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GRANDES OBRAS DE DOSTOIÉVSKI / Fiódor Dostoiévski
GRANDES OBRAS DE DOSTOIÉVSKI / Fiódor Dostoiévski

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Os paradoxos do homem do subsolo como uma síntese das (im)possibilidades de redenção humana
Desde seu primeiro parágrafo, a novela Notas do subsolo (1864), do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), desponta com o som, a fúria e os paradoxos que tanto caracterizam o homem do subsolo, (anti-)herói e narrador-personagem da estória:
Eu sou um homem doente... Sou um homem malvado. Sou um homem desagradável. Creio que tenho uma doença do fígado. Aliás, não compreendo absolutamente nada da minha moléstia e não sei mesmo exatamente onde está o mal.
Não me cuido, nunca me cuidei, se bem que estime os médicos e a medicina. Demais, sou extremamente supersticioso, o bastante, em todo caso, para respeitar a medicina (sou bastante instruído: poderia então não ser supersticioso, mas sou). Não! Se não me trato, é pura maldade de minha parte. Não sabereis certamente compreender. Pois bem! Eu compreendo. Não poderei evidentemente explicar-vos em que errei, agindo tão malvadamente: sei muito bem que não são os médicos que eu incomodo, recusando-me a tratar-me. Não engano senão a mim mesmo; reconheço-o melhor que ninguém. Entretanto, é mesmo por malvadez que não me trato. Sofro do fígado! Tanto melhor! E tanto melhor ajuda se o mal piora.
No princípio, portanto, era o verbo subterrâneo repleto de pus e contradições.
Racionalista ao extremo, o homem do subsolo polemiza com a intelligentsia russa revolucionária de meados do século XIX, a geração dos pais políticos de Vladímir Lênin (1870-1924), Liev Trótski (1879-1940) e Ióssif Stálin (1878-1953), líderes da Revolução Russa de 1917, ao sentenciar, na primeira parte da novela (“O subsolo”), que os planos de justiça social dos utopistas que queriam trazer o Éden para este mundo e forjar uma terra sem amos estariam fadados ao fracasso (e ao autoritarismo) se não permitissem que as pessoas expressassem sua personalidade com o sentido de liberdade indômita e potencialmente irracional que tal expressão pudesse comportar.
Em um jogo vertiginoso de perguntas e respostas para leitores espectrais e pressupostos — o homem do subsolo pergunta, e ele próprio responde —, o narrador-personagem conclui (sempre de maneira provisória) que o ser humano, a despeito de quaisquer vantagens utópico-racionais que lhe forem apresentadas, ainda assim quererá estilhaçar o palácio de cristal da utopia para exprimir a si mesmo segundo suas próprias tendências e pulsões, ainda que isso signifique agir contra seus próprios interesses. Vemos, assim, que, a galope da razão, o homem do subsolo esgarça as (im)possibilidades racionais de redenção da sociedade para dar vazão à mais rematada irracionalidade, “contanto que ela seja livre” e mesmo que ela o mutile (e prolongue o nosso cativeiro).
É com esse pathos sumamente irascível que o autoproclamado “paradoxalista do subsolo” prenuncia as personagens dos grandes romances dostoievskianos, tais como os atormentados Ródion Raskólnikov
(Crime e castigo, 1866) e Nastássia Filíppovna (O idiota, 1869), Kiríllov (Os demônios, 1872), o homem ridículo (O sonho de um homem ridículo, 1877) e Ivan Karamázov (Os irmãos Karamázov, 1880). A partir do homem do subsolo, as personagens de Dostoiévski fundirão as grandes ideias de sua época às próprias trajetórias — da revolução socialista à reação feudal e tsarista, do egoísmo utilitário e capitalista mais rematado ao ímpeto por igualdade, liberdade e fraternidade —, de modo a apresentar as (im)possibilidades de redenção para a história humana em completo entrelaçamento com suas próprias estórias.

 


 


O subsolo

I


Eu sou um homem doente... Sou um homem malvado. Sou um homem desagradável. Creio que tenho uma doença do fígado. Aliás, não compreendo absolutamente nada da minha moléstia e não sei mesmo exatamente onde está o mal.

Não me cuido, nunca me cuidei, se bem que estime os médicos e a medicina. Demais, sou extremamente supersticioso, o bastante, em todo caso, para respeitar a medicina (sou bastante instruído: poderia então não ser supersticioso, mas sou). Não! Se não me trato, é pura maldade de minha parte. Não sabereis certamente compreender. Pois bem! Eu compreendo. Não poderei evidentemente explicar-vos em que errei, agindo tão malvadamente: sei muito bem que não são os médicos que eu incomodo, recusando-me a tratar-me. Não engano senão a mim mesmo; reconheço-o melhor que ninguém. Entretanto, é mesmo por malvadez que não me trato. Sofro do fígado! Tanto melhor! E tanto melhor ajuda se o mal piora.

Há muito tempo já que eu vivo assim: uns vinte anos, pouco mais ou menos. Tenho quarenta anos agora. Fui funcionário, pedi demissão. Fui um funcionário muito ruim. Era grosseiro e tinha prazer em sê-lo. Podia bem me compensar desta maneira, pois que eu não aceitava gorjetas (esta brincadeira não tem graça; mas não a suprimirei. Escrevi-a crendo que teria espírito; não a apagarei, entretanto, expressamente; porque vejo que queria me dar ares de importância). Quando os solicitantes em busca de informações se aproximavam da mesa diante da qual eu estava sentado, eu rangia os dentes; sentia uma volúpia indizível, quando conseguia causar-lhes algum aborrecimento. Conseguia-o quase sempre. Eram geralmente pessoas tímidas, acanhadas. Solicitantes, pois quê! Mas havia às vezes presumidos entre eles, petulantes, e eu detestava particularmente certo oficial. Ele não entendia de submissão e arrastava o grande sabre, de um modo detestável. Durante um ano e meio movi-lhe guerra, por causa desse sabre, e finalmente saí vencedor: ele parou de teimar. Isto, aliás, se passava no tempo da minha mocidade.

Ora, sabeis, senhores, o que excitava sobretudo minha raiva, o que a tornava particularmente vil e estúpida? É que eu me inteirava vergonhosamente, mesmo quando a minha bílis se esparramava mais violentamente, que eu não era mau homem, no fundo, não era mesmo um homem azedo, e que tomava gosto, muito simplesmente, em assustar os pardais. Tenho espuma na boca; mas, trazei-me uma boneca, oferecei-me uma chávena de chá bem doce, e é provável que eu me acalme; sentir-me-ei mesmo muito comovido. É verdade que, mais tarde, morderei os punhos de raiva, e de vergonha perderei o sono durante alguns meses. Sim, eu sou assim.

Menti antes, quando disse que tinha sido um mau funcionário. Foi por despeito que menti. Tentava muito simplesmente distrair-me com os solicitantes e esse oficial, e nunca pude conseguir tornar-
-me realmente mau. Com efeito, verificava sempre em mim a presença de um grande número de elementos diversos que se opunham vi lentamente. Sentia-os fervilharem em mim, por assim dizer. Sabia que estavam presentes sempre e aspiravam a manifestar-se do lado de fora, mas eu não os deixava; não, não lhes permitia evadirem-se. Atormentavam-me até à vergonha, até às convulsões. Oh! Como eu estava fatigado! Como estava saturado!

Mas não vos parece, senhores, que eu me arrependo e que vos peço perdão de não sei que crime? Estou certo, senhores, de que ides imaginar isso... Mas, aliás, digo-vos que, quer vós o imagineis ou não, isso me é indiferente...

Jamais consegui nada, nem mesmo me tornar malvado; não consegui ser belo, nem mau, nem canalha, nem herói, nem mesmo um inseto. E, agora, termino a existência no meu cantinho, onde tento piedosamente me consolar, aliás sem sucesso, dizendo-me que um homem inteligente não consegue nunca se tornar alguma coisa, e que só o imbecil triunfa. Sim, meus senhores, o homem do século XIX tem o dever de ser essencialmente destituído de caráter; está moralmente obrigado a isso. O homem que possui caráter, o homem de ação, é um ser essencialmente medíocre. Tal é a convicção de meus quarenta anos de existência.

Tenho quarenta anos atualmente. Ora, quarenta anos é toda a vida, é a profunda velhice. É inconveniente, é imoral, é vil viver além dos quarenta. Quem vive depois dos quarenta anos? Respondei sinceramente, honestamente! Vou dizer-vos, sim, eu: os imbecis, os patifes, esses vivem mais de quarenta anos. Eu o proclamarei em face de todos os velhos, de todos os respeitáveis velhos, de todos os velhos de cabelos cor de prata e perfumados! Eu o proclamarei em face do universo inteiro. Tenho o direito de falar assim, porque eu, eu viverei até os sessenta anos! Até os setenta anos! Até os oitenta anos! Mas esperai! Deixai-me tomar fôlego!

Imaginais, certamente, senhores, que me proponho vos fazer rir? Enganai-vos a esse respeito, como sobre o resto. Não sou de modo algum tão divertido quanto vos parece, ou quanto vos pode parecer. De resto, se agastados por toda essa tagarelice (estais irritados, sinto já), vós me perguntais o que sou, afinal de contas, responderei: sou um assistente de colégio. Entrei na administração para poder comer (mas unicamente para isso), e, quando no ano passado um dos meus parentes afastados me legou por testamento seis mil rublos, pedi depressa minha demissão e me enterrei no meu canto; ali morava já há muito tempo, mas instalei-me agora definitivamente. O quarto que ocupo nos confins da cidade é feio, e desmantelado. Minha criada é uma velha camponesa que a burrice tornou malvada; além disso, cheira mal. Dizem-me que o clima de Petersburgo me é prejudicial, e que a vida custa caro demais para os recursos ínfimos de que disponho. Sei disso: sei bem melhor que todos esses sábios conselheiros. Mas fico em Petersburgo, não deixarei Petersburgo porque... Que eu parta ou não, aliás, que importa!...

Mas do que um homem honesto pode falar com mais prazer?

Resposta: de si mesmo.

Pois bem! Vou então falar de mim mesmo!

 

II


Quero agora contar-vos, meus senhores, quer o desejeis ou não, por que eu não consegui nem mesmo me tornar um inseto. Declaro-vos solenemente: um grande número de vezes já tentei tornar-me um inseto; mas não fui julgado digno disso.

Uma consciência clarividente demais, asseguro-vos, senhores, é uma doença, uma doença muito real. Uma consciência ordinária nos basta mais que amplamente em nossa vida cotidiana, isto é, uma porção igual à metade, a um quarto da consciência outorgada ao homem culto do nosso século XIX e que, para sua desgraça, habita Petersburgo, a mais abstrata, a mais “premeditada” das cidades que existem sobre a terra (pois há cidades premeditadas e outras que não o são). Ter-se-ia, por exemplo, amplamente o suficiente dessa porção de consciência que possuem os homens ditos sinceros, espontâneos, assim como os homens de ação.

Imaginais, aposto, que escrevo tudo isto por atitude, para zombar dos homens de ação, para me dar importância, como esse arrastador de sabre de que falava há pouco, mas seria uma atitude de muito mau gosto. Quem pensaria então, dizei-me, senhores, em se glorificar com suas doenças e fazer delas motivo de orgulho?

Mas que digo eu! Todo mundo age assim. É precisamente de suas moléstias que cada um tira glória, e eu, provavelmente, ainda mais que os outros. Não discutamos! Minha objeção é estúpida.

Entretanto — estou firmemente convencido —, a consciência, toda consciência é uma enfermidade. Eu o sustento. Mas deixemos isso por agora. Respondei-me a isto: como era possível que sempre, no instante mesmo — sim, como se fosse de propósito —, precisamente no instante em que eu era o mais capaz de apreciar todas as nuanças do belo, do sublime, como se dizia entre nós há pouco tempo,[ 02 ] me acontecesse não somente pensar, mas fazer coisas tão incongruentes que... ações, para ser breve, que todos levam a cabo talvez bem, mas que eu praticava justamente quando tinha perfeita consciência de que era preciso me abster? Quanto mais o bem e todas as coisas “belas e sublimes” se tornavam claras à minha consciência, mais profundamente eu me afundava na minha lama, mais eu me sentia capaz de me enterrar definitivamente. Porém o que era particularmente notável é que esse desacordo não parecia uma coisa fortuita, dependendo das circunstâncias, mas parecia vir por si e se produzir muito naturalmente. Dir-se-ia que era meu estado normal e de modo nenhum uma doença ou um vício; a tal ponto que, finalmente, perdi todo o desejo de lutar. Enfim, para concluir, admito quase (talvez o admita completamente) que tal era com efeito o estado normal do meu espírito. Mas, antes, no começo, quantos sofrimentos suportei pacientemente nessa luta! Não acreditava que outros pudessem estar no mesmo caso, e durante toda a minha vida escondi essa particularidade como um segredo. Eu tinha vergonha (pode ser que tenha vergonha ainda hoje). Isso ia tão longe que me acontecia gozar uma espécie de prazer secreto, vil, anormal, ao entrar em casa, no meu buraco, por uma dessas noites petersburguesas sujas e feias, e repetindo-me que tinha ainda cometido uma vilania, nesse dia, e que era impossível reaparecer lá em cima. E inquietava-me então interiormente. Eu me atormentava, despedaçava-me, bebia longamente a minha amargura, fartava-me tanto que finalmente sentia uma espécie de fraqueza vergonhosa, maldita, em que gozava uma volúpia real. Sim, uma volúpia! Uma volúpia! Insisto nisso. Comecei a falar disso precisamente porque eu quero saber com justeza se os outros conhecem tais volúpias.

Explicar-te-ei: a volúpia, nesse caso, provinha de que eu me inteirava demais da minha humilhação; ela unia-se à sensação de ter atingido um último limite: tua situação é abominável, mas não pode ser outra; não te resta nenhuma saída; nunca poderás mudar, porque, mesmo que tivesses o tempo e a fé necessários, tu mesmo não quererias tornar-te um homem diferente; e, aliás, ainda que quisesses mudar, serias incapaz: com efeito, mudar em quê? — Não há talvez nada além disso!

Mas o essencial — e isso é o fim dos fins — é que tudo se cumpre conforme as leis fundamentais e normais da consciência requintada e dela flui diretamente, embora seja completamente impossível não somente mudar, mas, em geral, reagir, de um modo qualquer. A consciência requintada nos diz, por exemplo: “sim, tens razão, tu és um canalha”; mas o fato de eu poder verificar a minha própria canalhice, não me consola de jeito nenhum de ser um canalha. Mas isto chega!... Quantas palavras, meu Deus. Mas que explicaste? De onde provém essa volúpia? Procuro explicar-me entretanto. Irei até o fim. Foi para isso que tomei a pena...

Assim, por exemplo, tenho um amor-próprio terrível; sou tão desconfiado e suscetível como um corcunda, ou um anão. Mas, verdadeiramente, houve minutos da minha existência em que, se me tivessem dado uma bofetada, eu teria sido muito feliz, talvez. Falo seriamente: teria podido certamente encontrar aí algum prazer, o prazer do desespero, evidentemente; é o desespero que encobre as volúpias mais ardentes, sobretudo quando a situação parece realmente sem saída. Ora, aí, no caso da bofetada, quanto aniquilamento essa sensação de ter sido esmagado assim!

Mas o principal é que sempre acontece que sou eu o culpado, de qualquer lado que se examinem as coisas, e, o que é mais, culpado sem afinal o ser, ou, dito por outra forma: de conformidade com as leis da natureza. Sou culpado, em primeiro lugar porque sou mais inteligente do que todos aqueles que me rodeiam (julguei-me sempre mais inteligente do que aqueles que me cercam, e acontece-me até — imaginai! — sentir-me confuso com a minha superioridade, de tal modo que durante a minha vida tenho olhado as pessoas de esguelha, por assim dizer, e nunca pude encará-las bem de frente). Sou culpado, além disso, porque, mesmo que eu tivesse tido um sentimento qualquer de generosidade, a consciência de sua inutilidade não teria servido senão para me atormentar ainda mais. Eu não teria podido certamente tirar nada daí: não teria podido perdoar, pois o ofensor teria me atacado conforme as leis da natureza, as quais não fazem caso do nosso perdão; mas impossível, por outro lado, esquecer, pois o insulto, por mais natural que seja, nem por isso permanece menos. Enfim, mesmo que eu renunciasse a ser generoso e quisesse, ao contrário, vingar-me do ofensor, não poderia fazê-lo, porque me era impossível decidir-me a agir, mesmo que tivesse esse direito.

E, afinal, por quê? É a esse respeito que eu queria dizer-vos algumas palavras.

 

III


Como as coisas se passam entre aqueles que são capazes de se vingar e, em geral, de se defender?

Quando o desejo de vingança se apodera de seu espírito, não há lugar neles senão para esse desejo. Precipitam-se para a frente sem se desviarem, cornos abaixados, como touros furiosos, e não se detêm na carreira senão quando se encontram diante de um muro. A propósito, diante de um muro, esses senhores, isto é, as pessoas simples e espontâneas, os homens de ação, se apagam e cedem com toda a sinceridade. Para eles esse muro não é de maneira alguma o que é para nós outros, os que pensamos, e, por consequência, não agimos: quer dizer, uma escusa; não é de modo algum, a seus olhos, um pretexto cômodo para arrepiar caminho, pretexto no qual nós outros não acreditamos geralmente, mas do qual nos aproveitamos com alegria. Não, eles, eles cedem de todo o coração. O muro é a seus olhos um apaziguamento; oferece-lhes uma solução moral, definitiva, direi talvez mesmo mística. Mas tornaremos a falar ainda desse muro.

Pois bem, é precisamente esse homem simples e espontâneo que considero o homem normal por excelência, no qual pensava nossa terna mãe Natureza quando nos fazia amavelmente nascer sobre a terra. Invejo esse homem. Não nego: ele é estúpido. Mas que sabeis a esse respeito? É possível que o homem normal deva ser burro. E possível mesmo que isso seja muito belo. E essa suposição me parece tanto mais justificada quanto, se tomarmos a antítese do homem normal, isto é, o homem com a consciência refinada, o homem saído não do seio da natureza, mas de um alambique (é quase misticismo, senhores, mas estou inclinado também a essa suspeita), vê-se que esse homem alambicado se apaga por vezes a tal ponto diante da sua antítese e lhe cede que, malgrado todo o refinamento da sua consciência, acontece-lhe não mais se considerar senão tão pequeno como um rato. Será talvez um rato extremamente clarividente, mas nem por isso é menos um rato, e não um homem, enquanto que o outro é bem um homem; em consequência... etc., etc. Mas o pior é que ele se considera a si mesmo um ratinho, ele mesmo! Ninguém, com efeito, exige dele essa confissão. E isso é muito importante.

Vejamos então um pouco esse ratinho em ação. Ele também foi ofendido, por exemplo (ele se sente quase continuamente ofendido), e pretende se vingar. É possível que acumule em si mais raiva ainda que o homem da natureza e da verdade. O desejo desprezível e mesquinho de pagar ao seu ofensor o mal com o mal o domina, talvez ainda mais violentamente do que domina o homem da natureza e da verdade, porque este, em sua rudeza natural, considera sua vingança uma ação perfeitamente justa, enquanto o ratinho não lhe pode admitir a justiça, por causa de sua consciência mais clarividente. Mas eis-nos enfim chegados ao ato mesmo, à vingança. Em acréscimo à vilania inicial, o desgraçado ratinho conseguiu acumular em torno de si, sob a forma de dúvidas e hesitações, tantas outras vilanias, à primeira indagação ajuntou tantas outras, completamente insolúveis, que, por mais que faça, criou em torno de si um atoleiro fatal, um lodaçal fedorento, um charco de lama, formado de suas hesitações, de suas suspeitas, de sua agitação, de todos os escarros que fazem chover sobre ele os homens de ação que o cercam, o julgam, o aconselham e dele riem a bandeiras despregadas.

Não lhe resta então mais nada a fazer, evidentemente, que abandonar tudo, simulando desprezo, e desaparecer vergonhosamente no seu buraco. E lá, num sujo e lamacento subterrâneo, nosso ratinho, insultado, batido e escarnecido, lentamente mergulha na sua raiva fria, envenenada e sobretudo inesgotável. Durante quarenta anos ele se lembrará do insulto sofrido, em todos os seus pormenores mais vergonhosos, e acrescentando-lhe de cada vez outros mais vergonhosos ainda, excitando-se malvadamente, atiçando-lhe a imaginação. Ele próprio terá vergonha, mas evocará todas as minúcias, passará em revista uma a uma todas as circunstâncias, inventará mesmo outras, sob o pretexto de que elas teriam podido acontecer, e não perdoará nada.

Talvez mesmo tente se vingar, mas em segredo, em pequenas doses, incógnito, sem nenhuma confiança nem em seu direito nem no sucesso da sua vingança, e sabendo muito bem que suas tentativas de vingança o farão sofrer muito mais a ele mesmo do que àquele contra o qual são dirigidas, e que nem sequer provavelmente as notará. No seu leito de morte, ele se recordará de novo e aí reunirá os proveitos acumulados, e então... Mas é precisamente essa mistura abominável e gelada de desespero e de esperança, é precisamente esse sepultamento voluntário, e essa existência de emparedado vivo, essa ausência, claramente percebida, mas sempre duvidosa, de toda solução, é esse vínculo de desejos insatisfeitos e enfurnados, de decisões febris tomadas para a eternidade, mas imediatamente seguidas de remorsos, é isso precisamente o que segrega essa volúpia estranha de que falava antes. Ela é tão sutil, às vezes escapa a tal ponto à consciência que as pessoas um tanto medíocres — ou mesmo aquelas que têm simplesmente os nervos sólidos — nada percebem. “Tampouco compreenderão”, ajuntareis talvez zombeteiramente, “aqueles que nunca foram estapeados.” E vós me fareis polidamente entender assim que recebi uma bofetada e que falo com conhecimento de causa. Aposto que o pensastes. Mas tranquilizai-vos, senhores, não fui esbofeteado, e, de resto, o que possais pensar a esse respeito me é completamente indiferente. Talvez seja eu quem lamente ter distribuído pouquíssimos bofetões em minha existência. Mas basta! Nem mais uma palavra sobre esse assunto, por mais interessante que seja para vós!

Continuo então tranquilamente a respeito das pessoas de nervos sólidos que não saboreiam certas volúpias sutis. Se bem que esses senhores deem mugidos como touros em certos casos, se bem que isso seja muito honroso para eles, entretanto, como eu disse, diante do impossível eles cedem, apagam-se. Impossibilidade! Portanto, muralha de pedra. Mas que muralha é essa? São as leis naturais evidentemente, os resultados das ciências exatas, as matemáticas. Se vos demonstram, por exemplo, que descendeis do macaco, inútil fazer cara feia! Deveis aceitá-lo. Se vos provam que uma só gota de vossa própria gordura vos deve ser mais cara que cem mil dos vossos semelhantes, e que é por isso que desabrocham todas as virtudes, todas as obrigações e outras fantasias e preconceitos, não há nada a fazer, deveis aceitá-lo, porque duas vezes dois são quatro; é da força das matemáticas. Tentai um pouco discutir![ 03 ]

“Perdão!, exclamarão, vós não podeis protestar: duas vezes dois são quatro. A natureza não se importa com as vossas pretensões; ela não se preocupa com os vossos desejos e se suas leis não vos convêm, pouco se lhe dá. Sois obrigado a aceitá-la tal como é, assim como todas as consequências. Um muro é um muro...” etc., etc. Mas que me importam, meu Deus!, as leis da natureza e a aritmética, se, por uma razão ou por outra, essas leis e este “duas vezes dois quatro” não me agradam? Não poderei evidentemente quebrar esse muro com a cabeça, se minhas forças não são suficientes; mas recuso-me a me humilhar diante desse obstáculo, pela única razão de que é um muro de pedra e que minhas forças são insuficientes!

Como se esse muro pudesse me trazer um apaziguamento qualquer, como se alguém se pudesse reconciliar com o impossível pela única razão de ter sido estabelecido “dois e dois serem quatro”. Oh! O mais absurdo de todos os absurdos!

Quanto é mais penoso compreender tudo, tomar consciência de todas as impossibilidades, de todos os muros de pedra; porém não se humilhar diante de nenhuma dessas impossibilidades, diante de nenhuma dessas muralhas se isso te repugna, chegar, seguindo as deduções lógicas mais inelutáveis, às conclusões mais desesperadoras, no tocante a esse tema eterno de tua parte de responsabilidade nessa muralha de pedra, se bem que esteja claro até a evidência que tu não estás aqui para nada, e em consequência, mergulhares silenciosamente, mas rangendo deliciosamente os dentes, na tua inércia, pensando que não podes mesmo te revoltar contra seja o que for, porque não há ninguém em suma, porque isto não é senão uma farsa, senão uma falcatrua, porque é uma trapalhada, não se sabe o quê nem se sabe quem, porém que, malgrado todas estas velhacadas, malgrado esta ignorância, tu sofres, e tanto mais quanto menos compreendes.

 

IV


“Ah! Ah! Ah! Se é assim, você chegará a descobrir uma certa volúpia até na dor de dentes!”, exclamais vós, rindo.

— Mas, sim, responderei; há uma volúpia na dor de dentes: tive dor de dentes um mês inteiro; sei o que digo. Não se sofre em silêncio, neste caso; geme-se. Mas a esses gemidos falta franqueza; há neles certa malignidade, e tudo está ali, precisamente. Esses gemidos exprimem a volúpia daquele que sofre; se a doença não lhe trouxesse um certo prazer, ele cessaria de se queixar. É um exemplo excelente, senhores, e vou desenvolvê-lo.

Esses gemidos exprimem, primeiramente, a consciência tão humilhante da perfeita inutilidade de vosso sofrimento, sua legalidade do ponto de vista da natureza, sobre a qual escarrais, evidentemente, mas que vos faz sofrer, permanecendo perfeitamente impassível. Significam também que vós compreendeis que o inimigo não existe, mas que a dor está lá, mesmo assim, e que, com todos os vos-
sos Wagenheim, sois o escravo de vossos dentes: quando calhar, vossos
dentes cessarão de doer; mas, se foi decidido de outra maneira, eles vos farão ainda sofrer durante três meses. E, se vós recusais a vos submeter e protestais apesar de tudo, não vos resta outro meio de vos consolardes senão o de vos esbofeteardes e de quebrardes os punhos contra a parede. Pois bem! São precisamente essas ofensas sangrentas, essas chalaças, que se permite não se sabe quem, são elas que suscitam esta sensação de prazer, a qual atinge por vezes a suprema volúpia.

Eu vos suplico, senhores, prestai atenção uma vez aos gemidos de um homem culto do século XIX que sofre dos dentes há dois ou três dias, quando ele se põe a gemer de modo diferente do primeiro dia, isto é, não unicamente porque tem uma dor, não como um grosseiro camponês, mas como um ser instruído que se pôs em contato com a civilização europeia, como um homem “desligado do solo natal e dos princípios nacionais”, como se diz hoje em dia.[ 04 ] Seus gemidos se fazem maus, raivosos e não cessam mais, nem de dia nem de noite. Ele próprio sente muito bem, entretanto, que não lhe são de nenhuma utilidade. Melhor que ninguém, sabe que irrita os que o rodeiam e os tortura, e se tortura a si mesmo, sem proveito nenhum. Sabe que o público e a família, diante da qual se debate, não experimentam mais que desgosto com suas queixas, não mais acreditam nelas, e compreendem que poderia gemer de outra maneira, mais simplesmente, sem todos esses trinados, sem todas essas atitudes, e que ele exagera por malícia e por malvadez... Pois bem! Aí está! É justamente nessa humilhação claramente vista que jaz a volúpia. “Ah! Eu vos desoriento, dilacero-vos o coração, impeço de dormir toda a casa! Pois bem! Tanto melhor! Não durmais então! Convencei-vos de que tenho dor de dentes! Não sou mais para vós esse herói que pretendia ser; não passo de um pobre poltrão, de um patife! Tanto melhor! Estou feliz, mesmo que me tenhais adivinhado enfim! Meus miseráveis gemidos vos são penosos de ouvir? Tanto pior! Eu vos lançarei numa roda-viva mais bela ainda!...”

Continuais a não compreender, senhores? — Sim, para poder apanhar todas as nuanças dessa volúpia sensual, é preciso que vossa consciência atinja uma grande profundidade. Rides? Sou muito feliz. Minhas brincadeiras, senhores, são de muito mau gosto, certamente; são embrulhadas e soam falso. Tudo isto provém de que eu não me respeito; mas aquele que se conhece pode se estimar, por pouco que seja?

 

V


É possível verdadeiramente sentir ainda algum respeito por si mesmo, aquele que se dedicou a descobrir uma certa volúpia na consciência da sua própria humilhação? Isto que digo não é de modo algum ditado por insípido remorso. E, em geral, detesto dizer: “Perdoe-me, papai, não o farei nunca mais!” Não porque seja incapaz de pronunciar estas palavras, mas, talvez muito ao contrário, porque sou capaz demais!

E, como um fato expresso, eu me precipitava para a frente precisamente quando não estava absolutamente para nada no negócio. Era o que havia de mais repugnante. E com isto eu me enternecia, confessava-me, chorava e, por fim, naturalmente, enganava-me a mim mesmo, não dissimulando, entretanto: era meu coração que me pregava estas partidas de mau gosto.

Neste caso nem sequer nos podíamos queixar das leis da natureza, embora essas leis me tivessem feito sofrer numerosos vexames no curso da minha existência. É penoso recordar tudo isto, e, de resto, naquele momento, era muito penoso também. Com efeito, um minuto mais, e convenço-me raivosamente de que tudo isto não é senão mentira, mentira ignóbil, infame comédia — esta contrição, este enternecimento, estes juramentos de vida nova! Vós me perguntareis por que me torturava, por que me deslocava assim? Resposta: porque me aborrecia demais permanecer de braços cruzados; eis aí por que me entreguei a essas contorções. Era assim, asseguro. Observai bem, senhores, e verificareis então que as coisas se passam precisamente assim. Eu imaginava aventuras e criava para mim uma existência fantástica para viver de um modo ou de outro. Quantas vezes, por exemplo, cheguei a me ofender, por motivos absurdos, de propósito: sabes bem, tu mesmo, que não há por que se zangar, e que te excitas a frio, mas te aqueces a tal ponto que chegas finalmente a te
encolerizar sinceramente.

Tive sempre o gosto por estas histórias. Tanto e tão bem que finalmente perdi todo poder sobre mim mesmo. Uma vez, duas vezes mesmo, quis me forçar a me apaixonar. Sofri mesmo, senhores, garanto. Não se acredita nesse sofrimento, no fundo da alma, ri-se dele, quase, mas sofre-se verdadeiramente, de maneira muito real; fica-se com ciúme, fora de si... E a causa de tudo isto é o tédio, meus senhores; a inércia nos esmaga. O fundo legítimo, o fruto natural da consciência é com efeito a inércia: cruzam-se os braços com conhecimento de causa. Já falei disso. Digo e repito com insistência: todos os homens simples e sinceros, todos os homens ativos, são ativos justamente porque são obtusos e medíocres.

Como explicar isso? Eis aqui: por causa de sua estreiteza de espírito, eles tomam as causas secundárias, imediatas, pelas causas primeiras; e bem mais facilmente, bem mais rapidamente que os outros imaginam ter encontrado razões sólidas, fundamentais, para sua
atividade. Então eles se tranquilizam; ora, isto é o principal. Para poder agir, com efeito, é preciso previamente atingir uma perfeita tranquilidade e não mais conservar nenhuma dúvida. Mas como alcançar essa tranquilidade de espírito? Onde poderia eu encontrar os princípios fundamentais sobre os quais possa construir? Onde está minha base? Onde iria procurá-la?

Excito-me pensando. Por outras palavras, toda a causa em mim arrasta imediatamente uma outra após ela, ainda mais profunda, mais fundamental, e assim em seguida, até o infinito. Tal é a essência de todo pensamento, de toda consciência. Encontramo-nos então diante das leis da natureza. E o resultado? É sempre o mesmo, lembrai-vos! Falei-vos antes em vingança (certamente não penetrastes muito bem a coisa). Diz-se: o homem se vinga porque considera que isso é justo. Encontra então o princípio fundamental que procurava: é a justiça. Sente-se então completamente apaziguado e vinga-se com toda a tranquilidade e com pleno sucesso, estando persuadido de que cumpre uma ação justa e honesta. Ora, quanto a mim, eu não vejo nisso nada de justo nem de bom; e, se, por conseguinte, tento me vingar, é pura malvadez da minha parte. A raiva poderia evidentemente vencer todas as hesitações e seria então capaz de desempenhar com sucesso o papel dessa razão fundamental, precisamente porque ela não pode ser considerada como tal. Mas que fazer, se não sou suficientemente malvado? (Indiquei-o desde o começo.)

Minha raiva é submetida a uma espécie de decomposição química, em virtude justamente dessas mesmas malditas leis da consciência. Mal distingui o objeto do meu ódio, ei-lo que se desvanece, os motivos se dissipam, o responsável desapareceu, o insulto não é mais insulto, mas um golpe do destino, alguma coisa como uma dor de dentes, de que ninguém é culpado. E não me resta mais então outro consolo que quebrar meus punhos contra a parede. Na impossibilidade de encontrar as causas primeiras, renuncio então à minha vingança com um desdém afetado. Ah! Se a gente tentasse abandonar-se a seu sentimento, cegamente, sem reflexão alguma, sem procurar nenhuma razão, afastando para bem longe de si toda a consciência, nem que fosse por algum tempo! Seria então uma coisa muito diferente! Maldize ou adora, mas não permaneças de braços cruzados. A partir do depois de amanhã — último adiamento — tu te desprezarás de ter conscientemente te enganado a ti mesmo. Resultado final: bolha de sabão, inércia.

Ah!, senhores!, é possível que eu me considere extremamente inteligente pela única razão de que, em toda a minha vida, nunca pude começar nem acabar fosse o que fosse. Não passo pois de um tagarela, de um tagarela inofensivo, de um impertinente como nós todos. Mas que fazer, senhores, se o destino de todo homem inteligente é tagarelar, isto é, derramar água numa peneira!

 

VI


Oh! Se eu não tivesse passado de um preguiçoso! Como eu me teria respeitado a mim mesmo! Ter-me-ia respeitado precisamente porque me teria visto capaz ao menos de preguiça, porque teria possuído então ao menos uma qualidade definida, da qual estaria certo. Pergunta: quem és? Resposta: um preguiçoso! Teria sido verdadeiramente muito agradável ouvir chamar-se assim. Tu estás então definido de maneira positiva; há alguma coisa então a dizer da tua pessoa... “Um preguiçoso!” — É um título, é uma função, é uma carreira, meus senhores! Não riais disto; é assim. Teria sido, assim, por direito, membro do primeiro clube do universo e teria passado todo o meu tempo a me respeitar. Conheci um sujeito cujo orgulho era ser entendido em Laffitte.[ 05 ] Considerava essa qualidade como uma virtude muito preciosa e não duvidou dele jamais. Morreu com a consciência não somente tranquila, mas triunfante mesmo, e teve razão. Eu teria nesse caso escolhido uma carreira: teria sido um preguiçoso e um glutão; não um guloso vulgar, mas um gozador, interessando-se por “tudo que é belo e sublime”. Que pensais? Há muito tempo sonho isso. “O belo e o sublime” pesam como chumbo sobre a minha nuca desde que fiz quarenta anos. Desde que tenho quarenta anos! Mas antes? Teria sido muito diferente! Teria logo encontrado uma forma de atividade adaptada ao meu caráter: por exemplo, beber à saúde de todas as coisas “belas e
sublimes”. Teria agarrado cada ocasião de beber à glória “do belo e do sublime”, depois de ter, previamente, deixado cair uma lágrima na minha taça. Eu teria então tornado todas as coisas “belas e sublimes”; teria descoberto “o belo e o sublime”, até nas torpezas mais incontestáveis; teria derramado prantos tão abundantes, como aqueles que deixa escapar uma esponja. Um pintor, por exemplo, compôs um quadro digno de Ghê,[ 06 ] logo eu bebo à saúde desse pintor, porque amo tudo que é “belo e sublime”. Um poeta escreveu Como agradar a cada um,[ 07 ] e eu bebo depressa à saúde de cada um, porque amo “o belo e o sublime”. Isso me valerá o respeito geral; exigirei esse respeito; perseguirei com a minha cólera aquele que me recusar. Vivo pacificamente, morro solenemente. Não é admirável? Não é esquisito? Teria deixado crescer um ventre tão opulento, teria erguido para o alto um nariz tão gorduroso, teria ornado meu rosto com um queixo tão vasto, que todos ao me verem teriam exclamado: “Eis aí um ser bem real, um ser positivo!” Como quiserdes, mas é bem agradável ouvir dizer tais coisas a seu respeito em nosso século, tão essencialmente negativo.

 

VII


Mas não são senão sonhos de ouro!

Oh! Dizei-me qual foi aquele que primeiro declarou, que proclamou primeiro que o homem não comete vilanias senão porque não se apercebe de seus próprios interesses, e que se fosse esclarecido, se lhe abrissem os olhos sobre seus verdadeiros interesses, sobre seus interesses normais, cessaria imediatamente de cometer vilanias, e se tornaria no mesmo instante bom e honesto, pois, esclarecido pela ciência e compreendendo seus verdadeiros interesses, encontraria no bem sua própria vantagem? Como está entendido que ninguém pode agir conscientemente contra seu próprio interesse, o homem seria então por assim dizer colocado na necessidade de fazer o bem. Oh!, criança!, criança pura e ingênua!

Mas dar-se-á que o homem, no curso desses milhares de anos, não agiu senão segundo o seu interesse? Que faremos então desses milhões de fatos que atestam que os homens, tendo embora perfeita consciência do seu interesse, o relegam a segundo plano e enveredam por um caminho totalmente diferente, cheio de riscos e de acasos? Não são, entretanto, forçados a isso; mas parece que querem precisamente evitar a estrada que se lhes indicava, para traçar livremente, caprichosamente, uma outra, cheia de dificuldades, absurda, mal reconhecível, obscura. É que essa liberdade possui a seus olhos mais atrativos que seus próprios interesses... O interesse! Que é o interesse? Vós vos empenhais em me definir com toda a exatidão em que consiste o interesse do homem? Que direis vós se um belo dia se vem a descobrir que o interesse humano em certos casos pode ou mesmo deve consistir em desejar, não uma vantagem, mas um mal? Se é assim, se esse caso se pode apresentar, então tudo desmorona. Que pensais disto? Tal caso pode se apresentar?

Vós rides! Ride, senhores, mas respondei! Os interesses humanos estão enumerados com exatidão? Será que não existem alguns que não entram em nenhuma das vossas classificações e não podem aí encontrar lugar? Com efeito, tanto quanto sei, senhores, organizastes vosso registro dos interesses humanos de acordo com as cifras médias das estatísticas e das fórmulas econômico-científicas. Os interesses humanos são, pois, segundo vós, a riqueza, a tranquilidade, a liberdade, e assim por diante; de maneira que o homem que repelisse consciente e ostensivamente o vosso registro deveria ser considerado, na vossa opinião, e, aliás, também na minha, um obscurantista, um louco? Não é assim? Mas eis o que é bem estranho: como é possível que todos esses estatísticos, esses sábios, esses filantropos, deixem constantemente de lado um certo elemento, nos seus cálculos de interesses humanos? Eles não querem mesmo levá-los em conta nas suas fórmulas, cujos resultados assim falseiam. A coisa não seria difícil, entretanto; por que não completar a lista e introduzir-lhe o elemento em questão?... Mas a dificuldade provém de que esse elemento tão particular não pode encontrar lugar em nenhuma classificação e não pode se inscrever em nenhuma lista. Eis um exemplo: eu tenho um amigo... Mas fico pensando nisso! Vós o conheceis também; ele é o amigo de todo mundo.

Quando se prepara para agir, esse senhor começa por explicar-vos muito claramente, com belas e grandes frases, como lhe é preciso agir para se conformar à razão e à verdade. É pouco dizer: ele discutirá com paixão, com entusiasmo, interesses reais e normais da Humanidade; escarnecerá cegamente dos tolos que não compreendem nem seus verdadeiros interesses, nem o verdadeiro valor da virtude. Mas, um quarto de hora depois, nem mais cedo nem mais tarde, sem razão nenhuma, sob um impulso interior mais poderoso que todas as considerações do interesse, ele fará uma coisa ridícula, uma tolice qualquer, e agirá então contra todos os preceitos que tinha citado, contra a razão, contra os seus interesses, contra tudo...

Previno-vos, de resto, que meu amigo é uma personalidade coletiva e que é difícil, por consequência, condená-lo sozinho. É precisamente a isto que quero chegar, senhores! Não há uma coisa, com efeito, que nos seja a todos mais cara que os nossos interesses mais preciosos? Por outras palavras (para não violar a lógica): não existe para nós um interesse (aquele que se deixa de lado, aquele de que acabamos de falar) mais interessante que todos os outros interesses, mais precioso que todos eles, e pelo qual o homem está pronto, se for preciso, a agir contra todas as regras, isto é, contra a razão, sacrificando-lhe sua honra, sua paz, sua felicidade, todas as coisas belas e vantajosas, em uma palavra, nada senão para atingir uma coisa única que lhe é mais cara que todas as outras, que constitui a seus olhos seu interesse supremo?

— Sim — direis —, mas é ainda de interesse que se trata... — Permiti! Vamos nos explicar; não é com jogos de palavras que se pode esclarecer a questão. O que faz a singularidade dessa coisa, desse interesse, é que ele destrói todas as nossas classificações e altera todos os sistemas edificados pelos amigos do gênero humano para a felicidade do homem. Em uma palavra, é um embaraço, um obstáculo. Mas, antes de vos apontar essa coisa, quero me comprometer pessoalmente, e afirmo então com altivez que todos esses belos sistemas, que todas essas teorias que pretendem explicar à Humanidade em que consistem seus interesses normais, a fim de que ela se torne logo virtuosa e nobre no seu esforço para atingir os ditos interesses, declaro que tudo isso não passa de logística.[ 08 ] Sim, pura logística! Crer que a renovação do gênero humano possa realizar-se fazendo-o conhecer seus verdadeiros interesses equivale, no meu modo de pensar, a admitir com Buckle[ 09 ] que a civilização suaviza o homem, que se torna cada vez menos sanguinário, menos guerreiro. Buckle chegou a esse resultado muito logicamente, creio. Mas o homem nutre tal paixão pelos sistemas, pelas deduções abstratas, que está pronto a desfigurar conscientemente a verdade, pronto a fechar os olhos e tapar os ouvidos diante da verdade, tudo para justificar sua lógica.

Tomo este exemplo porque é convincente. Olhai pois em torno de vós! O sangue corre em borbotões, alegremente mesmo, como champanhe. Vede nosso século XIX, no qual viveu Buckle! Vede Napoleão, o outro, o grande, e o de hoje! Vede a América do Norte e sua união, estabelecida para a eternidade! Vede enfim esse caricatural Schleswig-Holstein. Então em que é que a civilização nos adoça? A civilização não faz mais que desenvolver em nós a diversidade das sensações... Nada mais. E, graças ao desenvolvimento dessa diversidade, é muito possível que o homem acabe por descobrir uma certa volúpia no sangue. Isto aliás já aconteceu.

Notastes já que os sanguinários mais refinados foram sempre senhores muito civilizados, junto dos quais todos esses Átila, todos esses Stenka Razine fariam uma figura bem mesquinha. Se esses senhores se fazem notar menos, é que se encontram mais frequentemente, e estamos habituados a isso. Mas se a civilização não tornou o homem mais sanguinário, tornou-o sem dúvida mais sordidamente, mais covardemente sanguinário. Antigamente, o homem considerava que tinha o direito de derramar sangue, e era com a consciência bem tranquila que destruía o que bem lhe parecia. Hoje, embora considerando a efusão de sangue uma ação condenável, nem por isso deixamos de matar, e mais frequentemente ainda do que antes. Isto vale mais? Decidi vós mesmos. Diz-se que Cleópatra (desculpai este exemplo tirado da História romana) divertia-se em espetar agulhas no seio das escravas e experimentava grande prazer com seus gritos e contorções. Dir-me-eis que isso se passava numa época relativamente bárbara, que nosso século é bárbaro também, pois continuam a espetar agulhas na carne, que o homem, se bem que tenha adquirido uma compreensão mais clara das coisas que naqueles recuados tempos, não pôde ainda se habituar a seguir as normas da razão e da ciência. Mas estais certos, não obstante, que ele se habituará quando se desfizer completamente de certas tendências ruins, e quando o senso comum e a ciência tiverem completamente reeducado a natureza humana, e a tiverem orientado para um caminho normal. Estais certos de que então o homem deixará de se enganar deliberadamente e se verá por assim dizer na impossibilidade de querer opor sua vontade aos seus interesses normais.

Mas há mais ainda: então, dizeis, a ciência ensinará ao homem (mas, na minha opinião, isto já é um luxo supérfluo) que ele nunca teve vontade, nem caprichos, e que não passa, em suma, de uma tecla de piano, de um pedal de órgão; o que realiza, por conseguinte, realiza-o, não segundo sua vontade, mas conforme as leis da natureza. Basta pois descobrir essas leis e o homem então não poderá mais ser considerado responsável por suas ações, e a vida se lhe tornará extremamente fácil. Todas as ações humanas poderão ser evidentemente calculadas matematicamente, de acordo com essas leis, como se faz para os logaritmos, até o centésimo milésimo, e serão inscritas nas efemérides, ou far-se-ão livros estimáveis, no gênero dos nossos dicionários enciclopédicos, onde tudo ficará tão bem calculado e previsto que não haverá mais aventuras, nem mesmo mais ações.

Então, e sois vós quem continua a falar, ver-se-á estabelecerem-se novas relações econômicas que serão, por sua vez, fixadas com precisão matemática, que todas as dúvidas desaparecerão logo, pela simples razão de que se terão descoberto todas as soluções. Então se edificará um vasto palácio de cristal. Então veremos o Pássaro de Fogo, então...[ 10 ] Não se pode certamente garantir (sou eu que falo agora) que não será terrivelmente fastidioso (que fazer, com efeito, se tudo está calculado e fixado de antemão?); em compensação, serão todos muito sábios. Evidentemente o tédio pode ser mau conselheiro: é o tédio que nos faz enterrar agulhas de ouro na carne... Mas isto não é nada ainda. O que é mais grave (sou eu quem continua a falar) é que talvez nos acharemos então muito felizes de ter à mão agulhas de ouro: o homem é bruto, terrivelmente bruto, ou, melhor dizendo, não é tão bruto quanto ingrato, e é difícil encontrar quem seja mais ingrato que ele. Eu não teria ficado pois admirado se, no meio dessa felicidade, se levantasse de súbito um cavalheiro despojado de elegância, com o rosto “retrógrado” e escarninho, e que nos dissesse, pondo as mãos na cintura: “Pois bem, senhores! Se jogássemos por terra, de um só pontapé, toda essa felicidade tranquila, nada mais que para mandar os logaritmos ao diabo e poder recomeçar a viver segundo a nossa tola fantasia?” Isso não seria ainda nada; mas o mais terrível é que esse personagem encontraria certamente discípulos. O homem é feito assim. E tudo isso por causa de uma coisa ínfima que se poderia desprezar completamente, parece: tudo isso porque todo e qualquer homem aspira, sempre e em todas as situações, a agir segundo sua vontade e não de acordo com as prescrições da razão e do interesse; ora, vossa vontade pode e deve mesmo, por vezes (esta ideia me pertence, como propriedade particular), se opor aos vossos interesses. Minha vontade livre, meu arbítrio, meu capricho, por estapafúrdio que seja, minha fantasia sobre-excitada até a demência, eis precisamente a coisa que se põe de lado, o interesse mais precioso que não pode encontrar lugar em nenhuma de vossas classificações, e que quebra, em mil pedaços, todos os sistemas, todas as teorias.

Onde, pois, aprenderam os nossos sábios que o homem tem necessidade de não sei que vontade normal e virtuosa? Por que imaginaram eles que o homem tem aspirações após uma certa vontade ra-
cional e útil? O homem não aspira senão depois de uma vontade independente, qualquer que seja o preço e sejam quais forem os resultados. Mas só o diabo sabe o que essa vontade vale...

 

VIII


— Ah! Ah! Ah! Mas a vontade, isso é coisa que não existe! — vós me interrompeis rindo. — A ciência já conseguiu tão bem dissecar o homem que, a partir de agora, sabemos que a vontade e o que se chama de livre-arbítrio não passam de...

Permiti, senhores! Eu próprio me preparava para começar assim. Tive mesmo medo, confesso-vos; ia gritar que a vontade depende sabe o diabo de quê, e que talvez se trate de algo muito bom, mas lembrei-me da ciência e mordi a língua: foi então que me interrompestes com efeito, se se conseguir descobrir a fórmula de todos os nossos desejos, de todos os nossos caprichos, isto é, de onde provêm, de acordo com que leis se desenvolvem, como se reproduzem, para que fins tendem em tais ou tais casos etc., é provável, então, que o homem deixe logo de querer, nem sequer é provável, é certo. Que prazer haverá em não querer senão em conformidade com tábuas de cálculos? Mas isto é dizer pouco ainda: o homem cairá imediatamente na categoria de uma simples peça. Na verdade, que é um homem despojado de desejo, de vontade, senão uma peça, uma transmissão?! Que pensais disto? Examinemos pois as probabilidades: tal ou tal coisa poderá se produzir ou não?

— Hum! — dizeis. — Nossos desejos se enganam muito frequentemente, porque nos enganamos na avaliação dos nossos interesses. Acontece-nos querermos coisas ineptas porque, com a ajuda da nossa estupidez, cremos nos aproximarmos assim do que consideramos particularmente interessante. Mas quando tudo estiver explicado, quando tudo for posto em ordem e fixado de antemão (o que é muito possível, pois é ridículo, pois é estúpido crer que certas leis da natureza permanecerão indecifráveis), então, evidentemente, não haverá mais lugar para o que se chama de desejos. Se nossa vontade entra então em conflito com a nossa razão, poderemos raciocinar e não querer, porque é impossível a um ser racional desejar inépcias, contradizer conscientemente a razão e procurar prejudicar-se... E, uma vez que todos os desejos e todos os raciocínios podem ser calculados antecipadamente, porque estarão descobertas as leis do nosso suposto livre-arbítrio, tornar-se-á possível, um dia (eu não gracejo), organizar uma espécie de lista, e ter vontade, reportando-nos a ela. Admitamos que me seja provado um dia que, se eu mostrei o punho fechado a alguém, é que não podia agir de outra forma, e que devia fechar o punho precisamente assim; de que liberdade disponho eu ainda, sobretudo se sou eu próprio instruído e se possuo um diploma? Posso então calcular minha existência com trinta anos de antecedência. Em uma palavra, se isto se realizar, não teremos mais nada a fazer senão compreender. E, em geral, devemos repetir-nos sem descanso que nesse instante e precisamente nessa circunstância a natureza não se preocupa conosco de maneira nenhuma, e que é preciso aceitá-la como é, e não como a enfeita a nossa fantasia, e que se aspiramos realmente às fórmulas, às efemérides, aos alambiques, não há nada a fazer, é preciso aceitar o alambique; senão ele passará perfeitamente sem a nossa aprovação.

Sim, mas é aqui justamente que me aparece a dificuldade. Mas perdoai-me por me ter posto assim a filosofar. Não o esqueçais: tenho quarenta anos de subsolo. Permiti-me soltar as rédeas à minha fantasia. Vede, senhores, a razão é uma coisa excelente; isto é incontestável; mas a razão é a razão e não satisfaz senão a faculdade de raciocínio do homem, enquanto o desejo é a expressão da totalidade da vida, isto é, da vida humana inteira, inclusive a razão e seus escrúpulos; e, se bem que nossa vida, tal como se exprime assim, se revista frequentemente de um aspecto muito velhaco, nem por isso é menos vida, e não a extração da raiz quadrada.

Assim comigo, por exemplo: eu quero viver, naturalmente, a fim de satisfazer minha faculdade de existência em sua totalidade e não para satisfazer unicamente a minha faculdade de raciocínio, que não representa, em suma, senão a vigésima parte das forças que estão em mim. Que sabe a razão? A razão não sabe senão o que aprendeu (ela não saberá nunca outra coisa, provavelmente; e, embora isso não seja uma consolação, não o devemos dissimular), enquanto a natureza humana age com todo o seu peso, por assim dizer, com tudo que ela contém em si, consciente e inconscientemente; acontece-lhe cometer disparates, mas vive.

Suspeito, senhores, que me considerais com um certo desdém: vós me repetis que é impossível a um homem esclarecido e culto, ao homem do futuro, em uma palavra, que lhe é impossível querer deliberadamente o que for contrário aos seus interesses; é claro como as matemáticas. Estou inteiramente de acordo: sim, é matematicamente exato. Mas repito-vos pela centésima vez: existe um caso, um único, em que o homem pode deliberadamente, expressamente, rebus-
car o que lhe é desfavorável, o que lhe parece estúpido, inepto, com o único fim de se subtrair à obrigação de escolher o aproveitável, o digno. Porque essa inépcia, esse capricho, talvez seja, efetivamente, meus senhores, o que há de mais vantajoso para nós sobre a terra, sobretudo em certos casos. É possível mesmo que essa vantagem seja superior a todas as outras, mesmo quando nos é manifestamente prejudicial e contradiz as conclusões mais justas do nosso raciocínio. Conserva-nos, com efeito, o principal, o que nos é mais caro, isto é, nossa personalidade. Alguns afirmam que isso é precisamente o que temos de mais precioso. A vontade pode querer por vezes se pôr de acordo com a razão, sobretudo se não se abusa desse acordo e se dele se aproveita moderadamente. Isto pode ser útil e digno de aprovação. Mas, muito frequentemente, o mais frequente mesmo, é a vontade recusar-se obstinadamente a concordar com a razão, e então... então... Mas sabeis que isto também é extremamente útil e digno de aprovação?

Admitamos, senhores, que o homem não é um bruto. Não se pode dizer, com efeito, que ele o seja, porque, se o fosse, quem poderia então reivindicar a inteligência? Mas, se não é um bruto, é no mínimo monstruosamente ingrato, extraordinariamente ingrato. Creio mesmo que é a melhor definição que se possa dar do homem: um ser com dois pés e ingrato. Mas não é tudo ainda: esse não é ainda o seu principal defeito. Seu principal defeito é o mau caráter, que ele conservou inalterável, desde o dilúvio universal até o período schleswig-holsteiniano de nossa História. Mau caráter, e, em consequência, conduta insensata, porque se sabe há muito tempo que esta decorre daquele. Tentai, lançai um olhar pela História da Humanidade! Que vedes? É grandioso, dizeis? — Sim, bem pode ser; só o Colosso de Rodes já representa alguma coisa. E não é em vão que M. Anajevski[ 11 ] nos lembra que, segundo uns, o colosso era uma obra humana, ao passo que outros afirmavam que era o produto das forças naturais. Estareis chocados pela variedade? Sim, há nisso uma certa variedade: para disso nos convencermos, basta lançarmos uma olhadela pelos grandes uniformes civis e militares, e, se lhes ajuntarmos as pequenas fardas, perder-nos-emos completamente; nenhum historiador resistirá a isso. Monótono, direis? — É possível. Não se faz senão guerrear com efeito. Luta-se hoje, lutou-se ontem, lutar-se-á amanhã. É mesmo um pouco monótono demais, confessai!

Em uma palavra, pode-se dizer tudo da História Universal, tudo que se apresentar à imaginação mais desregrada. Mas é impossível dizer que ela é racional; equivocar-vos-eis desde a primeira sílaba. E, ademais, eis ainda o que se passa constantemente: homens aparecem, sensatos e de bons costumes, filantropos, cujo fim é levar uma existência racional e honesta, a fim de agirem pelo exemplo sobre seus semelhantes e de provar-lhes que é possível viver sabiamente. Mas que acontece, então? Sabe-se que grande número desses amantes da sabedoria acabam, mais cedo ou mais tarde, por trair suas ideias e se comprometer em escandalosas histórias.

Pois bem! Eu vos pergunto: o que se pode então esperar do homem, desse ser dotado de qualidades tão estranhas? Tentai derramar sobre ele todos os bens da terra; mergulhai-o na felicidade, tão profundamente, que não se distingam mais na superfície senão algumas bolhas de ar: satisfazei suas necessidades econômicas tão completamente que ele não tenha mais nada a fazer senão dormir, comer pães de mel e pensar nos meios de fazer durar a História Universal — pois bem!, mesmo nesse caso o homem, por pura ingratidão, por necessidade de se emporcalhar, cometerá, à guisa de agradecimento, uma vilania qualquer. Correrá até o risco de perder os seus pães de mel e procurará as inépcias mais perigosas, os absurdos menos proveitosos, só para misturar a essa sabedoria tão positiva um elemento fantástico, pernicioso. São precisamente os seus sonhos mais fantásticos, é a sua asnice mais vulgar, que ele pretenderá conservar, unicamente para provar a si mesmo (como se isso fosse verdadeiramente tão necessário) que os homens são homens e não teclas de piano, sobre as quais se dignam tocar, é verdade, as leis da natureza, que tocam de resto com tal brio que muito em breve não será possível querer seja o que for sem se referir aos calendários. E depois, mesmo que se achasse que o homem não passa realmente de uma tecla de piano, se se chegasse a lhe demonstrar matematicamente, mesmo nesse caso, ele não tomaria juízo e cometeria alguma incongruência, apenas para marcar bem sua ingratidão e perseverar no seu capricho. E, no caso em que os outros meios lhe faltassem, ele se afundaria na destruição, no caos; desencadearia não sei que males, mas não faria finalmente senão o que lhe desse na cabeça. Lançará sua maldição sobre o mundo, e, como só ao homem é dado amaldiçoar (isto é bem um privilégio seu, que o distingue muito particularmente dos outros animais), alcançará assim os seus fins, isto é, convencer-se de que é um homem e não uma peça.

Se me disserdes que o caos, as trevas, as maldições, que tudo isso pode também ser calculado de antemão, se bem que a só possibilidade desse cálculo irá paralisar o impulso do homem e que a razão triunfará, assim, uma vez mais, então eu vos confessarei que o homem só terá um meio de fazer o que lhe apraz, que é perder a razão e tornar-se completamente louco.

Isto é óbvio para mim; eu vo-lo garanto, pois parece claro que desde todos os tempos a grande preocupação do homem foi provar sem cessar a si mesmo que ele era um homem e não uma engrenagem. Com isso arriscava a pele, mas provava-o: vivia como um troglodita, mas provava-o. E como, depois de tudo isto, não pecar, como não nos felicitarmos por não estarmos ainda nessa situação e por a nossa vontade depender ainda não se sabe de quê?

Vós exclamais (se me fazeis ainda a honra de gritar) que ninguém pensa em me privar de minha vontade, que a gente só se agita para arrumar as coisas de tal maneira que, por si mesma, por sua própria iniciativa, minha vontade possa pôr-se de acordo com os meus interesses normais, com as leis naturais, com a aritmética.

Ora, vamos, senhores! Que restará da minha vontade, quando tudo estiver nas tábuas de calcular e quando não houver mais que “duas vezes dois quatro”? Duas vezes dois serão quatro sem que minha vontade se incomode com isso. A vontade quer saber de coisa bem diferente!

 

IX


Senhores, gracejo, evidentemente, e eu próprio sei que meus gracejos não são muito bons; mas, aliás, não se trata unicamente de gracejos. É
rangendo os dentes, talvez, que gracejo. Senhores, há problemas que me atormentam: ajudai-me a resolvê-los. Assim, quereis libertar o homem de seus antigos hábitos e corrigir-lhe a vontade segundo os dados da ciência e conforme o senso comum. Mas como sabeis que o homem pode e deve ser corrigido? De onde concluístes que a vontade do homem deve necessariamente ser educada? Em uma palavra: por que pensais que essa educação lhe é realmente útil? E para dizer tudo: por que estais tão firmemente persuadidos de que é sempre vantajoso para o homem não contradizer seus interesses normais, reais, garantidos pelo raciocínio e pela aritmética? Isto não é, em suma, senão uma suposição vossa. Admitamos mesmo que tal seja com efeito a lei lógica; mas será verdadeiramente a lei humana? Pensais, talvez, que sou louco, senhores? Permiti-me que me explique.

Admito: o homem é um animal essencialmente construtor, obrigado a se dirigir conscientemente para um fim qualquer; é um engenheiro. Deve, pois, constantemente traçar caminhos novos, não importa em que direções. Mas é talvez por causa disso, precisamente, que tem por vezes desejo de escapar pela tangente, precisamente porque está condenado a traçar um caminho e também porque, por estúpido que seja o homem de ação, ele adivinha por vezes que toda estrada leva sempre a alguma parte, e que não é a sua direção que importa, mas o próprio fato de que ela o conduz para um lugar qualquer, a fim de que o menino sabido não se lembre de desprezar seu ofício de engenheiro e não se abandone à preguiça, a qual é, como se sabe, a mãe de todos os vícios. É indiscutível que o homem gosta muito de construir e traçar caminhos; mas como acontece então que ele ame tão apaixonadamente a destruição e o caos? Dizei-me. Mas eu mesmo gostaria de vos dizer algumas palavras a esse respeito.

Não será que ama tanto a destruição e o caos (ele os ama às vezes, é indiscutível) porque tem instintivamente medo de atingir o fim e terminar o edifício que constrói? O que sabeis disso? Ele não ama talvez esse edifício, senão de longe, e não de perto. Apraz-lhe, talvez, construí-lo, mas não morar nele, e está pronto talvez a abandoná-lo aos animais domésticos: às formigas, aos carneiros etc. As formigas, sim, têm outros gostos; possuem nesse gênero um edifício verdadeiramente extraordinário, construído para os séculos, o formigueiro.

Foi por um formigueiro que começaram as honradas formigas e é provável que tal seja também o termo da sua carreira, o que faz honra à sua constância e ao seu senso prático. Mas o homem é um ser versátil, e é possível que, à semelhança do jogador de xadrez, não ame senão a ação mesma e não o fim a atingir. E, quem sabe? (não se pode garantir), é possível que o único fim para o qual tende a Humanidade não consista senão nesse esforço, nessa ação; ou, por outra: a vida não teria fim exterior, o qual não pode evidentemente ser senão aquele “duas vezes dois quatro”, isto é, uma fórmula. Ora, senhores, duas vezes dois quatro é um princípio de morte e não um princípio de vida. Em todo caso, o homem sempre teve medo desse “duas vezes dois quatro”, e eu também tenho.

É verdade que o homem não se ocupa senão da procura desses “duas vezes dois quatro”; atravessa oceanos, arrisca a vida em sua perseguição; mas, quanto a encontrá-los, quanto a apanhá-los realmente — juro-vos que tem medo, pois ele se dá conta de que, uma vez encontrados, nada mais tem a fazer. Depois de terminarem o trabalho e de terem recebido, os operários vão ao botequim, para acabarem a noite na cadeia; têm então a sua conta ao menos por uma semana. Enquanto o homem, que se tornará ele? Em todo caso, observa-se constantemente nele certo constrangimento, sempre que atinge um fim. Tenta aproximar-se do fim, mas, tão logo o atinge, não está mais satisfeito; e isto é verdadeiramente bem cômico. Em uma palavra: o homem é construído de uma maneira muito cômica, e tudo isto faz o efeito de um calemburgo. Mas, seja como for, “duas vezes dois quatro” é uma coisa bem insuportável. “Duas vezes dois quatro”, na minha opinião, respira impudência. “Duas ve-
zes dois quatro” nos desfigura insolentemente. De mãos nos quadris, ele se nos atravessa no caminho e nos cospe na cara. Admito que “duas vezes dois quatro” seja uma coisa excelente, mas, se é preciso louvar tudo, eu vos direi que “duas vezes dois cinco” é também às vezes uma coisinha muito encantadora.

E por que pois estais tão inabalavelmente, tão solenemente convictos de que só é necessário o normal, o positivo, o bem-estar, em uma palavra? A razão não se engana em seus juízos? É possível que o homem não ame senão o bem-estar? Não é possível que ele ame na mesma medida o sofrimento? Não é possível que o sofrimento lhe seja tão vantajoso quanto o bem-estar? O homem se põe por vezes a amar apaixonadamente o sofrimento; isso é um fato. Não há necessidade de consultar a esse propósito a História Universal. Indagai vós mesmos se unicamente sois homens, e se tendes vivido, por pouco que seja. No que toca à minha opinião pessoal, dir-vos-ei que é mesmo inconveniente só amar o bem-estar. Está bem? Está mal? Isso eu não sei, mas às vezes é agradável quebrar alguma coisa. Não é precisamente o sofrimento que defendo aqui, ou o bem-estar: é meu capricho, e insisto para que ele me seja garantido, se for preciso. Nas comédias, por exemplo, não se admitem os sofrimentos, eu sei; tampouco podemos admiti-los num palácio de cristal: há dúvida, há negação no sofrimento, mas o que seria então de um palácio de cristal do qual se pudesse duvidar? Ora, estou certo de que o homem não renunciará jamais ao verdadeiro sofrimento, isto é, à destruição e ao caos.

O sofrimento! Mas é a causa única da consciência! Eu vos declarei, é verdade, no início, que a consciência, na minha opinião, é um dos maiores males do homem; mas sei que o homem a ama e não a trocará por nenhuma satisfação, seja qual for. A consciência, por exemplo, é infinitamente superior a “duas vezes dois quatro”. Depois de “duas vezes dois”, não resta evidentemente mais nada, não somente a fazer, mas mesmo a conhecer. A única coisa que nos resta, então, é tapar nossos cinco sentidos e mergulharmos na contemplação. Com a consciência chega-se, é verdade, a um resultado idêntico, isto é, à inação, mas poder-se-á, então, pelo menos dar-lhe uma chicotada, de vez em quando, o que vivifica um pouco o espírito, apesar de tudo. É muito reacionário, mas sempre vale mais do que nada.

 

X


Credes no palácio de cristal, indestrutível, para a eternidade, ao qual não se poderá mostrar a língua, nem mostrar os punhos às escondidas. Pois bem! Eu, se desconfio do palácio de cristal, é talvez justamente porque é de cristal e indestrutível e porque não se poderá lhe mostrar a língua, mesmo às escondidas.

Vede: se em lugar de um palácio de cristal eu só disponho de um galinheiro, quando chove, eu me insinuarei talvez no galinheiro, para fugir à chuva, mas ficando-lhe embora muito agradecido por ter me preservado, não tomarei meu galinheiro por um palácio. Rides, dizeis-me que em semelhante caso palácio e galinheiro se equivalem. Sim, responderei, se se vivesse apenas para não estar molhado.

Mas que fazer, se se me meteu na cabeça que não se vive somente para isso e que, se se vive, é num palácio que é preciso se instalar? Isto é minha vontade, isto é meu desejo. Vós não conseguireis me arrancar esta vontade, senão quando tiverdes modificado meus desejos. Pois bem! Modificai-os, apresentai-me um outro fim, oferecei-me um outro ideal! Mas, enquanto espero, recuso-me a tomar um galinheiro por um palácio de cristal. É possível que o palácio de cristal não seja senão um mito, que as leis da natureza não o admitam e que eu o tenha inventado por tolice, impelido por certos hábitos irracionais da nossa geração. Mas que me importa que ele seja inadmissível! Que me importa, pois que ele existe nos meus desejos, ou, para dizer melhor, pois que existe tanto quanto existem meus desejos? Continuais a rir, penso. Ride tanto quanto vos agrade! Aceitarei todas as zombarias, mas recusar-me-ei a me declarar saciado quando ainda tenho fome; não me contentarei com um compromisso, com um zero se renovando indefinidamente, pela única razão de que está conforme as leis da natureza e existe realmente. Não admitirei que o
coroamento dos meus desejos possa ser uma casa de tijolos, com alojamentos a preço módico, arrendados por mil anos e ostentando a tabuleta do dentista Wagenheim. Destruí meus desejos, derrubai meu ideal, apresentai-me um fim melhor e eu vos seguirei. Dir-me-eis, talvez, que não vale a pena ocupardes-vos de mim; mas neste caso posso vos responder do mesmo modo. Nós discutimos seriamente, e, se não vos dig-
nardes me conceder vossa atenção, pois bem! Não vou chorar por isso. Eu tenho meu subsolo.

Mas, enquanto existo, enquanto desejo, que minhas mãos sequem se levo um tijolinho que seja a essa casa! Não me digais que eu mesmo renunciei cedo ao palácio de cristal, pelo único motivo de não lhe poder mostrar a língua. Se falei assim, não é que eu goste tanto de mostrar a língua. Acontece porém que, e é isto precisamente que me irrita, de todos os vossos edifícios não há um ao qual não se possa mostrar a língua. Ao contrário, eu faria cortar minha língua, por gratidão, se se arranjassem as coisas de tal maneira que eu não tivesse mais desejo de a mostrar. Que me importa que as coisas não possam se arranjar assim e que seja preciso contentarmo-nos com alojamentos a preços módicos! Por que tenho eu tais desejos? Não sou feito assim, senão para poder verificar que essa constituição não é senão uma brincadeira de mau gosto? É esse verdadeiramente o único fim? — Não o admito.

De resto, sabeis o que vou dizer-vos? Estou persuadido de que nós outros, homens do subsolo, devemos ser mantidos na trela. O homem do subsolo é capaz de permanecer silencioso no seu subsolo durante quarenta anos; mas, se sai do seu buraco, ele desabafa, e então fala, fala, fala...

 

XI


O fim dos fins, senhores, é não fazer nada, absolutamente nada. A inércia contemplativa é preferível seja ao que for. Assim pois, viva o subsolo! Se bem que eu tenha dito antes que invejava o homem normal até a derradeira gota da minha bílis, quando o vejo tal qual é, renuncio ao ser normal (não cessando todavia de ter inveja dele). Não! Não! Apesar de tudo o subsolo vale mais. Lá ao menos se pode... Ah! Eis que minto de novo! Minto porque sei, tão claramente quanto duas vezes dois são quatro, que não é o subsolo que vale mais, mas algo muito diferente a que aspiro, mas que não posso descobrir. Para o diabo o subsolo!

Se eu pudesse crer ao menos numa só palavra do que escrevo aqui! Juro-vos, senhores, que não creio em uma só palavra, em uma única e miserável palavrinha! Ou, melhor dizendo: creio, talvez, mas sinto no mesmo momento, suspeito, não sei por quê, que minto descaradamente.

— Mas, nesse caso, por que escreveu tudo isto? — perguntareis certamente.

Que teríeis dito se eu vos tivesse encerrado durante quarenta anos, sem fazer nada, e se, decorrido esse tempo, eu fosse visitar-vos no vosso subsolo para verificar no que vos tínheis tornado? Bem que eu gostaria de vos ver lá! Pode-se deixar durante quarenta anos um homem só e sem ocupação?

— Mas não é vergonhoso, não é humilhante! — me direis talvez, meneando a cabeça, com desprezo. — Você tem sede de vida, mas quer resolver as questões vitais por meio de mal-entendidos lógicos. E que obstinação! Que impudência com isso! — Mas tem medo, apesar de tudo. Você diz inépcias, mas sente-se feliz com elas. Diz insolências, mas tem medo e se desculpa. Declara que não receia ninguém, mas busca as nossas boas graças. Você nos assegura que range os dentes, mas graceja ao mesmo tempo, para nos fazer rir. Sabe que as suas sentenças não valem nada, mas parece muito satisfeito com a sua literatura. É possível que você tenha sofrido, mas não tem nenhum respeito pelo seu sofrimento. Há certa verdade em suas palavras, mas falta-lhes pudor. Sob a ação da vaidade mais mesquinha, você traz a sua verdade para a praça pública, expõe-na no mercado, para alvo de chacota. Você tem alguma coisa a dizer, mas o temor o faz escamotear a última palavra, pois é insolente, mas não audaz. Gaba a sua consciência, mas não é capaz senão de hesitação porque, embora sua inteligência trabalhe, seu coração está emporcalhado pela libertinagem; ora, se o coração não é puro, a consciência não pode ser clarividente, nem completa. E como você é importuno, como é molesto! Que palhaçada, a sua! Mentira tudo isso! Mentira! Mentira!

Todas estas palavras fui eu quem as disse, evidentemente. Elas também provêm do subsolo. Durante quarenta anos, prestei atenção por uma pequena fenda a esses discursos. Eu próprio os compus, pois não tinha outra coisa a fazer. Por isso foi-me fácil decorá-los e imprimir-lhes uma forma literária.

Mas, pudestes crer, verdadeiramente, que eu ia imprimir tudo isto e vo-lo dar para ler? E eis ainda o que não compreendo: por que me dirijo a vós, chamando-vos de “senhores”, como se fôsseis leitores meus? Não se publicam, não se dão a ler a ninguém as confidências que eu me preparo para fazer aqui. Eu, em todo caso, não sou suficientemente forte para agir assim, e, de resto, não vejo a necessidade disso. Mas, vede, veio-me uma fantasia, e quero realizá-la custe o que custar. Eis do que se trata:

Entre as lembranças que cada um de nós possui, há algumas que não contamos senão aos nossos amigos. Há outras ainda que não confessaremos nem mesmo aos nossos amigos, que não repetiremos senão a nós mesmos, e, aliás, sob o signo do segredo. Mas existem enfim coisas que o homem não consente nem em confessar a si mesmo. No curso de sua existência, todo homem honesto acumulou dessas lembranças suficientemente. Direi mesmo que seu número é tanto mais importante quanto o homem é mais honesto. Eu, em todo caso, não faz muito tempo que me decidi a me lembrar de certas antigas aventuras minhas; até aqui, evitei-as, e não sem um tanto de inquietação. Ora, agora, quando as evoco e quero mesmo anotá-las, agora tenho a prova: é possível ser franco e sincero, ao menos cara a cara consigo mesmo, e poder-se-á dizer toda a verdade? Observarei a este propósito que Heine assegura que não podem existir autobiografias exatas, e que o homem mente sempre, quando fala de si mesmo. Rousseau, com seu ponto de vista, certamente nos enganou nas suas Confissões e mesmo deliberadamente, por vaidade. Estou certo de que Heine tem razão: compreendo muito bem que nos possamos sobrecarregar de crimes abomináveis, apenas por vaidade, e compreendo também o que pode ser esse sentimento. Mas Heine tinha em vista as confissões públicas; ora, eu não escrevo senão para mim sozinho e declaro de uma vez por todas que, se pareço dirigir-me ao leitor, é simplesmente um processo de que me sirvo para maior facilidade. Não é senão uma forma, uma forma vazia; e, quanto aos leitores, não os terei jamais. Já o declarei.

Não quero ser incomodado em nada na redação das minhas notas. Não observarei nenhuma ordem, nenhum sistema. Escreverei simplesmente o que me lembrar.

Mas vós poderíeis me pegar na palavra desde o começo e me perguntar: se é verdade que não pensa em seus leitores, por que então combina consigo mesmo — e no papel ainda! — que não observará nenhuma ordem, nenhum sistema, que registrará o que lhe passar pela cabeça etc.? Por que se explica? Por que essas desculpas?

Pois bem! Eis aí! É assim!

Há, de resto, aí, um caso psicológico interessante. É possível que eu seja muito simplesmente um covarde. Mas é possível também que imagine diante de mim um público, a fim de não perder o sentido das conveniências. É possível ter milhares desses motivos...

Mas há ainda outra coisa: por que, em suma, pus-me a escrever? Se não é para o público, não posso evocar minhas lembranças sem as lançar ao papel?

Com efeito, mas, quando estiverem fixadas no papel, adquirirão um aspecto mais solene. Isto me constrangerá, julgar-me-ei melhor e meu estilo ganhará. Demais, é possível que isto me traga certo consolo. Assim, hoje, estou particularmente oprimido por uma lembrança longínqua; surgiu em mim muito nitidamente há alguns dias e, desde então, me persegue sem tréguas, como um desses motivos musicais que não pretendem vos largar. Ora, é preciso absolutamente que eu me desembarace dela. Tenho centenas de recordações desse gênero; mas uma delas às vezes desperta de súbito e me agarra pela garganta. Eu imagino, não sei mesmo por quê, que, se a registrar, ficarei livre. Por que não tentaria?

E depois, enfim, eu me aborreço e nunca faço nada. Escrever as lembranças é um trabalho. Diz-se que o trabalho torna o homem bom e honesto. É então uma oportunidade que se me oferece...


A propósito da neve fundida

1ª história

 

Quando o ardor da minha palavra persuasiva

do abismo obscuro do erro retirou tua alma,

profundamente degradada,

e quando, cheia de uma dor atroz,

torcendo os braços, maldisseste o vício,

o vício que te havia fascinado,

quando a tua consciência castigando,

à existência passada renunciaste,

e escondendo em tuas mãos teu rosto,

de repente,

cheia de horror e de vergonha,

tu choraste...

Nekrássov


Eu não tinha mais que 24 anos nessa época. Minha vida era já então o que é hoje: sombria, desordenada e ferozmente solitária. Não tinha relações e evitava mesmo falar fosse com quem fosse, não pensando senão em me afundar na minha toca. Durante as horas de expediente, na chancelaria, tratava de não levantar os olhos para ninguém; mas notava perfeitamente que meus colegas me consideravam um original e mesmo — parecia-me adivinhá-lo também — olhavam-me com certa antipatia. Às vezes eu me perguntava: por que sou eu o único a imaginar ser olhado com repulsa? Um de nossos funcionários mostrava um rosto hediondo, todo picado das bexigas; dir-se-ia um bandido. Se esse rosto indecente fosse o meu, não teria sequer ousado me mostrar às pessoas. O uniforme de um outro estava em tal estado que se sentia o mau cheiro assim que nos chegávamos perto dele. Ora, nenhum desses senhores parecia envergonhado, nem de seu rosto, nem de seu uniforme, nem do seu caráter. Não suspeitavam que se pudesse olhar para eles com aversão. De resto, mesmo que o tivessem imaginado, ter-lhes-ia sido completamente indiferente, a menos que se tratasse de seus chefes.

Agora vejo que, impelido por uma vaidade desmesurada e exigindo demasiado de mim mesmo, considerava-me frequentemente com uma espécie de descontentamento irritado que atingia às vezes a aversão. Foi assim que cheguei a me persuadir de que os outros me olhavam com os mesmos olhos. Eu detestava o meu rosto, por exemplo. Achava-o ignóbil e suspeitava mesmo que tinha não sei que expressão covarde e vil. E era justamente por causa disso que, ao entrar pela manhã em nossa chancelaria, eu fazia um doloroso esforço para conservar um aspecto independente; temendo que me suspeitassem de covardia, cuidava de dar ao meu rosto uma expressão tanto quanto possível distinta. “Meu rosto não é belo”, dizia-me, “é preciso então que seja ao menos distinto, expressivo, e sobretudo muito inteligente.” E eu sabia, estava dolorosamente certo, que nunca meu rosto chegaria a refletir essas admiráveis coisas. Mas o que era horrível é que eu o achava muito simplesmente estúpido. Ora, ter-me-ia contentado finalmente com a inteligência. Teria consentido mesmo numa expressão vil, contanto que ela parecesse extremamente inteligente.

Eu detestava naturalmente todos os funcionários de nossa chancelaria, do primeiro ao último, e os desprezava a todos; mas, ao mesmo tempo, acho que os temia. Acontecia-me até colocá-los mais alto do que eu. Comigo, estas coisas sempre se dão subitamente: ora desprezo as pessoas, ora as coloco num trono. Um homem honesto e culto só pode ser vaidoso com a condição de ser infinitamente exigente consigo mesmo e de se desprezar às vezes até o ódio. Mas eu, quaisquer que fossem meus sentimentos de desprezo e de respeito, baixava sempre os olhos diante dos outros. Tentava mesmo, de vez em quando, algumas experiências: seria capaz de suportar o olhar deste ou daquele? Ora, acontecia que eu era sempre obrigado a baixar os olhos. Isto me atormentava até a loucura.

Tinha também um temor doentio de parecer ridículo, e era precisamente por isso que acatava servilmente a rotina em tudo que concernia à vida exterior; seguia amorosamente o sulco da existência comum e admirava-me das menores veleidades de excentricidade que reconhecia em mim. Mas como teria podido resistir? Minha inteligência era doentiamente desenvolvida, como deve sê-lo a inteligência dos homens do nosso tempo. Quanto a eles, eram todos estúpidos e se pareciam uns com os outros como carneiros. Se eu era o único a me considerar um poltrão, um escravo, era talvez justamente porque minha inteligência era mais desenvolvida do que a deles.

Mas não era simples ilusão de minha parte: eu era com efeito um covarde, um escravo. Digo isto sem sentir o menor constrangimento. Todo homem honesto em nossa época é necessariamente um covarde, um escravo. Tal é o seu estado normal: disso estou profundamente persuadido. Ele é feito e talhado para isso. E não se trata absolutamente de um fato peculiar à nossa época, dependente de um concurso de circunstâncias especiais: o homem honesto sempre foi um covarde e um escravo. Se lhe acontece fingir-se de valente, não deve jactar-se disso porque daí a nada se porá a choramingar. Tal é a sua lei eterna. Não há senão os asnos e seus bastardos para serem valentes, aliás até um certo limite. Não merecem que se lhes preste a mínima atenção.

Uma outra circunstância ainda me atormentava sem cessar: verificava que não me parecia com ninguém e que ninguém se parecia comigo. “Eu sou sozinho, enquanto eles, eles são todos!”, dizia-me; e punha-me a refletir.

Vê-se bem, por tudo isto, que eu não passava ainda de um garoto.

Mas, às vezes, bruscamente, operava-se uma transformação. Como me era penoso voltar ao escritório! Tão penoso que me acontecia muitas vezes voltar a casa completamente doente. Mas eis que entro, de repente, em um período de ceticismo e indiferença (tudo em mim vem por períodos); eu próprio zombo de meu rigorismo e de meus desdéns; e me acuso de romantismo. Ontem ainda não queria lhes dirigir a palavra, mas hoje converso com eles, tento travar com eles amizade. Toda a minha repugnância se desvaneceu como que por encanto. Quem sabe? Talvez eu nunca a tivesse mesmo experimentado, e tudo não passasse de uma atitude livresca. Não pude até agora resolver esta questão. Certa feita cheguei mesmo a travar com eles estreitas relações. Ia vê-los; jogávamos cartas, bebíamos, conversávamos sobre cargos e promoções... Mas permiti-me abrir aqui um rápido parênteses.

Entre nós outros, russos, não se encontram geralmente desses estúpidos românticos alemães e sobretudo franceses, perdidos nos seus sonhos estrelados e a quem nada comove, abra-se embora a terra debaixo dos seus pés, ou perigue a França atrás das barricadas! Nunca mudam, nem mesmo por conveniência, e continuam a cantar seus hinos sublimes até o último dia, porque são estúpidos. Entre nós, na nossa terra russa, imbecis desses não existem, é sabido. É precisamente isto que distingue nosso país das terras estrangeiras. Não se veem pois entre nós essas naturezas ideais em estado bruto, por assim dizer. Ingenuamente convencidos que os Constanjoglo e os tio Piotr Ivanovitch[ 12 ] eram nosso ideal, os críticos e os publicistas da época anterior julgaram nossos romances tão sublimemente sonhadores quanto os da França ou da Alemanha.

Ao contrário, o caráter de nosso romântico é completamente diferente do de seus colegas estrangeiros, e nenhuma das unidades de medida europeias pode lhe convir (permiti-me empregar este termo: “romântico”, que é uma velha palavra respeitável e que toda a gente conhece). O traço dominante do nosso romântico é que ele compreende tudo, vê tudo e mesmo bem mais claramente ainda que os espíritos mais positivos. Nosso romântico não se inclinará diante da realidade, mas não a desdenhará, tampouco. Cederá se for preciso; nunca perderá de vista o fim prático, útil (uma boa pensãozinha, uma bonita condecoraçãozinha, um apartamento da coroa), que enxergará através de todos os entusiasmos, através de todos os volumes de poemas líricos.

Mas conservará ao mesmo tempo, intangível, seu ideal “do belo, do sublime”, sem que deixe ele mesmo de continuar bem resguardado, tal uma joia, para maior vantagem desse mesmo “belo” e “sublime”. Nosso romântico é um homem extremamente generoso e o maior de todos os canalhas, asseguro-vos... Isso eu mesmo sei de acordo com a minha própria experiência. Mas tudo isto não se refere senão ao romântico inteligente. Aliás, que digo? O romântico é sempre inteligente. Porém eu queria fazer notar que, se houve alguns imbecis entre os nossos românticos, esses não contam, pela excelente razão de que se transformavam desde a flor da idade em verdadeiros alemães, e acabavam por se instalar em alguma parte da Floresta Negra ou da Suíça, a fim de conservar intata sua preciosa matéria.

Assim, eu, por exemplo: desprezava muito sinceramente minhas ocupações, e se não lhes cuspia em cima é que era obrigado a ir à repartição, pois era ali que me pagavam. Fosse como fosse, eu lá ia, notai bem! O nosso romântico perderá a razão antes (o que lhe acontece aliás rarissimamente) de cuspir na sua carreira, se não se apresenta nenhuma outra. Não se poderá fazê-lo desistir, mesmo a pontapés, e, demais, se ele perde completamente a cabeça, poder-se-á metê-lo numa casa de saúde, onde fará o papel de rei da Espanha.[ 13 ]

Mas só perdem a razão os magricelas e os efeminados; enquanto um número incalculável de românticos galga as mais altas posições. A diversidade de seus talentos é extraordinária. E com que facilidade conseguem harmonizar os sentimentos e as sensações mais contraditórios! Então já eu estava ferido e consolado. É por isso que temos tantas “naturezas generosas” que conservam seu ideal até na última queda. E, se bem que não movam nem um dedo em favor desse ideal, se bem que sejam verdadeiros bandidos, continuam a ser extraordinariamente honestos na alma, e conservam o respeito do ideal, do qual falam com lágrimas na voz.

Sim, meus senhores! Não há senão a nossa terra, em que o último dos canalhas possa ser honesto em sua alma, honesto até o sublime, mas sem deixar de ser um miserável. Repito: veem-se continuamente sair das fileiras dos nossos românticos vigaristas tão hábeis (emprego a palavra “vigarista” com um sentido deficiente) e que manifestam tal senso da realidade, conhecimentos tão práticos, que seus superiores hierárquicos e o público esfregam os olhos de estupefação.

Sim, nossa diversidade e nossa generosidade são verdadeiramente extraordinárias, e Deus sabe o que sairá daí ainda e o que elas nos anunciam para o futuro! A matéria-prima não é realmente má! Que pensais, senhores? Se digo isto não é por um sentimento de patriotismo ridículo. De resto, imaginais uma vez mais que eu gracejo, estou certo. Ou, então, é o contrário: acreditais que falo seriamente. Em todo caso, essas duas opiniões me honram igualmente, senhores, e me causam igual prazer.

Mas escusai-me esta digressão.

Eu jamais conseguia, naturalmente, suportar por muito tempo relações de amizade com os colegas; deixava-os raivosamente, cessava mesmo de os cumprimentar — efeito de minha jovem inexperiência — e tudo estava acabado entre nós. Isto não me aconteceu, de resto, senão uma única vez, pois estava constantemente só.

Em casa, lia a maior parte do tempo; tentava assim extinguir sob impressões exteriores o que fervilhava constantemente em mim. As únicas impressões exteriores de que dispunha me vinham da leitura. Elas eram para mim um grande conforto, naturalmente: comoviam-me, distraíam-me, atormentavam-me; porém um momento chegava em que ficava muito fatigado. Sentia necessidade de agir: então, de repente, mergulhava na libertinagem, numa sórdida libertinagenzinha hipócrita, subterrânea. Minha irritação contínua tornava minhas paixões ardentes, lancinantes. Meus impulsos apaixonados terminavam em crises de nervos, com lágrimas e convulsões. Fora da leitura eu não tinha nenhuma distração. Nada em torno de mim que pudesse me impor um certo respeito e me atrair para si. Uma angústia vaga me submergia; experimentava uma sede histérica de contrastes, de oposições, e então me lançava na devassidão.

Não é para me desculpar que digo tudo isto... E entretanto!... Não! Minto. Eu queria precisamente me escusar. Mas é para mim que faço esta pequena observação. Não quero mentir. Dei minha palavra.

Eu me insinuava entre as mulheres à noite, às escondidas, com um sentimento de vergonha que não me largava nunca, mesmo nos instantes mais ignóbeis, e que me exasperava até à loucura. Já então minha alma trazia em si o seu subsolo. Eu tinha um medo atroz de ser encontrado e reconhecido, e ia, pois, aos lugares mais sórdidos.

Uma tarde, passando diante de um pequeno restaurante, assisti através das janelas iluminadas a uma luta de golpes de tacos de bilhar, entre jogadores, e vi que um deles foi atirado pela janela afora. Em outro momento eu me teria impressionado, mas estava em tal estado nesse instante, que experimentei um sentimento de inveja por esse senhor que tinham expulsado dessa maneira. Esse sentimento foi tão forte que entrei no restaurante e penetrei na sala de bilhar: “Quem sabe? Eu também talvez provoque uma boa briga, e consiga que me atirem pela janela?”

Eu não estava bêbado, mas que quereis? O tédio, a angústia, tornavam-me quase louco. Mas aconteceu que eu não era nem mesmo digno de ser lançado pela janela, e saí sem ter podido brigar com ninguém.

Desde o começo, com efeito, fui colocado em meu lugar, por um oficial.

Eu me mantinha junto do bilhar, e, não conhecendo nada do jogo, incomodava os jogadores. Querendo passar, o oficial me tomou pelos ombros, e sem uma explicação, sem uma palavra, empurrou-me e passou como se eu não existisse. Eu teria perdoado levar pancada, mas o que não pude suportar foi que me empurrasse em silêncio.

O diabo sabe o que eu teria dado então por uma boa disputa regular, por uma briga conveniente, literária, por assim dizer. Tinham agido comigo como um mosquito. O oficial era corpulento; eu, pequeno e franzino. Todavia, não dependia senão de mim provocar um escândalo: se eu tivesse protestado, ter-me-iam feito depressa tomar o caminho da janela. Mas refleti e preferi me esquivar, com raiva no coração.

Encontrei-me na rua, emocionado e perplexo, e voltei direito para casa. E no dia seguinte mergulhei mais timidamente ainda, mais melancolicamente, na minha pequena libertinagem; tinha lágrimas nos olhos, mas continuava. Não acrediteis, entretanto, que, se recuei diante do oficial, foi por medo. Nunca fui um medroso da alma, se bem que tivesse sempre medo da ação; mas esperai para rir! Há uma explicação para isto. Tenho explicações para todos os casos.

Oh! Se esse oficial fosse daqueles que consentem em se bater em duelo! Mas não! Era precisamente um desses senhores (ai de mim! O tipo já desapareceu há algum tempo) que preferem se servir de tacos de bilhar ou então se queixar a seus chefes, à maneira do tenente Pirogov, de Gógol.[ 14 ] Eles não se batiam em duelo, e sobretudo quando tinham contato conosco, miseráveis civis; consideravam o duelo uma inconveniência, uma moda francesa e o sinal de um estado de espírito liberal. Mas isto não os impedia, sobretudo quando eram altos e robustos, de insultar generosamente os outros.

Não foi o temor que me fez partir, mas a vaidade. Tive medo, não da estatura de meu ofensor, não das pancadas que me teria dado, não de ser expulso pela janela. Não foi a coragem física que me faltou, foi minha coragem moral que foi insuficiente. Tive medo de que todos os assistentes, a começar pelo insolente marcador e até esse empregadinho, cheio de espinhas, de pescoço gordurento, que se afanava em torno dos jogadores, que todos se pusessem a rir de mim, quando elevasse a voz para protestar e lhes falasse numa linguagem literária. Pois não se pode falar entre nós do ponto de honra, não de honra, porém precisamente do ponto de honra, senão se servindo de uma linguagem literária. Em linguagem vulgar não se discute ponto de honra. Eu estava perfeitamente certo (o romantismo, vós o vedes, não impede o senso da realidade) de que eles arrebentariam de rir e que o oficial não se contentaria em me bater, mas me obrigaria, à custa de pontapés nos rins, a dar a volta ao bilhar, e depois disto, somente, tendo talvez piedade, ele me atiraria pela janela. Comigo essa miserável história não podia evidentemente acabar senão assim.

Frequentemente, mais tarde, encontrei esse oficial na rua e o observei bem. Reconhecer-me-ia ele? Não sei. Não, provavelmente; julgo isso conforme certos indícios. Quanto a mim, examinava-o com ódio, com rancor. E isto durou... vários anos. Sim, meus senhores! Com o tempo minha raiva tornava-se mesmo mais áspera, mais intensa. Comecei, a princípio, por tomar discretamente algumas informações sobre a sua pessoa. Isto me era muito difícil, pois eu não conhecia absolutamente ninguém. Mas, uma vez, enquanto lhe seguia os passos a distância, alguém o chamou pelo nome, na rua. Foi assim que fiquei sabendo como se chamava. Uma outra vez eu o segui até sua casa e mediante dois copeques soube da porteira em que andar morava, com quem etc., em uma palavra, tudo que se pode tirar de uma porteira.

Uma bela manhã, se bem que jamais me houvesse ocupado com literatura, veio-me à ideia o desejo de descrever esse oficial em tom satírico, de o caricaturar, e de fazê-lo herói de uma novela. Mergulhei com vontade no trabalho. Esbocei meu herói sob as cores mais sombrias. Caluniei-o mesmo. Modifiquei tão pouco seu nome no começo que seus amigos teriam podido reconhecê-lo imediatamente; mas, depois de maduras reflexões, troquei-o. Enviei minha novela aos Anais da Pátria, mas a moda nesse tempo não era ainda a do gênero satírico, e meu relato não foi publicado. Fiquei muito vexado.

Eu sufocava quase de raiva, às vezes; então resolvi enfim provocar meu inimigo para um duelo. Compus uma carta muito bonita em que lhe suplicava que me desse satisfações. Para o caso em que se recusasse, eu fazia muito claramente alusão ao duelo. A carta estava tão bem torneada que se o oficial tivesse tido o menor sentimento “do belo e do sublime” ter-me-ia infalivelmente procurado, para se lançar ao meu pescoço e me oferecer sua amizade. E como isto teria sido tocante! Teríamos vivido tão felizes, tão felizes!... Sua bela presença seria suficiente para me defender contra meus inimigos, e eu, graças à minha inteligência, graças a minhas ideias, teria sobre ele uma influência enobrecedora. Quantas coisas teríamos podido fazer! Imaginai que isto se passava dois anos após o acontecimento e que meu desafio não era mais que um ridículo anacronismo, malgrado toda a habilidade que eu tinha desenvolvido para explicar e dissimular esse anacronismo. Mas, graças a Deus (hoje ainda agradeço ao céu com lágrimas de gratidão), não enviei a carta. Só a ideia do que teria acontecido, se a tivesse expedido, me dá um arrepio.

Depois, de súbito... De súbito consegui me vingar da maneira mais simples, mais genial. Tive uma ideia luminosa. Às vezes, nos dias de festa, eu ia passear na avenida Nevski e seguia, pelas quatro horas, a calçada que estava exposta ao sol. Para falar a verdade, eu não passeava; experimentava ali tormentos infinitos, humilhações e crises do fígado. Mas era justamente isto que eu procurava nesses lugares provavelmente. Semelhante a um inseto, deslizava da maneira mais odiosa entre os transeuntes, cedendo continuamente o caminho aos generais, aos oficiais da guarda, aos hussardos, às belas damas. Sentia verdadeiros espasmos no coração e arrepios no dorso, somente à ideia da miséria de minhas roupas, do aspecto baixo e vulgar que devia ter minha pessoinha agitada. Era um verdadeiro suplício, uma humilhação de todos os instantes, que provocava a consciência muito nítida de que eu não era senão uma mosca no meio dessas elegâncias, uma vil mosca, superior naturalmente a essa gente, em inteligência, em nobreza, mas constantemente ofendida, constantemente humilhada e sempre forçada a ceder.

Por que ia eu à avenida Nevski? Por que procurava esse suplício? Não sei. Mas sentia-me atraído e para ali corria cada vez que podia.

Experimentava então, já, essas crises de volúpia de que falei. Mas, depois da aventura do oficial, a tentação foi mais forte ainda. Era na avenida Nevski que o encontrava mais frequentemente; era lá que podia admirá-lo. Ele também passeava lá nos dias de festa. Cedia como eu o passo aos generais, às altas personagens, deslizava também entre eles como um peixe, mas, quando se tratava de pessoas da minha espécie, ou mesmo um pouco mais limpas, ele as esmagava, muito simplesmente: ia direito sobre elas, como se não existissem, e não lhes cedia o passo em nenhum caso. Eu me afogava em minha raiva, vendo-o vir, mas, cheio de furor, desviava-me sempre da minha rota. Sofria por não poder, mesmo na rua, me manter em pé de igualdade com ele. “Por que és sempre tu que cedes?”, perguntava-me às vezes, crispado de cólera, em plena noite. “Por que és tu? Não há regulamento a respeito. Não está inscrito em parte alguma. Compreendo que se revezem, como se faz entre as pessoas, da maneira necessária: ele cede, tu cedes também, e vós passais, estimando-vos mutuamente.” Fosse como fosse, era sempre eu que me desviava do caminho, e não ele. Nem mesmo notava a minha polidez. E eis que me acudiu uma vez ao espírito uma ideia maravilhosa: “Se eu ousasse não lhe ceder o passo quando nos encontrássemos! Não lhe ceder expressamente, ostensivamente, mesmo que ele me empurrasse! Que aconteceria?” Este pensamento audacioso se apoderou de mim a tal ponto, pouco a pouco, que não consegui mais desembaraçar-me dele. Sonhava sem cessar com esse encontro e ia ainda mais frequentemente à avenida, a fim de me representar bem claramente como agiria, quando enfim agisse. Estava eufórico. Quanto mais pensava, mais a minha ideia me parecia realizável. “Eu não o repelirei violentamente, é evidente — a alegria me tornava já melhor —, mas não o evitarei. Dar-nos-emos um encontrão, sem nos fazermos muito mal; contanto que nossos ombros se toquem, justamente o que é preciso para que as conveniências sejam observadas.”

Finalmente, minha decisão foi tomada; mas os preparativos exigiram muito tempo. Primeiro precisaria preparar-me convenientemente para essa operação, e eu devia pois me ocupar com a minha roupa. “Se houver escândalo, por exemplo (o público àquela hora é dos mais emplumados: o príncipe D..., a condessa, todos os escritores), é preciso estar bem-vestido; isto impõe respeito às pessoas, e vos coloca imediatamente aos olhos da alta sociedade no mesmo pé de igualdade com não importa quem.” Em consequência, pedi um adiantamento sobre o meu ordenado e comprei na casa Tchurkine[ 15 ] um chapéu e luvas pretas. As luvas desta cor me pareciam de melhor tom, mais corretas que as luvas cor de limão com as quais sonhei no começo, mas que tinha achado vistosas demais: “Dir-se-ia que eu queria chamar a atenção.” Renunciei pois às luvas cor de limão. Havia muito que tinha preparado uma camisa elegante com botões de marfim. Mas o estado do meu capote exigiu longos preparativos. Esse capote, em suma, não era feio demais e me mantinha suficientemente aquecido. Mas era debruado e tinha uma gola de pelo de gato como os paletós dos lacaios. Era preciso, custasse o que custasse, trocar a gola por uma de castor, como usam os oficiais. Percorri as lojas, e após algumas buscas infrutíferas desencavei, por fim, certo castor alemão que não devia ser caro demais. Se bem que o castor alemão não seja durável e tome depressa um aspecto lamentável, estando novo faz uma certa vista; ora, afinal de contas, eu não tinha necessidade dele senão para essa ocasião. Indaguei o preço: assim mesmo era elevado demais. Resolvi então vender minha gola de pelo de gato e pedir emprestada a soma que me faltava a Antone Antonovitch Sietochkin, meu chefe de serviço, um homem sossegado, porém sério e prático, e ao qual, quando de minha entrada no emprego, tinha sido calorosamente recomendado por um personagem importante.

Eu sofria terrivelmente: parecia-me vergonhoso, monstruoso, pedir dinheiro a Antone Antonovitch. Não preguei olho durante duas ou três noites. Em geral, durante todo aquele tempo, eu dormia muito pouco. Tinha febre; meu coração estava surdamente oprimido, depois, de súbito, punha-se-me a pular no peito... Ele pulava, pulava...

Antone Antonovitch demonstrou no começo algum espanto; depois fez uma careta, refletiu, e, finalmente, emprestou-me o dinheiro pedido, fazendo-me assinar um recibo, pelo qual eu lhe cedia o direito de receber o meu pagamento de duas semanas.

Tudo ficou, por fim, preparado. O bonito castor tinha tomado o lugar do vil gatão, e comecei, pouco a pouco, a firmar os alicerces da minha ação. Não podia agir desde o primeiro encontro, evidentemente; era preciso encontrar uma circunstância favorável e avançar lentamente, pacientemente. Mas, após algumas vãs tentativas, comecei a desesperar do êxito, confesso-o. Não chegávamos a nos encontrar frente a frente. Não estava eu bem preparado, entretanto? Não tinha tomado todas as precauções? Eis aí! Desta vez aqui estamos! Defrontamo-nos! Mas que vejo! Cedi-lhe a passagem de novo, e ele passou sem me dar a mínima atenção. Dirigi mesmo súplicas ao céu ao me aproximar dele, a fim de que Deus me inspirasse a decisão necessária. Uma vez que estava bem decidido a acabar com isso, não consegui senão atrapalhá-lo, pois no último instante, não estando mais que a uma distância de duas polegadas, hesitei; ele passou por cima de mim com a mais perfeita tranquilidade, e fui projetado de lado como uma bola.

Tive febre de novo naquela noite; delirei. Mas, bruscamente, esta situação se desenrolou para melhor. Na véspera à tarde, justamente, eu tinha resolvido renunciar ao meu nefasto plano e abandonar tudo. Com essa disposição de espírito, dirigi-me pela última vez para a avenida Nevski, a fim de assistir por assim dizer ao abandono do meu projeto. De súbito, não estando mais senão a três passos do meu inimigo, decidi-me. Fechei os olhos e... chocamo-nos, ombro contra ombro. Não cedi uma polegada e passamos um ao lado do outro, como iguais. Ele nem mesmo voltou a cabeça e fez cara de não ter notado nada. Mas não era senão uma atitude, estou certo disso. Estou certo disso, ainda hoje. O choque me foi mais doloroso que para ele, evidentemente: ele era mais forte. Mas não se tratava disso! Eu tinha atingido meu fim, tinha salvaguardado minha dignidade, não lhe tinha cedido um único centímetro, e o tinha obrigado a me tratar publicamente em pé de igualdade. De volta a casa, senti-me completamente vingado de minhas humilhações. Nadava em alegria. Triunfava. Cantava árias italianas.

Naturalmente, não vos descreverei o que se passou três dias depois........................................................................................

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O oficial foi transferido mais tarde, não sei para onde. Há já 14 anos que não o vejo. Que faz ele agora, o bom amigo? Quem será que ele esmaga?


2ª história

 

I


Quando meu período de devassidão chegava ao fim, eu me sentia atrozmente enojado. Então tinha remorsos; mas repelia-os: eles me davam náuseas. Pouco a pouco, entretanto, fui me habituando a eles. Ia me habituando a tudo. Ou, para falar mais exatamente: não me habituava, mas consentia em suportar benevolamente tudo
que me acontecia. Mas tinha uma saída: era evadir-me no domínio “do belo, do sublime”, em sonho, naturalmente. Sonhava loucamente, sonhava durante três meses, enterrado em meu canto, e nesses instantes, acreditai-me, não me assemelhava nem um pouco ao senhor que, na perturbação de seu coração de pombo, cosia na gola de seu capote uma pele de castor alemão. Transformava-me subitamente em herói. Não teria mesmo recebido nesse instante meu bravo tenente; não teria nem pensado nele, então.

Quais eram esses sonhos e como podia com eles me satisfazer? É-me difícil explicá-lo hoje; mas sei que ficava então plenamente satisfeito. E, de resto, esses sonhos quase me bastam, ainda agora. Eles revestiam formas particularmente doces e enleantes, logo depois de minhas crises de libertinagem, quando vinham em meio a remorsos, lágrimas, maldições e entusiasmos. Tive instantes de tal plenitude, de felicidade tão perfeita, que toda a zombaria se calava, juro! Não havia em mim senão a fé, a esperança, o amor. É que naquele tempo estava cegamente persuadido de que graças a um milagre qualquer, graças a uma circunstância exterior, todas as dificuldades desapareceriam, as muralhas cederiam e descobririam enfim um vasto campo de ação, de ação útil e bela e sobretudo prestes a ser cumprida (eu não sabia nunca o que devia ser tal ação, mas o principal a meus olhos era que ela estivesse completamente preparada). Então, apareço de súbito, à luz do dia, por pouco não monto um cavalo branco, uma coroa de louro na fronte. Não queria sequer pensar na possibilidade de um papel secundário, e é provavelmente por causa disso que na realidade eu me contentava muito pacificamente com o último. Herói ou enlameado: não havia meio-termo para mim. Foi o que me perdeu; porque, mergulhado na lama, eu me consolava sonhando que em outros instantes era um herói e o herói iluminava a lama com o seu prestígio: é proibido ao homem comum mergulhar no charco; mas o herói, esse está situado tão alto que não poderá jamais se sujar completamente; então eu posso me afundar no lodo!

O mais notável é que esses impulsos “para o belo, para o sublime” nasciam às vezes em mim durante meus acessos de devassidão, e precisamente quando tinha caído dentro da fossa. Surgiam, quais lembranças, projetando um pálido clarão. Mas eram incapazes, entretanto, de dissipar meus desejos; ao contrário, pareciam ainda excitá-los, graças ao efeito do contraste; justamente o necessário para fazer um bom molho. Este molho compunha-se de contradições, de sofrimentos, de dolorosas análises. E todos esses tormentos, grandes e pequenos, emprestavam certo sabor picante à minha devassidão e lhe conferiam mesmo certo sentido. Em uma palavra, preenchiam perfeitamente o papel de um bom molho. Tudo isto não deixava de ter alguma profundeza. Mas teria eu podido admitir uma libertinagem ordinária, a libertinagem vulgar e sincera de um pequeno escriba, e suportar pacificamente esse horror? Não, eu mantinha sempre em reserva certa maneira muito nobre de encarar as coisas.

Mas quanto amor, senhor! Quanto amor sentia palpitar em mim durante esses sonhos, quando me sabia no domínio “do belo, do sublime”! Se bem que esse amor fosse fantástico, se bem que nunca se aplicasse ao que quer que fosse de humano, ficava ele de tal maneira em mim que eu não sentia mesmo mais a necessidade dessa realização que teria sido quase um luxo inútil. Tudo se acabava muito felizmente, de resto, e eu me voltava preguiçosa e voluptuosamente para a arte, isto é, para as belas formas, completamente realizadas, tomadas de empréstimo aos poetas e romancistas, e que se adaptam facilmente a todas as necessidades, a todas as exigências. Eu, por exemplo, triunfo sobre o universo inteiro; todos se prosternam diante de mim, na poeira, e são obrigados a admirar minhas perfeições, mas eu perdoo a todos. Sendo eu poeta e cortesão, torno-me amoroso; recebo inumeráveis milhões, dos quais faço logo presente ao gênero humano, confessando diante do povo reunido em assembleia todas as minhas “ignomínias”, que não são evidentemente ignomínias vulgares, mas que contêm sempre alguma coisa “de belo, de sublime”, alguma coisa de byroniano, no gênero de Manfredo. Todos choram e
me abraçam (eles seriam imbecis se não o fizessem), e eu, descalço e faminto, vou-me a pregar ideias novas e destruo completamente os retrógrados em Austerlitz! Em seguida executa-se uma marcha: anistia geral. O Papa consente em trocar Roma pelo Brasil. Depois, baile para toda a Itália, na vila Borghese, a que se encontra no lago de Como, pois esse lago foi transportado para as cercanias de Roma, especialmente para esta ocasião. Em seguida, grande representação nos bosques etc., etc. Como se não conhecêsseis tudo isso!

Dir-me-eis que é estúpido, que é ignóbil expor agora tudo isto em público, depois das lágrimas, depois dos êxtases que eu mesmo confessei. Por que então é ignóbil, senhores? Será que imaginais verdadeiramente que eu tenha vergonha de tudo isso, e que meus sonhos sejam mais animalescos que o que vos aconteceu em toda a vossa existência, senhores? E depois, acreditai-me, certas coisas não estavam verdadeiramente tão mal-arrumadas... Mas elas se passavam no lago de Como. De resto, tendes razão: é estúpido, é ignóbil! Mas o pior é que eu me justifico diante de vós. E esta última observação é ainda mais vil. Mas basta! Poder-se-ia não terminar nunca, pois se encontraria sempre o meio de descer mais baixo.

Jamais fui capaz de sonhar assim mais de três meses consecutivos, e, para concluir, sentia sempre a necessidade irresistível de me afundar na sociedade dos meus semelhantes, o que queria dizer: visitar meu chefe de serviço, Antone Antonovitch Sietochkin. Foi a única pessoa em toda a minha existência com a qual entretive relações regulares, e isto ainda hoje me espanta. Mas eu não ia à casa dele senão quando meus sonhos me tinham transportado a tal ponto que eu devia imediatamente apertar em meus braços a Humanidade inteira; era-me necessário então para isto ter ao menos um homem bem real, um homem de carne e osso. Não se podia de resto ir à casa de Antone Antonovitch senão às terças-feiras: era seu dia de recepção, e eu devia, por consequência, adaptar minha sede de abraços precisamente àquele dia.

Antone Antonovitch morava nas Cinco-Esquinas, no quarto andar, em quatro aposentos, todos pequenos, de teto baixo, de aspecto econômico e amarelados. Tinha duas filhas e uma tia que servia o chá. Uma das filhas tinha 13 anos, a outra, 14; tinham ambas o nariz arrebitado. Intimidavam-me muito, porque não cessavam de cochichar entre si, deixando escapar frouxos de riso. O dono da casa mantinha-se habitualmente no seu gabinete de trabalho, sentado num grande divã de couro, diante de uma mesa redonda em companhia de um senhor respeitável, um funcionário qualquer do nosso ministério. Eu nunca vi lá mais de duas ou três pessoas, e sempre as mesmas. Conversava-se a respeito de adjudicações, assembleias, salários, nomeações, falava-se também de Sua Excelência, das maneiras de agradar etc. Eu tinha a paciência de permanecer junto dessas pessoas como um pedaço de pau, durante três horas, sem ousar, sem poder lhes falar, fosse do que fosse. Sentia que me tornava estúpido, transpirava, previa a paralisia. Mas isto me era muito útil, pois ao voltar a casa renunciava por uns tempos ao desejo de apertar nos braços a Humanidade inteira.

Tinha ainda uma amizade, entretanto: Simonov, um antigo colega de escola. Teria podido de resto reencontrar alguns antigos con-
discípulos em Petersburgo; mas tinha deixado de os ver e mesmo de os saudar na rua. Foi talvez mesmo a fim de os evitar e para romper com todas as lembranças da minha detestável infância que me coloquei num outro ministério. Maldição sobre essa escola, sobre esses atrozes anos de galés! Para ser breve, rompi com os meus colegas desde que terminei os estudos. Não cumprimentava mais que dois ou três. Entre eles estava precisamente Simonov, que não se distinguia em nada na escola, tinha um caráter doce e igual, mas que eu estimava por uma certa independência de caráter e por sua honestidade. Não creio mesmo que ele fosse extremamente tolo. Vivemos juntos alguns belos instantes; porém nossas boas relações não duraram muito tempo, e uma espécie de bruma as recobriu bruscamente; sua lembrança constrangia evidentemente Simonov, que temia sempre, creio, ver-me recair no nosso antigo tom. Eu suspeitava mesmo que lhe repugnava; mas, não tendo a certeza, continuava a ir à casa dele uma vez por outra.

Eis senão quando, uma quinta-feira, incapaz de suportar por mais tempo a minha solidão, e sabendo que às quintas-feiras a porta de Antone Antonovitch estava fechada, lembrei-me de Simonov. Subindo a escada que levava ao seu apartamento, no quarto andar, pensei justamente que minha presença parecia penosa a esse senhor e que fazia mal em ir à casa dele. Mas, como estas reflexões tinham geralmente por único resultado incitar-me a procurar situações equívocas, entrei sem mais refletir. Há um ano que não vinha à casa de Simonov.

 

II


Encontrei em casa dele dois dos meus antigos condiscípulos. Pareciam falar de um assunto sério. Nenhum deles pareceu prestar a menor atenção à minha entrada, o que era verdadeiramente estranho, pois não nos víamos há vários anos. Consideravam-me evidentemente alguém completamente insignificante, uma mosca. Não me tratavam assim, mesmo na escola, onde, entretanto, eu era detestado. Eu compreendia aliás que eles deviam me desprezar pelo insucesso de minha carreira, como também por causa do meu aspecto deplorável, por causa de minhas velhas roupas que, a seus olhos, eram sinal evidente de minha incapacidade e de minha situação miserável. Não esperava, todavia, um desprezo tão marcante. Quanto a Simonov, ficou muito espantado com a minha entrada. Já diversas vezes, de resto, ele tinha parecido admirado das minhas visitas. Tudo isto me perturbou; sentei-me, um tanto irritado, e pus-me a escutar o que diziam.

Discutia-se num tom muito sério, e mesmo com certa paixão, a respeito de um jantar de despedida que esses senhores queriam oferecer a um de seus colegas, Zverkov, um oficial, que partia para a província. Zverkov tinha sido também meu colega de escola e eu tinha me posto a detestá-lo, sobretudo nas classes superiores. Mesmo criança, não passava de um rapazinho polido e alegre, de quem todo mundo gostava; mas eu não o estimava, precisamente porque ele era alegre e polido. Desde o começo seus estudos não foram muito brilhantes e, com os anos, trabalhou cada vez pior. Terminou entretanto o curso com sucesso, pois era protegido. No fim dos estudos herdou uma propriedade e duzentos servos, e, como éramos quase todos pobres, passou a mostrar-se importante diante de nós. Era um ser particularmente vulgar, mas em suma um bom rapaz, apesar de pretensioso. Entre nós, na escola, apesar das formas frequentemente fantásticas e verbosas que revestiam nossos sentimentos de honra e de dignidade, todos, à parte alguns, lhe faziam a corte, o que o incitava ainda mais a tomar ares de importância. Mas se o rodeavam não era por interesse, mas simplesmente porque a natureza o tinha favorecido com seus dons. Além disso, considerava-se entre nós Zverkov um especialista em tudo que concernia à elegância e às boas maneiras. E era isso o que mais me enraivecia. Eu detestava o som agudo de sua voz cheia de suficiência, suas sutilezas, com as quais ele próprio estava sempre muito satisfeito, mas que eram estúpidas, se bem que ele fosse livre em seus ditos. Detestava seu rosto, bonito, mas atoleimado (com que sofreguidão, entretanto, eu teria trocado por esse rosto o meu, tão inteligente!), e seus modos desenvoltos, à maneira dos oficiais de 1840. Detestava-o pelo sucesso que ele contava ter entre as mulheres (ele não ousava empreender conquistas antes de ter obtido os galões de oficial; por isso, esperava-os com impaciência), e pelos duelos que ele se prometia ter. Lembro-me ainda que, rompendo uma vez meu silêncio, discuti violentamente com Zverkov, quando, falando com seus colegas de suas próximas intrigas amorosas, e chegando a um grau de euforia que o tornava semelhante a um cachorro espojando-se ao sol, declarou de repente que não deixaria escapar nenhuma das jovens camponesas do seu domínio, que esse era o direito do senhor, e que, se os camponeses ousassem protestar, ele os mandaria chicotear e dobraria os impostos desses “canalhas barbudos”. Nossos covardes o aplaudiram; agora, eu, ataquei-o violentamente, não por compaixão pelas moças e seus pais, mas simplesmente porque aquele inseto obtinha sucesso tão grande. Dessa vez, levei a melhor; mas, mesmo sendo um estúpido, Zverkov era alegre e insolente; por isso conseguiu pôr do seu lado os folgazões, e mesmo com tal sucesso, que, manda a verdade dizer, meu triunfo não foi completo: riram-se à minha custa. Mais de uma vez depois disto, ele triunfou sem malvadez, mas divertindo-se, rindo. Quanto a mim, guardava um silêncio desdenhoso. Quando terminamos nossos estudos, ele me procurou algumas vezes; não o repeli, pois isto me lisonjeava, mas logo, e muito naturalmente, nós nos separamos. Fui informado mais tarde de seus sucessos de oficial, da vida alegre que levava. Depois soube de outra coisa: sua rápida carreira. Deixou de me cumprimentar quando me encontrava na rua, e desconfiei que ele receava comprometer-se saudando um ser tão insignificante como eu. Vi-o uma vez também no teatro, na terceira frisa; usava já as insígnias de ajudante de campo. Ele se desfazia em gentilezas para com as filhas de um velho general. Mas, depois de três anos que deixei de vê-lo, estava bem envelhecido; entretanto, se bem que tivesse engordado muito, conservava o rosto bonito e as maneiras elegantes. Lá pelos trinta, via-se, ele se enrugaria completamente.

Era pois a esse Zverkov, que acabava de ser nomeado para a província, que seus colegas queriam oferecer um jantar de despedida. Não tinham deixado de estar em relações com ele, mesmo não se considerando — estou certo disto — seus iguais.

Um dos dois hóspedes de Simonov se chamava Ferfitchkin; era um russo de origem alemã, baixote, com cara de macaco; um tolo que caçoava de todo mundo, meu pior inimigo na escola, desde as classes inferiores, um fanfarrão covarde e insolente que possuía o amor-próprio mais suscetível, mas que não passava evidentemente de um joão-ninguém. Pertencia a esses admiradores de Zverkov, que lhe faziam a corte com um fim prático e muitas vezes lhe pediam dinheiro.

O outro, Trudoliubov, não tinha nada de particularmente notável. Era um militar, um latagão, de rosto frio; bastante honesto, inclinava-se entretanto diante do sucesso, fosse qual fosse, e só sabia falar em nomeações, carreira etc. Era um parente afastado de Zverkov, e, por estúpido que possa parecer, isto lhe conferia certo prestígio a nossos olhos. Considerava-me um ser insignificante, mas me tratava de maneira suportável, senão cortês.

— Pois bem! Se é a sete rublos por cabeça — declarou Trudoliubov —, isto perfará, pois que somos três, 21 rublos. Poder-se-á jantar muito razoavelmente. Quanto a Zverkov, não paga, evidentemente.

— Naturalmente, uma vez que o convidamos — aquiesceu Simonov.

— Como podem crer — interveio com um tom orgulhoso e insolente Ferfitchkin, tal qual um lacaio impudente que se vangloria das condecorações do seu amo —, como podem crer que Zverkov admita que sejamos os únicos a pagar? Ele aceitará nosso convite por delicadeza, mas nos oferecerá champanhe, seis garrafas certamente.

— É demais meia dúzia para quatro pessoas — observou Trudoliubov, que não tinha considerado senão o número das garrafas.

— Somos, pois, três; com Zverkov, quatro. 21 rublos, Hotel de Paris, amanhã às cinco horas — recapitulou Simonov, escolhido como organizador.

— Por que 21? — exclamei com certa emoção, sentindo-me até um pouco ofendido. — Se me contarem também, já não serão 21, mas 28 rublos.

Pareceu-me que, propondo-me assim, bruscamente, produziria um belo efeito e que eles seriam todos vencidos por minha generosidade e me olhariam com admiração.

— Você quer realmente ser dos nossos? — perguntou Simonov, descontente; evitava olhar-me, pois ele me conhecia de cor.

Fiquei exasperado por ele me conhecer tão bem.

— E por que não? — exclamei com voz rouca. — Parece-me que fui também seu colega, e confesso que me sinto mesmo ofendido por terem me deixado de lado.

— Mas onde teríamos podido encontrá-lo? — interveio brutalmente Trudoliubov. — Você nunca esteve em boas relações com Zverkov — acrescentou, carrancudo.

Mas eu já estava exaltado.

— Parece-me que ninguém tem o direito de o julgar — disse eu com voz trêmula, como se se tratasse de uma coisa extraordinariamente importante. — É talvez justamente porque não estamos em boas relações que eu quero agora...

— Quem pode compreender você... Suas altas ideias... — disse com um risinho Trudoliubov.

— A gente vai incluí-lo — resolveu Simonov, voltando-se para mim. — Amanhã, às cinco horas, no Hotel de Paris. Não se engane.

— E o dinheiro? — disse Ferfitchkin a meia-voz, designando-me a Simonov; mas deteve-se logo, pois Simonov mesmo ficou embaraçado.

— Basta! — disse Trudoliubov, levantando-se. — Basta vir, se realmente deseja.

— Mas estaremos lá entre amigos — pronunciou Ferfitchkin, muito irritado. — Não é uma reunião oficial; é possível que não estivéssemos mesmo dispostos a tê-lo entre nós...

Saíram. Ao sair, Ferfitchkin nem sequer se despediu de mim. Trudoliubov mal inclinou a cabeça, sem um olhar.

Simonov, com quem fiquei sozinho, parecia perplexo e irritado, e me olhava com ar estranho. Não se sentava nem me convidava a fazê-lo.

— Hum... Sim... É para amanhã então. Você entregará o dinheiro hoje? Pergunto para ter certeza — falou ele rapidamente, muito confuso.

Enrubesci de cólera; mas, mesmo corando, lembrei-me que desde tempos imemoriais eu devia 15 rublos a Simonov, o que, de resto, eu nunca havia esquecido.

— Você deve admitir, Simonov, que vindo aqui eu não podia prever... Estou muito aborrecido de ter esquecido...

— Sim, sim! Não tem importância. Pagará amanhã. Só perguntei para saber ao certo... Por favor...

Parou logo e se pôs a caminhar de um lado para outro, com uma irritação crescente, batendo violentamente no assoalho com os saltos dos sapatos.

— Não o atrapalho? — disse-lhe depois de alguns minutos de silêncio.

— Oh! Não! — Ele pareceu voltar bruscamente a si. — Se bem que, para lhe dizer a verdade, veja, tenho ainda que passar... Não é longe daqui — acrescentou, muito confuso, e com uma voz de quem se desculpa.

— Meu Deus! Por que então não me disse! — exclamei apanhando meu gorro com um ar extremamente desembaraçado, que me tinha vindo sabe Deus de onde.

— Não é longe daqui... apenas dois passos — repetia Simonov, reconduzindo-me com maneiras preocupadas que não lhe ficavam nada bem. — Bem, então, amanhã, às cinco horas em ponto! — gritou-me da escada. Estava verdadeiramente feliz com a minha partida. Quanto a mim, estava furioso.

Que tinha eu, diabo!, para me atirar nesta história! Rangia os dentes, caminhando a passos largos na rua. E por causa de quem? Por causa desse porco de Zverkov! Não irei certamente! Estou-me nas tintas para isso! Nada me obriga a ir. Prevenirei Simonov por carta.

Mas, precisamente, o que me fazia enraivecer é que eu sabia que iria, que iria deliberadamente e que estaria tanto mais encarniçado para ir quanto seria mais inconveniente, mais ridículo.

Havia, de resto, um obstáculo muito real: não tinha dinheiro. Não tinha, ao todo, senão nove rublos, dos quais deveria entregar sete no dia seguinte ao meu criado, Apolo, a quem pagava sete rublos por mês, estando entendido que ele comeria à sua custa.

Conhecendo bem seu caráter, eu não podia fazê-lo esperar. Um dia ou outro é preciso que vos fale deste canalha, desta peste. Entretanto, eu sabia que não lhe pagaria e que iria a esse jantar.

Tive essa noite sonhos horrorosos. Nada de espantoso nisso, pois tinha sido oprimido o dia todo pela lembrança da prisão que tinham sido para mim meus anos de escola. Fora abandonado nessa escola por parentes afastados, dos quais dependia, e que depois não tinha mais visto. Entrei ali já idiotizado por suas censuras, já sonhador, silencioso, lançando em torno de mim olhares selvagens. Meus colegas me acolheram com brincadeiras malvadas, porque não me assemelhava a nenhum deles. Mas eu não podia suportar as caçoadas, não podia me habituar a eles tão facilmente quanto eles se habituavam uns aos outros. Pus-me pois a odiá-los desde o começo e me encerrei num orgulho atemorizado, ferido e incomensurável. Sua grosseria me revoltava. Eles riam cinicamente do meu rosto, de meu aspecto atoleimado; mas como eram animalescos os seus rostos! Em nossa escola as feições degeneravam, e se revestiam de uma expressão particularmente estúpida. Quantas crianças bonitas vi entrar naquela casa! Mas, ao cabo de alguns anos, adquiriam algo de repelente. Desde a idade de 16 anos, eu os via com uma sombria curiosidade: a mesquinharia de seus pensamentos, a tolice de suas ocupações, de suas conversas, de seus jogos — chocavam-me de espanto. Como não chegassem a compreender certas coisas muito importantes, como não prestassem nenhuma atenção às coisas mais singulares, fui levado, involuntariamente, a
me considerar muito superior a eles. Não era de modo nenhum a vaidade ferida que falava em mim e, em nome do céu!, não venhais aborrecer-me com aquela objeção de que estamos fartos até a náusea: que eu não fazia senão sonhar, enquanto eles possuíam já o sentido das realidades. Mas não! Não compreendiam nada, não tinham o menor senso das realidades, e juro que era precisamente o que mais me revoltava neles. Ao contrário, acolhiam a realidade mais evidente, aquela que lhes entrava, por assim dizer, pelos olhos adentro, da maneira mais fantasticamente estúpida, e desde essa idade já estavam habituados a só se inclinarem perante o sucesso. De tudo o que era verdadeiro e justo, mas abandonado e humilhado, zombavam estúpida e cruelmente. Estimavam mais as notas que a inteligência, e aos 16 anos não pensavam já senão nas sinecuras. É certo que sua estupidez contribuía muito para isso, assim como os maus exemplos de que tinham sido cercadas sua infância e juventude. Eram monstruosamente depravados. Mas havia nisso, evidentemente, um lado exterior, certa atitude cínica, e seu frescor, sua juventude, transpareciam, às vezes, apesar de tudo, através
da sua depravação; mas esse frescor mesmo era pouco atraente neles, pois manifestava-se por uma espécie de sensualidade grosseira. Eu os odiava, embora fosse pior do que eles, talvez. Pagavam-me na mesma moeda, e nem sequer escondiam o desprezo que eu lhes inspirava. Mas eu tinha deixado de pensar na amizade deles; pelo contrário, só aspirava a humilhá-los.

Para me livrar de suas zombarias, estudei o mais que pude, e coloquei-me assim entre os primeiros. Isto os dominou. Demais, compreenderam todos, pouco a pouco, que eu tinha lido certos livros que eles não podiam ainda conhecer, e que eu compreendia certas coisas (não estávamos ainda nos cursos especiais) que lhes eram completamente estranhas. Verificavam-no com uma estupefação escarninha, mas suportavam contudo o meu prestígio, tanto mais que meus conhecimentos tinham igualmente atraído a atenção de nossos mestres. As zombarias cessaram então, mas a antipatia ficou, e estabeleceram-se entre nós relações frias, oficiais.

No fim, eu mesmo não aguentei mais: com os anos, sentia a necessidade de ir para os homens, de ter amigos. Tentei pois me aproximar de alguns colegas; mas havia sempre alguma coisa de falso em nossas relações, que muito depressa terminavam. Uma vez, entretanto, tive um amigo. Mas eu era já um déspota na alma; pretendia dominar inteiramente seu espírito, queria insuflar-lhe o desprezo pelos que o cercavam, exigia dele que rompesse definitiva e altivamente com o meio. Minha amizade apaixonada o apavorou; perturbei-o até as lágrimas, até as convulsões. Era uma alma ingênua e generosa. Mas, desde que se tinha dado a mim inteiramente, detestei-o e o repeli. Como se não tivesse tido necessidade disso senão para obter uma vitória e me tornar senhor. Mas não podia vencê-los a todos. Meu amigo, também, não se parecia a nenhum deles; era uma rara exceção.

Uma vez terminados meus estudos, não tive nada mais urgente a fazer que abandonar a carreira especial à qual tinha sido destina-
do, a fim de romper todos os liames, para poder maldizer o passado e cobri-lo de cinza... Depois de tudo isso, o diabo sabe por que é que eu ia ainda à casa de Simonov!

No dia seguinte acordei cedo; levantei-me extremamente agitado, como se o jantar fosse naquela hora mesmo. Mas estava persuadido de que devia se dar, que se daria hoje mesmo uma alteração radical em minha existência. Era a falta de hábito provavelmente; em todo caso, durante toda a minha vida, em face de cada acontecimento, por mínimo que fosse, esperava sempre uma transformação completa em minha existência. Fui, de resto, à repartição, como de costume, mas saí duas horas antes, a fim de me preparar. “Sobretudo”, pensei, “não devo chegar primeiro, para que eles não possam imaginar que estava impaciente.” Mas, além dessa, eu tinha ainda muitas outras preocupações! Estava tão agitado que isso me tornou muito fraco.

Limpei ainda uma vez minhas botas: Apolo não teria consentido por nada no mundo em mas engraxar duas vezes num dia, considerando que isso traria desordem ao seu serviço. Para essa limpeza, tive que me apoderar sub-repticiamente das escovas que se encontravam na antecâmara, a fim de que Apolo não notasse que eu mesmo limpava minhas botas e não me desprezasse. Em seguida, examinei minuciosamente minhas vestes e fui obrigado a verificar que tudo estava velho e usado. Estava verdadeiramente muito desleixado. Meu uniforme talvez estivesse ainda decente, mas não podia ir jantar de uniforme. O pior era que minhas calças tinham no joelho uma imensa mancha amarela. Eu previa já que essa mancha me levaria os nove décimos da minha dignidade. Mas sabia também que era baixo e vulgar pensar assim. “Agora, de resto, não se trata de pensar; estamos em plena realidade.” Eu me dizia isso, mas perdia cada vez mais a coragem. Sabia muito bem que exagerava monstruosamente todos esses fatos; mas que fazer! Eu não me dominava mais, e a febre me agitava.

Representava-me com desespero o tom altivo e frio com o qual me acolheria esse canalha de Zverkov, o desprezo estúpido, inelutável, com o qual me olharia Trudoliubov; e também o riso impudente desse inseto, Ferfitchkin, que iria querer fazer sua corte a Zverkov. Quanto a Simonov, compreenderia tudo e me desprezaria pela baixeza da minha vaidade e covardia. E depois, sobretudo, como tudo isso seria miserável, pouco literário, banal! O melhor seria, evidentemente, ficar em casa. Mas era justamente mais difícil que todo o resto. Quando começava a me sentir atraído assim, eu me afundava completamente. Eu zombaria de mim mais tarde, durante toda a minha vida. “Pois bem! Tiveste medo, tiveste medo da realidade! Sim, medo!” Ao contrário, eu queria a todo custo demonstrar a esse “bigorrilha” que não era absolutamente tão covarde como podia parecer. Mas, há mais ainda: em plena febre, eu sonhava vencê-los, triunfar, encantá-los, forçá-los a estimarem-me, pelo menos pela “elevação do meu pensamento e pelo meu inegável espírito cáustico”. Abandonarão Zverkov, ele ficará sozinho, no seu canto, silencioso e confuso, e eu o esmagarei. Em seguida, consentirei talvez em me reconciliar com ele; beberemos e nos trataremos por tu.

Mas o mais irritante, o mais ofensivo, era que eu sabia, sabia perfeitamente que não tinha, em suma, necessidade nenhuma de nada disso, e que não desejava de modo algum esmagá-los, vencê-los, encantá-los, e que, a começar por mim, eu não teria dado um tostão por esse resultado, se o tivesse atingido. Oh! Como implorava a Deus para que essa noite passasse o mais depressa possível! Cheio de uma angústia inexprimível, aproximei-me da janela, abri a rótula e tentei penetrar com os olhos o opaco véu de neve fundida que caía em grossos flocos.

Por fim, meu velho reloginho bateu, tossindo as cinco horas. Apanhei meu chapéu, e, tratando de não olhar muito Apolo, que esperava seu pagamento desde manhã, mas que, por tolice, não queria me falar primeiro, escapuli-me para a rua. Aluguei uma bela carruagem com os últimos cinquenta copeques que me restavam e cheguei como um grande senhor ao Hotel de Paris.

 

III


Eu sabia desde a véspera que chegaria primeiro. Mas não era verdadeiramente disso que se tratava agora.

Não somente nenhum deles estava ainda lá, mas tive as maiores dificuldades para encontrar o reservado que nos era destinado. A mesa ainda não estava posta. Que significava isso? Depois de muito perguntar, soube enfim dos garções que o jantar estava encomendado para as seis horas e não para as cinco, o que me foi confirmado pelo gerente do hotel. Senti-me constrangido por ter indagado. Não passava ainda das cinco e vinte. Se tinham trocado a hora, deveriam, pelo menos, me prevenir — o correio existe para isso — e não me infligir tal afronta diante de mim mesmo e... dos criados! Sentei-me. O
criado veio pôr a mesa, e, em sua presença, senti-me ainda mais irritado. Pelas seis horas, por mais lâmpadas que iluminassem já a sala, ainda trouxeram velas; mas o criado não tinha pensado em trazê-las desde a minha chegada. No reservado ao lado, cada um numa mesa diferente, jantavam dois senhores, silenciosos e sombrios. Mas nas salas afastadas fazia-se grande barulho; eu ouvia até os gritos, os risos de toda uma companhia, exclamações em mau francês... Os co-
mensais estavam com senhoras. Em uma palavra, eu me sentia desgostoso. Raramente conheci minutos mais desagradáveis; tanto que, quando às seis horas, precisamente, eles apareceram todos juntos, estive pronto a acolhê-los como salvadores e esqueci mesmo, no primeiro momento, que devia me mostrar ofendido.

Zverkov entrou primeiro, como o chefe da turma. Riam todos; mas, ao me ver, Zverkov endireitou a cabeça, avançou para mim sem se apressar, requebrando-se como uma coquete, e me estendeu a mão com um gesto amável, mas sem exagero, com uma espécie de polidez prudente, a polidez de um alto personagem; como se, mesmo ao me estender a mão, ele se protegesse contra algum perigo. Eu imaginava, ao contrário, que, tão logo entrasse, ele se poria a rir, assim como fazia outrora, com um riso agudo, gritado, e lançasse um de seus vulgares gracejos. Preparava-me para isso desde a véspera; mas não esperava de jeito nenhum um tom assim condescendente, tão altivamente polido. Ele se considera, pois, de tal maneira superior a mim, sob todos os aspectos? Se tivesse empregado esse tom senhorial apenas para me humilhar, não teria sido nada ainda; eu poderia lhe responder ao pé da letra. Mas que fazer, se, não pensando de maneira alguma em me ofender, lhe tinha encasquetado, muito simplesmente, na estúpida cabeça de carneiro, que me era infinitamente superior e que não podia se dirigir a mim senão com um tom protetor? O coração bateu-me, a esta simples suposição.

— Soube com admiração do seu desejo de ser dos nossos hoje — começou ele com uma voz ciciante e dicção defeituosa, arrastando as palavras, o que antes não fazia. — Não nos encontrávamos mais nestes últimos tempos. Você nos evitava, mas não tinha razão: não somos tão terríveis como podia parecer-lhe. Mas, em todo caso, estou muito feliz de res... ta... be... lecer.

Ele se voltou para atirar com um gesto negligente o chapéu no parapeito da janela.

— Há muito tempo que espera? — perguntou Trudoliubov.

— Cheguei às cinco horas em ponto, como fora combinado ontem — respondi em voz alta e com uma irritação que deixava prever uma explosão próxima.

— Não o tinhas prevenido de que mudamos a hora? — perguntou Trudoliubov a Simonov.

— Não. Esqueci-me — respondeu este último, mas sem demonstrar nenhum remorso, e, não se importando sequer com desculpar-se, saiu para dar suas ordens.

— Então há uma hora já que você está aqui, pobre rapaz! — exclamou zombeteiramente Zverkov, pois, de acordo com suas ideias, isto devia ser com efeito extremamente cômico. E logo, seguindo seu exemplo, o miserável Ferfitchkin desatou o seu riso antipático, agudo e trêmulo; dir-se-ia um cachorrinho. Eu lhe parecera de um ridículo perfeito.

— Não há nada de risível! — lancei eu, cada vez mais irritado, a Ferfitchkin. — A culpa é sua, e não minha. Esqueceram-se de me prevenir. É... é... é perfeitamente absurdo.

— É mais que absurdo, é pior ainda — resmungou Trudoliubov, tomando ingenuamente a minha defesa. — Você é muito calmo. É muito simplesmente uma grosseria, não premeditada; aliás... E como então Simonov?... Hum!...

— Se me tivessem pregado uma partida assim — observou Ferfitchkin —, eu teria...

— Você teria que pedir para lhe servirem alguma coisa — interrompeu Zverkov —, ou mesmo começar a jantar sem nos esperar mais.

— Teria podido fazê-lo sem a sua autorização, devem concordar! — declarei num tom incisivo. — Se esperei, é que...

— Para a mesa, senhores! — exclamou Simonov, entrando. — Está tudo pronto. Garanti o champanhe; está perfeitamente gelado. Eu não conhecia seu endereço, onde poderia encontrá-lo? — disse ele, voltando-se de súbito para mim, mas sem me olhar. Tinha evidentemente alguma coisa contra mim. Ele tinha refletido desde ontem.

Cada um se sentou; eu me sentei também. A mesa era redonda. Acontecia ter à minha esquerda Trudoliubov e à direita, Simonov. Zverkov estava colocado diante de mim; Ferfitchkin sentou-se ao seu lado e junto de Trudoliubov.

— Diga-me... você está... no ministério? — perguntou-me Zverkov, continuando a se ocupar de mim. Vendo minha confusão, ele tinha imaginado seriamente que era preciso me acalmar, e me encorajar, por assim dizer. “Quererá ele que eu lhe atire uma garrafa na cabeça?”, disse a mim mesmo, sentindo que o furor me invadia. Irritei-me singularmente depressa, por causa da falta de hábito, provavelmente.

— Sim, estou ligado à chancelaria — respondi com voz sacudida.

— E... acha alguma vantagem nisso? Diga-me, o que o obrigou a deixar as suas antigas ocupações?

— Para mim chegou, eis tudo. — Arrastava agora as palavras, ainda três vezes mais que ele. Quase não me dominava mais. Ferfitchkin bufou em seu lugar. Simonov me lançou um olhar irônico. Trudoliubov parou de comer e me olhou curiosamente.

Zverkov teve um ligeiro sobressalto; mas pareceu não notar nada.

— E seus ganhos?

— Que ganhos?

— Os vencimentos.

— É um exame?

Mas disse, entretanto, o montante do meu salário. Estava terrivelmente vermelho.

— Não é brilhante — observou gravemente Zverkov.

— Sim, não dá para se jantar no restaurante — completou insolentemente Ferfitchkin.

— Na minha opinião, é simplesmente a miséria — acrescentou seriamente Trudoliubov.

— E como você emagreceu, como se transformou desde então! — disse Zverkov, sem malícia desta vez, com uma espécie de piedade insolente, examinando ao mesmo tempo a mim e à minha roupa.

— Parem lá com isso! Ei-lo já todo confuso — escarneceu Ferfitchkin.

— Saiba, senhor, que não estou absolutamente confuso! — estourei por fim. — Entende? Eu janto “no restaurante”, pagando do meu bolso, de meu próprio bolso, note-o, senhor Ferfitchkin, e não com o dinheiro dos outros.

— Como? Quem aqui então não janta à sua custa? Que quer dizer?

Vermelho como um camarão, Ferfitchkin me olhou direito nos olhos, com furor.

— Eu disse isso por dizer... — Senti que tinha ido longe demais. —
Creio de resto que gostaria mais de conversar sobre coisas mais inteligentes.

— Você quer nos deslumbrar com a sua inteligência?

— Não se inquiete: aqui seria perfeitamente inútil.

— Mas que tem você então para cacarejar assim? Tornou-se completamente louco na sua chancelaria?

— Basta, senhores! Basta — exclamou com voz autoritária Zverkov.

— Como é besta! — resmungou Simonov.

— Com efeito, é muito besta — disse Trudoliubov, dirigindo-se grosseiramente a mim só. — Estamos reunidos aqui entre amigos, para dizer adeus ao nosso bom colega, e você se põe a discutir. Foi você quem pediu para ser dos nossos. Não destrua pois a nossa boa harmonia.

— Basta! Basta! — gritava Zverkov. — Parem, senhores! Isto verdadeiramente não está bem. Vou logo contar como quase me casei anteontem.

E eis que esse senhor nos serve uma história inepta: não se tratava do seu casamento, evidentemente, mas ela servia de pretexto para evocar generais, coronéis, e mesmo gentis-homens da Câmara, entre os quais Zverkov por pouco não desempenhava o primeiro papel. Os presentes desataram em risos aprovadores; Ferfitchkin dava até alguns gemidos.

Todos tinham me abandonado, e eu estava só, humilhado, esmagado.

“Meu Deus!”, pensei. “Está ali a sociedade que me convém! E que papel estúpido desempenhei logo diante deles! Mas permiti demais a esse Ferfitchkin. Imaginam os imbecis que me honraram muito, dando-me um lugar à sua mesa, e nem pensam mesmo que sou eu, sim, eu, que lhes dou essa honra. Emagreci! Minha roupa! Oh! Malditas calças! Zverkov notou imediatamente a mancha amarela no joelho. Não há senão uma coisa a fazer: levantar da mesa, pegar o chapéu e sair sem uma palavra... Marcar-lhes assim meu desprezo. E amanhã estarei pronto a me bater em duelo. Os covardes! Não são os sete rublos que eu lamento... Eles pensarão talvez que é por isso... Que o diabo os carregue! Não os lamento, os meus sete rublos! Vou-me embora.”

Não me mexi, naturalmente.

Para afogar meu desgosto, eu bebia lafite e xerez em grandes copos, e, não estando habituado, embriaguei-me rapidamente; minha irritação crescia. Veio-me de súbito a ideia de não me ir antes de os ter insultado da maneira mais insolente. Escolher o instante propício e mostrar-lhes o que valho... Mais tarde dirão: ele é ridículo, mas tão inteligente! Em uma palavra... que o diabo os carregue!...

Dei volta à mesa com um olhar insolente e perturbado. Mas pareciam ter me esquecido completamente. Entre eles havia rumor e alegria. Zverkov continuava a perorar. Prestei atenção. Zverkov falava de certa bela dama que ele tinha conquistado tão bem, que, finalmente, ela lhe confessara seu amor (mentia como um burro, é claro); tinha sido ajudado, de resto, nessa história, por um de seus amigos íntimos, um jovem príncipe, o hussardo Kolia, que possui três mil almas.

— Entretanto, esse hussardo Kolia, que tem três mil almas, não está aqui; não veio lhe dizer adeus...

Lancei esta frase no meio da conversa; houve um longo silêncio.

— Você já está completamente bêbado — observou Trudoliubov, dignando-se enfim notar-me e lançando-me um olhar desdenhoso. Zverkov me examinava em silêncio, como um inseto curioso. Baixei os olhos. Simonov apressou-se a derramar champanhe nas taças.

Trudoliubov levantou a taça; os outros, exceto eu, seguiram seu exemplo.

— À tua saúde e à tua feliz viagem! — disse ele a Zverkov. — Em lembrança de nossos antigos anos, senhores! Ao nosso futuro! Hurra!...

Todos beberam e se desvelaram em torno de Zverkov para abraçá-lo. Eu não me mexi; minha taça permanecia cheia diante de mim.

— E você? Por que não bebe? — urrou Trudoliubov, voltando-se para mim com ar ameaçador.

— Quero também fazer o meu discurso, senhor Trudoliubov, e beberei em seguida.

— Malvado vilão! — murmurou Simonov. Endireitei-me na cadeira e levantei minha taça. Tinha febre, preparava-me para alguma coisa extraordinária, sem saber exatamente o que ia dizer.

— Silêncio! — exclamou Ferfitchkin. — É agora que vamos enfim ouvir coisas inteligentes.

Zverkov esperava, muito sério, compreendendo de que se tratava.

— Senhor tenente Zverkov — comecei —, saiba que detesto as frases bonitas, as pessoas palavrosas e os uniformes feitos sob medida. Este é o primeiro ponto. O segundo vem a seguir.

Vi-os, a todos, se agitarem nos assentos.

— Segundo ponto: detesto os dançadores de cotilhão. Terceiro ponto: amo a verdade, a sinceridade, a honestidade. — Eu continuava quase maquinalmente a me sentir gelado de horror, não compreendendo como ousava falar assim. — Amo o pensamento, senhor Zverkov, amo a verdadeira camaradagem, num pé de igualdade... hum... hum... Mas, de resto, por que não? Eu também beberei à sua saúde, sior Zverkov. Encante as jovens circassianas, mate os inimigos da Pátria, e... À sua saúde, senhor Zverkov!

Zverkov se levantou, cumprimentou-me e disse:

— Fico-lhe muito grato.

Estava extremamente ofendido e tinha empalidecido até.

— Que o diabo o carregue! — trovejou Trudoliubov, dando um violento murro em cima da mesa.

— Não! É para lhe apertar as goelas! — gritou Ferfitchkin com sua voz cortante.

— É preciso botá-lo para fora — resmungou Simonov.

— Nem uma palavra, senhores, nem um gesto! — exclamou solenemente Zverkov, detendo a fúria geral. — Agradeço a todos, mas saberei provar-lhe eu mesmo o valor que dou às suas palavras.

— Senhor Ferfitchkin! — disse eu com um tom importante, voltando-me para Ferfitchkin. — O senhor me dará a partir de amanhã satisfação pelas palavras que acaba de pronunciar.

— O quê? Um duelo? Com prazer! — respondeu-me ele.

Mas eu estava provavelmente tão cômico ao lançar-lhe o desafio, e o contraste com o meu aspecto era tal, que todos — inclusive Ferfitchkin — desataram a rir, estorcendo-se nas cadeiras.

— Mas, sim, deixem-no! Está completamente bêbado! — disse com enfado Trudoliubov.

— Nunca me perdoarei por tê-lo incluído — resmungou de novo Simonov.

“É o momento de lhes atirar uma garrafa na cabeça”, pensei, apanhando uma garrafa cheia... Mas virei ainda um copo.

“Não, é melhor ficar até o fim. Vocês ficariam felizes demais se eu lhes deixasse o campo livre, senhores! Por nada deste mundo! Ficarei, deliberadamente, e continuarei a beber, para frisar bem que não dou nenhuma importância a tudo isso. Permanecerei, beberei, porque estamos no cabaré e eu paguei a minha conta. Ficarei a beber, porque não os considero senão manequins, seres inexistentes. Beberei... Cantarei se me aprouver. Sim, cantarei; tenho direito... hum...”

Mas não cantei. Tratei somente de não olhar para nenhum deles; tomava ares desembaraçados e esperava com impaciência que fossem eles, eles mesmos, os primeiros a me dirigirem a palavra. Ai de mim! Não me falavam. E, entretanto, como nesse instante gostaria de me reconciliar com eles! Oito horas soaram, depois nove. Deixaram a mesa e se instalaram no divã. Zverkov se estendeu sobre uma espreguiçadeira e colocou os pés numa banqueta. Colocaram junto dele as garrafas e os copos. Ele por sua vez tinha lhes oferecido, com efeito, três garrafas de champanhe. Quanto a mim, não me convidaram, naturalmente. Todos se reuniram em torno dele. Escutavam-no quase com veneração. Estimavam-no, evidentemente. Por quê? Por quê?, perguntei-me. Por vezes, nos transportes da embriaguez, eles se abraçavam. Discorriam sobre o Cáucaso, a verdadeira paixão, as vantagens do serviço, os rendimentos do hussardo Podarjevski, que nenhum deles conhecia; e estavam muito felizes por esses rendimentos serem importantes; falaram também da graça e da beleza da princesa D..., que eles também não conheciam, e jamais tinham visto. Chegou-se finalmente a Shakespeare, que foi declarado imortal.

Eu sorria com desprezo, caminhando ao longo da sala, da mesa até a lareira e vice-versa, ao longo da parede que ficava em frente ao divã. Tentava provar-lhes que podia perfeitamente passar sem eles e, entretanto, ao andar, batia de propósito no assoalho com os tacões. Mas em vão. Não me prestavam atenção nenhuma. Tive a paciência de ir e vir diante deles, da mesa à lareira e vice-versa, das oito às onze horas. “Ando porque isso me apraz, e ninguém pode me proibir.” O garção que fazia o serviço parou diversas vezes para me olhar curiosamente. A cabeça me andava à roda, e parecia-me por vezes que eu delirava. Três vezes fiquei todo coberto de suor, no curso dessas três horas, e três vezes sequei completamente.

Em certos instantes eu me sentia cruelmente irritado pelo pensamento atroz de que me lembraria sempre, com desgosto e humilhação, dez anos, quarenta anos, desses minutos, os mais ignóbeis, os mais ridículos, os mais horríveis de toda a minha existência. Era verdadeiramente impossível humilhar-se alguém a si mesmo mais malvada e deliberadamente. Sabia-o perfeitamente, mas continuava a andar da mesa para a lareira, e da lareira para a mesa. “Oh! Se ao menos soubessem de que sentimentos, de que pensamentos sou capaz! Se soubessem como sou inteligente!”, pensava por instantes, dirigindo-me mentalmente a meus inimigos instalados no divã. Mas eles se portavam como se eu não estivesse ali! Uma vez, unicamente, voltaram-se para mim; quando Zverkov pôs-se a falar de Shakespeare, desatei num riso desdenhoso. Meu riso foi tão falso, tão vil, que eles interromperam bruscamente a conversa, puseram-se a seguir atenta e muito seriamente, durante um minuto ou dois, meu passeio ao longo da parede, e como eu não lhes prestava nenhuma atenção. Porém nada obtive; não me dirigiram a palavra, e ao fim de dois minutos esqueceram-se de novo. Onze horas soaram.

— Senhores! — exclamou, levantando-se, Zverkov —, e agora vamos todos para lá.

— Certamente! Certamente! — aquiesceram os outros.

Voltei-me bruscamente para Zverkov. Estava a tal ponto esmagado, quebrado, que me sentia pronto para tudo, para me matar mesmo, e acabar com aquilo. Tinha febre. Meus cabelos molhados de suor colavam-se à fronte, nas têmporas.

— Zverkov, peço-lhe perdão — declarei num tom decidido. — A você também, Ferfitchkin, a todos, a todos. Ofendi todo mundo.

— Ah! Ah!... O duelo lhe faz medo — disse com sua vozinha pérfida Ferfitchkin.

Senti uma pancada no coração.

— Não, não é o duelo que temo. Estou pronto a me bater com você amanhã, depois da nossa reconciliação. Insisto mesmo nesse ponto. Você não me pode recusar isso. Quero provar-lhe que o duelo não me faz medo. Você atirará primeiro, e eu, em seguida, atirarei para o ar.

— Isto o diverte — observou Simonov.

— Besteiras! — interveio Trudoliubov.

— Deixe-nos passar, então! Você nos barra o caminho... Que quer, afinal de contas? — pronunciou Zverkov com desprezo.

A todos tinha o sangue subido ao rosto, seus olhos brilhavam: tinham bebido muito.

— Quero obter sua amizade, Zverkov, eu o ofendi, mas...

— Você me ofendeu? Você? A mim? Saiba, senhor, que jamais poderá me ofender, em nenhum caso.

— E basta! A caminho! — concluiu Trudoliubov. — Partamos!

— Olímpia é minha, senhores! Está combinado? — exclamou Zverkov.

— Sim, sim, sem discussão! — responderam-lhe rindo.

Eu fiquei lá, vilipendiado, esmagado. O grupo fez uma saída rumorosa. Trudoliubov pôs-se a cantar uma canção estúpida. Simonov
atrasou-se um instante para gratificar os garções. Adiantei-me de súbito para ele.

— Simonov! Dê-me seis rublos — disse com a resolução do desespero.

Ele me olhou, estupefato, com os olhos perturbados: também estava bêbado.

— Como? Quer ir lá conosco?

— Sim.

— Não tenho dinheiro — cortou a conversa, com um sorriso de desprezo, e se dirigiu para a saída.

Agarrei-o pela aba do capote. Era uma verdadeira angústia.

— Simonov! Eu vi que você tem dinheiro, por que me recusa? Sou um miserável? Cuidado ao me recusar! Se soubesse, se pudesse saber por que lhe peço! Todo o meu futuro depende disso, todos os meus planos!

Simonov tirou o dinheiro do bolso e quase que mo jogou.

— Tome-o, se tem tão pouca dignidade! — lançou-me cruelmente, e correu para alcançar os outros.

Fiquei só, um instante. Que desordem em torno de mim! Detritos, copos quebrados, vinho derramado, pontas de cigarro; a angústia me aperta o coração, os fumos do álcool sobem-me à cabeça; e lá adiante, aquele lacaio que viu tudo, ouviu tudo — e que me olha com curiosidade.

— Vamos para lá! — exclamei. — Ou eles imploram todos de joelhos minha amizade, beijando-me os pés, ou então... Ou então eu darei uma bofetada em Zverkov!

 

IV


— Assim, ei-lo então, ei-lo enfim este conflito com a realidade — balbuciei, despencando quatro a quatro escada abaixo. — Não se trata mais da ida do Papa para o Brasil; não se trata mais do baile no lago de Como.

— És um miserável por zombares disso neste instante!... Que importa, pois que agora tudo está perdido!

Eles tinham desaparecido sem deixar traços, mas eu bem sabia onde encontrá-los.

Vi um carro solitário, um desses que fazem o serviço noturno; o cocheiro estava vestido com um casacão de lã, que uma neve fundida e quase quente salpicava. Estava úmido, abafado. Seu cavalinho baio, agitado, estava igualmente coberto de uma camada de neve; ele tossia. Lembro-me muito bem. Precipitei-me para o carro, mas, mal levantei o pé para entrar, a lembrança da maneira pela qual Simonov tinha jogado o dinheiro me arrasou literalmente, e caí como um saco no fundo do veículo.

— Sim, haverá muito que fazer para compensar tudo isso! — exclamei. — Mas compensá-lo-ei, ou então morrerei esta noite mesmo. Toca!

Pusemo-nos a caminho. As ideias turbilhavam loucamente na minha cabeça.

“Eles não implorarão, certamente, minha amizade de joelhos; isto não é senão uma miragem, uma estúpida miragem romântica, fantástica, é sempre o mesmo baile no lago de Como. Sou pois obrigado a dar uma bofetada em Zverkov. Devo dar-lhe uma bofetada. Está decidido então: corro para lhe dar uma bofetada.”

— Vamos! Mais depressa!

O cocheiro sacudiu as rédeas.

“Assim que entrar, esbofeteio-o. Será preciso pronunciar algumas palavras à guisa de prefácio, antes de o estapear? Não. Entro e bato nele. Estarão todos reunidos na sala; ele estará sentado no divã com Olímpia. Maldita Olímpia! Ela zombou um dia do meu rosto e se recusou até a me seguir. Eu a arrastarei pelos cabelos e arrancarei as orelhas de Zverkov. Não, é melhor segurá-lo pela ponta da orelha e obrigá-lo assim a dar a volta à sala. Eles se precipitarão talvez sobre mim para me bater e me atirar para fora. É mesmo certo. Não importa! Terei sido o primeiro a esbofetear. É de mim que virá a iniciativa, e, de acordo com as regras da honra, isso basta. Ele estará já marcado, e para se lavar desse opróbrio não terá outro meio que bater-se em duelo. Será obrigado a se bater. Que me importa que se atirem a mim! Que me importa! Os ingratos! Os murros de Trudoliubov serão particularmente duros: ele é tão forte! Ferfitchkin, esse me pegará à traição e me arrastará pelos cabelos, estou certo. Mas não importa! Estou decidido a tudo. Seus cérebros de carneiro deverão compreender bem, afinal, o lado trágico desta história. Quando me arrastarem para a porta, eu lhes gritarei que valem ainda menos que o meu dedo mínimo.”

— Mais depressa, cocheiro, mais depressa!

Ele se sobressaltou e agitou o chicote. Meu grito tinha verdadeiramente alguma coisa de selvagem.

“Nós nos batemos ao amanhecer. Está decidido. Para a minha chancelaria, tudo está acabado. Mas onde arranjaremos pistolas? Tolices tudo isso! Pedirei um adiantamento sobre os meus vencimentos e comprarei uma. E a pólvora? E as balas? Isso é lá com as testemunhas. Não tenho amigos?”

— Tolices! — exclamei eu, cada vez mais embalado. — Tolices! O primeiro transeunte que encontrar na rua e ao qual eu peça para ser testemunha é obrigado a aceitar, como é obrigado a retirar da água um homem que se afoga. As soluções mais extravagantes são admissíveis em tais casos. Mesmo se eu pedisse ao nosso diretor para me assistir nesse duelo, ele não poderia me recusar, por simples espírito cavalheiresco, e deveria conservar o segredo. E Antone Antonovitch...

Mas, ao mesmo tempo, compreendi mais claramente, mais luminosamente que ninguém neste mundo, toda a abominação e todo o ridículo de minhas suposições, e vi o reverso da medalha, mas...

— Mais depressa, cocheiro! Chicoteia, canalha! Chicoteia!

— Ah! Meu senhor! — pronunciou em tom queixoso o “representante da força inculta”.

De súbito um frio de gelo caiu sobre mim.

“Mas não seria melhor... Não seria melhor voltar direito para casa? Oh! Meu Deus! Por que me meti nesse jantar? Mas é impossível! E meu passeio, durante três horas, da mesa até a lareira e da lareira para a mesa? Não, são eles, eles que devem me pagar esse passeio. Eles devem me livrar deste opróbrio.”

— Fustiga, cocheiro!

“E se eles me entregarem à polícia? Não, não ousarão. Terão medo do escândalo. E se Zverkov, para marcar seu desprezo, se recusar a bater-se? Estou certo disso. Mas eu lhes provarei então... Neste caso, corro à posta dos cavalos no momento de sua partida, agarro-o pela perna, arranco-lhe o capote quando subir para a carruagem. Ferro-lhe os dentes na mão, mordo-o: ‘Vejam a que pode se reduzir um homem desesperado!’ Ele me baterá talvez na cabeça; os outros me cairão em cima, por último. Que importa! Gritarei a todos: ‘Vejam o moleque que parte para seduzir as circassianas com o meu cuspo em pleno rosto!’

“Depois disso, naturalmente, está tudo acabado. Minha chancelaria desaparece da face da terra. Vão deter-me, julgar-me, tirar-me do ministério, vão me prender, enviar-me para a Sibéria. Não é nada! Quinze anos mais tarde, quando me libertarem, maltrapilho, miserável, encontrarei seus vestígios; eu o descobrirei numa cidade qualquer da província. Estará casado e feliz. Terá uma filha crescida... Eu lhe direi: ‘Vê, monstro! Vê minhas faces lívidas e meus trapos! Perdi tudo: a felicidade, minha carreira, a arte, a ciência, a mulher amada... e isso por tua causa. Eis as pistolas. Vim descarregar minha arma e... eu te perdoo.’ Atirarei para o ar e desaparecerei sem deixar vestígios.”

Chorei até, mesmo sabendo perfeitamente, nesse mesmo minuto, que eu tinha tirado isso do Sílvio de Púchkin, e da Mascarada de Liérmontov. E, subitamente, senti uma vergonha aguda, uma vergonha tal que fiz parar o cavalo, saí do carro e fiquei assim um momento, com os pés na neve, no meio da rua.

O cocheiro me olhava com espanto, soltando profundos suspiros.

Que deveria fazer? Impossível ir ter com eles; eu não obteria nada, evidentemente. Mas impossível também deixar as coisas nesse estado, pois seria demais... Meu Deus! Como poderia abandonar isso! Depois de tais insultos!

— Não! — exclamei, atirando-me de novo no carro. — É meu destino. Depressa! Depressa! Toca!

Em minha impaciência, dei um soco nas costas do cocheiro.

— Que tens? Por que me bates? — exclamou o homem, dando ele mesmo uma boa chicotada no seu matungo, que se pôs a trotar.

A neve caía em grossos flocos. Eu tinha aberto o casaco, pois pensava em coisa muito diferente. Tinha esquecido tudo, porque acabava de me decidir pela bofetada e sentia com horror que isto ia se dar infalivelmente, em seguida, e que nenhuma força poderia deter os acontecimentos. Os lampiões solitários lugubremente brilhavam na bruma nevosa, semelhantes a tochas de enterro. A neve tinha penetrado sob o meu casaco, sob o redingote, e se acumulava sob a gravata, onde se derretia; mas eu não me agasalhava; não estava tudo perdido?

Enfim, chegamos. Pulei fora do carro, quase louco; subi os poucos degraus da escada e pus-me a bater à porta com pés e mãos. Sentia nas pernas uma fraqueza extrema, sobretudo nos joelhos. Abriram estranhamente depressa, como se eu fosse esperado (e com efeito, Simonov tinha prevenido que haveria, talvez, um visitante, pois era preciso prevenir nessa casa e tomar em geral certas precauções. Era uma dessas “lojas da moda” que a polícia fechou depois: durante o dia era com efeito uma loja, mas, sendo recomendado, podia-se passar ali a noite). Atravessei rapidamente o sombrio magazine e entrei na sala de recepção, que conhecia bem e onde não ardia nesse momento senão uma única vela. Parei interdito: não havia ninguém.

— Onde estão? — perguntei a alguém.

Mas eles já tinham se separado.

Era preciso antes de tudo pagar imediatamente minha dívida a Simonov. Decidi-me a uma medida extrema, e fui pedir 15 rublos emprestados a Antone Antonovitch. Por um feliz acaso ele estava justamente de excelente humor naquela manhã e consentiu imediatamente em me adiantar o dinheiro. Fiquei tão contente que, assinado o recibo, pus-me a lhe contar com muita desenvoltura e com um tom muito natural “que tinha participado de uma festa no Hotel de Paris, com alguns amigos. Festejávamos a nomeação de um colega, poderia mesmo dizer, de um amigo de infância. É um grande gozador, você sabe, um menino mimado, de excelente família, aliás. Grande fortuna, brilhante carreira, muito espírito, encantador, numerosas aventuras... Você sabe! — Depois de meia dúzia de garrafas de champanhe, fomos para lá...” E tudo isso minuciosamente, com facilidade, num tom ligeiro e satisfeito.

Voltei para casa, escrevi logo a Simonov.

Admiro ainda até agora o tom bonacheirão e franco dessa carta e seu estilo, digno verdadeiramente de um fidalgo. Eu me acusava inteiramente, habilmente, nobremente e, sobretudo, sem palavras inúteis. Desculpava-me “se ainda me é permitido desculpar-me”, observando que, não estando habituado a beber, o primeiro copo que tinha bebido esperando-os no Hotel de Paris, das cinco às seis, me tinha completamente embriagado. Dirigia minhas desculpas principalmente a Simonov, mas pedia-lhe que as transmitisse também aos outros, sobretudo a Zverkov, que eu tinha — “Lembro-me como que através de um sonho” — gravemente ofendido, creio. Acrescentava que eu teria ido me explicar pessoalmente, mas que tinha dor de cabeça e que me sentia sobretudo muito confuso.

Fiquei particularmente satisfeito com a leviandade, com o descaso mesmo (aliás perfeitamente conveniente) que se exprimiam através das desculpas e que, bem melhor que todas as explicações, deviam lhes fazer entender que “toda a história de ontem” não passava aos meus olhos de uma coisa insignificante: não estou de modo nenhum esmagado, como imaginam provavelmente, senhores! Mas olho ao contrário para tudo isso muito tranquilamente, como convém a um cavalheiro que se respeita. “É preciso que a juventude se abstenha.”

Nisto há mesmo qualquer coisa de altivo, disse-me, relendo a carta. Por quê? Porque sou um homem instruído, inteligente! Qualquer outro em meu lugar não teria sabido como se sair, enquanto eu tudo resolvi e me divirto de novo. Eis o que é ser um homem de sua época, instruído, inteligente! E, de resto, foi culpa do vinho que bebi... Hum! Nem toda. Não bebi aguardente, enquanto os esperava das cinco às seis. Menti a Simonov, menti impudentemente, e não tive vergonha...

De resto, estou-me nas tintas. O importante é sair desta situação.

Pus seis rublos no envelope, lacrei-o e pedi a Apolo para levá-lo à casa de Simonov. Sabendo que a carta continha dinheiro, Apolo sentiu certo respeito e consentiu em levá-la. À tarde, saí para passear. A cabeça me doía ainda e sentia vertigens.

3ª história

 

I


Diante de mim estava a “patroa” da casa, com um sorriso estúpido nos lábios; eu não lhe era desconhecido.

Um instante depois a porta se abriu e alguém entrou.

Sem prestar atenção ao que quer que fosse, eu andava de cá para lá, falando comigo mesmo, creio. Parecia-me ter escapado à morte, e todo o meu ser se expandia de contentamento. Porque eu o teria esbofeteado, sem dúvida alguma. Estou absolutamente certo. Mas eles não estão mais... Tudo desapareceu, tudo mudou. Eu olhava em torno de mim. Não podia ainda me dar conta do que se passava. Levantei maquinalmente os olhos para a pessoa que acabava de entrar. Entrevi um rosto jovem, fresco, um tanto pálido, de supercílios escuros e direitos, de olhar sério e ligeiramente espantado. Isto logo me agradou. Tê-la-ia detestado se houvesse sorrido. Contemplei-a mais longamente e não sem um certo esforço: ainda mal tinha ordenado meus pensamentos. Havia nesse rosto uma expressão ingênua e boa, mas estranhamente séria. Estou certo de que isso a prejudicava no estabelecimento e que nenhum daqueles imbecis tinha reparado nela. De resto, não se poderia considerá-la uma beldade, se bem que fosse alta, forte, esbelta. Suas roupas eram simples. Alguma coisa de mau me mordeu o coração, e aproximei-me dela.

Vi-me no mesmo instante ao espelho. Meu rosto alterado me pareceu repelente: pálido, vil, raivoso, os cabelos em desordem. “Tanto melhor”, pensei, “estou contente. Sim, estou alegre de lhe parecer repelente, isso me dá prazer!”

Do outro lado da divisão um relógio se pôs a engasgar, a tossir: dir-se-ia um homem com a garganta violentamente apertada. Esse engasgo singularmente longo foi seguido de um desagradável carrilhão agudo, espantosamente claro, como se alguém fosse atirado de súbito para a frente. Duas horas! Voltei a mim; não dormia, entretanto, mas estava numa espécie de sonolência.

Estava quase completamente escuro no quarto baixo e estreito, que um imenso guarda-roupa, cartões, vestes jogadas em desordem, retalhos, atravancavam a tal ponto que ninguém se podia mover ali. O pavio da candeia que ardia num canto, sobre uma mesa, acabava de se consumir e não despedia senão fracos clarões. Em alguns minutos estaria completamente escuro.

Voltei a mim muito rapidamente. Lembrei-me de tudo de uma vez, sem esforço; como se minhas lembranças não tivessem esperado senão o despertar para se precipitarem sobre mim. De resto, agora mesmo que eu estava calmo, alguma coisa persistia em mim, uma espécie de ponto que eu não podia esquecer e em torno do qual volteavam pesadamente meus sonhos. Mas, coisa estranha, agora, na minha lucidez, tudo que me tinha acontecido naquele dia me parecia ter se passado há muito tempo, como se eu tivesse vivido esses acontecimentos vários anos antes.

A cabeça pesava-me. Alguma coisa me parecia esvoaçar acima da cabeça e roçar-me; isso me irritava, me excitava. A angústia, a cólera se punham de novo a fervilhar em mim, e buscava uma saída. De súbito, vi ao meu lado dois olhos largamente abertos, que me contemplavam curiosa e obstinadamente. O olhar era frio e sombrio, indiferente; parecia vir de muito longe, e a impressão que causava era muito desagradável.

Uma obscura ideia surgiu no meu espírito e evocou em todo o meu corpo uma sensação desagradável, semelhante à que se experimen-
taria ao penetrar num subterrâneo úmido, sufocante. Pareceu-me pouco natural que esses dois olhos se pusessem a examinar-me somente agora e precisamente nesse instante. Lembrei-me também que durante as duas horas que acabavam de transcorrer eu não tinha trocado uma só palavra com esse ser e não tinha mesmo julgado que isso fosse necessário; ao contrário, tinha encontrado algum prazer nesse silêncio. Mas, nesse momento, vi claramente o absurdo, o horror da devassidão que, sem amor, brutalmente, impudentemente, começa diretamente por aquilo que coroa o verdadeiro amor. Nós nos olhamos assim durante muito tempo; mas ela não baixou os olhos diante dos meus, e seu olhar não mudou de expressão, se bem que eu sentisse por fim certa inquietude.

— Como te chamas? — perguntei, num tom brusco, para pôr termo à situação.

— Lisa — respondeu ela quase num murmúrio, mas de maneira muito pouco amável e desviando o olhar.

Calei-me.

— Que tempo hoje!... A neve... é bem triste! — disse eu quase comigo mesmo, cruzando, num gesto melancólico, os braços atrás da nuca e fixando o teto.

Ela não respondeu. Era atroz.

— És daqui? — indaguei de novo, quase zangado, e voltando-me ligeiramente para ela.

— Não.

— De onde vens?

— De Riga — respondeu ela a contragosto.

— És alemã?

— Não, russa.

— Há muito tempo aqui?

— Aqui, onde?

— Nesta casa.

— Duas semanas.

Sua voz se fazia cada vez mais contida. A candeia tinha se apagado e eu não podia mais distinguir seu rosto.

— Tens pai e mãe?

— Sim... não... sim.

— Onde estão?

— Lá em Riga.

— Que fazem?

— Nada de especial.

— Como? Quem são eles? Qual é a condição deles?

— Pequeno-burgueses.

— Moravas com eles?

— Sim.

— Que idade tens?

— Vinte anos.

— Por que os deixaste?

— Por deixar.

Esse “por deixar” significava: “Não me amole, estou aborrecida.” Calamo-nos.

Deus sabe por que não me fui embora. Eu também me sentia cada vez mais desgostoso e angustiado. Por si mesmas, e sem o menor esforço da minha parte, as imagens dos acontecimentos do dia que acabava de se escoar repassavam em desordem na minha memória. Lembrei-me bruscamente de uma cena de que fora testemunha na rua, enquanto corria muito preocupado para a minha repartição.

— Saía um caixão de defunto esta manhã e quase o derrubaram.

Pronunciei estas palavras em voz alta, sem mesmo prestar atenção, não pensando absolutamente em renovar nossa conversa, quase sem o fazer por vontade própria.

— Um caixão?

— Sim, na praça dos Fenos. Tiraram-no de um porão.

— De um porão?

— Sim, de um quarto no subsolo... Enfim, tu compreendes... Uma casa má... Que sujeira em torno... Escamas, detritos... Aquilo fedia... Que horror!...

Silêncio.

— É muito desagradável enterrar alguém hoje — comecei de novo, à toa, só para não ficar calado.

— Por quê?

— O frio, a umidade (bocejei).

— Que importa? — disse ela de repente, depois de um silêncio.

— Não, é muito triste (bocejei novamente). Os coveiros praguejavam, provavelmente porque a neve os enregelava e a cova certamente estava cheia de água.

— E por que haveria água na cova? — perguntou ela com uma espécie de curiosidade, mas num tom ainda mais cortante, ainda mais brutal que antes.

Senti de súbito alguma coisa despertar em mim.

— Como então! Há sempre quinze centímetros de água. Não há uma só cova seca no cemitério de Volkovo.[ 16 ]

— Por quê?

— Por quê? Mas porque o solo é alagadiço; por toda parte há lodaçais. Coloca-se o caixão diretamente na água. Eu vi diversas vezes.

(Eu não tinha visto nunca e nunca tinha ido ao cemitério de Volkovo, mas tinha ouvido contar.)

— Para ti é verdadeiramente indiferente morrer?

— Mas por que então devo morrer? — respondeu ela como se se defendesse.

— Mais dia menos dia tu morrerás, e morrerás como a defunta de que te falei... Era uma mocinha também... Morreu de tísica.

— Uma mulher da vida morreria no hospital...

“Ela já sabe disso”, disse a mim mesmo, “e ela disse: uma mulher da vida, e não uma moça.”

— Ela devia muito à patroa — respondi. A conversa me excitava cada vez mais. — E continuou a trabalhar quase até o último suspiro, se bem que tivesse tísica. Os cocheiros que estavam lá falavam disso com os soldados. Eram provavelmente antigos amigos. Riam, e se preparavam para esvaziar um copo à sua memória no botequim (aí também eu havia exagerado muito).

Silêncio. Silêncio profundo. Ela não fazia mesmo nenhum movimento.

— E o hospital? É melhor para morrer?

— Não é a mesma coisa? E depois, por que é preciso que eu morra? — acrescentou ela irritada.

— Não agora, mas mais tarde.

— Haverá tempo...

— Não penses nisso! Tu agora és jovem, bonita, viçosa, e por isso apreciam-te aqui. Mas, no fim de um ano desta existência, serás outra; estarás já fanada.

— No fim de um ano?

— Em todo caso, dentro de um ano valerás menos — insisti malvadamente. — Deixarás esta casa por outra inferior. Depois, mais outro ano ainda, passarás para uma terceira, cada vez mais baixo, e no fim de seis ou sete anos naufragarás num quarto de porão, na praça dos Fenos. E ainda está bem; será pior se caíres doente... Uma doença do peito ou outra... Se apanhas friagem... Com esse gênero de vida a doença se agravará; ela não te largará mais. E por fim, morrerás.[ 17 ]

— Morrerei, e depois? — proferiu ela com voz rancorosa; e teve um brusco movimento do corpo.

— Não seria triste?

— Que tenho eu a lamentar?

— A vida.

Silêncio.

— Tinhas um noivo?

— Que lhe importa?

— Não te interrogo. A mim tanto faz! Por que te zangares? Certamente tiveste teus desgostos. Isso não me diz respeito. Mas tenho pena.

— De quem?

— De ti.

— Não vale a pena — murmurou ela baixinho, e de novo fez um brusco movimento.

Aquilo me irritou: como! Eu tinha sido afável com ela, e eis que...

— Mas que pensas, então? Pensas que estás num bom caminho?

— Não penso nada.

— Esse é que é o mal. Volta a ti, pois ainda é tempo! Ainda é tempo. És jovem, bela. Poderias amar, casar, ser feliz...

— Nem todas as casadas são felizes — respondeu ela, no mesmo tom brutal.

— Nem todas, é certo; e, entretanto, tudo é melhor que permanecer aqui. Não há comparação. Se se ama, pode-se mesmo dispensar a felicidade. A vida é bela mesmo no sofrimento. É bom viver, qualquer que seja essa vida. Enquanto aqui!... É uma podridão. Horror!

Voltei-me com desgosto. Tinha deixado de raciocinar friamente. Começava a sentir realmente as coisas sobre as quais discorria; tomava impulso. Aspirava já a desenvolver as minhas ideiazinhas preferidas que tinha incubado no meu canto. Alguma coisa se tinha aclarado de súbito em mim, um fim tinha me aparecido.

— Não repares na minha presença aqui. Tu não deves me tomar como exemplo. Sou, talvez, pior do que tu. De resto, eu estava bêbado quando entrei (diligenciava, entretanto, me escusar). E, depois, a mulher não pode imitar o homem. São coisas bem diferentes. Eu me sujo aqui, emporcalho-me, mas não sou escravo de ninguém. Entro, saio, e pronto. Sacudo-me e já sou outro. Enquanto tu! Antes de tudo, és uma escrava. Sim, uma escrava. Abandonas tudo, toda a tua vontade. Mais tarde, ainda procurarás romper esta cadeia, mas já não haverá meio. Ela te apertará cada vez mais estreitamente. Tal é esta maldita cadeia. Eu a conheço. Já não falo do resto. Tu não me compreenderias, provavelmente. Mas dize-me: certamente já deves à tua patroa? Pois bem, tu vês! — acrescentei, se bem que ela não tivesse respondido, mas se contentasse em me escutar silenciosamente, com todo o seu ser. — Eis aí já uma primeira cadeia. Não te libertarás nunca; tomarão medidas para isso. É como se tivesses vendido a tua alma ao diabo. E depois, que sabes tu? Talvez que eu seja tão desgraçado como tu e mergulhe na lama para esquecer minhas penas. Alguns bebem para esquecer. Pois bem, eu venho aqui. Dize-me... está bem?.. Nós nos deitamos... e não trocamos uma única palavra; foi somente depois que começaste a me examinar como uma selvagem e que eu, por minha vez, te olhei. É assim que se ama? É assim que o homem e a mulher devem se unir? É pura e simplesmente lamentável.

— Sim! — proferiu ela em voz rápida e cortante. A precipitação desse “sim” até me surpreendeu. Esse pensamento errava então também em sua cabeça, enquanto ela me contemplava antes. Ela era pois capaz de ter ideias. Diabo! Isto se torna interessante; há então uma certa compreensão, pensei, esfregando as mãos. Como não ir assim ao fundo de uma alma tão jovem!...

O jogo me arrastava cada vez mais.

Ela avançou a cabeça para mim e a apoiou nos braços, pareceu-me, na obscuridade. Estar-me-ia examinando? Como eu lamentava não distinguir seus olhos! Ouvia sua respiração profunda.

— Por que vieste para aqui? — perguntei-lhe já com certa autoridade.

— Porque vim.

— E, contudo, como se está bem na casa paterna! Como é tépido e confortável ali! Era teu ninho.

— E se estivesse ali pior que aqui?

“É preciso encontrar o tom justo”, disse comigo mesmo. “Com sentimentalismo não obterei grande coisa.”

De resto esse pensamento apenas atravessou meu espírito. Juro que essa mulher efetivamente me interessava; demais, estava enfraquecido e disposto aos sentimentos generosos, com os quais a astúcia faz muito facilmente boa camaradagem.

— Quem o negará? Tudo acontece — respondi precipitadamente. — Estou certo, por exemplo, que te ofenderam, e que a culpa lhes cabe primeiro a eles, que o erro não é teu, mas deles. Nada sei da tua história; mas uma rapariga como tu não entrou aqui certamente por livre e espontânea vontade.

— Que é que significa “uma rapariga como eu”? — murmurou ela com voz apenas perceptível; mas eu a ouvi assim mesmo.

Diabo! Eu a lisonjeio. É covarde. Mas talvez que vá muito bem...

Ela se calava.

— Vê, Lisa, eu te citarei meu exemplo. Se eu tivesse tido uma família, quando criança, não seria hoje o que sou. Refleti a esse respeito frequentemente. Por pior que te sintas entre a família, teu pai e tua mãe não são, de modo algum, para ti, inimigos, estranhos. Eles te exprimirão amor, ao menos uma vez por ano. Apesar de tudo sabes que estás em tua casa. Agora, eu, não tinha família, e foi provavelmente por causa disso que me tornei tão... insensível.

Esperei de novo.

“Ela não compreende, talvez”, pensei. “É ridículo dar-lhe lições de moral.”

— Se eu fosse pai e se tivesse uma filha, creio que a amaria mais que um filho; estou certo. — Tentava tomar as coisas por longe, a fim de a distrair. Confesso: enrubescia.

— Por quê? — perguntou ela.

Ah! Então ela me escuta.

— Não sei, Lisa. Vês, eu conhecia um pai; era um homem severo e duro. Mas estava de joelhos diante da filha; abraçava seus pés, suas mãos, não cessava de admirá-la. Ela dança, no baile, e ele fica durante cinco horas de pé, no mesmo lugar, e não a perde de vista. Era doido por ela. E eu compreendo isso. Durante a noite, enquanto ela dorme, ele se levanta, vem abraçá-la e abençoá-la, durante o sono. Era avarento para os outros e passeava ele próprio vestido com um velho redingote ensebado; mas, para ela, não olhava despesas; dava-lhe presentes caros; e qual não era sua alegria quando ela se mostrava contente! Os pais amam sempre as filhas, mais que as mães. As filhas são geralmente felizes na casa paterna. Por mim, se tivesse uma filha, creio que não a deixaria casar.

— Ora veja! Por quê? — disse ela, sorrindo ligeiramente.

— Eu teria ciúmes, na verdade. Como poderia ela abraçar um estranho? Como poderia amar alguém mais que a seu pai? É penoso pensar nisso. Não passam de tolices, evidentemente, e a gente se torna finalmente razoável. Mas parece-me que antes de casá-la teria tido muito cuidado com os pretendentes e teria eliminado todos, um depois do outro, para acabar entretanto casando-a com aquele que ela amasse. Ora, o homem que a filha ama é precisamente aquele que desagrada mais ao pai. Sim, é isso mesmo. E acontecem muitas desgraças por causa disso, nas famílias.

— Há os que ficam felizes por venderem a filha, e não por casá-las, honradamente — disse ela de súbito.

Ah! Então é disso que se trata!...

— Isso, Lisa, não acontece senão nas famílias amaldiçoadas, onde não há nem Deus nem amor — repliquei ardentemente. —
E onde o amor não está, a razão está do mesmo modo ausente. Tais famílias existem, é verdade, mas não é delas que falo. Vejo que não foste feliz na tua casa, pois que falas assim. Sim, com efeito, és uma desgraçada. Hum... É a pobreza, geralmente, a causa de todos esses males.

— E entre os bem-nascidos as coisas se passam de maneira diferente? As pessoas honestas vivem felizes mesmo na indigência.

— Hum... Sim. Bem pode ser. E depois, Lisa, acontece ainda que o homem só repara no seu sofrimento e não se detém na sua felicidade. Se refletisse na sua felicidade, veria que a cada uma das etapas de sua vida cabe um quinhão dela. Mas se tudo vai bem na família, se Deus a abençoou, se o marido é bom, se ele se ocupa de ti, se não te deixa... Como se está bem então nessa família! Mesmo se a desgraça aí penetra. Aliás, desgraça não entra em toda parte? Se
te casares, um dia tu mesma o saberás, talvez. Tomemos, para comparação, os primeiros tempos de tua existência com aquele que amas: quanta felicidade, às vezes! Quanta felicidade! E isto acontece constantemente. As próprias brigas terminam bem entre vocês nesses primeiros tempos. Há algumas que, quanto mais amam o marido, mais procuram brigar com ele. Eu te asseguro; conhecia uma desse tipo: “Eu te amo tanto! E te faço sofrer a fim de que repares.” Conheces isso? Pode acontecer que se atormente um homem precisamente por amá-lo. As mulheres fazem isso. E durante esse tempo, ela pensa: “Eu te amarei de tal modo, eu te acariciarei tanto, que verdadeiramente deve ser-me permitido te atormentar um pouco agora.” E todos em torno de vocês partilham sua alegria; tudo está bem, decente, pacífico e alegre. Há as que são ciumentas. Se ele sai — conhecia uma que procedia assim —, ela não o suporta. Levanta-se de noite e corre a ver se ele não está em tal lugar, com tal mulher. Isso é muito mau. Ela própria o sabe; seu coração sofre, ele se julga e se condena; mas que queres? Ela o ama! Mas como é boa a reconciliação, depois de ter brigado! Pedir-lhe perdão, ou então, pelo contrário, perdoá-lo. Os dois se sentirão tão bem! Como se acabassem de se encontrar, como se somente tivessem acabado de se casar, e seu amor não estivesse senão no começo... E ninguém, ninguém deve conhecer o que se passa entre marido e mulher, se eles se amam verdadeiramente. Quaisquer que sejam as desavenças, não devem tomar como juiz nem mesmo sua mãe e nem contar seja o que for. São eles mesmos os seus próprios juízes. O amor é um mistério divino e que deve permanecer escondido aos olhos de todos, aconteça o que acontecer. É melhor assim, é mais santo. Estimam-se mais, e é sobre a estima que se edificam muitas coisas. E se se é amado, se se casou por amor, por que é preciso que o amor morra? Não será possível, em verdade, mantê-lo vivo? É raro que isso não seja possível. Se o marido é bom e honesto, por que não o conseguiriam? O primeiro amor passará, é verdade, mas um outro se seguirá, muito superior. As almas se unirão então, tudo será posto em comum, não terão segredos um para o outro. E quando vierem os filhos, tudo então parecerá belo, mesmo as coisas mais difíceis, contanto que se ame e se tenha coragem. O próprio trabalho está cheio de alegria, e é com alegria também que se tira o pão da boca, para o dar aos filhos. Pois eles te amarão por isso, mais tarde. Será então por ti que economizas. Os filhos crescem; sentes que lhes serves de exemplo, que és o seu amparo, que quando morreres eles guardarão sempre dentro de si os teus pensamentos, os sentimentos recebidos de ti, e serão feitos à tua imagem. Isto, pois, te impõe um grave dever... Nestas condições, como não se uniriam mais estreitamente ainda marido e mulher? Diz-se que é penoso ter filhos. Quem diz isso? Pelo contrário, é uma alegria divina. Gostas de crianças, Lisa? Eu as adoro. Tu vês... um bebezinho cor-de-rosa que suga o seio... Que marido não se enterneceria vendo a esposa com o filho nos braços?... Uma criancinha rosada, rechonchuda, ela se joga para trás, brinca... Pezinhos, mãozinhas gordas e cheias, pequeninas unhas muito limpas, tão pequenas que são mesmo cômicas, olhinhos que parecem já tudo compreender. E, mamando, dá tapinhas no teu seio; ela brinca, ela te dá puxões. O pai se aproxima, ei-la que solta o seio, joga-se para trás, olha o pai e se põe a rir: Deus, como é engraçado! Depois, volta a mamar. De outra vez, morderá o seio de sua mãe, se os dentes se põem a crescer, e lhe deitará ao mesmo tempo um olhar malicioso: “Tu o sentes? Eu te mordi!...” Não é a felicidade, a felicidade completa, quando estão todos juntos, o pai, a mãe e o filho? Pode-se perdoar muito por esses instantes. Não, Lisa, antes de acusar os outros, é preciso ainda aprender por si mesmo a viver!

“É com esses quadros, precisamente com esses quadros que é preciso agir sobre ti!”, pensei comigo mesmo, se bem que tivesse falado muito sinceramente, juro! De súbito, senti-me corar... “E se ela
desata a rir, onde me esconderei?” Esta ideia me deu raiva. Para o fim do meu discurso, eu estava muito excitado, e agora meu amor-próprio sofria. O silêncio durava. Tive mesmo desejo de a repelir.

— Que é que o senhor... — começou ela; depois parou.

Mas eu já tinha compreendido tudo. Alguma coisa diferente tremia já na sua voz: não se distinguiam mais a brutalidade e a obstinação de antes, mas um sentimento doce, pelo contrário, pudico, tão pudico, que me senti de repente envergonhado diante dela e culpado.

— O quê? — perguntei com terna curiosidade.

— O senhor...

— Mas o quê?

— Dir-se-ia que está lendo num livro — disse ela; e de novo acreditei surpreender uma zombaria na sua voz.

Essa observação me feriu dolorosamente. Esperava outra coisa.

Não compreendi que ela disfarçava seus sentimentos, sob um tom de gracejo, que era a última astúcia dos corações pudicos e solitários que se quer brutalmente penetrar e que, até o derradeiro minuto, recusam orgulhosamente se render e temem manifestar seus sentimentos. Só de acordo com a timidez que ela manifestou retomando várias vezes sua frase escarninha antes de se decidir a pronunciá-la, só de acordo com isso, eu teria podido compreender tudo; mas não adivinhei coisa alguma, e um mau sentimento se apoderou de mim.

“Espera um pouco!”, disse comigo mesmo.

 

II


— Ah! Lisa! Trata-se realmente de livros! Isto não me concerne, mas estou aborrecido. E, por outro lado, comove-me também. Minha alma despertou. É verdade que não te sentes profundamente desgostosa aqui? Sim, o hábito é uma grande coisa. O diabo sabe até onde o hábito pode levar o homem. Crês seriamente que não envelhecerás nunca, que serás sempre bonita e que te conservarão sempre aqui? Não te falo da lama deste lugar; mas eis o que te direi de tua existência nesta casa: tu agora és jovem, bonita, viçosa, tens uma alma, sentimento; mas sabes que quando voltei a mim foi-me penoso encontrar-me junto de ti? Só se vem encalhar aqui quando se está completamente embriagado. Enquanto que, se eu tivesse te encontrado em outro lugar, se tivesses vivido como vivem as pessoas honestas, é possível que não só eu te houvesse feito a corte, mas tivesse me apaixonado por ti, que eu tivesse ficado feliz com o teu olhar e não somente com uma palavra. Eu teria talvez te esperado à porta, teria passado horas a teus pés, considerar-te-ia minha noiva e acreditaria que me fazias uma grande honra. Não teria ousado te macular, mesmo em pensamento. Ao passo que aqui é suficiente assobiar e tu acorres e és obrigada a me seguir, queiras ou não; não sou eu que dependo da tua vontade, mas tu que dependes da minha. Quando o último dos mujiques se ajusta para trabalhar, não se vende, contudo, completa e inteiramente, e, além disso, sabe que é só por certo tempo. E tu? Qual é esse tempo? Pensa um pouco no que vendes aqui, no que entregas na tua escravidão! É tua alma, com teu corpo! Não podes mais dispor de tua alma. Entregas teu amor ao primeiro bêbado que passa, para que ele o espezinhe. Mas o amor é tudo. É um diamante, é o tesouro da moça, o amor. Para obtê-lo, a esse amor, há os que são capazes de se arriscarem até a morte, de perderem sua alma. E aqui, quem considera esse amor? Compram-te inteiramente. E quem tem necessidade de teu amor, pois
que já obtiveram tudo de ti, mesmo sem amor! Não pode haver ofensa mais atroz para uma moça, compreende-o, pois!

“Ouvi dizer que as lisonjeiam aqui, a vocês, tolas, e que se lhes permite ter amantes. Mas isso não é senão uma farsa, uma mentira. Riem-se de vocês e vocês creem nisso. Teu amante pode verdadeiramente te amar? Não o admito. Como pode te amar quando sabe que vão te chamar e que deverás deixá-lo por outro? É um sujo se consente nisso. É possível te estimar, por pouco que seja? Que têm vocês de comum? Ele ri de ti e ainda por cima te rouba o lucro. Eis em que consiste todo o seu amor. E ainda és feliz se ele não te bate. Aliás, talvez te bata. Pergunta ao teu, se o tens, se ele quer te des-
posar. Rebentará de rir na tua cara, se não te cuspir, ou se não te bater. Mas ele mesmo não vale mais que dois tostões furados. E por que, pensa, enterraste aqui tua existência? Para que te deem café, para que te alimentem bem? Mas com que fim te alimentam? Uma outra, uma moça honesta, não seria mesmo capaz de engolir um bocado, porque compreenderia com que fim a sustentam. Tu já deves à patroa; dever-lhe-ás ainda mais, e até o fim de teus dias tu lhe deverás, sempre mais, até que os fregueses, desgostosos, nada mais queiram de ti. Isso acontecerá logo. Não tenhas confiança em tua juventude. O tempo aqui corre a galope. Qualquer dia te mostrarão a porta da rua. Mas, antes de te expulsarem, serás perseguida ainda com censuras e insultos, como se não tivesses dado à tua patroa tua juventude, tua saúde, como se não lhe tivesses entregado tua alma; mas dirão que causas sua ruína, como se a tivesses roubado e mergulhado na miséria. E não esperes auxílio de ninguém! As outras, tuas companheiras, te cairão também em cima, para lisonjearem a patroa, porque elas estão todas na escravidão aqui e perderam, já há muito tempo, toda a piedade, toda a consciência. São covardes, e não há sobre a terra insultos mais torpes, mais vis, mais cruéis que aqueles que elas te farão tragar. Abandonarás tudo aqui, sem sequer notá-lo: saúde, juventude, beleza, esperanças, e aos 22 anos terás já o aspecto de uma mulher de trinta. Ainda serás feliz se não caíres doente! Dá graças a Deus! Tu imaginas, estou certo, que não trabalhas, que é continuamente festa para ti. Mas não há e nem houve jamais trabalho tão penoso quanto o teu, e teu coração deveria fundir-se em lágrimas.

“E não ousarás pronunciar uma única palavra, nem mesmo meia palavra, quando te expulsarem daqui. Partirás curvada como uma culpada. Irás para uma outra casa, depois para uma terceira, depois ainda para outra parte, e finalmente naufragarás na praça dos Fenos; e lá não cessarão um instante de te bater, por nada, ao passares. Tal é a lei do lugar. Ali, o freguês é incapaz de te abraçar sem antes te bater. Não queres crer que seja tão horrível? Vai lá uma vez! Talvez possas ver com teus próprios olhos.

“Vi uma vez, na véspera do Ano-Novo, uma dessas mulheres. Puseram-na para fora, por caçoada, para ‘refrescá-la’, um pouco, porque berrava demais; e depois lhe fecharam a porta. Às nove horas da manhã estava já completamente bêbada, desgrenhada, seminua, o corpo zebrado de vergões. Seu rosto estava pintado em demasia; mas sob os olhos viam-se grandes manchas negras, e o sangue lhe corria da boca e do nariz. Fora posta nesse estado por um cocheiro de fiacre. Sentada nos degraus de pedra da escada, segurava um peixe salgado. Berrava, repetia com obstinação as mesmas frases sobre a sua desgraçada sorte, e batia nos degraus com o seu peixe salgado. Cocheiros, soldados, bêbados estavam reunidos em torno dela; riam, divertiam-se em excitá-la. Não queres admitir que serás semelhante a essa mulher. Eu também não quero acreditar. Mas que sabes tu? Há oito ou dez anos, essa mesma mulher do peixe salgado chegava aqui, não sei de onde, fresca como um querubim, inocente, limpa, não conhecendo nada do mal, enrubescendo a cada palavra. Talvez fosse parecida contigo, altiva e suscetível, com olhares de rainha, e persuadida de que uma felicidade imensa havia de tocar àquele que a amasse e que ela também amasse. Vês como isso terminou.

“E que dizes se no momento mesmo em que socava os degraus de pedra com o seu pedaço de peixe salgado, bêbada e desgrenhada, ela se lembrasse, nesse momento exato, de seus puros anos passados na casa paterna, quando ainda ia à escola e quando o filho do vizinho a esperava no caminho e lhe jurava que a amaria eternamente e lhe consagraria a vida inteira, depois do que se tinham prometido amor eterno e decidido se casar assim que crescessem?...

“Não, Lisa! Seria uma felicidade para ti, sim, uma felicidade, se pudesses morrer num canto, num porão, como essa tísica de que te falei antes. Falas de hospital. Terás muita sorte se te levarem para lá! Mas imagina que a tua patroa ainda precisa de ti. A tísica não é um acesso de febre. O doente conserva a esperança até o derradeiro minuto e diz que se sente bem; engana-se a si mesmo, o que é muito vantajoso para a patroa. Sim, é isso mesmo. Vendeste-lhe a alma, e, ainda por cima, lhe deves dinheiro. Então, não tens mais o direito nem de abrir a boca. E quando agonizares, toda a gente te evitará e abandonará, pois para que servirás nessa altura? Mas ainda te censurarão por ocupares espaço demais e por não morreres bem depressa. Não poderás mesmo conseguir um pouco de água; e, se ta derem, será te injuriando: ‘Quando arrebentarás enfim, estafermo? Tu nos impedes de dormir com teus gemidos, os fregueses estão aborrecidos.’ Sim, é assim mesmo. Eu próprio ouvi tais censuras. Lançar-te-ão meio morta no canto mais escuro, mais fétido de um porão... Aí é úmido, sombrio. Em que pensarás então, estendida, só? E, quando por fim morreres, mãos estranhas te amortalharão às pressas, com impaciência, praguejando. Ninguém suspirará, pensando em ti, ninguém virá abençoar teu corpo; mas se apressarão em se desembaraçar de ti, o mais depressa possível. Comprarão um caixão grosseiro e te levarão assim como levaram hoje aquela desgraçada; e depois irão beber um copo à tua memória. A cova está cheia de lama, de neve derretida. Mas não é por ti que farão cerimônias! ‘Vamos, Vânia, desce por aqui! É o destino dela! Até aqui continua a virar as pernas para cima... Estica as cordas, animal!’ ‘É bem assim!’ ‘Mas não vês que ela está deitada de lado! Apesar de tudo, era um ser humano. Enfim, não importa, joga terra!’ Eles nem mesmo quererão discutir muito tempo a teu respeito. Cobrir-te-ão o mais depressa possível com uma camada de terra lamacenta e irão ao botequim. Será teu fim, e não pensarão mais em ti. Veem-se, junto de outros túmulos crianças, pais, maridos, mas sobre o teu nem uma lágrima, nem um suspiro; e ninguém, jamais ninguém no universo inteiro parará junto de tua cova. Teu nome desaparecerá da face da terra, como se nunca tivesses existido, como se nem mesmo tivesses nascido. O lodo, o pântano... De noite, podes bater quanto quiseres na tampa do caixão, à hora em que os mortos se levantam: ‘Deixem-me sair, boa gente! Quero ver a luz! Vivi sem viver; minha vida serviu de tapete para os pés dos transeuntes; beberam-na, venderam-na, na praça dos Fenos! Deixem-me sair, boa gente! Quero viver ao menos uma vez!’”

Eu estava em êxtase, espasmos me contraíam a garganta e... parei bruscamente, ergui-me horrorizado no leito, e inclinando assustadamente a cabeça, coração batendo, prestei atenção: havia por que sentir perturbação.

Havia já alguns momentos que suspeitava ter-lhe transtornado a alma e partido o coração; porém, quanto mais tinha certeza disso, mais completa, mais rápida eu queria minha vitória. O jogo, sim, o jogo me arrastava, mas, de resto, não era unicamente um jogo...

Eu sabia que falava pesadamente, canhestramente, num estilo livresco; mas isso não me perturbava. Sabia que seria compreendido, e que esse tom livresco me seria de grande ajuda nesse transe. Mas nesse instante, tendo atingido meu fim, tive medo.

Não, nunca, nunca fui testemunha de tão grande desespero. Ela estava deitada, com o rosto profundamente enterrado no travesseiro que apertava nos braços. Os soluços dilaceravam-lhe o peito. Todo o jovem corpo lhe tremia, como que tomado de convulsões. Os soluços que se lhe acumulavam na garganta e a sufocavam de súbito se escapavam em gritos, em altos lamentos. Então ela afundava ainda mais a cabeça no travesseiro; não queria que ninguém, que nenhuma alma soubesse aqui do seu sofrimento e das suas lágrimas. Mordia o travesseiro, mordeu mesmo o braço até sangrar (verifiquei mais tarde), ou então, mergulhando os dedos nos cabelos esparsos, permanecia assim tensa, num esforço atroz, retendo a respiração, os dentes cerrados.

Tentei dizer-lhe alguma coisa, pedir-lhe que se acalmasse, mas senti que não tinha coragem, e, de súbito, como que tomado de pânico, lancei-me às apalpadelas, cheio de horror, a fim de me vestir e de escapar. Estava escuro; malgrado todos os esforços, não podia andar depressa. De repente encontrei sob a mão uma caixa de fósforos e um castiçal com uma vela inteira. Mal a luz clareou o quarto, Lisa pulou e sentou-se no leito, com o rosto contraído, e me olhou com um sorriso quase de louca, o ar imbecilizado. Sentei-me ao lado dela e tomei-lhe as mãos; ela voltou a si, atirou-se para mim, quis me rodear com os braços, mas não ousou e baixou lentamente a cabeça.

— Lisa, minha amiga, fiz mal... Perdoa-me — comecei; porém ela apertou tão fortemente minhas mãos entre seus dedos que adivinhei não estar dizendo o que era necessário; calei-me. — Eis meu endereço, Lisa! Vem me ver.

— Irei — murmurou num tom resoluto, não levantando entretanto a cabeça.

— Vou-me embora agora. Adeus... Até breve!

Levantei-me; ela se levantou também, depois, de súbito, corou muito, teve um sobressalto, apanhou um xale de cima de uma cadeira e cobriu o colo e as espáduas até o queixo. Após o que teve de novo um sorriso desajeitado, corou ainda e me olhou estranhamente. Isso me fez mal; eu tinha pressa de sair, de desaparecer.

— Espere um instante — disse ela de súbito, na saleta, junto da porta, segurando-me pela aba do casaco. Largou o castiçal e partiu correndo; tinha evidentemente esquecido alguma coisa que queria me mostrar. Estava toda corada, seus olhos brilhavam, seus lábios sorriam; que poderia ser? Esperei. Voltou ao cabo de um minuto; seu olhar parecia querer se desculpar. Não era mais o mesmo rosto, o mesmo olhar de antes, sombrio, suspeitoso e obstinado; seu olhar era doce agora, quase implorativo, e ao mesmo tempo confiante, carinhoso e tímido. É assim que as crianças olham aqueles que amam e aos quais pedem alguma coisa. Seus olhos eram de um castanho-claro, belos olhos vivos, sabendo exprimir o amor e o ódio.

Julgando inútil explicar-me fosse o que fosse, como se eu fora um ser superior que compreendesse tudo sem explicação, ela me estendeu um pedaço de papel. Todo o seu rosto se iluminou nesse instante de uma alegria ingênua, quase infantil. Tomei o papel: era uma carta a ela dirigida por um estudante de medicina, creio, uma declaração de amor muito solene, muito floreada, mas extremamente respeitosa. Não me recordo agora das expressões, mas lembro-me bem de ter sentido palpitar, através do estilo empolado, esse sentimento autêntico, que é impossível disfarçar. Quando terminei de ler, encontrei, fixo em mim, o seu olhar ardente, curioso e impaciente como o das crianças. Seus olhos estavam presos aos meus, e ela esperava febril o que eu ia dizer-lhe. Em algumas palavras rápidas, mas com uma espécie de alegre altivez, explicou-me que tinha sido convidada para uma vesperal dançante em casa de família, gente muito, muito fina, “onde não se sabia nada ainda, absolutamente nada” (pois não faz muito tempo que ela está aqui, para ver somente, e está decidida a não permanecer; assim que pagar sua dívida, irá embora). E aí está, o estudante estava também nessa vesperal; dançou todo o tempo com ela e descobriu que já se conheciam em Riga, quando crianças, e que tinham brincado juntos, mas há muito tempo; ele conhecia também os pais dela. Mas não sabe nada da sua situação, nada, absolutamente nada, e não tem a menor suspeita. E eis que no dia seguinte (há três dias) mandou-lhe aquela carta, por intermédio de uma amiga que a tinha acompanhado à vesperal, “e... pronto, é tudo”.

Quando terminou seu relato, abaixou, confusa, os olhos cintilantes.

A pobrezinha conservava essa carta como um objeto precioso, e tinha me mostrado seu único tesouro, a fim de que eu pudesse verificar, antes de partir, que se podia amá-la, a ela também, honestamente, sinceramente, que se podia escrever-lhe, a ela também, num tom respeitoso. Essa carta estava certamente destinada a ficar ali numa caixa, não teria nenhuma continuação. Não importa, estou seguro de que ela a conservou toda a vida como um objeto precioso; era seu orgulho, sua justificação. Tinha se lembrado dela nesse instante e ma trouxera para se vangloriar ingenuamente, para reconquistar minha consideração, para eu a felicitar. Não lhe disse nada; apertei-lhe a mão e saí. Tinha tanta vontade de sair!...

Fiz a pé todo o trajeto até a casa, se bem que a neve derretida continuasse a cair em grossos flocos. Sofria, estava arrasado, sentia-me inteiramente perplexo; mas, através dessa perplexidade, entrevia já a verdade. Uma verdade muito feia.

 

III


Não consenti, de resto, em admiti-la logo, essa verdade. Despertando na manhã seguinte, depois de algumas horas de um sono de chumbo, e tendo repassado os acontecimentos do dia, admirei-me até do excesso de sentimentalismo que tinha tido junto a Lisa, de todas as coisas atrozes e lamentáveis que lhe tinha dito. “Como se pode ter os nervos a tal ponto alterados! É aborrecido! E que necessidade tinha eu de lhe dar meu endereço? Que fazer, se ela vier? Aliás, que venha logo! Não é nada, não é nada.”.........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................

À tarde, saí para passear. A cabeça ainda me doía e eu tinha vertigens.

Mas, à medida que a noite caía e a obscuridade se fazia mais densa, minhas impressões e em seguida minhas ideias se misturavam, se confundiam. Havia alguma coisa em mim, no fundo do meu coração, no fundo da minha consciência, alguma coisa que não queria morrer e que se revelava por uma estranha angústia. Eu vagueava pelas ruas mais frequentadas, de comércio mais intenso: a Miesstchanskaia, a Sadovaia, perto do jardim de Yussupov. Gostava sobretudo de passear por essas ruas ao cair da tarde, precisamente quando estão cheias de gente — transeuntes apressados, comerciantes, artesãos que, terminado o trabalho, retornam aos lares, as feições marcadas pela fadiga. O que me agradava era justamente essa agitação vulgar da vida cotidiana. Mas, dessa vez, todo esse tumulto me enervou ainda mais. Não conseguia mais me dominar. Alguma coisa despertava na minha alma, despertava dolorosamente e não consentia em se apaziguar. Voltei para casa completamente desorientado. Dir-se-ia que tinha um crime na consciência.

Estava atormentado pelo pensamento de que Lisa ia chegar. Coisa estranha, entre todas as minhas lembranças da véspera, a de Lisa permanecia à parte e me atormentava singularmente. À tarde eu tinha já deixado de pensar em tudo o mais, e, aliás, continuava a estar muito satisfeito com a minha carta a Simonov; mas, pensando em Lisa, não me sentia mais contente, e parecia-me que a causa única do meu tormento era precisamente Lisa.

“Que fazer, se ela vier?”, pensava sem descanso. “Pois bem, tanto melhor! Que venha logo. Hum!... E o que é sobretudo desagradável é que ela verá como eu vivo. Ontem desempenhei diante dela o papel de um herói, e agora... Fiz mal em me deixar levar assim: esta casa é miserável. E como pude eu ir jantar com esta roupa! E esse divã de encerado, todo rasgado, que deixa escapar as crinas todas! E meu roupão todo rasgado!... Ela verá tudo isso, verá Apolo. Esse animal vai ofendê-la na certa; arranjará um pretexto qualquer, só para me aborrecer. Quanto a mim, de acordo com o meu hábito, terei medo, saltitarei diante dela, apertarei meu roupão em torno do corpo, sorrirei, mentirei. Que horror! Mas ainda não é tudo; há outra coisa mais ignóbil, mais covarde ainda! Sim! Será necessário colocar essa máscara mentirosa!...”

Corei violentamente.

Mentirosa? Era falsa? Eu falava muito sinceramente ontem. Lembro-me. Estava preso de uma emoção verdadeira. Queria despertar nela bons sentimentos. Foi bom que tivesse chorado; isso agiu excelentemente.

Mas eu não conseguia, entretanto, me acalmar. Durante toda a tarde, e mesmo bem depois das nove horas, quando Lisa não podia mais vir, não parei de pensar nela, de vê-la em imaginação, tal como me aparecera na véspera, em certo momento que me havia vivamente emocionado: foi quando acendi um fósforo e iluminei assim seu rosto pálido, contraído, seu olhar doloroso. Como era lamentável seu sorriso nesse instante, falso e tenso! Mas nessa altura ignorava ainda que quinze anos mais tarde eu me lembraria sempre de Lisa sob esse aspecto, com esse mesmo sorriso lamentável e forçado.

No dia seguinte, estava já pronto a considerar tudo o que se tinha passado como um absurdo desmesuradamente exagerado por meus nervos doentes. Eu tinha perfeita consciência dessa tendência do meu caráter e a temia muito: “Exagero sempre”, repetia-me constantemente. “É minha doença.” E entretanto... Entretanto eu me dizia que Lisa viria. Tal era o refrão de todas as minhas reflexões. Isso me preocupava de tal maneira que tinha por vezes acessos de furor. “Ela virá! Ela virá certamente!”, gritava eu, medindo o quarto. “Se não for hoje, será amanhã! Ela me descobrirá! Oh! Maldito romantismo dos corações puros! Oh! Vileza! Oh! Burrice! Oh! Mediocridade dessas vulgares almas sentimentais! Como não compreende!... Não, mas como não compreender...” Mas neste ponto detive-me muito perturbado.

“E como bastaram poucas palavras”, pensei, “e um idílio, um idílio, aliás falso, inventado, para transtornar completamente toda uma existência! O que é um terreno virgem!”

Às vezes ocorria-me ir eu próprio procurá-la, contar-lhe “tudo”, e pedir-lhe que não viesse. Mas então, a esse pensamento, ficava tomado de tal furor que me julgava capaz de esmagar “aquela maldita Lisa”, se ela se encontrasse ao meu alcance; eu a teria insultado, teria enxotado, eu a teria perseguido e espancado.

Um dia se passou, entretanto, depois dois, depois três, e Lisa não vinha. Eu tomava coragem geralmente depois das nove horas e então punha-me até a sonhar muito agradavelmente. “Salvo Lisa, por exemplo, nada mais que conversando com ela, quando vier me ver... Eu a elucido e a desenvolvo. Reparo, por fim, que ela me ama, que me
ama apaixonadamente. Porém, faço que não percebo (por que faço isso, não sei; por gosto dos belos sentimentos, provavelmente). Enfim, toda confusa, trêmula e chorosa, ela se atira a meus pés e me diz que eu sou seu salvador, e que ela me ama mais que tudo no mundo. Estou estupefato. “Lisa”, digo-lhe, “imaginas verdadeiramente que não notei teu amor? Vi tudo, compreendi tudo; mas não ousava me apoderar do teu coração, porque eu tinha influência sobre ti e porque temia que fizesses um esforço para corresponder ao meu amor, e que a gratidão te obrigasse a excitar em ti um sentimento que talvez não existisse. Eu não queria isso porque teria sido tirania da minha parte, teria sido indelicado (em uma palavra, eu me embrulhava aqui nas finuras de sentimentos extraordinariamente nobres, verdadeiramente ‘europeus’, à George Sand); mas agora, tu és minha, és minha obra, és pura, és bela, és minha esposa!”

“E em minha casa, livre e altivamente, entra como dona.”[ 18 ]

Em seguida, nós vivemos felizes, vamos ao estrangeiro etc... Em uma palavra, eu voltava a mim tão envergonhado que acabava por me mostrar a língua ao espelho.

De resto, pensei, não a deixarão sair. Geralmente não lhes permitem sair, sobretudo à tarde (não sei por que me parecia que ela devia vir à tarde e precisamente às seis horas). Mas ela me disse que não estava ainda completamente comprometida e que desfrutava de direitos especiais. Então... Hum!... Diabo, ela virá! Estou certo de que virá!

Por felicidade, eu tinha, para me distrair todo aquele tempo, Apolo e suas insolências, que me punham fora de mim. Apolo era uma praga, uma peste enviada pela Providência. Nós nos atirávamos mutuamente dardos acerados há diversos anos já, e eu o detestava. Meu Deus, como o detestava!, sobretudo em certos momentos! Era um homem já de idade, de aspecto importante e que nas horas vagas era alfaiate remendão. Desprezava-me, não se sabe por que, para além de todos os limites, e me olhava sempre de cima. Aliás, ele olhava todo mundo assim. Bastar-vos-ia ver essa cabeça de cabelos escorridos, de um loiro desbotado, esse topete que ele mandava frisar e besuntava cuidadosamente, essa boca severa em forma de Y, para compreenderdes logo que tínheis diante de vós um ser que nunca duvidava de si mesmo. Era um pedante extremado, o pedante mais perfeito que jamais se encontrou sobre a terra, e dotado de um amor-próprio digno de Alexandre da Macedônia. Estava enamorado de cada um de seus botões, de cada uma de suas unhas; sim, enamorado: seu aspecto o dizia. Tratava-me como um déspota, falava-me muito pouco, e, se lhe acontecia lançar-me um olhar, este era sempre solene, suficiente e um tanto trocista, o que tinha o dom de me dar raiva. Desempenhava suas funções com ar de suprema condescendência. De resto, não fazia quase nada para mim e não se considerava de modo nenhum obrigado a fazer alguma coisa. Nenhuma dúvida era possível: julgava-me ele o último dos imbecis, e, se continuava comigo, é que eu lhe pagava os ordenados. Consentia em não fazer nada por sete rublos por mês. Por causa dele, muito me será perdoado. Meu ódio atingia às vezes uma tal intensidade que só o ruído de seus passos era bastante para me dar convulsões. Mas era principalmente seu ceceio[ 19 ] que me aborrecia. Tinha a língua um pouco grande demais, ou qualquer outro defeito desse gênero, e isso o obrigava a cecear, para sua grande alegria, pois pensava que esse vício de pronúncia acrescentava alguma coisa à sua personalidade. Falava geralmente em voz doce, igual, as mãos atrás das costas e os olhos baixos. Mas me irritava sobretudo quando se punha a ler muito alto os salmos, no seu quarto, atrás do tabique que nos separava. Suportei longos combates por causa dessas leituras. Mas ele muito amava ler à tarde, com voz suave e igual, cantante, como se estivesse à cabeceira de um morto. É assim, com efeito, que acaba sua carreira: fazem-no ler os salmos à cabeceira dos mortos; também destrói os ratos e engraxa sapatos. Mas eu não podia expulsá-lo; dir-se-ia que ele estava ligado à minha existência. Ele próprio, de resto, não teria consentido em me deixar. Era-me impossível viver num hotel mobiliado: minha morada era a minha concha, meu estojo, onde me refugiava e me escondia da Humanidade inteira. E Apolo, o diabo sabe por quê, me parecia parte integrante dessa morada. E eis por que, durante sete anos, eu não pude pô-lo para fora.

Era perfeitamente impossível, por exemplo, atrasar seus salários, nem que fosse por dois ou três dias. Ele teria logo armado um tal escândalo que eu não teria sabido onde me esconder.

Mas eu estava naqueles dias a tal ponto irritado contra o universo inteiro que resolvi bruscamente punir Apolo e demorar durante dois meses o pagamento de seu ordenado. Havia muito tempo — dois anos — que eu preparava esse golpe, unicamente para lhe demonstrar que ele não tinha o direito de se fazer de importante comigo e que sempre me era possível não lhe pagar. Decidi desta vez nada lhe dizer, pelo contrário, calar-me, a fim de lhe vencer o orgulho e obrigá-lo a ser o primeiro a falar-me desse dinheiro. Tirarei então os sete rublos da gaveta, mostrarei que eles estão em minha casa, postos de lado, mas que não quero, sim, que não lhos quero dar, porque tal é meu prazer, porque “tal é minha vontade senhorial”, por-
que ele é insolente, porque ele é grosseiro; mas que, se ele consente em me tratar polidamente, é possível que eu me deixe enternecer e lhe pague, mas que, em caso contrário, ele precisaria esperar duas ou três semanas, um mês inteiro...

Mas, por zangado que eu estivesse, foi ele que triunfou. Não pude resistir mais de quatro dias. Começou por fazer o que fazia sempre nesses casos, pois não era a primeira vez que a coisa acontecia (eu sabia tudo de antemão, previa antecipadamente sua tática ignóbil): para começar, ele me dirigia um olhar severo, durante alguns minutos, de preferência quando eu saía ou entrava. Se eu resistia, se fazia cara de não notar suas manigâncias, então, sempre continuando a guardar silêncio, ele empreendia a segunda série das operações. De repente, sem nenhum motivo, ele entra no quarto a passos lentos, quando me preparo para ler ou passeio de um lado para outro, e ei-lo que se mantém em pé junto à porta, uma perna para a frente, uma das mãos atrás das costas, e se põe a me contemplar, com um olhar não somente severo, mas profundamente desdenhoso. Se lhe pergunto o que ele quer, não responde, continua a olhar para mim alguns segundos ainda, depois, apertando os lábios, com ar significativo, volta-se lentamente e lentamente volta para o seu quarto. Duas horas depois, sai novamente e aparece outra vez. Louco de raiva, não lhe pergunto mais o que quer. Eu próprio, então, levanto a cabeça com um movimento arrogante, autoritário, e ponho-me a olhá-lo bem de frente. Assim demoramos, às vezes, um em face do outro, um ou dois minutos. Finalmente, ele se volta lenta, solenemente, e desaparece de novo por duas horas.

Se isso não agisse sobre mim e se eu continuasse a me insurgir, então ele se punha a suspirar, olhando-me, a suspirar lenta, profundamente, parecendo medir assim toda a profundeza de minha degradação moral, e, naturalmente, tudo terminava pela sua vitória. Eu enraivecia, gritava, mas era assim mesmo obrigado a fazer o que se esperava de mim.

Mas, desta vez, mal desencadeadas as primeiras manobras, consistindo em olhares severos, enfureci-me e me precipitei sobre ele. Meus nervos estavam irritados demais!...

— Para! — exclamei fora de mim, quando ele se voltou, lenta, silenciosamente, uma das mãos atrás das costas, e se dirigiu para seu quarto. — Para! Volta, estou dizendo! — E meu grito foi tão desesperado, provavelmente, que ele girou nos calcanhares e me olhou mesmo com certo espanto. Continuava de resto a guardar silêncio, e era precisamente isso que me enraivecia.

— Como ousas entrar em meus aposentos, sem autorização, e me olhar assim? Responde!

Tendo tranquilamente me contemplado durante uns trinta segundos, fez de novo menção de se ir.

— Para! — berrei, correndo para ele. — Nem um movimento! Vamos! Responde agora: o que tens que me olhar?

— Se tendes uma ordem qualquer a dar-me, devo executá-la — respondeu ceceando, depois de um momento de silêncio, com voz suave e pausada, inclinando a cabeça com uma calma horripilante.

— Não é disso, não é disso que te falo, carrasco! — gritei, tremendo de raiva. — Eu to direi, eu mesmo, carrasco!, por que vens tu aqui: vês que não te pago o ordenado, mas não queres me pedir por orgulho; e é para me punir que vens me olhar estupidamente, para me punir, para me atormentar; mas não suspeitas mesmo, carrasco, como isso é besta, besta, besta!

Ele se achou de novo na obrigação de deixar o quarto, sempre silencioso, mas segurei-o pela roupa.

— Escuta! — gritei-lhe. — Olha o dinheiro! Vê-lo? (Tirei-o da gaveta.) Sete rublos; estão aí, bem contados. Mas tu não os terás, não os terás enquanto não vieres respeitosamente me pedir perdão. Compreendeste?

— Isto não é possível — respondeu com um aprumo extraordinário.

— Será assim — exclamei. — Dou-te minha palavra de honra!

— Não tenho que lhe pedir perdão — continuou ele, como se não notasse de modo nenhum meus gritos —, pois foi o senhor que me chamou de “carrasco”, eu poderia até me queixar ao comissário de polícia.

— Vai! Vai! — berrei. — Vai agora mesmo, sem demora! Isso não impede que sejas um carrasco! Um carrasco! Um carrasco!

Mas ele se contentou em me olhar; depois se voltou e, sem prestar mais atenção aos meus gritos, sem voltar a cabeça, saiu no seu passo igual.

“Sem Lisa, não teria havido nada!”, disse para mim mesmo. Depois de um minuto de espera, de maneira solene, mas com o coração batendo pesadamente, dirigi-me para o cantinho, atrás do biombo, que Apolo ocupava.

— Apolo! — pronunciei com voz suave, mas opressa. — Vai imediatamente procurar o comissário de polícia, sem perder um instante.

Ele já se tinha instalado à sua mesa, posto os óculos, e se preparava para costurar alguma coisa; mas, ouvindo a ordem que lhe dava, rebentou de rir.

— Vai! Vai logo! Não imaginas mesmo o que pode acontecer!

— Verdadeiramente, o senhor perdeu o juízo — disse ele, sem ao menos levantar a cabeça, sempre ceceando, e continuando a enfiar sua agulha. — Já se viu alguma vez alguém ir denunciar a si mesmo à polícia? E se for para me pôr medo, é em vão, porque não obterá nada.

— Vai! — gritei com voz aguda, agarrando-lhe o ombro. Mais um instante e eu o espancaria.

Mas, nesse momento, a porta da saleta se abriu lentamente, sem ruído, e alguém entrou, parou na soleira e nos olhou aos dois, muito perplexo. Levantei os olhos, fiquei estupefato e fugi para o meu quarto, perdido de vergonha. Lá arranquei os cabelos a mancheias, apoiei a cabeça à parede e permaneci assim, à espera.

Dois minutos depois ouvi os passos lentos de Apolo.

— Está aí uma pessoa à sua procura — falou, olhando-me de maneira particularmente severa, depois se afastou e deixou entrar Lisa. Ele não queria retirar-se e nos examinava aos dois com um ar trocista.

— Vai-te! Vai-te! — gritei-lhe, perdendo a cabeça. Nesse instante o meu relógio fez um esforço, tossiu e bateu as cinco horas.

 

IV


“E em minha casa, livre e

altivamente, entra como dona.”


Permaneci diante dela, perdido, esmagado, horrivelmente confuso, e, enquanto sorria, creio, tentava puxar para mim os panos rasgados do meu sujo roupão debruado, exatamente como imaginei antes. Depois de dois minutos de espera, Apolo nos tinha deixado a sós, mas não me sentia melhor. O pior é que, vendo-me nesse estado, ela também perdeu de repente a segurança, para meu grande espanto.

— Assenta-te! — disse-lhe maquinalmente, e cheguei-lhe uma cadeira para perto da mesa; quanto a mim, fiquei no divã. Ela sentou-se logo, obediente, olhando-me bem nos olhos e esperando evidentemente alguma coisa de extraordinário da minha parte. Essa ingênua espera me tornou furioso, mas eu me dominava ainda.

Convinha, precisamente, fechar os olhos, como se nada de extraordinário se passasse, enquanto ela... Pressenti obscuramente que ela me pagaria caro tudo isso.

— Tu me encontras justamente numa estranha situação, Lisa — comecei, gaguejando, e compreendendo que precisamente não era assim que se devia começar. — Não! Não! Não imagines coisas — exclamei, vendo-a corar bruscamente. — Não tenho vergonha da minha pobreza... Ao contrário, estou orgulhoso dela. Sou pobre, mas sou honesto...

“É possível ser pobre e honesto”, continuei a engrolar. “De resto... Queres chá?”

— Não... — começou ela.

— Espera!

Saltei do divã e corri em busca de Apolo. Precisava ver-me livre dele.

— Apolo! — murmurei febrilmente, lançando diante dele, sobre a mesa, os sete rublos que eu tinha todo o tempo apertados na mão. — Eis aqui teu ordenado. Estás vendo: eu te pago. Mas tu deves me salvar: traze-me imediatamente do armazém vizinho chá e dez biscoitos. Se não fores, tornarás um homem desgraçado. Não sabes o que é esta mulher!... É... Vais imaginar não sei o quê! Mas não podes fazer uma ideia do que é esta mulher!...

Apolo, que tinha já retomado seu trabalho e posto os óculos, atirou em silêncio, e sem mesmo largar a agulha, um olhar de esguelha para o dinheiro; depois, sem me responder, continuou seu trabalho. Esperei de pé, perto de três minutos, os braços cruzados à Napoleão. O suor molhava-me as têmporas. Eu me sentia muito pálido. Mas, graças a Deus, minha aparência lhe causou piedade, provavelmente. Pousou a agulha, levantou-se lentamente, empurrou lentamente a cadeira, tirou os óculos com lentidão, contou o dinheiro, e por fim saiu a passos lentos, do quarto. Enquanto eu voltava para junto de Lisa, veio-me a ideia de fugir, tal como estava, de roupão, e ir para a frente, direito, sem pensar em nada.

Sentei-me de novo. Ela me olhava com inquietação. Calamo-nos durante alguns minutos.

— Eu o matarei! — exclamei de súbito, golpeando tão violentamente a mesa com o punho que a tinta saltou do tinteiro.

— Meu Deus! Que dizes! — exclamou ela, sobressaltando-se.

— Eu o matarei! Eu o matarei! — urrei, batendo com a mão aberta na mesa. Estava como que em delírio, mas compreendia que era estúpido ficar nesse estado. — Não podes compreender, Lisa, como esse carrasco me atormenta. É o meu carrasco... Ele foi comprar biscoitos agora... Ele...

E bruscamente desatei em soluços. Era uma crise. Como eu tinha vergonha!... Mas não podia me dominar.

Ela teve medo.

— Que tem? Que tem? — gritava ela, agitando-se em torno de mim.

— Água! Dá-me água... — murmurei com voz fraca, sentindo que podia muito bem dispensar a água e falar em voz mais firme. Mas, para salvar as aparências, exagerava, embora meu acesso fosse muito real. Ela me deu de beber, desorientada. Neste instante, Apolo trouxe o chá. Pareceu-me, de repente, que esse chá, banal, prosaico, produzia um efeito muito miserável, quase inconveniente, depois de tudo que acabava de se passar. Corei. Apolo saiu sem nos olhar.

— Lisa, tu me desprezas? — perguntei-lhe, olhando-a direito nos olhos, tremendo de impaciência para conhecer seu pensamento.

Ela corou e não pôde responder.

— Bebe o chá! — disse-lhe com cólera.

Estava furioso contra mim mesmo, mas era evidente que ela é que devia sofrer. Senti de súbito um ódio atroz contra ela: eu a teria matado nesse instante. Resolvi então, comigo mesmo, não lhe dizer mais uma única palavra, para me vingar. “Ela é que foi a causa de tudo...”

Nosso silêncio durava já cinco minutos. O chá estava sobre a mesa, mas não tocávamos nele. Eu tinha chegado àquele ponto em que, para tornar a situação ainda mais difícil, me recusava a começar primeiro; e ela estava muito constrangida por beber sozinha. De vez em quando, lançava-me olhares inquietos e tristes. Mas o mais desgraçado dos dois era certamente eu, porque compreendia muito bem a vileza de minha tola raiva e não podia, entretanto, me dominar.

— Eu quero... ir embora... para sempre... de lá... — começou ela, para pôr fim ao nosso silêncio.

A pobrezinha! Era precisamente assim que não devia começar nesse minuto estúpido, dirigindo-se a um homem tão estúpido como eu. Senti uma piedade dolorosa por sua franqueza inútil, por sua tímida incapacidade. Mas logo alguma coisa surgiu em mim que sufocou essa piedade e, ao contrário, me excitou ainda mais; o mundo inteiro podia perecer — isso me era indiferente. Cinco minutos ainda se escoaram.

— Eu o atrapalho, talvez? — perguntou ela timidamente, com voz quase imperceptível, e fez menção de se levantar.

Mas, logo que observei esse primeiro movimento de dignidade ofendida, estremeci de raiva e soltei imediatamente tudo o que tinha dentro de mim.

— Por que vieste me ver? Dize-me, eu te suplico! — comecei com voz opressa e sem manter em minhas palavras nenhuma ordem lógica. Eu tinha necessidade de dizer tudo de uma vez, num só jato. Não me preocupava mesmo com o início.

— Por que vieste? Responde-me! Responde! — exclamei, fora de mim. — Pois bem! Eu vou te dizer, minha cara, por que vieste. Tu vieste porque te disse naquele dia palavras tocantes. Eis-te toda enternecida e queres ouvir outras ainda. Sabe então que caçoei de
ti naquele dia. E caçoo ainda hoje. Por que tremes? Sim! Zombei de ti. Tinham-me insultado durante o jantar, aqueles mesmos que chegaram à casa da senhora antes de mim. Tinha vindo para me vingar de um deles, um oficial; mas não consegui: já tinham saído. Era preciso entretanto descarregar minha irritação em alguém; apareceste nesse momento e eu me vinguei em ti, ri-me de ti. Tinham me humilhado, e então eu quis humilhar também; trataram-me como um farrapo, eu quis então experimentar meu poder... Eis o que se passou. Enquanto tu imaginaste que eu tinha aparecido expressamente para te salvar. Sim? Foi isso? Tu o imaginaste.

Eu sabia que ela ficaria desnorteada e não poderia compreender todos os pormenores, mas sabia ao mesmo tempo que compreenderia o essencial. Foi o que aconteceu: ela se tornou de uma palidez de cera e tentou falar; seus lábios se torceram dolorosamente. Depois se deixou cair na cadeira, sucumbida. Continuou a me escutar, com a boca aberta, os olhos fixos, tremendo de medo. O cinismo, o atroz cinismo de minhas palavras, esmagou-a completamente.

— Salvar-te! — gritei eu, levantando-me e pondo-me a andar de um lado para outro no quarto. — Salvar-te de quê? Mas pode ser que eu seja pior que tu! Por que, quando eu te pregava moral, não me lançaste à cara: “E tu, que vens fazer em nossa casa? Vens nos dar um curso de moral?” O que me era preciso então era exercer meu poder sobre alguém; precisava me divertir também: eu tinha necessidade de tuas lágrimas, de tua humilhação, da tua crise de nervos. Disso, sim, é que eu precisava. Mas não tive forças para resistir, porque não sou senão um trapo: tive medo e te dei meu endereço, o diabo sabe por quê! Não tinha ainda chegado a casa, e já estava farto de te injuriar e de te maldizer por causa desse endereço. Eu te odiava já, porque te havia mentido. Porque em palavras gosto de brincar, gosto de sonhar também, mas sabes o que quero na realidade? Que vão todos para o diabo! Só tenho necessidade disso. Preciso de tranquilidade. Sou capaz de vender o universo inteiro por um copeque, contanto que me deixem tranquilo. Acabe-se o mundo ou deixe eu de beber chá? Responderei: que se acabe o mundo, contanto que eu continue a beber o meu chá! Sabias disso, sim ou não? Pois bem, eu, eu sei que sou um cão, um miserável, um preguiçoso, um egoísta. Há três dias eu temia que não viesses. Mas sabes o que me preocupava muito particularmente nestes últimos dias? Era que tinha sido aos teus olhos um herói, e tu me verias de repente sujo e miserável, no meu velho roupão todo rasgado. Disse-te há pouco que não tinha vergonha da minha pobreza; pois bem, fica sabendo que a tenho, pelo contrário, mais do que de qualquer outra coisa, mais que de roubar, e que tenho medo dela, pois sou tão vaidoso que me sinto como um homem a quem tivessem arrancado a pele e a quem o simples contato do ar fizesse sofrer. Mas não compreendeste enfim que jamais te perdoarei o teres me visto, com este roupão, atirar-me como um cachorro malvado sobre Apolo. O salvador, o herói, se precipita, tal um cão sarnento sobre o lacaio que zomba dele! E não te perdoarei também as lágrimas que não pude me impedir de derramar, como uma velha tonta. Como não te perdoarei estas confissões de agora. Sim, tu, só tu, terás que responder por tudo isto, porque te encontrei à mão, porque sou um miserável, porque sou o mais vil, o mais ridículo, o mais mesquinho, o mais estúpido, o mais invejoso dos vermes que existem sobre a terra! Eles não valem mais do que eu, mas o diabo sabe por quê, nunca perdem a firmeza; enquanto eu receberei toda a minha vida piparotes do mais insignificante dos insetos. Mas que me importa que não compreendas tudo o que te digo! E, generalizando, que tenho eu a ver contigo e que me importa que te percas ou não? Compreendes agora a que ponto te odiarei depois de tudo isto que te disse, depois de tudo o que terás visto e ouvido aqui? Não é duas vezes na vida que um homem de nervos doentes se pode permitir falar tão francamente... Que queres de mim ainda? Depois de tudo, que tens que permanecer aí, diante de mim? Por que não te vais?

Mas aconteceu então uma coisa extraordinária.

Eu estava a tal ponto habituado a pensar e a sonhar de acordo com os livros, e a me representar as coisas tal como as tinha criado de antemão nos meus sonhos, que, no primeiro instante, não consegui sequer aperceber-me do que se passava. Ora, eis o que aconteceu: Lisa, que eu tinha ofendido e esmagado, compreendeu muito mais do que eu esperava. De tudo que eu tinha dito, ela compreendeu o que a mulher compreende, quando ama sinceramente: ela viu que eu era infeliz.

O temor, a dignidade ultrajada foram depressa substituídos no seu rosto por uma estupefação dolorosa. E, quando eu me pus a me insultar e a me chamar “cão!” e “miserável!”, quando me pus a chorar (toda essa tirada tinha sido acompanhada de lágrimas), seu rosto de súbito se convulsionou. Ela tentou por diversas vezes levantar-se, deter-me; mas, quando terminei, prestou atenção, não às palavras insultantes que eu tinha pronunciado (“Por que estás aqui? Por que não te vais?”), mas ao esforço terrível que eu me impunha para dizer-lhe tudo isso. Demais, a pobrezinha parecia completamente imbecilizada: ela se considerava infinitamente inferior a mim. Como teria podido se zangar, se ofender? Mas ela pulou da cadeira e, toda trêmula, me estendeu os braços, não ousando ainda se aproximar de mim.

Então senti meu coração fundir-se no meu peito; ela se precipitou finalmente para mim, apertou-me estreitamente o pescoço entre os dois braços e se pôs a chorar em silêncio. Não resisti mais, e solucei como nunca.

— Não me dão... Não posso... ser bom — pronunciei com esforço. Depois arrastei-me até o divã e caí nele, de rosto para baixo, e chorei ainda todo um quarto de hora, presa de uma terrível crise de nervos. Ela se aproximou de mim, rodeou-me com os braços e permaneceu assim, imóvel.

Mas minha crise de nervos tinha contudo que ter um fim, e essa era a dificuldade. E eis que estando deitado no divã, a cabeça enterrada nas almofadas de couro (escrevo a ignóbil verdade), ponho-me logo a pensar, de maneira vaga e involuntariamente, que ia ser muito embaraçoso levantar a cabeça e olhar Lisa face a face. De que podia ter vergonha? Eu não sabia, mas tinha vergonha assim mesmo. Acudiu-me também ao espírito que os papéis se tinham completamente invertido, e que era ela a heroína agora, ao passo que eu estava humilhado e esmagado, precisamente como ela o estivera a meus olhos quatro dias antes. E esse pensamento me acudiu enquanto eu estava deitado no divã, a cabeça nas almofadas de couro.

“Meu Deus! Será que sinto despeito, verdadeiramente?...”

Não sei; não pude até agora resolver este problema, e, naquele momento, eu era ainda menos capaz, naturalmente. Não posso viver sem exercer meu poder sobre alguém... sem tiranizar alguém... Mas... os raciocínios nada explicam; é melhor então não raciocinar.

Consegui afinal me dominar e levantei a cabeça. Era preciso acabar com aquilo. E então — estou certo —, precisamente porque eu tinha vergonha de levantar os olhos para ela, um sentimento diferente se acendeu em mim e avassalou minha alma; um sentimento de domínio e posse. A paixão iluminou meus olhos e apertei violentamente suas mãos nas minhas. Como eu a detestava nesse instante, e como ela me atraía! Um sentimento reforçava o outro. Isto se assemelhava a uma vingança. Seu rosto refletiu primeiro uma certa perplexidade, temor quase; mas isso durou apenas um instante: ela me apertou nos braços com uma alegria ardente.

 

V


Um quarto de hora mais tarde, tremendo de impaciência, eu percorria de um lado para outro o quarto, parando a todo momento diante do biombo, onde uma fenda me deixava ver Lisa sentada no chão, a cabeça apoiada no leito. Ela chorava provavelmente, mas não ia embora, e isso me irritava. Desta vez ela sabia tudo. Eu a tinha ofendido irremediavelmente; mas... não vale a pena contar. Ela havia adivinhado que meu impulso de paixão não era senão uma vingança, uma nova humilhação, e que ao meu ódio de há pouco, vago e sem objeto, viera acrescentar-se um ódio invejoso, dirigido precisamente contra ela... De resto, não estou seguro de que ela tenha compreendido tudo isso claramente; mas inteirou-se, em todo caso, que eu era um homem vil e, sobretudo, que não podia amá-la.

Eu sei: dir-me-ão que é incrível, que é impossível ser tão malvado, tão bruto como eu. Acrescentarão ainda, talvez, que é inacreditável que não a tenha amado um pouco, ou, pelo menos, que eu não tenha sido tocado por seu amor. Por que é incrível? Para começar, era-me impossível amar, porque, repito, amar, para mim, significava tiranizar e dominar moralmente. Nem mesmo pude jamais me representar o amor sob outra forma, e cheguei a tal ponto que hoje penso às vezes que o amor consiste, para o objeto amado, em conceder, de plena vontade, o direito de o tiranizarem. Em meus sonhos subterrâneos, jamais pude imaginar o amor a não ser sob a forma de luta: começava pelo ódio, para acabar pela sujeição moral, mas não conseguia me representar o que faria em seguida desse ser escravizado. Que há de incrível nisso, pois que eu estava de tal modo pervertido moralmente e tão desacostumado da “vida real” que me tinha posto a envergonhá-la, e a censurá-la por ter vindo à minha casa ouvir “palavras enternecedoras”! Não tinha podido adivinhar que ela viera não por isso, mas por amar-me, pois toda a ressurreição, toda a libertação consiste para a mulher no amor e não pode se manifestar senão pelo amor. De resto, será que a detestava tão fortemente enquanto media o quarto e lhe lançava olhares de esguelha através da fenda do biombo? De modo algum. Mas sua presença me era atrozmente penosa. Gostaria que ela desaparecesse. Tinha sede de “tranquilidade”; desejava ficar sozinho, no meu subsolo. A “vida real”, à qual não estava habituado, me oprimia tanto que me sufocava.

Os minutos decorriam, e ela não se levantava, como que perdida num sonho. Tive a impudência de bater ligeiramente, para chamá-la... Ela se sobressaltou, levantou-se de um pulo e pôs-se apressadamente a juntar seus pertences; o xale, o chapéu, a peliça, como se fugisse e se salvasse. Dois minutos mais tarde, ela saiu lentamente de trás do biombo, e descansou em mim um olhar pesado: tive um riso escarninho, forçado aliás, por coerência, e me voltei.

— Adeus! — disse ela, dirigindo-se para a porta.

Precipitei-me de súbito para ela, segurei-lhe a mão, abri-a, pus nela o que tinha preparado, e a fechei de novo; depois me voltei e corri, bem depressa, para o outro canto do quarto, a fim de não ver, ao menos...

Eu queria mentir e escrever que tinha feito isso por acaso, sem pensar, tendo perdido completamente a cabeça. Mas não quero mentir e digo pois abertamente que lhe abri a mão e nela depus o meu dinheiro... por pura malvadez. A ideia de agir assim me veio enquanto media febrilmente o quarto e ela estava sentada no soalho, atrás do biombo. Mas eis o que posso declarar com certeza: essa crueldade, cometida conscientemente, não vinha do coração, mas da minha má cabeça: ela era tão evidentemente falsa, inventada, apresentava um aspecto tão livresco, que não a pude suportar, eu mesmo, mais que um minuto: fugi para o outro canto do quarto, depois, cheio de vergonha e desespero, precipitei-me atrás de Lisa... Abri a porta e escutei.

— Lisa! Lisa! — gritei da escada, mas a meia-voz, medrosamente.

Não obtive resposta, mas pareceu-me ouvir seus passos nos últimos degraus.

— Lisa! — gritei mais alto. Nada de resposta. Mas, no mesmo instante, ouço abrir-se, rangendo, a porta de entrada, envidraçada, que bateu em seguida, pesadamente. A escada ressoou de alto a baixo.

Ela havia partido. Voltei, pensativo. Tinha um peso terrivelmente opressivo no coração.

Parei junto da mesa, ao lado da cadeira que ela havia ocupado, e olhei estupidamente diante de mim. Um minuto se passou assim, depois, de súbito, estremeci... Bem à minha frente, em cima da mesa, vi... Logo vi uma nota de cinco rublos toda amassada, aquela que acabava de lhe pôr na mão. Era a mesma; não podia haver uma outra ali, não havia outra em minha casa. Ela a jogara então, no preciso momento em que eu tinha saltado para trás.

Pois bem! Eu poderia esperar isso! Mas esperava? Não. Eu era a tal ponto egoísta, tinha tão pouca estima pelos homens, que nem sequer imaginava que ela fosse capaz desse gesto. Não pude suportá-lo. Precipitei-me como um louco para as minhas roupas, vesti o que encontrei à mão e despenquei quatro a quatro, escada abaixo; ela não tinha certamente caminhado duzentos passos quando me vi fora.

Temperatura agradável. A neve caía em grandes flocos quase perpendicularmente e formava um espesso tapete sobre as calçadas e no meio da rua deserta. Não se via ninguém, não se ouvia nenhum rumor. Os lampiões cintilavam inútil e tristemente. Dei algumas centenas de passos até a esquina e parei. Que direção tinha ela tomado? Por que corria atrás dela?

Para quê? Para me atirar aos seus pés, para chorar e clamar meu arrependimento, para beijar seus joelhos e implorar seu perdão. Eis o que queria fazer. Sentia meu peito se dilacerar; jamais poderei me lembrar friamente desses instantes.

“Mas com que fim?”, pensei. “Eu não a odiarei depois, amanhã, precisamente porque lhe beijei os pés hoje? Poderia dar-lhe felicidade? Não verifiquei uma vez mais, pela centésima vez, quão pouco valia? Poderia impedir-me de a atormentar?”

Estava de pé na neve, procurando penetrar com o olhar o véu opaco, e refletia profundamente.

“Não é melhor”, dizia-me ao voltar para casa tentando esquecer minha dor em divagações, “não é melhor que ela leve essa ofensa com ela? Uma ofensa! Isso purifica; é o sentimento mais amargo, mais doloroso. Eu teria certamente emporcalhado amanhã sua alma e sobrecarregado seu coração com um peso insuportável. Enquanto ela jamais esquecerá sua ofensa, que permanecerá sempre viva. Por horrível que seja a lama que a espera, a ofensa a elevará e purificará pelo ódio... Hum!... E talvez também... pelo perdão... Mas tudo isso lhe tornará a vida mais fácil?”

Com efeito, faço-me hoje esta pergunta bem ociosa. O que é preferível: uma felicidade vulgar, ou sofrimentos elevados? Dizei-me o que vale mais!

Assim eu pensava naquela tarde, meio morto de sofrimento. Jamais tinha, até então, conhecido tais dores, tais remorsos. Mas, quando corri atrás de Lisa, poderiam duvidar, por um instante que fosse, que eu pararia no meio do caminho?

Nunca mais encontrei Lisa e nunca mais ouvi falar nela. Acrescentarei ainda que por muito tempo fiquei satisfeito com a minha frase sobre a utilidade da ofensa e do ódio; e, entretanto, quase caí doente de tristeza e de angústia.

Hoje ainda, depois de tantos anos, essas lembranças continuam penosas. Muitas coisas são penosas de lembrar, mas... Não é melhor terminar este diário? Creio que fiz mal em tê-lo começado... Em todo caso, não deixei de sentir vergonha, escrevendo esta história: não é mais literatura, é um castigo, uma pena correcional.

Contar por miúdo como falhou minha vida, desacostumando-me de viver, encolerizando-me sem cessar no meu subsolo — não, verdadeiramente, não é interessante. Para fazer um romance é preciso um herói, mas eu, como se o fizesse de propósito, reuni todos os traços do anti-herói. E, depois, tudo isso produzirá uma impressão detestável, porque nós todos estamos desacostumados de viver, porque nós todos claudicamos mais ou menos. Estamos mesmo desacostumados a tal ponto que sentimos pela vida real, pela “vida viva”, quase desgosto, e por isso não gostamos que nos obriguem a recordá-la. Chegamos a considerar a vida real, a “vida viva”, um castigo, quase um trabalho forçado, e estamos todos de acordo que mais vale reportarmo-nos aos livros. Então por que nos agitamos? Que procuramos? Que queremos? Não o sabemos, nós mesmos, e, se nossos desejos fossem atendidos, seríamos os primeiros a sofrer com isso.

Experimentai, por exemplo, dai-nos um pouco mais de liberdade, desatai-nos as mãos, alargai nossa esfera de ação, soltai as rédeas... Pois bem, asseguro-vos, pediremos depressa para sermos recolocados sob tutela. Eu sei, zangar-vos-eis com isso; ides gritar, bater o pé: “Fale por você somente”, protestareis, “e por suas misérias subterrâneas, e não ouse dizer nós todos!”.

Permiti, senhores, não penso de modo algum em me justificar, apelando para essa omnitude. No que me concerne pessoalmente, nunca fiz outra coisa em minha vida senão levar até o fim o que vós outros não ousais levar senão até a metade, e chamando prudência vossa covardia, e consolando-vos assim com mentiras. De modo que estou possivelmente ainda mais vivo que vós.

Vede bem! Não sabemos, mesmo hoje, onde se aninha a vida, o que é, como se chama. Se nos abandonam, se nos tiram os livros, ficamos logo atrapalhados, confundimos tudo, não sabemos mais aonde ir, como nos dirigirmos, o que se deve amar, o que se deve odiar, o que se deve respeitar, o que se deve desprezar. É-nos mesmo penoso sermos homens, homens possuindo um corpo bem seu, e san-
gue; temos vergonha, consideramos isso como um opróbrio e desejamos ardentemente tornarmo-nos espécies de seres abstratos, universais. Somos seres natimortos, e já há muito tempo aliás não nascemos mais de pais vivos, o que sobremaneira nos agrada. Logo encontraremos o meio de nascer diretamente da ideia.

Mas basta! Não quero mais fazer ouvir minha “voz subterrânea”.

O diário deste amador de paradoxos não termina ainda. O autor não pôde resistir à tentação e retomou a pena. Mas, parece-nos, a nós igualmente, que se pode pôr aqui ponto final.

 

 

Apresentação

Crime e castigo

As relações entre Fiódor Dostoiévski e seus leitores não são afetuosas nem agradáveis; é um conflito de instinto perigoso, cruel, voluptuoso; são relações apaixonadas no gênero das relações entre homem e mulher e não relações de amizade confiante. Dickens ou Gottfried Keller, seus contemporâneos, usam uma doçura persuasiva, uma música sedutora para atrair o leitor, para fazê-lo amar o mundo em que o introduzem. Provocam sua curiosidade, sua imaginação, mas estão longe de comover o coração tanto quanto Dostoiévski que se quer apoderar de nós inteiramente. Nossa curiosidade, nosso interesse não lhe bastam; quer nossa alma e nosso corpo; carrega a atmosfera de eletricidade, excita a nossa sensibilidade. Sua vontade, apaixonada por uma espécie de hipnose, enfraquece a nossa como um mágico, murmurando fórmulas de encarnação, embalam nosso espírito em diálogos intermináveis, desprovidos de interesse e desperta nossa simpatia, por alusões misteriosas; recusa-se a uma conquista muito apressada; é, para ele, uma volúpia prolongar o martírio da preparação. Fervemos de impaciência; ele concebe personagens, cenas novas e caminha sempre lentamente para a ação. Com uma volúpia consciente, diabólica, retarda o momento em que seremos conquistados, leva ao paroxismo a angústia interior, o peso trágico da atmosfera. Pressente-se a tempestade que sobe; o céu da alma está cortado por clarões precursores e terríveis.

Pensemos no tempo que nos é preciso para compreender que os estados de alma absurdos de Crime e castigo preparam um assassinato, enquanto nossos nervos têm, desde muito, a intuição de um drama terrível. O retardamento da ação é um dos requintes com que se embriaga a sensualidade de Dostoiévski; são pontas de agulha enfiadas à flor da pele.

 

STEFAN ZWEIG

Os construtores do mundo


Primeira parte


Capítulo I

Em um maravilhoso entardecer de julho, extraordinariamente cálido, um rapaz deixou o quarto que ocupava no sótão de um vasto edifício de cinco andares no bairro de S*** e, lentamente, com ar indeciso, se encaminhou para a ponte de K***.

Teve a felicidade, ao descer, de não encontrar a senhoria, que morava no andar inferior. A cozinha, cuja porta estava sempre escancarada, dava para as escadas. Sempre que se ausentava, via-se o moço na contingência de afrontar as baterias do inimigo, o que o fazia passar pela forte sensação de quem se evade, que o humilhava e lhe carregava o sobrecenho. Devia uma quantia considerável à locatária e receava encontrá-la.

Não por covardia ou abjeção; pelo contrário. Mas havia já algum tempo que ele se encontrava num estado de excitação nervosa, vizinho da hipocondria. Isolando-se e concentrando-se, conseguira não só esquivar-se da senhoria, como também de seus semelhantes. A pobreza esmagava-o; ultimamente, porém, chegara a ser-lhe indiferente. Renunciara por completo às suas ocupações. Aliás, bem pouco lhe importavam a locatária e as disposições que lhe aprouvesse tomar contra ele. Mas ser surpreendido na escada, ouvir reclamações, sempre exprobrações, aliás pouco prováveis, ter de responder com evasivas, desculpas de mau pagador, mentiras — mil vezes não! Mais valia esgueirar-se furtivamente, deslizar como um gato pela escada.

Dessa vez, porém, quando alcançou a rua, até se admirou do temor que tivera de encontrar a credora.

“É incrível que, quando tenho em mente um projeto tão arriscado, me preocupem tais ninharias!”, cogitava ele com um sorriso singular. “É axiomático... Tudo está nas mãos de um homem e ele o deixa escapar por covardia. Estou propenso a crer que o que mais tememos é o que nos tira de nossos hábitos. Mas ando só a divagar e é por divagar tanto que nada faço. É verdade que eu poderia aduzir mais esta razão: é porque nada faço que divago tanto. Há um mês que me acostumei a falar a sós, parado num canto dias inteiros, preocupado com disparates. Vejamos, em que vou me meter? Serei capaz disto? Isto será sério? Não, isto não é sério... São fantasias que me preocupam o espírito, simples quimeras.”

O calor era insuportável. A turbamulta, a vista da cal, dos tijolos, da argamassa, e esse mau cheiro característico, conhecidíssimo do habitante de São Petersburgo que não pode fugir para o campo, no verão, tudo concorria para superexcitar os nervos do jovem. O fedor tremendo das tavernas, numerosas nessa parte da cidade, e os ébrios com que topava a cada passo, conquanto fosse dia útil, completavam o colorido repugnante do quadro. As feições finas do moço acusavam, por instantes, uma impressão de intensa náusea. A propósito, cumpre dizer que ele não era mal dotado fisicamente: de estatura um pouco acima da mediana, esbelto, elegante, possuía bonitos olhos escuros e cabelos castanhos. Mas, a breve trecho, mergulhou numa melancolia profunda, numa espécie de torpor intelectual. Seguia alheio a tudo, ou melhor, sem querer atender a coisa alguma. De quando em quando, murmurava para seus botões algumas palavras, porque, como ele reconhecia, havia algum tempo que andava com a mania dos solilóquios. Neste momento, notava que as ideias se lhe baralhavam por vezes e era grande seu estado de fraqueza: havia dois dias que, quase se podia dizer, não se alimentava.

Estava de tal modo andrajoso que qualquer outro se vexaria de exibir em pleno dia semelhantes farrapos. No entanto, o bairro tolerava qualquer indumentária. Nas imediações do Mercado do Feno, nas ruas centrais de São Petersburgo, onde vive o operariado, o vestuário mais singular não causa a menor estranheza. Mas um tal desdém por tudo se recalcava na alma do infeliz rapaz que, apesar de seu pudor, demasiadamente ingênuo por vezes, se envergonhava de passear pelas ruas seus trapos.

O caso seria diferente se encontrasse pessoas conhecidas, alguns de seus antigos camaradas, cujas aproximações geralmente evitava. Subitamente parou, ouvindo-se indicado à atenção dos transeuntes por estas palavras pronunciadas em voz irônica: “Vejam, um chapeleiro alemão!” Essas palavras eram ditas por um ébrio que era conduzido, não se sabe para onde, numa carroça.

Com um gesto nervoso tirou o chapéu e pôs-se a olhá-lo. Era de feltro de copa alta, comprado na casa do Zimmerman, muitíssimo usado, esverdeado, com muitas nódoas e buracos, sem abas, pavoroso enfim. No entanto, longe de se sentir ferido em seu brio, o possuidor do estranho chapéu sentiu-se mais inquieto do que humilhado.

“Isto é, na verdade, o pior!”, murmurou ele. “Esta miséria... E qualquer coisa pode estragar o negócio. Efetivamente este chapéu dá muito na vista, está medonho! Ninguém usa uma coisa assim na cabeça. E então este, que se torna reparado a léguas de distância... Lembrar-se-ão, pode ser um indício... É absolutamente necessário chamar sobre mim a menor atenção possível. As coisas mais insignificantes têm, às vezes, maior importância e é geralmente por isso que a gente se perde...”

Não ia para muito longe; conhecia precisamente a distância entre sua morada e o lugar aonde se dirigia: 730 passos, nem mais nem menos. Contara-os quando o projeto tinha em seu espírito apenas a forma vaga de um sonho. Nesse tempo nem mesmo supunha que tal ideia viesse a tomar corpo e a fixar-se. Limitava-se a acariciar intimamente uma ilusão duplamente pavorosa e irresistível. Mas passara-se um mês, ele começava a ver as coisas por outro aspecto. Conquanto nos solilóquios se lastimasse da pouca energia e irresolução, tinha-se, no entanto, habituado pouco a pouco, malgrado seu, a julgar possível a realização dessa sonhada quimera, a despeito de não confiar ainda muito em si. Vinha agora precisamente repetir o ensaio de seu projeto e, a cada passo que dava, sentia-se mais e mais dominado por uma profunda inquietação.

Com o coração angustiado, os membros rudemente agitados por um tremor nervoso, aproximou-se de um grande prédio, que dava de um lado para o canal e do outro para a rua... O casarão era dividido em muitos compartimentos habitados por criaturas de toda espécie: alfaiates, serralheiros, cozinheiros, alemães de várias categorias, mulheres fáceis, pequenos empregados... Uma multidão entrava e saía pelas duas portas. Três ou quatro criados faziam o serviço. Com grande satisfação não viu nenhum deles. Transposto o limiar, galgou a escada da direita, que já conhecia, estreita e de uma obscuridade que não deixava de lhe agradar. Ali não havia a temer olhos indiscretos.

“Se tenho agora tanto medo, que será quando for de verdade?”, pensou quando chegava ao quarto andar. Ali teve de parar; alguns carregadores faziam a mudança da mobília de uma das divisões ocupadas (o nosso homem sabia-o) por um funcionário público alemão e a família. “Com a partida deles, a velha fica sendo a única moradora do andar. Vim em boa ocasião.” E puxou o cordão da campainha, que soou fortemente como se fosse de lata, em vez de cobre. Nessas casas, as campainhas são geralmente assim.

Esquecera esse pormenor. O som especial lembrou-lhe algo, porque teve um estremecimento; sentia os nervos numa grande depressão. Um momento depois entreabriu-se a porta e pela fenda a dona da casa examinou o recém-chegado com visível desconfiança; apenas se lhe viam os olhos brilhando na escuridão como pontos luminosos. Mas, vendo os carregadores, sentiu ânimo e abriu a porta. O rapaz entrou para a saleta escura, dividida por um tabique, por trás do qual havia uma pequena cozinha. Diante dele, de pé, uma velha interrogava-o com o olhar. Teria sessenta anos, era baixa e magra, narizinho pontudo e olhar malicioso. Na cabeça descoberta, espalhavam-se os cabelos untados de óleo.

Trazia em volta do magro e seco pescoço, que lembrava uma perna de galinha, um trapo de lã. Apesar do calor, pendia-lhe dos ombros uma capa de peles, surrada e amarela. Tossia frequentemente. Com certeza o rapaz olhou-a de modo singular, porque seus olhos retomaram a expressão de desconfiança.

— Raskólnikov, estudante. Já vim uma vez aqui, há um mês, apressou-se a informar o visitante, pensando que era conveniente mostrar-se amável.

— Recordo-me, bátuchka,[ 20 ] recordo-me perfeitamente de já ter vindo — respondeu a velha, que não desviava do rapaz os olhos desconfiados.

— Pois muito bem... venho agora também para um negócio da mesma espécie — continuou Raskólnikov, perturbado e surpreso pela desconfiança que inspirava.

“Talvez isso seja feitio dela”, pensava o estudante, “mas da outra vez não me pareceu tão desconfiada”. A velha fez silêncio por algum tempo; parecia pensar... Em seguida, indicou a porta do quarto e afastou-se para dar passagem a Raskólnikov.

— Entre, bátuchka.

O aposento para onde o rapaz passou era forrado de papel amarelo; pelas janelas, com cortinas de chita, onde havia gerânios, entrava a luz do sol quase no ocaso, iluminando escassamente o quarto. “De outra vez, o sol também brilhará assim!...”, pensou ele passando uma rápida inspeção em volta, como se quisesse inventariar os objetos que o cercavam e retê-los na memória.

Mas nada havia ali de particular. A mobília, de madeira amarela, era velha. Um sofá derreado, tendo defronte uma mesa oval fazendo frente para um espelho na parede entre duas janelas. Algumas cadeiras, umas insignificantes gravuras representando raparigas alemãs com pássaros nas mãos — eis tudo.

A um lado, diante de um pequeno ícone, ardia uma lâmpada. Mobília e soalho resplandeciam de asseio. “Anda aqui forçosamente a mão de Isabel”, pensou o rapaz. Não se via um grão de pó em todo o apartamento. “É preciso vir à casa destas viúvas velhas rabugentas para se ver tal limpeza”, monologava, reparando com curiosidade no cortinado de chita que ocultava a porta que dava para outro quarto, onde ele nunca entrara e onde estavam o leito e a cômoda da velha. O apartamento compunha-se desses dois quartos.

— Que quer então? — interrogou asperamente a velha, que, tendo seguido o visitante, se colocou à sua frente, de pé, para lhe ver bem o rosto.

— Apenas penhorar um objeto.

E tirou do bolso um velho relógio de prata, que tinha gravado na tampa um globo; a corrente era de aço.

— Mas ainda não pagou a importância que há tempos lhe emprestei! Sabe que o prazo findou anteontem?

— Virei pagar-lhe os juros deste mês, tenha paciência; espere mais alguns dias.

— Terei paciência ou venderei seu penhor, como eu achar melhor.

— Quanto me dá por este relógio, Alena Ivanovna?

— Não vale nada, bátuchka. Já da outra vez lhe emprestei duas notinhas sobre o anel, podendo comprar um novo por um rublo e meio.

— Dê-me quatro rublos e tiro o penhor. Era de meu pai. Hei de receber dinheiro brevemente e...

— Um rublo e meio, descontando já o juro.

— Um rublo e meio! — exclamou o jovem.

— É, se quiser.

E a velha estendia-lhe o relógio. Raskólnikov pegou-o irritado, e ia sair quando refletiu que a usurária era seu único recurso. Além disso, mais alguma coisa o trouxera ali.

— Vamos, deixa lá ver o dinheiro — disse com modo decidido.

A velha remexeu no bolso, procurando as chaves, e passou a outro quarto. Só, no meio da casa, o rapaz pôs-se a escutar atentamente, entregando-se, contudo, a diversas deduções. Ouviu a avarenta abrir o móvel. “Deve ser a gaveta de cima”, calculou ele. “Traz as chaves na algibeira direita... todas num argolão de aço... Uma delas muito maior que as outras e dentada, não é certamente a do móvel. É estranho! As chaves dos cofres de ferro têm geralmente esse feitio... Mas, afinal, como tudo isso é infame!...”

A velha voltou.

— Aqui tem, bátuchka: eu desconto uma grivna por mês de cada rublo, de um rublo e meio hei de tirar 15 copeques, porque o juro é pago adiantadamente. Depois, como pede que espere ainda um mês pelo pagamento dos dois rublos que lhe emprestei, fica me devendo por essa transação vinte copeques, o que atinge um total de 35. Tem, pois, a receber sobre o relógio um rublo e 15 copeques. Pegue lá...

— Como? Então não me dá senão isto?

— Nada mais!

Sem opor a menor objeção, o estudante pegou o dinheiro e ficou a olhar para a mesa, sem pressa de se retirar. Parecia querer dizer ou fazer alguma coisa, mas não sabia o que era.

— É provável, Alena, que brevemente lhe traga outro objeto... uma cigarreira de prata, muito bonita... Emprestei-a a um amigo... quando ele me devolver...

Disse essas palavras com ar comprometedor.

— Bem, veremos, bátuchka.

— Até depois... A senhora está sempre sozinha? Sua irmã não lhe faz companhia? — perguntou em tom indiferente, na ocasião em que passava para a antecâmara.

— Mas que tem a ver com minha irmã?

— Nada... Fiz a pergunta sem intenção. E a senhora... Adeus, Alena!

Raskólnikov saiu muito perturbado. Descendo a escada, parou repetidas vezes violentamente confuso; essa confusão cada vez mais aumentava de intensidade. Uma vez na rua, exclamou: “Meu Deus, como tudo isso é repugnante! Será possível que eu... Não! É uma loucura, um absurdo! Como pude ter tão horrível ideia? Pois eu seria capaz de tamanha infâmia? Isso é odioso, ignóbil, nojento!... E, no entanto, durante um mês eu...”

As palavras eram-lhe insuficientes para exprimir a agitação do espírito. A sensação de nojo profundo, que a princípio o oprimia, quando se dirigira à casa da velha, atingira agora tal intensidade, que ele não sabia como escapar a este suplício. Caminhava como um ébrio, não vendo quem passava, esbarrando em todo mundo. Na rua imediata, serenou um pouco. Olhando em redor, viu uma taverna; uma escada que descia do passeio dava ingresso ao subterrâneo. Viu que saíam dali bêbados que se amparavam, dizendo injúrias mutuamente.

Hesitou um momento, depois desceu a escada. Nunca entrara numa taverna, mas, neste momento, a cabeça girava e ele sentia uma sede terrível. Apeteceu-lhe beber cerveja. Depois de sentar-se a um canto sombrio, pediu cerveja gelada e bebeu de um trago o primeiro copo.

Experimentou grande alívio. Seu espírito se desanuviou. “Tudo isso é absurdo”, pensou, esperançado, “e realmente não havia motivo para me assustar. Era apenas um incômodo passageiro! Um copo de cerveja e um pedaço de bolacha e num momento reaverei a minha lucidez e minha energia! Oh, como tudo isso é mesquinho!”. Apesar dessa conclusão desdenhosa, sua aparência era outra, como se repentinamente o tivessem aliviado de um grande peso. Olhava amigavelmente para toda a gente; mas, ao mesmo tempo, desconfiava que fosse transitório este regresso da energia.

Havia pouca gente na taverna. Após os dois ébrios, saíram cinco músicos e uma moça com uma harmônica. No estabelecimento havia relativo sossego, porque só restavam três pessoas. Um sujeito ligeiramente embriagado, denunciando a origem burguesa, estava sentado em frente de uma garrafa de cerveja. Junto dele, dormitava num banco, completamente bêbado, um homenzarrão de barba grisalha, vestindo um curto sobretudo.

De vez em quando, despertava sobressaltado. Espreguiçava-se, dava estalidos com os dedos, entoando uma canção sem nexo, cuja continuação procurava na confusa memória:


Du...rante um ano a...mou sua mulher.

Durante um ano amou sua mu...lher.


Ou então, de repente, como que despertando de novo:


Caminhando pela Podiatcheskaia,

Encontrou a antiga companheira...


Mas ninguém se associava à sua alegria: o companheiro ouvia silencioso, com ar enfadado. O terceiro bebedor parecia um antigo funcionário público. Sentado a um canto, levava, de quando em quando, o copo à boca e passava os olhos pela sala. Também parecia possuído de certa agitação.


Capítulo II

Raskólnikov não estava habituado à multidão e, como já dissemos, havia algum tempo evitava encontrar-se com seus semelhantes. Mas agora sentia subitamente necessidade da convivência. Parecia operar-se nele uma transformação; o instinto de sociabilidade readquiria seus direitos. Votado todo um mês aos sonhos doentios que a solidão produz, o jovem estava tão fatigado de seu isolamento que precisava avistar-se, embora só por momentos, com alguém. Assim, por pouco decente que fosse a taverna, ocupava seu lugar com verdadeira satisfação.

O dono da casa estava em uma outra sala, mas aparecia frequentemente. As suas grandes botas de canos encarnados despertavam a atenção geral. Vestia um sobretudo e um colete de cetim preto coberto de nódoas, sem gravata. Todo o estabelecimento parecia untado de azeite.

Ao balcão estava um rapaz de 14 anos e outro ainda, mais novo, servia a clientela. Os pratos consistiam em rodelas de pepino, bolacha preta e postas de peixe, exalando tudo um cheiro nauseabundo. O calor era asfixiante e o ar tão saturado de vapores alcoólicos, que parecia dever-se ficar embriagado após cinco minutos de permanência.

Acontece às vezes encontrarmos pessoas desconhecidas por quem nos interessamos à primeira vista, antes mesmo de termos trocado com elas uma palavra. Foi precisamente esse o efeito que produziu em Raskólnikov o indivíduo que tinha aparência de funcionário aposentado. Mais tarde, lembrando essa primeira impressão, o jovem atribuiu-a a um pressentimento. Não desviava os olhos do homem, naturalmente porque ele não cessava de o olhar, parecendo desejar travar palestra. A outros fregueses e ao dono da taverna, encarava-os o desconhecido com altivez, como pessoas muito inferiores à sua condição social.

Este homem, de mais de cinquenta anos, era de estatura mediana e aparência robusta. A cabeça, quase calva, conservava raros cabelos grisalhos. O rosto cheio, amarelo-esverdeado, denunciava intemperança; entre as pálpebras inchadas brilhavam os pequenos olhos, avermelhados e penetrantes. A característica dessa fisionomia era o olhar, onde brilhavam a chama da inteligência e uma vaga expressão de loucura. Vestia um velho e roto casaco preto, com um único botão, onde se pendurava o último resquício de respeitabilidade. O colete, cor de barro, deixava ver o peito da camisa, amarrotado e sujo. A ausência de barba e bigode denunciava o funcionário, mas devia ter-se barbeado há muito, porque uma espessa camada de pelos lhe azulava o rosto. Em seus modos havia alguma coisa de gravidade burocrática; no entanto, neste momento, parecia comovido; passava os dedos pelos raros cabelos, e, de vez em quando, apoiando-se à mesa viscosa sem se preocupar com os cotovelos esburacados, encostava a cabeça às mãos. Subitamente, disse em voz alta, voltado para Raskólnikov.

— Não serei indiscreto dirigindo-lhe a palavra? É que, a despeito de seu traje, vejo no senhor um homem de educação e não um frequentador de tavernas. Sempre apreciei a boa educação aliada aos dotes de coração. Pertenço ao Tchin;[ 21 ] permita-me que me apresente: Marmêladov, conselheiro titular. É empregado?

— Não, senhor; estudante — respondeu Raskólnikov, surpreendido com aquela polidez de linguagem, e um pouco perturbado, ao ver um desconhecido dirigir-lhe a palavra sem mais nem menos. Conquanto nesse momento se sentisse disposto à convivência sentia que se apossava dele o mau humor que experimentava sempre que um desconhecido tentava entabular relações com ele.

— Então é ou foi estudante — continuou o outro. — Exatamente o que eu imaginava! Nunca me engano... a minha longa experiência!...

E levou a mão à fronte, como a indicar suas grandes faculdades cerebrais.

— Foi ou ainda é um aluno de faculdade! Mas com sua licença...

Ergueu-se, bebeu o resto da cerveja e foi sentar-se ao lado de Raskólnikov. Apesar de já estar embriagado falava corretamente. Quem o visse cair sobre Raskólnikov como sobre uma presa, julgaria que também ele havia muito não falava.

— Senhor, recomeçou com ar grave, a pobreza não é vício, evidentemente! Sei também que a embriaguez não é uma virtude, o que é lastimável! Mas a indigência, a indigência é um vício. Na pobreza, conserva-se ainda um pouco da dignidade natural de nossos sentimentos; na indigência nada se conserva. O indigente nem sequer é expulso a cacetadas da sociedade; é a vassouradas, o que é muito mais humilhante! E há realmente nisso razão: porque o indigente é sempre o primeiro a aviltar-se. Aí está a significação da taverna! Senhor, há um mês o sr. Lebeziátnikov bateu em minha mulher. Ora, tocar em minha Catarina é ferir-me na corda mais sensível! Percebe? Dê-me licença para que lhe faça ainda outra pergunta, por simples curiosidade. Já passou uma noite no Neva, deitado num barco de feno?

— Não. Nunca me sucedeu isso. Por quê?

— Pois bem, há cinco noites que eu durmo lá.

Encheu o copo que bebeu dum trago e ficou pensativo. Realmente, na roupa e nos cabelos viam-se-lhe, aqui e acolá, pedaços de feno. Naturalmente havia cinco dias que não se despia nem se lavava. Nas grossas e avermelhadas mãos com unhas orladas de negro, a imundície se tornava mais evidente.

Na taverna todos o ouviam sem dar maior importância ao arrazoado. Por trás do balcão os empregados riam. O patrão fizera sua entrada na sala, certamente para ouvir essa estranha criatura. Sentado a distância bocejava com um ar importante. Marmêladov era evidentemente muito conhecido na casa e sua loquacidade era devida ao hábito de conversar na taverna com as pessoas com quem o acaso o fazia encontrar. Para alguns bêbados esse hábito converte-se numa necessidade, especialmente para aqueles que, em casa, são rudemente tratados pelas mulheres pouco generosas; a consideração que lhes falta em casa, procuram-na nas tascas entre companheiros de orgia.

— Que grande pândego! — exclamou o taverneiro. — Mas por que não trabalhas, por que não vais ao serviço, já que és funcionário?

— Por que não trabalho? — respondeu Marmêladov, dirigindo-se a Raskólnikov, como se fosse dele que partisse a pergunta. — Por que não trabalho? E não será um desgosto para mim ser um inútil? Quando o sr. Lebeziátnikov com as próprias mãos bateu em minha mulher, enquanto eu, perdido de bêbado, assistia à cena, não sofri imensamente? Perdão, meu amigo, já lhe sucedeu... sim... já lhe aconteceu pedir sem esperança um empréstimo?

— Sim... mas o que quer dizer com as palavras sem esperança?

— Quero dizer, sabendo antecipadamente que não consegue o que pretende. Suponhamos: o senhor tem certeza de que este homem, este bom e honrado cidadão, não lhe emprestará dinheiro; por que razão, enfim... Sim, por que razão lhe havia de emprestar, se sabe que o senhor não paga? Por compaixão? Mas o sr. Lebeziátnikov, apóstolo das ideias novas, explicou há dias que a compaixão atualmente é até condenada pela ciência, e que essa é a doutrina corrente na Inglaterra, onde a economia política é o que o senhor sabe. Por que razão, repito, havia este homem de emprestar-lhe dinheiro? O senhor tem a certeza de que ele não empresta, no entanto dirige-se a ele e...

— Para que, nesse caso, se há de dirigir a ele? — interrompeu Raskólnikov.

— Porque é necessário ir a alguma parte, desde que se precise de dinheiro. Há ocasiões em que a gente se decide, quer queira, quer não, a fazer uma tentativa! Quando minha filha, a única, foi fichada, tive de ir também... (porque minha filha tem carteira amarela)[ 22 ] acrescentou — olhando desconfiado para Raskólnikov. Isso me é perfeitamente indiferente, senhor, apressou-se a declarar com aparente calma, ao passo que, por trás do balcão, os dois rapazes mal continham o riso e o próprio patrão sorria. Pouco se me dá, não me importo com suas piscadelas de olhos, porque toda a gente sabe disso e não há segredo que não se descubra; não é com desprezo, mas com resignação que encaro esse caso. Está bem, está bem! Ecce homo! Mas diga-me, o senhor pode ou atreve-se, olhando-me agora, a negar que sou um porco?

Raskólnikov não respondeu.

O orador esperou, com um grande ar de serena dignidade, que cessassem as gargalhadas que suas últimas palavras tinham provocado e continuou:

— Mas, embora eu seja um porco, ela é uma dama! Tenho em mim as características do animal; mas Catarina Ivanovna, minha esposa, é uma criatura de fina educação, filha de um oficial superior. Bem sei que sou um relaxado, mas minha mulher tem um bom coração, sentimentos nobres e educação esmerada. E portanto... Oh! se ela tivesse pena de mim! Senhor, todo mundo precisa encontrar compaixão em alguém! Mas Catarina, apesar de sua boa alma, é injusta. E, conquanto eu compreenda perfeitamente que, quando ela me puxa os cabelos, é em meu interesse (sim, não tenho dúvida em repetir: ela puxa-me os cabelos, insistiu com um gesto de altivez, ouvindo novas risadas) desejava, meu Deus, e ainda que não fosse senão uma vez, que ela... Mas não, não falemos nisso. Nem uma só vez obtive o que desejava, nem uma só vez teve piedade de mim, mas... seu gênio é assim, sou mesmo um animal!

— Creio! — respondeu o taverneiro, bocejando.

Marmêladov deu um murro na mesa.

— Sou assim! Sabe, senhor, eu até lhe bebi as meias, veja bem! Os sapatos, vá lá... mas as meias? Pois bebi suas meias. E bebi seu xale de lã de cabrito, com que a tinham presenteado, um objeto que já lhe pertencia quando solteira, que era propriedade dela, que devia ser sagrado para mim. E vivemos num quarto frigidíssimo, onde ela este inverno apanhou um horrível resfriado e tosse, a ponto de expectorar sangue! Temos três filhos, e Catarina trabalha o dia todo, lava roupa e os pequenos, porque desde criança é asseada. Infelizmente é de constituição débil, tem predisposição para a tuberculose e, Deus sabe quanto, eu sofro com isso. Então não sofro? Quanto mais bebo, mais sinto essa amargura. E é para sentir e sofrer mais que me embriago... Bebo porque quero sofrer duplamente.

E inclinou a cabeça sobre a mesa, acabrunhado.

— Meu caro — continuou ele empertigando-se —, parece-me estar lendo algum desgosto em sua fisionomia. Logo que o vi tive essa impressão, e foi essa a razão por que lhe falei. Se lhe conto minha vida, não é pelo prazer de me expor às gargalhadas desses idiotas que, afinal, há muito sabem tudo. Não, é porque necessito da solidariedade de um homem bem-educado. Saiba que minha mulher foi educada num colégio aristocrático da província e que, ao sair de lá, dançou diante do governador e outras autoridades, tal era a alegria por ter obtido medalha de ouro e diploma.

“A medalha... vendemo-la há muito tempo... O diploma, minha mulher conserva-o numa caixa e, ainda há pouco, o mostrou à nossa hospedeira. Apesar de estar a ferro e fogo com essa mulher, ou por isso, gosta de lhe pôr diante do nariz esse papel que representa as glórias passadas. Não levo isso a mal, porque atualmente seu único prazer é recordar o bom tempo ido. Tudo o mais desapareceu como fumaça! Sim, sim, ela tem uma alma ardente, nobre, acolhedora. Em casa, come pão preto, mas não suporta que lhe faltem com o respeito. Não tolerou a bestialidade do sr. Lebeziátnikov, e, quando para se vingar de ela lhe ter dado uma boa lição, ele lhe bateu, ficou de cama, sofrendo mais com a ofensa feita à sua dignidade do que com as pancadas.

“Quando casamos, ela era viúva com três filhos. Casara em primeiras núpcias com um oficial de infantaria, que a raptara. Amava muito o marido; mas ele jogava, teve suas complicações com a justiça e morreu. Nos últimos tempos, batia-lhe. Sei que ela não o tratava muito bem; no entanto, a recordação desse primeiro homem ainda lhe enche os olhos de lágrimas, e não se farta de fazer entre ele e mim comparações pouco agradáveis para meu brio. Eu até gosto; consola-me a ideia de que ela pense que já foi feliz algum dia.

“Após a morte do marido, ficou só com as três crianças, numa região distante e selvagem. Foi lá que eu a encontrei.

“A sua sorte era tal, que eu, que tenho conhecido todas as misérias, nem tenho palavras para a descrever. Todos os parentes a tinham abandonado; aliás, seu orgulho não lhe permitiria recorrer à compaixão dos seus... Então eu, que também era viúvo, e tinha uma filha de 14 anos, ofereci minha mão a essa pobre criatura, tanta dó me causou ela.

“Instruída, prendada, de uma família honrada, consentiu, mesmo assim, em casar comigo; por isso pode imaginar em que situação ela se encontrava. Ouviu o meu oferecimento com lágrimas, soluçando, torcendo as mãos, mas aceitou-o, porque não tinha outro caminho a seguir. Percebe bem a significação destas palavras: ‘não tinha outro caminho a seguir?’ Não? O senhor ainda não pode compreender estas coisas!...

“Durante um ano cumpri lealmente minha palavra, sem pensar sequer nisto (e indicou a garrafa), porque tenho caráter. Mas nada ganhei com isso; entretanto perdi meu emprego, sem que tivesse incorrido na menor falta; meu emprego foi suprimido por questões de ordem administrativa, e foi, desde então, que comecei a beber!

“Vai em 18 meses que, depois de muitos dissabores e de uma vida errante, fixamos residência nesta magnífica capital, plena de admiráveis monumentos. Aqui consegui empregar-me novamente, mas de novo perdi o lugar. Dessa vez, foi minha a culpa; foi meu vício que deu margem a tal desgraça... Agora vivemos num cubículo, em casa de Amália Fedorovna Lippelvechzel. Se me perguntar como vivemos e como o pagamos, não lhe saberei responder. Afora nós, há lá muitos inquilinos. É um verdadeiro cortiço... Entretanto, a filha que tive de minha primeira mulher ia crescendo. O que ela sofreu por parte da madrasta não é coisa que se conte.

“Apesar de ser dotada de belos sentimentos, Catarina é uma criatura irascível, incapaz de conter os arrebatamentos de seu gênio. Sim, mas para que falar nisso? Também, como deve compreender, Sônia não teve grande instrução. Há quatro anos tentei ensinar-lhe geografia e história universal, mas, como não sou muito forte nessas matérias, e além disso não podia ter bons livros, os estudos não avançaram muito. Ficamos em Ciro, rei da Pérsia. Depois, quando chegou à adolescência, leu romances. O sr. Lebeziátnikov emprestou-lhe, não faz muito tempo, a Fisiologia, de Ludwig. Conhece? Sônia achou a obra muito interessante; leu-nos alguns trechos. Nisso se resume sua cultura.

“Agora, meu caro, diga-me sinceramente: pensa, em face da razão, que é possível a uma moça pobre, mas honesta, viver somente de seu trabalho? Se ela não possuir algum dom especial, ganhará 15 copeques diários, e, ainda assim, para atingir essa soma, não pode perder um instante! Que estou dizendo? Sônia fez umas seis camisas de pano de Holanda para o conselheiro Ivanovitch Klopstock — já ouviu falar nele? —, pois bem, não só não lhe pagou, mas pô-la na rua com uma descompostura, a pretexto de que a rapariga não tinha tomado bem a medida dos colarinhos.

“Enquanto isso sucedia, os pequenos tinham fome... Catarina Ivanovna passeava no quarto torcendo as mãos desesperadamente, com as faces afogueadas pelas rosetas escarlates que anunciam a marcha da terrível moléstia. ‘Mandriona’, increpara ela à pequena, ‘não tens vergonha de viver nesta casa sem trabalhar? Comes, bebes, dormes!’ O que podia a pobre comer e beber, se havia três dias que nem as crianças viam uma fatia de pão! Eu estava então doente, de cama... isto é, estava com uma grande bebedeira. Ouvi Sônia dizer timidamente com sua linda vozinha (ela é loura e o rosto muito pálido parece o de uma santa): ‘Mas, Catarina Ivanovna, eu posso fazer tal infâmia?’

“Devo dizer que já por umas três vezes uma tal Dária Frantzovna, criatura indigna, muito conhecida da polícia, lhe fizera propostas por intermédio de nossa senhoria. ‘Pois então!’, replicou, enfurecida e irônica, Catarina, ‘um tesouro desses deve-se guardar preciosamente!’. Não a acuse, senhor, não a acuse! Ela nem conhecia o alcance de suas palavras; estava aturdida, doente, vendo as crianças esfomeadas, chorando, e o que dizia era mais para irritar Sônia do que para a arrastar à prostituição... Catarina Ivanovna é assim: se ouve chorar os filhos, bate-lhes, ainda mesmo que eles chorem com fome. Já tinham dado seis horas quando eu vi a Sonetchka pôr a capa e sair.

“Às nove horas voltou, foi direto a Catarina e, sem dizer uma palavra, pôs trinta rublos na mesa, diante de minha esposa. Depois, pegou em nosso grande lenço verde (que serve a toda a família), embrulhou nele a cabeça e deitou-se na cama, voltada para a parede e tremendo constantemente. Vi Catarina, sem fazer o menor ruído, ajoelhar-se junto da caminha dela e ali passou a noite beijando os pés de minha filha. Depois adormeceram nos braços uma da outra... ambas... ambas... ambas... sim, e eu no mesmo estado, perdido de bêbado!”

Marmêladov calou-se, como se a voz lhe tivesse faltado. Encheu bruscamente o copo, bebeu-o de um trago e continuou após curto silêncio:

— Desde esse dia, senhor, em consequência de uma desgraçada circunstância, e por uma vilíssima denúncia de criaturas infames (Dária Frantzovna tomara parte ativa e principal nesse negócio e queria vingar-se de uma suposta falta de consideração), desde esse dia minha filha ficou fichada no registro policial, vendo-se obrigada a deixar-nos. Nossa hospedeira, Amália Fedorovna, mostrou-se inflexível a esse respeito, esquecendo que ela própria favorecera em tempo as intrigas de Dária Frantzovna.

“O sr. Lebeziátnikov afinou pelo mesmo tom... Foi por causa de Sônia que Catarina teve com ele a questão de que lhe falei. Primeiramente, era muito assíduo junto de Sonetchka; mas, repentinamente, seu orgulho revoltou-se.

“‘É admissível que um homem de minha condição’, disse ele, ‘possa viver na mesma casa com tal criatura?’ Catarina tomou o partido de Sônia, o que deu em resultado acabar tudo em pancada... Agora nossa filha nos visita geralmente à tardinha e auxilia, quando pode, Catarina Ivanovna. A pobrezinha está hospedada em casa de Kapernáumof, um alfaiate coxo e gago.

“Tem família grande e todos os filhos gaguejam como ela. A mulher tem também qualquer coisa na língua... Vivem todos no mesmo quarto, mas Sônia ocupa um aposento especial, separado por um tabique da parte que eles habitam... Hum!... gente paupérrima e toda gaga... sim... Certa manhã, levantei-me, vesti meus farrapos, levantei as mãos ao céu e fui procurar S. Exa. Ivã Afanasiévitch. Conhece S. Exa. Ivã Afanasiévitch? Pois então não conhece um santo. Aquilo é um círio a iluminar a face do Senhor!

“A minha triste história, que S. Exa. se dignou ouvir com o maior interesse, comoveu-o até as lágrimas. ‘Vamos Marmêladov’, disse ele, ‘já uma vez faltaste ao que prometeras, mas consinto em tomar-te sob minha responsabilidade pessoal.’ Foram suas palavras. ‘Vê se te lembras disso e vai com Deus!’ Beijei a sola de suas botas, em pensamento, é claro, porque ele nunca consentiria que eu fizesse tal; é um homem excessivamente saturado das ideias novas, para poder admitir semelhantes homenagens. Ah, meu Deus, como me receberam em casa quando avisei de novo que ia trabalhar, ter ordenado...”

A comoção estrangulou outra vez a voz de Marmêladov. Nesse momento, a taverna foi invadida por alguns indivíduos meio bêbados. À porta tocavam realejo, e a voz fraca de um menino de sete anos cantava a Cabana. Na sala, o barulho aumentava. Patrão e criados andavam numa roda-viva, servindo os fregueses. Sem atentar no que se passava, Marmêladov continuou sua história. A embriaguez, aumentando, tornava-o mais expansivo. Recordando sua volta ao serviço, a fisionomia iluminava-se com um raio de alegria. Raskólnikov não perdia uma só de suas palavras.

— Isso foi há umas cinco semanas. Sim... Logo que Catarina Ivanovna e Sonetchka receberam a notícia, senti-me como que levado ao paraíso! Dantes não ouvia senão injúrias: “Deita-te, besta!” Agora andavam com mil cuidados, nos bicos dos pés, mandavam calar as crianças: “Chut! Simão Zakáritch está cansado de trabalhar, deixem-no descansar!” De manhã, antes de sair, davam-me uma xícara de café com leite. Compravam bom leite, sabe? E onde iriam elas arranjar 11 rublos e cinquenta copeques para me vestir? Sei lá! Sei apenas que me vestiram dos pés à cabeça, boas botas, excelentes camisas, um uniforme, tudo muito bem feito e por 11 rublos e meio.

“Na primeira manhã em que voltei do trabalho, Catarina Ivanovna cozinhara dois alimentos como nunca víramos antes: sopa e carne com legumes. Ela não possuía roupas decentes; no entanto, vestiu-se como se fosse receber visita, com os cabelos bem penteados e um colar em volta do pescoço; lá estava ela, uma pessoa completamente diferente, uma pessoa jovem e de melhor aspecto. ‘Sônia, a minha queridinha, ajudou com dinheiro economizado’, disse ela, ‘para quando pudesse visitar-nos sem que ninguém a visse entrar, já tarde da noite.’ O senhor me ouve! Deitei-me para um cochilo depois do jantar e, apesar de Catarina Ivanovna ter discutido com nossa senhoria, Amália Fedorovna, somente há uma semana, não pôde resistir ao desejo de convidá-la para tomar café. Levaram duas horas sentadas cochichando: ‘Simão Zakáritch já trabalha novamente e recebendo um salário’, disse ela, “ele mesmo dirigiu-se a S. Exa., que foi até ele, deixando os demais esperando e conduziu-o a seu gabinete.’ O senhor me ouve! ‘Certamente’, disse Sua Exa., ‘Simão Zakáritch, recordando seus serviços passados e a despeito de sua propensão para a falta de juízo, e desde que promete agora e por ter sentido sua ausência...’ O senhor me ouve! Continuou S. Exa. ‘Confio em sua palavra de cavalheiro.’ Catarina Ivanovna não contava tudo isso para blasonar-se, acreditava realmente em sua fantasia. E eu não a reprovo, absolutamente não a reprovo.

“Há seis dias, quando levei para casa meu ordenado intacto, 23 rublos e quarenta copeques, minha mulher beliscou-me e chamou-me: ‘Meu petisco.’ Nós estávamos a sós, é claro. Não acha que ela foi amável?”

Marmêladov tentou sorrir, mas um tremor súbito agitou-lhe o queixo. Por fim, conseguiu dominar a comoção. Raskólnikov não sabia o que pensar desse tipo singular, bêbado havia cinco dias, dormindo nos barcos de feno e denunciando, apesar de tudo, uma afeição doentia pela família. Ouvia-o com a máxima atenção, mas com um grande mal-estar. Arrependia-se de ter entrado ali.

— Senhor, senhor! — continuou Marmêladov. — Talvez ache, como os outros, que isso é ridículo, talvez eu o esteja aborrecendo contando-lhe todos esses miseráveis pormenores de minha vida doméstica, mas para mim não são ridículos; sinto tudo isso... Durante esse bendito dia, tive sonhos lindos: pensava na organização de nossa casa, em vestir as crianças, em dar uma vida tranquila à minha mulher, desviar da abominação minha filha... Quantos projetos concebi! Pois bem, senhor, (Marmêladov estremeceu repentinamente, ergueu a cabeça e fitou seu interlocutor) no dia seguinte, há precisamente cinco dias, depois de ter acariciado todos esses sonhos, como um ladrão, roubei a chave de Catarina Ivanovna e tirei do cofre o resto do dinheiro que lhe levara. Quanto? Não me lembro. Eis aí. Há cinco dias abandonei minha casa; os meus não sabem o que foi feito de mim; perdi o emprego; deixei meu terno numa taverna perto da ponte de Egipciétski, e deram-me em troca estes andrajos. Ora aqui está!

Deu um murro na cabeça, rangeu os dentes e, cerrando os olhos, encostou-se na mesa... Momentos depois, sua fisionomia mudou bruscamente de expressão, olhou para Raskólnikov com mal simulado cinismo e disse rindo:

— Fui hoje à casa de Sônia pedir dinheiro para beber. Eh! Eh! Eh!

— E ela te deu? — perguntou rindo um dos recém-chegados.

— Esta meia garrafa foi paga com seu dinheiro — respondeu ele, dirigindo-se a Raskólnikov. — Foi buscar trinta copeques e entregou-nos com as próprias mãos; era tudo o que tinha, que eu bem vi... Ela não disse nem uma palavra, pôs-se a olhar para mim... Uns olhos que não são da Terra, como os dos anjos que choram as culpas humanas, mas que não as condenam! É muito mais penoso assim, quando não nos censuram!... Trinta copeques, sim. E talvez lhe façam muita falta! Que lhe parece, meu caro senhor? Ela agora precisa andar bem-trajada; essa elegância que é preciso manter em sua condição sai caro. Compreende? É preciso ter pomada, saias engomadas, bonitas, que favoreçam o pé ao saltar uma poça d’água. Compreende bem que importância tem tudo isso? Pois fui eu, seu pai, quem lhe arrancou esses trinta copeques para beber! E bebo-os! E já estão bebidos!... Ora, quem há de ter dó de um homem como eu? Agora, senhor, ainda terá compaixão de mim? Diga, senhor — mereço sua compaixão? Sim ou não?

Agarrou novamente a garrafa, mas viu que estava vazia.

— Por que se há de ter dó de ti? — interrogou o taverneiro.

Ouviram-se gargalhadas entrecortadas de injúrias. Dir-se-ia que o beberrão apenas esperava a pergunta do taverneiro para dar larga expansão à sua verbosidade. Ergueu-se e, estendendo o braço, disse:

— Por que hão de ter compaixão de mim? — gritou exaltado. — Dizes tu, por que hão de ter pena de mim? É verdade, não há razão! Crucifiquem-me, preguem-me numa cruz e não me lastimem. Crucificai-me, juiz, mas, crucificando-me, tende piedade de mim. Então irei voluntariamente para o suplício, porque não tenho sede de alegria, mas sim de dores e de lágrimas! Julgas tu, traficante, que a tua meia garrafa me deu algum prazer? Busquei a tristeza, a tristeza e as lágrimas, no fundo dela, encontrei-as e saboreei-as; mas Aquele que teve dó de todos os homens, Aquele que compreendeu tudo, Aquele que terá piedade de nós, é o único Juiz. Virá no último dia e perguntará: “Onde está a filha que se sacrificou por uma madrasta invejosa e tuberculosa, por crianças que não eram seus irmãos? Onde está a filha que teve compaixão de seu pai terrestre e não repudiou horrorizada esse bêbado devasso?” E Ele dirá: “Vem! Eu já te perdoei uma vez... Já te perdoei uma vez... Agora mesmo todos os teus pecados serão perdoados porque muito amaste...” E Ele há de perdoar à minha Sônia, Ele perdoará bem o sei... Senti-o há pouco, aqui, no coração, quando estava em casa dela! Todos serão julgados por Ele, e Ele a todos perdoará: aos bons e aos maus, aos audazes e aos humildes... E, quando tiver acabado com esses, chegará nossa vez: “Aproximai-vos vós, também”, nos dirá Ele, “aproximem-se os bêbados, os covardes, os devassos...”. E aproximar-nos-emos sem receio. E Ele nos dirá: “Vós sois uns porcos, sois umas bestas; mas não importa, vinde.” E os justos e os inteligentes dirão: “Senhor, por que recebes esses?” E Ele responderá: “Recebo-os, justos, recebo-os, inteligentes, porque nenhum deles se julgou digno desse favor...” E Ele estender-nos-á os braços, onde nos lançaremos banhados em lágrimas... Compreenderemos tudo... Então todos compreenderão tudo... Catarina Ivanovna também... Senhor, venha a nós o Vosso Reino...

Cansado, deixou-se cair no banco, sem olhar para ninguém. Estranho a tudo que o cercava, absorveu-se em profunda meditação. Suas palavras produziram alguma impressão; por um momento cessou o ruído, mas logo recomeçaram as gargalhadas e os insultos.

— Falou muito bem!

— Que estopada!

— Burocrata!

— Vamo-nos daqui, senhor — disse subitamente Marmêladov, erguendo a cabeça e dirigindo-se a Raskólnikov. — Acompanhe-me à casa de Kozel, no pátio. É tempo de voltar... à casa de Catarina Ivanovna...

Desde muito que Raskólnikov desejava sair; pensava mesmo em oferecer seu auxílio a Marmêladov, que, sentindo as pernas mais fracas do que a voz, se apoiava no companheiro. A distância a andar era de duzentos a trezentos passos. À medida que o bêbado se aproximava de seu domicílio parecia cada vez mais inquieto e perturbado.

— Não é Catarina Ivanovna que eu receio agora balbuciou ele em meio à emoção —, tenho certeza de que me puxará pelos cabelos... mas isso não me importa! Desejo mesmo que ela me puxe por eles! Não é isso que eu temo... Mas tenho medo de seus olhos, das rosetas de suas faces. Assusta-me também sua respiração. Reparou como os tuberculosos respiram, quando estão possuídos de uma comoção violenta? Apavora-me o choro das crianças... Porque, se Sônia não lhes acudisse, nem eu sei como teriam vivido!... Das pancadas não tenho medo... Saberá, senhor, que essas pancadas não só não me fazem sofrer, mas até são para mim um prazer... Parece que não posso viver sem elas. Antes assim. Ela pode bater-me à vontade, se com isso minora seu sofrimento... mas vale isso. Aqui está a casa. Casa Kozel. O dono é um rico serralheiro alemão... Acompanha-me?

Depois de terem atravessado o pátio começaram a subir para o quarto andar. Eram quase 11 horas, e, conquanto, por assim dizer, naquela época do ano quase não haja noite em São Petersburgo, quanto mais subiam, mais negra era a escada, no alto da qual reinava a mais completa escuridão.

A porta enegrecida pela fumaça, que dava para o patamar, estava aberta. Um coto de vela bruxuleante iluminava um pequeno quarto extremamente pobre. Esse compartimento, que se via completamente da porta, estava no maior desarranjo. Pelo chão viam-se espalhadas roupas de crianças. Um lençol esburacado isolava uma parte do quarto, a mais afastada da porta. Além desse improvisado biombo, havia talvez uma cama. O quarto não continha mais do que duas cadeiras e um divã, coberto com oleado, tendo em frente uma mesa de cozinha, ordinária, despolida e sem resguardo. Sobre essa mesa acabara de arder num castiçal de ferro um coto de vela. Marmêladov tinha sua instalação à parte, não num canto do apartamento, mas num corredor. A porta que dava para os quartos dos outros inquilinos estava entreaberta. Toda essa gente fazia um ruído ensurdecedor. Certamente tinham-se reunido para jogar e tomar chá. Ouviam-se gritos, gargalhadas e às vezes palavrões.

Raskólnikov reconheceu imediatamente Catarina Ivanovna. Era alta, magra, elegante, mas de aspecto muito emaciado. Tinha ainda um lindo cabelo castanho e, como dissera Marmêladov, rosetas nas faces. Com os lábios contraídos e as mãos apertando o peito, passeava pelo quarto. Sua respiração era curta e desigual. O olhar brilhante de febre, duro e imóvel. Iluminada pela luz bruxuleante da vela, sua fisionomia de tuberculosa dava uma impressão triste. A Raskólnikov pareceu que Catarina não teria mais de trinta anos; era realmente muito mais nova do que o marido... Não deu pela chegada dos dois; dir-se-ia que perdera as faculdades auditivas e visuais.

Embora o calor no quarto fosse sufocante e da escada subissem exalações infectas, não pensava em abrir a janela, nem em fechar a porta do patamar; a porta interior, apenas entreaberta, deixava passar espessas fumaradas de tabaco que lhe provocavam a tosse, mas de que ela não procurava libertar-se.

A pequena mais nova, de uns dois anos, dormia, sentada no chão, com a cabeça apoiada no divã; o rapaz, mais velho do que ela um ano, tremia e chorava a um canto; percebia-se que lhe tinham batido. A mais velha, uma menina de nove anos, magra e alta, vestia uma camisa esburacada; cobria-lhe os ombros nus uma capa velha de pano que teria sido feita para ela dois anos antes e que agora mal chegava aos joelhos.

De pé, a um canto, junto do irmão, com seu comprido braço, magro como um pavio, em volta do pescoço do pequeno, falava-lhe baixinho, sem dúvida tentando fazê-lo calar-se, seguindo ao mesmo tempo a mãe com o olhar assustado! Os grandes olhos negros, esgazeados pelo pavor, pareciam ainda maiores no pequeno rosto descarnado.

Marmêladov, em vez de entrar, ajoelhou-se à porta, mas, com um gesto, convidou Raskólnikov a adiantar-se. A mulher, vendo um desconhecido, parou distraidamente diante dele, e, durante um segundo, procurou explicar a si própria a presença daquele personagem ali. “Que virá este homem fazer?”, perguntou a si própria. Mas veio-lhe logo à ideia que ele procurava outros inquilinos, visto que o quarto de Marmêladov dava passagem para outros compartimentos. Assim, sem ligar atenção ao desconhecido, ia abrir a porta de comunicação, quando, de repente, soltou um grito; acabava de ver o marido, de joelhos, no limiar.

— Ah, voltaste! — gritou ela com a voz trêmula de cólera. — Celerado! Monstro! Que fizeste do dinheiro? Que tens nos bolsos? Deixa ver! Essa não é tua roupa! Que fizeste dela? Que fizeste do dinheiro? Responde!

Revistou-o. Longe de opor resistência, Marmêladov afastou os braços para facilitar a busca nos bolsos. Não tinha consigo um só copeque.

— Onde está então o dinheiro? — perguntou ela. — Oh, meu Deus, pois será possível que ele tenha bebido tudo! Havia ainda 12 rublos na gaveta!...

E, num grande assomo de raiva, agarrou o marido pelos cabelos e puxou-o com força para dentro. A serenidade de Marmêladov não se alterou; seguiu docilmente sua mulher arrastando-se de joelhos atrás dela.

— Isto enche-me de consolo! Não creia que isto seja para mim um sofrimento, mas sim um prazer, senhor! — exclamava ele, ao passo que Catarina Ivanovna lhe sacudia com força a cabeça, chegando mesmo a bater com ela no soalho.

A criança que dormia no chão acordou chorando. O menino, de pé ao canto, não pôde suportar tal espetáculo, pôs-se a gritar e correu para a irmã. Parecia presa de uma convulsão, tal era o medo. A filha mais velha tremia como uma vara.

— Bebeu tudo! tudo! — rugiu Catarina com desespero. — E não traz a roupa! Eles têm fome! — gritava ela, torcendo as mãos e indicando as crianças. — Oh, vida, três vezes maldita! E o senhor não tem vergonha de vir aqui após ter saído da taverna? — gritou, investindo contra Raskólnikov. — Tu bebeste com ele, hein? Bebeste com ele? Vá-te!

O jovem não esperou segunda intimação, e retirou-se sem pronunciar palavra. A porta interior abriu-se de par em par e, no limiar, apareceram muitos curiosos, de olhares insolentes, escarninhos. Tinham as cabeças descobertas e fumavam, uns cachimbo, outros cigarro. Uns cobriam-se com simples roupões; outros vestiam-se tão ligeiramente que chegavam a estar indecentes. Alguns traziam cartas nas mãos. O que mais os divertia era ouvir Marmêladov, arrastado pelos cabelos, declarar que aquilo lhe dava prazer.

Começavam já a invadir o quarto. De repente, ouviu-se uma voz irritada, era Amália Lippelvechzel, que, abrindo caminho, vinha restabelecer a ordem a seu modo. Pela centésima vez, a senhoria intimou a pobre mulher a abandonar a casa no dia seguinte. Como é de prever, a intimação foi feita nos termos mais injuriosos. Raskólnikov trazia consigo o troco do rublo com que pagara na taverna. Antes de sair, tirou do bolso algumas moedas de cobre e, sem que ninguém o visse, colocou-as no parapeito da janela. Depois, já na escada, arrependeu-se de sua generosa ação. Esteve tentado a voltar ao quarto dos Marmêladov.

“Que tolice eu fiz!”, pensou. “Eles têm sua Sônia e eu não tenho ninguém!” Mas refletiu que não podia tornar a levar o dinheiro e que ainda que o pudesse fazer, não o faria. E decidiu-se a seguir seu caminho. “A Sônia carece de pomada”, continuou ele com amargo sorriso, caminhando pela rua, “aquele chic custa dinheiro... Hum! parece que a Sônia não se explicou hoje. Efetivamente, a caça ao homem é como a caça às feras: corre-se às vezes o risco de ficar logrado... Se não fosse meu dinheiro, viam-se amanhã em apuros. Ah, sim, Sônia! Acharam nela uma boa vaca leiteira! E sabem explorá-la! Isso não lhes embrulha o estômago; já estão habituados... A princípio deitaram umas lágrimas; depois, com o tempo, veio o hábito. O homem pusilânime, conforma-se com tudo.”

Raskólnikov ficou pensativo.

“E pode ser que eu me engane”, continuou. “Se o homem não necessariamente pusilânime, deve calcar aos pés todos os receios, todos os preconceitos que o detêm!...”


Capítulo III

Levantou-se tarde no dia seguinte, após um sono agitado que não lhe reparara as forças. Despertando, sentiu que estava de mau humor e lançou em volta de si um olhar de tédio, irritado. Esse cubículo de seis passos de comprimento tinha o aspecto mais miserável que se pode imaginar, com os estofos amarelados, deteriorados e imundos de poeira. O teto era tão baixo, que um homem de estatura alta não estaria à vontade naquela toca, com o permanente receio de bater nele com a cabeça. A mobília estava em harmonia com o recinto: três velhas cadeiras com falta de pés, a um canto uma mesa de pinho, na qual se amontoavam livros e cadernos cobertos de densa camada de pó, evidente prova de que havia muito que não tocavam neles; finalmente, um grande e desmantelado divã, cujo estofo se desfazia.

Este móvel, que ocupava quase metade do quarto, era a cama de Raskólnikov, que nele dormia quase sempre vestido e sem lençóis, cobrindo-se com sua velha capa de estudante, encostando a cabeça numa pequena almofada chata sob a qual metia toda a roupa, limpa e suja. Em frente do sofá havia uma pequenina mesa.

A misantropia de Raskólnikov adaptava-se magnificamente a toda aquela porcaria. Tomara tal aversão a qualquer ser humano que, à vista da própria criada que arrumava o quarto, se exasperava. Isso é frequente em certos monomaníacos, preocupados com uma ideia fixa.

Havia 15 dias que a hospedeira suspendera o fornecimento de comida, mas Raskólnikov não pensara ainda em ir entender-se com ela.

Quanto a Nastácia, cozinheira e única criada da casa, não se aborrecia ao ver o inquilino nessas disposições, porque isso importava uma diminuição de seu trabalho: deixara completamente de arrumar e limpar o quarto de Raskólnikov, vindo apenas uma vez por semana dar uma vassourada. Neste momento, entrou para despertá-lo.

— Levanta-te! Como podes dormir até estas horas? Já são nove. Trago-te chá, queres uma xícara? Sempre estás com uma cara!...

Raskólnikov abriu os olhos, espreguiçou-se e reconheceu Nastácia.

— É a patroa que manda o chá? — perguntou enquanto se sentava.

— Bem se importa ela com isso!

A criada colocou diante dele o bule onde havia ainda um resto de chá e pôs ao lado dois torrões de açúcar.

— Toma, Nastácia — disse ele, procurando no bolso e tirando uma moeda (mais uma vez se deitara vestido) —, peço-te que me vás comprar um pãozinho e traze-me do salsicheiro um pedaço de chouriço, do mais barato.

— Num minuto estou de volta com o pão; mas, em vez de chouriço, não queres antes chtchi?[ 23 ] É de ontem e está uma beleza. Já ontem à noite te guardei um pedaço mas tu entraste tão tarde! Está uma delícia.

Foi buscar o chtchi. Raskólnikov pôs-se a comer, e ela sentou-se no sofá a seu lado, tagarelando, como camponesa que era.

— Prascóvia Pavlovna vai queixar-se de ti à polícia.

A fisionomia do rapaz alterou-se.

— À polícia? Por quê?

— Porque não lhe pagas e não queres sair. Ora aí tens o porquê.

— Essa só pelo diabo! Não me faltava mais nada! — rosnou por entre dentes. — Muito fora de propósito vem isso agora para mim... É tola — acrescentou em voz alta. — Vou logo falar-lhe.

— Tola? É tão tola como eu. Mas tu, que és esperto, para que passas os dias deitado, como um vagabundo? Por que é que ninguém vê o teu dinheiro? Dantes parece que davas lições; por que é que não fazes nada, agora?

— Sempre faço alguma coisa... — respondeu Raskólnikov bruscamente e contrariado.

— Que fazes tu?

— Trabalho.

— Mas que trabalho?

— Penso! — respondeu ele asperamente, depois de breve silêncio.

Nastácia riu. Seu caráter era jovial; mas, quando ria, era com um sorriso silencioso e interior, que a fazia tremer toda e a esfalfava.

— E quanto ganhas para pensar? — perguntou logo que pôde falar.

— Não se pode sair para dar lições quando não se tem botas. Deveras, cuspo sobre essas lições.

— Vê lá, não te caia o cuspe no rosto.

— Pelo que se ganha com as lições!... O que se pode fazer com alguns copeques? — disse em tom azedo, interrogando mais a si próprio do que dirigindo-se à criada.

— Querias ganhar uma fortuna de um momento para outro?

Ele fitou-a com um ar estranho e, por um momento, ficou calado.

— Sim, uma fortuna — respondeu com voz firme.

— Lá chegarás. Metes-me medo, és terrível! Ainda queres que vá buscar o pãozinho?

— Como quiseres.

— Olha, esquecia-me! Enquanto estiveste fora, chegou uma carta para ti.

— Uma carta? Para mim? De quem?

— De quem, não sei. Dei do meu dinheiro três copeques ao distribuidor. Fiz bem, pois não?

— Dá-me, por Deus! Dá-me a carta! — exclamou Raskólnikov inquieto. — Meu Deus!

Um momento depois tinha a carta nas mãos. Não se enganara: era de sua mãe e trazia o carimbo de R***. Ao recebê-la, empalideceu. Havia muito que não tinha notícias da família; contudo, sentia o coração angustiado.

— Nastácia, deixa-me só, por teus bons sentimentos! Eis os três copeques. Apressa-te!

A carta tremia-lhe na mão; não queria abri-la na presença de Nastácia; esperava que a rapariga saísse. Uma vez a sós, levou-a aos lábios e beijou-a. Depois releu atentamente o endereço, reconheceu os caracteres traçados pela mão querida: era a letra fina e inclinada de sua mãe, que outrora lhe ensinara a ler e escrever. Hesitava, parecendo experimentar certo receio. Finalmente abriu: a carta era muito extensa; duas grandes folhas de papel completamente escritas.


Meu querido Ródia,

há mais de dois meses que não falo contigo por este meio, e tem-me isso causado tal desgosto, que até o sono me tem tirado. Mas tu certamente desculpas meu silêncio. Bem sabes quanto te quero: Dúnia e eu não temos senão a ti; tu és tudo para nós: nossa esperança e nossa felicidade futura. O que eu sofri quando soube que havia alguns meses te viras forçado a abandonar a universidade por falta de meios, e que não tinhas lições nem qualquer outro recurso!

Como podia eu valer-te com os meus 120 rublos anuais de pensão? Os 15 que te enviei há quatro meses, pedi-os emprestados, como sabes, a um negociante nosso patrício, Vassíli Ivânovitch Vakrúchine. É uma boa criatura, e foi muito amigo de teu pai. Mas, tendo-lhe eu dado plenos poderes para receber minha pensão, nada podia enviar-te enquanto ele não estivesse reembolsado, o que só agora sucedeu.

Agora, graças a Deus, creio que poderei mandar-te mais algum dinheiro. Apresso-me a dizer-te que podemos finalmente alegrar-nos com nossa sorte. E deixa-me dar-te uma notícia, que estás longe de esperar, querido Ródia, é que tua irmã está comigo há seis semanas e não mais me abandonará. Deus seja louvado, seus tormentos acabaram; mas vamos por ordem, porque quero que saibas como tudo se passou e o que até agora te havíamos ocultado:

Há dois meses escrevias-me, dizendo que tinham falado na falsa posição em que Dúnia se achava em casa da família Svidrigailov, e pedias-me te dissesse o que havia sobre isso. Que podia eu então dizer-te? Se eu te tivesse posto a par do que se passava, terias abandonado tudo para vires ter conosco, mesmo que tivesses de vir a pé; porque, com teu caráter e sentimento, não consentirias que insultassem tua irmã. Eu mesma estava na maior aflição; mas que havia de fazer? Nem eu então sabia toda a verdade. O pior foi que ela, quando entrou no ano passado como governanta nessa casa, recebeu adiantadamente cem rublos, que deviam ser descontados todo mês vendo-se, portanto, obrigada a ficar ali enquanto não resgatasse a dívida.

Esta quantia (hoje tudo te posso dizer, caro Ródia), ela pediu adiantada, para te enviar os sessenta rublos de que tanto carecias e que recebeste no ano passado. Enganamos-te então, dizendo-te que esse dinheiro era de antigas economias. Era inexato; digo-te agora toda a verdade, porque Deus permitiu que as coisas tomassem subitamente bom caminho, e também para que fiques sabendo quanto Dúnia te estima e que coração de ouro é o dela!

O caso é que o sr. Svidrigailov mostrou-se-lhe a princípio muito grosseiro, à mesa continuamente praticava para com ela as maiores grosserias crivando-a de sarcasmos... Mas para que hei de insistir nesses dolorosos detalhes que servem apenas para te magoar profunda e inutilmente, uma vez que tudo passou? Enfim, apesar de ser tratada com todas as atenções por Marfa Petrovna, a esposa de Svidrigailov, e por todos de casa, Dunetchka sofria muito, especialmente quando o sr. Svidrigailov, que se habituou a beber no regimento, se achava sob a influência do álcool. Mas não era tudo! Imagina que, sob essa aparência de grosseria e de desprezo, esse néscio ocultava uma paixão por Dúnia!

Possivelmente, ele se envergonhava e horrorizava-se das próprias esperanças ilusórias, considerando sua idade e condição de pai de família; e isso o fez irar-se com Dúnia. E possivelmente, também, teve esperança que seu procedimento grosseiro e de desprezo escondesse a verdade aos outros. Mas, por fim, perdeu o controle e mostrou-se a Dúnia como era e lhe fez a infame proposta, propondo-lhe mundos e fundos e oferecendo, além disso, morar com ela em outra região ou fugir para o exterior. Imagina quanto Dúnia teria sofrido. Não somente o adiantamento, de que te falei, não lhe permitia abandonar desde logo suas funções, como não se atrevia a pronunciar palavra sobre o caso, para não despertar suspeitas em Marfa Petrovna e introduzir a discórdia na família. Além de poder provocar um terrível escândalo para Dúnia, o que seria inevitável. Seriam esses os motivos que, confessou Dúnia, impediram-na de escapar da terrível casa senão passadas seis semanas. Tu, naturalmente, conheces Dúnia; sabes quanto é inteligente e como é forte. Dúnia possui grande capacidade de sofrimento; em muitos casos, tem mostrado o valor de sua firmeza. Ela não me escreveu sobre esses fatos por temer transtornar-me, apesar de mantermos correspondência.

O desenlace veio quando menos se esperava. Marfa Petrovna surpreendeu o marido no jardim, no momento em que tentava Dúnia com suas propostas e, compreendendo mal o que se passava, atribuiu a culpa à tua irmã. Passou-se entre elas uma cena terrível. A sra. Svidrigailov não quis atender a nada, gritando durante uma hora contra a suposta rival. Chegou até a bater-lhe e finalmente mandou-a para minha casa numa carreta, sem lhe dar tempo de arrumar a mala. Tudo quanto pertencia a Dúnia, objetos, vestidos etc., veio amontoado no veículo. Chovia torrencialmente e, depois de ter sofrido tantos vexames, Dúnia teve de fazer uma viagem de 17 quilômetros na companhia de um mujique, em carro aberto. Dize-me agora que resposta podia dar à carta que me escreveste há dois meses? Estava aflitíssima; não tinha coragem de dizer-te a verdade, porque sabia que ia desgostar-te profundamente; e, depois, Dúnia tinha-me proibido. Para te escrever uma carta cheia de frivolidades, não me sentia com coragem para o fazer, tendo o coração retalhado. Por causa disso fomos, durante um mês, o pratinho da cidade e as coisas chegaram a ponto de Dúnia e eu nem podermos ir à missa sem ouvirmos cochichos à nossa passagem, com um ar de desprezo.

E tudo isso por causa de um mal-entendido de Marfa Petrovna, que não perdeu um momento em infamar Dúnia por toda parte. Essa criatura conhece todo mundo da região, e, durante este mês, tem vindo aqui quase todos os dias. E, como é muito faladora e gosta de se queixar a todos do marido, espalhou logo a história, não só na cidade, mas em todo o distrito. A minha saúde sofreu forte abalo, Dunetchka foi mais forte do que eu. Não só não sucumbiu diante da calúnia, mas até me consolava, procurando por todas as formas dar-me coragem. Se a visses então! Que anjo!

Mas quis a divina misericórdia pôr termo a nosso infortúnio. O sr. Svidrigailov refletiu, e, talvez com dó da pobre criança a quem tinha comprometido, apresentou à mulher as mais fortes provas da inocência de Dúnia.

Felizmente ele conservava uma carta que, antes da cena do jardim, ela se vira obrigada a escrever-lhe, a fim de recusar uma entrevista pedida. Nessa carta, Dúnia censurava-lhe a indignidade do procedimento para com a esposa, recordando-lhe seus deveres de pai e marido, finalmente quanto era ignóbil perseguir uma pobre moça indefesa.

Na verdade, querido Ródia, a carta estava escrita em termos tão nobres e patéticos que suspirei quando a li e ainda hoje não posso relê-la sem chorar. Além disso, o testemunho das criadas limpou a reputação de Dúnia; elas tinham percebido e sabiam muito mais sobre o sr. Svidrigailov do que este supunha — eram notórios os casos com as criadas. Desde então não restou a Marfa Petrovna a menor dúvida sobre a inocência de Dunetchka. No dia seguinte, veio à nossa casa, contou-nos tudo e lançou-se nos braços de Dúnia, pedindo perdão, banhada em lágrimas. Percorreu depois todas as casas da cidade e, em toda parte, fez o mais caloroso elogio à honestidade de Dunetchka, assim como à nobreza de seus sentimentos e a seu exemplar comportamento. Não satisfeita com isso, mostrava e lia a todo mundo a carta de Dúnia ao marido, chegando a mandar tirar várias cópias (o que, em minha opinião, era desnecessário). Nessa ocupação, levou vários dias percorrendo o povoado, porque algumas pessoas, sabedoras do ocorrido, mexericaram com as outras. Por isso teriam de receber o troco; todos esperavam Marfa Petrovna e, assim que chegava, ela lia a carta; não só para cada uma das pessoas, como também para os grupos, nas próprias casas e nos lugares públicos. Em minha opinião, o desagravo foi exagerado; mas esse é o caráter de Marfa Petrovna. Ao menos reabilitou Dúnia; o marido, porém, sai dessa aventura coberto de desonra e chego a ter pena desse maluco, tão severamente castigado.

Dúnia recebeu logo proposta para lecionar em várias casas, mas não aceitou nenhuma. Todo mundo começou, de um momento para outro, a demonstrar-lhe a maior consideração, e essa brusca mudança de opinião foi principalmente devida ao inesperado acontecimento que, por assim dizer, vai modificar sensivelmente nossa situação.

Saberás, querido Ródia, que se apresentou um pretendente à mão de tua irmã, e que ela o aceitou, o que com grande alegria me apresso a participar-te. Estou convencida de que nos relevarás a falta de nos termos decidido sem te ter consultado, quando souberes que o caso não admitia demora e que não era possível esperar por tua resposta para darmos a nossa. Aliás, estando tu ausente, apreciarias sem perfeito conhecimento da causa.

Aqui tens como as coisas se passaram. O noivo, Pedro Petróvitch Lujine, é um advogado parente de Marfa Petrovna, que nesse caso procedeu muito corretamente. Foi ela quem nô-lo apresentou. Recebemo-lo com a maior afabilidade, tomou café conosco e, logo no dia seguinte, nos dirigiu uma carta atenciosíssima, fazendo seu pedido e solicitando resposta tão pronta como categórica. Esse homem tem uma vida muito ativa e está em vésperas de partir para São Petersburgo, de forma que não tem um minuto a perder.

Naturalmente, a princípio, ficamos surpresas, tão longe estávamos de esperar semelhante pedido. Durante todo o dia, tua irmã e eu estudamos a questão. Pedro Petróvitch está excelentemente colocado, ocupa dois cargos e possui já uma fortuna regular. É certo que tem 45 anos, mas é simpático e compreende-se que uma mulher goste dele. É homem sério e bem-educado; acho-o apenas um pouco frio e severo; mas, muitas vezes, as aparências iludem.

Ficas prevenido, querido Ródia: quando o vires em São Petersburgo, o que não tardará muito, não o julgues à primeira impressão, nem o condenes, como costumas, se, nesse primeiro momento, te inspirar pouca simpatia. Parece-me conveniente avisar-te disso, conquanto esteja certo de que ele não te causará má impressão. Aliás, em geral, para conhecermos uma pessoa, é preciso termos convivido com ela, observando-a a cada momento; do contrário, cometem-se erros de apreciação, que, por vezes, são difíceis de corrigir.

Mas, pelo que diz respeito a Pedro Petróvitch, tudo leva a crer que é um homem respeitabilíssimo. Logo em sua primeira visita nos disse ser muito franco. “No entanto”, acrescentou, “partilho em muitos pontos as ideias das gerações modernas e sou inimigo de todos os preconceitos”.

Disse muitas coisas mais, porque é, se não me engano, um nadinha vaidoso e retórico, o que afinal não é nenhum delito.

Por minha parte confesso que não compreendi suas palavras; por isso me limito a dar-te a opinião de Dúnia: “Conquanto mediocremente instruído”, disse-me ela, “é inteligente e parece bondoso”. Conheces o caráter de tua irmã, Ródia. É uma moça corajosa, ajuizada, paciente, bondosa, e possui um coração apaixonado, como tive ensejo de me convencer. Evidentemente não se trata, nem de um nem de outro lado, de um casamento de amor; mas Dúnia não é apenas uma moça inteligente; sua bondade é verdadeiramente angélica e, se o marido quiser torná-la feliz, ela há de impor-se o dever de lhe corresponder da mesma forma.

Sendo homem sensato, como é, Pedro Petróvitch há de compreender que a felicidade da esposa será a melhor garantia de sua própria. Devido a algumas falhas de caráter, a alguns velhos hábitos e mesmo a certas diferenças de opinião — que nos mais felizes casamentos são inevitáveis —, Dúnia costuma dizer, no que se refere a esse conjunto de fatos, confiar em si própria, que nada a inquietará, e está decidida a suportar essa situação galhardamente, desde que as futuras relações sejam honestas e escorreitas; a princípio, ele pareceu-me um pouco rude, mas naturalmente foi pelo modo por que disse as coisas sem rodeios. Na segunda visita, depois do pedido, disse-nos durante a conversação que, antes mesmo de conhecer Dúnia, estava resolvido a não casar senão com uma menina honesta, sem dote, e que tivesse tido privações. Na opinião dele é para desejar que o homem não deva obrigações à esposa; antes é conveniente que ela veja no marido um benfeitor.

Não são essas precisamente suas palavras; reconheço que ele se exprimiu de modo diverso, muito mais delicado, mas só me recordo do sentido delas. Ele disse aquilo sem pensar, é evidente que a frase lhe escapou no calor da conversação, e, tanto assim, que procurou imediatamente atenuar-lhe o efeito. Mesmo assim achei a frase áspera e, mais tarde, disse-o a Dúnia. Porém ela respondeu-me irritada que palavras leva-as o vento, o que é verdade. Na noite que precedeu a resolução, Dunetchka não conseguiu dormir. Julgando-me dormir, ergueu-se e pôs-se a andar no quarto de um lado para outro. Por fim se ajoelhou diante do ícone, e, depois de uma longa e fervorosa prece, declarou-me no dia seguinte que estava resolvida a aceitar o pedido.

Já te disse que Pedro Petróvitch parte brevemente para aí. Interesses importantes levam-no a essa capital, onde pensa estabelecer banca de advogado. Há muito que ele está no foro, e acaba agora mesmo de vencer uma causa importante. A sua viagem a São Petersburgo é motivada pela necessidade de seguir de perto certa causa nas instâncias superiores. Em tais circunstâncias, querido Ródia, pode ele prestar-te bons serviços, e eu e Dúnia pensamos já que tu poderias começar, sob a proteção de Petróvitch, a tua futura carreira. Ah! Se assim fosse! Terias tanto a ganhar, que deveríamos atribuir isso a um favor especial da Providência Divina.

Dúnia não pensa noutra coisa. Já falamos ligeiramente no caso a Pedro Petróvitch. Respondeu com certa reserva: “Hei de certamente precisar de um secretário”, disse, “e prefiro dar esse lugar a um parente do que a um estranho, uma vez que ele seja capaz de o desempenhar cabalmente.” (Era o que faltava, não seres capaz de desempenhá-lo!) Parece, no entanto, que ele receia que, com os teus estudos não tenhas tempo necessário para te ocupares dos negócios do escritório. Nessa ocasião, a conversa ficou por aqui, mas, como já te disse, Dúnia não pensa noutra coisa. Em sua imaginação te vê já trabalhando sob a direção de Pedro Petróvitch e mesmo associado dele, tanto mais que estás na Faculdade de Direito. Quanto a mim, Ródia, penso exatamente do mesmo modo, e os projetos que tua irmã forma para teu futuro parecem-me bem viáveis.

Apesar da resposta incerta de Pedro Petróvitch, aliás natural, Dúnia confia absolutamente em sua influência de esposa para dispor tudo à nossa vontade. Está claro que não demos a entender a Pedro Petróvitch que tu poderás vir um dia a ser sócio dele. É um homem positivo, e, naturalmente, acolheria mal uma ideia que apenas lhe pareceria um sonho.

Ambas, Dúnia e eu, jamais lhe insuflamos uma palavra sequer da grande esperança que temos de ele nos auxiliar no pagamento de teus estudos universitários; não lhe falamos, principalmente porque isso ocorrerá mais tarde, quando ele se oferecer de vontade própria, sem perda de palavra (embora possa negar-se a fazê-lo), e tanto mais depressa quanto de tomares sua mão direita no escritório, apto a receber sua ajuda, não como caridade, mas como salário merecido de teu próprio esforço. Dúnia deseja arranjar tudo dessa forma e eu estou perfeitamente de acordo com seu ponto de vista. E não falamos ainda de nossos planos a Pedro Petróvitch porque desejo que tu sintas meu objetivo ao travares conhecimento com ele. Quando Dúnia se referiu com entusiasmo a ti, ao conversar com ele, respondeu que não podia nunca avaliar um homem sem conhecê-lo de perto, pela própria experiência, e que esperava formar opinião ao conhecer-te.

Sabes, querido Ródia, por diversas razões, que aliás não dizem respeito a Pedro Petróvitch e que não passa talvez de tontices de velha, creio que, depois do casamento, será melhor que eu continue a viver em minha casa, em vez de ir morar com eles? Estou crente de que ele é bastante delicado para me pedir que não me separe de minha filha; se até agora nada disse, é porque julga que o caso se subentende; mas penso recusar. Notei mais de uma vez, em minha vida, que os genros não se dão bem com as sogras e não desejo ser insociável; de minha parte, manter-me-ei sempre independente, enquanto tiver uma côdea de pão e filhos como tu e Dúnia.

Se for possível, ficarei vivendo em tua vizinhança, e digo isso, Ródia, porque guardei o mais agradável para o fim. Imagina, querido filho, que em poucos dias nos reuniremos os três e que, de novo, nos abraçaremos após uma longa separação de três anos! Está decidido, já que Dúnia e eu iremos a São Petersburgo. Quando, não sei precisamente, mas, em todo caso, num prazo curto, em oito dias, talvez. Depende tudo das conveniências de Pedro Petróvitch, que há de enviar-nos instruções, logo que esteja estabelecido aí. Ele deseja, por certo motivo, apressar quanto possível o casamento que, se não houver inconveniente, talvez se realize num dos dias de carnaval, ou o mais tardar logo depois da festa da Assunção. Oh, com que prazer te apertarei contra o coração!

Dúnia está satisfeitíssima com a ideia de te tornar a ver. Já me disse, cheia de alegria, que, só por isso, casaria de bom grado com Pedro Petróvitch. É um anjo! Ela nada acrescenta à minha carta porque, segundo diz, teria tantas coisas a contar-te, que não vale a pena escrever algumas palavras; incumbe-me de te enviar um abraço. Conquanto tenhamos de nos reunir em breve, espero enviar-te rapidamente o dinheiro de que puder dispor. Logo que aqui se espalhou a notícia de que Dunetchka ia casar com Pedro Petróvitch, meu crédito elevou-se num momento, e sei de boa fonte que Afanase Ivânovitch está disposto a emprestar-me até 75 rublos, com a garantia de minha pensão. Assim, talvez possa mandar-te 25 ou trinta rublos. Enviar-te-ia mesmo mais, se não tivesse de contar com a viagem. É verdade que Pedro Petróvitch tem a bondade de tomar sobre si uma parte de nossas despesas; até nos ofereceu uma grande mala, onde cabem todas as nossas coisas; mas sempre temos de pagar as passagens até São Petersburgo e não havemos de chegar aí sem um copeque no bolso.

Dúnia e eu calculamos tudo: a viagem não nos ficará cara. De nossa casa à estrada de ferro, são umas noventa verstas, e tratamos com um campônio conhecido levar-nos até a estação; em seguida, entraremos muito satisfeitas em um compartimento de terceira classe. Enfim, bem feitas as contas, sempre te mandarei trinta rublos e não 25.

Agora, meu muito querido Ródia, abraço-te, enquanto não o faço pessoalmente, e envio-te minha bênção. Ama tua irmã! Recorda-te de que ela te ama ainda mais que a si própria; paga-lhe da mesma forma. Lembra-te de que ela é um anjo, e tu, Ródia, é tudo quanto temos no mundo: nossa única esperança, nosso único consolo. Se fores feliz, também nós o seremos. Ainda fazes tuas preces, Ródia, e acreditas na misericórdia de Deus e do Redentor? Temo, em meu coração, que estejas influenciado pelo novo espírito de impiedade que hoje campeia. Se isso ocorre, rezo por ti. Lembra-te, querido, como na infância, quando teu pai partiu desta vida, balbuciavas tuas preces em meus joelhos; como éramos felizes naquela época. Adeus, ou antes, até a vista. Abraço-te mil vezes.

Tua até a morte,

 

Pulquéria Raskólnikov.


Durante a leitura os olhos de Raskólnikov arrasaram-se por vezes de lágrimas. Quando terminou, porém, um amargo sorriso contraía-lhe a fisionomia pálida e transformada. Deixando cair a cabeça sobre a sujíssima almofada, ficou em profunda meditação. O coração palpitava-lhe violentamente, e as ideias entrechocavam-se em seu cérebro. Sentia-se oprimido, sufocado nesse cubículo amarelo, que lhe parecia um armário ou um baú. Seus olhos fitaram o vácuo. Pegou o chapéu e saiu, sem recear, para encontrar quem quer que fosse na escada. Já nem se lembrava da hospedeira. Dirigiu-se a Vassíli Ostrof, pela avenida V***. Caminhava apressadamente, como se fosse para um serviço urgente; como de hábito, não dava atenção a nada, ia monologando por entre dentes, chamando a atenção dos transeuntes, alguns dos quais o julgavam ébrio.


Capítulo IV

A carta de sua mãe sensibilizara-o muito. Mas, quanto ao ponto principal, não teve um momento de hesitação. Ainda não terminara a leitura e já tomara sua resolução: “Enquanto eu viver este casamento não há de realizar-se; que o sr. Lujine vá para o inferno!”

“O caso é claro”, murmurou sorrindo num ar triunfante, como se estivesse certo do resultado. “Não, mamãe; não, Dúnia; não me hão de enganar!... E ainda se desculpam por terem tomado tal resolução sem eu ter sido ouvido! Pois certamente! Elas julgam que agora é impossível desfazer o projetado casamento; pois veremos se é ou não! E que motivos alegam: ‘Pedro Petróvitch tem tanto que fazer que não pode casar senão a todo o vapor!’

“Não, Dunetchka, compreendo tudo, adivinho o que querias dizer-me, sei no que pensaste toda a noite passeando no quarto e o que pediste à Virgem de Kazã, cujo ícone está no quarto de mamãe.

“O Gólgota custa a subir. Hum!... Eis, pois, o que está assentado: Avdótia Romanovna vai casar com um homem franco e que já tem uma fortuna (o que não é para desprezar), que tem duas colocações e que partilha, segundo as palavras de mamãe, das ideias das gerações modernas. A própria Dunetchka diz que ele parece boa pessoa. Esse parece vale um mundo! Confiando nessa aparência é que a Dunetchka vai casar!... Admirável!...

“...Mas afinal queria saber por que é que mamãe se refere em sua carta às ‘gerações modernas’. Será unicamente para caracterizar a personagem, ou será com o fim de obter minha simpatia a favor do sr. Lujine? Oh!, que tática! Há ainda outro ponto que eu desejava esclarecer, e era: até que ponto elas teriam tido franqueza uma para com a outra durante o dia e a noite que precederam a resolução de Dunetchka? Chegariam a alguma explicação formal, ou compreender-se-iam reciprocamente sem quase terem necessidade de dizer o que pensavam? A julgar pela carta, sinto-me mais inclinado para a última hipótese; mamãe achou-o um tanto pedante, e, com sua simplicidade, comunicou a Dúnia essa observação. Dúnia enfadou-se, naturalmente, e respondeu de maneira áspera.

“Está claro! Uma vez que era coisa decidida, que já não se podia voltar atrás, a observação de mamãe era, pelo menos, inútil. E para que me diz ela: ‘Ama muito tua irmã; lembra-te de que ela te ama ainda mais do que a si própria.’ Não sentirá a consciência a acusá-la de ter sacrificado a filha ao filho? ‘Tu és nossa felicidade futura, tudo quanto temos no mundo!’ Oh, mamãe!”

A exaltação do jovem aumentava de momento a momento e, se nessa ocasião tivesse encontrado o sr. Lujine, talvez não resistisse ao desejo de assassiná-lo.

“Sim! É verdade”, continuou, seguindo por alto as ideias que se baralhavam em sua cabeça, “é verdade que, para conhecer uma pessoa, é necessário ter convivido com ela, observando-a; mas o sr. Lujine não é difícil de compreender. Em primeiro lugar, é um homem de negócios e ‘parece’ bondoso; o resto, são coisas infantis, com um ar de chalaça; ‘incumbiu-se de nos dar uma grande mala!’ Vamos, depois dessa prova, como se há de duvidar de sua bondade? A noiva e a futura sogra hão de meter-se a caminho numa carreta onde apenas terão para se resguardar da chuva um toldo. (Eu que conheço esses carros!)

“Que importa? O caminho até a estação é só de noventa verstas: em seguida entramos com o maior prazer num carro de terceira classe... Têm razão: a capa deve ser talhada conforme o pano; mas, como pensa o sr. Lujine? Vejamos, trata-se de sua noiva... É possível que ignore que, para fazerem essa viagem precisam de um empréstimo sobre a pensão? Sem dúvida seu espírito mercantil considerou isso uma espécie de parceria, em que cada sócio tem de entrar com sua cota; mas não há paridade alguma entre o custo de uma mala, por grande que seja, e o de uma viagem.

“Ou elas não compreendem isso, ou fingem não compreender. O caso é que parecem satisfeitas! Contudo, que frutos poderemos esperar de tais flores? O que mais me irrita nesse procedimento não é tanto a mesquinhez quanto o mau gosto; o namorado mostra o que será o marido... E mamãe, que atira o dinheiro pela janela fora, com quanto chegará a São Petersburgo? Com três rublos em metal ou com dois bilhetinhos como diz... a... velha... hum! Com que meios contará ela para viver? Por certas razões viu que era preferível separar-se de Dúnia quando ela se casasse; alguma palavra indiscreta desse amável cavalheiro foi uma luz para mamãe, por mais que ela queira fechar os olhos à realidade.

“‘Tenciono recusar’, diz ela. Então com que meios conta para viver? Sua pensão de 120 rublos, sujeita ao desconto da quantia emprestada por Afanase Ivânovitch? Lá na aldeia chegava a tecer lenços de malha e a bordar, mas bem sei que esse trabalho não rende mais de vinte rublos por ano. Evidentemente, a despeito de tudo, conta com a generosidade do sr. Lujine. ‘Quando ele se oferecer de vontade própria.’ Pois sim!

“Assim acontece sempre a esses nobres corações schillerescos; até o último instante, qualquer ganso é para eles um cisne; até o último momento, acreditam no melhor e nada veem de mau; embora deem uma espiada no outro lado do quadro que lhes é mostrado, não querem ver a verdade, até serem forçados a isso; a simples lembrança da verdade os faz estremecer; jogam fora a verdade com as duas mãos, até que as pessoas que lhes mostram as falsas cores imponham-lhes uma capa de louco. Gostaria de saber se o sr. Lujine possui algum mérito; aposto como traz a Ana pelo beicinho e disso se aproveita quando vai jantar com seus constituintes e homens de negócio. Pensa tê-la subjugada, até para o casamento! Basta de falar nele. Diabos o levem!

“Mamãe é assim mesmo, não há que admirar; Deus a abençoe. Mas Dúnia, como pode? Dúnia querida, como se não a conhecesse! Eu a vi pela última vez quando tinha quase vinte anos: então, nos entendíamos. Mamãe escreveu: ‘Dúnia está decidida a suportar essa situação galhardamente.’ Sei disto perfeitamente. Há dois anos e meio que eu sei, e neles estive pensando sobre o assunto, pensando exatamente como ‘Dúnia está decidida a suportar essa situação galhardamente’. Se pôde suportar a situação com o sr. Svidrigailov e o resto, ela certamente suportaria tudo galhardamente. E agora mamãe e ela decidiram resolver tudo com o sr. Lujine, defensor da teoria da felicidade das esposas, salvas do desamparo, e tudo devendo à magnanimidade do esposo — teoria defendida, logo na primeira entrevista. Deixando escapar a contragosto tal teoria, embora seja um homem sensível (ainda assim poderia não ser uma escápula, mas o desejo de fazer-se compreendido o mais cedo possível); mas Dúnia, Dúnia?! É impossível que ela não compreenda esse homem; e vai desposá-lo! Sua liberdade, sua alma eram-lhe mais caras do que o bem-estar; para não ter de renunciar a elas preferiria comer pão preto e beber água; não as trocaria pelo Schleswig-Holstein, quanto mais pelo sr. Lujine. Era assim a Dúnia que conheci, e que, certamente, ainda não mudou. Bem sei que é triste viver sob o teto de qualquer Svidrigailov, andar sem destino, passar a vida inteira a aturar crianças, ganhando duzentos rublos por ano. Não é das melhores coisas. Mas minha irmã preferiria ir trabalhar em uma plantação da Lituânia, com um patrão alemão, a aviltar-se unindo por interesse pessoal sua existência à de um homem que não amasse e com quem nada tivesse de comum! Ainda que o sr. Lujine fosse de ouro ou de brilhantes, ela não se prestaria a ser a legítima amásia do sr. Lujine. Que motivo a demoveu então? Qual será a chave do enigma?”

Refletiu um momento.

“Ora, o motivo é bem claro; não procede em proveito próprio. Para conseguir o seu bem-estar ou para escapar à morte, é certíssimo que ela não se venderia; mas vende-se por outra pessoa, por um ente querido, adorado! Eis a explicação do mistério: é por nós, por mamãe e por mim, que ela se sacrifica. Vende-se completamente! Oh! Nesse caso, violenta-se o senso moral; leva-se ao mercado a liberdade, a paz, a própria consciência, tudo, tudo! Perca-se embora a vida, contanto que as criaturas adoradas sejam felizes! Mais ainda, recorre-se à sutil casuística dos jesuítas, transige-se com os próprios escrúpulos, chegamos mesmo a persuadir-nos de que é preciso proceder assim, porque o fim justifica o meio. Eis aqui como nós somos, e para que andamos por cá! É certo que aqui, no primeiro plano, se encontra Ródion Românovitch Raskólnikov. Não, é preciso assegurar-lhe a felicidade, conseguir-lhe os meios de concluir seu curso, de vir a ser sócio do sr. Lujine, de chegar a fazer fortuna, fama, glória, se possível for! E a mamãe? Essa só pensa em seu querido Ródia, em seu primogênito. Pois não é natural que ela sacrifique a filha a este filho, seu predileto? Corações ternos e injustos!

“Mas isso que elas vão fazer se assemelha a aceitar a sorte de Sonetchka, de Sonetchka Marmêladov, a eterna Sonetchka, que há de existir enquanto houver mundo! Mediste bem teu sacrifício? Sabes, Dunetchka, que viver com o sr. Lujine é nivelares-te com a Sonetchka? ‘Aqui não pode haver amor’, escreve mamãe. Pois bem, se não pode haver amor, nem estima, se, ao contrário, há antipatia, repulsão quase, em que difere esse casamento da prostituição? Mais desculpa tem a Sonetchka; essa vendeu-se não para aumentar um certo bem-estar, mas porque via a fome, a verdadeira fome, portas adentro!...

“E se mais tarde o sacrifício for superior às tuas forças, se vieres a te arrepender do que tiveres feito, quantas lágrimas vertidas em silêncio — porque tu não és Marfa Petrovna! E então que será de mamãe? Se ela agora já está inquieta, que fará quando vir as coisas por outro prisma, como realmente são? E eu? Porque eu, sim, eu também sou gente! Não aceito teu sacrifício, Dunetchka; não aceito, mamãe; enquanto eu viver não se realizará esse casamento.”

Subitamente, parou.

“Não há de se realizar? Mas que podes fazer para o impedir? Opor teu veto? E com que direito? O que podes prometer-lhes para te permitires tanta arrogância? Comprometer-te-ás a dedicar-lhes toda a tua vida, todo o teu futuro, quando tiveres acabado teu curso e obtido uma colocação? Isso é para depois mas agora? É necessário fazer já alguma coisa, entendes? Ora, que fazes tu atualmente? Vives à custa delas. Levas uma a pedir emprestado sobre sua pensão e outra a solicitar um adiantamento de ordenados aos Svidrigailov! Com o pretexto de que mais tarde serás milionário, pretendes hoje dispor despoticamente da sorte das duas; mas poderás atualmente tomar sobre ti o encargo de socorrer as necessidades de ambas? Daqui a dez anos, talvez! Entretanto, tua mãe chegará a cegar fazendo lenços de malha e a chorar, com a saúde arruinada por privações de toda espécie. E tua irmã? Vamos, pensa nos perigos que tua irmã pode correr nesse período de dez anos! Pensaste?”

Experimentava um amargo prazer fazendo a si mesmo essas dolorosas perguntas, que aliás não eram novas para ele. Havia muito que elas o perseguiam sem cessar, exigindo seguras respostas que ele se sentia incapaz de lhes dar. A carta da mãe fulminara-o como um raio. Compreendia agora que passara o tempo das lamentações, que nada remedeiam e que, em vez de increpar sua imprudência, cumpria-lhe fazer qualquer coisa o mais depressa possível. Era necessário tomar desde já uma resolução qualquer, ou...

“Ou renunciar à vida!”, exclamou subitamente, “aceitar, duma vez para sempre, o destino como ele é, abafar todas as aspirações, abdicar definitivamente do direito de ser livre, de viver, de amar!...”.

Raskólnikov lembrou-se de repente das palavras que Marmêladov dissera na véspera: “Compreende, compreende, senhor, o que significam estas palavras: não ter para onde ir?... Todo homem necessita de um lugar para voltar.”

Estremeceu. Um pensamento que, na véspera, lhe viera, apresentava-se de novo a seu espírito. Não foi, contudo, a volta desse pensamento o que fez estremecer. Sabia já, ou antes pressentia, que, infalivelmente, voltaria e esperava-o. Mas essa ideia não era precisamente como a da véspera, e a diferença estava nisto: o que há um mês, ontem ainda, era apenas um sonho, surgia agora por um aspecto assustador. O jovem tinha consciência dessa diferença... Sentia um tumulto no cérebro e uma nuvem toldar-lhe a vista.

Olhou em torno, procurou alguma coisa. Precisava sentar-se e procurava um banco. Estava então na avenida K***. A cem passos havia um. Caminhou para ele a toda a pressa, mas, no trajeto, sucedeu-lhe uma pequena aventura, que durante alguns momentos o absorveu completamente.

Quando olhava na direção do banco, avistou uma mulher a uns vinte passos de distância. A princípio não ligou mais importância a ela do que às variadíssimas coisas que encontrara no caminho. Muitas vezes lhe sucedera, por exemplo, entrar em casa, sem conseguir lembrar-se do caminho que surgira; geralmente caminhava sem reparar em coisa alguma. Mas essa mulher tinha uma aparência tão estranha que Raskólnikov não pôde deixar de notá-la. A surpresa sucedeu a curiosidade, contra a qual tentou lutar, mas que bem depressa se tornou superior à sua vontade. De súbito quis saber o que havia de tão particularmente extraordinário nessa criatura. Pela aparência, ela devia ser muito nova. Apesar do excessivo calor, ia com a cabeça descoberta, sem guarda-sol nem luvas, agitando os braços de modo ridículo. Levava um lenço atado ao pescoço; o vestido era de seda, muito malposto, desacolchetado e rasgado na cintura; um farrapo oscilava de um lado para outro. E, ainda por cima de tudo isso, a passeante, não se podendo suster nas pernas, cambaleava. Esse encontro acabou por despertar toda a atenção de Raskólnikov. Aproximou-se da jovem, precisamente quando ela chegava junto ao banco, no qual se deitou em vez de se sentar, inclinando a cabeça para trás e cerrando os olhos como uma pessoa prostrada de cansaço. Não foi difícil a Raskólnikov perceber que ela estava embriagada. O caso pareceu-lhe tão singular que a si próprio perguntou se não seria engano seu. Tinha diante de si uma galante criança de 16 anos, talvez mesmo de 15. O rosto, emoldurado de cabelos louros, era bonito, mas afogueado. Parecia inconsciente. Levantou uma das pernas em atitude indecorosa. Tudo levava a crer que ela nem sabia onde estava.

Raskólnikov não se sentou, não quis retirar-se e ficou diante dela, sem saber o que fazer. Já dera uma hora e fazia um calor insuportável; raras pessoas passavam nessa avenida, que é geralmente deserta. Todavia, a uns 15 passos de distância, no passeio, estava parado um homem que, sem dúvida, desejava aproximar-se da moça com certas intenções. Também ele, decerto, a vira a distância e a seguira; mas a presença de Raskólnikov incomodava-o: olhava-o irritado de soslaio esperando inquieto o momento em que aquele maltrapilho lhe cedesse o lugar. Suas intenções eram claras. Este sujeito, que se vestia elegantemente e teria uns trinta anos, era espadaúdo, forte, corado, de lábios vermelhos e fartos bigodes. Raskólnikov encolerizou-se e teve ímpetos de o insultar. Abandonou por um momento a jovem e aproximou-se dele:

— Olá, Svidrigailov! Que faz por aqui? — exclamou cerrando os punhos, ao passo que um sorriso sarcástico lhe entreabria os lábios, que começavam a orlar-se de espuma.

O elegante homem franziu o sobrolho e, na fisionomia, desenhou-se uma expressão de altivez e surpresa.

— Que quer dizer isso? — interrogou arrogantemente.

— Quer dizer que gire, que se ponha a andar.

— Pois tu te atreves, canalha!...

E ergueu a bengala. Raskólnikov, com os punhos cerrados, atirou-se a ele sem pensar na desigualdade de forças. Mas sentiu que o agarravam pelas costas. Era um policial que punha termo ao incidente.

— Então, senhores, então, não briguem no meio da rua. Que querem? Quem é o senhor? — perguntou com ar severo a Raskólnikov, reparando nos andrajos do rapaz.

Raskólnikov olhou atentamente para quem lhe fazia a pergunta. O policial, de bigode e suíças brancas, tinha o ar de um valente soldado e parecia inteligente.

— É exatamente do senhor que preciso — disse Raskólnikov, tomando-o por um braço. — Sou estudante e chamo-me Raskólnikov... o senhor pode também saber isto, acrescentou voltando-se para o outro. Venha comigo, vou mostrar-lhe uma coisa...

E, continuando a segurar o policial pelo braço, conduziu-o junto ao banco.

— Aqui está esta jovem embriagada; ainda agora andava aos tombos. É difícil dizer sua situação social, mas não tem aparência de vadia. O mais provável é que a tenham obrigado a beber e que abusassem dela... é uma principiante... compreende? Depois, a cair de bêbada, puseram-na na rua. Veja em que estado tem o vestido, não foi ela quem se vestiu, vestiram-na e foram mãos inábeis, mãos de homem que fizeram esse serviço. Agora olhe para este lado: esse janota em quem eu queria bater há pouco, não o conheço, vejo-o pela primeira vez; mas ele reparou nela também, certificou-se de que estava bêbada, que não tinha consciência de coisa alguma, e queria aproveitar-se dessa circunstância para levá-la a alguma hospedaria suspeita... É assim mesmo, pode ter certeza de que não me engano. Reparei como ele a olhava e a seguia. Cortei-lhe as asas e S. Exa. agora esperava que eu me fosse embora. Como se há de lhe arrancar esta presa? Como havemos de conseguir que ela vá para casa?

O policial, que compreendeu tudo, pôs-se a pensar. Não podia haver dúvida sobre as intenções do homem; restava a moça. Inclinou-se para ela, para a ver mais de perto, e em sua fisionomia desenhou-se uma profunda piedade.

— Que desgraça! — exclamou abanando a cabeça. — É ainda uma criança. Caiu numa cilada, por certo... Ouça, menina, onde mora? Diga, onde mora?

Ela entreabriu a custo as pálpebras, olhou espantada os dois e fez um gesto como que para os afastar.

Raskólnikov remexeu na algibeira e tirou vinte copeques.

— Tome, disse. Alugue uma carruagem e leve-a para casa. O que é preciso é saber onde mora.

— Menina — gritou outra vez o policial depois de guardar o dinheiro — vou chamar um carro e eu mesmo a levo para casa. Onde mora?

— Oh, meu Deus!... Eles agarram-me!... — murmurou ela com o mesmo gesto que fizera há pouco.

— Que coisa ignóbil! Que infâmia! — disse o policial indignado e cheio de piedade. — Eis a grande dificuldade! — continuou dirigindo-se a Raskólnikov, que novamente examinou dos pés à cabeça, parecendo-lhe muito singular este indigente tão pródigo. — Encontrou-a longe daqui?

— Já disse que ela caminhava adiante de mim cambaleando por esta mesma avenida e, quando chegou junto do banco, deixou-se cair.

— Que crueldades se praticam por esse mundo, meu Deus! Uma rapariga tão nova e embriagando-se dessa maneira! Enganaram-na, certamente! Tem o vestido rasgado!... Muito vício há por aí!... Talvez os pais sejam nobres caídos na decadência. Há tanta gente assim, agora! A aparência dela é de filha de boa família.

E novamente se inclinou para a jovem.

Talvez ele próprio fosse pai de raparigas bem-educadas que parecessem filhas de boa família.

— O que é necessário — continuou Raskólnikov — é não a deixarmos à mercê deste malandro! Evidentemente o pulha tem seu plano formado e não arreda pé dali!

Levantara a voz e indicava o sujeito com o gesto. Ele, percebendo que falavam a seu respeito, quis zangar-se, mas logo mudou de tática, limitando-se a lançar ao inimigo um olhar de desprezo. Em seguida, lentamente, afastou-se uns dez passos e tornou a parar.

— Não lhe há de pôr a mão — disse com ar pensativo o policial. — Ao menos, se ela dissesse onde mora! Sem essa indicação... Menina, menina! — chamou inclinando-se novamente sobre a jovem.

De repente ela abriu os olhos, olhou fixamente e pareceu voltar a si; levantou-se e seguiu em sentido inverso o caminho por onde viera.

— Que importunos, que desavergonhados, como se agarram a mim! — exclamou agitando novamente os braços, como para afastar alguém.

Caminhava apressadamente, mas pouco firme. O janota começou a segui-la por outro passeio, sem a perder de vista.

— Esteja tranquilo, não há de apanhá-la — disse o policial. — Há muito vício por aí. — E partiu atrás deles.

Nesse momento operou-se no espírito de Raskólnikov uma reviravolta tão completa como rápida.

— Ouça — gritou ele ao policial, que se voltou. — Deixe-os em paz. Que se divirtam! O que tem o senhor com isso?

O outro, surpreendido, olhou Raskólnikov, que se pôs a rir. E continuou a seguir o desconhecido e a jovem, julgando certamente tratar-se de um louco.

“E lá se foram meus vinte copeques”, disse ele com seus botões, quando ficou só. “Há de aceitar também dinheiro do outro e deixá-lo com ela. Mas que diabo de ideia a minha de me armar em benfeitor! Tenho eu, talvez, a obrigação de defender a primeira pessoa que me aparece? Com que direito? Em honra de que santo? Ainda que se devorem uns aos outros, que tenho eu com isso? Para que dei vinte copeques?”

A despeito dessas palavras, tinha o coração oprimido. Sentou-se. Suas ideias não tinham coerência. Custava-lhe pensar fosse no que fosse. Desejaria adormecer profundamente, esquecer tudo, completamente, acordar e começar uma vida nova...

“Pobrezinha”, disse ele olhando para o banco onde a jovem se deitara, “quando voltar a si; há de chorar, depois a mãe saberá da aventura, bater-lhe-á para juntar a humilhação à dor; é provável que a ponha na rua... E quando não a abandone, qualquer Dária Frantzovna farejará essa caça, e teremos a mocinha aos trambolhões, de queda em queda até os hospitais, o que não sucederá muito tarde. Logo que estiver curada, recomeçará a pândega até ir novamente parar no hospital, com escala pela cadeia. Com dois ou três anos dessa vida, aos 18 ou 19, estará perdida. Quantas, que começaram dessa maneira, tenho eu visto acabar assim! Mas, enfim, dizem que é preciso, é uma percentagem, um prêmio que tem de ser pago... certamente ao diabo... para garantir a tranquilidade dos outros. Uma percentagem! Inventam realmente lindas palavras e dão-lhes um ar científico que lhes fica a calhar! Quando se diz tantos por cento, está dito tudo, é um caso liquidado. Se dessem outro nome talvez à coisa, causassem mais preocupação... E quem sabe? Não poderá suceder que a Dunetchka seja também compreendida na percentagem do ano próximo, ou talvez ainda na deste?...”.

“Mas aonde queria ir?”, pensou ele subitamente. “É extraordinário. Tinha destino quando saí de casa. Logo que li a carta, saí... Ah, sim, agora me lembro: ia procurar Razumíkhin, em Vassíli Ostrof. Mas que ia fazer? Como me veio à ideia visitar Razumíkhin? É singular!”

Nem ele mesmo se entendia. Razumíkhin era um de seus antigos colegas da Universidade. É de notar que, quando Raskólnikov seguia o curso de Direito, vivia muito só, não frequentava a casa de nenhum dos colegas e não lhe agradava receber a visita deles, que não tardaram a pagar-lhe na mesma moeda. Nunca tomava parte nas reuniões nem nos divertimentos acadêmicos. Era admirado por sua aplicação, mas não tinha a simpatia de ninguém. Muito pobre, orgulhoso e concentrado, sua existência parecia envolver um mistério. Os condiscípulos queixavam-se de Raskólnikov que os olhava indiferentemente, como se fossem crianças ou criaturas muito inferiores a ele intelectualmente.

No entanto ligara-se a Razumíkhin, ou, para melhor dizer, tinha mais confiança nele que noutro qualquer. Certamente o gênio franco e alegre do estudante despertava a maior simpatia. Era um rapaz muito vivo, expansivo e duma bondade extrema. Os mais inteligentes colegas reconheciam-lhe o merecimento e estimavam-no. Não era tolo, embora às vezes fosse de uma ingenuidade infantil. Seus cabelos negros, a cara por barbear, seu porte esguio, alto, atraíam logo a atenção.

Tinha fama de valente. Uma noite, percorrendo as ruas de São Petersburgo em companhia de alguns amigos, atirou ao chão com um murro um policial que media cerca de 1,90 metro de altura. Por vezes entregava-se à embriaguez mas, quando lhe convinha, mantinha-se na maior sobriedade. Se, às vezes, praticava loucuras imperdoáveis, noutras mostrava prudência e equilíbrio inexcedíveis. Nunca o viram acabrunhado, sucumbido ante uma contrariedade. Era homem para dormir num telhado, sofrer o frio e a fome, sem por um momento perder o seu bom humor habitual. Extremamente pobre, reduzido aos próprios recursos, ganhava a vida regularmente, porque era ativo e conhecia uns certos pontos onde lhe era possível obter dinheiro, pelo trabalho, é claro.

Passou todo um inverno sem fogo, e dizia a todo o mundo que isso era muito mais agradável, porque se dorme muito melhor quando se tem frio. Presentemente, tivera também de deixar a Universidade por falta de meios, mas esperava continuar o curso em breve, não desprezando coisa alguma para melhorar sua situação precária. Havia quatro meses que Raskólnikov não o visitava e Razumíkhin não sabia sua morada. Tinham-me encontrado, havia uns dois meses, mas Raskólnikov atravessara imediatamente para outra calçada, querendo ocultar-se do colega, que viu o amigo, mas, receando incomodá-lo, fez vista grossa.


Capítulo V

“Realmente, não há ainda muito tempo que eu tencionava ir procurar Razumíkhin, para lhe pedir que me conseguisse algumas lições, ou um trabalho qualquer...”, pensava Raskólnikov, “...mas, agora, em que me pode ser útil? Demos de barato que me arranje algumas lições, suponhamos mesmo que dispondo de alguns copeques, se sacrifique em me emprestar dinheiro para umas botinas e roupas decentes, indispensáveis a um professor... muito bem, e depois? Que posso fazer com alguns copeques? É disso que preciso agora? Decididamente faço uma grande tolice indo à casa de Razumíkhin...”.

O desejo de saber o que ia agora fazer em casa do condiscípulo intrigava-o ainda mais do que a si próprio confessava, buscava ansiosamente algum significado sinistro nesse fato, aparentemente banal.

“Pois é possível que, no meio de minhas contrariedades e apoquentações, eu só tenha esperança em Razumíkhin? Pois realmente só ele poderá salvar-me?”

Refletia, esfregou os olhos e, repentinamente, depois de ter por algum tempo atormentado o espírito, em seu cérebro brotou uma ideia extraordinária.

“Pois vou à casa de Razumíkhin”, disse tranquilamente, como se tivesse tomado uma última resolução, “vou à casa de Razumíkhin, não há dúvida... mas não neste momento... Irei visitá-lo... no dia imediato, quando aquilo estiver concluído e minhas coisas tiverem mudado de aspecto”.

Mas, mal pronunciou essas palavras, reconsiderou:

“Quando aquilo estiver concluído!”, exclamou com um sobressalto que o fez erguer-se do banco. “Mas isso realizar-se-á? Será possível?”

Levantou-se e andou rapidamente. Seu primeiro movimento foi voltar para casa, mas custava-lhe entrar nesse horrível cubículo onde passara mais de um mês planejando tudo aquilo! Essa ideia despertou-lhe a repulsa; pôs-se a andar ao acaso.

O tremor nervoso tomara caráter febril; sentia calafrios, apesar da temperatura muito elevada. Automaticamente, como que cedendo a uma necessidade interior, procurava fixar a atenção num sem-número de coisas que encontrava, para fugir à obsessão de uma ideia perturbadora. Mas em vão procurava distrair-se; voltava sempre às mesmas ideias. Quando ergueu a cabeça para olhar em redor, esqueceu por um momento o que o preocupava e mesmo o local onde se encontrava. E foi assim que atravessou todo o Vassíli Ostrof, alcançou o Pequeno Neva, passou a ponte e chegou às ilhas.

As árvores e a brisa fresca desanuviaram a princípio seus olhos habituados à poeira, à cal, às pirâmides de alvenaria. Respirava-se bem ali; não havia exalações mefíticas nem tavernas. Mas bem depressa essas novas sensações perderam o encanto cedendo lugar a uma irritação doentia. Por vezes, Raskólnikov parava em frente de alguma casa de campo, envolvida na vegetação: olhava pelas grades, via nas janelas mulheres elegantemente vestidas e crianças correndo pelos jardins. As flores lhe prendiam mais a atenção; pasmado, olhava-as mais que outra coisa. De vez em quando, passavam a seu lado cavaleiros e amazonas, esplêndidas equipagens; seguia-os com o olhar investigador e esquecia-os antes mesmo de os perder de vista.

De súbito parou e contou o dinheiro que trazia: uns trinta copeques. “Dei vinte ao policial e três a Nastácia pela carta; portanto, foram 47 ou cinquenta copeques que deixei ontem com os Marmêladov.” Verificando a situação da sua bolsa, obedecera a uma razão qualquer, mas, um momento depois, não se lembrava do motivo por que contara o dinheiro; ocorreu-lhe mais tarde, passando em frente de uma taverna. Sentia fome.

Entrou, bebeu um cálice de aguardente e mordeu um bolo que foi comendo pelo caminho. Havia muito que não tomava bebidas alcoólicas. A pouca aguardente que bebera produziu logo efeito. Faltavam-lhe as pernas e começou a sentir forte sonolência. Quis voltar para casa, mas, quando chegou a Petróvski Oskof, viu que não podia continuar. Retornou; enveredou por entre arbustos; deitou-se na grama e dormiu instantaneamente.

O cérebro, no estado mórbido, tem sonhos, por vezes, de um relevo extraordinário, de uma espantosa semelhança com a realidade. Às vezes, o quadro é monstruoso; mas o cenário e as cenas são tão naturais, os pormenores são tão sutis e apresentam em seu imprevisto um tão artificioso engenho, que o sonhador, embora fosse um artista como Púchkin ou Túrguenef, seria incapaz de pintar tão perfeitamente. Esses sonhos mórbidos gravam-se na memória e influem poderosamente no organismo já alquebrado do indivíduo.

Raskólnikov teve um sonho horrível. Voltou à infância e à pequena cidade em que vivia então com a família. Tinha sete anos. Nas tardes de festa, passeava com o pai pelo campo. O tempo está enevoado, o ar pesado, os lugares são precisamente como a memória os recordava; em sonho, encontra até mais de um pormenor apagado na memória. Distingue perfeitamente a pequena cidade, em cujos arredores não se ergue um único salgueiro-branco. Lá muito ao longe, na linha do horizonte, a mancha negra de um bosquezinho. Para lá do último jardim, há uma taverna, junto da qual o pequeno nunca podia passar, quando passeava com o pai, sem sentir uma impressão de terror. Havia sempre ali uma chusma que berrava, ria, se enfurecia e brigava, ou que cantava com voz rouca coisas de apavorar! Nos arredores, andavam sempre ébrios de rostos horríveis!... Se se aproximavam, Ródia agarrava-se ao pai, tremendo como uma vara. A passagem que conduz à taverna está sempre coberta de uma poeira negra. A trezentos passos, o caminho desvia-se para a direita e contorna o cemitério da cidade, no centro do qual se ergue uma igreja de pedra com cúpula verde, onde, em criança, ia com os pais ouvir missa duas ou três vezes por ano, quando se celebravam ofícios pela alma de sua avó, falecida havia muito e que ele não chegara a conhecer. Levava sempre um bolo de arroz tendo em cima uma cruz feita de passas. Gostava muito dessa igreja, de seus ícones, do velho padre de cabeça trêmula. Ao lado da lápide que cobria a terra onde repousavam os restos da velhinha, havia um pequeno túmulo, o de seu irmão mais novo, que morrera com seis meses. Também não o conhecera, mas tinham-lhe dito que tivera um irmão; por isso, sempre que ia ao cemitério, fazia piedosamente o sinal da cruz quando chegava junto ao túmulo, inclinava-se respeitosamente e beijava-o. Eis, agora, o sonho de Raskólnikov: segue com o pai pelo caminho que leva ao cemitério, passam em frente à taverna; o pequeno agarra-se à mão do pai e olha assustado para a casa odiada onde reina uma animação superior à do costume. Estão lá muitos burgueses e camponesas com seus maridos, todos com roupas endomingadas, toda uma ralé. Bêbados, cantam todos. Em frente à porta da taverna, está um desses carroções que servem para transportar pipas de vinho, e que, geralmente, são puxados por vigorosos cavalos, de grossas pernas e crina farta. Raskólnikov tinha sempre prazer em admirar esses enormes animais, capazes de arrastar as mais pesadas cargas sem sentirem a menor fadiga. Mas, agora, ao carroção estava atrelado um cavalicoque ruço, de uma magreza horrível, um desses tristes sendeiros que os mujiques obrigam a puxar enormes carros de lenha ou de feno e que atormentam com pancadaria, chegando mesmo a bater-lhes nos olhos quando os desgraçados fazem debalde esforços para tirar o veículo atolado na lama. Esse espetáculo, que Raskólnikov por vezes presenciara, umedecia-lhe sempre os olhos, e a mãe nunca, em tal caso, deixava de o afastar da janela. Repentinamente, faz-se um grande tumulto; da taverna, saem gritando, cantando e tocando balalaica mujiques completamente embriagados, vestindo camisas vermelhas e azuis e com os capotes nos ombros.

— Subam, subam! — grita um rapaz muito novo, de pescoço taurino, avermelhado. — Levo-os todos, subam! — Essas palavras provocam gargalhadas e exclamações.

— Fazer andar este lazarento!

— Tu estás doido, Mikolka. Pois vais pôr um cavalo tão pequeno e velho em semelhante carro?!

— Isto é animal de seus vinte anos!

— Subam, subam! Levo-os todos — diz novamente Mikolka, que salta para o carro, toma as rédeas e fica de pé na almofada do veículo. — O cavalo baio foi há pouco com o Matvei, e este diabo, meus amigos, faz-me de palhaço. Minha vontade era matá-lo; não vale o que come. Subam, subam, e verão como o farei galopar! Olé se faço!

E pega no chicote satisfeito com a ideia de bater no pobre animal.

— Subam, vamos! Ele não diz que o faz galopar? — repete a multidão, cercando o carro e caçoando.

— Há dez anos, com certeza, que não galopa.

— Não tenham dó, meus amigos, pegue cada um em seu chicote e preparem-se!

— Está dito, vamos a isso!

Sobem para a carroça de Mikolka, rindo e chacoteando. Já lá estão seis passageiros e há ainda lugar. Entre eles vai uma aldeã gorducha, de faces rubras, vestindo jaleco de algodão vermelho com uma espécie de coifa ornada de miçangas e grossos sapatos de couro. Trinca nozes e, de quando em quando, solta uma gargalhada. Na multidão que rodeia o carroção, rompem também as risadas; e, na verdade, quem não há de rir ao pensar que tal sendeiro arrastará a galope toda esta gente! Dois dos homens que subiram para o carro pegam em chicotes, dispostos a ajudar Mikolka.

— Agora! — grita ele. — O animal puxa com toda a pouca força, mas, longe de galopar, mal pode dar um passo; escorrega, resfolega e encolhe-se todo, recebendo as repetidas chicotadas que os três lhe vibram no dorso. Redobra a alegria no carro e na multidão; mas Mikolka perde a paciência e, desesperado, bate furiosamente no cavalo como se realmente esperasse fazê-lo galopar.

— Deixem-me subir também! — exclama dentre os circunstantes um rapagão que está ansioso por se juntar ao alegre bando.

— Sobe — responde Mikolka —, subam todos, ele pode com todos; há de poder por força!

— Papai, papai — grita a criança —, papai, que faz essa gente? Papai, estão a bater no pobre cavalinho!

— Vamos, vamos! — diz o pai. São bêbados que se divertem, estúpidos... Vem, não olhes para lá! — E tenta levá-lo; porém Ródion desprende-se da mão paterna e vai para junto do cavalo. Mas o pobre animal não pode mais. Arquejante, após um momento de descanso, volta a puxar inutilmente.

— Chicote até matá-lo! — grita Mikolka. — Não há outra coisa a fazer. Eu ajudo!

— Bem se vê que não és cristão, lobisomem! — exclama um velho entre a turba.

— Viu-se, alguma vez, um animalzinho assim puxar tal carga? — acrescenta outro.

— Tarado! — grita outro.

— Ele não é teu, ouviste? É meu. Posso fazer o que me aprouver. Suba mais gente, subam todos. Há de galopar à força!...

Mas a voz de Mikolka é abafada por fortes gargalhadas. À força de pancadas e, apesar de sua extrema fraqueza, o cavalo desatou aos coices. A hilaridade geral propaga-se até o velho. Na verdade, o caso é para rir: um animal que não se sabe por que milagre se aguenta nas pernas, a escoicear!

Da multidão saem dois indivíduos que se armam de chicotes e vão, um da esquerda, outro da direita, espancar o cavalo.

— Deem-lhe na cabeça! Nos olhos! Nos olhos! — grita Mikolka furioso.

— Vamos a uma canção, rapaziada? — propõe um dos do carro. E todos entoam em coro uma canção, que um pandeiro vai acompanhando. A aldeã trinca nozes e ri...

Ródion aproxima-se do animal e vê que lhe batem nos olhos! Seu coração confrange-se, as lágrimas correm-lhe em fio. O chicote de um dos facínoras toca-lhe a cara; nem o sente. Torce desesperadamente as mãos e soluça. Acerca-se do velho de barbas e cabelos brancos que, balouçando a cabeça, reprova aquela selvageria. Uma mulher toma-o pela mão e quer afastá-lo do bárbaro espetáculo. Mas ele esquiva-se e volta para junto do animal, que já não pode mais e faz um último esforço para escoicear.

— Ah, miserável! — grita ferozmente Mikolka. — Bandido! — Larga o chicote, tira do fundo do carro um pesado varal de madeira e, pegando-o por uma extremidade com as duas mãos, brande-o com esforço sobre o cavalo.

— Escangalha-o! — gritam em redor.

— Mata-o!

— Mata-o!

— É meu! — grita Mikolka, e o varal, vibrado por seus vigorosos braços, cai estrondosamente no costado do animal.

— Batam-lhe! Batam-lhe! Por que param? — repetem várias vozes na turba.

De novo o pau se ergue, de novo desce sobre o dorso da desgraçada besta, que cai com a violência da pancada. Contudo faz um supremo esforço e, com o pouco alento que lhe resta, puxa em diferentes direções, tentando escapar do suplício; mas, por todos os lados, vibram os chicotes dos algozes. O pau manejado por Mikolka desanca ainda outra vez a vítima. O bruto está furioso por não matar o animal de uma só pancada.

— Tem fôlego de gato — gritam os espectadores.

— Não terá por muito tempo; sua última hora chegou — observa alguém.

— Um machado! — lembra outro. — É a maneira de acabar já com ele.

— Deixem-me passar! — gritou freneticamente Mikolka largando o varal e procurando, no fundo da carroça, uma alavanca de ferro. — Afastem-se! — exclama e atira uma violenta pancada sobre o animal. O cavalo cai, quer ainda puxar, mas uma segunda pancada atira-o por terra, como se de um só golpe lhe tivessem cortado as pernas.

— Vamos matar este diabo — brada Mikolka saltando à terra. E toda aquela canalha lança mão do que encontra, paus, chicotes, varas e atira-se sobre o cavalo agonizante. Mikolka, junto do animal, bate-lhe com a alavanca de ferro. Ele estica-se, estende o pescoço e dá um último arranco.

— É um carniceiro — gritou alguém na multidão.

— Mas por que não havia de galopar?

— É meu! — exclama Mikolka brandindo a alavanca, com os olhos injetados, parecendo lastimar-se de que a morte lhe roubasse a vítima.

— Bem se vê que não és cristão! — dizem indignados muitos curiosos.

O pequeno, desvairado, soluçando, vai por entre a turba que rodeia o animal; segura a cabeça ensanguentada do cavalo e beija-a nos olhos ternamente... Depois, num movimento de ódio, com os punhos cerrados, atira-se a Mikolka. Nesse momento, o pai, que há muito o procurava, descobre-o e leva-o dali.

— Vamos, vamos para casa!

— Papai, por que... mataram... o pobre animal? — pergunta por entre soluços a criança. Mas a respiração entrecorta-se, da garganta oprimida saem sons abafados.

— São atos de bêbados. Não temos nada com isso, vamos — responde o pai. Ródion aperta-o contra o coração, mas pesa-lhe muito sobre o peito... Quer respirar, gritar, e acorda, arquejante, com o corpo úmido e os cabelos empastados de suor.

Sentou-se junto de uma grande árvore e respirou longamente.

“Graças a Deus foi um sonho!”, pensou. “Mas dar-se-á o caso que seja um princípio de febre? Um sonho tão horrendo, dá-me que pensar.”

Sentia os membros despedaçados e a alma envolta num negro véu de confusão. Apoiou os cotovelos nos joelhos e a cabeça nas mãos.

“Meu Deus!”, monologou, “será possível que eu vá abrir com um machado o crânio dessa mulher!... Será possível que eu atravesse o sangue e vá arrombar a fechadura, roubar e depois esconder-me, a tremer, ensanguentado... Senhor, isso será possível?”.

“Para que pensei nisso?”, continuou num tom de profunda surpresa. “Eu bem sabia que não era capaz de praticar tal crime. E para que me atormento com essa ideia? Ainda ontem, quando fui fazer aquele ensaio... compreendi logo que isso era superior às minhas forças. Depois, quando descia a escada, pensei que era ignóbil, infame, repugnante... Só a ideia de tal horror me aterrava... Não terei coragem... é superior às minhas forças! Quando mesmo meus raciocínios não dessem lugar à menor dúvida, quando mesmo todas as conclusões a que cheguei durante um mês fossem claras como a luz, exatas como a matemática, eu não poderia decidir-me a tal! Sou incapaz de fazê-lo... Mas por que será, sim; por que será, que mesmo agora?...”

Ergueu-se, olhou espavorido em torno, admirado de se encontrar em tal lugar, e seguiu pela ponte de T***. Estava pálido, os olhos brilhavam-lhe, a fraqueza manifestara-se em todo o seu ser, mas começava a respirar com mais desembaraço. Sentia-se aliviado do horrível peso que, por tanto tempo, o oprimira, e em sua alma a serenidade entrava de novo. “Senhor!”, suplicou, “mostra-me o caminho, e eu renunciarei a este sonho maldito!”.

Atravessando a ponte, contemplou tranquilamente o Neva e a majestade do crepúsculo. Apesar da fraqueza, nem mesmo sentia a fadiga. Dir-se-ia que o abscesso que havia um mês se formara em seu coração, acabava de rebentar. Agora, estava livre! O horrível malefício não produzia já seu efeito.

Mais tarde Raskólnikov lembrou-se do modo por que empregava o tempo nesses dias de crise, minuto por minuto; entre outras, uma circunstância vinha-lhe muitas vezes à ideia e, embora não tivesse nada de extraordinário, nunca pensaria nela sem uma espécie de terror supersticioso, dada a ação importante que exercera em seu destino.

Eis o fato que ficou sendo para ele um enigma: como se explicava que, estando ele fatigado, exausto, e devendo, naturalmente, voltar para casa pelo caminho mais curto e direto, tivesse a ideia de seguir pelo Mercado do Feno, onde nada, absolutamente nada, o chamava? É certo que essa volta não lhe alongava muito o caminho, mas era completamente desnecessária. É certo, também, que, muitas vezes, lhe sucedera chegar a casa sem dar atenção ao caminho seguido. “Mas”, perguntava a seus botões, “como se deu aquele encontro tão importante, tão decisivo para mim e, em todo caso, tão fortuito, que tive no Mercado do Feno, onde não havia razão para eu ir? Por que se deu esse encontro à mesma hora, no momento preciso em que, nas disposições em que me encontrava, devia ter as mais graves, as mais funestas consequências?”. Parecia-lhe ver nessa fatal coincidência o efeito de uma predestinação.

Eram nove horas, mais ou menos, quando chegou ao Mercado do Feno. Os comerciantes fechavam as lojas, os vendedores preparavam-se para partir e os fregueses retiravam-se. Junto das tascas que, no mercado, ocupam o rés do chão da maior parte das casas, aglomeravam-se operários e indigentes. Esta praça e os pereuloks[ 24 ] vizinhos eram os locais que Raskólnikov frequentava com prazer, quando saía de casa sem destino. Com efeito, naqueles lugares seus andrajos não davam na vista, podendo passear à vontade. Na esquina do pereulok K***, uns mercadores, marido e mulher, vendiam miudezas, dispostas em dois tabuleiros.

Embora se dispusessem também a ir para casa, tinham-se demorado a conversar com alguém que se aproximara deles. Esse alguém era Isabel Ivanovna, irmã mais nova de Alena Ivanovna, a usurária à casa de quem Raskólnikov fora no dia anterior empenhar o relógio e fazer seu “ensaio”. Havia muito que ele sabia o que precisava sobre Isabel, e também ela o conhecia um pouco. Era uma solteirona alta, magra e feia, de 35 anos, tímida, de modos suaves, meio idiota. Tremia diante da irmã, que a tratava como a uma escrava, obrigando-a a trabalhar dia e noite para ela e batendo-lhe às vezes. Nesse momento, sua fisionomia tinha um ar de indecisão. Estava de pé, com um pequeno pacote na mão, ouvindo atentamente o que diziam os mercadores, que lhe explicavam qualquer coisa, calorosamente. Quando Raskólnikov viu Isabel, teve uma sensação estranha, como de espanto, conquanto o encontro nada tivesse de singular.

— É preciso que venha para se tratar o negócio, Isabel — disse o mercador. — Venha amanhã, das seis para as sete horas. Eles também virão.

— Amanhã? — perguntou com voz dolente Isabel, que apenas parecia decidir-se.

— Tem receio de Alena Ivanovna? — interrompeu a mercadora com ar decidido. — É inacreditável que se deixe dominar inteiramente por uma criatura que não passa de sua irmã de leite!

— Dessa vez não diga nada a Alena Ivanovna — interrompeu o marido. — O que lhe aconselho é vir até aqui sem lhe pedir licença. Trata-se de um negócio vantajoso, sua irmã depois se convencerá disso.

— E a que horas devo vir?

— Amanhã, das seis para as sete; há de vir também alguém de casa deles. É preciso que esteja presente para se tratar da coisa.

— Haverá uma xícara de chá para você — continuou a mulher do mercador.

— Pois bem, virei — disse Isabel pensativa. E preparou-se para se despedir.

Raskólnikov passara já o grupo formado pelos três e não pôde ouvir mais. De propósito demorara o passo, para não perder uma única palavra da conversa. À surpresa do primeiro momento sucedeu em seu espírito um terror que o fazia tremer. O acaso acabava de lhe fazer saber que, no dia seguinte, às sete horas da noite em ponto, Isabel, a irmã e única companhia da velha estaria ausente e que, portanto, no dia seguinte, às sete horas, a velha estaria só em casa...

Raskólnikov estava perto de casa. Entrou em seu cubículo como se tivesse sido condenado à morte. Não pensava, nem podia pensar em nada; sentia subitamente em todo o seu ser que não dispunha nem de vontade nem de livre-arbítrio, e que estava definitivamente decidido.

É evidente que poderia esperar anos inteiros por uma ocasião propícia, provocá-la mesmo, sem achar ensejo tão seguro como o que acabava de se lhe oferecer.

Ainda assim, ser-lhe-ia difícil saber de véspera, e de boa fonte, sem correr risco algum, sem se comprometer com perguntas perigosas, que, no dia imediato, a tal hora, uma certa velha que ele queria matar estaria só em casa.


Capítulo VI

Raskólnikov soube depois com que fim o negociante e a mulher haviam convidado Isabel a ir à casa deles. O caso era simples. Uma família estrangeira, na miséria, queria desfazer-se de alguns objetos, principalmente roupas de mulher. Essa gente desejava entender-se com uma adeleira, e Isabel exercia essa profissão. Tinha larga clientela, porque era honesta e oferecia preços mais vantajosos; com ela não era necessário regatear. Falava pouco. Como dissemos, era submissa e tímida.

Mas havia algum tempo que Raskólnikov se tornara supersticioso, e, mais tarde, quando pensava no caso, estava sempre disposto a ver nele a ação de causas estranhas, misteriosas. No inverno anterior, um estudante seu conhecido, Pokórief, antes de regressar a Kárkof, dera-lhe o endereço da velha adeleira Alena Ivanovna, para o caso de necessitar empenhar qualquer objeto. Durante muito tempo, Raskólnikov não foi à casa da velha, porque as lições lhe garantiam a subsistência. Mês e meio antes dos acontecimentos que narramos, lembrou-se do endereço; tinha dois objetos pelos quais poderia obter algum dinheiro de empréstimo: um velho relógio de prata que pertencera a seu pai e um anel de ouro, com três pequenas pedras vermelhas, oferta de sua irmã no momento de se separarem.

Decidiu então levar o anel a Alena Ivanovna. Logo à primeira vista, e antes mesmo de saber qualquer coisa a seu respeito, a velha inspirou-lhe ódio. Depois de ter recebido de suas mãos de usurária “dois bilhetinhos”, entrou num traktir[ 25 ] ordinário que encontrou no caminho. Abancou-se, pediu chá e pôs-se a refletir. Um pensamento estranho, vago, ainda mal definido, dominava seu espírito. Numa mesa próxima estava sentado, junto de um oficial, um estudante que ele não conhecia e nunca encontrara. Os dois acabavam de jogar bilhar e dispunham-se a tomar chá. Subitamente, Raskólnikov ouviu o estudante dar ao oficial o endereço de Alena Ivanovna, secretária de colégio, que emprestava sobre penhores. A nosso homem pareceu já extraordinário ouvir falar de uma pessoa à casa de quem fora pouco antes. Era por certo mero acaso, mas Raskólnikov lutava, nesse momento, com a impressão de que não podia vencer e, eis senão quando, como se fora de propósito, alguém vinha aumentar essa impressão; o estudante contava efetivamente ao amigo diversos pormenores sobre o negócio de Alena Ivanovna.

— É um excelente recurso — dizia ele —, temos sempre meio de obter dinheiro em casa dela. Rica como um judeu, pode, de um instante para outro, emprestar cinco mil rublos, e, no entanto, aceita penhores no valor de um. É uma criatura providencial para nós, mas que megera hedionda!

E contou que ela era má, caprichosa, que nem 24 horas de espera concedia, que todo penhor que não fosse retirado no dia fixado no contrato estava irremediavelmente perdido para o dono; emprestava por um objeto apenas a quarta parte do valor, cobrando cinco e até sete por cento de juros ao mês etc. O estudante, disposto a tagarelar, informou ainda que a miserável era de pequeníssima estatura, o que não a impedia de, às vezes, bater na irmã, Isabel, e de a manter na mais completa dependência, apesar de seus dois archines e oito verchoks de altura.[ 26 ]

— Outro fenômeno — disse ele rindo.

A conversa descambou para Isabel. O estudante falava dela jovialmente, rindo sempre. O oficial escutava-o atentamente e pediu-lhe que mandasse Isabel à sua casa para a encarregar do arranjo de roupa. Raskólnikov não perdeu uma única palavra dessa conversa; soube assim muitas coisas. Mais nova do que Alena Ivanovna, de quem era apenas irmã colaça, Isabel tinha 35 anos. Trabalhava dia e noite para a velha. Em casa, fazia os serviços de cozinha e lavadeira. Fazia trabalhos de costura que vendia, ia lavar casas, e tudo quanto ganhava ia parar nas garras aduncas da irmã. Não se atrevia a aceitar nenhum trabalho, qualquer encomenda, sem prévia autorização de Alena Ivanovna. Ela, e Isabel bem o sabia, fizera já testamento, no qual a irmã era apenas contemplada com os móveis. Querendo estabelecer uma fundação perpétua de orações em sufrágio de sua alma, a velha legara toda a fortuna a um convento na província de N***. Isabel pertencia à classe burguesa e não ao Tchin. Era uma mulher alta e deselegante, de pés enormes espalhados, sempre calçados em velhos sapatos de pele de cabra, sem saltos, mas muito cuidadosa com sua pessoa. O que mais provocava a hilaridade do estudante era Isabel estar sempre grávida...

— Mas tu dizes que ela é horrível! — observou o militar.

— É muito trigueira realmente; parece um soldado vestido de mulher; mas não se pode dizer que seja um monstro. A fisionomia é muito bondosa e os olhos têm uma grande expressão de ternura... A prova está em que agrada a muita gente. É muito pacata, paciente, meiga, caráter dócil... E o sorriso chega a ser atraente.

— Dar-se-á o caso de gostares dela? — perguntou o oficial rindo.

— Agrada-me pela excentricidade. Quanto à maldita velha, asseguro-te que era capaz de a assassinar para roubá-la, sem o menor remorso — acrescentou vivamente o estudante.

O oficial riu-se, e Raskólnikov estremeceu. Essas palavras tinham um extraordinário eco em seu coração!

— Ouve, vou fazer-te uma pergunta a sério — disse muito animado o estudante. — Há pouco gracejava, sem dúvida; mas olha, de um lado temos uma velha doente, parva, estúpida, má, um ente que não é útil a ninguém e que, pelo contrário, é prejudicial a todos, cuja existência não se justifica e que pode amanhã morrer de morte natural. Estás percebendo?

— Entendo — respondeu o oficial, que, vendo o amigo entusiasmado, ouvia-o com interesse.

— Bem. Do outro lado, o vigor da mocidade, frescura que se fana e se perde por falta de amparo, e disso vemos nós aos milhares e por toda parte! Quantas centenas ou milhares de obras úteis se poderiam fazer com o dinheiro que aquela velha vai legar a um convento? Poderia talvez reconduzir-se ao bom caminho centenas, milhares de crianças; dezenas de famílias arrancadas às garras da miséria, à ruína, à dissolução, ao vício, aos hospitais — e tudo com o dinheiro daquela mulher! Matem-na e apliquem o dinheiro em benefício da humanidade. E julgas que o crime — se é que nisso há crime — não seria sobejamente compensado por um sem-número de obras meritórias? Por uma só vida, milhares de vidas arrancadas à perdição! Por uma criatura de menos, cem criaturas restituídas à vida! Mas é uma questão de aritmética! Quanto pesa, na balança social, a vida de uma mulher decrépita, estúpida e ruim? Menos do que a vida de um piolho ou de um percevejo; menos certamente, porque essa velha é uma criatura malfazeja, um flagelo de seus semelhantes. Recentemente, encolerizada, mordeu com tal fúria um dedo de Isabel, que pouco faltou para cortá-lo totalmente!

— Sem dúvida, não merece viver — observou o oficial. — Mas que queres tu? A natureza...

— Oh, meu caro amigo, a natureza corrige-se, emenda-se; se não fosse assim, ficava-se sempre preso a preconceitos. Sem isso, não haveria grandes homens. Fala-se do dever, da consciência — e eu nada direi em contrário, — mas como interpretamos essas palavras? Se me dás licença, vou ainda fazer-te outra pergunta.

— Perdão, cabe-me agora a vez de interrogar. Deixa-me perguntar-te uma coisa.

— Pergunta!

— É isto, tu estás a falar com rasgos de eloquência, mas responde-me apenas a isto: és capaz de matar essa velha? Sim ou não?

— Certo que não! Eu falo em nome da justiça... Não se trata de mim...

— Assim, uma vez que declaras não seres capaz de a matar, é porque a ação não seria muito regular. Jogamos mais uma partida?

Raskólnikov sentia-se extraordinariamente inquieto. Certamente esse diálogo nada tinha de singular, que o impressionasse. Mais de uma vez, ouvira ideias análogas; apenas o tema era diferente. Mas como sucedeu que o estudante expusesse exatamente as ideias que, nesse momento, afluíam ao cérebro de Raskólnikov? E por que acaso singular ele próprio, exatamente quando saía da casa da velha, ouvia falar dela? Tal coincidência sempre lhe pareceu extraordinária. Estava escrito que essa simples conversa de taverna teria uma influência decisiva em seu destino...


* * *


Quando voltou do Mercado do Feno, atirou-se no divã, onde ficou imóvel durante uma hora. No quarto, reinava completa escuridão. Não havia vela, e, ainda que houvesse, não pensaria em acendê-la. Nunca pôde lembrar-se se, durante esse tempo, pensou em alguma coisa. Por fim, apoderaram-se dele os mesmos arrepios febris de há pouco, e então ocorreu-lhe a ideia de deitar-se. Um sono profundo bem depressa o tomou.

Dormiu muito mais do que costumava e não sonhou. Nastácia, que entrou no quarto no dia seguinte, às dez horas, teve dificuldade em acordá-lo. A rapariga trazia-lhe pão e, como no dia antecedente, o resto de seu chá.

— Ainda não se levantou! — exclamou indignada. — Como é que se pode dormir assim!

Raskólnikov ergueu-se com esforço. Tinha dores de cabeça. Pôs-se de pé, deu um grito no quarto e novamente se deixou cair no divã.

— Outra vez! — exclamou Nastácia. — Estás doente?

Ele não respondeu

— Queres chá?

— Depois — murmurou a custo; e, cerrando os olhos, voltou-se para a parede. Nastácia, de pé, observava-o.

— Talvez esteja doente — disse antes de retirar-se.

Às duas horas voltou, trazendo sopa. Raskólnikov estava ainda deitado. Não tomara o chá. A rapariga zangou-se e começou a sacudi-lo violentamente.

— Que tens tu para dormir dessa forma? — disse olhando-o com desprezo.

Ele sentou-se, não respondeu, e conservou os olhos fixos no chão.

— Estás doente ou não? — interrogou Nastácia.

Como a primeira, essa segunda pergunta não obteve resposta.

— Devias sair — aconselhou ela após breve silêncio —, o ar havia de fazer-te bem. Comes alguma coisa, não é assim?

— Depois — murmurou Raskólnikov com voz débil. Deixa-me. — E apontou-lhe a porta.

Nastácia demorou-se ainda um momento observando-o com compaixão e por fim saiu.

Ao fim de alguns minutos, ele ergueu os olhos, deu com o chá e a sopa e começou a comer.

Engoliu três ou quatro colheradas sem apetite, maquinalmente. A dor de cabeça passara. Quando terminou a ligeira refeição, estendeu-se outra vez no divã, mas não pôde conciliar o sono e ficou de bruços, imóvel, com a cara sobre a almofada. Sua fantasia mórbida recordava continuamente quadros fantásticos: imaginava-se na África, no Egito; fazia parte de uma caravana parada num oásis; em volta, cresciam palmeiras, os camelos descansavam, os viajantes dispunham-se a jantar; ele dessedentava-se numa límpida fonte, através de cuja água azulada, de deliciosa frescura, se viam no fundo pedras de diversas cores e areias palhetadas de ouro.

De repente, o bater de um relógio chegou-lhe distintamente ao ouvido, fazendo-o estremecer. Chamado à realidade, ergueu a cabeça, olhou para a janela e, depois de ter calculado que horas seriam, ergueu-se precipitadamente. Andando na ponta dos pés, aproximou-se da porta, abriu-a com a maior precaução e escutou. O coração palpitava-lhe violentamente. A escada estava no mais completo silêncio. Parecia que toda a gente da casa dormia... “Como pude deixar tudo para o último momento? Nada fiz, nada preparei!”, disse de si para si, sem dar razão a tal descuido... E talvez fossem seis horas que acabavam de soar.

À inércia sucedeu repentinamente nele uma atividade febril. Os preparativos, aliás, não eram demorados. Procurava não esquecer-se de coisa alguma; o coração palpitava-lhe com tal violência que dificilmente respirava. Em primeiro lugar, tinha de fazer um nó corredio e adaptá-lo ao casaco: trabalho de um minuto. Procurou entre a roupa que lhe servia de travesseiro uma camisa velha que já não fosse possível consertar. Rasgou-a e com as tiras fez uma espécie de ligadura de oito palmos de comprimento e um de largura.

Depois de a ter dobrado em duas, tirou o casaco de fazenda de algodão espessa e forte (era o único que possuía) e começou a coser pelo lado de dentro, debaixo do sovaco esquerdo, as duas pontas da ligadura. As mãos tremiam-lhe ao executar esse trabalho; completou-o ainda assim com tal perfeição que, quando vestiu o casaco, nenhum vestígio aparecia exteriormente. Havia muito tempo que comprara a agulha e a linha; bastara tirá-las da gaveta.

Quanto ao nó corredio, destinado a conduzir o machado, era resultado de uma ideia engenhosa que tivera 15 dias antes. Aparecer na rua com um machado na mão era impossível! Esconder a arma sob o casaco era obrigar-se a estar constantemente com a mão sobre ela, e essa posição forçada chamaria, sem dúvida, a atenção; ao passo que, apoiado pelo ferro no nó corredio, o machado não cairia nem o obrigaria a constranger-se. Podia mesmo evitar que se movesse: bastava segurar a extremidade do cabo com a mão metida no bolso. Dada a largura do casaco — um verdadeiro saco —, o movimento da mão no bolso não podia ser notado.

Concluída a tarefa, Raskólnikov estendeu o braço para o divã, e, introduzindo os dedos numa fenda do soalho, tirou de lá o penhor de que tivera o cuidado de se munir antecipadamente. Na verdade, esse objeto de nada valia; era uma simples régua de madeira envernizada, com o comprimento e a largura de uma cigarreira de prata usual. Num de seus passeios, achara casualmente esse pedaço de madeira, junto de uma marcenaria. Aplicou-lhe uma pequena chapa de ferro, delgada e polida, mas de menores dimensões, que também apanhara na rua. Depois de as apertar uma contra a outra, ligou-as com um barbante e embrulhou tudo num pedaço de papel branco.

Esse pequeno embrulho, ao qual procurava dar uma aparência elegante, foi, em seguida, atado de forma que tornava muito difícil a operação de desatá-lo. Era um meio de prender por momentos a atenção da velha; enquanto ela procurasse desmanchar o nó, Raskólnikov poderia aproveitar a ocasião propícia. A chapa de ferro destinava-se a fazer pesar mais o embrulho, a fim de que, no primeiro momento ao menos, a usurária não desconfiasse que lhe levavam uma simples régua de madeira. Raskólnikov metera o embrulho no bolso, quando ouviu alguém dizer do lado de fora:

— Já deram sete há muito!

“Há muito! Meu Deus!”

Correu para a porta, aplicou o ouvido e começou a deslizar pelos degraus como um gato. Faltava o essencial: ir buscar o machado na cozinha. Havia muito que ele decidira servir-se de um machado. Tinha em casa uma podadeira, mas a arma inspirava-lhe pouca confiança e menos confiança ainda lhe merecia sua força; a escolha recaiu definitivamente no machado. Deve-se notar, a propósito, uma particularidade: à medida que suas resoluções tomavam caráter definitivo, percebia mais claramente o absurdo e o horror delas. Apesar da medonha luta que se feria no foro íntimo, nem por um momento podia admitir que viesse a executar seu projeto.

Mais ainda. Se o problema fosse fácil, se todas as dúvidas se desvanecessem, se todas as dificuldades se removessem, naturalmente teria renunciado logo a seu intento, como a um absurdo, a uma monstruosidade, a um impossível. Mas restava-lhe ainda um certo número de pontos a decidir, de problemas a resolver. Quanto a obter o machado, não se preocupava com isso; nada mais fácil! Nastácia, à noite, quase nunca estava em casa, ia para a das amigas vizinhas ou para as lojas, o que provocava grandes zangas da patroa.

Na ocasião própria, bastaria, pois, entrar na cozinha e tirar o machado, indo pô-lo no lugar uma hora depois, quando tudo estivesse concluído. Mas, ainda assim, poderiam surgir dificuldades. “Suponhamos”, pensava Raskólnikov, “que, daqui a uma hora, quando eu vier pôr o machado na cozinha, Nastácia já esteja em casa. Nesse caso, terei de esperar uma nova ausência da criada. E se ela tiver dado pela falta do machado? Naturalmente procura-o, resmunga, quem sabe?, porá talvez a casa em rebuliço, e eis aí uma circunstância perigosa”.

Mas tudo isso eram pormenores com que ele não queria preocupar-se; não tinha tempo para isso. Tratava do essencial, pondo de parte os acessórios, nos quais pensaria apenas quando tivesse tomado uma resolução sobre o caso. Esta última condição, a essencial, parecia-lhe decididamente irrealizável; não imaginava que, no momento dado, deixaria de refletir e iria direto ao fim... Mesmo no último ensaio (na visita que fizera à velha para se assegurar da situação), faltou-lhe muito para se ensaiar completamente. Comediante sem convicção, não sustentara o papel e fugira indignado contra si próprio.

Contudo, do ponto de vista moral, Raskólnikov tinha razões para considerar o caso resolvido. Sua casuística, como uma lâmina afiada, cortara todas as objeções; mas, não as encontrando já no espírito, tentava encontrá-las fora dele. Dir-se-ia que, levado por um poder irresistível, sobre-humano, procurava desesperadamente um ponto fixo a que se agarrar. Os acontecimentos operaram-se nele de uma forma absolutamente automática; tal como um homem que, apanhado pelo casaco nas rodas de uma engrenagem, se achasse logo preso pela própria máquina.

O que mais o preocupava, e em que muitas vezes pensava, era a razão por que todos os crimes são tão facilmente descobertos, bem como a pista de quase todos os criminosos.

Chegou a diversas conclusões curiosas. Em seu modo de ver, a principal razão do fato consistia menos na impossibilidade material de ocultar o crime do que na própria personalidade do criminoso; num grande número de casos, ele experimentava, na ocasião do crime, uma diminuição da vontade e do entendimento, e era por isso que procedia com leviandade pueril e uma negligência extraordinária, quando mais necessárias lhe eram a precaução e a prudência.

Raskólnikov comparava esse lapso das faculdades intelectuais e o desfalecimento da vontade a uma afecção doentia que se manifestava pouco a pouco, que atingia o máximo de intensidade pouco antes de praticado o crime e subsistia da mesma forma durante o ato e ainda depois (mais ou menos tempo, conforme os indivíduos) para terminar, como todas as doenças. Um ponto sobre o qual tinha dúvida era se a doença determinava o crime ou se o próprio crime, em virtude de sua natureza, não seria sempre acompanhado de algum fenômeno mórbido. Mas não se sentia ainda em condição de resolver esse caso.

Raciocinando assim, persuadiu-se de que estava ao abrigo de semelhantes desordens morais, que conservaria plenamente a inteligência e a vontade enquanto praticasse o atentado, pela simples razão de que esse atentado “não era um crime”... Passaremos sobre os argumentos que o levaram a essa conclusão, limitando-nos a dizer que, em suas preocupações, o lado prático, as dificuldades materiais, ficariam em último plano. “Conserve eu a serenidade e a força de vontade que, quando chegar o momento, triunfarei de todos os obstáculos...” Mas não se decidia. Confiava menos do que nunca na persistência de suas resoluções, e, quando chegou o momento, despertou como de um sonho.

Não chegara ainda ao fim da escada quando uma insignificante circunstância o desnorteou. No patamar, onde a senhoria residia, encontrou, como sempre, aberta de par em par a porta da cozinha e olhou disfarçadamente para dentro: não estaria lá a dona da casa, na ausência de Nastácia, e, quando não estivesse, estaria a porta do quarto bem fechada? Ela não o veria de lá, quando fosse buscar o machado? Era disso que pretendia certificar-se. Mas ficou espantado ao ver que Nastácia estava na cozinha, tirando roupa de um cesto e estendendo-a em cordas. Quando nosso homem se aproximou, a rapariga, interrompendo o trabalho, voltou-se e fitou-o até ele desaparecer.

Raskólnikov desviou os olhos e passou, fingindo não ter reparado. Lá fora tudo por água abaixo: não tinha machado! Essa contrariedade abalou-o profundamente.

“Como me convenci”, pensava ele descendo os últimos degraus da escada, “de que precisamente nesse momento Nastácia devia estar ausente? Como se encasquetou isso em minha cabeça!”.

Sentia-se sucumbido. Despeitado, teve vontade de rir de si próprio. Em todo o seu ser refervia uma cólera selvagem.

Parou indeciso diante do portão. Ir para a rua sem destino? Não estava disposto a isso. Mas era muito desagradável tornar a subir e ir meter-se no quarto. “E pensar que perdi uma ocasião como esta!”, resmungou de pé, em frente do cubículo do dvornik, cuja porta estava aberta.

Repentinamente estremeceu. Na treva do compartimento, a dois passos dele, brilhava qualquer coisa debaixo de um banco, à esquerda... Raskólnikov olhou em redor. Ninguém. Aproximou-se cautelosamente do cubículo, desceu os dois degraus, e chamou em voz baixa o dvornik. “Bem, não está aqui, mas não deve ter ido longe, porque deixou a porta aberta.” Com a rapidez do relâmpago correu para o machado (era realmente um machado) e tirou-o de debaixo do banco onde estava entre duas achas. Colocou-o no nó corredio, meteu as mãos nos bolsos e saiu. Ninguém o vira! “Não foi a inteligência que me ajudou neste lance, foi o diabo!”, pensou com um sorriso estranho. O feliz acaso que acabava de o auxiliar contribuiu extraordinariamente para o animar.

Na rua, caminhou tranquilamente, gravemente, sem se apressar, receando despertar suspeitas. Não olhava para ninguém, procurava mesmo atrair o menos possível a atenção. De repente, pensou no chapéu. “Meu Deus! Anteontem tive dinheiro, podia tão facilmente ter comprado um boné!” E, do fundo da alma, partiu uma imprecação.

Olhando por acaso para uma loja, verificou serem sete horas e dez minutos. O tempo urgia, e no entanto não podia deixar de fazer uma volta, porque não queria que o vissem chegar à casa da velha por aquele lado.

Antes, quando tentava representar na mente a situação em que ora se encontrava, parecia-lhe por vezes que estaria muito assustado. Mas, ao contrário de sua expectativa, não sentia receio algum. Ao espírito apresentavam-se-lhe pensamentos estranhos ao seu desígnio, mas a sua duração era rápida. Quando passou junto do jardim Iussupof, pensou que seria útil colocar em todas as praças públicas fontes que refrescassem o ar. Depois, por uma série de transições insensíveis, pensou que, se o Jardim do Verão tivesse a extensão do Campo de Marte e se ligasse com o jardim do Palácio Miguel, seria uma maravilha. Interessou-se em divagar sobre o porquê de as pessoas, nas grandes cidades, não serem premidas só pela necessidade, mas preferirem viver em bairros sem jardins e fontes, onde há lama, mau cheiro e imundície. Seus passos fizeram-no retomar, em pensamento, ao Mercado do Feno e, num instante, voltou à realidade. “Que asneira”, refletiu, “é melhor não fixar a ideia em coisa alguma”.

“É certamente por este modo que as pessoas levadas ao suplício demoram o pensamento em todas as coisas que encontram no caminho...” Procurou afastar esta ideia... Entretanto, aproxima-se: eis o portão. De repente, ouve uma badalada. “Já serão sete horas e meia? É impossível; está adiantado, evidentemente!”

Mais uma vez o acaso favoreceu. No momento em que chegava defronte da casa, um grande carro de feno entrava pelo portão, tomando-o em quase toda a largura. Raskólnikov pôde transpor o limiar sem ser visto, metendo-se pelo intervalo entre o carro e o umbral.

Logo que entrou no pátio, dobrou imediatamente à direita. Do outro lado do carro, uns homens questionavam, gritando. Mas não o viram. Muitas das janelas que davam para o enorme saguão estavam abertas, mas ele nem ergueu a cabeça — não teve ânimo. A escada que conduzia ao quarto da velha estava perto, logo à direita do portão. Seu primeiro movimento foi alcançar-lhe os degraus.

Respirando e pondo a mão no coração para comprimir-lhe as violentas palpitações, preparou-se para subir a escada, depois de verificar que o machado estava bem seguro no nó corredio. A cada momento, aplicava o ouvido. Mas a escada estava deserta e as portas fechadas; não viu ninguém. No segundo andar estava aberto um compartimento desabitado, onde trabalhavam uns pintores, que também não o viram. Parou um instante, refletiu e continuou a subir. “Seria melhor que eles não estivessem ali, mas... por cima ainda há dois andares...”

Está, enfim, no quarto andar, à porta de Alena Ivanovna. A sala em frente está desocupada. No terceiro andar, a divisão que fica por baixo da habitada pela velha está também desocupada; o cartão que estava colocado na porta já lá não está; o inquilino mudou-se... Raskólnikov sufocava. Houve um momento em que hesitou: “Não faria melhor indo-se embora?” Mas, deixando a pergunta sem resposta, pôs-se a escutar por muito tempo, lançou novamente um olhar em redor e apalpou o machado. “Não estarei muito pálido? Não se notará perturbação em mim?”, pensava. “Ela é desconfiada... É melhor deixar passar algum tempo para serenar.”

Mas, em vez de diminuírem, as pulsações de seu coração redobravam de violência... Não pôde esperar mais, e, levando a mão ao cordão da campainha, puxou-o. Segundos depois, tornou a tocar com mais força. Ninguém respondeu. Puxar pela campainha desabaladamente seria inútil e comprometedor. Por certo a velha, em casa, sozinha e desconfiada, não queria abrir. Conhecia os hábitos de Alena Ivanovna
e aplicou novamente o ouvido à porta. Tinham desenvolvido as circunstâncias nele uma especial faculdade de percepção (o que geralmente é difícil de admitir) ou com efeito era o ruído facilmente perceptível? Como quer que fosse, viu que uma mão se colocava cuidadosamente na maçaneta e um vestido roçava pela porta. Pela parte de dentro alguém fazia o mesmo que ele: escutava junto à fechadura, procurando dissimular a presença.

Propositadamente fez barulho, proferiu algumas palavras e tocou novamente e devagar a campainha, como quem não está impaciente.

Esse minuto deixou-lhe uma recordação imperecível. Quando, mais tarde, pensava nisso, não compreendia como pudera proceder com tanta astúcia, quando sentia uma emoção tal, que o privava momentaneamente das faculdades intelectuais e físicas... Momentos depois, percebeu que corriam o fecho.


Capítulo VII

Como em sua última visita, Raskólnikov viu a porta entreabrir-se lentamente e, pela estreita fresta, dois olhos brilhantes fixarem-se nele com desconfiança. Nesse momento, a serenidade abandonou-o e chegou a fazer um disparate que podia ter estragado tudo.

Temendo que Alena Ivanovna tivesse medo de se achar a sós com um indivíduo cujo aspecto não era dos mais tranquilizadores, puxou a porta, para que a velha não tornasse a fechá-la. A usurária não tentou fazê-lo, mas não largou a maçaneta, sendo assim arrastada para o patamar. Como se conservasse atravessada no limiar e não deixasse a passagem livre, Raskólnikov avançou para ela. Assustada, deu um passo para trás, quis falar, mas não pôde pronunciar uma palavra e fitou o visitante com olhar espantado.

— Boa tarde, Alena Ivanovna — cumprimentou no tom mais despreocupado que pôde afetar — trago-lhe... um objeto... mas entremos... para avaliar, é preciso examiná-lo no claro...

E, sem esperar que a velha o convidasse a entrar, passou para o quarto. A usurária seguiu-o e soltou a língua.

— Meu Deus! Mas que quer? Quem é o senhor? Que deseja?

— Então, Alena Ivanovna, não me conhece? Raskólnikov! Tome, é o penhor de que lhe falei outro dia... E apresentou-lhe o embrulho.

Alena Ivanovna ia examiná-lo, mas, repentinamente, reconsiderou e, erguendo a cabeça, cravou um olhar penetrante e desconfiado no visitante que, sem cerimônia, se tinha introduzido em sua casa. Fitou-o assim durante um minuto. Raskólnikov julgou mesmo ler no olhar da velha uma expressão escarninha, como se ela já desconfiasse de tudo. Sentiu que perdia o sangue-frio, que começava a ter medo que, se esse inquérito mudo durasse mais meio minuto, ele fugiria.

— Por que olha assim para mim, como se não me conhecesse? — interrogou ele subitamente, escarninho também. — Se aceita o objeto, está muito bem; se não o quer, acabou-se, vou a outro lugar; é desnecessário fazer-me perder tempo.

Essas palavras escaparam-lhe sem as ter premeditado.

A linguagem decidida de Raskólnikov causou ótima impressão na velha.

— Mas por que tem tanta pressa, bátuchka? E que é isto? — interrogou ela olhando o embrulho.

— É a cigarreira de prata de que lhe falei há dias.

A velha estendeu a mão.

— Como está pálido! E as mãos tão trêmulas! Estás doente, bátuchka?

— Tenho febre — respondeu ele secamente. “Como não se há de estar pálido quando não se tem o que comer”, concluiu a custo. As forças abandonavam-no novamente. Mas a resposta parecia natural; a velha aceitou o penhor.

— Que é? — perguntou outra vez, tomando o peso do embrulho, olhando fixamente o rapaz.

— Um objeto... uma cigarreira... de prata... veja.

— É singular, não parece de prata!... E como está atado!

Enquanto Alena Ivanovna tentava desatar o pequeno embrulho, ia-se aproximando da luz (a despeito do calor asfixiante, fechara todas as janelas); nessa posição, voltava as costas ao visitante e, durante um momento, não se preocupou com ele. Raskólnikov desabotoou o casaco e puxou o machado, sem o tirar completamente do nó corredio, limitando-se a segurá-lo com a mão direita. Sentia que seus membros se paralisavam. Receou deixar cair a arma... repentinamente, a cabeça começou a girar...

— Mas que diabo há aqui dentro? — exclamou Alena Ivanovna zangada, voltando-se para Raskólnikov.

Não havia um momento a perder. Tirou o machado de debaixo do casaco, levantou-o no ar segurando-o com ambas as mãos, e, quase maquinalmente, porque se sentia sem força, deixou-o cair sobre a cabeça da velha. Mas, apenas vibrou o golpe, voltou-lhe a energia física.

Alena Ivanovna estava, como de costume, com a cabeça descoberta. Os cabelos grisalhos e raros, untados com azeite, formavam uma pequena trança presa na nuca por um pedaço de pente de chifre. O golpe fendeu-lhe o sincipúcio, para o que contribuiu a pequena estatura da vítima, que apenas soltou um gemido e cambaleou, tendo, contudo, ainda forças para levar as mãos à cabeça, numa das quais conservava o embrulho. Então Raskólnikov, cujos braços recuperaram todo o vigor, vibrou mais dois golpes no sincipúcio da avarenta. O sangue golfou abundante e o corpo caiu pesadamente no chão. Vendo a vítima cair, Raskólnikov recuou; mas, de repente, inclinou-se para o rosto da velha; estava morta. Os olhos desmesuradamente abertos pareciam querer saltar das órbitas; as convulsões da agonia tinham dado às feições dela um aspecto horrível.

O assassino deixou o machado no chão e preparou-se para revistar o cadáver, tomando as maiores precauções para não se manchar com o sangue; recordava-se de que, em sua última visita à velha, ela tirara as chaves do bolso direito do vestido. Estava em plena posse das faculdades intelectuais; não sentia vertigens nem o menor atordoamento, mas as mãos continuavam a tremer-lhe. Mais tarde, recordou-se de que fora muito cauteloso e que tivera muito cuidado em não se sujar... Encontrou logo as chaves; como da outra vez, estavam todas presas numa argola de aço.

Passou imediatamente ao quarto de dormir. Este compartimento era muito pequeno; de um lado havia um grande oratório cheio de ícones; do outro um leito muito limpo, com coberta de seda feita de retalhos e acolchoada. Junto da parede, uma cômoda. Caso singular! Quando Raskólnikov começou a experimentar as chaves, um arrepio percorreu-lhe o corpo. Pensou por um momento em abandonar tudo e retirar-se; mas esse pensamento durou um instante: era tarde demais para recuar.

Um sorriso contraía-lhe os lábios por ter pensado nisso, quando repentinamente teve um sobressalto terrível; se, por acaso, a velha não estivesse ainda morta e voltasse a si? Largou as chaves, correu para junto do corpo, pegou o machado e preparou-se para descarregar novo golpe sobre a vítima; mas a arma, já erguida, não desceu. Alena Ivanovna estava morta, não havia dúvida. Inclinando-se novamente para examiná-la de perto, Raskólnikov verificou que o crânio estava despedaçado. O sangue ensopava o chão. Reparando de repente num cordão que a usurária tinha no pescoço, Raskólnikov puxou com força, mas o cordão resistiu e não partiu. O assassino tentou então tirá-lo fazendo-o descer pelo corpo, sendo mais feliz nesta manobra. O cordão encontrou um obstáculo e deixou de descer. Raskólnikov levantou impacientemente o machado, pronto a ferir o cadáver para cortar com um golpe igual o nó; mas resolveu não proceder com tanta brutalidade. Por fim, depois de dois minutos de esforço que lhe deixaram as mãos arroxeadas, conseguiu partir o cordão com o gume do machado sem tocar no cadáver. Como supusera, do cordão pendia uma bolsa e uma pequena medalha esmaltada e duas cruzes, uma de cipreste e outra de cobre. A bolsa ensebada — um pequeno saco de camurça — estava completamente cheia. Raskólnikov meteu-a no bolso sem verificar o conteúdo, atirou as cruzes sobre o peito da velha e, levando o machado, entrou apressadamente no quarto de dormir.

A sua impaciência era enorme; agarrou novamente as chaves e voltou à tarefa interrompida. Mas eram infrutíferas as tentativas para abrir o móvel, o que se devia atribuir mais aos repetidos enganos do que ao tremor das mãos; ele via, por exemplo, uma chave não servir na fechadura e teimava em fazê-la entrar. Subitamente recordou-se de uma conjetura que fizera em sua última visita; a chave grande, dentada, junto às outras menores, devia ser de algum cofre onde Alena tivesse talvez guardado todo o dinheiro. Abandonando o móvel, procurou debaixo da cama, lembrando-se de que é costume das velhas esconderem em tal lugar os pecúlios.

Com efeito, lá estava um cofre de pouco mais de um archine de comprimento, coberto de marroquim vermelho. A chave grande servia perfeitamente na fechadura. Logo que abriu o cofre, viu, sobre um pano branco, uma peliça com guarnições encarnadas, sob a qual estava um vestido de seda, e depois deste um xale; no fundo, parecia haver apenas farrapos. O assassino limpou no marroquim vermelho as mãos ensanguentadas. “No encarnado, o sangue há de aparecer menos.” Depois reconsiderou: “Meu Deus, estou louco?”

Mas apenas tocou nas roupas, caiu de entre a peliça um relógio de ouro. Revolveu então o conteúdo do cofre. Entre os farrapos, havia vários objetos de ouro, representando, naturalmente, cada um deles um penhor. Eram pulseiras, cadeias, brincos, alfinetes de gravata, uns encerrados em estojos, outros embrulhados em pedaços de papel, e atados com barbantes.

Raskólnikov não hesitou; encheu os bolsos das calças e do casaco com as joias, sem abrir os estojos, sem tocar nos embrulhos; mas, repentinamente, teve de interromper-se...

Ouviu passos no quarto onde estava o cadáver. Sentiu-se gelado de pavor. Mas o ruído cessou; julgou-se vítima de uma alucinação, quando de repente percebeu distintamente um grito; ou, antes, um fraco gemido. Passado um minuto ou dois, tudo recaiu novamente num silêncio de morte. Raskólnikov sentara-se no chão, junto ao cofre, e esperava, respirando dificilmente. De repente estremeceu, agarrou no machado e saiu do quarto.

No meio do aposento, Isabel, sobraçando um embrulho, contemplava com olhar aterrado o corpo hirto da irmã; pálida como um cadáver, parecia não ter forças para soltar um grito. À brusca aparição do assassino começou a tremer e um suor gelado inundou-lhe o rosto, tentou erguer os braços, abrir a boca, mas não fez o menor gesto, não emitiu o menor som, e, recuando vagamente, com os olhos fixos em Raskólnikov, meteu-se num canto. A infeliz recuara sem dizer uma palavra, como se a respiração lhe faltasse. O assassino avançou para ela com o machado erguido, seus lábios contraíram-se como os das crianças quando têm medo, olhando fixamente para o objeto que as aterra.

O terror dominava-a de tal forma que, vendo-se ameaçada pela arma, nem sequer pensou em defender a cabeça, com esse gesto maquinal em que em tais casos sugere o instinto de conservação. Afastou apenas o braço esquerdo e estendeu-o vagarosamente na direção do assassino, como para o desviar. O ferro abriu-lhe o crânio fendendo toda a parte superior da fronte até quase o sincipúcio. Isabel caiu redondamente morta. Com a cabeça aturdida, Raskólnikov pegou no embrulho que sua segunda vítima trazia, para logo o largar e correr para a sala de entrada.

Estava cada vez mais transtornado, sobretudo desde que cometera o segundo assassínio, que não premeditara. Tinha pressa de fugir. Se, naquele momento, estivesse em estado de perceber melhor as coisas, se lhe tivesse sido possível calcular todas as dificuldades da situação, vê-la tão desesperada, tão horrorosa, tão absurda como realmente era, compreender quantos obstáculos tinha ainda a remover, talvez mesmo novos crimes a praticar, para poder deixar essa casa e refugiar-se na rua, teria provavelmente renunciado à luta e ido ato contínuo denunciar-se; nem se pode dizer que fosse a pusilanimidade que o levaria a isso, mas o horror do que fizera. Essa impressão ia tomando vulto a cada momento. Por coisa alguma se aproximaria agora do cofre nem entraria no quarto.

Mas, pouco a pouco, seu espírito preocupou-se com outros pensamentos e caiu numa espécie de vaga meditação; por momentos, o assassino parecia esquecer-se de si, ou antes esquecer-se do principal para pensar em ninharias. Lançando os olhos para a cozinha, viu um balde com água: lembrou-se de se lavar e limpar o machado. O sangue tornara-lhe as mãos grudentas. Depois de mergulhar na água o gume do machado, pegou num pedaço de sabão que estava no parapeito da janela e começou suas abluções. Quando acabou de lavar as mãos, ensaboou o cabo da arma, que estava também ensanguentado.

Depois, limpou-se numa roupa estendida a secar na corda que atravessava a cozinha. Terminada a operação, aproximou-se da janela para examinar minuciosamente o machado. Os vestígios de sangue tinham desaparecido, mas o cabo estava ainda úmido. Raskólnikov escondeu-o cuidadosamente debaixo do casaco, pendurado no nó corredio. Depois inspecionou minuciosamente a roupa, tanto quanto permitia a fraca luz que iluminava a cozinha. À primeira vista, o casaco e as calças nada apresentavam que originasse suspeitas; mas as botas estavam manchadas de sangue. Limpou-as com um pano molhado.

Essas precauções, porém, não o sossegavam, porque não podia ver distintamente e era possível ter-lhe passado despercebida alguma mancha. Deixava-se ficar de braços caídos, no meio da casa, obcecado por ideias aflitivas: o pensamento de que endoidecia, de que nesse momento estava incapaz de tomar uma resolução e de garantir sua segurança, de que seu procedimento não era, porventura, o que convinha em tal situação... “Meu Deus! Devo fugir, sem demora, o mais depressa possível!”, murmurou ele, e passou à saleta de entrada, onde o aguardava a impressão de terror mais intensa que até então experimentara.

Ficou petrificado, sem sequer acreditar no que via: a porta exterior que dava para o patamar, aquela em que batera e por onde pouco antes entrara, estava aberta: por precaução, talvez a velha não a fechara; nem tinha dado volta à chave nem correra o fecho. Mas, Deus, ele bem vira depois Isabel! Como não lhe ocorrera que a infeliz entrara pela porta? Ela não podia ter entrado pela fechadura.

Fechou a porta e correu o ferrolho.

— Mas não, não é isso... Preciso sair, depressa...

Puxou novamente o fecho e, entreabrindo a porta, pôs-se a escutar.

Aplicou o ouvido durante muito tempo. Embaixo, naturalmente à porta da rua, duas vozes trocavam injúrias. “Quem será esta gente?” Esperou pacientemente. Por fim, deixaram de se ouvir os doestos: os contendores haviam-se retirado. Preparava-se para sair, quando, no andar de baixo, se abriu ruidosamente uma porta, e alguém começou a descer, cantando. “Por que fará toda esta gente tanto barulho?”, pensou; e cerrou outra vez a porta, continuando a esperar. Finalmente o silêncio restabeleceu-se, mas, no momento em que se preparava para descer, seu ouvido apurado percebeu novo ruído.

Eram passos ainda muito afastados que subiam os primeiros degraus da escada; no entanto, logo que os ouviu, adivinhou imediatamente a verdade; vinham sem dúvida para aqui, para o quarto andar, para a casa da velha. Como explicar esse pressentimento? O que havia nesses passos de tão extraordinariamente significativo? Eram pesados, vagarosos e regulares.

“Ele já chegou ao primeiro andar e continua a subir... cada vez se ouve melhor... toma a respiração como um asmático... Prepara-se para vir ao terceiro andar... vem aí...”

Raskólnikov teve repentinamente a sensação de uma paralisia geral, como, quando num pesadelo, nos julgamos perseguidos por inimigos que já estão próximos de nós, que vão assassinar-nos, e ficamos petrificados no mesmo lugar, sem podermos fazer o menor movimento.

O desconhecido começava a subir a escada do quarto andar; Raskólnikov, a quem o terror imobilizara no patamar, pôde enfim vencer o torpor e entrou a toda a pressa na casa, fechando a porta imediatamente e correndo o fecho sem fazer o menor ruído. Neste momento, foi guiado mais pelo instinto do que pela reflexão. Encostou-se à porta e pôs-se à escuta, mal se atrevendo a respirar. O visitante já estava no patamar, apenas a porta separava os dois. O desconhecido estava para com Raskólnikov na mesma situação em que ele se encontrara há pouco com a velha.

O visitante respirou com esforço, por várias vezes. “Deve ser forte e alto”, pensou o assassino, apertando o cabo do machado. Tudo aquilo lhe parecia um sonho. O desconhecido puxou violentamente a campainha.

Julgou, decerto, ouvir ruído no interior, porque, durante alguns segundos, escutou atentamente. Depois tornou a tocar, esperou ainda algum tempo e, de repente, impacientado, puxou com toda a força a maçaneta da porta. Raskólnikov olhava aterrado para o fecho que oscilava na chapa e esperava a cada instante vê-lo saltar, tão forte eram os empurrões. Pensou em segurar o fecho com a mão, mas ele podia desconfiar. A cabeça recomeçava a girar. “Estou perdido!”, pensou; todavia recuperou a serenidade quando o visitante se pôs a monologar.

— Estarão dormindo ou alguém as estrangularia? Mulheres, três vezes malditas! — resmungava. — Olá, Alena Ivanovna, velha bruxa! Isabel Ivanovna, beleza maravilhosa! Abram! Excomungadas! Estarão dormindo?

Exasperado, tocou dez vezes seguidas, com toda a força. Este homem era, sem dúvida, íntimo da casa; parecia mandar ali.

Ao mesmo tempo, ouviram-se na escada passos ligeiros, apressados. Era mais alguém que subia para o quarto andar. Raskólnikov não percebeu logo a presença do recém-chegado.

— Pois será possível que não haja ninguém? — disse este com voz alegre, dirigindo-se ao primeiro visitante, que continuava a puxar o cordão da campainha. — Boa tarde, Kokh!

“A julgar pela voz deve ser um rapazinho”, pensou Raskólnikov.

— Sei lá! Por pouco não arrombei a fechadura — respondeu Kokh. — Mas de onde me conhece o senhor?

— Que pergunta! Ainda anteontem, no Gambrinos, lhe ganhei três partidas de bilhar seguidas.

— Ah!

— Então, elas não estão em casa? É extraordinário! Direi mesmo, é estúpido. Onde iria a velha? Precisava falar-lhe.

— Também eu precisava falar com ela.

— Então, que havemos de fazer? Irmo-nos embora. E eu que vinha pedir-lhe dinheiro emprestado! — exclamou o rapaz.

— Certamente, não há jeito senão irmo-nos embora; mas para que diabo me disse ela que eu viesse? Foi a própria bruxa que marcou a hora. E é tão longe de minha casa até aqui! Mas aonde iria ela? Não entendo! Ela que não se move durante todo o ano, que fica aqui apodrecendo, que sofre de reumatismo, logo hoje é que saiu!

— E se perguntássemos ao dvornik?

— Para quê?

— Para saber aonde ela foi e quando volta.

— Que diabo!... perguntar... Mas ela nunca sai!... — E tornou a puxar a maçaneta da porta. — Diabo, não há remédio senão irmo-nos!

— Espere! — exclamou o rapaz, olhe, vê como a porta resiste quando se puxa?

— Então?

— É a prova de que não está fechada com a chave, mas só com o fecho. Não o sente mover-se?

— E depois?

— Não percebe? É claro que uma delas está em casa. Se ambas tivessem saído, teriam fechado a porta por fora com a chave, não corriam o fecho por dentro. Não ouve o barulho que ele faz? Ora, para alguém fechar uma porta por dentro é preciso estar em casa. Evidentemente elas estão aí.

— É verdade! — exclamou Kokh, surpreendido.

E pôs-se a sacudir a porta furiosamente.

— Veja lá, não puxe com tanta força. Aqui há qualquer coisa... O senhor tocou, puxou a porta com toda a força e não abriram. Está claro que ou ambas estão desmaiadas ou...

— Ou... o quê?

— O que devemos fazer é ir chamar o dvornik para ele próprio as acordar.

— Não é má ideia!

— Espere. Não saia daqui enquanto eu vou chamar o dvornik.

— Mas por que hei de ficar?

— Ninguém sabe o que pode acontecer.

— Pois fico aqui.

— Sou estudante de direito! Aqui há um mistério, é evidente! — disse com vivacidade o rapaz, descendo de quatro em quatro os degraus da escada.

Ficando só, Kokh tornou ainda a tocar, mas com pouca força; depois, pôs-se a mover com ar pensativo a maçaneta, fazendo oscilar a lingueta para se convencer de que a porta estava apenas fechada com o fecho.

Em seguida, respirando com esforço, curvou-se para olhar pelo buraco da fechadura, mas, como a chave estava pela parte de dentro, nada conseguiu ver.

Encostado à porta, Raskólnikov apertava na mão o cabo do machado.

Próximo do delírio, preparava-se para fazer frente aos dois homens quando eles transpusessem o limiar. Mais de uma vez, ouvindo-os bater à porta, teve a ideia de pôr termo àquilo e de os interpelar. “Quanto mais depressa isto acabar, melhor!”, pensava ele.

O tempo passava, e não vinha ninguém. Kokh impacientava-se.

— Ora, adeus!... — exclamou ele farto de esperar e descendo para encontrar-se com o rapaz. Aos poucos, o ruído de seus passos, que ressoavam pesadamente na escada, foi esmorecendo.

“Meu Deus! Que hei de fazer?”

Raskólnikov correu o fecho e entreabriu a porta. Animado com o silêncio que reinava em todo o prédio e não estando nesse momento em estado de refletir, saiu, fechou a porta e começou a descer a escada.

Descera já alguns degraus, quando, subitamente, ouviu um grande barulho no fundo da escada. Onde havia de se meter? Não podia esconder-se em parte alguma. Tornou a subir a toda a pressa.

— Oh, diabo, diabo, para!

Aquele que assim gritava acabava de sair de um dos andares inferiores e descia os degraus de quatro em quatro.

— Mitka! Mitka! Mitka! O diabo leve o doido!

A distância não permitiu ouvir mais; o homem que gritara estava longe. Restabeleceu-se o silêncio; mas, mal cessara este incidente, produziu-se outro: um grupo de homens, falando em voz alta, subia tumultuosamente a escada. Raskólnikov distinguiu a voz sonora do rapaz. “São eles!”

Não esperando já lhes escapar, correu ousadamente a seu encontro: “Suceda o que suceder!”, pensou ele. “Se me prenderem, deixo! Se me deixarem passar, passarei. Mas hão de lembrar-se de terem cruzado comigo na escada...” Ia dar-se o encontro. Só um andar os separava... Repentinamente, Raskólnikov encontrou a salvação! Uns degraus mais, e à direita estava desabitada e com a porta aberta uma das divisões do segundo andar onde trabalhavam os pintores. Muito a propósito acabavam de o abandonar.

Eram certamente eles que haviam saído há pouco, fazendo aquela algazarra. Notava-se que a tinta das janelas estava ainda fresca. Os pintores tinham deixado, no meio do quarto, uma lata de tinta e um grande pincel. Num momento Raskólnikov introduziu-se no quarto desocupado e colou-se à parede. Era tempo: seus perseguidores chegaram um momento depois ao patamar, continuando a subir para o quarto andar, falando alto. Depois de esperar que se afastassem, saiu na ponta dos pés e desceu precipitadamente.

Ninguém na escada! Ninguém à porta! Transpôs rapidamente o portão e, chegando à rua, enveredou pela esquerda.

Raskólnikov tinha certeza de que, naquele momento, os visitantes da velha, depois de se espantarem por verem a porta aberta, contemplavam cheios de terror os dois cadáveres. “Não lhes será por certo necessário mais de um minuto para adivinharem que o assassino conseguiu escapulir enquanto subiam a escada; talvez mesmo desconfiem que estivesse escondido no compartimento desocupado do segundo andar, quando eles subiam ao quarto andar.” Mas, enquanto fazia essas reflexões, não se atrevia a apressar o passo, apesar de estar ainda um pouco distante da primeira esquina. “Se eu ficasse sob um portal e esperasse lá um instante? Nada disso! Se fosse atirar o machado em qualquer lugar? Se tomasse um carro? Não, nada disso...”

Finalmente chegou a um bairro, mais morto que vivo. Sabia que podia considerar-se a salvo. Ali as suspeitas não podiam incidir nele; e, depois, era-lhe mais fácil não despertar a atenção no meio dos transeuntes. Mas as sucessivas comoções tinham-no de tal modo prostrado, que sentiu vergarem-lhe as pernas.

Corriam-lhe pelo rosto grandes gotas de suor. “Já tens a tua conta”, disse-lhe alguém, quando ele ia desembocar no canal, julgando-o bêbado.

Estava atordoado; quanto mais caminhava, mais se lhe baralhavam as ideias. Quando chegou ao cais, assustou-se por lá ver tão pouca gente e, receando que o notassem em lugar tão pouco concorrido, voltou ao bairro. Conquanto mal se aguentasse de pé, fez uma grande volta para voltar para casa.

Quando chegou lá, ainda não estava de posse de sua serenidade; não se lembrou do machado senão quando já subia a escada. E, no entanto, o problema que ele tinha de resolver era dos mais sérios: tornar a colocar a arma onde a encontrara, sem atrair a atenção. Se estivesse em estado de apreciar sua situação, teria certamente compreendido que, em vez de colocar o machado no lugar, seria preferível desfazer-se dele, atirando-o para o pátio de uma casa qualquer.

Mas tudo correu conforme seus desejos. A porta do cubículo estava encostada, mas não fechada, o que levava a crer que o dvornik estava em casa. Mas Raskólnikov perdera a tal ponto o raciocínio, que abriu a porta. Se o dvornik lhe perguntasse “O que quer?” talvez, sem dizer uma palavra, lhe entregasse o machado. Mas, como antes, não estava lá, e Raskólnikov pôde colocar o machado debaixo do banco, onde o tinha encontrado.

Depois subiu a escada e chegou ao quarto sem encontrar vivalma; a porta da hospedaria estava fechada. Logo que entrou em casa, deitou-se vestido mesmo no divã. Não dormiu, mas caiu numa espécie de torpor. Se alguém tivesse então entrado no quarto, ele ter-se-ia levantado e não poderia conter um grito. Em seu cérebro, baralhavam-se os pensamentos; mas, por mais esforços que fizesse, não conseguiu seguir nenhum...


Segunda parte


Capítulo I

Raskólnikov permaneceu deitado durante muito tempo. Às vezes, parecia sair do torpor e então notava que a noite ia adiantada; mas não lhe acudia a ideia de levantar-se. Por fim, percebeu os primeiros alvores do dia. Estendido de costas, não conseguira ainda libertar-se do letargo que pesava sobre ele. Gritos horríveis de desespero partidos da rua chegaram a seus ouvidos; eram certamente os que ouvia todas as noites, às duas horas, sob a janela. Dessa vez, acordaram-no. “Ah! São os bêbados que saem das tavernas”, pensou. “São duas horas”; e sentia uma impressão estranha, como se alguém o erguesse do divã. “Pois será possível que já sejam duas horas?” Sentou-se e subitamente recordou-se de tudo.

Nos primeiros momentos, julgou que enlouquecia. Percorria-lhe todo o corpo uma terrível sensação de frio, que tinha origem na febre que o acometera durante o sono. Tremia tanto que os dentes batiam uns contra os outros. Abriu a porta e escutou. No prédio, tudo dormia. Lançou em volta de si um olhar espantado. Como se esquecera de correr o fecho da porta quando entrara? Como se deitara no divã, com o chapéu na cabeça? Lá estava ele no chão, para onde rolara, junto do travesseiro. “Se alguém entrasse aqui, que julgaria? Que eu estava bêbado, mas...”

Correu à janela. Era já dia claro. Inspecionou-se dos pés à cabeça, para verificar se a roupa não estava manchada. Mas não podia confiar nesse exame incompleto; despiu-se e passou nova revista, reparando em tudo minuciosamente. Por três vezes recomeçou esse exame. Salvo umas gotas de sangue coagulado na bainha da calça nada descobriu. Pegou um canivete e cortou as extremidades franjadas da calça. Repentinamente lembrou-se de que tinha nos bolsos os objetos que tirara do cofre da velha! Não pensara neles e menos ainda em escondê-los.

Num momento, despejou os bolsos sobre a mesa. Depois, tendo-os voltado, para se certificar de que nada lá ficara, levou todo o roubo para um canto do quarto, onde o papel que revestia a parede estava roto. Foi ali, debaixo do papel, que ele guardou as joias e a bolsa. “Pronto! Isto está em bom lugar!”, pensou satisfeito, erguendo-se um pouco e olhando com ar pasmado. De repente, um tremor convulsivo agitou-lhe os membros: “Meu Deus”, murmurou com desespero, “que terei eu? Estará isso bem escondido? Será assim que se escondem as coisas?”.

De fato, ele não contava com as joias; pensara apenas em lançar mão do dinheiro da velha; assim a necessidade de esconder o roubo encontrava-o desprevenido.

“Mas agora, neste momento, terei razões para estar satisfeito?”, pensou. “Será assim, realmente, que se escondem as coisas? Parece que a razão me foge!”

Extenuado, deixou-se cair no divã, sentindo de novo um arrepio. Maquinalmente, pegou num casaco de inverno em pedaços, que estava em uma cadeira, e cobriu-se. Logo se apoderou dele o sono acompanhado de delírio. Não teve mais a noção das coisas.

Cinco minutos depois, acordou aflitíssimo e seu primeiro movimento foi inclinar-se angustiosamente sobre a roupa. “Como me deixei adormecer novamente sem ter feito coisa alguma! Porque ainda não fiz nada; o nó está ainda pregado na manga do casaco! Não me lembrei disso! Uma prova esmagadora!” Arrancou a faixa de pano, rasgou-a em pedaços e meteu-a no embrulho que servia de travesseiro. “Estes trapos não podem certamente causar suspeitas; pelo menos em minha opinião”, repetiu de pé, no meio do quarto, e, com uma atenção que o esforço tornava penosa, olhou em redor, para se certificar de que nada esquecera.

Sofria de uma maneira horrível ao convencer-se de que tudo o abandonava, a própria memória, a mais elementar prudência.

“Será isso o princípio do castigo? É isso, é!”

Efetivamente, as franjas da calça que ele cortara estavam no chão, no meio do quarto, expostas ao olhar de quem ali entrasse.

— Mas onde tenho a cabeça? — exclamou, desanimado.

Veio-lhe então uma ideia espantosa: pensou que a roupa estaria talvez suja de sangue e que o enfraquecimento de suas faculdades não lhe permitira distinguir as manchas... De repente, lembrou-se de que a bolsa estava também ensanguentada. “Mas então o bolso deve estar sujo de sangue, porque a bolsa estava ainda úmida quando a guardei!” Puxou imediatamente o forro do bolso, que efetivamente tinha nódoas. “Ao menos, o raciocínio ainda não me abandonou completamente; não perdi, portanto, nem a memória nem a lucidez. Se tivesse perdido, como me lembraria disso?”, pensou, triunfante, soltando um fundo suspiro de satisfação. “Tive apenas um acesso febril que passageiramente me perturbou a inteligência.”

E arrancou o forro do bolso esquerdo da calça. Nesse momento, um raio de luz incidiu na botina esquerda; pareceu-lhe descobrir um indício revelador. Descalçou-a. “Efetivamente é um indício! O bico da botina está manchado de sangue.” Sem dúvida pusera o pé imprudentemente no sangue empoçado... “Como arranjarei isso? Como hei de livrar-me desta botina, destas franjas, do forro do bolso?”

E deixou-se ficar no meio do quarto, tendo nas mãos todos esses objetos denunciadores.

“Se eu atirasse ao fogão? Mas é natural que vão lá procurar... E se eu queimasse isso? Mas como hei de queimar isso? Não tenho fósforos... O melhor é jogar tudo fora”, disse, sentando-se no divã. “E imediatamente, sem perda de um momento!” Mas, em vez de pôr em prática essa resolução, encostou novamente a cabeça no travesseiro; sentiu-se outra vez arrepiado e voltou a embrulhar-se nos farrapos. Durante muito tempo, horas mesmo, em seu espírito fixou-se esta ideia: “É necessário ir já atirar isso fora!” Quis levantar-se, mas não pôde. Por fim, pancadas vibradas violentamente na porta arrancaram-no do torpor.

Era Nastácia.

— Anda, abre, se estás vivo! — gritou ela. — Estás sempre a dormir! Passas dias inteiros enroscado como um cão! És tal qual um cão! Abre, não ouves? Já são dez horas.

— Talvez ele não esteja — disse uma voz de homem.

“Ah, é o dvornik... Que quererá ele?”

Estremeceu e sentou-se no divã. O coração parecia querer saltar-lhe fora do peito.

— Então quem havia de fechar a porta com o fecho? — replicou Nastácia. — Ele fechou-se por dentro! Tem talvez receio de que o raptem! Abre, anda, acorda!

“Que quererão eles? A que virá o dvornik? Está tudo descoberto. Devo resistir ou abrir a porta? Que vão para o diabo!...

Ergueu-se um pouco, estendeu o braço e correu o fecho. O quarto era tão pequeno que, mesmo deitado no divã, Raskólnikov podia abrir a porta.

Nastácia e o dvornik entraram.

A rapariga fitou o hóspede com modo estranho. Raskólnikov olhou para o dvornik como quem perdeu de todo a esperança, e este estendeu-lhe silenciosamente um papel cinzento dobrado no meio e lacrado.

— É uma citação do comissariado — disse.

— De que comissariado?

— Do da polícia, naturalmente. Já se sabe que de outro não podia ser.

— Eu é que não sei como o chamam... Saia.

Examinou atentamente o inquilino, olhou em volta de si e ia sair quando Nastácia disse, olhando fixamente Raskólnikov:

— Parece que estás pior.

A essas palavras o dvornik voltou-se.

— Desde ontem que tem febre.

Ele não respondia, conservando o papel na mão sem o abrir.

— Ora, deixa-te estar — disse a criada compadecida, vendo que ele se ia erguer. — Estás doente? Pois não vás! Não será coisa de urgência. Que tens aí na mão?

Raskólnikov olhou: tinha na mão direita as franjas da calça, a botina e o forro arrancado do bolso. Adormecera agarrado a tudo isso. Mais tarde, procurando a explicação do caso, lembrou-se de que estivera entorpecido por um acesso de febre, e que, depois de ter apertado tudo, adormecera profundamente.

— Dorme agarrado a trapos como se fossem um tesouro!... — E, dizendo isso, Nastácia estorcia-se com o riso nervoso que lhe era peculiar.

Raskólnikov escondeu apressadamente debaixo da roupa tudo o que tinha nas mãos e fitou a criada com olhar penetrante. Conquanto não se sentisse em estado de refletir, percebia que não se lhe dirigiriam por aquela forma se soubessem tudo. “Mas a polícia?”

— Queres chá? Ainda há uma gota...

— Não... eu vou já, e imediatamente — balbuciou.

— Mas tu nem tens força para descer a escada!

— Devo ir...

— Faze o que quiseres.

E a rapariga saiu atrás do dvornik. Raskólnikov foi logo examinar à janela as franjas da calça e o bico da botina: “Têm manchas, mas não se distinguem: a lama e a esfoladura encobrem a cor. Quem não desconfiar, não dá por isso. Por consequência, Nastácia, do lugar onde estava, não podia perceber. Graças a Deus!” Então, com as mãos trêmulas, abriu o papel e leu-o repetidas vezes, acabando finalmente por compreender. Era uma citação redigida nos termos de costume: o comissário de polícia do bairro intima Raskólnikov a apresentar-se no comissariado às nove e meia.

“Mas então quando chegou a citação?... Pessoalmente, nada tenho com a polícia... E justamente hoje?...” pensou, sentindo-se invadido por uma horrível ansiedade. “Senhor, que isso acabe o mais depressa possível!” E, quando ia prosternar-se para orar, desatou a rir — não da prece, mas de si próprio. Começou a vestir-se apressadamente. “Vou perder-me! Mas não faz mal, acabou-se! Vou calçar a botina. Afinal, com a poeira do caminho, as manchas cada vez desaparecerão mais.” Porém, apenas a calçou, cheio de medo descalçou-a logo, com repugnância.

Mas, refletindo que não tinha botinas, tornou a calçá-las, sorrindo. “Tudo isso é convencional, relativo, talvez haja apenas desconfiança e nada mais.” Essa ideia a que se agarrava sem convicção não o impedia de sentir um tremor geral. “Vamos, já me calcei, finalmente!” Mas sua hilaridade cedeu lugar à prostração. “Não; é demasiado para minhas forças...”, pensou. “As pernas vergam. É medo”, disse de si para si.

O calor atordoava-o. “É um ardil! Arranjaram esse pretexto para me apanharem lá, e, quando eu chegar, vão direto à questão”, continuou com seus botões, dirigindo-se para a escada. “O pior é que estou meio louco... posso cair em alguma contradição...”

Já na escada, lembrou-se de que os objetos roubados estavam mal escondidos no forro da parede. “Talvez me chamem de propósito, para virem revistar o quarto durante minha ausência”, pensou. Mas estava tão desorientado, via a hipótese de sua perda com tal desprendimento, que essa apreensão o deteve apenas um momento.

Na rua, o calor também estava insuportável, nenhuma gota de chuva caíra nos últimos dias. Outra vez o pó, os tijolos, a argamassa, o fedor das tavernas, os bêbados, os mascates finlandeses e os calhambeques. O sol ofuscava-se para que não olhasse essas coisas. Sentia-se atordoado como quem em estado febril sai em um dia de verão.

Chegando à esquina da rua por onde na véspera seguira, lançou furtivamente o olhar inquieto na direção da casa... Mas logo desviou os olhos.

“Se me interrogarem, talvez confesse”, pensou ao aproximar-se do comissariado.

A repartição mudara há pouco tempo para o quarto andar de uma casa situada a um quarto de versta da sua.

Antes de a polícia se instalar na nova casa, ele tivera uma vez de ajustar contas com ela, mas por um caso insignificante e havia já muito tempo. Quando transpôs o portal, viu à direita uma escada por onde descia um mujique, com um livro na mão. “Naturalmente é um dvornik; a repartição deve, portanto, ser aqui.” E subiu ao acaso. Não queria pedir indicações.

“Entro, ajoelho-me e confesso tudo...”, pensava enquanto subia.

A escada era estreita, íngreme e escorregadia, cheia de águas imunda. As cozinhas dos andares abriam-se para a escada e permaneciam de portas escancaradas quase o dia todo. Sentia-se um cheiro horrível, e o calor sufocava; os dvorniks subiam e desciam sobraçando livros, cruzando com agentes de polícia e grande número de pessoas que tinham negócios a liquidar com a autoridade. A porta do comissariado estava aberta.

Raskólnikov entrou e parou na primeira sala, onde alguns mujiques esperavam. Ali, como na escada, o calor era intensíssimo; além disso, a casa, pintada recentemente, tresandava a óleo até provocar náuseas. Depois de esperar um instante, resolveu entrar na sala imediata. Seguiam-se muitos cubículos estreitos e baixos. O rapaz estava cada vez mais impaciente. Ninguém atentava nele. Na segunda sala, trabalhavam alguns amanuenses um pouco mais bem-vestidos do que ele. Toda essa gente tinha uma aparência singular. Dirigiu-se a um deles:

— Que quer?

Ele mostrou a citação.

— É estudante? — interrogou o amanuense depois de lançar os olhos sobre o documento.

— Fui estudante.

O empregado olhou para ele, sem curiosidade. Era um homem de cabeleira desgrenhada, que parecia dominado por uma ideia fixa.

“Por ele não chego a saber nada; tudo lhe é indiferente”, pensou Raskólnikov.

— Dirija-se ao chefe de repartição — disse o amanuense indicando com o dedo o último compartimento.

Raskólnikov entrou. Essa divisão, a quarta, era estreita e estava cheia de gente, um pouco mais bem-vestida do que a que acabara de ver. Entre os assistentes havia duas senhoras. Uma delas vestida de luto, pobremente. Sentada em frente do funcionário, escrevia qualquer coisa que este lhe ditava.

A outra era uma criatura de carnes opulentas, rosto avermelhado, vestindo-se luxuosamente; um enorme broche que trazia ao peito atraía as atenções. Estava de pé, um pouco afastada, na atitude de quem espera. Raskólnikov entregou a intimação ao funcionário. Este lançou-lhe um olhar rápido e disse-lhe: “Espere um pouco.” E continuou ditando à senhora de luto.

O rapaz respirou mais livremente. “Decerto, não foi por causa daquilo que me chamaram!” Pouco a pouco foi recuperando a serenidade; pelo menos diligenciava, quanto possível, encher-se de ânimo.

“A menor indiscrição ou imprudência, bastam para me trair!... O diabo é não se poder respirar aqui”, acrescentou, “sufoca-se... Tenho a cabeça aturdida...”.

Sentiu horrível mal-estar e receava descontrolar-se. Quis fixar o pensamento em qualquer coisa indiferente, mas não conseguiu. Sua atenção fixava-se exclusivamente no chefe de repartição, queria decifrar a fisionomia daquela criatura. Era um rapaz de 22 anos, cujo rosto moreno e móvel o fazia parecer mais velho. Vestia-se elegantemente, tinha o cabelo repartido até a nuca, por uma risca feita com arte; em suas mãos bem tratadas brilhavam alguns anéis e, sobre o colete, pendia uma corrente de ouro. Dirigiu-se a um estrangeiro que ali se encontrava, em francês, e falou corretamente.

— Luíza Ivánovna, sente-se — disse ele à senhora pomposamente vestida, de rosto carminado, que continuava de pé embora tivesse uma cadeira ao lado.

— Ich danke — respondeu ela, e sentou-se compondo as saias impregnadas de perfume. Espalhado em volta da cadeira, o vestido de seda azul, guarnecido de rendas brancas, ocupava quase metade da pequena sala. A dama parecia contrariada por lançar de si tanto perfume e ocupar tanto espaço. Sorria com expressão simultaneamente impudente e servil, no entanto sua inquietação era manifesta.

A dama de luto levantou-se. Repentinamente, entrou com estrondo um oficial, de aspecto resoluto, que movia os ombros a cada passo que dava; atirou em cima da mesa o capacete e sentou-se numa cadeira de braços.

Ao vê-lo, a dama, luxuosamente vestida, levantou-se e fez uma reverência; mas o oficial não lhe deu a menor importância, e ela não ousou tornar a sentar-se em sua presença. Essa personagem era o adjunto do comissário de polícia; tinha grandes bigodes ruivos espetados e feições delicadas, mas pouco expressivas, denunciando apenas uma certa insolência. Olhou de revés para Raskólnikov, com um certo ar de indignação; conquanto fosse muito modesta a aparência de nosso herói sua atitude contrastava com a miséria da roupa. Esquecendo a mais rudimentar noção de prudência, Raskólnikov afrontou tão diretamente o olhar do oficial, que ele se sentiu irritado.

— Que queres? — interrogou ele, sem dúvida admirado de um maltrapilho não baixar os olhos ante seu olhar fulminante.

— Chamaram-me... fui solicitado..., respondeu Raskólnikov.

— É o estudante a quem exigem o dinheiro, explicou o chefe de repartição, desviando a atenção da papelada que tinha diante de si. — Aqui tem! — e estendeu a Raskólnikov um processo, designando-lhe certo ponto.

— Leia.

“Dívida? Que dívida?”, pensou ele, “então não é por aquilo!”. E estremeceu de alegria. Experimentou um alívio extraordinário, inexprimível.

— Mas para que horas foi solicitado, senhor? — exclamou o oficial, cujo mau humor aumentava. Intimam-no para as nove horas e aparece às 12!

— Entregaram-me este papel há um quarto de hora — respondeu imediatamente, já irritado. — Doente, febril, não foi sem custo que aqui vim!

— Não grite tanto!

— Eu não grito, estou falando naturalmente; o senhor é que está gritando; sou estudante e não admito que me falem desse modo.

Essa resposta irritou o oficial a tal ponto que, por momentos, nem pôde proferir palavra; de seus lábios saíam apenas sons inarticulados. Deu um salto na cadeira.

— Cale-se, está na presença da autoridade; não seja insolente.

— O senhor também está em presença da autoridade — replicou com aspereza Raskólnikov —, e não só grita, mas fuma; é, portanto, o senhor quem nos ofende a todos.

Sentiu um grande alívio ao pronunciar essas palavras.

O chefe de repartição sorria, olhando os interlocutores. O petulante oficial ficou por um momento pasmado.

— Que tem o senhor com isso? — respondeu afinal, afetando serenidade na voz para disfarçar sua irritação. — Faça a declaração que lhe pedem, ande! Mostre-lhe isso, Alexandre Gregoriévitch. Há queixas contra você. Não paga o que deve! É um bom caloteiro!

Mas Raskólnikov não o escutava; pegara o papel, impaciente por decifrar aquele enigma. Leu a primeira e a segunda vez e não entendeu.

— Que é isso? — perguntou ao chefe de repartição.

— É um documento de dívidas no qual lhe pedem o pagamento. Pode pagá-lo desde já com os juros, ou declarar quando poderá efetuar o pagamento. Nesse caso, é necessário comprometer-se a não se ausentar e a não vender nem alienar seus haveres, até integral pagamento. Pelo que diz respeito ao credor, ele pode vender-lhe os bens e persegui-lo com o rigor da lei.

— Mas eu... eu não devo nada a ninguém.

— Não temos nada com isso. Vieram aqui fazer entrega de uma letra protestada, de 115 rublos, assinada pelo senhor, há nove meses, à sra. Zarnitzine, viúva de um professor, e que essa senhora entregou em pagamento ao conselheiro Tchebarof, mandamo-lo, portanto, citar para que fizesse suas declarações.

— Mas se é minha hospedeira!

— E o que tem isso?

O chefe de repartição olhou com um sorriso indulgente e, ao mesmo tempo, triunfante para o noviço, que ia aprender à custa o processo usado para com os devedores. Mas que importava agora a Raskólnikov a letra? Que importância tinha para ele a reclamação da locatária! Valia a pena apoquentar-se com isso, ligar a menor atenção ao fato? Estava ali lendo, ouvindo, respondendo, interrogando, mas fazia tudo isso maquinalmente. A certeza de estar a salvo, a satisfação de ter escapado a um perigo iminente, era o que nessa ocasião predominava em todo o seu ser.

Por enquanto, as preocupações, todos os cuidados estavam afastados. Foi um minuto de verdadeiro alívio, de uma satisfação indescritível. Mas, nessa ocasião, rebentou uma verdadeira tempestade na repartição. O oficial, que não engolira ainda a afronta a seu orgulho, buscava evidentemente uma desforra. E começou a tratar com grosseria a senhora elegantemente vestida, que, desde que ele fizera sua imponente entrada, não cessara de o olhar com um sorriso estúpido.

— E tu, descarada? — vociferou ele aos berros (a senhora de luto já saíra). — O que sucedeu à noite passada em tua casa? Não cessas de dar escândalo! Sempre rixas e bebedeiras! Gostas de ir para a cadeia? Eu bem te disse que havia de acabar por perder a paciência. Decididamente és incorrigível!

O próprio Raskólnikov deixou cair o papel e pôs-se a olhar espantado para a elegante dama, tratada com tão pouca cerimônia. Mas não tardou a compreender do que se tratava, e a história começou a interessá-lo. Escutava aquilo com prazer, dava-lhe vontade de rir...

— Iliá Pietróvitch! — atalhou o chefe de repartição, reconhecendo logo que seria inoportuna sua intervenção naquele momento, porque sabia por experiência própria que, quando o oficial seguia naquela carreira desenfreada, era impossível contê-lo.

A elegante dama tremera a princípio, sentindo a tempestade desencadear-se sobre sua cabeça; mas, coisa singular, ao passo que ia ouvindo, sua fisionomia tomava uma expressão cada vez mais sorridente, não tirando os olhos do terrível oficial. A cada momento sorria e esperava oportunidade para falar.

— Em minha casa não houve gritos nem brigas, senhor — apressou-se ela a dizer logo que lhe foi possível (falava o russo correntemente, mas com sotaque alemão) — não se deu nenhum escândalo. Aquele homem apareceu lá bêbado e pediu três garrafas de cerveja; depois, pôs-se a tocar piano com os pés, o que é impróprio em uma casa respeitável, e quebrou as teclas. Observei-lhe que não devia proceder daquela forma, e então ele agarrou uma garrafa e começou a bater com ela em todo mundo. Chamei logo Karl, o dvornik. Assim que o viu, atirou-lhe com a garrafa à cara, e fez outro tanto a Henriqueta. Em mim, deu-me cinco bofetadas. É inacreditável tal procedimento em uma casa séria, senhor oficial. Gritei por socorro; ele abriu a janela que dá para o canal e começou a grunhir como um porco. Que vergonha! Ir para a janela que dá para o canal grunhir como um porco! Coin! Coin! Coin! Karl puxou-o para dentro e realmente, nessa ocasião, arrancou-lhe uma aba do casaco. Então, reclamou 15 rublos de indenização. E eu paguei de meu bolso cinco rublos pela aba, senhor oficial. Foi esse malcriado quem fez escândalo! E ele ainda me disse: “Posso forçá-la a me pagar, porque escreverei a seu respeito em todos os jornais.”

— Então, ele é um escritor?

— Sim, um mal-educado que frequenta uma casa respeitável...

— Basta! Basta! Já te disse, já te repeti...

— Iliá Pietróvitch! — atalhou novamente o chefe de repartição. O oficial lançou-lhe um olhar rápido e viu-o abanar a cabeça.

— ...Pois bem, pelo que te diz respeito, nada mais tenho a dizer-te, veneranda Luíza Ivánovna — continuou o oficial. — Se houver mais algum escândalo em tua respeitável casa, meto-te na jaula, como vulgarmente se diz. Entendeste? Então, um escritor arranca cinco rublos por uma aba de casaco em uma casa respeitável? Bela corja, esses escritores.

Lançou um olhar desdenhoso a Raskólnikov.

— Outro dia, houve um escândalo em um restaurante; um escritor almoçou, não quis pagar e ainda disse: “Escreverei uma sátira sobre o dono.” E houve outro que, na semana passada, apareceu a bordo do barco fluvial dirigindo palavras grosseiras à respeitável família de um conselheiro, sua esposa e filha. Outro mais foi enxotado de uma alfaiataria. Todos são assim, os literatos, os estudantes, as vozes que instruem o público... Vote! — Dirigindo-se para Luíza Ivánovna: — Retira-te! Um dia, procurar-te-ei pessoalmente, e será melhor que sejas mais cuidadosa! Entendeste?

Com amabilidade requintada Luíza Ivánovna cumprimentou para todos os lados, mas, quando ia recuando e fazendo mesuras, esbarrou de costas com um garboso militar, de porte expressivo e fisionomia risonha, possuidor de magníficas suíças louras. Era o comissário de polícia Nikodim Fomitch. Luíza Ivánovna curvou-se quase até o chão e saiu com passinhos miúdos.

— De novo o raio, o trovão, a tromba-d’água, a tempestade — disse em tom jovial Nikodim Fomitch a seu adjunto. — Excitaram-te e desesperaste! Ouvi-te da escada.

— Que fazer! — disse negligentemente Iliá Pietróvitch, mudando-se com a enorme papelada para outra mesa, gingando os ombros a cada passada. — Preste atenção: aquele senhor, estudante, ou escritor, não paga o que deve, assina letras e recusa deixar a casa que habita; temos várias queixas contra ele, e é esse cavalheiro que se melindra por eu fumar um cigarro em sua presença. Antes de achar que os outros lhe faltam ao respeito, não seria mais conveniente respeitar-se a si próprio? Olhe para ele, não parece que o aspecto requer a maior consideração?

— A pobreza não é vício, meu amigo. E bem se sabe, Pólvora, que facilmente te incendeias! Provavelmente julgou ofendido e não pôde conter-se — continuou Nikodim Fomitch, dirigindo-se cordialmente a Raskólnikov —, mas não andou bem. Este senhor é uma excelente pessoa, afirmo-lhe eu, porém um pouco arrebatado! Exalta-se, enfurece-se, mas, depois de ter desabafado, acabou-se tudo: fica só um coração de ouro! No regimento chamavam-lhe “tenente Pólvora”...

— E que regimento aquele! — exclamou Iliá Pietróvitch, sensibilizado com as últimas palavras do comissário.

Raskólnikov desejou dizer-lhe alguma coisa agradável.

— Queira desculpar-me, senhor — começou, dirigindo-se a Nikodim Fomitch. — Coloquem-se os senhores em minha situação... Estou pronto a dar todas as satisfações se, por acaso, procedi incorretamente. Sou um estudante doente, pobre, esmagado pela miséria. Abandonei a Universidade porque atualmente não tenho meios de subsistência; mas espero receber dinheiro... Minha mãe e minha irmã residem na província de***. Brevemente me mandarão dinheiro, e então pagarei. A minha senhoria é uma boa mulher; mas, como eu já não dou lições e há quatro meses não lhe pago, nem mesmo me dá de jantar... Não compreendo essa história de letra! Então ela quer que eu lhe pague neste momento? E poderei fazê-lo? Os senhores bem veem que não.

— Mas nós não temos nada com isso... — observou o chefe de repartição.

— Perfeitamente, também é essa minha opinião, mas dê-me licença para eu me explicar... — continuou Raskólnikov, dirigindo-se sempre a Nikodim Fomitch e não ao chefe; procurava assim provocar a atenção de Iliá Pietróvitch, conquanto este afetasse nada ouvir e ocupar-se exclusivamente com seus papéis. — Deixe-me dizer-lhe que vivo em casa dela há quase três anos, desde que cheguei da província, e em tempo... afinal por que não hei de confessar?... Comprometi-me a casar com a filha dela... fiz-lhe uma promessa formal nesse sentido... ela agradava-me... ainda que eu não estivesse perdido de amores... em resumo, eu era um criançola, a hospedeira deu-me amplo crédito e levei uma vida... pouco regular.

— Ninguém lhe pede essas explicações, e nós não temos tempo para ouvi-las — atalhou grosseiramente Iliá Pietróvitch. Mas Raskólnikov continuou com animação.

— Dê-me, porém, licença para lhe contar como o caso se passou, embora reconheça a inutilidade da declaração. Há um ano, essa menina morreu de febre tifoide; continuei a ser hóspede da sra. Zamitzine e, quando a minha hospedeira foi viver na casa que atualmente habito, disse-me... amigavelmente... que eu lhe merecia a maior confiança... mas que, no entanto, desejava que eu lhe assinasse uma letra de 115 rublos, quantia que representava o total de minha dívida. Assegurou-me que, uma vez de posse desse documento, continuaria a conceder-me crédito ilimitado e que nunca, nunca — foram essas as suas palavras — negociaria essa letra... E agora que eu não tenho lições, agora que não tenho o que comer, vem ela exigir o pagamento... Como classificar esse procedimento?

— Todos esses pormenores, senhor, nada importam — atalhou insolentemente Iliá Pietróvitch —, o que é necessário é que faça a declaração que lhe foi exigida. O resto, a história de seus amores e de outras não vêm ao caso.

— Oh! Que severidade... — interrompeu Nikodim Fomitch, que se sentara à secretária e folheava papéis um tanto contrariado.

— Escreva intimou o chefe de repartição a Raskólnikov.

— Mas o que hei de escrever? — perguntou ele asperamente.

— Vou ditar.

A Raskólnikov pareceu que, após sua confissão, o chefe de repartição o tratava mais desdenhosamente; mas, caso singular, repentinamente passara a ser-lhe indiferente o juízo que dele fizessem, e essa mudança operou-se instantaneamente. Se refletisse por um momento, admirar-se-ia de ter podido, um minuto antes, conversar daquela forma com pessoas da polícia e levá-las até a ouvir-lhe as confidências. Agora, pelo contrário, se, em vez de estar cheia de gente da polícia, a sala de repente se enchesse com seus amigos mais diletos, não encontraria provavelmente uma palavra para lhes dizer, tanto sentia o coração vazio de sentimentos.

Experimentava simplesmente a penosa sensação de um grande isolamento. Não se sentia humilhado pela circunstância de Iliá Pietróvitch ter sido testemunha de suas confidências; nem fora a petulância do oficial que de repente produziu em sua alma essa revolução. Que lhe importava, agora, a própria ignomínia? Que lhe importavam os militares, a letra, o comissário de polícia? Se, nesse momento, o condenassem a ser queimado vivo, nem isso o comoveria; nem ouviria até o fim a leitura da sentença.

Dava-se nele um fenômeno inteiramente novo. No foro íntimo, compreendia ou — o que era muito pior — sentia que estava para sempre afastado do convívio dos homens, que lhe era defesa qualquer expansão sentimental, como a de há pouco, que lhe seria impossível sustentar uma conversação qualquer, não só com essa gente da polícia, mas até com os próprios parentes. Nunca, até então, experimentara sensação tão cruel.

O chefe de repartição começou a ditar a fórmula da declaração usada em tais casos: “Não posso pagar, mas comprometo-me a satisfazer em tal dia; não sairei da cidade; não venderei nem cederei meus haveres, etc.”

— Mas o senhor não pode escrever, a pena treme-lhe na mão — observou o funcionário, olhando-o com curiosidade. — Está doente?

— Estou... Sinto a cabeça girar... queria continuar.

— É apenas isso. Assine.

O chefe de repartição pegou o papel e atendeu outros indivíduos.

Raskólnikov pousou a pena, mas, em vez de se retirar, encostou os cotovelos na mesa e apertou a cabeça entre as mãos. Parecia que lhe enterravam um prego no sincipúcio. Repentinamente, acudiu-lhe uma ideia extraordinária; dirigir-se a Nikodim Fomitch e contar-lhe o caso da velha em todos os pormenores; levá-lo em seguida ao quarto e mostrar-lhe os objetos escondidos no buraco da parede. Essa ideia dominou-o de tal modo, que chegou a levantar-se para a executar. “Não; será melhor refletir um momento”, pensou, “ou devo seguir a primeira inspiração, ver-me livre desse peso quanto antes?”. Mas ficou como que chumbado no chão. Entre Nikodim Fomitch e Iliá Pietróvitch travara-se uma animada conversa, que ele ouvia.

— É impossível, hão de pô-los em liberdade, aos dois. Em primeiro lugar, há uma série de coisas inverossímeis. Veja bem, se eles tivessem praticado o crime, para que haviam de chamar o dvornik? Para se denunciarem? Por astúcia? Não, isso era de uma grande sutileza. Enfim, o estudante Priestriakov foi visto pelos dois dvorniks e por uma mulher, junto ao portão, na ocasião em que entrava na casa: ia com mais três que o deixaram à porta, e, antes de afastar-se, ouviram-no perguntar aos dvorniks onde a velha morava. Se ele fosse ali para a matar, teria feito tal pergunta? Quanto a Kokh, sabe-se que esteve meia hora em casa do joalheiro do rés do chão antes de ir à casa da velha; eram oito horas menos um quarto, precisamente quando ele o deixou para subir ao quarto andar. Agora veja...

— Mas nas declarações deles há coisas inexplicáveis: afirmam que bateram à porta que estava fechada; ora, três minutos depois, quando voltaram com os dvorniks, a porta estava aberta!

— Aí é que está o nó górdio. Não há dúvida que o assassino estava em casa da velha e que se fechara por dentro; tê-lo-iam infalivelmente agarrado se o Kokh não cometesse a tolice de ir procurar o dvornik. Foi, por isso, que o assassino conseguiu escapar. O Kokh benze-se! “Se eu permaneço lá o assassino saía de repente e matava-me com o machado.” Diz que vai mandar rezar uma missa!

— E ninguém conseguiu ver o assassino?

— E como o haviam de ver? Aquilo não é casa, é a Arca de Noé! — observou o chefe de repartição, que seguia a conversa.

— O caso é claro — disse Nikodim Fomitch.

— Não é tal; escuro e bem escuro é que é — respondeu Ilia Petróvich.

Raskólnikov pegou o chapéu e ia retirar-se, mas não chegou à porta...


* * *


Quando voltou a si, viu-se sentado numa cadeira, alguém, à direita, o amparava; à esquerda, outro indivíduo tinha na mão um copo cheio de um líquido amarelo; Nikodim Fomitch, de pé, em frente dele, olhava-o atentamente. Raskólnikov levantou-se.

— Então, sente-se doente? — perguntou em tom severo o comissário.

— Há pouco, quando escrevia a declaração, mal podia segurar a pena — disse o chefe de repartição, voltando a sentar-se à secretária e recomeçando o exame de sua papelada.

— Já se sente doente há muito? — perguntou de seu lugar Iliá Pietróvitch, que também folheava papéis. Como os outros, aproximara-se de Raskólnikov quando ele desmaiou, mas, vendo que o rapaz recuperava os sentidos, voltou imediatamente a seu lugar.

— Desde ontem — murmurou Raskólnikov.

— Mas ontem saiu de casa?

— Saí.

— E já estava doente?

— Sim.

— E a que horas saiu?

— Entre as sete e as oito da noite.

— E aonde foi?

— Para a rua.

Branco como cal, Raskólnikov respondeu a todas as perguntas em tom breve; seus olhos negros e profundos não baixaram ante o olhar de Iliá Pietróvitch.

— Vês que ele mal pode ter-se de pé — interveio Nikodim Fomitch — e...

— Não há dúvida! — respondeu em tom enigmático Petróvitch.

O comissário de polícia quis ainda dizer alguma coisa, mas reparou que o chefe de repartição não desviava os olhos dele e calou-se. Emudeceram todos subitamente, o que não deixou de ser notado.

— Está bem, não queremos detê-lo — disse por fim Iliá Pietróvitch.

Raskólnikov dirigiu-se à porta; mas ainda não tinha saído da sala quando a conversa se travou de novo, muito animada, entre os três funcionários policiais. Dominando as outras vozes, a de Nikodim Fomitch formulava perguntas. Na rua, Raskólnikov sentiu-se inteiramente senhor de si.

“Eles vão proceder imediatamente a uma busca!”, monologou, dirigindo-se precipitadamente para casa; “os malandros desconfiam!”. O terror que momentos antes experimentara dominava-o agora completamente.


Capítulo II

E se eles me antecedessem! Se eu os encontrasse ao chegar em casa?”

Está enfim no quarto. Tudo está em ordem; não veio ninguém. Nem a própria Nastácia tocou em coisa alguma. Mas, Senhor!, como pôde ele deixar tudo aquilo em tal esconderijo?

Correu ao canto, e, enfiando a mão pelo buraco, tirou os estojos, ao todo oito. Havia duas caixas que continham brincos ou coisa parecida — ele não dera atenção a isso —, quatro estojos de marroquim, uma corrente de relógio embrulhada num pedaço de jornal e, também entre papéis, outro objeto que parecia uma condecoração...

Raskólnikov meteu aquilo nos bolsos, diligenciando acomodar tudo sem fazer grande volume. Guardou também a bolsa e saiu do quarto, deixando a porta aberta.

Caminhava rapidamente e com passo firme; conquanto estivesse muito fraco não lhe faltava presença de espírito. Receava que o perseguissem, que, em meia hora, em um quarto de hora talvez, procedessem a um inquérito sobre sua pessoa; era, portanto, necessário fazer desaparecer o roubo enquanto lhe restava alguma força e energia... Masa onde iria?

“Atiro tudo ao canal, e o caso morre afogado!”

Assim decidira na noite anterior, quando delirava, sentindo o desejo de se levantar e de ir a toda a pressa atirar aquilo fora. Mas não era fácil a execução desse projeto.

Durante mais de meia hora passeou de um para outro lado no cais do canal Catarina; ao passo que as ia encontrando, examinava as várias escadas que desciam para a água. Mas o azar opunha sempre algum obstáculo à realização do seu intento. Agora, eram lavadeiras, logo seriam barcas ali ancoradas. Depois, o cais enxameava de gente que não deixaria de reparar num ato fora do comum; não era possível, sem erguer suspeitas, descer até a linha d’água e atirar um objeto ao canal. E se, como era natural, os estojos flutuassem em vez de desaparecerem na água? Toda a gente notaria isso. Raskólnikov já se julgava alvo de todas as atenções; parecia-lhe que todos o observavam.

Pensou por fim em ir lançar o embrulho no Neva. Aí efetivamente havia menos gente no cais, corria menor risco de ser notado e, circunstância importante, estaria mais afastado de seu bairro. “Mas”, perguntou ele repentinamente a si próprio, “para que andava eu há mais de meia hora de um lado para outro, em lugares que não me garantem a menor segurança? As objeções que se apresentam agora em meu espírito, não as poderia eu ter feito há mais tempo? Se perdi meia hora a preparar um projeto insensato, é simplesmente porque tomei tal resolução num momento de delírio!”. Tornara-se excessivamente distraído e esquecido, e não ignorava essa circunstância. Decididamente era necessário agir rápido!

E partiu a caminho do Neva, pela avenida de V***, mas, no caminho, teve de repente outra ideia. “Para que hei de ir ao Neva? Para que hei de atirar isso ao rio? Não seria preferível ir a outra parte, bastante longe, a uma ilha?... Aí sim, poderia procurar um lugar deserto, uma floresta, e enterrar tudo junto de uma árvore, na qual repararia atentamente para mais tarde a reconhecer.” Embora se sentisse incapaz de tomar naquele momento uma decisão razoável, a ideia pareceu-lhe prática, e resolveu pô-la em execução.

Mas o acaso foi resolvido por outra forma. Quando ele desembocava da avenida V*** para a praça, reparou num pátio rodeado de altos muros, inteiramente coberto de fuligem. Ao fundo, havia um alpendre, que, evidentemente, era dependência de uma oficina qualquer; certamente havia ali uma marcenaria ou correaria.

Não vendo ninguém no pátio, entrou, e, depois de ter olhado em redor, pensou que em parte alguma se lhe oferecia melhor ensejo para a realização de seu plano. Junto ao muro, ou antes, ao tapume de madeira que separava o pátio da rua, à esquerda da porta, estava encostada uma pedra de umas sessenta libras de peso. Para lá do tapume era o passeio. Raskólnikov ouvia os passos dos transeuntes, quase sempre numerosos neste lugar, mas da rua ninguém podia vê-lo; para isso seria necessário entrar no pátio.

Inclinou-se sobre a pedra, agarrou-a e, puxando-a contra si, conseguiu voltá-la. O terreno, no lugar em que ela estava colocada, fazia uma pequena depressão; atirou imediatamente para lá tudo quanto trazia nos bolsos. A bolsa ficou sobre as joias. Em seguida, removeu a pedra para o lugar onde dantes estava, parecendo agora um pouco mais elevada. Com o pé, cobriu a base com terra. Nada podia notar-se.

Então saiu e dirigiu-se para a praça. Como horas antes, no comissariado, sentiu-se, durante um momento, invadido por uma alegria doida. “Pronto! Desapareceu o corpo de delito! Quem se há de lembrar de ir procurá-lo debaixo da pedra? Talvez ela esteja ali desde a construção da casa ao lado, e, quem sabe, por quanto tempo lá estará! E, quando venham a descobrir o que está sob esse bloco, quem poderá adivinhar o intuito de quem ali pôs aquilo? Está tudo acabado. Não há provas!” E pôs-se a rir. Sim, lembrou-se mais tarde que atravessara a praça a rir, com um riso nervoso e insistente. Mas quando chegou à avenida K***, onde encontrara a moça embriagada, essa hilaridade cessou repentinamente. Outras ideias lhe ocorreram. Repugnava-lhe passar pelo local, onde, após a moça se ter retirado, se sentara e havia pensado que também seria odioso enfrentar o policial de suíças a quem dera vinte copeques. Diabos o levem! Olhando em torno, perplexo e aborrecido, foi embora.

Todos os seus pensamentos giravam agora em torno de um ponto culminante cuja grande importância confessava a si próprio; e reconhecia que, pela primeira vez havia dois meses, se achava em face desse problema.

“Que o diabo carregue tudo isso”, pensou ele num repentino acesso de mau humor. “Vamos, a taça está cheia, é necessário bebê-la; que martírio de vida! Como isso é estúpido. Senhor! Quantas mentiras tenho dito, quantas baixezas tenho cometido hoje... A que miserável servilismo eu tive de rebaixar-me há pouco para conseguir a benevolência desse pobre Iliá Pietróvitch! Mas afinal que importa isso? Rio-me de todos eles e das covardias que porventura pratiquei. Não é nada disso o que importa...”

De repente estacou, preocupado, aturdido com um novo pensamento tão inesperado como simples:

“Se, na realidade, te conduziste em tudo isso como um indivíduo esperto e não como um imbecil, se tinhas um objetivo perfeitamente meditado, como explicar o fato de não teres verificado o conteúdo da bolsa? Como podes ainda ignorar quanto te advém do ato em cujo risco e em cuja ignomínia não receaste incorrer? Não ias há pouco atirar à água a bolsa e as joias, em que mal lançaste os olhos?... Que dizer a isso?...”

Sim! Tudo isso é verdadeiro. No entanto, já o sabia antes e não era uma nova dúvida para ele ter-se decidido à noite sem hesitação, como teria de ser, embora não pudesse ser de outro modo. Sim! De tudo soubera e compreendera. Certamente decidira-se ontem, no momento em que se curvara sobre o cofre e tirara os estojos de joias. Assim sucedera. “Tudo isso sucedera por eu estar muito doente”, disse horrorizado. “Tenho-me atormentado e não sei o que faço. Ontem e anteontem, tenho-me atormentado e devo voltar a ter saúde, sem me aborrecer. Mas que será, se não ficar bom? Meu Deus, como estou doente!”

Precisava urgentemente de uma distração, mas não sabia o que fazer, não sabia como encontrá-la. Nova sensação terrível o dominava progressivamente. Era uma repulsa física para tudo que o cercava, um obstinado e maligno sentimento de ódio; todos com quem se encontrava, tornavam-se-lhe repugnantes. Odiava-lhes os rostos, os gestos. Se alguém lhe falasse, sentia que lhe cuspiria na cara ou o morderia.

Chegando ao cais do Pequeno Neva, em Vassíli Ostrof, parou junto da ponte. “É aqui, é nesta casa que ele mora”, pensou. “Que quer dizer isso? Parece que as pernas me trouxeram por conta própria à casa de Razumíkhin. É o caso do outro dia... Eu caminhava sem destino e o acaso conduziu-me aqui! Dizia eu... anteontem... que havia de ir vê-lo depois daquilo, no dia imediato. Pois bem, vou vê-lo! Já não poderei fazer uma visita?...”

Subiu ao quinto andar, onde seu amigo habitava.

Razumíkhin estava escrevendo no quarto e foi ele mesmo quem veio abrir. Havia quatro meses que os dois não se viam. Com o cabelo desgrenhado, vestindo um roupão esfarrapado, os pés sem meias enfiados numas velhas chinelas, Razumíkhin não estava lavado nem barbeado. Na fisionomia, lia-se-lhe o espanto que a visita causava.

— Ah, és tu!? — exclamou, examinando dos pés à cabeça o recém-chegado. E pôs-se a assobiar. — Pois será possível que os negócios corram tão mal? O caso é que me excedes em elegância — continuou ele depois de ter inspecionado novamente os andrajos do amigo. — Senta-te, estás cansado! — E quando Raskólnikov se deixou cair no divã turco forrado de oleado, ainda mais miserável do que o dele, Razumíkhin notou que ele sofria.

— Tu estás gravemente doente, sabes?

Quis tomar-lhe o pulso, mas ele retirou rapidamente o braço.

— Não te incomodes — disse —, vim... eu te digo por quê: não tenho lições... e queria... mas afinal eu não preciso de lições para nada...

— Sabes o que mais? Tu estás doido! — respondeu Razumíkhin, que observava atentamente o amigo...

— Não! Não estou doido — disse levantando-se. Ao subir à casa de Razumíkhin, não pensou que ia encontrar-se frente a frente com seu antigo condiscípulo. Ora, naquele momento, uma entrevista, fosse com quem fosse, era o que mais lhe repugnava. Quase sufocado de desespero contra si próprio, dirigiu-se para a porta.

— Adeus! — disse bruscamente.

— Vem cá, homem! Sempre me saíste um pateta!

— Não insistas!... — disse, puxando a mão que o amigo segurava.

— Então para que diabo vieste cá? Estás doido? Mas não vês que isso é ofensivo? Não te deixo sair assim...

— Pois está bem... ouve lá... vim procurar-te porque só tu me podes auxiliar... a principiar... porque tu és melhor do que os outros... quero dizer, mais inteligente... podes julgar... Mas vejo agora que não preciso de coisa alguma... Não preciso nem de favores nem da simpatia de ninguém!... Eu me arranjarei... Deixa-me em paz!

— Mas espera um momento, limpa-chaminés! Estás completamente maluco! Por mais que me digas, não me convences do contrário, eu também não tenho lições. Mas não ligo para isso. Tenho um editor, Keruvimof, que, no gênero, é uma lição viva. Não o trocaria por cinco lições em casas de ricaços! O homem publica uns folhetos de ciências naturais que se vendem como pão! O caso está em achar-lhes os títulos. Tu dizias frequentemente que eu era estúpido; pois então fica sabendo que há muitos piores do que eu! Meu editor, que não sabe ler, está no auge da fama; eu, está claro, vou animando-o. Aqui, estão, por exemplo, estas duas folhas e meia de texto alemão, que, no meu entender, são do mais cretino charlatanismo; o autor trata esta momentosa questão: “A mulher é um ser humano?” Como é natural, sustenta a afirmativa e demonstra-a com ar de triunfo. Estou traduzindo esse opúsculo para Keruvimof, que o considera de atualidade, neste momento em que tanto se debate o feminismo. Com estas duas folhas e meia do original alemão, vamos nós fazer seis; pomos-lhe um título de efeito que ocupe meia página e venderemos o volume a cinquenta copeques. Vai ter um êxito colossal! Pagam-me a tradução a seis rublos por folha, ou seja, ao todo, 15 rublos, dos quais já me adiantaram seis... Quando terminar isso, iniciarei uma tradução sobre baleias e alguns dos mais insípidos escândalos de Les Confessions, da segunda parte que marcamos para traduzir. Alguém disse a Keruvimof que Rousseau é uma espécie de Radischef. E eu não o contraditarei. Que ele se enforque! Queres traduzir a segunda folha? Se queres, leva o original, penas e papel — tudo por conta do Estado — e consente que te adiante três rublos. Como recebi seis adiantados pelas primeiras duas folhas, tens a receber três e outro tanto quando acabares o trabalho. Não vás agora pensar que me ficas devendo um grande favor. Pelo contrário, logo que entraste, pensei nisso; que me ias ser útil, pois, em primeiro lugar, meu forte não é a ortografia, e, depois, porque conheço o alemão pessimamente, de sorte que, num grande número de casos, invento em vez de traduzir, alegro-me com a ideia que acrescento algumas belezas ao texto, mas talvez me iluda. Então, que dizes, aceitas?

Raskólnikov pegou silenciosamente as folhas da brochura e os três rublos; depois saiu sem proferir uma só palavra. Razumíkhin seguiu-o com um olhar de espanto. Mas quando ia dobrar a primeira esquina, Raskólnikov retrocedeu precipitadamente e tornou a subir à casa do amigo. Colocou na mesa a brochura e os três rublos e tornou a sair sem dizer palavra.

— Mas isso é de doido! — gritou Razumíkhin exasperado. — Que história é esta? Até me fazes perder a calma! Para que diabo vieste então aqui?

— Não preciso de traduções... — murmurou ele descendo a escada.

— Dize-me, onde moras?

A pergunta ficou sem resposta.

— Bem, vá para o diabo!

Mas Raskólnikov já estava na rua. Na ponte de Nikolaiévski, retornou à consciência de seus atos, devido a um incidente desagradável. Um cocheiro, após lhe ter gritado duas vezes, deu-lhe uma chicotada por tê-lo quase feito cair sob as patas dos cavalos. A chicotada enfureceu-o tanto que se jogou contra a balaustrada (por uma razão que não sabia, andara no meio do tráfego, pelo centro da ponte) e trincou os dentes com raiva ao ouvir o escárnio dos transeuntes.

— Bata-lhe com força!

— Acho que é punguista!

— Na certa, imita estar bêbado para ficar sob as rodas da carruagem e assim ter quem se responsabilize por ele.

— É contumaz... isso ele é!

Enquanto estava parado na balaustrada, olhando com raiva e susto a carruagem que retrocedia e esfregando a espádua dolorida, sentiu alguém lhe pôr dinheiro na mão. Era uma senhora idosa, de lenço na cabeça e sapatos de couro de cabra, com uma criança, provavelmente sua filha, de chapéus e guarda-sol verde.

— Guarde-o, em nome de Cristo!

Raskólnikov guardou-o, e elas prosseguiram. Era uma moeda de vinte copeques. Por seus andrajos, deviam tomá-lo por um mendigo a esmolar e a dádiva de vinte copeques era devida à chicotada, o que as entristecera. Fechou a mão sobre a moeda; andou dez passos e retrocedeu, tendo o Neva e o palácio pela frente. No céu não havia nuvem alguma, e a água do rio estava azul-celeste, coisa rara no Neva. A cúpula da catedral, melhor vista da ponte a vinte passos da capela, resplandecia à luz do sol e, no ar puro, cada um de seus ornamentos podia ser claramente distinguido. A dor da chicotada se esvanecera, e Raskólnikov já esquecera o fato. Uma inquietude, uma indefinida ideia ocupou-o completamente; parou e ficou olhando detidamente a distância. Tal lugar era-lhe familiar; quando cursava a Faculdade, parara ali centenas de vezes ao voltar para casa, e quase sempre se maravilhava com a vaga e misteriosa emoção a que era induzido por tal espetáculo. Desta vez, ficou estranhamente indiferente; este exuberante espetáculo para ele era vazio e sem vida. Cada vez que refletia, ele se surpreendia com essa sombria e enigmática impressão e, não confiando em si mesmo, procurava achar uma explicação para o fato. Rememorando vividamente todas as antigas dúvidas e perplexidades, parecia-lhe não ser simples acaso relembrá-las agora. Achou estranho e grotesco que tivesse habitualmente se demorado em tal lugar; embora, de fato, tivesse pensado as mesmas coisas, interessando-se pelas mesmas teorias e panoramas há tão pouco tempo. Esta diferença quase o divertiu, embora, também, lhe dilacerasse o coração. Do íntimo, bem escondido, tudo lhe aparecia agora... seu antigo passado, seus antigos problemas e teorias, suas antigas impressões, este panorama, ele próprio, e tudo... tudo... Sentia que voava e que tudo lhe fugia da visão. Tentando um movimento inconsciente com a mão, de súbito teve consciência da moeda no punho cerrado. Abriu-o, olhou esgazeado para a moeda e, flexionando o braço, lançou-a na água; então, voltou para casa. Parecia-lhe ter-se separado de tudo e de todos com aquele gesto.

Anoitecia quando chegou a casa; portanto devia ter perambulado cerca de seis horas, sem saber por onde voltara. Tremendo dos pés à cabeça, como um cavalo estafado, despiu-se, estendeu-se no divã e, depois de se ter embrulhado no capote, adormeceu profundamente.

Era já noite alta quando um grande barulho o despertou. Que cena medonha se estava passando, Senhor! Eram gritos, gemidos, ranger de dentes, vociferações, como ele nunca ouvira. Aterrado, sentou-se no divã; de instante a instante, seu terror aumentava, porque cada vez lhe chegavam mais distintamente aos ouvidos o som das pancadas, as lamentações e as vociferações. De súbito, com grande surpresa, reconheceu a voz da hospedeira.

A pobre mulher gemia, suplicava, aflitíssima. Era impossível distinguir o que ela dizia, mas decerto pedia que não lhe batessem mais, porque evidentemente estavam a espancá-la na escada. Quem assim a maltratava, vociferava com voz rouca, alterada pela cólera, de forma que suas palavras eram também ininteligíveis. Raskólnikov tremia como vara verde; reconhecera essa voz; era a de Iliá Pietróvitch. “Iliá Pietróvitch está batendo na senhoria! Dá-lhe pontapés, bate-lhe com a cabeça nos degraus... É claro que não me engano... O ruído, os gritos da vítima, tudo indica que se trata de pancadaria. O que será isso?”

Os inquilinos dos diversos andares corriam para a escada; ouviam-se vozes, exclamações; subiam, desciam, empurravam fortemente as portas ou fechavam-nas com estrondo. “Mas por que foi tudo isso? Como é isso possível?”, repetia ele, começando a acreditar que a loucura se apoderava de seu cérebro. Mas qual! Ele distinguia nitidamente os ruídos!... “Mas então, vêm a meu quarto, porque... tudo isso, naturalmente, é por causa da história... Meu Deus!...” Quis correr o fecho da porta, mas não teve forças para erguer o braço... Aliás, sabia bem que essa preocupação de nada lhe serviria! O terror gelava-lhe a alma...

O rumor durou uns dez minutos, cessando pouco a pouco. A dona da casa gemia. Iliá Pietróvitch continuava os insultos e as ameaças... Por fim também se calou. “Ter-se-ia ido embora? Meu Deus!... Sim, lá se vai também a patroa, sempre chorando e gemendo... Com que ruído fecha a porta do quarto... Os inquilinos recolhem-se, com exclamações de espanto, ora gritos, ora em voz baixa. Devia ser muita gente; pois acudiram todos, ou quase todos, os inquilinos! Oh, meu Deus, será possível? Mas por que viria ele aqui?”

Raskólnikov caiu exausto no divã, mas não pôde adormecer; durante meia hora foi dominado por um terror estranho. Repentinamente, uma luz brilhante iluminou o quarto. Era a Nastácia que estava com uma vela e um prato de sopa. A rapariga olhou para ele atentamente, e, convencida de que não dormia, colocou o castiçal na mesa, bem como o mais que trouxera: pão, sal, um prato e uma colher.

— Parece-me que não comes desde ontem. Aí ficaste todo o dia a arder em febre.

— Oh, Nastácia... por que bateram na patroa?

Ela fitou-o demoradamente.

— Quem foi que bateu nela?

— Há pouco... talvez há meia hora, Iliá Pietróvitch, o adjunto do comissário de polícia, deu-lhe uma grande surra, ali na escada... Por que a espancaria assim? E que veio ele fazer aqui?

Nastácia franziu o sobrolho sem dizer palavras e examinou atentamente o hóspede. Esse olhar penetrante embaraçou-o.

— Por que não respondes, Nastácia? — perguntou finalmente com voz débil.

— É o sangue — murmurou ela como se pensasse em voz alta.

— O sangue!... Que sangue?... — balbuciou Raskólnikov, empalidecendo e recuando até a parede.

Nastácia continuava a observá-lo silenciosamente.

— Ninguém bateu na patroa — disse afinal em tom seco.

Ródion olhou para ela, respirando com dificuldade.

— Eu ouvi perfeitamente... não dormia... estava sentado no divã — disse timidamente. Escutei durante muito tempo. Veio o ajudante do comissário de polícia... Os inquilinos correram todos à escada...

— Não veio ninguém... Isso tudo é do sangue a ferver. Quando não encontra saída, coagula e vem o delírio... Queres comer?

Ele não respondia. Nastácia continuava a observá-lo.

— Tenho sede, Nastáciuchka.

A rapariga saiu e voltou depois com uma vasilha de barro cheia de água... Mas aí paravam as recordações de Raskólnikov. Lembrava-se apenas de ter bebido água. Em seguida, perdera os sentidos.


Capítulo III

Todavia, enquanto durou a doença, Raskólnikov não esteve completamente privado da razão: estava como que num estado febril delirante, numa semi-inconsciência. Mais tarde, recordou-se de muitas coisas. Umas vezes julgava ver em redor de si indivíduos que o queriam levar, discutindo vivamente a seu respeito. Outras vezes via-se só no quarto: toda a gente se havia retirado com medo dele; apenas, de vez em quando, entreabriam a porta para o vigiar; ameaçavam-no, cochichavam, riam e encolerizavam-no. Percebeu muitas vezes Nastácia à sua cabeceira; via também um homem que certamente conhecia bem, mas quem era ele? Não conseguia ligar o nome à pessoa e isso torturava-o até as lágrimas.

Por vezes, afigurava-se-lhe que havia já um mês que estava de cama; noutros momentos, parecia-lhe que todos os incidentes de sua doença tinham sucedido num único dia. Mas aquilo, aquilo, ele não lembrava absolutamente; no entanto, a cada momento pensava que se esquecera de alguma coisa de que devia lembrar-se, e afligia-se, fazia esforços de memória, ficava furioso ou possuído de um terror indescritível por não se recordar. Por fim, erguia-se na cama, queria fugir, mas sempre alguém o retinha com pulso forte. Essas crises deixavam-no numa prostração enorme e terminavam sempre por um desmaio. Finalmente recuperou por completo o uso da razão.

Seriam dez horas da manhã. Quando o tempo estava bom, o sol entrava àquela hora no quarto, projetando uma larga faixa de luz na parede do lado direito que se estendia até o canto, junto à porta. Nastácia estava junto ao leito com um homem que ele não conhecia e que o observava com curiosidade. Era um rapaz quase imberbe, vestindo blusa como a dos operários. Pela porta entreaberta, a dona da casa espreitava. Raskólnikov ergueu-se um pouco.

— Quem é, Nastácia? — perguntou ele apontando o desconhecido.

— Veja, voltou a si! — exclamou a criada.

— Já voltou a si! — repetiu o desconhecido. — A essas palavras a hospedeira fechou a porta e desapareceu. À sua timidez desagradavam as explicações. Essa mulher, que teria quarenta anos, tinha olhos negros, era muito gorda e de aparência agradável. Bondosa, como em geral são as pessoas adiposas e indolentes, era extremamente tímida.

— Quem é o senhor? — continuou Raskólnikov a perguntar, dirigindo-se ao desconhecido. Mas nesse momento a porta abriu-se novamente e entrou Razumíkhin curvando-se um pouco por causa de sua elevada estatura.

— Que droga! — exclamou ele, bato sempre com a cabeça no teto; e chamam a isto um quarto? Então, meu amigo, já voltaste a si, segundo me disse agora Pachenka?

— Agora mesmo recuperou os sentidos — disse Nastácia.

— Só agora recuperou de todo os sentidos — repetiu como um eco o desconhecido, sorrindo.

— Mas quem é o senhor? — perguntou asperamente Razumíkhin. — Eu me chamo Vrazumikine; não Razumíkhin, como sou chamado habitualmente, mas Vrazumikine, sou estudante, filho de um fidalgo, e este senhor é meu amigo. Agora fará o favor de apresentar-se.

— Sou empregado no estabelecimento de Cheloparef e venho aqui tratar de um negócio.

— Sente-se nessa cadeira — disse Razumíkhin sentando-se do outro lado da mesa. — Meu amigo, fizeste bem em voltar a si, continuou o estudante dirigindo-se a Raskólnikov. Há quatro dias que quase não comes nem bebes. Tomavas apenas um pouco de chá. Trouxe-te duas vezes o Zózimov! Lembras-te de Zózimov? Examinou-te minuciosamente e disse que isso não era nada. A tua doença, segundo ele, era apenas um esgotamento nervoso, resultado da má alimentação, mas sem consequências. É um tipo interessante o Zózimov! Já clinica por sua conta... Mas não quero tomar-lhe o tempo — disse Razumíkhin voltando-se para o empregado de Cheloparef. — Queira expor o motivo de sua visita. Nota, Ródia, que é a segunda vez que o patrão dele manda alguém aqui. Mas da primeira vez não foi este. Quem foi que veio antes do senhor?

— Refere-se talvez ao Aléxei Semênovitch, também empregado da casa.

— Tem a língua mais desembaraçada do que o senhor, não acha?

— Sim, ele é mais apresentável.

— Modéstia digna de elogio! Queira ter a bondade de continuar.

— O caso é este — começou o jovem dirigindo-se a Raskólnikov: — A pedido de sua mãe, Afanase Ivânovitch Vakrúchine, de quem certamente já ouviu falar, enviou-lhe uma quantia, que nossa casa foi encarregada de lhe entregar. Se está em seu juízo, queira passar o recibo desses 35 rublos, que, a pedido de sua mãe, Sêmen Semênovitch recebeu de Afanase Ivânovitch, para lhe serem entregues. Certamente teve aviso da remessa desse dinheiro.

— Sim... Tenho ideia... Vakrúchine... — balbuciou Raskólnikov com ar pensativo.

— Está ouvindo... ele conhece Vakrúchine. Está em perfeitas condições mentais. E vejo que o senhor também é inteligente. É sempre agradável ouvir a voz da sabedoria.

— Essa é a pessoa, Afanase Ivânovitch Vakrúchine. A pedido de sua mãe, remeteu-lhe algum dinheiro por intermédio de Sêmen Semênovitch e instruções, há alguns dias, para lhe entregar 35 rublos a fim de suavizar suas condições.

— Este “suavizar suas condições” é a melhor coisa que o senhor disse, embora “sua mãe” não seja tão ruim assim. Pois bem, que tem a dizer? Ele está em seu juízo!

— Tudo estará certo se puder assinar um pequeno documento.

— Ele vai assinar. Traz o livro? — disse Razumíkhin.

— Sim, senhor. Aqui está.

— Dê-me. Vamos lá, Ródia, faze um pequeno esforço; vê se te podes sentar, eu ajudo-te... Toma a pena... Anda, assina, meu amigo, e lembra-te que atualmente dinheiro é o mel da humanidade.

— Não preciso dele — disse Raskólnikov afastando a pena.

— Como assim?

— Não assino!

— Mas é preciso que passes o recibo!

— Não tenho necessidade... de dinheiro...

— Não tens necessidade de dinheiro!... Quanto a isso, meu caro amigo, faltas à verdade. Sou testemunha! Não se preocupe, senhor, ele não sabe o que está dizendo... regressou novamente ao país dos sonhos. Isso também lhe sucede no estado normal. O senhor, que é um homem de juízo, vai-me ajudar a ampará-lo e ele há de assinar. Vamos, ajude-me.

— Mas eu volto depois.

— Não, não, por que se há de incomodar?... Vamos, Ródia, não demores este senhor... bem vês que ele está esperando... — E Razumíkhin procurava guiar a mão de Raskólnikov.

— Deixa, eu não preciso de auxílio para isso... — respondeu o doente. E, tomando a pena, assinou.

O empregado de Cheloparef deu o dinheiro e retirou-se.

— Muito bem! E agora, queres tomar alguma coisa?

— Quero — respondeu Raskólnikov.

— Haverá sopa?

— Há um resto de ontem — respondeu Nastácia.

— Com arroz e batatas?

— Sim.

— Bem. Vá buscar a sopa e traz também chá.

Raskólnikov olhava surpreso para todos e para tudo com um ar aterrado e imbecil. Decidiu calar-se e esperar o que desse e viesse. “Creio que já não deliro”, pensou ele, “tudo isso me parece real”.

Dez minutos depois, Nastácia voltou com a sopa e a promessa de que o chá não tardava. Trazia duas colheres, dois pratos, sal, pimenta, mostarda para a carne etc. Havia muito que aquela mesa não era posta com tanta abundância. Até a toalha era limpa.

— Nastáciuchka — disse Razumíkhin —, Prascóvia Pavlovna faria muito bem se nos mandasse duas garrafas de cerveja.

— Não queres que lhe falte coisa alguma — resmungou a criada. E saiu.

O doente continuava a observar tudo com inquietação. Entretanto, Razumíkhin sentara-se no divã junto dele. Com a ternura de um irmão amparava com o braço esquerdo a cabeça do amigo, que não precisava desse apoio, ao passo que com a mão direita lhe chegava aos lábios uma colher de sopa, tendo o cuidado de a esfriar soprando-a várias vezes, para que o doente não se queimasse ao sorvê-la. E, no entanto, a sopa estava quase fria. Raskólnikov tomara avidamente três colheradas, quando Razumíkhin interrompeu-o, declarando que não lhe dava mais sem consultar Zózimov.

Nastácia entrou trazendo as duas garrafas de cerveja.

— Queres chá?

— Quero.

— Vá buscar o chá num logo, Nastácia, porque quanto a esta bebida, creio que podemos dispensar o consentimento da faculdade.

— Aqui está a cerveja!

Tornou a sentar-se, puxou o prato de sopa e a carne e pôs-se a jantar com tanto apetite, como se há dias não comesse.

— Agora, amigo Ródia, janto todos os dias em tua casa — disse ele com a boca cheia. — É a Pachenka, a tua amável senhoria, quem me trata desta maneira. Tem por mim grande consideração. Eu não me oponho, está claro. É desembaraçada a pequena! Queres cerveja, Nastáciuchka?

— Estás caçoando de mim?

— Mas chazinho queres, hein?

— Chá, sim... quero.

— Serve-te. Não, espera, eu mesmo vou te servir. Senta-te.

E, levando a sério seu papel de anfitrião, encheu duas xícaras, depois do que saiu da mesa e voltou a sentar-se no divã. Como momentos antes, foi com as maiores atenções que Razumíkhin deu chá a Raskólnikov. Este consentia tudo sem dizer palavra, embora sentisse que podia estar perfeitamente sentado sem que ninguém o amparasse, segurar a xícara e talvez mesmo andar. Mas, com um maquiavelismo quase instintivo, lembrou-se de aparentar uma grande prostração, de simular mesmo certa falta de inteligência, conservando sempre os olhos atentos e os ouvidos apurados. Mas a repugnância foi superior à sua resolução; depois de ter tomado algumas colheradas de chá, voltou a cabeça com um movimento brusco, afastou a colher e deixou-se cair sobre o travesseiro. Essa palavra não era agora uma figura de retórica. Raskólnikov tinha um bom travesseiro de penas, com fronha limpa; ao notar essa circunstância, não deixara de se impressionar.

— É preciso que Pachenka nos mande ainda hoje o xarope de framboesas para fazermos o refresco para Ródia — disse Razumíkhin, voltando ao seu lugar e continuando o jantar interrompido.

— Onde vai ela buscar o xarope? — perguntou Nastácia, que bebia o chá pelo pires pousado na palma da mão.

— Ora, minha amiga, que o mande comprar. Sabes, Ródia, deu-se aqui um fato de que não tens conhecimento. Quando fugiste de minha casa como um ladrão, sem me dizer onde moravas, fiquei tão zangado que decidi procurar-te para me vingar de forma solene. Nesse dia, procedi a indagações. O que eu andei, o que eu perguntei! Tinha-me esquecido de teu endereço pela melhor das razões: porque nunca o soube. Quanto a teu antigo alojamento, lembrava-me que era nos Cinco Cantos, no prédio Karlamof. Vou nessa pista, descubro a casa Karlamof, que afinal não é Karlamof, mas sim casa Buk. Eis aqui como a gente confunde às vezes os nomes próprios! Resolvi no dia seguinte ir à repartição do registro de moradas sem nenhuma esperança no bom resultado da tentativa. Pois, meu caro, em dois minutos informaram-me de tua residência. Estás lá inscrito!

— Meu nome!

— Sim; e não souberam indicar a residência do general Kobelef a alguém que a pedia! Em resumo, logo que aqui cheguei, puseram-me a par de quanto te diz respeito. Sei tudo. A Nastácia te contará isso depois. Travei relações com o Nikodim Fomitch, apresentaram-me o Iliá Pietróvitch, o dvornik, Alexandre Gregoriévitch Zametov, chefe de repartição, e, finalmente, Pachenka. Esta foi o bouquet final, a Nastácia que te diga...

— Enfeitiçaste-a — disse a rapariga com um sorriso malicioso.

— Por que não puseste açúcar no chá, Nastácia Nikiforovna?

— És o maior! — respondeu Nastácia com uma casquinada. — Não sou Nikiforovna, mas Petrovna — acrescentou logo, ficando séria.

— Tomarei nota disso! Para encurtar a história... tomei a meu cargo fazer uma verdadeira revolução neste lugar para erradicar todas as influências malignas, mas Pachenka venceu a primeira batalha. Não esperava encontrá-la tão... prepotente. Que pensas disso?

Raskólnikov nada respondeu, mantendo os olhos fixos no amigo, cheios de alarme.

— Tudo isso, pelo mesmo, poderia ser desejado, prosseguiu Razumíkhin, sem se embaraçar com o silêncio.

— Que sujeito manhoso! — disse Nastácia, a quem a conversa deixava num contentamento indescritível.

— O teu grande mal, meu amigo, foi não saber levá-la no princípio. Não devias proceder com ela como procedeste. O caráter dessa mulher é muito original! Mas, depois, falaremos de seu caráter... O que fizeste, por exemplo, para que ela te suspendesse as refeições? E a letra? Estavas maluco quando assinaste tal documento. E o projeto de casamento quando Natália Jegorovna, a filha, era viva!... Sei tudo! Mas vejo que te estou magoando e sou uma besta; perdoa-me. A propósito de besta, não és de opinião que Prascóvia Pavlovna não é tão tola como poderia supor-se à primeira vista?

— Não... — balbuciou Raskólnikov, desviando o olhar, sem refletir que mais conveniente lhe seria sustentar a conversação.

— Não é verdade? — continuou Razumíkhin. — Mas também não se pode dizer que seja inteligente. É uma criatura única! O que te asseguro é que não a compreendo... Vai fazer quarenta anos, mas diz que tem 36 e pode fazê-lo sem correr risco de passar por mentirosa. Aliás, juro-te que não posso avaliá-la senão intelectualmente, porque nossas relações são as mais singulares que se possam imaginar! Não entendo isso. Mas vamos ao que importa. Ela viu que tu tinhas abandonado a universidade, que não lecionavas, que não tinhas roupa; por outro lado, depois da morte da filha, não havia razão para seres considerado como pessoa da família. Em vista disso, teve receio. Tu, por teu lado, em vez de manteres com ela as antigas relações, vivias metido em teu buraco. Aí está por que ela te quis pôr na rua. Havia muito que pensava nisso; mas como tinhas assinado a letra e lhe asseguravas que tua mãe pagaria...

— Procedi indignamente, dizendo isso... Minha mãe vive também quase na miséria. Menti para me garantir por mais tempo o alimento e este abrigo... — disse Raskólnikov em voz clara e vibrante.

— Sim, tinhas razão procedendo assim. O que estragou tudo foi a intervenção do Tchebarof. Se não fosse ele, a Pachenka não teria ido tão longe; é demasiadamente tímida para isso. Mas o Tchebarof não é tímido, e naturalmente foi quem pôs as coisas nesse pé. O homem tem com que pagar? Tem, porque a mãe, embora tenha somente uma pensão de 120 rublos, se privaria de comer para salvar seu Ródia de uma dificuldade, e a irmã, que por ele seria capaz de se vender como uma escrava. Foi daqui que o sr. Tchebarof partiu... Por que te afliges?.... Compreendo bem teu pensamento. Não fazias mal em desabafar no seio de Pachenka, quando ela via em ti um futuro genro; mas ao passo que o homem sensível precisa de desabafar, o homem de negócios concentra-se em proveito próprio. Em resumo, ela endossou a letra em pagamento a esse Tchebarof, que não teve cerimônia em te exigir o reembolso. Logo que soube de toda essa história, quis, por descargo de consciência, tratar o Tchebarof pela eletricidade; entretanto, estabeleceram-se magníficas relações entre mim e Pachenka, e consegui sustar o processo, responsabilizando-me eu pela dívida. Percebes, meu amigo? Apresentei-me como teu fiador. O Tchebarof apareceu, tapamos-lhe a boca com dez rublos e ele entregou o papel que tenho a honra de te apresentar. Agora és apenas devedor sob palavra. Aqui o tens, toma...

Razumíkhin colocou o documento na mesa. Raskólnikov olhou-o e virou-se para a parede sem dizer uma palavra. Até Razumíkhin sentiu remorso.

— Sei, meu caro — disse momentos depois —, que não passo de um tolo. Pensei que te divertiria com minha palestra, mas só consegui contrariar-te.

— Era a ti que eu não conhecia no delírio? — perguntou Raskólnikov após um curto silêncio.

— Era; e até mesmo minha presença te causou crises, principalmente quando trouxe o Zametov.

— O Zametov?... O chefe de repartição da polícia?... Para que o trouxeste cá?...

Proferindo essas palavras, Raskólnikov mudou rapidamente de posição e agora encarava Razumíkhin.

— Que tens?... Por que te assustas?... Ele desejava ver-te, foi ele mesmo quem quis vir, porque tínhamos falado muito a teu respeito. Se não fosse ele, como saberia eu tantas coisas? É um excelente rapaz muito meu amigo e extraordinário... em seu gênero, já se vê. Agora somos amigos; vemo-nos todos os dias, porque mudei-me para este bairro. Ainda não sabias, é verdade! Mudei-me há pouco tempo. Já fui duas vezes com ele à casa de Luísa. Lembras-te da Luíza Ivánovna?

— Eu disse disparates quando delirava?

— Pois certamente. Não sabias o que dizias.

— Mas que disse eu?

— Ora, o que pode dizer um homem que delira... Agora é preciso não perdermos tempo. Pensemos no que interessa.

Levantou-se e pegou o boné.

— Mas que dizia eu?

— Tens muita vontade de o saber? Receias ter revelado algum segredo? Tranquiliza-te: não disseste uma única palavra sobre a condessa! Mas falaste muito num relógio, em brincos, em cadeias de relógio, na ilha de Krestóvski, num dvornik, em Nikodim Fomitch e no Iliá Pietróvitch. Preocupavas-te também muito com uma de tuas botinas: “Deem-me”, dizias, choramingando. O Zametov procurou-a por todos os cantos e trouxe-te esta porcaria, em que não teve nojo de pegar com suas brancas mãos, perfumadas e cheias de anéis. Então sossegaste, e durante 24 horas conservaste essa imundície entre as mãos: era impossível arrancá-la, deve estar ainda debaixo do cobertor. Pedias também as franjas de uma calça; e com que lágrimas! Desejava muito saber que valor tinham para ti as tais franjas, mas era impossível deduzir qualquer coisa da incoerência de tuas palavras... Mas falemos de coisas mais importantes. Estão aqui 35 rublos; levo dez, e daqui a duas horas dir-te-ei como os empreguei. Passarei pela casa de Zózimov; há muito que ele devia estar aqui; já passa das 12... Durante a minha ausência, Nastáciuchka, que nada falte a teu hóspede e traga-lhe algum refresco... Eu próprio vou fazer algumas recomendações a Pachenka. Até logo.

— Chama-lhe Pachenka! Oh, que bandido! — disse a criada quando ele voltou as costas; em seguida saiu e pôs-se a ouvir junto da porta; mas, não podendo conter-se, desceu apressadamente, inquieta por saber o que Razumíkhin dizia à patroa. Que Nastácia tinha uma verdadeira admiração pelo estudante, isso não oferecia a menor dúvida.

Mal ela fechou a porta, o doente afastou a roupa e saltou, como desvairado, da cama abaixo. Esperava com a maior impaciência o momento de se encontrar só, para se entregar à sua tarefa. Mas a que tarefa? Disso é que ele já não se lembrava. “Meu Deus! Permiti que eu saiba apenas uma coisa: já sabem tudo ou ainda ignoram? Talvez já saibam, mas dissimulam, por eu estar doente; esperam para desmascarar-me quando me virem restabelecido: então hão de dizer-me que havia muito sabem tudo... Que hei de fazer? Parece incrível: não me recordo e, ainda não há um minuto, eu pensava nisso!...”

Estava de pé, no meio do quarto, olhando em redor, perplexo. Aproximou-se da porta, abriu-a e aplicou o ouvido. Mas não era bem isso... Subitamente pareceu voltar-lhe a memória; correu ao canto, onde o forro estava roto, introduziu a mão no buraco e apalpou; mas também não era isso... Abriu o fogão e revolveu a cinza; as franjas e o forro das algibeiras das calças ainda ali estavam como quando lá os deixara. Era, pois, evidente que não tinham ido procurar no fogão!

Pensou então na botina de que Razumíkhin falara. Realmente estava no divã e debaixo do cobertor; mas depois do crime arranhara-se e enlameara-se tanto que, sem dúvida, Zametov nada teria percebido.

“Esta agora! Zametov... a repartição de polícia! Mas para que me chamam àquela casa? Onde está a citação? Ah! Estou baralhando tudo; foi há dias que me mandaram chamar; também nessa ocasião examinei a botina, mas agora... Agora estive doente. Mas por que Zametov viria aqui o Zametov? Para que traria o Razumíkhin?”, balbuciou Raskólnikov, sentando-se desfalecido no divã. “Mas que será isso? Ainda estarei delirando, ou as coisas são como as vejo? Parece-me que não estou a sonhar. Ah! Lembro-me agora: é necessário partir, e quanto antes, é absolutamente necessário. Sim... mas partir para onde? E onde está a roupa? Não tenho botinas! Eles levaram tudo, esconderam tudo! Compreendo! Ah! Está aqui o casaco — é que não o viram. Dinheiro em cima da mesa, graças ao Senhor! A letra também lá está... Meto o dinheiro no bolso e escapulo-me, vou alugar outro quarto e eles não me tornam a encontrar!... Sim, mas a repartição das residências? Vão logo dar comigo! Razumíkhin descobre-me com certeza. É melhor emigrar, ir para a América; bem me importo eu com eles! É necessário levar também a letra... pode servir-me. E que mais hei de levar? Eles julgam-me doente, pensam que não estou em estado de dar um passo, ah, ah!... Li em seus olhos que sabem tudo!... Basta descer a escada; mas se a casa estiver cercada? Se eu for encontrar lá embaixo a polícia?... Que é aquilo? Chá? E também cerveja... Como isso me vai confortar!”

Pegou a garrafa, que conteria tanto como um copo grande, e bebeu-a sem interrupção, com verdadeiro prazer, porque tinha o peito em fogo. Mas ainda não passara um minuto, a cerveja causou-lhe tonturas e sentia que um ligeiro arrepio lhe percorria as costas. Deitou-se, cobriu-se com o cobertor. Suas ideias, incoerentes, começaram a confundir-se cada vez mais. Pouco depois, cerravam-se-lhe as pálpebras. Pousou com voluptuosidade a cabeça no travesseiro, embrulhou-se mais na macia coberta que substituíra seu esfarrapado capote e adormeceu profundamente.

O rumor de passos acordou-o. Era Razumíkhin que acabava de abrir a porta, mas hesitava em entrar, conservando-se de pé no limiar. Raskólnikov ergueu-se bruscamente e olhou para o amigo como se procurasse recordar-se de alguma coisa.

— Como estás acordado, entro! Nastácia, traze cá o embrulho — ordenou Razumíkhin à criada que estava embaixo. — Tenho de te prestar contas.

— Que horas são? — perguntou o enfermo, olhando em volta, espantado.

— Dormiste como uma criança, meu amigo; o dia vai declinando, são quase seis horas. Dormiste mais de seis horas.

— Meu Deus! Como pude dormir tanto!

— Ora essa! Isso até te faz bem! Tinhas algum assunto urgente? Talvez alguma entrevista amorosa! Agora temos o tempo livre. Há três horas que esperava que despertasses. Já tinha vindo aqui duas vezes e te encontrei dormindo. Também fui duas vezes à casa de Zózimov, mas ele não estava. Devia tratar de umas coisas minhas; tive de mudar hoje meu domicílio. Mudei tudo, inclusive meu tio... Não sei se sabes que meu tio vive agora comigo... Mas basta de conversa... Vamos ao que importa. Traze para aqui o embrulho, Nastácia. Como te sentes agora, meu amigo?

— Bem, já não estou doente... Há muito tempo que estás aqui, Razumíkhin?

— Acabo de te dizer que estive três horas à espera de que acordasses.

— Não é isso; antes...

— Antes?...

— Há quanto tempo vens cá?

— Mas ainda agora te disse! Já não te lembras?

Raskólnikov concentrou suas ideias. Os acontecimentos do dia apareciam-lhe como que em sonho. Foram infrutíferos os esforços de memória; com o olhar interrogava Razumíkhin.

— Hum! — disse ele. Não te lembras. Já tinha percebido que não estavas em teu estado normal!... Agora o sono te fez bem... Realmente estás com muito melhor aparência... Mas não te preocupes com essas coisas; logo te lembrarás. Olha para isto, meu caro.

Abriu o embrulho que era objeto de todas as atenções.

— Tinha um especial empenho nisso. É que é necessário fazer de ti um janota. Vamos a isso. Comecemos por cima. Vês este boné? — disse ele, mostrando um boné modesto, mas não desairoso. — Dás-me licença que te experimente?

— Não, agora não, depois — disse Raskólnikov afastando o amigo com um gesto impaciente.

— Não, há de ser já, amigo Ródia; deixa-me ver como te fica; logo seria tarde, e depois não dormiria a pensar no caso, porque comprei por cálculo, por não ter a medida de tua cabeça. Serve-te perfeitamente! — exclamou triunfante depois de ter posto o boné na cabeça de Raskólnikov. — Parece que foi feito de encomenda! Um chapéu decente é a peça principal do vestuário e, de certa forma, um cartão de visita. Tolstiákof, um amigo meu, é sempre obrigado a tirar o penico da cabeça em lugares onde há pessoas de chapéu ou boné. Pensam que ele faz isso por sua polidez eslava, mas é simplesmente por ter vergonha de seu penico; ele é um sujeito muito acanhado. Olha, Nastácia! Aqui estão duas coberturas de cabeça: este Palmerston (tirou do canto o velho e surrado chapéu de Raskólnikov, que, por uma razão desconhecida, chamava de Palmerston), este Palmerston e esta joia! Calcula por quanto a comprei, Nastáciuchka? — disse ele à criada, vendo que o amigo se mantinha calado.

— Dois grivnas, certamente — respondeu Nastácia.

— Dois grivnas? Tu perdeste o juízo! — disse Razumíkhin desconsolado. Oito grivnas e foi por já ter sido usado!... Vejamos agora a calça. Declaro-te que estou contentíssimo com ela.

E estendeu em frente de Raskólnikov uma calça cinzenta, de tecido leve, de verão.

— Nem o mais pequenino buraco, nem uma nódoa e em ótimo estado, apesar de ser de segunda mão. O colete é da mesma cor, como a moda exige. Também, se tudo isso não é novo, nem por isso é pior. A roupa, com o uso, adquire mais elasticidade, torna-se mais flexível... Sabes, Ródia, em minha opinião o meio de irmos para diante neste mundo é vestirmo-nos conforme a estação. As pessoas de distinção não comem aspargos em janeiro; foi por esse princípio que me guiei ao fazer estas compras. Estamos no verão? Comprei roupa de verão! Quando chegar o outono hás de precisar de roupa mais quente, e então porás esta de parte... Tanto mais que até o outono tem tempo de se estragar. Vê, calcula quanto custou isto? Dois rublos e 25 copeques! Lembra-te da condição: se usá-los ganharás outro de graça. No sistema de Fediáiev só se faz negócio nessa base; uma vez realizada a compra, fica-se satisfeito para o resto da vida, pois nunca mais se voltará lá por vontade própria. Agora vejamos as botinas... Que te parece? Vê-se que foram usadas, mas hão de prestar muito serviço durante dois meses. Isto não é artigo daqui; eram de um secretário da embaixada inglesa, que as vendeu a semana passada: usou-as apenas dois dias, mas estava precisando muito de dinheiro... Custaram um rublo e cinquenta copeques. Uma pechincha!

— Mas talvez não lhe sirvam! — observou Nastácia.

— Não servem! Ora essa! E para que serve isto! — replicou Razumíkhin tirando do bolso uma botina velha de Raskólnikov, esburacada e suja. — Tinha-me prevenido: a medida foi tirada por este monstro. Procedeu-se em tudo com o maior cuidado. Por causa da roupa branca é que sustentei uma verdadeira luta com a adeleira. Finalmente, aí tens três camisas com peitilhos da moda... Agora, contas: boné, oito grivnas; calça e colete, dois rublos e 25 copeques; botinas, um rublo e cinquenta copeques; roupa branca, cinco rublos; total: oito rublos e 75 copeques. Tenho, portanto, a entregar-te 45 copeques. Aqui os tens, guarda-os. Por uma ninharia te transformaste num janota, porque me parece que teu casaco não só pode servir-te, como até mesmo é elegante. Vê-se que foi feito no Charmal! Relativamente a meias e outras miudezas, não pensei nisso; depois comprarás. Temos ainda 25 rublos; não te preocupes com Pachenka nem com o aluguel do quarto. Já te disse que tens crédito ilimitado... Agora, meu amigo, vamos mudar essa roupa; tua camisa cheira a febre.

— Deixa-me, não quero! — respondeu Raskólnikov afastando-o.

Durante a alegre exposição de Razumíkhin conservara um ar taciturno.

— Tem paciência, meu caro, vamos lá. Então para que andei batendo solas? — insistiu Razumíkhin. Nastáciuchka, não te faças de tola e vem ajudar-me. Assim mesmo! — E, a despeito da resistência oposta, conseguiu mudar-lhe a roupa.

O doente caiu sobre o travesseiro e, durante dois minutos, não proferiu palavra. “Quando me deixarão em paz?”, pensava ele.

— Com que dinheiro foi comprado tudo isso? — perguntou alto, voltando-se para a parede.

— Que boa pergunta! Com teu dinheiro! Tua mãe enviou-te, por intermédio de Vakrúchine, 35 rublos, que há pouco recebeste. Já não te lembras?

— Lembro-me agora... — disse Raskólnikov depois de permanecer algum tempo pensativo e triste. Razumíkhin, com os sobrolhos franzidos, contemplava-o com inquietação.

A porta abriu-se, e um homem de estatura elevada e forte, cuja aparência pareceu familiar a Raskólnikov, entrou.

— Zózimov! Até que enfim — exclamou Razumíkhin alegremente.


Capítulo IV

O recém-chegado teria 27 anos, era alto, robusto, rosto cheio, pálido e cuidadosamente escanhoado; os cabelos, de um louro quase branco, penteava-os para cima, arrepiados, como os de uma escova. Usava óculos e, no indicador de sua grande mão, brilhava um argolão de ouro. Notava-se que gostava de andar à vontade, embora a roupa não deixasse de ter um talhe elegante. Vestia um largo casaco de verão e calça larga. A camisa era irrepreensível e, sobre o colete, trazia uma grossa corrente de ouro. Havia em suas maneiras algo de moroso e fleumático, por mais que ele se esforçasse por apresentar o contrário. Aliás, percebia-se nele um pretensioso. Todas as pessoas de suas relações o achavam insuportável, mas consideravam-no um excelente médico.

— Fui duas vezes procurar-te em casa, meu amigo... Sabes, ele voltou a si! — disse Razumíkhin.

— Bem vejo... Então como se sente hoje? — perguntou Zózimov a Raskólnikov, observando-o atentamente, ao passo que procurava arranjar, no extremo do divã, junto aos pés do enfermo, lugar suficiente para sua alentada pessoa.

— Ainda está hipocondríaco — continuou Razumíkhin. — Há pouco, quando lhe mudamos a roupa, quase se pôs a chorar.

— É natural; podiam ter feito isso mais tarde, sem o contrariar... O pulso está magnífico. A cabeça ainda dói, não é verdade?

— Estou bem, sinto-me muito bem! — disse Raskólnikov irritado. E, dizendo isso, ergueu-se de chofre no divã; seus olhos faiscavam; mas, depois, caiu sobre o travesseiro e voltou-se para a parede. Zózimov observava-o com atenção.

— Bem, não há nada de extraordinário. Tem comido alguma coisa?

Disseram-lhe o que o doente tinha comido e perguntaram o que podiam dar-lhe.

— Qualquer coisa... Sopa, chá... Está claro que os cogumelos e os pepinos são proibidos; não deve também comer carne nem... Mas estou aqui a perder tempo sem necessidade... — Trocou um olhar com Razumíkhin. — Nada de remédio, e amanhã voltarei...

— Amanhã à tarde há de ir passear! — resolveu Razumíkhin. — Iremos ao jardim Iussupof e ao Palácio de Cristal.

— Amanhã talvez seja muito cedo, mas um pequeno giro... Enfim, veremos.

— Calcula que justamente hoje festejo a inauguração de minha nova casa, aqui ao lado. Queria que ele fosse dos nossos, ainda que tivesse de ficar deitado no divã! Tu vais? — perguntou Razumíkhin a Zózimov. — Prometeste; não faltes.

— Não falto; porém irei mais tarde. Há baile?

— Qual baile... Há chá, vodca, arenques e um pastelão. É uma simples reunião de amigos.

— Quais são os convidados?

— Colegas e um velho tio, que veio tratar de negócios em São Petersburgo e aqui está desde ontem; vemo-nos de cinco em cinco anos.

— Que faz ele?

— Vegetou toda a vida num distrito onde foi diretor do correio... recebe uma pequena pensão, tem 65 anos. Sou-lhe afeiçoado... Espero também Porfírio Petróvitch, o juiz de instrução... um jurisconsulto. Mas agora me lembro que o conheces.

— Também é teu parente?

— É, mas muito afastado; por que franzes o sobrolho? Então porque já tiveram uma questão julgas que não deves ir?

— Oh! Não me importo com ele!

— Fazes bem. Enfim, estarão lá estudantes, um professor, um empregado, um músico, um oficial, o Zametov...

— Dize-me lá, que tens tu... (com um aceno de cabeça Zózimov indicou Raskólnikov) de comum com Zametov?

— Oh, meu prezado amigo. Princípios! És feito de princípios, como o fosses de primaveras, que se renovam todos os anos. Não te aventures sozinho nesse campo. Se um homem é um bom sujeito, basta esse princípio para nele me fiar. Zametov é uma agradável criatura.

— Embora se deixe subornar.

— Ele se deixa! E que tem isso? Não me importo que ele seja subornado — gritou Razumíkhin com irritação fora do natural. — Não o estimo por se deixar subornar. Disse somente que era um bom sujeito, em seu âmbito de ação. Mas se olharmos para os homens, sob todos os aspectos, será que sobrará algum? Porque estou certo que nesse caso não valeria um níquel furado.

— Isso é muito pouco. Por ti, daria dois níqueis.

— E eu não daria mais que um por ti. Deixa de brincadeiras! Zametov não passa de uma criança, até posso puxar-lhe as orelhas. Devemos orientá-lo e não repeli-lo. Nunca melhorarás um homem se o repelires e especialmente se for uma criança. Devemos ser duplamente carinhosos com as crianças. Oh, néscios progressistas! De nada entendem e prejudicam-se ao rebaixar outrem... Mas, se queres saber, temos realmente algo em comum.

— Sempre desejei saber o quê.

— É ainda aquele caso do pintor. Empregamos nossos esforços para pô-lo em liberdade. Agora as coisas tomaram rumo mais favorável. O caso já não oferece dúvidas! Nossa intervenção serviu exclusivamente para precipitar o desenlace.

— A que pintor te referes?

— Ainda não te falei nisso? Ah! Agora me lembro que só te contei o princípio da história... É aquele do assassínio da velha usurária... Prenderam o pintor como o autor do crime.

— Sim, sim. Já, antes de me teres falado nisso, ouvira qualquer coisa a respeito, e o caso chegou a interessar-me... Tenho lido o que os jornais têm dito...

— Também mataram Isabel! — exclamou Nastácia, dirigindo-se a Raskólnikov. Nastácia não saíra do quarto e se conservava de pé, junto à porta, ouvindo o que se dizia.

— Isabel! — balbuciou o doente com voz débil.

— Sim, a Isabel, aquela, não te lembras? Ela vinha cá embaixo. Até te fez uma camisa acrescentou Nastácia.

Raskólnikov voltou-se para a parede e pôs-se a olhar fixamente uma das pequenas flores estampadas no papel que forrava o quarto. Sentia os membros presos, mas não tentava movê-los, e o olhar conservava-se fixo na flor.

— Mas havia algum indício contra esse pintor? — perguntou Zózimov, atalhando com impaciência a loquacidade de Nastácia, que se calou, soltando um fundo suspiro.

— Sim, mas indícios que nada valem, e é isso exatamente que havemos de demonstrar! A polícia seguiu nesse caso um caminho errado, principiando pela tolice de suspeitar de Kokh e Priestriakov e detê-los! Por mais alheio que seja à questão, incomoda ver uma investigação tão mal encaminhada! Priestriakov talvez vá esta noite à minha casa... A propósito, Ródia, tu conheces o caso; ocorreu precisamente na véspera do dia em que desmaiaste no comissariado, quando falavam nisso...

Zózimov olhou Raskólnikov com curiosidade, mas ele não se moveu.

— Preciso não te perder de vista. Razumíkhin; entusiasmas-te excessivamente por coisas que não te dizem respeito — observou o médico.

— É possível, mas não faz mal! Havemos de arrancar esse desgraçado das garras da justiça! — exclamou Razumíkhin dando um soco na mesa. — O que me irrita não é só a falsidade dessa gente; todos podem enganar-se; o erro é desculpável e é certo que por ele se chega muitas vezes a descobrir a verdade. O que me desespera é que, apesar de caírem em erro, eles continuam a julgar-se infalíveis. Simpatizo com o Porfírio, mas... Imagina o que a princípio os desnorteou! A porta estava fechada; ora, quando Kokh e Priestriakov chegaram com o dvornik, encontraram-na aberta: logo, Kokh e Priestriakov são os assassinos! Ora, aí tens a lógica dessa gente!

— Não te exaltes! Prenderam-nos e não podiam nem deviam deixar de fazê-lo... E a respeito desse tal Kokh: tive ocasião de o encontrar, parece que tinha negócios com a velha, comprando-lhe os objetos que não eram resgatados no prazo devido.

— Sim, é um espertalhão de marca! Também é agiota. Sua desdita não me comove. O que me irrita profundamente são as praxes arcaicas e estúpidas que eles seguem religiosamente... Parece que já é tempo de adotar processos novos, dando uma vassourada na rotina. Só indícios de caráter psicológico podem conduzir à verdadeira pista. “Temos fatos!”, dizem eles. Mas os fatos não bastam; para o bom êxito de uma investigação criminal, o essencial é a maneira de interpretá-los.

— E tu sabes interpretar os fatos?

— Oh, meu caro amigo, eu não te digo que sei interpretar os fatos: o que te digo é que é impossível a gente calar-se quando sente, quando tem a convicção absoluta de que poderia ajudar a fazer luz, se... Conheces os pormenores?

— Falaste-me num pintor, mas não conheço o caso.

— Então escuta. Três dias depois de praticado o crime, de manhã, enquanto a polícia prosseguia nas investigações relativamente a Kokh e a Priestriakov, surgia subitamente o mais imprevisto dos incidentes. Um tal Dúchkine, que tem uma taverna em frente da casa onde se deu o crime, foi entregar ao comissário de polícia um estojo com um par de brincos e contou-lhe uma história enorme: “Anteontem, pouco depois das oito horas (repara no dia e na hora!), um pintor chamado Micolai, que frequenta meu estabelecimento, pediu-me que lhe emprestasse dois rublos sobre os brincos. Quando lhe perguntei onde os obtivera, respondeu que os achara na rua. Não lhe fiz mais perguntas (é ainda Dúchkine quem fala) e dei-lhe um rublo, porque disse comigo: se eu não ficar com isto, outro se apresentará como seu dono, e assim mais vale aproveitar: se houver reclamação, se eu vier a saber que os brincos foram roubados, irei entregá-los à polícia.”

É claro que nosso amigo mentia descaradamente. Eu conheço-o; é um intrujão. Ao obter de Micolai um objeto que valia trinta rublos, não lhe passava pela mente entregá-lo à polícia. Se o fez foi sob a influência do medo. Mas deixemos Dúchkine prosseguir em sua história.

— “Conheço desde pequeno o tal Micolai Demiéntiev; somos ambos da província de Kazan e do distrito de Zaraisk. Sem ser propriamente um bêbado, às vezes toma sua pinga a mais. Eu sabia que ele estava pintando naquela casa com Mitrei, que também é nosso patrício. Logo que recebeu o rublo, bebeu dois copos de vinho, deu a moeda para pagar e foi-se com o troco. Mitrei não o acompanhava.

“No dia seguinte, ouvi dizer que tinham assassinado com um machado Alena Ivanovna e a irmã, Isabel. Então tive suspeitas quanto aos brincos, porque sabia que a velha emprestava dinheiro sobre joias. Para esclarecer essas suspeitas, fui à casa da velha e perguntei se Míkolai estava lá. Mitrei informou-me que o Micolai andava na farra. Tinha voltado a casa de madrugada, bêbado, e, dez minutos depois, saíra. Desde então Mitrei não o tornara a ver e estava terminando, sozinho, o trabalho. A escada da casa das vítimas conduz também ao apartamento onde os dois operários trabalhavam, o qual fica no segundo andar. Depois de saber tudo isso, não disse coisa alguma a ninguém; mas tratei de obter o maior número de detalhes que pude sobre as circunstâncias do crime e voltei para casa. Esta manhã, às oito horas (isto é, dois dias depois do crime) Micolai entrou na minha loja; percebia-se que tinha bebido, mas não estava muito embriagado e entendia perfeitamente o que se lhe dizia. Sentou-se silenciosamente. Quando ele entrou só havia um freguês que dormia estirado num banco e meus dois caixeiros.

— “Viste Mitrei? — perguntei-lhe. — Não, disse ele, não o vi. — Não trabalhaste hoje ali? — Desde ontem que não — respondeu. — E onde dormiste esta noite? — No Areal, em casa de Kolomênski. —
E onde arranjaste os brincos que me trouxeste outro dia? — Achei-os na rua — disse desconfiado, evitando-me com o olhar. — Não soubeste que nessa tarde, à mesma hora, se passou alguma coisa de extraordinário no prédio em que trabalhavas? — Não, não sei de coisa alguma. — Então contei-lhe o que se passara, e ele ouvia-me com os olhos esgazeados. De repente fez-se branco como cal, pegou no boné e levantou-se. Eu queria agarrá-lo: — Espera aí, Micolai — disse-lhe —, não bebes um copo de vinho? — Ao mesmo tempo fiz sinal ao caixeiro para se pôr à porta e saí para fora do balcão. Mas percebendo, naturalmente, minha intenção ele começou a correr e um momento depois desaparecera na primeira esquina. Desde então não tenho dúvidas sobre sua culpabilidade.”

— Também me parece... — opinou Zózimov.

— Mas espera; ouve o resto! Naturalmente a polícia procurou Micolai. Dúchkine e Mitrei ficaram detidos. Procedeu-se a uma busca em casa deles e na dos Kolomênski, mas só anteontem é que o Micolai foi preso numa hospedaria dos subúrbios, em circunstâncias muito extraordinárias. Quando chegou à hospedaria, entregou uma cruz de prata ao dono da locanda e pediu um copo de vodca. Momentos depois, uma camponesa ia ordenhar as vacas, e, como olhasse casualmente por uma fresta do tabique para um curral ao lado, viu o infeliz preparando-se para se enforcar. A mulher gritou e acudiu gente — “Isto é coisa que se faça!” — “Levem-me à inspetoria de polícia que eu confesso tudo.” Fizeram-lhe a vontade e levaram-no à estação de polícia por ele indicada e que é a de nosso bairro. Procedeu-se ao interrogatório. “Quem és? Que idade tens? — Vinte e dois anos — etc...” Pergunta: — “Enquanto trabalhavas com Mitrei não viram ninguém na escada entre tantas e tantas horas?” Resposta: — “Pode ser que passasse alguém, mas nós não percebemos.” — “E não ouviram ruído?” — “Não ouvimos nada de extraordinário.” — “Mas então não sabias que, nesse dia a tantas horas, mataram duas mulheres?” — “Ignorava; só anteontem é que soube, na taverna, pelo Afanase Pavlóvitch” — “E onde foste arranjar os brincos?” — “Achei-os na rua.” — “Por que não foste no dia seguinte trabalhar com Mitrei?” — “Porque andei na pândega.” — “E onde foi a pândega?” — “Em lugares diversos.” — “Por que razão fugiste da casa de Dúchkine?” — “Porque tive medo.” — “Mas de que tinhas medo?” — “De ser preso e processado.” — Pois quer acredites, quer não, Zózimov, fizeram-lhe esse interrogatório, assim mesmo. Sei-o positivamente, porque conheço o questionário em todas as minúcias! E, agora, que achas?

— Mas aí há provas.

— Quais provas? Mas não é disso que se trata, trata-se do interrogatório, da maneira como a polícia julga a natureza humana. Enfim, adiante. Numa palavra, apertaram tanto o desgraçado, que ele acabou confessando. — “Não foi na rua que eu achei os brincos; foi no quarto onde trabalhava com Mitrei.” — “Como foi que os achastes?” — “Mitrei e eu tínhamos trabalhado todo o dia; eram oito horas e preparávamo-nos para sair, quando Mitrei pegou um pincel, besuntou-me a cara e fugiu. Corri atrás dele. Desci os degraus aos pulos, gritando como doido. Mas no momento em que chegava ao fim da escada, correndo desenfreadamente, esbarrei no dvornik e em dois sujeitos que estavam com ele. Não me lembro quantos eram. Então o dvornik e um outro insultaram-me. A mulher do primeiro dvornik apareceu e fez coro com eles. Finalmente, outro sujeito, que ia entrando com uma senhora, descompôs-nos também, porque estávamos à porta, impedindo a passagem. Eu tinha agarrado Mitka pelos cabelos, deitara-o chão e esmurrava-o. Ele também me tinha agarrado pelo cabelo e dava-me quantos podia, apesar de estar por baixo. Fazíamos isso tudo em ar de brincadeira. Mas Mitka soltou-se e pôs-se a fugir. Corri atrás dele, mas não o alcancei e voltei ao quarto, porque precisava pôr em ordem minhas coisas. Enquanto as arrumava, esperava que Mitka voltasse. Nessa ocasião, na sala de entrada, mesmo no canto, pus o pé sobre uma coisa. Olhei e vi um objeto embrulhado num papel. Abri o embrulho e encontrei uma caixinha com uns brincos.”

— Atrás da porta!? Estava atrás da porta!? — exclamou de repente Raskólnikov, olhando com terror para Razumíkhin e tentando erguer-se no divã.

— Estava... E então? Mas que tens? Por que te afliges assim? — disse Razumíkhin erguendo-se também da cadeira.

— Não é nada!... — respondeu debilmente Raskólnikov, deixando cair o travesseiro e voltando-se novamente para a parede.

Todos ficaram, por momentos, silenciosos.

— Naturalmente estava meio adormecido — disse Razumíkhin, interrogando Zózimov com o olhar.

Este acenou negativamente com a cabeça.

— Continua — disse o médico. — E depois?

— Sabes o resto. Logo que se viu de posse dos brincos, não pensou mais nem no trabalho nem em Mitka. Pôs o boné e foi logo à taverna. Como já disse, recebeu um rublo do taverneiro e enganou-o, dizendo-lhe que achara o estojo na rua. Depois foi para a pândega. Mas, com respeito ao crime, suas declarações não variam: “Não sei de nada; só tive conhecimento do crime dois dias depois.” — “Por que não apareceste durante todo esse tempo?” — “Porque não me atrevia a aparecer.” — “E por que querias enforcar-te.” — “Porque tive medo.” — “Medo de quê?” — “De ser perseguido.” — Aí tens a história. Agora, que conclusão julgas que a polícia tirou de tudo isso?

— Eu sei... Existe de fato uma presunção, talvez discutível, mas que nem por isso deixa de ser valiosa. Querias que dessem liberdade ao homem?

— Mas é que eles lhe atribuem o assassínio. A tal respeito não têm a menor dúvida...

— Vamos, não te exaltes. Lembra-te dos brincos. No mesmo dia, pouco depois de praticado o crime, uns brincos, que estavam no cofre da vítima, foram vistos em poder do homem. Hás de concordar que, a primeira coisa a fazer, nesse caso, é indagar como ele se achava de posse deles. É um caso que o juiz instrutor não pode deixar de apurar.

— Como se achava de posse deles?! — exclamou Razumíkhin. — Tua obrigação, meu caro doutor, é conhecer o homem; tens, mais do que qualquer outro, ocasião de estudar a natureza humana. Pois bem! Será possível que, com todos esses elementos, não percebas qual seja a natureza desse Micolai? Pois não percebes, a priori, que todas as declarações, durante o inquérito, são a verdade nua e crua? Obteve os brincos exatamente como conta. Pôs o pé sobre o estojo e apanhou-o...

— A verdade nua e crua! Mas ele próprio reconheceu que mentira da primeira vez.

— Ora, ouve-me com atenção: o dvornik, Kokh, Priestriakov, o outro dvornik, a mulher do primeiro dvornik, a tendeira que estava então no cubículo do porteiro, o conselheiro Krukof, que nesse mesmo momento descia da carruagem e entrava no prédio dando o braço a uma senhora, toda a gente, ou seja, oito testemunhas, declaram unanimemente que Micolai jogara ao chão Mitka, segurava-o pelos cabelos e que o outro lhe fazia o mesmo. Os dois estão atravessados na porta e interceptam a passagem: todos os insultam e eles, “como duas crianças” (palavras das testemunhas), gritam, descompõem-se, riem e correm um atrás do outro até a rua, como garotos. Estás entendendo? Agora observa este detalhe: lá em cima estão dois cadáveres ainda quentes. Nota que ainda estavam quentes quando deram com eles. Se o crime foi perpetrado por dois pintores, ou só por Micolai, permite-me que te faça uma pergunta: compreende-se tal despreocupação, tanta presença de espírito, em indivíduos que acabavam de cometer dois assassínios, seguidos de roubo? Não haverá incompatibilidade entre esses gritos, essas gargalhadas, essa luta de crianças e o estado moral em que devem achar-se os assassinos? Então cinco ou dez minutos depois de terem assassinado — porque, insisto, encontraram os cadáveres quentes —, eles saem deixando aberta a porta do quarto onde ficam estendidos os corpos de suas vítimas, e, sabendo que alguém sobe para a casa da velha, ficam brincando à porta da rua, bloqueiam a passagem, riem, atraindo a atenção geral, como as testemunhas depõem unanimemente!

— É realmente extraordinário, parece impossível, mas...

— Não há mas nenhum, meu caro amigo. Eu reconheço que os brincos, vistos nas mãos de Micolai pouco depois do crime, constituem contra ele uma importante prova circunstancial. Mas o fato é explicado plausivelmente pelas declarações do acusado e, como tal, irrefutável. E há ainda a considerar os fatos justificativos, tanto mais que não podem ser desmentidos. Infelizmente, dado o espírito de nossa jurisprudência, nossos magistrados são capazes de admitir que um fato justificativo, baseado numa mera impossibilidade psicológica, possa destruir indícios materiais, qualquer que seja a natureza? Não, nunca o hão de admitir, pela simples razão de terem encontrado o estojo, e por ter o homem tentado enforcar-se, “o que não faria se não se reconhecesse culpado”! Essa é a questão máxima, e é por isso que eu me irrito, compreendes?

— Sim, eu bem vejo que te exaltas. Mas ouve: esquecia-me de fazer-te uma pergunta. Quem prova que o estojo que encerrava os brincos fosse roubado da casa da velha?

— Isso está fartamente provado! — exclamou Razumíkhin, nervoso. — Kokh reconheceu o objeto e indicou a pessoa que o fora empenhar, a qual, por sua vez, demonstrou cabalmente que o estojo lhe pertencia.

— Tanto pior. Uma última pergunta. Não houve quem visse Micolai enquanto Kokh e o Priestriakov subiam ao quarto andar? Poderíamos assim estabelecer o álibi.

— Não, ninguém o viu — disse já irritado Razumíkhin —, e isso é realmente deplorável! O próprio Kokh e Priestriakov não viram os pintores quando subiram a escada; também, agora seu testemunho não teria grande valor. “Nós reparamos”, dizem eles, “que o compartimento estava aberto e calculamos que estivessem trabalhando; mas passamos sem dar atenção e não nos recordamos se lá estavam ou não operários.”

— Hum! Então a justificação de Micolai baseia-se apenas nas gargalhadas e no pugilato com o colega. Sim, será uma excelente presunção a favor de sua inocência, mas... Permite-me que te pergunte qual o juízo que formas sobre o caso: admitindo como verdadeira a versão do acusado, como explicas o achado dos brincos?

— Como o explico? Mas que tem isso a explicar? O caso é claro. Pelo menos o caminho está nitidamente traçado à instrução e indicado precisamente pelo estojo. O verdadeiro culpado deixou cair os brincos. Estava em cima quando Kokh caiu na tolice de descer; então o assassino desceu também, porque não tinha outro meio de escapar. Na escada, evitou ser visto por Kokh, por Priestriakov e pelo dvornik, refugiando-se no compartimento do segundo andar precisamente no momento em que os operários acabavam de o abandonar. Escondeu-se atrás da porta enquanto o dvornik e os outros subiam para a casa da velha, esperou que avançassem e desceu calmamente a escada, justamente quando os pintores chegavam à rua. Como cada um seguira seu rumo, não encontrou ninguém. Pode ser mesmo que o vissem, mas ninguém reparou nele: quem vai observar todas as pessoas que entram ou saem de uma casa? Quanto ao estojo, deixou-o cair do bolso enquanto esteve escondido atrás da porta e não deu por isso, porque tinha outras preocupações. O estojo demonstra, portanto, claramente que o assassino se escondeu no compartimento do segundo andar, onde não havia ninguém. E aí está explicado o mistério.

— É engenhoso, meu caro, e faz honra à tua imaginação!

— Por quê?

— Porque todos os pormenores estão bem combinados, porque todos os detalhes são naturais... Tal qual no teatro.

Razumíkhin ia retrucar, mas a porta abriu-se e apareceu um sujeito que nenhum deles conhecia.


Capítulo V

Era um homem de meia-idade, com ares um tanto pedantes, de fisionomia parada e severa. Hesitou um momento, lançando os olhos em torno com um espanto que não procurava disfarçar. “Onde eu vim parar!”, parecia dizer a si mesmo. Um tanto desconfiado e afetando um certo receio, examinava o cubículo onde se achava. Seu olhar manifestou o mesmo espanto quando encontrou Raskólnikov, deitado no velho divã, despido, desgrenhado e sujo e que não fez um único movimento, olhando também atentamente para o desconhecido. Este último, mantendo sempre o porte altivo, examinava agora a barba crescida e a cabeleira desgrenhada de Razumíkhin, que, por seu turno, sem se mover, o fitou com impertinente curiosidade. Durante um minuto, reinou um silêncio constrangedor entre todos. Compreendendo afinal que a ninguém causava impressão sua atitude artificial, o homenzinho dirigiu-se cortesmente a Zózimov.

— Ródion Românovitch Raskólnikov, estudando ou ex-estudante? — perguntou, destacando as sílabas.

Zózimov levantou-se e ia responder, quando Razumíkhin, a quem a pergunta não fora dirigida, se apressou a informar.

— É a pessoa que está deitada naquele divã. Mas o cavalheiro que deseja?

O modo incisivo por que a resposta foi dada desconcertou a grave personagem: ia dirigir-se a Razumíkhin, mas, reconsiderando talvez, voltou-se bruscamente para Zózimov.

— Ali está Raskólnikov! — disse negligentemente o médico, indicando o doente com um ligeiro movimento de cabeça. E, bocejando irreverentemente, tirou do bolso um grande relógio de ouro, que consultou e tornou a guardar.

Raskólnikov, deitado de costas, não dizia uma única palavra, e, embora seus olhos não se desviassem do recém-chegado, percebia-se que o pensamento estava longe dali. Desde que deixara de fitar a flor, seu rosto, extremamente pálido, denunciava um grande sofrimento. Parecia que acabara de submeter-se a uma operação melindrosa ou a um suplício. Mas, pouco a pouco, a presença do desconhecido despertou nele um interesse crescente; a princípio foi surpresa, depois curiosidade e, por fim, como que receio. Quando o médico disse “Ali está Raskólnikov”, ergueu-se de repente, sentou-se no divã e, com voz débil que não deixava trair um tom de provocação, disse:

— Sim, senhor, sou Raskólnikov. Que deseja?

O desconhecido olhou para ele com atenção e respondeu em tom majestoso:

— Pedro Petróvitch Lujine. Creio que meu nome não lhe é completamente estranho.

Mas Raskólnikov, que estava longe de esperar aquela visita, limitou-se a olhar silenciosamente para Lujine, com ar de espanto, como se pela primeira vez ouvisse tal nome.

— Pois será possível que nunca tivesse ouvido falar de mim? — perguntou o noivo de Dúnia.

Raskólnikov recostou-se vagarosamente sobre o travesseiro, cruzou os braços debaixo da cabeça e fitou o teto. Foi sua resposta. Na fisionomia de Pedro Petróvitch, lia-se o descontentamento provocado por tal irreverência. Zózimov e Razumíkhin observavam o recém-chegado com curiosidade, o que acabou por lhe desconcertar a famosa atitude.

— Eu estava persuadido de que uma carta enviada há dez ou 15 dias...

— Mas por que não entra? — interrogou bruscamente Razumíkhin, se tem alguma coisa a dizer, queira sentar-se, porque Nastácia e o senhor não cabem aí à porta, que é estreita. Nastáciuchka, deixa passar este senhor! Ora faça o favor, aqui tem uma cadeira! Veja se pode passar!

Afastou a cadeira da mesa, deixando um pequeno espaço livre entre ela e seus joelhos, e esperou numa posição incômoda que o visitante atravessasse essa estreita passagem.

Era impossível recusar. Pedro Petróvitch chegou, com dificuldade, até a cadeira e, depois de se sentar, olhou desconfiadamente para Razumíkhin.

— Não faça cerimônia — disse o estudante com arrogância — Ródia está doente há cinco dias, em três dos quais delirou; mas agora recuperou os sentidos e até já comeu com apetite. Este cavalheiro é o médico. Eu sou condiscípulo de Ródia e sirvo-lhe de enfermeiro. Não se importe, pois, conosco e queira continuar sua conversa como se não estivéssemos aqui.

— Muito obrigado. Mas a conversa não fatigará o doente? — perguntou Pedro Petróvitch dirigindo-se a Zózimov.

— Não, é mesmo uma distração para ele — respondeu o médico com indiferença, bocejando outra vez.

— Ele já recuperou o uso das faculdades mentais desde esta manhã! — informou Razumíkhin, cuja sem-cerimônia respirava uma bonomia tão sincera que Pedro Petróvitch começou a sentir-se mais à vontade. Afinal, esse homem irreverente e malvestido era um estudante.

— Sua mãe... — começou Lujine.

— Hum! — resmungou Razumíkhin.

Lujine olhou para ele admirado.

— Não faça caso, é um tic. Queira continuar...

Lujine encolheu os ombros.

—...Sua mãe tinha começado uma carta para o senhor, antes de minha partida. Quando aqui cheguei, demorei minha visita alguns dias, para ter a certeza quando viesse, de que o senhor já sabia tudo, mas vejo com espanto...

— Eu sei, eu sei! — atalhou bruscamente Raskólnikov, visivelmente irritado. — O senhor é o noivo, já sei... escusava de falar tanto.

Essas palavras e o modo por que foram proferidas magoaram Pedro Petróvitch, que se conservou silencioso, perguntando a si próprio o que queria dizer tudo aquilo. A conversa ficou, por momentos, interrompida. Raskólnikov, que para responder se voltara um pouco na direção de Lujine, voltou a examiná-lo com grande atenção, como se alguma coisa, que a princípio lhe tivesse passado despercebida, o houvesse agora impressionado. Ergueu-se um pouco no divã para vê-lo melhor. O caso é que o aspecto de Pedro Petróvitch tinha alguma coisa de particular que parecia justificar o nome de noivo, pelo qual fora há pouco tão irritantemente designado.

Percebia-se à primeira vista, até demasiadamente, que Petróvitch, mal chegara à capital, se dera pressa em “tornar-se cativante”, e preparar-se para a próxima chegada de sua noiva. Isso era, certamente, não só desculpável, mas até louvável. Talvez Lujine deixasse transparecer, mais do que convinha, a satisfação que lhe causava o completo êxito de seu desígnio: mas tal fraqueza num noivo é o que há de mais perdoável. Vestia um terno completamente novo e sua elegância apenas num ponto merecia reparo de crítica: era muito recente e traía ingenuamente um intuito. Eram dignos de notar-se os cuidados com que o visitante cercava seu esplêndido chapéu alto, recentemente comprado, e a delicadeza com que segurava numa das mãos lindas luvas Louvain, que não se atrevia a calçar. No vestuário predominavam os tons claros. O jaquetão, de tecido leve, era elegante, e a calça e o colete, da mesma cor, bonitos. A camisa de finíssima cambraia acabara de sair da loja do camiseiro, bem como a gravata de riscas cor-de-rosa. Aliás manda a verdade dizer que Pedro Petróvitch tinha boa aparência com este vestuário que o remoçava.

No rosto corado, que não demonstrava seus 45 anos de idade, umas suíças pretas talhadas em forma de costeleta, faziam sobressair a alvura do queixo cuidadosamente barbeado. Tinha poucos cabelos brancos na cabeleira primorosamente frisada. Se na grave e correta fisionomia havia alguma coisa de antipático e desagradável, isso devia atribuir-se a outras causas. Depois de ter contemplado descortesmente Lujine, Raskólnikov deu um sorriso escarninho, deixou-se de novo cair sobre o divã e fitou outra vez o teto.

Mas o sr. Lujine parecia disposto a não se preocupar com ninharias; fechou os olhos a essas esquisitas maneiras e esforçou-se por continuar a conversa.

— Creia que é com bastante pesar que o encontro neste estado. Se soubesse de sua doença, teria vindo há mais tempo. Mas tenho tantas preocupações!... Além disso, vejo-me obrigado a acompanhar na última instância um processo muito importante. Nem é bom falar nas preocupações constantes que essa causa me dá. Espero, de um momento para outro, sua família, isto é, sua mãe e sua irmã...

Raskólnikov pareceu querer dizer alguma coisa; a fisionomia exprimiu uma certa agitação. Petróvitch deteve-se, esperou, mas, vendo que ele continuava calado, prosseguiu:

— ...De um momento para outro. Arranjei-lhes casa...

— Onde? — perguntou Raskólnikov com voz muito fraca.

— Aqui próximo, no edifício Bakalêief...

— É em Voskresênski informou Razumíkhin —, são dois andares, mobiliados... Quem aluga é o negociante Juchine.

— Sim, alugam ali quartos mobiliados...

— É uma pocilga imunda e que goza de má reputação. Passaram-se lá casos pouco edificantes. Fui levado lá numa aventura escandalosa. Os quartos, porém, não são caros.

— Compreenderá que eu não podia saber disso, pois que acabo de chegar da província, respondeu formalizado Pedro Petróvitch; de qualquer modo, porém, os dois quartos que tomei são muito limpos e a demora será curta... Já aluguei nossa futura casa — continuou ele dirigindo-se a Raskólnikov —, já a estão arrumando. Por enquanto, também estou numa pensão. É muito perto daqui, em casa da srª Lippelvechzel, onde resido com meu amigo André Semenióvitch Lebeziátnikov.

— Lebeziátnikov? — disse lentamente Raskólnikov, como se esse nome lhe trouxesse alguma recordação.

— Sim, André Semenióvitch Lebeziátnikov, funcionário do ministério... o senhor o conhece?

— Sim... não... — respondeu Raskólnikov.

— Perdão, sua pergunta fez-me supor que o conhecesse... É um rapaz muito simpático... de ideias liberais... Gosto do convívio dos rapazes; é por eles que se sabe o que vai pelo mundo.

Dizendo isso, Pedro Petróvitch olhou para os presentes, esperando ler-lhes nas fisionomias qualquer sinal de aprovação.

— De que ponto de vista? — perguntou Razumíkhin.

— Do mais sério de todos, isto é, do ponto de vista social — respondeu Lujine satisfeitíssimo por lhe terem feito a pergunta. — Havia dez anos que eu não vinha a São Petersburgo. Todas as novidades, todas as reformas, todas as ideias chegam até nós, provincianos; mas, para se poder ver mais distintamente, é indispensável vir a São Petersburgo. Ora, a meu ver, é da observação das novas gerações que podemos obter os melhores resultados. E eu confesso que fiquei encantado...

— Com quê?

— Sua pergunta é de certa amplitude. Estarei enganado, mas parece-me ter notado uma visão mais nítida das coisas, um espírito mais crítico, uma atividade mais...

— Insensatez! Não há praticabilidade — agrediu-o Razumíkhin com essas palavras. — Praticabilidade é coisa difícil de se encontrar, não cai do céu; nos últimos duzentos anos, a humanidade tem vivido divorciada da vida prática. As ideias existem em germe e a tendência para o bem existe, embora em estágio primário, e a honestidade poderá ser encontrada, apesar das multidões de desonestos. Todavia não há praticabilidade. A praticabilidade anda em baixa.

— Não concordo — retrucou Pedro Petróvitch, com visível entusiasmo. — De fato, os homens deixam-se levar e cometem erros, mas devemos ser indulgentes. Tais erros são simplesmente a prova de entusiasmo por uma causa e o anormal meio ambiente em que vivem. Se pouco foi feito até hoje é porque o tempo foi curto. Do meio, nem ouso falar... É meu ponto de vista particular. Se deseja saber, algo já foi obtido: novas ideias de grande valia, novas obras substituem nossos sonhadores e românticos escritores. A literatura atinge a maturidade; muitos preconceitos têm sido desarraigados e tornados ridículos. Em uma palavra: separamo-nos irrevogavelmente do passado; e isso, em meu modo de ver, já é um grande progresso...

— Decorou para pavonear-se! — disse subitamente Raskólnikov.

— Quê? — retrucou Pedro Petróvitch, sem entender as palavras e ficando sem resposta.

— É exato — interrompeu Zózimov com ar despreocupado.

— Não é assim? — replicou Petróvitch, agradecendo ao médico com um olhar amável. — O amigo há de concordar — prosseguiu dirigindo-se a Razumíkhin — que há progressos evidentes, pelo menos no que respeita aos ramos científicos e econômicos...

— Um lugar-comum!

— Perdão, isso não é um lugar-comum! Por exemplo, se me disserem “Ama o teu semelhante” e eu queira seguir esse conselho, qual o resultado? — respondeu Lujine com calor. — Rasgo minha capa, dou metade ao próximo e ficamos ambos seminus. Como diz um provérbio nosso: “Quando se perseguem muitas lebres ao mesmo tempo, não se apanha nenhuma.” A ciência, por seu lado, manda-me atender apenas a minha pessoa, uma vez que tudo neste mundo se baseia no interesse pessoal. Aquele que segue essa doutrina, cuida convenientemente de seus interesses e fica com a capa inteira. Afirma a economia política que, tanto mais sólida e próspera será uma sociedade quanto maior for o número de fortunas particulares ou de capas inteiras nessa sociedade. Portanto, trabalhando apenas para mim, trabalho para todos os outros, do que resulta meu próximo vir a obter mais do que a metade de uma capa, e isso sem favores particulares ou individuais, mas em consequência do progresso geral. A ideia é simples; infelizmente levou muito tempo a propagar-se e a triunfar da quimera e do devaneio; e, no entanto, não julgo que seja necessária uma grande inteligência para compreender...

— Perdão, mas é que eu pertenço à classe dos tolos — interrompeu Razumíkhin. — Por isso fiquemos por aqui. Eu tinha um objetivo ao encetar essa conversa; mas de três anos para cá, tenho os ouvidos tão causticados desse palavreado, de todas essas banalidades, que chega a repugnar-me falar e mesmo ouvir falar nelas. Naturalmente, o senhor apressou-se a expor-nos suas teorias; era desnecessário, mas não o censuro por isso. Apenas desejava saber quem é o senhor porque, na verdade, ultimamente, lançou-se sobre os negócios públicos uma multidão de especuladores que, procurando somente o interesse próprio, tem destruído tudo em que põe a nefasta mão. Vamos andando!

— Senhor! replicou Lujine escandalizado. — Parece querer insinuar que eu...

— Ora... de nenhum modo... Mas fiquemos nisso! — redarguiu Razumíkhin, voltando-se para Zózimov e continuando a conversa que a chegada de Petróvitch interrompera.

Ele teve o bom senso de aceitar, sem restrições, a explicação do estudante. Aliás, decidira ir-se embora.

— Agora que nos conhecemos — disse ele dirigindo-se a Raskólnikov —, espero que nossas relações continuem logo que recupere a saúde e se tornem mais íntimas pela circunstância que conhece... Desejo-lhe completo e rápido restabelecimento.

Raskólnikov pareceu não ter ouvido. Pedro Petróvitch levantou-se.

— Foi certamente algum devedor que a matou — disse Zózimov.

— Está claro! — repetiu Razumíkhin. — O Porfírio não diz o que pensa, mas intimou as pessoas que tinham negócios com ela.

— Houve interrogatórios? — perguntou com voz forte Raskólnikov.

— Sim, e então?

— Nada.

— Mas como soube ele quem é essa gente? — perguntou Zózimov.

— Kokh apontou alguns; acharam-se os nomes de outros escritos nos papéis que envolviam os objetos, e alguns se apresentaram espontaneamente, quando souberam...

— O assassino deve ser muito hábil e experimentado! Que decisão! Que audácia!

— Pois não é tal. Aí é que tu e todos os outros se enganam redondamente — replicou Razumíkhin. — Em minha opinião, ele não é nem hábil nem experiente, e esse crime foi provavelmente sua estreia. Na hipótese de o assassino ser um facínora calejado, não há explicação possível, porque as inverossimilhanças surgem de todos os lados. Se, pelo contrário, o supusermos como principalmente, devemos admitir que só o acaso lhe permitiu escapar-se; mas de que não seria capaz o acaso? O assassino talvez nem mesmo previsse todos os obstáculos! E como executa ele seu plano? Enche os bolsos com objetos que valem dez ou vinte rublos, que procura na caixa onde a velha guardara a roupa. Ora, na gaveta superior da cômoda encontrou-se uma caixa com 1.500 rublos, sem contar as notas! Se nem sequer soube roubar, soube só matar! Insisto: foi uma estreia. O homem perdeu a cabeça, e, se não foi agarrado, deve dar graças ao acaso mais do que à sua habilidade.

Pedro Petróvitch desejava despedir-se, mas não quis sair sem dizer algumas palavras de peso. Queria deixar uma impressão favorável de sua pessoa, e a vaidade foi superior ao bom senso.

— Referem-se, sem dúvida, ao recente assassínio da velha adeleira? — perguntou dirigindo-se a Zózimov.

— Exatamente. Ouviu falar nisso?...

— Ora essa! Na sociedade...

— Conhece os pormenores?

— Mais ou menos; mas esse caso interessa-me principalmente pela questão de ordem geral que estabelece. Já não quero referir-me ao progressivo aumento dos crimes nas classes baixas, nos últimos cinco anos. Ponho de parte a série de roubos e incêndios. Há, acima de tudo, um fato que impressiona altamente: é que nas classes superiores a criminalidade vai numa progressão de alguma forma paralela. Ali, cita-se a história de um estudante que assaltou o correio na estrada; acolá, gente de boa condição social falsifica dinheiro; em Moscou, uma quadrilha foi capturada, por falsificar bilhetes de loteria, e um dos chefes era um professor de história universal; depois, um secretário de legação foi assassinado, no exterior, por escuso motivo de dinheiro... E se essa velha adeleira foi assassinada por alguém da classe social mais elevada — porque camponeses não empenham berloques de ouro —, como podemos explicar essa desmoralização da parte civilizada de nossa sociedade?

— Tem havido muitas mudanças econômicas — interferiu Zózimov.

— Como explicá-las? — cortou Razumíkhin. — Deve-se explicar por nossa impraticabilidade.

— Como diz?

— Que resposta deu o professor de Moscou por falsificar bilhetes? “Todos se enriquecem de algum modo, portanto apresso-me a enriquecer.” Não recordo as palavras exatas, mas o sentido é de que necessitava de dinheiro sem esforçar-se, sem esperar e sem trabalhar. Estamos acostumando-nos a ter os desejos satisfeitos de imediato, a nos amparar em outrem, a conseguir nosso alimento mastigado. A grande hora soa,[ 27 ] e cada homem tem de mostrar-se com seu verdadeiro caráter.

— Mas moral? São só palavras! Princípios...

— Mas que é que o preocupa? — interrogou Raskólnikov. — Isso, afinal, é sua teoria posta em prática.

— Mas... como assim?

— A conclusão lógica do princípio que o senhor há pouco estabeleceu é que é lícito matar...

— Essa agora! — protestou Lujine.

— Não, não é isso — observou Zózimov.

Raskólnikov, muito pálido, respirava a custo; o lábio superior tremia-lhe.

— Nem tanto ao mar nem tanto à terra — prosseguiu com altivez Pedro Petróvitch —; as ideias econômicas, que eu saiba, não conduzem ao assassínio e, pelo fato de se enunciar um princípio...

— É verdade — interrompeu Raskólnikov com a voz alterada pela cólera —, é verdade ter o senhor dito à sua futura esposa... precisamente quando ela acabava de aceder a seu pedido, que o que mais lhe agradava nela... era a pobreza... visto que era preferível casar com uma mulher pobre, para depois poder dominá-la e atirar-lhe à cara os benefícios recebidos?...

— Senhor! — gritou Lujine com a voz entrecortada pela ira. — Senhor!... alterar por tal forma meu pensamento! Permita-me que lhe diga que a informação que lhe deram não tem o menor fundamento, e eu... desconfio de quem... enfim, sua mãe... Ela já me tinha parecido, a despeito das suas excelentes qualidades, um tanto exaltada e romanesca; estava, porém, muito longe de a supor capaz de dar tal interpretação às minhas palavras, e citá-las, alterando-lhes o sentido... E finalmente...

— Olhe, sabe... — gritou Raskólnikov, erguendo-se e despedindo centelhas pelos olhos. Sabe?...

— O quê?

E Lujine parou, esperando em atitude de desafio.

— Se tem o atrevimento... de dizer mais uma palavra... a respeito de minha mãe... atiro-o pela escada abaixo!

— Mas que é isso? — acudiu Razumíkhin.

— É isso; mais nada.

Lujine tornou-se muito pálido e mordeu os lábios. Estava furioso, mas fazia um grande esforço para se conter.

— Ouça — começou ele após curto silêncio. — O acolhimento que me fez não me deixou dúvidas acerca de sua inimizade; demorei, porém, propositadamente a minha visita, para me certificar a esse respeito. Poderia desculpar tudo a um doente, a um parente, mas isso... nunca...

— Eu não estou doente! — gritou Raskólnikov.

— Tanto pior!...

— Vá para o inferno!

Mas Lujine não esperara por essa intimação para se retirar. Saiu rapidamente sem olhar para ninguém, nem mesmo para Zózimov, que há muito lhe fazia sinais que deixasse o doente em paz. A coluna vertebral espigada demonstrava claramente o insulto recebido.

— Que absurdo! — disse, abanando a cabeça, Razumíkhin.

— Deixem-me, deixem-me todos! — exclamou Raskólnikov exasperado. — Por que não se vão embora, carrascos? Eu não os temo! Não tenho medo de ninguém. Agora saiam! Quero ficar só, só, só!

— Vamos! — disse Zózimov fazendo sinal a Razumíkhin.

— Mas havemos de deixá-lo nesse estado?

— Vamos — insistiu o médico saindo.

Razumíkhin refletiu um momento e depois resolveu-se a sair.

— É melhor obedecer-lhe — disse Zózimov na escada. — Está muito irritado.

— Que há com ele?

— Um abalo profundo que o arrancasse àquela preocupação é que lhe fazia bem. Ele tem alguma coisa que o preocupa seriamente. É isso o que me inquieta.

— Pode ser que esse Pedro Petróvitch não seja estranho a isso. Pela conversa que acabamos de ouvir, parece que nosso amigo recebeu pouco antes de adoecer uma carta a esse respeito.

— Sim. O diabo foi esse homem vir aqui. Talvez sua visita estragasse tudo. Mas notaste que só uma parte da conversa interessou ao doente, levando-o a sair da apatia e do mutismo? Logo que se fala naquele crime, exalta-se.

— Sim, notei isso — disse Razumíkhin —, prestava atenção ao que se dizia, inquietava-se. É que, no próprio dia em que adoeceu, aterraram-no no comissariado, e chegou a perder os sentidos.

— Hás de contar-me isso logo minuciosamente, e eu também te hei de dizer uma coisa. Esse rapaz interessa-me muito! Daqui a meia hora volto para me informar de seu estado... Aliás, não há que recear por agora...

— Agradeço teu cuidado. Agora vou conversar um pouco com Pachenka e mando Nastácia vigiá-lo.

Depois de terem saído do quarto, Raskólnikov pôs-se a olhar para a criada com impaciência; ela, porém, hesitava em retirar-se.

— Queres tomar agora o chá? — perguntou a rapariga.

— Logo! Quero dormir! Deixa-me!...

E voltou-se para a parede num brusco movimento convulsivo. Nastácia retirou-se.


Capítulo VI

Mas, logo que a criada saiu, Raskólnikov correu o fecho da porta e começou a vestir a roupa que Razumíkhin trouxera. Caso singular: à exasperação de há pouco e ao pânico dos últimos dias parecia haver sucedido repentinamente em Raskólnikov uma absoluta tranquilidade. Era o primeiro minuto de uma serenidade estranha, repentina. Seus movimentos, regulares e precisos, denotavam uma resolução enérgica. “Hoje mesmo!...”, murmurava ele. No entanto não compreendia que estava muito fraco; a forte tensão moral, que restituíra a tranquilidade, dava-lhe vigor e confiança; julgava poder aguentar-se na rua, de pé. Depois de ter se vestido, olhou de novo para o dinheiro espalhado na mesa, refletiu um momento e meteu-o no bolso. Eram 25 rublos. Guardou também o troco dos dez rublos gastos por Razumíkhin na compra da roupa. Depois, abriu com precaução a porta, saiu e desceu a escada. Ao passar em frente da cozinha, cuja porta estava aberta, lançou um olhar para o interior: Nastácia, de costas, soprava o samovar da patroa e não o viu. Aliás, quem poderia prever aquela fuga? Momentos depois, estava na rua.

Eram oito horas; tinha acabado de pôr-se o sol. Embora a atmosfera estivesse asfixiante, Raskólnikov respirava avidamente o ar poeirento, portador das exalações mefíticas da grande cidade. Sentia a cabeça girar.

Os olhos inchados, o rosto emagrecido e lívido exprimiam uma energia selvagem. Não sabia para onde dirigir-se nem pensava em tal. Sabia apenas que era preciso acabar com “isso” hoje mesmo, de uma vez, imediatamente; que de outra forma não tornaria a entrar em casa, “porque não queria viver assim”. Como acabar com aquilo? Não tomara sobre o caso resolução alguma e diligenciava afastar essa ideia — pergunta que o atormentava. Sentia unicamente que era preciso que tudo mudasse; fosse como fosse, “custe o que custar”, repetia.

Obedecendo a um velho hábito, dirigiu-se ao Mercado do Feno. Antes de chegar lá, encontrou, parado em frente a uma loja, um tocador de realejo, um rapazinho de cabeleira negra que ia fazendo o instrumento gemer uma melodia sentimental. O pequeno músico acompanhava no realejo uma menina de 15 anos, aprumada em frente dele, vestida como uma dama, mantilha, luvas e chapéu de palha preto ornado com uma pluma cor de fogo, tudo velho e desbotado. Cantava uma romanza com voz áspera, mas forte e suportável, esperando que da loja lhe atirassem alguma moeda de dois copeques. Duas ou três pessoas tinham parado a ouvi-la. Raskólnikov deteve-se um momento, tirou do bolso uma moeda de cinco copeques e meteu-a na mão da menina. Ela sustou a romanza na nota mais aguda e sentimental, gritou ao companheiro que parasse, e seguiram ambos para o estabelecimento mais próximo.

— O senhor gosta das canções de rua? — perguntou Raskólnikov bruscamente a um transeunte de certa idade, que, ao lado dele, escutava os músicos ambulantes. O interpelado olhou surpreendido para ele. — Eu — prosseguiu Raskólnikov como se falasse de coisa muito diversa da música das ruas —, eu aprecio o canto, ao som do realejo, em uma tarde de outono, sombria, úmida e fria, principalmente quando há umidade, quando os transeuntes têm um aspecto mórbido e esverdeado; ou o que é melhor, quando a neve cai verticalmente, sem ser impedida pelo vento, e os candeeiros da iluminação pública brilham através dela!

— Não sei... desculpe... — balbuciou o outro, assustado com o modo estranho de Raskólnikov. E atravessou a rua.

Raskólnikov pôs-se a caminho, chegando pouco depois à esquina do Mercado, no lugar onde, dias antes, o mascate e a mulher conversavam com Isabel; mas lá já não estavam. Reconhecendo o local, parou, olhou em redor e dirigiu-se a um rapaz de blusa encarnada, que bocejava à porta de uma padaria.

— Naquela esquina não costumam ficar um mascate e a mulher?

— Aqui toda a gente vende — respondeu o outro, medindo desdenhosamente Raskólnikov com o olhar.

— Como se chama esse mascate?

— Chama-se pelo nome!

— Tu não és de Zaraisk? De que província?

O rapaz olhou novamente seu interlocutor.

— Alteza, nós não somos de uma província, somos de um distrito. Meu irmão saiu e eu nada sei... Queira Vossa Alteza perdoar-me generosamente.

— Aquilo ali em cima é uma taverna?

— É um troktir, com bilhar, frequentado por princesas... Vai lá muito boa gente!

Raskólnikov seguiu para a outra extremidade da praça, onde havia uma multidão de mujiques. Meteu-se entre eles, lançando um olhar a cada um e desejando dirigir a palavra a toda a gente. Mas os aldeãos não reparavam nele, e, em pequenos grupos, conversavam animadamente sobre seus negócios. Após um momento de reflexão, saiu do mercado e entrou no pereulok...

Muitas vezes seguira esse caminho, que forma um ângulo e conduz à praça de Sadovaia. Ultimamente, gostava de passar em todos esses lugares quando começava a aborrecer-se, para se aborrecer ainda mais. Agora dirigia-se para aquele lado sem um propósito determinado. Há aí uma vasta casa, cujas lojas são ocupadas por depósitos de vinho e tavernas. Dessas pocilgas saíam constantemente marafonas vestidas sumariamente. Juntavam-se em grupos, em vários pontos do passeio, principalmente perto das escadas que conduzem a subterrâneos duvidosos.

Num desses havia, naquele momento, alegre algazarra. Cantavam, tocavam e gritavam tanto que se ouvia de um extremo a outro da rua. À entrada desse antro havia grande número de mulheres, umas sentadas nos degraus, outras no passeio, outras de pé, conversando. Um soldado embriagado, de cigarro na boca, andava aos trancos berrando; parecia querer entrar em algum lugar de que não se lembrava. Dois maltrapilhos insultavam-se mutuamente. Um homem, em completo estado de embriaguez, estava estendido na rua.

Raskólnikov parou perto do maior grupo de mulheres, que conversavam em voz alta. Estavam todas vestidas de cassa, cabeça descoberta, os pés calçados em sapatos de pele de cabrito. Algumas tinham já dobrado o cabo dos quarenta; outras não teriam mais de 17 anos. Quase todas tinham olheiras.

A algazarra que vinha do subterrâneo atraiu a atenção de Raskólnikov. Por entre as gargalhadas e o vozear, uma balalaica acompanhava uma voz esganiçada, enquanto alguém dançava desesperadamente, batendo com os tacões:


Tu, meu belo botão,

não me esperes em vão.


Raskólnikov, no alto da escada, ouvia sombrio e pensativo, não querendo perder uma palavra da canção, como se para ele fosse caso da maior importância. “Se eu entrasse?”, pensava. “Estão contentes, estão bêbados... E se eu me embebedasse também?”

— Não entra, querido bárine?[ 28 ] — perguntou uma das mulheres, de voz razoavelmente timbrada e conservando ainda alguma frescura. Era ainda nova e a única do grupo que não causava repulsa.

— Que bonita rapariga! — disse Raskólnikov olhando-a.

Ela sorriu lisonjeada com o cumprimento.

— Também o senhor é bonito — respondeu.

— Bonito, esse esqueleto! — observou com voz rouca outra mulher. — Parece que saiu agora do hospital!

Nesse momento, aproximou-se do grupo um mujique com ar canalha, vestuário em desordem, cara radiante.

— Parecem filhas de generais, mas têm o nariz chato! Oh, formosas!

— Entra, já que vieste!

— Vou entrar, beleza!

E desceu ao subterrâneo. Raskólnikov ia afastar-se.

— Olha lá, bárine! — gritou-lhe a rapariga.

— Que é?

— Querido, eu desejava passar uma hora contigo, mas agora não me sinto muito à vontade em tua presença. Dá-me seis copeques para uma bebida?

Raskólnikov tirou do bolso três moedas de cinco copeques.

— Que generoso bárine!

— Como te chamas?

— Pergunte pela Dúklida.

— Vejam só! — exclamou uma das do grupo, indicando Dúklida com um aceno de cabeça. — Não sei como tem descaramento para pedir. Eu morreria de vergonha...

Raskólnikov olhou curiosamente para a mulher que falara. Era uma trintona picada de varíola, coberta de equimoses, com o lábio superior inchado. Censurava a outra em tom sereno e grave.

“Onde li eu”, pensava Raskólnikov afastando-se, “aquela frase atribuída a um condenado à morte, uma hora antes do suplício? Se ele tivesse de passar a vida sobre um alcantil, sobre um rochedo perdido na imensidade do mar, que lhe oferecesse apenas o espaço suficiente para firmar os pés; se tivesse de viver assim mil anos, sobre o espaço de um pé quadrado, na solidão, na treva, exposto a todas as intempéries — preferiria à morte tal existência! Viver seja como for, mas viver!... Como isso é verdadeiro, meu Deus, como é verdadeiro! O homem é desprezível! E também é quem o chama”, acrescentou.

Havia muito tempo que caminhava ao acaso, quando reparou na tabuleta de um café: “O Palácio de Cristal! Razumíkhin falou no Palácio de Cristal, ainda agora. Mas que queria eu... Ah, sim, ler... Zózimov disse que tinha lido nos jornais...”

— Há jornais? — perguntou, entrando no estabelecimento confortável, onde havia gente. Dois ou três fregueses tomavam chá. Numa sala afastada, quatro indivíduos sentados a uma mesa bebiam champanhe. Pareceu a Raskólnikov que um deles era Zametov, mas a distância não lhe permitia distinguir. “Afinal, que importa?”, pensou ele.

— Que deseja? — perguntou um criado.

— Traga-me chá e os jornais dos últimos cinco dias. — Deu-lhe uma boa gorjeta.

— Aqui estão os de hoje. Quer também vodca?

Quando o criado trouxe os jornais, Raskólnikov pôs-se a procurar: “Izler — Izler — Os Azteques — Os Azteques — Izler... — Máximo — Oh! que estopada... Ah! Está aqui o noticiário: Mulher que caiu de uma escada — Um negociante embriagado — Incêndio no Areal — O incêndio do Petersburgskaia. — Izler — Izler — Izler — Izler — Máximo... Ah, aqui está...”

Tendo finalmente achado o que procurava, começou a leitura. As linhas dançavam-lhe diante dos olhos: conseguiu ainda assim ler a notícia até o fim, passando com crescente curiosidade aos “novos pormenores” nos números seguintes. Folheava os jornais com mão trêmula, sentindo uma impaciência febril.

De repente, alguém sentou-se a seu lado. Raskólnikov ergueu os olhos: era Zametov, o próprio Zametov, trajado como naquele dia em que o encontrara no comissariado. Eram os mesmos anéis, a mesma corrente, o mesmo cabelo preto, frisado e lustroso, dividido por uma risca até a nuca, a sobrecasaca um pouco surrada, a camisa ligeiramente amarrotada.

O chefe de repartição da polícia parecia alegre, sorrindo com jovialidade. O rosto moreno estava ligeiramente rosado, devido ao champanhe que acabara de ingerir.

— O senhor por aqui? — interrogou ele com ar surpreso e no tom com que falaria a um camarada. Mas ainda ontem o Razumíkhin me disse que o senhor continuava doente. É extraordinário! Sabe que estive em sua casa...

Raskólnikov percebeu que o funcionário policial queria entabular conversa. Pôs de lado os jornais e voltou-se para Zametov com um sorriso constrangido.

— Eu soube de sua visita — respondeu. — Sei que procurou minha botina... Razumíkhin o aprecia muito. Ouvi dizer que tinha ido com ele à casa de Luíza Ivánovna, aquela cuja defesa quis tomar há dias, recorda-se? O senhor fazia sinais ao tenente Pólvora, que não os percebia. Pois não era preciso ter uma inteligência excepcional para os entender. A coisa era clara... hein?

— É levado da breca!

— O Pólvora?

— Não! Seu amigo, Razumíkhin.

— Ao senhor é que a vida corre bem, sr. Zametov; tem entrada gratuita em toda parte. Quem lhe ofereceu há pouco champanhe?

— Por que me haviam de oferecer champanhe?

— Como gratificação! Meu amigo faz render tudo! — disse Raskólnikov escarninho. — Não se zangue, excelente moço! — acrescentou, dando uma palmada familiar no ombro de Zametov. — Disse isso sem ideia de ofender; é brincadeira, como dizia, a propósito dos socos que deu em Mitka, o pintor que prenderam por causa do assassínio da velha.

— Mas como sabe disso?

— Talvez saiba mais do que meu amigo.

— O senhor é um homem extraordinário! Na verdade está ainda muito doente. Fez mal em sair.

— Acha-me singular?

— Muito, que é que estava lendo?

— Jornais.

— Sobre incêndios?

— Ora, que me importam os incêndios! — Olhou Zametov de modo estranho, e nos lábios assomou-lhe novo sorriso de escárnio.

— Não, os incêndios não me interessam — continuou piscando os olhos. — Mas confesse, meu caro, que se empenha em saber o que eu estava lendo.

— Eu? Não faço empenho algum! Perguntei-lhe o que lia para dizer alguma coisa. Havia inconveniência em perguntar-lhe? Por que é que o senhor...

— Ouça: meu amigo é homem instruído, ilustrado, não é verdade?

— Tenho o curso de preparatórios, até o sexto ano — respondeu com ar desvanecido Zametov.

— Até o sexto ano! Oh, que maganão! E traz o cabelo lindamente repartido, anéis... é um felizardo! E bonito! — Dizendo isso, Raskólnikov desatou a rir na cara do chefe de repartição da polícia, que recuou, não ofendido, mas muito surpreendido.

— Que criatura singular! — repetiu com grande seriedade Zametov. — Quer-me parecer que ainda está delirando.

— Eu? Delirando? Está brincando, meu amigo! Com que então sou uma criatura singular? Quer o amigo dizer que me acha curioso, hein? Curioso?

— Sim.

— E deseja saber o que eu lia nos jornais? Veja os números que mandei vir. Isso dá-lhe o que pensar, não é assim?

— Vamos, diga...

— Imagina então que acertou.

— Com quê?

— Depois lhe direi. Agora, meu caro, declaro-lhe, ou antes, confesso. Não, não é bem isso; faço um depoimento e o senhor toma nota! Pois bem, declaro que procurava e achei... — Raskólnikov piscou os olhos e esperou. — Foi até para isso que entrei aqui: os pormenores relativos ao assassínio da velha que emprestava sobre penhores.

Raskólnikov pronunciou as últimas palavras em voz baixa, aproximando o rosto de Zametov, que sustentou fixamente o olhar do rapaz sem pestanejar nem afastar a cabeça. O que mais tarde lhe pareceu estranho foi que, durante um minuto, os dois se olharam sem dizer palavras.

— E que me importa o que o senhor leu? — disse afinal Zametov, irritado com os modos enigmáticos do outro. — Que tenho eu com isso!?

— Sabe? — continuou em voz baixa Raskólnikov, sem reparar na exclamação de Zametov. — É aquela mesma velha de quem falavam outro dia, no comissariado, quando perdi os sentidos. Percebe agora?

— “Percebo agora” o quê? — disse Zametov.

A fisionomia imóvel e sombria do rapaz mudou subitamente de expressão. Raskólnikov soltou de repente uma gargalhada nervosa, que parecia impossível conter.

Assaltara-o uma sensação igual à que experimentara no dia do crime quando, sitiado no quarto da velha por Kokh e Priestriakov, tivera repentinamente o desejo de os insultar, de os escarnecer.

— Olhe, ou o senhor está doido ou... — começou Zametov e deteve-se, impressionado por uma ideia súbita.

— O quê? Que ia dizer? Acabe!

— Não! — replicou Zametov. — Tudo isso é absurdo!

Calaram-se. Depois do acesso de riso, Raskólnikov caiu em sombria meditação. Com o cotovelo apoiado na mesa, a cabeça encostada na mão, parecia ter esquecido completamente o outro.

O silêncio alongava-se.

— Tome seu chá. Está esfriando — observou Zametov.

— Hein?... O quê? O chá?... Ah, sim!

Raskólnikov levou a xícara aos lábios, mastigou um pedaço de pão e, lançando um olhar a Zametov, tranquilizou-se; sua fisionomia retomara a expressão sarcástica.

— Estes crimes são agora muito frequentes. Ainda há pouco tempo li na Moskovskie Viedomosti que tinham prendido em Moscou uma quadrilha de moedeiros falsos. Falsificavam notas de banco.

— Ora, aonde vai isso! Há mais de um mês que eu li esse caso — respondeu calmamente Raskólnikov. — Acha que são criminosos? — acrescentou ele, sorrindo.

— Então que hão de ser?

— São uns néscios, uns patetas; criminosos, não. Juntar-se cinquenta para tal fim! Isso é coisa que se faça? Num caso desses, três já são demais; e é necessário que cada um dos membros da quadrilha tenha mais confiança nos sócios que em si próprio. Não sendo assim, basta que um deles diga uma palavra imprudente e vai tudo por água abaixo. Uns imbecis! Mandam sujeitos em quem não têm confiança absoluta trocar as notas no banco; como se essa missão se pudesse confiar a qualquer um! Mas admitamos a hipótese de que esses idiotas se saiam bem, suponhamos que a operação rendesse um milhão a cada um. E depois? Ficavam eles para toda a vida sob a dependência uns dos outros. Mais vale enforcar-se que viver assim! Nem mesmo souberam passar adiante o papel; um deles apresenta-se num banco, dão-lhe o troco de cinco mil rublos e tremem-lhe as mãos ao receber o dinheiro. Conta quatro mil, mete o quinto milhar no bolso sem contar, tal é a pressa que tem de se ver fora dali. Foi assim que nasceram as suspeitas, e o negócio acabou mal por causa de um só imbecil. Compreende-se isso?

— O quê? Que suas mãos tremessem? — perguntou Zametov. — É claro que se compreende, e acho mesmo o fato natural. Em certos casos não é fácil se dominar.

— Não se poder dominar?

— O senhor poderia? Eu não posso. Pela recompensa de cem rublos, enfrentar essa terrível experiência? Ir com notas falsas a um banco, cujos funcionários têm o dever de verificar sua autenticidade? Não! Eu não poderia fazer tal. O senhor o faria?

Raskólnikov teve novamente o irresistível desejo de dar com a língua nos dentes. Calafrios correram-lhe pela espinha.

— Eu faria diferente — começou Raskólnikov. — Trocaria o dinheiro deste modo: contaria os primeiros mil rublos três ou quatro vezes, para frente e para trás, olhando as cédulas; depois faria o mesmo com o segundo milhar. Chegando à metade, olharia uma nota de cinquenta rublos contra a luz para ver se era falsa e diria: “Temo receber, como um parente meu outro dia, uma nota falsa de 25 rublos.” Depois enredaria o funcionário com uma história. A seguir contaria o terceiro milhar. “Desculpe-me”, diria, “enganei-me na sétima centena, mas não estou bem certo”. Assim, passaria do terceiro ao segundo milhar e retornaria ao primeiro, recontando todo o dinheiro. Tomaria uma cédula do primeiro e do quinto milhar, contrastava-as na luz e pediria ao funcionário para trocá-las. Confundia-o tanto que ele desejaria querer livrar-se de mim. Quando terminasse e tivesse ido embora, regressaria para lhe pedir uma nova informação. Este seria o processo por mim empregado.

— Que processo maquiavélico! — disse Zametov rindo. — Felizmente não passa de uma palestra. Ouso dizer que se o levasse à prática cometeria uma escorregadela. Acredito que um homem decidido a tudo nem sempre possa contar consigo mesmo, muito menos eu e o senhor. Aliás, temos uma prova bem recente. O assassino da velha deve ser um sujeito bem audacioso, porque não hesitou em praticar o crime de dia e nas condições mais arriscadas; só por milagre é que escapou. Pois, apesar disso, as mãos lhe tremeram. Não soube roubar; perdeu a serenidade. Os fatos demonstram-no claramente...

Estas palavras estimularam Raskólnikov.

— Parece-lhe? Pois descubram-no, prendam-no — vociferou, sentindo um grande prazer em provocar o policial.

— Espere, lá chegaremos... Havemos de prendê-lo.

— Quem? O senhor é quem o vai prender? Oh, meu caro, perde seu tempo. O ponto de partida dos senhores é sempre o mesmo: se fulano faz ou não faz despesas. Fulano, que não tinha um copeque, começa de repente a gastar dinheiro como um perdulário: é ele o culpado. Baseando-se nessa lógica, uma criança, se quiser, escapa às suas pesquisas.

— O que é certo é que todos caem do mesmo modo — redarguiu Zametov. — Depois de procederem com uma habilidade e astúcia inexcedíveis, deixam-se apanhar numa taverna; são sempre os gastos que os traem. Nem todos são espertos como o meu amigo. Aposto que o senhor não frequentaria tavernas!

Raskólnikov franziu o sobrolho e fitou Zametov.

— Parece que também deseja saber como eu procederia em tais circunstâncias? — perguntou exaltado.

— Desejava — replicou vivamente o outro.

— Tem muito empenho nisso?

— Tenho.

— Perfeitamente. Pois vai ouvir o que eu faria — começou Raskólnikov em voz baixa, e aproximando-se de Zametov e fitando-o nos olhos. Dessa vez o comissário de polícia estremeceu. — Aqui está o que eu faria: metia no bolso o dinheiro e as joias e procurava sem perda de tempo um local ermo e vedado, um pátio ou uma horta, por exemplo. Depois verificaria se a um canto do pátio, encostada à parede, havia alguma pedra de quarenta ou sessenta libras de peso. Deslocaria essa pedra, e na depressão do terreno causada pelo seu peso depositaria o dinheiro e as joias, depois removeria a pedra para seu lugar, colocava alguma terra junto da base, calçava-a e ia-me embora. Deixava ficar ali o roubo um, dois, três anos. E que o procurassem!

— O senhor está louco! — respondeu Zametov, sem ter uma razão aparente. Pronunciou também estas palavras em voz baixa e afastou-se de Raskólnikov. Os olhos deste brilhavam, o rosto estava pálido, um tremor convulso agitava-lhe o lábio superior. Inclinou-se tanto quanto lhe era possível para o lado do chefe policial, articulando os lábios sem proferir uma única palavra.

Assim decorreu um minuto. Raskólnikov sabia o que fazia, mas não podia conter-se. A terrível confissão estava prestes a escapar-lhe.

— E se fosse eu o assassino? — disse de repente; mas voltou-lhe imediatamente o instinto do perigo.

Zametov olhou para ele com ar estranho e fez-se branco como a cal, a boca franzia num sorriso contrafeito.

— Não é possível! — exclamou ele com voz tão débil que mal se ouvira.

Raskólnikov fitou-o com um olhar perverso.

— Confesse que acreditou. Confesse...

— De modo algum. Agora acredito menos do que nunca — apressou-se Zametov a protestar.

— Afinal sempre confessa, meu caro: acreditou antes, pois agora diz acreditar menos do que nunca.

— Não, de modo algum — protestou Zametov, visivelmente incomodado. — Foi o senhor quem quis insinuar essa ideia!

— Nesse caso, não acredita? E a respeito do que conversavam, no outro dia, quando eu saí do seu gabinete? E para que me interrogou o Pólvora depois de eu ter recuperado os sentidos? Ei, rapaz, quanto devo? — gritou ele ao criado, levantando-se e pegando o boné.

— Trinta copeques — respondeu o criado.

— Aqui estão e mais vinte de gorjeta. Veja que dinheirão eu tenho! — prosseguiu mostrando a Zametov algumas notas. Entre vermelhas e azuis 25 rublos. De onde me vem tanto dinheiro? E como se explica que eu apareça agora tão bem-vestido? O senhor bem sabe que eu não possuía um copeque! A estas horas já obrigará Pachenka a falar... Vamos, basta de conversa!... Até a vista!...

Saiu, agitado por uma estranha sensação. O seu rosto convulsionado parecia o de um homem que acabasse de ter um ataque apoplético. Entretanto, a fadiga foi-se apoderando dele rapidamente. Há pouco, estimulado por uma grande excitação, recuperara subitamente as forças; mas logo que esse estimulante transitório deixou de operar, cedeu o lugar a uma prostração crescente.

Zametov permaneceu por muito tempo ainda no mesmo lugar. Raskólnikov transtornara inopinadamente todas as suas ideias sobre determinado caso e ele estava deveras perplexo.

“Iliá Pietróvitch é uma besta!” — concluiu por fim.

Chegando à porta da rua, Raskólnikov encontrou-se com Razumíkhin, que ia entrar. A distância de um passo os dois ainda não se tinham avistado, e quase esbarram um no outro. Durante algum tempo olharam-se sem trocar palavra; Razumíkhin estava assombrado; mas de repente seu olhar brilhou de cólera.

— Aqui é que te meteste! — gritou com voz trovejante. — Fugiste da cama, peste! E eu a procurar-te por toda parte, até debaixo do divã! E por tua causa quase esbordoei a Nastácia. E aqui está para onde Sua Exa. veio! Ródia, que quer dizer isto? Dize-me a verdade: confessa! Ouves?

— Isso quer dizer que vocês todos estão me aborrecendo muito e quero estar só — respondeu Raskólnikov com a maior tranquilidade.

— Queres ficar só quando ainda não te aguentas em pé, quando estás pálido como um cadáver e nem te podes mexer? Imbecil!... Que vieste fazer no Palácio de Cristal? Responde!

— Deixa-me passar! — replicou Raskólnikov, querendo afastá-lo.

Razumíkhin exasperou-se e agarrou o amigo violentamente pelo ombro.

— Deixa-me passar? Ousas dizer “deixa-me passar”? Sabes o que vou já fazer? Vou levar-te como um traste debaixo do braço para o teu quarto, onde te fecharei à chave.

— Ouve, Razumíkhin — começou Raskólnikov em voz baixa e no tom aparentemente mais severo: como não percebes que eu dispenso os teus favores? E que mania é essa de obsequiar a gente à força e contra a nossa vontade? Que ideia foi essa te instalares à minha cabeceira quando adoeci? Quem te diz que a morte não seria para mim a libertação? Não te disse hoje da forma mais positiva que me martirizavas, que me eras insuportável? Tens prazer em me apoquentar? Crê que tudo isso atrasa a minha cura, trazendo-me numa contínua irritação. Tu bem viste que o Zózimov foi embora para não me afligir; pois deixa-me também, pelo amor de Deus!

Começara com voz calma, deliciando-se de antemão com as venenosas frases que proferia, mas terminou exaltado, arquejante, como se defrontasse com Lujine.

Razumíkhin ficou, por um momento, pensativo, depois largou o braço do amigo.

— Pois vá para o diabo! — disse com desânimo.

Mas logo que Raskólnikov deu o primeiro passo, prosseguiu.

— Escuta! Sabes que eu festejo hoje a estreia da minha nova casa. Talvez mesmo já estejam lá os convidados: meu tio foi incumbido de recebê-los. Ora, se tu não fosses um imbecil, um grande imbecil... olha, Ródia, eu bem sei que és inteligente... mas és também um imbecil! Pois bem! Se não fosses um imbecil, vinhas passar a noite conosco, em vez de gastares as tuas lindas botinas a vadiar por essas ruas, sem destino. Já que fizeste a asneira de sair, aceita o meu convite. Senta-se numa cadeira estofada, que os meus hospedeiros têm... Tomas uma xícara de chá e estás na nossa companhia... Se não te deres bem na cadeira, podes deitar-te na cama; ao menos estarás conosco... Vai também o Zózimov. E tu?

— Não.

— Essa resposta não vale nada replicou com vivacidade Razumíkhin. — Como sabes que não vais? Não podes responder por ti... Quantas vezes me aconteceu mandar ao diabo a sociedade, e depois de a abandonar, voltar apressadamente para ela... Envergonhamo-nos da nossa misantropia e procuramos novamente o nosso semelhante! Vê lá, não te esqueças: casa Pôtchinkof, terceiro andar...

— Senhor Razumíkhin, creio que, por cristalina benevolência, o senhor permite qualquer um agredi-lo.

— Agredir-me? Quem? Pela simples ideia, arrancar-lhe-ia o nariz! Casa Pôtchinkof, número 47, andar de Babúchkine.

— Não vou, Razumíkhin! — E, dizendo isto, Raskólnikov afastou-se.

— Ora, se vais! — gritou-lhe o amigo. Senão... nunca mais nos falamos. Ouve lá, Zametov está aí?

— Está.

— Viu-te?

— Viu.

— E falou-te?

— Sim.

— A propósito de quê? Se não queres dizer, não digas. Casa Pôtchinkof, número 47, quarto Babúchkine. Não te esqueças!

Chegando à Sadovaia, Raskólnikov voltou à esquerda. Depois de o ter seguido com um olhar inquieto, Razumíkhin decidiu-se a entrar; mas a meio da escada, parou.

“Diabos o levem”, disse ele quase em voz alta: “fala com lucidez, como se... Mas que tolo sou às vezes: os doidos nem sempre dizem incoerências! Parecia-me que Zózimov também suspeitava...”, e pôs a ponta do indicador na testa. “E se... como é possível deixá-lo sozinho... É capaz de se jogar no rio... Fiz asneira, não há dúvida. Nada, não há um momento a perder!” E pôs-se a correr na direção que Raskólnikov seguira. Mas não o encontrou e teve de voltar a passos largos ao Palácio de Cristal, para interrogar Zametov.

Raskólnikov caminhou direto à ponte***, parou no meio, apoiou-se ao parapeito e pôs-se a olhar vagamente. Sua fraqueza aumentara tanto, depois de deixar Razumíkhin, que se arrastara até ali com dificuldade. Sentia necessidade de se sentar ou deitar em qualquer parte, mesmo na rua. Inclinado sobre a água, fixava distraidamente o último reflexo do sol no ocaso e o casario sobre que vinham caindo as sombras da noite; uma janela de sótão, na margem esquerda, reverberava em chamas aos últimos raios do sol poente. Por fim, círculos vermelhos ofuscavam-lhe a visão; as casas se moviam, os transeuntes, os bancos, as carruagens dançavam frente a seus olhos. Súbito livrou-se, salvo de desmaio, talvez por sobrenatural e horrível visão. Sentiu alguém parado a seu lado. Era uma mulher alta, com um lenço amarrado na cabeça, de rosto marcado pelo sofrimento, de olhos fundos nas órbitas e injetados, que olhava em sua direção, mas sem ver e reconhecer coisa alguma. Repentinamente, pousou a mão no parapeito, alçou a perna esquerda, em seguida a direita, e lançou-se ao canal. A água imunda abriu-se e acolheu a vítima; a suicida flutuou à deriva na correnteza, com a cabeça e pernas submersas e a saia inflada como um balão.

— Uma mulher se afogando! Uma mulher se afogando! — gritavam vozes; o povo acorria, as margens fervilhavam de espectadores; pessoas, na ponte, rodeavam Raskólnikov espremendo-o de encontro ao parapeito.

— Que Deus se amerceie dela! É Afrosínia! — gritava uma mulher lacrimejante. — Tenham piedade! Salvem-na!

— Um bote! Um bote! — gritavam na multidão. — Mas não havia necessidade de um bote. Um policial descia as escadas até o nível do canal, retirava o capote e as botinas e atirava-se às águas. Era fácil alcançá-la. Flutuava a pequena distância dos degraus da escada. O policial segurava-a com a mão esquerda e com a direita, uma vara que um colega lhe estendia. A mulher que se afogava foi logo retirada da água; colocaram-na no pavimento de granito da murada do canal; em breve, ela recobrava os sentidos, levantava a cabeça, erguia o busto, tossia e espirrava convulsivamente, enxugando, atordoada, com as mãos o vestido encharcado. Ela nada dizia.

— Está desvairada! — A mesma voz feminina gemeu a seu lado. — Desvairada! Outro dia quis enforcar-se e livramo-la do laço. Agora mesmo saí da loja, deixando minha filha cuidar dela — e novamente se meteu em encrenca! É uma vizinha, moramos perto uma da outra; na penúltima casa da rua; é aquela...

A multidão se dispersava. Os policiais permaneciam em torno da mulher. Alguém lembrava o comissariado de polícia. Raskólnikov olhava a cena com estranha sensação de indiferença e apatia. Sentia-se desgostoso. “Isto é asqueroso... água... não é solução”, murmurava consigo mesmo. “Nada poderá daí advir. Para que demorar? Que há com o comissariado de polícia? Por que Zametov não está no comissariado? Costuma fechar às dez horas...”, encostou-se na balaustrada e olhou a seu redor.

— Isto tem de ser! — decidiu ele, deixando a ponte, em direção ao comissariado de polícia. No seu coração fizera-se um grande vácuo. Não sentia a menor angústia. A energia que se havia manifestado nele quando saíra de casa para acabar com “aquilo” cedera o passo a uma grande apatia.

“Afinal, é uma saída!”, resmungava ele enquanto seguia vagarosamente pelo cais do canal. “Assim, ao menos o desenlace é uma consequência da minha vontade. Mas que fim, este! E será mesmo o fim? Confessarei ou não? Ai, que inferno! Já não posso mais. Se eu pudesse deitar-me em algum lugar! O que mais me tortura é a estupidez do caso! Acabou-se, não pensemos mais nisso! Que ideias tolas nos ocorrem às vezes!...”

Para ir ao comissariado de polícia, ele tinha de seguir em linha reta e voltar pela segunda rua à esquerda. Mas, quando chegou à primeira esquina, parou, consultou-se por um momento e entrou no quarteirão.

Percorreu duas ou três ruas sem fim determinado, talvez para ganhar tempo e refletir. De repente, teve a impressão de que alguém lhe murmurava alguma coisa ao ouvido, ergueu os olhos e viu que estava em frente da porta daquela casa. Não voltara ali depois daquilo.

Impelido por uma tentação tão irresistível como inexplicável, entrou, tomou pela escada à direita e dispunha-se a subir ao quarto andar. Parava em cada patamar e olhava curiosamente em redor. No primeiro andar tinham posto um vidro novo na janela. “Este vidro não estava ainda aqui”, pensou ele. Chegou ao segundo andar, junto do quarto onde trabalhavam Micolai e Mitka. “Está fechado; a tinta da porta ainda está fresca; a casa está certamente alugada.” Continuou a subir: terceiro andar, quarto... “É aqui.” Teve um momento de hesitação; a porta estava aberta. Havia gente lá dentro, ouvia-se falar. Raskólnikov não previra essa eventualidade; mas logo tomou uma resolução; subiu os últimos degraus e entrou.

Estavam tratando de proceder a obras. A presença dos operários causou a Raskólnikov profundo espanto. Pensava que ia encontrar o apartamento da velha tal qual o deixara; talvez mesmo julgasse que os cadáveres estariam ainda estendidos no chão. Agora via as paredes nuas, os quartos desguarnecidos de mobília. Aproximou-se da janela e sentou-se no peitoril.

Na sala estavam apenas os operários, dois rapazes da mesma idade aproximadamente. Substituíam o velho papel amarelo por papel branco com flores roxas. Esta circunstância (ignoramos por quê) desagradou a Raskólnikov. Olhava irritado para o papel novo, como se todas essas modificações o contrariassem.

Os operários preparavam-se para sair. Olharam, apenas, para o visitante e continuaram conversando.

— Ela visitou-me de manhã — disse o mais velho dos operários ao outro. — Logo cedo, vestida para sair. “Por que estás toda enfeitada como um pavão?”, disse-lhe. “Estou decidida a fazer de tudo para agradá-lo, Tito Vassilitch.” Este é um dos caminhos que a mulher escolhe. Vestida como por um figurino!

— Que é um figurino? — perguntou o mais novo; na certa, reconhecia no outro uma autoridade.

— Figurino é uma porção de retratos coloridos. Chega do estrangeiro, todos os sábados, para os modistas ensinarem como as pessoas devem vestir-se. São retratos. Os homens usam agora sobretudo de pelos e as mulheres, refolhos. Isto, porém, está acima de tua imaginação.

— Em São Petersburgo encontra-se tudo que se deseja — gritou entusiasticamente o mais jovem. — Exceto nossos pais, tudo o mais é encontrado.

— Afora eles, tudo o mais pode ser encontrado — sentenciou o mais velho.

Raskólnikov levantou-se e entrou no quarto onde antes estavam o cofre, o leito e a cômoda; o quarto sem o mobiliário pareceu-lhe muito pequeno. O papel não fora ainda substituído. No caso ainda se percebia o lugar que o oratório ocupava. Depois de satisfazer sua curiosidade, voltou a sentar-se no peitoril da janela. Um dos operários olhou para ele desconfiado e perguntou:

— Que desejas aqui?

Em vez de responder, Raskólnikov levantou-se, dirigiu-se à porta e pôs-se a puxar o cordão da campainha. Era a mesma, dando o som da folha de flandres! Tocou uma segunda, uma terceira vez, aplicando o ouvido e concentrando-se em suas reminiscências. A impressão horrível que sentira no dia do assassínio à porta da velha voltava-lhe com uma nitidez e vivacidade crescentes; a cada toque da campainha estremecia, sentindo nisso um prazer indescritível.

— Mas que faz? Quem é o senhor? — interrogou com arrogância um dos operários.

— Quero alugar um quarto e vim ver este — respondeu.

— Não se veem cômodos de noite, e quem os pretende faz-se acompanhar pelo dvornik.

— Lavaram o soalho... vão pintá-lo? — prosseguiu Raskólnikov. — Já não se percebem as manchas de sangue?

— Qual sangue?

— O da velha e da irmã que foram assassinadas. Havia aqui uma poça de sangue.

— Mas quem és? — perguntou o operário inquieto.

— Eu?

— Sim.

— Desejas sabê-lo? Acompanha-me ao comissariado, lá eu direi. — Os dois operários olharam para ele surpresos.

— São horas de nos irmos. Anda, Alechka, vamos fechar o quarto — disse um para o outro.

— Então vamos — disse Raskólnikov indiferente. E saiu adiante, descendo vagarosamente a escada. — Eh, dvornik! — gritou, quando chegou ao portão.

Dirigiu-se a um grupo de pessoas que estavam à porta, entre as quais dois dvorniks, uma aldeã e um burguês de robe.

— Que desejas? — perguntou um dos dvorniks.

— Foste ao comissário de polícia?

— Vim agora mesmo de lá, por quê?

— Ainda estão lá?

— Estão.

— E o adjunto do comissário também está?

— Estava há pouco. Mas que queres?

Raskólnikov não respondeu.

— Este senhor veio ver o cômodo — disse um dos operários, aproximando-se do grupo.

— Que cômodo?

— Aquele onde estamos trabalhando. “Por que lavaram o sangue do chão? Aqui houve um assassinato. Vim verificar”, ele nos disse e começou a puxar a campainha, quase desmontando-a. “Venha ao comissariado, lá direi o resto”, acrescentou ainda, sem querer deixar-nos.

O dvornik examinou demoradamente Raskólnikov com o sobrolho franzido.

— Quem és?

— Ródion Românovitch Raskólnikov, estudante, moro aqui próximo, no quarteirão vizinho, casa Chill, quarto número 11. Pergunte ao dvornik...

Deu esta informação com a maior indiferença e tranquilidade, olhando obstinadamente para a rua, sem voltar uma só vez a cabeça para o interlocutor.

— Que foi fazer lá em cima?

— Fui ver o cômodo.

— Para quê?

— E se o prendêssemos e levássemos à delegacia? — propôs o burguês.

Raskólnikov olhou para ele com atenção, por sobre o ombro, e convidou:

— Vamos.

— É claro que devemos levá-lo à polícia! — repetiu com vivacidade o outro. — Se ele foi lá em cima é porque tem alguma coisa a pesar-lhe na consciência.

— Talvez esteja bêbado — lembrou um dos operários.

— Mas que queres? — interrogou novamente o dvornik, que já estava irritado. — Para que vieste incomodar-nos?

— Tens medo de ir ao comissário? — perguntou Raskólnikov, escarnecendo.

— Medo de quê? Ora esta!...

— É um gatuno — disse a aldeã.

— Mas por que havemos de discutir com ele? — interveio o outro dvornik, que era um mujique enorme, com o gibão desabotoado, trazendo um molho de chaves na cintura. — É certamente um gatuno! Anda, põe-te na rua imediatamente.

E, agarrando Raskólnikov por um braço, empurrou-o violentamente.

Ródion por um triz não foi ao chão. Equilibrando-se, olhou toda aquela gente sem proferir palavra e afastou-se.

— Que figura singular — observou um dos operários.

— Há agora tanta gente assim! — exclamou a aldeã.

— Devíamos levá-lo à delegacia! — insistiu o burguês.

— É melhor não se meter com ele! — decidiu o dvornik corpulento. — É um ladrão! Ele quer é isto, esteja certo... se lhe der o dedo, ele lhe tomará a mão... Conheço esse canalha!

“Irei ou não?”, pensava Raskólnikov, parado e olhando em redor como se esperasse ouvir a opinião de alguém. Mas a pergunta não obteve resposta; tudo em volta dele era mudo como as pedras da calçada... Subitamente, a duzentos passos de distância, no extremo de uma rua, distinguiu um grupo de onde saíam gritos, palavras proferidas com vivacidade... Rodeavam uma carruagem... “Que será aquilo?” Raskólnikov seguiu à direita e dirigiu-se para lá, metendo-se entre a multidão. Dir-se-ia que queria distrair-se, preocupar-se com o menor incidente, e este pueril desejo fazia-o sorrir, porque tomara uma resolução e chegara a convencer-se de que, momentos depois, “acabaria com tudo aquilo”.


Capítulo VII

No meio da rua estava parada uma magnífica carruagem particular, tirada por uma parelha de cavalos baios. Dentro não havia ninguém e o próprio cocheiro descera da boleia. Os cavalos estavam seguros pelo freio. Em volta da carruagem uma multidão de curiosos era dificilmente contida por policiais. Um deles, com uma lanterna, curvado para a calçada, iluminava o que quer que fosse que estava junto das rodas do carro. Toda aquela gente falava e gesticulava consternada. O cocheiro, desorientado, só dizia de quando em quando:

— Que desgraça, que desgraça!

Raskólnikov abriu a custo caminho por entre a multidão e viu finalmente o que dera motivo a tal ajuntamento. Por terra, ensanguentado e inerte, jazia um homem que acabava de ser atropelado pelos cavalos.

Embora estivesse mal vestido, via-se que não era um plebeu. Do crânio e do rosto jorrava sangue por horríveis feridas. Facilmente se compreendia que o desastre era muito grave.

— Meu Deus! — exclamava o cocheiro. — Não era possível evitar isto! Se os cavalos viessem a galope, a culpa era minha; mas a carruagem seguia vagarosamente, como muita gente viu. Infelizmente um bêbado nunca atende a coisa alguma. Eu vi-o atravessar a rua cambaleando, gritei-lhe que se arredasse três vezes! Freio os cavalos; mas o homem caminha direto para eles, como se o fizesse de propósito! Os animais são fogosos, não pude contê-los, e ele gritou, o que ainda os assustou ainda mais... E assim se deu esta desgraça!

— Sim, foi isso mesmo — confirmou um dos presentes.

— Exatamente; o cocheiro gritou-lhe três vezes que se arredasse — disse outro sujeito.

— Gritou mesmo — informou um terceiro.

O cocheiro, porém, não se mostrava preocupado com as consequências do caso. Evidentemente, o dono da carruagem era personagem rica e altamente colocada; esta circunstância determinou, especialmente, a benevolência dos agentes de polícia. Entretanto, era necessário remover sem demora o ferido para o hospital. Ninguém, porém, o conhecia.

Mas Raskólnikov, que à força de encontrões conseguira aproximar-se, reconheceu à luz da lanterna o infeliz.

— Eu conheço-o! — Conheço-o! exclamou ele, ao passo que, afastando as pessoas que o rodeavam, chegava à primeira fila de curiosos. É um antigo funcionário, o conselheiro honorário Marmêladov! Mora aqui perto, na casa Kozel... Chamem um médico, depressa! Eu pago, aqui está o dinheiro!

E, tirando efetivamente dinheiro do bolso, mostrou-o a um policial. Estava extraordinariamente agitado.

Os agentes de polícia ficaram satisfeitos por se tornar conhecida a identidade da vítima. Raskólnikov deu nome e endereço e solicitou com a maior energia que o ferido fosse imediatamente transportado para casa. Se se tratasse do próprio pai ele não teria mostrado mais zelo.

— É aqui perto — dizia ele —, em casa de Kozel, um alemão rico... Provavelmente recolhia-se à casa bêbado... eu conheço-o, é um odre... Vive com a família; tem mulher e filhos. Antes de o levarem para o hospital, será bom que o médico veja; aqui perto deve haver algum. Eu pago, eu pago!... No estado em que ele está, se o não socorrerem imediatamente, não chega vivo ao hospital.

Meteu algum dinheiro na mão de um dos agentes de polícia. Afinal, o que ele queria era perfeitamente regular. Levantaram Marmêladov e alguns homens ofereceram-se espontaneamente para o transporte do ferido a seu domicílio. A casa Kozel ficava a uns trinta passos do local do desastre. Raskólnikov seguia atrás, sustentando com caridosa precaução a cabeça do ferido e indicando o caminho.

— Aqui! Aqui! Cuidado na escada; é preciso que ele não vá com a cabeça pendente. Virem... assim! Eu pago, eu pago tudo! Obrigado!

Nesse momento, Catarina Ivanovna passeava, como lhe sucedia sempre que tinha um momento de descanso, em todo o comprimento do seu cubículo; ia da janela ao fogão e do fogão à janela, com os braços cruzados sobre o peito, monologando e tossindo. Ultimamente conversava mais amiúde com sua filha mais velha, Polenka. Embora a criança, que apenas tinha dez anos, não percebesse muita coisa, compreendia, no entanto, a necessidade que a mãe tinha dela; seus grandes olhos inteligentes fixavam-se em Catarina Ivanovna, e, logo que a mãe dirigia-se a ela, diligenciava compreender, ou pelo menos parecer que compreendia.

Polenka despia o irmão, que durante o dia estivera doente e ia deitar-se. Enquanto esperava que lhe tirassem a camisa, para a lavarem durante a noite, a criança, com a fisionomia muito grave, estava sentada numa cadeira, silenciosa e imóvel, ouvindo com os olhos muito abertos o que a mãe dizia à irmã. A pequenina Lidotchka, vestida de farrapos, esperava sua vez de pé, junto ao biombo. A porta que abria para o patamar estava aberta a fim de deixar sair a fumaça de tabaco que vinha do quarto próximo, e que fazia tossir cruelmente a tuberculosa. Catarina parecia ainda mais abatida do que oito dias antes; as sinistras rosetas das faces tinham agora um colorido mais intenso.

— Tu não podes fazer ideia, Polenka — dizia ela passeando —, como a vida era brilhante e alegre em casa de meu pai, e quanto aquele bêbado nos fez a todos desgraçados. Meu pai tinha um emprego civil que correspondia ao posto de coronel; era quase governador: mais um degrau subido na escala, e seria governador. Toda a gente lhe dizia: “Ivã Mikailitch, nós já o consideramos nosso governador...” — Continuou arquejante e exaltada — Quando eu... Oh, vida três vezes maldita! — Procurou clarear a voz e apertou as mãos contra o peito. — Quando no último baile... no palácio do marechal... Quando a princesa Bezzemélni me viu — aquela que me abençoou, quando teu pai e eu nos casamos, Polenka — perguntou imediatamente: “Não é esta a linda menina que se exibiu na dança dos véus no final do baile?” (Deves enxugar tuas lágrimas, Pólia; deves ganhar agulha e linha, como te ensinei, e coser, ou amanhã, tossiu, o rasgão estará maior, disse com grande esforço.) O príncipe Chegolskói, um pajem, havia chegado de São Petersburgo... dançou comigo a mazurca e propôs-me casamento no dia seguinte, mas agradeci-lhe polidamente, e disse que meu coração, de há muito, pertencia a outro. O outro era teu pai, Pólia; meu pai ficou aborrecidíssimo... A água está pronta. Dá-me a camisa. E as meias. Lídia — disse ela dirigindo-se à pequenina —, esta noite dormes sem camisa... põe as meias... lava-se tudo junto. E aquele bêbado sem voltar!... queria lavar também a camisa dele, para não ter de me fatigar duas noites seguidas!... Senhor! Que será? — disse vendo o vestíbulo encher-se de gente e que entravam no quarto alguns homens trazendo uma espécie de fardo. — Que é isso? Que trazem aí? Meu Deus!

— Onde o colocamos? — perguntou um policial olhando em redor, enquanto introduziam no quarto Marmêladov coberto de sangue e sem sentidos.

— No divã! Estendam-no ao comprido no divã... A cabeça para este lado — indicou solicitadamente Raskólnikov.

— É um bêbado que foi atropelado! — informou alguém no vestíbulo. Catarina Ivanovna, muito pálida, respirava dificilmente. As crianças estavam aterradas. Lidotchka correu para a irmã mais velha e, toda trêmula, abraçou-a. Depois de ter ajudado a deitar Marmêladov no divã, Raskólnikov dirigiu-se a Catarina Ivanovna:

— Tranquilize-se, não se assuste! — disse ele com vivacidade. — Ele ia atravessar a rua e uma carruagem atropelou-o. Não se aflija, vai recuperar os sentidos... Mandei transportá-lo para aqui... Eu já estive aqui, talvez não se lembre... Ele há de voltar a si... eu pagarei tudo!

— Não resiste a esta! — exclamou Catarina correndo para o marido inanimado.

Raskólnikov percebeu logo que a mulher não perdia facilmente a presença de espírito. A cabeça do infeliz já descansava numa almofada, o que a ninguém ainda ocorrera.

Catarina começou a despir Marmêladov, a examinar-lhe as feridas, a dispensar-lhe os mais diligentes cuidados. Apesar da comoção, não perdia a serenidade; mordia os beiços trêmulos e reprimia no peito gritos de angústia.

Entretanto, Raskólnikov conseguira que alguém fosse chamar um médico que morava numa casa próxima.

— Mandei chamar um médico — disse ele a Catarina —, não se aflija, eu pago tudo! Não tem água... Dê-me também uma toalha, um pano qualquer, depressa; ainda não se pode avaliar a gravidade dos ferimentos... Ele está ferido, mas não morto, creia... veremos o que diz o médico.

Catarina correu à janela, junto da qual em uma velha cadeira estava uma bacia de água, que ela destinava à lavagem da roupa do marido e dos filhos. Esta tarefa noturna fazia-a com as próprias mãos, pelo menos duas vezes por semana, porque haviam chegado a tal miséria que lhes faltava absolutamente roupa para mudarem. Cada um possuía apenas a camisa que trazia vestida. Ora, Catarina não tolerava a falta de asseio, e preferia fatigar-se lavando de noite a roupa de toda a família para que no dia seguinte a encontrassem lavada e engomada, a consentir que na sua miserável casa houvesse falta de limpeza.

Logo que Raskólnikov lhe pediu água, ela trouxe a bacia, com esforço. O rapaz, tendo encontrado uma toalha, molhou-a e lavou o rosto ensanguentado de Marmêladov. Catarina, de pé, ao lado de Raskólnikov, respirava a custo e apertava as mãos contra o peito. “Talvez procedesse mal mandando-o transportar para aqui”, pensava Raskólnikov.

O policial não sabia também o que havia de fazer.

— Pólia! — gritou Catarina. — Corre à casa de Sônia e dize-lhe que o pai foi atropelado por uma carruagem; que venha imediatamente. Se não a encontrares em casa, dize aos Kapernáumof que lhe deem a notícia logo que ela volte. Depressa, Pólia! Põe este lenço na cabeça!

— Vá depressa! — gritou de repente o menino, que retornou ao silêncio e imobilidade anteriores, com os olhos esbugalhados, os calcanhares para a frente e os artelhos separados.

Entretanto, entrava tanta gente no quarto que um alfinete não cairia no chão. Os policiais saíram; ficou apenas um que fazia recuar a multidão para o patamar. Mas, enquanto procedia a esta operação, pela porta interior entravam no quarto quase todos os inquilinos da sra. Lippelvechzel, aglomerando-se primeiro à entrada e invadindo depois o aposento. Catarina Ivanovna encolerizou-se.

— Ao menos deixem-no morrer em paz! — gritou ela. Vêm ver o espetáculo, de cigarro na boca! De chapéu na cabeça!... Saiam! Tenham respeito pela morte!

A tosse que a sufocava não lhe deixou proferir mais uma palavra; mas a severa reprimenda produziu o efeito desejado; os inquilinos, que pareciam ter receio de Catarina, foram saindo aos poucos, levando no coração aquele vago sentimento de satisfação que ainda o homem mais compassivo não deixa de experimentar à vista da desgraça alheia.

Logo que saíram, suas vozes fizeram-se ouvir do outro lado da porta, dizendo que se devia mandar o ferido para o hospital, a fim de não perturbar o sossego da casa.

— Já a morte perturba! — vociferou Catarina preparando-se para os fulminar com sua indignação. Mas quando corria para a porta de comunicação, encontrou-se com a sra. Lippelvechzel, que vinha estabelecer a ordem. Era uma alemã insuportavelmente malcriada.

— Meu Deus! — exclamou ela juntando as mãos. — Seu marido estava bêbado, foi atropelado por uma carruagem?... Que vá para o hospital! Sou dona da casa...

— Amália Ludvigovna, pense no que está dizendo! — começou Catarina em tom exaltado. Era assim que ela costumava falar-lhe para chamá-la “ao caminho das conveniências” e, mesmo em tal momento, não pôde esquivar-se a esse prazer. — Amália Ludvigovna!...

— Já lhe disse mil vezes que não me chamo Amália Ludvigovna; sou Amália Ivanovna!

— A senhora não é Amália Ivanovna, é Amália Ludvigovna, e como eu não faço parte do grupo dos seus aduladores, como o sr. Lebeziátnikov, que deve estar agora a rir-se por trás da porta (“Lá vão elas agatanhar-se! Kss, kss!”, diziam efetivamente no quarto próximo), hei de chamar-lhe sempre Amália Ludvigovna, embora não perceba o motivo por que este apelido não lhe agrada. A senhora sabe o que sucedeu a Sêmen Zakaróvitch e que ele está a expirar. Façam-me o favor de fechar aquela porta e não deixar entrar ninguém. Deixem-no morrer em paz! Senão afianço-lhe que amanhã o governador-geral saberá do seu procedimento. O príncipe conhece-me de pequena, e lembra-se muito bem de Sêmen Zakaróvitch, a quem mais de uma vez prestou serviços. Toda a gente sabe que meu marido tinha muitos amigos que o protegiam; foi ele próprio que, cônscio do seu desgraçado vício, deixou de procurá-los por um sentimento de nobre delicadeza; mas agora — continuou ela, indicando Raskólnikov — encontramos proteção neste generoso rapaz que é rico, está bem relacionado e era desde criança amigo de Sêmen Zakaróvitch. Não tenha dúvida, Amália Ludvigovna...

Falava com grande rapidez; mas a tosse interrompeu-a bruscamente. Neste momento, Marmêladov, voltando a si, soltou um gemido. Ela correu para junto do marido, que sem perceber o que se passava, olhava para Raskólnikov, que estava de pé, à cabeceira. Respirava a custo com os cantos da boca sujos de sangue e a fronte coberta de suor. Catarina dirigiu-lhe um olhar aflito e severo, mas bem depressa as lágrimas lhe saltaram dos olhos.

— Meu Deus! Ele tem o peito esmagado! Que quantidade de sangue! É preciso tirar-lhe toda a roupa. Vira-te, se podes, Sêmen Zakaróvitch — disse-lhe ela.

Marmêladov reconheceu-a.

— Um padre! — murmurou.

Catarina foi para junto da janela, encostou a cabeça nos vidros e exclamou no auge do desespero: “Oh, vida três vezes maldita!”

— Um padre! — repetiu o moribundo depois de um minuto de silêncio.

— Chut! — fez Catarina. Ele obedeceu, calou-se. Seus olhos procuravam a mulher com uma expressão de timidez e ansiedade. Ela voltou para a cabeceira. Marmêladov sossegou um pouco, mas não foi por muito tempo. O olhar vago demorou-se sobre a sua favorita, Lidotchka, que tremia convulsivamente e fitava-o com os grandes olhos de criança aterrada.

— Ah... Ah! — disse ele agitadamente, indicando a criança. Percebia-se que queria dizer alguma coisa.

— Que é? — perguntou Catarina.

— Ela não tem sapatos! — murmurou aflitivamente, e seu olhar não se desviava dos pés descalços da pequenina.

— Cala-te! Tu bem sabes por que ela não tem sapatos!

— Graças a Deus, aí vem o médico! — exclamou Raskólnikov.

Entrou um velho alemão com ares metódicos, olhando em redor, desconfiado. Aproximou-se do ferido, tomou-lhe o pulso, examinou demoradamente a cabeça, depois, auxiliado por Catarina, desabotoou a camisa ensanguentada e descobriu o peito, que pareceu horrivelmente esmagado. No lado direito havia algumas costelas partidas; no esquerdo, junto do coração, via-se uma grande nódoa negra orlada de amarelo causada por uma patada de cavalo. O médico não estava satisfeito. O agente de polícia que o fora chamar contara-lhe que o atropelado ficara entalado numa roda e assim fora arrastado numa distância de trinta passos.

— Parece incrível que ainda viva — disse dirigindo-se a Raskólnikov.

— Então? — perguntou este.

— Nada há que fazer. Está perdido.

— Não tem esperança?...

— Nenhuma. Está a expirar... A ferida na cabeça é gravíssima... Podia tentar uma sangria... Mas tudo o que se fizesse seria inútil. Não consegue viver mais de dez minutos.

— Mas tente...

— Pois sim. Mas previno-o de que isso de nada servirá.

Neste momento ouvia-se um novo ruído de passos, a gente que se aglomerava no patamar abriu passagem, e no limiar apareceu um padre de cabelos brancos. Trazia a extrema-unção ao moribundo. O médico cedeu o lugar ao padre, com quem trocou um olhar de inteligência. Raskólnikov pediu-lhe que se demorasse um pouco, ao que ele acedeu, encolhendo os ombros.

Afastaram-se todos. A confissão foi rápida: Marmêladov já não compreendia o que se lhe dizia; apenas proferia sons ininteligíveis. Catarina ajoelhou-se ao canto, próximo do fogão, e mandou ajoelhar os filhos. A pequenina Lidotchka tremia sempre, o pequeno, em camisa, imitava os sinais da cruz que a mãe fazia e prosternava-se arrojando a fronte ao chão; parecia ter nisto um prazer especial. Catarina, mordendo os lábios, continha as lágrimas. Ao passo que orava, ia compondo a criança irrequieta. Sem interromper a oração nem se levantar, tirou da gaveta da cômoda um lenço que lançou sobre os ombros nus de Lidotchka. Entretanto, a porta de comunicação foi de novo aberta pelos inquilinos e no vestíbulo crescia também o número de espectadores. Todos os inquilinos dos outros andares estavam ali reunidos, não ousando transpor o limiar. A cena era apenas iluminada por um coto de vela.

Polenka, que fora buscar a irmã, atravessou rapidamente por entre toda a gente que se apinhava à porta. Quando entrou, mal podia respirar. Depois de se desembaraçar do lenço procurou com o olhar a mãe, aproximou-se dela e disse-lhe: “Ela já vem; encontrei-a na rua!” Catarina Ivanovna mandou-a ajoelhar-se. Sônia, timidamente, abriu caminho por entre a multidão. Nesse cubículo, onde reinavam a miséria, o desespero e a morte, sua aparição produziu um efeito estranho. Embora pobremente vestida, trajava com a elegância especial das Messalinas de viela. Chegando à porta, não transpôs o limiar e lançou em redor um olhar de espanto.

Parecia ter perdido a consciência de tudo e ter-se esquecido do seu vestido de seda comprado em segunda mão, cuja cor berrante e a cauda exagerada estavam ali muito deslocadas; da sua enorme saia-balão, que tomava a porta em toda a largura; das suas botinas; do guarda-chuva que trazia sem necessidade; do seu espantoso chapéu de palha ornado com uma pluma encarnada. Sob esse chapéu, petulantemente inclinado de um lado, via-se um rostinho doentio e pálido, com a boca entreaberta e os olhos numa imobilidade de terror. Sônia tinha dezoito anos. Era loura, pequenina e magra, mas discretamente formosa; seus olhos claros eram realmente bonitos. Olhava para o corpo inanimado do pai e para o padre. Polenka estava cansadíssima pela pressa com que viera. Por fim, algumas palavras proferidas pela multidão chegaram-lhe aos ouvidos. Baixando um pouco a cabeça, transpôs o limiar e entrou no quarto, mas parou logo.

O moribundo recebera a bênção e a esposa voltara para junto dele. Antes de se retirar, o padre dirigiu a Catarina algumas palavras consoladoras.

— Que será deles! — murmurava ela com desespero, indicando as crianças.

— Deus é infinitamente bom e misericordioso; espere o seu socorro, respondeu o sacerdote.

— É, é bom, é misericordioso, mas não para nós!

— Isso é um pecado, senhora, uma blasfêmia — observou o padre.

— E isto que é? — perguntou apontando o moribundo.

— É possível que os que a privaram involuntariamente do marido, que era o seu amparo, a socorram.

— O senhor não me entende! — exclamou irritada Catarina Ivanovna. — Por que me haviam de socorrer? Foi ele que, embriagado, se atirou debaixo das patas dos cavalos! Ele, o meu amparo! Ele nunca foi para mim senão um tormento. Deixava-nos sem pão para ir beber na taverna com o dinheiro de casa. Deus foi misericordioso livrando-nos dele!

— A um moribundo perdoa-se, senhora; esses sentimentos são um enorme pecado!

Enquanto conversava com o padre, Catarina não deixara de cuidar do ferido; dava-lhe de beber, limpava-lhe o suor e o sangue da cabeça, ajeitava-lhe a cabeceira. As últimas palavras do padre encolerizaram-na.

— Ora, palavras, palavras e mais nada! Perdoar! Hoje, se não tivesse sido atropelado, teria voltado bêbado. Como nem tem outra camisa, senão a que traz vestida, eu teria de lavá-la, enquanto ele dormisse, juntamente com a roupa dos pequenos. Depois tinha de pôr tudo a secar para passar a ferro de manhã. Aí está como eu passo as noites. E ainda me vem falar de perdão! Mais do que devia já eu lhe perdoei!

Um violento acesso de tosse impediu-a de continuar. Escarrou num lenço, ao passo que comprimia dolorosamente o peito. O lenço estava todo manchado de sangue.

O padre curvou a cabeça e silenciou.

Marmêladov agonizava. Seus olhos cravaram-se no rosto da mulher, que de novo se inclinara sobre ele. Parecia querer dizer alguma coisa, percebia-se que tentava um esforço para falar, mas só proferia sons inarticulados. Catarina, compreendendo que ele queria pedir perdão, gritou-lhe imperiosamente:

— Cala-te! É escusado... Já sei o que queres dizer.

O ferido calou-se e seu olhar, seguindo na direção da porta, encontrou-se com o de Sônia...

Até então não dera pela presença dela no canto mal-iluminado onde a rapariga se deixara ficar.

— Quem está aí? Quem é? — disse ele subitamente com voz débil e estertorosa, olhando aterrado para a porta junto da qual a filha se conservava de pé, e tentando erguer-se.

— Não te levantes, fica quieto! — gritou Catarina.

Mas, com esforço sobre-humano, Marmêladov conseguiu erguer-se sobre o cotovelo. Fitou a filha fixamente. Parecia não reconhecê-la; aliás, era a primeira vez que a via assim vestida.

Tímida, corando de humilhação, envergonhada das suas garridices canalhas de meretriz, a infeliz esperava com humildade que lhe fosse permitido despedir-se do pai. De repente, ele reconheceu-a e no seu rosto desfigurado espalhou-se uma nuvem de imensa amargura.

— Sônia!... Minha filha!... Perdoa-me! — exclamou. Quis estender-lhe a mão, mas perdendo o ponto de apoio, caiu pesadamente no chão. Levantaram-no e estenderam-no expirante no leito. Sônia soltou um grito, correu para o pai e abraçou-o. Marmêladov expirou nos braços da filha.

— Está morto! — exclamou Catarina contemplando o cadáver do marido. — Que irei fazer agora? Onde hei de arranjar dinheiro para o enterro? Que hão de comer estas crianças amanhã?

Raskólnikov aproximou-se dela.

— Catarina Ivanovna — disse ele —, há dias Marmêladov contou-me sobre sua vida; sei das suas dificuldades... Ele referia-se à senhora com uma estima que era quase adoração. A partir desse dia, vendo quanto ele amava os seus, quanto, especialmente, a honrava e apreciava, Catarina a despeito do seu desgraçado vício, dei-lhe a minha amizade... Consinta, que neste doloroso momento... a auxilie no cumprimento dos últimos deveres para com o meu falecido amigo. Aqui ficam... vinte rublos, e se eu lhe for necessário para alguma coisa, enfim... virei certamente vê-los amanhã...

E saiu rapidamente; mas no vestíbulo encontrou-se com Nikodim Fomitch, que, sabedor do desastre, vinha cumprir os deveres que seu cargo lhe impunha. Não tornara a visitar Raskólnikov depois que o encontrara no comissariado, mas reconheceu-o imediatamente.

— O senhor aqui? — perguntou ele.

— Morreu agora — disse Raskólnikov. — Teve os socorros da ciência e da religião; nada lhe faltou. Não aborreça muito a pobre mulher; ela é tuberculosa e esta desgraça talvez a leve mais depressa à sepultura. Anime-a, se puder... Eu sei que o senhor é bondoso... — acrescentou sorrindo e encarando o comissário.

— Mas o senhor está manchado de sangue — observou Nikodim Fomitch, apontando algumas nódoas no colete de Raskólnikov.

— Sim... Estou coberto de sangue — disse Raskólnikov, com segunda intenção; ele sorriu, cumprimentou com a cabeça e começou a descer as escadas.

Desceu-as vagarosamente. Agitava-lhe todo o corpo um arrepio; sentia afluir-lhe ao coração um sangue novo e rico. Esta sensação poderia comparar-se à de um condenado à morte, a quem inesperadamente viessem dar a notícia de que estava perdoado. No meio da escada afastou-se para deixar passar o padre. Os dois trocaram uma saudação cerimoniosa e muda. Mas, quando descia os últimos degraus, Raskólnikov ouviu passos apressados atrás de si, de alguém que queria alcançá-lo. Era Polenka, que descia rapidamente a escada gritando-lhe: “Espere-me! Espere-me!”

Voltou-se para a jovem, que já vinha no último lance e parou em frente dele. Do pátio vinha uma luz fraca. Raskólnikov olhou fixamente o rosto chupado, mas formoso, da pequenina, que sorria para ele e o fitava com seus grandes e ternos olhos. Tinham-na encarregado de uma missão que lhe era evidentemente agradável.

— Como se chama o senhor?... Onde mora? — perguntou ela rapidamente.

Raskólnikov apoiou as mãos nos ombros da criança e pousou nela os olhos, que brilhavam de felicidade. Por que experimentava um tal prazer ao contemplar a pequenina? Nem ele próprio o sabia.

— Quem a mandou fazer-me essas perguntas?

— Foi Sônia — respondeu ela sorrindo.

— Eu já calculava que vinha a mando de Sônia.

— E da mamãe, também. Sônia foi quem me mandou, mas mamãe disse logo: “Vá depressa, Polenka!”

— É amiga de Sônia?

— Mais do que ninguém! — respondeu vivamente Polenka; e seu sorriso tomou uma expressão grave.

— E de mim? Vai ser minha amiga?

Por única resposta a criança chegou o rosto ao de Raskólnikov e estendeu os lábios para o beijar. Seus bracinhos magros cingiram o pescoço de Ródion, e inclinando a cabeça sobre o ombro do rapaz, desatou a chorar.

— Pobre papai! — disse pouco depois erguendo a cabeça e limpando as lágrimas com as mãos. — Para nós só existem desgraças — acrescentou tristemente, como se compreendesse toda a sua desventura.

— Papai era seu amigo?

— Ele gostava mais de Lidotchka — respondeu ela. — Era a sua predileta por ser a menor e porque é muito doentinha. Trazia-lhe sempre presentes. A nós ensinava-nos a ler e a mim dava-me lições de gramática e das Escrituras — acrescentou com dignidade. — Mamãe não dizia nada, mas nós percebíamos que isso lhe agradava. Mamãe quer ensinar-me francês, porque diz que já é tempo de principiar a minha educação.

— E já sabes rezar?

— Se sei rezar? Há muito tempo! Eu, como sou a mais velha, rezo só; Kólia e Lidotchka rezam em voz alta com mamãe. Dizem primeiro a ladainha de Nossa Senhora, depois o “Meu Deus, concedei o vosso perdão e a vossa bênção à nossa irmã Sônia” e depois o “Meu Deus concedei o vosso perdão e a vossa bênção ao outro papai”, porque nós tínhamos um pai que morreu há muito tempo; este era outro, mas nós também rezávamos pelo primeiro.

— Poletchka, chamo-me Ródion; quando se lembrar reze também por mim: “Perdoai também o vosso servo Ródion”; apenas isto.

— Hei de rezar sempre pelo senhor — respondeu com vivacidade a criança, tornando a abraçá-lo ternamente.

Raskólnikov disse-lhe o nome e endereço e prometeu voltar no dia seguinte. A pequena estava encantada. Tinham dado dez horas quando Ródion saiu.

“Basta”, disse ele consigo, “acabaram-se os espectros, os fantasmas e os vãos terrores! Ainda vivo! Não senti eu que vivia, há pouco? Minha vida não terminou com a da velha! Deus tenha em paz a tua alma, mulher, mas também já é tempo de deixares a minha em sossego! Agora que recobrei a inteligência, a vontade, a energia, veremos!” — Agora, viverei! — exclamou como que lançando um repto a algum poder invisível.

“Por enquanto, estou muito fraco, mas... já não estou doente. Quando saí de casa, sabia perfeitamente que a doença não tardaria a abandonar-me. Espera... A casa Pôtchinkof fica aqui perto. Vou visitar Razumíkhin... Deixá-lo ganhar a aposta. Vai caçoar de mim, mas não me importa... A força é necessária, sem ela nada se faz; mas a força é que origina a força e isso é o que eles ignoram”, concluiu com convicção. Sua audácia, a confiança em si mesmo, aumentava de momento a momento. Raskólnikov sentia operar-se nele uma rápida transformação. Que acontecera para provocar-lhe esta transformação? Ele próprio não sabia. Como um homem correndo atrás de uma palha, soprada pelo vento, sentia que também podia viver, que sua vida não acabara com a daquela velha. Talvez suas conclusões fossem muito apressadas, mas não sabia o que pensar daquilo tudo.

“Eu pedi a ela que se lembrasse do ‘servo Ródion em suas preces’”, foi a ideia que lhe ocorreu. “Bem, isto foi... uma emergência”, acrescentou e riu-se de sua ingenuidade infantil. Estava bem-humorado.

Não teve dificuldade em encontrar o apartamento de Razumíkhin. No edifício Pôtchinkof o novo inquilino era já conhecido. A meio da escada Raskólnikov ouvia o rumor da animada reunião. A porta que dava para o patamar estava aberta.

A parte do andar ocupada por Razumíkhin era bastante espaçosa; estavam lá umas 15 pessoas. O visitante parou na primeira sala, onde havia dois samovares, garrafas, pratos, tabuleiros cheios de pastéis e sanduíches e duas criadas que andavam em volta de tudo isso. Raskólnikov mandou chamar Razumíkhin, que não se fez esperar, muito bem-disposto. Notava-se logo à primeira vista que bebera, e embora, em geral, fosse quase impossível ao estudante embriagar-se nesta ocasião via-se que a regra sofrera exceção.

— Sabes? — começou Raskólnikov. — Vim só para te dizer que ganhaste a aposta e que, na verdade, ninguém sabe o que irá acontecer-lhe. Mas não entro; sinto-me ainda muito fraco; não me aguento nas pernas. Adeus; passa amanhã lá por casa.

— Espera, vou acompanhar-te. Tu estás assim...

— E os teus convidados? Quem é aquele homenzinho de cabelo frisado que entreabriu a porta?

— Creio que nem o diabo sabe quem ele é. Talvez algum amigo de meu tio ou um gaiato qualquer que veio sem convite... Ficam com meu tio: é uma criatura que vale o que pesa em ouro. Sinto que não possas conhecê-lo hoje. Aliás, que o diabo os leve a todos. Já não os posso tolerar! Tenho necessidade de ar; nunca chegaste tanto a propósito, meu amigo. Se não aparecesses, dentro de dois minutos toda esta malta sentiria o peso das minhas mãos. Dizem tanta tolice... Tu não podes imaginar as divagações de que um homem é capaz. E, afinal de contas, podes. Não estamos nós aqui a divagar? Deixá-los dizer tolices: eles hão de acabar... Espera um momento, vou buscar o Zózimov.

O médico veio imediatamente. Ao ver o cliente manifestou surpresa.

— É preciso ir deitar-se já — disse ele. — Seria conveniente tomar qualquer coisa que lhe provocasse um sono tranquilo. Olhe, aqui tem um medicamento que preparei especialmente para o senhor. Quer tomá-lo?

— Certamente — respondeu Raskólnikov.

— Acompanha-o — observou Zózimov a Razumíkhin. — Amanhã veremos como ele está; por agora vai bem. Operou-se uma diferença notável de ainda agora para cá. Vivendo é que se aprende...

— Queres saber o que Zózimov me disse há pouco? — começou Razumíkhin com a voz perturbada pelo álcool, logo que chegou à rua. — Recomendou-me que te fizesse falar e o informasse depois das tuas palavras. Cismou que tu estás doido ou quase! Já viste pateta assim? Em primeiro lugar tu és muitíssimo mais inteligente do que ele; depois, como não estás doido, podes rir-te da opinião que faz de ti; e em terceiro lugar aquela bola de carne, cuja especialidade é a cirurgia, há tempos não pensa senão em afecções mentais. Mas modificou seu diagnóstico por causa da conversa que tiveste com Zametov.

— Zametov contou-te isso?

— Disse-me tudo e fez muito bem. Agora já percebemos toda a história. Sim, em resumo, Ródia... a verdade é... Olha que eu estou embriagado, mas não há que ver... O caso é que aquela ideia... aquela ideia tinha ocorrido aos dois... tu entendes? Nenhum deles se atrevia a dizer o que pensava, porque era um absurdo enorme; mas, logo que prenderam o pintor, tudo caiu por terra. Eu então virei-me contra Zametov (isto aqui para nós; peço-te encarecidamente que não dês a entender que o sabes; ele é cheio de suscetibilidades). Foi em casa de Luísa que o caso se passou — mas agora está tudo explicado. Foi principalmente Iliá Pietróvitch. Desconfiava por causa da síncope que tiveste no comissariado, mas foi o primeiro a arrepender-se de tal suposição; eu sei perfeitamente.

Raskólnikov ouvia-o com atenção e ansiedade. Sob a ação do álcool, o outro falava inconsideradamente.

— A síncope foi em resultado do excessivo calor e do cheiro de tinta. Eu sufocava — disse Raskólnikov.

— E tu ainda a dares explicações! Nem era necessário o cheiro de tintas. Há um mês que trazias a doença incubada; Zózimov que o diga. Mas não fazes ideia da cara com que está o tolo do Zametov. “Eu nada valho diante daquele homem”, diz referindo-se a ti. “Ele não é mau rapaz...”, mas a lição que hoje lhe deste no Palácio de Cristal foi de mestre! A princípio meteste-lhe medo; estava aterrado: quase o levaste a supor novamente o estúpido despropósito e de repente convenceste-o de que estavas a caçoar dele. De primeiríssima ordem! Ele ficou sem graça! És um mestre, meu amigo; e permitisse Deus que todos fossem como tu. Que pena eu tive de não estar presente para gozar essa cena! Zametov está lá em casa. Havia de ter prazer em ver-te. O Porfírio também deseja conhecer-te.

— Ah!... Também esse... Mas por que julgam que eu estou doido?

— Não é bem isso, eles não te julgam doido. Parece-me que estou falando demais! O que causou impressão a Zózimov, há pouco, foi te interessares exclusivamente por aquele caso; agora sabe-se o motivo por que ele te interessa. Conhecendo todas as circunstâncias do caso, a impressão que ele te produziu na ocasião e a correlação que teve com a tua doença... Olha, o que te sei dizer é que ele tem lá as suas razões. É um maníaco que só pensa em afecções mentais. Não te importes com isso...

Durante meio minuto os dois não pronunciaram uma só palavra.

— Ouve, Razumíkhin, vou falar-te francamente — começou Raskólnikov. Venho da casa de um morto, um amigo funcionário público... deixei lá todo o meu dinheiro... e, depois, fui beijado por uma criatura que, ainda que eu tivesse assassinado alguém... finalmente, vi lá outra criatura... com uma pluma cor de fogo... Mas já estou divagando... Sinto-me muito fraco... ampara-me... eis a escada...

— Mas que tens? — inquiriu Razumíkhin assustado.

— Estou atordoado, mas isto não é nada... O pior é que estou muito triste, muito! Como uma mulher... Olha! Que é aquilo? Olha, olha.

— O quê?

— Não vês? Há luz no meu quarto! Pela fenda da porta, repara.

Estavam no penúltimo patamar, junto à porta da locatária, e daí via-se realmente luz no quarto de Raskólnikov.

— Talvez Nastácia esteja lá — lembrou Razumíkhin.

— Ela nunca vai ao meu quarto a estas horas, e deve estar deitada há muito. Mas... que importa isso? Adeus!

— Não, eu te acompanho.

— Bem sei, mas quero apertar-te a mão aqui, despedir-me aqui de ti. Dá-me a tua mão e adeus!

— Nada! Subamos; tu vais ver...

Enquanto subiam Razumíkhin refletia que talvez Zózimov tivesse razão. “É possível que eu o perturbasse com meu palavrório”, pensou ele.

Quando se aproximaram da porta ouviram vozes no quarto.

— Mas que será isto? — perguntou Razumíkhin.

Raskólnikov abriu o trinco, escancarou a porta e parou atônito no portal.

Sua mãe e sua irmã, sentadas no divã, esperavam-no havia hora e meia.

Como explicar que a visita das duas o encontrasse desprevenido? Por que não pensara ele nisso quando, nesse mesmo dia, lhe tinham anunciado a chegada da família de um momento para outro? As duas senhoras não haviam feito outra coisa senão interrogar Nastácia, que ainda estava ali em frente a elas. A criada dera já todas as informações possíveis sobre Raskólnikov. Quando souberam que ele saíra, doente e certamente durante um acesso febril, a julgar pelas palavras de Nastácia, Pulquéria Alexandrovna e Avdótia Romanovna, aterradas, julgaram-no perdido. Quantas lágrimas choradas e que aflição a dessa hora e meia de espera!

Quando viram os dois, as duas mulheres loucas de alegria correram para Raskólnikov. Mas ele estava imóvel como uma estátua; repentinamente um pensamento horrível gelara-lhe o sangue nas veias. Nem pôde abrir os braços. Mãe e irmã apertaram-no contra o peito e beijaram-no com ternura, rindo e chorando ao mesmo tempo. Raskólnikov deu um passo e caiu sem sentidos.

Susto, gritos de aflição, soluços... Razumíkhin, que se conservava à porta, correu para Raskólnikov, erguendo-o nos vigorosos braços e deitando-o no divã.

— Isto não é nada! — disse ele tranquilizando as duas senhoras. — Um simples desmaio sem consequências! O médico disse ainda agora que ele está muito melhor, quase restabelecido! Água! Olhem, volta a si, veem?...

E, enquanto ia falando, apertava inconscientemente o braço de Dunetchka, obrigando-a a curvar-se a fim de se convencer de que realmente o irmão recuperava os sentidos. Razumíkhin assumia o aspecto de verdadeira Providência. Nastácia contara às duas quantas provas de dedicação tinha dado durante a doença de Ródion “aquele desembaraçado moço”, como nessa mesma noite o classificou Pulquéria Alexandrovna, conversando com Dúnia.


Terceira parte


Capítulo I

Raskólnikov ergueu meio corpo, sentando-se no divã.

Fez um sinal a Razumíkhin para que interrompesse o curso da sua eloquência consoladora: depois tomou nas suas as mãos de sua mãe e de sua irmã e contemplou-as em silêncio, alternadamente, por muito tempo. No seu olhar, onde se lia uma dolorosa sensibilidade, havia ao mesmo tempo o que quer que fosse de insensatez. Pulquéria Alexandrovna, aterrada, desatou a chorar.

Avdótia Romanovna estava pálida e sua mão tremia na de Raskólnikov.

— Voltem para casa... com ele — disse o rapaz com a voz entrecortada, apontando Razumíkhin. — Amanhã, amanhã, tudo... Quando chegaram?

— Chegamos esta tarde, Ródia, respondeu Pulquéria Alexandrovna. O trem estava muito atrasado. Mas, por nada deste mundo consentiria em separar-me de ti agora. Passarei a noite aqui junto do...

— Não me aborreçam — replicou ele, irritado.

— Eu fico com ele — atalhou Razumíkhin —, não me afasto daqui, e que os meus convidados vão para o diabo! Que se zanguem, se quiserem. Aliás, meu tio lhes fará as honras da casa.

— Como havemos de agradecer-lhe? — começou Pulquéria, apertando entre as suas as mãos de Razumíkhin; mas o filho cortou-lhe a palavra.

— Eu não posso, não posso... repetia ele enfadado, não me apoquentem! Basta, vão-se embora. Eu não posso!...

— Retiremo-nos, mamãe — disse em voz baixa Dúnia, inquieta. — Saiamos do quarto por um instante que seja. É evidente que a nossa presença o aflige.

— E não me é permitido passar um momento junto dele depois de uma separação de três anos! — murmurou Pulquéria Alexandrovna.

— Esperem um instante! — disse Raskólnikov. — Interrompem-me sempre e fazem-me perder o fio das ideias... Viram Lujine?

— Não, Ródia, mas ele já sabe que chegamos. Soubemos que Pedro Petróvitch teve a gentileza de vir hoje procurar-te — acrescentou, com timidez, Pulquéria Alexandrovna.

— Sim... teve essa bondade... Dúnia, eu disse há pouco ao Lujine que o atirava pela escada abaixo e mandei-o para o diabo.

— Que dizes, Ródia?! Pois tu... não é possível! — começou a mãe aterrada; mas um sinal de Dúnia obrigou-a a calar-se.

Avdótia Romanovna, com os olhos fitos no irmão, aguardava que ele se explicasse mais claramente. Já informadas da ocorrência por Nastácia, que lhe relatara a seu modo e da maneira como lhe fora possível compreender, as duas senhoras estavam numa perplexidade angustiosa.

— Dúnia — prosseguiu com esforço Raskólnikov —, eu não consinto nesse casamento; por consequência, amanhã mesmo, despede Lujine, e não falemos mais nisso.

— Meu Deus! — exclamou Pulquéria Alexandrovna.

— Meu irmão, pensa bem no que dizes! — observou com veemência Avdótia Romanovna; mas conteve-se imediatamente. — Neste momento não estás no teu estado normal: estás fatigado — concluiu ela com brandura.

— Estou delirando? Não estou... Tu casavas-te com Lujine por minha causa; mas eu não aceito esse sacrifício. Portanto, escreve-lhe uma carta... para o desobrigares do seu compromisso. Dás-me de manhã para eu a ler e acabou-se.

— Eu não posso fazer isso! — exclamou ela ofendida. — Com que direito?...

— Dunetchka, tu também começas a encolerizar-te. Basta; amanhã... Pois não vês... — balbuciou a mãe assustada, detendo a filha. — É melhor irmo-nos embora!

— Está com a cabeça transtornada — disse Razumíkhin com voz que traía a embriaguez. — Se não fosse isso não se atrevia... Amanhã terá recuperado a razão... Mas hoje, com efeito, pôs o sujeito na rua. O homem zangou-se... estava aqui discursando, a explanar suas teorias, mas se foi embora. Ia como uma fera!

— Então é verdade!? — exclamou Pulquéria Alexandrovna.

— Até amanhã, meu irmão — disse em tom compassivo Dúnia —, vamos, mamãe... Adeus, Ródia!

Ele fez um esforço para lhe dirigir algumas palavras.

— Ouve, Dúnia, não estou delirando: esse casamento seria uma infâmia. Embora eu seja um infame, tu é que não o deves ser... um já é demais... Mas, por mais miserável que eu seja, renegar-te-ia se contraísses uma tal união. Ou eu ou Lujine. Vão-se embora!...

— Mas tu perdeste a cabeça! És um déspota! — vociferou Razumíkhin.

Raskólnikov não respondeu; talvez já não estivesse em estado de responder. Exausto, estendeu-se no divã e voltou-se para a parede. Avdótia Romanovna olhou curiosamente para Razumíkhin; seus olhos negros brilhavam. O estudante estremeceu sob este olhar. Pulquéria Alexandrovna estava consternada.

— Não posso decidir-me a ir embora — murmurava ela aflita ao ouvido de Razumíkhin. — Fico aqui em qualquer canto... Acompanhe Dúnia.

— E vai agravar a situação! — respondeu no mesmo tom o estudante. Saiamos ao menos do quarto. Nastácia, ilumina o caminho! Juro-lhes — continuou ele logo que saíram para o patamar — que há pouco quase nos bateu, no médico e em mim! Entendem? O próprio médico deixou que lhe batesse, para não irritá-lo mais. Fiquei no rés do chão, em guarda, porém ele se vestiu imediatamente e escapuliu, e há de escapulir novamente se o irritarem a esta hora da noite, e assim prejudicar-se-á...

— Que coisa nos conta!

— Além disto é impossível deixar Avdótia Romanovna sozinha naquela hospedaria! Imagine em que casa as fizeram alojar-se! Aquele patife do Pedro Petróvitch não poderia achar-lhes uma casa respeitável?... Devo dizer-lhes que bebi um pouco a mais, e aí está por que as minhas expressões... são um tanto arrebatadas: não façam caso.

— Pois bem — prosseguiu Pulquéria Alexandrovna —, vou ter com a senhoria de Ródia e peço-lhe que nos dê qualquer canto para ficarmos esta noite. Não posso abandoná-lo neste estado!

Esta conversa travara-se no patamar, em frente da porta da senhoria. Nastácia, em pé no último degrau, ficara iluminando. Razumíkhin estava muito animado. Meia hora antes, quando acompanhara Raskólnikov a casa, falava demais, como ele próprio reconhecera; mas a esse tempo ainda tinha a cabeça desanuviada, apesar da enorme quantidade de vinho que tinha ingerido. Agora, porém, estava mergulhado numa espécie de êxtase, e a influência capitosa do vinho fazia-se sentir com intensidade. Apoderara-se das mãos das senhoras, dirigia-se-lhes numa linguagem de extraordinária desenvoltura, e, talvez no intuito de as convencer melhor, acentuava quase todas as palavras com uma formidável pressão nos dedos das suas interlocutoras. Ao mesmo tempo, com a maior sem-cerimônia, devorava com os olhos Dúnia.

Às vezes, vencidas pela dor, as pobres senhoras tentavam soltar os dedos presos naquela grande mão ossuda; mas ele resistia e continuava a apertar. Se elas lhe pedissem como um favor especial que se atirasse pela escada de cabeça para baixo, o rapaz não hesitaria um segundo em lhes satisfazer o desejo. Pulquéria Alexandrovna bem percebia que Razumíkhin era muito excêntrico e, principalmente, tinha a mão de ferro, mas, entregue por completo ao pensamento do seu Ródia, fechava os olhos às maneiras originais do rapaz, que naquele momento era para ela uma providência.

Quanto a Avdótia Romanovna, embora partilhasse as preocupações de sua mãe e não fosse tímida de natureza, era com surpresa, e até com certo receio, que via fixarem-se nela os olhares inflamados do amigo de seu irmão. Se não fosse o ter-lhe inspirado ilimitada confiança naquele homem singular a entusiástica narrativa de Nastácia, não teria resistido à tentação de fugir, arrastando consigo a mãe. Depois compreendia que naquele momento o estudante lhes era indispensável. Aliás, ao cabo de dez minutos serenaram as apreensões da jovem; em qualquer disposição de espírito que se encontrasse Razumíkhin, a feição especial do seu caráter era revelar-se por completo logo à primeira vista, de modo que se percebia rapidamente com que espécie de indivíduo se tratava.

— É impossível pedir isso à hospedeira, minha senhora; é o cúmulo do absurdo! — replicou com vivacidade o estudante Razumíkhin. — O fato de ser mãe de Ródia não impedirá que ele fique desesperado ao saber que ficou aqui, e então Deus sabe o que acontecerá! Ouça, aqui está o que eu proponho: Nastácia fica tomando conta dele e eu vou acompanhá-las à sua casa, porque é imprudente aventurarem-se duas senhoras sós, a estas horas, nas ruas de São Petersburgo. Depois de as deixar em casa volto aqui num pulo, e daí a um quarto de hora, dou-lhes a minha palavra de honra que voltarei para fazer-lhes o meu relatório, dizer-lhes como ele vai, se pôde conciliar o sono etc. Em seguida corro à minha casa — estão lá alguns amigos meus, todos bêbados, por sinal —, agarro Zózimov — é o médico que está tratando de Ródia, mas esse não está bêbado: nunca bebe. Trago-o aqui ao doente e depois levo-o à sua casa. No intervalo de uma hora terá assim duas vezes notícias de seu filho: primeiro por mim e depois pelo médico, o que é muito mais positivo. Se ele estiver pior, juro-lhes que as tornarei a trazer aqui: se estiver melhor, deitem-se. Eu passarei a noite aqui na saleta — ele não o saberá — e faço deitar o Zózimov no apartamento da locatária para o ter à mão em caso de necessidade. Neste momento parece-me que a presença do médico sempre será mais útil ao Ródia do que a das senhoras. Voltem, pois, para casa! Quanto a ficarem no apartamento da hospedaria é impossível; eu posso fazê-lo, mas as senhoras, não; ela não consentiria em hospedá-las, porque... porque é tola. A dizer a verdade, ela gosta de mim e teria ciúme de Avdótia Romanovna e da senhora também... mas de Avdótia Romanovna com toda a certeza. Tem um gênio muito especial! E no fim das contas eu também sou um burro... Vamos, venham daí! Têm confiança em mim, não têm?

— Vamos, mamãe — disse Avdótia Romanovna —, estou certa de que fará o que promete. Meu irmão deve a vida aos seus cuidados, e se o médico consentir em passar aqui a noite, que de melhor poderíamos desejar?

— Ora aí está... Compreende-me porque é um anjo! — exclamou Razumíkhin com exaltação. — Partamos! Nastácia, sobe imediatamente e deixa-te ficar junto a ele; eu volto já.

Embora não estivesse muito convencida, Pulquéria Alexandrovna não fez mais objeções. Razumíkhin tomou um braço a cada uma das senhoras e obrigou-as a descer a escada. A mãe não estava livre de cuidados: “É certo que ele é desembaraçado e que se interessa por nós; mas podemos contar com as promessas no estado em que ele se acha?...”

O jovem adivinhou este pensamento.

— Percebo! Imaginam que estou sob a influência da bebida! — dizia ele enquanto seguia pelo passeio a largos passos, sem atentar a que as senhoras mal podiam acompanhá-lo. Isto não quer dizer nada! Isto é, eu bebi como uma cabra, mas não vale a pena pensar nisso; não é o vinho o que me embriaga. Logo que as vi tive a impressão de que me tinham desferido uma paulada na cabeça... Não reparem; estou dizendo disparates, sou indigno de acompanhá-las. Logo que as deixar em casa vou até o canal, despejo dois baldes de água na cabeça e fico curado... Se soubessem que afeição me inspiram ambas!... Não se riam nem se zanguem comigo! Sou amigo dele e por consequência também o quero ser das senhoras... Eu bem tinha o pressentimento do que havia de suceder... O ano passado, houve um momento... Mas, qual, eu não podia ter esse pressentimento, visto que, por assim dizer, caíram do céu. Mas já sei que não prego olho esta noite. Zózimov há pouco estava com medo que ele endoidecesse... Eis por que não devemos irritá-lo!

— Que diz? — exclamou a mãe.

— Será possível que o médico dissesse isso? — perguntou assustada Avdótia Romanovna.

— Disse, mas engana-se redondamente. Também tinha dado ao Ródia um medicamento em pó, que eu vi; mas nesse momento chegaram as senhoras! Era melhor que chegassem amanhã. Foi bom que nos retirássemos. Daqui a uma hora, Zózimov vem trazer-lhes notícias. Esse não está bêbado e também eu já não estarei. Mas por que motivo me deixei excitar? Porque eles me fizeram discutir, os malditos! Eu já tinha feito o protesto de não tornar a meter-me em tais discussões!... Dizem tanto disparate! Por pouco não me peguei com eles! Lá ficou meu tio para fazer as honras da casa. Pois querem saber? Eles são partidários da impersonalidade completa! Para eles o progresso supremo consiste em parecer-se o menos possível consigo mesmo. Se a estupidez fosse somente deles mesmos... Contudo, como é...

— Ouça — interveio timidamente Pulquéria Romanovna. — Com isto lança mais lenha à fogueira.

— Pensam — falou Razumíkhin mais alto do que nunca — pensam que os ataco por falarem tolices? Nem um pouco! Gosto de ouvi-los dizer tolices! Este é um privilégio da Criação. Pelo erro se chega à verdade. Sou um homem porque erro. Nunca uma simples verdade será alcançada sem serem cometidos 14 enganos e muito provavelmente 114. E o erro nos conduz a muitas coisas boas, mas devemos errar sob nossa própria responsabilidade. Digam tolices, mas digam-nas as suas próprias, e eu os beijarei por isto! Errar em nosso caminho é melhor que acertar em caminho alheio. No primeiro caso, é um homem; no segundo, não é melhor que um pássaro. A verdade não fugirá, mas a vida pode ser torcida. Há muitos exemplos... E como procedemos? No campo da ciência, do desenvolvimento econômico, do pensamento, das invenções, dos ideais, anelos, liberalismo, julgamentos, experiências e tudo o mais estamos na escola primária. Apraz-nos aos russos vivermos das ideias dos outros e saturamo-nos delas. É ou não verdade? — bradou Razumíkhin, apertando as mãos das duas senhoras.

— Oh, meu Deus! Não sei! — disse a pobre Pulquéria Alexandrovna.

— Sim, sim... No entanto não estou de acordo com o senhor — acrescentou com gravidade Avdótia Romanovna.

Mas, mal acabara de pronunciar estas palavras, soltou um grito de dor provocado por um enérgico aperto de mão de Razumíkhin.

— Sim? Disse que sim? — bradou Razumíkhin num transporte de alegria. — A senhora é um conjunto de bondade, de pureza, de bom senso e... de perfeições! Dê-me a sua mão... dê-me também a sua, minha senhora. Quero beijar-lhes as mãos, aqui mesmo, de joelhos.

E ajoelhou-se no meio da rua, que por felicidade estava deserta nesse momento.

— Basta, peço-lhe! Que faz!? — exclamou Pulquéria Alexandrovna assustadíssima.

— Levante-se! — disse Dúnia rindo, mas também com um certo receio.

— Isso nunca! Pelo menos enquanto não me derem as mãos. Ora, bem, aqui estou já de pé! Não passo de um imbecil, indigno das senhoras; e de mais a mais, nesta ocasião, alcoolizado, envergonho-me... Bem sei que não sou digno de as amar; mas prostrar-se na sua presença é dever de todo aquele que não for uma cavalgadura!... Aqui está sua casa, ainda que não fosse senão por causa dela, tinha Ródia feito muito bem em correr com o tal Pedro Petróvitch! Como ousou ele metê-las nesta hospedaria! É escandaloso! Sabem que espécie de gente mora aqui? E é a sua noiva! Pois declaro-lhe que depois de tal ação seu futuro marido é um pulha.

— Ouça, sr. Razumíkhin, o senhor esquece-se... — começou Pulquéria Alexandrovna.

— Sim, sim, tem razão; esqueci-me, com efeito, e envergonho-me — desculpou-se o estudante —, mas... mas... não devem querer-me mal pelas minhas palavras. Se disse isto é porque sou franco e não porque... Seria ignóbil! Numa palavra, não é pelo fato de eu a... Mas há pouco, por ocasião da sua visita, todos percebemos que aquele homem não era do nosso meio. Não porque tivesse o cabelo frisado pelo barbeiro; não porque tivesse tanta ansiedade em mostrar sua sapiência; mas porque é um traidor, um especulador, um sovina e um bufão. Isto é evidente. Acham-no inteligente? Não, é um asno, um asno. E lhes serve de companhia? Deus as livre! Estão vendo, senhoras? — Ele parou subitamente no patamar superior. — Embora todos os meus amigos estejam bêbados, são homens honestos e, conquanto falemos um monte de asneiras, eu inclusive, chegaremos por meio de nossas conversas à verdade, porque estamos no caminho certo. Enquanto Pedro Petróvitch não está. Se bem que eu dê epítetos a meus amigos, respeito-os a todos e, embora não respeite Zametov, gosto dele porque é um boneco, e ao eunuco Zózimov, porque é honesto e conhece sua profissão. Mas basta! Está tudo perdoado. Não é verdade que me perdoam? Pois então vamos lá! Conheço este corredor; já vim aqui uma vez. Olhem! Aqui no número três houve um escândalo... Em que quarto estão? No oito? Neste caso fechem bem a porta por dentro e não abram para ninguém. Daqui a um quarto de hora trago-lhes notícias e meia hora depois voltarei com Zózimov. Adeus, até já!...

— Meu Deus, que será de nós, Dunetchka! — disse Pulquéria Alexandrovna.

— Tranquilize-se, mamãe — respondeu Dúnia tirando o chapéu e a mantilha —, é a Providência que nos manda este rapaz. Apesar de ter vindo de uma orgia, tenho confiança nele. E o que ele tem feito por Ródia...

— Deus sabe se ele voltará, Dunetchka! Como pude resolver-me a abandonar Ródia!... Quem diria que o havia de encontrar assim! E de que modo ele nos recebeu! Parece que nossa vinda o contraria!

Chorava.

— Não, mamãe, não é isso. É que não o viu bem; as lágrimas não lhe deixavam ver. Acaba de passar por uma crise gravíssima, e é essa a causa de tudo.

— Ah! Essa doença!... Como acabará tudo isso? E como ele te falou, Dúnia! — continuou a pobre mãe, procurando ler nos olhos da filha, mais tranquilizada por ver que Dúnia defendia o irmão e que portanto já o perdoara. — Estou convencida de que amanhã ele terá outra opinião — acrescentou ela, desejando continuar seu inquérito.

— E eu garanto-lhe que ele há de dizer a mesma coisa... a esse respeito — respondeu Avdótia Romanovna.

O caso era tão melindroso que Pulquéria Alexandrovna não ousou prosseguir. Dúnia beijou a mãe, que, sem dizer uma palavra, a estreitou ao coração. Em seguida Pulquéria sentou-se esperando ansiosamente que Razumíkhin voltasse. Com os olhos seguia a filha, que, pensativa e com os braços cruzados, passeava em todo o comprimento do quarto. Sempre que alguma coisa a preocupava, Avdótia Romanovna passeava de um a outro extremo da casa.

Razumíkhin, animado pelo álcool e subitamente apaixonado por Dúnia, era decerto ridículo. Mas, contemplando a linda moça, enquanto pensativa e triste passeava com os braços cruzados sobre o peito, qualquer pessoa desculparia o estudante, sem mesmo levar em conta a sua embriaguez. A figura de Avdótia Romanovna era impressionante: de estatura elevada, perfeitamente constituída, de uma singular pureza de linhas, seus gestos denunciavam confiança em si, mas sem prejuízo da graça e delicadeza femininas. O rosto, que se parecia com o do irmão, era lindo. Como Ródia, Avdótia tinha cabelos castanhos, porém mais claros. Nos seus olhos negros lia-se aquela altivez que não exclui a bondade. Era pálida, mas sua palidez nada tinha de doentio, o rosto era fresco e sadio. A boca era pequena; o lábio inferior, de um carmim vivo, um pouco saliente, bem como a extremidade do mento. Esta irregularidade única que se podia notar naquele formoso rosto dava-lhe, no entanto, uma estranha impressão de energia e orgulho. Razumíkhin nunca vira criatura semelhante. Moço e perturbado pelos vapores do álcool, sentiu-se naturalmente impressionado. Ademais, quis o acaso que ele se encontrasse pela primeira vez com Dúnia no momento em que a alegria de tornar a ver o irmão aureolava de uma luz de ternura o rosto da moça. Depois vira-a soberba de indignação ante as palavras insolentes de Ródion. Seu coração não poderia resistir.

Aliás, dissera a verdade quando há pouco, nas suas divagações, dera a entender que Prascóvia Pavlovna, a excêntrica locatária de Raskólnikov, teria ciúmes, não só de Avdótia Romanovna, como também de Pulquéria Alexandrovna. Embora tivesse 43 anos, a mãe de Raskólnikov conservava vestígios da sua antiga formosura; parecia ter menos idade, caso que se verifica algumas vezes nas mulheres que se aproximam da velhice com o coração puro e o espírito lúcido. Os cabelos começavam a encanecer, em torno dos olhos apareciam as primeiras rugas; as atribulações tinham-lhe cavado as faces; no entanto seu rosto era ainda formoso. Era o retrato de Dunetchka, com vinte anos mais e sem a saliência do lábio inferior, que caracterizava a fisionomia da filha. Pulquéria Alexandrovna era uma alma sensível, mas sem pieguices; tímida por índole, cedendo por hábito, sabia, contudo, deter-se no caminho das concessões, desde que a sua honestidade ou as suas convicções lhe impusessem essa atitude.

Precisamente vinte minutos depois da sua partida, Razumíkhin batia na porta.

— Não entro, não tenho tempo! — foi ele dizendo quando abriram a porta. — Dorme como um justo, um sono sossegadíssimo, que Deus permita se prolongue por dez horas! Nastácia está junto dele com ordem de não o abandonar um momento sequer, até que eu volte. Agora vou buscar Zózimov, ele dirá o que tem a dizer e as senhoras vão logo deitar-se, porque estão a cair de fadiga.

E pôs-se pelo corredor.

— Que rapaz tão desembaraçado... que delicadeza! — disse Pulquéria sorrindo.

— Parece uma esplêndida pessoa! — respondeu com certa vivacidade Avdótia Romanovna, continuando o seu passeio.

Uma hora depois ouviram-se passos no corredor e novamente bateram na porta. Razumíkhin voltava com Zózimov, que não hesitara em abandonar o banquete para ir ver Raskólnikov, mas foi com relutância que se decidira a ir à casa da mãe e da irmã do doente, porque não queria acreditar nas palavras de Razumíkhin, que lhe parecia ter deixado uma boa parte da razão no fundo dos copos. Mas não tardou que a vaidade do médico se sentisse lisonjeada: Zózimov compreendeu que era esperado como um oráculo.

Nos dez minutos que a sua visita durou conseguiu tranquilizar plenamente Pulquéria Alexandrovna. Com ar grave e a circunspecção que convém a um médico, chamado em circunstâncias especiais, testemunhou pelo doente a maior dedicação. Limitou-se ao assunto da sua visita, e não mostrou desejar estabelecer relações de intimidade com as duas senhoras. Tendo, logo a princípio, notado a formosura de Avdótia Romanovna, evitava olhar a jovem e dirigia-se exclusivamente à sua mãe.

Encontrara Raskólnikov em estado satisfatório. A doença derivara em parte das más condições materiais em que Ródion vivia há alguns meses e a outras causas de ordem moral; era o resultado complexo de fatores físicos e psicológicos, tais como: preocupações, cuidados, receios etc. Percebendo sem o dar a entender, que Avdótia o ouvia com manifesta atenção, demorou-se condescendentemente neste tema.

Interrogado pela inquieta mãe se notara no filho qualquer sintoma de loucura respondeu, sorrindo, que tinha exagerado o alcance das suas palavras; que apenas se notava no doente uma ideia fixa, uma espécie de monomania, e que ele, Zózimov, estudava especialmente este interessante ramo da medicina.

— Mas, prosseguiu, devemos ter em vista que o doente até hoje esteve quase sempre delirante e certamente a chegada das senhoras será para ele benéfica, contribuindo para a restauração das forças, exercendo uma forte ação salutar... caso seja possível evitar-lhe novos abalos — concluiu com intenção.

Levantou-se e depois de fazer um cumprimento ao mesmo tempo cerimonioso e cordial, saiu coberto de bênçãos e de protestos de gratidão. Avdótia chegou mesmo a estender-lhe a mão. Enfim, Zózimov estava radiante com a sua pessoa e com o efeito da sua visita.

— Amanhã conversaremos melhor; agora, vão descansar, que já é tempo! — aconselhou Razumíkhin saindo com Zózimov. — De manhã virei trazer-lhes notícias.

— Que criatura deliciosa essa Avdótia! — disse Zózimov logo que chegaram à rua.

— Deliciosa? Tu disseste deliciosa? — gritou Razumíkhin pondo as mãos no pescoço do médico. — Se tiveres o atrevimento... — Entendes? bradava ele segurando-o pela gola do casaco e levando-o de encontro à parede. — Percebeste-me bem?

— Larga-me, beberrão! — exclamou Zózimov tentando livrar-se dele. Depois, quando Razumíkhin o largou, fitou-o atentamente e deu uma gargalhada.

O estudante estava diante dele com os braços caídos e um ar de tristeza.

— Não há dúvida nenhuma! Sou um pedaço de asno! — disse ele com o sobrolho carregado. — Mas tu és outro.

— Não, meu caro, não sou. Não penso em tolices.

Caminharam sem trocar palavra, e só quando chegaram próximo do prédio onde Raskólnikov morava é que Razumíkhin, preocupado, disse:

— Zózimov, tu és um bom rapaz, mas tens uma linda coleção de vícios. És, especialmente, um voluptuoso, um miserável sibarita. Amas as tuas comodidades, engordas como um suíno, não te recusas coisa alguma. Ora, isso é ignóbil porque conduz em linha reta à torpeza. Sendo, como és, uma criatura indolente, não posso compreender como, apesar disso, és também um bom médico, e o que é mais, um médico dedicado. Dormes em colchão de penas (um médico!) e no entanto levantas-te a qualquer hora para visitar um doente! Diabos me levem se daqui a três anos fores capaz de te levantar por mais que lhe batam na porta! Mas não é a isso que eu quero chegar; eis o que eu queria dizer-te: vou deitar-me na cozinha e tu passas a noite nos aposentos da hospedeira. Foi com grande dificuldade que obtive o consentimento dela! Terás ocasião de travar com Pachenka conhecimento mais íntimo. Não é o que tu pensas. Meu caro, nem de longe...

— Mas não penso absolutamente nada.

— Meu amigo, ela é uma criatura pudica, tímida, de uma castidade a toda prova, e ao mesmo tempo muito meiga e terna. Livra-me dela, peço-te por todos os diabos! É muito amável, sem dúvida... mas já não a posso aturar.

Zózimov deu uma gargalhada.

— Não sabes o que dizes! Por que iria eu fazer-lhe a corte?

— Afirmo-te que será fácil captar-lhe a simpatia. Basta que lhe fales sobre o que for; o caso está em sentares-te junto dela e dar à língua. Depois, és médico: cura-a de qualquer coisa. Afianço-te que não te hás de arrepender. Ela tem um plano; eu, como sabes, canto. Pois cantei-lhe uma canção que começa assim: “Choro lágrimas amargas!...” Ela adora as melodias sentimentais! Pois foi aí que a coisa começou. Ora, tu és um mestre de piano, um virtuose de nível de Rubinstein... Acredita que te hás de dar bem!

— Mas fizeste-lhe alguma promessa? Assinada? Uma promessa de casamento, talvez?

— Nada. Nada dessa espécie. Ela não é deste tipo. Tchebarof tentou...

— Pois bem, deixa-a de lado!

— Mas não posso deixar.

— Por que não podes?

— Não posso, simplesmente. Existe um elo atrativo, meu caro.

— Por que não a conquistaste?

— Não a conquistei porque fui conquistado em meu transe. Ela pouco se importará se fores tu ou eu; basta que alguém suspire a seu lado... Não posso explicar-te a situação, meu caro... Vê, tu sabes bem matemática e fazer cálculos no momento... Começa a ensinar-lhe o cálculo integral; por minha alma! Não estou brincando, falo sério... será a mesma coisa para ela! Olhar-te-á esgazeada e suspirará durante um ano inteiro. Falei-lhe dois dias seguidos sobre o Parlamento da Prússia (porque tinha que falar alguma coisa) — ela só olhava e suspirava. E não precisas falar de amor — é tímida até a histeria —, mas demonstra-lhe que não podes afastar-te dela sem chorar... isto lhe basta. Isto é tremendamente confortável e sentir-te-ás como em casa, poderás ler, sentar, mentir como quiseres, escrever. Podes até aventurar um beijo, se tiveres o necessário cuidado.

— Mas que ganho eu com isso?

— Parece que não me faço entender! Ouça-me: vocês estão talhados um para o outro. Não foi hoje nem ontem que pensei em ti... Uma vez que hás de acabar fatalmente nisso, que te importa que seja agora ou depois? Aqui, tens colchões de penas e coisa melhor! Aqui encontrarás tudo, desde o abrigo até os excelentes blines, não contando com o samovar, à noite, e a botija nos pés. Estarás como um morto com uma grande diferença — viverás: dupla vantagem! Mas basta de conversa: são horas de dormir. Olha: sucede-me frequentemente acordar; aproveitarei essas ocasiões para ver Ródion; se me ouvires subir, não te preocupes. Se te parece conveniente, vá vê-lo, e no caso de notares qualquer alteração para pior, acorda-me. Mas estou certo de que não será necessário.


Capítulo II

No dia seguinte Razumíkhin acordou depois das sete horas, preocupado com pensamentos que até nesse momento nunca haviam perturbado a sua existência. Recapitulou todos os incidentes da véspera e percebeu que sofrera uma impressão diferente de todas as que até então experimentara. Ao mesmo tempo tinha a convicção de que o sonho que lhe atravessara a mente era absolutamente irrealizável. Pareceu-lhe tão absurda essa quimera que teve vergonha de demorar nela o pensamento, passando logo a outras questões de ordem prática que o maldito dia anterior lhe legara igualmente.

O que mais o amargurava era ter-se mostrado sob o aspecto de um pulha. Não somente o tinham visto bêbado: abusara da vantagem que a situação de protetor lhe dava sobre uma moça que recorrera a ele, insultara com um sentimento de injustificável ciúme o noivo dessa rapariga, sem saber que relações existiam entre um e outro, nem quem fosse, ao certo, esse indivíduo.

Que direito lhe assistia para julgar tão levianamente Pedro Petróvitch? E quem lhe perguntara a sua opinião? Ademais, era admissível que uma mulher como Avdótia Romanovna fosse casar por interesse com um homem indigno dela? Logo, Pedro Petróvitch devia necessariamente ter algum merecimento. Havia, na verdade, a questão da casa que ele lhes arranjara, mas como podia ele saber o que era essa casa? Aliás, aquelas senhoras achavam-se ali provisoriamente, estava tratando de lhes preparar outra casa... Oh, como tudo isso era miserável! E podia ele justificar-se, alegando a sua embriaguez? Esta tola desculpa ainda o aviltava mais. No vinho reside a verdade, e sob a influência do vinho revelara ele os baixos sentimentos de um coração grosseiramente ciumento. Era talvez lícito, a ele, Razumíkhin, ter semelhante sonho? Que valia ele diante dessa moça, ele, o bêbado inconveniente e brutal da véspera? Que haveria de mais odioso e de mais ridículo do que a ideia de uma ligação entre dois entes tão diferentes?

Já sucumbido diante de tão loucos pensamentos, o jovem recordou-se subitamente de ter dito na véspera, na escada, que a senhoria o amava e que teria ciúmes de Avdótia Romanovna... Esta lembrança veio a calhar para pôr termo à sua turbação. Era demais: descarregou um formidável murro no fogão, na cozinha, e partiu um tijolo.

“Sem dúvida”, murmurou para si próprio com um sentimento de profunda humilhação, “agora não há meio de desfazer todas aquelas baixezas... É, pois, inútil pensar nisso. Apresentar-me-ei sem dizer nada, desempenharei em silêncio a minha tarefa e... não apresentarei desculpas, nada direi... Agora é tarde; o mal está feito!”. E, contudo, cuidava do seu vestuário com particular esmero. Tinha apenas um terno, mas ainda que tivesse mais, talvez vestisse o da véspera, “para não parecer que se preparara de propósito”... E no entanto uma falta de asseio seria do pior gosto; não lhe assistia o direito de ferir os sentimentos alheios, principalmente quando, como no caso presente, se tratava de pessoas que tinham necessidade dele e lhe haviam espontaneamente pedido que viesse vê-las. Por consequência escovou cuidadosamente o terno. Pelo que dizia respeito à roupa branca, Razumíkhin trazia-a sempre escrupulosamente limpa.

Tendo encontrado sabão no quarto de Nastácia, lavou o cabelo, o pescoço e especialmente as mãos. Quando chegou o momento de decidir se faria a barba (Prascóvia Pavlovna tinha ótimas navalhas, herança do seu defunto marido, o sr. Zarnitzine), resolveu a questão negativamente e até mesmo com uma certa irritação. “Nada, assim estou muito bem! Eram capazes de pensar que tinha feito a barba para... isso! Nunca!”

“O pior é que ele é um bruto, imundo, tem maneiras de taverneiro; e... e admitindo que tenha alguns princípios de cavalheirismo, que haveria nisto para julgar-se orgulhoso? Cada um deveria ser um cavalheiro por muitas outras atitudes que não só estas... e todos, (lembrou-se) eu também incluído, cometem pequenos deslizes... não desonestidades, e contudo... E que ideias tinha às vezes? E dissera tudo em frente a Avdótia Romanovna? Diabos me levem! Assim é a vida! Fizera questão de mostrar-se sujo, imundo, um taverneiro em seus modos, e não se importara! Podia ser pior!”

Este monólogo foi interrompido pela chegada de Zózimov. Depois de ter passado a noite em casa de Prascóvia Pavlovna, o doutor fora à sua própria casa e voltava para visitar o doente. Razumíkhin disse-lhe que Raskólnikov estava dormindo como um bruto. Zózimov proibiu que o despertassem e prometeu voltar entre as dez e as onze horas.

— Contanto que ele esteja em casa, porque, em um doente que se escapa com tanta facilidade, nunca se pode confiar. Sabes se ele ficou de ir à casa delas ou se elas virão aqui?

— Presumo que virão — respondeu Razumíkhin, percebendo o motivo da pergunta —, é de crer que tenham de conversar sobre negócios de família, e por isso sairei. Tu, na qualidade de médico, tens naturalmente mais direito que eu de ficar.

— Eu não sou confessor; além disso, tenho mais que fazer do que ouvir segredos; também irei embora.

— Há uma coisa que me preocupa — prosseguiu Razumíkhin franzindo o sobrolho —, ontem estava bêbado e, quando acompanhei Ródion até aqui, não tive cuidados com a língua. Entre outras tolices, disse-lhes que tu receavas que ele tivesse predisposição para a loucura...

— Disseste isto às senhoras?!

— Bem sei que foi asneira! Bate-me se queres! Mas, aqui para nós, sinceramente, qual é a tua opinião sobre o caso?

— Que hei de te dizer? Tu mesmo me apresentaste como um monomaníaco quando me trouxeste aqui... E ontem ainda nós lhe perturbamos mais o espírito: digo nós, mas realmente foste tu, com a tua história do pintor. Ora, aí está um belo assunto para conversa em presença de um homem cujo desarranjo intelectual provém exatamente desse caso. Se eu na ocasião conhecesse em todos os seus pormenores a cena que se passou no comissariado de polícia, e soubesse que tinham recaído sobre ele as suspeitas de um canalha, teria cortado a conversa logo às primeiras palavras. Para esses monomaníacos uma gota de água é um oceano, as fantasias da sua imaginação aparecem-lhes como se fossem realidades... Pelo que Zametov nos contou ontem na tua festa, começo agora a compreender metade do caso. Sei do caso de um hipocondríaco, um quarentão, que cortou o pescoço de um menino por não aguentar suas peraltices à mesa! E neste caso, os andrajos, o policial insolente, a febre e a suspeita! Tudo isso mortificando um homem meio frenético pela hipocondria, e de mórbida e incomum vaidade! Isto deve ter sido o ponto de partida da doença! Esqueçamos tudo!... A propósito, aquele Zametov é muito boa pessoa, no entanto, fez mal em dizer ontem tudo aquilo. É um terrível falador!

— Mas a quem contou ele o caso? A ti e a mim.

— E ao Porfírio.

— E então! Que tem que ele contasse ao Porfírio?

— A propósito: tu tens alguma influência sobre a mãe e a irmã? Era conveniente que elas hoje fossem discretas com ele...

— Eu lhe direi! — respondeu com ar contrariado Razumíkhin.

— Por que ele não gosta de Lujine? Um homem com dinheiro, e ela parece gostar dele... e elas não têm um tostão, acho! Não é?

— Que tens a ver com isto? — gritou Razumíkhin aborrecido. — Como posso saber que elas tenham tostão. Pergunta e talvez saberás...

— Bem, até logo; agradece por mim a Prascóvia Pavlovna sua hospitalidade. Ela fechou-se no quarto. Gritei-lhe “Bons dias!” através da porta e não me respondeu. No entanto, está levantada desde as sete horas; encontrei-me no corredor com a criada que lhe levava o samovar. Não se dignou admitir-me à sua presença...

Às nove horas em ponto chegava Razumíkhin à casa Bakalêief. As duas senhoras esperavam-no, havia muito, com uma impaciência febril: tinham-se levantado antes das sete horas. Ele entrou, sombrio como a noite, cumprimentou secamente e logo em seguida sentiu amargo despeito por se ter apresentado de tal forma. Calculara mal a ansiedade com que era esperado: Pulquéria Alexandrovna correu imediatamente ao seu encontro, agarrou-lhe ambas as mãos e por pouco não as beijou. O mancebo lançou um olhar tímido a Avdótia Romanovna, mas em vez de um olhar irônico, de desdém involuntário e mal dissimulado, que esperava encontrar naquele altivo semblante, leu nele uma tal expressão de gratidão e de afetuosa simpatia, que a sua confusão aumentou. Por fortuna tinha um assunto obrigatório e apressou-se em encetar a conversação.

Ao saber que seu filho ainda dormia, mas que seu estado era satisfatório, Pulquéria Alexandrovna declarou que tudo ia pelo melhor, porque tinha grande necessidade de conferenciar previamente com Razumíkhin. A mãe e a filha perguntaram em seguida ao estudante se já tomara chá, e como ele respondesse negativamente, convidaram-no a tomá-lo na companhia delas, porque tinham aguardado a chegada do estudante para se sentarem à mesa.

Avdótia Romanovna tocou a campainha e apareceu um criado. Ordenou-lhe que trouxesse o chá, que foi servido de modo tão inconveniente, tão pouco asseado, que as duas senhoras se sentiam corar de vergonha. Razumíkhin protestou energicamente contra uma tal “espelunca”; mas, pensando em Lujine, calou-se, ficou perturbado e sentiu-se feliz por escapar a tão desagradável situação graças à saraivada de perguntas que Pulquéria Alexandrovna fez chover sobre ele.

Interrogado a todo momento, falou durante quase uma hora e contou tudo quanto sabia relativamente aos principais fatos da vida de Ródia Românovitch no último ano. Está claro que não se referiu ao que convinha calar; por exemplo, à cena do comissariado e às suas consequências. As duas senhoras ouviram-no avidamente; já ele julgava ter-lhes relatado todos os pormenores dignos de interesse e ainda a sua curiosidade não se dava por satisfeita.

— E diga-me, diga-me, como lhe parece... Ah, perdão! Ainda não sei seu nome — disse Pulquéria Alexandrovna.

— Dmitri Prokófitch.

— Pois bem! Dmitri Prokófitch, desejaria saber como ele agora encara as coisas, ou melhor, o que lhe agrada e o que lhe desagrada. Continua a irritar-se com frequência? Quais são seus desejos, suas aspirações? Que influência especial se exerce sobre ele presentemente?

— Ah, mamãe, como ele pode responder a tudo de uma vez? — objetou Dúnia.

— Deus do céu! Não esperava que ele mudasse tanto, Dmitri Prokófitch.

— Isto é natural — respondeu Razumíkhin. — Não tenho mãe, mas meu tio vem todos os anos e quase sempre não me reconhece, mesmo quanto à aparência, apesar de ser um homem inteligente, e sua separação de três anos significa muito. Que poderei responder? Conheço Ródion há 18 meses: é taciturno, reservado e orgulhoso. Nestes últimos tempos (mas talvez esta disposição existisse nele há muito) tornou-se desconfiado e hipocondríaco. Tem bom coração, é generoso. Não gosta de revelar seus sentimentos e lhe é mais fácil ferir as pessoas do que mostrar-se expansivo. Às vezes, nada tem de hipocondríaco, mostra-se, porém, frio e insensível até a desumanidade. Dir-se-ia que há nele dois caracteres opostos, que alternadamente se manifestam. Em certas ocasiões é extremamente taciturno, tudo lhe pesa, todos o incomodam e fica dias inteiros deitado, sem fazer coisa alguma. Não gosta de escarnecer dos outros, não porque ao seu espírito falte causticidade, mas porque despreza a zombaria como um passatempo demasiado frívolo. Não escuta até o fim o que se lhe diz: nunca se interessa pelas coisas que interessam a toda a gente. Tem-se em alto conceito, e nesse ponto quer-me parecer que tem alguma razão. Que poderei acrescentar? Estou convencido de que a presença de vocês exercerá sobre ele uma ação das mais benéficas.

— Ai, Deus queira! — exclamou Pulquéria Alexandrovna, a quem essas revelações sobre o caráter do filho haviam deixado inquieta.

Por fim Razumíkhin atreveu-se a olhar com mais audácia para Avdótia Romanovna. Enquanto falava tinha-a por várias vezes examinado, mas rapidamente e desviando logo os olhos. A moça ora se sentava junto da mesa, escutando atentamente, ora se levantava e, segundo seu costume, passeava de um para o outro lado do quarto, com os braços cruzados e os lábios comprimidos, fazendo de quando em quando uma pergunta, sem interromper o passeio. Outro costume que lhe era habitual consistia em não escutar até o fim o que lhe diziam. Trajava um vestido leve de tecido escuro e em volta do pescoço uma gola branca de rendas. Razumíkhin não tardou em reconhecer, por diversos indícios, que as duas mulheres eram muito pobres. Se Avdótia Romanovna trajasse como uma rainha, é de crer que por isso não o tivesse intimidado; ao passo que, talvez pelo fato mesmo de estar pobremente vestida, experimentava junto dela um grande receio e media cautelosamente suas expressões e seus gestos, o que ainda mais aumentava a perturbação de um homem já pouco senhor de si.

— Deu-nos imparcialmente muitos pormenores curiosos acerca do caráter de meu irmão. Antes assim: cheguei a pensar que ele lhe inspirava admiração — observou Avdótia Romanovna com um sorriso. Quer-me parecer que anda ali mulher — acrescentou pensativa.

— Não digo isso, mas pode ser que tenha razão, apenas...

— O quê?

— Ele não ama ninguém; talvez mesmo nunca venha a amar — prosseguiu Razumíkhin.

— Quer dizer que o julga incapaz de amar?

— Mas sabe, Avdótia Romanovna, que a acho de uma extraordinária semelhança com seu irmão, e direi mesmo, em todos os sentidos! — deixou escapar levianamente o rapaz. Mas lembrou-se subitamente do juízo que acabava de fazer sobre Raskólnikov, perturbou-se e fez-se vermelho como um camarão. Avdótia Romanovna não pôde deixar de sorrir ao vê-lo assim.

— É possível que ambos se enganem a respeito do Ródion — notou Pulquéria Alexandrovna um tanto formalizada. — Eu não falo do presente, Dunetchka. O que Pedro Petróvitch escreve naquela carta... e o que ambas supusemos pode não ser verdade; mas o senhor não pode imaginar a que ponto ele é original e caprichoso. Tinha apenas 15 anos e já o seu caráter era para mim uma contínua surpresa. Agora mesmo o julgo capaz de fazer um despropósito que não ocorresse a nenhum outro homem... Sem ir mais longe, sabe que há 18 meses ele esteve a ponto de ser a causa da minha morte, quando se lhe meteu na cabeça casar com aquela... com a filha daquela senhora Zarnitzine, sua hospedeira?

— Conhece os pormenores dessa história? — perguntou Avdótia Romanovna.

— Talvez julgue — prosseguiu a mãe com animação — que ele tivesse contemplação com as minhas súplicas, com as minhas lágrimas, que a minha doença, o receio de me ver morrer, a nossa miséria, o haveriam comovido? Qual! Teria posto em prática o seu projeto, com a máxima tranquilidade, sem se deixar demover por qualquer consideração. E, todavia, pode admitir que ele não nos ame?

— Ele nunca me disse coisa alguma a esse respeito — respondeu com reserva Razumíkhin. — Mas alguma coisa me constou pela sra. Zarnitzine, que também não é muito expansiva, e o que eu soube não deixa de ser bastante estranho.

— E o que foi que soube? — perguntaram as senhoras.

— Oh, nada de particularmente interessante. Tudo quanto sei é que esse casamento, que já era caso decidido e ia concluir-se quando a noiva faleceu, desagradava em extremo à própria sra. Zarnitzine... Dizem também que a rapariga não era bonita, ou melhor, que era feia; ademais, parece que era muito doente e... excêntrica. No entanto, é possível que tivesse certas qualidades... devia tê-las, com certeza, de outra forma não se compreenderia... Ela também não tinha dinheiro e ele de qualquer modo não levaria em conta o dinheiro dela... Mas é sempre difícil julgar esses casos.

— Estou convencida de que essa moça era aceitável — disse laconicamente Avdótia Romanovna.

— Deus me perdoe, mas regozijei-me com a sua morte, e, no entanto, não sei a qual dos dois esse casamento teria sido mais funesto — concluiu a mãe. Em seguida, timidamente, depois de muitas hesitações, e olhando de quando em quando para Dúnia, a quem parecia desagradar bastante esta conversa, pôs-se a interrogar novamente Razumíkhin sobre a cena da véspera entre Ródia e Lujine.

Este incidente parecia preocupá-la mais do que qualquer outra coisa e causar-lhe verdadeiro terror. O jovem tornou a fazer a narrativa circunstanciada da altercação de que fora testemunha, mas acrescentando dessa vez a conclusão. Acusou Raskólnikov de ter insultado premeditadamente Pedro Petróvitch e não invocou a doença para justificar o procedimento do amigo.

— Antes de adoecer já deliberara isso — concluiu ele.

— Assim penso também — disse Pulquéria Alexandrovna, visivelmente consternada.

Mas ficou muito surpreendida vendo que dessa vez Razumíkhin falara de Pedro Petróvitch em termos convenientes e até mesmo com simpatia. Esta circunstância não passou igualmente despercebida a Avdótia Romanovna.

— E é essa a tua opinião sobre Pedro Petróvitch? — perguntou Pulquéria Alexandrovna.

— Não posso ter outra a respeito do futuro esposo de sua filha, — respondeu em tom veemente Razumíkhin —, e não é uma formalidade banal o que assim me faz falar: digo isto porque... porque... acabou-se! Basta que seja esse o homem a quem Avdótia Romanovna por sua livre vontade honrou com a sua escolha. Se ontem me exprimi em termos ofensivos a seu respeito, é que estava lamentavelmente bêbado, e além disso... doído; estava completamente desequilibrado... e hoje envergonho-me do que fiz e disse!

Corou e calou-se. As faces de Avdótia Romanovna ruborizaram-se, mas a gentil rapariga conservou-se silenciosa. Desde que se falava a respeito de Lujine, não mais proferia uma palavra.

Privada do auxílio da filha, Pulquéria Alexandrovna encontrava-se em visíveis embaraços. Finalmente tomou a palavra com voz hesitante e, erguendo os olhos para Dúnia, declarou que uma circunstância a preocupava deveras nesse momento.

— Dize-me, Dúnia — começou ela. — Achas que devo ser franca com Dmitri Prokófitch?

— Sem dúvida, mamãe — respondeu a moça em tom autoritário.

— Eis a questão — apressou-se a dizer a mãe, como se lhe tivessem tirado um grande peso de cima do peito, permitindo-lhe comunicar aos outros as suas mágoas. — Esta manhã, recebemos uma carta de Pedro Petróvitch em resposta a uma que lhe tínhamos enviado ontem a participar-lhe a nossa chegada. Pedro devia esperar-nos ontem na estação como tinha prometido. Em seu lugar encontramos um criado que nos conduziu até aqui anunciando-nos para hoje de manhã a visita de seu amo. Ora sucede que, em vez de vir, Pedro mandou-nos esta carta... há aí uma coisa que me inquieta bastante... Vai ver já o que é... e dir-me-á francamente sua opinião, Dmitri Prokófitch! Conhece muito bem o caráter de Ródia e melhor que ninguém poderá aconselhar-nos. Devo dizer-lhe que Dunetchka decidiu logo a questão; mas, por minha parte, confesso que não sei qual o partido que deva tomar.

Razumíkhin desdobrou a carta, datada da véspera, e leu o que se segue:


Sra. Pulquéria Alexandrovna:

Tenho a honra de informá-la de que circunstâncias imprevistas me impediram de ir esperá-la na estação, motivo por que me fiz substituir por pessoa da minha inteira confiança. Os negócios privar-me-ão igualmente da honra de vê-la amanhã, de manhã; além de que não desejo servir de estorvo à sua entrevista com seu filho, nem à de Avdótia Romanovna com seu irmão. Por conseguinte somente às oito horas da noite é que terei a honra de ir apresentar-lhe os meus cumprimentos, em sua casa. Rogo-lhe ardentemente que me poupe, durante esta entrevista, o dissabor de me encontrar com Ródion Românovitch, porque esse homem insultou-me da forma mais grosseira, por ocasião da visita que lhe fiz ontem. Independentemente desta circunstância, é-me forçoso ter com a senhora uma explicação pessoal a respeito de um ponto que nós ambos não interpretaremos certamente da mesma forma. Tenho a honra de avisá-la com antecedência de que, se apesar do meu desejo formalmente expresso na presente carta, encontrar em sua casa Ródion Românovitch, ver-me-ei forçado a retirar-me imediatamente, e então só terá de queixar-se de si própria.

Faço este aviso partindo do princípio de que Ródion Românovitch, que parecia estar tão doente por ocasião da minha visita, recobrou inesperadamente a saúde duas horas depois, e pôde, por conseguinte, ir à sua casa. Com efeito, ontem vi-o em casa de um bêbado que pouco antes fora esmagado por uma carruagem e, a pretexto de pagar o funeral, deu 25 rublos à filha do defunto, uma moça de notório mau comportamento e cuja crônica escandalosa é conhecida de todo mundo. Causou-me o fato grande admiração porque sei à custa de quantas privações a senhora conseguiu aquela quantia! Resta-me agora pedir-lhe que transmita as minhas homenagens a Avdótia Romanovna e permitir-me que me assine, com respeitosa dedicação.

Seu obediente criado.

P. Lujine.


— Que fazer agora, Dmitri Prokófitch? — perguntou Pulquéria Alexandrovna quase chorando. — Como iremos dizer a Ródia que não venha? Ele é capaz de vir aqui quando souber disto e... que acontecerá então?

— Siga o conselho de Avdótia Romanovna — respondeu tranquilamente e sem hesitação Razumíkhin.

— Meu Deus! — disse Pulquéria... — Deus sabe o que Avdótia fala, mas não me explica o seu intento! Segundo a opinião dela é preferível, ou antes, é absolutamente indispensável que Ródia venha esta noite, pelas oito horas, e se encontre aqui com Pedro Petróvitch... Por mim, preferiria não lhe mostrar a carta e usar de subterfúgios para o impedir de vir; contava sair-me bem deste passo difícil com o seu auxílio... Não sei de que bêbado esmagado por um carro e de que filha se trata nesta carta: não posso compreender como ele tenha dado a estas as últimas moedas de prata... que...

— Que representam tantos e tantos sacrifícios para mamãe — concluiu Avdótia.

— Ontem ele não estava no seu estado normal — disse Razumíkhin com ar pensativo. Se soubesse a que passatempo se entregou num traktir! Aliás, fez ele muito bem! Na verdade, falou-me de um morto e de uma rapariga, na ocasião em que o acompanhei a casa; mas não compreendi nada... É verdade que eu ontem estava...

— O melhor, mamãe, é ir à casa dele, aí afianço-lhe que havemos de ver qual é o melhor caminho a seguir. E é tempo de tomar uma resolução. Deus do céu! Já são dez horas! — exclamou Avdótia Romanovna, consultando um soberbo relógio de ouro esmaltado, que tinha suspenso ao pescoço por uma delicada cadeia de Veneza e contrastava visivelmente com o resto da toilette.

“É um presente do noivo”, pensou Razumíkhin.

— Ah, é muito tarde! O tempo corre, Dunetchka! — disse Pulquéria Alexandrovna. — Vai pensar que estamos sentidas com ele pela recepção de ontem; talvez assim é que interpretará a nossa demora.

E assim falando, apressou-se a pôr o chapéu e a mantilha.

Dunetchka preparou-se também para sair. As luvas eram muito usadas, estavam mesmo esburacadas, o que não passou despercebido a Razumíkhin; todavia, esses trajes, cuja pobreza saltava aos olhos de todo mundo, davam às duas damas certo ar de dignidade, como acontece sempre às mulheres que sabem vestir-se discretamente. Razumíkhin olhou embevecido para Dúnia e sentiu-se orgulhoso em acompanhá-la.

“A rainha que remendava suas meias na prisão”, pensou, “deve ter-se assemelhado, em cada polegada de seu corpo, a uma rainha, parecendo ainda mais uma rainha do que quando se apresentava em suntuosos banquetes e recepções”.

— Meu Deus! — exclamou Pulquéria. Poderia eu sonhar que havia de recear uma entrevista com meu filho, com o meu querido Ródia! Tenho medo, Dmitri Prokófitch! — exclamou ela, olhando timidamente para o jovem.

— Nada receie, mamãe — disse Dúnia beijando-a —, quanto a mim, tenho confiança.

— Ah, meu Deus, de minha parte tenho confiança também, e no entanto não dormi a noite toda! — disse a pobre mulher.

Os três saíram.

— Sabes, Dunetchka, que esta manhã, ao romper do dia, meio adormecida, vi em sonhos a defunta Marfa Petrovna? Estava vestida de branco... ela veio a meu encontro, tomou-me pelas mãos, cumprimentou-me com a cabeça, mas com tal seriedade, como se me repreendesse... Este é um bom sinal? Ah, meu Deus! Dmitri Prokófitch, não abe ainda que Marfa Petrovna morreu?

— Não, não sabia... Que Marfa Petrovna é essa?

— Morreu de repente! E imagine que...

— Logo contará isso, mamãe — interveio Dúnia —, Dmitri não sabe ainda de que Marfa se trata.

— Ah, não a conhece? Pensei que já tinha contado toda essa história. Desculpe-me, Dmitri Prokófitch, ando com a cabeça transtornada! Já o considero como a nossa Providência, eis que me persuado de que Dmitri anda ao corrente de todos os nossos negócios. Trato-o como pessoa da família. Ah! Mas que tem na mão? Está ferido?

— Sim, feri-me — murmurou Razumíkhin com satisfação.

— Às vezes sou muito curiosa, e Dúnia até me censura por isso... Ora vejam em que pocilga ele vive! E aquela mulher, a hospedeira, chama àquilo um quarto! Ora, ouça: disse-me que ele não gosta de abrir-se com pessoa alguma; pode, pois, suceder que eu lhe cause aborrecimento com as... minhas franquezas. Não me dá algumas instruções a este respeito, Dmitri Prokófitch? Como devo proceder para com ele? Bem vê que estou sem saber o que fazer.

— Não lhe faça muitas perguntas, se vir que ele franze a testa; evite, sobretudo, falar-lhe da saúde, porque Ródia não gosta disso.

— Ah, como é triste, algumas vezes, a posição de uma mãe! Mas olhem para esta escada... Que horror!

— Mamãe está branca como a cal da parede; sossegue, querida — disse Dúnia, acariciando a mãe —, para que amofinar-se assim, quando deve ser para ele uma felicidade vê-la? — acrescentou Dúnia, cujos olhos tinham um fulgor singular.

— Esperem, eu vou na frente para ver se ele está acordado.

Razumíkhin tomou a dianteira e as mulheres subiram sem fazer ruído, atrás dele. Chegados ao quarto, notaram que a porta da hospedeira estava entreaberta e que, pela estreita abertura, dois olhos negros e penetrantes as observavam. Quando os olhares se cruzaram, a porta fechou-se com tal estrondo que Pulquéria Alexandrovna quase deixou escapar um grito de terror.


Capítulo III

— Está melhor! Está muito melhor! — exclamou Zózimov alegremente, vendo entrar as duas senhoras. Estava ali havia dez minutos, ocupando no divã o mesmo lugar da véspera. Raskólnikov, sentado na outra extremidade, estava completamente vestido, tendo-se mesmo dado ao trabalho de lavar o rosto e se pentear, operações que não praticava havia muito tempo. Embora a chegada de Razumíkhin e das duas senhoras determinasse o atravancamento literal do aposento, Nastácia encontrou meio de entrar atrás deles e achar um lugar para ouvir o que se dissesse.

Realmente Raskólnikov estava melhor, mas muito pálido e mergulhado em profunda meditação. Parecia ferido ou ter passado por tremendo sofrimento físico. Lábios comprimidos, sobrecenho cerrado, olhos febricitantes, falava pouco e relutantemente, como se cumprisse uma obrigação, e havia um tremor em seus movimentos. Só faltava enfaixar o braço e colocar uma atadura no dedo para dar a impressão de que tivesse um abscesso doloroso ou um braço quebrado. A pálida e sombria fisionomia iluminou-se quando a mãe e a irmã entraram, mas somente deu uma expressão mais forte de intenso sofrimento, em lugar do desânimo apático. A luz em breve se extinguiu, mas a expressão de sofrimento perdurou. Zózimov observou, com todo o zelo de um jovem médico que inicia sua clínica, não haver nenhuma alegria em seu paciente pela chegada das duas, mas uma espécie de resignado estoicismo para suportar durante uma ou duas horas uma tortura que não podia evitar. Assim que se iniciou a palestra, o médico teve a impressão de que cada palavra reabrisse uma ferida na alma do seu cliente; mas, ao mesmo tempo, surpreendia-se ao vê-lo relativamente senhor de si, o monomaníaco furioso da véspera dominava-se agora até certo ponto e conseguia disfarçar as próprias impressões.

— Sim, sinto que estou quase restabelecido — disse Raskólnikov abraçando a mãe e a irmã com uma cordialidade que inundou de alegria o rosto de Pulquéria —, e hoje não digo isto como o dizia ontem — acrescentou dirigindo-se a Razumíkhin e apertando-lhe afetuosamente a mão.

— Eu próprio me confesso espantado por vê-lo hoje tão bem disposto — disse Zózimov. — Continuando assim, dentro de três ou quatro dias, teremos o Raskólnikov de há um mês ou dois... Esta doença estava incubada há muito, não é assim? Confesse agora que até certo ponto contribuiu para este resultado — terminou sorrindo, mas receando ainda que seu doente se irritasse.

— É muito provável — respondeu friamente Raskólnikov.

— Agora que podemos conversar — continuou Zózimov —, desejaria convencê-lo de que é absolutamente necessário afastar as causas primárias do desenvolvimento da sua doença; se fizer isto, curar-se-á; do contrário, o mal agravar-se-á irremediavelmente. Ignoro quais sejam as causas primárias a que aludi; mas o meu amigo ter-se-á observado a si próprio. Quero crer que a sua saúde começou a alterar-se depois que saiu da universidade. É opinião minha que o amigo não deve ficar absolutamente ocioso; ser-lhe-ia muito útil que se entregasse ao trabalho, que tivesse um fim qualquer em vista, seguindo-o com persistência.

— Sim, sim. Tem razão... voltarei o mais depressa possível para a universidade, e tudo volverá à normalidade...

O médico dera estes sensatos conselhos muito especialmente para produzir efeito diante das senhoras. Quando terminou, olhou para Raskólnikov, ficando um tanto desconcertado por ler-lhe no rosto um ar de mofa; mas teve em breve a recompensa da sua profunda decepção. Pulquéria agradeceu-lhe os seus bons serviços e se confessou muito reconhecida pela visita que ele lhes fizera na noite anterior.

— Como, o senhor Zózimov foi à sua casa ontem à noite? — perguntou Raskólnikov com a voz um pouco alterada. — De modo que não descansaram ainda depois de uma viagem tão fatigante?

— Oh, Ródia, não eram ainda duas horas. Em nossa casa nunca nos deitávamos cedo.

— Não sei como agradecer-lhe tantos favores — continuou Raskólnikov, que bruscamente franziu os sobrolhos e baixou a cabeça. — Pondo de lado a questão de dinheiro, e desculpe-me aludir a ela — disse ele a Zózimov não sei por que motivo lhe pude merecer tanto interesse. Não percebo e... direi até que me pesa uma tão excessiva benevolência, porque quanto a mim nada a justifica... Como vê, sou muito franco...

— Não se preocupe com isso — respondeu Zózimov afetando um sorriso —, suponha que é o meu primeiro cliente. Ora, nós, os médicos, ficamos tão amigos dos nossos primeiros clientes como se fossem nossos próprios filhos. E, pelo que me diz respeito, deve compreender que não tenho ainda uma clientela numerosa.

— Não digo palavra a respeito dele — disse Raskólnikov indicando Razumíkhin — que não seja uma injúria, e causo-lhe as maiores contrariedades.

— Que tolices está dizendo? Pelo que vejo, estás hoje sentimental — disse Razumíkhin.

Se fosse mais perspicaz teria visto que, longe de estar sentimental, seu amigo encontrava-se numa disposição de espírito inteiramente oposta. Mas Avdótia não era tão falta de perspicácia e pôs-se a observar o irmão, um tanto inquieta.

— Da senhora, mamãe, quase nem ouso falar — disse ainda Raskólnikov com o ar de quem repetia uma lição decorada pela manhã —, só hoje pude compreender quanto sofrera ontem esperando a minha volta.

Disse essas palavras sorrindo e estendeu a mão à irmã, sem uma palavra, seu sorriso exprimindo agora um sentimento verdadeiro. No rosto de Ródion não se notava a dissimulação. Dúnia apertou efusivamente a mão que se lhe oferecia. Era o primeiro momento de atenção que o irmão lhe dava depois da alteração da véspera. Esta cena muda de reconciliação entre os dois irmãos encheu de satisfação Pulquéria Alexandrovna, que estava radiante.

Razumíkhin deu um pulo na cadeira.

— Só por isto amá-lo-ia para sempre! — disse ele com sua tendência para exagerar tudo.

“Que bonita ação!”, pensava a mãe, “que nobres sentimentos ele tem! Este simples fato de estender a mão à irmã, olhando-a afetuosamente, não seria a forma mais franca e delicada de pôr termo ao incidente da véspera? E que olhos delicados tem. Como é nobre seu rosto... é mais belo que Dúnia. Mas, Deus do céu!, como está mal vestido. Vásia, o mensageiro da loja de Afanase Ivânovitch, traja-se melhor! Poderia abraçá-lo carinhosamente... e chorar em seus ombros, mas tenho medo... Oh, querido, estás tão estranho! Falas ternamente, mas tenho medo! Por quê? De que tenho medo?”.

— Ah, Ródia, não podes imaginar — apressou-se a responder à observação do filho, quanto eu e Dúnia fomos ontem... infelizes! Agora que tudo terminou e estamos satisfeitos, pode-se contar. Ora, ouve lá: à saída do trem, viemos numa corrida desenfreada para te abraçar, e a criada... Olha, ela está aqui! Bom dia, Nastácia!... Pois ela disse-nos, mal entramos, que tu estiveste de cama com febre, que acabaras de sair, delirando, e que andavam à tua procura. Não podes imaginar em que estado ficamos! Não posso deixar de pensar no trágico fim do tenente Potanchikof, amigo de teu pai. Não te lembras, Ródia? Fugiu da mesma forma, com febre alta, e caiu na área e não puderam retirá-lo senão no dia seguinte. Naturalmente, exageramos os fatos, estávamos a ponto de sair correndo à procura de Pedro Petróvitch para pedir-lhe ajuda, porque estávamos sozinhas — disse Pulquéria queixosamente, calando-se de repente, por lembrar-se que ainda era temerário falar em Pedro Petróvitch, “embora estivessem de pazes feitas”.

— Sim, sim... isso é realmente pouco agradável... — murmurou Raskólnikov, mas disse isso tão distraidamente, para não dizer com indiferença, que Dunetchka contemplou-o surpreendida.

— Que mais ia eu dizer? — continuou ele fazendo um esforço para se recordar. — Ah, sim, peço-lhe, mamãe, e a ti, Dúnia, que não julguem que eu não quisesse ser o primeiro a ir visitá-las, e que esperasse que me viessem ver...

— Mas por que dizes isso, Ródia!? — exclamou Pulquéria, desta vez não menos espantada do que a filha.

“Parece que nos atende por simples delicadeza”, pensou Dunetchka, “reconcilia-se como se cumprisse uma simples formalidade ou recitasse uma lição”.

— Logo que acordei, quis ir procurá-las; mas não tinha roupa. Tencionava dizer ontem a Nastácia que lavasse este sangue... Só há pouco é que pude vestir-me.

— Sangue? — perguntou-lhe Pulquéria assustada.

— Não é nada, não se aflija. Ontem, enquanto estava com delírio, tropecei, na rua, com um homem que acabava de ser esmagado; foi por isso que ensanguentei a roupa...

— Enquanto estavas com delírio? Mas recordas-te de tudo! — interrompeu Razumíkhin.

— Lembro-me — respondeu Raskólnikov pensativo — lembro-me de tudo, até das coisas mais insignificantes, mas o que é singular é que não consigo explicar a mim próprio por que razão fiz isso, por que disse aquilo, por que fui a tal lugar.

— É um fenômeno vulgar — observou Zózimov —, o ato é às vezes praticado com uma segurança e habilidade extraordinárias; mas o princípio de que ele emana altera-se e depende de diversas impressões mórbidas, como em um sonho.

“Talvez seja uma boa coisa julgar-me alienado”, pensou Raskólnikov.

— Por que pessoas hígidas atuam do mesmo modo? — observou Dúnia, olhando constrangida para Zózimov.

— Há um grão de verdade em sua observação — respondeu Zózimov. — Neste sentido agimos frequentemente como alienados, com uma ligeira diferença: modificamo-nos abruptamente, porque somos capazes de traçar um limite. Um homem normal, em verdade, dificilmente existe. Entre dúzias — talvez entre centenas de milhares — não se encontra um.

A palavra “alienado” produziu uma impressão desagradável de calafrio; Zózimov deixara-a escapar distraidamente, todo entregue ao prazer de fazer frases sobre o seu tema favorito. Raskólnikov, sempre absorto, pareceu não ter dado atenção alguma às palavras do médico. Um sorriso estranho pairava nos seus lábios descorados.

— Mas esse homem esmagado? — apressou-se a interrogar Razumíkhin.

— O quê? — perguntou Raskólnikov como se acordasse. — Ah! sim... ensanguentei-me quando o ajudei a conduzir à casa... A propósito, mamãe, eu fiz ontem uma coisa imperdoável: era preciso realmente que estivesse com a cabeça perdida... Todo o dinheiro que você me mandou dei-o... à viúva do tal homem... para o enterro. A pobre mulher dá pena... está tuberculosa... ficou com três crianças sem ter o que lhes dar de comer... e há ainda outra moça... mamãe talvez fizesse o mesmo que eu fiz, se visse aquele horror. No entanto, reconheço que não tinha o direito de dar aquele dinheiro, sabendo quanto custou a mamãe obtê-lo. Para ajudar os outros deve-se ter direito, do contrário: “Crevez, chiens, si vous n’êtes pas contents.”[ 29 ] — Ele riu. — Não é verdade, Dúnia?

— Não, não é! — respondeu Dúnia incisivamente.

— Ora, também tens ideais — resmungou ele, olhando para Dúnia quase com ódio e sorrindo sarcasticamente. — Deveria ter levado isto em conta... aquilo que achas digno de louvor e melhor para ti... e se tu atingisse um limite, não ultrapassarias e serias infeliz... se o ultrapassasses, talvez fosses mais infeliz ainda... Mas tudo isso é idiotice! — acrescentou irritado por divagar. — Somente lhe quis pedir perdão, mamãe — concluiu abruptamente.

— Não penses nisso, Ródia! Quanto a mim, tudo quanto fazes é bem-feito! — respondeu a mãe.

— Pois não tem mais razões para pensar assim — replicou ele dissimulando um sorriso.

A conversa ficou suspensa durante algum tempo. Palavras, silêncio, recordação, perdão, tudo era um tanto forçado, e todos o sentiam.

“Agem como se me temessem”, pensou Raskólnikov, olhando espantado para a mãe e a irmã. Pulquéria Alexandrovna certamente ficava mais tímida quanto mais persistia o silêncio. “Embora na ausência delas, parecia que as amava tanto”, relampejou na mente de Raskólnikov.

— Sabes, Ródia, que Marfa Petrovna morreu? — disse de repente Pulquéria.

— Qual Marfa Petrovna?

— A mulher de Svidrigailov, não te recordas? Falei-te tanto dela na minha última carta!

— Ah, sim, lembro-me agora... Então morreu? Essa agora... — disse ele com um estremecimento súbito de quem acorda. — Como é possível que ela morresse? Mas de que morreu?

— Imagina, morreu de repente! — apressou-se a dizer Pulquéria, animada a prosseguir pela curiosidade que o filho manifestava. — Morreu no mesmo dia em que te escrevi a carta... Segundo dizem, foi o miserável do marido o causador da morte. Correu que a moera de pancada.

— Era costume dele? — perguntou Raskólnikov dirigindo-se à irmã.

— Não, ao contrário; ele mostrava-se até muito atencioso e delicado com ela. Havia ocasiões em que dava mesmo provas de grande indulgência, e isso durou sete anos... Mas um belo dia perdeu a paciência.

— Então ele não era tão mau como o pintam, uma vez que teve paciência durante sete anos! Parece que o desculpas, Dunetchka?

Avdótia Romanovna franziu as sobrancelhas.

— Era realmente um homem terrível. Eu não posso imaginar nada pior — respondeu ela com ar pensativo.

— Murmura-se que de manhã houve entre eles cena violenta — continuou Pulquéria. — Depois disso, parece que ela mandou aprontar a carruagem, porque queria ir à cidade depois do jantar, como costumava fazer; dizem que comeu com bastante apetite...

— Apesar da sova?

— Estava habituada. Depois de jantar tomou um banho... Tratava-se pela hidroterapia e tomava banho numa fonte que há na casa deles. Mal entrou na água, teve uma apoplexia.

— Pudera! — observou Zózimov.

— Mas a que vem tudo isso? — perguntou Dúnia.

— Hum! Eu não sei por que mamãe conta tais tolices — disse Raskólnikov irritando-se de repente.

— Oh, filho, eu não sabia sobre o que falar... — confessou ingenuamente Pulquéria Alexandrovna.

— Parece que ambas têm medo de mim — continuou ele com um sorriso contrafeito.

— E é verdade — respondeu Dúnia, fixando nele o olhar severo. — Quando subíamos a escada, mamãe até se persignou, tão assustada vinha.

A expressão severa do rosto de Ródia transformou-se.

— Que estás dizendo, filha? Não te zangues, Ródia... Como dizes essas coisas, Dúnia!... — desculpou-se Pulquéria Alexandrovna bastante confusa. — A verdade é que no vagão eu não deixei de pensar, em todo o caminho, na felicidade de te tornar a ver e de estar contigo... Felicidade tão grande que até a viagem me pareceu curta, tão enlevada vinha nessa ideia. E agora sinto-me feliz, filho! Feliz por estar a teu lado, Ródia!...

— Basta, mamãe — murmurou ele agitado, sem a encarar e apertando-lhe a mão —, temos de conversar!

Pronunciou estas palavras perturbado e pálido: de novo sentiu um frio de morte na alma, de novo reconheceu que acabara de mentir horrivelmente e que daí em diante já não podia conversar à vontade nem com sua mãe nem com pessoa alguma. E a sensação desse pensamento torturante foi tão viva que, esquecendo-se dos seus visitantes, Raskólnikov se levantou e encaminhou-se para a porta.

— Aonde vais? — gritou-lhe Razumíkhin agarrando-o por um braço.

Raskólnikov tornou a sentar-se e olhou silenciosamente em redor: todos o observavam com espanto.

— Mais parece que estão empenhados em aborrecer-me! — exclamou por fim. — Digam alguma coisa! Por que permanecem mudos? Falem! Não é para se estar calado que a gente se reúne. Conversemos.

— Louvado seja o Senhor! Eu já pensava que ele ia ter outro acesso como ontem — disse Pulquéria Alexandrovna, que se tinha persignado.

— Mas que tens, Ródia? — perguntou Dúnia já inquieta.

— Nada, era um disparate que me tinha passado pelo espírito — respondeu desatando a rir.

— Está bem, se é um disparate, tanto melhor! Que eu por mim receava... — murmurou Zózimov, levantando-se. — Agora vou deixá-los; verei se posso voltar logo...

Despediu-se e saiu.

— Que excelente rapaz! — observou Pulquéria.

— É um bom rapaz, com efeito, filho de boa família, instruído, inteligente... — disse Raskólnikov com animação desusada, já não me recordo onde o encontrei antes da minha doença... Creio que o encontrei em algum lugar... E aqui está outro rapaz excelente! — acrescentou indicando Razumíkhin. — Gostas dele, Dúnia? — perguntou subitamente a ela e, sem nenhum motivo, riu.

— Muito — respondeu Dúnia.

— Passa! Que patife és! — protestou Razumíkhin, ruborizando-se em terrível confusão e erguendo-se da cadeira. Pulquéria Alexandrovna sorriu timidamente, mas Raskólnikov riu ruidosamente.

— Mas aonde vais?

Razumíkhin, com efeito, tinha-se levantado.

— Preciso ir-me embora também... tenho o que fazer... — disse ele.

— Não tens nada que fazer, deixa-te estar! Porque Zózimov saiu também queres ir-te embora. Não vás... Mas que horas são? É meio-dia? Que lindo relógio tens, Dúnia! Por que se tornam a calar outra vez? Ninguém fala senão eu!...

— Foi um presente de Marfa Petrovna — respondeu Dúnia.

— E foi muito caro! — continuou Pulquéria Alexandrovna.

— Ah, ah! E enorme! Parece não ser de senhora.

— Gosto assim — disse Dúnia.

“Então não é um presente do noivo”, pensou Razumíkhin, deliciado sem ter motivo.

— Julguei que fosse presente de Lujine — falou Raskólnikov.

— Não, ele nada deu a Dunetchka.

— Ah! Oh, mamãe, lembra-se de que eu estive enamorado e quis casar? — disse ele bruscamente, voltando-se para a mãe, espantada da feição imprevista que Ródia acabava de dar à conversa e do tom em que falava.

— Ah, sim, meu filho! — respondeu Pulquéria Alexandrovna trocando um olhar com Dunetchka e Razumíkhin.

— Sim! É verdade! Que direi eu? Já não me lembro de nada disso. Era uma moça fraquinha, sempre adoentada — continuou pensativo e de olhos baixos. — Gostava de dar esmolas aos pobres e o seu pensamento constante era entrar para um convento; um dia via-a desfazer-se em lágrimas, enquanto me falava disso. Lembro-me perfeitamente, parece que a estou vendo. Era mais feia do que bonita. A dizer a verdade, nem sei por que me afeiçoei a ela. Talvez por ser muito doente... Se, além disso, ela fosse também coxa ou corcunda, parece-me que a teria amado mais ainda... (Sorriu tristemente.) Enfim, isso não tinha importância... era uma doidice de rapaz...

— Não, não era só uma doidice de rapaz... — observou Dunetchka muito convicta.

Raskólnikov olhou atentamente para a irmã, mas não ouviu bem, ou mesmo não entendeu suas palavras. Depois com um ar melancólico, levantou-se, abraçou a mãe e tornou a sentar-se no mesmo lugar.

— E ainda a amas? — disse Pulquéria, comovida.

— Ainda a amo? Ah, sim... fala dela? Não. Tudo isso está agora muito longe de mim... e já há muito tempo. Aliás, tudo que me rodeia me dá a mesma impressão...

Olhou com atenção as duas mulheres.

— Ora vejam: mamãe e Dúnia estão aqui, junto de mim... Pois bem, parece-me que as vejo a uma distância de mil verstas... Mas para que falamos nisto! E por que diabo me interrogam! acrescentou agastado. Depois começou a roer as unhas e tornou a cair no seu devaneio.

— Que quarto medonho tu arranjaste, Ródia! Parece um túmulo — disse bruscamente Pulquéria Alexandrovna para romper o silêncio —, estou certa de que este quarto contribuiu muito para a tua hipocondria.

— Este quarto? — replicou ele distraidamente. — Sim, talvez tenha contribuído, já tenho pensado nisso... No entanto, se mamãe soubesse que ideia singular acaba de exprimir! — acrescentou ele com um sorriso enigmático.

Raskólnikov estava em tal estado que quase lhe custava suportar a presença da mãe e da irmã, de quem estivera separado durante três anos, mas com as quais sentia que era impossível sustentar qualquer conversa. Havia, porém, uma questão que não podia sofrer adiamento; pouco antes, quando se tinha levantado, dissera a si mesmo que ela havia de ser decidida nesse mesmo dia de um modo ou de outro. Neste momento, foi para ele uma sorte encontrar nessa questão um meio de sair do embaraço.

— Eis o que eu quero dizer-te, Dúnia — começou ele em tom seco. — Naturalmente peço-te as minhas desculpas pelo incidente de ontem, mas julgo de meu dever recordar-te que mantenho os termos de meu dilema: ou eu ou Lujine. Eu posso ser infame, mas tu não deves ser. Um é bastante. Portanto, se casas com Lujine deixo no mesmo instante de te considerar como irmã.

— Ródia! Ródia! Estás falando outra vez como ontem! — exclamou Pulquéria Alexandrovna, desconsolada. — Por que te chamas sempre infame? Não posso suportar isso! Já ontem dizias a mesma coisa...

— Meu irmão — respondeu Dúnia num tom que não ficava atrás, nem em secura nem em aspereza, ao de Raskólnikov —, o equívoco que nos desune provém de um erro em que estás. Refleti muito nisso esta noite e descobri em que ele consiste. Tu supões que eu me sacrifico por alguém. Ora, aí está o teu engano. Eu caso única e simplesmente por minha causa, porque a minha situação pessoal é difícil. Sem dúvida, mais tarde, estimarei muito ser útil à minha família, podendo fazê-lo; mas esse não é o motivo principal da minha resolução.

“Mente!”, pensava consigo Raskólnikov, roendo as unhas de raiva. “Orgulhosa! Não confessa que quer ser minha benfeitora! Que arrogância! Oh, que caracteres baixos! O seu amor parece-se com o ódio... Como eu... os detesto a todos!”

— Numa palavra — continuou Dunetchka —, eu caso com Pedro Petróvitch porque de dois males escolho o menor. Pretendo cumprir lealmente tudo o que ele espera de mim; por conseguinte não engano... Por que sorriste ainda agora?

Corou e um relâmpago de cólera brilhou-lhe nos olhos.

— Cumprirás tudo? — perguntou ele sorrindo com amargura.

— Até certo limite. Pela maneira por que Pedro Petróvitch pediu a minha mão, percebi logo o que lhe é necessário. Ele forma talvez um alto conceito de si próprio; mas espero que também saberá apreciar-me... Por que tornas a rir?

— E tu por que tornas a corar? Tu mentes, minha irmã; não podes estimar Lujine; vi-o e conversei com ele. Por conseguinte, casas por interesse; em todo caso cometes uma baixeza; e ao menos estimo ver que ainda sabes corar!

— Não é verdade, eu não minto! — gritou a jovem perdendo todo o sangue-frio —, não me casarei sem estar bem segura de que ele me aprecia e estima; não casarei com ele sem estar plenamente convencida de que eu própria posso estimá-lo. Felizmente tenho um meio de me certificar disso de maneira decisiva e, o que é mais, hoje mesmo. Mas, ainda mesmo que tivesse razão, quando efetivamente eu estivesse resolvida a uma baixeza, não era uma crueldade de sua parte falares-me dessa maneira? Por que exiges de mim um heroísmo que tu talvez não tenhas? Isso é tirania, é uma violência! Se prejudico alguém, sou eu a prejudicada... Ainda não matei ninguém!... Por que olhas para mim desse modo? Por que empalideces? Ródia, que tens? Ródia, querido!...

— Meu Deus! Desmaiou, e tu é que foste a causa! — exclamou Pulquéria.

— Não, isso não é nada, que tolice!... Foi a cabeça que se transtornou um pouco. Não foi um desmaio... Os desmaios são para as mulheres. Sim! Que queria dizer? Ah, como poderás convencer-te ainda hoje de que podes vir a estimar Lujine e que... ele te aprecia... porque era isso o que dizias ainda agora, não é verdade? Ou eu não ouvi bem?

— Mamãe, mostre a meu irmão a carta de Pedro Petróvitch — disse Dunetchka.

Pulquéria Alexandrovna estendeu a carta com a mão trêmula.

Raskólnikov recebeu-a com grande interesse, mas, antes de abri-la, olhou num relance e com espanto para Dúnia.

— É estranho — disse lentamente, como que movido por nova ideia. — Por que estou fazendo tanta confusão? Para que tudo isso? Casa-te com quem quiseres!

Disse para consigo mesmo, mas disse-o alto e olhou a irmã por algum tempo, como que desconcertado. Abriu por fim a carta com o mesmo estranho olhar de surpresa e, devagar e atentamente, começou a ler. Leu-a toda duas vezes. Pulquéria Alexandrovna demonstrava uma ansiedade marcante, e todos esperavam alguma cena insólita. Depois de uma curta pausa, devolvendo a carta à mãe, mas sem se dirigir a ninguém em particular, disse:

— O que me surpreende é ser um homem de negócios, um advogado, com conversa decididamente pretensiosa e, no entanto, escrever carta como um ignorante.

Essas palavras fizeram pasmar todo mundo, ninguém esperava tal resposta.

— Mas todos escrevem nesses termos, como é sabido — observou Razumíkhin.

— Leste-a?

— Sim.

— Mostramo-la, Ródia. Nós... o consultamos ainda há pouco... — começou Pulquéria Alexandrovna a falar embaraçada.

— Esse é o jargão dos tribunais — interferiu Razumíkhin. — Os documentos legais são escritos assim até hoje.

— Legal? Sim, justamente legal — linguagem comercial —, não totalmente deseducada e não totalmente polida. Linguagem comercial.

— Pedro Petróvitch também não oculta que recebeu pouca instrução e orgulha-se de dever tudo a seu trabalho — disse Avdótia Romanovna, um pouco melindrada pelo tom em que o irmão falara.

— Pois bem, ele pode orgulhar-se com razão, não digo o contrário. Parece que estás magoada, minha irmã, porque manifestei uma opinião frívola a respeito dessa carta, julgas que insisto de propósito em tais ninharias para te aborrecer? De modo nenhum; relativamente ao estilo, reparei que, no caso presente, está longe de não ter importância. A frase “Só terá de queixar-se de si mesma” não deixa nada a desejar do ponto de vista da clareza. Além disso, adverte que se retirará imediatamente se me encontrar quando for visitá-las. Essa ameaça significa simplesmente que, se não lhe obedecerem, ele as abandonará a ambas, depois de as ter obrigado a vir a São Petersburgo. Então que te parece? Essas palavras da parte de Lujine ofendem do mesmo modo que se tivessem sido escritas por ele (apontando para Razumíkhin), por Zózimov ou por um de nós?

— Não — respondeu Dunetchka —, compreendo que ele traduziu pouco delicadamente seu pensamento e que não é talvez muito hábil escritor... Tua observação é muito justa, meu irmão. Eu nem esperava...

— Admitindo que ele escreve como um homem de negócios, não podia exprimir-se de outra forma e não foi talvez por sua culpa que se mostrou tão grosseiro. Aliás, devo desiludir-te um pouco. Nessa carta há uma outra frase que contém uma calúnia bem vil. Eu dei ontem algum dinheiro a uma viúva tuberculosa e prostrada pela desgraça, não como ele escreve: “a pretexto de pagar o funeral”, mas justamente para o funeral; e essa quantia foi à própria viúva que a entreguei e não à filha do defunto — essa rapariga “cuja crônica escandalosa é conhecida de todo mundo”, segundo ele diz, e que eu vi ontem pela primeira vez.

Em tudo isso, descobre-se o objetivo de me desacreditar em tua opinião e na de mamãe. Ainda nesse ponto, ele escreve em estilo jurídico, isto é, revela claramente seu fim, e prossegue em seu fito sem rodeios nem cerimônias. É inteligente; mas, para se proceder corretamente, a inteligência só não basta. Tudo isso define o homem, e não creio que ele te aprecie muito. E falo-te assim para teu governo, porque desejo sinceramente tua felicidade.

Dunetchka não respondeu; desde o princípio, a sua resolução estava tomada, só esperava pela noite.

— Então, Ródia, que decides? — perguntou Pulquéria Alexandrovna; sua inquietação aumentara desde que o filho começara a falar pausadamente, como um homem de negócios.

— Que quer dizer com isso, mamãe?

— Tu viste o que escreveu Pedro Petróvitch: ele deseja que não venhas à nossa casa esta noite e declara que se irá embora... se lá fores. É por isso que pergunto o que pensas fazer.

— Não tenho a decidir coisa nenhuma. Mamãe e Dúnia é que devem ver se essa exigência de Pedro Petróvitch não é ofensiva para ambas. Eu farei o que lhes agradar — acrescentou friamente.

— Dunetchka já resolveu a questão, e eu sou inteiramente de seu parecer — apressou-se a responder Pulquéria.

— Eu acho indispensável que assistas a essa reunião e peço-te encarecidamente para ires lá — disse Dúnia. — Vais?

— Vou.

— Peço-lhe também o favor de ir à nossa casa às oito horas — continuou ela dirigindo-se a Razumíkhin. — Mamãe, convida também o senhor Dmitri Prokófitch.

— E fazes bem, Dunetchka. Está decidido, faça-se conforme teu desejo, acrescentou Pulquéria Alexandrovna. Aliás, para mim é um alívio; eu não gosto de fingir nem de mentir e mais vale uma explicação franca... E agora Pedro Petróvitch que se zangue à vontade!


Capítulo IV

Nesse momento, abriu-se a porta e entrou uma rapariga, olhando timidamente em redor. Sua aparição causou surpresa geral e todos os olhares se fixaram nela. A princípio, Raskólnikov não a conheceu. Era Sônia Semenovna Marmêladov. Vira-a na véspera pela primeira vez, mas em tais circunstâncias e com um vestuário que lhe haviam reproduzido outra imagem na memória. Agora, era uma moça modesta e pobre, de maneiras honestas e humildes. Trajava um vestidinho simples e um chapéu velho fora de moda. De seus adornos da véspera, trazia apenas o guarda-sol. Vendo toda aquela gente que não esperava encontrar, sentiu-se envergonhada, e ia retirar-se.

— Ah! É Sônia... — disse Raskólnikov admiradíssimo, sentindo-se ele próprio perturbado.

Lembrou-se de que a carta de Pedro Petróvitch continha uma alusão a certa pessoa de “notório mau comportamento”. Acabava de protestar contra a calúnia de Lujine e de declarar que só na véspera vira aquela rapariga pela primeira vez; e era precisamente nesse momento que ela entrava em sua casa. Lembrou-se também de que não protestara contra as palavras “notório mau comportamento”. Num relance, todos esses pensamentos lhe atravessaram o espírito. Mas, observando atentamente a pobre criatura, viu-a muito envergonhada e teve piedade dela. Quando, assustada, ela ia retirar-se, uma onda de revolta se apoderou dele.

— Não a esperava — disse-lhe imediatamente, convidando-a com o olhar a que ficasse. — Queira sentar-se. Vem certamente da parte de Catarina Ivanovna. Com licença, aí não; sente-se aqui...

Razumíkhin, sentado junto da porta numa das três cadeiras que havia no quarto, levantou-se para a deixar passar. Raskólnikov pensou em oferecer-lhe um lugar no divã, onde Zózimov estivera sentado; mas, lembrando-se da aplicação especial desse móvel, que lhe servia de cama, mudou de parecer e ofereceu a Sônia a cadeira de Razumíkhin.

— Senta-te aqui — disse ele ao amigo indicando-lhe o lugar que o médico tinha ocupado.

Sônia sentou-se, trêmula, e olhou timidamente para as duas senhoras, sentindo quanto era humilhante sua situação junto delas. E tal comoção lhe causou esta ideia, que se levantou bruscamente e, muito agitada, dirigindo-se a Raskólnikov:

— Eu... eu vim apenas por um instante. Desculpe-me tê-lo incomodado. Catarina Ivanovna mandou-me aqui porque não tinha mais ninguém. Pede-lhe com empenho que assista amanhã, de manhã... à cerimônia fúnebre... em São Mitrofane, e passe depois por nossa casa... para tomar alguma coisa... Espera que lhe dê essa honra.

Pronunciou essas palavras com muita dificuldade.

— Farei todo o possível — respondeu Raskólnikov, já levantado. — Tenha a bondade de sentar-se — disse-lhe de repente —, peço-lhe... Está com pressa?... Precisava falar-lhe; conceda-me dois minutos...

Ao mesmo tempo, com o gesto, convidava-a a sentar-se. Sônia obedeceu e olhou de novo, timidamente, para as duas damas.

A fisionomia de Raskólnikov contraiu-se, o rosto de pálido tornou-se carmesim, os olhos chamejavam.

— Mamãe — disse em voz alta —, é Sônia Semenovna Marmêladov. Filha do infeliz Marmêladov, que, ontem, foi esmagado por uma carruagem, e de quem falei há pouco.

Pulquéria Alexandrovna olhou para Sônia e cerrou as pálpebras. Apesar dos receios que sentia diante do filho, não pôde deixar de permitir-se essa satisfação. Dunetchka voltou-se para a pobre rapariga e examinou-a com ar severo. Chamada por Raskólnikov, Sônia levantou outra vez os olhos, mas tornou a baixá-los, embaraçada.

— Queria perguntar-lhe — disse ele — o que se passou hoje em sua casa... Incomodaram-nas muito? O inquérito da polícia aborreceu-as?

— Não, não houve nada... a causa da morte era evidente, deixaram-nos em paz; apenas os inquilinos se mostram descontentes.

— Por quê?

— Dizem que o corpo está em casa há muito tempo... Com este calor, o cheiro... de modo que hoje à tarde é removido para a capela do cemitério, onde ficará depositado até amanhã. A princípio, Catarina não queria, mas acabou por concordar que não podia deixar de ser...

— Então o cadáver é trasladado esta noite?

— Catarina espera que nos fará a honra de assistir amanhã ao funeral e que, em seguida, irá à nossa casa tomar parte na refeição fúnebre...

— Ela dá banquete?

— Dá uma pequena refeição; encarregou-me também de lhe transmitir seus agradecimentos pelo auxílio que nos prestou... Se não fosse o senhor, não poderíamos fazer o enterro.

Um tremor repentino agitou os lábios e o queixo da rapariga.

Durante esse diálogo, Raskólnikov observou-a atentamente. Sônia era magra e pálida; o nariz arrebitado e o queixo anguloso prejudicavam o conjunto, que não era de grande beleza. Todavia os olhos azuis eram de uma doce limpidez e, quando se animavam, davam-lhe à fisionomia uma doce expressão de bondade. Ainda outra particularidade caracterizava seu rosto: parecia mais nova do que realmente era, e, embora tivesse 18 anos, tinha o aspecto de uma menina.

— Mas Catarina poderá satisfazer tantas despesas com tão poucos recursos? E pensa ainda num banquete?... — perguntou Raskólnikov.

— O funeral será modesto... não custará caro... Calculamos as despesas; chega ainda para a refeição... e Catarina faz questão dela... Não devemos contrariá-la... Sempre é um consolo... Bem sabe como ela está...

— Compreendo... sem dúvida... Está reparando em meu quarto? Mamãe já disse que parecia um túmulo.

— Ontem, despojou-se do que possuía, por nossa causa! — respondeu Sonetchka com a voz entrecortada e pondo os olhos no chão. Os lábios e o queixo começaram novamente a tremer. Logo que entrara, havia notado a pobreza de Raskólnikov, e aquelas palavras escaparam-lhe espontaneamente. Houve um silêncio. Os olhos de Dunetchka iluminaram-se, e Pulquéria Alexandrovna olhou Sônia com ternura.

— Ródia — disse ela levantando-se —, fica combinado que jantas conosco. Dunetchka, vamos... Mas, Ródia, tu deves sair, dar um pequeno passeio; depois descansas um pouco e vais ter conosco o mais cedo possível... Receio que te tenhas fatigado...

— Sim, vou — respondeu prontamente Ródion, levantando-se também... — Aliás, ainda tenho que fazer...

— Olha lá, não deixes de vir jantar — disse Razumíkhin, olhando admirado para Raskólnikov —, vê o que fazes...

— Vou com certeza... Mas tu ficas ainda um pouco... Mamãe ainda precisa dele? Não lhe faz mais falta?

— Não; e Dmitri Prokófitch será também tão amável que virá jantar conosco.

— Sou eu que lhe peço — acrescentou Dúnia.

Razumíkhin inclinou-se contente. Durante um minuto todos se sentiram contrafeitos.

— Adeus, Ródia; isto é, até logo; eu não gosto nunca de dizer “adeus”. Adeus, Nastácia... E eu a dizer “adeus” outra vez!...

Pulquéria Alexandrovna tinha a intenção de saudar Sônia; porém, apesar de toda a boa vontade não pôde decidir-se a isso e saiu precipitadamente do quarto.

O mesmo não aconteceu com Avdótia Romanovna, que parecia haver aguardado esse momento com impaciência. Quando, após sua mãe, passou ao lado de Sônia, fez a ela uma saudação com todas as formalidades. A pobre moça perturbou-se, inclinou-se com uma precipitação temerosa, e seu rosto traiu mesmo uma impressão dolorosa, como se a polidez de Avdótia Romanovna a houvesse comovido penosamente.

— Dúnia, adeus! — exclamou Raskólnikov no patamar. — Dá-me logo a mão.

— Mas já te disse adeus, esqueceste? — respondeu Dúnia voltando-se para ele afavelmente, apesar de se sentir pouco à vontade.

— Bem, aperta-me a mão outra vez!

Apertou com força os pequeninos dedos da irmã. Dunetchka sorriu corando e, retirando a mão bruscamente, seguiu a mãe. Ela também se sentia feliz, sem que soubesse por quê.

— Ora muito bem! — disse Ródia voltando-se para Sônia e encarando-a serenamente. — Que o Senhor conceda a paz aos mortos e deixe viver os vivos! Não é assim?

Sônia notou que Raskólnikov estava agora mais satisfeito: durante algum tempo olhou para ela silenciosamente; recordava tudo o que Marmêladov lhe dissera da filha...


* * *


— Céus! Dúnia — começou Pulquéria Alexandrovna ao chegarem à rua —, sinto-me aliviada por sair. Como tive ontem a ideia de não ser mais feliz?

— Repito-lhe, mamãe, ele está muito doente. Não viu? Talvez tenha-se aborrecido por tê-lo contrariado. Devemos ser pacientes e muito poderá ser perdoado.

— Não foste muito paciente! — interrompeu Pulquéria Alexandrovna, acalorada e enciumada. — Sabes, Dúnia, que observava os dois. És o verdadeiro retrato dele, não tanto no rosto, mas na alma, ambos são taciturnos e excitáveis, ambos orgulhosos e generosos... Por certo não poderá ser um egoísta, Dúnia. Hein? Quando lembro o que nos espera esta noite, foge-me o coração.

— Não se inquiete, mamãe. O que tiver de ser, será.

— Dúnia, pense em que situação nos encontramos. Que sucederá se Pedro Petróvitch romper contigo? — disse abruptamente a pobre Pulquéria Alexandrovna imprudentemente.

— Não terá muito valor, se o fizer — disse Dúnia áspera e desdenhosamente.

— Fizemos bem em irmo-nos — interrompeu rapidamente Pulquéria Alexandrovna. — Ele está preocupado com algum negócio. Se puder sair e tomar um hausto de ar... está confinado no quarto... Mas onde alguém pode respirar ar puro? Até as ruas parecem túmulos. Deus do céu, que cidade!... Espera! Para este lado... te amassarão com este carregamento... é um piano que carregam! Tenho muito medo por causa dessa moça!

— Que moça, mamãe?

— A tal Sônia Semenovna que estava lá.

— Por quê?

— Tenho um pressentimento, Dúnia. Podes acreditar ou não, mas, no instante em que ela entrou, senti que era a causa principal da encrenca.

— Nada disso! — exclamou Dúnia aborrecida. — Que tolice seu pressentimento! Ele só a conheceu na véspera e não a reconheceu quando ela entrou.

— Verás... Ela me aborrece; mas verás, verás... fiquei tão amedrontada. Ela olhou-me com olhos enormes. Quase não me contive sentada na cadeira, quando ele nos apresentou, lembras-te! Parecia tão estranho, mas Pedro Petróvitch escreveu a respeito dela e ele nos apresentou — a ti! Portanto deve tê-la em consideração.

— Costuma-se escrever qualquer coisa. Também fomos discutidas e comentadas em escritos. Não se lembra? Estou segura de que é uma boa moça e que o resto é bobagem.

— Deus o permita!

— E Pedro Petróvitch é um caluniador desprezível — Dúnia deixou escapar subitamente.

Pulquéria Alexandrovna estava arrasada, a conversa não se reanimou.


* * *


— Aqui está o que te quero dizer — disse subitamente Raskólnikov chamando Razumíkhin, que ficara à janela...

— Posso então dizer a Catarina que vai?...

— Eu já a atendo, Sônia, nós não temos segredos, creia que não nos incomoda... Eu tenho ainda que falar-lhe... — E, voltando-se, disse a Razumíkhin:

— Tu conheces um... como se chama ele?... Porfírio Petróvitch?...

— Se conheço! É meu parente! — respondeu Razumíkhin muito intrigado com a pergunta.

— Não disseram ontem que era ele quem instruía o processo... o processo do homicídio?

— Sim, e então?... — perguntou Razumíkhin, abrindo muito os olhos.

— Ele interrogou todas as pessoas que tinham penhores em casa da velha. Ora, eu tinha empenhado lá algumas coisas, valia a pena falar nisso: um anel de minha irmã, que ela me deu quando eu vim para São Petersburgo, e um relógio de prata que pertenceu a meu pai. Tudo isso vale cinco rublos, mas tem grande valor estimativo para mim. Que devo fazer? Não queria perder esses objetos, sobretudo o relógio. Receava há pouco que minha mãe me pedisse que lhe mostrasse, quando se falou no de Dunetchka. É o único objeto de meu pai que possuímos. Se o relógio se perde, minha mãe adoece! As mulheres! Dize-me o que devo fazer! Ir à polícia, bem sei. Mas não seria melhor procurar o próprio Porfírio? Que achas? Preciso tratar disso já. Verás que, antes do jantar, minha mãe pergunta-me pelo relógio.

— Não é à polícia que deves ir, mas à casa de Porfírio! — disse Razumíkhin. — Poderemos lá ir imediatamente, é a dois passos daqui; tenho certeza de o encontrarmos.

— Pois sim, vamos...

— Ele há de gostar de conhecer-te! Falei-lhe diversas vezes de ti... ainda ontem... Vamos! Tu, então, conhecia a velha? Tudo isso se liga ad-mi-ra-vel-men-te! Ah, sim... Sófia Ivanovna...

— Sônia Semenovna — retificou Raskólnikov. — Sônia Semenovna, meu amigo Razumíkhin, um belo rapaz.

— Se tem de sair... — disse Sônia, embaraçada com essa apresentação, sem se atrever a olhar para Razumíkhin.

— Pois sim, vamos! — decidiu Raskólnikov. — Irei à sua casa de dia, Sônia, onde é sua residência?

Disse isso com facilidade, mas precipitadamente e procurando evitar os olhos dela. Sófia deu-lhe o endereço corando. Os três saíram juntos.

— Não fechas a porta? — perguntou Razumíkhin.

— Nunca!... Há dois anos que estou para comprar uma fechadura... Feliz, não é verdade?, a gente que não tem o que fechar, acrescentou alegremente — dirigindo-se a Sônia.

No portal pararam.

— Segue para a direita, Sônia Semenovna? A propósito, como soube onde moro?...

Notava-se que não era isso o que ele queria dizer, fixando os meigos olhos claros da moça.

— O senhor disse onde era a Poletchka.

— Que Poletchka? Ah! sim! a pequena... é sua irmã? Foi a ela então que eu disse?

— Já se tinha esquecido?

— Não, agora me lembro...

— Eu já tinha ouvido meu pai falar do senhor... Mas não sabia seu nome, nem ele também. E quando ontem o soube... perguntei hoje: Mora aqui o senhor Raskólnikov?... Não sabia que vivia também numa casa de pensão... Adeus... direi a Catarina...

Satisfeita por poder afinal ir-se embora, Sônia afastou-se rapidamente. Desejava chegar à esquina da rua para fugir às vistas dos dois rapazes e refletir sem testemunhas nas peripécias dessa visita. Nunca experimentara sensação semelhante. Um mundo ignorado surgia confusamente em sua alma. Lembrou-se de que Raskólnikov tinha espontaneamente manifestado a intenção de ir vê-la nesse dia: talvez fosse imediatamente!

— Se ele não fosse hoje! — murmurou ela aflita. — Em minha casa... nesse quarto... ele compreenderá... Oh, meu Deus!

Ia muito preocupada para notar que um desconhecido a seguia desde que saíra da casa de Raskólnikov. Na ocasião em que os três pararam na rua para conversar, o acaso quis que esse sujeito passasse por eles. As palavras dela “perguntei: — É aqui que mora o sr. Raskólnikov?” chegaram a seu ouvido e fizeram-no estremecer. Olhou de soslaio para os três e particularmente para Raskólnikov, com quem ela falava: depois examinou o rosto para reconhecê-la mais tarde. Tudo isso foi feito num momento e disfarçadamente; depois o desconhecido afastou-se devagar, como se esperasse alguém. Esperava por Sônia; viu-a despedir-se deles e seguir seu caminho.

“Onde mora ela? Eu já vi essa cara em algum lugar: preciso saber.”

Ao chegar à esquina, passou para o outro lado da rua, voltou-se e viu a rapariga caminhando no mesmo sentido que ele; ela não o viu. Depois de uns cinquenta passos, atravessou a rua, aproximou-se e seguiu-a a pequena distância.

Era um homem de cinquenta anos, bem conservado, parecendo mais novo. De estatura além da mediana, corpulento, tinha os ombros largos e um pouco abaulados. Vestido elegantemente, com luvas novas, segurava uma bela bengala com que batia no passeio a cada passo. Tudo denunciava um homem de sociedade. A fisionomia era agradável. Os cabelos louros começavam a ficar grisalhos. A barba comprida, forte, abundante, era mais clara que os cabelos. Nos olhos azuis, lia-se firmeza e severidade.

O desconhecido tivera muito tempo para observar Sônia, para ver que ela ia distraída e pensativa. Ao chegar diante da casa, a rapariga atravessou o pátio de entrada; ele continuou a segui-la um pouco admirado. Depois de transpor o pátio, Sônia subiu a escada da direita — a que ia dar à sua porta. “Ah!”, exclamou o indivíduo, e subiu também a mesma escada. Só então Sônia viu o desconhecido. Chegando ao terceiro andar, foi por um corredor e bateu no número nove, onde se liam, na porta, estas palavras escritas a giz: kapernáumof, alfaiate. “Ah!”, repetiu o desconhecido, surpreendido com a coincidência, e bateu ao lado, no número oito. As duas portas ficavam a seis passos uma da outra.

— Mora com Kapernáumof? — disse-lhe ele rindo. — Ainda ontem me consertou este colete. Eu moro junto, em casa da senhora Resslich, Gertrudes Karlovna.

Sônia olhou para ele com atenção.

— Somos vizinhos — continuou ele alegremente. — Estou aqui desde anteontem, não sou de São Petersburgo. Quando terei o prazer de tornar a vê-la?

Ela não respondeu. A porta abriu-se e ela entrou rapidamente. Sentia-se com medo, envergonhada...


* * *


Razumíkhin ia, muito satisfeito, com Raskólnikov, para a casa de Porfírio.

— Está muito bem — dizia ele muitas vezes —, e eu estou muito satisfeito! Não sabia que também tinha penhores em casa da velha. E... e... há muito tempo já? Quero dizer: faz muito tempo que estiveste em casa dela?

— Deixa-me ver, quando foi? — respondeu Raskólnikov, como que interrogando a memória. Parece-me que estive lá na antevéspera do dia do crime. Ademais, não se trata de desempenhar meus objetos — acrescentou vivamente, como se fosse isso o que mais o preocupasse — nem eu tenho mais do que um rublo, devido às tolices que fiz ontem sob a influência desse maldito delírio!

Acentuou de modo especial a palavra “delírio”.

— Sim, sim — continuou Razumíkhin, respondendo a um pensamento íntimo —, eu já tinha percebido... enquanto durou o delírio, só falavas em anéis, cadeias, relógios!... Agora explica-se tudo.

“Ora, aí está! Essa ideia invadiu seu espírito! Tenho a prova: este homem deixava-se matar por minha causa e sente-se feliz por poder explicar por que é que eu falava em anéis durante todo o tempo que delirei. Minhas palavras confirmaram-lhe todas as suspeitas!...”

— E encontrá-lo-emos? — perguntou em voz alta.

— Por certo — respondeu sem hesitar Razumíkhin. — É um belo tipo, vais ver! Um tanto brusco, é certo; mas não é nada tolo; pelo contrário, muito inteligente; mas tem um modo de pensar estranho... É incrédulo, cético, cínico... gosta de mistificar... Fiel aos processos antigos, só admite provas materiais... Mas conhece o ofício. No ano passado, esclareceu um processo de assassínio em que não havia a menor pista! Ele tem o maior desejo de conhecer-te!

— Mas por quê?

— Oh, não imaginas... é que ultimamente, durante tua doença, ouviu muitas vezes falar a teu respeito... Assistia às nossas conversas... Quando soube que eras estudante da universidade, exclamou: “Que pena!” De onde eu concluí... quero dizer, ele disse muito mais coisas de ti. Ontem, Zametov... Ouve, Ródia: quando ontem te levei a casa ia embriagado falando de tudo; receio que tivesses tomado a sério o que falei.

— Ora!... Que me importa que eles digam que sou doido? E talvez tenham razão — disse Raskólnikov com riso forçado.

— Sim... sim... É isso! Puf! Não!... Mas tudo que disse (e havia muito mais a dizer), tudo foi estúpido, estupidez de bêbado.

— Por que te desculpas? Estou farto disso tudo — gritou Raskólnikov com exagerada irritação, parcialmente simulada.

— Eu sei, eu sei. Compreendo. Acredita-me. Eu compreendo. Envergonho-me de falar no caso.

— Se sentes vergonha, não fales.

Calaram-se. Razumíkhin estava satisfeitíssimo, o que tornava Raskólnikov furioso. O que o amigo acabara de dizer-lhe acerca do juiz de instrução não podia deixar de inquietá-lo.

“Tenho de mostrar-me zangado com Porfírio”, pensou, com o coração agitado e o rosto lívido, “e fazê-lo naturalmente. O mais natural seria ignorar tudo. Ignorar também não seria natural... Oh! Deixarei que os fatos se sucedam... Verei pessoalmente... Será conveniente ir ou não? As mariposas voam de encontro à luz. Meu coração está agitado... isso é ruim”.

— Nessa casa cinzenta — disse Razumíkhin.

“O essencial é saber”, pensou Raskólnikov, “se Porfírio soube da visita que fiz ontem à casa da bruxa e do que perguntei sobre o sangue. É preciso saber isso; é preciso que, ao entrar na sala, eu leia na cara desse homem; de outra forma... será minha ruína”.

— Sabes? — disse de repente a Razumíkhin com um sorriso malicioso; parece-me que, desde esta manhã, andas numa agitação extraordinária. É verdade?

— Excitado! Nem por isso! — respondeu Razumíkhin vexado.

— Olha que não me engano. Há pouco, quando estavas sentado, parecia que tinhas cãibras. Não podias estar quieto. Teu humor variava continuamente; de vez em quando, irritavas-te, e logo ficavas doce como mel. Até coravas; principalmente quando te convidaram para jantar, ficaste vermelho como uma papoula.

— Não, que tolice! Mas por que dizes isso?

— Francamente, tens ingenuidades de colegial.

— Tu estás insuportável.

— Mas que significa essa confusão, meu belo Romeu? Deixa estar que ainda hoje hei de contar o caso em certa parte. Do que mamãe há de rir e mais outra pessoa!...

— Ouve, ouve, isso é sério: repara que... Mas que... — titubeou Razumíkhin gelado de medo. — Que vais dizer? Sempre és de má raça!

— Uma verdadeira rosa de primavera! Um gajo de dois archines e 12 verchoks! Mas, espera, tu hoje te lavaste e limpaste as unhas, não é verdade? Quando fizeste isso? Deus me perdoe se não puseste pomada no cabelo. Baixa a cabeça para eu cheirar!

— Atrevido!!!!

Raskólnikov desatou a rir, com uma alegria que parecia não ter fim, e que durava ainda quando chegaram à casa de Porfírio Petróvitch. Da sala podiam ouvir-se as gargalhadas do visitante na antecâmara, e Raskólnikov queria que fossem ouvidas.

— Se dás uma palavra, desanco-te! — exclamou Razumíkhin furioso, agarrando o amigo pelo braço.


Capítulo V

Raskólnikov entrou na casa do juiz de instrução com a fisionomia de um homem que faz o possível para manter-se sério, mas que só o consegue a muito custo. Atrás dele, marchava com ar comprometido Razumíkhin, vermelho como uma papoula, com as feições transtornadas pela cólera e pela vergonha. A figura desengonçada e a fisionomia atarantada do rapaz eram, naquela ocasião, bem cômicas para justificarem o riso de seu camarada. Porfírio Petróvitch, em pé no meio da sala, interrogava com o olhar os dois visitantes. Raskólnikov inclinou-se diante do dono da casa, trocou um aperto de mão com ele e pareceu fazer um grande esforço para abafar a vontade de rir enquanto declinava o nome e a qualidade. Mas apenas recobrara o sangue-frio e balbuciara algumas palavras, justamente no meio da apresentação, seus olhos encontraram Razumíkhin. Então é que não se pôde conter, e toda a seriedade foi substituída por uma risada tanto mais estrondosa quanto é certo que tinha sido muito tempo reprimida. Razumíkhin serviu sem saber aos intuitos do amigo, porque aquele riso louco pô-lo numa irritação que acabou de dar a toda a cena a aparência de uma alegria franca e natural.

— Oh, que grande patife! — berrou ele com um movimento furioso do braço.

Esse gesto brusco fez cair uma pequena mesa redonda sobre a qual se achava um bule com chá.

— Mas não é preciso estragar a mobília, meus senhores! É um prejuízo para o Estado! — exclamou alegremente Porfírio Petróvitch.

Raskólnikov ria de tal modo que, durante alguns instantes, esqueceu a mão na do juiz de instrução; mas teria sido pouco natural deixá-la muito tempo e, por isso, a retirou no momento próprio para dar verossimilhança a seu papel. Quanto a Razumíkhin, estava mais atrapalhado que nunca, depois de ter feito cair a mesa e o bule; e, tendo considerado com um olhar sombrio o resultado de seu arrebatamento, dirigiu-se para a sacada e lá, voltando as costas aos dois, pôs-se a olhar pela vidraça sem ver, aliás. Porfírio Petróvitch ria também por delicadeza, mas evidentemente esperava explicações. A um canto, numa cadeira, estava Zametov; à aparição dos visitantes tinha-se levantado um pouco, esboçando um sorriso; entretanto não parecia ter muita fé na sinceridade daquela cena e observava Raskólnikov com curiosidade. Este último não esperava encontrar o chefe de polícia, cuja presença lhe causou surpresa desagradável.

“Mais uma circunstância a ponderar”, pensou ele.

— Peço-lhe o favor de me desculpar... — começou com embaraço simulado.

— Ora essa, dá-me muito gosto... O senhor entrou de um modo tão agradável... Então, ele nem quer dizer bons-dias? — acrescentou Porfírio Petróvitch, apontando Razumíkhin.

— Na verdade, não sei por que se zangou comigo. Eu só lhe disse no caminho que ele parecia um Romeu... e... e demonstrei-o, não houve mais nada.

— Malandro! — gritou Razumíkhin sem voltar a cabeça.

— Ele deve ter motivos muito fortes para se ofender desse modo com um gracejo tão insignificante — observou rindo Porfírio Petróvitch.

— Basta de asneiras! Vamos a nosso caso: apresento-te meu amigo Ródion Românovitch Raskólnikov, que tem ouvido falar muito de ti e quer conhecer-te; depois tem de tratar contigo um pequeno negócio. Olá, Zametov! Que acaso o trouxe por aqui? Então se conheciam? Desde quando?

“Que quer dizer isso, agora?”, perguntou para si Raskólnikov inquieto.

A pergunta de Razumíkhin embaraçou um pouco Zametov.

— Foi ontem em tua casa que nos conhecemos — disse ele com desembaraço.

— Pois então foi Deus quem fez tudo. Imagina tu, Porfírio, que, na semana passada, ele me tinha manifestado um vivo desejo de te ser apresentado, mas parece que não foi preciso a minha intervenção... Tens fumo?

Porfírio estava em toilette de manhã: roupão e pantufas. Era um homem de seus 35 anos, estatura menos que mediana, grosso e ligeiramente obeso. Não usava barba e trazia o cabelo cortado rente. A grande cabeça redonda tinha uma rotundidade particular na nuca. O rosto cheio e um pouco chato tinha certa vivacidade e inspirava simpatia.

Notar-se-ia uma certa bonomia no rosto se não fosse a expressão dos olhos, que, abrigados sob pestanas quase brancas, piscavam constantemente, como para fazer sinais a alguém. À primeira vista, o físico do juiz de instrução oferecia certa analogia com o de uma camponesa, mas sua máscara não enganava por muito tempo um observador sagaz.

Desde que soube que Raskólnikov tinha um pequeno negócio a tratar com ele, Porfírio Petróvitch convidou-o a tomar lugar no divã, sentou-se ele próprio na outra ponta e pôs-se à disposição do jovem com a maior solicitude. Ordinariamente sentimo-nos um pouco constrangidos quando um homem que mal conhecemos manifesta uma tal curiosidade de nos escutar; mas nosso embaraço é ainda maior se o assunto, que temos a tratar, acontece ser a nossos próprios olhos pouco digno da atenção de outros. Todavia Raskólnikov, em algumas palavras breves e precisas, expôs claramente o caso: pôde até, ao mesmo tempo, observar muito bem Porfírio Petróvitch. Este, por seu lado, não tirava dele os olhos. Razumíkhin, sentado em frente deles, ouvia com impaciência e seus olhares iam incessantemente do amigo para o juiz de instrução, e vice-versa, um pouco demasiadamente, talvez.

“Imbecil!”, rugia interiormente Raskólnikov.

— É preciso fazer uma declaração à polícia — respondeu com ar indiferente Porfírio Petróvitch. — O senhor declarará, que, informado desse acontecimento, isto é, daquela morte, deseja fazer saber ao juiz de instrução encarregado dessas questões, que tais e tais objetos lhe pertencem e quer desempenhá-los... ou... mas, aliás, depois lhe escreverão.

— Infelizmente — disse Raskólnikov com uma confusão fingida, eu estou longe de ter recursos nesse momento... meus meios não me permitem mesmo desempenhar essas ninharias... Queria agora somente limitar-me a declarar que esses objetos são meus e que, quando tiver dinheiro...

— Isso não vem ao caso — respondeu Porfírio Petróvitch, que acolheu friamente a explicação; aliás, se o senhor quiser, pode escrever-me diretamente, declarando que, sabendo do caso, deseja fazer-me ciente de que os objetos lhe pertencem e que...

— Posso fazer essa declaração em papel comum? — interrompeu ele, afetando sempre não ver senão o lado pecuniário da questão.

— Oh, sim, em qualquer papel!...

Porfírio Petróvitch disse essas palavras com um ar de troça, piscando os olhos para Raskólnikov. Pelo menos o jovem iria jurar que esse piscar de olhos se dirigia a ele e traía, porventura, algum pensamento secreto. Talvez, no fim de contas, ele se enganasse, porque isso durou um segundo.

“Sabe!”, pensou ele.

— Peço-lhe desculpa de o ter incomodado por tão pouco — replicou bastante descoroçoado —; esses objetos valem ao todo cinco rublos, mas a origem torna-os para mim particularmente valiosos e queridos, e confesso que fiquei muito inquieto quando soube...

— Foi por isso que ontem ficaste chocado quando me ouviste dizer a Zózimov que Porfírio interrogava os donos dos objetos penhorados! — notou com intenção evidente Razumíkhin.

Era demais! Raskólnikov não se pôde conter e lançou ao desastrado um olhar de cólera. Mas logo compreendeu que acabara de cometer uma imprudência e esforçou-se em repará-la.

— Parece que estás a troçar comigo, meu caro — disse ele a Razumíkhin, afetando viva contrariedade. Reconheço que me preocupo talvez demais com coisas absolutamente insignificantes a teus olhos; mas isso não é razão para me julgares ávido e egoísta; essas misérias podem ter um grande valor para mim. Como te dizia ainda agora, aquele relógio de prata, que vale um groch, é tudo o que me resta de meu pai. Pode rir de mim à vontade, mas minha mãe veio visitar-me — dizendo isso voltou-se para Porfírio —, e, se ela soubesse — continuou —, se ela soubesse que eu não estava na posse desse relógio — dirigindo-se de novo a Razumíkhin com voz trêmula —, juro-te que ficaria desesperada. São mulheres!

— Mas não há tal. Não era isso que eu queria dizer. Tu não entendeste o sentido de minhas palavras! — protestava Razumíkhin.

“Andei bem? Fui natural? Não forcei a nota?”, perguntava ansiosamente Raskólnikov a si próprio. “Para que disse eu: são mulheres!”

— Ah, sua mãe veio visitá-lo? — perguntou Porfírio Petróvitch.

— Veio, sim.

— Quando chegou?

— Ontem à noite.

O juiz de instrução ficou um instante silencioso; parecia refletir.

— Seus objetos não podiam ter-se perdido de modo nenhum — prosseguiu ele em tom sereno. — Há muito que eu esperava sua visita.

Dizendo isso, aproximou vivamente o cinzeiro de Razumíkhin, que sacudia implacavelmente no tapete a cinza do cigarro. Raskólnikov estremeceu, mas o juiz de instrução não mostrou notar isso, tão ocupado estava em preservar o tapete.

— Como? Esperavas a visita dele? Mas sabias que ele tinha empenhado alguma coisa? — perguntou Razumíkhin.

Sem lhe responder, Porfírio Petróvitch dirigiu-se a Raskólnikov.

— Seus objetos, um anel e um relógio, estavam em casa dela, embrulhados num papel, e, sobre o papel, estava escrito a lápis seu nome, com a nota do dia em que ela os recebera.

— Que memória o senhor tem para tudo isso! — disse Raskólnikov, com um sorriso contrafeito; e esforçava-se sobretudo em olhar com firmeza para o juiz de instrução; todavia não pôde impedir-se de acrescentar bruscamente:

— Fiz essa observação porque, sendo muitos os proprietários dos objetos empenhados, o senhor poderia ter alguma dificuldade em se lembrar de todos... Ora, vejo, pelo contrário, que não esqueceu um... e... e...

“Parvo! Idiota! Que necessidade tinha eu de dizer isso?”

— Mas quase todos já se deram a conhecer; só o senhor é que ainda não tinha vindo — respondeu Porfírio com um tom ligeiramente motejador.

— Tenho estado um tanto doente.

— Ouvi dizer isso. Disseram-me até que estava muito mal. Agora mesmo está bastante pálido...

— Ora essa... Não estou pálido... pelo contrário, passo até bem! — replicou Raskólnikov, num tom repentinamente violento.

Sentia ferver dentro de si a ira que não podia dominar.

“O arrebatamento vai fazer-me algum disparate!”, pensou. “Mas para que me desesperam?”

— Tem estado um pouco doente! Ora, aí está um eufemismo! — gritou Razumíkhin. — A verdade é que até ontem ele esteve quase sempre desacordado... Queres saber, Porfírio? Ontem, mal podendo ter-se nas pernas, aproveitou o momento em que Zózimov e eu acabávamos de sair para se vestir, safar-se e ir passear, Deus sabe para onde, até a meia-noite... Isso, em completo estado de delírio. Podes imaginar coisa semelhante? É um caso dos mais extraordinários!

— O quê! Realmente! Em estado de completo delírio? — disse Porfírio Petróvitch com o gesto de cabeça peculiar às camponesas russas.

— É falso! Não acreditem! ademais, não vale a pena cansar-me; sua convicção está formada! — disse Raskólnikov, arrebatado pela cólera. Mas Porfírio Petróvitch pareceu não ter ouvido essas palavras singulares.

— Pois como poderias ter saído se não estivesses delirando? — replicou Razumíkhin excitando-se. — Por que tinhas de sair? Com que fim? E sobretudo a circunstância de te ires assim às ocultas! Vamos, reconhece que não estavas em teu juízo! Agora, que o perigo passou, digo-te francamente!

— Ontem, todos tinham-me aborrecido demais — disse Raskólnikov, dirigindo-se ao juiz de instrução com um sorriso que parecia um desafio, e, para me desembaraçar deles, saí para alugar um quarto, onde não pudessem dar comigo; levei para isso certa quantia. O sr. Zametov viu o dinheiro. Pois bem! Sr. Zametov, eu estava ontem em meu juízo ou delirava? Queira ser juiz nesse caso.

— Em minha opinião, o senhor falava sensatamente e até com muita sutileza; simplesmente o que estava era irascível — declarou secamente Zametov.

— E hoje — acrescentou Porfírio Petróvitch — Nikodim Fomitch disse-me que o tinha visto ontem, a uma hora muito alta da noite, em casa de um funcionário que acabava de ser esmagado por uma carruagem.

— Tudo isso vem em apoio do que acabo de dizer! — prosseguiu Razumíkhin —, não procedeste como um doido em casa desse funcionário? Privaste-te de todos os recursos para lhe pagar o enterro. Admito que fosses socorrer a viúva, mas podias dar-lhe 15 rublos, vinte mesmo, e guardar alguma coisa para ti: mas não, em vez disso deixaste lá tudo quanto possuías; todos os 25 rublos lá ficaram!

— Mas encontrei talvez um tesouro! E isso tu não sabes... Ontem estava com a bossa da generosidade... O sr. Zametov, que não me deixará mentir, sabe que encontrei um tesouro... Peço-lhe mil vezes perdão por os ter enfastiado com tanto palavreado inútil — continuou, com os beiços trêmulos, dirigindo-se a Porfírio. O senhor está aborrecidíssimo, não é verdade?

— Não diga tal, por quem é! Ao contrário! Se soubesse como simpatizo com o senhor! Acho-o muito interessante. Gosto de ver e ouvir... confesso que me felicito por ter, enfim, recebido sua visita...

— Se mandasses vir chá, hein? Temos as gargantas secas — disse Razumíkhin.

— Boa ideia... Mas, antes do chá, talvez tomassem alguma coisa mais sólida?

— Não o digas outra vez. Manda vir isso logo!

Porfírio Petróvitch saiu para mandar fazer o chá. Um tumulto de pensamentos andava no cérebro de Raskólnikov. Estava muito excitado.

“Nem ao menos se dão ao trabalho de fingir: não fazem cerimônias, não há dúvida. Se Porfírio não me conhecia, que tinha a conversar a meu respeito com Nikodim Fomitch? Nem pensam em reservas, dando a entender que me seguem como uma matilha de cães! Positivamente, escarram-me na cara!”, pensou tremendo de raiva. “Pois bem! Procedam francamente; nada de brincar comigo como gato com rato! É uma grosseria, Porfírio Petróvitch, e isso não admito! Se perco a cabeça, digo-lhes toda a verdade na cara e verão como os desprezo!”

Respirou com esforço. “Mas... se tudo isso só existisse em minha imaginação? Se tudo fosse uma ilusão? Se eu tivesse interpretado mal? Tentemos sustentar nosso vil papel, e não vamos perder-nos como um tolo! Quem sabe se eu lhes atribuo intenções que eles não têm? Realmente, suas palavras nada têm de extraordinário; mas, nelas, se oculta um pensamento reservado. Por que é que Porfírio Petróvitch disse simplesmente ‘em casa dela’, referindo-se à velha? Por que é que Zametov observou que eu falara com muita sutileza? Por que falam assim? Sim, é realmente esquisito... E como é que nada disso impressionou Razumíkhin? Esse parvo não dá por coisa alguma! Bonito, estou com febre outra vez! Será que Porfírio me piscou os olhos há pouco ou enganei-me com uma simples aparência? É um absurdo, decerto; para que havia ele de piscar os olhos para mim? Talvez eles queiram bulir-me com os nervos, irritar-me, provocar-me... Ou isso é uma fantasmagoria ou sabem tudo!

“O próprio Zametov é insolente. Deve ter refletido após a cena de on-
tem. Bem me parecia que ele havia de mudar de opinião. Está aqui como em
sua casa e é a primeira vez que vem... Hum! Porfírio não o trata como pessoa de cerimônia; senta-se voltando-lhe as costas. Esses dois homens são amigos e a amizade tem, evidentemente, certa correlação comigo. Estou certo de que falavam sobre mim, quando entramos. Saberão de minha visita à casa da velha? Quem me dera saber... Quando disse que tinha saído para ir alugar um quarto, Porfírio não fez a menor observação... Mas foi bom dizer isso; talvez mais tarde essa mentira me sirva!...

“Pelo que respeita ao delírio, o juiz de instrução não pareceu acreditar muito nisso... Parece perfeitamente informado do modo por que passei a noite.

“Ele ignorava a chegada de minha mãe!... E aquela bruxa que tinha tomado nota do dia em que fui empenhar os objetos!... Não, não, a confiança que afetam não me ilude; até agora, não têm provas, fundam-se em vagas conjeturas! Citem-me um fato, se podem, se lhes é possível alegar um só contra mim!

“A minha ida à casa da velha não tem significação alguma; explica-se pelo delírio; recordo-me perfeitamente do que disse aos operários e ao dvornik... Saberão eles que fui lá? Não sairei daqui ignorando o que há sobre isso! Para que vim aqui? Mas lá me vou irritar agora, e isso é que é o diabo! Afinal é melhor que assim seja: estou magnificente em minha situação de doente... Esse diabo vai provocar-me e eu perco a tramontana! Ora, para que vim aqui?”

Todas essas ideias atravessaram o espírito de Ródion com a rapidez do raio.

Passados alguns momentos, Porfírio Petróvitch voltou. Parecia de muito bom humor.

— Ontem, quando saí de tua casa, meu caro, tinha uma dor de cabeça horrível — começou dirigindo-se a Razumíkhin com uma afabilidade que ainda não tivera até então —; mas passou, felizmente...

— E então, foi interessante a prosa? Abandonei-os no melhor momento... A quem coube a vitória?

— A ninguém, naturalmente. Fartaram-se de discutir as velhas teses.

— Imagina, Ródia, que a discussão era sobre a seguinte questão: há crimes ou não há crimes? Que quantidade de asneiras eles não urraram a esse respeito!...

— Que há nisso de extraordinário? É uma antiga questão social; nem tem o mérito de novidade — respondeu distraidamente Raskólnikov.

— A questão não foi posta desse modo — observou Porfírio.

— Não era bem assim, realmente — concordou Razumíkhin, que exagerava como de costume. — Ouve, Ródia, e dá-me tua opinião, que desejo conhecer. Lutava com eles com unhas e dentes e precisava de tua presença. Disse-lhes que irias... Começaram pela doutrina socialista; tu a conheces... — o crime é um protesto contra a anormalidade do organismo social; e não admitem outras causas.

— Nisso estás errado — gritou Porfírio Petróvitch, que estava animadíssimo e ria enquanto olhava para Razumíkhin, que o excitava como nunca.

— Não estou errado! Mostrar-te-ei os panfletos. Qualquer coisa para eles é “influência do meio”; sua frase favorita. Da qual se conclui que, se a sociedade estivesse alicerçada em bases sólidas, todo crime cessaria imediatamente, pois nada haveria contra o que se protestar e todos os homens tornar-se-iam justos instantaneamente. A natureza humana não é levada em conta, é excluída, simplesmente negada. Não reconhecem que a humanidade, desenvolvendo-se por um processo histórico-biológico, há de se tornar afinal uma sociedade normal. Eles, porém, acreditam que um sistema social criado por um cérebro matemático é capaz de organizar, perfeita e imediatamente, a humanidade e fazê-la justa e sem pecados num ápice, com maior rapidez que qualquer evolução biológica. Por isso, instintivamente, odeiam a história (nada há senão horror e estupidez) e explicam-na toda como uma estupidez! Por isso, odeiam a evolução natural da vida! Não desejam um espírito vivo! O espírito vivo necessita de vida, o espírito não obedece às leis mecânicas, é objeto de suspeita, o espírito é retrógrado! Mas o que desejam, embora tenha cheiro de cadáver e seja feito de borracha, é uma humanidade, no mínimo, sem vida própria, sem vontade, servil e que não se revolte! Por fim, chegam a reduzir tudo à construção de paredes, ao planejamento de cômodos e corredores de um falanstério! O falanstério existe, mas nossa natureza humana não se adapta a ele — necessita de vida, ainda não completou o ciclo vital, ainda é muito cedo de ir para o cemitério! Pela lógica, não podem ultrapassar a natureza. A lógica pressupõe três possibilidades, mas existem milhões. Desprezem um milhão, reduzam tudo à questão do conforto. Essa é a melhor solução para o problema. É sedutoramente positivo e não necessita de elucubrações. Grande coisa: não precisarem pensar! Todos os segredos da vida em duas páginas impressas.

— Ele está em seu elemento! Cuidado com ele! — riu Porfírio Petróvitch e, voltando-se para Raskólnikov. — Podes imaginar seis pessoas se aturarem, como ontem, em um único quarto, tendo bebido ponche logo de saída? Não, meu caro, estás errado. O ambiente influi muito no crime, posso assegurar-te.

— Sei que influi, mas dize-me: um quarentão violenta uma criança de dez anos. Foi o ambiente que o levou ao desatino?

— Estritamente, sim! — observou Porfírio com marcante gravidade. Um crime dessa natureza pode ser atribuído perfeitamente à influência do ambiente.

Razumíkhin ficou frenético. E estertorou:

— Oh, caso queiras, posso provar que tuas pestanas podem ser atribuídas ao fato de a igreja de Ivã, o Grande ter 250 pés de altura, e o provarei de modo claro, exato e progressivo e ainda com uma tendência liberal! Proponho-me a isso. Queres apostar?

— Feito! Ouçamo-lo como poderá provar!

— Estás sempre mistificando! Diabos te levem! — gritou Razumíkhin, saltando e gesticulando de pé. Que adianta falar-te? Provoca-nos propositadamente; não o conheces, Ródion. Tomou o partido deles, ontem, simplesmente para ridicularizá-los. E as afirmações feitas! Foram divertidas! Ele pode recordar-se de uma palavra durante 15 dias. O ano passado tentou convencer-nos que ia entrar para um convento; manteve essa ideia durante dois meses. Há pouco, meteu na cachola que iria casar-se, que o enxoval estava pronto. De fato, encomendara roupas novas. Congratulamo-nos com ele, mas tudo era fantasia, não havia noiva nem coisa alguma.

— Estás enganado! Comprara as roupas antes. Foram as roupas que me levaram a embaí-los.

— É tão bom simulador? — perguntou descuidadamente Raskólnikov.

— Não o acreditava, hein? Espera um pouco. Vou enganá-lo também. Ah, ah, ah! Dir-lhes-ei a verdade: todos esses fatos de crime, ambiente, criança, fizeram-me recordar um artigo seu que, na época, me interessou: Acerca do crime... não me recordo bem do título. Li-o há uns dois meses, com prazer, na Palavra Periódica.

— Meu artigo? Na Palavra Periódica? — perguntou Raskólnikov surpreendido. Há seis meses, quando deixei a universidade, escrevi um artigo a propósito de um livro, mas mandei-o para a Palavra Hebdomadária e não para a Palavra Periódica.

— Mas foi nessa que foi publicado.

— Entretanto a Palavra Hebdomadária suspendeu a publicação, e foi por isso que meu artigo não saiu.

— Sim, mas quando suspendeu, a Palavra Hebdomadária fundiu-se com a Palavra Periódica, e aí está como há quase dois meses esta última gazeta publicou o artigo! Não sabia disso?

Ele ignorava-o.

— Pois pode ir reclamar o dinheiro de seu artigo. Que criatura singular o senhor é! Vive tão retirado que até aquilo que mais diretamente o interessa não chega a seu conhecimento! É extraordinário!

— Bravo, Ródia! Eu também não sabia nada disso! — exclamou Razumíkhin. — Hoje mesmo vou procurar o jornal no gabinete de leitura! Há dois meses que o artigo foi publicado? Em que data? Não importa; eu o encontrarei. Ora, aí está um caso engraçado. E o maroto calado.

— Mas como soube que o artigo era meu? Assinei apenas com uma inicial.

— Soube-o por acaso. O redator-chefe é um de meus melhores amigos; foi ele quem traiu o segredo... Esse artigo interessou-me muitíssimo.

— Eu fazia observações, se bem me lembro, sobre o estado psicológico do criminoso durante o crime.

— Exatamente, e pretendia demonstrar que o criminoso, ao praticar o crime, é sempre um doente. É uma opinião muito original, mas... não foi essa parte do trabalho que mais me interessou; notei especialmente um pensamento que vinha no fim do artigo, e que, por infelicidade, o senhor se limitou a indicar muito sumariamente... Em resumo, se a memória não me falta, o senhor dava a entender que existem na Terra homens que podem, ou melhor, que têm o direito absoluto de cometer toda casta de ações criminosas, homens para quem, de certo modo, não existe a lei.

A essa pérfida interpretação de seu pensamento, Raskólnikov sorriu.

— Como assim? O quê? O direito ao crime? Não quis ele dizer, antes, que o criminoso é levado ao crime pela influência irresistível do meio? — perguntou Razumíkhin com surpresa e inquietação.

— Não, não é isso — respondeu Porfírio. No artigo de que se trata, os homens são divididos em ordinários e extraordinários. Os primeiros devem viver na obediência e não têm o direito de desrespeitar a lei, porque são ordinários; os segundos têm o direito de praticar todos os crimes e violar todas as leis, pela razão simplíssima de que são criaturas extraordinárias. Foi isso o que o senhor disse, se não me engano.

— Não pode ser assim! — balbuciou Razumíkhin estupefato.

Raskólnikov sorriu de novo. Percebera que lhe queriam arrancar uma profissão de fé, uma declaração de princípios, e, recordando-se do artigo, não hesitou em explicá-lo.

— Não é bem isso — começou modestamente. — Confesso, aliás, que o senhor reproduziu quase exatamente meu pensamento; direi mesmo... exatamente... (E disse as últimas palavras com manifesto prazer.) Apenas, eu não disse, como o senhor insinuou, que os homens extraordinários podem cometer todos os crimes. Aliás, é evidente que a censura não permitiria a publicação de um artigo sustentando tal doutrina. Eis o que disse: o homem extraordinário tem o direito não oficialmente, mas pelo próprio alvedrio, de autorizar sua consciência a saltar sobre certos obstáculos, no caso especial que assim exija a realização de sua ideia, a qual pode, por vezes, ser útil ao gênero humano. Diz o senhor que meu artigo não é claro: vou tentar explicar-lhe; e talvez não me engane supondo que é esse seu desejo.

“Em minha opinião, se os inventos de Kepler e Newton, em virtude de circunstâncias especiais, não tivessem podido fazer-se conhecer senão com o sacrifício de uma, de dez, de cem ou maior número de vidas, que fossem obstáculo a essas descobertas, Newton teria tido o direito, ainda mais, teria sido obrigado a suprimir esses dez ou cem homens, a fim de que essas descobertas aproveitassem ao mundo inteiro. Isso, é claro, não quer dizer que Newton tenha o direito de matar à vontade ou de ir todos os dias roubar no mercado.

“Recordo-me de que, em vários pontos do artigo, insisto sobre a ideia de que todos os legisladores e guias da humanidade, a principiar pelos mais antigos para continuar em Licurgo, Sólon, Maomé, Napoleão etc., que todos, sem exceção, foram criminosos, promulgando novas leis, violando, portanto, as antigas, observadas pela sociedade e transmitidas pelos antepassados; certamente eles não recuavam ante a efusão de sangue; desde o momento em que ela podia ser-lhes necessária.

é notável até que quase todos esses benfeitores e guias da espécie humana foram sanguinários. Portanto, não somente todos os grandes homens, mas todos os que se elevam um pouco acima do nível comum, que são capazes de dizer alguma coisa de novo, devem pela própria natureza, ser naturalmente criminosos, mais ou menos, é claro. De outro modo ser-lhes-ia difícil sair do ramerrão; quanto a ficar nele, certamente não suportariam isso e creio até que o próprio Deus o proíbe. Em suma: o senhor vê que, até aqui, não há nada de novo em meu artigo. Isso tem sido dito e impresso muitas vezes.

“Quanto à minha divisão dos seres em ordinários e extraordinários, convenho que é um pouco arbitrária, mas ponho de lado a questão de egoísmo, que não influi nada no caso. Simplesmente julgo que, no fundo, meu pensamento é justo. Quero estabelecer o princípio de que a natureza divide os homens em duas classes: uma inferior, a dos ordinários, espécie de matéria, tendo por única missão reproduzir-se; outra superior, compreendendo os homens que têm o dever de lançar em seu meio uma palavra nova. As subdivisões apresentam traços distintos bem característicos.

“À primeira pertencem, em geral, os conservadores, os homens de ordem, que vivem na obediência e têm por ela um culto. Em minha opinião, são até obrigados a obedecer, porque é essa a missão que o destino lhes impõe, e isso nada tem de humilhante para eles.

“O segundo grupo compõe-se apenas de homens que transgridem a lei, ou tentam transgredi-la, segundo os casos. Naturalmente os crimes são relativos e de uma gravidade variável.

“A maioria deles reclama a destruição do presente por causa do melhor.

“Mas, se em defesa de sua ideia, forem forçados a derramar sangue, a passar sobre cadáveres, eles podem em consciência fazer uma coisa e outra — no interesse dessa ideia, é claro. É, nesse sentido, que meu artigo lhes admite o direito ao crime. (O senhor lembra-se de que nosso ponto de partida foi uma questão jurídica.) Ademais não há motivos para nos inquietarmos a esse respeito: quase sempre as massas não lhes reconhecem esse direito: cortam-lhes a cabeça ou enforcam-nos (mais ou menos), e, desse modo, exercem a missão conservadora até o dia em que essas mesmas massas erigem estátuas a esses mesmos supliciados e os veneram (mais ou menos). O primeiro grupo é sempre senhor do presente e o segundo é senhor do futuro. Um conserva o mundo, multiplica-lhe os habitantes; outro move o mundo e o dirige. Estes e aqueles têm absolutamente o mesmo direito à existência e — viva a guerra eterna — até a Nova Jerusalém, bem entendido.”

— Então o senhor crê numa Nova Jerusalém?

— Creio respondeu convicto Raskólnikov, que, durante o longo discurso tinha conservado os olhos baixos, olhando obstinadamente para o tapete.

— E... crê em Deus? Desculpe-me essa curiosidade.

— Creio — repetiu o rapaz, erguendo os olhos para Porfírio.

— E... na ressurreição de Lázaro?

— Também. Por que pergunta tudo isso?

— Acredita nela realmente?

— Perfeitamente.

— Desculpe-me ter-lhe feito essas perguntas, que me interessam. Mas, dê-me licença, volto ao assunto de que falamos há pouco, nem sempre eles são executados; há, pelo contrário, alguns que...

— Que triunfam na vida? Sim; isso acontece a alguns, e então...

— São esses que levam os outros ao suplício.

— Sendo necessário, e a dizer a verdade, é o caso mais comum. De modo geral, sua observação é muito justa.

— Muito obrigado. Mas diga-me: como é que se podem distinguir esses homens extraordinários dos ordinários? Trazem sinais quando nascem? Parece-me conveniente, nesse ponto, um pouco mais de precisão, uma delimitação de algum modo mais claro. Desculpe essa inquietação natural num homem prático e bem-intencionado; mas não poderiam eles fazer, por exemplo, um vestuário particular, um emblema qualquer?... Porque, o senhor deve concordar, se houver uma confusão, se um indivíduo de uma categoria pensa que pertence a outra e entra, conforme sua feliz expressão, a “suprimir todos os obstáculos”, então...

— Oh, isso sucede sempre! Essa segunda observação é mais sutil que a primeira.

— Muito obrigado.

— Não há de quê: mas lembre-se de que o erro só é possível na primeira categoria, isto é, naqueles que eu chamei, talvez despropositadamente, homens ordinários. Apesar de sua tendência inata para a obediência, muitos dentre eles, por um capricho da natureza, querem passar por homens da vanguarda, por destruidores, creem-se chamados a fazer ouvir uma palavra nova, e essa ilusão é sincera neles. Ao mesmo tempo, quase nunca reparam nos verdadeiros inovadores, desprezam-nos até como gente atrasada e sem elevação mental. Mas, quanto a mim, não pode haver nisso grande perigo, e o senhor não tem por que se inquietar, porque eles nunca vão muito longe. Sem dúvida, poder-se-iam açoitar uma vez ou outra para os punir da loucura e colocá-los no lugar; seria o bastante e mesmo assim não seria preciso incomodar o executor, eles próprios se açoitam, porque são pessoas muito virtuosas; ora fazem esse serviço uns aos outros, ora se batem com as próprias mãos... Veem-se publicamente inflingindo-se diversas penitências, o que não deixa de ser edificante; numa palavra, o senhor não tem que se preocupar com eles.

— Bom, por esse lado, ao menos, o senhor tranquilizou-me um pouco; mas aqui está ainda uma coisa que me apoquenta: diga-me, faça o favor: há muitos desses indivíduos extraordinários que têm o direito de matar os outros? Sem dúvida, estou pronto a inclinar-me diante deles, mas, se forem muitos, deve confessar que o caso será um pouco desagradável, hein?

— Oh! Também não se deve inquietar com isso — prosseguiu no mesmo tom Raskólnikov. — Em geral, nasce um número singularmente restrito de homens com uma ideia nova, ou mesmo capazes de dizerem o que quer que seja de novo. É evidente que a distribuição dos nascimentos nas diversas categorias e subdivisões da espécie humana deve ser estritamente determinada por alguma lei da natureza. Essa lei, bem entendido, é-nos desconhecida até hoje, mas creio que ela existe e que poderá mesmo ser conhecida depois. Uma grande massa de pessoas não existe na Terra senão para, depois de demorados e misteriosos cruzamentos de raças, dar enfim nascimento a um homem que, entre mil, terá certa independência. À medida que o grau de independência aumenta, não se encontra senão um homem em dez mil, em cem mil (números aproximados). Conta-se um gênio em muitos milhões de indivíduos, e milhares de milhões de homens passam talvez na Terra antes que surja uma dessas altas inteligências que renovam a face do mundo. Enfim, eu não fui espreitar pela retorta onde tudo isso se opera. Mas há certamente e deve haver a esse respeito uma lei fixa: aqui não pode existir o acaso.

— Mas estais a gracejar?! — exclamou Razumíkhin. — Estais a mistificar-vos reciprocamente, não é verdade? Então, não estáveis a divertir-vos à custa um do outro?! Estás a falar seriamente, Ródia?

Sem lhe responder, Raskólnikov ergueu para ele a face pálida. Examinando a fisionomia serena e triste do amigo, Razumíkhin achou esquisito o tom cáustico, provocante e indelicado que tinha tomado Porfírio.

— Realmente, meu amigo, se falas sério... Sem dúvida tens razão em dizer que isso não é novidade, e que se parece muito com o que temos lido e ouvido mil vezes; mas o que aí há realmente original, o que só pertence a ti, digo-o contristado, é o direito moral de derramar sangue, que concedes e defendes, perdoa-me dizê-lo, com tanto fanatismo... Eis, portanto, o pensamento principal de teu artigo. Essa autorização moral de matar é, em minha opinião, mais espantosa do que a autorização legal...

— Tal qual; é muito mais espantosa, com efeito — observou Porfírio.

— Nada, a expressão ultrapassou teu pensamento, não foi isso o que quiseste dizer! Eu hei de ler teu artigo... A conversar, a gente às vezes deixa-se levar! Não podes pensar desse modo... Eu hei de ler o artigo.

— Nada disso está no artigo; mas toquei na questão — disse Raskólnikov.

— Sim, sim — prosseguiu Porfírio —, agora compreendo a sua maneira de encarar o crime, mas... desculpe a insistência: se um rapaz imaginar ser Licurgo ou Maomé... futuro, já se deixa ver que principiará por suprimir todos os obstáculos que o impeçam de cumprir sua missão... “Eu empreendo uma longa campanha”, diria ele, “e para uma campanha é preciso dinheiro...”. Consequentemente, procurará recursos... o senhor adivinha de que maneira?

Zametov a essas palavras resfolegou no canto. Raskólnikov nem levantou os olhos.

— Sou obrigado a reconhecer — respondeu com calma, que tais casos devem suceder efetivamente. — É uma armadilha que o amor-próprio arma aos vaidosos e aos tolos; os jovens, sobretudo, deixam-se cair nelas muitas vezes.

— Não é verdade? E então?

— Então, o quê? — replicou rindo Raskólnikov. — Não tenho culpa de que assim seja. Isso vê-se e ver-se-á sempre. Ainda há pouco ele me acusava de admitir o assassínio — acrescentou indicando Razumíkhin. — Que importa? A sociedade não é bastante protegida pelas deportações, pelas prisões, pelos juízes de instrução, pelas galés? Por que havemos, pois, de nos inquietar? Procurem o ladrão!

— E se o encontrarmos?

— Tanto pior para ele.

— O senhor pelo menos é lógico. Mas que lhe dirá a consciência?

— Que tem o senhor com isso?

— É um caso que interessa o sentimento humano.

— Aquele que tem consciência sofre, reconhecendo o erro. É o castigo — independentemente das galés.

— Então — perguntou Razumíkhin franzindo a testa —, os homens de gênio, aqueles a quem é dado o direito de matar, não devem sentir nem quando derramam sangue?

— Que vem fazer a palavra devem? O sofrimento não lhes é permitido nem proibido. Eles que sofram à vontade, se têm piedade da vítima... O sofrimento acompanha sempre uma inteligência elevada e um coração profundo. Os homens verdadeiramente grandes devem, parece-me, experimentar uma grande tristeza, acrescentou Raskólnikov, acometido de melancolia súbita, que contrastava com o tom da conversação precedente.

Ergueu os olhos, encarou todos os assistentes com ar distraído, sorriu e pegou o boné. Estava muito sereno, comparativamente com a atitude que tinha ao entrar, e notava essa diferença. Todos levantaram-se.

Porfírio Petróvitch voltou ainda ao assunto.

— Ou o senhor me injurie ou não, ou se zangue, isso é mais forte do que eu, preciso ainda dirigir-lhe uma pequena pergunta... Na verdade tenho pejo de abusar desse modo... Enquanto penso nisso e para não me esquecer, queria ainda participar-lhe uma ideia que me acudiu...

— Bem, participe sua ideia — respondeu Raskólnikov em pé, pálido e sério, diante do juiz de instrução.

— É o seguinte, na verdade, não sei como hei de explicar-me... é uma ideia bizarra... Ao escrever seu artigo, é muito provável que o senhor se considerasse um desses homens “extraordinários”, de que falava... Hein, não é verdade?

— É bem possível — respondeu ele desdenhosamente.

Razumíkhin fez um movimento de espanto.

— Sendo assim, não estaria o senhor decidido também, quer para sair de embaraços materiais, quer para fazer progredir a humanidade, não estaria o senhor resolvido a transpor o obstáculo?... Por exemplo, a matar e a roubar?...

Ao mesmo tempo, piscava o olho e ria silenciosamente tal qual como há pouco.

— Se eu estivesse decidido a isso, certamente não lhe diria — replicou Raskólnikov com um tom altivo de desafio.

— A minha pergunta era simples curiosidade literária; a fiz com o único fim de melhor interpretar o sentido de seu artigo...

“Oh, como o laço é grosseiro! Que malícia cosida com linha branca!”, pensou Raskólnikov desanimado.

— Permita-me que lhe observe — respondeu secamente — que não me julgo nem um Maomé nem um Napoleão... nem qualquer outra personagem desse gênero: por conseguinte, não posso informá-lo sobre o que faria nessas circunstâncias.

— Ora, adeus! Quem é que entre nós, na Rússia, não se julga agora um Napoleão? — disse com brusca familiaridade o juiz de instrução.

Dessa vez o próprio tom da voz traía um pensamento secreto.

— Não seria um futuro Napoleão quem matou nossa Alena Ivanovna na semana passada? — disse de repente Zametov, de seu canto.

Sem dizer uma palavra, Raskólnikov fixou sobre Porfírio um olhar firme e agudo. As feições de Razumíkhin alteravam-se. Parecia estar desconfiado de alguma coisa. Volveu em volta de si um olhar irritado. Fez-se um silêncio sombrio. Raskólnikov preparou-se para sair.

— Parte agora! — disse cortesmente Porfírio, estendendo a mão para o rapaz com extrema amabilidade. — Estou encantado por tê-lo conhecido. E, quanto à sua petição, esteja tranquilo. Escreve no sentido que lhe indiquei. Ou melhor: venha o senhor mesmo procurar-me... um dia desses... amanhã, por exemplo. Estarei aqui sem falta, às 11 horas. Arranjaremos tudo... Conversaremos um pouco... Como o senhor é um dos últimos que lá foram, poderá talvez dizer-nos alguma coisa — acrescentou com ar ingênuo.

— O senhor quer interrogar-me com todas as regras? — perguntou Raskólnikov rispidamente.

— Para quê? Não se trata disso agora. O senhor não me compreendeu. Aproveito todas as ocasiões, entende o senhor? E... e conversei lá com todos aqueles que tinham objetos empenhados na casa da vítima... muitos me forneceram dados úteis... e como o senhor foi o último... A propósito! — exclamou com uma alegria súbita. — Ainda bem que me lembrou a tempo, já ia esquecer-me!... (Dizendo isso, voltou-se para Razumíkhin.)

— Tu aturdias-me outro dia os ouvidos sobre aquele Micolai... Pois bem, estou certo, estou convencido de sua inocência — prosseguiu dirigindo-se de novo a Raskólnikov. — Mas que fazer? Foi preciso inquietar também Mitka... Mas eis o que lhe queria perguntar: quando subiu as escadas... foi entre as sete e as oito horas?

— Foi — respondeu Raskólnikov, e logo se arrependeu de ter dado essa resposta.

— Bem!... E, subindo as escadas entre as sete e as oito horas, não viu no segundo andar, num quarto que tinha a porta aberta, está lembrado? Não viu dois operários, ou pelo menos um? Estavam pintando o quarto; não reparou neles por acaso? Isso é muito importante!

— Pintores? Não vi... — respondeu lentamente Raskólnikov, com ar de quem interroga a memória, procurando descobrir o mais depressa possível que laço se ocultava na pergunta feita pelo juiz de instrução. — Não os vi nem mesmo tenho ideia de nenhum quarto aberto — continuou muito satisfeito por se ter livrado dessa — mas no quarto andar, recordo-me de que o empregado que morava em frente de Alena Ivanovna andava fazendo a mudança; lembro-me muito bem... vi alguns homens que transportavam um divã, até tive de me encostar à parede... mas pintores não me lembro de ter visto... não tenho mesmo lembrança de um quarto com a porta aberta.

— Mas que estás a dizer? — bradou de repente Razumíkhin, que até então tinha ouvido, parecendo refletir. — No próprio dia do assassínio é que os pintores trabalharam nesse aposento e, dois dias antes, é que foi lá à casal Por que estás a perguntar-lhe isso?

— É verdade! Ora essa! Confundi as datas! — disse Porfírio batendo na testa. — Diabos me levem! Esse caso faz-me rodar a cabeça — acrescentou como que desculpando-se, dirigindo-se a Raskólnikov —, e é tão importante para nós saber se alguém os viu no aposento entre as sete e as oito horas que, sem mais reflexão, julguei que o senhor me poderia dar essa informação... confundi inteiramente as datas!

— Pois seria bom que prestasses mais atenção — resmungou Razumíkhin.

As últimas palavras foram ditas na antecâmara; Porfírio acompanhou os visitantes até a porta, muito amavelmente. Estavam sombrios quando saíram e seguiram sem dizer palavra. Raskólnikov respirava como quem passa por uma prova difícil.


Capítulo VI

— Não creio! Não posso acreditar! — repetiu Razumíkhin, que fazia todos os esforços para repetir as conclusões de Raskólnikov. Estavam já próximos da casa Bakalêief, onde os esperavam há muito Pulquéria Alexandrovna e Dúnia. No curso da discussão, Razumíkhin parava a cada instante; estava muito agitado, porque era a primeira vez que os dois conversavam sobre aquilo abertamente.

— Não acredites, se quiseres! — respondeu Raskólnikov com um sorriso frio e indiferente. — Tu, segundo teu hábito, não reparaste em nada, mas eu pesei todas as palavras.

— Tu és desconfiado, e é por isso que descobres em tudo pensamentos secretos... Hum... com efeito, concordo que o tom em que Porfírio falou era singular e foi sobretudo aquele aparte de Zametov... Tens razão, havia nele não sei quê... mas como pode isso ser, como?

— Mudando de opinião de ontem para hoje.

— Não, estás enganado! Se eles tivessem essa estúpida ideia, teriam, ao contrário, tratado de a dissimular; esconderiam o jogo para te inspirar uma confiança capciosa, esperando o momento de descobrirem as baterias... Na hipótese em que te colocas, teu modo de proceder de hoje seria tão desastrado como insolente!

— Se eles tivessem fatos ou presunções um pouco fundadas, então sem dúvida que se esforçariam por esconder o jogo, na esperança de obterem novas vantagens sobre mim (aliás, já teriam dado há muito tempo uma busca em meu domicílio). Mas não têm provas, nenhuma; tudo se reduz para eles a conjeturas, a suposições, e é por isso que recorrem ao descaramento. Não devemos talvez ver nisso senão o despeito de Porfírio, que está furioso por não encontrar provas. Ou talvez tenha suas intenções... Parece inteligente... Talvez me quisesse amedrontar. Ele também tem sua psicologia, meu amigo. Aliás, todas essas questões são repugnantes de tratar. Deixemos isso!

— É odioso! Compreendo-te! Mas... visto que abordamos francamente este caso (e acho que fizemos bem), não hesitarei mais em confessar-te que, há muito tempo, tinha notado essa ideia neles. Bem entendido, ela mal ousava formular-se, andava no espírito deles em estado de dúvida, mas já não é pouco que eles a pudessem conceber mesmo sob essa forma! E que foi que lhe despertou tão abomináveis desconfianças? Se tu soubesses que raiva isso me dá! Pois quê! Está aí um pobre estudante em luta com a miséria, em vésperas talvez de uma doença grave; um rapaz desconfiado, cheio de amor-próprio, tendo consciência de seu valor, há seis meses fechado num quarto, onde não vê ninguém; apresenta-se vestido de farrapos, com botinas sem solas, perante miseráveis chefes de polícia, dos quais sofre os insultos; reclamam-lhe à queima-roupa o pagamento de uma letra protestada; a sala está cheia de gente, há um calor de trinta graus; o cheiro das tintas torna a atmosfera ainda mais insuportável; o desgraçado, com o estômago vazio, ouve falar do assassínio de uma pessoa à casa de quem foi na véspera e desmaia. Mas, nessas condições, quem não desmaiaria! E é sobre essa síncope que se baseia tudo! Eis o ponto de partida! Que os leve o diabo. Compreendo que estejas vexado; mas em teu lugar, Ródia, ria-me na cara deles todos, ou melhor, atirava-lhes meu desprezo num jato de cuspe; assim é que eu responderia. Coragem! Escarra-lhes nas caras! É vergonhoso!

“Disse sua tirada com convicção!”, pensou Raskólnikov.

— Escarrar nas caras? Isso é muito bom dizer... E amanhã tenho outro interrogatório! — respondeu ele tristemente. — Será preciso rebaixar-me a dar explicações! Já estou arrependido de ter conversado ontem com Zametov no traktir...

— Que o leve o diabo! Irei à casa de Porfírio! É meu parente; hei de aproveitar-me disso para lhe tirar os macaquinhos do sótão; há de pôr tudo em pratos limpos. E quanto a Zametov...

“Enfim, o peixe mordeu a isca!”, disse para si Raskólnikov.

— Espera! — disse de repente Razumíkhin segurando o amigo pelo ombro. — Espera! Tu divagavas ainda agora! Onde vias um ardil? Dizes que a pergunta relativa aos operários ocultava um laço? Ora, raciocina um pouco: se tivesses feito aquilo, serias tão tolo que fosses dizer que tinhas visto os pintores no segundo andar? Pelo contrário, ainda mesmo que os tivesses visto, terias negado! Quem faz declarações que comprometam?

— Se eu tivesse feito aquela coisa, não teria omitido a declaração de ter visto os operários — replicou Raskólnikov, que parecia continuar a conversação com grande repugnância.

— Mas para que fazer declarações nocivas à própria causa?

— Porque só os mujiques e os estúpidos é que negam tudo de caso pensado. Um acusado, regularmente hábil, confessa todas as provas materiais que não pôde destruir; apenas explica de outra maneira, modifica-lhes a significação, apresenta-as sob um aspecto novo. Muito provavelmente Porfírio contava que eu responderia assim; julgava que, para dar mais verossimilhança às minhas declarações, eu confessaria ter visto os operários, explicando depois o fato em sentido favorável à minha causa.

— Mas ele responder-te-ia logo que, na antevéspera do dia do crime, não podias ter visto lá os operários e que, por conseguinte, tinhas estado na casa da vítima no dia do assassínio, entre as sete e as oito horas. Estavas apanhado!

— Ele julgava que eu não teria tempo de refletir e que, obrigado
a responder da maneira mais verossímil, esqueceria essa circunstância: a impossibilidade da presença dos operários na casa na antevéspera do crime.

— Mas como se podia esquecer isso?

— Nada mais fácil! Essas minúcias são o escolho dos maliciosos: quando são interrogados, por essa forma é que se contradizem. Quanto mais fino é um homem, menos suspeita o perigo das perguntas insignificantes. Porfírio sabe-o bem; está longe de ser tão tolo como julgas...

— Se é como dizes, ele é, então, um canalha!

Raskólnikov não pôde deixar de sorrir. Mas, no mesmo instante, admirou-se de ter ouvido a última explicação com verdadeiro prazer, ele que até então não sustentara a conversa senão contra a vontade e por ser obrigado a isso pelo fim que queria atingir.

“Parece que vou tomar gosto por essas questões!”, pensou.

Mas, quase ao mesmo tempo, apoderou-se dele uma inquietação súbita. Os dois estavam já à porta do edifício Bakalêief.

— Entra — disse bruscamente Raskólnikov —, eu já volto.

— Aonde vais?

— Tenho de fazer uma coisa... volto daqui a meia hora. Dize-lhes...

— Pois bem, acompanho-te!

— Que diabo, juraste perseguir-me até a morte?!

Essa exclamação foi proferida com tal acento de furor e um ar tão desesperado que Razumíkhin não insistiu. Ficou algum tempo à porta, seguindo com o olhar sombrio Raskólnikov, que ia a grandes passadas na direção de seu pereulok. Enfim, depois de ter rangido os dentes, cerrado os punhos e fazer a promessa de espremer Porfírio como um limão, subiu para tranquilizar Pulquéria Alexandrovna, já inquieta por aquela longa demora.

Quando Raskólnikov chegou a casa, tinha as fontes latejando e úmidas de suor e respirava com dificuldade. Subiu as escadas de quatro em quatro degraus, entrou no quarto, que tinha ficado aberto, e fechou a porta. Depois, trêmulo de medo, correu ao esconderijo, introduziu a mão sob o papel e explorou o buraco em todos os sentidos. Não encontrando lá nada, depois de ter apalpado minuciosamente, levantou-se e deu um suspiro de desafogo. Havia pouco, quando chegava à casa Bakalêief, tivera de repente a ideia de que algum dos objetos roubados teria podido escorregar para qualquer fenda da parede; se um dia fossem lá encontrar uma corrente de relógio, um botão de punho ou mesmo um dos papéis que envolviam esses objetos e que continham anotações feitas pela mão da velha, que terrível prova contra ele!

Ficou mergulhado numa vaga meditação, e um sorriso singular flutuava em seus lábios. Por fim, pegou o chapéu e saiu do quarto sem ruído. As ideias baralhavam-se-lhe. Pensativo, desceu as escadas e chegou à porta.

— Olhe, ele está ali! — bradou uma voz forte.

O rapaz levantou a cabeça.

O dvornik, de pé, à porta de seu cubículo, mostrava Raskólnikov a um homem de pequena estatura e aparência burguesa. Esse indivíduo vestia uma espécie de khalat e um jaquetão; ao longe parecia uma camponesa. A cabeça, coberta por um chapéu sebento, inclinava-se-lhe sobre o peito. A julgar pelo rosto pálido e cheio de rugas, devia ter passado dos cinquenta. Os olhos pequenos tinham o que quer que fosse de mau.

— Que há? — perguntou Raskólnikov aproximando-se do dvornik.

O burguês olhou-o de través, examinando-o longamente; depois, sem dizer palavra, voltou as costas e afastou-se.

— Mas que é isto! — exclamou Raskólnikov.

— Que é? É um homem que veio perguntar se morava aqui um estudante; disse seu nome e perguntou onde o senhor morava. Nesse meio-tempo, o senhor desceu, mostrei-o, e ele se foi; ora aí está!

O dvornik estava também um pouco admirado. Depois de ter refletido um momento, entrou no cubículo.

Raskólnikov seguiu nas pegadas do burguês. Apenas saiu de casa, viu-o caminhando do outro lado da rua com passo lento e regular, olhos no chão, meditativo. O rapaz alcançou-o logo, mas, durante algum tempo, limitou-se a seguir-lhe os passos; por fim colocou-se-lhe ao lado e mirou-lhe obliquamente o rosto. O burguês notou-o também, lançou-lhe um golpe de vista rápido, depois baixou de novo os olhos. Durante um minuto, ambos andaram assim lado a lado, sem dizerem uma palavra.

— O senhor perguntou por mim... ao dvornik? — começou Raskólnikov sem elevar a voz.

O burguês não respondeu, nem mesmo olhou para quem lhe falava. Houve novo silêncio.

— O senhor veio procurar-me... e não diz nada... Que quer dizer isso? — prosseguiu Raskólnikov com a voz entrecortada.

Dessa vez, o outro olhou para o mancebo com ar sinistro.

— Assassino! — disse bruscamente em voz baixa, mas clara e distinta...

Raskólnikov marchava ao lado dele. Sentiu, de repente, enfraquecerem-se-lhe as pernas e um arrepio pela espinha; durante um segundo, seu coração teve como que um delíquio, mas bem depressa bateu com uma violência extraordinária. Os dois homens andaram assim uns cem passos um ao lado do outro, sem falarem.

— Mas que é que o senhor... O quê? Quem é assassino? — balbuciou Raskólnikov com voz quase inaudível.

— És tu que és um assassino — disse o outro, acentuando essa réplica com mais clareza e energia do que da primeira vez; ao mesmo tempo, parecia ter nos lábios o sorriso do ódio triunfante e olhava friamente para o rosto pálido de Raskólnikov, cujos olhos se tornaram vítreos.

Aproximavam-se então de uma encruzilhada. O burguês dobrou uma rua à esquerda e seguiu seu caminho sem olhar para trás.
Raskólnikov deixou-o afastar-se, mas seguiu-o por muito tempo com os olhos. Depois de ter andado cinquenta passos, o desconhecido voltou-se para observar o rapaz sempre parado no mesmo lugar. A distância não permitia ver bem; todavia Raskólnikov julgou notar que o outro o mirava ainda com seu sorriso de ódio.

Transido de terror, foi-se arrastando até a casa e subiu para o quarto. Depois de atirar o chapéu sobre a mesa, ficou em pé, imóvel, durante dez minutos. Então, já sem forças, deitou-se no divã e estendeu-se languidamente com um fundo suspiro. Assim permaneceu meia hora.

Não detinha o pensamento em coisa alguma. Algumas ideias... fragmentos de ideias... algumas imagens, sem ordem ou coerência, flutuavam-lhe na mente. Rostos de pessoas vistas na infância ou encontradas algures... de quem jamais lembrar-se-ia... o campanário da igreja de V***; o bilhar num traktir, que alguns oficiais jogavam; o cheiro de charutos em alguma tabacaria subterrânea; uma taverna; um vão de escada de fundos, muito escuro, escorregadio de águas imundas, semeado de cascas de ovos; os sinos domingueiros badalando ao longe; as imagens sucediam-se num rodopio de furacão. De algumas gostava e procurava reter, mas desvaneciam-se. Durante esse tempo, sentia-se opresso, mas não irresistivelmente, antes agradavelmente... Um leve tremor persistia em seu corpo, porém também lhe dava uma sensação agradável.

Ouviu passos rápidos e a voz de Razumíkhin; fechou os olhos e fingiu dormir. Razumíkhin abriu a porta e, durante alguns minutos, ficou no limiar, parecendo não saber o que fazer. Mas resolveu-se a entrar pé ante pé e aproximou-se, com precaução, do divã.

— Não o acordes; deixa-o dormir, ele comerá depois — disse Nastácia em voz baixa.

— Tens razão — disse Razumíkhin.

Saíram na ponta dos pés e fecharam a porta. Passou ainda mais meia hora. Raskólnikov abriu os olhos, levantou o corpo com um movimento brusco e cruzou as mãos sob a cabeça...

“Quem é ele? Quem é esse homem saído das entranhas da terra? Onde estava ele e o que viu? Viu tudo, sem dúvida. Onde se achava então? De que lugar viu aquilo? Como é que só agora dá sinal de vida? Como pôde ele ver? Será possível?... Hum!...”, continuou, tomado de um tremor glacial. “E o estojo que Micolai achou atrás da porta; quem poderia esperar tal coisa?”

Sentia que as forças o abandonavam e teve nojo de si próprio.

“Eu devia saber isso”, pensou ele, com um sorriso amargo, “como ousei derramar sangue? Eu tinha obrigação de saber isso antecipadamente... e, aliás, bem o sabia...”, murmurou desesperado.

Por momentos, demorava-se num pensamento:

“Não, essas criaturas não são assim: o verdadeiro dominador, a que tudo é permitido, bombardeia Toulon, massacra Paris, esquece um exército no Egito, perde meio milhão de homens na batalha de Moscou, salva-se em Vilna por um trocadilho; depois de morto levantam-lhe estátuas. Tudo, portanto, lhe é permitido. Não, esses indivíduos não são feitos de carne, mas de bronze!”

Uma ideia que lhe ocorreu de repente quase o fez rir.

“Napoleão, as pirâmides, Waterloo — e uma velha, secretária de colégio, uma ignóbil usurária que tem um cofre de marroquim vermelho debaixo do leito; como poderia Porfírio Petróvitch fazer tal comparação?... A estética opõe-se a tal; Napoleão ter-se-ia escondido, por acaso, debaixo da cama de uma velha?”, dizia. “Eh, que disparate!”

Apodera-se dele uma grande exaltação febril.

“A velha nada significa”, continuou; “suponhamos que a velha seja um erro, não se trata dela! A velha apenas foi um acidente... eu queria dar o salto o mais breve possível... Não foi uma criatura humana que matei, foi um princípio! Efetivamente matei o princípio, mas não soube passar sobre ele, fiquei do lado de cá... Não soube senão matar... E mesmo parece que não foi muito bem... Um princípio? Por que é que esse imbecil do Razumíkhin atacava ainda há pouco os socialistas? Eles são laboriosos homens de negócios, ‘ocupam-se da felicidade comum’... Não; eu só tenho uma vida; não estou para esperar a ‘felicidade universal’. Quero viver para mim próprio, de outro modo não vale a pena existir. Não quero viver ao lado de uma mãe esfomeada, guardando meu rublo no bolso, sob o pretexto de que um dia todos serão felizes. ‘Levo a minha pedra ao edifício da felicidade universal e isso basta para a tranquilidade do coração.’ Ah, ah! Então por que se esqueceram de mim? Visto que só vivo uma vez, quero minha parte de felicidade logo... ‘Eh! Sou um verme esteta, nada mais’”, acrescentou subitamente, rindo como um louco; e, agarrando-se a essa ideia, experimentou um prazer acre em sondá-la em todos os sentidos, em voltá-la sob todas as facetas. “Sim, com efeito, sou um verme; primeiro, exatamente porque estou pensando agora se o sou ou não; depois, porque durante um mês inteiro importunei a Divina Providência tomando-a por testemunha de que me resolvia àquela empresa, não para procurar satisfações materiais, mas tendo em vista um fim grandioso, ah!, ah! Em terceiro lugar, porque, na execução, quis fazer a justiça possível: entre todas as pragas, escolhi a mais nociva, e, matando-a, contava encontrar em casa dela exatamente o que me era preciso para garantir minha entrada na vida (o que sobrasse iria para o mosteiro a que ela tinha legado sua fortuna; — ah! ah!)... Sou na verdade uma praga”, acrescentou rangendo os dentes, “porque sou talvez ainda mais vil e mais ignóbil que a praga que matei e porque pressentia que, depois de a ter matado, diria isso mesmo! Há alguma coisa comparável a tal horror? Oh, baixeza! Oh, vergonha! Oh, como eu compreendo o Profeta, a cavalo, de alfanje em punho! Alá manda: obedece, ‘pusilânime criatura’! Tem razão, o Profeta! Quando dispõe a tropa no campo e fere indistintamente o justo e o pecador sem mesmo se dignar explicar-se! Obedece, pusilânime criatura, e livra-te de querer, porque isso não te é dado... Oh, nunca perdoarei à velha!...”.

Tinha a cabeça ensopada de suor, os lábios ressequidos agitavam-se, o olhar imóvel não deixou o teto.

“Minha mãe, minha irmã, como eu as amava! Por que as detesto agora? Sim, detesto-as, odeio-as fisicamente, não posso suportá-las junto de mim... Ainda há pouco, lembro-me de que me aproximei de minha mãe e beijei-a... Beijei-a... e pensar que, se ela soubesse... Oh, como odeio agora a velha! Parece-me que, se ela ressuscitasse, a mataria outra vez. Pobre Isabel, por que acaso foi ela lá? É singular, quase que nem penso nela, como se não a tivesse matado? Isabel, Sônia! Pobres criaturas de olhos meigos... Queridas!... Por que elas não choram? Por que não se lamentam? Vítimas resignadas, aceitam tudo em silêncio... Sônia, Sônia, encantadora Sônia!...”

Perdera a consciência de si e, com grande surpresa, viu que estava na rua. A noite ia muito adiantada. As trevas condensavam-se, a lua cheia tinha um brilho cada vez mais vivo, mas o ar era sufocante. Havia muita gente nas ruas: operários e pequenos empregados recolhiam-se às casas; os outros passeavam. Havia no ar um cheiro de cal, de poeira, de água estagnada. Raskólnikov seguia aflito e preocupado: lembrava-se perfeitamente de que tinha saído de casa com um fim, que tinha de fazer qualquer coisa urgente, mas o quê? Esquecera. De súbito parou e viu que, da outra calçada, um homem lhe fazia sinal com a mão. Atravessou a rua para ir ter com ele, mas logo esse homem voltou-se e continuou seu caminho com a cabeça baixa, sem se voltar. “Enganar-me-ei?”, pensou; e todavia continuou a segui-lo. Ainda não dera dez passos, quando o conheceu de repente e ficou aterrado; era o burguês de há pouco, curvado do mesmo modo, vestindo o mesmo casaco. Raskólnikov, cujo coração batia violentamente, caminhava a distância; entraram num pereulok. O outro continuava sem se voltar. “Ele verá que o sigo?”, perguntava a si próprio. O burguês transpôs o limiar de uma grande casa. Raskólnikov adiantou-se apressado para a porta e pôs-se a olhar, pensando que talvez essa misteriosa personagem se voltaria e o chamaria. Efetivamente, logo que o burguês se achou no pátio, voltou-se e pareceu chamar outra vez o rapaz com um gesto. Ele obedeceu; mas, tendo chegado ao pátio, já lá não encontrou o desconhecido. Julgando que devia ter ido pelas primeiras escadas, Raskólnikov subiu-as. Com efeito, quando chegou ao segundo andar, ouviu passos lentos e regulares. Coisa singular, parecia conhecer aquelas escadas! Eis a janela do primeiro andar; através dos vidros entrava, misteriosa e triste, a luz da lua; eis o segundo. Hein! Era o local em que trabalhavam os pintores... Como não reconhecera a casa imediatamente? Os passos do homem que o precedia cessaram: “Por conseguinte ele parou ou escondeu-se em algum lugar. Eis o terceiro andar: terei de subir ainda? E que silêncio! É aterrador!...” Todavia prosseguiu na ascensão das escadas. Os ruídos dos próprios passos lhe metiam medo. “Meu Deus, que escuridão! O burguês escondeu-se, evidentemente, em algum canto.” Ah! O aposento que dava para o patamar estava aberto de par em par. Raskólnikov refletiu um instante, depois entrou. A antecâmara estava completamente vazia e muito escura. O rapaz passou à sala na ponta dos pés. A luz da lua iluminava inteiramente o recinto; a mobília não fora mudada; Raskólnikov viu em seus antigos lugares as cadeiras, o espelho, o divã e as estampas emolduradas. Pela janela via-se a enorme face redonda, vermelho-acobreada da lua. Esperou muito tempo em profundo silêncio. De súbito, ouviu um ruído seco como o que faz uma lasca que se parte, depois tudo recaiu em silêncio. Uma mosca que acordou foi voando esbarrar na vidraça e pôs-se a zumbir lamentavelmente. No mesmo instante, num canto, entre o pequeno armário e a janela, Raskólnikov julgou ver uma capa de mulher pendurada na parede. “Por que está ali aquela capa?”, pensou ele, “não estava lá antes...” Aproximou-se devagar e desconfiou que, atrás da capa, alguém devia estar escondido. Afastou-se com precaução e viu que numa cadeira, ao canto, estava sentada a velha, dobrada em duas, com a cabeça de tal modo pendida que ele não pôde distinguir-lhe o rosto; mas era realmente Alena Ivanovna. “Tem medo!”, disse consigo Raskólnikov. Desprendeu com cautela o machado do laço e por duas vezes o descarregou sobre o crânio. Mas, coisa singular, Alena nem se mexeu; dir-se-ia de pedra. Estupefato, ele curvou-se sobre ela para a examinar, mas a velha baixou ainda mais a cabeça. Curvou-se então até o solo, mirou-a de baixo para cima e, vendo-lhe o rosto, ficou abismado: Alena ria, sim, ria com um riso silencioso, contendo-se para não ser ouvida. Subitamente pareceu a Raskólnikov que a porta do quarto de dormir estava aberta, e que lá também alguém ria e cochichava.

Então, enfurecido, começou a dar golpes na cabeça da velha, mas a cada machadada os risos e as murmurações do quarto de dormir percebiam-se mais distintos! A velha estorcia-se de riso. Quis fugir, mas a antecâmara estava cheia de gente, bem como o patamar e a escada; todos olhavam, mas escondidos e esperando em silêncio... Seu coração comprimiu-se; sentia os pés presos ao chão...

Respirou com esforço e julgava ainda sonhar, quando viu, de pé, no limiar da porta do quarto, aberta de par em par, um desconhecido, que o examinava atentamente.

Raskólnikov, que mal abrira os olhos, tornou a fechá-los. Deitado de costas, nem se mexeu. “Será a continuação do sonho?”, pensou, e levantou quase imperceptivelmente as pálpebras para lançar um olhar sobre o desconhecido. Este, sempre no mesmo lugar, não cessava de observar. De repente, transpôs o limiar, fechou devagar a porta, aproximou-se da mesa e, depois de ter esperado um minuto, sentou-se sem ruído numa cadeira junto do divã.

Durante todo esse tempo, não perdera de vista Raskólnikov. Depois, pousou o chapéu no chão, apoiou-se no castão da bengala e encostou o queixo nas mãos, como quem se prepara para esperar muito. Pelo que Raskólnikov pudera julgar, por um olhar furtivo, aquele homem já não era moço; tinha aparência forte e usava barba espessa, de um louro quase branco...

Dez minutos se passaram assim. Havia alguma claridade, mas já era tarde. No aposento, reinava profundo silêncio. Das escadas não vinha ruído algum. Não se ouvia senão o zumbido de uma grande mosca, que, voando, esbarrava na janela. Por fim, aquele silêncio era já insuportável. Raskólnikov não pôde conter-se e sentou-se no divã.

— Fale; que quer o senhor?

— Eu bem sabia que seu sono era só aparente — respondeu o desconhecido com um sorriso. — Permita que me apresente: Árcade Ivânovitch Svidrigailov...


Quarta parte


Capítulo I

“Estarei bem acordado?”, pensou novamente Raskólnikov, olhando desconfiado para a inesperada visita.

— Svidrigailov? Não pode ser! — disse finalmente, não podendo acreditar no que ouvira.

Essa exclamação não surpreendeu Svidrigailov.

— Vim à sua casa por duas razões: primeira, porque desejava conhecê-lo pessoalmente, pois durante muito tempo ouvi falar do senhor nos termos mais lisonjeiros; depois, porque espero que não me recusará seu auxílio numa empresa que interessa diretamente à sua irmã, Avdótia Romanovna. Só, sem apresentação, seria difícil que ela me recebesse, visto estar prevenida contra mim; mas apresentado pelo senhor calculo que o caso seria diferente.

— Não conte comigo — disse Raskólnikov.

— Essas senhoras só chegaram ontem? Permita-me que lhe faça essa pergunta.

Ele não respondeu.

— Foi ontem, eu sei. Eu mesmo só vim anteontem. Pois bem, ouça o que vou dizer-lhe a respeito, Ródion Românovitch; é supérfluo justificar-me, mas permita-me que o interrogue: que há, afinal, em tudo isso, de procedimento criminoso, de meu lado, bem entendido, se se apreciarem as coisas serenamente e sem preconceitos?

Raskólnikov continuava a observá-lo silencioso.

— Vai dizer-me, não é verdade?, que persegui em minha casa uma moça indefesa e que a insultei com propostas vergonhosas? (Eu mesmo faço a acusação!) Mas pense unicamente que eu sou um homem, et nihil humanum... numa palavra, que sou suscetível de um arrebatamento, de apaixonar-me (o que é independente de nossa vontade), e então tudo se explica do modo mais natural. Toda a questão é isso. Sou um monstro, ou antes uma vítima? Certamente uma vítima. Quando propus à criatura amada fugir comigo para a América ou para a Suíça, alimentava talvez os sentimentos mais respeitosos e pensava assegurar-lhe uma felicidade comum!... A razão não é senão uma escrava da paixão; foi a mim próprio sobretudo que prejudiquei...

— Não é disso que se trata — respondeu Raskólnikov: — que procedesse bem ou mal; não posso evitar o ódio que tenho; não quero saber quem é. Saia!

Svidrigailov soltou uma gargalhada.

— Não há meio de iludi-lo! — disse alegremente. — Quis servir-me de um estratagema, mas vejo que não deu resultado.

— Agora mesmo continua a enganar-me.

— Mas em quê? Em quê? — repetia Svidrigailov, rindo à vontade. — E numa bonne guerre, como dizem os franceses, a minha astúcia era permitida!... Mas não me deixou acabar. Ora, voltando ao caso, devo dizer-lhe que nada houve de desagradável, a não ser o caso do jardim. Marfa Petrovna...

— Diz-se também que Marfa Petrovna foi morta pelo senhor — interrompeu brutalmente Raskólnikov.

— Ah, também lhe falaram nisso? Não é de admirar... A respeito dessa história, e, apesar da tranquilidade de minha consciência, não sei o que hei de responder-lhe. Não imagine que receio a continuação desse processo: todas as formalidades foram cumpridas o mais minuciosamente possível; os médicos afirmaram que ela morreu de uma apoplexia, como resultado de um banho que tomou após uma refeição abundante em que bebeu quase uma garrafa de vinho; nada mais... Não é isso o que me inquieta. Mas, por várias vezes, em viagem para São Petersburgo, a mim mesmo perguntei se não havia contribuído moralmente para essa... desgraça, com qualquer desgosto que desse a Marfa ou de outra forma qualquer. Acabei por ver que não tinha motivo para apreensões.

Raskólnikov riu-se.

— Que preocupações as suas!

— Por que se ri? Bati-lhe apenas com um chicote, algumas vergastadas que não deixaram o menor vestígio... Não me julgue um cínico; sei perfeitamente que foi vil de minha parte etc., mas sei também que meus acessos de brutalidade não desagradavam a Marfa Petrovna. O que se passou com sua irmã foi espalhado pela cidade por minha mulher, que aborreceu todas as pessoas que conhecia com a famosa carta (soube que ela dava-a a ler a toda a gente?). Como tempestades as duas chicotadas caíram do céu. Sua primeira ação foi ordenar a partida da carreta... Não falando dos casos em que as mulheres se sentem muito felizes por serem maltratadas, apesar das demonstrações de indignação. Qualquer um pode passar por esses transes! Os seres humanos gostam de ser maltratados. Já notou? Especialmente as mulheres; posso afirmar até ser esse o único divertimento delas.

Em dado momento, Raskólnikov pensou em levantar-se e sair, terminando assim a entrevista. Estranha curiosidade e uma espécie de prudência fizeram-no aguardar um momento apropriado.

— Gostava muito de servir-se do chicote? — perguntou-lhe, distraído.

— Nem por isso — respondeu calmamente Svidrigailov. — Raras vezes tínhamos discussões. Vivíamos em muito boa harmonia; ela estava sempre bem comigo. Durante os sete anos de nossa vida comum, o chicote trabalhou apenas duas vezes (ponho de parte um terceiro caso, um pouco duvidoso): a primeira vez, foi dois meses após nosso casamento, quando chegamos a uma casa de campo, onde tencionávamos passar tempos; a segunda e última, foi nas circunstâncias que disse há pouco. Considera-me por isso um monstro, um retrógrado, um partidário da escravidão?... Ah!, ah! A propósito, lembra-se, Ródion Românovitch, como há alguns anos... naqueles dias de beneficência pública, um nobre, esqueci-lhe o nome, foi achincalhado em todos os jornais por haver espancado uma alemã no trem? Lembra-se? Foi por essa época, creio, que ocorreu “a infeliz ação da Idade”. (Recorda-se? As noites egípcias, quando foram apresentadas em público, lembra-se? Dos olhos negros? Ah, os áureos dias de nossa juventude! Onde estão?) Quanto ao cavalheiro que esbofeteou a alemã, não lhe tenho simpatia; nesse incidente nada há simpático! Eu, porém, sei existirem “alemães” tão provocadores que não acredito haver um ser humano que seja capaz de ficar impassível ante eles. Ninguém, na época, analisou a ocorrência desse ponto de vista, mas esse é o único verdadeiramente humano. Asseguro-lhe!

Dito isso, Svidrigailov soltou repentina gargalhada.

Raskólnikov estava certo de que esse homem tinha algum plano habilmente oculto, e era capaz de assim mantê-lo.

— Deve ter passado muitos dias seguidos sem falar com ninguém.

— Essa suposição é quase real. Mas admira-se, não é verdade?, de que eu tenha tão bom caráter?

— Acho-o até excelente!

— Por não me ter formalizado com as perguntas grosseiras que me faz? Por que havia de melindrar-me? Como me interrogou, respondi-lhe — disse Svidrigailov com singular expressão de bonomia. — Na verdade, nada, ou quase nada, me interessa — continuou. — Agora, principalmente, nada tenho em que empregue o meu tempo... Fica-lhe o direito de pensar que tento captar suas boas graças, tanto mais que preciso falar com sua irmã, como já lhe disse. Mas digo-lhe com franqueza: aborreço-me muito! Nos últimos dias, principalmente!... De forma que estava contentíssimo por vê-lo... Não se zangue se lhe disser que me parece um homem como não é comum ver-se... Há em si alguma coisa de anormal; sobretudo agora; não nesse momento, mas desde certa época... Mas calo-me; não tome esse aspecto severo! Não sou a fera que imagina.

— Talvez não seja uma fera — disse Raskólnikov. — Parece-me uma pessoa de boa sociabilidade, ou, pelo menos, que o sabe ser quando é necessário.

— Não me importo com a opinião que se faz a meu respeito — respondeu secamente Svidrigailov, com ligeiro ar de desprezo —, e por que não se hão de aceitar as maneiras de um homem pouco educado, num país onde elas são tão cômodas, e... e sobretudo quando há para isso uma propensão natural? — acrescentou rindo.

— Ouvi dizer que tem aqui muitos amigos, que não é pouco relacionado. Que pretende de mim, se não tem um objetivo especial?

— Realmente sou muito relacionado em São Petersburgo, tornou o visitante sem responder à pergunta. Há três dias que passeio pelas ruas da capital e já encontrei algumas pessoas amigas; reconheci-as e creio que também me reconheceram. Tenho boa apresentação e sou tido como homem rico; a abolição da escravatura não me arruinou. Minha propriedade constitui-se principalmente de florestas e pastagens ribeirinhas. Os lucros não cessaram, mas não vim para contá-los; de há muito estou enfarado deles. Estou aqui há três dias e não procurei ninguém. Que cidade! Como pôde desenvolver-se entre nós? Uma cidade de oficiais e estudantes de toda espécie. Sim, existe muita coisa que não observei oito anos atrás, gastando os calcanhares... Minha única esperança reside na anatomia. Por Deus!

— Anatomia?

— Quanto aos clubes, aos frequentadores do restaurante Dussand, paradas militares, ou progresso... passam muito bem sem mim — prosseguiu sem responder à pergunta. — Afinal, que prazer há em roubar no jogo de cartas?

— Era, então, um batoteiro?

— Mas decerto! Há oito anos éramos uma sociedade completa, constituída de homens da mais elevada posição, capitalistas, poetas, que entretínhamos o tempo a jogar e a roubar-nos o máximo que podíamos. Já reparou que, na Rússia, as pessoas de distinção são gatunos? Naquele tempo, um grego de Niéjine, a quem eu devia setenta mil rublos, mandou-me prender por dívidas. Apareceu então Marfa Petrovna. Entrou em combinações com meu credor e, mediante trinta mil rublos que ela lhe deu, obteve minha liberdade. Casamos; em seguida, ela levou-me para a sua terra, como um tesouro. Era mais velha que eu cinco anos e amava-me muito. Durante sete anos não saí da aldeia. Note que teve sempre em seu poder, como precaução, a letra que eu assinara ao grego e que ela comprara: se eu tentasse sacudir o jugo, ela mandar-me-ia para a prisão imediatamente. Oh, apesar de todo seu amor não hesitaria! As mulheres têm desses caprichos.

— Se ela não procedesse assim, o senhor a abandonaria?

— Não sei como responder-lhe. Esse documento, no entanto, me incomodava. Eu não tinha vontade de sair dali. Por duas vezes, Marfa Petrovna, vendo que eu me aborrecia, disse-me que viajasse. Mas eu tinha já visitado a Europa e andei sempre medonhamente aborrecido. Sem dúvida, os grandes espetáculos da natureza provocam nossa admiração, mas, enquanto se contempla um nascer do sol, o mar, a baía de Nápoles, sente-se uma grande tristeza, e o mais humilhante é que não se sabe por quê. Não se está melhor em nossa casa. Eu agora partiria talvez para o polo Norte, porque o vinho, que era meu último recurso, acabou por não me cair bem. Já não o posso beber. Diz-se que, no domingo, há uma ascensão aerostática no Jardim Iussupof: Berg tenta uma grande viagem aérea e aceita companhia por certo preço. Será verdade?

— Quer viajar em balão?

— Eu?... Não... Sim — murmurou Svidrigailov, que parecia pensar.

“Que espécie de homem será este?”, pensou Raskólnikov.

— Não, a letra não me incomodava — continuou ele —, foi por minha vontade que ficamos na aldeia. Haverá talvez um ano, Marfa Petrovna, no dia de meu aniversário, deu-me esse papel com uma grande quantia, como presente. Era muito rica. “Vê como confio em ti, Árcade Ivânovitch”, disse-me ela. Foram essas suas palavras; quer acreditar? Como sabe, eu desempenhava-me cabalmente de meus deveres de proprietário rural; todos lá me estimavam. Ademais, para entreter-me, mandava vir livros; Marfa Petrovna, a princípio, aprovava meu gosto pela leitura; mais tarde, receou que isso me fatigasse.

— A morte de Marfa Petrovna devia deixar um grande vácuo em sua existência?!

— Talvez... É possível... A propósito, crê em visões?

— Em que visões?

— Em visões no sentido vulgar da palavra?

— E o senhor acredita?

— Sim e não; contudo...

— Já lhe apareceu alguma?

Svidrigailov olhou para seu interlocutor com uns modos estranhos.

— Marfa Petrovna vem visitar-me — disse ele, e sua boca franziu num sorriso indefinível.

— Vem visitá-lo?...

— Sim, já três vezes. A primeira vez vi-a no próprio dia do enterro, uma hora após ter voltado do cemitério. Foi na véspera de minha partida para São Petersburgo. Tornei a vê-la depois, na viagem: apareceu-me anteontem de madrugada na estação de Malaía Vichera; a terceira vez foi há duas horas, no quarto que habito, onde me achava sozinho.

— Estava acordado?

— Estava. De todas as vezes estava acordado. Ela vem, conversa um momento e sai pela porta, sempre pela porta. Parece que a ouço andar.

— Sempre pensei que deviam dar-se fatos dessa natureza — disse bruscamente Raskólnikov. Ao mesmo tempo que se admirava de ter dito essa frase, sentia-se muito agitado.

— Seriamente? Já o tinha pensado? — perguntou Svidrigailov surpreendido. Será possível? Veja como eu tinha razão dizendo que há entre nós um ponto de contato!

— Nunca me disse tal! — respondeu irritado Raskólnikov.

— Não disse?

— Não! Nunca!

— Julguei que tinha dito. Há pouco, quando entrei e o vi deitado, com os olhos fechados parecendo que dormia, pensei comigo: “É aquele mesmo!”

— “Aquele mesmo!” Que significam essas palavras? A quem aludia? — perguntou Raskólnikov.

— A quem? Francamente, não sei... — respondeu embaraçado Svidrigailov.

Por momentos os olhares de ambos cruzaram-se.

— Isso, afinal, não significa nada! — exclamou com violência Raskólnikov. — Que lhe diz ela quando aparece?

— Ela? Fala-me de futilidades, coisas insignificantes, e veja o que é o homem; isso irrita-me. Da primeira vez que me apareceu, eu estava muito cansado; a cerimônia fúnebre, o Réquiem, o jantar, tudo isso me fatigara. Estava só em meu gabinete fumando, absorvido em minhas reflexões, quando a vi entrar: “Árcade Ivânovitch”, disse-me, “hoje, com a lida que tiveste, te esqueceste de dar corda no relógio da sala de jantar”. Fui eu, efetivamente, quem durante sete anos dei corda nesse relógio todas as semanas, e, se me esquecia, era ela quem me vinha lembrar. No outro dia, parti para São Petersburgo. De madrugada, tendo chegado a uma estação, apeei-me e entrei no buffet. Como dormira mal, tinha os olhos inchados. Tomei uma xícara de café. De repente, que vejo? Marfa Petrovna sentada a meu lado com um baralho nas mãos. “Queres que diga o que acontecerá em tua viagem, Árcade Ivânovitch?”, perguntou-me. Ela deitava muito bem cartas; estou arrependido de não ter sabido então minha sorte. Fugi, aterrado, tanto mais que a sineta chamava os viajantes. Hoje, depois de um jantar detestável que não consegui digerir, estava sentado no quarto e acendera um charuto, quando vi surgir novamente Marfa Petrovna, ricamente vestida: um vestido novo de seda verde com cauda muito comprida: “Bom dia, Árcade Ivânovitch! Gostas de meu vestido? Aniska ainda não fez outro igual” (Aniska era uma costureira de nossa aldeia, que foi criada e veio aprender na casa de uma modista de Moscou — um apetitoso pedaço de mulher!). Olhei para o vestido, depois fixei atentamente nela e disse-lhe: “É inútil incomodares-te, Marfa Petrovna, para falar-me de bagatelas.” — “Ah, meu Deus!”, exclamou ela, “não há modos de te meter medo!”. — “Vou casar-me”, continuei eu querendo irritá-la um pouco. — “És livre, Árcade Ivânovitch; mas não te fica bem tornares a casar tendo enviuvado há tão pouco tempo; ainda que faças uma boa escolha, não terás os aplausos da gente séria.” Dito isso saiu, e eu julguei ter ouvido roçar a cauda de seu vestido! Não é curioso?

— Mas quem me garante que não está mentindo?

— É raro que eu minta, respondeu Svidrigailov pensativo; e sem fazer reparo na rudeza da pergunta.

— E antes disso alguma vez lhe apareceram visões?

— Uma vez, há seis anos. Um criado meu, Filka, tinha morrido. No dia em que foi enterrado, por distração, chamei-o como de costume: — “Filka, meu cachimbo!” Ele apareceu e foi ao armário onde estavam meus objetos de fumar. “Não está contente comigo!”, pensei, porque pouco antes de sua morte havíamos tido uma alteração. — “Como te atreves”, disse-lhe, “a apresentar-te diante de mim com o casaco roto nos cotovelos? Sai já daqui!”. Deu meia-volta, saiu e nunca mais voltou. Não contei o caso a Marfa Petrovna. Primeiramente, pensei mandar rezar uma missa pela alma do pobre homem, mas, depois, vi que era uma criancice.

— Consulte o médico!

— Esse conselho é inútil; vejo que estou doente, conquanto na verdade não saiba de quê; parece-me, contudo, que estou melhor que o senhor. Eu não lhe perguntei: acredita que se vejam essas aparições? Minha pergunta é esta: acredita que há visões, espectros?...

— Não, não acredito! — respondeu Raskólnikov imediatamente, bastante irritado.

— Que se diz geralmente? — monologou Svidrigailov, com a cabeça pendida, olhando de revés. — Todos dizem: o senhor está doente, portanto o que julga ver é apenas um sonho próprio do delírio. Isso não é raciocinar com toda a força da lógica. Admito que essas visões só aparecem aos doentes, o que prova apenas que é preciso estar doente para observá-las, mas não que elas não existem.

— Por certo não existem! — replicou violentamente Raskólnikov.

Svidrigailov olhou-o demoradamente.

— Não existem? É sua opinião? Não se poderá dizer: “As visões, os espectros, são de qualquer forma fragmentos, pedaços de outros mundos. O homem sadio não tem, naturalmente, motivo para vê-las, visto que é, sobretudo, um ser material e, por isso, vive apenas a vida terrestre. Mas, desde que seja um doente, desde que saia do normal, da Terra, de seu organismo, logo se lhe começa a manifestar a ideia de outro mundo; à medida que a doença se agrava, multiplicam-se suas relações com outro mundo, até que a morte para lá o faça entrar a pé firme.” Há muito tempo que faço esse raciocínio, e, se acredita na vida futura, tem forçosamente de o aceitar.

— Eu não creio na vida futura — respondeu Raskólnikov.

Svidrigailov pensava.

— E se lá houvesse somente aranhas ou coisas semelhantes? — perguntou de repente.

“É doido”, pensou Raskólnikov.

— Nós imaginamos sempre a eternidade como uma ideia que não se pode compreender, uma coisa imensa, imensa! Mas, por que há de ser assim? E se, em vez disso, pensarmos que é um quarto pequeno, uma espécie de quarto de banho, enegrecido pelo fumo, com aranhas pelos cantos? Assim a imagino eu muitas vezes.

— Será possível que não tenha sobre o caso uma ideia mais consoladora e mais justa! — exclamou Raskólnikov contrafeito.

— Mais justa? Quem sabe? Talvez esse modo de ver seja o melhor, e sê-lo-ia certamente, se dependesse de mim! respondeu Svidrigailov, esboçando um sorriso.

Essa cínica resposta deu calafrios em Raskólnikov. Svidrigailov ergueu a cabeça, olhou fixamente o rapaz e desatou a rir.

— É curioso! — disse. — Há meia hora, ainda não nos tínhamos visto, considerávamo-nos como inimigos. Entre nós havia um assunto a tratar: pomos de parte o assunto e começamos a filosofar! Eu bem dizia que somos plantas do mesmo terreno!

— Perdão — disse Raskólnikov contrariado —, faça o favor de explicar-me, sem mais delongas, a que devo a honra de sua visita... Tenho pressa; preciso sair...

— Imediatamente. Sua irmã, Avdótia Romanovna, vai casar com o sr. Pedro Petróvitch Lujine?

— Peço-lhe que não fale na minha irmã; nem mesmo pronuncie o nome dela. Nem compreendo como se atreve a isso em minha presença, se é efetivamente Svidrigailov.

— Mas se eu vim para lhe falar dela, como hei de deixar de pronunciar seu nome?

— Então fale, mas depressa.

— Esse senhor Lujine é meu parente por afinidade. Creio que o senhor terá formado opinião sobre ele, se já o viu, por pouco tempo que fosse, ou se alguma pessoa digna de crédito lhe falou a respeito dele. Não é partido que convenha a Avdótia Romanovna. Em minha opinião, sua irmã sacrifica-se de uma forma tão bela como impensada pela família. Tudo o que sabia do senhor, levava-me a crer que estimaria o rompimento desse enlace, se fosse possível fazê-lo sem prejuízo para os interesses de sua irmã. Agora que o conheço pessoalmente não tenho dúvida alguma a esse respeito.

— Isso, de sua parte, parece-me bastante imprudente — respondeu Raskólnikov.

— Calcula então que tenho intuitos secretos! Sossegue, Ródion Românovitch, se trabalhasse para mim, escondia melhor o jogo; eu não sou absolutamente imbecil. Vou, a propósito, referir-lhe uma singularidade psicológica. Há pouco, desculpava-me de ter amado sua irmã, dizendo que eu próprio fora uma vítima. Pois bem, agora, não tenho por ela nenhum amor, o que me chega a surpreender porque estive seriamente apaixonado...

— Era um capricho de homem desocupado e vicioso — interrompeu Raskólnikov.

— Realmente, sou ocioso e viciado. Ademais, sua irmã possui bastantes atrativos para impressionar mesmo um libertino como eu, mas tudo isso era fogo de palha, reconheço-o agora.

— Desde quando pensa desse modo?

— Desde há muito; contudo, só anteontem me convenci definitivamente, ao chegar a São Petersburgo. Em Moscou, ainda estava resolvido a obter a mão de Avdótia Romanovna, apresentando-me como rival de Lujine.

— Desculpe-me interrompê-lo, mas não poderia resumir e entrar imediatamente no assunto de sua visita? Repito-lhe que tenho pressa, preciso dar umas voltas...

— Pois não! Resolvido agora a fazer certa... viagem, queria, primeiro, regularizar alguns negócios. Meus filhos ficam com a tia; são ricos, não precisam de mim. Está a observar-me em meu papel de pai? Não trouxe mais que o dinheiro que Marfa Petrovna me deu há um ano. Chega. Desculpe-me: vou entrar no assunto. Não é precisamente porque odeie Lujine, mas ele foi a causa da última desinteligência que tive com minha mulher: indignei-me quando soube que ele projetava esse casamento. Dirijo-me ao senhor para conseguir falar com Avdótia Romanovna: se quiser, pode assistir à nossa convera. Desejaria que sua irmã pesasse bem os inconvenientes que lhe hão de resultar do casamento com Lujine, que me perdoasse todos os desgostos que lhe causei e me desse licença para oferecer-lhe dez mil rublos, o que compensaria o rompimento, que estou crente não lhe repugnaria, se visse a possibilidade de realizá-lo.

— Mas o senhor é doido, positivamente doido! — bradou Raskólnikov, mais surpreendido do que encolerizado. — E como se atreve a falar assim?

— Já sabia que havia de exaltar-se outra vez, mas começarei por dizer-lhe que, não sendo rico, posso dispor perfeitamente desses dez mil rublos, que não me fazem falta. Se Avdótia Romanovna não os aceitar, Deus sabe que loucuras farei com eles. Além disso, minha consciência está tranquila; essa oferta não obedece a qualquer premeditação. Acredite ou não, o futuro o provará, ao senhor e a Avdótia Romanovna. Em resumo, procedi muito mal com sua digna irmã, sinto um profundo arrependimento e desejo, ardentemente, não reparar com uma compensação pecuniária os aborrecimentos que teve, mas prestar-lhe um pequeno serviço para que não se diga que só lhe fiz mal. Se minha proposta ocultasse algum pensamento reservado, não a faria tão abertamente e não me limitava a oferecer hoje dez mil rublos, quando, há cinco semanas, ofereci muito mais. Ademais, vou casar brevemente com uma moça daqui, e não poderão suspeitar que pretendi seduzir Avdótia Romanovna. Por fim, dir-lhe-ei que, embora ela venha a ser esposa de Lujine, receberá essa quantia de outra forma... Mas não se zangue, Ródion Românovitch, aprecie a sangue-frio.

Svidrigailov pronunciou essas palavras com extraordinária fleuma.

— Peço-lhe que acabe — disse Raskólnikov. — Essa proposta é de uma insolência imperdoável.

— Não acho. Além disso, o homem, neste mundo, só pode fazer mal a seu semelhante; tendo de vingar-se não lhe assiste o direito de fazer o menor bem; as conveniências sociais opõem-se. É absurdo. Por exemplo, se eu morresse, e deixasse em testamento esse dinheiro à sua irmã, acha que ela recusava-o?

— É muito provável.

— Não falemos mais nisso. Seja como for, peço-lhe que faça meu pedido à sua irmã.

— Nada lhe direi.

— Nesse caso, Ródion Românovitch, é preciso que me encontre com ela, o que decerto a incomodará.

— E se eu lhe comunicar sua proposta desistirá de falar-lhe em particular?

— Não sei o que hei de responder-lhe. Desejava muito vê-la uma vez, ao menos.

— Perca as esperanças.

— Mau! O senhor não me conhece. Poderíamos ter relações de amizade.

— Julga isso?

— Por que não? — disse sorrindo Svidrigailov, levantando-se e pegando o chapéu. — Eu não desejo impor-me à sua simpatia, e mesmo vindo aqui, não contava... esta manhã impressionou-me...

— Onde me viu esta manhã? — perguntou inquieto Raskólnikov.

— Vi-o por acaso... Penso sempre que somos dois frutos da mesma árvore... Mas não fique constrangido. Não sou intrometido. Costumo tratar bem os batoteiros. Nunca importunei o príncipe Svírbei, grande personagem, parente distante meu, e pude escrever sobre a Madonna de Rafael no álbum da senhora Prílukof; durante sete anos, nunca abandonei Marfa Petrovna. Em meus velhos dias, costumava passar as noites na casa de Viassêmski, no Mercado do Feno, e talvez suba no balão de Berg.

— Está bem. Permita-me que lhe pergunte se tenciona partir brevemente.

— Partir?

— Não me falou há pouco em uma viagem?

— Eu? Numa viagem? Ah, sim!... Se soubesse o que veio despertar! — acrescentou secamente. — Talvez que, em vez de viajar, me case. Querem arranjar-me um casamento.

— Aqui?

— Sim, aqui.

— Desde que chegou a São Petersburgo não perdeu tempo!

— Mas estou ansioso para ver Avdótia Romanovna, pelo menos uma vez. Peço-lhe esse favor. Até mais ver... Ah! Já me esquecia! Diga à sua irmã que Marfa Petrovna lhe deixou três mil rublos. Minha mulher fez suas disposições testamentárias oito dias antes de morrer. Avdótia Romanovna deverá receber o dinheiro em duas ou três semanas.

— Isso é verdade?

— É. Diga-lhe. Um seu criado... Moro muito perto daqui...

À saída, Svidrigailov encontrou-se na escada com Razumíkhin.


Capítulo II

Eram quase oito horas; os dois partiram logo para a casa Bakalêief, pois queriam chegar antes de Lujine.

— Quem saía de tua casa quando entrei? — perguntou Razumíkhin ao chegarem à rua.

— Svidrigailov, o proprietário em cuja casa minha irmã esteve como governanta e de onde saiu porque ele lhe fazia a corte; Marfa Petrovna, a mulher desse tipo, despediu-a. Mais tarde, porém, pediu perdão a Dúnia. Morreu há dois dias repentinamente. E era dela que minha mãe falava às vezes. Não sei por quê, esse homem assusta-me. É muito singular e tem alguma resolução firmemente tomada... Dir-se-ia que sabe alguma coisa... Chegou aqui logo após o enterro da mulher... É preciso proteger Dúnia contra ele. Aqui tens o que eu queria dizer-te, ouviste?

— Protegê-la! Que pode ele fazer contra Avdótia Romanovna? Agradeço-te por me teres avisado... Protegê-la-emos, descansa!... Onde mora ele?

— Não sei.

— Por que não perguntaste? Que diabo! Hei de reconhecê-lo!

— Viste-o? — perguntou Raskólnikov, depois de breve silêncio.

— Oh, vi! Reparei bem nele!

— Estás seguro? Viste-o distintamente? — insistiu Raskólnikov.

— Perfeitamente; lembro-me muito bem de sua fisionomia, reconhecê-la-ia entre mil pessoas.

Calaram-se outra vez.

— Olha, sabes, parece-me que sou vítima de uma ilusão — murmurou Raskólnikov.

— Por que dizes isso? Não te entendo.

— Queres ver — continuou Raskólnikov fazendo uma careta que pretendia ser um sorriso —; todos dizem que sou louco, e há pouco julguei que tinham razão e que apenas vira um espectro.

— Que ideia!

— Quem sabe? Talvez eu seja realmente louco, e os sucessos dos últimos dias só existissem em minha imaginação.

— Ródia, perturbaram-te mais o espírito!... Mas que te disse ele! Por que foi à tua casa?

Ele não respondeu. Razumíkhin pensou um momento.

— Escuta, vou dizer-te o que fiz — começou. — Fui à tua casa; dormias ainda. Depois jantamos, e, em seguida, fui à casa de Porfírio. Zametov ainda estava lá. Comecei a arengar, mas não fui feliz a princípio; não conseguia entrar na matéria. Todos eles pareciam não me perceber, sem contudo apresentarem objeção. Levei Porfírio para a janela, recomecei, mas não fui mais bem-sucedido. Cada um de nós olhava para seu lado. Por fim, aproximei de sua cara a mão fechada em gesto agressivo e disse-lhe que o esmagava. Ele olhou para mim sem dizer nada. Escarrei e dei-lhes as costas. Uma tolice. Com Zametov não troquei palavra. Vinha zangado comigo mesmo pela forma estúpida como tinha procedido, quando uma súbita reflexão me consolou: ao descer a escada, perguntei a mim próprio: valerá a pena preocuparmo-nos tanto com isso? Evidentemente, se algum tempo corresse, as coisas passavam-se de outro modo. Mas que tens a recear? Não és culpado, portanto, eles não te podem inquietar. Mais tarde nos riremos da tolice deles e, em teu lugar, eu sentiria grande prazer em troçar deles. Como essa gente pode cometer um erro tão grosseiro? Cospe nisso; esses asnos não merecem desprezo.

— É justo! — respondeu Raskólnikov. “Mas que dirás amanhã!”, disse consigo. Caso curioso, até então ele nunca pensara em interrogar-se: “Que dirá Razumíkhin ao saber que sou culpado?” Olhou fixamente para o amigo. A descrição da visita a Porfírio interessara-o pouco: sua preocupação era outra.

No corredor, encontraram Lujine. Chegara às oito horas em ponto, mas esquecera o número, de forma que entraram juntos, sem se olharem nem cumprimentarem. Raskólnikov e Razumíkhin entraram logo; Pedro Petróvitch, sempre fiel observador das conveniências, demorou-se na antecâmara a despir o sobretudo. Pulquéria Alexandrovna dirigiu-se logo a ele. Dúnia e Raskólnikov cumprimentaram-se.

Pedro Petróvitch saudou as senhoras muito amavelmente, mas com extrema gravidade. Via-se que estava preocupado. Pulquéria Alexandrovna, que também parecia não estar à vontade, pediu a todos que se sentassem à mesa, onde o samovar borbulhava. Dúnia e Lujine ficaram defronte um do outro nas extremidades. Razumíkhin e Raskólnikov, em frente de Pulquéria Alexandrovna — o primeiro ao lado de Lujine, o outro junto da irmã.

Durante algum tempo, ninguém falou. Pedro Petróvitch tirou do bolso um lenço de baptiste perfumado e assoou-se. Suas maneiras eram as de um homem ferido em sua dignidade e firmemente resolvido a exigir explicações. Na ocasião em que despira o sobretudo, já ele pensara se o melhor castigo a infligir a essas senhoras não seria retirar-se imediatamente. Todavia não o fez, porque gostava das situações definidas. Elas que assim procediam é que teriam alguma razão para isso. Mas que razão? Mais valia pôr tudo claro: era sempre tempo de castigar, e a punição pela demora não era menos certa.

— Fez bem sua viagem, não é verdade? — perguntou por delicadeza a Pulquéria Alexandrovna.

— Graças a Deus!

— Estimo muito. E Avdótia Romanovna também não se fatigou, pois não?

— Eu sou nova e forte; nada me cansa, mas para mamãe a viagem foi muito incômoda — respondeu Dúnia.

— Então! Nossas estradas são tão extensas, a Rússia é tão grande... Apesar de meus bons desejos, não pude ir ontem esperá-las. Mas chegaram bem?

— Oh! Desculpe-me, Petróvitch; mas encontramo-nos numa situação muito difícil — respondeu logo Pulquéria Alexandrovna com uma entonação particular. — E se Deus não nos enviasse Dmitri Prokófitch, não saberíamos realmente o que havíamos de fazer... Permita-me que lhe apresente nosso salvador: Dmitri Prokófitch Razumíkhin.

— Já ontem tive o prazer de... — disse Lujine lançando a Razumíkhin um olhar de antipatia.

Pedro Petróvitch era uma dessas criaturas que se esforçam por parecer amáveis e brilhantes, mas que, à menor contrariedade, perdem subitamente a serenidade, a ponto de mais parecerem meninos amuados do que cavalheiros de fino trato. O silêncio reinou de novo: Raskólnikov mantinha-se numa obstinada mudez. Avdótia Romanovna não julgava a ocasião oportuna para falar. Razumíkhin não tinha o que dizer, e, portanto, Pulquéria Alexandrovna viu-se ainda na necessidade de manter a conversação.

— Marfa Petrovna morreu, sabia? — começou, empregando o supremo recurso em semelhante caso.

— Sabia! Fui informado imediatamente do triste acontecimento, e posso até dizer-lhes que, após o enterro de sua mulher, Árcade Ivânovitch Svidrigailov veio a toda a pressa para São Petersburgo. Tive essa notícia de boa fonte.

— Aqui? Em São Petersburgo? — perguntou assustada Dúnia, trocando um olhar com a mãe.

— É verdade. E deve supor-se que não veio sem nenhuma intenção; a precipitação da partida e o conjunto de circunstâncias anteriores assim o levam a crer.

— Meu Deus! Virá apoquentar outra vez Dunetchka?! — exclamou Pulquéria.

— Parece-me que não há razões para se inquietarem com a presença dele em São Petersburgo, pelo menos por ora. Por mim, estou de sobreaviso.

— Ah! Pedro Petróvitch, não calcula como me assustou agora! disse Pulquéria. Vi esse homem apenas duas vezes e pareceu-me terrível; terrível! Tenho certeza de que foi ele o causador da morte da infeliz Marfa Petrovna.

— As informações que recebi não levam a essa conclusão. Ademais, não vejo em que seu procedimento tivesse, até certo ponto, abreviado o curso natural das coisas. Mas, quanto ao comportamento e em geral às qualidades morais da personagem, estamos de acordo. Ignoro se ficou rico com o que Marfa Petrovna lhe deixou. Sabê-lo-ei logo. O certo é que, achando-se em São Petersburgo, não tardará a voltar aos antigos hábitos, por poucos que sejam seus recursos. Não há homem mais vicioso e depravado! Marfa Petrovna, que teve a infelicidade de se apaixonar por ele, que lhe pagou as dívidas, ainda lhe foi útil por outra forma. À custa de muitos esforços e sacrifícios, conseguiu abafar o processo que podia muito bem tê-lo levado à Sibéria, Tratava-se de um assassínio cometido em condições medonhas e, por assim dizer, fantásticas. Eis o que é esse homem.

— Ah, meu Deus! — exclamou Pulquéria Alexandrovna.

Raskólnikov ouvia atentamente.

— Segundo nos disse, suas informações são de origem segura? — perguntou Dúnia, desabrida e enfaticamente.

— Limito-me a repetir o que ouvi de Marfa Petrovna. É preciso notar que, do ponto de vista jurídico, esse caso era muito obscuro. Naquela época, vivia aqui, e parece que ainda vive, uma tal Resslich, estrangeira, que emprestava a juros e exercia ainda outras profissões. Entre essa mulher e Svidrigailov existiam, há muito tempo, relações íntimas e misteriosas. Vivia com ela uma parenta afastada, sobrinha, creio eu, rapariga de 14 ou 15 anos, surda-muda. A Resslich não podia aturar a moça, dava-lhe maus tratos, batendo-lhe barbaramente. Um dia, a infeliz foi encontrada enforcada. As investigações concluíram que se tratava de suicídio, e o caso ficava por ali quando a polícia recebeu — denúncia de que a pequena fora violada por Svidrigailov. Francamente, tudo isso era pouco claro: a denúncia fora dada por outra mulher estrangeira de caráter duvidoso e cujo depoimento não podia valer muito. Daí a pouco tempo, ninguém mais falou sobre o processo. Marfa Petrovna pusera-se em campo, espalhara dinheiro e conseguira paralisar a ação da justiça. Nem por isso deixaram de formar-se as opiniões mais desagradáveis sobre Svidrigailov. Falaram-lhe também, naturalmente, Avdótia Romanovna, no caso do criado Filipe, que morreu vítima de maus tratos. O caso passou-se há seis anos, quando havia ainda a escravatura.

— Ouvi dizer que Filipe se enforcara.

— Pois sim, mas foi levado a isso, ou melhor, obrigado a isso, pelas brutalidades incessantes e vexames continuados de que o patrão o fazia vítima.

— Não sabia — disse secamente Dúnia —, ouvi apenas a esse respeito uma história bastante curiosa: esse Filipe parece que era hipocondríaco, uma espécie de criado filósofo; os companheiros diziam que as leituras o tinham perturbado; e, pelo que contam, conclui-se que se enforcou não por causa dos maus tratos, mas pelas troças que lhe faziam. Sempre vi Svidrigailov tratar os criados com humanidade: todos gostavam dele, embora lhe atribuíssem a morte de Filipe.

— Vejo que toma a peito defendê-lo respondeu Lujine com um sorriso equívoco. — É verdade que ele é homem hábil para insinuar-se no coração das senhoras: a infeliz Marfa Petrovna, morta em circunstâncias tão singulares, bem lamentavelmente o provou. Quis avisá-las apenas, a ela e a sua mãe, prevendo qualquer tentativa que ele não deixará de renovar. Quanto a mim, estou firmemente convencido de que esse homem acabará preso, por dívidas. Marfa Petrovna pensava muito no futuro dos filhos, e assim não teria deixado ao marido uma parte importante da fortuna. Naturalmente legou-lhe o bastante para viver sem dificuldades, mas, com seu gênio dissipador, antes de um ano terá perdido tudo.

— Peço-lhe, Pedro Petróvitch, que não fale mais de Svidrigailov. Desagrada-me muito essa conversa.

— Ele foi procurar-me — disse subitamente Raskólnikov, que até então estivera calado.

Todos voltaram-se para Ródion com exclamações de surpresa. Até Pedro Petróvitch parecia intrigado.

— Há uma hora, eu estava dormindo. Ele entrou, acordou-me e apresentou-se — continuou Raskólnikov. — Estava alegre, muito à vontade; espera que eu venha a ser amigo dele. Entre outras coisas, deseja ardentemente falar contigo, Dúnia, pediu-me que servisse de mediador nesse sentido. Tem uma proposta a fazer-te e disse-me o que era. Assegurou-me, positivamente, que Marfa Petrovna te deixara, em testamento, três mil rublos, e que podes receber esse dinheiro sem demora.

— Louvado seja Deus! — disse Pulquéria Alexandrovna, benzendo-se. — Reza por ela, Dúnia, reza!

— O fato é verdadeiro — disse Lujine.

— E depois? — perguntou com interesse Dúnia.

— Depois, disse-me que ele próprio não era rico, e toda a fortuna pertencia aos filhos, que estão agora na casa de uma tia. Disse também que morava perto de mim, mas onde? Ignoro, porque não lhe perguntei.

— Que proposta quer ele, então, fazer a Dúnia — perguntou sobressaltada Pulquéria Alexandrovna. — Disse-te?

— Disse.

— Então o que é?

— Mais tarde direi.

Tendo respondido assim, Raskólnikov começou a tomar seu chá.

Pedro Petróvitch olhou o relógio.

— Um negócio urgente obriga-me a deixá-los, e assim não me torno importuno para o que têm a dizer — acrescentou parecendo melindrado. E levantou-se.

— Fique, Pedro Petróvitch; tinha prometido passar a noite conosco. Ademais, sua carta dizia que desejava falar com mamãe.

— É verdade, Avdótia Romanovna — respondeu Pedro Petróvitch, tornando a sentar-se, mas com o chapéu na mão — desejava, com efeito, falar com sua mãe e com a senhora sobre um assunto da mais alta gravidade. Mas como seu irmão não pode contar diante de mim as propostas de Svidrigailov, eu não posso nem quero explicar-me diante... de terceiras pessoas... sobre uma questão de extrema importância. Ademais, tinha manifestado, nos termos mais positivos, um desejo de que não fez caso...

A fisionomia de Lujine tomou um ar severo e altivo.

— Efetivamente tinha-nos pedido que meu irmão não assistisse a essa nossa reunião, mas, se ele não respeitou seu pedido, foi por instância minha — respondeu Dúnia. Em sua carta, dizia-nos que meu irmão o insultou. Ora, eu desejo que não haja entre os dois algum dissídio e que se reconciliem. Se realmente Ródia o ofendeu, deve pedir-lhe desculpa, e decerto pedirá.

Ouvindo essas palavras, Pedro Petróvitch se sentiu ainda menos disposto a fazer concessões.

— Apesar da melhor boa vontade, Avdótia Romanovna, há certas injúrias que não se podem esquecer. Em tudo há um limite que é perigoso ultrapassar, porque, uma vez que tal se faça, é impossível voltar atrás.

— Não era exatamente sobre isso que eu falava, Pedro Petróvitch — interrompeu Dúnia com alguma impaciência. — Por favor, compreenda que todo nosso futuro depende de que tudo isso seja esclarecido tão breve quanto possível. Disse-lhe francamente para não ver esse fato sob outra luz, e, se tiver alguma consideração por mim, tudo deverá ser solucionado hoje, seja qual for a dificuldade. Repito-lhe: se meu irmão for culpado, ele lhe pedirá desculpa.

— Surpreendo-me em ter colocado a questão nesses termos — disse Lujine cada vez mais irritado. — Estimando, e podendo dizer adorando-a, ao mesmo tempo e sem dúvida alguma, posso não gostar de algum membro de sua família. Embora reivindique a felicidade de tê-la por esposa, não posso aceitar obrigações incompatíveis com...

— Ah! Não se ofenda por tão pouco, Pedro Petróvitch — interrompeu Dúnia comovida —; seja o homem inteligente e nobre que sempre conheci e desejo sempre ver. Fiz-lhe uma promessa, ser sua mulher; confie em mim nessa questão e creia que a julgarei imparcialmente. O papel de juiz que tomo não é surpresa para nenhum dos dois. Quando hoje, depois de receber sua carta, instei com meu irmão para vir, nada lhe disse de minhas intenções. Compreendo que recusem reconciliar-se; eu serei forçada a optar por um e excluir o outro. É assim que a questão fica posta. Não quero, nem devo, enganar-me na escolha que fizer. Se o escolher, deixarei meu irmão; escolhendo meu irmão, abandonarei o senhor. Posso e quero julgar seus sentimentos a meu respeito. Vou saber se tenho em Ródia um irmão e em Pedro Petróvitch um esposo que me ama.

— Avdótia Romanovna — respondeu Lujine arrogantemente —, suas palavras prestam-se a muitas interpretações; direi mais, são ofensivas para a situação em que tenho a honra de estar para com você. Sem falar no quanto me magoa ver-me considerado pessoa orgulhosa; elas parecem significar a possibilidade de que nosso casamento não se realize. Disse que vai escolher entre mim e seu irmão; assim mostra quanto lhe mereço... Não posso aceitar isso, dadas nossas relações e os compromissos de parte a parte.

— Como! — exclamou Dúnia corando. — Então eu ligo seus interesses ao que tenho de mais caro na vida e diz-me que me merece pouco!

Raskólnikov sorriu sarcasticamente, Razumíkhin fez uma careta, mas a resposta de Dúnia não sossegou Lujine, que, cada vez, estava mais corado e mais áspero.

— O amor ao marido, ao futuro companheiro da vida, deve ser superior ao amor fraterno — declarou ele sentenciosamente —, e, em todo caso, eu não posso ser posto a par... Conquanto tivesse dito há pouco que não queria nem podia explicar-me na presença de seu irmão sobre o principal motivo de minha visita, há um ponto, muito importante para mim, que desejava esclarecer logo, com sua mãe. Seu filho — continuou, dirigindo-se a Pulquéria Alexandrovna —, ontem, diante do senhor Rassudkine (não é assim que se chama? Desculpe-me, esqueci-me de seu nome, disse ele a Razumíkhin, cumprimentando-o amavelmente), ofendeu-me pelo modo como alterou uma frase pronunciada por mim ultimamente, ao tomar café em sua casa. Eu disse que, para mim, uma moça pobre e que já sofreu privações dava a um marido mais garantias de moralidade e felicidade do que uma que nunca sentiu falta de coisa alguma. Seu filho, propositadamente, deu um sentido absurdo às minhas palavras, atribuiu-me intenções odiosas, e presumo que se fundou, para fazê-lo, em suas cartas. Far-me-ia um grande favor se me dissesse exatamente por que palavras reproduziu meu pensamento na carta que fez a Ródion Românovitch.

— Não me lembro — retorquiu embaraçada Pulquéria Alexandrovna —, mas reproduzi-o conforme o percebi. Não sei como Ródia lhe repetiu essa frase. É possível que ele a tenha alterado, trocado as palavras.

— Se o fez foi inspirado em sua carta.

— Pedro Petróvitch — tornou com altivez Pulquéria Alexandrovna, a prova de que Dúnia e eu não tomamos em mau sentido suas palavras —, é que estamos aqui reunidos.

— Exatamente, mamãe — aprovou Dúnia.

— Então fui eu que andei mal! — disse Lujine magoado.

— Pedro Petróvitch acusa sempre Ródion. Ainda há pouco, sua carta o culpava de um fato que é falso — disse Pulquéria Alexandrovna animada pelo satisfecit da filha.

— Não me lembro de ter escrito falsidade alguma.

— Conforme sua carta — interrompeu duramente Raskólnikov sem se voltar para Lujine —, o dinheiro que ontem dei à viúva de um homem que foi esmagado por uma carruagem, dei-lhe por causa da filha (que eu via pela primeira vez). O senhor escreveu isso com a intenção de me indispor com minha família e, para melhor o conseguir, qualificou do modo mais ignóbil a vida de uma moça que não conhece. Isso é uma reles injúria.

— Desculpe, senhor — respondeu Lujine, trêmulo de raiva —, se, em minha carta, fiz considerações a seu respeito foi unicamente porque sua mãe e sua irmã me pediam que lhes dissesse em que situação o encontrara e que impressão me causara. Ademais, desafio-o a provar a falsidade do fato a que se refere. Negará que desbaratou o dinheiro, e, quanto à família de que se trata, atrever-se-á a garantir a respeitabilidade de todos os membros?

— Em minha opinião, apesar de toda a sua respeitabilidade, o senhor não vale um cabelo da pobre moça que caluniou.

— Dessa forma não hesitará em trazê-la à casa de sua mãe e sua irmã?

— Se o deseja saber, dir-lhe-ei que já a apresentei. Hoje mesmo, a meu pedido, ela esteve junto de mamãe e de Dúnia.

— Ródia! — exclamou Pulquéria Alexandrovna. Dunetchka corou; Razumíkhin franziu a testa; Lujine exibiu um riso de desprezo.

— Veja, Avdótia Romanovna — disse ele —, se é possível chegarmos a um acordo. Espero que esse caso fique liquidado e que nunca mais falemos em tal coisa. Retiro-me para não interromper a reunião de família; ademais, devem ter confidências a fazer. (Levantou-se e pegou o chapéu.) Mas permitam que lhes diga, antes de me ir, que desejo, de hoje para o futuro, nunca mais ter de encontrar-me em tal companhia. É à senhora particularmente, digna senhora, que faço esse pedido, tanto mais que minha carta foi dirigida só à senhora e a mais ninguém.

Pulquéria Alexandrovna irritou-se.

— Pensa que nos governa, Pedro Petróvitch?! Dúnia já lhe disse por que não foi satisfeito o seu desejo; as intenções dela eram boas. Mas, francamente, sua carta era muito imperiosa. Devemos aceitar seus desejos como ordens? Ao contrário; agora, principalmente, deve tratar-nos com muita consideração, porque nossa confiança no senhor é tanta, que tudo deixamos para vir aqui e, portanto, ficamos à sua discrição.

— Isso não é absolutamente certo, Pulquéria Alexandrovna, sobretudo no momento em que sabe do legado de Marfa Petrovna à sua filha. Esses três mil rublos chegam bem a propósito, a julgar pelo tom altivo com que me fala — disse Lujine.

— Essa observação faz supor que especulou com nossas privações — observou Dúnia, indignada.

— Mas agora já não posso fazer o mesmo e não quero impedir que ouçam as promessas secretas de Svidrigailov, que seu irmão está encarregado de trazer. Pelo que vejo, dão-lhes importância capital, e, talvez, até lhes sejam muito agradáveis.

— Oh, meu Deus! — bradou Pulquéria.

Razumíkhin não conseguia estar sentado na cadeira.

— Não te sentes envergonhada, minha irmã? — disse Raskólnikov.

— Sim, Ródia — respondeu Dúnia. — Pedro Petróvitch, saia! — disse ela pálida de furor.

Lujine não esperava esse desfecho. Presumira muito de sua pessoa e contara demasiadamente com a força e a fraqueza de suas vítimas. Mesmo agora, ainda não podia crer no que ouvira.

— Avdótia Romanovna — disse ele, mudando de cor e com os lábios trêmulos —, se eu sair agora, fique certa de que nunca mais volto. Pense bem! Eu tenho uma só palavra.

— Que arrojo! — exclamou Dúnia. — Mas se eu não desejo que volte.

— Sério? — gritou Lujine, fora de si, vendo realizado um rompimento que julgava impossível. — Pois bem! Mas saiba, Avdótia Romanovna, que eu posso protestar...

— Que significa esse modo de falar? — perguntou com energia Pulquéria. — Como pode protestar? Que direito tem para isso? Eu não darei minha filha a um homem como o senhor! Saia, vá-se embora, deixe-nos em paz. No que andamos mal foi em permitir intimidades; e eu então, eu...

— Contudo, Pulquéria Alexandrovna — disse Petróvitch furioso —, eu tinha sua palavra, que, vejo, retira agora, e enfim... enfim... sempre fiz despesas...

Estas palavras, tão próprias do caráter de Lujine, fizeram rir Raskólnikov, apesar da raiva que o dominava. Mas Pulquéria Alexandrovna é que não se conteve.

— Despesas? — perguntou com violência. — Vai falar das passagens que nos mandou? Mas disse-nos que obtivera o transporte gratuito. Tínhamos dado nossa palavra? Mas as situações mudam! Éramos nós que estávamos às suas ordens, e não o senhor que estava às nossas.

— Basta, mamãe, basta! — disse Dúnia. — Pedro Petróvitch, faça-nos o favor de sair.

— Eu saio; uma última palavra apenas — disse ele muito exaltado. — Sua mãe parece ter esquecido que lhe pedi sua mão, Avdótia, numa ocasião em que toda a gente dizia a seu respeito coisas pouco agradáveis. Afrontei a opinião, restabeleci seu bom nome, tinha motivos para esperar gratidão... mas agora abriram-me os olhos! Vejo que meu procedimento foi pouco refletido e que talvez fizesse mal em desprezar o que se dizia...

— Mas ele quer que lhe partam a cara! — exclamou Razumíkhin, pondo-se de pé para castigar o insolente.

— O senhor é um vilão, um miserável! — disse Dúnia.

— Nem uma palavra! Nem um gesto! — exclamou Raskólnikov sustendo Razumíkhin. — Vá-se embora — disse em voz baixa, mas perfeitamente clara —, e nem mais uma palavra, senão...

Pedro Petróvitch, com o rosto branco e vincado pela cólera, olhou para ele durante alguns segundos; em seguida, voltou as costas e desapareceu, levando no coração um ódio mortal contra Raskólnikov, a quem atribuía toda a sua desgraça. Deve notar-se que, enquanto descia a escada, pensava que não estava tudo perdido e que a reconciliação era ainda possível — quanto à mãe e à filha.


Capítulo III

O fato é que Lujine nunca esperara tal desfecho. Vangloriara-se até o último instante, nunca sonhara que duas indefesas e fracas mulheres pudessem escapar de seu controle. Essa convicção era robustecida por sua vaidade e seu orgulho, um orgulho que atingia as raias do ridículo. Pedro Petróvitch subira da insignificância, era morbidamente vítima do narcisismo; tinha os mais altos conceitos sobre sua inteligência e capacidade, e, por vezes, se admirava sozinho ao espelho. Porém amava e valorizava sobretudo o dinheiro, conseguido com seu trabalho e toda a sorte de expedientes: o dinheiro o igualava a todos que lhe foram superiores.

Quando, amargurado, relembrou a Dúnia que se decidira a desposá-la, apesar dos comentários desairosos, Pedro Petróvitch falara sinceramente convicto e, em verdade, sentira genuína indignação por tão “negra ingratidão”. Apesar disso, quando pedira a mão de Dúnia, estava inteiramente a par da inconsistência das calúnias. A história fora contraditada por Marfa Petrovna em todas as minúcias e, na época, ninguém mais lhe dava crédito no vilarejo, onde todos defendiam calorosamente Dúnia. E, instado, não negaria já conhecer tudo. Falando com Dúnia, omitira os sentimentos secretos que acariciava e admirava e não podia entender que outros não os pudessem admirar também. Visitara Raskólnikov com a atitude de um benfeitor, como quem vai colher os frutos sazonados de suas boas ações ou ouvir agradáveis elogios. Agora, ao descer as escadas, sentia-se imerecidamente injuriado e sem que ninguém lhe demonstrasse reconhecimento.

Dúnia tornara-se vital para ele, viver sem ela era inconcebível. Durante muitos anos, tivera sonhos voluptuosos com o casamento, mas continuara esperando, enquanto juntava dinheiro. Gostosa e secretamente, ruminava no pensamento a figura de uma moça — virtuosa, pobre (devia ser pobre), jovem, bela, de boa condição social e instrução, tímida, que muito sofrera e fosse humilde em relação a ele, uma que o olhasse o resto da vida como seu salvador, que o venerasse, e só a ele. Quantas cenas, quantos episódios amorosos imaginara em seus devaneios langorosos, cheios de sedução e prazer, ao terminar suas tarefas diárias! E o sonho de tantos anos se realizara; a beleza e a instrução de Avdótia Romanovna o impressionaram, sua posição de abandono fora uma tentação; nela encontrara mais que seu sonho realizado. Estava retratada nela a moça de brio, caráter, virtude, de instrução e polidez superior à dele (ele o sentia), e essa criatura sentir-se-ia submissamente agradecida a ele, para o resto da vida, por seu heroico assentimento, e humilhar-se-ia, arrojando-se no pó, à sua frente, e ele teria absoluto e irrestrito domínio sobre ela. Por seu lado, não muito tempo depois, após longa reflexão e hesitação, fizera importante mudança de carreira e estava prestes a entrar em um círculo mais amplo de negócios. Com essa mudança, seus acalentados sonhos de galgar uma posição social mais elevada pareciam a ponto de se realizar. Estava realmente decidido a tentar a sorte em São Petersburgo. Sabia que as mulheres são grandes auxiliares. O fascínio de uma encantadora, virtuosa e polida mulher podia tornar o caminho mais fácil, graças ao poder de atrair pessoas; por outro lado, cercava o marido de uma auréola. E agora tudo ruíra! Esse súbito e terrível acontecimento atingiu-o como o impacto de um raio; era como uma odiosa brincadeira, um absurdo. Só mostrara um início de prepotência, não tivera tempo de dar curso às suas ideias, fizera uma simples brincadeira, fora levado pelos impulsos — e tudo tivera um fim tão sério. Em verdade, também, amava Dúnia a seu modo, já a possuíra em seus sonhos — e de repente...! Não! No dia seguinte, tudo teria de ser consertado, polido, pacificado. Sobretudo devia arrasar aquele maricas orgulhoso, a causa de tudo. Com um sentimento doentio não conseguiria reconciliar-se com Razumíkhin, mas, em breve, assegurou-se dessa possibilidade; como se um garoto desses pudesse ombrear-se com ele! O homem realmente a temer era Svidrigailov... Em poucas palavras, tinha muito que fazer...


* * *


— Não, mais do que ninguém devo ser recriminada — disse Dúnia abraçando a mãe. — Fui tentada pelo dinheiro, meu irmão, mas, por minha honra não sabia que era um canalha. Se desconfiasse, nada me tentaria. Não me culpes, Ródia!

— Deus nos livre! Deus nos livre! — murmurou Pulquéria Alexandrovna, semiconsciente, mal entrevendo o que acontecera.

Durante cinco minutos, todos se sentiram aliviados, traduzindo-se mesmo a alegria por gargalhadas. Apenas a fisionomia de Dunetchka tomava, de vez em quando, um aspecto sombrio, como se a formosa moça se lembrasse da cena anterior. Pulquéria Alexandrovna surpreendia-se também em estar alegre, ainda pela manhã considerava o rompimento com Lujine um terrível infortúnio. Mas, de todos, o que ficou mais satisfeito foi Razumíkhin. A alegria, que não se atrevia ainda a manifestar abertamente, traía-se por uma excitação febril que o dominava totalmente. Agora, tinha o dever de consagrar toda a vida àquelas senhoras, de prestar-lhes todos os serviços... Todavia afastava essas ideias para longe, receando que tomassem corpo. Raskólnikov conservava-se imóvel e triste, não tomando parte na alegria geral; podia dizer-se que seu espírito não estava ali. Insistira tanto no rompimento com Lujine, e agora, que ele se efetuava, era quem menos importância lhe dava. Dúnia não podia esquivar-se da ideia de que Ródia ainda estava zangado com ela, e Pulquéria Alexandrovna observava-o inquieta.

— Que te disse Svidrigailov? — perguntou Dúnia, aproximando-se de Raskólnikov.

— Ah, é verdade! — exclamou Pulquéria.

Raskólnikov ergueu a fronte.

— Svidrigailov quer por força dar-te dez mil rublos e deseja ver-te uma só vez, estando eu presente.

— Vê-la! Nunca! — exclamou Pulquéria. — E como se atreve a oferecer dinheiro?

Raskólnikov contou, secamente, o que se passara entre ele e Svidrigailov, omitindo as visitas fantasmagóricas de Marfa Petrovna, desejoso de evitar qualquer conversa supérflua.

— Que resposta lhe deste? — perguntou Dúnia.

— A princípio disse que não traria nenhum recado. Então, me disse que faria o impossível para conseguir um encontro contigo, já que eu não o auxiliava. Assegurou-me que a paixão por ti fora passageira, não tendo mais nenhuma atração por ti. Ele quer evitar que te cases com Lujine... Sua conversa foi sempre confusa.

— Qual a tua opinião, Ródia? Ele te impressionou?

— Devo confessar que não o entendi bem. Ofereceu-te dez mil rublos e ainda disse não estar bem de vida. Disse que viajará e, em dez minutos, esqueceu o que dissera. Disse que vai casar-se e já ter a moça escolhida... Sem dúvida tem um intento... e só pode ser maligno. Não compreendo como pode ser tão grosseiro quando tem algum desígnio... Em teu lugar, rejeitaria o dinheiro dele... No conjunto, julgo-o muito estranho... quase considero-o louco, mas posso estar errado; nele se vê só o que deseja mostrar... A morte de Marfa Petrovna parece tê-lo impressionado muito.

— Deus guarde sua alma! — exclamou Pulquéria Alexandrovna. Rezarei sempre por ela! Onde estaríamos hoje, Dúnia, sem os três mil! Caíram do céu! Isso porque, Ródia, esta manhã tínhamos só três rublos nos bolsos e Dúnia e eu planejáramos empenhar o relógio para evitar que aceitássemos qualquer auxílio que Lujine nos oferecesse.

Dúnia estava estranhamente impressionada com o oferecimento de Svidrigailov. Ficou pensativa por muito tempo.

— Preparou algum indigno projeto! — murmurou aterrorizada.

Raskólnikov abalou-se com o terror da irmã.

— Hei de tornar a encontrar-me com ele — disse.

— Havemos de vê-lo! Eu o descobrirei! — acrescentou com vivacidade Razumíkhin. — Não o perco de vista. Ródia autorizou-me. Ainda há pouco, me disse: “Protege minha irmã.” Consente, Avdótia Romanovna? Consente?

Dúnia sorriu, estendeu-lhe a mão, mas, em seu rosto, via-se que estava apreensiva. Pulquéria olhou para ela com ar tímido; aliás, os três mil rublos tinham-na tranquilizado, sensivelmente.

Um quarto de hora depois, conversava-se vivamente. Raskólnikov, mantendo-se calado, prestava no entanto atenção ao que se dizia em torno.

— Mas por que há de ir embora? — perguntou Razumíkhin mecanicamente. — Que vai fazer em sua terra, tão pequena e tão ruim? O ponto capital a considerar é que, estando aqui, estão todos juntos; e como precisam uns dos outros, quanto mais juntos estiverem, tanto melhor. Fique algum tempo... Aceite-me como amigo, como sócio, e asseguro-lhe que faremos um bom negócio. Vou explicar-lhe minuciosamente meu projeto: esta manhã, antes de tudo o que se passou, já eu tivera esta ideia. Quer ver?...

“Eu tenho um tio (hei de apresentar-lhe: é um velho muito gentil e muito respeitável); esse tio tem um capital de dois mil rublos porque apenas gasta o ordenado que lhe garante as despesas. Há dois anos que ele não se cansa de oferecer-me essa quantia a 6%. Eu compreendo: é um modo de auxiliar-me. O ano passado não precisei de dinheiro, mas este ano só espero que ele renove a oferta para dizer-lhe que aceito o dinheiro. Aos dois mil rublos de meu tio juntam-se mil seus, e temos a sociedade formada! E o que vamos fazer com isso?”

Então Razumíkhin pôs-se a desenvolver seus planos: em seu modo de ver, a maior parte dos livreiros e editores fazia maus negócios, porque não sabia o ofício; mas, com boas obras, podia-se ganhar muito dinheiro. Havia já dois anos que ele trabalhava para algumas livrarias; estava a par do negócio e sabia muito bem três línguas europeias. Seis dias antes, dissera a Raskólnikov que sabia pouco do alemão, mas com o intuito de decidi-lo a colaborar numa tradução que lhe devia dar alguns rublos. Raskólnikov não percebera essa mentira.

— Por que havemos de deixar de fazer um bom negócio se dispomos do mais essencial dos meios: o dinheiro? — continuou, animando-se. — Sem dúvida é preciso trabalhar muito, mas trabalharemos; dedicar-nos-emos todos à empresa: Avdótia, eu, Ródion... Há publicações que dão grandes lucros. Temos ainda a vantagem de saber escolher o que se há de traduzir. Seremos, simultaneamente, tradutores, editores e professores. Eu, agora, posso ser útil, porque já tenho experiência. Há dois anos que vivo com livreiros; conheço todos os segredos do negócio, e não se trata de beber o mar. Quando se oferece ocasião para ganhar alguma coisa, por que não se há de aproveitar? Posso citar dois ou três livros estrangeiros cujas traduções darão muito dinheiro. Se os indicasse a um de nossos editores, só por isso não receberia menos de quinhentos rublos, mas estão bem livres disso! E talvez esses imbecis hesitassem! Quanto à parte material do ramo: impressão, papel, venda — eu me encarrego dela! Sei bem como tudo isso se faz! Começaremos modestamente, desenvolvendo pouco a pouco o negócio, e faremos fortuna.

Os olhos de Dúnia cintilaram.

— Sua proposta agrada-me muito, Dmitri — disse ela.

— Eu não entendo dessas coisas — acrescentou Pulquéria Alexandrovna —, mas talvez o projeto seja bom; Deus o sabe. Decerto somos forçados a ficar aqui algum tempo... — disse, relanceando um olhar para o filho.

— E que pensa a esse respeito? — perguntou Dúnia ao irmão.

— Acho a ideia excelente, respondeu Raskólnikov. — É claro que não se improvisa de um dia para outro uma livraria; mas há cinco ou seis livros que garantem um sucesso seguro. Podem ter toda a confiança no critério de Razumíkhin; sabe do ofício... Mas têm tempo para falar sobre o negócio.

— Hurra! — gritou Razumíkhin. — Agora, esperem; há aqui, neste mesmo prédio, uma casa independente que se aluga; não é cara, está mobiliada e tem três compartimentos. Aconselho que a aluguem. Ficam lá muito bem, podendo estar todos juntos...

— Mas aonde vais, Ródia? — perguntou Pulquéria Alexandrovna, inquieta.

— Nessa ocasião! — gritou Razumíkhin.

Dúnia olhou para o irmão surpreendida e desconfiada. Ródia tinha o chapéu na mão e preparava-se para deixá-los.

— Dir-se-ia que é uma separação eterna! Reparem que não vou morrer! — disse de modo estranho.

Sorriu... Mas que sorriso!

— E, quem sabe, talvez seja a última vez que nos vemos! — emendou de repente.

Essas palavras vieram-lhe espontaneamente aos lábios.

— Mas que tens? — perguntou ansiosa a mãe.

— Aonde vais? — interrogou a irmã, dando à pergunta um acento particular.

— Preciso partir — respondeu ele. Sua voz era hesitante, mas o rosto pálido exprimia uma resolução firme. — Eu queria dizer... vindo aqui... queria dizer-lhe, mamãe, e a ti também, Dúnia, que era melhor separarmo-nos por algum tempo. Não me sinto bem, preciso de repouso... voltarei depois... voltarei logo que possa. Não as esqueço e amá-las-ei muito... Mas deixem-me! Deixem-me só! Minha resolução é irrevogável. Aconteça o que acontecer, quero estar só. Esqueçam-me. Vale mais... Não queiram saber de mim. Quando for preciso, virei... Tudo se há de arranjar, talvez... Do contrário, havia de odiá-las... Adeus...

As duas mulheres e o amigo estavam aterrados.

— Meu Deus! — suspirou Pulquéria.

— Ródia, Ródia! Faze as pazes conosco, sejamos amigos como antes! — suplicava a pobre mãe.

Raskólnikov encaminhou-se para a porta; Dúnia aproximou-se dele.

— Meu irmão! Como podes tratar assim nossa mãe? — Seu olhar chamejava de indignação.

Ele fez um grande esforço para olhar para ela.

— Não é nada! Voltarei! — disse a meia-voz. E saiu.

— Egoísta! Coração sem piedade! — exclamou Dúnia.

— Não é um egoísta, é um doido! Está doido, digo-lhe eu! Talvez não pareça. Mas nessas circunstâncias nós é que não temos piedade — disse Razumíkhin ao ouvido de Dúnia, apertando-lhe a mão com força.

— Eu já volto! — disse em voz alta a uma Pulquéria Alexandrovna sucumbida e partiu.

Raskólnikov esperava-o no fim do corredor.

— Eu bem sabia que vinhas ter comigo — disse-lhe. — Vai para junto delas e não as abandones... Fica com elas até amanhã... e sempre... Eu... voltarei... se puder... talvez... Adeus!

Ia afastar-se sem apertar a mão de Razumíkhin.

— Mas aonde vais? — perguntou ele atordoado. — Que tens? Por que procedes desse modo?

Raskólnikov parou novamente.

— De uma vez por todas: nunca mais me interrogues, pois não te posso responder... Não voltes à minha casa. Eu talvez venha aqui. Deixa-me, mas a elas... não as abandones. Compreendes-me?

O corredor era escuro; mas os dois estavam perto de uma lâmpada. Olharam-se silenciosamente. O estudante viu nessa ocasião toda a vida de Raskólnikov, cujo olhar fixo e brilhante parecia querer penetrar-lhe até o fundo da alma. De repente, Razumíkhin estremeceu, ficou pálido como um cadáver: a horrível verdade acabava de revelar-se-lhe.

— Compreendeu agora? — perguntou subitamente Raskólnikov, com a fisionomia medonhamente alterada... — Volta para junto delas — disse, e afastou-se rapidamente.

Não se descreve a cena que se passou à volta de Razumíkhin. Como se compreende, ele empregou todos os meios para tranquilizar as senhoras. Assegurou-lhes que Ródia estava doente, precisava descansar; jurou-lhes que ele havia de voltar, que o veriam todos os dias. Ródion estava moralmente afetado; era preciso não o contrariar. Prometeu vigiá-lo, fazê-lo tratar-se por um bom médico, pelo melhor; se fosse necessário, chamaria para o examinarem os príncipes da ciência...

Desde aquela noite Razumíkhin foi considerado pelas duas um filho e um irmão.


Capítulo IV

Raskólnikov dirigiu-se para a casa à margem do canal onde vivia Sônia. O prédio, que tinha três andares, era uma velha construção pintada de verde. Não sem custo encontrou o dvornik, e por ele soube onde morava o alfaiate Kapernáumof. Depois de ter descoberto no canto do pátio uma escada estreita e escura, subiu ao segundo andar e seguiu pelo corredor em frente. Ao fundo, encontrou uma porta, em que bateu maquinalmente.

— Quem está aí? — perguntou uma voz trêmula de mulher.

— Sou eu... venho visitá-la — respondeu Raskólnikov, e entrou para um cubículo onde, numa mesa ordinária, ardia uma vela num castiçal de cobre.

— Ah, é o senhor! — disse Sônia, muito abatida, parecendo não ter forças para se mover.

— É aqui que mora? Aqui?

E Raskólnikov passou em seguida para o quarto de dormir, sem olhar para a moça.

Momentos depois, Sônia estava junto dele com o castiçal na mão, de pé, presa de uma agitação indefinida. Essa inesperada visita assustava-a. De repente corou, e as lágrimas umedeceram-lhe os olhos. Sentia um enternecido acanhamento... Raskólnikov desviou-se um pouco, sentando-se na cadeira, junto à mesa. Num relance, analisou tudo o que havia no aposento.

Só essa sala, grande mas muito baixa, é que os Kapernáumof tinham alugado a Sônia; à esquerda havia uma porta que dava para o quarto deles; à direita, outra que estava sempre fechada. O quarto de Sônia parecia um estábulo, com a forma de retângulo muito irregular. A parede, onde havia três janelas, dando para o canal, fazia um ângulo muito agudo, em cujo vértice nada se podia distinguir porque a luz da vela era muito fraca. O ângulo oposto era, ao contrário, muito obtuso. No quarto, quase não havia móveis. No canto da direita, uma cama; entre a cama e a porta, uma cadeira; do mesmo lado, em frente à porta fechada, uma mesa coberta com um pano azul; junto à mesa, duas cadeiras de vime. Encostada à outra parede, próximo do ângulo agudo, uma cômoda que nunca fora envernizada parecia perdida no espaço. E era tudo. O papel que forrava as paredes, amarelado, sujo, estava muito negro nos cantos, talvez por efeito da umidade e da fumaça do carvão. Tudo indicava pobreza; a cama nem tinha colcha.

Sônia observou, calada, o visitante que examinava o quarto tão atentamente e sem-cerimônia; por fim, começou a tremer de medo como se tivesse diante de si o juiz de sua vida.

— Chego tarde... São 11 horas, não? — perguntou ainda sem levantar os olhos.

— Sim — murmurou Sônia. — Sim, são — acrescentou rapidamente, como se nisso residisse seu apoio. — O relógio da locatária acaba de bater, eu mesma escutei-o.

— Venho vê-la pela última vez — disse tristemente Raskólnikov, parecendo esquecer-se de que era também a primeira vez que ali ia —, talvez nunca mais a veja...

— Vai... viajar?

— Não sei... amanhã tudo...

— Então não vai amanhã à casa de Catarina Ivanovna? — disse Sônia com a voz tremendo.

— Não sei... amanhã tudo... Não se trata disso: vim para dar-lhe uma palavra. — Olhou para ela pensativo e só então notou que a moça estava de pé.

— Então, por que está de pé?... Sente-se! — disse-lhe com voz suave e carinhosa.

Sônia obedeceu. Durante algum tempo, Raskólnikov olhou para ela com ternura.

— Como está magra! Que mãos! Através delas pode ver-se a luz do sol. Seus dedos parecem de um cadáver.

Tomou-lhe a mão. Sônia sorriu mais tranquila.

— Fui sempre assim...

— Mesmo quando vivia com seus pais?

— Sim! Sempre...

— Ah, decerto! — disse ele grosseiramente. Uma súbita mudança se lhe operou novamente no rosto e nas palavras. Olhou ainda uma vez em volta.

— É em casa de Kapernáumof que mora?

— É...

— Eles moram ali?

— Moram... O quarto é igual a este.

— Têm só um quarto para todos?

— Só um.

— Eu, num quarto assim, de noite, teria medo — disse ele com aspecto sombrio.

— Esses vizinhos são boa gente, muito delicados — respondeu Sônia sem ter recobrado ainda toda a presença de espírito —, e toda a mobília, tudo... é deles. São muito bondosos; os filhos vêm muitas vezes ver-me.

— São gagos?

— São... o pai é gago e coxo; a mãe também. Ela não gagueja, mas tem um defeito na voz. É uma boa mulher. Kapernáumof foi escravo. Tem sete filhos... O mais velho também é gago, os outros são doentes, mas não gaguejam... Mas como sabe tudo isso? — perguntou admirada.

— Foi seu pai quem me disse. Também foi por ele que soube toda a sua história. Disse-me que Sônia saiu às seis horas, e, quando voltou, passava das nove e que Catarina se ajoelhara ao pé da cama.

Sônia perturbou-se.

— Parece-me que já o vi hoje — disse ela hesitante.

— Quem?

— Meu pai, na rua, na esquina mais próxima, seriam nove ou dez horas. Parecia caminhar diante de mim, ia jurar que era ele. Estive para dizer a Catarina...

— Passeou?

— Passeei — respondeu Sônia baixando os olhos, confusa.

— Catarina batia-lhe?

— Oh! não. Por que diz isso? Não! — repetiu, olhando com medo para Raskólnikov.

— Gosta dela?

— Mas por que pergunta?! — respondeu Sônia com a voz sufocada e juntando as mãos como a pedir piedade. — Ah! O senhor não a... não a conhece, não! Ela é uma criança... Tem o espírito ferido... pela desgraça. Mas era tão inteligente! Como é boa e generosa! O senhor não sabe nada, nada... Ah!

Sônia lançou essas palavras com desespero. Dominava-a uma grande agitação, torcia as mãos. As faces pálidas tinham-se colorido outra vez, e nos olhos lia-se uma grande dor. Evidentemente, haviam-lhe tocado na corda mais sensível, e ela tomara a defesa de Catarina.

— Ela bater-me! Mas que diz o senhor! Ela bater-me! E mesmo que o fizesse, então! O senhor não sabe nada, nada... Ela é tão infeliz, tão infeliz! E doente... Seu ideal é a justiça... É pura... boa, uma santa... Podem falar mal dela, mas tudo o que ela diz e faz é justo. Como uma criança, como uma criança, ela é boa!

— Sônia, que vai ser de você?

A moça interrogou-o com o olhar.

— Agora toda aquela gente fica a seu cuidado. É verdade que antes era a mesma coisa: até o morto vinha pedir-lhe dinheiro para beber. Mas agora, como há de ser?

— Não sei — respondeu ela tristemente.

— Eles ficam naquela casa?

— Não sei. Devem muito à senhoria, e parece que ela hoje disse que ia despejá-los; Catarina também diz que não fica ali nem mais um instante.

— E em que se fia ela? É com você que conta?

— Não, não diga isso! Nossa bolsa é comum, nossos interesses são os mesmos! — respondeu logo Sônia, com uma irritação que se assemelhava à inofensiva cólera de um passarinho. Ademais, que havia ela de fazer? — perguntou, animando-se cada vez mais. — E como chorou hoje! Ela não está boa da cabeça já reparou? Às vezes, agonia-se como uma criança com o que tem a fazer no dia seguinte, para que tudo esteja bem arranjado, o jantar, a casa... Outras vezes desespera-se, torce as mãos, escarra sangue, bate com a cabeça nas paredes. Depois resigna-se, põe todas as esperanças no senhor, que vai ser quem há de protegê-la: fala em pedir dinheiro emprestado a fim de voltar para sua terra comigo: aí fundará um colégio para meninas nobres e dar-me-á o lugar de inspetora. “Uma vida completamente nova, uma vida feliz vai começar para nós”, diz beijando-me muito. Essas ideias consolam-na, crê firmemente nelas. Pergunto: deve-se contrariá-la? Todo o dia de hoje passou a lavar e arranjar a casa. Fraquinha como está armou uma essa no quarto, mas muito cansada, sem forças, caiu de cama. De manhã, tínhamos ido ambas às lojas comprar sapatos para Poletchka e Lena, que andavam descalcinhas. Infelizmente o dinheiro era pouco, não dava. Ela havia escolhido umas botinhas muito bonitas, porque tem muito gosto. Não imagina... Pois ali, na loja, pôs-se a chorar, diante de toda a gente, porque não podia comprá-las... Que espetáculo triste!

— Depois disso, compreende-se que Sônia... viva assim — observou Raskólnikov com um sorriso contrafeito.

— E não tem pena dela? — perguntou Sônia. — O senhor mesmo, eu sei, gastou com ela seus últimos recursos e, contudo, não sabia de nada. Mas se visse tudo! Quantas vezes eu a fiz chorar! Ainda na semana passada! Que pesar tive durante todo o dia ao lembrar-me disso.

Sônia torcia as mãos, tanto essa lembrança lhe era amarga.

— Era, então, muito má?

— Era, sim. Tinha ido vê-los — continuou ela a chorar —, e meu pai disse-me: “Sônia, dói-me a cabeça, lê-me alguma coisa... aqui tens um livro.” Era um livro de André Semênovitch Lebeziátnikov, que tem sempre livros muito alegres. “Tenho de sair”, respondi. Eu não gostava de ler e fora mostrar a Catarina uma compra que fizera. Isabel tinha-me vendido uns punhos e gola de renda, quase novos, por uma bagatela. Catarina gostou muito deles, pô-los, vendo-se ao espelho, e achou-os muito bonitos. “Dá-me, Sônia? Peço-te!”, disse-me ela. Não lhe serviam para nada, mas Catarina é assim; lembra-se sempre do tempo feliz de sua mocidade. Vai muito ao espelho, no entanto há anos ela não tem vestidos novos nem nada. A mim, custava-me dar-lhes: “Mas para que queres isso, Catarina?”, perguntei-lhe. Olhou para mim tão aflita, que fazia dó vê-la... E não era pela gola e os punhos, não; o que a desgostava era minha recusa, bem o percebi. Ora... mas isso para o senhor é indiferente!

— Conheceu essa Isabel?

— Conheci... O senhor também? — perguntou Sônia um pouco surpresa.

— Catarina está tuberculosa no último grau; não viverá muito tempo — disse Raskólnikov, após uma pausa, sem responder à pergunta.

— Oh, não, não! — E Sônia, sem ideia do que fazia, apertava-lhe as mãos, como se a sorte de Catarina dependesse dele somente.

— Melhor será que ela morra!

— Oh, não, isso não! — disse ela apavorada.

— E os filhos! Que fará deles, visto que não poderá tê-los aqui?

— Oh, nem sei! — exclamou ela completamente desolada, apoiando a cabeça na mão. Era claro que esse pensamento a tinha preocupado muitas vezes.

— Suponhamos que Catarina viva ainda algum tempo; Sônia pode adoecer, e se a levarmos para o hospital, que sucederá então? — prosseguiu cruelmente Raskólnikov.

— Ah! Que quer dizer? É impossível!

O terror transtornava o rosto de Sônia.

— Como, impossível? — repetiu ele com um riso sarcástico —, ninguém tem certeza de não adoecer. E depois? Toda a família ficará na rua, a mãe a pedir esmola e a tossir, batendo com a cabeça nas paredes, como hoje, os pequenos a chorar... Catarina cairá na rua, irá para o hospital, onde morrerá, e os filhos...

— Oh!, não!... Deus não há de permitir! — disse Sônia com a voz sufocada.

Até então escutara tudo silenciosamente, com as mãos erguidas numa prece muda, como se ele pudesse conjurar as desgraças que predizia.

Raskólnikov levantou-se e começou a andar pelo quarto. Sônia continuava de pé, os braços caídos, a cabeça baixa, sofrendo atrozmente.

— E Sônia não pode fazer economias, pôr algum dinheiro à parte, para quando chegarem esses dias maus? — perguntou Raskólnikov parando de repente junto dela.

— Não.

— Não, naturalmente! Mas já tentou? — disse ainda, com ironia.

— Já. Não é possível.

— E não obteve resultado! Compreende-se! Não se lhe pode exigir mais...

E continuou a passear no quarto. Houve um momento de silêncio. Raskólnikov perguntou:

— Não ganha dinheiro diariamente?

A essa pergunta Sônia perturbou-se ainda mais, corando.

— Não — respondeu em voz baixa, com grande esforço.

— O mesmo acontecerá a Poletchka — disse ele de modo grosseiro.

— Não, não, não é possível! — gritou Sônia como se aquelas palavras fossem uma punhalada que lhe atravessasse o peito. — Deus não há de consentir semelhante miséria!

— Ele consente tantas!

— Deus há de protegê-las — repetiu a moça fora de si.

— Mas talvez Deus não exista — insistiu Raskólnikov rindo e olhando para ela.

Uma mudança repentina se deu na fisionomia de Sônia: todos os músculos da face se lhe contraíram. Lançou ao interlocutor um olhar severo, cheio de censuras, e quis falar; mas nenhuma palavra lhe saía da boca, então começou a chorar cobrindo o rosto com as mãos.

— Disse-me que Catarina tem o espírito afetado; vejo que o seu também está.

Decorreram cinco minutos.

Ele passeava sempre, sem falar, sem olhar para Sônia. Por fim, aproximou-se dela. Tinha os olhos brilhantes, os lábios trêmulos. Pondo-lhe as mãos nos ombros, lançou-lhe um olhar incendiado ao rosto molhado de lágrimas... De repente, curvou-se até o chão e beijou-lhe os pés. Ela recuou assustada, como se estivesse diante de um doido. E, nesse momento, Raskólnikov parecia realmente ter perdido o juízo.

— Que faz?! — exclamou empalidecendo e sentindo o coração oprimido.

O rapaz levantou-se imediatamente.

— Não foi diante de ti que me curvei, mas diante de toda a dor humana, disse, indo encostar-se à janela. — Ouve — prosseguiu voltando — outra vez para junto de Sônia —, eu disse há pouco a um insolente que ele não valia um fio de teu cabelo, e que tinha honrado sobremodo minha irmã, dizendo-lhe que se sentasse a teu lado.

— Ah, como pôde dizer tal coisa! E diante dela? — perguntou Sônia estupefata. — Sentar-se a meu lado; uma honra! Mas eu sou... uma criatura sem honra... Para que disse isso?

— Falando assim não pensava em teus erros nem em tua desonra, mas só em teu grande sofrimento. Sem dúvida, és culpada — continuou ele com emoção cada vez maior —, mas se o és, é somente para o bem de outros. Sei que és uma infeliz. Viver nessa lama que detestas, e, ao mesmo tempo, saber (porque não podes ter ilusões a tal respeito) que isso de nada serve, e que teu sacrifício não salva ninguém!... Mas dize-me, enfim — terminou ele exaltando-se cada vez mais —, como, com tantas delicadezas de alma, te resignas a semelhante opróbrio? Mais valia que te afogasses!

— E eles? Que seria deles? — perguntou Sônia, com voz fraca, erguendo os olhos de mártir, ao passo que não se admirava do conselho que ele lhe dava. Raskólnikov analisava-a com singular curiosidade. Aquele olhar dissera-lhe tudo. Ela já tinha pensado no suicídio. Muitas vezes, no auge do desespero, lembrara-se de recorrer à morte; pensara nisso tão seriamente, que não se surpreendia agora ao ouvir a proposta. Não percebeu a maldade daquelas palavras; a significação das censuras de Raskólnikov também: o ponto de vista particular, pelo qual ele encarava a desonra de Sônia, era letra morta
para ela, e Raskólnikov assim o julgou. Mas ele compreendia perfeitamente quanto a torturava a ideia de sua situação infamante, e perguntava a si mesmo o que a impedira até então de acabar com a vida. A única resposta estava na dedicação da pobre moça às crianças e por Catarina, a desgraçada mulher tuberculosa e quase louca, que batia com a cabeça nas paredes.

Contudo parecia-lhe que Sônia, com seu caráter e sua educação, não podia ficar assim sempre. Dificilmente se explicava como, não recorrendo ao suicídio, ela não enlouquecera. Ele bem percebia que a posição de Sônia era um fenômeno social de exceção, mas não seria isso uma razão para que a vergonha a matasse à entrada de um caminho de que tudo devia afastá-la, tanto o passado honesto como a cultura intelectual relativamente elevada? Por que se mantinha nessa situação? Seria pelo gosto de uma vida impura? Não; seu corpo estava prostituído, mas o vício não fora até a alma. Raskólnikov bem o sentia: no coração dela lia como num livro aberto.

“A sorte dela está determinada”, pensava ele. “Tem em frente o canal, o hospício ou... o envilecimento.” Repugnava-lhe, contudo, admitir esta última eventualidade; mas, cético como era, não deixava de acreditar nela como a mais provável.

“Seria assim”, dizia consigo, “poderá esta moça, que conserva ainda toda a pureza da alma, atolar-se de vez na imundície e na iniquidade? Não andou já por elas, e se até o presente pôde suportar esta vida, não seria porque o vício perdeu para ela o nojo? Não, não! É impossível!”, exclamou para si, como se tivesse pouco antes gritado a Sônia: — Não, o que até hoje a impediu de lançar-se no canal foi o receio de cometer um pecado e a afeição que tem a elas... “Se ainda não enlouqueceu... Mas quem pode afirmar que não? Haverá quem se exprima daquele modo? Quem não está perturbado raciocina da maneira por que ela o faz? Uma criatura equilibrada, com aquela tranquilidade, fechando os ouvidos a todos os conselhos? É um milagre que espera? Com certeza. E não são esses os sintomas da alienação mental?”

Fixara-se obstinadamente nessa ideia. Sônia louca: esta perspectiva agradava-lhe menos que qualquer outra. Começou a examiná-la cuidadosamente.

— Rezas muito, Sônia?

De pé, junto dela esperava a resposta.

— Que seria de mim, se não fosse Deus? — disse em voz baixa, mas firme, fixando em Raskólnikov os olhos brilhantes e apertando-lhe a mão com força.

“Não me engano!”, pensou ele.

— Mas que te faz Deus? — perguntou Raskólnikov, desejando esclarecer suas dúvidas.

Sônia ficou muito tempo silenciosa, como se não pudesse responder. A comoção fazia-lhe arfar o peito.

— Cale-se! Não me interrogue! Não tem direito a isso! — gritou, colérica e severamente, olhando para ele.

“Não me engano!”, de novo ele pensou.

— Ele concede tudo! — murmurou ela rapidamente, com os olhos baixos.

“Está tudo explicado!”, concluiu mentalmente o rapaz, observando Sônia com grande curiosidade.

Raskólnikov experimentava uma sensação nova, estranha, quase doentia, ao olhar essa carinha pálida, magra, óssea, esses olhos azuis e meigos, que, no entanto, lançavam chamas e exprimiam uma paixão veemente; enfim, esse franzino corpo, ainda trêmulo de indignação! Tudo isso lhe parecia muito singular, quase fantástico. “É uma fanática religiosa”, repetia.

Sobre a cama estava um livro. Raskólnikov já o vira enquanto passeava pelo quarto. Pegou nele e examinou-o: era uma tradução do Novo Testamento.

— De onde veio este livro? — perguntou a Sônia, de longe, do extremo do quarto.

A rapariga conservava-se sempre no mesmo lugar, a três passos da mesa.

— Emprestaram-me — disse contrariada, sem olhar para ele.

— Quem te emprestou?

— Isabel; eu tinha-lhe pedido...

“Isabel... é curioso!” — pensou ele. A cada instante, tudo que dizia respeito a Sônia parecia-lhe mais estranho e maravilhoso.

Aproximou-se da luz e abriu o livro.

— É aqui que vem o caso da ressurreição de Lázaro? — perguntou de súbito.

Sônia, com os olhos baixos, continuou calada e afastou-se um pouco da mesa.

— Traz a ressurreição de Lázaro? Procura-me esse trecho, Sônia.

Ela olhou de viés para Raskólnikov.

— Não é aí... é no quarto Evangelho — respondeu secamente, sem se mover...

— Procura essa passagem e leia — disse ele, sentando-se e encostando a cabeça na mão, desalentado e dispondo-se a ouvir.

“Em três semanas irão internar-me no hospício. Estarei lá, se não estiver em lugar pior”, murmurou consigo próprio.

Sônia hesitou em chegar-se à mesa. O desejo manifestado pelo rapaz parecia-lhe pouco sincero. Contudo pegou o livro.

— Nunca o leu? — perguntou olhando-o de lado. A voz tornava-se-lhe cada vez mais áspera.

— Há muito tempo... Quando era criança. Lê!

— Nunca o ouviu na Igreja?

— Eu... não vou lá. Tu vais muitas vezes?

— Não — murmurou Sônia.

Raskólnikov sorriu.

— Compreendo... Então não vais amanhã ao enterro de teu pai?

— Vou. Ainda a semana passada fui à igreja... ouvir uma missa.

— Por alma de quem?

— De Isabel. Assassinaram-na.

— Davas-te muito com ela?

— Sim... Era muito boa... raras vezes vinha à minha casa... não era livre. Líamos e conversávamos. Está no céu, decerto.

A última frase soou-lhe estranha. Novamente — algo de insólito se apresentava: os misteriosos encontros com Isabel, e, ambas, religiosas fanáticas. “Breve, eu mesmo serei um religioso fanático! Isso é contagiante!”

— Lê! — disse em voz alta, de mau humor.

Sônia continuava hesitando. O coração batia-lhe com força. Parecia que tinha receio de ler. Ele olhou com uma expressão quase dolorosa para a “pobre alienada”.

— Que lhe importa isso, se não acredita?... — murmurou a rapariga com voz abafada.

— Lê, eu quero! — insistia ele. — Tu lias para Isabel!

Sônia abriu o livro e procurou a passagem que ele indicara. Tremiam-lhe as mãos, as palavras paravam-lhe na garganta. Duas vezes tentou ler e não pôde dizer uma sílaba.

— Estava enfermo Lázaro, de Betânia — disse afinal com esforço. Mas de repente, à terceira palavra, a voz esmoreceu e expirou-lhe nos lábios como uma corda de violino que se retesa demais e parte-se. Respirava com dificuldade.

Raskólnikov percebia, em parte, a hesitação de Sônia em obedecer-lhe, e, à medida que a compreendia melhor, mais imperiosamente reclamava a leitura. Sentia quanto custava à pobre moça manifestar-lhe de algum modo o que lhe ia na alma. Evidentemente, ela não podia sem custo resolver-se a fazer confidências a um estranho dos sentimentos que, desde a infância talvez, a tinham sustentado, que foram seu viático moral, quando, entre um pai que se embebedava e uma madrasta enlouquecida pela desgraça, entre crianças esfomeadas, ouvia apenas recriminações e clamores injuriosos. Raskólnikov via tudo isso, mas percebia também que, não obstante essa repugnância, Sônia sentia um grande desejo de ler, de ler para ele, principalmente agora — “sucedesse o que sucedesse depois!...”. Seus olhos bem mostravam a agitação de que estava possuída... Com um violento esforço sobre si, Sônia venceu o espasmo que lhe apertava a garganta e continuou a ler o capítulo XI do Evangelho de são João. Assim chegou ao versículo 19:

— Muitos dentre os judeus tinham vindo ter com Marta e Maria, para as consolar, a respeito de seu irmão. Marta, quando soube que vinha Jesus, saiu a seu encontro; Maria, porém, ficou sentada em casa. Disse, pois, Marta a Jesus: “Senhor, se estivesses aqui, não meu irmão teria morrido. Mas também sei que, mesmo agora, tudo quanto pedires a Deus, Deus te concederá.”

Aqui fez uma pausa para triunfar da emoção que lhe tomava de novo a voz.

— Declarou-lhe Jesus: “Teu irmão há de ressurgir.” “Eu sei, replicou Marta, que ele há de ressurgir na ressurreição, no último dia.” Disse-lhe Jesus: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim, não morrerá, eternamente. Crês nisso?”

(E, embora respirando dificilmente, Sônia elevou a voz como se, ao ler as palavras de Marta, fizesse ela mesma sua profissão de fé.)

— “Sim, Senhor, respondeu ela, eu tenho crido que tu és o Cristo, o Filho de Deus que devia vir ao mundo.”

Interrompeu-se, levantando rapidamente os olhos para ele e, baixando-os logo sobre o livro, continuou a ler. Raskólnikov ouvia imóvel, sem se voltar, encostado à mesa e olhando de revés. A leitura continuou até o versículo 32.

— Quando Maria chegou ao lugar onde estava Jesus, ao vê-lo, lançou-se-lhe aos pés, dizendo: “Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido.” Jesus, vendo-a chorar, bem como os judeus que a acompanhavam, agitou-se no espírito e comoveu-se. E perguntou: “Onde o sepultastes?” Eles lhe responderam: “Senhor, vem e vê.” Jesus chorou. Então disseram os judeus: “Vede quanto o amava!” Mas alguns objetaram: “Não podia ele, que abriu os olhos ao cego, fazer com que este não morresse?”

Raskólnikov olhou para Sônia, estava muito agitado. A moça, trêmula, febril. Era o que ele esperava. Ao chegar à descrição do milagre, um sentimento de triunfo se apoderara dela. A voz tornara-se firme e tinha sonoridades metálicas. No último versículo — “Não podia ele, que abriu os olhos ao cego...” — abaixou a voz, acentuando com paixão a dúvida, a blasfêmia, a censura desses judeus incrédulos e cegos que, num momento, iam, como fulminados pelo raio, cair de joelhos, soluçar, crer... “E ele, ele que também é cego, incrédulo, ele também num instante será tocado pela graça divina, acreditará! Sim! Sim! Já, imediatamente!”, pensava ela, animada por essa doce esperança.

— Jesus, agitando-se novamente em si mesmo, encaminhou-se para o túmulo; era este uma gruta, em cuja entrada tinham posto uma pedra. Então ordenou Jesus: “Tirai a pedra.” Disse-lhe Marta, irmã do morto: “Senhor, já cheira mal, porque já é de quatro dias.”

E acentuou bem a palavra quatro.

— Respondeu-lhe Jesus: “Não te disse eu que, se creres, verás a glória de Deus?” Tiraram, então, a pedra. E Jesus, levantando os olhos para o céu, disse: “Pai, graças te dou, porque me ouviste. Aliás, eu sabia que sempre me ouves, mas assim falei por causa da multidão presente, para que creiam que tu me enviaste.” E, tendo dito isso, chamou em voz alta: “Lázaro, vem para fora!” Saiu aquele que estivera morto (lendo estas linhas Sônia estremecia como se ela própria tivesse visto o milagre), tendo os pés e as mãos ligados com ataduras e o rosto envolto num lenço. Então lhes ordenou Jesus: “Desatai-o e
deixai-o ir.”

— Muitos, pois, dentre os judeus que tinham vindo visitar Maria, vendo o que fizera Jesus, creram nele.

Não pôde ler mais; fechou o livro e levantou-se apressadamente.

— É por causa da ressurreição de Lázaro... — disse em voz baixa dominando-se, sem olhar para aquele a quem se referia. Parecia receosa de levantar os olhos para Raskólnikov. O tremor febril durava-lhe ainda. A vela quase no fim iluminava mal o paupérrimo quarto, onde um assassino e uma prostituta acabavam de ler um livro sagrado. Passaram mais de cinco minutos.

De repente, Raskólnikov levantou-se e aproximou-se dela.

— Vim aqui para tratarmos de um negócio — disse ele com voz forte.

Dizendo isso, franziu a testa. A rapariga atentou nele e leu-lhe na dureza do olhar uma resolução feroz.

— Hoje — continuou ele — cortei relações com minha mãe e minha irmã. Nunca mais volto à casa delas.

— Por quê? — perguntou Sônia admirada. O encontro que tivera com Pulquéria e Dúnia havia-lhe deixado uma impressão extraordinária, ainda que obscura. Uma espécie de pavor a assaltou ao saber que Raskólnikov rompera com a família.

— Agora, não tenho mais ninguém senão a ti — acrescentou. — Partamos juntos... Vim para fazer-te essa proposta. Ambos estamos amaldiçoados. Pois bem, sigamos juntos!

Seus olhos faiscavam. “Está doido”, pensou também Sônia.

— Para onde? — perguntou ela cheia de espanto, afastando-se involuntariamente.

— Como posso saber? Sei somente que o caminho e o fim são os mesmos para nós; disso tenho certeza!

Sônia olhou para ele sem entender.

Uma verdade apenas ressaltava das palavras de Raskólnikov: que era excessivamente infeliz.

— Ninguém te compreenderá quando falares — continuou ele —, mas eu te compreendi. Preciso de ti e por isso te procurei.

— Não percebo... — sussurrou Sônia.

— Mais tarde perceberás. Não fizeste como eu? Tu também saíste fora do comum... Tiveste essa coragem. Destruíste uma vida... a tua (é tudo a mesma coisa!). Pode viver em espírito e compreensão, mas terminarás no Mercado do Feno... Não podes ficar assim, e se continuas só, perdes a razão, como eu também. Agora pareces uma louca. É preciso, portanto, que caminhemos juntos, que sigamos pela mesma estrada! Partamos!

— Mas por quê? Por que diz isso? — perguntou Sônia perturbada com essa linguagem.

— Por quê? Porque não podes ficar assim, ora aí está... É preciso pensar seriamente, ver as coisas pelo verdadeiro prisma, em vez de chorar como uma criança, ou esperar tudo de Deus! Se amanhã te levarem para o hospital, que sucede? Catarina quase doida e tuberculosa morrerá imediatamente. E o que há de ser das crianças? Poletchka prostitui-se com certeza. Não viste crianças esmolando pelas esquinas e ensinadas pelas próprias mães? Descobri onde essas mães vivem e quais seus ambientes. Ali as crianças não podem permanecer! Aos sete anos já são viciadas e ladras; no entanto, como tu sabes, as crianças são à imagem de Cristo: “delas será o reino dos céus”. Ele nos ordena que as amemos e as dignifiquemos, porque nelas está o futuro da humanidade...

— Mas que fazer? Que fazer? — repetia Sônia chorando histericamente e retorcendo as mãos.

— Que é preciso fazer? Acabar com o mal de uma vez e ir para diante, aconteça o que acontecer. Não me compreendes? Mais tarde compreenderás... Ser livre e ter poder, mas sobretudo poder! Dominar todas as criaturas fracas, todo esse formigueiro humano!... Aqui tens o que é preciso fazer! Lembra-te disso! É o legado que te faço em testamento. Talvez te esteja falando pela última vez. Se eu não vier amanhã, saberás tudo, e então lembra-te de minhas palavras. Mais tarde, daqui a alguns anos, com a experiência da vida, compreenderás talvez o que elas significavam. Se eu vier amanhã, dir-te-ei quem matou Isabel. Adeus.

— Mas sabe quem a matou? — perguntou hirta de terror.

— Sei, e hei de dizê-lo... mas só a ti! Escolhi-te. Não virei pedir-te perdão, mas somente dizer-te. Há muito tempo que te escolhi. Tive essa ideia quando teu pai me falou de ti; Isabel ainda vivia. Adeus. Não me dês a mão. Até amanhã.

Saiu, deixando Sônia sob a impressão de que estava doido; ela própria estava desvairada e sentia-o. A cabeça girava-lhe à roda. “Oh, meu Deus! Como sabe ele quem matou Isabel? Que traduzem aquelas palavras? É extraordinário!” Contudo não teve a menor suspeita da verdade... “Oh, ele deve ser terrivelmente desgraçado!... Abandonar a mãe e a irmã. Por quê? Que haveria? Quais serão suas intenções? Que foi que ele me disse? Beijou-me os pés e disse... disse-me (sim, foram essas suas palavras) que não podia viver sem mim... Meu Deus!”

Sônia passou a noite febril e delirante. Levantava-se amiúde, chorava e retorcia as mãos. Recaía em sono febricitante e sonhava com Poletchka, Catarina Ivanovna e Isabel, sonhava lendo um versículo e com ele... ele, de rosto emaciado, olhos chamejantes... beijando-lhe os pés, chorando.

A porta fechada dava para um quarto que estava vazio e pertencia à casa de Gertrude Karlovna Resslich. Era para alugar, como indicavam um papel pregado na porta e os escritos colados nas janelas que davam para o canal. Sônia sabia que ali não morava ninguém. Mas, durante a cena precedente, Svidrigailov, escondido atrás da porta, ouvira com toda a atenção a conversa. Quando Raskólnikov saiu, o inquilino da Resslich refletiu um momento, depois voltou sem fazer o menor ruído a seu quarto, contíguo ao que estava vago, pegou uma cadeira e foi encostá-la à porta. O que acabava de ouvir interessava-o altamente; de forma que essa cadeira serviria para ele escutar mais vezes, sem ter de estar de pé tanto tempo.


Capítulo V

Quando, no dia seguinte, às 11 horas, Raskólnikov foi ao juiz de instrução, admirou-se de que o fizessem esperar tanto. Pensava que deviam recebê-lo logo; no entanto decorreram dez minutos antes que Porfírio Petróvitch o mandasse entrar. Na sala de espera, ia e vinha gente, que parecia não se importar com ele. Na sala, junto à secretaria, escreviam alguns empregados, e era evidente que nenhum deles se preocupava com Raskólnikov.

Olhou desconfiado para os lados. Não estaria por ali alguém, algum Argos misterioso, encarregado de o vigiar e impedir que fugisse, se tentasse fazê-lo? Mas nada viu que lhe desse tal impressão: os amanuenses continuavam o trabalho e os outros não faziam caso dele. Tranquilizou-se. “Se, com efeito”, pensou, “essa pessoa misteriosa de ontem, esse espectro saído da terra soubesse tudo, tivesse visto tudo, deixar-me-ia andar à solta, como ando? Já não me teriam prendido, em vez de esperarem que eu viesse aqui, por vontade própria? Portanto, ou esse homem não fez revelação alguma, ou... simplesmente nada sabe nem viu. E como podia ter visto? Evidentemente, meus olhos enganaram-me; tudo o que ontem se deu não passa de uma ilusão de minha imaginação doentia.” Cada vez lhe parecia mais aceitável essa explicação que, já na véspera, lhe tinha vindo ao espírito na ocasião em que se sentia mais inquieto.

Refletindo em tudo isso e preparando-se para novo embate, Raskólnikov surpreendeu-se de súbito a tremer. Indignou-se ao pensar que era o medo da entrevista com o odioso Porfírio Petróvitch que trazia esse tremor. Para ele o pior era tornar a encontrar-se com esse homem: odiava-o e receava que seu ódio o perdesse. A fúria foi tão violenta que até deixou de tremer. Preparou-se para entrar sereno e firme, prometendo a si próprio falar o menos possível, estar sempre em guarda, enfim, dominar a todo custo a irascibilidade de seu temperamento. Nesse ínterim, foi levado à presença de Petróvitch.

Porfírio estava só no gabinete. Era uma sala regular, havia uma mesa grande diante de um sofá forrado de oleado, uma secretária, uma estante e algumas cadeiras, tudo de mogno. Na parede, ou antes, no tabique que ficava ao fundo, havia uma porta fechada, o que fazia supor a existência de outras salas, além do gabinete.

Assim que Porfírio viu Raskólnikov, foi logo fechar a porta por onde ele entrara. O juiz de instrução recebeu-o aparentemente de modo afável; só passados alguns minutos é que Raskólnikov percebeu os modos levemente afetados do juiz. Pareceu-lhe que o fora interromper em meio a um trabalho secreto.

— Ah, meu caro! Por aqui... por essas bandas... — começou Porfírio estendendo-lhe ambas as mãos. — Então, sente-se. Mas talvez não goste que o trate por meu caro, assim, tout court? Peço-lhe, por quem é, que não repare nem leve a mal a intimidade... Aqui no sofá!

Raskólnikov sentou-se sem tirar os olhos do juiz de instrução.

“Essas palavras ‘por essas bandas’, as desculpas pela intimidade, essa expressão francesa tout court, que significava tudo isso? Estendeu-me as duas mãos e não apertou nenhuma, retirando-as a tempo”, pensava desconfiado. Ambos se observavam, mas, quando os olhares se encontravam, desviavam-nos com a rapidez do relâmpago.

— Vim para trazer-lhe este papel... a respeito do relógio... Aqui está. Estará bem, ou será preciso fazer outro?

— Mas que papel é esse?... Ah! Sim! Sim!... Não se incomode; está tudo certo — disse precipitadamente Porfírio, antes de examiná-lo. E, em seguida, tendo-o visto. — Está tudo certo, é o que é preciso — continuou, falando depressa e pondo a declaração na mesa. Um minuto depois, fechou-a na secretária.

— Ontem, pareceu-me que o senhor tinha desejos de interrogar-me... formalmente... sobre minhas relações com... a vítima? — disse Raskólnikov.

“Mas por que disse eu pareceu-me?”, pensou ele de repente. “Ora, que importa? Que posso temer?”

Pelo simples fato de estar na presença de Porfírio, com quem tinha apenas trocado duas palavras, sua desconfiança tomou proporção exagerada; percebeu essa circunstância e que tal disposição de espírito era muito perigosa. A agitação e a irritabilidade dos nervos aumentavam. “Mau! Mau! Sou capaz de fazer uma tolice.”

— Não se altere. Temos tempo — dizia Porfírio, que, sem nenhuma intenção aparente, passeava pela sala, indo da janela até a mesa e voltando da mesa para a secretária, parando às vezes e olhando para Raskólnikov. Era um espetáculo ridículo o desse homem baixo, gordo e redondo, fazendo evoluções como uma bola que ricocheteasse de uma parede à outra da sala.

— Não há pressa, não há pressa! Fuma?... Tem fumo?... Aqui tem cigarros — dizia — oferecendo-lhe um maço... — Recebo-o aqui, mas moro numa casa para a qual aquela porta dá entrada. Estou aqui provisoriamente, enquanto fazem obras... Estão acabadas, ou quase. Não sei se sabe que é magnífico ter uma casa dada pelo Estado. Não lhe parece?

— Decerto, deve ser agradável — respondeu ele, com ar irônico.

— Uma coisa magnífica! Magnífica! — repetia Porfírio, pensando em outro assunto. — Sim, magnífica! — disse bruscamente, levantando a voz, parando junto de Raskólnikov, fitando-o. A incessante e disparatada repetição daquela frase que uma casa dada pelo Estado era uma coisa magnífica contrastava pela chateza com o olhar sério, profundo, enigmático, que o magistrado lhe lançava.

Vendo isso, Raskólnikov sentiu que a raiva lhe aumentara e desafiou o juiz por uma forma trocista e imprudente.

— Sabe — começou, fitando-o insolentemente e fazendo gala dessa insolência — que me parece ser uma regra jurídica, um princípio estabelecido por todos os juízes de instrução, falar primeiramente de ninharias, ou mesmo de um assunto sério, mas completamente estranho à questão, a fim de animar aqueles que desejam interrogar, ou antes distraí-los, adormecer-lhes a prudência; depois, subitamente, vibrar-lhes em pleno crânio o golpe capital. Não é verdade?... Não é o uso observado em sua profissão?

— Julga então que se eu falei na casa dada pelo Estado era para...

Ao dizer isso, Porfírio fechou os olhos, o rosto tomou uma expressão de alegria maliciosa, as rugas da testa apagaram-se. Depois, olhando para Raskólnikov desatou a rir, um riso seco, prolongado, que lhe agitava todo o corpo. Raskólnikov ria também, embora contra a vontade, o que fez redobrar o riso de Porfírio, a ponto de o juiz ficar rubro como uma lagosta cozida. Raskólnikov, sentindo-se mal, perdeu toda a prudência: cerrou os dentes, franziu os sobrolhos e, enquanto durou a alegria de Porfírio, que parecia fictícia, olhou para ele com rancor. Nem um nem outro se tinham observado. Porfírio, rindo tanto na cara de Raskólnikov, não notou o descontentamento dele. Essa circunstância dava o que pensar a Ródion: pensou que sua visita não incomodava o juiz de instrução; que, pelo contrário, fora ele que caíra numa armadilha. Evidentemente havia ali alguma cilada, a mina estava preparada e devia arrebentar em breve.

Atacando a questão, ergueu-se e pegou o boné.

— Porfírio Petróvitch — disse firmemente, mas num tom que denotava irritação —, o senhor manifestou ontem a ideia de me sujeitar a um interrogatório. (Acentuou muito a palavra interrogatório). Vim pôr-me a seu dispor, se tem perguntas a fazer-me, faça-as; se não, permita que me retire. Não posso estar a perder meu tempo; tenho mais o que fazer... preciso ir ao enterro do homem que foi esmagado pela carruagem, e do qual... o senhor ouviu falar... — acrescentou, arrependendo-se logo de ter dito aquela frase. Depois continuou, mais irritado: — Tudo isso me aborrece, percebe? Foi, em parte, o que me fez adoecer... Numa palavra — disse ele mais contrariado ainda, por ter visto que falar na doença fora erro ainda maior que proferir a outra frase —, numa palavra, interrogue-me ou passe pelo desgosto de me ver sair... Mas, se me interrogar, há de fazê-lo como é de costume nesses casos, aliás, não lhe respondo: e, enquanto esse interrogatório não vem, vou-me embora, visto que agora nada tenho a fazer aqui.

— Mas que é isso? Para que hei de interrogá-lo já? — respondeu o juiz deixando de rir. — Não se aborreça, peço-lhe.

Insistiu com ele para sentar-se, continuando a passear ao longo do gabinete.

— Temos tempo, temos tempo; e isso não tem importância! Estimo até que viesse procurar-me. É como visita que o recebo... Quanto ao riso, Ródion, desculpe-me. Sou nervoso, e achei muito engraçadas suas observações. Há ocasiões em que o riso me faz saltar como uma bola de borracha; às vezes, isso dura mais de meia hora... Meu temperamento até me faz temer uma apoplexia... Mas sente-se, senão penso que está zangado comigo...

Raskólnikov, visivelmente contrariado, ouvia e observava. Por fim, sentou-se.

— Vou dizer-lhe uma coisa que há de servir-lhe para traduzir meu caráter — recomeçou Petróvitch, evitando o olhar de Raskólnikov. — Vivo só, como sabe, não frequento a sociedade, sou quase desconhecido e sinto-me no declinar da existência, muito acabado... e... tem reparado, Ródion, que entre nós na Rússia, principalmente nos círculos de São Petersburgo, quando se encontram dois homens inteligentes, que pouco se conhecem mas que se estimam, como nós, por exemplo, nesse momento, não têm nada para dizer na primeira hora — e ficam como petrificados em frente um do outro? Todo mundo tem um assunto sobre o qual conversar, as senhoras, as pessoas da sociedade, as pessoas de posição mais elevada... nesse meio há sempre em que se fale, c’est de rigueur; mas a classe média, como nós, é sempre taciturna. Por que isso? Não temos também interesses sociais? Ou será porque nossa honestidade nos proíbe enganar os outros? Não sei. Qual é sua opinião? Mas ponha aqui o boné, dir-se-ia que quer sair...

Raskólnikov pôs o boné sobre uma cadeira. Calado, de testa franzida, ouvia o palavreado de Petróvitch. “Está dizendo todas essas tolices para distrair minha atenção.”

— Não ofereço café, porque o lugar não é próprio... Compreende... Peço-lhe não reparar que eu esteja sempre a passear, desculpe-me, mas preciso tanto de exercício! Vivo sempre sentado, de modo que é para mim uma sorte poder mover-me durante cinco minutos... sofro de hemorroidas... tenho pensado em tratar-me pela ginástica... Hoje em dia a ginástica é uma verdadeira ciência... Quanto aos deveres de nosso cargo, os interrogatórios, todas essas formalidades... é o que o senhor dizia há pouco... os interrogatórios desarmam às vezes o juiz mais experimentado... Sua observação tinha tanto de espirituosa como de real (Raskólnikov não fizera nenhuma observação). Sobre nossas rabulices estou de acordo com o senhor. Qual é o acusado que desconhece, por mais ignorante que seja, que se começa por fazer perguntas fora do caso para o adormecer, segundo sua feliz expressão, e depois vibrar-lhe um golpe em pleno crânio, eh!, eh!, eh!, em pleno crânio (para me servir de sua engenhosa metáfora)! Eh!, eh! Por isso Ródion pensou que eu falava na casa para... O senhor é muito levado! Vamos, não falemos mais nisso! Ah! sim, a propósito: uma palavra puxa outra, os pensamentos atraem-se mutuamente, há pouco falou-me no modo por que procedem os juízes de instrução. Mas que é esse modo? Como sabe, num grande número de casos nada significa. Muitas vezes, uma simples conversa, uma visita amigável dão melhores resultados. A rabulice nunca desaparecerá, decerto; mas não se pode obrigar um juiz de instrução a ficar preso a ela. A missão de quem inquire é, no gênero, uma arte liberal, ou coisa semelhante.

Petróvitch parou para respirar. Falava sem parar, ora contando puras bagatelas, ora metendo-se em dissertações graves, com palavras enigmáticas, para continuar a dizer tolices. Aquele passeio pelo gabinete dava a ideia de um exercício a prêmio: as grossas pernas do magistrado moviam-se cada vez mais depressa. Petróvitch prosseguia, os olhos no chão, a mão direita no bolso do casaco, enquanto com a outra fazia gestos que não estavam em harmonia com o que dizia. Raskólnikov viu, ou julgou ver, que, enquanto passeava, por duas vezes parou junto da porta parecendo ouvir: “Esperará alguma coisa?”

— Tem muita razão — disse Porfírio, olhando para Ródion com uma bonomia que o fez desconfiar —, nossas rabulices merecem, realmente, suas ironias. Esses processos, que pretendem ser inspirados em profunda psicologia, são muito ridículos e muitas vezes inúteis... Ora com respeito à forma, vai ver! Suponhamos que estou encarregado de instruir um processo; que sei, ou julgo saber, que o criminoso é certo indivíduo... Não se destina à advocacia, Ródion Românovitch?

— Sim, estudei algum tempo.

— Pois aqui tem um exemplo que mais tarde pode servir-lhe. Mas, por Deus, não imagine que vou arvorar-me em seu professor. Eu não pretendo ensinar nada a um homem que escreve sobre questões de criminologia. Tomo apenas a liberdade de citar-lhe um caso, como exemplo: suponho ter descoberto o verdadeiro criminoso. Para que havia de alarmá-lo mesmo com provas contra ele? Outro qualquer não faria assim; mandava-o prender. Mas por que não havia de deixá-lo andar pela cidade? Vejo que me entende muito bem, mas vou explanar o fato. Se eu me apressasse a prendê-lo, dava-lhe, por assim dizer, um ponto de apoio moral. Ri-se? (Raskólnikov nem pensava em rir; tinha os lábios cerrados e o olhar vivo não se retirava dos olhos de Petróvitch.) Contudo, isso é assim. — Mas se há provas?... — perguntar-me-á. — Pois sim; mas o senhor sabe o que são provas; num grande número de casos levam às conclusões mais variadas, e eu sou juiz de instrução, homem, portanto sujeito a enganos.

“Ora, eu queria dar ao meu inquérito o rigor de uma demonstração matemática; queria que as conclusões a que chegasse fossem tão claras, tão fortes, como a afirmação de que dois mais dois são quatro! Portanto, se prendesse o indivíduo logo, privava-me dos meios ulteriores de provar sua culpabilidade. Como assim?, perguntará. Porque lhe dou uma posição definida; mandando-o para a prisão sossego-o, reintegro-o em sua situação psicológica: daí em diante, está prevenido contra mim.

“Logo após Alma, diziam em Sebastopol, onde as pessoas esclarecidas estavam aterrorizadas, que o inimigo podia atacar frontalmente Sebastopol e tomá-la de um só ímpeto. Mas quando se convenceram de que o inimigo preferia sitiar, entusiasmaram-se — assim pelo menos me foi garantido —, porque o desenlace demoraria um ou dois meses. Está rindo; não acredita em mim novamente. Decerto tem razão. Tem razão. Admito que todos esses são casos particulares, mas deve observar, meu caro Ródion Românovitch, que o caso comum, o caso para o qual todas as formalidades e regras foram prescritas, para o qual foram concebidas e publicadas, simplesmente não existe; pelo fato de que cada caso, cada crime, por exemplo, tão logo ocorre torna-se um caso perfeitamente particular e, às vezes, totalmente diferente dos precedentes. Casos dessa espécie, muito cômicos, ocorrem frequentemente.

“Se, ao contrário, deixo completamente à vontade o suposto criminoso, se não o prendo logo, se não o alarmo, mas se, a todos os momentos, ele está obcecado pela ideia de que eu sei tudo, que dia e noite não o perco de vista, que é para mim objeto de uma intensa vigilância, o que sucede? Infalivelmente acomete-o uma vertigem, virá ter comigo, dar-me-á armas contra si próprio e colocar-me-á em situação de tirar conclusões de meu inquérito com caráter e evidência seguros, o que não deixa de ter seu encanto.

“Se esse processo dá resultado com qualquer mujique, não é menos eficaz ao se tratar de um homem inteligente, ilustrado, distinto até! Porque o importante é adivinhar em que sentido o indivíduo se desenvolve. Este é inteligente, mas tem os nervos doentes!... E a bílis, a bílis, que grande papel representa! Repito que, nessas manifestações mórbidas, há uma mina de informações. Que me importa que ele ande por aí? Deixá-lo gozar à vontade esse resto de liberdade. É minha a presa, não me fugirá! Ademais, para onde irá? Para o estrangeiro, responder-me-ão. Um polaco fugiria para o estrangeiro, mas ele não, tanto mais que o tenho sob minha vigilância e as medidas tomadas não falham. Fugirá para o interior. Mas aí vivem somente os mujiques, russos primitivos, gente incivil; e esse homem superior preferirá a prisão a viver nesse meio.

“Mas isso nada significa, é o lado externo da questão. Ele não foge, não só porque não sabe para onde ir ainda, mas sobretudo porque psicologicamente me pertence. Que tal acha a expressão? Por uma lei natural não fugiria, mesmo que o pudesse fazer. Já viu a mariposa em volta da luz? Pois é o caso: há de andar em torno de mim incessantemente como a mariposa em volta da luz; cada vez mais inquieto, mais cansado; eu lhe vou dando tempo, e ele porta-se de tal modo que sua culpa resulta nítida, como dois mais dois são quatro... E girará sempre, em volta de mim, em círculos cada vez mais próximos, até que por fim, zás!, entra-me na boca e engulo-o. É muito agradável! Não acha?”

Raskólnikov ficou silencioso; pálido e imóvel, observava o rosto de Porfírio com grande esforço de atenção.

“A lição é boa”, pensava ele aterrado. “Não é mais como ontem: o gato a brincar com o rato. Fala-me assim para sentir o prazer de mostrar sua força... Deve ter outro fim, mas qual? Continua, tudo o que dizes é para me meter medo!! Não tens provas, e o homem de ontem não existe. Queres aniquilar-me com boas maneiras, irritar-me e dar então o golpe fatal; mas enganas-te e lamentarás depois o tempo perdido. Mas por que fala de maneira tão enigmática?... Está a especular com a irritabilidade dos meus nervos... Não, amigo, por mais esforços que faças não me vencerás. Vamos ver que cilada preparas...”

E preparou-se para afrontar a catástrofe terrível que previa. Havia momentos em que tinha vontade de estrangular o juiz. Desde que entrara no gabinete, seu maior receio era não poder conter a cólera. O coração batia-lhe com violência. Resolveu calar-se pensando que, em tais circunstâncias, era a melhor atitude — não só não se comprometia, mas talvez conseguisse irritar o adversário e apanhar-lhe alguma palavra imprudente. Tal era a esperança de Raskólnikov.

— Vejo que não acredita; pensa que estou a gracejar — disse Porfírio. Parecia cada vez mais alegre e continuava o passeio pelo gabinete. — Está certo, asseguro: Deus me deu um corpo que só pode despertar ideias cômicas em outras pessoas — o de um bufão. Deixa-me, porém, dizer, repito: desculpe um homem velho; o senhor, Ródion Românovitch, é jovem, ainda coloca o intelecto acima de tudo, como todos os jovens. O espírito jocoso e o argumento abstrato o fascinam; é por isso que todos gostam do Hofkriegsrat austríaco,[ 30 ] tanto quanto sou capaz de julgar coisas militares, ou seja, no mapa já havia derrotado e aprisionado Napoleão. Seus planos foram executados da forma mais inteligente, mas, veja só, o general Mack entregou-se com todas as tropas... Vejo, Ródion Românovitch, sorrindo por ver um civil como eu escolher exemplos da história militar, mas não posso conter-me, é o meu fraco, gosto da ciência militar e das leituras dos episódios militares. Certamente errei de profissão. Devia ter entrado para o exército, juro que devia! Não chegaria a um Napoleão, mas a major com toda a certeza.

“Voltando ao caso particular de que falávamos, devo acrescentar que é preciso contar com a realidade, com a natureza. É uma coisa importante, e que triunfa muitas vezes sobre a habilidade mais consumada! Ouça o que lhe diz um velho; falo seriamente (pronunciando essas palavras, Porfírio, que contava só 35 anos, parecia na verdade ter envelhecido, e até na voz); ademais, sou franco... Sou ou não um homem franco? Que lhe parece?... Creio que não se pode ser mais: digo-lhe todas essas coisas sem mira na recompensa!

“Continuemos: a finura de espírito é o ornamento da natureza, o consolo da vida, e com ela pode-se facilmente embaraçar um pobre juiz de instrução, que já é muitas vezes enganado pela própria imaginação, visto que é homem! Mas a natureza vem auxiliar o juiz, eis o mal! E é nisso que não pensa a mocidade, que confia na inteligência, que “calca aos pés todos os obstáculos” (segundo sua expressão tão fina e tão engenhosa).

“No caso particular de que tratamos, o criminoso, admito, mentirá com superioridade, mas, quando julgar que todo mundo foi vítima de sua habilidade, crac!, desmaia no próprio lugar em que o acidente se torna mais comentado. Suponhamos que pode atribuir essa síncope ao estado de fraqueza, à atmosfera sufocante da sala; nem por isso deixa de levantar suspeitas! Mentiu de uma forma excelente, mas não soube precaver-se contra a natureza. Aí é que está a armadilha.

“Uma outra vez, levado pelo gênio trocista, diverte-se a enganar quem suspeita dele, e, por brincadeira, diz ser o criminoso que a polícia procura; mas volta a representar a comédia, com naturalidade, o que ainda é um indício. Em certo momento, o interlocutor pode ser iludido; mas, se não é um pateta, fica de prevenção. Nosso homem compromete-se a todo instante. Que digo! Aparecerá ele próprio, sem que o chamem, dirá frases imprudentes em alegorias que todos perceberão! Quererá saber por que o prendem! E isso acontece ao espírito mais alto, a psicólogos, a literatos! A natureza é um espelho transparente, basta contemplá-la... Por que está tão pálido, Ródion Românovitch? Sente muito calor, talvez? Quer que abra a janela?”

— Não se incomode, peço-lhe! — disse Raskólnikov, desatando a rir. — Não faça caso da palidez.

Porfírio parou diante dele e, de repente, começou também a rir. Raskólnikov, cujo riso cessara, levantou-se.

— Porfírio Petróvitch! — disse com voz clara e forte, embora sentisse dificuldade em aguentar-se nas pernas. Estou certo de que suspeita que fui eu quem matou a velha e a irmã. Ora, devo declarar-lhe que estou farto de tudo isso. Se julga dever perseguir-me, prenda-me. Mas não consinto que faça troça, que me martirize...

De repente, os lábios tremeram-lhe, os olhos chamejaram, a voz, que até então tinha dominado, atingiu o tom mais elevado.

— Não consinto! — gritou, dando um vigoroso murro na mesa. — Percebe, Petróvitch? Não consinto!

— Oh, meu Deus! Mas o que foi que lhe deu?! — exclamou o juiz de instrução, aparentemente muito assustado. — Ródion Românovitch! Meu bom amigo! Que tem?

— Não consinto! — repetiu Raskólnikov.

— Fale mais baixo! Podem ouvir, aparecer alguém, e que havemos de dizer? Pelo amor de Deus! — murmurou assustado Petróvitch aproximando-se.

— Não permito! Não consinto! — repetiu maquinalmente, mas agora mais baixo, de modo que só Petróvitch o ouvisse.

Porfírio foi abrir a janela.

— É preciso arejar este gabinete. Se tomasse um copo de água?

Dirigia-se à porta para chamar o criado quando viu a garrafa de água.

— Beba — disse, dando-lhe um copo —, há de fazer-lhe bem...

O susto e a solicitude de Petróvitch pareciam tão naturais, que Raskólnikov calou-se e fitou o magistrado com sombria curiosidade. Com um gesto recusou a água.

— Ródion Românovitch, meu amigo! Se continua assim, fica doido, afirmo-lhe. Beba; beba uns goles!

Quase à força meteu-lhe o copo na mão. Maquinalmente, Raskólnikov levou-o à boca, mas, de repente, o pôs em cima da mesa.

— Creia; teve um ataque! Se não tiver cuidado, pode ter uma recaída — observou, muito amável, o juiz de instrução, que parecia muito preocupado. — Meu Deus! É possível que se faça tão pouco caso da saúde?... O mesmo sucedeu a Dmitri Prokófitch, que esteve aqui ontem... Concordo que tenho um gênio cáustico, que sou pouco simpático, mas, meu Deus!, que significação dão às minhas pobres tagarelices! Dmitri esteve aqui ontem, depois de sua visita: estávamos jantando. Disse coisas que... Valha-nos Deus!... Foi o senhor que o mandou, não foi? Mas sente-se, sente-se....

— Eu não o mandei aqui! Mas sabia dessa visita e a razão dela — respondeu secamente Raskólnikov.

— Sabia, então?

— Sabia! E daí, que conclui?

— Concluo, Ródion Românovitch, que sei muita coisa a seu respeito; estou informado de tudo! Sei que ontem pretendeu alugar certa casa, que puxou o cordão da campainha, que fez uma pergunta sobre certa poça de sangue, que seus modos deixaram surpresos os operários e mais gente que o viu. Ah! Compreendo a situação moral em que estava... Mas essas agitações porão o senhor doido! Por toda parte suas palavras permitem que, em voz alta, lhe façam acusações. Essas insinuações estúpidas tornam-se-lhe insuportáveis e quer acabar com elas o mais breve possível. Não é verdade? Adivinhei os sentimentos que o dominam?... Apenas não só transtorna a própria cabeça, como também dá cabo de meu pobre Razumíkhin, o que é realmente uma pena! A bondade dele o expõe, mais do que a qualquer outro, a sofrer o contágio de sua doença... Quando se acalmar, hei de contar-lhe... Mas sente-se! Peço-lhe que sossegue; está transtornado. Sente-se e acalme-se.

Ele sentou-se; um tremor febril agitava-o. Ouviu com profunda surpresa Petróvitch dando-lhe demonstração de interesse. Impressionava-o sobretudo a referência à visita à casa da velha, na véspera. “Como soube disso, e para que o diz?”, pensava.

— Conheço um caso psicológico parecido, um caso mórbido — continuou Porfírio —, um homem foi acusado de um assassínio que não cometera. Pois declarou-se culpado: contou toda uma história, uma alucinação que tivera, e o que dizia era tão verossímil, parecia tanto concordar com os fatos, que não podia haver a menor dúvida. Como se pode explicar isso? Sem intenção alguma, esse indivíduo fora, em parte, causador de um crime. Quando soube que, sem o querer, facilitara o assassínio, teve tal desgosto que perdeu a razão imaginando ser ele próprio o assassino! Afinal o tribunal, revendo o processo, encontrou provas da inocência dele. Mas se não fosse isso, o que aconteceria a esse pobre-diabo! Aqui está o que o apoquenta também, Ródion! Pode-se ficar monomaníaco quando se vai de noite puxar os cordões das campainhas e fazer perguntas sobre sangue! Em minha profissão tenho tido ocasião de estudar tudo isso. É uma atração como a que leva um homem a atirar-se de uma janela ou de uma torre... O senhor está doente, Ródion Românovitch! Fez mal em negar essa doença. Devia ter consultado um médico experimentado em vez de se tratar com esse Zózimov! Isso é efeito do delírio!...

Durante um momento, Raskólnikov julgava ver tudo girar. “É possível que ainda esteja mentindo?”, perguntava. E fazia esforços para afastar essa ideia, pressentindo a que extremos ela o podia levar.

— Eu não delirava! — gritou Raskólnikov enquanto torturava o espírito para perceber até onde Petróvitch queria chegar. — Estava em perfeito juízo, entende?

— Percebo, percebo! Já ontem me disse que não tinha delírio, insistiu mesmo nesse caso! Compreendo tudo o que me pode dizer! Mas permita-me ainda uma observação, meu caro Românovitch. Se, com efeito, fosse culpado ou tivesse tomado parte nessa maldita questão pergunto: continuaria sustentando que procedera em uso da razão e não em delírio? Em minha opinião dizia o contrário: sustentaria precisamente que tinha procedido sob efeito do delírio! Pois não lhe parece?

O tom com que a pergunta foi feita admitia suspeitar uma cilada. Dizendo aquelas palavras, Porfírio voltou-se para Raskólnikov, que, do sofá, olhou silenciosamente para ele.

— Exatamente como no caso da visita de Razumíkhin. Se o senhor fosse culpado, diria que ele veio aqui por livre vontade e ocultava que o instigou a vir. Ora, ao contrário, confessa que o mandou.

Raskólnikov, que não afirmara isso, sentiu calafrios na espinha dorsal.

— Continua a mentir! — disse com voz fraca, esboçando um sorriso triste. — Quer convencer-me de que está lendo em meu rosto, que sabe o que lhe vou responder — continuou, sentindo que não pesava já as palavras que proferia —; quer meter-me medo ou troçar de mim...

Falando assim, Raskólnikov não deixava de olhar fixamente para o juiz de instrução. Logo, violenta cólera de novo lhe incendiou o olhar.

— O senhor não fez senão mentir! — exclamou. — Sabe perfeitamente que a melhor tática para um criminoso é confessar o que é impossível ocultar. Eu não acredito no senhor!

— Como sabe disfarçar! — murmurou Porfírio. — Mas apesar disso vejo que não pensa noutra coisa; é o efeito da monomania. Não acredita? Pois digo-lhe que já vai acreditando em mim um pouco e teria muito prazer em que me acreditasse completamente, porque gosto do senhor sinceramente; tenho muita simpatia pelo senhor.

Os lábios de Raskólnikov começaram a tremer.

— Creia; quero-lhe bem — continuou Porfírio tomando-lhe amigavelmente o braço. — E mais uma vez lhe digo: trate-se. Ademais, sua família veio agora para São Petersburgo: pense um pouco nela. Podia fazê-la feliz e agora só lhe causa inquietações.

— Mas que lhe importa? Como sabe disso? E, então, além de me vigiar, diz-me claramente?

— Mas atenda a que o que sei, foi o senhor quem me disse! Não reparou que na sua agitação falava espontaneamente das suas coisas, não só comigo mas com os outros? Várias particularidades interessantes foi Razumíkhin quem me contou. Ia dizer-lhe quando me interrompeu que, apesar de todo o seu espírito, não está vendo tudo claramente, por causa da sua índole desconfiada. Ora, veja, por exemplo, esse incidente da campainha; uma preciosidade, um fato inapreciável para o juiz de instrução! Refiro-lhe singelamente, e isso não lhe abre bem os olhos? Se eu o julgasse culpado, procedia deste modo? A minha linha de conduta em tal caso era certamente outra; começava, pelo contrário, por adormecer a sua desconfiança, afetando ignorar o fato, e atraía-lhe a atenção para um ponto oposto; depois, bruscamente, descarregava o golpe perguntando-lhe: “Que foi o senhor fazer ontem às dez horas da noite na casa da vítima? Por que puxou o cordão da campainha! Para que perguntou pelo sangue? Por que pediu a todo mundo que o levasse à polícia?” Aqui tem como eu teria procedido se suspeitasse do senhor. Submetia-o a um interrogatório em regra ou ordenava investigações, informava-me... Mas se eu não fiz nada disso, é porque não tenho a menor suspeita!... O senhor perdeu a noção das coisas, e não vê nada, repito-lhe!

Raskólnikov tremia, fato que não passou despercebido a Porfírio.

— O senhor mente! — gritou. — Não conheço as suas intenções, mas mente... Há pouco falava-me de outro modo: não me ilude... Mente!

— Minto? — disse Porfírio com certa vivacidade, conservando-se embora sereno e não dando importância à opinião que Raskólnikov fazia dele. — Minto? Mas que lhe disse há pouco? Eu, juiz de instrução, dei-lhe os argumentos com que o senhor podia defender-se; “a doença, o delírio, as torturas do amor-próprio, a hipocondria, a afronta recebida no comissariado de polícia etc.”. Pois não foi isto? Seja dito antes, que esses meios de defesa não são dos melhores: podiam voltar-se contra o senhor. Se dissesse “Eu estava doente, delirava, não sabia o que fazia, não me lembro de nada”, podiam responder-lhe: “Tudo isso está muito bem; mas por que é que o delírio se manifesta sempre com o mesmo caráter?... Podia manifestar-se de outras formas!” Não lhe parece?

Raskólnikov levantou-se olhando o juiz com profundo desdém.

— Afinal — disse alto e peremptoriamente, pondo-se de pé e empurrando Porfírio para trás —, afinal, quero saber se suspeita de mim. Fale, Petróvitch, explique-se sem rodeios, imediatamente!

— Valha-o Deus! Está como as crianças que pedem a Lua! — respondeu Porfírio rindo. — Mas que necessidade tem de saber tanto, se até agora o deixaram livre? Por que se assusta desse modo? Por que vem aqui sem ninguém o chamar? Que razões tem para isso?

— Repito-lhe — gritou Raskólnikov enraivecido — que já não posso suportar...

— O quê? A dúvida? — interrompeu o juiz de instrução.

— Não me leve a extremos! Não quero!... Não posso nem quero!... Ouve? — continuou Raskólnikov em voz alta, dando outro murro na mesa.

— Fale baixo! Podem ouvi-lo! Vou dar-lhe um conselho a sério: tome cautela! — murmurou Porfírio.

O rosto do juiz perdera a expressão de bonomia; franziu a testa, falava como senhor absoluto. Contudo isso durou um instante. Intrigado, Raskólnikov logo sentiu novo acesso de cólera; mas, fato curioso, ainda dessa vez, apesar de ter chegado ao auge do desespero, obedeceu à ordem de falar baixo. Sentia que não podia deixar de o fazer, e essa ideia mais o irritou...

— Não me deixarei martirizar! — sussurrou; e reconhecendo instantaneamente, com ódio, que teria de obedecer à ordem, deixou-se empolgar por um ódio maior ainda. — Prenda-me, vigie-me, investigue, mas proceda como de costume, e não esteja brincando comigo!

— Não se preocupe com o costume — interrompeu Porfírio com ironia, ao passo que olhava com mal dissimulado júbilo para Raskólnikov. — Foi como amigo que o convidei a vir ver-me!

— Não quero a sua amizade; não preciso dela. Percebeu? E agora apanho o boné e saio. Que me diz, se tem intenção de prender-me?

Mas quando chegava à porta, Porfírio tomou-lhe o braço.

— Quer ver uma surpresa? — perguntou o juiz de instrução, cada vez mais animado, o que desnorteava Raskólnikov.

— Que surpresa? Que quer dizer? — perguntou Ródion parando e olhando Porfírio com certa inquietação.

— Uma surpresazinha ali atrás da porta! (Apontava para a porta que comunicava com os seus aposentos.) Até a fechei à chave para que não me fugisse.

— Que é? Onde? Quem?

Raskólnikov aproximou-se da porta e quis abri-la, mas não pôde.

— Está fechada! Aqui está a chave!

Dizendo isto, o juiz de instrução tirou a chave do bolso e mostrou-a.

— Mentes! — gritou Ródion. — Mentes, maldito palhaço!

E atirou-se a Porfírio, que se desviou sem manifestar o menor receio.

— Compreendo tudo! Tudo! — gritou Raskólnikov. — Mentes e desesperas-me, para eu me trair...

— Mas não é preciso trair-se. E não grite, senão chamo alguém.

— Mentes, não tens surpresa nenhuma. Chama tua gente. Sabias que eu estava doente e quiseste irritar-me, para me arrancares uma confissão. Estás onde querias chegar! Mas as provas? Não as tens, baseias-te em pobres suposições, nas conjeturas de Zametov!... Conhecias meu caráter, quiseste desnortear-me, até mandares teus agentes... Espera-os, não é assim?

— Mas por que fala em agentes? Que ideia! A forma do costume, para servir-me dos seus próprios termos, não permite isso. O senhor não percebe nada disso, meu caro amigo... — murmurou Porfírio, que se encostara à porta para ouvir.

Efetivamente havia certo barulho na sala contígua.

— Ah! Aí vêm eles — exclamou Raskólnikov, manda-os entrar todos: delegado, testemunhas; manda entrar quem quiseres! Estou pronto!

Mas neste momento deu-se um caso tão extraordinário, que nem Raskólnikov nem Petróvitch o teriam podido prever.


Capítulo VI

Quando mais tarde relembrou a cena, foi assim que Raskólnikov a entendeu.

O ruído na outra sala aumentou de repente e a porta abriu-se.

— Quem é? — gritou colérico Porfírio. — Eu tinha dado ordem.

Ninguém respondeu, mas a origem do ruído adivinhava-se: alguém queria entrar no gabinete do juiz e havia quem o impedisse à força.

— Mas que é? — repetiu Porfírio.

— É que trouxeram o acusado Micolai — disse alguém.

— Levem-no! Espere lá!... Mas para que o trouxeram? Que desordem! — censurou o magistrado dirigindo-se para a porta.

— Mas foi ele que... — tornou a mesma voz parando de súbito.

Durante momentos ouviu-se o barulho de uma luta entre dois homens; depois um deles repeliu o outro com força e entrou bruscamente no gabinete.

Tinha um aspecto singular. Olhava para a frente, mas parecia não ver ninguém. Nos olhos brilhantes lia-se a firmeza de uma resolução. Estava lívido como um condenado a caminho da forca. Os lábios tremiam ligeiramente.

Era muito novo ainda, magro, de estatura mediana e trajava como um operário. Tinha o cabelo cortado rente; a fisionomia era delicada. O outro, um policial que ele tinha repelido, entrou após, agarrando-o pelo braço; mas Micolai conseguiu soltar-se.

À porta agrupavam-se curiosos. Tudo isso se passou em muito menos tempo do que é preciso para dizer.

— Vá-te, ainda é cedo! Espera que te chamem!... Para que o trouxeram? — resmungou Petróvitch irritado e surpreendido.

Mas de repente Micolai pôs-se de joelhos.

— Que fazes? — gritou o juiz de instrução cada vez mais admirado.

— Perdão! Eu sou o criminoso! Sou o assassino! — disse Micolai com voz forte, apesar da comoção que o asfixiava.

Durante segundos houve um silêncio profundo, como se todos tivessem sido atacados de síncope; o policial não tentou segurar o preso, e dirigiu-se para a porta onde ficou imóvel.

— Que dizes? — gritou Porfírio quando o assombro lhe permitiu falar.

— Sou... o assassino... — repetiu Micolai, depois de breve silêncio.

— Como?... Tu?... Quem assassinaste?

O juiz de instrução estava verdadeiramente atordoado.

Micolai não respondeu logo.

— Eu... assassinei... com um machado Alena Ivanovna e a irmã, Isabel. Tinha o espírito transtornado... — acrescentou de repente; depois calou-se, conservando-se ajoelhado.

Tendo ouvido a resposta Petróvitch parecia pensar profundamente; depois, com um gesto violento, mandou sair as pessoas presentes. Todos obedeceram e a porta fechou-se.

Raskólnikov, de pé, a um canto, olhava Micolai. Durante algum tempo o juiz de instrução observou atentamente a ambos. Por fim falou a Micolai de mau humor:

— Espera que te interroguem; não te antecipes. Eu não te perguntei se tinhas o espírito transtornado. Responde agora: mataste?

— Eu sou o assassino... confesso — respondeu Micolai.

— Ah!... E como mataste?

— Com um machado. Tinha-o levado de propósito para isso.

— Não tenhas pressa! Sozinho?

Micolai não percebeu a pergunta.

— Não tinhas cúmplices no crime?

— Não. Mitka está inocente, não tomou parte.

— Não te apresses em desculpar Mitka; falei nele?... Mas como se explica que os dois fossem vistos descendo a escada a correr?...

— Foi de propósito que saí atrás de Mitka, para desviar as suspeitas.

— Basta! — gritou Porfírio furioso. — Ele não diz a verdade! — murmurou como se falasse sozinho, e de súbito seus olhos encontraram-se com os de Raskólnikov, cuja presença esquecera durante o diálogo. Vendo-o, o juiz de instrução ficou perturbado. Falou-lhe logo.

— Ródion Românovitch, desculpe-me, já não tem aqui nada que fazer... ora veja... que surpresa!

Tomara-o pelo braço, indicando-lhe a porta de saída.

— Parece que não esperava por isso — observou Raskólnikov.

Naturalmente o que se passara era ainda para ele um enigma; contudo recobrara grande parte da calma.

— Mas o senhor também não contava com este episódio. Como a sua mão treme!

— Também o senhor treme, Porfírio Petróvitch.

— É verdade; não esperava por isso...

Estava à porta. O juiz de instrução queria evidentemente ver-se livre dele.

— Então não mostra a surpresa prometida?

— Com que dificuldade ganhou forças para falar e já fala com ironias. É um homem muito singular, Ródion! Até mais ver...

— Talvez fosse melhor dizer adeus!

— Será como Deus quiser! — disse Petróvitch com um riso forçado.

Atravessando a secretaria notou que os empregados olharam-no muito. Na antecâmara reconheceu, entre a multidão, os dois homens daquela casa a quem pedira que o levassem ao comissariado de polícia. Pareciam esperar alguma coisa. Mas ouviu a voz de Porfírio. Voltou-se e viu o juiz de instrução correndo atrás dele.

— Uma palavra. Ródion Românovitch, esta questão há de resolver-se como Deus quiser; mas por causa das formalidades terei que pedir-lhe algumas informações... e por isso tornaremos a ver-nos, com certeza!

E Porfírio parou diante dele, sorrindo.

— Com certeza! — repetiu.

Poderia supor-se que queria ainda dizer mais alguma coisa, mas calou-se.

— Desculpe-me aqueles modos de há pouco, Petróvitch... excitei-me demais — começou a dizer Raskólnikov, que, senhor de si, sentia uma vontade irresistível de troçar do magistrado.

— Não falemos mais nisso — disse Porfírio quase alegre. — Eu mesmo... tenho uns modos muito desagradáveis, confesso. Mas até breve! Se Deus quiser havemos de ver-nos ainda muitas vezes!

— E havemos de ser amigos? — perguntou Raskólnikov.

— Havemos de dar-nos muito — respondeu como um eco Petróvitch, piscando os olhos e olhando seriamente o seu interlocutor. — Vai a alguma festa de aniversário?

— A um enterro.

— Ah, bem! Tenha cuidado com a saúde...

— De minha parte, não sei o que hei de desejar! — respondeu Raskólnikov, começando a descer a escada. Mas de súbito voltou-se para Porfírio. — Desejo-lhe maior sucesso que o de hoje. Como as suas funções são cômicas!

A estas palavras o juiz de instrução, que já ia para o gabinete, perguntou ainda:

— Que têm elas de cômico?

— Ora essa! Aí está o caso desse pobre Micolai... Como devia tê-lo atormentado, perseguindo-o para lhe arrancar confissões! Dia e noite, por certo, dizia-lhe em todos os tons: “És o assassino, és o assassino...” Perseguiu-o sem cessar segundo o seu método psicológico. E agora que o desgraçado se diz culpado, começa a zombar dele, cantando-lhe outra ária. “Mentes, não és o assassino, não o podes ser, não é verdade.” Ora, depois disso não se tem direito de achar cômicas as suas funções?

— Ah! Reparou, então, que observei a Micolai que ele não falava a verdade?

— Como não havia de notar?

— Tem o espírito muito sutil, nada lhe escapa! E tem graça, cultiva a ironia. O senhor tem veia humorística. Diz-se que era a característica de Gógol...

— É verdade, de Gógol... Até outra vista.

— Até outra vez.

Raskólnikov foi diretamente para casa; deitou-se no divã e, durante um quarto de hora, tentou pôr em ordem as ideias. Não tentou sequer explicar o caso de Micolai, convencido de que havia um mistério cuja chave, naquela ocasião, era inútil procurar. Ademais, não tinha ilusões sobre as consequências do incidente: a confissão do operário em breve seria reconhecida como falsa, e então as suspeitas recairiam novamente sobre ele. Mas enquanto esperava os acontecimentos era livre, e devia tomar precauções, prevendo o perigo que julgava próximo.

Até onde estava ameaçado? A situação começava a clarear. Sentia calafrios, ao lembrar-se da entrevista com o juiz de instrução. Decerto não podia compreender todas as ideias de Porfírio, mas o que adivinhava era mais que suficiente para que visse o terrível perigo de que se salvara. Um pouco mais e se perderia irremediavelmente. Conhecendo-lhe a irritabilidade o magistrado caíra sobre ela e muito audazmente descobrira o jogo. Raskólnikov comprometera-se muito; todavia, as imprudências que reconhecia ter cometido não constituíam uma prova; tinham apenas importância relativa. Não se enganaria pensando assim? Qual era o fim a que Porfírio visava? Teria realmente maquinado qualquer intriga, armado um golpe? Mas como era esse golpe? Sem a presença imprevista de Micolai, como terminaria aquela visita?

Porfírio mostrara quase todos os trunfos — de fato, arriscara-se algo em mostrá-los —, e se tivesse algum escondido na manga do casaco, pensava Raskólnikov, tê-lo-ia mostrado também. Qual seria a “surpresa”? Era uma brincadeira? Teria algum significado? Poderia trazer escondido algum fato, alguma prova irrefutável de culpa? Sua visita de ontem? Onde se metera? Onde estaria hoje? Se Porfírio tivesse alguma prova, só poderia estar ligada à visita...

Raskólnikov sentara-se no divã, os cotovelos sobre os joelhos e a cabeça entre as mãos. Um tremor nervoso tomava-lhe todo o corpo. Por fim, levantou-se, pegou o boné e, depois de pensar um momento, dirigiu-se para a porta.

“Pelo menos por hoje, não há nada a temer.” De repente, teve uma grande ideia: lembrou-se de ir à casa de Catarina. Era muito tarde para o enterro, mas chegava a hora do jantar, e aí veria Sônia.

Parou, refletiu, e um triste sorriso ficou-lhe nos lábios:

“Hoje! Hoje!”, repetiu. “Sim, hoje mesmo! É preciso...”

Ao abrir a porta, alguém lhe poupou esse trabalho. Recuou espantado, vendo surgir o enigmático indivíduo da véspera, o homem que saíra de debaixo da terra.

A misteriosa personagem parou, e depois de olhar silenciosamente para ele, entrou. Vestia como na véspera, mas dir-se-ia que a fisionomia não era a mesma. Parecia aflito, soltando fundos suspiros do peito.

— Que deseja? — perguntou-lhe Raskólnikov pálido como um morto.

O outro não respondeu e curvou-se até o solo; pelo menos bateu no soalho com o anel que trazia na mão direita.

— Quem é o senhor? — perguntou Raskólnikov.

— Peço-lhe perdão — disse o homem em voz muito baixa.

— De quê?

— Dos meus maus pensamentos!

Olharam um para o outro.

— Estava zangado... Quando outro dia, com o espírito turvo pela bebida, o senhor perguntou pelo sangue, e pediu que o levasse à polícia, vi com pesar que ninguém dava importância ao que o senhor dizia, tomando-o por um bêbado. Mas eu, lembrando-me da sua morada, vim ontem aqui...

— Foi o senhor que veio procurar-me? — interrompeu Raskólnikov.

Começava a fazer-se luz no seu espírito perturbado.

— Sim. Insultei-o vilmente.

— Estava então naquela casa...?

— Estava à porta, quando o senhor foi lá. Não se lembra? Moro lá há muito tempo... Sou curtidor e preparador de peles e levo trabalho para casa... acima de tudo, estava zangado...

Raskólnikov lembrou-se então de toda a cena da antevéspera.

Com efeito, além dos dvorniks tinha mais gente à porta. Alguém aconselhou que o levassem logo à polícia. Não podia lembrar-se do rosto de quem fizera aquela observação, nem mesmo agora o reconheceria, mas lembrava-se de ter dito qualquer coisa à toa.

Assim se explicava o mistério da véspera! E, sob a horrível impressão que lhe causava uma coisa tão insignificante, estivera quase a perder-se! Esse homem não pudera contar senão que ele se apresentara para alugar a casa da velha e perguntara pelo sangue. Portanto, salvo este passo dado por um doente delirante. Porfírio não sabia mais nada; não havia fatos, nada de positivo. “Por consequência, se não surgiram novos acontecimentos (e não surgirão, com certeza), que me podem fazer? Mesmo que me prendam, como poderão provar minha culpa?”

Outra conclusão tirava Raskólnikov daquelas palavras: havia pouco ainda Petróvitch soubera da sua visita à casa da vítima.

— O senhor disse hoje a Porfírio que eu tinha estado lá? — perguntou ele tomado por uma ideia súbita.

— Qual Porfírio?

— O juiz de instrução.

— Disse-lhe. O dvornik não quis ir, mas eu fui.

— Hoje? Não foi?

— Cheguei dois minutos antes do senhor. Ouvi tudo. Ele fez-lhe passar um mau quarto de hora ali!

— Onde? O quê? Quando?

— Eu estava lá, na sala junto ao gabinete. Estive ali o tempo todo desde que chegou lá.

— Como? Então o senhor era a tal surpresa? Mas como foi isso? Conte-me, por favor.

— Vendo que os dvorniks se recusavam a avisar à polícia sob pretexto de que era tarde e o comissariado estava fechado, resolvi saber quem era o senhor. No dia seguinte, ontem, tomei informações e fui ter com o juiz de instrução. Da primeira vez que fui lá, não estava. Uma hora depois voltei, mas não me recebeu; finalmente, da terceira vez mandou-me entrar. Contei como as coisas se passaram; ouvindo-me, pulava no gabinete como uma bola de borracha: “Aí está como esses peraltas trabalham!”, exclamou. “Se soubesse disso mais cedo mandava-o prender!” Em seguida saiu, chamou alguém com quem falou num canto da sala; depois voltou-se para mim e pôs-se a interrogar-me, proferindo imprecações. Ficou certo de tudo. Contei-lhe que o senhor não se atrevera a responder-me e que não me reconhecera. Ele continuava dando murros, gritando e pulando. Nisto vieram anunciar a sua chegada: “Retira-te para ali e não te mexas”, disse-me. Quando lhe trouxeram Micolai ele despediu o senhor, e depois mandou-me sair.

— E ele interrogou Micolai na sua presença?

— Saí logo depois do senhor, e só então é que começou o interrogatório.

Terminando a sua história o burguês curvou-se outra vez até o chão.

— Perdoe-me a denúncia e o mal que lhe fiz.

— Que Deus te perdoe! — respondeu Raskólnikov.

O outro curvou-se novamente e saiu.

“Não há acusações seguras, não há provas”, pensou Raskólnikov, sentindo renascer-lhe a esperança. E saiu de casa.

“Podemos ainda lutar”, disse com um riso feroz, ao descer a escada. E era a si próprio que ele odiava, pensando, humilhado, na sua “pusilanimidade”.

 

 

 


C   O   N   T   I   N   U   A