testa, perto da franjinha. Gaigern lembrou-se, divertido, de que durante a noite ela tirara de baixo do travesseiro um estojinho de pó de arroz, antes de permitir-lhe que acendesse a lâmpada. "Agora eu a estou vendo bem", pensou ele com o sentimento primitivo de triunfo de um assaltante de mulheres. Começou a observar o rosto da mulher, como se fosse uma paisagem desconhecida, em que se passeia à procura de aventuras. Observou duas misteriosas riscas simétricas que partiam das fontes, ao longo das orelhas, indo até a garganta, uma linhazinha mais clara do que o resto da pele. Passou o dedo com cuidado sobre a linha; era uma delicada cicatriz que rodeava seu rosto, como a fímbria de uma máscara. De repente, Gaigern compreendeu do que se tratava. Eram as cicatrizes da vaidade, cortes na pele para esticá-la e rejuvenescer — ele já lera qualquer coisa a esse respeito. Sorrindo, sacudiu a cabeça, com um ar de incredulidade. Sem querer, apalpou suas próprias têmporas, que eram bem lisas, e vibravam com batidas fortes e saudáveis.

Encostou com a maior delicadeza o seu rosto no da Grussinskaia, como se pudesse assim transmitir um pouco do seu ser para a companheira. Admirou-se ao perceber quanto a amava nesse momento, com um amor terno e compassivo. Teve a impressão de estar sendo um sujeito limpo e correto, ligeiramente ridículo, sem dúvida, nos sentimentos que dedicava à pobre mulher, cujos segredos ele tinha descoberto.

Afastou-se da cama e ficou por uns minutos diante do espelho, com a testa enrugada, a boca ligeiramente aberta, mergulhado em pensamentos. Estava pensando se não seria possível, apesar de tudo, ficar com as pérolas. Não, não era possível. Por enquanto, ele continuava a ser o Barão von Gaigern, um homem um tanto leviano, que convivia com uma gente ordinária. Com dívidas, sim, mas ainda digno de confiança. Se saísse do quarto com as pérolas, então a polícia seria avisada dentro de poucos minutos e sua existência de cavalheiro estaria terminada. Seria um criminoso perseguido pela polícia, como qualquer outro. Isso não lhe convinha, em absoluto. Não fazia parte do seu programa ter-se tornado o amante da Grussinskaia, mas era um fato consumado, e modificava todo o resto. Pesou as chances, como teria pesado as chances de um pugilista ou de um tenista. Empreendimentos como esse das pérolas eram o seu esporte e, desta vez, o jogo lhe estava sendo desfavorável. Não era possível roubar essas pérolas; na situação atual, só poderia recebê-las de presente, caso tivesse paciência. "E preciso esperar", pensou Gaigern, suspirando profundamente. Suas reflexões eram objetivas e realistas, mas ele não queria admitir que no fundo havia ainda outra coisa por trás disso tudo. Não queria ter a consciência do próprio ridículo, e detestava sentimentalismos. Olhou para o espelho e fez uma careta para si próprio. "Em resumo", pensou aborrecido, "não é do meu feitio roubar o adereço de pérolas de uma mulher com quem dormi. Agora não tenho a mínima vontade de fazer tal coisa. Eu sofreria com isso — e acabou-se!

"Neuwjada", pensou ele com súbito carinho, olhando para a cama; "bondosa Mouna, eu preferia poder oferecer-lhe algum presente, muitos presentes, uma coisa bonita e valiosa, alguma coisa que lhe causasse prazer, pobrezinha." Puxou de dentro do bolso o colar de pérolas, com precaução e sem ruído. Já não gostava mais delas. Talvez até fossem falsas, apesar de todas as lendas dos jornais; talvez nem fossem tão valiosas como a propaganda dizia. De qualquer modo, ele se separava agora delas com a maior facilidade.

Quando a Grussinskaia procurou despertar, sua cabeça estava envolta no sono como em espessos véus. "É o veronal", pensou, continuando com os olhos fechados. Nos últimos tempos ela tinha medo de despertar, tinha medo do choque que sentia ao defrontar-se com os aborrecimentos da vida. Tinha a vaga sensação de que nessa manhã alguma coisa boa e agradável a esperava, mas não descobriu logo do que se tratava. Lambeu os lábios, pensando encontrar neles o gosto sonolento e seco da noite. Movimentou os dedos das mãos, como um cão a mover-se em sonhos. Seu corpo estava cansado, exausto, mas satisfeito, como após um enorme sucesso, após uma noite com muitos da capo, em que é preciso esgotar completamente as forças. Sentiu sobre as pálpebras fechadas a claridade matutina, e por um instante pensou que estava em Tremezzo com os reflexos da superfície do lago, em seu quarto de dormir cinzento-rosado. Decidiu abrir os olhos.

Primeiro, viu sobre os joelhos um cobertor que não conhecia, da altura de uma montanha; depois, a tapeçaria das paredes do hotel, com o desenho de frutas tropicais vermelhas, pendentes de frágeis hastes, um desenho que dava a impressão de observá-la fixamente, com um olhar febril e absorto.

Nessas tapeçarias das paredes dos hotéis colava-se todo o tédio da sua vida sem parada. O canto perto da escrivaninha estava sombrio; ali, a cortina estava fechada e não podia saber as horas. A porta do balcão estava aberta e deixava entrar uma brisa fresca. Ao lado da mesa do espelho, virada para a claridade da varanda, a Grussinskaia, ainda sonolenta, percebeu a silhueta larga e escura de um homem. Estava de costas, com as pernas meio abertas, firme e imóvel, com a cabeça inclinada, observando qualquer coisa que ela não podia ver. "Sonhei com alguma coisa parecida há pouco", pensou primeiro, ainda meio apalermada de sono, sem se assustar. "Já aconteceu coisa parecida na minha vida", pensou em seguida. "Jerilinkov", pensou finalmente. De repente, seu coração disparou como um motor, ela acordou totalmente, e lembrou de tudo.

Respirou com a boca fechada, sem ruído, mas profundamente, e com o ar que aspirou ocorreu-lhe a lembrança de tudo o que se passara durante a noite. Retirou um braço de baixo do cobertor, sentindo-o muito leve, com vontade de voar. Tateou, à procura do estojinho de pó de arroz, e, dirigindo um olhar sério ao minúsculo espelho redondo, começou a se arrumar. O delicado perfume do pó de arroz lhe causou prazer; sua imagem agradou-lhe. Sentia amor por si própria, como há muitos anos não sentia. Segurou seus pequeninos seios, como costumava fazer, mas nessa manhã isso lhe causou um prazer especial. Gostou de sentir a própria pele, lisa, fresca e satisfeita. "Benvenuto", disse em pensamento; e em russo "Chelani". Mas como só pronunciou esse nome para si mesma, o homem não pôde ouvi-la. Lá estava ele, de pernas abertas, com seus belos ombros, como um dos carrascos de Signorelli — descobriu a Grussinskaia, encantada —, ocupado com algum objeto pousado na mesinha do espelho. Ela se levantou e olhou-o sorrindo.

 

Gaigern estava com as mãos dentro da maleta em que se encontravam suas pérolas. Ela ouviu claramente o ruído de um dos estojos, reconhecendo o estalido agudo e surdo; era o estojo comprido de veludo azul, onde ficava o colar de cinquenta e duas pérolas de tamanho médio. No primeiro momento a Grussinskaia não percebeu por que razão esse ruído a assustava mortalmente. Seu coração parou, e depois voltou a bater com pancadas pesadas e sonoras, que ecoavam dolorosamente por todo o corpo. Doíam-lhe as pontas dos dedos, que se tornaram rígidas. Os lábios também. Mas ainda continuava a sorrir; esquecera-se de retirar da boca o sorriso, que permaneceu, enquanto seu rosto esfriava, tornando-se branco como papel. "É um ladrão", pensou a Grussinskaia, adivinhando tudo. E esse era um estranho pensamento, silencioso e definitivo, como um corte que lhe atravessasse o coração. Julgou perder a consciência, desejando-o com ardor, mas ao invés de acontecer isso, uma infinidade de pensamentos lhe passou pela cabeça durante um segundo, claros, cortantes, entrecruzando-se, entrechocando-se; um duelo de pensamentos.

O sentimento torturante de ter sido enganada atrozmente; vergonha, medo, ódio, cólera, uma dor medonha. E, ao mesmo tempo, uma fraqueza profunda como um abismo; não queria ver, não queria compreender, não queria acreditar na verdade, só desejava abrigar-se na piedade da mentira.

— Que faites-vous? — murmurou às costas do carrasco. Pensou que estava gritando, mas apenas sussurrou por entre os lábios rígidos: — Que está fazendo?

Gaigern levou tal susto que sua cabeça se virou de súbito; e seu susto era uma confissão de culpa. Na mão ele guardava o estojinho cúbico de um dos anéis; a suitcase estava aberta, o colar de pérolas estendia-se sobre a placa de vidro da mesinha do espelho.

— O que está fazendo aí? — sussurrou mais uma vez a Grussinskaia, causando dó, realmente, vê-la sorrir, com o rosto pálido e desfigurado.

Gaigern compreendeu-a logo, de novo se encheu de piedade, uma piedade ardente, que ele sentia palpitar nas têmporas. Dominou-se com energia, e conteve-se.

— Bom dia, Mouna — disse amavelmente. — Encontrei aqui um tesouro, enquanto você dormia.

— Como é que encontrou as minhas pérolas? — perguntou a Grussinskaia, com voz rouca. "Minta, minta", pedia seu olhar esgazeado.

Gaigern aproximou-se dela, e pousou a mão sobre seus olhos, como um guarda-sol. "Pobre bichinho, pobre femeazinha."

— Estive remexendo em suas coisas. Estava procurando um adesivo, um pedaço de atadura, qualquer coisa... imaginei que iria encontrar alguma coisa na valise. E lá estava o seu tesouro. Tenho a impressão de ser Aladim na gruta.

Até mesmo a cor dos olhos dela desaparecera; eles pareciam agora de chumbo, e só pouco a pouco lhes foi voltando sua cor negra azulada. Gaigern estendeu diante dela a palma da mão ferida, a sangrar ligeiramente, como prova do que dizia.. A Grussinskaia, lânguida e com os nervos frouxos, pousou nessa mão os lábios. Gaigern pousou a outra em seus cabelos, e puxou sua cabeça de encontro ao peito aberto do pijama de seda azul. Ele podia mostrar-se bastante brutal e ordinário com as mulheres com quem costumava encontrar-se. Mas esta, sabe o Diabo por quê, despertava nele todos os bons instintos. Era tão frágil, tão maltratada pela vida, necessitava tanto de auxílio — e ao mesmo tempo era tão forte... Pela existência que ele levava, que parecia estar sempre a pender de um fio, Gaigern compreendia a dela.

— Bobinha — disse ele com carinho. — Será que você pensou que eu estava cobiçando as suas pérolas?

— Não — mentiu a Grussinskaia. Essas duas inverdades foram a ponte sobre a qual os dois amantes se puderam encontrar. — Aliás, eu não as uso mais — acrescentou ela, respirando aliviada.

— Não as usa mais? E por quê?...

— Você não compreende essas coisas. É uma superstição. Antigamente elas me davam sorte. Depois me trouxeram infelicidade. E agora que deixei de usá-las, me dão sorte de novo.

— É mesmo? — perguntou Gaigern pensativo, procurando vencer o mal-estar e o acanhamento que sentia.

As pérolas repousavam de novo, em ordem, em seu pequeno leito. "Adieu!" Até logo, pensou ele, como uma criança. Meteu as mãos nos bolsos, num gesto decidido; lá se encontravam as ferramentas de ladrão, mas nenhuma presa. Sentia-se felicíssimo, com uma sensação de leveza e de satisfação, espantosamente renovado e farto. Abriu bem a boca e soltou uma exclamação de júbilo, emitindo um som forte e cheio. A Grussinskaia começou a rir. Gaigern atravessou o quarto correndo, aproximou-se dela e mergulhou em sua pele seu grito de prazer, deixando-se cair sobre a mulher, com a boca, o olhar e o sentimento. Ela tomou suas mãos e beijou-as; esse gesto exprimia uma gratidão humilde, em parte real, em parte representada.

— Está sangrando — disse ela, com a boca sobre o pequeno ferimento.

— Seus lábios são como os de um cavalo — respondeu Gaigern —, macios como um potrinho preto, de magnífico pedigree.

E ajoelhou-se, abraçando os joelhos da mulher, cujos tendões vibravam por baixo da pele. Justamente quando a Grussinskaia fez menção de se curvar sobre ele, alguma coisa ronronou na escrivaninha; um tilintar breve, depois longo, novamente breve.

— O telefone — disse a Grussinskaia.

— O telefone? — repetiu Gaigern.

A Grussinskaia suspirou profundamente. Não adianta, exprimia a sua fisionomia, ao erguer o fone do gancho com um gesto cansado, como se ele pesasse uma tonelada. Suzette estava ao telefone.

— São sete horas — anunciou sua voz matinal rouca. — Madame precisa levantar-se. É preciso arrumar as malas. Posso mandar o chá? E se madame quiser que lhe faça massagem, já está na hora — e Herr Pimenoff pede que lhe telefone imediatamente, assim que madame se levantar.

Madame ficou pensando durante um segundo.

— Daqui a dez minutos, Suzette... não, dentro de quinze minutos você pode trazer o chá, e depois faremos um pouco de massagem.

Colocou o fone no gancho, mas continuou a segurá-lo, enquanto estendia a outra mão a Gaigern, que ficara no meio do quarto, a balançar o corpo sobre as solas finas de cromo dos seus sapatos de pugilista. Ela ergueu imediatamente o fone, de novo, e lá de baixo o porteiro respondeu com uma voz diligente e serviçal, apesar de não ter pregado olho durante toda a noite, porque sua mulher não estava passando muito bem na clínica.

— Que número, por favor? — disse ele com voz enérgica.

— Wilhelm, sete, zero, dez! Com Herr Pimenoff! Pimenoff não estava hospedado no hotel, mas numa pensão de segunda classe, que uma família de imigrantes russos abrira no quarto andar de uma casa em Charlottenburg. Parece que lá ainda estavam dormindo. Enquanto a Grussinskaia esperava, viu em espírito o velho Pimenoff, correndo ao telefone com seu surradíssimo pijama de seda, com os pés magros, que ele mantinha sempre com as pontas um pouco abertas para fora, como se estivesse fazendo a quinta posição. Finalmente ele atendeu, com sua voz delicada e nervosa de velho.

— Ah, Pimenoff, é você? Bom dia, dobroie utro, meu caro! Sim, obrigada, dormi bem, não, não tomei muito veronal, só dois comprimidos; obrigada, tudo ali right, coração, cabeça, etc, etc. Como? O que aconteceu? O Michael está com um derrame de sangue no joelho? Mas, meu Deus, por que é que você não me disse isso ontem à noite? É horrível! Custa muito a passar, muito mesmo... Nós sabemos o quanto demora! E que providências você tomou? Como? Não fez nada, ainda? Mas é preciso mandar imediatamente um telegrama ao Tcherenov, ouviu? Imediatamente, ele precisa vir ajudar. Meyerheim que vá telegrafar. Onde está metido o Meyerheim? Vou chamá-lo logo pelo telefone. É cedo demais? Com licença, querido, por que razão para nós não é cedo demais, e para Herr Meyerheim... Não, por favor! E os cenários, já foram levados para a estação? Mas, por favor, com o primeiro despacho, quando começa a ser feito o primeiro despacho? Às seis? Se os cenários não estiverem lá, você é o responsável, Pimenoff. Nem uma palavra mais, você é o mestre de bailei, é quem deve cuidar dos cenários; não tenho nada que ver com isso. É, espero sua resposta dentro de meia hora no máximo, vá você mesmo à estação. Adieu!

Dessa vez ela nem chegou a pousar o fone; apenas fez pressão no gancho com dois dedos. Chamou Witte, que costumava levantar-se pela manhã um pouco apalermado, e que, apesar dos inúmeros anos de tournées, ficava sempre como uma pilha, e fazia uma confusão medonha. Depois, a Grussinskaia chamou Michael, que estava hospedado num hotelzinho e se pôs a lamentar-se como um cãozinho pisado, sobre o derrame de sangue. A Grussinskaia gritou-lhe severas ordens e conselhos pelo telefone; ela ficava furiosa, e era injusta sempre que qualquer elemento da troupe adoecia. Chamou três médicos, antes de encontrar um que pudesse ir ver logo o Michael, para dispensar-lhe os cuidados necessários e levar-lhe ligaduras com compressas de terra argilosa e vinagre. Chamou Meyerheim ao telefone, discutiu com ele num francês excitado, e intimou-o a comparecer às oito e meia no hotel para acertar as contas. Enviou pelo telefone um telegrama a Tcherenov e, por precaução, outro a um jovem bailarino, que dançava bem e estava sem contrato em Paris. Em seguida, com o auxílio do porteiro Senf, ligou para o expresso de Paris, pelo qual o jovem bailarino poderia chegar a tempo em Praga, e depois procurou passar um terceiro telegrama.

— Por favor, chéri, abra a torneira do banheiro — disse ela apressadamente a Gaigern, entre uma ligação e outra, matraqueando em seguida uma série de ordens em inglês, pelo telefone, ao chofer Berkley, porque o carro não devia seguir com eles, mas nesse meio tempo ir para uma garagem, a fim de ser limpo. Gaigern foi ao banheiro e obedeceu-lhe, abrindo a torneira. Fez mais ainda: estendeu sobre o aparelho de calefação o roupão de banho, para aquecê-lo. Procurou a esponja com que no dia anterior lavara o rosto desfigurado da Grussinskaia e levou-a para o banheiro, enquanto ela continuava a falar no telefone. Encontrou sais de banho e jogou um punhado na água, que já estava transbordando. Teria de bom grado feito mais alguma coisa para ela, mas não encontrou mais nada para fazer. A Grussinskaia também parecia ter terminado, por enquanto, seus telefonemas.

— Você está vendo?... todos os dias é assim — disse ela, procurando dar à voz uma entonação de queixa; mas sua voz só exprimia uma vitalidade exuberante e o prazer de arrumar as malas para a viagem.

— É preciso fazer isso tudo. E depois o Michael diz: há sempre espalhafato em torno da Grussinskaia. Ele dá a isso o nome de chi-chi, como se tudo não passasse de uma brincadeira.

Gaigern, de pé diante dela, estava faminto por um pouco de carinho, de intimidade, e estendeu-lhe ambas as mãos; mas ela estava distraída. Pensava no derrame de Michael. Ouvia de novo o tique-taque dos dois relógios.

Tomou depressa do telefone e chamou Suzette mais uma vez.

— Espere mais dez minutos, Suzette — pediu ela com muita cortesia, e com a consciência da própria culpa.

Seu olhar aflorou à mesa e à xícara de chá da noite anterior. Lá estava a xícara, muito bem lavada, com uma expressão de profunda inocência e candura, o brasão dourado do hotel a cintilar na porcelana grossa.

"Que noite maluca", pensou a Grussinskaia. "Não, essas coisas não se fazem. E bailados como os que imaginei hoje não se podem dançar. Foi apenas o resultado de uma excitação nervosa. Os vienenses me vaiariam se eu apresentasse bailados como imaginei, em vez da pomba ferida e das borboletas. Em Viena o público é diferente do de Berlim; lá eles sabem o que é ballet."

Apesar de Gaigern a estar olhando fixamente, de frente, ela não o via. Ele sentiu uma ligeira dor, desconhecida até então, uma dor estranha e viva, que lhe cortava a respiração.

— Tomilho! Neuwjada! — disse ele baixinho, indo buscar as palavras no profundo tumulto da noite. Elas conservavam seu perfume agridoce, e a inesquecível recordação. E, realmente, ao ouvir-se chamar desse modo, a Grussinskaia voltou a olhar para ele, e sua fisionomia assumiu uma expressão tensa de sofrimento, embora sorrisse.

— Acho que precisamos nos separar agora, querido — disse ela com um tom de voz propositadamente forte e inflexível, para evitar que a voz se quebrasse.

Havia esquecido, apagado por completo as lembranças das pérolas. Tinha apenas um sentimento de apego e aconchego, por essa mulher, um desejo infinito de ser bom para ela, muito, muito bom. Com uma sensação de desamparo, girou no dedo o anel de sinete com o brasão dos Gaigern, em lápis-lazúli.

— Tome — disse ele estendendo a mão e oferecendo-lhe o anel, com um gesto desajeitado de menino. — É para que você não se esqueça de mim.

"Não o verei mais?", pensou a Grussinskaia. Esse pensamento a fez sentir um ardor nos olhos, e a fisionomia bonita de Gaigern foi desaparecendo em meio das suas lágrimas. Esse era um pensamento que não se devia exprimir. Ela ficou esperando. "Deixe-me ficar com você. Vou ser muito bom para você", pensou Gaigern. Apertou os lábios com força e obstinação e não disse nada.

— Você vai para Viena? — perguntou ele.

— Primeiro para Praga, por três dias. Depois catorze dias em Viena. Vou ficar hospedada no Bristol — acrescentou.

Silêncio. Tique-taque de relógios. Buzinas de automóveis diante do hotel. Cheiro de enterro. O arfar da respiração.

— Você não pode viajar comigo, querido? Preciso de você — disse finalmente a Grussinskaia.

— Eu... para Praga não posso ir. Não tenho dinheiro. Preciso primeiro arranjar o dinheiro.

— Eu lhe dou — respondeu ela prontamente. Com a mesma pressa Gaigern respondeu:

— Não sou um gigolô!

De repente caíram ambos nos braços um do outro, impulsionados por qualquer coisa de grande, num abraço forte, unidos no momento em que tinham de se separar.

— Obrigado — disseram ao mesmo tempo —, obrigado, obrigado — repetiram em três línguas: alemão, russo e francês, num balbucio confuso, num tom de soluço, num sussurro .choroso, em júbilo: — Obrigada, merci, bolchoie spassibo, danke.

Nesse instante Suzette está recebendo das mãos do criado de quarto, com ar de ofendido, a bandeja com o chá. São sete horas e vinte e oito minutos. O relógio na escrivaninha corre, sem fôlego; o outro, de cansaço, parou. Continue, continue, continue, bate ele, em tom de reprimenda.

— Então, em Viena? — diz a Grussinskaia, com as bordas das pestanas úmidas. — Daqui a três dias? Você segue depois que eu partir. E depois se encontra comigo em Tremezzo; vai ser ótimo, vai ser maravilhoso estarmos juntos! Vou tirar umas férias, de seis a oito semanas, e nós vamos*viver, querido, vamos somente viver, deixando tudo para trás, tudo isso que não tem sentido; vamos apenas viver, ficaremos idiotas de tanta preguiça e felicidade; e depois você vai comigo para a América do Sul. Você já conhece o Rio? Eu... não, chega. Está na hora. Vá! Vá! Querido! Obrigada!

— Daqui a três dias o mais tardar — diz Gaigern. A Grussinskaia ainda faz pairar em seu redor, às pressas, um pouco da sua graça de dama da alta-roda.

— Tome cuidado para chegar ao seu quarto sem me comprometer muito — pediu ela, fechando as duas portas, uma após a outra.

Quando Gaigern, em silêncio, soltou a mão da mão dela, sentiu-a dolorida. Sangrava de novo. O corredor está silencioso, as inúmeras portas vão-se perdendo na longa perspectiva. Nas soleiras, as botinas dormem, com as orelhas pendidas. O elevador vem descendo e, no terceiro andar, alguém corre para não perder o trem. No hall da escada, uma das janelas de vidro leitoso está aberta, deixando sair para o pátio a fumaça dos cigarros dessa noite. Gaigern se esgueira, com suas solas de pugilista, por sobre o tapete de ananases; entra no 69, seu próprio quarto, e fecha a porta com uma gazua. A chave ainda está na caixa, na portaria.

A Grussinskaia, depois de tomar banho, deita-se de bom grado, para entregar-se às mãos de massagista de Suzette. Sente-se forte, elástica e cheia de energia. Tem uma vontade enorme de dançar, e está ansiosa pelo próximo espetáculo. Sente que terá sucesso agora, pois em Viena se tem sempre sucesso; ela o sente nas pernas, nas mãos, no pescoço, que inclina para trás, repentinamente, e na boca, que tem sempre desejos de sorrir. Veste-se e sai correndo, como um pião. Com enorme élan, atira-se às ocupações da manhã, à discussão com Meyerheim, à luta subterrânea com as perfídias da troupe, ao trabalho paciente com Pimenoff e Witte.


9

 

 

Às nove horas o groom 18 traz um buquê de rosas: "Até logo, querida boca", está escrito num pedacinho rasgado de papel do hotel. A Grussinskaia beija o anel de sinete com o brasão dos Gaigern. — Porte-bonheur — sussurra, como a falar com um velho conhecido. Agora ela já tem de novo um talismã. "Michael tem razão. Vou doar as pérolas... para as crianças pobres", pensa ela. Suzette segura com luvas de tricô a alça da suitcase, enquanto o criado leva o resto da bagagem. Sem saudades, a Grussinskaia deixa o quarto do hotel, tão cheio de aventuras, com aquela tapeçaria da parede que lhe fazia mal aos nervos. No Hotel Imperial de Praga já está reservado para ela um outro quarto com banheiro privativo dando para o pátio, o número 184. Também no Rio, em Paris, em Londres, em Buenos Aires, em Roma foi feita igual reserva; espera-a uma infindável perspectiva de quartos de hotel com portas duplas e água corrente, e o cheiro indefinível de incessante movimento e de coisas desconhecidas.

Às nove horas e dez a camareira, que não dormiu durante a noite, tira muito mal o pó do quarto 68, joga fora as cestas de flores secas, leva a xícara de chá e finalmente traz roupa de cama limpa — ainda úmida da passagem a ferro — para o próximo hóspede.

 

O relógio, pérfido como todos os despertadores, deixou de acordar o Diretor-Geral Preysing, com seu tilintar pontual e enérgico. Às sete e meia tilintou apenas durante um segundo, e isso foi tudo. Preysing, que dormia com a boca aberta e seca, mexeu-se ligeiramente, as molas do colchão gemeram, e por trás do reposteiro amarelo o sol brilhou um pouco. Às oito horas o porteiro, muito cumpridor de seus deveres, despertou o diretor chamando-o ao telefone, mas já era tardíssimo. Preysing pôs a cabeça meio tonta de sono embaixo da ducha, praguejando baixinho por ter-se esquecido de trazer o aparelho de barbear. Um pedante como ele perdia toda a alegria com uma coisa assim. Apesar de estar atrasado, levou alguns minutos escolhendo o terno que ia vestir. Depois de já ter escolhido o cut, despiu-o com raiva. Calculou — e talvez com razão — que não seria vantajoso vestir o cut; o terno cinzento de viagem, pelo contrário, demonstraria imediatamente aos senhores de Chemnitz que não estava tão interessado assim por todo aquele negócio. Apressou-se o mais que pôde, mas até que arrumasse todos os saquinhos e estojos, que procurasse todas as chavinhas, as encontrasse e enfiasse nas fechaduras, folheasse mais uma vez seus documentos e contasse mais uma vez o dinheiro, já eram mais de nove horas. Com a cabeça quente, saiu correndo do apartamento e, no corredor, deu um encontrão em um homem.

— Desculpe! — disse Preysing, parando diante da porta de seu quarto, para conseguir enfiar o outro braço no casaco.

— Não foi nada! — replicou o cavalheiro, continuando seu caminho sobre a passadeira. Preysing julgou reconhecer esse modo de manter as costas. Quando chegou ao elevador, o homem já ia descendo; o diretor pôde vê-lo também de frente e julgou reconhecê-lo igualmente, sem se recordar de onde. Teve a impressão de que ele sorria zombeteiramente, enquanto descia no elevador, diante do seu nariz. Preysing, excitado e impaciente, desceu a escada correndo e foi em disparada pelos corredores até o subterrâneo de azulejos, onde o barbeiro do hotel tinha o seu salão; ali cheirava a água estagnada de porão e a Peau d'Espagne. No salão estavam sentados muitos cavalheiros, metidos em batas brancas, como babies esperançosos, entregues às manipulações dos barbeiros vestidos com jaquetas brancas. Preysing, impaciente, começou a dançar sobre suas grossas solas de crepe.

— Vai demorar muito para chegar a minha vez? — perguntou ele, roçando o rosto por barbear, nas palmas das mãos.

— No máximo dez minutos. Há só um senhor na sua frente — responderam-lhe.

O tal senhor que havia chegado antes dele era o homem que descera no elevador, e Preysing olhou-o com desagrado. Era um sujeitinho insignificante, magro e modesto, meio vesgo por trás de uns óculos a escorregarem, e com o nariz pontudo inclinado sobre um jornal. Preysing tinha uma vaga ideia de já ter tratado de negócios com esse homem, mas não conseguia recordar-se em que circunstâncias. Postou-se diante dele, fez uma leve curvatura, e procurando ser amável disse:

— Por favor, o senhor podia me fazer a gentileza de me ceder a sua vez? Estou com muita pressa.

Kringelein, que se encolhera todo atrás do jornal, juntou suas forças. Mostrou a cara por trás do artigo de fundo, estendeu o pescoço fino, voltou-se para o diretor-geral olhando-o de frente e respondeu:

— Não!

— Desculpe... mas é que estou com muita pressa — tartamudeou Preysing em tom de reprimenda.

— Eu também — replicou Kringelein. Preysing, furioso, virou as costas e saiu do salão de barbeiro. Como um vencedor, um herói, mas completamente exausto e vazio pela desmedida tensão nervosa, Kringelein, ofegante, continuou sentado, envolto no aroma das essências dos sabões de barbear.

Atrasado, com a barba por fazer e com a ponta da língua doendo, por tê-la queimado no café fervendo, o diretor-geral entrou na sala de conferências. Os outros senhores já tinham soltado na sala uma bela fumaceira azul de charuto. A sala, com seu pano de mesa verde, a imitação de tapeçaria de damasco nas paredes e o retrato a óleo do fundador do Grande Hotel, tinha um aspecto de conforto e solidez. O Dr. Zinnowitz já havia colocado seus documentos na mesa, na sua frente; o velho Gerstenkorn estava sentado na cabeceira da compridíssima mesa, presidindo a sessão, e, para cumprimentar, ergueu apenas a metade do corpo, porque ele pertencia à geração robusta do sogro de Preysing, conhecera o diretor-geral ainda moço e não o tinha em grande conta.

— Está atrasado, Preysing? — perguntou ele. — Quarto de hora acadêmico? Não passou bem ontem de noite? É isso, Berlim tem dessas coisas! — riu-se com a tosse grossa e encatarrada dos bronquíticos, e apontou para a cadeira a seu lado.

Preysing sentou-se defronte de Schweimann com a desagradável impressão de ter levantado com o pé esquerdo, e seu lábio superior, sob o bigode, estava úmido antes mesmo de começar a luta. Schweimann, que tinha pálpebras espessas e uma boca grande e de lábios grossos, uma boca elástica de macaco, apresentou um terceiro senhor:

— O nosso síndico, o Dr. Waitz — disse ele.

O Dr. Waitz era jovem ainda; tinha um ar distraído, mas não o era em absoluto, e durante as conversações podia tornar-se bem desagradável, com sua voz dominadora e agressiva de trombeta. Tinha sido trazido também pelos senhores de Chemnitz.

— Nós já nos conhecemos — disse Preysing com pouco entusiasmo.

Schweimann ofereceu, por sobre a mesa, um charuto ao diretor-geral. O Dr. Zinnowitz tirou do bolso do colete uma caneta-tinteiro e a colocou à sua frente, ao lado dos documentos. Bem afastada, sentada à mesa, do outro lado da garrafa de água e dos copos que ofuscavam facilmente os olhos e vibravam sobre uma bandeja preta, sempre que passava lá fora algum ônibus, estava uma personagem apagada: a Flamm número um, com o bloco de estenografia na mão, envelhecida e insignificante, com uma leve penugem branca de traça nas faces, calada, cumpridora dos seus deveres, impossível de ser confundida com a Flamm número dois.

— Bonita caneta — observou Schweimann a Zinnowitz. — De que marca é? Muito bonita.

— Gosta? Recebi-a de Londres. É bonita, não é verdade? — respondeu Zinnowitz, escrevendo sua assinatura fluente num caderninho de notas. Todos olharam.

— Quanto custa uma caneta assim, se me permite perguntar-lhe? — informou-se Preysing, tirando sua própria caneta do bolso do colete e colocando-a na mesa. E todos os presentes olharam também para a caneta inglesa.

— Umas três libras, sem pagar a alfândega. Um conhecido me trouxe — esclareceu o Dr. Zinnowitz.

— Que coisa prática! Muito prática.

Todos estenderam as cabeças por sobre a mesa, como meninos de escola, e observaram a caneta-tinteiro de malaquita verde, de Londres. Esse objeto merecia de fato que cinco participantes adultos de uma conferência se ocupassem dele durante três minutos.

— Bem, agora vamos tratar de negócios — disse afinal o velho Gerstenkorn com sua voz encatarrada, e imediatamente o conselheiro Zinnowitz apoiou seus dedos alvacentos sobre a coberta verde da mesa e começou, com palavras fluentes e preparadas de antemão, uma exposição do assunto, fazendo ressoar a voz na atmosfera azul da sala de conferências.

Preysing permitiu-se uma pequena pausa para se acalmar. Ele próprio não era bom orador, e se sentia agradecido por Zinnowitz ter assumido essa tarefa, e por suas frases se ensarilharem, fluentes e claras, como atiradas por uma máquina. E isso não era mais que a introdução. Primeiro falou de coisas que já haviam sido há muito tempo ruminadas em negociações preliminares. Expôs mais uma vez a situação em que as negociações estavam, enquanto ia pescando, na pasta dos documentos, ora este ora aquele papel, levando as longas colunas de números bem próximo dos olhos míopes para poder lê-las com mais facilidade.

Tornando a repetir, era este o ponto em que estavam as negociações: a Algodoeira Saxônia S.A., que fabricava principalmente tecidos de algodão e cobertores, e com o refugo fabricava uma qualidade muito apreciada de serapilheira, era uma firma de boa envergadura e grande capital. Seu ativo em terrenos, prédios e maquinaria, em mercadorias em bruto e manufaturadas, em patentes, etc, e principalmente em crédito, totalizava um capital considerável. Os impostos anuais e o produto líquido conservavam-se numa sólida média, os dividendos haviam somado, ainda no ano passado, nove e meio por cento.

Zinnowitz ia lendo as cifras, mais ou menos satisfatórias, e Preysing o ouvia com agrado. No seu empreendimento estava tudo limpo e em ordem, e a produção com o refugo, que sozinha trazia trezentos mil em bruto, fora organizada por ele. Olhou para Gerstenkorn. Este, com a maneira pensativa e meio simplória dos velhos manhosos, balançava de um para outro lado a cabeça grisalha, à escovinha. Schweimann aspirava seu charuto, parecendo não estar ouvindo. Waitz controlava as cifras que eram lidas, uma a uma, olhando para um caderninho com capa de couro, onde ele tomara notas. A Flamm número um, verdadeira mestra, na arte da secretária particular, em não fazer notar sua presença, com olhar fixo fitava os reflexos na água, em que a caneta tomava o aspecto tremulante de uma pequena e aguda baioneta. Zinnowitz tirou outro maço de papéis de entre os documentos colocados uns sobre os outros e passou então a tratar da situação da Malharia de Chemnitz. Sua barba longa e fina de chinês subia e descia quando ele falava.

A Malharia de Chemnitz era — deduzia-se das cifras — um empreendimento muito menor. Mal possuía a metade desse ativo, e seu balanço demonstrava uma situação bastante precária. Ele tinha anotado apenas o principal, mas, não obstante, tivera de lançar uma elevadíssima participação de lucros. Os impostos anuais eram altos. O lucro líquido mal chegava à altura dos impostos. Considerando tudo isso, as cifras do balanço da Chemnitz mantinham-se espantosamente elevadas. Zinnowitz colocou um amável e pequeno sinal de interrogação por trás das últimas cifras que lera, e fitou o velho Gerstenkorn.

— Suba. Pode arredondar para duzentos e cinquenta mil marcos, pode fazê-lo.

— O senhor não pode fazer as contas assim — observou Preysing, que tinha ficado nervoso. — O senhor precisa amortizar o preço das novas máquinas para o novo processo. Nesse caso, o senhor não poderá anotar nem mesmo suas velhas máquinas.

— Mesmo assim. Mesmo assim — insistiu Gerstenkorn, teimoso.

O Dr. Waitz trombeteou:

— Poderemos considerar as nossas cifras muito mais desvalorizadas do que valorizadas.

O Dr. Zinnowitz pôs em cima da mesa um papel para o diretor-geral, e este, forçando a vista, aprofundou-se nos seus cálculos. O resultado ele já conhecia. A Malharia de Chemnitz era um empreendimento de pouca solidez, fundado com pouco capital, e com o crédito quase estourando. Mas impunha-se, tinha bons lucros, parecia estar se desenvolvendo, tinha as conjunturas a seu favor. Enquanto isso, a Algodoeira Saxônia ficava para trás, ia adormecendo, sólida e bem fundada como era. Algodão, cobertores e serapilheira. O mundo não se interessava, no momento, por cobertores e serapilheira. E o velho de Fredersdorf sabia por que razão ele insistia, nas atuais circunstâncias, em agarrar a oportunidade dos tecidos de malha, e trazer assim um lucro para o seu empreendimento.

— Isso não tem importância. Vamos adiante — disse o diretor, com a condescendência de um homem que está em posição inferior. Gerstenkorn tirou da mão dele o balanço e, alisando delicadamente o papel, tossiu uma risada.

Zinnowitz, com palavras fluentes, já havia tratado da situação das ações, havendo, nesse ponto, um erro evidente. O capital efetivo da Saxônia era quase duas vezes maior do que o ativo dos senhores de Chemnitz. Partindo dessa premissa, todas as outras negociações preliminares haviam decorrido de modo que, na fusão das duas firmas, duas ações da Chemnitz equivalessem a uma ação da Saxônia. Mas as ações da Chemnitz haviam subido, as da Saxônia baixado, o equilíbrio tinha-se modificado sensivelmente, e o Dr. Zinnowitz, com um gesto conciliante da mão, teve que conceder — a base das trocas se modificara, em razão da espantosa subida das ações da Malharia de Chemnitz. Preysing ouvia com desagrado a voz polida do seu advogado, que com muitas frases, impecáveis e condicionais, trazia à luz uma quantidade de coisas desagradáveis, que ele estava farto de saber. Seu charuto já não lhe dava mais prazer; tirou ainda algumas baforadas enérgicas, e acabou pondo-o de lado. Num certo ponto da exposição de Zinnowitz, o Dr. Waitz saltou, como um ator na sua deixa, bateu rapidamente com a palma da mão no pano verde da mesa, e opôs suas objeções. Começou a ler cifras no seu caderno de notas, sem olhá-lo sequer, novos números, números diferentes — Preysing contraiu de tal modo os músculos da testa, que seus olhos saltaram das órbitas, tal o esforço que fazia para conservar na memória todas aquelas coisas, para perceber tudo e não perder de vista o aspecto geral do assunto. Puxou para o seu lado alguns papéis de carta do hotel, que estavam em cima da mesa, e se pôs a rabiscar notas às escondidas, e excitado como um mau aluno. O conselheiro Zinnowitz, por seu lado, havia apenas lançado um olhar à Flamm número um, e a boa moça já estava a estenografar as agressivas palavras e provas no seu bloco, com riscos azuis. O Dr. Waitz apresentou o conjunto de suas trombeteadas objeções: não, não era possível exigir dos acionistas da Malharia de Chemnitz um prejuízo de metade do seu capital, no caso de tal fusão. Conforme sua opinião, não havia nenhum motivo plausível para, no caso de uma eventual fusão — ele frisou o "eventual", como um ator de província —, conceder a primazia à Saxônia, com relação à sociedade de Chemnitz, para de certo modo colocar num plano de dependência essa firma em plena florescência, para pô-la simplesmente a um canto.

Zinnowitz olhou para Preysing, e este, obediente, se pôs a falar. Tinha o hábito de falar de coisas importantes com voz nasal e abafada, num tom aborrecido e monótono; pelo fato de se sentir intimamente um homem pouco seguro de si, empregava tais meios para demonstrar aos outros calma e superioridade. As palmas de suas mãos estavam úmidas, quando se atirou à luta. Os olhos de Schweimann arrastaram-se para fora das órbitas vermelhas em que habitavam, como camundonguinhos cinzentos, e Gerstenkorn colocou os polegares nas cavas do colete, com a expressão de uma pessoa que está se divertindo. As paredes de damasco falso ouviam tudo, com indiferença. Conferências como essa se realizavam diariamente no Grande Hotel; nesse enorme Kaff eram cozidas muitas sopas, que em seguida os acionistas tinham que engolir. O açúcar subia de preço, as meias de seda barateavam, o carvão desaparecia, tudo isso e milhares de coisas mais dependiam do decorrer dessas lutas na sala de conferências do Grande Hotel.

Preysing ia falando. Quanto mais ele falava, com uma voz que ressoava como se a tivesse posto sobre a neve, e quanto mais minucioso se tornava, tanto mais perdia terreno. As interrupções breves e concludentes de Gerstenkorn assobiavam por entre suas frases como balas de revólver. Houve momentos em que Preysing teria de bom grado fugido dali, meia-volta, marchar, marchar, abandonando toda essa história imunda de fusão, para voltar para a companhia de Mulle, Pepsin e Babe, em Fredersdorf. Mas era um diretor-geral, e o mundo não era um negócio tão simples assim; dessa fusão muito se esperava para a fábrica, e dela dependia tudo para a sua própria posição dentro da fábrica, pelo que aguentou o repuxo. Puxou mais uma vez do seu ativo, essa prova mais do que sólida de um empreendimento mais do que sólido, e se agarrou a isso com unhas e dentes. Caceteou os senhores da Chemnitz, caindo em pormenores excessivos, e o conselheiro precisou por várias vezes pô-lo em movimento, como a um barco encalhado e lento. Preysing fazia uma confusão medonha, insistia em alguns pontos secundários, teimava sem a mínima razão; caceteava os senhores da Chemnitz com minuciosas descrições da fabricação de tecido de serapilheira, feito com refugo do material, pois era do que mais gostava de falar, esquecendo-se de aludir a assuntos importantes que tinha sublinhado no papel de carta diante dele. Finalmente ficou parado no meio de uma frase que começara como. uma fanfarra e terminou num beco sem saída. Tirou do bolso o lenço e enxugou o suor do bigode; pôs na boca um novo charuto, que tinha gosto de feno. De repente teve a impressão de estar sentado em uma mesa entre contrabandistas, pessoas sem seriedade e sem princípios; sentiu a amargura do homem honesto que e tido por tolo.

Então, Gerstenkorn tirou das cavas do colete seus dedos redondos de burguês atrasado e começou a expor a sua opinião. Esse senhor Gerstenkorn, com sua cabeça quadrada à escovinha e sua voz bronquial, era um orador claro e combativo. Empregava toda espécie de dialetos, para dizer sem rodeios o que queria dizer. Saxão, berlinês, iídiche e mecklemburguês eram o tempero da sua conversa sobre negócios.

— Agora o senhor faça ponto final, e deixe os adultos falarem — observou ele, conservando na boca o charuto, o que tornava sua linguagem, comumente vulgar, mais vulgar ainda, e era o que ele queria. — As coisas de que a Saxônia é capaz o senhor já nos contou, e nós já sabíamos disso tudo. Música também ela não sabe fazer. Já repetimos e tornamos a repetir isso tudo aos nossos principais acionistas, e qual foi o resultado? Receio, um enorme receio, um fundamentado receio da fusão. É engraçado, como é que os acionistas, por causa do seu algodão, iriam meter a mão no caldeirão para tirar as salsichas quentes? Em poucas palavras: a nossa situação melhorou muito desde a primeira vez que o senhor se dirigiu a nós. A sua situação não se modificou, se quisermos ser amáveis e não dissermos que piorou. Nessas condições, nós, falo em alemão claro, meu prezado Preysing, perdemos o interesse na fusão. E estamos aqui com a incumbência de parar com as negociações, nessas circunstâncias. Quando o senhor se dirigiu a nós, as perspectivas eram outras.

— Mas nós não nos dirigimos aos senhores — disse Preysing com rapidez.

— Homem de Deus, o que aconteceu com o senhor? Dirigiram-se a nós, sim! Dr. Waitz, faça o favor de me passar os dados. O senhor dirigiu-se a nós em... aqui está... em 14 de setembro, por carta.

— Não é verdade — teimou Preysing, puxando o maço de documentos que estava diante do conselheiro Zinnowitz. — Nós não nos dirigimos aos senhores. Antes dessa carta já tinha havido uma troca pessoal de impressões, pedida pelos senhores.

— Trata-se disso? Pois um mês antes o seu velho já tinha batido à minha porta, a título particular, com toda a amabilidade.

— Nós não nos dirigimos em primeiro lugar — respondeu Preysing, apegando-se a esse fato absolutamente sem importância, como se isso pudesse salvar alguma coisa. Zinnowitz bateu com os pés estreitos debaixo da mesa, pedindo socorro. De repente, Gerstenkorn pôs fim à discussão, e passou a palma da mão quadrada sobre o pano verde da mesa.

— Está bem — disse ele —, bon. Pois então não se dirigiram, se assim lhe agrada. E, tenham ou não se dirigido, as circunstâncias naquela época eram diferentes, o senhor tem que concordar, Herr diretor-geral — ele disse "Herr diretor-geral", e a mudança da maneira amistosa de falar para esse tom oficial soava ameaçadoramente. — Naquela época tínhamos motivos para desejar uma sociedade com a Algodoeira Saxônia. Hoje, que motivos temos?

— Os senhores precisam de um capital maior — disse Preysing, com toda a razão.

Gerstenkorn, com dois dedos, varreu da mesa a objeção.

— Capital! Capital! Se emitirmos hoje novas ações nos atirarão quanto dinheiro quisermos. Capital! O senhor se esquece de uma coisa: o seu bom tempo foi durante a guerra, naquela ocasião a gente podia arranjar a vida fazendo tecido para o Exército e cobertores. Agora o tempo está bom para nós, entende? Nós não precisamos de capital. Precisamos de matéria-prima barata, para aproveitar o nosso novo processo, e precisamos de novos mercados no exterior. Digo-lhe com toda a franqueza, e diretamente, a opinião da nossa sociedade, Herr diretor-geral. Se a fusão com os senhores for proveitosa para nós, então a concretizaremos. Do contrário, não a faremos. Faça o favor, diga o que pensa sobre isso.

Pobre Preysing! Tinha que expor o seu pensamento. Agora haviam chegado naquele ponto que o amedrontava, desde que pisara o trem misto em Fredersdorf. Lançou um olhar de coelho a Zinnowitz, mas este olhou com um ar de recusa as próprias unhas, bem tratadas e pálidas.

— Não é nenhum segredo o fato de possuirmos ótimas relações no exterior. Só para os Bálcãs exportamos anualmente sessenta e cinco mil marcos de tecido de serapilheira — observou ele. — É natural que, no caso de uma fusão, faríamos o possível para atrair ainda o mercado externo para o produto de malha manufaturado.

— Quais são os motivos que o levam a afirmar isso com tanta certeza? — perguntou o Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, erguendo um pouco o busto, conforme um antigo hábito seu, do tempo em que fora juiz criminal. Dava a impressão de ainda usar a toga, e falava num tom de voz próprio para intimidar a testemunha insegura. O diretor-geral se deixou intimidar.

— Não sei a que motivos se refere — respondeu ele, com seu lamentável costume de perguntar coisas que estava farto de saber.

Schweimann, bem em frente dele, ainda não tinha aberto sua enorme e elástica boca de macaco. Agora a abria.

— Trata-se da planejada sociedade com Burleigh & Son — afirmou ele, sem rodeios.

Gerstenkorn balançava com a máxima atenção a longa ponta de cinza do seu charuto.

— Infelizmente, não estou em condições de dar informações a esse respeito — respondeu Preysing imediatamente. Preparara de antemão essa resposta, e a sabia de cor.

— Que pena! — disse o velho Gerstenkorn.

Em seguida ficaram todos calados durante alguns minutos.

A garrafa de água tilintou levemente na bandeja, porque lá fora passava um ônibus, e o reflexo estreito e contorcido do sol batendo na água parada tremulou na parede sobre a moldura do retrato a óleo do fundador do Grande Hotel. Preysing, durante alguns segundos, se pôs a refletir febrilmente. Não sabia se o Dr. Zinnowitz havia mostrado ao pessoal da Chemnitz as cópias daquelas cartas agourentas, sem o menor valor e importância. Sentia novamente nas mãos aquela impressão de falta de asseio e de trato. Seu rosto por barbear começou a cocar de um modo ridículo. Lançou um olhar inquiridor e implorante ao conselheiro, lá na ponta da mesa. Zinnowitz, procurando acalmá-lo, baixou as pálpebras oblíquas e inteligentes de seus olhos de chinês, um movimento quase invisível, que tanto podia significar sim, como não, ou mesmo não significar absolutamente nada. Preysing dominou-se. "Preciso consegui-lo", pensou ele; era mais um sentimento do que um pensamento.

— Meus senhores — disse ele, levantando-se; é que o forro esticado de veludo da cadeira causava no seu traseiro uma sensação desagradável de calor —, mas, meus senhores, vamos tratar do que importa. A base sobre a qual foram feitas até agora todas as negociações entre nós foi o balanço e a situação da fábrica de Fredersdorf. Os senhores puderam fazer uma ideia bem clara da situação, o senhor conselheiro comercial Gerstenkorn pôde certificar-se pessoalmente das condições em que se encontra a nossa fábrica, e eu faço questão de que hoje não se trate de coisas vagas e imponderáveis nas nossas negociações. Não somos especuladores, eu não sou um especulador, em absoluto, trabalho com fatos e não com boatos. Não passa de um boato da Bolsa, isso de que vamos fazer sociedade com Burleigh & Son, em Manchester. Mandei desmentir isso, não posso permitir que...

— O senhor não vai querer ensinar uma lebre velha a correr, não é? Nós sabemos muito bem o que significa um démenti — replicou Gerstenkorn.

Schweimann agora estava animado; farejava, com as suas narinas dilatadas e a boca de macaco, como se já cheirasse a possibilidade do mercado inglês. Preysing foi-se enfurecendo.

— Não aceito! — exclamou ele. — Não aceito que considerem como um fator importante nos nossos negócios esse assunto da Inglaterra; não aceito isso. Não faço cálculos com castelos na Lua, nunca fiz isso, a nossa fábrica não tem necessidade de fazer semelhante coisa. Conto com coisas reais, com fatos, com cifras, com o nosso balanço, aqui está — exclamou ele batendo três vezes com a palma da mão na pilha de documentos que se encontrava diante dele —, é isso que tem valor... e não permito que se trate de outra coisa. Nós oferecemos agora o que oferecemos desde o primeiro dia, e se isso de repente não basta para a sua firma, sinto muito!

Parou espantado, pois tinha galopado como se corresse sobre um pântano. "Estou assustando os outros com a minha gritaria", pensou ele horrorizado, "preciso atraí-los, e em vez disso estou estragando tudo." Encheu o copo de água e bebeu. Era um líquido grosso, morno e sem sabor, como óleo de rícino. O conselheiro Zinnowitz deu uma risadinha e tentou endireitar a coisa.

— O diretor-geral Preysing é de uma consciência modelar — declarou ele. — Não sei, mas talvez os seus receios de levar de certo modo em consideração o negócio com Manchester sejam injustificados, pelo menos exagerados. Por que não se poderá deixar pesar na balança uma coisa que oferece tão boas perspectivas, mesmo que isso ainda não esteja em preto no branco? Por que...

— Por quê? Porque não posso me responsabilizar por isso — interrompeu-o Preysing. Zinnowitz, que teria de bom grado lhe pisado no pé, mas não o podia fazer, ergueu a voz, dirigindo-se ao diretor-geral. Preysing sentou-se de novo no assento quente da cadeira de veludo, e não disse mais nada. Esteve a ponto de declarar a verdade. Bom, se Zinnowitz não o deixava falar, então o célebre perito em matéria comercial que se arranjasse como pudesse. "A coisa vai mal", pensou Preysing, "já não tem mais conserto, está tudo acabado, morto e enterrado. As negociações fracassaram definitivamente. Está bem." Oferecera a todo mundo uma firma sólida, e tudo que um homem correto pode oferecer. Mas o mundo não queria coisas assim. O mundo queria mercados fictícios, boatos falsos, especulações, por trás dos quais nada havia, a não ser um pouquinho de fanfarronice. Artigos de malha, jumper e sweater, meias de cores variadas de Chemnitz, pensou o diretor-geral, amargurado... E chegou a ver realmente, nesse momento, tais coisas, modernas, coloridas e levianas, que conquistavam o mundo no corpo de moças também levianas.

Zinnowitz continuava o seu sermão; Flamm caíra de novo em sua letargia profissional. Gerstenkorn e Schweimann, no entanto, mal ouviam; com a cabeça metida entre os ombros, conversavam sem nenhuma delicadeza, a meia voz, sobre um assunto qualquer.

— O nosso amigo Preysing — recomeçou o conselheiro — talvez vá um pouco longe demais com os seus escrúpulos. Dizem que a sua fábrica está para firmar um contrato muito vantajoso com a próspera e antiga firma Burleigh & Son. E que faz o nosso caro Preysing? Procura negar isso, como se acaso se tratasse de uma bancarrota. Considerando que se trate apenas de um boato... não há boato algum que não contenha um fundo de verdade, todos nós sabemos. E um velho homem de negócios como o conselheiro comercial Gerstenkorn há de concordar que há boatos que têm mais valor do que muito contrato pronto e assinado. Mas como antigo advogado da fábrica de Fredersdorf, posso afirmar: isso é mais do que um boato, há certos ajustes por trás disso. Desculpe-me, caro Preysing, se não guardo a discrição férrea que o senhor guarda. Não tem nenhum sentido insistir em negar, desde que já se realizaram inúmeros entendimentos a esse respeito. Talvez hoje ainda não se possa saber com certeza se eles conduziram a um resultado positivo. Mas isso é um fato, e um fato menos desfavorável do que o seu balanço. Acho extremamente correto e delicado Herr Preysing não querer juntar ao ativo da sua fábrica esse fato, acho isso realmente de uma correção e distinção fora do comum. Mas dessa maneira não se vai para a frente. Desculpe-me, portanto, se eu confio essas coisas a estes senhores.

Zinnowitz continuou a murmurar um palavreado conciliante, com muitos "no entanto" e "como também" e “se acaso" e "por outro lado". Preysing tinha empalidecido; teve a sensação, ao sentir nas fontes uma pontada do sangue a fugir, o sentimento de que havia realmente empalidecido. "Ele lhes mostrou as cartas", pensou. "Mas, Deus do céu, isso já é intriga, já é quase uma fraude. Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann", pensou ele, enxergando as letras azul-escuras e apagadas do telegrama. Meteu a mão no bolso do colete do seu terno cinzento de funcionário, onde guardara o telegrama, mas retirou-a no mesmo instante, como se a tivesse metido num forno quente. "Se eu agora não me levantar imediatamente, e não disser o que está se passando, então a coisa está perdida", pensou, levantando-se. "Porém, se eu falar agora, estes senhores se afastarão, a fusão vai por água abaixo e eu voltarei para Fredersdorf completamente desacreditado", refletiu, sentando-se de novo. Procurou disfarçar seus movimentos indecisos e inoportunos, e, colocando água num copo até o meio, sorveu-a, como se fosse um remédio.

Enquanto isso, Schweimann e Gerstenkorn tinham-se animado. Eram duas cabeças de comerciantes, finórias e lustrosas de unção. Sua atenção foi despertada para o fato de Preysing ter negado com tanta veemência o negócio com a Inglaterra, tentando pôr de lado o assunto. Seu olfato sentia alguma outra coisa por trás disso: mercados, proveitos, talvez concorrência. Gerstenkorn teve uma ideia, que murmurou à enorme orelha direita de Schweimann:

— Se se tratasse de qualquer outra pessoa, um desmentido assim seria quase o mesmo que uma afirmação. Mas com esse animal que é o Preysing, é possível até que ele esteja falando a verdade.

Gerstenkorn deu uma investida brutal.

— Não adianta o conselheiro estar gastando o seu latim — disse ele, inclinando-se sobre a mesa. — Antes de continuarmos a nossa conversação, quero pedir a Herr Preysing o favor de nos dizer sem rodeios até que ponto chegaram as negociações com Burleigh & Son.

— Recuso-me a isso — afirmou Preysing.

— Insisto, caso continuemos a negociar — retrucou Gerstenkorn.

— Então — replicou Preysing — peço-lhe que, no decorrer das negociações, esse assunto seja dado por encerrado.

— Nesse caso preciso admitir que as perspectivas de sociedade com Burleigh & Son malograram? — perguntou Gerstenkorn.

— Admita o que bem lhe parecer — respondeu Preysing.

Em seguida todos se calaram por quase um minuto. Flamm número um folheou discretamente o seu bloco de estenografia, e o ruído delicado das folhas de papel que ela virava ressoou no silêncio da sala de conferências. Preysing parecia um bebezinho zangado; às vezes, sucedia meter a cabeça por trás da fisionomia do diretor-geral um menino cabeçudo e teimoso. Zinnowitz, com a sua caneta de malaquita, desenhava resignados triângulos na capa de um documento.

— Acho que por enquanto não tem sentido nenhum continuarmos a nossa conversa — disse finalmente Gerstenkorn. — Acho que podemos continuar a nos entender por escrito.

Ele se levantou, e a sua cadeira deixou sulcos fundos no tapete espesso, legítimo, da sólida sala de conferências. Mas Preysing continuou sentado. Tirou cuidadosamente um charuto do bolso, cortou-lhe a ponta cerimoniosamente, acendeu, tirou uma tragada e começou a fumar, com uma expressão absorta e profundamente pensativa; suas bochechas se tinham avermelhado, cheias de veiazinhas salientes.

Não há dúvida de que o Diretor-Geral Preysing é um homem honestíssimo, de caráter, bom esposo e bom pai, um homem ordeiro e organizado, da mais consolidada burguesia. Sua vida está toda em ordem, tudo registrado e em cartas, oferecendo um aspecto agradável: uma vida de caixas de fichas, de pastas de documentos, de muitas gavetas e muito trabalho. Preysing nunca cometeu a mínima falta de correção. No entanto, deve existir nele um ponto fraco, onde a vida o quer segurar e abater; uma insignificante inflamação, uma manchinha microscópica na limpeza burguesa de seus trajes, deve existir, no entanto...

Ele não chamou por socorro, nesse momento em que a conferência se interrompeu, apesar de se sentir muito mal, com a sensação de que precisava pedir auxílio e gritar por socorro. Levantou-se com o charuto na boca, segurando-o fortemente entre os dentes, e teve a impressão perfeita de estar bêbado, quando pôs as mãos nos bolsos.

— Que pena — disse ele negligentemente, admirando-se do tom despreocupado dessa frase que roçou subitamente o charuto em sua boca. — É realmente pena. Adiar é o mesmo que terminar. Pois então, ponto final. E agora que os senhores desistiram do negócio, posso dizer-lhes que o contrato com Burleigh & Son está firmado. Desde ontem à noite. Recebi hoje de manhã a notícia.

Tirou a mão do bolso do colete, e nela estava metido o telegrama dobrado: Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann. Foi tomado de um infantil e triunfal prazer de enganar os outros, enquanto dizia aquela mentira enorme, que raiava a fraude, e punha o telegrama sobre o pano verde da mesa. Ele próprio não sabia se queria passar um blefe nos outros ou estava procurando uma boa saída para sua posição desacreditada. Schweimann, o mais indisciplinado dos dois homens da Chemnitz, estendeu o braço, num movimento instintivo para pegar o telegrama. Preysing, muito calmo, abriu o telegrama, dobrou-o novamente, e, com um gesto calmo e refletido, meteu-o de novo no bolso do colete. O Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, fez uma cara de idiota. O conselheiro Zinnowitz soltou um assobio leve e agudo, realmente estranhável, partindo da sua boca sábia de chinês.

Gerstenkorn começou a rir, com acessos de tosse bronquial.

— Meu caro — tossiu ele —, caríssimo! O senhor é muito mais sabido do que parece! Homem de Deus! O senhor nos pregou uma boa! Olhe aqui, precisamos conversar sobre isso!

Gerstenkorn se sentou. O diretor-geral, ainda por alguns segundos com um sentimento de vazio, como se todos os seus ossos tivessem ficado ocos e como se sentisse um esquisito e brando tremor nos joelhos, sentou-se também. Tinha mentido pela primeira vez na vida, e ainda por cima de um modo idiota, completamente simplório e sem base. E com essa mentira — justamente com ela — havia conseguido pela primeira vez, após tantos fracassos, impor-se de novo. De repente ouviu a própria voz a falar, e a falar bem. Sentiu-se tomado de uma estranha e desconhecida embriaguez; ouvia a própria voz, e tudo o que dizia tinha pés e cabeça, energia e visão. O fundador do Grande Hotel olhava fixamente para ele, muito admirado, lá do alto do seu retrato a óleo, com seus olhos pintados cintilantes. A Flamm número um curvara o rosto penugento sobre o bloco de estenografia, e estenografava rapidamente — porque agora, parecia, chegariam a um acordo final, cada palavra proferida se tornava importante.

Até o fim da conferência, que durou ainda três horas e vinte minutos, Preysing conservou-se nesse novo estado de ânimo, que lhe dava a impressão de estar voando. E só quando pegou a caneta-tinteiro de malaquita verde para assinar seu nome ao lado da assinatura de Gerstenkorn, no contrato prévio, notou que as suas mãos estavam úmidas e estranhamente sujas.


10

— O 218 quer que o despertem às nove horas — disse o porteiro ao praticante Georgi.

— Ele vai embora? — perguntou o rapazinho.

— Embora por quê? Qual nada, ele vai ficar.

— Pensei que ia. Ele nunca pediu que o acordassem ... — disse Georgi.

— Pois agora pode acordá-lo — respondeu o porteiro.

E assim, às nove horas em ponto, o telefone tilintou no quartinho ridiculamente minúsculo do Dr. Otternschlag.

Apressado como um homem cheio de ocupações, Otternschlag esforçou-se por libertar-se da nebulosidade dos sonhos e despertar, e em seguida admirou-se de estar acordado.

— O que foi? — perguntou a si próprio e ao telefone. — O que foi?

Depois ficou em silêncio durante alguns minutos, concentrando-se e procurando lembrar-se, com o rosto desfigurado encostado no linho macio do travesseiro do hotel. "Atenção", pensou ele, "é aquele homem, é o Kringelein, esse coitado. Precisamos mostrar-lhe o que é a vida. Ele está à minha espera. Já está sentado à mesa, na sala do café, esperando."

— Vamos levantar-nos e nos aprontar? — perguntou a si mesmo. — Vamos sim — respondeu depois de fazer um esforço, porque ainda tinha uma bela dose de morfina nos ossos. Apesar disso, seu rosto e seus movimentos, enquanto se vestia, pareciam exprimir um certo entusiasmo. Alguém esperava por ele. Alguém precisava dele. Alguém lhe demonstrava gratidão. Com um pé de meia na mão, sentado na beira da cama, começou a fazer planos e decidir o que fazer. Fez o programa para o dia, ocupado como um guia de viagens, um mentor, um homem importante e procurado. A camareira que tinha ido buscar no quarto vizinho ao 218 a vassoura e o balde ouviu, admiradíssima, o Dr. Otternschlag cantarolar com voz incerta uma melodia, enquanto ia escovando os dentes.

Entretanto, Kringelein se encontrava na sala de café, ainda exausto, excitado e animado, após sua cansativa vitória sobre o senhor Diretor-Geral Preysing, no barbeiro; há dez minutos tinha travado relações, com extremo prazer, com o Barão von Gaigern, relações distintas, encantadoras. Gaigern tinha agido depressa. Saíra da noite com a Grussinskaia sem as pérolas, e passara diretamente a uma explicação murmurada, mas dura como granito, com o chofer. Logo em seguida — após tomar banho, fazer ginástica e friccionar o corpo com água de alfazema — atirara-se sobre o senhor provinciano do 70, com o qual ele talvez pudesse arranjar de um modo ou de outro os milhares de marcos de que precisava com mais premência. Estava transbordando de impaciência, uma impaciência radiante de felicidade, tensa e ardente. Havia-se separado da Grussinskaia há uma hora apenas, e já sentia uma saudade louca, uma saudade alegre e delicada. Sua cabeça queria estar de novo com ela, sua pele, seus dedos, seus lábios, tudo a desejava novamente, o mais depressa possível. Gaigern sorveu, faminto de vida e de energia, esse sentimento desconhecido como costumava acolher dentro de si as novas experiências. O élan com que ele aguardava a tentativa com Kringelein era enorme. Com uma rapidez que se poderia chamar de tempo recorde, em quinze minutos conseguiu ganhar uma grande dose de confiança. Esmagado, Kringelein abriu sua pequena alma de funcionário, indecisa, ansiosa de vida e preparada para a morte — e o que ele não disse ou não soube exprimir Gaigern adivinhou. Quando Kringelein, às nove horas e catorze minutos, limpou no pequeno guardanapo do hotel o seu esforçado bigode, os dois já eram amigos.

— Imagine, senhor barão — dizia Kringelein —, imagine que eu tenha recebido por acaso algum dinheiro, depois de ter vivido sempre uma vida modestíssima, realmente modestíssima. Uma pessoa como o senhor barão não pode fazer sequer uma ideia de uma vida assim. É o medo da conta do carvão, o senhor compreende? Ou então não se pode ir ao dentista, vai-se deixando de um ano para outro, e de repente perdem-se quase todos os dentes, não se sabe como. Mas não quero falar dessas coisas. Anteontem comi pela primeira vez na vida caviar, ou coisa parecida. Quando o nosso diretor-geral tem reuniões em casa, manda vir caviar de Dresden, aos quilos. Bem, caviar, champanha e todos esses luxos não são a vida, dirá o senhor barão. Mas o que é a vida? Veja, barão, eu não sou mais um homem moço, sou meio doente, e de repente fiquei com receio de não poder aproveitar a vida. Eu não quero deixar passar a vida sem aproveitá-la, o senhor compreende?

— Nunca deixamos de aproveitar a vida! Ela está sempre ao nosso dispor, nós vivemos e é quanto basta. A gente vai vivendo, é isso — disse Gaigern.

Kringelein fitou aquele moço bonito e animado, e talvez suas olheiras, por detrás dos óculos, se tenham ruborizado um pouco.

— Pois é. Naturalmente, para o senhor, a vida está sempre presente, cada minuto que passa. Mas para gente como nós...? — disse ele baixinho.

— É engraçado. O senhor fala da vida como se ela fosse um trem que vai passando, e que o deixa para trás. Há quanto tempo o senhor anda atrás dela? Há três dias? E ainda não conseguiu pegá-la pela cauda, apesar do champanha e do caviar? O que o senhor fez ontem, por exemplo? Museu Kaiser-Friedrich, Potsdam, à noite teatro? Meu Deus do céu! Do que foi que mais gostou? De que quadro? Como? Não reparou... naturalmente. E no teatro... a Grussinskaia? É... a Grussinskaia — repetiu Gaigern, sentindo no coração, ao pronunciar esse nome, um calor repentino, como se fosse um rapazinho tolo. — O que está dizendo? O senhor ficou triste, era tão poético? Pois é, é mais ou menos isso. Mas tudo isso não tem nada que ver com a vida, senhor diretor. — Dizia "senhor diretor" por pura amabilidade, porque não gostou do nome de Kringelein, ridículo e desataviado; e Kringelein corou, feliz e intrujão. — A vida, a vida é... veja: às vezes encontram-se na rua esses caldeirões de piche, fervendo, em ebulição, soltando fumaça, fedendo como a peste a quilômetros de distância. Mas aproxime-se de um caldeirão desses e conserve a cabeça sobre ele, meta o nariz na fumaceira do alcatrão. É uma coisa estupenda, quente, com um cheiro forte e acre, que quase nos derruba no chão, e as gotas grossas e pretas brilham, e há força ali dentro, nada de doçuras nem de coisas insossas. Ah! Caviar! O senhor quer aproveitar a vida, e se eu lhe perguntar que cor têm os bondes de Berlim, o senhor não sabe, porque nunca reparou neles. Aliás, ouça, senhor diretor: com uma gravata como a sua, o senhor nunca poderá tomar o trem da vida; dentro de um terno como o seu ninguém pode se sentir feliz. Digo-lhe isso abertamente, porque não tem sentido nenhum ficar fazendo cumprimentos. Se o senhor confiar um pouco em mim, para apressar as coisas, precisamos primeiro ir ao alfaiate. O senhor está com dinheiro, livro de cheques... não. Faça o favor de arranjar dinheiro, mesmo! Enquanto isso eu vou buscar o meu carro na garagem. O meu chofer está de licença, deixei que o rapaz fosse ver a noiva em Springe; eu mesmo vou guiar.

Kringelein tinha a impressão de que um vento forte lhe batia nos ouvidos. A observação a respeito da sua gravata — comprada por dois marcos e cinquenta — e o seu bonito terno, na verdade, o haviam magoado. Pôs timidamente a mão no colarinho, largo demais.

— Pois é — disse Gaigern —, é muito grande, e vê-se o botão. Assim não pode, naturalmente!

— É que eu pensei... Eu não queria gastar dinheiro em roupa — murmurou Kringelein, vendo bailar vertiginosamente as cifras em seu caderno de notas. — Em outras coisas eu gasto de boa vontade, mas não em roupa.

— E por que não em roupa? Isso é o principal.

— Porque... não vale mais a pena — respondeu Kringelein, baixinho, com as amaldiçoadas lágrimas soltas a queimar-lhe de novo o canto dos olhos. Que maldição! Ele não podia se lembrar do seu fim próximo sem ficar comovido. Gaigern olhou para ele, descontente. — Não vale a pena, realmente... quero dizer... não terei por muito tempo a oportunidade de usar roupas novas. Pensei que... que as velhas ainda fossem servindo — sussurrou com um sentimento de culpa.

"Meu Deus, será que todos os homens têm uma xícara de chá com veronal preparada para tomar?", pensou Gaigern, a quem as carícias dessa noite haviam tornado sensível.

— Não se deve calcular assim — disse ele amavelmente. — Não se deve calcular, Herr Kringelein. Os cálculos nos saem errados. No momento adequado o senhor deve estar com a disposição adequada. Eu sou um homem do momento, e tenho-me dado bem com isso. Vamos, ponha no bolso algumas notas de mil marcos, e depois veremos se a vida não é uma coisa divertida. Avante!

Kringelein se levantou, obediente; tinha a sensação de rodopiar perigosamente dentro do turbilhão de uma cratera. "Algumas notas de mil marcos", pensou ele, como se estivesse atrás de um nevoeiro. Já estava acompanhando Gaigern, enquanto seus pensamentos ainda resistiam, e as paredes da sala de café dançavam à sua volta. Os pés desenraizados de Kringelein, metidos nas botinas de cano alto, iam tropeçando passivamente pelos corredores do hotel; ele sentia medo. Sentia um medo doido de Gaigern, das despesas, do alfaiate caro, tinha medo do automóvel cinza-claro, em que se meteram no assento da frente, perto da direção, tinha medo da vida que, no entanto, não queria deixar de aproveitar. Apertou com energia seus molares estragados, calçou as luvas de tricô, e começou seu dia feliz.

O Dr. Otternschlag, que às dez para as dez andava ao longo das paredes do hall, à procura de Kringelein, recebeu do porteiro uma carta entregue pessoalmente.

Prezado Dr. Otternschlag! — estava escrito. — Infelizmente, por motivos imprevistos, vejo-me impedido de comparecer ao nosso encontro. Saudações respeitosas do amigo At. Obr. Otto Kringelein.

O estilo era de Kringelein, ainda, mas sua ortografia tinha-se modificado um pouco. Na escrita fluente de guarda-livros, haviam-se imiscuído uns traços informes, e os pingos dos ii pareciam querer voar como balões que se desprendem do fio para estourar nos céus, solitários e com um pequenino e trágico estampido que ninguém ouve.

O Dr. Otternschlag ficou com a mão estendida, segurando a carta. O hall era um deserto, cheio de horas infindáveis e vazias. Passou pelo balcão dos jornais, pelas flores, por pessoas que saíam do elevador, pelas colunas, até chegar ao seu lugar habitual. "Horrível", pensou ele. "Terrível. Medonho." As pontas de seus dedos, plúmbeas e cor de fumo, lhe pendiam das mãos, e com o olho cego ele fitava a mulher da limpeza que, em desacordo com os regulamentos, começava a varrer com serragem úmida, em pleno dia, o hall do Grande Hotel.

É intensa a angústia que Kringelein sente, de pé, na sala de provas da enorme alfaiataria para homens. Três elegantes cavalheiros estão ao seu redor, ocupadíssimos, e doze Kringelein deploráveis refletem-se nos espelhos, aproximando-se uns dos outros em ângulos agudos. Um senhor elegante está ao lado, observando Herr Kringelein com as pálpebras meio cerradas, um olhar de conhecedor, e murmurando palavras incompreensíveis. Sentado num banquinho estofado, sob os retratos de artistas de cinema incrivelmente belos, está o Barão Gaigern, batendo as luvas pespontadas na palma da mão, e desviando de Kringelein o olhar, como se se envergonhasse dele.

Começaram a vir à luz coisas lamentáveis, segredos do guarda-livros Otto Kringelein, de Fredersdorf. Seus suspensórios estão rasgados, costurados, rasgados de novo, e finalmente muito mal consertados, com um barbante. O colete, que lhe ficara muito largo, fora ajustado por Anna, que lhe fez nas costas duas pregas costuradas ao enchimento por meio de pespontos.

Kringelein usa as camisas de seu pai, grandes demais para ele, pelo que meteu umas ligas na parte superior dos braços, para arregaçar as mangas compridíssimas. Usa abotoaduras de tempos pré-históricos, redondas, do tamanho de discos de chapa de fogão, tendo no centro uma esfinge de esmalte vermelho diante de uma pirâmide de esmalte azul. A gigantesca camisa é de um tecido grosso de cor indefinível, tendo na frente apenas um pedacinho de zefir listrado, como uma pequena vitrina na fachada principal. Debaixo da camisa de lã espia ainda qualquer outra coisa também de lã, um coletinho já no fio, cerzido com pontos grosseiros. Por baixo disso, um pedacinho de pele de gato, o que parece ser bom contra dores de estômago e calafrios misteriosos. Os cavalheiros elegantes não mudam de expressão — Kringelein teria preferido que fizessem caçoada dele ou o consolassem.

— Nunca me incomodei muito com a moda. Sou um homem antiquado — diz ele em tom implorante, desculpando-se diante da cortesia gelada dos homens. Ninguém lhe responde. Vão lhe tirando as camadas, uma após outra, como de uma cebola. É um tanto cruel o que está sucedendo com Kringelein, completamente indefeso. Pouco a pouco ele vai se sentindo mal, como na sala de operações, pois agora também há uma claridade vítrea nas coisas, e tudo parece estar muito próximo dele. Depois, os três cavalheiros começam a vesti-lo.

Gaigern se anima, e dá conselhos.

— Fique com isso — diz ele; e —, não fique com isso.

Parece que não é possível contrariar as suas decisões. Kringelein olha de lado para os papeluchos com o preço, presos às peças de vestiário, reparando sempre apenas no preço; não ousa fazer perguntas, a princípio, mas por fim se enche de coragem e começa a querer saber os preços.

Assusta-se de tal modo que tem vontade de sair correndo; a sala de provas parece uma cela com quatro guardas severos e paredes de espelho. Kringelein está todo suado, apesar de o terem libertado de seus agasalhos de lã, que estão enrolados num montinho sobre uma cadeira, com um aspecto de ilimitada miséria, repulsivos. De repente, eles deixaram de pertencer a Kringelein; causam-lhe nojo tais peças de vestuário, remendadas, suarentas e de cor indefinível, essa roupa de um pobre-diabo. Mas, de um momento para outro, qualquer coisa se passa com ele. Fica gostando da camisa de seda que o forçaram a vestir.

— Ah! — diz Kringelein, com a cabeça inclinada e a boca aberta, como se fosse ouvir algum segredo. — Ah, ah!

Sua pele se alegra e trava amizade, gostosamente, com a camisa de seda de delicado padrão. O colarinho se ajusta exatamente ao pescoço, não esfrega, não é nem largo nem apertado demais, a gravata nova cai lisa e macia sobre o peito de Kringelein, onde o coração bate agora como em misteriosa festa — forte, um tanto dorido, mas aliviado. Agora colocam diante dele meias e sapatos, com grande solicitude; Gaigern explicou, em poucas palavras, que o senhor diretor está enfermo, e então trazem dos quatro andares da casa de artigos para homens tudo o que um homem distinto precisa para se vestir. Kringelein envergonha-se medonhamente de seus pés; de súbito tem a impressão de que toda a miséria e o aperto da sua vida estão visíveis nesses pés com joanetes crescidos, pelo que procura se esgueirar com as novas meias e botinas para um canto, coloca suas costas curvas entre si mesmo e os outros, como uma parede, e começa, sem nenhuma prática, a lutar com os cordões. Em seguida vestem-lhe um novo terno, escolhido pelo barão.

— O senhor diretor está com uma aparência maravilhosa — diz um daqueles cavalheiros. — Assenta-lhe como se fosse feito sob medida.

— Não é preciso modificar nada — diz o segundo.

— Perfeito. Nós temos poucos fregueses com um corpo tão esbelto — afirma o terceiro.

Empurram Kringelein para a frente do espelho, e o obrigam a girar no seu eixo como se fosse uma boneca de madeira, magra e paciente.


11

 

E, justamente no momento em que Kringelein voltou do espelho para o seu interior, sentiu pela primeira vez, como um pressentimento, que estava vivendo. Sim, tinha a sensação de existir, conhecia-se a si mesmo, com um abalo tão violento como se o atingisse um raio. Nesse momento, um homem estranho, de porte delicado e distinto, aproximou-se dele com expressão confusa, um homem que era ele próprio, de modo extremamente íntimo, o verdadeiro Kringelein, o Kringelein enterrado, de Fredersdorf — mas isso logo passou. No instante seguinte já não era novidade, o milagre da transformação já se dera.

Kringelein respirou profundamente, com energia, porque parecia querer despertar em seu corpo uma dorzinha aguda.

— Acho que este terno me fica bem, não? — perguntou ele, de modo infantil, a Gaigern.

O barão ainda fez mais; aproximou-se e, com suas próprias mãos, grandes e quentes, arrumou o novo terno nos ombros de Kringelein.

— Sou de opinião que este terno é o suficiente — disse Kringelein aos três cavalheiros.

Apalpou o tecido com os dedos, às escondidas, porque entendia bastante de tecidos, isso se sabia em Fredersdorf, mesmo quando só se trabalhava no escritório.

— É um bom tecido; sou conhecedor — afirmou ele, respeitosamente.

— Artigo inglês legítimo. Nós mandamos trazê-lo diretamente de Londres, de Parker Brother & Co. — respondeu o senhor de pálpebras fechadas.

"Preysing não usa tecidos assim", pensou Kringelein. Os ternos de Preysing costumavam ser daquele mesmo tecido sólido de estamenha cinzenta, de que a fábrica ainda possuía um estoque antigo, e todos os anos, pouco antes do Natal, era vendido aos empregados por baixo preço. Kringelein decidiu-se. Tomou posse desse terno, enfiando ambas as mãos nos bolsos novos e limpos.

Seu medo transformou-se repentinamente na felicidade de comprar e de possuir; pela primeira vez na vida Kringelein tem a sensação de vertiginosa leveza que acompanha o ato de gastar dinheiro. Ele passa através dos muros, por trás dos quais ele morou toda a vida. Compra, compra, sem perguntar o preço, vai comprando. Apalpa tecidos, sedas, alisa abas de chapéus, experimenta coletes, gravatas, cintos, coloca uma cor perto de outra e sorve com delícia a combinação harmoniosa de tons.

— O senhor diretor tem um extraordinário bom gosto — diz um dos cavalheiros.

— Um gosto delicado — afirmou o outro —, correto, distintíssimo.

Gaigern assiste a tudo sorrindo, um tanto impaciente, e faz elogios. Caceteado, olha as próprias mãos; a direita está tão vazia, desde que ele deu o anel de sinete de presente... Disfarçadamente, leva-as até o rosto, para ver se ainda conservam um pouco do perfume dessa noite, agridoce, ao mesmo tempo perigo e calma, Neuwjada, a florzinha que cresce nas campinas.

Kringelein compra um terno marrom, muito confortável, de um tecido cardado inglês, uma calça cinza-escura, com delicadas listras claras, que combina com um paletó estreito; compra também um smoking, no qual é preciso mudar apenas alguns botões; roupa de baixo, camisas, colarinhos, meias, gravatas, uma capa igual à de Gaigern, um chapéu macio, espantosamente leve, com a marca dourada de uma firma de Florença, e finalmente, pegando um par de luvas de camurça pespontadas, iguais às de Gaigern, dirige-se à caixa. Ali estão a fazer uma conta amabilíssima — Kringelein fala com rapidez e facilidade, porque ouve o jargão dos livros-caixa, tão seu conhecido, desde o livro-razão ao livro-matriz. Paga mil marcos à vista, e o resto em três prestações.

— Então! — exclamou Gaigern, satisfeito.

Uma fila de dorsos inclinados, numa saudação, acompanha Kringelein, encantado e transformado, até a porta de espelhos da loja. Lá fora faz sol, mas está frio. O ar tem um sabor de vinho gelado, acha Kringelein, de passagem. Até agora ele sempre se arrastou. Agora ele anda. Tem que dar três passos, da entrada da loja de primeira ordem até a limusine cinza-clara, e ergue três vezes, do calçamento da rua, as solas novas dos seus sapatos.

— Está satisfeito? — pergunta Gaigern, rindo-se e dando a deixa. — Está notando alguma coisa? Sente uma sensação agradável?

— Fantástico! Maravilhoso! Ótimo! — replica Kringelein, tomando a expressão de um homem experimentado, sentado ao volante do carro.

Tira os óculos e esfrega com o polegar e o indicador a beirada dos olhos; é um gesto cansado e que lhe é habitual.

Vem-lhe ao pensamento a ideia de que não estará mais vivo, quando vencer a última prestação.

 

Gaigern sentia a impaciência nos dedos, causava-lhe comichão como ácido carbônico, entre as mãos e a direção. Nos cruzamentos das ruas havia lâmpadas vermelhas, verdes e amarelas, guardas que o ameaçavam com a mão, sorridentes. O carro passava em disparada pelas casas, pelas árvores, colunas de cartazes, ajuntamentos de pessoas nas esquinas, pelas carroças de frutas, muros com cartazes e velhas senhoras amedrontadas, que, com passos miúdos, andavam no leito da rua sem observar o sinal de trânsito, velhas senhoras vestidas de preto e de saias compridas, em pleno mês de março. O sol brilhava, úmido e amarelo, no asfalto. Quando um ônibus pesadão impedia o caminho, o carrinho de quatro lugares gritava com duas buzinas; parecia o latido de cães excitados.

Em Fredersdorf havia muita gente que nunca tinha andado de automóvel. Anna, por exemplo, nunca tinha andado de carro. Mas Kringelein estava andando. Apertou os lábios com força, inteiriçou os músculos sob as axilas, e seus olhos ficaram lacrimejantes pelas correntes de ar. Assustava-se nas curvas, e seu coração arfava sob a camisa de seda nova. Era o mesmo prazer medroso da infância, quando na feira anual de Mickenau, no outono, se podia andar de carrossel três vezes seguidas, por um groschon.

Kringelein arregalava os olhos para ver Berlim, que rapidamente se entremostrava sob aspectos deformados. Ainda se recordava bem da grande cidade. A Porta de Brandenburgo, por exemplo, reconheceu-a de longe, assim como a Gedaechtniskirche, à qual dirigiu um olhar respeitoso.

— Para onde estamos indo? — gritou ele ao ouvido direito de Gaigern. O ronco do motor lhe parecia fortíssimo, e ele se sentia no meio de estrondos e de uma tempestade.

— Para os arredores da cidade, a fim de almoçar. Para lá do Avus — respondeu Gaigern com jovialidade.

A rua parecia penetrar dentro do carro, cada vez com mais velocidade. Chegaram às proximidades da torre da emissora. Kringelein já estivera ali no dia anterior, com o Dr. Otternschlag, numa noite nublada, cansado, impossibilitado de receber novas impressões. Os estranhos átrios, lisos, novos e por terminar, na parte exterior, o haviam acompanhado nos sonhos e, agora, a realidade e o sonho se apresentavam em duas camadas sobrepostas, um tanto ameaçadoras e incompreensíveis.

— Ainda vão terminar isso? — gritou Kringelein apontando para os átrios da exposição.

— Já está pronto — foi a resposta.

Kringelein admirou-se. Era tudo nu como uma fábrica, mas não feia, como a de Fredersdorf.

— Que cidade engraçada — exclamou ele, sacudindo a cabeça e ficando ainda mais vesgo.

Levou um choque com um solavanco do carro, e a pele do seu crânio se encolheu, mas foi coisa sem importância. É que Gaigern havia parado na porta norte do Avus, e em seguida continuaram de novo a viagem.

— Agora nós vamos mesmo — afirmou Gaigern; e, antes que Kringelein pudesse perceber do que se tratava, ele partiu.

Começou com uma corrente de ar que foi esfriando lentamente, e que batia contra o rosto de Kringelein cada vez com mais força, como bofetadas. O carro começou a cantar com um som grave que se foi elevando, e ao mesmo tempo aconteceu uma coisa pavorosa com as pernas de Kringelein. Ele tinha a sensação de que elas se enchiam de ar, cujas bolhas lhe subiam aos joelhos, que pareciam querer estourar. Por vários segundos incríveis ele não podia respirar mais, e durante um instante pensou que iria morrer.

— Isto é a morte. Vou morrer.

Com o peito comprimido, aspirava o ar com dificuldade; o carro deslizava por coisas irreconhecíveis, vermelhas, verdes, azuis; árvores que se atiravam de encontro aos seus óculos; depois, um ponto vermelho se transformou em um automóvel e, logo a seguir, caiu no vazio, por trás do seu carro — e Kringelein continuava sem conseguir respirar. Seu diafragma conhecia agora novas sensações, nunca antes imaginadas. Kringelein tentou virar o rosto em direção a Gaigern, e, vejam só, conseguiu virá-lo sem se machucar. Gaigern estava meio inclinado sobre a direção, e tinha calçado as luvas de camurça, mas sem abotoá-las; por qualquer motivo, isso dava a sensação de calma e ausência de perigo. Justamente quando o pedacinho de estômago que restava a Kringelein queria começar a subir à garganta, Gaigern se pôs a rir com os lábios fechados. Apontou com o queixo, sem tirar os olhos do fuso sibilante da estrada do Avus, para um lugar qualquer, e Kringelein lançou um olhar obediente. Como não era tolo, compreendeu, após refletir um pouco, que havia sido o marcador dos quilômetros, diante dele. O ponteirinho vibrava de leve, mostrando o número 110. "Que diabo!", pensou Kringelein. Engoliu seu amedrontado pomo-de-adão e inclinou-se para a frente, entregando-se ao impulso da velocidade. Súbito tomou posse dele o prazer da sensação de perigo, um prazer penetrante e assustador. Mais depressa! pedia dentro dele um novo Kringelein, desconhecido e delirante. O carro concordou: 115. Durante alguns segundos parou nos 118, e Kringelein desistiu, de uma vez, de respirar. Tinha vontade de se precipitar, sibilando, nas trevas. "Avante, para a frente, explosão, choque, ponto final da corrida desenfreada!", era o pensamento que lhe ocorria. "Nada de leito de hospital," pensou; "é preferível uma fratura no crânio." À passagem do carro, em disparada, ainda continuavam a bramir os anúncios; as distâncias entre eles foram aumentando; depois, os trapos cinzentos ao lado da estrada se transformaram em bosques de pinheiros. Kringelein via árvores que se iam aproximando e em seguida se desviavam do carro. Era como no carrossel de Mickenau pouco antes de parar. Nas tabuletas de anúncios ele lia agora nomes de marcas de óleos, de pneus e de automóveis; a correnteza de ar tornou-se mais branda, e deslizava por sua garganta adentro. O ponteiro caiu para 60, a agulha oscilou um instante ainda, entre 50 e 45, e eles deixaram o Avus pela porta sul, desfilando burguesmente por entre as villas do Wannsee.

— Puxa, agora me sinto mais leve! — disse Gaigern, abrindo o rosto num sorriso. Kringelein tirou as mãos das almofadas de couro em que se agarrara até então, e foi relaxando com todo o cuidado os músculos contraídos das mandíbulas, dos ombros e dos joelhos. Sentia-se completamente exausto e absolutamente feliz.

— Eu também — respondeu ele, e estava dizendo a verdade.

Falou muito pouco enquanto estiveram sentados no terraço envidraçado, completamente vazio, de um restaurante à margem do Wannsee, olhando os barcos a vela cobertos com lonas, balançando à tona da água. Precisava refletir sobre a sensação que experimentara, o que não era assim tão fácil. "O que é a velocidade?", pensou. "Não a vemos nem tocamos, e isso de medi-la deve ser uma impostura. Como é possível que ela vá passando, e seja mais linda do que a música?" Ainda sentia tudo girando, mas era uma sensação agradável. Tinha trazido o frasquinho de Bálsamo de Vida do Dr. Hundt, mas não tomou o remédio.

— Preciso agradecer-lhe este passeio maravilhoso — disse ele, procurando com ar solene expressões escolhidas, de acordo com os ambientes em que estava vivendo agora.

Gaigern, que só comia alimentos baratos, espinafre com ovos, sacudiu a cabeça: — Eu me divirto com essas coisas — disse ele. — O senhor sente isso pela primeira vez. É raríssimo encontrarmos pessoas que tenham uma sensação pela primeira vez...

— Mas o senhor também não dá a impressão de ser um homem blasé, se me permite esta observação — replicou Kringelein com desembaraço.

Já se sentia à vontade em suas novas roupas, já estava em casa dentro da sua camisa de seda; sentava-se de outra maneira, comia de outra maneira, e suas mãos, que lhe pareciam mais delgadas, avançando pelos punhos da camisa, com as unhas feitas por uma bonita manicura, no subterrâneo do hotel, lhe davam enorme prazer.

— Meu Deus do céu, eu, blasé? — exclamou Gaigern, satisfeito. — Não. De modo nenhum. Mas é que gente como eu tem uma vida cheia. — Não pôde deixar de sorrir. "O senhor tem razão. Para gente como eu também existem coisas inteiramente novas, que se experimentam pela primeira vez, coisas engraçadas...", acrescentou consigo mesmo.

Bateu de leve seus bonitos dentes uns nos outros, pensando na Grussinskaia. Seus ossos estavam cheios de ávida impaciência. O tempo que tinha de esperar para que pudesse ter de novo em seus braços a figurinha delicada, tão necessitada de amparo, e ouvir novamente seu gorjeio tristonho de passarinho, parecia-lhe uma extensão imensurável e deserta. Deu um prazo de três dias a si próprio, sapateando, interiormente, de impaciência, para arranjar de qualquer modo alguns milhares de marcos que acalmariam seus companheiros e lhe facultariam a viagem a Viena. Por enquanto, empenhava-se, com a maior amabilidade, em agradar Kringelein, com a esperança em qualquer solução favorável.

— E agora, qual é a continuação do programa? — perguntou Kringelein, dirigindo para ele uns olhos fiéis e agradecidos. Gaigern simpatizava com esse provinciano calmo, sentado diante dele como uma criança durante a distribuição dos presentes de Natal. A amabilidade e a simpatia humanas estavam de tal modo enraizadas na personalidade de Gaigern, que suas vítimas recebiam sempre uma boa parte do seu calor.

— Agora vamos voar — disse ele, com o tom acalentador de uma ama de leite. — É muito agradável e não tem o menor perigo, é muito menos perigoso do que uma corrida desenfreada de automóvel.

— Corremos perigo, há pouco? — - perguntou Kringelein, admirado.

O medo que sentira parecia-lhe agora quase um prazer, depois de vencido.

— Sem dúvida — afirmou Gaigern. — Cento e dezoito quilômetros não é brincadeira, e a estrada estava úmida... Parece incrível que, com um tempo destes, ela fique tão escorregadia. Não há dúvida de que o carro corre sempre o risco de derrapar. A conta — disse, voltando-se com cortesia para o garçom, e pagando seu espinafre com ovos. Sobravam-lhe na carteira apenas vinte e quatro marcos.

Kringelein também pagou; havia tomado apenas umas colheradas, de sopa, porque não confiava ao seu estômago coisas excitantes e indigestas. Quando meteu no bolso a carteira que trouxera ainda de Fredersdorf, teve a visão fugaz e agora pouco importante do seu caderno de despesas, com capa de oleado. Até esse dia havia anotado suas despesas, Pfennig por Pfennig, desde os nove anos de idade, em caderninhos assim. Agora acabou-se. Nunca mais faria isso de novo. Mil marcos numa tarde não era possível anotar. Uma parte da ordem do mundo concebida por Kringelein tinha se destruído, numa derrocada silenciosa e sem estardalhaço. Kringelein, que Gaigern foi seguindo pelo terraço vazio do restaurante até o carro, movia os ombros com delícia, sob o novo sobretudo, o novo terno e a nova camisa. Agora, por onde quer que ele passasse, havia indivíduos que se inclinavam. "Bom dia, senhor diretor-geral", pensou ele, vendo-se colado a uma parede, a parede caiada de verde-cinza do segundo andar dos escritórios de Fredersdorf. Guardou no bolso os óculos ao sentar ao lado de Gaigern, expondo os olhos nus à fresca e cintilante atmosfera de março, e com um vivo sentimento de simpatia e de confiante gratidão ouviu o ruído do motor.

— A Chaussee ou o Avus de novo? — perguntou Gaigern.

— O Avus, de novo — respondeu Kringelein. — E na mesma velocidade — acrescentou em voz baixa.

— Ah!... O senhor tem coragem — disse Gaigern, pondo o pé no acelerador.

— É... coragem eu tenho — respondeu Kringelein, com os músculos tensos e o corpo inclinado para a frente, de lábios entreabertos, preparado para entregar-se inteiramente à vida.

 

Kringelein, debruçado na grade branca e vermelha do aeroporto, procura habituar-se a esse mundo assombroso que, desde a manhã desse dia, vem ao encontro dele. Ontem — há um século — ele subia no elevador, para ir ao restaurante da torre da emissora, fatigado, sonolento, imerso em sonhos; não estava se divertindo, e os comentários pessimistas do Dr. Otternschlag ainda tornavam tudo mais problemático e fantasmagórico. Anteontem — há mil anos — ele era um auxiliar de guarda-livros no escritório de contabilidade da Algodoeira Saxônia S.A., de Fredersdorf, um empregadinho enfezado, entre trezentos outros empregadinhos enfezados, de terno de sarja cinzenta e com um ordenado minguado, do qual era preciso tirar ainda o desconto para a Caixa de Previdência. Hoje, agora, ele está à espera do piloto que, por um alto preço, vai levá-lo em um enorme voo circular, em viagem especial. É um desses pensamentos impossíveis de serem levados até as últimas consequências, apesar de Kringelein se sentir animado e concentrado como nunca.

É uma enorme mentira, a sua coragem. Tem um medo de cão, um medo horrível do divertimento que o espera. Ele não quer voar, não quer voar de modo algum. Tem desejos de voltar para casa — não, para Fredersdorf não, mas para o hotel, para o seu quarto 70, com os móveis de mogno e a colcha de seda; gostaria de estar deitado e não precisar voar.

Quando Kringelein saiu de casa para ir à procura da vida, pairava diante dele uma ideia nebulosa e informe; mas era uma coisa acolchoada e fofa, com pregueados e franjas, e arabescos enormes; leitos macios, pratos cheios, mulheres sensuais, em quadros e reais. Agora, que está experimentando a vida, e que, aparentemente, mergulhou em cheio nela, tudo se apresenta sob um aspecto diferente; é preciso satisfazer a uma série de exigências, a ventania corta-lhe as orelhas, e é preciso forçar paredões de angústias e de perigo para conseguir chegar a uma doce e embriagante gota de gozo da vida. "Voar", pensa Kringelein. Ele conhece a sensação do voo que se tem em sonhos. Seu sonho se apresenta assim: Kringelein se encontra no tablado da sala de Zickenmeyer; ao seu redor está o coral da associação, e ele canta um solo. Ouve sua bonita voz de tenor, canta notas agudas, cada vez mais agudas, cada vez mais. É facílimo, ele não precisa fazer nenhum esforço, é um prazer puro, fácil e naturalíssimo.

Finalmente, ele se deita no som mais agudo e suave, e voa sobre ele, acompanhado pela música das nuvens. A Associação Coral o acompanha com o olhar; primeiro, ele sobrevoa ainda abaixo do telhado local de Zickenmeyer, depois voa completamente só, à sua volta não se vê mais nada, e só bem no finzinho ele percebe que tudo não passou de um sonho, e que precisa voltar ao seu leito matrimonial, onde Anna dorme o sono deletério dos seus quarenta anos maltratados e rixentos. A queda é medonha, e o despertar é um grito na escuridão do quarto abafado, com as pequeninas vidraças, os armários cheirando a naftalina e o pequeno fogareiro de ferro, apagado, com uma panela cheia de água em cima.

Kringelein põe-se a piscar. "Voar", pensa ele retornando ao Aeroporto de Tempelhof. Ali também há cores fortes, como na torre da emissora e ao longo do Avus; amarelo, azul, vermelho e verde, em tons bem vivos. Torres misteriosas erguem-se no ar, tudo é simples e econômico, um vento cheio de poeira sopra sobre as manchas de asfalto do outro lado da grade, e as sombras das nuvens se apressam, para atingir a pista de decolagem. O pequeno aparelho que vai decolar já está pronto, três homens estão atarefados em torno dele; o motor ronca, sua hélice gira apenas por brincadeira. Diante de suas rodas baixas há uns blocos, suas asas prateadas, com estrias, estão vibrando. Outros pássaros pousam, saudados pelos gritos roucos de uma sereia — é assim que a fábrica de Fredersdorf chama, às sete horas da manhã — ou talvez tudo isso tenha sido apenas um sonho?... Outros pássaros se elevam, baixam pesados à terra, e erguem-se, muito leves, ao ar, ora cor de chumbo prateado, ora dourados, com firmes asas de madeira, e outros ainda, brancos, enormes, com quatro asas, e três hélices girando. O campo de pouso é tão grande, tão estranhamente silencioso... Os homens que estão ali são todos esbeltos, queimados de sol, alegres e calados, envolvidos em seus ternos folgados e seus barretes justos. Só os aparelhos têm voz, e latem com um latido rouco, como cães enormes, quando vão rodando sobre o campo.

Gaigern aproxima-se com o piloto, um senhor amável, com as pernas em O de antigo oficial de cavalaria.

Gaigern parece um cliente habitual, todos o cumprimentam e o conhecem.

— Vai partir logo — anuncia Gaigern. Kringelein, que já sabe por experiência própria o que significa o "partir" de Gaigern, leva um susto. "Socorro", pensa ele, "socorro, não quero voar!", mas não o diz, de forma alguma.

— Já vamos decolar? — perguntou com ar de homem experimentado, orgulhando-se da palavra que está usando pela primeira vez na vida.

Depois, Otto Kringelein senta-se, amarrado pela cintura com uma correia, em uma cômoda cadeira de couro, e arregala os olhos para o céu azul-cinza de março. Ao seu lado está Gaigern, assobiando baixinho, e isso o consola, nesse momento de debilidade total.

No começo, não é diferente de uma viagem de automóvel, aos solavancos; depois, o aparelho começa a fazer um ruído, rápido, infernal. De repente bate no solo com um solavanco, para trás, e eleva-se no ar. Não paira no espaço, tem mais dificuldades do que o tenor Kringelein, a cantar e a voar no seu sonho; o aparelho salta por impulsos no ar, como sobre degraus de vácuo; salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai. Agora a sensação desagradável não é nas pernas, como na viagem a cento e vinte quilômetros por hora, mas na cabeça. Os ossos do crânio de Kringelein zumbem, tornam-se muito delgados, completamente vítreos, de modo que ele precisa fechar os olhos por um momento.

— Está enjoado? — pergunta Gaigern gritando em seu ouvido, pensando se seria possível, ali no avião, conseguir que Herr Kringelein lhe desse cinco mil marcos, ou mesmo três mil, ou que seja tudo pelo amor de Deus, cento e cinquenta que fossem, que já dariam para pagar a conta do hotel e a viagem até Viena. — Está se sentindo mal? Acha que basta de voar? — pergunta ele com muita cortesia.

Kringelein faz um violento e corajoso esforço para dominar-se, e responde um animado "não". Abre os olhos, a cabeça zune, vítrea; prende-os primeiro ao chão do avião, como a um ponto firme, depois vai subindo, até chegar à vidracinha oval da parede fronteiriça. Lá estão de novo os números e as agulhas trêmulas. O piloto vira o rosto de traços fortes para trás, e sorri para Herr Kringelein como para um bom amigo e camarada. Kringelein recebe esse olhar como um tônico e uma honra.

— Trezentos metros de altitude, cento e oitenta de velocidade! — grita Gaigern ao seu ouvido, que zune e crepita.

De repente, tudo se torna macio, leve e liso. O aparelho não se eleva mais, vai cantando com a voz metálica dos seus motores, fazendo uma curva, deslizando como um pássaro sobre a cidade, agora pequenina. Kringelein cria coragem e olha para fora.

Primeiro vê as asas estriadas, expostas ao sol, que parecem ter criado vida, e, bem embaixo, Berlim, dividida em quadradinhos, cúpulas verdes, uma ridícula estação, em meio à exposição de brinquedos. Uma manchinha verde é o jardim zoológico, uma manchinha cor de chumbo, com quatro pontinhos brancos de velas, é o Wannsee. Os limites do pequenino mundo ficam bem longe, o terreno vai subindo em suaves elevações, há também montanhas, florestas, terras lavradas pardacentas, Kringelein abre num sorriso infantil os lábios comprimidos. Está voando. Conseguiu suportar o voo. Sente-se muito bem, e tem uma sensação diferente de si próprio, enérgica e nova. Pela terceira vez lhe acontece, nesse dia, perder o medo, e ver esse medo transformar-se em prazer.

Toca de leve no ombro de Gaigern, e em resposta ao seu olhar inquiridor diz qualquer coisa que o ruído dos motores devora.

— Não é tão mau assim — respondeu Kringelein. — Não é preciso ter medo, não é nada mau.

Com essas palavras, Kringelein refere-se não só à conta elevada do alfaiate, à viagem ao longo do Avus e ao voo — mas a tudo isso junto, e mais alguma coisa; é que ele vai morrer em breve e, com a morte, afastar-se desse pequeno mundo, abandonar o grande medo, elevar-se, se for possível, acima dos aviões.

 

As ruas por trás do campo de Tempelhof, quando eles vieram de volta, falaram ao coração do novo Kringelein. Assemelhavam-se às melancólicas ruas de Fredersdorf, com as chaminés crescendo por trás dos caminhos, e ele alargou as narinas para sentir o cheiro de cola da seção de imprensagem dos tecidos. Com vivacidade duplicada, ele sentia, ao avistar essas pobres ruas, que usava um sobretudo novo, e se encontrava num automóvel. Procurou palavras que exprimissem esse duplo sentimento, mas não encontrou. Somente na porta do hangar ele se animou de novo — tiveram de esperar meio minuto —, o vôo ainda lhe pesava nos membros como uma silenciosa mas forte embriaguez, e, ansioso e amável, perguntou:

— Quais são agora os planos do senhor barão?

— Agora preciso cuidar de negócios particulares, no hotel. Tenho um encontro às cinco horas. Venha comigo, vou dançar um pouquinho — acrescentou ao perceber nos olhos de Kringelein uma expressão de desânimo e de real aflição.

— Muitíssimo obrigado. Acompanho-o de bom grado. Gosto de ver os outros dançar. Infelizmente não sei dançar.

— Ora, qual! Qualquer pessoa sabe dançar! Kringelein foi pensando nisso até chegarem à Friedrichstrasse.

— E depois? Que se poderia fazer depois? — perguntou insistente, na sua insaciabilidade.

Gaigern não deu resposta, mas acelerou a marcha até o próximo solavanco, quando travou o freio diante da lâmpada vermelha da Leipzigstrasse.

— Diga uma coisa, senhor diretor — perguntou ele, durante a parada do carro. — O senhor é casado ou não?

Kringelein ficou a refletir por tanto tempo que, enquanto isso, as lâmpadas amarela e verde se acenderam, e já estavam de novo a caminho, quando ele respondeu:

— Fui casado. Já fui casado, senhor barão. Separei-me de minha mulher. Pois é. Conquistei a liberdade, se posso falar assim. Há casamentos, senhor barão, em que cada cônjuge é um peso para o outro, um chega a enojar-se do outro, não pode ver a cara do outro sem se enfurecer. Não podemos ver o pente com os fios de cabelo da mulher, de manhã cedo, sem que isso nos estrague o dia; isso não é justo, é claro, ela não tem culpa de que seus cabelos caiam... Ou quando se quer ler um pouco à noite, a mulher se põe a falar sem parar, e quando não fala, canta na cozinha. E se a gente gosta de música, essa gritaria nos deixa doente. E toda noite, quando a gente está cansado, e quer ler, ouve-se a mesma cantilena: "Vá cortar lenha para amanhã cedo". Custa apenas oito Pfennige a mais cada feixe de lenha picado, o que faz dois Pfennige por dia, mas isso não é possível, de modo nenhum. "Você é um gastador", diz a mulher, "se a gente fosse pela sua cabeça, acabaria esticando as canelas." E olhe que o sogro tem um armazém que a mulher vai herdar, de modo que ela está com o futuro garantido. Então achei melhor conquistar minha liberdade. Minha mulher nunca combinou comigo, essa é a verdade, porque eu sempre gostei das coisas boas, e isso ela nunca me pôde perdoar. Quando meu amigo Kampmann me deu de presente cinco velhas coleções da revista Kosmos, minha mulher vendeu-as como papel velho; recebeu por elas catorze Pfennige. É este o retrato acabado dessa mulher, senhor barão. Agora eu me separei dela. Não faz muita diferença, umas semanas a mais ou a menos, já que ela tem mesmo que se arranjar sem mim. Então ela poderá ir de novo às lojas, vender aos empregados solteiros arenques enrolados e salsichas para o jantar. Foi assim que eu a conheci. Talvez ainda encontre outro trouxa. Quando me casei com ela, eu era completamente idiota, não fazia nenhuma ideia da vida, nenhuma ideia do que é uma mulher. Desde que cheguei a Berlim, e estou vendo tantas senhoras lindas, elegantes e amáveis, é que meus olhos estão se abrindo. Mas para essas coisas já é tarde demais.

 

Tal confissão, que partiu do fundo do coração de Kringelein, durou desde a Leipzigstrasse até a Unter den Linden.

— O dia inteiro não é noite — replicou Gaigern, meio distraído, porque estava atravessando um trecho difícil do caminho, na Porta de Brandenburgo, e diante dele seguia um chofer que não sabia dirigir. A atmosfera de uma cozinha minúscula e miserável, que se evolava das palavras de Kringelein, o sufocava, tirando-lhe o entusiasmo com que ele estivera prestes a pedir emprestados três mil marcos.

Esse Kringelein de camisa de seda, que andava de automóvel, teria também de boa vontade retirado parte daquilo que revelara com as suas palavras.

— Então nós vamos dançar — disse ele com desembaraço, para disfarçar. — Ficarei gratíssimo, se o senhor barão me tomar sob sua proteção. E que se poderia fazer à noite?

Kringelein tinha a esperança oculta de receber uma resposta que correspondesse a desejos irrealizados dentro de si, alguma coisa semelhante a certos quadros de museus, porém mais palpável, o que, nos jornais que ele lia, denominavam orgia. Tinha o pressentimento de que homens distintos da cidade guardavam a chave e a entrada de coisas assim. No dia anterior o Dr. Otternschlag havia acedido ao seu vago desejo de feminilidade, levando-o ao bailei da Grussinskaia. Pois é. Isso — julgava Kringelein — tinha sido errado; o ballet era lindo, mas poético, comovente, e demasiado maravilhoso; ficava-se cansado, com sono, sentimental, e finalmente sentia-se dor de estômago. Mas hoje...

— A melhor coisa que o senhor poderá fazer hoje é ir comigo à grande luta de boxe no Sporthalle — disse Gaigern. — Vamos ver se o porteiro ainda tem entradas.

— Não me interesso muito por boxe — respondeu Kringelein, com o orgulho do leitor do Kosmos.

— Não se interessa? O senhor já assistiu a alguma luta? Então! Pois vá, que há de se interessar — garantiu Gaigern peremptoriamente.

— O senhor também vai, senhor barão? — perguntou Kringelein, afobado. Sentia-se muito bem disposto, depois da viagem de automóvel e do voo, animado e enérgico, preparado para o que desse e viesse, mas tinha a impressão de que despencaria como uma arvorezinha de borracha no instante em que o barão o abandonasse.

— Tenho uma vontade louca de ir também — replicou Gaigern. — Mas infelizmente não posso. Não tenho dinheiro.

Nesse ínterim haviam se afastado das ramagens floridas do jardim zoológico, e a fachada do hotel já aparecia, lá embaixo. Gaigern deixou a velocidade cair para doze quilômetros, a fim de dar tempo a que Herr Kringelein se manifestasse. Kringelein ficou a remoer a observação sorridente de Gaigern. Pararam defronte ao portão 5, subiram, e ele não conseguira se livrar daquilo.

— Vou levar o carro à garagem! — exclamou Gaigern, depois que fez Kringelein descer do carro, com as pernas um tanto rijas e adormecidas; por fim desapareceu na esquina.

Kringelein meteu-se, pensativo, na porta giratória, cujo mecanismo já não o deixava mais estupefato. "Não tem dinheiro", pensou ele. "Está sem dinheiro. É preciso fazer alguma coisa."

Rohna, o porteiro, os boys, e até o maneta do elevador, notaram a transformação que ele sofrerá, mas, discretamente, não o deram a perceber. O hall, de onde se evolava um aroma de mokka, estava repleto de pessoas que conversavam. O relógio marcava quatro horas e cinquenta minutos. O Dr. Otternschlag estava sentado em sua habitual cadeira maple, tendo ao lado, no solo, uma pilha de jornais. Fitou Kringelein com uma expressão indefinível de ironia e tristeza. Kringelein, não muito seguro de si, aproximou-se dele e estendeu-lhe a mão.

— O novo Adão — observou Otternschlag sem lhe estender a sua, que estava fria e úmida, o que o tornava tímido. — A borboleta saiu do casulo. E por onde esteve voando, se me permite perguntar-lhe?

— Fiz umas compras. Fui passear de automóvel pelo Avus, almocei no Wannsee. Depois fiz um voo de avião — respondeu Kringelein. Seu tom de voz, ao falar com Otternschlag, mudara um pouco, sem que ele próprio o percebesse.

— Magnífico — disse Otternschlag. — E agora?

— Às cinco tenho um encontro. Vou dançar. — Ah! e depois?

— Depois, estou com vontade de ir a uma grande luta de boxe, no Sporthalle.

— Ah, é? — retorquiu Otternschlag. Disse apenas isso. Pôs o jornal diante dos olhos e começou a ler, ofendido. Na China houvera tremores de terra, mas a bagatela de quarenta mil mortos não bastava para fazer desaparecer o aborrecimento de Otternschlag.

Quando Gaigern chegou ao segundo andar para trocar de roupa, encontrou Kringelein diante da porta de seu quarto, à sua espera.

— Então? — perguntou impaciente. Pouco a pouco lhe atacava os nervos estar preso a esse homenzinho exótico.

— O senhor barão estava caçoando de mim ou é verdade que está em dificuldades financeiras? — perguntou Kringelein, repentinamente. Foi uma das frases mais difíceis que jamais pronunciou, e apesar de a ter preparado de antemão, disse-a gaguejando.

— É a absoluta verdade, senhor diretor. Estou arrasado, com um azar dos diabos, só tenho no bolso vinte e dois marcos e trinta Pfennige, e amanhã sou obrigado a enforcar-me no jardim zoológico — disse Gaigern, abrindo o rosto bonito em um largo sorriso. — Mas o pior de tudo é que preciso estar em Viena dentro de três dias; apaixonei-me por uma mulher, sabe, de um modo incrível, uma paixão fulminante, e tenho que acompanhá-la por onde ela andar. E estou numa pendura completa. Se pelo menos alguém me emprestasse algum dinheiro que desse para eu arriscar hoje no jogo...

— Também estou com vontade de jogar — observou Kringelein, pressuroso, com verdadeiro entusiasmo. Sentiu de novo a sensação dos cento e vinte quilômetros por hora, do voo do avião, e disparou, zunindo, pelo espaço infindável.

— Tiens! Eu vou buscá-lo no Sporthalle, e vamos a um clube elegante. O senhor arrisca mil marcos e eu vinte e dois! — exclamou Gaigern. Dizendo isto, fechou a porta do seu quarto e deixou Kringelein sozinho, do lado de fora. Por enquanto estava farto dele. Atirou-se, vestido, para cima da cama, e fechou os olhos. Foi tomado de um sentimento de desânimo e enfado. Procurou recordar-se da menina do cachinho louro na testa, com quem tinha marcado um encontro às cinco horas, no pavilhão amarelo, mas não o conseguiu. Apresentava-se sempre uma outra recordação, o abajur da Grussinskaia, a grade do balcão, uma nesga do Avus, uma nesga do campo de aviação, o suspensório rasgado de Herr Kringelein. "Dormi pouco hoje à noite", pensou ele, acalorado, contente e com os nervos frouxos. Caiu num sono de três minutos, num saco de trevas e de restauração, como aprendera a fazer na guerra. Uma camareira bateu à porta, despertando-o; era uma carta de Kringelein.

 

Prezado senhor barão!, escrevia Kringelein. Permitiria que o abaixo-assinado o considerasse hoje à noite seu convidado, e ao mesmo tempo me faria a fineza de aceitar o insignificante empréstimo que junto a esta? Peço-lhe apenas que me mande um recibo. Seria uma honra para mim poder ser-lhe útil, e, no meu caso, o dinheiro já nada significa. Cumprimentos respeitosos do seu

Amgo. Crdo. Obr.

Otto Kringelein Anexo: uma entrada

duzentos marcos.


12

 

O envelope com o endereço do hotel continha um bilhete alaranjado para a luta de boxe no Sportpalast, e duas cédulas amarrotadas de cem marcos, numeradas a tinta num dos cantos. Na assinatura de Kringelein faltavam os pingos nos ii. Ele os perdera definitivamente no turbilhão insano que o arrastara nesse dia memorável.

Preysing, com os ossos ocos e vazios, ficou no hall depois de terminada a conferência, depois de assinado o contrato prévio, e da despedida do Dr. Zinnowitz, desejando-lhe felicidade e sorte. A sensação de uma grande vitória, a consciência de haver passado um blefe nos cavalheiros da Chemnitz, a tensão nervosa de discursar e de vencer sob uma base insegura, tudo isso era completamente novo para o diretor-geral, e o transportou a um estranho estado de atordoamento, nada desagradável. Olhou para o relógio do hotel — já passava das três horas —, encaminhou-se mecanicamente para a cabina telefônica, a fim de pedir uma ligação com a fábrica, e depois demorou-se bastante no banheiro dos homens, deixando escorrer água quente pelas mãos, enquanto se olhava no espelho com um sorriso idiota. Passou por último à sala de refeições, que estava quase vazia, e escolheu o menu sem prestar atenção; durante os dois minutos de espera até chegar o consommé, impacientou-se e pôs-se a fumar um charuto, que lhe pareceu delicioso, acima de qualquer crítica. Enquanto observava a lista dos vinhos, trauteou uma melodia, e sentiu desejos bem definidos de beber vinho doce, que aquecesse a língua; encontrou um Wachencheimer Mandelgarten 1921, que lhe pareceu prometedor. Pouco depois surpreendeu-se a sorver ruidosamente a sopa; quando ficava distraído, acontecia-lhe, por vezes, praticar algum mau costume do começo da sua vida. Sentia que estava numa situação feliz, mas de imprevisíveis consequências. O embuste — ele próprio usava essa expressão forte, que o transportava estranhamente a uma nova espécie de sensação de orgulho — que ele usara durante a conversação só poderia valer, no melhor dos casos, por três dias. Nesses três dias era preciso acontecer alguma coisa, se não quisesse sofrer as consequências de uma catástrofe. A assinatura do contrato prévio poderia ser retirada dentro de catorze dias. Preysing, que vertera depressa demais, pela goela seca, os dois primeiros copos do vinho frio e excitante, adoçado pelo sol, ficou meio tonto, e, em meio à sua tontura, viu a chaminé principal da fábrica explodir, separando-se em três pedaços. Isso não tinha importância, era uma reminiscência de um sonho que Preysing, a intervalos regulares, costumava ter. Estava comendo o peixe, quando um groom gritou "Chamada interurbana para Herr Preysing!" por entre o burburinho da discreta sala de refeições. Preysing ainda engoliu rapidamente um gole de vinho e dirigiu-se à cabina telefônica 4. Esqueceu-se de acender a luz, e na escuridão postou-se diante do fone com a sua mais férrea expressão de diretor da fábrica, famosa em Fredersdorf. Por entre o assobio agudo de um pequeno desarranjo na linha, anunciou-se Fredersdorf.

— Com Herr Broesemann — disse o diretor-geral, com a voz inexpressiva que usava no desempenho de suas funções. Demorou meio minuto até que encontrassem o gerente. Preysing considerou uma ofensa essa demora, e bateu com o salto do sapato no assoalho.

— Puxa... finalmente! — exclamou ele, quando Broesemann atendeu.

Adivinhavam-se, através do telefone, as curvaturas de Broesemann, e Preysing as recebeu como um merecido tributo.

— O que há de novo, Broesemann, além do telegrama inútil de ontem? Não... ao telefone não, sobre isso falaremos depois. Por enquanto eu me esforço por considerar esse assunto como inexistente, compreendeu? Ouça, Broesemann, agora eu quero falar com o velho. Está dormindo? Sinto muito, é preciso acordá-lo. Não, sinto muito. É, sim, imediatamente. Até logo, Broesemann. Não, as outras ordens o senhor as receberá por escrito. Estou esperando.

Preysing ficou à espera. Arranhou a tábua da estante do telefone com as unhas, tomou a caneta-tinteiro e pôs-se a tamborilar com ela na parede, pigarreou, e seu coração disparou triunfalmente, com batidas claras e definidas. O bocal do telefone, diante de sua boca, cheirava a desinfetante e, ao passar a mão por ele na escuridão, sentiu que a beirada estava lascada. Então o velho falou, lá de Fredersdorf.

— Alô, bom dia, papai, desculpe incomodá-lo. A conferência durou até agora, pensei que o senhor se interessaria em saber logo do resultado. Trata-se do seguinte: o contrato prévio está assinado... não, assinado, assinado ... — disse ele gritando, porque o velho tinha o teimoso costume de fingir-se mais surdo do que era realmente.

— Difícil, o senhor acha? Ora, mais ou menos. Obrigado, obrigado, não preciso de aplausos. Ouça, papai: preciso viajar imediatamente para Manchester; é, é absolutamente necessário, absolutamente. Vou para Manchester, bom, bom, eu lhe escrevo a esse respeito com mais pormenores. Como? O senhor está satisfeito? Eu também. Sim, senhorita, terminei. Até logo.

Preysing continuou na cabina escura, e só então se lembrou de apertar o botão da lampadazinha. "Mas, que história é essa?", pensou, espantado. "Como é que vou viajar para Manchester? Como foi que essa ideia me ocorreu? É isso mesmo... vou para Manchester. Aqui eu aguentei firme, lá também vou aguentar. É muito simples. Muito simples", pensou ele, sentindo-se novamente mais seguro de si, e enfunando-se como um balão. Um êxito casual, insignificante e incerto, transformara um homem hesitante, de terno de sarja cinzenta, em um sujeito empreendedor e aventureiro, de princípios vacilantes e dúbios.

— A ligação custa nove marcos e vinte — avisou a telefonista.

— Ponha na conta — respondeu Preysing, caminhando imerso em pensamentos.

Sentia uma estranha antipatia em falar com Mulle. Na sala de refeições de sua casa fazia agora um calor excessivo; Mulle gostava de quartos bem aquecidos; Preysing teve a impressão de que a sala de refeições de Fredersdorf cheirava a couve-flor; teve a impressão de ver nas faces cheias e sonolentas de Mulle a marca vermelha das pregas do travesseiro, no momento em que ela segurava o fone, após a sesta. Não se decidiu. Não a chamou. Voltou à sala de refeições, onde, entretanto, um garçom perfeito colocara para ele o vinho no gelo, e pratos limpos e aquecidos sobre a mesa.

Preysing comeu, esvaziou seu copo de vinho, acendeu o charuto e, com as têmporas acaloradas e os pés frios, voltou ao quarto. Tinha uma sensação estranha, agradável e nebulosa, mas ao mesmo tempo sentia-se completamente vazio, em consequência da conferência. Teve vontade de tomar um banho bem quente, e abriu a torneira do banheiro. Justamente quando fez menção de despir-se, refletiu melhor, lembrando-se de que não é bom tomar banho com o estômago cheio; sentiu, no espaço de um instante de medo, as palpitações que o ameaçavam na banheira esmaltada, e soltou de novo a água, cheia de vapor. A impressão de cansaço e desconforto que sentiu materializou-se numa coceira no rosto e, quando tentou coçar-se, percebeu que não estava barbeado. Apanhou o chapéu e o sobretudo, como ao preparar-se para um negócio importante; não quis ir ao barbeiro do subterrâneo do hotel, com quem ainda estava zangado, por causa do que acontecera de manhã, e procurou nas ruas circunvizinhas um barbeiro de mais confiança.

Então o Diretor-Geral Preysing viveu uma experiência notável; esse homem de princípios sólidos, mas sem aparelho de barba, teve uma experiência; esse homem de intenções corretas, mas que, apesar de tudo, praticara uma ação duvidosa, um azarado, a quem pela primeira vez o êxito bafejara, ao qual esse bafejo levava... para onde? Podia parecer um acaso, talvez fosse o destino que lhe estava reservado. A experiência foi esta:

A pequena barbearia em que Preysing entrou era asseada e simpática. Havia quatro cadeiras, e dois senhores sentados; um deles era servido por um empregado jovem, simpático, de cabelos encaracolados, e o outro pelo dono da barbearia, um homem idoso, com a aparência e os modos de um camareiro imperial. Preysing foi cumprimentado, alojado na terceira cadeira e envolvido numa capa e num peitilho. O cavalheiro que tivesse um momento de paciência, o primeiro oficial de barbeiro tinha ido almoçar, foi o que lhe participaram com toda a cortesia, pondo-lhe em seguida, nas mãos, um pesado maço de revistas ilustradas. Preysing, excessivamente cansado para opor qualquer resistência, reclinou a cabeça no pequeno encosto da cadeira, e respirou o aroma agradável que pairava na barbearia. Depois, com os nervos acalmados pelo ruído das tesouras, começou a folhear as revistas.

Primeiro pôs-se a ler, de uma maneira indiferente, quase a contragosto, porque não apreciava esse passatempo leviano, preferindo leituras instrutivas e sérias. Mas, após uns instantes, ele já se ria com uma ou outra piada, soltando uma risadinha curta e nasal; voltou as folhas para trás, para observar melhor uma mulher decotada, e em seguida virou uma página, e deixou-a aberta durante todo o tempo em que ficou sentado na cadeira de barbeiro. Realmente, concentrou-se de tal modo na observação dessa gravura, dessa fotografia de revista, que se sentiu estorvado quando o primeiro oficial voltou da sua refeição e se preparou para barbeá-lo.

A fotografia que o atraía desse modo nada tinha de especial; fotografias como essa eram encontradas às centenas em revistas cuja orientação desagradava a Preysing. A gravura representava uma mocinha nua, nas pontas dos pés, tentando olhar por sobre um biombo muito mais alto do que ela. Seus braços estavam levantados, e os delicadíssimos seios, com esse movimento, erguiam-se com uma graça especial, de modo tentador. No dorso esguio via-se o desenho delicado da musculatura. Na cintura, esse corpo se estreitava de um modo incrível, e abaixo do dorso delgado os quadris se encurvavam suavemente, prolongando-se nas linhas das coxas. Aqui, o corpo virava-se ligeiramente de lado, de modo que o ventre da mocinha mal se adivinhava como uma sombra suave, enquanto as coxas e os joelhos se distendiam, como a exprimir uma elástica curiosidade. Essa figura encantadora de mulher, de formas invulgarmente perfeitas, tinha também um rosto; e o que tornava a gravura extremamente excitante para o diretor-geral é que ele conhecia esse rosto. Era a carinha de gata da Flaemmchen, de nariz curto, com uma expressão animada e inocente, era o sorriso meigo de Flamm número dois, era o seu caracolzinho na testa, sobre o qual o esperto fotógrafo colocara um propositado reflexo luminoso; e, antes de mais nada, era a completa naturalidade, o modo simples e ingênuo com que ela o chamara de modo objetivo e modesto — Preysing recordou-se nesse instante — de um "bom nu". Preysing corou, enquanto teve diante dos olhos essa gravura; um súbito e ardente rubor subiu à sua testa, impedindo-o de pensar com clareza, como lhe acontecia nos seus acessos de cólera, que faziam tremer toda a fábrica. Depois, suas veias, uma a uma, começaram a latejar dentro dele, ele o sentia, sentia o sangue a refluir nas veias, como há muito tempo não lhe acontecia.

Preysing era um homem de cinquenta e cinco anos; não era um velho, mas uma pessoa pacata, o esposo pouco exigente de Mulle, mulher já envelhecida, papaizinho inocente de filhas crescidas. Trotara atrás da Flamm número dois pelo corredor do hotel sem sentir a mínima excitação, e o borbulhar suave de seu sangue, nessa ocasião, aplacara-se de modo próprio. Agora, diante desse nu artístico, mal podia respirar.

— Com licença, cavalheiro — disse o barbeiro; e, com um gesto elegante, pousou o fio da navalha em sua face.

Preysing conservou a revista na mão, enquanto se reclinava para trás e fechava os olhos. Primeiro viu tudo vermelho, e depois enxergou a Flaemmchen. Não a Flaemmchen vestida, diante da máquina de escrever, nem a Flaemmchen despida da fotografia cinzenta, mas uma mistura vivaz e excitante de ambas. Uma Flaemmchen de carne e osso, de pele moreno-dourada e sangue rubro e palpitante, que continuava nua, com o busto erguido, a olhar com curiosidade por cima de um biombo. O Diretor-Geral Preysing não estava habituado a deixar sua fantasia trabalhar. Mas agora ela trabalhava. Havia soltado a manivela, desde que ele, pela manhã, colocara na mesa o telegrama, dizendo, de um modo descarado, uma mentira absurda. Agora sua imaginação se afastava rapidamente com ele, o que era apavorante e embriagador ao mesmo tempo. Enquanto a navalha deslizava com leveza e perícia em seu rosto, Preysing sentia coisas incríveis, coisas fantásticas, com a Flaemmchen nua, coisas incríveis consigo mesmo, que ele nunca julgara que pudessem acontecer.

— Quer que lhe raspe o bigode? — perguntou o barbeiro.

— Não — disse Preysing, estorvado em meio aos seus pensamentos. — Por quê?

— É que as pontas estão um pouco grisalhas, e isso envelhece. Se me permite um conselho, o cavalheiro aparentaria dez anos menos, sem bigode — sussurrou o barbeiro, com o sorriso bajulador de todos os barbeiros a refletir-se no espelho.

"Mas eu não posso me apresentar a Mulle sem bigode, como um macaco", pensou Preysing, olhando-se no espelho. Realmente, seu bigode estava grisalho, e sob o bigode havia sempre gotas de suor no lábio superior. "Ora, a Mulle...", pensou ele — e nesse instante, a bem dizer, o adultério já estava cometido.

— Está bem, pode raspá-lo. A qualquer momento posso deixar crescer de novo o bigode.

— É claro, é facílimo — concordou o barbeiro, indo buscar em seguida mais sabão de barbear, para o grande empreendimento.

Preysing levantou a revista para olhar de novo a fotografia — mas isso só já não lhe bastava. Ele não queria mais ver, queria pegar, queria apalpar, queria sentir a Flaemmchen, palpitante e ardente.

No hotel repararam imediatamente no que acontecera ao bigode, mas não deram a perceber. Meu Deus do céu, estavam tão acostumados a observar as estranhas metamorfoses pelas quais passavam os cavalheiros que vinham da província para ficar uns dias no hotel... Preysing, que perguntava, apressado e ofegante, se havia correspondência para ele, recebeu uma carta de Mulle, que lhe colocaram na mão. Meteu-a simplesmente no bolso, sem a ler, e sem nenhum sentimento de carinho. Dirigiu-se então à cabina telefônica. "Preciso falar com Mulle", pensou, "mas posso chamá-la mais tarde." Entrou na cabina para ligações locais, pediu para falar com o gabinete do conselheiro Zinnowitz, e teve uma breve conversa com a Flamm número um. Desejava saber se a senhorita sua irmã estaria por acaso no gabinete.

Não, não estava mais.

Desejaria saber onde poderia ser encontrada.

Ah, respondeu a Flamm número um, hesitante, talvez ela se houvesse atrasado um pouco. Mas, nesse caso, a qualquer momento ela apareceria no hotel.

Preysing, diante do fone, ficou com uma cara de idiota.

— No hotel? Aqui? No Grande Hotel? Por quê?

— Pois é — disse a Flamm número um, precavida e indecisa. Isso pelo menos é o que ela entendera. Flaemmchen tinha ido para o hotel, e então ela, a Flamm número um, julgara que a irmã fora chamada de novo para datilografar. Mas talvez a Flaemmchen tivesse algum encontro, o que nunca se podia saber com certeza, pois, nesse ponto, a Flaemmchen era muito esquisita, muito diferente dela, a Flamm número um. Mas pontual ela era; quando prometia qualquer coisa, cumpria o prometido; por isso, iria com certeza ao hotel.

Preysing agradeceu e pôs o fone no gancho, atrapalhado. Dirigiu-se de novo, inquieto, à portaria, atravessando o hall. Ouvia-se perfeitamente a música saltitante que vinha do pavilhão amarelo.

— Minha secretária perguntou por mim? — informou-se ele com Herr Senf. O porteiro voltou para ele o rosto muito atento e tolo.

— Quem, por favor?

— Minha secretária. A senhorita a quem eu ditei cartas ontem — informou Preysing, excitado.

O pequeno Georgi meteu-se na conversa.

— Ela não perguntou nada, mas esteve no hall, há uns dez minutos, a moça loura, magra, não é isso? Eu acho que ela está no chá das cinco, no pavilhão amarelo, do outro lado do hall, segundo corredor atrás do elevador; o senhor vai perceber pela música.

Seria próprio de um diretor-geral, vestido com um terno de sarja, andar atrás dos sons apimentados de uma orquestra de jazz, através de corredores desconhecidos, à procura de uma jovem e leviana datilografa, com quem ele nada tinha que ver, do ponto de vista jurídico? Mas é que Preysing está quase a desviar-se do bom caminho, quase a escorregar, e não o percebe. Só percebe que seu sangue corre de modo diferente do costume, diferente dos quinze ou vinte últimos anos, e ele quer a qualquer preço agarrar-se a esse sentimento, tirar proveito dele. O bigode está raspado, não foi feita nenhuma ligação telefônica para a Mulle, e, quando ele abre a porta do pavilhão amarelo e sente a atmosfera desconhecida dessa sala, o assunto complicado com Chemnitz e Manchester, incerto e ainda por esclarecer, fica quase esquecido.

A essa hora, às cinco horas e vinte minutos, o pavilhão amarelo está diariamente entupido de gente. As cortinas de seda amarela, franzidas vaporosamente, estão fechadas diante das janelas altas; nas paredes estão acesas lampadazinhas amarelas, e nas mesinhas também há lampadazinhas acesas, com abajures amarelos. Está quente, ali dentro; dois ventiladores zunem, e paira no ar o burburinho humano. As pessoas estão sentadas bem perto umas das outras; cada um sente o calor do seu vizinho, porque uniram as mesinhas, para dar mais espaço aos que estão dançando no centro da sala. No forro abobadado estão pintadas formas vagas de bailarinos, em lilás e prateado; por vezes, quando tudo se movimenta, o forro causa a impressão de um espelho embaciado, em que se refletem os dançarinos cá de baixo. Tudo o que se passa ali dá uma impressão estranha de ângulos e de ziguezagues; a dança não é circular, mas apenas um estremecimento que se eleva e abaixa; e Preysing, que foi soprado até ali pelos rumores de seu sangue, para procurar uma certa Flaemmchen, ficou completamente tonto. Não via mais as pessoas inteiras, mas tudo se separava em confusão, só tinham cabeça ou coxas, como certa espécie de quadros modernos, que Preysing, em razão da loucura que representavam, não podia suportar. Porém, o mais importante e digno de reparo no pavilhão amarelo era a música. Era executada por sete cavalheiros indescritivelmente satisfeitos, de camisas brancas e calças curtas, a célebre Eastman Jazzband, cuja música era de uma vivacidade maluca, tamborilava sob as solas dos pés, fazia cócegas nos músculos dos quadris. Havia dois saxofones que choramingavam e outros dois que zombavam deles com um jeito satírico e sarcástico. O jazz serrava, estalava, teimava, matraqueava, cacarejava, pondo ovos sobre a melodia, ovos que eram em seguida esmagados — e quem caísse dentro do círculo dessa música ficava prisioneiro do ritmo convulsivo da sala, parecia até enfeitiçado.

Preysing, no entanto — empurrado de um lado para o outro pelos garçons que levavam bandejas cheias de taças com gelo —, ficara parado à porta, e reparou que começou a contrair os músculos das pernas enquanto, mal-humorado, procurava enxergar a Flamm número dois. Seu lábio superior, nu e remoçado, cobriu-se novamente de suor; ele tirou do bolso o lenço, enxugou o rosto, e depois meteu o lenço no bolsinho exterior do paletó, onde em geral só costumava guardar a caneta-tinteiro. Com um olhar de esguelha, muito encabulado, arranjou a ponta do lenço, deixando-o cair como uma graciosa bandeirola; isso parecia legitimar o seu direito de pertencer a essa parte animada do Grande Hotel. Aliás, ninguém se importava com ele. Poderia ficar ali o tempo que quisesse, e procurar entre duzentas jovens e esbeltas dançarinas uma determinada senhorita.

— Quando vi que o senhor não estava aqui às cinco e dez pensei: ele vai dar um bolo. Você vai ver, ele vai dar um bolo, pensei — disse a Flaemmchen, que estava dançando com Gaigern uma lânguida variação do charleston, uma dança nova, com uma pequena síncope, que dava um golpe na perna. Seus corpos se ajustavam plenamente na dança.

— Absolutamente. Pensei o dia inteiro na senhora, e me alegro de poder revê-la — disse Gaigern.

Essa frase lhe saiu com a mesma leveza e languidez, com a mesma facilidade com que ele dançava. Gaigern era apenas alguns centímetros mais alto do que a Flaemmchen, e fitou com um leve e amável sorriso os olhos de gatinha da moça. Ela estava vestida com um vestidinho de seda leve, azul; ao pescoço trazia um colar de contas de vidro lapidado, e usava um chapeuzinho, desses fabricados em série e vendidos por um marco e noventa. Estava encantadora, com os requisitos de uma elegância rebuscada.

— É verdade mesmo que o senhor se alegrou? — perguntou ela.

— Metade verdade, metade invenção — replicou Gaigern com sinceridade. — Passei o dia hoje caceteadíssimo — acrescentou suspirando. — Estou servindo de cicerone para um senhor de idade, por necessidade, é claro.

— E por que faz isso?

— Preciso conseguir uma coisa dele.

— Ah! — disse a Flaemmchen, compreensiva.

— A senhora também precisa dançar com ele — disse Gaigern, apertando-a de leve.

— Que nada!

— Não é isso. Mas eu vou lhe pedir encarecidamente. Ele não sabe dançar, compreende? Mas tem tanta vontade de aprender! A senhora dá apenas algumas voltas com ele — para me fazer um favor.

— Bem, vamos ver! — prometeu a Flaemmchen. Continuaram a dançar, calados. Gaigern trouxe mais para perto o corpo da moça, sentindo que as costas dela obedeciam documente aos movimentos de sua mão. Isso, porém, não o alegrava, pelo contrário, causava-lhe raiva, até.

— Então, que aconteceu? — perguntou a Flaemmchen, pressentindo o que se passava.

— Ah!... Não é nada! — resmungou Gaigern, sentindo ódio de si próprio.

— Que está querendo? — perguntou a Flaemmchen com solicitude. Achava-o lindo, com aquela boca, e a cicatriz no queixo... E os olhos também, um pouco oblíquos. Sentia forte inclinação por ele.

— A gente tem vontade de fazer qualquer coisa maluca, já que não acontece nada. Agora tenho vontade de mordê-la, ou de brigar com a senhora. Ou de esmurrá-la, até. Ora! Hoje à noite vou à luta de boxe; ali, pelo menos, acontece alguma coisa.

— Ah, é? — disse a Flaemmchen. — O senhor vai hoje à noite à luta de boxe? Ah, sei.

— Com aquele senhor de idade — afirmou Gaigern.

— Se o senhor... acabou — disse a Flaemmchen, quando a música parou. Ela se pôs então a bater palmas freneticamente, deixando-se ficar onde estava. Gaigern fez menção de tirá-la do meio da sala e levá-la a uma mesinha, onde ele deixara Kringelein diante de uma xícara de café. A música começou de novo, quando os dois já se encontravam a meio caminho, entre a confusão e o aperto.

— Tango! — exclamou a Flaemmchen, excitada.

E a moça tomou posse de Gaigern, simplesmente. A palma de sua mão encostava-se à dele, implorando e aquiescendo. Suas coxas já se emparelhavam no passo lânguido e arrastado do tango. Fez-se um vazio na sala, em redor deles, porque dava prazer vê-los dançar.

— O senhor conduz otimamente — sussurrou a Flaemmchen, como se fizesse uma declaração de amor. Gaigern nada tinha a replicar. — Ontem o senhor estava tão diferente... — disse um pouco mais tarde.

— É... ontem — respondeu Gaigern. Disse isso como se estivesse a dizer: há cem anos. — Aconteceu uma coisa de ontem para hoje — acrescentou.

Sentia que uma compreensão simples e natural os unia, e de repente teve desejos de se confiar a ela.

— Esta noite eu me apaixonei, uma paixão muito séria, compreende? — disse ele baixinho, dançando o tango que vibrava no ar. — Isso vira a cabeça da gente. É um sentimento avassalador. É como se...

— Mas isso não é nada de extraordinário — observou a Flaemmchen, ironicamente, sentindo-se triste, desiludida.

— É sim, é uma coisa extraordinária. A gente tem vontade de se transformar por completo, compreende? De repente acha que só existe uma mulher no mundo, só essa mulher, e o resto não tem mais nenhum valor. A gente acha que não é mais capaz de dormir, a não ser com essa mulher. É como se passasse por nós um furacão. Como se nos tivessem posto dentro de um canhão, e depois atirado à Lua ou a outro lugar qualquer, onde tudo é diferente.

— E como é ela? — perguntou a Flaemmchen — e qualquer outra em seu lugar teria perguntado o mesmo.

— Ah! Como ela é? Aí é que está... É muito velha e magra, muito leve, sou capaz de levantá-la do chão com um dedo. Tem rugas, aqui e aqui, e olhos pisados. E fala numa linguagem de baixo calão, como um clown; tem-se vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo, ao ouvi-la. E isso tudo me agrada de um modo incrível, não há nada a fazer. É o grande amor.

— O grande amor? Mas isso não existe — disse a Flaemmchen. Ao afirmar isto, ela tinha uma carinha espantada e teimosa de gata, como às vezes os amores-perfeitos têm nos canteiros.

— Como não, como não? Existe, sim — disse Gaigern.

A Flaemmchen ficou tão impressionada com essas palavras, que parou um segundo, em meio ao tango, e sacudindo a cabeça olhou Gaigern.

— São frases, apenas — murmurou ela ao mesmo tempo.

Nesse momento exato os olhos de Preysing descobriram finalmente o vulto procurado, no meio da confusão erótica e lânguida do tango. Com um sentimento de zanga e extrema impaciência, esperou que a dança lenta terminasse e depois foi-se espremendo entre os pares, até a mesinha em que a Flaemmchen tomara lugar entre dois senhores, que Preysing tinha a impressão de conhecer. No hotel, essa espécie de conhecimentos de vista eram correntes; passava-se por alguém no elevador, encontrava-se com alguém na sala de refeições, no banheiro e no bar, girava-se um diante do outro na porta giratória, nessa porta que estava sempre a rodar, deixando entrar e sair gente, para dentro e para fora do hotel.

— Boa tarde, Fräulein Flamm — disse o diretor-geral com a voz tornada rouca e grosseira pela timidez; postou-se ao lado da cadeira da moça, encolhendo a barriga para dar passagem ao garçom.

A Flamm número dois apertou as pálpebras, até conseguir registrar a presença imprevista de Preysing.

— Ah, é o senhor diretor — disse então, amavelmente. — O senhor também dança? — ela olhou a fisionomia contraída dos três homens; estava habituada a ver essa expressão nos semblantes dos homens que a rodeavam. — Os senhores já se conhecem? — perguntou com um gesto distinto de mão, que copiara de uma estrela de cinema.

Não podia apresentá-los, porque não sabia como se chamavam os seus cavalheiros. Preysing e Gaigern murmuraram algo, e o diretor-geral apoiou na mesa uma mão repleta de sentimento de posse, enquanto passava rente a ele, à altura da cabeça, uma perigosa bandeja com copos de laranjada, que o garçom equilibrava.

— Boa tarde, Herr Preysing — disse de repente Kringelein, sem erguer-se da cadeira.

Cada uma das suas vértebras lhe doía, por causa do enorme esforço que teve de fazer para não ser atacado de tremedeira e não cair estatelado, voltando a ser o miserável Kringelein da caixa da fábrica. Ficou de ombros contraídos; tudo nele se contraiu; lábios, dentes, até mesmo as narinas, que tomaram um aspecto redondo e feio, como as dos cavalos. Mas ele se portou à altura do grave momento; forças nunca pressentidas fluíam do seu jaquetão preto de corte impecável, da sua roupa de baixo, da sua gravata, de suas unhas bem cuidadas, enchendo-o de energia. O que quase o fez perder o aplomb foi o fato de Preysing também ter se transformado; continuava a usar o mesmo terno de Fredersdorf, mas não tinha mais bigode.

— Não sei bem... desculpe-me... mas acho que já nos conhecemos... — disse Preysing com a maior amabilidade que lhe permitia a excitação que sentia por causa da Flaemmchen.

— Sim, senhor. Kringelein — afirmou este. — Trabalho na fábrica.

— Ah — disse Preysing, esfriando. — Kringelein. Nosso representante, não é? — acrescentou, reparando na elegância de Kringelein.

— Não. Guarda-livros. Auxiliar de guarda-livros no bureau de pagamentos. Sala 23. Edifício C. Terceiro andar — informou Kringelein conscienciosamente, mas sem devoção.

— Ah — repetiu Preysing, pensativo. Seu desejo era afastar nesse momento a aparição indesejável e incompreensível de um auxiliar de guarda-livros de Fredersdorf no pavilhão amarelo do Grande Hotel. — Preciso falar com a senhora, Fräulein Flamm — disse ele, retirando a mão do encosto da cadeira da Flaemmchen. — Trata-se de um novo serviço de datilografia — acrescentou num tom de chefe, que feriu os ouvidos do sujeito de Fredersdorf.

— Está bem — concordou a Flaemmchen. — Quando é melhor para o senhor? Às sete, sete e meia?

— Não, já — disse Preysing em tom ditatorial, enxugando o suor do rosto.

Aquele indivíduo de Fredersdorf tinha também um lenço no bolso do paletó, uma flamulazinha de seda, revolucionária e leviana.

— Infelizmente, já, já não é possível — disse a Flaemmchen amavelmente. — Já estou comprometida. Não posso deixar estes senhores aqui. Ainda preciso dançar uma vez com Herr Kringelein.

— Herr Kringelein vai ter a amabilidade de desculpá-la — disse Preysing, contendo-se. Era uma ordem. Kringelein sentiu que os vinte e cinco anos de um sorriso subalterno queriam insinuar-se em seus lábios paralisados. Controlou-o, fazendo-o recuar para a pele do rosto, engelhada e quase fria. Procurou auxílio e forças em Gaigern. O barão tinha um cigarro no canto da boca, e a fumaça subia ao longo das pestanas de seu olho esquerdo, que ele piscou com expressão brejeira e compreensiva.

— Não penso absolutamente em desistir — comentou Kringelein. Após lhe escaparem estas palavras, ficou imóvel como uma lebre, que finge estar morta no carreiro de um campo. De repente, Preysing, ao ver aquela expressão obstinada, recordou-se de um relatório a respeito de Kringelein, que lhe haviam apresentado há poucos dias.

— É estranho — disse ele com a voz nasal e temida da fábrica. — É estranhíssimo. Agora já sei do que se trata. O senhor participou à fábrica que estava doente, não é? Herr Kringelein, hein? Sua mulher pediu um subsídio ao Fundo de Auxílio aos Doentes, por causa de moléstia grave. Nós lhe demos férias de seis semanas, pagas. E o senhor se encontra em Berlim, divertindo-se, hein? Anda atrás de divertimentos que não condizem nem com a sua posição nem com o seu ordenado. É muito estranho. Estranhíssimo, Herr Kringelein. Nós vamos rever com cuidado os seus livros, pode estar certo disso. Vamos deixar de pagar-lhe as férias, já que o senhor está tão bem de saúde, Herr Kringelein! Vamos...

— Olhem, meninos, nada de brigas aqui. Vão entender-se no seu escritório — disse a Flaemmchen, com modos afáveis e conciliantes. — Nós estamos aqui para nos divertir. Vamos, Herr Kringelein, agora vamos dançar.

Kringelein firmou-se nas pernas, esticando os joelhos, que pareciam de borracha, mas que se consolidaram a olhos vistos quando a Flaemmchen colocou o braço no ombro dele. A música tocava aos solavancos uma coisa rapidíssima, algo semelhante à corrida de automóvel a cento e quinze quilômetros por hora, e ao motor de avião. Isso lhe deu forças para dizer as frases que vinha preparando há vinte e cinco anos, em sua vida de empregado subalterno. Arrastado pela Flaemmchen para o meio da sala, falou em voz alta, virando a cabeça para trás:

— Quem sabe se o mundo pertence só ao senhor, hein, Herr Preysing? O senhor será diferente de mim? Quem sabe se as pessoas como eu não têm o direito de viver?

— Que é isso, que é isso! — exclamou a Flaemmchen. — Aqui não se fala aos berros, aqui se dança. E agora, não olhe para os pés, olhe para o meu rosto, e vá andando, vá andando calmamente, vou guiá-lo.

— Mas que impostor! — rangeu Preysing por entre os dentes, por trás deles. E ficou diante da mesa, trêmulo de cólera. Gaigern, a fumar, ouvindo essas palavras, sentiu um impulso raro, uma espécie de compassivo coleguismo, misturado a uma repulsa, violenta e sarcástica, pelo corpulento e suarento diretor-geral. "Era preciso colocar-lhe um par de sanguessugas na pele, amiguinho", pensou ele.

— Deixe que o pobre-diabo se divirta! — disse a meia voz. — Basta olhar para a cara dele para ver que está às portas da morte.

"Não lhe pedi nenhum conselho", pensou Preysing, mas não teve coragem de dizê-lo, porque sentia obscuramente a raça superior do barão.

— Peço-lhe o favor de dizer a Fräulein Flamm que a espero no hall, para um assunto urgente. Se ela não aparecer até as seis, dou o assunto por terminado — disse ele, curvando-se ligeiramente. Em seguida retirou-se.

Intimidada por esse ultimato, a Flaemmchen apareceu no hall três minutos antes das seis. Preysing ergueu-se das brasas ardentes em que estivera sentado nesse ínterim, e sorriu com profunda satisfação. Como ele sorria raramente, essa amabilidade o tornou mais bonito, e causou efeito imprevisto.

— Cá está a senhora — disse ele, estonteado.

Há muitas horas ele se contorcia, se martirizava, ardia, com um único pensamento: saber se a Flaemmchen era conquistável. Suas experiências com mulheres eram modestas, e datavam de muitos anos atrás. Dessa geração nova de mocinhas, ele fazia apenas uma ideia vaga, apesar de, nas reuniões masculinas, e em conversas íntimas nas viagens profissionais, dizerem com frequência que essa espécie de meninas era fácil de conquistar. Pôs-se a observar a Flaemmchen, as suas pernas cruzadas, com meias de seda, o colar de pedras de vidro imitando cristal, sua pintura, que ela nesse instante renovava, apertando os lábios, e ficou sem saber em que se basear, nessa pessoa despreocupada, para as suas suposições.

A Flaemmchen fechou o estojinho de pó de arroz e perguntou:

— Então, de que se trata?

Preysing apertou o charuto entre os dedos, e desembuchou:

— Trata-se do seguinte — começou ele: — preciso viajar para a Inglaterra, e preciso levar comigo uma secretária. Em primeiro lugar, por causa da correspondência; depois, porque desejaria ter com quem conversar durante a viagem. Sou muito nervoso, muito nervoso, mesmo — afirmou, apelando inconscientemente para a compaixão da moça —, e preciso ter alguém na viagem que se ocupe de mim. Não sei se a senhora me compreende. Ofereço-lhe um emprego de confiança, em que a senhora... em que..

— Já estou compreendendo — disse a Flaemmchen, baixinho, ao perceber a atrapalhação dele.

— Acho que nos daremos bem na viagem — afirmou Preysing.

O delicioso fluir e latejar do seu sangue nas veias diminuíra durante tão difíceis negociações, mas quando ele fitou a Flaemmchen consolou-se, sentindo que ela iria fazer com que tudo isso despertasse de novo, assim que o desejasse.

— A senhora contou-me que no ano passado também viajou com um cavalheiro, e isso me fez ter esta ideia... eu acho que seria muito agradável, se a senhora quisesse. A senhora quer?

A Flaemmchen pensou durante cinco longos minutos.

— Preciso pensar primeiro — respondeu ela, com expressão ajuizada e preocupada, fumando o seu indefectível cigarro. — Para a Inglaterra? — perguntou depois. A cor moreno-dourada da sua pele clareou um pouco, o que talvez significasse que empalidecera. — Ainda não conheço a Inglaterra. E por quanto tempo?

— Por... não sei lhe dizer ainda com exatidão. Isso depende. Se os meus negócios lá correrem bem, tiro talvez mais catorze dias de férias, e podemos ficar em Londres, ou ir para Paris.

— Bom, pode-se arranjar; já sei mais ou menos do que se trata, pelas cartas — disse a Flaemmchen com segurança.

O otimismo era o elemento em que ela se movia. Preysing sentiu-se animado ao perceber que ela estava a par dos seus negócios, e profetizava o sucesso.

— A senhora ainda precisa me dizer quanto quer de ordenado — declarou ele, com o tom de quem dizia um galanteio.

Desta vez demorou mais, até que a Flaemmchen respondesse. Tinha que fazer um extenso balanço. A renúncia à aventura principiada com o belo barão se incluía nele, os pesados cinquenta anos de Preysing, sua gordura, seu fôlego curto. Pequenas dívidas aqui e ali. A necessidade de roupa de baixo nova, de sapatos bonitos — os azuis não iam durar muito. O pequeno capital de que necessitava para iniciar carreira no cinema, na revista, em qualquer parte. A Flaemmchen pesou calmamente e sem sentimentalismo a oportunidade do negócio que lhe era proposto.

— Mil marcos — disse ela, achando que era suficiente; não tinha ilusões a respeito das quantias que hoje em dia se depunham aos pés das mulheres bonitas. — Talvez um pouquinho mais para a roupa de viagem — acrescentou, um pouco mais tímida do que de costume. — O senhor há de querer que eu tenha uma bonita aparência...

— Para isso a senhora não precisa se vestir. Pelo contrário — disse Preysing, excitado. Ele julgou que tinha dito uma frase espirituosa. A Flaemmchen sorria melancolicamente, o que deu um aspecto estranho à sua saudável carinha de amor-perfeito. — Então está combinado? -— perguntou Preysing. — Amanhã ainda tenho umas coisas a fazer aqui; é preciso também arranjar os passaportes, e poderemos viajar depois de amanhã. Está contente por ir conhecer a Inglaterra?

— Muito — respondeu a Flaemmchen. — Então amanhã eu trago a minha máquina de escrever portátil e o senhor pode ir logo ditando.

— E hoje à noite... se a senhora concordar... pensei que hoje à noite poderíamos ir a um teatro... Temos que tomar um copo de vinho para festejar o nosso contrato, não é? O que acha?

— Hoje, já? — disse a Flaemmchen. — Bom. Hoje, já.

Ela soprou o seu caracolzinho para cima, e atirou o cigarro amassado no cinzeiro. Podia ouvir perfeitamente a música do pavilhão amarelo. "Não se pode ter tudo", pensou. "Mil marcos. Vestidos novos. E Londres também não é para desprezar."

— Preciso telefonar para minha irmã — disse ela, levantando-se. Preysing sentiu-se percorrido por uma onda de calor, apaixonada e grata, que o inundou completamente; colocou-se então por trás dela e pegou delicadamente, com ambas as mãos, seus cotovelos, que ela apertava de encontro ao corpo.

— Quer ser boazinha para mim? — perguntou ele em voz baixa.

E igualmente baixinho, com os olhos voltados para a passadeira cor de amora, a Flaemmchen respondeu:

— Se não tiver muita pressa...


CONTINUA

7

 

O chá com veronal esfriara. A Grussinskaia sorriu ligeiramente, mas quando o percebeu, parou de sorrir e perguntou com ar severo:

— Quem o deixou entrar? A criada de quarto? Ou a Suzette? Como conseguiu entrar?

Gaigern tentou um golpe arriscado. Apontou por sobre o ombro para a atmosfera noturna da rua.

— Por ali — disse ele. — Vim do balcão do meu quarto.

De novo a Grussinskaia teve a impressão de já ter passado por aventura semelhante. De repente, veio-lhe a recordação. Num dos castelinhos de veraneio, no sul, em Abas-Tuman, aonde o Grão-Duque Serguei costumava levá-la, escondera-se certa noite em seu quarto um homem, um oficial bem jovem ainda. Arriscara a vida nessa tentativa; mais tarde ele veio de fato a falecer num acidente de caça pouco esclarecido. Isso tinha acontecido pelo menos há trinta anos. Enquanto a Grussinskaia ia para o balcão e olhava na direção em que a mão de Gaigern apontava, de repente o passado se apresentou de novo com toda a clareza. Ela via o rosto do jovem oficial. Chamava-se Pavel Jerilinkov. Lembrou-se de seus olhos e de alguns beijos. Estava enregelada, e sentiu que o homem ao lado dela no balcãozinho irradiava calor. Olhou rapidamente para os sete metros da fachada do hotel, que ficavam entre o balcão do seu quarto e o do quarto vizinho.

— Mas isso é perigoso — observou ela inadvertidamente, recordando-se mais de Jerilinkov do que pensando no momento presente.

— Não é tanto assim — replicou Gaigern.

— Está fazendo frio. Feche a porta — disse a Grussinskaia, passando depressa diante dele e entrando de novo no quarto. Gaigern obedeceu, e foi caminhando atrás dela; fechou a porta, puxou as duas cortinas, e depois ficou com as mãos pendentes: não passava de um jovem belíssimo, modesto mas um pouco amalucado, que fazia garotices românticas, para entrar no quarto de uma bailarina célebre. Afinal de contas, ele também possuía um pouco de talento para ator, o que era uma exigência da sua profissão. E agora representava, por uma questão de vida ou de morte. A Grussinskaia curvou-se, levantou o traje de ballet que atirara no chão, e o levou para o banheiro. A gota de sangue, de contas vermelhas de vidro lapidado, cintilou. Ela sentiu uma dor cortante e aguda. Nenhum da capo. Nenhum escândalo, quando uma outra dançava. Um público cruel. Berlim era cruel. Solidão cruel. Ela já havia sobrepujado um pouquinho essa dor — e agora a dor a acometia de novo, causando-lhe uma angústia no peito. Durante alguns segundos esqueceu-se por completo do intruso, que se parecia com o falecido Jerilinkov, mas de repente virou-se para ele e perguntou, sem olhá-lo:

— Por que fez isso? Por que faz coisas perigosas? Por que está escondido no meu quarto? Deseja alguma coisa de mim?

Gaigern fez uma investida e preparou-se para o ataque. — "Hop-là, avante!", pensou Gaigern. Não ergueu os olhos para ela.

— A senhora já sabe a razão, é porque a amo — respondeu em voz baixa.

Disse isso em francês, porque se o dissesse em alemão teria sido extremamente penoso. Depois ficou esperando em silêncio pelo resultado. "É simplesmente idiota", pensou ao mesmo tempo. Essa comédia lhe causava uma vergonha atroz, humilhante. Tinha horror de tudo o que feria o bom gosto. De qualquer modo, se ela não chamasse pelo camareiro, talvez ele estivesse salvo.

A Grussinskaia engoliu essas breves palavras francesas com a boca bem aberta. Absorveu-as como um remédio; dentro de poucos segundos até o tremor de frio cessou. Pobre Grussinskaia! Há muitos anos que ninguém lhe dizia coisa semelhante. Sua vida corria diante dela como um trem expresso vazio. Ensaios, trabalho, contratos, carros-dormitórios, quartos de hotel, excitação no palco, uma excitação cruel, e mais trabalho e mais ensaios. Sucesso, fracasso, críticas, entrevistas, recepções oficiais, discussões com empresários. Três horas de exercícios de solista, quatro horas de ensaios de ballet, quatro horas de espetáculo; os dias se seguiam um ao outro sempre iguais. O velho Pimenoff. O velho Witte. A velha Suzette. A não ser essas pessoas, mais ninguém, nenhum calor, nunca, nunca. Colocava as mãos nos canos de aquecimento central dos hotéis, e pronto. E depois, quando estava tudo terminado, quando o fim de tudo e da vida estava iminente, encontrava-se um homem à noite no quarto, e esse homem pronunciava palavras há muito desaparecidas, de que outrora

o mundo estivera repleto. A Grussinskaia não suportava mais. Sentia um sofrimento atroz, como se estivesse prestes a dar à luz. Mas foram apenas duas lágrimas que finalmente brotaram da tensão dessa noite, e ela as sentiu em seu corpo inteiro, nos artelhos e nas pontas dos dedos das mãos, depois no coração, e por fim elas chegaram aos seus olhos; rolaram pelas longas e rígidas pestanas pretas de pintura, caindo nas palmas abertas de suas mãos.

Gaigern assistiu à evolução desse fenômeno, e encheu-se de calor. "Pobre animalzinho", pensou ele. "Pobre bichinha. Está chorando, agora. Que coisa idiota!"

Depois que a Grussinskaia deu à luz essas duas lágrimas dolorosas, a coisa se tornou mais fácil. Começou com um leve aguaceiro, ao mesmo tempo cálido e fresco como uma chuva de verão — Gaigern pôs-se a pensar nos canteiros de hortênsias do jardim de Ried, sem saber por quê. Depois, esse aguaceiro se transformou numa torrente apaixonada, uma torrente negra, porque a pintura das sobrancelhas se dissolveu por completo. E, por fim, a Grussinskaia atirou-se ao leito, soluçando um tropel de palavras russas nas mãos em concha, que conservava encostadas à boca. Gaigern, ao assistir a essa cena, transformou-se. De ladrão de hotel, prestes a tirar a vida de uma mulher, passou a ser simplesmente um homem, um sujeito grandão, simples e bondoso, que não podia ver uma mulher chorar sem querer auxiliá-la. Agora não sentia mais medo, absolutamente nenhum; agora, o que o fazia sentir o coração pequeno e palpitante era a simples compaixão. Inclinou-se sobre o leito, pondo os braços dos dois lados do pequenino corpo a soluçar, e assim, curvado sobre a Grussinskaia, principiou a sussurrar em meio aos seus soluços. Não era nada de especial o que ele dizia; com as mesmas palavras teria consolado uma criança a chorar, ou um cão enfermo.

— Coitadinha — foi mais ou menos o que ele disse —, pobrezinha, pobrezinha da Grussinskaia, ela está chorando. Faz bem chorar assim, faz? Pois então chore, pode chorar. Que foi que lhe fizeram? Foram maus para você? Você gosta que eu esteja ao seu lado? Posso ficar aqui? Está com medo? É por isso que está chorando, é? Você... bobinha!

Levantou um dos braços que apoiara ao leito, tirou da boca da Grussinskaia as mãos que ela apertava de encontro aos lábios e beijou-as; estavam molhadas de lágrimas e pretas como as de uma menininha; seu rosto também estava todo lambuzado das lágrimas negras caídas dos seus olhos pintados. Gaigern não pôde deixar de rir. Apesar de continuar a chorar, a Grussinskaia viu o movimento bondoso, próprio dos homens fortes, o movimento de ombros que fazem quando riem. Gaigern afastara-se do leito e tinha ido ao banheiro. Voltou com uma esponja e enxugou com muito cuidado o rosto da bailarina; tinha trazido também um lenço. A Grussinskaia tinha parado de chorar, e conservou-se deitada tranqüilamente, enquanto ele lhe limpava o rosto. Gaigern sentou-se à beira da cama e sorriu para ela.

— E então? — perguntou ele.

A Grussinskaia murmurou qualquer coisa que ele não compreendeu.

— Fale em alemão — pediu Gaigern.

— Você... criatura... — sussurrou a Grussinskaia.

Essas palavras o comoveram. Chocaram-se de encontro ao seu coração como uma bolinha de tênis atirada com força, e quase o magoaram. As damas com as quais ele tinha relações não costumavam usar palavras carinhosas. Para elas, a gente se chamava coisinha, menininho, queridinho, ou "o barão grandão". Gaigern percebeu o sentimento contido nesse apelo, que despertou em seu íntimo recordações da infância, vindas de uma esfera que ele abandonara. Afastou-o de si. "Se ao menos eu tivesse um cigarro", pensou ele, cheio de languidez. A Grussinskaia tinha olhado para ele um momento, com um olhar que exprimia confusão e quase felicidade. Depois ela se sentou, estendeu seus longos artelhos à procura dos chinelos que haviam caído e de repente se transformou em uma senhora.

— Ora essa! — disse ela. — Que sentimentalismo! A Grussinskaia está chorando? Como? É uma coisa que vale a pena ver. Há muito tempo, há anos que ela não chorava. Monsieur me assustou. Monsieur é o culpado por esta triste cena.

Falava na terceira pessoa, queria criar distância, retirar o repentino "você", mas esse homem já estava muito próximo dela, para que o pudesse chamar de "senhor". Gaigern nada pôde responder.

— É horrível como o teatro ataca os nervos — continuou ela em alemão, com a impressão de que ele não a tinha compreendido. —- Disciplina! Isso sim, disciplina nós temos. A disciplina é um coisa penosa e difícil. Disciplina é fazer sempre o que não se deseja, como posso explicar... o que a gente não gosta de fazer. Você sabe o que significa ficar exausto por excesso de disciplina?

— Eu? Eu não. Faço sempre o que quero — disse Gaigern.

A Grussinskaia ergueu a mão, com um gesto em que todas as Graças haviam retornado.

— Sim, monsieur. Sente-se vontade de entrar no quarto de uma senhora... e entra-se. Sente-se vontade de pular varandas, com risco de vida... e faz-se o que se quer. E qual é o desejo de monsieur, agora?

— Eu gostaria de fumar — respondeu Gaigern francamente. A Grussinskaia esperava outra resposta, e achou que o pedido era cavalheiresco e gentil. Foi até a escrivaninha e ofereceu a Gaigern sua pequena cigarreira. Com o quimono chinês, já muito usado, mas legítimo, e os chinelos acalcanhados, tinha a mesma aparência de há vinte anos, quando viajava por todos os continentes, cheia de uma graciosidade cristalina e tilintante. Parecia ter-se esquecido de seus olhos avermelhados, e de seu aspecto lamentável.

— Pois então fumemos o cachimbo da paz — disse ela, erguendo para Gaigern as pálpebras amarfanhadas. — E depois faremos a nossa despedida!

Gaigern tragou avidamente a fumaça pelo nariz e pelo pulmão. Sentiu-se aliviado, apesar de sua situação ser ainda delicada. Não podia abandonar esse quarto com as pérolas no bolso, quanto a isso não havia dúvidas. Se conservasse as pérolas, agora que conhecia a bailarina, teria que fugir nessa mesma noite, e no dia seguinte pela manhã a polícia o estaria perseguindo. Isso não fazia absolutamente parte dos seus planos. Agora tratava-se de ficar ali a qualquer preço, até que as pérolas pudessem retornar ao seu estojo. A Grussinskaia sentara-se diante do espelho e empoava o rosto, com expressão séria. Esfregou alguns riscos e pontinhos da pele e ficou novamente linda. Gaigern aproximou-se dela, pondo-se, com seu grande vulto entre a suitcase vazia e a mulher. Fitando seus ombros, ele dirigiu-lhe um sorriso tentador, doce como mel.

— Por que esse sorriso? — perguntou ela ao espelho.

— Porque vejo no espelho uma coisa que você não pode ver — disse Gaigern.

Dizia simplesmente: "você". O cigarro lhe tinha dado coragem, e ele se animou. "Avante", pensou ele, encorajando-se.

— Estou vendo de novo o que estava vendo há pouco, lá do balcão — disse ele inclinando-se sobre a mulher —, estou vendo no espelho uma mulher belíssima, como nunca vi outra igual. Essa mulher está triste. E está nua... Ela é... não, não posso dizê-lo, isso me faz ficar louco. Não sabia que era tão perigoso espiar em um quarto alheio uma mulher que se despe.

E, realmente, enquanto Gaigern formava no seu francês convencional essas frases galantes, via a imagem da Grussinskaia no espelho, como há pouco, e sentia ao vê-la a mesma admiração e o mesmo calor que sentira no balcão. A Grussinskaia ouviu-o atenta e com expressão inquiridora. "Como me tornei fria", pensou com tristeza, percebendo que não estremecia ao ouvir aquelas palavras entusiásticas. Sentia a intensa vergonha das mulheres frias. Voltou-se para Gaigern com um movimento elegante e calculado do longo pescoço. Gaigern segurou os pequenos ombros da mulher com suas mãos quentes e hábeis, e em seguida beijou-a no lindo sulco entre as omoplatas, como um conhecedor.

Esse beijo, principiado com frieza entre dois corpos estranhos, prolongou-se. Mergulhou como uma agulhazinha quente na espinha dorsal da mulher, cujo coração começou a palpitar com força. Seu sangue correu mais pesado e doce; sim, esse coração que já esfriara agora palpitava, e começou a vibrar; seus olhos se fecharam; ela tremia. Gaigern tremia também, quando a largou e endireitou o corpo; uma veia intumesceu, muito azul, na sua testa. De repente sentiu a Grussinskaia dentro dele. inteirinha, sua pele, seu perfume acre, seu estremecimento ansioso de prazer, que fora despertando aos poucos. "Com os diabos!", pensou ele de repente. Suas mãos estavam cheias de avidez, e ele as estendeu.

— Eu acho que o senhor deve retirar-se agora — disse a Grussinskaia com voz fraca, à imagem do moço no espelho. — A chave está na porta.

Sim, lá estava a malfadada chave; agora era possível retirar-se quando quisesse. Mas Gaigern não desejava retirar-se — por várias razões.

— Não — disse ele, com súbito sentimento de dominador, como o macho de uma pequenina mulher, trêmula como um violino a vibrar. — Não vou embora. Você sabe que não vou. Você pensa realmente que vou deixá-la agora aqui sozinha? Que vou abandoná-la ao lado de uma xícara de chá cheia de veronal? Você pensa que eu ignoro o que se passa com você? Eu vou ficar aqui. Está dito.

— Está dito? Está dito? Mas eu quero ficar sozinha....

Gaigern aproximou-se rapidamente da Grussinskaia, que estava de pé no meio do quarto, e puxou até seu peito os pulsos da bailarina.

— Não — disse ele com veemência. — Isso não é verdade. Você não quer ficar sozinha. Você tem um medo pavoroso de ficar sozinha, percebo perfeitamente o medo que você sente. Sei o que você está sentindo, eu a conheço, pequerrucha, mulher estranha. Você está representando uma pequena comédia para me enganar. O seu cenário é de vidro, eu vejo através dele. Há pouco você estava desesperada. Peça para eu ficar com você, peça!

Pôs-se a sacudir as mãos dela. Segurou-a pelos ombros e sacudiu-a. Pela dor que sentiu, ela pôde perceber a excitação do moço; Jerilinkov havia implorado, lembrou-se ela; este ordenava. Fraca e aliviada, ela deixou cair a cabeça sobre o peito coberto pelo pijama de seda azul.

— Sim, fique mais um minuto — murmurou ela. Gaigern, a olhar por cima de seus cabelos, respirava ofegante, soltando o ar por entre os dentes cerrados. Sua tensão de medo começou a se distender; um turbilhão de imagens desfilou rapidamente, cinematograficamente, diante dele; a Grussinskaia, morta em seu leito, com uma dose violenta de veronal no sangue, ele a fugir pelos telhados, investigações na casa de Springe, penitenciária — ele não fazia a menor ideia do aspecto de uma penitenciária, no entanto enxergava tudo perfeitamente, e também viu sua mãe, morrendo de novo, apesar de já estar morta há muito tempo. Quando voltou ao quarto 68, o medo e o perigo já vencidos transformaram-se de repente em embriaguez. Tomou nos braços o corpo leve da Grussinskaia, levou-o até a cama, onde a deitou como uma criança.

— Venha, venha, venha — murmurou ele de encontro às fontes da mulher, com uma voz subitamente grave e profunda.

A Grussinskaia há muito tempo não sentia o próprio corpo, e agora estava sentindo-o. Durante muitos anos não fora mulher, e agora sentia-se mulher. Um céu negro e sonoro começou a girar sobre ela, e ela se atirou nele com ímpeto. Um gemido brando de passarinho, expelido por uma boca entreaberta, transportou Gaigern, de uma fingida paixão, a profundidades de prazer que ele desconhecia. A xícara de chá, na mesa do hotel, estremecia de leve todas as vezes que passava algum automóvel. Primeiramente, a luz branca do lustre se refletiu no líquido envenenado; depois, apenas o vermelho da lâmpada de cabeceira, depois apenas a luz cambiante do anúncio móvel que penetrava pelas cortinas. Dois relógios apostavam corrida; o elevador rangia no corredor; a torre longínqua da igreja badalou uma hora, por entre as buzinas noturnas dos automóveis — e dez minutos mais tarde já cintilavam novamente os refletores, na fachada do Grande Hotel.

— Você está dormindo?

— Não!

— Está bem acomodado?

— Estou.

— Agora você está de olhos abertos. Sinto suas pestanas no meu braço, quando você abre e fecha os olhos. Que engraçado! Um homem tão grande, com pestanas de criança. Diga-me, você está satisfeito?

— Nunca me senti tão feliz como agora.

— Que é que você disse?

— Nunca me senti tão feliz com uma mulher como agora.

— Repita isso de novo, repita!

— Nunca me senti tão feliz — murmurou Gaigern de encontro à carne fresca e branca do braço em que sua cabeça repousava. Ele estava dizendo a verdade. Sentia-se indescritivelmente repousado e agradecido. Nunca sentira coisa semelhante em suas aventuras de amor barato; essa embriaguez sem ressaibos, esse repouso trêmulo após o amplexo, essa profunda confiança do próprio corpo em outro corpo. Seus membros repousavam, distendidos e satisfeitos, ao lado dos membros da mulher; havia profunda compreensão mútua entre a pele dela e a sua. Sentia qualquer coisa que não tinha nome, nem mesmo o nome de amor: um retorno, após prolongada ausência. Ele ainda era jovem, mas nos braços da Grussinskaia, já perto da velhice, sob a ação de suas carícias amorosas, suaves, conscientes e delicadas, tornava-se mais jovem ainda.

— Que pena... — murmura de encontro ao braço da mulher; levanta um pouco a cabeça, e a pousa no ninho da axila da companheira, um pequenino e cálido lar, com aroma de mãe e de prado.

— Pelo seu perfume eu a encontraria em qualquer parte do mundo, de olhos vendados — diz ele, farejando como um cãozinho. — Que perfume é esse?

— Deixe disso, e diga-me: pena por quê? Você... Deixe esse perfume... tem o nome de uma florzinha que cresce nas campinas: Neuwjada. Não sei como se chama em alemão. Tomilho? É feito em Paris para mim. Diga, pena por quê?

— Pena que se comece sempre com a mulher errada. Que se continue idiota durante uma infinidade de noites, pensando que é assim que se goza, que o prazer é essa coisa corrupta, e depois fria e desagradável como um estômago enjoado. E é pena que a primeira mulher com quem dormi não tivesse sido como você.

— Deixe disso... menino mimado — murmura a Grussinskaia, pousando os lábios nos cabelos dele, naquela peliça dura, espessa e quente, cheirando a macho e a cigarro, sempre bem penteada e alisada, e agora completamente em desordem. Ele roça com as pontas dos dedos, a respirar docemente, o flanco da sua companheira.

— Sabe? Você é tão leve! Levíssima! Um pouco de espuma numa taça de champanha — diz ele com carinho e admiração.

— Pois é. É preciso ser leve — responde a Grussinskaia.

— Estou com vontade de vê-la, agora. Posso acender a luz?

— Não, não! — exclama ela afastando dele o ombro. Ele percebe que a assustou, que assustou essa mulher, cuja idade ninguém sabe com certeza. Sente novamente uma compaixão simples e espontânea. Vai escorregando o corpo para junto dela, e por fim os dois ficam em silêncio, pensando. A luz da rua paira no forro, como um reflexo, estreito e agudo como uma espada, penetrando no quarto pela abertura das cortinas. Quando passa lá embaixo um automóvel uma sombra se espalha rápida no reflexo do forro.

"As pérolas", pensa Gaigern, "para o diabo. Se eu tiver sorte e tudo correr bem, posso metê-las de novo no estojo, quando ela dormir. Vai haver um escândalo com o meu pessoal, se eu for me encontrar com eles sem as pérolas. Contanto que o chofer não faça alguma loucura, contanto que esse animal não tome hoje de noite uma bebedeira de raiva e me estrague tudo... Que azar! Só Deus sabe onde é que vamos arranjar dinheiro, agora. Talvez seja possível sangrar esse herdeiro de província, que geme durante a noite no quarto ao lado, no -70. Ora! Que diabo! Não adianta ficar pensando nisso. Talvez eu possa simplesmente lhe pedir as pérolas. Talvez amanhã eu lhe conte simplesmente do que se trata. Se eu souber fazer as coisas direitinho, não será ela quem me mandará prender amanhã, não fará isso, essa pequerrucha leve e maluca. Deixar as pérolas rolando, numa maleta aberta! Que mulher engraçada, agora eu a conheço. Nem se importa com pérolas! Para ela, nada tem importância, tudo é indiferente. Se eu não tivesse aparecido, ela já não precisaria mais se incomodar com as joias. Para que ainda precisa de pérolas? Deve me fazer presente das pérolas, ela é tão boa... Ah, como é boa! Parece uma mãe, uma minúscula mamãezinha, com quem a gente pode dormir."

A Grussinskaia pensa: "Às onze horas o trem parte para Praga. Contanto que esteja tudo em ordem! Hoje eu abandonei tudo, e amanhã nada estará em ordem. Pimenoff é muito mole para lidar com a troupe; as meninas o levam pela ponta do nariz. Mas quem perder o trem amanhã será despedido, com certeza. Se Pimenoff esta noite não se preocupou com os cenários, amanhã eles não estarão empacotados; os empregados do palco deveriam ter trabalhado horas extras à noite. Mas as coisas que eu não faço ficam sempre por fazer. E as contas a acertar com Meyerheim? Meu Deus, como é possível que eu tenha abandonado tudo? Witte, se a gente não presta atenção nele, esquece até a própria cabeça no hotel. Preciso sempre pensar por todos, e esta noite não estive lá. Vai haver uma débâcle horrorosa. A Lucille há muito tempo que tem vontade de se revoltar. Para vocês nunca são suficientemente grandes as letras dos seus nomes nos cartazes, não é verdade? Sua propaganda nunca é bem feita. Mas vocês, sozinhos, não fazem nada, é preciso fazê-los trabalhar com o knut, para que vocês se conservem em forma. Vocês me fizeram ficar má, convencida e cansada. Meu Deus, como eu estava cansada ontem... Faltou muito pouco para vocês verem se são capazes de alguma coisa sem a Grussinskaia. Mas agora não me sinto cansada, agora poderia me levantar e dançar todo o programa, ou mesmo um outro programa, um bailado novo. Preciso falar com Pimenoff, ele precisa criar um novo bailado: a dança do medo. Oh, essa dança eu poderia dançar agora para vocês. Primeiro num lugar só, apenas um tremor, e depois três círculos nas pontas, ou mesmo sem ser nas pontas, talvez uma coisa completamente diferente.

''Mas estou viva", pensa ela, abalada, "estou viva, e vou criar novos bailados, vou ter sucesso. Uma mulher que é amada tem sempre sucesso. Vocês me fizeram passar fome desde... há mais de dez anos, foi isso. É estranho que um bobinho que pulou o balcão para vir aqui possa dar à gente tanta energia! Um rapaz simpático, que do amor só conhece o jargon das mocinhas..."

Ela puxa o cobertor e cobre Gaigern, como se ele fosse uma criancinha. Ele sussurra, agradecido, faz-se pequenino e fraco, e enfia o nariz na carne dela. Seus corpos já se conhecem, mas seus pensamentos se distanciam para lados distintos, dentro da noite. Em todos os leitos do mundo, os amantes ficam deitados muito unidos, mas tão separados!...

É a mulher quem primeiro procura adivinhar o que se passa na outra alma. Toma a cabeça do homem nas mãos, como se fosse um fruto grande e pesado colhido ao sol, e murmura em seu ouvido:

— Eu ainda não sei como você se chama, meu amigo.

— Costumam chamar-me de Felix. Meu nome todo é: Felix Amadei Benvenuto, Barão von Gaigern. Mas você precisa me dar um novo nome, precisa me batizar também. Quero ter um nome dado por você.

A Grussinskaia pensa um pouco, depois dá uma risadinha.

— Sua mãe devia ter esperado muita coisa de você, quando você nasceu, para lhe dar nomes tão bonitos — disse ela. — O venturoso. O amado de Deus. O bem-vindo. Você chorou ao ser batizado?

— Não me lembro muito bem.

— Ah! Sabe? Eu também tenho uma filha. Que idade você tem, Benvenuto?

— Hoje, tenho dezessete anos, de novo. Estou pela primeira vez com uma mulher. Mas minha idade comum é trinta anos.

Aumentou um pouco a idade, por estranha delicadeza para com a mulher que sente medo da luz elétrica e da própria idade. Apesar disso, ela se sente magoada. "Ele poderia ser o pai do meu neto Pompon, de oito anos", pensa a Grussinskaia sem querer. "Passons!", ordena a si mesma.

— Como era você em criança? Muito bonito? Ah, é claro, era muito bonito.

— Simplesmente encantador. Cheio de sardas, de galos e arranhões, e muitas vezes cheio de piolhos também. Tínhamos ciganos para tratar dos nossos cavalos; isso é muito comum na fronteira, onde ficava a nossa propriedade. Os meninos ciganos eram meus amigos. Eles me passavam toda espécie de bichos e de sarna. Quando me lembro da minha infância, sinto sempre um cheiro de estéreo de cavalo. Depois me tornei durante alguns anos o terror de vários companheiros de seminário. Por fim estive por pouco tempo na guerra. Da guerra eu gostei. Na guerra eu me senti em casa. Por mim, tudo podia ter sido muito pior do que foi. Se houver guerra de novo, tudo estará bem para mim, novamente.

— Agora as coisas não vão bem para você, seu condottiere? Que vida você leva? Que espécie de indivíduo é você?

— E você? Que espécie de mulher é? Nunca conheci nenhuma como você. Em geral as mulheres não têm muitos segredos. Mas a você tenho curiosidade de conhecer, preciso perguntar-lhe muitas coisas. Você é muito diferente das outras.

— Sou apenas antiquada. Sou de um outro mundo", de um século diferente do seu, é apenas isso — disse a Grussinskaia com voz sonhadora. Ao mesmo tempo sorriu nas trevas, e lágrimas ardentes lhe vieram aos olhos. — Educaram-nos como soldadinhos, a nós, bailarinas, com severidade, com pulso de ferro, no Instituto de Ballet Imperial de São Petersburgo. Pequenos regimentos de recrutas para o leito dos grão-duques, é o que nós éramos. Dizem que, nas meninas que aos quinze anos começavam a engordar, colocavam argolas de aço em volta dos seios, para que eles não crescessem mais. Eu era pequena e magra, mas dura como um diamante. Orgulhosa, sabe; tinha o orgulho no sangue, como pimenta e sal. Uma máquina do dever, trabalhando, trabalhando, trabalhando. Sem descanso, sem tempo para descansar, nunca! E depois: quem se torna célebre fica completamente só. Com o sucesso, a gente se sente gelada e solitária como no pólo norte. Sabe o que significa ter sempre sucesso, durante três, cinco, dez, vinte anos, sempre, sempre? Mas o que é que eu lhe estou contando? Você está me compreendendo? Ouça: muitas vezes a gente passa por uma estação de estrada de ferro, ou à noite passa de automóvel por uma pequena cidade. As famílias estão sentadas diante das portas, todos muito rígidos, com cara de idiota, com as manoplas pousadas no colo, e ninguém se move. É isso, veja, é isso! É isso o que nós desejamos: sentirmo-nos fatigados, e ficar simplesmente sentados, com as mãos imóveis, pousadas no colo. Mas se você for uma pessoa célebre, procure desaparecer do mundo, descanse, deixe que as outras bailarinas dancem, essas alemãs feias e com luxações nos músculos, essas negras, toda essa gente que não sabe nada; deixe que elas dancem, descanse! Veja, Benvenuto, isso não é possível, é absolutamente impossível. Odeia-se o trabalho, amaldiçoa-se o trabalho, mas não se pode existir sem o trabalho. Três dias de descanso, e vem o medo: vou perder a forma, estou ficando pesada, minha técnica está indo embora. É preciso dançar, como uma loucura, nem a morfina e a cocaína, nenhum vício no mundo é tão venenoso como o trabalho e o sucesso, acredite-me. É preciso dançar, somos obrigados a dançar. E isso também é importante. Se eu parar de dançar, não existe mais ninguém no mundo que saiba realmente dançar, acredite-me. Todas as outras são diletantes; mas é preciso que haja alguém que saiba dançar, que saiba o que significa a dança, em meio a um realismo histérico, horrível! Eu aprendi com as antigas celebridades; com a Kocressínskaia, com a Trefilovna, e elas, por sua vez, aprenderam com os grandes do bailado, há quarenta, há sessenta anos. Às vezes tenho a impressão de que tenho de dançar contra o mundo inteiro, contra o brado de "atualidade!" De um lado, estão vocês, um teatro repleto de ganhadores da vida e homens-máquinas, participantes da guerra e acionistas... e do outro, estou eu. Uma pobre e pequenina Grussinskaia, velha, não é verdade? Tão sentimental, tão antiquada, com os seus passos já conhecidos há duzentos anos. E, no entanto, eu os atraio ainda, e vocês choram, riem, desesperam-se e extasiam-se; e tudo por quê? Por causa desse balezinho fora da moda? Será tão importante, isso? Certamente, porque só tem sucesso mundial aquilo que tem importância para o mundo, aquilo de que o mundo precisa. Mas, ao lado disso, tudo se despedaça, dentro de nós nada mais resta. Nem marido, nem filhos, nenhum sentimento, nenhum conteúdo. Deixamos de ser indivíduos humanos como os outros, compreende? Não somos mulheres, somos apenas uma migalha esgotada de responsabilidade, que perambula pelo mundo. No dia em que termina o sucesso, no dia em que perdemos a crença de que somos indispensáveis, a vida acaba para nós. Você está me ouvindo? Está me compreendendo? Gostaria tanto que você me compreendesse — disse a Grussinskaia, em tom implorante.

— Não compreendi tudo... mas quase tudo. Você fala francês muito depressa — respondeu Gaigern.

Durante os meses em que ficou à espreita, atrás das pérolas, ele frequentou inúmeras vezes os espetáculos de ballet da Grussinskaia, aborrecendo-se sempre, em geral. Ficou profundamente admirado ao saber que a Grussinskaia, conforme parecia, arrastava consigo, como um martírio, os rodopios do ballet. Ela está colada com tanta leveza às coxas de Gaigern, tem uma vozinha delicada, com um gorjeio colorido e modulado e fala coisas tão sérias!... Que se pode responder a isso? Ele suspira. Fica pensando.

— Foi muito bonito o que você disse das pessoas à noite, com as mãos imóveis. Você devia dançar isso — declarou ele finalmente, confuso.

A Grussinskaia contentou-se em rir.

— Dançar isso? Mas não se pode dançar uma coisa assim, monsieur. A não ser que me queiram ver no papel de uma velha com um pano na cabeça, com gota nos dedos, dura como um pau, apenas repousando...

Cortou a frase no meio. Enquanto falava, seu corpo já tinha se apossado da imagem, contraindo-se e enrijecendo. Ela já estava vendo o cenário, conhecia um jovem pintor amalucado, em Paris, que poderia pintar uma coisa assim; já via o bailado, já o sentia nas mãos e na nuca curvada. Ficou calada, com a boca entreaberta, na escuridão. Nem respirava, tal a excitação que sentia. O quarto se encheu de personagens que ela nunca dançara, e que poderiam ser dançadas, de centenas de vultos reais e viventes. Uma mendiga a tremer, estendendo os braços, uma velha campônia dançando mais uma vez no casamento da filha... Diante de um balcão de feira encontrava-se uma mulher magra, apresentando umas míseras prestidigitações, uma prostituta esperava por homens sob uma lanterna. Uma menininha, que havia quebrado uma chave e levava uma surra; uma criança de quinze anos, que era forçada a dançar nua diante de um homem imponente, enorme e cintilante, um senhor, um grão-duque, e também a espinhosa paródia de uma governanta; uma mulher que corria como se a estivessem perseguindo, apesar de não ser esse o caso; uma outra que queria dormir e não podia; uma que tinha medo de espelho; e ainda uma outra que bebia veneno e morria.

— Fique quieto... não diga nada... não se mexa — sussurrou a Grussinskaia olhando para o forro, em que se via a espada luminosa. O aposento adquirira o aspecto estranho e misterioso que os quartos de hotel às vezes gostam de apresentar. Lá embaixo os automóveis lançavam fumaça pelo escapamento, buzinavam, parecendo animais, porque a Liga dos Filantropos terminara a sua festa, e começava a saída pelo portão 2. A noite esfriou. Do turbilhão das ideias e dos rostos, a Grussinskaia voltou ao quarto com um leve arrepio. "Pimenoff vai pensar que eu estou louca, ele, com seus baileis de borboletas. Quem sabe se estou louca mesmo?" Da sua divagação de um minuto, havia retornado ao leito, como se voltasse de uma longa viagem. Gaigern ainda continuava deitado. Ela quase se assustou ao encontrar de novo o homem encostado ao seu ombro, com seus cabelos, suas mãos e sua respiração.

— Que espécie de homem é você? — perguntou ela mais uma vez, nas trevas, com o rosto bem sobre o dele. Ela sentia intimamente, nesse instante, o espanto de se encontrar tão próxima de uma coisa tão estranha e diferente dela. — Ontem eu ainda não o conhecia. Quem é você? — perguntou ela de encontro à cálida umidade da boca do homem.

Gaigern, que já estava quase adormecendo, deixou os dois braços tombarem sobre as costas da mulher, e ela teve a impressão de ser a esguia cadela galga de sua casa, a Biche.

— Eu? Não há muita coisa a contar — respondeu ele, obediente, mas sem abrir os olhos. — Sou um filho pródigo. Sou uma ovelha negra de um bom curral. Sou um mauvais sujet, e vou acabar na forca.

— É verdade? — perguntou ela, dando uma risadinha arrulhante.

— É verdade — disse Gaigern, convencido. Começara a cantarolar como uma ladainha, e por brincadeira, aquelas velhas frases e advertências dos professores do seminário; mas, ao perfume cálido de tomilho daquela cama, veio-lhe o desejo de confessar-se e de ser sincero.

— Sou um devasso — continuou ele a falar na escuridão. — Não tenho caráter, e sou de uma curiosidade incrível. Não consigo me adaptar a nada, sou um sujeito inútil. Em casa aprendi a montar e a ser o senhor. No seminário aprendi a rezar e a mentir. Na guerra, a atirar e a procurar pôr-me a salvo. Mais do que isso não sei fazer. Sou um cigano, um marginal, um aventureiro.

— Ah, você... E o que mais?

— Sou um jogador, e não me importo de fazer trapaças. Também já roubei. A bem dizer, eu devia estar é na prisão. Mas ando por aí, e me sinto às mil maravilhas, e faço tudo o que me dá na veneta fazer. Às vezes me embebedo também. E, além do mais, sou preguiçoso de nascença.

— Continue — murmurou a Grussinskaia, encantada. Sua garganta estava vibrando, de tanto conter o riso.

— Pois bem, sou um criminoso. Um homem que escala muros de fachadas — disse Gaigern, sonolento —, um assaltante.

— E que mais ainda? Talvez um assassino, também?

— Isso mesmo. É claro. Um assassino também. Estive a ponto de matá-la — afirmou ele.

A Grussinskaia ainda se riu, um pouco inclinada sobre o rosto de Gaigern, que ela sentia, apesar de não o ver, mas de repente ficou muito séria. Cruzou as mãos por detrás do pescoço dele e murmurou em surdina ao seu ouvido:

— Se você não tivesse vindo ontem, eu não estaria viva agora!

"Ontem?", pensou Gaigern. "Agora?" A noite no 68 parecia ter durado uma eternidade, devia ter sido há alguns anos que ele estivera no balcão e enxergara a mulher no quarto. Levou um susto. Apertou-a em seus braços com força, como um lutador de luta livre: os músculos flexíveis da bailarina resistiram — ele o sentiu com estranho prazer.

— Você nunca mais deve fazer uma coisa dessas.

Você tem de ficar aqui. Não a deixarei ir-se embora mais. Preciso de você — afirmou.

E ficou a ouvir a própria voz, ao pronunciar tão curiosas palavras, com uma voz diferente, rouca, que parecia provir do fundo palpitante de seu coração.

— Não, agora tudo mudou. Agora está tudo bem. Agora você está comigo — murmurou a Grussinskaia; mas Gaigern não a compreendeu, porque ela falou em russo.

Ele sorveu a entonação da sua voz, e a noite começou de novo a rumorejar. Pássaros de sonho saíram das trepadeiras da tapeçaria que forrava as paredes do hotel... O homem se esqueceu das pérolas no bolso do seu pijama azul e a mulher se esqueceu do insucesso e dos veronais na xícara de chá.

Nenhum dos dois se atreve a pronunciar esta palavra caduca: "amor". Juntos, deslizam no confuso turbilhão da noite de amor, passando dos abraços aos murmúrios, dos sussurros a um breve sono e aos sonhos, e dos sonhos a um novo abraço: duas pessoas vindas de dois pontos opostos do mundo, para encontrar-se por algumas horas no leito do quarto 68, onde tanta gente já dormiu...


8

 

Na vida da Grussinskaia o amor não havia representado um papel importante. Tudo o que o corpo e a alma possuíam de paixão fluía para a dança. Tinha tido alguns amantes, porque isso fazia parte da vida de uma bailarina célebre, assim como as pérolas, o automóvel, os vestidos das boas casas de moda de Paris e de Viena. Rodeada de admiradores, requisitada e perseguida por apaixonados, não acreditava apesar de tudo na existência do amor. Ele não lhe parecia mais real do que os cenários pintados, os templos de amor e as sebes de roseiras diante dos quais seus bailados eram executados. Apesar de permanecer fria e de não conseguir entusiasmar-se, passava por uma amante maravilhosa, única. Por seu lado, praticava o amor como um dever da sua profissão, como uma peça de teatro, por vezes agradável, mas sempre exaustiva, requerendo uma arte requintada. Toda a flexibilidade do seu corpo, seu flutuar etéreo, a sutilidade, o requinte, a delicadeza e a suavidade, o impulso e o arrojo, a emoção e a debilidade, todos os impecáveis requisitos da sua dança, ela levava consigo para os amigos com quem passava as noites. Sabia embriagar de prazer, mas não se embriagava a si mesma. Na dança, era capaz de enlouquecer, de esquecer-se de si própria, e por vezes seus partners ouviam-na soltar gritinhos abafados, como um passarinho, durante as posições mais difíceis e movimentadas. No amor, porém, nunca perdia a consciência de si mesma, estava sempre se observando. Era estranho: não acreditava no amor — e no entanto não podia viver sem amor.

Porque o amor — ela o sabia — era uma parte do sucesso. Enquanto fora jovem, e seu camarim transbordava de flores e de cartas, enquanto em todo o seu percurso os homens se postavam, prontos a arruinar-se, a fazer por ela qualquer espécie de loucura, a abandonar a fortuna e a família, ela sentia que o sucesso a bafejava. Nas confissões de amor, nas ameaças de suicídio, nas perseguições por toda parte, pelo valor dos presentes que recebia dos conquistadores podia-se perceber o sucesso, do mesmo modo que nos aplausos, nas críticas e no número de chamadas ao proscênio. Ela não o sabia, mas o amante que a encantava e lhe causava prazer era, a bem dizer, um público perante o qual ela tinha sucesso. E pela primeira vez percebeu, horrorizada, que o sucesso diminuía, quando Gaston a abandonou, para casar-se com uma moça sem muitos dotes, mas de boa família. A atmosfera que a rodeara durante anos esfriou e se tornou sombria, uma atmosfera noturna, incompreensível. Era uma escadaria que ia descendo por centenas de degrauzinhos, tão pequenos que quase não a deixavam aperceber-se dela. E, no entanto, era vastíssimo o caminho que conduzia aquela Grussinskaia de antes da guerra, que dançara para um mundo cheio de romantismo e de êxtase, à atual Grussinskaia, que mendigava um pouco de aplauso de um punhado de pessoas céticas, indiferentes e maldosas. O seu fim, como última consequência, era a completa solidão, e uma dose forte de veronal.

Por essa razão, o homem do balcão significava para a Grussinskaia mais do que um simples homem. Era um milagre que acontecia no último instante no 68, para salvá-la; era o sucesso evidente que a procurava; o mundo que penetrava cheio de ardor em seu quarto; era a prova de que os tempos românticos ainda não haviam passado, os tempos em que um jovem Jerilinkov se deixava matar com um tiro por ela. Ela se deixara cair, mas encontrara alguém que a erguia do solo.

Havia no programa da Grussinskaia um bailado em que a morte dançava um pas de deux com o amor; os poetas que lhe escreviam, por vezes, enviavam-lhe versos em que voltava sempre o banal pensamento de que a morte e o amor eram irmãos. Nessa noite, a Grussinskaia comprovava em si própria a verdade desse lugar-comum. A vertigem dolorosa da noite passada transformou-se em embriaguez, num torvelinho de gratidão, num anseio febril de receber e de dar, de sentir e conservar. Os anos gelados se derretiam. O vergonhoso segredo da sua frieza, que escondera durante toda a vida, desfazia-se, deixava de existir. Há tantos anos se sentia de tal modo pobre e solitária, que às vezes mendigava à pele jovem e cálida do seu partner, Michael, uma esmola de calor. Nessa noite, nesse quarto indiferente de hotel, nessa cama comum de metal brilhante, ela se sentia arder, transformava-se, descobria o amor, que não acreditava que existisse.

Os quartos 68 e 69 eram tão parecidos que, ao despertar, Gaigern não sabia muito bem onde se encontrava. Quis virar-se para a parede do seu quarto, mas encontrou o vulto pequenino da Grussinskaia, que dormia e respirava docemente. Recordou-se. A maravilhosa e profunda confiança do primeiro sono dormido junto repousava em seus membros como um peso suave. Retirou seu braço, que adormecera debaixo do pescoço da mulher, e com leve e ' solene comoção rememorou os acontecimentos dessa noite. Não havia dúvida — estava apaixonado, e além disso, de um modo completamente novo e grato. Sem que as pérolas influíssem no seu sentimento, não podia deixar de pensar, envergonhado: somos uns porcos. Não era a história gorada das pérolas que influía no seu sentimento. Sobe-se a um quarto alheio: inventa-se uma comédia atroz, representa-se — e a mulher acredita em tudo. Faz questão de acreditar. Os homens representam e as mulheres acreditam neles. A bem dizer, no começo a gente é sempre um embusteiro e um assaltante; mas em seguida, a mentira transforma-se em verdade. "Eu gosto muito de você, pequenina Mouna, querida e boa Neuwjada, eu te amo, je t’aime, je t'aime. Você fez uma bela conquista, mulherzinha, você..."

Fazia frio no quarto; lá fora já devia estar amanhecendo; a rua estava silenciosa, uma réstia de luz crepuscular penetrava por entre as cortinas, e o desenho da tapeçaria das paredes começava a esgueirar-se pela madrugada. Gaigern levantou-se com o maior cuidado. A Grussinskaia dormia profundamente, com o queixo enterrado no próprio ombro. Agora, que passara o tumulto da noite, as duas cápsulas de veronal pareciam estar fazendo efeito. Gaigern tomou-lhe a mão, que pendia para fora do leito, repousou na sua palma as pálpebras quentes, e depois enfiou aquela mãozinha frouxa sob o cobertor, como se a Grussinskaia fosse um bebezinho. Foi caminhando com cuidado, na meia escuridão do quarto, até o balcão, e abriu lentamente as cortinas. A Grussinskaia não despertou. "Agora tenho que pôr em ordem o negócio das pérolas", pensou Gaigern. Admirou-se de sentir-se satisfeito com a solução. "Um round perdido", pensou ele sem se aborrecer. Gostava de usar essas expressões de esporte, em seus empreendimentos aventureiros. Tateou à procura do pijama, e sorriu ao encontrar as diversas partes do seu vestuário atiradas por todo o quarto; em seguida entrou no banheiro. Ao contato da água, o ferimento da sua mão direita começou a arder e a sangrar; lambeu-o com indiferença e não se importou mais com isso. O aroma acre e murcho de louros, no aposento, acentuara-se. Gaigern, desejoso de respirar ar fresco, foi ao balcão e aspirou profundamente; seu peito ainda estava repleto de uma doce e desconhecida angústia.

Lá fora paira, sobre a rua que desperta, uma neblina fria que o vento leva. Nem automóveis nem gente. A distância, ouve-se o sibilar de um bonde a correr nos trilhos. Não surgiu ainda o sol, mas há uma luz leitosa e igual. Uns passos martelados, na esquina, e novamente o silêncio. Um pedaço de papel flutua como um passarinho enfermo sobre o asfalto, e depois pousa no chão. A árvore plantada não muito longe do portão 2 balouça os galhos sonhadores. Um sonolento passarinho de março, bem lá em cima, pousado na haste delicada de um botão, experimenta a voz no tumulto da grande cidade. Um caminhão cheio de caixas com garrafas de leite segue aos solavancos, muito cheio de si; a neblina que desliza cheira a maresia e a gasolina; a grade do balcão tem um brilho úmido. Gaigern encontra suas meias de larápio no balcão, e enfia-as depressa no bolso, junto das luvas, da lanterna de bolso e das pérolas de quinhentos mil marcos, de que ainda precisa se livrar. Torna a entrar no quarto, deixando as cortinas abertas; a luz pálida cai em triângulo no tapete, estendendo-se até o leito em que dorme a Grussinskaia.

Agora ela está estendida de costas, com a cabeça tombada de lado, dando a impressão de que a cama é grande demais para o seu corpo delicado e pequenino. Gaigern, para quem a maioria das camas de hotel são curtas, achou graça e sentiu-se comovido. Teve um súbito pensamento, uma ideia carinhosa. Foi buscar a xícara de veronal na mesinha e também os tubinhos de vidro vazios, e dirigiu-se com eles ao banheiro. Com os cuidados de uma ama, lavou a xícara, depois de esvaziá-la, e secou-a com um lenço. Ao encontrar o roupão de banho da Grussinskaia, com um gesto infantil, beijou-o na manga. Não havendo lugar para colocar os vidrinhos, guardou-os no bolso, junto das pérolas. A Grussinskaia suspirou dormindo, quando ele se aproximou de novo da cama. Inclinou-se sobre ela, franzindo a testa, mas ela continuou a dormir. Já clareara um pouco. Agora ele podia ver bem de perto, e com clareza, o rosto dela. Os cabelos caíam para trás, muito lisos, deixando descobertas as fontes reentrantes, estreitas e sombreadas. Por baixo dos olhos fechados evidenciava-se a idade, em dois sulcos profundos. Gaigern o percebeu, porém sem desgosto. A boca era linda, acima do queixo delicado, mas já murcho. Um pouco do pó de arroz pálido ainda ficara em sua testa, perto da franjinha. Gaigern lembrou-se, divertido, de que durante a noite ela tirara de baixo do travesseiro um estojinho de pó de arroz, antes de permitir-lhe que acendesse a lâmpada. "Agora eu a estou vendo bem", pensou ele com o sentimento primitivo de triunfo de um assaltante de mulheres. Começou a observar o rosto da mulher, como se fosse uma paisagem desconhecida, em que se passeia à procura de aventuras. Observou duas misteriosas riscas simétricas que partiam das fontes, ao longo das orelhas, indo até a garganta, uma linhazinha mais clara do que o resto da pele. Passou o dedo com cuidado sobre a linha; era uma delicada cicatriz que rodeava seu rosto, como a fímbria de uma máscara. De repente, Gaigern compreendeu do que se tratava. Eram as cicatrizes da vaidade, cortes na pele para esticá-la e rejuvenescer — ele já lera qualquer coisa a esse respeito. Sorrindo, sacudiu a cabeça, com um ar de incredulidade. Sem querer, apalpou suas próprias têmporas, que eram bem lisas, e vibravam com batidas fortes e saudáveis.

Encostou com a maior delicadeza o seu rosto no da Grussinskaia, como se pudesse assim transmitir um pouco do seu ser para a companheira. Admirou-se ao perceber quanto a amava nesse momento, com um amor terno e compassivo. Teve a impressão de estar sendo um sujeito limpo e correto, ligeiramente ridículo, sem dúvida, nos sentimentos que dedicava à pobre mulher, cujos segredos ele tinha descoberto.

Afastou-se da cama e ficou por uns minutos diante do espelho, com a testa enrugada, a boca ligeiramente aberta, mergulhado em pensamentos. Estava pensando se não seria possível, apesar de tudo, ficar com as pérolas. Não, não era possível. Por enquanto, ele continuava a ser o Barão von Gaigern, um homem um tanto leviano, que convivia com uma gente ordinária. Com dívidas, sim, mas ainda digno de confiança. Se saísse do quarto com as pérolas, então a polícia seria avisada dentro de poucos minutos e sua existência de cavalheiro estaria terminada. Seria um criminoso perseguido pela polícia, como qualquer outro. Isso não lhe convinha, em absoluto. Não fazia parte do seu programa ter-se tornado o amante da Grussinskaia, mas era um fato consumado, e modificava todo o resto. Pesou as chances, como teria pesado as chances de um pugilista ou de um tenista. Empreendimentos como esse das pérolas eram o seu esporte e, desta vez, o jogo lhe estava sendo desfavorável. Não era possível roubar essas pérolas; na situação atual, só poderia recebê-las de presente, caso tivesse paciência. "E preciso esperar", pensou Gaigern, suspirando profundamente. Suas reflexões eram objetivas e realistas, mas ele não queria admitir que no fundo havia ainda outra coisa por trás disso tudo. Não queria ter a consciência do próprio ridículo, e detestava sentimentalismos. Olhou para o espelho e fez uma careta para si próprio. "Em resumo", pensou aborrecido, "não é do meu feitio roubar o adereço de pérolas de uma mulher com quem dormi. Agora não tenho a mínima vontade de fazer tal coisa. Eu sofreria com isso — e acabou-se!

"Neuwjada", pensou ele com súbito carinho, olhando para a cama; "bondosa Mouna, eu preferia poder oferecer-lhe algum presente, muitos presentes, uma coisa bonita e valiosa, alguma coisa que lhe causasse prazer, pobrezinha." Puxou de dentro do bolso o colar de pérolas, com precaução e sem ruído. Já não gostava mais delas. Talvez até fossem falsas, apesar de todas as lendas dos jornais; talvez nem fossem tão valiosas como a propaganda dizia. De qualquer modo, ele se separava agora delas com a maior facilidade.

Quando a Grussinskaia procurou despertar, sua cabeça estava envolta no sono como em espessos véus. "É o veronal", pensou, continuando com os olhos fechados. Nos últimos tempos ela tinha medo de despertar, tinha medo do choque que sentia ao defrontar-se com os aborrecimentos da vida. Tinha a vaga sensação de que nessa manhã alguma coisa boa e agradável a esperava, mas não descobriu logo do que se tratava. Lambeu os lábios, pensando encontrar neles o gosto sonolento e seco da noite. Movimentou os dedos das mãos, como um cão a mover-se em sonhos. Seu corpo estava cansado, exausto, mas satisfeito, como após um enorme sucesso, após uma noite com muitos da capo, em que é preciso esgotar completamente as forças. Sentiu sobre as pálpebras fechadas a claridade matutina, e por um instante pensou que estava em Tremezzo com os reflexos da superfície do lago, em seu quarto de dormir cinzento-rosado. Decidiu abrir os olhos.

Primeiro, viu sobre os joelhos um cobertor que não conhecia, da altura de uma montanha; depois, a tapeçaria das paredes do hotel, com o desenho de frutas tropicais vermelhas, pendentes de frágeis hastes, um desenho que dava a impressão de observá-la fixamente, com um olhar febril e absorto.

Nessas tapeçarias das paredes dos hotéis colava-se todo o tédio da sua vida sem parada. O canto perto da escrivaninha estava sombrio; ali, a cortina estava fechada e não podia saber as horas. A porta do balcão estava aberta e deixava entrar uma brisa fresca. Ao lado da mesa do espelho, virada para a claridade da varanda, a Grussinskaia, ainda sonolenta, percebeu a silhueta larga e escura de um homem. Estava de costas, com as pernas meio abertas, firme e imóvel, com a cabeça inclinada, observando qualquer coisa que ela não podia ver. "Sonhei com alguma coisa parecida há pouco", pensou primeiro, ainda meio apalermada de sono, sem se assustar. "Já aconteceu coisa parecida na minha vida", pensou em seguida. "Jerilinkov", pensou finalmente. De repente, seu coração disparou como um motor, ela acordou totalmente, e lembrou de tudo.

Respirou com a boca fechada, sem ruído, mas profundamente, e com o ar que aspirou ocorreu-lhe a lembrança de tudo o que se passara durante a noite. Retirou um braço de baixo do cobertor, sentindo-o muito leve, com vontade de voar. Tateou, à procura do estojinho de pó de arroz, e, dirigindo um olhar sério ao minúsculo espelho redondo, começou a se arrumar. O delicado perfume do pó de arroz lhe causou prazer; sua imagem agradou-lhe. Sentia amor por si própria, como há muitos anos não sentia. Segurou seus pequeninos seios, como costumava fazer, mas nessa manhã isso lhe causou um prazer especial. Gostou de sentir a própria pele, lisa, fresca e satisfeita. "Benvenuto", disse em pensamento; e em russo "Chelani". Mas como só pronunciou esse nome para si mesma, o homem não pôde ouvi-la. Lá estava ele, de pernas abertas, com seus belos ombros, como um dos carrascos de Signorelli — descobriu a Grussinskaia, encantada —, ocupado com algum objeto pousado na mesinha do espelho. Ela se levantou e olhou-o sorrindo.

 

Gaigern estava com as mãos dentro da maleta em que se encontravam suas pérolas. Ela ouviu claramente o ruído de um dos estojos, reconhecendo o estalido agudo e surdo; era o estojo comprido de veludo azul, onde ficava o colar de cinquenta e duas pérolas de tamanho médio. No primeiro momento a Grussinskaia não percebeu por que razão esse ruído a assustava mortalmente. Seu coração parou, e depois voltou a bater com pancadas pesadas e sonoras, que ecoavam dolorosamente por todo o corpo. Doíam-lhe as pontas dos dedos, que se tornaram rígidas. Os lábios também. Mas ainda continuava a sorrir; esquecera-se de retirar da boca o sorriso, que permaneceu, enquanto seu rosto esfriava, tornando-se branco como papel. "É um ladrão", pensou a Grussinskaia, adivinhando tudo. E esse era um estranho pensamento, silencioso e definitivo, como um corte que lhe atravessasse o coração. Julgou perder a consciência, desejando-o com ardor, mas ao invés de acontecer isso, uma infinidade de pensamentos lhe passou pela cabeça durante um segundo, claros, cortantes, entrecruzando-se, entrechocando-se; um duelo de pensamentos.

O sentimento torturante de ter sido enganada atrozmente; vergonha, medo, ódio, cólera, uma dor medonha. E, ao mesmo tempo, uma fraqueza profunda como um abismo; não queria ver, não queria compreender, não queria acreditar na verdade, só desejava abrigar-se na piedade da mentira.

— Que faites-vous? — murmurou às costas do carrasco. Pensou que estava gritando, mas apenas sussurrou por entre os lábios rígidos: — Que está fazendo?

Gaigern levou tal susto que sua cabeça se virou de súbito; e seu susto era uma confissão de culpa. Na mão ele guardava o estojinho cúbico de um dos anéis; a suitcase estava aberta, o colar de pérolas estendia-se sobre a placa de vidro da mesinha do espelho.

— O que está fazendo aí? — sussurrou mais uma vez a Grussinskaia, causando dó, realmente, vê-la sorrir, com o rosto pálido e desfigurado.

Gaigern compreendeu-a logo, de novo se encheu de piedade, uma piedade ardente, que ele sentia palpitar nas têmporas. Dominou-se com energia, e conteve-se.

— Bom dia, Mouna — disse amavelmente. — Encontrei aqui um tesouro, enquanto você dormia.

— Como é que encontrou as minhas pérolas? — perguntou a Grussinskaia, com voz rouca. "Minta, minta", pedia seu olhar esgazeado.

Gaigern aproximou-se dela, e pousou a mão sobre seus olhos, como um guarda-sol. "Pobre bichinho, pobre femeazinha."

— Estive remexendo em suas coisas. Estava procurando um adesivo, um pedaço de atadura, qualquer coisa... imaginei que iria encontrar alguma coisa na valise. E lá estava o seu tesouro. Tenho a impressão de ser Aladim na gruta.

Até mesmo a cor dos olhos dela desaparecera; eles pareciam agora de chumbo, e só pouco a pouco lhes foi voltando sua cor negra azulada. Gaigern estendeu diante dela a palma da mão ferida, a sangrar ligeiramente, como prova do que dizia.. A Grussinskaia, lânguida e com os nervos frouxos, pousou nessa mão os lábios. Gaigern pousou a outra em seus cabelos, e puxou sua cabeça de encontro ao peito aberto do pijama de seda azul. Ele podia mostrar-se bastante brutal e ordinário com as mulheres com quem costumava encontrar-se. Mas esta, sabe o Diabo por quê, despertava nele todos os bons instintos. Era tão frágil, tão maltratada pela vida, necessitava tanto de auxílio — e ao mesmo tempo era tão forte... Pela existência que ele levava, que parecia estar sempre a pender de um fio, Gaigern compreendia a dela.

— Bobinha — disse ele com carinho. — Será que você pensou que eu estava cobiçando as suas pérolas?

— Não — mentiu a Grussinskaia. Essas duas inverdades foram a ponte sobre a qual os dois amantes se puderam encontrar. — Aliás, eu não as uso mais — acrescentou ela, respirando aliviada.

— Não as usa mais? E por quê?...

— Você não compreende essas coisas. É uma superstição. Antigamente elas me davam sorte. Depois me trouxeram infelicidade. E agora que deixei de usá-las, me dão sorte de novo.

— É mesmo? — perguntou Gaigern pensativo, procurando vencer o mal-estar e o acanhamento que sentia.

As pérolas repousavam de novo, em ordem, em seu pequeno leito. "Adieu!" Até logo, pensou ele, como uma criança. Meteu as mãos nos bolsos, num gesto decidido; lá se encontravam as ferramentas de ladrão, mas nenhuma presa. Sentia-se felicíssimo, com uma sensação de leveza e de satisfação, espantosamente renovado e farto. Abriu bem a boca e soltou uma exclamação de júbilo, emitindo um som forte e cheio. A Grussinskaia começou a rir. Gaigern atravessou o quarto correndo, aproximou-se dela e mergulhou em sua pele seu grito de prazer, deixando-se cair sobre a mulher, com a boca, o olhar e o sentimento. Ela tomou suas mãos e beijou-as; esse gesto exprimia uma gratidão humilde, em parte real, em parte representada.

— Está sangrando — disse ela, com a boca sobre o pequeno ferimento.

— Seus lábios são como os de um cavalo — respondeu Gaigern —, macios como um potrinho preto, de magnífico pedigree.

E ajoelhou-se, abraçando os joelhos da mulher, cujos tendões vibravam por baixo da pele. Justamente quando a Grussinskaia fez menção de se curvar sobre ele, alguma coisa ronronou na escrivaninha; um tilintar breve, depois longo, novamente breve.

— O telefone — disse a Grussinskaia.

— O telefone? — repetiu Gaigern.

A Grussinskaia suspirou profundamente. Não adianta, exprimia a sua fisionomia, ao erguer o fone do gancho com um gesto cansado, como se ele pesasse uma tonelada. Suzette estava ao telefone.

— São sete horas — anunciou sua voz matinal rouca. — Madame precisa levantar-se. É preciso arrumar as malas. Posso mandar o chá? E se madame quiser que lhe faça massagem, já está na hora — e Herr Pimenoff pede que lhe telefone imediatamente, assim que madame se levantar.

Madame ficou pensando durante um segundo.

— Daqui a dez minutos, Suzette... não, dentro de quinze minutos você pode trazer o chá, e depois faremos um pouco de massagem.

Colocou o fone no gancho, mas continuou a segurá-lo, enquanto estendia a outra mão a Gaigern, que ficara no meio do quarto, a balançar o corpo sobre as solas finas de cromo dos seus sapatos de pugilista. Ela ergueu imediatamente o fone, de novo, e lá de baixo o porteiro respondeu com uma voz diligente e serviçal, apesar de não ter pregado olho durante toda a noite, porque sua mulher não estava passando muito bem na clínica.

— Que número, por favor? — disse ele com voz enérgica.

— Wilhelm, sete, zero, dez! Com Herr Pimenoff! Pimenoff não estava hospedado no hotel, mas numa pensão de segunda classe, que uma família de imigrantes russos abrira no quarto andar de uma casa em Charlottenburg. Parece que lá ainda estavam dormindo. Enquanto a Grussinskaia esperava, viu em espírito o velho Pimenoff, correndo ao telefone com seu surradíssimo pijama de seda, com os pés magros, que ele mantinha sempre com as pontas um pouco abertas para fora, como se estivesse fazendo a quinta posição. Finalmente ele atendeu, com sua voz delicada e nervosa de velho.

— Ah, Pimenoff, é você? Bom dia, dobroie utro, meu caro! Sim, obrigada, dormi bem, não, não tomei muito veronal, só dois comprimidos; obrigada, tudo ali right, coração, cabeça, etc, etc. Como? O que aconteceu? O Michael está com um derrame de sangue no joelho? Mas, meu Deus, por que é que você não me disse isso ontem à noite? É horrível! Custa muito a passar, muito mesmo... Nós sabemos o quanto demora! E que providências você tomou? Como? Não fez nada, ainda? Mas é preciso mandar imediatamente um telegrama ao Tcherenov, ouviu? Imediatamente, ele precisa vir ajudar. Meyerheim que vá telegrafar. Onde está metido o Meyerheim? Vou chamá-lo logo pelo telefone. É cedo demais? Com licença, querido, por que razão para nós não é cedo demais, e para Herr Meyerheim... Não, por favor! E os cenários, já foram levados para a estação? Mas, por favor, com o primeiro despacho, quando começa a ser feito o primeiro despacho? Às seis? Se os cenários não estiverem lá, você é o responsável, Pimenoff. Nem uma palavra mais, você é o mestre de bailei, é quem deve cuidar dos cenários; não tenho nada que ver com isso. É, espero sua resposta dentro de meia hora no máximo, vá você mesmo à estação. Adieu!

Dessa vez ela nem chegou a pousar o fone; apenas fez pressão no gancho com dois dedos. Chamou Witte, que costumava levantar-se pela manhã um pouco apalermado, e que, apesar dos inúmeros anos de tournées, ficava sempre como uma pilha, e fazia uma confusão medonha. Depois, a Grussinskaia chamou Michael, que estava hospedado num hotelzinho e se pôs a lamentar-se como um cãozinho pisado, sobre o derrame de sangue. A Grussinskaia gritou-lhe severas ordens e conselhos pelo telefone; ela ficava furiosa, e era injusta sempre que qualquer elemento da troupe adoecia. Chamou três médicos, antes de encontrar um que pudesse ir ver logo o Michael, para dispensar-lhe os cuidados necessários e levar-lhe ligaduras com compressas de terra argilosa e vinagre. Chamou Meyerheim ao telefone, discutiu com ele num francês excitado, e intimou-o a comparecer às oito e meia no hotel para acertar as contas. Enviou pelo telefone um telegrama a Tcherenov e, por precaução, outro a um jovem bailarino, que dançava bem e estava sem contrato em Paris. Em seguida, com o auxílio do porteiro Senf, ligou para o expresso de Paris, pelo qual o jovem bailarino poderia chegar a tempo em Praga, e depois procurou passar um terceiro telegrama.

— Por favor, chéri, abra a torneira do banheiro — disse ela apressadamente a Gaigern, entre uma ligação e outra, matraqueando em seguida uma série de ordens em inglês, pelo telefone, ao chofer Berkley, porque o carro não devia seguir com eles, mas nesse meio tempo ir para uma garagem, a fim de ser limpo. Gaigern foi ao banheiro e obedeceu-lhe, abrindo a torneira. Fez mais ainda: estendeu sobre o aparelho de calefação o roupão de banho, para aquecê-lo. Procurou a esponja com que no dia anterior lavara o rosto desfigurado da Grussinskaia e levou-a para o banheiro, enquanto ela continuava a falar no telefone. Encontrou sais de banho e jogou um punhado na água, que já estava transbordando. Teria de bom grado feito mais alguma coisa para ela, mas não encontrou mais nada para fazer. A Grussinskaia também parecia ter terminado, por enquanto, seus telefonemas.

— Você está vendo?... todos os dias é assim — disse ela, procurando dar à voz uma entonação de queixa; mas sua voz só exprimia uma vitalidade exuberante e o prazer de arrumar as malas para a viagem.

— É preciso fazer isso tudo. E depois o Michael diz: há sempre espalhafato em torno da Grussinskaia. Ele dá a isso o nome de chi-chi, como se tudo não passasse de uma brincadeira.

Gaigern, de pé diante dela, estava faminto por um pouco de carinho, de intimidade, e estendeu-lhe ambas as mãos; mas ela estava distraída. Pensava no derrame de Michael. Ouvia de novo o tique-taque dos dois relógios.

Tomou depressa do telefone e chamou Suzette mais uma vez.

— Espere mais dez minutos, Suzette — pediu ela com muita cortesia, e com a consciência da própria culpa.

Seu olhar aflorou à mesa e à xícara de chá da noite anterior. Lá estava a xícara, muito bem lavada, com uma expressão de profunda inocência e candura, o brasão dourado do hotel a cintilar na porcelana grossa.

"Que noite maluca", pensou a Grussinskaia. "Não, essas coisas não se fazem. E bailados como os que imaginei hoje não se podem dançar. Foi apenas o resultado de uma excitação nervosa. Os vienenses me vaiariam se eu apresentasse bailados como imaginei, em vez da pomba ferida e das borboletas. Em Viena o público é diferente do de Berlim; lá eles sabem o que é ballet."

Apesar de Gaigern a estar olhando fixamente, de frente, ela não o via. Ele sentiu uma ligeira dor, desconhecida até então, uma dor estranha e viva, que lhe cortava a respiração.

— Tomilho! Neuwjada! — disse ele baixinho, indo buscar as palavras no profundo tumulto da noite. Elas conservavam seu perfume agridoce, e a inesquecível recordação. E, realmente, ao ouvir-se chamar desse modo, a Grussinskaia voltou a olhar para ele, e sua fisionomia assumiu uma expressão tensa de sofrimento, embora sorrisse.

— Acho que precisamos nos separar agora, querido — disse ela com um tom de voz propositadamente forte e inflexível, para evitar que a voz se quebrasse.

Havia esquecido, apagado por completo as lembranças das pérolas. Tinha apenas um sentimento de apego e aconchego, por essa mulher, um desejo infinito de ser bom para ela, muito, muito bom. Com uma sensação de desamparo, girou no dedo o anel de sinete com o brasão dos Gaigern, em lápis-lazúli.

— Tome — disse ele estendendo a mão e oferecendo-lhe o anel, com um gesto desajeitado de menino. — É para que você não se esqueça de mim.

"Não o verei mais?", pensou a Grussinskaia. Esse pensamento a fez sentir um ardor nos olhos, e a fisionomia bonita de Gaigern foi desaparecendo em meio das suas lágrimas. Esse era um pensamento que não se devia exprimir. Ela ficou esperando. "Deixe-me ficar com você. Vou ser muito bom para você", pensou Gaigern. Apertou os lábios com força e obstinação e não disse nada.

— Você vai para Viena? — perguntou ele.

— Primeiro para Praga, por três dias. Depois catorze dias em Viena. Vou ficar hospedada no Bristol — acrescentou.

Silêncio. Tique-taque de relógios. Buzinas de automóveis diante do hotel. Cheiro de enterro. O arfar da respiração.

— Você não pode viajar comigo, querido? Preciso de você — disse finalmente a Grussinskaia.

— Eu... para Praga não posso ir. Não tenho dinheiro. Preciso primeiro arranjar o dinheiro.

— Eu lhe dou — respondeu ela prontamente. Com a mesma pressa Gaigern respondeu:

— Não sou um gigolô!

De repente caíram ambos nos braços um do outro, impulsionados por qualquer coisa de grande, num abraço forte, unidos no momento em que tinham de se separar.

— Obrigado — disseram ao mesmo tempo —, obrigado, obrigado — repetiram em três línguas: alemão, russo e francês, num balbucio confuso, num tom de soluço, num sussurro .choroso, em júbilo: — Obrigada, merci, bolchoie spassibo, danke.

Nesse instante Suzette está recebendo das mãos do criado de quarto, com ar de ofendido, a bandeja com o chá. São sete horas e vinte e oito minutos. O relógio na escrivaninha corre, sem fôlego; o outro, de cansaço, parou. Continue, continue, continue, bate ele, em tom de reprimenda.

— Então, em Viena? — diz a Grussinskaia, com as bordas das pestanas úmidas. — Daqui a três dias? Você segue depois que eu partir. E depois se encontra comigo em Tremezzo; vai ser ótimo, vai ser maravilhoso estarmos juntos! Vou tirar umas férias, de seis a oito semanas, e nós vamos*viver, querido, vamos somente viver, deixando tudo para trás, tudo isso que não tem sentido; vamos apenas viver, ficaremos idiotas de tanta preguiça e felicidade; e depois você vai comigo para a América do Sul. Você já conhece o Rio? Eu... não, chega. Está na hora. Vá! Vá! Querido! Obrigada!

— Daqui a três dias o mais tardar — diz Gaigern. A Grussinskaia ainda faz pairar em seu redor, às pressas, um pouco da sua graça de dama da alta-roda.

— Tome cuidado para chegar ao seu quarto sem me comprometer muito — pediu ela, fechando as duas portas, uma após a outra.

Quando Gaigern, em silêncio, soltou a mão da mão dela, sentiu-a dolorida. Sangrava de novo. O corredor está silencioso, as inúmeras portas vão-se perdendo na longa perspectiva. Nas soleiras, as botinas dormem, com as orelhas pendidas. O elevador vem descendo e, no terceiro andar, alguém corre para não perder o trem. No hall da escada, uma das janelas de vidro leitoso está aberta, deixando sair para o pátio a fumaça dos cigarros dessa noite. Gaigern se esgueira, com suas solas de pugilista, por sobre o tapete de ananases; entra no 69, seu próprio quarto, e fecha a porta com uma gazua. A chave ainda está na caixa, na portaria.

A Grussinskaia, depois de tomar banho, deita-se de bom grado, para entregar-se às mãos de massagista de Suzette. Sente-se forte, elástica e cheia de energia. Tem uma vontade enorme de dançar, e está ansiosa pelo próximo espetáculo. Sente que terá sucesso agora, pois em Viena se tem sempre sucesso; ela o sente nas pernas, nas mãos, no pescoço, que inclina para trás, repentinamente, e na boca, que tem sempre desejos de sorrir. Veste-se e sai correndo, como um pião. Com enorme élan, atira-se às ocupações da manhã, à discussão com Meyerheim, à luta subterrânea com as perfídias da troupe, ao trabalho paciente com Pimenoff e Witte.


9

 

 

Às nove horas o groom 18 traz um buquê de rosas: "Até logo, querida boca", está escrito num pedacinho rasgado de papel do hotel. A Grussinskaia beija o anel de sinete com o brasão dos Gaigern. — Porte-bonheur — sussurra, como a falar com um velho conhecido. Agora ela já tem de novo um talismã. "Michael tem razão. Vou doar as pérolas... para as crianças pobres", pensa ela. Suzette segura com luvas de tricô a alça da suitcase, enquanto o criado leva o resto da bagagem. Sem saudades, a Grussinskaia deixa o quarto do hotel, tão cheio de aventuras, com aquela tapeçaria da parede que lhe fazia mal aos nervos. No Hotel Imperial de Praga já está reservado para ela um outro quarto com banheiro privativo dando para o pátio, o número 184. Também no Rio, em Paris, em Londres, em Buenos Aires, em Roma foi feita igual reserva; espera-a uma infindável perspectiva de quartos de hotel com portas duplas e água corrente, e o cheiro indefinível de incessante movimento e de coisas desconhecidas.

Às nove horas e dez a camareira, que não dormiu durante a noite, tira muito mal o pó do quarto 68, joga fora as cestas de flores secas, leva a xícara de chá e finalmente traz roupa de cama limpa — ainda úmida da passagem a ferro — para o próximo hóspede.

 

O relógio, pérfido como todos os despertadores, deixou de acordar o Diretor-Geral Preysing, com seu tilintar pontual e enérgico. Às sete e meia tilintou apenas durante um segundo, e isso foi tudo. Preysing, que dormia com a boca aberta e seca, mexeu-se ligeiramente, as molas do colchão gemeram, e por trás do reposteiro amarelo o sol brilhou um pouco. Às oito horas o porteiro, muito cumpridor de seus deveres, despertou o diretor chamando-o ao telefone, mas já era tardíssimo. Preysing pôs a cabeça meio tonta de sono embaixo da ducha, praguejando baixinho por ter-se esquecido de trazer o aparelho de barbear. Um pedante como ele perdia toda a alegria com uma coisa assim. Apesar de estar atrasado, levou alguns minutos escolhendo o terno que ia vestir. Depois de já ter escolhido o cut, despiu-o com raiva. Calculou — e talvez com razão — que não seria vantajoso vestir o cut; o terno cinzento de viagem, pelo contrário, demonstraria imediatamente aos senhores de Chemnitz que não estava tão interessado assim por todo aquele negócio. Apressou-se o mais que pôde, mas até que arrumasse todos os saquinhos e estojos, que procurasse todas as chavinhas, as encontrasse e enfiasse nas fechaduras, folheasse mais uma vez seus documentos e contasse mais uma vez o dinheiro, já eram mais de nove horas. Com a cabeça quente, saiu correndo do apartamento e, no corredor, deu um encontrão em um homem.

— Desculpe! — disse Preysing, parando diante da porta de seu quarto, para conseguir enfiar o outro braço no casaco.

— Não foi nada! — replicou o cavalheiro, continuando seu caminho sobre a passadeira. Preysing julgou reconhecer esse modo de manter as costas. Quando chegou ao elevador, o homem já ia descendo; o diretor pôde vê-lo também de frente e julgou reconhecê-lo igualmente, sem se recordar de onde. Teve a impressão de que ele sorria zombeteiramente, enquanto descia no elevador, diante do seu nariz. Preysing, excitado e impaciente, desceu a escada correndo e foi em disparada pelos corredores até o subterrâneo de azulejos, onde o barbeiro do hotel tinha o seu salão; ali cheirava a água estagnada de porão e a Peau d'Espagne. No salão estavam sentados muitos cavalheiros, metidos em batas brancas, como babies esperançosos, entregues às manipulações dos barbeiros vestidos com jaquetas brancas. Preysing, impaciente, começou a dançar sobre suas grossas solas de crepe.

— Vai demorar muito para chegar a minha vez? — perguntou ele, roçando o rosto por barbear, nas palmas das mãos.

— No máximo dez minutos. Há só um senhor na sua frente — responderam-lhe.

O tal senhor que havia chegado antes dele era o homem que descera no elevador, e Preysing olhou-o com desagrado. Era um sujeitinho insignificante, magro e modesto, meio vesgo por trás de uns óculos a escorregarem, e com o nariz pontudo inclinado sobre um jornal. Preysing tinha uma vaga ideia de já ter tratado de negócios com esse homem, mas não conseguia recordar-se em que circunstâncias. Postou-se diante dele, fez uma leve curvatura, e procurando ser amável disse:

— Por favor, o senhor podia me fazer a gentileza de me ceder a sua vez? Estou com muita pressa.

Kringelein, que se encolhera todo atrás do jornal, juntou suas forças. Mostrou a cara por trás do artigo de fundo, estendeu o pescoço fino, voltou-se para o diretor-geral olhando-o de frente e respondeu:

— Não!

— Desculpe... mas é que estou com muita pressa — tartamudeou Preysing em tom de reprimenda.

— Eu também — replicou Kringelein. Preysing, furioso, virou as costas e saiu do salão de barbeiro. Como um vencedor, um herói, mas completamente exausto e vazio pela desmedida tensão nervosa, Kringelein, ofegante, continuou sentado, envolto no aroma das essências dos sabões de barbear.

Atrasado, com a barba por fazer e com a ponta da língua doendo, por tê-la queimado no café fervendo, o diretor-geral entrou na sala de conferências. Os outros senhores já tinham soltado na sala uma bela fumaceira azul de charuto. A sala, com seu pano de mesa verde, a imitação de tapeçaria de damasco nas paredes e o retrato a óleo do fundador do Grande Hotel, tinha um aspecto de conforto e solidez. O Dr. Zinnowitz já havia colocado seus documentos na mesa, na sua frente; o velho Gerstenkorn estava sentado na cabeceira da compridíssima mesa, presidindo a sessão, e, para cumprimentar, ergueu apenas a metade do corpo, porque ele pertencia à geração robusta do sogro de Preysing, conhecera o diretor-geral ainda moço e não o tinha em grande conta.

— Está atrasado, Preysing? — perguntou ele. — Quarto de hora acadêmico? Não passou bem ontem de noite? É isso, Berlim tem dessas coisas! — riu-se com a tosse grossa e encatarrada dos bronquíticos, e apontou para a cadeira a seu lado.

Preysing sentou-se defronte de Schweimann com a desagradável impressão de ter levantado com o pé esquerdo, e seu lábio superior, sob o bigode, estava úmido antes mesmo de começar a luta. Schweimann, que tinha pálpebras espessas e uma boca grande e de lábios grossos, uma boca elástica de macaco, apresentou um terceiro senhor:

— O nosso síndico, o Dr. Waitz — disse ele.

O Dr. Waitz era jovem ainda; tinha um ar distraído, mas não o era em absoluto, e durante as conversações podia tornar-se bem desagradável, com sua voz dominadora e agressiva de trombeta. Tinha sido trazido também pelos senhores de Chemnitz.

— Nós já nos conhecemos — disse Preysing com pouco entusiasmo.

Schweimann ofereceu, por sobre a mesa, um charuto ao diretor-geral. O Dr. Zinnowitz tirou do bolso do colete uma caneta-tinteiro e a colocou à sua frente, ao lado dos documentos. Bem afastada, sentada à mesa, do outro lado da garrafa de água e dos copos que ofuscavam facilmente os olhos e vibravam sobre uma bandeja preta, sempre que passava lá fora algum ônibus, estava uma personagem apagada: a Flamm número um, com o bloco de estenografia na mão, envelhecida e insignificante, com uma leve penugem branca de traça nas faces, calada, cumpridora dos seus deveres, impossível de ser confundida com a Flamm número dois.

— Bonita caneta — observou Schweimann a Zinnowitz. — De que marca é? Muito bonita.

— Gosta? Recebi-a de Londres. É bonita, não é verdade? — respondeu Zinnowitz, escrevendo sua assinatura fluente num caderninho de notas. Todos olharam.

— Quanto custa uma caneta assim, se me permite perguntar-lhe? — informou-se Preysing, tirando sua própria caneta do bolso do colete e colocando-a na mesa. E todos os presentes olharam também para a caneta inglesa.

— Umas três libras, sem pagar a alfândega. Um conhecido me trouxe — esclareceu o Dr. Zinnowitz.

— Que coisa prática! Muito prática.

Todos estenderam as cabeças por sobre a mesa, como meninos de escola, e observaram a caneta-tinteiro de malaquita verde, de Londres. Esse objeto merecia de fato que cinco participantes adultos de uma conferência se ocupassem dele durante três minutos.

— Bem, agora vamos tratar de negócios — disse afinal o velho Gerstenkorn com sua voz encatarrada, e imediatamente o conselheiro Zinnowitz apoiou seus dedos alvacentos sobre a coberta verde da mesa e começou, com palavras fluentes e preparadas de antemão, uma exposição do assunto, fazendo ressoar a voz na atmosfera azul da sala de conferências.

Preysing permitiu-se uma pequena pausa para se acalmar. Ele próprio não era bom orador, e se sentia agradecido por Zinnowitz ter assumido essa tarefa, e por suas frases se ensarilharem, fluentes e claras, como atiradas por uma máquina. E isso não era mais que a introdução. Primeiro falou de coisas que já haviam sido há muito tempo ruminadas em negociações preliminares. Expôs mais uma vez a situação em que as negociações estavam, enquanto ia pescando, na pasta dos documentos, ora este ora aquele papel, levando as longas colunas de números bem próximo dos olhos míopes para poder lê-las com mais facilidade.

Tornando a repetir, era este o ponto em que estavam as negociações: a Algodoeira Saxônia S.A., que fabricava principalmente tecidos de algodão e cobertores, e com o refugo fabricava uma qualidade muito apreciada de serapilheira, era uma firma de boa envergadura e grande capital. Seu ativo em terrenos, prédios e maquinaria, em mercadorias em bruto e manufaturadas, em patentes, etc, e principalmente em crédito, totalizava um capital considerável. Os impostos anuais e o produto líquido conservavam-se numa sólida média, os dividendos haviam somado, ainda no ano passado, nove e meio por cento.

Zinnowitz ia lendo as cifras, mais ou menos satisfatórias, e Preysing o ouvia com agrado. No seu empreendimento estava tudo limpo e em ordem, e a produção com o refugo, que sozinha trazia trezentos mil em bruto, fora organizada por ele. Olhou para Gerstenkorn. Este, com a maneira pensativa e meio simplória dos velhos manhosos, balançava de um para outro lado a cabeça grisalha, à escovinha. Schweimann aspirava seu charuto, parecendo não estar ouvindo. Waitz controlava as cifras que eram lidas, uma a uma, olhando para um caderninho com capa de couro, onde ele tomara notas. A Flamm número um, verdadeira mestra, na arte da secretária particular, em não fazer notar sua presença, com olhar fixo fitava os reflexos na água, em que a caneta tomava o aspecto tremulante de uma pequena e aguda baioneta. Zinnowitz tirou outro maço de papéis de entre os documentos colocados uns sobre os outros e passou então a tratar da situação da Malharia de Chemnitz. Sua barba longa e fina de chinês subia e descia quando ele falava.

A Malharia de Chemnitz era — deduzia-se das cifras — um empreendimento muito menor. Mal possuía a metade desse ativo, e seu balanço demonstrava uma situação bastante precária. Ele tinha anotado apenas o principal, mas, não obstante, tivera de lançar uma elevadíssima participação de lucros. Os impostos anuais eram altos. O lucro líquido mal chegava à altura dos impostos. Considerando tudo isso, as cifras do balanço da Chemnitz mantinham-se espantosamente elevadas. Zinnowitz colocou um amável e pequeno sinal de interrogação por trás das últimas cifras que lera, e fitou o velho Gerstenkorn.

— Suba. Pode arredondar para duzentos e cinquenta mil marcos, pode fazê-lo.

— O senhor não pode fazer as contas assim — observou Preysing, que tinha ficado nervoso. — O senhor precisa amortizar o preço das novas máquinas para o novo processo. Nesse caso, o senhor não poderá anotar nem mesmo suas velhas máquinas.

— Mesmo assim. Mesmo assim — insistiu Gerstenkorn, teimoso.

O Dr. Waitz trombeteou:

— Poderemos considerar as nossas cifras muito mais desvalorizadas do que valorizadas.

O Dr. Zinnowitz pôs em cima da mesa um papel para o diretor-geral, e este, forçando a vista, aprofundou-se nos seus cálculos. O resultado ele já conhecia. A Malharia de Chemnitz era um empreendimento de pouca solidez, fundado com pouco capital, e com o crédito quase estourando. Mas impunha-se, tinha bons lucros, parecia estar se desenvolvendo, tinha as conjunturas a seu favor. Enquanto isso, a Algodoeira Saxônia ficava para trás, ia adormecendo, sólida e bem fundada como era. Algodão, cobertores e serapilheira. O mundo não se interessava, no momento, por cobertores e serapilheira. E o velho de Fredersdorf sabia por que razão ele insistia, nas atuais circunstâncias, em agarrar a oportunidade dos tecidos de malha, e trazer assim um lucro para o seu empreendimento.

— Isso não tem importância. Vamos adiante — disse o diretor, com a condescendência de um homem que está em posição inferior. Gerstenkorn tirou da mão dele o balanço e, alisando delicadamente o papel, tossiu uma risada.

Zinnowitz, com palavras fluentes, já havia tratado da situação das ações, havendo, nesse ponto, um erro evidente. O capital efetivo da Saxônia era quase duas vezes maior do que o ativo dos senhores de Chemnitz. Partindo dessa premissa, todas as outras negociações preliminares haviam decorrido de modo que, na fusão das duas firmas, duas ações da Chemnitz equivalessem a uma ação da Saxônia. Mas as ações da Chemnitz haviam subido, as da Saxônia baixado, o equilíbrio tinha-se modificado sensivelmente, e o Dr. Zinnowitz, com um gesto conciliante da mão, teve que conceder — a base das trocas se modificara, em razão da espantosa subida das ações da Malharia de Chemnitz. Preysing ouvia com desagrado a voz polida do seu advogado, que com muitas frases, impecáveis e condicionais, trazia à luz uma quantidade de coisas desagradáveis, que ele estava farto de saber. Seu charuto já não lhe dava mais prazer; tirou ainda algumas baforadas enérgicas, e acabou pondo-o de lado. Num certo ponto da exposição de Zinnowitz, o Dr. Waitz saltou, como um ator na sua deixa, bateu rapidamente com a palma da mão no pano verde da mesa, e opôs suas objeções. Começou a ler cifras no seu caderno de notas, sem olhá-lo sequer, novos números, números diferentes — Preysing contraiu de tal modo os músculos da testa, que seus olhos saltaram das órbitas, tal o esforço que fazia para conservar na memória todas aquelas coisas, para perceber tudo e não perder de vista o aspecto geral do assunto. Puxou para o seu lado alguns papéis de carta do hotel, que estavam em cima da mesa, e se pôs a rabiscar notas às escondidas, e excitado como um mau aluno. O conselheiro Zinnowitz, por seu lado, havia apenas lançado um olhar à Flamm número um, e a boa moça já estava a estenografar as agressivas palavras e provas no seu bloco, com riscos azuis. O Dr. Waitz apresentou o conjunto de suas trombeteadas objeções: não, não era possível exigir dos acionistas da Malharia de Chemnitz um prejuízo de metade do seu capital, no caso de tal fusão. Conforme sua opinião, não havia nenhum motivo plausível para, no caso de uma eventual fusão — ele frisou o "eventual", como um ator de província —, conceder a primazia à Saxônia, com relação à sociedade de Chemnitz, para de certo modo colocar num plano de dependência essa firma em plena florescência, para pô-la simplesmente a um canto.

Zinnowitz olhou para Preysing, e este, obediente, se pôs a falar. Tinha o hábito de falar de coisas importantes com voz nasal e abafada, num tom aborrecido e monótono; pelo fato de se sentir intimamente um homem pouco seguro de si, empregava tais meios para demonstrar aos outros calma e superioridade. As palmas de suas mãos estavam úmidas, quando se atirou à luta. Os olhos de Schweimann arrastaram-se para fora das órbitas vermelhas em que habitavam, como camundonguinhos cinzentos, e Gerstenkorn colocou os polegares nas cavas do colete, com a expressão de uma pessoa que está se divertindo. As paredes de damasco falso ouviam tudo, com indiferença. Conferências como essa se realizavam diariamente no Grande Hotel; nesse enorme Kaff eram cozidas muitas sopas, que em seguida os acionistas tinham que engolir. O açúcar subia de preço, as meias de seda barateavam, o carvão desaparecia, tudo isso e milhares de coisas mais dependiam do decorrer dessas lutas na sala de conferências do Grande Hotel.

Preysing ia falando. Quanto mais ele falava, com uma voz que ressoava como se a tivesse posto sobre a neve, e quanto mais minucioso se tornava, tanto mais perdia terreno. As interrupções breves e concludentes de Gerstenkorn assobiavam por entre suas frases como balas de revólver. Houve momentos em que Preysing teria de bom grado fugido dali, meia-volta, marchar, marchar, abandonando toda essa história imunda de fusão, para voltar para a companhia de Mulle, Pepsin e Babe, em Fredersdorf. Mas era um diretor-geral, e o mundo não era um negócio tão simples assim; dessa fusão muito se esperava para a fábrica, e dela dependia tudo para a sua própria posição dentro da fábrica, pelo que aguentou o repuxo. Puxou mais uma vez do seu ativo, essa prova mais do que sólida de um empreendimento mais do que sólido, e se agarrou a isso com unhas e dentes. Caceteou os senhores da Chemnitz, caindo em pormenores excessivos, e o conselheiro precisou por várias vezes pô-lo em movimento, como a um barco encalhado e lento. Preysing fazia uma confusão medonha, insistia em alguns pontos secundários, teimava sem a mínima razão; caceteava os senhores da Chemnitz com minuciosas descrições da fabricação de tecido de serapilheira, feito com refugo do material, pois era do que mais gostava de falar, esquecendo-se de aludir a assuntos importantes que tinha sublinhado no papel de carta diante dele. Finalmente ficou parado no meio de uma frase que começara como. uma fanfarra e terminou num beco sem saída. Tirou do bolso o lenço e enxugou o suor do bigode; pôs na boca um novo charuto, que tinha gosto de feno. De repente teve a impressão de estar sentado em uma mesa entre contrabandistas, pessoas sem seriedade e sem princípios; sentiu a amargura do homem honesto que e tido por tolo.

Então, Gerstenkorn tirou das cavas do colete seus dedos redondos de burguês atrasado e começou a expor a sua opinião. Esse senhor Gerstenkorn, com sua cabeça quadrada à escovinha e sua voz bronquial, era um orador claro e combativo. Empregava toda espécie de dialetos, para dizer sem rodeios o que queria dizer. Saxão, berlinês, iídiche e mecklemburguês eram o tempero da sua conversa sobre negócios.

— Agora o senhor faça ponto final, e deixe os adultos falarem — observou ele, conservando na boca o charuto, o que tornava sua linguagem, comumente vulgar, mais vulgar ainda, e era o que ele queria. — As coisas de que a Saxônia é capaz o senhor já nos contou, e nós já sabíamos disso tudo. Música também ela não sabe fazer. Já repetimos e tornamos a repetir isso tudo aos nossos principais acionistas, e qual foi o resultado? Receio, um enorme receio, um fundamentado receio da fusão. É engraçado, como é que os acionistas, por causa do seu algodão, iriam meter a mão no caldeirão para tirar as salsichas quentes? Em poucas palavras: a nossa situação melhorou muito desde a primeira vez que o senhor se dirigiu a nós. A sua situação não se modificou, se quisermos ser amáveis e não dissermos que piorou. Nessas condições, nós, falo em alemão claro, meu prezado Preysing, perdemos o interesse na fusão. E estamos aqui com a incumbência de parar com as negociações, nessas circunstâncias. Quando o senhor se dirigiu a nós, as perspectivas eram outras.

— Mas nós não nos dirigimos aos senhores — disse Preysing com rapidez.

— Homem de Deus, o que aconteceu com o senhor? Dirigiram-se a nós, sim! Dr. Waitz, faça o favor de me passar os dados. O senhor dirigiu-se a nós em... aqui está... em 14 de setembro, por carta.

— Não é verdade — teimou Preysing, puxando o maço de documentos que estava diante do conselheiro Zinnowitz. — Nós não nos dirigimos aos senhores. Antes dessa carta já tinha havido uma troca pessoal de impressões, pedida pelos senhores.

— Trata-se disso? Pois um mês antes o seu velho já tinha batido à minha porta, a título particular, com toda a amabilidade.

— Nós não nos dirigimos em primeiro lugar — respondeu Preysing, apegando-se a esse fato absolutamente sem importância, como se isso pudesse salvar alguma coisa. Zinnowitz bateu com os pés estreitos debaixo da mesa, pedindo socorro. De repente, Gerstenkorn pôs fim à discussão, e passou a palma da mão quadrada sobre o pano verde da mesa.

— Está bem — disse ele —, bon. Pois então não se dirigiram, se assim lhe agrada. E, tenham ou não se dirigido, as circunstâncias naquela época eram diferentes, o senhor tem que concordar, Herr diretor-geral — ele disse "Herr diretor-geral", e a mudança da maneira amistosa de falar para esse tom oficial soava ameaçadoramente. — Naquela época tínhamos motivos para desejar uma sociedade com a Algodoeira Saxônia. Hoje, que motivos temos?

— Os senhores precisam de um capital maior — disse Preysing, com toda a razão.

Gerstenkorn, com dois dedos, varreu da mesa a objeção.

— Capital! Capital! Se emitirmos hoje novas ações nos atirarão quanto dinheiro quisermos. Capital! O senhor se esquece de uma coisa: o seu bom tempo foi durante a guerra, naquela ocasião a gente podia arranjar a vida fazendo tecido para o Exército e cobertores. Agora o tempo está bom para nós, entende? Nós não precisamos de capital. Precisamos de matéria-prima barata, para aproveitar o nosso novo processo, e precisamos de novos mercados no exterior. Digo-lhe com toda a franqueza, e diretamente, a opinião da nossa sociedade, Herr diretor-geral. Se a fusão com os senhores for proveitosa para nós, então a concretizaremos. Do contrário, não a faremos. Faça o favor, diga o que pensa sobre isso.

Pobre Preysing! Tinha que expor o seu pensamento. Agora haviam chegado naquele ponto que o amedrontava, desde que pisara o trem misto em Fredersdorf. Lançou um olhar de coelho a Zinnowitz, mas este olhou com um ar de recusa as próprias unhas, bem tratadas e pálidas.

— Não é nenhum segredo o fato de possuirmos ótimas relações no exterior. Só para os Bálcãs exportamos anualmente sessenta e cinco mil marcos de tecido de serapilheira — observou ele. — É natural que, no caso de uma fusão, faríamos o possível para atrair ainda o mercado externo para o produto de malha manufaturado.

— Quais são os motivos que o levam a afirmar isso com tanta certeza? — perguntou o Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, erguendo um pouco o busto, conforme um antigo hábito seu, do tempo em que fora juiz criminal. Dava a impressão de ainda usar a toga, e falava num tom de voz próprio para intimidar a testemunha insegura. O diretor-geral se deixou intimidar.

— Não sei a que motivos se refere — respondeu ele, com seu lamentável costume de perguntar coisas que estava farto de saber.

Schweimann, bem em frente dele, ainda não tinha aberto sua enorme e elástica boca de macaco. Agora a abria.

— Trata-se da planejada sociedade com Burleigh & Son — afirmou ele, sem rodeios.

Gerstenkorn balançava com a máxima atenção a longa ponta de cinza do seu charuto.

— Infelizmente, não estou em condições de dar informações a esse respeito — respondeu Preysing imediatamente. Preparara de antemão essa resposta, e a sabia de cor.

— Que pena! — disse o velho Gerstenkorn.

Em seguida ficaram todos calados durante alguns minutos.

A garrafa de água tilintou levemente na bandeja, porque lá fora passava um ônibus, e o reflexo estreito e contorcido do sol batendo na água parada tremulou na parede sobre a moldura do retrato a óleo do fundador do Grande Hotel. Preysing, durante alguns segundos, se pôs a refletir febrilmente. Não sabia se o Dr. Zinnowitz havia mostrado ao pessoal da Chemnitz as cópias daquelas cartas agourentas, sem o menor valor e importância. Sentia novamente nas mãos aquela impressão de falta de asseio e de trato. Seu rosto por barbear começou a cocar de um modo ridículo. Lançou um olhar inquiridor e implorante ao conselheiro, lá na ponta da mesa. Zinnowitz, procurando acalmá-lo, baixou as pálpebras oblíquas e inteligentes de seus olhos de chinês, um movimento quase invisível, que tanto podia significar sim, como não, ou mesmo não significar absolutamente nada. Preysing dominou-se. "Preciso consegui-lo", pensou ele; era mais um sentimento do que um pensamento.

— Meus senhores — disse ele, levantando-se; é que o forro esticado de veludo da cadeira causava no seu traseiro uma sensação desagradável de calor —, mas, meus senhores, vamos tratar do que importa. A base sobre a qual foram feitas até agora todas as negociações entre nós foi o balanço e a situação da fábrica de Fredersdorf. Os senhores puderam fazer uma ideia bem clara da situação, o senhor conselheiro comercial Gerstenkorn pôde certificar-se pessoalmente das condições em que se encontra a nossa fábrica, e eu faço questão de que hoje não se trate de coisas vagas e imponderáveis nas nossas negociações. Não somos especuladores, eu não sou um especulador, em absoluto, trabalho com fatos e não com boatos. Não passa de um boato da Bolsa, isso de que vamos fazer sociedade com Burleigh & Son, em Manchester. Mandei desmentir isso, não posso permitir que...

— O senhor não vai querer ensinar uma lebre velha a correr, não é? Nós sabemos muito bem o que significa um démenti — replicou Gerstenkorn.

Schweimann agora estava animado; farejava, com as suas narinas dilatadas e a boca de macaco, como se já cheirasse a possibilidade do mercado inglês. Preysing foi-se enfurecendo.

— Não aceito! — exclamou ele. — Não aceito que considerem como um fator importante nos nossos negócios esse assunto da Inglaterra; não aceito isso. Não faço cálculos com castelos na Lua, nunca fiz isso, a nossa fábrica não tem necessidade de fazer semelhante coisa. Conto com coisas reais, com fatos, com cifras, com o nosso balanço, aqui está — exclamou ele batendo três vezes com a palma da mão na pilha de documentos que se encontrava diante dele —, é isso que tem valor... e não permito que se trate de outra coisa. Nós oferecemos agora o que oferecemos desde o primeiro dia, e se isso de repente não basta para a sua firma, sinto muito!

Parou espantado, pois tinha galopado como se corresse sobre um pântano. "Estou assustando os outros com a minha gritaria", pensou ele horrorizado, "preciso atraí-los, e em vez disso estou estragando tudo." Encheu o copo de água e bebeu. Era um líquido grosso, morno e sem sabor, como óleo de rícino. O conselheiro Zinnowitz deu uma risadinha e tentou endireitar a coisa.

— O diretor-geral Preysing é de uma consciência modelar — declarou ele. — Não sei, mas talvez os seus receios de levar de certo modo em consideração o negócio com Manchester sejam injustificados, pelo menos exagerados. Por que não se poderá deixar pesar na balança uma coisa que oferece tão boas perspectivas, mesmo que isso ainda não esteja em preto no branco? Por que...

— Por quê? Porque não posso me responsabilizar por isso — interrompeu-o Preysing. Zinnowitz, que teria de bom grado lhe pisado no pé, mas não o podia fazer, ergueu a voz, dirigindo-se ao diretor-geral. Preysing sentou-se de novo no assento quente da cadeira de veludo, e não disse mais nada. Esteve a ponto de declarar a verdade. Bom, se Zinnowitz não o deixava falar, então o célebre perito em matéria comercial que se arranjasse como pudesse. "A coisa vai mal", pensou Preysing, "já não tem mais conserto, está tudo acabado, morto e enterrado. As negociações fracassaram definitivamente. Está bem." Oferecera a todo mundo uma firma sólida, e tudo que um homem correto pode oferecer. Mas o mundo não queria coisas assim. O mundo queria mercados fictícios, boatos falsos, especulações, por trás dos quais nada havia, a não ser um pouquinho de fanfarronice. Artigos de malha, jumper e sweater, meias de cores variadas de Chemnitz, pensou o diretor-geral, amargurado... E chegou a ver realmente, nesse momento, tais coisas, modernas, coloridas e levianas, que conquistavam o mundo no corpo de moças também levianas.

Zinnowitz continuava o seu sermão; Flamm caíra de novo em sua letargia profissional. Gerstenkorn e Schweimann, no entanto, mal ouviam; com a cabeça metida entre os ombros, conversavam sem nenhuma delicadeza, a meia voz, sobre um assunto qualquer.

— O nosso amigo Preysing — recomeçou o conselheiro — talvez vá um pouco longe demais com os seus escrúpulos. Dizem que a sua fábrica está para firmar um contrato muito vantajoso com a próspera e antiga firma Burleigh & Son. E que faz o nosso caro Preysing? Procura negar isso, como se acaso se tratasse de uma bancarrota. Considerando que se trate apenas de um boato... não há boato algum que não contenha um fundo de verdade, todos nós sabemos. E um velho homem de negócios como o conselheiro comercial Gerstenkorn há de concordar que há boatos que têm mais valor do que muito contrato pronto e assinado. Mas como antigo advogado da fábrica de Fredersdorf, posso afirmar: isso é mais do que um boato, há certos ajustes por trás disso. Desculpe-me, caro Preysing, se não guardo a discrição férrea que o senhor guarda. Não tem nenhum sentido insistir em negar, desde que já se realizaram inúmeros entendimentos a esse respeito. Talvez hoje ainda não se possa saber com certeza se eles conduziram a um resultado positivo. Mas isso é um fato, e um fato menos desfavorável do que o seu balanço. Acho extremamente correto e delicado Herr Preysing não querer juntar ao ativo da sua fábrica esse fato, acho isso realmente de uma correção e distinção fora do comum. Mas dessa maneira não se vai para a frente. Desculpe-me, portanto, se eu confio essas coisas a estes senhores.

Zinnowitz continuou a murmurar um palavreado conciliante, com muitos "no entanto" e "como também" e “se acaso" e "por outro lado". Preysing tinha empalidecido; teve a sensação, ao sentir nas fontes uma pontada do sangue a fugir, o sentimento de que havia realmente empalidecido. "Ele lhes mostrou as cartas", pensou. "Mas, Deus do céu, isso já é intriga, já é quase uma fraude. Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann", pensou ele, enxergando as letras azul-escuras e apagadas do telegrama. Meteu a mão no bolso do colete do seu terno cinzento de funcionário, onde guardara o telegrama, mas retirou-a no mesmo instante, como se a tivesse metido num forno quente. "Se eu agora não me levantar imediatamente, e não disser o que está se passando, então a coisa está perdida", pensou, levantando-se. "Porém, se eu falar agora, estes senhores se afastarão, a fusão vai por água abaixo e eu voltarei para Fredersdorf completamente desacreditado", refletiu, sentando-se de novo. Procurou disfarçar seus movimentos indecisos e inoportunos, e, colocando água num copo até o meio, sorveu-a, como se fosse um remédio.

Enquanto isso, Schweimann e Gerstenkorn tinham-se animado. Eram duas cabeças de comerciantes, finórias e lustrosas de unção. Sua atenção foi despertada para o fato de Preysing ter negado com tanta veemência o negócio com a Inglaterra, tentando pôr de lado o assunto. Seu olfato sentia alguma outra coisa por trás disso: mercados, proveitos, talvez concorrência. Gerstenkorn teve uma ideia, que murmurou à enorme orelha direita de Schweimann:

— Se se tratasse de qualquer outra pessoa, um desmentido assim seria quase o mesmo que uma afirmação. Mas com esse animal que é o Preysing, é possível até que ele esteja falando a verdade.

Gerstenkorn deu uma investida brutal.

— Não adianta o conselheiro estar gastando o seu latim — disse ele, inclinando-se sobre a mesa. — Antes de continuarmos a nossa conversação, quero pedir a Herr Preysing o favor de nos dizer sem rodeios até que ponto chegaram as negociações com Burleigh & Son.

— Recuso-me a isso — afirmou Preysing.

— Insisto, caso continuemos a negociar — retrucou Gerstenkorn.

— Então — replicou Preysing — peço-lhe que, no decorrer das negociações, esse assunto seja dado por encerrado.

— Nesse caso preciso admitir que as perspectivas de sociedade com Burleigh & Son malograram? — perguntou Gerstenkorn.

— Admita o que bem lhe parecer — respondeu Preysing.

Em seguida todos se calaram por quase um minuto. Flamm número um folheou discretamente o seu bloco de estenografia, e o ruído delicado das folhas de papel que ela virava ressoou no silêncio da sala de conferências. Preysing parecia um bebezinho zangado; às vezes, sucedia meter a cabeça por trás da fisionomia do diretor-geral um menino cabeçudo e teimoso. Zinnowitz, com a sua caneta de malaquita, desenhava resignados triângulos na capa de um documento.

— Acho que por enquanto não tem sentido nenhum continuarmos a nossa conversa — disse finalmente Gerstenkorn. — Acho que podemos continuar a nos entender por escrito.

Ele se levantou, e a sua cadeira deixou sulcos fundos no tapete espesso, legítimo, da sólida sala de conferências. Mas Preysing continuou sentado. Tirou cuidadosamente um charuto do bolso, cortou-lhe a ponta cerimoniosamente, acendeu, tirou uma tragada e começou a fumar, com uma expressão absorta e profundamente pensativa; suas bochechas se tinham avermelhado, cheias de veiazinhas salientes.

Não há dúvida de que o Diretor-Geral Preysing é um homem honestíssimo, de caráter, bom esposo e bom pai, um homem ordeiro e organizado, da mais consolidada burguesia. Sua vida está toda em ordem, tudo registrado e em cartas, oferecendo um aspecto agradável: uma vida de caixas de fichas, de pastas de documentos, de muitas gavetas e muito trabalho. Preysing nunca cometeu a mínima falta de correção. No entanto, deve existir nele um ponto fraco, onde a vida o quer segurar e abater; uma insignificante inflamação, uma manchinha microscópica na limpeza burguesa de seus trajes, deve existir, no entanto...

Ele não chamou por socorro, nesse momento em que a conferência se interrompeu, apesar de se sentir muito mal, com a sensação de que precisava pedir auxílio e gritar por socorro. Levantou-se com o charuto na boca, segurando-o fortemente entre os dentes, e teve a impressão perfeita de estar bêbado, quando pôs as mãos nos bolsos.

— Que pena — disse ele negligentemente, admirando-se do tom despreocupado dessa frase que roçou subitamente o charuto em sua boca. — É realmente pena. Adiar é o mesmo que terminar. Pois então, ponto final. E agora que os senhores desistiram do negócio, posso dizer-lhes que o contrato com Burleigh & Son está firmado. Desde ontem à noite. Recebi hoje de manhã a notícia.

Tirou a mão do bolso do colete, e nela estava metido o telegrama dobrado: Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann. Foi tomado de um infantil e triunfal prazer de enganar os outros, enquanto dizia aquela mentira enorme, que raiava a fraude, e punha o telegrama sobre o pano verde da mesa. Ele próprio não sabia se queria passar um blefe nos outros ou estava procurando uma boa saída para sua posição desacreditada. Schweimann, o mais indisciplinado dos dois homens da Chemnitz, estendeu o braço, num movimento instintivo para pegar o telegrama. Preysing, muito calmo, abriu o telegrama, dobrou-o novamente, e, com um gesto calmo e refletido, meteu-o de novo no bolso do colete. O Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, fez uma cara de idiota. O conselheiro Zinnowitz soltou um assobio leve e agudo, realmente estranhável, partindo da sua boca sábia de chinês.

Gerstenkorn começou a rir, com acessos de tosse bronquial.

— Meu caro — tossiu ele —, caríssimo! O senhor é muito mais sabido do que parece! Homem de Deus! O senhor nos pregou uma boa! Olhe aqui, precisamos conversar sobre isso!

Gerstenkorn se sentou. O diretor-geral, ainda por alguns segundos com um sentimento de vazio, como se todos os seus ossos tivessem ficado ocos e como se sentisse um esquisito e brando tremor nos joelhos, sentou-se também. Tinha mentido pela primeira vez na vida, e ainda por cima de um modo idiota, completamente simplório e sem base. E com essa mentira — justamente com ela — havia conseguido pela primeira vez, após tantos fracassos, impor-se de novo. De repente ouviu a própria voz a falar, e a falar bem. Sentiu-se tomado de uma estranha e desconhecida embriaguez; ouvia a própria voz, e tudo o que dizia tinha pés e cabeça, energia e visão. O fundador do Grande Hotel olhava fixamente para ele, muito admirado, lá do alto do seu retrato a óleo, com seus olhos pintados cintilantes. A Flamm número um curvara o rosto penugento sobre o bloco de estenografia, e estenografava rapidamente — porque agora, parecia, chegariam a um acordo final, cada palavra proferida se tornava importante.

Até o fim da conferência, que durou ainda três horas e vinte minutos, Preysing conservou-se nesse novo estado de ânimo, que lhe dava a impressão de estar voando. E só quando pegou a caneta-tinteiro de malaquita verde para assinar seu nome ao lado da assinatura de Gerstenkorn, no contrato prévio, notou que as suas mãos estavam úmidas e estranhamente sujas.


10

— O 218 quer que o despertem às nove horas — disse o porteiro ao praticante Georgi.

— Ele vai embora? — perguntou o rapazinho.

— Embora por quê? Qual nada, ele vai ficar.

— Pensei que ia. Ele nunca pediu que o acordassem ... — disse Georgi.

— Pois agora pode acordá-lo — respondeu o porteiro.

E assim, às nove horas em ponto, o telefone tilintou no quartinho ridiculamente minúsculo do Dr. Otternschlag.

Apressado como um homem cheio de ocupações, Otternschlag esforçou-se por libertar-se da nebulosidade dos sonhos e despertar, e em seguida admirou-se de estar acordado.

— O que foi? — perguntou a si próprio e ao telefone. — O que foi?

Depois ficou em silêncio durante alguns minutos, concentrando-se e procurando lembrar-se, com o rosto desfigurado encostado no linho macio do travesseiro do hotel. "Atenção", pensou ele, "é aquele homem, é o Kringelein, esse coitado. Precisamos mostrar-lhe o que é a vida. Ele está à minha espera. Já está sentado à mesa, na sala do café, esperando."

— Vamos levantar-nos e nos aprontar? — perguntou a si mesmo. — Vamos sim — respondeu depois de fazer um esforço, porque ainda tinha uma bela dose de morfina nos ossos. Apesar disso, seu rosto e seus movimentos, enquanto se vestia, pareciam exprimir um certo entusiasmo. Alguém esperava por ele. Alguém precisava dele. Alguém lhe demonstrava gratidão. Com um pé de meia na mão, sentado na beira da cama, começou a fazer planos e decidir o que fazer. Fez o programa para o dia, ocupado como um guia de viagens, um mentor, um homem importante e procurado. A camareira que tinha ido buscar no quarto vizinho ao 218 a vassoura e o balde ouviu, admiradíssima, o Dr. Otternschlag cantarolar com voz incerta uma melodia, enquanto ia escovando os dentes.

Entretanto, Kringelein se encontrava na sala de café, ainda exausto, excitado e animado, após sua cansativa vitória sobre o senhor Diretor-Geral Preysing, no barbeiro; há dez minutos tinha travado relações, com extremo prazer, com o Barão von Gaigern, relações distintas, encantadoras. Gaigern tinha agido depressa. Saíra da noite com a Grussinskaia sem as pérolas, e passara diretamente a uma explicação murmurada, mas dura como granito, com o chofer. Logo em seguida — após tomar banho, fazer ginástica e friccionar o corpo com água de alfazema — atirara-se sobre o senhor provinciano do 70, com o qual ele talvez pudesse arranjar de um modo ou de outro os milhares de marcos de que precisava com mais premência. Estava transbordando de impaciência, uma impaciência radiante de felicidade, tensa e ardente. Havia-se separado da Grussinskaia há uma hora apenas, e já sentia uma saudade louca, uma saudade alegre e delicada. Sua cabeça queria estar de novo com ela, sua pele, seus dedos, seus lábios, tudo a desejava novamente, o mais depressa possível. Gaigern sorveu, faminto de vida e de energia, esse sentimento desconhecido como costumava acolher dentro de si as novas experiências. O élan com que ele aguardava a tentativa com Kringelein era enorme. Com uma rapidez que se poderia chamar de tempo recorde, em quinze minutos conseguiu ganhar uma grande dose de confiança. Esmagado, Kringelein abriu sua pequena alma de funcionário, indecisa, ansiosa de vida e preparada para a morte — e o que ele não disse ou não soube exprimir Gaigern adivinhou. Quando Kringelein, às nove horas e catorze minutos, limpou no pequeno guardanapo do hotel o seu esforçado bigode, os dois já eram amigos.

— Imagine, senhor barão — dizia Kringelein —, imagine que eu tenha recebido por acaso algum dinheiro, depois de ter vivido sempre uma vida modestíssima, realmente modestíssima. Uma pessoa como o senhor barão não pode fazer sequer uma ideia de uma vida assim. É o medo da conta do carvão, o senhor compreende? Ou então não se pode ir ao dentista, vai-se deixando de um ano para outro, e de repente perdem-se quase todos os dentes, não se sabe como. Mas não quero falar dessas coisas. Anteontem comi pela primeira vez na vida caviar, ou coisa parecida. Quando o nosso diretor-geral tem reuniões em casa, manda vir caviar de Dresden, aos quilos. Bem, caviar, champanha e todos esses luxos não são a vida, dirá o senhor barão. Mas o que é a vida? Veja, barão, eu não sou mais um homem moço, sou meio doente, e de repente fiquei com receio de não poder aproveitar a vida. Eu não quero deixar passar a vida sem aproveitá-la, o senhor compreende?

— Nunca deixamos de aproveitar a vida! Ela está sempre ao nosso dispor, nós vivemos e é quanto basta. A gente vai vivendo, é isso — disse Gaigern.

Kringelein fitou aquele moço bonito e animado, e talvez suas olheiras, por detrás dos óculos, se tenham ruborizado um pouco.

— Pois é. Naturalmente, para o senhor, a vida está sempre presente, cada minuto que passa. Mas para gente como nós...? — disse ele baixinho.

— É engraçado. O senhor fala da vida como se ela fosse um trem que vai passando, e que o deixa para trás. Há quanto tempo o senhor anda atrás dela? Há três dias? E ainda não conseguiu pegá-la pela cauda, apesar do champanha e do caviar? O que o senhor fez ontem, por exemplo? Museu Kaiser-Friedrich, Potsdam, à noite teatro? Meu Deus do céu! Do que foi que mais gostou? De que quadro? Como? Não reparou... naturalmente. E no teatro... a Grussinskaia? É... a Grussinskaia — repetiu Gaigern, sentindo no coração, ao pronunciar esse nome, um calor repentino, como se fosse um rapazinho tolo. — O que está dizendo? O senhor ficou triste, era tão poético? Pois é, é mais ou menos isso. Mas tudo isso não tem nada que ver com a vida, senhor diretor. — Dizia "senhor diretor" por pura amabilidade, porque não gostou do nome de Kringelein, ridículo e desataviado; e Kringelein corou, feliz e intrujão. — A vida, a vida é... veja: às vezes encontram-se na rua esses caldeirões de piche, fervendo, em ebulição, soltando fumaça, fedendo como a peste a quilômetros de distância. Mas aproxime-se de um caldeirão desses e conserve a cabeça sobre ele, meta o nariz na fumaceira do alcatrão. É uma coisa estupenda, quente, com um cheiro forte e acre, que quase nos derruba no chão, e as gotas grossas e pretas brilham, e há força ali dentro, nada de doçuras nem de coisas insossas. Ah! Caviar! O senhor quer aproveitar a vida, e se eu lhe perguntar que cor têm os bondes de Berlim, o senhor não sabe, porque nunca reparou neles. Aliás, ouça, senhor diretor: com uma gravata como a sua, o senhor nunca poderá tomar o trem da vida; dentro de um terno como o seu ninguém pode se sentir feliz. Digo-lhe isso abertamente, porque não tem sentido nenhum ficar fazendo cumprimentos. Se o senhor confiar um pouco em mim, para apressar as coisas, precisamos primeiro ir ao alfaiate. O senhor está com dinheiro, livro de cheques... não. Faça o favor de arranjar dinheiro, mesmo! Enquanto isso eu vou buscar o meu carro na garagem. O meu chofer está de licença, deixei que o rapaz fosse ver a noiva em Springe; eu mesmo vou guiar.

Kringelein tinha a impressão de que um vento forte lhe batia nos ouvidos. A observação a respeito da sua gravata — comprada por dois marcos e cinquenta — e o seu bonito terno, na verdade, o haviam magoado. Pôs timidamente a mão no colarinho, largo demais.

— Pois é — disse Gaigern —, é muito grande, e vê-se o botão. Assim não pode, naturalmente!

— É que eu pensei... Eu não queria gastar dinheiro em roupa — murmurou Kringelein, vendo bailar vertiginosamente as cifras em seu caderno de notas. — Em outras coisas eu gasto de boa vontade, mas não em roupa.

— E por que não em roupa? Isso é o principal.

— Porque... não vale mais a pena — respondeu Kringelein, baixinho, com as amaldiçoadas lágrimas soltas a queimar-lhe de novo o canto dos olhos. Que maldição! Ele não podia se lembrar do seu fim próximo sem ficar comovido. Gaigern olhou para ele, descontente. — Não vale a pena, realmente... quero dizer... não terei por muito tempo a oportunidade de usar roupas novas. Pensei que... que as velhas ainda fossem servindo — sussurrou com um sentimento de culpa.

"Meu Deus, será que todos os homens têm uma xícara de chá com veronal preparada para tomar?", pensou Gaigern, a quem as carícias dessa noite haviam tornado sensível.

— Não se deve calcular assim — disse ele amavelmente. — Não se deve calcular, Herr Kringelein. Os cálculos nos saem errados. No momento adequado o senhor deve estar com a disposição adequada. Eu sou um homem do momento, e tenho-me dado bem com isso. Vamos, ponha no bolso algumas notas de mil marcos, e depois veremos se a vida não é uma coisa divertida. Avante!

Kringelein se levantou, obediente; tinha a sensação de rodopiar perigosamente dentro do turbilhão de uma cratera. "Algumas notas de mil marcos", pensou ele, como se estivesse atrás de um nevoeiro. Já estava acompanhando Gaigern, enquanto seus pensamentos ainda resistiam, e as paredes da sala de café dançavam à sua volta. Os pés desenraizados de Kringelein, metidos nas botinas de cano alto, iam tropeçando passivamente pelos corredores do hotel; ele sentia medo. Sentia um medo doido de Gaigern, das despesas, do alfaiate caro, tinha medo do automóvel cinza-claro, em que se meteram no assento da frente, perto da direção, tinha medo da vida que, no entanto, não queria deixar de aproveitar. Apertou com energia seus molares estragados, calçou as luvas de tricô, e começou seu dia feliz.

O Dr. Otternschlag, que às dez para as dez andava ao longo das paredes do hall, à procura de Kringelein, recebeu do porteiro uma carta entregue pessoalmente.

Prezado Dr. Otternschlag! — estava escrito. — Infelizmente, por motivos imprevistos, vejo-me impedido de comparecer ao nosso encontro. Saudações respeitosas do amigo At. Obr. Otto Kringelein.

O estilo era de Kringelein, ainda, mas sua ortografia tinha-se modificado um pouco. Na escrita fluente de guarda-livros, haviam-se imiscuído uns traços informes, e os pingos dos ii pareciam querer voar como balões que se desprendem do fio para estourar nos céus, solitários e com um pequenino e trágico estampido que ninguém ouve.

O Dr. Otternschlag ficou com a mão estendida, segurando a carta. O hall era um deserto, cheio de horas infindáveis e vazias. Passou pelo balcão dos jornais, pelas flores, por pessoas que saíam do elevador, pelas colunas, até chegar ao seu lugar habitual. "Horrível", pensou ele. "Terrível. Medonho." As pontas de seus dedos, plúmbeas e cor de fumo, lhe pendiam das mãos, e com o olho cego ele fitava a mulher da limpeza que, em desacordo com os regulamentos, começava a varrer com serragem úmida, em pleno dia, o hall do Grande Hotel.

É intensa a angústia que Kringelein sente, de pé, na sala de provas da enorme alfaiataria para homens. Três elegantes cavalheiros estão ao seu redor, ocupadíssimos, e doze Kringelein deploráveis refletem-se nos espelhos, aproximando-se uns dos outros em ângulos agudos. Um senhor elegante está ao lado, observando Herr Kringelein com as pálpebras meio cerradas, um olhar de conhecedor, e murmurando palavras incompreensíveis. Sentado num banquinho estofado, sob os retratos de artistas de cinema incrivelmente belos, está o Barão Gaigern, batendo as luvas pespontadas na palma da mão, e desviando de Kringelein o olhar, como se se envergonhasse dele.

Começaram a vir à luz coisas lamentáveis, segredos do guarda-livros Otto Kringelein, de Fredersdorf. Seus suspensórios estão rasgados, costurados, rasgados de novo, e finalmente muito mal consertados, com um barbante. O colete, que lhe ficara muito largo, fora ajustado por Anna, que lhe fez nas costas duas pregas costuradas ao enchimento por meio de pespontos.

Kringelein usa as camisas de seu pai, grandes demais para ele, pelo que meteu umas ligas na parte superior dos braços, para arregaçar as mangas compridíssimas. Usa abotoaduras de tempos pré-históricos, redondas, do tamanho de discos de chapa de fogão, tendo no centro uma esfinge de esmalte vermelho diante de uma pirâmide de esmalte azul. A gigantesca camisa é de um tecido grosso de cor indefinível, tendo na frente apenas um pedacinho de zefir listrado, como uma pequena vitrina na fachada principal. Debaixo da camisa de lã espia ainda qualquer outra coisa também de lã, um coletinho já no fio, cerzido com pontos grosseiros. Por baixo disso, um pedacinho de pele de gato, o que parece ser bom contra dores de estômago e calafrios misteriosos. Os cavalheiros elegantes não mudam de expressão — Kringelein teria preferido que fizessem caçoada dele ou o consolassem.

— Nunca me incomodei muito com a moda. Sou um homem antiquado — diz ele em tom implorante, desculpando-se diante da cortesia gelada dos homens. Ninguém lhe responde. Vão lhe tirando as camadas, uma após outra, como de uma cebola. É um tanto cruel o que está sucedendo com Kringelein, completamente indefeso. Pouco a pouco ele vai se sentindo mal, como na sala de operações, pois agora também há uma claridade vítrea nas coisas, e tudo parece estar muito próximo dele. Depois, os três cavalheiros começam a vesti-lo.

Gaigern se anima, e dá conselhos.

— Fique com isso — diz ele; e —, não fique com isso.

Parece que não é possível contrariar as suas decisões. Kringelein olha de lado para os papeluchos com o preço, presos às peças de vestiário, reparando sempre apenas no preço; não ousa fazer perguntas, a princípio, mas por fim se enche de coragem e começa a querer saber os preços.

Assusta-se de tal modo que tem vontade de sair correndo; a sala de provas parece uma cela com quatro guardas severos e paredes de espelho. Kringelein está todo suado, apesar de o terem libertado de seus agasalhos de lã, que estão enrolados num montinho sobre uma cadeira, com um aspecto de ilimitada miséria, repulsivos. De repente, eles deixaram de pertencer a Kringelein; causam-lhe nojo tais peças de vestuário, remendadas, suarentas e de cor indefinível, essa roupa de um pobre-diabo. Mas, de um momento para outro, qualquer coisa se passa com ele. Fica gostando da camisa de seda que o forçaram a vestir.

— Ah! — diz Kringelein, com a cabeça inclinada e a boca aberta, como se fosse ouvir algum segredo. — Ah, ah!

Sua pele se alegra e trava amizade, gostosamente, com a camisa de seda de delicado padrão. O colarinho se ajusta exatamente ao pescoço, não esfrega, não é nem largo nem apertado demais, a gravata nova cai lisa e macia sobre o peito de Kringelein, onde o coração bate agora como em misteriosa festa — forte, um tanto dorido, mas aliviado. Agora colocam diante dele meias e sapatos, com grande solicitude; Gaigern explicou, em poucas palavras, que o senhor diretor está enfermo, e então trazem dos quatro andares da casa de artigos para homens tudo o que um homem distinto precisa para se vestir. Kringelein envergonha-se medonhamente de seus pés; de súbito tem a impressão de que toda a miséria e o aperto da sua vida estão visíveis nesses pés com joanetes crescidos, pelo que procura se esgueirar com as novas meias e botinas para um canto, coloca suas costas curvas entre si mesmo e os outros, como uma parede, e começa, sem nenhuma prática, a lutar com os cordões. Em seguida vestem-lhe um novo terno, escolhido pelo barão.

— O senhor diretor está com uma aparência maravilhosa — diz um daqueles cavalheiros. — Assenta-lhe como se fosse feito sob medida.

— Não é preciso modificar nada — diz o segundo.

— Perfeito. Nós temos poucos fregueses com um corpo tão esbelto — afirma o terceiro.

Empurram Kringelein para a frente do espelho, e o obrigam a girar no seu eixo como se fosse uma boneca de madeira, magra e paciente.


11

 

E, justamente no momento em que Kringelein voltou do espelho para o seu interior, sentiu pela primeira vez, como um pressentimento, que estava vivendo. Sim, tinha a sensação de existir, conhecia-se a si mesmo, com um abalo tão violento como se o atingisse um raio. Nesse momento, um homem estranho, de porte delicado e distinto, aproximou-se dele com expressão confusa, um homem que era ele próprio, de modo extremamente íntimo, o verdadeiro Kringelein, o Kringelein enterrado, de Fredersdorf — mas isso logo passou. No instante seguinte já não era novidade, o milagre da transformação já se dera.

Kringelein respirou profundamente, com energia, porque parecia querer despertar em seu corpo uma dorzinha aguda.

— Acho que este terno me fica bem, não? — perguntou ele, de modo infantil, a Gaigern.

O barão ainda fez mais; aproximou-se e, com suas próprias mãos, grandes e quentes, arrumou o novo terno nos ombros de Kringelein.

— Sou de opinião que este terno é o suficiente — disse Kringelein aos três cavalheiros.

Apalpou o tecido com os dedos, às escondidas, porque entendia bastante de tecidos, isso se sabia em Fredersdorf, mesmo quando só se trabalhava no escritório.

— É um bom tecido; sou conhecedor — afirmou ele, respeitosamente.

— Artigo inglês legítimo. Nós mandamos trazê-lo diretamente de Londres, de Parker Brother & Co. — respondeu o senhor de pálpebras fechadas.

"Preysing não usa tecidos assim", pensou Kringelein. Os ternos de Preysing costumavam ser daquele mesmo tecido sólido de estamenha cinzenta, de que a fábrica ainda possuía um estoque antigo, e todos os anos, pouco antes do Natal, era vendido aos empregados por baixo preço. Kringelein decidiu-se. Tomou posse desse terno, enfiando ambas as mãos nos bolsos novos e limpos.

Seu medo transformou-se repentinamente na felicidade de comprar e de possuir; pela primeira vez na vida Kringelein tem a sensação de vertiginosa leveza que acompanha o ato de gastar dinheiro. Ele passa através dos muros, por trás dos quais ele morou toda a vida. Compra, compra, sem perguntar o preço, vai comprando. Apalpa tecidos, sedas, alisa abas de chapéus, experimenta coletes, gravatas, cintos, coloca uma cor perto de outra e sorve com delícia a combinação harmoniosa de tons.

— O senhor diretor tem um extraordinário bom gosto — diz um dos cavalheiros.

— Um gosto delicado — afirmou o outro —, correto, distintíssimo.

Gaigern assiste a tudo sorrindo, um tanto impaciente, e faz elogios. Caceteado, olha as próprias mãos; a direita está tão vazia, desde que ele deu o anel de sinete de presente... Disfarçadamente, leva-as até o rosto, para ver se ainda conservam um pouco do perfume dessa noite, agridoce, ao mesmo tempo perigo e calma, Neuwjada, a florzinha que cresce nas campinas.

Kringelein compra um terno marrom, muito confortável, de um tecido cardado inglês, uma calça cinza-escura, com delicadas listras claras, que combina com um paletó estreito; compra também um smoking, no qual é preciso mudar apenas alguns botões; roupa de baixo, camisas, colarinhos, meias, gravatas, uma capa igual à de Gaigern, um chapéu macio, espantosamente leve, com a marca dourada de uma firma de Florença, e finalmente, pegando um par de luvas de camurça pespontadas, iguais às de Gaigern, dirige-se à caixa. Ali estão a fazer uma conta amabilíssima — Kringelein fala com rapidez e facilidade, porque ouve o jargão dos livros-caixa, tão seu conhecido, desde o livro-razão ao livro-matriz. Paga mil marcos à vista, e o resto em três prestações.

— Então! — exclamou Gaigern, satisfeito.

Uma fila de dorsos inclinados, numa saudação, acompanha Kringelein, encantado e transformado, até a porta de espelhos da loja. Lá fora faz sol, mas está frio. O ar tem um sabor de vinho gelado, acha Kringelein, de passagem. Até agora ele sempre se arrastou. Agora ele anda. Tem que dar três passos, da entrada da loja de primeira ordem até a limusine cinza-clara, e ergue três vezes, do calçamento da rua, as solas novas dos seus sapatos.

— Está satisfeito? — pergunta Gaigern, rindo-se e dando a deixa. — Está notando alguma coisa? Sente uma sensação agradável?

— Fantástico! Maravilhoso! Ótimo! — replica Kringelein, tomando a expressão de um homem experimentado, sentado ao volante do carro.

Tira os óculos e esfrega com o polegar e o indicador a beirada dos olhos; é um gesto cansado e que lhe é habitual.

Vem-lhe ao pensamento a ideia de que não estará mais vivo, quando vencer a última prestação.

 

Gaigern sentia a impaciência nos dedos, causava-lhe comichão como ácido carbônico, entre as mãos e a direção. Nos cruzamentos das ruas havia lâmpadas vermelhas, verdes e amarelas, guardas que o ameaçavam com a mão, sorridentes. O carro passava em disparada pelas casas, pelas árvores, colunas de cartazes, ajuntamentos de pessoas nas esquinas, pelas carroças de frutas, muros com cartazes e velhas senhoras amedrontadas, que, com passos miúdos, andavam no leito da rua sem observar o sinal de trânsito, velhas senhoras vestidas de preto e de saias compridas, em pleno mês de março. O sol brilhava, úmido e amarelo, no asfalto. Quando um ônibus pesadão impedia o caminho, o carrinho de quatro lugares gritava com duas buzinas; parecia o latido de cães excitados.

Em Fredersdorf havia muita gente que nunca tinha andado de automóvel. Anna, por exemplo, nunca tinha andado de carro. Mas Kringelein estava andando. Apertou os lábios com força, inteiriçou os músculos sob as axilas, e seus olhos ficaram lacrimejantes pelas correntes de ar. Assustava-se nas curvas, e seu coração arfava sob a camisa de seda nova. Era o mesmo prazer medroso da infância, quando na feira anual de Mickenau, no outono, se podia andar de carrossel três vezes seguidas, por um groschon.

Kringelein arregalava os olhos para ver Berlim, que rapidamente se entremostrava sob aspectos deformados. Ainda se recordava bem da grande cidade. A Porta de Brandenburgo, por exemplo, reconheceu-a de longe, assim como a Gedaechtniskirche, à qual dirigiu um olhar respeitoso.

— Para onde estamos indo? — gritou ele ao ouvido direito de Gaigern. O ronco do motor lhe parecia fortíssimo, e ele se sentia no meio de estrondos e de uma tempestade.

— Para os arredores da cidade, a fim de almoçar. Para lá do Avus — respondeu Gaigern com jovialidade.

A rua parecia penetrar dentro do carro, cada vez com mais velocidade. Chegaram às proximidades da torre da emissora. Kringelein já estivera ali no dia anterior, com o Dr. Otternschlag, numa noite nublada, cansado, impossibilitado de receber novas impressões. Os estranhos átrios, lisos, novos e por terminar, na parte exterior, o haviam acompanhado nos sonhos e, agora, a realidade e o sonho se apresentavam em duas camadas sobrepostas, um tanto ameaçadoras e incompreensíveis.

— Ainda vão terminar isso? — gritou Kringelein apontando para os átrios da exposição.

— Já está pronto — foi a resposta.

Kringelein admirou-se. Era tudo nu como uma fábrica, mas não feia, como a de Fredersdorf.

— Que cidade engraçada — exclamou ele, sacudindo a cabeça e ficando ainda mais vesgo.

Levou um choque com um solavanco do carro, e a pele do seu crânio se encolheu, mas foi coisa sem importância. É que Gaigern havia parado na porta norte do Avus, e em seguida continuaram de novo a viagem.

— Agora nós vamos mesmo — afirmou Gaigern; e, antes que Kringelein pudesse perceber do que se tratava, ele partiu.

Começou com uma corrente de ar que foi esfriando lentamente, e que batia contra o rosto de Kringelein cada vez com mais força, como bofetadas. O carro começou a cantar com um som grave que se foi elevando, e ao mesmo tempo aconteceu uma coisa pavorosa com as pernas de Kringelein. Ele tinha a sensação de que elas se enchiam de ar, cujas bolhas lhe subiam aos joelhos, que pareciam querer estourar. Por vários segundos incríveis ele não podia respirar mais, e durante um instante pensou que iria morrer.

— Isto é a morte. Vou morrer.

Com o peito comprimido, aspirava o ar com dificuldade; o carro deslizava por coisas irreconhecíveis, vermelhas, verdes, azuis; árvores que se atiravam de encontro aos seus óculos; depois, um ponto vermelho se transformou em um automóvel e, logo a seguir, caiu no vazio, por trás do seu carro — e Kringelein continuava sem conseguir respirar. Seu diafragma conhecia agora novas sensações, nunca antes imaginadas. Kringelein tentou virar o rosto em direção a Gaigern, e, vejam só, conseguiu virá-lo sem se machucar. Gaigern estava meio inclinado sobre a direção, e tinha calçado as luvas de camurça, mas sem abotoá-las; por qualquer motivo, isso dava a sensação de calma e ausência de perigo. Justamente quando o pedacinho de estômago que restava a Kringelein queria começar a subir à garganta, Gaigern se pôs a rir com os lábios fechados. Apontou com o queixo, sem tirar os olhos do fuso sibilante da estrada do Avus, para um lugar qualquer, e Kringelein lançou um olhar obediente. Como não era tolo, compreendeu, após refletir um pouco, que havia sido o marcador dos quilômetros, diante dele. O ponteirinho vibrava de leve, mostrando o número 110. "Que diabo!", pensou Kringelein. Engoliu seu amedrontado pomo-de-adão e inclinou-se para a frente, entregando-se ao impulso da velocidade. Súbito tomou posse dele o prazer da sensação de perigo, um prazer penetrante e assustador. Mais depressa! pedia dentro dele um novo Kringelein, desconhecido e delirante. O carro concordou: 115. Durante alguns segundos parou nos 118, e Kringelein desistiu, de uma vez, de respirar. Tinha vontade de se precipitar, sibilando, nas trevas. "Avante, para a frente, explosão, choque, ponto final da corrida desenfreada!", era o pensamento que lhe ocorria. "Nada de leito de hospital," pensou; "é preferível uma fratura no crânio." À passagem do carro, em disparada, ainda continuavam a bramir os anúncios; as distâncias entre eles foram aumentando; depois, os trapos cinzentos ao lado da estrada se transformaram em bosques de pinheiros. Kringelein via árvores que se iam aproximando e em seguida se desviavam do carro. Era como no carrossel de Mickenau pouco antes de parar. Nas tabuletas de anúncios ele lia agora nomes de marcas de óleos, de pneus e de automóveis; a correnteza de ar tornou-se mais branda, e deslizava por sua garganta adentro. O ponteiro caiu para 60, a agulha oscilou um instante ainda, entre 50 e 45, e eles deixaram o Avus pela porta sul, desfilando burguesmente por entre as villas do Wannsee.

— Puxa, agora me sinto mais leve! — disse Gaigern, abrindo o rosto num sorriso. Kringelein tirou as mãos das almofadas de couro em que se agarrara até então, e foi relaxando com todo o cuidado os músculos contraídos das mandíbulas, dos ombros e dos joelhos. Sentia-se completamente exausto e absolutamente feliz.

— Eu também — respondeu ele, e estava dizendo a verdade.

Falou muito pouco enquanto estiveram sentados no terraço envidraçado, completamente vazio, de um restaurante à margem do Wannsee, olhando os barcos a vela cobertos com lonas, balançando à tona da água. Precisava refletir sobre a sensação que experimentara, o que não era assim tão fácil. "O que é a velocidade?", pensou. "Não a vemos nem tocamos, e isso de medi-la deve ser uma impostura. Como é possível que ela vá passando, e seja mais linda do que a música?" Ainda sentia tudo girando, mas era uma sensação agradável. Tinha trazido o frasquinho de Bálsamo de Vida do Dr. Hundt, mas não tomou o remédio.

— Preciso agradecer-lhe este passeio maravilhoso — disse ele, procurando com ar solene expressões escolhidas, de acordo com os ambientes em que estava vivendo agora.

Gaigern, que só comia alimentos baratos, espinafre com ovos, sacudiu a cabeça: — Eu me divirto com essas coisas — disse ele. — O senhor sente isso pela primeira vez. É raríssimo encontrarmos pessoas que tenham uma sensação pela primeira vez...

— Mas o senhor também não dá a impressão de ser um homem blasé, se me permite esta observação — replicou Kringelein com desembaraço.

Já se sentia à vontade em suas novas roupas, já estava em casa dentro da sua camisa de seda; sentava-se de outra maneira, comia de outra maneira, e suas mãos, que lhe pareciam mais delgadas, avançando pelos punhos da camisa, com as unhas feitas por uma bonita manicura, no subterrâneo do hotel, lhe davam enorme prazer.

— Meu Deus do céu, eu, blasé? — exclamou Gaigern, satisfeito. — Não. De modo nenhum. Mas é que gente como eu tem uma vida cheia. — Não pôde deixar de sorrir. "O senhor tem razão. Para gente como eu também existem coisas inteiramente novas, que se experimentam pela primeira vez, coisas engraçadas...", acrescentou consigo mesmo.

Bateu de leve seus bonitos dentes uns nos outros, pensando na Grussinskaia. Seus ossos estavam cheios de ávida impaciência. O tempo que tinha de esperar para que pudesse ter de novo em seus braços a figurinha delicada, tão necessitada de amparo, e ouvir novamente seu gorjeio tristonho de passarinho, parecia-lhe uma extensão imensurável e deserta. Deu um prazo de três dias a si próprio, sapateando, interiormente, de impaciência, para arranjar de qualquer modo alguns milhares de marcos que acalmariam seus companheiros e lhe facultariam a viagem a Viena. Por enquanto, empenhava-se, com a maior amabilidade, em agradar Kringelein, com a esperança em qualquer solução favorável.

— E agora, qual é a continuação do programa? — perguntou Kringelein, dirigindo para ele uns olhos fiéis e agradecidos. Gaigern simpatizava com esse provinciano calmo, sentado diante dele como uma criança durante a distribuição dos presentes de Natal. A amabilidade e a simpatia humanas estavam de tal modo enraizadas na personalidade de Gaigern, que suas vítimas recebiam sempre uma boa parte do seu calor.

— Agora vamos voar — disse ele, com o tom acalentador de uma ama de leite. — É muito agradável e não tem o menor perigo, é muito menos perigoso do que uma corrida desenfreada de automóvel.

— Corremos perigo, há pouco? — - perguntou Kringelein, admirado.

O medo que sentira parecia-lhe agora quase um prazer, depois de vencido.

— Sem dúvida — afirmou Gaigern. — Cento e dezoito quilômetros não é brincadeira, e a estrada estava úmida... Parece incrível que, com um tempo destes, ela fique tão escorregadia. Não há dúvida de que o carro corre sempre o risco de derrapar. A conta — disse, voltando-se com cortesia para o garçom, e pagando seu espinafre com ovos. Sobravam-lhe na carteira apenas vinte e quatro marcos.

Kringelein também pagou; havia tomado apenas umas colheradas, de sopa, porque não confiava ao seu estômago coisas excitantes e indigestas. Quando meteu no bolso a carteira que trouxera ainda de Fredersdorf, teve a visão fugaz e agora pouco importante do seu caderno de despesas, com capa de oleado. Até esse dia havia anotado suas despesas, Pfennig por Pfennig, desde os nove anos de idade, em caderninhos assim. Agora acabou-se. Nunca mais faria isso de novo. Mil marcos numa tarde não era possível anotar. Uma parte da ordem do mundo concebida por Kringelein tinha se destruído, numa derrocada silenciosa e sem estardalhaço. Kringelein, que Gaigern foi seguindo pelo terraço vazio do restaurante até o carro, movia os ombros com delícia, sob o novo sobretudo, o novo terno e a nova camisa. Agora, por onde quer que ele passasse, havia indivíduos que se inclinavam. "Bom dia, senhor diretor-geral", pensou ele, vendo-se colado a uma parede, a parede caiada de verde-cinza do segundo andar dos escritórios de Fredersdorf. Guardou no bolso os óculos ao sentar ao lado de Gaigern, expondo os olhos nus à fresca e cintilante atmosfera de março, e com um vivo sentimento de simpatia e de confiante gratidão ouviu o ruído do motor.

— A Chaussee ou o Avus de novo? — perguntou Gaigern.

— O Avus, de novo — respondeu Kringelein. — E na mesma velocidade — acrescentou em voz baixa.

— Ah!... O senhor tem coragem — disse Gaigern, pondo o pé no acelerador.

— É... coragem eu tenho — respondeu Kringelein, com os músculos tensos e o corpo inclinado para a frente, de lábios entreabertos, preparado para entregar-se inteiramente à vida.

 

Kringelein, debruçado na grade branca e vermelha do aeroporto, procura habituar-se a esse mundo assombroso que, desde a manhã desse dia, vem ao encontro dele. Ontem — há um século — ele subia no elevador, para ir ao restaurante da torre da emissora, fatigado, sonolento, imerso em sonhos; não estava se divertindo, e os comentários pessimistas do Dr. Otternschlag ainda tornavam tudo mais problemático e fantasmagórico. Anteontem — há mil anos — ele era um auxiliar de guarda-livros no escritório de contabilidade da Algodoeira Saxônia S.A., de Fredersdorf, um empregadinho enfezado, entre trezentos outros empregadinhos enfezados, de terno de sarja cinzenta e com um ordenado minguado, do qual era preciso tirar ainda o desconto para a Caixa de Previdência. Hoje, agora, ele está à espera do piloto que, por um alto preço, vai levá-lo em um enorme voo circular, em viagem especial. É um desses pensamentos impossíveis de serem levados até as últimas consequências, apesar de Kringelein se sentir animado e concentrado como nunca.

É uma enorme mentira, a sua coragem. Tem um medo de cão, um medo horrível do divertimento que o espera. Ele não quer voar, não quer voar de modo algum. Tem desejos de voltar para casa — não, para Fredersdorf não, mas para o hotel, para o seu quarto 70, com os móveis de mogno e a colcha de seda; gostaria de estar deitado e não precisar voar.

Quando Kringelein saiu de casa para ir à procura da vida, pairava diante dele uma ideia nebulosa e informe; mas era uma coisa acolchoada e fofa, com pregueados e franjas, e arabescos enormes; leitos macios, pratos cheios, mulheres sensuais, em quadros e reais. Agora, que está experimentando a vida, e que, aparentemente, mergulhou em cheio nela, tudo se apresenta sob um aspecto diferente; é preciso satisfazer a uma série de exigências, a ventania corta-lhe as orelhas, e é preciso forçar paredões de angústias e de perigo para conseguir chegar a uma doce e embriagante gota de gozo da vida. "Voar", pensa Kringelein. Ele conhece a sensação do voo que se tem em sonhos. Seu sonho se apresenta assim: Kringelein se encontra no tablado da sala de Zickenmeyer; ao seu redor está o coral da associação, e ele canta um solo. Ouve sua bonita voz de tenor, canta notas agudas, cada vez mais agudas, cada vez mais. É facílimo, ele não precisa fazer nenhum esforço, é um prazer puro, fácil e naturalíssimo.

Finalmente, ele se deita no som mais agudo e suave, e voa sobre ele, acompanhado pela música das nuvens. A Associação Coral o acompanha com o olhar; primeiro, ele sobrevoa ainda abaixo do telhado local de Zickenmeyer, depois voa completamente só, à sua volta não se vê mais nada, e só bem no finzinho ele percebe que tudo não passou de um sonho, e que precisa voltar ao seu leito matrimonial, onde Anna dorme o sono deletério dos seus quarenta anos maltratados e rixentos. A queda é medonha, e o despertar é um grito na escuridão do quarto abafado, com as pequeninas vidraças, os armários cheirando a naftalina e o pequeno fogareiro de ferro, apagado, com uma panela cheia de água em cima.

Kringelein põe-se a piscar. "Voar", pensa ele retornando ao Aeroporto de Tempelhof. Ali também há cores fortes, como na torre da emissora e ao longo do Avus; amarelo, azul, vermelho e verde, em tons bem vivos. Torres misteriosas erguem-se no ar, tudo é simples e econômico, um vento cheio de poeira sopra sobre as manchas de asfalto do outro lado da grade, e as sombras das nuvens se apressam, para atingir a pista de decolagem. O pequeno aparelho que vai decolar já está pronto, três homens estão atarefados em torno dele; o motor ronca, sua hélice gira apenas por brincadeira. Diante de suas rodas baixas há uns blocos, suas asas prateadas, com estrias, estão vibrando. Outros pássaros pousam, saudados pelos gritos roucos de uma sereia — é assim que a fábrica de Fredersdorf chama, às sete horas da manhã — ou talvez tudo isso tenha sido apenas um sonho?... Outros pássaros se elevam, baixam pesados à terra, e erguem-se, muito leves, ao ar, ora cor de chumbo prateado, ora dourados, com firmes asas de madeira, e outros ainda, brancos, enormes, com quatro asas, e três hélices girando. O campo de pouso é tão grande, tão estranhamente silencioso... Os homens que estão ali são todos esbeltos, queimados de sol, alegres e calados, envolvidos em seus ternos folgados e seus barretes justos. Só os aparelhos têm voz, e latem com um latido rouco, como cães enormes, quando vão rodando sobre o campo.

Gaigern aproxima-se com o piloto, um senhor amável, com as pernas em O de antigo oficial de cavalaria.

Gaigern parece um cliente habitual, todos o cumprimentam e o conhecem.

— Vai partir logo — anuncia Gaigern. Kringelein, que já sabe por experiência própria o que significa o "partir" de Gaigern, leva um susto. "Socorro", pensa ele, "socorro, não quero voar!", mas não o diz, de forma alguma.

— Já vamos decolar? — perguntou com ar de homem experimentado, orgulhando-se da palavra que está usando pela primeira vez na vida.

Depois, Otto Kringelein senta-se, amarrado pela cintura com uma correia, em uma cômoda cadeira de couro, e arregala os olhos para o céu azul-cinza de março. Ao seu lado está Gaigern, assobiando baixinho, e isso o consola, nesse momento de debilidade total.

No começo, não é diferente de uma viagem de automóvel, aos solavancos; depois, o aparelho começa a fazer um ruído, rápido, infernal. De repente bate no solo com um solavanco, para trás, e eleva-se no ar. Não paira no espaço, tem mais dificuldades do que o tenor Kringelein, a cantar e a voar no seu sonho; o aparelho salta por impulsos no ar, como sobre degraus de vácuo; salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai. Agora a sensação desagradável não é nas pernas, como na viagem a cento e vinte quilômetros por hora, mas na cabeça. Os ossos do crânio de Kringelein zumbem, tornam-se muito delgados, completamente vítreos, de modo que ele precisa fechar os olhos por um momento.

— Está enjoado? — pergunta Gaigern gritando em seu ouvido, pensando se seria possível, ali no avião, conseguir que Herr Kringelein lhe desse cinco mil marcos, ou mesmo três mil, ou que seja tudo pelo amor de Deus, cento e cinquenta que fossem, que já dariam para pagar a conta do hotel e a viagem até Viena. — Está se sentindo mal? Acha que basta de voar? — pergunta ele com muita cortesia.

Kringelein faz um violento e corajoso esforço para dominar-se, e responde um animado "não". Abre os olhos, a cabeça zune, vítrea; prende-os primeiro ao chão do avião, como a um ponto firme, depois vai subindo, até chegar à vidracinha oval da parede fronteiriça. Lá estão de novo os números e as agulhas trêmulas. O piloto vira o rosto de traços fortes para trás, e sorri para Herr Kringelein como para um bom amigo e camarada. Kringelein recebe esse olhar como um tônico e uma honra.

— Trezentos metros de altitude, cento e oitenta de velocidade! — grita Gaigern ao seu ouvido, que zune e crepita.

De repente, tudo se torna macio, leve e liso. O aparelho não se eleva mais, vai cantando com a voz metálica dos seus motores, fazendo uma curva, deslizando como um pássaro sobre a cidade, agora pequenina. Kringelein cria coragem e olha para fora.

Primeiro vê as asas estriadas, expostas ao sol, que parecem ter criado vida, e, bem embaixo, Berlim, dividida em quadradinhos, cúpulas verdes, uma ridícula estação, em meio à exposição de brinquedos. Uma manchinha verde é o jardim zoológico, uma manchinha cor de chumbo, com quatro pontinhos brancos de velas, é o Wannsee. Os limites do pequenino mundo ficam bem longe, o terreno vai subindo em suaves elevações, há também montanhas, florestas, terras lavradas pardacentas, Kringelein abre num sorriso infantil os lábios comprimidos. Está voando. Conseguiu suportar o voo. Sente-se muito bem, e tem uma sensação diferente de si próprio, enérgica e nova. Pela terceira vez lhe acontece, nesse dia, perder o medo, e ver esse medo transformar-se em prazer.

Toca de leve no ombro de Gaigern, e em resposta ao seu olhar inquiridor diz qualquer coisa que o ruído dos motores devora.

— Não é tão mau assim — respondeu Kringelein. — Não é preciso ter medo, não é nada mau.

Com essas palavras, Kringelein refere-se não só à conta elevada do alfaiate, à viagem ao longo do Avus e ao voo — mas a tudo isso junto, e mais alguma coisa; é que ele vai morrer em breve e, com a morte, afastar-se desse pequeno mundo, abandonar o grande medo, elevar-se, se for possível, acima dos aviões.

 

As ruas por trás do campo de Tempelhof, quando eles vieram de volta, falaram ao coração do novo Kringelein. Assemelhavam-se às melancólicas ruas de Fredersdorf, com as chaminés crescendo por trás dos caminhos, e ele alargou as narinas para sentir o cheiro de cola da seção de imprensagem dos tecidos. Com vivacidade duplicada, ele sentia, ao avistar essas pobres ruas, que usava um sobretudo novo, e se encontrava num automóvel. Procurou palavras que exprimissem esse duplo sentimento, mas não encontrou. Somente na porta do hangar ele se animou de novo — tiveram de esperar meio minuto —, o vôo ainda lhe pesava nos membros como uma silenciosa mas forte embriaguez, e, ansioso e amável, perguntou:

— Quais são agora os planos do senhor barão?

— Agora preciso cuidar de negócios particulares, no hotel. Tenho um encontro às cinco horas. Venha comigo, vou dançar um pouquinho — acrescentou ao perceber nos olhos de Kringelein uma expressão de desânimo e de real aflição.

— Muitíssimo obrigado. Acompanho-o de bom grado. Gosto de ver os outros dançar. Infelizmente não sei dançar.

— Ora, qual! Qualquer pessoa sabe dançar! Kringelein foi pensando nisso até chegarem à Friedrichstrasse.

— E depois? Que se poderia fazer depois? — perguntou insistente, na sua insaciabilidade.

Gaigern não deu resposta, mas acelerou a marcha até o próximo solavanco, quando travou o freio diante da lâmpada vermelha da Leipzigstrasse.

— Diga uma coisa, senhor diretor — perguntou ele, durante a parada do carro. — O senhor é casado ou não?

Kringelein ficou a refletir por tanto tempo que, enquanto isso, as lâmpadas amarela e verde se acenderam, e já estavam de novo a caminho, quando ele respondeu:

— Fui casado. Já fui casado, senhor barão. Separei-me de minha mulher. Pois é. Conquistei a liberdade, se posso falar assim. Há casamentos, senhor barão, em que cada cônjuge é um peso para o outro, um chega a enojar-se do outro, não pode ver a cara do outro sem se enfurecer. Não podemos ver o pente com os fios de cabelo da mulher, de manhã cedo, sem que isso nos estrague o dia; isso não é justo, é claro, ela não tem culpa de que seus cabelos caiam... Ou quando se quer ler um pouco à noite, a mulher se põe a falar sem parar, e quando não fala, canta na cozinha. E se a gente gosta de música, essa gritaria nos deixa doente. E toda noite, quando a gente está cansado, e quer ler, ouve-se a mesma cantilena: "Vá cortar lenha para amanhã cedo". Custa apenas oito Pfennige a mais cada feixe de lenha picado, o que faz dois Pfennige por dia, mas isso não é possível, de modo nenhum. "Você é um gastador", diz a mulher, "se a gente fosse pela sua cabeça, acabaria esticando as canelas." E olhe que o sogro tem um armazém que a mulher vai herdar, de modo que ela está com o futuro garantido. Então achei melhor conquistar minha liberdade. Minha mulher nunca combinou comigo, essa é a verdade, porque eu sempre gostei das coisas boas, e isso ela nunca me pôde perdoar. Quando meu amigo Kampmann me deu de presente cinco velhas coleções da revista Kosmos, minha mulher vendeu-as como papel velho; recebeu por elas catorze Pfennige. É este o retrato acabado dessa mulher, senhor barão. Agora eu me separei dela. Não faz muita diferença, umas semanas a mais ou a menos, já que ela tem mesmo que se arranjar sem mim. Então ela poderá ir de novo às lojas, vender aos empregados solteiros arenques enrolados e salsichas para o jantar. Foi assim que eu a conheci. Talvez ainda encontre outro trouxa. Quando me casei com ela, eu era completamente idiota, não fazia nenhuma ideia da vida, nenhuma ideia do que é uma mulher. Desde que cheguei a Berlim, e estou vendo tantas senhoras lindas, elegantes e amáveis, é que meus olhos estão se abrindo. Mas para essas coisas já é tarde demais.

 

Tal confissão, que partiu do fundo do coração de Kringelein, durou desde a Leipzigstrasse até a Unter den Linden.

— O dia inteiro não é noite — replicou Gaigern, meio distraído, porque estava atravessando um trecho difícil do caminho, na Porta de Brandenburgo, e diante dele seguia um chofer que não sabia dirigir. A atmosfera de uma cozinha minúscula e miserável, que se evolava das palavras de Kringelein, o sufocava, tirando-lhe o entusiasmo com que ele estivera prestes a pedir emprestados três mil marcos.

Esse Kringelein de camisa de seda, que andava de automóvel, teria também de boa vontade retirado parte daquilo que revelara com as suas palavras.

— Então nós vamos dançar — disse ele com desembaraço, para disfarçar. — Ficarei gratíssimo, se o senhor barão me tomar sob sua proteção. E que se poderia fazer à noite?

Kringelein tinha a esperança oculta de receber uma resposta que correspondesse a desejos irrealizados dentro de si, alguma coisa semelhante a certos quadros de museus, porém mais palpável, o que, nos jornais que ele lia, denominavam orgia. Tinha o pressentimento de que homens distintos da cidade guardavam a chave e a entrada de coisas assim. No dia anterior o Dr. Otternschlag havia acedido ao seu vago desejo de feminilidade, levando-o ao bailei da Grussinskaia. Pois é. Isso — julgava Kringelein — tinha sido errado; o ballet era lindo, mas poético, comovente, e demasiado maravilhoso; ficava-se cansado, com sono, sentimental, e finalmente sentia-se dor de estômago. Mas hoje...

— A melhor coisa que o senhor poderá fazer hoje é ir comigo à grande luta de boxe no Sporthalle — disse Gaigern. — Vamos ver se o porteiro ainda tem entradas.

— Não me interesso muito por boxe — respondeu Kringelein, com o orgulho do leitor do Kosmos.

— Não se interessa? O senhor já assistiu a alguma luta? Então! Pois vá, que há de se interessar — garantiu Gaigern peremptoriamente.

— O senhor também vai, senhor barão? — perguntou Kringelein, afobado. Sentia-se muito bem disposto, depois da viagem de automóvel e do voo, animado e enérgico, preparado para o que desse e viesse, mas tinha a impressão de que despencaria como uma arvorezinha de borracha no instante em que o barão o abandonasse.

— Tenho uma vontade louca de ir também — replicou Gaigern. — Mas infelizmente não posso. Não tenho dinheiro.

Nesse ínterim haviam se afastado das ramagens floridas do jardim zoológico, e a fachada do hotel já aparecia, lá embaixo. Gaigern deixou a velocidade cair para doze quilômetros, a fim de dar tempo a que Herr Kringelein se manifestasse. Kringelein ficou a remoer a observação sorridente de Gaigern. Pararam defronte ao portão 5, subiram, e ele não conseguira se livrar daquilo.

— Vou levar o carro à garagem! — exclamou Gaigern, depois que fez Kringelein descer do carro, com as pernas um tanto rijas e adormecidas; por fim desapareceu na esquina.

Kringelein meteu-se, pensativo, na porta giratória, cujo mecanismo já não o deixava mais estupefato. "Não tem dinheiro", pensou ele. "Está sem dinheiro. É preciso fazer alguma coisa."

Rohna, o porteiro, os boys, e até o maneta do elevador, notaram a transformação que ele sofrerá, mas, discretamente, não o deram a perceber. O hall, de onde se evolava um aroma de mokka, estava repleto de pessoas que conversavam. O relógio marcava quatro horas e cinquenta minutos. O Dr. Otternschlag estava sentado em sua habitual cadeira maple, tendo ao lado, no solo, uma pilha de jornais. Fitou Kringelein com uma expressão indefinível de ironia e tristeza. Kringelein, não muito seguro de si, aproximou-se dele e estendeu-lhe a mão.

— O novo Adão — observou Otternschlag sem lhe estender a sua, que estava fria e úmida, o que o tornava tímido. — A borboleta saiu do casulo. E por onde esteve voando, se me permite perguntar-lhe?

— Fiz umas compras. Fui passear de automóvel pelo Avus, almocei no Wannsee. Depois fiz um voo de avião — respondeu Kringelein. Seu tom de voz, ao falar com Otternschlag, mudara um pouco, sem que ele próprio o percebesse.

— Magnífico — disse Otternschlag. — E agora?

— Às cinco tenho um encontro. Vou dançar. — Ah! e depois?

— Depois, estou com vontade de ir a uma grande luta de boxe, no Sporthalle.

— Ah, é? — retorquiu Otternschlag. Disse apenas isso. Pôs o jornal diante dos olhos e começou a ler, ofendido. Na China houvera tremores de terra, mas a bagatela de quarenta mil mortos não bastava para fazer desaparecer o aborrecimento de Otternschlag.

Quando Gaigern chegou ao segundo andar para trocar de roupa, encontrou Kringelein diante da porta de seu quarto, à sua espera.

— Então? — perguntou impaciente. Pouco a pouco lhe atacava os nervos estar preso a esse homenzinho exótico.

— O senhor barão estava caçoando de mim ou é verdade que está em dificuldades financeiras? — perguntou Kringelein, repentinamente. Foi uma das frases mais difíceis que jamais pronunciou, e apesar de a ter preparado de antemão, disse-a gaguejando.

— É a absoluta verdade, senhor diretor. Estou arrasado, com um azar dos diabos, só tenho no bolso vinte e dois marcos e trinta Pfennige, e amanhã sou obrigado a enforcar-me no jardim zoológico — disse Gaigern, abrindo o rosto bonito em um largo sorriso. — Mas o pior de tudo é que preciso estar em Viena dentro de três dias; apaixonei-me por uma mulher, sabe, de um modo incrível, uma paixão fulminante, e tenho que acompanhá-la por onde ela andar. E estou numa pendura completa. Se pelo menos alguém me emprestasse algum dinheiro que desse para eu arriscar hoje no jogo...

— Também estou com vontade de jogar — observou Kringelein, pressuroso, com verdadeiro entusiasmo. Sentiu de novo a sensação dos cento e vinte quilômetros por hora, do voo do avião, e disparou, zunindo, pelo espaço infindável.

— Tiens! Eu vou buscá-lo no Sporthalle, e vamos a um clube elegante. O senhor arrisca mil marcos e eu vinte e dois! — exclamou Gaigern. Dizendo isto, fechou a porta do seu quarto e deixou Kringelein sozinho, do lado de fora. Por enquanto estava farto dele. Atirou-se, vestido, para cima da cama, e fechou os olhos. Foi tomado de um sentimento de desânimo e enfado. Procurou recordar-se da menina do cachinho louro na testa, com quem tinha marcado um encontro às cinco horas, no pavilhão amarelo, mas não o conseguiu. Apresentava-se sempre uma outra recordação, o abajur da Grussinskaia, a grade do balcão, uma nesga do Avus, uma nesga do campo de aviação, o suspensório rasgado de Herr Kringelein. "Dormi pouco hoje à noite", pensou ele, acalorado, contente e com os nervos frouxos. Caiu num sono de três minutos, num saco de trevas e de restauração, como aprendera a fazer na guerra. Uma camareira bateu à porta, despertando-o; era uma carta de Kringelein.

 

Prezado senhor barão!, escrevia Kringelein. Permitiria que o abaixo-assinado o considerasse hoje à noite seu convidado, e ao mesmo tempo me faria a fineza de aceitar o insignificante empréstimo que junto a esta? Peço-lhe apenas que me mande um recibo. Seria uma honra para mim poder ser-lhe útil, e, no meu caso, o dinheiro já nada significa. Cumprimentos respeitosos do seu

Amgo. Crdo. Obr.

Otto Kringelein Anexo: uma entrada

duzentos marcos.


12

 

O envelope com o endereço do hotel continha um bilhete alaranjado para a luta de boxe no Sportpalast, e duas cédulas amarrotadas de cem marcos, numeradas a tinta num dos cantos. Na assinatura de Kringelein faltavam os pingos nos ii. Ele os perdera definitivamente no turbilhão insano que o arrastara nesse dia memorável.

Preysing, com os ossos ocos e vazios, ficou no hall depois de terminada a conferência, depois de assinado o contrato prévio, e da despedida do Dr. Zinnowitz, desejando-lhe felicidade e sorte. A sensação de uma grande vitória, a consciência de haver passado um blefe nos cavalheiros da Chemnitz, a tensão nervosa de discursar e de vencer sob uma base insegura, tudo isso era completamente novo para o diretor-geral, e o transportou a um estranho estado de atordoamento, nada desagradável. Olhou para o relógio do hotel — já passava das três horas —, encaminhou-se mecanicamente para a cabina telefônica, a fim de pedir uma ligação com a fábrica, e depois demorou-se bastante no banheiro dos homens, deixando escorrer água quente pelas mãos, enquanto se olhava no espelho com um sorriso idiota. Passou por último à sala de refeições, que estava quase vazia, e escolheu o menu sem prestar atenção; durante os dois minutos de espera até chegar o consommé, impacientou-se e pôs-se a fumar um charuto, que lhe pareceu delicioso, acima de qualquer crítica. Enquanto observava a lista dos vinhos, trauteou uma melodia, e sentiu desejos bem definidos de beber vinho doce, que aquecesse a língua; encontrou um Wachencheimer Mandelgarten 1921, que lhe pareceu prometedor. Pouco depois surpreendeu-se a sorver ruidosamente a sopa; quando ficava distraído, acontecia-lhe, por vezes, praticar algum mau costume do começo da sua vida. Sentia que estava numa situação feliz, mas de imprevisíveis consequências. O embuste — ele próprio usava essa expressão forte, que o transportava estranhamente a uma nova espécie de sensação de orgulho — que ele usara durante a conversação só poderia valer, no melhor dos casos, por três dias. Nesses três dias era preciso acontecer alguma coisa, se não quisesse sofrer as consequências de uma catástrofe. A assinatura do contrato prévio poderia ser retirada dentro de catorze dias. Preysing, que vertera depressa demais, pela goela seca, os dois primeiros copos do vinho frio e excitante, adoçado pelo sol, ficou meio tonto, e, em meio à sua tontura, viu a chaminé principal da fábrica explodir, separando-se em três pedaços. Isso não tinha importância, era uma reminiscência de um sonho que Preysing, a intervalos regulares, costumava ter. Estava comendo o peixe, quando um groom gritou "Chamada interurbana para Herr Preysing!" por entre o burburinho da discreta sala de refeições. Preysing ainda engoliu rapidamente um gole de vinho e dirigiu-se à cabina telefônica 4. Esqueceu-se de acender a luz, e na escuridão postou-se diante do fone com a sua mais férrea expressão de diretor da fábrica, famosa em Fredersdorf. Por entre o assobio agudo de um pequeno desarranjo na linha, anunciou-se Fredersdorf.

— Com Herr Broesemann — disse o diretor-geral, com a voz inexpressiva que usava no desempenho de suas funções. Demorou meio minuto até que encontrassem o gerente. Preysing considerou uma ofensa essa demora, e bateu com o salto do sapato no assoalho.

— Puxa... finalmente! — exclamou ele, quando Broesemann atendeu.

Adivinhavam-se, através do telefone, as curvaturas de Broesemann, e Preysing as recebeu como um merecido tributo.

— O que há de novo, Broesemann, além do telegrama inútil de ontem? Não... ao telefone não, sobre isso falaremos depois. Por enquanto eu me esforço por considerar esse assunto como inexistente, compreendeu? Ouça, Broesemann, agora eu quero falar com o velho. Está dormindo? Sinto muito, é preciso acordá-lo. Não, sinto muito. É, sim, imediatamente. Até logo, Broesemann. Não, as outras ordens o senhor as receberá por escrito. Estou esperando.

Preysing ficou à espera. Arranhou a tábua da estante do telefone com as unhas, tomou a caneta-tinteiro e pôs-se a tamborilar com ela na parede, pigarreou, e seu coração disparou triunfalmente, com batidas claras e definidas. O bocal do telefone, diante de sua boca, cheirava a desinfetante e, ao passar a mão por ele na escuridão, sentiu que a beirada estava lascada. Então o velho falou, lá de Fredersdorf.

— Alô, bom dia, papai, desculpe incomodá-lo. A conferência durou até agora, pensei que o senhor se interessaria em saber logo do resultado. Trata-se do seguinte: o contrato prévio está assinado... não, assinado, assinado ... — disse ele gritando, porque o velho tinha o teimoso costume de fingir-se mais surdo do que era realmente.

— Difícil, o senhor acha? Ora, mais ou menos. Obrigado, obrigado, não preciso de aplausos. Ouça, papai: preciso viajar imediatamente para Manchester; é, é absolutamente necessário, absolutamente. Vou para Manchester, bom, bom, eu lhe escrevo a esse respeito com mais pormenores. Como? O senhor está satisfeito? Eu também. Sim, senhorita, terminei. Até logo.

Preysing continuou na cabina escura, e só então se lembrou de apertar o botão da lampadazinha. "Mas, que história é essa?", pensou, espantado. "Como é que vou viajar para Manchester? Como foi que essa ideia me ocorreu? É isso mesmo... vou para Manchester. Aqui eu aguentei firme, lá também vou aguentar. É muito simples. Muito simples", pensou ele, sentindo-se novamente mais seguro de si, e enfunando-se como um balão. Um êxito casual, insignificante e incerto, transformara um homem hesitante, de terno de sarja cinzenta, em um sujeito empreendedor e aventureiro, de princípios vacilantes e dúbios.

— A ligação custa nove marcos e vinte — avisou a telefonista.

— Ponha na conta — respondeu Preysing, caminhando imerso em pensamentos.

Sentia uma estranha antipatia em falar com Mulle. Na sala de refeições de sua casa fazia agora um calor excessivo; Mulle gostava de quartos bem aquecidos; Preysing teve a impressão de que a sala de refeições de Fredersdorf cheirava a couve-flor; teve a impressão de ver nas faces cheias e sonolentas de Mulle a marca vermelha das pregas do travesseiro, no momento em que ela segurava o fone, após a sesta. Não se decidiu. Não a chamou. Voltou à sala de refeições, onde, entretanto, um garçom perfeito colocara para ele o vinho no gelo, e pratos limpos e aquecidos sobre a mesa.

Preysing comeu, esvaziou seu copo de vinho, acendeu o charuto e, com as têmporas acaloradas e os pés frios, voltou ao quarto. Tinha uma sensação estranha, agradável e nebulosa, mas ao mesmo tempo sentia-se completamente vazio, em consequência da conferência. Teve vontade de tomar um banho bem quente, e abriu a torneira do banheiro. Justamente quando fez menção de despir-se, refletiu melhor, lembrando-se de que não é bom tomar banho com o estômago cheio; sentiu, no espaço de um instante de medo, as palpitações que o ameaçavam na banheira esmaltada, e soltou de novo a água, cheia de vapor. A impressão de cansaço e desconforto que sentiu materializou-se numa coceira no rosto e, quando tentou coçar-se, percebeu que não estava barbeado. Apanhou o chapéu e o sobretudo, como ao preparar-se para um negócio importante; não quis ir ao barbeiro do subterrâneo do hotel, com quem ainda estava zangado, por causa do que acontecera de manhã, e procurou nas ruas circunvizinhas um barbeiro de mais confiança.

Então o Diretor-Geral Preysing viveu uma experiência notável; esse homem de princípios sólidos, mas sem aparelho de barba, teve uma experiência; esse homem de intenções corretas, mas que, apesar de tudo, praticara uma ação duvidosa, um azarado, a quem pela primeira vez o êxito bafejara, ao qual esse bafejo levava... para onde? Podia parecer um acaso, talvez fosse o destino que lhe estava reservado. A experiência foi esta:

A pequena barbearia em que Preysing entrou era asseada e simpática. Havia quatro cadeiras, e dois senhores sentados; um deles era servido por um empregado jovem, simpático, de cabelos encaracolados, e o outro pelo dono da barbearia, um homem idoso, com a aparência e os modos de um camareiro imperial. Preysing foi cumprimentado, alojado na terceira cadeira e envolvido numa capa e num peitilho. O cavalheiro que tivesse um momento de paciência, o primeiro oficial de barbeiro tinha ido almoçar, foi o que lhe participaram com toda a cortesia, pondo-lhe em seguida, nas mãos, um pesado maço de revistas ilustradas. Preysing, excessivamente cansado para opor qualquer resistência, reclinou a cabeça no pequeno encosto da cadeira, e respirou o aroma agradável que pairava na barbearia. Depois, com os nervos acalmados pelo ruído das tesouras, começou a folhear as revistas.

Primeiro pôs-se a ler, de uma maneira indiferente, quase a contragosto, porque não apreciava esse passatempo leviano, preferindo leituras instrutivas e sérias. Mas, após uns instantes, ele já se ria com uma ou outra piada, soltando uma risadinha curta e nasal; voltou as folhas para trás, para observar melhor uma mulher decotada, e em seguida virou uma página, e deixou-a aberta durante todo o tempo em que ficou sentado na cadeira de barbeiro. Realmente, concentrou-se de tal modo na observação dessa gravura, dessa fotografia de revista, que se sentiu estorvado quando o primeiro oficial voltou da sua refeição e se preparou para barbeá-lo.

A fotografia que o atraía desse modo nada tinha de especial; fotografias como essa eram encontradas às centenas em revistas cuja orientação desagradava a Preysing. A gravura representava uma mocinha nua, nas pontas dos pés, tentando olhar por sobre um biombo muito mais alto do que ela. Seus braços estavam levantados, e os delicadíssimos seios, com esse movimento, erguiam-se com uma graça especial, de modo tentador. No dorso esguio via-se o desenho delicado da musculatura. Na cintura, esse corpo se estreitava de um modo incrível, e abaixo do dorso delgado os quadris se encurvavam suavemente, prolongando-se nas linhas das coxas. Aqui, o corpo virava-se ligeiramente de lado, de modo que o ventre da mocinha mal se adivinhava como uma sombra suave, enquanto as coxas e os joelhos se distendiam, como a exprimir uma elástica curiosidade. Essa figura encantadora de mulher, de formas invulgarmente perfeitas, tinha também um rosto; e o que tornava a gravura extremamente excitante para o diretor-geral é que ele conhecia esse rosto. Era a carinha de gata da Flaemmchen, de nariz curto, com uma expressão animada e inocente, era o sorriso meigo de Flamm número dois, era o seu caracolzinho na testa, sobre o qual o esperto fotógrafo colocara um propositado reflexo luminoso; e, antes de mais nada, era a completa naturalidade, o modo simples e ingênuo com que ela o chamara de modo objetivo e modesto — Preysing recordou-se nesse instante — de um "bom nu". Preysing corou, enquanto teve diante dos olhos essa gravura; um súbito e ardente rubor subiu à sua testa, impedindo-o de pensar com clareza, como lhe acontecia nos seus acessos de cólera, que faziam tremer toda a fábrica. Depois, suas veias, uma a uma, começaram a latejar dentro dele, ele o sentia, sentia o sangue a refluir nas veias, como há muito tempo não lhe acontecia.

Preysing era um homem de cinquenta e cinco anos; não era um velho, mas uma pessoa pacata, o esposo pouco exigente de Mulle, mulher já envelhecida, papaizinho inocente de filhas crescidas. Trotara atrás da Flamm número dois pelo corredor do hotel sem sentir a mínima excitação, e o borbulhar suave de seu sangue, nessa ocasião, aplacara-se de modo próprio. Agora, diante desse nu artístico, mal podia respirar.

— Com licença, cavalheiro — disse o barbeiro; e, com um gesto elegante, pousou o fio da navalha em sua face.

Preysing conservou a revista na mão, enquanto se reclinava para trás e fechava os olhos. Primeiro viu tudo vermelho, e depois enxergou a Flaemmchen. Não a Flaemmchen vestida, diante da máquina de escrever, nem a Flaemmchen despida da fotografia cinzenta, mas uma mistura vivaz e excitante de ambas. Uma Flaemmchen de carne e osso, de pele moreno-dourada e sangue rubro e palpitante, que continuava nua, com o busto erguido, a olhar com curiosidade por cima de um biombo. O Diretor-Geral Preysing não estava habituado a deixar sua fantasia trabalhar. Mas agora ela trabalhava. Havia soltado a manivela, desde que ele, pela manhã, colocara na mesa o telegrama, dizendo, de um modo descarado, uma mentira absurda. Agora sua imaginação se afastava rapidamente com ele, o que era apavorante e embriagador ao mesmo tempo. Enquanto a navalha deslizava com leveza e perícia em seu rosto, Preysing sentia coisas incríveis, coisas fantásticas, com a Flaemmchen nua, coisas incríveis consigo mesmo, que ele nunca julgara que pudessem acontecer.

— Quer que lhe raspe o bigode? — perguntou o barbeiro.

— Não — disse Preysing, estorvado em meio aos seus pensamentos. — Por quê?

— É que as pontas estão um pouco grisalhas, e isso envelhece. Se me permite um conselho, o cavalheiro aparentaria dez anos menos, sem bigode — sussurrou o barbeiro, com o sorriso bajulador de todos os barbeiros a refletir-se no espelho.

"Mas eu não posso me apresentar a Mulle sem bigode, como um macaco", pensou Preysing, olhando-se no espelho. Realmente, seu bigode estava grisalho, e sob o bigode havia sempre gotas de suor no lábio superior. "Ora, a Mulle...", pensou ele — e nesse instante, a bem dizer, o adultério já estava cometido.

— Está bem, pode raspá-lo. A qualquer momento posso deixar crescer de novo o bigode.

— É claro, é facílimo — concordou o barbeiro, indo buscar em seguida mais sabão de barbear, para o grande empreendimento.

Preysing levantou a revista para olhar de novo a fotografia — mas isso só já não lhe bastava. Ele não queria mais ver, queria pegar, queria apalpar, queria sentir a Flaemmchen, palpitante e ardente.

No hotel repararam imediatamente no que acontecera ao bigode, mas não deram a perceber. Meu Deus do céu, estavam tão acostumados a observar as estranhas metamorfoses pelas quais passavam os cavalheiros que vinham da província para ficar uns dias no hotel... Preysing, que perguntava, apressado e ofegante, se havia correspondência para ele, recebeu uma carta de Mulle, que lhe colocaram na mão. Meteu-a simplesmente no bolso, sem a ler, e sem nenhum sentimento de carinho. Dirigiu-se então à cabina telefônica. "Preciso falar com Mulle", pensou, "mas posso chamá-la mais tarde." Entrou na cabina para ligações locais, pediu para falar com o gabinete do conselheiro Zinnowitz, e teve uma breve conversa com a Flamm número um. Desejava saber se a senhorita sua irmã estaria por acaso no gabinete.

Não, não estava mais.

Desejaria saber onde poderia ser encontrada.

Ah, respondeu a Flamm número um, hesitante, talvez ela se houvesse atrasado um pouco. Mas, nesse caso, a qualquer momento ela apareceria no hotel.

Preysing, diante do fone, ficou com uma cara de idiota.

— No hotel? Aqui? No Grande Hotel? Por quê?

— Pois é — disse a Flamm número um, precavida e indecisa. Isso pelo menos é o que ela entendera. Flaemmchen tinha ido para o hotel, e então ela, a Flamm número um, julgara que a irmã fora chamada de novo para datilografar. Mas talvez a Flaemmchen tivesse algum encontro, o que nunca se podia saber com certeza, pois, nesse ponto, a Flaemmchen era muito esquisita, muito diferente dela, a Flamm número um. Mas pontual ela era; quando prometia qualquer coisa, cumpria o prometido; por isso, iria com certeza ao hotel.

Preysing agradeceu e pôs o fone no gancho, atrapalhado. Dirigiu-se de novo, inquieto, à portaria, atravessando o hall. Ouvia-se perfeitamente a música saltitante que vinha do pavilhão amarelo.

— Minha secretária perguntou por mim? — informou-se ele com Herr Senf. O porteiro voltou para ele o rosto muito atento e tolo.

— Quem, por favor?

— Minha secretária. A senhorita a quem eu ditei cartas ontem — informou Preysing, excitado.

O pequeno Georgi meteu-se na conversa.

— Ela não perguntou nada, mas esteve no hall, há uns dez minutos, a moça loura, magra, não é isso? Eu acho que ela está no chá das cinco, no pavilhão amarelo, do outro lado do hall, segundo corredor atrás do elevador; o senhor vai perceber pela música.

Seria próprio de um diretor-geral, vestido com um terno de sarja, andar atrás dos sons apimentados de uma orquestra de jazz, através de corredores desconhecidos, à procura de uma jovem e leviana datilografa, com quem ele nada tinha que ver, do ponto de vista jurídico? Mas é que Preysing está quase a desviar-se do bom caminho, quase a escorregar, e não o percebe. Só percebe que seu sangue corre de modo diferente do costume, diferente dos quinze ou vinte últimos anos, e ele quer a qualquer preço agarrar-se a esse sentimento, tirar proveito dele. O bigode está raspado, não foi feita nenhuma ligação telefônica para a Mulle, e, quando ele abre a porta do pavilhão amarelo e sente a atmosfera desconhecida dessa sala, o assunto complicado com Chemnitz e Manchester, incerto e ainda por esclarecer, fica quase esquecido.

A essa hora, às cinco horas e vinte minutos, o pavilhão amarelo está diariamente entupido de gente. As cortinas de seda amarela, franzidas vaporosamente, estão fechadas diante das janelas altas; nas paredes estão acesas lampadazinhas amarelas, e nas mesinhas também há lampadazinhas acesas, com abajures amarelos. Está quente, ali dentro; dois ventiladores zunem, e paira no ar o burburinho humano. As pessoas estão sentadas bem perto umas das outras; cada um sente o calor do seu vizinho, porque uniram as mesinhas, para dar mais espaço aos que estão dançando no centro da sala. No forro abobadado estão pintadas formas vagas de bailarinos, em lilás e prateado; por vezes, quando tudo se movimenta, o forro causa a impressão de um espelho embaciado, em que se refletem os dançarinos cá de baixo. Tudo o que se passa ali dá uma impressão estranha de ângulos e de ziguezagues; a dança não é circular, mas apenas um estremecimento que se eleva e abaixa; e Preysing, que foi soprado até ali pelos rumores de seu sangue, para procurar uma certa Flaemmchen, ficou completamente tonto. Não via mais as pessoas inteiras, mas tudo se separava em confusão, só tinham cabeça ou coxas, como certa espécie de quadros modernos, que Preysing, em razão da loucura que representavam, não podia suportar. Porém, o mais importante e digno de reparo no pavilhão amarelo era a música. Era executada por sete cavalheiros indescritivelmente satisfeitos, de camisas brancas e calças curtas, a célebre Eastman Jazzband, cuja música era de uma vivacidade maluca, tamborilava sob as solas dos pés, fazia cócegas nos músculos dos quadris. Havia dois saxofones que choramingavam e outros dois que zombavam deles com um jeito satírico e sarcástico. O jazz serrava, estalava, teimava, matraqueava, cacarejava, pondo ovos sobre a melodia, ovos que eram em seguida esmagados — e quem caísse dentro do círculo dessa música ficava prisioneiro do ritmo convulsivo da sala, parecia até enfeitiçado.

Preysing, no entanto — empurrado de um lado para o outro pelos garçons que levavam bandejas cheias de taças com gelo —, ficara parado à porta, e reparou que começou a contrair os músculos das pernas enquanto, mal-humorado, procurava enxergar a Flamm número dois. Seu lábio superior, nu e remoçado, cobriu-se novamente de suor; ele tirou do bolso o lenço, enxugou o rosto, e depois meteu o lenço no bolsinho exterior do paletó, onde em geral só costumava guardar a caneta-tinteiro. Com um olhar de esguelha, muito encabulado, arranjou a ponta do lenço, deixando-o cair como uma graciosa bandeirola; isso parecia legitimar o seu direito de pertencer a essa parte animada do Grande Hotel. Aliás, ninguém se importava com ele. Poderia ficar ali o tempo que quisesse, e procurar entre duzentas jovens e esbeltas dançarinas uma determinada senhorita.

— Quando vi que o senhor não estava aqui às cinco e dez pensei: ele vai dar um bolo. Você vai ver, ele vai dar um bolo, pensei — disse a Flaemmchen, que estava dançando com Gaigern uma lânguida variação do charleston, uma dança nova, com uma pequena síncope, que dava um golpe na perna. Seus corpos se ajustavam plenamente na dança.

— Absolutamente. Pensei o dia inteiro na senhora, e me alegro de poder revê-la — disse Gaigern.

Essa frase lhe saiu com a mesma leveza e languidez, com a mesma facilidade com que ele dançava. Gaigern era apenas alguns centímetros mais alto do que a Flaemmchen, e fitou com um leve e amável sorriso os olhos de gatinha da moça. Ela estava vestida com um vestidinho de seda leve, azul; ao pescoço trazia um colar de contas de vidro lapidado, e usava um chapeuzinho, desses fabricados em série e vendidos por um marco e noventa. Estava encantadora, com os requisitos de uma elegância rebuscada.

— É verdade mesmo que o senhor se alegrou? — perguntou ela.

— Metade verdade, metade invenção — replicou Gaigern com sinceridade. — Passei o dia hoje caceteadíssimo — acrescentou suspirando. — Estou servindo de cicerone para um senhor de idade, por necessidade, é claro.

— E por que faz isso?

— Preciso conseguir uma coisa dele.

— Ah! — disse a Flaemmchen, compreensiva.

— A senhora também precisa dançar com ele — disse Gaigern, apertando-a de leve.

— Que nada!

— Não é isso. Mas eu vou lhe pedir encarecidamente. Ele não sabe dançar, compreende? Mas tem tanta vontade de aprender! A senhora dá apenas algumas voltas com ele — para me fazer um favor.

— Bem, vamos ver! — prometeu a Flaemmchen. Continuaram a dançar, calados. Gaigern trouxe mais para perto o corpo da moça, sentindo que as costas dela obedeciam documente aos movimentos de sua mão. Isso, porém, não o alegrava, pelo contrário, causava-lhe raiva, até.

— Então, que aconteceu? — perguntou a Flaemmchen, pressentindo o que se passava.

— Ah!... Não é nada! — resmungou Gaigern, sentindo ódio de si próprio.

— Que está querendo? — perguntou a Flaemmchen com solicitude. Achava-o lindo, com aquela boca, e a cicatriz no queixo... E os olhos também, um pouco oblíquos. Sentia forte inclinação por ele.

— A gente tem vontade de fazer qualquer coisa maluca, já que não acontece nada. Agora tenho vontade de mordê-la, ou de brigar com a senhora. Ou de esmurrá-la, até. Ora! Hoje à noite vou à luta de boxe; ali, pelo menos, acontece alguma coisa.

— Ah, é? — disse a Flaemmchen. — O senhor vai hoje à noite à luta de boxe? Ah, sei.

— Com aquele senhor de idade — afirmou Gaigern.

— Se o senhor... acabou — disse a Flaemmchen, quando a música parou. Ela se pôs então a bater palmas freneticamente, deixando-se ficar onde estava. Gaigern fez menção de tirá-la do meio da sala e levá-la a uma mesinha, onde ele deixara Kringelein diante de uma xícara de café. A música começou de novo, quando os dois já se encontravam a meio caminho, entre a confusão e o aperto.

— Tango! — exclamou a Flaemmchen, excitada.

E a moça tomou posse de Gaigern, simplesmente. A palma de sua mão encostava-se à dele, implorando e aquiescendo. Suas coxas já se emparelhavam no passo lânguido e arrastado do tango. Fez-se um vazio na sala, em redor deles, porque dava prazer vê-los dançar.

— O senhor conduz otimamente — sussurrou a Flaemmchen, como se fizesse uma declaração de amor. Gaigern nada tinha a replicar. — Ontem o senhor estava tão diferente... — disse um pouco mais tarde.

— É... ontem — respondeu Gaigern. Disse isso como se estivesse a dizer: há cem anos. — Aconteceu uma coisa de ontem para hoje — acrescentou.

Sentia que uma compreensão simples e natural os unia, e de repente teve desejos de se confiar a ela.

— Esta noite eu me apaixonei, uma paixão muito séria, compreende? — disse ele baixinho, dançando o tango que vibrava no ar. — Isso vira a cabeça da gente. É um sentimento avassalador. É como se...

— Mas isso não é nada de extraordinário — observou a Flaemmchen, ironicamente, sentindo-se triste, desiludida.

— É sim, é uma coisa extraordinária. A gente tem vontade de se transformar por completo, compreende? De repente acha que só existe uma mulher no mundo, só essa mulher, e o resto não tem mais nenhum valor. A gente acha que não é mais capaz de dormir, a não ser com essa mulher. É como se passasse por nós um furacão. Como se nos tivessem posto dentro de um canhão, e depois atirado à Lua ou a outro lugar qualquer, onde tudo é diferente.

— E como é ela? — perguntou a Flaemmchen — e qualquer outra em seu lugar teria perguntado o mesmo.

— Ah! Como ela é? Aí é que está... É muito velha e magra, muito leve, sou capaz de levantá-la do chão com um dedo. Tem rugas, aqui e aqui, e olhos pisados. E fala numa linguagem de baixo calão, como um clown; tem-se vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo, ao ouvi-la. E isso tudo me agrada de um modo incrível, não há nada a fazer. É o grande amor.

— O grande amor? Mas isso não existe — disse a Flaemmchen. Ao afirmar isto, ela tinha uma carinha espantada e teimosa de gata, como às vezes os amores-perfeitos têm nos canteiros.

— Como não, como não? Existe, sim — disse Gaigern.

A Flaemmchen ficou tão impressionada com essas palavras, que parou um segundo, em meio ao tango, e sacudindo a cabeça olhou Gaigern.

— São frases, apenas — murmurou ela ao mesmo tempo.

Nesse momento exato os olhos de Preysing descobriram finalmente o vulto procurado, no meio da confusão erótica e lânguida do tango. Com um sentimento de zanga e extrema impaciência, esperou que a dança lenta terminasse e depois foi-se espremendo entre os pares, até a mesinha em que a Flaemmchen tomara lugar entre dois senhores, que Preysing tinha a impressão de conhecer. No hotel, essa espécie de conhecimentos de vista eram correntes; passava-se por alguém no elevador, encontrava-se com alguém na sala de refeições, no banheiro e no bar, girava-se um diante do outro na porta giratória, nessa porta que estava sempre a rodar, deixando entrar e sair gente, para dentro e para fora do hotel.

— Boa tarde, Fräulein Flamm — disse o diretor-geral com a voz tornada rouca e grosseira pela timidez; postou-se ao lado da cadeira da moça, encolhendo a barriga para dar passagem ao garçom.

A Flamm número dois apertou as pálpebras, até conseguir registrar a presença imprevista de Preysing.

— Ah, é o senhor diretor — disse então, amavelmente. — O senhor também dança? — ela olhou a fisionomia contraída dos três homens; estava habituada a ver essa expressão nos semblantes dos homens que a rodeavam. — Os senhores já se conhecem? — perguntou com um gesto distinto de mão, que copiara de uma estrela de cinema.

Não podia apresentá-los, porque não sabia como se chamavam os seus cavalheiros. Preysing e Gaigern murmuraram algo, e o diretor-geral apoiou na mesa uma mão repleta de sentimento de posse, enquanto passava rente a ele, à altura da cabeça, uma perigosa bandeja com copos de laranjada, que o garçom equilibrava.

— Boa tarde, Herr Preysing — disse de repente Kringelein, sem erguer-se da cadeira.

Cada uma das suas vértebras lhe doía, por causa do enorme esforço que teve de fazer para não ser atacado de tremedeira e não cair estatelado, voltando a ser o miserável Kringelein da caixa da fábrica. Ficou de ombros contraídos; tudo nele se contraiu; lábios, dentes, até mesmo as narinas, que tomaram um aspecto redondo e feio, como as dos cavalos. Mas ele se portou à altura do grave momento; forças nunca pressentidas fluíam do seu jaquetão preto de corte impecável, da sua roupa de baixo, da sua gravata, de suas unhas bem cuidadas, enchendo-o de energia. O que quase o fez perder o aplomb foi o fato de Preysing também ter se transformado; continuava a usar o mesmo terno de Fredersdorf, mas não tinha mais bigode.

— Não sei bem... desculpe-me... mas acho que já nos conhecemos... — disse Preysing com a maior amabilidade que lhe permitia a excitação que sentia por causa da Flaemmchen.

— Sim, senhor. Kringelein — afirmou este. — Trabalho na fábrica.

— Ah — disse Preysing, esfriando. — Kringelein. Nosso representante, não é? — acrescentou, reparando na elegância de Kringelein.

— Não. Guarda-livros. Auxiliar de guarda-livros no bureau de pagamentos. Sala 23. Edifício C. Terceiro andar — informou Kringelein conscienciosamente, mas sem devoção.

— Ah — repetiu Preysing, pensativo. Seu desejo era afastar nesse momento a aparição indesejável e incompreensível de um auxiliar de guarda-livros de Fredersdorf no pavilhão amarelo do Grande Hotel. — Preciso falar com a senhora, Fräulein Flamm — disse ele, retirando a mão do encosto da cadeira da Flaemmchen. — Trata-se de um novo serviço de datilografia — acrescentou num tom de chefe, que feriu os ouvidos do sujeito de Fredersdorf.

— Está bem — concordou a Flaemmchen. — Quando é melhor para o senhor? Às sete, sete e meia?

— Não, já — disse Preysing em tom ditatorial, enxugando o suor do rosto.

Aquele indivíduo de Fredersdorf tinha também um lenço no bolso do paletó, uma flamulazinha de seda, revolucionária e leviana.

— Infelizmente, já, já não é possível — disse a Flaemmchen amavelmente. — Já estou comprometida. Não posso deixar estes senhores aqui. Ainda preciso dançar uma vez com Herr Kringelein.

— Herr Kringelein vai ter a amabilidade de desculpá-la — disse Preysing, contendo-se. Era uma ordem. Kringelein sentiu que os vinte e cinco anos de um sorriso subalterno queriam insinuar-se em seus lábios paralisados. Controlou-o, fazendo-o recuar para a pele do rosto, engelhada e quase fria. Procurou auxílio e forças em Gaigern. O barão tinha um cigarro no canto da boca, e a fumaça subia ao longo das pestanas de seu olho esquerdo, que ele piscou com expressão brejeira e compreensiva.

— Não penso absolutamente em desistir — comentou Kringelein. Após lhe escaparem estas palavras, ficou imóvel como uma lebre, que finge estar morta no carreiro de um campo. De repente, Preysing, ao ver aquela expressão obstinada, recordou-se de um relatório a respeito de Kringelein, que lhe haviam apresentado há poucos dias.

— É estranho — disse ele com a voz nasal e temida da fábrica. — É estranhíssimo. Agora já sei do que se trata. O senhor participou à fábrica que estava doente, não é? Herr Kringelein, hein? Sua mulher pediu um subsídio ao Fundo de Auxílio aos Doentes, por causa de moléstia grave. Nós lhe demos férias de seis semanas, pagas. E o senhor se encontra em Berlim, divertindo-se, hein? Anda atrás de divertimentos que não condizem nem com a sua posição nem com o seu ordenado. É muito estranho. Estranhíssimo, Herr Kringelein. Nós vamos rever com cuidado os seus livros, pode estar certo disso. Vamos deixar de pagar-lhe as férias, já que o senhor está tão bem de saúde, Herr Kringelein! Vamos...

— Olhem, meninos, nada de brigas aqui. Vão entender-se no seu escritório — disse a Flaemmchen, com modos afáveis e conciliantes. — Nós estamos aqui para nos divertir. Vamos, Herr Kringelein, agora vamos dançar.

Kringelein firmou-se nas pernas, esticando os joelhos, que pareciam de borracha, mas que se consolidaram a olhos vistos quando a Flaemmchen colocou o braço no ombro dele. A música tocava aos solavancos uma coisa rapidíssima, algo semelhante à corrida de automóvel a cento e quinze quilômetros por hora, e ao motor de avião. Isso lhe deu forças para dizer as frases que vinha preparando há vinte e cinco anos, em sua vida de empregado subalterno. Arrastado pela Flaemmchen para o meio da sala, falou em voz alta, virando a cabeça para trás:

— Quem sabe se o mundo pertence só ao senhor, hein, Herr Preysing? O senhor será diferente de mim? Quem sabe se as pessoas como eu não têm o direito de viver?

— Que é isso, que é isso! — exclamou a Flaemmchen. — Aqui não se fala aos berros, aqui se dança. E agora, não olhe para os pés, olhe para o meu rosto, e vá andando, vá andando calmamente, vou guiá-lo.

— Mas que impostor! — rangeu Preysing por entre os dentes, por trás deles. E ficou diante da mesa, trêmulo de cólera. Gaigern, a fumar, ouvindo essas palavras, sentiu um impulso raro, uma espécie de compassivo coleguismo, misturado a uma repulsa, violenta e sarcástica, pelo corpulento e suarento diretor-geral. "Era preciso colocar-lhe um par de sanguessugas na pele, amiguinho", pensou ele.

— Deixe que o pobre-diabo se divirta! — disse a meia voz. — Basta olhar para a cara dele para ver que está às portas da morte.

"Não lhe pedi nenhum conselho", pensou Preysing, mas não teve coragem de dizê-lo, porque sentia obscuramente a raça superior do barão.

— Peço-lhe o favor de dizer a Fräulein Flamm que a espero no hall, para um assunto urgente. Se ela não aparecer até as seis, dou o assunto por terminado — disse ele, curvando-se ligeiramente. Em seguida retirou-se.

Intimidada por esse ultimato, a Flaemmchen apareceu no hall três minutos antes das seis. Preysing ergueu-se das brasas ardentes em que estivera sentado nesse ínterim, e sorriu com profunda satisfação. Como ele sorria raramente, essa amabilidade o tornou mais bonito, e causou efeito imprevisto.

— Cá está a senhora — disse ele, estonteado.

Há muitas horas ele se contorcia, se martirizava, ardia, com um único pensamento: saber se a Flaemmchen era conquistável. Suas experiências com mulheres eram modestas, e datavam de muitos anos atrás. Dessa geração nova de mocinhas, ele fazia apenas uma ideia vaga, apesar de, nas reuniões masculinas, e em conversas íntimas nas viagens profissionais, dizerem com frequência que essa espécie de meninas era fácil de conquistar. Pôs-se a observar a Flaemmchen, as suas pernas cruzadas, com meias de seda, o colar de pedras de vidro imitando cristal, sua pintura, que ela nesse instante renovava, apertando os lábios, e ficou sem saber em que se basear, nessa pessoa despreocupada, para as suas suposições.

A Flaemmchen fechou o estojinho de pó de arroz e perguntou:

— Então, de que se trata?

Preysing apertou o charuto entre os dedos, e desembuchou:

— Trata-se do seguinte — começou ele: — preciso viajar para a Inglaterra, e preciso levar comigo uma secretária. Em primeiro lugar, por causa da correspondência; depois, porque desejaria ter com quem conversar durante a viagem. Sou muito nervoso, muito nervoso, mesmo — afirmou, apelando inconscientemente para a compaixão da moça —, e preciso ter alguém na viagem que se ocupe de mim. Não sei se a senhora me compreende. Ofereço-lhe um emprego de confiança, em que a senhora... em que..

— Já estou compreendendo — disse a Flaemmchen, baixinho, ao perceber a atrapalhação dele.

— Acho que nos daremos bem na viagem — afirmou Preysing.

O delicioso fluir e latejar do seu sangue nas veias diminuíra durante tão difíceis negociações, mas quando ele fitou a Flaemmchen consolou-se, sentindo que ela iria fazer com que tudo isso despertasse de novo, assim que o desejasse.

— A senhora contou-me que no ano passado também viajou com um cavalheiro, e isso me fez ter esta ideia... eu acho que seria muito agradável, se a senhora quisesse. A senhora quer?

A Flaemmchen pensou durante cinco longos minutos.

— Preciso pensar primeiro — respondeu ela, com expressão ajuizada e preocupada, fumando o seu indefectível cigarro. — Para a Inglaterra? — perguntou depois. A cor moreno-dourada da sua pele clareou um pouco, o que talvez significasse que empalidecera. — Ainda não conheço a Inglaterra. E por quanto tempo?

— Por... não sei lhe dizer ainda com exatidão. Isso depende. Se os meus negócios lá correrem bem, tiro talvez mais catorze dias de férias, e podemos ficar em Londres, ou ir para Paris.

— Bom, pode-se arranjar; já sei mais ou menos do que se trata, pelas cartas — disse a Flaemmchen com segurança.

O otimismo era o elemento em que ela se movia. Preysing sentiu-se animado ao perceber que ela estava a par dos seus negócios, e profetizava o sucesso.

— A senhora ainda precisa me dizer quanto quer de ordenado — declarou ele, com o tom de quem dizia um galanteio.

Desta vez demorou mais, até que a Flaemmchen respondesse. Tinha que fazer um extenso balanço. A renúncia à aventura principiada com o belo barão se incluía nele, os pesados cinquenta anos de Preysing, sua gordura, seu fôlego curto. Pequenas dívidas aqui e ali. A necessidade de roupa de baixo nova, de sapatos bonitos — os azuis não iam durar muito. O pequeno capital de que necessitava para iniciar carreira no cinema, na revista, em qualquer parte. A Flaemmchen pesou calmamente e sem sentimentalismo a oportunidade do negócio que lhe era proposto.

— Mil marcos — disse ela, achando que era suficiente; não tinha ilusões a respeito das quantias que hoje em dia se depunham aos pés das mulheres bonitas. — Talvez um pouquinho mais para a roupa de viagem — acrescentou, um pouco mais tímida do que de costume. — O senhor há de querer que eu tenha uma bonita aparência...

— Para isso a senhora não precisa se vestir. Pelo contrário — disse Preysing, excitado. Ele julgou que tinha dito uma frase espirituosa. A Flaemmchen sorria melancolicamente, o que deu um aspecto estranho à sua saudável carinha de amor-perfeito. — Então está combinado? -— perguntou Preysing. — Amanhã ainda tenho umas coisas a fazer aqui; é preciso também arranjar os passaportes, e poderemos viajar depois de amanhã. Está contente por ir conhecer a Inglaterra?

— Muito — respondeu a Flaemmchen. — Então amanhã eu trago a minha máquina de escrever portátil e o senhor pode ir logo ditando.

— E hoje à noite... se a senhora concordar... pensei que hoje à noite poderíamos ir a um teatro... Temos que tomar um copo de vinho para festejar o nosso contrato, não é? O que acha?

— Hoje, já? — disse a Flaemmchen. — Bom. Hoje, já.

Ela soprou o seu caracolzinho para cima, e atirou o cigarro amassado no cinzeiro. Podia ouvir perfeitamente a música do pavilhão amarelo. "Não se pode ter tudo", pensou. "Mil marcos. Vestidos novos. E Londres também não é para desprezar."

— Preciso telefonar para minha irmã — disse ela, levantando-se. Preysing sentiu-se percorrido por uma onda de calor, apaixonada e grata, que o inundou completamente; colocou-se então por trás dela e pegou delicadamente, com ambas as mãos, seus cotovelos, que ela apertava de encontro ao corpo.

— Quer ser boazinha para mim? — perguntou ele em voz baixa.

E igualmente baixinho, com os olhos voltados para a passadeira cor de amora, a Flaemmchen respondeu:

— Se não tiver muita pressa...


CONTINUA

7

 

O chá com veronal esfriara. A Grussinskaia sorriu ligeiramente, mas quando o percebeu, parou de sorrir e perguntou com ar severo:

— Quem o deixou entrar? A criada de quarto? Ou a Suzette? Como conseguiu entrar?

Gaigern tentou um golpe arriscado. Apontou por sobre o ombro para a atmosfera noturna da rua.

— Por ali — disse ele. — Vim do balcão do meu quarto.

De novo a Grussinskaia teve a impressão de já ter passado por aventura semelhante. De repente, veio-lhe a recordação. Num dos castelinhos de veraneio, no sul, em Abas-Tuman, aonde o Grão-Duque Serguei costumava levá-la, escondera-se certa noite em seu quarto um homem, um oficial bem jovem ainda. Arriscara a vida nessa tentativa; mais tarde ele veio de fato a falecer num acidente de caça pouco esclarecido. Isso tinha acontecido pelo menos há trinta anos. Enquanto a Grussinskaia ia para o balcão e olhava na direção em que a mão de Gaigern apontava, de repente o passado se apresentou de novo com toda a clareza. Ela via o rosto do jovem oficial. Chamava-se Pavel Jerilinkov. Lembrou-se de seus olhos e de alguns beijos. Estava enregelada, e sentiu que o homem ao lado dela no balcãozinho irradiava calor. Olhou rapidamente para os sete metros da fachada do hotel, que ficavam entre o balcão do seu quarto e o do quarto vizinho.

— Mas isso é perigoso — observou ela inadvertidamente, recordando-se mais de Jerilinkov do que pensando no momento presente.

— Não é tanto assim — replicou Gaigern.

— Está fazendo frio. Feche a porta — disse a Grussinskaia, passando depressa diante dele e entrando de novo no quarto. Gaigern obedeceu, e foi caminhando atrás dela; fechou a porta, puxou as duas cortinas, e depois ficou com as mãos pendentes: não passava de um jovem belíssimo, modesto mas um pouco amalucado, que fazia garotices românticas, para entrar no quarto de uma bailarina célebre. Afinal de contas, ele também possuía um pouco de talento para ator, o que era uma exigência da sua profissão. E agora representava, por uma questão de vida ou de morte. A Grussinskaia curvou-se, levantou o traje de ballet que atirara no chão, e o levou para o banheiro. A gota de sangue, de contas vermelhas de vidro lapidado, cintilou. Ela sentiu uma dor cortante e aguda. Nenhum da capo. Nenhum escândalo, quando uma outra dançava. Um público cruel. Berlim era cruel. Solidão cruel. Ela já havia sobrepujado um pouquinho essa dor — e agora a dor a acometia de novo, causando-lhe uma angústia no peito. Durante alguns segundos esqueceu-se por completo do intruso, que se parecia com o falecido Jerilinkov, mas de repente virou-se para ele e perguntou, sem olhá-lo:

— Por que fez isso? Por que faz coisas perigosas? Por que está escondido no meu quarto? Deseja alguma coisa de mim?

Gaigern fez uma investida e preparou-se para o ataque. — "Hop-là, avante!", pensou Gaigern. Não ergueu os olhos para ela.

— A senhora já sabe a razão, é porque a amo — respondeu em voz baixa.

Disse isso em francês, porque se o dissesse em alemão teria sido extremamente penoso. Depois ficou esperando em silêncio pelo resultado. "É simplesmente idiota", pensou ao mesmo tempo. Essa comédia lhe causava uma vergonha atroz, humilhante. Tinha horror de tudo o que feria o bom gosto. De qualquer modo, se ela não chamasse pelo camareiro, talvez ele estivesse salvo.

A Grussinskaia engoliu essas breves palavras francesas com a boca bem aberta. Absorveu-as como um remédio; dentro de poucos segundos até o tremor de frio cessou. Pobre Grussinskaia! Há muitos anos que ninguém lhe dizia coisa semelhante. Sua vida corria diante dela como um trem expresso vazio. Ensaios, trabalho, contratos, carros-dormitórios, quartos de hotel, excitação no palco, uma excitação cruel, e mais trabalho e mais ensaios. Sucesso, fracasso, críticas, entrevistas, recepções oficiais, discussões com empresários. Três horas de exercícios de solista, quatro horas de ensaios de ballet, quatro horas de espetáculo; os dias se seguiam um ao outro sempre iguais. O velho Pimenoff. O velho Witte. A velha Suzette. A não ser essas pessoas, mais ninguém, nenhum calor, nunca, nunca. Colocava as mãos nos canos de aquecimento central dos hotéis, e pronto. E depois, quando estava tudo terminado, quando o fim de tudo e da vida estava iminente, encontrava-se um homem à noite no quarto, e esse homem pronunciava palavras há muito desaparecidas, de que outrora

o mundo estivera repleto. A Grussinskaia não suportava mais. Sentia um sofrimento atroz, como se estivesse prestes a dar à luz. Mas foram apenas duas lágrimas que finalmente brotaram da tensão dessa noite, e ela as sentiu em seu corpo inteiro, nos artelhos e nas pontas dos dedos das mãos, depois no coração, e por fim elas chegaram aos seus olhos; rolaram pelas longas e rígidas pestanas pretas de pintura, caindo nas palmas abertas de suas mãos.

Gaigern assistiu à evolução desse fenômeno, e encheu-se de calor. "Pobre animalzinho", pensou ele. "Pobre bichinha. Está chorando, agora. Que coisa idiota!"

Depois que a Grussinskaia deu à luz essas duas lágrimas dolorosas, a coisa se tornou mais fácil. Começou com um leve aguaceiro, ao mesmo tempo cálido e fresco como uma chuva de verão — Gaigern pôs-se a pensar nos canteiros de hortênsias do jardim de Ried, sem saber por quê. Depois, esse aguaceiro se transformou numa torrente apaixonada, uma torrente negra, porque a pintura das sobrancelhas se dissolveu por completo. E, por fim, a Grussinskaia atirou-se ao leito, soluçando um tropel de palavras russas nas mãos em concha, que conservava encostadas à boca. Gaigern, ao assistir a essa cena, transformou-se. De ladrão de hotel, prestes a tirar a vida de uma mulher, passou a ser simplesmente um homem, um sujeito grandão, simples e bondoso, que não podia ver uma mulher chorar sem querer auxiliá-la. Agora não sentia mais medo, absolutamente nenhum; agora, o que o fazia sentir o coração pequeno e palpitante era a simples compaixão. Inclinou-se sobre o leito, pondo os braços dos dois lados do pequenino corpo a soluçar, e assim, curvado sobre a Grussinskaia, principiou a sussurrar em meio aos seus soluços. Não era nada de especial o que ele dizia; com as mesmas palavras teria consolado uma criança a chorar, ou um cão enfermo.

— Coitadinha — foi mais ou menos o que ele disse —, pobrezinha, pobrezinha da Grussinskaia, ela está chorando. Faz bem chorar assim, faz? Pois então chore, pode chorar. Que foi que lhe fizeram? Foram maus para você? Você gosta que eu esteja ao seu lado? Posso ficar aqui? Está com medo? É por isso que está chorando, é? Você... bobinha!

Levantou um dos braços que apoiara ao leito, tirou da boca da Grussinskaia as mãos que ela apertava de encontro aos lábios e beijou-as; estavam molhadas de lágrimas e pretas como as de uma menininha; seu rosto também estava todo lambuzado das lágrimas negras caídas dos seus olhos pintados. Gaigern não pôde deixar de rir. Apesar de continuar a chorar, a Grussinskaia viu o movimento bondoso, próprio dos homens fortes, o movimento de ombros que fazem quando riem. Gaigern afastara-se do leito e tinha ido ao banheiro. Voltou com uma esponja e enxugou com muito cuidado o rosto da bailarina; tinha trazido também um lenço. A Grussinskaia tinha parado de chorar, e conservou-se deitada tranqüilamente, enquanto ele lhe limpava o rosto. Gaigern sentou-se à beira da cama e sorriu para ela.

— E então? — perguntou ele.

A Grussinskaia murmurou qualquer coisa que ele não compreendeu.

— Fale em alemão — pediu Gaigern.

— Você... criatura... — sussurrou a Grussinskaia.

Essas palavras o comoveram. Chocaram-se de encontro ao seu coração como uma bolinha de tênis atirada com força, e quase o magoaram. As damas com as quais ele tinha relações não costumavam usar palavras carinhosas. Para elas, a gente se chamava coisinha, menininho, queridinho, ou "o barão grandão". Gaigern percebeu o sentimento contido nesse apelo, que despertou em seu íntimo recordações da infância, vindas de uma esfera que ele abandonara. Afastou-o de si. "Se ao menos eu tivesse um cigarro", pensou ele, cheio de languidez. A Grussinskaia tinha olhado para ele um momento, com um olhar que exprimia confusão e quase felicidade. Depois ela se sentou, estendeu seus longos artelhos à procura dos chinelos que haviam caído e de repente se transformou em uma senhora.

— Ora essa! — disse ela. — Que sentimentalismo! A Grussinskaia está chorando? Como? É uma coisa que vale a pena ver. Há muito tempo, há anos que ela não chorava. Monsieur me assustou. Monsieur é o culpado por esta triste cena.

Falava na terceira pessoa, queria criar distância, retirar o repentino "você", mas esse homem já estava muito próximo dela, para que o pudesse chamar de "senhor". Gaigern nada pôde responder.

— É horrível como o teatro ataca os nervos — continuou ela em alemão, com a impressão de que ele não a tinha compreendido. —- Disciplina! Isso sim, disciplina nós temos. A disciplina é um coisa penosa e difícil. Disciplina é fazer sempre o que não se deseja, como posso explicar... o que a gente não gosta de fazer. Você sabe o que significa ficar exausto por excesso de disciplina?

— Eu? Eu não. Faço sempre o que quero — disse Gaigern.

A Grussinskaia ergueu a mão, com um gesto em que todas as Graças haviam retornado.

— Sim, monsieur. Sente-se vontade de entrar no quarto de uma senhora... e entra-se. Sente-se vontade de pular varandas, com risco de vida... e faz-se o que se quer. E qual é o desejo de monsieur, agora?

— Eu gostaria de fumar — respondeu Gaigern francamente. A Grussinskaia esperava outra resposta, e achou que o pedido era cavalheiresco e gentil. Foi até a escrivaninha e ofereceu a Gaigern sua pequena cigarreira. Com o quimono chinês, já muito usado, mas legítimo, e os chinelos acalcanhados, tinha a mesma aparência de há vinte anos, quando viajava por todos os continentes, cheia de uma graciosidade cristalina e tilintante. Parecia ter-se esquecido de seus olhos avermelhados, e de seu aspecto lamentável.

— Pois então fumemos o cachimbo da paz — disse ela, erguendo para Gaigern as pálpebras amarfanhadas. — E depois faremos a nossa despedida!

Gaigern tragou avidamente a fumaça pelo nariz e pelo pulmão. Sentiu-se aliviado, apesar de sua situação ser ainda delicada. Não podia abandonar esse quarto com as pérolas no bolso, quanto a isso não havia dúvidas. Se conservasse as pérolas, agora que conhecia a bailarina, teria que fugir nessa mesma noite, e no dia seguinte pela manhã a polícia o estaria perseguindo. Isso não fazia absolutamente parte dos seus planos. Agora tratava-se de ficar ali a qualquer preço, até que as pérolas pudessem retornar ao seu estojo. A Grussinskaia sentara-se diante do espelho e empoava o rosto, com expressão séria. Esfregou alguns riscos e pontinhos da pele e ficou novamente linda. Gaigern aproximou-se dela, pondo-se, com seu grande vulto entre a suitcase vazia e a mulher. Fitando seus ombros, ele dirigiu-lhe um sorriso tentador, doce como mel.

— Por que esse sorriso? — perguntou ela ao espelho.

— Porque vejo no espelho uma coisa que você não pode ver — disse Gaigern.

Dizia simplesmente: "você". O cigarro lhe tinha dado coragem, e ele se animou. "Avante", pensou ele, encorajando-se.

— Estou vendo de novo o que estava vendo há pouco, lá do balcão — disse ele inclinando-se sobre a mulher —, estou vendo no espelho uma mulher belíssima, como nunca vi outra igual. Essa mulher está triste. E está nua... Ela é... não, não posso dizê-lo, isso me faz ficar louco. Não sabia que era tão perigoso espiar em um quarto alheio uma mulher que se despe.

E, realmente, enquanto Gaigern formava no seu francês convencional essas frases galantes, via a imagem da Grussinskaia no espelho, como há pouco, e sentia ao vê-la a mesma admiração e o mesmo calor que sentira no balcão. A Grussinskaia ouviu-o atenta e com expressão inquiridora. "Como me tornei fria", pensou com tristeza, percebendo que não estremecia ao ouvir aquelas palavras entusiásticas. Sentia a intensa vergonha das mulheres frias. Voltou-se para Gaigern com um movimento elegante e calculado do longo pescoço. Gaigern segurou os pequenos ombros da mulher com suas mãos quentes e hábeis, e em seguida beijou-a no lindo sulco entre as omoplatas, como um conhecedor.

Esse beijo, principiado com frieza entre dois corpos estranhos, prolongou-se. Mergulhou como uma agulhazinha quente na espinha dorsal da mulher, cujo coração começou a palpitar com força. Seu sangue correu mais pesado e doce; sim, esse coração que já esfriara agora palpitava, e começou a vibrar; seus olhos se fecharam; ela tremia. Gaigern tremia também, quando a largou e endireitou o corpo; uma veia intumesceu, muito azul, na sua testa. De repente sentiu a Grussinskaia dentro dele. inteirinha, sua pele, seu perfume acre, seu estremecimento ansioso de prazer, que fora despertando aos poucos. "Com os diabos!", pensou ele de repente. Suas mãos estavam cheias de avidez, e ele as estendeu.

— Eu acho que o senhor deve retirar-se agora — disse a Grussinskaia com voz fraca, à imagem do moço no espelho. — A chave está na porta.

Sim, lá estava a malfadada chave; agora era possível retirar-se quando quisesse. Mas Gaigern não desejava retirar-se — por várias razões.

— Não — disse ele, com súbito sentimento de dominador, como o macho de uma pequenina mulher, trêmula como um violino a vibrar. — Não vou embora. Você sabe que não vou. Você pensa realmente que vou deixá-la agora aqui sozinha? Que vou abandoná-la ao lado de uma xícara de chá cheia de veronal? Você pensa que eu ignoro o que se passa com você? Eu vou ficar aqui. Está dito.

— Está dito? Está dito? Mas eu quero ficar sozinha....

Gaigern aproximou-se rapidamente da Grussinskaia, que estava de pé no meio do quarto, e puxou até seu peito os pulsos da bailarina.

— Não — disse ele com veemência. — Isso não é verdade. Você não quer ficar sozinha. Você tem um medo pavoroso de ficar sozinha, percebo perfeitamente o medo que você sente. Sei o que você está sentindo, eu a conheço, pequerrucha, mulher estranha. Você está representando uma pequena comédia para me enganar. O seu cenário é de vidro, eu vejo através dele. Há pouco você estava desesperada. Peça para eu ficar com você, peça!

Pôs-se a sacudir as mãos dela. Segurou-a pelos ombros e sacudiu-a. Pela dor que sentiu, ela pôde perceber a excitação do moço; Jerilinkov havia implorado, lembrou-se ela; este ordenava. Fraca e aliviada, ela deixou cair a cabeça sobre o peito coberto pelo pijama de seda azul.

— Sim, fique mais um minuto — murmurou ela. Gaigern, a olhar por cima de seus cabelos, respirava ofegante, soltando o ar por entre os dentes cerrados. Sua tensão de medo começou a se distender; um turbilhão de imagens desfilou rapidamente, cinematograficamente, diante dele; a Grussinskaia, morta em seu leito, com uma dose violenta de veronal no sangue, ele a fugir pelos telhados, investigações na casa de Springe, penitenciária — ele não fazia a menor ideia do aspecto de uma penitenciária, no entanto enxergava tudo perfeitamente, e também viu sua mãe, morrendo de novo, apesar de já estar morta há muito tempo. Quando voltou ao quarto 68, o medo e o perigo já vencidos transformaram-se de repente em embriaguez. Tomou nos braços o corpo leve da Grussinskaia, levou-o até a cama, onde a deitou como uma criança.

— Venha, venha, venha — murmurou ele de encontro às fontes da mulher, com uma voz subitamente grave e profunda.

A Grussinskaia há muito tempo não sentia o próprio corpo, e agora estava sentindo-o. Durante muitos anos não fora mulher, e agora sentia-se mulher. Um céu negro e sonoro começou a girar sobre ela, e ela se atirou nele com ímpeto. Um gemido brando de passarinho, expelido por uma boca entreaberta, transportou Gaigern, de uma fingida paixão, a profundidades de prazer que ele desconhecia. A xícara de chá, na mesa do hotel, estremecia de leve todas as vezes que passava algum automóvel. Primeiramente, a luz branca do lustre se refletiu no líquido envenenado; depois, apenas o vermelho da lâmpada de cabeceira, depois apenas a luz cambiante do anúncio móvel que penetrava pelas cortinas. Dois relógios apostavam corrida; o elevador rangia no corredor; a torre longínqua da igreja badalou uma hora, por entre as buzinas noturnas dos automóveis — e dez minutos mais tarde já cintilavam novamente os refletores, na fachada do Grande Hotel.

— Você está dormindo?

— Não!

— Está bem acomodado?

— Estou.

— Agora você está de olhos abertos. Sinto suas pestanas no meu braço, quando você abre e fecha os olhos. Que engraçado! Um homem tão grande, com pestanas de criança. Diga-me, você está satisfeito?

— Nunca me senti tão feliz como agora.

— Que é que você disse?

— Nunca me senti tão feliz com uma mulher como agora.

— Repita isso de novo, repita!

— Nunca me senti tão feliz — murmurou Gaigern de encontro à carne fresca e branca do braço em que sua cabeça repousava. Ele estava dizendo a verdade. Sentia-se indescritivelmente repousado e agradecido. Nunca sentira coisa semelhante em suas aventuras de amor barato; essa embriaguez sem ressaibos, esse repouso trêmulo após o amplexo, essa profunda confiança do próprio corpo em outro corpo. Seus membros repousavam, distendidos e satisfeitos, ao lado dos membros da mulher; havia profunda compreensão mútua entre a pele dela e a sua. Sentia qualquer coisa que não tinha nome, nem mesmo o nome de amor: um retorno, após prolongada ausência. Ele ainda era jovem, mas nos braços da Grussinskaia, já perto da velhice, sob a ação de suas carícias amorosas, suaves, conscientes e delicadas, tornava-se mais jovem ainda.

— Que pena... — murmura de encontro ao braço da mulher; levanta um pouco a cabeça, e a pousa no ninho da axila da companheira, um pequenino e cálido lar, com aroma de mãe e de prado.

— Pelo seu perfume eu a encontraria em qualquer parte do mundo, de olhos vendados — diz ele, farejando como um cãozinho. — Que perfume é esse?

— Deixe disso, e diga-me: pena por quê? Você... Deixe esse perfume... tem o nome de uma florzinha que cresce nas campinas: Neuwjada. Não sei como se chama em alemão. Tomilho? É feito em Paris para mim. Diga, pena por quê?

— Pena que se comece sempre com a mulher errada. Que se continue idiota durante uma infinidade de noites, pensando que é assim que se goza, que o prazer é essa coisa corrupta, e depois fria e desagradável como um estômago enjoado. E é pena que a primeira mulher com quem dormi não tivesse sido como você.

— Deixe disso... menino mimado — murmura a Grussinskaia, pousando os lábios nos cabelos dele, naquela peliça dura, espessa e quente, cheirando a macho e a cigarro, sempre bem penteada e alisada, e agora completamente em desordem. Ele roça com as pontas dos dedos, a respirar docemente, o flanco da sua companheira.

— Sabe? Você é tão leve! Levíssima! Um pouco de espuma numa taça de champanha — diz ele com carinho e admiração.

— Pois é. É preciso ser leve — responde a Grussinskaia.

— Estou com vontade de vê-la, agora. Posso acender a luz?

— Não, não! — exclama ela afastando dele o ombro. Ele percebe que a assustou, que assustou essa mulher, cuja idade ninguém sabe com certeza. Sente novamente uma compaixão simples e espontânea. Vai escorregando o corpo para junto dela, e por fim os dois ficam em silêncio, pensando. A luz da rua paira no forro, como um reflexo, estreito e agudo como uma espada, penetrando no quarto pela abertura das cortinas. Quando passa lá embaixo um automóvel uma sombra se espalha rápida no reflexo do forro.

"As pérolas", pensa Gaigern, "para o diabo. Se eu tiver sorte e tudo correr bem, posso metê-las de novo no estojo, quando ela dormir. Vai haver um escândalo com o meu pessoal, se eu for me encontrar com eles sem as pérolas. Contanto que o chofer não faça alguma loucura, contanto que esse animal não tome hoje de noite uma bebedeira de raiva e me estrague tudo... Que azar! Só Deus sabe onde é que vamos arranjar dinheiro, agora. Talvez seja possível sangrar esse herdeiro de província, que geme durante a noite no quarto ao lado, no -70. Ora! Que diabo! Não adianta ficar pensando nisso. Talvez eu possa simplesmente lhe pedir as pérolas. Talvez amanhã eu lhe conte simplesmente do que se trata. Se eu souber fazer as coisas direitinho, não será ela quem me mandará prender amanhã, não fará isso, essa pequerrucha leve e maluca. Deixar as pérolas rolando, numa maleta aberta! Que mulher engraçada, agora eu a conheço. Nem se importa com pérolas! Para ela, nada tem importância, tudo é indiferente. Se eu não tivesse aparecido, ela já não precisaria mais se incomodar com as joias. Para que ainda precisa de pérolas? Deve me fazer presente das pérolas, ela é tão boa... Ah, como é boa! Parece uma mãe, uma minúscula mamãezinha, com quem a gente pode dormir."

A Grussinskaia pensa: "Às onze horas o trem parte para Praga. Contanto que esteja tudo em ordem! Hoje eu abandonei tudo, e amanhã nada estará em ordem. Pimenoff é muito mole para lidar com a troupe; as meninas o levam pela ponta do nariz. Mas quem perder o trem amanhã será despedido, com certeza. Se Pimenoff esta noite não se preocupou com os cenários, amanhã eles não estarão empacotados; os empregados do palco deveriam ter trabalhado horas extras à noite. Mas as coisas que eu não faço ficam sempre por fazer. E as contas a acertar com Meyerheim? Meu Deus, como é possível que eu tenha abandonado tudo? Witte, se a gente não presta atenção nele, esquece até a própria cabeça no hotel. Preciso sempre pensar por todos, e esta noite não estive lá. Vai haver uma débâcle horrorosa. A Lucille há muito tempo que tem vontade de se revoltar. Para vocês nunca são suficientemente grandes as letras dos seus nomes nos cartazes, não é verdade? Sua propaganda nunca é bem feita. Mas vocês, sozinhos, não fazem nada, é preciso fazê-los trabalhar com o knut, para que vocês se conservem em forma. Vocês me fizeram ficar má, convencida e cansada. Meu Deus, como eu estava cansada ontem... Faltou muito pouco para vocês verem se são capazes de alguma coisa sem a Grussinskaia. Mas agora não me sinto cansada, agora poderia me levantar e dançar todo o programa, ou mesmo um outro programa, um bailado novo. Preciso falar com Pimenoff, ele precisa criar um novo bailado: a dança do medo. Oh, essa dança eu poderia dançar agora para vocês. Primeiro num lugar só, apenas um tremor, e depois três círculos nas pontas, ou mesmo sem ser nas pontas, talvez uma coisa completamente diferente.

''Mas estou viva", pensa ela, abalada, "estou viva, e vou criar novos bailados, vou ter sucesso. Uma mulher que é amada tem sempre sucesso. Vocês me fizeram passar fome desde... há mais de dez anos, foi isso. É estranho que um bobinho que pulou o balcão para vir aqui possa dar à gente tanta energia! Um rapaz simpático, que do amor só conhece o jargon das mocinhas..."

Ela puxa o cobertor e cobre Gaigern, como se ele fosse uma criancinha. Ele sussurra, agradecido, faz-se pequenino e fraco, e enfia o nariz na carne dela. Seus corpos já se conhecem, mas seus pensamentos se distanciam para lados distintos, dentro da noite. Em todos os leitos do mundo, os amantes ficam deitados muito unidos, mas tão separados!...

É a mulher quem primeiro procura adivinhar o que se passa na outra alma. Toma a cabeça do homem nas mãos, como se fosse um fruto grande e pesado colhido ao sol, e murmura em seu ouvido:

— Eu ainda não sei como você se chama, meu amigo.

— Costumam chamar-me de Felix. Meu nome todo é: Felix Amadei Benvenuto, Barão von Gaigern. Mas você precisa me dar um novo nome, precisa me batizar também. Quero ter um nome dado por você.

A Grussinskaia pensa um pouco, depois dá uma risadinha.

— Sua mãe devia ter esperado muita coisa de você, quando você nasceu, para lhe dar nomes tão bonitos — disse ela. — O venturoso. O amado de Deus. O bem-vindo. Você chorou ao ser batizado?

— Não me lembro muito bem.

— Ah! Sabe? Eu também tenho uma filha. Que idade você tem, Benvenuto?

— Hoje, tenho dezessete anos, de novo. Estou pela primeira vez com uma mulher. Mas minha idade comum é trinta anos.

Aumentou um pouco a idade, por estranha delicadeza para com a mulher que sente medo da luz elétrica e da própria idade. Apesar disso, ela se sente magoada. "Ele poderia ser o pai do meu neto Pompon, de oito anos", pensa a Grussinskaia sem querer. "Passons!", ordena a si mesma.

— Como era você em criança? Muito bonito? Ah, é claro, era muito bonito.

— Simplesmente encantador. Cheio de sardas, de galos e arranhões, e muitas vezes cheio de piolhos também. Tínhamos ciganos para tratar dos nossos cavalos; isso é muito comum na fronteira, onde ficava a nossa propriedade. Os meninos ciganos eram meus amigos. Eles me passavam toda espécie de bichos e de sarna. Quando me lembro da minha infância, sinto sempre um cheiro de estéreo de cavalo. Depois me tornei durante alguns anos o terror de vários companheiros de seminário. Por fim estive por pouco tempo na guerra. Da guerra eu gostei. Na guerra eu me senti em casa. Por mim, tudo podia ter sido muito pior do que foi. Se houver guerra de novo, tudo estará bem para mim, novamente.

— Agora as coisas não vão bem para você, seu condottiere? Que vida você leva? Que espécie de indivíduo é você?

— E você? Que espécie de mulher é? Nunca conheci nenhuma como você. Em geral as mulheres não têm muitos segredos. Mas a você tenho curiosidade de conhecer, preciso perguntar-lhe muitas coisas. Você é muito diferente das outras.

— Sou apenas antiquada. Sou de um outro mundo", de um século diferente do seu, é apenas isso — disse a Grussinskaia com voz sonhadora. Ao mesmo tempo sorriu nas trevas, e lágrimas ardentes lhe vieram aos olhos. — Educaram-nos como soldadinhos, a nós, bailarinas, com severidade, com pulso de ferro, no Instituto de Ballet Imperial de São Petersburgo. Pequenos regimentos de recrutas para o leito dos grão-duques, é o que nós éramos. Dizem que, nas meninas que aos quinze anos começavam a engordar, colocavam argolas de aço em volta dos seios, para que eles não crescessem mais. Eu era pequena e magra, mas dura como um diamante. Orgulhosa, sabe; tinha o orgulho no sangue, como pimenta e sal. Uma máquina do dever, trabalhando, trabalhando, trabalhando. Sem descanso, sem tempo para descansar, nunca! E depois: quem se torna célebre fica completamente só. Com o sucesso, a gente se sente gelada e solitária como no pólo norte. Sabe o que significa ter sempre sucesso, durante três, cinco, dez, vinte anos, sempre, sempre? Mas o que é que eu lhe estou contando? Você está me compreendendo? Ouça: muitas vezes a gente passa por uma estação de estrada de ferro, ou à noite passa de automóvel por uma pequena cidade. As famílias estão sentadas diante das portas, todos muito rígidos, com cara de idiota, com as manoplas pousadas no colo, e ninguém se move. É isso, veja, é isso! É isso o que nós desejamos: sentirmo-nos fatigados, e ficar simplesmente sentados, com as mãos imóveis, pousadas no colo. Mas se você for uma pessoa célebre, procure desaparecer do mundo, descanse, deixe que as outras bailarinas dancem, essas alemãs feias e com luxações nos músculos, essas negras, toda essa gente que não sabe nada; deixe que elas dancem, descanse! Veja, Benvenuto, isso não é possível, é absolutamente impossível. Odeia-se o trabalho, amaldiçoa-se o trabalho, mas não se pode existir sem o trabalho. Três dias de descanso, e vem o medo: vou perder a forma, estou ficando pesada, minha técnica está indo embora. É preciso dançar, como uma loucura, nem a morfina e a cocaína, nenhum vício no mundo é tão venenoso como o trabalho e o sucesso, acredite-me. É preciso dançar, somos obrigados a dançar. E isso também é importante. Se eu parar de dançar, não existe mais ninguém no mundo que saiba realmente dançar, acredite-me. Todas as outras são diletantes; mas é preciso que haja alguém que saiba dançar, que saiba o que significa a dança, em meio a um realismo histérico, horrível! Eu aprendi com as antigas celebridades; com a Kocressínskaia, com a Trefilovna, e elas, por sua vez, aprenderam com os grandes do bailado, há quarenta, há sessenta anos. Às vezes tenho a impressão de que tenho de dançar contra o mundo inteiro, contra o brado de "atualidade!" De um lado, estão vocês, um teatro repleto de ganhadores da vida e homens-máquinas, participantes da guerra e acionistas... e do outro, estou eu. Uma pobre e pequenina Grussinskaia, velha, não é verdade? Tão sentimental, tão antiquada, com os seus passos já conhecidos há duzentos anos. E, no entanto, eu os atraio ainda, e vocês choram, riem, desesperam-se e extasiam-se; e tudo por quê? Por causa desse balezinho fora da moda? Será tão importante, isso? Certamente, porque só tem sucesso mundial aquilo que tem importância para o mundo, aquilo de que o mundo precisa. Mas, ao lado disso, tudo se despedaça, dentro de nós nada mais resta. Nem marido, nem filhos, nenhum sentimento, nenhum conteúdo. Deixamos de ser indivíduos humanos como os outros, compreende? Não somos mulheres, somos apenas uma migalha esgotada de responsabilidade, que perambula pelo mundo. No dia em que termina o sucesso, no dia em que perdemos a crença de que somos indispensáveis, a vida acaba para nós. Você está me ouvindo? Está me compreendendo? Gostaria tanto que você me compreendesse — disse a Grussinskaia, em tom implorante.

— Não compreendi tudo... mas quase tudo. Você fala francês muito depressa — respondeu Gaigern.

Durante os meses em que ficou à espreita, atrás das pérolas, ele frequentou inúmeras vezes os espetáculos de ballet da Grussinskaia, aborrecendo-se sempre, em geral. Ficou profundamente admirado ao saber que a Grussinskaia, conforme parecia, arrastava consigo, como um martírio, os rodopios do ballet. Ela está colada com tanta leveza às coxas de Gaigern, tem uma vozinha delicada, com um gorjeio colorido e modulado e fala coisas tão sérias!... Que se pode responder a isso? Ele suspira. Fica pensando.

— Foi muito bonito o que você disse das pessoas à noite, com as mãos imóveis. Você devia dançar isso — declarou ele finalmente, confuso.

A Grussinskaia contentou-se em rir.

— Dançar isso? Mas não se pode dançar uma coisa assim, monsieur. A não ser que me queiram ver no papel de uma velha com um pano na cabeça, com gota nos dedos, dura como um pau, apenas repousando...

Cortou a frase no meio. Enquanto falava, seu corpo já tinha se apossado da imagem, contraindo-se e enrijecendo. Ela já estava vendo o cenário, conhecia um jovem pintor amalucado, em Paris, que poderia pintar uma coisa assim; já via o bailado, já o sentia nas mãos e na nuca curvada. Ficou calada, com a boca entreaberta, na escuridão. Nem respirava, tal a excitação que sentia. O quarto se encheu de personagens que ela nunca dançara, e que poderiam ser dançadas, de centenas de vultos reais e viventes. Uma mendiga a tremer, estendendo os braços, uma velha campônia dançando mais uma vez no casamento da filha... Diante de um balcão de feira encontrava-se uma mulher magra, apresentando umas míseras prestidigitações, uma prostituta esperava por homens sob uma lanterna. Uma menininha, que havia quebrado uma chave e levava uma surra; uma criança de quinze anos, que era forçada a dançar nua diante de um homem imponente, enorme e cintilante, um senhor, um grão-duque, e também a espinhosa paródia de uma governanta; uma mulher que corria como se a estivessem perseguindo, apesar de não ser esse o caso; uma outra que queria dormir e não podia; uma que tinha medo de espelho; e ainda uma outra que bebia veneno e morria.

— Fique quieto... não diga nada... não se mexa — sussurrou a Grussinskaia olhando para o forro, em que se via a espada luminosa. O aposento adquirira o aspecto estranho e misterioso que os quartos de hotel às vezes gostam de apresentar. Lá embaixo os automóveis lançavam fumaça pelo escapamento, buzinavam, parecendo animais, porque a Liga dos Filantropos terminara a sua festa, e começava a saída pelo portão 2. A noite esfriou. Do turbilhão das ideias e dos rostos, a Grussinskaia voltou ao quarto com um leve arrepio. "Pimenoff vai pensar que eu estou louca, ele, com seus baileis de borboletas. Quem sabe se estou louca mesmo?" Da sua divagação de um minuto, havia retornado ao leito, como se voltasse de uma longa viagem. Gaigern ainda continuava deitado. Ela quase se assustou ao encontrar de novo o homem encostado ao seu ombro, com seus cabelos, suas mãos e sua respiração.

— Que espécie de homem é você? — perguntou ela mais uma vez, nas trevas, com o rosto bem sobre o dele. Ela sentia intimamente, nesse instante, o espanto de se encontrar tão próxima de uma coisa tão estranha e diferente dela. — Ontem eu ainda não o conhecia. Quem é você? — perguntou ela de encontro à cálida umidade da boca do homem.

Gaigern, que já estava quase adormecendo, deixou os dois braços tombarem sobre as costas da mulher, e ela teve a impressão de ser a esguia cadela galga de sua casa, a Biche.

— Eu? Não há muita coisa a contar — respondeu ele, obediente, mas sem abrir os olhos. — Sou um filho pródigo. Sou uma ovelha negra de um bom curral. Sou um mauvais sujet, e vou acabar na forca.

— É verdade? — perguntou ela, dando uma risadinha arrulhante.

— É verdade — disse Gaigern, convencido. Começara a cantarolar como uma ladainha, e por brincadeira, aquelas velhas frases e advertências dos professores do seminário; mas, ao perfume cálido de tomilho daquela cama, veio-lhe o desejo de confessar-se e de ser sincero.

— Sou um devasso — continuou ele a falar na escuridão. — Não tenho caráter, e sou de uma curiosidade incrível. Não consigo me adaptar a nada, sou um sujeito inútil. Em casa aprendi a montar e a ser o senhor. No seminário aprendi a rezar e a mentir. Na guerra, a atirar e a procurar pôr-me a salvo. Mais do que isso não sei fazer. Sou um cigano, um marginal, um aventureiro.

— Ah, você... E o que mais?

— Sou um jogador, e não me importo de fazer trapaças. Também já roubei. A bem dizer, eu devia estar é na prisão. Mas ando por aí, e me sinto às mil maravilhas, e faço tudo o que me dá na veneta fazer. Às vezes me embebedo também. E, além do mais, sou preguiçoso de nascença.

— Continue — murmurou a Grussinskaia, encantada. Sua garganta estava vibrando, de tanto conter o riso.

— Pois bem, sou um criminoso. Um homem que escala muros de fachadas — disse Gaigern, sonolento —, um assaltante.

— E que mais ainda? Talvez um assassino, também?

— Isso mesmo. É claro. Um assassino também. Estive a ponto de matá-la — afirmou ele.

A Grussinskaia ainda se riu, um pouco inclinada sobre o rosto de Gaigern, que ela sentia, apesar de não o ver, mas de repente ficou muito séria. Cruzou as mãos por detrás do pescoço dele e murmurou em surdina ao seu ouvido:

— Se você não tivesse vindo ontem, eu não estaria viva agora!

"Ontem?", pensou Gaigern. "Agora?" A noite no 68 parecia ter durado uma eternidade, devia ter sido há alguns anos que ele estivera no balcão e enxergara a mulher no quarto. Levou um susto. Apertou-a em seus braços com força, como um lutador de luta livre: os músculos flexíveis da bailarina resistiram — ele o sentiu com estranho prazer.

— Você nunca mais deve fazer uma coisa dessas.

Você tem de ficar aqui. Não a deixarei ir-se embora mais. Preciso de você — afirmou.

E ficou a ouvir a própria voz, ao pronunciar tão curiosas palavras, com uma voz diferente, rouca, que parecia provir do fundo palpitante de seu coração.

— Não, agora tudo mudou. Agora está tudo bem. Agora você está comigo — murmurou a Grussinskaia; mas Gaigern não a compreendeu, porque ela falou em russo.

Ele sorveu a entonação da sua voz, e a noite começou de novo a rumorejar. Pássaros de sonho saíram das trepadeiras da tapeçaria que forrava as paredes do hotel... O homem se esqueceu das pérolas no bolso do seu pijama azul e a mulher se esqueceu do insucesso e dos veronais na xícara de chá.

Nenhum dos dois se atreve a pronunciar esta palavra caduca: "amor". Juntos, deslizam no confuso turbilhão da noite de amor, passando dos abraços aos murmúrios, dos sussurros a um breve sono e aos sonhos, e dos sonhos a um novo abraço: duas pessoas vindas de dois pontos opostos do mundo, para encontrar-se por algumas horas no leito do quarto 68, onde tanta gente já dormiu...


8

 

Na vida da Grussinskaia o amor não havia representado um papel importante. Tudo o que o corpo e a alma possuíam de paixão fluía para a dança. Tinha tido alguns amantes, porque isso fazia parte da vida de uma bailarina célebre, assim como as pérolas, o automóvel, os vestidos das boas casas de moda de Paris e de Viena. Rodeada de admiradores, requisitada e perseguida por apaixonados, não acreditava apesar de tudo na existência do amor. Ele não lhe parecia mais real do que os cenários pintados, os templos de amor e as sebes de roseiras diante dos quais seus bailados eram executados. Apesar de permanecer fria e de não conseguir entusiasmar-se, passava por uma amante maravilhosa, única. Por seu lado, praticava o amor como um dever da sua profissão, como uma peça de teatro, por vezes agradável, mas sempre exaustiva, requerendo uma arte requintada. Toda a flexibilidade do seu corpo, seu flutuar etéreo, a sutilidade, o requinte, a delicadeza e a suavidade, o impulso e o arrojo, a emoção e a debilidade, todos os impecáveis requisitos da sua dança, ela levava consigo para os amigos com quem passava as noites. Sabia embriagar de prazer, mas não se embriagava a si mesma. Na dança, era capaz de enlouquecer, de esquecer-se de si própria, e por vezes seus partners ouviam-na soltar gritinhos abafados, como um passarinho, durante as posições mais difíceis e movimentadas. No amor, porém, nunca perdia a consciência de si mesma, estava sempre se observando. Era estranho: não acreditava no amor — e no entanto não podia viver sem amor.

Porque o amor — ela o sabia — era uma parte do sucesso. Enquanto fora jovem, e seu camarim transbordava de flores e de cartas, enquanto em todo o seu percurso os homens se postavam, prontos a arruinar-se, a fazer por ela qualquer espécie de loucura, a abandonar a fortuna e a família, ela sentia que o sucesso a bafejava. Nas confissões de amor, nas ameaças de suicídio, nas perseguições por toda parte, pelo valor dos presentes que recebia dos conquistadores podia-se perceber o sucesso, do mesmo modo que nos aplausos, nas críticas e no número de chamadas ao proscênio. Ela não o sabia, mas o amante que a encantava e lhe causava prazer era, a bem dizer, um público perante o qual ela tinha sucesso. E pela primeira vez percebeu, horrorizada, que o sucesso diminuía, quando Gaston a abandonou, para casar-se com uma moça sem muitos dotes, mas de boa família. A atmosfera que a rodeara durante anos esfriou e se tornou sombria, uma atmosfera noturna, incompreensível. Era uma escadaria que ia descendo por centenas de degrauzinhos, tão pequenos que quase não a deixavam aperceber-se dela. E, no entanto, era vastíssimo o caminho que conduzia aquela Grussinskaia de antes da guerra, que dançara para um mundo cheio de romantismo e de êxtase, à atual Grussinskaia, que mendigava um pouco de aplauso de um punhado de pessoas céticas, indiferentes e maldosas. O seu fim, como última consequência, era a completa solidão, e uma dose forte de veronal.

Por essa razão, o homem do balcão significava para a Grussinskaia mais do que um simples homem. Era um milagre que acontecia no último instante no 68, para salvá-la; era o sucesso evidente que a procurava; o mundo que penetrava cheio de ardor em seu quarto; era a prova de que os tempos românticos ainda não haviam passado, os tempos em que um jovem Jerilinkov se deixava matar com um tiro por ela. Ela se deixara cair, mas encontrara alguém que a erguia do solo.

Havia no programa da Grussinskaia um bailado em que a morte dançava um pas de deux com o amor; os poetas que lhe escreviam, por vezes, enviavam-lhe versos em que voltava sempre o banal pensamento de que a morte e o amor eram irmãos. Nessa noite, a Grussinskaia comprovava em si própria a verdade desse lugar-comum. A vertigem dolorosa da noite passada transformou-se em embriaguez, num torvelinho de gratidão, num anseio febril de receber e de dar, de sentir e conservar. Os anos gelados se derretiam. O vergonhoso segredo da sua frieza, que escondera durante toda a vida, desfazia-se, deixava de existir. Há tantos anos se sentia de tal modo pobre e solitária, que às vezes mendigava à pele jovem e cálida do seu partner, Michael, uma esmola de calor. Nessa noite, nesse quarto indiferente de hotel, nessa cama comum de metal brilhante, ela se sentia arder, transformava-se, descobria o amor, que não acreditava que existisse.

Os quartos 68 e 69 eram tão parecidos que, ao despertar, Gaigern não sabia muito bem onde se encontrava. Quis virar-se para a parede do seu quarto, mas encontrou o vulto pequenino da Grussinskaia, que dormia e respirava docemente. Recordou-se. A maravilhosa e profunda confiança do primeiro sono dormido junto repousava em seus membros como um peso suave. Retirou seu braço, que adormecera debaixo do pescoço da mulher, e com leve e ' solene comoção rememorou os acontecimentos dessa noite. Não havia dúvida — estava apaixonado, e além disso, de um modo completamente novo e grato. Sem que as pérolas influíssem no seu sentimento, não podia deixar de pensar, envergonhado: somos uns porcos. Não era a história gorada das pérolas que influía no seu sentimento. Sobe-se a um quarto alheio: inventa-se uma comédia atroz, representa-se — e a mulher acredita em tudo. Faz questão de acreditar. Os homens representam e as mulheres acreditam neles. A bem dizer, no começo a gente é sempre um embusteiro e um assaltante; mas em seguida, a mentira transforma-se em verdade. "Eu gosto muito de você, pequenina Mouna, querida e boa Neuwjada, eu te amo, je t’aime, je t'aime. Você fez uma bela conquista, mulherzinha, você..."

Fazia frio no quarto; lá fora já devia estar amanhecendo; a rua estava silenciosa, uma réstia de luz crepuscular penetrava por entre as cortinas, e o desenho da tapeçaria das paredes começava a esgueirar-se pela madrugada. Gaigern levantou-se com o maior cuidado. A Grussinskaia dormia profundamente, com o queixo enterrado no próprio ombro. Agora, que passara o tumulto da noite, as duas cápsulas de veronal pareciam estar fazendo efeito. Gaigern tomou-lhe a mão, que pendia para fora do leito, repousou na sua palma as pálpebras quentes, e depois enfiou aquela mãozinha frouxa sob o cobertor, como se a Grussinskaia fosse um bebezinho. Foi caminhando com cuidado, na meia escuridão do quarto, até o balcão, e abriu lentamente as cortinas. A Grussinskaia não despertou. "Agora tenho que pôr em ordem o negócio das pérolas", pensou Gaigern. Admirou-se de sentir-se satisfeito com a solução. "Um round perdido", pensou ele sem se aborrecer. Gostava de usar essas expressões de esporte, em seus empreendimentos aventureiros. Tateou à procura do pijama, e sorriu ao encontrar as diversas partes do seu vestuário atiradas por todo o quarto; em seguida entrou no banheiro. Ao contato da água, o ferimento da sua mão direita começou a arder e a sangrar; lambeu-o com indiferença e não se importou mais com isso. O aroma acre e murcho de louros, no aposento, acentuara-se. Gaigern, desejoso de respirar ar fresco, foi ao balcão e aspirou profundamente; seu peito ainda estava repleto de uma doce e desconhecida angústia.

Lá fora paira, sobre a rua que desperta, uma neblina fria que o vento leva. Nem automóveis nem gente. A distância, ouve-se o sibilar de um bonde a correr nos trilhos. Não surgiu ainda o sol, mas há uma luz leitosa e igual. Uns passos martelados, na esquina, e novamente o silêncio. Um pedaço de papel flutua como um passarinho enfermo sobre o asfalto, e depois pousa no chão. A árvore plantada não muito longe do portão 2 balouça os galhos sonhadores. Um sonolento passarinho de março, bem lá em cima, pousado na haste delicada de um botão, experimenta a voz no tumulto da grande cidade. Um caminhão cheio de caixas com garrafas de leite segue aos solavancos, muito cheio de si; a neblina que desliza cheira a maresia e a gasolina; a grade do balcão tem um brilho úmido. Gaigern encontra suas meias de larápio no balcão, e enfia-as depressa no bolso, junto das luvas, da lanterna de bolso e das pérolas de quinhentos mil marcos, de que ainda precisa se livrar. Torna a entrar no quarto, deixando as cortinas abertas; a luz pálida cai em triângulo no tapete, estendendo-se até o leito em que dorme a Grussinskaia.

Agora ela está estendida de costas, com a cabeça tombada de lado, dando a impressão de que a cama é grande demais para o seu corpo delicado e pequenino. Gaigern, para quem a maioria das camas de hotel são curtas, achou graça e sentiu-se comovido. Teve um súbito pensamento, uma ideia carinhosa. Foi buscar a xícara de veronal na mesinha e também os tubinhos de vidro vazios, e dirigiu-se com eles ao banheiro. Com os cuidados de uma ama, lavou a xícara, depois de esvaziá-la, e secou-a com um lenço. Ao encontrar o roupão de banho da Grussinskaia, com um gesto infantil, beijou-o na manga. Não havendo lugar para colocar os vidrinhos, guardou-os no bolso, junto das pérolas. A Grussinskaia suspirou dormindo, quando ele se aproximou de novo da cama. Inclinou-se sobre ela, franzindo a testa, mas ela continuou a dormir. Já clareara um pouco. Agora ele podia ver bem de perto, e com clareza, o rosto dela. Os cabelos caíam para trás, muito lisos, deixando descobertas as fontes reentrantes, estreitas e sombreadas. Por baixo dos olhos fechados evidenciava-se a idade, em dois sulcos profundos. Gaigern o percebeu, porém sem desgosto. A boca era linda, acima do queixo delicado, mas já murcho. Um pouco do pó de arroz pálido ainda ficara em sua testa, perto da franjinha. Gaigern lembrou-se, divertido, de que durante a noite ela tirara de baixo do travesseiro um estojinho de pó de arroz, antes de permitir-lhe que acendesse a lâmpada. "Agora eu a estou vendo bem", pensou ele com o sentimento primitivo de triunfo de um assaltante de mulheres. Começou a observar o rosto da mulher, como se fosse uma paisagem desconhecida, em que se passeia à procura de aventuras. Observou duas misteriosas riscas simétricas que partiam das fontes, ao longo das orelhas, indo até a garganta, uma linhazinha mais clara do que o resto da pele. Passou o dedo com cuidado sobre a linha; era uma delicada cicatriz que rodeava seu rosto, como a fímbria de uma máscara. De repente, Gaigern compreendeu do que se tratava. Eram as cicatrizes da vaidade, cortes na pele para esticá-la e rejuvenescer — ele já lera qualquer coisa a esse respeito. Sorrindo, sacudiu a cabeça, com um ar de incredulidade. Sem querer, apalpou suas próprias têmporas, que eram bem lisas, e vibravam com batidas fortes e saudáveis.

Encostou com a maior delicadeza o seu rosto no da Grussinskaia, como se pudesse assim transmitir um pouco do seu ser para a companheira. Admirou-se ao perceber quanto a amava nesse momento, com um amor terno e compassivo. Teve a impressão de estar sendo um sujeito limpo e correto, ligeiramente ridículo, sem dúvida, nos sentimentos que dedicava à pobre mulher, cujos segredos ele tinha descoberto.

Afastou-se da cama e ficou por uns minutos diante do espelho, com a testa enrugada, a boca ligeiramente aberta, mergulhado em pensamentos. Estava pensando se não seria possível, apesar de tudo, ficar com as pérolas. Não, não era possível. Por enquanto, ele continuava a ser o Barão von Gaigern, um homem um tanto leviano, que convivia com uma gente ordinária. Com dívidas, sim, mas ainda digno de confiança. Se saísse do quarto com as pérolas, então a polícia seria avisada dentro de poucos minutos e sua existência de cavalheiro estaria terminada. Seria um criminoso perseguido pela polícia, como qualquer outro. Isso não lhe convinha, em absoluto. Não fazia parte do seu programa ter-se tornado o amante da Grussinskaia, mas era um fato consumado, e modificava todo o resto. Pesou as chances, como teria pesado as chances de um pugilista ou de um tenista. Empreendimentos como esse das pérolas eram o seu esporte e, desta vez, o jogo lhe estava sendo desfavorável. Não era possível roubar essas pérolas; na situação atual, só poderia recebê-las de presente, caso tivesse paciência. "E preciso esperar", pensou Gaigern, suspirando profundamente. Suas reflexões eram objetivas e realistas, mas ele não queria admitir que no fundo havia ainda outra coisa por trás disso tudo. Não queria ter a consciência do próprio ridículo, e detestava sentimentalismos. Olhou para o espelho e fez uma careta para si próprio. "Em resumo", pensou aborrecido, "não é do meu feitio roubar o adereço de pérolas de uma mulher com quem dormi. Agora não tenho a mínima vontade de fazer tal coisa. Eu sofreria com isso — e acabou-se!

"Neuwjada", pensou ele com súbito carinho, olhando para a cama; "bondosa Mouna, eu preferia poder oferecer-lhe algum presente, muitos presentes, uma coisa bonita e valiosa, alguma coisa que lhe causasse prazer, pobrezinha." Puxou de dentro do bolso o colar de pérolas, com precaução e sem ruído. Já não gostava mais delas. Talvez até fossem falsas, apesar de todas as lendas dos jornais; talvez nem fossem tão valiosas como a propaganda dizia. De qualquer modo, ele se separava agora delas com a maior facilidade.

Quando a Grussinskaia procurou despertar, sua cabeça estava envolta no sono como em espessos véus. "É o veronal", pensou, continuando com os olhos fechados. Nos últimos tempos ela tinha medo de despertar, tinha medo do choque que sentia ao defrontar-se com os aborrecimentos da vida. Tinha a vaga sensação de que nessa manhã alguma coisa boa e agradável a esperava, mas não descobriu logo do que se tratava. Lambeu os lábios, pensando encontrar neles o gosto sonolento e seco da noite. Movimentou os dedos das mãos, como um cão a mover-se em sonhos. Seu corpo estava cansado, exausto, mas satisfeito, como após um enorme sucesso, após uma noite com muitos da capo, em que é preciso esgotar completamente as forças. Sentiu sobre as pálpebras fechadas a claridade matutina, e por um instante pensou que estava em Tremezzo com os reflexos da superfície do lago, em seu quarto de dormir cinzento-rosado. Decidiu abrir os olhos.

Primeiro, viu sobre os joelhos um cobertor que não conhecia, da altura de uma montanha; depois, a tapeçaria das paredes do hotel, com o desenho de frutas tropicais vermelhas, pendentes de frágeis hastes, um desenho que dava a impressão de observá-la fixamente, com um olhar febril e absorto.

Nessas tapeçarias das paredes dos hotéis colava-se todo o tédio da sua vida sem parada. O canto perto da escrivaninha estava sombrio; ali, a cortina estava fechada e não podia saber as horas. A porta do balcão estava aberta e deixava entrar uma brisa fresca. Ao lado da mesa do espelho, virada para a claridade da varanda, a Grussinskaia, ainda sonolenta, percebeu a silhueta larga e escura de um homem. Estava de costas, com as pernas meio abertas, firme e imóvel, com a cabeça inclinada, observando qualquer coisa que ela não podia ver. "Sonhei com alguma coisa parecida há pouco", pensou primeiro, ainda meio apalermada de sono, sem se assustar. "Já aconteceu coisa parecida na minha vida", pensou em seguida. "Jerilinkov", pensou finalmente. De repente, seu coração disparou como um motor, ela acordou totalmente, e lembrou de tudo.

Respirou com a boca fechada, sem ruído, mas profundamente, e com o ar que aspirou ocorreu-lhe a lembrança de tudo o que se passara durante a noite. Retirou um braço de baixo do cobertor, sentindo-o muito leve, com vontade de voar. Tateou, à procura do estojinho de pó de arroz, e, dirigindo um olhar sério ao minúsculo espelho redondo, começou a se arrumar. O delicado perfume do pó de arroz lhe causou prazer; sua imagem agradou-lhe. Sentia amor por si própria, como há muitos anos não sentia. Segurou seus pequeninos seios, como costumava fazer, mas nessa manhã isso lhe causou um prazer especial. Gostou de sentir a própria pele, lisa, fresca e satisfeita. "Benvenuto", disse em pensamento; e em russo "Chelani". Mas como só pronunciou esse nome para si mesma, o homem não pôde ouvi-la. Lá estava ele, de pernas abertas, com seus belos ombros, como um dos carrascos de Signorelli — descobriu a Grussinskaia, encantada —, ocupado com algum objeto pousado na mesinha do espelho. Ela se levantou e olhou-o sorrindo.

 

Gaigern estava com as mãos dentro da maleta em que se encontravam suas pérolas. Ela ouviu claramente o ruído de um dos estojos, reconhecendo o estalido agudo e surdo; era o estojo comprido de veludo azul, onde ficava o colar de cinquenta e duas pérolas de tamanho médio. No primeiro momento a Grussinskaia não percebeu por que razão esse ruído a assustava mortalmente. Seu coração parou, e depois voltou a bater com pancadas pesadas e sonoras, que ecoavam dolorosamente por todo o corpo. Doíam-lhe as pontas dos dedos, que se tornaram rígidas. Os lábios também. Mas ainda continuava a sorrir; esquecera-se de retirar da boca o sorriso, que permaneceu, enquanto seu rosto esfriava, tornando-se branco como papel. "É um ladrão", pensou a Grussinskaia, adivinhando tudo. E esse era um estranho pensamento, silencioso e definitivo, como um corte que lhe atravessasse o coração. Julgou perder a consciência, desejando-o com ardor, mas ao invés de acontecer isso, uma infinidade de pensamentos lhe passou pela cabeça durante um segundo, claros, cortantes, entrecruzando-se, entrechocando-se; um duelo de pensamentos.

O sentimento torturante de ter sido enganada atrozmente; vergonha, medo, ódio, cólera, uma dor medonha. E, ao mesmo tempo, uma fraqueza profunda como um abismo; não queria ver, não queria compreender, não queria acreditar na verdade, só desejava abrigar-se na piedade da mentira.

— Que faites-vous? — murmurou às costas do carrasco. Pensou que estava gritando, mas apenas sussurrou por entre os lábios rígidos: — Que está fazendo?

Gaigern levou tal susto que sua cabeça se virou de súbito; e seu susto era uma confissão de culpa. Na mão ele guardava o estojinho cúbico de um dos anéis; a suitcase estava aberta, o colar de pérolas estendia-se sobre a placa de vidro da mesinha do espelho.

— O que está fazendo aí? — sussurrou mais uma vez a Grussinskaia, causando dó, realmente, vê-la sorrir, com o rosto pálido e desfigurado.

Gaigern compreendeu-a logo, de novo se encheu de piedade, uma piedade ardente, que ele sentia palpitar nas têmporas. Dominou-se com energia, e conteve-se.

— Bom dia, Mouna — disse amavelmente. — Encontrei aqui um tesouro, enquanto você dormia.

— Como é que encontrou as minhas pérolas? — perguntou a Grussinskaia, com voz rouca. "Minta, minta", pedia seu olhar esgazeado.

Gaigern aproximou-se dela, e pousou a mão sobre seus olhos, como um guarda-sol. "Pobre bichinho, pobre femeazinha."

— Estive remexendo em suas coisas. Estava procurando um adesivo, um pedaço de atadura, qualquer coisa... imaginei que iria encontrar alguma coisa na valise. E lá estava o seu tesouro. Tenho a impressão de ser Aladim na gruta.

Até mesmo a cor dos olhos dela desaparecera; eles pareciam agora de chumbo, e só pouco a pouco lhes foi voltando sua cor negra azulada. Gaigern estendeu diante dela a palma da mão ferida, a sangrar ligeiramente, como prova do que dizia.. A Grussinskaia, lânguida e com os nervos frouxos, pousou nessa mão os lábios. Gaigern pousou a outra em seus cabelos, e puxou sua cabeça de encontro ao peito aberto do pijama de seda azul. Ele podia mostrar-se bastante brutal e ordinário com as mulheres com quem costumava encontrar-se. Mas esta, sabe o Diabo por quê, despertava nele todos os bons instintos. Era tão frágil, tão maltratada pela vida, necessitava tanto de auxílio — e ao mesmo tempo era tão forte... Pela existência que ele levava, que parecia estar sempre a pender de um fio, Gaigern compreendia a dela.

— Bobinha — disse ele com carinho. — Será que você pensou que eu estava cobiçando as suas pérolas?

— Não — mentiu a Grussinskaia. Essas duas inverdades foram a ponte sobre a qual os dois amantes se puderam encontrar. — Aliás, eu não as uso mais — acrescentou ela, respirando aliviada.

— Não as usa mais? E por quê?...

— Você não compreende essas coisas. É uma superstição. Antigamente elas me davam sorte. Depois me trouxeram infelicidade. E agora que deixei de usá-las, me dão sorte de novo.

— É mesmo? — perguntou Gaigern pensativo, procurando vencer o mal-estar e o acanhamento que sentia.

As pérolas repousavam de novo, em ordem, em seu pequeno leito. "Adieu!" Até logo, pensou ele, como uma criança. Meteu as mãos nos bolsos, num gesto decidido; lá se encontravam as ferramentas de ladrão, mas nenhuma presa. Sentia-se felicíssimo, com uma sensação de leveza e de satisfação, espantosamente renovado e farto. Abriu bem a boca e soltou uma exclamação de júbilo, emitindo um som forte e cheio. A Grussinskaia começou a rir. Gaigern atravessou o quarto correndo, aproximou-se dela e mergulhou em sua pele seu grito de prazer, deixando-se cair sobre a mulher, com a boca, o olhar e o sentimento. Ela tomou suas mãos e beijou-as; esse gesto exprimia uma gratidão humilde, em parte real, em parte representada.

— Está sangrando — disse ela, com a boca sobre o pequeno ferimento.

— Seus lábios são como os de um cavalo — respondeu Gaigern —, macios como um potrinho preto, de magnífico pedigree.

E ajoelhou-se, abraçando os joelhos da mulher, cujos tendões vibravam por baixo da pele. Justamente quando a Grussinskaia fez menção de se curvar sobre ele, alguma coisa ronronou na escrivaninha; um tilintar breve, depois longo, novamente breve.

— O telefone — disse a Grussinskaia.

— O telefone? — repetiu Gaigern.

A Grussinskaia suspirou profundamente. Não adianta, exprimia a sua fisionomia, ao erguer o fone do gancho com um gesto cansado, como se ele pesasse uma tonelada. Suzette estava ao telefone.

— São sete horas — anunciou sua voz matinal rouca. — Madame precisa levantar-se. É preciso arrumar as malas. Posso mandar o chá? E se madame quiser que lhe faça massagem, já está na hora — e Herr Pimenoff pede que lhe telefone imediatamente, assim que madame se levantar.

Madame ficou pensando durante um segundo.

— Daqui a dez minutos, Suzette... não, dentro de quinze minutos você pode trazer o chá, e depois faremos um pouco de massagem.

Colocou o fone no gancho, mas continuou a segurá-lo, enquanto estendia a outra mão a Gaigern, que ficara no meio do quarto, a balançar o corpo sobre as solas finas de cromo dos seus sapatos de pugilista. Ela ergueu imediatamente o fone, de novo, e lá de baixo o porteiro respondeu com uma voz diligente e serviçal, apesar de não ter pregado olho durante toda a noite, porque sua mulher não estava passando muito bem na clínica.

— Que número, por favor? — disse ele com voz enérgica.

— Wilhelm, sete, zero, dez! Com Herr Pimenoff! Pimenoff não estava hospedado no hotel, mas numa pensão de segunda classe, que uma família de imigrantes russos abrira no quarto andar de uma casa em Charlottenburg. Parece que lá ainda estavam dormindo. Enquanto a Grussinskaia esperava, viu em espírito o velho Pimenoff, correndo ao telefone com seu surradíssimo pijama de seda, com os pés magros, que ele mantinha sempre com as pontas um pouco abertas para fora, como se estivesse fazendo a quinta posição. Finalmente ele atendeu, com sua voz delicada e nervosa de velho.

— Ah, Pimenoff, é você? Bom dia, dobroie utro, meu caro! Sim, obrigada, dormi bem, não, não tomei muito veronal, só dois comprimidos; obrigada, tudo ali right, coração, cabeça, etc, etc. Como? O que aconteceu? O Michael está com um derrame de sangue no joelho? Mas, meu Deus, por que é que você não me disse isso ontem à noite? É horrível! Custa muito a passar, muito mesmo... Nós sabemos o quanto demora! E que providências você tomou? Como? Não fez nada, ainda? Mas é preciso mandar imediatamente um telegrama ao Tcherenov, ouviu? Imediatamente, ele precisa vir ajudar. Meyerheim que vá telegrafar. Onde está metido o Meyerheim? Vou chamá-lo logo pelo telefone. É cedo demais? Com licença, querido, por que razão para nós não é cedo demais, e para Herr Meyerheim... Não, por favor! E os cenários, já foram levados para a estação? Mas, por favor, com o primeiro despacho, quando começa a ser feito o primeiro despacho? Às seis? Se os cenários não estiverem lá, você é o responsável, Pimenoff. Nem uma palavra mais, você é o mestre de bailei, é quem deve cuidar dos cenários; não tenho nada que ver com isso. É, espero sua resposta dentro de meia hora no máximo, vá você mesmo à estação. Adieu!

Dessa vez ela nem chegou a pousar o fone; apenas fez pressão no gancho com dois dedos. Chamou Witte, que costumava levantar-se pela manhã um pouco apalermado, e que, apesar dos inúmeros anos de tournées, ficava sempre como uma pilha, e fazia uma confusão medonha. Depois, a Grussinskaia chamou Michael, que estava hospedado num hotelzinho e se pôs a lamentar-se como um cãozinho pisado, sobre o derrame de sangue. A Grussinskaia gritou-lhe severas ordens e conselhos pelo telefone; ela ficava furiosa, e era injusta sempre que qualquer elemento da troupe adoecia. Chamou três médicos, antes de encontrar um que pudesse ir ver logo o Michael, para dispensar-lhe os cuidados necessários e levar-lhe ligaduras com compressas de terra argilosa e vinagre. Chamou Meyerheim ao telefone, discutiu com ele num francês excitado, e intimou-o a comparecer às oito e meia no hotel para acertar as contas. Enviou pelo telefone um telegrama a Tcherenov e, por precaução, outro a um jovem bailarino, que dançava bem e estava sem contrato em Paris. Em seguida, com o auxílio do porteiro Senf, ligou para o expresso de Paris, pelo qual o jovem bailarino poderia chegar a tempo em Praga, e depois procurou passar um terceiro telegrama.

— Por favor, chéri, abra a torneira do banheiro — disse ela apressadamente a Gaigern, entre uma ligação e outra, matraqueando em seguida uma série de ordens em inglês, pelo telefone, ao chofer Berkley, porque o carro não devia seguir com eles, mas nesse meio tempo ir para uma garagem, a fim de ser limpo. Gaigern foi ao banheiro e obedeceu-lhe, abrindo a torneira. Fez mais ainda: estendeu sobre o aparelho de calefação o roupão de banho, para aquecê-lo. Procurou a esponja com que no dia anterior lavara o rosto desfigurado da Grussinskaia e levou-a para o banheiro, enquanto ela continuava a falar no telefone. Encontrou sais de banho e jogou um punhado na água, que já estava transbordando. Teria de bom grado feito mais alguma coisa para ela, mas não encontrou mais nada para fazer. A Grussinskaia também parecia ter terminado, por enquanto, seus telefonemas.

— Você está vendo?... todos os dias é assim — disse ela, procurando dar à voz uma entonação de queixa; mas sua voz só exprimia uma vitalidade exuberante e o prazer de arrumar as malas para a viagem.

— É preciso fazer isso tudo. E depois o Michael diz: há sempre espalhafato em torno da Grussinskaia. Ele dá a isso o nome de chi-chi, como se tudo não passasse de uma brincadeira.

Gaigern, de pé diante dela, estava faminto por um pouco de carinho, de intimidade, e estendeu-lhe ambas as mãos; mas ela estava distraída. Pensava no derrame de Michael. Ouvia de novo o tique-taque dos dois relógios.

Tomou depressa do telefone e chamou Suzette mais uma vez.

— Espere mais dez minutos, Suzette — pediu ela com muita cortesia, e com a consciência da própria culpa.

Seu olhar aflorou à mesa e à xícara de chá da noite anterior. Lá estava a xícara, muito bem lavada, com uma expressão de profunda inocência e candura, o brasão dourado do hotel a cintilar na porcelana grossa.

"Que noite maluca", pensou a Grussinskaia. "Não, essas coisas não se fazem. E bailados como os que imaginei hoje não se podem dançar. Foi apenas o resultado de uma excitação nervosa. Os vienenses me vaiariam se eu apresentasse bailados como imaginei, em vez da pomba ferida e das borboletas. Em Viena o público é diferente do de Berlim; lá eles sabem o que é ballet."

Apesar de Gaigern a estar olhando fixamente, de frente, ela não o via. Ele sentiu uma ligeira dor, desconhecida até então, uma dor estranha e viva, que lhe cortava a respiração.

— Tomilho! Neuwjada! — disse ele baixinho, indo buscar as palavras no profundo tumulto da noite. Elas conservavam seu perfume agridoce, e a inesquecível recordação. E, realmente, ao ouvir-se chamar desse modo, a Grussinskaia voltou a olhar para ele, e sua fisionomia assumiu uma expressão tensa de sofrimento, embora sorrisse.

— Acho que precisamos nos separar agora, querido — disse ela com um tom de voz propositadamente forte e inflexível, para evitar que a voz se quebrasse.

Havia esquecido, apagado por completo as lembranças das pérolas. Tinha apenas um sentimento de apego e aconchego, por essa mulher, um desejo infinito de ser bom para ela, muito, muito bom. Com uma sensação de desamparo, girou no dedo o anel de sinete com o brasão dos Gaigern, em lápis-lazúli.

— Tome — disse ele estendendo a mão e oferecendo-lhe o anel, com um gesto desajeitado de menino. — É para que você não se esqueça de mim.

"Não o verei mais?", pensou a Grussinskaia. Esse pensamento a fez sentir um ardor nos olhos, e a fisionomia bonita de Gaigern foi desaparecendo em meio das suas lágrimas. Esse era um pensamento que não se devia exprimir. Ela ficou esperando. "Deixe-me ficar com você. Vou ser muito bom para você", pensou Gaigern. Apertou os lábios com força e obstinação e não disse nada.

— Você vai para Viena? — perguntou ele.

— Primeiro para Praga, por três dias. Depois catorze dias em Viena. Vou ficar hospedada no Bristol — acrescentou.

Silêncio. Tique-taque de relógios. Buzinas de automóveis diante do hotel. Cheiro de enterro. O arfar da respiração.

— Você não pode viajar comigo, querido? Preciso de você — disse finalmente a Grussinskaia.

— Eu... para Praga não posso ir. Não tenho dinheiro. Preciso primeiro arranjar o dinheiro.

— Eu lhe dou — respondeu ela prontamente. Com a mesma pressa Gaigern respondeu:

— Não sou um gigolô!

De repente caíram ambos nos braços um do outro, impulsionados por qualquer coisa de grande, num abraço forte, unidos no momento em que tinham de se separar.

— Obrigado — disseram ao mesmo tempo —, obrigado, obrigado — repetiram em três línguas: alemão, russo e francês, num balbucio confuso, num tom de soluço, num sussurro .choroso, em júbilo: — Obrigada, merci, bolchoie spassibo, danke.

Nesse instante Suzette está recebendo das mãos do criado de quarto, com ar de ofendido, a bandeja com o chá. São sete horas e vinte e oito minutos. O relógio na escrivaninha corre, sem fôlego; o outro, de cansaço, parou. Continue, continue, continue, bate ele, em tom de reprimenda.

— Então, em Viena? — diz a Grussinskaia, com as bordas das pestanas úmidas. — Daqui a três dias? Você segue depois que eu partir. E depois se encontra comigo em Tremezzo; vai ser ótimo, vai ser maravilhoso estarmos juntos! Vou tirar umas férias, de seis a oito semanas, e nós vamos*viver, querido, vamos somente viver, deixando tudo para trás, tudo isso que não tem sentido; vamos apenas viver, ficaremos idiotas de tanta preguiça e felicidade; e depois você vai comigo para a América do Sul. Você já conhece o Rio? Eu... não, chega. Está na hora. Vá! Vá! Querido! Obrigada!

— Daqui a três dias o mais tardar — diz Gaigern. A Grussinskaia ainda faz pairar em seu redor, às pressas, um pouco da sua graça de dama da alta-roda.

— Tome cuidado para chegar ao seu quarto sem me comprometer muito — pediu ela, fechando as duas portas, uma após a outra.

Quando Gaigern, em silêncio, soltou a mão da mão dela, sentiu-a dolorida. Sangrava de novo. O corredor está silencioso, as inúmeras portas vão-se perdendo na longa perspectiva. Nas soleiras, as botinas dormem, com as orelhas pendidas. O elevador vem descendo e, no terceiro andar, alguém corre para não perder o trem. No hall da escada, uma das janelas de vidro leitoso está aberta, deixando sair para o pátio a fumaça dos cigarros dessa noite. Gaigern se esgueira, com suas solas de pugilista, por sobre o tapete de ananases; entra no 69, seu próprio quarto, e fecha a porta com uma gazua. A chave ainda está na caixa, na portaria.

A Grussinskaia, depois de tomar banho, deita-se de bom grado, para entregar-se às mãos de massagista de Suzette. Sente-se forte, elástica e cheia de energia. Tem uma vontade enorme de dançar, e está ansiosa pelo próximo espetáculo. Sente que terá sucesso agora, pois em Viena se tem sempre sucesso; ela o sente nas pernas, nas mãos, no pescoço, que inclina para trás, repentinamente, e na boca, que tem sempre desejos de sorrir. Veste-se e sai correndo, como um pião. Com enorme élan, atira-se às ocupações da manhã, à discussão com Meyerheim, à luta subterrânea com as perfídias da troupe, ao trabalho paciente com Pimenoff e Witte.


9

 

 

Às nove horas o groom 18 traz um buquê de rosas: "Até logo, querida boca", está escrito num pedacinho rasgado de papel do hotel. A Grussinskaia beija o anel de sinete com o brasão dos Gaigern. — Porte-bonheur — sussurra, como a falar com um velho conhecido. Agora ela já tem de novo um talismã. "Michael tem razão. Vou doar as pérolas... para as crianças pobres", pensa ela. Suzette segura com luvas de tricô a alça da suitcase, enquanto o criado leva o resto da bagagem. Sem saudades, a Grussinskaia deixa o quarto do hotel, tão cheio de aventuras, com aquela tapeçaria da parede que lhe fazia mal aos nervos. No Hotel Imperial de Praga já está reservado para ela um outro quarto com banheiro privativo dando para o pátio, o número 184. Também no Rio, em Paris, em Londres, em Buenos Aires, em Roma foi feita igual reserva; espera-a uma infindável perspectiva de quartos de hotel com portas duplas e água corrente, e o cheiro indefinível de incessante movimento e de coisas desconhecidas.

Às nove horas e dez a camareira, que não dormiu durante a noite, tira muito mal o pó do quarto 68, joga fora as cestas de flores secas, leva a xícara de chá e finalmente traz roupa de cama limpa — ainda úmida da passagem a ferro — para o próximo hóspede.

 

O relógio, pérfido como todos os despertadores, deixou de acordar o Diretor-Geral Preysing, com seu tilintar pontual e enérgico. Às sete e meia tilintou apenas durante um segundo, e isso foi tudo. Preysing, que dormia com a boca aberta e seca, mexeu-se ligeiramente, as molas do colchão gemeram, e por trás do reposteiro amarelo o sol brilhou um pouco. Às oito horas o porteiro, muito cumpridor de seus deveres, despertou o diretor chamando-o ao telefone, mas já era tardíssimo. Preysing pôs a cabeça meio tonta de sono embaixo da ducha, praguejando baixinho por ter-se esquecido de trazer o aparelho de barbear. Um pedante como ele perdia toda a alegria com uma coisa assim. Apesar de estar atrasado, levou alguns minutos escolhendo o terno que ia vestir. Depois de já ter escolhido o cut, despiu-o com raiva. Calculou — e talvez com razão — que não seria vantajoso vestir o cut; o terno cinzento de viagem, pelo contrário, demonstraria imediatamente aos senhores de Chemnitz que não estava tão interessado assim por todo aquele negócio. Apressou-se o mais que pôde, mas até que arrumasse todos os saquinhos e estojos, que procurasse todas as chavinhas, as encontrasse e enfiasse nas fechaduras, folheasse mais uma vez seus documentos e contasse mais uma vez o dinheiro, já eram mais de nove horas. Com a cabeça quente, saiu correndo do apartamento e, no corredor, deu um encontrão em um homem.

— Desculpe! — disse Preysing, parando diante da porta de seu quarto, para conseguir enfiar o outro braço no casaco.

— Não foi nada! — replicou o cavalheiro, continuando seu caminho sobre a passadeira. Preysing julgou reconhecer esse modo de manter as costas. Quando chegou ao elevador, o homem já ia descendo; o diretor pôde vê-lo também de frente e julgou reconhecê-lo igualmente, sem se recordar de onde. Teve a impressão de que ele sorria zombeteiramente, enquanto descia no elevador, diante do seu nariz. Preysing, excitado e impaciente, desceu a escada correndo e foi em disparada pelos corredores até o subterrâneo de azulejos, onde o barbeiro do hotel tinha o seu salão; ali cheirava a água estagnada de porão e a Peau d'Espagne. No salão estavam sentados muitos cavalheiros, metidos em batas brancas, como babies esperançosos, entregues às manipulações dos barbeiros vestidos com jaquetas brancas. Preysing, impaciente, começou a dançar sobre suas grossas solas de crepe.

— Vai demorar muito para chegar a minha vez? — perguntou ele, roçando o rosto por barbear, nas palmas das mãos.

— No máximo dez minutos. Há só um senhor na sua frente — responderam-lhe.

O tal senhor que havia chegado antes dele era o homem que descera no elevador, e Preysing olhou-o com desagrado. Era um sujeitinho insignificante, magro e modesto, meio vesgo por trás de uns óculos a escorregarem, e com o nariz pontudo inclinado sobre um jornal. Preysing tinha uma vaga ideia de já ter tratado de negócios com esse homem, mas não conseguia recordar-se em que circunstâncias. Postou-se diante dele, fez uma leve curvatura, e procurando ser amável disse:

— Por favor, o senhor podia me fazer a gentileza de me ceder a sua vez? Estou com muita pressa.

Kringelein, que se encolhera todo atrás do jornal, juntou suas forças. Mostrou a cara por trás do artigo de fundo, estendeu o pescoço fino, voltou-se para o diretor-geral olhando-o de frente e respondeu:

— Não!

— Desculpe... mas é que estou com muita pressa — tartamudeou Preysing em tom de reprimenda.

— Eu também — replicou Kringelein. Preysing, furioso, virou as costas e saiu do salão de barbeiro. Como um vencedor, um herói, mas completamente exausto e vazio pela desmedida tensão nervosa, Kringelein, ofegante, continuou sentado, envolto no aroma das essências dos sabões de barbear.

Atrasado, com a barba por fazer e com a ponta da língua doendo, por tê-la queimado no café fervendo, o diretor-geral entrou na sala de conferências. Os outros senhores já tinham soltado na sala uma bela fumaceira azul de charuto. A sala, com seu pano de mesa verde, a imitação de tapeçaria de damasco nas paredes e o retrato a óleo do fundador do Grande Hotel, tinha um aspecto de conforto e solidez. O Dr. Zinnowitz já havia colocado seus documentos na mesa, na sua frente; o velho Gerstenkorn estava sentado na cabeceira da compridíssima mesa, presidindo a sessão, e, para cumprimentar, ergueu apenas a metade do corpo, porque ele pertencia à geração robusta do sogro de Preysing, conhecera o diretor-geral ainda moço e não o tinha em grande conta.

— Está atrasado, Preysing? — perguntou ele. — Quarto de hora acadêmico? Não passou bem ontem de noite? É isso, Berlim tem dessas coisas! — riu-se com a tosse grossa e encatarrada dos bronquíticos, e apontou para a cadeira a seu lado.

Preysing sentou-se defronte de Schweimann com a desagradável impressão de ter levantado com o pé esquerdo, e seu lábio superior, sob o bigode, estava úmido antes mesmo de começar a luta. Schweimann, que tinha pálpebras espessas e uma boca grande e de lábios grossos, uma boca elástica de macaco, apresentou um terceiro senhor:

— O nosso síndico, o Dr. Waitz — disse ele.

O Dr. Waitz era jovem ainda; tinha um ar distraído, mas não o era em absoluto, e durante as conversações podia tornar-se bem desagradável, com sua voz dominadora e agressiva de trombeta. Tinha sido trazido também pelos senhores de Chemnitz.

— Nós já nos conhecemos — disse Preysing com pouco entusiasmo.

Schweimann ofereceu, por sobre a mesa, um charuto ao diretor-geral. O Dr. Zinnowitz tirou do bolso do colete uma caneta-tinteiro e a colocou à sua frente, ao lado dos documentos. Bem afastada, sentada à mesa, do outro lado da garrafa de água e dos copos que ofuscavam facilmente os olhos e vibravam sobre uma bandeja preta, sempre que passava lá fora algum ônibus, estava uma personagem apagada: a Flamm número um, com o bloco de estenografia na mão, envelhecida e insignificante, com uma leve penugem branca de traça nas faces, calada, cumpridora dos seus deveres, impossível de ser confundida com a Flamm número dois.

— Bonita caneta — observou Schweimann a Zinnowitz. — De que marca é? Muito bonita.

— Gosta? Recebi-a de Londres. É bonita, não é verdade? — respondeu Zinnowitz, escrevendo sua assinatura fluente num caderninho de notas. Todos olharam.

— Quanto custa uma caneta assim, se me permite perguntar-lhe? — informou-se Preysing, tirando sua própria caneta do bolso do colete e colocando-a na mesa. E todos os presentes olharam também para a caneta inglesa.

— Umas três libras, sem pagar a alfândega. Um conhecido me trouxe — esclareceu o Dr. Zinnowitz.

— Que coisa prática! Muito prática.

Todos estenderam as cabeças por sobre a mesa, como meninos de escola, e observaram a caneta-tinteiro de malaquita verde, de Londres. Esse objeto merecia de fato que cinco participantes adultos de uma conferência se ocupassem dele durante três minutos.

— Bem, agora vamos tratar de negócios — disse afinal o velho Gerstenkorn com sua voz encatarrada, e imediatamente o conselheiro Zinnowitz apoiou seus dedos alvacentos sobre a coberta verde da mesa e começou, com palavras fluentes e preparadas de antemão, uma exposição do assunto, fazendo ressoar a voz na atmosfera azul da sala de conferências.

Preysing permitiu-se uma pequena pausa para se acalmar. Ele próprio não era bom orador, e se sentia agradecido por Zinnowitz ter assumido essa tarefa, e por suas frases se ensarilharem, fluentes e claras, como atiradas por uma máquina. E isso não era mais que a introdução. Primeiro falou de coisas que já haviam sido há muito tempo ruminadas em negociações preliminares. Expôs mais uma vez a situação em que as negociações estavam, enquanto ia pescando, na pasta dos documentos, ora este ora aquele papel, levando as longas colunas de números bem próximo dos olhos míopes para poder lê-las com mais facilidade.

Tornando a repetir, era este o ponto em que estavam as negociações: a Algodoeira Saxônia S.A., que fabricava principalmente tecidos de algodão e cobertores, e com o refugo fabricava uma qualidade muito apreciada de serapilheira, era uma firma de boa envergadura e grande capital. Seu ativo em terrenos, prédios e maquinaria, em mercadorias em bruto e manufaturadas, em patentes, etc, e principalmente em crédito, totalizava um capital considerável. Os impostos anuais e o produto líquido conservavam-se numa sólida média, os dividendos haviam somado, ainda no ano passado, nove e meio por cento.

Zinnowitz ia lendo as cifras, mais ou menos satisfatórias, e Preysing o ouvia com agrado. No seu empreendimento estava tudo limpo e em ordem, e a produção com o refugo, que sozinha trazia trezentos mil em bruto, fora organizada por ele. Olhou para Gerstenkorn. Este, com a maneira pensativa e meio simplória dos velhos manhosos, balançava de um para outro lado a cabeça grisalha, à escovinha. Schweimann aspirava seu charuto, parecendo não estar ouvindo. Waitz controlava as cifras que eram lidas, uma a uma, olhando para um caderninho com capa de couro, onde ele tomara notas. A Flamm número um, verdadeira mestra, na arte da secretária particular, em não fazer notar sua presença, com olhar fixo fitava os reflexos na água, em que a caneta tomava o aspecto tremulante de uma pequena e aguda baioneta. Zinnowitz tirou outro maço de papéis de entre os documentos colocados uns sobre os outros e passou então a tratar da situação da Malharia de Chemnitz. Sua barba longa e fina de chinês subia e descia quando ele falava.

A Malharia de Chemnitz era — deduzia-se das cifras — um empreendimento muito menor. Mal possuía a metade desse ativo, e seu balanço demonstrava uma situação bastante precária. Ele tinha anotado apenas o principal, mas, não obstante, tivera de lançar uma elevadíssima participação de lucros. Os impostos anuais eram altos. O lucro líquido mal chegava à altura dos impostos. Considerando tudo isso, as cifras do balanço da Chemnitz mantinham-se espantosamente elevadas. Zinnowitz colocou um amável e pequeno sinal de interrogação por trás das últimas cifras que lera, e fitou o velho Gerstenkorn.

— Suba. Pode arredondar para duzentos e cinquenta mil marcos, pode fazê-lo.

— O senhor não pode fazer as contas assim — observou Preysing, que tinha ficado nervoso. — O senhor precisa amortizar o preço das novas máquinas para o novo processo. Nesse caso, o senhor não poderá anotar nem mesmo suas velhas máquinas.

— Mesmo assim. Mesmo assim — insistiu Gerstenkorn, teimoso.

O Dr. Waitz trombeteou:

— Poderemos considerar as nossas cifras muito mais desvalorizadas do que valorizadas.

O Dr. Zinnowitz pôs em cima da mesa um papel para o diretor-geral, e este, forçando a vista, aprofundou-se nos seus cálculos. O resultado ele já conhecia. A Malharia de Chemnitz era um empreendimento de pouca solidez, fundado com pouco capital, e com o crédito quase estourando. Mas impunha-se, tinha bons lucros, parecia estar se desenvolvendo, tinha as conjunturas a seu favor. Enquanto isso, a Algodoeira Saxônia ficava para trás, ia adormecendo, sólida e bem fundada como era. Algodão, cobertores e serapilheira. O mundo não se interessava, no momento, por cobertores e serapilheira. E o velho de Fredersdorf sabia por que razão ele insistia, nas atuais circunstâncias, em agarrar a oportunidade dos tecidos de malha, e trazer assim um lucro para o seu empreendimento.

— Isso não tem importância. Vamos adiante — disse o diretor, com a condescendência de um homem que está em posição inferior. Gerstenkorn tirou da mão dele o balanço e, alisando delicadamente o papel, tossiu uma risada.

Zinnowitz, com palavras fluentes, já havia tratado da situação das ações, havendo, nesse ponto, um erro evidente. O capital efetivo da Saxônia era quase duas vezes maior do que o ativo dos senhores de Chemnitz. Partindo dessa premissa, todas as outras negociações preliminares haviam decorrido de modo que, na fusão das duas firmas, duas ações da Chemnitz equivalessem a uma ação da Saxônia. Mas as ações da Chemnitz haviam subido, as da Saxônia baixado, o equilíbrio tinha-se modificado sensivelmente, e o Dr. Zinnowitz, com um gesto conciliante da mão, teve que conceder — a base das trocas se modificara, em razão da espantosa subida das ações da Malharia de Chemnitz. Preysing ouvia com desagrado a voz polida do seu advogado, que com muitas frases, impecáveis e condicionais, trazia à luz uma quantidade de coisas desagradáveis, que ele estava farto de saber. Seu charuto já não lhe dava mais prazer; tirou ainda algumas baforadas enérgicas, e acabou pondo-o de lado. Num certo ponto da exposição de Zinnowitz, o Dr. Waitz saltou, como um ator na sua deixa, bateu rapidamente com a palma da mão no pano verde da mesa, e opôs suas objeções. Começou a ler cifras no seu caderno de notas, sem olhá-lo sequer, novos números, números diferentes — Preysing contraiu de tal modo os músculos da testa, que seus olhos saltaram das órbitas, tal o esforço que fazia para conservar na memória todas aquelas coisas, para perceber tudo e não perder de vista o aspecto geral do assunto. Puxou para o seu lado alguns papéis de carta do hotel, que estavam em cima da mesa, e se pôs a rabiscar notas às escondidas, e excitado como um mau aluno. O conselheiro Zinnowitz, por seu lado, havia apenas lançado um olhar à Flamm número um, e a boa moça já estava a estenografar as agressivas palavras e provas no seu bloco, com riscos azuis. O Dr. Waitz apresentou o conjunto de suas trombeteadas objeções: não, não era possível exigir dos acionistas da Malharia de Chemnitz um prejuízo de metade do seu capital, no caso de tal fusão. Conforme sua opinião, não havia nenhum motivo plausível para, no caso de uma eventual fusão — ele frisou o "eventual", como um ator de província —, conceder a primazia à Saxônia, com relação à sociedade de Chemnitz, para de certo modo colocar num plano de dependência essa firma em plena florescência, para pô-la simplesmente a um canto.

Zinnowitz olhou para Preysing, e este, obediente, se pôs a falar. Tinha o hábito de falar de coisas importantes com voz nasal e abafada, num tom aborrecido e monótono; pelo fato de se sentir intimamente um homem pouco seguro de si, empregava tais meios para demonstrar aos outros calma e superioridade. As palmas de suas mãos estavam úmidas, quando se atirou à luta. Os olhos de Schweimann arrastaram-se para fora das órbitas vermelhas em que habitavam, como camundonguinhos cinzentos, e Gerstenkorn colocou os polegares nas cavas do colete, com a expressão de uma pessoa que está se divertindo. As paredes de damasco falso ouviam tudo, com indiferença. Conferências como essa se realizavam diariamente no Grande Hotel; nesse enorme Kaff eram cozidas muitas sopas, que em seguida os acionistas tinham que engolir. O açúcar subia de preço, as meias de seda barateavam, o carvão desaparecia, tudo isso e milhares de coisas mais dependiam do decorrer dessas lutas na sala de conferências do Grande Hotel.

Preysing ia falando. Quanto mais ele falava, com uma voz que ressoava como se a tivesse posto sobre a neve, e quanto mais minucioso se tornava, tanto mais perdia terreno. As interrupções breves e concludentes de Gerstenkorn assobiavam por entre suas frases como balas de revólver. Houve momentos em que Preysing teria de bom grado fugido dali, meia-volta, marchar, marchar, abandonando toda essa história imunda de fusão, para voltar para a companhia de Mulle, Pepsin e Babe, em Fredersdorf. Mas era um diretor-geral, e o mundo não era um negócio tão simples assim; dessa fusão muito se esperava para a fábrica, e dela dependia tudo para a sua própria posição dentro da fábrica, pelo que aguentou o repuxo. Puxou mais uma vez do seu ativo, essa prova mais do que sólida de um empreendimento mais do que sólido, e se agarrou a isso com unhas e dentes. Caceteou os senhores da Chemnitz, caindo em pormenores excessivos, e o conselheiro precisou por várias vezes pô-lo em movimento, como a um barco encalhado e lento. Preysing fazia uma confusão medonha, insistia em alguns pontos secundários, teimava sem a mínima razão; caceteava os senhores da Chemnitz com minuciosas descrições da fabricação de tecido de serapilheira, feito com refugo do material, pois era do que mais gostava de falar, esquecendo-se de aludir a assuntos importantes que tinha sublinhado no papel de carta diante dele. Finalmente ficou parado no meio de uma frase que começara como. uma fanfarra e terminou num beco sem saída. Tirou do bolso o lenço e enxugou o suor do bigode; pôs na boca um novo charuto, que tinha gosto de feno. De repente teve a impressão de estar sentado em uma mesa entre contrabandistas, pessoas sem seriedade e sem princípios; sentiu a amargura do homem honesto que e tido por tolo.

Então, Gerstenkorn tirou das cavas do colete seus dedos redondos de burguês atrasado e começou a expor a sua opinião. Esse senhor Gerstenkorn, com sua cabeça quadrada à escovinha e sua voz bronquial, era um orador claro e combativo. Empregava toda espécie de dialetos, para dizer sem rodeios o que queria dizer. Saxão, berlinês, iídiche e mecklemburguês eram o tempero da sua conversa sobre negócios.

— Agora o senhor faça ponto final, e deixe os adultos falarem — observou ele, conservando na boca o charuto, o que tornava sua linguagem, comumente vulgar, mais vulgar ainda, e era o que ele queria. — As coisas de que a Saxônia é capaz o senhor já nos contou, e nós já sabíamos disso tudo. Música também ela não sabe fazer. Já repetimos e tornamos a repetir isso tudo aos nossos principais acionistas, e qual foi o resultado? Receio, um enorme receio, um fundamentado receio da fusão. É engraçado, como é que os acionistas, por causa do seu algodão, iriam meter a mão no caldeirão para tirar as salsichas quentes? Em poucas palavras: a nossa situação melhorou muito desde a primeira vez que o senhor se dirigiu a nós. A sua situação não se modificou, se quisermos ser amáveis e não dissermos que piorou. Nessas condições, nós, falo em alemão claro, meu prezado Preysing, perdemos o interesse na fusão. E estamos aqui com a incumbência de parar com as negociações, nessas circunstâncias. Quando o senhor se dirigiu a nós, as perspectivas eram outras.

— Mas nós não nos dirigimos aos senhores — disse Preysing com rapidez.

— Homem de Deus, o que aconteceu com o senhor? Dirigiram-se a nós, sim! Dr. Waitz, faça o favor de me passar os dados. O senhor dirigiu-se a nós em... aqui está... em 14 de setembro, por carta.

— Não é verdade — teimou Preysing, puxando o maço de documentos que estava diante do conselheiro Zinnowitz. — Nós não nos dirigimos aos senhores. Antes dessa carta já tinha havido uma troca pessoal de impressões, pedida pelos senhores.

— Trata-se disso? Pois um mês antes o seu velho já tinha batido à minha porta, a título particular, com toda a amabilidade.

— Nós não nos dirigimos em primeiro lugar — respondeu Preysing, apegando-se a esse fato absolutamente sem importância, como se isso pudesse salvar alguma coisa. Zinnowitz bateu com os pés estreitos debaixo da mesa, pedindo socorro. De repente, Gerstenkorn pôs fim à discussão, e passou a palma da mão quadrada sobre o pano verde da mesa.

— Está bem — disse ele —, bon. Pois então não se dirigiram, se assim lhe agrada. E, tenham ou não se dirigido, as circunstâncias naquela época eram diferentes, o senhor tem que concordar, Herr diretor-geral — ele disse "Herr diretor-geral", e a mudança da maneira amistosa de falar para esse tom oficial soava ameaçadoramente. — Naquela época tínhamos motivos para desejar uma sociedade com a Algodoeira Saxônia. Hoje, que motivos temos?

— Os senhores precisam de um capital maior — disse Preysing, com toda a razão.

Gerstenkorn, com dois dedos, varreu da mesa a objeção.

— Capital! Capital! Se emitirmos hoje novas ações nos atirarão quanto dinheiro quisermos. Capital! O senhor se esquece de uma coisa: o seu bom tempo foi durante a guerra, naquela ocasião a gente podia arranjar a vida fazendo tecido para o Exército e cobertores. Agora o tempo está bom para nós, entende? Nós não precisamos de capital. Precisamos de matéria-prima barata, para aproveitar o nosso novo processo, e precisamos de novos mercados no exterior. Digo-lhe com toda a franqueza, e diretamente, a opinião da nossa sociedade, Herr diretor-geral. Se a fusão com os senhores for proveitosa para nós, então a concretizaremos. Do contrário, não a faremos. Faça o favor, diga o que pensa sobre isso.

Pobre Preysing! Tinha que expor o seu pensamento. Agora haviam chegado naquele ponto que o amedrontava, desde que pisara o trem misto em Fredersdorf. Lançou um olhar de coelho a Zinnowitz, mas este olhou com um ar de recusa as próprias unhas, bem tratadas e pálidas.

— Não é nenhum segredo o fato de possuirmos ótimas relações no exterior. Só para os Bálcãs exportamos anualmente sessenta e cinco mil marcos de tecido de serapilheira — observou ele. — É natural que, no caso de uma fusão, faríamos o possível para atrair ainda o mercado externo para o produto de malha manufaturado.

— Quais são os motivos que o levam a afirmar isso com tanta certeza? — perguntou o Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, erguendo um pouco o busto, conforme um antigo hábito seu, do tempo em que fora juiz criminal. Dava a impressão de ainda usar a toga, e falava num tom de voz próprio para intimidar a testemunha insegura. O diretor-geral se deixou intimidar.

— Não sei a que motivos se refere — respondeu ele, com seu lamentável costume de perguntar coisas que estava farto de saber.

Schweimann, bem em frente dele, ainda não tinha aberto sua enorme e elástica boca de macaco. Agora a abria.

— Trata-se da planejada sociedade com Burleigh & Son — afirmou ele, sem rodeios.

Gerstenkorn balançava com a máxima atenção a longa ponta de cinza do seu charuto.

— Infelizmente, não estou em condições de dar informações a esse respeito — respondeu Preysing imediatamente. Preparara de antemão essa resposta, e a sabia de cor.

— Que pena! — disse o velho Gerstenkorn.

Em seguida ficaram todos calados durante alguns minutos.

A garrafa de água tilintou levemente na bandeja, porque lá fora passava um ônibus, e o reflexo estreito e contorcido do sol batendo na água parada tremulou na parede sobre a moldura do retrato a óleo do fundador do Grande Hotel. Preysing, durante alguns segundos, se pôs a refletir febrilmente. Não sabia se o Dr. Zinnowitz havia mostrado ao pessoal da Chemnitz as cópias daquelas cartas agourentas, sem o menor valor e importância. Sentia novamente nas mãos aquela impressão de falta de asseio e de trato. Seu rosto por barbear começou a cocar de um modo ridículo. Lançou um olhar inquiridor e implorante ao conselheiro, lá na ponta da mesa. Zinnowitz, procurando acalmá-lo, baixou as pálpebras oblíquas e inteligentes de seus olhos de chinês, um movimento quase invisível, que tanto podia significar sim, como não, ou mesmo não significar absolutamente nada. Preysing dominou-se. "Preciso consegui-lo", pensou ele; era mais um sentimento do que um pensamento.

— Meus senhores — disse ele, levantando-se; é que o forro esticado de veludo da cadeira causava no seu traseiro uma sensação desagradável de calor —, mas, meus senhores, vamos tratar do que importa. A base sobre a qual foram feitas até agora todas as negociações entre nós foi o balanço e a situação da fábrica de Fredersdorf. Os senhores puderam fazer uma ideia bem clara da situação, o senhor conselheiro comercial Gerstenkorn pôde certificar-se pessoalmente das condições em que se encontra a nossa fábrica, e eu faço questão de que hoje não se trate de coisas vagas e imponderáveis nas nossas negociações. Não somos especuladores, eu não sou um especulador, em absoluto, trabalho com fatos e não com boatos. Não passa de um boato da Bolsa, isso de que vamos fazer sociedade com Burleigh & Son, em Manchester. Mandei desmentir isso, não posso permitir que...

— O senhor não vai querer ensinar uma lebre velha a correr, não é? Nós sabemos muito bem o que significa um démenti — replicou Gerstenkorn.

Schweimann agora estava animado; farejava, com as suas narinas dilatadas e a boca de macaco, como se já cheirasse a possibilidade do mercado inglês. Preysing foi-se enfurecendo.

— Não aceito! — exclamou ele. — Não aceito que considerem como um fator importante nos nossos negócios esse assunto da Inglaterra; não aceito isso. Não faço cálculos com castelos na Lua, nunca fiz isso, a nossa fábrica não tem necessidade de fazer semelhante coisa. Conto com coisas reais, com fatos, com cifras, com o nosso balanço, aqui está — exclamou ele batendo três vezes com a palma da mão na pilha de documentos que se encontrava diante dele —, é isso que tem valor... e não permito que se trate de outra coisa. Nós oferecemos agora o que oferecemos desde o primeiro dia, e se isso de repente não basta para a sua firma, sinto muito!

Parou espantado, pois tinha galopado como se corresse sobre um pântano. "Estou assustando os outros com a minha gritaria", pensou ele horrorizado, "preciso atraí-los, e em vez disso estou estragando tudo." Encheu o copo de água e bebeu. Era um líquido grosso, morno e sem sabor, como óleo de rícino. O conselheiro Zinnowitz deu uma risadinha e tentou endireitar a coisa.

— O diretor-geral Preysing é de uma consciência modelar — declarou ele. — Não sei, mas talvez os seus receios de levar de certo modo em consideração o negócio com Manchester sejam injustificados, pelo menos exagerados. Por que não se poderá deixar pesar na balança uma coisa que oferece tão boas perspectivas, mesmo que isso ainda não esteja em preto no branco? Por que...

— Por quê? Porque não posso me responsabilizar por isso — interrompeu-o Preysing. Zinnowitz, que teria de bom grado lhe pisado no pé, mas não o podia fazer, ergueu a voz, dirigindo-se ao diretor-geral. Preysing sentou-se de novo no assento quente da cadeira de veludo, e não disse mais nada. Esteve a ponto de declarar a verdade. Bom, se Zinnowitz não o deixava falar, então o célebre perito em matéria comercial que se arranjasse como pudesse. "A coisa vai mal", pensou Preysing, "já não tem mais conserto, está tudo acabado, morto e enterrado. As negociações fracassaram definitivamente. Está bem." Oferecera a todo mundo uma firma sólida, e tudo que um homem correto pode oferecer. Mas o mundo não queria coisas assim. O mundo queria mercados fictícios, boatos falsos, especulações, por trás dos quais nada havia, a não ser um pouquinho de fanfarronice. Artigos de malha, jumper e sweater, meias de cores variadas de Chemnitz, pensou o diretor-geral, amargurado... E chegou a ver realmente, nesse momento, tais coisas, modernas, coloridas e levianas, que conquistavam o mundo no corpo de moças também levianas.

Zinnowitz continuava o seu sermão; Flamm caíra de novo em sua letargia profissional. Gerstenkorn e Schweimann, no entanto, mal ouviam; com a cabeça metida entre os ombros, conversavam sem nenhuma delicadeza, a meia voz, sobre um assunto qualquer.

— O nosso amigo Preysing — recomeçou o conselheiro — talvez vá um pouco longe demais com os seus escrúpulos. Dizem que a sua fábrica está para firmar um contrato muito vantajoso com a próspera e antiga firma Burleigh & Son. E que faz o nosso caro Preysing? Procura negar isso, como se acaso se tratasse de uma bancarrota. Considerando que se trate apenas de um boato... não há boato algum que não contenha um fundo de verdade, todos nós sabemos. E um velho homem de negócios como o conselheiro comercial Gerstenkorn há de concordar que há boatos que têm mais valor do que muito contrato pronto e assinado. Mas como antigo advogado da fábrica de Fredersdorf, posso afirmar: isso é mais do que um boato, há certos ajustes por trás disso. Desculpe-me, caro Preysing, se não guardo a discrição férrea que o senhor guarda. Não tem nenhum sentido insistir em negar, desde que já se realizaram inúmeros entendimentos a esse respeito. Talvez hoje ainda não se possa saber com certeza se eles conduziram a um resultado positivo. Mas isso é um fato, e um fato menos desfavorável do que o seu balanço. Acho extremamente correto e delicado Herr Preysing não querer juntar ao ativo da sua fábrica esse fato, acho isso realmente de uma correção e distinção fora do comum. Mas dessa maneira não se vai para a frente. Desculpe-me, portanto, se eu confio essas coisas a estes senhores.

Zinnowitz continuou a murmurar um palavreado conciliante, com muitos "no entanto" e "como também" e “se acaso" e "por outro lado". Preysing tinha empalidecido; teve a sensação, ao sentir nas fontes uma pontada do sangue a fugir, o sentimento de que havia realmente empalidecido. "Ele lhes mostrou as cartas", pensou. "Mas, Deus do céu, isso já é intriga, já é quase uma fraude. Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann", pensou ele, enxergando as letras azul-escuras e apagadas do telegrama. Meteu a mão no bolso do colete do seu terno cinzento de funcionário, onde guardara o telegrama, mas retirou-a no mesmo instante, como se a tivesse metido num forno quente. "Se eu agora não me levantar imediatamente, e não disser o que está se passando, então a coisa está perdida", pensou, levantando-se. "Porém, se eu falar agora, estes senhores se afastarão, a fusão vai por água abaixo e eu voltarei para Fredersdorf completamente desacreditado", refletiu, sentando-se de novo. Procurou disfarçar seus movimentos indecisos e inoportunos, e, colocando água num copo até o meio, sorveu-a, como se fosse um remédio.

Enquanto isso, Schweimann e Gerstenkorn tinham-se animado. Eram duas cabeças de comerciantes, finórias e lustrosas de unção. Sua atenção foi despertada para o fato de Preysing ter negado com tanta veemência o negócio com a Inglaterra, tentando pôr de lado o assunto. Seu olfato sentia alguma outra coisa por trás disso: mercados, proveitos, talvez concorrência. Gerstenkorn teve uma ideia, que murmurou à enorme orelha direita de Schweimann:

— Se se tratasse de qualquer outra pessoa, um desmentido assim seria quase o mesmo que uma afirmação. Mas com esse animal que é o Preysing, é possível até que ele esteja falando a verdade.

Gerstenkorn deu uma investida brutal.

— Não adianta o conselheiro estar gastando o seu latim — disse ele, inclinando-se sobre a mesa. — Antes de continuarmos a nossa conversação, quero pedir a Herr Preysing o favor de nos dizer sem rodeios até que ponto chegaram as negociações com Burleigh & Son.

— Recuso-me a isso — afirmou Preysing.

— Insisto, caso continuemos a negociar — retrucou Gerstenkorn.

— Então — replicou Preysing — peço-lhe que, no decorrer das negociações, esse assunto seja dado por encerrado.

— Nesse caso preciso admitir que as perspectivas de sociedade com Burleigh & Son malograram? — perguntou Gerstenkorn.

— Admita o que bem lhe parecer — respondeu Preysing.

Em seguida todos se calaram por quase um minuto. Flamm número um folheou discretamente o seu bloco de estenografia, e o ruído delicado das folhas de papel que ela virava ressoou no silêncio da sala de conferências. Preysing parecia um bebezinho zangado; às vezes, sucedia meter a cabeça por trás da fisionomia do diretor-geral um menino cabeçudo e teimoso. Zinnowitz, com a sua caneta de malaquita, desenhava resignados triângulos na capa de um documento.

— Acho que por enquanto não tem sentido nenhum continuarmos a nossa conversa — disse finalmente Gerstenkorn. — Acho que podemos continuar a nos entender por escrito.

Ele se levantou, e a sua cadeira deixou sulcos fundos no tapete espesso, legítimo, da sólida sala de conferências. Mas Preysing continuou sentado. Tirou cuidadosamente um charuto do bolso, cortou-lhe a ponta cerimoniosamente, acendeu, tirou uma tragada e começou a fumar, com uma expressão absorta e profundamente pensativa; suas bochechas se tinham avermelhado, cheias de veiazinhas salientes.

Não há dúvida de que o Diretor-Geral Preysing é um homem honestíssimo, de caráter, bom esposo e bom pai, um homem ordeiro e organizado, da mais consolidada burguesia. Sua vida está toda em ordem, tudo registrado e em cartas, oferecendo um aspecto agradável: uma vida de caixas de fichas, de pastas de documentos, de muitas gavetas e muito trabalho. Preysing nunca cometeu a mínima falta de correção. No entanto, deve existir nele um ponto fraco, onde a vida o quer segurar e abater; uma insignificante inflamação, uma manchinha microscópica na limpeza burguesa de seus trajes, deve existir, no entanto...

Ele não chamou por socorro, nesse momento em que a conferência se interrompeu, apesar de se sentir muito mal, com a sensação de que precisava pedir auxílio e gritar por socorro. Levantou-se com o charuto na boca, segurando-o fortemente entre os dentes, e teve a impressão perfeita de estar bêbado, quando pôs as mãos nos bolsos.

— Que pena — disse ele negligentemente, admirando-se do tom despreocupado dessa frase que roçou subitamente o charuto em sua boca. — É realmente pena. Adiar é o mesmo que terminar. Pois então, ponto final. E agora que os senhores desistiram do negócio, posso dizer-lhes que o contrato com Burleigh & Son está firmado. Desde ontem à noite. Recebi hoje de manhã a notícia.

Tirou a mão do bolso do colete, e nela estava metido o telegrama dobrado: Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann. Foi tomado de um infantil e triunfal prazer de enganar os outros, enquanto dizia aquela mentira enorme, que raiava a fraude, e punha o telegrama sobre o pano verde da mesa. Ele próprio não sabia se queria passar um blefe nos outros ou estava procurando uma boa saída para sua posição desacreditada. Schweimann, o mais indisciplinado dos dois homens da Chemnitz, estendeu o braço, num movimento instintivo para pegar o telegrama. Preysing, muito calmo, abriu o telegrama, dobrou-o novamente, e, com um gesto calmo e refletido, meteu-o de novo no bolso do colete. O Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, fez uma cara de idiota. O conselheiro Zinnowitz soltou um assobio leve e agudo, realmente estranhável, partindo da sua boca sábia de chinês.

Gerstenkorn começou a rir, com acessos de tosse bronquial.

— Meu caro — tossiu ele —, caríssimo! O senhor é muito mais sabido do que parece! Homem de Deus! O senhor nos pregou uma boa! Olhe aqui, precisamos conversar sobre isso!

Gerstenkorn se sentou. O diretor-geral, ainda por alguns segundos com um sentimento de vazio, como se todos os seus ossos tivessem ficado ocos e como se sentisse um esquisito e brando tremor nos joelhos, sentou-se também. Tinha mentido pela primeira vez na vida, e ainda por cima de um modo idiota, completamente simplório e sem base. E com essa mentira — justamente com ela — havia conseguido pela primeira vez, após tantos fracassos, impor-se de novo. De repente ouviu a própria voz a falar, e a falar bem. Sentiu-se tomado de uma estranha e desconhecida embriaguez; ouvia a própria voz, e tudo o que dizia tinha pés e cabeça, energia e visão. O fundador do Grande Hotel olhava fixamente para ele, muito admirado, lá do alto do seu retrato a óleo, com seus olhos pintados cintilantes. A Flamm número um curvara o rosto penugento sobre o bloco de estenografia, e estenografava rapidamente — porque agora, parecia, chegariam a um acordo final, cada palavra proferida se tornava importante.

Até o fim da conferência, que durou ainda três horas e vinte minutos, Preysing conservou-se nesse novo estado de ânimo, que lhe dava a impressão de estar voando. E só quando pegou a caneta-tinteiro de malaquita verde para assinar seu nome ao lado da assinatura de Gerstenkorn, no contrato prévio, notou que as suas mãos estavam úmidas e estranhamente sujas.


10

— O 218 quer que o despertem às nove horas — disse o porteiro ao praticante Georgi.

— Ele vai embora? — perguntou o rapazinho.

— Embora por quê? Qual nada, ele vai ficar.

— Pensei que ia. Ele nunca pediu que o acordassem ... — disse Georgi.

— Pois agora pode acordá-lo — respondeu o porteiro.

E assim, às nove horas em ponto, o telefone tilintou no quartinho ridiculamente minúsculo do Dr. Otternschlag.

Apressado como um homem cheio de ocupações, Otternschlag esforçou-se por libertar-se da nebulosidade dos sonhos e despertar, e em seguida admirou-se de estar acordado.

— O que foi? — perguntou a si próprio e ao telefone. — O que foi?

Depois ficou em silêncio durante alguns minutos, concentrando-se e procurando lembrar-se, com o rosto desfigurado encostado no linho macio do travesseiro do hotel. "Atenção", pensou ele, "é aquele homem, é o Kringelein, esse coitado. Precisamos mostrar-lhe o que é a vida. Ele está à minha espera. Já está sentado à mesa, na sala do café, esperando."

— Vamos levantar-nos e nos aprontar? — perguntou a si mesmo. — Vamos sim — respondeu depois de fazer um esforço, porque ainda tinha uma bela dose de morfina nos ossos. Apesar disso, seu rosto e seus movimentos, enquanto se vestia, pareciam exprimir um certo entusiasmo. Alguém esperava por ele. Alguém precisava dele. Alguém lhe demonstrava gratidão. Com um pé de meia na mão, sentado na beira da cama, começou a fazer planos e decidir o que fazer. Fez o programa para o dia, ocupado como um guia de viagens, um mentor, um homem importante e procurado. A camareira que tinha ido buscar no quarto vizinho ao 218 a vassoura e o balde ouviu, admiradíssima, o Dr. Otternschlag cantarolar com voz incerta uma melodia, enquanto ia escovando os dentes.

Entretanto, Kringelein se encontrava na sala de café, ainda exausto, excitado e animado, após sua cansativa vitória sobre o senhor Diretor-Geral Preysing, no barbeiro; há dez minutos tinha travado relações, com extremo prazer, com o Barão von Gaigern, relações distintas, encantadoras. Gaigern tinha agido depressa. Saíra da noite com a Grussinskaia sem as pérolas, e passara diretamente a uma explicação murmurada, mas dura como granito, com o chofer. Logo em seguida — após tomar banho, fazer ginástica e friccionar o corpo com água de alfazema — atirara-se sobre o senhor provinciano do 70, com o qual ele talvez pudesse arranjar de um modo ou de outro os milhares de marcos de que precisava com mais premência. Estava transbordando de impaciência, uma impaciência radiante de felicidade, tensa e ardente. Havia-se separado da Grussinskaia há uma hora apenas, e já sentia uma saudade louca, uma saudade alegre e delicada. Sua cabeça queria estar de novo com ela, sua pele, seus dedos, seus lábios, tudo a desejava novamente, o mais depressa possível. Gaigern sorveu, faminto de vida e de energia, esse sentimento desconhecido como costumava acolher dentro de si as novas experiências. O élan com que ele aguardava a tentativa com Kringelein era enorme. Com uma rapidez que se poderia chamar de tempo recorde, em quinze minutos conseguiu ganhar uma grande dose de confiança. Esmagado, Kringelein abriu sua pequena alma de funcionário, indecisa, ansiosa de vida e preparada para a morte — e o que ele não disse ou não soube exprimir Gaigern adivinhou. Quando Kringelein, às nove horas e catorze minutos, limpou no pequeno guardanapo do hotel o seu esforçado bigode, os dois já eram amigos.

— Imagine, senhor barão — dizia Kringelein —, imagine que eu tenha recebido por acaso algum dinheiro, depois de ter vivido sempre uma vida modestíssima, realmente modestíssima. Uma pessoa como o senhor barão não pode fazer sequer uma ideia de uma vida assim. É o medo da conta do carvão, o senhor compreende? Ou então não se pode ir ao dentista, vai-se deixando de um ano para outro, e de repente perdem-se quase todos os dentes, não se sabe como. Mas não quero falar dessas coisas. Anteontem comi pela primeira vez na vida caviar, ou coisa parecida. Quando o nosso diretor-geral tem reuniões em casa, manda vir caviar de Dresden, aos quilos. Bem, caviar, champanha e todos esses luxos não são a vida, dirá o senhor barão. Mas o que é a vida? Veja, barão, eu não sou mais um homem moço, sou meio doente, e de repente fiquei com receio de não poder aproveitar a vida. Eu não quero deixar passar a vida sem aproveitá-la, o senhor compreende?

— Nunca deixamos de aproveitar a vida! Ela está sempre ao nosso dispor, nós vivemos e é quanto basta. A gente vai vivendo, é isso — disse Gaigern.

Kringelein fitou aquele moço bonito e animado, e talvez suas olheiras, por detrás dos óculos, se tenham ruborizado um pouco.

— Pois é. Naturalmente, para o senhor, a vida está sempre presente, cada minuto que passa. Mas para gente como nós...? — disse ele baixinho.

— É engraçado. O senhor fala da vida como se ela fosse um trem que vai passando, e que o deixa para trás. Há quanto tempo o senhor anda atrás dela? Há três dias? E ainda não conseguiu pegá-la pela cauda, apesar do champanha e do caviar? O que o senhor fez ontem, por exemplo? Museu Kaiser-Friedrich, Potsdam, à noite teatro? Meu Deus do céu! Do que foi que mais gostou? De que quadro? Como? Não reparou... naturalmente. E no teatro... a Grussinskaia? É... a Grussinskaia — repetiu Gaigern, sentindo no coração, ao pronunciar esse nome, um calor repentino, como se fosse um rapazinho tolo. — O que está dizendo? O senhor ficou triste, era tão poético? Pois é, é mais ou menos isso. Mas tudo isso não tem nada que ver com a vida, senhor diretor. — Dizia "senhor diretor" por pura amabilidade, porque não gostou do nome de Kringelein, ridículo e desataviado; e Kringelein corou, feliz e intrujão. — A vida, a vida é... veja: às vezes encontram-se na rua esses caldeirões de piche, fervendo, em ebulição, soltando fumaça, fedendo como a peste a quilômetros de distância. Mas aproxime-se de um caldeirão desses e conserve a cabeça sobre ele, meta o nariz na fumaceira do alcatrão. É uma coisa estupenda, quente, com um cheiro forte e acre, que quase nos derruba no chão, e as gotas grossas e pretas brilham, e há força ali dentro, nada de doçuras nem de coisas insossas. Ah! Caviar! O senhor quer aproveitar a vida, e se eu lhe perguntar que cor têm os bondes de Berlim, o senhor não sabe, porque nunca reparou neles. Aliás, ouça, senhor diretor: com uma gravata como a sua, o senhor nunca poderá tomar o trem da vida; dentro de um terno como o seu ninguém pode se sentir feliz. Digo-lhe isso abertamente, porque não tem sentido nenhum ficar fazendo cumprimentos. Se o senhor confiar um pouco em mim, para apressar as coisas, precisamos primeiro ir ao alfaiate. O senhor está com dinheiro, livro de cheques... não. Faça o favor de arranjar dinheiro, mesmo! Enquanto isso eu vou buscar o meu carro na garagem. O meu chofer está de licença, deixei que o rapaz fosse ver a noiva em Springe; eu mesmo vou guiar.

Kringelein tinha a impressão de que um vento forte lhe batia nos ouvidos. A observação a respeito da sua gravata — comprada por dois marcos e cinquenta — e o seu bonito terno, na verdade, o haviam magoado. Pôs timidamente a mão no colarinho, largo demais.

— Pois é — disse Gaigern —, é muito grande, e vê-se o botão. Assim não pode, naturalmente!

— É que eu pensei... Eu não queria gastar dinheiro em roupa — murmurou Kringelein, vendo bailar vertiginosamente as cifras em seu caderno de notas. — Em outras coisas eu gasto de boa vontade, mas não em roupa.

— E por que não em roupa? Isso é o principal.

— Porque... não vale mais a pena — respondeu Kringelein, baixinho, com as amaldiçoadas lágrimas soltas a queimar-lhe de novo o canto dos olhos. Que maldição! Ele não podia se lembrar do seu fim próximo sem ficar comovido. Gaigern olhou para ele, descontente. — Não vale a pena, realmente... quero dizer... não terei por muito tempo a oportunidade de usar roupas novas. Pensei que... que as velhas ainda fossem servindo — sussurrou com um sentimento de culpa.

"Meu Deus, será que todos os homens têm uma xícara de chá com veronal preparada para tomar?", pensou Gaigern, a quem as carícias dessa noite haviam tornado sensível.

— Não se deve calcular assim — disse ele amavelmente. — Não se deve calcular, Herr Kringelein. Os cálculos nos saem errados. No momento adequado o senhor deve estar com a disposição adequada. Eu sou um homem do momento, e tenho-me dado bem com isso. Vamos, ponha no bolso algumas notas de mil marcos, e depois veremos se a vida não é uma coisa divertida. Avante!

Kringelein se levantou, obediente; tinha a sensação de rodopiar perigosamente dentro do turbilhão de uma cratera. "Algumas notas de mil marcos", pensou ele, como se estivesse atrás de um nevoeiro. Já estava acompanhando Gaigern, enquanto seus pensamentos ainda resistiam, e as paredes da sala de café dançavam à sua volta. Os pés desenraizados de Kringelein, metidos nas botinas de cano alto, iam tropeçando passivamente pelos corredores do hotel; ele sentia medo. Sentia um medo doido de Gaigern, das despesas, do alfaiate caro, tinha medo do automóvel cinza-claro, em que se meteram no assento da frente, perto da direção, tinha medo da vida que, no entanto, não queria deixar de aproveitar. Apertou com energia seus molares estragados, calçou as luvas de tricô, e começou seu dia feliz.

O Dr. Otternschlag, que às dez para as dez andava ao longo das paredes do hall, à procura de Kringelein, recebeu do porteiro uma carta entregue pessoalmente.

Prezado Dr. Otternschlag! — estava escrito. — Infelizmente, por motivos imprevistos, vejo-me impedido de comparecer ao nosso encontro. Saudações respeitosas do amigo At. Obr. Otto Kringelein.

O estilo era de Kringelein, ainda, mas sua ortografia tinha-se modificado um pouco. Na escrita fluente de guarda-livros, haviam-se imiscuído uns traços informes, e os pingos dos ii pareciam querer voar como balões que se desprendem do fio para estourar nos céus, solitários e com um pequenino e trágico estampido que ninguém ouve.

O Dr. Otternschlag ficou com a mão estendida, segurando a carta. O hall era um deserto, cheio de horas infindáveis e vazias. Passou pelo balcão dos jornais, pelas flores, por pessoas que saíam do elevador, pelas colunas, até chegar ao seu lugar habitual. "Horrível", pensou ele. "Terrível. Medonho." As pontas de seus dedos, plúmbeas e cor de fumo, lhe pendiam das mãos, e com o olho cego ele fitava a mulher da limpeza que, em desacordo com os regulamentos, começava a varrer com serragem úmida, em pleno dia, o hall do Grande Hotel.

É intensa a angústia que Kringelein sente, de pé, na sala de provas da enorme alfaiataria para homens. Três elegantes cavalheiros estão ao seu redor, ocupadíssimos, e doze Kringelein deploráveis refletem-se nos espelhos, aproximando-se uns dos outros em ângulos agudos. Um senhor elegante está ao lado, observando Herr Kringelein com as pálpebras meio cerradas, um olhar de conhecedor, e murmurando palavras incompreensíveis. Sentado num banquinho estofado, sob os retratos de artistas de cinema incrivelmente belos, está o Barão Gaigern, batendo as luvas pespontadas na palma da mão, e desviando de Kringelein o olhar, como se se envergonhasse dele.

Começaram a vir à luz coisas lamentáveis, segredos do guarda-livros Otto Kringelein, de Fredersdorf. Seus suspensórios estão rasgados, costurados, rasgados de novo, e finalmente muito mal consertados, com um barbante. O colete, que lhe ficara muito largo, fora ajustado por Anna, que lhe fez nas costas duas pregas costuradas ao enchimento por meio de pespontos.

Kringelein usa as camisas de seu pai, grandes demais para ele, pelo que meteu umas ligas na parte superior dos braços, para arregaçar as mangas compridíssimas. Usa abotoaduras de tempos pré-históricos, redondas, do tamanho de discos de chapa de fogão, tendo no centro uma esfinge de esmalte vermelho diante de uma pirâmide de esmalte azul. A gigantesca camisa é de um tecido grosso de cor indefinível, tendo na frente apenas um pedacinho de zefir listrado, como uma pequena vitrina na fachada principal. Debaixo da camisa de lã espia ainda qualquer outra coisa também de lã, um coletinho já no fio, cerzido com pontos grosseiros. Por baixo disso, um pedacinho de pele de gato, o que parece ser bom contra dores de estômago e calafrios misteriosos. Os cavalheiros elegantes não mudam de expressão — Kringelein teria preferido que fizessem caçoada dele ou o consolassem.

— Nunca me incomodei muito com a moda. Sou um homem antiquado — diz ele em tom implorante, desculpando-se diante da cortesia gelada dos homens. Ninguém lhe responde. Vão lhe tirando as camadas, uma após outra, como de uma cebola. É um tanto cruel o que está sucedendo com Kringelein, completamente indefeso. Pouco a pouco ele vai se sentindo mal, como na sala de operações, pois agora também há uma claridade vítrea nas coisas, e tudo parece estar muito próximo dele. Depois, os três cavalheiros começam a vesti-lo.

Gaigern se anima, e dá conselhos.

— Fique com isso — diz ele; e —, não fique com isso.

Parece que não é possível contrariar as suas decisões. Kringelein olha de lado para os papeluchos com o preço, presos às peças de vestiário, reparando sempre apenas no preço; não ousa fazer perguntas, a princípio, mas por fim se enche de coragem e começa a querer saber os preços.

Assusta-se de tal modo que tem vontade de sair correndo; a sala de provas parece uma cela com quatro guardas severos e paredes de espelho. Kringelein está todo suado, apesar de o terem libertado de seus agasalhos de lã, que estão enrolados num montinho sobre uma cadeira, com um aspecto de ilimitada miséria, repulsivos. De repente, eles deixaram de pertencer a Kringelein; causam-lhe nojo tais peças de vestuário, remendadas, suarentas e de cor indefinível, essa roupa de um pobre-diabo. Mas, de um momento para outro, qualquer coisa se passa com ele. Fica gostando da camisa de seda que o forçaram a vestir.

— Ah! — diz Kringelein, com a cabeça inclinada e a boca aberta, como se fosse ouvir algum segredo. — Ah, ah!

Sua pele se alegra e trava amizade, gostosamente, com a camisa de seda de delicado padrão. O colarinho se ajusta exatamente ao pescoço, não esfrega, não é nem largo nem apertado demais, a gravata nova cai lisa e macia sobre o peito de Kringelein, onde o coração bate agora como em misteriosa festa — forte, um tanto dorido, mas aliviado. Agora colocam diante dele meias e sapatos, com grande solicitude; Gaigern explicou, em poucas palavras, que o senhor diretor está enfermo, e então trazem dos quatro andares da casa de artigos para homens tudo o que um homem distinto precisa para se vestir. Kringelein envergonha-se medonhamente de seus pés; de súbito tem a impressão de que toda a miséria e o aperto da sua vida estão visíveis nesses pés com joanetes crescidos, pelo que procura se esgueirar com as novas meias e botinas para um canto, coloca suas costas curvas entre si mesmo e os outros, como uma parede, e começa, sem nenhuma prática, a lutar com os cordões. Em seguida vestem-lhe um novo terno, escolhido pelo barão.

— O senhor diretor está com uma aparência maravilhosa — diz um daqueles cavalheiros. — Assenta-lhe como se fosse feito sob medida.

— Não é preciso modificar nada — diz o segundo.

— Perfeito. Nós temos poucos fregueses com um corpo tão esbelto — afirma o terceiro.

Empurram Kringelein para a frente do espelho, e o obrigam a girar no seu eixo como se fosse uma boneca de madeira, magra e paciente.


11

 

E, justamente no momento em que Kringelein voltou do espelho para o seu interior, sentiu pela primeira vez, como um pressentimento, que estava vivendo. Sim, tinha a sensação de existir, conhecia-se a si mesmo, com um abalo tão violento como se o atingisse um raio. Nesse momento, um homem estranho, de porte delicado e distinto, aproximou-se dele com expressão confusa, um homem que era ele próprio, de modo extremamente íntimo, o verdadeiro Kringelein, o Kringelein enterrado, de Fredersdorf — mas isso logo passou. No instante seguinte já não era novidade, o milagre da transformação já se dera.

Kringelein respirou profundamente, com energia, porque parecia querer despertar em seu corpo uma dorzinha aguda.

— Acho que este terno me fica bem, não? — perguntou ele, de modo infantil, a Gaigern.

O barão ainda fez mais; aproximou-se e, com suas próprias mãos, grandes e quentes, arrumou o novo terno nos ombros de Kringelein.

— Sou de opinião que este terno é o suficiente — disse Kringelein aos três cavalheiros.

Apalpou o tecido com os dedos, às escondidas, porque entendia bastante de tecidos, isso se sabia em Fredersdorf, mesmo quando só se trabalhava no escritório.

— É um bom tecido; sou conhecedor — afirmou ele, respeitosamente.

— Artigo inglês legítimo. Nós mandamos trazê-lo diretamente de Londres, de Parker Brother & Co. — respondeu o senhor de pálpebras fechadas.

"Preysing não usa tecidos assim", pensou Kringelein. Os ternos de Preysing costumavam ser daquele mesmo tecido sólido de estamenha cinzenta, de que a fábrica ainda possuía um estoque antigo, e todos os anos, pouco antes do Natal, era vendido aos empregados por baixo preço. Kringelein decidiu-se. Tomou posse desse terno, enfiando ambas as mãos nos bolsos novos e limpos.

Seu medo transformou-se repentinamente na felicidade de comprar e de possuir; pela primeira vez na vida Kringelein tem a sensação de vertiginosa leveza que acompanha o ato de gastar dinheiro. Ele passa através dos muros, por trás dos quais ele morou toda a vida. Compra, compra, sem perguntar o preço, vai comprando. Apalpa tecidos, sedas, alisa abas de chapéus, experimenta coletes, gravatas, cintos, coloca uma cor perto de outra e sorve com delícia a combinação harmoniosa de tons.

— O senhor diretor tem um extraordinário bom gosto — diz um dos cavalheiros.

— Um gosto delicado — afirmou o outro —, correto, distintíssimo.

Gaigern assiste a tudo sorrindo, um tanto impaciente, e faz elogios. Caceteado, olha as próprias mãos; a direita está tão vazia, desde que ele deu o anel de sinete de presente... Disfarçadamente, leva-as até o rosto, para ver se ainda conservam um pouco do perfume dessa noite, agridoce, ao mesmo tempo perigo e calma, Neuwjada, a florzinha que cresce nas campinas.

Kringelein compra um terno marrom, muito confortável, de um tecido cardado inglês, uma calça cinza-escura, com delicadas listras claras, que combina com um paletó estreito; compra também um smoking, no qual é preciso mudar apenas alguns botões; roupa de baixo, camisas, colarinhos, meias, gravatas, uma capa igual à de Gaigern, um chapéu macio, espantosamente leve, com a marca dourada de uma firma de Florença, e finalmente, pegando um par de luvas de camurça pespontadas, iguais às de Gaigern, dirige-se à caixa. Ali estão a fazer uma conta amabilíssima — Kringelein fala com rapidez e facilidade, porque ouve o jargão dos livros-caixa, tão seu conhecido, desde o livro-razão ao livro-matriz. Paga mil marcos à vista, e o resto em três prestações.

— Então! — exclamou Gaigern, satisfeito.

Uma fila de dorsos inclinados, numa saudação, acompanha Kringelein, encantado e transformado, até a porta de espelhos da loja. Lá fora faz sol, mas está frio. O ar tem um sabor de vinho gelado, acha Kringelein, de passagem. Até agora ele sempre se arrastou. Agora ele anda. Tem que dar três passos, da entrada da loja de primeira ordem até a limusine cinza-clara, e ergue três vezes, do calçamento da rua, as solas novas dos seus sapatos.

— Está satisfeito? — pergunta Gaigern, rindo-se e dando a deixa. — Está notando alguma coisa? Sente uma sensação agradável?

— Fantástico! Maravilhoso! Ótimo! — replica Kringelein, tomando a expressão de um homem experimentado, sentado ao volante do carro.

Tira os óculos e esfrega com o polegar e o indicador a beirada dos olhos; é um gesto cansado e que lhe é habitual.

Vem-lhe ao pensamento a ideia de que não estará mais vivo, quando vencer a última prestação.

 

Gaigern sentia a impaciência nos dedos, causava-lhe comichão como ácido carbônico, entre as mãos e a direção. Nos cruzamentos das ruas havia lâmpadas vermelhas, verdes e amarelas, guardas que o ameaçavam com a mão, sorridentes. O carro passava em disparada pelas casas, pelas árvores, colunas de cartazes, ajuntamentos de pessoas nas esquinas, pelas carroças de frutas, muros com cartazes e velhas senhoras amedrontadas, que, com passos miúdos, andavam no leito da rua sem observar o sinal de trânsito, velhas senhoras vestidas de preto e de saias compridas, em pleno mês de março. O sol brilhava, úmido e amarelo, no asfalto. Quando um ônibus pesadão impedia o caminho, o carrinho de quatro lugares gritava com duas buzinas; parecia o latido de cães excitados.

Em Fredersdorf havia muita gente que nunca tinha andado de automóvel. Anna, por exemplo, nunca tinha andado de carro. Mas Kringelein estava andando. Apertou os lábios com força, inteiriçou os músculos sob as axilas, e seus olhos ficaram lacrimejantes pelas correntes de ar. Assustava-se nas curvas, e seu coração arfava sob a camisa de seda nova. Era o mesmo prazer medroso da infância, quando na feira anual de Mickenau, no outono, se podia andar de carrossel três vezes seguidas, por um groschon.

Kringelein arregalava os olhos para ver Berlim, que rapidamente se entremostrava sob aspectos deformados. Ainda se recordava bem da grande cidade. A Porta de Brandenburgo, por exemplo, reconheceu-a de longe, assim como a Gedaechtniskirche, à qual dirigiu um olhar respeitoso.

— Para onde estamos indo? — gritou ele ao ouvido direito de Gaigern. O ronco do motor lhe parecia fortíssimo, e ele se sentia no meio de estrondos e de uma tempestade.

— Para os arredores da cidade, a fim de almoçar. Para lá do Avus — respondeu Gaigern com jovialidade.

A rua parecia penetrar dentro do carro, cada vez com mais velocidade. Chegaram às proximidades da torre da emissora. Kringelein já estivera ali no dia anterior, com o Dr. Otternschlag, numa noite nublada, cansado, impossibilitado de receber novas impressões. Os estranhos átrios, lisos, novos e por terminar, na parte exterior, o haviam acompanhado nos sonhos e, agora, a realidade e o sonho se apresentavam em duas camadas sobrepostas, um tanto ameaçadoras e incompreensíveis.

— Ainda vão terminar isso? — gritou Kringelein apontando para os átrios da exposição.

— Já está pronto — foi a resposta.

Kringelein admirou-se. Era tudo nu como uma fábrica, mas não feia, como a de Fredersdorf.

— Que cidade engraçada — exclamou ele, sacudindo a cabeça e ficando ainda mais vesgo.

Levou um choque com um solavanco do carro, e a pele do seu crânio se encolheu, mas foi coisa sem importância. É que Gaigern havia parado na porta norte do Avus, e em seguida continuaram de novo a viagem.

— Agora nós vamos mesmo — afirmou Gaigern; e, antes que Kringelein pudesse perceber do que se tratava, ele partiu.

Começou com uma corrente de ar que foi esfriando lentamente, e que batia contra o rosto de Kringelein cada vez com mais força, como bofetadas. O carro começou a cantar com um som grave que se foi elevando, e ao mesmo tempo aconteceu uma coisa pavorosa com as pernas de Kringelein. Ele tinha a sensação de que elas se enchiam de ar, cujas bolhas lhe subiam aos joelhos, que pareciam querer estourar. Por vários segundos incríveis ele não podia respirar mais, e durante um instante pensou que iria morrer.

— Isto é a morte. Vou morrer.

Com o peito comprimido, aspirava o ar com dificuldade; o carro deslizava por coisas irreconhecíveis, vermelhas, verdes, azuis; árvores que se atiravam de encontro aos seus óculos; depois, um ponto vermelho se transformou em um automóvel e, logo a seguir, caiu no vazio, por trás do seu carro — e Kringelein continuava sem conseguir respirar. Seu diafragma conhecia agora novas sensações, nunca antes imaginadas. Kringelein tentou virar o rosto em direção a Gaigern, e, vejam só, conseguiu virá-lo sem se machucar. Gaigern estava meio inclinado sobre a direção, e tinha calçado as luvas de camurça, mas sem abotoá-las; por qualquer motivo, isso dava a sensação de calma e ausência de perigo. Justamente quando o pedacinho de estômago que restava a Kringelein queria começar a subir à garganta, Gaigern se pôs a rir com os lábios fechados. Apontou com o queixo, sem tirar os olhos do fuso sibilante da estrada do Avus, para um lugar qualquer, e Kringelein lançou um olhar obediente. Como não era tolo, compreendeu, após refletir um pouco, que havia sido o marcador dos quilômetros, diante dele. O ponteirinho vibrava de leve, mostrando o número 110. "Que diabo!", pensou Kringelein. Engoliu seu amedrontado pomo-de-adão e inclinou-se para a frente, entregando-se ao impulso da velocidade. Súbito tomou posse dele o prazer da sensação de perigo, um prazer penetrante e assustador. Mais depressa! pedia dentro dele um novo Kringelein, desconhecido e delirante. O carro concordou: 115. Durante alguns segundos parou nos 118, e Kringelein desistiu, de uma vez, de respirar. Tinha vontade de se precipitar, sibilando, nas trevas. "Avante, para a frente, explosão, choque, ponto final da corrida desenfreada!", era o pensamento que lhe ocorria. "Nada de leito de hospital," pensou; "é preferível uma fratura no crânio." À passagem do carro, em disparada, ainda continuavam a bramir os anúncios; as distâncias entre eles foram aumentando; depois, os trapos cinzentos ao lado da estrada se transformaram em bosques de pinheiros. Kringelein via árvores que se iam aproximando e em seguida se desviavam do carro. Era como no carrossel de Mickenau pouco antes de parar. Nas tabuletas de anúncios ele lia agora nomes de marcas de óleos, de pneus e de automóveis; a correnteza de ar tornou-se mais branda, e deslizava por sua garganta adentro. O ponteiro caiu para 60, a agulha oscilou um instante ainda, entre 50 e 45, e eles deixaram o Avus pela porta sul, desfilando burguesmente por entre as villas do Wannsee.

— Puxa, agora me sinto mais leve! — disse Gaigern, abrindo o rosto num sorriso. Kringelein tirou as mãos das almofadas de couro em que se agarrara até então, e foi relaxando com todo o cuidado os músculos contraídos das mandíbulas, dos ombros e dos joelhos. Sentia-se completamente exausto e absolutamente feliz.

— Eu também — respondeu ele, e estava dizendo a verdade.

Falou muito pouco enquanto estiveram sentados no terraço envidraçado, completamente vazio, de um restaurante à margem do Wannsee, olhando os barcos a vela cobertos com lonas, balançando à tona da água. Precisava refletir sobre a sensação que experimentara, o que não era assim tão fácil. "O que é a velocidade?", pensou. "Não a vemos nem tocamos, e isso de medi-la deve ser uma impostura. Como é possível que ela vá passando, e seja mais linda do que a música?" Ainda sentia tudo girando, mas era uma sensação agradável. Tinha trazido o frasquinho de Bálsamo de Vida do Dr. Hundt, mas não tomou o remédio.

— Preciso agradecer-lhe este passeio maravilhoso — disse ele, procurando com ar solene expressões escolhidas, de acordo com os ambientes em que estava vivendo agora.

Gaigern, que só comia alimentos baratos, espinafre com ovos, sacudiu a cabeça: — Eu me divirto com essas coisas — disse ele. — O senhor sente isso pela primeira vez. É raríssimo encontrarmos pessoas que tenham uma sensação pela primeira vez...

— Mas o senhor também não dá a impressão de ser um homem blasé, se me permite esta observação — replicou Kringelein com desembaraço.

Já se sentia à vontade em suas novas roupas, já estava em casa dentro da sua camisa de seda; sentava-se de outra maneira, comia de outra maneira, e suas mãos, que lhe pareciam mais delgadas, avançando pelos punhos da camisa, com as unhas feitas por uma bonita manicura, no subterrâneo do hotel, lhe davam enorme prazer.

— Meu Deus do céu, eu, blasé? — exclamou Gaigern, satisfeito. — Não. De modo nenhum. Mas é que gente como eu tem uma vida cheia. — Não pôde deixar de sorrir. "O senhor tem razão. Para gente como eu também existem coisas inteiramente novas, que se experimentam pela primeira vez, coisas engraçadas...", acrescentou consigo mesmo.

Bateu de leve seus bonitos dentes uns nos outros, pensando na Grussinskaia. Seus ossos estavam cheios de ávida impaciência. O tempo que tinha de esperar para que pudesse ter de novo em seus braços a figurinha delicada, tão necessitada de amparo, e ouvir novamente seu gorjeio tristonho de passarinho, parecia-lhe uma extensão imensurável e deserta. Deu um prazo de três dias a si próprio, sapateando, interiormente, de impaciência, para arranjar de qualquer modo alguns milhares de marcos que acalmariam seus companheiros e lhe facultariam a viagem a Viena. Por enquanto, empenhava-se, com a maior amabilidade, em agradar Kringelein, com a esperança em qualquer solução favorável.

— E agora, qual é a continuação do programa? — perguntou Kringelein, dirigindo para ele uns olhos fiéis e agradecidos. Gaigern simpatizava com esse provinciano calmo, sentado diante dele como uma criança durante a distribuição dos presentes de Natal. A amabilidade e a simpatia humanas estavam de tal modo enraizadas na personalidade de Gaigern, que suas vítimas recebiam sempre uma boa parte do seu calor.

— Agora vamos voar — disse ele, com o tom acalentador de uma ama de leite. — É muito agradável e não tem o menor perigo, é muito menos perigoso do que uma corrida desenfreada de automóvel.

— Corremos perigo, há pouco? — - perguntou Kringelein, admirado.

O medo que sentira parecia-lhe agora quase um prazer, depois de vencido.

— Sem dúvida — afirmou Gaigern. — Cento e dezoito quilômetros não é brincadeira, e a estrada estava úmida... Parece incrível que, com um tempo destes, ela fique tão escorregadia. Não há dúvida de que o carro corre sempre o risco de derrapar. A conta — disse, voltando-se com cortesia para o garçom, e pagando seu espinafre com ovos. Sobravam-lhe na carteira apenas vinte e quatro marcos.

Kringelein também pagou; havia tomado apenas umas colheradas, de sopa, porque não confiava ao seu estômago coisas excitantes e indigestas. Quando meteu no bolso a carteira que trouxera ainda de Fredersdorf, teve a visão fugaz e agora pouco importante do seu caderno de despesas, com capa de oleado. Até esse dia havia anotado suas despesas, Pfennig por Pfennig, desde os nove anos de idade, em caderninhos assim. Agora acabou-se. Nunca mais faria isso de novo. Mil marcos numa tarde não era possível anotar. Uma parte da ordem do mundo concebida por Kringelein tinha se destruído, numa derrocada silenciosa e sem estardalhaço. Kringelein, que Gaigern foi seguindo pelo terraço vazio do restaurante até o carro, movia os ombros com delícia, sob o novo sobretudo, o novo terno e a nova camisa. Agora, por onde quer que ele passasse, havia indivíduos que se inclinavam. "Bom dia, senhor diretor-geral", pensou ele, vendo-se colado a uma parede, a parede caiada de verde-cinza do segundo andar dos escritórios de Fredersdorf. Guardou no bolso os óculos ao sentar ao lado de Gaigern, expondo os olhos nus à fresca e cintilante atmosfera de março, e com um vivo sentimento de simpatia e de confiante gratidão ouviu o ruído do motor.

— A Chaussee ou o Avus de novo? — perguntou Gaigern.

— O Avus, de novo — respondeu Kringelein. — E na mesma velocidade — acrescentou em voz baixa.

— Ah!... O senhor tem coragem — disse Gaigern, pondo o pé no acelerador.

— É... coragem eu tenho — respondeu Kringelein, com os músculos tensos e o corpo inclinado para a frente, de lábios entreabertos, preparado para entregar-se inteiramente à vida.

 

Kringelein, debruçado na grade branca e vermelha do aeroporto, procura habituar-se a esse mundo assombroso que, desde a manhã desse dia, vem ao encontro dele. Ontem — há um século — ele subia no elevador, para ir ao restaurante da torre da emissora, fatigado, sonolento, imerso em sonhos; não estava se divertindo, e os comentários pessimistas do Dr. Otternschlag ainda tornavam tudo mais problemático e fantasmagórico. Anteontem — há mil anos — ele era um auxiliar de guarda-livros no escritório de contabilidade da Algodoeira Saxônia S.A., de Fredersdorf, um empregadinho enfezado, entre trezentos outros empregadinhos enfezados, de terno de sarja cinzenta e com um ordenado minguado, do qual era preciso tirar ainda o desconto para a Caixa de Previdência. Hoje, agora, ele está à espera do piloto que, por um alto preço, vai levá-lo em um enorme voo circular, em viagem especial. É um desses pensamentos impossíveis de serem levados até as últimas consequências, apesar de Kringelein se sentir animado e concentrado como nunca.

É uma enorme mentira, a sua coragem. Tem um medo de cão, um medo horrível do divertimento que o espera. Ele não quer voar, não quer voar de modo algum. Tem desejos de voltar para casa — não, para Fredersdorf não, mas para o hotel, para o seu quarto 70, com os móveis de mogno e a colcha de seda; gostaria de estar deitado e não precisar voar.

Quando Kringelein saiu de casa para ir à procura da vida, pairava diante dele uma ideia nebulosa e informe; mas era uma coisa acolchoada e fofa, com pregueados e franjas, e arabescos enormes; leitos macios, pratos cheios, mulheres sensuais, em quadros e reais. Agora, que está experimentando a vida, e que, aparentemente, mergulhou em cheio nela, tudo se apresenta sob um aspecto diferente; é preciso satisfazer a uma série de exigências, a ventania corta-lhe as orelhas, e é preciso forçar paredões de angústias e de perigo para conseguir chegar a uma doce e embriagante gota de gozo da vida. "Voar", pensa Kringelein. Ele conhece a sensação do voo que se tem em sonhos. Seu sonho se apresenta assim: Kringelein se encontra no tablado da sala de Zickenmeyer; ao seu redor está o coral da associação, e ele canta um solo. Ouve sua bonita voz de tenor, canta notas agudas, cada vez mais agudas, cada vez mais. É facílimo, ele não precisa fazer nenhum esforço, é um prazer puro, fácil e naturalíssimo.

Finalmente, ele se deita no som mais agudo e suave, e voa sobre ele, acompanhado pela música das nuvens. A Associação Coral o acompanha com o olhar; primeiro, ele sobrevoa ainda abaixo do telhado local de Zickenmeyer, depois voa completamente só, à sua volta não se vê mais nada, e só bem no finzinho ele percebe que tudo não passou de um sonho, e que precisa voltar ao seu leito matrimonial, onde Anna dorme o sono deletério dos seus quarenta anos maltratados e rixentos. A queda é medonha, e o despertar é um grito na escuridão do quarto abafado, com as pequeninas vidraças, os armários cheirando a naftalina e o pequeno fogareiro de ferro, apagado, com uma panela cheia de água em cima.

Kringelein põe-se a piscar. "Voar", pensa ele retornando ao Aeroporto de Tempelhof. Ali também há cores fortes, como na torre da emissora e ao longo do Avus; amarelo, azul, vermelho e verde, em tons bem vivos. Torres misteriosas erguem-se no ar, tudo é simples e econômico, um vento cheio de poeira sopra sobre as manchas de asfalto do outro lado da grade, e as sombras das nuvens se apressam, para atingir a pista de decolagem. O pequeno aparelho que vai decolar já está pronto, três homens estão atarefados em torno dele; o motor ronca, sua hélice gira apenas por brincadeira. Diante de suas rodas baixas há uns blocos, suas asas prateadas, com estrias, estão vibrando. Outros pássaros pousam, saudados pelos gritos roucos de uma sereia — é assim que a fábrica de Fredersdorf chama, às sete horas da manhã — ou talvez tudo isso tenha sido apenas um sonho?... Outros pássaros se elevam, baixam pesados à terra, e erguem-se, muito leves, ao ar, ora cor de chumbo prateado, ora dourados, com firmes asas de madeira, e outros ainda, brancos, enormes, com quatro asas, e três hélices girando. O campo de pouso é tão grande, tão estranhamente silencioso... Os homens que estão ali são todos esbeltos, queimados de sol, alegres e calados, envolvidos em seus ternos folgados e seus barretes justos. Só os aparelhos têm voz, e latem com um latido rouco, como cães enormes, quando vão rodando sobre o campo.

Gaigern aproxima-se com o piloto, um senhor amável, com as pernas em O de antigo oficial de cavalaria.

Gaigern parece um cliente habitual, todos o cumprimentam e o conhecem.

— Vai partir logo — anuncia Gaigern. Kringelein, que já sabe por experiência própria o que significa o "partir" de Gaigern, leva um susto. "Socorro", pensa ele, "socorro, não quero voar!", mas não o diz, de forma alguma.

— Já vamos decolar? — perguntou com ar de homem experimentado, orgulhando-se da palavra que está usando pela primeira vez na vida.

Depois, Otto Kringelein senta-se, amarrado pela cintura com uma correia, em uma cômoda cadeira de couro, e arregala os olhos para o céu azul-cinza de março. Ao seu lado está Gaigern, assobiando baixinho, e isso o consola, nesse momento de debilidade total.

No começo, não é diferente de uma viagem de automóvel, aos solavancos; depois, o aparelho começa a fazer um ruído, rápido, infernal. De repente bate no solo com um solavanco, para trás, e eleva-se no ar. Não paira no espaço, tem mais dificuldades do que o tenor Kringelein, a cantar e a voar no seu sonho; o aparelho salta por impulsos no ar, como sobre degraus de vácuo; salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai. Agora a sensação desagradável não é nas pernas, como na viagem a cento e vinte quilômetros por hora, mas na cabeça. Os ossos do crânio de Kringelein zumbem, tornam-se muito delgados, completamente vítreos, de modo que ele precisa fechar os olhos por um momento.

— Está enjoado? — pergunta Gaigern gritando em seu ouvido, pensando se seria possível, ali no avião, conseguir que Herr Kringelein lhe desse cinco mil marcos, ou mesmo três mil, ou que seja tudo pelo amor de Deus, cento e cinquenta que fossem, que já dariam para pagar a conta do hotel e a viagem até Viena. — Está se sentindo mal? Acha que basta de voar? — pergunta ele com muita cortesia.

Kringelein faz um violento e corajoso esforço para dominar-se, e responde um animado "não". Abre os olhos, a cabeça zune, vítrea; prende-os primeiro ao chão do avião, como a um ponto firme, depois vai subindo, até chegar à vidracinha oval da parede fronteiriça. Lá estão de novo os números e as agulhas trêmulas. O piloto vira o rosto de traços fortes para trás, e sorri para Herr Kringelein como para um bom amigo e camarada. Kringelein recebe esse olhar como um tônico e uma honra.

— Trezentos metros de altitude, cento e oitenta de velocidade! — grita Gaigern ao seu ouvido, que zune e crepita.

De repente, tudo se torna macio, leve e liso. O aparelho não se eleva mais, vai cantando com a voz metálica dos seus motores, fazendo uma curva, deslizando como um pássaro sobre a cidade, agora pequenina. Kringelein cria coragem e olha para fora.

Primeiro vê as asas estriadas, expostas ao sol, que parecem ter criado vida, e, bem embaixo, Berlim, dividida em quadradinhos, cúpulas verdes, uma ridícula estação, em meio à exposição de brinquedos. Uma manchinha verde é o jardim zoológico, uma manchinha cor de chumbo, com quatro pontinhos brancos de velas, é o Wannsee. Os limites do pequenino mundo ficam bem longe, o terreno vai subindo em suaves elevações, há também montanhas, florestas, terras lavradas pardacentas, Kringelein abre num sorriso infantil os lábios comprimidos. Está voando. Conseguiu suportar o voo. Sente-se muito bem, e tem uma sensação diferente de si próprio, enérgica e nova. Pela terceira vez lhe acontece, nesse dia, perder o medo, e ver esse medo transformar-se em prazer.

Toca de leve no ombro de Gaigern, e em resposta ao seu olhar inquiridor diz qualquer coisa que o ruído dos motores devora.

— Não é tão mau assim — respondeu Kringelein. — Não é preciso ter medo, não é nada mau.

Com essas palavras, Kringelein refere-se não só à conta elevada do alfaiate, à viagem ao longo do Avus e ao voo — mas a tudo isso junto, e mais alguma coisa; é que ele vai morrer em breve e, com a morte, afastar-se desse pequeno mundo, abandonar o grande medo, elevar-se, se for possível, acima dos aviões.

 

As ruas por trás do campo de Tempelhof, quando eles vieram de volta, falaram ao coração do novo Kringelein. Assemelhavam-se às melancólicas ruas de Fredersdorf, com as chaminés crescendo por trás dos caminhos, e ele alargou as narinas para sentir o cheiro de cola da seção de imprensagem dos tecidos. Com vivacidade duplicada, ele sentia, ao avistar essas pobres ruas, que usava um sobretudo novo, e se encontrava num automóvel. Procurou palavras que exprimissem esse duplo sentimento, mas não encontrou. Somente na porta do hangar ele se animou de novo — tiveram de esperar meio minuto —, o vôo ainda lhe pesava nos membros como uma silenciosa mas forte embriaguez, e, ansioso e amável, perguntou:

— Quais são agora os planos do senhor barão?

— Agora preciso cuidar de negócios particulares, no hotel. Tenho um encontro às cinco horas. Venha comigo, vou dançar um pouquinho — acrescentou ao perceber nos olhos de Kringelein uma expressão de desânimo e de real aflição.

— Muitíssimo obrigado. Acompanho-o de bom grado. Gosto de ver os outros dançar. Infelizmente não sei dançar.

— Ora, qual! Qualquer pessoa sabe dançar! Kringelein foi pensando nisso até chegarem à Friedrichstrasse.

— E depois? Que se poderia fazer depois? — perguntou insistente, na sua insaciabilidade.

Gaigern não deu resposta, mas acelerou a marcha até o próximo solavanco, quando travou o freio diante da lâmpada vermelha da Leipzigstrasse.

— Diga uma coisa, senhor diretor — perguntou ele, durante a parada do carro. — O senhor é casado ou não?

Kringelein ficou a refletir por tanto tempo que, enquanto isso, as lâmpadas amarela e verde se acenderam, e já estavam de novo a caminho, quando ele respondeu:

— Fui casado. Já fui casado, senhor barão. Separei-me de minha mulher. Pois é. Conquistei a liberdade, se posso falar assim. Há casamentos, senhor barão, em que cada cônjuge é um peso para o outro, um chega a enojar-se do outro, não pode ver a cara do outro sem se enfurecer. Não podemos ver o pente com os fios de cabelo da mulher, de manhã cedo, sem que isso nos estrague o dia; isso não é justo, é claro, ela não tem culpa de que seus cabelos caiam... Ou quando se quer ler um pouco à noite, a mulher se põe a falar sem parar, e quando não fala, canta na cozinha. E se a gente gosta de música, essa gritaria nos deixa doente. E toda noite, quando a gente está cansado, e quer ler, ouve-se a mesma cantilena: "Vá cortar lenha para amanhã cedo". Custa apenas oito Pfennige a mais cada feixe de lenha picado, o que faz dois Pfennige por dia, mas isso não é possível, de modo nenhum. "Você é um gastador", diz a mulher, "se a gente fosse pela sua cabeça, acabaria esticando as canelas." E olhe que o sogro tem um armazém que a mulher vai herdar, de modo que ela está com o futuro garantido. Então achei melhor conquistar minha liberdade. Minha mulher nunca combinou comigo, essa é a verdade, porque eu sempre gostei das coisas boas, e isso ela nunca me pôde perdoar. Quando meu amigo Kampmann me deu de presente cinco velhas coleções da revista Kosmos, minha mulher vendeu-as como papel velho; recebeu por elas catorze Pfennige. É este o retrato acabado dessa mulher, senhor barão. Agora eu me separei dela. Não faz muita diferença, umas semanas a mais ou a menos, já que ela tem mesmo que se arranjar sem mim. Então ela poderá ir de novo às lojas, vender aos empregados solteiros arenques enrolados e salsichas para o jantar. Foi assim que eu a conheci. Talvez ainda encontre outro trouxa. Quando me casei com ela, eu era completamente idiota, não fazia nenhuma ideia da vida, nenhuma ideia do que é uma mulher. Desde que cheguei a Berlim, e estou vendo tantas senhoras lindas, elegantes e amáveis, é que meus olhos estão se abrindo. Mas para essas coisas já é tarde demais.

 

Tal confissão, que partiu do fundo do coração de Kringelein, durou desde a Leipzigstrasse até a Unter den Linden.

— O dia inteiro não é noite — replicou Gaigern, meio distraído, porque estava atravessando um trecho difícil do caminho, na Porta de Brandenburgo, e diante dele seguia um chofer que não sabia dirigir. A atmosfera de uma cozinha minúscula e miserável, que se evolava das palavras de Kringelein, o sufocava, tirando-lhe o entusiasmo com que ele estivera prestes a pedir emprestados três mil marcos.

Esse Kringelein de camisa de seda, que andava de automóvel, teria também de boa vontade retirado parte daquilo que revelara com as suas palavras.

— Então nós vamos dançar — disse ele com desembaraço, para disfarçar. — Ficarei gratíssimo, se o senhor barão me tomar sob sua proteção. E que se poderia fazer à noite?

Kringelein tinha a esperança oculta de receber uma resposta que correspondesse a desejos irrealizados dentro de si, alguma coisa semelhante a certos quadros de museus, porém mais palpável, o que, nos jornais que ele lia, denominavam orgia. Tinha o pressentimento de que homens distintos da cidade guardavam a chave e a entrada de coisas assim. No dia anterior o Dr. Otternschlag havia acedido ao seu vago desejo de feminilidade, levando-o ao bailei da Grussinskaia. Pois é. Isso — julgava Kringelein — tinha sido errado; o ballet era lindo, mas poético, comovente, e demasiado maravilhoso; ficava-se cansado, com sono, sentimental, e finalmente sentia-se dor de estômago. Mas hoje...

— A melhor coisa que o senhor poderá fazer hoje é ir comigo à grande luta de boxe no Sporthalle — disse Gaigern. — Vamos ver se o porteiro ainda tem entradas.

— Não me interesso muito por boxe — respondeu Kringelein, com o orgulho do leitor do Kosmos.

— Não se interessa? O senhor já assistiu a alguma luta? Então! Pois vá, que há de se interessar — garantiu Gaigern peremptoriamente.

— O senhor também vai, senhor barão? — perguntou Kringelein, afobado. Sentia-se muito bem disposto, depois da viagem de automóvel e do voo, animado e enérgico, preparado para o que desse e viesse, mas tinha a impressão de que despencaria como uma arvorezinha de borracha no instante em que o barão o abandonasse.

— Tenho uma vontade louca de ir também — replicou Gaigern. — Mas infelizmente não posso. Não tenho dinheiro.

Nesse ínterim haviam se afastado das ramagens floridas do jardim zoológico, e a fachada do hotel já aparecia, lá embaixo. Gaigern deixou a velocidade cair para doze quilômetros, a fim de dar tempo a que Herr Kringelein se manifestasse. Kringelein ficou a remoer a observação sorridente de Gaigern. Pararam defronte ao portão 5, subiram, e ele não conseguira se livrar daquilo.

— Vou levar o carro à garagem! — exclamou Gaigern, depois que fez Kringelein descer do carro, com as pernas um tanto rijas e adormecidas; por fim desapareceu na esquina.

Kringelein meteu-se, pensativo, na porta giratória, cujo mecanismo já não o deixava mais estupefato. "Não tem dinheiro", pensou ele. "Está sem dinheiro. É preciso fazer alguma coisa."

Rohna, o porteiro, os boys, e até o maneta do elevador, notaram a transformação que ele sofrerá, mas, discretamente, não o deram a perceber. O hall, de onde se evolava um aroma de mokka, estava repleto de pessoas que conversavam. O relógio marcava quatro horas e cinquenta minutos. O Dr. Otternschlag estava sentado em sua habitual cadeira maple, tendo ao lado, no solo, uma pilha de jornais. Fitou Kringelein com uma expressão indefinível de ironia e tristeza. Kringelein, não muito seguro de si, aproximou-se dele e estendeu-lhe a mão.

— O novo Adão — observou Otternschlag sem lhe estender a sua, que estava fria e úmida, o que o tornava tímido. — A borboleta saiu do casulo. E por onde esteve voando, se me permite perguntar-lhe?

— Fiz umas compras. Fui passear de automóvel pelo Avus, almocei no Wannsee. Depois fiz um voo de avião — respondeu Kringelein. Seu tom de voz, ao falar com Otternschlag, mudara um pouco, sem que ele próprio o percebesse.

— Magnífico — disse Otternschlag. — E agora?

— Às cinco tenho um encontro. Vou dançar. — Ah! e depois?

— Depois, estou com vontade de ir a uma grande luta de boxe, no Sporthalle.

— Ah, é? — retorquiu Otternschlag. Disse apenas isso. Pôs o jornal diante dos olhos e começou a ler, ofendido. Na China houvera tremores de terra, mas a bagatela de quarenta mil mortos não bastava para fazer desaparecer o aborrecimento de Otternschlag.

Quando Gaigern chegou ao segundo andar para trocar de roupa, encontrou Kringelein diante da porta de seu quarto, à sua espera.

— Então? — perguntou impaciente. Pouco a pouco lhe atacava os nervos estar preso a esse homenzinho exótico.

— O senhor barão estava caçoando de mim ou é verdade que está em dificuldades financeiras? — perguntou Kringelein, repentinamente. Foi uma das frases mais difíceis que jamais pronunciou, e apesar de a ter preparado de antemão, disse-a gaguejando.

— É a absoluta verdade, senhor diretor. Estou arrasado, com um azar dos diabos, só tenho no bolso vinte e dois marcos e trinta Pfennige, e amanhã sou obrigado a enforcar-me no jardim zoológico — disse Gaigern, abrindo o rosto bonito em um largo sorriso. — Mas o pior de tudo é que preciso estar em Viena dentro de três dias; apaixonei-me por uma mulher, sabe, de um modo incrível, uma paixão fulminante, e tenho que acompanhá-la por onde ela andar. E estou numa pendura completa. Se pelo menos alguém me emprestasse algum dinheiro que desse para eu arriscar hoje no jogo...

— Também estou com vontade de jogar — observou Kringelein, pressuroso, com verdadeiro entusiasmo. Sentiu de novo a sensação dos cento e vinte quilômetros por hora, do voo do avião, e disparou, zunindo, pelo espaço infindável.

— Tiens! Eu vou buscá-lo no Sporthalle, e vamos a um clube elegante. O senhor arrisca mil marcos e eu vinte e dois! — exclamou Gaigern. Dizendo isto, fechou a porta do seu quarto e deixou Kringelein sozinho, do lado de fora. Por enquanto estava farto dele. Atirou-se, vestido, para cima da cama, e fechou os olhos. Foi tomado de um sentimento de desânimo e enfado. Procurou recordar-se da menina do cachinho louro na testa, com quem tinha marcado um encontro às cinco horas, no pavilhão amarelo, mas não o conseguiu. Apresentava-se sempre uma outra recordação, o abajur da Grussinskaia, a grade do balcão, uma nesga do Avus, uma nesga do campo de aviação, o suspensório rasgado de Herr Kringelein. "Dormi pouco hoje à noite", pensou ele, acalorado, contente e com os nervos frouxos. Caiu num sono de três minutos, num saco de trevas e de restauração, como aprendera a fazer na guerra. Uma camareira bateu à porta, despertando-o; era uma carta de Kringelein.

 

Prezado senhor barão!, escrevia Kringelein. Permitiria que o abaixo-assinado o considerasse hoje à noite seu convidado, e ao mesmo tempo me faria a fineza de aceitar o insignificante empréstimo que junto a esta? Peço-lhe apenas que me mande um recibo. Seria uma honra para mim poder ser-lhe útil, e, no meu caso, o dinheiro já nada significa. Cumprimentos respeitosos do seu

Amgo. Crdo. Obr.

Otto Kringelein Anexo: uma entrada

duzentos marcos.


12

 

O envelope com o endereço do hotel continha um bilhete alaranjado para a luta de boxe no Sportpalast, e duas cédulas amarrotadas de cem marcos, numeradas a tinta num dos cantos. Na assinatura de Kringelein faltavam os pingos nos ii. Ele os perdera definitivamente no turbilhão insano que o arrastara nesse dia memorável.

Preysing, com os ossos ocos e vazios, ficou no hall depois de terminada a conferência, depois de assinado o contrato prévio, e da despedida do Dr. Zinnowitz, desejando-lhe felicidade e sorte. A sensação de uma grande vitória, a consciência de haver passado um blefe nos cavalheiros da Chemnitz, a tensão nervosa de discursar e de vencer sob uma base insegura, tudo isso era completamente novo para o diretor-geral, e o transportou a um estranho estado de atordoamento, nada desagradável. Olhou para o relógio do hotel — já passava das três horas —, encaminhou-se mecanicamente para a cabina telefônica, a fim de pedir uma ligação com a fábrica, e depois demorou-se bastante no banheiro dos homens, deixando escorrer água quente pelas mãos, enquanto se olhava no espelho com um sorriso idiota. Passou por último à sala de refeições, que estava quase vazia, e escolheu o menu sem prestar atenção; durante os dois minutos de espera até chegar o consommé, impacientou-se e pôs-se a fumar um charuto, que lhe pareceu delicioso, acima de qualquer crítica. Enquanto observava a lista dos vinhos, trauteou uma melodia, e sentiu desejos bem definidos de beber vinho doce, que aquecesse a língua; encontrou um Wachencheimer Mandelgarten 1921, que lhe pareceu prometedor. Pouco depois surpreendeu-se a sorver ruidosamente a sopa; quando ficava distraído, acontecia-lhe, por vezes, praticar algum mau costume do começo da sua vida. Sentia que estava numa situação feliz, mas de imprevisíveis consequências. O embuste — ele próprio usava essa expressão forte, que o transportava estranhamente a uma nova espécie de sensação de orgulho — que ele usara durante a conversação só poderia valer, no melhor dos casos, por três dias. Nesses três dias era preciso acontecer alguma coisa, se não quisesse sofrer as consequências de uma catástrofe. A assinatura do contrato prévio poderia ser retirada dentro de catorze dias. Preysing, que vertera depressa demais, pela goela seca, os dois primeiros copos do vinho frio e excitante, adoçado pelo sol, ficou meio tonto, e, em meio à sua tontura, viu a chaminé principal da fábrica explodir, separando-se em três pedaços. Isso não tinha importância, era uma reminiscência de um sonho que Preysing, a intervalos regulares, costumava ter. Estava comendo o peixe, quando um groom gritou "Chamada interurbana para Herr Preysing!" por entre o burburinho da discreta sala de refeições. Preysing ainda engoliu rapidamente um gole de vinho e dirigiu-se à cabina telefônica 4. Esqueceu-se de acender a luz, e na escuridão postou-se diante do fone com a sua mais férrea expressão de diretor da fábrica, famosa em Fredersdorf. Por entre o assobio agudo de um pequeno desarranjo na linha, anunciou-se Fredersdorf.

— Com Herr Broesemann — disse o diretor-geral, com a voz inexpressiva que usava no desempenho de suas funções. Demorou meio minuto até que encontrassem o gerente. Preysing considerou uma ofensa essa demora, e bateu com o salto do sapato no assoalho.

— Puxa... finalmente! — exclamou ele, quando Broesemann atendeu.

Adivinhavam-se, através do telefone, as curvaturas de Broesemann, e Preysing as recebeu como um merecido tributo.

— O que há de novo, Broesemann, além do telegrama inútil de ontem? Não... ao telefone não, sobre isso falaremos depois. Por enquanto eu me esforço por considerar esse assunto como inexistente, compreendeu? Ouça, Broesemann, agora eu quero falar com o velho. Está dormindo? Sinto muito, é preciso acordá-lo. Não, sinto muito. É, sim, imediatamente. Até logo, Broesemann. Não, as outras ordens o senhor as receberá por escrito. Estou esperando.

Preysing ficou à espera. Arranhou a tábua da estante do telefone com as unhas, tomou a caneta-tinteiro e pôs-se a tamborilar com ela na parede, pigarreou, e seu coração disparou triunfalmente, com batidas claras e definidas. O bocal do telefone, diante de sua boca, cheirava a desinfetante e, ao passar a mão por ele na escuridão, sentiu que a beirada estava lascada. Então o velho falou, lá de Fredersdorf.

— Alô, bom dia, papai, desculpe incomodá-lo. A conferência durou até agora, pensei que o senhor se interessaria em saber logo do resultado. Trata-se do seguinte: o contrato prévio está assinado... não, assinado, assinado ... — disse ele gritando, porque o velho tinha o teimoso costume de fingir-se mais surdo do que era realmente.

— Difícil, o senhor acha? Ora, mais ou menos. Obrigado, obrigado, não preciso de aplausos. Ouça, papai: preciso viajar imediatamente para Manchester; é, é absolutamente necessário, absolutamente. Vou para Manchester, bom, bom, eu lhe escrevo a esse respeito com mais pormenores. Como? O senhor está satisfeito? Eu também. Sim, senhorita, terminei. Até logo.

Preysing continuou na cabina escura, e só então se lembrou de apertar o botão da lampadazinha. "Mas, que história é essa?", pensou, espantado. "Como é que vou viajar para Manchester? Como foi que essa ideia me ocorreu? É isso mesmo... vou para Manchester. Aqui eu aguentei firme, lá também vou aguentar. É muito simples. Muito simples", pensou ele, sentindo-se novamente mais seguro de si, e enfunando-se como um balão. Um êxito casual, insignificante e incerto, transformara um homem hesitante, de terno de sarja cinzenta, em um sujeito empreendedor e aventureiro, de princípios vacilantes e dúbios.

— A ligação custa nove marcos e vinte — avisou a telefonista.

— Ponha na conta — respondeu Preysing, caminhando imerso em pensamentos.

Sentia uma estranha antipatia em falar com Mulle. Na sala de refeições de sua casa fazia agora um calor excessivo; Mulle gostava de quartos bem aquecidos; Preysing teve a impressão de que a sala de refeições de Fredersdorf cheirava a couve-flor; teve a impressão de ver nas faces cheias e sonolentas de Mulle a marca vermelha das pregas do travesseiro, no momento em que ela segurava o fone, após a sesta. Não se decidiu. Não a chamou. Voltou à sala de refeições, onde, entretanto, um garçom perfeito colocara para ele o vinho no gelo, e pratos limpos e aquecidos sobre a mesa.

Preysing comeu, esvaziou seu copo de vinho, acendeu o charuto e, com as têmporas acaloradas e os pés frios, voltou ao quarto. Tinha uma sensação estranha, agradável e nebulosa, mas ao mesmo tempo sentia-se completamente vazio, em consequência da conferência. Teve vontade de tomar um banho bem quente, e abriu a torneira do banheiro. Justamente quando fez menção de despir-se, refletiu melhor, lembrando-se de que não é bom tomar banho com o estômago cheio; sentiu, no espaço de um instante de medo, as palpitações que o ameaçavam na banheira esmaltada, e soltou de novo a água, cheia de vapor. A impressão de cansaço e desconforto que sentiu materializou-se numa coceira no rosto e, quando tentou coçar-se, percebeu que não estava barbeado. Apanhou o chapéu e o sobretudo, como ao preparar-se para um negócio importante; não quis ir ao barbeiro do subterrâneo do hotel, com quem ainda estava zangado, por causa do que acontecera de manhã, e procurou nas ruas circunvizinhas um barbeiro de mais confiança.

Então o Diretor-Geral Preysing viveu uma experiência notável; esse homem de princípios sólidos, mas sem aparelho de barba, teve uma experiência; esse homem de intenções corretas, mas que, apesar de tudo, praticara uma ação duvidosa, um azarado, a quem pela primeira vez o êxito bafejara, ao qual esse bafejo levava... para onde? Podia parecer um acaso, talvez fosse o destino que lhe estava reservado. A experiência foi esta:

A pequena barbearia em que Preysing entrou era asseada e simpática. Havia quatro cadeiras, e dois senhores sentados; um deles era servido por um empregado jovem, simpático, de cabelos encaracolados, e o outro pelo dono da barbearia, um homem idoso, com a aparência e os modos de um camareiro imperial. Preysing foi cumprimentado, alojado na terceira cadeira e envolvido numa capa e num peitilho. O cavalheiro que tivesse um momento de paciência, o primeiro oficial de barbeiro tinha ido almoçar, foi o que lhe participaram com toda a cortesia, pondo-lhe em seguida, nas mãos, um pesado maço de revistas ilustradas. Preysing, excessivamente cansado para opor qualquer resistência, reclinou a cabeça no pequeno encosto da cadeira, e respirou o aroma agradável que pairava na barbearia. Depois, com os nervos acalmados pelo ruído das tesouras, começou a folhear as revistas.

Primeiro pôs-se a ler, de uma maneira indiferente, quase a contragosto, porque não apreciava esse passatempo leviano, preferindo leituras instrutivas e sérias. Mas, após uns instantes, ele já se ria com uma ou outra piada, soltando uma risadinha curta e nasal; voltou as folhas para trás, para observar melhor uma mulher decotada, e em seguida virou uma página, e deixou-a aberta durante todo o tempo em que ficou sentado na cadeira de barbeiro. Realmente, concentrou-se de tal modo na observação dessa gravura, dessa fotografia de revista, que se sentiu estorvado quando o primeiro oficial voltou da sua refeição e se preparou para barbeá-lo.

A fotografia que o atraía desse modo nada tinha de especial; fotografias como essa eram encontradas às centenas em revistas cuja orientação desagradava a Preysing. A gravura representava uma mocinha nua, nas pontas dos pés, tentando olhar por sobre um biombo muito mais alto do que ela. Seus braços estavam levantados, e os delicadíssimos seios, com esse movimento, erguiam-se com uma graça especial, de modo tentador. No dorso esguio via-se o desenho delicado da musculatura. Na cintura, esse corpo se estreitava de um modo incrível, e abaixo do dorso delgado os quadris se encurvavam suavemente, prolongando-se nas linhas das coxas. Aqui, o corpo virava-se ligeiramente de lado, de modo que o ventre da mocinha mal se adivinhava como uma sombra suave, enquanto as coxas e os joelhos se distendiam, como a exprimir uma elástica curiosidade. Essa figura encantadora de mulher, de formas invulgarmente perfeitas, tinha também um rosto; e o que tornava a gravura extremamente excitante para o diretor-geral é que ele conhecia esse rosto. Era a carinha de gata da Flaemmchen, de nariz curto, com uma expressão animada e inocente, era o sorriso meigo de Flamm número dois, era o seu caracolzinho na testa, sobre o qual o esperto fotógrafo colocara um propositado reflexo luminoso; e, antes de mais nada, era a completa naturalidade, o modo simples e ingênuo com que ela o chamara de modo objetivo e modesto — Preysing recordou-se nesse instante — de um "bom nu". Preysing corou, enquanto teve diante dos olhos essa gravura; um súbito e ardente rubor subiu à sua testa, impedindo-o de pensar com clareza, como lhe acontecia nos seus acessos de cólera, que faziam tremer toda a fábrica. Depois, suas veias, uma a uma, começaram a latejar dentro dele, ele o sentia, sentia o sangue a refluir nas veias, como há muito tempo não lhe acontecia.

Preysing era um homem de cinquenta e cinco anos; não era um velho, mas uma pessoa pacata, o esposo pouco exigente de Mulle, mulher já envelhecida, papaizinho inocente de filhas crescidas. Trotara atrás da Flamm número dois pelo corredor do hotel sem sentir a mínima excitação, e o borbulhar suave de seu sangue, nessa ocasião, aplacara-se de modo próprio. Agora, diante desse nu artístico, mal podia respirar.

— Com licença, cavalheiro — disse o barbeiro; e, com um gesto elegante, pousou o fio da navalha em sua face.

Preysing conservou a revista na mão, enquanto se reclinava para trás e fechava os olhos. Primeiro viu tudo vermelho, e depois enxergou a Flaemmchen. Não a Flaemmchen vestida, diante da máquina de escrever, nem a Flaemmchen despida da fotografia cinzenta, mas uma mistura vivaz e excitante de ambas. Uma Flaemmchen de carne e osso, de pele moreno-dourada e sangue rubro e palpitante, que continuava nua, com o busto erguido, a olhar com curiosidade por cima de um biombo. O Diretor-Geral Preysing não estava habituado a deixar sua fantasia trabalhar. Mas agora ela trabalhava. Havia soltado a manivela, desde que ele, pela manhã, colocara na mesa o telegrama, dizendo, de um modo descarado, uma mentira absurda. Agora sua imaginação se afastava rapidamente com ele, o que era apavorante e embriagador ao mesmo tempo. Enquanto a navalha deslizava com leveza e perícia em seu rosto, Preysing sentia coisas incríveis, coisas fantásticas, com a Flaemmchen nua, coisas incríveis consigo mesmo, que ele nunca julgara que pudessem acontecer.

— Quer que lhe raspe o bigode? — perguntou o barbeiro.

— Não — disse Preysing, estorvado em meio aos seus pensamentos. — Por quê?

— É que as pontas estão um pouco grisalhas, e isso envelhece. Se me permite um conselho, o cavalheiro aparentaria dez anos menos, sem bigode — sussurrou o barbeiro, com o sorriso bajulador de todos os barbeiros a refletir-se no espelho.

"Mas eu não posso me apresentar a Mulle sem bigode, como um macaco", pensou Preysing, olhando-se no espelho. Realmente, seu bigode estava grisalho, e sob o bigode havia sempre gotas de suor no lábio superior. "Ora, a Mulle...", pensou ele — e nesse instante, a bem dizer, o adultério já estava cometido.

— Está bem, pode raspá-lo. A qualquer momento posso deixar crescer de novo o bigode.

— É claro, é facílimo — concordou o barbeiro, indo buscar em seguida mais sabão de barbear, para o grande empreendimento.

Preysing levantou a revista para olhar de novo a fotografia — mas isso só já não lhe bastava. Ele não queria mais ver, queria pegar, queria apalpar, queria sentir a Flaemmchen, palpitante e ardente.

No hotel repararam imediatamente no que acontecera ao bigode, mas não deram a perceber. Meu Deus do céu, estavam tão acostumados a observar as estranhas metamorfoses pelas quais passavam os cavalheiros que vinham da província para ficar uns dias no hotel... Preysing, que perguntava, apressado e ofegante, se havia correspondência para ele, recebeu uma carta de Mulle, que lhe colocaram na mão. Meteu-a simplesmente no bolso, sem a ler, e sem nenhum sentimento de carinho. Dirigiu-se então à cabina telefônica. "Preciso falar com Mulle", pensou, "mas posso chamá-la mais tarde." Entrou na cabina para ligações locais, pediu para falar com o gabinete do conselheiro Zinnowitz, e teve uma breve conversa com a Flamm número um. Desejava saber se a senhorita sua irmã estaria por acaso no gabinete.

Não, não estava mais.

Desejaria saber onde poderia ser encontrada.

Ah, respondeu a Flamm número um, hesitante, talvez ela se houvesse atrasado um pouco. Mas, nesse caso, a qualquer momento ela apareceria no hotel.

Preysing, diante do fone, ficou com uma cara de idiota.

— No hotel? Aqui? No Grande Hotel? Por quê?

— Pois é — disse a Flamm número um, precavida e indecisa. Isso pelo menos é o que ela entendera. Flaemmchen tinha ido para o hotel, e então ela, a Flamm número um, julgara que a irmã fora chamada de novo para datilografar. Mas talvez a Flaemmchen tivesse algum encontro, o que nunca se podia saber com certeza, pois, nesse ponto, a Flaemmchen era muito esquisita, muito diferente dela, a Flamm número um. Mas pontual ela era; quando prometia qualquer coisa, cumpria o prometido; por isso, iria com certeza ao hotel.

Preysing agradeceu e pôs o fone no gancho, atrapalhado. Dirigiu-se de novo, inquieto, à portaria, atravessando o hall. Ouvia-se perfeitamente a música saltitante que vinha do pavilhão amarelo.

— Minha secretária perguntou por mim? — informou-se ele com Herr Senf. O porteiro voltou para ele o rosto muito atento e tolo.

— Quem, por favor?

— Minha secretária. A senhorita a quem eu ditei cartas ontem — informou Preysing, excitado.

O pequeno Georgi meteu-se na conversa.

— Ela não perguntou nada, mas esteve no hall, há uns dez minutos, a moça loura, magra, não é isso? Eu acho que ela está no chá das cinco, no pavilhão amarelo, do outro lado do hall, segundo corredor atrás do elevador; o senhor vai perceber pela música.

Seria próprio de um diretor-geral, vestido com um terno de sarja, andar atrás dos sons apimentados de uma orquestra de jazz, através de corredores desconhecidos, à procura de uma jovem e leviana datilografa, com quem ele nada tinha que ver, do ponto de vista jurídico? Mas é que Preysing está quase a desviar-se do bom caminho, quase a escorregar, e não o percebe. Só percebe que seu sangue corre de modo diferente do costume, diferente dos quinze ou vinte últimos anos, e ele quer a qualquer preço agarrar-se a esse sentimento, tirar proveito dele. O bigode está raspado, não foi feita nenhuma ligação telefônica para a Mulle, e, quando ele abre a porta do pavilhão amarelo e sente a atmosfera desconhecida dessa sala, o assunto complicado com Chemnitz e Manchester, incerto e ainda por esclarecer, fica quase esquecido.

A essa hora, às cinco horas e vinte minutos, o pavilhão amarelo está diariamente entupido de gente. As cortinas de seda amarela, franzidas vaporosamente, estão fechadas diante das janelas altas; nas paredes estão acesas lampadazinhas amarelas, e nas mesinhas também há lampadazinhas acesas, com abajures amarelos. Está quente, ali dentro; dois ventiladores zunem, e paira no ar o burburinho humano. As pessoas estão sentadas bem perto umas das outras; cada um sente o calor do seu vizinho, porque uniram as mesinhas, para dar mais espaço aos que estão dançando no centro da sala. No forro abobadado estão pintadas formas vagas de bailarinos, em lilás e prateado; por vezes, quando tudo se movimenta, o forro causa a impressão de um espelho embaciado, em que se refletem os dançarinos cá de baixo. Tudo o que se passa ali dá uma impressão estranha de ângulos e de ziguezagues; a dança não é circular, mas apenas um estremecimento que se eleva e abaixa; e Preysing, que foi soprado até ali pelos rumores de seu sangue, para procurar uma certa Flaemmchen, ficou completamente tonto. Não via mais as pessoas inteiras, mas tudo se separava em confusão, só tinham cabeça ou coxas, como certa espécie de quadros modernos, que Preysing, em razão da loucura que representavam, não podia suportar. Porém, o mais importante e digno de reparo no pavilhão amarelo era a música. Era executada por sete cavalheiros indescritivelmente satisfeitos, de camisas brancas e calças curtas, a célebre Eastman Jazzband, cuja música era de uma vivacidade maluca, tamborilava sob as solas dos pés, fazia cócegas nos músculos dos quadris. Havia dois saxofones que choramingavam e outros dois que zombavam deles com um jeito satírico e sarcástico. O jazz serrava, estalava, teimava, matraqueava, cacarejava, pondo ovos sobre a melodia, ovos que eram em seguida esmagados — e quem caísse dentro do círculo dessa música ficava prisioneiro do ritmo convulsivo da sala, parecia até enfeitiçado.

Preysing, no entanto — empurrado de um lado para o outro pelos garçons que levavam bandejas cheias de taças com gelo —, ficara parado à porta, e reparou que começou a contrair os músculos das pernas enquanto, mal-humorado, procurava enxergar a Flamm número dois. Seu lábio superior, nu e remoçado, cobriu-se novamente de suor; ele tirou do bolso o lenço, enxugou o rosto, e depois meteu o lenço no bolsinho exterior do paletó, onde em geral só costumava guardar a caneta-tinteiro. Com um olhar de esguelha, muito encabulado, arranjou a ponta do lenço, deixando-o cair como uma graciosa bandeirola; isso parecia legitimar o seu direito de pertencer a essa parte animada do Grande Hotel. Aliás, ninguém se importava com ele. Poderia ficar ali o tempo que quisesse, e procurar entre duzentas jovens e esbeltas dançarinas uma determinada senhorita.

— Quando vi que o senhor não estava aqui às cinco e dez pensei: ele vai dar um bolo. Você vai ver, ele vai dar um bolo, pensei — disse a Flaemmchen, que estava dançando com Gaigern uma lânguida variação do charleston, uma dança nova, com uma pequena síncope, que dava um golpe na perna. Seus corpos se ajustavam plenamente na dança.

— Absolutamente. Pensei o dia inteiro na senhora, e me alegro de poder revê-la — disse Gaigern.

Essa frase lhe saiu com a mesma leveza e languidez, com a mesma facilidade com que ele dançava. Gaigern era apenas alguns centímetros mais alto do que a Flaemmchen, e fitou com um leve e amável sorriso os olhos de gatinha da moça. Ela estava vestida com um vestidinho de seda leve, azul; ao pescoço trazia um colar de contas de vidro lapidado, e usava um chapeuzinho, desses fabricados em série e vendidos por um marco e noventa. Estava encantadora, com os requisitos de uma elegância rebuscada.

— É verdade mesmo que o senhor se alegrou? — perguntou ela.

— Metade verdade, metade invenção — replicou Gaigern com sinceridade. — Passei o dia hoje caceteadíssimo — acrescentou suspirando. — Estou servindo de cicerone para um senhor de idade, por necessidade, é claro.

— E por que faz isso?

— Preciso conseguir uma coisa dele.

— Ah! — disse a Flaemmchen, compreensiva.

— A senhora também precisa dançar com ele — disse Gaigern, apertando-a de leve.

— Que nada!

— Não é isso. Mas eu vou lhe pedir encarecidamente. Ele não sabe dançar, compreende? Mas tem tanta vontade de aprender! A senhora dá apenas algumas voltas com ele — para me fazer um favor.

— Bem, vamos ver! — prometeu a Flaemmchen. Continuaram a dançar, calados. Gaigern trouxe mais para perto o corpo da moça, sentindo que as costas dela obedeciam documente aos movimentos de sua mão. Isso, porém, não o alegrava, pelo contrário, causava-lhe raiva, até.

— Então, que aconteceu? — perguntou a Flaemmchen, pressentindo o que se passava.

— Ah!... Não é nada! — resmungou Gaigern, sentindo ódio de si próprio.

— Que está querendo? — perguntou a Flaemmchen com solicitude. Achava-o lindo, com aquela boca, e a cicatriz no queixo... E os olhos também, um pouco oblíquos. Sentia forte inclinação por ele.

— A gente tem vontade de fazer qualquer coisa maluca, já que não acontece nada. Agora tenho vontade de mordê-la, ou de brigar com a senhora. Ou de esmurrá-la, até. Ora! Hoje à noite vou à luta de boxe; ali, pelo menos, acontece alguma coisa.

— Ah, é? — disse a Flaemmchen. — O senhor vai hoje à noite à luta de boxe? Ah, sei.

— Com aquele senhor de idade — afirmou Gaigern.

— Se o senhor... acabou — disse a Flaemmchen, quando a música parou. Ela se pôs então a bater palmas freneticamente, deixando-se ficar onde estava. Gaigern fez menção de tirá-la do meio da sala e levá-la a uma mesinha, onde ele deixara Kringelein diante de uma xícara de café. A música começou de novo, quando os dois já se encontravam a meio caminho, entre a confusão e o aperto.

— Tango! — exclamou a Flaemmchen, excitada.

E a moça tomou posse de Gaigern, simplesmente. A palma de sua mão encostava-se à dele, implorando e aquiescendo. Suas coxas já se emparelhavam no passo lânguido e arrastado do tango. Fez-se um vazio na sala, em redor deles, porque dava prazer vê-los dançar.

— O senhor conduz otimamente — sussurrou a Flaemmchen, como se fizesse uma declaração de amor. Gaigern nada tinha a replicar. — Ontem o senhor estava tão diferente... — disse um pouco mais tarde.

— É... ontem — respondeu Gaigern. Disse isso como se estivesse a dizer: há cem anos. — Aconteceu uma coisa de ontem para hoje — acrescentou.

Sentia que uma compreensão simples e natural os unia, e de repente teve desejos de se confiar a ela.

— Esta noite eu me apaixonei, uma paixão muito séria, compreende? — disse ele baixinho, dançando o tango que vibrava no ar. — Isso vira a cabeça da gente. É um sentimento avassalador. É como se...

— Mas isso não é nada de extraordinário — observou a Flaemmchen, ironicamente, sentindo-se triste, desiludida.

— É sim, é uma coisa extraordinária. A gente tem vontade de se transformar por completo, compreende? De repente acha que só existe uma mulher no mundo, só essa mulher, e o resto não tem mais nenhum valor. A gente acha que não é mais capaz de dormir, a não ser com essa mulher. É como se passasse por nós um furacão. Como se nos tivessem posto dentro de um canhão, e depois atirado à Lua ou a outro lugar qualquer, onde tudo é diferente.

— E como é ela? — perguntou a Flaemmchen — e qualquer outra em seu lugar teria perguntado o mesmo.

— Ah! Como ela é? Aí é que está... É muito velha e magra, muito leve, sou capaz de levantá-la do chão com um dedo. Tem rugas, aqui e aqui, e olhos pisados. E fala numa linguagem de baixo calão, como um clown; tem-se vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo, ao ouvi-la. E isso tudo me agrada de um modo incrível, não há nada a fazer. É o grande amor.

— O grande amor? Mas isso não existe — disse a Flaemmchen. Ao afirmar isto, ela tinha uma carinha espantada e teimosa de gata, como às vezes os amores-perfeitos têm nos canteiros.

— Como não, como não? Existe, sim — disse Gaigern.

A Flaemmchen ficou tão impressionada com essas palavras, que parou um segundo, em meio ao tango, e sacudindo a cabeça olhou Gaigern.

— São frases, apenas — murmurou ela ao mesmo tempo.

Nesse momento exato os olhos de Preysing descobriram finalmente o vulto procurado, no meio da confusão erótica e lânguida do tango. Com um sentimento de zanga e extrema impaciência, esperou que a dança lenta terminasse e depois foi-se espremendo entre os pares, até a mesinha em que a Flaemmchen tomara lugar entre dois senhores, que Preysing tinha a impressão de conhecer. No hotel, essa espécie de conhecimentos de vista eram correntes; passava-se por alguém no elevador, encontrava-se com alguém na sala de refeições, no banheiro e no bar, girava-se um diante do outro na porta giratória, nessa porta que estava sempre a rodar, deixando entrar e sair gente, para dentro e para fora do hotel.

— Boa tarde, Fräulein Flamm — disse o diretor-geral com a voz tornada rouca e grosseira pela timidez; postou-se ao lado da cadeira da moça, encolhendo a barriga para dar passagem ao garçom.

A Flamm número dois apertou as pálpebras, até conseguir registrar a presença imprevista de Preysing.

— Ah, é o senhor diretor — disse então, amavelmente. — O senhor também dança? — ela olhou a fisionomia contraída dos três homens; estava habituada a ver essa expressão nos semblantes dos homens que a rodeavam. — Os senhores já se conhecem? — perguntou com um gesto distinto de mão, que copiara de uma estrela de cinema.

Não podia apresentá-los, porque não sabia como se chamavam os seus cavalheiros. Preysing e Gaigern murmuraram algo, e o diretor-geral apoiou na mesa uma mão repleta de sentimento de posse, enquanto passava rente a ele, à altura da cabeça, uma perigosa bandeja com copos de laranjada, que o garçom equilibrava.

— Boa tarde, Herr Preysing — disse de repente Kringelein, sem erguer-se da cadeira.

Cada uma das suas vértebras lhe doía, por causa do enorme esforço que teve de fazer para não ser atacado de tremedeira e não cair estatelado, voltando a ser o miserável Kringelein da caixa da fábrica. Ficou de ombros contraídos; tudo nele se contraiu; lábios, dentes, até mesmo as narinas, que tomaram um aspecto redondo e feio, como as dos cavalos. Mas ele se portou à altura do grave momento; forças nunca pressentidas fluíam do seu jaquetão preto de corte impecável, da sua roupa de baixo, da sua gravata, de suas unhas bem cuidadas, enchendo-o de energia. O que quase o fez perder o aplomb foi o fato de Preysing também ter se transformado; continuava a usar o mesmo terno de Fredersdorf, mas não tinha mais bigode.

— Não sei bem... desculpe-me... mas acho que já nos conhecemos... — disse Preysing com a maior amabilidade que lhe permitia a excitação que sentia por causa da Flaemmchen.

— Sim, senhor. Kringelein — afirmou este. — Trabalho na fábrica.

— Ah — disse Preysing, esfriando. — Kringelein. Nosso representante, não é? — acrescentou, reparando na elegância de Kringelein.

— Não. Guarda-livros. Auxiliar de guarda-livros no bureau de pagamentos. Sala 23. Edifício C. Terceiro andar — informou Kringelein conscienciosamente, mas sem devoção.

— Ah — repetiu Preysing, pensativo. Seu desejo era afastar nesse momento a aparição indesejável e incompreensível de um auxiliar de guarda-livros de Fredersdorf no pavilhão amarelo do Grande Hotel. — Preciso falar com a senhora, Fräulein Flamm — disse ele, retirando a mão do encosto da cadeira da Flaemmchen. — Trata-se de um novo serviço de datilografia — acrescentou num tom de chefe, que feriu os ouvidos do sujeito de Fredersdorf.

— Está bem — concordou a Flaemmchen. — Quando é melhor para o senhor? Às sete, sete e meia?

— Não, já — disse Preysing em tom ditatorial, enxugando o suor do rosto.

Aquele indivíduo de Fredersdorf tinha também um lenço no bolso do paletó, uma flamulazinha de seda, revolucionária e leviana.

— Infelizmente, já, já não é possível — disse a Flaemmchen amavelmente. — Já estou comprometida. Não posso deixar estes senhores aqui. Ainda preciso dançar uma vez com Herr Kringelein.

— Herr Kringelein vai ter a amabilidade de desculpá-la — disse Preysing, contendo-se. Era uma ordem. Kringelein sentiu que os vinte e cinco anos de um sorriso subalterno queriam insinuar-se em seus lábios paralisados. Controlou-o, fazendo-o recuar para a pele do rosto, engelhada e quase fria. Procurou auxílio e forças em Gaigern. O barão tinha um cigarro no canto da boca, e a fumaça subia ao longo das pestanas de seu olho esquerdo, que ele piscou com expressão brejeira e compreensiva.

— Não penso absolutamente em desistir — comentou Kringelein. Após lhe escaparem estas palavras, ficou imóvel como uma lebre, que finge estar morta no carreiro de um campo. De repente, Preysing, ao ver aquela expressão obstinada, recordou-se de um relatório a respeito de Kringelein, que lhe haviam apresentado há poucos dias.

— É estranho — disse ele com a voz nasal e temida da fábrica. — É estranhíssimo. Agora já sei do que se trata. O senhor participou à fábrica que estava doente, não é? Herr Kringelein, hein? Sua mulher pediu um subsídio ao Fundo de Auxílio aos Doentes, por causa de moléstia grave. Nós lhe demos férias de seis semanas, pagas. E o senhor se encontra em Berlim, divertindo-se, hein? Anda atrás de divertimentos que não condizem nem com a sua posição nem com o seu ordenado. É muito estranho. Estranhíssimo, Herr Kringelein. Nós vamos rever com cuidado os seus livros, pode estar certo disso. Vamos deixar de pagar-lhe as férias, já que o senhor está tão bem de saúde, Herr Kringelein! Vamos...

— Olhem, meninos, nada de brigas aqui. Vão entender-se no seu escritório — disse a Flaemmchen, com modos afáveis e conciliantes. — Nós estamos aqui para nos divertir. Vamos, Herr Kringelein, agora vamos dançar.

Kringelein firmou-se nas pernas, esticando os joelhos, que pareciam de borracha, mas que se consolidaram a olhos vistos quando a Flaemmchen colocou o braço no ombro dele. A música tocava aos solavancos uma coisa rapidíssima, algo semelhante à corrida de automóvel a cento e quinze quilômetros por hora, e ao motor de avião. Isso lhe deu forças para dizer as frases que vinha preparando há vinte e cinco anos, em sua vida de empregado subalterno. Arrastado pela Flaemmchen para o meio da sala, falou em voz alta, virando a cabeça para trás:

— Quem sabe se o mundo pertence só ao senhor, hein, Herr Preysing? O senhor será diferente de mim? Quem sabe se as pessoas como eu não têm o direito de viver?

— Que é isso, que é isso! — exclamou a Flaemmchen. — Aqui não se fala aos berros, aqui se dança. E agora, não olhe para os pés, olhe para o meu rosto, e vá andando, vá andando calmamente, vou guiá-lo.

— Mas que impostor! — rangeu Preysing por entre os dentes, por trás deles. E ficou diante da mesa, trêmulo de cólera. Gaigern, a fumar, ouvindo essas palavras, sentiu um impulso raro, uma espécie de compassivo coleguismo, misturado a uma repulsa, violenta e sarcástica, pelo corpulento e suarento diretor-geral. "Era preciso colocar-lhe um par de sanguessugas na pele, amiguinho", pensou ele.

— Deixe que o pobre-diabo se divirta! — disse a meia voz. — Basta olhar para a cara dele para ver que está às portas da morte.

"Não lhe pedi nenhum conselho", pensou Preysing, mas não teve coragem de dizê-lo, porque sentia obscuramente a raça superior do barão.

— Peço-lhe o favor de dizer a Fräulein Flamm que a espero no hall, para um assunto urgente. Se ela não aparecer até as seis, dou o assunto por terminado — disse ele, curvando-se ligeiramente. Em seguida retirou-se.

Intimidada por esse ultimato, a Flaemmchen apareceu no hall três minutos antes das seis. Preysing ergueu-se das brasas ardentes em que estivera sentado nesse ínterim, e sorriu com profunda satisfação. Como ele sorria raramente, essa amabilidade o tornou mais bonito, e causou efeito imprevisto.

— Cá está a senhora — disse ele, estonteado.

Há muitas horas ele se contorcia, se martirizava, ardia, com um único pensamento: saber se a Flaemmchen era conquistável. Suas experiências com mulheres eram modestas, e datavam de muitos anos atrás. Dessa geração nova de mocinhas, ele fazia apenas uma ideia vaga, apesar de, nas reuniões masculinas, e em conversas íntimas nas viagens profissionais, dizerem com frequência que essa espécie de meninas era fácil de conquistar. Pôs-se a observar a Flaemmchen, as suas pernas cruzadas, com meias de seda, o colar de pedras de vidro imitando cristal, sua pintura, que ela nesse instante renovava, apertando os lábios, e ficou sem saber em que se basear, nessa pessoa despreocupada, para as suas suposições.

A Flaemmchen fechou o estojinho de pó de arroz e perguntou:

— Então, de que se trata?

Preysing apertou o charuto entre os dedos, e desembuchou:

— Trata-se do seguinte — começou ele: — preciso viajar para a Inglaterra, e preciso levar comigo uma secretária. Em primeiro lugar, por causa da correspondência; depois, porque desejaria ter com quem conversar durante a viagem. Sou muito nervoso, muito nervoso, mesmo — afirmou, apelando inconscientemente para a compaixão da moça —, e preciso ter alguém na viagem que se ocupe de mim. Não sei se a senhora me compreende. Ofereço-lhe um emprego de confiança, em que a senhora... em que..

— Já estou compreendendo — disse a Flaemmchen, baixinho, ao perceber a atrapalhação dele.

— Acho que nos daremos bem na viagem — afirmou Preysing.

O delicioso fluir e latejar do seu sangue nas veias diminuíra durante tão difíceis negociações, mas quando ele fitou a Flaemmchen consolou-se, sentindo que ela iria fazer com que tudo isso despertasse de novo, assim que o desejasse.

— A senhora contou-me que no ano passado também viajou com um cavalheiro, e isso me fez ter esta ideia... eu acho que seria muito agradável, se a senhora quisesse. A senhora quer?

A Flaemmchen pensou durante cinco longos minutos.

— Preciso pensar primeiro — respondeu ela, com expressão ajuizada e preocupada, fumando o seu indefectível cigarro. — Para a Inglaterra? — perguntou depois. A cor moreno-dourada da sua pele clareou um pouco, o que talvez significasse que empalidecera. — Ainda não conheço a Inglaterra. E por quanto tempo?

— Por... não sei lhe dizer ainda com exatidão. Isso depende. Se os meus negócios lá correrem bem, tiro talvez mais catorze dias de férias, e podemos ficar em Londres, ou ir para Paris.

— Bom, pode-se arranjar; já sei mais ou menos do que se trata, pelas cartas — disse a Flaemmchen com segurança.

O otimismo era o elemento em que ela se movia. Preysing sentiu-se animado ao perceber que ela estava a par dos seus negócios, e profetizava o sucesso.

— A senhora ainda precisa me dizer quanto quer de ordenado — declarou ele, com o tom de quem dizia um galanteio.

Desta vez demorou mais, até que a Flaemmchen respondesse. Tinha que fazer um extenso balanço. A renúncia à aventura principiada com o belo barão se incluía nele, os pesados cinquenta anos de Preysing, sua gordura, seu fôlego curto. Pequenas dívidas aqui e ali. A necessidade de roupa de baixo nova, de sapatos bonitos — os azuis não iam durar muito. O pequeno capital de que necessitava para iniciar carreira no cinema, na revista, em qualquer parte. A Flaemmchen pesou calmamente e sem sentimentalismo a oportunidade do negócio que lhe era proposto.

— Mil marcos — disse ela, achando que era suficiente; não tinha ilusões a respeito das quantias que hoje em dia se depunham aos pés das mulheres bonitas. — Talvez um pouquinho mais para a roupa de viagem — acrescentou, um pouco mais tímida do que de costume. — O senhor há de querer que eu tenha uma bonita aparência...

— Para isso a senhora não precisa se vestir. Pelo contrário — disse Preysing, excitado. Ele julgou que tinha dito uma frase espirituosa. A Flaemmchen sorria melancolicamente, o que deu um aspecto estranho à sua saudável carinha de amor-perfeito. — Então está combinado? -— perguntou Preysing. — Amanhã ainda tenho umas coisas a fazer aqui; é preciso também arranjar os passaportes, e poderemos viajar depois de amanhã. Está contente por ir conhecer a Inglaterra?

— Muito — respondeu a Flaemmchen. — Então amanhã eu trago a minha máquina de escrever portátil e o senhor pode ir logo ditando.

— E hoje à noite... se a senhora concordar... pensei que hoje à noite poderíamos ir a um teatro... Temos que tomar um copo de vinho para festejar o nosso contrato, não é? O que acha?

— Hoje, já? — disse a Flaemmchen. — Bom. Hoje, já.

Ela soprou o seu caracolzinho para cima, e atirou o cigarro amassado no cinzeiro. Podia ouvir perfeitamente a música do pavilhão amarelo. "Não se pode ter tudo", pensou. "Mil marcos. Vestidos novos. E Londres também não é para desprezar."

— Preciso telefonar para minha irmã — disse ela, levantando-se. Preysing sentiu-se percorrido por uma onda de calor, apaixonada e grata, que o inundou completamente; colocou-se então por trás dela e pegou delicadamente, com ambas as mãos, seus cotovelos, que ela apertava de encontro ao corpo.

— Quer ser boazinha para mim? — perguntou ele em voz baixa.

E igualmente baixinho, com os olhos voltados para a passadeira cor de amora, a Flaemmchen respondeu:

— Se não tiver muita pressa...


CONTINUA

7

 

O chá com veronal esfriara. A Grussinskaia sorriu ligeiramente, mas quando o percebeu, parou de sorrir e perguntou com ar severo:

— Quem o deixou entrar? A criada de quarto? Ou a Suzette? Como conseguiu entrar?

Gaigern tentou um golpe arriscado. Apontou por sobre o ombro para a atmosfera noturna da rua.

— Por ali — disse ele. — Vim do balcão do meu quarto.

De novo a Grussinskaia teve a impressão de já ter passado por aventura semelhante. De repente, veio-lhe a recordação. Num dos castelinhos de veraneio, no sul, em Abas-Tuman, aonde o Grão-Duque Serguei costumava levá-la, escondera-se certa noite em seu quarto um homem, um oficial bem jovem ainda. Arriscara a vida nessa tentativa; mais tarde ele veio de fato a falecer num acidente de caça pouco esclarecido. Isso tinha acontecido pelo menos há trinta anos. Enquanto a Grussinskaia ia para o balcão e olhava na direção em que a mão de Gaigern apontava, de repente o passado se apresentou de novo com toda a clareza. Ela via o rosto do jovem oficial. Chamava-se Pavel Jerilinkov. Lembrou-se de seus olhos e de alguns beijos. Estava enregelada, e sentiu que o homem ao lado dela no balcãozinho irradiava calor. Olhou rapidamente para os sete metros da fachada do hotel, que ficavam entre o balcão do seu quarto e o do quarto vizinho.

— Mas isso é perigoso — observou ela inadvertidamente, recordando-se mais de Jerilinkov do que pensando no momento presente.

— Não é tanto assim — replicou Gaigern.

— Está fazendo frio. Feche a porta — disse a Grussinskaia, passando depressa diante dele e entrando de novo no quarto. Gaigern obedeceu, e foi caminhando atrás dela; fechou a porta, puxou as duas cortinas, e depois ficou com as mãos pendentes: não passava de um jovem belíssimo, modesto mas um pouco amalucado, que fazia garotices românticas, para entrar no quarto de uma bailarina célebre. Afinal de contas, ele também possuía um pouco de talento para ator, o que era uma exigência da sua profissão. E agora representava, por uma questão de vida ou de morte. A Grussinskaia curvou-se, levantou o traje de ballet que atirara no chão, e o levou para o banheiro. A gota de sangue, de contas vermelhas de vidro lapidado, cintilou. Ela sentiu uma dor cortante e aguda. Nenhum da capo. Nenhum escândalo, quando uma outra dançava. Um público cruel. Berlim era cruel. Solidão cruel. Ela já havia sobrepujado um pouquinho essa dor — e agora a dor a acometia de novo, causando-lhe uma angústia no peito. Durante alguns segundos esqueceu-se por completo do intruso, que se parecia com o falecido Jerilinkov, mas de repente virou-se para ele e perguntou, sem olhá-lo:

— Por que fez isso? Por que faz coisas perigosas? Por que está escondido no meu quarto? Deseja alguma coisa de mim?

Gaigern fez uma investida e preparou-se para o ataque. — "Hop-là, avante!", pensou Gaigern. Não ergueu os olhos para ela.

— A senhora já sabe a razão, é porque a amo — respondeu em voz baixa.

Disse isso em francês, porque se o dissesse em alemão teria sido extremamente penoso. Depois ficou esperando em silêncio pelo resultado. "É simplesmente idiota", pensou ao mesmo tempo. Essa comédia lhe causava uma vergonha atroz, humilhante. Tinha horror de tudo o que feria o bom gosto. De qualquer modo, se ela não chamasse pelo camareiro, talvez ele estivesse salvo.

A Grussinskaia engoliu essas breves palavras francesas com a boca bem aberta. Absorveu-as como um remédio; dentro de poucos segundos até o tremor de frio cessou. Pobre Grussinskaia! Há muitos anos que ninguém lhe dizia coisa semelhante. Sua vida corria diante dela como um trem expresso vazio. Ensaios, trabalho, contratos, carros-dormitórios, quartos de hotel, excitação no palco, uma excitação cruel, e mais trabalho e mais ensaios. Sucesso, fracasso, críticas, entrevistas, recepções oficiais, discussões com empresários. Três horas de exercícios de solista, quatro horas de ensaios de ballet, quatro horas de espetáculo; os dias se seguiam um ao outro sempre iguais. O velho Pimenoff. O velho Witte. A velha Suzette. A não ser essas pessoas, mais ninguém, nenhum calor, nunca, nunca. Colocava as mãos nos canos de aquecimento central dos hotéis, e pronto. E depois, quando estava tudo terminado, quando o fim de tudo e da vida estava iminente, encontrava-se um homem à noite no quarto, e esse homem pronunciava palavras há muito desaparecidas, de que outrora

o mundo estivera repleto. A Grussinskaia não suportava mais. Sentia um sofrimento atroz, como se estivesse prestes a dar à luz. Mas foram apenas duas lágrimas que finalmente brotaram da tensão dessa noite, e ela as sentiu em seu corpo inteiro, nos artelhos e nas pontas dos dedos das mãos, depois no coração, e por fim elas chegaram aos seus olhos; rolaram pelas longas e rígidas pestanas pretas de pintura, caindo nas palmas abertas de suas mãos.

Gaigern assistiu à evolução desse fenômeno, e encheu-se de calor. "Pobre animalzinho", pensou ele. "Pobre bichinha. Está chorando, agora. Que coisa idiota!"

Depois que a Grussinskaia deu à luz essas duas lágrimas dolorosas, a coisa se tornou mais fácil. Começou com um leve aguaceiro, ao mesmo tempo cálido e fresco como uma chuva de verão — Gaigern pôs-se a pensar nos canteiros de hortênsias do jardim de Ried, sem saber por quê. Depois, esse aguaceiro se transformou numa torrente apaixonada, uma torrente negra, porque a pintura das sobrancelhas se dissolveu por completo. E, por fim, a Grussinskaia atirou-se ao leito, soluçando um tropel de palavras russas nas mãos em concha, que conservava encostadas à boca. Gaigern, ao assistir a essa cena, transformou-se. De ladrão de hotel, prestes a tirar a vida de uma mulher, passou a ser simplesmente um homem, um sujeito grandão, simples e bondoso, que não podia ver uma mulher chorar sem querer auxiliá-la. Agora não sentia mais medo, absolutamente nenhum; agora, o que o fazia sentir o coração pequeno e palpitante era a simples compaixão. Inclinou-se sobre o leito, pondo os braços dos dois lados do pequenino corpo a soluçar, e assim, curvado sobre a Grussinskaia, principiou a sussurrar em meio aos seus soluços. Não era nada de especial o que ele dizia; com as mesmas palavras teria consolado uma criança a chorar, ou um cão enfermo.

— Coitadinha — foi mais ou menos o que ele disse —, pobrezinha, pobrezinha da Grussinskaia, ela está chorando. Faz bem chorar assim, faz? Pois então chore, pode chorar. Que foi que lhe fizeram? Foram maus para você? Você gosta que eu esteja ao seu lado? Posso ficar aqui? Está com medo? É por isso que está chorando, é? Você... bobinha!

Levantou um dos braços que apoiara ao leito, tirou da boca da Grussinskaia as mãos que ela apertava de encontro aos lábios e beijou-as; estavam molhadas de lágrimas e pretas como as de uma menininha; seu rosto também estava todo lambuzado das lágrimas negras caídas dos seus olhos pintados. Gaigern não pôde deixar de rir. Apesar de continuar a chorar, a Grussinskaia viu o movimento bondoso, próprio dos homens fortes, o movimento de ombros que fazem quando riem. Gaigern afastara-se do leito e tinha ido ao banheiro. Voltou com uma esponja e enxugou com muito cuidado o rosto da bailarina; tinha trazido também um lenço. A Grussinskaia tinha parado de chorar, e conservou-se deitada tranqüilamente, enquanto ele lhe limpava o rosto. Gaigern sentou-se à beira da cama e sorriu para ela.

— E então? — perguntou ele.

A Grussinskaia murmurou qualquer coisa que ele não compreendeu.

— Fale em alemão — pediu Gaigern.

— Você... criatura... — sussurrou a Grussinskaia.

Essas palavras o comoveram. Chocaram-se de encontro ao seu coração como uma bolinha de tênis atirada com força, e quase o magoaram. As damas com as quais ele tinha relações não costumavam usar palavras carinhosas. Para elas, a gente se chamava coisinha, menininho, queridinho, ou "o barão grandão". Gaigern percebeu o sentimento contido nesse apelo, que despertou em seu íntimo recordações da infância, vindas de uma esfera que ele abandonara. Afastou-o de si. "Se ao menos eu tivesse um cigarro", pensou ele, cheio de languidez. A Grussinskaia tinha olhado para ele um momento, com um olhar que exprimia confusão e quase felicidade. Depois ela se sentou, estendeu seus longos artelhos à procura dos chinelos que haviam caído e de repente se transformou em uma senhora.

— Ora essa! — disse ela. — Que sentimentalismo! A Grussinskaia está chorando? Como? É uma coisa que vale a pena ver. Há muito tempo, há anos que ela não chorava. Monsieur me assustou. Monsieur é o culpado por esta triste cena.

Falava na terceira pessoa, queria criar distância, retirar o repentino "você", mas esse homem já estava muito próximo dela, para que o pudesse chamar de "senhor". Gaigern nada pôde responder.

— É horrível como o teatro ataca os nervos — continuou ela em alemão, com a impressão de que ele não a tinha compreendido. —- Disciplina! Isso sim, disciplina nós temos. A disciplina é um coisa penosa e difícil. Disciplina é fazer sempre o que não se deseja, como posso explicar... o que a gente não gosta de fazer. Você sabe o que significa ficar exausto por excesso de disciplina?

— Eu? Eu não. Faço sempre o que quero — disse Gaigern.

A Grussinskaia ergueu a mão, com um gesto em que todas as Graças haviam retornado.

— Sim, monsieur. Sente-se vontade de entrar no quarto de uma senhora... e entra-se. Sente-se vontade de pular varandas, com risco de vida... e faz-se o que se quer. E qual é o desejo de monsieur, agora?

— Eu gostaria de fumar — respondeu Gaigern francamente. A Grussinskaia esperava outra resposta, e achou que o pedido era cavalheiresco e gentil. Foi até a escrivaninha e ofereceu a Gaigern sua pequena cigarreira. Com o quimono chinês, já muito usado, mas legítimo, e os chinelos acalcanhados, tinha a mesma aparência de há vinte anos, quando viajava por todos os continentes, cheia de uma graciosidade cristalina e tilintante. Parecia ter-se esquecido de seus olhos avermelhados, e de seu aspecto lamentável.

— Pois então fumemos o cachimbo da paz — disse ela, erguendo para Gaigern as pálpebras amarfanhadas. — E depois faremos a nossa despedida!

Gaigern tragou avidamente a fumaça pelo nariz e pelo pulmão. Sentiu-se aliviado, apesar de sua situação ser ainda delicada. Não podia abandonar esse quarto com as pérolas no bolso, quanto a isso não havia dúvidas. Se conservasse as pérolas, agora que conhecia a bailarina, teria que fugir nessa mesma noite, e no dia seguinte pela manhã a polícia o estaria perseguindo. Isso não fazia absolutamente parte dos seus planos. Agora tratava-se de ficar ali a qualquer preço, até que as pérolas pudessem retornar ao seu estojo. A Grussinskaia sentara-se diante do espelho e empoava o rosto, com expressão séria. Esfregou alguns riscos e pontinhos da pele e ficou novamente linda. Gaigern aproximou-se dela, pondo-se, com seu grande vulto entre a suitcase vazia e a mulher. Fitando seus ombros, ele dirigiu-lhe um sorriso tentador, doce como mel.

— Por que esse sorriso? — perguntou ela ao espelho.

— Porque vejo no espelho uma coisa que você não pode ver — disse Gaigern.

Dizia simplesmente: "você". O cigarro lhe tinha dado coragem, e ele se animou. "Avante", pensou ele, encorajando-se.

— Estou vendo de novo o que estava vendo há pouco, lá do balcão — disse ele inclinando-se sobre a mulher —, estou vendo no espelho uma mulher belíssima, como nunca vi outra igual. Essa mulher está triste. E está nua... Ela é... não, não posso dizê-lo, isso me faz ficar louco. Não sabia que era tão perigoso espiar em um quarto alheio uma mulher que se despe.

E, realmente, enquanto Gaigern formava no seu francês convencional essas frases galantes, via a imagem da Grussinskaia no espelho, como há pouco, e sentia ao vê-la a mesma admiração e o mesmo calor que sentira no balcão. A Grussinskaia ouviu-o atenta e com expressão inquiridora. "Como me tornei fria", pensou com tristeza, percebendo que não estremecia ao ouvir aquelas palavras entusiásticas. Sentia a intensa vergonha das mulheres frias. Voltou-se para Gaigern com um movimento elegante e calculado do longo pescoço. Gaigern segurou os pequenos ombros da mulher com suas mãos quentes e hábeis, e em seguida beijou-a no lindo sulco entre as omoplatas, como um conhecedor.

Esse beijo, principiado com frieza entre dois corpos estranhos, prolongou-se. Mergulhou como uma agulhazinha quente na espinha dorsal da mulher, cujo coração começou a palpitar com força. Seu sangue correu mais pesado e doce; sim, esse coração que já esfriara agora palpitava, e começou a vibrar; seus olhos se fecharam; ela tremia. Gaigern tremia também, quando a largou e endireitou o corpo; uma veia intumesceu, muito azul, na sua testa. De repente sentiu a Grussinskaia dentro dele. inteirinha, sua pele, seu perfume acre, seu estremecimento ansioso de prazer, que fora despertando aos poucos. "Com os diabos!", pensou ele de repente. Suas mãos estavam cheias de avidez, e ele as estendeu.

— Eu acho que o senhor deve retirar-se agora — disse a Grussinskaia com voz fraca, à imagem do moço no espelho. — A chave está na porta.

Sim, lá estava a malfadada chave; agora era possível retirar-se quando quisesse. Mas Gaigern não desejava retirar-se — por várias razões.

— Não — disse ele, com súbito sentimento de dominador, como o macho de uma pequenina mulher, trêmula como um violino a vibrar. — Não vou embora. Você sabe que não vou. Você pensa realmente que vou deixá-la agora aqui sozinha? Que vou abandoná-la ao lado de uma xícara de chá cheia de veronal? Você pensa que eu ignoro o que se passa com você? Eu vou ficar aqui. Está dito.

— Está dito? Está dito? Mas eu quero ficar sozinha....

Gaigern aproximou-se rapidamente da Grussinskaia, que estava de pé no meio do quarto, e puxou até seu peito os pulsos da bailarina.

— Não — disse ele com veemência. — Isso não é verdade. Você não quer ficar sozinha. Você tem um medo pavoroso de ficar sozinha, percebo perfeitamente o medo que você sente. Sei o que você está sentindo, eu a conheço, pequerrucha, mulher estranha. Você está representando uma pequena comédia para me enganar. O seu cenário é de vidro, eu vejo através dele. Há pouco você estava desesperada. Peça para eu ficar com você, peça!

Pôs-se a sacudir as mãos dela. Segurou-a pelos ombros e sacudiu-a. Pela dor que sentiu, ela pôde perceber a excitação do moço; Jerilinkov havia implorado, lembrou-se ela; este ordenava. Fraca e aliviada, ela deixou cair a cabeça sobre o peito coberto pelo pijama de seda azul.

— Sim, fique mais um minuto — murmurou ela. Gaigern, a olhar por cima de seus cabelos, respirava ofegante, soltando o ar por entre os dentes cerrados. Sua tensão de medo começou a se distender; um turbilhão de imagens desfilou rapidamente, cinematograficamente, diante dele; a Grussinskaia, morta em seu leito, com uma dose violenta de veronal no sangue, ele a fugir pelos telhados, investigações na casa de Springe, penitenciária — ele não fazia a menor ideia do aspecto de uma penitenciária, no entanto enxergava tudo perfeitamente, e também viu sua mãe, morrendo de novo, apesar de já estar morta há muito tempo. Quando voltou ao quarto 68, o medo e o perigo já vencidos transformaram-se de repente em embriaguez. Tomou nos braços o corpo leve da Grussinskaia, levou-o até a cama, onde a deitou como uma criança.

— Venha, venha, venha — murmurou ele de encontro às fontes da mulher, com uma voz subitamente grave e profunda.

A Grussinskaia há muito tempo não sentia o próprio corpo, e agora estava sentindo-o. Durante muitos anos não fora mulher, e agora sentia-se mulher. Um céu negro e sonoro começou a girar sobre ela, e ela se atirou nele com ímpeto. Um gemido brando de passarinho, expelido por uma boca entreaberta, transportou Gaigern, de uma fingida paixão, a profundidades de prazer que ele desconhecia. A xícara de chá, na mesa do hotel, estremecia de leve todas as vezes que passava algum automóvel. Primeiramente, a luz branca do lustre se refletiu no líquido envenenado; depois, apenas o vermelho da lâmpada de cabeceira, depois apenas a luz cambiante do anúncio móvel que penetrava pelas cortinas. Dois relógios apostavam corrida; o elevador rangia no corredor; a torre longínqua da igreja badalou uma hora, por entre as buzinas noturnas dos automóveis — e dez minutos mais tarde já cintilavam novamente os refletores, na fachada do Grande Hotel.

— Você está dormindo?

— Não!

— Está bem acomodado?

— Estou.

— Agora você está de olhos abertos. Sinto suas pestanas no meu braço, quando você abre e fecha os olhos. Que engraçado! Um homem tão grande, com pestanas de criança. Diga-me, você está satisfeito?

— Nunca me senti tão feliz como agora.

— Que é que você disse?

— Nunca me senti tão feliz com uma mulher como agora.

— Repita isso de novo, repita!

— Nunca me senti tão feliz — murmurou Gaigern de encontro à carne fresca e branca do braço em que sua cabeça repousava. Ele estava dizendo a verdade. Sentia-se indescritivelmente repousado e agradecido. Nunca sentira coisa semelhante em suas aventuras de amor barato; essa embriaguez sem ressaibos, esse repouso trêmulo após o amplexo, essa profunda confiança do próprio corpo em outro corpo. Seus membros repousavam, distendidos e satisfeitos, ao lado dos membros da mulher; havia profunda compreensão mútua entre a pele dela e a sua. Sentia qualquer coisa que não tinha nome, nem mesmo o nome de amor: um retorno, após prolongada ausência. Ele ainda era jovem, mas nos braços da Grussinskaia, já perto da velhice, sob a ação de suas carícias amorosas, suaves, conscientes e delicadas, tornava-se mais jovem ainda.

— Que pena... — murmura de encontro ao braço da mulher; levanta um pouco a cabeça, e a pousa no ninho da axila da companheira, um pequenino e cálido lar, com aroma de mãe e de prado.

— Pelo seu perfume eu a encontraria em qualquer parte do mundo, de olhos vendados — diz ele, farejando como um cãozinho. — Que perfume é esse?

— Deixe disso, e diga-me: pena por quê? Você... Deixe esse perfume... tem o nome de uma florzinha que cresce nas campinas: Neuwjada. Não sei como se chama em alemão. Tomilho? É feito em Paris para mim. Diga, pena por quê?

— Pena que se comece sempre com a mulher errada. Que se continue idiota durante uma infinidade de noites, pensando que é assim que se goza, que o prazer é essa coisa corrupta, e depois fria e desagradável como um estômago enjoado. E é pena que a primeira mulher com quem dormi não tivesse sido como você.

— Deixe disso... menino mimado — murmura a Grussinskaia, pousando os lábios nos cabelos dele, naquela peliça dura, espessa e quente, cheirando a macho e a cigarro, sempre bem penteada e alisada, e agora completamente em desordem. Ele roça com as pontas dos dedos, a respirar docemente, o flanco da sua companheira.

— Sabe? Você é tão leve! Levíssima! Um pouco de espuma numa taça de champanha — diz ele com carinho e admiração.

— Pois é. É preciso ser leve — responde a Grussinskaia.

— Estou com vontade de vê-la, agora. Posso acender a luz?

— Não, não! — exclama ela afastando dele o ombro. Ele percebe que a assustou, que assustou essa mulher, cuja idade ninguém sabe com certeza. Sente novamente uma compaixão simples e espontânea. Vai escorregando o corpo para junto dela, e por fim os dois ficam em silêncio, pensando. A luz da rua paira no forro, como um reflexo, estreito e agudo como uma espada, penetrando no quarto pela abertura das cortinas. Quando passa lá embaixo um automóvel uma sombra se espalha rápida no reflexo do forro.

"As pérolas", pensa Gaigern, "para o diabo. Se eu tiver sorte e tudo correr bem, posso metê-las de novo no estojo, quando ela dormir. Vai haver um escândalo com o meu pessoal, se eu for me encontrar com eles sem as pérolas. Contanto que o chofer não faça alguma loucura, contanto que esse animal não tome hoje de noite uma bebedeira de raiva e me estrague tudo... Que azar! Só Deus sabe onde é que vamos arranjar dinheiro, agora. Talvez seja possível sangrar esse herdeiro de província, que geme durante a noite no quarto ao lado, no -70. Ora! Que diabo! Não adianta ficar pensando nisso. Talvez eu possa simplesmente lhe pedir as pérolas. Talvez amanhã eu lhe conte simplesmente do que se trata. Se eu souber fazer as coisas direitinho, não será ela quem me mandará prender amanhã, não fará isso, essa pequerrucha leve e maluca. Deixar as pérolas rolando, numa maleta aberta! Que mulher engraçada, agora eu a conheço. Nem se importa com pérolas! Para ela, nada tem importância, tudo é indiferente. Se eu não tivesse aparecido, ela já não precisaria mais se incomodar com as joias. Para que ainda precisa de pérolas? Deve me fazer presente das pérolas, ela é tão boa... Ah, como é boa! Parece uma mãe, uma minúscula mamãezinha, com quem a gente pode dormir."

A Grussinskaia pensa: "Às onze horas o trem parte para Praga. Contanto que esteja tudo em ordem! Hoje eu abandonei tudo, e amanhã nada estará em ordem. Pimenoff é muito mole para lidar com a troupe; as meninas o levam pela ponta do nariz. Mas quem perder o trem amanhã será despedido, com certeza. Se Pimenoff esta noite não se preocupou com os cenários, amanhã eles não estarão empacotados; os empregados do palco deveriam ter trabalhado horas extras à noite. Mas as coisas que eu não faço ficam sempre por fazer. E as contas a acertar com Meyerheim? Meu Deus, como é possível que eu tenha abandonado tudo? Witte, se a gente não presta atenção nele, esquece até a própria cabeça no hotel. Preciso sempre pensar por todos, e esta noite não estive lá. Vai haver uma débâcle horrorosa. A Lucille há muito tempo que tem vontade de se revoltar. Para vocês nunca são suficientemente grandes as letras dos seus nomes nos cartazes, não é verdade? Sua propaganda nunca é bem feita. Mas vocês, sozinhos, não fazem nada, é preciso fazê-los trabalhar com o knut, para que vocês se conservem em forma. Vocês me fizeram ficar má, convencida e cansada. Meu Deus, como eu estava cansada ontem... Faltou muito pouco para vocês verem se são capazes de alguma coisa sem a Grussinskaia. Mas agora não me sinto cansada, agora poderia me levantar e dançar todo o programa, ou mesmo um outro programa, um bailado novo. Preciso falar com Pimenoff, ele precisa criar um novo bailado: a dança do medo. Oh, essa dança eu poderia dançar agora para vocês. Primeiro num lugar só, apenas um tremor, e depois três círculos nas pontas, ou mesmo sem ser nas pontas, talvez uma coisa completamente diferente.

''Mas estou viva", pensa ela, abalada, "estou viva, e vou criar novos bailados, vou ter sucesso. Uma mulher que é amada tem sempre sucesso. Vocês me fizeram passar fome desde... há mais de dez anos, foi isso. É estranho que um bobinho que pulou o balcão para vir aqui possa dar à gente tanta energia! Um rapaz simpático, que do amor só conhece o jargon das mocinhas..."

Ela puxa o cobertor e cobre Gaigern, como se ele fosse uma criancinha. Ele sussurra, agradecido, faz-se pequenino e fraco, e enfia o nariz na carne dela. Seus corpos já se conhecem, mas seus pensamentos se distanciam para lados distintos, dentro da noite. Em todos os leitos do mundo, os amantes ficam deitados muito unidos, mas tão separados!...

É a mulher quem primeiro procura adivinhar o que se passa na outra alma. Toma a cabeça do homem nas mãos, como se fosse um fruto grande e pesado colhido ao sol, e murmura em seu ouvido:

— Eu ainda não sei como você se chama, meu amigo.

— Costumam chamar-me de Felix. Meu nome todo é: Felix Amadei Benvenuto, Barão von Gaigern. Mas você precisa me dar um novo nome, precisa me batizar também. Quero ter um nome dado por você.

A Grussinskaia pensa um pouco, depois dá uma risadinha.

— Sua mãe devia ter esperado muita coisa de você, quando você nasceu, para lhe dar nomes tão bonitos — disse ela. — O venturoso. O amado de Deus. O bem-vindo. Você chorou ao ser batizado?

— Não me lembro muito bem.

— Ah! Sabe? Eu também tenho uma filha. Que idade você tem, Benvenuto?

— Hoje, tenho dezessete anos, de novo. Estou pela primeira vez com uma mulher. Mas minha idade comum é trinta anos.

Aumentou um pouco a idade, por estranha delicadeza para com a mulher que sente medo da luz elétrica e da própria idade. Apesar disso, ela se sente magoada. "Ele poderia ser o pai do meu neto Pompon, de oito anos", pensa a Grussinskaia sem querer. "Passons!", ordena a si mesma.

— Como era você em criança? Muito bonito? Ah, é claro, era muito bonito.

— Simplesmente encantador. Cheio de sardas, de galos e arranhões, e muitas vezes cheio de piolhos também. Tínhamos ciganos para tratar dos nossos cavalos; isso é muito comum na fronteira, onde ficava a nossa propriedade. Os meninos ciganos eram meus amigos. Eles me passavam toda espécie de bichos e de sarna. Quando me lembro da minha infância, sinto sempre um cheiro de estéreo de cavalo. Depois me tornei durante alguns anos o terror de vários companheiros de seminário. Por fim estive por pouco tempo na guerra. Da guerra eu gostei. Na guerra eu me senti em casa. Por mim, tudo podia ter sido muito pior do que foi. Se houver guerra de novo, tudo estará bem para mim, novamente.

— Agora as coisas não vão bem para você, seu condottiere? Que vida você leva? Que espécie de indivíduo é você?

— E você? Que espécie de mulher é? Nunca conheci nenhuma como você. Em geral as mulheres não têm muitos segredos. Mas a você tenho curiosidade de conhecer, preciso perguntar-lhe muitas coisas. Você é muito diferente das outras.

— Sou apenas antiquada. Sou de um outro mundo", de um século diferente do seu, é apenas isso — disse a Grussinskaia com voz sonhadora. Ao mesmo tempo sorriu nas trevas, e lágrimas ardentes lhe vieram aos olhos. — Educaram-nos como soldadinhos, a nós, bailarinas, com severidade, com pulso de ferro, no Instituto de Ballet Imperial de São Petersburgo. Pequenos regimentos de recrutas para o leito dos grão-duques, é o que nós éramos. Dizem que, nas meninas que aos quinze anos começavam a engordar, colocavam argolas de aço em volta dos seios, para que eles não crescessem mais. Eu era pequena e magra, mas dura como um diamante. Orgulhosa, sabe; tinha o orgulho no sangue, como pimenta e sal. Uma máquina do dever, trabalhando, trabalhando, trabalhando. Sem descanso, sem tempo para descansar, nunca! E depois: quem se torna célebre fica completamente só. Com o sucesso, a gente se sente gelada e solitária como no pólo norte. Sabe o que significa ter sempre sucesso, durante três, cinco, dez, vinte anos, sempre, sempre? Mas o que é que eu lhe estou contando? Você está me compreendendo? Ouça: muitas vezes a gente passa por uma estação de estrada de ferro, ou à noite passa de automóvel por uma pequena cidade. As famílias estão sentadas diante das portas, todos muito rígidos, com cara de idiota, com as manoplas pousadas no colo, e ninguém se move. É isso, veja, é isso! É isso o que nós desejamos: sentirmo-nos fatigados, e ficar simplesmente sentados, com as mãos imóveis, pousadas no colo. Mas se você for uma pessoa célebre, procure desaparecer do mundo, descanse, deixe que as outras bailarinas dancem, essas alemãs feias e com luxações nos músculos, essas negras, toda essa gente que não sabe nada; deixe que elas dancem, descanse! Veja, Benvenuto, isso não é possível, é absolutamente impossível. Odeia-se o trabalho, amaldiçoa-se o trabalho, mas não se pode existir sem o trabalho. Três dias de descanso, e vem o medo: vou perder a forma, estou ficando pesada, minha técnica está indo embora. É preciso dançar, como uma loucura, nem a morfina e a cocaína, nenhum vício no mundo é tão venenoso como o trabalho e o sucesso, acredite-me. É preciso dançar, somos obrigados a dançar. E isso também é importante. Se eu parar de dançar, não existe mais ninguém no mundo que saiba realmente dançar, acredite-me. Todas as outras são diletantes; mas é preciso que haja alguém que saiba dançar, que saiba o que significa a dança, em meio a um realismo histérico, horrível! Eu aprendi com as antigas celebridades; com a Kocressínskaia, com a Trefilovna, e elas, por sua vez, aprenderam com os grandes do bailado, há quarenta, há sessenta anos. Às vezes tenho a impressão de que tenho de dançar contra o mundo inteiro, contra o brado de "atualidade!" De um lado, estão vocês, um teatro repleto de ganhadores da vida e homens-máquinas, participantes da guerra e acionistas... e do outro, estou eu. Uma pobre e pequenina Grussinskaia, velha, não é verdade? Tão sentimental, tão antiquada, com os seus passos já conhecidos há duzentos anos. E, no entanto, eu os atraio ainda, e vocês choram, riem, desesperam-se e extasiam-se; e tudo por quê? Por causa desse balezinho fora da moda? Será tão importante, isso? Certamente, porque só tem sucesso mundial aquilo que tem importância para o mundo, aquilo de que o mundo precisa. Mas, ao lado disso, tudo se despedaça, dentro de nós nada mais resta. Nem marido, nem filhos, nenhum sentimento, nenhum conteúdo. Deixamos de ser indivíduos humanos como os outros, compreende? Não somos mulheres, somos apenas uma migalha esgotada de responsabilidade, que perambula pelo mundo. No dia em que termina o sucesso, no dia em que perdemos a crença de que somos indispensáveis, a vida acaba para nós. Você está me ouvindo? Está me compreendendo? Gostaria tanto que você me compreendesse — disse a Grussinskaia, em tom implorante.

— Não compreendi tudo... mas quase tudo. Você fala francês muito depressa — respondeu Gaigern.

Durante os meses em que ficou à espreita, atrás das pérolas, ele frequentou inúmeras vezes os espetáculos de ballet da Grussinskaia, aborrecendo-se sempre, em geral. Ficou profundamente admirado ao saber que a Grussinskaia, conforme parecia, arrastava consigo, como um martírio, os rodopios do ballet. Ela está colada com tanta leveza às coxas de Gaigern, tem uma vozinha delicada, com um gorjeio colorido e modulado e fala coisas tão sérias!... Que se pode responder a isso? Ele suspira. Fica pensando.

— Foi muito bonito o que você disse das pessoas à noite, com as mãos imóveis. Você devia dançar isso — declarou ele finalmente, confuso.

A Grussinskaia contentou-se em rir.

— Dançar isso? Mas não se pode dançar uma coisa assim, monsieur. A não ser que me queiram ver no papel de uma velha com um pano na cabeça, com gota nos dedos, dura como um pau, apenas repousando...

Cortou a frase no meio. Enquanto falava, seu corpo já tinha se apossado da imagem, contraindo-se e enrijecendo. Ela já estava vendo o cenário, conhecia um jovem pintor amalucado, em Paris, que poderia pintar uma coisa assim; já via o bailado, já o sentia nas mãos e na nuca curvada. Ficou calada, com a boca entreaberta, na escuridão. Nem respirava, tal a excitação que sentia. O quarto se encheu de personagens que ela nunca dançara, e que poderiam ser dançadas, de centenas de vultos reais e viventes. Uma mendiga a tremer, estendendo os braços, uma velha campônia dançando mais uma vez no casamento da filha... Diante de um balcão de feira encontrava-se uma mulher magra, apresentando umas míseras prestidigitações, uma prostituta esperava por homens sob uma lanterna. Uma menininha, que havia quebrado uma chave e levava uma surra; uma criança de quinze anos, que era forçada a dançar nua diante de um homem imponente, enorme e cintilante, um senhor, um grão-duque, e também a espinhosa paródia de uma governanta; uma mulher que corria como se a estivessem perseguindo, apesar de não ser esse o caso; uma outra que queria dormir e não podia; uma que tinha medo de espelho; e ainda uma outra que bebia veneno e morria.

— Fique quieto... não diga nada... não se mexa — sussurrou a Grussinskaia olhando para o forro, em que se via a espada luminosa. O aposento adquirira o aspecto estranho e misterioso que os quartos de hotel às vezes gostam de apresentar. Lá embaixo os automóveis lançavam fumaça pelo escapamento, buzinavam, parecendo animais, porque a Liga dos Filantropos terminara a sua festa, e começava a saída pelo portão 2. A noite esfriou. Do turbilhão das ideias e dos rostos, a Grussinskaia voltou ao quarto com um leve arrepio. "Pimenoff vai pensar que eu estou louca, ele, com seus baileis de borboletas. Quem sabe se estou louca mesmo?" Da sua divagação de um minuto, havia retornado ao leito, como se voltasse de uma longa viagem. Gaigern ainda continuava deitado. Ela quase se assustou ao encontrar de novo o homem encostado ao seu ombro, com seus cabelos, suas mãos e sua respiração.

— Que espécie de homem é você? — perguntou ela mais uma vez, nas trevas, com o rosto bem sobre o dele. Ela sentia intimamente, nesse instante, o espanto de se encontrar tão próxima de uma coisa tão estranha e diferente dela. — Ontem eu ainda não o conhecia. Quem é você? — perguntou ela de encontro à cálida umidade da boca do homem.

Gaigern, que já estava quase adormecendo, deixou os dois braços tombarem sobre as costas da mulher, e ela teve a impressão de ser a esguia cadela galga de sua casa, a Biche.

— Eu? Não há muita coisa a contar — respondeu ele, obediente, mas sem abrir os olhos. — Sou um filho pródigo. Sou uma ovelha negra de um bom curral. Sou um mauvais sujet, e vou acabar na forca.

— É verdade? — perguntou ela, dando uma risadinha arrulhante.

— É verdade — disse Gaigern, convencido. Começara a cantarolar como uma ladainha, e por brincadeira, aquelas velhas frases e advertências dos professores do seminário; mas, ao perfume cálido de tomilho daquela cama, veio-lhe o desejo de confessar-se e de ser sincero.

— Sou um devasso — continuou ele a falar na escuridão. — Não tenho caráter, e sou de uma curiosidade incrível. Não consigo me adaptar a nada, sou um sujeito inútil. Em casa aprendi a montar e a ser o senhor. No seminário aprendi a rezar e a mentir. Na guerra, a atirar e a procurar pôr-me a salvo. Mais do que isso não sei fazer. Sou um cigano, um marginal, um aventureiro.

— Ah, você... E o que mais?

— Sou um jogador, e não me importo de fazer trapaças. Também já roubei. A bem dizer, eu devia estar é na prisão. Mas ando por aí, e me sinto às mil maravilhas, e faço tudo o que me dá na veneta fazer. Às vezes me embebedo também. E, além do mais, sou preguiçoso de nascença.

— Continue — murmurou a Grussinskaia, encantada. Sua garganta estava vibrando, de tanto conter o riso.

— Pois bem, sou um criminoso. Um homem que escala muros de fachadas — disse Gaigern, sonolento —, um assaltante.

— E que mais ainda? Talvez um assassino, também?

— Isso mesmo. É claro. Um assassino também. Estive a ponto de matá-la — afirmou ele.

A Grussinskaia ainda se riu, um pouco inclinada sobre o rosto de Gaigern, que ela sentia, apesar de não o ver, mas de repente ficou muito séria. Cruzou as mãos por detrás do pescoço dele e murmurou em surdina ao seu ouvido:

— Se você não tivesse vindo ontem, eu não estaria viva agora!

"Ontem?", pensou Gaigern. "Agora?" A noite no 68 parecia ter durado uma eternidade, devia ter sido há alguns anos que ele estivera no balcão e enxergara a mulher no quarto. Levou um susto. Apertou-a em seus braços com força, como um lutador de luta livre: os músculos flexíveis da bailarina resistiram — ele o sentiu com estranho prazer.

— Você nunca mais deve fazer uma coisa dessas.

Você tem de ficar aqui. Não a deixarei ir-se embora mais. Preciso de você — afirmou.

E ficou a ouvir a própria voz, ao pronunciar tão curiosas palavras, com uma voz diferente, rouca, que parecia provir do fundo palpitante de seu coração.

— Não, agora tudo mudou. Agora está tudo bem. Agora você está comigo — murmurou a Grussinskaia; mas Gaigern não a compreendeu, porque ela falou em russo.

Ele sorveu a entonação da sua voz, e a noite começou de novo a rumorejar. Pássaros de sonho saíram das trepadeiras da tapeçaria que forrava as paredes do hotel... O homem se esqueceu das pérolas no bolso do seu pijama azul e a mulher se esqueceu do insucesso e dos veronais na xícara de chá.

Nenhum dos dois se atreve a pronunciar esta palavra caduca: "amor". Juntos, deslizam no confuso turbilhão da noite de amor, passando dos abraços aos murmúrios, dos sussurros a um breve sono e aos sonhos, e dos sonhos a um novo abraço: duas pessoas vindas de dois pontos opostos do mundo, para encontrar-se por algumas horas no leito do quarto 68, onde tanta gente já dormiu...


8

 

Na vida da Grussinskaia o amor não havia representado um papel importante. Tudo o que o corpo e a alma possuíam de paixão fluía para a dança. Tinha tido alguns amantes, porque isso fazia parte da vida de uma bailarina célebre, assim como as pérolas, o automóvel, os vestidos das boas casas de moda de Paris e de Viena. Rodeada de admiradores, requisitada e perseguida por apaixonados, não acreditava apesar de tudo na existência do amor. Ele não lhe parecia mais real do que os cenários pintados, os templos de amor e as sebes de roseiras diante dos quais seus bailados eram executados. Apesar de permanecer fria e de não conseguir entusiasmar-se, passava por uma amante maravilhosa, única. Por seu lado, praticava o amor como um dever da sua profissão, como uma peça de teatro, por vezes agradável, mas sempre exaustiva, requerendo uma arte requintada. Toda a flexibilidade do seu corpo, seu flutuar etéreo, a sutilidade, o requinte, a delicadeza e a suavidade, o impulso e o arrojo, a emoção e a debilidade, todos os impecáveis requisitos da sua dança, ela levava consigo para os amigos com quem passava as noites. Sabia embriagar de prazer, mas não se embriagava a si mesma. Na dança, era capaz de enlouquecer, de esquecer-se de si própria, e por vezes seus partners ouviam-na soltar gritinhos abafados, como um passarinho, durante as posições mais difíceis e movimentadas. No amor, porém, nunca perdia a consciência de si mesma, estava sempre se observando. Era estranho: não acreditava no amor — e no entanto não podia viver sem amor.

Porque o amor — ela o sabia — era uma parte do sucesso. Enquanto fora jovem, e seu camarim transbordava de flores e de cartas, enquanto em todo o seu percurso os homens se postavam, prontos a arruinar-se, a fazer por ela qualquer espécie de loucura, a abandonar a fortuna e a família, ela sentia que o sucesso a bafejava. Nas confissões de amor, nas ameaças de suicídio, nas perseguições por toda parte, pelo valor dos presentes que recebia dos conquistadores podia-se perceber o sucesso, do mesmo modo que nos aplausos, nas críticas e no número de chamadas ao proscênio. Ela não o sabia, mas o amante que a encantava e lhe causava prazer era, a bem dizer, um público perante o qual ela tinha sucesso. E pela primeira vez percebeu, horrorizada, que o sucesso diminuía, quando Gaston a abandonou, para casar-se com uma moça sem muitos dotes, mas de boa família. A atmosfera que a rodeara durante anos esfriou e se tornou sombria, uma atmosfera noturna, incompreensível. Era uma escadaria que ia descendo por centenas de degrauzinhos, tão pequenos que quase não a deixavam aperceber-se dela. E, no entanto, era vastíssimo o caminho que conduzia aquela Grussinskaia de antes da guerra, que dançara para um mundo cheio de romantismo e de êxtase, à atual Grussinskaia, que mendigava um pouco de aplauso de um punhado de pessoas céticas, indiferentes e maldosas. O seu fim, como última consequência, era a completa solidão, e uma dose forte de veronal.

Por essa razão, o homem do balcão significava para a Grussinskaia mais do que um simples homem. Era um milagre que acontecia no último instante no 68, para salvá-la; era o sucesso evidente que a procurava; o mundo que penetrava cheio de ardor em seu quarto; era a prova de que os tempos românticos ainda não haviam passado, os tempos em que um jovem Jerilinkov se deixava matar com um tiro por ela. Ela se deixara cair, mas encontrara alguém que a erguia do solo.

Havia no programa da Grussinskaia um bailado em que a morte dançava um pas de deux com o amor; os poetas que lhe escreviam, por vezes, enviavam-lhe versos em que voltava sempre o banal pensamento de que a morte e o amor eram irmãos. Nessa noite, a Grussinskaia comprovava em si própria a verdade desse lugar-comum. A vertigem dolorosa da noite passada transformou-se em embriaguez, num torvelinho de gratidão, num anseio febril de receber e de dar, de sentir e conservar. Os anos gelados se derretiam. O vergonhoso segredo da sua frieza, que escondera durante toda a vida, desfazia-se, deixava de existir. Há tantos anos se sentia de tal modo pobre e solitária, que às vezes mendigava à pele jovem e cálida do seu partner, Michael, uma esmola de calor. Nessa noite, nesse quarto indiferente de hotel, nessa cama comum de metal brilhante, ela se sentia arder, transformava-se, descobria o amor, que não acreditava que existisse.

Os quartos 68 e 69 eram tão parecidos que, ao despertar, Gaigern não sabia muito bem onde se encontrava. Quis virar-se para a parede do seu quarto, mas encontrou o vulto pequenino da Grussinskaia, que dormia e respirava docemente. Recordou-se. A maravilhosa e profunda confiança do primeiro sono dormido junto repousava em seus membros como um peso suave. Retirou seu braço, que adormecera debaixo do pescoço da mulher, e com leve e ' solene comoção rememorou os acontecimentos dessa noite. Não havia dúvida — estava apaixonado, e além disso, de um modo completamente novo e grato. Sem que as pérolas influíssem no seu sentimento, não podia deixar de pensar, envergonhado: somos uns porcos. Não era a história gorada das pérolas que influía no seu sentimento. Sobe-se a um quarto alheio: inventa-se uma comédia atroz, representa-se — e a mulher acredita em tudo. Faz questão de acreditar. Os homens representam e as mulheres acreditam neles. A bem dizer, no começo a gente é sempre um embusteiro e um assaltante; mas em seguida, a mentira transforma-se em verdade. "Eu gosto muito de você, pequenina Mouna, querida e boa Neuwjada, eu te amo, je t’aime, je t'aime. Você fez uma bela conquista, mulherzinha, você..."

Fazia frio no quarto; lá fora já devia estar amanhecendo; a rua estava silenciosa, uma réstia de luz crepuscular penetrava por entre as cortinas, e o desenho da tapeçaria das paredes começava a esgueirar-se pela madrugada. Gaigern levantou-se com o maior cuidado. A Grussinskaia dormia profundamente, com o queixo enterrado no próprio ombro. Agora, que passara o tumulto da noite, as duas cápsulas de veronal pareciam estar fazendo efeito. Gaigern tomou-lhe a mão, que pendia para fora do leito, repousou na sua palma as pálpebras quentes, e depois enfiou aquela mãozinha frouxa sob o cobertor, como se a Grussinskaia fosse um bebezinho. Foi caminhando com cuidado, na meia escuridão do quarto, até o balcão, e abriu lentamente as cortinas. A Grussinskaia não despertou. "Agora tenho que pôr em ordem o negócio das pérolas", pensou Gaigern. Admirou-se de sentir-se satisfeito com a solução. "Um round perdido", pensou ele sem se aborrecer. Gostava de usar essas expressões de esporte, em seus empreendimentos aventureiros. Tateou à procura do pijama, e sorriu ao encontrar as diversas partes do seu vestuário atiradas por todo o quarto; em seguida entrou no banheiro. Ao contato da água, o ferimento da sua mão direita começou a arder e a sangrar; lambeu-o com indiferença e não se importou mais com isso. O aroma acre e murcho de louros, no aposento, acentuara-se. Gaigern, desejoso de respirar ar fresco, foi ao balcão e aspirou profundamente; seu peito ainda estava repleto de uma doce e desconhecida angústia.

Lá fora paira, sobre a rua que desperta, uma neblina fria que o vento leva. Nem automóveis nem gente. A distância, ouve-se o sibilar de um bonde a correr nos trilhos. Não surgiu ainda o sol, mas há uma luz leitosa e igual. Uns passos martelados, na esquina, e novamente o silêncio. Um pedaço de papel flutua como um passarinho enfermo sobre o asfalto, e depois pousa no chão. A árvore plantada não muito longe do portão 2 balouça os galhos sonhadores. Um sonolento passarinho de março, bem lá em cima, pousado na haste delicada de um botão, experimenta a voz no tumulto da grande cidade. Um caminhão cheio de caixas com garrafas de leite segue aos solavancos, muito cheio de si; a neblina que desliza cheira a maresia e a gasolina; a grade do balcão tem um brilho úmido. Gaigern encontra suas meias de larápio no balcão, e enfia-as depressa no bolso, junto das luvas, da lanterna de bolso e das pérolas de quinhentos mil marcos, de que ainda precisa se livrar. Torna a entrar no quarto, deixando as cortinas abertas; a luz pálida cai em triângulo no tapete, estendendo-se até o leito em que dorme a Grussinskaia.

Agora ela está estendida de costas, com a cabeça tombada de lado, dando a impressão de que a cama é grande demais para o seu corpo delicado e pequenino. Gaigern, para quem a maioria das camas de hotel são curtas, achou graça e sentiu-se comovido. Teve um súbito pensamento, uma ideia carinhosa. Foi buscar a xícara de veronal na mesinha e também os tubinhos de vidro vazios, e dirigiu-se com eles ao banheiro. Com os cuidados de uma ama, lavou a xícara, depois de esvaziá-la, e secou-a com um lenço. Ao encontrar o roupão de banho da Grussinskaia, com um gesto infantil, beijou-o na manga. Não havendo lugar para colocar os vidrinhos, guardou-os no bolso, junto das pérolas. A Grussinskaia suspirou dormindo, quando ele se aproximou de novo da cama. Inclinou-se sobre ela, franzindo a testa, mas ela continuou a dormir. Já clareara um pouco. Agora ele podia ver bem de perto, e com clareza, o rosto dela. Os cabelos caíam para trás, muito lisos, deixando descobertas as fontes reentrantes, estreitas e sombreadas. Por baixo dos olhos fechados evidenciava-se a idade, em dois sulcos profundos. Gaigern o percebeu, porém sem desgosto. A boca era linda, acima do queixo delicado, mas já murcho. Um pouco do pó de arroz pálido ainda ficara em sua testa, perto da franjinha. Gaigern lembrou-se, divertido, de que durante a noite ela tirara de baixo do travesseiro um estojinho de pó de arroz, antes de permitir-lhe que acendesse a lâmpada. "Agora eu a estou vendo bem", pensou ele com o sentimento primitivo de triunfo de um assaltante de mulheres. Começou a observar o rosto da mulher, como se fosse uma paisagem desconhecida, em que se passeia à procura de aventuras. Observou duas misteriosas riscas simétricas que partiam das fontes, ao longo das orelhas, indo até a garganta, uma linhazinha mais clara do que o resto da pele. Passou o dedo com cuidado sobre a linha; era uma delicada cicatriz que rodeava seu rosto, como a fímbria de uma máscara. De repente, Gaigern compreendeu do que se tratava. Eram as cicatrizes da vaidade, cortes na pele para esticá-la e rejuvenescer — ele já lera qualquer coisa a esse respeito. Sorrindo, sacudiu a cabeça, com um ar de incredulidade. Sem querer, apalpou suas próprias têmporas, que eram bem lisas, e vibravam com batidas fortes e saudáveis.

Encostou com a maior delicadeza o seu rosto no da Grussinskaia, como se pudesse assim transmitir um pouco do seu ser para a companheira. Admirou-se ao perceber quanto a amava nesse momento, com um amor terno e compassivo. Teve a impressão de estar sendo um sujeito limpo e correto, ligeiramente ridículo, sem dúvida, nos sentimentos que dedicava à pobre mulher, cujos segredos ele tinha descoberto.

Afastou-se da cama e ficou por uns minutos diante do espelho, com a testa enrugada, a boca ligeiramente aberta, mergulhado em pensamentos. Estava pensando se não seria possível, apesar de tudo, ficar com as pérolas. Não, não era possível. Por enquanto, ele continuava a ser o Barão von Gaigern, um homem um tanto leviano, que convivia com uma gente ordinária. Com dívidas, sim, mas ainda digno de confiança. Se saísse do quarto com as pérolas, então a polícia seria avisada dentro de poucos minutos e sua existência de cavalheiro estaria terminada. Seria um criminoso perseguido pela polícia, como qualquer outro. Isso não lhe convinha, em absoluto. Não fazia parte do seu programa ter-se tornado o amante da Grussinskaia, mas era um fato consumado, e modificava todo o resto. Pesou as chances, como teria pesado as chances de um pugilista ou de um tenista. Empreendimentos como esse das pérolas eram o seu esporte e, desta vez, o jogo lhe estava sendo desfavorável. Não era possível roubar essas pérolas; na situação atual, só poderia recebê-las de presente, caso tivesse paciência. "E preciso esperar", pensou Gaigern, suspirando profundamente. Suas reflexões eram objetivas e realistas, mas ele não queria admitir que no fundo havia ainda outra coisa por trás disso tudo. Não queria ter a consciência do próprio ridículo, e detestava sentimentalismos. Olhou para o espelho e fez uma careta para si próprio. "Em resumo", pensou aborrecido, "não é do meu feitio roubar o adereço de pérolas de uma mulher com quem dormi. Agora não tenho a mínima vontade de fazer tal coisa. Eu sofreria com isso — e acabou-se!

"Neuwjada", pensou ele com súbito carinho, olhando para a cama; "bondosa Mouna, eu preferia poder oferecer-lhe algum presente, muitos presentes, uma coisa bonita e valiosa, alguma coisa que lhe causasse prazer, pobrezinha." Puxou de dentro do bolso o colar de pérolas, com precaução e sem ruído. Já não gostava mais delas. Talvez até fossem falsas, apesar de todas as lendas dos jornais; talvez nem fossem tão valiosas como a propaganda dizia. De qualquer modo, ele se separava agora delas com a maior facilidade.

Quando a Grussinskaia procurou despertar, sua cabeça estava envolta no sono como em espessos véus. "É o veronal", pensou, continuando com os olhos fechados. Nos últimos tempos ela tinha medo de despertar, tinha medo do choque que sentia ao defrontar-se com os aborrecimentos da vida. Tinha a vaga sensação de que nessa manhã alguma coisa boa e agradável a esperava, mas não descobriu logo do que se tratava. Lambeu os lábios, pensando encontrar neles o gosto sonolento e seco da noite. Movimentou os dedos das mãos, como um cão a mover-se em sonhos. Seu corpo estava cansado, exausto, mas satisfeito, como após um enorme sucesso, após uma noite com muitos da capo, em que é preciso esgotar completamente as forças. Sentiu sobre as pálpebras fechadas a claridade matutina, e por um instante pensou que estava em Tremezzo com os reflexos da superfície do lago, em seu quarto de dormir cinzento-rosado. Decidiu abrir os olhos.

Primeiro, viu sobre os joelhos um cobertor que não conhecia, da altura de uma montanha; depois, a tapeçaria das paredes do hotel, com o desenho de frutas tropicais vermelhas, pendentes de frágeis hastes, um desenho que dava a impressão de observá-la fixamente, com um olhar febril e absorto.

Nessas tapeçarias das paredes dos hotéis colava-se todo o tédio da sua vida sem parada. O canto perto da escrivaninha estava sombrio; ali, a cortina estava fechada e não podia saber as horas. A porta do balcão estava aberta e deixava entrar uma brisa fresca. Ao lado da mesa do espelho, virada para a claridade da varanda, a Grussinskaia, ainda sonolenta, percebeu a silhueta larga e escura de um homem. Estava de costas, com as pernas meio abertas, firme e imóvel, com a cabeça inclinada, observando qualquer coisa que ela não podia ver. "Sonhei com alguma coisa parecida há pouco", pensou primeiro, ainda meio apalermada de sono, sem se assustar. "Já aconteceu coisa parecida na minha vida", pensou em seguida. "Jerilinkov", pensou finalmente. De repente, seu coração disparou como um motor, ela acordou totalmente, e lembrou de tudo.

Respirou com a boca fechada, sem ruído, mas profundamente, e com o ar que aspirou ocorreu-lhe a lembrança de tudo o que se passara durante a noite. Retirou um braço de baixo do cobertor, sentindo-o muito leve, com vontade de voar. Tateou, à procura do estojinho de pó de arroz, e, dirigindo um olhar sério ao minúsculo espelho redondo, começou a se arrumar. O delicado perfume do pó de arroz lhe causou prazer; sua imagem agradou-lhe. Sentia amor por si própria, como há muitos anos não sentia. Segurou seus pequeninos seios, como costumava fazer, mas nessa manhã isso lhe causou um prazer especial. Gostou de sentir a própria pele, lisa, fresca e satisfeita. "Benvenuto", disse em pensamento; e em russo "Chelani". Mas como só pronunciou esse nome para si mesma, o homem não pôde ouvi-la. Lá estava ele, de pernas abertas, com seus belos ombros, como um dos carrascos de Signorelli — descobriu a Grussinskaia, encantada —, ocupado com algum objeto pousado na mesinha do espelho. Ela se levantou e olhou-o sorrindo.

 

Gaigern estava com as mãos dentro da maleta em que se encontravam suas pérolas. Ela ouviu claramente o ruído de um dos estojos, reconhecendo o estalido agudo e surdo; era o estojo comprido de veludo azul, onde ficava o colar de cinquenta e duas pérolas de tamanho médio. No primeiro momento a Grussinskaia não percebeu por que razão esse ruído a assustava mortalmente. Seu coração parou, e depois voltou a bater com pancadas pesadas e sonoras, que ecoavam dolorosamente por todo o corpo. Doíam-lhe as pontas dos dedos, que se tornaram rígidas. Os lábios também. Mas ainda continuava a sorrir; esquecera-se de retirar da boca o sorriso, que permaneceu, enquanto seu rosto esfriava, tornando-se branco como papel. "É um ladrão", pensou a Grussinskaia, adivinhando tudo. E esse era um estranho pensamento, silencioso e definitivo, como um corte que lhe atravessasse o coração. Julgou perder a consciência, desejando-o com ardor, mas ao invés de acontecer isso, uma infinidade de pensamentos lhe passou pela cabeça durante um segundo, claros, cortantes, entrecruzando-se, entrechocando-se; um duelo de pensamentos.

O sentimento torturante de ter sido enganada atrozmente; vergonha, medo, ódio, cólera, uma dor medonha. E, ao mesmo tempo, uma fraqueza profunda como um abismo; não queria ver, não queria compreender, não queria acreditar na verdade, só desejava abrigar-se na piedade da mentira.

— Que faites-vous? — murmurou às costas do carrasco. Pensou que estava gritando, mas apenas sussurrou por entre os lábios rígidos: — Que está fazendo?

Gaigern levou tal susto que sua cabeça se virou de súbito; e seu susto era uma confissão de culpa. Na mão ele guardava o estojinho cúbico de um dos anéis; a suitcase estava aberta, o colar de pérolas estendia-se sobre a placa de vidro da mesinha do espelho.

— O que está fazendo aí? — sussurrou mais uma vez a Grussinskaia, causando dó, realmente, vê-la sorrir, com o rosto pálido e desfigurado.

Gaigern compreendeu-a logo, de novo se encheu de piedade, uma piedade ardente, que ele sentia palpitar nas têmporas. Dominou-se com energia, e conteve-se.

— Bom dia, Mouna — disse amavelmente. — Encontrei aqui um tesouro, enquanto você dormia.

— Como é que encontrou as minhas pérolas? — perguntou a Grussinskaia, com voz rouca. "Minta, minta", pedia seu olhar esgazeado.

Gaigern aproximou-se dela, e pousou a mão sobre seus olhos, como um guarda-sol. "Pobre bichinho, pobre femeazinha."

— Estive remexendo em suas coisas. Estava procurando um adesivo, um pedaço de atadura, qualquer coisa... imaginei que iria encontrar alguma coisa na valise. E lá estava o seu tesouro. Tenho a impressão de ser Aladim na gruta.

Até mesmo a cor dos olhos dela desaparecera; eles pareciam agora de chumbo, e só pouco a pouco lhes foi voltando sua cor negra azulada. Gaigern estendeu diante dela a palma da mão ferida, a sangrar ligeiramente, como prova do que dizia.. A Grussinskaia, lânguida e com os nervos frouxos, pousou nessa mão os lábios. Gaigern pousou a outra em seus cabelos, e puxou sua cabeça de encontro ao peito aberto do pijama de seda azul. Ele podia mostrar-se bastante brutal e ordinário com as mulheres com quem costumava encontrar-se. Mas esta, sabe o Diabo por quê, despertava nele todos os bons instintos. Era tão frágil, tão maltratada pela vida, necessitava tanto de auxílio — e ao mesmo tempo era tão forte... Pela existência que ele levava, que parecia estar sempre a pender de um fio, Gaigern compreendia a dela.

— Bobinha — disse ele com carinho. — Será que você pensou que eu estava cobiçando as suas pérolas?

— Não — mentiu a Grussinskaia. Essas duas inverdades foram a ponte sobre a qual os dois amantes se puderam encontrar. — Aliás, eu não as uso mais — acrescentou ela, respirando aliviada.

— Não as usa mais? E por quê?...

— Você não compreende essas coisas. É uma superstição. Antigamente elas me davam sorte. Depois me trouxeram infelicidade. E agora que deixei de usá-las, me dão sorte de novo.

— É mesmo? — perguntou Gaigern pensativo, procurando vencer o mal-estar e o acanhamento que sentia.

As pérolas repousavam de novo, em ordem, em seu pequeno leito. "Adieu!" Até logo, pensou ele, como uma criança. Meteu as mãos nos bolsos, num gesto decidido; lá se encontravam as ferramentas de ladrão, mas nenhuma presa. Sentia-se felicíssimo, com uma sensação de leveza e de satisfação, espantosamente renovado e farto. Abriu bem a boca e soltou uma exclamação de júbilo, emitindo um som forte e cheio. A Grussinskaia começou a rir. Gaigern atravessou o quarto correndo, aproximou-se dela e mergulhou em sua pele seu grito de prazer, deixando-se cair sobre a mulher, com a boca, o olhar e o sentimento. Ela tomou suas mãos e beijou-as; esse gesto exprimia uma gratidão humilde, em parte real, em parte representada.

— Está sangrando — disse ela, com a boca sobre o pequeno ferimento.

— Seus lábios são como os de um cavalo — respondeu Gaigern —, macios como um potrinho preto, de magnífico pedigree.

E ajoelhou-se, abraçando os joelhos da mulher, cujos tendões vibravam por baixo da pele. Justamente quando a Grussinskaia fez menção de se curvar sobre ele, alguma coisa ronronou na escrivaninha; um tilintar breve, depois longo, novamente breve.

— O telefone — disse a Grussinskaia.

— O telefone? — repetiu Gaigern.

A Grussinskaia suspirou profundamente. Não adianta, exprimia a sua fisionomia, ao erguer o fone do gancho com um gesto cansado, como se ele pesasse uma tonelada. Suzette estava ao telefone.

— São sete horas — anunciou sua voz matinal rouca. — Madame precisa levantar-se. É preciso arrumar as malas. Posso mandar o chá? E se madame quiser que lhe faça massagem, já está na hora — e Herr Pimenoff pede que lhe telefone imediatamente, assim que madame se levantar.

Madame ficou pensando durante um segundo.

— Daqui a dez minutos, Suzette... não, dentro de quinze minutos você pode trazer o chá, e depois faremos um pouco de massagem.

Colocou o fone no gancho, mas continuou a segurá-lo, enquanto estendia a outra mão a Gaigern, que ficara no meio do quarto, a balançar o corpo sobre as solas finas de cromo dos seus sapatos de pugilista. Ela ergueu imediatamente o fone, de novo, e lá de baixo o porteiro respondeu com uma voz diligente e serviçal, apesar de não ter pregado olho durante toda a noite, porque sua mulher não estava passando muito bem na clínica.

— Que número, por favor? — disse ele com voz enérgica.

— Wilhelm, sete, zero, dez! Com Herr Pimenoff! Pimenoff não estava hospedado no hotel, mas numa pensão de segunda classe, que uma família de imigrantes russos abrira no quarto andar de uma casa em Charlottenburg. Parece que lá ainda estavam dormindo. Enquanto a Grussinskaia esperava, viu em espírito o velho Pimenoff, correndo ao telefone com seu surradíssimo pijama de seda, com os pés magros, que ele mantinha sempre com as pontas um pouco abertas para fora, como se estivesse fazendo a quinta posição. Finalmente ele atendeu, com sua voz delicada e nervosa de velho.

— Ah, Pimenoff, é você? Bom dia, dobroie utro, meu caro! Sim, obrigada, dormi bem, não, não tomei muito veronal, só dois comprimidos; obrigada, tudo ali right, coração, cabeça, etc, etc. Como? O que aconteceu? O Michael está com um derrame de sangue no joelho? Mas, meu Deus, por que é que você não me disse isso ontem à noite? É horrível! Custa muito a passar, muito mesmo... Nós sabemos o quanto demora! E que providências você tomou? Como? Não fez nada, ainda? Mas é preciso mandar imediatamente um telegrama ao Tcherenov, ouviu? Imediatamente, ele precisa vir ajudar. Meyerheim que vá telegrafar. Onde está metido o Meyerheim? Vou chamá-lo logo pelo telefone. É cedo demais? Com licença, querido, por que razão para nós não é cedo demais, e para Herr Meyerheim... Não, por favor! E os cenários, já foram levados para a estação? Mas, por favor, com o primeiro despacho, quando começa a ser feito o primeiro despacho? Às seis? Se os cenários não estiverem lá, você é o responsável, Pimenoff. Nem uma palavra mais, você é o mestre de bailei, é quem deve cuidar dos cenários; não tenho nada que ver com isso. É, espero sua resposta dentro de meia hora no máximo, vá você mesmo à estação. Adieu!

Dessa vez ela nem chegou a pousar o fone; apenas fez pressão no gancho com dois dedos. Chamou Witte, que costumava levantar-se pela manhã um pouco apalermado, e que, apesar dos inúmeros anos de tournées, ficava sempre como uma pilha, e fazia uma confusão medonha. Depois, a Grussinskaia chamou Michael, que estava hospedado num hotelzinho e se pôs a lamentar-se como um cãozinho pisado, sobre o derrame de sangue. A Grussinskaia gritou-lhe severas ordens e conselhos pelo telefone; ela ficava furiosa, e era injusta sempre que qualquer elemento da troupe adoecia. Chamou três médicos, antes de encontrar um que pudesse ir ver logo o Michael, para dispensar-lhe os cuidados necessários e levar-lhe ligaduras com compressas de terra argilosa e vinagre. Chamou Meyerheim ao telefone, discutiu com ele num francês excitado, e intimou-o a comparecer às oito e meia no hotel para acertar as contas. Enviou pelo telefone um telegrama a Tcherenov e, por precaução, outro a um jovem bailarino, que dançava bem e estava sem contrato em Paris. Em seguida, com o auxílio do porteiro Senf, ligou para o expresso de Paris, pelo qual o jovem bailarino poderia chegar a tempo em Praga, e depois procurou passar um terceiro telegrama.

— Por favor, chéri, abra a torneira do banheiro — disse ela apressadamente a Gaigern, entre uma ligação e outra, matraqueando em seguida uma série de ordens em inglês, pelo telefone, ao chofer Berkley, porque o carro não devia seguir com eles, mas nesse meio tempo ir para uma garagem, a fim de ser limpo. Gaigern foi ao banheiro e obedeceu-lhe, abrindo a torneira. Fez mais ainda: estendeu sobre o aparelho de calefação o roupão de banho, para aquecê-lo. Procurou a esponja com que no dia anterior lavara o rosto desfigurado da Grussinskaia e levou-a para o banheiro, enquanto ela continuava a falar no telefone. Encontrou sais de banho e jogou um punhado na água, que já estava transbordando. Teria de bom grado feito mais alguma coisa para ela, mas não encontrou mais nada para fazer. A Grussinskaia também parecia ter terminado, por enquanto, seus telefonemas.

— Você está vendo?... todos os dias é assim — disse ela, procurando dar à voz uma entonação de queixa; mas sua voz só exprimia uma vitalidade exuberante e o prazer de arrumar as malas para a viagem.

— É preciso fazer isso tudo. E depois o Michael diz: há sempre espalhafato em torno da Grussinskaia. Ele dá a isso o nome de chi-chi, como se tudo não passasse de uma brincadeira.

Gaigern, de pé diante dela, estava faminto por um pouco de carinho, de intimidade, e estendeu-lhe ambas as mãos; mas ela estava distraída. Pensava no derrame de Michael. Ouvia de novo o tique-taque dos dois relógios.

Tomou depressa do telefone e chamou Suzette mais uma vez.

— Espere mais dez minutos, Suzette — pediu ela com muita cortesia, e com a consciência da própria culpa.

Seu olhar aflorou à mesa e à xícara de chá da noite anterior. Lá estava a xícara, muito bem lavada, com uma expressão de profunda inocência e candura, o brasão dourado do hotel a cintilar na porcelana grossa.

"Que noite maluca", pensou a Grussinskaia. "Não, essas coisas não se fazem. E bailados como os que imaginei hoje não se podem dançar. Foi apenas o resultado de uma excitação nervosa. Os vienenses me vaiariam se eu apresentasse bailados como imaginei, em vez da pomba ferida e das borboletas. Em Viena o público é diferente do de Berlim; lá eles sabem o que é ballet."

Apesar de Gaigern a estar olhando fixamente, de frente, ela não o via. Ele sentiu uma ligeira dor, desconhecida até então, uma dor estranha e viva, que lhe cortava a respiração.

— Tomilho! Neuwjada! — disse ele baixinho, indo buscar as palavras no profundo tumulto da noite. Elas conservavam seu perfume agridoce, e a inesquecível recordação. E, realmente, ao ouvir-se chamar desse modo, a Grussinskaia voltou a olhar para ele, e sua fisionomia assumiu uma expressão tensa de sofrimento, embora sorrisse.

— Acho que precisamos nos separar agora, querido — disse ela com um tom de voz propositadamente forte e inflexível, para evitar que a voz se quebrasse.

Havia esquecido, apagado por completo as lembranças das pérolas. Tinha apenas um sentimento de apego e aconchego, por essa mulher, um desejo infinito de ser bom para ela, muito, muito bom. Com uma sensação de desamparo, girou no dedo o anel de sinete com o brasão dos Gaigern, em lápis-lazúli.

— Tome — disse ele estendendo a mão e oferecendo-lhe o anel, com um gesto desajeitado de menino. — É para que você não se esqueça de mim.

"Não o verei mais?", pensou a Grussinskaia. Esse pensamento a fez sentir um ardor nos olhos, e a fisionomia bonita de Gaigern foi desaparecendo em meio das suas lágrimas. Esse era um pensamento que não se devia exprimir. Ela ficou esperando. "Deixe-me ficar com você. Vou ser muito bom para você", pensou Gaigern. Apertou os lábios com força e obstinação e não disse nada.

— Você vai para Viena? — perguntou ele.

— Primeiro para Praga, por três dias. Depois catorze dias em Viena. Vou ficar hospedada no Bristol — acrescentou.

Silêncio. Tique-taque de relógios. Buzinas de automóveis diante do hotel. Cheiro de enterro. O arfar da respiração.

— Você não pode viajar comigo, querido? Preciso de você — disse finalmente a Grussinskaia.

— Eu... para Praga não posso ir. Não tenho dinheiro. Preciso primeiro arranjar o dinheiro.

— Eu lhe dou — respondeu ela prontamente. Com a mesma pressa Gaigern respondeu:

— Não sou um gigolô!

De repente caíram ambos nos braços um do outro, impulsionados por qualquer coisa de grande, num abraço forte, unidos no momento em que tinham de se separar.

— Obrigado — disseram ao mesmo tempo —, obrigado, obrigado — repetiram em três línguas: alemão, russo e francês, num balbucio confuso, num tom de soluço, num sussurro .choroso, em júbilo: — Obrigada, merci, bolchoie spassibo, danke.

Nesse instante Suzette está recebendo das mãos do criado de quarto, com ar de ofendido, a bandeja com o chá. São sete horas e vinte e oito minutos. O relógio na escrivaninha corre, sem fôlego; o outro, de cansaço, parou. Continue, continue, continue, bate ele, em tom de reprimenda.

— Então, em Viena? — diz a Grussinskaia, com as bordas das pestanas úmidas. — Daqui a três dias? Você segue depois que eu partir. E depois se encontra comigo em Tremezzo; vai ser ótimo, vai ser maravilhoso estarmos juntos! Vou tirar umas férias, de seis a oito semanas, e nós vamos*viver, querido, vamos somente viver, deixando tudo para trás, tudo isso que não tem sentido; vamos apenas viver, ficaremos idiotas de tanta preguiça e felicidade; e depois você vai comigo para a América do Sul. Você já conhece o Rio? Eu... não, chega. Está na hora. Vá! Vá! Querido! Obrigada!

— Daqui a três dias o mais tardar — diz Gaigern. A Grussinskaia ainda faz pairar em seu redor, às pressas, um pouco da sua graça de dama da alta-roda.

— Tome cuidado para chegar ao seu quarto sem me comprometer muito — pediu ela, fechando as duas portas, uma após a outra.

Quando Gaigern, em silêncio, soltou a mão da mão dela, sentiu-a dolorida. Sangrava de novo. O corredor está silencioso, as inúmeras portas vão-se perdendo na longa perspectiva. Nas soleiras, as botinas dormem, com as orelhas pendidas. O elevador vem descendo e, no terceiro andar, alguém corre para não perder o trem. No hall da escada, uma das janelas de vidro leitoso está aberta, deixando sair para o pátio a fumaça dos cigarros dessa noite. Gaigern se esgueira, com suas solas de pugilista, por sobre o tapete de ananases; entra no 69, seu próprio quarto, e fecha a porta com uma gazua. A chave ainda está na caixa, na portaria.

A Grussinskaia, depois de tomar banho, deita-se de bom grado, para entregar-se às mãos de massagista de Suzette. Sente-se forte, elástica e cheia de energia. Tem uma vontade enorme de dançar, e está ansiosa pelo próximo espetáculo. Sente que terá sucesso agora, pois em Viena se tem sempre sucesso; ela o sente nas pernas, nas mãos, no pescoço, que inclina para trás, repentinamente, e na boca, que tem sempre desejos de sorrir. Veste-se e sai correndo, como um pião. Com enorme élan, atira-se às ocupações da manhã, à discussão com Meyerheim, à luta subterrânea com as perfídias da troupe, ao trabalho paciente com Pimenoff e Witte.


9

 

 

Às nove horas o groom 18 traz um buquê de rosas: "Até logo, querida boca", está escrito num pedacinho rasgado de papel do hotel. A Grussinskaia beija o anel de sinete com o brasão dos Gaigern. — Porte-bonheur — sussurra, como a falar com um velho conhecido. Agora ela já tem de novo um talismã. "Michael tem razão. Vou doar as pérolas... para as crianças pobres", pensa ela. Suzette segura com luvas de tricô a alça da suitcase, enquanto o criado leva o resto da bagagem. Sem saudades, a Grussinskaia deixa o quarto do hotel, tão cheio de aventuras, com aquela tapeçaria da parede que lhe fazia mal aos nervos. No Hotel Imperial de Praga já está reservado para ela um outro quarto com banheiro privativo dando para o pátio, o número 184. Também no Rio, em Paris, em Londres, em Buenos Aires, em Roma foi feita igual reserva; espera-a uma infindável perspectiva de quartos de hotel com portas duplas e água corrente, e o cheiro indefinível de incessante movimento e de coisas desconhecidas.

Às nove horas e dez a camareira, que não dormiu durante a noite, tira muito mal o pó do quarto 68, joga fora as cestas de flores secas, leva a xícara de chá e finalmente traz roupa de cama limpa — ainda úmida da passagem a ferro — para o próximo hóspede.

 

O relógio, pérfido como todos os despertadores, deixou de acordar o Diretor-Geral Preysing, com seu tilintar pontual e enérgico. Às sete e meia tilintou apenas durante um segundo, e isso foi tudo. Preysing, que dormia com a boca aberta e seca, mexeu-se ligeiramente, as molas do colchão gemeram, e por trás do reposteiro amarelo o sol brilhou um pouco. Às oito horas o porteiro, muito cumpridor de seus deveres, despertou o diretor chamando-o ao telefone, mas já era tardíssimo. Preysing pôs a cabeça meio tonta de sono embaixo da ducha, praguejando baixinho por ter-se esquecido de trazer o aparelho de barbear. Um pedante como ele perdia toda a alegria com uma coisa assim. Apesar de estar atrasado, levou alguns minutos escolhendo o terno que ia vestir. Depois de já ter escolhido o cut, despiu-o com raiva. Calculou — e talvez com razão — que não seria vantajoso vestir o cut; o terno cinzento de viagem, pelo contrário, demonstraria imediatamente aos senhores de Chemnitz que não estava tão interessado assim por todo aquele negócio. Apressou-se o mais que pôde, mas até que arrumasse todos os saquinhos e estojos, que procurasse todas as chavinhas, as encontrasse e enfiasse nas fechaduras, folheasse mais uma vez seus documentos e contasse mais uma vez o dinheiro, já eram mais de nove horas. Com a cabeça quente, saiu correndo do apartamento e, no corredor, deu um encontrão em um homem.

— Desculpe! — disse Preysing, parando diante da porta de seu quarto, para conseguir enfiar o outro braço no casaco.

— Não foi nada! — replicou o cavalheiro, continuando seu caminho sobre a passadeira. Preysing julgou reconhecer esse modo de manter as costas. Quando chegou ao elevador, o homem já ia descendo; o diretor pôde vê-lo também de frente e julgou reconhecê-lo igualmente, sem se recordar de onde. Teve a impressão de que ele sorria zombeteiramente, enquanto descia no elevador, diante do seu nariz. Preysing, excitado e impaciente, desceu a escada correndo e foi em disparada pelos corredores até o subterrâneo de azulejos, onde o barbeiro do hotel tinha o seu salão; ali cheirava a água estagnada de porão e a Peau d'Espagne. No salão estavam sentados muitos cavalheiros, metidos em batas brancas, como babies esperançosos, entregues às manipulações dos barbeiros vestidos com jaquetas brancas. Preysing, impaciente, começou a dançar sobre suas grossas solas de crepe.

— Vai demorar muito para chegar a minha vez? — perguntou ele, roçando o rosto por barbear, nas palmas das mãos.

— No máximo dez minutos. Há só um senhor na sua frente — responderam-lhe.

O tal senhor que havia chegado antes dele era o homem que descera no elevador, e Preysing olhou-o com desagrado. Era um sujeitinho insignificante, magro e modesto, meio vesgo por trás de uns óculos a escorregarem, e com o nariz pontudo inclinado sobre um jornal. Preysing tinha uma vaga ideia de já ter tratado de negócios com esse homem, mas não conseguia recordar-se em que circunstâncias. Postou-se diante dele, fez uma leve curvatura, e procurando ser amável disse:

— Por favor, o senhor podia me fazer a gentileza de me ceder a sua vez? Estou com muita pressa.

Kringelein, que se encolhera todo atrás do jornal, juntou suas forças. Mostrou a cara por trás do artigo de fundo, estendeu o pescoço fino, voltou-se para o diretor-geral olhando-o de frente e respondeu:

— Não!

— Desculpe... mas é que estou com muita pressa — tartamudeou Preysing em tom de reprimenda.

— Eu também — replicou Kringelein. Preysing, furioso, virou as costas e saiu do salão de barbeiro. Como um vencedor, um herói, mas completamente exausto e vazio pela desmedida tensão nervosa, Kringelein, ofegante, continuou sentado, envolto no aroma das essências dos sabões de barbear.

Atrasado, com a barba por fazer e com a ponta da língua doendo, por tê-la queimado no café fervendo, o diretor-geral entrou na sala de conferências. Os outros senhores já tinham soltado na sala uma bela fumaceira azul de charuto. A sala, com seu pano de mesa verde, a imitação de tapeçaria de damasco nas paredes e o retrato a óleo do fundador do Grande Hotel, tinha um aspecto de conforto e solidez. O Dr. Zinnowitz já havia colocado seus documentos na mesa, na sua frente; o velho Gerstenkorn estava sentado na cabeceira da compridíssima mesa, presidindo a sessão, e, para cumprimentar, ergueu apenas a metade do corpo, porque ele pertencia à geração robusta do sogro de Preysing, conhecera o diretor-geral ainda moço e não o tinha em grande conta.

— Está atrasado, Preysing? — perguntou ele. — Quarto de hora acadêmico? Não passou bem ontem de noite? É isso, Berlim tem dessas coisas! — riu-se com a tosse grossa e encatarrada dos bronquíticos, e apontou para a cadeira a seu lado.

Preysing sentou-se defronte de Schweimann com a desagradável impressão de ter levantado com o pé esquerdo, e seu lábio superior, sob o bigode, estava úmido antes mesmo de começar a luta. Schweimann, que tinha pálpebras espessas e uma boca grande e de lábios grossos, uma boca elástica de macaco, apresentou um terceiro senhor:

— O nosso síndico, o Dr. Waitz — disse ele.

O Dr. Waitz era jovem ainda; tinha um ar distraído, mas não o era em absoluto, e durante as conversações podia tornar-se bem desagradável, com sua voz dominadora e agressiva de trombeta. Tinha sido trazido também pelos senhores de Chemnitz.

— Nós já nos conhecemos — disse Preysing com pouco entusiasmo.

Schweimann ofereceu, por sobre a mesa, um charuto ao diretor-geral. O Dr. Zinnowitz tirou do bolso do colete uma caneta-tinteiro e a colocou à sua frente, ao lado dos documentos. Bem afastada, sentada à mesa, do outro lado da garrafa de água e dos copos que ofuscavam facilmente os olhos e vibravam sobre uma bandeja preta, sempre que passava lá fora algum ônibus, estava uma personagem apagada: a Flamm número um, com o bloco de estenografia na mão, envelhecida e insignificante, com uma leve penugem branca de traça nas faces, calada, cumpridora dos seus deveres, impossível de ser confundida com a Flamm número dois.

— Bonita caneta — observou Schweimann a Zinnowitz. — De que marca é? Muito bonita.

— Gosta? Recebi-a de Londres. É bonita, não é verdade? — respondeu Zinnowitz, escrevendo sua assinatura fluente num caderninho de notas. Todos olharam.

— Quanto custa uma caneta assim, se me permite perguntar-lhe? — informou-se Preysing, tirando sua própria caneta do bolso do colete e colocando-a na mesa. E todos os presentes olharam também para a caneta inglesa.

— Umas três libras, sem pagar a alfândega. Um conhecido me trouxe — esclareceu o Dr. Zinnowitz.

— Que coisa prática! Muito prática.

Todos estenderam as cabeças por sobre a mesa, como meninos de escola, e observaram a caneta-tinteiro de malaquita verde, de Londres. Esse objeto merecia de fato que cinco participantes adultos de uma conferência se ocupassem dele durante três minutos.

— Bem, agora vamos tratar de negócios — disse afinal o velho Gerstenkorn com sua voz encatarrada, e imediatamente o conselheiro Zinnowitz apoiou seus dedos alvacentos sobre a coberta verde da mesa e começou, com palavras fluentes e preparadas de antemão, uma exposição do assunto, fazendo ressoar a voz na atmosfera azul da sala de conferências.

Preysing permitiu-se uma pequena pausa para se acalmar. Ele próprio não era bom orador, e se sentia agradecido por Zinnowitz ter assumido essa tarefa, e por suas frases se ensarilharem, fluentes e claras, como atiradas por uma máquina. E isso não era mais que a introdução. Primeiro falou de coisas que já haviam sido há muito tempo ruminadas em negociações preliminares. Expôs mais uma vez a situação em que as negociações estavam, enquanto ia pescando, na pasta dos documentos, ora este ora aquele papel, levando as longas colunas de números bem próximo dos olhos míopes para poder lê-las com mais facilidade.

Tornando a repetir, era este o ponto em que estavam as negociações: a Algodoeira Saxônia S.A., que fabricava principalmente tecidos de algodão e cobertores, e com o refugo fabricava uma qualidade muito apreciada de serapilheira, era uma firma de boa envergadura e grande capital. Seu ativo em terrenos, prédios e maquinaria, em mercadorias em bruto e manufaturadas, em patentes, etc, e principalmente em crédito, totalizava um capital considerável. Os impostos anuais e o produto líquido conservavam-se numa sólida média, os dividendos haviam somado, ainda no ano passado, nove e meio por cento.

Zinnowitz ia lendo as cifras, mais ou menos satisfatórias, e Preysing o ouvia com agrado. No seu empreendimento estava tudo limpo e em ordem, e a produção com o refugo, que sozinha trazia trezentos mil em bruto, fora organizada por ele. Olhou para Gerstenkorn. Este, com a maneira pensativa e meio simplória dos velhos manhosos, balançava de um para outro lado a cabeça grisalha, à escovinha. Schweimann aspirava seu charuto, parecendo não estar ouvindo. Waitz controlava as cifras que eram lidas, uma a uma, olhando para um caderninho com capa de couro, onde ele tomara notas. A Flamm número um, verdadeira mestra, na arte da secretária particular, em não fazer notar sua presença, com olhar fixo fitava os reflexos na água, em que a caneta tomava o aspecto tremulante de uma pequena e aguda baioneta. Zinnowitz tirou outro maço de papéis de entre os documentos colocados uns sobre os outros e passou então a tratar da situação da Malharia de Chemnitz. Sua barba longa e fina de chinês subia e descia quando ele falava.

A Malharia de Chemnitz era — deduzia-se das cifras — um empreendimento muito menor. Mal possuía a metade desse ativo, e seu balanço demonstrava uma situação bastante precária. Ele tinha anotado apenas o principal, mas, não obstante, tivera de lançar uma elevadíssima participação de lucros. Os impostos anuais eram altos. O lucro líquido mal chegava à altura dos impostos. Considerando tudo isso, as cifras do balanço da Chemnitz mantinham-se espantosamente elevadas. Zinnowitz colocou um amável e pequeno sinal de interrogação por trás das últimas cifras que lera, e fitou o velho Gerstenkorn.

— Suba. Pode arredondar para duzentos e cinquenta mil marcos, pode fazê-lo.

— O senhor não pode fazer as contas assim — observou Preysing, que tinha ficado nervoso. — O senhor precisa amortizar o preço das novas máquinas para o novo processo. Nesse caso, o senhor não poderá anotar nem mesmo suas velhas máquinas.

— Mesmo assim. Mesmo assim — insistiu Gerstenkorn, teimoso.

O Dr. Waitz trombeteou:

— Poderemos considerar as nossas cifras muito mais desvalorizadas do que valorizadas.

O Dr. Zinnowitz pôs em cima da mesa um papel para o diretor-geral, e este, forçando a vista, aprofundou-se nos seus cálculos. O resultado ele já conhecia. A Malharia de Chemnitz era um empreendimento de pouca solidez, fundado com pouco capital, e com o crédito quase estourando. Mas impunha-se, tinha bons lucros, parecia estar se desenvolvendo, tinha as conjunturas a seu favor. Enquanto isso, a Algodoeira Saxônia ficava para trás, ia adormecendo, sólida e bem fundada como era. Algodão, cobertores e serapilheira. O mundo não se interessava, no momento, por cobertores e serapilheira. E o velho de Fredersdorf sabia por que razão ele insistia, nas atuais circunstâncias, em agarrar a oportunidade dos tecidos de malha, e trazer assim um lucro para o seu empreendimento.

— Isso não tem importância. Vamos adiante — disse o diretor, com a condescendência de um homem que está em posição inferior. Gerstenkorn tirou da mão dele o balanço e, alisando delicadamente o papel, tossiu uma risada.

Zinnowitz, com palavras fluentes, já havia tratado da situação das ações, havendo, nesse ponto, um erro evidente. O capital efetivo da Saxônia era quase duas vezes maior do que o ativo dos senhores de Chemnitz. Partindo dessa premissa, todas as outras negociações preliminares haviam decorrido de modo que, na fusão das duas firmas, duas ações da Chemnitz equivalessem a uma ação da Saxônia. Mas as ações da Chemnitz haviam subido, as da Saxônia baixado, o equilíbrio tinha-se modificado sensivelmente, e o Dr. Zinnowitz, com um gesto conciliante da mão, teve que conceder — a base das trocas se modificara, em razão da espantosa subida das ações da Malharia de Chemnitz. Preysing ouvia com desagrado a voz polida do seu advogado, que com muitas frases, impecáveis e condicionais, trazia à luz uma quantidade de coisas desagradáveis, que ele estava farto de saber. Seu charuto já não lhe dava mais prazer; tirou ainda algumas baforadas enérgicas, e acabou pondo-o de lado. Num certo ponto da exposição de Zinnowitz, o Dr. Waitz saltou, como um ator na sua deixa, bateu rapidamente com a palma da mão no pano verde da mesa, e opôs suas objeções. Começou a ler cifras no seu caderno de notas, sem olhá-lo sequer, novos números, números diferentes — Preysing contraiu de tal modo os músculos da testa, que seus olhos saltaram das órbitas, tal o esforço que fazia para conservar na memória todas aquelas coisas, para perceber tudo e não perder de vista o aspecto geral do assunto. Puxou para o seu lado alguns papéis de carta do hotel, que estavam em cima da mesa, e se pôs a rabiscar notas às escondidas, e excitado como um mau aluno. O conselheiro Zinnowitz, por seu lado, havia apenas lançado um olhar à Flamm número um, e a boa moça já estava a estenografar as agressivas palavras e provas no seu bloco, com riscos azuis. O Dr. Waitz apresentou o conjunto de suas trombeteadas objeções: não, não era possível exigir dos acionistas da Malharia de Chemnitz um prejuízo de metade do seu capital, no caso de tal fusão. Conforme sua opinião, não havia nenhum motivo plausível para, no caso de uma eventual fusão — ele frisou o "eventual", como um ator de província —, conceder a primazia à Saxônia, com relação à sociedade de Chemnitz, para de certo modo colocar num plano de dependência essa firma em plena florescência, para pô-la simplesmente a um canto.

Zinnowitz olhou para Preysing, e este, obediente, se pôs a falar. Tinha o hábito de falar de coisas importantes com voz nasal e abafada, num tom aborrecido e monótono; pelo fato de se sentir intimamente um homem pouco seguro de si, empregava tais meios para demonstrar aos outros calma e superioridade. As palmas de suas mãos estavam úmidas, quando se atirou à luta. Os olhos de Schweimann arrastaram-se para fora das órbitas vermelhas em que habitavam, como camundonguinhos cinzentos, e Gerstenkorn colocou os polegares nas cavas do colete, com a expressão de uma pessoa que está se divertindo. As paredes de damasco falso ouviam tudo, com indiferença. Conferências como essa se realizavam diariamente no Grande Hotel; nesse enorme Kaff eram cozidas muitas sopas, que em seguida os acionistas tinham que engolir. O açúcar subia de preço, as meias de seda barateavam, o carvão desaparecia, tudo isso e milhares de coisas mais dependiam do decorrer dessas lutas na sala de conferências do Grande Hotel.

Preysing ia falando. Quanto mais ele falava, com uma voz que ressoava como se a tivesse posto sobre a neve, e quanto mais minucioso se tornava, tanto mais perdia terreno. As interrupções breves e concludentes de Gerstenkorn assobiavam por entre suas frases como balas de revólver. Houve momentos em que Preysing teria de bom grado fugido dali, meia-volta, marchar, marchar, abandonando toda essa história imunda de fusão, para voltar para a companhia de Mulle, Pepsin e Babe, em Fredersdorf. Mas era um diretor-geral, e o mundo não era um negócio tão simples assim; dessa fusão muito se esperava para a fábrica, e dela dependia tudo para a sua própria posição dentro da fábrica, pelo que aguentou o repuxo. Puxou mais uma vez do seu ativo, essa prova mais do que sólida de um empreendimento mais do que sólido, e se agarrou a isso com unhas e dentes. Caceteou os senhores da Chemnitz, caindo em pormenores excessivos, e o conselheiro precisou por várias vezes pô-lo em movimento, como a um barco encalhado e lento. Preysing fazia uma confusão medonha, insistia em alguns pontos secundários, teimava sem a mínima razão; caceteava os senhores da Chemnitz com minuciosas descrições da fabricação de tecido de serapilheira, feito com refugo do material, pois era do que mais gostava de falar, esquecendo-se de aludir a assuntos importantes que tinha sublinhado no papel de carta diante dele. Finalmente ficou parado no meio de uma frase que começara como. uma fanfarra e terminou num beco sem saída. Tirou do bolso o lenço e enxugou o suor do bigode; pôs na boca um novo charuto, que tinha gosto de feno. De repente teve a impressão de estar sentado em uma mesa entre contrabandistas, pessoas sem seriedade e sem princípios; sentiu a amargura do homem honesto que e tido por tolo.

Então, Gerstenkorn tirou das cavas do colete seus dedos redondos de burguês atrasado e começou a expor a sua opinião. Esse senhor Gerstenkorn, com sua cabeça quadrada à escovinha e sua voz bronquial, era um orador claro e combativo. Empregava toda espécie de dialetos, para dizer sem rodeios o que queria dizer. Saxão, berlinês, iídiche e mecklemburguês eram o tempero da sua conversa sobre negócios.

— Agora o senhor faça ponto final, e deixe os adultos falarem — observou ele, conservando na boca o charuto, o que tornava sua linguagem, comumente vulgar, mais vulgar ainda, e era o que ele queria. — As coisas de que a Saxônia é capaz o senhor já nos contou, e nós já sabíamos disso tudo. Música também ela não sabe fazer. Já repetimos e tornamos a repetir isso tudo aos nossos principais acionistas, e qual foi o resultado? Receio, um enorme receio, um fundamentado receio da fusão. É engraçado, como é que os acionistas, por causa do seu algodão, iriam meter a mão no caldeirão para tirar as salsichas quentes? Em poucas palavras: a nossa situação melhorou muito desde a primeira vez que o senhor se dirigiu a nós. A sua situação não se modificou, se quisermos ser amáveis e não dissermos que piorou. Nessas condições, nós, falo em alemão claro, meu prezado Preysing, perdemos o interesse na fusão. E estamos aqui com a incumbência de parar com as negociações, nessas circunstâncias. Quando o senhor se dirigiu a nós, as perspectivas eram outras.

— Mas nós não nos dirigimos aos senhores — disse Preysing com rapidez.

— Homem de Deus, o que aconteceu com o senhor? Dirigiram-se a nós, sim! Dr. Waitz, faça o favor de me passar os dados. O senhor dirigiu-se a nós em... aqui está... em 14 de setembro, por carta.

— Não é verdade — teimou Preysing, puxando o maço de documentos que estava diante do conselheiro Zinnowitz. — Nós não nos dirigimos aos senhores. Antes dessa carta já tinha havido uma troca pessoal de impressões, pedida pelos senhores.

— Trata-se disso? Pois um mês antes o seu velho já tinha batido à minha porta, a título particular, com toda a amabilidade.

— Nós não nos dirigimos em primeiro lugar — respondeu Preysing, apegando-se a esse fato absolutamente sem importância, como se isso pudesse salvar alguma coisa. Zinnowitz bateu com os pés estreitos debaixo da mesa, pedindo socorro. De repente, Gerstenkorn pôs fim à discussão, e passou a palma da mão quadrada sobre o pano verde da mesa.

— Está bem — disse ele —, bon. Pois então não se dirigiram, se assim lhe agrada. E, tenham ou não se dirigido, as circunstâncias naquela época eram diferentes, o senhor tem que concordar, Herr diretor-geral — ele disse "Herr diretor-geral", e a mudança da maneira amistosa de falar para esse tom oficial soava ameaçadoramente. — Naquela época tínhamos motivos para desejar uma sociedade com a Algodoeira Saxônia. Hoje, que motivos temos?

— Os senhores precisam de um capital maior — disse Preysing, com toda a razão.

Gerstenkorn, com dois dedos, varreu da mesa a objeção.

— Capital! Capital! Se emitirmos hoje novas ações nos atirarão quanto dinheiro quisermos. Capital! O senhor se esquece de uma coisa: o seu bom tempo foi durante a guerra, naquela ocasião a gente podia arranjar a vida fazendo tecido para o Exército e cobertores. Agora o tempo está bom para nós, entende? Nós não precisamos de capital. Precisamos de matéria-prima barata, para aproveitar o nosso novo processo, e precisamos de novos mercados no exterior. Digo-lhe com toda a franqueza, e diretamente, a opinião da nossa sociedade, Herr diretor-geral. Se a fusão com os senhores for proveitosa para nós, então a concretizaremos. Do contrário, não a faremos. Faça o favor, diga o que pensa sobre isso.

Pobre Preysing! Tinha que expor o seu pensamento. Agora haviam chegado naquele ponto que o amedrontava, desde que pisara o trem misto em Fredersdorf. Lançou um olhar de coelho a Zinnowitz, mas este olhou com um ar de recusa as próprias unhas, bem tratadas e pálidas.

— Não é nenhum segredo o fato de possuirmos ótimas relações no exterior. Só para os Bálcãs exportamos anualmente sessenta e cinco mil marcos de tecido de serapilheira — observou ele. — É natural que, no caso de uma fusão, faríamos o possível para atrair ainda o mercado externo para o produto de malha manufaturado.

— Quais são os motivos que o levam a afirmar isso com tanta certeza? — perguntou o Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, erguendo um pouco o busto, conforme um antigo hábito seu, do tempo em que fora juiz criminal. Dava a impressão de ainda usar a toga, e falava num tom de voz próprio para intimidar a testemunha insegura. O diretor-geral se deixou intimidar.

— Não sei a que motivos se refere — respondeu ele, com seu lamentável costume de perguntar coisas que estava farto de saber.

Schweimann, bem em frente dele, ainda não tinha aberto sua enorme e elástica boca de macaco. Agora a abria.

— Trata-se da planejada sociedade com Burleigh & Son — afirmou ele, sem rodeios.

Gerstenkorn balançava com a máxima atenção a longa ponta de cinza do seu charuto.

— Infelizmente, não estou em condições de dar informações a esse respeito — respondeu Preysing imediatamente. Preparara de antemão essa resposta, e a sabia de cor.

— Que pena! — disse o velho Gerstenkorn.

Em seguida ficaram todos calados durante alguns minutos.

A garrafa de água tilintou levemente na bandeja, porque lá fora passava um ônibus, e o reflexo estreito e contorcido do sol batendo na água parada tremulou na parede sobre a moldura do retrato a óleo do fundador do Grande Hotel. Preysing, durante alguns segundos, se pôs a refletir febrilmente. Não sabia se o Dr. Zinnowitz havia mostrado ao pessoal da Chemnitz as cópias daquelas cartas agourentas, sem o menor valor e importância. Sentia novamente nas mãos aquela impressão de falta de asseio e de trato. Seu rosto por barbear começou a cocar de um modo ridículo. Lançou um olhar inquiridor e implorante ao conselheiro, lá na ponta da mesa. Zinnowitz, procurando acalmá-lo, baixou as pálpebras oblíquas e inteligentes de seus olhos de chinês, um movimento quase invisível, que tanto podia significar sim, como não, ou mesmo não significar absolutamente nada. Preysing dominou-se. "Preciso consegui-lo", pensou ele; era mais um sentimento do que um pensamento.

— Meus senhores — disse ele, levantando-se; é que o forro esticado de veludo da cadeira causava no seu traseiro uma sensação desagradável de calor —, mas, meus senhores, vamos tratar do que importa. A base sobre a qual foram feitas até agora todas as negociações entre nós foi o balanço e a situação da fábrica de Fredersdorf. Os senhores puderam fazer uma ideia bem clara da situação, o senhor conselheiro comercial Gerstenkorn pôde certificar-se pessoalmente das condições em que se encontra a nossa fábrica, e eu faço questão de que hoje não se trate de coisas vagas e imponderáveis nas nossas negociações. Não somos especuladores, eu não sou um especulador, em absoluto, trabalho com fatos e não com boatos. Não passa de um boato da Bolsa, isso de que vamos fazer sociedade com Burleigh & Son, em Manchester. Mandei desmentir isso, não posso permitir que...

— O senhor não vai querer ensinar uma lebre velha a correr, não é? Nós sabemos muito bem o que significa um démenti — replicou Gerstenkorn.

Schweimann agora estava animado; farejava, com as suas narinas dilatadas e a boca de macaco, como se já cheirasse a possibilidade do mercado inglês. Preysing foi-se enfurecendo.

— Não aceito! — exclamou ele. — Não aceito que considerem como um fator importante nos nossos negócios esse assunto da Inglaterra; não aceito isso. Não faço cálculos com castelos na Lua, nunca fiz isso, a nossa fábrica não tem necessidade de fazer semelhante coisa. Conto com coisas reais, com fatos, com cifras, com o nosso balanço, aqui está — exclamou ele batendo três vezes com a palma da mão na pilha de documentos que se encontrava diante dele —, é isso que tem valor... e não permito que se trate de outra coisa. Nós oferecemos agora o que oferecemos desde o primeiro dia, e se isso de repente não basta para a sua firma, sinto muito!

Parou espantado, pois tinha galopado como se corresse sobre um pântano. "Estou assustando os outros com a minha gritaria", pensou ele horrorizado, "preciso atraí-los, e em vez disso estou estragando tudo." Encheu o copo de água e bebeu. Era um líquido grosso, morno e sem sabor, como óleo de rícino. O conselheiro Zinnowitz deu uma risadinha e tentou endireitar a coisa.

— O diretor-geral Preysing é de uma consciência modelar — declarou ele. — Não sei, mas talvez os seus receios de levar de certo modo em consideração o negócio com Manchester sejam injustificados, pelo menos exagerados. Por que não se poderá deixar pesar na balança uma coisa que oferece tão boas perspectivas, mesmo que isso ainda não esteja em preto no branco? Por que...

— Por quê? Porque não posso me responsabilizar por isso — interrompeu-o Preysing. Zinnowitz, que teria de bom grado lhe pisado no pé, mas não o podia fazer, ergueu a voz, dirigindo-se ao diretor-geral. Preysing sentou-se de novo no assento quente da cadeira de veludo, e não disse mais nada. Esteve a ponto de declarar a verdade. Bom, se Zinnowitz não o deixava falar, então o célebre perito em matéria comercial que se arranjasse como pudesse. "A coisa vai mal", pensou Preysing, "já não tem mais conserto, está tudo acabado, morto e enterrado. As negociações fracassaram definitivamente. Está bem." Oferecera a todo mundo uma firma sólida, e tudo que um homem correto pode oferecer. Mas o mundo não queria coisas assim. O mundo queria mercados fictícios, boatos falsos, especulações, por trás dos quais nada havia, a não ser um pouquinho de fanfarronice. Artigos de malha, jumper e sweater, meias de cores variadas de Chemnitz, pensou o diretor-geral, amargurado... E chegou a ver realmente, nesse momento, tais coisas, modernas, coloridas e levianas, que conquistavam o mundo no corpo de moças também levianas.

Zinnowitz continuava o seu sermão; Flamm caíra de novo em sua letargia profissional. Gerstenkorn e Schweimann, no entanto, mal ouviam; com a cabeça metida entre os ombros, conversavam sem nenhuma delicadeza, a meia voz, sobre um assunto qualquer.

— O nosso amigo Preysing — recomeçou o conselheiro — talvez vá um pouco longe demais com os seus escrúpulos. Dizem que a sua fábrica está para firmar um contrato muito vantajoso com a próspera e antiga firma Burleigh & Son. E que faz o nosso caro Preysing? Procura negar isso, como se acaso se tratasse de uma bancarrota. Considerando que se trate apenas de um boato... não há boato algum que não contenha um fundo de verdade, todos nós sabemos. E um velho homem de negócios como o conselheiro comercial Gerstenkorn há de concordar que há boatos que têm mais valor do que muito contrato pronto e assinado. Mas como antigo advogado da fábrica de Fredersdorf, posso afirmar: isso é mais do que um boato, há certos ajustes por trás disso. Desculpe-me, caro Preysing, se não guardo a discrição férrea que o senhor guarda. Não tem nenhum sentido insistir em negar, desde que já se realizaram inúmeros entendimentos a esse respeito. Talvez hoje ainda não se possa saber com certeza se eles conduziram a um resultado positivo. Mas isso é um fato, e um fato menos desfavorável do que o seu balanço. Acho extremamente correto e delicado Herr Preysing não querer juntar ao ativo da sua fábrica esse fato, acho isso realmente de uma correção e distinção fora do comum. Mas dessa maneira não se vai para a frente. Desculpe-me, portanto, se eu confio essas coisas a estes senhores.

Zinnowitz continuou a murmurar um palavreado conciliante, com muitos "no entanto" e "como também" e “se acaso" e "por outro lado". Preysing tinha empalidecido; teve a sensação, ao sentir nas fontes uma pontada do sangue a fugir, o sentimento de que havia realmente empalidecido. "Ele lhes mostrou as cartas", pensou. "Mas, Deus do céu, isso já é intriga, já é quase uma fraude. Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann", pensou ele, enxergando as letras azul-escuras e apagadas do telegrama. Meteu a mão no bolso do colete do seu terno cinzento de funcionário, onde guardara o telegrama, mas retirou-a no mesmo instante, como se a tivesse metido num forno quente. "Se eu agora não me levantar imediatamente, e não disser o que está se passando, então a coisa está perdida", pensou, levantando-se. "Porém, se eu falar agora, estes senhores se afastarão, a fusão vai por água abaixo e eu voltarei para Fredersdorf completamente desacreditado", refletiu, sentando-se de novo. Procurou disfarçar seus movimentos indecisos e inoportunos, e, colocando água num copo até o meio, sorveu-a, como se fosse um remédio.

Enquanto isso, Schweimann e Gerstenkorn tinham-se animado. Eram duas cabeças de comerciantes, finórias e lustrosas de unção. Sua atenção foi despertada para o fato de Preysing ter negado com tanta veemência o negócio com a Inglaterra, tentando pôr de lado o assunto. Seu olfato sentia alguma outra coisa por trás disso: mercados, proveitos, talvez concorrência. Gerstenkorn teve uma ideia, que murmurou à enorme orelha direita de Schweimann:

— Se se tratasse de qualquer outra pessoa, um desmentido assim seria quase o mesmo que uma afirmação. Mas com esse animal que é o Preysing, é possível até que ele esteja falando a verdade.

Gerstenkorn deu uma investida brutal.

— Não adianta o conselheiro estar gastando o seu latim — disse ele, inclinando-se sobre a mesa. — Antes de continuarmos a nossa conversação, quero pedir a Herr Preysing o favor de nos dizer sem rodeios até que ponto chegaram as negociações com Burleigh & Son.

— Recuso-me a isso — afirmou Preysing.

— Insisto, caso continuemos a negociar — retrucou Gerstenkorn.

— Então — replicou Preysing — peço-lhe que, no decorrer das negociações, esse assunto seja dado por encerrado.

— Nesse caso preciso admitir que as perspectivas de sociedade com Burleigh & Son malograram? — perguntou Gerstenkorn.

— Admita o que bem lhe parecer — respondeu Preysing.

Em seguida todos se calaram por quase um minuto. Flamm número um folheou discretamente o seu bloco de estenografia, e o ruído delicado das folhas de papel que ela virava ressoou no silêncio da sala de conferências. Preysing parecia um bebezinho zangado; às vezes, sucedia meter a cabeça por trás da fisionomia do diretor-geral um menino cabeçudo e teimoso. Zinnowitz, com a sua caneta de malaquita, desenhava resignados triângulos na capa de um documento.

— Acho que por enquanto não tem sentido nenhum continuarmos a nossa conversa — disse finalmente Gerstenkorn. — Acho que podemos continuar a nos entender por escrito.

Ele se levantou, e a sua cadeira deixou sulcos fundos no tapete espesso, legítimo, da sólida sala de conferências. Mas Preysing continuou sentado. Tirou cuidadosamente um charuto do bolso, cortou-lhe a ponta cerimoniosamente, acendeu, tirou uma tragada e começou a fumar, com uma expressão absorta e profundamente pensativa; suas bochechas se tinham avermelhado, cheias de veiazinhas salientes.

Não há dúvida de que o Diretor-Geral Preysing é um homem honestíssimo, de caráter, bom esposo e bom pai, um homem ordeiro e organizado, da mais consolidada burguesia. Sua vida está toda em ordem, tudo registrado e em cartas, oferecendo um aspecto agradável: uma vida de caixas de fichas, de pastas de documentos, de muitas gavetas e muito trabalho. Preysing nunca cometeu a mínima falta de correção. No entanto, deve existir nele um ponto fraco, onde a vida o quer segurar e abater; uma insignificante inflamação, uma manchinha microscópica na limpeza burguesa de seus trajes, deve existir, no entanto...

Ele não chamou por socorro, nesse momento em que a conferência se interrompeu, apesar de se sentir muito mal, com a sensação de que precisava pedir auxílio e gritar por socorro. Levantou-se com o charuto na boca, segurando-o fortemente entre os dentes, e teve a impressão perfeita de estar bêbado, quando pôs as mãos nos bolsos.

— Que pena — disse ele negligentemente, admirando-se do tom despreocupado dessa frase que roçou subitamente o charuto em sua boca. — É realmente pena. Adiar é o mesmo que terminar. Pois então, ponto final. E agora que os senhores desistiram do negócio, posso dizer-lhes que o contrato com Burleigh & Son está firmado. Desde ontem à noite. Recebi hoje de manhã a notícia.

Tirou a mão do bolso do colete, e nela estava metido o telegrama dobrado: Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann. Foi tomado de um infantil e triunfal prazer de enganar os outros, enquanto dizia aquela mentira enorme, que raiava a fraude, e punha o telegrama sobre o pano verde da mesa. Ele próprio não sabia se queria passar um blefe nos outros ou estava procurando uma boa saída para sua posição desacreditada. Schweimann, o mais indisciplinado dos dois homens da Chemnitz, estendeu o braço, num movimento instintivo para pegar o telegrama. Preysing, muito calmo, abriu o telegrama, dobrou-o novamente, e, com um gesto calmo e refletido, meteu-o de novo no bolso do colete. O Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, fez uma cara de idiota. O conselheiro Zinnowitz soltou um assobio leve e agudo, realmente estranhável, partindo da sua boca sábia de chinês.

Gerstenkorn começou a rir, com acessos de tosse bronquial.

— Meu caro — tossiu ele —, caríssimo! O senhor é muito mais sabido do que parece! Homem de Deus! O senhor nos pregou uma boa! Olhe aqui, precisamos conversar sobre isso!

Gerstenkorn se sentou. O diretor-geral, ainda por alguns segundos com um sentimento de vazio, como se todos os seus ossos tivessem ficado ocos e como se sentisse um esquisito e brando tremor nos joelhos, sentou-se também. Tinha mentido pela primeira vez na vida, e ainda por cima de um modo idiota, completamente simplório e sem base. E com essa mentira — justamente com ela — havia conseguido pela primeira vez, após tantos fracassos, impor-se de novo. De repente ouviu a própria voz a falar, e a falar bem. Sentiu-se tomado de uma estranha e desconhecida embriaguez; ouvia a própria voz, e tudo o que dizia tinha pés e cabeça, energia e visão. O fundador do Grande Hotel olhava fixamente para ele, muito admirado, lá do alto do seu retrato a óleo, com seus olhos pintados cintilantes. A Flamm número um curvara o rosto penugento sobre o bloco de estenografia, e estenografava rapidamente — porque agora, parecia, chegariam a um acordo final, cada palavra proferida se tornava importante.

Até o fim da conferência, que durou ainda três horas e vinte minutos, Preysing conservou-se nesse novo estado de ânimo, que lhe dava a impressão de estar voando. E só quando pegou a caneta-tinteiro de malaquita verde para assinar seu nome ao lado da assinatura de Gerstenkorn, no contrato prévio, notou que as suas mãos estavam úmidas e estranhamente sujas.


10

— O 218 quer que o despertem às nove horas — disse o porteiro ao praticante Georgi.

— Ele vai embora? — perguntou o rapazinho.

— Embora por quê? Qual nada, ele vai ficar.

— Pensei que ia. Ele nunca pediu que o acordassem ... — disse Georgi.

— Pois agora pode acordá-lo — respondeu o porteiro.

E assim, às nove horas em ponto, o telefone tilintou no quartinho ridiculamente minúsculo do Dr. Otternschlag.

Apressado como um homem cheio de ocupações, Otternschlag esforçou-se por libertar-se da nebulosidade dos sonhos e despertar, e em seguida admirou-se de estar acordado.

— O que foi? — perguntou a si próprio e ao telefone. — O que foi?

Depois ficou em silêncio durante alguns minutos, concentrando-se e procurando lembrar-se, com o rosto desfigurado encostado no linho macio do travesseiro do hotel. "Atenção", pensou ele, "é aquele homem, é o Kringelein, esse coitado. Precisamos mostrar-lhe o que é a vida. Ele está à minha espera. Já está sentado à mesa, na sala do café, esperando."

— Vamos levantar-nos e nos aprontar? — perguntou a si mesmo. — Vamos sim — respondeu depois de fazer um esforço, porque ainda tinha uma bela dose de morfina nos ossos. Apesar disso, seu rosto e seus movimentos, enquanto se vestia, pareciam exprimir um certo entusiasmo. Alguém esperava por ele. Alguém precisava dele. Alguém lhe demonstrava gratidão. Com um pé de meia na mão, sentado na beira da cama, começou a fazer planos e decidir o que fazer. Fez o programa para o dia, ocupado como um guia de viagens, um mentor, um homem importante e procurado. A camareira que tinha ido buscar no quarto vizinho ao 218 a vassoura e o balde ouviu, admiradíssima, o Dr. Otternschlag cantarolar com voz incerta uma melodia, enquanto ia escovando os dentes.

Entretanto, Kringelein se encontrava na sala de café, ainda exausto, excitado e animado, após sua cansativa vitória sobre o senhor Diretor-Geral Preysing, no barbeiro; há dez minutos tinha travado relações, com extremo prazer, com o Barão von Gaigern, relações distintas, encantadoras. Gaigern tinha agido depressa. Saíra da noite com a Grussinskaia sem as pérolas, e passara diretamente a uma explicação murmurada, mas dura como granito, com o chofer. Logo em seguida — após tomar banho, fazer ginástica e friccionar o corpo com água de alfazema — atirara-se sobre o senhor provinciano do 70, com o qual ele talvez pudesse arranjar de um modo ou de outro os milhares de marcos de que precisava com mais premência. Estava transbordando de impaciência, uma impaciência radiante de felicidade, tensa e ardente. Havia-se separado da Grussinskaia há uma hora apenas, e já sentia uma saudade louca, uma saudade alegre e delicada. Sua cabeça queria estar de novo com ela, sua pele, seus dedos, seus lábios, tudo a desejava novamente, o mais depressa possível. Gaigern sorveu, faminto de vida e de energia, esse sentimento desconhecido como costumava acolher dentro de si as novas experiências. O élan com que ele aguardava a tentativa com Kringelein era enorme. Com uma rapidez que se poderia chamar de tempo recorde, em quinze minutos conseguiu ganhar uma grande dose de confiança. Esmagado, Kringelein abriu sua pequena alma de funcionário, indecisa, ansiosa de vida e preparada para a morte — e o que ele não disse ou não soube exprimir Gaigern adivinhou. Quando Kringelein, às nove horas e catorze minutos, limpou no pequeno guardanapo do hotel o seu esforçado bigode, os dois já eram amigos.

— Imagine, senhor barão — dizia Kringelein —, imagine que eu tenha recebido por acaso algum dinheiro, depois de ter vivido sempre uma vida modestíssima, realmente modestíssima. Uma pessoa como o senhor barão não pode fazer sequer uma ideia de uma vida assim. É o medo da conta do carvão, o senhor compreende? Ou então não se pode ir ao dentista, vai-se deixando de um ano para outro, e de repente perdem-se quase todos os dentes, não se sabe como. Mas não quero falar dessas coisas. Anteontem comi pela primeira vez na vida caviar, ou coisa parecida. Quando o nosso diretor-geral tem reuniões em casa, manda vir caviar de Dresden, aos quilos. Bem, caviar, champanha e todos esses luxos não são a vida, dirá o senhor barão. Mas o que é a vida? Veja, barão, eu não sou mais um homem moço, sou meio doente, e de repente fiquei com receio de não poder aproveitar a vida. Eu não quero deixar passar a vida sem aproveitá-la, o senhor compreende?

— Nunca deixamos de aproveitar a vida! Ela está sempre ao nosso dispor, nós vivemos e é quanto basta. A gente vai vivendo, é isso — disse Gaigern.

Kringelein fitou aquele moço bonito e animado, e talvez suas olheiras, por detrás dos óculos, se tenham ruborizado um pouco.

— Pois é. Naturalmente, para o senhor, a vida está sempre presente, cada minuto que passa. Mas para gente como nós...? — disse ele baixinho.

— É engraçado. O senhor fala da vida como se ela fosse um trem que vai passando, e que o deixa para trás. Há quanto tempo o senhor anda atrás dela? Há três dias? E ainda não conseguiu pegá-la pela cauda, apesar do champanha e do caviar? O que o senhor fez ontem, por exemplo? Museu Kaiser-Friedrich, Potsdam, à noite teatro? Meu Deus do céu! Do que foi que mais gostou? De que quadro? Como? Não reparou... naturalmente. E no teatro... a Grussinskaia? É... a Grussinskaia — repetiu Gaigern, sentindo no coração, ao pronunciar esse nome, um calor repentino, como se fosse um rapazinho tolo. — O que está dizendo? O senhor ficou triste, era tão poético? Pois é, é mais ou menos isso. Mas tudo isso não tem nada que ver com a vida, senhor diretor. — Dizia "senhor diretor" por pura amabilidade, porque não gostou do nome de Kringelein, ridículo e desataviado; e Kringelein corou, feliz e intrujão. — A vida, a vida é... veja: às vezes encontram-se na rua esses caldeirões de piche, fervendo, em ebulição, soltando fumaça, fedendo como a peste a quilômetros de distância. Mas aproxime-se de um caldeirão desses e conserve a cabeça sobre ele, meta o nariz na fumaceira do alcatrão. É uma coisa estupenda, quente, com um cheiro forte e acre, que quase nos derruba no chão, e as gotas grossas e pretas brilham, e há força ali dentro, nada de doçuras nem de coisas insossas. Ah! Caviar! O senhor quer aproveitar a vida, e se eu lhe perguntar que cor têm os bondes de Berlim, o senhor não sabe, porque nunca reparou neles. Aliás, ouça, senhor diretor: com uma gravata como a sua, o senhor nunca poderá tomar o trem da vida; dentro de um terno como o seu ninguém pode se sentir feliz. Digo-lhe isso abertamente, porque não tem sentido nenhum ficar fazendo cumprimentos. Se o senhor confiar um pouco em mim, para apressar as coisas, precisamos primeiro ir ao alfaiate. O senhor está com dinheiro, livro de cheques... não. Faça o favor de arranjar dinheiro, mesmo! Enquanto isso eu vou buscar o meu carro na garagem. O meu chofer está de licença, deixei que o rapaz fosse ver a noiva em Springe; eu mesmo vou guiar.

Kringelein tinha a impressão de que um vento forte lhe batia nos ouvidos. A observação a respeito da sua gravata — comprada por dois marcos e cinquenta — e o seu bonito terno, na verdade, o haviam magoado. Pôs timidamente a mão no colarinho, largo demais.

— Pois é — disse Gaigern —, é muito grande, e vê-se o botão. Assim não pode, naturalmente!

— É que eu pensei... Eu não queria gastar dinheiro em roupa — murmurou Kringelein, vendo bailar vertiginosamente as cifras em seu caderno de notas. — Em outras coisas eu gasto de boa vontade, mas não em roupa.

— E por que não em roupa? Isso é o principal.

— Porque... não vale mais a pena — respondeu Kringelein, baixinho, com as amaldiçoadas lágrimas soltas a queimar-lhe de novo o canto dos olhos. Que maldição! Ele não podia se lembrar do seu fim próximo sem ficar comovido. Gaigern olhou para ele, descontente. — Não vale a pena, realmente... quero dizer... não terei por muito tempo a oportunidade de usar roupas novas. Pensei que... que as velhas ainda fossem servindo — sussurrou com um sentimento de culpa.

"Meu Deus, será que todos os homens têm uma xícara de chá com veronal preparada para tomar?", pensou Gaigern, a quem as carícias dessa noite haviam tornado sensível.

— Não se deve calcular assim — disse ele amavelmente. — Não se deve calcular, Herr Kringelein. Os cálculos nos saem errados. No momento adequado o senhor deve estar com a disposição adequada. Eu sou um homem do momento, e tenho-me dado bem com isso. Vamos, ponha no bolso algumas notas de mil marcos, e depois veremos se a vida não é uma coisa divertida. Avante!

Kringelein se levantou, obediente; tinha a sensação de rodopiar perigosamente dentro do turbilhão de uma cratera. "Algumas notas de mil marcos", pensou ele, como se estivesse atrás de um nevoeiro. Já estava acompanhando Gaigern, enquanto seus pensamentos ainda resistiam, e as paredes da sala de café dançavam à sua volta. Os pés desenraizados de Kringelein, metidos nas botinas de cano alto, iam tropeçando passivamente pelos corredores do hotel; ele sentia medo. Sentia um medo doido de Gaigern, das despesas, do alfaiate caro, tinha medo do automóvel cinza-claro, em que se meteram no assento da frente, perto da direção, tinha medo da vida que, no entanto, não queria deixar de aproveitar. Apertou com energia seus molares estragados, calçou as luvas de tricô, e começou seu dia feliz.

O Dr. Otternschlag, que às dez para as dez andava ao longo das paredes do hall, à procura de Kringelein, recebeu do porteiro uma carta entregue pessoalmente.

Prezado Dr. Otternschlag! — estava escrito. — Infelizmente, por motivos imprevistos, vejo-me impedido de comparecer ao nosso encontro. Saudações respeitosas do amigo At. Obr. Otto Kringelein.

O estilo era de Kringelein, ainda, mas sua ortografia tinha-se modificado um pouco. Na escrita fluente de guarda-livros, haviam-se imiscuído uns traços informes, e os pingos dos ii pareciam querer voar como balões que se desprendem do fio para estourar nos céus, solitários e com um pequenino e trágico estampido que ninguém ouve.

O Dr. Otternschlag ficou com a mão estendida, segurando a carta. O hall era um deserto, cheio de horas infindáveis e vazias. Passou pelo balcão dos jornais, pelas flores, por pessoas que saíam do elevador, pelas colunas, até chegar ao seu lugar habitual. "Horrível", pensou ele. "Terrível. Medonho." As pontas de seus dedos, plúmbeas e cor de fumo, lhe pendiam das mãos, e com o olho cego ele fitava a mulher da limpeza que, em desacordo com os regulamentos, começava a varrer com serragem úmida, em pleno dia, o hall do Grande Hotel.

É intensa a angústia que Kringelein sente, de pé, na sala de provas da enorme alfaiataria para homens. Três elegantes cavalheiros estão ao seu redor, ocupadíssimos, e doze Kringelein deploráveis refletem-se nos espelhos, aproximando-se uns dos outros em ângulos agudos. Um senhor elegante está ao lado, observando Herr Kringelein com as pálpebras meio cerradas, um olhar de conhecedor, e murmurando palavras incompreensíveis. Sentado num banquinho estofado, sob os retratos de artistas de cinema incrivelmente belos, está o Barão Gaigern, batendo as luvas pespontadas na palma da mão, e desviando de Kringelein o olhar, como se se envergonhasse dele.

Começaram a vir à luz coisas lamentáveis, segredos do guarda-livros Otto Kringelein, de Fredersdorf. Seus suspensórios estão rasgados, costurados, rasgados de novo, e finalmente muito mal consertados, com um barbante. O colete, que lhe ficara muito largo, fora ajustado por Anna, que lhe fez nas costas duas pregas costuradas ao enchimento por meio de pespontos.

Kringelein usa as camisas de seu pai, grandes demais para ele, pelo que meteu umas ligas na parte superior dos braços, para arregaçar as mangas compridíssimas. Usa abotoaduras de tempos pré-históricos, redondas, do tamanho de discos de chapa de fogão, tendo no centro uma esfinge de esmalte vermelho diante de uma pirâmide de esmalte azul. A gigantesca camisa é de um tecido grosso de cor indefinível, tendo na frente apenas um pedacinho de zefir listrado, como uma pequena vitrina na fachada principal. Debaixo da camisa de lã espia ainda qualquer outra coisa também de lã, um coletinho já no fio, cerzido com pontos grosseiros. Por baixo disso, um pedacinho de pele de gato, o que parece ser bom contra dores de estômago e calafrios misteriosos. Os cavalheiros elegantes não mudam de expressão — Kringelein teria preferido que fizessem caçoada dele ou o consolassem.

— Nunca me incomodei muito com a moda. Sou um homem antiquado — diz ele em tom implorante, desculpando-se diante da cortesia gelada dos homens. Ninguém lhe responde. Vão lhe tirando as camadas, uma após outra, como de uma cebola. É um tanto cruel o que está sucedendo com Kringelein, completamente indefeso. Pouco a pouco ele vai se sentindo mal, como na sala de operações, pois agora também há uma claridade vítrea nas coisas, e tudo parece estar muito próximo dele. Depois, os três cavalheiros começam a vesti-lo.

Gaigern se anima, e dá conselhos.

— Fique com isso — diz ele; e —, não fique com isso.

Parece que não é possível contrariar as suas decisões. Kringelein olha de lado para os papeluchos com o preço, presos às peças de vestiário, reparando sempre apenas no preço; não ousa fazer perguntas, a princípio, mas por fim se enche de coragem e começa a querer saber os preços.

Assusta-se de tal modo que tem vontade de sair correndo; a sala de provas parece uma cela com quatro guardas severos e paredes de espelho. Kringelein está todo suado, apesar de o terem libertado de seus agasalhos de lã, que estão enrolados num montinho sobre uma cadeira, com um aspecto de ilimitada miséria, repulsivos. De repente, eles deixaram de pertencer a Kringelein; causam-lhe nojo tais peças de vestuário, remendadas, suarentas e de cor indefinível, essa roupa de um pobre-diabo. Mas, de um momento para outro, qualquer coisa se passa com ele. Fica gostando da camisa de seda que o forçaram a vestir.

— Ah! — diz Kringelein, com a cabeça inclinada e a boca aberta, como se fosse ouvir algum segredo. — Ah, ah!

Sua pele se alegra e trava amizade, gostosamente, com a camisa de seda de delicado padrão. O colarinho se ajusta exatamente ao pescoço, não esfrega, não é nem largo nem apertado demais, a gravata nova cai lisa e macia sobre o peito de Kringelein, onde o coração bate agora como em misteriosa festa — forte, um tanto dorido, mas aliviado. Agora colocam diante dele meias e sapatos, com grande solicitude; Gaigern explicou, em poucas palavras, que o senhor diretor está enfermo, e então trazem dos quatro andares da casa de artigos para homens tudo o que um homem distinto precisa para se vestir. Kringelein envergonha-se medonhamente de seus pés; de súbito tem a impressão de que toda a miséria e o aperto da sua vida estão visíveis nesses pés com joanetes crescidos, pelo que procura se esgueirar com as novas meias e botinas para um canto, coloca suas costas curvas entre si mesmo e os outros, como uma parede, e começa, sem nenhuma prática, a lutar com os cordões. Em seguida vestem-lhe um novo terno, escolhido pelo barão.

— O senhor diretor está com uma aparência maravilhosa — diz um daqueles cavalheiros. — Assenta-lhe como se fosse feito sob medida.

— Não é preciso modificar nada — diz o segundo.

— Perfeito. Nós temos poucos fregueses com um corpo tão esbelto — afirma o terceiro.

Empurram Kringelein para a frente do espelho, e o obrigam a girar no seu eixo como se fosse uma boneca de madeira, magra e paciente.


11

 

E, justamente no momento em que Kringelein voltou do espelho para o seu interior, sentiu pela primeira vez, como um pressentimento, que estava vivendo. Sim, tinha a sensação de existir, conhecia-se a si mesmo, com um abalo tão violento como se o atingisse um raio. Nesse momento, um homem estranho, de porte delicado e distinto, aproximou-se dele com expressão confusa, um homem que era ele próprio, de modo extremamente íntimo, o verdadeiro Kringelein, o Kringelein enterrado, de Fredersdorf — mas isso logo passou. No instante seguinte já não era novidade, o milagre da transformação já se dera.

Kringelein respirou profundamente, com energia, porque parecia querer despertar em seu corpo uma dorzinha aguda.

— Acho que este terno me fica bem, não? — perguntou ele, de modo infantil, a Gaigern.

O barão ainda fez mais; aproximou-se e, com suas próprias mãos, grandes e quentes, arrumou o novo terno nos ombros de Kringelein.

— Sou de opinião que este terno é o suficiente — disse Kringelein aos três cavalheiros.

Apalpou o tecido com os dedos, às escondidas, porque entendia bastante de tecidos, isso se sabia em Fredersdorf, mesmo quando só se trabalhava no escritório.

— É um bom tecido; sou conhecedor — afirmou ele, respeitosamente.

— Artigo inglês legítimo. Nós mandamos trazê-lo diretamente de Londres, de Parker Brother & Co. — respondeu o senhor de pálpebras fechadas.

"Preysing não usa tecidos assim", pensou Kringelein. Os ternos de Preysing costumavam ser daquele mesmo tecido sólido de estamenha cinzenta, de que a fábrica ainda possuía um estoque antigo, e todos os anos, pouco antes do Natal, era vendido aos empregados por baixo preço. Kringelein decidiu-se. Tomou posse desse terno, enfiando ambas as mãos nos bolsos novos e limpos.

Seu medo transformou-se repentinamente na felicidade de comprar e de possuir; pela primeira vez na vida Kringelein tem a sensação de vertiginosa leveza que acompanha o ato de gastar dinheiro. Ele passa através dos muros, por trás dos quais ele morou toda a vida. Compra, compra, sem perguntar o preço, vai comprando. Apalpa tecidos, sedas, alisa abas de chapéus, experimenta coletes, gravatas, cintos, coloca uma cor perto de outra e sorve com delícia a combinação harmoniosa de tons.

— O senhor diretor tem um extraordinário bom gosto — diz um dos cavalheiros.

— Um gosto delicado — afirmou o outro —, correto, distintíssimo.

Gaigern assiste a tudo sorrindo, um tanto impaciente, e faz elogios. Caceteado, olha as próprias mãos; a direita está tão vazia, desde que ele deu o anel de sinete de presente... Disfarçadamente, leva-as até o rosto, para ver se ainda conservam um pouco do perfume dessa noite, agridoce, ao mesmo tempo perigo e calma, Neuwjada, a florzinha que cresce nas campinas.

Kringelein compra um terno marrom, muito confortável, de um tecido cardado inglês, uma calça cinza-escura, com delicadas listras claras, que combina com um paletó estreito; compra também um smoking, no qual é preciso mudar apenas alguns botões; roupa de baixo, camisas, colarinhos, meias, gravatas, uma capa igual à de Gaigern, um chapéu macio, espantosamente leve, com a marca dourada de uma firma de Florença, e finalmente, pegando um par de luvas de camurça pespontadas, iguais às de Gaigern, dirige-se à caixa. Ali estão a fazer uma conta amabilíssima — Kringelein fala com rapidez e facilidade, porque ouve o jargão dos livros-caixa, tão seu conhecido, desde o livro-razão ao livro-matriz. Paga mil marcos à vista, e o resto em três prestações.

— Então! — exclamou Gaigern, satisfeito.

Uma fila de dorsos inclinados, numa saudação, acompanha Kringelein, encantado e transformado, até a porta de espelhos da loja. Lá fora faz sol, mas está frio. O ar tem um sabor de vinho gelado, acha Kringelein, de passagem. Até agora ele sempre se arrastou. Agora ele anda. Tem que dar três passos, da entrada da loja de primeira ordem até a limusine cinza-clara, e ergue três vezes, do calçamento da rua, as solas novas dos seus sapatos.

— Está satisfeito? — pergunta Gaigern, rindo-se e dando a deixa. — Está notando alguma coisa? Sente uma sensação agradável?

— Fantástico! Maravilhoso! Ótimo! — replica Kringelein, tomando a expressão de um homem experimentado, sentado ao volante do carro.

Tira os óculos e esfrega com o polegar e o indicador a beirada dos olhos; é um gesto cansado e que lhe é habitual.

Vem-lhe ao pensamento a ideia de que não estará mais vivo, quando vencer a última prestação.

 

Gaigern sentia a impaciência nos dedos, causava-lhe comichão como ácido carbônico, entre as mãos e a direção. Nos cruzamentos das ruas havia lâmpadas vermelhas, verdes e amarelas, guardas que o ameaçavam com a mão, sorridentes. O carro passava em disparada pelas casas, pelas árvores, colunas de cartazes, ajuntamentos de pessoas nas esquinas, pelas carroças de frutas, muros com cartazes e velhas senhoras amedrontadas, que, com passos miúdos, andavam no leito da rua sem observar o sinal de trânsito, velhas senhoras vestidas de preto e de saias compridas, em pleno mês de março. O sol brilhava, úmido e amarelo, no asfalto. Quando um ônibus pesadão impedia o caminho, o carrinho de quatro lugares gritava com duas buzinas; parecia o latido de cães excitados.

Em Fredersdorf havia muita gente que nunca tinha andado de automóvel. Anna, por exemplo, nunca tinha andado de carro. Mas Kringelein estava andando. Apertou os lábios com força, inteiriçou os músculos sob as axilas, e seus olhos ficaram lacrimejantes pelas correntes de ar. Assustava-se nas curvas, e seu coração arfava sob a camisa de seda nova. Era o mesmo prazer medroso da infância, quando na feira anual de Mickenau, no outono, se podia andar de carrossel três vezes seguidas, por um groschon.

Kringelein arregalava os olhos para ver Berlim, que rapidamente se entremostrava sob aspectos deformados. Ainda se recordava bem da grande cidade. A Porta de Brandenburgo, por exemplo, reconheceu-a de longe, assim como a Gedaechtniskirche, à qual dirigiu um olhar respeitoso.

— Para onde estamos indo? — gritou ele ao ouvido direito de Gaigern. O ronco do motor lhe parecia fortíssimo, e ele se sentia no meio de estrondos e de uma tempestade.

— Para os arredores da cidade, a fim de almoçar. Para lá do Avus — respondeu Gaigern com jovialidade.

A rua parecia penetrar dentro do carro, cada vez com mais velocidade. Chegaram às proximidades da torre da emissora. Kringelein já estivera ali no dia anterior, com o Dr. Otternschlag, numa noite nublada, cansado, impossibilitado de receber novas impressões. Os estranhos átrios, lisos, novos e por terminar, na parte exterior, o haviam acompanhado nos sonhos e, agora, a realidade e o sonho se apresentavam em duas camadas sobrepostas, um tanto ameaçadoras e incompreensíveis.

— Ainda vão terminar isso? — gritou Kringelein apontando para os átrios da exposição.

— Já está pronto — foi a resposta.

Kringelein admirou-se. Era tudo nu como uma fábrica, mas não feia, como a de Fredersdorf.

— Que cidade engraçada — exclamou ele, sacudindo a cabeça e ficando ainda mais vesgo.

Levou um choque com um solavanco do carro, e a pele do seu crânio se encolheu, mas foi coisa sem importância. É que Gaigern havia parado na porta norte do Avus, e em seguida continuaram de novo a viagem.

— Agora nós vamos mesmo — afirmou Gaigern; e, antes que Kringelein pudesse perceber do que se tratava, ele partiu.

Começou com uma corrente de ar que foi esfriando lentamente, e que batia contra o rosto de Kringelein cada vez com mais força, como bofetadas. O carro começou a cantar com um som grave que se foi elevando, e ao mesmo tempo aconteceu uma coisa pavorosa com as pernas de Kringelein. Ele tinha a sensação de que elas se enchiam de ar, cujas bolhas lhe subiam aos joelhos, que pareciam querer estourar. Por vários segundos incríveis ele não podia respirar mais, e durante um instante pensou que iria morrer.

— Isto é a morte. Vou morrer.

Com o peito comprimido, aspirava o ar com dificuldade; o carro deslizava por coisas irreconhecíveis, vermelhas, verdes, azuis; árvores que se atiravam de encontro aos seus óculos; depois, um ponto vermelho se transformou em um automóvel e, logo a seguir, caiu no vazio, por trás do seu carro — e Kringelein continuava sem conseguir respirar. Seu diafragma conhecia agora novas sensações, nunca antes imaginadas. Kringelein tentou virar o rosto em direção a Gaigern, e, vejam só, conseguiu virá-lo sem se machucar. Gaigern estava meio inclinado sobre a direção, e tinha calçado as luvas de camurça, mas sem abotoá-las; por qualquer motivo, isso dava a sensação de calma e ausência de perigo. Justamente quando o pedacinho de estômago que restava a Kringelein queria começar a subir à garganta, Gaigern se pôs a rir com os lábios fechados. Apontou com o queixo, sem tirar os olhos do fuso sibilante da estrada do Avus, para um lugar qualquer, e Kringelein lançou um olhar obediente. Como não era tolo, compreendeu, após refletir um pouco, que havia sido o marcador dos quilômetros, diante dele. O ponteirinho vibrava de leve, mostrando o número 110. "Que diabo!", pensou Kringelein. Engoliu seu amedrontado pomo-de-adão e inclinou-se para a frente, entregando-se ao impulso da velocidade. Súbito tomou posse dele o prazer da sensação de perigo, um prazer penetrante e assustador. Mais depressa! pedia dentro dele um novo Kringelein, desconhecido e delirante. O carro concordou: 115. Durante alguns segundos parou nos 118, e Kringelein desistiu, de uma vez, de respirar. Tinha vontade de se precipitar, sibilando, nas trevas. "Avante, para a frente, explosão, choque, ponto final da corrida desenfreada!", era o pensamento que lhe ocorria. "Nada de leito de hospital," pensou; "é preferível uma fratura no crânio." À passagem do carro, em disparada, ainda continuavam a bramir os anúncios; as distâncias entre eles foram aumentando; depois, os trapos cinzentos ao lado da estrada se transformaram em bosques de pinheiros. Kringelein via árvores que se iam aproximando e em seguida se desviavam do carro. Era como no carrossel de Mickenau pouco antes de parar. Nas tabuletas de anúncios ele lia agora nomes de marcas de óleos, de pneus e de automóveis; a correnteza de ar tornou-se mais branda, e deslizava por sua garganta adentro. O ponteiro caiu para 60, a agulha oscilou um instante ainda, entre 50 e 45, e eles deixaram o Avus pela porta sul, desfilando burguesmente por entre as villas do Wannsee.

— Puxa, agora me sinto mais leve! — disse Gaigern, abrindo o rosto num sorriso. Kringelein tirou as mãos das almofadas de couro em que se agarrara até então, e foi relaxando com todo o cuidado os músculos contraídos das mandíbulas, dos ombros e dos joelhos. Sentia-se completamente exausto e absolutamente feliz.

— Eu também — respondeu ele, e estava dizendo a verdade.

Falou muito pouco enquanto estiveram sentados no terraço envidraçado, completamente vazio, de um restaurante à margem do Wannsee, olhando os barcos a vela cobertos com lonas, balançando à tona da água. Precisava refletir sobre a sensação que experimentara, o que não era assim tão fácil. "O que é a velocidade?", pensou. "Não a vemos nem tocamos, e isso de medi-la deve ser uma impostura. Como é possível que ela vá passando, e seja mais linda do que a música?" Ainda sentia tudo girando, mas era uma sensação agradável. Tinha trazido o frasquinho de Bálsamo de Vida do Dr. Hundt, mas não tomou o remédio.

— Preciso agradecer-lhe este passeio maravilhoso — disse ele, procurando com ar solene expressões escolhidas, de acordo com os ambientes em que estava vivendo agora.

Gaigern, que só comia alimentos baratos, espinafre com ovos, sacudiu a cabeça: — Eu me divirto com essas coisas — disse ele. — O senhor sente isso pela primeira vez. É raríssimo encontrarmos pessoas que tenham uma sensação pela primeira vez...

— Mas o senhor também não dá a impressão de ser um homem blasé, se me permite esta observação — replicou Kringelein com desembaraço.

Já se sentia à vontade em suas novas roupas, já estava em casa dentro da sua camisa de seda; sentava-se de outra maneira, comia de outra maneira, e suas mãos, que lhe pareciam mais delgadas, avançando pelos punhos da camisa, com as unhas feitas por uma bonita manicura, no subterrâneo do hotel, lhe davam enorme prazer.

— Meu Deus do céu, eu, blasé? — exclamou Gaigern, satisfeito. — Não. De modo nenhum. Mas é que gente como eu tem uma vida cheia. — Não pôde deixar de sorrir. "O senhor tem razão. Para gente como eu também existem coisas inteiramente novas, que se experimentam pela primeira vez, coisas engraçadas...", acrescentou consigo mesmo.

Bateu de leve seus bonitos dentes uns nos outros, pensando na Grussinskaia. Seus ossos estavam cheios de ávida impaciência. O tempo que tinha de esperar para que pudesse ter de novo em seus braços a figurinha delicada, tão necessitada de amparo, e ouvir novamente seu gorjeio tristonho de passarinho, parecia-lhe uma extensão imensurável e deserta. Deu um prazo de três dias a si próprio, sapateando, interiormente, de impaciência, para arranjar de qualquer modo alguns milhares de marcos que acalmariam seus companheiros e lhe facultariam a viagem a Viena. Por enquanto, empenhava-se, com a maior amabilidade, em agradar Kringelein, com a esperança em qualquer solução favorável.

— E agora, qual é a continuação do programa? — perguntou Kringelein, dirigindo para ele uns olhos fiéis e agradecidos. Gaigern simpatizava com esse provinciano calmo, sentado diante dele como uma criança durante a distribuição dos presentes de Natal. A amabilidade e a simpatia humanas estavam de tal modo enraizadas na personalidade de Gaigern, que suas vítimas recebiam sempre uma boa parte do seu calor.

— Agora vamos voar — disse ele, com o tom acalentador de uma ama de leite. — É muito agradável e não tem o menor perigo, é muito menos perigoso do que uma corrida desenfreada de automóvel.

— Corremos perigo, há pouco? — - perguntou Kringelein, admirado.

O medo que sentira parecia-lhe agora quase um prazer, depois de vencido.

— Sem dúvida — afirmou Gaigern. — Cento e dezoito quilômetros não é brincadeira, e a estrada estava úmida... Parece incrível que, com um tempo destes, ela fique tão escorregadia. Não há dúvida de que o carro corre sempre o risco de derrapar. A conta — disse, voltando-se com cortesia para o garçom, e pagando seu espinafre com ovos. Sobravam-lhe na carteira apenas vinte e quatro marcos.

Kringelein também pagou; havia tomado apenas umas colheradas, de sopa, porque não confiava ao seu estômago coisas excitantes e indigestas. Quando meteu no bolso a carteira que trouxera ainda de Fredersdorf, teve a visão fugaz e agora pouco importante do seu caderno de despesas, com capa de oleado. Até esse dia havia anotado suas despesas, Pfennig por Pfennig, desde os nove anos de idade, em caderninhos assim. Agora acabou-se. Nunca mais faria isso de novo. Mil marcos numa tarde não era possível anotar. Uma parte da ordem do mundo concebida por Kringelein tinha se destruído, numa derrocada silenciosa e sem estardalhaço. Kringelein, que Gaigern foi seguindo pelo terraço vazio do restaurante até o carro, movia os ombros com delícia, sob o novo sobretudo, o novo terno e a nova camisa. Agora, por onde quer que ele passasse, havia indivíduos que se inclinavam. "Bom dia, senhor diretor-geral", pensou ele, vendo-se colado a uma parede, a parede caiada de verde-cinza do segundo andar dos escritórios de Fredersdorf. Guardou no bolso os óculos ao sentar ao lado de Gaigern, expondo os olhos nus à fresca e cintilante atmosfera de março, e com um vivo sentimento de simpatia e de confiante gratidão ouviu o ruído do motor.

— A Chaussee ou o Avus de novo? — perguntou Gaigern.

— O Avus, de novo — respondeu Kringelein. — E na mesma velocidade — acrescentou em voz baixa.

— Ah!... O senhor tem coragem — disse Gaigern, pondo o pé no acelerador.

— É... coragem eu tenho — respondeu Kringelein, com os músculos tensos e o corpo inclinado para a frente, de lábios entreabertos, preparado para entregar-se inteiramente à vida.

 

Kringelein, debruçado na grade branca e vermelha do aeroporto, procura habituar-se a esse mundo assombroso que, desde a manhã desse dia, vem ao encontro dele. Ontem — há um século — ele subia no elevador, para ir ao restaurante da torre da emissora, fatigado, sonolento, imerso em sonhos; não estava se divertindo, e os comentários pessimistas do Dr. Otternschlag ainda tornavam tudo mais problemático e fantasmagórico. Anteontem — há mil anos — ele era um auxiliar de guarda-livros no escritório de contabilidade da Algodoeira Saxônia S.A., de Fredersdorf, um empregadinho enfezado, entre trezentos outros empregadinhos enfezados, de terno de sarja cinzenta e com um ordenado minguado, do qual era preciso tirar ainda o desconto para a Caixa de Previdência. Hoje, agora, ele está à espera do piloto que, por um alto preço, vai levá-lo em um enorme voo circular, em viagem especial. É um desses pensamentos impossíveis de serem levados até as últimas consequências, apesar de Kringelein se sentir animado e concentrado como nunca.

É uma enorme mentira, a sua coragem. Tem um medo de cão, um medo horrível do divertimento que o espera. Ele não quer voar, não quer voar de modo algum. Tem desejos de voltar para casa — não, para Fredersdorf não, mas para o hotel, para o seu quarto 70, com os móveis de mogno e a colcha de seda; gostaria de estar deitado e não precisar voar.

Quando Kringelein saiu de casa para ir à procura da vida, pairava diante dele uma ideia nebulosa e informe; mas era uma coisa acolchoada e fofa, com pregueados e franjas, e arabescos enormes; leitos macios, pratos cheios, mulheres sensuais, em quadros e reais. Agora, que está experimentando a vida, e que, aparentemente, mergulhou em cheio nela, tudo se apresenta sob um aspecto diferente; é preciso satisfazer a uma série de exigências, a ventania corta-lhe as orelhas, e é preciso forçar paredões de angústias e de perigo para conseguir chegar a uma doce e embriagante gota de gozo da vida. "Voar", pensa Kringelein. Ele conhece a sensação do voo que se tem em sonhos. Seu sonho se apresenta assim: Kringelein se encontra no tablado da sala de Zickenmeyer; ao seu redor está o coral da associação, e ele canta um solo. Ouve sua bonita voz de tenor, canta notas agudas, cada vez mais agudas, cada vez mais. É facílimo, ele não precisa fazer nenhum esforço, é um prazer puro, fácil e naturalíssimo.

Finalmente, ele se deita no som mais agudo e suave, e voa sobre ele, acompanhado pela música das nuvens. A Associação Coral o acompanha com o olhar; primeiro, ele sobrevoa ainda abaixo do telhado local de Zickenmeyer, depois voa completamente só, à sua volta não se vê mais nada, e só bem no finzinho ele percebe que tudo não passou de um sonho, e que precisa voltar ao seu leito matrimonial, onde Anna dorme o sono deletério dos seus quarenta anos maltratados e rixentos. A queda é medonha, e o despertar é um grito na escuridão do quarto abafado, com as pequeninas vidraças, os armários cheirando a naftalina e o pequeno fogareiro de ferro, apagado, com uma panela cheia de água em cima.

Kringelein põe-se a piscar. "Voar", pensa ele retornando ao Aeroporto de Tempelhof. Ali também há cores fortes, como na torre da emissora e ao longo do Avus; amarelo, azul, vermelho e verde, em tons bem vivos. Torres misteriosas erguem-se no ar, tudo é simples e econômico, um vento cheio de poeira sopra sobre as manchas de asfalto do outro lado da grade, e as sombras das nuvens se apressam, para atingir a pista de decolagem. O pequeno aparelho que vai decolar já está pronto, três homens estão atarefados em torno dele; o motor ronca, sua hélice gira apenas por brincadeira. Diante de suas rodas baixas há uns blocos, suas asas prateadas, com estrias, estão vibrando. Outros pássaros pousam, saudados pelos gritos roucos de uma sereia — é assim que a fábrica de Fredersdorf chama, às sete horas da manhã — ou talvez tudo isso tenha sido apenas um sonho?... Outros pássaros se elevam, baixam pesados à terra, e erguem-se, muito leves, ao ar, ora cor de chumbo prateado, ora dourados, com firmes asas de madeira, e outros ainda, brancos, enormes, com quatro asas, e três hélices girando. O campo de pouso é tão grande, tão estranhamente silencioso... Os homens que estão ali são todos esbeltos, queimados de sol, alegres e calados, envolvidos em seus ternos folgados e seus barretes justos. Só os aparelhos têm voz, e latem com um latido rouco, como cães enormes, quando vão rodando sobre o campo.

Gaigern aproxima-se com o piloto, um senhor amável, com as pernas em O de antigo oficial de cavalaria.

Gaigern parece um cliente habitual, todos o cumprimentam e o conhecem.

— Vai partir logo — anuncia Gaigern. Kringelein, que já sabe por experiência própria o que significa o "partir" de Gaigern, leva um susto. "Socorro", pensa ele, "socorro, não quero voar!", mas não o diz, de forma alguma.

— Já vamos decolar? — perguntou com ar de homem experimentado, orgulhando-se da palavra que está usando pela primeira vez na vida.

Depois, Otto Kringelein senta-se, amarrado pela cintura com uma correia, em uma cômoda cadeira de couro, e arregala os olhos para o céu azul-cinza de março. Ao seu lado está Gaigern, assobiando baixinho, e isso o consola, nesse momento de debilidade total.

No começo, não é diferente de uma viagem de automóvel, aos solavancos; depois, o aparelho começa a fazer um ruído, rápido, infernal. De repente bate no solo com um solavanco, para trás, e eleva-se no ar. Não paira no espaço, tem mais dificuldades do que o tenor Kringelein, a cantar e a voar no seu sonho; o aparelho salta por impulsos no ar, como sobre degraus de vácuo; salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai. Agora a sensação desagradável não é nas pernas, como na viagem a cento e vinte quilômetros por hora, mas na cabeça. Os ossos do crânio de Kringelein zumbem, tornam-se muito delgados, completamente vítreos, de modo que ele precisa fechar os olhos por um momento.

— Está enjoado? — pergunta Gaigern gritando em seu ouvido, pensando se seria possível, ali no avião, conseguir que Herr Kringelein lhe desse cinco mil marcos, ou mesmo três mil, ou que seja tudo pelo amor de Deus, cento e cinquenta que fossem, que já dariam para pagar a conta do hotel e a viagem até Viena. — Está se sentindo mal? Acha que basta de voar? — pergunta ele com muita cortesia.

Kringelein faz um violento e corajoso esforço para dominar-se, e responde um animado "não". Abre os olhos, a cabeça zune, vítrea; prende-os primeiro ao chão do avião, como a um ponto firme, depois vai subindo, até chegar à vidracinha oval da parede fronteiriça. Lá estão de novo os números e as agulhas trêmulas. O piloto vira o rosto de traços fortes para trás, e sorri para Herr Kringelein como para um bom amigo e camarada. Kringelein recebe esse olhar como um tônico e uma honra.

— Trezentos metros de altitude, cento e oitenta de velocidade! — grita Gaigern ao seu ouvido, que zune e crepita.

De repente, tudo se torna macio, leve e liso. O aparelho não se eleva mais, vai cantando com a voz metálica dos seus motores, fazendo uma curva, deslizando como um pássaro sobre a cidade, agora pequenina. Kringelein cria coragem e olha para fora.

Primeiro vê as asas estriadas, expostas ao sol, que parecem ter criado vida, e, bem embaixo, Berlim, dividida em quadradinhos, cúpulas verdes, uma ridícula estação, em meio à exposição de brinquedos. Uma manchinha verde é o jardim zoológico, uma manchinha cor de chumbo, com quatro pontinhos brancos de velas, é o Wannsee. Os limites do pequenino mundo ficam bem longe, o terreno vai subindo em suaves elevações, há também montanhas, florestas, terras lavradas pardacentas, Kringelein abre num sorriso infantil os lábios comprimidos. Está voando. Conseguiu suportar o voo. Sente-se muito bem, e tem uma sensação diferente de si próprio, enérgica e nova. Pela terceira vez lhe acontece, nesse dia, perder o medo, e ver esse medo transformar-se em prazer.

Toca de leve no ombro de Gaigern, e em resposta ao seu olhar inquiridor diz qualquer coisa que o ruído dos motores devora.

— Não é tão mau assim — respondeu Kringelein. — Não é preciso ter medo, não é nada mau.

Com essas palavras, Kringelein refere-se não só à conta elevada do alfaiate, à viagem ao longo do Avus e ao voo — mas a tudo isso junto, e mais alguma coisa; é que ele vai morrer em breve e, com a morte, afastar-se desse pequeno mundo, abandonar o grande medo, elevar-se, se for possível, acima dos aviões.

 

As ruas por trás do campo de Tempelhof, quando eles vieram de volta, falaram ao coração do novo Kringelein. Assemelhavam-se às melancólicas ruas de Fredersdorf, com as chaminés crescendo por trás dos caminhos, e ele alargou as narinas para sentir o cheiro de cola da seção de imprensagem dos tecidos. Com vivacidade duplicada, ele sentia, ao avistar essas pobres ruas, que usava um sobretudo novo, e se encontrava num automóvel. Procurou palavras que exprimissem esse duplo sentimento, mas não encontrou. Somente na porta do hangar ele se animou de novo — tiveram de esperar meio minuto —, o vôo ainda lhe pesava nos membros como uma silenciosa mas forte embriaguez, e, ansioso e amável, perguntou:

— Quais são agora os planos do senhor barão?

— Agora preciso cuidar de negócios particulares, no hotel. Tenho um encontro às cinco horas. Venha comigo, vou dançar um pouquinho — acrescentou ao perceber nos olhos de Kringelein uma expressão de desânimo e de real aflição.

— Muitíssimo obrigado. Acompanho-o de bom grado. Gosto de ver os outros dançar. Infelizmente não sei dançar.

— Ora, qual! Qualquer pessoa sabe dançar! Kringelein foi pensando nisso até chegarem à Friedrichstrasse.

— E depois? Que se poderia fazer depois? — perguntou insistente, na sua insaciabilidade.

Gaigern não deu resposta, mas acelerou a marcha até o próximo solavanco, quando travou o freio diante da lâmpada vermelha da Leipzigstrasse.

— Diga uma coisa, senhor diretor — perguntou ele, durante a parada do carro. — O senhor é casado ou não?

Kringelein ficou a refletir por tanto tempo que, enquanto isso, as lâmpadas amarela e verde se acenderam, e já estavam de novo a caminho, quando ele respondeu:

— Fui casado. Já fui casado, senhor barão. Separei-me de minha mulher. Pois é. Conquistei a liberdade, se posso falar assim. Há casamentos, senhor barão, em que cada cônjuge é um peso para o outro, um chega a enojar-se do outro, não pode ver a cara do outro sem se enfurecer. Não podemos ver o pente com os fios de cabelo da mulher, de manhã cedo, sem que isso nos estrague o dia; isso não é justo, é claro, ela não tem culpa de que seus cabelos caiam... Ou quando se quer ler um pouco à noite, a mulher se põe a falar sem parar, e quando não fala, canta na cozinha. E se a gente gosta de música, essa gritaria nos deixa doente. E toda noite, quando a gente está cansado, e quer ler, ouve-se a mesma cantilena: "Vá cortar lenha para amanhã cedo". Custa apenas oito Pfennige a mais cada feixe de lenha picado, o que faz dois Pfennige por dia, mas isso não é possível, de modo nenhum. "Você é um gastador", diz a mulher, "se a gente fosse pela sua cabeça, acabaria esticando as canelas." E olhe que o sogro tem um armazém que a mulher vai herdar, de modo que ela está com o futuro garantido. Então achei melhor conquistar minha liberdade. Minha mulher nunca combinou comigo, essa é a verdade, porque eu sempre gostei das coisas boas, e isso ela nunca me pôde perdoar. Quando meu amigo Kampmann me deu de presente cinco velhas coleções da revista Kosmos, minha mulher vendeu-as como papel velho; recebeu por elas catorze Pfennige. É este o retrato acabado dessa mulher, senhor barão. Agora eu me separei dela. Não faz muita diferença, umas semanas a mais ou a menos, já que ela tem mesmo que se arranjar sem mim. Então ela poderá ir de novo às lojas, vender aos empregados solteiros arenques enrolados e salsichas para o jantar. Foi assim que eu a conheci. Talvez ainda encontre outro trouxa. Quando me casei com ela, eu era completamente idiota, não fazia nenhuma ideia da vida, nenhuma ideia do que é uma mulher. Desde que cheguei a Berlim, e estou vendo tantas senhoras lindas, elegantes e amáveis, é que meus olhos estão se abrindo. Mas para essas coisas já é tarde demais.

 

Tal confissão, que partiu do fundo do coração de Kringelein, durou desde a Leipzigstrasse até a Unter den Linden.

— O dia inteiro não é noite — replicou Gaigern, meio distraído, porque estava atravessando um trecho difícil do caminho, na Porta de Brandenburgo, e diante dele seguia um chofer que não sabia dirigir. A atmosfera de uma cozinha minúscula e miserável, que se evolava das palavras de Kringelein, o sufocava, tirando-lhe o entusiasmo com que ele estivera prestes a pedir emprestados três mil marcos.

Esse Kringelein de camisa de seda, que andava de automóvel, teria também de boa vontade retirado parte daquilo que revelara com as suas palavras.

— Então nós vamos dançar — disse ele com desembaraço, para disfarçar. — Ficarei gratíssimo, se o senhor barão me tomar sob sua proteção. E que se poderia fazer à noite?

Kringelein tinha a esperança oculta de receber uma resposta que correspondesse a desejos irrealizados dentro de si, alguma coisa semelhante a certos quadros de museus, porém mais palpável, o que, nos jornais que ele lia, denominavam orgia. Tinha o pressentimento de que homens distintos da cidade guardavam a chave e a entrada de coisas assim. No dia anterior o Dr. Otternschlag havia acedido ao seu vago desejo de feminilidade, levando-o ao bailei da Grussinskaia. Pois é. Isso — julgava Kringelein — tinha sido errado; o ballet era lindo, mas poético, comovente, e demasiado maravilhoso; ficava-se cansado, com sono, sentimental, e finalmente sentia-se dor de estômago. Mas hoje...

— A melhor coisa que o senhor poderá fazer hoje é ir comigo à grande luta de boxe no Sporthalle — disse Gaigern. — Vamos ver se o porteiro ainda tem entradas.

— Não me interesso muito por boxe — respondeu Kringelein, com o orgulho do leitor do Kosmos.

— Não se interessa? O senhor já assistiu a alguma luta? Então! Pois vá, que há de se interessar — garantiu Gaigern peremptoriamente.

— O senhor também vai, senhor barão? — perguntou Kringelein, afobado. Sentia-se muito bem disposto, depois da viagem de automóvel e do voo, animado e enérgico, preparado para o que desse e viesse, mas tinha a impressão de que despencaria como uma arvorezinha de borracha no instante em que o barão o abandonasse.

— Tenho uma vontade louca de ir também — replicou Gaigern. — Mas infelizmente não posso. Não tenho dinheiro.

Nesse ínterim haviam se afastado das ramagens floridas do jardim zoológico, e a fachada do hotel já aparecia, lá embaixo. Gaigern deixou a velocidade cair para doze quilômetros, a fim de dar tempo a que Herr Kringelein se manifestasse. Kringelein ficou a remoer a observação sorridente de Gaigern. Pararam defronte ao portão 5, subiram, e ele não conseguira se livrar daquilo.

— Vou levar o carro à garagem! — exclamou Gaigern, depois que fez Kringelein descer do carro, com as pernas um tanto rijas e adormecidas; por fim desapareceu na esquina.

Kringelein meteu-se, pensativo, na porta giratória, cujo mecanismo já não o deixava mais estupefato. "Não tem dinheiro", pensou ele. "Está sem dinheiro. É preciso fazer alguma coisa."

Rohna, o porteiro, os boys, e até o maneta do elevador, notaram a transformação que ele sofrerá, mas, discretamente, não o deram a perceber. O hall, de onde se evolava um aroma de mokka, estava repleto de pessoas que conversavam. O relógio marcava quatro horas e cinquenta minutos. O Dr. Otternschlag estava sentado em sua habitual cadeira maple, tendo ao lado, no solo, uma pilha de jornais. Fitou Kringelein com uma expressão indefinível de ironia e tristeza. Kringelein, não muito seguro de si, aproximou-se dele e estendeu-lhe a mão.

— O novo Adão — observou Otternschlag sem lhe estender a sua, que estava fria e úmida, o que o tornava tímido. — A borboleta saiu do casulo. E por onde esteve voando, se me permite perguntar-lhe?

— Fiz umas compras. Fui passear de automóvel pelo Avus, almocei no Wannsee. Depois fiz um voo de avião — respondeu Kringelein. Seu tom de voz, ao falar com Otternschlag, mudara um pouco, sem que ele próprio o percebesse.

— Magnífico — disse Otternschlag. — E agora?

— Às cinco tenho um encontro. Vou dançar. — Ah! e depois?

— Depois, estou com vontade de ir a uma grande luta de boxe, no Sporthalle.

— Ah, é? — retorquiu Otternschlag. Disse apenas isso. Pôs o jornal diante dos olhos e começou a ler, ofendido. Na China houvera tremores de terra, mas a bagatela de quarenta mil mortos não bastava para fazer desaparecer o aborrecimento de Otternschlag.

Quando Gaigern chegou ao segundo andar para trocar de roupa, encontrou Kringelein diante da porta de seu quarto, à sua espera.

— Então? — perguntou impaciente. Pouco a pouco lhe atacava os nervos estar preso a esse homenzinho exótico.

— O senhor barão estava caçoando de mim ou é verdade que está em dificuldades financeiras? — perguntou Kringelein, repentinamente. Foi uma das frases mais difíceis que jamais pronunciou, e apesar de a ter preparado de antemão, disse-a gaguejando.

— É a absoluta verdade, senhor diretor. Estou arrasado, com um azar dos diabos, só tenho no bolso vinte e dois marcos e trinta Pfennige, e amanhã sou obrigado a enforcar-me no jardim zoológico — disse Gaigern, abrindo o rosto bonito em um largo sorriso. — Mas o pior de tudo é que preciso estar em Viena dentro de três dias; apaixonei-me por uma mulher, sabe, de um modo incrível, uma paixão fulminante, e tenho que acompanhá-la por onde ela andar. E estou numa pendura completa. Se pelo menos alguém me emprestasse algum dinheiro que desse para eu arriscar hoje no jogo...

— Também estou com vontade de jogar — observou Kringelein, pressuroso, com verdadeiro entusiasmo. Sentiu de novo a sensação dos cento e vinte quilômetros por hora, do voo do avião, e disparou, zunindo, pelo espaço infindável.

— Tiens! Eu vou buscá-lo no Sporthalle, e vamos a um clube elegante. O senhor arrisca mil marcos e eu vinte e dois! — exclamou Gaigern. Dizendo isto, fechou a porta do seu quarto e deixou Kringelein sozinho, do lado de fora. Por enquanto estava farto dele. Atirou-se, vestido, para cima da cama, e fechou os olhos. Foi tomado de um sentimento de desânimo e enfado. Procurou recordar-se da menina do cachinho louro na testa, com quem tinha marcado um encontro às cinco horas, no pavilhão amarelo, mas não o conseguiu. Apresentava-se sempre uma outra recordação, o abajur da Grussinskaia, a grade do balcão, uma nesga do Avus, uma nesga do campo de aviação, o suspensório rasgado de Herr Kringelein. "Dormi pouco hoje à noite", pensou ele, acalorado, contente e com os nervos frouxos. Caiu num sono de três minutos, num saco de trevas e de restauração, como aprendera a fazer na guerra. Uma camareira bateu à porta, despertando-o; era uma carta de Kringelein.

 

Prezado senhor barão!, escrevia Kringelein. Permitiria que o abaixo-assinado o considerasse hoje à noite seu convidado, e ao mesmo tempo me faria a fineza de aceitar o insignificante empréstimo que junto a esta? Peço-lhe apenas que me mande um recibo. Seria uma honra para mim poder ser-lhe útil, e, no meu caso, o dinheiro já nada significa. Cumprimentos respeitosos do seu

Amgo. Crdo. Obr.

Otto Kringelein Anexo: uma entrada

duzentos marcos.


12

 

O envelope com o endereço do hotel continha um bilhete alaranjado para a luta de boxe no Sportpalast, e duas cédulas amarrotadas de cem marcos, numeradas a tinta num dos cantos. Na assinatura de Kringelein faltavam os pingos nos ii. Ele os perdera definitivamente no turbilhão insano que o arrastara nesse dia memorável.

Preysing, com os ossos ocos e vazios, ficou no hall depois de terminada a conferência, depois de assinado o contrato prévio, e da despedida do Dr. Zinnowitz, desejando-lhe felicidade e sorte. A sensação de uma grande vitória, a consciência de haver passado um blefe nos cavalheiros da Chemnitz, a tensão nervosa de discursar e de vencer sob uma base insegura, tudo isso era completamente novo para o diretor-geral, e o transportou a um estranho estado de atordoamento, nada desagradável. Olhou para o relógio do hotel — já passava das três horas —, encaminhou-se mecanicamente para a cabina telefônica, a fim de pedir uma ligação com a fábrica, e depois demorou-se bastante no banheiro dos homens, deixando escorrer água quente pelas mãos, enquanto se olhava no espelho com um sorriso idiota. Passou por último à sala de refeições, que estava quase vazia, e escolheu o menu sem prestar atenção; durante os dois minutos de espera até chegar o consommé, impacientou-se e pôs-se a fumar um charuto, que lhe pareceu delicioso, acima de qualquer crítica. Enquanto observava a lista dos vinhos, trauteou uma melodia, e sentiu desejos bem definidos de beber vinho doce, que aquecesse a língua; encontrou um Wachencheimer Mandelgarten 1921, que lhe pareceu prometedor. Pouco depois surpreendeu-se a sorver ruidosamente a sopa; quando ficava distraído, acontecia-lhe, por vezes, praticar algum mau costume do começo da sua vida. Sentia que estava numa situação feliz, mas de imprevisíveis consequências. O embuste — ele próprio usava essa expressão forte, que o transportava estranhamente a uma nova espécie de sensação de orgulho — que ele usara durante a conversação só poderia valer, no melhor dos casos, por três dias. Nesses três dias era preciso acontecer alguma coisa, se não quisesse sofrer as consequências de uma catástrofe. A assinatura do contrato prévio poderia ser retirada dentro de catorze dias. Preysing, que vertera depressa demais, pela goela seca, os dois primeiros copos do vinho frio e excitante, adoçado pelo sol, ficou meio tonto, e, em meio à sua tontura, viu a chaminé principal da fábrica explodir, separando-se em três pedaços. Isso não tinha importância, era uma reminiscência de um sonho que Preysing, a intervalos regulares, costumava ter. Estava comendo o peixe, quando um groom gritou "Chamada interurbana para Herr Preysing!" por entre o burburinho da discreta sala de refeições. Preysing ainda engoliu rapidamente um gole de vinho e dirigiu-se à cabina telefônica 4. Esqueceu-se de acender a luz, e na escuridão postou-se diante do fone com a sua mais férrea expressão de diretor da fábrica, famosa em Fredersdorf. Por entre o assobio agudo de um pequeno desarranjo na linha, anunciou-se Fredersdorf.

— Com Herr Broesemann — disse o diretor-geral, com a voz inexpressiva que usava no desempenho de suas funções. Demorou meio minuto até que encontrassem o gerente. Preysing considerou uma ofensa essa demora, e bateu com o salto do sapato no assoalho.

— Puxa... finalmente! — exclamou ele, quando Broesemann atendeu.

Adivinhavam-se, através do telefone, as curvaturas de Broesemann, e Preysing as recebeu como um merecido tributo.

— O que há de novo, Broesemann, além do telegrama inútil de ontem? Não... ao telefone não, sobre isso falaremos depois. Por enquanto eu me esforço por considerar esse assunto como inexistente, compreendeu? Ouça, Broesemann, agora eu quero falar com o velho. Está dormindo? Sinto muito, é preciso acordá-lo. Não, sinto muito. É, sim, imediatamente. Até logo, Broesemann. Não, as outras ordens o senhor as receberá por escrito. Estou esperando.

Preysing ficou à espera. Arranhou a tábua da estante do telefone com as unhas, tomou a caneta-tinteiro e pôs-se a tamborilar com ela na parede, pigarreou, e seu coração disparou triunfalmente, com batidas claras e definidas. O bocal do telefone, diante de sua boca, cheirava a desinfetante e, ao passar a mão por ele na escuridão, sentiu que a beirada estava lascada. Então o velho falou, lá de Fredersdorf.

— Alô, bom dia, papai, desculpe incomodá-lo. A conferência durou até agora, pensei que o senhor se interessaria em saber logo do resultado. Trata-se do seguinte: o contrato prévio está assinado... não, assinado, assinado ... — disse ele gritando, porque o velho tinha o teimoso costume de fingir-se mais surdo do que era realmente.

— Difícil, o senhor acha? Ora, mais ou menos. Obrigado, obrigado, não preciso de aplausos. Ouça, papai: preciso viajar imediatamente para Manchester; é, é absolutamente necessário, absolutamente. Vou para Manchester, bom, bom, eu lhe escrevo a esse respeito com mais pormenores. Como? O senhor está satisfeito? Eu também. Sim, senhorita, terminei. Até logo.

Preysing continuou na cabina escura, e só então se lembrou de apertar o botão da lampadazinha. "Mas, que história é essa?", pensou, espantado. "Como é que vou viajar para Manchester? Como foi que essa ideia me ocorreu? É isso mesmo... vou para Manchester. Aqui eu aguentei firme, lá também vou aguentar. É muito simples. Muito simples", pensou ele, sentindo-se novamente mais seguro de si, e enfunando-se como um balão. Um êxito casual, insignificante e incerto, transformara um homem hesitante, de terno de sarja cinzenta, em um sujeito empreendedor e aventureiro, de princípios vacilantes e dúbios.

— A ligação custa nove marcos e vinte — avisou a telefonista.

— Ponha na conta — respondeu Preysing, caminhando imerso em pensamentos.

Sentia uma estranha antipatia em falar com Mulle. Na sala de refeições de sua casa fazia agora um calor excessivo; Mulle gostava de quartos bem aquecidos; Preysing teve a impressão de que a sala de refeições de Fredersdorf cheirava a couve-flor; teve a impressão de ver nas faces cheias e sonolentas de Mulle a marca vermelha das pregas do travesseiro, no momento em que ela segurava o fone, após a sesta. Não se decidiu. Não a chamou. Voltou à sala de refeições, onde, entretanto, um garçom perfeito colocara para ele o vinho no gelo, e pratos limpos e aquecidos sobre a mesa.

Preysing comeu, esvaziou seu copo de vinho, acendeu o charuto e, com as têmporas acaloradas e os pés frios, voltou ao quarto. Tinha uma sensação estranha, agradável e nebulosa, mas ao mesmo tempo sentia-se completamente vazio, em consequência da conferência. Teve vontade de tomar um banho bem quente, e abriu a torneira do banheiro. Justamente quando fez menção de despir-se, refletiu melhor, lembrando-se de que não é bom tomar banho com o estômago cheio; sentiu, no espaço de um instante de medo, as palpitações que o ameaçavam na banheira esmaltada, e soltou de novo a água, cheia de vapor. A impressão de cansaço e desconforto que sentiu materializou-se numa coceira no rosto e, quando tentou coçar-se, percebeu que não estava barbeado. Apanhou o chapéu e o sobretudo, como ao preparar-se para um negócio importante; não quis ir ao barbeiro do subterrâneo do hotel, com quem ainda estava zangado, por causa do que acontecera de manhã, e procurou nas ruas circunvizinhas um barbeiro de mais confiança.

Então o Diretor-Geral Preysing viveu uma experiência notável; esse homem de princípios sólidos, mas sem aparelho de barba, teve uma experiência; esse homem de intenções corretas, mas que, apesar de tudo, praticara uma ação duvidosa, um azarado, a quem pela primeira vez o êxito bafejara, ao qual esse bafejo levava... para onde? Podia parecer um acaso, talvez fosse o destino que lhe estava reservado. A experiência foi esta:

A pequena barbearia em que Preysing entrou era asseada e simpática. Havia quatro cadeiras, e dois senhores sentados; um deles era servido por um empregado jovem, simpático, de cabelos encaracolados, e o outro pelo dono da barbearia, um homem idoso, com a aparência e os modos de um camareiro imperial. Preysing foi cumprimentado, alojado na terceira cadeira e envolvido numa capa e num peitilho. O cavalheiro que tivesse um momento de paciência, o primeiro oficial de barbeiro tinha ido almoçar, foi o que lhe participaram com toda a cortesia, pondo-lhe em seguida, nas mãos, um pesado maço de revistas ilustradas. Preysing, excessivamente cansado para opor qualquer resistência, reclinou a cabeça no pequeno encosto da cadeira, e respirou o aroma agradável que pairava na barbearia. Depois, com os nervos acalmados pelo ruído das tesouras, começou a folhear as revistas.

Primeiro pôs-se a ler, de uma maneira indiferente, quase a contragosto, porque não apreciava esse passatempo leviano, preferindo leituras instrutivas e sérias. Mas, após uns instantes, ele já se ria com uma ou outra piada, soltando uma risadinha curta e nasal; voltou as folhas para trás, para observar melhor uma mulher decotada, e em seguida virou uma página, e deixou-a aberta durante todo o tempo em que ficou sentado na cadeira de barbeiro. Realmente, concentrou-se de tal modo na observação dessa gravura, dessa fotografia de revista, que se sentiu estorvado quando o primeiro oficial voltou da sua refeição e se preparou para barbeá-lo.

A fotografia que o atraía desse modo nada tinha de especial; fotografias como essa eram encontradas às centenas em revistas cuja orientação desagradava a Preysing. A gravura representava uma mocinha nua, nas pontas dos pés, tentando olhar por sobre um biombo muito mais alto do que ela. Seus braços estavam levantados, e os delicadíssimos seios, com esse movimento, erguiam-se com uma graça especial, de modo tentador. No dorso esguio via-se o desenho delicado da musculatura. Na cintura, esse corpo se estreitava de um modo incrível, e abaixo do dorso delgado os quadris se encurvavam suavemente, prolongando-se nas linhas das coxas. Aqui, o corpo virava-se ligeiramente de lado, de modo que o ventre da mocinha mal se adivinhava como uma sombra suave, enquanto as coxas e os joelhos se distendiam, como a exprimir uma elástica curiosidade. Essa figura encantadora de mulher, de formas invulgarmente perfeitas, tinha também um rosto; e o que tornava a gravura extremamente excitante para o diretor-geral é que ele conhecia esse rosto. Era a carinha de gata da Flaemmchen, de nariz curto, com uma expressão animada e inocente, era o sorriso meigo de Flamm número dois, era o seu caracolzinho na testa, sobre o qual o esperto fotógrafo colocara um propositado reflexo luminoso; e, antes de mais nada, era a completa naturalidade, o modo simples e ingênuo com que ela o chamara de modo objetivo e modesto — Preysing recordou-se nesse instante — de um "bom nu". Preysing corou, enquanto teve diante dos olhos essa gravura; um súbito e ardente rubor subiu à sua testa, impedindo-o de pensar com clareza, como lhe acontecia nos seus acessos de cólera, que faziam tremer toda a fábrica. Depois, suas veias, uma a uma, começaram a latejar dentro dele, ele o sentia, sentia o sangue a refluir nas veias, como há muito tempo não lhe acontecia.

Preysing era um homem de cinquenta e cinco anos; não era um velho, mas uma pessoa pacata, o esposo pouco exigente de Mulle, mulher já envelhecida, papaizinho inocente de filhas crescidas. Trotara atrás da Flamm número dois pelo corredor do hotel sem sentir a mínima excitação, e o borbulhar suave de seu sangue, nessa ocasião, aplacara-se de modo próprio. Agora, diante desse nu artístico, mal podia respirar.

— Com licença, cavalheiro — disse o barbeiro; e, com um gesto elegante, pousou o fio da navalha em sua face.

Preysing conservou a revista na mão, enquanto se reclinava para trás e fechava os olhos. Primeiro viu tudo vermelho, e depois enxergou a Flaemmchen. Não a Flaemmchen vestida, diante da máquina de escrever, nem a Flaemmchen despida da fotografia cinzenta, mas uma mistura vivaz e excitante de ambas. Uma Flaemmchen de carne e osso, de pele moreno-dourada e sangue rubro e palpitante, que continuava nua, com o busto erguido, a olhar com curiosidade por cima de um biombo. O Diretor-Geral Preysing não estava habituado a deixar sua fantasia trabalhar. Mas agora ela trabalhava. Havia soltado a manivela, desde que ele, pela manhã, colocara na mesa o telegrama, dizendo, de um modo descarado, uma mentira absurda. Agora sua imaginação se afastava rapidamente com ele, o que era apavorante e embriagador ao mesmo tempo. Enquanto a navalha deslizava com leveza e perícia em seu rosto, Preysing sentia coisas incríveis, coisas fantásticas, com a Flaemmchen nua, coisas incríveis consigo mesmo, que ele nunca julgara que pudessem acontecer.

— Quer que lhe raspe o bigode? — perguntou o barbeiro.

— Não — disse Preysing, estorvado em meio aos seus pensamentos. — Por quê?

— É que as pontas estão um pouco grisalhas, e isso envelhece. Se me permite um conselho, o cavalheiro aparentaria dez anos menos, sem bigode — sussurrou o barbeiro, com o sorriso bajulador de todos os barbeiros a refletir-se no espelho.

"Mas eu não posso me apresentar a Mulle sem bigode, como um macaco", pensou Preysing, olhando-se no espelho. Realmente, seu bigode estava grisalho, e sob o bigode havia sempre gotas de suor no lábio superior. "Ora, a Mulle...", pensou ele — e nesse instante, a bem dizer, o adultério já estava cometido.

— Está bem, pode raspá-lo. A qualquer momento posso deixar crescer de novo o bigode.

— É claro, é facílimo — concordou o barbeiro, indo buscar em seguida mais sabão de barbear, para o grande empreendimento.

Preysing levantou a revista para olhar de novo a fotografia — mas isso só já não lhe bastava. Ele não queria mais ver, queria pegar, queria apalpar, queria sentir a Flaemmchen, palpitante e ardente.

No hotel repararam imediatamente no que acontecera ao bigode, mas não deram a perceber. Meu Deus do céu, estavam tão acostumados a observar as estranhas metamorfoses pelas quais passavam os cavalheiros que vinham da província para ficar uns dias no hotel... Preysing, que perguntava, apressado e ofegante, se havia correspondência para ele, recebeu uma carta de Mulle, que lhe colocaram na mão. Meteu-a simplesmente no bolso, sem a ler, e sem nenhum sentimento de carinho. Dirigiu-se então à cabina telefônica. "Preciso falar com Mulle", pensou, "mas posso chamá-la mais tarde." Entrou na cabina para ligações locais, pediu para falar com o gabinete do conselheiro Zinnowitz, e teve uma breve conversa com a Flamm número um. Desejava saber se a senhorita sua irmã estaria por acaso no gabinete.

Não, não estava mais.

Desejaria saber onde poderia ser encontrada.

Ah, respondeu a Flamm número um, hesitante, talvez ela se houvesse atrasado um pouco. Mas, nesse caso, a qualquer momento ela apareceria no hotel.

Preysing, diante do fone, ficou com uma cara de idiota.

— No hotel? Aqui? No Grande Hotel? Por quê?

— Pois é — disse a Flamm número um, precavida e indecisa. Isso pelo menos é o que ela entendera. Flaemmchen tinha ido para o hotel, e então ela, a Flamm número um, julgara que a irmã fora chamada de novo para datilografar. Mas talvez a Flaemmchen tivesse algum encontro, o que nunca se podia saber com certeza, pois, nesse ponto, a Flaemmchen era muito esquisita, muito diferente dela, a Flamm número um. Mas pontual ela era; quando prometia qualquer coisa, cumpria o prometido; por isso, iria com certeza ao hotel.

Preysing agradeceu e pôs o fone no gancho, atrapalhado. Dirigiu-se de novo, inquieto, à portaria, atravessando o hall. Ouvia-se perfeitamente a música saltitante que vinha do pavilhão amarelo.

— Minha secretária perguntou por mim? — informou-se ele com Herr Senf. O porteiro voltou para ele o rosto muito atento e tolo.

— Quem, por favor?

— Minha secretária. A senhorita a quem eu ditei cartas ontem — informou Preysing, excitado.

O pequeno Georgi meteu-se na conversa.

— Ela não perguntou nada, mas esteve no hall, há uns dez minutos, a moça loura, magra, não é isso? Eu acho que ela está no chá das cinco, no pavilhão amarelo, do outro lado do hall, segundo corredor atrás do elevador; o senhor vai perceber pela música.

Seria próprio de um diretor-geral, vestido com um terno de sarja, andar atrás dos sons apimentados de uma orquestra de jazz, através de corredores desconhecidos, à procura de uma jovem e leviana datilografa, com quem ele nada tinha que ver, do ponto de vista jurídico? Mas é que Preysing está quase a desviar-se do bom caminho, quase a escorregar, e não o percebe. Só percebe que seu sangue corre de modo diferente do costume, diferente dos quinze ou vinte últimos anos, e ele quer a qualquer preço agarrar-se a esse sentimento, tirar proveito dele. O bigode está raspado, não foi feita nenhuma ligação telefônica para a Mulle, e, quando ele abre a porta do pavilhão amarelo e sente a atmosfera desconhecida dessa sala, o assunto complicado com Chemnitz e Manchester, incerto e ainda por esclarecer, fica quase esquecido.

A essa hora, às cinco horas e vinte minutos, o pavilhão amarelo está diariamente entupido de gente. As cortinas de seda amarela, franzidas vaporosamente, estão fechadas diante das janelas altas; nas paredes estão acesas lampadazinhas amarelas, e nas mesinhas também há lampadazinhas acesas, com abajures amarelos. Está quente, ali dentro; dois ventiladores zunem, e paira no ar o burburinho humano. As pessoas estão sentadas bem perto umas das outras; cada um sente o calor do seu vizinho, porque uniram as mesinhas, para dar mais espaço aos que estão dançando no centro da sala. No forro abobadado estão pintadas formas vagas de bailarinos, em lilás e prateado; por vezes, quando tudo se movimenta, o forro causa a impressão de um espelho embaciado, em que se refletem os dançarinos cá de baixo. Tudo o que se passa ali dá uma impressão estranha de ângulos e de ziguezagues; a dança não é circular, mas apenas um estremecimento que se eleva e abaixa; e Preysing, que foi soprado até ali pelos rumores de seu sangue, para procurar uma certa Flaemmchen, ficou completamente tonto. Não via mais as pessoas inteiras, mas tudo se separava em confusão, só tinham cabeça ou coxas, como certa espécie de quadros modernos, que Preysing, em razão da loucura que representavam, não podia suportar. Porém, o mais importante e digno de reparo no pavilhão amarelo era a música. Era executada por sete cavalheiros indescritivelmente satisfeitos, de camisas brancas e calças curtas, a célebre Eastman Jazzband, cuja música era de uma vivacidade maluca, tamborilava sob as solas dos pés, fazia cócegas nos músculos dos quadris. Havia dois saxofones que choramingavam e outros dois que zombavam deles com um jeito satírico e sarcástico. O jazz serrava, estalava, teimava, matraqueava, cacarejava, pondo ovos sobre a melodia, ovos que eram em seguida esmagados — e quem caísse dentro do círculo dessa música ficava prisioneiro do ritmo convulsivo da sala, parecia até enfeitiçado.

Preysing, no entanto — empurrado de um lado para o outro pelos garçons que levavam bandejas cheias de taças com gelo —, ficara parado à porta, e reparou que começou a contrair os músculos das pernas enquanto, mal-humorado, procurava enxergar a Flamm número dois. Seu lábio superior, nu e remoçado, cobriu-se novamente de suor; ele tirou do bolso o lenço, enxugou o rosto, e depois meteu o lenço no bolsinho exterior do paletó, onde em geral só costumava guardar a caneta-tinteiro. Com um olhar de esguelha, muito encabulado, arranjou a ponta do lenço, deixando-o cair como uma graciosa bandeirola; isso parecia legitimar o seu direito de pertencer a essa parte animada do Grande Hotel. Aliás, ninguém se importava com ele. Poderia ficar ali o tempo que quisesse, e procurar entre duzentas jovens e esbeltas dançarinas uma determinada senhorita.

— Quando vi que o senhor não estava aqui às cinco e dez pensei: ele vai dar um bolo. Você vai ver, ele vai dar um bolo, pensei — disse a Flaemmchen, que estava dançando com Gaigern uma lânguida variação do charleston, uma dança nova, com uma pequena síncope, que dava um golpe na perna. Seus corpos se ajustavam plenamente na dança.

— Absolutamente. Pensei o dia inteiro na senhora, e me alegro de poder revê-la — disse Gaigern.

Essa frase lhe saiu com a mesma leveza e languidez, com a mesma facilidade com que ele dançava. Gaigern era apenas alguns centímetros mais alto do que a Flaemmchen, e fitou com um leve e amável sorriso os olhos de gatinha da moça. Ela estava vestida com um vestidinho de seda leve, azul; ao pescoço trazia um colar de contas de vidro lapidado, e usava um chapeuzinho, desses fabricados em série e vendidos por um marco e noventa. Estava encantadora, com os requisitos de uma elegância rebuscada.

— É verdade mesmo que o senhor se alegrou? — perguntou ela.

— Metade verdade, metade invenção — replicou Gaigern com sinceridade. — Passei o dia hoje caceteadíssimo — acrescentou suspirando. — Estou servindo de cicerone para um senhor de idade, por necessidade, é claro.

— E por que faz isso?

— Preciso conseguir uma coisa dele.

— Ah! — disse a Flaemmchen, compreensiva.

— A senhora também precisa dançar com ele — disse Gaigern, apertando-a de leve.

— Que nada!

— Não é isso. Mas eu vou lhe pedir encarecidamente. Ele não sabe dançar, compreende? Mas tem tanta vontade de aprender! A senhora dá apenas algumas voltas com ele — para me fazer um favor.

— Bem, vamos ver! — prometeu a Flaemmchen. Continuaram a dançar, calados. Gaigern trouxe mais para perto o corpo da moça, sentindo que as costas dela obedeciam documente aos movimentos de sua mão. Isso, porém, não o alegrava, pelo contrário, causava-lhe raiva, até.

— Então, que aconteceu? — perguntou a Flaemmchen, pressentindo o que se passava.

— Ah!... Não é nada! — resmungou Gaigern, sentindo ódio de si próprio.

— Que está querendo? — perguntou a Flaemmchen com solicitude. Achava-o lindo, com aquela boca, e a cicatriz no queixo... E os olhos também, um pouco oblíquos. Sentia forte inclinação por ele.

— A gente tem vontade de fazer qualquer coisa maluca, já que não acontece nada. Agora tenho vontade de mordê-la, ou de brigar com a senhora. Ou de esmurrá-la, até. Ora! Hoje à noite vou à luta de boxe; ali, pelo menos, acontece alguma coisa.

— Ah, é? — disse a Flaemmchen. — O senhor vai hoje à noite à luta de boxe? Ah, sei.

— Com aquele senhor de idade — afirmou Gaigern.

— Se o senhor... acabou — disse a Flaemmchen, quando a música parou. Ela se pôs então a bater palmas freneticamente, deixando-se ficar onde estava. Gaigern fez menção de tirá-la do meio da sala e levá-la a uma mesinha, onde ele deixara Kringelein diante de uma xícara de café. A música começou de novo, quando os dois já se encontravam a meio caminho, entre a confusão e o aperto.

— Tango! — exclamou a Flaemmchen, excitada.

E a moça tomou posse de Gaigern, simplesmente. A palma de sua mão encostava-se à dele, implorando e aquiescendo. Suas coxas já se emparelhavam no passo lânguido e arrastado do tango. Fez-se um vazio na sala, em redor deles, porque dava prazer vê-los dançar.

— O senhor conduz otimamente — sussurrou a Flaemmchen, como se fizesse uma declaração de amor. Gaigern nada tinha a replicar. — Ontem o senhor estava tão diferente... — disse um pouco mais tarde.

— É... ontem — respondeu Gaigern. Disse isso como se estivesse a dizer: há cem anos. — Aconteceu uma coisa de ontem para hoje — acrescentou.

Sentia que uma compreensão simples e natural os unia, e de repente teve desejos de se confiar a ela.

— Esta noite eu me apaixonei, uma paixão muito séria, compreende? — disse ele baixinho, dançando o tango que vibrava no ar. — Isso vira a cabeça da gente. É um sentimento avassalador. É como se...

— Mas isso não é nada de extraordinário — observou a Flaemmchen, ironicamente, sentindo-se triste, desiludida.

— É sim, é uma coisa extraordinária. A gente tem vontade de se transformar por completo, compreende? De repente acha que só existe uma mulher no mundo, só essa mulher, e o resto não tem mais nenhum valor. A gente acha que não é mais capaz de dormir, a não ser com essa mulher. É como se passasse por nós um furacão. Como se nos tivessem posto dentro de um canhão, e depois atirado à Lua ou a outro lugar qualquer, onde tudo é diferente.

— E como é ela? — perguntou a Flaemmchen — e qualquer outra em seu lugar teria perguntado o mesmo.

— Ah! Como ela é? Aí é que está... É muito velha e magra, muito leve, sou capaz de levantá-la do chão com um dedo. Tem rugas, aqui e aqui, e olhos pisados. E fala numa linguagem de baixo calão, como um clown; tem-se vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo, ao ouvi-la. E isso tudo me agrada de um modo incrível, não há nada a fazer. É o grande amor.

— O grande amor? Mas isso não existe — disse a Flaemmchen. Ao afirmar isto, ela tinha uma carinha espantada e teimosa de gata, como às vezes os amores-perfeitos têm nos canteiros.

— Como não, como não? Existe, sim — disse Gaigern.

A Flaemmchen ficou tão impressionada com essas palavras, que parou um segundo, em meio ao tango, e sacudindo a cabeça olhou Gaigern.

— São frases, apenas — murmurou ela ao mesmo tempo.

Nesse momento exato os olhos de Preysing descobriram finalmente o vulto procurado, no meio da confusão erótica e lânguida do tango. Com um sentimento de zanga e extrema impaciência, esperou que a dança lenta terminasse e depois foi-se espremendo entre os pares, até a mesinha em que a Flaemmchen tomara lugar entre dois senhores, que Preysing tinha a impressão de conhecer. No hotel, essa espécie de conhecimentos de vista eram correntes; passava-se por alguém no elevador, encontrava-se com alguém na sala de refeições, no banheiro e no bar, girava-se um diante do outro na porta giratória, nessa porta que estava sempre a rodar, deixando entrar e sair gente, para dentro e para fora do hotel.

— Boa tarde, Fräulein Flamm — disse o diretor-geral com a voz tornada rouca e grosseira pela timidez; postou-se ao lado da cadeira da moça, encolhendo a barriga para dar passagem ao garçom.

A Flamm número dois apertou as pálpebras, até conseguir registrar a presença imprevista de Preysing.

— Ah, é o senhor diretor — disse então, amavelmente. — O senhor também dança? — ela olhou a fisionomia contraída dos três homens; estava habituada a ver essa expressão nos semblantes dos homens que a rodeavam. — Os senhores já se conhecem? — perguntou com um gesto distinto de mão, que copiara de uma estrela de cinema.

Não podia apresentá-los, porque não sabia como se chamavam os seus cavalheiros. Preysing e Gaigern murmuraram algo, e o diretor-geral apoiou na mesa uma mão repleta de sentimento de posse, enquanto passava rente a ele, à altura da cabeça, uma perigosa bandeja com copos de laranjada, que o garçom equilibrava.

— Boa tarde, Herr Preysing — disse de repente Kringelein, sem erguer-se da cadeira.

Cada uma das suas vértebras lhe doía, por causa do enorme esforço que teve de fazer para não ser atacado de tremedeira e não cair estatelado, voltando a ser o miserável Kringelein da caixa da fábrica. Ficou de ombros contraídos; tudo nele se contraiu; lábios, dentes, até mesmo as narinas, que tomaram um aspecto redondo e feio, como as dos cavalos. Mas ele se portou à altura do grave momento; forças nunca pressentidas fluíam do seu jaquetão preto de corte impecável, da sua roupa de baixo, da sua gravata, de suas unhas bem cuidadas, enchendo-o de energia. O que quase o fez perder o aplomb foi o fato de Preysing também ter se transformado; continuava a usar o mesmo terno de Fredersdorf, mas não tinha mais bigode.

— Não sei bem... desculpe-me... mas acho que já nos conhecemos... — disse Preysing com a maior amabilidade que lhe permitia a excitação que sentia por causa da Flaemmchen.

— Sim, senhor. Kringelein — afirmou este. — Trabalho na fábrica.

— Ah — disse Preysing, esfriando. — Kringelein. Nosso representante, não é? — acrescentou, reparando na elegância de Kringelein.

— Não. Guarda-livros. Auxiliar de guarda-livros no bureau de pagamentos. Sala 23. Edifício C. Terceiro andar — informou Kringelein conscienciosamente, mas sem devoção.

— Ah — repetiu Preysing, pensativo. Seu desejo era afastar nesse momento a aparição indesejável e incompreensível de um auxiliar de guarda-livros de Fredersdorf no pavilhão amarelo do Grande Hotel. — Preciso falar com a senhora, Fräulein Flamm — disse ele, retirando a mão do encosto da cadeira da Flaemmchen. — Trata-se de um novo serviço de datilografia — acrescentou num tom de chefe, que feriu os ouvidos do sujeito de Fredersdorf.

— Está bem — concordou a Flaemmchen. — Quando é melhor para o senhor? Às sete, sete e meia?

— Não, já — disse Preysing em tom ditatorial, enxugando o suor do rosto.

Aquele indivíduo de Fredersdorf tinha também um lenço no bolso do paletó, uma flamulazinha de seda, revolucionária e leviana.

— Infelizmente, já, já não é possível — disse a Flaemmchen amavelmente. — Já estou comprometida. Não posso deixar estes senhores aqui. Ainda preciso dançar uma vez com Herr Kringelein.

— Herr Kringelein vai ter a amabilidade de desculpá-la — disse Preysing, contendo-se. Era uma ordem. Kringelein sentiu que os vinte e cinco anos de um sorriso subalterno queriam insinuar-se em seus lábios paralisados. Controlou-o, fazendo-o recuar para a pele do rosto, engelhada e quase fria. Procurou auxílio e forças em Gaigern. O barão tinha um cigarro no canto da boca, e a fumaça subia ao longo das pestanas de seu olho esquerdo, que ele piscou com expressão brejeira e compreensiva.

— Não penso absolutamente em desistir — comentou Kringelein. Após lhe escaparem estas palavras, ficou imóvel como uma lebre, que finge estar morta no carreiro de um campo. De repente, Preysing, ao ver aquela expressão obstinada, recordou-se de um relatório a respeito de Kringelein, que lhe haviam apresentado há poucos dias.

— É estranho — disse ele com a voz nasal e temida da fábrica. — É estranhíssimo. Agora já sei do que se trata. O senhor participou à fábrica que estava doente, não é? Herr Kringelein, hein? Sua mulher pediu um subsídio ao Fundo de Auxílio aos Doentes, por causa de moléstia grave. Nós lhe demos férias de seis semanas, pagas. E o senhor se encontra em Berlim, divertindo-se, hein? Anda atrás de divertimentos que não condizem nem com a sua posição nem com o seu ordenado. É muito estranho. Estranhíssimo, Herr Kringelein. Nós vamos rever com cuidado os seus livros, pode estar certo disso. Vamos deixar de pagar-lhe as férias, já que o senhor está tão bem de saúde, Herr Kringelein! Vamos...

— Olhem, meninos, nada de brigas aqui. Vão entender-se no seu escritório — disse a Flaemmchen, com modos afáveis e conciliantes. — Nós estamos aqui para nos divertir. Vamos, Herr Kringelein, agora vamos dançar.

Kringelein firmou-se nas pernas, esticando os joelhos, que pareciam de borracha, mas que se consolidaram a olhos vistos quando a Flaemmchen colocou o braço no ombro dele. A música tocava aos solavancos uma coisa rapidíssima, algo semelhante à corrida de automóvel a cento e quinze quilômetros por hora, e ao motor de avião. Isso lhe deu forças para dizer as frases que vinha preparando há vinte e cinco anos, em sua vida de empregado subalterno. Arrastado pela Flaemmchen para o meio da sala, falou em voz alta, virando a cabeça para trás:

— Quem sabe se o mundo pertence só ao senhor, hein, Herr Preysing? O senhor será diferente de mim? Quem sabe se as pessoas como eu não têm o direito de viver?

— Que é isso, que é isso! — exclamou a Flaemmchen. — Aqui não se fala aos berros, aqui se dança. E agora, não olhe para os pés, olhe para o meu rosto, e vá andando, vá andando calmamente, vou guiá-lo.

— Mas que impostor! — rangeu Preysing por entre os dentes, por trás deles. E ficou diante da mesa, trêmulo de cólera. Gaigern, a fumar, ouvindo essas palavras, sentiu um impulso raro, uma espécie de compassivo coleguismo, misturado a uma repulsa, violenta e sarcástica, pelo corpulento e suarento diretor-geral. "Era preciso colocar-lhe um par de sanguessugas na pele, amiguinho", pensou ele.

— Deixe que o pobre-diabo se divirta! — disse a meia voz. — Basta olhar para a cara dele para ver que está às portas da morte.

"Não lhe pedi nenhum conselho", pensou Preysing, mas não teve coragem de dizê-lo, porque sentia obscuramente a raça superior do barão.

— Peço-lhe o favor de dizer a Fräulein Flamm que a espero no hall, para um assunto urgente. Se ela não aparecer até as seis, dou o assunto por terminado — disse ele, curvando-se ligeiramente. Em seguida retirou-se.

Intimidada por esse ultimato, a Flaemmchen apareceu no hall três minutos antes das seis. Preysing ergueu-se das brasas ardentes em que estivera sentado nesse ínterim, e sorriu com profunda satisfação. Como ele sorria raramente, essa amabilidade o tornou mais bonito, e causou efeito imprevisto.

— Cá está a senhora — disse ele, estonteado.

Há muitas horas ele se contorcia, se martirizava, ardia, com um único pensamento: saber se a Flaemmchen era conquistável. Suas experiências com mulheres eram modestas, e datavam de muitos anos atrás. Dessa geração nova de mocinhas, ele fazia apenas uma ideia vaga, apesar de, nas reuniões masculinas, e em conversas íntimas nas viagens profissionais, dizerem com frequência que essa espécie de meninas era fácil de conquistar. Pôs-se a observar a Flaemmchen, as suas pernas cruzadas, com meias de seda, o colar de pedras de vidro imitando cristal, sua pintura, que ela nesse instante renovava, apertando os lábios, e ficou sem saber em que se basear, nessa pessoa despreocupada, para as suas suposições.

A Flaemmchen fechou o estojinho de pó de arroz e perguntou:

— Então, de que se trata?

Preysing apertou o charuto entre os dedos, e desembuchou:

— Trata-se do seguinte — começou ele: — preciso viajar para a Inglaterra, e preciso levar comigo uma secretária. Em primeiro lugar, por causa da correspondência; depois, porque desejaria ter com quem conversar durante a viagem. Sou muito nervoso, muito nervoso, mesmo — afirmou, apelando inconscientemente para a compaixão da moça —, e preciso ter alguém na viagem que se ocupe de mim. Não sei se a senhora me compreende. Ofereço-lhe um emprego de confiança, em que a senhora... em que..

— Já estou compreendendo — disse a Flaemmchen, baixinho, ao perceber a atrapalhação dele.

— Acho que nos daremos bem na viagem — afirmou Preysing.

O delicioso fluir e latejar do seu sangue nas veias diminuíra durante tão difíceis negociações, mas quando ele fitou a Flaemmchen consolou-se, sentindo que ela iria fazer com que tudo isso despertasse de novo, assim que o desejasse.

— A senhora contou-me que no ano passado também viajou com um cavalheiro, e isso me fez ter esta ideia... eu acho que seria muito agradável, se a senhora quisesse. A senhora quer?

A Flaemmchen pensou durante cinco longos minutos.

— Preciso pensar primeiro — respondeu ela, com expressão ajuizada e preocupada, fumando o seu indefectível cigarro. — Para a Inglaterra? — perguntou depois. A cor moreno-dourada da sua pele clareou um pouco, o que talvez significasse que empalidecera. — Ainda não conheço a Inglaterra. E por quanto tempo?

— Por... não sei lhe dizer ainda com exatidão. Isso depende. Se os meus negócios lá correrem bem, tiro talvez mais catorze dias de férias, e podemos ficar em Londres, ou ir para Paris.

— Bom, pode-se arranjar; já sei mais ou menos do que se trata, pelas cartas — disse a Flaemmchen com segurança.

O otimismo era o elemento em que ela se movia. Preysing sentiu-se animado ao perceber que ela estava a par dos seus negócios, e profetizava o sucesso.

— A senhora ainda precisa me dizer quanto quer de ordenado — declarou ele, com o tom de quem dizia um galanteio.

Desta vez demorou mais, até que a Flaemmchen respondesse. Tinha que fazer um extenso balanço. A renúncia à aventura principiada com o belo barão se incluía nele, os pesados cinquenta anos de Preysing, sua gordura, seu fôlego curto. Pequenas dívidas aqui e ali. A necessidade de roupa de baixo nova, de sapatos bonitos — os azuis não iam durar muito. O pequeno capital de que necessitava para iniciar carreira no cinema, na revista, em qualquer parte. A Flaemmchen pesou calmamente e sem sentimentalismo a oportunidade do negócio que lhe era proposto.

— Mil marcos — disse ela, achando que era suficiente; não tinha ilusões a respeito das quantias que hoje em dia se depunham aos pés das mulheres bonitas. — Talvez um pouquinho mais para a roupa de viagem — acrescentou, um pouco mais tímida do que de costume. — O senhor há de querer que eu tenha uma bonita aparência...

— Para isso a senhora não precisa se vestir. Pelo contrário — disse Preysing, excitado. Ele julgou que tinha dito uma frase espirituosa. A Flaemmchen sorria melancolicamente, o que deu um aspecto estranho à sua saudável carinha de amor-perfeito. — Então está combinado? -— perguntou Preysing. — Amanhã ainda tenho umas coisas a fazer aqui; é preciso também arranjar os passaportes, e poderemos viajar depois de amanhã. Está contente por ir conhecer a Inglaterra?

— Muito — respondeu a Flaemmchen. — Então amanhã eu trago a minha máquina de escrever portátil e o senhor pode ir logo ditando.

— E hoje à noite... se a senhora concordar... pensei que hoje à noite poderíamos ir a um teatro... Temos que tomar um copo de vinho para festejar o nosso contrato, não é? O que acha?

— Hoje, já? — disse a Flaemmchen. — Bom. Hoje, já.

Ela soprou o seu caracolzinho para cima, e atirou o cigarro amassado no cinzeiro. Podia ouvir perfeitamente a música do pavilhão amarelo. "Não se pode ter tudo", pensou. "Mil marcos. Vestidos novos. E Londres também não é para desprezar."

— Preciso telefonar para minha irmã — disse ela, levantando-se. Preysing sentiu-se percorrido por uma onda de calor, apaixonada e grata, que o inundou completamente; colocou-se então por trás dela e pegou delicadamente, com ambas as mãos, seus cotovelos, que ela apertava de encontro ao corpo.

— Quer ser boazinha para mim? — perguntou ele em voz baixa.

E igualmente baixinho, com os olhos voltados para a passadeira cor de amora, a Flaemmchen respondeu:

— Se não tiver muita pressa...


CONTINUA

7

 

O chá com veronal esfriara. A Grussinskaia sorriu ligeiramente, mas quando o percebeu, parou de sorrir e perguntou com ar severo:

— Quem o deixou entrar? A criada de quarto? Ou a Suzette? Como conseguiu entrar?

Gaigern tentou um golpe arriscado. Apontou por sobre o ombro para a atmosfera noturna da rua.

— Por ali — disse ele. — Vim do balcão do meu quarto.

De novo a Grussinskaia teve a impressão de já ter passado por aventura semelhante. De repente, veio-lhe a recordação. Num dos castelinhos de veraneio, no sul, em Abas-Tuman, aonde o Grão-Duque Serguei costumava levá-la, escondera-se certa noite em seu quarto um homem, um oficial bem jovem ainda. Arriscara a vida nessa tentativa; mais tarde ele veio de fato a falecer num acidente de caça pouco esclarecido. Isso tinha acontecido pelo menos há trinta anos. Enquanto a Grussinskaia ia para o balcão e olhava na direção em que a mão de Gaigern apontava, de repente o passado se apresentou de novo com toda a clareza. Ela via o rosto do jovem oficial. Chamava-se Pavel Jerilinkov. Lembrou-se de seus olhos e de alguns beijos. Estava enregelada, e sentiu que o homem ao lado dela no balcãozinho irradiava calor. Olhou rapidamente para os sete metros da fachada do hotel, que ficavam entre o balcão do seu quarto e o do quarto vizinho.

— Mas isso é perigoso — observou ela inadvertidamente, recordando-se mais de Jerilinkov do que pensando no momento presente.

— Não é tanto assim — replicou Gaigern.

— Está fazendo frio. Feche a porta — disse a Grussinskaia, passando depressa diante dele e entrando de novo no quarto. Gaigern obedeceu, e foi caminhando atrás dela; fechou a porta, puxou as duas cortinas, e depois ficou com as mãos pendentes: não passava de um jovem belíssimo, modesto mas um pouco amalucado, que fazia garotices românticas, para entrar no quarto de uma bailarina célebre. Afinal de contas, ele também possuía um pouco de talento para ator, o que era uma exigência da sua profissão. E agora representava, por uma questão de vida ou de morte. A Grussinskaia curvou-se, levantou o traje de ballet que atirara no chão, e o levou para o banheiro. A gota de sangue, de contas vermelhas de vidro lapidado, cintilou. Ela sentiu uma dor cortante e aguda. Nenhum da capo. Nenhum escândalo, quando uma outra dançava. Um público cruel. Berlim era cruel. Solidão cruel. Ela já havia sobrepujado um pouquinho essa dor — e agora a dor a acometia de novo, causando-lhe uma angústia no peito. Durante alguns segundos esqueceu-se por completo do intruso, que se parecia com o falecido Jerilinkov, mas de repente virou-se para ele e perguntou, sem olhá-lo:

— Por que fez isso? Por que faz coisas perigosas? Por que está escondido no meu quarto? Deseja alguma coisa de mim?

Gaigern fez uma investida e preparou-se para o ataque. — "Hop-là, avante!", pensou Gaigern. Não ergueu os olhos para ela.

— A senhora já sabe a razão, é porque a amo — respondeu em voz baixa.

Disse isso em francês, porque se o dissesse em alemão teria sido extremamente penoso. Depois ficou esperando em silêncio pelo resultado. "É simplesmente idiota", pensou ao mesmo tempo. Essa comédia lhe causava uma vergonha atroz, humilhante. Tinha horror de tudo o que feria o bom gosto. De qualquer modo, se ela não chamasse pelo camareiro, talvez ele estivesse salvo.

A Grussinskaia engoliu essas breves palavras francesas com a boca bem aberta. Absorveu-as como um remédio; dentro de poucos segundos até o tremor de frio cessou. Pobre Grussinskaia! Há muitos anos que ninguém lhe dizia coisa semelhante. Sua vida corria diante dela como um trem expresso vazio. Ensaios, trabalho, contratos, carros-dormitórios, quartos de hotel, excitação no palco, uma excitação cruel, e mais trabalho e mais ensaios. Sucesso, fracasso, críticas, entrevistas, recepções oficiais, discussões com empresários. Três horas de exercícios de solista, quatro horas de ensaios de ballet, quatro horas de espetáculo; os dias se seguiam um ao outro sempre iguais. O velho Pimenoff. O velho Witte. A velha Suzette. A não ser essas pessoas, mais ninguém, nenhum calor, nunca, nunca. Colocava as mãos nos canos de aquecimento central dos hotéis, e pronto. E depois, quando estava tudo terminado, quando o fim de tudo e da vida estava iminente, encontrava-se um homem à noite no quarto, e esse homem pronunciava palavras há muito desaparecidas, de que outrora

o mundo estivera repleto. A Grussinskaia não suportava mais. Sentia um sofrimento atroz, como se estivesse prestes a dar à luz. Mas foram apenas duas lágrimas que finalmente brotaram da tensão dessa noite, e ela as sentiu em seu corpo inteiro, nos artelhos e nas pontas dos dedos das mãos, depois no coração, e por fim elas chegaram aos seus olhos; rolaram pelas longas e rígidas pestanas pretas de pintura, caindo nas palmas abertas de suas mãos.

Gaigern assistiu à evolução desse fenômeno, e encheu-se de calor. "Pobre animalzinho", pensou ele. "Pobre bichinha. Está chorando, agora. Que coisa idiota!"

Depois que a Grussinskaia deu à luz essas duas lágrimas dolorosas, a coisa se tornou mais fácil. Começou com um leve aguaceiro, ao mesmo tempo cálido e fresco como uma chuva de verão — Gaigern pôs-se a pensar nos canteiros de hortênsias do jardim de Ried, sem saber por quê. Depois, esse aguaceiro se transformou numa torrente apaixonada, uma torrente negra, porque a pintura das sobrancelhas se dissolveu por completo. E, por fim, a Grussinskaia atirou-se ao leito, soluçando um tropel de palavras russas nas mãos em concha, que conservava encostadas à boca. Gaigern, ao assistir a essa cena, transformou-se. De ladrão de hotel, prestes a tirar a vida de uma mulher, passou a ser simplesmente um homem, um sujeito grandão, simples e bondoso, que não podia ver uma mulher chorar sem querer auxiliá-la. Agora não sentia mais medo, absolutamente nenhum; agora, o que o fazia sentir o coração pequeno e palpitante era a simples compaixão. Inclinou-se sobre o leito, pondo os braços dos dois lados do pequenino corpo a soluçar, e assim, curvado sobre a Grussinskaia, principiou a sussurrar em meio aos seus soluços. Não era nada de especial o que ele dizia; com as mesmas palavras teria consolado uma criança a chorar, ou um cão enfermo.

— Coitadinha — foi mais ou menos o que ele disse —, pobrezinha, pobrezinha da Grussinskaia, ela está chorando. Faz bem chorar assim, faz? Pois então chore, pode chorar. Que foi que lhe fizeram? Foram maus para você? Você gosta que eu esteja ao seu lado? Posso ficar aqui? Está com medo? É por isso que está chorando, é? Você... bobinha!

Levantou um dos braços que apoiara ao leito, tirou da boca da Grussinskaia as mãos que ela apertava de encontro aos lábios e beijou-as; estavam molhadas de lágrimas e pretas como as de uma menininha; seu rosto também estava todo lambuzado das lágrimas negras caídas dos seus olhos pintados. Gaigern não pôde deixar de rir. Apesar de continuar a chorar, a Grussinskaia viu o movimento bondoso, próprio dos homens fortes, o movimento de ombros que fazem quando riem. Gaigern afastara-se do leito e tinha ido ao banheiro. Voltou com uma esponja e enxugou com muito cuidado o rosto da bailarina; tinha trazido também um lenço. A Grussinskaia tinha parado de chorar, e conservou-se deitada tranqüilamente, enquanto ele lhe limpava o rosto. Gaigern sentou-se à beira da cama e sorriu para ela.

— E então? — perguntou ele.

A Grussinskaia murmurou qualquer coisa que ele não compreendeu.

— Fale em alemão — pediu Gaigern.

— Você... criatura... — sussurrou a Grussinskaia.

Essas palavras o comoveram. Chocaram-se de encontro ao seu coração como uma bolinha de tênis atirada com força, e quase o magoaram. As damas com as quais ele tinha relações não costumavam usar palavras carinhosas. Para elas, a gente se chamava coisinha, menininho, queridinho, ou "o barão grandão". Gaigern percebeu o sentimento contido nesse apelo, que despertou em seu íntimo recordações da infância, vindas de uma esfera que ele abandonara. Afastou-o de si. "Se ao menos eu tivesse um cigarro", pensou ele, cheio de languidez. A Grussinskaia tinha olhado para ele um momento, com um olhar que exprimia confusão e quase felicidade. Depois ela se sentou, estendeu seus longos artelhos à procura dos chinelos que haviam caído e de repente se transformou em uma senhora.

— Ora essa! — disse ela. — Que sentimentalismo! A Grussinskaia está chorando? Como? É uma coisa que vale a pena ver. Há muito tempo, há anos que ela não chorava. Monsieur me assustou. Monsieur é o culpado por esta triste cena.

Falava na terceira pessoa, queria criar distância, retirar o repentino "você", mas esse homem já estava muito próximo dela, para que o pudesse chamar de "senhor". Gaigern nada pôde responder.

— É horrível como o teatro ataca os nervos — continuou ela em alemão, com a impressão de que ele não a tinha compreendido. —- Disciplina! Isso sim, disciplina nós temos. A disciplina é um coisa penosa e difícil. Disciplina é fazer sempre o que não se deseja, como posso explicar... o que a gente não gosta de fazer. Você sabe o que significa ficar exausto por excesso de disciplina?

— Eu? Eu não. Faço sempre o que quero — disse Gaigern.

A Grussinskaia ergueu a mão, com um gesto em que todas as Graças haviam retornado.

— Sim, monsieur. Sente-se vontade de entrar no quarto de uma senhora... e entra-se. Sente-se vontade de pular varandas, com risco de vida... e faz-se o que se quer. E qual é o desejo de monsieur, agora?

— Eu gostaria de fumar — respondeu Gaigern francamente. A Grussinskaia esperava outra resposta, e achou que o pedido era cavalheiresco e gentil. Foi até a escrivaninha e ofereceu a Gaigern sua pequena cigarreira. Com o quimono chinês, já muito usado, mas legítimo, e os chinelos acalcanhados, tinha a mesma aparência de há vinte anos, quando viajava por todos os continentes, cheia de uma graciosidade cristalina e tilintante. Parecia ter-se esquecido de seus olhos avermelhados, e de seu aspecto lamentável.

— Pois então fumemos o cachimbo da paz — disse ela, erguendo para Gaigern as pálpebras amarfanhadas. — E depois faremos a nossa despedida!

Gaigern tragou avidamente a fumaça pelo nariz e pelo pulmão. Sentiu-se aliviado, apesar de sua situação ser ainda delicada. Não podia abandonar esse quarto com as pérolas no bolso, quanto a isso não havia dúvidas. Se conservasse as pérolas, agora que conhecia a bailarina, teria que fugir nessa mesma noite, e no dia seguinte pela manhã a polícia o estaria perseguindo. Isso não fazia absolutamente parte dos seus planos. Agora tratava-se de ficar ali a qualquer preço, até que as pérolas pudessem retornar ao seu estojo. A Grussinskaia sentara-se diante do espelho e empoava o rosto, com expressão séria. Esfregou alguns riscos e pontinhos da pele e ficou novamente linda. Gaigern aproximou-se dela, pondo-se, com seu grande vulto entre a suitcase vazia e a mulher. Fitando seus ombros, ele dirigiu-lhe um sorriso tentador, doce como mel.

— Por que esse sorriso? — perguntou ela ao espelho.

— Porque vejo no espelho uma coisa que você não pode ver — disse Gaigern.

Dizia simplesmente: "você". O cigarro lhe tinha dado coragem, e ele se animou. "Avante", pensou ele, encorajando-se.

— Estou vendo de novo o que estava vendo há pouco, lá do balcão — disse ele inclinando-se sobre a mulher —, estou vendo no espelho uma mulher belíssima, como nunca vi outra igual. Essa mulher está triste. E está nua... Ela é... não, não posso dizê-lo, isso me faz ficar louco. Não sabia que era tão perigoso espiar em um quarto alheio uma mulher que se despe.

E, realmente, enquanto Gaigern formava no seu francês convencional essas frases galantes, via a imagem da Grussinskaia no espelho, como há pouco, e sentia ao vê-la a mesma admiração e o mesmo calor que sentira no balcão. A Grussinskaia ouviu-o atenta e com expressão inquiridora. "Como me tornei fria", pensou com tristeza, percebendo que não estremecia ao ouvir aquelas palavras entusiásticas. Sentia a intensa vergonha das mulheres frias. Voltou-se para Gaigern com um movimento elegante e calculado do longo pescoço. Gaigern segurou os pequenos ombros da mulher com suas mãos quentes e hábeis, e em seguida beijou-a no lindo sulco entre as omoplatas, como um conhecedor.

Esse beijo, principiado com frieza entre dois corpos estranhos, prolongou-se. Mergulhou como uma agulhazinha quente na espinha dorsal da mulher, cujo coração começou a palpitar com força. Seu sangue correu mais pesado e doce; sim, esse coração que já esfriara agora palpitava, e começou a vibrar; seus olhos se fecharam; ela tremia. Gaigern tremia também, quando a largou e endireitou o corpo; uma veia intumesceu, muito azul, na sua testa. De repente sentiu a Grussinskaia dentro dele. inteirinha, sua pele, seu perfume acre, seu estremecimento ansioso de prazer, que fora despertando aos poucos. "Com os diabos!", pensou ele de repente. Suas mãos estavam cheias de avidez, e ele as estendeu.

— Eu acho que o senhor deve retirar-se agora — disse a Grussinskaia com voz fraca, à imagem do moço no espelho. — A chave está na porta.

Sim, lá estava a malfadada chave; agora era possível retirar-se quando quisesse. Mas Gaigern não desejava retirar-se — por várias razões.

— Não — disse ele, com súbito sentimento de dominador, como o macho de uma pequenina mulher, trêmula como um violino a vibrar. — Não vou embora. Você sabe que não vou. Você pensa realmente que vou deixá-la agora aqui sozinha? Que vou abandoná-la ao lado de uma xícara de chá cheia de veronal? Você pensa que eu ignoro o que se passa com você? Eu vou ficar aqui. Está dito.

— Está dito? Está dito? Mas eu quero ficar sozinha....

Gaigern aproximou-se rapidamente da Grussinskaia, que estava de pé no meio do quarto, e puxou até seu peito os pulsos da bailarina.

— Não — disse ele com veemência. — Isso não é verdade. Você não quer ficar sozinha. Você tem um medo pavoroso de ficar sozinha, percebo perfeitamente o medo que você sente. Sei o que você está sentindo, eu a conheço, pequerrucha, mulher estranha. Você está representando uma pequena comédia para me enganar. O seu cenário é de vidro, eu vejo através dele. Há pouco você estava desesperada. Peça para eu ficar com você, peça!

Pôs-se a sacudir as mãos dela. Segurou-a pelos ombros e sacudiu-a. Pela dor que sentiu, ela pôde perceber a excitação do moço; Jerilinkov havia implorado, lembrou-se ela; este ordenava. Fraca e aliviada, ela deixou cair a cabeça sobre o peito coberto pelo pijama de seda azul.

— Sim, fique mais um minuto — murmurou ela. Gaigern, a olhar por cima de seus cabelos, respirava ofegante, soltando o ar por entre os dentes cerrados. Sua tensão de medo começou a se distender; um turbilhão de imagens desfilou rapidamente, cinematograficamente, diante dele; a Grussinskaia, morta em seu leito, com uma dose violenta de veronal no sangue, ele a fugir pelos telhados, investigações na casa de Springe, penitenciária — ele não fazia a menor ideia do aspecto de uma penitenciária, no entanto enxergava tudo perfeitamente, e também viu sua mãe, morrendo de novo, apesar de já estar morta há muito tempo. Quando voltou ao quarto 68, o medo e o perigo já vencidos transformaram-se de repente em embriaguez. Tomou nos braços o corpo leve da Grussinskaia, levou-o até a cama, onde a deitou como uma criança.

— Venha, venha, venha — murmurou ele de encontro às fontes da mulher, com uma voz subitamente grave e profunda.

A Grussinskaia há muito tempo não sentia o próprio corpo, e agora estava sentindo-o. Durante muitos anos não fora mulher, e agora sentia-se mulher. Um céu negro e sonoro começou a girar sobre ela, e ela se atirou nele com ímpeto. Um gemido brando de passarinho, expelido por uma boca entreaberta, transportou Gaigern, de uma fingida paixão, a profundidades de prazer que ele desconhecia. A xícara de chá, na mesa do hotel, estremecia de leve todas as vezes que passava algum automóvel. Primeiramente, a luz branca do lustre se refletiu no líquido envenenado; depois, apenas o vermelho da lâmpada de cabeceira, depois apenas a luz cambiante do anúncio móvel que penetrava pelas cortinas. Dois relógios apostavam corrida; o elevador rangia no corredor; a torre longínqua da igreja badalou uma hora, por entre as buzinas noturnas dos automóveis — e dez minutos mais tarde já cintilavam novamente os refletores, na fachada do Grande Hotel.

— Você está dormindo?

— Não!

— Está bem acomodado?

— Estou.

— Agora você está de olhos abertos. Sinto suas pestanas no meu braço, quando você abre e fecha os olhos. Que engraçado! Um homem tão grande, com pestanas de criança. Diga-me, você está satisfeito?

— Nunca me senti tão feliz como agora.

— Que é que você disse?

— Nunca me senti tão feliz com uma mulher como agora.

— Repita isso de novo, repita!

— Nunca me senti tão feliz — murmurou Gaigern de encontro à carne fresca e branca do braço em que sua cabeça repousava. Ele estava dizendo a verdade. Sentia-se indescritivelmente repousado e agradecido. Nunca sentira coisa semelhante em suas aventuras de amor barato; essa embriaguez sem ressaibos, esse repouso trêmulo após o amplexo, essa profunda confiança do próprio corpo em outro corpo. Seus membros repousavam, distendidos e satisfeitos, ao lado dos membros da mulher; havia profunda compreensão mútua entre a pele dela e a sua. Sentia qualquer coisa que não tinha nome, nem mesmo o nome de amor: um retorno, após prolongada ausência. Ele ainda era jovem, mas nos braços da Grussinskaia, já perto da velhice, sob a ação de suas carícias amorosas, suaves, conscientes e delicadas, tornava-se mais jovem ainda.

— Que pena... — murmura de encontro ao braço da mulher; levanta um pouco a cabeça, e a pousa no ninho da axila da companheira, um pequenino e cálido lar, com aroma de mãe e de prado.

— Pelo seu perfume eu a encontraria em qualquer parte do mundo, de olhos vendados — diz ele, farejando como um cãozinho. — Que perfume é esse?

— Deixe disso, e diga-me: pena por quê? Você... Deixe esse perfume... tem o nome de uma florzinha que cresce nas campinas: Neuwjada. Não sei como se chama em alemão. Tomilho? É feito em Paris para mim. Diga, pena por quê?

— Pena que se comece sempre com a mulher errada. Que se continue idiota durante uma infinidade de noites, pensando que é assim que se goza, que o prazer é essa coisa corrupta, e depois fria e desagradável como um estômago enjoado. E é pena que a primeira mulher com quem dormi não tivesse sido como você.

— Deixe disso... menino mimado — murmura a Grussinskaia, pousando os lábios nos cabelos dele, naquela peliça dura, espessa e quente, cheirando a macho e a cigarro, sempre bem penteada e alisada, e agora completamente em desordem. Ele roça com as pontas dos dedos, a respirar docemente, o flanco da sua companheira.

— Sabe? Você é tão leve! Levíssima! Um pouco de espuma numa taça de champanha — diz ele com carinho e admiração.

— Pois é. É preciso ser leve — responde a Grussinskaia.

— Estou com vontade de vê-la, agora. Posso acender a luz?

— Não, não! — exclama ela afastando dele o ombro. Ele percebe que a assustou, que assustou essa mulher, cuja idade ninguém sabe com certeza. Sente novamente uma compaixão simples e espontânea. Vai escorregando o corpo para junto dela, e por fim os dois ficam em silêncio, pensando. A luz da rua paira no forro, como um reflexo, estreito e agudo como uma espada, penetrando no quarto pela abertura das cortinas. Quando passa lá embaixo um automóvel uma sombra se espalha rápida no reflexo do forro.

"As pérolas", pensa Gaigern, "para o diabo. Se eu tiver sorte e tudo correr bem, posso metê-las de novo no estojo, quando ela dormir. Vai haver um escândalo com o meu pessoal, se eu for me encontrar com eles sem as pérolas. Contanto que o chofer não faça alguma loucura, contanto que esse animal não tome hoje de noite uma bebedeira de raiva e me estrague tudo... Que azar! Só Deus sabe onde é que vamos arranjar dinheiro, agora. Talvez seja possível sangrar esse herdeiro de província, que geme durante a noite no quarto ao lado, no -70. Ora! Que diabo! Não adianta ficar pensando nisso. Talvez eu possa simplesmente lhe pedir as pérolas. Talvez amanhã eu lhe conte simplesmente do que se trata. Se eu souber fazer as coisas direitinho, não será ela quem me mandará prender amanhã, não fará isso, essa pequerrucha leve e maluca. Deixar as pérolas rolando, numa maleta aberta! Que mulher engraçada, agora eu a conheço. Nem se importa com pérolas! Para ela, nada tem importância, tudo é indiferente. Se eu não tivesse aparecido, ela já não precisaria mais se incomodar com as joias. Para que ainda precisa de pérolas? Deve me fazer presente das pérolas, ela é tão boa... Ah, como é boa! Parece uma mãe, uma minúscula mamãezinha, com quem a gente pode dormir."

A Grussinskaia pensa: "Às onze horas o trem parte para Praga. Contanto que esteja tudo em ordem! Hoje eu abandonei tudo, e amanhã nada estará em ordem. Pimenoff é muito mole para lidar com a troupe; as meninas o levam pela ponta do nariz. Mas quem perder o trem amanhã será despedido, com certeza. Se Pimenoff esta noite não se preocupou com os cenários, amanhã eles não estarão empacotados; os empregados do palco deveriam ter trabalhado horas extras à noite. Mas as coisas que eu não faço ficam sempre por fazer. E as contas a acertar com Meyerheim? Meu Deus, como é possível que eu tenha abandonado tudo? Witte, se a gente não presta atenção nele, esquece até a própria cabeça no hotel. Preciso sempre pensar por todos, e esta noite não estive lá. Vai haver uma débâcle horrorosa. A Lucille há muito tempo que tem vontade de se revoltar. Para vocês nunca são suficientemente grandes as letras dos seus nomes nos cartazes, não é verdade? Sua propaganda nunca é bem feita. Mas vocês, sozinhos, não fazem nada, é preciso fazê-los trabalhar com o knut, para que vocês se conservem em forma. Vocês me fizeram ficar má, convencida e cansada. Meu Deus, como eu estava cansada ontem... Faltou muito pouco para vocês verem se são capazes de alguma coisa sem a Grussinskaia. Mas agora não me sinto cansada, agora poderia me levantar e dançar todo o programa, ou mesmo um outro programa, um bailado novo. Preciso falar com Pimenoff, ele precisa criar um novo bailado: a dança do medo. Oh, essa dança eu poderia dançar agora para vocês. Primeiro num lugar só, apenas um tremor, e depois três círculos nas pontas, ou mesmo sem ser nas pontas, talvez uma coisa completamente diferente.

''Mas estou viva", pensa ela, abalada, "estou viva, e vou criar novos bailados, vou ter sucesso. Uma mulher que é amada tem sempre sucesso. Vocês me fizeram passar fome desde... há mais de dez anos, foi isso. É estranho que um bobinho que pulou o balcão para vir aqui possa dar à gente tanta energia! Um rapaz simpático, que do amor só conhece o jargon das mocinhas..."

Ela puxa o cobertor e cobre Gaigern, como se ele fosse uma criancinha. Ele sussurra, agradecido, faz-se pequenino e fraco, e enfia o nariz na carne dela. Seus corpos já se conhecem, mas seus pensamentos se distanciam para lados distintos, dentro da noite. Em todos os leitos do mundo, os amantes ficam deitados muito unidos, mas tão separados!...

É a mulher quem primeiro procura adivinhar o que se passa na outra alma. Toma a cabeça do homem nas mãos, como se fosse um fruto grande e pesado colhido ao sol, e murmura em seu ouvido:

— Eu ainda não sei como você se chama, meu amigo.

— Costumam chamar-me de Felix. Meu nome todo é: Felix Amadei Benvenuto, Barão von Gaigern. Mas você precisa me dar um novo nome, precisa me batizar também. Quero ter um nome dado por você.

A Grussinskaia pensa um pouco, depois dá uma risadinha.

— Sua mãe devia ter esperado muita coisa de você, quando você nasceu, para lhe dar nomes tão bonitos — disse ela. — O venturoso. O amado de Deus. O bem-vindo. Você chorou ao ser batizado?

— Não me lembro muito bem.

— Ah! Sabe? Eu também tenho uma filha. Que idade você tem, Benvenuto?

— Hoje, tenho dezessete anos, de novo. Estou pela primeira vez com uma mulher. Mas minha idade comum é trinta anos.

Aumentou um pouco a idade, por estranha delicadeza para com a mulher que sente medo da luz elétrica e da própria idade. Apesar disso, ela se sente magoada. "Ele poderia ser o pai do meu neto Pompon, de oito anos", pensa a Grussinskaia sem querer. "Passons!", ordena a si mesma.

— Como era você em criança? Muito bonito? Ah, é claro, era muito bonito.

— Simplesmente encantador. Cheio de sardas, de galos e arranhões, e muitas vezes cheio de piolhos também. Tínhamos ciganos para tratar dos nossos cavalos; isso é muito comum na fronteira, onde ficava a nossa propriedade. Os meninos ciganos eram meus amigos. Eles me passavam toda espécie de bichos e de sarna. Quando me lembro da minha infância, sinto sempre um cheiro de estéreo de cavalo. Depois me tornei durante alguns anos o terror de vários companheiros de seminário. Por fim estive por pouco tempo na guerra. Da guerra eu gostei. Na guerra eu me senti em casa. Por mim, tudo podia ter sido muito pior do que foi. Se houver guerra de novo, tudo estará bem para mim, novamente.

— Agora as coisas não vão bem para você, seu condottiere? Que vida você leva? Que espécie de indivíduo é você?

— E você? Que espécie de mulher é? Nunca conheci nenhuma como você. Em geral as mulheres não têm muitos segredos. Mas a você tenho curiosidade de conhecer, preciso perguntar-lhe muitas coisas. Você é muito diferente das outras.

— Sou apenas antiquada. Sou de um outro mundo", de um século diferente do seu, é apenas isso — disse a Grussinskaia com voz sonhadora. Ao mesmo tempo sorriu nas trevas, e lágrimas ardentes lhe vieram aos olhos. — Educaram-nos como soldadinhos, a nós, bailarinas, com severidade, com pulso de ferro, no Instituto de Ballet Imperial de São Petersburgo. Pequenos regimentos de recrutas para o leito dos grão-duques, é o que nós éramos. Dizem que, nas meninas que aos quinze anos começavam a engordar, colocavam argolas de aço em volta dos seios, para que eles não crescessem mais. Eu era pequena e magra, mas dura como um diamante. Orgulhosa, sabe; tinha o orgulho no sangue, como pimenta e sal. Uma máquina do dever, trabalhando, trabalhando, trabalhando. Sem descanso, sem tempo para descansar, nunca! E depois: quem se torna célebre fica completamente só. Com o sucesso, a gente se sente gelada e solitária como no pólo norte. Sabe o que significa ter sempre sucesso, durante três, cinco, dez, vinte anos, sempre, sempre? Mas o que é que eu lhe estou contando? Você está me compreendendo? Ouça: muitas vezes a gente passa por uma estação de estrada de ferro, ou à noite passa de automóvel por uma pequena cidade. As famílias estão sentadas diante das portas, todos muito rígidos, com cara de idiota, com as manoplas pousadas no colo, e ninguém se move. É isso, veja, é isso! É isso o que nós desejamos: sentirmo-nos fatigados, e ficar simplesmente sentados, com as mãos imóveis, pousadas no colo. Mas se você for uma pessoa célebre, procure desaparecer do mundo, descanse, deixe que as outras bailarinas dancem, essas alemãs feias e com luxações nos músculos, essas negras, toda essa gente que não sabe nada; deixe que elas dancem, descanse! Veja, Benvenuto, isso não é possível, é absolutamente impossível. Odeia-se o trabalho, amaldiçoa-se o trabalho, mas não se pode existir sem o trabalho. Três dias de descanso, e vem o medo: vou perder a forma, estou ficando pesada, minha técnica está indo embora. É preciso dançar, como uma loucura, nem a morfina e a cocaína, nenhum vício no mundo é tão venenoso como o trabalho e o sucesso, acredite-me. É preciso dançar, somos obrigados a dançar. E isso também é importante. Se eu parar de dançar, não existe mais ninguém no mundo que saiba realmente dançar, acredite-me. Todas as outras são diletantes; mas é preciso que haja alguém que saiba dançar, que saiba o que significa a dança, em meio a um realismo histérico, horrível! Eu aprendi com as antigas celebridades; com a Kocressínskaia, com a Trefilovna, e elas, por sua vez, aprenderam com os grandes do bailado, há quarenta, há sessenta anos. Às vezes tenho a impressão de que tenho de dançar contra o mundo inteiro, contra o brado de "atualidade!" De um lado, estão vocês, um teatro repleto de ganhadores da vida e homens-máquinas, participantes da guerra e acionistas... e do outro, estou eu. Uma pobre e pequenina Grussinskaia, velha, não é verdade? Tão sentimental, tão antiquada, com os seus passos já conhecidos há duzentos anos. E, no entanto, eu os atraio ainda, e vocês choram, riem, desesperam-se e extasiam-se; e tudo por quê? Por causa desse balezinho fora da moda? Será tão importante, isso? Certamente, porque só tem sucesso mundial aquilo que tem importância para o mundo, aquilo de que o mundo precisa. Mas, ao lado disso, tudo se despedaça, dentro de nós nada mais resta. Nem marido, nem filhos, nenhum sentimento, nenhum conteúdo. Deixamos de ser indivíduos humanos como os outros, compreende? Não somos mulheres, somos apenas uma migalha esgotada de responsabilidade, que perambula pelo mundo. No dia em que termina o sucesso, no dia em que perdemos a crença de que somos indispensáveis, a vida acaba para nós. Você está me ouvindo? Está me compreendendo? Gostaria tanto que você me compreendesse — disse a Grussinskaia, em tom implorante.

— Não compreendi tudo... mas quase tudo. Você fala francês muito depressa — respondeu Gaigern.

Durante os meses em que ficou à espreita, atrás das pérolas, ele frequentou inúmeras vezes os espetáculos de ballet da Grussinskaia, aborrecendo-se sempre, em geral. Ficou profundamente admirado ao saber que a Grussinskaia, conforme parecia, arrastava consigo, como um martírio, os rodopios do ballet. Ela está colada com tanta leveza às coxas de Gaigern, tem uma vozinha delicada, com um gorjeio colorido e modulado e fala coisas tão sérias!... Que se pode responder a isso? Ele suspira. Fica pensando.

— Foi muito bonito o que você disse das pessoas à noite, com as mãos imóveis. Você devia dançar isso — declarou ele finalmente, confuso.

A Grussinskaia contentou-se em rir.

— Dançar isso? Mas não se pode dançar uma coisa assim, monsieur. A não ser que me queiram ver no papel de uma velha com um pano na cabeça, com gota nos dedos, dura como um pau, apenas repousando...

Cortou a frase no meio. Enquanto falava, seu corpo já tinha se apossado da imagem, contraindo-se e enrijecendo. Ela já estava vendo o cenário, conhecia um jovem pintor amalucado, em Paris, que poderia pintar uma coisa assim; já via o bailado, já o sentia nas mãos e na nuca curvada. Ficou calada, com a boca entreaberta, na escuridão. Nem respirava, tal a excitação que sentia. O quarto se encheu de personagens que ela nunca dançara, e que poderiam ser dançadas, de centenas de vultos reais e viventes. Uma mendiga a tremer, estendendo os braços, uma velha campônia dançando mais uma vez no casamento da filha... Diante de um balcão de feira encontrava-se uma mulher magra, apresentando umas míseras prestidigitações, uma prostituta esperava por homens sob uma lanterna. Uma menininha, que havia quebrado uma chave e levava uma surra; uma criança de quinze anos, que era forçada a dançar nua diante de um homem imponente, enorme e cintilante, um senhor, um grão-duque, e também a espinhosa paródia de uma governanta; uma mulher que corria como se a estivessem perseguindo, apesar de não ser esse o caso; uma outra que queria dormir e não podia; uma que tinha medo de espelho; e ainda uma outra que bebia veneno e morria.

— Fique quieto... não diga nada... não se mexa — sussurrou a Grussinskaia olhando para o forro, em que se via a espada luminosa. O aposento adquirira o aspecto estranho e misterioso que os quartos de hotel às vezes gostam de apresentar. Lá embaixo os automóveis lançavam fumaça pelo escapamento, buzinavam, parecendo animais, porque a Liga dos Filantropos terminara a sua festa, e começava a saída pelo portão 2. A noite esfriou. Do turbilhão das ideias e dos rostos, a Grussinskaia voltou ao quarto com um leve arrepio. "Pimenoff vai pensar que eu estou louca, ele, com seus baileis de borboletas. Quem sabe se estou louca mesmo?" Da sua divagação de um minuto, havia retornado ao leito, como se voltasse de uma longa viagem. Gaigern ainda continuava deitado. Ela quase se assustou ao encontrar de novo o homem encostado ao seu ombro, com seus cabelos, suas mãos e sua respiração.

— Que espécie de homem é você? — perguntou ela mais uma vez, nas trevas, com o rosto bem sobre o dele. Ela sentia intimamente, nesse instante, o espanto de se encontrar tão próxima de uma coisa tão estranha e diferente dela. — Ontem eu ainda não o conhecia. Quem é você? — perguntou ela de encontro à cálida umidade da boca do homem.

Gaigern, que já estava quase adormecendo, deixou os dois braços tombarem sobre as costas da mulher, e ela teve a impressão de ser a esguia cadela galga de sua casa, a Biche.

— Eu? Não há muita coisa a contar — respondeu ele, obediente, mas sem abrir os olhos. — Sou um filho pródigo. Sou uma ovelha negra de um bom curral. Sou um mauvais sujet, e vou acabar na forca.

— É verdade? — perguntou ela, dando uma risadinha arrulhante.

— É verdade — disse Gaigern, convencido. Começara a cantarolar como uma ladainha, e por brincadeira, aquelas velhas frases e advertências dos professores do seminário; mas, ao perfume cálido de tomilho daquela cama, veio-lhe o desejo de confessar-se e de ser sincero.

— Sou um devasso — continuou ele a falar na escuridão. — Não tenho caráter, e sou de uma curiosidade incrível. Não consigo me adaptar a nada, sou um sujeito inútil. Em casa aprendi a montar e a ser o senhor. No seminário aprendi a rezar e a mentir. Na guerra, a atirar e a procurar pôr-me a salvo. Mais do que isso não sei fazer. Sou um cigano, um marginal, um aventureiro.

— Ah, você... E o que mais?

— Sou um jogador, e não me importo de fazer trapaças. Também já roubei. A bem dizer, eu devia estar é na prisão. Mas ando por aí, e me sinto às mil maravilhas, e faço tudo o que me dá na veneta fazer. Às vezes me embebedo também. E, além do mais, sou preguiçoso de nascença.

— Continue — murmurou a Grussinskaia, encantada. Sua garganta estava vibrando, de tanto conter o riso.

— Pois bem, sou um criminoso. Um homem que escala muros de fachadas — disse Gaigern, sonolento —, um assaltante.

— E que mais ainda? Talvez um assassino, também?

— Isso mesmo. É claro. Um assassino também. Estive a ponto de matá-la — afirmou ele.

A Grussinskaia ainda se riu, um pouco inclinada sobre o rosto de Gaigern, que ela sentia, apesar de não o ver, mas de repente ficou muito séria. Cruzou as mãos por detrás do pescoço dele e murmurou em surdina ao seu ouvido:

— Se você não tivesse vindo ontem, eu não estaria viva agora!

"Ontem?", pensou Gaigern. "Agora?" A noite no 68 parecia ter durado uma eternidade, devia ter sido há alguns anos que ele estivera no balcão e enxergara a mulher no quarto. Levou um susto. Apertou-a em seus braços com força, como um lutador de luta livre: os músculos flexíveis da bailarina resistiram — ele o sentiu com estranho prazer.

— Você nunca mais deve fazer uma coisa dessas.

Você tem de ficar aqui. Não a deixarei ir-se embora mais. Preciso de você — afirmou.

E ficou a ouvir a própria voz, ao pronunciar tão curiosas palavras, com uma voz diferente, rouca, que parecia provir do fundo palpitante de seu coração.

— Não, agora tudo mudou. Agora está tudo bem. Agora você está comigo — murmurou a Grussinskaia; mas Gaigern não a compreendeu, porque ela falou em russo.

Ele sorveu a entonação da sua voz, e a noite começou de novo a rumorejar. Pássaros de sonho saíram das trepadeiras da tapeçaria que forrava as paredes do hotel... O homem se esqueceu das pérolas no bolso do seu pijama azul e a mulher se esqueceu do insucesso e dos veronais na xícara de chá.

Nenhum dos dois se atreve a pronunciar esta palavra caduca: "amor". Juntos, deslizam no confuso turbilhão da noite de amor, passando dos abraços aos murmúrios, dos sussurros a um breve sono e aos sonhos, e dos sonhos a um novo abraço: duas pessoas vindas de dois pontos opostos do mundo, para encontrar-se por algumas horas no leito do quarto 68, onde tanta gente já dormiu...


8

 

Na vida da Grussinskaia o amor não havia representado um papel importante. Tudo o que o corpo e a alma possuíam de paixão fluía para a dança. Tinha tido alguns amantes, porque isso fazia parte da vida de uma bailarina célebre, assim como as pérolas, o automóvel, os vestidos das boas casas de moda de Paris e de Viena. Rodeada de admiradores, requisitada e perseguida por apaixonados, não acreditava apesar de tudo na existência do amor. Ele não lhe parecia mais real do que os cenários pintados, os templos de amor e as sebes de roseiras diante dos quais seus bailados eram executados. Apesar de permanecer fria e de não conseguir entusiasmar-se, passava por uma amante maravilhosa, única. Por seu lado, praticava o amor como um dever da sua profissão, como uma peça de teatro, por vezes agradável, mas sempre exaustiva, requerendo uma arte requintada. Toda a flexibilidade do seu corpo, seu flutuar etéreo, a sutilidade, o requinte, a delicadeza e a suavidade, o impulso e o arrojo, a emoção e a debilidade, todos os impecáveis requisitos da sua dança, ela levava consigo para os amigos com quem passava as noites. Sabia embriagar de prazer, mas não se embriagava a si mesma. Na dança, era capaz de enlouquecer, de esquecer-se de si própria, e por vezes seus partners ouviam-na soltar gritinhos abafados, como um passarinho, durante as posições mais difíceis e movimentadas. No amor, porém, nunca perdia a consciência de si mesma, estava sempre se observando. Era estranho: não acreditava no amor — e no entanto não podia viver sem amor.

Porque o amor — ela o sabia — era uma parte do sucesso. Enquanto fora jovem, e seu camarim transbordava de flores e de cartas, enquanto em todo o seu percurso os homens se postavam, prontos a arruinar-se, a fazer por ela qualquer espécie de loucura, a abandonar a fortuna e a família, ela sentia que o sucesso a bafejava. Nas confissões de amor, nas ameaças de suicídio, nas perseguições por toda parte, pelo valor dos presentes que recebia dos conquistadores podia-se perceber o sucesso, do mesmo modo que nos aplausos, nas críticas e no número de chamadas ao proscênio. Ela não o sabia, mas o amante que a encantava e lhe causava prazer era, a bem dizer, um público perante o qual ela tinha sucesso. E pela primeira vez percebeu, horrorizada, que o sucesso diminuía, quando Gaston a abandonou, para casar-se com uma moça sem muitos dotes, mas de boa família. A atmosfera que a rodeara durante anos esfriou e se tornou sombria, uma atmosfera noturna, incompreensível. Era uma escadaria que ia descendo por centenas de degrauzinhos, tão pequenos que quase não a deixavam aperceber-se dela. E, no entanto, era vastíssimo o caminho que conduzia aquela Grussinskaia de antes da guerra, que dançara para um mundo cheio de romantismo e de êxtase, à atual Grussinskaia, que mendigava um pouco de aplauso de um punhado de pessoas céticas, indiferentes e maldosas. O seu fim, como última consequência, era a completa solidão, e uma dose forte de veronal.

Por essa razão, o homem do balcão significava para a Grussinskaia mais do que um simples homem. Era um milagre que acontecia no último instante no 68, para salvá-la; era o sucesso evidente que a procurava; o mundo que penetrava cheio de ardor em seu quarto; era a prova de que os tempos românticos ainda não haviam passado, os tempos em que um jovem Jerilinkov se deixava matar com um tiro por ela. Ela se deixara cair, mas encontrara alguém que a erguia do solo.

Havia no programa da Grussinskaia um bailado em que a morte dançava um pas de deux com o amor; os poetas que lhe escreviam, por vezes, enviavam-lhe versos em que voltava sempre o banal pensamento de que a morte e o amor eram irmãos. Nessa noite, a Grussinskaia comprovava em si própria a verdade desse lugar-comum. A vertigem dolorosa da noite passada transformou-se em embriaguez, num torvelinho de gratidão, num anseio febril de receber e de dar, de sentir e conservar. Os anos gelados se derretiam. O vergonhoso segredo da sua frieza, que escondera durante toda a vida, desfazia-se, deixava de existir. Há tantos anos se sentia de tal modo pobre e solitária, que às vezes mendigava à pele jovem e cálida do seu partner, Michael, uma esmola de calor. Nessa noite, nesse quarto indiferente de hotel, nessa cama comum de metal brilhante, ela se sentia arder, transformava-se, descobria o amor, que não acreditava que existisse.

Os quartos 68 e 69 eram tão parecidos que, ao despertar, Gaigern não sabia muito bem onde se encontrava. Quis virar-se para a parede do seu quarto, mas encontrou o vulto pequenino da Grussinskaia, que dormia e respirava docemente. Recordou-se. A maravilhosa e profunda confiança do primeiro sono dormido junto repousava em seus membros como um peso suave. Retirou seu braço, que adormecera debaixo do pescoço da mulher, e com leve e ' solene comoção rememorou os acontecimentos dessa noite. Não havia dúvida — estava apaixonado, e além disso, de um modo completamente novo e grato. Sem que as pérolas influíssem no seu sentimento, não podia deixar de pensar, envergonhado: somos uns porcos. Não era a história gorada das pérolas que influía no seu sentimento. Sobe-se a um quarto alheio: inventa-se uma comédia atroz, representa-se — e a mulher acredita em tudo. Faz questão de acreditar. Os homens representam e as mulheres acreditam neles. A bem dizer, no começo a gente é sempre um embusteiro e um assaltante; mas em seguida, a mentira transforma-se em verdade. "Eu gosto muito de você, pequenina Mouna, querida e boa Neuwjada, eu te amo, je t’aime, je t'aime. Você fez uma bela conquista, mulherzinha, você..."

Fazia frio no quarto; lá fora já devia estar amanhecendo; a rua estava silenciosa, uma réstia de luz crepuscular penetrava por entre as cortinas, e o desenho da tapeçaria das paredes começava a esgueirar-se pela madrugada. Gaigern levantou-se com o maior cuidado. A Grussinskaia dormia profundamente, com o queixo enterrado no próprio ombro. Agora, que passara o tumulto da noite, as duas cápsulas de veronal pareciam estar fazendo efeito. Gaigern tomou-lhe a mão, que pendia para fora do leito, repousou na sua palma as pálpebras quentes, e depois enfiou aquela mãozinha frouxa sob o cobertor, como se a Grussinskaia fosse um bebezinho. Foi caminhando com cuidado, na meia escuridão do quarto, até o balcão, e abriu lentamente as cortinas. A Grussinskaia não despertou. "Agora tenho que pôr em ordem o negócio das pérolas", pensou Gaigern. Admirou-se de sentir-se satisfeito com a solução. "Um round perdido", pensou ele sem se aborrecer. Gostava de usar essas expressões de esporte, em seus empreendimentos aventureiros. Tateou à procura do pijama, e sorriu ao encontrar as diversas partes do seu vestuário atiradas por todo o quarto; em seguida entrou no banheiro. Ao contato da água, o ferimento da sua mão direita começou a arder e a sangrar; lambeu-o com indiferença e não se importou mais com isso. O aroma acre e murcho de louros, no aposento, acentuara-se. Gaigern, desejoso de respirar ar fresco, foi ao balcão e aspirou profundamente; seu peito ainda estava repleto de uma doce e desconhecida angústia.

Lá fora paira, sobre a rua que desperta, uma neblina fria que o vento leva. Nem automóveis nem gente. A distância, ouve-se o sibilar de um bonde a correr nos trilhos. Não surgiu ainda o sol, mas há uma luz leitosa e igual. Uns passos martelados, na esquina, e novamente o silêncio. Um pedaço de papel flutua como um passarinho enfermo sobre o asfalto, e depois pousa no chão. A árvore plantada não muito longe do portão 2 balouça os galhos sonhadores. Um sonolento passarinho de março, bem lá em cima, pousado na haste delicada de um botão, experimenta a voz no tumulto da grande cidade. Um caminhão cheio de caixas com garrafas de leite segue aos solavancos, muito cheio de si; a neblina que desliza cheira a maresia e a gasolina; a grade do balcão tem um brilho úmido. Gaigern encontra suas meias de larápio no balcão, e enfia-as depressa no bolso, junto das luvas, da lanterna de bolso e das pérolas de quinhentos mil marcos, de que ainda precisa se livrar. Torna a entrar no quarto, deixando as cortinas abertas; a luz pálida cai em triângulo no tapete, estendendo-se até o leito em que dorme a Grussinskaia.

Agora ela está estendida de costas, com a cabeça tombada de lado, dando a impressão de que a cama é grande demais para o seu corpo delicado e pequenino. Gaigern, para quem a maioria das camas de hotel são curtas, achou graça e sentiu-se comovido. Teve um súbito pensamento, uma ideia carinhosa. Foi buscar a xícara de veronal na mesinha e também os tubinhos de vidro vazios, e dirigiu-se com eles ao banheiro. Com os cuidados de uma ama, lavou a xícara, depois de esvaziá-la, e secou-a com um lenço. Ao encontrar o roupão de banho da Grussinskaia, com um gesto infantil, beijou-o na manga. Não havendo lugar para colocar os vidrinhos, guardou-os no bolso, junto das pérolas. A Grussinskaia suspirou dormindo, quando ele se aproximou de novo da cama. Inclinou-se sobre ela, franzindo a testa, mas ela continuou a dormir. Já clareara um pouco. Agora ele podia ver bem de perto, e com clareza, o rosto dela. Os cabelos caíam para trás, muito lisos, deixando descobertas as fontes reentrantes, estreitas e sombreadas. Por baixo dos olhos fechados evidenciava-se a idade, em dois sulcos profundos. Gaigern o percebeu, porém sem desgosto. A boca era linda, acima do queixo delicado, mas já murcho. Um pouco do pó de arroz pálido ainda ficara em sua testa, perto da franjinha. Gaigern lembrou-se, divertido, de que durante a noite ela tirara de baixo do travesseiro um estojinho de pó de arroz, antes de permitir-lhe que acendesse a lâmpada. "Agora eu a estou vendo bem", pensou ele com o sentimento primitivo de triunfo de um assaltante de mulheres. Começou a observar o rosto da mulher, como se fosse uma paisagem desconhecida, em que se passeia à procura de aventuras. Observou duas misteriosas riscas simétricas que partiam das fontes, ao longo das orelhas, indo até a garganta, uma linhazinha mais clara do que o resto da pele. Passou o dedo com cuidado sobre a linha; era uma delicada cicatriz que rodeava seu rosto, como a fímbria de uma máscara. De repente, Gaigern compreendeu do que se tratava. Eram as cicatrizes da vaidade, cortes na pele para esticá-la e rejuvenescer — ele já lera qualquer coisa a esse respeito. Sorrindo, sacudiu a cabeça, com um ar de incredulidade. Sem querer, apalpou suas próprias têmporas, que eram bem lisas, e vibravam com batidas fortes e saudáveis.

Encostou com a maior delicadeza o seu rosto no da Grussinskaia, como se pudesse assim transmitir um pouco do seu ser para a companheira. Admirou-se ao perceber quanto a amava nesse momento, com um amor terno e compassivo. Teve a impressão de estar sendo um sujeito limpo e correto, ligeiramente ridículo, sem dúvida, nos sentimentos que dedicava à pobre mulher, cujos segredos ele tinha descoberto.

Afastou-se da cama e ficou por uns minutos diante do espelho, com a testa enrugada, a boca ligeiramente aberta, mergulhado em pensamentos. Estava pensando se não seria possível, apesar de tudo, ficar com as pérolas. Não, não era possível. Por enquanto, ele continuava a ser o Barão von Gaigern, um homem um tanto leviano, que convivia com uma gente ordinária. Com dívidas, sim, mas ainda digno de confiança. Se saísse do quarto com as pérolas, então a polícia seria avisada dentro de poucos minutos e sua existência de cavalheiro estaria terminada. Seria um criminoso perseguido pela polícia, como qualquer outro. Isso não lhe convinha, em absoluto. Não fazia parte do seu programa ter-se tornado o amante da Grussinskaia, mas era um fato consumado, e modificava todo o resto. Pesou as chances, como teria pesado as chances de um pugilista ou de um tenista. Empreendimentos como esse das pérolas eram o seu esporte e, desta vez, o jogo lhe estava sendo desfavorável. Não era possível roubar essas pérolas; na situação atual, só poderia recebê-las de presente, caso tivesse paciência. "E preciso esperar", pensou Gaigern, suspirando profundamente. Suas reflexões eram objetivas e realistas, mas ele não queria admitir que no fundo havia ainda outra coisa por trás disso tudo. Não queria ter a consciência do próprio ridículo, e detestava sentimentalismos. Olhou para o espelho e fez uma careta para si próprio. "Em resumo", pensou aborrecido, "não é do meu feitio roubar o adereço de pérolas de uma mulher com quem dormi. Agora não tenho a mínima vontade de fazer tal coisa. Eu sofreria com isso — e acabou-se!

"Neuwjada", pensou ele com súbito carinho, olhando para a cama; "bondosa Mouna, eu preferia poder oferecer-lhe algum presente, muitos presentes, uma coisa bonita e valiosa, alguma coisa que lhe causasse prazer, pobrezinha." Puxou de dentro do bolso o colar de pérolas, com precaução e sem ruído. Já não gostava mais delas. Talvez até fossem falsas, apesar de todas as lendas dos jornais; talvez nem fossem tão valiosas como a propaganda dizia. De qualquer modo, ele se separava agora delas com a maior facilidade.

Quando a Grussinskaia procurou despertar, sua cabeça estava envolta no sono como em espessos véus. "É o veronal", pensou, continuando com os olhos fechados. Nos últimos tempos ela tinha medo de despertar, tinha medo do choque que sentia ao defrontar-se com os aborrecimentos da vida. Tinha a vaga sensação de que nessa manhã alguma coisa boa e agradável a esperava, mas não descobriu logo do que se tratava. Lambeu os lábios, pensando encontrar neles o gosto sonolento e seco da noite. Movimentou os dedos das mãos, como um cão a mover-se em sonhos. Seu corpo estava cansado, exausto, mas satisfeito, como após um enorme sucesso, após uma noite com muitos da capo, em que é preciso esgotar completamente as forças. Sentiu sobre as pálpebras fechadas a claridade matutina, e por um instante pensou que estava em Tremezzo com os reflexos da superfície do lago, em seu quarto de dormir cinzento-rosado. Decidiu abrir os olhos.

Primeiro, viu sobre os joelhos um cobertor que não conhecia, da altura de uma montanha; depois, a tapeçaria das paredes do hotel, com o desenho de frutas tropicais vermelhas, pendentes de frágeis hastes, um desenho que dava a impressão de observá-la fixamente, com um olhar febril e absorto.

Nessas tapeçarias das paredes dos hotéis colava-se todo o tédio da sua vida sem parada. O canto perto da escrivaninha estava sombrio; ali, a cortina estava fechada e não podia saber as horas. A porta do balcão estava aberta e deixava entrar uma brisa fresca. Ao lado da mesa do espelho, virada para a claridade da varanda, a Grussinskaia, ainda sonolenta, percebeu a silhueta larga e escura de um homem. Estava de costas, com as pernas meio abertas, firme e imóvel, com a cabeça inclinada, observando qualquer coisa que ela não podia ver. "Sonhei com alguma coisa parecida há pouco", pensou primeiro, ainda meio apalermada de sono, sem se assustar. "Já aconteceu coisa parecida na minha vida", pensou em seguida. "Jerilinkov", pensou finalmente. De repente, seu coração disparou como um motor, ela acordou totalmente, e lembrou de tudo.

Respirou com a boca fechada, sem ruído, mas profundamente, e com o ar que aspirou ocorreu-lhe a lembrança de tudo o que se passara durante a noite. Retirou um braço de baixo do cobertor, sentindo-o muito leve, com vontade de voar. Tateou, à procura do estojinho de pó de arroz, e, dirigindo um olhar sério ao minúsculo espelho redondo, começou a se arrumar. O delicado perfume do pó de arroz lhe causou prazer; sua imagem agradou-lhe. Sentia amor por si própria, como há muitos anos não sentia. Segurou seus pequeninos seios, como costumava fazer, mas nessa manhã isso lhe causou um prazer especial. Gostou de sentir a própria pele, lisa, fresca e satisfeita. "Benvenuto", disse em pensamento; e em russo "Chelani". Mas como só pronunciou esse nome para si mesma, o homem não pôde ouvi-la. Lá estava ele, de pernas abertas, com seus belos ombros, como um dos carrascos de Signorelli — descobriu a Grussinskaia, encantada —, ocupado com algum objeto pousado na mesinha do espelho. Ela se levantou e olhou-o sorrindo.

 

Gaigern estava com as mãos dentro da maleta em que se encontravam suas pérolas. Ela ouviu claramente o ruído de um dos estojos, reconhecendo o estalido agudo e surdo; era o estojo comprido de veludo azul, onde ficava o colar de cinquenta e duas pérolas de tamanho médio. No primeiro momento a Grussinskaia não percebeu por que razão esse ruído a assustava mortalmente. Seu coração parou, e depois voltou a bater com pancadas pesadas e sonoras, que ecoavam dolorosamente por todo o corpo. Doíam-lhe as pontas dos dedos, que se tornaram rígidas. Os lábios também. Mas ainda continuava a sorrir; esquecera-se de retirar da boca o sorriso, que permaneceu, enquanto seu rosto esfriava, tornando-se branco como papel. "É um ladrão", pensou a Grussinskaia, adivinhando tudo. E esse era um estranho pensamento, silencioso e definitivo, como um corte que lhe atravessasse o coração. Julgou perder a consciência, desejando-o com ardor, mas ao invés de acontecer isso, uma infinidade de pensamentos lhe passou pela cabeça durante um segundo, claros, cortantes, entrecruzando-se, entrechocando-se; um duelo de pensamentos.

O sentimento torturante de ter sido enganada atrozmente; vergonha, medo, ódio, cólera, uma dor medonha. E, ao mesmo tempo, uma fraqueza profunda como um abismo; não queria ver, não queria compreender, não queria acreditar na verdade, só desejava abrigar-se na piedade da mentira.

— Que faites-vous? — murmurou às costas do carrasco. Pensou que estava gritando, mas apenas sussurrou por entre os lábios rígidos: — Que está fazendo?

Gaigern levou tal susto que sua cabeça se virou de súbito; e seu susto era uma confissão de culpa. Na mão ele guardava o estojinho cúbico de um dos anéis; a suitcase estava aberta, o colar de pérolas estendia-se sobre a placa de vidro da mesinha do espelho.

— O que está fazendo aí? — sussurrou mais uma vez a Grussinskaia, causando dó, realmente, vê-la sorrir, com o rosto pálido e desfigurado.

Gaigern compreendeu-a logo, de novo se encheu de piedade, uma piedade ardente, que ele sentia palpitar nas têmporas. Dominou-se com energia, e conteve-se.

— Bom dia, Mouna — disse amavelmente. — Encontrei aqui um tesouro, enquanto você dormia.

— Como é que encontrou as minhas pérolas? — perguntou a Grussinskaia, com voz rouca. "Minta, minta", pedia seu olhar esgazeado.

Gaigern aproximou-se dela, e pousou a mão sobre seus olhos, como um guarda-sol. "Pobre bichinho, pobre femeazinha."

— Estive remexendo em suas coisas. Estava procurando um adesivo, um pedaço de atadura, qualquer coisa... imaginei que iria encontrar alguma coisa na valise. E lá estava o seu tesouro. Tenho a impressão de ser Aladim na gruta.

Até mesmo a cor dos olhos dela desaparecera; eles pareciam agora de chumbo, e só pouco a pouco lhes foi voltando sua cor negra azulada. Gaigern estendeu diante dela a palma da mão ferida, a sangrar ligeiramente, como prova do que dizia.. A Grussinskaia, lânguida e com os nervos frouxos, pousou nessa mão os lábios. Gaigern pousou a outra em seus cabelos, e puxou sua cabeça de encontro ao peito aberto do pijama de seda azul. Ele podia mostrar-se bastante brutal e ordinário com as mulheres com quem costumava encontrar-se. Mas esta, sabe o Diabo por quê, despertava nele todos os bons instintos. Era tão frágil, tão maltratada pela vida, necessitava tanto de auxílio — e ao mesmo tempo era tão forte... Pela existência que ele levava, que parecia estar sempre a pender de um fio, Gaigern compreendia a dela.

— Bobinha — disse ele com carinho. — Será que você pensou que eu estava cobiçando as suas pérolas?

— Não — mentiu a Grussinskaia. Essas duas inverdades foram a ponte sobre a qual os dois amantes se puderam encontrar. — Aliás, eu não as uso mais — acrescentou ela, respirando aliviada.

— Não as usa mais? E por quê?...

— Você não compreende essas coisas. É uma superstição. Antigamente elas me davam sorte. Depois me trouxeram infelicidade. E agora que deixei de usá-las, me dão sorte de novo.

— É mesmo? — perguntou Gaigern pensativo, procurando vencer o mal-estar e o acanhamento que sentia.

As pérolas repousavam de novo, em ordem, em seu pequeno leito. "Adieu!" Até logo, pensou ele, como uma criança. Meteu as mãos nos bolsos, num gesto decidido; lá se encontravam as ferramentas de ladrão, mas nenhuma presa. Sentia-se felicíssimo, com uma sensação de leveza e de satisfação, espantosamente renovado e farto. Abriu bem a boca e soltou uma exclamação de júbilo, emitindo um som forte e cheio. A Grussinskaia começou a rir. Gaigern atravessou o quarto correndo, aproximou-se dela e mergulhou em sua pele seu grito de prazer, deixando-se cair sobre a mulher, com a boca, o olhar e o sentimento. Ela tomou suas mãos e beijou-as; esse gesto exprimia uma gratidão humilde, em parte real, em parte representada.

— Está sangrando — disse ela, com a boca sobre o pequeno ferimento.

— Seus lábios são como os de um cavalo — respondeu Gaigern —, macios como um potrinho preto, de magnífico pedigree.

E ajoelhou-se, abraçando os joelhos da mulher, cujos tendões vibravam por baixo da pele. Justamente quando a Grussinskaia fez menção de se curvar sobre ele, alguma coisa ronronou na escrivaninha; um tilintar breve, depois longo, novamente breve.

— O telefone — disse a Grussinskaia.

— O telefone? — repetiu Gaigern.

A Grussinskaia suspirou profundamente. Não adianta, exprimia a sua fisionomia, ao erguer o fone do gancho com um gesto cansado, como se ele pesasse uma tonelada. Suzette estava ao telefone.

— São sete horas — anunciou sua voz matinal rouca. — Madame precisa levantar-se. É preciso arrumar as malas. Posso mandar o chá? E se madame quiser que lhe faça massagem, já está na hora — e Herr Pimenoff pede que lhe telefone imediatamente, assim que madame se levantar.

Madame ficou pensando durante um segundo.

— Daqui a dez minutos, Suzette... não, dentro de quinze minutos você pode trazer o chá, e depois faremos um pouco de massagem.

Colocou o fone no gancho, mas continuou a segurá-lo, enquanto estendia a outra mão a Gaigern, que ficara no meio do quarto, a balançar o corpo sobre as solas finas de cromo dos seus sapatos de pugilista. Ela ergueu imediatamente o fone, de novo, e lá de baixo o porteiro respondeu com uma voz diligente e serviçal, apesar de não ter pregado olho durante toda a noite, porque sua mulher não estava passando muito bem na clínica.

— Que número, por favor? — disse ele com voz enérgica.

— Wilhelm, sete, zero, dez! Com Herr Pimenoff! Pimenoff não estava hospedado no hotel, mas numa pensão de segunda classe, que uma família de imigrantes russos abrira no quarto andar de uma casa em Charlottenburg. Parece que lá ainda estavam dormindo. Enquanto a Grussinskaia esperava, viu em espírito o velho Pimenoff, correndo ao telefone com seu surradíssimo pijama de seda, com os pés magros, que ele mantinha sempre com as pontas um pouco abertas para fora, como se estivesse fazendo a quinta posição. Finalmente ele atendeu, com sua voz delicada e nervosa de velho.

— Ah, Pimenoff, é você? Bom dia, dobroie utro, meu caro! Sim, obrigada, dormi bem, não, não tomei muito veronal, só dois comprimidos; obrigada, tudo ali right, coração, cabeça, etc, etc. Como? O que aconteceu? O Michael está com um derrame de sangue no joelho? Mas, meu Deus, por que é que você não me disse isso ontem à noite? É horrível! Custa muito a passar, muito mesmo... Nós sabemos o quanto demora! E que providências você tomou? Como? Não fez nada, ainda? Mas é preciso mandar imediatamente um telegrama ao Tcherenov, ouviu? Imediatamente, ele precisa vir ajudar. Meyerheim que vá telegrafar. Onde está metido o Meyerheim? Vou chamá-lo logo pelo telefone. É cedo demais? Com licença, querido, por que razão para nós não é cedo demais, e para Herr Meyerheim... Não, por favor! E os cenários, já foram levados para a estação? Mas, por favor, com o primeiro despacho, quando começa a ser feito o primeiro despacho? Às seis? Se os cenários não estiverem lá, você é o responsável, Pimenoff. Nem uma palavra mais, você é o mestre de bailei, é quem deve cuidar dos cenários; não tenho nada que ver com isso. É, espero sua resposta dentro de meia hora no máximo, vá você mesmo à estação. Adieu!

Dessa vez ela nem chegou a pousar o fone; apenas fez pressão no gancho com dois dedos. Chamou Witte, que costumava levantar-se pela manhã um pouco apalermado, e que, apesar dos inúmeros anos de tournées, ficava sempre como uma pilha, e fazia uma confusão medonha. Depois, a Grussinskaia chamou Michael, que estava hospedado num hotelzinho e se pôs a lamentar-se como um cãozinho pisado, sobre o derrame de sangue. A Grussinskaia gritou-lhe severas ordens e conselhos pelo telefone; ela ficava furiosa, e era injusta sempre que qualquer elemento da troupe adoecia. Chamou três médicos, antes de encontrar um que pudesse ir ver logo o Michael, para dispensar-lhe os cuidados necessários e levar-lhe ligaduras com compressas de terra argilosa e vinagre. Chamou Meyerheim ao telefone, discutiu com ele num francês excitado, e intimou-o a comparecer às oito e meia no hotel para acertar as contas. Enviou pelo telefone um telegrama a Tcherenov e, por precaução, outro a um jovem bailarino, que dançava bem e estava sem contrato em Paris. Em seguida, com o auxílio do porteiro Senf, ligou para o expresso de Paris, pelo qual o jovem bailarino poderia chegar a tempo em Praga, e depois procurou passar um terceiro telegrama.

— Por favor, chéri, abra a torneira do banheiro — disse ela apressadamente a Gaigern, entre uma ligação e outra, matraqueando em seguida uma série de ordens em inglês, pelo telefone, ao chofer Berkley, porque o carro não devia seguir com eles, mas nesse meio tempo ir para uma garagem, a fim de ser limpo. Gaigern foi ao banheiro e obedeceu-lhe, abrindo a torneira. Fez mais ainda: estendeu sobre o aparelho de calefação o roupão de banho, para aquecê-lo. Procurou a esponja com que no dia anterior lavara o rosto desfigurado da Grussinskaia e levou-a para o banheiro, enquanto ela continuava a falar no telefone. Encontrou sais de banho e jogou um punhado na água, que já estava transbordando. Teria de bom grado feito mais alguma coisa para ela, mas não encontrou mais nada para fazer. A Grussinskaia também parecia ter terminado, por enquanto, seus telefonemas.

— Você está vendo?... todos os dias é assim — disse ela, procurando dar à voz uma entonação de queixa; mas sua voz só exprimia uma vitalidade exuberante e o prazer de arrumar as malas para a viagem.

— É preciso fazer isso tudo. E depois o Michael diz: há sempre espalhafato em torno da Grussinskaia. Ele dá a isso o nome de chi-chi, como se tudo não passasse de uma brincadeira.

Gaigern, de pé diante dela, estava faminto por um pouco de carinho, de intimidade, e estendeu-lhe ambas as mãos; mas ela estava distraída. Pensava no derrame de Michael. Ouvia de novo o tique-taque dos dois relógios.

Tomou depressa do telefone e chamou Suzette mais uma vez.

— Espere mais dez minutos, Suzette — pediu ela com muita cortesia, e com a consciência da própria culpa.

Seu olhar aflorou à mesa e à xícara de chá da noite anterior. Lá estava a xícara, muito bem lavada, com uma expressão de profunda inocência e candura, o brasão dourado do hotel a cintilar na porcelana grossa.

"Que noite maluca", pensou a Grussinskaia. "Não, essas coisas não se fazem. E bailados como os que imaginei hoje não se podem dançar. Foi apenas o resultado de uma excitação nervosa. Os vienenses me vaiariam se eu apresentasse bailados como imaginei, em vez da pomba ferida e das borboletas. Em Viena o público é diferente do de Berlim; lá eles sabem o que é ballet."

Apesar de Gaigern a estar olhando fixamente, de frente, ela não o via. Ele sentiu uma ligeira dor, desconhecida até então, uma dor estranha e viva, que lhe cortava a respiração.

— Tomilho! Neuwjada! — disse ele baixinho, indo buscar as palavras no profundo tumulto da noite. Elas conservavam seu perfume agridoce, e a inesquecível recordação. E, realmente, ao ouvir-se chamar desse modo, a Grussinskaia voltou a olhar para ele, e sua fisionomia assumiu uma expressão tensa de sofrimento, embora sorrisse.

— Acho que precisamos nos separar agora, querido — disse ela com um tom de voz propositadamente forte e inflexível, para evitar que a voz se quebrasse.

Havia esquecido, apagado por completo as lembranças das pérolas. Tinha apenas um sentimento de apego e aconchego, por essa mulher, um desejo infinito de ser bom para ela, muito, muito bom. Com uma sensação de desamparo, girou no dedo o anel de sinete com o brasão dos Gaigern, em lápis-lazúli.

— Tome — disse ele estendendo a mão e oferecendo-lhe o anel, com um gesto desajeitado de menino. — É para que você não se esqueça de mim.

"Não o verei mais?", pensou a Grussinskaia. Esse pensamento a fez sentir um ardor nos olhos, e a fisionomia bonita de Gaigern foi desaparecendo em meio das suas lágrimas. Esse era um pensamento que não se devia exprimir. Ela ficou esperando. "Deixe-me ficar com você. Vou ser muito bom para você", pensou Gaigern. Apertou os lábios com força e obstinação e não disse nada.

— Você vai para Viena? — perguntou ele.

— Primeiro para Praga, por três dias. Depois catorze dias em Viena. Vou ficar hospedada no Bristol — acrescentou.

Silêncio. Tique-taque de relógios. Buzinas de automóveis diante do hotel. Cheiro de enterro. O arfar da respiração.

— Você não pode viajar comigo, querido? Preciso de você — disse finalmente a Grussinskaia.

— Eu... para Praga não posso ir. Não tenho dinheiro. Preciso primeiro arranjar o dinheiro.

— Eu lhe dou — respondeu ela prontamente. Com a mesma pressa Gaigern respondeu:

— Não sou um gigolô!

De repente caíram ambos nos braços um do outro, impulsionados por qualquer coisa de grande, num abraço forte, unidos no momento em que tinham de se separar.

— Obrigado — disseram ao mesmo tempo —, obrigado, obrigado — repetiram em três línguas: alemão, russo e francês, num balbucio confuso, num tom de soluço, num sussurro .choroso, em júbilo: — Obrigada, merci, bolchoie spassibo, danke.

Nesse instante Suzette está recebendo das mãos do criado de quarto, com ar de ofendido, a bandeja com o chá. São sete horas e vinte e oito minutos. O relógio na escrivaninha corre, sem fôlego; o outro, de cansaço, parou. Continue, continue, continue, bate ele, em tom de reprimenda.

— Então, em Viena? — diz a Grussinskaia, com as bordas das pestanas úmidas. — Daqui a três dias? Você segue depois que eu partir. E depois se encontra comigo em Tremezzo; vai ser ótimo, vai ser maravilhoso estarmos juntos! Vou tirar umas férias, de seis a oito semanas, e nós vamos*viver, querido, vamos somente viver, deixando tudo para trás, tudo isso que não tem sentido; vamos apenas viver, ficaremos idiotas de tanta preguiça e felicidade; e depois você vai comigo para a América do Sul. Você já conhece o Rio? Eu... não, chega. Está na hora. Vá! Vá! Querido! Obrigada!

— Daqui a três dias o mais tardar — diz Gaigern. A Grussinskaia ainda faz pairar em seu redor, às pressas, um pouco da sua graça de dama da alta-roda.

— Tome cuidado para chegar ao seu quarto sem me comprometer muito — pediu ela, fechando as duas portas, uma após a outra.

Quando Gaigern, em silêncio, soltou a mão da mão dela, sentiu-a dolorida. Sangrava de novo. O corredor está silencioso, as inúmeras portas vão-se perdendo na longa perspectiva. Nas soleiras, as botinas dormem, com as orelhas pendidas. O elevador vem descendo e, no terceiro andar, alguém corre para não perder o trem. No hall da escada, uma das janelas de vidro leitoso está aberta, deixando sair para o pátio a fumaça dos cigarros dessa noite. Gaigern se esgueira, com suas solas de pugilista, por sobre o tapete de ananases; entra no 69, seu próprio quarto, e fecha a porta com uma gazua. A chave ainda está na caixa, na portaria.

A Grussinskaia, depois de tomar banho, deita-se de bom grado, para entregar-se às mãos de massagista de Suzette. Sente-se forte, elástica e cheia de energia. Tem uma vontade enorme de dançar, e está ansiosa pelo próximo espetáculo. Sente que terá sucesso agora, pois em Viena se tem sempre sucesso; ela o sente nas pernas, nas mãos, no pescoço, que inclina para trás, repentinamente, e na boca, que tem sempre desejos de sorrir. Veste-se e sai correndo, como um pião. Com enorme élan, atira-se às ocupações da manhã, à discussão com Meyerheim, à luta subterrânea com as perfídias da troupe, ao trabalho paciente com Pimenoff e Witte.


9

 

 

Às nove horas o groom 18 traz um buquê de rosas: "Até logo, querida boca", está escrito num pedacinho rasgado de papel do hotel. A Grussinskaia beija o anel de sinete com o brasão dos Gaigern. — Porte-bonheur — sussurra, como a falar com um velho conhecido. Agora ela já tem de novo um talismã. "Michael tem razão. Vou doar as pérolas... para as crianças pobres", pensa ela. Suzette segura com luvas de tricô a alça da suitcase, enquanto o criado leva o resto da bagagem. Sem saudades, a Grussinskaia deixa o quarto do hotel, tão cheio de aventuras, com aquela tapeçaria da parede que lhe fazia mal aos nervos. No Hotel Imperial de Praga já está reservado para ela um outro quarto com banheiro privativo dando para o pátio, o número 184. Também no Rio, em Paris, em Londres, em Buenos Aires, em Roma foi feita igual reserva; espera-a uma infindável perspectiva de quartos de hotel com portas duplas e água corrente, e o cheiro indefinível de incessante movimento e de coisas desconhecidas.

Às nove horas e dez a camareira, que não dormiu durante a noite, tira muito mal o pó do quarto 68, joga fora as cestas de flores secas, leva a xícara de chá e finalmente traz roupa de cama limpa — ainda úmida da passagem a ferro — para o próximo hóspede.

 

O relógio, pérfido como todos os despertadores, deixou de acordar o Diretor-Geral Preysing, com seu tilintar pontual e enérgico. Às sete e meia tilintou apenas durante um segundo, e isso foi tudo. Preysing, que dormia com a boca aberta e seca, mexeu-se ligeiramente, as molas do colchão gemeram, e por trás do reposteiro amarelo o sol brilhou um pouco. Às oito horas o porteiro, muito cumpridor de seus deveres, despertou o diretor chamando-o ao telefone, mas já era tardíssimo. Preysing pôs a cabeça meio tonta de sono embaixo da ducha, praguejando baixinho por ter-se esquecido de trazer o aparelho de barbear. Um pedante como ele perdia toda a alegria com uma coisa assim. Apesar de estar atrasado, levou alguns minutos escolhendo o terno que ia vestir. Depois de já ter escolhido o cut, despiu-o com raiva. Calculou — e talvez com razão — que não seria vantajoso vestir o cut; o terno cinzento de viagem, pelo contrário, demonstraria imediatamente aos senhores de Chemnitz que não estava tão interessado assim por todo aquele negócio. Apressou-se o mais que pôde, mas até que arrumasse todos os saquinhos e estojos, que procurasse todas as chavinhas, as encontrasse e enfiasse nas fechaduras, folheasse mais uma vez seus documentos e contasse mais uma vez o dinheiro, já eram mais de nove horas. Com a cabeça quente, saiu correndo do apartamento e, no corredor, deu um encontrão em um homem.

— Desculpe! — disse Preysing, parando diante da porta de seu quarto, para conseguir enfiar o outro braço no casaco.

— Não foi nada! — replicou o cavalheiro, continuando seu caminho sobre a passadeira. Preysing julgou reconhecer esse modo de manter as costas. Quando chegou ao elevador, o homem já ia descendo; o diretor pôde vê-lo também de frente e julgou reconhecê-lo igualmente, sem se recordar de onde. Teve a impressão de que ele sorria zombeteiramente, enquanto descia no elevador, diante do seu nariz. Preysing, excitado e impaciente, desceu a escada correndo e foi em disparada pelos corredores até o subterrâneo de azulejos, onde o barbeiro do hotel tinha o seu salão; ali cheirava a água estagnada de porão e a Peau d'Espagne. No salão estavam sentados muitos cavalheiros, metidos em batas brancas, como babies esperançosos, entregues às manipulações dos barbeiros vestidos com jaquetas brancas. Preysing, impaciente, começou a dançar sobre suas grossas solas de crepe.

— Vai demorar muito para chegar a minha vez? — perguntou ele, roçando o rosto por barbear, nas palmas das mãos.

— No máximo dez minutos. Há só um senhor na sua frente — responderam-lhe.

O tal senhor que havia chegado antes dele era o homem que descera no elevador, e Preysing olhou-o com desagrado. Era um sujeitinho insignificante, magro e modesto, meio vesgo por trás de uns óculos a escorregarem, e com o nariz pontudo inclinado sobre um jornal. Preysing tinha uma vaga ideia de já ter tratado de negócios com esse homem, mas não conseguia recordar-se em que circunstâncias. Postou-se diante dele, fez uma leve curvatura, e procurando ser amável disse:

— Por favor, o senhor podia me fazer a gentileza de me ceder a sua vez? Estou com muita pressa.

Kringelein, que se encolhera todo atrás do jornal, juntou suas forças. Mostrou a cara por trás do artigo de fundo, estendeu o pescoço fino, voltou-se para o diretor-geral olhando-o de frente e respondeu:

— Não!

— Desculpe... mas é que estou com muita pressa — tartamudeou Preysing em tom de reprimenda.

— Eu também — replicou Kringelein. Preysing, furioso, virou as costas e saiu do salão de barbeiro. Como um vencedor, um herói, mas completamente exausto e vazio pela desmedida tensão nervosa, Kringelein, ofegante, continuou sentado, envolto no aroma das essências dos sabões de barbear.

Atrasado, com a barba por fazer e com a ponta da língua doendo, por tê-la queimado no café fervendo, o diretor-geral entrou na sala de conferências. Os outros senhores já tinham soltado na sala uma bela fumaceira azul de charuto. A sala, com seu pano de mesa verde, a imitação de tapeçaria de damasco nas paredes e o retrato a óleo do fundador do Grande Hotel, tinha um aspecto de conforto e solidez. O Dr. Zinnowitz já havia colocado seus documentos na mesa, na sua frente; o velho Gerstenkorn estava sentado na cabeceira da compridíssima mesa, presidindo a sessão, e, para cumprimentar, ergueu apenas a metade do corpo, porque ele pertencia à geração robusta do sogro de Preysing, conhecera o diretor-geral ainda moço e não o tinha em grande conta.

— Está atrasado, Preysing? — perguntou ele. — Quarto de hora acadêmico? Não passou bem ontem de noite? É isso, Berlim tem dessas coisas! — riu-se com a tosse grossa e encatarrada dos bronquíticos, e apontou para a cadeira a seu lado.

Preysing sentou-se defronte de Schweimann com a desagradável impressão de ter levantado com o pé esquerdo, e seu lábio superior, sob o bigode, estava úmido antes mesmo de começar a luta. Schweimann, que tinha pálpebras espessas e uma boca grande e de lábios grossos, uma boca elástica de macaco, apresentou um terceiro senhor:

— O nosso síndico, o Dr. Waitz — disse ele.

O Dr. Waitz era jovem ainda; tinha um ar distraído, mas não o era em absoluto, e durante as conversações podia tornar-se bem desagradável, com sua voz dominadora e agressiva de trombeta. Tinha sido trazido também pelos senhores de Chemnitz.

— Nós já nos conhecemos — disse Preysing com pouco entusiasmo.

Schweimann ofereceu, por sobre a mesa, um charuto ao diretor-geral. O Dr. Zinnowitz tirou do bolso do colete uma caneta-tinteiro e a colocou à sua frente, ao lado dos documentos. Bem afastada, sentada à mesa, do outro lado da garrafa de água e dos copos que ofuscavam facilmente os olhos e vibravam sobre uma bandeja preta, sempre que passava lá fora algum ônibus, estava uma personagem apagada: a Flamm número um, com o bloco de estenografia na mão, envelhecida e insignificante, com uma leve penugem branca de traça nas faces, calada, cumpridora dos seus deveres, impossível de ser confundida com a Flamm número dois.

— Bonita caneta — observou Schweimann a Zinnowitz. — De que marca é? Muito bonita.

— Gosta? Recebi-a de Londres. É bonita, não é verdade? — respondeu Zinnowitz, escrevendo sua assinatura fluente num caderninho de notas. Todos olharam.

— Quanto custa uma caneta assim, se me permite perguntar-lhe? — informou-se Preysing, tirando sua própria caneta do bolso do colete e colocando-a na mesa. E todos os presentes olharam também para a caneta inglesa.

— Umas três libras, sem pagar a alfândega. Um conhecido me trouxe — esclareceu o Dr. Zinnowitz.

— Que coisa prática! Muito prática.

Todos estenderam as cabeças por sobre a mesa, como meninos de escola, e observaram a caneta-tinteiro de malaquita verde, de Londres. Esse objeto merecia de fato que cinco participantes adultos de uma conferência se ocupassem dele durante três minutos.

— Bem, agora vamos tratar de negócios — disse afinal o velho Gerstenkorn com sua voz encatarrada, e imediatamente o conselheiro Zinnowitz apoiou seus dedos alvacentos sobre a coberta verde da mesa e começou, com palavras fluentes e preparadas de antemão, uma exposição do assunto, fazendo ressoar a voz na atmosfera azul da sala de conferências.

Preysing permitiu-se uma pequena pausa para se acalmar. Ele próprio não era bom orador, e se sentia agradecido por Zinnowitz ter assumido essa tarefa, e por suas frases se ensarilharem, fluentes e claras, como atiradas por uma máquina. E isso não era mais que a introdução. Primeiro falou de coisas que já haviam sido há muito tempo ruminadas em negociações preliminares. Expôs mais uma vez a situação em que as negociações estavam, enquanto ia pescando, na pasta dos documentos, ora este ora aquele papel, levando as longas colunas de números bem próximo dos olhos míopes para poder lê-las com mais facilidade.

Tornando a repetir, era este o ponto em que estavam as negociações: a Algodoeira Saxônia S.A., que fabricava principalmente tecidos de algodão e cobertores, e com o refugo fabricava uma qualidade muito apreciada de serapilheira, era uma firma de boa envergadura e grande capital. Seu ativo em terrenos, prédios e maquinaria, em mercadorias em bruto e manufaturadas, em patentes, etc, e principalmente em crédito, totalizava um capital considerável. Os impostos anuais e o produto líquido conservavam-se numa sólida média, os dividendos haviam somado, ainda no ano passado, nove e meio por cento.

Zinnowitz ia lendo as cifras, mais ou menos satisfatórias, e Preysing o ouvia com agrado. No seu empreendimento estava tudo limpo e em ordem, e a produção com o refugo, que sozinha trazia trezentos mil em bruto, fora organizada por ele. Olhou para Gerstenkorn. Este, com a maneira pensativa e meio simplória dos velhos manhosos, balançava de um para outro lado a cabeça grisalha, à escovinha. Schweimann aspirava seu charuto, parecendo não estar ouvindo. Waitz controlava as cifras que eram lidas, uma a uma, olhando para um caderninho com capa de couro, onde ele tomara notas. A Flamm número um, verdadeira mestra, na arte da secretária particular, em não fazer notar sua presença, com olhar fixo fitava os reflexos na água, em que a caneta tomava o aspecto tremulante de uma pequena e aguda baioneta. Zinnowitz tirou outro maço de papéis de entre os documentos colocados uns sobre os outros e passou então a tratar da situação da Malharia de Chemnitz. Sua barba longa e fina de chinês subia e descia quando ele falava.

A Malharia de Chemnitz era — deduzia-se das cifras — um empreendimento muito menor. Mal possuía a metade desse ativo, e seu balanço demonstrava uma situação bastante precária. Ele tinha anotado apenas o principal, mas, não obstante, tivera de lançar uma elevadíssima participação de lucros. Os impostos anuais eram altos. O lucro líquido mal chegava à altura dos impostos. Considerando tudo isso, as cifras do balanço da Chemnitz mantinham-se espantosamente elevadas. Zinnowitz colocou um amável e pequeno sinal de interrogação por trás das últimas cifras que lera, e fitou o velho Gerstenkorn.

— Suba. Pode arredondar para duzentos e cinquenta mil marcos, pode fazê-lo.

— O senhor não pode fazer as contas assim — observou Preysing, que tinha ficado nervoso. — O senhor precisa amortizar o preço das novas máquinas para o novo processo. Nesse caso, o senhor não poderá anotar nem mesmo suas velhas máquinas.

— Mesmo assim. Mesmo assim — insistiu Gerstenkorn, teimoso.

O Dr. Waitz trombeteou:

— Poderemos considerar as nossas cifras muito mais desvalorizadas do que valorizadas.

O Dr. Zinnowitz pôs em cima da mesa um papel para o diretor-geral, e este, forçando a vista, aprofundou-se nos seus cálculos. O resultado ele já conhecia. A Malharia de Chemnitz era um empreendimento de pouca solidez, fundado com pouco capital, e com o crédito quase estourando. Mas impunha-se, tinha bons lucros, parecia estar se desenvolvendo, tinha as conjunturas a seu favor. Enquanto isso, a Algodoeira Saxônia ficava para trás, ia adormecendo, sólida e bem fundada como era. Algodão, cobertores e serapilheira. O mundo não se interessava, no momento, por cobertores e serapilheira. E o velho de Fredersdorf sabia por que razão ele insistia, nas atuais circunstâncias, em agarrar a oportunidade dos tecidos de malha, e trazer assim um lucro para o seu empreendimento.

— Isso não tem importância. Vamos adiante — disse o diretor, com a condescendência de um homem que está em posição inferior. Gerstenkorn tirou da mão dele o balanço e, alisando delicadamente o papel, tossiu uma risada.

Zinnowitz, com palavras fluentes, já havia tratado da situação das ações, havendo, nesse ponto, um erro evidente. O capital efetivo da Saxônia era quase duas vezes maior do que o ativo dos senhores de Chemnitz. Partindo dessa premissa, todas as outras negociações preliminares haviam decorrido de modo que, na fusão das duas firmas, duas ações da Chemnitz equivalessem a uma ação da Saxônia. Mas as ações da Chemnitz haviam subido, as da Saxônia baixado, o equilíbrio tinha-se modificado sensivelmente, e o Dr. Zinnowitz, com um gesto conciliante da mão, teve que conceder — a base das trocas se modificara, em razão da espantosa subida das ações da Malharia de Chemnitz. Preysing ouvia com desagrado a voz polida do seu advogado, que com muitas frases, impecáveis e condicionais, trazia à luz uma quantidade de coisas desagradáveis, que ele estava farto de saber. Seu charuto já não lhe dava mais prazer; tirou ainda algumas baforadas enérgicas, e acabou pondo-o de lado. Num certo ponto da exposição de Zinnowitz, o Dr. Waitz saltou, como um ator na sua deixa, bateu rapidamente com a palma da mão no pano verde da mesa, e opôs suas objeções. Começou a ler cifras no seu caderno de notas, sem olhá-lo sequer, novos números, números diferentes — Preysing contraiu de tal modo os músculos da testa, que seus olhos saltaram das órbitas, tal o esforço que fazia para conservar na memória todas aquelas coisas, para perceber tudo e não perder de vista o aspecto geral do assunto. Puxou para o seu lado alguns papéis de carta do hotel, que estavam em cima da mesa, e se pôs a rabiscar notas às escondidas, e excitado como um mau aluno. O conselheiro Zinnowitz, por seu lado, havia apenas lançado um olhar à Flamm número um, e a boa moça já estava a estenografar as agressivas palavras e provas no seu bloco, com riscos azuis. O Dr. Waitz apresentou o conjunto de suas trombeteadas objeções: não, não era possível exigir dos acionistas da Malharia de Chemnitz um prejuízo de metade do seu capital, no caso de tal fusão. Conforme sua opinião, não havia nenhum motivo plausível para, no caso de uma eventual fusão — ele frisou o "eventual", como um ator de província —, conceder a primazia à Saxônia, com relação à sociedade de Chemnitz, para de certo modo colocar num plano de dependência essa firma em plena florescência, para pô-la simplesmente a um canto.

Zinnowitz olhou para Preysing, e este, obediente, se pôs a falar. Tinha o hábito de falar de coisas importantes com voz nasal e abafada, num tom aborrecido e monótono; pelo fato de se sentir intimamente um homem pouco seguro de si, empregava tais meios para demonstrar aos outros calma e superioridade. As palmas de suas mãos estavam úmidas, quando se atirou à luta. Os olhos de Schweimann arrastaram-se para fora das órbitas vermelhas em que habitavam, como camundonguinhos cinzentos, e Gerstenkorn colocou os polegares nas cavas do colete, com a expressão de uma pessoa que está se divertindo. As paredes de damasco falso ouviam tudo, com indiferença. Conferências como essa se realizavam diariamente no Grande Hotel; nesse enorme Kaff eram cozidas muitas sopas, que em seguida os acionistas tinham que engolir. O açúcar subia de preço, as meias de seda barateavam, o carvão desaparecia, tudo isso e milhares de coisas mais dependiam do decorrer dessas lutas na sala de conferências do Grande Hotel.

Preysing ia falando. Quanto mais ele falava, com uma voz que ressoava como se a tivesse posto sobre a neve, e quanto mais minucioso se tornava, tanto mais perdia terreno. As interrupções breves e concludentes de Gerstenkorn assobiavam por entre suas frases como balas de revólver. Houve momentos em que Preysing teria de bom grado fugido dali, meia-volta, marchar, marchar, abandonando toda essa história imunda de fusão, para voltar para a companhia de Mulle, Pepsin e Babe, em Fredersdorf. Mas era um diretor-geral, e o mundo não era um negócio tão simples assim; dessa fusão muito se esperava para a fábrica, e dela dependia tudo para a sua própria posição dentro da fábrica, pelo que aguentou o repuxo. Puxou mais uma vez do seu ativo, essa prova mais do que sólida de um empreendimento mais do que sólido, e se agarrou a isso com unhas e dentes. Caceteou os senhores da Chemnitz, caindo em pormenores excessivos, e o conselheiro precisou por várias vezes pô-lo em movimento, como a um barco encalhado e lento. Preysing fazia uma confusão medonha, insistia em alguns pontos secundários, teimava sem a mínima razão; caceteava os senhores da Chemnitz com minuciosas descrições da fabricação de tecido de serapilheira, feito com refugo do material, pois era do que mais gostava de falar, esquecendo-se de aludir a assuntos importantes que tinha sublinhado no papel de carta diante dele. Finalmente ficou parado no meio de uma frase que começara como. uma fanfarra e terminou num beco sem saída. Tirou do bolso o lenço e enxugou o suor do bigode; pôs na boca um novo charuto, que tinha gosto de feno. De repente teve a impressão de estar sentado em uma mesa entre contrabandistas, pessoas sem seriedade e sem princípios; sentiu a amargura do homem honesto que e tido por tolo.

Então, Gerstenkorn tirou das cavas do colete seus dedos redondos de burguês atrasado e começou a expor a sua opinião. Esse senhor Gerstenkorn, com sua cabeça quadrada à escovinha e sua voz bronquial, era um orador claro e combativo. Empregava toda espécie de dialetos, para dizer sem rodeios o que queria dizer. Saxão, berlinês, iídiche e mecklemburguês eram o tempero da sua conversa sobre negócios.

— Agora o senhor faça ponto final, e deixe os adultos falarem — observou ele, conservando na boca o charuto, o que tornava sua linguagem, comumente vulgar, mais vulgar ainda, e era o que ele queria. — As coisas de que a Saxônia é capaz o senhor já nos contou, e nós já sabíamos disso tudo. Música também ela não sabe fazer. Já repetimos e tornamos a repetir isso tudo aos nossos principais acionistas, e qual foi o resultado? Receio, um enorme receio, um fundamentado receio da fusão. É engraçado, como é que os acionistas, por causa do seu algodão, iriam meter a mão no caldeirão para tirar as salsichas quentes? Em poucas palavras: a nossa situação melhorou muito desde a primeira vez que o senhor se dirigiu a nós. A sua situação não se modificou, se quisermos ser amáveis e não dissermos que piorou. Nessas condições, nós, falo em alemão claro, meu prezado Preysing, perdemos o interesse na fusão. E estamos aqui com a incumbência de parar com as negociações, nessas circunstâncias. Quando o senhor se dirigiu a nós, as perspectivas eram outras.

— Mas nós não nos dirigimos aos senhores — disse Preysing com rapidez.

— Homem de Deus, o que aconteceu com o senhor? Dirigiram-se a nós, sim! Dr. Waitz, faça o favor de me passar os dados. O senhor dirigiu-se a nós em... aqui está... em 14 de setembro, por carta.

— Não é verdade — teimou Preysing, puxando o maço de documentos que estava diante do conselheiro Zinnowitz. — Nós não nos dirigimos aos senhores. Antes dessa carta já tinha havido uma troca pessoal de impressões, pedida pelos senhores.

— Trata-se disso? Pois um mês antes o seu velho já tinha batido à minha porta, a título particular, com toda a amabilidade.

— Nós não nos dirigimos em primeiro lugar — respondeu Preysing, apegando-se a esse fato absolutamente sem importância, como se isso pudesse salvar alguma coisa. Zinnowitz bateu com os pés estreitos debaixo da mesa, pedindo socorro. De repente, Gerstenkorn pôs fim à discussão, e passou a palma da mão quadrada sobre o pano verde da mesa.

— Está bem — disse ele —, bon. Pois então não se dirigiram, se assim lhe agrada. E, tenham ou não se dirigido, as circunstâncias naquela época eram diferentes, o senhor tem que concordar, Herr diretor-geral — ele disse "Herr diretor-geral", e a mudança da maneira amistosa de falar para esse tom oficial soava ameaçadoramente. — Naquela época tínhamos motivos para desejar uma sociedade com a Algodoeira Saxônia. Hoje, que motivos temos?

— Os senhores precisam de um capital maior — disse Preysing, com toda a razão.

Gerstenkorn, com dois dedos, varreu da mesa a objeção.

— Capital! Capital! Se emitirmos hoje novas ações nos atirarão quanto dinheiro quisermos. Capital! O senhor se esquece de uma coisa: o seu bom tempo foi durante a guerra, naquela ocasião a gente podia arranjar a vida fazendo tecido para o Exército e cobertores. Agora o tempo está bom para nós, entende? Nós não precisamos de capital. Precisamos de matéria-prima barata, para aproveitar o nosso novo processo, e precisamos de novos mercados no exterior. Digo-lhe com toda a franqueza, e diretamente, a opinião da nossa sociedade, Herr diretor-geral. Se a fusão com os senhores for proveitosa para nós, então a concretizaremos. Do contrário, não a faremos. Faça o favor, diga o que pensa sobre isso.

Pobre Preysing! Tinha que expor o seu pensamento. Agora haviam chegado naquele ponto que o amedrontava, desde que pisara o trem misto em Fredersdorf. Lançou um olhar de coelho a Zinnowitz, mas este olhou com um ar de recusa as próprias unhas, bem tratadas e pálidas.

— Não é nenhum segredo o fato de possuirmos ótimas relações no exterior. Só para os Bálcãs exportamos anualmente sessenta e cinco mil marcos de tecido de serapilheira — observou ele. — É natural que, no caso de uma fusão, faríamos o possível para atrair ainda o mercado externo para o produto de malha manufaturado.

— Quais são os motivos que o levam a afirmar isso com tanta certeza? — perguntou o Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, erguendo um pouco o busto, conforme um antigo hábito seu, do tempo em que fora juiz criminal. Dava a impressão de ainda usar a toga, e falava num tom de voz próprio para intimidar a testemunha insegura. O diretor-geral se deixou intimidar.

— Não sei a que motivos se refere — respondeu ele, com seu lamentável costume de perguntar coisas que estava farto de saber.

Schweimann, bem em frente dele, ainda não tinha aberto sua enorme e elástica boca de macaco. Agora a abria.

— Trata-se da planejada sociedade com Burleigh & Son — afirmou ele, sem rodeios.

Gerstenkorn balançava com a máxima atenção a longa ponta de cinza do seu charuto.

— Infelizmente, não estou em condições de dar informações a esse respeito — respondeu Preysing imediatamente. Preparara de antemão essa resposta, e a sabia de cor.

— Que pena! — disse o velho Gerstenkorn.

Em seguida ficaram todos calados durante alguns minutos.

A garrafa de água tilintou levemente na bandeja, porque lá fora passava um ônibus, e o reflexo estreito e contorcido do sol batendo na água parada tremulou na parede sobre a moldura do retrato a óleo do fundador do Grande Hotel. Preysing, durante alguns segundos, se pôs a refletir febrilmente. Não sabia se o Dr. Zinnowitz havia mostrado ao pessoal da Chemnitz as cópias daquelas cartas agourentas, sem o menor valor e importância. Sentia novamente nas mãos aquela impressão de falta de asseio e de trato. Seu rosto por barbear começou a cocar de um modo ridículo. Lançou um olhar inquiridor e implorante ao conselheiro, lá na ponta da mesa. Zinnowitz, procurando acalmá-lo, baixou as pálpebras oblíquas e inteligentes de seus olhos de chinês, um movimento quase invisível, que tanto podia significar sim, como não, ou mesmo não significar absolutamente nada. Preysing dominou-se. "Preciso consegui-lo", pensou ele; era mais um sentimento do que um pensamento.

— Meus senhores — disse ele, levantando-se; é que o forro esticado de veludo da cadeira causava no seu traseiro uma sensação desagradável de calor —, mas, meus senhores, vamos tratar do que importa. A base sobre a qual foram feitas até agora todas as negociações entre nós foi o balanço e a situação da fábrica de Fredersdorf. Os senhores puderam fazer uma ideia bem clara da situação, o senhor conselheiro comercial Gerstenkorn pôde certificar-se pessoalmente das condições em que se encontra a nossa fábrica, e eu faço questão de que hoje não se trate de coisas vagas e imponderáveis nas nossas negociações. Não somos especuladores, eu não sou um especulador, em absoluto, trabalho com fatos e não com boatos. Não passa de um boato da Bolsa, isso de que vamos fazer sociedade com Burleigh & Son, em Manchester. Mandei desmentir isso, não posso permitir que...

— O senhor não vai querer ensinar uma lebre velha a correr, não é? Nós sabemos muito bem o que significa um démenti — replicou Gerstenkorn.

Schweimann agora estava animado; farejava, com as suas narinas dilatadas e a boca de macaco, como se já cheirasse a possibilidade do mercado inglês. Preysing foi-se enfurecendo.

— Não aceito! — exclamou ele. — Não aceito que considerem como um fator importante nos nossos negócios esse assunto da Inglaterra; não aceito isso. Não faço cálculos com castelos na Lua, nunca fiz isso, a nossa fábrica não tem necessidade de fazer semelhante coisa. Conto com coisas reais, com fatos, com cifras, com o nosso balanço, aqui está — exclamou ele batendo três vezes com a palma da mão na pilha de documentos que se encontrava diante dele —, é isso que tem valor... e não permito que se trate de outra coisa. Nós oferecemos agora o que oferecemos desde o primeiro dia, e se isso de repente não basta para a sua firma, sinto muito!

Parou espantado, pois tinha galopado como se corresse sobre um pântano. "Estou assustando os outros com a minha gritaria", pensou ele horrorizado, "preciso atraí-los, e em vez disso estou estragando tudo." Encheu o copo de água e bebeu. Era um líquido grosso, morno e sem sabor, como óleo de rícino. O conselheiro Zinnowitz deu uma risadinha e tentou endireitar a coisa.

— O diretor-geral Preysing é de uma consciência modelar — declarou ele. — Não sei, mas talvez os seus receios de levar de certo modo em consideração o negócio com Manchester sejam injustificados, pelo menos exagerados. Por que não se poderá deixar pesar na balança uma coisa que oferece tão boas perspectivas, mesmo que isso ainda não esteja em preto no branco? Por que...

— Por quê? Porque não posso me responsabilizar por isso — interrompeu-o Preysing. Zinnowitz, que teria de bom grado lhe pisado no pé, mas não o podia fazer, ergueu a voz, dirigindo-se ao diretor-geral. Preysing sentou-se de novo no assento quente da cadeira de veludo, e não disse mais nada. Esteve a ponto de declarar a verdade. Bom, se Zinnowitz não o deixava falar, então o célebre perito em matéria comercial que se arranjasse como pudesse. "A coisa vai mal", pensou Preysing, "já não tem mais conserto, está tudo acabado, morto e enterrado. As negociações fracassaram definitivamente. Está bem." Oferecera a todo mundo uma firma sólida, e tudo que um homem correto pode oferecer. Mas o mundo não queria coisas assim. O mundo queria mercados fictícios, boatos falsos, especulações, por trás dos quais nada havia, a não ser um pouquinho de fanfarronice. Artigos de malha, jumper e sweater, meias de cores variadas de Chemnitz, pensou o diretor-geral, amargurado... E chegou a ver realmente, nesse momento, tais coisas, modernas, coloridas e levianas, que conquistavam o mundo no corpo de moças também levianas.

Zinnowitz continuava o seu sermão; Flamm caíra de novo em sua letargia profissional. Gerstenkorn e Schweimann, no entanto, mal ouviam; com a cabeça metida entre os ombros, conversavam sem nenhuma delicadeza, a meia voz, sobre um assunto qualquer.

— O nosso amigo Preysing — recomeçou o conselheiro — talvez vá um pouco longe demais com os seus escrúpulos. Dizem que a sua fábrica está para firmar um contrato muito vantajoso com a próspera e antiga firma Burleigh & Son. E que faz o nosso caro Preysing? Procura negar isso, como se acaso se tratasse de uma bancarrota. Considerando que se trate apenas de um boato... não há boato algum que não contenha um fundo de verdade, todos nós sabemos. E um velho homem de negócios como o conselheiro comercial Gerstenkorn há de concordar que há boatos que têm mais valor do que muito contrato pronto e assinado. Mas como antigo advogado da fábrica de Fredersdorf, posso afirmar: isso é mais do que um boato, há certos ajustes por trás disso. Desculpe-me, caro Preysing, se não guardo a discrição férrea que o senhor guarda. Não tem nenhum sentido insistir em negar, desde que já se realizaram inúmeros entendimentos a esse respeito. Talvez hoje ainda não se possa saber com certeza se eles conduziram a um resultado positivo. Mas isso é um fato, e um fato menos desfavorável do que o seu balanço. Acho extremamente correto e delicado Herr Preysing não querer juntar ao ativo da sua fábrica esse fato, acho isso realmente de uma correção e distinção fora do comum. Mas dessa maneira não se vai para a frente. Desculpe-me, portanto, se eu confio essas coisas a estes senhores.

Zinnowitz continuou a murmurar um palavreado conciliante, com muitos "no entanto" e "como também" e “se acaso" e "por outro lado". Preysing tinha empalidecido; teve a sensação, ao sentir nas fontes uma pontada do sangue a fugir, o sentimento de que havia realmente empalidecido. "Ele lhes mostrou as cartas", pensou. "Mas, Deus do céu, isso já é intriga, já é quase uma fraude. Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann", pensou ele, enxergando as letras azul-escuras e apagadas do telegrama. Meteu a mão no bolso do colete do seu terno cinzento de funcionário, onde guardara o telegrama, mas retirou-a no mesmo instante, como se a tivesse metido num forno quente. "Se eu agora não me levantar imediatamente, e não disser o que está se passando, então a coisa está perdida", pensou, levantando-se. "Porém, se eu falar agora, estes senhores se afastarão, a fusão vai por água abaixo e eu voltarei para Fredersdorf completamente desacreditado", refletiu, sentando-se de novo. Procurou disfarçar seus movimentos indecisos e inoportunos, e, colocando água num copo até o meio, sorveu-a, como se fosse um remédio.

Enquanto isso, Schweimann e Gerstenkorn tinham-se animado. Eram duas cabeças de comerciantes, finórias e lustrosas de unção. Sua atenção foi despertada para o fato de Preysing ter negado com tanta veemência o negócio com a Inglaterra, tentando pôr de lado o assunto. Seu olfato sentia alguma outra coisa por trás disso: mercados, proveitos, talvez concorrência. Gerstenkorn teve uma ideia, que murmurou à enorme orelha direita de Schweimann:

— Se se tratasse de qualquer outra pessoa, um desmentido assim seria quase o mesmo que uma afirmação. Mas com esse animal que é o Preysing, é possível até que ele esteja falando a verdade.

Gerstenkorn deu uma investida brutal.

— Não adianta o conselheiro estar gastando o seu latim — disse ele, inclinando-se sobre a mesa. — Antes de continuarmos a nossa conversação, quero pedir a Herr Preysing o favor de nos dizer sem rodeios até que ponto chegaram as negociações com Burleigh & Son.

— Recuso-me a isso — afirmou Preysing.

— Insisto, caso continuemos a negociar — retrucou Gerstenkorn.

— Então — replicou Preysing — peço-lhe que, no decorrer das negociações, esse assunto seja dado por encerrado.

— Nesse caso preciso admitir que as perspectivas de sociedade com Burleigh & Son malograram? — perguntou Gerstenkorn.

— Admita o que bem lhe parecer — respondeu Preysing.

Em seguida todos se calaram por quase um minuto. Flamm número um folheou discretamente o seu bloco de estenografia, e o ruído delicado das folhas de papel que ela virava ressoou no silêncio da sala de conferências. Preysing parecia um bebezinho zangado; às vezes, sucedia meter a cabeça por trás da fisionomia do diretor-geral um menino cabeçudo e teimoso. Zinnowitz, com a sua caneta de malaquita, desenhava resignados triângulos na capa de um documento.

— Acho que por enquanto não tem sentido nenhum continuarmos a nossa conversa — disse finalmente Gerstenkorn. — Acho que podemos continuar a nos entender por escrito.

Ele se levantou, e a sua cadeira deixou sulcos fundos no tapete espesso, legítimo, da sólida sala de conferências. Mas Preysing continuou sentado. Tirou cuidadosamente um charuto do bolso, cortou-lhe a ponta cerimoniosamente, acendeu, tirou uma tragada e começou a fumar, com uma expressão absorta e profundamente pensativa; suas bochechas se tinham avermelhado, cheias de veiazinhas salientes.

Não há dúvida de que o Diretor-Geral Preysing é um homem honestíssimo, de caráter, bom esposo e bom pai, um homem ordeiro e organizado, da mais consolidada burguesia. Sua vida está toda em ordem, tudo registrado e em cartas, oferecendo um aspecto agradável: uma vida de caixas de fichas, de pastas de documentos, de muitas gavetas e muito trabalho. Preysing nunca cometeu a mínima falta de correção. No entanto, deve existir nele um ponto fraco, onde a vida o quer segurar e abater; uma insignificante inflamação, uma manchinha microscópica na limpeza burguesa de seus trajes, deve existir, no entanto...

Ele não chamou por socorro, nesse momento em que a conferência se interrompeu, apesar de se sentir muito mal, com a sensação de que precisava pedir auxílio e gritar por socorro. Levantou-se com o charuto na boca, segurando-o fortemente entre os dentes, e teve a impressão perfeita de estar bêbado, quando pôs as mãos nos bolsos.

— Que pena — disse ele negligentemente, admirando-se do tom despreocupado dessa frase que roçou subitamente o charuto em sua boca. — É realmente pena. Adiar é o mesmo que terminar. Pois então, ponto final. E agora que os senhores desistiram do negócio, posso dizer-lhes que o contrato com Burleigh & Son está firmado. Desde ontem à noite. Recebi hoje de manhã a notícia.

Tirou a mão do bolso do colete, e nela estava metido o telegrama dobrado: Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann. Foi tomado de um infantil e triunfal prazer de enganar os outros, enquanto dizia aquela mentira enorme, que raiava a fraude, e punha o telegrama sobre o pano verde da mesa. Ele próprio não sabia se queria passar um blefe nos outros ou estava procurando uma boa saída para sua posição desacreditada. Schweimann, o mais indisciplinado dos dois homens da Chemnitz, estendeu o braço, num movimento instintivo para pegar o telegrama. Preysing, muito calmo, abriu o telegrama, dobrou-o novamente, e, com um gesto calmo e refletido, meteu-o de novo no bolso do colete. O Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, fez uma cara de idiota. O conselheiro Zinnowitz soltou um assobio leve e agudo, realmente estranhável, partindo da sua boca sábia de chinês.

Gerstenkorn começou a rir, com acessos de tosse bronquial.

— Meu caro — tossiu ele —, caríssimo! O senhor é muito mais sabido do que parece! Homem de Deus! O senhor nos pregou uma boa! Olhe aqui, precisamos conversar sobre isso!

Gerstenkorn se sentou. O diretor-geral, ainda por alguns segundos com um sentimento de vazio, como se todos os seus ossos tivessem ficado ocos e como se sentisse um esquisito e brando tremor nos joelhos, sentou-se também. Tinha mentido pela primeira vez na vida, e ainda por cima de um modo idiota, completamente simplório e sem base. E com essa mentira — justamente com ela — havia conseguido pela primeira vez, após tantos fracassos, impor-se de novo. De repente ouviu a própria voz a falar, e a falar bem. Sentiu-se tomado de uma estranha e desconhecida embriaguez; ouvia a própria voz, e tudo o que dizia tinha pés e cabeça, energia e visão. O fundador do Grande Hotel olhava fixamente para ele, muito admirado, lá do alto do seu retrato a óleo, com seus olhos pintados cintilantes. A Flamm número um curvara o rosto penugento sobre o bloco de estenografia, e estenografava rapidamente — porque agora, parecia, chegariam a um acordo final, cada palavra proferida se tornava importante.

Até o fim da conferência, que durou ainda três horas e vinte minutos, Preysing conservou-se nesse novo estado de ânimo, que lhe dava a impressão de estar voando. E só quando pegou a caneta-tinteiro de malaquita verde para assinar seu nome ao lado da assinatura de Gerstenkorn, no contrato prévio, notou que as suas mãos estavam úmidas e estranhamente sujas.


10

— O 218 quer que o despertem às nove horas — disse o porteiro ao praticante Georgi.

— Ele vai embora? — perguntou o rapazinho.

— Embora por quê? Qual nada, ele vai ficar.

— Pensei que ia. Ele nunca pediu que o acordassem ... — disse Georgi.

— Pois agora pode acordá-lo — respondeu o porteiro.

E assim, às nove horas em ponto, o telefone tilintou no quartinho ridiculamente minúsculo do Dr. Otternschlag.

Apressado como um homem cheio de ocupações, Otternschlag esforçou-se por libertar-se da nebulosidade dos sonhos e despertar, e em seguida admirou-se de estar acordado.

— O que foi? — perguntou a si próprio e ao telefone. — O que foi?

Depois ficou em silêncio durante alguns minutos, concentrando-se e procurando lembrar-se, com o rosto desfigurado encostado no linho macio do travesseiro do hotel. "Atenção", pensou ele, "é aquele homem, é o Kringelein, esse coitado. Precisamos mostrar-lhe o que é a vida. Ele está à minha espera. Já está sentado à mesa, na sala do café, esperando."

— Vamos levantar-nos e nos aprontar? — perguntou a si mesmo. — Vamos sim — respondeu depois de fazer um esforço, porque ainda tinha uma bela dose de morfina nos ossos. Apesar disso, seu rosto e seus movimentos, enquanto se vestia, pareciam exprimir um certo entusiasmo. Alguém esperava por ele. Alguém precisava dele. Alguém lhe demonstrava gratidão. Com um pé de meia na mão, sentado na beira da cama, começou a fazer planos e decidir o que fazer. Fez o programa para o dia, ocupado como um guia de viagens, um mentor, um homem importante e procurado. A camareira que tinha ido buscar no quarto vizinho ao 218 a vassoura e o balde ouviu, admiradíssima, o Dr. Otternschlag cantarolar com voz incerta uma melodia, enquanto ia escovando os dentes.

Entretanto, Kringelein se encontrava na sala de café, ainda exausto, excitado e animado, após sua cansativa vitória sobre o senhor Diretor-Geral Preysing, no barbeiro; há dez minutos tinha travado relações, com extremo prazer, com o Barão von Gaigern, relações distintas, encantadoras. Gaigern tinha agido depressa. Saíra da noite com a Grussinskaia sem as pérolas, e passara diretamente a uma explicação murmurada, mas dura como granito, com o chofer. Logo em seguida — após tomar banho, fazer ginástica e friccionar o corpo com água de alfazema — atirara-se sobre o senhor provinciano do 70, com o qual ele talvez pudesse arranjar de um modo ou de outro os milhares de marcos de que precisava com mais premência. Estava transbordando de impaciência, uma impaciência radiante de felicidade, tensa e ardente. Havia-se separado da Grussinskaia há uma hora apenas, e já sentia uma saudade louca, uma saudade alegre e delicada. Sua cabeça queria estar de novo com ela, sua pele, seus dedos, seus lábios, tudo a desejava novamente, o mais depressa possível. Gaigern sorveu, faminto de vida e de energia, esse sentimento desconhecido como costumava acolher dentro de si as novas experiências. O élan com que ele aguardava a tentativa com Kringelein era enorme. Com uma rapidez que se poderia chamar de tempo recorde, em quinze minutos conseguiu ganhar uma grande dose de confiança. Esmagado, Kringelein abriu sua pequena alma de funcionário, indecisa, ansiosa de vida e preparada para a morte — e o que ele não disse ou não soube exprimir Gaigern adivinhou. Quando Kringelein, às nove horas e catorze minutos, limpou no pequeno guardanapo do hotel o seu esforçado bigode, os dois já eram amigos.

— Imagine, senhor barão — dizia Kringelein —, imagine que eu tenha recebido por acaso algum dinheiro, depois de ter vivido sempre uma vida modestíssima, realmente modestíssima. Uma pessoa como o senhor barão não pode fazer sequer uma ideia de uma vida assim. É o medo da conta do carvão, o senhor compreende? Ou então não se pode ir ao dentista, vai-se deixando de um ano para outro, e de repente perdem-se quase todos os dentes, não se sabe como. Mas não quero falar dessas coisas. Anteontem comi pela primeira vez na vida caviar, ou coisa parecida. Quando o nosso diretor-geral tem reuniões em casa, manda vir caviar de Dresden, aos quilos. Bem, caviar, champanha e todos esses luxos não são a vida, dirá o senhor barão. Mas o que é a vida? Veja, barão, eu não sou mais um homem moço, sou meio doente, e de repente fiquei com receio de não poder aproveitar a vida. Eu não quero deixar passar a vida sem aproveitá-la, o senhor compreende?

— Nunca deixamos de aproveitar a vida! Ela está sempre ao nosso dispor, nós vivemos e é quanto basta. A gente vai vivendo, é isso — disse Gaigern.

Kringelein fitou aquele moço bonito e animado, e talvez suas olheiras, por detrás dos óculos, se tenham ruborizado um pouco.

— Pois é. Naturalmente, para o senhor, a vida está sempre presente, cada minuto que passa. Mas para gente como nós...? — disse ele baixinho.

— É engraçado. O senhor fala da vida como se ela fosse um trem que vai passando, e que o deixa para trás. Há quanto tempo o senhor anda atrás dela? Há três dias? E ainda não conseguiu pegá-la pela cauda, apesar do champanha e do caviar? O que o senhor fez ontem, por exemplo? Museu Kaiser-Friedrich, Potsdam, à noite teatro? Meu Deus do céu! Do que foi que mais gostou? De que quadro? Como? Não reparou... naturalmente. E no teatro... a Grussinskaia? É... a Grussinskaia — repetiu Gaigern, sentindo no coração, ao pronunciar esse nome, um calor repentino, como se fosse um rapazinho tolo. — O que está dizendo? O senhor ficou triste, era tão poético? Pois é, é mais ou menos isso. Mas tudo isso não tem nada que ver com a vida, senhor diretor. — Dizia "senhor diretor" por pura amabilidade, porque não gostou do nome de Kringelein, ridículo e desataviado; e Kringelein corou, feliz e intrujão. — A vida, a vida é... veja: às vezes encontram-se na rua esses caldeirões de piche, fervendo, em ebulição, soltando fumaça, fedendo como a peste a quilômetros de distância. Mas aproxime-se de um caldeirão desses e conserve a cabeça sobre ele, meta o nariz na fumaceira do alcatrão. É uma coisa estupenda, quente, com um cheiro forte e acre, que quase nos derruba no chão, e as gotas grossas e pretas brilham, e há força ali dentro, nada de doçuras nem de coisas insossas. Ah! Caviar! O senhor quer aproveitar a vida, e se eu lhe perguntar que cor têm os bondes de Berlim, o senhor não sabe, porque nunca reparou neles. Aliás, ouça, senhor diretor: com uma gravata como a sua, o senhor nunca poderá tomar o trem da vida; dentro de um terno como o seu ninguém pode se sentir feliz. Digo-lhe isso abertamente, porque não tem sentido nenhum ficar fazendo cumprimentos. Se o senhor confiar um pouco em mim, para apressar as coisas, precisamos primeiro ir ao alfaiate. O senhor está com dinheiro, livro de cheques... não. Faça o favor de arranjar dinheiro, mesmo! Enquanto isso eu vou buscar o meu carro na garagem. O meu chofer está de licença, deixei que o rapaz fosse ver a noiva em Springe; eu mesmo vou guiar.

Kringelein tinha a impressão de que um vento forte lhe batia nos ouvidos. A observação a respeito da sua gravata — comprada por dois marcos e cinquenta — e o seu bonito terno, na verdade, o haviam magoado. Pôs timidamente a mão no colarinho, largo demais.

— Pois é — disse Gaigern —, é muito grande, e vê-se o botão. Assim não pode, naturalmente!

— É que eu pensei... Eu não queria gastar dinheiro em roupa — murmurou Kringelein, vendo bailar vertiginosamente as cifras em seu caderno de notas. — Em outras coisas eu gasto de boa vontade, mas não em roupa.

— E por que não em roupa? Isso é o principal.

— Porque... não vale mais a pena — respondeu Kringelein, baixinho, com as amaldiçoadas lágrimas soltas a queimar-lhe de novo o canto dos olhos. Que maldição! Ele não podia se lembrar do seu fim próximo sem ficar comovido. Gaigern olhou para ele, descontente. — Não vale a pena, realmente... quero dizer... não terei por muito tempo a oportunidade de usar roupas novas. Pensei que... que as velhas ainda fossem servindo — sussurrou com um sentimento de culpa.

"Meu Deus, será que todos os homens têm uma xícara de chá com veronal preparada para tomar?", pensou Gaigern, a quem as carícias dessa noite haviam tornado sensível.

— Não se deve calcular assim — disse ele amavelmente. — Não se deve calcular, Herr Kringelein. Os cálculos nos saem errados. No momento adequado o senhor deve estar com a disposição adequada. Eu sou um homem do momento, e tenho-me dado bem com isso. Vamos, ponha no bolso algumas notas de mil marcos, e depois veremos se a vida não é uma coisa divertida. Avante!

Kringelein se levantou, obediente; tinha a sensação de rodopiar perigosamente dentro do turbilhão de uma cratera. "Algumas notas de mil marcos", pensou ele, como se estivesse atrás de um nevoeiro. Já estava acompanhando Gaigern, enquanto seus pensamentos ainda resistiam, e as paredes da sala de café dançavam à sua volta. Os pés desenraizados de Kringelein, metidos nas botinas de cano alto, iam tropeçando passivamente pelos corredores do hotel; ele sentia medo. Sentia um medo doido de Gaigern, das despesas, do alfaiate caro, tinha medo do automóvel cinza-claro, em que se meteram no assento da frente, perto da direção, tinha medo da vida que, no entanto, não queria deixar de aproveitar. Apertou com energia seus molares estragados, calçou as luvas de tricô, e começou seu dia feliz.

O Dr. Otternschlag, que às dez para as dez andava ao longo das paredes do hall, à procura de Kringelein, recebeu do porteiro uma carta entregue pessoalmente.

Prezado Dr. Otternschlag! — estava escrito. — Infelizmente, por motivos imprevistos, vejo-me impedido de comparecer ao nosso encontro. Saudações respeitosas do amigo At. Obr. Otto Kringelein.

O estilo era de Kringelein, ainda, mas sua ortografia tinha-se modificado um pouco. Na escrita fluente de guarda-livros, haviam-se imiscuído uns traços informes, e os pingos dos ii pareciam querer voar como balões que se desprendem do fio para estourar nos céus, solitários e com um pequenino e trágico estampido que ninguém ouve.

O Dr. Otternschlag ficou com a mão estendida, segurando a carta. O hall era um deserto, cheio de horas infindáveis e vazias. Passou pelo balcão dos jornais, pelas flores, por pessoas que saíam do elevador, pelas colunas, até chegar ao seu lugar habitual. "Horrível", pensou ele. "Terrível. Medonho." As pontas de seus dedos, plúmbeas e cor de fumo, lhe pendiam das mãos, e com o olho cego ele fitava a mulher da limpeza que, em desacordo com os regulamentos, começava a varrer com serragem úmida, em pleno dia, o hall do Grande Hotel.

É intensa a angústia que Kringelein sente, de pé, na sala de provas da enorme alfaiataria para homens. Três elegantes cavalheiros estão ao seu redor, ocupadíssimos, e doze Kringelein deploráveis refletem-se nos espelhos, aproximando-se uns dos outros em ângulos agudos. Um senhor elegante está ao lado, observando Herr Kringelein com as pálpebras meio cerradas, um olhar de conhecedor, e murmurando palavras incompreensíveis. Sentado num banquinho estofado, sob os retratos de artistas de cinema incrivelmente belos, está o Barão Gaigern, batendo as luvas pespontadas na palma da mão, e desviando de Kringelein o olhar, como se se envergonhasse dele.

Começaram a vir à luz coisas lamentáveis, segredos do guarda-livros Otto Kringelein, de Fredersdorf. Seus suspensórios estão rasgados, costurados, rasgados de novo, e finalmente muito mal consertados, com um barbante. O colete, que lhe ficara muito largo, fora ajustado por Anna, que lhe fez nas costas duas pregas costuradas ao enchimento por meio de pespontos.

Kringelein usa as camisas de seu pai, grandes demais para ele, pelo que meteu umas ligas na parte superior dos braços, para arregaçar as mangas compridíssimas. Usa abotoaduras de tempos pré-históricos, redondas, do tamanho de discos de chapa de fogão, tendo no centro uma esfinge de esmalte vermelho diante de uma pirâmide de esmalte azul. A gigantesca camisa é de um tecido grosso de cor indefinível, tendo na frente apenas um pedacinho de zefir listrado, como uma pequena vitrina na fachada principal. Debaixo da camisa de lã espia ainda qualquer outra coisa também de lã, um coletinho já no fio, cerzido com pontos grosseiros. Por baixo disso, um pedacinho de pele de gato, o que parece ser bom contra dores de estômago e calafrios misteriosos. Os cavalheiros elegantes não mudam de expressão — Kringelein teria preferido que fizessem caçoada dele ou o consolassem.

— Nunca me incomodei muito com a moda. Sou um homem antiquado — diz ele em tom implorante, desculpando-se diante da cortesia gelada dos homens. Ninguém lhe responde. Vão lhe tirando as camadas, uma após outra, como de uma cebola. É um tanto cruel o que está sucedendo com Kringelein, completamente indefeso. Pouco a pouco ele vai se sentindo mal, como na sala de operações, pois agora também há uma claridade vítrea nas coisas, e tudo parece estar muito próximo dele. Depois, os três cavalheiros começam a vesti-lo.

Gaigern se anima, e dá conselhos.

— Fique com isso — diz ele; e —, não fique com isso.

Parece que não é possível contrariar as suas decisões. Kringelein olha de lado para os papeluchos com o preço, presos às peças de vestiário, reparando sempre apenas no preço; não ousa fazer perguntas, a princípio, mas por fim se enche de coragem e começa a querer saber os preços.

Assusta-se de tal modo que tem vontade de sair correndo; a sala de provas parece uma cela com quatro guardas severos e paredes de espelho. Kringelein está todo suado, apesar de o terem libertado de seus agasalhos de lã, que estão enrolados num montinho sobre uma cadeira, com um aspecto de ilimitada miséria, repulsivos. De repente, eles deixaram de pertencer a Kringelein; causam-lhe nojo tais peças de vestuário, remendadas, suarentas e de cor indefinível, essa roupa de um pobre-diabo. Mas, de um momento para outro, qualquer coisa se passa com ele. Fica gostando da camisa de seda que o forçaram a vestir.

— Ah! — diz Kringelein, com a cabeça inclinada e a boca aberta, como se fosse ouvir algum segredo. — Ah, ah!

Sua pele se alegra e trava amizade, gostosamente, com a camisa de seda de delicado padrão. O colarinho se ajusta exatamente ao pescoço, não esfrega, não é nem largo nem apertado demais, a gravata nova cai lisa e macia sobre o peito de Kringelein, onde o coração bate agora como em misteriosa festa — forte, um tanto dorido, mas aliviado. Agora colocam diante dele meias e sapatos, com grande solicitude; Gaigern explicou, em poucas palavras, que o senhor diretor está enfermo, e então trazem dos quatro andares da casa de artigos para homens tudo o que um homem distinto precisa para se vestir. Kringelein envergonha-se medonhamente de seus pés; de súbito tem a impressão de que toda a miséria e o aperto da sua vida estão visíveis nesses pés com joanetes crescidos, pelo que procura se esgueirar com as novas meias e botinas para um canto, coloca suas costas curvas entre si mesmo e os outros, como uma parede, e começa, sem nenhuma prática, a lutar com os cordões. Em seguida vestem-lhe um novo terno, escolhido pelo barão.

— O senhor diretor está com uma aparência maravilhosa — diz um daqueles cavalheiros. — Assenta-lhe como se fosse feito sob medida.

— Não é preciso modificar nada — diz o segundo.

— Perfeito. Nós temos poucos fregueses com um corpo tão esbelto — afirma o terceiro.

Empurram Kringelein para a frente do espelho, e o obrigam a girar no seu eixo como se fosse uma boneca de madeira, magra e paciente.


11

 

E, justamente no momento em que Kringelein voltou do espelho para o seu interior, sentiu pela primeira vez, como um pressentimento, que estava vivendo. Sim, tinha a sensação de existir, conhecia-se a si mesmo, com um abalo tão violento como se o atingisse um raio. Nesse momento, um homem estranho, de porte delicado e distinto, aproximou-se dele com expressão confusa, um homem que era ele próprio, de modo extremamente íntimo, o verdadeiro Kringelein, o Kringelein enterrado, de Fredersdorf — mas isso logo passou. No instante seguinte já não era novidade, o milagre da transformação já se dera.

Kringelein respirou profundamente, com energia, porque parecia querer despertar em seu corpo uma dorzinha aguda.

— Acho que este terno me fica bem, não? — perguntou ele, de modo infantil, a Gaigern.

O barão ainda fez mais; aproximou-se e, com suas próprias mãos, grandes e quentes, arrumou o novo terno nos ombros de Kringelein.

— Sou de opinião que este terno é o suficiente — disse Kringelein aos três cavalheiros.

Apalpou o tecido com os dedos, às escondidas, porque entendia bastante de tecidos, isso se sabia em Fredersdorf, mesmo quando só se trabalhava no escritório.

— É um bom tecido; sou conhecedor — afirmou ele, respeitosamente.

— Artigo inglês legítimo. Nós mandamos trazê-lo diretamente de Londres, de Parker Brother & Co. — respondeu o senhor de pálpebras fechadas.

"Preysing não usa tecidos assim", pensou Kringelein. Os ternos de Preysing costumavam ser daquele mesmo tecido sólido de estamenha cinzenta, de que a fábrica ainda possuía um estoque antigo, e todos os anos, pouco antes do Natal, era vendido aos empregados por baixo preço. Kringelein decidiu-se. Tomou posse desse terno, enfiando ambas as mãos nos bolsos novos e limpos.

Seu medo transformou-se repentinamente na felicidade de comprar e de possuir; pela primeira vez na vida Kringelein tem a sensação de vertiginosa leveza que acompanha o ato de gastar dinheiro. Ele passa através dos muros, por trás dos quais ele morou toda a vida. Compra, compra, sem perguntar o preço, vai comprando. Apalpa tecidos, sedas, alisa abas de chapéus, experimenta coletes, gravatas, cintos, coloca uma cor perto de outra e sorve com delícia a combinação harmoniosa de tons.

— O senhor diretor tem um extraordinário bom gosto — diz um dos cavalheiros.

— Um gosto delicado — afirmou o outro —, correto, distintíssimo.

Gaigern assiste a tudo sorrindo, um tanto impaciente, e faz elogios. Caceteado, olha as próprias mãos; a direita está tão vazia, desde que ele deu o anel de sinete de presente... Disfarçadamente, leva-as até o rosto, para ver se ainda conservam um pouco do perfume dessa noite, agridoce, ao mesmo tempo perigo e calma, Neuwjada, a florzinha que cresce nas campinas.

Kringelein compra um terno marrom, muito confortável, de um tecido cardado inglês, uma calça cinza-escura, com delicadas listras claras, que combina com um paletó estreito; compra também um smoking, no qual é preciso mudar apenas alguns botões; roupa de baixo, camisas, colarinhos, meias, gravatas, uma capa igual à de Gaigern, um chapéu macio, espantosamente leve, com a marca dourada de uma firma de Florença, e finalmente, pegando um par de luvas de camurça pespontadas, iguais às de Gaigern, dirige-se à caixa. Ali estão a fazer uma conta amabilíssima — Kringelein fala com rapidez e facilidade, porque ouve o jargão dos livros-caixa, tão seu conhecido, desde o livro-razão ao livro-matriz. Paga mil marcos à vista, e o resto em três prestações.

— Então! — exclamou Gaigern, satisfeito.

Uma fila de dorsos inclinados, numa saudação, acompanha Kringelein, encantado e transformado, até a porta de espelhos da loja. Lá fora faz sol, mas está frio. O ar tem um sabor de vinho gelado, acha Kringelein, de passagem. Até agora ele sempre se arrastou. Agora ele anda. Tem que dar três passos, da entrada da loja de primeira ordem até a limusine cinza-clara, e ergue três vezes, do calçamento da rua, as solas novas dos seus sapatos.

— Está satisfeito? — pergunta Gaigern, rindo-se e dando a deixa. — Está notando alguma coisa? Sente uma sensação agradável?

— Fantástico! Maravilhoso! Ótimo! — replica Kringelein, tomando a expressão de um homem experimentado, sentado ao volante do carro.

Tira os óculos e esfrega com o polegar e o indicador a beirada dos olhos; é um gesto cansado e que lhe é habitual.

Vem-lhe ao pensamento a ideia de que não estará mais vivo, quando vencer a última prestação.

 

Gaigern sentia a impaciência nos dedos, causava-lhe comichão como ácido carbônico, entre as mãos e a direção. Nos cruzamentos das ruas havia lâmpadas vermelhas, verdes e amarelas, guardas que o ameaçavam com a mão, sorridentes. O carro passava em disparada pelas casas, pelas árvores, colunas de cartazes, ajuntamentos de pessoas nas esquinas, pelas carroças de frutas, muros com cartazes e velhas senhoras amedrontadas, que, com passos miúdos, andavam no leito da rua sem observar o sinal de trânsito, velhas senhoras vestidas de preto e de saias compridas, em pleno mês de março. O sol brilhava, úmido e amarelo, no asfalto. Quando um ônibus pesadão impedia o caminho, o carrinho de quatro lugares gritava com duas buzinas; parecia o latido de cães excitados.

Em Fredersdorf havia muita gente que nunca tinha andado de automóvel. Anna, por exemplo, nunca tinha andado de carro. Mas Kringelein estava andando. Apertou os lábios com força, inteiriçou os músculos sob as axilas, e seus olhos ficaram lacrimejantes pelas correntes de ar. Assustava-se nas curvas, e seu coração arfava sob a camisa de seda nova. Era o mesmo prazer medroso da infância, quando na feira anual de Mickenau, no outono, se podia andar de carrossel três vezes seguidas, por um groschon.

Kringelein arregalava os olhos para ver Berlim, que rapidamente se entremostrava sob aspectos deformados. Ainda se recordava bem da grande cidade. A Porta de Brandenburgo, por exemplo, reconheceu-a de longe, assim como a Gedaechtniskirche, à qual dirigiu um olhar respeitoso.

— Para onde estamos indo? — gritou ele ao ouvido direito de Gaigern. O ronco do motor lhe parecia fortíssimo, e ele se sentia no meio de estrondos e de uma tempestade.

— Para os arredores da cidade, a fim de almoçar. Para lá do Avus — respondeu Gaigern com jovialidade.

A rua parecia penetrar dentro do carro, cada vez com mais velocidade. Chegaram às proximidades da torre da emissora. Kringelein já estivera ali no dia anterior, com o Dr. Otternschlag, numa noite nublada, cansado, impossibilitado de receber novas impressões. Os estranhos átrios, lisos, novos e por terminar, na parte exterior, o haviam acompanhado nos sonhos e, agora, a realidade e o sonho se apresentavam em duas camadas sobrepostas, um tanto ameaçadoras e incompreensíveis.

— Ainda vão terminar isso? — gritou Kringelein apontando para os átrios da exposição.

— Já está pronto — foi a resposta.

Kringelein admirou-se. Era tudo nu como uma fábrica, mas não feia, como a de Fredersdorf.

— Que cidade engraçada — exclamou ele, sacudindo a cabeça e ficando ainda mais vesgo.

Levou um choque com um solavanco do carro, e a pele do seu crânio se encolheu, mas foi coisa sem importância. É que Gaigern havia parado na porta norte do Avus, e em seguida continuaram de novo a viagem.

— Agora nós vamos mesmo — afirmou Gaigern; e, antes que Kringelein pudesse perceber do que se tratava, ele partiu.

Começou com uma corrente de ar que foi esfriando lentamente, e que batia contra o rosto de Kringelein cada vez com mais força, como bofetadas. O carro começou a cantar com um som grave que se foi elevando, e ao mesmo tempo aconteceu uma coisa pavorosa com as pernas de Kringelein. Ele tinha a sensação de que elas se enchiam de ar, cujas bolhas lhe subiam aos joelhos, que pareciam querer estourar. Por vários segundos incríveis ele não podia respirar mais, e durante um instante pensou que iria morrer.

— Isto é a morte. Vou morrer.

Com o peito comprimido, aspirava o ar com dificuldade; o carro deslizava por coisas irreconhecíveis, vermelhas, verdes, azuis; árvores que se atiravam de encontro aos seus óculos; depois, um ponto vermelho se transformou em um automóvel e, logo a seguir, caiu no vazio, por trás do seu carro — e Kringelein continuava sem conseguir respirar. Seu diafragma conhecia agora novas sensações, nunca antes imaginadas. Kringelein tentou virar o rosto em direção a Gaigern, e, vejam só, conseguiu virá-lo sem se machucar. Gaigern estava meio inclinado sobre a direção, e tinha calçado as luvas de camurça, mas sem abotoá-las; por qualquer motivo, isso dava a sensação de calma e ausência de perigo. Justamente quando o pedacinho de estômago que restava a Kringelein queria começar a subir à garganta, Gaigern se pôs a rir com os lábios fechados. Apontou com o queixo, sem tirar os olhos do fuso sibilante da estrada do Avus, para um lugar qualquer, e Kringelein lançou um olhar obediente. Como não era tolo, compreendeu, após refletir um pouco, que havia sido o marcador dos quilômetros, diante dele. O ponteirinho vibrava de leve, mostrando o número 110. "Que diabo!", pensou Kringelein. Engoliu seu amedrontado pomo-de-adão e inclinou-se para a frente, entregando-se ao impulso da velocidade. Súbito tomou posse dele o prazer da sensação de perigo, um prazer penetrante e assustador. Mais depressa! pedia dentro dele um novo Kringelein, desconhecido e delirante. O carro concordou: 115. Durante alguns segundos parou nos 118, e Kringelein desistiu, de uma vez, de respirar. Tinha vontade de se precipitar, sibilando, nas trevas. "Avante, para a frente, explosão, choque, ponto final da corrida desenfreada!", era o pensamento que lhe ocorria. "Nada de leito de hospital," pensou; "é preferível uma fratura no crânio." À passagem do carro, em disparada, ainda continuavam a bramir os anúncios; as distâncias entre eles foram aumentando; depois, os trapos cinzentos ao lado da estrada se transformaram em bosques de pinheiros. Kringelein via árvores que se iam aproximando e em seguida se desviavam do carro. Era como no carrossel de Mickenau pouco antes de parar. Nas tabuletas de anúncios ele lia agora nomes de marcas de óleos, de pneus e de automóveis; a correnteza de ar tornou-se mais branda, e deslizava por sua garganta adentro. O ponteiro caiu para 60, a agulha oscilou um instante ainda, entre 50 e 45, e eles deixaram o Avus pela porta sul, desfilando burguesmente por entre as villas do Wannsee.

— Puxa, agora me sinto mais leve! — disse Gaigern, abrindo o rosto num sorriso. Kringelein tirou as mãos das almofadas de couro em que se agarrara até então, e foi relaxando com todo o cuidado os músculos contraídos das mandíbulas, dos ombros e dos joelhos. Sentia-se completamente exausto e absolutamente feliz.

— Eu também — respondeu ele, e estava dizendo a verdade.

Falou muito pouco enquanto estiveram sentados no terraço envidraçado, completamente vazio, de um restaurante à margem do Wannsee, olhando os barcos a vela cobertos com lonas, balançando à tona da água. Precisava refletir sobre a sensação que experimentara, o que não era assim tão fácil. "O que é a velocidade?", pensou. "Não a vemos nem tocamos, e isso de medi-la deve ser uma impostura. Como é possível que ela vá passando, e seja mais linda do que a música?" Ainda sentia tudo girando, mas era uma sensação agradável. Tinha trazido o frasquinho de Bálsamo de Vida do Dr. Hundt, mas não tomou o remédio.

— Preciso agradecer-lhe este passeio maravilhoso — disse ele, procurando com ar solene expressões escolhidas, de acordo com os ambientes em que estava vivendo agora.

Gaigern, que só comia alimentos baratos, espinafre com ovos, sacudiu a cabeça: — Eu me divirto com essas coisas — disse ele. — O senhor sente isso pela primeira vez. É raríssimo encontrarmos pessoas que tenham uma sensação pela primeira vez...

— Mas o senhor também não dá a impressão de ser um homem blasé, se me permite esta observação — replicou Kringelein com desembaraço.

Já se sentia à vontade em suas novas roupas, já estava em casa dentro da sua camisa de seda; sentava-se de outra maneira, comia de outra maneira, e suas mãos, que lhe pareciam mais delgadas, avançando pelos punhos da camisa, com as unhas feitas por uma bonita manicura, no subterrâneo do hotel, lhe davam enorme prazer.

— Meu Deus do céu, eu, blasé? — exclamou Gaigern, satisfeito. — Não. De modo nenhum. Mas é que gente como eu tem uma vida cheia. — Não pôde deixar de sorrir. "O senhor tem razão. Para gente como eu também existem coisas inteiramente novas, que se experimentam pela primeira vez, coisas engraçadas...", acrescentou consigo mesmo.

Bateu de leve seus bonitos dentes uns nos outros, pensando na Grussinskaia. Seus ossos estavam cheios de ávida impaciência. O tempo que tinha de esperar para que pudesse ter de novo em seus braços a figurinha delicada, tão necessitada de amparo, e ouvir novamente seu gorjeio tristonho de passarinho, parecia-lhe uma extensão imensurável e deserta. Deu um prazo de três dias a si próprio, sapateando, interiormente, de impaciência, para arranjar de qualquer modo alguns milhares de marcos que acalmariam seus companheiros e lhe facultariam a viagem a Viena. Por enquanto, empenhava-se, com a maior amabilidade, em agradar Kringelein, com a esperança em qualquer solução favorável.

— E agora, qual é a continuação do programa? — perguntou Kringelein, dirigindo para ele uns olhos fiéis e agradecidos. Gaigern simpatizava com esse provinciano calmo, sentado diante dele como uma criança durante a distribuição dos presentes de Natal. A amabilidade e a simpatia humanas estavam de tal modo enraizadas na personalidade de Gaigern, que suas vítimas recebiam sempre uma boa parte do seu calor.

— Agora vamos voar — disse ele, com o tom acalentador de uma ama de leite. — É muito agradável e não tem o menor perigo, é muito menos perigoso do que uma corrida desenfreada de automóvel.

— Corremos perigo, há pouco? — - perguntou Kringelein, admirado.

O medo que sentira parecia-lhe agora quase um prazer, depois de vencido.

— Sem dúvida — afirmou Gaigern. — Cento e dezoito quilômetros não é brincadeira, e a estrada estava úmida... Parece incrível que, com um tempo destes, ela fique tão escorregadia. Não há dúvida de que o carro corre sempre o risco de derrapar. A conta — disse, voltando-se com cortesia para o garçom, e pagando seu espinafre com ovos. Sobravam-lhe na carteira apenas vinte e quatro marcos.

Kringelein também pagou; havia tomado apenas umas colheradas, de sopa, porque não confiava ao seu estômago coisas excitantes e indigestas. Quando meteu no bolso a carteira que trouxera ainda de Fredersdorf, teve a visão fugaz e agora pouco importante do seu caderno de despesas, com capa de oleado. Até esse dia havia anotado suas despesas, Pfennig por Pfennig, desde os nove anos de idade, em caderninhos assim. Agora acabou-se. Nunca mais faria isso de novo. Mil marcos numa tarde não era possível anotar. Uma parte da ordem do mundo concebida por Kringelein tinha se destruído, numa derrocada silenciosa e sem estardalhaço. Kringelein, que Gaigern foi seguindo pelo terraço vazio do restaurante até o carro, movia os ombros com delícia, sob o novo sobretudo, o novo terno e a nova camisa. Agora, por onde quer que ele passasse, havia indivíduos que se inclinavam. "Bom dia, senhor diretor-geral", pensou ele, vendo-se colado a uma parede, a parede caiada de verde-cinza do segundo andar dos escritórios de Fredersdorf. Guardou no bolso os óculos ao sentar ao lado de Gaigern, expondo os olhos nus à fresca e cintilante atmosfera de março, e com um vivo sentimento de simpatia e de confiante gratidão ouviu o ruído do motor.

— A Chaussee ou o Avus de novo? — perguntou Gaigern.

— O Avus, de novo — respondeu Kringelein. — E na mesma velocidade — acrescentou em voz baixa.

— Ah!... O senhor tem coragem — disse Gaigern, pondo o pé no acelerador.

— É... coragem eu tenho — respondeu Kringelein, com os músculos tensos e o corpo inclinado para a frente, de lábios entreabertos, preparado para entregar-se inteiramente à vida.

 

Kringelein, debruçado na grade branca e vermelha do aeroporto, procura habituar-se a esse mundo assombroso que, desde a manhã desse dia, vem ao encontro dele. Ontem — há um século — ele subia no elevador, para ir ao restaurante da torre da emissora, fatigado, sonolento, imerso em sonhos; não estava se divertindo, e os comentários pessimistas do Dr. Otternschlag ainda tornavam tudo mais problemático e fantasmagórico. Anteontem — há mil anos — ele era um auxiliar de guarda-livros no escritório de contabilidade da Algodoeira Saxônia S.A., de Fredersdorf, um empregadinho enfezado, entre trezentos outros empregadinhos enfezados, de terno de sarja cinzenta e com um ordenado minguado, do qual era preciso tirar ainda o desconto para a Caixa de Previdência. Hoje, agora, ele está à espera do piloto que, por um alto preço, vai levá-lo em um enorme voo circular, em viagem especial. É um desses pensamentos impossíveis de serem levados até as últimas consequências, apesar de Kringelein se sentir animado e concentrado como nunca.

É uma enorme mentira, a sua coragem. Tem um medo de cão, um medo horrível do divertimento que o espera. Ele não quer voar, não quer voar de modo algum. Tem desejos de voltar para casa — não, para Fredersdorf não, mas para o hotel, para o seu quarto 70, com os móveis de mogno e a colcha de seda; gostaria de estar deitado e não precisar voar.

Quando Kringelein saiu de casa para ir à procura da vida, pairava diante dele uma ideia nebulosa e informe; mas era uma coisa acolchoada e fofa, com pregueados e franjas, e arabescos enormes; leitos macios, pratos cheios, mulheres sensuais, em quadros e reais. Agora, que está experimentando a vida, e que, aparentemente, mergulhou em cheio nela, tudo se apresenta sob um aspecto diferente; é preciso satisfazer a uma série de exigências, a ventania corta-lhe as orelhas, e é preciso forçar paredões de angústias e de perigo para conseguir chegar a uma doce e embriagante gota de gozo da vida. "Voar", pensa Kringelein. Ele conhece a sensação do voo que se tem em sonhos. Seu sonho se apresenta assim: Kringelein se encontra no tablado da sala de Zickenmeyer; ao seu redor está o coral da associação, e ele canta um solo. Ouve sua bonita voz de tenor, canta notas agudas, cada vez mais agudas, cada vez mais. É facílimo, ele não precisa fazer nenhum esforço, é um prazer puro, fácil e naturalíssimo.

Finalmente, ele se deita no som mais agudo e suave, e voa sobre ele, acompanhado pela música das nuvens. A Associação Coral o acompanha com o olhar; primeiro, ele sobrevoa ainda abaixo do telhado local de Zickenmeyer, depois voa completamente só, à sua volta não se vê mais nada, e só bem no finzinho ele percebe que tudo não passou de um sonho, e que precisa voltar ao seu leito matrimonial, onde Anna dorme o sono deletério dos seus quarenta anos maltratados e rixentos. A queda é medonha, e o despertar é um grito na escuridão do quarto abafado, com as pequeninas vidraças, os armários cheirando a naftalina e o pequeno fogareiro de ferro, apagado, com uma panela cheia de água em cima.

Kringelein põe-se a piscar. "Voar", pensa ele retornando ao Aeroporto de Tempelhof. Ali também há cores fortes, como na torre da emissora e ao longo do Avus; amarelo, azul, vermelho e verde, em tons bem vivos. Torres misteriosas erguem-se no ar, tudo é simples e econômico, um vento cheio de poeira sopra sobre as manchas de asfalto do outro lado da grade, e as sombras das nuvens se apressam, para atingir a pista de decolagem. O pequeno aparelho que vai decolar já está pronto, três homens estão atarefados em torno dele; o motor ronca, sua hélice gira apenas por brincadeira. Diante de suas rodas baixas há uns blocos, suas asas prateadas, com estrias, estão vibrando. Outros pássaros pousam, saudados pelos gritos roucos de uma sereia — é assim que a fábrica de Fredersdorf chama, às sete horas da manhã — ou talvez tudo isso tenha sido apenas um sonho?... Outros pássaros se elevam, baixam pesados à terra, e erguem-se, muito leves, ao ar, ora cor de chumbo prateado, ora dourados, com firmes asas de madeira, e outros ainda, brancos, enormes, com quatro asas, e três hélices girando. O campo de pouso é tão grande, tão estranhamente silencioso... Os homens que estão ali são todos esbeltos, queimados de sol, alegres e calados, envolvidos em seus ternos folgados e seus barretes justos. Só os aparelhos têm voz, e latem com um latido rouco, como cães enormes, quando vão rodando sobre o campo.

Gaigern aproxima-se com o piloto, um senhor amável, com as pernas em O de antigo oficial de cavalaria.

Gaigern parece um cliente habitual, todos o cumprimentam e o conhecem.

— Vai partir logo — anuncia Gaigern. Kringelein, que já sabe por experiência própria o que significa o "partir" de Gaigern, leva um susto. "Socorro", pensa ele, "socorro, não quero voar!", mas não o diz, de forma alguma.

— Já vamos decolar? — perguntou com ar de homem experimentado, orgulhando-se da palavra que está usando pela primeira vez na vida.

Depois, Otto Kringelein senta-se, amarrado pela cintura com uma correia, em uma cômoda cadeira de couro, e arregala os olhos para o céu azul-cinza de março. Ao seu lado está Gaigern, assobiando baixinho, e isso o consola, nesse momento de debilidade total.

No começo, não é diferente de uma viagem de automóvel, aos solavancos; depois, o aparelho começa a fazer um ruído, rápido, infernal. De repente bate no solo com um solavanco, para trás, e eleva-se no ar. Não paira no espaço, tem mais dificuldades do que o tenor Kringelein, a cantar e a voar no seu sonho; o aparelho salta por impulsos no ar, como sobre degraus de vácuo; salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai. Agora a sensação desagradável não é nas pernas, como na viagem a cento e vinte quilômetros por hora, mas na cabeça. Os ossos do crânio de Kringelein zumbem, tornam-se muito delgados, completamente vítreos, de modo que ele precisa fechar os olhos por um momento.

— Está enjoado? — pergunta Gaigern gritando em seu ouvido, pensando se seria possível, ali no avião, conseguir que Herr Kringelein lhe desse cinco mil marcos, ou mesmo três mil, ou que seja tudo pelo amor de Deus, cento e cinquenta que fossem, que já dariam para pagar a conta do hotel e a viagem até Viena. — Está se sentindo mal? Acha que basta de voar? — pergunta ele com muita cortesia.

Kringelein faz um violento e corajoso esforço para dominar-se, e responde um animado "não". Abre os olhos, a cabeça zune, vítrea; prende-os primeiro ao chão do avião, como a um ponto firme, depois vai subindo, até chegar à vidracinha oval da parede fronteiriça. Lá estão de novo os números e as agulhas trêmulas. O piloto vira o rosto de traços fortes para trás, e sorri para Herr Kringelein como para um bom amigo e camarada. Kringelein recebe esse olhar como um tônico e uma honra.

— Trezentos metros de altitude, cento e oitenta de velocidade! — grita Gaigern ao seu ouvido, que zune e crepita.

De repente, tudo se torna macio, leve e liso. O aparelho não se eleva mais, vai cantando com a voz metálica dos seus motores, fazendo uma curva, deslizando como um pássaro sobre a cidade, agora pequenina. Kringelein cria coragem e olha para fora.

Primeiro vê as asas estriadas, expostas ao sol, que parecem ter criado vida, e, bem embaixo, Berlim, dividida em quadradinhos, cúpulas verdes, uma ridícula estação, em meio à exposição de brinquedos. Uma manchinha verde é o jardim zoológico, uma manchinha cor de chumbo, com quatro pontinhos brancos de velas, é o Wannsee. Os limites do pequenino mundo ficam bem longe, o terreno vai subindo em suaves elevações, há também montanhas, florestas, terras lavradas pardacentas, Kringelein abre num sorriso infantil os lábios comprimidos. Está voando. Conseguiu suportar o voo. Sente-se muito bem, e tem uma sensação diferente de si próprio, enérgica e nova. Pela terceira vez lhe acontece, nesse dia, perder o medo, e ver esse medo transformar-se em prazer.

Toca de leve no ombro de Gaigern, e em resposta ao seu olhar inquiridor diz qualquer coisa que o ruído dos motores devora.

— Não é tão mau assim — respondeu Kringelein. — Não é preciso ter medo, não é nada mau.

Com essas palavras, Kringelein refere-se não só à conta elevada do alfaiate, à viagem ao longo do Avus e ao voo — mas a tudo isso junto, e mais alguma coisa; é que ele vai morrer em breve e, com a morte, afastar-se desse pequeno mundo, abandonar o grande medo, elevar-se, se for possível, acima dos aviões.

 

As ruas por trás do campo de Tempelhof, quando eles vieram de volta, falaram ao coração do novo Kringelein. Assemelhavam-se às melancólicas ruas de Fredersdorf, com as chaminés crescendo por trás dos caminhos, e ele alargou as narinas para sentir o cheiro de cola da seção de imprensagem dos tecidos. Com vivacidade duplicada, ele sentia, ao avistar essas pobres ruas, que usava um sobretudo novo, e se encontrava num automóvel. Procurou palavras que exprimissem esse duplo sentimento, mas não encontrou. Somente na porta do hangar ele se animou de novo — tiveram de esperar meio minuto —, o vôo ainda lhe pesava nos membros como uma silenciosa mas forte embriaguez, e, ansioso e amável, perguntou:

— Quais são agora os planos do senhor barão?

— Agora preciso cuidar de negócios particulares, no hotel. Tenho um encontro às cinco horas. Venha comigo, vou dançar um pouquinho — acrescentou ao perceber nos olhos de Kringelein uma expressão de desânimo e de real aflição.

— Muitíssimo obrigado. Acompanho-o de bom grado. Gosto de ver os outros dançar. Infelizmente não sei dançar.

— Ora, qual! Qualquer pessoa sabe dançar! Kringelein foi pensando nisso até chegarem à Friedrichstrasse.

— E depois? Que se poderia fazer depois? — perguntou insistente, na sua insaciabilidade.

Gaigern não deu resposta, mas acelerou a marcha até o próximo solavanco, quando travou o freio diante da lâmpada vermelha da Leipzigstrasse.

— Diga uma coisa, senhor diretor — perguntou ele, durante a parada do carro. — O senhor é casado ou não?

Kringelein ficou a refletir por tanto tempo que, enquanto isso, as lâmpadas amarela e verde se acenderam, e já estavam de novo a caminho, quando ele respondeu:

— Fui casado. Já fui casado, senhor barão. Separei-me de minha mulher. Pois é. Conquistei a liberdade, se posso falar assim. Há casamentos, senhor barão, em que cada cônjuge é um peso para o outro, um chega a enojar-se do outro, não pode ver a cara do outro sem se enfurecer. Não podemos ver o pente com os fios de cabelo da mulher, de manhã cedo, sem que isso nos estrague o dia; isso não é justo, é claro, ela não tem culpa de que seus cabelos caiam... Ou quando se quer ler um pouco à noite, a mulher se põe a falar sem parar, e quando não fala, canta na cozinha. E se a gente gosta de música, essa gritaria nos deixa doente. E toda noite, quando a gente está cansado, e quer ler, ouve-se a mesma cantilena: "Vá cortar lenha para amanhã cedo". Custa apenas oito Pfennige a mais cada feixe de lenha picado, o que faz dois Pfennige por dia, mas isso não é possível, de modo nenhum. "Você é um gastador", diz a mulher, "se a gente fosse pela sua cabeça, acabaria esticando as canelas." E olhe que o sogro tem um armazém que a mulher vai herdar, de modo que ela está com o futuro garantido. Então achei melhor conquistar minha liberdade. Minha mulher nunca combinou comigo, essa é a verdade, porque eu sempre gostei das coisas boas, e isso ela nunca me pôde perdoar. Quando meu amigo Kampmann me deu de presente cinco velhas coleções da revista Kosmos, minha mulher vendeu-as como papel velho; recebeu por elas catorze Pfennige. É este o retrato acabado dessa mulher, senhor barão. Agora eu me separei dela. Não faz muita diferença, umas semanas a mais ou a menos, já que ela tem mesmo que se arranjar sem mim. Então ela poderá ir de novo às lojas, vender aos empregados solteiros arenques enrolados e salsichas para o jantar. Foi assim que eu a conheci. Talvez ainda encontre outro trouxa. Quando me casei com ela, eu era completamente idiota, não fazia nenhuma ideia da vida, nenhuma ideia do que é uma mulher. Desde que cheguei a Berlim, e estou vendo tantas senhoras lindas, elegantes e amáveis, é que meus olhos estão se abrindo. Mas para essas coisas já é tarde demais.

 

Tal confissão, que partiu do fundo do coração de Kringelein, durou desde a Leipzigstrasse até a Unter den Linden.

— O dia inteiro não é noite — replicou Gaigern, meio distraído, porque estava atravessando um trecho difícil do caminho, na Porta de Brandenburgo, e diante dele seguia um chofer que não sabia dirigir. A atmosfera de uma cozinha minúscula e miserável, que se evolava das palavras de Kringelein, o sufocava, tirando-lhe o entusiasmo com que ele estivera prestes a pedir emprestados três mil marcos.

Esse Kringelein de camisa de seda, que andava de automóvel, teria também de boa vontade retirado parte daquilo que revelara com as suas palavras.

— Então nós vamos dançar — disse ele com desembaraço, para disfarçar. — Ficarei gratíssimo, se o senhor barão me tomar sob sua proteção. E que se poderia fazer à noite?

Kringelein tinha a esperança oculta de receber uma resposta que correspondesse a desejos irrealizados dentro de si, alguma coisa semelhante a certos quadros de museus, porém mais palpável, o que, nos jornais que ele lia, denominavam orgia. Tinha o pressentimento de que homens distintos da cidade guardavam a chave e a entrada de coisas assim. No dia anterior o Dr. Otternschlag havia acedido ao seu vago desejo de feminilidade, levando-o ao bailei da Grussinskaia. Pois é. Isso — julgava Kringelein — tinha sido errado; o ballet era lindo, mas poético, comovente, e demasiado maravilhoso; ficava-se cansado, com sono, sentimental, e finalmente sentia-se dor de estômago. Mas hoje...

— A melhor coisa que o senhor poderá fazer hoje é ir comigo à grande luta de boxe no Sporthalle — disse Gaigern. — Vamos ver se o porteiro ainda tem entradas.

— Não me interesso muito por boxe — respondeu Kringelein, com o orgulho do leitor do Kosmos.

— Não se interessa? O senhor já assistiu a alguma luta? Então! Pois vá, que há de se interessar — garantiu Gaigern peremptoriamente.

— O senhor também vai, senhor barão? — perguntou Kringelein, afobado. Sentia-se muito bem disposto, depois da viagem de automóvel e do voo, animado e enérgico, preparado para o que desse e viesse, mas tinha a impressão de que despencaria como uma arvorezinha de borracha no instante em que o barão o abandonasse.

— Tenho uma vontade louca de ir também — replicou Gaigern. — Mas infelizmente não posso. Não tenho dinheiro.

Nesse ínterim haviam se afastado das ramagens floridas do jardim zoológico, e a fachada do hotel já aparecia, lá embaixo. Gaigern deixou a velocidade cair para doze quilômetros, a fim de dar tempo a que Herr Kringelein se manifestasse. Kringelein ficou a remoer a observação sorridente de Gaigern. Pararam defronte ao portão 5, subiram, e ele não conseguira se livrar daquilo.

— Vou levar o carro à garagem! — exclamou Gaigern, depois que fez Kringelein descer do carro, com as pernas um tanto rijas e adormecidas; por fim desapareceu na esquina.

Kringelein meteu-se, pensativo, na porta giratória, cujo mecanismo já não o deixava mais estupefato. "Não tem dinheiro", pensou ele. "Está sem dinheiro. É preciso fazer alguma coisa."

Rohna, o porteiro, os boys, e até o maneta do elevador, notaram a transformação que ele sofrerá, mas, discretamente, não o deram a perceber. O hall, de onde se evolava um aroma de mokka, estava repleto de pessoas que conversavam. O relógio marcava quatro horas e cinquenta minutos. O Dr. Otternschlag estava sentado em sua habitual cadeira maple, tendo ao lado, no solo, uma pilha de jornais. Fitou Kringelein com uma expressão indefinível de ironia e tristeza. Kringelein, não muito seguro de si, aproximou-se dele e estendeu-lhe a mão.

— O novo Adão — observou Otternschlag sem lhe estender a sua, que estava fria e úmida, o que o tornava tímido. — A borboleta saiu do casulo. E por onde esteve voando, se me permite perguntar-lhe?

— Fiz umas compras. Fui passear de automóvel pelo Avus, almocei no Wannsee. Depois fiz um voo de avião — respondeu Kringelein. Seu tom de voz, ao falar com Otternschlag, mudara um pouco, sem que ele próprio o percebesse.

— Magnífico — disse Otternschlag. — E agora?

— Às cinco tenho um encontro. Vou dançar. — Ah! e depois?

— Depois, estou com vontade de ir a uma grande luta de boxe, no Sporthalle.

— Ah, é? — retorquiu Otternschlag. Disse apenas isso. Pôs o jornal diante dos olhos e começou a ler, ofendido. Na China houvera tremores de terra, mas a bagatela de quarenta mil mortos não bastava para fazer desaparecer o aborrecimento de Otternschlag.

Quando Gaigern chegou ao segundo andar para trocar de roupa, encontrou Kringelein diante da porta de seu quarto, à sua espera.

— Então? — perguntou impaciente. Pouco a pouco lhe atacava os nervos estar preso a esse homenzinho exótico.

— O senhor barão estava caçoando de mim ou é verdade que está em dificuldades financeiras? — perguntou Kringelein, repentinamente. Foi uma das frases mais difíceis que jamais pronunciou, e apesar de a ter preparado de antemão, disse-a gaguejando.

— É a absoluta verdade, senhor diretor. Estou arrasado, com um azar dos diabos, só tenho no bolso vinte e dois marcos e trinta Pfennige, e amanhã sou obrigado a enforcar-me no jardim zoológico — disse Gaigern, abrindo o rosto bonito em um largo sorriso. — Mas o pior de tudo é que preciso estar em Viena dentro de três dias; apaixonei-me por uma mulher, sabe, de um modo incrível, uma paixão fulminante, e tenho que acompanhá-la por onde ela andar. E estou numa pendura completa. Se pelo menos alguém me emprestasse algum dinheiro que desse para eu arriscar hoje no jogo...

— Também estou com vontade de jogar — observou Kringelein, pressuroso, com verdadeiro entusiasmo. Sentiu de novo a sensação dos cento e vinte quilômetros por hora, do voo do avião, e disparou, zunindo, pelo espaço infindável.

— Tiens! Eu vou buscá-lo no Sporthalle, e vamos a um clube elegante. O senhor arrisca mil marcos e eu vinte e dois! — exclamou Gaigern. Dizendo isto, fechou a porta do seu quarto e deixou Kringelein sozinho, do lado de fora. Por enquanto estava farto dele. Atirou-se, vestido, para cima da cama, e fechou os olhos. Foi tomado de um sentimento de desânimo e enfado. Procurou recordar-se da menina do cachinho louro na testa, com quem tinha marcado um encontro às cinco horas, no pavilhão amarelo, mas não o conseguiu. Apresentava-se sempre uma outra recordação, o abajur da Grussinskaia, a grade do balcão, uma nesga do Avus, uma nesga do campo de aviação, o suspensório rasgado de Herr Kringelein. "Dormi pouco hoje à noite", pensou ele, acalorado, contente e com os nervos frouxos. Caiu num sono de três minutos, num saco de trevas e de restauração, como aprendera a fazer na guerra. Uma camareira bateu à porta, despertando-o; era uma carta de Kringelein.

 

Prezado senhor barão!, escrevia Kringelein. Permitiria que o abaixo-assinado o considerasse hoje à noite seu convidado, e ao mesmo tempo me faria a fineza de aceitar o insignificante empréstimo que junto a esta? Peço-lhe apenas que me mande um recibo. Seria uma honra para mim poder ser-lhe útil, e, no meu caso, o dinheiro já nada significa. Cumprimentos respeitosos do seu

Amgo. Crdo. Obr.

Otto Kringelein Anexo: uma entrada

duzentos marcos.


12

 

O envelope com o endereço do hotel continha um bilhete alaranjado para a luta de boxe no Sportpalast, e duas cédulas amarrotadas de cem marcos, numeradas a tinta num dos cantos. Na assinatura de Kringelein faltavam os pingos nos ii. Ele os perdera definitivamente no turbilhão insano que o arrastara nesse dia memorável.

Preysing, com os ossos ocos e vazios, ficou no hall depois de terminada a conferência, depois de assinado o contrato prévio, e da despedida do Dr. Zinnowitz, desejando-lhe felicidade e sorte. A sensação de uma grande vitória, a consciência de haver passado um blefe nos cavalheiros da Chemnitz, a tensão nervosa de discursar e de vencer sob uma base insegura, tudo isso era completamente novo para o diretor-geral, e o transportou a um estranho estado de atordoamento, nada desagradável. Olhou para o relógio do hotel — já passava das três horas —, encaminhou-se mecanicamente para a cabina telefônica, a fim de pedir uma ligação com a fábrica, e depois demorou-se bastante no banheiro dos homens, deixando escorrer água quente pelas mãos, enquanto se olhava no espelho com um sorriso idiota. Passou por último à sala de refeições, que estava quase vazia, e escolheu o menu sem prestar atenção; durante os dois minutos de espera até chegar o consommé, impacientou-se e pôs-se a fumar um charuto, que lhe pareceu delicioso, acima de qualquer crítica. Enquanto observava a lista dos vinhos, trauteou uma melodia, e sentiu desejos bem definidos de beber vinho doce, que aquecesse a língua; encontrou um Wachencheimer Mandelgarten 1921, que lhe pareceu prometedor. Pouco depois surpreendeu-se a sorver ruidosamente a sopa; quando ficava distraído, acontecia-lhe, por vezes, praticar algum mau costume do começo da sua vida. Sentia que estava numa situação feliz, mas de imprevisíveis consequências. O embuste — ele próprio usava essa expressão forte, que o transportava estranhamente a uma nova espécie de sensação de orgulho — que ele usara durante a conversação só poderia valer, no melhor dos casos, por três dias. Nesses três dias era preciso acontecer alguma coisa, se não quisesse sofrer as consequências de uma catástrofe. A assinatura do contrato prévio poderia ser retirada dentro de catorze dias. Preysing, que vertera depressa demais, pela goela seca, os dois primeiros copos do vinho frio e excitante, adoçado pelo sol, ficou meio tonto, e, em meio à sua tontura, viu a chaminé principal da fábrica explodir, separando-se em três pedaços. Isso não tinha importância, era uma reminiscência de um sonho que Preysing, a intervalos regulares, costumava ter. Estava comendo o peixe, quando um groom gritou "Chamada interurbana para Herr Preysing!" por entre o burburinho da discreta sala de refeições. Preysing ainda engoliu rapidamente um gole de vinho e dirigiu-se à cabina telefônica 4. Esqueceu-se de acender a luz, e na escuridão postou-se diante do fone com a sua mais férrea expressão de diretor da fábrica, famosa em Fredersdorf. Por entre o assobio agudo de um pequeno desarranjo na linha, anunciou-se Fredersdorf.

— Com Herr Broesemann — disse o diretor-geral, com a voz inexpressiva que usava no desempenho de suas funções. Demorou meio minuto até que encontrassem o gerente. Preysing considerou uma ofensa essa demora, e bateu com o salto do sapato no assoalho.

— Puxa... finalmente! — exclamou ele, quando Broesemann atendeu.

Adivinhavam-se, através do telefone, as curvaturas de Broesemann, e Preysing as recebeu como um merecido tributo.

— O que há de novo, Broesemann, além do telegrama inútil de ontem? Não... ao telefone não, sobre isso falaremos depois. Por enquanto eu me esforço por considerar esse assunto como inexistente, compreendeu? Ouça, Broesemann, agora eu quero falar com o velho. Está dormindo? Sinto muito, é preciso acordá-lo. Não, sinto muito. É, sim, imediatamente. Até logo, Broesemann. Não, as outras ordens o senhor as receberá por escrito. Estou esperando.

Preysing ficou à espera. Arranhou a tábua da estante do telefone com as unhas, tomou a caneta-tinteiro e pôs-se a tamborilar com ela na parede, pigarreou, e seu coração disparou triunfalmente, com batidas claras e definidas. O bocal do telefone, diante de sua boca, cheirava a desinfetante e, ao passar a mão por ele na escuridão, sentiu que a beirada estava lascada. Então o velho falou, lá de Fredersdorf.

— Alô, bom dia, papai, desculpe incomodá-lo. A conferência durou até agora, pensei que o senhor se interessaria em saber logo do resultado. Trata-se do seguinte: o contrato prévio está assinado... não, assinado, assinado ... — disse ele gritando, porque o velho tinha o teimoso costume de fingir-se mais surdo do que era realmente.

— Difícil, o senhor acha? Ora, mais ou menos. Obrigado, obrigado, não preciso de aplausos. Ouça, papai: preciso viajar imediatamente para Manchester; é, é absolutamente necessário, absolutamente. Vou para Manchester, bom, bom, eu lhe escrevo a esse respeito com mais pormenores. Como? O senhor está satisfeito? Eu também. Sim, senhorita, terminei. Até logo.

Preysing continuou na cabina escura, e só então se lembrou de apertar o botão da lampadazinha. "Mas, que história é essa?", pensou, espantado. "Como é que vou viajar para Manchester? Como foi que essa ideia me ocorreu? É isso mesmo... vou para Manchester. Aqui eu aguentei firme, lá também vou aguentar. É muito simples. Muito simples", pensou ele, sentindo-se novamente mais seguro de si, e enfunando-se como um balão. Um êxito casual, insignificante e incerto, transformara um homem hesitante, de terno de sarja cinzenta, em um sujeito empreendedor e aventureiro, de princípios vacilantes e dúbios.

— A ligação custa nove marcos e vinte — avisou a telefonista.

— Ponha na conta — respondeu Preysing, caminhando imerso em pensamentos.

Sentia uma estranha antipatia em falar com Mulle. Na sala de refeições de sua casa fazia agora um calor excessivo; Mulle gostava de quartos bem aquecidos; Preysing teve a impressão de que a sala de refeições de Fredersdorf cheirava a couve-flor; teve a impressão de ver nas faces cheias e sonolentas de Mulle a marca vermelha das pregas do travesseiro, no momento em que ela segurava o fone, após a sesta. Não se decidiu. Não a chamou. Voltou à sala de refeições, onde, entretanto, um garçom perfeito colocara para ele o vinho no gelo, e pratos limpos e aquecidos sobre a mesa.

Preysing comeu, esvaziou seu copo de vinho, acendeu o charuto e, com as têmporas acaloradas e os pés frios, voltou ao quarto. Tinha uma sensação estranha, agradável e nebulosa, mas ao mesmo tempo sentia-se completamente vazio, em consequência da conferência. Teve vontade de tomar um banho bem quente, e abriu a torneira do banheiro. Justamente quando fez menção de despir-se, refletiu melhor, lembrando-se de que não é bom tomar banho com o estômago cheio; sentiu, no espaço de um instante de medo, as palpitações que o ameaçavam na banheira esmaltada, e soltou de novo a água, cheia de vapor. A impressão de cansaço e desconforto que sentiu materializou-se numa coceira no rosto e, quando tentou coçar-se, percebeu que não estava barbeado. Apanhou o chapéu e o sobretudo, como ao preparar-se para um negócio importante; não quis ir ao barbeiro do subterrâneo do hotel, com quem ainda estava zangado, por causa do que acontecera de manhã, e procurou nas ruas circunvizinhas um barbeiro de mais confiança.

Então o Diretor-Geral Preysing viveu uma experiência notável; esse homem de princípios sólidos, mas sem aparelho de barba, teve uma experiência; esse homem de intenções corretas, mas que, apesar de tudo, praticara uma ação duvidosa, um azarado, a quem pela primeira vez o êxito bafejara, ao qual esse bafejo levava... para onde? Podia parecer um acaso, talvez fosse o destino que lhe estava reservado. A experiência foi esta:

A pequena barbearia em que Preysing entrou era asseada e simpática. Havia quatro cadeiras, e dois senhores sentados; um deles era servido por um empregado jovem, simpático, de cabelos encaracolados, e o outro pelo dono da barbearia, um homem idoso, com a aparência e os modos de um camareiro imperial. Preysing foi cumprimentado, alojado na terceira cadeira e envolvido numa capa e num peitilho. O cavalheiro que tivesse um momento de paciência, o primeiro oficial de barbeiro tinha ido almoçar, foi o que lhe participaram com toda a cortesia, pondo-lhe em seguida, nas mãos, um pesado maço de revistas ilustradas. Preysing, excessivamente cansado para opor qualquer resistência, reclinou a cabeça no pequeno encosto da cadeira, e respirou o aroma agradável que pairava na barbearia. Depois, com os nervos acalmados pelo ruído das tesouras, começou a folhear as revistas.

Primeiro pôs-se a ler, de uma maneira indiferente, quase a contragosto, porque não apreciava esse passatempo leviano, preferindo leituras instrutivas e sérias. Mas, após uns instantes, ele já se ria com uma ou outra piada, soltando uma risadinha curta e nasal; voltou as folhas para trás, para observar melhor uma mulher decotada, e em seguida virou uma página, e deixou-a aberta durante todo o tempo em que ficou sentado na cadeira de barbeiro. Realmente, concentrou-se de tal modo na observação dessa gravura, dessa fotografia de revista, que se sentiu estorvado quando o primeiro oficial voltou da sua refeição e se preparou para barbeá-lo.

A fotografia que o atraía desse modo nada tinha de especial; fotografias como essa eram encontradas às centenas em revistas cuja orientação desagradava a Preysing. A gravura representava uma mocinha nua, nas pontas dos pés, tentando olhar por sobre um biombo muito mais alto do que ela. Seus braços estavam levantados, e os delicadíssimos seios, com esse movimento, erguiam-se com uma graça especial, de modo tentador. No dorso esguio via-se o desenho delicado da musculatura. Na cintura, esse corpo se estreitava de um modo incrível, e abaixo do dorso delgado os quadris se encurvavam suavemente, prolongando-se nas linhas das coxas. Aqui, o corpo virava-se ligeiramente de lado, de modo que o ventre da mocinha mal se adivinhava como uma sombra suave, enquanto as coxas e os joelhos se distendiam, como a exprimir uma elástica curiosidade. Essa figura encantadora de mulher, de formas invulgarmente perfeitas, tinha também um rosto; e o que tornava a gravura extremamente excitante para o diretor-geral é que ele conhecia esse rosto. Era a carinha de gata da Flaemmchen, de nariz curto, com uma expressão animada e inocente, era o sorriso meigo de Flamm número dois, era o seu caracolzinho na testa, sobre o qual o esperto fotógrafo colocara um propositado reflexo luminoso; e, antes de mais nada, era a completa naturalidade, o modo simples e ingênuo com que ela o chamara de modo objetivo e modesto — Preysing recordou-se nesse instante — de um "bom nu". Preysing corou, enquanto teve diante dos olhos essa gravura; um súbito e ardente rubor subiu à sua testa, impedindo-o de pensar com clareza, como lhe acontecia nos seus acessos de cólera, que faziam tremer toda a fábrica. Depois, suas veias, uma a uma, começaram a latejar dentro dele, ele o sentia, sentia o sangue a refluir nas veias, como há muito tempo não lhe acontecia.

Preysing era um homem de cinquenta e cinco anos; não era um velho, mas uma pessoa pacata, o esposo pouco exigente de Mulle, mulher já envelhecida, papaizinho inocente de filhas crescidas. Trotara atrás da Flamm número dois pelo corredor do hotel sem sentir a mínima excitação, e o borbulhar suave de seu sangue, nessa ocasião, aplacara-se de modo próprio. Agora, diante desse nu artístico, mal podia respirar.

— Com licença, cavalheiro — disse o barbeiro; e, com um gesto elegante, pousou o fio da navalha em sua face.

Preysing conservou a revista na mão, enquanto se reclinava para trás e fechava os olhos. Primeiro viu tudo vermelho, e depois enxergou a Flaemmchen. Não a Flaemmchen vestida, diante da máquina de escrever, nem a Flaemmchen despida da fotografia cinzenta, mas uma mistura vivaz e excitante de ambas. Uma Flaemmchen de carne e osso, de pele moreno-dourada e sangue rubro e palpitante, que continuava nua, com o busto erguido, a olhar com curiosidade por cima de um biombo. O Diretor-Geral Preysing não estava habituado a deixar sua fantasia trabalhar. Mas agora ela trabalhava. Havia soltado a manivela, desde que ele, pela manhã, colocara na mesa o telegrama, dizendo, de um modo descarado, uma mentira absurda. Agora sua imaginação se afastava rapidamente com ele, o que era apavorante e embriagador ao mesmo tempo. Enquanto a navalha deslizava com leveza e perícia em seu rosto, Preysing sentia coisas incríveis, coisas fantásticas, com a Flaemmchen nua, coisas incríveis consigo mesmo, que ele nunca julgara que pudessem acontecer.

— Quer que lhe raspe o bigode? — perguntou o barbeiro.

— Não — disse Preysing, estorvado em meio aos seus pensamentos. — Por quê?

— É que as pontas estão um pouco grisalhas, e isso envelhece. Se me permite um conselho, o cavalheiro aparentaria dez anos menos, sem bigode — sussurrou o barbeiro, com o sorriso bajulador de todos os barbeiros a refletir-se no espelho.

"Mas eu não posso me apresentar a Mulle sem bigode, como um macaco", pensou Preysing, olhando-se no espelho. Realmente, seu bigode estava grisalho, e sob o bigode havia sempre gotas de suor no lábio superior. "Ora, a Mulle...", pensou ele — e nesse instante, a bem dizer, o adultério já estava cometido.

— Está bem, pode raspá-lo. A qualquer momento posso deixar crescer de novo o bigode.

— É claro, é facílimo — concordou o barbeiro, indo buscar em seguida mais sabão de barbear, para o grande empreendimento.

Preysing levantou a revista para olhar de novo a fotografia — mas isso só já não lhe bastava. Ele não queria mais ver, queria pegar, queria apalpar, queria sentir a Flaemmchen, palpitante e ardente.

No hotel repararam imediatamente no que acontecera ao bigode, mas não deram a perceber. Meu Deus do céu, estavam tão acostumados a observar as estranhas metamorfoses pelas quais passavam os cavalheiros que vinham da província para ficar uns dias no hotel... Preysing, que perguntava, apressado e ofegante, se havia correspondência para ele, recebeu uma carta de Mulle, que lhe colocaram na mão. Meteu-a simplesmente no bolso, sem a ler, e sem nenhum sentimento de carinho. Dirigiu-se então à cabina telefônica. "Preciso falar com Mulle", pensou, "mas posso chamá-la mais tarde." Entrou na cabina para ligações locais, pediu para falar com o gabinete do conselheiro Zinnowitz, e teve uma breve conversa com a Flamm número um. Desejava saber se a senhorita sua irmã estaria por acaso no gabinete.

Não, não estava mais.

Desejaria saber onde poderia ser encontrada.

Ah, respondeu a Flamm número um, hesitante, talvez ela se houvesse atrasado um pouco. Mas, nesse caso, a qualquer momento ela apareceria no hotel.

Preysing, diante do fone, ficou com uma cara de idiota.

— No hotel? Aqui? No Grande Hotel? Por quê?

— Pois é — disse a Flamm número um, precavida e indecisa. Isso pelo menos é o que ela entendera. Flaemmchen tinha ido para o hotel, e então ela, a Flamm número um, julgara que a irmã fora chamada de novo para datilografar. Mas talvez a Flaemmchen tivesse algum encontro, o que nunca se podia saber com certeza, pois, nesse ponto, a Flaemmchen era muito esquisita, muito diferente dela, a Flamm número um. Mas pontual ela era; quando prometia qualquer coisa, cumpria o prometido; por isso, iria com certeza ao hotel.

Preysing agradeceu e pôs o fone no gancho, atrapalhado. Dirigiu-se de novo, inquieto, à portaria, atravessando o hall. Ouvia-se perfeitamente a música saltitante que vinha do pavilhão amarelo.

— Minha secretária perguntou por mim? — informou-se ele com Herr Senf. O porteiro voltou para ele o rosto muito atento e tolo.

— Quem, por favor?

— Minha secretária. A senhorita a quem eu ditei cartas ontem — informou Preysing, excitado.

O pequeno Georgi meteu-se na conversa.

— Ela não perguntou nada, mas esteve no hall, há uns dez minutos, a moça loura, magra, não é isso? Eu acho que ela está no chá das cinco, no pavilhão amarelo, do outro lado do hall, segundo corredor atrás do elevador; o senhor vai perceber pela música.

Seria próprio de um diretor-geral, vestido com um terno de sarja, andar atrás dos sons apimentados de uma orquestra de jazz, através de corredores desconhecidos, à procura de uma jovem e leviana datilografa, com quem ele nada tinha que ver, do ponto de vista jurídico? Mas é que Preysing está quase a desviar-se do bom caminho, quase a escorregar, e não o percebe. Só percebe que seu sangue corre de modo diferente do costume, diferente dos quinze ou vinte últimos anos, e ele quer a qualquer preço agarrar-se a esse sentimento, tirar proveito dele. O bigode está raspado, não foi feita nenhuma ligação telefônica para a Mulle, e, quando ele abre a porta do pavilhão amarelo e sente a atmosfera desconhecida dessa sala, o assunto complicado com Chemnitz e Manchester, incerto e ainda por esclarecer, fica quase esquecido.

A essa hora, às cinco horas e vinte minutos, o pavilhão amarelo está diariamente entupido de gente. As cortinas de seda amarela, franzidas vaporosamente, estão fechadas diante das janelas altas; nas paredes estão acesas lampadazinhas amarelas, e nas mesinhas também há lampadazinhas acesas, com abajures amarelos. Está quente, ali dentro; dois ventiladores zunem, e paira no ar o burburinho humano. As pessoas estão sentadas bem perto umas das outras; cada um sente o calor do seu vizinho, porque uniram as mesinhas, para dar mais espaço aos que estão dançando no centro da sala. No forro abobadado estão pintadas formas vagas de bailarinos, em lilás e prateado; por vezes, quando tudo se movimenta, o forro causa a impressão de um espelho embaciado, em que se refletem os dançarinos cá de baixo. Tudo o que se passa ali dá uma impressão estranha de ângulos e de ziguezagues; a dança não é circular, mas apenas um estremecimento que se eleva e abaixa; e Preysing, que foi soprado até ali pelos rumores de seu sangue, para procurar uma certa Flaemmchen, ficou completamente tonto. Não via mais as pessoas inteiras, mas tudo se separava em confusão, só tinham cabeça ou coxas, como certa espécie de quadros modernos, que Preysing, em razão da loucura que representavam, não podia suportar. Porém, o mais importante e digno de reparo no pavilhão amarelo era a música. Era executada por sete cavalheiros indescritivelmente satisfeitos, de camisas brancas e calças curtas, a célebre Eastman Jazzband, cuja música era de uma vivacidade maluca, tamborilava sob as solas dos pés, fazia cócegas nos músculos dos quadris. Havia dois saxofones que choramingavam e outros dois que zombavam deles com um jeito satírico e sarcástico. O jazz serrava, estalava, teimava, matraqueava, cacarejava, pondo ovos sobre a melodia, ovos que eram em seguida esmagados — e quem caísse dentro do círculo dessa música ficava prisioneiro do ritmo convulsivo da sala, parecia até enfeitiçado.

Preysing, no entanto — empurrado de um lado para o outro pelos garçons que levavam bandejas cheias de taças com gelo —, ficara parado à porta, e reparou que começou a contrair os músculos das pernas enquanto, mal-humorado, procurava enxergar a Flamm número dois. Seu lábio superior, nu e remoçado, cobriu-se novamente de suor; ele tirou do bolso o lenço, enxugou o rosto, e depois meteu o lenço no bolsinho exterior do paletó, onde em geral só costumava guardar a caneta-tinteiro. Com um olhar de esguelha, muito encabulado, arranjou a ponta do lenço, deixando-o cair como uma graciosa bandeirola; isso parecia legitimar o seu direito de pertencer a essa parte animada do Grande Hotel. Aliás, ninguém se importava com ele. Poderia ficar ali o tempo que quisesse, e procurar entre duzentas jovens e esbeltas dançarinas uma determinada senhorita.

— Quando vi que o senhor não estava aqui às cinco e dez pensei: ele vai dar um bolo. Você vai ver, ele vai dar um bolo, pensei — disse a Flaemmchen, que estava dançando com Gaigern uma lânguida variação do charleston, uma dança nova, com uma pequena síncope, que dava um golpe na perna. Seus corpos se ajustavam plenamente na dança.

— Absolutamente. Pensei o dia inteiro na senhora, e me alegro de poder revê-la — disse Gaigern.

Essa frase lhe saiu com a mesma leveza e languidez, com a mesma facilidade com que ele dançava. Gaigern era apenas alguns centímetros mais alto do que a Flaemmchen, e fitou com um leve e amável sorriso os olhos de gatinha da moça. Ela estava vestida com um vestidinho de seda leve, azul; ao pescoço trazia um colar de contas de vidro lapidado, e usava um chapeuzinho, desses fabricados em série e vendidos por um marco e noventa. Estava encantadora, com os requisitos de uma elegância rebuscada.

— É verdade mesmo que o senhor se alegrou? — perguntou ela.

— Metade verdade, metade invenção — replicou Gaigern com sinceridade. — Passei o dia hoje caceteadíssimo — acrescentou suspirando. — Estou servindo de cicerone para um senhor de idade, por necessidade, é claro.

— E por que faz isso?

— Preciso conseguir uma coisa dele.

— Ah! — disse a Flaemmchen, compreensiva.

— A senhora também precisa dançar com ele — disse Gaigern, apertando-a de leve.

— Que nada!

— Não é isso. Mas eu vou lhe pedir encarecidamente. Ele não sabe dançar, compreende? Mas tem tanta vontade de aprender! A senhora dá apenas algumas voltas com ele — para me fazer um favor.

— Bem, vamos ver! — prometeu a Flaemmchen. Continuaram a dançar, calados. Gaigern trouxe mais para perto o corpo da moça, sentindo que as costas dela obedeciam documente aos movimentos de sua mão. Isso, porém, não o alegrava, pelo contrário, causava-lhe raiva, até.

— Então, que aconteceu? — perguntou a Flaemmchen, pressentindo o que se passava.

— Ah!... Não é nada! — resmungou Gaigern, sentindo ódio de si próprio.

— Que está querendo? — perguntou a Flaemmchen com solicitude. Achava-o lindo, com aquela boca, e a cicatriz no queixo... E os olhos também, um pouco oblíquos. Sentia forte inclinação por ele.

— A gente tem vontade de fazer qualquer coisa maluca, já que não acontece nada. Agora tenho vontade de mordê-la, ou de brigar com a senhora. Ou de esmurrá-la, até. Ora! Hoje à noite vou à luta de boxe; ali, pelo menos, acontece alguma coisa.

— Ah, é? — disse a Flaemmchen. — O senhor vai hoje à noite à luta de boxe? Ah, sei.

— Com aquele senhor de idade — afirmou Gaigern.

— Se o senhor... acabou — disse a Flaemmchen, quando a música parou. Ela se pôs então a bater palmas freneticamente, deixando-se ficar onde estava. Gaigern fez menção de tirá-la do meio da sala e levá-la a uma mesinha, onde ele deixara Kringelein diante de uma xícara de café. A música começou de novo, quando os dois já se encontravam a meio caminho, entre a confusão e o aperto.

— Tango! — exclamou a Flaemmchen, excitada.

E a moça tomou posse de Gaigern, simplesmente. A palma de sua mão encostava-se à dele, implorando e aquiescendo. Suas coxas já se emparelhavam no passo lânguido e arrastado do tango. Fez-se um vazio na sala, em redor deles, porque dava prazer vê-los dançar.

— O senhor conduz otimamente — sussurrou a Flaemmchen, como se fizesse uma declaração de amor. Gaigern nada tinha a replicar. — Ontem o senhor estava tão diferente... — disse um pouco mais tarde.

— É... ontem — respondeu Gaigern. Disse isso como se estivesse a dizer: há cem anos. — Aconteceu uma coisa de ontem para hoje — acrescentou.

Sentia que uma compreensão simples e natural os unia, e de repente teve desejos de se confiar a ela.

— Esta noite eu me apaixonei, uma paixão muito séria, compreende? — disse ele baixinho, dançando o tango que vibrava no ar. — Isso vira a cabeça da gente. É um sentimento avassalador. É como se...

— Mas isso não é nada de extraordinário — observou a Flaemmchen, ironicamente, sentindo-se triste, desiludida.

— É sim, é uma coisa extraordinária. A gente tem vontade de se transformar por completo, compreende? De repente acha que só existe uma mulher no mundo, só essa mulher, e o resto não tem mais nenhum valor. A gente acha que não é mais capaz de dormir, a não ser com essa mulher. É como se passasse por nós um furacão. Como se nos tivessem posto dentro de um canhão, e depois atirado à Lua ou a outro lugar qualquer, onde tudo é diferente.

— E como é ela? — perguntou a Flaemmchen — e qualquer outra em seu lugar teria perguntado o mesmo.

— Ah! Como ela é? Aí é que está... É muito velha e magra, muito leve, sou capaz de levantá-la do chão com um dedo. Tem rugas, aqui e aqui, e olhos pisados. E fala numa linguagem de baixo calão, como um clown; tem-se vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo, ao ouvi-la. E isso tudo me agrada de um modo incrível, não há nada a fazer. É o grande amor.

— O grande amor? Mas isso não existe — disse a Flaemmchen. Ao afirmar isto, ela tinha uma carinha espantada e teimosa de gata, como às vezes os amores-perfeitos têm nos canteiros.

— Como não, como não? Existe, sim — disse Gaigern.

A Flaemmchen ficou tão impressionada com essas palavras, que parou um segundo, em meio ao tango, e sacudindo a cabeça olhou Gaigern.

— São frases, apenas — murmurou ela ao mesmo tempo.

Nesse momento exato os olhos de Preysing descobriram finalmente o vulto procurado, no meio da confusão erótica e lânguida do tango. Com um sentimento de zanga e extrema impaciência, esperou que a dança lenta terminasse e depois foi-se espremendo entre os pares, até a mesinha em que a Flaemmchen tomara lugar entre dois senhores, que Preysing tinha a impressão de conhecer. No hotel, essa espécie de conhecimentos de vista eram correntes; passava-se por alguém no elevador, encontrava-se com alguém na sala de refeições, no banheiro e no bar, girava-se um diante do outro na porta giratória, nessa porta que estava sempre a rodar, deixando entrar e sair gente, para dentro e para fora do hotel.

— Boa tarde, Fräulein Flamm — disse o diretor-geral com a voz tornada rouca e grosseira pela timidez; postou-se ao lado da cadeira da moça, encolhendo a barriga para dar passagem ao garçom.

A Flamm número dois apertou as pálpebras, até conseguir registrar a presença imprevista de Preysing.

— Ah, é o senhor diretor — disse então, amavelmente. — O senhor também dança? — ela olhou a fisionomia contraída dos três homens; estava habituada a ver essa expressão nos semblantes dos homens que a rodeavam. — Os senhores já se conhecem? — perguntou com um gesto distinto de mão, que copiara de uma estrela de cinema.

Não podia apresentá-los, porque não sabia como se chamavam os seus cavalheiros. Preysing e Gaigern murmuraram algo, e o diretor-geral apoiou na mesa uma mão repleta de sentimento de posse, enquanto passava rente a ele, à altura da cabeça, uma perigosa bandeja com copos de laranjada, que o garçom equilibrava.

— Boa tarde, Herr Preysing — disse de repente Kringelein, sem erguer-se da cadeira.

Cada uma das suas vértebras lhe doía, por causa do enorme esforço que teve de fazer para não ser atacado de tremedeira e não cair estatelado, voltando a ser o miserável Kringelein da caixa da fábrica. Ficou de ombros contraídos; tudo nele se contraiu; lábios, dentes, até mesmo as narinas, que tomaram um aspecto redondo e feio, como as dos cavalos. Mas ele se portou à altura do grave momento; forças nunca pressentidas fluíam do seu jaquetão preto de corte impecável, da sua roupa de baixo, da sua gravata, de suas unhas bem cuidadas, enchendo-o de energia. O que quase o fez perder o aplomb foi o fato de Preysing também ter se transformado; continuava a usar o mesmo terno de Fredersdorf, mas não tinha mais bigode.

— Não sei bem... desculpe-me... mas acho que já nos conhecemos... — disse Preysing com a maior amabilidade que lhe permitia a excitação que sentia por causa da Flaemmchen.

— Sim, senhor. Kringelein — afirmou este. — Trabalho na fábrica.

— Ah — disse Preysing, esfriando. — Kringelein. Nosso representante, não é? — acrescentou, reparando na elegância de Kringelein.

— Não. Guarda-livros. Auxiliar de guarda-livros no bureau de pagamentos. Sala 23. Edifício C. Terceiro andar — informou Kringelein conscienciosamente, mas sem devoção.

— Ah — repetiu Preysing, pensativo. Seu desejo era afastar nesse momento a aparição indesejável e incompreensível de um auxiliar de guarda-livros de Fredersdorf no pavilhão amarelo do Grande Hotel. — Preciso falar com a senhora, Fräulein Flamm — disse ele, retirando a mão do encosto da cadeira da Flaemmchen. — Trata-se de um novo serviço de datilografia — acrescentou num tom de chefe, que feriu os ouvidos do sujeito de Fredersdorf.

— Está bem — concordou a Flaemmchen. — Quando é melhor para o senhor? Às sete, sete e meia?

— Não, já — disse Preysing em tom ditatorial, enxugando o suor do rosto.

Aquele indivíduo de Fredersdorf tinha também um lenço no bolso do paletó, uma flamulazinha de seda, revolucionária e leviana.

— Infelizmente, já, já não é possível — disse a Flaemmchen amavelmente. — Já estou comprometida. Não posso deixar estes senhores aqui. Ainda preciso dançar uma vez com Herr Kringelein.

— Herr Kringelein vai ter a amabilidade de desculpá-la — disse Preysing, contendo-se. Era uma ordem. Kringelein sentiu que os vinte e cinco anos de um sorriso subalterno queriam insinuar-se em seus lábios paralisados. Controlou-o, fazendo-o recuar para a pele do rosto, engelhada e quase fria. Procurou auxílio e forças em Gaigern. O barão tinha um cigarro no canto da boca, e a fumaça subia ao longo das pestanas de seu olho esquerdo, que ele piscou com expressão brejeira e compreensiva.

— Não penso absolutamente em desistir — comentou Kringelein. Após lhe escaparem estas palavras, ficou imóvel como uma lebre, que finge estar morta no carreiro de um campo. De repente, Preysing, ao ver aquela expressão obstinada, recordou-se de um relatório a respeito de Kringelein, que lhe haviam apresentado há poucos dias.

— É estranho — disse ele com a voz nasal e temida da fábrica. — É estranhíssimo. Agora já sei do que se trata. O senhor participou à fábrica que estava doente, não é? Herr Kringelein, hein? Sua mulher pediu um subsídio ao Fundo de Auxílio aos Doentes, por causa de moléstia grave. Nós lhe demos férias de seis semanas, pagas. E o senhor se encontra em Berlim, divertindo-se, hein? Anda atrás de divertimentos que não condizem nem com a sua posição nem com o seu ordenado. É muito estranho. Estranhíssimo, Herr Kringelein. Nós vamos rever com cuidado os seus livros, pode estar certo disso. Vamos deixar de pagar-lhe as férias, já que o senhor está tão bem de saúde, Herr Kringelein! Vamos...

— Olhem, meninos, nada de brigas aqui. Vão entender-se no seu escritório — disse a Flaemmchen, com modos afáveis e conciliantes. — Nós estamos aqui para nos divertir. Vamos, Herr Kringelein, agora vamos dançar.

Kringelein firmou-se nas pernas, esticando os joelhos, que pareciam de borracha, mas que se consolidaram a olhos vistos quando a Flaemmchen colocou o braço no ombro dele. A música tocava aos solavancos uma coisa rapidíssima, algo semelhante à corrida de automóvel a cento e quinze quilômetros por hora, e ao motor de avião. Isso lhe deu forças para dizer as frases que vinha preparando há vinte e cinco anos, em sua vida de empregado subalterno. Arrastado pela Flaemmchen para o meio da sala, falou em voz alta, virando a cabeça para trás:

— Quem sabe se o mundo pertence só ao senhor, hein, Herr Preysing? O senhor será diferente de mim? Quem sabe se as pessoas como eu não têm o direito de viver?

— Que é isso, que é isso! — exclamou a Flaemmchen. — Aqui não se fala aos berros, aqui se dança. E agora, não olhe para os pés, olhe para o meu rosto, e vá andando, vá andando calmamente, vou guiá-lo.

— Mas que impostor! — rangeu Preysing por entre os dentes, por trás deles. E ficou diante da mesa, trêmulo de cólera. Gaigern, a fumar, ouvindo essas palavras, sentiu um impulso raro, uma espécie de compassivo coleguismo, misturado a uma repulsa, violenta e sarcástica, pelo corpulento e suarento diretor-geral. "Era preciso colocar-lhe um par de sanguessugas na pele, amiguinho", pensou ele.

— Deixe que o pobre-diabo se divirta! — disse a meia voz. — Basta olhar para a cara dele para ver que está às portas da morte.

"Não lhe pedi nenhum conselho", pensou Preysing, mas não teve coragem de dizê-lo, porque sentia obscuramente a raça superior do barão.

— Peço-lhe o favor de dizer a Fräulein Flamm que a espero no hall, para um assunto urgente. Se ela não aparecer até as seis, dou o assunto por terminado — disse ele, curvando-se ligeiramente. Em seguida retirou-se.

Intimidada por esse ultimato, a Flaemmchen apareceu no hall três minutos antes das seis. Preysing ergueu-se das brasas ardentes em que estivera sentado nesse ínterim, e sorriu com profunda satisfação. Como ele sorria raramente, essa amabilidade o tornou mais bonito, e causou efeito imprevisto.

— Cá está a senhora — disse ele, estonteado.

Há muitas horas ele se contorcia, se martirizava, ardia, com um único pensamento: saber se a Flaemmchen era conquistável. Suas experiências com mulheres eram modestas, e datavam de muitos anos atrás. Dessa geração nova de mocinhas, ele fazia apenas uma ideia vaga, apesar de, nas reuniões masculinas, e em conversas íntimas nas viagens profissionais, dizerem com frequência que essa espécie de meninas era fácil de conquistar. Pôs-se a observar a Flaemmchen, as suas pernas cruzadas, com meias de seda, o colar de pedras de vidro imitando cristal, sua pintura, que ela nesse instante renovava, apertando os lábios, e ficou sem saber em que se basear, nessa pessoa despreocupada, para as suas suposições.

A Flaemmchen fechou o estojinho de pó de arroz e perguntou:

— Então, de que se trata?

Preysing apertou o charuto entre os dedos, e desembuchou:

— Trata-se do seguinte — começou ele: — preciso viajar para a Inglaterra, e preciso levar comigo uma secretária. Em primeiro lugar, por causa da correspondência; depois, porque desejaria ter com quem conversar durante a viagem. Sou muito nervoso, muito nervoso, mesmo — afirmou, apelando inconscientemente para a compaixão da moça —, e preciso ter alguém na viagem que se ocupe de mim. Não sei se a senhora me compreende. Ofereço-lhe um emprego de confiança, em que a senhora... em que..

— Já estou compreendendo — disse a Flaemmchen, baixinho, ao perceber a atrapalhação dele.

— Acho que nos daremos bem na viagem — afirmou Preysing.

O delicioso fluir e latejar do seu sangue nas veias diminuíra durante tão difíceis negociações, mas quando ele fitou a Flaemmchen consolou-se, sentindo que ela iria fazer com que tudo isso despertasse de novo, assim que o desejasse.

— A senhora contou-me que no ano passado também viajou com um cavalheiro, e isso me fez ter esta ideia... eu acho que seria muito agradável, se a senhora quisesse. A senhora quer?

A Flaemmchen pensou durante cinco longos minutos.

— Preciso pensar primeiro — respondeu ela, com expressão ajuizada e preocupada, fumando o seu indefectível cigarro. — Para a Inglaterra? — perguntou depois. A cor moreno-dourada da sua pele clareou um pouco, o que talvez significasse que empalidecera. — Ainda não conheço a Inglaterra. E por quanto tempo?

— Por... não sei lhe dizer ainda com exatidão. Isso depende. Se os meus negócios lá correrem bem, tiro talvez mais catorze dias de férias, e podemos ficar em Londres, ou ir para Paris.

— Bom, pode-se arranjar; já sei mais ou menos do que se trata, pelas cartas — disse a Flaemmchen com segurança.

O otimismo era o elemento em que ela se movia. Preysing sentiu-se animado ao perceber que ela estava a par dos seus negócios, e profetizava o sucesso.

— A senhora ainda precisa me dizer quanto quer de ordenado — declarou ele, com o tom de quem dizia um galanteio.

Desta vez demorou mais, até que a Flaemmchen respondesse. Tinha que fazer um extenso balanço. A renúncia à aventura principiada com o belo barão se incluía nele, os pesados cinquenta anos de Preysing, sua gordura, seu fôlego curto. Pequenas dívidas aqui e ali. A necessidade de roupa de baixo nova, de sapatos bonitos — os azuis não iam durar muito. O pequeno capital de que necessitava para iniciar carreira no cinema, na revista, em qualquer parte. A Flaemmchen pesou calmamente e sem sentimentalismo a oportunidade do negócio que lhe era proposto.

— Mil marcos — disse ela, achando que era suficiente; não tinha ilusões a respeito das quantias que hoje em dia se depunham aos pés das mulheres bonitas. — Talvez um pouquinho mais para a roupa de viagem — acrescentou, um pouco mais tímida do que de costume. — O senhor há de querer que eu tenha uma bonita aparência...

— Para isso a senhora não precisa se vestir. Pelo contrário — disse Preysing, excitado. Ele julgou que tinha dito uma frase espirituosa. A Flaemmchen sorria melancolicamente, o que deu um aspecto estranho à sua saudável carinha de amor-perfeito. — Então está combinado? -— perguntou Preysing. — Amanhã ainda tenho umas coisas a fazer aqui; é preciso também arranjar os passaportes, e poderemos viajar depois de amanhã. Está contente por ir conhecer a Inglaterra?

— Muito — respondeu a Flaemmchen. — Então amanhã eu trago a minha máquina de escrever portátil e o senhor pode ir logo ditando.

— E hoje à noite... se a senhora concordar... pensei que hoje à noite poderíamos ir a um teatro... Temos que tomar um copo de vinho para festejar o nosso contrato, não é? O que acha?

— Hoje, já? — disse a Flaemmchen. — Bom. Hoje, já.

Ela soprou o seu caracolzinho para cima, e atirou o cigarro amassado no cinzeiro. Podia ouvir perfeitamente a música do pavilhão amarelo. "Não se pode ter tudo", pensou. "Mil marcos. Vestidos novos. E Londres também não é para desprezar."

— Preciso telefonar para minha irmã — disse ela, levantando-se. Preysing sentiu-se percorrido por uma onda de calor, apaixonada e grata, que o inundou completamente; colocou-se então por trás dela e pegou delicadamente, com ambas as mãos, seus cotovelos, que ela apertava de encontro ao corpo.

— Quer ser boazinha para mim? — perguntou ele em voz baixa.

E igualmente baixinho, com os olhos voltados para a passadeira cor de amora, a Flaemmchen respondeu:

— Se não tiver muita pressa...


CONTINUA

7

 

O chá com veronal esfriara. A Grussinskaia sorriu ligeiramente, mas quando o percebeu, parou de sorrir e perguntou com ar severo:

— Quem o deixou entrar? A criada de quarto? Ou a Suzette? Como conseguiu entrar?

Gaigern tentou um golpe arriscado. Apontou por sobre o ombro para a atmosfera noturna da rua.

— Por ali — disse ele. — Vim do balcão do meu quarto.

De novo a Grussinskaia teve a impressão de já ter passado por aventura semelhante. De repente, veio-lhe a recordação. Num dos castelinhos de veraneio, no sul, em Abas-Tuman, aonde o Grão-Duque Serguei costumava levá-la, escondera-se certa noite em seu quarto um homem, um oficial bem jovem ainda. Arriscara a vida nessa tentativa; mais tarde ele veio de fato a falecer num acidente de caça pouco esclarecido. Isso tinha acontecido pelo menos há trinta anos. Enquanto a Grussinskaia ia para o balcão e olhava na direção em que a mão de Gaigern apontava, de repente o passado se apresentou de novo com toda a clareza. Ela via o rosto do jovem oficial. Chamava-se Pavel Jerilinkov. Lembrou-se de seus olhos e de alguns beijos. Estava enregelada, e sentiu que o homem ao lado dela no balcãozinho irradiava calor. Olhou rapidamente para os sete metros da fachada do hotel, que ficavam entre o balcão do seu quarto e o do quarto vizinho.

— Mas isso é perigoso — observou ela inadvertidamente, recordando-se mais de Jerilinkov do que pensando no momento presente.

— Não é tanto assim — replicou Gaigern.

— Está fazendo frio. Feche a porta — disse a Grussinskaia, passando depressa diante dele e entrando de novo no quarto. Gaigern obedeceu, e foi caminhando atrás dela; fechou a porta, puxou as duas cortinas, e depois ficou com as mãos pendentes: não passava de um jovem belíssimo, modesto mas um pouco amalucado, que fazia garotices românticas, para entrar no quarto de uma bailarina célebre. Afinal de contas, ele também possuía um pouco de talento para ator, o que era uma exigência da sua profissão. E agora representava, por uma questão de vida ou de morte. A Grussinskaia curvou-se, levantou o traje de ballet que atirara no chão, e o levou para o banheiro. A gota de sangue, de contas vermelhas de vidro lapidado, cintilou. Ela sentiu uma dor cortante e aguda. Nenhum da capo. Nenhum escândalo, quando uma outra dançava. Um público cruel. Berlim era cruel. Solidão cruel. Ela já havia sobrepujado um pouquinho essa dor — e agora a dor a acometia de novo, causando-lhe uma angústia no peito. Durante alguns segundos esqueceu-se por completo do intruso, que se parecia com o falecido Jerilinkov, mas de repente virou-se para ele e perguntou, sem olhá-lo:

— Por que fez isso? Por que faz coisas perigosas? Por que está escondido no meu quarto? Deseja alguma coisa de mim?

Gaigern fez uma investida e preparou-se para o ataque. — "Hop-là, avante!", pensou Gaigern. Não ergueu os olhos para ela.

— A senhora já sabe a razão, é porque a amo — respondeu em voz baixa.

Disse isso em francês, porque se o dissesse em alemão teria sido extremamente penoso. Depois ficou esperando em silêncio pelo resultado. "É simplesmente idiota", pensou ao mesmo tempo. Essa comédia lhe causava uma vergonha atroz, humilhante. Tinha horror de tudo o que feria o bom gosto. De qualquer modo, se ela não chamasse pelo camareiro, talvez ele estivesse salvo.

A Grussinskaia engoliu essas breves palavras francesas com a boca bem aberta. Absorveu-as como um remédio; dentro de poucos segundos até o tremor de frio cessou. Pobre Grussinskaia! Há muitos anos que ninguém lhe dizia coisa semelhante. Sua vida corria diante dela como um trem expresso vazio. Ensaios, trabalho, contratos, carros-dormitórios, quartos de hotel, excitação no palco, uma excitação cruel, e mais trabalho e mais ensaios. Sucesso, fracasso, críticas, entrevistas, recepções oficiais, discussões com empresários. Três horas de exercícios de solista, quatro horas de ensaios de ballet, quatro horas de espetáculo; os dias se seguiam um ao outro sempre iguais. O velho Pimenoff. O velho Witte. A velha Suzette. A não ser essas pessoas, mais ninguém, nenhum calor, nunca, nunca. Colocava as mãos nos canos de aquecimento central dos hotéis, e pronto. E depois, quando estava tudo terminado, quando o fim de tudo e da vida estava iminente, encontrava-se um homem à noite no quarto, e esse homem pronunciava palavras há muito desaparecidas, de que outrora

o mundo estivera repleto. A Grussinskaia não suportava mais. Sentia um sofrimento atroz, como se estivesse prestes a dar à luz. Mas foram apenas duas lágrimas que finalmente brotaram da tensão dessa noite, e ela as sentiu em seu corpo inteiro, nos artelhos e nas pontas dos dedos das mãos, depois no coração, e por fim elas chegaram aos seus olhos; rolaram pelas longas e rígidas pestanas pretas de pintura, caindo nas palmas abertas de suas mãos.

Gaigern assistiu à evolução desse fenômeno, e encheu-se de calor. "Pobre animalzinho", pensou ele. "Pobre bichinha. Está chorando, agora. Que coisa idiota!"

Depois que a Grussinskaia deu à luz essas duas lágrimas dolorosas, a coisa se tornou mais fácil. Começou com um leve aguaceiro, ao mesmo tempo cálido e fresco como uma chuva de verão — Gaigern pôs-se a pensar nos canteiros de hortênsias do jardim de Ried, sem saber por quê. Depois, esse aguaceiro se transformou numa torrente apaixonada, uma torrente negra, porque a pintura das sobrancelhas se dissolveu por completo. E, por fim, a Grussinskaia atirou-se ao leito, soluçando um tropel de palavras russas nas mãos em concha, que conservava encostadas à boca. Gaigern, ao assistir a essa cena, transformou-se. De ladrão de hotel, prestes a tirar a vida de uma mulher, passou a ser simplesmente um homem, um sujeito grandão, simples e bondoso, que não podia ver uma mulher chorar sem querer auxiliá-la. Agora não sentia mais medo, absolutamente nenhum; agora, o que o fazia sentir o coração pequeno e palpitante era a simples compaixão. Inclinou-se sobre o leito, pondo os braços dos dois lados do pequenino corpo a soluçar, e assim, curvado sobre a Grussinskaia, principiou a sussurrar em meio aos seus soluços. Não era nada de especial o que ele dizia; com as mesmas palavras teria consolado uma criança a chorar, ou um cão enfermo.

— Coitadinha — foi mais ou menos o que ele disse —, pobrezinha, pobrezinha da Grussinskaia, ela está chorando. Faz bem chorar assim, faz? Pois então chore, pode chorar. Que foi que lhe fizeram? Foram maus para você? Você gosta que eu esteja ao seu lado? Posso ficar aqui? Está com medo? É por isso que está chorando, é? Você... bobinha!

Levantou um dos braços que apoiara ao leito, tirou da boca da Grussinskaia as mãos que ela apertava de encontro aos lábios e beijou-as; estavam molhadas de lágrimas e pretas como as de uma menininha; seu rosto também estava todo lambuzado das lágrimas negras caídas dos seus olhos pintados. Gaigern não pôde deixar de rir. Apesar de continuar a chorar, a Grussinskaia viu o movimento bondoso, próprio dos homens fortes, o movimento de ombros que fazem quando riem. Gaigern afastara-se do leito e tinha ido ao banheiro. Voltou com uma esponja e enxugou com muito cuidado o rosto da bailarina; tinha trazido também um lenço. A Grussinskaia tinha parado de chorar, e conservou-se deitada tranqüilamente, enquanto ele lhe limpava o rosto. Gaigern sentou-se à beira da cama e sorriu para ela.

— E então? — perguntou ele.

A Grussinskaia murmurou qualquer coisa que ele não compreendeu.

— Fale em alemão — pediu Gaigern.

— Você... criatura... — sussurrou a Grussinskaia.

Essas palavras o comoveram. Chocaram-se de encontro ao seu coração como uma bolinha de tênis atirada com força, e quase o magoaram. As damas com as quais ele tinha relações não costumavam usar palavras carinhosas. Para elas, a gente se chamava coisinha, menininho, queridinho, ou "o barão grandão". Gaigern percebeu o sentimento contido nesse apelo, que despertou em seu íntimo recordações da infância, vindas de uma esfera que ele abandonara. Afastou-o de si. "Se ao menos eu tivesse um cigarro", pensou ele, cheio de languidez. A Grussinskaia tinha olhado para ele um momento, com um olhar que exprimia confusão e quase felicidade. Depois ela se sentou, estendeu seus longos artelhos à procura dos chinelos que haviam caído e de repente se transformou em uma senhora.

— Ora essa! — disse ela. — Que sentimentalismo! A Grussinskaia está chorando? Como? É uma coisa que vale a pena ver. Há muito tempo, há anos que ela não chorava. Monsieur me assustou. Monsieur é o culpado por esta triste cena.

Falava na terceira pessoa, queria criar distância, retirar o repentino "você", mas esse homem já estava muito próximo dela, para que o pudesse chamar de "senhor". Gaigern nada pôde responder.

— É horrível como o teatro ataca os nervos — continuou ela em alemão, com a impressão de que ele não a tinha compreendido. —- Disciplina! Isso sim, disciplina nós temos. A disciplina é um coisa penosa e difícil. Disciplina é fazer sempre o que não se deseja, como posso explicar... o que a gente não gosta de fazer. Você sabe o que significa ficar exausto por excesso de disciplina?

— Eu? Eu não. Faço sempre o que quero — disse Gaigern.

A Grussinskaia ergueu a mão, com um gesto em que todas as Graças haviam retornado.

— Sim, monsieur. Sente-se vontade de entrar no quarto de uma senhora... e entra-se. Sente-se vontade de pular varandas, com risco de vida... e faz-se o que se quer. E qual é o desejo de monsieur, agora?

— Eu gostaria de fumar — respondeu Gaigern francamente. A Grussinskaia esperava outra resposta, e achou que o pedido era cavalheiresco e gentil. Foi até a escrivaninha e ofereceu a Gaigern sua pequena cigarreira. Com o quimono chinês, já muito usado, mas legítimo, e os chinelos acalcanhados, tinha a mesma aparência de há vinte anos, quando viajava por todos os continentes, cheia de uma graciosidade cristalina e tilintante. Parecia ter-se esquecido de seus olhos avermelhados, e de seu aspecto lamentável.

— Pois então fumemos o cachimbo da paz — disse ela, erguendo para Gaigern as pálpebras amarfanhadas. — E depois faremos a nossa despedida!

Gaigern tragou avidamente a fumaça pelo nariz e pelo pulmão. Sentiu-se aliviado, apesar de sua situação ser ainda delicada. Não podia abandonar esse quarto com as pérolas no bolso, quanto a isso não havia dúvidas. Se conservasse as pérolas, agora que conhecia a bailarina, teria que fugir nessa mesma noite, e no dia seguinte pela manhã a polícia o estaria perseguindo. Isso não fazia absolutamente parte dos seus planos. Agora tratava-se de ficar ali a qualquer preço, até que as pérolas pudessem retornar ao seu estojo. A Grussinskaia sentara-se diante do espelho e empoava o rosto, com expressão séria. Esfregou alguns riscos e pontinhos da pele e ficou novamente linda. Gaigern aproximou-se dela, pondo-se, com seu grande vulto entre a suitcase vazia e a mulher. Fitando seus ombros, ele dirigiu-lhe um sorriso tentador, doce como mel.

— Por que esse sorriso? — perguntou ela ao espelho.

— Porque vejo no espelho uma coisa que você não pode ver — disse Gaigern.

Dizia simplesmente: "você". O cigarro lhe tinha dado coragem, e ele se animou. "Avante", pensou ele, encorajando-se.

— Estou vendo de novo o que estava vendo há pouco, lá do balcão — disse ele inclinando-se sobre a mulher —, estou vendo no espelho uma mulher belíssima, como nunca vi outra igual. Essa mulher está triste. E está nua... Ela é... não, não posso dizê-lo, isso me faz ficar louco. Não sabia que era tão perigoso espiar em um quarto alheio uma mulher que se despe.

E, realmente, enquanto Gaigern formava no seu francês convencional essas frases galantes, via a imagem da Grussinskaia no espelho, como há pouco, e sentia ao vê-la a mesma admiração e o mesmo calor que sentira no balcão. A Grussinskaia ouviu-o atenta e com expressão inquiridora. "Como me tornei fria", pensou com tristeza, percebendo que não estremecia ao ouvir aquelas palavras entusiásticas. Sentia a intensa vergonha das mulheres frias. Voltou-se para Gaigern com um movimento elegante e calculado do longo pescoço. Gaigern segurou os pequenos ombros da mulher com suas mãos quentes e hábeis, e em seguida beijou-a no lindo sulco entre as omoplatas, como um conhecedor.

Esse beijo, principiado com frieza entre dois corpos estranhos, prolongou-se. Mergulhou como uma agulhazinha quente na espinha dorsal da mulher, cujo coração começou a palpitar com força. Seu sangue correu mais pesado e doce; sim, esse coração que já esfriara agora palpitava, e começou a vibrar; seus olhos se fecharam; ela tremia. Gaigern tremia também, quando a largou e endireitou o corpo; uma veia intumesceu, muito azul, na sua testa. De repente sentiu a Grussinskaia dentro dele. inteirinha, sua pele, seu perfume acre, seu estremecimento ansioso de prazer, que fora despertando aos poucos. "Com os diabos!", pensou ele de repente. Suas mãos estavam cheias de avidez, e ele as estendeu.

— Eu acho que o senhor deve retirar-se agora — disse a Grussinskaia com voz fraca, à imagem do moço no espelho. — A chave está na porta.

Sim, lá estava a malfadada chave; agora era possível retirar-se quando quisesse. Mas Gaigern não desejava retirar-se — por várias razões.

— Não — disse ele, com súbito sentimento de dominador, como o macho de uma pequenina mulher, trêmula como um violino a vibrar. — Não vou embora. Você sabe que não vou. Você pensa realmente que vou deixá-la agora aqui sozinha? Que vou abandoná-la ao lado de uma xícara de chá cheia de veronal? Você pensa que eu ignoro o que se passa com você? Eu vou ficar aqui. Está dito.

— Está dito? Está dito? Mas eu quero ficar sozinha....

Gaigern aproximou-se rapidamente da Grussinskaia, que estava de pé no meio do quarto, e puxou até seu peito os pulsos da bailarina.

— Não — disse ele com veemência. — Isso não é verdade. Você não quer ficar sozinha. Você tem um medo pavoroso de ficar sozinha, percebo perfeitamente o medo que você sente. Sei o que você está sentindo, eu a conheço, pequerrucha, mulher estranha. Você está representando uma pequena comédia para me enganar. O seu cenário é de vidro, eu vejo através dele. Há pouco você estava desesperada. Peça para eu ficar com você, peça!

Pôs-se a sacudir as mãos dela. Segurou-a pelos ombros e sacudiu-a. Pela dor que sentiu, ela pôde perceber a excitação do moço; Jerilinkov havia implorado, lembrou-se ela; este ordenava. Fraca e aliviada, ela deixou cair a cabeça sobre o peito coberto pelo pijama de seda azul.

— Sim, fique mais um minuto — murmurou ela. Gaigern, a olhar por cima de seus cabelos, respirava ofegante, soltando o ar por entre os dentes cerrados. Sua tensão de medo começou a se distender; um turbilhão de imagens desfilou rapidamente, cinematograficamente, diante dele; a Grussinskaia, morta em seu leito, com uma dose violenta de veronal no sangue, ele a fugir pelos telhados, investigações na casa de Springe, penitenciária — ele não fazia a menor ideia do aspecto de uma penitenciária, no entanto enxergava tudo perfeitamente, e também viu sua mãe, morrendo de novo, apesar de já estar morta há muito tempo. Quando voltou ao quarto 68, o medo e o perigo já vencidos transformaram-se de repente em embriaguez. Tomou nos braços o corpo leve da Grussinskaia, levou-o até a cama, onde a deitou como uma criança.

— Venha, venha, venha — murmurou ele de encontro às fontes da mulher, com uma voz subitamente grave e profunda.

A Grussinskaia há muito tempo não sentia o próprio corpo, e agora estava sentindo-o. Durante muitos anos não fora mulher, e agora sentia-se mulher. Um céu negro e sonoro começou a girar sobre ela, e ela se atirou nele com ímpeto. Um gemido brando de passarinho, expelido por uma boca entreaberta, transportou Gaigern, de uma fingida paixão, a profundidades de prazer que ele desconhecia. A xícara de chá, na mesa do hotel, estremecia de leve todas as vezes que passava algum automóvel. Primeiramente, a luz branca do lustre se refletiu no líquido envenenado; depois, apenas o vermelho da lâmpada de cabeceira, depois apenas a luz cambiante do anúncio móvel que penetrava pelas cortinas. Dois relógios apostavam corrida; o elevador rangia no corredor; a torre longínqua da igreja badalou uma hora, por entre as buzinas noturnas dos automóveis — e dez minutos mais tarde já cintilavam novamente os refletores, na fachada do Grande Hotel.

— Você está dormindo?

— Não!

— Está bem acomodado?

— Estou.

— Agora você está de olhos abertos. Sinto suas pestanas no meu braço, quando você abre e fecha os olhos. Que engraçado! Um homem tão grande, com pestanas de criança. Diga-me, você está satisfeito?

— Nunca me senti tão feliz como agora.

— Que é que você disse?

— Nunca me senti tão feliz com uma mulher como agora.

— Repita isso de novo, repita!

— Nunca me senti tão feliz — murmurou Gaigern de encontro à carne fresca e branca do braço em que sua cabeça repousava. Ele estava dizendo a verdade. Sentia-se indescritivelmente repousado e agradecido. Nunca sentira coisa semelhante em suas aventuras de amor barato; essa embriaguez sem ressaibos, esse repouso trêmulo após o amplexo, essa profunda confiança do próprio corpo em outro corpo. Seus membros repousavam, distendidos e satisfeitos, ao lado dos membros da mulher; havia profunda compreensão mútua entre a pele dela e a sua. Sentia qualquer coisa que não tinha nome, nem mesmo o nome de amor: um retorno, após prolongada ausência. Ele ainda era jovem, mas nos braços da Grussinskaia, já perto da velhice, sob a ação de suas carícias amorosas, suaves, conscientes e delicadas, tornava-se mais jovem ainda.

— Que pena... — murmura de encontro ao braço da mulher; levanta um pouco a cabeça, e a pousa no ninho da axila da companheira, um pequenino e cálido lar, com aroma de mãe e de prado.

— Pelo seu perfume eu a encontraria em qualquer parte do mundo, de olhos vendados — diz ele, farejando como um cãozinho. — Que perfume é esse?

— Deixe disso, e diga-me: pena por quê? Você... Deixe esse perfume... tem o nome de uma florzinha que cresce nas campinas: Neuwjada. Não sei como se chama em alemão. Tomilho? É feito em Paris para mim. Diga, pena por quê?

— Pena que se comece sempre com a mulher errada. Que se continue idiota durante uma infinidade de noites, pensando que é assim que se goza, que o prazer é essa coisa corrupta, e depois fria e desagradável como um estômago enjoado. E é pena que a primeira mulher com quem dormi não tivesse sido como você.

— Deixe disso... menino mimado — murmura a Grussinskaia, pousando os lábios nos cabelos dele, naquela peliça dura, espessa e quente, cheirando a macho e a cigarro, sempre bem penteada e alisada, e agora completamente em desordem. Ele roça com as pontas dos dedos, a respirar docemente, o flanco da sua companheira.

— Sabe? Você é tão leve! Levíssima! Um pouco de espuma numa taça de champanha — diz ele com carinho e admiração.

— Pois é. É preciso ser leve — responde a Grussinskaia.

— Estou com vontade de vê-la, agora. Posso acender a luz?

— Não, não! — exclama ela afastando dele o ombro. Ele percebe que a assustou, que assustou essa mulher, cuja idade ninguém sabe com certeza. Sente novamente uma compaixão simples e espontânea. Vai escorregando o corpo para junto dela, e por fim os dois ficam em silêncio, pensando. A luz da rua paira no forro, como um reflexo, estreito e agudo como uma espada, penetrando no quarto pela abertura das cortinas. Quando passa lá embaixo um automóvel uma sombra se espalha rápida no reflexo do forro.

"As pérolas", pensa Gaigern, "para o diabo. Se eu tiver sorte e tudo correr bem, posso metê-las de novo no estojo, quando ela dormir. Vai haver um escândalo com o meu pessoal, se eu for me encontrar com eles sem as pérolas. Contanto que o chofer não faça alguma loucura, contanto que esse animal não tome hoje de noite uma bebedeira de raiva e me estrague tudo... Que azar! Só Deus sabe onde é que vamos arranjar dinheiro, agora. Talvez seja possível sangrar esse herdeiro de província, que geme durante a noite no quarto ao lado, no -70. Ora! Que diabo! Não adianta ficar pensando nisso. Talvez eu possa simplesmente lhe pedir as pérolas. Talvez amanhã eu lhe conte simplesmente do que se trata. Se eu souber fazer as coisas direitinho, não será ela quem me mandará prender amanhã, não fará isso, essa pequerrucha leve e maluca. Deixar as pérolas rolando, numa maleta aberta! Que mulher engraçada, agora eu a conheço. Nem se importa com pérolas! Para ela, nada tem importância, tudo é indiferente. Se eu não tivesse aparecido, ela já não precisaria mais se incomodar com as joias. Para que ainda precisa de pérolas? Deve me fazer presente das pérolas, ela é tão boa... Ah, como é boa! Parece uma mãe, uma minúscula mamãezinha, com quem a gente pode dormir."

A Grussinskaia pensa: "Às onze horas o trem parte para Praga. Contanto que esteja tudo em ordem! Hoje eu abandonei tudo, e amanhã nada estará em ordem. Pimenoff é muito mole para lidar com a troupe; as meninas o levam pela ponta do nariz. Mas quem perder o trem amanhã será despedido, com certeza. Se Pimenoff esta noite não se preocupou com os cenários, amanhã eles não estarão empacotados; os empregados do palco deveriam ter trabalhado horas extras à noite. Mas as coisas que eu não faço ficam sempre por fazer. E as contas a acertar com Meyerheim? Meu Deus, como é possível que eu tenha abandonado tudo? Witte, se a gente não presta atenção nele, esquece até a própria cabeça no hotel. Preciso sempre pensar por todos, e esta noite não estive lá. Vai haver uma débâcle horrorosa. A Lucille há muito tempo que tem vontade de se revoltar. Para vocês nunca são suficientemente grandes as letras dos seus nomes nos cartazes, não é verdade? Sua propaganda nunca é bem feita. Mas vocês, sozinhos, não fazem nada, é preciso fazê-los trabalhar com o knut, para que vocês se conservem em forma. Vocês me fizeram ficar má, convencida e cansada. Meu Deus, como eu estava cansada ontem... Faltou muito pouco para vocês verem se são capazes de alguma coisa sem a Grussinskaia. Mas agora não me sinto cansada, agora poderia me levantar e dançar todo o programa, ou mesmo um outro programa, um bailado novo. Preciso falar com Pimenoff, ele precisa criar um novo bailado: a dança do medo. Oh, essa dança eu poderia dançar agora para vocês. Primeiro num lugar só, apenas um tremor, e depois três círculos nas pontas, ou mesmo sem ser nas pontas, talvez uma coisa completamente diferente.

''Mas estou viva", pensa ela, abalada, "estou viva, e vou criar novos bailados, vou ter sucesso. Uma mulher que é amada tem sempre sucesso. Vocês me fizeram passar fome desde... há mais de dez anos, foi isso. É estranho que um bobinho que pulou o balcão para vir aqui possa dar à gente tanta energia! Um rapaz simpático, que do amor só conhece o jargon das mocinhas..."

Ela puxa o cobertor e cobre Gaigern, como se ele fosse uma criancinha. Ele sussurra, agradecido, faz-se pequenino e fraco, e enfia o nariz na carne dela. Seus corpos já se conhecem, mas seus pensamentos se distanciam para lados distintos, dentro da noite. Em todos os leitos do mundo, os amantes ficam deitados muito unidos, mas tão separados!...

É a mulher quem primeiro procura adivinhar o que se passa na outra alma. Toma a cabeça do homem nas mãos, como se fosse um fruto grande e pesado colhido ao sol, e murmura em seu ouvido:

— Eu ainda não sei como você se chama, meu amigo.

— Costumam chamar-me de Felix. Meu nome todo é: Felix Amadei Benvenuto, Barão von Gaigern. Mas você precisa me dar um novo nome, precisa me batizar também. Quero ter um nome dado por você.

A Grussinskaia pensa um pouco, depois dá uma risadinha.

— Sua mãe devia ter esperado muita coisa de você, quando você nasceu, para lhe dar nomes tão bonitos — disse ela. — O venturoso. O amado de Deus. O bem-vindo. Você chorou ao ser batizado?

— Não me lembro muito bem.

— Ah! Sabe? Eu também tenho uma filha. Que idade você tem, Benvenuto?

— Hoje, tenho dezessete anos, de novo. Estou pela primeira vez com uma mulher. Mas minha idade comum é trinta anos.

Aumentou um pouco a idade, por estranha delicadeza para com a mulher que sente medo da luz elétrica e da própria idade. Apesar disso, ela se sente magoada. "Ele poderia ser o pai do meu neto Pompon, de oito anos", pensa a Grussinskaia sem querer. "Passons!", ordena a si mesma.

— Como era você em criança? Muito bonito? Ah, é claro, era muito bonito.

— Simplesmente encantador. Cheio de sardas, de galos e arranhões, e muitas vezes cheio de piolhos também. Tínhamos ciganos para tratar dos nossos cavalos; isso é muito comum na fronteira, onde ficava a nossa propriedade. Os meninos ciganos eram meus amigos. Eles me passavam toda espécie de bichos e de sarna. Quando me lembro da minha infância, sinto sempre um cheiro de estéreo de cavalo. Depois me tornei durante alguns anos o terror de vários companheiros de seminário. Por fim estive por pouco tempo na guerra. Da guerra eu gostei. Na guerra eu me senti em casa. Por mim, tudo podia ter sido muito pior do que foi. Se houver guerra de novo, tudo estará bem para mim, novamente.

— Agora as coisas não vão bem para você, seu condottiere? Que vida você leva? Que espécie de indivíduo é você?

— E você? Que espécie de mulher é? Nunca conheci nenhuma como você. Em geral as mulheres não têm muitos segredos. Mas a você tenho curiosidade de conhecer, preciso perguntar-lhe muitas coisas. Você é muito diferente das outras.

— Sou apenas antiquada. Sou de um outro mundo", de um século diferente do seu, é apenas isso — disse a Grussinskaia com voz sonhadora. Ao mesmo tempo sorriu nas trevas, e lágrimas ardentes lhe vieram aos olhos. — Educaram-nos como soldadinhos, a nós, bailarinas, com severidade, com pulso de ferro, no Instituto de Ballet Imperial de São Petersburgo. Pequenos regimentos de recrutas para o leito dos grão-duques, é o que nós éramos. Dizem que, nas meninas que aos quinze anos começavam a engordar, colocavam argolas de aço em volta dos seios, para que eles não crescessem mais. Eu era pequena e magra, mas dura como um diamante. Orgulhosa, sabe; tinha o orgulho no sangue, como pimenta e sal. Uma máquina do dever, trabalhando, trabalhando, trabalhando. Sem descanso, sem tempo para descansar, nunca! E depois: quem se torna célebre fica completamente só. Com o sucesso, a gente se sente gelada e solitária como no pólo norte. Sabe o que significa ter sempre sucesso, durante três, cinco, dez, vinte anos, sempre, sempre? Mas o que é que eu lhe estou contando? Você está me compreendendo? Ouça: muitas vezes a gente passa por uma estação de estrada de ferro, ou à noite passa de automóvel por uma pequena cidade. As famílias estão sentadas diante das portas, todos muito rígidos, com cara de idiota, com as manoplas pousadas no colo, e ninguém se move. É isso, veja, é isso! É isso o que nós desejamos: sentirmo-nos fatigados, e ficar simplesmente sentados, com as mãos imóveis, pousadas no colo. Mas se você for uma pessoa célebre, procure desaparecer do mundo, descanse, deixe que as outras bailarinas dancem, essas alemãs feias e com luxações nos músculos, essas negras, toda essa gente que não sabe nada; deixe que elas dancem, descanse! Veja, Benvenuto, isso não é possível, é absolutamente impossível. Odeia-se o trabalho, amaldiçoa-se o trabalho, mas não se pode existir sem o trabalho. Três dias de descanso, e vem o medo: vou perder a forma, estou ficando pesada, minha técnica está indo embora. É preciso dançar, como uma loucura, nem a morfina e a cocaína, nenhum vício no mundo é tão venenoso como o trabalho e o sucesso, acredite-me. É preciso dançar, somos obrigados a dançar. E isso também é importante. Se eu parar de dançar, não existe mais ninguém no mundo que saiba realmente dançar, acredite-me. Todas as outras são diletantes; mas é preciso que haja alguém que saiba dançar, que saiba o que significa a dança, em meio a um realismo histérico, horrível! Eu aprendi com as antigas celebridades; com a Kocressínskaia, com a Trefilovna, e elas, por sua vez, aprenderam com os grandes do bailado, há quarenta, há sessenta anos. Às vezes tenho a impressão de que tenho de dançar contra o mundo inteiro, contra o brado de "atualidade!" De um lado, estão vocês, um teatro repleto de ganhadores da vida e homens-máquinas, participantes da guerra e acionistas... e do outro, estou eu. Uma pobre e pequenina Grussinskaia, velha, não é verdade? Tão sentimental, tão antiquada, com os seus passos já conhecidos há duzentos anos. E, no entanto, eu os atraio ainda, e vocês choram, riem, desesperam-se e extasiam-se; e tudo por quê? Por causa desse balezinho fora da moda? Será tão importante, isso? Certamente, porque só tem sucesso mundial aquilo que tem importância para o mundo, aquilo de que o mundo precisa. Mas, ao lado disso, tudo se despedaça, dentro de nós nada mais resta. Nem marido, nem filhos, nenhum sentimento, nenhum conteúdo. Deixamos de ser indivíduos humanos como os outros, compreende? Não somos mulheres, somos apenas uma migalha esgotada de responsabilidade, que perambula pelo mundo. No dia em que termina o sucesso, no dia em que perdemos a crença de que somos indispensáveis, a vida acaba para nós. Você está me ouvindo? Está me compreendendo? Gostaria tanto que você me compreendesse — disse a Grussinskaia, em tom implorante.

— Não compreendi tudo... mas quase tudo. Você fala francês muito depressa — respondeu Gaigern.

Durante os meses em que ficou à espreita, atrás das pérolas, ele frequentou inúmeras vezes os espetáculos de ballet da Grussinskaia, aborrecendo-se sempre, em geral. Ficou profundamente admirado ao saber que a Grussinskaia, conforme parecia, arrastava consigo, como um martírio, os rodopios do ballet. Ela está colada com tanta leveza às coxas de Gaigern, tem uma vozinha delicada, com um gorjeio colorido e modulado e fala coisas tão sérias!... Que se pode responder a isso? Ele suspira. Fica pensando.

— Foi muito bonito o que você disse das pessoas à noite, com as mãos imóveis. Você devia dançar isso — declarou ele finalmente, confuso.

A Grussinskaia contentou-se em rir.

— Dançar isso? Mas não se pode dançar uma coisa assim, monsieur. A não ser que me queiram ver no papel de uma velha com um pano na cabeça, com gota nos dedos, dura como um pau, apenas repousando...

Cortou a frase no meio. Enquanto falava, seu corpo já tinha se apossado da imagem, contraindo-se e enrijecendo. Ela já estava vendo o cenário, conhecia um jovem pintor amalucado, em Paris, que poderia pintar uma coisa assim; já via o bailado, já o sentia nas mãos e na nuca curvada. Ficou calada, com a boca entreaberta, na escuridão. Nem respirava, tal a excitação que sentia. O quarto se encheu de personagens que ela nunca dançara, e que poderiam ser dançadas, de centenas de vultos reais e viventes. Uma mendiga a tremer, estendendo os braços, uma velha campônia dançando mais uma vez no casamento da filha... Diante de um balcão de feira encontrava-se uma mulher magra, apresentando umas míseras prestidigitações, uma prostituta esperava por homens sob uma lanterna. Uma menininha, que havia quebrado uma chave e levava uma surra; uma criança de quinze anos, que era forçada a dançar nua diante de um homem imponente, enorme e cintilante, um senhor, um grão-duque, e também a espinhosa paródia de uma governanta; uma mulher que corria como se a estivessem perseguindo, apesar de não ser esse o caso; uma outra que queria dormir e não podia; uma que tinha medo de espelho; e ainda uma outra que bebia veneno e morria.

— Fique quieto... não diga nada... não se mexa — sussurrou a Grussinskaia olhando para o forro, em que se via a espada luminosa. O aposento adquirira o aspecto estranho e misterioso que os quartos de hotel às vezes gostam de apresentar. Lá embaixo os automóveis lançavam fumaça pelo escapamento, buzinavam, parecendo animais, porque a Liga dos Filantropos terminara a sua festa, e começava a saída pelo portão 2. A noite esfriou. Do turbilhão das ideias e dos rostos, a Grussinskaia voltou ao quarto com um leve arrepio. "Pimenoff vai pensar que eu estou louca, ele, com seus baileis de borboletas. Quem sabe se estou louca mesmo?" Da sua divagação de um minuto, havia retornado ao leito, como se voltasse de uma longa viagem. Gaigern ainda continuava deitado. Ela quase se assustou ao encontrar de novo o homem encostado ao seu ombro, com seus cabelos, suas mãos e sua respiração.

— Que espécie de homem é você? — perguntou ela mais uma vez, nas trevas, com o rosto bem sobre o dele. Ela sentia intimamente, nesse instante, o espanto de se encontrar tão próxima de uma coisa tão estranha e diferente dela. — Ontem eu ainda não o conhecia. Quem é você? — perguntou ela de encontro à cálida umidade da boca do homem.

Gaigern, que já estava quase adormecendo, deixou os dois braços tombarem sobre as costas da mulher, e ela teve a impressão de ser a esguia cadela galga de sua casa, a Biche.

— Eu? Não há muita coisa a contar — respondeu ele, obediente, mas sem abrir os olhos. — Sou um filho pródigo. Sou uma ovelha negra de um bom curral. Sou um mauvais sujet, e vou acabar na forca.

— É verdade? — perguntou ela, dando uma risadinha arrulhante.

— É verdade — disse Gaigern, convencido. Começara a cantarolar como uma ladainha, e por brincadeira, aquelas velhas frases e advertências dos professores do seminário; mas, ao perfume cálido de tomilho daquela cama, veio-lhe o desejo de confessar-se e de ser sincero.

— Sou um devasso — continuou ele a falar na escuridão. — Não tenho caráter, e sou de uma curiosidade incrível. Não consigo me adaptar a nada, sou um sujeito inútil. Em casa aprendi a montar e a ser o senhor. No seminário aprendi a rezar e a mentir. Na guerra, a atirar e a procurar pôr-me a salvo. Mais do que isso não sei fazer. Sou um cigano, um marginal, um aventureiro.

— Ah, você... E o que mais?

— Sou um jogador, e não me importo de fazer trapaças. Também já roubei. A bem dizer, eu devia estar é na prisão. Mas ando por aí, e me sinto às mil maravilhas, e faço tudo o que me dá na veneta fazer. Às vezes me embebedo também. E, além do mais, sou preguiçoso de nascença.

— Continue — murmurou a Grussinskaia, encantada. Sua garganta estava vibrando, de tanto conter o riso.

— Pois bem, sou um criminoso. Um homem que escala muros de fachadas — disse Gaigern, sonolento —, um assaltante.

— E que mais ainda? Talvez um assassino, também?

— Isso mesmo. É claro. Um assassino também. Estive a ponto de matá-la — afirmou ele.

A Grussinskaia ainda se riu, um pouco inclinada sobre o rosto de Gaigern, que ela sentia, apesar de não o ver, mas de repente ficou muito séria. Cruzou as mãos por detrás do pescoço dele e murmurou em surdina ao seu ouvido:

— Se você não tivesse vindo ontem, eu não estaria viva agora!

"Ontem?", pensou Gaigern. "Agora?" A noite no 68 parecia ter durado uma eternidade, devia ter sido há alguns anos que ele estivera no balcão e enxergara a mulher no quarto. Levou um susto. Apertou-a em seus braços com força, como um lutador de luta livre: os músculos flexíveis da bailarina resistiram — ele o sentiu com estranho prazer.

— Você nunca mais deve fazer uma coisa dessas.

Você tem de ficar aqui. Não a deixarei ir-se embora mais. Preciso de você — afirmou.

E ficou a ouvir a própria voz, ao pronunciar tão curiosas palavras, com uma voz diferente, rouca, que parecia provir do fundo palpitante de seu coração.

— Não, agora tudo mudou. Agora está tudo bem. Agora você está comigo — murmurou a Grussinskaia; mas Gaigern não a compreendeu, porque ela falou em russo.

Ele sorveu a entonação da sua voz, e a noite começou de novo a rumorejar. Pássaros de sonho saíram das trepadeiras da tapeçaria que forrava as paredes do hotel... O homem se esqueceu das pérolas no bolso do seu pijama azul e a mulher se esqueceu do insucesso e dos veronais na xícara de chá.

Nenhum dos dois se atreve a pronunciar esta palavra caduca: "amor". Juntos, deslizam no confuso turbilhão da noite de amor, passando dos abraços aos murmúrios, dos sussurros a um breve sono e aos sonhos, e dos sonhos a um novo abraço: duas pessoas vindas de dois pontos opostos do mundo, para encontrar-se por algumas horas no leito do quarto 68, onde tanta gente já dormiu...


8

 

Na vida da Grussinskaia o amor não havia representado um papel importante. Tudo o que o corpo e a alma possuíam de paixão fluía para a dança. Tinha tido alguns amantes, porque isso fazia parte da vida de uma bailarina célebre, assim como as pérolas, o automóvel, os vestidos das boas casas de moda de Paris e de Viena. Rodeada de admiradores, requisitada e perseguida por apaixonados, não acreditava apesar de tudo na existência do amor. Ele não lhe parecia mais real do que os cenários pintados, os templos de amor e as sebes de roseiras diante dos quais seus bailados eram executados. Apesar de permanecer fria e de não conseguir entusiasmar-se, passava por uma amante maravilhosa, única. Por seu lado, praticava o amor como um dever da sua profissão, como uma peça de teatro, por vezes agradável, mas sempre exaustiva, requerendo uma arte requintada. Toda a flexibilidade do seu corpo, seu flutuar etéreo, a sutilidade, o requinte, a delicadeza e a suavidade, o impulso e o arrojo, a emoção e a debilidade, todos os impecáveis requisitos da sua dança, ela levava consigo para os amigos com quem passava as noites. Sabia embriagar de prazer, mas não se embriagava a si mesma. Na dança, era capaz de enlouquecer, de esquecer-se de si própria, e por vezes seus partners ouviam-na soltar gritinhos abafados, como um passarinho, durante as posições mais difíceis e movimentadas. No amor, porém, nunca perdia a consciência de si mesma, estava sempre se observando. Era estranho: não acreditava no amor — e no entanto não podia viver sem amor.

Porque o amor — ela o sabia — era uma parte do sucesso. Enquanto fora jovem, e seu camarim transbordava de flores e de cartas, enquanto em todo o seu percurso os homens se postavam, prontos a arruinar-se, a fazer por ela qualquer espécie de loucura, a abandonar a fortuna e a família, ela sentia que o sucesso a bafejava. Nas confissões de amor, nas ameaças de suicídio, nas perseguições por toda parte, pelo valor dos presentes que recebia dos conquistadores podia-se perceber o sucesso, do mesmo modo que nos aplausos, nas críticas e no número de chamadas ao proscênio. Ela não o sabia, mas o amante que a encantava e lhe causava prazer era, a bem dizer, um público perante o qual ela tinha sucesso. E pela primeira vez percebeu, horrorizada, que o sucesso diminuía, quando Gaston a abandonou, para casar-se com uma moça sem muitos dotes, mas de boa família. A atmosfera que a rodeara durante anos esfriou e se tornou sombria, uma atmosfera noturna, incompreensível. Era uma escadaria que ia descendo por centenas de degrauzinhos, tão pequenos que quase não a deixavam aperceber-se dela. E, no entanto, era vastíssimo o caminho que conduzia aquela Grussinskaia de antes da guerra, que dançara para um mundo cheio de romantismo e de êxtase, à atual Grussinskaia, que mendigava um pouco de aplauso de um punhado de pessoas céticas, indiferentes e maldosas. O seu fim, como última consequência, era a completa solidão, e uma dose forte de veronal.

Por essa razão, o homem do balcão significava para a Grussinskaia mais do que um simples homem. Era um milagre que acontecia no último instante no 68, para salvá-la; era o sucesso evidente que a procurava; o mundo que penetrava cheio de ardor em seu quarto; era a prova de que os tempos românticos ainda não haviam passado, os tempos em que um jovem Jerilinkov se deixava matar com um tiro por ela. Ela se deixara cair, mas encontrara alguém que a erguia do solo.

Havia no programa da Grussinskaia um bailado em que a morte dançava um pas de deux com o amor; os poetas que lhe escreviam, por vezes, enviavam-lhe versos em que voltava sempre o banal pensamento de que a morte e o amor eram irmãos. Nessa noite, a Grussinskaia comprovava em si própria a verdade desse lugar-comum. A vertigem dolorosa da noite passada transformou-se em embriaguez, num torvelinho de gratidão, num anseio febril de receber e de dar, de sentir e conservar. Os anos gelados se derretiam. O vergonhoso segredo da sua frieza, que escondera durante toda a vida, desfazia-se, deixava de existir. Há tantos anos se sentia de tal modo pobre e solitária, que às vezes mendigava à pele jovem e cálida do seu partner, Michael, uma esmola de calor. Nessa noite, nesse quarto indiferente de hotel, nessa cama comum de metal brilhante, ela se sentia arder, transformava-se, descobria o amor, que não acreditava que existisse.

Os quartos 68 e 69 eram tão parecidos que, ao despertar, Gaigern não sabia muito bem onde se encontrava. Quis virar-se para a parede do seu quarto, mas encontrou o vulto pequenino da Grussinskaia, que dormia e respirava docemente. Recordou-se. A maravilhosa e profunda confiança do primeiro sono dormido junto repousava em seus membros como um peso suave. Retirou seu braço, que adormecera debaixo do pescoço da mulher, e com leve e ' solene comoção rememorou os acontecimentos dessa noite. Não havia dúvida — estava apaixonado, e além disso, de um modo completamente novo e grato. Sem que as pérolas influíssem no seu sentimento, não podia deixar de pensar, envergonhado: somos uns porcos. Não era a história gorada das pérolas que influía no seu sentimento. Sobe-se a um quarto alheio: inventa-se uma comédia atroz, representa-se — e a mulher acredita em tudo. Faz questão de acreditar. Os homens representam e as mulheres acreditam neles. A bem dizer, no começo a gente é sempre um embusteiro e um assaltante; mas em seguida, a mentira transforma-se em verdade. "Eu gosto muito de você, pequenina Mouna, querida e boa Neuwjada, eu te amo, je t’aime, je t'aime. Você fez uma bela conquista, mulherzinha, você..."

Fazia frio no quarto; lá fora já devia estar amanhecendo; a rua estava silenciosa, uma réstia de luz crepuscular penetrava por entre as cortinas, e o desenho da tapeçaria das paredes começava a esgueirar-se pela madrugada. Gaigern levantou-se com o maior cuidado. A Grussinskaia dormia profundamente, com o queixo enterrado no próprio ombro. Agora, que passara o tumulto da noite, as duas cápsulas de veronal pareciam estar fazendo efeito. Gaigern tomou-lhe a mão, que pendia para fora do leito, repousou na sua palma as pálpebras quentes, e depois enfiou aquela mãozinha frouxa sob o cobertor, como se a Grussinskaia fosse um bebezinho. Foi caminhando com cuidado, na meia escuridão do quarto, até o balcão, e abriu lentamente as cortinas. A Grussinskaia não despertou. "Agora tenho que pôr em ordem o negócio das pérolas", pensou Gaigern. Admirou-se de sentir-se satisfeito com a solução. "Um round perdido", pensou ele sem se aborrecer. Gostava de usar essas expressões de esporte, em seus empreendimentos aventureiros. Tateou à procura do pijama, e sorriu ao encontrar as diversas partes do seu vestuário atiradas por todo o quarto; em seguida entrou no banheiro. Ao contato da água, o ferimento da sua mão direita começou a arder e a sangrar; lambeu-o com indiferença e não se importou mais com isso. O aroma acre e murcho de louros, no aposento, acentuara-se. Gaigern, desejoso de respirar ar fresco, foi ao balcão e aspirou profundamente; seu peito ainda estava repleto de uma doce e desconhecida angústia.

Lá fora paira, sobre a rua que desperta, uma neblina fria que o vento leva. Nem automóveis nem gente. A distância, ouve-se o sibilar de um bonde a correr nos trilhos. Não surgiu ainda o sol, mas há uma luz leitosa e igual. Uns passos martelados, na esquina, e novamente o silêncio. Um pedaço de papel flutua como um passarinho enfermo sobre o asfalto, e depois pousa no chão. A árvore plantada não muito longe do portão 2 balouça os galhos sonhadores. Um sonolento passarinho de março, bem lá em cima, pousado na haste delicada de um botão, experimenta a voz no tumulto da grande cidade. Um caminhão cheio de caixas com garrafas de leite segue aos solavancos, muito cheio de si; a neblina que desliza cheira a maresia e a gasolina; a grade do balcão tem um brilho úmido. Gaigern encontra suas meias de larápio no balcão, e enfia-as depressa no bolso, junto das luvas, da lanterna de bolso e das pérolas de quinhentos mil marcos, de que ainda precisa se livrar. Torna a entrar no quarto, deixando as cortinas abertas; a luz pálida cai em triângulo no tapete, estendendo-se até o leito em que dorme a Grussinskaia.

Agora ela está estendida de costas, com a cabeça tombada de lado, dando a impressão de que a cama é grande demais para o seu corpo delicado e pequenino. Gaigern, para quem a maioria das camas de hotel são curtas, achou graça e sentiu-se comovido. Teve um súbito pensamento, uma ideia carinhosa. Foi buscar a xícara de veronal na mesinha e também os tubinhos de vidro vazios, e dirigiu-se com eles ao banheiro. Com os cuidados de uma ama, lavou a xícara, depois de esvaziá-la, e secou-a com um lenço. Ao encontrar o roupão de banho da Grussinskaia, com um gesto infantil, beijou-o na manga. Não havendo lugar para colocar os vidrinhos, guardou-os no bolso, junto das pérolas. A Grussinskaia suspirou dormindo, quando ele se aproximou de novo da cama. Inclinou-se sobre ela, franzindo a testa, mas ela continuou a dormir. Já clareara um pouco. Agora ele podia ver bem de perto, e com clareza, o rosto dela. Os cabelos caíam para trás, muito lisos, deixando descobertas as fontes reentrantes, estreitas e sombreadas. Por baixo dos olhos fechados evidenciava-se a idade, em dois sulcos profundos. Gaigern o percebeu, porém sem desgosto. A boca era linda, acima do queixo delicado, mas já murcho. Um pouco do pó de arroz pálido ainda ficara em sua testa, perto da franjinha. Gaigern lembrou-se, divertido, de que durante a noite ela tirara de baixo do travesseiro um estojinho de pó de arroz, antes de permitir-lhe que acendesse a lâmpada. "Agora eu a estou vendo bem", pensou ele com o sentimento primitivo de triunfo de um assaltante de mulheres. Começou a observar o rosto da mulher, como se fosse uma paisagem desconhecida, em que se passeia à procura de aventuras. Observou duas misteriosas riscas simétricas que partiam das fontes, ao longo das orelhas, indo até a garganta, uma linhazinha mais clara do que o resto da pele. Passou o dedo com cuidado sobre a linha; era uma delicada cicatriz que rodeava seu rosto, como a fímbria de uma máscara. De repente, Gaigern compreendeu do que se tratava. Eram as cicatrizes da vaidade, cortes na pele para esticá-la e rejuvenescer — ele já lera qualquer coisa a esse respeito. Sorrindo, sacudiu a cabeça, com um ar de incredulidade. Sem querer, apalpou suas próprias têmporas, que eram bem lisas, e vibravam com batidas fortes e saudáveis.

Encostou com a maior delicadeza o seu rosto no da Grussinskaia, como se pudesse assim transmitir um pouco do seu ser para a companheira. Admirou-se ao perceber quanto a amava nesse momento, com um amor terno e compassivo. Teve a impressão de estar sendo um sujeito limpo e correto, ligeiramente ridículo, sem dúvida, nos sentimentos que dedicava à pobre mulher, cujos segredos ele tinha descoberto.

Afastou-se da cama e ficou por uns minutos diante do espelho, com a testa enrugada, a boca ligeiramente aberta, mergulhado em pensamentos. Estava pensando se não seria possível, apesar de tudo, ficar com as pérolas. Não, não era possível. Por enquanto, ele continuava a ser o Barão von Gaigern, um homem um tanto leviano, que convivia com uma gente ordinária. Com dívidas, sim, mas ainda digno de confiança. Se saísse do quarto com as pérolas, então a polícia seria avisada dentro de poucos minutos e sua existência de cavalheiro estaria terminada. Seria um criminoso perseguido pela polícia, como qualquer outro. Isso não lhe convinha, em absoluto. Não fazia parte do seu programa ter-se tornado o amante da Grussinskaia, mas era um fato consumado, e modificava todo o resto. Pesou as chances, como teria pesado as chances de um pugilista ou de um tenista. Empreendimentos como esse das pérolas eram o seu esporte e, desta vez, o jogo lhe estava sendo desfavorável. Não era possível roubar essas pérolas; na situação atual, só poderia recebê-las de presente, caso tivesse paciência. "E preciso esperar", pensou Gaigern, suspirando profundamente. Suas reflexões eram objetivas e realistas, mas ele não queria admitir que no fundo havia ainda outra coisa por trás disso tudo. Não queria ter a consciência do próprio ridículo, e detestava sentimentalismos. Olhou para o espelho e fez uma careta para si próprio. "Em resumo", pensou aborrecido, "não é do meu feitio roubar o adereço de pérolas de uma mulher com quem dormi. Agora não tenho a mínima vontade de fazer tal coisa. Eu sofreria com isso — e acabou-se!

"Neuwjada", pensou ele com súbito carinho, olhando para a cama; "bondosa Mouna, eu preferia poder oferecer-lhe algum presente, muitos presentes, uma coisa bonita e valiosa, alguma coisa que lhe causasse prazer, pobrezinha." Puxou de dentro do bolso o colar de pérolas, com precaução e sem ruído. Já não gostava mais delas. Talvez até fossem falsas, apesar de todas as lendas dos jornais; talvez nem fossem tão valiosas como a propaganda dizia. De qualquer modo, ele se separava agora delas com a maior facilidade.

Quando a Grussinskaia procurou despertar, sua cabeça estava envolta no sono como em espessos véus. "É o veronal", pensou, continuando com os olhos fechados. Nos últimos tempos ela tinha medo de despertar, tinha medo do choque que sentia ao defrontar-se com os aborrecimentos da vida. Tinha a vaga sensação de que nessa manhã alguma coisa boa e agradável a esperava, mas não descobriu logo do que se tratava. Lambeu os lábios, pensando encontrar neles o gosto sonolento e seco da noite. Movimentou os dedos das mãos, como um cão a mover-se em sonhos. Seu corpo estava cansado, exausto, mas satisfeito, como após um enorme sucesso, após uma noite com muitos da capo, em que é preciso esgotar completamente as forças. Sentiu sobre as pálpebras fechadas a claridade matutina, e por um instante pensou que estava em Tremezzo com os reflexos da superfície do lago, em seu quarto de dormir cinzento-rosado. Decidiu abrir os olhos.

Primeiro, viu sobre os joelhos um cobertor que não conhecia, da altura de uma montanha; depois, a tapeçaria das paredes do hotel, com o desenho de frutas tropicais vermelhas, pendentes de frágeis hastes, um desenho que dava a impressão de observá-la fixamente, com um olhar febril e absorto.

Nessas tapeçarias das paredes dos hotéis colava-se todo o tédio da sua vida sem parada. O canto perto da escrivaninha estava sombrio; ali, a cortina estava fechada e não podia saber as horas. A porta do balcão estava aberta e deixava entrar uma brisa fresca. Ao lado da mesa do espelho, virada para a claridade da varanda, a Grussinskaia, ainda sonolenta, percebeu a silhueta larga e escura de um homem. Estava de costas, com as pernas meio abertas, firme e imóvel, com a cabeça inclinada, observando qualquer coisa que ela não podia ver. "Sonhei com alguma coisa parecida há pouco", pensou primeiro, ainda meio apalermada de sono, sem se assustar. "Já aconteceu coisa parecida na minha vida", pensou em seguida. "Jerilinkov", pensou finalmente. De repente, seu coração disparou como um motor, ela acordou totalmente, e lembrou de tudo.

Respirou com a boca fechada, sem ruído, mas profundamente, e com o ar que aspirou ocorreu-lhe a lembrança de tudo o que se passara durante a noite. Retirou um braço de baixo do cobertor, sentindo-o muito leve, com vontade de voar. Tateou, à procura do estojinho de pó de arroz, e, dirigindo um olhar sério ao minúsculo espelho redondo, começou a se arrumar. O delicado perfume do pó de arroz lhe causou prazer; sua imagem agradou-lhe. Sentia amor por si própria, como há muitos anos não sentia. Segurou seus pequeninos seios, como costumava fazer, mas nessa manhã isso lhe causou um prazer especial. Gostou de sentir a própria pele, lisa, fresca e satisfeita. "Benvenuto", disse em pensamento; e em russo "Chelani". Mas como só pronunciou esse nome para si mesma, o homem não pôde ouvi-la. Lá estava ele, de pernas abertas, com seus belos ombros, como um dos carrascos de Signorelli — descobriu a Grussinskaia, encantada —, ocupado com algum objeto pousado na mesinha do espelho. Ela se levantou e olhou-o sorrindo.

 

Gaigern estava com as mãos dentro da maleta em que se encontravam suas pérolas. Ela ouviu claramente o ruído de um dos estojos, reconhecendo o estalido agudo e surdo; era o estojo comprido de veludo azul, onde ficava o colar de cinquenta e duas pérolas de tamanho médio. No primeiro momento a Grussinskaia não percebeu por que razão esse ruído a assustava mortalmente. Seu coração parou, e depois voltou a bater com pancadas pesadas e sonoras, que ecoavam dolorosamente por todo o corpo. Doíam-lhe as pontas dos dedos, que se tornaram rígidas. Os lábios também. Mas ainda continuava a sorrir; esquecera-se de retirar da boca o sorriso, que permaneceu, enquanto seu rosto esfriava, tornando-se branco como papel. "É um ladrão", pensou a Grussinskaia, adivinhando tudo. E esse era um estranho pensamento, silencioso e definitivo, como um corte que lhe atravessasse o coração. Julgou perder a consciência, desejando-o com ardor, mas ao invés de acontecer isso, uma infinidade de pensamentos lhe passou pela cabeça durante um segundo, claros, cortantes, entrecruzando-se, entrechocando-se; um duelo de pensamentos.

O sentimento torturante de ter sido enganada atrozmente; vergonha, medo, ódio, cólera, uma dor medonha. E, ao mesmo tempo, uma fraqueza profunda como um abismo; não queria ver, não queria compreender, não queria acreditar na verdade, só desejava abrigar-se na piedade da mentira.

— Que faites-vous? — murmurou às costas do carrasco. Pensou que estava gritando, mas apenas sussurrou por entre os lábios rígidos: — Que está fazendo?

Gaigern levou tal susto que sua cabeça se virou de súbito; e seu susto era uma confissão de culpa. Na mão ele guardava o estojinho cúbico de um dos anéis; a suitcase estava aberta, o colar de pérolas estendia-se sobre a placa de vidro da mesinha do espelho.

— O que está fazendo aí? — sussurrou mais uma vez a Grussinskaia, causando dó, realmente, vê-la sorrir, com o rosto pálido e desfigurado.

Gaigern compreendeu-a logo, de novo se encheu de piedade, uma piedade ardente, que ele sentia palpitar nas têmporas. Dominou-se com energia, e conteve-se.

— Bom dia, Mouna — disse amavelmente. — Encontrei aqui um tesouro, enquanto você dormia.

— Como é que encontrou as minhas pérolas? — perguntou a Grussinskaia, com voz rouca. "Minta, minta", pedia seu olhar esgazeado.

Gaigern aproximou-se dela, e pousou a mão sobre seus olhos, como um guarda-sol. "Pobre bichinho, pobre femeazinha."

— Estive remexendo em suas coisas. Estava procurando um adesivo, um pedaço de atadura, qualquer coisa... imaginei que iria encontrar alguma coisa na valise. E lá estava o seu tesouro. Tenho a impressão de ser Aladim na gruta.

Até mesmo a cor dos olhos dela desaparecera; eles pareciam agora de chumbo, e só pouco a pouco lhes foi voltando sua cor negra azulada. Gaigern estendeu diante dela a palma da mão ferida, a sangrar ligeiramente, como prova do que dizia.. A Grussinskaia, lânguida e com os nervos frouxos, pousou nessa mão os lábios. Gaigern pousou a outra em seus cabelos, e puxou sua cabeça de encontro ao peito aberto do pijama de seda azul. Ele podia mostrar-se bastante brutal e ordinário com as mulheres com quem costumava encontrar-se. Mas esta, sabe o Diabo por quê, despertava nele todos os bons instintos. Era tão frágil, tão maltratada pela vida, necessitava tanto de auxílio — e ao mesmo tempo era tão forte... Pela existência que ele levava, que parecia estar sempre a pender de um fio, Gaigern compreendia a dela.

— Bobinha — disse ele com carinho. — Será que você pensou que eu estava cobiçando as suas pérolas?

— Não — mentiu a Grussinskaia. Essas duas inverdades foram a ponte sobre a qual os dois amantes se puderam encontrar. — Aliás, eu não as uso mais — acrescentou ela, respirando aliviada.

— Não as usa mais? E por quê?...

— Você não compreende essas coisas. É uma superstição. Antigamente elas me davam sorte. Depois me trouxeram infelicidade. E agora que deixei de usá-las, me dão sorte de novo.

— É mesmo? — perguntou Gaigern pensativo, procurando vencer o mal-estar e o acanhamento que sentia.

As pérolas repousavam de novo, em ordem, em seu pequeno leito. "Adieu!" Até logo, pensou ele, como uma criança. Meteu as mãos nos bolsos, num gesto decidido; lá se encontravam as ferramentas de ladrão, mas nenhuma presa. Sentia-se felicíssimo, com uma sensação de leveza e de satisfação, espantosamente renovado e farto. Abriu bem a boca e soltou uma exclamação de júbilo, emitindo um som forte e cheio. A Grussinskaia começou a rir. Gaigern atravessou o quarto correndo, aproximou-se dela e mergulhou em sua pele seu grito de prazer, deixando-se cair sobre a mulher, com a boca, o olhar e o sentimento. Ela tomou suas mãos e beijou-as; esse gesto exprimia uma gratidão humilde, em parte real, em parte representada.

— Está sangrando — disse ela, com a boca sobre o pequeno ferimento.

— Seus lábios são como os de um cavalo — respondeu Gaigern —, macios como um potrinho preto, de magnífico pedigree.

E ajoelhou-se, abraçando os joelhos da mulher, cujos tendões vibravam por baixo da pele. Justamente quando a Grussinskaia fez menção de se curvar sobre ele, alguma coisa ronronou na escrivaninha; um tilintar breve, depois longo, novamente breve.

— O telefone — disse a Grussinskaia.

— O telefone? — repetiu Gaigern.

A Grussinskaia suspirou profundamente. Não adianta, exprimia a sua fisionomia, ao erguer o fone do gancho com um gesto cansado, como se ele pesasse uma tonelada. Suzette estava ao telefone.

— São sete horas — anunciou sua voz matinal rouca. — Madame precisa levantar-se. É preciso arrumar as malas. Posso mandar o chá? E se madame quiser que lhe faça massagem, já está na hora — e Herr Pimenoff pede que lhe telefone imediatamente, assim que madame se levantar.

Madame ficou pensando durante um segundo.

— Daqui a dez minutos, Suzette... não, dentro de quinze minutos você pode trazer o chá, e depois faremos um pouco de massagem.

Colocou o fone no gancho, mas continuou a segurá-lo, enquanto estendia a outra mão a Gaigern, que ficara no meio do quarto, a balançar o corpo sobre as solas finas de cromo dos seus sapatos de pugilista. Ela ergueu imediatamente o fone, de novo, e lá de baixo o porteiro respondeu com uma voz diligente e serviçal, apesar de não ter pregado olho durante toda a noite, porque sua mulher não estava passando muito bem na clínica.

— Que número, por favor? — disse ele com voz enérgica.

— Wilhelm, sete, zero, dez! Com Herr Pimenoff! Pimenoff não estava hospedado no hotel, mas numa pensão de segunda classe, que uma família de imigrantes russos abrira no quarto andar de uma casa em Charlottenburg. Parece que lá ainda estavam dormindo. Enquanto a Grussinskaia esperava, viu em espírito o velho Pimenoff, correndo ao telefone com seu surradíssimo pijama de seda, com os pés magros, que ele mantinha sempre com as pontas um pouco abertas para fora, como se estivesse fazendo a quinta posição. Finalmente ele atendeu, com sua voz delicada e nervosa de velho.

— Ah, Pimenoff, é você? Bom dia, dobroie utro, meu caro! Sim, obrigada, dormi bem, não, não tomei muito veronal, só dois comprimidos; obrigada, tudo ali right, coração, cabeça, etc, etc. Como? O que aconteceu? O Michael está com um derrame de sangue no joelho? Mas, meu Deus, por que é que você não me disse isso ontem à noite? É horrível! Custa muito a passar, muito mesmo... Nós sabemos o quanto demora! E que providências você tomou? Como? Não fez nada, ainda? Mas é preciso mandar imediatamente um telegrama ao Tcherenov, ouviu? Imediatamente, ele precisa vir ajudar. Meyerheim que vá telegrafar. Onde está metido o Meyerheim? Vou chamá-lo logo pelo telefone. É cedo demais? Com licença, querido, por que razão para nós não é cedo demais, e para Herr Meyerheim... Não, por favor! E os cenários, já foram levados para a estação? Mas, por favor, com o primeiro despacho, quando começa a ser feito o primeiro despacho? Às seis? Se os cenários não estiverem lá, você é o responsável, Pimenoff. Nem uma palavra mais, você é o mestre de bailei, é quem deve cuidar dos cenários; não tenho nada que ver com isso. É, espero sua resposta dentro de meia hora no máximo, vá você mesmo à estação. Adieu!

Dessa vez ela nem chegou a pousar o fone; apenas fez pressão no gancho com dois dedos. Chamou Witte, que costumava levantar-se pela manhã um pouco apalermado, e que, apesar dos inúmeros anos de tournées, ficava sempre como uma pilha, e fazia uma confusão medonha. Depois, a Grussinskaia chamou Michael, que estava hospedado num hotelzinho e se pôs a lamentar-se como um cãozinho pisado, sobre o derrame de sangue. A Grussinskaia gritou-lhe severas ordens e conselhos pelo telefone; ela ficava furiosa, e era injusta sempre que qualquer elemento da troupe adoecia. Chamou três médicos, antes de encontrar um que pudesse ir ver logo o Michael, para dispensar-lhe os cuidados necessários e levar-lhe ligaduras com compressas de terra argilosa e vinagre. Chamou Meyerheim ao telefone, discutiu com ele num francês excitado, e intimou-o a comparecer às oito e meia no hotel para acertar as contas. Enviou pelo telefone um telegrama a Tcherenov e, por precaução, outro a um jovem bailarino, que dançava bem e estava sem contrato em Paris. Em seguida, com o auxílio do porteiro Senf, ligou para o expresso de Paris, pelo qual o jovem bailarino poderia chegar a tempo em Praga, e depois procurou passar um terceiro telegrama.

— Por favor, chéri, abra a torneira do banheiro — disse ela apressadamente a Gaigern, entre uma ligação e outra, matraqueando em seguida uma série de ordens em inglês, pelo telefone, ao chofer Berkley, porque o carro não devia seguir com eles, mas nesse meio tempo ir para uma garagem, a fim de ser limpo. Gaigern foi ao banheiro e obedeceu-lhe, abrindo a torneira. Fez mais ainda: estendeu sobre o aparelho de calefação o roupão de banho, para aquecê-lo. Procurou a esponja com que no dia anterior lavara o rosto desfigurado da Grussinskaia e levou-a para o banheiro, enquanto ela continuava a falar no telefone. Encontrou sais de banho e jogou um punhado na água, que já estava transbordando. Teria de bom grado feito mais alguma coisa para ela, mas não encontrou mais nada para fazer. A Grussinskaia também parecia ter terminado, por enquanto, seus telefonemas.

— Você está vendo?... todos os dias é assim — disse ela, procurando dar à voz uma entonação de queixa; mas sua voz só exprimia uma vitalidade exuberante e o prazer de arrumar as malas para a viagem.

— É preciso fazer isso tudo. E depois o Michael diz: há sempre espalhafato em torno da Grussinskaia. Ele dá a isso o nome de chi-chi, como se tudo não passasse de uma brincadeira.

Gaigern, de pé diante dela, estava faminto por um pouco de carinho, de intimidade, e estendeu-lhe ambas as mãos; mas ela estava distraída. Pensava no derrame de Michael. Ouvia de novo o tique-taque dos dois relógios.

Tomou depressa do telefone e chamou Suzette mais uma vez.

— Espere mais dez minutos, Suzette — pediu ela com muita cortesia, e com a consciência da própria culpa.

Seu olhar aflorou à mesa e à xícara de chá da noite anterior. Lá estava a xícara, muito bem lavada, com uma expressão de profunda inocência e candura, o brasão dourado do hotel a cintilar na porcelana grossa.

"Que noite maluca", pensou a Grussinskaia. "Não, essas coisas não se fazem. E bailados como os que imaginei hoje não se podem dançar. Foi apenas o resultado de uma excitação nervosa. Os vienenses me vaiariam se eu apresentasse bailados como imaginei, em vez da pomba ferida e das borboletas. Em Viena o público é diferente do de Berlim; lá eles sabem o que é ballet."

Apesar de Gaigern a estar olhando fixamente, de frente, ela não o via. Ele sentiu uma ligeira dor, desconhecida até então, uma dor estranha e viva, que lhe cortava a respiração.

— Tomilho! Neuwjada! — disse ele baixinho, indo buscar as palavras no profundo tumulto da noite. Elas conservavam seu perfume agridoce, e a inesquecível recordação. E, realmente, ao ouvir-se chamar desse modo, a Grussinskaia voltou a olhar para ele, e sua fisionomia assumiu uma expressão tensa de sofrimento, embora sorrisse.

— Acho que precisamos nos separar agora, querido — disse ela com um tom de voz propositadamente forte e inflexível, para evitar que a voz se quebrasse.

Havia esquecido, apagado por completo as lembranças das pérolas. Tinha apenas um sentimento de apego e aconchego, por essa mulher, um desejo infinito de ser bom para ela, muito, muito bom. Com uma sensação de desamparo, girou no dedo o anel de sinete com o brasão dos Gaigern, em lápis-lazúli.

— Tome — disse ele estendendo a mão e oferecendo-lhe o anel, com um gesto desajeitado de menino. — É para que você não se esqueça de mim.

"Não o verei mais?", pensou a Grussinskaia. Esse pensamento a fez sentir um ardor nos olhos, e a fisionomia bonita de Gaigern foi desaparecendo em meio das suas lágrimas. Esse era um pensamento que não se devia exprimir. Ela ficou esperando. "Deixe-me ficar com você. Vou ser muito bom para você", pensou Gaigern. Apertou os lábios com força e obstinação e não disse nada.

— Você vai para Viena? — perguntou ele.

— Primeiro para Praga, por três dias. Depois catorze dias em Viena. Vou ficar hospedada no Bristol — acrescentou.

Silêncio. Tique-taque de relógios. Buzinas de automóveis diante do hotel. Cheiro de enterro. O arfar da respiração.

— Você não pode viajar comigo, querido? Preciso de você — disse finalmente a Grussinskaia.

— Eu... para Praga não posso ir. Não tenho dinheiro. Preciso primeiro arranjar o dinheiro.

— Eu lhe dou — respondeu ela prontamente. Com a mesma pressa Gaigern respondeu:

— Não sou um gigolô!

De repente caíram ambos nos braços um do outro, impulsionados por qualquer coisa de grande, num abraço forte, unidos no momento em que tinham de se separar.

— Obrigado — disseram ao mesmo tempo —, obrigado, obrigado — repetiram em três línguas: alemão, russo e francês, num balbucio confuso, num tom de soluço, num sussurro .choroso, em júbilo: — Obrigada, merci, bolchoie spassibo, danke.

Nesse instante Suzette está recebendo das mãos do criado de quarto, com ar de ofendido, a bandeja com o chá. São sete horas e vinte e oito minutos. O relógio na escrivaninha corre, sem fôlego; o outro, de cansaço, parou. Continue, continue, continue, bate ele, em tom de reprimenda.

— Então, em Viena? — diz a Grussinskaia, com as bordas das pestanas úmidas. — Daqui a três dias? Você segue depois que eu partir. E depois se encontra comigo em Tremezzo; vai ser ótimo, vai ser maravilhoso estarmos juntos! Vou tirar umas férias, de seis a oito semanas, e nós vamos*viver, querido, vamos somente viver, deixando tudo para trás, tudo isso que não tem sentido; vamos apenas viver, ficaremos idiotas de tanta preguiça e felicidade; e depois você vai comigo para a América do Sul. Você já conhece o Rio? Eu... não, chega. Está na hora. Vá! Vá! Querido! Obrigada!

— Daqui a três dias o mais tardar — diz Gaigern. A Grussinskaia ainda faz pairar em seu redor, às pressas, um pouco da sua graça de dama da alta-roda.

— Tome cuidado para chegar ao seu quarto sem me comprometer muito — pediu ela, fechando as duas portas, uma após a outra.

Quando Gaigern, em silêncio, soltou a mão da mão dela, sentiu-a dolorida. Sangrava de novo. O corredor está silencioso, as inúmeras portas vão-se perdendo na longa perspectiva. Nas soleiras, as botinas dormem, com as orelhas pendidas. O elevador vem descendo e, no terceiro andar, alguém corre para não perder o trem. No hall da escada, uma das janelas de vidro leitoso está aberta, deixando sair para o pátio a fumaça dos cigarros dessa noite. Gaigern se esgueira, com suas solas de pugilista, por sobre o tapete de ananases; entra no 69, seu próprio quarto, e fecha a porta com uma gazua. A chave ainda está na caixa, na portaria.

A Grussinskaia, depois de tomar banho, deita-se de bom grado, para entregar-se às mãos de massagista de Suzette. Sente-se forte, elástica e cheia de energia. Tem uma vontade enorme de dançar, e está ansiosa pelo próximo espetáculo. Sente que terá sucesso agora, pois em Viena se tem sempre sucesso; ela o sente nas pernas, nas mãos, no pescoço, que inclina para trás, repentinamente, e na boca, que tem sempre desejos de sorrir. Veste-se e sai correndo, como um pião. Com enorme élan, atira-se às ocupações da manhã, à discussão com Meyerheim, à luta subterrânea com as perfídias da troupe, ao trabalho paciente com Pimenoff e Witte.


9

 

 

Às nove horas o groom 18 traz um buquê de rosas: "Até logo, querida boca", está escrito num pedacinho rasgado de papel do hotel. A Grussinskaia beija o anel de sinete com o brasão dos Gaigern. — Porte-bonheur — sussurra, como a falar com um velho conhecido. Agora ela já tem de novo um talismã. "Michael tem razão. Vou doar as pérolas... para as crianças pobres", pensa ela. Suzette segura com luvas de tricô a alça da suitcase, enquanto o criado leva o resto da bagagem. Sem saudades, a Grussinskaia deixa o quarto do hotel, tão cheio de aventuras, com aquela tapeçaria da parede que lhe fazia mal aos nervos. No Hotel Imperial de Praga já está reservado para ela um outro quarto com banheiro privativo dando para o pátio, o número 184. Também no Rio, em Paris, em Londres, em Buenos Aires, em Roma foi feita igual reserva; espera-a uma infindável perspectiva de quartos de hotel com portas duplas e água corrente, e o cheiro indefinível de incessante movimento e de coisas desconhecidas.

Às nove horas e dez a camareira, que não dormiu durante a noite, tira muito mal o pó do quarto 68, joga fora as cestas de flores secas, leva a xícara de chá e finalmente traz roupa de cama limpa — ainda úmida da passagem a ferro — para o próximo hóspede.

 

O relógio, pérfido como todos os despertadores, deixou de acordar o Diretor-Geral Preysing, com seu tilintar pontual e enérgico. Às sete e meia tilintou apenas durante um segundo, e isso foi tudo. Preysing, que dormia com a boca aberta e seca, mexeu-se ligeiramente, as molas do colchão gemeram, e por trás do reposteiro amarelo o sol brilhou um pouco. Às oito horas o porteiro, muito cumpridor de seus deveres, despertou o diretor chamando-o ao telefone, mas já era tardíssimo. Preysing pôs a cabeça meio tonta de sono embaixo da ducha, praguejando baixinho por ter-se esquecido de trazer o aparelho de barbear. Um pedante como ele perdia toda a alegria com uma coisa assim. Apesar de estar atrasado, levou alguns minutos escolhendo o terno que ia vestir. Depois de já ter escolhido o cut, despiu-o com raiva. Calculou — e talvez com razão — que não seria vantajoso vestir o cut; o terno cinzento de viagem, pelo contrário, demonstraria imediatamente aos senhores de Chemnitz que não estava tão interessado assim por todo aquele negócio. Apressou-se o mais que pôde, mas até que arrumasse todos os saquinhos e estojos, que procurasse todas as chavinhas, as encontrasse e enfiasse nas fechaduras, folheasse mais uma vez seus documentos e contasse mais uma vez o dinheiro, já eram mais de nove horas. Com a cabeça quente, saiu correndo do apartamento e, no corredor, deu um encontrão em um homem.

— Desculpe! — disse Preysing, parando diante da porta de seu quarto, para conseguir enfiar o outro braço no casaco.

— Não foi nada! — replicou o cavalheiro, continuando seu caminho sobre a passadeira. Preysing julgou reconhecer esse modo de manter as costas. Quando chegou ao elevador, o homem já ia descendo; o diretor pôde vê-lo também de frente e julgou reconhecê-lo igualmente, sem se recordar de onde. Teve a impressão de que ele sorria zombeteiramente, enquanto descia no elevador, diante do seu nariz. Preysing, excitado e impaciente, desceu a escada correndo e foi em disparada pelos corredores até o subterrâneo de azulejos, onde o barbeiro do hotel tinha o seu salão; ali cheirava a água estagnada de porão e a Peau d'Espagne. No salão estavam sentados muitos cavalheiros, metidos em batas brancas, como babies esperançosos, entregues às manipulações dos barbeiros vestidos com jaquetas brancas. Preysing, impaciente, começou a dançar sobre suas grossas solas de crepe.

— Vai demorar muito para chegar a minha vez? — perguntou ele, roçando o rosto por barbear, nas palmas das mãos.

— No máximo dez minutos. Há só um senhor na sua frente — responderam-lhe.

O tal senhor que havia chegado antes dele era o homem que descera no elevador, e Preysing olhou-o com desagrado. Era um sujeitinho insignificante, magro e modesto, meio vesgo por trás de uns óculos a escorregarem, e com o nariz pontudo inclinado sobre um jornal. Preysing tinha uma vaga ideia de já ter tratado de negócios com esse homem, mas não conseguia recordar-se em que circunstâncias. Postou-se diante dele, fez uma leve curvatura, e procurando ser amável disse:

— Por favor, o senhor podia me fazer a gentileza de me ceder a sua vez? Estou com muita pressa.

Kringelein, que se encolhera todo atrás do jornal, juntou suas forças. Mostrou a cara por trás do artigo de fundo, estendeu o pescoço fino, voltou-se para o diretor-geral olhando-o de frente e respondeu:

— Não!

— Desculpe... mas é que estou com muita pressa — tartamudeou Preysing em tom de reprimenda.

— Eu também — replicou Kringelein. Preysing, furioso, virou as costas e saiu do salão de barbeiro. Como um vencedor, um herói, mas completamente exausto e vazio pela desmedida tensão nervosa, Kringelein, ofegante, continuou sentado, envolto no aroma das essências dos sabões de barbear.

Atrasado, com a barba por fazer e com a ponta da língua doendo, por tê-la queimado no café fervendo, o diretor-geral entrou na sala de conferências. Os outros senhores já tinham soltado na sala uma bela fumaceira azul de charuto. A sala, com seu pano de mesa verde, a imitação de tapeçaria de damasco nas paredes e o retrato a óleo do fundador do Grande Hotel, tinha um aspecto de conforto e solidez. O Dr. Zinnowitz já havia colocado seus documentos na mesa, na sua frente; o velho Gerstenkorn estava sentado na cabeceira da compridíssima mesa, presidindo a sessão, e, para cumprimentar, ergueu apenas a metade do corpo, porque ele pertencia à geração robusta do sogro de Preysing, conhecera o diretor-geral ainda moço e não o tinha em grande conta.

— Está atrasado, Preysing? — perguntou ele. — Quarto de hora acadêmico? Não passou bem ontem de noite? É isso, Berlim tem dessas coisas! — riu-se com a tosse grossa e encatarrada dos bronquíticos, e apontou para a cadeira a seu lado.

Preysing sentou-se defronte de Schweimann com a desagradável impressão de ter levantado com o pé esquerdo, e seu lábio superior, sob o bigode, estava úmido antes mesmo de começar a luta. Schweimann, que tinha pálpebras espessas e uma boca grande e de lábios grossos, uma boca elástica de macaco, apresentou um terceiro senhor:

— O nosso síndico, o Dr. Waitz — disse ele.

O Dr. Waitz era jovem ainda; tinha um ar distraído, mas não o era em absoluto, e durante as conversações podia tornar-se bem desagradável, com sua voz dominadora e agressiva de trombeta. Tinha sido trazido também pelos senhores de Chemnitz.

— Nós já nos conhecemos — disse Preysing com pouco entusiasmo.

Schweimann ofereceu, por sobre a mesa, um charuto ao diretor-geral. O Dr. Zinnowitz tirou do bolso do colete uma caneta-tinteiro e a colocou à sua frente, ao lado dos documentos. Bem afastada, sentada à mesa, do outro lado da garrafa de água e dos copos que ofuscavam facilmente os olhos e vibravam sobre uma bandeja preta, sempre que passava lá fora algum ônibus, estava uma personagem apagada: a Flamm número um, com o bloco de estenografia na mão, envelhecida e insignificante, com uma leve penugem branca de traça nas faces, calada, cumpridora dos seus deveres, impossível de ser confundida com a Flamm número dois.

— Bonita caneta — observou Schweimann a Zinnowitz. — De que marca é? Muito bonita.

— Gosta? Recebi-a de Londres. É bonita, não é verdade? — respondeu Zinnowitz, escrevendo sua assinatura fluente num caderninho de notas. Todos olharam.

— Quanto custa uma caneta assim, se me permite perguntar-lhe? — informou-se Preysing, tirando sua própria caneta do bolso do colete e colocando-a na mesa. E todos os presentes olharam também para a caneta inglesa.

— Umas três libras, sem pagar a alfândega. Um conhecido me trouxe — esclareceu o Dr. Zinnowitz.

— Que coisa prática! Muito prática.

Todos estenderam as cabeças por sobre a mesa, como meninos de escola, e observaram a caneta-tinteiro de malaquita verde, de Londres. Esse objeto merecia de fato que cinco participantes adultos de uma conferência se ocupassem dele durante três minutos.

— Bem, agora vamos tratar de negócios — disse afinal o velho Gerstenkorn com sua voz encatarrada, e imediatamente o conselheiro Zinnowitz apoiou seus dedos alvacentos sobre a coberta verde da mesa e começou, com palavras fluentes e preparadas de antemão, uma exposição do assunto, fazendo ressoar a voz na atmosfera azul da sala de conferências.

Preysing permitiu-se uma pequena pausa para se acalmar. Ele próprio não era bom orador, e se sentia agradecido por Zinnowitz ter assumido essa tarefa, e por suas frases se ensarilharem, fluentes e claras, como atiradas por uma máquina. E isso não era mais que a introdução. Primeiro falou de coisas que já haviam sido há muito tempo ruminadas em negociações preliminares. Expôs mais uma vez a situação em que as negociações estavam, enquanto ia pescando, na pasta dos documentos, ora este ora aquele papel, levando as longas colunas de números bem próximo dos olhos míopes para poder lê-las com mais facilidade.

Tornando a repetir, era este o ponto em que estavam as negociações: a Algodoeira Saxônia S.A., que fabricava principalmente tecidos de algodão e cobertores, e com o refugo fabricava uma qualidade muito apreciada de serapilheira, era uma firma de boa envergadura e grande capital. Seu ativo em terrenos, prédios e maquinaria, em mercadorias em bruto e manufaturadas, em patentes, etc, e principalmente em crédito, totalizava um capital considerável. Os impostos anuais e o produto líquido conservavam-se numa sólida média, os dividendos haviam somado, ainda no ano passado, nove e meio por cento.

Zinnowitz ia lendo as cifras, mais ou menos satisfatórias, e Preysing o ouvia com agrado. No seu empreendimento estava tudo limpo e em ordem, e a produção com o refugo, que sozinha trazia trezentos mil em bruto, fora organizada por ele. Olhou para Gerstenkorn. Este, com a maneira pensativa e meio simplória dos velhos manhosos, balançava de um para outro lado a cabeça grisalha, à escovinha. Schweimann aspirava seu charuto, parecendo não estar ouvindo. Waitz controlava as cifras que eram lidas, uma a uma, olhando para um caderninho com capa de couro, onde ele tomara notas. A Flamm número um, verdadeira mestra, na arte da secretária particular, em não fazer notar sua presença, com olhar fixo fitava os reflexos na água, em que a caneta tomava o aspecto tremulante de uma pequena e aguda baioneta. Zinnowitz tirou outro maço de papéis de entre os documentos colocados uns sobre os outros e passou então a tratar da situação da Malharia de Chemnitz. Sua barba longa e fina de chinês subia e descia quando ele falava.

A Malharia de Chemnitz era — deduzia-se das cifras — um empreendimento muito menor. Mal possuía a metade desse ativo, e seu balanço demonstrava uma situação bastante precária. Ele tinha anotado apenas o principal, mas, não obstante, tivera de lançar uma elevadíssima participação de lucros. Os impostos anuais eram altos. O lucro líquido mal chegava à altura dos impostos. Considerando tudo isso, as cifras do balanço da Chemnitz mantinham-se espantosamente elevadas. Zinnowitz colocou um amável e pequeno sinal de interrogação por trás das últimas cifras que lera, e fitou o velho Gerstenkorn.

— Suba. Pode arredondar para duzentos e cinquenta mil marcos, pode fazê-lo.

— O senhor não pode fazer as contas assim — observou Preysing, que tinha ficado nervoso. — O senhor precisa amortizar o preço das novas máquinas para o novo processo. Nesse caso, o senhor não poderá anotar nem mesmo suas velhas máquinas.

— Mesmo assim. Mesmo assim — insistiu Gerstenkorn, teimoso.

O Dr. Waitz trombeteou:

— Poderemos considerar as nossas cifras muito mais desvalorizadas do que valorizadas.

O Dr. Zinnowitz pôs em cima da mesa um papel para o diretor-geral, e este, forçando a vista, aprofundou-se nos seus cálculos. O resultado ele já conhecia. A Malharia de Chemnitz era um empreendimento de pouca solidez, fundado com pouco capital, e com o crédito quase estourando. Mas impunha-se, tinha bons lucros, parecia estar se desenvolvendo, tinha as conjunturas a seu favor. Enquanto isso, a Algodoeira Saxônia ficava para trás, ia adormecendo, sólida e bem fundada como era. Algodão, cobertores e serapilheira. O mundo não se interessava, no momento, por cobertores e serapilheira. E o velho de Fredersdorf sabia por que razão ele insistia, nas atuais circunstâncias, em agarrar a oportunidade dos tecidos de malha, e trazer assim um lucro para o seu empreendimento.

— Isso não tem importância. Vamos adiante — disse o diretor, com a condescendência de um homem que está em posição inferior. Gerstenkorn tirou da mão dele o balanço e, alisando delicadamente o papel, tossiu uma risada.

Zinnowitz, com palavras fluentes, já havia tratado da situação das ações, havendo, nesse ponto, um erro evidente. O capital efetivo da Saxônia era quase duas vezes maior do que o ativo dos senhores de Chemnitz. Partindo dessa premissa, todas as outras negociações preliminares haviam decorrido de modo que, na fusão das duas firmas, duas ações da Chemnitz equivalessem a uma ação da Saxônia. Mas as ações da Chemnitz haviam subido, as da Saxônia baixado, o equilíbrio tinha-se modificado sensivelmente, e o Dr. Zinnowitz, com um gesto conciliante da mão, teve que conceder — a base das trocas se modificara, em razão da espantosa subida das ações da Malharia de Chemnitz. Preysing ouvia com desagrado a voz polida do seu advogado, que com muitas frases, impecáveis e condicionais, trazia à luz uma quantidade de coisas desagradáveis, que ele estava farto de saber. Seu charuto já não lhe dava mais prazer; tirou ainda algumas baforadas enérgicas, e acabou pondo-o de lado. Num certo ponto da exposição de Zinnowitz, o Dr. Waitz saltou, como um ator na sua deixa, bateu rapidamente com a palma da mão no pano verde da mesa, e opôs suas objeções. Começou a ler cifras no seu caderno de notas, sem olhá-lo sequer, novos números, números diferentes — Preysing contraiu de tal modo os músculos da testa, que seus olhos saltaram das órbitas, tal o esforço que fazia para conservar na memória todas aquelas coisas, para perceber tudo e não perder de vista o aspecto geral do assunto. Puxou para o seu lado alguns papéis de carta do hotel, que estavam em cima da mesa, e se pôs a rabiscar notas às escondidas, e excitado como um mau aluno. O conselheiro Zinnowitz, por seu lado, havia apenas lançado um olhar à Flamm número um, e a boa moça já estava a estenografar as agressivas palavras e provas no seu bloco, com riscos azuis. O Dr. Waitz apresentou o conjunto de suas trombeteadas objeções: não, não era possível exigir dos acionistas da Malharia de Chemnitz um prejuízo de metade do seu capital, no caso de tal fusão. Conforme sua opinião, não havia nenhum motivo plausível para, no caso de uma eventual fusão — ele frisou o "eventual", como um ator de província —, conceder a primazia à Saxônia, com relação à sociedade de Chemnitz, para de certo modo colocar num plano de dependência essa firma em plena florescência, para pô-la simplesmente a um canto.

Zinnowitz olhou para Preysing, e este, obediente, se pôs a falar. Tinha o hábito de falar de coisas importantes com voz nasal e abafada, num tom aborrecido e monótono; pelo fato de se sentir intimamente um homem pouco seguro de si, empregava tais meios para demonstrar aos outros calma e superioridade. As palmas de suas mãos estavam úmidas, quando se atirou à luta. Os olhos de Schweimann arrastaram-se para fora das órbitas vermelhas em que habitavam, como camundonguinhos cinzentos, e Gerstenkorn colocou os polegares nas cavas do colete, com a expressão de uma pessoa que está se divertindo. As paredes de damasco falso ouviam tudo, com indiferença. Conferências como essa se realizavam diariamente no Grande Hotel; nesse enorme Kaff eram cozidas muitas sopas, que em seguida os acionistas tinham que engolir. O açúcar subia de preço, as meias de seda barateavam, o carvão desaparecia, tudo isso e milhares de coisas mais dependiam do decorrer dessas lutas na sala de conferências do Grande Hotel.

Preysing ia falando. Quanto mais ele falava, com uma voz que ressoava como se a tivesse posto sobre a neve, e quanto mais minucioso se tornava, tanto mais perdia terreno. As interrupções breves e concludentes de Gerstenkorn assobiavam por entre suas frases como balas de revólver. Houve momentos em que Preysing teria de bom grado fugido dali, meia-volta, marchar, marchar, abandonando toda essa história imunda de fusão, para voltar para a companhia de Mulle, Pepsin e Babe, em Fredersdorf. Mas era um diretor-geral, e o mundo não era um negócio tão simples assim; dessa fusão muito se esperava para a fábrica, e dela dependia tudo para a sua própria posição dentro da fábrica, pelo que aguentou o repuxo. Puxou mais uma vez do seu ativo, essa prova mais do que sólida de um empreendimento mais do que sólido, e se agarrou a isso com unhas e dentes. Caceteou os senhores da Chemnitz, caindo em pormenores excessivos, e o conselheiro precisou por várias vezes pô-lo em movimento, como a um barco encalhado e lento. Preysing fazia uma confusão medonha, insistia em alguns pontos secundários, teimava sem a mínima razão; caceteava os senhores da Chemnitz com minuciosas descrições da fabricação de tecido de serapilheira, feito com refugo do material, pois era do que mais gostava de falar, esquecendo-se de aludir a assuntos importantes que tinha sublinhado no papel de carta diante dele. Finalmente ficou parado no meio de uma frase que começara como. uma fanfarra e terminou num beco sem saída. Tirou do bolso o lenço e enxugou o suor do bigode; pôs na boca um novo charuto, que tinha gosto de feno. De repente teve a impressão de estar sentado em uma mesa entre contrabandistas, pessoas sem seriedade e sem princípios; sentiu a amargura do homem honesto que e tido por tolo.

Então, Gerstenkorn tirou das cavas do colete seus dedos redondos de burguês atrasado e começou a expor a sua opinião. Esse senhor Gerstenkorn, com sua cabeça quadrada à escovinha e sua voz bronquial, era um orador claro e combativo. Empregava toda espécie de dialetos, para dizer sem rodeios o que queria dizer. Saxão, berlinês, iídiche e mecklemburguês eram o tempero da sua conversa sobre negócios.

— Agora o senhor faça ponto final, e deixe os adultos falarem — observou ele, conservando na boca o charuto, o que tornava sua linguagem, comumente vulgar, mais vulgar ainda, e era o que ele queria. — As coisas de que a Saxônia é capaz o senhor já nos contou, e nós já sabíamos disso tudo. Música também ela não sabe fazer. Já repetimos e tornamos a repetir isso tudo aos nossos principais acionistas, e qual foi o resultado? Receio, um enorme receio, um fundamentado receio da fusão. É engraçado, como é que os acionistas, por causa do seu algodão, iriam meter a mão no caldeirão para tirar as salsichas quentes? Em poucas palavras: a nossa situação melhorou muito desde a primeira vez que o senhor se dirigiu a nós. A sua situação não se modificou, se quisermos ser amáveis e não dissermos que piorou. Nessas condições, nós, falo em alemão claro, meu prezado Preysing, perdemos o interesse na fusão. E estamos aqui com a incumbência de parar com as negociações, nessas circunstâncias. Quando o senhor se dirigiu a nós, as perspectivas eram outras.

— Mas nós não nos dirigimos aos senhores — disse Preysing com rapidez.

— Homem de Deus, o que aconteceu com o senhor? Dirigiram-se a nós, sim! Dr. Waitz, faça o favor de me passar os dados. O senhor dirigiu-se a nós em... aqui está... em 14 de setembro, por carta.

— Não é verdade — teimou Preysing, puxando o maço de documentos que estava diante do conselheiro Zinnowitz. — Nós não nos dirigimos aos senhores. Antes dessa carta já tinha havido uma troca pessoal de impressões, pedida pelos senhores.

— Trata-se disso? Pois um mês antes o seu velho já tinha batido à minha porta, a título particular, com toda a amabilidade.

— Nós não nos dirigimos em primeiro lugar — respondeu Preysing, apegando-se a esse fato absolutamente sem importância, como se isso pudesse salvar alguma coisa. Zinnowitz bateu com os pés estreitos debaixo da mesa, pedindo socorro. De repente, Gerstenkorn pôs fim à discussão, e passou a palma da mão quadrada sobre o pano verde da mesa.

— Está bem — disse ele —, bon. Pois então não se dirigiram, se assim lhe agrada. E, tenham ou não se dirigido, as circunstâncias naquela época eram diferentes, o senhor tem que concordar, Herr diretor-geral — ele disse "Herr diretor-geral", e a mudança da maneira amistosa de falar para esse tom oficial soava ameaçadoramente. — Naquela época tínhamos motivos para desejar uma sociedade com a Algodoeira Saxônia. Hoje, que motivos temos?

— Os senhores precisam de um capital maior — disse Preysing, com toda a razão.

Gerstenkorn, com dois dedos, varreu da mesa a objeção.

— Capital! Capital! Se emitirmos hoje novas ações nos atirarão quanto dinheiro quisermos. Capital! O senhor se esquece de uma coisa: o seu bom tempo foi durante a guerra, naquela ocasião a gente podia arranjar a vida fazendo tecido para o Exército e cobertores. Agora o tempo está bom para nós, entende? Nós não precisamos de capital. Precisamos de matéria-prima barata, para aproveitar o nosso novo processo, e precisamos de novos mercados no exterior. Digo-lhe com toda a franqueza, e diretamente, a opinião da nossa sociedade, Herr diretor-geral. Se a fusão com os senhores for proveitosa para nós, então a concretizaremos. Do contrário, não a faremos. Faça o favor, diga o que pensa sobre isso.

Pobre Preysing! Tinha que expor o seu pensamento. Agora haviam chegado naquele ponto que o amedrontava, desde que pisara o trem misto em Fredersdorf. Lançou um olhar de coelho a Zinnowitz, mas este olhou com um ar de recusa as próprias unhas, bem tratadas e pálidas.

— Não é nenhum segredo o fato de possuirmos ótimas relações no exterior. Só para os Bálcãs exportamos anualmente sessenta e cinco mil marcos de tecido de serapilheira — observou ele. — É natural que, no caso de uma fusão, faríamos o possível para atrair ainda o mercado externo para o produto de malha manufaturado.

— Quais são os motivos que o levam a afirmar isso com tanta certeza? — perguntou o Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, erguendo um pouco o busto, conforme um antigo hábito seu, do tempo em que fora juiz criminal. Dava a impressão de ainda usar a toga, e falava num tom de voz próprio para intimidar a testemunha insegura. O diretor-geral se deixou intimidar.

— Não sei a que motivos se refere — respondeu ele, com seu lamentável costume de perguntar coisas que estava farto de saber.

Schweimann, bem em frente dele, ainda não tinha aberto sua enorme e elástica boca de macaco. Agora a abria.

— Trata-se da planejada sociedade com Burleigh & Son — afirmou ele, sem rodeios.

Gerstenkorn balançava com a máxima atenção a longa ponta de cinza do seu charuto.

— Infelizmente, não estou em condições de dar informações a esse respeito — respondeu Preysing imediatamente. Preparara de antemão essa resposta, e a sabia de cor.

— Que pena! — disse o velho Gerstenkorn.

Em seguida ficaram todos calados durante alguns minutos.

A garrafa de água tilintou levemente na bandeja, porque lá fora passava um ônibus, e o reflexo estreito e contorcido do sol batendo na água parada tremulou na parede sobre a moldura do retrato a óleo do fundador do Grande Hotel. Preysing, durante alguns segundos, se pôs a refletir febrilmente. Não sabia se o Dr. Zinnowitz havia mostrado ao pessoal da Chemnitz as cópias daquelas cartas agourentas, sem o menor valor e importância. Sentia novamente nas mãos aquela impressão de falta de asseio e de trato. Seu rosto por barbear começou a cocar de um modo ridículo. Lançou um olhar inquiridor e implorante ao conselheiro, lá na ponta da mesa. Zinnowitz, procurando acalmá-lo, baixou as pálpebras oblíquas e inteligentes de seus olhos de chinês, um movimento quase invisível, que tanto podia significar sim, como não, ou mesmo não significar absolutamente nada. Preysing dominou-se. "Preciso consegui-lo", pensou ele; era mais um sentimento do que um pensamento.

— Meus senhores — disse ele, levantando-se; é que o forro esticado de veludo da cadeira causava no seu traseiro uma sensação desagradável de calor —, mas, meus senhores, vamos tratar do que importa. A base sobre a qual foram feitas até agora todas as negociações entre nós foi o balanço e a situação da fábrica de Fredersdorf. Os senhores puderam fazer uma ideia bem clara da situação, o senhor conselheiro comercial Gerstenkorn pôde certificar-se pessoalmente das condições em que se encontra a nossa fábrica, e eu faço questão de que hoje não se trate de coisas vagas e imponderáveis nas nossas negociações. Não somos especuladores, eu não sou um especulador, em absoluto, trabalho com fatos e não com boatos. Não passa de um boato da Bolsa, isso de que vamos fazer sociedade com Burleigh & Son, em Manchester. Mandei desmentir isso, não posso permitir que...

— O senhor não vai querer ensinar uma lebre velha a correr, não é? Nós sabemos muito bem o que significa um démenti — replicou Gerstenkorn.

Schweimann agora estava animado; farejava, com as suas narinas dilatadas e a boca de macaco, como se já cheirasse a possibilidade do mercado inglês. Preysing foi-se enfurecendo.

— Não aceito! — exclamou ele. — Não aceito que considerem como um fator importante nos nossos negócios esse assunto da Inglaterra; não aceito isso. Não faço cálculos com castelos na Lua, nunca fiz isso, a nossa fábrica não tem necessidade de fazer semelhante coisa. Conto com coisas reais, com fatos, com cifras, com o nosso balanço, aqui está — exclamou ele batendo três vezes com a palma da mão na pilha de documentos que se encontrava diante dele —, é isso que tem valor... e não permito que se trate de outra coisa. Nós oferecemos agora o que oferecemos desde o primeiro dia, e se isso de repente não basta para a sua firma, sinto muito!

Parou espantado, pois tinha galopado como se corresse sobre um pântano. "Estou assustando os outros com a minha gritaria", pensou ele horrorizado, "preciso atraí-los, e em vez disso estou estragando tudo." Encheu o copo de água e bebeu. Era um líquido grosso, morno e sem sabor, como óleo de rícino. O conselheiro Zinnowitz deu uma risadinha e tentou endireitar a coisa.

— O diretor-geral Preysing é de uma consciência modelar — declarou ele. — Não sei, mas talvez os seus receios de levar de certo modo em consideração o negócio com Manchester sejam injustificados, pelo menos exagerados. Por que não se poderá deixar pesar na balança uma coisa que oferece tão boas perspectivas, mesmo que isso ainda não esteja em preto no branco? Por que...

— Por quê? Porque não posso me responsabilizar por isso — interrompeu-o Preysing. Zinnowitz, que teria de bom grado lhe pisado no pé, mas não o podia fazer, ergueu a voz, dirigindo-se ao diretor-geral. Preysing sentou-se de novo no assento quente da cadeira de veludo, e não disse mais nada. Esteve a ponto de declarar a verdade. Bom, se Zinnowitz não o deixava falar, então o célebre perito em matéria comercial que se arranjasse como pudesse. "A coisa vai mal", pensou Preysing, "já não tem mais conserto, está tudo acabado, morto e enterrado. As negociações fracassaram definitivamente. Está bem." Oferecera a todo mundo uma firma sólida, e tudo que um homem correto pode oferecer. Mas o mundo não queria coisas assim. O mundo queria mercados fictícios, boatos falsos, especulações, por trás dos quais nada havia, a não ser um pouquinho de fanfarronice. Artigos de malha, jumper e sweater, meias de cores variadas de Chemnitz, pensou o diretor-geral, amargurado... E chegou a ver realmente, nesse momento, tais coisas, modernas, coloridas e levianas, que conquistavam o mundo no corpo de moças também levianas.

Zinnowitz continuava o seu sermão; Flamm caíra de novo em sua letargia profissional. Gerstenkorn e Schweimann, no entanto, mal ouviam; com a cabeça metida entre os ombros, conversavam sem nenhuma delicadeza, a meia voz, sobre um assunto qualquer.

— O nosso amigo Preysing — recomeçou o conselheiro — talvez vá um pouco longe demais com os seus escrúpulos. Dizem que a sua fábrica está para firmar um contrato muito vantajoso com a próspera e antiga firma Burleigh & Son. E que faz o nosso caro Preysing? Procura negar isso, como se acaso se tratasse de uma bancarrota. Considerando que se trate apenas de um boato... não há boato algum que não contenha um fundo de verdade, todos nós sabemos. E um velho homem de negócios como o conselheiro comercial Gerstenkorn há de concordar que há boatos que têm mais valor do que muito contrato pronto e assinado. Mas como antigo advogado da fábrica de Fredersdorf, posso afirmar: isso é mais do que um boato, há certos ajustes por trás disso. Desculpe-me, caro Preysing, se não guardo a discrição férrea que o senhor guarda. Não tem nenhum sentido insistir em negar, desde que já se realizaram inúmeros entendimentos a esse respeito. Talvez hoje ainda não se possa saber com certeza se eles conduziram a um resultado positivo. Mas isso é um fato, e um fato menos desfavorável do que o seu balanço. Acho extremamente correto e delicado Herr Preysing não querer juntar ao ativo da sua fábrica esse fato, acho isso realmente de uma correção e distinção fora do comum. Mas dessa maneira não se vai para a frente. Desculpe-me, portanto, se eu confio essas coisas a estes senhores.

Zinnowitz continuou a murmurar um palavreado conciliante, com muitos "no entanto" e "como também" e “se acaso" e "por outro lado". Preysing tinha empalidecido; teve a sensação, ao sentir nas fontes uma pontada do sangue a fugir, o sentimento de que havia realmente empalidecido. "Ele lhes mostrou as cartas", pensou. "Mas, Deus do céu, isso já é intriga, já é quase uma fraude. Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann", pensou ele, enxergando as letras azul-escuras e apagadas do telegrama. Meteu a mão no bolso do colete do seu terno cinzento de funcionário, onde guardara o telegrama, mas retirou-a no mesmo instante, como se a tivesse metido num forno quente. "Se eu agora não me levantar imediatamente, e não disser o que está se passando, então a coisa está perdida", pensou, levantando-se. "Porém, se eu falar agora, estes senhores se afastarão, a fusão vai por água abaixo e eu voltarei para Fredersdorf completamente desacreditado", refletiu, sentando-se de novo. Procurou disfarçar seus movimentos indecisos e inoportunos, e, colocando água num copo até o meio, sorveu-a, como se fosse um remédio.

Enquanto isso, Schweimann e Gerstenkorn tinham-se animado. Eram duas cabeças de comerciantes, finórias e lustrosas de unção. Sua atenção foi despertada para o fato de Preysing ter negado com tanta veemência o negócio com a Inglaterra, tentando pôr de lado o assunto. Seu olfato sentia alguma outra coisa por trás disso: mercados, proveitos, talvez concorrência. Gerstenkorn teve uma ideia, que murmurou à enorme orelha direita de Schweimann:

— Se se tratasse de qualquer outra pessoa, um desmentido assim seria quase o mesmo que uma afirmação. Mas com esse animal que é o Preysing, é possível até que ele esteja falando a verdade.

Gerstenkorn deu uma investida brutal.

— Não adianta o conselheiro estar gastando o seu latim — disse ele, inclinando-se sobre a mesa. — Antes de continuarmos a nossa conversação, quero pedir a Herr Preysing o favor de nos dizer sem rodeios até que ponto chegaram as negociações com Burleigh & Son.

— Recuso-me a isso — afirmou Preysing.

— Insisto, caso continuemos a negociar — retrucou Gerstenkorn.

— Então — replicou Preysing — peço-lhe que, no decorrer das negociações, esse assunto seja dado por encerrado.

— Nesse caso preciso admitir que as perspectivas de sociedade com Burleigh & Son malograram? — perguntou Gerstenkorn.

— Admita o que bem lhe parecer — respondeu Preysing.

Em seguida todos se calaram por quase um minuto. Flamm número um folheou discretamente o seu bloco de estenografia, e o ruído delicado das folhas de papel que ela virava ressoou no silêncio da sala de conferências. Preysing parecia um bebezinho zangado; às vezes, sucedia meter a cabeça por trás da fisionomia do diretor-geral um menino cabeçudo e teimoso. Zinnowitz, com a sua caneta de malaquita, desenhava resignados triângulos na capa de um documento.

— Acho que por enquanto não tem sentido nenhum continuarmos a nossa conversa — disse finalmente Gerstenkorn. — Acho que podemos continuar a nos entender por escrito.

Ele se levantou, e a sua cadeira deixou sulcos fundos no tapete espesso, legítimo, da sólida sala de conferências. Mas Preysing continuou sentado. Tirou cuidadosamente um charuto do bolso, cortou-lhe a ponta cerimoniosamente, acendeu, tirou uma tragada e começou a fumar, com uma expressão absorta e profundamente pensativa; suas bochechas se tinham avermelhado, cheias de veiazinhas salientes.

Não há dúvida de que o Diretor-Geral Preysing é um homem honestíssimo, de caráter, bom esposo e bom pai, um homem ordeiro e organizado, da mais consolidada burguesia. Sua vida está toda em ordem, tudo registrado e em cartas, oferecendo um aspecto agradável: uma vida de caixas de fichas, de pastas de documentos, de muitas gavetas e muito trabalho. Preysing nunca cometeu a mínima falta de correção. No entanto, deve existir nele um ponto fraco, onde a vida o quer segurar e abater; uma insignificante inflamação, uma manchinha microscópica na limpeza burguesa de seus trajes, deve existir, no entanto...

Ele não chamou por socorro, nesse momento em que a conferência se interrompeu, apesar de se sentir muito mal, com a sensação de que precisava pedir auxílio e gritar por socorro. Levantou-se com o charuto na boca, segurando-o fortemente entre os dentes, e teve a impressão perfeita de estar bêbado, quando pôs as mãos nos bolsos.

— Que pena — disse ele negligentemente, admirando-se do tom despreocupado dessa frase que roçou subitamente o charuto em sua boca. — É realmente pena. Adiar é o mesmo que terminar. Pois então, ponto final. E agora que os senhores desistiram do negócio, posso dizer-lhes que o contrato com Burleigh & Son está firmado. Desde ontem à noite. Recebi hoje de manhã a notícia.

Tirou a mão do bolso do colete, e nela estava metido o telegrama dobrado: Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann. Foi tomado de um infantil e triunfal prazer de enganar os outros, enquanto dizia aquela mentira enorme, que raiava a fraude, e punha o telegrama sobre o pano verde da mesa. Ele próprio não sabia se queria passar um blefe nos outros ou estava procurando uma boa saída para sua posição desacreditada. Schweimann, o mais indisciplinado dos dois homens da Chemnitz, estendeu o braço, num movimento instintivo para pegar o telegrama. Preysing, muito calmo, abriu o telegrama, dobrou-o novamente, e, com um gesto calmo e refletido, meteu-o de novo no bolso do colete. O Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, fez uma cara de idiota. O conselheiro Zinnowitz soltou um assobio leve e agudo, realmente estranhável, partindo da sua boca sábia de chinês.

Gerstenkorn começou a rir, com acessos de tosse bronquial.

— Meu caro — tossiu ele —, caríssimo! O senhor é muito mais sabido do que parece! Homem de Deus! O senhor nos pregou uma boa! Olhe aqui, precisamos conversar sobre isso!

Gerstenkorn se sentou. O diretor-geral, ainda por alguns segundos com um sentimento de vazio, como se todos os seus ossos tivessem ficado ocos e como se sentisse um esquisito e brando tremor nos joelhos, sentou-se também. Tinha mentido pela primeira vez na vida, e ainda por cima de um modo idiota, completamente simplório e sem base. E com essa mentira — justamente com ela — havia conseguido pela primeira vez, após tantos fracassos, impor-se de novo. De repente ouviu a própria voz a falar, e a falar bem. Sentiu-se tomado de uma estranha e desconhecida embriaguez; ouvia a própria voz, e tudo o que dizia tinha pés e cabeça, energia e visão. O fundador do Grande Hotel olhava fixamente para ele, muito admirado, lá do alto do seu retrato a óleo, com seus olhos pintados cintilantes. A Flamm número um curvara o rosto penugento sobre o bloco de estenografia, e estenografava rapidamente — porque agora, parecia, chegariam a um acordo final, cada palavra proferida se tornava importante.

Até o fim da conferência, que durou ainda três horas e vinte minutos, Preysing conservou-se nesse novo estado de ânimo, que lhe dava a impressão de estar voando. E só quando pegou a caneta-tinteiro de malaquita verde para assinar seu nome ao lado da assinatura de Gerstenkorn, no contrato prévio, notou que as suas mãos estavam úmidas e estranhamente sujas.


10

— O 218 quer que o despertem às nove horas — disse o porteiro ao praticante Georgi.

— Ele vai embora? — perguntou o rapazinho.

— Embora por quê? Qual nada, ele vai ficar.

— Pensei que ia. Ele nunca pediu que o acordassem ... — disse Georgi.

— Pois agora pode acordá-lo — respondeu o porteiro.

E assim, às nove horas em ponto, o telefone tilintou no quartinho ridiculamente minúsculo do Dr. Otternschlag.

Apressado como um homem cheio de ocupações, Otternschlag esforçou-se por libertar-se da nebulosidade dos sonhos e despertar, e em seguida admirou-se de estar acordado.

— O que foi? — perguntou a si próprio e ao telefone. — O que foi?

Depois ficou em silêncio durante alguns minutos, concentrando-se e procurando lembrar-se, com o rosto desfigurado encostado no linho macio do travesseiro do hotel. "Atenção", pensou ele, "é aquele homem, é o Kringelein, esse coitado. Precisamos mostrar-lhe o que é a vida. Ele está à minha espera. Já está sentado à mesa, na sala do café, esperando."

— Vamos levantar-nos e nos aprontar? — perguntou a si mesmo. — Vamos sim — respondeu depois de fazer um esforço, porque ainda tinha uma bela dose de morfina nos ossos. Apesar disso, seu rosto e seus movimentos, enquanto se vestia, pareciam exprimir um certo entusiasmo. Alguém esperava por ele. Alguém precisava dele. Alguém lhe demonstrava gratidão. Com um pé de meia na mão, sentado na beira da cama, começou a fazer planos e decidir o que fazer. Fez o programa para o dia, ocupado como um guia de viagens, um mentor, um homem importante e procurado. A camareira que tinha ido buscar no quarto vizinho ao 218 a vassoura e o balde ouviu, admiradíssima, o Dr. Otternschlag cantarolar com voz incerta uma melodia, enquanto ia escovando os dentes.

Entretanto, Kringelein se encontrava na sala de café, ainda exausto, excitado e animado, após sua cansativa vitória sobre o senhor Diretor-Geral Preysing, no barbeiro; há dez minutos tinha travado relações, com extremo prazer, com o Barão von Gaigern, relações distintas, encantadoras. Gaigern tinha agido depressa. Saíra da noite com a Grussinskaia sem as pérolas, e passara diretamente a uma explicação murmurada, mas dura como granito, com o chofer. Logo em seguida — após tomar banho, fazer ginástica e friccionar o corpo com água de alfazema — atirara-se sobre o senhor provinciano do 70, com o qual ele talvez pudesse arranjar de um modo ou de outro os milhares de marcos de que precisava com mais premência. Estava transbordando de impaciência, uma impaciência radiante de felicidade, tensa e ardente. Havia-se separado da Grussinskaia há uma hora apenas, e já sentia uma saudade louca, uma saudade alegre e delicada. Sua cabeça queria estar de novo com ela, sua pele, seus dedos, seus lábios, tudo a desejava novamente, o mais depressa possível. Gaigern sorveu, faminto de vida e de energia, esse sentimento desconhecido como costumava acolher dentro de si as novas experiências. O élan com que ele aguardava a tentativa com Kringelein era enorme. Com uma rapidez que se poderia chamar de tempo recorde, em quinze minutos conseguiu ganhar uma grande dose de confiança. Esmagado, Kringelein abriu sua pequena alma de funcionário, indecisa, ansiosa de vida e preparada para a morte — e o que ele não disse ou não soube exprimir Gaigern adivinhou. Quando Kringelein, às nove horas e catorze minutos, limpou no pequeno guardanapo do hotel o seu esforçado bigode, os dois já eram amigos.

— Imagine, senhor barão — dizia Kringelein —, imagine que eu tenha recebido por acaso algum dinheiro, depois de ter vivido sempre uma vida modestíssima, realmente modestíssima. Uma pessoa como o senhor barão não pode fazer sequer uma ideia de uma vida assim. É o medo da conta do carvão, o senhor compreende? Ou então não se pode ir ao dentista, vai-se deixando de um ano para outro, e de repente perdem-se quase todos os dentes, não se sabe como. Mas não quero falar dessas coisas. Anteontem comi pela primeira vez na vida caviar, ou coisa parecida. Quando o nosso diretor-geral tem reuniões em casa, manda vir caviar de Dresden, aos quilos. Bem, caviar, champanha e todos esses luxos não são a vida, dirá o senhor barão. Mas o que é a vida? Veja, barão, eu não sou mais um homem moço, sou meio doente, e de repente fiquei com receio de não poder aproveitar a vida. Eu não quero deixar passar a vida sem aproveitá-la, o senhor compreende?

— Nunca deixamos de aproveitar a vida! Ela está sempre ao nosso dispor, nós vivemos e é quanto basta. A gente vai vivendo, é isso — disse Gaigern.

Kringelein fitou aquele moço bonito e animado, e talvez suas olheiras, por detrás dos óculos, se tenham ruborizado um pouco.

— Pois é. Naturalmente, para o senhor, a vida está sempre presente, cada minuto que passa. Mas para gente como nós...? — disse ele baixinho.

— É engraçado. O senhor fala da vida como se ela fosse um trem que vai passando, e que o deixa para trás. Há quanto tempo o senhor anda atrás dela? Há três dias? E ainda não conseguiu pegá-la pela cauda, apesar do champanha e do caviar? O que o senhor fez ontem, por exemplo? Museu Kaiser-Friedrich, Potsdam, à noite teatro? Meu Deus do céu! Do que foi que mais gostou? De que quadro? Como? Não reparou... naturalmente. E no teatro... a Grussinskaia? É... a Grussinskaia — repetiu Gaigern, sentindo no coração, ao pronunciar esse nome, um calor repentino, como se fosse um rapazinho tolo. — O que está dizendo? O senhor ficou triste, era tão poético? Pois é, é mais ou menos isso. Mas tudo isso não tem nada que ver com a vida, senhor diretor. — Dizia "senhor diretor" por pura amabilidade, porque não gostou do nome de Kringelein, ridículo e desataviado; e Kringelein corou, feliz e intrujão. — A vida, a vida é... veja: às vezes encontram-se na rua esses caldeirões de piche, fervendo, em ebulição, soltando fumaça, fedendo como a peste a quilômetros de distância. Mas aproxime-se de um caldeirão desses e conserve a cabeça sobre ele, meta o nariz na fumaceira do alcatrão. É uma coisa estupenda, quente, com um cheiro forte e acre, que quase nos derruba no chão, e as gotas grossas e pretas brilham, e há força ali dentro, nada de doçuras nem de coisas insossas. Ah! Caviar! O senhor quer aproveitar a vida, e se eu lhe perguntar que cor têm os bondes de Berlim, o senhor não sabe, porque nunca reparou neles. Aliás, ouça, senhor diretor: com uma gravata como a sua, o senhor nunca poderá tomar o trem da vida; dentro de um terno como o seu ninguém pode se sentir feliz. Digo-lhe isso abertamente, porque não tem sentido nenhum ficar fazendo cumprimentos. Se o senhor confiar um pouco em mim, para apressar as coisas, precisamos primeiro ir ao alfaiate. O senhor está com dinheiro, livro de cheques... não. Faça o favor de arranjar dinheiro, mesmo! Enquanto isso eu vou buscar o meu carro na garagem. O meu chofer está de licença, deixei que o rapaz fosse ver a noiva em Springe; eu mesmo vou guiar.

Kringelein tinha a impressão de que um vento forte lhe batia nos ouvidos. A observação a respeito da sua gravata — comprada por dois marcos e cinquenta — e o seu bonito terno, na verdade, o haviam magoado. Pôs timidamente a mão no colarinho, largo demais.

— Pois é — disse Gaigern —, é muito grande, e vê-se o botão. Assim não pode, naturalmente!

— É que eu pensei... Eu não queria gastar dinheiro em roupa — murmurou Kringelein, vendo bailar vertiginosamente as cifras em seu caderno de notas. — Em outras coisas eu gasto de boa vontade, mas não em roupa.

— E por que não em roupa? Isso é o principal.

— Porque... não vale mais a pena — respondeu Kringelein, baixinho, com as amaldiçoadas lágrimas soltas a queimar-lhe de novo o canto dos olhos. Que maldição! Ele não podia se lembrar do seu fim próximo sem ficar comovido. Gaigern olhou para ele, descontente. — Não vale a pena, realmente... quero dizer... não terei por muito tempo a oportunidade de usar roupas novas. Pensei que... que as velhas ainda fossem servindo — sussurrou com um sentimento de culpa.

"Meu Deus, será que todos os homens têm uma xícara de chá com veronal preparada para tomar?", pensou Gaigern, a quem as carícias dessa noite haviam tornado sensível.

— Não se deve calcular assim — disse ele amavelmente. — Não se deve calcular, Herr Kringelein. Os cálculos nos saem errados. No momento adequado o senhor deve estar com a disposição adequada. Eu sou um homem do momento, e tenho-me dado bem com isso. Vamos, ponha no bolso algumas notas de mil marcos, e depois veremos se a vida não é uma coisa divertida. Avante!

Kringelein se levantou, obediente; tinha a sensação de rodopiar perigosamente dentro do turbilhão de uma cratera. "Algumas notas de mil marcos", pensou ele, como se estivesse atrás de um nevoeiro. Já estava acompanhando Gaigern, enquanto seus pensamentos ainda resistiam, e as paredes da sala de café dançavam à sua volta. Os pés desenraizados de Kringelein, metidos nas botinas de cano alto, iam tropeçando passivamente pelos corredores do hotel; ele sentia medo. Sentia um medo doido de Gaigern, das despesas, do alfaiate caro, tinha medo do automóvel cinza-claro, em que se meteram no assento da frente, perto da direção, tinha medo da vida que, no entanto, não queria deixar de aproveitar. Apertou com energia seus molares estragados, calçou as luvas de tricô, e começou seu dia feliz.

O Dr. Otternschlag, que às dez para as dez andava ao longo das paredes do hall, à procura de Kringelein, recebeu do porteiro uma carta entregue pessoalmente.

Prezado Dr. Otternschlag! — estava escrito. — Infelizmente, por motivos imprevistos, vejo-me impedido de comparecer ao nosso encontro. Saudações respeitosas do amigo At. Obr. Otto Kringelein.

O estilo era de Kringelein, ainda, mas sua ortografia tinha-se modificado um pouco. Na escrita fluente de guarda-livros, haviam-se imiscuído uns traços informes, e os pingos dos ii pareciam querer voar como balões que se desprendem do fio para estourar nos céus, solitários e com um pequenino e trágico estampido que ninguém ouve.

O Dr. Otternschlag ficou com a mão estendida, segurando a carta. O hall era um deserto, cheio de horas infindáveis e vazias. Passou pelo balcão dos jornais, pelas flores, por pessoas que saíam do elevador, pelas colunas, até chegar ao seu lugar habitual. "Horrível", pensou ele. "Terrível. Medonho." As pontas de seus dedos, plúmbeas e cor de fumo, lhe pendiam das mãos, e com o olho cego ele fitava a mulher da limpeza que, em desacordo com os regulamentos, começava a varrer com serragem úmida, em pleno dia, o hall do Grande Hotel.

É intensa a angústia que Kringelein sente, de pé, na sala de provas da enorme alfaiataria para homens. Três elegantes cavalheiros estão ao seu redor, ocupadíssimos, e doze Kringelein deploráveis refletem-se nos espelhos, aproximando-se uns dos outros em ângulos agudos. Um senhor elegante está ao lado, observando Herr Kringelein com as pálpebras meio cerradas, um olhar de conhecedor, e murmurando palavras incompreensíveis. Sentado num banquinho estofado, sob os retratos de artistas de cinema incrivelmente belos, está o Barão Gaigern, batendo as luvas pespontadas na palma da mão, e desviando de Kringelein o olhar, como se se envergonhasse dele.

Começaram a vir à luz coisas lamentáveis, segredos do guarda-livros Otto Kringelein, de Fredersdorf. Seus suspensórios estão rasgados, costurados, rasgados de novo, e finalmente muito mal consertados, com um barbante. O colete, que lhe ficara muito largo, fora ajustado por Anna, que lhe fez nas costas duas pregas costuradas ao enchimento por meio de pespontos.

Kringelein usa as camisas de seu pai, grandes demais para ele, pelo que meteu umas ligas na parte superior dos braços, para arregaçar as mangas compridíssimas. Usa abotoaduras de tempos pré-históricos, redondas, do tamanho de discos de chapa de fogão, tendo no centro uma esfinge de esmalte vermelho diante de uma pirâmide de esmalte azul. A gigantesca camisa é de um tecido grosso de cor indefinível, tendo na frente apenas um pedacinho de zefir listrado, como uma pequena vitrina na fachada principal. Debaixo da camisa de lã espia ainda qualquer outra coisa também de lã, um coletinho já no fio, cerzido com pontos grosseiros. Por baixo disso, um pedacinho de pele de gato, o que parece ser bom contra dores de estômago e calafrios misteriosos. Os cavalheiros elegantes não mudam de expressão — Kringelein teria preferido que fizessem caçoada dele ou o consolassem.

— Nunca me incomodei muito com a moda. Sou um homem antiquado — diz ele em tom implorante, desculpando-se diante da cortesia gelada dos homens. Ninguém lhe responde. Vão lhe tirando as camadas, uma após outra, como de uma cebola. É um tanto cruel o que está sucedendo com Kringelein, completamente indefeso. Pouco a pouco ele vai se sentindo mal, como na sala de operações, pois agora também há uma claridade vítrea nas coisas, e tudo parece estar muito próximo dele. Depois, os três cavalheiros começam a vesti-lo.

Gaigern se anima, e dá conselhos.

— Fique com isso — diz ele; e —, não fique com isso.

Parece que não é possível contrariar as suas decisões. Kringelein olha de lado para os papeluchos com o preço, presos às peças de vestiário, reparando sempre apenas no preço; não ousa fazer perguntas, a princípio, mas por fim se enche de coragem e começa a querer saber os preços.

Assusta-se de tal modo que tem vontade de sair correndo; a sala de provas parece uma cela com quatro guardas severos e paredes de espelho. Kringelein está todo suado, apesar de o terem libertado de seus agasalhos de lã, que estão enrolados num montinho sobre uma cadeira, com um aspecto de ilimitada miséria, repulsivos. De repente, eles deixaram de pertencer a Kringelein; causam-lhe nojo tais peças de vestuário, remendadas, suarentas e de cor indefinível, essa roupa de um pobre-diabo. Mas, de um momento para outro, qualquer coisa se passa com ele. Fica gostando da camisa de seda que o forçaram a vestir.

— Ah! — diz Kringelein, com a cabeça inclinada e a boca aberta, como se fosse ouvir algum segredo. — Ah, ah!

Sua pele se alegra e trava amizade, gostosamente, com a camisa de seda de delicado padrão. O colarinho se ajusta exatamente ao pescoço, não esfrega, não é nem largo nem apertado demais, a gravata nova cai lisa e macia sobre o peito de Kringelein, onde o coração bate agora como em misteriosa festa — forte, um tanto dorido, mas aliviado. Agora colocam diante dele meias e sapatos, com grande solicitude; Gaigern explicou, em poucas palavras, que o senhor diretor está enfermo, e então trazem dos quatro andares da casa de artigos para homens tudo o que um homem distinto precisa para se vestir. Kringelein envergonha-se medonhamente de seus pés; de súbito tem a impressão de que toda a miséria e o aperto da sua vida estão visíveis nesses pés com joanetes crescidos, pelo que procura se esgueirar com as novas meias e botinas para um canto, coloca suas costas curvas entre si mesmo e os outros, como uma parede, e começa, sem nenhuma prática, a lutar com os cordões. Em seguida vestem-lhe um novo terno, escolhido pelo barão.

— O senhor diretor está com uma aparência maravilhosa — diz um daqueles cavalheiros. — Assenta-lhe como se fosse feito sob medida.

— Não é preciso modificar nada — diz o segundo.

— Perfeito. Nós temos poucos fregueses com um corpo tão esbelto — afirma o terceiro.

Empurram Kringelein para a frente do espelho, e o obrigam a girar no seu eixo como se fosse uma boneca de madeira, magra e paciente.


11

 

E, justamente no momento em que Kringelein voltou do espelho para o seu interior, sentiu pela primeira vez, como um pressentimento, que estava vivendo. Sim, tinha a sensação de existir, conhecia-se a si mesmo, com um abalo tão violento como se o atingisse um raio. Nesse momento, um homem estranho, de porte delicado e distinto, aproximou-se dele com expressão confusa, um homem que era ele próprio, de modo extremamente íntimo, o verdadeiro Kringelein, o Kringelein enterrado, de Fredersdorf — mas isso logo passou. No instante seguinte já não era novidade, o milagre da transformação já se dera.

Kringelein respirou profundamente, com energia, porque parecia querer despertar em seu corpo uma dorzinha aguda.

— Acho que este terno me fica bem, não? — perguntou ele, de modo infantil, a Gaigern.

O barão ainda fez mais; aproximou-se e, com suas próprias mãos, grandes e quentes, arrumou o novo terno nos ombros de Kringelein.

— Sou de opinião que este terno é o suficiente — disse Kringelein aos três cavalheiros.

Apalpou o tecido com os dedos, às escondidas, porque entendia bastante de tecidos, isso se sabia em Fredersdorf, mesmo quando só se trabalhava no escritório.

— É um bom tecido; sou conhecedor — afirmou ele, respeitosamente.

— Artigo inglês legítimo. Nós mandamos trazê-lo diretamente de Londres, de Parker Brother & Co. — respondeu o senhor de pálpebras fechadas.

"Preysing não usa tecidos assim", pensou Kringelein. Os ternos de Preysing costumavam ser daquele mesmo tecido sólido de estamenha cinzenta, de que a fábrica ainda possuía um estoque antigo, e todos os anos, pouco antes do Natal, era vendido aos empregados por baixo preço. Kringelein decidiu-se. Tomou posse desse terno, enfiando ambas as mãos nos bolsos novos e limpos.

Seu medo transformou-se repentinamente na felicidade de comprar e de possuir; pela primeira vez na vida Kringelein tem a sensação de vertiginosa leveza que acompanha o ato de gastar dinheiro. Ele passa através dos muros, por trás dos quais ele morou toda a vida. Compra, compra, sem perguntar o preço, vai comprando. Apalpa tecidos, sedas, alisa abas de chapéus, experimenta coletes, gravatas, cintos, coloca uma cor perto de outra e sorve com delícia a combinação harmoniosa de tons.

— O senhor diretor tem um extraordinário bom gosto — diz um dos cavalheiros.

— Um gosto delicado — afirmou o outro —, correto, distintíssimo.

Gaigern assiste a tudo sorrindo, um tanto impaciente, e faz elogios. Caceteado, olha as próprias mãos; a direita está tão vazia, desde que ele deu o anel de sinete de presente... Disfarçadamente, leva-as até o rosto, para ver se ainda conservam um pouco do perfume dessa noite, agridoce, ao mesmo tempo perigo e calma, Neuwjada, a florzinha que cresce nas campinas.

Kringelein compra um terno marrom, muito confortável, de um tecido cardado inglês, uma calça cinza-escura, com delicadas listras claras, que combina com um paletó estreito; compra também um smoking, no qual é preciso mudar apenas alguns botões; roupa de baixo, camisas, colarinhos, meias, gravatas, uma capa igual à de Gaigern, um chapéu macio, espantosamente leve, com a marca dourada de uma firma de Florença, e finalmente, pegando um par de luvas de camurça pespontadas, iguais às de Gaigern, dirige-se à caixa. Ali estão a fazer uma conta amabilíssima — Kringelein fala com rapidez e facilidade, porque ouve o jargão dos livros-caixa, tão seu conhecido, desde o livro-razão ao livro-matriz. Paga mil marcos à vista, e o resto em três prestações.

— Então! — exclamou Gaigern, satisfeito.

Uma fila de dorsos inclinados, numa saudação, acompanha Kringelein, encantado e transformado, até a porta de espelhos da loja. Lá fora faz sol, mas está frio. O ar tem um sabor de vinho gelado, acha Kringelein, de passagem. Até agora ele sempre se arrastou. Agora ele anda. Tem que dar três passos, da entrada da loja de primeira ordem até a limusine cinza-clara, e ergue três vezes, do calçamento da rua, as solas novas dos seus sapatos.

— Está satisfeito? — pergunta Gaigern, rindo-se e dando a deixa. — Está notando alguma coisa? Sente uma sensação agradável?

— Fantástico! Maravilhoso! Ótimo! — replica Kringelein, tomando a expressão de um homem experimentado, sentado ao volante do carro.

Tira os óculos e esfrega com o polegar e o indicador a beirada dos olhos; é um gesto cansado e que lhe é habitual.

Vem-lhe ao pensamento a ideia de que não estará mais vivo, quando vencer a última prestação.

 

Gaigern sentia a impaciência nos dedos, causava-lhe comichão como ácido carbônico, entre as mãos e a direção. Nos cruzamentos das ruas havia lâmpadas vermelhas, verdes e amarelas, guardas que o ameaçavam com a mão, sorridentes. O carro passava em disparada pelas casas, pelas árvores, colunas de cartazes, ajuntamentos de pessoas nas esquinas, pelas carroças de frutas, muros com cartazes e velhas senhoras amedrontadas, que, com passos miúdos, andavam no leito da rua sem observar o sinal de trânsito, velhas senhoras vestidas de preto e de saias compridas, em pleno mês de março. O sol brilhava, úmido e amarelo, no asfalto. Quando um ônibus pesadão impedia o caminho, o carrinho de quatro lugares gritava com duas buzinas; parecia o latido de cães excitados.

Em Fredersdorf havia muita gente que nunca tinha andado de automóvel. Anna, por exemplo, nunca tinha andado de carro. Mas Kringelein estava andando. Apertou os lábios com força, inteiriçou os músculos sob as axilas, e seus olhos ficaram lacrimejantes pelas correntes de ar. Assustava-se nas curvas, e seu coração arfava sob a camisa de seda nova. Era o mesmo prazer medroso da infância, quando na feira anual de Mickenau, no outono, se podia andar de carrossel três vezes seguidas, por um groschon.

Kringelein arregalava os olhos para ver Berlim, que rapidamente se entremostrava sob aspectos deformados. Ainda se recordava bem da grande cidade. A Porta de Brandenburgo, por exemplo, reconheceu-a de longe, assim como a Gedaechtniskirche, à qual dirigiu um olhar respeitoso.

— Para onde estamos indo? — gritou ele ao ouvido direito de Gaigern. O ronco do motor lhe parecia fortíssimo, e ele se sentia no meio de estrondos e de uma tempestade.

— Para os arredores da cidade, a fim de almoçar. Para lá do Avus — respondeu Gaigern com jovialidade.

A rua parecia penetrar dentro do carro, cada vez com mais velocidade. Chegaram às proximidades da torre da emissora. Kringelein já estivera ali no dia anterior, com o Dr. Otternschlag, numa noite nublada, cansado, impossibilitado de receber novas impressões. Os estranhos átrios, lisos, novos e por terminar, na parte exterior, o haviam acompanhado nos sonhos e, agora, a realidade e o sonho se apresentavam em duas camadas sobrepostas, um tanto ameaçadoras e incompreensíveis.

— Ainda vão terminar isso? — gritou Kringelein apontando para os átrios da exposição.

— Já está pronto — foi a resposta.

Kringelein admirou-se. Era tudo nu como uma fábrica, mas não feia, como a de Fredersdorf.

— Que cidade engraçada — exclamou ele, sacudindo a cabeça e ficando ainda mais vesgo.

Levou um choque com um solavanco do carro, e a pele do seu crânio se encolheu, mas foi coisa sem importância. É que Gaigern havia parado na porta norte do Avus, e em seguida continuaram de novo a viagem.

— Agora nós vamos mesmo — afirmou Gaigern; e, antes que Kringelein pudesse perceber do que se tratava, ele partiu.

Começou com uma corrente de ar que foi esfriando lentamente, e que batia contra o rosto de Kringelein cada vez com mais força, como bofetadas. O carro começou a cantar com um som grave que se foi elevando, e ao mesmo tempo aconteceu uma coisa pavorosa com as pernas de Kringelein. Ele tinha a sensação de que elas se enchiam de ar, cujas bolhas lhe subiam aos joelhos, que pareciam querer estourar. Por vários segundos incríveis ele não podia respirar mais, e durante um instante pensou que iria morrer.

— Isto é a morte. Vou morrer.

Com o peito comprimido, aspirava o ar com dificuldade; o carro deslizava por coisas irreconhecíveis, vermelhas, verdes, azuis; árvores que se atiravam de encontro aos seus óculos; depois, um ponto vermelho se transformou em um automóvel e, logo a seguir, caiu no vazio, por trás do seu carro — e Kringelein continuava sem conseguir respirar. Seu diafragma conhecia agora novas sensações, nunca antes imaginadas. Kringelein tentou virar o rosto em direção a Gaigern, e, vejam só, conseguiu virá-lo sem se machucar. Gaigern estava meio inclinado sobre a direção, e tinha calçado as luvas de camurça, mas sem abotoá-las; por qualquer motivo, isso dava a sensação de calma e ausência de perigo. Justamente quando o pedacinho de estômago que restava a Kringelein queria começar a subir à garganta, Gaigern se pôs a rir com os lábios fechados. Apontou com o queixo, sem tirar os olhos do fuso sibilante da estrada do Avus, para um lugar qualquer, e Kringelein lançou um olhar obediente. Como não era tolo, compreendeu, após refletir um pouco, que havia sido o marcador dos quilômetros, diante dele. O ponteirinho vibrava de leve, mostrando o número 110. "Que diabo!", pensou Kringelein. Engoliu seu amedrontado pomo-de-adão e inclinou-se para a frente, entregando-se ao impulso da velocidade. Súbito tomou posse dele o prazer da sensação de perigo, um prazer penetrante e assustador. Mais depressa! pedia dentro dele um novo Kringelein, desconhecido e delirante. O carro concordou: 115. Durante alguns segundos parou nos 118, e Kringelein desistiu, de uma vez, de respirar. Tinha vontade de se precipitar, sibilando, nas trevas. "Avante, para a frente, explosão, choque, ponto final da corrida desenfreada!", era o pensamento que lhe ocorria. "Nada de leito de hospital," pensou; "é preferível uma fratura no crânio." À passagem do carro, em disparada, ainda continuavam a bramir os anúncios; as distâncias entre eles foram aumentando; depois, os trapos cinzentos ao lado da estrada se transformaram em bosques de pinheiros. Kringelein via árvores que se iam aproximando e em seguida se desviavam do carro. Era como no carrossel de Mickenau pouco antes de parar. Nas tabuletas de anúncios ele lia agora nomes de marcas de óleos, de pneus e de automóveis; a correnteza de ar tornou-se mais branda, e deslizava por sua garganta adentro. O ponteiro caiu para 60, a agulha oscilou um instante ainda, entre 50 e 45, e eles deixaram o Avus pela porta sul, desfilando burguesmente por entre as villas do Wannsee.

— Puxa, agora me sinto mais leve! — disse Gaigern, abrindo o rosto num sorriso. Kringelein tirou as mãos das almofadas de couro em que se agarrara até então, e foi relaxando com todo o cuidado os músculos contraídos das mandíbulas, dos ombros e dos joelhos. Sentia-se completamente exausto e absolutamente feliz.

— Eu também — respondeu ele, e estava dizendo a verdade.

Falou muito pouco enquanto estiveram sentados no terraço envidraçado, completamente vazio, de um restaurante à margem do Wannsee, olhando os barcos a vela cobertos com lonas, balançando à tona da água. Precisava refletir sobre a sensação que experimentara, o que não era assim tão fácil. "O que é a velocidade?", pensou. "Não a vemos nem tocamos, e isso de medi-la deve ser uma impostura. Como é possível que ela vá passando, e seja mais linda do que a música?" Ainda sentia tudo girando, mas era uma sensação agradável. Tinha trazido o frasquinho de Bálsamo de Vida do Dr. Hundt, mas não tomou o remédio.

— Preciso agradecer-lhe este passeio maravilhoso — disse ele, procurando com ar solene expressões escolhidas, de acordo com os ambientes em que estava vivendo agora.

Gaigern, que só comia alimentos baratos, espinafre com ovos, sacudiu a cabeça: — Eu me divirto com essas coisas — disse ele. — O senhor sente isso pela primeira vez. É raríssimo encontrarmos pessoas que tenham uma sensação pela primeira vez...

— Mas o senhor também não dá a impressão de ser um homem blasé, se me permite esta observação — replicou Kringelein com desembaraço.

Já se sentia à vontade em suas novas roupas, já estava em casa dentro da sua camisa de seda; sentava-se de outra maneira, comia de outra maneira, e suas mãos, que lhe pareciam mais delgadas, avançando pelos punhos da camisa, com as unhas feitas por uma bonita manicura, no subterrâneo do hotel, lhe davam enorme prazer.

— Meu Deus do céu, eu, blasé? — exclamou Gaigern, satisfeito. — Não. De modo nenhum. Mas é que gente como eu tem uma vida cheia. — Não pôde deixar de sorrir. "O senhor tem razão. Para gente como eu também existem coisas inteiramente novas, que se experimentam pela primeira vez, coisas engraçadas...", acrescentou consigo mesmo.

Bateu de leve seus bonitos dentes uns nos outros, pensando na Grussinskaia. Seus ossos estavam cheios de ávida impaciência. O tempo que tinha de esperar para que pudesse ter de novo em seus braços a figurinha delicada, tão necessitada de amparo, e ouvir novamente seu gorjeio tristonho de passarinho, parecia-lhe uma extensão imensurável e deserta. Deu um prazo de três dias a si próprio, sapateando, interiormente, de impaciência, para arranjar de qualquer modo alguns milhares de marcos que acalmariam seus companheiros e lhe facultariam a viagem a Viena. Por enquanto, empenhava-se, com a maior amabilidade, em agradar Kringelein, com a esperança em qualquer solução favorável.

— E agora, qual é a continuação do programa? — perguntou Kringelein, dirigindo para ele uns olhos fiéis e agradecidos. Gaigern simpatizava com esse provinciano calmo, sentado diante dele como uma criança durante a distribuição dos presentes de Natal. A amabilidade e a simpatia humanas estavam de tal modo enraizadas na personalidade de Gaigern, que suas vítimas recebiam sempre uma boa parte do seu calor.

— Agora vamos voar — disse ele, com o tom acalentador de uma ama de leite. — É muito agradável e não tem o menor perigo, é muito menos perigoso do que uma corrida desenfreada de automóvel.

— Corremos perigo, há pouco? — - perguntou Kringelein, admirado.

O medo que sentira parecia-lhe agora quase um prazer, depois de vencido.

— Sem dúvida — afirmou Gaigern. — Cento e dezoito quilômetros não é brincadeira, e a estrada estava úmida... Parece incrível que, com um tempo destes, ela fique tão escorregadia. Não há dúvida de que o carro corre sempre o risco de derrapar. A conta — disse, voltando-se com cortesia para o garçom, e pagando seu espinafre com ovos. Sobravam-lhe na carteira apenas vinte e quatro marcos.

Kringelein também pagou; havia tomado apenas umas colheradas, de sopa, porque não confiava ao seu estômago coisas excitantes e indigestas. Quando meteu no bolso a carteira que trouxera ainda de Fredersdorf, teve a visão fugaz e agora pouco importante do seu caderno de despesas, com capa de oleado. Até esse dia havia anotado suas despesas, Pfennig por Pfennig, desde os nove anos de idade, em caderninhos assim. Agora acabou-se. Nunca mais faria isso de novo. Mil marcos numa tarde não era possível anotar. Uma parte da ordem do mundo concebida por Kringelein tinha se destruído, numa derrocada silenciosa e sem estardalhaço. Kringelein, que Gaigern foi seguindo pelo terraço vazio do restaurante até o carro, movia os ombros com delícia, sob o novo sobretudo, o novo terno e a nova camisa. Agora, por onde quer que ele passasse, havia indivíduos que se inclinavam. "Bom dia, senhor diretor-geral", pensou ele, vendo-se colado a uma parede, a parede caiada de verde-cinza do segundo andar dos escritórios de Fredersdorf. Guardou no bolso os óculos ao sentar ao lado de Gaigern, expondo os olhos nus à fresca e cintilante atmosfera de março, e com um vivo sentimento de simpatia e de confiante gratidão ouviu o ruído do motor.

— A Chaussee ou o Avus de novo? — perguntou Gaigern.

— O Avus, de novo — respondeu Kringelein. — E na mesma velocidade — acrescentou em voz baixa.

— Ah!... O senhor tem coragem — disse Gaigern, pondo o pé no acelerador.

— É... coragem eu tenho — respondeu Kringelein, com os músculos tensos e o corpo inclinado para a frente, de lábios entreabertos, preparado para entregar-se inteiramente à vida.

 

Kringelein, debruçado na grade branca e vermelha do aeroporto, procura habituar-se a esse mundo assombroso que, desde a manhã desse dia, vem ao encontro dele. Ontem — há um século — ele subia no elevador, para ir ao restaurante da torre da emissora, fatigado, sonolento, imerso em sonhos; não estava se divertindo, e os comentários pessimistas do Dr. Otternschlag ainda tornavam tudo mais problemático e fantasmagórico. Anteontem — há mil anos — ele era um auxiliar de guarda-livros no escritório de contabilidade da Algodoeira Saxônia S.A., de Fredersdorf, um empregadinho enfezado, entre trezentos outros empregadinhos enfezados, de terno de sarja cinzenta e com um ordenado minguado, do qual era preciso tirar ainda o desconto para a Caixa de Previdência. Hoje, agora, ele está à espera do piloto que, por um alto preço, vai levá-lo em um enorme voo circular, em viagem especial. É um desses pensamentos impossíveis de serem levados até as últimas consequências, apesar de Kringelein se sentir animado e concentrado como nunca.

É uma enorme mentira, a sua coragem. Tem um medo de cão, um medo horrível do divertimento que o espera. Ele não quer voar, não quer voar de modo algum. Tem desejos de voltar para casa — não, para Fredersdorf não, mas para o hotel, para o seu quarto 70, com os móveis de mogno e a colcha de seda; gostaria de estar deitado e não precisar voar.

Quando Kringelein saiu de casa para ir à procura da vida, pairava diante dele uma ideia nebulosa e informe; mas era uma coisa acolchoada e fofa, com pregueados e franjas, e arabescos enormes; leitos macios, pratos cheios, mulheres sensuais, em quadros e reais. Agora, que está experimentando a vida, e que, aparentemente, mergulhou em cheio nela, tudo se apresenta sob um aspecto diferente; é preciso satisfazer a uma série de exigências, a ventania corta-lhe as orelhas, e é preciso forçar paredões de angústias e de perigo para conseguir chegar a uma doce e embriagante gota de gozo da vida. "Voar", pensa Kringelein. Ele conhece a sensação do voo que se tem em sonhos. Seu sonho se apresenta assim: Kringelein se encontra no tablado da sala de Zickenmeyer; ao seu redor está o coral da associação, e ele canta um solo. Ouve sua bonita voz de tenor, canta notas agudas, cada vez mais agudas, cada vez mais. É facílimo, ele não precisa fazer nenhum esforço, é um prazer puro, fácil e naturalíssimo.

Finalmente, ele se deita no som mais agudo e suave, e voa sobre ele, acompanhado pela música das nuvens. A Associação Coral o acompanha com o olhar; primeiro, ele sobrevoa ainda abaixo do telhado local de Zickenmeyer, depois voa completamente só, à sua volta não se vê mais nada, e só bem no finzinho ele percebe que tudo não passou de um sonho, e que precisa voltar ao seu leito matrimonial, onde Anna dorme o sono deletério dos seus quarenta anos maltratados e rixentos. A queda é medonha, e o despertar é um grito na escuridão do quarto abafado, com as pequeninas vidraças, os armários cheirando a naftalina e o pequeno fogareiro de ferro, apagado, com uma panela cheia de água em cima.

Kringelein põe-se a piscar. "Voar", pensa ele retornando ao Aeroporto de Tempelhof. Ali também há cores fortes, como na torre da emissora e ao longo do Avus; amarelo, azul, vermelho e verde, em tons bem vivos. Torres misteriosas erguem-se no ar, tudo é simples e econômico, um vento cheio de poeira sopra sobre as manchas de asfalto do outro lado da grade, e as sombras das nuvens se apressam, para atingir a pista de decolagem. O pequeno aparelho que vai decolar já está pronto, três homens estão atarefados em torno dele; o motor ronca, sua hélice gira apenas por brincadeira. Diante de suas rodas baixas há uns blocos, suas asas prateadas, com estrias, estão vibrando. Outros pássaros pousam, saudados pelos gritos roucos de uma sereia — é assim que a fábrica de Fredersdorf chama, às sete horas da manhã — ou talvez tudo isso tenha sido apenas um sonho?... Outros pássaros se elevam, baixam pesados à terra, e erguem-se, muito leves, ao ar, ora cor de chumbo prateado, ora dourados, com firmes asas de madeira, e outros ainda, brancos, enormes, com quatro asas, e três hélices girando. O campo de pouso é tão grande, tão estranhamente silencioso... Os homens que estão ali são todos esbeltos, queimados de sol, alegres e calados, envolvidos em seus ternos folgados e seus barretes justos. Só os aparelhos têm voz, e latem com um latido rouco, como cães enormes, quando vão rodando sobre o campo.

Gaigern aproxima-se com o piloto, um senhor amável, com as pernas em O de antigo oficial de cavalaria.

Gaigern parece um cliente habitual, todos o cumprimentam e o conhecem.

— Vai partir logo — anuncia Gaigern. Kringelein, que já sabe por experiência própria o que significa o "partir" de Gaigern, leva um susto. "Socorro", pensa ele, "socorro, não quero voar!", mas não o diz, de forma alguma.

— Já vamos decolar? — perguntou com ar de homem experimentado, orgulhando-se da palavra que está usando pela primeira vez na vida.

Depois, Otto Kringelein senta-se, amarrado pela cintura com uma correia, em uma cômoda cadeira de couro, e arregala os olhos para o céu azul-cinza de março. Ao seu lado está Gaigern, assobiando baixinho, e isso o consola, nesse momento de debilidade total.

No começo, não é diferente de uma viagem de automóvel, aos solavancos; depois, o aparelho começa a fazer um ruído, rápido, infernal. De repente bate no solo com um solavanco, para trás, e eleva-se no ar. Não paira no espaço, tem mais dificuldades do que o tenor Kringelein, a cantar e a voar no seu sonho; o aparelho salta por impulsos no ar, como sobre degraus de vácuo; salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai. Agora a sensação desagradável não é nas pernas, como na viagem a cento e vinte quilômetros por hora, mas na cabeça. Os ossos do crânio de Kringelein zumbem, tornam-se muito delgados, completamente vítreos, de modo que ele precisa fechar os olhos por um momento.

— Está enjoado? — pergunta Gaigern gritando em seu ouvido, pensando se seria possível, ali no avião, conseguir que Herr Kringelein lhe desse cinco mil marcos, ou mesmo três mil, ou que seja tudo pelo amor de Deus, cento e cinquenta que fossem, que já dariam para pagar a conta do hotel e a viagem até Viena. — Está se sentindo mal? Acha que basta de voar? — pergunta ele com muita cortesia.

Kringelein faz um violento e corajoso esforço para dominar-se, e responde um animado "não". Abre os olhos, a cabeça zune, vítrea; prende-os primeiro ao chão do avião, como a um ponto firme, depois vai subindo, até chegar à vidracinha oval da parede fronteiriça. Lá estão de novo os números e as agulhas trêmulas. O piloto vira o rosto de traços fortes para trás, e sorri para Herr Kringelein como para um bom amigo e camarada. Kringelein recebe esse olhar como um tônico e uma honra.

— Trezentos metros de altitude, cento e oitenta de velocidade! — grita Gaigern ao seu ouvido, que zune e crepita.

De repente, tudo se torna macio, leve e liso. O aparelho não se eleva mais, vai cantando com a voz metálica dos seus motores, fazendo uma curva, deslizando como um pássaro sobre a cidade, agora pequenina. Kringelein cria coragem e olha para fora.

Primeiro vê as asas estriadas, expostas ao sol, que parecem ter criado vida, e, bem embaixo, Berlim, dividida em quadradinhos, cúpulas verdes, uma ridícula estação, em meio à exposição de brinquedos. Uma manchinha verde é o jardim zoológico, uma manchinha cor de chumbo, com quatro pontinhos brancos de velas, é o Wannsee. Os limites do pequenino mundo ficam bem longe, o terreno vai subindo em suaves elevações, há também montanhas, florestas, terras lavradas pardacentas, Kringelein abre num sorriso infantil os lábios comprimidos. Está voando. Conseguiu suportar o voo. Sente-se muito bem, e tem uma sensação diferente de si próprio, enérgica e nova. Pela terceira vez lhe acontece, nesse dia, perder o medo, e ver esse medo transformar-se em prazer.

Toca de leve no ombro de Gaigern, e em resposta ao seu olhar inquiridor diz qualquer coisa que o ruído dos motores devora.

— Não é tão mau assim — respondeu Kringelein. — Não é preciso ter medo, não é nada mau.

Com essas palavras, Kringelein refere-se não só à conta elevada do alfaiate, à viagem ao longo do Avus e ao voo — mas a tudo isso junto, e mais alguma coisa; é que ele vai morrer em breve e, com a morte, afastar-se desse pequeno mundo, abandonar o grande medo, elevar-se, se for possível, acima dos aviões.

 

As ruas por trás do campo de Tempelhof, quando eles vieram de volta, falaram ao coração do novo Kringelein. Assemelhavam-se às melancólicas ruas de Fredersdorf, com as chaminés crescendo por trás dos caminhos, e ele alargou as narinas para sentir o cheiro de cola da seção de imprensagem dos tecidos. Com vivacidade duplicada, ele sentia, ao avistar essas pobres ruas, que usava um sobretudo novo, e se encontrava num automóvel. Procurou palavras que exprimissem esse duplo sentimento, mas não encontrou. Somente na porta do hangar ele se animou de novo — tiveram de esperar meio minuto —, o vôo ainda lhe pesava nos membros como uma silenciosa mas forte embriaguez, e, ansioso e amável, perguntou:

— Quais são agora os planos do senhor barão?

— Agora preciso cuidar de negócios particulares, no hotel. Tenho um encontro às cinco horas. Venha comigo, vou dançar um pouquinho — acrescentou ao perceber nos olhos de Kringelein uma expressão de desânimo e de real aflição.

— Muitíssimo obrigado. Acompanho-o de bom grado. Gosto de ver os outros dançar. Infelizmente não sei dançar.

— Ora, qual! Qualquer pessoa sabe dançar! Kringelein foi pensando nisso até chegarem à Friedrichstrasse.

— E depois? Que se poderia fazer depois? — perguntou insistente, na sua insaciabilidade.

Gaigern não deu resposta, mas acelerou a marcha até o próximo solavanco, quando travou o freio diante da lâmpada vermelha da Leipzigstrasse.

— Diga uma coisa, senhor diretor — perguntou ele, durante a parada do carro. — O senhor é casado ou não?

Kringelein ficou a refletir por tanto tempo que, enquanto isso, as lâmpadas amarela e verde se acenderam, e já estavam de novo a caminho, quando ele respondeu:

— Fui casado. Já fui casado, senhor barão. Separei-me de minha mulher. Pois é. Conquistei a liberdade, se posso falar assim. Há casamentos, senhor barão, em que cada cônjuge é um peso para o outro, um chega a enojar-se do outro, não pode ver a cara do outro sem se enfurecer. Não podemos ver o pente com os fios de cabelo da mulher, de manhã cedo, sem que isso nos estrague o dia; isso não é justo, é claro, ela não tem culpa de que seus cabelos caiam... Ou quando se quer ler um pouco à noite, a mulher se põe a falar sem parar, e quando não fala, canta na cozinha. E se a gente gosta de música, essa gritaria nos deixa doente. E toda noite, quando a gente está cansado, e quer ler, ouve-se a mesma cantilena: "Vá cortar lenha para amanhã cedo". Custa apenas oito Pfennige a mais cada feixe de lenha picado, o que faz dois Pfennige por dia, mas isso não é possível, de modo nenhum. "Você é um gastador", diz a mulher, "se a gente fosse pela sua cabeça, acabaria esticando as canelas." E olhe que o sogro tem um armazém que a mulher vai herdar, de modo que ela está com o futuro garantido. Então achei melhor conquistar minha liberdade. Minha mulher nunca combinou comigo, essa é a verdade, porque eu sempre gostei das coisas boas, e isso ela nunca me pôde perdoar. Quando meu amigo Kampmann me deu de presente cinco velhas coleções da revista Kosmos, minha mulher vendeu-as como papel velho; recebeu por elas catorze Pfennige. É este o retrato acabado dessa mulher, senhor barão. Agora eu me separei dela. Não faz muita diferença, umas semanas a mais ou a menos, já que ela tem mesmo que se arranjar sem mim. Então ela poderá ir de novo às lojas, vender aos empregados solteiros arenques enrolados e salsichas para o jantar. Foi assim que eu a conheci. Talvez ainda encontre outro trouxa. Quando me casei com ela, eu era completamente idiota, não fazia nenhuma ideia da vida, nenhuma ideia do que é uma mulher. Desde que cheguei a Berlim, e estou vendo tantas senhoras lindas, elegantes e amáveis, é que meus olhos estão se abrindo. Mas para essas coisas já é tarde demais.

 

Tal confissão, que partiu do fundo do coração de Kringelein, durou desde a Leipzigstrasse até a Unter den Linden.

— O dia inteiro não é noite — replicou Gaigern, meio distraído, porque estava atravessando um trecho difícil do caminho, na Porta de Brandenburgo, e diante dele seguia um chofer que não sabia dirigir. A atmosfera de uma cozinha minúscula e miserável, que se evolava das palavras de Kringelein, o sufocava, tirando-lhe o entusiasmo com que ele estivera prestes a pedir emprestados três mil marcos.

Esse Kringelein de camisa de seda, que andava de automóvel, teria também de boa vontade retirado parte daquilo que revelara com as suas palavras.

— Então nós vamos dançar — disse ele com desembaraço, para disfarçar. — Ficarei gratíssimo, se o senhor barão me tomar sob sua proteção. E que se poderia fazer à noite?

Kringelein tinha a esperança oculta de receber uma resposta que correspondesse a desejos irrealizados dentro de si, alguma coisa semelhante a certos quadros de museus, porém mais palpável, o que, nos jornais que ele lia, denominavam orgia. Tinha o pressentimento de que homens distintos da cidade guardavam a chave e a entrada de coisas assim. No dia anterior o Dr. Otternschlag havia acedido ao seu vago desejo de feminilidade, levando-o ao bailei da Grussinskaia. Pois é. Isso — julgava Kringelein — tinha sido errado; o ballet era lindo, mas poético, comovente, e demasiado maravilhoso; ficava-se cansado, com sono, sentimental, e finalmente sentia-se dor de estômago. Mas hoje...

— A melhor coisa que o senhor poderá fazer hoje é ir comigo à grande luta de boxe no Sporthalle — disse Gaigern. — Vamos ver se o porteiro ainda tem entradas.

— Não me interesso muito por boxe — respondeu Kringelein, com o orgulho do leitor do Kosmos.

— Não se interessa? O senhor já assistiu a alguma luta? Então! Pois vá, que há de se interessar — garantiu Gaigern peremptoriamente.

— O senhor também vai, senhor barão? — perguntou Kringelein, afobado. Sentia-se muito bem disposto, depois da viagem de automóvel e do voo, animado e enérgico, preparado para o que desse e viesse, mas tinha a impressão de que despencaria como uma arvorezinha de borracha no instante em que o barão o abandonasse.

— Tenho uma vontade louca de ir também — replicou Gaigern. — Mas infelizmente não posso. Não tenho dinheiro.

Nesse ínterim haviam se afastado das ramagens floridas do jardim zoológico, e a fachada do hotel já aparecia, lá embaixo. Gaigern deixou a velocidade cair para doze quilômetros, a fim de dar tempo a que Herr Kringelein se manifestasse. Kringelein ficou a remoer a observação sorridente de Gaigern. Pararam defronte ao portão 5, subiram, e ele não conseguira se livrar daquilo.

— Vou levar o carro à garagem! — exclamou Gaigern, depois que fez Kringelein descer do carro, com as pernas um tanto rijas e adormecidas; por fim desapareceu na esquina.

Kringelein meteu-se, pensativo, na porta giratória, cujo mecanismo já não o deixava mais estupefato. "Não tem dinheiro", pensou ele. "Está sem dinheiro. É preciso fazer alguma coisa."

Rohna, o porteiro, os boys, e até o maneta do elevador, notaram a transformação que ele sofrerá, mas, discretamente, não o deram a perceber. O hall, de onde se evolava um aroma de mokka, estava repleto de pessoas que conversavam. O relógio marcava quatro horas e cinquenta minutos. O Dr. Otternschlag estava sentado em sua habitual cadeira maple, tendo ao lado, no solo, uma pilha de jornais. Fitou Kringelein com uma expressão indefinível de ironia e tristeza. Kringelein, não muito seguro de si, aproximou-se dele e estendeu-lhe a mão.

— O novo Adão — observou Otternschlag sem lhe estender a sua, que estava fria e úmida, o que o tornava tímido. — A borboleta saiu do casulo. E por onde esteve voando, se me permite perguntar-lhe?

— Fiz umas compras. Fui passear de automóvel pelo Avus, almocei no Wannsee. Depois fiz um voo de avião — respondeu Kringelein. Seu tom de voz, ao falar com Otternschlag, mudara um pouco, sem que ele próprio o percebesse.

— Magnífico — disse Otternschlag. — E agora?

— Às cinco tenho um encontro. Vou dançar. — Ah! e depois?

— Depois, estou com vontade de ir a uma grande luta de boxe, no Sporthalle.

— Ah, é? — retorquiu Otternschlag. Disse apenas isso. Pôs o jornal diante dos olhos e começou a ler, ofendido. Na China houvera tremores de terra, mas a bagatela de quarenta mil mortos não bastava para fazer desaparecer o aborrecimento de Otternschlag.

Quando Gaigern chegou ao segundo andar para trocar de roupa, encontrou Kringelein diante da porta de seu quarto, à sua espera.

— Então? — perguntou impaciente. Pouco a pouco lhe atacava os nervos estar preso a esse homenzinho exótico.

— O senhor barão estava caçoando de mim ou é verdade que está em dificuldades financeiras? — perguntou Kringelein, repentinamente. Foi uma das frases mais difíceis que jamais pronunciou, e apesar de a ter preparado de antemão, disse-a gaguejando.

— É a absoluta verdade, senhor diretor. Estou arrasado, com um azar dos diabos, só tenho no bolso vinte e dois marcos e trinta Pfennige, e amanhã sou obrigado a enforcar-me no jardim zoológico — disse Gaigern, abrindo o rosto bonito em um largo sorriso. — Mas o pior de tudo é que preciso estar em Viena dentro de três dias; apaixonei-me por uma mulher, sabe, de um modo incrível, uma paixão fulminante, e tenho que acompanhá-la por onde ela andar. E estou numa pendura completa. Se pelo menos alguém me emprestasse algum dinheiro que desse para eu arriscar hoje no jogo...

— Também estou com vontade de jogar — observou Kringelein, pressuroso, com verdadeiro entusiasmo. Sentiu de novo a sensação dos cento e vinte quilômetros por hora, do voo do avião, e disparou, zunindo, pelo espaço infindável.

— Tiens! Eu vou buscá-lo no Sporthalle, e vamos a um clube elegante. O senhor arrisca mil marcos e eu vinte e dois! — exclamou Gaigern. Dizendo isto, fechou a porta do seu quarto e deixou Kringelein sozinho, do lado de fora. Por enquanto estava farto dele. Atirou-se, vestido, para cima da cama, e fechou os olhos. Foi tomado de um sentimento de desânimo e enfado. Procurou recordar-se da menina do cachinho louro na testa, com quem tinha marcado um encontro às cinco horas, no pavilhão amarelo, mas não o conseguiu. Apresentava-se sempre uma outra recordação, o abajur da Grussinskaia, a grade do balcão, uma nesga do Avus, uma nesga do campo de aviação, o suspensório rasgado de Herr Kringelein. "Dormi pouco hoje à noite", pensou ele, acalorado, contente e com os nervos frouxos. Caiu num sono de três minutos, num saco de trevas e de restauração, como aprendera a fazer na guerra. Uma camareira bateu à porta, despertando-o; era uma carta de Kringelein.

 

Prezado senhor barão!, escrevia Kringelein. Permitiria que o abaixo-assinado o considerasse hoje à noite seu convidado, e ao mesmo tempo me faria a fineza de aceitar o insignificante empréstimo que junto a esta? Peço-lhe apenas que me mande um recibo. Seria uma honra para mim poder ser-lhe útil, e, no meu caso, o dinheiro já nada significa. Cumprimentos respeitosos do seu

Amgo. Crdo. Obr.

Otto Kringelein Anexo: uma entrada

duzentos marcos.


12

 

O envelope com o endereço do hotel continha um bilhete alaranjado para a luta de boxe no Sportpalast, e duas cédulas amarrotadas de cem marcos, numeradas a tinta num dos cantos. Na assinatura de Kringelein faltavam os pingos nos ii. Ele os perdera definitivamente no turbilhão insano que o arrastara nesse dia memorável.

Preysing, com os ossos ocos e vazios, ficou no hall depois de terminada a conferência, depois de assinado o contrato prévio, e da despedida do Dr. Zinnowitz, desejando-lhe felicidade e sorte. A sensação de uma grande vitória, a consciência de haver passado um blefe nos cavalheiros da Chemnitz, a tensão nervosa de discursar e de vencer sob uma base insegura, tudo isso era completamente novo para o diretor-geral, e o transportou a um estranho estado de atordoamento, nada desagradável. Olhou para o relógio do hotel — já passava das três horas —, encaminhou-se mecanicamente para a cabina telefônica, a fim de pedir uma ligação com a fábrica, e depois demorou-se bastante no banheiro dos homens, deixando escorrer água quente pelas mãos, enquanto se olhava no espelho com um sorriso idiota. Passou por último à sala de refeições, que estava quase vazia, e escolheu o menu sem prestar atenção; durante os dois minutos de espera até chegar o consommé, impacientou-se e pôs-se a fumar um charuto, que lhe pareceu delicioso, acima de qualquer crítica. Enquanto observava a lista dos vinhos, trauteou uma melodia, e sentiu desejos bem definidos de beber vinho doce, que aquecesse a língua; encontrou um Wachencheimer Mandelgarten 1921, que lhe pareceu prometedor. Pouco depois surpreendeu-se a sorver ruidosamente a sopa; quando ficava distraído, acontecia-lhe, por vezes, praticar algum mau costume do começo da sua vida. Sentia que estava numa situação feliz, mas de imprevisíveis consequências. O embuste — ele próprio usava essa expressão forte, que o transportava estranhamente a uma nova espécie de sensação de orgulho — que ele usara durante a conversação só poderia valer, no melhor dos casos, por três dias. Nesses três dias era preciso acontecer alguma coisa, se não quisesse sofrer as consequências de uma catástrofe. A assinatura do contrato prévio poderia ser retirada dentro de catorze dias. Preysing, que vertera depressa demais, pela goela seca, os dois primeiros copos do vinho frio e excitante, adoçado pelo sol, ficou meio tonto, e, em meio à sua tontura, viu a chaminé principal da fábrica explodir, separando-se em três pedaços. Isso não tinha importância, era uma reminiscência de um sonho que Preysing, a intervalos regulares, costumava ter. Estava comendo o peixe, quando um groom gritou "Chamada interurbana para Herr Preysing!" por entre o burburinho da discreta sala de refeições. Preysing ainda engoliu rapidamente um gole de vinho e dirigiu-se à cabina telefônica 4. Esqueceu-se de acender a luz, e na escuridão postou-se diante do fone com a sua mais férrea expressão de diretor da fábrica, famosa em Fredersdorf. Por entre o assobio agudo de um pequeno desarranjo na linha, anunciou-se Fredersdorf.

— Com Herr Broesemann — disse o diretor-geral, com a voz inexpressiva que usava no desempenho de suas funções. Demorou meio minuto até que encontrassem o gerente. Preysing considerou uma ofensa essa demora, e bateu com o salto do sapato no assoalho.

— Puxa... finalmente! — exclamou ele, quando Broesemann atendeu.

Adivinhavam-se, através do telefone, as curvaturas de Broesemann, e Preysing as recebeu como um merecido tributo.

— O que há de novo, Broesemann, além do telegrama inútil de ontem? Não... ao telefone não, sobre isso falaremos depois. Por enquanto eu me esforço por considerar esse assunto como inexistente, compreendeu? Ouça, Broesemann, agora eu quero falar com o velho. Está dormindo? Sinto muito, é preciso acordá-lo. Não, sinto muito. É, sim, imediatamente. Até logo, Broesemann. Não, as outras ordens o senhor as receberá por escrito. Estou esperando.

Preysing ficou à espera. Arranhou a tábua da estante do telefone com as unhas, tomou a caneta-tinteiro e pôs-se a tamborilar com ela na parede, pigarreou, e seu coração disparou triunfalmente, com batidas claras e definidas. O bocal do telefone, diante de sua boca, cheirava a desinfetante e, ao passar a mão por ele na escuridão, sentiu que a beirada estava lascada. Então o velho falou, lá de Fredersdorf.

— Alô, bom dia, papai, desculpe incomodá-lo. A conferência durou até agora, pensei que o senhor se interessaria em saber logo do resultado. Trata-se do seguinte: o contrato prévio está assinado... não, assinado, assinado ... — disse ele gritando, porque o velho tinha o teimoso costume de fingir-se mais surdo do que era realmente.

— Difícil, o senhor acha? Ora, mais ou menos. Obrigado, obrigado, não preciso de aplausos. Ouça, papai: preciso viajar imediatamente para Manchester; é, é absolutamente necessário, absolutamente. Vou para Manchester, bom, bom, eu lhe escrevo a esse respeito com mais pormenores. Como? O senhor está satisfeito? Eu também. Sim, senhorita, terminei. Até logo.

Preysing continuou na cabina escura, e só então se lembrou de apertar o botão da lampadazinha. "Mas, que história é essa?", pensou, espantado. "Como é que vou viajar para Manchester? Como foi que essa ideia me ocorreu? É isso mesmo... vou para Manchester. Aqui eu aguentei firme, lá também vou aguentar. É muito simples. Muito simples", pensou ele, sentindo-se novamente mais seguro de si, e enfunando-se como um balão. Um êxito casual, insignificante e incerto, transformara um homem hesitante, de terno de sarja cinzenta, em um sujeito empreendedor e aventureiro, de princípios vacilantes e dúbios.

— A ligação custa nove marcos e vinte — avisou a telefonista.

— Ponha na conta — respondeu Preysing, caminhando imerso em pensamentos.

Sentia uma estranha antipatia em falar com Mulle. Na sala de refeições de sua casa fazia agora um calor excessivo; Mulle gostava de quartos bem aquecidos; Preysing teve a impressão de que a sala de refeições de Fredersdorf cheirava a couve-flor; teve a impressão de ver nas faces cheias e sonolentas de Mulle a marca vermelha das pregas do travesseiro, no momento em que ela segurava o fone, após a sesta. Não se decidiu. Não a chamou. Voltou à sala de refeições, onde, entretanto, um garçom perfeito colocara para ele o vinho no gelo, e pratos limpos e aquecidos sobre a mesa.

Preysing comeu, esvaziou seu copo de vinho, acendeu o charuto e, com as têmporas acaloradas e os pés frios, voltou ao quarto. Tinha uma sensação estranha, agradável e nebulosa, mas ao mesmo tempo sentia-se completamente vazio, em consequência da conferência. Teve vontade de tomar um banho bem quente, e abriu a torneira do banheiro. Justamente quando fez menção de despir-se, refletiu melhor, lembrando-se de que não é bom tomar banho com o estômago cheio; sentiu, no espaço de um instante de medo, as palpitações que o ameaçavam na banheira esmaltada, e soltou de novo a água, cheia de vapor. A impressão de cansaço e desconforto que sentiu materializou-se numa coceira no rosto e, quando tentou coçar-se, percebeu que não estava barbeado. Apanhou o chapéu e o sobretudo, como ao preparar-se para um negócio importante; não quis ir ao barbeiro do subterrâneo do hotel, com quem ainda estava zangado, por causa do que acontecera de manhã, e procurou nas ruas circunvizinhas um barbeiro de mais confiança.

Então o Diretor-Geral Preysing viveu uma experiência notável; esse homem de princípios sólidos, mas sem aparelho de barba, teve uma experiência; esse homem de intenções corretas, mas que, apesar de tudo, praticara uma ação duvidosa, um azarado, a quem pela primeira vez o êxito bafejara, ao qual esse bafejo levava... para onde? Podia parecer um acaso, talvez fosse o destino que lhe estava reservado. A experiência foi esta:

A pequena barbearia em que Preysing entrou era asseada e simpática. Havia quatro cadeiras, e dois senhores sentados; um deles era servido por um empregado jovem, simpático, de cabelos encaracolados, e o outro pelo dono da barbearia, um homem idoso, com a aparência e os modos de um camareiro imperial. Preysing foi cumprimentado, alojado na terceira cadeira e envolvido numa capa e num peitilho. O cavalheiro que tivesse um momento de paciência, o primeiro oficial de barbeiro tinha ido almoçar, foi o que lhe participaram com toda a cortesia, pondo-lhe em seguida, nas mãos, um pesado maço de revistas ilustradas. Preysing, excessivamente cansado para opor qualquer resistência, reclinou a cabeça no pequeno encosto da cadeira, e respirou o aroma agradável que pairava na barbearia. Depois, com os nervos acalmados pelo ruído das tesouras, começou a folhear as revistas.

Primeiro pôs-se a ler, de uma maneira indiferente, quase a contragosto, porque não apreciava esse passatempo leviano, preferindo leituras instrutivas e sérias. Mas, após uns instantes, ele já se ria com uma ou outra piada, soltando uma risadinha curta e nasal; voltou as folhas para trás, para observar melhor uma mulher decotada, e em seguida virou uma página, e deixou-a aberta durante todo o tempo em que ficou sentado na cadeira de barbeiro. Realmente, concentrou-se de tal modo na observação dessa gravura, dessa fotografia de revista, que se sentiu estorvado quando o primeiro oficial voltou da sua refeição e se preparou para barbeá-lo.

A fotografia que o atraía desse modo nada tinha de especial; fotografias como essa eram encontradas às centenas em revistas cuja orientação desagradava a Preysing. A gravura representava uma mocinha nua, nas pontas dos pés, tentando olhar por sobre um biombo muito mais alto do que ela. Seus braços estavam levantados, e os delicadíssimos seios, com esse movimento, erguiam-se com uma graça especial, de modo tentador. No dorso esguio via-se o desenho delicado da musculatura. Na cintura, esse corpo se estreitava de um modo incrível, e abaixo do dorso delgado os quadris se encurvavam suavemente, prolongando-se nas linhas das coxas. Aqui, o corpo virava-se ligeiramente de lado, de modo que o ventre da mocinha mal se adivinhava como uma sombra suave, enquanto as coxas e os joelhos se distendiam, como a exprimir uma elástica curiosidade. Essa figura encantadora de mulher, de formas invulgarmente perfeitas, tinha também um rosto; e o que tornava a gravura extremamente excitante para o diretor-geral é que ele conhecia esse rosto. Era a carinha de gata da Flaemmchen, de nariz curto, com uma expressão animada e inocente, era o sorriso meigo de Flamm número dois, era o seu caracolzinho na testa, sobre o qual o esperto fotógrafo colocara um propositado reflexo luminoso; e, antes de mais nada, era a completa naturalidade, o modo simples e ingênuo com que ela o chamara de modo objetivo e modesto — Preysing recordou-se nesse instante — de um "bom nu". Preysing corou, enquanto teve diante dos olhos essa gravura; um súbito e ardente rubor subiu à sua testa, impedindo-o de pensar com clareza, como lhe acontecia nos seus acessos de cólera, que faziam tremer toda a fábrica. Depois, suas veias, uma a uma, começaram a latejar dentro dele, ele o sentia, sentia o sangue a refluir nas veias, como há muito tempo não lhe acontecia.

Preysing era um homem de cinquenta e cinco anos; não era um velho, mas uma pessoa pacata, o esposo pouco exigente de Mulle, mulher já envelhecida, papaizinho inocente de filhas crescidas. Trotara atrás da Flamm número dois pelo corredor do hotel sem sentir a mínima excitação, e o borbulhar suave de seu sangue, nessa ocasião, aplacara-se de modo próprio. Agora, diante desse nu artístico, mal podia respirar.

— Com licença, cavalheiro — disse o barbeiro; e, com um gesto elegante, pousou o fio da navalha em sua face.

Preysing conservou a revista na mão, enquanto se reclinava para trás e fechava os olhos. Primeiro viu tudo vermelho, e depois enxergou a Flaemmchen. Não a Flaemmchen vestida, diante da máquina de escrever, nem a Flaemmchen despida da fotografia cinzenta, mas uma mistura vivaz e excitante de ambas. Uma Flaemmchen de carne e osso, de pele moreno-dourada e sangue rubro e palpitante, que continuava nua, com o busto erguido, a olhar com curiosidade por cima de um biombo. O Diretor-Geral Preysing não estava habituado a deixar sua fantasia trabalhar. Mas agora ela trabalhava. Havia soltado a manivela, desde que ele, pela manhã, colocara na mesa o telegrama, dizendo, de um modo descarado, uma mentira absurda. Agora sua imaginação se afastava rapidamente com ele, o que era apavorante e embriagador ao mesmo tempo. Enquanto a navalha deslizava com leveza e perícia em seu rosto, Preysing sentia coisas incríveis, coisas fantásticas, com a Flaemmchen nua, coisas incríveis consigo mesmo, que ele nunca julgara que pudessem acontecer.

— Quer que lhe raspe o bigode? — perguntou o barbeiro.

— Não — disse Preysing, estorvado em meio aos seus pensamentos. — Por quê?

— É que as pontas estão um pouco grisalhas, e isso envelhece. Se me permite um conselho, o cavalheiro aparentaria dez anos menos, sem bigode — sussurrou o barbeiro, com o sorriso bajulador de todos os barbeiros a refletir-se no espelho.

"Mas eu não posso me apresentar a Mulle sem bigode, como um macaco", pensou Preysing, olhando-se no espelho. Realmente, seu bigode estava grisalho, e sob o bigode havia sempre gotas de suor no lábio superior. "Ora, a Mulle...", pensou ele — e nesse instante, a bem dizer, o adultério já estava cometido.

— Está bem, pode raspá-lo. A qualquer momento posso deixar crescer de novo o bigode.

— É claro, é facílimo — concordou o barbeiro, indo buscar em seguida mais sabão de barbear, para o grande empreendimento.

Preysing levantou a revista para olhar de novo a fotografia — mas isso só já não lhe bastava. Ele não queria mais ver, queria pegar, queria apalpar, queria sentir a Flaemmchen, palpitante e ardente.

No hotel repararam imediatamente no que acontecera ao bigode, mas não deram a perceber. Meu Deus do céu, estavam tão acostumados a observar as estranhas metamorfoses pelas quais passavam os cavalheiros que vinham da província para ficar uns dias no hotel... Preysing, que perguntava, apressado e ofegante, se havia correspondência para ele, recebeu uma carta de Mulle, que lhe colocaram na mão. Meteu-a simplesmente no bolso, sem a ler, e sem nenhum sentimento de carinho. Dirigiu-se então à cabina telefônica. "Preciso falar com Mulle", pensou, "mas posso chamá-la mais tarde." Entrou na cabina para ligações locais, pediu para falar com o gabinete do conselheiro Zinnowitz, e teve uma breve conversa com a Flamm número um. Desejava saber se a senhorita sua irmã estaria por acaso no gabinete.

Não, não estava mais.

Desejaria saber onde poderia ser encontrada.

Ah, respondeu a Flamm número um, hesitante, talvez ela se houvesse atrasado um pouco. Mas, nesse caso, a qualquer momento ela apareceria no hotel.

Preysing, diante do fone, ficou com uma cara de idiota.

— No hotel? Aqui? No Grande Hotel? Por quê?

— Pois é — disse a Flamm número um, precavida e indecisa. Isso pelo menos é o que ela entendera. Flaemmchen tinha ido para o hotel, e então ela, a Flamm número um, julgara que a irmã fora chamada de novo para datilografar. Mas talvez a Flaemmchen tivesse algum encontro, o que nunca se podia saber com certeza, pois, nesse ponto, a Flaemmchen era muito esquisita, muito diferente dela, a Flamm número um. Mas pontual ela era; quando prometia qualquer coisa, cumpria o prometido; por isso, iria com certeza ao hotel.

Preysing agradeceu e pôs o fone no gancho, atrapalhado. Dirigiu-se de novo, inquieto, à portaria, atravessando o hall. Ouvia-se perfeitamente a música saltitante que vinha do pavilhão amarelo.

— Minha secretária perguntou por mim? — informou-se ele com Herr Senf. O porteiro voltou para ele o rosto muito atento e tolo.

— Quem, por favor?

— Minha secretária. A senhorita a quem eu ditei cartas ontem — informou Preysing, excitado.

O pequeno Georgi meteu-se na conversa.

— Ela não perguntou nada, mas esteve no hall, há uns dez minutos, a moça loura, magra, não é isso? Eu acho que ela está no chá das cinco, no pavilhão amarelo, do outro lado do hall, segundo corredor atrás do elevador; o senhor vai perceber pela música.

Seria próprio de um diretor-geral, vestido com um terno de sarja, andar atrás dos sons apimentados de uma orquestra de jazz, através de corredores desconhecidos, à procura de uma jovem e leviana datilografa, com quem ele nada tinha que ver, do ponto de vista jurídico? Mas é que Preysing está quase a desviar-se do bom caminho, quase a escorregar, e não o percebe. Só percebe que seu sangue corre de modo diferente do costume, diferente dos quinze ou vinte últimos anos, e ele quer a qualquer preço agarrar-se a esse sentimento, tirar proveito dele. O bigode está raspado, não foi feita nenhuma ligação telefônica para a Mulle, e, quando ele abre a porta do pavilhão amarelo e sente a atmosfera desconhecida dessa sala, o assunto complicado com Chemnitz e Manchester, incerto e ainda por esclarecer, fica quase esquecido.

A essa hora, às cinco horas e vinte minutos, o pavilhão amarelo está diariamente entupido de gente. As cortinas de seda amarela, franzidas vaporosamente, estão fechadas diante das janelas altas; nas paredes estão acesas lampadazinhas amarelas, e nas mesinhas também há lampadazinhas acesas, com abajures amarelos. Está quente, ali dentro; dois ventiladores zunem, e paira no ar o burburinho humano. As pessoas estão sentadas bem perto umas das outras; cada um sente o calor do seu vizinho, porque uniram as mesinhas, para dar mais espaço aos que estão dançando no centro da sala. No forro abobadado estão pintadas formas vagas de bailarinos, em lilás e prateado; por vezes, quando tudo se movimenta, o forro causa a impressão de um espelho embaciado, em que se refletem os dançarinos cá de baixo. Tudo o que se passa ali dá uma impressão estranha de ângulos e de ziguezagues; a dança não é circular, mas apenas um estremecimento que se eleva e abaixa; e Preysing, que foi soprado até ali pelos rumores de seu sangue, para procurar uma certa Flaemmchen, ficou completamente tonto. Não via mais as pessoas inteiras, mas tudo se separava em confusão, só tinham cabeça ou coxas, como certa espécie de quadros modernos, que Preysing, em razão da loucura que representavam, não podia suportar. Porém, o mais importante e digno de reparo no pavilhão amarelo era a música. Era executada por sete cavalheiros indescritivelmente satisfeitos, de camisas brancas e calças curtas, a célebre Eastman Jazzband, cuja música era de uma vivacidade maluca, tamborilava sob as solas dos pés, fazia cócegas nos músculos dos quadris. Havia dois saxofones que choramingavam e outros dois que zombavam deles com um jeito satírico e sarcástico. O jazz serrava, estalava, teimava, matraqueava, cacarejava, pondo ovos sobre a melodia, ovos que eram em seguida esmagados — e quem caísse dentro do círculo dessa música ficava prisioneiro do ritmo convulsivo da sala, parecia até enfeitiçado.

Preysing, no entanto — empurrado de um lado para o outro pelos garçons que levavam bandejas cheias de taças com gelo —, ficara parado à porta, e reparou que começou a contrair os músculos das pernas enquanto, mal-humorado, procurava enxergar a Flamm número dois. Seu lábio superior, nu e remoçado, cobriu-se novamente de suor; ele tirou do bolso o lenço, enxugou o rosto, e depois meteu o lenço no bolsinho exterior do paletó, onde em geral só costumava guardar a caneta-tinteiro. Com um olhar de esguelha, muito encabulado, arranjou a ponta do lenço, deixando-o cair como uma graciosa bandeirola; isso parecia legitimar o seu direito de pertencer a essa parte animada do Grande Hotel. Aliás, ninguém se importava com ele. Poderia ficar ali o tempo que quisesse, e procurar entre duzentas jovens e esbeltas dançarinas uma determinada senhorita.

— Quando vi que o senhor não estava aqui às cinco e dez pensei: ele vai dar um bolo. Você vai ver, ele vai dar um bolo, pensei — disse a Flaemmchen, que estava dançando com Gaigern uma lânguida variação do charleston, uma dança nova, com uma pequena síncope, que dava um golpe na perna. Seus corpos se ajustavam plenamente na dança.

— Absolutamente. Pensei o dia inteiro na senhora, e me alegro de poder revê-la — disse Gaigern.

Essa frase lhe saiu com a mesma leveza e languidez, com a mesma facilidade com que ele dançava. Gaigern era apenas alguns centímetros mais alto do que a Flaemmchen, e fitou com um leve e amável sorriso os olhos de gatinha da moça. Ela estava vestida com um vestidinho de seda leve, azul; ao pescoço trazia um colar de contas de vidro lapidado, e usava um chapeuzinho, desses fabricados em série e vendidos por um marco e noventa. Estava encantadora, com os requisitos de uma elegância rebuscada.

— É verdade mesmo que o senhor se alegrou? — perguntou ela.

— Metade verdade, metade invenção — replicou Gaigern com sinceridade. — Passei o dia hoje caceteadíssimo — acrescentou suspirando. — Estou servindo de cicerone para um senhor de idade, por necessidade, é claro.

— E por que faz isso?

— Preciso conseguir uma coisa dele.

— Ah! — disse a Flaemmchen, compreensiva.

— A senhora também precisa dançar com ele — disse Gaigern, apertando-a de leve.

— Que nada!

— Não é isso. Mas eu vou lhe pedir encarecidamente. Ele não sabe dançar, compreende? Mas tem tanta vontade de aprender! A senhora dá apenas algumas voltas com ele — para me fazer um favor.

— Bem, vamos ver! — prometeu a Flaemmchen. Continuaram a dançar, calados. Gaigern trouxe mais para perto o corpo da moça, sentindo que as costas dela obedeciam documente aos movimentos de sua mão. Isso, porém, não o alegrava, pelo contrário, causava-lhe raiva, até.

— Então, que aconteceu? — perguntou a Flaemmchen, pressentindo o que se passava.

— Ah!... Não é nada! — resmungou Gaigern, sentindo ódio de si próprio.

— Que está querendo? — perguntou a Flaemmchen com solicitude. Achava-o lindo, com aquela boca, e a cicatriz no queixo... E os olhos também, um pouco oblíquos. Sentia forte inclinação por ele.

— A gente tem vontade de fazer qualquer coisa maluca, já que não acontece nada. Agora tenho vontade de mordê-la, ou de brigar com a senhora. Ou de esmurrá-la, até. Ora! Hoje à noite vou à luta de boxe; ali, pelo menos, acontece alguma coisa.

— Ah, é? — disse a Flaemmchen. — O senhor vai hoje à noite à luta de boxe? Ah, sei.

— Com aquele senhor de idade — afirmou Gaigern.

— Se o senhor... acabou — disse a Flaemmchen, quando a música parou. Ela se pôs então a bater palmas freneticamente, deixando-se ficar onde estava. Gaigern fez menção de tirá-la do meio da sala e levá-la a uma mesinha, onde ele deixara Kringelein diante de uma xícara de café. A música começou de novo, quando os dois já se encontravam a meio caminho, entre a confusão e o aperto.

— Tango! — exclamou a Flaemmchen, excitada.

E a moça tomou posse de Gaigern, simplesmente. A palma de sua mão encostava-se à dele, implorando e aquiescendo. Suas coxas já se emparelhavam no passo lânguido e arrastado do tango. Fez-se um vazio na sala, em redor deles, porque dava prazer vê-los dançar.

— O senhor conduz otimamente — sussurrou a Flaemmchen, como se fizesse uma declaração de amor. Gaigern nada tinha a replicar. — Ontem o senhor estava tão diferente... — disse um pouco mais tarde.

— É... ontem — respondeu Gaigern. Disse isso como se estivesse a dizer: há cem anos. — Aconteceu uma coisa de ontem para hoje — acrescentou.

Sentia que uma compreensão simples e natural os unia, e de repente teve desejos de se confiar a ela.

— Esta noite eu me apaixonei, uma paixão muito séria, compreende? — disse ele baixinho, dançando o tango que vibrava no ar. — Isso vira a cabeça da gente. É um sentimento avassalador. É como se...

— Mas isso não é nada de extraordinário — observou a Flaemmchen, ironicamente, sentindo-se triste, desiludida.

— É sim, é uma coisa extraordinária. A gente tem vontade de se transformar por completo, compreende? De repente acha que só existe uma mulher no mundo, só essa mulher, e o resto não tem mais nenhum valor. A gente acha que não é mais capaz de dormir, a não ser com essa mulher. É como se passasse por nós um furacão. Como se nos tivessem posto dentro de um canhão, e depois atirado à Lua ou a outro lugar qualquer, onde tudo é diferente.

— E como é ela? — perguntou a Flaemmchen — e qualquer outra em seu lugar teria perguntado o mesmo.

— Ah! Como ela é? Aí é que está... É muito velha e magra, muito leve, sou capaz de levantá-la do chão com um dedo. Tem rugas, aqui e aqui, e olhos pisados. E fala numa linguagem de baixo calão, como um clown; tem-se vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo, ao ouvi-la. E isso tudo me agrada de um modo incrível, não há nada a fazer. É o grande amor.

— O grande amor? Mas isso não existe — disse a Flaemmchen. Ao afirmar isto, ela tinha uma carinha espantada e teimosa de gata, como às vezes os amores-perfeitos têm nos canteiros.

— Como não, como não? Existe, sim — disse Gaigern.

A Flaemmchen ficou tão impressionada com essas palavras, que parou um segundo, em meio ao tango, e sacudindo a cabeça olhou Gaigern.

— São frases, apenas — murmurou ela ao mesmo tempo.

Nesse momento exato os olhos de Preysing descobriram finalmente o vulto procurado, no meio da confusão erótica e lânguida do tango. Com um sentimento de zanga e extrema impaciência, esperou que a dança lenta terminasse e depois foi-se espremendo entre os pares, até a mesinha em que a Flaemmchen tomara lugar entre dois senhores, que Preysing tinha a impressão de conhecer. No hotel, essa espécie de conhecimentos de vista eram correntes; passava-se por alguém no elevador, encontrava-se com alguém na sala de refeições, no banheiro e no bar, girava-se um diante do outro na porta giratória, nessa porta que estava sempre a rodar, deixando entrar e sair gente, para dentro e para fora do hotel.

— Boa tarde, Fräulein Flamm — disse o diretor-geral com a voz tornada rouca e grosseira pela timidez; postou-se ao lado da cadeira da moça, encolhendo a barriga para dar passagem ao garçom.

A Flamm número dois apertou as pálpebras, até conseguir registrar a presença imprevista de Preysing.

— Ah, é o senhor diretor — disse então, amavelmente. — O senhor também dança? — ela olhou a fisionomia contraída dos três homens; estava habituada a ver essa expressão nos semblantes dos homens que a rodeavam. — Os senhores já se conhecem? — perguntou com um gesto distinto de mão, que copiara de uma estrela de cinema.

Não podia apresentá-los, porque não sabia como se chamavam os seus cavalheiros. Preysing e Gaigern murmuraram algo, e o diretor-geral apoiou na mesa uma mão repleta de sentimento de posse, enquanto passava rente a ele, à altura da cabeça, uma perigosa bandeja com copos de laranjada, que o garçom equilibrava.

— Boa tarde, Herr Preysing — disse de repente Kringelein, sem erguer-se da cadeira.

Cada uma das suas vértebras lhe doía, por causa do enorme esforço que teve de fazer para não ser atacado de tremedeira e não cair estatelado, voltando a ser o miserável Kringelein da caixa da fábrica. Ficou de ombros contraídos; tudo nele se contraiu; lábios, dentes, até mesmo as narinas, que tomaram um aspecto redondo e feio, como as dos cavalos. Mas ele se portou à altura do grave momento; forças nunca pressentidas fluíam do seu jaquetão preto de corte impecável, da sua roupa de baixo, da sua gravata, de suas unhas bem cuidadas, enchendo-o de energia. O que quase o fez perder o aplomb foi o fato de Preysing também ter se transformado; continuava a usar o mesmo terno de Fredersdorf, mas não tinha mais bigode.

— Não sei bem... desculpe-me... mas acho que já nos conhecemos... — disse Preysing com a maior amabilidade que lhe permitia a excitação que sentia por causa da Flaemmchen.

— Sim, senhor. Kringelein — afirmou este. — Trabalho na fábrica.

— Ah — disse Preysing, esfriando. — Kringelein. Nosso representante, não é? — acrescentou, reparando na elegância de Kringelein.

— Não. Guarda-livros. Auxiliar de guarda-livros no bureau de pagamentos. Sala 23. Edifício C. Terceiro andar — informou Kringelein conscienciosamente, mas sem devoção.

— Ah — repetiu Preysing, pensativo. Seu desejo era afastar nesse momento a aparição indesejável e incompreensível de um auxiliar de guarda-livros de Fredersdorf no pavilhão amarelo do Grande Hotel. — Preciso falar com a senhora, Fräulein Flamm — disse ele, retirando a mão do encosto da cadeira da Flaemmchen. — Trata-se de um novo serviço de datilografia — acrescentou num tom de chefe, que feriu os ouvidos do sujeito de Fredersdorf.

— Está bem — concordou a Flaemmchen. — Quando é melhor para o senhor? Às sete, sete e meia?

— Não, já — disse Preysing em tom ditatorial, enxugando o suor do rosto.

Aquele indivíduo de Fredersdorf tinha também um lenço no bolso do paletó, uma flamulazinha de seda, revolucionária e leviana.

— Infelizmente, já, já não é possível — disse a Flaemmchen amavelmente. — Já estou comprometida. Não posso deixar estes senhores aqui. Ainda preciso dançar uma vez com Herr Kringelein.

— Herr Kringelein vai ter a amabilidade de desculpá-la — disse Preysing, contendo-se. Era uma ordem. Kringelein sentiu que os vinte e cinco anos de um sorriso subalterno queriam insinuar-se em seus lábios paralisados. Controlou-o, fazendo-o recuar para a pele do rosto, engelhada e quase fria. Procurou auxílio e forças em Gaigern. O barão tinha um cigarro no canto da boca, e a fumaça subia ao longo das pestanas de seu olho esquerdo, que ele piscou com expressão brejeira e compreensiva.

— Não penso absolutamente em desistir — comentou Kringelein. Após lhe escaparem estas palavras, ficou imóvel como uma lebre, que finge estar morta no carreiro de um campo. De repente, Preysing, ao ver aquela expressão obstinada, recordou-se de um relatório a respeito de Kringelein, que lhe haviam apresentado há poucos dias.

— É estranho — disse ele com a voz nasal e temida da fábrica. — É estranhíssimo. Agora já sei do que se trata. O senhor participou à fábrica que estava doente, não é? Herr Kringelein, hein? Sua mulher pediu um subsídio ao Fundo de Auxílio aos Doentes, por causa de moléstia grave. Nós lhe demos férias de seis semanas, pagas. E o senhor se encontra em Berlim, divertindo-se, hein? Anda atrás de divertimentos que não condizem nem com a sua posição nem com o seu ordenado. É muito estranho. Estranhíssimo, Herr Kringelein. Nós vamos rever com cuidado os seus livros, pode estar certo disso. Vamos deixar de pagar-lhe as férias, já que o senhor está tão bem de saúde, Herr Kringelein! Vamos...

— Olhem, meninos, nada de brigas aqui. Vão entender-se no seu escritório — disse a Flaemmchen, com modos afáveis e conciliantes. — Nós estamos aqui para nos divertir. Vamos, Herr Kringelein, agora vamos dançar.

Kringelein firmou-se nas pernas, esticando os joelhos, que pareciam de borracha, mas que se consolidaram a olhos vistos quando a Flaemmchen colocou o braço no ombro dele. A música tocava aos solavancos uma coisa rapidíssima, algo semelhante à corrida de automóvel a cento e quinze quilômetros por hora, e ao motor de avião. Isso lhe deu forças para dizer as frases que vinha preparando há vinte e cinco anos, em sua vida de empregado subalterno. Arrastado pela Flaemmchen para o meio da sala, falou em voz alta, virando a cabeça para trás:

— Quem sabe se o mundo pertence só ao senhor, hein, Herr Preysing? O senhor será diferente de mim? Quem sabe se as pessoas como eu não têm o direito de viver?

— Que é isso, que é isso! — exclamou a Flaemmchen. — Aqui não se fala aos berros, aqui se dança. E agora, não olhe para os pés, olhe para o meu rosto, e vá andando, vá andando calmamente, vou guiá-lo.

— Mas que impostor! — rangeu Preysing por entre os dentes, por trás deles. E ficou diante da mesa, trêmulo de cólera. Gaigern, a fumar, ouvindo essas palavras, sentiu um impulso raro, uma espécie de compassivo coleguismo, misturado a uma repulsa, violenta e sarcástica, pelo corpulento e suarento diretor-geral. "Era preciso colocar-lhe um par de sanguessugas na pele, amiguinho", pensou ele.

— Deixe que o pobre-diabo se divirta! — disse a meia voz. — Basta olhar para a cara dele para ver que está às portas da morte.

"Não lhe pedi nenhum conselho", pensou Preysing, mas não teve coragem de dizê-lo, porque sentia obscuramente a raça superior do barão.

— Peço-lhe o favor de dizer a Fräulein Flamm que a espero no hall, para um assunto urgente. Se ela não aparecer até as seis, dou o assunto por terminado — disse ele, curvando-se ligeiramente. Em seguida retirou-se.

Intimidada por esse ultimato, a Flaemmchen apareceu no hall três minutos antes das seis. Preysing ergueu-se das brasas ardentes em que estivera sentado nesse ínterim, e sorriu com profunda satisfação. Como ele sorria raramente, essa amabilidade o tornou mais bonito, e causou efeito imprevisto.

— Cá está a senhora — disse ele, estonteado.

Há muitas horas ele se contorcia, se martirizava, ardia, com um único pensamento: saber se a Flaemmchen era conquistável. Suas experiências com mulheres eram modestas, e datavam de muitos anos atrás. Dessa geração nova de mocinhas, ele fazia apenas uma ideia vaga, apesar de, nas reuniões masculinas, e em conversas íntimas nas viagens profissionais, dizerem com frequência que essa espécie de meninas era fácil de conquistar. Pôs-se a observar a Flaemmchen, as suas pernas cruzadas, com meias de seda, o colar de pedras de vidro imitando cristal, sua pintura, que ela nesse instante renovava, apertando os lábios, e ficou sem saber em que se basear, nessa pessoa despreocupada, para as suas suposições.

A Flaemmchen fechou o estojinho de pó de arroz e perguntou:

— Então, de que se trata?

Preysing apertou o charuto entre os dedos, e desembuchou:

— Trata-se do seguinte — começou ele: — preciso viajar para a Inglaterra, e preciso levar comigo uma secretária. Em primeiro lugar, por causa da correspondência; depois, porque desejaria ter com quem conversar durante a viagem. Sou muito nervoso, muito nervoso, mesmo — afirmou, apelando inconscientemente para a compaixão da moça —, e preciso ter alguém na viagem que se ocupe de mim. Não sei se a senhora me compreende. Ofereço-lhe um emprego de confiança, em que a senhora... em que..

— Já estou compreendendo — disse a Flaemmchen, baixinho, ao perceber a atrapalhação dele.

— Acho que nos daremos bem na viagem — afirmou Preysing.

O delicioso fluir e latejar do seu sangue nas veias diminuíra durante tão difíceis negociações, mas quando ele fitou a Flaemmchen consolou-se, sentindo que ela iria fazer com que tudo isso despertasse de novo, assim que o desejasse.

— A senhora contou-me que no ano passado também viajou com um cavalheiro, e isso me fez ter esta ideia... eu acho que seria muito agradável, se a senhora quisesse. A senhora quer?

A Flaemmchen pensou durante cinco longos minutos.

— Preciso pensar primeiro — respondeu ela, com expressão ajuizada e preocupada, fumando o seu indefectível cigarro. — Para a Inglaterra? — perguntou depois. A cor moreno-dourada da sua pele clareou um pouco, o que talvez significasse que empalidecera. — Ainda não conheço a Inglaterra. E por quanto tempo?

— Por... não sei lhe dizer ainda com exatidão. Isso depende. Se os meus negócios lá correrem bem, tiro talvez mais catorze dias de férias, e podemos ficar em Londres, ou ir para Paris.

— Bom, pode-se arranjar; já sei mais ou menos do que se trata, pelas cartas — disse a Flaemmchen com segurança.

O otimismo era o elemento em que ela se movia. Preysing sentiu-se animado ao perceber que ela estava a par dos seus negócios, e profetizava o sucesso.

— A senhora ainda precisa me dizer quanto quer de ordenado — declarou ele, com o tom de quem dizia um galanteio.

Desta vez demorou mais, até que a Flaemmchen respondesse. Tinha que fazer um extenso balanço. A renúncia à aventura principiada com o belo barão se incluía nele, os pesados cinquenta anos de Preysing, sua gordura, seu fôlego curto. Pequenas dívidas aqui e ali. A necessidade de roupa de baixo nova, de sapatos bonitos — os azuis não iam durar muito. O pequeno capital de que necessitava para iniciar carreira no cinema, na revista, em qualquer parte. A Flaemmchen pesou calmamente e sem sentimentalismo a oportunidade do negócio que lhe era proposto.

— Mil marcos — disse ela, achando que era suficiente; não tinha ilusões a respeito das quantias que hoje em dia se depunham aos pés das mulheres bonitas. — Talvez um pouquinho mais para a roupa de viagem — acrescentou, um pouco mais tímida do que de costume. — O senhor há de querer que eu tenha uma bonita aparência...

— Para isso a senhora não precisa se vestir. Pelo contrário — disse Preysing, excitado. Ele julgou que tinha dito uma frase espirituosa. A Flaemmchen sorria melancolicamente, o que deu um aspecto estranho à sua saudável carinha de amor-perfeito. — Então está combinado? -— perguntou Preysing. — Amanhã ainda tenho umas coisas a fazer aqui; é preciso também arranjar os passaportes, e poderemos viajar depois de amanhã. Está contente por ir conhecer a Inglaterra?

— Muito — respondeu a Flaemmchen. — Então amanhã eu trago a minha máquina de escrever portátil e o senhor pode ir logo ditando.

— E hoje à noite... se a senhora concordar... pensei que hoje à noite poderíamos ir a um teatro... Temos que tomar um copo de vinho para festejar o nosso contrato, não é? O que acha?

— Hoje, já? — disse a Flaemmchen. — Bom. Hoje, já.

Ela soprou o seu caracolzinho para cima, e atirou o cigarro amassado no cinzeiro. Podia ouvir perfeitamente a música do pavilhão amarelo. "Não se pode ter tudo", pensou. "Mil marcos. Vestidos novos. E Londres também não é para desprezar."

— Preciso telefonar para minha irmã — disse ela, levantando-se. Preysing sentiu-se percorrido por uma onda de calor, apaixonada e grata, que o inundou completamente; colocou-se então por trás dela e pegou delicadamente, com ambas as mãos, seus cotovelos, que ela apertava de encontro ao corpo.

— Quer ser boazinha para mim? — perguntou ele em voz baixa.

E igualmente baixinho, com os olhos voltados para a passadeira cor de amora, a Flaemmchen respondeu:

— Se não tiver muita pressa...

7

 

O chá com veronal esfriara. A Grussinskaia sorriu ligeiramente, mas quando o percebeu, parou de sorrir e perguntou com ar severo:

— Quem o deixou entrar? A criada de quarto? Ou a Suzette? Como conseguiu entrar?

Gaigern tentou um golpe arriscado. Apontou por sobre o ombro para a atmosfera noturna da rua.

— Por ali — disse ele. — Vim do balcão do meu quarto.

De novo a Grussinskaia teve a impressão de já ter passado por aventura semelhante. De repente, veio-lhe a recordação. Num dos castelinhos de veraneio, no sul, em Abas-Tuman, aonde o Grão-Duque Serguei costumava levá-la, escondera-se certa noite em seu quarto um homem, um oficial bem jovem ainda. Arriscara a vida nessa tentativa; mais tarde ele veio de fato a falecer num acidente de caça pouco esclarecido. Isso tinha acontecido pelo menos há trinta anos. Enquanto a Grussinskaia ia para o balcão e olhava na direção em que a mão de Gaigern apontava, de repente o passado se apresentou de novo com toda a clareza. Ela via o rosto do jovem oficial. Chamava-se Pavel Jerilinkov. Lembrou-se de seus olhos e de alguns beijos. Estava enregelada, e sentiu que o homem ao lado dela no balcãozinho irradiava calor. Olhou rapidamente para os sete metros da fachada do hotel, que ficavam entre o balcão do seu quarto e o do quarto vizinho.

— Mas isso é perigoso — observou ela inadvertidamente, recordando-se mais de Jerilinkov do que pensando no momento presente.

— Não é tanto assim — replicou Gaigern.

— Está fazendo frio. Feche a porta — disse a Grussinskaia, passando depressa diante dele e entrando de novo no quarto. Gaigern obedeceu, e foi caminhando atrás dela; fechou a porta, puxou as duas cortinas, e depois ficou com as mãos pendentes: não passava de um jovem belíssimo, modesto mas um pouco amalucado, que fazia garotices românticas, para entrar no quarto de uma bailarina célebre. Afinal de contas, ele também possuía um pouco de talento para ator, o que era uma exigência da sua profissão. E agora representava, por uma questão de vida ou de morte. A Grussinskaia curvou-se, levantou o traje de ballet que atirara no chão, e o levou para o banheiro. A gota de sangue, de contas vermelhas de vidro lapidado, cintilou. Ela sentiu uma dor cortante e aguda. Nenhum da capo. Nenhum escândalo, quando uma outra dançava. Um público cruel. Berlim era cruel. Solidão cruel. Ela já havia sobrepujado um pouquinho essa dor — e agora a dor a acometia de novo, causando-lhe uma angústia no peito. Durante alguns segundos esqueceu-se por completo do intruso, que se parecia com o falecido Jerilinkov, mas de repente virou-se para ele e perguntou, sem olhá-lo:

— Por que fez isso? Por que faz coisas perigosas? Por que está escondido no meu quarto? Deseja alguma coisa de mim?

Gaigern fez uma investida e preparou-se para o ataque. — "Hop-là, avante!", pensou Gaigern. Não ergueu os olhos para ela.

— A senhora já sabe a razão, é porque a amo — respondeu em voz baixa.

Disse isso em francês, porque se o dissesse em alemão teria sido extremamente penoso. Depois ficou esperando em silêncio pelo resultado. "É simplesmente idiota", pensou ao mesmo tempo. Essa comédia lhe causava uma vergonha atroz, humilhante. Tinha horror de tudo o que feria o bom gosto. De qualquer modo, se ela não chamasse pelo camareiro, talvez ele estivesse salvo.

A Grussinskaia engoliu essas breves palavras francesas com a boca bem aberta. Absorveu-as como um remédio; dentro de poucos segundos até o tremor de frio cessou. Pobre Grussinskaia! Há muitos anos que ninguém lhe dizia coisa semelhante. Sua vida corria diante dela como um trem expresso vazio. Ensaios, trabalho, contratos, carros-dormitórios, quartos de hotel, excitação no palco, uma excitação cruel, e mais trabalho e mais ensaios. Sucesso, fracasso, críticas, entrevistas, recepções oficiais, discussões com empresários. Três horas de exercícios de solista, quatro horas de ensaios de ballet, quatro horas de espetáculo; os dias se seguiam um ao outro sempre iguais. O velho Pimenoff. O velho Witte. A velha Suzette. A não ser essas pessoas, mais ninguém, nenhum calor, nunca, nunca. Colocava as mãos nos canos de aquecimento central dos hotéis, e pronto. E depois, quando estava tudo terminado, quando o fim de tudo e da vida estava iminente, encontrava-se um homem à noite no quarto, e esse homem pronunciava palavras há muito desaparecidas, de que outrora

o mundo estivera repleto. A Grussinskaia não suportava mais. Sentia um sofrimento atroz, como se estivesse prestes a dar à luz. Mas foram apenas duas lágrimas que finalmente brotaram da tensão dessa noite, e ela as sentiu em seu corpo inteiro, nos artelhos e nas pontas dos dedos das mãos, depois no coração, e por fim elas chegaram aos seus olhos; rolaram pelas longas e rígidas pestanas pretas de pintura, caindo nas palmas abertas de suas mãos.

Gaigern assistiu à evolução desse fenômeno, e encheu-se de calor. "Pobre animalzinho", pensou ele. "Pobre bichinha. Está chorando, agora. Que coisa idiota!"

Depois que a Grussinskaia deu à luz essas duas lágrimas dolorosas, a coisa se tornou mais fácil. Começou com um leve aguaceiro, ao mesmo tempo cálido e fresco como uma chuva de verão — Gaigern pôs-se a pensar nos canteiros de hortênsias do jardim de Ried, sem saber por quê. Depois, esse aguaceiro se transformou numa torrente apaixonada, uma torrente negra, porque a pintura das sobrancelhas se dissolveu por completo. E, por fim, a Grussinskaia atirou-se ao leito, soluçando um tropel de palavras russas nas mãos em concha, que conservava encostadas à boca. Gaigern, ao assistir a essa cena, transformou-se. De ladrão de hotel, prestes a tirar a vida de uma mulher, passou a ser simplesmente um homem, um sujeito grandão, simples e bondoso, que não podia ver uma mulher chorar sem querer auxiliá-la. Agora não sentia mais medo, absolutamente nenhum; agora, o que o fazia sentir o coração pequeno e palpitante era a simples compaixão. Inclinou-se sobre o leito, pondo os braços dos dois lados do pequenino corpo a soluçar, e assim, curvado sobre a Grussinskaia, principiou a sussurrar em meio aos seus soluços. Não era nada de especial o que ele dizia; com as mesmas palavras teria consolado uma criança a chorar, ou um cão enfermo.

— Coitadinha — foi mais ou menos o que ele disse —, pobrezinha, pobrezinha da Grussinskaia, ela está chorando. Faz bem chorar assim, faz? Pois então chore, pode chorar. Que foi que lhe fizeram? Foram maus para você? Você gosta que eu esteja ao seu lado? Posso ficar aqui? Está com medo? É por isso que está chorando, é? Você... bobinha!

Levantou um dos braços que apoiara ao leito, tirou da boca da Grussinskaia as mãos que ela apertava de encontro aos lábios e beijou-as; estavam molhadas de lágrimas e pretas como as de uma menininha; seu rosto também estava todo lambuzado das lágrimas negras caídas dos seus olhos pintados. Gaigern não pôde deixar de rir. Apesar de continuar a chorar, a Grussinskaia viu o movimento bondoso, próprio dos homens fortes, o movimento de ombros que fazem quando riem. Gaigern afastara-se do leito e tinha ido ao banheiro. Voltou com uma esponja e enxugou com muito cuidado o rosto da bailarina; tinha trazido também um lenço. A Grussinskaia tinha parado de chorar, e conservou-se deitada tranqüilamente, enquanto ele lhe limpava o rosto. Gaigern sentou-se à beira da cama e sorriu para ela.

— E então? — perguntou ele.

A Grussinskaia murmurou qualquer coisa que ele não compreendeu.

— Fale em alemão — pediu Gaigern.

— Você... criatura... — sussurrou a Grussinskaia.

Essas palavras o comoveram. Chocaram-se de encontro ao seu coração como uma bolinha de tênis atirada com força, e quase o magoaram. As damas com as quais ele tinha relações não costumavam usar palavras carinhosas. Para elas, a gente se chamava coisinha, menininho, queridinho, ou "o barão grandão". Gaigern percebeu o sentimento contido nesse apelo, que despertou em seu íntimo recordações da infância, vindas de uma esfera que ele abandonara. Afastou-o de si. "Se ao menos eu tivesse um cigarro", pensou ele, cheio de languidez. A Grussinskaia tinha olhado para ele um momento, com um olhar que exprimia confusão e quase felicidade. Depois ela se sentou, estendeu seus longos artelhos à procura dos chinelos que haviam caído e de repente se transformou em uma senhora.

— Ora essa! — disse ela. — Que sentimentalismo! A Grussinskaia está chorando? Como? É uma coisa que vale a pena ver. Há muito tempo, há anos que ela não chorava. Monsieur me assustou. Monsieur é o culpado por esta triste cena.

Falava na terceira pessoa, queria criar distância, retirar o repentino "você", mas esse homem já estava muito próximo dela, para que o pudesse chamar de "senhor". Gaigern nada pôde responder.

— É horrível como o teatro ataca os nervos — continuou ela em alemão, com a impressão de que ele não a tinha compreendido. —- Disciplina! Isso sim, disciplina nós temos. A disciplina é um coisa penosa e difícil. Disciplina é fazer sempre o que não se deseja, como posso explicar... o que a gente não gosta de fazer. Você sabe o que significa ficar exausto por excesso de disciplina?

— Eu? Eu não. Faço sempre o que quero — disse Gaigern.

A Grussinskaia ergueu a mão, com um gesto em que todas as Graças haviam retornado.

— Sim, monsieur. Sente-se vontade de entrar no quarto de uma senhora... e entra-se. Sente-se vontade de pular varandas, com risco de vida... e faz-se o que se quer. E qual é o desejo de monsieur, agora?

— Eu gostaria de fumar — respondeu Gaigern francamente. A Grussinskaia esperava outra resposta, e achou que o pedido era cavalheiresco e gentil. Foi até a escrivaninha e ofereceu a Gaigern sua pequena cigarreira. Com o quimono chinês, já muito usado, mas legítimo, e os chinelos acalcanhados, tinha a mesma aparência de há vinte anos, quando viajava por todos os continentes, cheia de uma graciosidade cristalina e tilintante. Parecia ter-se esquecido de seus olhos avermelhados, e de seu aspecto lamentável.

— Pois então fumemos o cachimbo da paz — disse ela, erguendo para Gaigern as pálpebras amarfanhadas. — E depois faremos a nossa despedida!

Gaigern tragou avidamente a fumaça pelo nariz e pelo pulmão. Sentiu-se aliviado, apesar de sua situação ser ainda delicada. Não podia abandonar esse quarto com as pérolas no bolso, quanto a isso não havia dúvidas. Se conservasse as pérolas, agora que conhecia a bailarina, teria que fugir nessa mesma noite, e no dia seguinte pela manhã a polícia o estaria perseguindo. Isso não fazia absolutamente parte dos seus planos. Agora tratava-se de ficar ali a qualquer preço, até que as pérolas pudessem retornar ao seu estojo. A Grussinskaia sentara-se diante do espelho e empoava o rosto, com expressão séria. Esfregou alguns riscos e pontinhos da pele e ficou novamente linda. Gaigern aproximou-se dela, pondo-se, com seu grande vulto entre a suitcase vazia e a mulher. Fitando seus ombros, ele dirigiu-lhe um sorriso tentador, doce como mel.

— Por que esse sorriso? — perguntou ela ao espelho.

— Porque vejo no espelho uma coisa que você não pode ver — disse Gaigern.

Dizia simplesmente: "você". O cigarro lhe tinha dado coragem, e ele se animou. "Avante", pensou ele, encorajando-se.

— Estou vendo de novo o que estava vendo há pouco, lá do balcão — disse ele inclinando-se sobre a mulher —, estou vendo no espelho uma mulher belíssima, como nunca vi outra igual. Essa mulher está triste. E está nua... Ela é... não, não posso dizê-lo, isso me faz ficar louco. Não sabia que era tão perigoso espiar em um quarto alheio uma mulher que se despe.

E, realmente, enquanto Gaigern formava no seu francês convencional essas frases galantes, via a imagem da Grussinskaia no espelho, como há pouco, e sentia ao vê-la a mesma admiração e o mesmo calor que sentira no balcão. A Grussinskaia ouviu-o atenta e com expressão inquiridora. "Como me tornei fria", pensou com tristeza, percebendo que não estremecia ao ouvir aquelas palavras entusiásticas. Sentia a intensa vergonha das mulheres frias. Voltou-se para Gaigern com um movimento elegante e calculado do longo pescoço. Gaigern segurou os pequenos ombros da mulher com suas mãos quentes e hábeis, e em seguida beijou-a no lindo sulco entre as omoplatas, como um conhecedor.

Esse beijo, principiado com frieza entre dois corpos estranhos, prolongou-se. Mergulhou como uma agulhazinha quente na espinha dorsal da mulher, cujo coração começou a palpitar com força. Seu sangue correu mais pesado e doce; sim, esse coração que já esfriara agora palpitava, e começou a vibrar; seus olhos se fecharam; ela tremia. Gaigern tremia também, quando a largou e endireitou o corpo; uma veia intumesceu, muito azul, na sua testa. De repente sentiu a Grussinskaia dentro dele. inteirinha, sua pele, seu perfume acre, seu estremecimento ansioso de prazer, que fora despertando aos poucos. "Com os diabos!", pensou ele de repente. Suas mãos estavam cheias de avidez, e ele as estendeu.

— Eu acho que o senhor deve retirar-se agora — disse a Grussinskaia com voz fraca, à imagem do moço no espelho. — A chave está na porta.

Sim, lá estava a malfadada chave; agora era possível retirar-se quando quisesse. Mas Gaigern não desejava retirar-se — por várias razões.

— Não — disse ele, com súbito sentimento de dominador, como o macho de uma pequenina mulher, trêmula como um violino a vibrar. — Não vou embora. Você sabe que não vou. Você pensa realmente que vou deixá-la agora aqui sozinha? Que vou abandoná-la ao lado de uma xícara de chá cheia de veronal? Você pensa que eu ignoro o que se passa com você? Eu vou ficar aqui. Está dito.

— Está dito? Está dito? Mas eu quero ficar sozinha....

Gaigern aproximou-se rapidamente da Grussinskaia, que estava de pé no meio do quarto, e puxou até seu peito os pulsos da bailarina.

— Não — disse ele com veemência. — Isso não é verdade. Você não quer ficar sozinha. Você tem um medo pavoroso de ficar sozinha, percebo perfeitamente o medo que você sente. Sei o que você está sentindo, eu a conheço, pequerrucha, mulher estranha. Você está representando uma pequena comédia para me enganar. O seu cenário é de vidro, eu vejo através dele. Há pouco você estava desesperada. Peça para eu ficar com você, peça!

Pôs-se a sacudir as mãos dela. Segurou-a pelos ombros e sacudiu-a. Pela dor que sentiu, ela pôde perceber a excitação do moço; Jerilinkov havia implorado, lembrou-se ela; este ordenava. Fraca e aliviada, ela deixou cair a cabeça sobre o peito coberto pelo pijama de seda azul.

— Sim, fique mais um minuto — murmurou ela. Gaigern, a olhar por cima de seus cabelos, respirava ofegante, soltando o ar por entre os dentes cerrados. Sua tensão de medo começou a se distender; um turbilhão de imagens desfilou rapidamente, cinematograficamente, diante dele; a Grussinskaia, morta em seu leito, com uma dose violenta de veronal no sangue, ele a fugir pelos telhados, investigações na casa de Springe, penitenciária — ele não fazia a menor ideia do aspecto de uma penitenciária, no entanto enxergava tudo perfeitamente, e também viu sua mãe, morrendo de novo, apesar de já estar morta há muito tempo. Quando voltou ao quarto 68, o medo e o perigo já vencidos transformaram-se de repente em embriaguez. Tomou nos braços o corpo leve da Grussinskaia, levou-o até a cama, onde a deitou como uma criança.

— Venha, venha, venha — murmurou ele de encontro às fontes da mulher, com uma voz subitamente grave e profunda.

A Grussinskaia há muito tempo não sentia o próprio corpo, e agora estava sentindo-o. Durante muitos anos não fora mulher, e agora sentia-se mulher. Um céu negro e sonoro começou a girar sobre ela, e ela se atirou nele com ímpeto. Um gemido brando de passarinho, expelido por uma boca entreaberta, transportou Gaigern, de uma fingida paixão, a profundidades de prazer que ele desconhecia. A xícara de chá, na mesa do hotel, estremecia de leve todas as vezes que passava algum automóvel. Primeiramente, a luz branca do lustre se refletiu no líquido envenenado; depois, apenas o vermelho da lâmpada de cabeceira, depois apenas a luz cambiante do anúncio móvel que penetrava pelas cortinas. Dois relógios apostavam corrida; o elevador rangia no corredor; a torre longínqua da igreja badalou uma hora, por entre as buzinas noturnas dos automóveis — e dez minutos mais tarde já cintilavam novamente os refletores, na fachada do Grande Hotel.

— Você está dormindo?

— Não!

— Está bem acomodado?

— Estou.

— Agora você está de olhos abertos. Sinto suas pestanas no meu braço, quando você abre e fecha os olhos. Que engraçado! Um homem tão grande, com pestanas de criança. Diga-me, você está satisfeito?

— Nunca me senti tão feliz como agora.

— Que é que você disse?

— Nunca me senti tão feliz com uma mulher como agora.

— Repita isso de novo, repita!

— Nunca me senti tão feliz — murmurou Gaigern de encontro à carne fresca e branca do braço em que sua cabeça repousava. Ele estava dizendo a verdade. Sentia-se indescritivelmente repousado e agradecido. Nunca sentira coisa semelhante em suas aventuras de amor barato; essa embriaguez sem ressaibos, esse repouso trêmulo após o amplexo, essa profunda confiança do próprio corpo em outro corpo. Seus membros repousavam, distendidos e satisfeitos, ao lado dos membros da mulher; havia profunda compreensão mútua entre a pele dela e a sua. Sentia qualquer coisa que não tinha nome, nem mesmo o nome de amor: um retorno, após prolongada ausência. Ele ainda era jovem, mas nos braços da Grussinskaia, já perto da velhice, sob a ação de suas carícias amorosas, suaves, conscientes e delicadas, tornava-se mais jovem ainda.

— Que pena... — murmura de encontro ao braço da mulher; levanta um pouco a cabeça, e a pousa no ninho da axila da companheira, um pequenino e cálido lar, com aroma de mãe e de prado.

— Pelo seu perfume eu a encontraria em qualquer parte do mundo, de olhos vendados — diz ele, farejando como um cãozinho. — Que perfume é esse?

— Deixe disso, e diga-me: pena por quê? Você... Deixe esse perfume... tem o nome de uma florzinha que cresce nas campinas: Neuwjada. Não sei como se chama em alemão. Tomilho? É feito em Paris para mim. Diga, pena por quê?

— Pena que se comece sempre com a mulher errada. Que se continue idiota durante uma infinidade de noites, pensando que é assim que se goza, que o prazer é essa coisa corrupta, e depois fria e desagradável como um estômago enjoado. E é pena que a primeira mulher com quem dormi não tivesse sido como você.

— Deixe disso... menino mimado — murmura a Grussinskaia, pousando os lábios nos cabelos dele, naquela peliça dura, espessa e quente, cheirando a macho e a cigarro, sempre bem penteada e alisada, e agora completamente em desordem. Ele roça com as pontas dos dedos, a respirar docemente, o flanco da sua companheira.

— Sabe? Você é tão leve! Levíssima! Um pouco de espuma numa taça de champanha — diz ele com carinho e admiração.

— Pois é. É preciso ser leve — responde a Grussinskaia.

— Estou com vontade de vê-la, agora. Posso acender a luz?

— Não, não! — exclama ela afastando dele o ombro. Ele percebe que a assustou, que assustou essa mulher, cuja idade ninguém sabe com certeza. Sente novamente uma compaixão simples e espontânea. Vai escorregando o corpo para junto dela, e por fim os dois ficam em silêncio, pensando. A luz da rua paira no forro, como um reflexo, estreito e agudo como uma espada, penetrando no quarto pela abertura das cortinas. Quando passa lá embaixo um automóvel uma sombra se espalha rápida no reflexo do forro.

"As pérolas", pensa Gaigern, "para o diabo. Se eu tiver sorte e tudo correr bem, posso metê-las de novo no estojo, quando ela dormir. Vai haver um escândalo com o meu pessoal, se eu for me encontrar com eles sem as pérolas. Contanto que o chofer não faça alguma loucura, contanto que esse animal não tome hoje de noite uma bebedeira de raiva e me estrague tudo... Que azar! Só Deus sabe onde é que vamos arranjar dinheiro, agora. Talvez seja possível sangrar esse herdeiro de província, que geme durante a noite no quarto ao lado, no -70. Ora! Que diabo! Não adianta ficar pensando nisso. Talvez eu possa simplesmente lhe pedir as pérolas. Talvez amanhã eu lhe conte simplesmente do que se trata. Se eu souber fazer as coisas direitinho, não será ela quem me mandará prender amanhã, não fará isso, essa pequerrucha leve e maluca. Deixar as pérolas rolando, numa maleta aberta! Que mulher engraçada, agora eu a conheço. Nem se importa com pérolas! Para ela, nada tem importância, tudo é indiferente. Se eu não tivesse aparecido, ela já não precisaria mais se incomodar com as joias. Para que ainda precisa de pérolas? Deve me fazer presente das pérolas, ela é tão boa... Ah, como é boa! Parece uma mãe, uma minúscula mamãezinha, com quem a gente pode dormir."

A Grussinskaia pensa: "Às onze horas o trem parte para Praga. Contanto que esteja tudo em ordem! Hoje eu abandonei tudo, e amanhã nada estará em ordem. Pimenoff é muito mole para lidar com a troupe; as meninas o levam pela ponta do nariz. Mas quem perder o trem amanhã será despedido, com certeza. Se Pimenoff esta noite não se preocupou com os cenários, amanhã eles não estarão empacotados; os empregados do palco deveriam ter trabalhado horas extras à noite. Mas as coisas que eu não faço ficam sempre por fazer. E as contas a acertar com Meyerheim? Meu Deus, como é possível que eu tenha abandonado tudo? Witte, se a gente não presta atenção nele, esquece até a própria cabeça no hotel. Preciso sempre pensar por todos, e esta noite não estive lá. Vai haver uma débâcle horrorosa. A Lucille há muito tempo que tem vontade de se revoltar. Para vocês nunca são suficientemente grandes as letras dos seus nomes nos cartazes, não é verdade? Sua propaganda nunca é bem feita. Mas vocês, sozinhos, não fazem nada, é preciso fazê-los trabalhar com o knut, para que vocês se conservem em forma. Vocês me fizeram ficar má, convencida e cansada. Meu Deus, como eu estava cansada ontem... Faltou muito pouco para vocês verem se são capazes de alguma coisa sem a Grussinskaia. Mas agora não me sinto cansada, agora poderia me levantar e dançar todo o programa, ou mesmo um outro programa, um bailado novo. Preciso falar com Pimenoff, ele precisa criar um novo bailado: a dança do medo. Oh, essa dança eu poderia dançar agora para vocês. Primeiro num lugar só, apenas um tremor, e depois três círculos nas pontas, ou mesmo sem ser nas pontas, talvez uma coisa completamente diferente.

''Mas estou viva", pensa ela, abalada, "estou viva, e vou criar novos bailados, vou ter sucesso. Uma mulher que é amada tem sempre sucesso. Vocês me fizeram passar fome desde... há mais de dez anos, foi isso. É estranho que um bobinho que pulou o balcão para vir aqui possa dar à gente tanta energia! Um rapaz simpático, que do amor só conhece o jargon das mocinhas..."

Ela puxa o cobertor e cobre Gaigern, como se ele fosse uma criancinha. Ele sussurra, agradecido, faz-se pequenino e fraco, e enfia o nariz na carne dela. Seus corpos já se conhecem, mas seus pensamentos se distanciam para lados distintos, dentro da noite. Em todos os leitos do mundo, os amantes ficam deitados muito unidos, mas tão separados!...

É a mulher quem primeiro procura adivinhar o que se passa na outra alma. Toma a cabeça do homem nas mãos, como se fosse um fruto grande e pesado colhido ao sol, e murmura em seu ouvido:

— Eu ainda não sei como você se chama, meu amigo.

— Costumam chamar-me de Felix. Meu nome todo é: Felix Amadei Benvenuto, Barão von Gaigern. Mas você precisa me dar um novo nome, precisa me batizar também. Quero ter um nome dado por você.

A Grussinskaia pensa um pouco, depois dá uma risadinha.

— Sua mãe devia ter esperado muita coisa de você, quando você nasceu, para lhe dar nomes tão bonitos — disse ela. — O venturoso. O amado de Deus. O bem-vindo. Você chorou ao ser batizado?

— Não me lembro muito bem.

— Ah! Sabe? Eu também tenho uma filha. Que idade você tem, Benvenuto?

— Hoje, tenho dezessete anos, de novo. Estou pela primeira vez com uma mulher. Mas minha idade comum é trinta anos.

Aumentou um pouco a idade, por estranha delicadeza para com a mulher que sente medo da luz elétrica e da própria idade. Apesar disso, ela se sente magoada. "Ele poderia ser o pai do meu neto Pompon, de oito anos", pensa a Grussinskaia sem querer. "Passons!", ordena a si mesma.

— Como era você em criança? Muito bonito? Ah, é claro, era muito bonito.

— Simplesmente encantador. Cheio de sardas, de galos e arranhões, e muitas vezes cheio de piolhos também. Tínhamos ciganos para tratar dos nossos cavalos; isso é muito comum na fronteira, onde ficava a nossa propriedade. Os meninos ciganos eram meus amigos. Eles me passavam toda espécie de bichos e de sarna. Quando me lembro da minha infância, sinto sempre um cheiro de estéreo de cavalo. Depois me tornei durante alguns anos o terror de vários companheiros de seminário. Por fim estive por pouco tempo na guerra. Da guerra eu gostei. Na guerra eu me senti em casa. Por mim, tudo podia ter sido muito pior do que foi. Se houver guerra de novo, tudo estará bem para mim, novamente.

— Agora as coisas não vão bem para você, seu condottiere? Que vida você leva? Que espécie de indivíduo é você?

— E você? Que espécie de mulher é? Nunca conheci nenhuma como você. Em geral as mulheres não têm muitos segredos. Mas a você tenho curiosidade de conhecer, preciso perguntar-lhe muitas coisas. Você é muito diferente das outras.

— Sou apenas antiquada. Sou de um outro mundo", de um século diferente do seu, é apenas isso — disse a Grussinskaia com voz sonhadora. Ao mesmo tempo sorriu nas trevas, e lágrimas ardentes lhe vieram aos olhos. — Educaram-nos como soldadinhos, a nós, bailarinas, com severidade, com pulso de ferro, no Instituto de Ballet Imperial de São Petersburgo. Pequenos regimentos de recrutas para o leito dos grão-duques, é o que nós éramos. Dizem que, nas meninas que aos quinze anos começavam a engordar, colocavam argolas de aço em volta dos seios, para que eles não crescessem mais. Eu era pequena e magra, mas dura como um diamante. Orgulhosa, sabe; tinha o orgulho no sangue, como pimenta e sal. Uma máquina do dever, trabalhando, trabalhando, trabalhando. Sem descanso, sem tempo para descansar, nunca! E depois: quem se torna célebre fica completamente só. Com o sucesso, a gente se sente gelada e solitária como no pólo norte. Sabe o que significa ter sempre sucesso, durante três, cinco, dez, vinte anos, sempre, sempre? Mas o que é que eu lhe estou contando? Você está me compreendendo? Ouça: muitas vezes a gente passa por uma estação de estrada de ferro, ou à noite passa de automóvel por uma pequena cidade. As famílias estão sentadas diante das portas, todos muito rígidos, com cara de idiota, com as manoplas pousadas no colo, e ninguém se move. É isso, veja, é isso! É isso o que nós desejamos: sentirmo-nos fatigados, e ficar simplesmente sentados, com as mãos imóveis, pousadas no colo. Mas se você for uma pessoa célebre, procure desaparecer do mundo, descanse, deixe que as outras bailarinas dancem, essas alemãs feias e com luxações nos músculos, essas negras, toda essa gente que não sabe nada; deixe que elas dancem, descanse! Veja, Benvenuto, isso não é possível, é absolutamente impossível. Odeia-se o trabalho, amaldiçoa-se o trabalho, mas não se pode existir sem o trabalho. Três dias de descanso, e vem o medo: vou perder a forma, estou ficando pesada, minha técnica está indo embora. É preciso dançar, como uma loucura, nem a morfina e a cocaína, nenhum vício no mundo é tão venenoso como o trabalho e o sucesso, acredite-me. É preciso dançar, somos obrigados a dançar. E isso também é importante. Se eu parar de dançar, não existe mais ninguém no mundo que saiba realmente dançar, acredite-me. Todas as outras são diletantes; mas é preciso que haja alguém que saiba dançar, que saiba o que significa a dança, em meio a um realismo histérico, horrível! Eu aprendi com as antigas celebridades; com a Kocressínskaia, com a Trefilovna, e elas, por sua vez, aprenderam com os grandes do bailado, há quarenta, há sessenta anos. Às vezes tenho a impressão de que tenho de dançar contra o mundo inteiro, contra o brado de "atualidade!" De um lado, estão vocês, um teatro repleto de ganhadores da vida e homens-máquinas, participantes da guerra e acionistas... e do outro, estou eu. Uma pobre e pequenina Grussinskaia, velha, não é verdade? Tão sentimental, tão antiquada, com os seus passos já conhecidos há duzentos anos. E, no entanto, eu os atraio ainda, e vocês choram, riem, desesperam-se e extasiam-se; e tudo por quê? Por causa desse balezinho fora da moda? Será tão importante, isso? Certamente, porque só tem sucesso mundial aquilo que tem importância para o mundo, aquilo de que o mundo precisa. Mas, ao lado disso, tudo se despedaça, dentro de nós nada mais resta. Nem marido, nem filhos, nenhum sentimento, nenhum conteúdo. Deixamos de ser indivíduos humanos como os outros, compreende? Não somos mulheres, somos apenas uma migalha esgotada de responsabilidade, que perambula pelo mundo. No dia em que termina o sucesso, no dia em que perdemos a crença de que somos indispensáveis, a vida acaba para nós. Você está me ouvindo? Está me compreendendo? Gostaria tanto que você me compreendesse — disse a Grussinskaia, em tom implorante.

— Não compreendi tudo... mas quase tudo. Você fala francês muito depressa — respondeu Gaigern.

Durante os meses em que ficou à espreita, atrás das pérolas, ele frequentou inúmeras vezes os espetáculos de ballet da Grussinskaia, aborrecendo-se sempre, em geral. Ficou profundamente admirado ao saber que a Grussinskaia, conforme parecia, arrastava consigo, como um martírio, os rodopios do ballet. Ela está colada com tanta leveza às coxas de Gaigern, tem uma vozinha delicada, com um gorjeio colorido e modulado e fala coisas tão sérias!... Que se pode responder a isso? Ele suspira. Fica pensando.

— Foi muito bonito o que você disse das pessoas à noite, com as mãos imóveis. Você devia dançar isso — declarou ele finalmente, confuso.

A Grussinskaia contentou-se em rir.

— Dançar isso? Mas não se pode dançar uma coisa assim, monsieur. A não ser que me queiram ver no papel de uma velha com um pano na cabeça, com gota nos dedos, dura como um pau, apenas repousando...

Cortou a frase no meio. Enquanto falava, seu corpo já tinha se apossado da imagem, contraindo-se e enrijecendo. Ela já estava vendo o cenário, conhecia um jovem pintor amalucado, em Paris, que poderia pintar uma coisa assim; já via o bailado, já o sentia nas mãos e na nuca curvada. Ficou calada, com a boca entreaberta, na escuridão. Nem respirava, tal a excitação que sentia. O quarto se encheu de personagens que ela nunca dançara, e que poderiam ser dançadas, de centenas de vultos reais e viventes. Uma mendiga a tremer, estendendo os braços, uma velha campônia dançando mais uma vez no casamento da filha... Diante de um balcão de feira encontrava-se uma mulher magra, apresentando umas míseras prestidigitações, uma prostituta esperava por homens sob uma lanterna. Uma menininha, que havia quebrado uma chave e levava uma surra; uma criança de quinze anos, que era forçada a dançar nua diante de um homem imponente, enorme e cintilante, um senhor, um grão-duque, e também a espinhosa paródia de uma governanta; uma mulher que corria como se a estivessem perseguindo, apesar de não ser esse o caso; uma outra que queria dormir e não podia; uma que tinha medo de espelho; e ainda uma outra que bebia veneno e morria.

— Fique quieto... não diga nada... não se mexa — sussurrou a Grussinskaia olhando para o forro, em que se via a espada luminosa. O aposento adquirira o aspecto estranho e misterioso que os quartos de hotel às vezes gostam de apresentar. Lá embaixo os automóveis lançavam fumaça pelo escapamento, buzinavam, parecendo animais, porque a Liga dos Filantropos terminara a sua festa, e começava a saída pelo portão 2. A noite esfriou. Do turbilhão das ideias e dos rostos, a Grussinskaia voltou ao quarto com um leve arrepio. "Pimenoff vai pensar que eu estou louca, ele, com seus baileis de borboletas. Quem sabe se estou louca mesmo?" Da sua divagação de um minuto, havia retornado ao leito, como se voltasse de uma longa viagem. Gaigern ainda continuava deitado. Ela quase se assustou ao encontrar de novo o homem encostado ao seu ombro, com seus cabelos, suas mãos e sua respiração.

— Que espécie de homem é você? — perguntou ela mais uma vez, nas trevas, com o rosto bem sobre o dele. Ela sentia intimamente, nesse instante, o espanto de se encontrar tão próxima de uma coisa tão estranha e diferente dela. — Ontem eu ainda não o conhecia. Quem é você? — perguntou ela de encontro à cálida umidade da boca do homem.

Gaigern, que já estava quase adormecendo, deixou os dois braços tombarem sobre as costas da mulher, e ela teve a impressão de ser a esguia cadela galga de sua casa, a Biche.

— Eu? Não há muita coisa a contar — respondeu ele, obediente, mas sem abrir os olhos. — Sou um filho pródigo. Sou uma ovelha negra de um bom curral. Sou um mauvais sujet, e vou acabar na forca.

— É verdade? — perguntou ela, dando uma risadinha arrulhante.

— É verdade — disse Gaigern, convencido. Começara a cantarolar como uma ladainha, e por brincadeira, aquelas velhas frases e advertências dos professores do seminário; mas, ao perfume cálido de tomilho daquela cama, veio-lhe o desejo de confessar-se e de ser sincero.

— Sou um devasso — continuou ele a falar na escuridão. — Não tenho caráter, e sou de uma curiosidade incrível. Não consigo me adaptar a nada, sou um sujeito inútil. Em casa aprendi a montar e a ser o senhor. No seminário aprendi a rezar e a mentir. Na guerra, a atirar e a procurar pôr-me a salvo. Mais do que isso não sei fazer. Sou um cigano, um marginal, um aventureiro.

— Ah, você... E o que mais?

— Sou um jogador, e não me importo de fazer trapaças. Também já roubei. A bem dizer, eu devia estar é na prisão. Mas ando por aí, e me sinto às mil maravilhas, e faço tudo o que me dá na veneta fazer. Às vezes me embebedo também. E, além do mais, sou preguiçoso de nascença.

— Continue — murmurou a Grussinskaia, encantada. Sua garganta estava vibrando, de tanto conter o riso.

— Pois bem, sou um criminoso. Um homem que escala muros de fachadas — disse Gaigern, sonolento —, um assaltante.

— E que mais ainda? Talvez um assassino, também?

— Isso mesmo. É claro. Um assassino também. Estive a ponto de matá-la — afirmou ele.

A Grussinskaia ainda se riu, um pouco inclinada sobre o rosto de Gaigern, que ela sentia, apesar de não o ver, mas de repente ficou muito séria. Cruzou as mãos por detrás do pescoço dele e murmurou em surdina ao seu ouvido:

— Se você não tivesse vindo ontem, eu não estaria viva agora!

"Ontem?", pensou Gaigern. "Agora?" A noite no 68 parecia ter durado uma eternidade, devia ter sido há alguns anos que ele estivera no balcão e enxergara a mulher no quarto. Levou um susto. Apertou-a em seus braços com força, como um lutador de luta livre: os músculos flexíveis da bailarina resistiram — ele o sentiu com estranho prazer.

— Você nunca mais deve fazer uma coisa dessas.

Você tem de ficar aqui. Não a deixarei ir-se embora mais. Preciso de você — afirmou.

E ficou a ouvir a própria voz, ao pronunciar tão curiosas palavras, com uma voz diferente, rouca, que parecia provir do fundo palpitante de seu coração.

— Não, agora tudo mudou. Agora está tudo bem. Agora você está comigo — murmurou a Grussinskaia; mas Gaigern não a compreendeu, porque ela falou em russo.

Ele sorveu a entonação da sua voz, e a noite começou de novo a rumorejar. Pássaros de sonho saíram das trepadeiras da tapeçaria que forrava as paredes do hotel... O homem se esqueceu das pérolas no bolso do seu pijama azul e a mulher se esqueceu do insucesso e dos veronais na xícara de chá.

Nenhum dos dois se atreve a pronunciar esta palavra caduca: "amor". Juntos, deslizam no confuso turbilhão da noite de amor, passando dos abraços aos murmúrios, dos sussurros a um breve sono e aos sonhos, e dos sonhos a um novo abraço: duas pessoas vindas de dois pontos opostos do mundo, para encontrar-se por algumas horas no leito do quarto 68, onde tanta gente já dormiu...


8

 

Na vida da Grussinskaia o amor não havia representado um papel importante. Tudo o que o corpo e a alma possuíam de paixão fluía para a dança. Tinha tido alguns amantes, porque isso fazia parte da vida de uma bailarina célebre, assim como as pérolas, o automóvel, os vestidos das boas casas de moda de Paris e de Viena. Rodeada de admiradores, requisitada e perseguida por apaixonados, não acreditava apesar de tudo na existência do amor. Ele não lhe parecia mais real do que os cenários pintados, os templos de amor e as sebes de roseiras diante dos quais seus bailados eram executados. Apesar de permanecer fria e de não conseguir entusiasmar-se, passava por uma amante maravilhosa, única. Por seu lado, praticava o amor como um dever da sua profissão, como uma peça de teatro, por vezes agradável, mas sempre exaustiva, requerendo uma arte requintada. Toda a flexibilidade do seu corpo, seu flutuar etéreo, a sutilidade, o requinte, a delicadeza e a suavidade, o impulso e o arrojo, a emoção e a debilidade, todos os impecáveis requisitos da sua dança, ela levava consigo para os amigos com quem passava as noites. Sabia embriagar de prazer, mas não se embriagava a si mesma. Na dança, era capaz de enlouquecer, de esquecer-se de si própria, e por vezes seus partners ouviam-na soltar gritinhos abafados, como um passarinho, durante as posições mais difíceis e movimentadas. No amor, porém, nunca perdia a consciência de si mesma, estava sempre se observando. Era estranho: não acreditava no amor — e no entanto não podia viver sem amor.

Porque o amor — ela o sabia — era uma parte do sucesso. Enquanto fora jovem, e seu camarim transbordava de flores e de cartas, enquanto em todo o seu percurso os homens se postavam, prontos a arruinar-se, a fazer por ela qualquer espécie de loucura, a abandonar a fortuna e a família, ela sentia que o sucesso a bafejava. Nas confissões de amor, nas ameaças de suicídio, nas perseguições por toda parte, pelo valor dos presentes que recebia dos conquistadores podia-se perceber o sucesso, do mesmo modo que nos aplausos, nas críticas e no número de chamadas ao proscênio. Ela não o sabia, mas o amante que a encantava e lhe causava prazer era, a bem dizer, um público perante o qual ela tinha sucesso. E pela primeira vez percebeu, horrorizada, que o sucesso diminuía, quando Gaston a abandonou, para casar-se com uma moça sem muitos dotes, mas de boa família. A atmosfera que a rodeara durante anos esfriou e se tornou sombria, uma atmosfera noturna, incompreensível. Era uma escadaria que ia descendo por centenas de degrauzinhos, tão pequenos que quase não a deixavam aperceber-se dela. E, no entanto, era vastíssimo o caminho que conduzia aquela Grussinskaia de antes da guerra, que dançara para um mundo cheio de romantismo e de êxtase, à atual Grussinskaia, que mendigava um pouco de aplauso de um punhado de pessoas céticas, indiferentes e maldosas. O seu fim, como última consequência, era a completa solidão, e uma dose forte de veronal.

Por essa razão, o homem do balcão significava para a Grussinskaia mais do que um simples homem. Era um milagre que acontecia no último instante no 68, para salvá-la; era o sucesso evidente que a procurava; o mundo que penetrava cheio de ardor em seu quarto; era a prova de que os tempos românticos ainda não haviam passado, os tempos em que um jovem Jerilinkov se deixava matar com um tiro por ela. Ela se deixara cair, mas encontrara alguém que a erguia do solo.

Havia no programa da Grussinskaia um bailado em que a morte dançava um pas de deux com o amor; os poetas que lhe escreviam, por vezes, enviavam-lhe versos em que voltava sempre o banal pensamento de que a morte e o amor eram irmãos. Nessa noite, a Grussinskaia comprovava em si própria a verdade desse lugar-comum. A vertigem dolorosa da noite passada transformou-se em embriaguez, num torvelinho de gratidão, num anseio febril de receber e de dar, de sentir e conservar. Os anos gelados se derretiam. O vergonhoso segredo da sua frieza, que escondera durante toda a vida, desfazia-se, deixava de existir. Há tantos anos se sentia de tal modo pobre e solitária, que às vezes mendigava à pele jovem e cálida do seu partner, Michael, uma esmola de calor. Nessa noite, nesse quarto indiferente de hotel, nessa cama comum de metal brilhante, ela se sentia arder, transformava-se, descobria o amor, que não acreditava que existisse.

Os quartos 68 e 69 eram tão parecidos que, ao despertar, Gaigern não sabia muito bem onde se encontrava. Quis virar-se para a parede do seu quarto, mas encontrou o vulto pequenino da Grussinskaia, que dormia e respirava docemente. Recordou-se. A maravilhosa e profunda confiança do primeiro sono dormido junto repousava em seus membros como um peso suave. Retirou seu braço, que adormecera debaixo do pescoço da mulher, e com leve e ' solene comoção rememorou os acontecimentos dessa noite. Não havia dúvida — estava apaixonado, e além disso, de um modo completamente novo e grato. Sem que as pérolas influíssem no seu sentimento, não podia deixar de pensar, envergonhado: somos uns porcos. Não era a história gorada das pérolas que influía no seu sentimento. Sobe-se a um quarto alheio: inventa-se uma comédia atroz, representa-se — e a mulher acredita em tudo. Faz questão de acreditar. Os homens representam e as mulheres acreditam neles. A bem dizer, no começo a gente é sempre um embusteiro e um assaltante; mas em seguida, a mentira transforma-se em verdade. "Eu gosto muito de você, pequenina Mouna, querida e boa Neuwjada, eu te amo, je t’aime, je t'aime. Você fez uma bela conquista, mulherzinha, você..."

Fazia frio no quarto; lá fora já devia estar amanhecendo; a rua estava silenciosa, uma réstia de luz crepuscular penetrava por entre as cortinas, e o desenho da tapeçaria das paredes começava a esgueirar-se pela madrugada. Gaigern levantou-se com o maior cuidado. A Grussinskaia dormia profundamente, com o queixo enterrado no próprio ombro. Agora, que passara o tumulto da noite, as duas cápsulas de veronal pareciam estar fazendo efeito. Gaigern tomou-lhe a mão, que pendia para fora do leito, repousou na sua palma as pálpebras quentes, e depois enfiou aquela mãozinha frouxa sob o cobertor, como se a Grussinskaia fosse um bebezinho. Foi caminhando com cuidado, na meia escuridão do quarto, até o balcão, e abriu lentamente as cortinas. A Grussinskaia não despertou. "Agora tenho que pôr em ordem o negócio das pérolas", pensou Gaigern. Admirou-se de sentir-se satisfeito com a solução. "Um round perdido", pensou ele sem se aborrecer. Gostava de usar essas expressões de esporte, em seus empreendimentos aventureiros. Tateou à procura do pijama, e sorriu ao encontrar as diversas partes do seu vestuário atiradas por todo o quarto; em seguida entrou no banheiro. Ao contato da água, o ferimento da sua mão direita começou a arder e a sangrar; lambeu-o com indiferença e não se importou mais com isso. O aroma acre e murcho de louros, no aposento, acentuara-se. Gaigern, desejoso de respirar ar fresco, foi ao balcão e aspirou profundamente; seu peito ainda estava repleto de uma doce e desconhecida angústia.

Lá fora paira, sobre a rua que desperta, uma neblina fria que o vento leva. Nem automóveis nem gente. A distância, ouve-se o sibilar de um bonde a correr nos trilhos. Não surgiu ainda o sol, mas há uma luz leitosa e igual. Uns passos martelados, na esquina, e novamente o silêncio. Um pedaço de papel flutua como um passarinho enfermo sobre o asfalto, e depois pousa no chão. A árvore plantada não muito longe do portão 2 balouça os galhos sonhadores. Um sonolento passarinho de março, bem lá em cima, pousado na haste delicada de um botão, experimenta a voz no tumulto da grande cidade. Um caminhão cheio de caixas com garrafas de leite segue aos solavancos, muito cheio de si; a neblina que desliza cheira a maresia e a gasolina; a grade do balcão tem um brilho úmido. Gaigern encontra suas meias de larápio no balcão, e enfia-as depressa no bolso, junto das luvas, da lanterna de bolso e das pérolas de quinhentos mil marcos, de que ainda precisa se livrar. Torna a entrar no quarto, deixando as cortinas abertas; a luz pálida cai em triângulo no tapete, estendendo-se até o leito em que dorme a Grussinskaia.

Agora ela está estendida de costas, com a cabeça tombada de lado, dando a impressão de que a cama é grande demais para o seu corpo delicado e pequenino. Gaigern, para quem a maioria das camas de hotel são curtas, achou graça e sentiu-se comovido. Teve um súbito pensamento, uma ideia carinhosa. Foi buscar a xícara de veronal na mesinha e também os tubinhos de vidro vazios, e dirigiu-se com eles ao banheiro. Com os cuidados de uma ama, lavou a xícara, depois de esvaziá-la, e secou-a com um lenço. Ao encontrar o roupão de banho da Grussinskaia, com um gesto infantil, beijou-o na manga. Não havendo lugar para colocar os vidrinhos, guardou-os no bolso, junto das pérolas. A Grussinskaia suspirou dormindo, quando ele se aproximou de novo da cama. Inclinou-se sobre ela, franzindo a testa, mas ela continuou a dormir. Já clareara um pouco. Agora ele podia ver bem de perto, e com clareza, o rosto dela. Os cabelos caíam para trás, muito lisos, deixando descobertas as fontes reentrantes, estreitas e sombreadas. Por baixo dos olhos fechados evidenciava-se a idade, em dois sulcos profundos. Gaigern o percebeu, porém sem desgosto. A boca era linda, acima do queixo delicado, mas já murcho. Um pouco do pó de arroz pálido ainda ficara em sua testa, perto da franjinha. Gaigern lembrou-se, divertido, de que durante a noite ela tirara de baixo do travesseiro um estojinho de pó de arroz, antes de permitir-lhe que acendesse a lâmpada. "Agora eu a estou vendo bem", pensou ele com o sentimento primitivo de triunfo de um assaltante de mulheres. Começou a observar o rosto da mulher, como se fosse uma paisagem desconhecida, em que se passeia à procura de aventuras. Observou duas misteriosas riscas simétricas que partiam das fontes, ao longo das orelhas, indo até a garganta, uma linhazinha mais clara do que o resto da pele. Passou o dedo com cuidado sobre a linha; era uma delicada cicatriz que rodeava seu rosto, como a fímbria de uma máscara. De repente, Gaigern compreendeu do que se tratava. Eram as cicatrizes da vaidade, cortes na pele para esticá-la e rejuvenescer — ele já lera qualquer coisa a esse respeito. Sorrindo, sacudiu a cabeça, com um ar de incredulidade. Sem querer, apalpou suas próprias têmporas, que eram bem lisas, e vibravam com batidas fortes e saudáveis.

Encostou com a maior delicadeza o seu rosto no da Grussinskaia, como se pudesse assim transmitir um pouco do seu ser para a companheira. Admirou-se ao perceber quanto a amava nesse momento, com um amor terno e compassivo. Teve a impressão de estar sendo um sujeito limpo e correto, ligeiramente ridículo, sem dúvida, nos sentimentos que dedicava à pobre mulher, cujos segredos ele tinha descoberto.

Afastou-se da cama e ficou por uns minutos diante do espelho, com a testa enrugada, a boca ligeiramente aberta, mergulhado em pensamentos. Estava pensando se não seria possível, apesar de tudo, ficar com as pérolas. Não, não era possível. Por enquanto, ele continuava a ser o Barão von Gaigern, um homem um tanto leviano, que convivia com uma gente ordinária. Com dívidas, sim, mas ainda digno de confiança. Se saísse do quarto com as pérolas, então a polícia seria avisada dentro de poucos minutos e sua existência de cavalheiro estaria terminada. Seria um criminoso perseguido pela polícia, como qualquer outro. Isso não lhe convinha, em absoluto. Não fazia parte do seu programa ter-se tornado o amante da Grussinskaia, mas era um fato consumado, e modificava todo o resto. Pesou as chances, como teria pesado as chances de um pugilista ou de um tenista. Empreendimentos como esse das pérolas eram o seu esporte e, desta vez, o jogo lhe estava sendo desfavorável. Não era possível roubar essas pérolas; na situação atual, só poderia recebê-las de presente, caso tivesse paciência. "E preciso esperar", pensou Gaigern, suspirando profundamente. Suas reflexões eram objetivas e realistas, mas ele não queria admitir que no fundo havia ainda outra coisa por trás disso tudo. Não queria ter a consciência do próprio ridículo, e detestava sentimentalismos. Olhou para o espelho e fez uma careta para si próprio. "Em resumo", pensou aborrecido, "não é do meu feitio roubar o adereço de pérolas de uma mulher com quem dormi. Agora não tenho a mínima vontade de fazer tal coisa. Eu sofreria com isso — e acabou-se!

"Neuwjada", pensou ele com súbito carinho, olhando para a cama; "bondosa Mouna, eu preferia poder oferecer-lhe algum presente, muitos presentes, uma coisa bonita e valiosa, alguma coisa que lhe causasse prazer, pobrezinha." Puxou de dentro do bolso o colar de pérolas, com precaução e sem ruído. Já não gostava mais delas. Talvez até fossem falsas, apesar de todas as lendas dos jornais; talvez nem fossem tão valiosas como a propaganda dizia. De qualquer modo, ele se separava agora delas com a maior facilidade.

Quando a Grussinskaia procurou despertar, sua cabeça estava envolta no sono como em espessos véus. "É o veronal", pensou, continuando com os olhos fechados. Nos últimos tempos ela tinha medo de despertar, tinha medo do choque que sentia ao defrontar-se com os aborrecimentos da vida. Tinha a vaga sensação de que nessa manhã alguma coisa boa e agradável a esperava, mas não descobriu logo do que se tratava. Lambeu os lábios, pensando encontrar neles o gosto sonolento e seco da noite. Movimentou os dedos das mãos, como um cão a mover-se em sonhos. Seu corpo estava cansado, exausto, mas satisfeito, como após um enorme sucesso, após uma noite com muitos da capo, em que é preciso esgotar completamente as forças. Sentiu sobre as pálpebras fechadas a claridade matutina, e por um instante pensou que estava em Tremezzo com os reflexos da superfície do lago, em seu quarto de dormir cinzento-rosado. Decidiu abrir os olhos.

Primeiro, viu sobre os joelhos um cobertor que não conhecia, da altura de uma montanha; depois, a tapeçaria das paredes do hotel, com o desenho de frutas tropicais vermelhas, pendentes de frágeis hastes, um desenho que dava a impressão de observá-la fixamente, com um olhar febril e absorto.

Nessas tapeçarias das paredes dos hotéis colava-se todo o tédio da sua vida sem parada. O canto perto da escrivaninha estava sombrio; ali, a cortina estava fechada e não podia saber as horas. A porta do balcão estava aberta e deixava entrar uma brisa fresca. Ao lado da mesa do espelho, virada para a claridade da varanda, a Grussinskaia, ainda sonolenta, percebeu a silhueta larga e escura de um homem. Estava de costas, com as pernas meio abertas, firme e imóvel, com a cabeça inclinada, observando qualquer coisa que ela não podia ver. "Sonhei com alguma coisa parecida há pouco", pensou primeiro, ainda meio apalermada de sono, sem se assustar. "Já aconteceu coisa parecida na minha vida", pensou em seguida. "Jerilinkov", pensou finalmente. De repente, seu coração disparou como um motor, ela acordou totalmente, e lembrou de tudo.

Respirou com a boca fechada, sem ruído, mas profundamente, e com o ar que aspirou ocorreu-lhe a lembrança de tudo o que se passara durante a noite. Retirou um braço de baixo do cobertor, sentindo-o muito leve, com vontade de voar. Tateou, à procura do estojinho de pó de arroz, e, dirigindo um olhar sério ao minúsculo espelho redondo, começou a se arrumar. O delicado perfume do pó de arroz lhe causou prazer; sua imagem agradou-lhe. Sentia amor por si própria, como há muitos anos não sentia. Segurou seus pequeninos seios, como costumava fazer, mas nessa manhã isso lhe causou um prazer especial. Gostou de sentir a própria pele, lisa, fresca e satisfeita. "Benvenuto", disse em pensamento; e em russo "Chelani". Mas como só pronunciou esse nome para si mesma, o homem não pôde ouvi-la. Lá estava ele, de pernas abertas, com seus belos ombros, como um dos carrascos de Signorelli — descobriu a Grussinskaia, encantada —, ocupado com algum objeto pousado na mesinha do espelho. Ela se levantou e olhou-o sorrindo.

 

Gaigern estava com as mãos dentro da maleta em que se encontravam suas pérolas. Ela ouviu claramente o ruído de um dos estojos, reconhecendo o estalido agudo e surdo; era o estojo comprido de veludo azul, onde ficava o colar de cinquenta e duas pérolas de tamanho médio. No primeiro momento a Grussinskaia não percebeu por que razão esse ruído a assustava mortalmente. Seu coração parou, e depois voltou a bater com pancadas pesadas e sonoras, que ecoavam dolorosamente por todo o corpo. Doíam-lhe as pontas dos dedos, que se tornaram rígidas. Os lábios também. Mas ainda continuava a sorrir; esquecera-se de retirar da boca o sorriso, que permaneceu, enquanto seu rosto esfriava, tornando-se branco como papel. "É um ladrão", pensou a Grussinskaia, adivinhando tudo. E esse era um estranho pensamento, silencioso e definitivo, como um corte que lhe atravessasse o coração. Julgou perder a consciência, desejando-o com ardor, mas ao invés de acontecer isso, uma infinidade de pensamentos lhe passou pela cabeça durante um segundo, claros, cortantes, entrecruzando-se, entrechocando-se; um duelo de pensamentos.

O sentimento torturante de ter sido enganada atrozmente; vergonha, medo, ódio, cólera, uma dor medonha. E, ao mesmo tempo, uma fraqueza profunda como um abismo; não queria ver, não queria compreender, não queria acreditar na verdade, só desejava abrigar-se na piedade da mentira.

— Que faites-vous? — murmurou às costas do carrasco. Pensou que estava gritando, mas apenas sussurrou por entre os lábios rígidos: — Que está fazendo?

Gaigern levou tal susto que sua cabeça se virou de súbito; e seu susto era uma confissão de culpa. Na mão ele guardava o estojinho cúbico de um dos anéis; a suitcase estava aberta, o colar de pérolas estendia-se sobre a placa de vidro da mesinha do espelho.

— O que está fazendo aí? — sussurrou mais uma vez a Grussinskaia, causando dó, realmente, vê-la sorrir, com o rosto pálido e desfigurado.

Gaigern compreendeu-a logo, de novo se encheu de piedade, uma piedade ardente, que ele sentia palpitar nas têmporas. Dominou-se com energia, e conteve-se.

— Bom dia, Mouna — disse amavelmente. — Encontrei aqui um tesouro, enquanto você dormia.

— Como é que encontrou as minhas pérolas? — perguntou a Grussinskaia, com voz rouca. "Minta, minta", pedia seu olhar esgazeado.

Gaigern aproximou-se dela, e pousou a mão sobre seus olhos, como um guarda-sol. "Pobre bichinho, pobre femeazinha."

— Estive remexendo em suas coisas. Estava procurando um adesivo, um pedaço de atadura, qualquer coisa... imaginei que iria encontrar alguma coisa na valise. E lá estava o seu tesouro. Tenho a impressão de ser Aladim na gruta.

Até mesmo a cor dos olhos dela desaparecera; eles pareciam agora de chumbo, e só pouco a pouco lhes foi voltando sua cor negra azulada. Gaigern estendeu diante dela a palma da mão ferida, a sangrar ligeiramente, como prova do que dizia.. A Grussinskaia, lânguida e com os nervos frouxos, pousou nessa mão os lábios. Gaigern pousou a outra em seus cabelos, e puxou sua cabeça de encontro ao peito aberto do pijama de seda azul. Ele podia mostrar-se bastante brutal e ordinário com as mulheres com quem costumava encontrar-se. Mas esta, sabe o Diabo por quê, despertava nele todos os bons instintos. Era tão frágil, tão maltratada pela vida, necessitava tanto de auxílio — e ao mesmo tempo era tão forte... Pela existência que ele levava, que parecia estar sempre a pender de um fio, Gaigern compreendia a dela.

— Bobinha — disse ele com carinho. — Será que você pensou que eu estava cobiçando as suas pérolas?

— Não — mentiu a Grussinskaia. Essas duas inverdades foram a ponte sobre a qual os dois amantes se puderam encontrar. — Aliás, eu não as uso mais — acrescentou ela, respirando aliviada.

— Não as usa mais? E por quê?...

— Você não compreende essas coisas. É uma superstição. Antigamente elas me davam sorte. Depois me trouxeram infelicidade. E agora que deixei de usá-las, me dão sorte de novo.

— É mesmo? — perguntou Gaigern pensativo, procurando vencer o mal-estar e o acanhamento que sentia.

As pérolas repousavam de novo, em ordem, em seu pequeno leito. "Adieu!" Até logo, pensou ele, como uma criança. Meteu as mãos nos bolsos, num gesto decidido; lá se encontravam as ferramentas de ladrão, mas nenhuma presa. Sentia-se felicíssimo, com uma sensação de leveza e de satisfação, espantosamente renovado e farto. Abriu bem a boca e soltou uma exclamação de júbilo, emitindo um som forte e cheio. A Grussinskaia começou a rir. Gaigern atravessou o quarto correndo, aproximou-se dela e mergulhou em sua pele seu grito de prazer, deixando-se cair sobre a mulher, com a boca, o olhar e o sentimento. Ela tomou suas mãos e beijou-as; esse gesto exprimia uma gratidão humilde, em parte real, em parte representada.

— Está sangrando — disse ela, com a boca sobre o pequeno ferimento.

— Seus lábios são como os de um cavalo — respondeu Gaigern —, macios como um potrinho preto, de magnífico pedigree.

E ajoelhou-se, abraçando os joelhos da mulher, cujos tendões vibravam por baixo da pele. Justamente quando a Grussinskaia fez menção de se curvar sobre ele, alguma coisa ronronou na escrivaninha; um tilintar breve, depois longo, novamente breve.

— O telefone — disse a Grussinskaia.

— O telefone? — repetiu Gaigern.

A Grussinskaia suspirou profundamente. Não adianta, exprimia a sua fisionomia, ao erguer o fone do gancho com um gesto cansado, como se ele pesasse uma tonelada. Suzette estava ao telefone.

— São sete horas — anunciou sua voz matinal rouca. — Madame precisa levantar-se. É preciso arrumar as malas. Posso mandar o chá? E se madame quiser que lhe faça massagem, já está na hora — e Herr Pimenoff pede que lhe telefone imediatamente, assim que madame se levantar.

Madame ficou pensando durante um segundo.

— Daqui a dez minutos, Suzette... não, dentro de quinze minutos você pode trazer o chá, e depois faremos um pouco de massagem.

Colocou o fone no gancho, mas continuou a segurá-lo, enquanto estendia a outra mão a Gaigern, que ficara no meio do quarto, a balançar o corpo sobre as solas finas de cromo dos seus sapatos de pugilista. Ela ergueu imediatamente o fone, de novo, e lá de baixo o porteiro respondeu com uma voz diligente e serviçal, apesar de não ter pregado olho durante toda a noite, porque sua mulher não estava passando muito bem na clínica.

— Que número, por favor? — disse ele com voz enérgica.

— Wilhelm, sete, zero, dez! Com Herr Pimenoff! Pimenoff não estava hospedado no hotel, mas numa pensão de segunda classe, que uma família de imigrantes russos abrira no quarto andar de uma casa em Charlottenburg. Parece que lá ainda estavam dormindo. Enquanto a Grussinskaia esperava, viu em espírito o velho Pimenoff, correndo ao telefone com seu surradíssimo pijama de seda, com os pés magros, que ele mantinha sempre com as pontas um pouco abertas para fora, como se estivesse fazendo a quinta posição. Finalmente ele atendeu, com sua voz delicada e nervosa de velho.

— Ah, Pimenoff, é você? Bom dia, dobroie utro, meu caro! Sim, obrigada, dormi bem, não, não tomei muito veronal, só dois comprimidos; obrigada, tudo ali right, coração, cabeça, etc, etc. Como? O que aconteceu? O Michael está com um derrame de sangue no joelho? Mas, meu Deus, por que é que você não me disse isso ontem à noite? É horrível! Custa muito a passar, muito mesmo... Nós sabemos o quanto demora! E que providências você tomou? Como? Não fez nada, ainda? Mas é preciso mandar imediatamente um telegrama ao Tcherenov, ouviu? Imediatamente, ele precisa vir ajudar. Meyerheim que vá telegrafar. Onde está metido o Meyerheim? Vou chamá-lo logo pelo telefone. É cedo demais? Com licença, querido, por que razão para nós não é cedo demais, e para Herr Meyerheim... Não, por favor! E os cenários, já foram levados para a estação? Mas, por favor, com o primeiro despacho, quando começa a ser feito o primeiro despacho? Às seis? Se os cenários não estiverem lá, você é o responsável, Pimenoff. Nem uma palavra mais, você é o mestre de bailei, é quem deve cuidar dos cenários; não tenho nada que ver com isso. É, espero sua resposta dentro de meia hora no máximo, vá você mesmo à estação. Adieu!

Dessa vez ela nem chegou a pousar o fone; apenas fez pressão no gancho com dois dedos. Chamou Witte, que costumava levantar-se pela manhã um pouco apalermado, e que, apesar dos inúmeros anos de tournées, ficava sempre como uma pilha, e fazia uma confusão medonha. Depois, a Grussinskaia chamou Michael, que estava hospedado num hotelzinho e se pôs a lamentar-se como um cãozinho pisado, sobre o derrame de sangue. A Grussinskaia gritou-lhe severas ordens e conselhos pelo telefone; ela ficava furiosa, e era injusta sempre que qualquer elemento da troupe adoecia. Chamou três médicos, antes de encontrar um que pudesse ir ver logo o Michael, para dispensar-lhe os cuidados necessários e levar-lhe ligaduras com compressas de terra argilosa e vinagre. Chamou Meyerheim ao telefone, discutiu com ele num francês excitado, e intimou-o a comparecer às oito e meia no hotel para acertar as contas. Enviou pelo telefone um telegrama a Tcherenov e, por precaução, outro a um jovem bailarino, que dançava bem e estava sem contrato em Paris. Em seguida, com o auxílio do porteiro Senf, ligou para o expresso de Paris, pelo qual o jovem bailarino poderia chegar a tempo em Praga, e depois procurou passar um terceiro telegrama.

— Por favor, chéri, abra a torneira do banheiro — disse ela apressadamente a Gaigern, entre uma ligação e outra, matraqueando em seguida uma série de ordens em inglês, pelo telefone, ao chofer Berkley, porque o carro não devia seguir com eles, mas nesse meio tempo ir para uma garagem, a fim de ser limpo. Gaigern foi ao banheiro e obedeceu-lhe, abrindo a torneira. Fez mais ainda: estendeu sobre o aparelho de calefação o roupão de banho, para aquecê-lo. Procurou a esponja com que no dia anterior lavara o rosto desfigurado da Grussinskaia e levou-a para o banheiro, enquanto ela continuava a falar no telefone. Encontrou sais de banho e jogou um punhado na água, que já estava transbordando. Teria de bom grado feito mais alguma coisa para ela, mas não encontrou mais nada para fazer. A Grussinskaia também parecia ter terminado, por enquanto, seus telefonemas.

— Você está vendo?... todos os dias é assim — disse ela, procurando dar à voz uma entonação de queixa; mas sua voz só exprimia uma vitalidade exuberante e o prazer de arrumar as malas para a viagem.

— É preciso fazer isso tudo. E depois o Michael diz: há sempre espalhafato em torno da Grussinskaia. Ele dá a isso o nome de chi-chi, como se tudo não passasse de uma brincadeira.

Gaigern, de pé diante dela, estava faminto por um pouco de carinho, de intimidade, e estendeu-lhe ambas as mãos; mas ela estava distraída. Pensava no derrame de Michael. Ouvia de novo o tique-taque dos dois relógios.

Tomou depressa do telefone e chamou Suzette mais uma vez.

— Espere mais dez minutos, Suzette — pediu ela com muita cortesia, e com a consciência da própria culpa.

Seu olhar aflorou à mesa e à xícara de chá da noite anterior. Lá estava a xícara, muito bem lavada, com uma expressão de profunda inocência e candura, o brasão dourado do hotel a cintilar na porcelana grossa.

"Que noite maluca", pensou a Grussinskaia. "Não, essas coisas não se fazem. E bailados como os que imaginei hoje não se podem dançar. Foi apenas o resultado de uma excitação nervosa. Os vienenses me vaiariam se eu apresentasse bailados como imaginei, em vez da pomba ferida e das borboletas. Em Viena o público é diferente do de Berlim; lá eles sabem o que é ballet."

Apesar de Gaigern a estar olhando fixamente, de frente, ela não o via. Ele sentiu uma ligeira dor, desconhecida até então, uma dor estranha e viva, que lhe cortava a respiração.

— Tomilho! Neuwjada! — disse ele baixinho, indo buscar as palavras no profundo tumulto da noite. Elas conservavam seu perfume agridoce, e a inesquecível recordação. E, realmente, ao ouvir-se chamar desse modo, a Grussinskaia voltou a olhar para ele, e sua fisionomia assumiu uma expressão tensa de sofrimento, embora sorrisse.

— Acho que precisamos nos separar agora, querido — disse ela com um tom de voz propositadamente forte e inflexível, para evitar que a voz se quebrasse.

Havia esquecido, apagado por completo as lembranças das pérolas. Tinha apenas um sentimento de apego e aconchego, por essa mulher, um desejo infinito de ser bom para ela, muito, muito bom. Com uma sensação de desamparo, girou no dedo o anel de sinete com o brasão dos Gaigern, em lápis-lazúli.

— Tome — disse ele estendendo a mão e oferecendo-lhe o anel, com um gesto desajeitado de menino. — É para que você não se esqueça de mim.

"Não o verei mais?", pensou a Grussinskaia. Esse pensamento a fez sentir um ardor nos olhos, e a fisionomia bonita de Gaigern foi desaparecendo em meio das suas lágrimas. Esse era um pensamento que não se devia exprimir. Ela ficou esperando. "Deixe-me ficar com você. Vou ser muito bom para você", pensou Gaigern. Apertou os lábios com força e obstinação e não disse nada.

— Você vai para Viena? — perguntou ele.

— Primeiro para Praga, por três dias. Depois catorze dias em Viena. Vou ficar hospedada no Bristol — acrescentou.

Silêncio. Tique-taque de relógios. Buzinas de automóveis diante do hotel. Cheiro de enterro. O arfar da respiração.

— Você não pode viajar comigo, querido? Preciso de você — disse finalmente a Grussinskaia.

— Eu... para Praga não posso ir. Não tenho dinheiro. Preciso primeiro arranjar o dinheiro.

— Eu lhe dou — respondeu ela prontamente. Com a mesma pressa Gaigern respondeu:

— Não sou um gigolô!

De repente caíram ambos nos braços um do outro, impulsionados por qualquer coisa de grande, num abraço forte, unidos no momento em que tinham de se separar.

— Obrigado — disseram ao mesmo tempo —, obrigado, obrigado — repetiram em três línguas: alemão, russo e francês, num balbucio confuso, num tom de soluço, num sussurro .choroso, em júbilo: — Obrigada, merci, bolchoie spassibo, danke.

Nesse instante Suzette está recebendo das mãos do criado de quarto, com ar de ofendido, a bandeja com o chá. São sete horas e vinte e oito minutos. O relógio na escrivaninha corre, sem fôlego; o outro, de cansaço, parou. Continue, continue, continue, bate ele, em tom de reprimenda.

— Então, em Viena? — diz a Grussinskaia, com as bordas das pestanas úmidas. — Daqui a três dias? Você segue depois que eu partir. E depois se encontra comigo em Tremezzo; vai ser ótimo, vai ser maravilhoso estarmos juntos! Vou tirar umas férias, de seis a oito semanas, e nós vamos*viver, querido, vamos somente viver, deixando tudo para trás, tudo isso que não tem sentido; vamos apenas viver, ficaremos idiotas de tanta preguiça e felicidade; e depois você vai comigo para a América do Sul. Você já conhece o Rio? Eu... não, chega. Está na hora. Vá! Vá! Querido! Obrigada!

— Daqui a três dias o mais tardar — diz Gaigern. A Grussinskaia ainda faz pairar em seu redor, às pressas, um pouco da sua graça de dama da alta-roda.

— Tome cuidado para chegar ao seu quarto sem me comprometer muito — pediu ela, fechando as duas portas, uma após a outra.

Quando Gaigern, em silêncio, soltou a mão da mão dela, sentiu-a dolorida. Sangrava de novo. O corredor está silencioso, as inúmeras portas vão-se perdendo na longa perspectiva. Nas soleiras, as botinas dormem, com as orelhas pendidas. O elevador vem descendo e, no terceiro andar, alguém corre para não perder o trem. No hall da escada, uma das janelas de vidro leitoso está aberta, deixando sair para o pátio a fumaça dos cigarros dessa noite. Gaigern se esgueira, com suas solas de pugilista, por sobre o tapete de ananases; entra no 69, seu próprio quarto, e fecha a porta com uma gazua. A chave ainda está na caixa, na portaria.

A Grussinskaia, depois de tomar banho, deita-se de bom grado, para entregar-se às mãos de massagista de Suzette. Sente-se forte, elástica e cheia de energia. Tem uma vontade enorme de dançar, e está ansiosa pelo próximo espetáculo. Sente que terá sucesso agora, pois em Viena se tem sempre sucesso; ela o sente nas pernas, nas mãos, no pescoço, que inclina para trás, repentinamente, e na boca, que tem sempre desejos de sorrir. Veste-se e sai correndo, como um pião. Com enorme élan, atira-se às ocupações da manhã, à discussão com Meyerheim, à luta subterrânea com as perfídias da troupe, ao trabalho paciente com Pimenoff e Witte.


9

 

 

Às nove horas o groom 18 traz um buquê de rosas: "Até logo, querida boca", está escrito num pedacinho rasgado de papel do hotel. A Grussinskaia beija o anel de sinete com o brasão dos Gaigern. — Porte-bonheur — sussurra, como a falar com um velho conhecido. Agora ela já tem de novo um talismã. "Michael tem razão. Vou doar as pérolas... para as crianças pobres", pensa ela. Suzette segura com luvas de tricô a alça da suitcase, enquanto o criado leva o resto da bagagem. Sem saudades, a Grussinskaia deixa o quarto do hotel, tão cheio de aventuras, com aquela tapeçaria da parede que lhe fazia mal aos nervos. No Hotel Imperial de Praga já está reservado para ela um outro quarto com banheiro privativo dando para o pátio, o número 184. Também no Rio, em Paris, em Londres, em Buenos Aires, em Roma foi feita igual reserva; espera-a uma infindável perspectiva de quartos de hotel com portas duplas e água corrente, e o cheiro indefinível de incessante movimento e de coisas desconhecidas.

Às nove horas e dez a camareira, que não dormiu durante a noite, tira muito mal o pó do quarto 68, joga fora as cestas de flores secas, leva a xícara de chá e finalmente traz roupa de cama limpa — ainda úmida da passagem a ferro — para o próximo hóspede.

 

O relógio, pérfido como todos os despertadores, deixou de acordar o Diretor-Geral Preysing, com seu tilintar pontual e enérgico. Às sete e meia tilintou apenas durante um segundo, e isso foi tudo. Preysing, que dormia com a boca aberta e seca, mexeu-se ligeiramente, as molas do colchão gemeram, e por trás do reposteiro amarelo o sol brilhou um pouco. Às oito horas o porteiro, muito cumpridor de seus deveres, despertou o diretor chamando-o ao telefone, mas já era tardíssimo. Preysing pôs a cabeça meio tonta de sono embaixo da ducha, praguejando baixinho por ter-se esquecido de trazer o aparelho de barbear. Um pedante como ele perdia toda a alegria com uma coisa assim. Apesar de estar atrasado, levou alguns minutos escolhendo o terno que ia vestir. Depois de já ter escolhido o cut, despiu-o com raiva. Calculou — e talvez com razão — que não seria vantajoso vestir o cut; o terno cinzento de viagem, pelo contrário, demonstraria imediatamente aos senhores de Chemnitz que não estava tão interessado assim por todo aquele negócio. Apressou-se o mais que pôde, mas até que arrumasse todos os saquinhos e estojos, que procurasse todas as chavinhas, as encontrasse e enfiasse nas fechaduras, folheasse mais uma vez seus documentos e contasse mais uma vez o dinheiro, já eram mais de nove horas. Com a cabeça quente, saiu correndo do apartamento e, no corredor, deu um encontrão em um homem.

— Desculpe! — disse Preysing, parando diante da porta de seu quarto, para conseguir enfiar o outro braço no casaco.

— Não foi nada! — replicou o cavalheiro, continuando seu caminho sobre a passadeira. Preysing julgou reconhecer esse modo de manter as costas. Quando chegou ao elevador, o homem já ia descendo; o diretor pôde vê-lo também de frente e julgou reconhecê-lo igualmente, sem se recordar de onde. Teve a impressão de que ele sorria zombeteiramente, enquanto descia no elevador, diante do seu nariz. Preysing, excitado e impaciente, desceu a escada correndo e foi em disparada pelos corredores até o subterrâneo de azulejos, onde o barbeiro do hotel tinha o seu salão; ali cheirava a água estagnada de porão e a Peau d'Espagne. No salão estavam sentados muitos cavalheiros, metidos em batas brancas, como babies esperançosos, entregues às manipulações dos barbeiros vestidos com jaquetas brancas. Preysing, impaciente, começou a dançar sobre suas grossas solas de crepe.

— Vai demorar muito para chegar a minha vez? — perguntou ele, roçando o rosto por barbear, nas palmas das mãos.

— No máximo dez minutos. Há só um senhor na sua frente — responderam-lhe.

O tal senhor que havia chegado antes dele era o homem que descera no elevador, e Preysing olhou-o com desagrado. Era um sujeitinho insignificante, magro e modesto, meio vesgo por trás de uns óculos a escorregarem, e com o nariz pontudo inclinado sobre um jornal. Preysing tinha uma vaga ideia de já ter tratado de negócios com esse homem, mas não conseguia recordar-se em que circunstâncias. Postou-se diante dele, fez uma leve curvatura, e procurando ser amável disse:

— Por favor, o senhor podia me fazer a gentileza de me ceder a sua vez? Estou com muita pressa.

Kringelein, que se encolhera todo atrás do jornal, juntou suas forças. Mostrou a cara por trás do artigo de fundo, estendeu o pescoço fino, voltou-se para o diretor-geral olhando-o de frente e respondeu:

— Não!

— Desculpe... mas é que estou com muita pressa — tartamudeou Preysing em tom de reprimenda.

— Eu também — replicou Kringelein. Preysing, furioso, virou as costas e saiu do salão de barbeiro. Como um vencedor, um herói, mas completamente exausto e vazio pela desmedida tensão nervosa, Kringelein, ofegante, continuou sentado, envolto no aroma das essências dos sabões de barbear.

Atrasado, com a barba por fazer e com a ponta da língua doendo, por tê-la queimado no café fervendo, o diretor-geral entrou na sala de conferências. Os outros senhores já tinham soltado na sala uma bela fumaceira azul de charuto. A sala, com seu pano de mesa verde, a imitação de tapeçaria de damasco nas paredes e o retrato a óleo do fundador do Grande Hotel, tinha um aspecto de conforto e solidez. O Dr. Zinnowitz já havia colocado seus documentos na mesa, na sua frente; o velho Gerstenkorn estava sentado na cabeceira da compridíssima mesa, presidindo a sessão, e, para cumprimentar, ergueu apenas a metade do corpo, porque ele pertencia à geração robusta do sogro de Preysing, conhecera o diretor-geral ainda moço e não o tinha em grande conta.

— Está atrasado, Preysing? — perguntou ele. — Quarto de hora acadêmico? Não passou bem ontem de noite? É isso, Berlim tem dessas coisas! — riu-se com a tosse grossa e encatarrada dos bronquíticos, e apontou para a cadeira a seu lado.

Preysing sentou-se defronte de Schweimann com a desagradável impressão de ter levantado com o pé esquerdo, e seu lábio superior, sob o bigode, estava úmido antes mesmo de começar a luta. Schweimann, que tinha pálpebras espessas e uma boca grande e de lábios grossos, uma boca elástica de macaco, apresentou um terceiro senhor:

— O nosso síndico, o Dr. Waitz — disse ele.

O Dr. Waitz era jovem ainda; tinha um ar distraído, mas não o era em absoluto, e durante as conversações podia tornar-se bem desagradável, com sua voz dominadora e agressiva de trombeta. Tinha sido trazido também pelos senhores de Chemnitz.

— Nós já nos conhecemos — disse Preysing com pouco entusiasmo.

Schweimann ofereceu, por sobre a mesa, um charuto ao diretor-geral. O Dr. Zinnowitz tirou do bolso do colete uma caneta-tinteiro e a colocou à sua frente, ao lado dos documentos. Bem afastada, sentada à mesa, do outro lado da garrafa de água e dos copos que ofuscavam facilmente os olhos e vibravam sobre uma bandeja preta, sempre que passava lá fora algum ônibus, estava uma personagem apagada: a Flamm número um, com o bloco de estenografia na mão, envelhecida e insignificante, com uma leve penugem branca de traça nas faces, calada, cumpridora dos seus deveres, impossível de ser confundida com a Flamm número dois.

— Bonita caneta — observou Schweimann a Zinnowitz. — De que marca é? Muito bonita.

— Gosta? Recebi-a de Londres. É bonita, não é verdade? — respondeu Zinnowitz, escrevendo sua assinatura fluente num caderninho de notas. Todos olharam.

— Quanto custa uma caneta assim, se me permite perguntar-lhe? — informou-se Preysing, tirando sua própria caneta do bolso do colete e colocando-a na mesa. E todos os presentes olharam também para a caneta inglesa.

— Umas três libras, sem pagar a alfândega. Um conhecido me trouxe — esclareceu o Dr. Zinnowitz.

— Que coisa prática! Muito prática.

Todos estenderam as cabeças por sobre a mesa, como meninos de escola, e observaram a caneta-tinteiro de malaquita verde, de Londres. Esse objeto merecia de fato que cinco participantes adultos de uma conferência se ocupassem dele durante três minutos.

— Bem, agora vamos tratar de negócios — disse afinal o velho Gerstenkorn com sua voz encatarrada, e imediatamente o conselheiro Zinnowitz apoiou seus dedos alvacentos sobre a coberta verde da mesa e começou, com palavras fluentes e preparadas de antemão, uma exposição do assunto, fazendo ressoar a voz na atmosfera azul da sala de conferências.

Preysing permitiu-se uma pequena pausa para se acalmar. Ele próprio não era bom orador, e se sentia agradecido por Zinnowitz ter assumido essa tarefa, e por suas frases se ensarilharem, fluentes e claras, como atiradas por uma máquina. E isso não era mais que a introdução. Primeiro falou de coisas que já haviam sido há muito tempo ruminadas em negociações preliminares. Expôs mais uma vez a situação em que as negociações estavam, enquanto ia pescando, na pasta dos documentos, ora este ora aquele papel, levando as longas colunas de números bem próximo dos olhos míopes para poder lê-las com mais facilidade.

Tornando a repetir, era este o ponto em que estavam as negociações: a Algodoeira Saxônia S.A., que fabricava principalmente tecidos de algodão e cobertores, e com o refugo fabricava uma qualidade muito apreciada de serapilheira, era uma firma de boa envergadura e grande capital. Seu ativo em terrenos, prédios e maquinaria, em mercadorias em bruto e manufaturadas, em patentes, etc, e principalmente em crédito, totalizava um capital considerável. Os impostos anuais e o produto líquido conservavam-se numa sólida média, os dividendos haviam somado, ainda no ano passado, nove e meio por cento.

Zinnowitz ia lendo as cifras, mais ou menos satisfatórias, e Preysing o ouvia com agrado. No seu empreendimento estava tudo limpo e em ordem, e a produção com o refugo, que sozinha trazia trezentos mil em bruto, fora organizada por ele. Olhou para Gerstenkorn. Este, com a maneira pensativa e meio simplória dos velhos manhosos, balançava de um para outro lado a cabeça grisalha, à escovinha. Schweimann aspirava seu charuto, parecendo não estar ouvindo. Waitz controlava as cifras que eram lidas, uma a uma, olhando para um caderninho com capa de couro, onde ele tomara notas. A Flamm número um, verdadeira mestra, na arte da secretária particular, em não fazer notar sua presença, com olhar fixo fitava os reflexos na água, em que a caneta tomava o aspecto tremulante de uma pequena e aguda baioneta. Zinnowitz tirou outro maço de papéis de entre os documentos colocados uns sobre os outros e passou então a tratar da situação da Malharia de Chemnitz. Sua barba longa e fina de chinês subia e descia quando ele falava.

A Malharia de Chemnitz era — deduzia-se das cifras — um empreendimento muito menor. Mal possuía a metade desse ativo, e seu balanço demonstrava uma situação bastante precária. Ele tinha anotado apenas o principal, mas, não obstante, tivera de lançar uma elevadíssima participação de lucros. Os impostos anuais eram altos. O lucro líquido mal chegava à altura dos impostos. Considerando tudo isso, as cifras do balanço da Chemnitz mantinham-se espantosamente elevadas. Zinnowitz colocou um amável e pequeno sinal de interrogação por trás das últimas cifras que lera, e fitou o velho Gerstenkorn.

— Suba. Pode arredondar para duzentos e cinquenta mil marcos, pode fazê-lo.

— O senhor não pode fazer as contas assim — observou Preysing, que tinha ficado nervoso. — O senhor precisa amortizar o preço das novas máquinas para o novo processo. Nesse caso, o senhor não poderá anotar nem mesmo suas velhas máquinas.

— Mesmo assim. Mesmo assim — insistiu Gerstenkorn, teimoso.

O Dr. Waitz trombeteou:

— Poderemos considerar as nossas cifras muito mais desvalorizadas do que valorizadas.

O Dr. Zinnowitz pôs em cima da mesa um papel para o diretor-geral, e este, forçando a vista, aprofundou-se nos seus cálculos. O resultado ele já conhecia. A Malharia de Chemnitz era um empreendimento de pouca solidez, fundado com pouco capital, e com o crédito quase estourando. Mas impunha-se, tinha bons lucros, parecia estar se desenvolvendo, tinha as conjunturas a seu favor. Enquanto isso, a Algodoeira Saxônia ficava para trás, ia adormecendo, sólida e bem fundada como era. Algodão, cobertores e serapilheira. O mundo não se interessava, no momento, por cobertores e serapilheira. E o velho de Fredersdorf sabia por que razão ele insistia, nas atuais circunstâncias, em agarrar a oportunidade dos tecidos de malha, e trazer assim um lucro para o seu empreendimento.

— Isso não tem importância. Vamos adiante — disse o diretor, com a condescendência de um homem que está em posição inferior. Gerstenkorn tirou da mão dele o balanço e, alisando delicadamente o papel, tossiu uma risada.

Zinnowitz, com palavras fluentes, já havia tratado da situação das ações, havendo, nesse ponto, um erro evidente. O capital efetivo da Saxônia era quase duas vezes maior do que o ativo dos senhores de Chemnitz. Partindo dessa premissa, todas as outras negociações preliminares haviam decorrido de modo que, na fusão das duas firmas, duas ações da Chemnitz equivalessem a uma ação da Saxônia. Mas as ações da Chemnitz haviam subido, as da Saxônia baixado, o equilíbrio tinha-se modificado sensivelmente, e o Dr. Zinnowitz, com um gesto conciliante da mão, teve que conceder — a base das trocas se modificara, em razão da espantosa subida das ações da Malharia de Chemnitz. Preysing ouvia com desagrado a voz polida do seu advogado, que com muitas frases, impecáveis e condicionais, trazia à luz uma quantidade de coisas desagradáveis, que ele estava farto de saber. Seu charuto já não lhe dava mais prazer; tirou ainda algumas baforadas enérgicas, e acabou pondo-o de lado. Num certo ponto da exposição de Zinnowitz, o Dr. Waitz saltou, como um ator na sua deixa, bateu rapidamente com a palma da mão no pano verde da mesa, e opôs suas objeções. Começou a ler cifras no seu caderno de notas, sem olhá-lo sequer, novos números, números diferentes — Preysing contraiu de tal modo os músculos da testa, que seus olhos saltaram das órbitas, tal o esforço que fazia para conservar na memória todas aquelas coisas, para perceber tudo e não perder de vista o aspecto geral do assunto. Puxou para o seu lado alguns papéis de carta do hotel, que estavam em cima da mesa, e se pôs a rabiscar notas às escondidas, e excitado como um mau aluno. O conselheiro Zinnowitz, por seu lado, havia apenas lançado um olhar à Flamm número um, e a boa moça já estava a estenografar as agressivas palavras e provas no seu bloco, com riscos azuis. O Dr. Waitz apresentou o conjunto de suas trombeteadas objeções: não, não era possível exigir dos acionistas da Malharia de Chemnitz um prejuízo de metade do seu capital, no caso de tal fusão. Conforme sua opinião, não havia nenhum motivo plausível para, no caso de uma eventual fusão — ele frisou o "eventual", como um ator de província —, conceder a primazia à Saxônia, com relação à sociedade de Chemnitz, para de certo modo colocar num plano de dependência essa firma em plena florescência, para pô-la simplesmente a um canto.

Zinnowitz olhou para Preysing, e este, obediente, se pôs a falar. Tinha o hábito de falar de coisas importantes com voz nasal e abafada, num tom aborrecido e monótono; pelo fato de se sentir intimamente um homem pouco seguro de si, empregava tais meios para demonstrar aos outros calma e superioridade. As palmas de suas mãos estavam úmidas, quando se atirou à luta. Os olhos de Schweimann arrastaram-se para fora das órbitas vermelhas em que habitavam, como camundonguinhos cinzentos, e Gerstenkorn colocou os polegares nas cavas do colete, com a expressão de uma pessoa que está se divertindo. As paredes de damasco falso ouviam tudo, com indiferença. Conferências como essa se realizavam diariamente no Grande Hotel; nesse enorme Kaff eram cozidas muitas sopas, que em seguida os acionistas tinham que engolir. O açúcar subia de preço, as meias de seda barateavam, o carvão desaparecia, tudo isso e milhares de coisas mais dependiam do decorrer dessas lutas na sala de conferências do Grande Hotel.

Preysing ia falando. Quanto mais ele falava, com uma voz que ressoava como se a tivesse posto sobre a neve, e quanto mais minucioso se tornava, tanto mais perdia terreno. As interrupções breves e concludentes de Gerstenkorn assobiavam por entre suas frases como balas de revólver. Houve momentos em que Preysing teria de bom grado fugido dali, meia-volta, marchar, marchar, abandonando toda essa história imunda de fusão, para voltar para a companhia de Mulle, Pepsin e Babe, em Fredersdorf. Mas era um diretor-geral, e o mundo não era um negócio tão simples assim; dessa fusão muito se esperava para a fábrica, e dela dependia tudo para a sua própria posição dentro da fábrica, pelo que aguentou o repuxo. Puxou mais uma vez do seu ativo, essa prova mais do que sólida de um empreendimento mais do que sólido, e se agarrou a isso com unhas e dentes. Caceteou os senhores da Chemnitz, caindo em pormenores excessivos, e o conselheiro precisou por várias vezes pô-lo em movimento, como a um barco encalhado e lento. Preysing fazia uma confusão medonha, insistia em alguns pontos secundários, teimava sem a mínima razão; caceteava os senhores da Chemnitz com minuciosas descrições da fabricação de tecido de serapilheira, feito com refugo do material, pois era do que mais gostava de falar, esquecendo-se de aludir a assuntos importantes que tinha sublinhado no papel de carta diante dele. Finalmente ficou parado no meio de uma frase que começara como. uma fanfarra e terminou num beco sem saída. Tirou do bolso o lenço e enxugou o suor do bigode; pôs na boca um novo charuto, que tinha gosto de feno. De repente teve a impressão de estar sentado em uma mesa entre contrabandistas, pessoas sem seriedade e sem princípios; sentiu a amargura do homem honesto que e tido por tolo.

Então, Gerstenkorn tirou das cavas do colete seus dedos redondos de burguês atrasado e começou a expor a sua opinião. Esse senhor Gerstenkorn, com sua cabeça quadrada à escovinha e sua voz bronquial, era um orador claro e combativo. Empregava toda espécie de dialetos, para dizer sem rodeios o que queria dizer. Saxão, berlinês, iídiche e mecklemburguês eram o tempero da sua conversa sobre negócios.

— Agora o senhor faça ponto final, e deixe os adultos falarem — observou ele, conservando na boca o charuto, o que tornava sua linguagem, comumente vulgar, mais vulgar ainda, e era o que ele queria. — As coisas de que a Saxônia é capaz o senhor já nos contou, e nós já sabíamos disso tudo. Música também ela não sabe fazer. Já repetimos e tornamos a repetir isso tudo aos nossos principais acionistas, e qual foi o resultado? Receio, um enorme receio, um fundamentado receio da fusão. É engraçado, como é que os acionistas, por causa do seu algodão, iriam meter a mão no caldeirão para tirar as salsichas quentes? Em poucas palavras: a nossa situação melhorou muito desde a primeira vez que o senhor se dirigiu a nós. A sua situação não se modificou, se quisermos ser amáveis e não dissermos que piorou. Nessas condições, nós, falo em alemão claro, meu prezado Preysing, perdemos o interesse na fusão. E estamos aqui com a incumbência de parar com as negociações, nessas circunstâncias. Quando o senhor se dirigiu a nós, as perspectivas eram outras.

— Mas nós não nos dirigimos aos senhores — disse Preysing com rapidez.

— Homem de Deus, o que aconteceu com o senhor? Dirigiram-se a nós, sim! Dr. Waitz, faça o favor de me passar os dados. O senhor dirigiu-se a nós em... aqui está... em 14 de setembro, por carta.

— Não é verdade — teimou Preysing, puxando o maço de documentos que estava diante do conselheiro Zinnowitz. — Nós não nos dirigimos aos senhores. Antes dessa carta já tinha havido uma troca pessoal de impressões, pedida pelos senhores.

— Trata-se disso? Pois um mês antes o seu velho já tinha batido à minha porta, a título particular, com toda a amabilidade.

— Nós não nos dirigimos em primeiro lugar — respondeu Preysing, apegando-se a esse fato absolutamente sem importância, como se isso pudesse salvar alguma coisa. Zinnowitz bateu com os pés estreitos debaixo da mesa, pedindo socorro. De repente, Gerstenkorn pôs fim à discussão, e passou a palma da mão quadrada sobre o pano verde da mesa.

— Está bem — disse ele —, bon. Pois então não se dirigiram, se assim lhe agrada. E, tenham ou não se dirigido, as circunstâncias naquela época eram diferentes, o senhor tem que concordar, Herr diretor-geral — ele disse "Herr diretor-geral", e a mudança da maneira amistosa de falar para esse tom oficial soava ameaçadoramente. — Naquela época tínhamos motivos para desejar uma sociedade com a Algodoeira Saxônia. Hoje, que motivos temos?

— Os senhores precisam de um capital maior — disse Preysing, com toda a razão.

Gerstenkorn, com dois dedos, varreu da mesa a objeção.

— Capital! Capital! Se emitirmos hoje novas ações nos atirarão quanto dinheiro quisermos. Capital! O senhor se esquece de uma coisa: o seu bom tempo foi durante a guerra, naquela ocasião a gente podia arranjar a vida fazendo tecido para o Exército e cobertores. Agora o tempo está bom para nós, entende? Nós não precisamos de capital. Precisamos de matéria-prima barata, para aproveitar o nosso novo processo, e precisamos de novos mercados no exterior. Digo-lhe com toda a franqueza, e diretamente, a opinião da nossa sociedade, Herr diretor-geral. Se a fusão com os senhores for proveitosa para nós, então a concretizaremos. Do contrário, não a faremos. Faça o favor, diga o que pensa sobre isso.

Pobre Preysing! Tinha que expor o seu pensamento. Agora haviam chegado naquele ponto que o amedrontava, desde que pisara o trem misto em Fredersdorf. Lançou um olhar de coelho a Zinnowitz, mas este olhou com um ar de recusa as próprias unhas, bem tratadas e pálidas.

— Não é nenhum segredo o fato de possuirmos ótimas relações no exterior. Só para os Bálcãs exportamos anualmente sessenta e cinco mil marcos de tecido de serapilheira — observou ele. — É natural que, no caso de uma fusão, faríamos o possível para atrair ainda o mercado externo para o produto de malha manufaturado.

— Quais são os motivos que o levam a afirmar isso com tanta certeza? — perguntou o Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, erguendo um pouco o busto, conforme um antigo hábito seu, do tempo em que fora juiz criminal. Dava a impressão de ainda usar a toga, e falava num tom de voz próprio para intimidar a testemunha insegura. O diretor-geral se deixou intimidar.

— Não sei a que motivos se refere — respondeu ele, com seu lamentável costume de perguntar coisas que estava farto de saber.

Schweimann, bem em frente dele, ainda não tinha aberto sua enorme e elástica boca de macaco. Agora a abria.

— Trata-se da planejada sociedade com Burleigh & Son — afirmou ele, sem rodeios.

Gerstenkorn balançava com a máxima atenção a longa ponta de cinza do seu charuto.

— Infelizmente, não estou em condições de dar informações a esse respeito — respondeu Preysing imediatamente. Preparara de antemão essa resposta, e a sabia de cor.

— Que pena! — disse o velho Gerstenkorn.

Em seguida ficaram todos calados durante alguns minutos.

A garrafa de água tilintou levemente na bandeja, porque lá fora passava um ônibus, e o reflexo estreito e contorcido do sol batendo na água parada tremulou na parede sobre a moldura do retrato a óleo do fundador do Grande Hotel. Preysing, durante alguns segundos, se pôs a refletir febrilmente. Não sabia se o Dr. Zinnowitz havia mostrado ao pessoal da Chemnitz as cópias daquelas cartas agourentas, sem o menor valor e importância. Sentia novamente nas mãos aquela impressão de falta de asseio e de trato. Seu rosto por barbear começou a cocar de um modo ridículo. Lançou um olhar inquiridor e implorante ao conselheiro, lá na ponta da mesa. Zinnowitz, procurando acalmá-lo, baixou as pálpebras oblíquas e inteligentes de seus olhos de chinês, um movimento quase invisível, que tanto podia significar sim, como não, ou mesmo não significar absolutamente nada. Preysing dominou-se. "Preciso consegui-lo", pensou ele; era mais um sentimento do que um pensamento.

— Meus senhores — disse ele, levantando-se; é que o forro esticado de veludo da cadeira causava no seu traseiro uma sensação desagradável de calor —, mas, meus senhores, vamos tratar do que importa. A base sobre a qual foram feitas até agora todas as negociações entre nós foi o balanço e a situação da fábrica de Fredersdorf. Os senhores puderam fazer uma ideia bem clara da situação, o senhor conselheiro comercial Gerstenkorn pôde certificar-se pessoalmente das condições em que se encontra a nossa fábrica, e eu faço questão de que hoje não se trate de coisas vagas e imponderáveis nas nossas negociações. Não somos especuladores, eu não sou um especulador, em absoluto, trabalho com fatos e não com boatos. Não passa de um boato da Bolsa, isso de que vamos fazer sociedade com Burleigh & Son, em Manchester. Mandei desmentir isso, não posso permitir que...

— O senhor não vai querer ensinar uma lebre velha a correr, não é? Nós sabemos muito bem o que significa um démenti — replicou Gerstenkorn.

Schweimann agora estava animado; farejava, com as suas narinas dilatadas e a boca de macaco, como se já cheirasse a possibilidade do mercado inglês. Preysing foi-se enfurecendo.

— Não aceito! — exclamou ele. — Não aceito que considerem como um fator importante nos nossos negócios esse assunto da Inglaterra; não aceito isso. Não faço cálculos com castelos na Lua, nunca fiz isso, a nossa fábrica não tem necessidade de fazer semelhante coisa. Conto com coisas reais, com fatos, com cifras, com o nosso balanço, aqui está — exclamou ele batendo três vezes com a palma da mão na pilha de documentos que se encontrava diante dele —, é isso que tem valor... e não permito que se trate de outra coisa. Nós oferecemos agora o que oferecemos desde o primeiro dia, e se isso de repente não basta para a sua firma, sinto muito!

Parou espantado, pois tinha galopado como se corresse sobre um pântano. "Estou assustando os outros com a minha gritaria", pensou ele horrorizado, "preciso atraí-los, e em vez disso estou estragando tudo." Encheu o copo de água e bebeu. Era um líquido grosso, morno e sem sabor, como óleo de rícino. O conselheiro Zinnowitz deu uma risadinha e tentou endireitar a coisa.

— O diretor-geral Preysing é de uma consciência modelar — declarou ele. — Não sei, mas talvez os seus receios de levar de certo modo em consideração o negócio com Manchester sejam injustificados, pelo menos exagerados. Por que não se poderá deixar pesar na balança uma coisa que oferece tão boas perspectivas, mesmo que isso ainda não esteja em preto no branco? Por que...

— Por quê? Porque não posso me responsabilizar por isso — interrompeu-o Preysing. Zinnowitz, que teria de bom grado lhe pisado no pé, mas não o podia fazer, ergueu a voz, dirigindo-se ao diretor-geral. Preysing sentou-se de novo no assento quente da cadeira de veludo, e não disse mais nada. Esteve a ponto de declarar a verdade. Bom, se Zinnowitz não o deixava falar, então o célebre perito em matéria comercial que se arranjasse como pudesse. "A coisa vai mal", pensou Preysing, "já não tem mais conserto, está tudo acabado, morto e enterrado. As negociações fracassaram definitivamente. Está bem." Oferecera a todo mundo uma firma sólida, e tudo que um homem correto pode oferecer. Mas o mundo não queria coisas assim. O mundo queria mercados fictícios, boatos falsos, especulações, por trás dos quais nada havia, a não ser um pouquinho de fanfarronice. Artigos de malha, jumper e sweater, meias de cores variadas de Chemnitz, pensou o diretor-geral, amargurado... E chegou a ver realmente, nesse momento, tais coisas, modernas, coloridas e levianas, que conquistavam o mundo no corpo de moças também levianas.

Zinnowitz continuava o seu sermão; Flamm caíra de novo em sua letargia profissional. Gerstenkorn e Schweimann, no entanto, mal ouviam; com a cabeça metida entre os ombros, conversavam sem nenhuma delicadeza, a meia voz, sobre um assunto qualquer.

— O nosso amigo Preysing — recomeçou o conselheiro — talvez vá um pouco longe demais com os seus escrúpulos. Dizem que a sua fábrica está para firmar um contrato muito vantajoso com a próspera e antiga firma Burleigh & Son. E que faz o nosso caro Preysing? Procura negar isso, como se acaso se tratasse de uma bancarrota. Considerando que se trate apenas de um boato... não há boato algum que não contenha um fundo de verdade, todos nós sabemos. E um velho homem de negócios como o conselheiro comercial Gerstenkorn há de concordar que há boatos que têm mais valor do que muito contrato pronto e assinado. Mas como antigo advogado da fábrica de Fredersdorf, posso afirmar: isso é mais do que um boato, há certos ajustes por trás disso. Desculpe-me, caro Preysing, se não guardo a discrição férrea que o senhor guarda. Não tem nenhum sentido insistir em negar, desde que já se realizaram inúmeros entendimentos a esse respeito. Talvez hoje ainda não se possa saber com certeza se eles conduziram a um resultado positivo. Mas isso é um fato, e um fato menos desfavorável do que o seu balanço. Acho extremamente correto e delicado Herr Preysing não querer juntar ao ativo da sua fábrica esse fato, acho isso realmente de uma correção e distinção fora do comum. Mas dessa maneira não se vai para a frente. Desculpe-me, portanto, se eu confio essas coisas a estes senhores.

Zinnowitz continuou a murmurar um palavreado conciliante, com muitos "no entanto" e "como também" e “se acaso" e "por outro lado". Preysing tinha empalidecido; teve a sensação, ao sentir nas fontes uma pontada do sangue a fugir, o sentimento de que havia realmente empalidecido. "Ele lhes mostrou as cartas", pensou. "Mas, Deus do céu, isso já é intriga, já é quase uma fraude. Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann", pensou ele, enxergando as letras azul-escuras e apagadas do telegrama. Meteu a mão no bolso do colete do seu terno cinzento de funcionário, onde guardara o telegrama, mas retirou-a no mesmo instante, como se a tivesse metido num forno quente. "Se eu agora não me levantar imediatamente, e não disser o que está se passando, então a coisa está perdida", pensou, levantando-se. "Porém, se eu falar agora, estes senhores se afastarão, a fusão vai por água abaixo e eu voltarei para Fredersdorf completamente desacreditado", refletiu, sentando-se de novo. Procurou disfarçar seus movimentos indecisos e inoportunos, e, colocando água num copo até o meio, sorveu-a, como se fosse um remédio.

Enquanto isso, Schweimann e Gerstenkorn tinham-se animado. Eram duas cabeças de comerciantes, finórias e lustrosas de unção. Sua atenção foi despertada para o fato de Preysing ter negado com tanta veemência o negócio com a Inglaterra, tentando pôr de lado o assunto. Seu olfato sentia alguma outra coisa por trás disso: mercados, proveitos, talvez concorrência. Gerstenkorn teve uma ideia, que murmurou à enorme orelha direita de Schweimann:

— Se se tratasse de qualquer outra pessoa, um desmentido assim seria quase o mesmo que uma afirmação. Mas com esse animal que é o Preysing, é possível até que ele esteja falando a verdade.

Gerstenkorn deu uma investida brutal.

— Não adianta o conselheiro estar gastando o seu latim — disse ele, inclinando-se sobre a mesa. — Antes de continuarmos a nossa conversação, quero pedir a Herr Preysing o favor de nos dizer sem rodeios até que ponto chegaram as negociações com Burleigh & Son.

— Recuso-me a isso — afirmou Preysing.

— Insisto, caso continuemos a negociar — retrucou Gerstenkorn.

— Então — replicou Preysing — peço-lhe que, no decorrer das negociações, esse assunto seja dado por encerrado.

— Nesse caso preciso admitir que as perspectivas de sociedade com Burleigh & Son malograram? — perguntou Gerstenkorn.

— Admita o que bem lhe parecer — respondeu Preysing.

Em seguida todos se calaram por quase um minuto. Flamm número um folheou discretamente o seu bloco de estenografia, e o ruído delicado das folhas de papel que ela virava ressoou no silêncio da sala de conferências. Preysing parecia um bebezinho zangado; às vezes, sucedia meter a cabeça por trás da fisionomia do diretor-geral um menino cabeçudo e teimoso. Zinnowitz, com a sua caneta de malaquita, desenhava resignados triângulos na capa de um documento.

— Acho que por enquanto não tem sentido nenhum continuarmos a nossa conversa — disse finalmente Gerstenkorn. — Acho que podemos continuar a nos entender por escrito.

Ele se levantou, e a sua cadeira deixou sulcos fundos no tapete espesso, legítimo, da sólida sala de conferências. Mas Preysing continuou sentado. Tirou cuidadosamente um charuto do bolso, cortou-lhe a ponta cerimoniosamente, acendeu, tirou uma tragada e começou a fumar, com uma expressão absorta e profundamente pensativa; suas bochechas se tinham avermelhado, cheias de veiazinhas salientes.

Não há dúvida de que o Diretor-Geral Preysing é um homem honestíssimo, de caráter, bom esposo e bom pai, um homem ordeiro e organizado, da mais consolidada burguesia. Sua vida está toda em ordem, tudo registrado e em cartas, oferecendo um aspecto agradável: uma vida de caixas de fichas, de pastas de documentos, de muitas gavetas e muito trabalho. Preysing nunca cometeu a mínima falta de correção. No entanto, deve existir nele um ponto fraco, onde a vida o quer segurar e abater; uma insignificante inflamação, uma manchinha microscópica na limpeza burguesa de seus trajes, deve existir, no entanto...

Ele não chamou por socorro, nesse momento em que a conferência se interrompeu, apesar de se sentir muito mal, com a sensação de que precisava pedir auxílio e gritar por socorro. Levantou-se com o charuto na boca, segurando-o fortemente entre os dentes, e teve a impressão perfeita de estar bêbado, quando pôs as mãos nos bolsos.

— Que pena — disse ele negligentemente, admirando-se do tom despreocupado dessa frase que roçou subitamente o charuto em sua boca. — É realmente pena. Adiar é o mesmo que terminar. Pois então, ponto final. E agora que os senhores desistiram do negócio, posso dizer-lhes que o contrato com Burleigh & Son está firmado. Desde ontem à noite. Recebi hoje de manhã a notícia.

Tirou a mão do bolso do colete, e nela estava metido o telegrama dobrado: Negociações fracassaram definitivamente. Broesemann. Foi tomado de um infantil e triunfal prazer de enganar os outros, enquanto dizia aquela mentira enorme, que raiava a fraude, e punha o telegrama sobre o pano verde da mesa. Ele próprio não sabia se queria passar um blefe nos outros ou estava procurando uma boa saída para sua posição desacreditada. Schweimann, o mais indisciplinado dos dois homens da Chemnitz, estendeu o braço, num movimento instintivo para pegar o telegrama. Preysing, muito calmo, abriu o telegrama, dobrou-o novamente, e, com um gesto calmo e refletido, meteu-o de novo no bolso do colete. O Dr. Waitz, lá na ponta da mesa, fez uma cara de idiota. O conselheiro Zinnowitz soltou um assobio leve e agudo, realmente estranhável, partindo da sua boca sábia de chinês.

Gerstenkorn começou a rir, com acessos de tosse bronquial.

— Meu caro — tossiu ele —, caríssimo! O senhor é muito mais sabido do que parece! Homem de Deus! O senhor nos pregou uma boa! Olhe aqui, precisamos conversar sobre isso!

Gerstenkorn se sentou. O diretor-geral, ainda por alguns segundos com um sentimento de vazio, como se todos os seus ossos tivessem ficado ocos e como se sentisse um esquisito e brando tremor nos joelhos, sentou-se também. Tinha mentido pela primeira vez na vida, e ainda por cima de um modo idiota, completamente simplório e sem base. E com essa mentira — justamente com ela — havia conseguido pela primeira vez, após tantos fracassos, impor-se de novo. De repente ouviu a própria voz a falar, e a falar bem. Sentiu-se tomado de uma estranha e desconhecida embriaguez; ouvia a própria voz, e tudo o que dizia tinha pés e cabeça, energia e visão. O fundador do Grande Hotel olhava fixamente para ele, muito admirado, lá do alto do seu retrato a óleo, com seus olhos pintados cintilantes. A Flamm número um curvara o rosto penugento sobre o bloco de estenografia, e estenografava rapidamente — porque agora, parecia, chegariam a um acordo final, cada palavra proferida se tornava importante.

Até o fim da conferência, que durou ainda três horas e vinte minutos, Preysing conservou-se nesse novo estado de ânimo, que lhe dava a impressão de estar voando. E só quando pegou a caneta-tinteiro de malaquita verde para assinar seu nome ao lado da assinatura de Gerstenkorn, no contrato prévio, notou que as suas mãos estavam úmidas e estranhamente sujas.


10

— O 218 quer que o despertem às nove horas — disse o porteiro ao praticante Georgi.

— Ele vai embora? — perguntou o rapazinho.

— Embora por quê? Qual nada, ele vai ficar.

— Pensei que ia. Ele nunca pediu que o acordassem ... — disse Georgi.

— Pois agora pode acordá-lo — respondeu o porteiro.

E assim, às nove horas em ponto, o telefone tilintou no quartinho ridiculamente minúsculo do Dr. Otternschlag.

Apressado como um homem cheio de ocupações, Otternschlag esforçou-se por libertar-se da nebulosidade dos sonhos e despertar, e em seguida admirou-se de estar acordado.

— O que foi? — perguntou a si próprio e ao telefone. — O que foi?

Depois ficou em silêncio durante alguns minutos, concentrando-se e procurando lembrar-se, com o rosto desfigurado encostado no linho macio do travesseiro do hotel. "Atenção", pensou ele, "é aquele homem, é o Kringelein, esse coitado. Precisamos mostrar-lhe o que é a vida. Ele está à minha espera. Já está sentado à mesa, na sala do café, esperando."

— Vamos levantar-nos e nos aprontar? — perguntou a si mesmo. — Vamos sim — respondeu depois de fazer um esforço, porque ainda tinha uma bela dose de morfina nos ossos. Apesar disso, seu rosto e seus movimentos, enquanto se vestia, pareciam exprimir um certo entusiasmo. Alguém esperava por ele. Alguém precisava dele. Alguém lhe demonstrava gratidão. Com um pé de meia na mão, sentado na beira da cama, começou a fazer planos e decidir o que fazer. Fez o programa para o dia, ocupado como um guia de viagens, um mentor, um homem importante e procurado. A camareira que tinha ido buscar no quarto vizinho ao 218 a vassoura e o balde ouviu, admiradíssima, o Dr. Otternschlag cantarolar com voz incerta uma melodia, enquanto ia escovando os dentes.

Entretanto, Kringelein se encontrava na sala de café, ainda exausto, excitado e animado, após sua cansativa vitória sobre o senhor Diretor-Geral Preysing, no barbeiro; há dez minutos tinha travado relações, com extremo prazer, com o Barão von Gaigern, relações distintas, encantadoras. Gaigern tinha agido depressa. Saíra da noite com a Grussinskaia sem as pérolas, e passara diretamente a uma explicação murmurada, mas dura como granito, com o chofer. Logo em seguida — após tomar banho, fazer ginástica e friccionar o corpo com água de alfazema — atirara-se sobre o senhor provinciano do 70, com o qual ele talvez pudesse arranjar de um modo ou de outro os milhares de marcos de que precisava com mais premência. Estava transbordando de impaciência, uma impaciência radiante de felicidade, tensa e ardente. Havia-se separado da Grussinskaia há uma hora apenas, e já sentia uma saudade louca, uma saudade alegre e delicada. Sua cabeça queria estar de novo com ela, sua pele, seus dedos, seus lábios, tudo a desejava novamente, o mais depressa possível. Gaigern sorveu, faminto de vida e de energia, esse sentimento desconhecido como costumava acolher dentro de si as novas experiências. O élan com que ele aguardava a tentativa com Kringelein era enorme. Com uma rapidez que se poderia chamar de tempo recorde, em quinze minutos conseguiu ganhar uma grande dose de confiança. Esmagado, Kringelein abriu sua pequena alma de funcionário, indecisa, ansiosa de vida e preparada para a morte — e o que ele não disse ou não soube exprimir Gaigern adivinhou. Quando Kringelein, às nove horas e catorze minutos, limpou no pequeno guardanapo do hotel o seu esforçado bigode, os dois já eram amigos.

— Imagine, senhor barão — dizia Kringelein —, imagine que eu tenha recebido por acaso algum dinheiro, depois de ter vivido sempre uma vida modestíssima, realmente modestíssima. Uma pessoa como o senhor barão não pode fazer sequer uma ideia de uma vida assim. É o medo da conta do carvão, o senhor compreende? Ou então não se pode ir ao dentista, vai-se deixando de um ano para outro, e de repente perdem-se quase todos os dentes, não se sabe como. Mas não quero falar dessas coisas. Anteontem comi pela primeira vez na vida caviar, ou coisa parecida. Quando o nosso diretor-geral tem reuniões em casa, manda vir caviar de Dresden, aos quilos. Bem, caviar, champanha e todos esses luxos não são a vida, dirá o senhor barão. Mas o que é a vida? Veja, barão, eu não sou mais um homem moço, sou meio doente, e de repente fiquei com receio de não poder aproveitar a vida. Eu não quero deixar passar a vida sem aproveitá-la, o senhor compreende?

— Nunca deixamos de aproveitar a vida! Ela está sempre ao nosso dispor, nós vivemos e é quanto basta. A gente vai vivendo, é isso — disse Gaigern.

Kringelein fitou aquele moço bonito e animado, e talvez suas olheiras, por detrás dos óculos, se tenham ruborizado um pouco.

— Pois é. Naturalmente, para o senhor, a vida está sempre presente, cada minuto que passa. Mas para gente como nós...? — disse ele baixinho.

— É engraçado. O senhor fala da vida como se ela fosse um trem que vai passando, e que o deixa para trás. Há quanto tempo o senhor anda atrás dela? Há três dias? E ainda não conseguiu pegá-la pela cauda, apesar do champanha e do caviar? O que o senhor fez ontem, por exemplo? Museu Kaiser-Friedrich, Potsdam, à noite teatro? Meu Deus do céu! Do que foi que mais gostou? De que quadro? Como? Não reparou... naturalmente. E no teatro... a Grussinskaia? É... a Grussinskaia — repetiu Gaigern, sentindo no coração, ao pronunciar esse nome, um calor repentino, como se fosse um rapazinho tolo. — O que está dizendo? O senhor ficou triste, era tão poético? Pois é, é mais ou menos isso. Mas tudo isso não tem nada que ver com a vida, senhor diretor. — Dizia "senhor diretor" por pura amabilidade, porque não gostou do nome de Kringelein, ridículo e desataviado; e Kringelein corou, feliz e intrujão. — A vida, a vida é... veja: às vezes encontram-se na rua esses caldeirões de piche, fervendo, em ebulição, soltando fumaça, fedendo como a peste a quilômetros de distância. Mas aproxime-se de um caldeirão desses e conserve a cabeça sobre ele, meta o nariz na fumaceira do alcatrão. É uma coisa estupenda, quente, com um cheiro forte e acre, que quase nos derruba no chão, e as gotas grossas e pretas brilham, e há força ali dentro, nada de doçuras nem de coisas insossas. Ah! Caviar! O senhor quer aproveitar a vida, e se eu lhe perguntar que cor têm os bondes de Berlim, o senhor não sabe, porque nunca reparou neles. Aliás, ouça, senhor diretor: com uma gravata como a sua, o senhor nunca poderá tomar o trem da vida; dentro de um terno como o seu ninguém pode se sentir feliz. Digo-lhe isso abertamente, porque não tem sentido nenhum ficar fazendo cumprimentos. Se o senhor confiar um pouco em mim, para apressar as coisas, precisamos primeiro ir ao alfaiate. O senhor está com dinheiro, livro de cheques... não. Faça o favor de arranjar dinheiro, mesmo! Enquanto isso eu vou buscar o meu carro na garagem. O meu chofer está de licença, deixei que o rapaz fosse ver a noiva em Springe; eu mesmo vou guiar.

Kringelein tinha a impressão de que um vento forte lhe batia nos ouvidos. A observação a respeito da sua gravata — comprada por dois marcos e cinquenta — e o seu bonito terno, na verdade, o haviam magoado. Pôs timidamente a mão no colarinho, largo demais.

— Pois é — disse Gaigern —, é muito grande, e vê-se o botão. Assim não pode, naturalmente!

— É que eu pensei... Eu não queria gastar dinheiro em roupa — murmurou Kringelein, vendo bailar vertiginosamente as cifras em seu caderno de notas. — Em outras coisas eu gasto de boa vontade, mas não em roupa.

— E por que não em roupa? Isso é o principal.

— Porque... não vale mais a pena — respondeu Kringelein, baixinho, com as amaldiçoadas lágrimas soltas a queimar-lhe de novo o canto dos olhos. Que maldição! Ele não podia se lembrar do seu fim próximo sem ficar comovido. Gaigern olhou para ele, descontente. — Não vale a pena, realmente... quero dizer... não terei por muito tempo a oportunidade de usar roupas novas. Pensei que... que as velhas ainda fossem servindo — sussurrou com um sentimento de culpa.

"Meu Deus, será que todos os homens têm uma xícara de chá com veronal preparada para tomar?", pensou Gaigern, a quem as carícias dessa noite haviam tornado sensível.

— Não se deve calcular assim — disse ele amavelmente. — Não se deve calcular, Herr Kringelein. Os cálculos nos saem errados. No momento adequado o senhor deve estar com a disposição adequada. Eu sou um homem do momento, e tenho-me dado bem com isso. Vamos, ponha no bolso algumas notas de mil marcos, e depois veremos se a vida não é uma coisa divertida. Avante!

Kringelein se levantou, obediente; tinha a sensação de rodopiar perigosamente dentro do turbilhão de uma cratera. "Algumas notas de mil marcos", pensou ele, como se estivesse atrás de um nevoeiro. Já estava acompanhando Gaigern, enquanto seus pensamentos ainda resistiam, e as paredes da sala de café dançavam à sua volta. Os pés desenraizados de Kringelein, metidos nas botinas de cano alto, iam tropeçando passivamente pelos corredores do hotel; ele sentia medo. Sentia um medo doido de Gaigern, das despesas, do alfaiate caro, tinha medo do automóvel cinza-claro, em que se meteram no assento da frente, perto da direção, tinha medo da vida que, no entanto, não queria deixar de aproveitar. Apertou com energia seus molares estragados, calçou as luvas de tricô, e começou seu dia feliz.

O Dr. Otternschlag, que às dez para as dez andava ao longo das paredes do hall, à procura de Kringelein, recebeu do porteiro uma carta entregue pessoalmente.

Prezado Dr. Otternschlag! — estava escrito. — Infelizmente, por motivos imprevistos, vejo-me impedido de comparecer ao nosso encontro. Saudações respeitosas do amigo At. Obr. Otto Kringelein.

O estilo era de Kringelein, ainda, mas sua ortografia tinha-se modificado um pouco. Na escrita fluente de guarda-livros, haviam-se imiscuído uns traços informes, e os pingos dos ii pareciam querer voar como balões que se desprendem do fio para estourar nos céus, solitários e com um pequenino e trágico estampido que ninguém ouve.

O Dr. Otternschlag ficou com a mão estendida, segurando a carta. O hall era um deserto, cheio de horas infindáveis e vazias. Passou pelo balcão dos jornais, pelas flores, por pessoas que saíam do elevador, pelas colunas, até chegar ao seu lugar habitual. "Horrível", pensou ele. "Terrível. Medonho." As pontas de seus dedos, plúmbeas e cor de fumo, lhe pendiam das mãos, e com o olho cego ele fitava a mulher da limpeza que, em desacordo com os regulamentos, começava a varrer com serragem úmida, em pleno dia, o hall do Grande Hotel.

É intensa a angústia que Kringelein sente, de pé, na sala de provas da enorme alfaiataria para homens. Três elegantes cavalheiros estão ao seu redor, ocupadíssimos, e doze Kringelein deploráveis refletem-se nos espelhos, aproximando-se uns dos outros em ângulos agudos. Um senhor elegante está ao lado, observando Herr Kringelein com as pálpebras meio cerradas, um olhar de conhecedor, e murmurando palavras incompreensíveis. Sentado num banquinho estofado, sob os retratos de artistas de cinema incrivelmente belos, está o Barão Gaigern, batendo as luvas pespontadas na palma da mão, e desviando de Kringelein o olhar, como se se envergonhasse dele.

Começaram a vir à luz coisas lamentáveis, segredos do guarda-livros Otto Kringelein, de Fredersdorf. Seus suspensórios estão rasgados, costurados, rasgados de novo, e finalmente muito mal consertados, com um barbante. O colete, que lhe ficara muito largo, fora ajustado por Anna, que lhe fez nas costas duas pregas costuradas ao enchimento por meio de pespontos.

Kringelein usa as camisas de seu pai, grandes demais para ele, pelo que meteu umas ligas na parte superior dos braços, para arregaçar as mangas compridíssimas. Usa abotoaduras de tempos pré-históricos, redondas, do tamanho de discos de chapa de fogão, tendo no centro uma esfinge de esmalte vermelho diante de uma pirâmide de esmalte azul. A gigantesca camisa é de um tecido grosso de cor indefinível, tendo na frente apenas um pedacinho de zefir listrado, como uma pequena vitrina na fachada principal. Debaixo da camisa de lã espia ainda qualquer outra coisa também de lã, um coletinho já no fio, cerzido com pontos grosseiros. Por baixo disso, um pedacinho de pele de gato, o que parece ser bom contra dores de estômago e calafrios misteriosos. Os cavalheiros elegantes não mudam de expressão — Kringelein teria preferido que fizessem caçoada dele ou o consolassem.

— Nunca me incomodei muito com a moda. Sou um homem antiquado — diz ele em tom implorante, desculpando-se diante da cortesia gelada dos homens. Ninguém lhe responde. Vão lhe tirando as camadas, uma após outra, como de uma cebola. É um tanto cruel o que está sucedendo com Kringelein, completamente indefeso. Pouco a pouco ele vai se sentindo mal, como na sala de operações, pois agora também há uma claridade vítrea nas coisas, e tudo parece estar muito próximo dele. Depois, os três cavalheiros começam a vesti-lo.

Gaigern se anima, e dá conselhos.

— Fique com isso — diz ele; e —, não fique com isso.

Parece que não é possível contrariar as suas decisões. Kringelein olha de lado para os papeluchos com o preço, presos às peças de vestiário, reparando sempre apenas no preço; não ousa fazer perguntas, a princípio, mas por fim se enche de coragem e começa a querer saber os preços.

Assusta-se de tal modo que tem vontade de sair correndo; a sala de provas parece uma cela com quatro guardas severos e paredes de espelho. Kringelein está todo suado, apesar de o terem libertado de seus agasalhos de lã, que estão enrolados num montinho sobre uma cadeira, com um aspecto de ilimitada miséria, repulsivos. De repente, eles deixaram de pertencer a Kringelein; causam-lhe nojo tais peças de vestuário, remendadas, suarentas e de cor indefinível, essa roupa de um pobre-diabo. Mas, de um momento para outro, qualquer coisa se passa com ele. Fica gostando da camisa de seda que o forçaram a vestir.

— Ah! — diz Kringelein, com a cabeça inclinada e a boca aberta, como se fosse ouvir algum segredo. — Ah, ah!

Sua pele se alegra e trava amizade, gostosamente, com a camisa de seda de delicado padrão. O colarinho se ajusta exatamente ao pescoço, não esfrega, não é nem largo nem apertado demais, a gravata nova cai lisa e macia sobre o peito de Kringelein, onde o coração bate agora como em misteriosa festa — forte, um tanto dorido, mas aliviado. Agora colocam diante dele meias e sapatos, com grande solicitude; Gaigern explicou, em poucas palavras, que o senhor diretor está enfermo, e então trazem dos quatro andares da casa de artigos para homens tudo o que um homem distinto precisa para se vestir. Kringelein envergonha-se medonhamente de seus pés; de súbito tem a impressão de que toda a miséria e o aperto da sua vida estão visíveis nesses pés com joanetes crescidos, pelo que procura se esgueirar com as novas meias e botinas para um canto, coloca suas costas curvas entre si mesmo e os outros, como uma parede, e começa, sem nenhuma prática, a lutar com os cordões. Em seguida vestem-lhe um novo terno, escolhido pelo barão.

— O senhor diretor está com uma aparência maravilhosa — diz um daqueles cavalheiros. — Assenta-lhe como se fosse feito sob medida.

— Não é preciso modificar nada — diz o segundo.

— Perfeito. Nós temos poucos fregueses com um corpo tão esbelto — afirma o terceiro.

Empurram Kringelein para a frente do espelho, e o obrigam a girar no seu eixo como se fosse uma boneca de madeira, magra e paciente.


11

 

E, justamente no momento em que Kringelein voltou do espelho para o seu interior, sentiu pela primeira vez, como um pressentimento, que estava vivendo. Sim, tinha a sensação de existir, conhecia-se a si mesmo, com um abalo tão violento como se o atingisse um raio. Nesse momento, um homem estranho, de porte delicado e distinto, aproximou-se dele com expressão confusa, um homem que era ele próprio, de modo extremamente íntimo, o verdadeiro Kringelein, o Kringelein enterrado, de Fredersdorf — mas isso logo passou. No instante seguinte já não era novidade, o milagre da transformação já se dera.

Kringelein respirou profundamente, com energia, porque parecia querer despertar em seu corpo uma dorzinha aguda.

— Acho que este terno me fica bem, não? — perguntou ele, de modo infantil, a Gaigern.

O barão ainda fez mais; aproximou-se e, com suas próprias mãos, grandes e quentes, arrumou o novo terno nos ombros de Kringelein.

— Sou de opinião que este terno é o suficiente — disse Kringelein aos três cavalheiros.

Apalpou o tecido com os dedos, às escondidas, porque entendia bastante de tecidos, isso se sabia em Fredersdorf, mesmo quando só se trabalhava no escritório.

— É um bom tecido; sou conhecedor — afirmou ele, respeitosamente.

— Artigo inglês legítimo. Nós mandamos trazê-lo diretamente de Londres, de Parker Brother & Co. — respondeu o senhor de pálpebras fechadas.

"Preysing não usa tecidos assim", pensou Kringelein. Os ternos de Preysing costumavam ser daquele mesmo tecido sólido de estamenha cinzenta, de que a fábrica ainda possuía um estoque antigo, e todos os anos, pouco antes do Natal, era vendido aos empregados por baixo preço. Kringelein decidiu-se. Tomou posse desse terno, enfiando ambas as mãos nos bolsos novos e limpos.

Seu medo transformou-se repentinamente na felicidade de comprar e de possuir; pela primeira vez na vida Kringelein tem a sensação de vertiginosa leveza que acompanha o ato de gastar dinheiro. Ele passa através dos muros, por trás dos quais ele morou toda a vida. Compra, compra, sem perguntar o preço, vai comprando. Apalpa tecidos, sedas, alisa abas de chapéus, experimenta coletes, gravatas, cintos, coloca uma cor perto de outra e sorve com delícia a combinação harmoniosa de tons.

— O senhor diretor tem um extraordinário bom gosto — diz um dos cavalheiros.

— Um gosto delicado — afirmou o outro —, correto, distintíssimo.

Gaigern assiste a tudo sorrindo, um tanto impaciente, e faz elogios. Caceteado, olha as próprias mãos; a direita está tão vazia, desde que ele deu o anel de sinete de presente... Disfarçadamente, leva-as até o rosto, para ver se ainda conservam um pouco do perfume dessa noite, agridoce, ao mesmo tempo perigo e calma, Neuwjada, a florzinha que cresce nas campinas.

Kringelein compra um terno marrom, muito confortável, de um tecido cardado inglês, uma calça cinza-escura, com delicadas listras claras, que combina com um paletó estreito; compra também um smoking, no qual é preciso mudar apenas alguns botões; roupa de baixo, camisas, colarinhos, meias, gravatas, uma capa igual à de Gaigern, um chapéu macio, espantosamente leve, com a marca dourada de uma firma de Florença, e finalmente, pegando um par de luvas de camurça pespontadas, iguais às de Gaigern, dirige-se à caixa. Ali estão a fazer uma conta amabilíssima — Kringelein fala com rapidez e facilidade, porque ouve o jargão dos livros-caixa, tão seu conhecido, desde o livro-razão ao livro-matriz. Paga mil marcos à vista, e o resto em três prestações.

— Então! — exclamou Gaigern, satisfeito.

Uma fila de dorsos inclinados, numa saudação, acompanha Kringelein, encantado e transformado, até a porta de espelhos da loja. Lá fora faz sol, mas está frio. O ar tem um sabor de vinho gelado, acha Kringelein, de passagem. Até agora ele sempre se arrastou. Agora ele anda. Tem que dar três passos, da entrada da loja de primeira ordem até a limusine cinza-clara, e ergue três vezes, do calçamento da rua, as solas novas dos seus sapatos.

— Está satisfeito? — pergunta Gaigern, rindo-se e dando a deixa. — Está notando alguma coisa? Sente uma sensação agradável?

— Fantástico! Maravilhoso! Ótimo! — replica Kringelein, tomando a expressão de um homem experimentado, sentado ao volante do carro.

Tira os óculos e esfrega com o polegar e o indicador a beirada dos olhos; é um gesto cansado e que lhe é habitual.

Vem-lhe ao pensamento a ideia de que não estará mais vivo, quando vencer a última prestação.

 

Gaigern sentia a impaciência nos dedos, causava-lhe comichão como ácido carbônico, entre as mãos e a direção. Nos cruzamentos das ruas havia lâmpadas vermelhas, verdes e amarelas, guardas que o ameaçavam com a mão, sorridentes. O carro passava em disparada pelas casas, pelas árvores, colunas de cartazes, ajuntamentos de pessoas nas esquinas, pelas carroças de frutas, muros com cartazes e velhas senhoras amedrontadas, que, com passos miúdos, andavam no leito da rua sem observar o sinal de trânsito, velhas senhoras vestidas de preto e de saias compridas, em pleno mês de março. O sol brilhava, úmido e amarelo, no asfalto. Quando um ônibus pesadão impedia o caminho, o carrinho de quatro lugares gritava com duas buzinas; parecia o latido de cães excitados.

Em Fredersdorf havia muita gente que nunca tinha andado de automóvel. Anna, por exemplo, nunca tinha andado de carro. Mas Kringelein estava andando. Apertou os lábios com força, inteiriçou os músculos sob as axilas, e seus olhos ficaram lacrimejantes pelas correntes de ar. Assustava-se nas curvas, e seu coração arfava sob a camisa de seda nova. Era o mesmo prazer medroso da infância, quando na feira anual de Mickenau, no outono, se podia andar de carrossel três vezes seguidas, por um groschon.

Kringelein arregalava os olhos para ver Berlim, que rapidamente se entremostrava sob aspectos deformados. Ainda se recordava bem da grande cidade. A Porta de Brandenburgo, por exemplo, reconheceu-a de longe, assim como a Gedaechtniskirche, à qual dirigiu um olhar respeitoso.

— Para onde estamos indo? — gritou ele ao ouvido direito de Gaigern. O ronco do motor lhe parecia fortíssimo, e ele se sentia no meio de estrondos e de uma tempestade.

— Para os arredores da cidade, a fim de almoçar. Para lá do Avus — respondeu Gaigern com jovialidade.

A rua parecia penetrar dentro do carro, cada vez com mais velocidade. Chegaram às proximidades da torre da emissora. Kringelein já estivera ali no dia anterior, com o Dr. Otternschlag, numa noite nublada, cansado, impossibilitado de receber novas impressões. Os estranhos átrios, lisos, novos e por terminar, na parte exterior, o haviam acompanhado nos sonhos e, agora, a realidade e o sonho se apresentavam em duas camadas sobrepostas, um tanto ameaçadoras e incompreensíveis.

— Ainda vão terminar isso? — gritou Kringelein apontando para os átrios da exposição.

— Já está pronto — foi a resposta.

Kringelein admirou-se. Era tudo nu como uma fábrica, mas não feia, como a de Fredersdorf.

— Que cidade engraçada — exclamou ele, sacudindo a cabeça e ficando ainda mais vesgo.

Levou um choque com um solavanco do carro, e a pele do seu crânio se encolheu, mas foi coisa sem importância. É que Gaigern havia parado na porta norte do Avus, e em seguida continuaram de novo a viagem.

— Agora nós vamos mesmo — afirmou Gaigern; e, antes que Kringelein pudesse perceber do que se tratava, ele partiu.

Começou com uma corrente de ar que foi esfriando lentamente, e que batia contra o rosto de Kringelein cada vez com mais força, como bofetadas. O carro começou a cantar com um som grave que se foi elevando, e ao mesmo tempo aconteceu uma coisa pavorosa com as pernas de Kringelein. Ele tinha a sensação de que elas se enchiam de ar, cujas bolhas lhe subiam aos joelhos, que pareciam querer estourar. Por vários segundos incríveis ele não podia respirar mais, e durante um instante pensou que iria morrer.

— Isto é a morte. Vou morrer.

Com o peito comprimido, aspirava o ar com dificuldade; o carro deslizava por coisas irreconhecíveis, vermelhas, verdes, azuis; árvores que se atiravam de encontro aos seus óculos; depois, um ponto vermelho se transformou em um automóvel e, logo a seguir, caiu no vazio, por trás do seu carro — e Kringelein continuava sem conseguir respirar. Seu diafragma conhecia agora novas sensações, nunca antes imaginadas. Kringelein tentou virar o rosto em direção a Gaigern, e, vejam só, conseguiu virá-lo sem se machucar. Gaigern estava meio inclinado sobre a direção, e tinha calçado as luvas de camurça, mas sem abotoá-las; por qualquer motivo, isso dava a sensação de calma e ausência de perigo. Justamente quando o pedacinho de estômago que restava a Kringelein queria começar a subir à garganta, Gaigern se pôs a rir com os lábios fechados. Apontou com o queixo, sem tirar os olhos do fuso sibilante da estrada do Avus, para um lugar qualquer, e Kringelein lançou um olhar obediente. Como não era tolo, compreendeu, após refletir um pouco, que havia sido o marcador dos quilômetros, diante dele. O ponteirinho vibrava de leve, mostrando o número 110. "Que diabo!", pensou Kringelein. Engoliu seu amedrontado pomo-de-adão e inclinou-se para a frente, entregando-se ao impulso da velocidade. Súbito tomou posse dele o prazer da sensação de perigo, um prazer penetrante e assustador. Mais depressa! pedia dentro dele um novo Kringelein, desconhecido e delirante. O carro concordou: 115. Durante alguns segundos parou nos 118, e Kringelein desistiu, de uma vez, de respirar. Tinha vontade de se precipitar, sibilando, nas trevas. "Avante, para a frente, explosão, choque, ponto final da corrida desenfreada!", era o pensamento que lhe ocorria. "Nada de leito de hospital," pensou; "é preferível uma fratura no crânio." À passagem do carro, em disparada, ainda continuavam a bramir os anúncios; as distâncias entre eles foram aumentando; depois, os trapos cinzentos ao lado da estrada se transformaram em bosques de pinheiros. Kringelein via árvores que se iam aproximando e em seguida se desviavam do carro. Era como no carrossel de Mickenau pouco antes de parar. Nas tabuletas de anúncios ele lia agora nomes de marcas de óleos, de pneus e de automóveis; a correnteza de ar tornou-se mais branda, e deslizava por sua garganta adentro. O ponteiro caiu para 60, a agulha oscilou um instante ainda, entre 50 e 45, e eles deixaram o Avus pela porta sul, desfilando burguesmente por entre as villas do Wannsee.

— Puxa, agora me sinto mais leve! — disse Gaigern, abrindo o rosto num sorriso. Kringelein tirou as mãos das almofadas de couro em que se agarrara até então, e foi relaxando com todo o cuidado os músculos contraídos das mandíbulas, dos ombros e dos joelhos. Sentia-se completamente exausto e absolutamente feliz.

— Eu também — respondeu ele, e estava dizendo a verdade.

Falou muito pouco enquanto estiveram sentados no terraço envidraçado, completamente vazio, de um restaurante à margem do Wannsee, olhando os barcos a vela cobertos com lonas, balançando à tona da água. Precisava refletir sobre a sensação que experimentara, o que não era assim tão fácil. "O que é a velocidade?", pensou. "Não a vemos nem tocamos, e isso de medi-la deve ser uma impostura. Como é possível que ela vá passando, e seja mais linda do que a música?" Ainda sentia tudo girando, mas era uma sensação agradável. Tinha trazido o frasquinho de Bálsamo de Vida do Dr. Hundt, mas não tomou o remédio.

— Preciso agradecer-lhe este passeio maravilhoso — disse ele, procurando com ar solene expressões escolhidas, de acordo com os ambientes em que estava vivendo agora.

Gaigern, que só comia alimentos baratos, espinafre com ovos, sacudiu a cabeça: — Eu me divirto com essas coisas — disse ele. — O senhor sente isso pela primeira vez. É raríssimo encontrarmos pessoas que tenham uma sensação pela primeira vez...

— Mas o senhor também não dá a impressão de ser um homem blasé, se me permite esta observação — replicou Kringelein com desembaraço.

Já se sentia à vontade em suas novas roupas, já estava em casa dentro da sua camisa de seda; sentava-se de outra maneira, comia de outra maneira, e suas mãos, que lhe pareciam mais delgadas, avançando pelos punhos da camisa, com as unhas feitas por uma bonita manicura, no subterrâneo do hotel, lhe davam enorme prazer.

— Meu Deus do céu, eu, blasé? — exclamou Gaigern, satisfeito. — Não. De modo nenhum. Mas é que gente como eu tem uma vida cheia. — Não pôde deixar de sorrir. "O senhor tem razão. Para gente como eu também existem coisas inteiramente novas, que se experimentam pela primeira vez, coisas engraçadas...", acrescentou consigo mesmo.

Bateu de leve seus bonitos dentes uns nos outros, pensando na Grussinskaia. Seus ossos estavam cheios de ávida impaciência. O tempo que tinha de esperar para que pudesse ter de novo em seus braços a figurinha delicada, tão necessitada de amparo, e ouvir novamente seu gorjeio tristonho de passarinho, parecia-lhe uma extensão imensurável e deserta. Deu um prazo de três dias a si próprio, sapateando, interiormente, de impaciência, para arranjar de qualquer modo alguns milhares de marcos que acalmariam seus companheiros e lhe facultariam a viagem a Viena. Por enquanto, empenhava-se, com a maior amabilidade, em agradar Kringelein, com a esperança em qualquer solução favorável.

— E agora, qual é a continuação do programa? — perguntou Kringelein, dirigindo para ele uns olhos fiéis e agradecidos. Gaigern simpatizava com esse provinciano calmo, sentado diante dele como uma criança durante a distribuição dos presentes de Natal. A amabilidade e a simpatia humanas estavam de tal modo enraizadas na personalidade de Gaigern, que suas vítimas recebiam sempre uma boa parte do seu calor.

— Agora vamos voar — disse ele, com o tom acalentador de uma ama de leite. — É muito agradável e não tem o menor perigo, é muito menos perigoso do que uma corrida desenfreada de automóvel.

— Corremos perigo, há pouco? — - perguntou Kringelein, admirado.

O medo que sentira parecia-lhe agora quase um prazer, depois de vencido.

— Sem dúvida — afirmou Gaigern. — Cento e dezoito quilômetros não é brincadeira, e a estrada estava úmida... Parece incrível que, com um tempo destes, ela fique tão escorregadia. Não há dúvida de que o carro corre sempre o risco de derrapar. A conta — disse, voltando-se com cortesia para o garçom, e pagando seu espinafre com ovos. Sobravam-lhe na carteira apenas vinte e quatro marcos.

Kringelein também pagou; havia tomado apenas umas colheradas, de sopa, porque não confiava ao seu estômago coisas excitantes e indigestas. Quando meteu no bolso a carteira que trouxera ainda de Fredersdorf, teve a visão fugaz e agora pouco importante do seu caderno de despesas, com capa de oleado. Até esse dia havia anotado suas despesas, Pfennig por Pfennig, desde os nove anos de idade, em caderninhos assim. Agora acabou-se. Nunca mais faria isso de novo. Mil marcos numa tarde não era possível anotar. Uma parte da ordem do mundo concebida por Kringelein tinha se destruído, numa derrocada silenciosa e sem estardalhaço. Kringelein, que Gaigern foi seguindo pelo terraço vazio do restaurante até o carro, movia os ombros com delícia, sob o novo sobretudo, o novo terno e a nova camisa. Agora, por onde quer que ele passasse, havia indivíduos que se inclinavam. "Bom dia, senhor diretor-geral", pensou ele, vendo-se colado a uma parede, a parede caiada de verde-cinza do segundo andar dos escritórios de Fredersdorf. Guardou no bolso os óculos ao sentar ao lado de Gaigern, expondo os olhos nus à fresca e cintilante atmosfera de março, e com um vivo sentimento de simpatia e de confiante gratidão ouviu o ruído do motor.

— A Chaussee ou o Avus de novo? — perguntou Gaigern.

— O Avus, de novo — respondeu Kringelein. — E na mesma velocidade — acrescentou em voz baixa.

— Ah!... O senhor tem coragem — disse Gaigern, pondo o pé no acelerador.

— É... coragem eu tenho — respondeu Kringelein, com os músculos tensos e o corpo inclinado para a frente, de lábios entreabertos, preparado para entregar-se inteiramente à vida.

 

Kringelein, debruçado na grade branca e vermelha do aeroporto, procura habituar-se a esse mundo assombroso que, desde a manhã desse dia, vem ao encontro dele. Ontem — há um século — ele subia no elevador, para ir ao restaurante da torre da emissora, fatigado, sonolento, imerso em sonhos; não estava se divertindo, e os comentários pessimistas do Dr. Otternschlag ainda tornavam tudo mais problemático e fantasmagórico. Anteontem — há mil anos — ele era um auxiliar de guarda-livros no escritório de contabilidade da Algodoeira Saxônia S.A., de Fredersdorf, um empregadinho enfezado, entre trezentos outros empregadinhos enfezados, de terno de sarja cinzenta e com um ordenado minguado, do qual era preciso tirar ainda o desconto para a Caixa de Previdência. Hoje, agora, ele está à espera do piloto que, por um alto preço, vai levá-lo em um enorme voo circular, em viagem especial. É um desses pensamentos impossíveis de serem levados até as últimas consequências, apesar de Kringelein se sentir animado e concentrado como nunca.

É uma enorme mentira, a sua coragem. Tem um medo de cão, um medo horrível do divertimento que o espera. Ele não quer voar, não quer voar de modo algum. Tem desejos de voltar para casa — não, para Fredersdorf não, mas para o hotel, para o seu quarto 70, com os móveis de mogno e a colcha de seda; gostaria de estar deitado e não precisar voar.

Quando Kringelein saiu de casa para ir à procura da vida, pairava diante dele uma ideia nebulosa e informe; mas era uma coisa acolchoada e fofa, com pregueados e franjas, e arabescos enormes; leitos macios, pratos cheios, mulheres sensuais, em quadros e reais. Agora, que está experimentando a vida, e que, aparentemente, mergulhou em cheio nela, tudo se apresenta sob um aspecto diferente; é preciso satisfazer a uma série de exigências, a ventania corta-lhe as orelhas, e é preciso forçar paredões de angústias e de perigo para conseguir chegar a uma doce e embriagante gota de gozo da vida. "Voar", pensa Kringelein. Ele conhece a sensação do voo que se tem em sonhos. Seu sonho se apresenta assim: Kringelein se encontra no tablado da sala de Zickenmeyer; ao seu redor está o coral da associação, e ele canta um solo. Ouve sua bonita voz de tenor, canta notas agudas, cada vez mais agudas, cada vez mais. É facílimo, ele não precisa fazer nenhum esforço, é um prazer puro, fácil e naturalíssimo.

Finalmente, ele se deita no som mais agudo e suave, e voa sobre ele, acompanhado pela música das nuvens. A Associação Coral o acompanha com o olhar; primeiro, ele sobrevoa ainda abaixo do telhado local de Zickenmeyer, depois voa completamente só, à sua volta não se vê mais nada, e só bem no finzinho ele percebe que tudo não passou de um sonho, e que precisa voltar ao seu leito matrimonial, onde Anna dorme o sono deletério dos seus quarenta anos maltratados e rixentos. A queda é medonha, e o despertar é um grito na escuridão do quarto abafado, com as pequeninas vidraças, os armários cheirando a naftalina e o pequeno fogareiro de ferro, apagado, com uma panela cheia de água em cima.

Kringelein põe-se a piscar. "Voar", pensa ele retornando ao Aeroporto de Tempelhof. Ali também há cores fortes, como na torre da emissora e ao longo do Avus; amarelo, azul, vermelho e verde, em tons bem vivos. Torres misteriosas erguem-se no ar, tudo é simples e econômico, um vento cheio de poeira sopra sobre as manchas de asfalto do outro lado da grade, e as sombras das nuvens se apressam, para atingir a pista de decolagem. O pequeno aparelho que vai decolar já está pronto, três homens estão atarefados em torno dele; o motor ronca, sua hélice gira apenas por brincadeira. Diante de suas rodas baixas há uns blocos, suas asas prateadas, com estrias, estão vibrando. Outros pássaros pousam, saudados pelos gritos roucos de uma sereia — é assim que a fábrica de Fredersdorf chama, às sete horas da manhã — ou talvez tudo isso tenha sido apenas um sonho?... Outros pássaros se elevam, baixam pesados à terra, e erguem-se, muito leves, ao ar, ora cor de chumbo prateado, ora dourados, com firmes asas de madeira, e outros ainda, brancos, enormes, com quatro asas, e três hélices girando. O campo de pouso é tão grande, tão estranhamente silencioso... Os homens que estão ali são todos esbeltos, queimados de sol, alegres e calados, envolvidos em seus ternos folgados e seus barretes justos. Só os aparelhos têm voz, e latem com um latido rouco, como cães enormes, quando vão rodando sobre o campo.

Gaigern aproxima-se com o piloto, um senhor amável, com as pernas em O de antigo oficial de cavalaria.

Gaigern parece um cliente habitual, todos o cumprimentam e o conhecem.

— Vai partir logo — anuncia Gaigern. Kringelein, que já sabe por experiência própria o que significa o "partir" de Gaigern, leva um susto. "Socorro", pensa ele, "socorro, não quero voar!", mas não o diz, de forma alguma.

— Já vamos decolar? — perguntou com ar de homem experimentado, orgulhando-se da palavra que está usando pela primeira vez na vida.

Depois, Otto Kringelein senta-se, amarrado pela cintura com uma correia, em uma cômoda cadeira de couro, e arregala os olhos para o céu azul-cinza de março. Ao seu lado está Gaigern, assobiando baixinho, e isso o consola, nesse momento de debilidade total.

No começo, não é diferente de uma viagem de automóvel, aos solavancos; depois, o aparelho começa a fazer um ruído, rápido, infernal. De repente bate no solo com um solavanco, para trás, e eleva-se no ar. Não paira no espaço, tem mais dificuldades do que o tenor Kringelein, a cantar e a voar no seu sonho; o aparelho salta por impulsos no ar, como sobre degraus de vácuo; salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai um pouquinho, salta, cai. Agora a sensação desagradável não é nas pernas, como na viagem a cento e vinte quilômetros por hora, mas na cabeça. Os ossos do crânio de Kringelein zumbem, tornam-se muito delgados, completamente vítreos, de modo que ele precisa fechar os olhos por um momento.

— Está enjoado? — pergunta Gaigern gritando em seu ouvido, pensando se seria possível, ali no avião, conseguir que Herr Kringelein lhe desse cinco mil marcos, ou mesmo três mil, ou que seja tudo pelo amor de Deus, cento e cinquenta que fossem, que já dariam para pagar a conta do hotel e a viagem até Viena. — Está se sentindo mal? Acha que basta de voar? — pergunta ele com muita cortesia.

Kringelein faz um violento e corajoso esforço para dominar-se, e responde um animado "não". Abre os olhos, a cabeça zune, vítrea; prende-os primeiro ao chão do avião, como a um ponto firme, depois vai subindo, até chegar à vidracinha oval da parede fronteiriça. Lá estão de novo os números e as agulhas trêmulas. O piloto vira o rosto de traços fortes para trás, e sorri para Herr Kringelein como para um bom amigo e camarada. Kringelein recebe esse olhar como um tônico e uma honra.

— Trezentos metros de altitude, cento e oitenta de velocidade! — grita Gaigern ao seu ouvido, que zune e crepita.

De repente, tudo se torna macio, leve e liso. O aparelho não se eleva mais, vai cantando com a voz metálica dos seus motores, fazendo uma curva, deslizando como um pássaro sobre a cidade, agora pequenina. Kringelein cria coragem e olha para fora.

Primeiro vê as asas estriadas, expostas ao sol, que parecem ter criado vida, e, bem embaixo, Berlim, dividida em quadradinhos, cúpulas verdes, uma ridícula estação, em meio à exposição de brinquedos. Uma manchinha verde é o jardim zoológico, uma manchinha cor de chumbo, com quatro pontinhos brancos de velas, é o Wannsee. Os limites do pequenino mundo ficam bem longe, o terreno vai subindo em suaves elevações, há também montanhas, florestas, terras lavradas pardacentas, Kringelein abre num sorriso infantil os lábios comprimidos. Está voando. Conseguiu suportar o voo. Sente-se muito bem, e tem uma sensação diferente de si próprio, enérgica e nova. Pela terceira vez lhe acontece, nesse dia, perder o medo, e ver esse medo transformar-se em prazer.

Toca de leve no ombro de Gaigern, e em resposta ao seu olhar inquiridor diz qualquer coisa que o ruído dos motores devora.

— Não é tão mau assim — respondeu Kringelein. — Não é preciso ter medo, não é nada mau.

Com essas palavras, Kringelein refere-se não só à conta elevada do alfaiate, à viagem ao longo do Avus e ao voo — mas a tudo isso junto, e mais alguma coisa; é que ele vai morrer em breve e, com a morte, afastar-se desse pequeno mundo, abandonar o grande medo, elevar-se, se for possível, acima dos aviões.

 

As ruas por trás do campo de Tempelhof, quando eles vieram de volta, falaram ao coração do novo Kringelein. Assemelhavam-se às melancólicas ruas de Fredersdorf, com as chaminés crescendo por trás dos caminhos, e ele alargou as narinas para sentir o cheiro de cola da seção de imprensagem dos tecidos. Com vivacidade duplicada, ele sentia, ao avistar essas pobres ruas, que usava um sobretudo novo, e se encontrava num automóvel. Procurou palavras que exprimissem esse duplo sentimento, mas não encontrou. Somente na porta do hangar ele se animou de novo — tiveram de esperar meio minuto —, o vôo ainda lhe pesava nos membros como uma silenciosa mas forte embriaguez, e, ansioso e amável, perguntou:

— Quais são agora os planos do senhor barão?

— Agora preciso cuidar de negócios particulares, no hotel. Tenho um encontro às cinco horas. Venha comigo, vou dançar um pouquinho — acrescentou ao perceber nos olhos de Kringelein uma expressão de desânimo e de real aflição.

— Muitíssimo obrigado. Acompanho-o de bom grado. Gosto de ver os outros dançar. Infelizmente não sei dançar.

— Ora, qual! Qualquer pessoa sabe dançar! Kringelein foi pensando nisso até chegarem à Friedrichstrasse.

— E depois? Que se poderia fazer depois? — perguntou insistente, na sua insaciabilidade.

Gaigern não deu resposta, mas acelerou a marcha até o próximo solavanco, quando travou o freio diante da lâmpada vermelha da Leipzigstrasse.

— Diga uma coisa, senhor diretor — perguntou ele, durante a parada do carro. — O senhor é casado ou não?

Kringelein ficou a refletir por tanto tempo que, enquanto isso, as lâmpadas amarela e verde se acenderam, e já estavam de novo a caminho, quando ele respondeu:

— Fui casado. Já fui casado, senhor barão. Separei-me de minha mulher. Pois é. Conquistei a liberdade, se posso falar assim. Há casamentos, senhor barão, em que cada cônjuge é um peso para o outro, um chega a enojar-se do outro, não pode ver a cara do outro sem se enfurecer. Não podemos ver o pente com os fios de cabelo da mulher, de manhã cedo, sem que isso nos estrague o dia; isso não é justo, é claro, ela não tem culpa de que seus cabelos caiam... Ou quando se quer ler um pouco à noite, a mulher se põe a falar sem parar, e quando não fala, canta na cozinha. E se a gente gosta de música, essa gritaria nos deixa doente. E toda noite, quando a gente está cansado, e quer ler, ouve-se a mesma cantilena: "Vá cortar lenha para amanhã cedo". Custa apenas oito Pfennige a mais cada feixe de lenha picado, o que faz dois Pfennige por dia, mas isso não é possível, de modo nenhum. "Você é um gastador", diz a mulher, "se a gente fosse pela sua cabeça, acabaria esticando as canelas." E olhe que o sogro tem um armazém que a mulher vai herdar, de modo que ela está com o futuro garantido. Então achei melhor conquistar minha liberdade. Minha mulher nunca combinou comigo, essa é a verdade, porque eu sempre gostei das coisas boas, e isso ela nunca me pôde perdoar. Quando meu amigo Kampmann me deu de presente cinco velhas coleções da revista Kosmos, minha mulher vendeu-as como papel velho; recebeu por elas catorze Pfennige. É este o retrato acabado dessa mulher, senhor barão. Agora eu me separei dela. Não faz muita diferença, umas semanas a mais ou a menos, já que ela tem mesmo que se arranjar sem mim. Então ela poderá ir de novo às lojas, vender aos empregados solteiros arenques enrolados e salsichas para o jantar. Foi assim que eu a conheci. Talvez ainda encontre outro trouxa. Quando me casei com ela, eu era completamente idiota, não fazia nenhuma ideia da vida, nenhuma ideia do que é uma mulher. Desde que cheguei a Berlim, e estou vendo tantas senhoras lindas, elegantes e amáveis, é que meus olhos estão se abrindo. Mas para essas coisas já é tarde demais.

 

Tal confissão, que partiu do fundo do coração de Kringelein, durou desde a Leipzigstrasse até a Unter den Linden.

— O dia inteiro não é noite — replicou Gaigern, meio distraído, porque estava atravessando um trecho difícil do caminho, na Porta de Brandenburgo, e diante dele seguia um chofer que não sabia dirigir. A atmosfera de uma cozinha minúscula e miserável, que se evolava das palavras de Kringelein, o sufocava, tirando-lhe o entusiasmo com que ele estivera prestes a pedir emprestados três mil marcos.

Esse Kringelein de camisa de seda, que andava de automóvel, teria também de boa vontade retirado parte daquilo que revelara com as suas palavras.

— Então nós vamos dançar — disse ele com desembaraço, para disfarçar. — Ficarei gratíssimo, se o senhor barão me tomar sob sua proteção. E que se poderia fazer à noite?

Kringelein tinha a esperança oculta de receber uma resposta que correspondesse a desejos irrealizados dentro de si, alguma coisa semelhante a certos quadros de museus, porém mais palpável, o que, nos jornais que ele lia, denominavam orgia. Tinha o pressentimento de que homens distintos da cidade guardavam a chave e a entrada de coisas assim. No dia anterior o Dr. Otternschlag havia acedido ao seu vago desejo de feminilidade, levando-o ao bailei da Grussinskaia. Pois é. Isso — julgava Kringelein — tinha sido errado; o ballet era lindo, mas poético, comovente, e demasiado maravilhoso; ficava-se cansado, com sono, sentimental, e finalmente sentia-se dor de estômago. Mas hoje...

— A melhor coisa que o senhor poderá fazer hoje é ir comigo à grande luta de boxe no Sporthalle — disse Gaigern. — Vamos ver se o porteiro ainda tem entradas.

— Não me interesso muito por boxe — respondeu Kringelein, com o orgulho do leitor do Kosmos.

— Não se interessa? O senhor já assistiu a alguma luta? Então! Pois vá, que há de se interessar — garantiu Gaigern peremptoriamente.

— O senhor também vai, senhor barão? — perguntou Kringelein, afobado. Sentia-se muito bem disposto, depois da viagem de automóvel e do voo, animado e enérgico, preparado para o que desse e viesse, mas tinha a impressão de que despencaria como uma arvorezinha de borracha no instante em que o barão o abandonasse.

— Tenho uma vontade louca de ir também — replicou Gaigern. — Mas infelizmente não posso. Não tenho dinheiro.

Nesse ínterim haviam se afastado das ramagens floridas do jardim zoológico, e a fachada do hotel já aparecia, lá embaixo. Gaigern deixou a velocidade cair para doze quilômetros, a fim de dar tempo a que Herr Kringelein se manifestasse. Kringelein ficou a remoer a observação sorridente de Gaigern. Pararam defronte ao portão 5, subiram, e ele não conseguira se livrar daquilo.

— Vou levar o carro à garagem! — exclamou Gaigern, depois que fez Kringelein descer do carro, com as pernas um tanto rijas e adormecidas; por fim desapareceu na esquina.

Kringelein meteu-se, pensativo, na porta giratória, cujo mecanismo já não o deixava mais estupefato. "Não tem dinheiro", pensou ele. "Está sem dinheiro. É preciso fazer alguma coisa."

Rohna, o porteiro, os boys, e até o maneta do elevador, notaram a transformação que ele sofrerá, mas, discretamente, não o deram a perceber. O hall, de onde se evolava um aroma de mokka, estava repleto de pessoas que conversavam. O relógio marcava quatro horas e cinquenta minutos. O Dr. Otternschlag estava sentado em sua habitual cadeira maple, tendo ao lado, no solo, uma pilha de jornais. Fitou Kringelein com uma expressão indefinível de ironia e tristeza. Kringelein, não muito seguro de si, aproximou-se dele e estendeu-lhe a mão.

— O novo Adão — observou Otternschlag sem lhe estender a sua, que estava fria e úmida, o que o tornava tímido. — A borboleta saiu do casulo. E por onde esteve voando, se me permite perguntar-lhe?

— Fiz umas compras. Fui passear de automóvel pelo Avus, almocei no Wannsee. Depois fiz um voo de avião — respondeu Kringelein. Seu tom de voz, ao falar com Otternschlag, mudara um pouco, sem que ele próprio o percebesse.

— Magnífico — disse Otternschlag. — E agora?

— Às cinco tenho um encontro. Vou dançar. — Ah! e depois?

— Depois, estou com vontade de ir a uma grande luta de boxe, no Sporthalle.

— Ah, é? — retorquiu Otternschlag. Disse apenas isso. Pôs o jornal diante dos olhos e começou a ler, ofendido. Na China houvera tremores de terra, mas a bagatela de quarenta mil mortos não bastava para fazer desaparecer o aborrecimento de Otternschlag.

Quando Gaigern chegou ao segundo andar para trocar de roupa, encontrou Kringelein diante da porta de seu quarto, à sua espera.

— Então? — perguntou impaciente. Pouco a pouco lhe atacava os nervos estar preso a esse homenzinho exótico.

— O senhor barão estava caçoando de mim ou é verdade que está em dificuldades financeiras? — perguntou Kringelein, repentinamente. Foi uma das frases mais difíceis que jamais pronunciou, e apesar de a ter preparado de antemão, disse-a gaguejando.

— É a absoluta verdade, senhor diretor. Estou arrasado, com um azar dos diabos, só tenho no bolso vinte e dois marcos e trinta Pfennige, e amanhã sou obrigado a enforcar-me no jardim zoológico — disse Gaigern, abrindo o rosto bonito em um largo sorriso. — Mas o pior de tudo é que preciso estar em Viena dentro de três dias; apaixonei-me por uma mulher, sabe, de um modo incrível, uma paixão fulminante, e tenho que acompanhá-la por onde ela andar. E estou numa pendura completa. Se pelo menos alguém me emprestasse algum dinheiro que desse para eu arriscar hoje no jogo...

— Também estou com vontade de jogar — observou Kringelein, pressuroso, com verdadeiro entusiasmo. Sentiu de novo a sensação dos cento e vinte quilômetros por hora, do voo do avião, e disparou, zunindo, pelo espaço infindável.

— Tiens! Eu vou buscá-lo no Sporthalle, e vamos a um clube elegante. O senhor arrisca mil marcos e eu vinte e dois! — exclamou Gaigern. Dizendo isto, fechou a porta do seu quarto e deixou Kringelein sozinho, do lado de fora. Por enquanto estava farto dele. Atirou-se, vestido, para cima da cama, e fechou os olhos. Foi tomado de um sentimento de desânimo e enfado. Procurou recordar-se da menina do cachinho louro na testa, com quem tinha marcado um encontro às cinco horas, no pavilhão amarelo, mas não o conseguiu. Apresentava-se sempre uma outra recordação, o abajur da Grussinskaia, a grade do balcão, uma nesga do Avus, uma nesga do campo de aviação, o suspensório rasgado de Herr Kringelein. "Dormi pouco hoje à noite", pensou ele, acalorado, contente e com os nervos frouxos. Caiu num sono de três minutos, num saco de trevas e de restauração, como aprendera a fazer na guerra. Uma camareira bateu à porta, despertando-o; era uma carta de Kringelein.

 

Prezado senhor barão!, escrevia Kringelein. Permitiria que o abaixo-assinado o considerasse hoje à noite seu convidado, e ao mesmo tempo me faria a fineza de aceitar o insignificante empréstimo que junto a esta? Peço-lhe apenas que me mande um recibo. Seria uma honra para mim poder ser-lhe útil, e, no meu caso, o dinheiro já nada significa. Cumprimentos respeitosos do seu

Amgo. Crdo. Obr.

Otto Kringelein Anexo: uma entrada

duzentos marcos.


12

 

O envelope com o endereço do hotel continha um bilhete alaranjado para a luta de boxe no Sportpalast, e duas cédulas amarrotadas de cem marcos, numeradas a tinta num dos cantos. Na assinatura de Kringelein faltavam os pingos nos ii. Ele os perdera definitivamente no turbilhão insano que o arrastara nesse dia memorável.

Preysing, com os ossos ocos e vazios, ficou no hall depois de terminada a conferência, depois de assinado o contrato prévio, e da despedida do Dr. Zinnowitz, desejando-lhe felicidade e sorte. A sensação de uma grande vitória, a consciência de haver passado um blefe nos cavalheiros da Chemnitz, a tensão nervosa de discursar e de vencer sob uma base insegura, tudo isso era completamente novo para o diretor-geral, e o transportou a um estranho estado de atordoamento, nada desagradável. Olhou para o relógio do hotel — já passava das três horas —, encaminhou-se mecanicamente para a cabina telefônica, a fim de pedir uma ligação com a fábrica, e depois demorou-se bastante no banheiro dos homens, deixando escorrer água quente pelas mãos, enquanto se olhava no espelho com um sorriso idiota. Passou por último à sala de refeições, que estava quase vazia, e escolheu o menu sem prestar atenção; durante os dois minutos de espera até chegar o consommé, impacientou-se e pôs-se a fumar um charuto, que lhe pareceu delicioso, acima de qualquer crítica. Enquanto observava a lista dos vinhos, trauteou uma melodia, e sentiu desejos bem definidos de beber vinho doce, que aquecesse a língua; encontrou um Wachencheimer Mandelgarten 1921, que lhe pareceu prometedor. Pouco depois surpreendeu-se a sorver ruidosamente a sopa; quando ficava distraído, acontecia-lhe, por vezes, praticar algum mau costume do começo da sua vida. Sentia que estava numa situação feliz, mas de imprevisíveis consequências. O embuste — ele próprio usava essa expressão forte, que o transportava estranhamente a uma nova espécie de sensação de orgulho — que ele usara durante a conversação só poderia valer, no melhor dos casos, por três dias. Nesses três dias era preciso acontecer alguma coisa, se não quisesse sofrer as consequências de uma catástrofe. A assinatura do contrato prévio poderia ser retirada dentro de catorze dias. Preysing, que vertera depressa demais, pela goela seca, os dois primeiros copos do vinho frio e excitante, adoçado pelo sol, ficou meio tonto, e, em meio à sua tontura, viu a chaminé principal da fábrica explodir, separando-se em três pedaços. Isso não tinha importância, era uma reminiscência de um sonho que Preysing, a intervalos regulares, costumava ter. Estava comendo o peixe, quando um groom gritou "Chamada interurbana para Herr Preysing!" por entre o burburinho da discreta sala de refeições. Preysing ainda engoliu rapidamente um gole de vinho e dirigiu-se à cabina telefônica 4. Esqueceu-se de acender a luz, e na escuridão postou-se diante do fone com a sua mais férrea expressão de diretor da fábrica, famosa em Fredersdorf. Por entre o assobio agudo de um pequeno desarranjo na linha, anunciou-se Fredersdorf.

— Com Herr Broesemann — disse o diretor-geral, com a voz inexpressiva que usava no desempenho de suas funções. Demorou meio minuto até que encontrassem o gerente. Preysing considerou uma ofensa essa demora, e bateu com o salto do sapato no assoalho.

— Puxa... finalmente! — exclamou ele, quando Broesemann atendeu.

Adivinhavam-se, através do telefone, as curvaturas de Broesemann, e Preysing as recebeu como um merecido tributo.

— O que há de novo, Broesemann, além do telegrama inútil de ontem? Não... ao telefone não, sobre isso falaremos depois. Por enquanto eu me esforço por considerar esse assunto como inexistente, compreendeu? Ouça, Broesemann, agora eu quero falar com o velho. Está dormindo? Sinto muito, é preciso acordá-lo. Não, sinto muito. É, sim, imediatamente. Até logo, Broesemann. Não, as outras ordens o senhor as receberá por escrito. Estou esperando.

Preysing ficou à espera. Arranhou a tábua da estante do telefone com as unhas, tomou a caneta-tinteiro e pôs-se a tamborilar com ela na parede, pigarreou, e seu coração disparou triunfalmente, com batidas claras e definidas. O bocal do telefone, diante de sua boca, cheirava a desinfetante e, ao passar a mão por ele na escuridão, sentiu que a beirada estava lascada. Então o velho falou, lá de Fredersdorf.

— Alô, bom dia, papai, desculpe incomodá-lo. A conferência durou até agora, pensei que o senhor se interessaria em saber logo do resultado. Trata-se do seguinte: o contrato prévio está assinado... não, assinado, assinado ... — disse ele gritando, porque o velho tinha o teimoso costume de fingir-se mais surdo do que era realmente.

— Difícil, o senhor acha? Ora, mais ou menos. Obrigado, obrigado, não preciso de aplausos. Ouça, papai: preciso viajar imediatamente para Manchester; é, é absolutamente necessário, absolutamente. Vou para Manchester, bom, bom, eu lhe escrevo a esse respeito com mais pormenores. Como? O senhor está satisfeito? Eu também. Sim, senhorita, terminei. Até logo.

Preysing continuou na cabina escura, e só então se lembrou de apertar o botão da lampadazinha. "Mas, que história é essa?", pensou, espantado. "Como é que vou viajar para Manchester? Como foi que essa ideia me ocorreu? É isso mesmo... vou para Manchester. Aqui eu aguentei firme, lá também vou aguentar. É muito simples. Muito simples", pensou ele, sentindo-se novamente mais seguro de si, e enfunando-se como um balão. Um êxito casual, insignificante e incerto, transformara um homem hesitante, de terno de sarja cinzenta, em um sujeito empreendedor e aventureiro, de princípios vacilantes e dúbios.

— A ligação custa nove marcos e vinte — avisou a telefonista.

— Ponha na conta — respondeu Preysing, caminhando imerso em pensamentos.

Sentia uma estranha antipatia em falar com Mulle. Na sala de refeições de sua casa fazia agora um calor excessivo; Mulle gostava de quartos bem aquecidos; Preysing teve a impressão de que a sala de refeições de Fredersdorf cheirava a couve-flor; teve a impressão de ver nas faces cheias e sonolentas de Mulle a marca vermelha das pregas do travesseiro, no momento em que ela segurava o fone, após a sesta. Não se decidiu. Não a chamou. Voltou à sala de refeições, onde, entretanto, um garçom perfeito colocara para ele o vinho no gelo, e pratos limpos e aquecidos sobre a mesa.

Preysing comeu, esvaziou seu copo de vinho, acendeu o charuto e, com as têmporas acaloradas e os pés frios, voltou ao quarto. Tinha uma sensação estranha, agradável e nebulosa, mas ao mesmo tempo sentia-se completamente vazio, em consequência da conferência. Teve vontade de tomar um banho bem quente, e abriu a torneira do banheiro. Justamente quando fez menção de despir-se, refletiu melhor, lembrando-se de que não é bom tomar banho com o estômago cheio; sentiu, no espaço de um instante de medo, as palpitações que o ameaçavam na banheira esmaltada, e soltou de novo a água, cheia de vapor. A impressão de cansaço e desconforto que sentiu materializou-se numa coceira no rosto e, quando tentou coçar-se, percebeu que não estava barbeado. Apanhou o chapéu e o sobretudo, como ao preparar-se para um negócio importante; não quis ir ao barbeiro do subterrâneo do hotel, com quem ainda estava zangado, por causa do que acontecera de manhã, e procurou nas ruas circunvizinhas um barbeiro de mais confiança.

Então o Diretor-Geral Preysing viveu uma experiência notável; esse homem de princípios sólidos, mas sem aparelho de barba, teve uma experiência; esse homem de intenções corretas, mas que, apesar de tudo, praticara uma ação duvidosa, um azarado, a quem pela primeira vez o êxito bafejara, ao qual esse bafejo levava... para onde? Podia parecer um acaso, talvez fosse o destino que lhe estava reservado. A experiência foi esta:

A pequena barbearia em que Preysing entrou era asseada e simpática. Havia quatro cadeiras, e dois senhores sentados; um deles era servido por um empregado jovem, simpático, de cabelos encaracolados, e o outro pelo dono da barbearia, um homem idoso, com a aparência e os modos de um camareiro imperial. Preysing foi cumprimentado, alojado na terceira cadeira e envolvido numa capa e num peitilho. O cavalheiro que tivesse um momento de paciência, o primeiro oficial de barbeiro tinha ido almoçar, foi o que lhe participaram com toda a cortesia, pondo-lhe em seguida, nas mãos, um pesado maço de revistas ilustradas. Preysing, excessivamente cansado para opor qualquer resistência, reclinou a cabeça no pequeno encosto da cadeira, e respirou o aroma agradável que pairava na barbearia. Depois, com os nervos acalmados pelo ruído das tesouras, começou a folhear as revistas.

Primeiro pôs-se a ler, de uma maneira indiferente, quase a contragosto, porque não apreciava esse passatempo leviano, preferindo leituras instrutivas e sérias. Mas, após uns instantes, ele já se ria com uma ou outra piada, soltando uma risadinha curta e nasal; voltou as folhas para trás, para observar melhor uma mulher decotada, e em seguida virou uma página, e deixou-a aberta durante todo o tempo em que ficou sentado na cadeira de barbeiro. Realmente, concentrou-se de tal modo na observação dessa gravura, dessa fotografia de revista, que se sentiu estorvado quando o primeiro oficial voltou da sua refeição e se preparou para barbeá-lo.

A fotografia que o atraía desse modo nada tinha de especial; fotografias como essa eram encontradas às centenas em revistas cuja orientação desagradava a Preysing. A gravura representava uma mocinha nua, nas pontas dos pés, tentando olhar por sobre um biombo muito mais alto do que ela. Seus braços estavam levantados, e os delicadíssimos seios, com esse movimento, erguiam-se com uma graça especial, de modo tentador. No dorso esguio via-se o desenho delicado da musculatura. Na cintura, esse corpo se estreitava de um modo incrível, e abaixo do dorso delgado os quadris se encurvavam suavemente, prolongando-se nas linhas das coxas. Aqui, o corpo virava-se ligeiramente de lado, de modo que o ventre da mocinha mal se adivinhava como uma sombra suave, enquanto as coxas e os joelhos se distendiam, como a exprimir uma elástica curiosidade. Essa figura encantadora de mulher, de formas invulgarmente perfeitas, tinha também um rosto; e o que tornava a gravura extremamente excitante para o diretor-geral é que ele conhecia esse rosto. Era a carinha de gata da Flaemmchen, de nariz curto, com uma expressão animada e inocente, era o sorriso meigo de Flamm número dois, era o seu caracolzinho na testa, sobre o qual o esperto fotógrafo colocara um propositado reflexo luminoso; e, antes de mais nada, era a completa naturalidade, o modo simples e ingênuo com que ela o chamara de modo objetivo e modesto — Preysing recordou-se nesse instante — de um "bom nu". Preysing corou, enquanto teve diante dos olhos essa gravura; um súbito e ardente rubor subiu à sua testa, impedindo-o de pensar com clareza, como lhe acontecia nos seus acessos de cólera, que faziam tremer toda a fábrica. Depois, suas veias, uma a uma, começaram a latejar dentro dele, ele o sentia, sentia o sangue a refluir nas veias, como há muito tempo não lhe acontecia.

Preysing era um homem de cinquenta e cinco anos; não era um velho, mas uma pessoa pacata, o esposo pouco exigente de Mulle, mulher já envelhecida, papaizinho inocente de filhas crescidas. Trotara atrás da Flamm número dois pelo corredor do hotel sem sentir a mínima excitação, e o borbulhar suave de seu sangue, nessa ocasião, aplacara-se de modo próprio. Agora, diante desse nu artístico, mal podia respirar.

— Com licença, cavalheiro — disse o barbeiro; e, com um gesto elegante, pousou o fio da navalha em sua face.

Preysing conservou a revista na mão, enquanto se reclinava para trás e fechava os olhos. Primeiro viu tudo vermelho, e depois enxergou a Flaemmchen. Não a Flaemmchen vestida, diante da máquina de escrever, nem a Flaemmchen despida da fotografia cinzenta, mas uma mistura vivaz e excitante de ambas. Uma Flaemmchen de carne e osso, de pele moreno-dourada e sangue rubro e palpitante, que continuava nua, com o busto erguido, a olhar com curiosidade por cima de um biombo. O Diretor-Geral Preysing não estava habituado a deixar sua fantasia trabalhar. Mas agora ela trabalhava. Havia soltado a manivela, desde que ele, pela manhã, colocara na mesa o telegrama, dizendo, de um modo descarado, uma mentira absurda. Agora sua imaginação se afastava rapidamente com ele, o que era apavorante e embriagador ao mesmo tempo. Enquanto a navalha deslizava com leveza e perícia em seu rosto, Preysing sentia coisas incríveis, coisas fantásticas, com a Flaemmchen nua, coisas incríveis consigo mesmo, que ele nunca julgara que pudessem acontecer.

— Quer que lhe raspe o bigode? — perguntou o barbeiro.

— Não — disse Preysing, estorvado em meio aos seus pensamentos. — Por quê?

— É que as pontas estão um pouco grisalhas, e isso envelhece. Se me permite um conselho, o cavalheiro aparentaria dez anos menos, sem bigode — sussurrou o barbeiro, com o sorriso bajulador de todos os barbeiros a refletir-se no espelho.

"Mas eu não posso me apresentar a Mulle sem bigode, como um macaco", pensou Preysing, olhando-se no espelho. Realmente, seu bigode estava grisalho, e sob o bigode havia sempre gotas de suor no lábio superior. "Ora, a Mulle...", pensou ele — e nesse instante, a bem dizer, o adultério já estava cometido.

— Está bem, pode raspá-lo. A qualquer momento posso deixar crescer de novo o bigode.

— É claro, é facílimo — concordou o barbeiro, indo buscar em seguida mais sabão de barbear, para o grande empreendimento.

Preysing levantou a revista para olhar de novo a fotografia — mas isso só já não lhe bastava. Ele não queria mais ver, queria pegar, queria apalpar, queria sentir a Flaemmchen, palpitante e ardente.

No hotel repararam imediatamente no que acontecera ao bigode, mas não deram a perceber. Meu Deus do céu, estavam tão acostumados a observar as estranhas metamorfoses pelas quais passavam os cavalheiros que vinham da província para ficar uns dias no hotel... Preysing, que perguntava, apressado e ofegante, se havia correspondência para ele, recebeu uma carta de Mulle, que lhe colocaram na mão. Meteu-a simplesmente no bolso, sem a ler, e sem nenhum sentimento de carinho. Dirigiu-se então à cabina telefônica. "Preciso falar com Mulle", pensou, "mas posso chamá-la mais tarde." Entrou na cabina para ligações locais, pediu para falar com o gabinete do conselheiro Zinnowitz, e teve uma breve conversa com a Flamm número um. Desejava saber se a senhorita sua irmã estaria por acaso no gabinete.

Não, não estava mais.

Desejaria saber onde poderia ser encontrada.

Ah, respondeu a Flamm número um, hesitante, talvez ela se houvesse atrasado um pouco. Mas, nesse caso, a qualquer momento ela apareceria no hotel.

Preysing, diante do fone, ficou com uma cara de idiota.

— No hotel? Aqui? No Grande Hotel? Por quê?

— Pois é — disse a Flamm número um, precavida e indecisa. Isso pelo menos é o que ela entendera. Flaemmchen tinha ido para o hotel, e então ela, a Flamm número um, julgara que a irmã fora chamada de novo para datilografar. Mas talvez a Flaemmchen tivesse algum encontro, o que nunca se podia saber com certeza, pois, nesse ponto, a Flaemmchen era muito esquisita, muito diferente dela, a Flamm número um. Mas pontual ela era; quando prometia qualquer coisa, cumpria o prometido; por isso, iria com certeza ao hotel.

Preysing agradeceu e pôs o fone no gancho, atrapalhado. Dirigiu-se de novo, inquieto, à portaria, atravessando o hall. Ouvia-se perfeitamente a música saltitante que vinha do pavilhão amarelo.

— Minha secretária perguntou por mim? — informou-se ele com Herr Senf. O porteiro voltou para ele o rosto muito atento e tolo.

— Quem, por favor?

— Minha secretária. A senhorita a quem eu ditei cartas ontem — informou Preysing, excitado.

O pequeno Georgi meteu-se na conversa.

— Ela não perguntou nada, mas esteve no hall, há uns dez minutos, a moça loura, magra, não é isso? Eu acho que ela está no chá das cinco, no pavilhão amarelo, do outro lado do hall, segundo corredor atrás do elevador; o senhor vai perceber pela música.

Seria próprio de um diretor-geral, vestido com um terno de sarja, andar atrás dos sons apimentados de uma orquestra de jazz, através de corredores desconhecidos, à procura de uma jovem e leviana datilografa, com quem ele nada tinha que ver, do ponto de vista jurídico? Mas é que Preysing está quase a desviar-se do bom caminho, quase a escorregar, e não o percebe. Só percebe que seu sangue corre de modo diferente do costume, diferente dos quinze ou vinte últimos anos, e ele quer a qualquer preço agarrar-se a esse sentimento, tirar proveito dele. O bigode está raspado, não foi feita nenhuma ligação telefônica para a Mulle, e, quando ele abre a porta do pavilhão amarelo e sente a atmosfera desconhecida dessa sala, o assunto complicado com Chemnitz e Manchester, incerto e ainda por esclarecer, fica quase esquecido.

A essa hora, às cinco horas e vinte minutos, o pavilhão amarelo está diariamente entupido de gente. As cortinas de seda amarela, franzidas vaporosamente, estão fechadas diante das janelas altas; nas paredes estão acesas lampadazinhas amarelas, e nas mesinhas também há lampadazinhas acesas, com abajures amarelos. Está quente, ali dentro; dois ventiladores zunem, e paira no ar o burburinho humano. As pessoas estão sentadas bem perto umas das outras; cada um sente o calor do seu vizinho, porque uniram as mesinhas, para dar mais espaço aos que estão dançando no centro da sala. No forro abobadado estão pintadas formas vagas de bailarinos, em lilás e prateado; por vezes, quando tudo se movimenta, o forro causa a impressão de um espelho embaciado, em que se refletem os dançarinos cá de baixo. Tudo o que se passa ali dá uma impressão estranha de ângulos e de ziguezagues; a dança não é circular, mas apenas um estremecimento que se eleva e abaixa; e Preysing, que foi soprado até ali pelos rumores de seu sangue, para procurar uma certa Flaemmchen, ficou completamente tonto. Não via mais as pessoas inteiras, mas tudo se separava em confusão, só tinham cabeça ou coxas, como certa espécie de quadros modernos, que Preysing, em razão da loucura que representavam, não podia suportar. Porém, o mais importante e digno de reparo no pavilhão amarelo era a música. Era executada por sete cavalheiros indescritivelmente satisfeitos, de camisas brancas e calças curtas, a célebre Eastman Jazzband, cuja música era de uma vivacidade maluca, tamborilava sob as solas dos pés, fazia cócegas nos músculos dos quadris. Havia dois saxofones que choramingavam e outros dois que zombavam deles com um jeito satírico e sarcástico. O jazz serrava, estalava, teimava, matraqueava, cacarejava, pondo ovos sobre a melodia, ovos que eram em seguida esmagados — e quem caísse dentro do círculo dessa música ficava prisioneiro do ritmo convulsivo da sala, parecia até enfeitiçado.

Preysing, no entanto — empurrado de um lado para o outro pelos garçons que levavam bandejas cheias de taças com gelo —, ficara parado à porta, e reparou que começou a contrair os músculos das pernas enquanto, mal-humorado, procurava enxergar a Flamm número dois. Seu lábio superior, nu e remoçado, cobriu-se novamente de suor; ele tirou do bolso o lenço, enxugou o rosto, e depois meteu o lenço no bolsinho exterior do paletó, onde em geral só costumava guardar a caneta-tinteiro. Com um olhar de esguelha, muito encabulado, arranjou a ponta do lenço, deixando-o cair como uma graciosa bandeirola; isso parecia legitimar o seu direito de pertencer a essa parte animada do Grande Hotel. Aliás, ninguém se importava com ele. Poderia ficar ali o tempo que quisesse, e procurar entre duzentas jovens e esbeltas dançarinas uma determinada senhorita.

— Quando vi que o senhor não estava aqui às cinco e dez pensei: ele vai dar um bolo. Você vai ver, ele vai dar um bolo, pensei — disse a Flaemmchen, que estava dançando com Gaigern uma lânguida variação do charleston, uma dança nova, com uma pequena síncope, que dava um golpe na perna. Seus corpos se ajustavam plenamente na dança.

— Absolutamente. Pensei o dia inteiro na senhora, e me alegro de poder revê-la — disse Gaigern.

Essa frase lhe saiu com a mesma leveza e languidez, com a mesma facilidade com que ele dançava. Gaigern era apenas alguns centímetros mais alto do que a Flaemmchen, e fitou com um leve e amável sorriso os olhos de gatinha da moça. Ela estava vestida com um vestidinho de seda leve, azul; ao pescoço trazia um colar de contas de vidro lapidado, e usava um chapeuzinho, desses fabricados em série e vendidos por um marco e noventa. Estava encantadora, com os requisitos de uma elegância rebuscada.

— É verdade mesmo que o senhor se alegrou? — perguntou ela.

— Metade verdade, metade invenção — replicou Gaigern com sinceridade. — Passei o dia hoje caceteadíssimo — acrescentou suspirando. — Estou servindo de cicerone para um senhor de idade, por necessidade, é claro.

— E por que faz isso?

— Preciso conseguir uma coisa dele.

— Ah! — disse a Flaemmchen, compreensiva.

— A senhora também precisa dançar com ele — disse Gaigern, apertando-a de leve.

— Que nada!

— Não é isso. Mas eu vou lhe pedir encarecidamente. Ele não sabe dançar, compreende? Mas tem tanta vontade de aprender! A senhora dá apenas algumas voltas com ele — para me fazer um favor.

— Bem, vamos ver! — prometeu a Flaemmchen. Continuaram a dançar, calados. Gaigern trouxe mais para perto o corpo da moça, sentindo que as costas dela obedeciam documente aos movimentos de sua mão. Isso, porém, não o alegrava, pelo contrário, causava-lhe raiva, até.

— Então, que aconteceu? — perguntou a Flaemmchen, pressentindo o que se passava.

— Ah!... Não é nada! — resmungou Gaigern, sentindo ódio de si próprio.

— Que está querendo? — perguntou a Flaemmchen com solicitude. Achava-o lindo, com aquela boca, e a cicatriz no queixo... E os olhos também, um pouco oblíquos. Sentia forte inclinação por ele.

— A gente tem vontade de fazer qualquer coisa maluca, já que não acontece nada. Agora tenho vontade de mordê-la, ou de brigar com a senhora. Ou de esmurrá-la, até. Ora! Hoje à noite vou à luta de boxe; ali, pelo menos, acontece alguma coisa.

— Ah, é? — disse a Flaemmchen. — O senhor vai hoje à noite à luta de boxe? Ah, sei.

— Com aquele senhor de idade — afirmou Gaigern.

— Se o senhor... acabou — disse a Flaemmchen, quando a música parou. Ela se pôs então a bater palmas freneticamente, deixando-se ficar onde estava. Gaigern fez menção de tirá-la do meio da sala e levá-la a uma mesinha, onde ele deixara Kringelein diante de uma xícara de café. A música começou de novo, quando os dois já se encontravam a meio caminho, entre a confusão e o aperto.

— Tango! — exclamou a Flaemmchen, excitada.

E a moça tomou posse de Gaigern, simplesmente. A palma de sua mão encostava-se à dele, implorando e aquiescendo. Suas coxas já se emparelhavam no passo lânguido e arrastado do tango. Fez-se um vazio na sala, em redor deles, porque dava prazer vê-los dançar.

— O senhor conduz otimamente — sussurrou a Flaemmchen, como se fizesse uma declaração de amor. Gaigern nada tinha a replicar. — Ontem o senhor estava tão diferente... — disse um pouco mais tarde.

— É... ontem — respondeu Gaigern. Disse isso como se estivesse a dizer: há cem anos. — Aconteceu uma coisa de ontem para hoje — acrescentou.

Sentia que uma compreensão simples e natural os unia, e de repente teve desejos de se confiar a ela.

— Esta noite eu me apaixonei, uma paixão muito séria, compreende? — disse ele baixinho, dançando o tango que vibrava no ar. — Isso vira a cabeça da gente. É um sentimento avassalador. É como se...

— Mas isso não é nada de extraordinário — observou a Flaemmchen, ironicamente, sentindo-se triste, desiludida.

— É sim, é uma coisa extraordinária. A gente tem vontade de se transformar por completo, compreende? De repente acha que só existe uma mulher no mundo, só essa mulher, e o resto não tem mais nenhum valor. A gente acha que não é mais capaz de dormir, a não ser com essa mulher. É como se passasse por nós um furacão. Como se nos tivessem posto dentro de um canhão, e depois atirado à Lua ou a outro lugar qualquer, onde tudo é diferente.

— E como é ela? — perguntou a Flaemmchen — e qualquer outra em seu lugar teria perguntado o mesmo.

— Ah! Como ela é? Aí é que está... É muito velha e magra, muito leve, sou capaz de levantá-la do chão com um dedo. Tem rugas, aqui e aqui, e olhos pisados. E fala numa linguagem de baixo calão, como um clown; tem-se vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo, ao ouvi-la. E isso tudo me agrada de um modo incrível, não há nada a fazer. É o grande amor.

— O grande amor? Mas isso não existe — disse a Flaemmchen. Ao afirmar isto, ela tinha uma carinha espantada e teimosa de gata, como às vezes os amores-perfeitos têm nos canteiros.

— Como não, como não? Existe, sim — disse Gaigern.

A Flaemmchen ficou tão impressionada com essas palavras, que parou um segundo, em meio ao tango, e sacudindo a cabeça olhou Gaigern.

— São frases, apenas — murmurou ela ao mesmo tempo.

Nesse momento exato os olhos de Preysing descobriram finalmente o vulto procurado, no meio da confusão erótica e lânguida do tango. Com um sentimento de zanga e extrema impaciência, esperou que a dança lenta terminasse e depois foi-se espremendo entre os pares, até a mesinha em que a Flaemmchen tomara lugar entre dois senhores, que Preysing tinha a impressão de conhecer. No hotel, essa espécie de conhecimentos de vista eram correntes; passava-se por alguém no elevador, encontrava-se com alguém na sala de refeições, no banheiro e no bar, girava-se um diante do outro na porta giratória, nessa porta que estava sempre a rodar, deixando entrar e sair gente, para dentro e para fora do hotel.

— Boa tarde, Fräulein Flamm — disse o diretor-geral com a voz tornada rouca e grosseira pela timidez; postou-se ao lado da cadeira da moça, encolhendo a barriga para dar passagem ao garçom.

A Flamm número dois apertou as pálpebras, até conseguir registrar a presença imprevista de Preysing.

— Ah, é o senhor diretor — disse então, amavelmente. — O senhor também dança? — ela olhou a fisionomia contraída dos três homens; estava habituada a ver essa expressão nos semblantes dos homens que a rodeavam. — Os senhores já se conhecem? — perguntou com um gesto distinto de mão, que copiara de uma estrela de cinema.

Não podia apresentá-los, porque não sabia como se chamavam os seus cavalheiros. Preysing e Gaigern murmuraram algo, e o diretor-geral apoiou na mesa uma mão repleta de sentimento de posse, enquanto passava rente a ele, à altura da cabeça, uma perigosa bandeja com copos de laranjada, que o garçom equilibrava.

— Boa tarde, Herr Preysing — disse de repente Kringelein, sem erguer-se da cadeira.

Cada uma das suas vértebras lhe doía, por causa do enorme esforço que teve de fazer para não ser atacado de tremedeira e não cair estatelado, voltando a ser o miserável Kringelein da caixa da fábrica. Ficou de ombros contraídos; tudo nele se contraiu; lábios, dentes, até mesmo as narinas, que tomaram um aspecto redondo e feio, como as dos cavalos. Mas ele se portou à altura do grave momento; forças nunca pressentidas fluíam do seu jaquetão preto de corte impecável, da sua roupa de baixo, da sua gravata, de suas unhas bem cuidadas, enchendo-o de energia. O que quase o fez perder o aplomb foi o fato de Preysing também ter se transformado; continuava a usar o mesmo terno de Fredersdorf, mas não tinha mais bigode.

— Não sei bem... desculpe-me... mas acho que já nos conhecemos... — disse Preysing com a maior amabilidade que lhe permitia a excitação que sentia por causa da Flaemmchen.

— Sim, senhor. Kringelein — afirmou este. — Trabalho na fábrica.

— Ah — disse Preysing, esfriando. — Kringelein. Nosso representante, não é? — acrescentou, reparando na elegância de Kringelein.

— Não. Guarda-livros. Auxiliar de guarda-livros no bureau de pagamentos. Sala 23. Edifício C. Terceiro andar — informou Kringelein conscienciosamente, mas sem devoção.

— Ah — repetiu Preysing, pensativo. Seu desejo era afastar nesse momento a aparição indesejável e incompreensível de um auxiliar de guarda-livros de Fredersdorf no pavilhão amarelo do Grande Hotel. — Preciso falar com a senhora, Fräulein Flamm — disse ele, retirando a mão do encosto da cadeira da Flaemmchen. — Trata-se de um novo serviço de datilografia — acrescentou num tom de chefe, que feriu os ouvidos do sujeito de Fredersdorf.

— Está bem — concordou a Flaemmchen. — Quando é melhor para o senhor? Às sete, sete e meia?

— Não, já — disse Preysing em tom ditatorial, enxugando o suor do rosto.

Aquele indivíduo de Fredersdorf tinha também um lenço no bolso do paletó, uma flamulazinha de seda, revolucionária e leviana.

— Infelizmente, já, já não é possível — disse a Flaemmchen amavelmente. — Já estou comprometida. Não posso deixar estes senhores aqui. Ainda preciso dançar uma vez com Herr Kringelein.

— Herr Kringelein vai ter a amabilidade de desculpá-la — disse Preysing, contendo-se. Era uma ordem. Kringelein sentiu que os vinte e cinco anos de um sorriso subalterno queriam insinuar-se em seus lábios paralisados. Controlou-o, fazendo-o recuar para a pele do rosto, engelhada e quase fria. Procurou auxílio e forças em Gaigern. O barão tinha um cigarro no canto da boca, e a fumaça subia ao longo das pestanas de seu olho esquerdo, que ele piscou com expressão brejeira e compreensiva.

— Não penso absolutamente em desistir — comentou Kringelein. Após lhe escaparem estas palavras, ficou imóvel como uma lebre, que finge estar morta no carreiro de um campo. De repente, Preysing, ao ver aquela expressão obstinada, recordou-se de um relatório a respeito de Kringelein, que lhe haviam apresentado há poucos dias.

— É estranho — disse ele com a voz nasal e temida da fábrica. — É estranhíssimo. Agora já sei do que se trata. O senhor participou à fábrica que estava doente, não é? Herr Kringelein, hein? Sua mulher pediu um subsídio ao Fundo de Auxílio aos Doentes, por causa de moléstia grave. Nós lhe demos férias de seis semanas, pagas. E o senhor se encontra em Berlim, divertindo-se, hein? Anda atrás de divertimentos que não condizem nem com a sua posição nem com o seu ordenado. É muito estranho. Estranhíssimo, Herr Kringelein. Nós vamos rever com cuidado os seus livros, pode estar certo disso. Vamos deixar de pagar-lhe as férias, já que o senhor está tão bem de saúde, Herr Kringelein! Vamos...

— Olhem, meninos, nada de brigas aqui. Vão entender-se no seu escritório — disse a Flaemmchen, com modos afáveis e conciliantes. — Nós estamos aqui para nos divertir. Vamos, Herr Kringelein, agora vamos dançar.

Kringelein firmou-se nas pernas, esticando os joelhos, que pareciam de borracha, mas que se consolidaram a olhos vistos quando a Flaemmchen colocou o braço no ombro dele. A música tocava aos solavancos uma coisa rapidíssima, algo semelhante à corrida de automóvel a cento e quinze quilômetros por hora, e ao motor de avião. Isso lhe deu forças para dizer as frases que vinha preparando há vinte e cinco anos, em sua vida de empregado subalterno. Arrastado pela Flaemmchen para o meio da sala, falou em voz alta, virando a cabeça para trás:

— Quem sabe se o mundo pertence só ao senhor, hein, Herr Preysing? O senhor será diferente de mim? Quem sabe se as pessoas como eu não têm o direito de viver?

— Que é isso, que é isso! — exclamou a Flaemmchen. — Aqui não se fala aos berros, aqui se dança. E agora, não olhe para os pés, olhe para o meu rosto, e vá andando, vá andando calmamente, vou guiá-lo.

— Mas que impostor! — rangeu Preysing por entre os dentes, por trás deles. E ficou diante da mesa, trêmulo de cólera. Gaigern, a fumar, ouvindo essas palavras, sentiu um impulso raro, uma espécie de compassivo coleguismo, misturado a uma repulsa, violenta e sarcástica, pelo corpulento e suarento diretor-geral. "Era preciso colocar-lhe um par de sanguessugas na pele, amiguinho", pensou ele.

— Deixe que o pobre-diabo se divirta! — disse a meia voz. — Basta olhar para a cara dele para ver que está às portas da morte.

"Não lhe pedi nenhum conselho", pensou Preysing, mas não teve coragem de dizê-lo, porque sentia obscuramente a raça superior do barão.

— Peço-lhe o favor de dizer a Fräulein Flamm que a espero no hall, para um assunto urgente. Se ela não aparecer até as seis, dou o assunto por terminado — disse ele, curvando-se ligeiramente. Em seguida retirou-se.

Intimidada por esse ultimato, a Flaemmchen apareceu no hall três minutos antes das seis. Preysing ergueu-se das brasas ardentes em que estivera sentado nesse ínterim, e sorriu com profunda satisfação. Como ele sorria raramente, essa amabilidade o tornou mais bonito, e causou efeito imprevisto.

— Cá está a senhora — disse ele, estonteado.

Há muitas horas ele se contorcia, se martirizava, ardia, com um único pensamento: saber se a Flaemmchen era conquistável. Suas experiências com mulheres eram modestas, e datavam de muitos anos atrás. Dessa geração nova de mocinhas, ele fazia apenas uma ideia vaga, apesar de, nas reuniões masculinas, e em conversas íntimas nas viagens profissionais, dizerem com frequência que essa espécie de meninas era fácil de conquistar. Pôs-se a observar a Flaemmchen, as suas pernas cruzadas, com meias de seda, o colar de pedras de vidro imitando cristal, sua pintura, que ela nesse instante renovava, apertando os lábios, e ficou sem saber em que se basear, nessa pessoa despreocupada, para as suas suposições.

A Flaemmchen fechou o estojinho de pó de arroz e perguntou:

— Então, de que se trata?

Preysing apertou o charuto entre os dedos, e desembuchou:

— Trata-se do seguinte — começou ele: — preciso viajar para a Inglaterra, e preciso levar comigo uma secretária. Em primeiro lugar, por causa da correspondência; depois, porque desejaria ter com quem conversar durante a viagem. Sou muito nervoso, muito nervoso, mesmo — afirmou, apelando inconscientemente para a compaixão da moça —, e preciso ter alguém na viagem que se ocupe de mim. Não sei se a senhora me compreende. Ofereço-lhe um emprego de confiança, em que a senhora... em que..

— Já estou compreendendo — disse a Flaemmchen, baixinho, ao perceber a atrapalhação dele.

— Acho que nos daremos bem na viagem — afirmou Preysing.

O delicioso fluir e latejar do seu sangue nas veias diminuíra durante tão difíceis negociações, mas quando ele fitou a Flaemmchen consolou-se, sentindo que ela iria fazer com que tudo isso despertasse de novo, assim que o desejasse.

— A senhora contou-me que no ano passado também viajou com um cavalheiro, e isso me fez ter esta ideia... eu acho que seria muito agradável, se a senhora quisesse. A senhora quer?

A Flaemmchen pensou durante cinco longos minutos.

— Preciso pensar primeiro — respondeu ela, com expressão ajuizada e preocupada, fumando o seu indefectível cigarro. — Para a Inglaterra? — perguntou depois. A cor moreno-dourada da sua pele clareou um pouco, o que talvez significasse que empalidecera. — Ainda não conheço a Inglaterra. E por quanto tempo?

— Por... não sei lhe dizer ainda com exatidão. Isso depende. Se os meus negócios lá correrem bem, tiro talvez mais catorze dias de férias, e podemos ficar em Londres, ou ir para Paris.

— Bom, pode-se arranjar; já sei mais ou menos do que se trata, pelas cartas — disse a Flaemmchen com segurança.

O otimismo era o elemento em que ela se movia. Preysing sentiu-se animado ao perceber que ela estava a par dos seus negócios, e profetizava o sucesso.

— A senhora ainda precisa me dizer quanto quer de ordenado — declarou ele, com o tom de quem dizia um galanteio.

Desta vez demorou mais, até que a Flaemmchen respondesse. Tinha que fazer um extenso balanço. A renúncia à aventura principiada com o belo barão se incluía nele, os pesados cinquenta anos de Preysing, sua gordura, seu fôlego curto. Pequenas dívidas aqui e ali. A necessidade de roupa de baixo nova, de sapatos bonitos — os azuis não iam durar muito. O pequeno capital de que necessitava para iniciar carreira no cinema, na revista, em qualquer parte. A Flaemmchen pesou calmamente e sem sentimentalismo a oportunidade do negócio que lhe era proposto.

— Mil marcos — disse ela, achando que era suficiente; não tinha ilusões a respeito das quantias que hoje em dia se depunham aos pés das mulheres bonitas. — Talvez um pouquinho mais para a roupa de viagem — acrescentou, um pouco mais tímida do que de costume. — O senhor há de querer que eu tenha uma bonita aparência...

— Para isso a senhora não precisa se vestir. Pelo contrário — disse Preysing, excitado. Ele julgou que tinha dito uma frase espirituosa. A Flaemmchen sorria melancolicamente, o que deu um aspecto estranho à sua saudável carinha de amor-perfeito. — Então está combinado? -— perguntou Preysing. — Amanhã ainda tenho umas coisas a fazer aqui; é preciso também arranjar os passaportes, e poderemos viajar depois de amanhã. Está contente por ir conhecer a Inglaterra?

— Muito — respondeu a Flaemmchen. — Então amanhã eu trago a minha máquina de escrever portátil e o senhor pode ir logo ditando.

— E hoje à noite... se a senhora concordar... pensei que hoje à noite poderíamos ir a um teatro... Temos que tomar um copo de vinho para festejar o nosso contrato, não é? O que acha?

— Hoje, já? — disse a Flaemmchen. — Bom. Hoje, já.

Ela soprou o seu caracolzinho para cima, e atirou o cigarro amassado no cinzeiro. Podia ouvir perfeitamente a música do pavilhão amarelo. "Não se pode ter tudo", pensou. "Mil marcos. Vestidos novos. E Londres também não é para desprezar."

— Preciso telefonar para minha irmã — disse ela, levantando-se. Preysing sentiu-se percorrido por uma onda de calor, apaixonada e grata, que o inundou completamente; colocou-se então por trás dela e pegou delicadamente, com ambas as mãos, seus cotovelos, que ela apertava de encontro ao corpo.

— Quer ser boazinha para mim? — perguntou ele em voz baixa.

E igualmente baixinho, com os olhos voltados para a passadeira cor de amora, a Flaemmchen respondeu:

— Se não tiver muita pressa...

 

 


CONTINUA