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GRANDES OBRAS DE DOSTOIÉVSKI
GRANDES OBRAS DE DOSTOIÉVSKI

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

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GRANDES OBRAS DE DOSTOIÉVSKI / Parte II 

 

 

 

 

 

Quinta parte

Capítulo I

No dia seguinte àquele em que teve a explicação com Dúnia e a mãe dela, Lujine compreendeu com grande pesar que o rompimento, em que na véspera ainda não podia crer, era um fato consumado. A serpente do amor-próprio mordeu-lhe o coração durante toda a noite. Logo que se levantou, o primeiro ato de Petróvitch foi ver-se ao espelho, receava ter tido algum derramamento bilioso.

Felizmente essa suposição não tinha fundamento. Vendo o rosto pálido, sentiu certa satisfação ao pensar que não seria difícil substituir Dúnia, e, quem sabe, talvez com vantagem. Mas logo abandonou essa esperança e cuspiu para o lado, o que fez sorrir com ar trocista o seu amigo e companheiro de quarto, André Semênovitch Lebeziátnikov.

Petróvitch notou aquele sorriso e lançou-o na conta do amigo, conta que estava bem carregada há muito tempo. Seu desespero aumentou mais ainda, pensando que não lhe devia ter contado essa história. Uma asneira, que seu temperamento o obrigara a cometer naquela tarde: cedeu à necessidade de desabafar.

Durante o dia o azar perseguiu Lujine. No tribunal, a questão de que tratava reservava-lhe um desgosto. O que sobretudo o irritava era não poder dar razão ao proprietário da casa que tinha arrendado por causa do seu próximo casamento. Esse indivíduo, de origem alemã, era um antigo operário que enriquecera. Não aceitava transação alguma e reclamava o pagamento estipulado no contrato, ainda que Petróvitch lhe entregasse a casa imediatamente.

O estofador não era menos exigente. Não queria restituir um só rublo do que Petróvitch dera de sinal pelo mobiliário que encomendara para a sua nova residência de casado. “Será possível que eu tenha de casar por causa da mobília?”, dizia Lujine rangendo os dentes e, ao mesmo tempo, apegando-se a um lampejo de esperança. “O mal não terá remédio?” A lembrança dos encantos de Dunetchka feriu-lhe o coração como um espinho voluptuoso. Nesse terrível momento, se pudesse por um simples desejo tirar a vida a Raskólnikov, tê-lo-ia matado imediatamente.

“Outra tolice minha foi não lhes dar dinheiro”, pensava voltando tristemente para o quarto de Lebeziátnikov, “por que fui tão avarento? Andei mal. Deixando-as momentaneamente sem recursos pensei que elas veriam em mim uma providência, e no fim fogem-me das mãos!... Se tivesse dado 1.500 rublos para o enxoval, se comprasse presentes no Armazém Inglês, meu procedimento seria a um tempo nobre e... hábil! Não me abandonavam tão facilmente. Com os seus escrúpulos julgar-se-iam obrigadas a restituir-me presentes e dinheiro, e isso havia de ser-lhes difícil! E era um caso de consciência: como, diriam, se há de despedir um homem tão generoso e delicado?... Fiz uma grande asneira!”

Pedro Petróvitch rangeu de novo os dentes, e chamou-se imbecil... mas, claro, em voz baixa.

Chegando a esta conclusão, voltou para casa muito mais aborrecido do que quando saíra. Contudo, despertou-lhe a curiosidade o movimento que havia em casa de Catarina com os preparativos para o jantar. Já na véspera ouvira falar em tal; lembrou-se até que fora convidado, mas suas preocupações o tinham impedido de atender ao convite.

Na ausência de Catarina (que estava no cemitério), a senhora Lippelvechzel andava dando ordens em volta da mesa. Conversando com ela, Pedro Petróvitch soube que se tratava de um verdadeiro banquete fúnebre para o qual tinham convidado todos os inquilinos do prédio, entre os quais havia alguns que nem conheciam o finado. André Semênovitch recebera convite, apesar de ter cortado relações com Catarina. Enfim, desejava-se muito que Petróvitch honrasse o ato com a sua presença, visto que era o mais respeitável de todos os moradores.

Catarina, esquecendo todos os agravos da senhoria, entendeu que devia dirigir-lhe um convite; portanto, era com a maior satisfação que Amália Ivanovna cuidava naquela ocasião dos preparativos. Vestira uma rica toilette; e tinha grande vaidade em apresentar-se com um belo vestido de seda preta. Informado de todas essas coisas, Pedro Petróvitch voltou pensativo para o seu quarto, ou, antes, para o de André. Soubera que Raskólnikov era um dos convidados.

Naquele dia, por qualquer motivo, André não saíra. Entre ele e Petróvitch existiam relações um tanto singulares, explicáveis, aliás: Petróvitch detestava-o quase, desde o dia em que lhe pedira hospitalidade, não se sentindo por isso à vontade diante dele.

Chegando a São Petersburgo, Lujine fora para a casa de Lebeziátnikov, não só por economia, mas por outra razão. Na província ouvira falar de André, seu antigo pupilo, como um dos rapazes, na capital, de ideias mais avançadas e ainda como homem que ocupava uma situação importante em alguns centros que se tornaram verdadeiramente lendários. Esta circunstância interessava-o. Há muito sentia um vago receio desses centros poderosos que sabiam tudo, não respeitavam ninguém e declaravam guerra a todo mundo.

É inútil acrescentar que a distância em que se achava não lhe permitia ver bem as coisas. Como os outros, ouvira dizer que havia em São Petersburgo progressistas, niilistas etc.; mas no seu espírito, como no da maioria, estas palavras tinham uma significação exagerada até o absurdo. O que ele receava especialmente eram as devassas feitas contra certos indivíduos pelo partido revolucionário. Certas lembranças dos primeiros tempos da sua carreira contribuíram bastante para este receio, desde que acariciara o sonho de ficar em São Petersburgo de uma vez.

Duas personagens de alta categoria que o tinham protegido sofreram os ataques dos anarquistas, sentindo-lhes as terríveis consequências. De modo que, logo que chegou a São Petersburgo, Pedro Petróvitch observou de que lado soprava o vento, e, pelo sim, pelo não, tratou de conquistar as boas graças da nova geração. Contava para isso com André. Pela conversa que o vimos ter com Raskólnikov, vê-se que já se apropriara, em parte, da linguagem dos modernos.

Cedo descobriu que André Semênovitch era um simplório, mas isto de modo algum tranquilizava Pedro Petróvitch. Mesmo que estivesse certo de que todos os progressistas fossem estúpidos como André, sua inquietação não ficaria acalmada. Todas as doutrinas, ideias, sistemas com que André Semênovitch o intoxicara tornaram-se sem interesse para ele. Tinha objetivo próprio — simplesmente queria descobrir logo o que ocorria em São Petersburgo. Os progressistas tinham poder ou não? Devia temê-los? Denunciariam algum negócio dele? Qual era, precisamente, o objetivo do ataque deles? Poderia ele enfrentá-los e evitá-los se eram realmente poderosos? Devia fazer isto ou não? Lucraria algo por intermédio deles? Centenas de perguntas desse tipo apresentavam-se-lhe à mente.

André era empregado num ministério. Baixo, anêmico, escrofuloso, cabelos de um louro quase branco e suíças em forma de costeleta, que eram a sua vaidade. Estava quase sempre doente dos olhos. Bom homem, no fundo era um razoável pedante, falava afetado, com arrogância e entono que contrastavam ridiculamente com a sua figura débil.

Aliás, era tido por um dos bons inquilinos da Lippelvechzel porque não bebia e pagava pontualmente. À parte estes méritos, André era realmente um insignificante. Um entusiasmo de simplório levara-o a colocar-se sob a bandeira progressista. Era um dos numerosos ingênuos escravos da ideia em moda, e que muitas vezes, pela parvoíce, desacreditam a causa.

Ademais, apesar do seu belo caráter, Lebeziátnikov achou insuportável o seu hóspede e antigo tutor Pedro Petróvitch. A antipatia era recíproca. Apesar da sua simplicidade, André começava a perceber que Petróvitch o desprezava, e que “não havia nada a fazer com aquele homem”. Mostrava-lhe as teorias de Fourier e de Darwin, mas Petróvitch, que o ouvira com ar trocista, não hesitava em dizer coisas que magoavam o jovem catequizador. O fato é que Lujine acabou suspeitando que Lebeziátnikov não era apenas um imbecil, mas também um falador sem conceito algum no partido a que pertencia. Sua função era a propaganda, mas ainda aí não estava muito seguro, porque tropeçava a cada passo ao expor as teorias; decididamente, que se podia recear de tal criatura?

Note-se que desde que se instalara em casa de André (sobretudo nos primeiros dias) Petróvitch aceitava-lhe com prazer, ou pelo menos sem reserva, as atenções; quando ele, por exemplo, manifestava um grande zelo em formar uma comuna na rua dos Burgueses, e lhe dizia “O senhor é bem inteligente para se zangar com sua mulher um mês depois do casamento, se ela tiver um amante; um homem inteligente como o senhor não batiza os filhos” etc. etc., Petróvitch não pestanejava, tanto lhe agradava o diploma de inteligente que ele lhe dava.

Vendera alguns títulos de manhã e, sentado à mesa, contava o dinheiro que recebera. André Semênovitch, que quase nunca tinha dinheiro, passeava pelo quarto afetando indiferença pelos maços de notas. Petróvitch não acreditava naquela indiferença. Por seu lado, André adivinhava com pesar o pensamento cético de Lujine e dizia consigo que ele era bem capaz de lhe estender diante dos olhos todo seu dinheiro para o humilhar, e lembrar-lhe a distância em que a fortuna os colocava.

Dessa vez Petróvitch estava de má disposição e prestava menos atenção do que de hábito a Lebeziátnikov, que desenvolvia seu tema favorito: o estabelecimento de uma nova comuna de outro gênero. Não interrompia suas contas senão para fazer alguma observação irônica e desagradável. Mas o “humano” André não se alterava. O mau humor de Lujine explicava-o pelo despeito de um noivo que fora dispensado. Tinha pressa de tocar nesse assunto, porque desejava lançar a respeito, algumas observações progressistas, que podiam consolar o amigo e contribuir para o seu desenvolvimento.

— Parece que se prepara um banquete em casa da viúva? perguntou à queima-roupa Lujine, interrompendo André no ponto mais vivo do seu discurso.

— Como se o senhor não soubesse. Ainda ontem lhe falei nisto, expondo-lhe até a minha opinião sobre essas cerimônias... Pelo que ouvi dizer, ela convidou-o.

— Eu não podia crer que, na miséria em que está, essa imbecil gastasse num jantar todo o dinheiro que recebeu desse outro imbecil... Raskólnikov. Há pouco ao entrar fiquei admirado, vendo esses preparativos... Os vinhos!... E parece que convidou muita gente. O diabo que a entenda! — continuou Petróvitch, que parecia falar com intenção. — Disse que ela me convidou? — perguntou ainda levantando a cabeça. — Quando? Não me lembro. Mas não vou. Que vou fazer lá? Conhecia-a apenas de ontem, quando trocamos poucas palavras. Disse-lhe que como viúva de um funcionário podia obter algum auxílio. Seria por isto que me convidou para o banquete?

— Eu também não tenho intenção de ir — disse Lebeziátnikov.

— Não faltava mais nada! O senhor já lhe bateu!... Compreende-se que tenha escrúpulo em ir jantar lá.

— Bati-lhe? A quem se refere — perguntou Lebeziátnikov, ficando muito vermelho.

— Refiro-me a Catarina Ivanovna, em quem bateu há de haver um mês! Soube-o ontem... Ora, aí estão as suas convicções!... Aí está o seu modo de resolver a questão da mulher!

Dita esta frase que o aliviou, continuou a contar o dinheiro.

— É uma infâmia; uma calúnia! — respondeu logo Lebeziátnikov, que não gostava que lhe falassem nisso. — Não houve nada disso! O que lhe contaram é falso. Defendi-me, apenas. Foi Catarina que se atirou a mim para me arranhar... Puxou-me pelas suíças... Todos, penso eu, têm o direito de defender-se. Ademais, sou inimigo da violência, venha de onde vier, por princípios, porque é despotismo. Que devia eu fazer? Deixá-la bater-me? Repeli-a, apenas.

— Ah!, ah!, ah! — ria Lujine, maliciosamente.

— O senhor, por estar de mau humor, quer sofismar; mas isto não significa nada, não tem relação com a questão da mulher. Eu fiz este raciocínio, de que se está admitido que o homem é igual à mulher em tudo, até na força (como agora começa a sustentar-se), então a igualdade deve existir também neste caso. Refleti que não havia motivo para debater esta questão, porque nas sociedades futuras não haverá lutas, pela simples razão de que não haverá disputas... Portanto é absurdo pensar na igualdade da luta. Eu não sou tão tolo... ainda que, afinal, haja conflitos... isto é, mais tarde não os haverá... mas por ora ainda não é possível evitá-los... Mas com os diabos, com o senhor uma pessoa atrapalha-se... Não é isso que me leva a não aceitar o convite. Se não vou lá jantar é somente por causa dos princípios, para não sancionar com a minha presença o costume desses jantares de enterro, ora aqui tem! Aliás, podia ir para troçar de tudo aquilo... Felizmente não vão padres lá, porque se fossem eu não faltaria.

— Quer dizer que ia ao jantar da mulher para falar mal dela e da forma por que o recebia; não é verdade?

— Não era para falar mal; era para protestar, e com um fim útil. Eu posso, indiretamente, auxiliar a propaganda civilizadora, como é dever de todos. Talvez essa missão se cumprisse melhor se houvesse menos pieguices. Eu posso semear a ideia, o grão... Desse grão nascerá um fato. Trabalhar assim prejudica alguém? Primeiro arrepiam-se, mas depois compreendem que se lhes prestou um serviço útil... O senhor sabe, Terebieva (pertencente, hoje, à comuna) foi censurada quando abandonou a família e... se devotou. Ela escreveu aos pais que não continuaria a viver convencionalmente e entregar-se-ia ao casamento livre; disseram-lhe que fora muito brutal, que os devia ter poupado e escrito em termos mais agradáveis. Acho tudo isso bobagem e que não há necessidade de brandura; ao contrário, é necessário o protesto. Varenta esteve casada sete anos, abandonou os dois filhos, e disse sem rebuços, em carta, ao marido: “Concluí que não posso ser feliz contigo. Nunca te perdoarei ter-me escondido existir outra organização social, ou seja, a comuna. Só tardiamente aprendi esta lição com o magnânimo homem a quem me entreguei e com quem estou estabelecendo uma comuna. Falo claramente por considerar desonesto enganar-te. Faça o que entenderes. Não penses em meu regresso, és um retrógrado. Desejo que sejas feliz.” Assim deviam ser escritas todas as cartas!

— Esta Terebieva é aquela que já casou-se pela terceira vez?

— Não, é o segundo casamento apenas! Mas que importa que seja o quarto ou o 15º? Tudo é tolice! Se alguma vez lastimo a morte de meus pais é neste momento, e penso qual protesto lhes lançaria em rosto se ainda vivessem. Intentaria alguma coisa propositadamente... Mostrar-lhes-ia! Assombrá-los-ia! Lamento realmente que eles não mais vivam!

— Seja! — interrompeu Petróvitch, — Mas diga-me: conhece a filha do falecido, essa magricela... diz-se que ela... É verdade?...

— Pois então? Quanto a mim, minha convicção é que a situação dela é a normal da mulher. Por que não? Distingamos. Na sociedade atual este modo de vida não é normal, porque é forçado; mas na sociedade futura será absolutamente normal porque será livre. Agora mesmo ela tinha obrigação de o seguir: estava desgraçada; por que não disporia livremente do seu capital? Bem entendido que na sociedade futura o capital não existirá, mas a participação da mulher terá outro significado, regulado por uma forma racional. Quanto a Sônia Semenovna, vejo o seu procedimento como um protesto contra a organização social e tenho-lhe por isso muita estima. Direi mais: quando a vejo, sinto-me satisfeito...

— Contudo, disseram-me que a tinha expulsado daqui!

Lebeziátnikov irritou-se.

— Outra mentira! Não houve isso! Catarina Ivanovna contou essa história de um modo falso porque não percebeu nada! Eu jamais quis favores de Sófia Semenovna. Limitava-me simplesmente a desenvolvê-la, sem nenhum pensamento reservado, esforçando-me por lhe despertar a ideia do protesto... Não fiz outra coisa: ela própria compreendeu que não podia continuar a viver aqui!

— Convidaram-na para a comuna? Ah!, ah!

— Recolha seu riso, é inapropriado. Deixe-me contar-lhe! Não entende? Não existe tal papel em uma comuna, esta é estabelecida para que não haja semelhante papel. Em comuna tal função é transformada na essência. O que aqui é estúpido, lá é sensível; o que nas atuais condições sociais é inatural, torna-se perfeitamente natural na comuna. Tudo depende do ambiente. O homem em si nada vale. Vivo em bons termos com Sônia Semenovna até hoje, provando que ela nunca me julgou tê-la prejudicado. Atualmente procuro atraí-la para a comuna, mas em bases diferentes das em que vive. De que se ri? Queremos fundar uma comuna com bases especiais, mais amplas. Progredimos em nossas convicções. Rejeitamos muito mais! Se Dobroliúbov e Bielínski saíssem do túmulo ter-me-iam como adversário! Neste intervalo, continuo desenvolvendo Sófia Semenovna. Tem um belo, belíssimo caráter!

— E se aproveita então desse caráter?

— Não, não! Pelo contrário!

— Pelo contrário, é boa! Sim, senhor!...

— Pode acreditar-me: por que lhe havia de esconder a verdade? E, sabe? há mesmo uma coisa que me admira: ela parece sempre contrafeita, tem um pudor, um recato...

— E o senhor então desenvolve-a? Ah!, ah! Demonstra-lhe que esse pudor é imbecil.

— Não! Não! Oh! Que sentido tão grosseiro, tão estúpido, o senhor dá à palavra desenvolver! Como está atrasado!... Não vê nada! Nós procuramos a liberdade da mulher e o senhor pensa somente na porcaria. Pondo de parte o caso da castidade e do pudor, coisas inúteis e até absurdas, admito perfeitamente as reservas dela diante de mim, visto que assim usa da sua liberdade e exerce os seus direitos. Certamente, se ela me dissesse “quero que sejas meu” eu seria feliz, porque ela agrada-me; mas no atual estado de coisas ninguém é mais delicado nem mais conveniente para com ela do que eu. Nunca fizeram justiça às qualidades dela... mas eu não a perco de vista e espero — aí está!

— Dê-lhe um presente. Talvez ainda não pensasse nisto!

— O senhor não percebe, já lhe disse! A sua situação permite-lhe esses sarcasmos, mas não é o que o senhor julga. O senhor despreza-a. O senhor, fundando-se num fato que julga ser desonesto, não trata com humanidade essa criatura. Pois não sabe que caráter tem ela! Só estou triste porque ultimamente ela abandonou a leitura dos livros que lhe emprestei. Entristeço-me, também, em sabê-la com energia e resolução para protesto, — como já demonstrou uma vez, e ter tão pouca autoconfiança, independência para romper os liames de certos preconceitos e ideias tolas. Ainda assim, entende alguns pontos, por exemplo o beija-mão, isto é, que seja um insulto para a mulher o homem beijar-lhe a mão, por ser símbolo da desigualdade. Debatemos a questão; esclarecia-a. Ouviu atentamente meu relato sobre associações trabalhistas da França. Agora estou ensinando-lhe o processo de como entrar em um quarto na futura sociedade.

— E como é isto?

— Ultimamente, discutimos a respeito: um membro da comunidade tem o direito de entrar no quarto de um outro, seja homem ou mulher, a qualquer hora? Decidimos que tem!

— Isto pode ocorrer num momento impróprio! Ah, ah!

Lebeziátnikov ficou verdadeiramente aborrecido.

— Pensa sempre em inconveniências! — gritou com aversão. — Passa! Como me envergonho por ter prematuramente falado sobre a vida privada ao expor nosso sistema! É sempre um escolho no caminho para pessoas como o senhor, que ridicularizam antes de entender! Passa! Defendo a opinião de que este assunto não deve ser revelado a um principiante, que ainda não tenha fé no sistema. E diga-me, por favor, que acha de tão vergonhoso em uma latrina? Eu seria o primeiro a candidatar-me a limpar qualquer latrina. E não se trata de autossacrifício, e sim de trabalho honrado, útil, tão bom como qualquer outro. É muito melhor que a obra de um Rafael ou de um Púchkin, por ser mais útil.

— E mais honroso, muito mais honroso! Ah!, ah!

— Que entende por “mais honroso”? Não aceito tal expressão para qualificar uma atividade humana. “Mais honroso”, “mais nobre” — tudo isso não passa de preconceitos antiquados, e que eu rejeito. Tudo que é útil à humanidade é honroso. Só aceito uma palavra: útil! Pode rir-se à socapa, mas é isso mesmo...

Pedro Petróvitch riu abertamente. Acabara de contar o dinheiro e o amontoava, deixando algumas cédulas na mesa. A “questão da latrina” já fora objeto de discussão entre eles. O absurdo é que Lebeziátnikov se aborrecia sinceramente, ao passo que Lujine se divertia.

Neste momento, estava particularmente desejoso de enfurecer seu jovem amigo.

— Seu azar de ontem o deixou mal-humorado e aborrecido — explodiu Lebeziátnikov, que, apesar de sua “independência” e “protestos”, não se aventurava opor-se a Pedro Petróvitch e ainda o tratava com um pouco do respeito da infância.

— Diga-me disse Lujine com orgulhoso desagrado, pode... ou tem bastantes relações com ela para lhe pedir que venha aqui um momento? Já devem ter vindo do cemitério... Parece-me ouvi-los subir a escada. Desejava ver essa rapariga...

— Mas para quê? — perguntou admirado André.

— Preciso falar-lhe. Devo partir hoje ou amanhã, e tenho que dizer-lhe... Pode assistir a essa conversa... é até conveniente... Do contrário, sabe Deus o que o senhor pensaria!

— Não pensava nada... Fiz esta pergunta por fazer. Se tem o que lhe dizer, é muito fácil mandá-la aqui ou chamá-la, e não os incomodarei.

Efetivamente, cinco minutos depois, Lebeziátnikov trazia Sonetchka, muito surpresa. Quando se via em tais situações, ficava sempre inquieta; as caras novas causavam-lhe medo. Petróvitch apresentou-se delicadamente. Um homem sério e respeitável como ele não podia deixar de receber uma criatura tão nova e tão interessante sem lhe fazer um acolhimento gentil. Primeiro tratou de sossegá-la, pedindo-lhe que se sentasse. Sônia obedeceu, olhando ora para Lebeziátnikov, ora para o dinheiro, que estava na mesa; depois fixou os olhos em Petróvitch. Dir-se-ia que Lujine exercia sobre ela forte atração. Lebeziátnikov ia saindo. Petróvitch fez um sinal a Sônia e deteve André.

— Raskólnikov já chegou? — perguntou baixinho.

— Raskólnikov... já... Chegou agora... Já o vi... Por quê?

— Nesse caso peço-lhe o favor de ficar, para não me deixar só com esta menina... A questão de que se trata é insignificante, mas Deus sabe que coisas podia trazer. Não quero que Raskólnikov vá contar lá... Compreende por que lhe digo isto?

— Compreendo! — respondeu Lebeziátnikov. — Está no seu direito. Por mim, acho demais os seus receios... mas isso não vem ao caso. Fico. Vou para a janela e não os incomodo. A minha opinião é que está no seu direito.

Petróvitch voltou a sentar-se defronte de Sônia, fitou-a demoradamente, com expressão grave, severa, que parecia dizer-lhe: “Não pense que vou dizer-lhe alguma coisa inconveniente.” Sônia sentiu-se mais à vontade.

— Primeiramente, Sófia Semenovna, peço-lhe que apresente minhas desculpas à sua mãe... Não me engano exprimindo-me desta forma? Catarina Ivanovna tem-lhe servido de mãe? — começou Petróvitch muito sério, mas muito amável. Evidentemente seu propósito era sério.

— Sim, realmente, ela tem sido para mim uma segunda mãe — respondeu Sônia, timidamente e confusa.

— Queria então dizer-lhe quanto me entristece não poder aceitar o seu amável convite, por causas independentes da minha vontade.

— Vou já dizer-lhe. — E Sonetchka levantou-se.

— Não é ainda tudo — continuou Petróvitch sorrindo ao ver a ingenuidade da pobre moça, sua ignorância das práticas sociais. Não me conhece, Sófia Semenovna, se julga que por um motivo tão fútil a incomode. O meu fim é outro.

A um gesto seu, Sônia, mais confusa, sentou-se outra vez. As notas de diferentes cores, em cima da mesa, apresentaram-se-lhe novamente aos olhos, mas ela desviou-se logo para Petróvitch. Olhar para o dinheiro dos outros parecia-lhe inconveniência, sobretudo no seu caso. Fixava alternadamente o monóculo com aro de ouro, que Lujine segurava na mão esquerda, e o grande anel com uma pedra amarela que brilhava no dedo médio dessa mão. Afinal, não sabendo para onde olhar, fixou o rosto de Petróvitch, que prosseguiu:

— Falei ontem com Catarina, e pelo pouco que ouvi, convenci-me de que se encontra em situação anormal.

— Anormal, sim — repetiu Sônia docilmente.

— Oh! Mais claramente, num estado mórbido...

— Sim, mais claramente... sim, está doente.

— Ora, por dever humanitário, e... e... de compaixão, eu queria ser-lhe útil, prevendo que ela vai achar-se, sem dúvida, numa situação muito triste. Agora, segundo parece, essa pobre gente conta só com Sônia.

Ela levantou-se bruscamente:

— Desculpe a minha pergunta, mas o senhor não disse que Catarina podia receber uma pensão? Foi ela quem me contou que o senhor se encarregaria de obtê-la. Não é verdade?

— Não é bem assim: dei-lhe a perceber que, como viúva de um funcionário morto em serviço, poderia obter um auxílio, se tivesse proteções. Mas parece que além de não ter o tempo necessário para a reforma, seu pai nem estava em serviço quando morreu... Afinal, pode-se esperar sempre, mas essas esperanças são pouco fundadas, porque não há direito a esse favor. E ela já a pensar em pensão... Acha tudo muito fácil...

— Sim, ela esperava isso... É muito boa e fia-se em tudo... essa bondade leva-a a acreditar em tudo... e... tem a cabeça à toa. Desculpe-a, sim? — disse Sônia, levantando-se outra vez.

— Ainda não ouviu tudo.

— Não ouvi tudo? — repetiu ela.

Sônia, envergonhada, sentou-se pela terceira vez.

— Vendo-a nessa situação, rodeada de crianças, eu queria, como disse, ser-lhe útil dentro dos meus recursos, veja bem, dentro dos meus recursos. Poderia assim organizar, em favor dela, uma subscrição, uma tômbola... ou qualquer coisa igual, como fazem as pessoas que desejam auxiliar os parentes ou estranhos.

— Pois sim... Faça... — murmurou Sônia com os olhos esgazeados fitos em Petróvitch.

— Pode fazer-se, mas... depois falaremos nisso. Ver-nos-emos logo, e falaremos sobre o caso. Volte às sete horas. André Semênovitch assistirá à nossa conversa. Mas... antes de tudo... há um ponto que precisa ser examinado. Foi por isso que a incomodei. Parece-me que não se deve dar o dinheiro a Catarina. Será uma grande tolice. Para o provar basta este jantar de hoje. Ela não tem calçado, sua subsistência não está segura por dois dias, e compra rum da Jamaica, vinho da Madeira e café. Vi quando passava. Amanhã toda a família fica a seu cargo e Sônia terá de mantê-la. Portanto, acho que se deve fazer subscrição para a viúva, mas que Sônia administre o dinheiro. Que lhe parece?

— Não sei. Hoje é que ela está assim... isto sucede-lhe uma vez na vida... queria honrar a memória do marido... Ademais, será como quiser, ser-lhe-ei sempre muito grata... todos lhe serão... e Deus há de... e os órfãos...

Não pôde acabar, estava banhada em lágrimas.

— Bem, é um caso resolvido. Agora leve para ela esta quantia que representa a minha parte. Desejo que meu nome não seja dito. Aqui está... tenho tido também algumas dificuldades, e sinto não dar mais...

E entregou a Sônia uma nota de dez rublos. Ela recebeu-a corando muito; e dizendo palavras vagas despediu-se. Petróvitch acompanhou-a até a porta. Sônia voltou para casa numa agitação extraordinária.

Durante esta cena, André ficou à janela, a fim de não perturbar a conversa. Quando Sônia saiu dirigiu-se a Petróvitch e estendeu-lhe a mão:

— Ouvi tudo e vi tudo — disse, acentuando bem a palavra vi. — É nobre, isto é, é humano, porque eu não admito a palavra nobre. Nem quis os agradecimentos, bem vi! Embora por questão de princípios eu seja inimigo da beneficência oculta, que longe de extirpar a miséria favorece-lhe os progressos, não posso deixar de reconhecer que seu gesto é digno de aplauso. Sim, agradou-me!

— Mas é o que há de mais simples! — exclamou Lujine, embaraçado, olhando Lebeziátnikov atentamente.

— Não é tão simples assim! Um homem que, ferido, como o senhor, por uma afronta, ainda é capaz de olhar pela desgraça alheia, tal homem pode estar em oposição à lei social, que não é por isso menos digno de estima! Eu não esperava isso, tanto mais que com as suas ideias... Ah, como está ainda cheio das suas ideias! Como se incomodou com essa história de ontem! — exclamou Semênovitch, que sentia voltar-lhe a simpatia por Petróvitch. — E que necessidade tem de casar legalmente meu caro Pedro Petróvitch? Para que quer uma união legal? Bata-me, se quiser, mas declaro-lhe que me alegro pelo seu insucesso, que estou satisfeito ao pensar que é livre, que não está perdido para a humanidade... Como vê, sou franco!

— O casamento legal evita que os outros olhem para nós com sorrisos e desdéns; dá-me a convicção de que não educo os filhos dos outros, como acontece no seu casamento livre — respondeu Petróvitch para dizer alguma coisa. Estava pensativo e ouvia distraído o que seu amigo dizia.

— Filhos? Fala em filhos? Tornou André animando-se como um cavalo de combate que ouve o clarim, filhos é uma questão social e de capital importância, concordo, mas que tem outra solução. Muitos recusam-se a ter filhos, porque sugerem a instituição da família. Falaremos deles depois, ocupemo-nos por ora com a honra. Este é o meu ponto fraco, confesso! Esta horrível e militar expressão de Púchkin não constará de nenhum dicionário do futuro. Que, de fato, significa? Estupidez, porque no casamento livre não haverá decepção! Ela é consequência natural, o corretivo, por assim dizer, do casamento legal, o protesto contra um elo indissolúvel; e sob este aspecto nada tem de humilhante... Se alguma vez, o que é absurdo supor, eu contraísse o casamento legal, estimaria que minha mulher me enganasse. Dir-lhe-ia: “Até agora, querida, eu por ti só tinha amor; doravante respeito-te porque soubeste protestar!” Ri? É porque não tem a força para romper com os preconceitos! Compreendo que na união legal seja desagradável ser enganado, mas isso é o triste efeito de uma situação que degrada por igual os dois esposos. Quando as pontas simbólicas do adultério rompem numa testa (refiro-me ao caso especial do casamento livre), deixam de ter significação e de chamar-se chifres. Ao contrário, a mulher prova assim ao homem que o estima, pois que o julga incapaz de impedir a felicidade dela e muito inteligente para tirar vingança de um rival. Eu penso às vezes que se fosse casado (livre ou legalmente, pouco importa) e que se a minha mulher não arranjasse um amante, seria eu próprio que o ia procurar, e dizia-lhe: “Minha querida, amo-te, mas quero sobretudo que me estimes: aqui tens!” Não me dá razão?

Estas palavras apenas faziam rir Petróvitch, cujo pensamento estava longe. Esfregava as mãos muito preocupado. André Semênovitch só mais tarde se lembrou dessa preocupação do seu amigo...


Capítulo II

Seria difícil dizer como a insensata ideia do jantar nasceu no cérebro de Catarina Ivanovna, que gastou nesse banquete mais da metade do dinheiro que Raskólnikov lhe dera para o enterro do marido. Talvez Catarina julgasse que devia honrar “convenientemente” a sua memória para provar a todos os inquilinos, e sobretudo a Amália Ivanovna, “que o morto valia tanto como eles, ou mais”. Talvez obedecesse à vaidade especial dos pobres, que em certos atos da vida, batismo, casamento, enterro etc., levam os infelizes ao sacrifício dos últimos recursos, com o fim de “fazer tudo tão bem como os outros”. É ainda lícito supor que no momento em que se via levada à extrema miséria, Catarina queria mostrar a toda essa gente insignificante, que não só sabia viver e receber, mas que, filha de um coronel, “educada em casa rica, aristocrática, até”, não fora criada para esfregar chão, ou lavar, à noite, a roupa dos filhos.

Não havia grande variedade de vinhos, nem de várias marcas, nem Madeira. Petróvitch exagerara. Contudo havia vinho. E vodca, rum, Porto, de qualidade inferior, mas em quantidade suficiente. O jantar, preparado na cozinha de Amália, compreendia, além do kútia,[ 31 ] três ou quatro pratos. Havia dois samovares para quem quisesse tomar chá ou ponche depois do jantar. Catarina fizera as compras acompanhada por um polaco famélico, que morava, Deus sabe como, no prédio de Lippelvechzel.

Desde o primeiro instante esse pobre-diabo pôs-se ao dispor da viúva, e durante 36 horas andou por toda parte com um zelo que Catarina não se fartava de elogiar. A todo momento, pela menor causa, corria, atarefado, a pedir ordens. Tendo declarado, primeiro, que sem o auxílio “desse homem serviçal” nada faria, Catarina terminou por achar o seu factótum insuportável. Era o seu feitio: via em tudo cores brilhantes e em todos encontrava merecimentos que só existiam na sua imaginação, mas que ela acreditava. Depois, ao entusiasmo sucedia uma desilusão: então despedia com violência e injúrias aquele que antes enchera de louvores demasiados.

Ela era de natureza alegre, vivaz e cordata, mas pelos contínuos fracassos e desgraças chegava a desejar acerbamente que todos vivessem em paz e alegria e não ousassem quebrar a harmonia, porque a mais íntima discórdia, o mais comezinho desentendimento levavam-na a um estado frenético e passava, instantaneamente, das fagueiras esperanças e imagens à maldição de seu destino, ao desvario e a bater com a cabeça nas paredes.

Amália Ivanovna também subira muito no conceito de Catarina, talvez pela simples razão de ter tomado a responsabilidade do jantar, de se encarregar de pôr a mesa, ou emprestar as louças, as toalhas etc. etc., e cozinhar.

Saindo para o cemitério, Catarina deu-lhe todos os poderes, e a senhora Lippelvechzel mostrou-se digna dessa confiança. A mesa estava muito bem-posta. As louças, os vidros, as xícaras, os garfos, as facas, que os inquilinos emprestaram, traíam pela diversidade origens diferentes, mas à hora marcada estava tudo no seu lugar.

Ao voltar do cemitério, Catarina notou a expressão de triunfo no rosto de Amália Ivanovna. Satisfeita por ter cumprido tão bem sua missão, impava de orgulho dentro do vestido novo. Pusera também uma guarnição nova na touca. Esse orgulho, embora legítimo, desagradou a Catarina. “Como se não se pusesse a mesa sem o auxílio dela!” A touca também. “Não veem esta alemã maluca fazendo um figurão? Como é proprietária, dignou-se por bondade auxiliar pobres inquilinos! Ora vejam! Em casa de papai havia às vezes quarenta pessoas a jantar e não se receberia, nem mesmo numa ocasião dessas, uma Amália Ivanovna, ou melhor, Ludvigovna!...” Catarina não quis dizer logo tudo quanto sentia, mas prometeu a si mesma colocar no seu devido lugar, e nesse mesmo dia, aquela pedante.

Outra circunstância concorreu ainda para aborrecer a viúva: à exceção do polaco, que fora até o cemitério, poucos dos outros convidados para o enterro tinham ido; no entanto, quando se tratou de comer, vieram todos; alguns apresentaram-se até muito inconvenientemente. Os dois mais asseados parecia que tinham combinado para não virem, a começar por Pedro Petróvitch, o melhor de todos. Contudo, na véspera à noite, Catarina tinha dito dele maravilhas a todos, isto é, a Lippelvechzel, a Poletchka, a Sônia e ao polaco; era, dizia, um homem nobre, generoso, muito rico, e, tendo excelentes relações, fora amigo do seu primeiro marido, frequentara a casa do pai e prometera-lhe toda a sua influência para lhe conseguir uma pensão. Note-se que Catarina ao falar da fortuna e das relações das pessoas que conhecia, era sem cálculo, sem interesse, somente para realçar o prestígio da pessoa.

Como Lujine, e “talvez para seguir seu exemplo”, faltava também “esse palhaço Lebeziátnikov”. Que ideia fazia ele de si? Catarina convidara-o porque morava com Petróvitch: sendo agradável a um tinha de ser ao outro. Notou-se também a ausência de uma “grande dama” e sua filha. Estas havia só quinze dias que moravam ali; contudo já tinham feito observações por causa do barulho constante em casa dos Marmêladov, principalmente quando o marido vinha bêbado. Como se supõe, a senhoria levou essas queixas a Catarina. A força de incessantes discussões com a inquilina, Amália Ivanovna ameaçava pôr na rua os Marmêladov, “visto que”, gritava ela, “incomodam, pessoas distintas, a cujos calcanhares não chegam”. Por isso, Catarina tivera o cuidado de convidar estas senhoras “a cujos calcanhares não chegava”, tanto mais que ao vê-las na escada, elas desviavam-se arrogantemente. Era o modo de mostrar a elas quanto lhes era superior em sentimentos; e depois, mãe e filha poderiam convencer-se, naquele jantar, de que ela não nascera para a vida horrível que levava. Estava decidida a dizer-lhes isso à mesa, a atirar-lhes na cara que o pai fora governador, e que, portanto, não tinham razão para lhe voltarem a cara quando a viam. Um gordo tenente-coronel (na verdade capitão reformado) também faltava. Mas esse tinha desculpa: desde a véspera que a gota o tinha preso no leito.

Em compensação, além do polaco, chegou primeiro um escrevente de chancelaria, feio, gordo, vestindo um casaco sujo de nódoas, cheirando mal e mudo como um peixe; depois um antigo empregado dos Correios, um velho surdo e quase cego de quem alguém pagava o aluguel do quarto. A estes seguiu-se um tenente da reserva. Este, já ébrio, entrou às gargalhadas, e “imaginem, sem colete!”. Outro convidado entrou e foi logo sentar-se à mesa, sem mesmo falar com a viúva. Outro, que não tinha roupa, apresentou-se em robe. Era demais: o polaco e Amália não o deixaram entrar. O polaco trouxera dois dos seus patrícios que não eram inquilinos da Lippelvechzel e ninguém conhecia.

Tudo isso causou grande desprazer a Catarina.

“Valeu a pena fazer tanta despesa para receber essa gente?” Com receio que à mesa, que ocupava todo o comprimento do quarto, não coubessem todos, tinham posto os talheres das crianças sobre uma mala, ao canto; Poletchka, como mais velha, devia olhar pelas outras e servi-las. Desapontada, Catarina recebeu os convidados com orgulho quase insolente. Tomando Amália Ivanovna responsável pela ausência dos convidados mais dignos, tratou a senhoria de tal modo que esta se melindrou. Finalmente foram para a mesa.

Raskólnikov apareceu e Catarina ficou contente ao vê-lo; primeiro, porque dos presentes era o único homem ilustrado (apresentou-o como devendo, dentro em pouco, ocupar uma cadeira de professor na universidade). Depois, porque ele se desculpou respeitosamente de não ter podido assistir aos funerais. Catarina sentou-o à sua esquerda, porque Amália Ivanovna ocupara a direita, e entabulou com ele, a meia-voz, uma conversa animada, quanto lhe permitiam seus deveres de dona de casa.

Nos últimos dias a doença dela tomara caráter alarmante e a tosse não a deixava muitas vezes acabar as frases; contudo sentia-se feliz, por ter com quem desabafar o ódio de que estava possuída diante dessa sociedade mesquinha.

A princípio sua cólera manifestou-se por sátiras aos convidados e, principalmente, à senhoria.

— Tudo isso por culpa daquela imbecil. Sabe de quem falo? — E indicava Amália com um gesto de cabeça. — Olhe para ela, vê que falamos a seu respeito, mas como não sabe o que dizemos arregala os olhos como pires. Olhe a coruja. Ah, Ah! (tosse). E aquela touca?... É para dar a entender que me honra sentando-se à minha mesa! Eu pedira-lhe que convidasse pessoas distintas, principalmente os amigos do morto. Veja que coleção de porcos ela arranjou! Está ali um que nunca se lavou! E esses pobres polacos... Ninguém os conhece (tosse); é a primeira vez que os vejo. Parecem duas cebolas! Eh! Pan — gritou para um deles. — Sabe-lhe bem? Coma! Beba! Quer cerveja ou vodca? Esperem, (levantou-se, agradeceu)... São decerto uns pobres-diabos! Para eles tudo vai bem, contanto que comam! Ao menos não fazem barulho... apenas... apenas receio pelos talheres de prata da senhoria!... Amália Ivanovna! — disse em voz alta. — Se por acaso roubarem os talheres, não me responsabilizo!

Depois dessa satisfação dada ao seu dissabor, voltou-se outra vez para Raskólnikov e começou a ridicularizar a senhoria:

— Ah, ah, ah! Não entendeu! Não compreendeu nada! Fica sempre de boca aberta! Repare: é uma verdadeira coruja!

Esta risada terminou por um acesso de tosse que durou cinco minutos. Ela levou o lenço aos lábios e mostrou-o depois a Raskólnikov manchado de sangue. As gotas de suor desciam pelo rosto da tuberculosa, que estava excessivamente corada e respirava mal. Contudo continuou falando em voz baixa.

— Confiei-lhe a missão de convidar essa senhora e a filha... sabe a quem me refiro?... Era necessário muito tato. Pois bem, fez as coisas de modo que essa estrangeira tola, essa mulher que veio aqui para pedir uma pensão como viúva de um maior, e que de manhã à noite corre os ministérios, com a cara pintada, essa imbecil, recusou o convite sem mesmo dar uma desculpa, como manda a mais vulgar delicadeza! Também não compreendo por que Pedro Petróvitch não veio. Mas onde está Sônia! Ah, aí vem! Sônia, onde estavas? É esquisito que num dia como hoje sejas tão pouco pontual! Ródion, deixe-a sentar a seu lado. Aqui tens teu lugar, Sônia... come o que quiseres. Recomendo-te a entrada fria com geleia, que está excelente. Já te trazem o restante. Serviram as crianças? Poletchka, não te esqueças! (tosse) Bem, bem! Lena está quieta, Kólia, não mexas assim com as pernas; porta-te como gente de boa família. Que dizes, Sonetchka?

Sônia apresentou à madrasta as desculpas de Petróvitch, falando alto, para que a ouvissem. Não contente em reproduzir os termos delicados de Lujine, ampliou-os ainda. Pedro Petróvitch, disse, encarregara-a de dizer a Catarina que viria vê-la o mais depressa possível para conversar sobre negócios, e combinar o que se faria depois... etc. etc.

Sônia sabia que isto sossegava Catarina e lisonjeava o seu amor-próprio. Sentando-se ao lado de Raskólnikov, cumprimentando-o rapidamente, lançou-lhe um olhar de curiosidade. Mas, durante o jantar, parecia esquivar-se de olhar ou falar com ele. Parecia distraída, de olhos fixos em Catarina, para adivinhar-lhe os desejos.

Nenhuma delas estava de luto. Sônia tinha um vestido cor de canela escuro; a viúva trazia um vestido de algodão listrado, escuro, o único que possuía.

As desculpas de Pedro Petróvitch foram bem recebidas.

Depois de ter ouvido Sônia com dignidade, Catarina informou-se com ar grave da saúde de Petróvitch. E sem se ocupar dos outros convidados, observava a Raskólnikov como um homem respeitável como Petróvitch estaria deslocado num meio tão “extraordinário”. Compreendia, pois, que ele não viesse, apesar dos laços de amizade que o prendiam à sua família.

— Aqui tem porque, Ródion, eu lhe agradeço muito não ter recusado minha hospitalidade, oferecida nestas condições — disse em voz alta. — Estou convencida de que foi somente a amizade que tinha a meu marido que o trouxe aqui.

Depois, Catarina, pôs-se a gracejar com os convivas. De repente, dirigindo-se ao velho surdo, gritou-lhe: “Quer mais carne assada? Serviram-no de vinho do Porto?” Ele não respondeu, e esteve muito tempo sem perceber, até que lhe explicaram o que Catarina dissera, ao passo que se riam. Ele olhou em volta e ficou de boca aberta, aumentando assim o riso.

— Que estúpido! Mas por que o convidaram? — dizia Catarina a Raskólnikov. — Esperei que Petróvitch viesse. — Com certeza — prosseguiu, dirigindo-se a Amália Ivanovna com termos tão cortantes e altos que esta desconcertou-se — ele não se parece com as suas damas janotas; essas, nem meu pai as queria para cozinheiras; e se meu marido as recebesse era somente por cortesia.

— Ele gostava de beber; tinha seu fraco pelo álcool — gritou de súbito o tenente da reserva, esvaziando o duodécimo copo de vodca.

Catarina repeliu com energia essas palavras grosseiras.

— Sim, meu marido tinha esse defeito; estimava e respeitava a família. Só podia ser acusado pela sua demasiada bondade. Aceitava facilmente como amigos todos os debochados, e sabe Deus quem o acompanhava! Gente que não lhe chegava às solas das botinas! Imagine, Ródion Românovitch; encontraram-lhe no bolso um galo de doce, um bolo; mesmo na embriaguez não se esquecia dos filhos.

— Um galo? Foi galo que disse? — gritou o mesmo indivíduo.

Catarina não respondeu. Suspirou e ficou pensativa.

— Talvez pense, como os outros, que eu era muito severa com ele — disse ela a Raskólnikov. — É engano! Ele estimava-me! Tinha por mim muito respeito, sua alma era boa. Muitas vezes me causou piedade! Quando, sentado a um canto, erguia os olhos para mim, sentia-me tão enternecida que não podia dominar a comoção. Mas dizia a mim mesma: “Se fraquejas, ele não larga o vício.” Só à força de severidade é que ele se continha.

— Bem sei, puxando-lhe os cabelos, o que aconteceu muitas vezes — disse o tenente da reserva, engolindo mais um copo de vodca.

— Há indivíduos a quem não só se devia puxar os cabelos, mas correr a pau. Não me refiro a meu marido — respondeu asperamente Catarina.

As faces afogueavam-se-lhe, o peito arfava. Uma palavra mais, e ela faria escândalo. Muitos riam, achando o caso cômico e incitando o tenente da reserva.

— Permita-me que lhe pergunte a quem se refere? Diga a quem é? — perguntou ele com voz ameaçadora. — Mas não! É inútil! Uma viúva! Uma pobre viúva! Está perdoada. Não faço caso disso!

E engoliu outro copo de vodca.

Raskólnikov ouvia silencioso, com desgosto. Sentia piedade de tudo aquilo. Por delicadeza, apenas provava as iguarias de que Catarina o servia constantemente.

Não tirava o olhar de Sônia, que sempre mais receosa seguia inquieta o desespero de Catarina. Pressentia que o jantar acabaria mal. Entre outras coisas, Sônia sabia que fora por sua causa que as tais senhoras não participavam do jantar. Soubera por Amália que, ao receber o convite, a mãe ficara ofendida, e perguntara “como havia de sentar sua filha ao lado dessa meretriz”.

Sônia pensava que Catarina sabia disso. Ora, um insulto a Sônia era para ela pior que um insulto a si própria, a seus filhos ou à memória de seu pai: um ultraje mortal. Sônia adivinhava que naquele momento Catarina só tinha um desejo: provar a essas mulheres que elas eram etc. Nessa ocasião um conviva, sentado à cabeceira da mesa, passou a Sônia um prato com dois corações atravessados por uma seta, feitos com miolo de pão. Catarina disse, rubra de cólera e com voz retumbante, que o autor do gracejo era algum asno bêbado.

Amália Ivanovna já previa encrenca e, ao mesmo tempo, sentia-se profundamente ferida pelo orgulho de Catarina Ivanovna. Para realegrar os convidados e fazer-se estimada por eles, começou, sem mais nem menos, contando uma história sobre um de seus amigos, “o químico Karl, que, certa noite, quando viajava de coche, foi ameaçado de morte pelo cocheiro e tanto implorou de mãos-postas e chorou que acabou morrendo de medo por lhe ter parado o coração”. Catarina logo observou, apesar de sorrir, que Amália não devia contar anedotas em russo; esta se ofendeu ainda mais, respondendo-lhe que seu Vater de Berlim era um homem muito importante e que andava sempre com as mãos nos bolsos. Catarina, não se contendo, riu tão alto que Amália Ivanovna impacientou-se, quase descontrolando-se.

— Ouçamos a coruja! — sussurrou a seguir Catarina, quase recuperando o bom humor. — Quis dizer que andava com as mãos nos bolsos dele, mas disse que andava sempre com as mãos nos bolsos alheios (tosse, tosse). Reparou, Ródion Românovitch, que os estrangeiros em São Petersburgo, especialmente os alemães, são mais burros que nós. Pode imaginar um russo contando como “o químico Karl morreu de medo, por parar o coração” e que o idiota, em lugar de agredir o cocheiro, ficasse de mãos-postas chorando e implorando? Ah, que idiota! E veja que ela julga a história muito comovente e não percebe como é estúpida. A meu ver, esse tenente da reserva é bem mais inteligente, embora qualquer um possa observar que ele afogou o cérebro em álcool; mas sabe como os estrangeiros são educados e sérios, e veja como está sentada de olhos fixos! Está zangada! Ah, ah! — Catarina Ivanovna sofre um violento acesso de tosse.

Recuperando o bom humor, Catarina Ivanovna, dirigindo-se a Raskólnikov, declarou que queria retirar-se logo que obtivesse a pensão para T***, sua terra natal, onde fundaria um colégio para meninas nobres. Referiu-se ao diploma de que Marmêladov falara a Raskólnikov, quando se encontraram no botequim. Esse documento dava-lhe direito de fundar um colégio. Tinha-o consigo principalmente para confundir as duas fúfias, se elas aceitassem o convite. Mostrar-lhes-ia que “a filha de um coronel, descendente de família nobre, valia mais que as aventureiras cujo nome se tornara tão conhecido”. O documento correu pela mesa; os convivas, avinhados, passavam-no de mão em mão, sem que Catarina se opusesse, porque esse papel confirmava que era filha de um conselheiro, o que a autorizava quase a dizer-se filha de um coronel.

Contou então a vida feliz que tencionava levar em T***. Abriria um concurso para professores de ginástica; entre eles contava-se Mangot, um velho digno que lhe ensinara francês; esse não hesitava em ir dar lições por um preço módico. Enfim, anunciou a ideia de levar Sônia para T*** e confiar-lhe a direção do estabelecimento. A estas palavras reboou uma gargalhada na extremidade da mesa.

Catarina fingiu não ter ouvido; mas, elevando a voz, declarou que Sônia Ivanovna possuía todas as qualidades para substituí-la nesse cargo. Depois de ter elogiado a meiguice de Sônia, sua paciência, abnegação, cultura intelectual e nobreza de sentimentos, afagou-a e beijou-a duas vezes, efusivamente. Sônia corou e Catarina começou a chorar.

— Estou com os nervos excitados — disse ela desculpando-se —, não posso mais. Vá servir-me o chá.

Amália Ivanovna, muito vexada por não ter entrado na conversa, escolheu este momento para fazer uma tentativa, e observou à futura diretora do colégio que devia ter muito cuidado com a roupa das educandas, e não as deixar ler romances à noite. A fadiga e o desespero aumentavam a impaciência de Catarina, que recebeu com maus modos os conselhos de Amália, que na sua opinião não entendia do caso; num colégio de meninas nobres a roupa branca estava a cargo de uma criada, e não da diretora; quanto à leitura dos romances, era simplesmente uma inconveniência; pedia a Amália que se calasse.

Em vez de ceder ao pedido, a senhoria retorquiu com rancor, que dissera aquilo “para seu bem”, que tinha sempre as melhores intenções, e havia muito tempo Catarina não lhe pagava. “Mente, quando fala em boas intenções”, respondeu a viúva. “Ainda ontem, e diante do cadáver do meu marido, fez cenas a propósito do aluguel.” Amália mudou o rumo da conversa e disse que “tinha convidado essas senhoras, mas que elas não aceitaram o convite porque eram nobres, e não frequentavam a casa de quem não o era”. Catarina respondeu que uma cozinheira não sabia avaliar a nobreza verdadeira.

Amália Ivanovna, ofendida, respondeu que “o seu Vater era homem importantíssimo em Berlim, que passeava com as mãos nos bolsos, bufando sempre: puff, puff!”. Para dar melhor ideia do seu Vater, a senhoria Lippelvechzel levantou-se, meteu as mãos nos bolsos e, inflando as faces, imitou o som de um fole. Houve uma risada geral, na expectativa de uma luta entre as duas mulheres. Entretinham-se a excitar Amália Ivanovna. Catarina, perdendo então toda a gravidade, declarou que Amália nunca tivera Vater, que era apenas filha de um bêbado das tavernas de São Petersburgo, ou coisa pior. Amália, furiosa, retorquiu que Catarina é que não tivera Vater, o seu era de Berlim, vestia grandes sobrecasacas e estava sempre: puff, puff! A viúva observou que todos sabiam sua origem, e o seu diploma dava-a como filha de um coronel, ao passo que Amália (supondo que tivesse pai) devia ser filha de algum leiteiro da Finlândia; nem sabia seu nome paterno; às vezes era Amália Ivanovna, outras Amália Ludvigovna. A senhoria, fora de si, exclamou batendo na mesa que era Ivanovna e não Ludvigovna, que o seu Vater, chamava-se Iohann e fora bailio, o que nunca o fora o Vater de Catarina. Esta levantando-se disse, afetando uma serenidade que era desmentida pela agitação do seio e a palidez da face.

— Se ousar outra vez igualar o seu miserável Vater a meu pai arranco-lhe a touca e piso-a.

Ouvindo isto, Amália correu pelo quarto gritando que era a dona da casa, e que Catarina havia de sair dali. Furiosa, tirou os talheres de prata. Houve uma confusão enorme; uma balbúrdia; as crianças começaram a chorar; Sônia agarrou-se à madrasta para evitar uma violência. Mas Amália falou em voz alta na “carteira amarela”. Catarina soltou-se dos braços da enteada e atirou-se à senhoria para arrancar-lhe a touca. Neste momento abriu-se a porta e surgiu Pedro Petróvitch.

Olhou severamente para todos. Catarina foi falar-lhe.


Capítulo III

— Pedro Petróvitch! — gritou ela. — Acuda-me! Obrigue essa criatura a não falar assim a uma senhora nobre e infeliz, o que não é permitido... Hei de queixar-me à autoridade... Será chamada à polícia... Em atenção ao que lhe fez meu pai, defenda estes órfãos.

— Dê-me licença, minha senhora, dê-me licença — disse Petróvitch fazendo um gesto para afastá-la —, eu nunca tive a honra de conhecer seu pai (ouviu-se uma ruidosa gargalhada) e não é ideia minha meter-me nas suas questões. Venho aqui porque desejo falar a Sófia... Ivanovna... É assim seu nome, parece-me. Dê licença...

E deixando Catarina, Petróvitch dirigiu-se a Sônia.

Catarina parecia presa ao solo. Não percebia por que Petróvitch negava ter-lhe conhecido o pai. O que a magoava ainda mais era o tom altivo, quase ameaçador, com que lhe falara. Com a chegada de Lujine o silêncio restabeleceu-se. A sua toilette correta contrastava com a de todos os convivas, que concordavam que só um motivo de muita gravidade podia explicar a presença daquela personagem. Todos esperavam qualquer coisa. Raskólnikov, que ficara junto de Sônia, afastou-se para ele passar. Lujine não tomou conhecimento da presença dele.

Logo depois, apareceu Lebeziátnikov; mas em vez de entrar ficou à porta, ouvindo com curiosidade, sem saber o que se passava.

— Desculpe-me vir perturbar a reunião, mas sou forçado a isso por um motivo grave — começou Petróvitch, sem se dirigir a ninguém. — Estimo bastante explicar-me diante de todos. Amália Ivanovna, na qualidade de dona da casa, peço-lhe ouvir o que vou dizer a Sófia Ivanovna.

Em seguida, chamando Sônia, surpreendida e medrosa, disse-lhe:

— Sófia Ivanovna, depois da sua visita, dei por falta de uma nota de cem rublos, que estava na mesa no quarto do meu amigo André Lebeziátnikov. Se sabe o que é feito dessa nota, e se me disser, dou-lhe a minha palavra diante de todos os presentes, que o caso não terá consequências. Do contrário, serei obrigado a recorrer a outros meios.

Seguiu-se um profundo silêncio. Até as crianças deixaram de chorar. Sônia, pálida como um cadáver, olhava para Lujine sem responder. Parecia não ter compreendido nada.

— Então, que responde? — perguntou Petróvitch fixando-a severamente.

— Não sei... não sei... — disse Sônia, com voz sumida.

— Não sabe nada? — interrogou Lujine, fazendo nova pausa por segundos. — Pense um momento, senhorita — disse severamente, porém como quem admoesta. — Reflita, dou-lhe tempo para pensar. Por favor, repare nisto: se eu não estivesse inteiramente convencido como estou, asseguro-lhe que, com minha experiência, não me aventuraria a acusá-la diretamente, por saber que seria responsabilizado, de certo modo, em fazer uma acusação direta, frente a testemunhas, caso fosse falsa ou errônea; porém estou certo do que digo.

“Esta manhã levei vários títulos no valor de três mil rublos, que vendi. Ao voltar tornei a contar o dinheiro; André Semênovitch estava presente. Depois de ter contado 2.300 rublos, meti-os numa carteira que guardei no bolso da minha sobrecasaca. Na mesa ficaram quinhentos rublos, aproximadamente, em notas; entre elas havia três notas de cem rublos. Ora, a meu pedido foi à minha casa, e durante essa curta visita esteve sempre agitadíssima. Por três vezes até se levantou para sair, sem que a conversa tivesse terminado. André Semênovitch é testemunha do fato.

“Creio que não nega que mandei chamá-la por André com o fim de tratarmos da situação desgraçada da sua madrasta (à casa de quem eu não podia vir) e do modo de auxiliá-la, por meio de uma tômbola ou subscrição, ou outra forma. Agradeceu-me chorando. (Entro em todas essas minúcias para provar que tenho tudo bem presente.) Depois, tirei da mesa uma nota de dez rublos e dei-lhe para as primeiras despesas de Catarina. André Semênovitch viu tudo isso. Depois acompanhei-a até a porta, e vi-a sair com a mesma agitação.

“Fiquei ainda conversando uns minutos com André, que depois saiu. Em seguida, ao guardar o dinheiro, com grande surpresa dei pela falta da nota de cem rublos. Agora, pense: desconfiar de André Semênovitch, é impossível! É-me impossível mesmo conceber tal ideia. Também não podia enganar-me nas contas porque momentos antes tinha-as verificado. Concorde, pois, em que, lembrando-me da sua agitação, da pressa que tinha de sair, e ainda do fato de ter estado a mexer na mesa, enfim, considerando sua profissão e os hábitos que traz, eu devia, embora contra minha vontade, chegar a uma suspeita, cruel, sem dúvida, mas segura!

“Por mais convencido que eu esteja da sua culpa, repito-lhe que sei ao que me exponho fazendo tal acusação. Contudo não hesito em fazê-la, e vou dizer por que: é, unicamente, pela sua ingratidão. Então! Chamo-a porque me impressiona a situação da sua madrasta; dou para ela dez rublos, e é assim que me agradece! Não; isso não pode ser! É preciso um corretivo! Reflita, peço-lhe como seu amigo! Senão serei inflexível! Então, confessa?”

— Não tirei nada! — disse cheia de espanto. — Deu-me dez rublos, aí os tem.

Tirou o lenço do bolso, desatou o nó e retirou a nota de dez rublos, que deu a Lujine.

— Continua a negar o roubo? — perguntou ele sem pegar na nota.

Sônia, lançando um olhar em torno de si, viu que todos estavam indignados. Olhou para Raskólnikov... De pé junto à parede, com os braços cruzados, não desviava dela os olhos cintilantes...

— Oh, meu Deus! — bradou ela.

— Amália Ivanovna, é preciso chamar a polícia. Peço-lhe mandar subir o dvornik, disse Lujine.

— Gott, der Barmherzige![ 32 ] Eu bem sabia que era uma ladra! — exclamou a Lippelvechzel, esfregando as mãos.

— Sabia? — perguntou Pedro Petróvitch. — Fatos anteriores permitiam-lhe tirar essa conclusão? Peço-lhe que não esqueça o que acaba de dizer. Aliás, há testemunhas.

Houve um vozerio por todos os lados. Todos se agitaram.

— O quê! — exclamou Catarina saindo de súbito da letargia em que se conservara e adiantou-se para Lujine. — Acusa-a de roubo? Ela, Sônia? Oh! Canalha, canalha! E, aproximando-se de Sônia, apertou-a efusivamente contra o peito com os braços magros.

— Sônia, como aceitaste os dez rublos desse homem? Entrega-os! Dá-lhe todo esse dinheiro! Aí estão!

Catarina tirou a nota das mãos de Sônia, amarrotou-a e atirou-a na cara de Lujine. O papel, feito uma bola, bateu em Petróvitch, e rolou no chão. Amália Ivanovna apanhou-o. Petróvitch irritou-se.

— Segurem essa doida, gritou.

Nessa ocasião houve aglomeração à porta do aposento. Entre os curiosos viam-se as duas senhoras da província.

— Doida, dizes tu? É a mim que chamas doida, imbecil? — gritava Catarina. — Tu, tu és um reles chicaneiro, um homem ordinário! Sônia roubou-lhe dinheiro! Sônia é uma ladra! Ela era bem capaz de dar-te muito mais, estúpido! — E Catarina, histérica, desatou a rir. — Já se viu um parvo assim? — dizia ela, interrogando um por um todos os presentes e mostrando Lujine. De repente olhou para Amália e não pôde mais conter-se. — E tu, comedora de salsicha, tu também, infame prussiana, tu também a dizer que ela é uma ladra. Ah! Não viste que ela nem saiu de casa? Foi daqui ao outro quarto, ao teu, patife!, e voltou logo a sentar-se à mesa conosco, como todos viram. Sentou-se ao lado de Ródion Românovitch!... Revistem-na! Como ela não foi a mais lugar algum, deve ter o dinheiro. Procura, procura! Mas se não encontrares, pagarás o que disseste! Vou queixar-me ao imperador, ao czar; vou deitar-me aos seus pés, hoje mesmo. Sou órfã! Hão de deixar-me entrar! Julgas que não me recebe? Enganas-te! Como ela é boa, imaginavas que nada tinhas a recear! Contava com a sua timidez? Mas se ela é tímida, eu não tenho medo; os teus cálculos saíram errados! Procura, procura, vamos, depressa!

Assim falando agarrava Lujine e empurrava-o para junto de Sônia.

— É isso o que quero; mas sossegue... — dizia ele, bem vejo que não tem medo!... Na polícia é que isto se devia fazer... Mas aqui há testemunhas... Vamos... Todavia é impróprio de um homem... por causa do sexo... Se Amália Ivanovna quisesse... contudo, não é assim que se deve fazer...

— Manda-a revistar por quem quiser — gritou Catarina —, Sônia mostra-lhe os bolsos! Aí estão! Aí estão! Vê bem, monstro! Vês que está vazio? Um lenço, nada mais! Agora, o outro; aí está, aí está! Vês!

Não contente de tirar o que havia nos bolsos de Sônia, Catarina virou-os. Mas na ocasião em que virava o bolso direito, saltou um papelzinho que caiu aos pés de Lujine. Todos viram, e alguns soltaram um grito de espanto. Petróvitch abaixou-se, apanhou o papel e desdobrou-o. Era uma nota de cem rublos dobrada em oito. Petróvitch mostrou-a a todos, para que não restasse dúvida sobre a culpabilidade de Sônia.

— Ladra! Fora daqui! A polícia! A polícia! — berrou a Lippelvechzel. — Levem-na para a Sibéria! Rua!

Todos comentavam. Raskólnikov, silencioso, só desviava os olhos de Sônia para olhar Lujine. A rapariga parecia mais parva do que surpreendida. De repente corou, e cobriu o rosto com as mãos.

— Não fui eu; não roubei nada! Não sei como foi isso! — exclamou ela cheia de amargura. — Dirigindo-se a Catarina, que lhe abria os braços, como um asilo inviolável.

— Sônia! Sônia! Não acredito! Bem vês que não acredito! — repetiu Catarina, rebelde à evidência. E dizia isto afetuosamente, beijando-lhe as mãos, embalando-a nos braços como uma criança. — Tu, roubares alguma coisa. Mas que gente estúpida! Oh! Meu Deus! São todos uns parvos! — gritava ela aos presentes. — Não sabem que coração está aqui! Ela roubar, ela! Para os socorrer, se tivessem necessidade, era capaz de andar descalça, vender a última camisa. Ela até se sujeitou à humilhação da “carteira amarela” porque meus filhos tinham fome; vendeu-se por nossa causa! Ah, meu pobre marido! Que jantar funerário! Oh, Deus, Mas defendam-na todos, em vez de ficarem impassíveis! Ródion Românovitch, por que não a defende? Também acredita que ela é ladra? Todos os que aqui estão não valem uma de suas unhas. Oh, Deus, defende-a!

As lágrimas, as súplicas, o desespero da pobre Catarina causavam funda impressão. Seu rosto magro de tísica, os lábios secos, a voz apagada exprimiam um sofrimento tão forte que comovia os mais duros. Pedro Petróvitch também foi levado à compaixão.

— Minha senhora! — disse solene Lujine —, isto não lhe diz respeito! Ninguém deseja acusá-la de cumplicidade; ademais, foi a senhora quem, virando os bolsos, mostrou o roubo; isto basta para provar sua inocência. Serei indulgente para esse ato de Sônia, provocado talvez pela miséria. Mas por que não o confessou? Receava o escândalo? Compreende-se, compreende-se muito bem!... Veja, contudo, ao que se expôs! Meus senhores — disse voltando-se para todos, movido por um sentimento de piedade —, perdoo, apesar das injúrias que me dirigiram. — Depois, voltando-se para Sônia: — Que a vergonha por que passou lhe sirva de lição. Não dou parte à polícia desse fato.

Petróvitch olhou de revés para Raskólnikov. Os olhares dos dois encontraram-se; o de Raskólnikov chamejava. Catarina parecia não ter ouvido nada, e continuava beijando Sônia. A exemplo da mãe, as crianças estendiam-lhe os braços; Poletchka, sem entender de que se tratava, chorava; apoiou sua cabecinha no ombro de Sônia.

De repente, da porta, retumbou uma voz forte:

— Como isto é vergonhoso!

Pedro Petróvitch voltou-se bruscamente.

— Que miséria! — repetiu Lebeziátnikov, encarando Lujine, que estremeceu. — E atreveu-se a invocar meu testemunho? — disse, aproximando-se de Petróvitch.

— Que significa isso? De quem fala? — perguntou, hesitante, Lujine.

— Estas palavras significam que o senhor é... um caluniador! Aí tem o que elas traduzem! — respondeu Lebeziátnikov calorosamente. Via-se que estava cheio de violenta cólera; enquanto fixava Petróvitch, os olhos doentes tinham uma expressão desusada. Raskólnikov ouvia ansioso, com o olhar pregado no jovem socialista.

Ninguém falava. A perturbação de Petróvitch era visível.

— É a mim que o senhor... — balbuciou ele. — Mas que tem? Está no seu juízo? É possível?

— Estou, estou no meu juízo, e o senhor é... um pulha! Como isto é vergonhoso! Ouvi tudo, e não falei logo para poder avaliar bem o seu caráter. Mas por que fez tudo isso?...

— Mas que foi que fiz? Deixe-se de enigmas... Talvez bebesse demais?...

— Oh! Miserável, se algum de nós bebeu, não fui eu! Nunca bebo vodca porque isso é contra os meus princípios! Imaginem que foi ele próprio quem deu a nota de cem rublos a Sófia Semenovna, e eu vi; sou testemunha, posso jurá-lo! Foi ele! — repetia Lebeziátnikov.

— Está doido, veado! — respondeu violentamente Lujine. — Ela afirmou aqui, diante de todos, que só lhe dei dez rublos. Como pode dizer que eu lhe dei mais?

— Eu vi, eu vi! — repetia energicamente André. — Embora isso esteja em oposição aos meus princípios, estou pronto a jurá-lo perante a justiça; eu vi-o meter-lhe o dinheiro no bolso, disfarçadamente! Mas julguei que o fazia — que asneira a minha! — por generosidade. Quando se despediu estendeu-lhe a mão direita e com a outra introduziu-lhe à socapa a nota. Eu vi! Eu vi!

Lujine fez-se branco.

— Que belo conto! — respondeu ele com insolência. — Estava encostado à janela, e pôde ver tudo isso? A sua doença de olhos enganou-o... foi vítima de uma ilusão, é o que é.

— Não me enganei! Apesar da distância vi tudo muito bem, tudo! Da janela era difícil distinguir a nota — nesse ponto sua observação é justa —, mas por uma circunstância particular, eu sabia que era uma nota de cem rublos. Quando deu os dez rublos a Sônia, eu estava junto à mesa, e vi-o pegar ao mesmo tempo uma nota de cem rublos. Não me esqueci disso porque então tive uma ideia. Depois de dobrar a nota apertou-a na palma da mão. Ao se levantar, passou-a para a mão esquerda. Ocorreu-me novamente a mesma ideia, isto é, não queria que Sônia lhe agradecesse diante de mim. Podem imaginar com que atenção vi todos os seus gestos. Vi então que lhe metera o papel no bolso. Vi, vi, vou jurá-lo!

Lebeziátnikov estava sufocado de cólera. De todos os lados cruzavam exclamações; a maior parte delas exprimia espanto, outras eram ameaçadoras. Os convivas cercavam Petróvitch. Catarina dirigiu-se a Lebeziátnikov.

— André Semênovitch! Desconhecia-o! Defende-a! É o único que toma o partido dela! Foi Deus que o mandou para a socorrer. André Semênovitch, meu amigo!

E Catarina, quase sem consciência do que fazia, caiu de joelhos diante dele, em lágrimas.

— Isso são asneiras! — gritou Lujine furioso. — O senhor não sabe o que diz. — “Esqueci-me, lembrei-me, tornei a esquecer-me, tornei a lembrar-me”; o que é que isto significa? De forma que, se o acreditasse, era eu que tinha introduzido cem rublos no bolso dela! Por quê? Com que fim? Que tenho eu com essa...

— Por quê? Isso é que não compreendo. Limito-me a contar o fato como se passou, sem pretender explicá-lo, mas garantindo a verdade. Engano-me tão poucas vezes, vil criminoso, que me lembro de ter feito a mim mesmo essa pergunta quando o felicitava, apertando-lhe a mão. Por que fizera o senhor essa ação às ocultas? Talvez, disse comigo, quisesse ocultar-me por saber que sou em princípio inimigo da caridade. Depois pensei que talvez quisesse fazer uma surpresa a Sônia: há efetivamente pessoas que gostam de fazer caridade dessa forma. Depois tive outra ideia: a sua intenção era experimentar Sônia; queria saber se, quando ela encontrasse a nota, viria agradecer-lhe. Ou então desejava furtar-se aos agradecimentos, conforme o preceito de que a mão direita deve ignorar... Deus sabe todas as hipóteses que fiz. O seu gesto intrigava-me tanto que tencionava pensar nele mais tarde; imaginei que faltava aos deveres da delicadeza dando a entender que conhecia o seu ato. Nessa ocasião lembrei-me de que Sônia, ignorando a sua generosidade, podia perder a nota. Aqui têm para que vim aqui: para lhe dizer que tinha cem rublos no bolso. Mas antes entrei em casa das senhoras Kobilátnikof. Fui restituir a Révue générale de la méthode positive, e recomendar-lhes o artigo de Piderit (o de Wagner também não deixa de ter valor). Chego aqui e vejo esta cena! Podia eu ter todas essas ideias, fazer todos esses raciocínios, se não tivesse visto meter os cem rublos no bolso de Sônia?

Quando terminou, André estava cansado; o suor corria-lhe pelo rosto.

Mesmo em russo tinha grande dificuldade em exprimir-se, apesar de não saber outra língua. Esse esforço tinha-o esgotado, extenuado pela heroica explosão. Suas palavras produziram um efeito extraordinário.

O tom de sinceridade com que as dissera convenceu a todos.

Pedro Petróvitch sentiu que estava em má situação.

— Que me importam suas tolices! — exclamou. — O senhor sonhou essas histórias. Digo-lhe que mente! Mente e calunia-me para satisfazer o seu ódio! A verdade é que é meu inimigo, porque eu combato o radicalismo das suas doutrinas antissociais!

Este ataque em vez de favorecê-lo provocou violentos protestos.

— Aqui está o que me respondes. — Não é muito! — disse Lebeziátnikov. — Chama a polícia que eu vou jurar que Sônia está inocente. Uma só coisa fica sem explicação para mim: é o motivo que te levou a uma ação tão vil! Oh, que miserável! Que covarde!

Raskólnikov avançou:

— Eu posso explicar esse procedimento, e se for preciso irei também depor! — disse com voz firme.

À primeira vista, aquela afirmação serena provava que ele conhecia a fundo o caso e ia desvendar tudo.

— Agora compreendo tudo — continuou Raskólnikov, dirigindo-se a Lebeziátnikov. — Desde o começo do incidente que eu farejara um fato ignóbil; minhas suspeitas fundavam-se em certas circunstâncias só por mim conhecidas, mas que vou revelar, porque esclarecem esta questão. Foi o senhor, André Semênovitch, que com sua declaração fez luz no meu espírito. Peço que ouçam! Este senhor — continuou ele, apontando Lujine — pediu ultimamente a mão de minha irmã, Avdótia Romanovna. Chegado há pouco a São Petersburgo, procurou-me anteontem. Mas logo à primeira conversa tivemos um atrito, e eu o pus fora de casa, como duas testemunhas podem declarar. Este homem é um infame... Anteontem ainda eu não sabia que ele morava com André Semênovitch; por esta circunstância, que ignorava, ele achava-se presente no momento em que, como amigo de Marmêladov, dei algum dinheiro a Catarina para o enterro. Imediatamente escreveu à minha mãe dizendo-lhe que eu dera o dinheiro a Sônia, e não a Catarina, qualificando Sônia com os termos mais ultrajantes e dando a entender que eu tinha com ela relações íntimas. O fim, compreendem, era indispor-me com a minha família, insinuando que gastava em orgias o dinheiro de que ela se priva para custear minhas despesas. Ontem à tarde, na ocasião em que ele visitava minha mãe e minha irmã, mostrei a verdade dos fatos: “Esse dinheiro”, disse eu, “dei-o a Catarina, para pagar o enterro do marido, e não a Sônia, que não conhecia”. Ao mesmo tempo, acrescentei que Pedro Petróvitch Lujine, com todas as suas virtudes, não valia o dedo mínimo de Sófia Semenovna, embora falasse tão mal dela. À sua pergunta — se eu permitiria que Sônia se sentasse ao lado de minha irmã — respondi-lhe que já o havia permitido naquele dia. Furioso por ver que as calúnias não tinham o efeito desejado, insultou grosseiramente minha mãe e minha irmã. Houve então um rompimento, e puseram-no fora de casa. Isso tudo passou-se ontem à tarde. Agora, pensem, e compreenderão o interesse que ele tinha, no presente caso, de estabelecer a culpa de Sônia. Se conseguisse indigitá-la do roubo, era eu que ficava como culpado para minha família, visto que não receava enxovalhá-la tendo relações com uma ladra, ele, ao contrário, atacando-me, defendia a consideração de minha irmã, sua futura mulher. Era o meio de me indispor com os meus ao mesmo tempo que lhes caía em graça, para não pensarem que se vingava pessoalmente de mim, por supor que a honra e a felicidade de Sófia Semenovna eram-me preciosas. Aqui está o cálculo que ele fez!

Raskólnikov foi várias vezes interrompido por exclamações. Mas, apesar disso, seu discurso conservou até o fim serenidade e firmeza. A voz vibrante, o tom de convicção com que falava comoveram fundamente a todos.

— É isso, é isso! — disse Lebeziátnikov. — O senhor deve ter razão, porque quando Sônia entrou no meu quarto, ele perguntou-me se Raskólnikov estaria aqui, se eu o tinha visto entre os convivas de Catarina, chamou-me à janela para fazer essa pergunta. Portanto, convinha-lhe que o senhor estivesse aqui!

Lujine, muito pálido, ficou silencioso, sorrindo com desdém. Parecia procurar modos de sair da situação. Talvez mesmo quisesse retirar-se, mas nessa ocasião era quase impossível: ir-se embora seria reconhecer o fundamento das acusações que lhe faziam.

Por outro lado, a atitude dos convivas, excitados por grandes libações, não era tranquilizadora. O tenente da reserva, que aliás não estava bem a par do caso, gritava mais que todos e dizia coisas bem desagradáveis para Lujine. Ademais, todos estavam embriagados. Os três polacos, indignados, ameaçavam Petróvitch. “O pan é um lajdak!”, diziam em polonês.

Sônia escutava, mas parecia não ter ainda recobrado toda a calma; dir-se-ia que voltava a si após um desmaio. Não tirava os olhos de Raskólnikov, sentindo que estava nele todo o seu apoio. Catarina, aflitíssima, respirava com dificuldade.

Amália Ivanovna parecia nada ter entendido, com a boca escancarada, olhando pasmada para todos. Apenas compreendia que Petróvitch estava em maus lençóis. Raskólnikov quis falar outra vez, mas desistiu por ver que não seria ouvido. De todos os lados choviam ameaças e injúrias contra Lujine, em torno do qual se formara um grupo compacto e hostil. Vendo que a partida estava perdida, ele recorreu ao cinismo.

— Deem licença, meus senhores, deixem-me passar — disse tentando abrir caminho. — É inútil meterem-me medo; não me assusto por tão pouco. Serão os senhores que responderão no tribunal pela proteção a um ato criminoso. O roubo está mais que provado, e apresentarei queixa. Os juízes são pessoas esclarecidas e... não bebem: recusarão o testemunho de dois ímpios, dois revolucionários que me acusam de vingança pessoal. Com licença!

— Não quero por mais tempo respirar o ambiente que o senhor respira. Faria o favor de deixar o meu quarto? Tudo está acabado entre nós! Quando penso que durante 15 dias suei para lhe expor...

— Imediatamente, André Semênovitch. Eu já lhe dissera que partia; o senhor é que instava comigo para ficar. Por ora limito-me a dizer-lhe que é um imbecil. Desejo-lhe as melhoras do espírito e dos olhos! Com licença, meus senhores!

Conseguiu passar, mas o empregado da assistência, achando que as injúrias não eram castigo bastante, pegou um copo e atirou-o com toda a força em Petróvitch. Por desgraça o projétil destinado a Lujine acertou Amália, que começou a gritar. Ao atirar o copo, porém, o empregado desequilibrou-se e rolou para debaixo da mesa. Lujine voltou ao quarto de Lebeziátnikov, e uma hora depois deixou a casa.

De natureza tímida, Sônia, antes desta cena, já sabia que sua situação a expunha a todos os ataques, e que qualquer um podia ultrajá-la. Todavia, imaginou sempre que podia desarmar ódios, à força de humildade e de bondade para com todos. Fugia-lhe agora essa ilusão. Decerto tivera muita paciência para suportar tudo com resignação, mas a decepção fora cruel. Mesmo que sua inocência triunfasse sobre a calúnia, quando lhe passasse a triste impressão daquele momento, o coração havia de apertar-lhe angustiado ao pensar no seu abandono e no seu isolamento na vida. Teve um ataque de nervos. Por fim, não podendo mais, saiu dali e voltou a toda a pressa para casa.

O incidente do copo causou riso geral, mas a senhoria não gostou da brincadeira e desfechou toda a fúria sobre Catarina, que, vencida pelo sofrimento, se deitara:

— Saia já daqui! Vamos!

Dizendo isto, pegava todos os objetos que pertenciam a Catarina e atirava-os para o chão. Alquebrada, quase desfalecida, a pobre mulher saltou do leito e arremeteu para Amália. Mas a luta era muito desigual. A senhoria não teve dificuldade em repelir o assalto.

— Não lhe basta ter caluniado Sônia, mete-se agora comigo! No dia do enterro do meu marido expulsa-me de casa? Depois de ter recebido a minha hospitalidade, põe-me na rua com os filhos? Mas para onde hei de ir? — arquejava e soluçava a infeliz mulher. — Oh, meu Deus! — exclamou levantando os olhos para o céu. — Já não há justiça? Quem defendes, se não nos defendes, a nós que somos órfãos? Mas veremos! Na Terra há tribunais e juízes. Vou falar-lhes! Espera um pouco, perversa! Poletchka, toma conta das crianças; eu já volto. Se te puserem para fora, espera-me na rua! Veremos se há justiça na Terra!

Pôs na cabeça o lenço verde, que Marmêladov mencionara a Raskólnikov, atravessou a multidão ruidosa dos inquilinos que continuavam a encher o quarto e com o rosto em lágrimas desceu, com a firme resolução de ir procurar justiça, custasse o que custasse. Poletchka, espantada, tinha nos braços os dois irmãozinhos; as três crianças esperavam, tremendo, a volta da mãe.

Amália, como uma fúria, andava pelo quarto, rugindo e atirando ao chão tudo o que agarrava. Os inquilinos falavam incoerentemente, alguns comentavam o ocorrido segundo a sua compreensão, uns discutiam querendo impor seus pontos de vista, enquanto outros cantavam...

“É tempo de ir-me embora!”, pensou Raskólnikov. “Sônia, vamos ver o que dizes agora!”

E dirigiu-se para o aposento de Sônia.


Capítulo IV

Raskólnikov pleiteara valorosamente a causa de Sônia contra Lujine, a despeito das suas preocupações e angústias. Independentemente do interesse que tinha por ela, aproveitara com alegria, após as torturas da manhã, aquele incidente para sacudir impressões que não podia suportar. A sua próxima entrevista com Sônia preocupava-o, assustava-o até; devia revelar-lhe que matara Isabel, e, pressentindo quanto essa confissão lhe era difícil, tratava de desviar o pensamento para outra coisa.

Ao sair da casa de Catarina exclamou: “Sônia Semenovna, vamos ver o que dirá agora!”. Era o combatente exaltado pela luta, excitado ainda pela vitória sobre Lujine, que dizia essa frase de desafio. Mas, caso singular, quando chegou ao cubículo de Kapernáumof, a serenidade abandonou-o e veio o medo. Passou indeciso diante da porta: “Será forçoso dizer-lhe que matei Isabel?” A pergunta era extraordinária, porque nesse momento sentia a impossibilidade daquela confissão.

Não sabia por que não podia confessar seu crime, mas sentia-o, e ficou esmagado pela dolorosa demonstração da sua fraqueza. Para se poupar a maiores tormentos, abriu a porta e parou no limiar olhando para Sônia, que estava sentada, com os cotovelos na mesa, e o rosto entre as mãos. Ao ver Raskólnikov levantou-se e dirigiu-se a ele, como se o esperasse.

— Que seria de mim sem o senhor! — disse, levando-o até ao meio do quarto. Parecia que pensava apenas no serviço que ele lhe prestara, e que tinha pressa de agradecer.

Raskólnikov aproximou-se da mesa e sentou-se na cadeira de Sônia, que ficou de pé, a dois passos dele, tal como no dia anterior.

— Então, Sônia — disse com voz trêmula —, “toda a acusação se baseava sobre a tua posição social e os costumes que traz”. Compreendeste isto?

Ela entristeceu.

— Não me fale como ontem! — respondeu. — Peço-lhe que não recomece. Já sofri tanto!... E apressou-se a sorrir, receando que aquela censura melindrasse Raskólnikov. — Há pouco saí como louca. Que irá por lá agora? Queria voltar mas pensei... que o senhor viesse aqui.

Raskólnikov disse-lhe que Amália pôs para fora os Marmêladov e Catarina fora procurar justiça.

— Ah! meu Deus! — vamos depressa até lá.

E pegou a mantilha.

— Sempre a mesma! — disse ele. — Só pensas neles! Fica um pouco comigo!

— Mas... Catarina?...

— Ora! Catarina virá aqui, descansa — respondeu ele com ar enfadado. — Se ela não te encontrar a culpa será tua...

Sônia sentou-se inquieta. Raskólnikov, com os olhos no chão, pensava.

— Hoje, Lujine não queria processar-te, apenas perder tua reputação — começou sem olhar para a rapariga. — Mas se nós não estivéssemos lá e se ele quisesse mandar-te prender, estarias agora na prisão, não é verdade?

— É — respondeu ela com voz fraca — é — repetia maquinalmente, distraída pela inquietação que a dominava.

— Ora, eu podia não estar lá, e foi por um acaso que Lebeziátnikov chegou.

Sônia ficou silenciosa.

— E se te tivesse prendido, que sucederia? Lembras-te do que te disse ontem?

Ela continuava calada, esperando ocasião para responder.

— Eu pensava que me dirias “Ah, não me fale nisso!” — continuou ele com um sorriso contrafeito. — Mas calas-te? — perguntou passado um minuto. — É preciso que eu sustente a conversa? Tinha curiosidade de saber como resolverias uma questão, como diz Lebeziátnikov. (O embaraço tornava-se visível.) Falo seriamente. Suponha que, antecipadamente, te contaram os projetos de Lujine, que sabias desses projetos destinados a perder Catarina e os filhos, sem contar contigo: suponha que Poletchka é condenada a uma vida como a tua. Ora, se dependesse de ti que ele continuasse vivendo, isto é, que Lujine vivesse para realizar seus vis projetos ou que Catarina Ivanovna devesse morrer? Como decidirias sobre quem recairia a morte? Pergunto-te!

Sônia olhou para ele, atônita: nestas palavras ditas em voz trêmula, adivinhava um pensamento secreto.

— Não esperava por essa pergunta — disse, interrogando-o com o olhar.

— Talvez; mas que decidirias?

— Que interesse tem em saber o que eu faria num caso que não pode dar-se? — disse Sônia relutante.

— Deixarias então Lujine fazer todas as vilanias? Parece que não tens coragem para o dizer?

— Mas eu não sei os segredos da Providência... Para que me pergunta o que farei num caso impossível? Como pode a vida de um homem depender da minha vontade? Quem confiou a mim a vida ou a morte dos outros?

— Desde que apelas para a Providência, nada mais tenho a dizer — respondeu Raskólnikov, despeitado.

— Diga-me francamente o que quer dizer-me! — exclamou ela aflita. Está com subterfúgios!... Veio aqui para me torturar?

Ela não pôde controlar-se e começou a chorar amargamente. Durante cinco minutos ele observou-a com o aspecto sombrio.

— Tens razão, Sônia — disse abaixando a voz.

Uma transformação súbita se dera nele; a gravidade afetada, o tom altivo com que falara tinham desaparecido; agora mal se faziam ouvir.

— Disse-te ontem que não viera pedir-te perdão, e foi quase a dar-te desculpas que comecei a falar. Falando-te em Lujine, desculpava-me, Sônia...

Quis sorrir, mas o rosto conservou o tom sombrio. Baixou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos.

De repente pensou que detestava Sônia. Surpreendido, admirado até de tal descoberta, levantou a cabeça e olhou para ela com atenção: ela fixava nele um olhar em que brilhava a luz do amor. Imediatamente a dúvida desapareceu, Raskólnikov enganara-se no sentimento que o agitara. Isso significava apenas que tinha chegado o momento fatal.

De novo cobriu o rosto com as mãos e baixou a cabeça. De repente empalideceu, levantou-se e, depois de tornar a olhar para Sônia, foi sentar-se no leito, sem dizer palavra.

A impressão de Raskólnikov era então a mesma que sentira quando de pé, atrás da velha, se preparava para matá-la e dizia: “Não há um momento a perder.”

— Que tem? — perguntou Sônia.

Não respondeu. Tencionava explicar-se em outras condições e não compreendia agora o que se passava nele, que não o podia fazer. Ela aproximou-se muito meiga, sentou-se a seu lado e esperou sem deixar de o olhar. A situação era insuportável; ele ergueu para ela os olhos, pálido, e contraiu os lábios, querendo falar. Sônia estava aterrada.

— Que tem? — repetiu, afastando-se um pouco.

— Nada; não te assustes... Francamente, isto não vale nada, é uma tolice — disse — desvairado. — Mas para que vim apoquentar-te? perguntou de repente, olhando para Sônia. — Sim; para quê? É o que eu não cesso de perguntar a mim mesmo.

Um quarto de hora antes fizera a si mesmo esta pergunta, mas nesse momento sua fraqueza era tão grande, que apenas tinha consciência de si, porque se sentia a tremer.

— Oh, como sofre! — pronunciou Sônia, angustiada, olhando-o intencionalmente.

— Não é nada!... Queres saber o que é?... (durante dois minutos um pálido sorriso desanimado pairou-lhe nos lábios) Lembra-te do que ontem quis dizer?

Sônia escutava, inquieta.

— Disse-te, ao sair, que talvez me despedisse de ti para sempre, mas que se voltasse te diria... quem matou Isabel.

Ele estremeceu.

— Eis para o que vim.

— Sim, foi o que me disse ontem — respondeu Sônia com voz pouco firme. — Mas como sabe?

A rapariga sentia que lhe faltava o ar. Seu rosto tornava-se cada vez mais lívido.

— Sei...

— Já descobriram? — perguntou ela timidamente, depois de um curto silêncio.

— Não, não o descobriram...

Houve outro silêncio.

— Então como sabe? — perguntou de novo com uma voz que mal se ouvia.

Voltou-se para ela, olhou-a fixamente, enquanto um sorriso desanimado lhe flutuava na boca.

— Adivinha — disse ele.

Um estremecimento percorreu-a.

— Mas para que me assusta assim? — perguntou, sorrindo como uma criança.

— Se o sei é porque o conheço — respondeu Raskólnikov sem desviar os olhos dos de Sônia. — Essa Isabel, ele não a queria matar... assassinou-a sem premeditação... Queria apenas a velha... quando ela estivesse sozinha... Mas apareceu Isabel... matou-a.

Um silêncio lúgubre seguiu-se a estas palavras. Ambos continuavam com os olhos fixos um no outro.

— Então não adivinhas? — perguntou subitamente sentindo a sensação de quem se precipita num abismo.

— Não — respondeu Sônia, com voz sumida.

— Observa-me bem...

Quando pronunciou estas palavras sentiu a alma gelar-se-lhe: parecia-lhe ver no rosto dela a expressão fisionômica de Isabel, quando a desgraçada recuava diante do assassino, que avançava para ela de machado em punho. Nesse momento, Isabel erguera o braço, como as criaturas medrosas que, quase a chorar, fixam o olhar espantado no objeto que as assusta. Era assim que Sônia manifestava o indizível terror; estendeu também o braço, empurrou-o levemente, pondo-lhe a mão no peito, afastando-se pouco a pouco, sem deixar de o olhar. O terror dela comunicou-se-lhe. Pôs-se a contemplá-la com os olhos alucinados.

— Adivinhaste? — sussurrou ele.

— Meu Deus! — lamentou com um grito de entrecortar o coração.

Caiu exausta no leito, escondendo o rosto no travesseiro. De repente, levantou-se e aproximou-se dele, tomou-lhe as mãos e apertando-as com os dedos, lançou-lhe um longo olhar. Neste último desesperado olhar procurou perscrutá-lo e encontrar uma última esperança. Mas não havia esperança, não havia nenhuma dúvida remanescente. Mais tarde, quando ela rememorava este momento, achou estranho e admirou-se como vira de pronto não haver dúvida. Não poderia ter dito, por exemplo, que previra um tal desfecho — e agora, logo que ele lhe falou, repentinamente imaginou que ela realmente previra tal fim.

— Basta, Sônia! Basta, não me tortures! — suplicou miseravelmente a ela.

Todas as suas previsões saíram erradas, porque não era assim que ele queria confessar o crime.

Sônia parecia fora de si; saltou do leito para o meio do quarto, torcendo as mãos, e voltou a sentar-se junto dele, quase encostada ao seu ombro. De repente estremeceu, soltou um grito e caiu de joelhos.

— Está perdido! — disse com desespero, e levantando-se lançou-se ao pescoço dele e beijou-o com ternura.

Raskólnikov afastou-a e, com a voz cheia de tristeza disse-lhe:

— Não te compreendo, Sônia. Beijas-me depois de te dizer isto... Tu não tens consciência do que fazes agora.

Ela não o ouviu.

— Não há na Terra homem mais infeliz do que você! — exclamou cheia de piedade, rompeu subitamente com choro violento e histérico.

Raskólnikov sentia comover-se sob a influência de um afeto que não conhecia. Não tentou lutar contra essa impressão: duas lágrimas brilharam-lhe nos olhos.

— Não me abandonas, Sônia? — perguntou-lhe com o olhar suplicante.

— Nunca! Nunca! Acompanho-te para onde quiseres! Oh, meu Deus! Como sou infeliz! Mas por que não te conheci há mais tempo? Por que não te conheci antes?

— Mas vês como vim!

— E agora? Que se há de fazer?... Juntos! Juntos! — repetia ela inconscientemente, abraçando-o muito. Irei contigo até a Sibéria.

Estas palavras causaram uma sombria impressão em Raskólnikov: um sorriso cheio de amargura e quase altivo pairou-lhe nos lábios.

— Por ora não estou resolvido a ir para a Sibéria.

Sônia olhou rapidamente para ele. Nunca sentira tanta piedade. Aquelas palavras e a maneira por que foram ditas tornavam a lembrar-lhe que ele era um assassino. Olhou-o pasmada. “Ele! Ele, um assassino! Não é possível!”

— Não, não é verdade! Onde estou eu? — perguntava ela, como se despertasse. — Mas como fizeste isso?

— Para roubar! Basta Sônia — disse-lhe ainda, fatigado, quase com mortificação.

Sônia ficou estupefata, mas de repente tornou:

— Tinhas fome? Foi para ajudares tua mãe?

— Não — respondeu ele —, queria, com efeito, ajudar minha mãe... mas não foi essa a razão... não me aflijas!

Ela sentia-se muito nervosa.

— Será verdade tudo isso? É possível, meu Deus? Como acreditá-lo? Tu mataste para roubar, tu que és capaz de ficar sem nada para dar aos outros! Ah! — exclamou de repente. — E esse dinheiro que deste a Catarina... esse dinheiro... Oh! Meu Deus, é possível que esse dinheiro...

— Não, Sônia — interrompeu ele precipitadamente —, esse dinheiro não era... sossega! Foi minha mãe quem me mandou quando estive doente. Tinha-o recebido havia pouco quando o dei a Catarina... Razumíkhin viu... Esse dinheiro era meu, só meu!

Sônia ouvia-o muito atenta, esforçando-se para compreendê-lo.

— Quanto ao dinheiro da velha... que eu nem sei se havia dinheiro, tirei-lhe do pescoço uma bolsa que parecia estar cheia... mas não verifiquei o que continha... Roubei diferentes coisas, botões de punho, correntes de relógio... Esses objetos e a bolsa escondi-os no dia seguinte de manhã, num prédio que dá para V***. Ainda está tudo lá...

Sônia redobrava de atenção.

— Mas por que não ficaste com alguma coisa, visto que mataste para roubar? — perguntou ela aferrando-se a uma última e vaga esperança.

— Não sei; nem mesmo resolvi ainda ficar com esse dinheiro — respondeu Raskólnikov hesitante, dando um breve sorriso irônico. Que história tola te contei...

“Estará doido?”, perguntava ela a si própria. Mas logo repeliu a ideia. Havia ali outra coisa. Decididamente não percebia nada.

— Sabes o que te digo, Sônia? Se só a necessidade me levasse ao crime — dizia ele acentuando cada palavra, e tendo no olhar o que quer que fosse de enigmático —, eu seria agora feliz! Fica sabendo! Mas que te importa o motivo, desde que ouviste a horrível confissão! — exclamou com desespero, momentos depois.

Sônia ia falar, mas deteve-se.

— Ontem pedi que fugisses comigo, porque não tenho mais ninguém no mundo.

— Para que me queres contigo? — interrompeu ela timidamente.

— Não é para matar nem roubar, sorriu amargamente, nós não somos gente dessa laia... E sabes, só há pouco compreendi por que te pedi ontem que viesses comigo. Quando te fiz o pedido, nem sabia por que o fazia. Sei agora: é que não queria que me abandonasses. Tu não me deixas, Sônia?

Ela apertou-lhe a mão com força.

— Mas para que, para que te disse o que fiz?! — exclamava ele um minuto depois, olhando para ela com infinita angústia. — Esperas que te dê explicações, pelo que vejo, mas que hei de dizer, Sônia? Nada perceberias e afligir-te-ias ainda mais! Por que choras? Por que me abraças? Porque eu não tenho coragem para suportar o peso do fardo e o descarrego em outrem? Porque procuro no sofrimento um alívio ao meu desgosto? E podes gostar de um homem assim?

— Mas tu não sofres também? — choramingou Sônia.

Durante um minuto os dois sentiram-se extremamente sensi-
bilizados.

— Sônia, eu tenho um mau coração, repara; isto explica-te muita coisa. Foi por ser mau que vim aqui. Poucas pessoas seriam capazes de fazê-lo. Mas eu sou um covarde... e um infame. Mas... não importa! Não é esta a causa. Preciso falar agora, mas não sei como começar.

Parou e ficou pensativo.

— Somos diferentes — gritou ele de novo —, não somos iguais. E por que vim procurar-te? Nunca me perdoarei por ter vindo.

— Não, não; fizeste bem em vir! É melhor que eu saiba tudo, muito melhor!

Raskólnikov olhou para ela, dolorosamente.

— Eu queria ser um Napoleão; aqui tens por que matei. Percebes?

— Não — sussurrou Sônia ingênua e timidamente —, mas fala, fala... Eu compreenderei!

— Compreenderás? Vamos, então...

Durante algum tempo Raskólnikov concentrou-se.

— O fato é que um dia apresentei a mim mesmo esta questão: se Napoleão estivesse no meu lugar, se não tivesse no começo da sua carreira Toulon, o Egito, a passagem do monte Branco, e se se encontrasse diante de um assassínio a cometer para assegurar seu futuro, repugnar-lhe-ia matar uma velha, uma usurária, que tivesse de ser assassinada para obter o dinheiro guardado em seu cofre (para sua carreira, entendes?). Teria ele praticado esse ato se não houvesse outro meio? Sentiria algum remorso por estar esse meio tão longe do monumental... e, também, ser criminoso? Durante muito tempo pensei nesse problemas e senti-me envergonhado quando por fim reconheci que ele não hesitaria, que nem mesmo teria admitido a possibilidade de hesitar. Não tendo outra saída, fá-lo-ia sem o menor escrúpulo. Desde então nunca mais hesitei, escudei-me na autoridade de Napoleão. Ris? Tens razão, Sônia. Sim, Sônia, o motivo de riso talvez seja porque assim realmente sucedeu.

Ela não tinha vontade nenhuma de rir.

— Dize-me francamente... sem rodeios — disse com voz sumida e ainda mais timidamente.

Raskólnikov voltou-se para ela, olhou-a com tristeza e tomou-lhe as mãos com carinho.

— Tens razão, Sônia. Tudo isso é absurdo, frases apenas! Ouve lá: minha mãe está sem recursos. O acaso permitiu que minha irmã recebesse educação, e está condenada a ser governanta! Todas as esperanças de ambas estavam em mim. Entrei para a universidade, mas por falta de meios interrompi os estudos. Suponhamos mesmo que os continue; no melhor dos casos podia, depois de dez ou 15 anos, ser nomeado professor ou obter um emprego com o ordenado de mil rublos... Mas até que isso chegasse, os cuidados e os desgostos arruinariam a saúde de minha mãe e... talvez à minha irmã sucedesse pior. Privar-se de tudo, deixar a mãe na miséria, sofrer a desonra de sua irmã — é vida? E tudo por quê? Depois de ter enterrado os meus, poderia constituir família nova. Deixaria, morrendo, mulher e filhos sem um bocado de pão! Pois bem! Pensei que com o dinheiro da velha não continuaria a ser pesado à minha mãe, poderia voltar para a universidade e em seguida assegurar meu começo de vida... Aí está... Naturalmente fiz mal matando a velha... mas, basta!

Foi com esforço que terminou sua exposição, ficou exausto e deixou a cabeça pender.

— Não é isso, não é isso! — exclamou Sônia tristemente. — É, pois, verdade que não houve outro motivo?

— Não houve motivo. O que eu disse é a verdade!

— A verdade! Oh!

— Afinal, Sônia, matei apenas um verme ignóbil, nocivo...

— Esse verme era uma criatura humana!

— Sei que não era um verme — disse, olhando-a estranhamente. — Estou falando incongruências, Sônia — acrescentou. Há tempos que digo incongruências... Não é isto! Tens razão, Sônia, foram outros os motivos. Há muito tempo que eu não conversava... sinto uma violenta dor de cabeça.

Os olhos pareciam febris. Parecia delirar, um sorriso inquietador pairava-lhe na boca. Aquela animação fictícia esgotara-o. Sônia viu quanto ele sofria. Ela também julgava que ia perder a razão. “Que linguagem extravagante! Apresentar tais explicações...” Não acreditava e torcia as mãos em desespero.

— Não, Sônia, não é isto! — prosseguiu erguendo a cabeça, como se um novo e súbito fluxo de ideias o possuísse e o incitasse. — Não é isto! Imagina que eu sou um odre de amor-próprio, invejoso, mau, vingativo, e com tendência para a loucura. (Deixa que lhe diga de uma vez! Percebi que me julgam louco.) Disse-te que deixei a Universidade. Pois podia não o ter feito! Minha mãe pagava as matrículas e eu ganhava com meu trabalho para vestir-me, e assim podia viver. Tinha lições que me davam cinquenta copeques. Razumíkhin trabalha muito, este sim! Mas eu estava farto, não queria mais. Sim, farto; é o termo! Então fiquei no quarto, como a aranha. Tu conheces a minha trapeira, já estiveste lá... Sabes que se sufoca nos quartos baixos e estreitos? Oh, como eu odiava esse cubículo! Contudo não queria mudar-me. Ficava lá dias inteiros, deitados, ocioso, não me preocupando nem com o que havia de comer.

“‘Se Nastácia me trouxer alguma coisa, muito bem’, dizia eu, ‘senão, passarei sem comer’. Estava muito irritado para pedir alguma coisa! Tinha renunciado ao estudo e vendido os livros; havia uma polegada de pó sobre as minhas notas e cadernos. À noite, não tinha luz: para comprar uma vela seria preciso trabalhar, e eu não queria trabalhar; preferia sonhar deitado no divã! É inútil dizer em que consistiam os meus sonhos. Foi então que comecei a pensar... Não, não é isto! Ainda não digo as coisas como são! Ouve, Sônia, eu dizia sempre comigo: visto que sabes que os outros são tolos, por que não procuras ser mais inteligente? Depois, reconheci que, para esperar o mundo ser inteligente, seria preciso ter grande paciência. Mais tarde convenci-me de que esse momento nunca chegaria; que os homens não mudarão e que se perde tempo a querer modificá-los! Sim, é isto! É uma lei de sua natureza... Sei agora, Sônia, que para os homens o senhor é quem possui uma inteligência poderosa. Quem ousa muito tem razão aos olhos deles. Aquele que os provoca e os despreza impõe-se ao seu respeito! E o que se tem visto sempre e sempre se verá!”

Enquanto falava, Raskólnikov olhava para ela, mas já não lhe importava que o compreendesse. Estava possuído de grande exaltação. A moça sentiu que aquele catecismo feroz era a sua fé e a sua lei.

— Então, Sônia, convenci-me — continuou cada vez mais excitado — de que o poder não é concedido senão ao que ousa baixar-se para o tomar; é necessário ousar. Desde o dia em que vi esta verdade, clara como a luz, quis ousar, e matei... quis apenas praticar um ato de audácia; foi esse, Sônia, o móvel da minha ação!

— Oh! Cala-te, cala-te — gritou ela fora de si. — Descreste de Deus, e Deus castigou-te entregando-te ao diabo!...

— Então, Sônia, quando todas essas ideias iam visitar-me na treva do meu quarto, era o diabo que me tentava? O diabo?

— Cala-te! Não rias, és um herege, não compreendes nada!

— Cala-te, Sônia, eu não estou rindo; sei bem que foi o diabo que me arrastou. Cala-te, Sônia, cala-te! — repetiu com sombria insistência. — Sei tudo. Tudo o que possas dizer-me, disse-o a mim, mil vezes, deitado às escuras. Que lutas interiores sofri! Como todos esses sonhos me eram insuportáveis e como eu queria desembaraçar-me deles! Julgas que matei como um estouvado? Não, não procedi senão depois de maduras reflexões, e foi o que me perdeu! Pensas que me iludi? Quando eu me interrogava se tinha direito ao poder, sentia perfeitamente que não, por isso que o punha em dúvida. Quando eu me perguntava se uma criatura era um verme, eu me capacitava perfeitamente de que para mim não o era, mas o era para o audacioso, que não se teria feito essa pergunta e teria seguido seu caminho sem atormentar o espírito com ninharias... Enfim, o simples fato de me propor este problema — “Napoleão mataria esta velha?” — bastava para me provar que não era um Napoleão... Finalmente, renunciava a procurar justificações sutis: quis matar sem casuística, matar para mim, apenas para mim! Não pensei em iludir minha consciência. Se matei, não foi nem para aliviar a pobreza de minha mãe nem para consagrar ao bem da humanidade o poder e a riqueza que, no meu cálculo, essa morte devia ajudar-me a conquistar. Não, não; tudo isso estava longe do meu espírito. Naquele momento por certo não me inquietava a dúvida sobre se fazia bem a alguém, ou se seria toda a minha vida um parasita social!... E o dinheiro não foi para mim o principal móvel do crime; foi outra razão que principalmente me levou... Vejo-o agora muito bem... Ouve: se pudesse voltar atrás, talvez não fizesse o que fiz. Mas então eu queria sobretudo saber se era um verme como os outros ou um homem na acepção da palavra, se tinha ou não em mim a força de saltar sobre o obstáculo, se era um fraco ou se tinha direito...

— O direito de matar? — perguntou Sônia horrorizada.

— Eh! Sônia! — disse ele irritado; e veio-lhe aos lábios uma resposta, mas absteve-se desdenhosamente de dizê-la. — Não me interrompas! Eu queria somente provar-te uma coisa: o diabo levou-me à casa da velha e depois fez-me compreender que não tinha o direito de ir lá, visto que sou um verme, como os demais! O diabo troçou de mim! E agora venho à tua casa! Pois se eu não fosse um verme viria fazer-te esta visita? Escuta: quando fui à casa da velha, queria só fazer uma experiência... Fica sabendo!...

— E mataste! Mataste!

— Bem, mas como matei? É assim que se mata? Faz-se o que eu fiz quando se vai matar alguém? Um dia te contarei os pormenores... E porventura matei a velha? Não, a mim é que matei e perdi-me sem remédio... Quanto à velha, foi morta pelo diabo, não por mim... Basta, Sônia, basta! Deixa-me — gritou ele de repente —, deixa-me!

Apoiou os cotovelos nos joelhos e apertou fortemente a cabeça entre as mãos...

— Como sofres! — gemeu Sônia.

— E agora? Dize-me, o que hei de fazer? — perguntou ele levantando subitamente a cabeça.

Tinha as feições horrivelmente transtornadas.

— Que hás de fazer?! — exclamou ela. Correu para ele, e os seus olhos, até ali rasos de lágrimas, incendiaram-se. Levanta-te! (E dizendo isto agarrou-o pelos ombros; ele levantou-se um pouco e olhou para Sônia com ar surpreso.) Vá imediatamente, agora, à viela próxima, arroja-te ao chão e beija a terra que manchaste; em seguida olha para todos os lados e grita a toda a gente: “Eu matei!” Então Deus te restituirá a vida. Vais? Vais? — perguntou ela a tremer, apertando-lhe as mãos com força e fixando nele os olhos brilhantes.

Esta súbita exaltação mergulhou Raskólnikov num pesar profundo.

— Então queres que eu vá para a Sibéria, Sônia? Preciso denunciar-me, não é? — perguntou com ar sombrio.

— É preciso que aceites a expiação e que te regeneres por meio dela.

— Não, Sônia, não irei denunciar-me, jamais.

— E viver? Como viverás? — replicou ela com força. — É possível agora? Como poderás suportar o olhar de tua mãe? Oh! Que será delas agora? Mas que digo eu? Já abandonaste tua mãe e tua irmã. Por isso é que quebraste os laços de família! Oh, Senhor! — exclamou. — Ele próprio já compreendeu tudo! E agora, como hás de ficar fora da humanidade? Que há de ser de ti?

— Pensa bem, Sônia — disse Raskólnikov, ternamente. — Para que hei de apresentar-me à polícia? Que diria eu a essa gente? Eles próprios matam milhões de homens e fazem disso alarde. São canalhas e covardes, Sônia!... Não vou! Que lhes diria? Que cometi um crime e que, não ousando aproveitar-me do dinheiro roubado, o escondi sob uma pedra? — acrescentou com um sorriso amargo. — Eles zombariam de mim; diriam que sou um imbecil e um pulha! Eles, Sônia, não compreenderiam nada; são incapazes disso. Para que entregar-me? Não vou. Pensa bem, Sônia...

— Será difícil demais suportares — repetiu ela, estendendo as mãos em uma desesperada súplica.

— Talvez tenha sido desleal para comigo mesmo — ponderou sombriamente —, talvez, apesar de tudo, pois sou um homem e não um verme. Apressei-me em condenar-me. Continuarei outra luta por causa disso.

Um sorriso orgulhoso apareceu-lhe nos lábios.

— Carregar esse fardo! E toda a vida; toda a vida!

— Reabilitar-me-ia? — disse com um ar feroz. — Escuta — prosseguiu depois. — Basta de lágrimas; é tempo de falarmos seriamente; eu vim dizer-te que já me procuram para me prender.

— Ah! — exclamou Sônia, aflita.

— Então, que é isso? Pois se desejas que eu vá para a Sibéria, por que te assustas? Mas ainda não me pegaram. Hei de dar-lhes o que fazer, e, afinal de contas, nada conseguirão. Não têm indícios positivos. Ontem corri grande perigo e julguei que estava perdido; hoje reparou-se o mal. Todas as provas se prestam a duas interpretações, isto é, os argumentos contra mim posso explicá-los no interesse da minha causa, compreendes? E não terei dificuldade em fazê-lo. Certamente me meterão na cadeia. Sem uma circunstância muito fortuita, é até muito provável que já me tivessem prendido hoje; estou em risco de ser ainda preso antes de findar o dia. Mas isso não vale nada, Sônia: se me prenderem, serão obrigados a soltar-me porque não têm uma prova real, e não a terão, juro-te. Por simples suspeitas não se pode condenar um homem. Está bem, basta... Eu queria só avisar-te. Quanto à minha mãe e minha irmã, vou arranjar as coisas de maneira que não se inquietem. Parece que minha irmã está agora ao abrigo de necessidades; posso, pois, estar tranquilo também quanto à minha mãe... Bem... Tem prudência. Irás ver-me quando eu estiver preso?

— Decerto! Decerto!

Estavam um ao lado do outro, sentados, tristes e abatidos como dois náufragos lançados sobre uma plaga deserta pelo temporal.

Olhando para Sônia, Raskólnikov sentia quanto ela o amava, e, coisa singular, aquela imensa ternura de que se via objeto causou-lhe uma impressão dolorosa.

Dirigira-se à casa dela, dizendo de si para si que o seu único refúgio, a sua única esperança estavam ali: cedera à necessidade irresistível de desabafar as suas penas; e agora que ela lhe dava todo o seu coração, julgava-se muito mais desgraçado que antes.

— Sônia — disse —, é melhor que não me vejas na prisão!

Ela não respondeu; chorava. Passaram-se alguns minutos.

— Tens alguma cruz contigo? — perguntou ela subitamente, como se lhe tivesse ocorrido uma ideia.

Ele não percebeu logo a pergunta.

— Não, não tens? Então toma esta, que é de cipreste. Eu tenho outra de cobre, que Isabel me deu. Fizemos uma troca: ela deu-me a cruz, e eu dei-lhe um ícone. Agora vou usar a cruz de Isabel e levarás esta. Toma... é a minha! — insistiu. — Iremos ambos para a expiação; conduziremos a nossa cruz até o fim.

— Dá-me! — disse Raskólnikov para não a desgostar, e estendeu a mão, mas quase no mesmo instante retirou-a.

— Não, agora, não, Sônia. É melhor depois.

— Sim, mais tarde — respondeu. — Dar-te-ei na hora da expiação. Virás aqui, ponho-a em seu pescoço, rezaremos e partiremos.

Nesse momento soaram três pancadas na porta.

— Sófia Semenovna, pode-se entrar? — disse uma voz familiar e amável.

Sônia, inquieta, correu a abrir. Era Lebeziátnikov.


Capítulo V

André Semênovitch tinha o rosto transtornado.

— Vinha procurá-la, Sônia. Peço desculpa... Já esperava encontrá-lo aqui — disse bruscamente a Raskólnikov —, quero dizer, não pensava nada de mau, não vá supor... mas pensava justamente... Catarina Ivanovna enlouqueceu — concluiu —, dirigindo-se novamente a Sônia.

A moça deu um grito.

— Pelo menos parece. Puseram-na na rua, na casa aonde foi, e provavelmente bateram-lhe... Pelo menos parece. Fora procurar o chefe de Simão Zakáritch, mas não o encontrou; jantava em casa de um dos seus colegas. Dirigiu-se logo para a casa do tal homem e insistiu em falar ao chefe de Zakáritch, que ainda estava à mesa. Naturalmente puseram-na na rua. Ela conta que o injuriou e lhe atirou qualquer coisa na cabeça. Nem sei como não a prenderam! Agora deu para contar os seus projetos a todo o mundo, incluindo Amália Ivanovna. Mas está numa tal agitação que pouco se ouve o que ela diz. Como não lhe resta recurso algum, quer ir tocar realejo nas ruas, acompanhando os filhos, que cantarão e dançarão implorando a caridade. Diz que todos os dias irá colocar-se sob as janelas do general... “Hão de gozar o espetáculo dos filhos de uma família nobre pedindo esmolas pelas ruas!” Bate nas crianças, que choram. Ensina “Minha choupana” a Lida e dá lições de dança ao pequeno e a Paulina Mikailovna. Rasga os poucos trapos que tem para fazer roupa de saltimbancos, e à falta de instrumento quer levar uma bacia de metal como tambor... Não admite uma palavra contra os seus projetos. Enfim, só vendo!...

Lebeziátnikov ia continuar, mas Sônia, que o ouvira quase sem respirar, pôs o chapéu e saiu precipitadamente. Os dois seguiram-na.

— Está positivamente doida — disse André a Raskólnikov. — Para ir preparando Sônia, disse-lhe que apenas parecia; mas não é possível duvidar de que está doida. Nos tísicos parece que é frequente tuberculose no cérebro. Lamento não entender de medicina. Tentei dissuadi-la, mas não me atendeu.

— O senhor falou-lhe em tuberculose?

— Não; nem ela compreenderia. Mas faça o favor de me dizer: se o senhor convencer alguém com o rigor da lógica, de que no fundo não há razão alguma que justifique o choro, esse alguém deixará de chorar? É claro que não! Por que continuaria a chorar, não me dirá?

— Se assim fosse, a vida seria deliciosa! — respondeu Raskólnikov.

— Desculpe-me, desculpe-me, seria muito difícil que Catarina Ivanovna o entendesse, mas sabe que em Paris têm sido feitas experiências para a possível cura dos doentes mentais, simplesmente pela argumentação lógica? Um professor de lá, um renomado cientista, há pouco falecido, acreditava na possibilidade de cura. Sua ideia era de que nada existe de doença física nos loucos, e que a doença mental é, por assim dizer, um defeito de lógica, de julgamento, uma visão incorreta das coisas. Gradualmente mostrara aos loucos seus erros, e, pode acreditar nisto, dizem que obteve sucesso! Mas como também aplicara duchas, não se sabe em que proporção o sucesso é devido a tal tratamento... Isto em minha opinião.

Raskólnikov já não o ouvia há algum tempo. Chegava à casa onde morava. Saudou com a cabeça Lebeziátnikov, e entrou. Lebeziátnikov deu-se conta de onde estava, olhou em torno e afastou-se apressado.

Raskólnikov quando chegou a seu cubículo, perguntou a si próprio por que voltara. O olhar fixava-se no papel amarelado e no velho divã em que dormia... Do pátio subia um ruído seco, como de marteladas. Estariam pregando alguma coisa? Foi à janela, pôs-se na ponta dos pés e olhou com a maior atenção. Mas não viu ninguém. Na casa da esquerda, viu algumas janelas abertas; nos parapeitos havia vasos com gerânios raquíticos. Lençóis estavam pendurados nas janelas... já os conhecia de cor. Por fim sentou-se no divã. Nunca sentira tamanha sensação de isolamento! Sim, de novo sentia que detestava Sônia, e que a detestava sobretudo depois de ter aumentado a sua desgraça. Para que a fizera chorar? Que necessidade tinha de lhe envenenar a vida? Que covardia! “Ficarei só”, disse resolutamente, “e ela não irá ver-me na prisão!”. Cinco minutos depois ergueu a cabeça e sorriu a uma ideia que lhe ocorrera. “Talvez fosse melhor ir para a Sibéria”, pensou num relance.

Quanto tempo durou esse sonho? Nunca se pôde lembrar disso. De súbito a porta abriu-se, dando passagem a Avdótia Romanovna, que parou no limiar, olhando o irmão atentamente. Depois aproximou-se e sentou-se à sua frente numa cadeira, no mesmo lugar da véspera.

Raskólnikov fitou-a silenciosamente.

— Não te aborreças, Ródia; demoro-me pouco. A sua fisionomia era grave, não severa; o olhar, límpido e terno. Raskólnikov percebeu que a irmã viera pela grande afeição que lhe tinha.

— Meu irmão, sei tudo, tudo. Dmitri contou-me tudo. Perseguem-te, atormentam-te, és vítima de suspeitas tão insensatas como odiosas... Dmitri Prokófitch é de opinião que nada há que temer e que não tens motivos para te incomodares desse modo. Não partilho Dessa opinião compreendo a tua indignação e não me surpreenderia se toda a tua vida te ressentires disso. E é isso o que receio. Deixaste-nos. Não discuto a tua resolução, e peço-te que me perdoes as palavras desagradáveis que te disse. Sinto que, em idêntico caso faria como você: evitaria todo o convívio. É claro que não direi à mamãe uma só palavra a este respeito, mas falar-lhe-ei de ti sempre e dir-lhe-ei que não tardarás a ir vê-la. Não te preocupes por ela; eu a tranquilizarei; mas por tua parte não a aflijas. Vá lá, embora só uma vez; lembra-te de que é tua mãe! Eu vim, Ródia — disse Dúnia levantando-se —, para te dizer que, se tiveres necessidade de mim, seja para o que for, estou à tua disposição para a vida e para a morte!... Chama-me e virei. Adeus.

Dirigiu-se para a porta.

— Dúnia! — chamou Raskólnikov erguendo-se. Razumíkhin é um excelente rapaz.

Dúnia corou ligeiramente.

— Então? — interrogou ela depois de esperar.

— É ativo, laborioso, honesto e capaz de um afeto sólido... Adeus, Dúnia!

No meio da sua perturbação ela teve um sobressalto.

— Mas então nos separamos para sempre, Ródia? Parece que me dás os últimos conselhos?

— Não faças caso... Adeus!

Deu-lhe as costas e foi até a janela. Dunetchka esperou um momento olhando para ele, e retirou-se inquieta.

Não, não era indiferença o que sentia pela irmã. Houve até um momento, o último, em que sentira um violento desejo de abraçar e lhe contar tudo; e todavia não pudera nem estender-lhe a mão. “Mais tarde, estremeceria ao lembrar-se disso... E suportaria tal confissão?”, acrescentou mentalmente. “Não, não suportaria... Essas mulheres não sabem suportar nada...” E o seu pensamento voou para Sônia.

Pela janela entrava uma brisa doce. O dia declinava. Raskólnikov pôs o boné e saiu.

Evidentemente não pensava em tratar-se. Mas os terrores, as contínuas aflições que sentia deviam produzir suas naturais consequências, e se a febre não o tinha ainda prostrado, era devido à força fictícia que lhe dava aquela agitação tão forte.

Caminhou sem destino. Anoitecia. Havia já algum tempo que ele sofria atrozmente, entrevendo longos anos a passar numa ansiedade mortal, “a eternidade no espaço de um metro quadrado”. Era sempre à tarde que esse pensamento o acabrunhava. “Com este estúpido mal-estar em que nos deixa o pôr do sol, como deixar de fazer tolices! Vou apenas à casa de Sônia ou também à casa de Dúnia?”, murmurava amargamente.

Ouvindo seu nome, voltou-se: era Lebeziátnikov que o chamava.

— Venho de sua casa, fui procurá-lo. Imagine, a mulherzinha pôs o plano em execução e anda pelas ruas com os filhos! Sônia e eu tivemos grandes dificuldades em encontrá-los. Por fim, demos com eles: a mãe a rufar numa panela, os pequenos a dançar. As pobres crianças fazem dó. Param nas praças e em frente dos estabelecimentos, seguidos por uma multidão de vadios. Venha depressa.

— E Sônia? — perguntou Raskólnikov inquieto, seguindo André Semênovitch.

— Coitada, está quase como a madrasta. A polícia não deixa de intervir no caso e o senhor faz ideia do efeito que isso produz na pobre rapariga. Agora estão no canal, perto da ponte de*** próximo da casa de Sônia. E já aqui, a dois passos...

No canal, a pequena distância da ponte havia uma multidão, composta na maioria de crianças. A voz fraca e desafinada de Catarina ouvia-se já da ponte. De fato, o espetáculo era bem singular para atrair a atenção pública. Com um chapéu de palha e o velho vestido sobre o qual lançara um xale esfrangalhado, Catarina Ivanovna justificava demasiadamente as palavras de Lebeziátnikov. Estava exausta, arquejante. O rosto demonstrava mais do que nunca sofrimento (aliás, as pessoas que sofrem do peito, ao sol, na rua, têm sempre pior aspecto do que em casa), mas, não obstante a fraqueza, estava numa agitação extraordinária, que aumentava a todo momento.

Corria para os filhos, repreendia-os, preocupada com a sua educação coreográfica e musical, lembrando-lhes o motivo por que os fazia dançar e cantar. Depois, exprobava-lhes a pouca inteligência e batia-lhes.

Interrompia-se a cada momento para falar ao público; e, se avistava um homem vestido mais decentemente, apressava-se a explicar-lhe as circunstâncias extremas a que estavam reduzidos os filhos “de uma família nobre, podia mesmo dizer-se aristocrática”. Se ouvia risos ou ditos escarnecedores, insultava os malcriados.

O fato é que muitos troçavam, outros abanavam a cabeça e em geral todos olhavam com curiosidade para aquela doida cercada de crianças aterradas. Catarina Ivanovna batia as mãos cadenciadamente, enquanto Poletchka cantava e Lida e Kólia dançavam. Às vezes ela própria tentava cantar também; mas à segunda nota era interrompida pela tosse; então desesperava-se e chorava.

O que sobretudo a enraivecia eram as lágrimas e o modo de Kólia e de Lida. Como dissera Lebeziátnikov, ela tentara vestir os filhos como os cantores das ruas. O pequeno tinha na cabeça uma espécie de turbante. Não tendo pano para fazer uma roupa para Lida, ela limitara-se a pôr-lhe na cabeça o barrete de dormir do falecido Simão Zakáritch, ornado com uma pena de avestruz que outrora pertencera à viúva Catarina Ivanovna e que esta tinha conservado como lembrança de família. Poletchka trajava o vestido de todos os dias. Não largava a mãe, de quem adivinhava o desarranjo mental, e, olhando para ela timidamente, procurava esconder-lhe as lágrimas. A pobre pequena estava espantada por se ver assim na rua, no meio daquela gente. Sônia, seguindo Catarina e chorando, suplicava-lhe que voltasse para casa. Mas Catarina teimava.

— Cala-te, Sônia — gritava, tossindo. — Tu nem sabes o que pedes; és uma criança. Já te disse que não voltarei para casa dessa bêbada alemã. Que todo o mundo, que toda a gente de São Petersburgo veja mendigando os filhos de um nobre que toda a vida serviu lealmente à pátria e que, pode dizer-se, morreu em serviço! (Tomara-a esta ideia e era impossível convencê-la do contrário.) Que esse canalha do general seja testemunha da nossa miséria!... Mas tu és tola, Sônia: que comeremos? Nós já te exploramos bastante! Ah, é o senhor, Ródion Românovitch! — exclamou avistando Raskólnikov. E correndo para ele: — Por favor, faça compreender a esta imbecil que é o melhor partido que podemos tomar! Assim como se dá esmola aos tocadores de realejo, também nos darão; hão de reconhecer em nós uma família nobre na miséria, e esse vilão do general será demitido; verá. Havemos de ir todos os dias para debaixo das suas janelas; o imperador passará e eu lançar-me-ei aos seus pés, mostrar-lhe-ei meus filhos e dir-lhe-ei: “Pai, protege-nos!” O senhor verá! E esse maroto do general... Lida, tenez-vous droite! Tu, Kólia, vais já recomeçar esse passo. Que estás a choramingar? Isso acabará. De que é que tens medo? Senhor! Que se há de fazer com eles, Ródion Românovitch? Se soubesse como são estúpidos! Não há meio de fazer nada com eles!

Ela própria tinha lágrimas (o que, aliás, não a impedia de falar sempre), enquanto mostrava a Raskólnikov os filhos lacrimosos. O rapaz tentou convencê-la de que devia ir para casa; julgando movê-la pelo amor-próprio, observou-lhe que não era conveniente andar pelas ruas como os tocadores de realejo, quando se queria abrir um colégio para meninas pobres.

— Um colégio, ah!, ah!, ah! Que ideia! — exclamou Catarina, em meio a um violento acesso de tosse. — Não, Ródion Românovitch, esse sonho morreu! Todo mundo nos abandonou! E aquele general... Sabe, Ródion, que lhe atirei à cara um tinteiro que estava na mesa, ao lado do livro em que os visitantes se inscrevem? Depois de ter escrito meu nome, atirei-lhe o tinteiro e saí pela porta. Oh, os covardes! Os covardes! Mas, afinal, não me apoquento; agora sustentarei meus filhos; não adularei ninguém. Nós já a martirizamos bastante! — acrescentou ela, apontando Sônia. — Poletchka, quanto recebeste já? Deixa ver o dinheiro! O quê! Dois copeques! Ah, avarentos! Não dão nada, e seguem-nos sempre pondo-nos a língua de fora. Então? (Mostrava alguém entre a multidão.) E sempre por culpa deste Kólia, por causa da sua tolice é que se riem de nós! Que queres, Poletchka? Fala-me em francês, parlez-moi français. Eu dei-te lições; lá sabes algumas frases!... De outra forma como reconhecerão que vocês pertencem a uma família nobre, que são crianças bem-educadas e não músicos ambulantes? Não cantem canções vulgares, entoem romanzas... Ah! Sim, é verdade, que vamos cantar? Interrompem-me sempre, e não nos deixam escolher repertório, porque, como o senhor sabe, Ródion, estávamos desprevenidos, não tínhamos nada preparado, precisamos ensaiar, depois iremos para a avenida Neuski, onde param pessoas de distinção. Aí provocaremos a atenção geral. Lida sabe a “Minha choupana”, mas essa canção já se vai tornando insuportável. Não se ouve outra coisa. Então, Pólia, não tens uma ideia? Auxilia tua mãe! Eu já não tenho memória! É verdade, por que não cantamos o “Hussardo encostado ao sabre”? Não será melhor cantarmos em francês os “Cinq sous”? Essa já te ensinei; tu a aprendeste. E depois, como é canção francesa, logo veem que vocês pertencem à nobreza e isso será mais tocante... Poderemos mesmo juntar-lhe “Malborough s’en va-t’en-guerre”! Tanto mais que esta cançoneta, realmente infantil, é a mais cantada em todas as casas aristocráticas para adormecer as crianças.


Malborough s’en va-t’en-guerre

Qui sait s’il reviendra...


“Começou ela a cantar... Mas não, “Cinq sous” é melhor! Vamos, Kólia, mão no quadril, com elegância! E tu, Lida, põe-te em frente dele. Poletchka e eu faremos o acompanhamento!


Cinq sous, cinq sous,

Pour monter notre ménage...


“Poletchka, anda, o vestido está caindo — disse ela enquanto tossia. — Agora é essencial mostrarem atitudes corteses e delicadas, para que se veja serem de nascimento fidalgo. Já disse que o corpete devia ser mais comprido e de duas larguras de pano. Foi tua culpa, Sônia, com o conselho de encurtá-lo. Vês, agora, que deforma a criança... Todos estão chorando novamente! Que há, estúpidos? Vem, Kólia, começa! Rápido, rápido! Que criança insuportável!


Cinq sous, cinq sous.


“Um policial outra vez! Que quer ele?”

Um guarda abria passagem por entre o povo. Ao mesmo tempo aproximou-se da louca um tipo de aspecto respeitável, comovido com aquele espetáculo. O recém-chegado era condecorado, o que alegrou Catarina, e não deixou também de produzir efeito no policial. Estendeu a Catarina uma nota de três rublos. Ao recebê-la a viúva de Marmêladov inclinou-se com a delicadeza cerimoniosa de uma grande dama.

— Muito agradecida, senhor — começou num tom de dignidade —, os motivos que nos induziram... (Toma o dinheiro, Poletchka, vê que ainda há homens generosos e prontos a socorrer uma senhora nobre caída na desgraça.) Os órfãos que tem na sua frente são nobres, pode até dizer-se que são aparentados com a primeira aristocracia... E aquele general estava comendo uma perdiz... Bateu o pé porque tive a ousadia de o procurar... “V. Exa.”, disse-lhe, “conheceu muito Simão Zakáritch; defenda os órfãos que ele deixou. No dia do seu enterro, a filha foi injuriada pelo mais ínfimo dos mariolas...” — Outra vez o policial! Proteja-me! — exclamou dirigindo-se ao seu benfeitor. Por que é que este homem não me larga? Já nos expulsaram da rua dos Burgueses... Que é que queres, imbecil?

— É proibido escândalo nas ruas. Porte-se direito.

— Tu é que és inconveniente! Eu ando como os tocadores de realejo! Deixa-me em paz!

— Os tocadores de realejo têm licença e a senhora não a traz, e está provocando ajuntamentos! Onde mora?

— Como, uma licença? — gritou Catarina. — Eu enterrei hoje meu marido; creio que é uma verdadeira licença!

— Minha senhora, minha senhora, sossegue — disse o desconhecido intervindo —, eu vou levá-la. A senhora não está no seu lugar neste meio. A senhora está doente...

— Oh, o senhor não sabe nada! — bradou Catarina. — Vamos para a avenida Neuski... Sônia, Sônia! Mas onde está ela? Também chora! Mas que têm vocês? Kólia, Lida, onde estão? — gritou, inquieta. — Oh! Crianças doidas! Kólia, Lida! Mas onde estão?

Kólia e Lida, já assustados com o povo e as excentricidades da mãe, possuídos de um terror louco, desataram a fugir de mãos dadas à vista do policial, que desejava debandá-los. Chorando e lamentando-se, a pobre Catarina Ivanovna correu atrás deles. Era um espetáculo inusitado e de provocar compaixão vê-la correr chorando e arquejando. Sônia e Poletchka seguiram-na.

— Faze-os voltar, Sônia, chama-os! Oh, que crianças tolas! Poletchka, agarra-os! É por vocês que eu...

Na corrida, tropeçou e caiu.

— Oh, meu Deus! Ela feriu-se, está cheia de sangue! — exclamou Sônia, inclinando-se sobre a madrasta.

Não tardou a formar-se um grupo em volta das duas mulheres. Raskólnikov e Lebeziátnikof foram os primeiros a acudir, assim como o desconhecido benfeitor e o policial, que murmurou “Que maçada!”, com um gesto de impaciência, sentindo que esse serviço lhe causaria incômodo.

— Vão-se embora! Vão-se embora! — Não cessava de dizer este, esforçando-se para dispersar o povo.

— Está morrendo — disse alguém.

— Está desmaiada — disse outro.

— Que Deus a proteja! — falou uma mulher persignando-se. — Seguraram as duas crianças? Trazem-nas de volta, a mais velha as traz... Ah! Capetas desobedientes!

Mas, examinando bem Catarina, descobriu-se que ela não se ferira como Sônia julgava, e que o sangue que avermelhava o chão vinha de uma hemoptise.

— Eu sei o que é isto — disse o desconhecido ao ouvido dos dois rapazes —, é a tuberculose. Não há ainda muito tempo tive um caso numa parenta minha: o sangue jorrando produziu a sufocação. Não há nada a fazer. Ela vai morrer.

— Para aqui! Para aqui! Para minha casa! — suplicou Sônia. Eu moro aqui perto! A segunda casa... mas depressa, depressa! Mandem vir um médico... Oh, meu Deus! — repetia aflita.

Graças à intervenção do desconhecido, arranjou-se tudo; o próprio policial ajudou a levar Catarina, que estava como morta quando a deitaram no leito de Sônia. A hemorragia continuou ainda por algum tempo, mas pouco a pouco ela pareceu voltar a si. No quarto entraram, além de Sônia, Raskólnikov, Lebeziátnikov e o desconhecido. O policial entrou depois de ter dispersado os curiosos, muitos dos quais tinham acompanhado o triste cortejo.

Poletchka apareceu, trazendo os dois fugitivos que tremiam e choravam. Vieram também os Kapernáumof. O alfaiate, coxo e cego de um olho, era um tipo singular, com os cabelos e as suíças ásperas como pelos de porco. Entre outros apareceu também, de repente, Svidrigailov. Ignorando que ele morava naquela casa e não se lembrando de o ter visto entre os curiosos, Raskólnikov ficou espantado de o encontrar ali. Falou-se em chamar um médico e um padre, o policial sussurrou a Raskólnikov ser muito tarde para chamar um médico, mas este ordenou que se mandasse buscar. Foi Kapernáumof que foi à procura de um médico. Entretanto Catarina Ivanovna estava um pouco mais sossegada e a hemorragia cessara. A desgraçada dirigiu um olhar magoado mais fixo à pobre Sônia que, trêmula e pálida, lhe limpava o rosto com um lenço. Por fim, pediu que a sentassem na cama. Sentaram-na amparando-a.

— Onde estão as crianças? — perguntou com voz fraca. — Trouxeste-as, Pólia? Oh, que imbecis!... Então, por que fugiram? Oh!

Tinha ainda os lábios rubros de sangue. Olhou em torno.

— E aqui está como vives, Sônia... Nunca tinha vindo aqui... Foi preciso isto para eu vir...

Lançou à rapariga um olhar de piedade.

— Nós exploramos-te, Sônia... Pólia, Lida, Kólia, venham cá... Aí os tens Sônia, toma-os... Entrego-os nas tuas mãos... Eu, por mim, estou farta... Acabou-se a festa! Ah! Larguem-me, deixem-me morrer sossegada.

Fizeram-lhe a vontade, ela caiu sobre o travesseiro.

— O quê? Um padre? Não preciso... Não é necessário gastar um rublo com ele! Eu não tenho pecado! E ainda que tivesse... Deus deve perdoar-me... Ele sabe o que sofri!... Se não me perdoar, deixá-lo-ei...

As ideias confundiram-se-lhe cada vez mais. De vez em quando estremecia, olhava em volta e reconhecia durante um minuto todos os que a rodeavam, mas logo o delírio se apoderava dela outra vez. Respirava com dificuldade.

— Eu disse-lhe: Vossa Excelência!... — exclamava ela, parando a cada palavra. — Aquela Amália Ludvigovna... Ah! Lida, Kólia, mãos nas ilhargas, e mexam esses pés; glissez, glissez!... pas de basque. Du hast Diamanten und Perlen...[ 33 ] Como é depois? Era o que devia ter cantado.


Du hast die schönsten Augen

Mädchen, Was willst du mehr?...[ 34 ]


“Sim! Que mais ela quer, a imbecil? Ah! É verdade:


Numa campina do Daguestão,

Onde o sol dardeja a prumo...


“Ah! Como eu gostava... como eu adorava esta linda canção, Poletchka!... Teu pai cantava-a antes do nosso casamento. Ó tempos... Aí está o que deveríamos cantar! Então! Então!... Ora essa, me esqueci... Mas lembra-me o resto!”

Extraordinariamente agitada, esforçava-se por se levantar. Por fim, com voz rouca, estrangulada, sinistra, começou a cantar, respirando a cada palavra, enquanto o rosto mostrava um terror sempre maior.


Numa campina do Daguestão,

Onde o sol dardejava a prumo,

Uma bala no peito...


Depois, desatou a chorar numa desolação comovedora.

— Excelência! — exclamou. — Proteja os órfãos! Em atenção à hospitalidade que recebeu em casa do falecido Simão Zakáritch!... Pode dizer-se até aristocrática!... Ah!...

Estremeceu de repente, e procurando lembrar-se de onde estava, olhou aflita para todos e, reconhecendo Sônia, pareceu surpreendida de a ver ali.

— Sônia, Sônia... — disse com voz terna. — Sônia, minha querida, estás aqui?

Levantaram-na novamente.

— Basta!... Acabou-se!... Desfez-se a carcaça!... — exclamou com amargo desprezo, e deixou cair a cabeça no travesseiro. O pescoço retesou-se, a boca abriu-se, as pernas estenderam-se convulsivamente. Deu um longo suspiro e morreu.

Sônia, mais morta do que viva, lançou-se sobre o cadáver, estreitando-o nos braços, e apoiou a cabeça sobre o peito seco da defunta. Poletchka, soluçando, pôs-se a beijar os pés da mãe. Kólia e Lida, muito crianças para compreenderem o fato, adivinhavam a terrível catástrofe. Passaram os braços em volta do pescoço um do outro, miraram-se nos olhos e começaram a gritar. Estavam ainda vestidos de saltimbancos, isto é, um com o turbante e a outra com o barrete de dormir ornado com a pena de avestruz.

Raskólnikov foi para a janela. Lebeziátnikov apressou-se a ir ter com ele.

— Está morta! — disse André Semênovitch.

Svidrigailov aproximou-se.

— Ródion Românovitch, eu desejava falar-lhe.

Lebeziátnikov cedeu o lugar e saiu discretamente.

Todavia Svidrigailov julgou dever levar Raskólnikov para um canto.

— Eu me encarrego do enterro. O senhor sabe que isso vai custar muito dinheiro e, como já lhe disse, tenho algum de que não preciso. Poletchka e os dois pequenos entrarão num asilo de órfãos, onde ficarão bem instalados, e farei um depósito de 1.500 rublos para cada um até a maioridade, para que Sônia Semenovna não se preocupe com eles. Quanto a esta, retirá-la-ei do lodo porque tem um belo caráter, não é verdade? E o senhor pode dizer a Avdótia Romanovna o emprego que dei ao dinheiro que destinava a ela.

— Com que fim é o senhor tão generoso? — perguntou Raskólnikov.

— Oh, como o senhor é cético! — respondeu rindo Svidrigailov. — Já lhe disse que este dinheiro não me faz falta, procedo apenas por generosidade. O senhor não admite isto? Afinal — acrescentou, indicando com o dedo o canto em que estava a defunta —, aquela mulher não era “um verme como certa usurária”. Concorda “que valia mais que ela morresse e que Lujine vivesse para praticar infâmias”? Sem o meu auxílio, Poletchka, por exemplo, teria a mesma existência que a irmã...

Disse isso num tom malicioso e, enquanto falou, não desviou os olhos de Raskólnikov. Este empalideceu e sentiu-se tremer ouvindo as expressões quase textuais de que se servira na sua conversa com Sônia.

Recuou bruscamente e olhou para Svidrigailov:

— Como... sabe isso? — balbuciou.

— É que eu moro ali, do outro lado, em casa da senhora Resslich, minha velha e excelente amiga. Sou vizinho de Sônia.

— O senhor?

— Eu — continuou Svidrigailov, que sorria — dou-lhe minha palavra, meu querido Ródion Românovitch, que nos tornaremos a ver. E o senhor verá como eu sou um homem acomodatício. Verá que se pode viver comigo!


Sexta parte


Capítulo I

A situação de Raskólnikov era singular: dir-se-ia que uma névoa o envolvia e o isolava da humanidade. Quando mais tarde recordava essa época da sua vida, supunha que perdera por vezes a consciência de si próprio e que este estado durara até a catástrofe final. Estava convencido de que cometera muitos erros, por exemplo, que a sucessão cronológica dos acontecimentos lhe escapara muitas vezes. Pelo menos, quando mais tarde quis reunir e coordenar as reminiscências, foi-lhe necessário recorrer a testemunhos estranhos, para saber um grande número de detalhes. Confundia os fatos, considerava tal incidente consequência de outro que só existia na sua imaginação. Às vezes era dominado por um temor doentio que degenerava em terror. Mas lembrou-se também de que tivera momentos, horas, e talvez até dias, em que, pelo contrário, se achava mergulhado numa apatia comparável à indiferença de certos moribundos.

Em geral, naqueles últimos tempos, em vez de procurar ter uma ideia clara da situação, fazia todos os esforços para não pensar nisso. Certos fatos da sua vida, que não tinham importância, impunham-se, contra a vontade, à sua atenção; em compensação, parece que tinha gosto em desprezar as questões cujo esquecimento, no seu caso especial, só podia ser-lhe fatal.

Tinha sobretudo terror de Svidrigailov. Desde que este lhe repetira as palavras ditas por ele no quarto de Sônia, seus pensamentos como que tinham tomado novo rumo. Mas conquanto essa complicação nova o inquietasse demais, ele não se apressava a pôr o caso a limpo. Às vezes, quando ia por algum bairro longínquo da cidade, ou abancava em algum reles traktir, sem saber por que razão tinha entrado, pensava logo em Svidrigailov: fazia tenção de ter o mais cedo possível uma explicação com esse homem que lhe atormentava o espírito.

Um dia em que fora passear para além das barreiras até se lhe afigurou que dera rendez-vous a Svidrigailov para aquele mesmo lugar. Outra vez, acordando antes da aurora, ficou admirado de se encontrar deitado no meio de uma mata. Ademais, durante os dois ou três dias que se seguiram à morte de Catarina, duas vezes encontrou Svidrigailov: a primeira, no quarto de Sônia; depois, no vestíbulo, perto da escada que levava ao aposento dela.

Nessas duas ocasiões limitaram-se a trocar poucas palavras, e abstiveram-se de falar no ponto capital, como se, por um acordo tácito, se combinassem para afastar momentaneamente esse caso.

O cadáver de Catarina Ivanovna estava ainda na cama. Svidrigailov dava ordens para o funeral. Sônia estava também muito ocupada. No último encontro, Svidrigailov disse a Raskólnikov que suas diligências em favor dos filhos de Catarina Ivanovna tinham tido o melhor êxito; graças a certas pessoas pudera obter a admissão das crianças em asilos. Os 1.500 rublos com que cada um dos pequenos fora dotado desbravaram o caminho das diligências, porque nos asilos eram recebidos de preferência os órfãos dotados. Acrescentou algumas palavras sobre Sônia, prometeu ir num dia próximo à casa de Raskólnikov e deu a entender que havia certas coisas que desejava falar com ele... Enquanto falava, Svidrigailov não cessava de observar o rapaz. Esta conversação se dava no patamar da escada. De repente calou-se; depois perguntou, baixinho:

— Mas que tem, Ródion? Parece que não está bem senhor de si. Ouve, olha e parece não entender! Tenha calma! Precisamos conversar um pouco; infelizmente ando muito ocupado, tanto pelos meus negócios como pelos dos outros... Eh! Ródion Românovitch, acrescentou bruscamente, todos os homens precisam de ar, ar, ar fresco... antes de tudo.

Afastou-se para deixar passar um padre e um sacristão que subiam. Iam celebrar o ofício de defuntos: Svidrigailov, quisera que essa cerimônia tivesse lugar duas vezes por dia. Svidrigailov foi para seus aposentos. Raskólnikov, depois de um momento de reflexão, seguiu o padre à casa de Sônia.

Ficou à porta. O ofício começou com uma triste solenidade. Desde criança Raskólnikov sentia uma espécie de terror místico ante o aparato da morte; por isso evitava sempre assistir às panikidas. Ademais, esta tinha para ele um caráter comovente: as três crianças estavam ajoelhadas junto ao caixão. Poletchka chorava. Atrás delas Sônia orava, escondendo as lágrimas. “Durante esses dias”, pensou ele de repente, “ela não levantou os olhos para mim e não me disse uma palavra!”. O sol iluminava vivamente o quarto entre o fumo do incenso.

O padre leu a oração usual: “Dá-lhe, Senhor, o repouso eterno!” Raskólnikov ficou até o fim. Depois de dar a bênção e se despedir, o padre olhou em volta com um ar estranho. Raskólnikov aproximou-se de Sônia. Ela pegou-lhe as mãos e inclinou a cabeça sobre o ombro do rapaz, a quem esta demonstração de amizade causou um profundo assombro. “O quê! Sônia não lhe tinha a menor aversão, o menor horror; suas mãos não tremiam nas dele! Era o cúmulo da abnegação!” Pelo menos foi isso o que ele julgou. Ela não disse uma palavra. Raskólnikov apertou-lhe a mão e saiu.

Sentia um grande mal-estar. Se lhe fosse possível naquele momento encontrar a solidão em algum lugar, ainda que ela devesse durar toda a vida, ter-se-ia julgado feliz. Ah! Desde algum tempo embora estivesse quase sempre só, não podia dizer que estava. Acontecia-lhe ir passear até fora da cidade, ir por uma estrada qualquer; uma vez mesmo meteu-se por um bosque. Mas quanto mais solitário era o lugar, mais ele sentia perto um ser invisível cuja presença o aterrava ainda menos do que o irritava. Por isso apressava-se em voltar, misturava-se com a multidão, entrava nos traktirs, ia ao Tolhântki ou à Sienaía. Aí estava mais à vontade e isolado!

Ao anoitecer cantavam numa taverna. Passou uma hora ali sentindo um grande prazer. Mas, enfim, a inquietação tomou-o novamente; um pensamento cruel como um remorso começou a torturá-lo:

“Estou aqui a ouvir cantigas; e não era isso o que eu devia fazer!”, disse consigo. Além disso, adivinhava que essa não era sua única preocupação; outra questão devia ser resolvida logo, mas por mais que ela se lhe impusesse, não podia decidir-se a uma solução. “Não; mais vale a luta! Mais valia encontrar-me agora frente a frente com Porfírio... ou Svidrigailov... Sim, sim; antes um adversário qualquer, um ataque a repelir!”

Com esta reflexão, saiu precipitadamente da taverna. De súbito, o pensar em sua mãe e sua irmã lançou-o numa espécie de terror. Passou essa noite nas matas de Krestóvski-Ostrof; antes do dia romper, acordou com febre e pôs-se a caminho de casa, onde chegou pela manhã. Após algumas horas de sono a febre o deixara. Eram duas horas quando acordou.

Lembrou-se de que esse dia era o dos funerais de Catarina Ivanovna, e felicitou-se por não ter assistido ao ato. Nastácia levou-lhe o almoço. Comeu e bebeu com apetite, quase com avidez. Sentia-se mais sereno. Num dado momento espantou-se até dos acessos de pavor que tivera.

A porta abriu-se e Razumíkhin entrou.

— Ah! Comes! Então não estás doente! — disse ele, sentando-se em frente de Raskólnikov. Estava muito agitado e não o dissimulava. Estava evidentemente encolerizado, mas falava devagar e sem elevar a voz.

— Ouve — começou decidido. — Eu desisto de tudo porque vejo agora, de modo claro, que teu procedimento é inexplicável. Não venho interrogar-te. Bem me importo com tudo isso! Tenho mais que fazer que tirar minhocas da cabeça! Agora, se tu me dissesses todos os teus segredos era bem provável que eu os não quisesse ouvir: ia-me embora. Vim somente para ver o teu estado mental. Sabes que há pessoas que se julgam doidas ou em vésperas disso? Confesso-te que eu mesmo estava disposto a aceitar essa opinião em vista de teu modo de proceder, estúpido e inexplicável. Aliás, que se há de pensar do teu procedimento com tua mãe e tua irmã? Que homem, senão um doido ou um canalha, se comportaria com elas como você? Decerto estás louco...

— Estiveste com elas?

— Ainda há pouco. E tu, não vais vê-las? Fazes o favor de me dizer onde passas o dia inteiro? Já vim três vezes aqui. Desde ontem tua mãe está doente. Quis vir ver-te. Avdótia tentou dissuadi-la disso, mas Pulquéria Alexandrovna não quis atender a nada. “Se ele está doente”, dizia ela, “se tem a cabeça transtornada, quem deve tratá-lo senão sua mãe?”. Viemos aqui todos, e no caminho suplicamos-lhe sempre que sossegasse. Quando chegamos, estavas ausente. Ficamos calados, ao lado dela. “Se ele sai”, disse tua mãe quando se levantou, “é porque não está doente. Esquece-se de sua mãe; não devo, pois, mendigar a afeição do meu filho”.

“Voltou para casa e foi para a cama; agora está com febre. ‘Vejo agora’, disse ela há pouco, ‘que é a ela que ele dedica todo o seu tempo’. Supõe que Sófia Semenovna é tua noiva ou amante. Fui à casa de Sônia, porque, meu amigo, desejava saber o que havia. Entro e que vejo? Um caixão, crianças a chorar e Sônia Semenovna cosendo roupas de luto. Não estavas lá. Desculpei-me, saí e fui contar a Avdótia Romanovna o resultado da minha visita. Decididamente, isto não significa nada, não se trata de amor; resta, pois, como mais provável, a hipótese da loucura. Ora, chego aqui e encontro-te a comer carne, como se não comesses há três dias! Sem dúvida, o fato de estar doido não impede de comer; mas apesar de ainda não me teres dito nada... não; não estás doido; eu ponho as mãos no fogo!... Isso para mim está fora de dúvida. Portanto mando todos para o diabo, visto que se trata de um mistério e não quero quebrar a cabeça com a charada. Vim somente para fazer uma cena e desafiar. Enfim, sei o que vou fazer.”

— Que vais fazer?

— Que importa?

— Vais beber.

— Como adivinhaste?

— Era difícil de adivinhar isto!...

Razumíkhin ficou um momento calado.

— Foste sempre muito inteligente, e nunca, nunca estiveste doido — observou ele de repente. — Disseste a verdade; vou embebedar-me. Adeus!

E deu um passo para a porta.

— Anteontem, se bem recordo, falei de ti à minha irmã — disse Raskólnikov.

Razumíkhin parou.

— De mim!... Mas... onde a viste anteontem? — perguntou ele pálido e perturbado.

— Veio aqui e conversou comigo.

— Ela?

— Sim, ela mesma.

— Então que lhe disseste... a meu respeito?

— Disse-lhe que eras um homem excelente, honesto e laborioso. Não disse que a amavas, porque ela o sabe.

— Ela própria sabe?

— Para onde quer que eu vá, tu ficas sendo o seu amparo. Entrego-a, por assim dizer, nas tuas mãos, Razumíkhin. Digo-te isto porque sei muito bem que a amas e estou certo da pureza dos teus sentimentos. Sei também que ela há de vir a amar-te. Agora decide se deves ou não ir embriagar-te.

— Ródia... Tu sabes... que diabo! Mas tu, aonde vais?... Se é segredo, não falemos mais nisso! Mas eu... eu hei de saber de que se trata... Estou convencido de que não é nada sério, que são tolices de que a tua imaginação fez monstros. Afinal, és um excelente homem! Um excelente homem!

— Eu queria acrescentar, mas interrompeste — disse Raskólnikov —, que tinhas razão ainda agora quando declaravas renunciar a saber tal segredo. Não te inquietes. As coisas virão a seu tempo e saberás tudo na ocasião própria. Ontem alguém me disse que era preciso ao homem ar, ar, ar fresco! Vou daqui perguntar-lhe o que é que ele queria dizer com isso.

Razumíkhin permaneceu silencioso e excitado, concluindo: “É um conspirador político, com certeza! E está em vésperas de alguma tentativa audaciosa. É isso; é...! Não pode ser outra coisa... e... e Dúnia sabe...” Depois dirigindo-se a Ródion:

— Então, Avdótia Romanovna veio à tua casa, e tu vais procurar alguém que te disse que é preciso ar... — disse ele, escandindo as palavras. — É provável que a carta tenha também sido mandada por esse alguém — concluiu ele.

— Que carta?

— Ela recebeu hoje uma carta que a tornou muito inquieta. Quis falar-lhe de ti; ela disse-me que nos separaríamos talvez dentro em breve e agradeceu-me não sei que favores. Depois foi para o quarto...

— Recebeu uma carta? — perguntou de novo Raskólnikov pensativo.

— Recebeu. Não sabias?

Houve um minuto de silêncio.

— Adeus, Ródion... Eu, meu amigo... houve tempo... Bem, adeus! Devo também ir-me. Quanto a embebedar-me, não; não farei isso, é inútil...

Saiu num rompante, mas mal fechara a porta tornou a abri-la e disse:

— A propósito! Lembra-te daquela morte, do assassínio daquela velha? Pois descobriram o assassino. Confessou-se culpado e forneceu todas as provas em apoio das suas palavras. Imagine que é um dos pintores que defendi calorosamente. Queres crer? A folia dos dois operários enquanto o dvornik e as duas testemunhas subiam, os sopapos que se davam a rir, tudo isso eram truques do assassino para desviar suspeitas. Que astúcia! Que presença de espírito tem ele! Custa a crer, mas ele mesmo explicou tudo, do modo mais claro. E como eu fui na onda! Aquela criatura é o gênio da dissimulação e da astúcia. Depois daquilo a gente não pode admirar-se de nada! Mas onde eu tinha os olhos! E as lanças que quebrei na defesa dos dois malandros!

— Dize-me uma coisa: como soubeste isso e por que é que isso te interessa tanto? — perguntou Raskólnikov agitado.

— Por que me interessa? Tem graça a pergunta! Quanto aos fatos, soube deles por muitas pessoas, entre elas Porfírio. Foi ele quem me disse quase tudo.

— Porfírio?

— Sim.

— E... que te disse ele? — perguntou Raskólnikov inquieto.

— Deu-me a explicação cabal do caso. Psicologicamente; o seu método.

— Explicou? Ele próprio?

— Sim. Adeus. Mais tarde dir-te-ei mais alguma coisa; mas agora sou forçado a deixar-te. Houve um tempo em que pensei!... Bem, contar-te-ei isso depois Que necessidade tenho agora de beber? As tuas palavras bastam para me embriagar. Agora, Ródia, estou bêbado, sem ter bebido uma gota de vinho... Adeus, até breve...

E saiu.

“É um conspirador político, isso é certo, positivo!”, concluiu Razumíkhin ao descer as escadas vagarosamente. “E arrastou a irmã na empresa. É muito provável, dado o caráter de Avdótia. Eles têm tido conversas. Ela já me fizera supor por algumas palavras... Agora compreendo certas alusões... Sim, é isso! Como achar outra explicação para este mistério? Hum! E tinha-me vindo à cabeça... Oh, meu Deus! O que eu pensei! Sim, cheguei a pensar uma coisa horrível! Caluniei-o! Outro dia, no corredor, contemplando seu rosto iluminado pela lâmpada, tive um minuto de desvario. Que horrível ideia me passou! Micolai fez muito bem em confessar!... Sim, presentemente, tudo o que se tem passado se explica: a doença de Ródion, a singularidade do seu procedimento, aquele humor sombrio e feroz que manifestava já quando era estudante... Mas que significa aquela carta? De onde veio? Aqui há coisa... Desconfio... Hum... Não, eu hei de saber!”

Ao lembrar-se de Dunetchka, sentia gelar-lhe o sangue e ficava como que pregado ao chão. Teve de fazer um violento esforço para continuar o caminho.

Logo após a partida de Razumíkhin, Raskólnikov levantou-se: aproximou-se da janela, depois passeou de um lado para outro, esquecido das dimensões exíguas do quarto. Por fim, tornou a sentar-se. Uma transformação completa parecia ter-se dado nele. Tinha ainda que lutar: era um recurso.

Sim, um recurso, um meio de fugir à situação aflitiva, à carga em que vivia agonizando. Uma letargia envolvia-o aos poucos. Desde a aparição de Micolai em casa de Porfírio ele sentia-se sufocar, engaiolado sem esperança de fuga. Nesse mesmo dia e depois da confissão de Micolai dera-se a cena em casa de Sônia, cena cujas peripécias e desfecho tinham iludido as previsões de Raskólnikov. Mostrara-se fraco; reconhecera, bem como Sônia e muito sinceramente, que não podia sozinho com tal fardo! Svidrigailov?... Svidrigailov era um enigma que o inquietava, mas não tanto. Havia talvez meio de se desembaraçar de Svidrigailov, mas com Porfírio o caso mudava de feição.

“De modo que foi Porfírio quem explicou a Razumíkhin a culpa de Micolai, segundo o célebre método psicológico!”, monologava. “Ainda nisso Porfírio se serviu da maldita psicologia? Mas como pôde ele crer Micolai culpado, depois da cena que acabava de passar-se entre nós e que só admite uma explicação? (Nesses dias, Raskólnikov lembrou-se de pormenores da conversa com Porfírio e não podia evitar que sua mente os relembrasse.) Suas palavras, seus gestos, seus olhares, o som da sua voz, tudo nele atestava uma convicção tão forte que nenhuma das pretensas confissões de Micolai podia abalá-la.

“Mas quê? Razumíkhin também desconfiava de qualquer coisa. O incidente do corredor deve, sem dúvida, sugerir-lhe reflexões. Correu logo à casa de Porfírio... Mas por que este o mistificou de tal modo? Com que fim ele engana Razumíkhin a respeito de Micolai? Evidentemente, não fez isso sem motivo, deve ter suas intenções. Quais serão? Em verdade já se passou muito tempo desde essa manhã, e não tenho ainda a menor notícia de Porfírio. Quem sabe, contudo, se isso não é um mau sinal?...”

Pegou o boné e, depois de refletir um instante, saiu. Naquele momento, pela primeira vez há muito, sentia-se de posse das faculdades intelectuais. “É preciso liquidar com Svidrigailov”, pensava, “e, custe o que custar, decidir isto o mais depressa possível; ademais, ele parece esperar minha visita”. Nesse instante, saiu-lhe do coração um ódio tão violento que se pudesse matar um ou outro desses dois seres detestados, Svidrigailov ou Porfírio, não teria hesitado.

“Veremos, veremos.” Repetia para si próprio.

Mas, mal abriu a porta, encontrou-se em frente ao próprio Porfírio. O juiz de instrução procurava-o. No primeiro momento Raskólnikov ficou embatucado. Coisa singular, essa visita não o espantou muito e não lhe causou receio. “É talvez o desfecho! Mas por que amorteceria ele o ruído dos passos? Não ouvi nada. Estava talvez ouvindo atrás da porta.”

— Não esperava minha visita, Ródion Românovitch? — disse jovialmente Porfírio. — Já há muito pensava vir visitá-lo, e ao passar agora diante da sua casa lembrei-me de subir. Ia sair? Não me demorarei. Cinco minutos só, o bastante para fumar um cigarro, se não o incomodo...

— Mas sente-se, Porfírio Petróvitch, sente-se — disse Raskólnikov oferecendo uma cadeira ao juiz, com um ar tão afável, que ele próprio ficaria surpreendido se pudesse ver-se. Todos os vestígios das suas impressões anteriores tinham desaparecido, como sucede a quem, sendo atacado por salteadores, e tendo passado meia hora de ânsias mortais, já não sente medo nenhum quando lhe põem o punhal ao peito.

Sentou-se em frente a Porfírio e fixou nele o olhar.

O juiz de instrução verrumou os olhos em Raskólnikov, e começou acendendo um cigarro.

“Fala logo, diabo! Fala logo!”, dizia-lhe mentalmente Raskólnikov, cujo coração parecia arrebentar.


Capítulo II

— Oh! esses cigarros — começou enfim Porfírio, após acender um — sinto que serão a causa da minha morte e não posso deixá-los! Estou sempre tossindo, tenho um princípio de irritação na laringe e sou asmático. Consultei Bajtine, que examina todos os doentes pelo menos durante meia hora. Depois de me ter auscultado, disse-me, entre outras coisas: “O fumo faz-lhe mal; o senhor tem os pulmões afetados.” Pois sim, mas como hei de abandonar o fumo? Como hei de substituí-lo? Eu não bebo! Aí é que está o mal, eh, eh! Tudo é relativo, Ródion Românovitch!

“Cá está mais um preâmbulo trescalando a rabulice!”, resmungava de si para si Raskólnikov. A sua conversa recente com o juiz de instrução acudiu-lhe bruscamente ao espírito e a essa lembrança a cólera veio ao seu coração.

— Eu vim à sua casa anteontem à noite, sabia? — continuou Porfírio Petróvitch, olhando em volta. — Entrei neste mesmo quarto. Encontrei-me por acaso na sua rua, como hoje, e veio-me à ideia fazer-lhe uma visitinha. A porta estava aberta. Entrei, esperei um pouco, depois saí sem dizer o nome à criada. O senhor não costuma fechar a porta?

O rosto de Raskólnikov tornava-se cada vez mais sombrio. Porfírio Petróvitch adivinhava, sem dúvida, aquilo em que ele estava pensando.

— Vim explicar-me — meu caro Ródion! — Devo-lhe uma satisfação — prosseguiu sorrindo e batendo ligeiramente sobre o joelho do jovem; mas quase no mesmo instante seu rosto tomou uma expressão séria, mesmo triste, para grande espanto de Raskólnikov, a quem o juiz de instrução se mostrava com um aspecto inesperado.

— A última vez que nos vimos houve entre nós uma cena esquisita, Ródion Românovitch. Eu talvez tenha agido injustamente para com o senhor; sinto-o. O senhor lembra-se como nos separamos: ambos tínhamos os nervos excitados, ambos faltamos às mais elementares regras de civilidade, e somos dois cavalheiros. Lembra-se de como nos separamos?... Isto foi bastante incivil.

“Aonde quer chegar?”, perguntava a si mesmo Raskólnikov, que não cessava de examinar Porfírio com curiosidade.

— Pensei que faríamos melhor agora procedendo com sinceridade — continuou o juiz de instrução virando a cabeça, como se receasse perturbar sua vítima com seu olhar e por não usar esses ardis. — É preciso que não se repitam tais cenas. Se não fosse a inesperada aparição de Micolai, não sei até onde as coisas chegariam. Aquele curtidor danado estava sentado na sala ao lado. Lembra-se? O senhor sabia, naturalmente, e sei que ele o procurou depois. Mas naquilo que acreditou então não era verídico: não mandara chamar ninguém, não fizera nenhum arranjo. Pergunta-me por que não fiz? Que lhe direi? Tudo ocorrera intempestivamente. Mal chamara o dvornik (o senhor o notara. Estou certo disto). Uma ideia relampejou-me no cérebro; estava firmemente convicto naquele instante, veja bem, Ródion Românovitch. Bem, pensei: mesmo que perca uma coisa, segurarei outra, de modo algum deixarei escapar o que desejo. O senhor é muito irascível, Ródion Românovitch, em contraste com outras qualidades de coração e caráter, de que orgulho-me em ter divisado. Por certo, refleti então, é incomum um homem chegar a ponto de transmitir seus segredos. No entanto, acontece, caso seja irritado o bastante, mas ainda assim é raro. Nisto baseou-se meu método. “Se eu pudesse”, dizia comigo, “arrancar-lhe uma prova, por mais insignificante que fosse, mas uma prova real, tangível, enfim, uma coisa diferente de todas as induções psicológicas!”. Porque, se um homem é culpado, com este método se obtém uma prova concreta, inclusive pode-se chegar a resultados imprevisíveis. Baseava-me em seu temperamento, Ródion Românovitch, nele acima de tudo! Naquela época, já depositava grandes esperanças no senhor.

— Mas aonde quer chegar? — balbuciou Raskólnikov, sem saber o que perguntava. “De que está falando?”, pensava perplexo. “Julgar-me-á inocente, por acaso?”

— Aonde quero chegar? Vim explicar-me pessoalmente, é meu dever esclarecer minha conduta. Porque, reconheço, a meu pesar, o submeti outro dia a uma tortura cruel e não quero que me tome por um monstro, Ródion. Sei o que significa para uma pessoa ter sido tão duramente atingida, mas que é voluntariosa e sobretudo impaciente por ter de suportar tal tratamento. Reconheço no senhor um homem de caráter nobre e não isento de rasgos de magnanimidade; embora não perfilhe todas as suas opiniões. Em primeiro lugar, queria dizer-lhe isto, franca e sinceramente, porque, antes de mais nada, não desejo iludi-lo. Quando o conheci, senti-me atraído pelo senhor. Talvez não tenha simpatizado à primeira vista comigo. Realmente, não há motivo para gostar de mim. Pense o que quiser; agora, porém, desejo fazer tudo a meu alcance para apagar esta impressão e mostrar-lhe que sou um homem de coração e consciência. Falo-lhe sinceramente.

Porfírio Petróvitch fez uma pausa solene. Raskólnikov sentiu um estremecimento e renovado alarme. A ideia de que Porfírio pudesse considerá-lo inocente inquietava-o.

— Quase não é necessário entrar em pormenores — continuou Porfírio Petróvitch. — Dificilmente poderia consegui-lo. A princípio circularam boatos sobre cuja natureza julgo supérfluo alargar-me; é também inútil dizer-lhe quando a sua personalidade veio ao caso. Quanto a mim, o que me deu o alarme foi uma circunstância, aliás fortuita, de que também não tenho que falar agora. De todos esses boatos e circunstâncias acidentais resultou para mim a mesma conclusão. Confesso-o francamente, porque, a dizer a verdade, fui o primeiro a meter seu nome no caso: pus de parte as notas juntas aos objetos que se encontraram na casa da velha. Esse indício e outros do mesmo gênero nada significavam. Nesse meio-tempo, tive ocasião de saber do incidente no comissariado de polícia. Essa cena foi-me contada com todos os detalhes por alguém que nela representa o papel principal e que, sem dar por isso, a tinha conduzido superiormente. Ora, bem, nessas condições, como podia deixar de me voltar para um outro lado? From a hundred rabbits you can’t make a horse, a hundred suspicions don’t make a proof,[ 35 ] diz o provérbio inglês. É a razão que fala assim, mas vá alguém lutar contra as paixões! Ora, um juiz de instrução é homem e, portanto, apaixonado. Lembrei-me também do trabalho que o senhor publicou numa revista; em sua primeira visita falei a respeito, lembra-se? Zombei do senhor, mas era apenas para estimulá-lo. Repito, Ródion Românovitch, o senhor é um homem doente e impaciente. Observara ser ousado, decidido, realmente, e... passara por muita coisa. Passei, também, pelo mesmo; assim, seu artigo pareceu-me familiar. O artigo fora escrito em noites insones, com o coração palpitante, em êxtase e com entusiasmo dissimulado. Esse orgulhoso entusiasmo dissimulado nos jovens é perigoso! Zombei do senhor, mas digo-lhe, como literato amador, que tenho profundo respeito pelos ensaios prenhes do calor da juventude. Há uma nebulosidade, porém na névoa há uma corda de violino soando. Seu artigo é absurdo e fantástico, mas nele existe a sinceridade transparente, o orgulho incorruptível da juventude e a ousadia desesperada. É um artigo sombrio, mas nisto reside o seu valor. Li seu artigo e deixei-o de lado pensando: “Eis um homem que não seguirá o caminho comum.”

“Por que não havia de aproximar esse artigo dos fatos ulteriores? — pergunto eu. — O declive é irresistível... Note que me refiro ao passado, que se trata de um pensamento que então me veio. Que penso agora? Nada, isto é, quase nada. Presentemente tenho Micolai repousando entre minhas mãos e há fatos que o acusam — digam o que disserem, há fatos! Ele também tem problemas psicológicos, tenho de levá-los em consideração, por se tratar de uma questão de vida ou morte. Por que estou explicando-lhe tudo isso? Para entender-me e não julgar mal o meu malicioso comportamento anterior. Não era malicioso, garanto-lhe.

“Eh!, eh! Mas, perguntará o senhor, por que não fez uma busca em minha casa? Pois vim, eh!, eh!, vim quando o senhor estava doente na cama. Não como magistrado, não em caráter oficial, mas vim. Seu quarto, logo às primeiras suspeitas, foi remexido de cima a baixo, sem resultado! Eu disse comigo: agora este homem vai à minha casa, ele mesmo irá procurar-me e daqui a pouco tempo; se tem culpa vai. Qualquer outro não iria, este irá. O senhor lembra-se do falatório de Razumíkhin? Nós, de propósito, demos-lhe parte das nossas ideias, na esperança de que lhe diria tudo, porque sabíamos que Razumíkhin não poderia conter a indignação. Zametov tinha sobretudo notado a sua audácia e, realmente, é preciso ser audaz para dizer de repente em pleno café. ‘Matei!’ É na verdade muito perigoso e muito descuidado! Pensei, então, se for culpado será um adversário temível. Fiquei à sua espera, mas o senhor deitou por terra o Zametov... e tudo se resume nisto — como pode alterar esta psicologia dos infernos; apesar de ser uma faca de dois gumes. Esperei-o e veio! Como me bateu o coração quando o vi! Por quê, enfim, que necessidade tinha o senhor de ir lá? Se está lembrado, o senhor entrou a rir-se. Seu riso deu-me muito que pensar, mas se eu não estivesse de pé atrás, como estava, não teria reparado nele. Note a influência de um capricho! E Razumíkhin, então... Ah! A pedra, o senhor recorda-se sob a qual estão escondidos os objetos? Parece-me vê-la daqui, em qualquer parte, num pomar... E foi de um pomar que o senhor falou a Zametov? Em seguida, quando a conversa girou sobre seu artigo, por detrás de cada uma das suas palavras julgávamos descobrir um sentido oculto. Aí está como a convicção se me firmou pouco a pouco, Ródion Românovitch.

“Por certo, meu amigo, tudo isso se explica de outro modo, é claro. Mais valeria uma pequenina prova. Mas quando soube da história do cordão da campainha, não duvidei mais, julguei estar enfim na posse da pequenina prova tão desejada e não refleti em nada. Nesse momento teria dado mil rublos do meu bolso para o ver com os meus olhos andando cem passos, ao lado de um burguês que lhe chamara de assassino, sem que o senhor ousasse responder-lhe!... Certamente não se pode ligar grande importância às palavras e obras de um doente que procede sob delírio. Contudo, depois disso, como se pode admirar da maneira como eu procedi com o senhor? E por que motivo, justamente naquele momento, foi à minha casa? Algum diabo, decerto o levou. e, em verdade, se Micolai não tivesse aparecido... O senhor lembra-se da chegada de Micolai? Foi como um raio! Não acreditei em nada do que ele disse, bem viu! Depois da sua partida, continuei a interrogá-lo; respondeu-me sobre certos pontos de modo tal que fiquei espantado; e no entanto suas declarações deixaram-me incrédulo. Veja em que dá ser tão firme como uma rocha! Não, pensei: Morgenfrüh[ 36 ]... Micolai nada tem a ver com o caso!”

— Razumíkhin disse-me ainda há pouco que o senhor agora estava convencido da culpa de Micolai, que o senhor mesmo lhe afiançou que... — disse Raskólnikov.

Sua voz falhou, interrompendo a conversa. Ouvia com indescritível agitação que este homem, que o perscrutara totalmente, mudava o rumo da conversa. Temia acreditar e não acreditava mesmo. Em suas palavras ambíguas procurava achar algo definido e concreto.

— Razumíkhin! — exclamou Petróvitch, que parecia muito satisfeito por ter ouvido, enfim, uma observação da boca de Raskólnikov. — Eh!, eh! Mas o deixei de lado; dois é bom, três é demais. Razumíkhin não é homem adequado, está fora do páreo. Veio correndo a mim com o rosto pálido... Mas esqueçamo-lo, para que relembrá-lo? Voltando a Micolai: gostaria de saber, Ródion Românovitch, como ele é, como eu o conheço? Para começar, é uma criança, sem ser covarde propriamente, é impressionável como um artista. Não ria, é assim mesmo! É inocente e fácil de ser influenciado. É ingênuo, um camarada fanático. Canta, dança e conta histórias, a ponto de o povo vir de outras aldeias para ouvi-lo. Assiste a aulas também, ri-se até gritar se erguerem um dedo contra ele; bebe até perder a noção das coisas, não porque seja bêbado contumaz, mas porque, às vezes, seus camaradas o seduzem como a uma criança. Rouba também, sem o saber, porque: “Se encontrei alguma coisa, como pode ser roubo.” Sabe que ele é um velho-crente, ou pelo menos um cismático? Em sua família houve begúni[ 37 ] e esteve dois anos na sua aldeia sob a influência de um velho pastor. Soube isso por Micolai e por alguns conterrâneos dele. E há mais, queria viver no deserto! Era de uma devoção exaltada, passava noites rezando e lia sempre livros religiosos, “os antigos, os verdadeiros”, a ponto de se tornar fanático.

“São Petersburgo modificou-o muito; depois que veio para aqui entregou-se ao vinho e às mulheres, o que fê-lo esquecer a religião. Soube que um de nossos artistas se interessara por ele e começou a dar-lhe lições. Nesse meio-tempo, sucede este desgraçado caso. O pobre rapaz amedronta-se e tenta enforcar-se. Que quer o senhor? Nosso povo está convencido de que todo homem procurado pela polícia é um condenado! Na prisão, Micolai relembrou-se do velho pastor e da Bíblia. Sabe, Ródion Românovitch, o poder que a palavra ‘sofrimento’ exerce sobre o povo? Não é sofrer em benefício de outrem, mas sim a ‘necessidade do sofrimento’. Se sofrer em mãos das autoridades, tanto melhor! Em meu tempo, havia um prisioneiro manso e dócil, que levou um ano na prisão lendo a Bíblia, todas as noites, à estufa; leu, leu, até o desespero. E tão desesperado ficou que, um dia, sem nenhum motivo, apanhou um tijolo e jogou-o contra o administrador da prisão, apesar de este nada lhe ter feito de mal. E o modo por que o fez? Propositadamente, a um metro de distância, mirou-o cuidadosamente, de lado, com temor de feri-lo muito. É sabido o que sucede a um prisioneiro que ataca um oficial... Assim, ele ‘teve o seu sofrimento’.

“Por isso, creio que Micolai deseja ‘sofrer’, ou algo desse gênero. Por outros fatos, disto estou certo. Somente não sabe que eu já percebi isso. Não crê existir pessoas tão fanáticas entre os mujiques? Asseguro que as há e aos montões. O velho pastor recomeçou a influenciá-lo desde o momento que tentou enforcar-se. Afinal acabará por confessar toda a verdade. O senhor julga que ele sustentará o papel até o fim? Espere um pouco e verá como se retrata de tudo quanto disse. Cheguei a ponto de gostar de Micolai e estudá-lo a fundo. Que acha? Eh!, eh! Enfim, se consegui dar em alguns pontos um aspecto de verossimilhança, em outros se contradisse com os fatos, e disto ele não suspeita.

“Não, Ródion Românovitch, o criminoso não é Micolai. Estamos em presença de um caso fantástico e sombrio; este crime tem a marca do nosso tempo, de uma época que faz consistir a vida na procura do conforto. O culpado é um homem de teorias, vítima dos livros; desenvolveu uma grande audácia, mas essa audácia é a de um homem que se precipita do cume de uma montanha ou de uma torre. Esqueceu-se de fechar a porta e matou duas pessoas para obedecer a uma teoria. Matou e não se apoderou do dinheiro; o que pôde levar foi escondê-lo sob uma pedra. Não lhe bastaram as aflições por que passou na antecâmara, enquanto ouvia as pancadas na porta e o tilintar da campainha; cedendo a uma necessidade irresistível de sentir as mesmas sensações, foi mais tarde visitar o aposento vazio e puxar o cordão da campainha. Lancemos isso à conta da doença, do delírio, seja! Mas eis ainda outro ponto a notar: ele matou, mas nem por isso se julga menos respeitável, despreza seus semelhantes, é orgulhoso. Não, não se trata de Micolai, meu caro Ródion Românovitch, não é ele o culpado, por certo.”

Ao receber este golpe, absolutamente inesperado depois das desculpas com que o juiz de instrução começara a conversa, Raskólnikov sentiu um tremor em todo o corpo.

— Então... quem foi? — perguntou com a voz estrangulada.

O juiz de instrução aprumou-se na cadeira com o espanto que pareceu causar-lhe tal pergunta.

— Como, quem foi?... — replicou ele, como se lhe custasse a crer no que ouvira. Mas foi o senhor, Ródion Românovitch, foi o senhor quem matou! O senhor... — acrescentou ele em voz baixa e num tom profundamente convicto.

Raskólnikov ergueu-se com um movimento brusco, ficou de pé alguns segundos e depois tornou a sentar-se, sem dar uma palavra. Ligeiras convulsões agitavam-lhe os músculos da face.

— Lá está o lábio a tremer como naquele dia — notou com interesse Porfírio Petróvitch. — O senhor, julgo que não entendeu o fim da minha visita, Ródion Românovitch, prosseguiu ele depois de um silêncio: por isso é que está estupefato. Eu vim dizer tudo, para esclarecer tudo.

— Não fui eu que matei — gaguejou o jovem, defendendo-se como uma criança apanhada numa falta.

— Foi, foi o senhor, Ródion Românovitch, foi o senhor e só o senhor — replicou severamente o juiz de instrução.

Ambos se calaram e, coisa singular, esse silêncio prolongou-se durante dez minutos.

Encostado à mesa, Raskólnikov passava convulsivamente a mão no cabelo e Porfírio Petróvitch esperava sem dar sinal de impaciência. De repente, Raskólnikov olhou com desprezo para o magistrado:

— Voltou aos seus velhos processos, Porfírio Petróvitch! Sempre a mesma coisa: isso não o enfada, afinal?

— Deixe lá os meus processos! A coisa seria outra se estivéssemos na presença de testemunhas; mas estamos conversando a sós. O senhor bem vê que eu não vim para o apanhar como se fosse uma caça. Que o senhor confesse ou não, neste momento isso é-me indiferente. Em qualquer dos casos a minha convicção é firme.

— Se assim é, por que veio? — perguntou Raskólnikov irritado. Repito a pergunta que já fiz: se o senhor me julga culpado por que não expede um mandado de prisão?

— Que pergunta! Em primeiro lugar, sua prisão de nada me serviria.

— Como não serviria de nada! Desde o momento em que está convencido, deve...

— Mas que importa a minha convicção? Até este instante está sobre nuvens. E para que hei de prendê-lo? O senhor bem sabe, visto que pede que o prendam. Eu suponho que, acareado com o burguês, o senhor dir-lhe-ia: “Tu tinhas bebido ou não? Quem me viu contigo? Eu tomei-te simplesmente por um bêbado e era bêbado que estavas.” Que poderia eu replicar, tanto mais que o homem é conhecido como bêbado? Sem dúvida, mandá-lo-ei prender, e vim aqui para o avisar disso. E no entanto não hesito em lhe declarar que isso não me servirá de nada. O segundo fim de minha visita...

— Qual é? — perguntou Raskólnikov ofegante.

— ...já lhe disse. Queria sobretudo explicar-lhe a minha conduta, porque não desejo passar por um monstro, especialmente agora, que estou bem disposto a seu favor, quer creia, quer não. Em virtude do interesse que tenho pelo senhor, convido-o a ir denunciar-se. Vim também para lhe dar este conselho. É com certeza o melhor partido para o senhor e para mim, que estaria livre desta questão. Então, sou ou não franco?

Raskólnikov refletiu um instante.

— Escute, Porfírio Petróvitch, o senhor só tem contra mim sua famosa psicologia, e todavia aspira à evidência matemática. Quem lhe diz que não está enganado?

— Não, Ródion Românovitch, não me engano. Tenho uma prova. Deus enviou-me!

— Qual é?

— Não lhe direi, Ródion Românovitch. Mas, em todo caso, agora já não tenho o direito de deter-me; vou mandar prendê-lo. Veja, pois: qualquer resolução que tome pouco me importa; tudo o que lhe digo é, portanto, somente para seu interesse. A melhor solução é a que lhe indico; esteja certo disso, Ródion!

Ele esboçou um sorriso maligno.

— A sua linguagem é simplesmente ridícula, é vergonhosa. Vejamos: supondo que eu seja criminoso (o que não confesso de modo nenhum), para que hei de ir-me denunciar, se o senhor próprio me disse já que o culpado está em repouso?

— Ah! Ródion Românovitch, não tome essas palavras ao pé da letra; pode lá se encontrar repouso e pode não se encontrar. Sou de opinião, sem dúvida, de que a prisão acalma o culpado, mas é uma teoria; uma teoria pessoal. Ora, eu sou uma autoridade para o senhor? Quem sabe se, mesmo neste momento, lhe oculto alguma coisa? O senhor não pode exigir que eu diga todos os meus segredos! Quanto ao proveito que terá desse procedimento, é incontestável. Ganha decerto com ele diminuírem-lhe muito a pena. Ora, veja em que ocasião o senhor iria denunciar-se; no momento em que um outro assumiu a autoria do crime e veio atrapalhar a instrução! Pela parte que me toca, comprometo-me perante Deus a empregar todos os esforços para que o tribunal lhe conceda todo o benefício. Os juízes, afirmo-lhe, ignoram que eu suspeitei do senhor; e a sua ação terá portanto aos olhos deles caráter espontâneo. Não se verá no seu crime senão o resultado de um desvario, e, no fundo, não foi outra coisa. Eu sou honesto, Ródion Românovitch, e cumprirei a palavra dada.

Raskólnikov baixou a cabeça e pensou algum tempo; por fim sorriu de novo, mas dessa vez seu sorriso era brando e melancólico.

— E que ganho com isso? Que me importa a diminuição da pena? Não preciso dela! — disse, sem reparar que isto equivalia quase a uma confissão.

— Aí está o que eu receava! — exclamou Porfírio como que a seu pesar. Já desconfiava que o senhor rejeitaria a indulgência.

Ele olhou para o juiz com ar grave e triste.

— Eh! Não seja desdenhoso! — continuou o juiz de instrução: ainda viverá muitos anos. O quê! O senhor não quer uma diminuição da pena? É difícil de contentar!

— Que terei depois em perspectiva?

— A vida! O senhor é profeta para saber o que ela lhe reserva? Procure e achará. Quem sabe se tudo isso não é uma prova a que Deus o sujeita? Afinal, o senhor não será condenado por toda a vida.

— Obterei atenuantes... — disse, rindo, Raskólnikov.

— É talvez um sentimento de ridículo amor-próprio que o impede de se confessar culpado. Seja superior a essas tolices!

— Oh! Bem me importo com isso! — murmurou o jovem num tom de desprezo. Tornou a fazer menção de se levantar, mas sentou-se outra vez visivelmente abatido.

— O senhor é desconfiado e pensa que eu quero iludi-lo grosseiramente. Mas o senhor nasceu ontem! Que sabe da vida? Imaginou uma teoria, que na prática lhe deu consequências tão pouco originais que hoje está envergonhado! Cometeu um crime, é verdade, mas não é um criminoso sem remissão; está muito longe disso. Qual é a minha opinião a seu respeito? Considero-o um desses homens que deixariam arrancar as entranhas, contanto que encontrassem uma fé ou um Deus. Pois bem, procure-os. Antes de tudo há muito tempo que o senhor precisa mudar de ar. Depois, o sofrimento é uma boa coisa. Sofra! Micolai tem talvez razão em querer sofrer.

“Eu sei que é um cético, mas abandone-se, sem raciocinar, à corrente da vida; ela o levará a qualquer parte. Aonde? Não se inquiete com isso; irá ter a um porto qualquer. Qual? Ignoro-o; creio somente que o senhor ainda tem muito tempo para viver. Sem dúvida, presentemente diz que estou a representar meu papel de juiz de instrução; mas talvez mais tarde se lembre das minhas palavras, e então lhes dará valor: aí está porque lhe falo deste modo. Ainda é uma sorte que só tenha matado uma velha usurária. Com outra teoria teria feito uma ação mil vezes pior. Ainda pode dar graças a Deus, quem sabe? Talvez Ele tenha os seus desígnios a seu respeito. Portanto, tenha coragem, e não recue, por medo, diante da justiça. Sei que o senhor não me acredita, mas com o tempo há de tomar novamente gosto pela vida. Hoje falta-lhe somente ar, ar fresco!”

Raskólnikov positivamente sobressaltou-se.

— Mas quem é o senhor — exclamou ele — para me fazer tais profecias?! Que alta sabedoria lhe permite prever o meu futuro?!

— Quem sou? Sou um homem acabado, nada mais. Um homem sensível e compassivo a quem a experiência ensinou alguma coisa, mas um homem que se liquidou, completamente acabado. Quanto ao senhor, o caso é outro: o senhor está no começo da vida, e esta aventura, quem sabe, não deixará talvez vestígio algum. Por que há de temer tanto a mudança da sua situação? É do bem-estar que um coração como o seu pode ter pena? Aflige-se com a ideia de estar por muito tempo na obscuridade? Mas do senhor depende que essa obscuridade não seja eterna. Transforme-se em sol e todos o verão. O sol, acima de tudo, é o sol! Por que sorri outra vez? Por eu ser como Schiller? Aposto como o senhor imagina que eu esteja a envolvê-lo com lisonjas! É muito possível! Não lhe peço que acredite em mim, Ródion Românovitch; antes de tudo, sou juiz, concordo; somente acrescento isto: mais que as minhas palavras, os fatos lhe demonstrarão se sou um mentiroso ou um homem honrado.

— Quando quer prender-me?

— Posso conceder-lhe ainda um dia e meio ou dois de liberdade. Pense, meu amigo; peça a Deus que o inspire. O conselho que lhe dou é o melhor a seguir, acredite.

— E se eu fugir? — perguntou Raskólnikov com um riso estranho.

— Não foge. Um mujique fugiria, um revolucionário vulgar fugiria porque tem um credo para toda a vida. Mas o senhor já não crê na sua teoria. Que levaria se fugisse? Ademais, que existência ignóbil e odiosa a de um fugitivo! Fugindo, voltaria por sua própria vontade. O senhor não pode passar sem nós. Quando eu o tiver mandado prender, daqui a um mês ou dois, ou mesmo três, o senhor lembrar-se-á das minhas palavras e confessará. O senhor será levado a isso quase sem querer. Estou mesmo certo de que depois de refletir aceitará a expiação. Neste momento não acredita, mas verá... E que, com efeito, Ródion Românovitch, o sofrimento é uma grande coisa. Na boca de um gorducho que não se priva de nada esta linguagem pode dar vontade de rir. Não importa, há uma ideia no sofrimento. Micolai tem razão. Não; o senhor não fugirá, Ródion Românovitch.

Raskólnikov ergueu-se e pegou o boné. Porfírio Petróvitch também levantou-se.

— Vai passear? A noite deve estar esplêndida, se não vier alguma tempestade. Aliás, não será mau refrescar a temperatura.

Ele apanhou o chapéu.

— Porfírio Petróvitch — disse Raskólnikov secamente —, peço-lhe que não vá pensar que eu lhe fiz confissões. O senhor é um homem singular e eu ouvi-o por mera curiosidade. Mas não confessei nada... não se esqueça disto.

— Basta; não me esquecerei. Eh! Como treme! Não se altere, caro amigo, guardo sua recomendação. Passeie um pouco, mas não ultrapasse os limites... É verdade, tenho ainda a fazer-lhe um pedido, disse abaixando a voz, é um pouco delicado, mas tem sua importância no caso, aliás pouco provável, de, durante essas 48 horas, se lhe fixar a ideia de acabar com a vida (desculpe-me este absurdo), deixe um bilhetinho, duas linhas apenas, dizendo o lugar em que está a pedra: seria uma ação nobre. E até a vista, e que Deus o ilumine.

Retirou-se, evitando olhar para Raskólnikov. Este aproximou-se da janela, esperou com impaciência o momento em que, segundo o seu cálculo, o juiz de instrução estaria longe da casa. Depois saiu a toda a pressa.


Capítulo III

Estava ansioso por ver Svidrigailov. O que podia esperar desse homem, ele ignorava. Mas essa criatura tinha sobre ele um poder misterioso. Desde que se convencera disso, a inquietação devorava-o e já não podia esperar mais o momento de uma explicação.

No caminho, um pensamento o preocupava: “Svidrigailov teria ido à casa de Porfírio?” Pelo que podia julgar, não; Svidrigailov não fora lá. Tê-lo-ia jurado. Relembrando todas as circunstâncias da visita de Porfírio, chegava sempre à mesma conclusão negativa. Mas se Svidrigailov não fora à casa do juiz de instrução, porventura não iria mais? Sobre isto ele também acabava respondendo negativamente. Por quê? Não podia dar as razões da sua maneira de ver, e ainda mesmo que pudesse explicá-la, não iria quebrar a cabeça por causa disso.

Tudo isso o aborrecia e ao mesmo tempo deixava-o quase indiferente. Era singular, quase inacreditável: por muito crítica que fosse a sua situação, Raskólnikov não se afligia senão ligeiramente, o que o atormentava era alguma coisa mais importante, que o interessava pessoalmente. Afora isso, sentia uma imensa fadiga moral, embora estivesse mais em estado de raciocinar que nos dias passados.

Depois de tantos embates, seria preciso começar nova luta para triunfar sobre essas miseráveis dificuldades? Valia a pena, por exemplo, fazer o cerco a Svidrigailov, tentar embaí-lo, com medo de ele ir à casa do juiz de instrução?

Oh! Como tudo isso lhe mexia com os nervos!

Todavia tinha pressa em ver Svidrigailov; esperava dele algo novo, um conselho, um meio de salvação. Os afogados agarram-se a uma palha! Era o destino ou o instinto que impelia os dois homens um para o outro? Oh! Raskólnikov procurava Svidrigailov somente por já não saber para onde se virar! Tinha necessidade de outra pessoa, e agarrava-se a Svidrigailov por não encontrar coisa melhor. E Sônia? Mas por que iria agora à casa de Sônia? Para fazê-la chorar mais? Depois, Sônia assustava-o; Sônia era para ele a sentença inexorável, a decisão sem apelo. Naquele momento, sobretudo, não se sentia em estado de afrontar sua presença. Não; não valeria mais fazer uma tentativa com Svidrigailov? A seu pesar, confessava intimamente que há muito tempo Árcade Ivânovitch lhe era de certo modo indispensável.

Entretanto, que haveria de comum entre eles? A maldade de Svidrigailov não era de modo a aproximá-los, Esse homem desagradava-lhe: era um debochado, um impostor, talvez um tarado. Corriam lendas sinistras a seu respeito. É verdade que protegia os filhos de Catarina Ivanovna. Mas quem sabia por que procedia desse modo?

De tal homem não podia esperar nada de bom. Fazia alguns dias havia outro pensamento que não cessava de inquietar Raskólnikov, embora se esforçasse por afastá-lo, tanto lhe era doloroso. “Svidrigailov anda sempre me cercando”, dizia para si muitas vezes, “descobriu meu segredo; pretendeu o amor de minha irmã; talvez o pretenda ainda, é mesmo provável. Se agora, que ele conhece o meu caso, quisesse servir-se dele como uma arma contra Dúnia?”.

Esta ideia, que às vezes o inquietava, até em sonhos, não lhe tinha ainda ocorrido com clareza como no momento em que ia à casa de Svidrigailov. A princípio lembrou-se de dizer tudo à irmã, o que transformaria a situação. Depois lembrou-se de que faria melhor indo denunciar-se, para prevenir alguma tolice da parte de Dunetchka. E a carta? Naquela manhã, Dúnia recebera uma carta! Quem podia ter-lhe escrito em São Petersburgo? (Não seria Lujine?) É verdade que Razumíkhin estava de guarda, mas Razumíkhin de nada sabia. “E eu não deveria também contar tudo a Razumíkhin?”, perguntou a si próprio com uma revolta no coração. “Em todo caso é preciso ver Svidrigailov o mais cedo possível. Graças a Deus, os pormenores importam menos que o fundo do caso; mas se Svidrigailov tem a audácia de tentar uma patifaria, uma cilada a Dúnia, então matá-lo-ei!”

Parou no meio da rua e olhou em redor. Que caminho tomara ele? Onde estava? Achava-se na avenida***, a trinta passos do Mercado do Feno, que atravessara. O segundo andar da casa à esquerda era ocupada por um traktir. As janelas estavam abertas. A julgar pela gente que aparecia lá, o estabelecimento devia estar cheio. Na sala cantavam, tocavam. Ouviam-se gritos de mulheres. Surpreendido por se ver aí, ele ia voltar pelo mesmo caminho, quando de repente, em uma das janelas, avistou Svidrigailov. Isto causou-lhe espanto e receio ao mesmo tempo. Svidrigailov olhava-o em silêncio, e, o que espantou mais Raskólnikov, fez menção de se levantar, como se quisesse evitar que ele o visse. Raskólnikov fingiu não vê-lo e pôs-se a olhar distraidamente para o lado, continuando a examiná-lo disfarçadamente. A inquietação fazia-lhe palpitar o coração com violência. Evidentemente, Svidrigailov tinha interesse em não ser visto; tirou o cachimbo da boca e quis evitar os olhares de Raskólnikov; mas levantando-se e afastando a cadeira, reconheceu que já era tarde. Estava-se dando entre eles o mesmo jogo de cena da primeira conversa no quarto de Raskólnikov. Cada um sabia que era observado pelo outro. Um sorriso malicioso, cada vez mais vivo, pairava nos lábios de Svidrigailov. Por fim, deu uma gargalhada.

— Bem, entre, se lhe apraz; aqui estou! — gritou da janela.

O jovem subiu, então.

Encontrou Svidrigailov próximo a um salão onde um grande número de frequentadores, mercadores, funcionários, artistas etc., tomava chá ouvindo as cançonetistas que faziam um barulho infernal! Numa sala vizinha jogava-se bilhar. Svidrigailov tinha à frente uma garrafa de champanhe e um copo quase cheio; estava em companhia de dois músicos ambulantes, um pequeno com uma harmônica e uma moça dos seus 18 anos, fresca e sadia, com um chapéu tirolês escandalosamente enfeitado. Acompanhada pela harmônica, cantava com uma voz de contralto bem forte uma cantiga vulgar.

— Está bem; basta! — interrompeu Svidrigailov, quando Raskólnikov entrou.

Ela calou-se logo e esperou em atitude respeitosa. Cantara suas rimas de sarjeta, também com expressão séria e respeitosa.

— Eh! Filipe, um copo! — gritou Svidrigailov.

— Não bebo! — disse Raskólnikov.

— Como quiser. Bebe, Kátia. Já não preciso de ti; podes ir embora.

Encheu um copo de vinho para a moça e deu-lhe uma pequena nota. Kátia bebeu e, depois de ter pegado na nota, beijou a mão de Svidrigailov, que aceitou seriamente esse testemunho de respeito. A cantora retirou-se, seguida do pequeno com a harmônica.

Ainda não havia oito dias que Svidrigailov estava em São Petersburgo, e tomá-lo-iam já por velho freguês da casa. O criado Filipe conhecia-o e mostrava ter por ele uma consideração especial. Svidrigailov estava como em sua casa naquela saleta onde passava dias inteiros. O traktir, sujo, ignóbil, nem pertencia à categoria média das casas desse gênero.

— Ia à sua casa — começou Raskólnikov —, mas como é que se explica que, saindo do Mercado do Feno, eu tenha tomado pela avenida***? Nunca passo por aqui. Dobro sempre a direita, quando saio do Mercado. Também não é o caminho para ir à sua casa. E apenas me volto, encontro-me com o senhor! É singular!

— Por que não diz antes: “é um milagre”?

— Porque é um simples acaso.

— É um hábito que todos têm aqui! Nem quando realmente creem num milagre, ousam confessá-lo! O senhor mesmo diz que é um simples acaso. Não pode imaginar, Ródion Românovitch, como aqui há pouca gente com a coragem da sua opinião! O senhor tem uma opinião pessoal e não receia dizê-la. É mesmo por isso que atraiu minha curiosidade.

— Só por isso?

— Acha pouco?

Svidrigailov estava visivelmente excitado, embora só tivesse bebido meio copo de champanhe.

— Parece-me que, quando foi à minha casa, ignorava ainda se eu tinha opinião pessoal, observou Raskólnikov.

— Então, era outra coisa. Mas, quanto ao milagre, dir-lhe-ei que parece que tem estado a dormir todos esses dias. Eu próprio lhe indiquei este traktir, e não é de espantar que aqui tenha vindo ter. Indiquei-lhe o caminho e as horas em que podia ser encontrado. Lembra-se?

— Esqueci-me disso — respondeu Raskólnikov com espanto.

— Acredito. Dei-lhe essa indicação duas vezes. O endereço gravou-se maquinalmente na sua memória e ela guiou-o sem dar por isso. Ademais, enquanto eu lhe falava, via bem que seu espírito estava longe. O senhor não se observa bastante, Ródion. Mas há ainda outra coisa: tenho observado que em São Petersburgo muitas pessoas andam nas ruas monologando. É uma cidade de lunáticos.

“Se tivéssemos médicos, juristas e filósofos, poderiam fazer aqui estudos bem curiosos; cada um na sua especialidade. Não há lugar onde a alma humana seja submetida a influências tão estranhas. A ação do clima só por si já é funesta. Desgraçadamente, São Petersburgo é o centro administrativo do país, e o seu caráter deve refletir-se sobre toda a Rússia. Mas não se trata disso agora; eu queria dizer-lhe que já o vi passar muitas vezes na rua. O senhor sai de casa com a cabeça erguida. Depois de ter dado vinte passos, baixa-a e cruza as mãos nas costas. Olha, mas é claro que não vê nada, nem na frente nem dos lados. Enfim, põe-se a mexer os lábios e a falar sozinho; às vezes gesticula, declama, para no meio da rua mais ou menos tempo. Isso não quer dizer nada. Mas, como eu, talvez outros reparem, o que não deixa de ser perigoso. No fundo, pouco me importa; não tenho a ideia de curá-lo, mas o senhor percebe, sem dúvida...”

— Sabe se me seguem? — perguntou Raskólnikov, lançando a Svidrigailov um olhar perscrutador.

— Não, não sei — respondeu com ar admirado.

— Bem! Então não falemos mais de mim — disse Raskólnikov franzindo a testa.

— Pois bem, não falemos mais do senhor.

— Responda antes a esta pergunta: se é verdade que por duas vezes me indicou este traktir como lugar em que podia encontrá-lo, por que é que, ainda há pouco, quando ergui os olhos para a janela, o senhor se afastou e tentou evitar que eu o visse? Notei isso.

— Eh!, eh! Por que outro dia, quando entrei no seu quarto, fingiu que dormia, apesar de estar acordado? Também notei isso.

— Eu podia ter... razões... bem o sabe...

— E eu podia também ter minhas razões, embora não as conheça.

Havia um minuto que Raskólnikov examinava cuidadosamente o rosto do seu interlocutor. Aquela figura causava-lhe sempre espanto. Embora bela, tinha alguma coisa de profundamente antipática. A cor do rosto era muito fresca, os lábios vermelhos, a barba muito loura, os cabelos espessos, os olhos azuis e parados. Svidrigailov trajava um elegante terno de verão; a camisa era de uma brancura irrepreensível. Um grosso anel ornado com uma pedra valiosa brilhava-lhe num dos dedos.

— Entre nós as tergiversações já não têm razão de ser — disse o rapaz. — Apesar de estar em condições de me fazer muito mal, se tiver vontade disso, vou ser-lhe franco. Fique pois sabendo que, se o senhor ainda tem a mesma pretensão à minha irmã e se conta servir-se, para chegar aos seus fins, do segredo que surpreendeu, matá-lo-ei antes que me faça meter na cadeia. Dou-lhe minha palavra de honra. Em segundo lugar, pareceu-me notar nestes últimos dias que o senhor queria ter comigo uma conversa particular: se tem alguma coisa a dizer-me avie-se, que o tempo é precioso, e daqui a pouco talvez seja tarde.

— Mas o que o apressa tanto assim? — perguntou Svidrigailov.

— Cada um tem os seus segredos — replicou Raskólnikov sombrio.

— O senhor convida-me à franqueza e, à primeira pergunta que lhe faço, recusa responder-me — observou Svidrigailov sorrindo. — Julga que ainda tenho certos projetos; por isso está seguro a meu respeito. Na sua posição compreende-se muito bem. Mas, por melhores desejos que eu tenha de viver em boa inteligência com o senhor, não me incomodarei em desenganá-lo. Realmente não vale a pena, e eu não tenho nada de particular a dizer-lhe. Então que me quer o senhor? Por que anda sempre em volta de mim?

— Simplesmente porque é um ser curioso de observar. Agradou-me pelo lado fantástico da sua situação, ora aí está! Além disso é irmão de uma pessoa que me interessa muito; que me falou muitas vezes a seu respeito e me convenceu de que tem uma grande influência sobre ela. Não são razões suficientes? Ademais, confesso-o, a sua pergunta é complexa e é-me difícil responder. Ora aí tem. Se veio ver-me não foi só para tratar de negócios, mas na esperança de que eu lhe dissesse alguma coisa de novo, não é verdade? — disse com um sorriso malicioso. — Ora, imagine que eu também, vindo a São Petersburgo, contava que o senhor me diria alguma coisa de novo, esperava pedir-lhe alguma coisa. Aí está como nós somos, os ricos!

— Pedir-me o quê?

— Eu sei lá o quê? O senhor vê em que miserável traktir eu passo todo dia — continuou. — Não porque me divirta, mas porque, em suma, é preciso passar o tempo em algum lugar. Distraio-me com aquela pobre Kátia. Se tivesse a fortuna de ser gastrônomo, estaria bem, mas não; aí está o que posso comer! (Apontava um prato de zinco que tinha os restos de um mau bife.) A propósito, já jantou? Quanto a vinho, não bebo senão champanhe e um copo chega-me para um dia. Se hoje pedi esta garrafa, é porque tenho de ir a certo lugar e quis esquentar-me um pouco antes de ir. O senhor encontra-me num estado de espírito particular. Há pouco escondi-me como um colegial, porque receava que sua visita me trouxesse algum transtorno; mas ainda posso passar uma hora com o senhor; são quatro e meia, acrescentou, depois de ter consultado o relógio. Talvez não acredite, mas há momentos em que tenho pena de não ser qualquer coisa: proprietário, pai de família, ulano, fotógrafo, jornalista!... É horrível não ter o que fazer. Realmente eu pensava que o senhor me diria alguma coisa nova.

— Quem é o senhor e que veio fazer aqui?

— Quem sou eu? O senhor já o sabe; sou gentil-homem, servi dois anos na cavalaria, depois passei por São Petersburgo, em seguida casei-me com Marfa Petrovna e fui viver no campo. Eis a minha biografia completa!

— Parece que é jogador.

— Eu, jogador? Não, diga antes que fui batoteiro.

— Ah! O senhor fazia trapaça no jogo?

— Fazia, é verdade.

— Já foi esbofeteado?

— Com efeito, sim. Por quê?

— Porque nesse caso poderia bater-se em duelo; isso sempre lhe daria sensações.

— Não tenho o que dizer-lhe; aliás, não sou forte em discussão filosófica. Confesso que, se vim para São Petersburgo, foi sobretudo por causa das mulheres.

— Logo após ter enterrado Marfa Petrovna?

Svidrigailov sorriu.

— Sim, logo depois, respondeu com uma franqueza desorientadora. E daí? O senhor está escandalizado como falo das mulheres?

— Pergunta-me se acho algum escândalo no deboche?

— Deboche! Então é isto que o senhor quer saber! Mas vou responder-lhe pela ordem. Primeiro, a respeito das mulheres em geral; o senhor sabe que gosto muito de falar. Diga-me, por que razão eu teria de refrear-me? Por que havia de renunciar às mulheres, se gosto delas? De qualquer modo, é uma ocupação.

— Então, nada aspira senão ao deboche?

— Vá lá! O senhor insiste no termo: deboche. Contudo eu gosto de uma pergunta direta. No deboche, pelo menos, existe algo permanente, algo que se fundamenta, por certo, na natureza. Nada de fantasioso; algo que existe no sangue e não pode ser destruído. O senhor concordará que é uma espécie de ocupação.

— Não há motivo para se comprazer, pois se trata de uma doença, de uma doença perigosa.

— Ora! Isto é o que o senhor pensa! Concordo em que seja uma doença, como tudo que passa dos limites da moderação. E, naturalmente, neste caso, há sempre um excesso. Mas, em primeiro lugar, todos agem assim, de um modo ou de outro; em segundo lugar, por certo que se deve ser moderado e prudente. Mas que posso fazer? Se assim não fosse, deveria suicidar-me. Estou pronto a admitir que um homem decente devia evitar aborrecer-se. Mesmo assim...

— E seria capaz de suicidar-se?

— Ora, ora! — retrucou Svidrigailov com certo enfado. — Por favor, não fale nisso, acrescentou às pressas, mudando completamente o tom que adotara anteriormente. Sua fisionomia se alterou. — Admito que seja uma fraqueza imperdoável — continuou Svidrigailov, mas nada posso fazer. Tenho medo da morte e me repugna dela falar. Sabe que eu sou, até certo ponto, um místico?

— Ah! As aparições de Marfa Petrovna. Elas continuam a visitá-lo?

— Oh! Não falemos delas. Marfa Petrovna não mais me apareceu aqui em São Petersburgo — gritou irritado... — É melhor falarmos... Hum!... Não tenho muito tempo agora para ficar com o senhor... É uma pena! Teria muita coisa para lhe contar...

— Com quem é o encontro? Com uma mulher?

— Sim, uma mulher, por acaso... Mas não é sobre isto que desejo falar.

— A indignidade e a depravação que o rodeiam o atingiram de tal modo que não tem mais forças para se deter?

— E o senhor acha que possui essa força? Ah!, ah! Surpreendeu-me agora, Ródion Raskólnikov, embora já soubesse antes que seria assim. Prega-me um sermão sobre o vício, o deboche e a estética! O senhor — um Schiller —, o senhor — um idealista! Tudo é como deveria ser e eu ficaria surpreso se assim não fosse. Apesar de ser estranho na realidade... Ah! Que pena não ter mais tempo. O senhor é um tipo dos mais interessantes! E a propósito... gosto muito de Schiller!... Aprecio-o muito.

— Que fanfarrão me saiu o senhor — disse Raskólnikov, com certo asco.

— Juro que não o sou — respondeu Svidrigailov rindo. — Contudo não discuto... Vá lá que seja um fanfarrão! Isto não fere ninguém. Passei sete anos no campo com Marfa Petrovna, de maneira que, ao encontrar uma pessoa inteligente como o senhor — inteligente e muito interessante —, fico encantado e dou de falar muito; além disso, bebi aquele meio copo de champanhe e estou um pouco bêbado. Ainda mais, há um certo fato que me causou tremenda impressão, mas sobre o qual... silenciarei. Para onde vai o senhor? — perguntou em pânico.

Raskólnikov começara a levantar-se. Sentia-se pouco à vontade e arrependia-se de ter ido ali. Svidrigailov parecia-lhe o patife mais depravado que podia haver na Terra.

— Eh! Fique um pouco mais; mandei vir chá. Vamos, sente-se. Quer que eu conte como uma mulher quis converter-me? Será até uma resposta à sua primeira pergunta, pois se trata de sua irmã. Posso contar? Sempre se mata o tempo...

— Seja! Espero que o senhor...

— Oh, não tenha receio! Aliás, mesmo a um homem tão vicioso como eu, Avdótia Romanovna só pode inspirar o mais profundo respeito.


Capítulo IV

— Talvez o senhor saiba... é verdade, eu mesmo lhe contei — começou Svidrigailov —, estive preso aqui por causa de uma grande quantia e não tinha esperança alguma de pagá-la. Não há necessidade de entrar em minúcias de como Marfa Petrovna me salvou; o senhor sabe até que ponto de loucura, às vezes, uma mulher pode amar? Ela era honesta e muito sensível, embora completamente ignorante. O senhor acreditaria que esta mulher honesta e ciumenta, depois de muitas cenas histéricas e insultos, concordasse em firmar uma espécie de contrato comigo, que ela respeitou durante toda a nossa vida matrimonial? Ela era muito mais velha do que eu e, além disso, trazia sempre na boca um desodorante perfumado, ou outra coisa qualquer. Havia tanta sujeira em minha alma e, ao mesmo tempo, tanta honestidade, que eu lhe disse sem rebuços: “Não posso absolutamente lhe ser fiel!” Esta confissão a pôs furiosa; mesmo assim, pareceu gostar de minha franqueza rude. Julgou que eu não estava querendo enganá-la, uma vez que a avisava de antemão, e, para uma mulher ciumenta, o senhor sabe, isto é prova de uma grande consideração. Depois de muito choro e muitas lágrimas, foi firmado um contrato verbal entre nós: em primeiro lugar, eu nunca abandonaria Marfa Petrovna e seria sempre seu esposo; em segundo lugar, eu nunca me ausentaria sem sua permissão; em terceiro, eu nunca arranjaria uma amante permanente; em quarto, em troca disto tudo, Marfa Petrovna me daria inteira liberdade com as criadas, contanto que ela não soubesse; em quinto, ai de mim! se me apaixonasse por uma mulher de nossa classe social; em sexto, no caso em que eu — ai de mim — fosse vítima de uma séria paixão, estaria obrigado a revelar tudo a Marfa Petrovna. Neste último item, contudo, Marfa Petrovna estava perfeitamente à vontade; era uma mulher sensível e por isso não poderia deixar de me ver como um depravado e incapaz de um amor verdadeiro. No entanto, uma mulher sensível, e uma mulher ciumenta são duas coisas muito diferentes, e aí é que está o transtorno. Para se julgar alguém imparcialmente, devemos renunciar a algumas opiniões preconcebidas e à nossa atitude habitual para com as pessoas comuns que nos cercam. Tenho motivos para acreditar no julgamento do senhor mais no que de qualquer outra pessoa. O senhor talvez já tenha ouvido muita coisa ridícula e absurda a respeito de Marfa Petrovna. Claro que ela possuía uns modos muito ridículos, mas eu lhe digo francamente que lamento as inúmeras aflições que causei a ela. Bem, acho que isto basta à guisa de oraizon funèbre feita pelo mais terno dos esposos à mais terna das esposas. Quando nós discutíamos, geralmente eu calava a boca e nunca a irritava, e esta conduta cavalheiresca raramente deixava de surtir efeito, influenciava-a e por certo lhe era agradável. Em certas ocasiões, ela positivamente se orgulhava de mim. Mas a irmã do senhor ela não podia suportar, e apesar disso acabou arriscando-se a ter como governanta em sua casa esta encantadora criatura. Minha explicação é que Marfa Petrovna era uma mulher ardente e impressionável e simplesmente apaixonou-se — sim, exatamente isto, apaixonou-se — por sua irmã. Não é de admirar — olhe para Avdótia Romanovna! —, senti o perigo ao primeiro olhar. E que acha o senhor? Resolvi evitar olhá-la, mas a própria Avdótia Romanovna teve a primeira iniciativa, o senhor acredita? Acredita também que Marfa Petrovna ficou sinceramente aborrecida comigo, logo de saída, pelo meu silêncio constante sobre a sua irmã, pela minha fria acolhida a seus constantes louvores sobre Avdótia Romanovna? Não sei o que ela queria! Naturalmente Marfa Petrovna contou a Avdótia Romanovna tudo a meu respeito. Tinha o miserável costume de contar tintim por tintim a todo mundo os nossos segredos de família e de viver queixando-se de mim; como poderia deixar de confiar em tão deliciosa amiga nova? Espero que elas conversassem tão somente a meu respeito, e sem dúvida alguma Avdótia Romanovna soube de todos esses boatos misteriosos que eram espalhados a meu respeito... Aposto que o senhor também já ouviu algo a respeito.

— Ouvi. Lujine acusou-o de provocar a morte a uma criança. É verdade?

— Por favor, não fale dessas histórias vulgares — disse Svidrigailov com enfado e aborrecimento. — Se o senhor insiste em saber tudo que há sobre essa idiotice, eu lhe contarei, mas outro dia, agora não.

— Também me contaram a respeito de um criado que o senhor maltratou.

— Peço-lhe que mude de assunto — interrompeu Svidrigailov, com visível impaciência.

— Foi esse criado que, depois de morto, voltou para encher seu cachimbo?... O senhor mesmo me falou nisso.

Raskólnikov sentia-se cada vez mais irritado.

Svidrigailov olhou-o atentamente e Raskólnikov notou nesse olhar um laivo de sarcasmo. Mas Svidrigailov conteve-se e respondeu com bons modos:

— É verdade. Foi ele. Vejo que o senhor também está muitíssimo interessado e acho que é minha obrigação satisfazer sua curiosidade na primeira oportunidade. Diabos me levem! Vejo que devo passar realmente por uma figura romântica aos olhos de certas pessoas. Imagine como me sinto reconhecido a Marfa Petrovna por ter ela repetido a Avdótia Romanovna esse tão interessante e misterioso mexerico a meu respeito. Não posso pensar na impressão que isto deve ter causado a Avdótia Romanovna, porém foi bom para mim. Com toda a aversão natural de Avdótia Romanovna e a despeito de meu aspecto invariavelmente sujo e repulsivo — ela acabou tendo pena de mim, pena de uma alma perdida. Quando o coração de uma jovem sente compaixão, é mais perigoso do que qualquer outra coisa. Ela passa a querer “salvá-lo”, chamá-lo à razão, e o levanta e encaminha a nobres objetivos, recuperando-o para a vida nobre e útil — sim, todos nós sabemos até que ponto esses sonhos podem ir... Vi, imediatamente, que o passarinho estava pronto para cair no alçapão; eu também estava pronto. Percebo, Ródion Românovitch, que está se enfurecendo; não há necessidade! Como o senhor sabe, tudo não passou de uma bolha de sabão. (Diabos me levem, como estou bebendo vinho!) Desde o começo lamentei que sua irmã não tenha tido o destino de nascer no século II ou III de nossa era, como filha de um príncipe reinante ou de algum governador ou procônsul na Ásia Menor; sem dúvida alguma seria uma daquelas que enfrentaram o martírio, teria sorrido quando lhe dilacerassem seus seios com tenazes em brasa, e por seus próprios pés teria enfrentado o martírio. E no século IV ou V, ter-se-ia refugiado nos desertos do Egito para lá ficar trinta anos, vivendo de raízes e êxtases. Ela tem loucura por sofrer por quem quer que seja, e não conseguindo é capaz de se atirar de uma janela. Ouvi falar alguma coisa a respeito de um certo sr. Razumíkhin — diz-se que é um sujeito sensato, aliás o seu sobrenome sugere isto[ 38 ] —, provavelmente é um anjo de estudante. É melhor que ele tome conta de sua irmã! Acho que a compreendo e disto me orgulho. Mas, logo que se trava conhecimento com alguém, como o senhor sabe, ninguém vê as coisas claramente. Veja só: por que razão sua irmã é tão bonita? A culpa não é minha. Na realidade, começou de minha parte um desejo físico, com o mais irresistível desejo físico. Avdótia Romanovna é terrivelmente casta, incrivelmente pura. Tome nota! Isto que estou dizendo de sua irmã é um fato. Ela é quase que doentiamente casta, a despeito de sua vasta inteligência, e assim continuará sempre. Acontece que havia uma moça em minha casa. Paracha, uma camponesa de olhos negros, que eu não havia visto antes. Acabava de chegar do campo. Bonita, mas horrivelmente estúpida: rompeu em prantos, berrou de tal maneira que podia ser ouvida por toda parte e causou escândalo.

“Um dia, depois do jantar, Avdótia Romanovna chamou-me de lado e, mirando-me com olhos faiscantes, exigiu de mim que deixasse em paz a pobre Paracha. Era, parece, a primeira vez que conversávamos frente a frente. Naturalmente, apressei-me em obedecer a seus desejos, fingi-me comovido, perturbado; em suma, fiz meu papel com consciência. A partir desse momento, tivemos frequentes conversas reservadas, durante as quais ela me pregava moral e me pedia, com lágrimas nos olhos, que mudasse de vida. Sim, com lágrimas nos olhos! Eis até onde chega, em certas moças, a mania da propaganda! Já se vê, eu imputava todos os meus desacertos ao destino, e finalmente empreguei um meio que nunca falha no coração das mulheres: a lisonja. Nada no mundo é mais duro de falar que a verdade e nada mais cômodo que a lisonja. Se há um centésimo de falsidade na verdade, isto acarretará discórdia e confusão; porém, se tudo é falso na lisonja, esta é agradável e ouvida com satisfação, que, pode ser baixa, mas não deixa de ser uma satisfação. Não obstante seja vil a lisonja, pelo menos sua metade parecerá certamente verdade. Assim é em todas as classes sociais — uma virgem vestal pode perfeitamente ser seduzida pela lisonja. Não posso deixar de rir quando me lembro como certa vez seduzi uma senhora que era dedicada a seu esposo, a seus filhos e a seus princípios. Foi muito divertido e fácil! A senhora realmente tinha princípios — princípios a seu modo, contudo. Toda a minha tática consiste, simplesmente, no fato de aniquilar-me e me prostrar genuflexo diante da pureza da mulher. Lisonjeio-a desavergonhadamente e, logo que consigo um aperto de mão e um olhar seu, reprovo-me por ter obtido isto à força e declaro que ela resistiu, mostrando que só obtenho algo por ser tão sem princípios; asseguro-lhe ser tão, tão inocente, que não poderia prever a minha traição e se rendeu inconscientemente. De fato, fui vitorioso enquanto a tal senhora ficou firmemente convencida de que era inocente, casta e fiel a seus deveres e obrigações, que sucumbira tão somente por acidente. E como ficou furiosa comigo, quando afinal lhe expliquei ser minha convicção sincera que ela era tão voluptuosa quanto eu! A pobre Marfa Petrovna era demasiado sensível à lisonja e se eu tivesse desejado teria posto todas as suas propriedades em meu nome quando ainda vivia. (Já estou bebendo muito vinho e dando demais com a língua nos dentes.) Espero que o senhor não se zangue, se eu acrescentar que a própria Avdótia Romanovna não foi a princípio insensível à lisonja, com que lhe enchi os ouvidos. Infelizmente, a minha impaciência e estupidez estragaram tudo. Eu devia moderar o brilho dos olhos quando falava com sua irmã, isso inquietou-a e acabou por se lhe tornar odioso. Sem entrar em detalhes, bastará dizer-lhe que rompemos e depois fiz novas tolices.

“Expandi-me em sarcasmos indignos. Paracha tornou a entrar em cena e foi seguida de muitas outras; numa palavra, comecei a levar uma vida irregularíssima. Oh! Visse então os olhos de sua irmã! Ródion Românovitch, saberia que faíscas eles podem lançar às vezes! Não pense que é porque estou bêbado e acabei de emborcar um copo inteiro de champanhe. Estou falando a verdade. Asseguro-lhe que os olhares dela me perseguiam até dormindo, tinha chegado a nem poder suportar o fru-fru do seu vestido. Cheguei a crer que ia ter ataques. Nunca supusera que pudesse apoderar-se de mim tal loucura. Era absolutamente preciso que eu me reconciliasse com Avdótia Romanovna e isso era impossível! Imagine o que eu faria então! A que grau de estupidez pode levar o ódio de um homem! Nunca empreenda coisa alguma nesse estado! Lembrando-me que Avdótia Romanovna era, afinal, uma pobre (oh, perdão! Eu não queria dizer isto... mas a palavra não importa), enfim, que ela vivia do seu emprego, que tinha a seu cargo a mãe e o senhor (oh! Diabo, lá torna o senhor a franzir a testa...), decidi-me a oferecer-lhe minha fortuna (podia então reunir trinta mil rublos) e a propor-lhe que fugisse comigo, para aqui, para São Petersburgo.

“Já se vê, assim que aqui estivéssemos, eu ter-lhe-ia jurado amor eterno etc. Quer acreditar? Andava tão maluco por ela nesse tempo que se ela me dissesse ‘Apunhala, ou envenena Marfa Petrovna e casa comigo’ tê-lo-ia feito imediatamente! Mas tudo isso acabou o desastre que o senhor conhece, e pode imaginar como fiquei irritado quando soube que minha mulher tinha negociado o casamento de Avdótia com esse miserável trapaceiro do Lujine, porque, enfim, que diabo!, tanto valia sua irmã aceitar o meu oferecimento como casar com tal homem. Não é verdade? Vejo que me ouviu com a maior atenção...”

Svidrigailov deu um murro na mesa com impaciência. Estava muito corado, e, apesar de ter bebido só dois copos de champanhe, a embriaguez começava a manifestar-se. Raskólnikov percebeu isso e resolveu aproveitar-se desse fato para descobrir as intenções do que ele considerava o mais perigoso inimigo.

— Depois de tudo isso, já não duvido de que o senhor vem aqui por causa de minha irmã — declarou tanto mais confiadamente quanto queria irritar Svidrigailov.

Este tentou logo destruir o efeito produzido pelas suas palavras.

— Ora, adeus!... Eu já lhe disse... aliás, sua irmã não pode suportar-me.

— É a minha opinião, estou certo de que ela não pode suportá-lo, mas não se trata disso.

— Está bem certo de que ela não pode? — replicou Svidrigailov sorrindo com ar de zombaria. — O senhor tem razão; ela não me ama; mas nunca afirme sobre o que se passa entre marido e mulher, ou entre um homem e sua amante. Há sempre um recanto que fica escondido de todos e só é conhecido pelos interessados. Ousa o senhor afirmar que Avdótia Romanovna me olhava com aversão?

— Certas palavras da sua narração provam-me que o senhor tem ainda neste momento desígnios infames com relação a Dúnia e que tenciona pô-los em execução.

— Como! Eu deixei escapar essas palavras? — disse Svidrigailov, inquieto; aliás, não se escandalizou de maneira nenhuma pelo modo com que eram qualificados os seus desígnios.

— Mas agora mesmo o senhor está manifestando os seus pensamentos secretos. Por que tem medo? De onde vem esse receio súbito neste momento?

— Receio? Receio do senhor? Mas que história é essa? O senhor, meu caro, é que deve temer-me, assim... Aliás estou bêbado, bem vejo, por pouco não dizia mais outra tolice. Diabos levem o champanhe!

— Eh, rapaz! Água!

Atirou a garrafa pela janela. Filipe trouxe água.

— Tudo isso é tolice — disse Svidrigailov, molhando uma toalha que passou logo pelo rosto —, e eu posso, com uma palavra, reduzir a nada todas as suas desconfianças. Sabe que vou casar?

— Já me disse.

— Já lhe disse? Tinha-me esquecido. Mas quando lhe falei do meu casamento, não podia ainda falar-lhe senão de uma forma duvidosa, porque então não havia nada decidido. Agora, é um caso concluído, e, se eu estivesse livre agora, conduzi-lo-ia à casa da minha futura; desejava muito saber se aprovaria minha escolha. Oh! Diabo, não tenho senão dez minutos. Mas vou contar-lhe a história do meu casamento, é bem curiosa... Então, ainda quer ir-se embora?

— Não, agora não o deixo; não o largo...

— Não me larga? Havemos de ver isso! Sem dúvida, hei de mostrar-lhe minha noiva, mas não agora, porque nos separaremos daqui a pouco. O senhor vai para a direita e eu para a esquerda. Ouviu talvez falar da sra. Resslich, em casa de quem moro atualmente? Sei que o senhor está pensando ser ela a mulher cuja filha se afogou no inverno. Vamos, o senhor está prestando atenção! Foi ela quem me arranjou tudo. “Tu te aborreces”, dizia-me ela, “o casamento será para ti uma distração momentânea”. Efetivamente sou um triste, um sensaborão. Julga que sou alegre? Engana-se; tenho um gênio muito esquisito; não faço mal a ninguém, mas tenho ocasiões de estar três dias a fio num canto, sem dizer nada. Ademais, essa boa amiga pensa como você; calcula que me enfastiarei depressa de minha mulher e a deixarei, e ela então lança-la-á na circulação. O pai está doente há três anos, com as pernas tolhidas, enterrado numa poltrona; a mãe é uma senhora inteligente; o filho está na província e não se importa com os pais: a filha mais velha não dá notícias. Têm a sustentar dois sobrinhos pequenos; a filha mais nova saiu do colégio antes de acabar os estudos; faz 16 anos no próximo mês; é dela que se trata: é a minha noiva.

“Munido desses dados, apresentei-me à família como um proprietário, viúvo, de boa família, com fortuna. Os meus cinquenta anos não suscitaram a mais leve objeção.

“Era preciso ver-me falando com o pai e a mãe! Era cômico!... Chega a pequena, de vestido curto, e cumprimenta-me corada como uma papoula. Sem dúvida, ensinaram-lhe a lição. Não conheço seu gosto em questão de mulheres, mas para mim aqueles 16 anos, aqueles olhos ainda infantis, aquela timidez, aquelas lagrimazinhas pudicas, tudo isso tinha mais encanto que a beleza; aliás, a pequena é muito bonita com seus cabelos claros, anelados, os lábios rubros e os seiozinhos apontando... Em suma, travamos conhecimento, disse-lhe que negócios de família me obrigavam a apressar o casamento, e no dia seguinte, isto é, anteontem, ficamos noivos. Desde então, quando vou vê-la, tenho-a sentada nos joelhos durante todo o tempo, beijo-a constantemente. Ela cora, mas consente. A mamãe sem dúvida lhe deu a entender que a um futuro marido pode permitir-se aquelas intimidades. Assim compreendidos, os direitos do noivo não são menos agradáveis que os do marido. Pode dizer-se que é a verdade e a natureza que falam naquela criança! Conversei duas vezes com ela; não é nada tola e tem um modo de olhar para mim que incendeia todo o meu ser. A sua fisionomia parece-me um pouco com a da Madona Sixtina. O senhor já notou a expressão fantástica que Rafael deu a essa cabeça de virgem? No dia seguinte ao do contrato, levei à minha futura uns 1.500 rublos de presentes: diamantes, pérolas, um serviço de toilette de prata. A carinha de Madona estava radiante. Ontem não me constrangi ao sentá-la nos joelhos — ela corou e vi-lhe nos olhos uma lágrima que tentou esconder. Deixaram-nos a sós; ela então lançou-me os braços ao pescoço e, beijando-me, jurou que seria para mim uma esposa obediente e fiel, que me faria feliz e que em troca só me pedia a minha estima, nada mais. ‘Não tenho necessidade de presentes!, disse ela. Ouvir um anjo de 16 anos, com as faces coradas pelo pudor virginal, fazer à gente tal declaração com lágrimas nos olhos, há de concordar que é delicioso, hein?... Bem, ouça... hei de levá-lo à casa da minha noiva... mas agora não pode ser!”

— Numa palavra, essa terrível diferença de idade excita a sua sensualidade! É possível que o senhor pense seriamente em tal casamento?

— Sem perder tempo. Cada um pensa em si próprio e mais alegremente vive aquele que sabe enganar a si mesmo! Ah!, ah!... Por que o senhor é tão apegado à virtude? Tenha compaixão de mim, eu sou um pobre pecador. Ah!, ah!

— Mas o senhor protegeu as filhas de Catarina Ivanovna... embora tenha tido as suas razões... Compreendo tudo agora.

— Adoro as crianças — riu Svidrigailov. — Posso contar um curioso episódio a respeito: No primeiro dia em que cheguei, visitei vários bordéis; depois de sete anos, literalmente eu corri para eles. O senhor provavelmente sabe que não me apresso em renovar laços com os velhos amigos, passo sem eles o maior tempo que posso. Quando estava no campo com Marfa Petrovna, era assediado com a lembrança desses lugares secretos, nos quais, quem os conhece, pode achar muita coisa. Diabos me levem! A ralé se embriaga; os jovens educados, em férias, se consomem em sonhos e visões impossíveis e ficam atados às teorias; os judeus amontoam dinheiro; e os demais se entregam à orgia. Desde os primeiros passos comecei a sentir no ar os cheiros familiares da cidade; aconteceu que eu estava em horrível espelunca — gosto das minhas espeluncas sujas —, era um salão de dança, como o chamam, e havia um cancã como nunca vira em minha vida. Sim, aquilo era um progresso. De repente, vi uma garota de 13 anos, encantadoramente vestida, dançando com um virtuose e com um outro à sua frente; sua mãe sentava-se em uma cadeira encostada à parede. O senhor não pode imaginar que espécie de cancã era aquele! A garota ficou envergonhadíssima, julgou-se insultada e começou a chorar. Seu par segurou-a, rodopiou com ela e dançou na sua frente. Todo mundo caiu na gargalhada — eu gosto de plateia, mesmo quando se trata de plateia de cancã —, todos riam e gritavam: “É isso que acontece! Para que trazem uma criança?” Eu nada tinha com aquilo. Imediatamente tracei meu plano e fui sentar-me ao lado da mãe. Comecei dizendo que era recém-chegado e que aquela gente mal-educada não podia distinguir pessoas decentes e tratá-las com respeito. Dei a entender possuir muito dinheiro e ofereci-me para levá-la a casa em minha carruagem. Levei-as e travamos relações. Moravam em uma miserável espelunca e tinham acabado de chegar do interior. Ela me disse que ambas só poderiam considerar minha amizade como uma honra. Descobri que nada tinham, absolutamente nada. Vieram à cidade para tratar de assunto com a justiça. Prometi meus préstimos e dinheiro. Soube que foram àquele salão de dança por engano, julgando tratar-se de coisa melhor. Ofereci custear a educação da garota em francês e dança. Meu oferecimento foi aceito com entusiasmo e como uma honra. E até agora somos íntimos... Caso o senhor queira, iremos vê-las, mas agora não.

— Chega! Chega dessas histórias nojentas, sujeito sensual, depravado!

— Schiller! O senhor é um perfeito Schiller! Où va-t-elle la vertu se nicher?[ 39 ] O senhor sabe que conto propositadamente essas coisas só pelo prazer de ouvir seus protestos.

— Compreendo que faço um papel ridículo — resmungou Raskólnikov furioso.

Svidrigailov riu-se à vontade. Chamou Filipe, pagou a conta e começou a levantar-se.

— Posso dizer que estou bêbado; assez, causé — disse ele —, foi um prazer!

— Sem dúvida que é um prazer para um consumado sem-vergonha descrever tais aventuras, tendo em mente um monstruoso projeto da mesma espécie — notadamente sob estas circunstâncias e em relação a um homem como eu... É um gozo!

— Se o senhor chega a essa conclusão — respondeu Svidrigailov, fixando Raskólnikov meio surpreso. — Se o senhor chega a essa conclusão é por ser um completo cínico. Pelo menos tem um grande material nas mãos... e pode fazer bom uso dele. Mas basta! Lamento sinceramente não poder conversar mais tempo, mas havemos de tornar a ver-nos... O senhor há de ter paciência...

Saiu do traktir. Raskólnikov seguiu-o. A embriaguez de Svidrigailov dissipava-se; franzia os sobrolhos e parecia muito preocupado, como um homem que vai fazer um negócio extremamente importante. Já há alguns minutos certa impaciência era traída em suas maneiras, ao mesmo tempo que sua linguagem para Raskólnikov era cáustica e agressiva. Tudo isso parecia justificar cada vez mais as apreensões de Raskólnikov, que resolveu seguir a inquietadora personagem. Estavam no passeio.

— Agora separemo-nos: o senhor vai para a direita e eu para a esquerda, ou vice-versa. Meu amigo, até a vista!

E seguiu na direção do Mercado do Feno.


Capítulo V

Raskólnikov seguiu-o.

— Que significa isto?! — exclamou Svidrigailov voltando-se. — Eu julgava ter-lhe dito...

— Isto significa que estou resolvido a acompanhá-lo.

— O quê?

Ambos pararam e durante um momento mediram-se com os olhos.

— Na sua semiembriaguez o senhor disse-me o bastante para me convencer de que longe de renunciar aos seus odiosos projetos contra minha irmã, mais do que nunca se preocupa com ela. Sei que ela recebeu esta manhã uma carta. O senhor não perdeu tempo desde que chegou a São Petersburgo. Que no curso das suas idas e vindas o senhor tenha desencavado uma mulher é possível; mas isso nada significa. Desejo assegurar-me pessoalmente...

Raskólnikov dificilmente poderia explicar-se sobre o que desejava e queria esclarecer.

— Por minha fé! Quer que eu chame a polícia?

— Chame!

Pararam de novo em frente um do outro. Por fim o rosto de Svidrigailov mudou de expressão. Vendo que a ameaça não intimidava Raskólnikov, prosseguiu subitamente em tom mais alegre.

— Que maganão o senhor é! Eu não falei do seu caso muito de propósito, apesar da grande curiosidade que ele me despertou. Queria deixar isso para depois; mas realmente o senhor faz um defunto perder a paciência. Bem, venha comigo; simplesmente advirto-o de que entrarei em casa só para ir buscar dinheiro; em seguida sairei, meter-me-ei num carro e irei passar toda a noite nas ilhas. Que necessidade tem de me seguir?

— Tenho que fazer na casa em que mora, mas não é ao seu domicílio que vou, é ao de Sófia Semenovna; vou pedir-lhe desculpa por não ter ido ao enterro da madrasta.

— Como quiser; mas Sônia está ausente. Foi levar as crianças à casa de uma senhora do meu conhecimento, que está à frente de um asilo de órfãos. Dei um grande prazer a esta senhora entregando-lhe o dinheiro para os pequenos de Catarina Ivanovna e mais um donativo para o estabelecimento que dirige; enfim, contei-lhe a história de Sônia Semenovna, sem omitir nenhuma minúcia. A narração produziu um efeito indescritível. Eis por que Sônia Semenovna foi convidada a ir hoje ao palacete***, onde a barínia em questão mora provisoriamente desde que veio do campo.

— Não importa, irei à casa dela.

— À vontade: simplesmente eu é que não o acompanho. Para quê? Mas diga-me, estou convencido de que desconfia de mim. É porque tive a delicadeza de não lhe fazer até agora perguntas escabrosas. Adivinha ao que aludo? Ia apostar que a minha discrição lhe pareceu extraordinária! Ora, vá lá a gente ser gentil para ser recompensado assim!

— O senhor acha delicado escutar às portas?

— Ah, ah! Já me surpreendia que não me fizesse essa observação! — respondeu rindo Svidrigailov. — Se supõe que não é permitido escutar às portas, mas que se pode matar à vontade, e como os juízes podem não ser dessa opinião, não faria mal em safar-se para a América o mais depressa possível! Parta depressa, rapaz. Talvez ainda haja tempo. Falo-lhe com sinceridade. É dinheiro que lhe falta? Dar-lhe-ei o que precisar para a viagem.

— Tenho mais em que pensar — disse Raskólnikov com tédio.

— Compreendo: pensa em saber se procedeu segundo a moral, como é digno de um homem. Mas devia ter pensado nisso antes; agora já vem fora de tempo. Eh!, eh! Se julga ter cometido um crime, dê um tiro nos miolos. É o que vai fazer?

— Parece que o senhor quer irritar-me para se ver livre de mim...

— Como o senhor é desconfiado! Mas chegamos, tenha o incômodo de subir. Aqui tem o quarto de Sônia. Não há ninguém! Não acredita? Pergunte aos Kapernáumof, com quem ela deixa a chave. Eis justamente a sra. Kapernáumof. Então? O quê? (Ela é um pouco surda). Sônia Semenovna saiu? Aonde foi?... Agora está convencido? Não está e provavelmente virá muito tarde da noite. Vamos agora ao meu aposento.

“O senhor não tinha a ideia de me fazer uma visita? Eis-nos no meu quarto. A sra. Resslich saiu. Aquela mulher tem sempre mil negócios, mas é uma excelente pessoa, asseguro-lhe; talvez lhe fosse útil se o senhor fosse mais razoável. Ora veja, tiro da minha secretária um título de 5% (veja quantos me ficam ainda!); este vai hoje ser vendido. Viu? Como não tenho aqui mais nada a fazer, fecho a secretária, fecho o quarto e estamos outra vez na escada. Se quiser, vamos chamar um carro. Eu vou para as ilhas. Não lhe agradaria um passeio em calèche? O senhor percebe; ordeno ao cocheiro que me conduza à ponte de Elaguina... Recusa? Já está satisfeito? Ora, deixe-se tentar! A chuva nos ameaça, mas o carro tem capota...”

Svidrigailov estava já no carro. Raskólnikov, sem responder uma palavra, deu meia-volta e foi para o Mercado do Feno.

Se se tivesse voltado, veria que Svidrigailov se apeava e pagava ao cocheiro. Mas o jovem caminhava sem olhar para trás. Daí a pouco virou a esquina e nada mais viu. Intenso desgosto afastava-o de Svidrigailov.

“E pensar que, por um instante, pudesse receber ajuda desse bruto selvagem, depravado sensual, viciado indecoroso”, pensou ele.

Raskólnikov expressava seu julgamento superficial e rápido: havia algo em Svidrigailov que lhe dava uma certa originalidade e um caráter misterioso. Quanto à sua irmã, estava convencido de que Svidrigailov não a deixaria em paz, mas era demasiado cansativo e insuportável pensar e repensar nisso.

Antes de vinte passos dados, como sempre, quando sozinho, não tardou a cair em devaneio. Chegando à ponte, parou junto à balaustrada e fixou os olhos no canal. De pé, a pequena distância, Avdótia Romanovna observava-o.

Ao subir a ponte, passara junto à irmã, mas não a viu. Quando o avistou, Dunetchka experimentou um sentimento de surpresa e inquietação. Ficou um momento hesitando se iria ter com ele. De repente avistou do lado do Mercado do Feno Svidrigailov, que se dirigia rapidamente para ela.

Mas aproximava-se cautelosamente. Não subiu a ponte e parou no passeio, esforçando-se por escapar aos olhos de Raskólnikov. Tinha visto Dúnia e já há tempo lhe fazia sinais. A jovem pareceu perceber que ele a chamava e pedia que não atraísse a atenção do irmão.

Obedecendo a este convite mudo, Dúnia afastou-se do irmão e aproximou-se de Svidrigailov.

— Vamos mais depressa — disse-lhe este baixo. — Tenho empenho em que Ródion Românovitch ignore nossa conversa. Aviso-a de que ele foi procurar-me ainda agora em um traktir aqui perto, e que me custou desembaraçar-me dele. Ele sabe que lhe escrevi uma carta e desconfia. Decerto não foi a senhora quem falou nisso, mas quem foi?

— Já viramos a esquina — interrompeu Dúnia subitamente —, meu irmão não pode ver-nos. Declaro-lhe que não vou mais longe. Diga-me o que tem a dizer.

— Em primeiro lugar, não é na rua que se podem fazer tais confidências; depois, a senhora deve ouvir Sônia Semenovna; em terceiro lugar, preciso mostrar-lhe certos documentos... Enfim, se não quiser ir à minha casa, recuso-me a dar o menor esclarecimento e retiro-me. Aliás, peço-lhe que não se esqueça de que tenho nas minhas mãos um segredo muito curioso que interessa ao seu querido irmão.

Dúnia parou indecisa e fixou o olhar em Svidrigailov.

— O que receia? — observou este tranquilamente —, a cidade não é o campo. E, ainda no campo, a senhora fez maior mal a mim do que a si própria...

— Sônia Semenovna está avisada?

— Não; não lhe disse nada, mas estou convencido de que ela está agora em casa... Deve estar. Foi hoje o enterro da madrasta: não é dia para fazer visitas. Por ora, não quero falar disto a ninguém e lamento mesmo, até certo ponto, ter-me aberto com a senhora. Em tais casos, a palavra mais insignificante dita sem discrição equivale a uma denúncia. Eu moro aqui, nesta casa. Aqui está o nosso dvornik; conhece-me bastante, cumprimenta-me, como vê. Ele vê que venho com uma senhora e decerto reparou no seu rosto. Isto deve serená-la, se desconfia de mim. Peço perdão de lhe falar assim... Estou aqui numa casa de apartamentos. O meu quarto e o de Sônia são apenas separados por um tabique. Todo o andar é ocupado por diferentes inquilinos. Por que tem medo como uma criança? Que tenho eu de terrível?

Svidrigailov tentou um sorriso, mas o rosto recusou obedecer-lhe. O coração batia-lhe com força e sentia o peito oprimido. Afetava elevar a voz para esconder a agitação que sentia. Precaução supérflua, aliás, porque Dunetchka não lhe notava nada de particular: as últimas palavras tinham irritado muito a orgulhosa moça para que ela pensasse em outra coisa que não fosse o seu amor-próprio ferido.

— Embora saiba que o senhor é uma criatura... sem honra, não tenho medo. Leve-me — disse ela em tom sereno, desmentido pela extrema palidez.

Svidrigailov parou em frente ao quarto de Sônia.

— Permita-me que veja se ela está em casa. Não, não está. Um contratempo inesperado! Mas sei que voltará dentro de pouco tempo. Não pode ter-se ausentado senão para ir ver uma senhora que se interessa pelos órfãos. Eu tratei desse caso. Se Sônia não chegar dentro de dez minutos e se quiser absolutamente falar-lhe, mandá-la-ei hoje mesmo à sua casa. Aqui estão os meus aposentos; compõem-se destas duas divisões. No quarto para onde dá esta porta, mora a minha hospedeira, a sra. Resslich. Agora, olhe para aqui; esta porta dá para um aposento de duas divisões, que está vazio. Veja... é preciso que tome conhecimento exato do local...

Ele ocupava dois quartos mobiliados, bem espaçosos. Dunetchka olhava em volta desconfiada, mas não descobriu nada suspeito. Todavia poderia notar, por exemplo, que Svidrigailov morava entre dois aposentos vazios. Para chegar aos seus quartos, era preciso atravessar duas divisões vazias que faziam parte do domicílio da hospedeira. Abrindo a porta, que do seu quarto dava para o aposento não alugado, mostrou também este a Dunetchka. Ela parou à porta, não compreendendo por que a convidava a olhar, mas a explicação foi-lhe logo dada.

— Veja este grande quarto, o segundo. Veja esta porta fechada a chave. Ao lado está uma cadeira, a única que há nas duas divisões. Fui eu que a trouxe para cá a fim de ouvir em condições mais cômodas. A mesa de Sônia está colocada justamente atrás desta porta. Ela estava ali e conversava com Ródion Românovitch enquanto eu, sentado, ouvia atentamente. Estive aqui duas noites seguidas, e duas horas cada vez. Pude, portanto, ouvir alguma coisa; não lhe parece?

— O senhor escutava à porta?

— Escutava. Agora voltemos ao meu quarto; aqui nem podemos sentar-nos.

Levou Avdótia Romanovna para a sala e ofereceu-lhe uma cadeira, junto à mesa, sentando-se também a distância respeitosa; mas seus olhos brilhavam, com o mesmo fogo que de outra vez tanto tinha atemorizado Dunetchka. A jovem tremeu, apesar da serenidade que afetava, e novamente olhou desconfiada em volta. O isolamento dos aposentos de Svidrigailov acabou por atrair-lhe a atenção.

— Aqui está a sua carta — começou ela deixando-a na mesa. — Será possível o que me diz? O senhor dá a entender que meu irmão cometeu um crime. As suas insinuações são claras; não tente, pois recorrer a subterfúgios. Antes das suas revelações já eu ouvira falar desse caso absurdo, no qual não acredito. O odioso não cede neste caso senão ao ridículo. Essas suspeitas me são conhecidas e também sei o que as fez nascer. O senhor não pode ter prova alguma. Uma vez, porém, que prometeu provar, prove! Mas previno-o de que não lhe dou crédito.

Dunetchka pronunciou estas palavras com extrema rapidez e, durante um instante, a emoção fez-lhe subir a cor às faces.

— Se não me acreditasse, viria à minha casa? Então por que veio? Por curiosidade?

— Não me mortifique; fale!

— É preciso concordar que é uma jovem corajosa! Eu julgava que pediria ao sr. Razumíkhin que a acompanhasse. Mas pude convencer-me de que, se ele não veio com a senhora, também não a seguiu. É uma jovem audaz! Foi sem dúvida uma atenção da sua parte para com Ródion Românovitch. Ademais, tudo é divino na senhora... Quanto a seu irmão, que hei de lhe dizer? Ainda o vi há pouco. Como lhe pareceu?

— Não é certamente sobre isso que o senhor baseia a sua acusação!

— Não, não é sobre isso, mas sobre as próprias palavras dele. Ele veio por duas vezes passar a noite em casa de Sônia. Indiquei-lhe há pouco onde eles se sentavam. Seu irmão fez a ela uma confissão completa. É um assassino. Matou uma velha usurária em casa de quem tinha objetos empenhados. Pouco depois, uma irmã da vítima, chamada Isabel, entrou por acaso e ele matou-a também. Serviu-se para matar as duas mulheres de um machado. Sua intenção era roubar e roubou; dinheiro e outros objetos... Só ela conhece esse segredo, mas não tomou parte no assassínio. Longe disso, ao ouvir a narração ficou tão aterrada como a senhora está neste momento. Fique tranquila; não será ela quem irá denunciar seu irmão.

— É impossível — balbuciaram os lábios lívidos da moça arquejando —, é impossível! Ele não cometeu esse crime... É mentira!

— O roubo foi o motivo. Raskólnikov roubou dinheiro e joias. É verdade que, segundo ele próprio diz, não se aproveitou disso, e foi escondê-los debaixo de uma pedra, onde estão ainda.

— É crível que ele tenha roubado? Pois pode sequer isso ter-lhe passado pela ideia?! — exclamou Dúnia, levantando-se. — O senhor conhece-o, tem-no visto. Parece-lhe que seja um ladrão?

Parecia estar implorando a Svidrigailov, esquecera totalmente seu terror.

— Existem milhares e milhões de combinações e possibilidades, Avdótia Romanovna. Um ladrão rouba e sabe que é um ladrão; no entanto, soube de um gentil-homem que roubou a mala do correio. Quem sabe? Seu irmão julgava praticar um ato louvável. Eu próprio recusaria acreditar se tivesse sabido de outro modo, mas tenho que confiar no que ouço... Ele explicou todos os pormenores do ocorrido a Sófia Semenovna, ela, porém, não acreditou no que ouvia. Por fim, teve de confiar no que seus olhos viam.

— Quais foram as causas?

— É uma longa história, Avdótia Romanovna! Ei-la... Como lhe contar? Uma teoria específica, a mesma pela qual eu considere ser permitido um único caso anormal, desde que o alvo principal seja justo; um delito solitário entre centenas de boas ações! Na realidade, mortifica um jovem bem-dotado e de orgulho altivo saber que se tivesse, por exemplo, uns vis três mil rublos toda sua carreira, todo seu futuro, formar-se-ia de modo diferente, e inteirar-se de que não os possui. Junte ainda a irritação nervosa, provinda da fome, o morar em um buraco, os andrajos, o vívido senso de sua posição social e a de sua mãe e da irmã. Acima de tudo, vaidade, orgulho, embora, só Deus sabe, tendo boas qualidades... Não estou condenando-o. Por favor, não pense isto, mesmo porque não é de minha alçada. Uma pequenina teoria específica também interveio — uma teoria específica —, a que divide a humanidade, como sabe, em massa bruta e pessoas superiores, isto é, em pessoas não atingidas pela lei, dada a superioridade, pessoas que fazem leis para a massa. Teoricamente é ótima, une théorie comme une autre. Napoleão o impressionou muito, foi o que o moveu — muitas pessoas de gênio não hesitaram em praticar o mal, espezinharam a lei, sem se incomodarem. Parece ter-se imaginado um gênio, convenceu-se disto por algum tempo. Sofreu muito, e ainda sofre, devido à ideia de poder estabelecer uma teoria, mas ter sido capaz de sobrepujar a lei corajosamente e com isto ter o seu gênio falhado, isto é humilhante para um jovem, com qualquer grau de orgulho, sobretudo em nossos dias...

— E o remorso? Nega-lhe qualquer senso moral? Ele é assim?

— Ah! Avdótia Romanovna! Tudo está confuso. Não que, em alguma época, estivesse claro. Os russos, em geral, são grandes em suas ideias, Avdótia Romanovna. Grandes como o seu país e por demais inclinados ao fantástico, ao caótico. Mas é uma desgraça ser grande, ser amplo, sem gênio adequado. Lembra-se de quanta discussão gerou-se sobre este assunto? Quando sentávamos, após o jantar, no terraço, ao anoitecer? Porque costumava repreender-me com suas ideias arejadas! Quem sabe, talvez estivesse ele aqui, deitado, engendrando seu plano, enquanto conversávamos lá? Não existem tradições sagradas entre nós, especialmente na classe elevada, Avdótia Romanovna. No máximo, alguém as moldará para si próprio, quando as retirar dos velhos livros ou de alguma crônica. Os que delas se utilizam, em sua maior parte, são os estudantes e os velhos caturras, e isto é falta de linha no homem de boa sociedade. Julgo que conhece minhas opiniões. Nunca condenei alguém, nada faço, persevero nisto. Mas já falamos disto mais de uma vez. Seria felicíssimo se pudesse interessá-la em minhas opiniões... Está muito pálida, Avdótia Romanovna!

— Conheço a teoria dele. Li o artigo sobre os homens a quem tudo é permitido. Razumíkhin trouxe-me a revista.

— Senhor Razumíkhin? O artigo do seu irmão? Em uma revista? Existe tal artigo? Não sabia, deve ser interessante. Mas aonde vai, Avdótia Romanovna?

— Quero ver Sônia — respondeu com voz fraca. — Por onde se vai ao quarto dela? Talvez já tenha chegado; quero vê-la. É preciso que ela... — Não pôde acabar, estava sufocada.

— Provavelmente Sônia não estará de volta antes da noite. Se ainda não voltou é porque demorará.

— Ah! Já vejo que mentiste; não disseste senão mentiras!... Não acredito em ti!... — bradou num transporte de cólera.

Quase desfalecida, caiu numa cadeira que Svidrigailov ofereceu-lhe.

— Que tem, Avdótia Romanovna? Controle-se! Beba um pouco de água; aqui tem! — Borrifou-lhe o rosto. A jovem estremeceu e voltou a si.

“Produziu efeito”, murmurou consigo mesmo Svidrigailov, franzindo o cenho.

— Avdótia Romanovna, sossegue, Ródion tem amigos! Nós salvá-lo-emos. Quer que eu o leve para o estrangeiro? Tenho dinheiro: daqui a três dias terei liquidado todos os meus negócios. Esteja tranquila. Seu irmão pode vir a ser ainda um grande homem. Então, que tem? Como se sente?

— Indigno! Zombas da desgraça! Deixa-me...

— Mas aonde quer ir?

— Procurá-lo. Onde está ele? Por que fechaste esta porta? Foi por ela que entramos e agora está fechada a chave. Para que a fechaste?

— Não era necessário que se ouvisse o que dizíamos. No estado em que está, para que ir procurar seu irmão? Quer perdê-lo? O seu procedimento vai enfurecê-lo, e ele próprio irá entregar-se. Ademais, não o perdem de vista e a menor imprudência pode ser-lhe funesta. Espere um momento; eu vi-o e falei-lhe ainda há pouco; pode ainda salvar-se. Sente-se; vamos ver o que se deve fazer. Foi para tratarmos disto que a convidei a vir à minha casa. Mas sente-se!

— Podes salvá-lo? Realmente ele pode salvar-se?

Dúnia sentou-se.

Svidrigailov postou-se a seu lado.

— Tudo depende da senhora, só da senhora — começou em voz baixa. Os olhos brilhavam-lhe e sua agitação era tal que mal podia falar.

Dúnia, assustada, recuou a cadeira.

— Só uma palavra sua e seu irmão está salvo — continuou ele, trêmulo. — Eu... salvá-lo-ei. Tenho dinheiro e amigos. Fá-lo-ei partir para o estrangeiro, arranjar-lhe-ei passaporte. Conseguirei dois: um para ele e outro para mim. Tenho amigos com que posso contar... Quer? Arranjarei também um passaporte para a senhora... para sua mãe... Que lhe importa Razumíkhin? O meu amor vale bem o dele... amo-a muito. Deixe-me beijar-lhe a orla do vestido. O roçagar do seu vestido alucina-me! Mande: executarei as suas ordens, sejam quais forem. Farei o impossível. Todas as suas vontades serão as minhas. Não olhe para mim desse modo! Sabe que me mata?...

Delirava. Dir-se-ia atacado de alienação mental. Dúnia correu para a porta e sacudiu-a com todas as suas forças.

— Abram! Abram! — gritou, esperando que a ouvissem de fora. — Abram! Não há ninguém nesta casa?

Svidrigailov levantou-se. Tinha recuperado a calma. Um sorriso de mofa pairava nos seus lábios ainda trêmulos.

— Não há ninguém aqui — disse lentamente —, minha hospedeira saiu e não ganha nada em gritar; é perfeitamente inútil...

— Onde está a chave? Abra a porta imediatamente, canalha!

— Perdi a chave; não a encontro.

— Ah! Então é uma cilada! — rugiu Dúnia, pálida, e correu para um canto onde se entrincheirou, colocando diante de si uma mesa.

Depois calou-se, mas sem desfitar o inimigo, atenta aos menores movimentos. De pé, defronte dela, na outra extremidade do quarto, Svidrigailov não se mexia. Estava controlado, pelo menos na aparência, mas seu rosto estava pálido como antes. O riso de mofa não o abandonava.

— Avdótia Romanovna, se há cilada, avalie que tomei precauções. Sônia Semenovna não está em casa; cinco divisões nos separam do quarto de Kapernáumof. Enfim, sou pelo menos duas vezes mais forte que a senhora, e, independentemente disso, nada tenho a recear, porque se se queixar de mim seu irmão está perdido. Aliás, ninguém acreditará: todas as aparências depõem contra uma moça que vai sozinha ao quarto de um homem. E, mesmo que se atrevesse a sacrificar seu irmão, não poderia provar, é muito difícil provar uma violação, Avdótia Romanovna.

— Miserável! — disse Dúnia em voz baixa, mas terrível de indignação.

— Pois sim; mas note que tenho raciocinado do ponto de vista da sua hipótese. Pessoalmente, sou da sua opinião, e acho que a violação é um crime abominável. Tudo o que tenho dito é para tranquilizar sua consciência no caso de... no caso de consentir em salvar seu irmão, como lhe proponho. Poderia dizer que só cedeu à força... se é absolutamente preciso empregar esta palavra. Pense bem; a sorte de seu irmão e de sua mãe está nas suas mãos. Eu serei seu escravo... toda a minha vida... espero a sua resposta...

Sentou-se no divã, a oito passos de Dúnia.

A jovem não duvidava que a resolução dele fosse inabalável. Conhecia-o... bem...

Subitamente tirou do bolso um revólver e colocou-o na mesa, ao alcance da mão. Svidrigailov deu um pulo.

— Ah, é isso! — gritou surpreso, mas sorrindo maliciosamente. — Temos a situação mudada; isso alivia-me a consciência. Mas onde obteve esse revólver, Avdótia Romanovna? Emprestou-lhe o sr. Razumíkhin? Espere, é o meu, vejo-o perfeitamente! Com efeito, eu o tinha procurado, sem resultado... As lições de tiro que dei no campo não foram então inúteis...

— Este revólver não era teu; era de Marfa Petrovna, que tu mataste, celerado! Nada te pertencia! Apossei-me dele quando comecei a ver do que eras capaz. Se dás um passo, juro que te mato!

Dúnia, desnorteada, preparava-se para executar a ameaça, se fosse necessário.

— E teu irmão?... É por curiosidade que pergunto — disse Svidrigailov, sempre no mesmo lugar.

— Denuncia-o, se quiseres! Se avanças, eu disparo! Envenenaste tua mulher; eu bem sei; tu é que és assassino!...

Estava com o revólver engatilhado.

— Tens certeza de que envenenei Marfa Petrovna?

— Tenho! Foste tu mesmo que deste a perceber; falaste-me de veneno... eu sei que o tinhas... Foste tu... Foste tu, com certeza... infame!

— Ainda que isso fosse verdade, tê-lo-ia feito por ti... tu é que terias sido a causa de tudo.

— Mentes! Eu sempre te detestei, sempre.

— Pareces esquecida, Avdótia Romanovna, de quando no teu zelo pela minha conversão te encostavas em mim, com olhares lânguidos... Eu lia nos teus olhos. Lembras-te da noite ao luar, enquanto cantava o rouxinol?

— Mentes! — A raiva incendiou o olhar de Dúnia. — Difamas!

— Minto? Pois bem, minto. Menti. As mulheres não gostam que lhes lembrem essas coisas — replicou rindo. — Eu sei que vais atirar, belo monstrozinho. Pois bem, vamos a isso!

Dúnia apontou a arma, esperando somente um movimento dele para fazer fogo. Uma palidez mortal cobria-lhe o rosto; o lábio tremia-lhe de cólera e os grandes olhos negros lançavam chamas. Nunca ele a vira tão bela. Avançou um passo. Um tiro ecoou. A bala roçou-lhe os cabelos e cravou-se na parede. Ele estacou e riu suavemente.

— Uma picada de vespa! — disse sorrindo. — Ela apontou para a minha cabeça... Que é isto? Sangue?

Tirou o lenço para limpar um fio de sangue que lhe escorria pela fronte direita: a bala roçara a pele do crânio. Dúnia abaixou a arma e olhou para Svidrigailov com uma espécie de estupor. Parecia não entender o que acabava de praticar.

— Então; erraste a pontaria, recomeça! Eu espero — replicou Svidrigailov, cujo bom humor tinha não sei que de sinistro, se demoras terei tempo de agarrar-te antes que te defendas.

Toda trêmula Dunetchka tomou rapidamente o revólver e ameaçou seu perseguidor.

— Deixa-me — disse com desespero. — Juro que atiro outra vez... Mato-te!

— A três passos é impossível errar, efetivamente. Mas se não me matas, então...

Nos olhos rutilantes de Svidrigailov podia ler-se o resto do pensamento.

Deu ainda mais dois passos.

Dunetchka disparou, e o revólver falhou.

— A arma não foi bem carregada. Não importa; isso pode-se ainda remediar; ainda resta uma cápsula. Eu espero.

Em pé, a dois passos de Dúnia, fixava nela o olhar feroz que exprimia indomável resolução. Dúnia compreendeu que ele morreria mas não renunciaria ao seu desígnio. “E agora que não estava senão a dois passos dela, matá-lo-ia com certeza!...”

De repente largou o revólver.

— Não queres disparar! — disse ele espantado e respirando com força. O receio da morte não era talvez o mais rude fardo de que ele sentia a alma livre; todavia, ser-lhe-ia difícil explicar a natureza do alívio que sentia.

Aproximou-se de Dúnia e segurou-a docemente pela cintura. Ela não resistiu, mas olhou para ele trêmula, com os olhos suplicantes.

Svidrigailov quis falar, mas não pôde dizer uma palavra.

— Afasta-te de mim — implorou Dúnia. — Ouvindo ser tratado por tu, numa voz que já não era a de há pouco, Svidrigailov estremeceu.

— Então não me amas? — perguntou em voz baixa.

Dúnia fez um sinal negativo.

— E... não poderás amar-me um dia?... Nunca? — continuou ele com um tom desesperado.

— Nunca! — murmurou ela.

Durante um instante houve uma luta horrível na alma de Svidrigailov.

Seu olhar fixava Dúnia com uma expressão indizível. Subitamente retirou o braço que lhe passara em volta da cintura, afastou-se rapidamente e foi colocar-se em frente da janela.

— Aqui está a chave! — disse depois de um instante de silêncio. (Tirou-a do bolso esquerdo do paletó e pô-la atrás de si, sobre a mesa, sem se voltar para Avdótia Romanovna.) Parte depressa! Sai!...

Olhava fixamente para a janela.

Dúnia aproximou-se para pegar a chave.

— Depressa! Depressa! — repetiu ele.

Não mudara de posição e não olhava para ela; mas a palavra “depressa” era pronunciada num tom sobre cuja significação não podia haver dúvida nenhuma.

Dúnia pegou a chave, correu para a porta, abriu-a e saiu do quarto. Um instante depois corria como louca ao longo do canal, na direção da ponte***.

Svidrigailov ficou ainda uns três minutos junto à janela. Por fim, voltando-se, olhou em volta e passou a mão pela fronte. As feições desfiguradas por um sorriso estranho exprimiam o mais vivo desespero. Vendo que tinha sangue nas mãos ficou encolerizado; depois molhou uma toalha e lavou o ferimento.

A arma, arremessada por Dúnia, tinha rolado até a porta. Levantou-a e examinou-a. Era um pequeno revólver de três tiros, modelo antigo; tinha ainda duas cargas e uma cápsula. Depois de refletir, meteu-o no bolso, apanhou o chapéu e saiu.


Capítulo VI

Até as dez horas, passou aquela noite andando de um traktir para outro. Kátia reapareceu e cantou outra canção de sarjeta, como um certo “vilão e tirano”.


Começou a beijar Kátia.


Svidrigailov pagou bebidas para Kátia, o pequeno tocador de harmônica, alguns cantores, os garções e dois amanuenses. Com estes ficou particularmente atraído, porque ambos tinham narizes tortos, um virado para a esquerda e o outro para a direita. Finalmente, levou-os a um parque de diversões, pagando-lhes as entradas. Lá havia um raquítico pinheiro de três anos e três arbustos. Também havia um Vaux-hall, que não passava de um bar muito ordinário, onde serviam chá, com algumas mesas verdes tendo cadeiras à volta. Um coro de péssimos cantores e um palhaço alemão de Munique, já embriagado e de nariz vermelho, entretinham o público. Os amanuenses, encontrando conhecidos, começaram a discutir, pouco faltando para haver pancadarias. Svidrigailov foi escolhido para árbitro. Depois de ter ouvido durante um quarto de hora as recriminações confusas das duas partes, pareceu-lhe compreender que um dos amanuenses furtara qualquer coisa que vendera a um judeu, sem querer partilhar com os outros o produto. O objeto roubado era uma colher de chá pertencente ao Vaux-hall. Foi reconhecida pelos empregados da casa, e a questão ameaçava tomar aspecto grave, se Svidrigailov não indenizasse os queixosos. Isto ocorrera por volta das seis horas.

Em toda a noite não bebera uma gota de vinho; no Vaux-hall pediu chá, para não deixar de mandar vir alguma coisa. A temperatura estava sufocante e grossas nuvens escureciam o céu.

Às dez horas caiu uma violenta tempestade. Svidrigailov chegou a casa molhado até os ossos. Fechou-se no quarto, abriu a secretária, de onde retirou todos os haveres e assinou dois ou três papéis. Depois de meter o dinheiro no bolso, pensou em mudar de roupa; mas, como a chuva continuava a cair, viu que não valia a pena, pegou o chapéu e saiu, sem fechar a porta. Foi ao quarto de Sônia, que encontrou em casa. Ela não estava só, tinha em volta os quatro pequenos dos Kapernáumof, que tomavam chá.

Recebeu-o respeitosamente, olhou com surpresa para a roupa molhada de Svidrigailov, mas não disse nada. À vista do estranho, as crianças fugiram. Svidrigailov sentou-se perto da mesa e convidou-a a fazer outro tanto. Ela preparou-se timidamente para ouvir o que ele tinha a dizer-lhe.

— Sófia Semenovna — começou ele —, eu vou talvez viajar até a América e, como provavelmente nos vemos pela última vez, venho para pôr em ordem os negócios. Foi à casa daquela senhora? Eu sei o que ela disse, é inútil contar-me. (Sônia fez um movimento e corou.) Aquela gente tem seus preconceitos. Quanto a suas irmãs e seu irmão, a sorte deles está garantida; o dinheiro com que os dotei está em mãos seguras. Aqui estão os recibos; guarde-os para o que der e vier. Agora, aqui tem para a senhora três títulos de 5% que representam três mil rublos. Desejo que tudo fique entre nós e que não dê conhecimento disto a ninguém. Este dinheiro é-lhe necessário Sófia Semenovna, porque não pode continuar a viver desse modo.

— O senhor já fez tantos benefícios aos órfãos, à finada e a mim..., — balbuciou ela. — Se eu ainda mal lhe agradeci, não creia...

— Basta, basta, não falemos nisso agora.

— Quanto a este dinheiro, fico-lhe muito agradecida, mas agora não preciso dele. Eu me arranjarei. Não me acuse de ingratidão ao recusar o dinheiro. Visto que é tão caritativo, esta quantia...

— Guarde-a, Sófia Semenovna; e peço-lhe que não faça objeções; não tenho tempo para ouvir. Ródion Românovitch só tem a escolher entre meter uma bala na cabeça ou ir para a Sibéria.

A estas palavras, Sônia tremeu e olhou assustada para ele.

— Não se inquiete — prosseguiu. — Eu ouvi tudo da boca dele e sou discreto; não o direi a ninguém. Procedeu muito bem aconselhando-o a que fosse denunciar-se. E sem dúvida o melhor partido a tomar. Ora, bem, quando ele for para a Sibéria, acompanha-o, não é verdade? Então há de precisar de dinheiro; será preciso para ele, compreende? A soma que ofereço é a ele que a dou por seu intermédio. Ademais, prometeu pagar a Amália Ivanovna o que deviam. Mas para que toma tais encargos? A devedora dessa alemã era Catarina Ivanovna. Sônia, devia ter mandado a alemã para o diabo. É preciso ter mais tento na vida... Bem, se amanhã ou depois alguém a interrogar a meu respeito, não fale desta visita e não diga que lhe dei dinheiro. E, agora, adeus. (Levantou-se.) Leve os meus cumprimentos a Ródion Românovitch. A propósito: faria bem em confiar o dinheiro, por ora, ao sr. Razumíkhin. É um excelente moço. Entregue-lhe amanhã ou quando tiver ocasião. Mas daqui até lá, não se deixe roubar.

Sônia tinha-se levantado também e olhava inquieta para Svidrigailov. Tinha vontade de dizer alguma coisa, mas estava perturbada e não sabia por onde começar.

— Então o senhor... então o senhor vai sair com um tempo assim?...

— Quando se vai para a América não se olha a chuva. Adeus, querida Sófia! Viva, e viva por muito tempo; você é útil aos outros. A propósito... leve meus cumprimentos ao sr. Razumíkhin. Diga-lhe que Árcade Ivânovitch o cumprimenta. Não se esqueça.

Depois de ele ter saído, Sônia sentiu-se oprimida por um vago terror.

Na mesma noite Svidrigailov fez uma outra visita, singular e inesperada. A chuva continuava a cair. Às 11h20, apresentou-se todo molhado em casa dos pais da sua noiva, que ocupavam uma pequena casa em Vassíli Ostrof.

Teve grande dificuldade para lhe abrirem a porta, e a sua chegada a hora tão alta causou no primeiro momento estupefação. Julgaram a princípio que fosse uma extravagância de embriagado, mas essa impressão só durou um instante, porque, quando queria, Árcade Ivânovitch tinha as mais sedutoras maneiras. A inteligente mãe fez rodar para junto dele a poltrona do pai doente e encetou a conversação por assunto diferente. Nunca ia direta a um fim: se queria saber, por exemplo, quando agradaria a Árcade Ivânovitch que fosse feito o casamento começava por interrogá-lo curiosamente sobre Paris, sobre a sociedade parisiense, para o levar pouco a pouco a Vassíli Ostrof.

Das outras vezes esse estratagema dera sempre bom resultado; mas agora ele mostrou-se mais impaciente que de costume; pediu para ver logo a noiva, apesar de lhe dizerem que já estava deitada. Mas apressaram-se a satisfazer-lhe a vontade. Árcade Ivânovitch disse à pequena que, sendo obrigado por um negócio urgente a ausentar-se por algum tempo, lhe trazia 15 mil rublos, e lhe pedia que aceitasse aquela ninharia, que queria fazer-lhe presente deles antes do casamento. Não havia relação lógica entre o presente e a partida anunciada; também não parecia que para isso fosse preciso uma visita àquela hora da noite e chovendo muito. Todavia, por mais equívocas que pudessem parecer, estas explicações foram perfeitamente acolhidas. Os pais quase nem se mostraram surpresos com um procedimento tão estranho; muito sóbrios de perguntas e exclamações, desfizeram-se em agradecimentos calorosos aos quais a inteligente mãe misturou as lágrimas. Ele levantou-se, beijou a noiva, afagou-a e assegurou-lhe que em breve estaria de volta. Ela olhava para ele com um ar intrigado; lia-se-lhe nos olhos mais que simples curiosidade infantil. Árcade Ivânovitch reparou nesse olhar; beijou-a novamente e saiu, pensando com despeito que o seu presente seria com toda a certeza guardado a chave pela mais sensível das mães.

Ele foi embora deixando-os todos em um estado de enorme excitação, mas a terna mamãe, sussurrando, resolveu a maior de suas dúvidas, concluindo que Svidrigailov era um grande homem, de grandes negócios e relações, de grande riqueza, e eles não podiam saber o que tinha em mente. Partiria em viagem, gastaria dinheiro conforme seu capricho, de modo que nada havia de surpreendente em seu gesto. Era de estranhar ter-se apresentado com a roupa encharcada, mas os ingleses são ainda mais extravagantes. Toda essa gente da alta sociedade não dá importância a que se fale dela, nem tampouco a cerimônias. Possivelmente, viera de propósito, para mostrar não temer coisa alguma. O melhor seria silenciar, pois não se sabe o que disso poderia advir. O dinheiro deveria ser guardado a chave, e foi ótimo que Fedócia não tivesse saído da cozinha. E, sobretudo, nada se devia dizer à velha gata, à sra. Resslich etc. etc. Ficaram sussurrando até as duas horas da manhã, apesar de a moça ter ido para a cama mais cedo, atônita e triste.

Svidrigailov, à meia-noite, voltava à cidade pela ponte***. A chuva cessara, mas o vento soprava rudemente. Começou a tiritar de frio, e por um instante fixou o olhar nas águas negras do pequeno Neva com especial interesse, especulativamente. Mas achou-as muito frias. Durante quase meia hora andou à toa pela avenida***, e mais de uma vez tropeçou no escuro, na calçada de madeira. Olhava continuamente para o lado direito, procurando algo. Notara, quando passou em uma das última vezes, que havia um hotel, quase no fim da avenida, construído em madeira, de fachada larga, cujo nome, como se lembrava, parecia Andrinopla. Por fim encontrou-o. O hotel era tão visível neste lugar, onde Judas perdeu as botas, que mesmo no escuro não poderia deixar de reconhecê-lo. Era um longo e enegrecido edifício de madeira, onde, apesar do adiantado da hora, havia luzes nas janelas e sinais de vida. Entrou e pediu um quarto a um rapaz esfarrapado que encontrou no corredor. Após olhar inquisitivamente para Svidrigailov, o criado levou-o a um pequeno quarto escuro, na extremidade do corredor, sob a escada. Era o único disponível.

— Há chá? — perguntou Svidrigailov.

— Pode-se fazer, querendo.

— Que há mais?

— Há vitela, vodca e petiscarias.

— Traze-me vitela e chá.

— O senhor não quer mais nada? — perguntou com uma espécie de hesitação.

— Não.

O homem afastou-se desapontado.

“Em que diabo de casa me meti”, pensou Svidrigailov, “aliás, também devo ter o ar de quem, ao vir de um café-cantante, teve uma aventura no caminho. Em todo caso estou com curiosidade de saber que espécie de gente frequenta isto”. Acendeu a vela e fez um exame do quarto. Era muito estreito e tão baixo que ele mal podia estar de pé; tinha apenas uma janela. A mobília compunha-se de uma cama suja, uma mesa e uma cadeira de madeira pintadas na mesma cor. O papel de parede estava roto e tão coberto de pó que mal se lhe conhecia a cor primitiva. A escada cortava o teto obliquamente, o que dava ao quarto o aspecto de uma água-furtada. Svidrigailov pousou a vela na mesa, sentou-se na cama e ficou pensativo. Mas um ruído incessante de vozes, no quarto vizinho, acabou por lhe atrair a atenção. Levantou-se, pegou a vela e foi espreitar por uma fenda do tabique.

Num quarto um pouco maior que o seu viu dois indivíduos, um de pé, outro sentado numa cadeira. O primeiro, em mangas de camisa, era corado e tinha o cabelo anelado. Apostrofava o companheiro, com lágrimas na voz: “Tu não tinhas posição e estavas na miséria; tirei-te do atoleiro e depende de mim tornar a deixar-te cair.”

O outro tinha o ar de quem quer fugir e não pode. Às vezes lançava um olhar embasbacado ao companheiro, evidentemente não entendia uma palavra do que ele lhe dizia, talvez nem ouvisse nada.

Sobre a mesa, em que uma vela se consumia, estava uma garrafa de vodca quase vazia, copos de tamanhos diversos, pão, pepinos e um serviço de chá. Depois de ter visto este quadro atentamente, Svidrigailov deixou o posto de observação e tornou a sentar-se na cama.

Ao trazer o chá e a vitela, o moço não pôde deixar de perguntar mais uma vez a Svidrigailov se não queria mais nada. Tendo recebido resposta negativa, retirou-se de vez. Svidrigailov apressou-se a beber o chá para aquecer-se, mas foi-lhe impossível comer. A febre que começava a agitá-lo tirava-lhe o apetite. Despiu o paletó, envolveu-se nos cobertores e deitou-se.

Estava inquieto. “Agora é que eu havia de adoecer!...”, disse para consigo, sorrindo. O ar era sufocante, a vela pouco iluminava, o vento bramia fora, ouvia-se a um canto o ruído de um rato; e um cheiro de ratos e de couro enchia o quarto todo.

Estendido na cama, ele devaneava mais do que pensava. As ideias sucediam-se confusamente; queria fixar a imaginação em alguma coisa. “É sem dúvida um jardim que há por baixo da janela; as árvores são sacudidas pelo vento. Como detesto esse barulho de árvores, de noite, com tempestade e às escuras!”

Recordou-se de que havia pouco, passando ao lado do parque Petróvski, sentira a mesma impressão dolorosa. Depois, lembrou-se do Neva e teve de novo o estremecimento que sentira quando, na ponte, olhava a água. “Jamais gostei de água, nem das paisagens”, pensou ele. De repente uma ideia fê-lo sorrir: “Parece que, neste momento, devia importar-me pouco com a estética e o conforto, todavia estou como os animais que têm sempre o cuidado de escolher a cama... em casos idênticos. Se eu tivesse ido a Petróvski Ostrof? Parece que tive medo do frio e da escuridão! Preciso de sensações agradáveis!... Mas por que não apago a vela?” (Apagou-a.) “Os nossos vizinhos deitaram-se”, acrescentou, não vendo luz na fenda do tabique.

“Agora, Marfa Petrovna, é que a tua visita viria a propósito. Está escuro, o lugar é propício, a situação excepcional. E justamente agora é que não vens...”

Lembrou-se, subitamente, de que, horas antes, quando pretendia consumar seus intentos a respeito de Dúnia, recomendara a Raskólnikov confiá-la à guarda de Razumíkhin. “Suponho que realmente disse isto, como julgou Raskólnikov, para atormentar-me! Que velhaco é Raskólnikov! Já passou por muitas. Talvez venha a ser um bem-sucedido velhaco quando sobrepujar sua idiotice. Agora, porém, ele se apega demasiadamente à vida. Sobre este ponto, tais jovens são desprezíveis. Que se danem! Que seja como queiram, nada tenho a ver com isto.”

Continuava a não ter sono. Pouco a pouco a imagem de Dúnia aparecia-lhe ao lembrar-se da cena que tivera com ela pouco tempo antes. “Não, não pensemos mais nisso. Coisa singular, nunca odiei ninguém, nunca tive mesmo o desejo de me vingar de alguém; é mau sinal, mau sinal! Também nunca fui desordeiro nem violento. — “Outro mau sinal! Mas que promessa lhe fiz há pouco! Ela levar-me-ia longe...” Calou-se e cerrou os dentes. A imaginação mostrou-lhe de novo Dunetchka, exatamente como quando, depois de ter atirado e incapaz de resistir, fixava nele o olhar espantado. Lembrou-se de como se apiedara dela naquele momento, como sentira o coração oprimido... “Os diabos levem tais pensamentos!”

Quase adormecido, pareceu-lhe de súbito que debaixo da roupa alguma coisa lhe corria pelo braço e pela perna. Estremeceu.

“Diabo! É por certo um rato”, pensou. “Deixei a vitela na mesa...”

Temendo o frio, não queria descobrir-se nem levantar-se, mas de súbito sentiu no pé um novo contato desagradável. Arrancou o cobertor e acendeu a vela, curvou-se na cama e examinou-a, mas não viu coisa alguma. Sacudiu o cobertor e bruscamente um rato saltou na cama. Tentou segurá-lo, mas ele descrevia zigue-zagues e escapava sempre. Depois meteu-se debaixo do travesseiro. Svidrigailov atirou o travesseiro para o chão, mas no mesmo instante sentiu que alguma coisa saltara sobre ele e lhe passeava pelo corpo, por baixo da camisa. Começou a tremer nervosamente e... acordou.

A escuridão era absoluta; ele estava deitado na cama, envolto no cobertor; o vento continuava a uivar lá fora: “É de arrepiar!”, disse consigo aborrecido.

Sentou-se no leito de costas voltadas para a janela. “É melhor não dormir!”, decidiu.

Pela vidraça entrava uma aragem úmida. Sem se levantar, puxou o cobertor e envolveu-se nele. Não acendeu a vela.

Não pensava em nada, nem queria pensar, mas no cérebro passeavam-lhe ideias incoerentes. Estava como numa espécie de meia sonolência. Era o efeito do frio, das trevas, da umidade ou do vento que agitava as árvores? O que é certo é que esses devaneios tomavam um aspecto estranho.

Tinha diante dos olhos uma linda paisagem. Era no dia da Santíssima Trindade; o tempo estava belo.

Entre platibandas floridas surgia um elegante cottage no estilo inglês; junto da escada emaranhavam-se trepadeiras e nos degraus cobertos por um rico tapete havia vasos chineses com flores admiráveis.

Nas janelas, em vasos com água, mergulhavam jacintos brancos, inclinados nas hastes verdes, rescendendo um perfume delicioso.

Esses vasos atraíam a atenção de Svidrigailov, que não podia afastar-se deles; no entanto subiu as escadas e entrou numa grande sala onde, por toda parte, nas janelas, junto da porta que dava para o terraço, e no próprio terraço, havia flores em profusão.

O sobrado estava alcatifado de erva fresca, exalando um cheiro que tornava o ar da sala delicioso. Os pássaros chilreavam debaixo das janelas.

No meio da sala, numa mesa coberta de cetim branco, estava um caixão cercado de grinaldas de flores; por dentro era forrado de tafetá e ruche branca. Nele repousava numa cama de flores uma moça vestida de branco com os braços cruzados sobre o peito. Parecia uma estátua de mármore. Tinha os cabelos de um louro claro, em desordem e molhados; uma coroa de rosas cingia-lhe a fronte. O perfil severo do rosto parecia também esculpido, e o sorriso dos lábios arroxeados exprimia tristeza profunda, penetrante; uma desolação que não é natural na mocidade. Svidrigailov conhecia aquela moça. Não havia junto ao esquife ícones, luzes ou orações. Era uma suicida — uma afogada. Aos catorze anos fora-lhe partido o coração por um ultraje que transformara a sua consciência infantil, lhe enlutara a alma angélica com uma vergonha e lhe arrancara do peito um supremo grito de dor, grito abafado pelos rugidos do vento, numa sombria noite de gelo...

Svidrigailov despertou, levantou-se e aproximou-se da janela. Depois de ter procurado o ferrolho às apalpadelas, abriu-a, expondo o rosto e o peito apenas protegido pela camisa à brisa glacial que entrava pelo quarto. Embaixo devia com efeito haver um jardim, talvez um jardim de recreio; de dia, sem dúvida, cantava-se lá e tomava-se chá em pequenas mesas. Mas agora estava envolto em trevas, e os objetos só se revelavam por manchas escuras mal esboçadas. Durante cinco minutos, encostado ao peitoril, olhou para baixo, na escuridão. Ouviram-se dois tiros de canhão.

“Ah! É um sinal! O Neva sobe!”, pensou ele, “pela manhã, a parte baixa da cidade estará inundada, os ratos afogar-se-ão nas adegas; os inquilinos dos rés do chão, a escorrerem água, praguejando, salvarão os trastes expostos à chuva e ao vento... Que horas serão?”.

Mal se fizera esta pergunta, um relógio vizinho deu três horas. “Bem, daqui a uma hora é dia! Por que hei de estar à espera? Vou partir logo para a ilha Petróvski...” Fechou a janela, acendeu a vela e vestiu-se; depois, com o castiçal na mão, saiu para ir acordar o moço e sair. “É o momento mais favorável.”

Vagou algum tempo pelo corredor, comprido e estreito; não vendo ninguém, ia chamar em voz alta, quando, de repente, num canto sombrio, entre um armário e uma porta, viu um objeto estranho, o que quer que fosse parecer estar vivo. Inclinando-se com a luz viu que era uma pequenina de uns cinco anos, trêmula e chorosa. O seu vestido estava encharcado. A presença de Svidrigailov não pareceu atemorizá-la; fixou nele os grandes olhos negros com uma expressão de surpresa. Continuava a soluçar de vez em quando, como as crianças que, após chorarem muito tempo, começam a resignar-se. Tinha o rosto pálido e desfigurado, e tremia com o frio. Como se encontrava ela ali? Sem dúvida escondera-se naquele canto e não dormira toda a noite. Svidrigailov interrogou-a.

Animando-se logo, a criança começou, com voz infantil e gaguejando um pouco, uma história interminável onde entrava muitas vezes “a mamãe” e uma “xícara quebada”. Ele compreendeu que se tratava de uma criança pouco estimada: a mãe, talvez alguma cozinheira do hotel, bebia e maltratava-a.

A pequena quebrara uma xícara e, temendo o castigo, fugira, na ocasião em que chovia. Mais tarde, entrara secretamente e escondera-se atrás do armário, onde passara a noite, tremendo e chorando com medo da treva e com a ideia de ser castigada, não só por causa da xícara, mas pela fuga.

Svidrigailov tomou-a nos braços, levou-a para o quarto e, depois de a deitar na cama, despiu-a.

Ela não tinha meias e os sapatos furados estavam tão úmidos como se tivessem estado toda a noite num charco. Depois de lhe ter tirado a roupa, deitou-a e envolveu-a no cobertor. A pequena adormeceu. Svidrigailov recaiu nos seus pensamentos tristes.

“Mas com que estou me preocupando!”, disse ele de si para si, encolerizado. “Que tolice!” Irritado, pegou o castiçal para ir procurar o criado e deixar o hotel o mais depressa possível. “Ora, uma fedelha!”, disse, rugindo uma praga quando abria a porta. Mas voltou a cabeça para lançar uma vista de olhos à criança e certificar-se se ela dormia. Levantou com cuidado o cobertor que lhe cobria a cabeça. Ela dormia profundamente. Aquecera-se e as faces tinham recuperado a cor.

Todavia, coisa singular, o rosado do seu rosto era muito mais vivo que o normal! “É a febre”, pensou ele. Dir-se-ia que a pequena tinha bebido. Os lábios rubros pareciam abrasados. De súbito, pareceu-lhe ver mexer as longas pestanas da criança adormecida; sob as pálpebras semicerradas adivinhava-se um olhar malicioso, dissimulado, nada infantil. “Não estaria dormindo?” Com efeito, os lábios sorriam, tremendo, como quando se tem grande vontade de rir. Mas, deixou de se constranger, riu francamente. Um não sei que de descarado, de provocante partia daquele rosto que já não era de uma criança, mas o de uma prostituta, de uma cocotte.

As pálpebras abriram-se, ela envolveu Svidrigailov num olhar lascivo.

“O quê! Nesta idade!”, murmurou ele espantado. “É possível?!

Ela, porém, volta para ele o rosto incendiado, estende-lhe os braços...

“Ah, maldita!”, exclama ele, com horror, levanta a mão para ela e no mesmo instante acorda. Estava deitado, envolto no cobertor. O dia clareava.

“Toda a noite tive pesadelos!”

Ergueu meio corpo. Lá fora havia um nevoeiro grosso através do qual não se via coisa alguma. Era perto das cinco horas; Svidrigailov dormira muito.

Levantou-se, vestiu a roupa ainda úmida e, sentindo o revólver no bolso, tirou-o para se certificar de que a cápsula estava bem colocada.

Em seguida sentou-se e, na primeira folha da carteira, escreveu algumas linhas

Depois de as ter relido, encostou-se à mesa e ficou absorvido nas reflexões. As moscas regalavam-se com a fatia de vitela que ficara intacta. Esteve a olhar para elas por muito tempo, depois começou a matá-las. Por fim, espantou-se dessa ocupação, e recuperando a consciência da sua situação, saiu apressadamente do quarto. Um instante depois estava na rua.

Um forte nevoeiro envolvia a cidade. Svidrigailov caminhava na direção do pequeno Neva. Enquanto seguia na escorregadia calçada de madeira, a imaginação apresentava-lhe a ilha Petróvski com as suas relvas, suas árvores, seus maciços, suas ruazinhas... Em toda a perspectiva não se enxergava uma cara, uma só criatura humana. As casinhas amarelas, com as janelas fechadas, tinham um ar sujo e melancólico.

O frio começava a fazer tiritar o passeante matinal. De espaço a espaço, quando via a tabuleta de alguma loja, lia-a maquinalmente.

Chegando ao fim da calçada junto a uma grande casa, viu um cão nojento que atravessava a rua com o rabo entre as pernas.

Um bêbado estava caído no passeio, com o rosto voltado para o chão. Svidrigailov olhou para ele um instante e passou. À esquerda, viu de repente uma casa da guarda. “Aqui está um bom local, que necessidade de ir à ilha Petróvski? Deste modo a coisa poderá ser oficialmente constatada por uma testemunha...” Sorrindo a esta ideia enveredou pela rua***, onde vira a casa da guarda.

À porta estava um homenzinho envolto numa capa de soldado e com um capacete na cabeça. Ao ver Svidrigailov aproximar-se, lançou-lhe um olhar enfastiado. Sua fisionomia tinha a expressão de uma melancolia azeda, que é a marca secular dos israelitas. Durante algum tempo ambos se examinaram em silêncio. Por fim, pareceu esquisito ao outro que um homem que não estava bêbado parasse a três passos dele e o olhasse sem dizer uma palavra.

— Que quer o senhor? — perguntou, sem se mover e sem mudar de posição.

— Nada, caro amigo; bom dia! — respondeu Svidrigailov.

— Siga seu caminho, então.

— Meu caro amigo, eu vou para o estrangeiro.

— Para o estrangeiro?

— Para a América.

— Para a América?

Svidrigailov tirou o revólver do bolso e engatilhou-o. O soldado redobrou de atenção fixando-o.

— Eh... aqui não é lugar para brincadeiras!

— Por quê?

— Aqui não é lugar para isso.

— Não importa, meu caro amigo, o local é esplêndido. Se te interrogarem, dize que parti para a América.

Apoiou o cano do revólver na fronte.

— Isso não se pode fazer aqui, não é lugar próprio! — replicou o soldado, esgazeando os olhos assombrados.

Svidrigailov apertou o gatilho...


Capítulo VII

Nesse mesmo dia, entre as seis e as sete horas da tarde, Raskólnikov foi à casa de sua mãe. As duas mulheres habitavam agora na casa Bakalêief os aposentos de que Razumíkhin lhes falara. Quando subia a escada, Raskólnikov parecia ainda hesitar. Todavia, por motivo algum voltaria agora; estava decidido a fazer a visita. “Ademais, elas ainda não sabem nada”, pensava ele, “e já estão habituadas a ver em mim um excêntrico”. Sua roupa estava coberta de lama e rota; por outro lado, a fadiga física, após a luta que se feria nele havia 24 horas, tinha-lhe desfigurado o rosto. Passara toda a noite Deus sabe onde. Mas, por fim, tomara uma resolução.

Bateu na porta; foi a mãe quem a abriu. Dunetchka saíra e a criada também não estava em casa. Pulquéria Alexandrovna ficou a princípio muda de surpresa e alegria; depois tomou a mão do filho e levou-o para o quarto.

— Até que enfim te vejo! — disse ela com a voz trêmula de emoção. Não te zangues, Ródia, se tenho a fraqueza de te receber com lágrimas: é a felicidade que as faz correr. Pensas que estou triste? Não; estou alegre, bem alegre; apenas tenho este tolo costume de chorar. Desde a morte de teu pai choro por qualquer coisa. Senta-te, querido filho, estás cansado, bem vejo. Ah! Como estás sujo!

— Foi a chuva de ontem, mamãe... — começou ele.

— Deixa disso! — interrompeu vivamente Pulquéria Alexandrovna. — Pensavas que ia aborrecer-te com a minha curiosidade? Descansa, compreendo tudo; agora, já estou um pouco iniciada nos costumes de São Petersburgo, e, realmente, vejo que aqui são mais espertos que na nossa terra. Eu disse para comigo uma vez para sempre que não tenho necessidade de me meter nas tuas coisas e pedir-te contas delas. Tendo talvez o espírito ocupado, Deus sabe por que pensamentos havia de ir perturbar-te com as minhas perguntas? Nada, nada. Vês, Ródia, estava a ler pela terceira vez o artigo que publicaste numa revista; Dmitri Prokófitch trouxe-o para mim. Foi uma revelação para mim; desde então, tudo se explicou e reconheci quanto tenho sido estúpida. “Aí está o que o preocupa”, disse comigo, “ele anda lá com ideias novas, e não gosta que o vão tirar às suas reflexões; todos os sábios são assim”. Apesar da atenção com que li teu artigo, meu filho, há nele bastantes coisas que me escapam; mas, ignorante como sou, não admira que não compreenda.

— Deixa-me ver, mamãe.

Raskólnikov pegou a revista e lançou uma rápida vista ao artigo. Um autor experimenta sempre vivo prazer ao ver-se impresso pela primeira vez, sobretudo quando tem só 23 anos. Embora seu espírito estivesse cheio de cruéis cuidados, ele não pôde subtrair-se a essa impressão, que não durou, aliás, mais que um instante. Depois de ter lido algumas linhas, franziu os sobrolhos e um grande sofrimento lhe comprimiu o coração.

Aquela leitura tinha-lhe de súbito lembrado todas as agitações dos últimos meses. Foi com um sentimento de violenta repulsão que arremessou a brochura para cima da mesa.

— Mas, apesar de ser muito ignorante, tenho a convicção de que dentro de pouco tempo ocuparás um dos primeiros lugares, ou o primeiro, no mundo da ciência. E eles pensando que estavas doido! Não sabias que tiveram essa ideia? Coitados! Ademais, como poderiam eles entender tão alta inteligência? Mas pensar que Dunetchka, sim a própria Dunetchka, não estava longe de crer nisso! Que dizes a isto? Teu pai colaborou duas vezes para revistas; a primeira, mandou poemas (talvez ainda consiga achar o manuscrito), e na segunda, um romance completo. (Pedi-lhe para deixar-me copiar e, como implorei, ele não permitiu.) Foi incrível! Há seis ou sete dias, Ródia, afligia-me por ver como vives; a tua casa, a tua roupa, o teu alimento... Mas agora vejo que era mais um disparate meu; efetivamente, logo que queiras, com o teu espírito e o teu talento, terás a fortuna. Por ora, sem dúvida, não te importas com isso, ocupas-te de coisas mais importantes...

— Dúnia não está, mamãe?

— Não, Ródia. Passa muito tempo fora, deixa-me sozinha. Dmitri Prokófitch tem a bondade de me vir ver e sempre me fala de ti. Ele estima-te muito. Quanto à tua irmã, não me queixo se tem para comigo menos atenções. Tem o seu gênio, como eu tenho o meu. Não me quer dar a conhecer os seus negócios; isso é com ela! Eu, por mim, não escondo nada aos meus filhos. Sem dúvida, estou persuadida de que Dúnia é muito inteligente, e que, além disso, tem muita afeição a mim e a ti... Mas não sei em que tudo isto dará... Lamento que ela não possa aproveitar a visita que me fazes. Quando voltar, dir-lhe-ei: “Na tua ausência teu irmão veio cá. Por onde andaste durante esse tempo?” Tu, Ródia, não te prendas comigo; quando puderes vir sem te causar transtorno, vem; quando não puderes, não te incomodes, terei paciência. Basta-me saber que me amas. Lerei as tuas obras, ouvirei falar de ti, e, de tempos em tempos, receberei tua visita. Que mais posso desejar? Hoje vieste consolar tua mãe, bem vejo...

Bruscamente, Pulquéria Alexandrovna chorou.

— E eu outra vez!... Não repares, sou doida! Ah, Senhor! Mas eu não penso em nada! — exclamou ela, levantando-se. — Há café ali e não te ofereci! Vê o que é o egoísmo das velhas! Só um instante!

— Não vale a pena, mamãe, vou-me embora. Não vim aqui para isso. Ouça-me.

Pulquéria Alexandrovna aproximou-se timidamente.

— Mamãe, aconteça o que acontecer, ainda que ouça dizer de mim as coisas mais estranhas, amar-me-á sempre como agora? — perguntou ele de repente.

Estas palavras saíram-lhe do fundo do coração, antes que pudesse medir o alcance delas.

— Ródia, Ródia, que tens? Como podes fazer-me tal pergunta? Quem ousará algum dia dizer-me mal de ti? Se alguém se atrevesse a isso, eu recusaria ouvi-lo e expulsá-lo-ia da minha casa.

— O fim da minha visita era dizer-lhe que sempre a amei, e estimo bem que estejamos a sós, estimo até que Dunetchka não esteja — prosseguiu com a mesma animação —, talvez mamãe venha a ser infeliz; mas fique certa de que seu filho a amará sempre mais do que a si próprio e que mamãe não teve razão ao duvidar da minha afeição. Nunca deixarei de a amar... Bem, basta; eu pensei que devia, antes de tudo, repetir-lhe isto bem vivamente.

Pulquéria Alexandrovna beijou silenciosamente o filho e apertou-o ao peito, chorando.

— Não sei o que tens, Ródia — disse, afinal. — Julguei que a nossa presença te enfadava. Agora, vejo que uma grande desgraça te ameaça e que vives em grande ansiedade. Eu desconfiava, Ródia. Perdoa-me falar-te nisto; mas não penso em outra coisa, a ponto de não dormir. A noite passada, tua irmã sonhou, e proferia teu nome sempre. Ouvi algumas palavras, mas não entendi nada. Desde esta manhã até agora sofri como um condenado à espera da execução; pressenti alguma coisa má! Ródia; mas aonde vais? Porque estás para partir, não é?

— Sim, vou partir...

— Eu tinha adivinhado! Mas posso ir contigo, não é verdade? Dunetchka acompanhar-nos-á; ela ama-te muito. Até se for preciso levaremos conosco Sônia, pois não? Não tenho dúvida em aceitá-la por filha. Dmitri Prokófitch ajudar-nos-á nos nossos preparativos... mas... aonde vais?

— Adeus, mamãe.

— O quê! Hoje mesmo! — exclamou ela como se fosse uma separação eterna.

— Não posso demorar-me; é absolutamente preciso deixá-la...

— E eu não posso ir contigo?...

— Não; mas rogue a Deus por mim. Talvez Ele atenda às suas preces.

— Oxalá Ele as ouça! Recebe a minha bênção... Oh, meu Deus!

Em verdade ele estimava que a irmã não assistisse àquela conversa. Para se expandir à vontade, sua ternura precisava do tête-à-tête, e uma testemunha qualquer, mesmo Dúnia, tê-lo-ia embaraçado.

Caiu aos pés da mãe e beijou-os. Pulquéria Alexandrovna e o filho abraçaram-se chorando; ela não lhe fez mais perguntas. Compreendera que o jovem atravessava uma crise terrível e que sua sorte ia decidir-se em breve.

— Ródia, meu querido filho — disse ela através das lágrimas —, estás como eras na infância: era assim que vinhas oferecer-me tuas carícias e teus beijos. Antes, quando teu pai era vivo, não tínhamos nas nossas infelicidades outro consolo senão a tua presença, e, depois que ele morreu, quantas vezes não fomos, tu e eu, chorar no seu túmulo, abraçados, como agora! Se choro há tanto tempo, é que o meu coração de mãe tinha pressentimentos. Na noite em que chegamos aqui, logo à nossa primeira conversa, teu rosto disse-me tudo, e hoje, quando te abri a porta, pensei ao ver-te que chegara a hora fatal. Ródia, Ródia, tu partes imediatamente?

— Não.

— Ainda voltas?

— Sim... Voltarei...

— Ródia, não te zangues por eu perguntar. Dize-me só duas palavras: vais para muito longe?

— Para muito longe... não sei ainda...

— Mas terás lá um emprego, uma posição?

— Terei o que Deus quiser... peça por mim nas suas orações...

Queria sair, mas ela agarrou-se a ele ansiosamente e encarou-o de maneira firme, com a expressão do mais intenso desespero.

— Basta, mamãe — disse o jovem que, vendo aquela dor imensa, se arrependia de ter ido lá.

— Não vais para sempre, não é? Não partes imediatamente? Ainda vens amanhã aqui?

— Venho; adeus; adeus...

Conseguiu finalmente sair.

A noite estava cálida, mas não sufocante. O tempo melhorara desde a manhã. Raskólnikov foi para casa. Queria acabar tudo antes do pôr do sol. Naquela ocasião qualquer encontro lhe seria desagradável. Ao subir notou que Nastácia, ocupada a preparar o chá, interrompera o serviço, seguindo-o com um olhar curioso.

“Estará alguém no meu quarto?”, pensou ele; e, sem querer, lembrou-se do odioso Porfírio. Mas ao abrir a porta viu Dunetchka. A jovem sentada no divã estava pensativa; decerto esperava o irmão há muito tempo. Ele parou no limiar. Ela teve um movimento de espanto, mas tranquilizou-se logo e fitou-o longamente.

Uma grande desolação se lia nos seus olhos. Esse olhar provou claramente a Raskólnikov que ela sabia tudo.

— Devo entrar ou retirar-me? — perguntou ele hesitando.

— Passei todo o dia a esperar-te em casa de Sônia; contávamos que fosses lá.

Raskólnikov entrou e deixou-se cair numa cadeira, em enorme prostração.

— Sinto-me fraco, Dúnia; estou muito cansado e, agora, sobretudo, precisava de todas as minhas forças.

Lançou à irmã um olhar desconfiado.

— Mas onde estiveste toda a noite passada?

— Não me lembro bem; queria tomar uma resolução, Dúnia, e por vezes me aproximei do Neva, disso me lembro. A minha intenção era acabar assim... mas... não pude... — concluiu em voz baixa, procurando ler no rosto da irmã as impressões das suas palavras.

— Louvado seja Deus! Era precisamente isso o que temíamos, Sônia e eu. Ainda tens esperanças na vida; louvado seja Deus! Ele sorriu amargamente.

— Eu não tenho esperanças e, no entanto, há pouco, na casa da mamãe, abraçamo-nos chorando, pedi-lhe que rezasse por mim.

Deus sabe como isto pôde ser! Eu próprio não compreendo nada do que sinto.

— Estiveste em casa da mamãe?! Falaste-lhe?! — exclamou ela assustada, terias a coragem de falar daquilo?

— Não; nada lhe disse... porém desconfia de alguma coisa! Ouviu-te sonhar em voz alta a noite passada. Estou certo de que já adivinhou metade do mistério. Fiz talvez mal em ir vê-la. Não sei por que o fiz. Sou um miserável, Dúnia!

— Sim, mas pronto para expiar tua culpa. Vais, não é verdade?

— Imediatamente. Para evitar este horror, queria afogar-me; mas, quando ia atirar-me à água, disse comigo que um homem não deve ter medo da vergonha. Será orgulho, Dúnia?

— É, Ródia! Orgulho...

Uma espécie de clarão iluminou seus olhos tristes; parecia feliz com a ideia de ainda ter orgulho.

— Tu não julgas, Dúnia, que eu tivesse medo da água? — perguntou com um sorriso sinistro.

— Oh! Ródia, basta! — disse ela, magoada com a suposição.

Ambos ficaram calados durante alguns minutos. Raskólnikov tinha os olhos baixos; Dunetchka contemplava-o com expressão dolorosa.

De repente ele levantou-se.

— As horas vão passando; é tempo de ir. Vou entregar-me, mas não sei por que o faço.

Grossas lágrimas desceram pelas faces de Dunetchka.

— Choras, minha irmã; mas ainda podes estender-me a mão?

— Tinhas dúvida?

Apertou-o com força contra o peito.

— Oferecendo-te à expiação não diminuis a metade do teu crime? — exclamou ela beijando-o.

— O meu crime? Que crime? — replicou ele num surto de cólera. — O de ter matado um verme imundo, uma velha usurária nociva a todo mundo, um vampiro que chupava o sangue dos pobres? Mas esta morte devia antes obter indulgência para os pecados! Eu nem penso nisso... Todos a gritarem-me: “Crime! Crime!” Agora que me decidi a afrontar essa desonra, agora é que o absurdo da minha covarde determinação me aparece em toda a clareza! Só por baixeza e covardia é que me resolvo a isso, a não ser que seja também por interesse, como dizia Porfírio...

— Ródia, meu irmão, que dizes? Mas tu derramaste sangue! — respondeu ela, consternada.

— E então? Toda a gente o derrama — retorquiu ele com veemência —, em todos os tempos correram ondas de sangue sobre a terra: os que o derramaram como champanhe sobem depois ao Capitólio e são proclamados benfeitores da humanidade. Examina as coisas mais de perto antes de as julgares. Também eu queria fazer bem aos homens, centenas e milhares de boas ações teriam compensado amplamente essa única tolice, e, quando digo tolice, devia dizer falta de habilidade, porque a ideia não era tão má como agora pode parecer: depois do insucesso, os projetos mais bem combinados parecem idiotices. Eu queria apenas conseguir uma situação independente, garantir meus primeiros passos na vida, ter recursos; depois levantaria voo... Mas fui malsucedido, e é por isso que sou miserável! Se tivesse sido bem-sucedido, ter-me-iam coroado, ao passo que desse modo lançar-me-ão às feras.

— Mas não se trata disso! Que dizes, meu irmão?

— É verdade que não procedi com as regras da estética! Decididamente não entendo por que é mais glorioso bombardear uma cidade que matar alguém a machadada! A preocupação estética é o primeiro sinal de fraqueza! Nunca o senti melhor do que hoje e cada vez compreendo menos qual é o meu crime! Nunca me senti mais forte, mais convencido do que agora!

Seu rosto pálido tinha-se colorido subitamente. Mas, quando acabava de dizer esta última exclamação, seus olhos encontraram os da irmã, ela olhava para ele com tal expressão de tristeza que a sua exaltação desapareceu. Não pôde deixar de dizer consigo que, afinal, tinha feito a desgraça daquelas duas pobres mulheres...

— Dúnia, minha querida, se sou culpado, perdoa-me, embora não mereça perdão, se realmente sou culpado. Adeus! Não discutamos! É tempo de partir. Peço-te que não me sigas; tenho ainda uma visita a fazer... Vá já para casa e fica com mamãe, peço-te encarecidamente, é o último pedido que te faço. Não a abandones; deixei-a muito inquieta e temo que ela não resista à dor; ou morre ou endoidece. Vela, pois, por ela! Razumíkhin não as abandonará; já falei com ele... Não chores por mim; apesar de assassino, farei tudo para ser corajoso e honesto. Talvez um dia ouças falar de mim. Não desonrarei nosso nome, verás; provarei ainda... Agora, adeus — disse ele notando uma expressão singular nos olhos da irmã. — Mas por que choras? Não chores, não nos deixamos para sempre!... Ah, é verdade! Espera, esquecia-me...

Pegou um grosso livro que estava na mesa, coberto de pó, e tirou de lá uma pequena aquarela pintada em marfim. Era o retrato da filha da hospedeira, a moça que ele amara. Durante um momento contemplou-lhe angustiado o rosto, que beijou e entregou a Dunetchka.

— Conversei muitas vezes com ela sobre aquilo, só com ela — disse pensativo —, confiei ao seu coração esse projeto que teria um resultado tão lamentável. Tranquiliza-te — continuou dirigindo-se a Dúnia —, ela revoltou-se como tu, e eu estimo bem que tivesse morrido.

Depois voltando ao assunto principal das suas preocupações:

— O essencial agora — disse — é saber se pensei bem no que vou fazer e se estou pronto a aceitar as consequências. Dizem que é preciso esta prova. Será? Que força moral terei eu ao sair das galés, alquebrado por vinte anos de sofrimentos? Ainda valerá a pena viver? E consinto em carregar o peso de tal existência! Oh! Vi que era um covarde esta manhã, quando quis atirar-me ao Neva!

Afinal saíram ambos. Só o amor fraternal tinha amparado Dúnia naquela penosa entrevista. Separaram-se na rua. Depois de ter andado cinquenta passos, ela voltou-se para ver uma última vez o irmão. Este, ao chegar à esquina, voltou-se também. Seus olhos encontram-se, mas Raskólnikov, notando o olhar da irmã fixo nele, fez um gesto de impaciência e mesmo de cólera convidando-a a seguir o seu caminho. Depois virou abruptamente a esquina.

“Estou fraco, bem vejo”, pensou consigo mesmo, sentindo vergonha de sua recente atitude inamistosa para com Dúnia. “Mas por que gostam tanto de mim se eu não o mereço? Oh, se eu fosse só, se ninguém me amasse e eu não amasse quem quer que fosse! Nada disso teria acontecido! Será que, nesses quinze ou vinte anos, tornar-me-ei tão dócil a ponto de humilhar-me diante de todos e choramingar cada vez que disserem ser eu um criminoso? Sim, assim será! É para isto que me deportarão. É isto o que eles querem! Vejam-nos caminhando pelas ruas de um lado para outro. Cada um deles é um canalha e um criminoso intimamente. Pior ainda: um idiota! Deixem-me livre e eles ficarão cegos de justa indignação. Oh, como odeio a todos!”

Começou a especular sobre qual processo deveriam usar para ser humilhado diante de todos, indistintamente — humilhado por convicção e, por que não?, assim deveria ser. Por acaso, vinte anos de servidão não o esmagariam inteiramente? Água mole em pedra dura... E por que iria viver depois disso? Por que iria, sabendo agora que seria assim? Era, talvez, pela centésima vez que se perguntava, desde a noite anterior, mas assim mesmo foi.


Capítulo VIII

Começava a anoitecer quando Raskólnikov chegou à casa de Sônia. Ela esperara-o ansiosamente durante o dia. Pela manhã recebera a visita de Dúnia, que fora vê-la por ter ouvido dizer na véspera de Svidrigailov que Sônia sabia daquilo.

Não referiremos à conversa das duas mulheres; limitando-nos a dizer que choraram, abraçadas, e ficaram amigas de alma e coração. Dessa conversa Dúnia levou ao menos o consolo de pensar que seu irmão não estaria só: fora Sônia quem primeiro ouvira a confissão, fora a ela que ele se dirigiu quando necessitou confiar a um ser humano seu segredo; ela acompanhá-lo-ia para onde o levasse o destino. Sem fazer perguntas sobre isso, Avdótia Romanovna estava certa de que assim seria. Tratou Sônia com uma espécie de veneração, a ela, que se julgava indigna de levantar os olhos para Dúnia. Desde a sua visita à casa de Raskólnikov, a imagem da encantadora criatura que a saudara tão graciosamente nesse dia ficara-lhe na alma como uma das visões mais belas e mais doces da sua vida.

Por fim, Dunetchka resolveu esperar o irmão na casa dela, pensando que Ródion não deixaria de ir lá. Assim que Sônia ficou só o pensamento do suicídio provável do rapaz sobressaltou-a. Esse era também o receio de Dúnia. Mas, enquanto estavam juntas, as duas tinham dado uma à outra toda espécie de razões para se tranquilizarem e tinham-no conseguido em parte.

Logo que se separaram, acordou a inquietação em ambas.

Sônia lembrou-se de que Svidrigailov lhe dissera na véspera: “Raskólnikov só tem a escolher: ir para a Sibéria ou...” E ademais, ela conhecia o orgulho do rapaz e a sua falta de religião. “É possível que ele se resigne a viver unicamente por medo, por medo da morte?”, pensava ela em desespero. Sônia já não duvidava de que o infeliz tivesse acabado com a vida, quando ele entrou em casa.

Um grito de alegria saiu do seu peito. Mas, observando atentamente o rosto do jovem, empalideceu de súbito.

— Ora bem! — disse ele rindo —, venho buscar as tuas cruzes, Sônia. Pediste-me que me arrojasse na terra e a beijasse, e agora que vou satisfazer o teu desejo tens medo?

Sônia olhou-o espantada. Parecia-lhe estranho o tom em que ele falava. Um tremor percorreu-lhe todo o corpo; mas, passado um minuto, viu que aquela firmeza de ânimo era fingida. Raskólnikov, ao falar-lhe, olhava para um canto e parecia ter receio de fixar os olhos nos olhos dela.

— Afinal vi que era melhor assim. Há uma circunstância... mas levaria muito tempo para dizer, e eu não tenho tempo. Sabes o que me irrita, Sônia? Sinto-me revoltado com a ideia de que, daqui a pouco, todos aqueles brutos me rodearão; abrirão os olhos para mim, far-me-ão perguntas estúpidas a que será preciso responder. Apontar-me-ão o dedo... Não vou à casa de Porfírio; acho-o detestável. Prefiro ir procurar o amigo Pólvora. Como ele vai ficar espantado! Posso contar com um belo sucesso. Mas é preciso ter mais sangue-frio; nestes últimos dias tornei-me muito irritável. Queres acreditar? Pouco faltou, ainda há pouco, para que ameaçasse minha irmã, só porque ela se voltou para me ver a última vez. A que baixeza cheguei! Bem, então, onde estão as cruzes?

O pobre rapaz parecia não estar em estado normal. Não podia demorar no mesmo lugar nem fixar o pensamento sobre um objeto; as ideias sucediam-se-lhe sem transição, ou, para dizer melhor, seu espírito desvairava.

As mãos tremiam-lhe a todo momento.

Sônia não dizia palavra. Tirou de uma caixa duas cruzes, uma de cipreste e outra de cobre, depois persignou-se e, tendo repetido isso na pessoa de Raskólnikov, passou-lhe em volta do pescoço a cruz de cipreste.

— É uma maneira simbólica de exprimir que vou carregar uma cruz! Como se só hoje começasse a sofrer! A cruz de cipreste é a dos pobres-diabos. A de cobre pertencia a Isabel, guarda-a para ti. Deixa vê-la! Ela trazia-a naquele momento?... Havia mais objetos de devoção: uma cruz de prata e uma medalha. Joguei-as então no peito da velha. Era o que eu agora devia pôr no pescoço... Mas não digo senão tolices e esqueço-me do que importa... Ouve, Sônia, vim sobretudo para te prevenir, para que saibas... Bem, eis tudo... Vim só por isso. (Hum! Contudo parece-me que tinha mais alguma coisa a dizer-te.) Ora bem, tu é que exigiste. Vou entregar-me. Satisfaço o teu desejo. Por que choras então? Também você! Basta, basta! Oh! como tudo isso me incomoda.

Partia-se-lhe o coração, vendo Sônia em lágrimas: “Que sou para ela?”, dizia consigo, “por que se interessa por mim como minha mãe ou Dúnia?”.

— Faze o sinal da cruz, reza — suplicou ele com voz trêmula.

— Rezarei quanto quiseres.

Persignou-se muitas vezes. Sônia atou na cabeça um lenço verde, provavelmente o mesmo de que Marmêladov lhe falara na taverna e que servia então a toda a família. Esse pensamento atravessou o espírito de Raskólnikov, que se absteve de fazer perguntas. Notara que tinha contínuas distrações e estava muito perturbado. Isso inquietava-o. De repente reparou que Sônia se preparava para acompanhá-lo.

— Que fazes? Aonde vais? Fica, fica! Eu quero ir só — exclamou ele, dirigindo-se para a porta. — Que necessidade tenho eu de levar alguém — resmungou ao sair.

Sônia não insistiu. Ele nem lhe disse adeus, esquecera-se dela. Uma única ideia o tomava naquele instante.

“Está então tudo acabado? Já não há meio de voltar atrás, de arranjar tudo... e não ir lá?”, dizia consigo ao descer a escada.

No entanto continuou seu caminho, vendo de súbito que a hora das hesitações passara. Na rua lembrou-se de que não tinha dito adeus a Sônia, que ela parara no meio do quarto, que as suas palavras a tinham chumbado ao chão. E então dirigiu a si próprio outra pergunta, que minutos antes lhe viera ao espírito sem se formular nitidamente:

“Para que lhe fiz esta visita? Para lhe dizer que ‘vou para lá’? Para dizer que a amo? Agora mesmo acabo de repeli-la. Quanto à cruz, que necessidade tinha eu dela? A que baixeza cheguei! Não; do que eu precisava era das suas lágrimas; o que eu queria era partir-lhe o coração! E talvez também o que procurei, indo vê-la, foi ganhar tempo, retardar um pouco a hora fatal! E sonhei com altos destinos, julguei-me chamado a fazer grandes coisas, eu, tão vil, tão miserável, tão covarde!” Caminhava ao longo do cais e não tinha de ir mais longe; mas quando chegou à ponte, parou um momento, e depois seguiu para o Mercado do Feno.

Seus olhares dirigiam-se avidamente para a direita e para a esquerda, fazia esforços para examinar cada objeto que via e não podia concentrar a atenção em nada. “Daqui a oito dias, um mês”, pensava, “tornarei a passar por aqui; um carro de prisioneiros me conduzirá para qualquer parte. Com que olhos verei então este canal? Ainda repararei naquela tabuleta? Leio nela a palavra companhia; ainda a lerei como agora? Quais serão as minhas sensações e os meus pensamentos?... Meu Deus, como todas essas coisas são mesquinhas!

“Pareço um menino, faço pose para mim próprio; e, afinal, por que hei de corar dos meus pensamentos? Eia! Que multidão! Este gorducho — provavelmente alemão — que me empurrou, pensa lá em quem tocou com o cotovelo? E esta mulher, que traz uma criança pela mão e pede esmola, provavelmente julga-me mais feliz do que ela... Tem graça! Eu devia dar-lhe alguma coisa pela singularidade do fato. Hein? Por acaso terei cinco copeques no bolso? Bem, toma lá matovelka!”

— Que Deus te conserve! — disse a mendiga em tom piedoso.

O Mercado do Feno estava cheio de gente. Esse fato desagradou muito a Raskólnikov; todavia, dirigiu-se precisamente para o lado em que a multidão era mais intensa. Teria comprado a solidão por qualquer preço, mas sentiu que não poderia gozá-la. Tendo chegado ao meio da praça, lembrou-se das palavras de Sônia: “Corre à rua, saúda o povo, beija a terra que manchaste com o teu pecado e dize bem alto, à face do mundo: ‘Eu sou um assassino!’

A essa lembrança estremeceu sem querer.

As angústias dos dias passados tinham-no de tal modo transformado, que se julgou feliz por sentir-se ainda acessível a esta sensação a que se abandonou.

Sentiu-se invadido por uma onda de ternura e dos olhos caíram-lhe lágrimas.

Pôs-se de joelhos no meio da praça, curvou-se até o chão e beijou o solo enlameado.

Depois, ajoelhou-se novamente.

— Aqui está um que não se poupou! — disse alguém a seu lado.

Esta frase foi acolhida com gargalhadas.

— É um peregrino que vai a Jerusalém, meus amigos; despede-se dos filhos e da pátria; saúda toda a gente e dá o beijo de despedida a São Petersburgo, à capital — acrescentou um burguês meio bêbado.

— E ainda novo — disse um outro.

— E é nobre — observou alguém, seriamente.

— Atualmente já não se distinguem os nobres.

Vendo que era objeto da atenção geral, Raskólnikov perdeu um pouco a serenidade, e as palavras “Eu assassinei”, quase a sair-lhe da boca, expiraram nos seus lábios. Aliás, as exclamações, os lazzi da multidão, deixaram-no indiferente, e foi com a maior placidez que se dirigiu para o comissariado de polícia. No caminho, só uma visão atraía seus olhares, é certo que contava encontrá-la e não se admirou de vê-la.

No momento em que no Mercado do Feno acabava de se prostrar pela segunda vez, avistara Sônia. Ela tentara escapar à sua vista, escondendo-se atrás de uma barraca de madeira. De modo que ela seguia-o enquanto ele subia o seu calvário!

Desde esse instante ele teve a certeza de que Sônia lhe pertencia para sempre, o seguiria por toda parte, ainda que seu destino o levasse ao fim do mundo.

Chegou enfim ao lugar fatal. Entrou no pátio com passo bastante firme. O comissariado era no terceiro andar do prédio.

Como por ocasião da sua primeira visita, a escada estava cheia de imundícies, empestada de exalações das cozinhas abertas para cada patamar.

As pernas enfraqueciam-se-lhe enquanto ia subindo.

Parou um instante para tomar fôlego e preparar a entrada. “Mas para quê?”, perguntou de repente a si próprio. “Visto que é preciso esgotar este cálice, que importa o modo de o beber? Quanto mais amargo, melhor.” Depois lembrou-se de Iliá Pietróvitch, o tenente Pólvora. “De fato é com ele que vou falar? Não poderia dirigir-me a outro, a Nikodim Fomitch, por exemplo? Se fosse agora procurar o comissário de polícia em casa e lhe contasse tudo. Não, não! Falarei com Pólvora, acaba-se mais depressa com isto...”

Tremendo, sem ter bem consciência de si próprio, Raskólnikov abriu a porta. Dessa vez só encontrou na antecâmara um dvornik e um homem do povo. O contínuo nem deu por ele. O jovem dirigiu-se à sala seguinte, onde trabalhavam dois escreventes. Nem Zametov nem Nikodim Fomitch estavam ali.

— Não há ninguém? — perguntou a um dos empregados.

— Quem o senhor procura?

— A... a... ah! — Sem lhe ouvir as palavras, sem lhe ver a cara, adivinhei a presença de um russo... como se diz não sei em que conto... — Os meus respeitos! — disse logo uma voz conhecida.

Raskólnikov estremeceu: o Pólvora estava diante dele; acabava de sair de uma outra sala. “O destino assim o quis”, pensou ele.

— O senhor por aqui?! Que motivo... — exclamou Iliá Pietróvitch, que parecia estar de bom humor e até um tanto alegre. Se vem tratar de alguma coisa, ainda é muito cedo.[ 40 ] Estou aqui por acaso... Ademais, em que posso eu... Confesso que não o... Como? Como? Peço perdão...

— Raskólnikov.

— Ah, sim, Raskólnikov! O senhor julgou que eu me esquecera! Peço-lhe que não me julgue tão... Ródion... Ró... Rodionitch, não?

— Ródion Românovitch.

— Sim, sim, sim! Ródion Românovitch! Tinha o nome na ponta da língua. Confesso-lhe que lamento o modo com que procedemos com o senhor outro dia... Mais tarde explicaram-me; soube que o senhor era um jovem escritor, um sábio mesmo... soube que estreara na carreira das letras... Eh, meu Deus! Qual é o literato, qual é o sábio que nos seus princípios não teve mais ou menos a vida de boêmio? Minha mulher e eu adoramos a literatura, mas minha mulher, então!... É doida pelas letras e pela arte!... Salvo o nascimento, tudo o mais se pode adquirir com talento, o saber, a inteligência, o gênio! Que significa, por exemplo, um chapéu? Posso ir comprar um no Zimmerman; mas o que se abriga sob o chapéu, isso é que eu não compro em parte alguma! Confesso que queria até ir visitá-lo para lhe dar explicações, mas pensei que talvez o senhor mesmo... Parece que sua família está agora em São Petersburgo?

— Sim, minha mãe e minha irmã.

— Eu já tive a honra e o prazer de ver sua irmã — é uma senhorita encantadora e distinta. Realmente, deploro que há tempos altercássemos daquele jeito. Quanto às conjeturas sobre o seu desmaio, depois reconheceu-se a falsidade delas. Compreendo a indignação que o senhor sentiu. Agora, como sua família veio para São Petersburgo, vai mudar de casa?

— Não, por ora, não. Eu vinha procurar... Julgava encontrar Zametov.

— Mas Zametov não está mais aqui. Deixou-nos ontem; houve até, antes da sua partida, troca de palavras azedas entre ele e nós... É um pobre-diabo, nada mais; dava esperanças, mas teve a desgraça de frequentar certa sociedade brilhante e meteu-se-lhe na cabeça fazer exames para poder fingir-se sábio. Isto é, Zametov não tem nada de comum com o senhor, por exemplo, ou com o senhor Razumíkhin, seu amigo. Os senhores abraçaram a ciência e os reveses não os fizeram abandoná-la. Para os senhores, o conforto da vida nihil est tem tido a existência austera, ascética, do homem de estudo. Um livro, uma pena, uma indagação científica a fazer; isso lhe basta para a felicidade! Eu próprio, até um certo ponto... O senhor leu a correspondência de Livingstone?

— Não.

— Eu li. Aliás, o número de niilistas aumentou agora, o que não é de admirar numa época como a nossa. Aqui entre nós... o senhor não é niilista? Responda francamente, francamente!

— Não.

— Não receie ser franco comigo, como o seria consigo mesmo! Uma coisa é o serviço, outra coisa... o senhor julga que eu ia dizer amizade? Enganou-se, amizade, não, mas o sentimento da humanidade e do amor a Deus. Eu posso ser uma personagem oficial, um funcionário; nem por isso deixo de ser um homem, um cidadão. O senhor falava de Zametov; pois bem, Zametov é um rapaz que copia o chie francês, que faz chinfrim nas casas duvidosas, mal bebe um copo de champanhe ou de vinho do Don — aí está o que é o Zametov! Fui talvez um pouco severo com ele; mas se minha cólera me levou muito longe, nem por isso deixava de obedecer a um sentimento elevado: o zelo pelo serviço. Aliás, tenho um emprego, importância social! Sou casado, pai de família. Cumpro meu dever de homem e de cidadão, enquanto ele... Que é ele, consinta que lhe pergunte? Dirijo-me ao senhor como um homem ilustre... Aí tem, as parteiras multiplicaram-se também de um modo extraordinário.

Raskólnikov olhou aturdido para o tenente. As palavras de Iliá Pietróvitch, que evidentemente acabara de jantar, ressoavam-lhe aos ouvidos vazias de sentido. Todavia, melhor ou pior, compreendia algumas. Naquele momento interrogava-o com os olhos e não sabia como tudo aquilo acabaria.

— Refiro-me a essas moças que usam o cabelo cortado à Tito — continuou. — Chamo-as parteiras e o nome parece-me bem achado. Eh! Médicas, mulheres que estudam anatomia! Ora, diga-me, se eu adoecer, hei de tratar-me com uma moça? Eh!, eh!

Iliá Pietróvitch pôs-se a rir, deliciado, com o seu espírito.

— Compreendo que todo mundo tenha vontade de se instruir; mas não pode haver instrução sem se cair nesses excessos? Por que é preciso ser insolente? Para que é preciso insultar os homens respeitáveis, como esse mariola do Zametov? Por que ele me injuriou? Outra epidemia que faz terríveis progressos é a do suicídio. Comem tudo quanto têm e depois matam-se! Velhos, rapazolas, meninas, passam-se desta para melhor!... Ainda há pouco soubemos que um tal, chegado agora, acabava de pôr termo à vida. Nil Palvitch, eh! Nil Palvitch! Como se chamava o sujeito que deu um tiro na cabeça na Petersburgskaia?

— Svidrigailov — respondeu com voz rouca alguém que se achava na sala ao lado.

Raskólnikov estremeceu.

— Svidrigailov! Svidrigailov deu um tiro na cabeça?! — exclamou.

— Como! O senhor conhecia-o?

— Conhecia... Chegara há pouco tempo...

— Efetivamente, tinha chegado há pouco. Enviuvara. Era debochado. Matou-se com um tiro de revólver em condições escandalosas. Encontrou-se com ele uma carteira onde escrevera algumas palavras: “Morro em plena posse das minhas faculdades intelectuais; não acusem ninguém da minha morte...” Esse homem parece que tinha fortuna. De onde o conhecia?

— Sim... conhecia-o pessoalmente... minha irmã foi governanta da família dele.

— Bem!... Mas então o senhor pode prestar informações. Desconfiava de sua intenção?

— Vi-o ontem... estava bebendo champanhe... não desconfiei de nada.

Raskólnikov sentia como que uma montanha sobre o peito.

— Aí está o senhor a empalidecer, se não me engano o ar desta casa está sufocante...

— Sim, é tempo de ir-me embora — balbuciou ele. — Peço desculpa por tê-lo incomodado...

— Ora essa, estou sempre a seu dispor! O senhor deu-me muito prazer e tenho gosto em declarar...

Pronunciando estas palavras, Iliá Pietróvitch estendeu a mão ao jovem.

— Eu queria somente... Vim ver Zametov.

— Compreendo, compreendo, encantado pela sua visita...

— Eu... também... até outra vez — disse Raskólnikov com um sorriso.

Saiu vacilando. A cabeça girava. Mal se podia ter de pé, e ao descer a escada foi forçado a apoiar-se à parede para não cair. Pareceu-lhe que um dvornik, que ia para o comissariado, o acotovelara ao passar, que um cão ladrava no primeiro andar e que uma mulher gritava para fazer calar o cão. Atravessou o pátio. De pé, não longe da porta, Sônia, pálida, contemplava-o com um ar estranho. Parou em frente dela. A moça bateu com as mãos uma na outra; seu rosto exprimia terrível desespero. Atentando nisso Raskólnikov sorriu, mas com que sorriso! Um instante depois entrava novamente no comissariado de polícia.

Iliá Pietróvitch estava em frente à mesa. Junto dele, de pé, o mesmo mujique que pouco antes, na escada, o acotovelara.

— Ah! o senhor outra vez! Esqueceu alguma coisa? Mas que tem?

Com os lábios descorados, o olhar fixo, Raskólnikov adiantou-se lentamente para Iliá Pietróvitch. Apoiando a mão na mesa ante a qual estava sentado o tenente, quis falar mas só pôde proferir sons vagos.

— O senhor não está bem; uma cadeira! Sente-se! Água!

Raskólnikov deixou-se cair na cadeira que lhe ofereciam, sem deixar de fixar Petróvitch, cujo rosto exprimia grande surpresa.

Durante um minuto olharam-se em silêncio.

Trouxeram água.

— Fui eu... — começou Raskólnikov.

— Beba.

Ele repeliu com um gesto o copo e, em voz baixa, mas distinta, fez, interrompendo-se por vezes, a seguinte declaração:

— Fui eu que assassinei a golpes de machado, para roubar, a velha adeleira e sua irmã Isabel.

Iliá Pietróvitch ficou boquiaberto.

Acudiu gente de todos os lados.

Raskólnikov renovou as declarações.


Epílogo

I


A Sibéria.

À margem de um rio largo e deserto ergue-se uma cidade, que é um dos centros oficiais da Rússia. Na cidade existe uma fortaleza e na fortaleza uma prisão. Na prisão está há nove meses Ródion Românovitch Raskólnikov, condenado a trabalhos forçados. Perto de 18 meses passaram desde o dia em que cometeu o crime.

Na formação do processo não houve embaraços. O culpado renovou as declarações com nitidez e precisão, sem torcer as circunstâncias, sem lhes amenizar o horror, sem fugir aos fatos, sem esquecer os menores detalhes. Fez uma narração completa: desvendou o caso do objeto visto nas mãos da velha (lembram-se de que era um pedaço de madeira preso a uma lâmina?); contou como tirara as chaves do bolso da vítima, descreveu essas chaves e o cofre e indicou o que vira; explicou a morte de Isabel; contou como Kokh batera na porta, como depois dele viera um estudante; referiu a conversa entre os dois; como, depois, ele correra para a escada, ouvira os gritos de Micolai e Mitka, escondera-se no quarto vazio e voltara para casa. Afinal, quanto aos objetos roubados, disse que os escondera sob uma pedra, num pátio que dava para a rua Voznesênski, e lá foram encontrados. Enfim, fez-se luz sobre tudo. O que, entre outras coisas, surpreendia os juízes era que, em vez de aproveitar o roubo, ele fosse escondê-lo; e ainda menos compreendiam que não só não lembrasse de todos os objetos roubados, mas que até se enganasse no número.

Ademais, achava-se incrível que não tivesse aberto a bolsa uma só vez e ignorasse o que continha. (Eram 317 rublos e três moedas de vinte copeques; por causa da umidade as notas estavam deterioradas.) Durante muito tempo deu-lhes o que pensar por que razão nesse único ponto o acusado mentia, ao passo que sobre o resto dizia a verdade. Por fim alguns (especialmente os psicólogos) admitiram a possibilidade de ele não ter aberto a bolsa e de se ter, portanto, livrado dela sem saber o que continha; mas disso concluíram que o próprio crime fora cometido sob influência de loucura. O culpado, disseram, cedera à monomania do assassínio e do roubo, sem objetivo fixo, sem cálculo. Era uma ocasião de proclamar a teoria nova da alienação temporária; teoria com a qual se procura hoje explicar os crimes de certos homens. Além disso, a doença hipocondríaca de que Raskólnikov sofria era atestada por muitas testemunhas: o doutor Zózimov, antigos camaradas do réu, a sua hospedeira, os criados. Tudo isso fazia crer que Raskólnikov não era um assassino vulgar. Com grande espanto dos próprios partidários da opinião, ele não tentou defender-se; interrogado sobre os motivos, declarou com franqueza brutal que fora levado pela miséria: esperava, disse, encontrar em casa da vítima ao menos três mil rublos e contava com isso garantir seu começo de vida. Seu caráter, leviano e baixo, exasperado pelas privações, fizera dele um assassino. Quando lhe perguntaram por que fora entregar-se, respondeu que representara a comédia do arrependimento. Tudo isso foi dito com cinismo...

Todavia a sentença foi menos severa de que se presumia, em atenção ao crime; foi talvez favorável ao acusado o fato de, em vez de pretender desculpar-se, mostrar-se antes empenhado em acusar-se. Todas as particularidades do caso foram levadas em consideração.

O estado de doença e de pobreza em que se encontrava o réu antes do crime não podia oferecer dúvida nenhuma.

Como não se serviu do roubo, supôs-se que ou o remorso o impedira disso, ou que as suas faculdades mentais estavam variando quando praticou o crime. A morte, não premeditada, de Isabel, deu também um argumento em apoio desta última ideia; um homem pratica dois assassínios e esquece-se de que a porta está aberta! Enfim, ele fora entregar-se, e isso justamente no momento em que as falsas confissões de um fanático (Micolai) acabavam de desnortear a instrução; na ocasião em que a justiça estava longe de conhecer o verdadeiro culpado (Porfírio Petróvitch cumpriu religiosamente sua palavra); todos esses fatos contribuíram para moderar a severidade da pena.

Por outro lado, os debates puseram em evidência fatos honrosos para o réu. Uns documentos apresentados pelo estudante Razumíkhin provavam que, na universidade, Raskólnikov tinha repartido seus poucos recursos, durante seis meses, com um colega pobre, doente, que morrera, deixando na penúria o pai enfermo, de quem era, desde os 13 anos, o único amparo; Raskólnikov fizera o velho entrar numa casa de saúde e depois pagara as despesas do enterro.

O testemunho da viúva Zarnitzine foi também muito favorável. Declarou que na época em que morava nos Cinco Cantos com o seu inquilino, tendo havido um incêndio numa casa, à noite, ele arriscara a vida, salvando duas criancinhas; e que ficara até gravemente ferido ao praticar esse ato. Fez-se um inquérito relativamente a esse fato e numerosas testemunhas certificaram sua exatidão. Enfim, o tribunal, atendendo às confissões do réu, bem como aos seus bons antecedentes, condenou-o apenas a oito anos de trabalhos forçados.

Logo ao começar os debates, a mãe de Raskólnikov adoeceu. Dúnia e Razumíkhin acharam um meio de afastá-la de São Petersburgo durante o processo. Razumíkhin escolheu uma cidade onde passava a estrada de ferro e situada a pequena distância da capital; nessas condições podia seguir as audiências e ver bastantes vezes Avdótia Romanovna.

A doença de Pulquéria Alexandrovna era uma afecção nervosa com desarranjo das faculdades mentais.

Quando voltou para casa, depois da última entrevista com o irmão, Dúnia encontrara a mãe bem doente, febril, delirando. Nessa mesma noite combinou com Razumíkhin as respostas a dar quando Pulquéria Alexandrovna pedisse notícias do filho: inventaram uma história, em que Raskólnikov fora enviado para muito longe, para os confins da Rússia, com uma missão que devia trazer-lhe honra e proveitos. Mas para grande surpresa deles, a pobre mulher nunca os interrogou sobre isso.

Ela própria inventara um romance para explicar o desaparecimento do filho; contava, chorando, a visita de despedida que ele lhe fizera, dando a entender que conhecia muitas coisas misteriosas e graves: Ródion era obrigado a esconder-se porque tinha inimigos poderosos; ademais, ela não duvidava que o futuro deles fosse brilhante, logo que fossem removidas certas dificuldades; assegurava a Razumíkhin que, com o correr do tempo, seu filho seria um homem eminente; tinha a prova disso no artigo que ele escrevera, o qual denunciava um talento notável.

Esse artigo lia-o ela sempre, às vezes em voz alta; quase se podia dizer que dormia com ele; e, no entanto, não perguntava onde estava Ródia, apesar do cuidado que havia em evitar o assunto, o que lhe devia causar suspeita.

O silêncio singular de Pulquéria Alexandrovna sobre alguns pontos acabou por inquietar Avdótia Romanovna e Razumíkhin.

Por exemplo: ela não se queixava de o filho não lhe escrever, quando outrora esperava sempre com impaciência as cartas do seu querido Ródia.

Esta última circunstância era de tal forma inexplicável que Dúnia começou a angustiar-se.

Veio-lhe à ideia que sua mãe pressentia uma desgraça terrível sucedida a Ródia e que não ousava interrogá-los com receio de saber alguma coisa ainda pior.

Em todo caso, Dúnia percebia que a mãe tinha o cérebro alterado. Ela própria, porém, por duas vezes dirigiu a conversa de tal maneira que foi impossível responder-lhe sem lhe dizer onde se achava Ródia. Em seguida às respostas embaraçadas que lhe deram, caiu numa profunda tristeza; durante muito tempo viram-na sombria e taciturna.

Dúnia reconheceu, enfim, que as mentiras não surtiam efeito e o melhor era fazer silêncio absoluto; mas cada vez se lhe tornou mais evidente que a mãe suspeitava o que quer que fosse de horrível. Dúnia sabia especialmente — tinha-lhe dito o irmão — que a mãe a ouvira falar sonhando na noite posterior à sua entrevista com Svidrigailov; as palavras que lhe haviam escapado durante o delírio não teriam projetado uma luz sinistra no espírito da pobre senhora?

Depois de dias e semanas de um mutismo sombrio e lágrimas silenciosas, produzia-se às vezes na doente uma espécie de acesso histérico. Punha-se de repente a falar alto do filho, das suas esperanças, do seu futuro...

A sentença foi dada cinco meses após a confissão feita pelo criminoso. Logo que possível, Razumíkhin foi vê-lo na prisão. Sônia também. Chegou enfim o momento da partida. Dúnia e Razumíkhin juraram a Ródion que aquela separação não seria eterna. Dmitri Prokófitch tinha um projeto firmemente resolvido no seu espírito: juntariam algum dinheiro durante três ou quatro anos, depois partiriam para a Sibéria, país onde as riquezas só esperam capitais e braços para serem exploradas; estabelecer-se-iam no lugar onde Ródia estivesse, e recomeçariam uma vida nova. Todos choraram à despedida. Havia alguns dias Raskólnikov mostrava-se bastante inquieto, multiplicava as perguntas sobre a mãe, pedia notícias dela constantemente. Essa excessiva preocupação afligia Dúnia. Quando lhe falaram claramente sobre o estado de Pulquéria Alexandrovna, ficou extremamente taciturno.

No momento do último adeus o condenado teve um sorriso estranho, ouvindo sua irmã e Razumíkhin falaram-lhe do futuro próspero que se abriria para eles depois da sua saída da prisão; ele previa que a doença da mãe não tardaria a matá-la. Enfim, Raskólnikov e Sônia partiram.

Dois meses depois, Dunetchka casou com Razumíkhin. Foi uma boda modesta e triste. Entre os convidados estavam Porfírio Petróvitch e Zózimov. Havia algum tempo que Razumíkhin se transformara. Dúnia acreditava que ele poria em execução todos os seus projetos e não podia deixar de acreditar porque lhe conhecia a vontade forte. Dmitri começou reingressando na universidade para terminar o curso. Os dois esposos falavam sempre de planos de futuro, tinham ambos a firme intenção de partir para a Sibéria dentro de cinco anos. Enquanto não iam, contavam com Sônia para os substituir lá...

Pulquéria Alexandrovna deu com prazer a mão de sua filha a Razumíkhin; mas, depois do casamento, pareceu ficar ainda mais inquieta e triste. Para lhe dar alguns momentos agradáveis, Razumíkhin contou-lhe a bela ação de Raskólnikov relativa ao estudante e o seu velho pai; contou-lhe também como, no ano anterior, Ródia expusera a vida para salvar duas crianças num incêndio. Essas narrativas exaltaram até o mais alto grau o espírito já perturbado de Pulquéria Alexandrovna. Não falava de outra coisa, na rua mesmo contava esses casos aos transeuntes (apesar de Dúnia acompanhá-la sempre). Nos carros, nas lojas, em toda parte onde encontrava um ouvinte benévolo, referia-se logo ao filho, à bondade do filho para com um estudante, a corajosa dedicação de que seu filho dera prova num incêndio etc. Dunetchka não sabia como fazê-la calar-se. Aquela excitação doentia tinha os seus perigos; além de esgotar as forças da pobre mulher, podia dar-se o caso de alguém ouvindo nomear Raskólnikov, vir a falar no processo. Pulquéria Alexandrovna conseguiu até indagar o endereço da mulher cujos filhos tinham sido salvos por Ródion e quis ir vê-la. Por fim sua agitação atingiu os últimos limites. Às vezes desfazia-se em lágrimas, tinha acessos febris durante os quais delirava.

Uma manhã declarou que, pelos seus cálculos, Ródia devia estar de volta, porque, quando ele lhe dissera adeus, tinha dito que voltaria daí a nove meses. Começou, pois, a preparar tudo prevendo a próxima vinda do filho, destinando-lhe seu próprio quarto; pôs-se a arranjá-lo: espanou os móveis, lavou o soalho, substituiu as cortinas etc. Dúnia, muito aflita, não dizia nada, e até ajudava a mãe nesse trabalho.

Após um dia todo de visões loucas, de sonhos felizes e de lágrimas, Pulquéria Alexandrovna foi atacada de febre. Quinze dias depois morreu. Algumas palavras pronunciadas em delírio deram a entender que ela adivinhara quase inteiramente o terrível segredo, que se tinham esforçado por lhe ocultar.

Raskólnikov ignorou por muito tempo a morte de sua mãe, embora desde sua chegada à Sibéria recebesse sempre notícias da família por intermédio de Sônia. Todos os meses ela escrevia uma carta a Razumíkhin e todos os meses lhe respondiam. No princípio as cartas de Sônia pareciam a Dúnia e a Razumíkhin um pouco secas; mas depois ambos compreenderam que era impossível escrevê-las melhor, visto que eles encontravam nelas os dados mais completos e mais precisos sobre a situação de seu desgraçado Ródia. Sônia descrevia de uma maneira muito simples e muito clara toda a vida de Raskólnikov na prisão. Não falava das suas primeiras esperanças, nem das suas ideias quanto ao futuro, nem dos seus sentimentos pessoais. Em vez de explicar o estado moral, a vida interior do condenado, limitava-se a citar fatos, isto é, as próprias palavras ditas por ele; dava notícias de Raskólnikov, dizia que desejos ele manifestava, que perguntas fizera, do que a tinha encarregado nas suas entrevistas etc.

Mas essas indicações, por muito amplas que fossem, não eram nos primeiros tempos muito consoladoras.

Dúnia e o marido viam pelas cartas de Sônia que o irmão se conservava sombrio; quando ela lhe comunicava as notícias recebidas de São Petersburgo, ele quase nem dava atenção; às vezes pedia informações sobre a mãe, e, quando Sônia, vendo que ele entrevira a verdade, lhe tinha enfim anunciado a morte de Pulquéria Alexandrovna, notara, com surpresa, que ele ficara impassível.

“Embora pareça estranho a tudo quanto o cerca”, escrevia Sônia, “encara francamente sua vida nova, compreende bem a situação, não espera nada melhor, não se embala com esperanças frívolas, nem sucumbe neste meio que difere tanto do antigo... Seu estado de saúde é bom. Vai para o trabalho sem repugnância. É quase indiferente à alimentação, mas, salvo no domingo e nos dias de festa, ela é tão má que Ródion aceitou de mim algum dinheiro para ter chá todos os dias. Quanto ao resto, pede-me que não me inquiete, porque não gosta que se ocupem dele”.

“Na prisão”, dizia outra carta, “vive em comum com os outros; eu não visitei a fortaleza, mas tenho razões para pensar que lá se vive muito mal. Ródion dorme num leito de campanha com um lençol de feltro e não quer outro. Se recusa tudo o que poderia tornar-lhe a vida material menos má, não é por princípios, ou em virtude de premeditação, mas somente por indiferença”.

Sônia confessava que, no princípio, as visitas, em vez de darem prazer, lhe causavam uma espécie de irritação: só saía da mudez para dizer grosserias. Mais tarde, é verdade, essas entrevistas tornaram-se para ele um hábito, quase que uma necessidade, a tal ponto que ficara muito triste quando uma indisposição de alguns dias obrigou Sônia a interromper as visitas.

Nos dias santificados, viam-se ou à porta da prisão ou na casa da guarda, onde levavam por alguns minutos o prisioneiro quando ela o mandava chamar; nos dias úteis, ela ia vê-lo no trabalho; nas oficinas, nos fornos, nos telheiros às margens do Irtch.

Quanto a ela, Sônia dizia que fizera relações, que vivia da costura e que, não tendo na cidade nenhuma modista, arranjara razoável clientela. O que ela não dizia é que tinha pedido proteção para Raskólnikov; que, graças a ela, o prisioneiro fora dispensado dos trabalhos mais grosseiros etc.

Por fim, Razumíkhin e Dúnia souberam que Raskólnikov evitava todo mundo, que seus companheiros não o estimavam, que ficava calado dias inteiros e estava abatido.

Dúnia já notara certa inquietação nas últimas cartas de Sônia. Subitamente ela escreveu que ele caíra gravemente doente, tendo dado entrado no hospital da prisão...

 

II


Já há muito tempo que ele estava doente; mas o que lhe abatia as forças não eram os horrores da prisão, nem o trabalho, nem a alimentação, nem a vergonha de lhe raparem a cabeça a navalha e de vestir andrajos. Oh! Que lhe importavam essas atribulações, essas misérias? Ao contrário, tinha até satisfação em trabalhar: a fadiga física dava-lhe pelo menos algumas horas de sono tranquilo. E que significava para ele a alimentação — aquela má sopa de couves em que se encontravam baratas? Outrora, quando estudante, muitas vezes se daria por feliz se tivesse isso para comer. A roupa era quente e própria ao seu gênero de vida. Quanto aos grilhões, nem lhe, sentia o peso. Restava a humilhação de trazer a cabeça rapada e o vestuário de preso. Mas diante de quem podia ele corar? Diante de Sônia? Ela tinha medo dele; como podia corar diante dela?

Todavia, a vergonha constrangia-o mesmo para com a própria Sônia; era por isso que se mostrava grosseiro e desdenhoso. Mas essa vergonha não era nem dos grilhões nem da cabeça rapada; seu orgulho fora ferido cruelmente; e dessa ferida é que ele sofria. Oh! Como teria sido feliz se se pudesse acusar! Então suportaria tudo, até a vergonha e a desonra. Mas por mais que pensasse, sua consciência endurecida não encontrava no passado nenhuma falta horrorosa; só se arrependia de ter sido malsucedido, o que podia acontecer a todo mundo. O que o humilhava era ver-se, ele, Raskólnikov, perdido estupidamente, perdido sem remissão e ter de submeter-se, resignar-se, se quisesse encontrar um pouco de sossego.

Uma inquietação sem objetivo e sem fim no presente, um sacrifício contínuo no futuro — eis o que lhe restava na terra. Vão consolo para ele, pensar que dali a oito anos só teria 32 anos e que nessa idade poderia recomeçar a vida! Viver para quê? Viver por viver? Mas ele sempre estivera pronto a jogar a vida por uma ideia, uma esperança, até por uma fantasia. Fizera sempre pouco caso da vida pura e simples; quis sempre mais alguma coisa. Talvez a força dos seus desejos o fizera crer, outrora, que era desses homens a quem é permitido mais que aos outros.

Ainda se o destino lhe tivesse dado o arrependimento, o arrependimento que despedaça o coração, que tira o sono, o arrependimento cujos tormentos são tais que um homem se suicida para lhe escapar! Oh! Ele tê-lo-ia acolhido com alegria! Sofrer e chorar — ainda é viver. Mas ele não se arrependia do seu crime.

Ao menos poderia arrepender-se, como antes, pelas ações estúpidas e odiosas que o tinham levado à prisão. Mas agora, no isolamento do cativeiro, refletia de novo sobre seu procedimento passado e já não o achava tão odioso nem tão estúpido.

“Em que consistia a minha ideia”, pensava ele, “mais estúpida que as outras ideias e teorias que se debatem desde que o mundo existe? Basta ver o caso de um ponto de vista amplo, independente, sem preconceitos, e então certamente essa ideia já não parecerá tão... singular. Ó vós que vos dizeis livres-pensadores, filósofos de cinco copeques, por que parais a meio caminho?”.

“E por que classificais de vil o meu ato?”, perguntava a si próprio. “Por que é um crime? Que significa a palavra crime? A minha consciência está tranquila. Sem dúvida foi um ato ilegal, violei a letra da lei, derramei sangue; pois bem, enforcai-me... e acabou-se! Decerto, nesse caso, muitos dos benfeitores da humanidade, daqueles que não tiveram o poder por herança, mas que se apoderaram dele à força, deveriam ter sido supliciados. Mas esses foram até o fim e isso os justifica; enquanto que eu não prossegui. Por conseguinte, não tinha o direito de começar.”

Só reconhecia que andara mal numa coisa: em ter fraquejado; ter ido entregar-se.

Outro pensamento fazia-o sofrer também: por que não se matara? Por que preferira entregar-se à polícia, em vez de se jogar na água? Era tão difícil vencer o amor à vida? Todavia Svidrigailov triunfara em relação a ele!

Interrogava-se dolorosamente sobre isso, e não podia compreender que no próprio momento em que, junto do Neva, pensava no suicídio, pressentia talvez em si e nas suas convicções um erro profundo. Não compreendia que esse pressentimento podia conter em germe uma nova ideia de vida, que podia ser o início de uma revolução na sua existência, o primeiro sinal da sua ressurreição. Admitia apenas que tinha cedido por covardia, à força bruta do instinto.

O espetáculo que lhe davam os companheiros de prisão espantava-o. Como todos amavam a vida! Como a queriam! Parecia até a ele que esse sentimento era mais forte no prisioneiro do que no homem livre. Que horríveis sofrimentos suportavam alguns daqueles desgraçados, o vagabundo, por exemplo! Como se compreendia que tivessem tanto valor a seus olhos um raio de sol, uma floresta virgem, a fria primavera oculta em algum recanto invisível, que o vagabundo marcara três anos antes e aspirava revê-la como se fosse a própria namorada, sonhando com a verde relva em torno e as aves cantando no bosque? E à medida que os observava atentamente, descobria fatos ainda mais inexplicáveis.

Na prisão, no meio em que estava, muitas coisas, sem dúvida, lhe escapavam; aliás, ele não queria fixar a atenção em nada. Vivia, por assim dizer, com os olhos meio fechados, achando insuportável olhar em volta. Mas, com o tempo, muitos fatos o impressionaram, e de certo modo e a seu pesar começou a notar o que a princípio nem tinha pensado. O que mais o espantava era o abismo espantoso, invencível, que existia entre ele e aquela gente. Dir-se-ia que ele e outros pertenciam a nações diferentes. Encaravam-se com desconfiança e hostilidade recíprocas. Ele sabia e compreendia as causas desse fenômeno, mas nunca até então as supusera tão fortes e tão profundas. Além dos criminosos de direito comum havia na fortaleza polacos condenados por crimes políticos. Estes consideravam os outros simples animais e desprezavam-nos; mas Raskólnikov não podia concordar com aquilo, pois observava que muitos pontos de vista esses animais eram muito mais inteligentes que os próprios polacos. Também havia russos lá — um antigo oficial e dois seminaristas, que desprezavam a plebe da prisão. Raskólnikov notou também o erro deles.

Quanto a ele, Ródion, não o estimavam; evitavam-no. Acabaram até por odiá-lo. Por quê? Ignorava-o. Malfeitores, cem vezes mais culpados que ele, desprezavam-no, escarneciam dele: seu crime era objeto de sarcasmos.

— Tu és um bárine! — diziam-lhe. — Não devias matar a golpes de machado: isso não é próprio de um bárine.

Na segunda semana da Quaresma teve de assistir aos ofícios religiosos com seus camaradas. Foi à igreja e rezou. Um dia, sem ele mesmo saber por que motivo, os companheiros fizeram-no passar um mau quarto de hora. Viu-se assaltado por eles.

— Tu és um ateu! Tu não crês em Deus! — gritavam furiosos. Matemo-lo!

Ele nunca lhes falara nem de Deus nem da religião, e no entanto eles queriam matá-lo como ateu. Não lhes respondeu. Um prisioneiro, no auge da fúria, lançava-se já sobre ele; Raskólnikov, sereno e silencioso, esperava-o sem pestanejar, sem que músculo algum do rosto se movesse. Um guarda lançou-se a tempo entre ele e o agressor — um instante mais tarde teria corrido sangue.

Havia ainda outra questão inexplicável para ele: por que todos estimavam tanto Sônia? Ela não procurava captar as boas graças de ninguém; eles poucas vezes tinham ocasiões de vê-la; só uma vez ou outra a viam, quando ia passar alguns instantes com ele. E, no entanto, todos a conheciam, não ignoravam que ela o seguira, sabiam como vivia e onde vivia. Sônia não lhes dava dinheiro nem lhes prestava serviços. Só uma vez, pelo Natal, levou um presente para toda a turma: bolos e kalátchi. Mas pouco a pouco entre eles e Sônia estabeleceram-se certas relações; ela escrevia-lhes as cartas para as famílias e punha-as no correio. Quando os parentes dos presos vinham à cidade, era nas mãos de Sônia que entregavam os objetos e até o dinheiro destinado a estes. As mulheres e as amantes dos presos conheciam-na e iam à casa dela. Quando visitava Raskólnikov, entre os camaradas, ou quando encontrava um grupo dirigindo-se para o trabalho, todos tiravam os bonés, todos se inclinavam: “Matuchka, Sófia Semenovna, tu és a nossa querida mãezinha!”, diziam os condenados à delicada criatura. Ela saudava-os sorrindo e todos ficavam contentes. Eles gostavam até da sua maneira de andar e voltavam-se para a seguirem com os olhos quando ela se ia. E que elogios lhe faziam! Até a louvavam por ser pequenina.

Raskólnikov esteve no hospital quase toda a Quaresma e a semana da Páscoa. Restabelecido, lembrou-se dos sonhos que tivera durante a doença. Parecia-lhe então ver o mundo assolado por um flagelo terrível e sem precedentes, que vindo, do fundo da Ásia, caíra sobre a Europa. Todos deviam morrer, salvo um reduzido número de privilegiados. Uns seres microscópicos, triquinas de nova espécie, introduziam-se nos corpos. Mas esses seres eram dotados de inteligência e vontade. Os indivíduos infectados ficavam logo doidos furiosos. Todavia, coisa singular, nunca os homens se julgavam tão sábios, tão seguros da verdade, como esses desgraçados. Nunca tinham tido mais confiança na infalibilidade dos seus juízos, na solidez das conclusões científicas e dos princípios morais. Aldeias, cidades, povos inteiros eram atacados pela moléstia e perdiam o juízo, não se compreendendo uns aos outros.

Cada qual julgava saber, ele só, a verdade inteira e, contemplando os outros, afligia-se, batia no peito, chorava e torcia as mãos. Ninguém se entendia sobre o bem e o mal nem sabia quem se havia de condenar ou absolver. Matavam-se uns aos outros levados por uma cólera absurda. Reuniam-se formando grandes exércitos, mas, começada a campanha, as tropas dividiam-se, as fileiras rompiam-se, os guerreiros atiravam-se uns contra os outros, assassinavam-se e devoravam-se. Nas cidades tocava-se a rebate, todavia, mas por que e a que propósito? Ninguém sabia e todos andavam inquietos. Cada um propunha as suas ideias, as suas reformas e não havia acordo; a agricultura fora abandonada. Aqui e ali se reuniam vários grupos, combinavam uma ação comum, juravam não se separar — mas logo depois esqueciam-se da resolução tomada, começavam a acusar-se uns aos outros, a bater-se, a matar-se. Os incêndios e a fome completavam o triste quadro. Homens e coisas, tudo perecia. O flagelo estendia-se cada vez mais. No mundo só podiam salvar-se alguns homens puros, predestinados a refazer a humanidade, a renovar a vida e a purificar a terra; mas ninguém via esses homens; ninguém ouvia suas palavras e suas vozes.

Estes sonhos absurdos deixaram no seu espírito uma impressão dolorosa que levou muito tempo para se apagar. Veio a segunda semana da Páscoa. O tempo estava quente, sereno, verdadeiramente primaveril; abriram as janelas do hospital (janelas gradeadas sob as quais rondava uma sentinela). Durante toda a doença de Raskólnikov, Sônia só pudera fazer-lhe duas visitas; de cada vez era preciso pedir autorização, difícil de obter; mas muitas vezes, sobretudo à tardinha, ela ia ao pátio do hospital e, durante um minuto, ficava ali a olhar as janelas.

Uma tarde, o prisioneiro, já quase restabelecido, tinha adormecido; quando acordou, aproximou-se casualmente da janela e viu Sônia, que, de pé junto à porta do hospital, parecia esperar alguma coisa. Ao vê-la sentiu como que o coração pungido, estremeceu e afastou-se. No dia seguinte Sônia não veio, no outro também não; notou que a esperava com ansiedade. Quando voltou à prisão, os companheiros participaram-lhe que Sônia estava doente e não saía do quarto.

Ficou muito inquieto e mandou saber notícias dela. Soube logo que a doença não era grave. Sônia, sabendo-o tão preocupado, escreveu-lhe uma carta a lápis informando-o de que estava muito melhor, que tivera um ligeiro resfriado e não tardaria a ir vê-lo. Ao ler essa carta, o coração de Raskólnikov bateu com força.

Às seis horas da manhã foi trabalhar na margem do rio, onde se construía um forno sob um telheiro. Tinham sido mandados para lá apenas três operários. Um deles, seguido do guarda, foi buscar uma ferramenta na fortaleza, o outro começou a aquecer o forno. Raskólnikov saiu do telheiro, sentou-se na barranca e pôs-se a contemplar o rio. Daquela margem elevada via-se extenso panorama. Ao longe, do outro lado do Irtich, cantavam canções cujo vago eco chegava aos ouvidos do prisioneiro. Na imensa estepe cheia de sol as barracas dos nômades pareciam pequenos pontos negros. Lá havia liberdade; lá viviam homens que não se pareciam com os daqui; lá parecia que o tempo não andava desde a época de Abraão e dos seus rebanhos. Raskólnikov devaneava, com os olhos fixos naquela visão; não pensava em coisa alguma, mas uma inquietação o trespassava.

De repente achou-se na presença de Sônia. Ela aproximara-se sem ruído e sentou-se a seu lado. O frio da manhã ainda se fazia sentir. Sônia trazia seu velho albornoz e o lenço verde. Ao chegar junto dele sorriu, mas, segundo o costume, foi com timidez que lhe estendeu a mão. Às vezes até não ousava estendê-la, como se receasse vê-la repelida. Ele parecia sempre apertá-la com repugnância, mostrando-se agastado quando ela chegava, algumas vezes, e não lhe dizia uma só palavra. Havia dias em que ela tremia diante dele e retirava-se aflita. Mas dessa vez suas mãos apertaram-se prolongadamente. Raskólnikov olhou para ela, não disse uma palavra e baixou os olhos. Estavam a sós, ninguém os via. O guarda afastara-se momentaneamente.

Subitamente, e sem que ele mesmo soubesse como, uma força invisível lançou-o aos pés da moça. Abraçou-lhe os joelhos, chorando. No primeiro momento ela ficou assustada e pálida. Levantou-se vivamente e a tremer olhou para Raskólnikov. Mas bastou-lhe esse olhar para compreender tudo. Uma felicidade imensa se via nos seus olhos radiantes; não podia já duvidar de que ele a amava com um amor infinito, finalmente...

Quiseram falar, mas não puderam. Tinham lágrimas nos olhos. Estavam ambos pálidos, mas no seu rosto brilhava já a luz de uma renovação, de um renascimento completo. O amor regenerava-os, o coração de um encerrava uma fonte de vida para o coração do outro.

Resolveram esperar. Tinham ainda sete anos de Sibéria; de que sofrimentos intoleráveis e de que doce felicidade devia ser preenchido para eles esse tempo! Mas ele tinha ressuscitado, sentia-o no seu ser, e Sônia — Sônia só vivia da vida de Raskólnikov.

À noite, depois de trancafiarem os prisioneiros, o jovem deitou-se e pensou nela. Parecia-lhe até que nesse dia todos os presos, os seus antigos inimigos, o tinham olhado de outro modo. Fora ele o primeiro a falar-lhes e eles tinham-lhe respondido com amabilidade.

Pensava nela. Lembrava-se dos pesares que lhe dera constantemente; revia seu pequeno rosto pálido e magro. Mas agora essas lembranças eram apenas um remorso; reconhecia quanto a fizera sofrer, a ela, que o redimia por um amor enorme, eterno, ilimitado.

Sim, que importava todo o horror do passado? Naquela primeira alegria da volta à vida, tudo, até o seu crime, até a sua condenação e a sua ida para o degredo, tudo lhe parecia um fato exterior, estranho; parecia até duvidar que isso tivesse acontecido. Ademais, naquela noite estava incapaz de refletir muito tempo, de fixar o pensamento num objeto qualquer, de resolver um caso com segurança; só tinha sensações. A vida tinha substituído nele o raciocínio.

À cabeceira da cama havia uma Bíblia. Segurou-a maquinalmente. Aquele livro era de Sônia; fora naquele volume que ela lhe lera outrora a passagem da ressurreição de Lázaro.

No princípio de sua prisão, ele esperava uma perseguição religiosa por parte dela. Julgava que ela lhe atiraria sempre a Bíblia ao rosto. Mas, para grande surpresa sua, nem uma só vez ela fez mudar a conversa para esse assunto, nem uma só vez lhe oferecera o livro. Fora ele próprio que o pedira pouco antes da sua doença e ela levou-o sem dizer nada. Até então ele não o abrira.

Também não o abriu dessa vez, mas um pensamento atravessou seu espírito: “As suas convicções podem agora ser diferentes das minhas? Poderei ter acaso outros sentimentos, outras ideias que não sejam os dela?”

Durante esse dia, Sônia esteve também muito inquieta, mas estava tão alegre, e aquela felicidade era uma surpresa tão grande, que quase tinha medo. Sete anos, somente sete anos! Na embriaguez das primeiras horas, pouco faltou para que ambos sentissem esses anos como se fossem dias. Raskólnikov ignorava que a nova vida não lhe seria dada de graça teria de adquiri-la à força de longos e dolorosos sacrifícios.

Mas aqui começa uma segunda história, da lenta transformação de um homem, da sua regeneração, da sua passagem gradual de um mundo para outro, travando relações com uma nova e até agora completamente desconhecida realidade. Podia ser o motivo de uma nova narração. A que quisemos oferecer ao leitor termina aqui.

 

 

Introdução

O reino dos Karamázov


Em dezembro de 1877 interrompeu Dostoiévski sua publicação periódica, O diário de um escritor, comunicando aos leitores o motivo de sua temporária desistência da atividade jornalística: pretendia escrever um novo romance.

O tema da obra, que por enquanto ainda não foi revelado, ocupara o escritor há vários anos: um grande crime. Desde os temas em que Dostoiévski tinha na Sibéria, na Casa dos mortos, seu primeiro contato com criminosos, aquele tema nunca deixou de fasciná-lo. Sua primeira grande obra, Crime e castigo, fora, pelo menos na aparência, um romance policial. A obra seguinte, O idiota, terminará com uma pavorosa cena de crime. O romance político Os demônios girara em torno de um crime perpetrado por conspiradores. Sempre se tratava de crimes de morte, de homicídios. Mas nunca, até então, ousara Dostoiévski encarar aquele crime de morte que mais o assustava ou mais o fascinava: o parricídio. Sabe-se que o pai do escritor foi assassinado por seus servos amotinados. Os psicanalistas que tentaram escrever a psicografia de Dostoiévski afirmam que a morte violenta do pai, embora pelas mãos de outros, tinha para o filho a significação de um desejo secreto satisfeito. Não quero discutir, aqui, essa tese porque ela não me parece capaz de ser comprovada. Fica o fato de que Dostoiévski, no ponto mais alto de suas faculdades literárias, resolveu dar o nome às coisas, escrevendo um romance em que um pai é morto pelo próprio filho. Mas, mesmo assim, a censura interior lhe impôs uma modificação disfarçadora: o parricida não seria um filho assim como o próprio Dostoiévski, mas um filho ilegítimo, um bastardo, um rejeitado. E nas primeiras notas e esboços de 1877 esse bastardo já tem o mesmo nome que terá o criminoso no romance Os irmãos Karamázov: é chamado Smierdiákov, nome ligeiramente simbólico, pois smert significa, em russo, “morte”.

Naquelas primeiras notas, o velho Karamázov é um debochado que tiraniza e martiriza seu filho ilegítimo; e Smierdiákov vinga-se, matando o pai natural ou, antes, desnatural. Seria um enredo simples, retilíneo. Poderia satisfazer a desejos íntimos, subconscientes, do homem Dostoiévski. Mas seria insatisfatório para o escritor Dostoiévski, acostumado a escrever romances volumosos, panorâmicos, com uma multidão de personagens e com enredos complicados. Motivos externos encarregaram-se de fornecer a complexidade desejada. Naquele tempo morreu o filhinho do escritor. Dostoiévski caiu em profunda depressão. Foi sua mulher quem lhe aconselhou uma visita ao mosteiro de Optina Pustyn, naquela época muito procurado pelos russos de fé ortodoxa, porque ali vivia o velho frei Ambros, tido como santo e dotado de capacidades espirituais para consolar os deprimidos. Certamente esse monge é o modelo de stáriets, no romance. O encontro inspirou-lhe a ideia de dar ao assassino Smierdiákov um mais jovem irmão legítimo, Alieksiêi, ou Aliócha, discípulo do Santo, polo positivo da história. A história já começou a ficar mais complexa, pois Aliócha não seria o único irmão ilegítimo do criminoso.

No mosteiro de Optina Pustyn encontrou Dostoiévski seu amigo, o grande filósofo (e poeta) Soloviev. Foi a primeira pessoa à qual o escritor contou o enredo inteiro, pelo menos até o ponto até onde então elaborado. A ideia ainda era de um romance policial; mas nesse gênero de ficção precisa-se, ao lado do criminoso, de um inocente suspeito, que é falsamente acusado do crime cometido pelo outro. Realmente, Dostoiévski contou a Soloviev que o crime de Smierdiákov não teria sido logo descoberto porque um outro fora o suspeito: Dimítri, o mais velho filho legítimo do velho Fiódor Karamázov. Dimítri teria sido um homem nobre, de altos voos idealistas, mas de temperamento violento, assim como o pai, e apaixonado pela mesma mulher, Grúchenhka, que o velho também cortejava; quando, então, foi descoberta a morte do velho (pelas mãos de Smierdiákov), o primeiro suspeito seria Dimítri, por causa da rivalidade sexual com o pai; e a parte central do romance seria o processo contra Dimítri perante o tribunal do júri. O tribunal do júri era, então, instituição nova na Rússia. Pela primeira vez os processos criminais desenrolaram-se perante o público, inspirando muita curiosidade e interesse apaixonado. O próprio Dostoiévski dedicou muitas páginas de O diário de um escritor a reportagens e comentários de processos perante o tribunal do júri, e um processo desses seria a parte central do novo romance.

Acontece que Dostoiévski não tinha inventado esse enredo, mas recordado. Os irmãos Karamázov passa-se numa cidade de província sem que fosse dado o nome. Nos primeiros esboços aparece o nome da cidade de Tobolsk. Foi natural de Tobolsk um certo Ilinski que Dostoiévski tinha encontrado na Sibéria, condenado à prisão perpétua por ter assassinado o pai. Mas no capítulo 7 da Casa dos mortos conta o escritor que Ilinski, homem de forte temperamento e natureza nobre, fora condenado à base de indícios falsos, que mais tarde se revelou sua inocência. Dimítri Karamázov parece-se muito com aquele Ilinski: é um russo típico (assim como Dostoiévski imaginava o tipo russo), violento mas generoso, apaixonado, mas idealista. Ele, muito mais que o anjinho Aliócha, é o polo oposto de Smierdiákov, encarnação de tudo que há de sórdido e perverso nas possibilidades da alma russa.

Nessa altura Smierdiákov já não servia, porém, como contrapeso de Dimítri. Dostoiévski, psicólogo penetrante, conhecedor dos abismos negros na alma dos idealistas e das capacidades de redenção na alma dos condenados, não podia satisfazer-se com um desenho em preto e branco: de um lado os bons e do outro lado os ruins. Sua autoconsciência lhe proibiu esse maniqueísmo simplista.

O antagonista do nobre idealista Dimítri também tinha de ser um nobre idealista, apenas com a diferença de que o idealismo desse outro não era tão inocente como o de Dimítri. Não seriam assim os intelectuais ateus e revolucionários, eles também idealistas, mas correspondendo à alma do povo russo? Assim nasceu no espírito do escritor o personagem do terceiro irmão Karamázov (ao lado de Dimítri e Aliócha): Ivan, o intelectual ateu. Ninguém o suspeitava do parricídio, porque lhe faltava a força de vontade e a energia para realizar seus pensamentos. Mas é ele quem dirige invisivelmente a mão de Smierdiákov, do assassino.

Agora está completo o elenco. Todos eles são russos típicos. Os irmãos, os três legítimos e o ilegítimo: Dimítri, o idealista tempestuoso; Ivan, o intelectual ensimesmado; Aliócha, o cristão esperançoso; e Smierdiákov, o popular corrompido. Representam os três caminhos possíveis para o futuro da Rússia. São os filhos autênticos do velho Fiódor Karamázov, patriarcal, debochado, destinado a parecer o representante da Rússia antiga.

É uma família representativa. Representa a Rússia toda, que é “o reino dos Karamázov”.

Duvido que os russos, como um todo, jamais tinham se reconhecido nesse espelho. E tinham razão. Não se trata de realidade fotografada, mas, sim, de uma realidade criada e manipulada pela mão de um grande romancista. A um russo nunca ocorreria a ideia de escrever um tratado sobre a psicologia coletiva de sua nação, tomando como base Os irmãos Karamázov, o que não é, aliás, argumento contra a veracidade superior da obra. Muito diferente foi e é a impressão que o romance exerce nos leitores ocidentais. A obra enorme, com seus ambientes estranhos e com seus personagens que gritam, gesticulam e se exaltam e cujas reações imprevisíveis são tão diferentes das nossas, tudo isso fez e faz a impressão de exótico. É uma Rússia fantástica.

Não é uma impressão errada, pois a Rússia de Os irmãos Karamázov — obra de um homem de imaginação exaltada — é mesmo fantástica. Mas essa impressão impede a boa compreensão do romance que se apresenta, então, como coleção de casos patológicos num ambiente pitoresco. Devemos analisar o “reino dos Karamázov”. A análise por assim dizer geográfica desse reino com suas vastas estepes e florestas impenetráveis, pântanos, lagos, rios, aldeias, pequenas cidades e grandes metrópoles, essa análise dá resultado diferente. Em primeira linha, a hegemonia de sua população.

De Os irmãos Karamázov estão ausentes as minorias étnicas: os judeus e os poloneses, os tártaros e os letonianos e até os ucranianos. A cidade na qual se desenvolvem os acontecimentos fica situada algures, no coração da Rússia. A terra é preta, como em toda a parte na Rússia. As cúpulas das igrejas são bizantinas, como em toda a parte na Rússia. A multidão e a multiplicidade dos personagens também engana. Quando mais familiarizados com eles, também reconhecemos em todos eles o ar de família. Todas as classes, grupos e camadas estão representados. Faltam ao analista a burguesia urbana e o proletariado industrial, porque essas duas classes não existiam na Rússia semipatriarcal de 1880; em vez da burguesia, os comerciantes à antiga, semiorientais, e, em vez dos proletários, os ex-servos, os “mujiques”. Mas, no resto, os latifundiários e os camponeses, os burocratas e os intelectuais, os juízes e os oficiais, os homens ricos e seus criados, os monges e os bêbedos, eles pertencem, todos eles, à família. O milagre é que, no entanto, não são tios, mas indivíduos bem caracterizados que dão, até, a impressão de excêntricos, de extravagantes. Quem sabe se são reais, se os havia assim na realidade; importa que parecem reais, acreditáveis. É o triunfo do realismo especificamente dostoievskiano. Com efeito, esse romance Os irmãos Karamázov é a síntese de todas as possibilidades da arte de Dostoiévski; é um romance policial psicológico, como Crime e castigo; é, quanto a Dimítri, a história de um idealista mal julgado, como O idiota; é, quanto a Ivan, o romance dos intelectuais ateus, como Os demônios; é, quanto a Aliócha, a história da formação de um novo, como O adolescente. Seria preciso realizar uma análise capítulo por capítulo e quase página por página para demonstrar como Dostoiévski, embora escrevendo com pressa de jornalista e embora inventando uma história de romance de cordel, procede como grande artista. Cito, apenas, três exemplos: que Aliócha, o personagem angelical, nunca aparece sozinho, o que afasta as possibilidades de autointrospecção e de dúvida; que o personagem de stáriets, situado acima dos outros, não se mistura com eles, mas é abrigado numa grande cesura do enredo; enfim, o suicídio de Smierdiákov, fato altamente inverossímil, mas necessário para impossibilitar a confissão de Ivan. Entre todas as aparências, Dostoiévski não é um indisciplinado gênero explosivo, mas um grande artista.

É por isso que empreguei a expressão: “realismo especificamente dostoievskiano”. Não é um realismo comparável ao de um Flaubert ou Verga ou Pérez Galdós; ou então, para escolher exemplos russos, não é realismo comparável ao de um Turgueniev, Gontcharov ou Tolstói. O autor de Os irmãos Karamázov não cria, como já se disse sobre Shakespeare, “nossa realidade outra vez”. Cria uma outra realidade especificamente sua, total, completa, que parece real porque não padece de contradições internas, assim como é real — mas diferente da nossa realidade — a geometria de quatro dimensões ou a lógica em que não vale o princípio da terceira solução excluída.

Tudo isso precisa ser dito para refutar velhos equívocos e demonstrar a grande arte do romancista Dostoiévski; não teria sentido comparar essa arte com a de um Stendhal ou Flaubert — “na casa do meu Pai há muitas mansões”, as dos realistas e outros. Mas o reconhecimento da arte de Dostoiévski tem graves consequências que ele próprio não teria admitido.

O realismo dos outros grandes romancistas citados tem a pretensão de inflamar-nos sobre nossa realidade. Exige ser tomado ao pé da letra. Pode ser tendencioso como o de Dickens ou Tolstói ou pode ser sem tendência reconhecível, como o de um Flaubert ou Verga. Pode ser quimérico, como em Stendhal, ou sociológico, como em Balzac, ou filosófico, como em Hardy, ou biológico, como em Zola. Mas sempre pretende dizer a verdade. Um realismo como o de Dostoiévski não informa. Não pode exigir que seja considerado como portador ou mensageiro de verdades. Acontece, porém, que Dostoiévski tinha justamente essa pretensão: de informar-nos e de dizer-nos verdades e de empregar, se lhe fosse possível, o poder material do czar da Rússia e as maldições da igreja ortodoxa para impor-nos suas pretensas verdades e submeter-nos a elas. A contradição entre a realidade criada e a mensagem manifesta é completa.

O romance Os irmãos Karamázov passa-se em dois níveis diferentes. Embaixo: a Rússia dos Karamázov, envolvida nas névoas da paixão sexual desenfreada, das bebedeiras e orgias, do crime mascarado, e da justiça cega, das filosofias subversivas e das visões satânicas; o diabo aparece em pessoa para conversar com Ivan, que por sua vez dirige a mão do parricida. Em cima: o convento, luminoso como um reflexo de glória celeste. Essa dicotomia representa a visão dostoievskiana do futuro: o cristianismo salvará a Rússia; e a Rússia fará o cristianismo vencer no mundo. Eis a mensagem de Dostoiévski, que ele lança contra a mensagem escondida na filosofia de Ivan e de todos os Ivans, que esperam que a revolução salve a Rússia e que a Rússia salve o mundo. Por seu romance afirma Dostoiévski que a primeira tese, a sua, é evangélica e que outra é satânica. Mas não escapa à inteligência insubornável do escritor o fato de que as duas teses são no fundo idênticas: basta trocar um substantivo para transformar uma na outra. Nenhuma invenção novelística basta para demonstrar a realidade de uma das duas teses contraditórias e o irrealismo da outra. Eis o resultado desastroso da tentativa de usar uma visão do mundo, de realismo, para querer proclamar uma verdade metafísica. O próprio Dostoiévski percebeu a contradição entre sua arte e sua mensagem. Prova disso é o fato de que o escritor saiu dos moldes de seu realismo, embora fantástico, inventando uma lenda para marcar a diferença entre a liberdade espiritual cristã e a tirânica felicidade terrestre: a lenda do Grande Inquisidor.

Sobre esse capítulo, o mais enigmático do romance, existe uma bibliografia imensa. O caso é algo parecido com o de Cervantes: a verdade universal de Dom Quixote, que também é uma obra representativa do realismo fantástico, ficou difícil porque o autor a fantasiou de polêmica literária, contra os romances de cavalaria. A lenda do Grande Inquisidor está fantasiada de polêmica contra o catolicismo romano, que Dostoiévski mal conhecia e mal compreendia. A igreja de Roma teria prometido a felicidade ao gênero humano, ao preço de abdicar de sua liberdade espiritual; em contraste, a igreja ortodoxa da Rússia, protegida pelo czar, teria garantido a liberdade espiritual — o que é uma inverdade evidente; assim como é uma inverdade que a igreja do Grande Inquisidor tivesse prometido a felicidade terrestre. A mensagem de Dostoiévski é falsa, porque não nasceu de uma visão realista das coisas. Mas o problema que sua arte fantástica formulou é uma realidade: a liberdade em conflito permanece com a autoridade.

Não sabemos se esse problema será um dia resolvido. Mas supondo mesmo um futuro remoto o resolverá: a lenda do Grande Inquisidor perderia, por isso, o fascínio e o romance, do qual faz parte, o interesse? Não creio. Será melhor arquivar a mensagem metafísica de Dostoiévski, que é uma impossibilidade, e ler, em vez disso, Os irmãos Karamázov, símbolos de possibilidades humanas até hoje não extintas e provavelmente inextinguíveis. O caso é como o do Inferno de Dante, em que já não acreditamos e que, no entanto, continua a assustar-nos. Se há, na literatura universal, um nome que se coloca ao lado de Dante pela amplitude, é o de Shakespeare; se há, na literatura universal, um romance que se coloca ao lado de Dante pela intensidade, é o de Dostoiévski.

Os irmãos Karamázov

(1879)

Prefácio

Ao começar a biografia de meu herói, Alieksiêi Fiódorovitch, sinto-me um tanto perplexo. Com efeito, se bem que o chame meu herói, sei que ele não é um grande homem; prevejo também perguntas deste gênero: “Em que é notável Alieksiêi Fiódorovitch, para que tenha sido escolhido como seu herói? Que fez ele? Quem o conhece e por quê? Tenho eu, leitor, alguma razão para consagrar meu tempo a estudar-lhe a vida?”

A derradeira pergunta é a mais embaraçosa, porque só lhe posso responder dizendo: “Talvez o senhor mesmo descubra isso no romance.” Mas se o lerem, sem achar que meu herói é notável? Digo isso, porque prevejo, infelizmente, a coisa. A meus olhos, é ele notável, mas duvido bastante de que consiga convencer o leitor. O fato é que ele age, seguramente, mas de uma maneira vaga e obscura. Aliás, seria estranho, em nossa época, exigir clareza das pessoas! Uma coisa, no entanto, está fora de dúvida: é um homem estranho, até mesmo um original. Mas a estranheza e a originalidade prejudicam, em lugar de conferir um direito à atenção, sobretudo quando todo mundo se esforça por coordenar as individualidades e destacar um sentido geral do absurdo coletivo. O original, na maior parte dos casos, é o indivíduo que se põe de parte. Não é verdade?

No caso de me contradizerem, a propósito deste último ponto, dizendo: “Não é verdade”, ou “não é sempre verdade”, retomo coragem a respeito do valor de meu herói. Porque não somente o original não é “sempre” o indivíduo que se põe de parte, mas acontece-lhe deter a quinta-essência do patrimônio comum, enquanto que seus contemporâneos o repudiaram por algum tempo.

Aliás, em vez de engajar-me nessas explicações destituídas de interesse e confusas, teria começado bem simplesmente, sem prefácio — se minha obra agradar, hão de lê-la —, mas a desgraça está em que, além de uma biografia, tenho dois romances. O principal é o segundo, é a atividade de meu herói em nossa época, no momento presente. O primeiro desenrola-se há 13 anos, para dizer a verdade, é apenas um momento da primeira juventude do herói. É indispensável, porque, sem ele, muitas coisas ficariam incompreensíveis no segundo. Mas isso só faz aumentar meu embaraço: se eu, biógrafo, acho que um romance teria bastado para um herói tão modesto e vago, como apresentar-me com dois e justificar tal pretensão?

Desesperando de resolver essas questões, deixo-as em suspenso. Naturalmente, o leitor perspicaz já adivinhou que tal era meu fim desde o começo e leva-me a mal que perca um tempo precioso em palavras inúteis. Ao que responderei que o fiz por polidez, e em seguida por astúcia, a fim de que se fique prevenido de antemão. Além do mais, folgo que meu romance se divida por si mesmo em duas narrativas, “contudo conservando sua unidade integral”; depois de ter tomado conhecimento do primeiro, o leitor verá por si mesmo se vale a pena abordar o segundo. Sem dúvida, cada qual é livre; pode-se fechar o livro desde as primeiras páginas da primeira narrativa para não mais abri-lo. Mas há leitores delicados que querem ir até o fim, para não deixar de ser imparciais; tais são, por exemplo, todos os críticos russos. Sente-se a gente de coração mais leve para com eles. Malgrado sua consciência metódica, forneço-lhes um argumento dos mais fundamentados para abandonar a narrativa no primeiro episódio do romance. Eis terminado meu prefácio. Convenho que é supérfluo, mas, já que está escrito, deixemo-lo.

E agora, comecemos.

 

Primeira parte

Livro I

História de uma família!

I

Fiódor Pávlovitch Karamázov

Alieksiêi Fiódorovitch Karamázov era o terceiro filho de um proprietário de terras de nosso distrito, Fiódor Pávlovitch, tão conhecido em seu tempo (dele se lembram, aliás, ainda) pelo seu fim trágico, ocorrido há 13 anos e de que falarei mais adiante. No momento, limitar-me-ei a dizer desse “proprietário” (chamavam-no assim, se bem que jamais tivesse morado em sua “propriedade”) que era o tipo estranho, embora bastante frequente, da criatura vil e corrompida ao mesmo tempo que absurda. Sabia arranjar perfeitamente seus negócios proveitosos, mas nada mais. Fiódor Pávlovitch, por exemplo, começou quase do nada: era um modesto proprietário, gostando muito de jantar em casa dos outros, com fama de parasita. E no entanto, ao morrer, possuía mais de cem mil rublos em metal sonante. Isso não o impediu de ser, durante sua vida, um dos piores malucos de nosso distrito. Repito-o, não se trata de estupidez — a maior parte desses malucos é bastante inteligente e astuta —, mas de extravagância específica e nacional.

Foi casado duas vezes e teve três filhos; o mais velho, Dimítri, da primeira mulher, e os dois outros, Ivan e Alieksiêi, da segunda. Sua primeira mulher pertencia a uma família nobre, os Miúsovi, proprietários bastante ricos do mesmo distrito. Como pôde uma moça tendo um dote, bonita e além do mais viva e espirituosa, tal como se encontra muito entre nossas contemporâneas, casar-se com tão nulo “doidelo” (era assim que o chamavam)? Creio inútil explicá-lo demasiado longamente. Conheci uma jovem, da penúltima geração “romântica”, que, após vários anos de amor misterioso por um senhor, com o qual poderia casar-se tranquilamente, acabou imaginando obstáculos intransponíveis a esse casamento. Numa noite de tempestade precipitou-se, do alto de um penhasco, num rio impetuoso e profundo, e pereceu vítima de sua imaginação, unicamente para parecer-se com a Ofélia de Shakespeare. Se aquele penhasco, de que ela gostava particularmente, tivesse sido menos pitoresco ou substituído por uma margem chata e prosaica, não se teria ela, sem dúvida, se suicidado. O fato é autêntico e creio que entre as duas ou três últimas gerações russas houve numerosos casos análogos. Semelhantemente, a decisão que Adelaida Miúsova tomou foi sem dúvida o eco de influências estrangeiras, a exasperação de uma alma cativa. Queria talvez afirmar sua independência de mulher, protestar contra as convenções sociais, contra o despotismo de sua família. Sua imaginação complacente pintou-lhe — por um curto momento — Fiódor Pávlovitch, malgrado sua reputação de papa-jantares, como um dos personagens mais ousados e mais maliciosos daquela época em via de melhoramento, quando era ele, muito simplesmente, um pregador de más peças. O picante da aventura foi um rapto que encantou Adelaída Ivánovna. A situação de Fiódor Pávlovitch dispunha-o então a semelhantes proezas; estava louco por abrir caminho a qualquer preço: introduzir-se em uma boa família e receber um dote era bastante atraente. Quanto ao amor, não se cuidava disso nem de um lado nem de outro, malgrado a beleza da moça. Esse episódio foi provavelmente único na vida de Fiódor Pávlovitch, grande amador do belo sexo, a vida inteira, sempre pronto a agarrar-se a qualquer saia, contanto que ela lhe agradasse. Ora, aquela mulher foi a única que não exerceu sobre ele atração nenhuma do ponto de vista sensual.

Adelaída Ivánovna não tardou a verificar que só sentia desprezo por seu marido. Nessas condições, as consequências do matrimônio não se fizeram esperar. Se bem que a família se tivesse resignado bem depressa ao acontecido e remetido seu dote à fugitiva, uma existência desordenada e cenas contínuas começaram. Conta-se que a jovem senhora mostrou-se muito mais nobre e mais digna do que Fiódor Pávlovitch, que lhe escamoteou desde o começo, como se soube mais tarde, todo seu capital, 25 mil rublos, de que ela não mais ouviu falar. Durante algum tempo fez ele tudo para que sua mulher lhe transmitisse, por um documento em boa e devida forma, uma pequena aldeia e uma casa de cidade bastante bonita, que faziam parte de seu dote. Teria certamente logrado isso, tanto era o desprezo e desgosto que lhe causava com suas extorsões e exigências descaradas, levando-a por lassidão a dizer “sim”. Por felicidade, a família dela interveio e refreou a rapacidade de seu marido. É notório que os esposos chegavam frequentemente à troca de pancadas e pretende-se que não era Fiódor Pávlovitch quem as dava, mas Adelaída Ivánovna, mulher arrebatada, atrevida, morena irascível, dotada de estupendo vigor. Por fim abandonou a casa e fugiu com um seminarista que não tinha onde cair morto, deixando a cargo do marido um menino de três anos, Mítia. Fiódor Pávlovitch não tardou em transformar sua casa num harém e em organizar pândegas e bebedeiras. Entrementes, percorria toda a província, lamentando-se com todos da deserção de Adelaída Ivánovna, com pormenores chocantes sobre sua vida conjugal. Dir-se-ia que achava prazer em representar diante de todo mundo o papel ridículo de marido enganado, em pintar seu infortúnio, carregando as cores. “Acreditar-se-ia que você subiu de grau. Fiódor Pávlovitch, tão contente você se mostra, apesar de sua aflição”, diziam-lhe os trocistas. Muitos ajuntavam que ele se sentia feliz em mostrar-se em sua nova atitude de bufão e que, de propósito, para fazer rir mais, fingia não notar sua situação cômica. Quem sabe, aliás, fosse ingenuidade de sua parte? Por fim, conseguiu descobrir a pista da fugitiva. A desgraçada achava-se em Petersburgo, para onde fora com seu seminarista e onde começara a agir publicamente com a maior liberdade. Fiódor Pávlovitch começou a agitar-se e preparou-se para partir — com que fim? — ele mesmo não sabia nada. Talvez tivesse verdadeiramente feito a viagem a Petersburgo, mas, tomada essa decisão, achou que tinha o direito, para se dar coragem, de embriagar-se desenfreadamente. Enquanto isso, soube a família de sua mulher da morte desta, em Petersburgo. Morrera de repente, num pardieiro, de febre tifoide, dizem uns, de fome, segundo outros. Fiódor Pávlovitch estava bêbedo, quando lhe anunciaram a morte de sua mulher; conta-se que correu para a rua e se pôs a gritar, em sua alegria, de braços levantados para o céu: “Agora, deixa morrer o teu servo.”[ 42 ] Outros pretendem que soluçava como uma criança, a ponto de causar pena vê-lo, malgrado a aversão que inspirava. Pode dar-se que ambas as versões sejam verdadeiras, isto é, que se regozijou com sua libertação, chorando a sua libertadora. Muitas vezes as pessoas, mesmo más, são mais ingênuas, mais simples do que o pensamos. Nós também, aliás.

 

II


Karamázov livra-se de seu primeiro filho


Pode-se bem imaginar que pai e que educador seria tal homem. Como era de prever, desinteressou-se totalmente do filho que tivera de Adelaída Ivánovna, não por animosidade ou rancor conjugal, mas simplesmente porque se esquecera dele por completo. Enquanto importunava todos com suas lágrimas e suas queixas e fazia de sua casa um antro de corrupção, foi o pequeno Mítia recolhido por Grigóri, um servidor fiel; se não tivesse este tomado conta dele, o menino não teria tido talvez nem mesmo quem lhe trocasse as fraldas. Além disso, sua família por parte de mãe pareceu esquecê-lo. Seu avô morrera, sua avó, estabelecida em Moscou, era muito doente e suas tias haviam-se casado, de modo que Mítia teve de passar quase um ano em casa de Grigóri e morar em sua isbá. Aliás, se seu pai se tivesse lembrado dele (de fato não podia ignorar sua existência), teria mandado o menino de volta para a isbá, para não ser incomodado em suas orgias. Mas, entrementes, chegou de Paris o primo da falecida Adelaída Ivánovna, Piotr Alieksándrovitch Miúsov, que devia, mais tarde, passar muitos anos no estrangeiro. Naquela época, era ainda bastante moço e se distinguia de sua família pela sua cultura, sua estada na capital e no estrangeiro. Tendo sempre tido a mentalidade ocidental, tornou-se, para o fim de sua vida, um liberal à moda dos anos de 1840 e 1850. No curso de sua carreira, esteve em relações com numerosos ultraliberais, na Rússia e no estrangeiro, e conheceu pessoalmente Proudhon e Bakunin.[ 43 ] Gostava de evocar os três dias da Revolução de fevereiro de 1848,[ 44 ] em Paris, dando a entender que chegara mesmo a tomar parte nas barricadas. Era uma das melhores recordações de sua juventude. Possuía uma fortuna independente, cerca de mil almas,[ 45 ] para contar à moda antiga. Sua soberba propriedade encontrava-se nas proximidades de nossa cidadezinha e se limitava com as terras de nosso famoso mosteiro. Logo de posse de sua herança, Piotr Alieksándrovitch iniciou contra os monges um processo interminável, por causa de certos direitos de pesca ou de corte de madeira, não sei mais ao certo, mas achou de seu dever, na qualidade de cidadão esclarecido, processar os “clericais”. Tendo sabido das desgraças de Adelaída Ivánovna, de quem se lembrava, e posto ao corrente da existência de Mítia, meteu-se no caso, malgrado sua indignação juvenil e seu desprezo por Fiódor Pávlovitch. Foi então que o viu pela primeira vez. Declarou-lhe abertamente sua intenção de encarregar-se da educação do menino. Muito tempo depois, contava, como traço característico, que Fiódor Pávlovitch, quando se tratou de Mítia, pareceu um momento não compreender absolutamente de qual filho se tratava e até mesmo admirar-se de ter um menino em alguma parte, em sua casa. Mesmo exagerado, o relato de Piotr Alieksándrovitch estava próximo da verdade. Efetivamente, Fiódor Pávlovitch gostou toda a sua vida de tomar atitudes, de representar um papel, por vezes sem necessidade nenhuma, e mesmo em detrimento seu, como naquele caso particular. É, aliás, um traço especial de muitas pessoas, mesmo inteligentes. Piotr Alieksándrovitch levou a coisa a sério e foi até nomeado tutor do menino (juntamente com Fiódor Pávlovitch), uma vez que a mãe dele deixara uma casa e terras. Mítia foi morar em casa daquele primo que não tinha família. Com pressa de regressar a Paris, depois de haver regularizado seus negócios e assegurado o pagamento de suas rendas, confiou o menino a uma de suas tias que morava em Moscou. Mais tarde, tendo-se aclimatado na França, esqueceu-se do menino, sobretudo quando estourou a Revolução de Fevereiro, que lhe impressionou a imaginação para o resto de seus dias. Tendo morrido a tia que morava em Moscou, Mítia foi recolhido por uma de suas filhas casadas. Mudou, ao que parece, pela quarta vez, de lar. Não me alongo a esse respeito no momento, tanto mais quanto ainda muito se falará desse primeiro rebento de Fiódor Pávlovitch, e limito-me aos detalhes indispensáveis, sem os quais é impossível começar o romance.

Em primeiro lugar, esse Dimítri foi o único dos três filhos de Fiódor Pávlovitch que cresceu com a ideia de que tinha alguma fortuna e seria independente ao atingir a maioridade. Sua infância e sua juventude foram agitadas: deixou o ginásio antes do término, entrou em seguida para uma escola militar, partiu para o Cáucaso, serviu no Exército, foi degradado por haver-se batido em duelo, voltou ao serviço, entregou-se à orgia, gastou dinheiro em quantidade. Recebeu dinheiro de seu pai somente quando atingiu a maioridade, mas fizera dívidas enquanto esperava. Só veio a ver pela primeira vez Fiódor Pávlovitch, depois de sua maioridade, quando chegou à nossa província especialmente para informar-se a respeito de sua fortuna. Seu pai, ao que parece, não lhe agradou desde o começo; ficou pouco tempo em casa dele e apressou-se em partir, levando certa soma, depois de haver concluído um acordo a respeito das rendas de sua propriedade. Coisa curiosa: nada pôde arrancar de seu pai a respeito de seu rendimento e do valor do domínio. Fiódor Pávlovitch notou então — e importa notá-lo — que Mítia fazia de sua fortuna uma ideia falsa e exagerada. Ficou com isso muito contente, tendo em vista seus interesses particulares. Concluiu de tudo que o rapaz era estouvado, arrebatado, de paixões vivas, um boêmio ao qual bastava dar um osso a roer para acalmá-lo até nova ordem. Fiódor Pávlovitch explorou a situação, limitando-se a largar de tempos em tempos pequenas somas, até que um belo dia, quatro anos depois, Mítia, perdida a paciência, reapareceu na localidade para exigir uma regularização de contas definitiva. Para estupefação sua, aconteceu que não possuía mais nada; era mesmo difícil verificar as contas: já havia recebido em espécie, de Fiódor Pávlovitch, o valor total de seus bens; talvez mesmo viesse a ser seu devedor; de acordo com tal e tal arranjo, concluído em tal e tal data, não tinha o direito de reclamar mais, etc. O rapaz ficou consternado; suspeitou da falsidade, da fraude, ficou fora de si, quase perdeu a razão. Essa circunstância provocou a catástrofe cuja narrativa forma o assunto de meu primeiro romance, ou antes seu quadro exterior. Mas antes de iniciar o dito romance, é previsto falar ainda dos dois outros filhos de Fiódor Pávlovitch e explicar-lhes a proveniência.

 

III


Novo casamento e novos filhos


Fiódor Pávlovitch, depois de livrar-se do pequeno Mítia, contratou em breve um segundo casamento, que durou oito anos. Escolheu por esposa dessa segunda vez também uma mulher bastante jovem, de uma outra província, aonde tinha ido, em companhia de um judeu, para tratar de um pequeno negócio. Embora boêmio, bêbedo e debochado, nunca deixava de ocupar-se com a boa colocação de seu capital e arranjava quase sempre bem seus negócios, mas quase sempre desonestamente. Sófia Ivânovna, órfã desde a infância, filha de um obscuro diácono, vivera na opulenta casa de sua benfeitora, a viúva, altamente colocada, do general Vórokhov, que a educava e a maltratava. Ignoro os detalhes, ouvi simplesmente dizer que a moça, doce, paciente e cândida, tentara enforcar-se, pendurando-se dum prego, na despensa, tão farta estava dos caprichos e das eternas censuras daquela velha, não má no íntimo, mas a quem sua ociosidade tornava insuportável. Fiódor Pávlovitch pediu sua mão; tomaram informações a seu respeito e despacharam-no. Como por ocasião de seu primeiro casamento, propôs então à órfã raptá-la. Muito provavelmente, teria ela recusado tornar-se sua esposa, se tivesse tido melhores informações a seu respeito. Mas isso se passava em outra província; que podia, aliás, compreender uma moça de 16 anos, senão que valia mais lançar-se à água do que ficar em casa de sua benfeitora? Foi assim que a infeliz substituiu sua benfeitora por benfeitor. Dessa vez, Fiódor Pávlovitch não recebeu um vintém, porque a generala, furiosa, nada dera, a não ser sua maldição. De resto não contava ele com o dinheiro. A beleza notável da moça e sobretudo sua candura tinham-no encantado. Estava maravilhado, ele, o voluptuoso, até então apaixonado apenas pelos encantos grosseiros. “Aqueles olhos inocentes transpassavam-me a alma”, dizia mais tarde com um riso canalha. Aliás, aquela criatura corrupta não podia experimentar senão atração sensual. Fiódor
Pávlovitch não se incomodou com sua mulher. Como era ela por assim dizer “culpada” para com ele, que a havia quase “salvado da corda”, aproveitando, além disso, de sua doçura e de sua resignação espantosas, pisou aos pés a decência conjugal mais elementar. Sua casa tornou-se teatro de orgias nas quais tomavam parte mulheres de má vida. Um traço a notar é que o criado Grigóri, criatura taciturna, discutidor estúpido e teimoso, que detestava sua primeira patroa, tomou o partido da segunda, discutindo por causa dela com seu amo duma maneira quase intolerável da parte dum criado. Um dia, chegou a ponto de expulsar as mulheres que se entregavam a orgias em casa de Fiódor Pávlovitch. Mais tarde, a infeliz jovem senhora, aterrorizada desde a infância, foi presa duma doença nervosa, frequente entre as aldeãs, e que lhes vale o nome de “possessas”. Por vezes, a doente, vítima de terríveis crises de histeria, perdia a razão. Deu, no entanto, a seu marido, dois filhos: o primeiro, Ivan, após um ano de casamento; o segundo, Alieksiêi, três anos mais tarde. Quando ela morreu, estava o jovem Alieksiêi com quatro anos de idade e, por mais estranho que isso pareça, nunca se esqueceu de sua mãe durante toda a sua vida, mas como por meio de um sonho. Morta sua mãe, tiveram os dois meninos a mesma sorte que o primeiro: seu pai esqueceu-se deles, abandonou-os totalmente, tendo sido eles recolhidos pelo mesmo Grigóri na sua isbá. Foi lá que os encontrou a velha generala, a benfeitora que havia educado a mãe deles. Vivia ainda e, durante aqueles oito anos, seu rancor não se desarmara. Perfeitamente ao corrente da existência que levava sua Sófia, ao saber de sua doença e dos escândalos que ela suportava, declarou duas ou três vezes aos parasitas que a cercavam: “Bem feito; Deus a castiga por causa de sua ingratidão.” Três meses, exatamente, após a morte de Sófia Ivânovna, apareceu a generala em nossa cidade e apresentou-se em casa de Fiódor Pávlovitch. Sua visita não durou senão uma meia hora, mas aproveitou seu tempo. Era de noite. Fiódor Pávlovitch, a quem não via fazia oito anos, apresentou-se em estado de embriaguez. Conta-se que, desde que ela o viu, e sem explicações, lhe deu duas bofetadas ressoantes e puxou-lhe de alto a baixo o topete umas três vezes. Sem acrescentar uma palavra, foi diretamente à isbá, onde se encontravam os meninos. Não estavam lavados, nem vestidos com roupas limpas; vendo isso, a irascível velha assestou também uma bofetada na cara de Grigóri e declarou-lhe que levava os meninos. Tais como estavam, enrolou-os numa manta de viagem, pô-los na carruagem e tornou a partir. Grigóri guardou a bofetada como bom servidor e absteve-se de qualquer insolência; ao reconduzir a velha senhora à carruagem, disse num tom grave, depois de ter-se inclinado profundamente, que “Deus a recompensaria por sua boa ação”. “Não passas de um bobalhão”, gritou-lhe ela à guisa de adeus. Tendo examinado o caso, Fiódor Pávlovitch declarou-se satisfeito, concedeu mais tarde seu consentimento formal à educação dos meninos em casa da generala. Foi à cidade vangloriar-se das bofetadas recebidas.

Pouco tempo depois, a generala morreu; deixava, por testamento, mil rublos a cada um dos dois petizes “para sua instrução”; esse dinheiro devia ser despendido integralmente em proveito deles, mas bastar até sua maioridade, sendo já tal soma muito para semelhantes crianças. Se outros quisessem dar mais, que dessem de seu bolso, etc.

Não li o testamento, mas trazia ele um trecho estranho, naquele gosto por demais original. O principal herdeiro da velha senhora era, por felicidade, um homem honesto, marechal da nobreza da província, Iefim Pietróvitch Poliénov.[ 46 ] Tendo compreendido, pelas cartas de Fiódor Pávlovitch, que ele nada retiraria para a educação de seus filhos (contudo este último nunca recusava categoricamente, mas arrastava as coisas indefinidamente, fazendo por vezes sentimentalismo), interessou-se pelos órfãos e concebeu afeição especial pelo caçula, que ficou muito tempo em sua família. Chamo a atenção do leitor para isso. Se os jovens deviam a alguém sua educação e sua instrução, era justamente a Iefim Pietróvitch, caráter nobre raramente encontrado. Conservou intacto para as crianças seu pequeno capital, que, na ocasião de sua maioridade, atingia dois mil rublos com os juros, educou-os à sua custa, gastando nisso, para cada um, bem mais de mil rublos. Não farei agora um relato detalhado da infância e da juventude deles, limitando às principais circunstâncias. O mais velho, Ivan, tornou-se um adolescente sombrio e fechado, nada tímido, mas compreendera bem cedo que seu irmão e ele cresciam em casa de estranhos, de graça, que tinham como pai um indivíduo que lhes causava vergonha, etc. Esse rapaz mostrou, desde sua mais tenra idade (pelo que se conta, pelo menos), brilhantes capacidades para o estudo. Com a idade de cerca de 13 anos, deixou a família de Iefim Pietróvitch para seguir os cursos de um ginásio de Moscou, e tomar pensão em casa de um famoso pedagogo, amigo de infância de seu benfeitor. Mais tarde, Ivan contava que Iefim Pietróvitch fora inspirado por seu “ardor pelo bem” e pela ideia de que um adolescente genialmente dotado devia ser educado por um educador genial. De resto, nem seu protetor nem o educador de gênio existiam mais, quando o rapaz entrou para a universidade. Não tendo Iefim Pietróvitch tomado bem suas disposições e como o pagamento do legado da generala ia-se arrastando, em consequência de diversas formalidades e retardamentos inevitáveis entre nós, o rapaz viu-se em apertos em seus dois primeiros anos de universidade, obrigado a ganhar a vida enquanto fazia seus estudos. É preciso notar que então não tentou de modo algum corresponder-se com o pai — talvez por altivez, por desdém para com ele —, talvez também o frio cálculo de sua razão lhe demonstrasse que nada tinha a esperar dele. Seja como for, o rapaz não se perturbou, encontrou trabalho, a princípio deu lições a vinte copeques, em seguida redigiu artigos de dez linhas a respeito de cenas da rua, assinados “Uma testemunha ocular”, que levava a diversos jornais. Esses artigos, dizem, eram sempre curiosos e espirituosos, o que lhes assegurou bom êxito. Dessa maneira o jovem repórter mostrou sua superioridade prática e intelectual sobre os numerosos estudantes dos dois sexos, sempre necessitados, que, em Petersburgo e em Moscou, assaltam ordinariamente, da manhã à noite, as redações dos jornais e revistas, não imaginando nada de melhor senão reiterar seu eterno pedido de tradução do francês e cópias. Uma vez conhecido nas redações, Ivan Fiódorovitch não perdeu o contacto; em seus derradeiros anos de universidade, pôs-se com muito talento a escrever resenhas de obras especiais, fazendo-se assim conhecido nos círculos literários. Mas somente para o fim é que conseguiu, por acaso, despertar uma atenção particular num círculo de leitores muito mais extenso. O caso era bastante curioso. À sua saída da universidade e quando se preparava para partir para o estrangeiro com seus dois mil rublos, publicou Ivan Fiódorovitch, num grande jornal, um artigo estranho, que atraiu a atenção até mesmo dos profanos. O assunto era-lhe aparentemente desconhecido, uma vez que seguira os cursos de Ciências Naturais e o artigo tratava a questão dos tribunais eclesiásticos, suscitada, então, por toda parte. Examinando algumas opiniões omitidas a respeito dessa matéria, expunha igualmente as opiniões pessoais. O que impressionava, era o tom e o inesperado da conclusão. Ora, muitos eclesiásticos tinham o autor como seu partidário. Por outra parte, os leigos, bem como os ateus, aplaudiam suas ideias. Afinal de contas, algumas pessoas decidiram que o artigo inteiro não passava de uma desavergonhada mistificação. Se menciono esse episódio é sobretudo porque o artigo em questão chegou até o nosso famoso mosteiro — onde havia interesse pela questão dos tribunais eclesiásticos — e ali provocou grande perplexidade. Uma vez conhecido o nome do autor, o fato de ser originário de nossa cidade e filho daquele mesmo Fiódor Pávlovitch aumentou o interesse. Pela mesma época, apareceu o autor em pessoa.

Por que Ivan Fiódorovitch viera à casa de seu pai, já o perguntava eu então a mim mesmo, lembro-me, com certa inquietude. Aquela chegada tão fatal, que engendrou tantas consequências, permaneceu por muito tempo inexplicada para mim. Na verdade, era estranho que um homem tão sábio, de aparência tão altiva e tão reservada, aparecesse numa casa tão escandalosa, em casa de tal pai. Este ignorara-o toda a sua vida, não se lembrava dele e — se bem que não tivesse dado, por coisa alguma do mundo, dinheiro, se lhe houvesse pedido — temia sempre que seus filhos aparecessem para o reclamar. E eis que o rapaz se instala na casa de tal pai, passa junto com ele um mês, depois dois, e se entendem maravilhosamente. Não fui eu o único a espantar-me com tal acordo. Piotr Alieksándrovitch Miúsov, de quem já se falou, passava uma temporada então entre nós, em sua propriedade suburbana, vindo de Paris, onde fixara residência. Estava surpreendido mais que todos, tendo travado conhecimento com o rapaz que o interessava bastante e com o qual rivalizava em erudição. “Ele é altivo, dizia-nos. — Saberá sempre arranjar-se; desde agora, tem com que partir para o estrangeiro. Que faz ele aqui? Todos sabem que não veio cá procurar seu pai para pedir dinheiro, que aquele lhe recusaria, aliás. Não gosta de beber, nem de requestar mulheres; no entanto, o velho não pode passar sem ele, de tal modo estão de acordo.” Era verdade; o jovem exercia visível influência sobre o velho, que por vezes o atendia, se bem que muito teimoso e caprichoso; começou mesmo a comportar-se mais decentemente...

Soube-se mais tarde que Ivan chegara igualmente por causa da demanda e dos interesses de seu irmão mais velho, Dimítri, que ele viu pela primeira vez nessa ocasião, mas com o qual já se correspondia, a respeito de um negócio importante. Falar-se-á disso pormenorizadamente a seu tempo. Mesmo quando fiquei ao corrente, pareceu-me Ivan Fiódorovitch enigmático e sua chegada à nossa cidade difícil de explicar.

Acrescentarei que ele mantinha papel de árbitro e de reconciliador entre seu pai e seu irmão mais velho, então totalmente desavindos, tendo este último intentado mesmo uma ação na justiça.

Pela primeira vez, repito-o, essa família, da qual certos membros nunca se tinham visto, achou-se reunida. Somente o caçula, Alieksiêi, morava entre nós havia já um ano. É difícil falar dele neste preâmbulo, antes de pô-lo em cena no romance. Devo, no entanto, estender-me a seu respeito para elucidar um ponto estranho, isto é, que meu herói aparece, desde a primeira cena, sob o hábito de um noviço. Havia um ano, com efeito, que morava em nosso mosteiro e se preparava para ali passar o resto de seus dias.

 

IV


O terceiro filho: Aliócha


Tinha vinte anos (seus irmãos, Ivan e Dimítri, estavam então, respectivamente, com 24 e 28 anos). Devo prevenir que esse jovem Aliócha não era absolutamente um fanático, nem mesmo, pelo que creio, um místico. Na minha opinião, era simplesmente um filantropo na dianteira de seu tempo, e se escolhera a vida monástica, era porque então somente ela o atraía e representava para ele a ascensão ideal para o amor radioso de sua alma liberta das trevas e do ódio daqui embaixo. Atraía-o essa via, unicamente porque havia nela encontrado um ser excepcional a seus olhos, o nosso famoso stáriets[ 47 ] Zósima, ao qual se ligara com todo o fervor noviço de seu coração sedento. Convenho que era ele já bastante estranho, tendo isso começado desde o berço. Já contei que, tendo perdido a mãe aos quatro anos, dela se lembrou toda a sua vida, de seu rosto, de suas carícias, “como se eu a visse viva”. Semelhantes recordações podem persistir (cada qual o sabe), mesmo numa idade mais tenra, mas não permanecem como pontos luminosos nas trevas, como o fragmento de um imenso quadro que tivesse desaparecido. Era o caso para ele: lembrava-se duma suave noite de verão, da janela aberta aos raios oblíquos do sol poente; a um canto do quarto uma imagem santa com a lâmpada acesa e, diante da imagem, sua mãe ajoelhada, soluçando como numa crise de nervos, lançando gemidos e exclamações. Ela o tomara em seus braços, apertando-o a ponto de sufocá-lo e implorava por ele à Santa Virgem, afrouxando seu amplexo para empurrá-lo para a imagem como a pô-lo sob sua proteção... mas a ama acorre e arranca-o, apavorada, dos braços de sua mãe. Tal era a cena! Aliócha lembrava-se do rosto de sua mãe, exaltado, mas sublime, segundo suas recordações. Mas não gostava de falar disso. Na sua infância e na sua mocidade, era antes concentrado e até mesmo taciturno, não por timidez ou selvageria, pelo contrário, mas por uma espécie de preocupação interior tão profunda que o fazia esquecer-se dos que o cercavam. Mas gostava de seus semelhantes, toda a sua vida teve fé neles, sem passar jamais por simplório ou ingênuo. Algo nele revelava que não queria ser o juiz alheio, nem censurar as pessoas ou condená-las por preço algum. Parecia mesmo tudo admitir, sem reprovação, embora muitas vezes com profunda melancolia. Bem mais ainda, conseguirão neste sentido ficar inacessível ao espanto e ao medo, desde sua primeira mocidade. Chegado aos vinte anos à casa de seu pai, num foco de baixo deboche, ele, casto e puro, retirava-se em silêncio, quando a vida se lhe tornava intolerável, mas sem testemunhar a ninguém reprovação alguma nem desprezo. Tendo seu pai sido outrora parasita e, por consequência, sutil e sensível às ofensas, acolheu-o a princípio de má vontade. “Ele se cala, dizia ele, mas nem por isso deixa de pensar.” Entretanto, não tardou em beijá-lo, em acariciá-lo; eram, na verdade, lágrimas e um enternecimento de bêbedo, mas via-se que o amava com um amor sincero, profundo, que até então fora incapaz de sentir por quem quer que fosse... Sim, aquele adolescente era amado por todos, em toda parte aonde fosse, e isso desde sua infância. Na família de seu benfeitor, Iefim Pietróvitch Poliénov, tinham-se de tal modo ligado a ele que todos o consideravam como filho da casa. Ora, entrara em casa deles numa idade em que a criança é ainda incapaz de cálculo e de astúcia, em que ignora as intrigas que atraem o favor e a arte de se fazer amar. Esse dom de despertar a simpatia era por consequência nele natural, espontâneo, sem artifício. O mesmo ocorria na escola e, no entanto, as crianças como Aliócha atraem a desconfiança de seus camaradas, suas zombarias e, por vezes, o ódio. Desde a infância, gostava ele, por exemplo, de isolar-se para sonhar, para ler num canto; contudo, foi objeto da afeição geral durante sua permanência na escola. Não era brincalhão, nem mesmo alegre; observando-se, via-se depressa que não era melancolia, mas, pelo contrário, uma disposição igual e serena. Entre seus condiscípulos, jamais queria pôr-se à frente. Por essa razão, talvez, jamais temia alguém, e os rapazes notavam que, longe de orgulhar-se disso, parecia ignorar sua ousadia, sua intrepidez. Não era rancoroso. Uma hora após ter sido ofendido, respondia ao ofensor ou dirigia-lhe ele próprio a palavra, com um ar confiante, tranquilo, como se nada se tivesse passado entre eles. Não parecia então ter esquecido a ofensa, ou decidido perdoá-la, mas não se considerava ofendido e isso fazia com que conquistasse o coração dos meninos. Um só traço de seu caráter incitava frequentemente todos os seus camaradas a zombarem dele, não por maldade, mas por divertimento. Era dum pudor, duma castidade exaltada, feroz. Não podia suportar certas palavras e certas conversas a respeito de mulheres. Essas “certas” palavras e conversas são infelizmente tradicionais nas escolas. Jovens de alma e coração puros, quase crianças ainda, gostam muitas vezes de entreter-se com cenas e imagens, a respeito das quais os próprios soldados nem sempre falam; aliás, estes últimos sabem menos a este respeito que os rapazes de nossa sociedade culta. Não há ainda aí, admito-o, corrupção moral, nem verdadeiro cinismo, mas a aparência disso; e isso passa frequentemente aos olhos deles como algo de delicado, de fino, digno de ser imitado. Vendo Aliócha Karamázov tapar rapidamente os ouvidos, quando se falava “daquilo”, formavam por vezes um círculo em redor dele, afastavam suas mãos à força e gritavam-lhe obscenidades. Alieksiêi debatia-se, deitava-se no chão, ocultando o rosto; suportava a ofensa em silêncio e sem se zangar. Por fim deixavam-no em repouso, cessavam de chamá-lo de “mocinha”, sentia-se mesmo compaixão por ele. Na classe, era um dos melhores alunos, mas nunca obteve o primeiro lugar.

Após a morte de Iefim Pietróvitch, Aliócha passou ainda dois anos no ginásio. A viúva partiu em breve para uma longa viagem à Itália, com toda a sua família, que se compunha de mulheres. O rapaz foi morar em casa de parentes afastados do defunto, duas senhoras que ele jamais vira. Ignorava as condições; era, aliás, nele um traço bastante característico o jamais inquietar-se à custa de quem vivia. A esse respeito, era totalmente o contrário de seu irmão mais velho, Ivan, que conhecera a pobreza nos seus dois primeiros anos de universidade, vivendo de seu trabalho, e que havia sofrido, desde sua infância, por ter de comer o pão de um benfeitor. Mas não se podia julgar severamente essa particularidade do caráter de Alieksiêi, porque bastava conhecê-lo um pouco para que se ficasse convencido de que era um desses inocentes capazes de dar todo o seu capital a uma boa obra, ou mesmo a um cavalheiro de indústria, se lhe pedisse. Em geral ignorava o valor do dinheiro, em sentido figurado, entende-se. Quando lhe davam dinheiro não sabia o que fazer dele durante semanas ou gastava-o num piscar de olhos. Piotr Alieksándrovitch Miúsov, bastante meticuloso no que se refere a dinheiro e honestidade burguesa, tendo tido mais tarde ocasião de observar Alieksiêi, caracterizou-o desta maneira: “Eis talvez o único homem no mundo que, se ficasse sem recursos numa grande cidade desconhecida, não morreria de fome, nem de frio, porque imediatamente o nutririam, viriam em seu auxílio, se não ele mesmo se livraria logo de apertos, sem trabalho nem humilhação, e seria um prazer para os outros prestar-lhe serviços.”

No ginásio, não terminou seus estudos: restava-lhe ainda um ano, quando declarou de repente àquelas senhoras que partia para a casa de seu pai por causa de um negócio que lhe viera à cabeça. As senhoras lamentaram muito; não queriam deixá-lo partir. A viagem custava muito pouco, não deixaram elas que ele empenhasse o relógio que lhe tinha dado a família de seu benfeitor, antes de partir para o estrangeiro; foi abundantemente provido de dinheiro, bem como de roupa branca e vestes, mas ele devolveu-lhes a metade da soma declarando que fazia questão de viajar em terceira classe. Como seu pai lhe perguntasse por que viera antes de ter acabado seus estudos, não respondeu nada, mas mostrou-se mais pensativo que de costume. Em breve verificou-se que ele procurava o túmulo de sua mãe. Confessou mesmo não ter vindo senão para isso. Mas não era provavelmente a única causa de sua chegada. Sem dúvida, ignorava então que não teria podido explicar ele mesmo com certeza o que havia de súbito surgido em seu íntimo para arrastá-lo irresistivelmente a uma via nova, desconhecida. Fiódor Pávlovitch não pôde indicar-lhe o túmulo de sua mãe, porque ali jamais voltara e esquecera o lugar após tantos anos...

Falemos de Fiódor Pávlovitch. Ficara muito tempo ausente de nossa cidade. Três ou quatro anos após a morte de sua segunda mulher, partiu para o sul da Rússia e chegou por fim a Odessa, onde passou vários anos. Travou conhecimento, segundo suas palavras, com “muitos judeus, judias e judotes de toda a laia” e acabou por ser recebido “não só em casa dos judeus, mas também em casa dos israelitas”. É preciso crer que, durante esse período, aperfeiçoara a arte de juntar e de subtrair dinheiro. Reapareceu em nossa cidade três anos somente antes da chegada de Aliócha. Seus antigos conhecidos acharam-no bastante envelhecido, se bem que não fosse muito idoso. Mostrou-se mais descarado do que nunca: o antigo bufão experimentava agora a necessidade de rir à custa dos outros. Gostava de frequentar os bordéis duma maneira mais repugnante do que outrora e, graças a ele, novos cabarés abriram-se em nosso distrito. Atribuíam-lhe um capital de cem mil rublos ou quase, e dentro em breve muitas pessoas tornaram-se seus devedores, em troca de sólidas garantias. Nos últimos tempos, ficara enrugado, começava a perder o equilíbrio emocional e o controle de si mesmo; caiu numa espécie de idiotismo, começando por uma coisa e acabando por outra, incapaz de concentrar-se e embriagando-se cada vez mais. Sem aquele mesmo criado, Grigóri, que havia também envelhecido muito e o vigiava por vezes como um guia, a existência de Fiódor Pávlovitch teria sido eriçada de dificuldades. A chegada de Aliócha influiu sobre ele do ponto de vista moral, e recordações, que dormiam desde muito tempo, despertaram-se na alma daquele velho prematuro. “Sabes — repetia ele a seu filho, observando-se — que te pareces com a endemoniada?” Era assim que chamava sua segunda mulher. Foi o criado Grigóri quem indicou a Aliócha o túmulo da “endemoniada”. Conduziu-o ao cemitério, mostrou-lhe num canto, afastado, uma placa de ferro fundido, modesta mas decente, em que estavam gravados o nome, a condição, a idade da defunta, com a data de sua morte; embaixo figurava uma quadra, como se leem frequentemente sobre o túmulo das pessoas da classe média. Coisa de espantar: aquela laje era obra de Grigóri. Fora ele que a colocara, à própria custa, sobre o túmulo da pobre “endemoniada”, depois de ter muitas vezes importunado seu patrão com suas alusões; este partira afinal para Odessa, dando de ombros a respeito de túmulos e de todas as suas recordações. Aliócha não mostrou nenhuma emoção especial diante do túmulo de sua mãe; prestou atenção ao relato grave que lhe fez Grigóri a respeito da colocação da laje, permaneceu curvado e retirou-se sem ter pronunciado uma palavra. Depois, não voltou mais ao cemitério, talvez por um ano inteiro. Mas esse episódio produziu em Fiódor Pávlovitch um efeito bastante original. Pegou mil rublos e levou-os a nosso mosteiro para o repouso da alma de sua mulher, não a segunda, a “endemoniada”, mas a primeira, aquela que lhe batia. Na mesma noite, embriagou-se e falou mal dos monges na presença de Aliócha. Ele próprio estava longe de ter sentimentos religiosos; talvez jamais tivesse posto uma vela de cinco copeques diante de uma imagem. Os sentimentos e o pensamento de semelhantes indivíduos têm por vezes impulsos tão bruscos quanto estranhos.

Já disse que ele havia ficado bastante enrugado. Sua fisionomia trazia então os traços reveladores da existência que levara. As pequenas bolsas que pendiam sob seus olhinhos sempre descarados, desconfiados, maliciosos, às rugas profundas que sulcavam sua cara gorda vinha juntar-se, sob seu queixo pontudo, um gordo pomo de adão, carnudo, que lhe dava o ar de um luxurioso repelente. Juntai a isso uma larga boca de carniceiro, de lábios intumescidos, em que apareciam os cacos enegrecidos de seus dentes apodrecidos. Espalhava saliva toda vez que falava. De resto, gostava de zombar de sua figura, se bem que ela lhe agradasse, sobretudo seu nariz, não muito grande, mas bastante reduzido e curvo. “Um verdadeiro nariz romano”, dizia ele. “Com meu pomo de adão, dir-se-ia um perfeito patrício da decadência.” Orgulhava-se disso.

Algum tempo depois da descoberta do túmulo de sua mãe, declarou-lhe Aliócha, inesperadamente, que queria entrar para o convento onde os monges estavam dispostos a admiti-lo como noviço. Acrescentou que era seu mais caro desejo e que lhe implorava o consentimento paterno. O velho já sabia que o stáriets Zósima[ 48 ] produzira sobre seu “manso rapaz” uma impressão particular.

— Esse stáriets é seguramente entre eles o monge mais honesto — declarou, depois de ter ouvido Aliócha, num silêncio pensativo, mas sem se espantar com o pedido dele. — Hum! eis onde queres ir, meu manso rapaz! — Estava meio bêbedo. Abria-se em seu rosto um sorriso de ébrio, marcado de astúcia e finura. — Hum! Previa que irias chegar a isso, imagina tu! Era bem isso que tinhas em vista. Pois bem, seja! Tens dois mil rublos, será teu dote; quanto a mim, meu anjo, não te abandonarei nunca e pagarei por ti o que for preciso, se o pedirem. Senão de que serve tomarmos compromisso, não é verdade? Precisas de tanto dinheiro quanto de alpiste um canário... Hum! Sabes! Há um convento, com um lugarejo, nos arredores da cidade, habitado, como ninguém o ignora, pelas “esposas dos monges”, é assim que as chamam. São umas trinta, creio... Visitei-o. É interessante em seu gênero. Interrompe a monotonia. Por desgraça, só se encontram ali russas, nem uma francesa. Poder-se-ia tê-las, não faltam fundos para isso. Quando o souberem, virão. Aqui, não há mulheres, mas duzentos monges. Jejuam conscientemente. Convenho... Hum! Com que então, queres fazer-te monge? Causas-me dó, Aliócha; na verdade, tinha-te criado afeição... Aliás, eis uma boa ocasião: reza por nós, pecadores de consciência sobrecarregada. Tenho muitas vezes perguntado a mim mesmo: quem rezará um dia por mim? Meu querido rapaz, sou totalmente ignorante a esse respeito, talvez o saibas, não? Totalmente. Mas vês, malgrado minha estupidez, reflito por vezes; penso que os diabos me arrastarão com toda a certeza com seus ganchos, após minha morte. E digo a mim mesmo: donde vêm esses ganchos? De que são? De ferro? Onde os forjam? Será que eles possuem uma fábrica? Os religiosos, por exemplo, estão convencidos de que o inferno tem teto. Ora, tenho muita vontade de acreditar no inferno, mas sem teto, é mais delicado, mais iluminado, como entre os luteranos. No fundo, não será a mesma coisa, com ou sem teto? Eis a dificuldade! Ora, se não há teto, então não há ganchos. Mas seria incrível: quem me arrastaria então, com ganchos? Porque se não me arrastarem, onde estaria a justiça neste mundo? Seria preciso inventar esses ganchos, especialmente para mim, para mim só. Se soubesses, Aliócha, que descarado sou eu!...

— Não há ganchos lá — declarou Aliócha, em voz baixa, olhando seriamente para o pai.

— Ah! Só há sombras de ganchos. Sei, sei. Era assim que um francês descrevia o inferno. J’ai vu l’ombre d’un cocher qui, avec l’ombre d’une brosse, frottait l’ombre d’un carrosse.[ 49 ] Donde sabes tu, meu caro, que não há ganchos? Uma vez entre os monges, mudarás de tom. Mas afinal, parte, vá destrinçar a verdade e vem informar-me. Será mais fácil ir para o outro mundo sabendo o que lá se passa. Será mais conveniente para ti estar entre os monges do que em minha casa, velho bêbedo, com mulheres... se bem que estejas, como um anjo, acima de tudo isso. Talvez o mesmo aconteça lá e, se te deixo ir, é que conto com isso. Não és tolo. Teu ardor se extinguirá e voltarás curado. Quanto a mim, esperar-te-ei, porque sinto que és o único neste mundo que não me censurou, meu querido rapaz, não posso deixar de senti-lo!...

E pôs-se a choramingar. Estava sentimental. Sim, era mau e sentimental.

 

V


Os stártsi[ 50 ]


O leitor imaginará talvez que o meu herói fosse um indivíduo doentio e extático, um pálido sonhador, macilento, atacado de tuberculose. Pelo contrário, Aliócha, que tinha então 19 anos, era um jovem bem-feito, de faces vermelhas, de olhar límpido, transbordante de saúde. Era mesmo bastante belo, de talhe esbelto, cabelos castanhos, rosto regular, embora um pouco alongado, olhos dum cinzento-escuro, brilhantes, rasgados, pensativo e parecendo bastante calmo. Dir-se-á talvez que faces vermelhas não impedem de ser fanático ou místico: ora, parece-me que Aliócha era, mais que qualquer outra pessoa, realista. Oh! Bem decerto, no convento cria perfeitamente nos milagres, mas, na minha opinião, os milagres jamais perturbarão o realista. Não são eles que o levam a crer. Um verdadeiro realista, se é incrédulo, encontra sempre em si a força e faculdade de não crer mesmo no milagre, e se este último se apresenta como um fato incontestável, duvidará de seus sentidos em vez mesmo de admitir o fato. Se o admitir, será como um fato natural, mas desconhecido dele até então. No realista, a fé não nasce do milagre, mas o milagre da fé. Se o realista adquire a fé, deve necessariamente, em virtude de seu realismo, admitir também o milagre. O apóstolo Tomé declarou que não acreditaria enquanto não visse; em seguida, diz: “Meu Senhor e meu Deus!” Fora o milagre que o obrigara a crer? Muito provavelmente não, mas ele acreditava unicamente porque desejava crer; talvez tivesse já a fé inteira nas dobras ocultas de seu coração, mesmo quando declarava: “Só acreditarei depois que tiver visto.”

Dir-se-á talvez que Aliócha era obtuso, pouco desenvolvido, que não terminara seus estudos. Esse último fato é exato, mas seria bastante injusto dizer que fosse ele obtuso ou estúpido. Repito o que já disse: escolhera aquela via unicamente porque somente ela o atraía então e representava a ascensão ideal para a luz que sua alma desprendia das trevas. Além disso, era aquele rapaz da época mais recente, isto é, leal, ávido da verdade, procurando-a com fé, e, uma vez encontrada, querendo dela participar com toda a força de sua alma, querendo realizações e pronto a tudo sacrificar com esse fim, até mesmo a vida. Entretanto, esses rapazes não compreendem, desgraçadamente, que sacrificar sua vida é a coisa mais fácil em muitos casos, ao passo que consagrar, por exemplo, cinco ou seis anos da bela mocidade ao estudo e à ciência — não fosse senão para decuplicar suas forças, a fim de servir à verdade e atingir o fim proposto — é um sacrifício que os ultrapassa. Aliócha só fizera escolher a via oposta a todas as outras, mas com a mesma sede de realização imediata. Logo que se convenceu, após sérias reflexões, de que Deus e a imortalidade existem, disse a si mesmo, naturalmente: “Quero viver para a imortalidade, não admito compromissos.” Igualmente, se tivesse concluído que não há nem Deus nem imortalidade, ter-se-ia tornado imediatamente ateu e socialista (porque o socialismo não é apenas a questão operária ou do quarto estado, mas é sobretudo a questão do ateísmo, de sua encarnação contemporânea, a questão da torre de Babel, que se construiu sem Deus, não para atingir os céus da terra, mas para abaixar os céus até a terra). Parecia estranho e impossível a Aliócha viver como antes. Está dito: “Abandona tudo quanto tens e segue-me, se queres ser perfeito.” Aliócha dizia a si mesmo: “Não posso dar em lugar de ‘tudo’ dois rublos e em lugar de ‘segue-me’ ir somente à missa.” Entre as recordações de sua tenra infância, lembrava-se talvez de nosso mosteiro, aonde sua mãe talvez o levara para assistir aos ofícios. Talvez tivesse ali sofrido a influência dos raios oblíquos do sol poente diante da imagem para o qual o voltava sua mãe, a endemoniada. Chegou entre nós pensativo, unicamente para ver se se tratava aqui de tudo ou somente de dois rublos, e encontrou no convento aquele stáriets.

Era o stáriets Zósima, como já o expliquei acima; seria preciso dizer algumas palavras a propósito dos stártsi nos nossos mosteiros e lamento não ter, neste domínio, toda a competência necessária. Tentarei, no entanto, fazê-lo a grandes traços. Os especialistas competentes asseguram que a instituição dos stártsi apareceu nos mosteiros russos em época recente, há menos de um século, quando, em todo o Oriente ortodoxo, sobretudo no Sinai e no monte Atos, existe ela desde bem mais de mil anos. Pretende-se que os stártsi existiam na Rússia em tempos bastante antigos, ou que deveriam ter existido, mas que, em consequência das calamidades que sobrevieram, o jugo tártaro, as perturbações, a interrupção das antigas relações com o Oriente, após a queda de Constantinopla, essa instituição se perdeu entre nós e os stártsi desapareceram. Foi ressuscitada por um dos maiores ascetas, Paísi Vielitchkóvski, e por seus discípulos, mas até o presente, após um século, existe ela em muito poucos conventos e foi mesmo, ou pouco faltou, alvo de perseguições, como uma inovação desconhecida na Rússia. Florescia sobretudo no famoso eremitério de Kózilhskaia Optínaia.[ 51 ] Ignoro quando e por quem foi ela implantada em nosso mosteiro, mas já se haviam sucedido ali três stártsi, dos quais Zósima era o último. Estava quase a sucumbir à fraqueza e às doenças e não se sabia quem substituí-lo. Para nosso mosteiro, era essa uma séria questão, porque, até o presente, nada o havia distinguido; não possuía nem relíquias santas nem ícones miraculosos, ligando-se as tradições gloriosas à nossa história. Faltavam-lhe igualmente os altos fatos históricos e os serviços prestados à pátria. Tornara-se florescente e famoso em toda a Rússia, graças a seus stártsi, que os peregrinos vinham em multidão ver e ouvir de todos os pontos da Rússia, a milhares de verstas. Que é um stáriets? O stáriets é aquele que absorve vossa alma e vossa vontade nas suas. Tendo escolhido um stáriets, vós abdicais de vossa vontade e a entregais com toda a obediência, com inteira resignação. O penitente submete-se voluntariamente a essa prova, a essa dura aprendizagem, na esperança de, após um longo estágio, vencer a si mesmo, dominar-se a ponto de atingir afinal, depois de ter obedecido toda a sua vida, a liberdade perfeita, isto é, a liberdade para consigo mesmo, e evitar a sorte daqueles que viveram sem se encontrar a si mesmos. Essa invenção, isto é, a instituição dos stártsi, não é teórica, mas tirada, no Oriente, de uma prática milenar. As obrigações para com o stáriets são bem diversas da “obediência” habitual que sempre existiu igualmente nos mosteiros russos. Lá, a confissão de todos os militantes ao stáriets é perpétua, e o elo que liga o confessor ao confessado, indissolúvel. Conta-se que, nos tempos antigos do cristianismo, um noviço, depois de haver deixado de cumprir um dever prescrito pelo seu stáriets, abandonou o mosteiro para dirigir-se a outro país, da Síria ao Egito. Ali, praticou atos sublimes e foi por fim julgado digno de sofrer o martírio pela fé. Já a Igreja ia enterrá-lo, reverenciando-o como um santo, quando o diácono proferiu: “Que os catecúmenos saiam!”. O caixão que continha o corpo do mártir foi arrancado de seu lugar e projetado fora do templo três vezes seguidas. Soube-se, por fim, que aquele santo mártir havia infringido a obediência e abandonado o seu stáriets, e que, por consequência, não podia ser perdoado sem o consentimento deste último, malgrado sua vida sublime. Mas quando o stáriets, chamado, o desligou da obediência, pôde-se enterrá-lo sem dificuldade. Sem dúvida, não passa isso de uma antiga lenda, mas eis um fato recente. Um religioso cuidava de sua salvação no monte Atos, ao qual queria de toda a sua alma, como um santuário e um retiro tranquilo, quando seu stáriets lhe ordenou, de repente, que partisse para ir primeiro a Jerusalém, visitar os Lugares Santos, depois voltar ao norte, na Sibéria. “Lá é que é teu lugar e não aqui.” Consternado e desolado, o monge foi procurar o patriarca em Constantinopla e suplicou-lhe que o libertasse da obediência, mas o chefe da Igreja respondeu-lhe que não somente ele, patriarca, não podia desligá-lo, como não havia nenhum poder no mundo capaz de fazê-lo, exceto o stáriets do qual ele dependia. Vê-se dessa forma que, em certos casos, os stártsi estão investidos duma autoridade sem limites e incompreensível. Eis por que, em muitos de nossos mosteiros, essa instituição foi a princípio quase perseguida. No entanto o povo testemunhou imediatamente grande veneração pelos stártsi. Por isso o povinho e as pessoas mais distintas vinham em multidão prosternar-se diante dos stártsi de nosso mosteiro e lhes confessavam suas dúvidas, seus pecados, seus sofrimentos, implorando conselhos e direções. Vendo o quê, os adversários dos stártsi lhes censuravam, entre outras acusações, envilecerem arbitrariamente o sacramento da confissão, se bem que as confidências ininterruptas do noviço ou dum leigo ao stáriets não tivessem de modo algum o caráter dum sacramento. Seja como for, a instituição dos stártsi manteve-se e implanta-se pouco a pouco nos mosteiros russos. É verdade que esse meio experimentado e já milenar de regeneração moral, que faz o homem passar da escravidão à liberdade, aperfeiçoando-o, pode também tornar-se uma arma de dois gumes: em lugar da humildade e do domínio de si mesmo, pode desenvolver um orgulho satânico e fazer um escravo em lugar de um homem livre.

O stáriets Zósima tinha 65 anos; descendia duma família de proprietários; na mocidade servira o Exército como oficial, no Cáucaso. Sem dúvida, Aliócha ficou impressionado por certa qualidade especial da alma dele. Vivia na mesma cela do stáriets, que muito o amava e o mantinha a seu lado. É preciso notar que, vivendo no mosteiro, não estava Aliócha preso por nenhum laço; podia ir aonde bem quisesse, dias inteiros, e, se usava batina, era voluntariamente, para não se distinguir de ninguém no mosteiro. Talvez a imaginação juvenil de Aliócha tivesse sido muito impressionada pela força e pela glória que cercavam seu stáriets como uma auréola. A propósito do stáriets Zósima, muitos contavam que à força de acolher, desde numerosos anos, todos aqueles que vinham expandir seu coração, ávidos de seus conselhos e de suas consolações, havia, para o fim, adquirido grande perspicácia. Ao primeiro olhar lançado sobre um desconhecido, adivinhava o motivo de sua vinda, o que lhe era preciso e até mesmo o que lhe atormentava a consciência. O penitente ficava espantado, confuso e por vezes mesmo apavorado por sentir-se penetrado, antes de ter proferido uma palavra. Aliócha notara que muitos daqueles que vinham pela primeira vez entreter-se em particular com o stáriets entravam em seu aposento com temor e inquietação; quase todos saíam radiantes e o rosto mais sombrio iluminava-se de satisfação. O que o surpreendia também é que o stáriets, longe de ser severo, parecia mesmo satisfeito. Os monges diziam dele que se ligava aos que mais pecavam e os estimava na proporção de seus pecados. Mesmo para o fim de sua vida, contava o stáriets, entre os monges, inimigos e invejosos, mas seu número diminuía, se bem que figurassem nele personalidades importantes do convento. Tal era um dos mais religiosos, por demais taciturno e jejuador extraordinário. No entanto, a grande maioria era partidária do stáriets Zósima e muitos o amavam sinceramente, de todo o coração; alguns lhe eram mesmo ligados quase fanaticamente. Estes diziam, mas em voz baixa, que era um santo, decerto, e, prevendo seu fim próximo, aguardavam imediatos milagres que espalhariam grande glória sobre o mosteiro. Alieksiêi cria cegamente na força miraculosa do stáriets, da mesma maneira que acreditava no relato do caixão projetado fora da igreja. Entre as pessoas que levavam ao stáriets crianças ou parentes doentes, para que ele lhes impusesse as mãos ou rezasse uma oração em sua intenção, via Aliócha muitos voltarem em breve, por vezes no dia seguinte, para agradecer-lhe de joelhos o ter-lhes curado seus doentes. Havia cura ou somente melhoria natural do estado deles? Aliócha nem sequer fazia a si mesmo a pergunta, porque acreditava absolutamente na força espiritual de seu mestre e a glória dele era como seu próprio triunfo. Batia-lhe o coração e ficava radiante, sobretudo, quando o stáriets saía a ter com a multidão dos peregrinos que o esperavam nas portas do eremitério, pessoas do povo vindas de todos os pontos da Rússia para vê-lo e receber sua bênção. Prosternavam-se diante dele, choravam, beijavam seus pés e o lugar onde ele se achava, lançando gritos; as mulheres estendiam para ele seus filhos; traziam possessos. O stáriets falava-lhes, fazia uma curta oração, dava-lhes sua bênção, depois mandava-os embora. Nos derradeiros tempos, a doença havia-o de tal modo enfraquecido que mal podia ele deixar sua cela, e os peregrinos aguardavam sua saída para o mosteiro por vezes dias inteiros. Aliócha não perguntava a si mesmo absolutamente por que eles o amavam tanto, por que se prosternavam diante dele com lágrimas de enternecimento, vendo seu rosto. Oh! Compreendia perfeitamente que para a alma resignada do simples povo russo, vergado sob o trabalho e o pesar, mas sobretudo sob a injustiça e o pecado contínuos — o seu e o do mundo —, não há maior necessidade e consolo do que encontrar um santuário ou um santo, cair de joelhos, adorá-lo: “Se o pecado, a mentira, a tentação são nossa partilha, há no entanto em alguma parte do mundo um ser santo e sublime; possui a verdade, conhece-a; portanto, ela descerá um dia até nós e reinará sobre a terra inteira, como foi prometido.” Aliócha sabia que é assim que o povo sente e até mesmo raciocina; compreendia isso, mas que o stáriets fosse precisamente esse santo, esse depositário da verdade divina aos olhos do povo, estava disso persuadido tanto quanto aqueles mujiques e aquelas mulheres doentes que lhe estendiam seus filhos. A convicção de que o stáriets, após sua morte, atrairia uma glória extraordinária para o mosteiro reinava em sua alma mais forte talvez do que entre os monges. Desde algum tempo, seu coração aquecia-se sempre mais à labareda dum profundo entusiasmo interior. Não o perturbava absolutamente nada ver no stáriets um indivíduo isolado: “Dá no mesmo, há em seu coração o mistério da renovação para todos, esse poder que instaurará por fim a verdade na terra e todos serão santos, amar-se-ão uns aos outros; não haverá mais nem ricos nem pobres, nem elevados nem humilhados; todos serão como os filhos de Deus e será isso o advento do reino do Cristo.” Eis com que sonhava o coração de Aliócha.

Parece que impressionou fortemente Aliócha a chegada de seus dois irmãos, que ele não conhecia absolutamente até então. Ligara-se mais a Dimítri, se bem que este tivesse chegado mais tarde. Quanto a Ivan, interessava-se muito por ele, mas os dois jovens permaneciam estranhos um ao outro e, no entanto, dois meses se haviam passado durante os quais viam-se bastante frequentemente. Aliócha era taciturno; além disso, parecia esperar não se sabia o quê, ter vergonha de alguma coisa; muito embora tivesse notado no começo os olhares curiosos que lhe lançava seu irmão, cessou Ivan em breve de prestar-lhe atenção. Aliócha sentiu por isso alguma confusão. Atribuiu a indiferença de seu irmão à desigualdade de sua idade e de sua instrução. Mas tinha uma grande ideia. O pouco interesse que Ivan lhe testemunhava podia provir de uma causa que ele ignorava. Parecia este absorvido por algo de importante, como se visasse a um alvo muito difícil, o que teria explicado sua distração a respeito dele. Alieksiêi perguntou igualmente a si mesmo se não havia naquilo o desprezo de um ateu sábio por um pobre noviço. Não podia sentir-se ofendido com tal desprezo, se é que ele existia, mas aguardava com um vago alarme, que ele próprio não explicava a si mesmo, no momento em que seu irmão queria aproximar-se dele. Seu irmão Dimítri falava de Ivan com o mais profundo respeito, num tom circunspecto. Contou a Aliócha os detalhes do importante negócio que havia aproximado estreitamente os dois mais velhos. O entusiasmo com que Dimítri falava de Ivan impressionava tanto mais Aliócha quanto, comparado a seu irmão, Dimítri era quase um ignorante: o contraste da personalidade deles e de seus caracteres era tão vivo que se teria dificilmente imaginado dois seres tão diferentes.

Foi então que teve lugar a entrevista, ou antes a reunião, na cela do stáriets, de todos os membros daquela família mal harmonizada, reunião que exerceu influência extraordinária sobre Aliócha. O pretexto que a motivou era na realidade mentiroso. O desacordo entre Dimítri e seu pai, a respeito da herança de sua mãe e das contas da propriedade, atingia então seu auge. As relações tinham-se envenenado a ponto de tornar-se insuportáveis. Foi Fiódor Pávlovitch quem sugeriu, por brincadeira, que se reunissem todos na cela do stáriets Zósima; sem recorrer à sua intervenção, poderiam eles entender-se mais decentemente, sendo capazes a dignidade e a pessoa do stáriets de impor a reconciliação. Dimítri, que jamais estivera em casa dele e jamais o vira, pensou que quisessem amedrontá-lo daquela maneira; mas como ele próprio se censurava secretamente de muitas explosões bastante bruscas em sua querela com seu pai, aceitou o desafio. É preciso notar que não residia, como Ivan, em casa de seu pai, mas na outra extremidade da cidade. Piotr Alieksándrovitch Miúsov, que morava então em nossa cidade, agarrou-se a essa ideia. Liberal dos anos 1840 e 1850, livre-pensador e ateu, tomou neste caso uma parte extraordinária, por tédio, talvez, ou para se divertir. Tomou-o subitamente a fantasia de ver o mosteiro e o “santo”. Como seu antigo processo contra o mosteiro durasse ainda — o litígio tinha por objeto a delimitação de suas terras e certos direitos de pesca e de corte —, apressou-se em se aproveitar dessa ocasião, sob o pretexto de entender-se com o padre abade, a fim de dar por terminado aquele negócio amigavelmente. Um visitante animado de tão boas intenções podia ser recebido no mosteiro com mais atenções que um simples curioso. Essas considerações fizeram com que se insistisse junto ao stáriets, o qual, desde algum tempo, não deixava mais sua cela e recusava mesmo, por causa de sua doença, receber os simples visitantes. Deu seu consentimento e foi marcado o dia. “Quem me encarregou de decidir entre eles?”, declarou ele somente a Aliócha, com um sorriso.

Ao saber dessa reunião, ficou Aliócha muito perturbado. Se algum dos adversários em luta podia tomar aquela entrevista a sério, era seguramente seu irmão Dimítri, e somente ele; os outros iriam com intenções frívolas e talvez ofensivas para o stáriets. Aliócha o compreendia bem. Seu irmão Ivan e Miúsov ali se dirigiam levados pela curiosidade e seu pai para fazer o papel de palhaço, se bem que guardando silêncio. Conhecia-o a fundo. Repito, aquele rapaz não era tão ingênuo como todos o acreditavam. Aguardava com ansiedade o dia marcado. Sem dúvida levava muito em questão ver cessar por fim o desacordo em sua família. Mas preocupava-se sobretudo com o stáriets; tremia por ele, por sua glória, temendo as ofensas, particularmente as finas zombarias de Miúsov e as reticências do erudito Ivan. Queria mesmo tentar prevenir o stáriets, falar-lhe a respeito daqueles visitantes eventuais, mas refletiu e calou-se. Na véspera do dia marcado, mandou dizer a Dimítri que o amava muito e esperava dele o cumprimento de sua promessa. Dimítri, que procurou em vão lembrar-se de ter prometido alguma coisa, respondeu-lhe por carta que faria tudo para evitar uma baixeza. Embora cheio de respeito pelo stáriets e por Ivan, via naquilo uma armadilha ou uma comédia indigna. “Entretanto, preferirei engolir minha língua a faltar ao respeito ao santo homem que veneras”, dizia Dimítri, terminando sua carta. Aliócha nem por isso ficou reconfortado.


Livro II

Uma reunião intempestiva


I


A chegada ao mosteiro


Estava um dia magnífico, quente e claro. Era no fim de agosto. A entrevista com o stáriets fora marcada para imediatamente depois da última missa, às 11h30. Os nossos visitantes chegaram quase no fim da cerimônia em duas carruagens. A primeira, uma elegante caleça puxada por dois cavalos de preço, estava ocupada por Piotr Alieksándrovitch Miúsov e um parente afastado, Piotr Fomitch Kolgánov, de vinte anos de idade. Este rapaz preparava-se para entrar na universidade. Miúsov,
de quem ele era hóspede, propunha-lhe levá-lo ao estrangeiro, a Zurique ou a Iena, para ali acabar seus estudos, mas ele não havia ainda tomado uma decisão. Pensativo e distraído, tinha um aspecto agradável, uma constituição robusta, a estatura bastante elevada. De olhar estranhamente fixo, o que é próprio das pessoas distraídas, olhava-nos por vezes muito tempo sem ver-nos, taciturno e algo embaraçado, acontecia-lhe — somente na intimidade — mostrar-se de repente bastante loquaz, veemente, jovial, rindo só Deus sabe de quê. Mas sua imaginação não passava de um fogo de palha, assim que se acendia, logo se apagava. Andava sempre bem-vestido e até mesmo com apuro. Possuidor de certa fortuna, tinha ainda mais em perspectiva. Entretinha com Aliócha relações amigáveis.

Fiódor Pávlovitch e seu filho tinham tomado lugar em uma caleça de aluguel bastante estragada, mas espaçosa, atrelada a dois velhos cavalos malhados de preto e branco, que seguiam a uma distância respeitável. Dimítri tinha sido prevenido na véspera da hora da entrevista, mas estava atrasado. Os visitantes deixaram suas carruagens perto da cerca, na hospedaria, e transpuseram a pé as portas do mosteiro. Exceto Fiódor Pávlovitch, os três outros jamais tinham visto o mosteiro, e Miúsov havia trinta anos que não entrava numa igreja. Olhava com certa curiosidade, assumindo um ar desenvolto. Mas o interior do mosteiro, de parte da igreja e as dependências, aliás, bastante banais, nada oferecia a seu espírito observador. Os derradeiros fiéis que saíam da igreja benziam-se de gorros nas mãos. Entre o povinho viam-se também pessoas de uma posição mais elevada: duas ou três damas, um velho general, todos hospedados na pousada. Mendigos cercaram nossos visitantes, mas ninguém lhes deu esmola. Somente Pietrucha Kolgánov tirou dez copeques de seu porta-moedas e, acanhado Deus sabe por quê, introduziu-os rapidamente na mão de uma mulher, murmurando: “Reparta-os.” Nenhum de seus companheiros lhe fez qualquer observação, o que teve como resultado aumentar-lhe a confusão.

Coisa estranha: teriam deveras devido esperá-los e até mesmo testemunhar-lhes algumas atenções; um deles acabava de fazer um donativo de mil rublos, o outro era um proprietário bastante rico, que mantinha os monges mais ou menos sob sua dependência, no que dizia respeito à pesca, de acordo com o rumo que tomasse o processo. No entanto nenhuma personalidade oficial se encontrava lá para recebê-los. Miúsov contemplava com ar distraído as lápides tumulares ao redor da igreja e quis fazer a observação de que os ocupantes daqueles túmulos deviam ter pago bastante caro o direito de ser enterrados em um lugar tão “santo”, mas manteve-se em silêncio: sua ironia de liberal dava lugar à irritação.

— A quem, diabo, devemos dirigir-nos nesta casa onde todos mandam?... Seria preciso sabê-lo, porque o tempo passa — murmurou ele, como consigo mesmo.

De repente, aproximou-se deles um personagem calvo, de idade madura, numa ampla veste de verão e de olhos ternos. De chapéu na mão, apresentou-se, ceceando, como o proprietário de terras Maksímov, do governo de Tula. Deu-se conta imediatamente do embaraço daqueles senhores.

— O stáriets Zósima mora no eremitério, à parte, a quatrocentos passos do mosteiro; é preciso atravessar o bosquezinho...

— Sei bem — respondeu Fiódor Pávlovitch. — Não nos lembramos bem da estrada, pois faz muito tempo que não venho por aqui.

— Passem por aquela porta, depois sigam diretamente pelo bosquezinho. Permitam-me que os acompanhe... eu mesmo... por aqui, por aqui...

Saíram da cerca e meteram-se no bosque. O proprietário Maksímov, de uns sessenta anos de idade, caminhava, ou antes corria ao lado deles, examinando-os a todos com uma curiosidade incômoda. Esbugalhava os olhos.

— Fique o senhor sabendo que nós vamos à casa desse stáriets para tratar de um negócio pessoal — observou friamente Miúsov. — Obtivemos, por assim dizer, “uma audiência” desse personagem; de modo que, malgrado nossa gratidão, não lhe propomos que entre conosco.

— Já estive ali... Un chevalier parfait — declarou, dando um piparote no ar, o proprietário.

— Quem é ce chevalier? — perguntou Miúsov.

O stáriets, o famoso stáriets... a glória e a honra do mosteiro, Zósima. Aquele stáriets, vejam...

Sua tagarelice foi interrompida por um monge, com capuz, de pequena estatura, pálido e desfeito, que alcançou o grupo. Fiódor Pávlovitch e Miúsov pararam. O monge saudou-os com grande polidez e lhes disse:

— Senhores, o padre abade convida-os a todos para almoçar, depois da visita ao eremitério. É à uma hora em ponto. O senhor também — disse ele a Maksímov.

— Não haverei de faltar! — exclamou Fiódor Pávlovitch, encantado pelo convite. — O senhor sabe que todos prometemos portar-nos decentemente... E o senhor virá, Piotr Alieksándrovitch?

— Como não? Por que estou aqui, senão para observar os costumes deles? Uma só coisa me embaraça, Fiódor Pávlovitch, é encontrar-me agora com o senhor.

— Sim, Dimítri Fiódorovitch ainda não chegou.

— Seria perfeito se ele faltasse; acredita o senhor que seja isso um prazer para mim, essa história dos senhores e o senhor ainda de quebra? Estaremos lá para o almoço; agradeça ao padre abade — disse ele ao monge.

— Perdão, tenho de conduzi-los à casa do stáriets — respondeu este.

— Neste caso vou diretamente à casa do padre abade, sim, vou durante este tempo à casa do padre abade — gorjeou Maksímov.

— O padre abade está muito ocupado neste momento, mas será como o senhor quiser... — disse o monge, perplexo.

— Que sujeito cacete esse velho! — observou Miúsov, quando Maksímov voltou ao mosteiro.

Parece-se com von Sohn — declarou, de repente, Fiódor Pávlovitch.

— É tudo quanto o senhor sabe... em que se parece ele com von Sohn? O senhor mesmo já o viu?

— Vi-lhe a fotografia. Se bem que as feições não sejam idênticas, há qualquer coisa de indefinível. É totalmente o sósia de von Sohn. Reconheço-o apenas pela fisionomia.

— Ah! Talvez seja o senhor entendido nisso. Todavia, Fiódor Pávlovitch, o senhor acaba de lembrar que prometemos portar-nos decentemente; não se esqueça disso. Digo-lhe que se contenha. Se o senhor começa a fazer-se de palhaço, não tenho eu a intenção de ser metido no mesmo cesto que o senhor. Veja esse homem — disse ele dirigindo-se ao monge —, tenho medo de ir com ele à casa de pessoas distintas.

Um pálido sorriso, não desprovido de astúcia, apareceu nos lábios exangues do monge, que, no entanto, nada respondeu, deixando ver claramente que se calava pela consciência da própria dignidade. Miúsov franziu ainda mais o cenho.

“Oh! Que o diabo leve todas essas criaturas de exterior, plasmado pelos séculos, mas cujo íntimo não é senão charlatanismo e absurdo!” — dizia ele para si.

— Eis o eremitério, chegamos — gritou Fiódor Pávlovitch, que se pôs a fazer grandes sinais da cruz diante dos santos pintados por cima e de lado do portal.

— Cada qual vive como lhe agrada — declarou ele. — E o provérbio russo diz com razão: “A monge duma outra ordem não imponhas tua regra.” Há aqui 25 bons padres que tratam de suas salvações, contemplam-se uns aos outros e comem couves. E nenhuma mulher transpôs esse portal, eis o que é espantoso. No entanto, ouvi dizer que o stáriets recebia senhoras — disse ele ao monge.

— As mulheres do povo esperam-no lá embaixo, perto da galeria, veja, estão sentadas no chão. Para as senhoras da sociedade prepararam dois quartos na própria galeria, mas fora da cerca, veja aquelas janelas; o stáriets ali chega por um corredor interno, quando sua saúde lhe permite. Há uma senhora Khokhlakova, proprietária em Khárkov, que quer consultá-lo a respeito de sua filha, atacada de fraqueza. Teve de prometer vir vê-las, se bem que nesses últimos tempos esteja muito fraco e não se mostre em público.

— Há, pois, no eremitério uma porta entreaberta do lado das senhoras. Não estou fazendo mau juízo, meu padre! No monte Atos, o senhor deve saber, não somente são proibidas as visitas femininas, como não se tolera nenhuma mulher, nem fêmea, galinhas, peruas, bezerras...

— Fiódor Pávlovitch, vou-me embora e deixo-o sozinho. Vão mandá-lo embora a tapas, sou eu que o predigo a você.

— Em que é que eu o incomodo, Piotr Alieksándrovitch? Olhe! — exclamou ele, de repente, uma vez transposta a cerca. — Veja em que vale de rosas eles moram!

Efetivamente, se bem que não houvesse então rosas, via-se uma profusão de flores outonais, magníficas e raras. Mãos experimentadas deviam cuidar delas. Havia canteiros em redor das igrejas e entre os túmulos. Flores cercavam ainda a casinha de madeira, um rés do chão, precedido duma galeria, onde se encontrava a cela do stáriets.

— Era assim também no tempo do stáriets precedente, Varsonófi? Dizem que ele não gostava da elegância, arrebatava-se e recebia mesmo as senhoras a bengaladas — observou Fiódor Pávlovitch, subindo o patamar.

— O stáriets Varsonófi parecia por vezes, com efeito, um pobre espírito, mas exagera-se muito a este respeito. Nunca bateu em ninguém com o báculo — respondeu o monge. — Agora, senhores, um minuto, vou anunciá-los.

— Fiódor Pávlovitch, pela derradeira vez lhe digo, comporte-se bem, do contrário, ai do senhor! — murmurou ainda uma vez Miúsov.

— Gostaria bem de saber o que o comove dessa maneira — observou Fiódor Pávlovitch, zombeteiro. — São seus pecados que o amedrontam? Porque dizem que, com um simples olhar, adivinha ele com quem está tratando. Mas como pode fazer tal caso da opinião deles o senhor, um parisiense, um progressista? Palavra, o senhor me espanta!

Miúsov não teve oportunidade de responder a esse sarcasmo; convidavam-nos a entrar. Sentiu ligeira irritação. “Pois bem! Sei de antemão que, nervoso como estou, irei discutir, acalorar-me... rebaixar-me, a mim e a minhas ideias”, disse a si mesmo.

 

II


Um velho palhaço


Entraram quase ao mesmo tempo que o stáriets, que, desde a chegada deles, havia saído de seu quarto de dormir. Na cela, tinham sido precedidos por dois religiosos do eremitério: um era o padre bibliotecário, o outro, o padre Paísi, doente, malgrado sua idade pouco avançada, mas erudito, segundo se dizia. Achava-se ainda ali um rapaz (ficou de pé todo o tempo), parecendo ter 22 anos de idade, de sobrecasaca, seminarista e futuro teólogo, protegido pelo mosteiro e pela confraria. Era de estatura bastante elevada, tinha o rosto fresco, os pômulos salientes, com olhinhos castanhos de olhar inteligente. Seu rosto exprimia deferência, mas sem obsequiosidade. Não cumprimentou os visitantes, considerando-se não como um igual, mas como um subalterno.

O stáriets Zósima apareceu, em companhia de um noviço e de Aliócha. Os religiosos levantaram-se, fizeram-lhe profunda reverência, com os dedos tocando a terra, receberam sua bênção, beijaram-lhe a mão. A cada um deles, o stáriets respondeu com uma reverência semelhante, com os dedos tocando a terra, pedindo-lhes por sua vez sua bênção. Aquela cerimônia, marcada de grande seriedade, nada tendo da etiqueta vulgar, exalava uma espécie de emoção. No entanto, pareceu a Miúsov que aquilo se fazia com uma finalidade de sugestão premeditada. Conservava-se à frente de seus companheiros. Teria sido conveniente, quaisquer que fossem suas ideias — e por simples polidez, para se conformar com os usos —, que se aproximassem do stáriets para receber sua bênção, se não para beijar-lhe a mão. Foi no que pensara na véspera, mas as reverências e os beijos dos monges fizeram-no mudar de resolução. Fez uma reverência grave e digna, de homem da sociedade, e foi sentar-se. Fiódor Pávlovitch fez a mesma coisa, macaqueando dessa vez Miúsov. A saudação de Ivan Fiódorovitch foi das mais corteses, mas também ele conservou os braços ao longo dos quadris. Quanto a Kolgánov, tal era sua confusão que não fez saudação nenhuma. O stáriets deixou recair a mão prestes a abençoá-los e convidou todos a sentarem-se. O sangue subiu às faces de Aliócha, estava envergonhado. Seus maus pressentimentos realizavam-se.

O stáriets tomou lugar num pequeno divã de couro — móvel bastante antigo — e fez seus visitantes sentarem-se perto da parede em frente, em quatro cadeiras de acaju, recobertas de couro bastante surrado. Os religiosos instalaram-se de lado, um à porta, outro à janela. O seminarista, Aliócha e o noviço ficaram de pé. A cela não era vasta e mostrava certo ar de coisa velha. Continha somente alguns móveis e objetos grosseiros, pobres, o estritamente necessário. Dois jarros de flores na janela, a um canto, numerosos ícones; um deles representava uma virgem de grandes dimensões, pintada provavelmente muito tempo antes do Raskol.[ 52 ] Uma lâmpada ardia diante dela. Não longe, dois outros ícones de revestimentos cintilantes, depois dois querubins esculpidos, pequenos ovos de porcelana, um crucifixo de marfim, com uma Mater Dolorosa que o abraçava, e algumas gravuras estrangeiras, reproduções de grandes pintores italianos dos séculos passados. Ao lado dessas obras de valor, exibiam-se litografias russas para uso do povo, representando santos, mártires, prelados, as quais se vendiam por alguns copeques em todas as feiras. Miúsov lançou uma olhadela rápida sobre aquelas imagens, depois fixou seu olhar no stáriets. Respeitava sua maneira de ver, fraqueza desculpável, seguramente, se se considera que já tinha cinquenta anos, idade em que um homem do mundo, inteligente e opulento, leva-se sempre mais a sério, por vezes mesmo contra sua vontade.

Desde o começo, o stáriets causara-lhe desagrado. Havia efetivamente em sua figura algo que teria desagradado a muitos outros e não apenas a Miúsov. Era um homenzinho curvado, de pernas muito fracas, de sessenta anos somente, mas que parecia ter dez anos mais, por causa de sua doença. Todo o seu rosto, aliás bastante seco, estava sulcado de pequenas rugas, sobretudo em redor dos olhos. Tinha os olhos claros, não muito grandes, vivos e brilhantes como dois pontos luminosos. Seus cabelos grisalhos chegavam-lhe apenas às têmporas; sua barba, pequena e rala, acabava em ponta; os lábios, delgados como duas correias, sorriam frequentemente; o nariz agudo lembrava um pássaro.

“Segundo toda a aparência, uma alma malévola e arrogante”, pensou. Em geral, estava muito descontente consigo mesmo.

O soar da hora ajudou o início do diálogo. Um pequeno relógio de pesos bateu 12 pancadas.

— A hora exata — exclamou Fiódor Pávlovitch —, e meu filho Dimítri Fiódorovitch que não chega! Peço-lhe desculpas por ele, santo stáriets! (Aliócha estremeceu ao ouvir aquelas palavras “santo stáriets”.) Sou sempre pontual, dentro do prazo, lembrando-me de que a pontualidade é a polidez dos reis.

— No entanto, o senhor não é nenhum rei — resmungou Miúsov, incapaz de conter-se.

— É verdade, não o sou. E imagine, Piotr Alieksándrovitch, que eu mesmo o sabia, palavra! E falo sempre assim, fora de propósito! Vossa Reverência — exclamou ele, de súbito, num tom patético — tem diante de si um verdadeiro palhaço. É minha maneira de apresentar-me. Um velho hábito, ai de mim! Ora, se falo por vezes fora de propósito, é intencionalmente, com o fim de fazer rir e ser agradável. É preciso ser agradável, não é verdade? Há sete anos, cheguei a uma cidadezinha para tratar duns negocinhos, umas contas em sociedade com uns negociantezinhos. Fomos à casa do isprávnik, uma vez que tínhamos algo a pedir-lhe e para convidá-lo a comer conosco. Aparece o isprávnik: era um homem de alta estatura, gordo, louro e carrancudo — os indivíduos mais perigosos em semelhante caso, pois a bílis os atormenta. Abordo-o com a desenvoltura de um homem do mundo: “Senhor isprávnik — disse eu —, o senhor será talvez, por assim dizer, o nosso Naprávnik?”[ 53 ] — “Que Naprávnik?” — perguntou ele. Vi imediatamente que aquilo não pegava, que ele continuava todo grave; obstinei-me: “É uma brincadeira, quis tornar todos alegres, porque o senhor Naprávnik é um chefe de orquestra conhecido; ora, para a harmonia de nosso empreendimento, precisamos justamente duma espécie de chefe de orquestra.” A explicação e a comparação eram razoáveis, não? “Perdão — disse ele —, sou isprávnik e não permito que se façam trocadilhos a respeito de minha profissão.” Volta as costas e retira-se. Corro atrás dele gritando: “Sim, sim, o senhor é isprávnik e não Naprávnik.” — “Não — replicou ele —, o senhor disse, sou Naprávnik.” Imaginem que isso fez fracassar nosso negócio! Nem por isso me emendei. Prejudico-me por causa de minha amabilidade! Certa vez, há muitos anos, dizia eu a um personagem importante: “Sua esposa é uma mulher coceguenta”, no sentido de ser muito sensível em questões de honra, de qualidades morais, por assim dizer, ao que ele me replica: “O senhor lhe fez cócegas?” Não pude conter-me, banquemos o amável, pensei: “Sim, fiz-lhe cócegas”; mas então quem me fez cócegas foi ele... Aconteceu há muito tempo, por isso não tenho vergonha de contá-lo; é sempre assim que causo prejuízo a mim mesmo.

— E está causando agora — murmurou Miúsov, com desagrado.

O stáriets examinava um a um, em silêncio.

— Deveras? Imagine que já o sabia, Piotr Alieksándrovitch, e, até mesmo, saiba que pressentia o que faço, desde que comecei a falar, e até mesmo, saiba-o, pressentia que seria o senhor o primeiro a observar-me isso. Nesses momentos, quando vejo que minhas pilhérias não dão resultado, Reverendíssimo Senhor, minhas bochechas começam a dessecar-se na direção das gengivas, tenho quase como uma convulsão; isso remonta à minha mocidade, quando era parasita em casa dos nobres e ganhava meu pão por meio dessa habilidade. Sou um palhaço autêntico, inato. Reverendíssimo Senhor, a mesma coisa que um idiota; não nego que um espírito mau more talvez em mim, bem modesto em todo caso; se fosse mais importante, ter-se-ia alojado em outra parte, somente não no senhor, Piotr Alieksándrovitch, porque o senhor não é importante. Em compensação, creio, creio em Deus. Nesses últimos tempos, tinha dúvidas; mas agora espero sublimes palavras. Pareço-me com o filósofo Diderot,[ 54 ] Reverendíssimo Senhor. Sabe o senhor, santíssimo padre, como se apresentou ele diante do metropolita Platon, no reinado da imperatriz Katierina? Entrou e largou sem mais: “Não há Deus.” Ao que o grande prelado respondeu, de dedo erguido: “O insensato disse em seu coração: ‘Não há Deus!’. Imediatamente Diderot lançou-se a seus pés: Creio — exclamou ele e quero ser batizado! Batizaram-no ali mesmo. A princesa Dachkova[ 55 ] foi a madrinha, e Potiomkin,[ 56 ] o padrinho.

— Fiódor Pávlovitch, é intolerável! Porque o senhor mesmo sabe que está mentindo e que essa estúpida anedota é falsa; por que fazer-se malicioso? — proferiu com voz trêmula Miúsov, que já não se podia conter.

— Toda a minha vida pressenti que era isso uma mentira! — exclamou Fiódor Pávlovitch, entusiasmando-se. — Em compensação, senhores, dir-lhes-ei toda a verdade. Eminente stáriets, perdoe-me, eu mesmo inventei esse fim, ainda há pouco, com o batismo de Diderot; isso jamais me ocorrera antes. Inventei-o para dar certo ar picante ao caso. Se me faço de malicioso, Piotr Alieksándrovitch, é para ser mais gentil. De resto, por vezes, não sei eu mesmo por quê. Quanto a Diderot, ouvi contar isto: “O insensato disse...” umas vinte vezes em minha juventude, pelos proprietários de terras do país, quando morava entre eles; ouvi-o dizer, Piotr Alieksándrovitch, de sua tia, Mavra Fomínichna. Até agora, estão todos persuadidos de que o ímpio Diderot fora à casa do metropolita Platon para discutir a existência de Deus...

Miúsov levantara-se, não somente porque perdera a paciência, mas achava-se fora de si. Estava furioso e compreendia que isso o tornava ridículo. Com efeito, passava-se na cela algo de intolerável. Havia quarenta ou cinquenta anos, ainda no tempo dos precedentes stártsi, os visitantes reuniam-se naquela cela, mas sempre com a mais profunda veneração. Quase todos quantos eram admitidos compreendiam que lhes era concedido um insigne favor. Muitos, dentre eles, punham-se de joelhos e assim ficavam durante toda a visita. Pessoas de posição elevada, eruditos e até mesmo livres-pensadores, vindos, quer por curiosidade, quer por qualquer outro motivo, achavam um dever o testemunhar ao stáriets profunda deferência e grandes atenções, durante toda a entrevista — quer fosse pública ou privada —, tanto mais quanto não havia questão de dinheiro. Só havia o amor e a bondade, em presença do arrependimento e da sede de resolver algum difícil problema moral ou uma crise da vida do coração. Assim, as piadas a que se entregara Fiódor Pávlovitch, chocantes em tal lugar, haviam provocado o embaraço e o espanto das testemunhas, em todo o caso de várias dentre elas. Os religiosos, que permaneciam impassíveis, fixavam sua atenção no que iria dizer o stáriets, mas pareciam já prestes a levantar-se como Miúsov. Aliócha tinha vontade de chorar e curvava a cabeça. Toda a sua esperança repousava em seu irmão Ivan, o único cuja influência seria capaz de deter seu pai, e estava estupefato por vê-lo sentado, imóvel, de olhos baixos, aguardando com curiosidade o desenlace daquela cena, como se fosse completamente estranho a ela. Era impossível a Aliócha olhar para Rakítin (o seminarista), com o qual vivia quase em intimidade: conhecia seus pensamentos (era, aliás, o único a conhecê-los em todo o mosteiro).

— Desculpe-me... — começou Miúsov, dirigindo-se ao stáriets — se pareço tomar parte nessa indigna pilhéria. Errei ao acreditar que, até mesmo um indivíduo da qualidade de Fiódor Pávlovitch, visitando uma personalidade tão respeitável, saberia compreender suas obrigações... Não pensava que seria preciso desculpar-me por ter vindo com ele...

Piotr Alieksándrovitch não acabou e, todo confuso, queria sair já do quarto.

— Não se inquiete, rogo-lhe — disse o stáriets, que, erguendo-se sobre seus pés débeis, pegou Piotr Alieksándrovitch pelas duas mãos e obrigou-o a tornar a sentar-se. — Acalme-se, rogo-lhe. O senhor é meu hóspede.

Dito isso, e após uma reverência, voltou a sentar-se no divã.

— Eminente stáriets, diga-me, será que minha vivacidade o ofende!? — exclamou, de repente, Fiódor Pávlovitch, agarrando-se nos dois braços da poltrona, como prestes a saltar, de acordo com a resposta que recebesse.

— Rogo-lhe igualmente que não se inquiete e não se constranja — declarou o stáriets com majestade. — Não se constranja, esteja como que em sua casa. Sobretudo não tenha tanta vergonha de si mesmo, porque todo o mal vem daí.

— Completamente como em minha casa? Isto é, ao natural? Oh! É demais, é muito demais. Aceito, porém, com enternecimento! Sabe, meu venerando padre? Não me leve a mal mostrar-me ao natural, é por demais arriscado... eu mesmo não chego a esse ponto. Digo isso para que o senhor se previna. Pois bem! O resto está ainda enterrado nas trevas do desconhecido, se bem que alguns quisessem enforcar-me. Isso dirige-se ao senhor, Piotr Alieksándrovitch; quanto ao senhor, santa criatura, eis o que declaro: “Estou transbordante de entusiasmo!” Levantou-se e, de braços para o ar, proferiu: “Bendito o ventre que te concebeu e benditos os peitos que te amamentaram, os peitos sobretudo!” Com aquela sua observação de há pouco: “Não tenha tanta vergonha de si mesmo, porque todo o mal vem daí”, o senhor como que me transpassou e leu em mim. Justamente, quando me dirijo às pessoas, parece-me que sou a mais vil de todas e que todo mundo me toma por um palhaço; então digo a mim mesmo: “Sejamos palhaço, não temo vossa opinião, porque vós sois todos, até o derradeiro, mais vis do que eu!” Eis por que sou palhaço, por vergonha, eminente padre, por vergonha. Somente por timidez é que me faço de valentão. Porque se estivesse certo, ao entrar, de que todos me acolheriam como um ser simpático e ajuizado, meu Deus!, como eu seria bom! Mestre — pôs-se de repente de joelhos —, que é preciso fazer para ganhar a vida eterna?

Mesmo então, era difícil saber se brincava ou cedia ao enternecimento.

O stáriets ergueu os olhos para ele e declarou, sorrindo:

— Há muito tempo que o senhor mesmo sabe o que é preciso fazer; não lhe falta senso: não se entregue à embriaguez e à intemperança de linguagem; não se entregue à sensualidade, sobretudo ao amor ao dinheiro; e feche seus botequins, pelo menos dois ou três, se não pode fechá-los todos. Mas sobretudo, antes de tudo, não minta.

— É a propósito de Diderot que o senhor diz isso?

— Não, não é a propósito de Diderot. Sobretudo não minta ao senhor mesmo. Aquele que mente a si mesmo e escuta a própria mentira vai ao ponto de não mais distinguir a verdade, nem em si nem em torno de si; perde, pois, o respeito de si e dos outros. Não respeitando ninguém, deixa de amar; e para se ocupar, e para se distrair, na ausência de amor, entrega-se às paixões e aos gozos grosseiros; chega até a bestialidade em seus vícios, e tudo isso provém da mentira contínua a si mesmo e aos outros. Aquele que mente a si mesmo pode ser o primeiro a ofender-se. É por vezes bastante agradável ofender a si mesmo, não é verdade? Um indivíduo sabe que ninguém o ofendeu, mas que ele mesmo forjou uma ofensa e mente para embelezar, enegrecendo de propósito o quadro, que se ligou a uma palavra e fez dum montículo uma montanha — ele próprio o sabe, portanto é o primeiro a ofender-se, até o prazer, até experimentar uma grande satisfação, e por isso mesmo chega ao verdadeiro ódio... Mas levante-se, sente-se, rogo-lhe; isso também é um gesto falso...

— Bem-aventurado! Deixai-me beijar-vos a mão. — Fiódor Pávlovitch levantou-se e pousou os lábios sobre a mão descarnada do stáriets. — Justamente, justamente, ofender-se a si mesmo causa prazer. O senhor disse-o tão bem, como jamais o ouvi dizer. Justamente, justamente, senti prazer em toda a minha vida com as ofensas, por um sentimento de estética, porque ser ofendido não somente causa prazer, mas por vezes é belo. Eis o que o senhor esqueceu, eminente stáriets: a beleza! Notá-lo-ei no meu caderninho! Quanto a mentir, não faço senão isso em toda a minha vida, a cada dia e a cada hora. Na verdade, sou mentira e o pai da mentira! Aliás, creio que não é o pai da mentira, embaraço-me nos textos, pois bem, o filho da mentira, e isso basta. Somente... meu anjo... pode-se por vezes florear a respeito de Diderot! Isso não faz mal, ao passo que certas palavras podem fazer mal. Eminente stáriets, a propósito, recordo-me de que, há três anos, tinha prometido a mim mesmo vir aqui informar-me e descobrir com insistência a verdade; peça somente a Piotr Alieksándrovitch que não me interrompa. Eis de que se trata. É verdade, reverendo padre, o que se conta em alguma parte das Vidas dos santos, a respeito dum santo taumaturgo, que sofreu o martírio pela fé, depois de ter sido decapitado, ergueu do chão sua cabeça e, “beijando-a delicadamente”, a carregou muito tempo em seus braços? É verdade ou não, meus padres?

— Não, não é verdade — disse o stáriets.

— Não há nada de semelhante em nenhuma Vidas dos santos. A propósito de que santo diz o senhor que se relata esse fato? — perguntou um religioso, o padre bibliotecário.

— Ignoro qual. Não tenho conhecimento disso. Induziram-me em erro. Ouvi-o dizer, e sabe por quem? Por esse mesmo Piotr Alieksándrovitch Miúsov, que ainda há pouco se zangava a respeito de Diderot; era ele quem contava isso.

— Jamais lhe contei isso, pela razão muito justa de que não converso nunca com o senhor.

— É verdade que não contou isso a mim, mas numa reunião social em que me encontrava há quatro anos. Se lembrei o fato, é que o senhor abalou minha fé com essa narrativa cômica, Piotr Alieksándrovitch. O senhor de nada sabia, mas voltei para minha casa com a fé abalada e desde então vacilo cada vez mais. Sim, Piotr Alieksándrovitch, foi o senhor causa duma grande queda. É coisa bem diversa de Diderot!

Fiódor Pávlovitch acalorava-se duma maneira patética, se bem que fosse evidente para todos que ele de novo não fazia senão exibir-se. Mas Miúsov estava exacerbado.

— Que absurdo, como tudo isso, aliás! — murmurou ele. — Talvez tenha-o dito uma vez, na verdade... mas não ao senhor. Falaram-me disso. Ouvi em Paris um francês contar que se lê entre nós esse episódio na missa, nas Vidas dos santos. Foi um erudito que tem especialmente estudado a estatística da Rússia... há muito tempo. Quanto a mim, não li as Vidas dos santos e não a lerei... Pode-se bem dizer coisas durante o jantar... Nós estávamos jantando, então...

— Sim, os senhores estavam jantando então e eu perdi a fé! — disse para aborrecê-lo Fiódor Pávlovitch.

— Que me importa sua fé! — ia gritar Miúsov, mas conteve-se e proferiu com desprezo: — O senhor emporcalha, literalmente, tudo quanto toca.

O stáriets levantou-se de repente.

— Desculpem-me, senhores, deixá-los a sós por alguns minutos — disse ele, dirigindo-se a todos os visitantes —, mas já me esperavam antes da chegada dos senhores. Quanto ao senhor, abstenha-se de mentir — acrescentou, voltando-se para Fiódor Pávlovitch, com o rosto alegre.

Saiu da cela. Aliócha e o noviço lançaram-se a ajudá-lo a descer a escada. Aliócha sufocava; sentia-se feliz por sair, feliz igualmente por ver o stáriets alegre e não ofendido. O stáriets dirigia-se para a galeria, a fim de abençoar aquelas que o esperavam, mas Fiódor Pávlovitch deteve-o às portas da cela.

— Bem-aventurado! — exclamou ele, sentimentalmente. — Permita-me que lhe beije ainda uma vez a mão! Com o senhor pode-se conversar, pode-se viver. O senhor pensa que minto sempre assim e que banco o palhaço? Era para verificar se se pode viver com o senhor, se há lugar para minha humildade ao lado de sua altivez. Passo-lhe um certificado de sociabilidade! Agora, nem mais uma palavra. Vou sentar-me e ficar em silêncio. Cabe ao senhor falar, Piotr Alieksándrovitch, o senhor passa a ser o personagem principal... por dez minutos.

 

III


As mulheres crentes


Embaixo da galeria de madeira que dava para o muro exterior do recinto apertavam-se umas vinte mulheres do povo. Tinham-nas prevenido de que o stáriets sairia afinal e haviam-se agrupado à espera. As proprietárias Khokhlakovi esperavam-no igualmente, mas num quarto da galeria, reservado às visitantes de qualidade. Eram duas: a mãe e a filha. A primeira, senhora rica e sempre trajada com gosto, era ainda bastante jovem e de exterior bastante agradável, de olhos vivos e quase negros. Tinha apenas 33 anos e estava viúva havia cinco. Sua filha, de 14 anos, tinha as pernas paralíticas. A pobre menina não andava mais havia seis meses; carregavam-na numa cadeira de rodas. Tinha um rosto delicioso, um pouco emagrecido pela doença, mas alegre. Algo de folgazão brilhava em seus grandes olhos sombrios, de longas pestanas. Desde a primavera estava a mãe disposta a levá-la ao estrangeiro, mas trabalhos efetuados em suas terras haviam-nas retardado. Fazia uma semana, viviam em nossa cidade, mais por negócios que por devoção, mas já haviam visitado o stáriets três dias antes. Agora voltavam e, embora sabendo que o stáriets não podia quase receber mais ninguém, suplicavam que lhes concedesse “a felicidade de ver o grande curador”. Aguardando a vinda dele, a mãe estava sentada ao lado da poltrona de sua filha; a dois passos mantinham-se de pé um velho monge, vindo dum longínquo convento do Norte e que desejava receber a bênção do stáriets. Mas este, quando apareceu na galeria, dirigiu-se diretamente ao povo. A multidão comprimia-se em torno do patamar de três degraus que unia a galeria baixa ao solo. O stáriets manteve-se no degrau superior, revestiu-se da estola e pôs-se a abençoar as mulheres que o cercavam. Trouxeram-lhe uma possessa que seguravam pelas duas mãos. Assim que ela avistou o stáriets, foi tomada dum soluço, lançando gemidos e sacudida por espasmos, como numa crise de eclampsia. Tendo-lhe coberto a cabeça com a estola, pronunciou o stáriets sobre ela uma curta prece e ela acalmou-se imediatamente. Ignoro o que se passa agora, mas na minha infância tive muitas vezes ocasião de ver e de ouvir essas possessas, nas aldeias e nos conventos. Levadas à missa, ganiam e ladravam na igreja, mas, quando traziam o santo sacramento e elas dele se aproximavam, a “crise demoníaca” cessava imediatamente e as doentes se acalmavam sempre por certo tempo. Ainda menino, isso me espantava e me surpreendia bastante. Ouvia então certos proprietários rurais e sobretudo professores da cidade responderem às minhas perguntas que era aquilo uma simulação para não trabalhar e que se podia sempre reprimi-la, mostrando severidade. Citavam-se em apoio disso diversas anedotas. Mais tarde, soube com espanto, de médicos especialistas, que não havia ali nenhuma simulação, que era uma terrível doença das mulheres, atestando, mais particularmente na Rússia, a dura condição de nossa camponesa. Provinha de trabalhos estafantes, executados muito cedo, após laboriosos partos mal efetuados, sem nenhuma ajuda médica: além disso, desespero, maus-tratos, etc., etc., o que certas naturezas femininas não podem suportar, malgrado o exemplo geral. A cura estranha e súbita de uma possessa presa de convulsões, desde que a aproximavam das sagradas espécies, cura atribuída então à simulação e, além do mais, a um ardil empregado, por assim dizer, pelos próprios “clérigos”, efetuava-se provavelmente também da maneira mais natural. As mulheres que conduziam a doente, e sobretudo ela própria, estavam persuadidas, como duma verdade evidente, de que o espírito impuro que a possuía jamais poderia resistir na presença do santo sacramento, diante do qual inclinavam a infeliz. De modo que, numa mulher nervosa e psiquicamente doente, produzia-se sempre (e isso devia ser) como que um abalo nervoso de todo o organismo, abalo causado pela expectativa do milagre da cura e pela fé absoluta na sua realização. E ele se realizava, nem que fosse por um minuto. Foi o que ocorreu, assim que o stáriets cobriu a doente com a estola.

Muitas das mulheres que se comprimiam em redor dele vertiam lágrimas de enternecimento e de entusiasmo, sob a impressão daquele minuto; outras avançavam para beijar nem que fosse a orla do hábito dele; algumas lamentavam-se. Ele abençoava todas e conversava com elas. Conhecia já a possessa, que morava numa aldeia a seis verstas do mosteiro; não era a primeira vez que a traziam.

— Eis uma que vem de longe! — disse ele, apontando uma mulher ainda jovem, mas muito magra e desfeita, o rosto mais enegrecido que queimado. Estava de joelhos e fitava o stáriets com um olhar imóvel. Seu olhar tinha qualquer coisa de desvairado.

— Venho de longe, bátiuchka, de longe, a trezentas verstas daqui. De longe, meu pai, de longe — repetiu a mulher como um estribilho, balançando a cabeça da direita para a esquerda, com a face apoiada na palma de sua mão. Falava como que se lamentando. Há no povo uma dor silenciosa e paciente; entra em si mesma e se cala. Mas há uma outra que explode: manifesta-se por lágrimas e se expande em lamentações, sobretudo entre as mulheres. Não é mais ligeira que a dor silenciosa. As lamentações só se acalmam, roendo e dilacerando o coração. Semelhante dor não quer consolações, repasta-se com a ideia de ser inextinguível. As lamentações são apenas a necessidade de irritar cada vez mais a ferida.

— A senhora é da cidade, sem dúvida? — continuou o stáriets, olhando-a com curiosidade.

— Moramos na cidade, bátiuchka; somos do campo, mas moramos na cidade. Vim para ver-te. Ouvimos falar de ti, bátiuchka. Enterrei meu filhinho bem novo, fui rogar a Deus, estive em três conventos e disseram-me: “Vá lá embaixo também, Nastássiuchka, isto é, vir ter com o senhor, bátiuchka, com o senhor.” Vim, estava ontem de noite na igreja e eis-me aqui.

— Por que choras?

— Choro pelo meu filho bátiuchka; ele estava com três anos, ia fazê-los dentro de três meses. É por causa dele que me atormento. Era o último; Nikítuchka e eu tivemos quatro, mas os meninos não ficam em nossa casa, bem-amado, não ficam. Enterrei os três primeiros, não tinha tanto pesar, mas este último, não posso esquecê-lo. É como se tivesse ficado diante de mim, não se vai embora. Estou de alma ressequida. Contemplo sua roupinha, sua camisinha, suas botinas, e soluço. Exponho tudo quanto restou depois dele, cada coisa, contemplo-as e choro. Digo a Nikítuchka, meu marido: “Ah, meu senhor, deixa-me ir em peregrinação.” Ele é cocheiro, temos de tudo, meu pai, temos de tudo, vivemos por nossa conta, tudo nos pertence, os cavalos e os carros. Mas de que servem agora todos esses bens? Sem mim, meu Nikítuchka deve ter-se posto a beber, decerto, e, já antes, assim que eu me afastava fraquejava ele. Mas agora não penso mais nele, há três meses que abandonei a casa. Esqueci tudo e não quero mais lembrar-me de nada; que farei dele agora? Rompi com ele e com todos. E agora não desejaria ver minha casa e meus bens e preferiria mesmo ter perdido a vista.

— Escuta, mãe — proferiu o stáriets. — Outrora um grande santo avistou no templo uma mãe que chorava como tu, também por causa de seu filho único que o Senhor havia igualmente chamado a si. “Não sabes — disse-lhe o santo — como são atrevidas essas criancinhas diante do Trono de Deus? Não há mesmo ninguém mais atrevido, no reino dos céus. ‘Senhor, Tu nos deste a vida — dizem eles a Deus —, mas apenas vimos o dia. Tu no-la tomaste.’ Pedem e reclamam tão atrevidamente que o Senhor faz deles logo anjos. Por isso, disse o santo, rejubila-te e não chores, teu filho acha-se agora na casa do Senhor, no coro dos anjos.” Eis o que disse, nos tempos antigos, o santo à mulher que chorava. Era um grande santo e nada podia dizer-lhe que não fosse verdade. Sabe pois, mãe, que teu filho também se acha decerto diante do Trono do Senhor, regozija-se, diverte-se e roga a Deus por ti. Podes chorar, mas rejubila-te.

A mulher escutava-o, com a face na mão, inclinada. Suspirou profundamente.

— Era da mesma maneira que Nikítuchka me consolava: “Não és razoável — dizia ele —, por que chorar? Nosso filho, decerto, canta agora com os anjos junto do Senhor.” Diz-me isso e ele mesmo chora, vejo suas lágrimas. “Eu sei — digo eu —, Nikítuchka. Onde estaria ele senão na casa do Senhor? Somente não está mais aqui conosco, neste momento, bem perto, como ficava outrora.” Oh! Se eu pudesse revê-lo uma vez, uma vez, apenas, sem me aproximar dele, sem falar, ocultando-me em um canto. Vê-lo somente um minuto, ouvi-lo brincar lá fora, vir, como vinha por vezes, gritar com sua vozinha: “Mamãe, onde estás?” Se eu pudesse ouvir seus pezinhos trotarem pelo quarto; bem muitas vezes, lembro-me, corria para mim com gritos e risadas. Se pudesse ao menos ouvi-lo! Mas ele não está mais lá, bátiuchka, e não o ouvirei nunca mais! Eis o seu cinto, mas ele não está mais lá e tudo acabou para sempre!...

Tirou do seio o cinturãozinho de passamanaria de seu filho; assim que o olhou, foi abalada por soluços, ocultando os olhos com seus dedos através dos quais corriam torrentes de lágrimas.

— Ah! — exclamou o stáriets. — Isto é o antigo “Raquel chorando seus filhos sem poder ser consolada, porque eles não mais existem”. Tal é a sorte que vos está destinada neste mundo, ó mães! Não te consoles, não é preciso que te consoles, chora, mas, cada vez que chorares, lembra-te de que teu filho é um dos anjos de Deus, que, lá do alto, te olha e te vê, que se rejubila com tuas lágrimas e mostra-as ao Senhor; por muito tempo ainda tuas lágrimas maternais correrão, mas afinal tornar-se-ão uma alegria tranquila, tuas lágrimas amargas serão lágrimas de enternecimento e de purificação, que salvam do pecado. Rogarei pelo repouso da alma de teu filho. Como se chamava ele?

— Alieksiêi, bátiuchka.

— Um belo nome. Tinha por santo padroeiro Alieksiêi, “homem de Deus”?

— Sim, bátiuchka, Alieksiêi, “homem de Deus”.[ 57 ]

— Que grande santo! Rogarei por ele, mãe, não esquecerei tua aflição em minhas preces; rogarei também pela saúde de teu marido, mas é um pecado abandoná-lo, volta para ele, toma bastante cuidado com ele. Lá do alto, teu filho vê que abandonaste o pai frlr e chora por vós. Por que perturbar a sua beatitude? Ele vive porque a alma vive eternamente, não está em casa, mas encontra-se bem perto de vós, invisível. Como virá ele à tua casa, se dizes que a detestas? Para quem virá ele, se não vos encontra em casa, se não vos encontra juntos, o pai e a mãe? Ele te aparece agora e ficas atormentada; então enviar-te-á doces sonhos. Volta para teu marido, mãe, hoje mesmo.

— Irei, bem-amado, segundo a tua palavra; leste em meu coração. Nikítuchka, tu me esperas, meu querido, tu me esperas — começava a mulher a lamentar-se, mas já o stáriets se voltava para uma velhinha, vestida não de peregrina, mas de citadina. Por seus olhos, via-se que tinha um caso, que viera para comunicar alguma coisa. Era a viúva dum suboficial, morador de nossa cidade. Seu filho, Vássienhka, empregado num comissariado, partira para Irkutsk, na Sibéria. Escrevera duas vezes, mas havia um ano que estava ela sem notícias; havia-se informado, mas na verdade não sabia mesmo onde informar-se.

— Um dia desses, Stiepanida Ilínichna Biedriáguina, uma rica comerciante, me dizia: “Escreve o nome de teu filho num papel, Prókhorovna, vai à igreja e encomenda preces pelo repouso de sua alma. Sua alma ficará angustiada e ele te escreverá. É esse — afirmou Stiepanida Ilínichna — um meio seguro e frequentemente posto em prática.” Tenho somente dúvidas... Tu, que és nossa luz, dize-me se isso é verdade ou mentira, bem ou mal?

— Guarda-te bem disso. É até vergonhoso pedi-lo. Como se pode rezar pelo repouso de uma alma viva, e ainda por cima sua própria mãe? É um grande pecado, como a feitiçaria; somente tua ignorância vale-te o perdão. Reza, antes, pela saúde dele à Rainha dos Céus, a Pronta Medianeira, Auxiliadora dos Pecadores, a fim de que ela perdoe teu erro. Escuta, Prókhorovna: ou teu filho voltará em breve para ti, ou enviará decerto uma carta. Fica sabendo. Vá em paz, teu filho está vivo, digo-te.

— Bem-amado, que Deus te recompense, a ti, nosso benfeitor, que reza por nós todos e por nossos pecados...

Mas o stáriets já havia notado na multidão o olhar ardente, dirigido para ele, duma camponesa de aspecto de tuberculosa, acabada, se bem que ainda jovem. Ela olhava em silêncio, seus olhos imploravam alguma coisa, mas parecia temer aproximar-se.

— Que queres, minha cara?

— Alivia minha alma, bem-amado — murmurou ela, docemente. Sem pressa, pôs-se de joelhos, prosternou-se a seus pés. — Pequei, meu bom pai, e tenho medo de meu pecado.

O stáriets sentou-se no derradeiro degrau. A mulher aproximou-se dele, sempre de joelhos.

— Sou viúva há três anos — começou ela a meia-voz. — Era penoso viver com meu marido, era velho e batia-me duramente. Estava deitado, doente, e, pensava eu, olhando-o: “Mas se ele restabelecer-se e levantar-se de novo, que acontecerá então?” E essa ideia não me deixou mais...

— Espera — disse o stáriets e aproximou seu ouvido dos lábios dela. A mulher continuou com uma voz que mal se ouvia. Logo terminou.

— Há três anos? — perguntou o stáriets.

— Três anos. A princípio, não pensava nisso, mas a doença chegou e estou cheia de angústia.

— Vens de longe?

— Caminhei quinhentas verstas.

— Confessaste-te?

— Confessei-me duas vezes.

— Fostes admitida à comunhão?

— Admitiram-me. Tenho medo; tenho medo de morrer.

— Não temas nada e nunca tenhas medo, não te apoquentes. Contanto que o arrependimento perdure, Deus perdoa tudo. Não há pecado sobre a terra que Deus não perdoe àquele que se arrepende sinceramente. O homem não pode cometer pecado tão grande que esgote o amor infinito de Deus. Por que poderá haver pecado que ultrapasse o amor de Deus? Sem cessar, não sonhes senão com o arrependimento e bane todo temor. Crê que Deus te ama como não podes imaginá-lo, se bem que te ame em teu pecado e com teu pecado. Haverá mais alegria nos céus por um pecador que se arrepende do que por dez justos. Não te aflijas a respeito dos outros e não te irrites com as injúrias. Perdoa em teu coração ao defunto todas as suas ofensas contra ti, reconcilia-te com ele em verdade. Se te arrependes, é que o amas. Ora, se amas, serás já de Deus... O amor tudo redime e tudo salva. Se eu, um pecador como tu, me enterneci, se tive piedade de ti, com mais forte razão o Senhor. O amor é um tesouro tão inestimável que em troca podes adquirir o mundo inteiro e redimir não só teus pecados, mas os dos outros. Vá e não temas nada.

Fez três vezes sobre ela o sinal da cruz, tirou de seu pescoço uma pequena imagem, passou-a no pescoço da pecadora, que se prosternou em silêncio até o chão. Ele se levantou e olhou alegremente uma mulher robusta que trazia nos braços um bebê.

— Venho de Vichegórie, bem-amado.

— Tu te cansaste andando seis verstas com esse menino. Que queres?

— Vim ver-te. Não é a primeira vez, já te esqueceste? Tens memória fraca, se não te lembras de mim. Dizia-se lá em nossa aldeia que estavas doente. “Pois bem — pensei —, eu mesma irei vê-lo!” Vejo que não tens nada. Viverás ainda vinte anos, palavra! Não rezam bastante por ti, como haverias de cair doente?

— Obrigado por tudo, minha cara.

— A propósito, tenho um pequeno pedido a fazer-te. Aqui estão sessenta copeques. Dá-os a outra mais pobre do que eu. Ao vir para cá, pensava: “valerá melhor entregá-los a ele, que saberá a quem dá-los.”

— Obrigado, minha cara, obrigado, minha boa mulher, eu te amo. Não deixarei de fazer o que pedes. É uma menina que tens nos braços?

— Uma menina, bem-amado, Lisavieta.

— Que o Senhor vos abençoe as duas, a ti e à pequena Lisavieta. Tu alegraste meu coração, mãe. Adeus, minhas queridas filhas.

Abençoou todas e fez-lhes uma profunda reverência.

 

IV


Uma dama sem muita fé


A dama proprietária, recentemente chegada, testemunha dessa conversação com as mulheres do povo e da bênção, vertia suaves lágrimas que enxugava com seu lenço. Era uma mulher da sociedade, sensível, de tendências virtuosas. Quando o stáriets a abordou, por fim, acolheu-o com entusiasmo.

— Experimentei uma tal impressão, contemplando essa cena enternecedora... — a emoção cortou-lhe a palavra. — Oh! Compreendo que o povo vos ame, eu mesma amo o povo. Como não se haveria de amar nosso excelente povo russo, tão ingênuo em sua grandeza?

— Como vai sua filha? Quis de novo entreter-se comigo?

— Oh! Pedi instantemente, tenho suplicado, estava pronta a me pôr de joelhos e a ficar três dias diante de vossas janelas, até que me deixásseis entrar. Vimos, grande curador, exprimir-vos todo o nosso reconhecimento entusiasta. Porque fostes vós que curastes Lisa, completamente, quinta-feira, rezando diante dela e impondo-lhe as mãos. Tínhamos pressa em beijar essas mãos, em testemunhar nossos sentimentos e nossa veneração.

— Eu a curei, diz a senhora? Ela, porém, está ainda deitada em sua poltrona.

— Mas as febres noturnas desapareceram completamente há dois dias, a partir de quinta-feira — disse a dama com uma solicitude nervosa. — Não é tudo: suas pernas fortificaram-se. Esta manhã, levantou-se de boa saúde. Olhai suas cores e seus olhos que brilham. Chorava constantemente, agora ri, está alegre, jovial. Hoje, exigiu que a pusessem de pé e manteve-se um minuto sozinha, sem nenhum apoio. Quer apostar comigo que dentro de 15 dias dançará uma quadrilha? Mandei chamar o doutor Herzenstube; ele levanta os olhos e diz: “Estou admirado, não compreendo nada disso.” E queríeis vós que não vos incomodássemos, que não acorrêssemos aqui, para agradecer-vos? Lisa, vamos, agradece!

O rostinho de Lisa tornou-se subitamente sério. Ergueu-se de sua poltrona tanto quanto pôde e, fitando o stáriets, juntou as mãos, mas não pôde conter-se e pôs-se a rir.

— É dele que rio, dele — disse ela, mostrando Aliócha, contrariada por não poder impedir-se de rir. Observando-se o rapaz, que se mantinha por trás do stáriets, ter-se-ia visto que suas faces se cobriam dum rápido rubor. Seus olhos brilharam e ele os baixou.

— Ela tem um recado para você, Alieksiêi Fiódorovitch... Como vai você? — continuou ela dirigindo-se a Aliócha e estendendo-lhe a mão deliciosamente enluvada. O stáriets voltou-se e examinou Aliócha. Este aproximou-se de Lisa e estendeu-lhe a mão, sorrindo acanhadamente. Lisa assumiu um ar grave.

— Katierina Ivânovna pediu-me que lhe remetesse isto — e entregou-lhe uma pequena carta. — Ela lhe pede que vá vê-la o mais cedo possível e sem falta.

— Ela me pede que eu vá à casa dela? Por quê?... — murmurou Aliócha com profundo espanto. Seu rosto tornou-se preocupado.

— Oh! É a propósito de Dimítri Fiódorovitch e... de todos esses últimos acontecimentos — explicou rapidamente a mãe. — Katierina Ivânovna firmou-se agora numa decisão... mas para isso deseja vê-lo... Por quê? Ignoro-o, decerto, mas pediu ela que fosse o mais cedo possível e você não deixará de ir lá, os sentimentos cristãos o obrigam a isso.

— Vi-a uma vez ao todo — continuou Aliócha, sempre perplexo.

— Oh! É uma criatura tão nobre, tão inacessível!... Quando menos por seus sofrimentos... Considere o que tem ela suportado, o que ela suporta agora e o que a espera... Tudo isso é horrível, horrível!

— Está bem, irei — decidiu Alieksiêi, depois de ter lido o bilhete, curto e enigmático, que não continha nenhuma explicação, a não ser a súplica instante para que ele fosse.

— Ah! Como é gentil de sua parte — exclamou Lisa, animadamente. — Dizia eu a mamãe: “Ele jamais irá, está tratando de sua salvação.” Como você é bom! Sempre pensei que você era bom. É um prazer dizer-lhe isso agora!

— Lisa! — disse gravemente a mãe, que, aliás, sorriu.

— Você nos esqueceu, Alieksiêi Fiódorovitch, não quer absolutamente visitar-nos. Entretanto, Lisa me disse duas vezes que só se encontrava bem em sua companhia. — Aliócha ergueu seus olhos baixos, corou de novo e sorriu sem saber por quê. Aliás, o stáriets não o observava mais. Entrara em conversa com o monge que aguardava sua vinda, como o dissemos, ao lado da cadeira de Lisa. Era, pelo que se via, um monge duma condição das mais modestas, de ideias estreitas e paradas, mas crente e obstinado a seu modo. Contou que vivia longe, no Norte, em Obdorsk, no convento de São Silvestre, pobre mosteiro, que só contava nove monges. O stáriets abençoou-o, convidou-o a vir à sua cela, quando bem lhe parecesse.

— Como tentais semelhantes coisas? — perguntou o monge, mostrando gravemente Lisa. Fazia alusão à sua “cura”.

— É ainda demasiado cedo para falar disso. Um alívio não é a cura completa e pode ter outras causas. Mas o que pôde passar-se é unicamente devido à vontade de Deus. Tudo vem dele. Venha ver-me, padre — acrescentou ele —, eu não poderei vir sempre; estou doente e sei que meus dias estão contados.

— Oh! Não, não, Deus não vos arrebatará de nós, vivereis ainda muito tempo, muito tempo — exclamou a mãe. — Além disso, qual a vossa doença? Pareceis de tão bom aspecto, alegre e feliz.

— Sinto-me muito melhor hoje, mas sei que não é por muito tempo. Conheço agora a fundo minha doença. Se lhe pareço tão alegre, nada me pode causar mais prazer que ouvi-la dizer isso. Porque a felicidade é o fim do homem, e aquele que tem sido completamente feliz tem o direito de dizer a si mesmo: “Cumpri a lei divina nesta terra.” Os justos, os santos, os mártires todos foram felizes.

— Oh! As ousadas, as sublimes palavras! — exclamou a mãe. — Elas nos transpassam! Entretanto, onde está a felicidade? Quem pode dizer-se feliz? Oh! Já que tivestes a bondade de permitir que vos viéssemos ver ainda hoje, escutai tudo quanto não vos disse na derradeira vez, tudo quanto não ousava dizer-vos, aquilo de que sofro desde tanto tempo! Porque eu sofro, desculpai-me, eu sofro... — e, num ímpeto de fervor, juntou as mãos diante dele.

— De quê, particularmente?

— Sofro... porque não creio...

— Não crê em Deus?

— Oh! Não, não, não ouso pensar nisso, mas a vida futura, que enigma? E ninguém pode responder a isso! Escutai-me, vós que conheceis a alma humana e a curais; sem dúvida, não ouso pedir-vos que me acrediteis absolutamente, mas asseguro-vos, da maneira mais solene, que não é por leviandade que falo agora, essa ideia da vida de além-túmulo me emociona até o sofrimento, até o espanto e o pavor... E não sei a quem dirigir-me, não ousei toda a minha vida... Agora me permito dirigir-me a vós... Oh! Deus! Por quem me tomais?

Bateu as mãos uma contra a outra.

— Não se inquiete com a minha opinião — respondeu o stáriets. — Creio perfeitamente na sinceridade de sua angústia.

— Oh! Como vos sou grata! Vede: fecho os olhos e sonho. Se todos acreditam, donde vem isso? Assegura-se que tudo isso provém a princípio do medo, inspirado pelos fenômenos grandiosos da natureza, mas que nada existe. Pois bem! Penso eu, acreditei toda a minha vida; morrerei e não haverá nada e somente “a relva brotará sobre o túmulo”, como se exprime um escritor. É horrível! Como recuperar a fé? Aliás, cri somente na minha infância, mecanicamente, sem pensar em nada... Como me convencer? Vim inclinar-me diante de vós e rogar-vos que me esclareçais. Porque se deixo passar a ocasião presente nunca mais me responderão. Como persuadir-me? De acordo com que provas? Quanto sou infeliz! Em redor de mim, ninguém se preocupa com isso, quase ninguém; ora, não posso suportar isso sozinha. É esmagador!

— Decerto, é esmagador. Mas onde nada se pode provar, pode a gente persuadir-se.

— Como? De que maneira?

— Pela experiência do amor que age. Esforce-se por amar seu próximo com ardor e sem cessar. À medida que progredir no amor, convencer-se-á a senhora da existência de Deus e da imortalidade de sua alma. Se for até a abnegação total em seu amor ao próximo, então acreditará indubitavelmente e nenhuma dúvida mesmo poderá aflorar sua alma. Está isso demonstrado pela existência.

— O amor que age! Eis ainda uma questão, e que questão! Vede: amo tanto a humanidade que, acreditaríeis vós?, sonho por vezes abandonar tudo quanto tenho, deixar Lisa e fazer-me irmã de caridade. Fecho os olhos, sonho e devaneio; nesses momentos, sinto em mim uma força invisível. Nenhum ferimento, nenhuma chaga purulenta poderia horrorizar-me. Eu as pensarei, as lavarei com minhas próprias mãos, serei a enfermeira desses pacientes, prestes a beijar suas úlceras...

— Já é muito que a senhora tenha tais pensamentos. Por acaso acontecer-lhe-á praticar verdadeiramente uma boa ação.

— Sim, mas poderia eu suportar muito tempo tal existência? — continuou a dama, apaixonadamente, com um ar quase desvairado. — Eis a questão capital, a que mais me atormenta. Fecho os olhos e pergunto a mim mesma: “Persistirias muito tempo nessa via? Mas se o doente, cujas úlceras tu lavas, pagar-te com ingratidão, puser-se a atormentar-te com seus caprichos, sem apreciar nem notar teu devotamento, se gritar contra ti, se mostrar-se exigente e queixar-se mesmo à diretoria (como acontece muitas vezes quando se sofre muito), farás então o quê? Continuará o teu amor?” Imaginai que já decidi, com um arrepio: “Se há alguma coisa que possa esfriar imediatamente meu amor ‘que age’ em favor da humanidade, é unicamente a ingratidão.” Numa palavra: trabalho por um salário, exijo-o imediatamente, sob forma de elogios e de amor em troca do meu. De outro modo, não posso amar ninguém.

Depois de haver-se assim fustigado, num acesso de sinceridade, ela fitou o stáriets com um atrevimento provocante.

— É exatamente o que me contava, há muito tempo, aliás, um médico — observou o stáriets. — Era um homem de idade madura e verdadeiramente inteligente, exprimia-se tão francamente quanto a senhora, se bem que brincando, mas com tristeza. “Eu amo — dizia ele — a humanidade, mas admiro-me de mim mesmo. Tanto mais amo a humanidade em geral, quanto menos amo as pessoas em particular, como indivíduos. Muitas vezes tenho sonhado apaixonadamente em servir à humanidade, e talvez tivesse verdadeiramente subido ao calvário por meus semelhantes, se tivesse sido preciso, muito embora não possa viver com ninguém dois dias no mesmo quarto. Sei-o por experiência. Desde que alguém está junto de mim, sua personalidade oprime meu amor-próprio e constrange minha liberdade. Em 24 horas, posso mesmo antipatizar com as melhores pessoas: uma, porque fica muito tempo à mesa, outra, porque está resfriada e só faz espirrar. Torno-me o inimigo dos homens, apenas se acham eles em contato comigo. Em compensação, invariavelmente, quanto mais detesto as pessoas em particular, tanto mais ardo de amor pela humanidade em geral.”

— Mas que fazer? Que fazer em semelhante caso? É de desesperar.

— Não, porque basta que a senhora fique desolada. Faça o que puder e ser-lhe-á levado isso em conta. A senhora já fez muito para ser capaz de conhecer a si mesma, de maneira tão profunda, tão sincera. Se me falou agora com tal franqueza, unicamente para receber meus elogios por sua veracidade, não atingirá nada, seguramente, no domínio do amor que age. Tudo se limitará a sonhos e sua vida escoar-se-á como um sonho. Então, naturalmente, esquecerá a vida futura e para o fim tranquilizar-se-á duma maneira ou de outra.

— Vós me acabrunhais! Compreendo somente agora, como acabais de dizer-me, que, ao contar-vos o horror que sinto pela ingratidão, esperava vossos elogios à minha sinceridade, e nada mais. Sugeristes, captastes meus pensamentos para nos revelardes.

— Fala sério? Pois bem! Depois de tal confissão, creio que a senhora é boa e sincera. Se não atingir a felicidade, lembre-se sempre de que está no bom caminho e trate de não sair dele. Sobretudo, evite toda mentira, particularmente a mentira para consigo mesma. Observe sua mentira, examine-a a cada instante. Evite também a repugnância para com os outros e para consigo mesma: o que lhe parece mau na senhora mesma está purificado, pelo simples fato de que o notou na senhora. Evite também o temor, se bem que seja ele somente a consequência de toda mentira. Não tema jamais a própria covardia na procura do amor, não se deixe mesmo atemorizar demais por suas más ações a esse propósito. Lamento nada poder dizer-lhe de mais rejubilante, porque o amor que age, comparado com o amor contemplativo, é algo de cruel e atemorizante. O amor contemplativo tem sede de realização imediata e de atenção geral. Chega-se a ponto de dar a vida, com a condição de que isso não dure muito tempo, e que tudo se acabe rapidamente, como no palco, sob os olhares e os elogios. O amor atuante é o trabalho e o domínio de si, e para alguns toda uma ciência. Ora, predigo-lhe que no momento mesmo em que a senhora verificar com terror que, malgrado todos os seus esforços, não somente não se aproximou a senhora do alvo, mas até mesmo dele se afastou — nesse momento, predigo-lhe —, a senhora atingirá o alvo e verá acima da senhora a força misteriosa do Senhor, que a terá guiado com amor, sem que a senhora soubesse. Desculpe-me não poder demorar mais tempo com a senhora. Esperam-me. Adeus.

A dama chorava.

— Lisa, Lisa, abençoai-a — disse ela com ímpeto.

— Ela não merece ser amada. Vi-a divertir-se todo o tempo — brincou o stáriets. — Por que zombou de Alieksiêi?

Lisa, com efeito, dedicara-se todo o tempo a isso. Desde muito tempo, desde o ano anterior, notara que Aliócha se perturbava em sua presença, evitava olhá-la, e isso tornou-se muito divertido para ela. Fitava-o; buscava seu olhar. Não resistindo àquele olhar fixo, obstinadamente sobre ele, Aliócha, impelido por uma força invisível, olhava-a por sua vez; imediatamente ela se abria num sorriso triunfante. Isso aumentava a confusão e o despeito de Aliócha. Afinal afastou-se completamente dela, ocultando-se por trás do stáriets. Ao fim de alguns minutos, como que hipnotizado, voltou-se para ver se o olhavam. Lisa, quase fora de sua cadeira, observava-o de viés e esperava impacientemente que ele a olhasse; tendo assim captado o olhar dele, explodiu em tal gargalhada que o stáriets não pôde conter-se.

— Por que, sua brejeira, faz você que ele core dessa maneira?

Lisa ficou toda vermelha, seus olhos brilhavam, seu rosto ficou sério e com voz lamentosa, indignada, disse nervosamente:

— Por que esqueceu ele tudo? Quando eu era bem pequenina, carregava-me em seus braços, brincávamos juntos. Foi ele quem me ensinou a ler, sabíeis? Há dois anos, ao partir, disse que não o esqueceria jamais, que éramos amigos para sempre, para sempre! E ei-lo agora que tem medo de mim, como se eu fosse comê-lo. Por que não se aproxima e não quer falar? Por qual razão não nos vem ver? Não é porque vós o retenhais, pois sabemos que ele vai a toda parte. Não é conveniente para mim convidá-lo. Deveria ele lembrar-se em primeiro lugar, se não esqueceu. Não, agora trata de sua salvação! Por que o revestistes desse hábito de longas abas?... Se correr, cairá...

De súbito, não suportando mais, ocultou o rosto nas mãos e rebentou numa gargalhada nervosa, prolongada, silenciosa, que a sacudia toda. O stáriets, que a havia escutado sorrindo, abençoou-a com ternura; ao beijar-lhe a mão, ela a apertou contra seus olhos e se pôs a chorar.

— Não vos zangueis comigo, sou uma bobinha, não valho coisa alguma... Aliócha tem talvez razão em não querer ir à casa duma moça tão ridícula.

— Eu o mandarei lá, sem falta — cortou o stáriets.

 

V


Assim seja!


A ausência do stáriets durara cerca de 25 minutos. Era mais de meio-dia e meia e Dimítri Fiódorovitch, por causa de quem se havia convocado a reunião, ainda não tinha chegado. Mas tinham-no quase esquecido, e quando o stáriets reapareceu na cela, encontrou seus visitantes ocupados numa conversação bastante animada. Travava-se, sobretudo, entre Ivan Fiódorovitch e os dois religiosos. Miúsov a ela se misturava com ardor, mas sem grande êxito. Ficava em segundo plano e não lhe respondiam, o que só fazia aumentar sua irritabilidade. Anteriormente, já havia feito duelo de erudição com Ivan Fiódorovitch e não podia suportar de sangue-frio certa falta de atenções da parte deste último. “Até agora, pelo menos, estava eu no nível de tudo quanto há de progressista na Europa, mas essa nova geração nos ignora totalmente”, pensava consigo mesmo. Fiódor Pávlovitch, que havia jurado ficar sentado sem dizer palavra, guardou silêncio por algum tempo, mas observava, com um sorriso zombeteiro, seu vizinho Piotr Alieksándrovitch, cuja irritação o alegrava visivelmente. Desde muito tempo se dispunha a pagar-lhe na mesma moeda e não queria deixar passar a ocasião. Por fim, não se conteve mais, inclinou-se para o ombro de seu vizinho e mexeu com ele a meia-voz.

— Por que não partiu ainda há pouco, depois da anedota do santo, e consentiu em ficar em companhia tão inconveniente? É que, sentindo-se humilhado e ofendido, ficou o senhor para mostrar seu espírito e tirar sua vingança. Agora o senhor não irá embora sem tê-lo mostrado.

— O senhor recomeça? Vou-me embora agora mesmo, pelo contrário.

— Será o último a sair — lançou-lhe Fiódor Pávlovitch.

O stáriets voltou quase imediatamente.

A discussão parou por um minuto, mas tendo o stáriets retomado seu lugar, passeou seu olhar sobre os assistentes como para convidá-los a continuar. Aliócha, que conhecia cada expressão de seu rosto, viu que ele estava extenuado e exigia demais de suas forças. Nos últimos tempos de sua doença, desmaiava de fraqueza. A palidez, que era o sintoma disso, espalhava-se agora por seu rosto; tinha os lábios exangues, mas não queria evidentemente despedir a assembleia, tendo para isso suas razões. Quais? Aliócha observava-o com atenção.

— Comentamos um artigo bastante curioso do senhor — explicou o padre Ióssif, o bibliotecário, designando Ivan Fiódorovitch. — Há muitas apreciações novas, mas a tese parece de dois gumes. É um artigo em resposta a um padre, autor de uma obra a respeito dos tribunais eclesiásticos e da extensão de seus direitos.

— Infelizmente, não li seu artigo, mas ouvi falar dele — respondeu o stáriets, olhando atentamente para Ivan Fiódorovitch.

— O senhor coloca-se dum ponto de vista bastante curioso — continuou o padre bibliotecário. — Parece rejeitar absolutamente a separação da Igreja e do Estado na questão dos tribunais eclesiásticos.

— É curioso, mas em qual sentido? — perguntou o stáriets a Ivan Fiódorovitch.

Este respondeu-lhe afinal, não com um ar altivo, pedante, como Aliócha receava ainda na véspera, mas num tom modesto, discreto, excluindo qualquer segunda intenção.

— Parto do princípio de que essa confusão dos elementos essenciais da Igreja e do Estado, tomados separadamente, durará sem dúvida para sempre, se bem que seja impossível e jamais se possa levá-la a um estado não somente normal, mas um pouco conciliável, porque repousa sobre uma mentira. Um compromisso entre a Igreja e o Estado, em questões tais como a da justiça, por exemplo, é, na minha opinião, essencialmente impossível. O eclesiástico a quem replico sustenta que a Igreja ocupa no Estado um lugar preciso e definido. Objetei-lhe que a Igreja, pelo contrário, longe de ocupar apenas um canto no Estado, devia absorver o Estado inteiro, e que, se isso é atualmente impossível, deveria ser, por definição, o alvo direto e principal de todo o desenvolvimento ulterior da sociedade cristã...

— Perfeitamente justo — declarou com voz firme e nervosa o padre Paísi, religioso taciturno e erudito.

— É ultramontanismo puro! — exclamou Miúsov, cruzando as pernas em sua impaciência.

— Pois se nem sequer temos montes em nosso país! — exclamou o padre Ióssif, que continuou, dirigindo-se ao stáriets. — O senhor refuta os princípios “fundamentais e essenciais” de seu adversário, um eclesiástico, notai-o. Ei-los: em primeiro lugar: “Nenhuma associação pública pode nem deve atribuir-se o poder, dispor dos direitos políticos e civis de seus membros”; em segundo lugar: “O poder, em matéria civil e criminal, não deve pertencer à Igreja, porque é incompatível com sua natureza, como instituição divina e como associação que se propõe fins religiosos.” Afinal, em terceiro lugar: “A Igreja é um reino que não é deste mundo.”

— É esse um jogo de palavras totalmente indigno de um eclesiástico! — interrompeu, de novo, o padre Paísi, com impaciência. — Li a obra que o senhor refuta — disse ele, dirigindo-se a Ivan Fiódorovitch — e fiquei surpreso diante das palavras daquele padre: “A Igreja é um reino que não é deste mundo.” Se ela não é deste mundo, não poderia existir sobre a terra. No Santo Evangelho, as palavras “não és deste mundo” são empregadas num outro sentido. É impossível brincar com semelhantes palavras. Nosso Senhor Jesus Cristo veio precisamente estabelecer a Igreja sobre a terra. O reino dos céus, bem entendido, não é deste mundo, mas do céu, e nele só se entra pela Igreja, a qual foi fundada e estabelecida sobre a terra. Também os trocadilhos mundanos e esse respeito são impossíveis e indignos. A Igreja é verdadeiramente um reino, está destinada a reinar, e finalmente seu reino se estenderá sobre o universo inteiro, temos disso a promessa...

Calou-se de repente, como que se contendo. Ivan Fiódorovitch, depois de havê-lo escutado com deferência e atenção, com a maior calma, continuou com a mesma simplicidade, dirigindo-se ao stáriets.

— A ideia mestra de meu artigo é que o cristianismo, nos três primeiros séculos de sua existência, aparece sobre a terra como uma Igreja e não era outra coisa. Quando o Estado romano pagão adotou o cristianismo, aconteceu que, tornado cristão, incorporou a si a Igreja, mas continuou a ser um Estado pagão numa multidão de atribuições. No fundo, era isso inevitável. Roma, como Estado, herdara por demais da civilização e da sabedoria pagãs, como, por exemplo, os fins e as próprias bases do Estado. A Igreja do Cristo, inserida no Estado, não podia evidentemente nada cortar de suas bases, da pedra sobre a qual repousava; só podia prosseguir os seus fins, firmemente estabelecidos e indicados pelo próprio Senhor, entre outros: converter em Igreja o mundo inteiro e, por consequência, o Estado pagão antigo. Dessa maneira (isto é, em vista do futuro), não era a Igreja que devia procurar para si um lugar definido no Estado, como “toda associação pública”, ou como “uma associação que se propunha fins religiosos” (para empregar os termos do autor que refuto), mas, pelo contrário, todo Estado terrestre devia posteriormente converter-se em Igreja, não ser senão isso, renunciar a seus outros fins incompatíveis com os da Igreja. Isso não o humilha absolutamente, não diminui nem sua honra nem sua glória, como grande Estado, nem a glória de seus chefes, mas isso a faz deixar a falsa via, ainda pagã e errada, pela via justa, a única que leva aos fins eternos. Eis por que o autor do livro as Bases da justiça eclesiástica teria pensado com justeza se, procurando e propondo essas bases, as tivesse considerado um compromisso provisório, necessário ainda à nossa época pecadora e imperfeita, mas nada mais. Desde, porém, que o autor ousa declarar que as bases que propõe agora, e das quais o padre Ióssif acaba de aumentar uma parte, são inabaláveis, primordiais, eternas, está ele em oposição direta à Igreja e sua predestinação santa imutável. Eis a exposição completa de meu artigo.

— Isto é, em duas palavras — disse o padre Ióssif, fazendo força sobre cada palavra —, segundo certas teorias, que não fizeram senão revelar-se por demais no nosso século XIX, a Igreja deve converter-se em Estado, passar como que dum tipo inferior a um superior, a fim de absorver-se em seguida nele, depois de ter cedido à ciência, ao espírito do tempo, à civilização. Se ela se recusa a isso e resiste, não lhe reservam no Estado senão um pequeno lugar, vigiando-a, e por toda parte é esse o caso na Europa de nossos dias. Pelo contrário, segundo a concepção e a esperança russas, não é a Igreja que deve converter-se em Estado como que dum tipo inferior em um superior, é, pelo contrário, o Estado que deve finalmente mostrar-se digno de ser unicamente uma Igreja e nada mais. Assim seja! Assim seja!

— Pois bem, confesso-o, o senhor me reconfortou um pouco — disse Miúsov, sorrindo e cruzando de novo as pernas. — Tanto quanto o compreendo, é a realização dum ideal infinitamente longínquo, por ocasião do regresso do Cristo. É tudo quanto se quer. O sonho utópico do desaparecimento das guerras, dos diplomatas, dos bancos, etc. Alguma coisa que se assemelhe mesmo ao socialismo. Ora, pensava eu que tudo isso era sério, que a Igreja ia “agora”, por exemplo, julgar os criminosos, condenar ao chicote, à galé e até mesmo à pena de morte.

— Se houvesse atualmente um só tribunal eclesiástico, a Igreja não enviaria agora às galés ou ao suplício. O crime e a maneira de encará-lo deveriam então seguramente modificar-se pouco a pouco, não duma só vez, mas, no entanto, bastante depressa... — declarou num tom tranquilo Ivan Fiódorovitch.

— Fala seriamente? — interrogou Miúsov, fitando-o.

— Se a Igreja absorvesse tudo, excomungaria o criminoso e o refratário, mas não cortaria as cabeças — continuou Ivan Fiódorovitch. — Pergunto-vos: aonde iria o excomungado? Porque deveria, então, não somente separar-se das pessoas, mas do Cristo. Pelo seu crime, insurgir-se-ia não só contra as pessoas, mas contra a Igreja do Cristo. É o caso, atualmente, sem dúvida, no sentido estrito, no entanto não é proclamado, e a consciência do criminoso de hoje transige muitas vezes: “Roubei, diz ela, mas não vou contra a Igreja, não sou o inimigo do Cristo.” Eis o que diz frequentemente o criminoso de hoje. Pois bem, quando a Igreja tiver substituído o Estado, ser-lhe-á difícil falar assim, a menos que negue a Igreja na terra inteira: “Todos, diria ele, estão no erro, todos se desviaram, a Igreja deles é falsa, somente eu, assassino e ladrão, sou a verdadeira Igreja cristã.” É dificílimo manter essa linguagem, supõe isso condições extraordinárias, circunstâncias que raramente existem. Atualmente, considerai de outra parte o ponto de vista da própria Igreja para com o crime: será que não deveria modificar-se em oposição ao de hoje, que é quase pagão, e, de meio mecânico de cortar um membro gangrenado, como se pratica atualmente para preservar a sociedade, transformar-se totalmente na ideia da regeneração do homem, de sua ressurreição e de sua salvação...?

— Que quer dizer isso? Deixo de novo de compreender — interrompeu Miúsov. — Ainda um sonho. Algo de informe, de incompreensível. Que excomunhão é essa? Creio que o senhor se diverte simplesmente, Ivan Fiódorovitch.

— Na realidade, é assim mesmo atualmente — começou o stáriets e todos se voltaram para ele. — Se não houvesse agora a Igreja do Cristo, não haveria para o criminoso nem freio a seus crimes nem castigo, uma vez cometidos, isto é, um castigo real, não mecânico, como o senhor acaba de dizer, e que não faz senão irritar na maior parte dos casos, mas o único eficaz, o único que amedronta e acalma e que consiste na confissão da própria consciência...

— Como se pode dar isso, permita-me que lhe pergunte? — disse Miúsov com viva curiosidade.

— Pois vou dizer-lhe — prosseguiu o stáriets. — Todas essas deportações a trabalhos forçados, agravadas outrora por punições corporais, não emendam ninguém e sobretudo não atemorizam quase nenhum criminoso, o número dos crimes não somente não diminui, como só faz aumentar, à medida que se avança. Estarão nisso de acordo comigo. Resulta que dessa maneira não fica a sociedade de modo algum preservada, porque, muito embora o membro nocivo seja mecanicamente cortado e mandado para longe, oculto à vista, outro criminoso surgiu em seu lugar, talvez mesmo dois. Se alguma coisa protege ainda a sociedade, mesmo em nossos dias, emenda o próprio criminoso e faz dele outro homem, é ainda unicamente a lei do Cristo que se manifesta pela voz da própria consciência. Somente depois de ter reconhecido sua falta como filho da sociedade do Cristo, isto é, da Igreja, é que se reconhecerá diante da própria sociedade, isto é, diante da Igreja. Dessa maneira, é somente diante da Igreja que o criminoso contemporâneo é capaz de reconhecer sua falta e não diante do Estado. Se a justiça pertencesse à sociedade na qualidade de Igreja, saberia então a quem revogar da excomunhão, a quem admitir em seu seio. Agora a Igreja, não tendo nenhuma justiça efetiva, mas somente a possibilidade de uma condenação moral, renuncia ela própria a castigar efetivamente o criminoso. Não o excomunga, cerca-o de sua edificação paternal. Mais ainda, esforça-se mesmo por conservar com o criminoso todas as relações entre a Igreja e o cristão; admite-o nos ofícios, na comunhão, faz-lhe caridade e trata-o mais como transviado do que como criminoso. E que seria do criminoso, Senhor, se a sociedade cristã, isto é, a Igreja, o rejeitasse como o rejeita e o exclui a lei civil? Que aconteceria, se a Igreja o excomungasse cada vez que o castiga a lei do Estado? Não poderia haver maior desespero, pelo menos para os criminosos russos, porque eles ainda têm fé. Ora, aliás, quem sabe, aconteceria talvez uma coisa terrível — a perda da fé no coração ulcerado do criminoso, e, então, o que haveria? Mas a Igreja, como uma mãe terna, renuncia ela mesma ao castigo efetivo, visto que sem isso o culpado já é demasiado duramente punido pelo tribunal secular e é preciso haver alguém que tenha compaixão dele. Renuncia a isso sobretudo porque a justiça da Igreja encerra em si unicamente a verdade e não pode juntar-se, por consequência, essencial e moralmente, a nenhuma outra, mesmo sob a forma de compromisso provisório. Aqui, é impossível transigir. O criminoso estrangeiro, dizem, arrepende-se raramente, porque as doutrinas contemporâneas o confirmam na ideia de que seu crime não é crime, mas somente uma revolta contra a força que o oprime injustamente. A sociedade o afasta de si mesma por meio de uma força que triunfa dele totalmente de maneira mecânica e acompanha essa exclusão de ódio (é assim, pelo menos, que se conta na Europa) — de ódio e de uma indiferença, dum esquecimento completo a respeito do destino ulterior desse homem, do ponto de vista fraternal. Dessa maneira, tudo se passa sem que a Igreja testemunhe a menor compaixão, porque em numerosos casos não há mais Igreja lá, não subsistem senão eclesiásticos e edifícios magníficos, esforçando-se as próprias Igrejas há muito tempo por passar do tipo inferior, como Igreja, ao tipo superior, como Estado. É assim pelo menos, parece, nos países luteranos. Em Roma, há já mil anos que, em lugar de Igreja, proclamou-se o Estado. Assim o próprio criminoso não se reconhece membro da Igreja e, excomungado, cai no desespero. Se volta para a sociedade, é frequentemente com tal ódio que a própria sociedade o exclui espontaneamente de seu seio. Podeis julgar como isso acaba. Em numerosos casos, parece que o mesmo ocorre entre nós; mas o fato é que, à parte os tribunais estabelecidos, temos além disso a Igreja, que não perde jamais o contato com o criminoso, que é para ela um filho sempre caro; além do mais, existe e subsiste, ainda que apenas em ideia, a justiça da Igreja, se bem que não efetiva agora, mas viva para o futuro, mesmo em sonho, e reconhecida certamente pelo próprio criminoso, pelo instinto de sua alma. O que se acaba de dizer aqui é justo, a saber, que, se a justiça da Igreja entrasse em vigor, isto é, que se a sociedade inteira se convertesse em Igreja, então não somente a justiça da Igreja influiria na emenda do criminoso como não o faz nunca atualmente, mas os próprios crimes diminuiriam em proporção inverossímil. E a Igreja, sem dúvida alguma, compreenderia no futuro, em numerosos casos, o crime e os criminosos duma maneira diferente da atual; saberia converter o excomungado, prevenir as intenções criminosas, regenerar o decaído. É verdade — e o stáriets sorriu — que a sociedade cristã não está ainda preparada para isso e só repousa sobre sete justos; mas como eles não se enfraquecem, permanece ela na expectativa de sua transformação completa de associação quase pagã em Igreja única, universal e reinante. Assim será, nem que seja no fim dos séculos, porque só isso está predestinado a cumprir-se! E não há por que preocupar-se a propósito dos tempos e dos prazos, porque o mistério deles depende da sabedoria de Deus, de Sua presciência, de Seu amor. E o que, a vistas humanas, parece bastante afastado está talvez, pela predestinação divina, em vésperas de cumprir-se. Assim seja!

— Assim seja! — confirmou respeitosamente o padre Paísi.

— Estranho, estranho no mais alto grau! — proferiu Miúsov, num tom de indignação contida.

— Que encontra nisso de estranho? — informou-se com precaução o padre Ióssif.

— Francamente, que é que isso significa!? — exclamou Miúsov, de súbito agressivo. — O Estado é eliminado e instaura-se a Igreja em seu lugar! — É ultramontanismo na segunda potência. O próprio Grigóri Siedmói[ 58 ] não o tinha sonhado!

— Sua interpretação é o contrário da verdade! — disse severamente o padre Paísi. — Não é a Igreja que se converte em Estado, notai-o bem, isto é Roma e seu sonho, é a terceira tentação diabólica. Pelo contrário, é o Estado que se converte em Igreja, que se eleva até ela e torna-se uma Igreja sobre a terra inteira, o que é diametralmente oposto a Roma, ao ultramontanismo, à vossa interpretação, e não é senão a missão sublime reservada à ortodoxia no mundo. É no Oriente que essa estrela começará a resplender.

Miúsov manteve um silêncio significativo. Toda a sua pessoa refletia uma dignidade extraordinária. Um sorriso de condescendência apareceu em seus lábios. Aliócha observava-o, com o coração palpitante. Toda aquela conversação havia-o emocionado extremamente. Olhou por acaso para Rakítin, imóvel no mesmo lugar, o qual escutava atento, de olhos baixos. Por seu rubor, adivinhou Aliócha que estava tão comovido quanto ele próprio: sabia por quê.

— Permiti-me, senhores, que vos conte uma anedota — começou Miúsov, com ar digno e imponente. — Tive ocasião, em Paris, após o golpe de Estado de dezembro, de visitar um de meus conhecidos, personagem importante, então no poder. Encontrei em casa dele um indivíduo bastante curioso que, sem ser de todo um policial, dirigia uma brigada da polícia política, posto bastante influente. Aproveitando a ocasião, conversei com ele por curiosidade; recebido na qualidade de subalterno que apresenta um relatório, ao ver-me em bons termos com seu chefe, testemunhou-me relativa franqueza, isto é, mais polidez que franqueza, à maneira dos franceses, tanto mais quanto sabia que eu era estrangeiro. Mas compreendi-o perfeitamente. Tratava-se dos socialistas revolucionários que estavam então sendo perseguidos. Negligenciando o resto de sua conversa, contentar-me-ei em relatar uma observação muito curiosa que escapou àquele personagem: “Não tememos demais — declarou ele — todos esses socialistas, anarquistas, ateus e revolucionários, nós os vigiamos e estamos ao corrente de seus atos e gestos. Mas entre eles existe uma categoria particular, na verdade pouco numerosa: são os que creem em Deus, embora sendo socialistas. Eis os que tememos mais que todos, é uma corja temível! O socialista cristão é mais perigoso que o socialista ateu.” Essas palavras tinham-me abalado então, e agora, senhores, junto de vós, elas me voltam à memória...

— Quer dizer que o senhor as aplica a nós e vê em nós socialistas? — perguntou sem rebuços o padre Paísi. Mas antes que Piotr Alieksándrovitch tivesse encontrado uma resposta, a porta se abriu e Dimítri Fiódorovitch entrou, consideravelmente atrasado. Na verdade, não o esperavam mais e sua aparição súbita causou a princípio certa surpresa...

 

VI


Por que tal homem existe?


Dimítri Fiódorovitch, jovem homem de 28 anos, de estatura média e de presença agradável, parecia, no entanto, notavelmente mais velho. Era musculoso e adivinhava-se nele uma força física considerável; no entanto, seu rosto magro, de faces chupadas, a tez dum amarelo doentio, tinha uma expressão enfermiça. Seus olhos negros, à flor da testa, mostravam um olhar vago, se bem que parecesse obstinado. Mesmo quando estava agitado e falava com irritação, seu olhar não correspondia a seu estado de alma e exprimia algo de diferente, por vezes nada em harmonia com o minuto presente. “É difícil saber em que ele pensa”, costumavam dizer os que falavam com ele. Em certos dias, seu riso súbito, atestando ideias alegres e travessas, surpreendia aqueles que o acreditavam, no mesmo momento, por seus olhos, pensativo e tristonho. Aliás, sua expressão um pouco sofredora naquele momento nada tinha de espantoso; todo mundo estava a par de sua vida agitada e dos excessos a que se entregava naqueles últimos tempos, da mesma maneira que se conhecia a exasperação que dele se apoderava em suas discussões com o pai, por questões de dinheiro. Circulavam na cidade anedotas a esse respeito. Na verdade, era irascível por natureza, “de um espírito impetuoso e irregular”, como o caracterizou numa reunião nosso juiz de paz Siemion Ivânovitch Katchálhnikov. Entrou vestido de modo elegante e irreprochável, com a sobrecasaca abotoada, de luvas pretas, cartola na mão. Como oficial há pouco tempo reformado, só trazia no momento os bigodes. Seus cabelos castanhos estavam cortados curtos e penteados para a frente. Caminhava a grandes passadas, com ar decidido. Tendo parado um instante na soleira da porta, passeou o olhar pela assistência e dirigiu-se diretamente ao stáriets, adivinhando nele o dono da casa. Fez-lhe uma profunda vênia e pediu-lhe a bênção. Tendo-se levantado o stáriets para dar-lhe, Dimítri Fiódorovitch beijou-lhe a mão com respeito e declarou com agitação e com um ar quase irritado:

— Queira desculpar-me por me ter feito esperar tanto. Mas como insistisse em conhecer a hora da entrevista, o criado Smierdiákov, enviado por meu pai, respondeu-me duas vezes, categoricamente, que estava marcada para uma hora. E, agora, venho a saber...

— Não se atormente — disse o stáriets —, não é nada, o senhor está um pouco atrasado, não há mal nisso.

— Sou-lhe muito grato e não esperava menos de sua bondade.

Depois dessas palavras lacônicas, Dimítri Fiódorovitch inclinou-se de novo, depois, voltando-se para o lado de seu pai, fez-lhe a mesma saudação profunda e respeitosa. Via-se que havia ele premeditado aquela saudação, com sinceridade, considerando uma obrigação exprimir assim sua deferência e suas boas intenções. Fiódor Pávlovitch, se bem que apanhado de improviso, saiu-se à sua maneira: em resposta à saudação do filho, levantou-se da cadeira e retribuiu-lhe igualmente. Seu rosto se tornou grave e imponente, o que não deixava de dar-lhe um aspecto mau. Depois de ter respondido em silêncio às saudações dos presentes, Dimítri Fiódorovitch dirigiu-se com passo decidido para a janela e ocupou o único assento livre, não longe de padre Paísi; inclinado sobre sua cadeira, preparou-se para escutar a continuação da conversa interrompida.

A chegada de Dimítri Fiódorovitch passara-se em dois ou três minutos e a conversação prosseguiu. Mas desta vez Piotr Alieksándrovitch não creu necessário responder à pergunta premente e quase irritada de padre Paísi.

— Permitam-me que abandone esse assunto — declarou ele, com certa desenvoltura mundana. — É, aliás, um assunto delicado. Vejam Ivan Fiódorovitch sorrindo para meu lado; tem provavelmente algo de curioso a dizer a esse propósito. Perguntem-lhe.

— Nada de particular — respondeu logo Ivan Fiódorovitch. — Farei somente observar que, desde muito tempo já, o liberalismo europeu em geral e mesmo nosso diletantismo liberal russo confundem frequentemente os resultados finais do socialismo com os do cristianismo. Essa conclusão extravagante é, aliás, um traço característico. Por outro lado, como se vê, não somente os liberais e os diletantes confundem em muitos casos o socialismo e o cristianismo, há também os gendarmes, no estrangeiro, bem entendido. A anedota parisiense do senhor é bastante característica a esse respeito, Piotr Alieksándrovitch.

— Em geral, peço de novo permissão para abandonar o assunto — repetiu Piotr Alieksándrovitch. — Contar-lhes-ei, antes, outra anedota bastante interessante e bastante característica, a propósito de Ivan Fiódorovitch. Há cinco dias, numa reunião em que se achavam sobretudo senhoras, declarou ele solenemente, no curso duma discussão, que nada no mundo obrigava as pessoas a amar seus semelhantes, que não existia nenhuma lei natural ordenando ao homem que amasse a humanidade; que se o amor havia reinado até o presente sobre a terra, era isso devido não à lei natural, mas unicamente à crença das pessoas em sua imortalidade. Ivan Fiódorovitch acrescentou entre parênteses que nisso está toda a lei natural, de sorte que se destruís no homem a fé em sua imortalidade, não somente o amor secará nele, mas também a força de continuar a vida no mundo. Mais ainda, não haverá então nada de imoral, tudo será autorizado, até mesmo a antropofagia. Não é tudo: terminou afirmando que para cada indivíduo — nós agora, por exemplo — que não acredita nem em Deus, nem em sua imortalidade, a lei moral da natureza devia imediatamente tornar-se o inverso absoluto da precedente lei religiosa; que o egoísmo, mesmo levado até a perversidade, devia não somente ser autorizado, mas reconhecido como a saída necessária, a mais razoável e quase a mais nobre. De acordo com tal paradoxo, julguem o resto, senhores, julguem o que nosso querido e excêntrico Ivan Fiódorovitch acha bom proclamar e suas intenções eventuais...

— Com licença! — exclamou de súbito Dimítri Fiódorovitch. — Se bem entendi, “a perversidade deve não somente ser autorizada, mas reconhecida como a saída mais necessária e a mais razoável de cada ateu”! É bem isso?

— É exatamente isso — disse o padre Paísi.

— Haverei de lembrar-me!

Dito isso, Dimítri Fiódorovitch calou-se tão subitamente quanto tinha tomado parte na conversa. Todos o olharam com curiosidade.

— Será possível que o senhor encare dessa forma as consequências do desaparecimento nas pessoas da crença na imortalidade da alma? — perguntou de súbito o stáriets a Ivan Fiódorovitch.

— Sim, afirmei-o. Não há virtude sem imortalidade.

— É feliz se assim acredita; pode-se ser muito infeliz!

— Por que infeliz? — objetou Ivan Fiódorovitch, sorrindo.

— Porque, segundo toda aparência, não crê o senhor nem na imortalidade da alma, nem mesmo no que escreveu a respeito da questão da Igreja.

— Talvez o senhor tenha razão!... No entanto, não brinquei absolutamente — confessou de modo estranho Ivan Fiódorovitch, corando imediatamente.

— O senhor não brincou absolutamente, é verdade. Essa ideia não está ainda resolvida no seu coração e tortura-o. Mas o mártir também gosta por vezes de divertir-se com seu desespero, igualmente como para esquecê-lo. No momento, é por desespero que o senhor se diverte com artigos de revistas e com discussões mundanas, sem acreditar em sua dialética e zombando dela dolorosamente a sós consigo. Essa questão não está ainda resolvida no senhor, e é isso que causa seu tormento, porque reclama ela imperiosamente
uma solução.

— Mas pode ela ser resolvida em mim, resolvida no sentido positivo? — perguntou ainda de modo estranho Ivan Fiódorovitch, olhando o stáriets com um sorriso inexplicável.

— Se não puder ser resolvida no sentido positivo, não o será nunca no sentido negativo; o senhor mesmo conhece essa propriedade de seu coração; é isso que o tortura. Mas agradeça ao Criador por ter-lhe dado um coração sublime, capaz de assim atormentar-se, “de meditar nas coisas celestes e procurá-las, porque nossa morada está nos céus”. Que Deus lhe conceda encontrar a solução ainda aqui embaixo e abençoe seus caminhos!

O stáriets ergueu a mão e quis, de seu lugar, fazer o sinal da cruz sobre Ivan Fiódorovitch. Mas este se levantou, foi até ele, recebeu sua bênção e, tendo-lhe beijado a mão, voltou a seu lugar sem dizer uma palavra. Tinha o ar firme e sério. Essa atitude e toda a sua conversa precedente com o stáriets, que não era esperada de sua parte, impressionaram a todos por não sei o quê de enigmático e solene; de sorte que um silêncio geral reinou por um instante e o rosto de Aliócha exprimia quase terror. Mas Miúsov ergueu os ombros ao mesmo tempo que Fiódor Pávlovitch se levantava.

— Divino e santo stáriets — exclamou ele, designando Ivan Fiódorovitch —, eis meu filho bem-amado, a carne de minha carne! E por assim dizer meu muito reverencioso Karl Moor, mas eis meu outro filho que acaba de chegar, Dimítri Fiódorovitch, contra o qual exijo satisfação perante o senhor — é o irreverentíssimo Frantz Moor —, ambos tirados de Os bandidos, de Schiller; e eu, nessa circunstância, sou o Regierender Graf von Moor![ 59 ] Julgue-nos e salve-nos! Temos necessidade não somente de suas preces, mas de seus vaticínios!

— Fale duma maneira ajuizada e não comece por ofender seus próximos — respondeu o stáriets com voz extenuada. Sua fadiga aumentava e suas forças decresciam visivelmente.

— É uma comédia indigna que eu previa, ao vir aqui! — exclamou com indignação Dimítri Fiódorovitch, que também se havia erguido. — Desculpe-me, reverendo padre, sou pouco instruído e ignoro mesmo como o chamam, mas enganaram-no, e foi o senhor demasiado bom para nos conceder esta entrevista em sua casa. Meu pai tinha necessidade absoluta de escândalo. Com que fim? É negócio dele. Só age calculadamente. Mas agora creio saber por quê...

— Todo mundo me acusa! — gritou por sua vez Fiódor Pávlovitch. — Inclusive Piotr Alieksándrovitch. Sim, o senhor me acusou, Piotr Alieksándrovitch! — prosseguiu, voltando-se para Miúsov, se bem que este não pensasse absolutamente em interrompê-lo. — Acusam-me de ter ocultado o dinheiro de meu filho e de não lhe ter dado um vintém sequer! Mas, pergunto-lhes, não há tribunais? Ali, Dimítri Fiódorovitch, de acordo com seus recibos, de acordo com as cartas e convênios, far-se-á a conta do que você tinha, de suas despesas e do que lhe resta! Por que evita Piotr Alieksándrovitch pronunciar-se? Dimítri Fiódorovitch não lhe é estranho. É porque estão todos contra mim; ora, Dimítri Fiódorovitch continua a dever-me, não uma pequena soma, mas vários milhares de rublos, do que posso dar as provas. Seus excessos provocam conversinhas da cidade inteira. Em suas antigas guarnições gastou mais de um milhar de rublos para seduzir moças honestas; só o sabemos, Dimítri Fiódorovitch, da maneira mais circunstanciada, e demonstrá-lo-ei... Reverendo padre, acreditaria o senhor que fez com que se apaixonasse por ele uma moça das mais distintas, de excelente família, com fortuna, filha de seu antigo chefe, um bravo coronel que serviu meritoriamente à pátria, condecorado com o colar de santa Ana com gládios? Essa moça, que ele comprometeu, oferecendo-se para casar com ela, mora agora aqui, órfã, é sua noiva, e, aos olhos dela, frequenta ele uma sereia. Se bem que esta última tenha vivido em união livre com um homem respeitável, mas de caráter independente, é uma fortaleza inexpugnável para todos, tal como uma mulher legítima, porque ela é virtuosa, sim, meus reverendos padres, ela é virtuosa! Ora, Dimítri Fiódorovitch quer abrir aquela fortaleza com uma chave de ouro, eis por que faz-se de bravo agora comigo, quer subtrair-me dinheiro, já gastou milhares de rublos por causa dessa sereia; além disso anda pedindo dinheiro emprestado sem cessar, e a quem, sabem os senhores? Devo dizê-lo ou não, Mítia?

— Cale-se! — exclamou Dimítri Fiódorovitch. — Espere que eu me retire, evite enodoar em minha presença a mais nobre das moças... É já uma vergonha para ele que tenha ousado fazer alusão a isso... Não o tolerarei!

Estava sufocado.

— Mítia, Mítia! — gritou Fiódor Pávlovitch, nervoso e fazendo força para chorar. — E a bênção paterna, que fazes dela? Se eu amaldiçoar-te, que acontecerá?

— Tartufo sem-vergonha! — rugiu Dimítri Fiódorovitch.

— É assim que trata seu pai, seu pai! Como o fará aos outros? Escutem, senhores, há aqui um homem pobre mas honrado; capitão reformado, que foi dispensado em consequência de uma desgraça, mas não em virtude de um julgamento, de reputação intacta, sobrecarregado de numerosa família. Há três semanas, o nosso Dimítri Fiódorovitch agarrou-o pela barba num botequim, arrastou-o pela rua e surrou-o em público, pela mera razão de estar esse homem secretamente encarregado de meus interesses em determinado negócio.

— Mentira tudo isso! Aparentemente é verdade; no fundo, pura mentira! — disse Dimítri Fiódorovitch, tremendo de cólera. — Meu pai, não justifico minha conduta; sim, convenho publicamente que fui brutal para com esse capitão. Agora lamento isso e minha brutalidade me causa horror, mas esse capitão, encarregado de seus negócios, foi procurar aquela pessoa que o senhor chama de sereia e lhe propôs de parte do senhor avalizar minhas promissórias, que estão em seu poder, a fim de perseguir-me e mandar-me prender, no caso de apertá-lo eu demais a propósito de nosso ajuste de contas. Se o senhor quer atirar-me na prisão é unicamente por ciúme dela, porque o senhor mesmo começou a rondar essa mulher — estou ao corrente de tudo. Ela só fez rir, está ouvindo? E foi zombando do senhor que o repeliu. Tal é, meus reverendos padres, esse homem, esse pai que censura a má conduta do filho. Os senhores, que são testemunhas, perdoem minha cólera, mas pressentia eu que esse pérfido velho os convocara a todos aqui para provocar um escândalo. Vim na intenção de perdoar, se ele me estendesse a mão, de perdoar-lhe e de pedir-lhe perdão! Mas como acaba ele de insultar não somente a mim, mas a moça mais nobre, cujo nome não ouso pronunciar em vão, porque a respeito, decidi desmascará-lo publicamente, se bem que seja meu pai.

Não pôde continuar. Seus olhos faiscavam, respirava com dificuldade. Todos os presentes estavam emocionados, exceto o stáriets; todos se haviam levantado, agitados. Os religiosos olhavam com olhar severo, mas aguardavam a vontade do stáriets. Este último estava pálido, não de emoção, mas de fraqueza doentia. Um sorriso suplicante desenhava-se em seus lábios; erguia por vezes a mão como para conter aqueles furiosos. Teria podido, com um só gesto, pôr fim à cena; mas parecia esperar qualquer coisa e olhava fixamente, como se quisesse ainda compreender um ponto que lhe teria escapado. Por fim, Piotr Alieksándrovitch sentiu-se definitivamente humilhado, atingido em sua dignidade.

— No escândalo que acaba de desenrolar-se, somos todos culpados! — declarou ele, apaixonadamente. — Mas não previa tudo isso vindo aqui, se bem que soubesse com quem tratava... É preciso acabar com isso sem tardar. Meu reverendo padre, fique certo de que eu não conhecia eu exatamente todos os detalhes revelados aqui, não queria acreditar neles e fico conhecendo-os pela primeira vez. O pai está com ciúmes de seu filho por causa de uma mulher de má vida e entende-se com essa criatura para lançá-lo na prisão... E é em semelhante companhia que me fizeram vir aqui... Enganaram-me, declaro ter sido enganado tanto quanto os outros...

— Dimítri Fiódorovitch! — gritou de súbito Fiódor Pávlovitch, com uma voz que não era a sua. — Se não fosse você meu filho, eu o desafiaria agora mesmo a um duelo... a pistola, a três passos... através de um lenço, através de um lenço — terminou ele, sapateando.

Há, nos velhos mentirosos que representam comédia a vida inteira, momentos em que entram de tal maneira em seu papel que tremem e choram com verdadeira emoção, se bem que, no mesmo instante, possam dizer a si mesmos (ou logo depois): “Tu mentes, velho descarado, és um ator mesmo agora, malgrado tua santa cólera.”

Dimítri Fiódorovitch ficou sombrio, mirando o pai com um desprezo indizível.

— Eu pensava... — disse ele em voz baixa — eu pensava voltar ao país natal com aquele anjo, minha noiva, para cuidar da velhice dele, e que vejo? Um debochado luxurioso e um vil comediante!

— A um duelo! — gritou de novo, ofegante e babando a cada palavra. — Quanto ao senhor, Piotr Alieksándrovitch Miúsov, fique sabendo que em toda a sua linhagem não há talvez mulher mais nobre e mais honesta — está entendendo? —, mais honesta do que essa criatura, como se permitiu o senhor chamá-la ainda há pouco! Quanto a você, Dimítri Fiódorovitch, que substituiu sua noiva por essa “criatura”, você mesmo julgou que sua noiva não valia a sola dos sapatos dela!

— É vergonhoso! — deixou escapar padre Ióssif.

— É vergonhoso e infame! — gritou com uma voz juvenil, trêmula de emoção, o rosto rubro, Kolgánov, que havia até então guardado silêncio.

— Por que tal homem existe? — rugiu surdamente Dimítri Fiódorovitch, a quem a cólera quase enlouquecia. Ergueu os ombros a ponto de parecer corcunda. — Não, dizei-me, pode-se permitir ainda que ele desonre a terra? — Lançou um olhar circundante e apontou para o velho com a mão. Falava num tom lento, medido.

— Estais ouvindo, monges, estais ouvindo o parricida!? — exclamou Fiódor Pávlovitch, dirigindo-se ao padre Ióssif. — Eis a resposta ao vosso “É vergonhoso!”. Que é que é vergonhoso? Essa “criatura”, essa “mulher de má vida” talvez seja mais santa que vós todos, senhores religiosos, que tratais de vossa salvação! Ela caiu talvez em sua juventude, vítima do meio, mas “muito amou”. Ora, o Cristo também perdoou aquela que muito amou...

— O Cristo não perdoou tal amor... — deixou escapar em sua impaciência o manso padre Ióssif.

— Não, foi esse amor mesmo, monges, esse mesmo. Cuidais de vossa salvação comendo couves e vos acreditais sábios. Comeis cadozes, um por dia, e pensais poder comprar Deus com cadozes.

— É intolerável, intolerável! — ouviu-se de todos os lados.

Mas essa cena escandalosa cessou da maneira mais inesperada.

De súbito, o stáriets se levantou. Alieksiêi, que quase enlouquecera de medo por ele e por todos, pôde, no entanto, segurá-lo pelo braço. O stáriets dirigiu-se para o lado de Dimítri Fiódorovitch e, ao chegar bem perto, ajoelhou-se diante dele. Aliócha pensou que ele tivesse caído de fraqueza, mas não era nada disso. Uma vez de joelhos, o stáriets prosternou-se aos pés de Dimítri Fiódorovitch numa profunda saudação, precisa e consciente; sua testa aflorou mesmo a terra. Aliócha ficou de tal maneira estupefato que nem mesmo o ajudou a levantar-se. Um leve sorriso pairava-lhe nos lábios.

— Perdoem, perdoem todos! — disse ele, saudando seus hóspedes para todos os lados.

Dimítri Fiódorovitch ficou alguns instantes como que petrificado; prosternar-se diante dele! Que significava aquilo? Por fim exclamou: “Ó Deus!”, cobriu o rosto com as mãos e lançou-se para fora do quarto. Todos os hóspedes seguiram-no em fila, tão perturbados que se esqueceram de despedir-se do dono da casa e de cumprimentá-lo. Somente os religiosos se aproximaram para receber-lhe a bênção.

— Por que ele se prosternou? Será algum símbolo? — Fiódor Pávlovitch, de súbito acalmado, procurava assim travar uma conversa, não ousando, aliás, dirigir-se a alguém em particular. Transpunham naquele momento a cerca do eremitério.

— Não respondo por alienados — respondeu logo Piotr Alieksándrovitch, com aspereza. — Mas, em compensação, desembaraço-me de sua companhia, Fiódor Pávlovitch, e acredite que é para sempre. Onde está aquele monge de há pouco?...

“Aquele monge”, isto é, o que os havia convidado a jantar com o padre abade, não se fizera esperar. Encontrara os hóspedes a tempo, no momento em que estes desciam o patamar, como se tivesse estado todo o tempo à espera deles.

— Tenha a bondade, reverendo padre, de assegurar ao padre abade o meu profundo respeito e apresentar-lhe minhas desculpas; em consequência de circunstâncias imprevistas, é-me impossível, malgrado todo o meu desejo, aceitar o convite — declarou Piotr Alieksándrovitch ao monge, com irritação.

— A circunstância imprevista sou eu! — interveio logo Fiódor Pávlovitch.

— Escute, meu padre, é que Piotr Alieksándrovitch não quer ficar a meu lado, senão iria agora mesmo. Vá, Piotr Alieksándrovitch, não deixe de ir à casa do padre abade, e bom apetite! Fique sabendo que sou eu que me escapulo e não o senhor. Volto para casa, lá poderei comer; aqui, sinto-me incapaz, meu bem-amado parente.

— Não sou seu parente, jamais o fui, vil indivíduo.

— Disse isso de propósito para fazer-lhe raiva, porque o senhor repudia esse parentesco embora seja meu parente, malgrado seus ares de importância, provar-lhe-ei pelo almanaque eclesiástico; enviar-te-ei o carro, Ivan, fica também, se quiseres. Piotr Alieksándrovitch, as conveniências lhe ordenam que se apresente em casa do padre abade; é preciso pedir desculpas das tolices que cometemos lá.

— É verdade que se vai embora? Não está mentindo?

— Piotr Alieksándrovitch, como o ousaria eu depois do que se passou? Deixei-me arrebatar, senhores, perdoem-me. Além disso, estou transtornado! E tenho vergonha. Senhores, pode-se ter o coração de Alexandre da Macedônia ou o de um cãozinho. Eu me assemelho ao cãozinho Fidelhaka. Tornei-me tímido. Pois bem! Como ir ainda jantar depois de tal leviandade, encher-me dos assados do mosteiro? Tenho vergonha, não posso, desculpem-me!

“O diabo sabe de que é ele capaz! Não terá ele a intenção de nos enganar?” Miúsov parou, irresoluto, seguindo com um olhar perplexo o palhaço que se afastava. Este voltou-se e, vendo que Piotr Alieksándrovitch o observava, enviou-lhe com a mão um beijo.

— Vai à casa do padre abade? — perguntou Miúsov a Ivan Fiódorovitch, num tom brusco.

— Por que não! Ele mandou convidar-me especialmente desde ontem.

— Por desgraça, sinto-me verdadeiramente quase obrigado a comparecer a esse maldito jantar — continuou Miúsov no mesmo tom de irritação amarga, sem mesmo tomar cuidado com o mongezinho que o ouvia. — É preciso pelo menos desculpar-nos do que se passou e explicar que não fomos nós... Que pensa disso?

— Sim, é preciso explicar que não fomos nós. Além disso, meu pai não estará lá — observou Ivan Fiódorovitch.

— Era só o que faltava que seu pai estivesse lá! Maldito jantar.

No entanto todos para ele se dirigiam. O mongezinho escutava em silêncio. Ao atravessar o bosque, fez notar que o padre abade esperava desde muito tempo e estava atrasado mais de meia hora. Não lhe responderam. Miúsov mirava Ivan Fiódorovitch com um ar cheio de ódio.

“Ele vai ao jantar como se nada se tivesse passado”, pensava ele. “Uma testa de bronze e uma consciência de Karamázov!”

 

VII


Um seminarista ambicioso


Aliócha conduziu o stáriets a seu quarto de dormir e fê-lo sentar no leito. Era uma peça muito pequena, com o mobiliário indispensável; a cama de ferro estreita tinha apenas uma almofada de feltro à guisa de colchão. A um canto, sobre uma estante, perto dos ícones, repousavam a cruz e o Evangelho. O stáriets deixou-se cair, extenuado. Seus olhos brilhavam, resfolegava. Uma vez sentado, olhou fixamente Aliócha, como se meditasse em alguma coisa.

— Vai, meu caro, vai, Porfíri me basta, apressa-te. Têm necessidade de ti em casa do padre abade, servirás à mesa.

— Permita-me ficar aqui — disse Aliócha, com voz suplicante.

— És mais necessário lá. A paz não reina ali. Servirás e tornar-te-ás útil. Vêm os maus espíritos, recita uma oração. Fica sabendo, meu filho (o stáriets gostava de chamá-lo assim), que no futuro teu lugar não será aqui. Lembra-te disso, rapaz. Assim que Deus me tiver julgado digno de comparecer perante ele, deixa o mosteiro. Parte imediatamente.

Aliócha estremeceu.

— Que tens? Teu lugar não é aqui no momento. Abençoo-te tendo em vista uma grande tarefa a cumprir no mundo. Peregrinarás muito tempo. Deverás casar-te, é preciso. Deverás suportar tudo até voltares. Haverá muito que fazer. Mas não duvido de ti. Eis por que te envio. Que o Cristo esteja contigo! Guarda-O e Ele te guardará. Experimentarás uma grande dor e ao mesmo tempo serás feliz. Tal é tua vocação: procurar a felicidade na dor. Trabalha, trabalha sem cessar. Lembra-te de minhas palavras, doravante, porque entreter-me-ei ainda contigo, mas meus dias e mesmo minhas horas estão contados.

Viva agitação pintou-se no rosto de Aliócha. Seus lábios tremiam.

— Que tens de novo? — sorriu docemente o stáriets. — Que os mundanos chorem seus mortos; aqui nos regozijamos quando um padre agoniza. Nós nos rejubilamos e rezamos por ele. Deixa-me. Tenho de rezar. Vá, despacha-te. Fica junto de teus irmãos, e não somente junto de um, mas de ambos.

O stáriets ergueu a mão para abençoá-lo. Era impossível fazer objeções, muito embora Aliócha tivesse grande vontade de ficar. Queria também perguntar-lhe, estava mesmo com a pergunta nos lábios, o que significava aquela prosternação diante de seu irmão Dimítri, mas não ousou. Sabia que o stáriets lhe teria ele próprio explicado, se tivesse podido. Portanto, não o queria. Ora, aquela saudação até o chão havia enchido Aliócha de estupefação; havia naquilo um sentido misterioso. Misterioso e talvez terrível. Uma vez fora da cerca do eremitério, para chegar ao mosteiro no começo da refeição em casa do padre abade (devia servir à mesa), seu coração se fechou e teve de deter-se: parecia-lhe ouvir de novo as palavras do stáriets predizendo seu fim próximo. O que tinha predito o stáriets com tal exatidão devia cumprir-se sem nenhuma dúvida. Aliócha acreditava naquilo cegamente. Mas como ficaria sem ele, sem vê-lo nem ouvi-lo? E aonde iria? Ordenavam-lhe que não chorasse e que deixasse o mosteiro. Senhor! Desde muito tempo não sentia Aliócha semelhante angústia. Atravessou rapidamente o bosque que separava o eremitério do mosteiro e, incapaz de suportar os pensamentos que o acabrunhavam, pôs-se a contemplar os pinheiros seculares que orlavam o caminho. O trajeto não era longo, quinhentos passos no máximo; não se podia encontrar ninguém àquela hora, mas na primeira curva avistou Rakítin. Ele esperava alguém.

— Seria a mim que esperavas? — perguntou Aliócha, quando o alcançou.

— Justamente — respondeu Rakítin, sorrindo. — Apressas-te em ir à casa do padre abade. Sei; oferece um jantar. Desde o dia em que recebeu o bispo e o general Parkhátov — lembras-te? — não houve jantar igual. Lá não estarei, mas tu vais para lá, servirás os pratos. Dize-me, Aliócha, que significa esse sonho? Queria perguntar-te.

— Que sonho?

— Aquela prosternação diante de teu irmão Dimítri Fiódorovitch. Bateu até com a cabeça no chão!

— Falas do padre Zósima?

— Sim, dele.

— A testa?

— Ah, exprimi-me irreverentemente! Não tem importância. Pois bem, que significa aquele sonho?

— Ignoro, Micha, o que ele significa!

— Estava certo de que ele não te explicaria. Isso nada tem de espantoso, são sempre as mesmas santas frioleiras. Mas o truque foi jogado de propósito. Agora vão os beatos falar na cidade e espalhar na província: “Que significa esse sonho?” Na minha opinião, o velho é perspicaz; farejou um crime. Isso lá na tua casa está de feder.

— Que crime?

Rakítin queria evidentemente dizer alguma coisa.

— Será na tua família que ele ocorrerá, esse crime. Entre teus irmãos e teu rico papai. Eis por que o padre Zósima bateu com a testa para qualquer eventualidade. Depois, que acontecerá? “Ah! Isso fora predito pelo santo eremita, ele profetizou.” No entanto, que profecia há nisso de bater com a cabeça? Não, dirão, é um símbolo, uma alegoria, e Deus sabe o quê! Será divulgado e lembrado: ele adivinhou o crime, designou o criminoso. Os “inocentes” agem sempre assim; fazem sobre o botequim o sinal da cruz e atiram pedras no templo. Da mesma maneira o teu stáriets: para um sábio, pauladas, mas diante de um assassino curva a cabeça.

— Que crime? Diante de qual assassino? Que é que estás contando?

Aliócha ficou como que pregado no lugar. Rakítin também parou.

— Que crime? Como se não o soubesses! Aposto que já pensaste nisso. A propósito, é curioso; escuta, Aliócha, tu dizes sempre a verdade, se bem que te assentes sempre entre duas cadeiras; pensaste nisso ou não? Responde.

— Pensei nisso — respondeu Aliócha em voz baixa. Rakítin perturbou-se!? — Como, também tu já pensaste nisso? — exclamou ele.

— Eu... não é que tenha pensado precisamente nisso — murmurou Aliócha —, mas acabas de falar tão estranhamente a esse respeito que me pareceu tê-lo pensado eu mesmo.

— Estás vendo? (E como o exprimiste claramente!) Estás vendo? Hoje, ao veres teu pai e teu irmão Mítia, pensaste em um crime. Portanto, não me engano.

— Espera, espera um pouco — interrompeu-o Aliócha, perturbado. — Donde tiras tudo isso? E, em primeiro lugar, por que isso tanto te interessa?

— Duas perguntas diferentes, mas naturais. Responderei a cada uma separadamente. Donde tiro tudo isso? De nenhuma parte o teria tirado, se não tivesse compreendido hoje Dimítri Fiódorovitch, teu irmão, dum relance e totalmente, tal como ele é, segundo certa linha. Entre essas pessoas muito honestas, mas sensuais, há uma linha que não se deve transpor. De outro modo, golpeará seu pai até mesmo com uma faca. Ora, seu pai é um bêbedo e um debochado desenfreado, que jamais conheceu a medida em coisa alguma; nenhum dos dois se conterá, e pronto, eis todos dois no fosso.

— Não, Micha, se é só isso, reconfortas-me. Isso não chegará a esse ponto.

— Mas por que tremes tanto? Sabes por quê? Pode ele ser um homem honesto, Mítia (é estúpido, mas honesto), apenas é um sensual. Eis sua definição e o fundo de sua natureza. Foi seu pai quem lhe transmitiu sua abjeta sensualidade. A respeito de ti, somente, Aliócha, é que me espanto; como se dá que sejas virgem? És, no entanto, um Karamázov! Na família de vocês, a sensualidade chega até o frenesi. Ora, esses três seres sensuais espiam-se agora... de faca no bolso. Três deram cabeçadas, podes ser o quarto.

— Enganas-te certamente a respeito daquela mulher. Dimítri a... despreza — disse Aliócha, fremente.

— Grúchenhka?[ 60 ] Não, irmão, ele não a despreza. Já que abandonou publicamente sua noiva por causa dela, não a despreza. Aqui, irmão, aqui há qualquer coisa que não compreendes agora. Que um homem se apaixone por uma beldade qualquer, por um corpo de mulher, até mesmo somente por uma parte desse corpo (um voluptuoso me compreenderia imediatamente), entregará por causa dela os próprios filhos, venderá pai e mãe, a Rússia e a pátria; honesto, irá roubar; manso, assassinará; fiel, trairá. O cantor dos pés femininos, Púchkin, celebrou-os em versos; outros não os cantam, mas não podem olhá-los a sangue-frio. Mas não há somente os pés... Aqui, irmão, o desprezo é impotente. Ele despreza Grúchenhka, mas não pode destacar-se dela.

— Compreendo isso — disse, de repente, Aliócha.

— Deveras? E tu o compreendes, na verdade, para que o confesses desde a primeira palavra — declarou Rakítin com uma alegria maldosa. — Isso escapou-te por acaso. Nem por isso deixa a confissão de ser mais preciosa; por consequência, a sensualidade é para ti um assunto conhecido, já pensaste nela! Ah, o santinho! Tu és santo, Aliócha, convenho, mas és um santinho, e o diabo sabe em que é que já não pensaste, o diabo sabe o que já conheces! És virgem, mas já penetraste bastantes coisas, observo-te há muito tempo. És tu mesmo um Karamázov, és um completo; portanto, a raça e a seleção significam alguma coisa. És sensual por teu pai e “inocente” por tua mãe. Por que tremes? Será verdade o que digo? Sabes? Grúchenhka me pediu: “Trá-lo aqui (isto é, tu) e eu lhe arrancarei a batina.” E como tivesse insistido: “Trá-lo, trá-lo!”, disse a mim mesmo: por que está ela tão curiosa dele? Sabes, ela também é uma mulher extraordinária!

— Dir-lhe-ás que não irei, juro — disse Aliócha, com um sorriso constrangido. — Acaba, Mikhail, o que começaste, dir-te-ei em seguida o que penso.

— Para que acabar? Tudo é claro. Tudo isso, irmão, é uma velha canção. Se tu mesmo tens um temperamento sensual, que será de teu irmão Ivan, filho da mesma mãe? Porque também ele é um Karamázov. Ora, a natureza dos Karamázov se resume assim: sensuais, ávidos no ganho e malucos! Teu irmão Ivan distrai-se agora escrevendo artigos de teologia por um cálculo estúpido que se ignora, sendo ele próprio ateu, e confessa essa baixeza. Além disso, está a ponto de conquistar a noiva de seu irmão Mítia e parece perto de seu fim. De que maneira? Com o consentimento do próprio Mítia, porque este lhe cede a noiva com o único fim de se desembaraçar dela e ir juntar-se a Grúchenhka. E tudo isso não obstante sua nobreza e seu desinteresse, nota-o. Tais indivíduos são os mais fatais. Como entendê-los, afinal? Tendo plena consciência de sua baixeza comportam-se baixamente. Escuta agora: um velho barra o caminho a Mítia, o próprio pai. Porque este está loucamente apaixonado por Grúchenhka, fica com a boca cheia d’água só de vê-la. Foi unicamente por causa dela que provocou tal escândalo, somente porque Miúsov tinha ousado chamá-la de criatura depravada. Está mais amoroso do que um gato. Antes, estava ela somente a seu serviço para certos negócios equívocos e em suas tavernas; agora, depois de tê-la bem examinado, percebeu ele que ela lhe agradava, encarniça-se após ela e faz-lhe propostas desonestas, naturalmente; pois bem, o pai e o filho encontram-se nessa estrada. Mas Grúchenhka reserva-se, hesita ainda e mexe com os dois, examina qual é o mais vantajoso, porque se se pode arrancar muito dinheiro do pai, em compensação ele não se casará, tornar-se-á talvez avarento, por fim, e fechará sua bolsa. Em semelhante caso, Mítia também tem seu valor; não tem dinheiro, mas pode casar-se. Sim, é capaz disso! Abandonará sua noiva, uma beldade incomparável, Katierina Ivânovna, rica, nobre e filha de coronel, para se casar com Grúchenhka, outrora mantida por Samsonov, um velho comerciante, mujique depravado e prefeito da cidade. De tudo isso, podem verdadeiramente resultar um conflito e um crime. Ora, é o que espera teu irmão Ivan. Dá ele assim um golpe duplo: toma posse de Katierina Ivânovna, pela qual morre de amores, e se apropria de seu dote de sessenta mil rublos. Para um pobre-diabo como ele, um pobretão, não é coisa de desdenhar, no começo. E nota bem! Não somente não ofenderá Mítia, mas este lhe será grato até a morte. Porque sei de boa fonte que, na última semana, achando-se Mítia embriagado num restaurante com ciganos, exclamou que era indigno de Kátienhka, sua noiva, mas que seu irmão Ivan era digno dela. A própria Katierina Ivânovna acabará não repelindo um homem encantador como Ivan Fiódorovitch; já hesita entre eles. Mas como pode esse Ivan seduzir-vos para que estejais todos em êxtase diante dele? Ri-se de vós. Estou extasiado, diz ele, e festejo às vossas custas.

— De onde sabes tudo isso? Por que falas com tal segurança? — perguntou bruscamente Aliócha, franzindo o cenho.

— Mas por que me interrogas, temendo de antemão a resposta? Isso significa que reconheces que disse a verdade.

— Não gostas de Ivan. Ivan não se deixa seduzir pelo dinheiro.

— Deveras? E a beleza de Katierina Ivânovna? Não se trata somente de dinheiro, muito embora sessenta mil rublos sejam bastante atraentes.

— Ivan olha mais alto. Milhares de rublos não o deslumbrariam. Não é nem o dinheiro nem a tranquilidade que ele procura. Ivan procura talvez o sofrimento.

— Que sonho é esse ainda? Ah, vós outros... os nobres!

— Ora! Micha, sua alma é impetuosa. Seu espírito é cativo. Tem ele um grande pensamento ainda não resolvido. É daqueles que não têm necessidade de milhões, mas de resolver seu pensamento.

— É um plágio, Aliócha, parafraseias o teu stáriets. Ora! Ivan propôs-vos um enigma! — gritou com visível animosidade Rakítin, cujo rosto se alterou e cujos lábios se contraíram. — E um enigma estúpido, não há nele nada a adivinhar. Faze um pequeno esforço e compreenderá. Seu artigo é ridículo e inepto. Ouvi ainda há pouco sua absurda teoria: “Se não há imortalidade da alma, então não há virtude, o que quer dizer que tudo é permitido.” Lembras-te de como teu irmão Mítia gritou: “Lembrar-me-ei disso!” É uma teoria sedutora para os tratantes... Mas estou insultando, é uma estupidez... não os tratantes, mas os fanfarrões da escola com “uma profundeza de pensamento insolúvel”. É um falastraz e isto no fundo quer dizer simplesmente: “Boné branco e branco boné.” Toda a sua teoria não passa duma infâmia! A humanidade encontra em si mesma a força de viver para a virtude, mesmo sem crer na imortalidade da alma! Tira-a do amor à liberdade, à igualdade e à fraternidade...

Rakítin acalorara-se, tinha dificuldade em conter-se. Mas de repente parou, como se se lembrasse de alguma coisa.

— Pois bem, basta! — disse ele, com um sorriso ainda mais forçado. — Por que ris? Pensas que sou um casca-grossa?

— Não, nem mesmo tinha ideia de pensá-lo. És inteligente, mas... Deixemos isso. Sorri por estupidez. Compreendo que possas acalorar-te, Micha. Adivinhei por teu arrebatamento que tu mesmo não és indiferente para com Katierina Ivânovna. Há muito tempo que duvidava disso, irmão. Eis por que não gostas de Ivan. Tens ciúmes dele.

— E também do dinheiro dela? Vá até o fim.

— Não, não falarei do dinheiro, não quero ofender-te.

— Creio-o, porque o disseste, mas que o diabo vos leve, a ti e a teu irmão Ivan! Nenhum de vós compreende que, mesmo posta de lado Katierina Ivânovna, ele é muito pouco simpático. Que razão terei para gostar dele, com a breca! Ele me faz a honra de injuriar-me. Não terei o direito de retribuir-lhe?

— Jamais o ouvi dizer bem ou mal de ti. Não fala absolutamente de ti.

— Pois bem, contaram-me que anteontem, em casa de Katierina Ivânovna, disse boas de mim, tanto se interessava por este teu criado. Depois disso, ignoro qual irmão tem ciúme do outro. Houve ele por bem insinuar que, se eu não me resignar à carreira de arkhimandrit e não largar a batina num futuro bem próximo, partirei para Petersburgo, entrarei para uma grande revista na qualidade de crítico, escreverei por uma dezena de anos e acabarei por tornar-me proprietário da revista. Publicá-la-ei então com orientação liberal e ateia, com uma tintura socialista, certo verniz mesmo de socialismo, mas tomando minhas precauções, isto é, nadando entre duas águas e ludibriando os imbecis. Sempre segundo teu irmão, malgrado essa tintura de socialismo, colocarei minhas rendas em conta-corrente, pondo-as no momento em circulação, sob a direção dum judeuzinho qualquer até que eu consiga construir um grande imóvel em Petersburgo; meus escritórios ocuparão um andar e alugarei os outros. Designou mesmo o local da casa, perto da nova ponte de pedra que se projeta, parece, entre a Litiéinaia Úlitsa e Vibórskaia Storoná...

— Ah! Micha, isso se realizará talvez de ponta a ponta! — exclamou Aliócha que não pôde conter um riso jovial.

— E você também zomba, Alieksiêi Fiódorovitch?

— Não, não, estou brincando, desculpa-me. Pensava em outra coisa bem diversa. Mas, dize-me, quem pôde comunicar-te tais detalhes, de quem os terias sabido? Porque não estavas em casa de Katierina Ivânovna, quando ele falava de ti.

— É verdade, mas Dimítri Fiódorovitch ali se achava e ouvi-o repetir isso, isto é, escutei contra a minha vontade, oculto no quarto de dormir de Grúchenhka, donde não podia sair em sua presença.

— Ah! Sim, esquecia-me de que é tua parenta.

— Minha parenta? Essa Gruchka seria minha parenta!? — exclamou Rakítin, todo vermelho. Perdeste a razão? Tens o cérebro desarranjado.

— Como? Não é tua parenta? Ouvi dizer isso.

— Onde pudeste ouvi-lo? Ah! Senhores Karamázov, tomais ares de alta e velha nobreza, quando teu pai bancava o palhaço à mesa alheia e figurava por favor na cozinha. Admitamos, não passo de filho de pope, um vil plebeu, ao lado de vós, nobres, mas não me insulteis com tão alegre sem-cerimônia. Tenho também minha honra, Alieksiêi Fiódorovitch. Não posso ser parente de Gruchka, uma mulher pública, compreende portanto!

Rakítin estava violentamente superexcitado.

— Desculpa-me, pelo amor de Deus, não o teria nunca acreditado, aliás. É ela verdadeiramente... uma mulher pública? — Aliócha ficou completamente rubro. — Repito-te, disseram-me mesmo que era tua parenta. Vais muitas vezes à casa dela e tu mesmo me disseste que não tinhas ligações com ela... Jamais teria crido que a desprezasses tanto! Merece-o ela verdadeiramente?

— Se a frequento, tenho talvez minhas razões para isso, mas basta. Quanto ao parentesco, será antes teu irmão ou mesmo teu pai que a fará entrar em tua família e não na minha. Mas eis-nos chegados. Vá antes à cozinha... Ora! Que é que há? Que está acontecendo? Estaríamos atrasados? Mas não é possível que já tenham acabado de jantar! A menos que os Karamázov não tenham feito das suas. Deve ser isso. Eis teu pai e Ivan Fiódorovitch que o segue. Fugiram da casa do padre abade. Eis o padre Isídor do patamar a gritar alguma coisa na direção deles. É teu pai que grita agitando os braços. Decerto está descompondo. Eis Miúsov que parte de caleça, não o vês correr? O proprietário Maksímov corre; é um verdadeiro escândalo; o jantar não se realizou! Teriam eles batido no padre abade? Ou então foram surrados! Teriam bem merecido uma surra!...

Rakítin tinha razão de fazer essas exclamações. Ocorrera de fato um escândalo inaudito e inesperado. Tudo se passara “por inspiração do momento”.

 

VIII


Um escândalo


Quando Miúsov e Ivan Fiódorovitch iam entrar em casa do padre abade, produziu-se em Piotr Alieksándrovitch — que era um homem educado — uma reviravolta delicada. Teve vergonha de sua cólera. Sentia em seu íntimo que teria devido estimar por seu justo valor o lamentável Fiódor Pávlovitch, conservar seu sangue-frio na cela do stáriets, e não perder a cabeça, como fora o caso. “Os monges não têm culpa nenhuma”, decidiu ele de repente no patamar do abade. “Ora, se há aqui pessoas decentes (o padre Nikolai, o abade, é, parece, da nobreza), por que não me mostrar para com eles delicado, amável e polido? Não discutirei, farei mesmo coro, conquistarei a simpatia deles por minha amabilidade e... por fim, provar-lhes-ei que não sou o companheiro daquele Esopo,[ 61 ] daquele palhaço, daquele saltimbanco, e que fui metido nisso com eles todos...”

Resolveu ceder-lhes definitivamente os direitos de corte e pesca, de uma vez por todas, naquele dia mesmo — tanto mais que aquilo não tinha valor —, e de cessar os processos contra o mosteiro.

Todas essas boas intenções afirmaram-se ainda, quando entraram na sala de jantar do padre abade. Não era na verdade uma, porque não havia senão duas peças, aliás muito mais espaçosas e mais cômodas que as do stáriets. Mas o mobiliário não brilhava pelo conforto: os móveis eram de acaju, recobertos de couro à antiga moda de 1820, e até mesmo os soalhos não eram pintados. Em compensação, tudo rebrilhava de limpeza, havendo nas janelas muitas flores caras; mas a elegância principal residia naquele momento na mesa suntuosamente servida — relativamente, como era natural; a toalha era imaculada, a prataria cintilava; na mesa três espécies de pão muito bem cozidos, duas garrafas de vinho, dois jarros de excelente hidromel do mosteiro e um garrafão cheio de kvas reputado das redondezas. Não havia vodca. Rakítin contou mais tarde que o jantar compreendia daquela vez cinco pratos: uma sopa de esturjão com bocados de peixe; depois um peixe cozido, preparado segundo uma receita especial e deliciosa; bolinhos de esturjão; gelados e compota; e, por fim, um prato de doce de batata em estilo de manjar-branco.

Rakítin havia farejado tudo isso, e, incapaz de conter-se, lançou uma olhadela à cozinha do padre abade, onde tinha conhecidos. Tinha-os por toda parte e ficava sabendo o que queria saber. Era um coração atormentado e invejoso. Tinha plena consciência de seus dons indiscutíveis; fazia mesmo deles, em sua presunção, uma ideia exagerada. Sabia-se destinado a desempenhar um papel, mas Aliócha, que lhe era muito ligado, afligia-se por ver seu amigo desprovido de consciência e não se aperceber disso. Rakítin, pelo contrário, sabendo que jamais roubaria dinheiro a seu alcance, estimava-se por isso como homem de perfeita honorabilidade. A esse respeito nem Aliócha nem ninguém podia influir sobre ele.

Rakítin era um personagem por demais mesquinho para figurar na refeição; em compensação, padre Ióssif e padre Paísi tinham sido convidados, bem como um outro religioso. Aguardavam eles já na sala de jantar, quando entraram Piotr Alieksándrovitch, Kolgánov e Ivan Fiódorovitch. O proprietário de terras Maksímov mantinha-se à parte. O padre abade avançou para o meio da sala para acolher seus convidados. Era um velho grande e magro, mas ainda vigoroso, de cabelos negros já grisalhos, de rosto comprido, emaciado e grave. Cumprimentou seus hóspedes em silêncio e eles vieram por sua vez receber sua bênção. Miúsov tentou mesmo beijar-lhe a mão, mas o abade preveniu seu gesto, retirando-a. Ivan Fiódorovitch e Kolgánov foram até o extremo, fazendo estalar os lábios à maneira da gente do povo.

— Devemos apresentar-vos todas as nossas desculpas, meu reverendo padre — começou Piotr Alieksándrovitch, com um gracioso sorriso, mas num tom grave e respeitoso —, porque chegamos sozinhos, sem nosso companheiro Fiódor Pávlovitch, que convidastes; teve de renunciar a acompanhar-nos e não sem motivo. Na cela do reverendo padre Zósima, arrebatado por sua infeliz querela com seu filho, pronunciou algumas palavras bastante fora de propósito... em suma, bastante inconvenientes... do que Vossa Reverendísima deve ter tido já conhecimento (olhou para os religiosos). Assim, cônscio de sua falta e deplorando-a sinceramente, experimentou ele uma vergonha invencível e nos rogou, ao filho Ivan e a mim, que vos exprimíssemos seu sincero pesar, sua contrição e seu arrependimento... Em suma, espera e quer tudo reparar mais tarde, e agora, pedindo vossa bênção, roga-vos que esqueçais o que se passou...

Miúsov calou-se. Tendo chegado ao fim de sua tirada, ficou perfeitamente satisfeito consigo mesmo, a ponto de esquecer completamente sua recente irritação. Experimentava de novo sincero e vivo amor pela humanidade. O padre abade, que o tinha escutado gravemente, inclinou a cabeça e respondeu:

— Lamento vivamente sua ausência. Participando dessa refeição, talvez tivesse tomado afeição por nós, o mesmo acontecendo de nossa parte. Senhores, queiram tomar seus lugares.

Colocou-se diante da imagem e começou uma oração. Todos inclinaram-se respeitosamente, e o proprietário Maksímov colocou-se mesmo na frente de mãos juntas, em sinal de particular veneração.

E foi então que Fiódor Pávlovitch fez mais uma das suas. Deve-se notar que tivera ele verdadeiramente a intenção de partir e compreendera a impossibilidade, depois de seu vergonhoso procedimento em casa do stáriets, de ir jantar em casa do padre abade, como se nada tivesse acontecido. Não que se sentisse tão envergonhado assim e fizesse censuras a si mesmo; talvez mesmo muito pelo contrário; no entanto, sentia a inconveniência de ir jantar. Mas assim que a caleça de molas gementes chegou ao patamar da hospedaria, parou ele antes de nela subir. Lembrou-se das próprias palavras em casa do stáriets. “Parece-me sempre, ao entrar em alguma parte, que sou mais vil que todos e que todos me tomam por um palhaço. Então digo a mim mesmo: sejamos verdadeiramente o palhaço, porque todos, até o derradeiro de vós, sois mais estúpidos e mais vis do que eu.” Queria vingar-se em todo mundo das próprias vilanias. Lembrou-se, de repente, a esse propósito, de como outrora lhe haviam perguntado uma vez: “Por que detesta tanto tal pessoa?” E respondera então, num acesso de bufonesco descaramento: “Ela não me fez nada, é verdade, mas eu lhe preguei uma má peça e logo depois comecei a detestá-la.” A essa lembrança, sorriu maldosa e silenciosamente numa hesitação de um minuto. Seus olhos cintilaram e seus lábios tremeram. “Já que comecei, é preciso ir até o fim”, decidiu ele, bruscamente. Naquele instante, ter-se-ia podido exprimir assim seu sentimento mais íntimo: “É agora impossível reabilitar-me, então zombemos deles até a impudência: não tenho vergonha diante de vós, e eis tudo!” Ordenou ao cocheiro que esperasse e voltou a grandes passadas para o mosteiro, diretamente para a casa do padre abade. Não sabia ainda o que faria, mas sabia que não mais se dominava, que o menor impulso o impeliria aos derradeiros limites de alguma indignidade, mas somente uma indignidade, e não algum delito ou algum ataque tal que o levasse perante a justiça. Nesse último caso, sabia sempre conter-se e se admirava mesmo disso por vezes. Apareceu na sala de jantar do abade, quando todos iam sentar-se à mesa depois da oração. Parou na soleira, examinou as pessoas presentes, fitando-as diretamente no rosto, e explodiu numa risada prolongada e impudente.

— Pensavam que eu tinha partido e eis-me aqui! — gritou ele com voz retumbante.

Os presentes olharam-no um instante em silêncio e de súbito todos sentiram que iria passar-se uma cena repugnante e que um escândalo era inevitável. Piotr Alieksándrovitch passou bruscamente da quietude ao pior mau humor. Sua cólera extinta reacendeu-se, sua indignação acalmada trovejou de repente.

— Não! Não posso suportar isso! — berrou. — Não sou capaz, não sou absolutamente capaz!

O sangue subia-lhe à cabeça. Atrapalhava-se, mas não se tratava de fazer estilo e pegou seu chapéu.

— De que não é ele capaz!? — exclamou Fiódor Pávlovitch. — Devo entrar ou não, pergunto a Vossa Reverendíssima? Aceita-me como convidado?

— Rogamos-lhe de todo o coração — respondeu o padre abade. — Senhores! Permito-me — acrescentou ele — rogar-vos instantemente que deixeis em repouso vossas querelas fortuitas, que vos reunais no amor e na união fraternal, implorando ao Senhor, no nosso pacífico jantar...

— Não, não, é impossível — gritou Piotr Alieksándrovitch, fora de si.

— Ora, se é impossível a Piotr Alieksándrovitch, também o é a mim, e não ficarei. Por isso é que vim. Estarei agora em toda parte com o senhor, Piotr Alieksándrovitch: o senhor ir-se-á embora e eu também; o senhor ficará e eu também ficarei. O senhor feriu-o acima de tudo ao falar em união fraternal, padre abade; ele não quer confessar-se meu parente. Não é, von Sohn? Ei-lo aqui, von Sohn. Bom dia, von Sohn.

— É a mim que...? — murmurou estupefato o proprietário Maksímov.

— Naturalmente, a ti. Sabe Vossa Reverendíssima quem é von Sohn? Foi caso num processo criminal: mataram-no num lupanar — é assim que chamais, creio, esses lugares —, mataram-no e despojaram-no e, malgrado sua idade respeitável, meteram-no num caixote e expediram-no de Petersburgo para Moscou, no furgão das bagagens, com uma etiqueta. E durante a operação, as mulheres do bordel cantavam canções e tocavam harpa, isto é, piano. Pois aí têm os senhores, esse personagem é von Sohn. Ressuscitou dentre os mortos, não é, von Sohn?

— Que é isso? Como? — ressoaram vozes no grupo dos religiosos.

— Partamos! — gritou Piotr Alieksándrovitch, dirigindo-se a Kolgánov.

— Não, com licença! — atalhou Fiódor Pávlovitch, dando mais um passo para dentro da sala. — Deixem-me acabar. Lá, na cela do stáriets, os senhores me censuraram por haver supostamente faltado ao respeito falando dos cadozes. Piotr Alieksándrovitch Miúsov, meu parente, gosta de que haja no discurso plus de noblesse que de sincérité,[ 62 ] eu, pelo contrário, gosto de que meu discurso tenha plus de sincérité que de noblesse e tanto pior para a noblesse. Não é, von Sohn? Permita-me, padre abade, se bem que seja eu um palhaço e mantenha esse papel, sou um cavalheiro de honra e quero demonstrá-lo. Sim, sou um cavalheiro de honra, ao passo que Piotr Alieksándrovitch só tem... um arraigado amor-próprio e nada mais. Vim aqui talvez, ainda há pouco, para ver e explicar-me. Meu filho Alieksiêi procura aqui sua salvação; sou pai, preocupo-me com sua sorte e é isso o meu dever. Enquanto me oferecia em espetáculo, escutava tudo, olhava tudo sem ter ar de o fazer, e agora quero oferecer-lhes o derradeiro ato da representação. Que se passa entre nós? Entre nós, o que cai fica estendido. Uma vez caído, caído fica por todos os séculos. É verdade! Mas não, eu quero reerguer-me. Santos padres, estou indignado por vossa maneira de agir. A Confissão é um grande sacramento que eu venero e diante do qual estou pronto e prosternar-me: ora, lá, na cela, todos se ajoelham e se confessam em voz alta. É permitido confessar-se em voz alta? Os santos padres instituíram a Confissão auricular; nesse caso, somente, é a Confissão um sacramento e isso desde toda a Antiguidade. Ora, como explicaria eu, diante de toda gente, que eu, por exemplo, eu... isso e aquilo, enfim, os senhores compreendem, não é? Por vezes é indecente falar. Não é um escândalo? Não, meus padres, convosco pode-se ser arrastado para a seita dos khlisti...[ 63 ] Na primeira ocasião, escreverei ao sínodo e retirarei meu filho de vossa casa.

Uma explicação se faz necessária. Fiódor Pávlovitch ouvira cantar o galo, mas não sabia onde. Haviam corrido outrora boatos malévolos que chegaram aos ouvidos do bispo (não somente a propósito de nosso mosteiro, mas de outros), segundo os quais prestava-se aos stártsi um respeito exagerado, em prejuízo da dignidade do abade, abusando-se, entre outras coisas, do sacramento da Confissão, etc. Acusações ineptas, que caíram por si mesmas, a seu tempo, entre nós e por toda parte. Mas o demônio, que se havia apoderado de Fiódor Pávlovitch e o arrebatava mais longe a um abismo de vergonha soprara-lhe essa acusação, da qual ele próprio não compreendia a primeira palavra. Aliás, não soubera formulá-la convenientemente, tanto mais que dessa vez, na cela do stáriets, ninguém se havia ajoelhado nem se confessado em voz alta. Fiódor Pávlovitch não pudera, pois, ver nada de semelhante e baseava-se unicamente nos antigos boatos e comadrices de que se lembrava mais ou menos. Mas, tendo lançado essa tolice, sentiu-lhe o absurdo e quis logo provar a seus auditores, e sobretudo a si mesmo, que nada havia dito de absurdo. E, muito embora soubesse perfeitamente que tudo quanto diria não faria senão agravar aquele absurdo, não pôde conter-se e escorregou como em uma ladeira.

— Que baixeza! — gritou Piotr Alieksándrovitch.

— Desculpe — disse de repente o padre abade. — Foi dito outrora: “Começaram a falar muito de mim e mesmo a falar mal. Depois de ter escutado tudo, digo a mim mesmo: é um remédio enviado por Jesus para curar minha alma vaidosa.” Desse modo nós lhe agradecemos humildemente, caríssimo hóspede.

E fez uma profunda saudação a Fiódor Pávlovitch.

— Ora, ora, ora. Beatice tudo isso. Velhas frases e velhos gestos. Velhas mentiras e formalismo das saudações até o chão! Nós conhecemos essas saudações! “Um beijo nos lábios e um punhal no coração”, como em Os bandidos, de Schiller. Não gosto da falsidade, meus padres, quero a verdade. Mas a verdade não está nos cadozes e eu a proclamei! Monges, por que jejuais? Porque esperais uma recompensa nos céus! Então, para tal recompensa, também eu irei jejuar! Não, santo monge, sê virtuoso na vida, serve a sociedade sem encerrar-te num mosteiro, onde és custeado de tudo e sem esperar recompensa lá em cima. Eis o que será mais difícil. Sei também fazer frases, padre abade. Que prepararam eles? — continuou ele aproximando-se da mesa. — Vinho velho do Porto, Médoc,[ 64 ] da casa dos irmãos Elissiéievi,[ 65 ] Ah! Meus padres, isso já não se parece com os cadozes. Vejam-se essas garrafas, ahA ah! Mas quem vos arranjou tudo isso? E o mujique russo, o trabalhador que vos traz sua oferta ganha com suas mãos calosas, arrebatada à sua família e às necessidades do Estado! Reverendos padres, vós explorais o povo!

— É na verdade indigno de sua parte — proferiu o padre Ióssif.

O padre Paísi mantinha um silêncio obstinado. Miúsov saiu da sala acompanhado por Kolgánov.

— Pois bem, meus padres, eu sigo Piotr Alieksándrovitch! Não voltarei mais, ainda que me pedísseis de joelhos, nunca mais. Enviei-vos mil rublos, e vós arregalastes os olhos, ah! Ah! Mas não acrescentarei nada. Vingo minha juventude passada e as humilhações sofridas. — Deu um murro sobre a mesa, num acesso de indignação fingida. — Este mosteiro desempenhou um grande papel em minha vida! Quantas lágrimas amargas verti por causa dele! Vós virastes contra mim minha mulher, a endemoniada. Cumulastes-me de maldições, desacreditastes-me na vizinhança! E ademais, meus padres, nós vivemos numa época liberal, no século dos barcos a vapor e dos caminhos de ferro. Vós não tereis nada de mim, nem mil rublos, nem cem, nem um.

Explico de novo. Jamais nosso mosteiro tivera tal lugar na vida dele e não o fizera verter lágrimas amargas, mas ele havia de tal modo se deixado levar por essas lágrimas imaginárias que esteve um momento quase a ponto de acreditar nelas; teria chorado de enternecimento, mas sentiu logo que era tempo de dar marcha à ré. Diante de sua odiosa mentira, o padre abade inclinou a cabeça e declarou de novo num tom grave:

— Está de novo escrito: “Suporta pacientemente a calúnia de que és vítima e não te perturbes, nem aborreças aquele que é o autor dela.” Agiremos de conformidade com isso.

— Ora, ora, ora, o belo palavreado! Continuai, meus padres, vou-me embora. Retomarei definitivamente meu filho Alieksiêi, em virtude de minha autoridade paterna, Ivan Fiódorovitch, meu respeitosíssimo filho, permita-me que lhe ordene que me siga! Von Sohn, de que serve ficar aqui! Vem à minha casa, na cidade. Ninguém se aborrece em minha casa. Fica a uma versta daqui, quando muito; em lugar de óleo de linhaça, darei um leitão recheado de trigo mourisco; jantaremos, oferecerei conhaque, depois licores, há uma bonita mulher... Ah! Von Sohn, não deixes passar tua felicidade!

Saiu gritando e gesticulando. Foi nesse momento que Rakítin o avistou e apontou-o a Aliócha.

— Alieksiêi — gritou-lhe seu pai, de longe —, vem hoje instalar-te em minha casa definitivamente, pega teu travesseiro, teu colchão e que nada teu fique aqui.

Aliócha parou como se petrificado, observando atentamente aquela cena, sem dizer uma palavra. Fiódor Pávlovitch subiu para a caleça, seguido de Ivan Fiódorovitch, silencioso e sombrio, que nem mesmo se voltou para cumprimentar Aliócha. Mas passou-se então uma cena de saltimbanco, quase inverossímil, para coroamento de tudo. De repente, apareceu perto do estribo o proprietário rural Maksímov. Corria sem fôlego, para chegar a tempo. Tal era sua pressa que, em sua impaciência, colocou uma perna no estribo onde se encontrava ainda a de Ivan Fiódorovitch e, agarrando-se ao assento, tentou subir.

— Eu também o sigo! — gritou ele, saltitando, com um riso alegre, um ar de beatitude e pronto a tudo. — Leve-me com o senhor!

— Pois é, não dizia eu que era von Sohn!? — exclamou Fiódor Pávlovitch, encantado. — O verdadeiro von Sohn ressuscitado dentre os mortos! Como saíste de lá? Que é que fabricavas lá e como pudeste renunciar ao jantar? Porque é preciso ter testa de bronze! Eu tenho uma testa assim, mas a tua me causa admiração, camarada. Salta, salta mais depressa. Deixa-o subir, Vânia, a gente se divertirá. Que se estenda aí, a nossos pés, ouviu, von Sohn? Ou então vamos instalá-lo na boleia com o cocheiro! Salta para a boleia, von Sohn.

Mas Ivan Fiódorovitch, que já tomara lugar, sem dizer palavra, repeliu, com um forte empurrão no peito, Maksímov, que recuou uns dois metros. Se não caiu, foi mero acaso.

— A caminho! — gritou, com raiva, ao cocheiro, Ivan Fiódorovitch.

— Como! Que fazes, que fazes? Por que tratá-lo assim? — objetou Fiódor Pávlovitch, mas a caleça já havia partido. Ivan Fiódorovitch não respondeu nada.

— Só se vendo como és! — continuou Fiódor Pávlovitch, após um silêncio de dois minutos, olhando seu filho de través. — Porque foste tu que imaginaste essa visita ao mosteiro, que a provocaste e aprovaste. Por que te zangas agora?

— Basta de dizer estupidezas! Repouse um pouco pelo menos, agora — replicou num tom rude Ivan Fiódorovitch. Fiódor Pávlovitch calou-se ainda por dois minutos.

— Seria bom agora beber conhaque — observou ele, sentenciosamente. Mas Ivan Fiódorovitch nada respondeu.

— Quando chegarmos, beberás também?

Ivan Fiódorovitch não pronunciava uma palavra sequer.

Fiódor Pávlovitch esperou ainda dois minutos.

— No entanto, retirarei Aliócha do mosteiro, se bem que isso lhe seja bastante desagradável, respeitoso “Karl von Moor”.

Ivan Fiódorovitch ergueu desdenhosamente os ombros, voltou-se e pôs-se a olhar a estrada. Não trocaram mais uma palavra até a casa.


Livro III

Os sensuais


I


Na antecâmara


A casa de Fiódor Pávlovitch Karamázov estava situada bastante longe do centro da cidade, mas não totalmente na periferia. Achava-se bastante deteriorada, mas tinha um exterior agradável; de um só andar, com um sótão, pintada de cinzento e de telhado vermelho de ferro. Aliás, podia durar ainda muito tempo; era espaçosa e confortável. Havia nela muitos corredores, recantos e escadas ocultas. Os ratos pululavam, mas Fiódor Pávlovitch não se inquietava muito com isso: “com eles as noites não são tão enfadonhas, quando se fica só!” Tinha, com efeito, o hábito de mandar os criados passarem a noite no pavilhão e fechava-se ele mesmo na casa. Esse pavilhão, situado no pátio, era vasto e sólido. Fiódor Pávlovitch instalara ali a cozinha, embora houvesse uma na casa; não gostava dos odores de cozinha e traziam os pratos através do pátio, tanto no inverno quanto no verão. Essa casa fora construída para uma grande família e ter-se-ia podido nela alojar cinco vezes mais senhores e criados. Mas, por ocasião de nossa narrativa, o corpo principal só era habitado por Fiódor Pávlovitch e o filho Ivan, e o pavilhão da criadagem, somente por três criados: o velho Grigóri, a mulher, Marfa, e o jovem criado Smierdiákov.[ 66 ] Teremos de falar mais detalhadamente desses três personagens. Já se tratou do velho Grigóri Vassílievitch Kutúzov. Era um homem firme e inflexível, indo a seu alvo com uma retitude obstinada, contanto que esse alvo se lhe oferecesse, em virtude de quaisquer razões (muitas vezes espantosamente ilógicas), como uma verdade infalível. Numa palavra, era honesto e incorruptível. A mulher, Marfa Ignátievna, se bem que cegamente submetida toda a sua vida à vontade do marido, havia-o atormentado, logo depois da libertação dos servos, para deixar Fiódor Pávlovitch e ir estabelecer uma casinha de comércio em Moscou (tinham economias); mas então Grigóri decidiu, duma vez por todas, que a mulher não tinha razão; todas as mulheres são sempre desleais. Não deviam deixar seu antigo senhor, quem quer que ele fosse, “porque era o dever deles agora”.

— Compreendes tu o que é o dever? — perguntou a Marfa Ignátievna.

— Compreendo-o, Grigóri Vassílievitch, mas em que é dever nosso ficar aqui? Eis o que não compreendo absolutamente — respondeu com firmeza Marfa Ignátievna.

— Que o compreendas ou não, será assim! Doravante, cala-te.

Foi o que aconteceu; ficaram, e Fiódor Pávlovitch lhes marcou modestos ordenados pagos regularmente. Mais ainda, sabia Grigóri que exercia sobre o patrão uma influência incontestável. Ele o sentia e era justo; palhaço astucioso e obstinado, Fiódor Pávlovitch, de caráter muito firme “em certas coisas da vida”, segundo sua expressão, era, para o próprio espanto, pusilânime em algumas outras “coisas da vida”. Ele próprio sabia quais e experimentava bastantes temores. Em certos casos, era preciso manter-se de sobreaviso, não se podia passar sem um homem seguro; ora, Grigóri era de uma fidelidade a toda prova. Por várias vezes, no curso de sua carreira, Fiódor Pávlovitch correu o risco de ser agredido, e até mesmo cruelmente, mas foi sempre Grigóri que o tirou de apuros, sem deixar de repreendê-lo todas as vezes. Mas os golpes somente não teriam amedrontado Fiódor Pávlovitch; havia casos mais relevantes, por vezes mesmo bastante delicados e complicados, em que ele próprio teria sido incapaz de definir a necessidade extraordinária de alguém seguro e íntimo, que se apoderava bruscamente dele, sem que soubesse por quê. Eram quase casos patológicos: visceralmente corrompido e muitas vezes luxurioso até a crueldade, tal como um inseto malfazejo, Fiódor Pávlovitch, em minutos de embriaguez, sentia de súbito uma apreensão, uma comoção moral, que tinha um contragolpe quase físico sobre sua alma. “Parece então que minha alma palpita em minha garganta”, dizia ele por vezes. Era naqueles momentos que gostava de ter a seu lado, em seu círculo imediato, um homem devotado, firme, não corrompido como ele e que, muito embora testemunha de seu mau procedimento e, ao corrente de seus segredos, tolerasse tudo isso por devotamento, não se lhe opusesse e, sobretudo, não lhe fizesse censuras, não o ameaçasse com nenhum castigo, quer neste mundo, quer no outro, mas que o defendesse em caso de necessidade — contra quem? Contra algo desconhecido, mas temível e perigoso. Tratava-se de ter perto de si um outro homem, devotado de longa data, para chamá-lo, num minuto de angústia, somente a fim de contemplar seu rosto, trocar talvez algumas palavras, mesmo completamente estranhas: se o via de bom humor, sentia-se aliviado, ao passo que a tristeza aumentava, se estava ele irritado. Acontecia (bastante raramente, aliás) a Fiódor Pávlovitch ir de noite ao pavilhão acordar Grigóri, para que ele fosse ficar um momento junto dele. Grigóri chegava, seu patrão falava a respeito de insignificantes bagatelas e o despedia em breve, por vezes mesmo com pilhérias e brincadeiras, depois metia-se na cama e dormia então o sono de um justo. Algo de análogo se passara por ocasião da chegada de Aliócha. Aliócha “transpassava o coração” de Fiódor Pávlovitch, porque “ouvia, via tudo e não censurava nada”. Mais ainda, trazia consigo algo de inaudito: a ausência completa de desprezo para com ele, velho; pelo contrário, uma afabilidade constante e um apego totalmente natural e sincero, quando ele o merecia tão pouco. Tudo isso tinha sido, para o velho debochado sem família, uma surpresa completa, totalmente inesperada para ele que, até então, não havia amado senão a “sujeira”. Com a partida de Aliócha, teve de confessar a si mesmo que compreenderia alguma coisa que não quisera compreender até então.

Já mencionei, no começo de minha narrativa, que Grigóri detestava Adelaída Ivánovna, a primeira mulher de Fiódor Pávlovitch e a mãe de seu primeiro filho, Dimítri, e que, ao contrário, defendera a segunda esposa dele, a possessa Sófia Ivânovna, contra o próprio patrão e contra aqueles que tivessem tido a ideia de pronunciar a seu respeito uma palavra malévola ou sem consideração. Sua simpatia por aquela infeliz tornara-se alguma coisa de sagrado, a ponto de, vinte anos depois, não suportar que ninguém fizesse uma alusão malévola a seu respeito sem imediatamente replicar ao ofensor. No seu aspecto exterior, era Grigóri um homem frio e grave, pouco falador, proferindo palavras ponderadas, isentas de frivolidades. À primeira vista, não se podia adivinhar se amava ou não a mulher, doce e submissa, não obstante a amasse verdadeiramente e ela o compreendesse sem dúvida! Essa Marta Ignátievna, longe de ser estúpida, era talvez mais inteligente que o marido, em todo caso mais judiciosa nos negócios da vida; entretanto era-lhe cegamente submissa, desde o começo de seu casamento, e respeitava-o sem contradição por sua altitude moral. É preciso notar que trocavam muito poucas palavras, somente a propósito das coisas indispensáveis da vida corrente. O grave e majestoso Grigóri meditava sempre sozinho sobre seus negócios e suas preocupações, de sorte que Marfa Ignátievna compreendera, desde muito tempo, que não tinha ele de modo algum necessidade de seus conselhos. Sentia que o marido apreciava seu silêncio e via nisso uma prova de espírito. Ele nunca lhe batera, salvo uma vez, e não seriamente. No primeiro ano do casamento de Adelaída Ivánovna e de Fiódor Pávlovitch, no campo, as moças e as mulheres da aldeia, então ainda servas, tinham-se reunido no pátio dos patrões para dançar e cantar. Entoou-se a canção “Sobre o prado, sobre o prado”, e de súbito Marfa Ignátievna, que, então, era jovem, veio colocar-se diante do coro e executou a dança russa, não como as outras, à moda rústica, mas como a executava, quando era arrumadeira em casa dos ricos Miúsovi, no teatro da propriedade deles, onde um mestre de dança vindo de Moscou ensinava sua arte aos atores. Grigóri vira os passos de sua mulher e, uma hora depois, de volta à isbá, deu-lhe uma lição, puxando-lhe um pouco os cabelos. Mas os golpes se limitaram a isso e não se renovaram uma vez sequer em toda a vida deles; de resto, Marfa Ignátievna prometeu a si mesma não mais dançar dali por diante.

Deus não lhes havia concedido filhos, exceto um que morreu. Via-se que Grigóri gostava de crianças, não o ocultava, aliás, isto é, não se envergonhava de mostrá-lo. Quando Adelaída Ivánovna fugiu, recolheu Dimítri Fiódorovitch, de três anos de idade, e cuidou dele quase um ano inteiro, penteando-o e dando-lhe banho na gamela. Mais tarde, ocupou-se também com Ivan Fiódorovitch e Alieksiêi, o que lhe valeu uma bofetada, mas já narrei tudo isso, o próprio filho só o alegrou pela esperança da expectativa, quando Marfa Ignátievna estava grávida. Quando ele nasceu, foi tomado de pesar e de horror, porque aquele menino tinha seis dedos, vendo o quê, ficou Grigóri tão acabrunhado que não somente guardou silêncio até o dia do batizado, mas foi expressamente calar-se no jardim. Estava-se na primavera; durante três dias, ficou cavando na horta. Tendo chegado a hora do batizado, já havia Grigóri imaginado alguma coisa. Entrando na isbá, onde se haviam reunido o clero, os convidados e por fim Fiódor Pávlovitch, vindo na qualidade de padrinho, anunciou que “não se deveria de modo algum batizar o menino”, isso em voz baixa, laconicamente, mal articulando uma palavra após a outra, fixando o padre com um ar idiota.

— Por que isso? — informou-se o padre com uma surpresa divertida.

— Porque é... um dragão... — murmurou Grigóri.

— Como um dragão, que dragão?

Grigóri calou-se algum tempo.

— Produziu-se uma confusão da natureza... — murmurou ele duma maneira bastante confusa, mas muito firme, e via-se que não desejava estender-se em palavras.

Houve risos e, bem entendido, o pobre menino foi batizado. Grigóri rezou com fervor perto das fontes batismais, mas persistiu em sua opinião a respeito do recém-nascido. De resto, não se opôs a nada; somente, durante as duas semanas que viveu esse menino doentio, quase não olhou para ele; não queria mesmo vê-lo e ausentava-se frequentemente da isbá. Mas, quando o bebê morreu de aftas ao fim de duas semanas, ele mesmo o pôs no caixão, contemplou-o com profunda angústia, e, uma vez enchida de terra a pequena cova, pôs-se de joelhos e prosternou-se até o chão. Posteriormente, durante muitos anos, não falou jamais do filho; por seu lado, Marfa Ignátievna jamais fazia alusão a ele em sua presença e, se lhe acontecia conversar com alguém a respeito de seu “filhinho”, falava em voz baixa, muito embora Grigóri Vassílievitch não estivesse presente. De acordo com a observação de Marta Ignátievna, depois daquela morte, interessou-se ele de preferência pelo “divino”, leu as Vidas dos santos, a maior parte das vezes sozinho e em silêncio, pondo seus grandes óculos redondos de prata. Lia raramente em voz alta, quando muito durante a Quaresma. Gostava extremamente do Livro de Jó, arranjara uma coletânea das palavras e dos sermões de “nosso santo padre Isaak, o Sírio”,[ 67 ] que se obstinou em ler durante anos, quase sem nada compreender daquilo, mas, por essa razão, talvez apreciasse e amasse aquele livro acima de tudo. Nos últimos tempos, prestou ouvidos à doutrina dos khlisti, tendo tido a ocasião de aprofundá-la na vizinhança; ficou visivelmente abalado, mas não se decidiu a adotar a fé nova. Essas piedosas leituras tornavam naturalmente sua fisionomia ainda mais grave.

Talvez fosse ele inclinado ao misticismo. Ora, como fato expresso, a vinda ao mundo e a morte do filho de seis dedos coincidiram com outro caso bastante estranho, inesperado e original, que deixou em sua alma, como o disse ele, uma vez mais tarde, “uma marca”. Na noite que se seguiu ao enterro do bebê, tendo Marfa Ignátievna despertado, creu ouvir o choro de um recém-nascido. Ficou amedrontada e acordou o marido. Este, prestando ouvido, notou que eram antes gemidos, “dir-se-iam de uma mulher”. Levantou-se, vestiu-se; era uma noite de maio bastante quente. Saiu para o patamar e verificou que os gemidos vinham do jardim. Mas, de noite, o jardim era fechado a chave do lado do pátio, e não se podia nele entrar senão por ali, dando-lhe volta uma alta e sólida paliçada. Voltando para casa, Grigóri acendeu a lanterna, pegou a chave e, sem prestar atenção ao pavor histérico da mulher, persuadida de que era o choro do filho que a chamava, entrou em silêncio no jardim; ali, deu-se conta de que os gemidos partiam da sala de banhos, situada não longe da entrada, e que era, com efeito, uma mulher que gemia. Tendo aberto a porta do banheiro, viu um espetáculo diante do qual permaneceu estupefato; uma idiota da cidade, que vagava pelas ruas e era conhecida de toda a gente pelo nome de Lisavieta Smierdiáchtchaia, tendo penetrado no banheiro deles, acabava de ali dar à luz. O menino jazia ao lado dela, que estava moribunda. Não dizia nada, pela simples razão de que não sabia falar. Mas tudo isso exige explicações.

 

II


Lisavieta Smierdiáchtchaia[ 68 ]


Havia ali uma circunstância particular que impressionou profundamente Grigóri e acabou de fortificar nele uma suspeita desagradável e repugnante. Aquela Lisavieta Smierdiáchtchaia era uma moça de estatura muito baixa, “um pouco mais de dois archini”; assim se lembravam dela com enternecimento, após sua morte, bondosas velhas de nossa cidade. Seu rosto de vinte anos, sadio, largo, vermelho, era completamente idiota, o olhar fixo e desagradável, se bem que plácido. Tanto no inverno quanto no verão andava sempre de pés descalços, vestida apenas com uma camisa de cânhamo. Seus cabelos quase negros, extraordinariamente espessos, frisados como uma lã, amontoavam-se em sua cabeça à maneira de um enorme boné. Além disso estavam muitas vezes sujos de terra, de lama, entremeados de folhas, de raminhos, de cavacos, porque ela dormia sempre no chão e na lama. Seu pai, Iliá, pequeno-burguês sem domicílio, arruinado e valetudinário, fortemente dado à bebida, permanecia desde muitos anos, na qualidade de operário, em casa dos mesmos senhores opulentos, igualmente burgueses de nossa cidade. A mãe de Lisavieta morrera há muito tempo. Sempre doentio e mal-humorado, Iliá batia sem piedade na filha quando chegava ela em casa. Mas ali ia raramente, sendo acolhida por toda parte na cidade como uma débil mental sob a proteção de Deus. Os patrões de Iliá, o próprio Iliá e muitas pessoas caridosas, sobretudo entre os negociantes e as negociantes, tinham tentado por várias vezes vestir Lisavieta de uma maneira mais decente, fazendo-a usar no inverno uma peliça de carneiro e calçar botas; habitualmente, sujeitava-se ela docilmente a isso; depois, ia-se embora e, em alguma parte, de preferência sob o pórtico da igreja, despojava-se de tudo quanto lhe haviam dado — quer fosse um lenço, uma saia, uma peliça, botas —, abandonava tudo no lugar e lá se ia de pés descalços, vestida com sua camisa como antes. Aconteceu que um novo governador, inspecionando nossa cidade, sentiu-se ferido em seus melhores sentimentos à vista de Lisavieta e, muito embora tivesse percebido que se tratava de uma inocente, como aliás o informaram, fez no entanto observar “que uma: moça vagando em camisa infringia a decência e que aquilo devia cessar no futuro”. Mas, depois que o governador partiu, deixaram Lisavieta como era. Por fim, seu pai morreu, tornando-se ela mais querida a todas as pessoas piedosas da cidade como órfã. Com efeito, todos pareciam amá-la; os garotos não mexiam com ela nem a maltratavam; ora, entre nós, os garotos, sobretudo os colegiais, são uma raça agressiva. Entrava ela em casas desconhecidas e ninguém a expulsava; pelo contrário, todos a tratavam bem e lhe davam meio copeque. As moedinhas que lhe davam, levava-as ela logo para metê-las em um tronco qualquer, na Igreja ou na prisão. Se recebia, no mercado, um sequilho ou um pãozinho, não deixava de fazer presente dele ao primeiro menino que encontrasse, ou então detinha uma de nossas damas mais ricas para lhe oferecer; e esta o aceitava até mesmo com alegria. Ela própria não se nutria senão de pão preto e água. Entrava por vezes numa rica loja, sentava-se, tendo junto de si mercadorias de valor, dinheiro; jamais os proprietários desconfiavam dela, sabendo que não tomaria um copeque, mesmo se pusessem milhares de rublos a seu alcance e fossem esquecidos. Ia raramente à igreja, dormia sob os pórticos, ou num pomar qualquer, depois de ter pulado a cerca (ainda agora há entre nós muitas cercas em lugar de paliçadas). Ia geralmente uma vez por semana à casa dos patrões de seu defunto pai, no inverno todos os dias, mas somente à noite, que ela passava no vestíbulo ou no estábulo. Causava espanto que pudesse ela suportar tal existência, mas estava a ela acostumada; se bem que de pequena estatura, tinha uma constituição excepcionalmente robusta. Certas pessoas da sociedade achavam que ela fazia tudo isso unicamente por orgulho, mas não havia motivo para tal; não sabia ela dizer uma palavra, por vezes somente mexia a língua e resmungava; que tinha que ver com isso o orgulho? Ora, numa noite de setembro, clara e quente, em que a lua era cheia, a uma hora já bastante tardia para nossos hábitos, um bando de cinco ou seis farristas, embriagados, voltava do clube para suas casas pelo caminho mais curto. Dos dois lados, a ruela que eles seguiam era bordada por uma cerca por trás da qual se estendiam os pomares das casas ribeirinhas; terminava num passadiço lançado sobre o longo pântano infecto que se batiza por vezes entre nós com o nome de rio. Perto da cerca, entre as urtigas e as barbanas, nosso grupo percebeu Lisavieta adormecida. Aqueles cavalheiros embriagados pararam perto dela, explodiram em risadas e puseram-se a pilheriar da maneira mais cínica. Um filho de família imaginou de repente uma questão totalmente excêntrica, a respeito de um assunto impossível. “Pode-se, disse ele, não importa quem, aceitar um tal monstro como uma mulher, etc.” Todos decidiram, com nobre aversão, que não se podia. Mas Fiódor Pávlovitch, que fazia parte do bando, adiantou-se logo, declarou que se podia perfeitamente aceitá-la como mulher e que havia mesmo ali alguma coisa de picante em seu gênero, etc. Naquela época, comprazia-se ele com afetação no seu papel de palhaço, gostava de dar-se em espetáculo e divertir os ricos, como um verdadeiro farsante, malgrado a igualdade aparente. Com um crepe no chapéu, porque acabava de saber da morte de sua primeira mulher, levava então uma vida tão crapulosa que alguns, mesmo libertinos endurecidos, se sentiam constrangidos à sua vista. Aquela opinião paradoxal de Fiódor Pávlovitch provocou a hilaridade do bando; um deles começou mesmo a provocá-lo, os outros mostraram ainda mais aversão, mas sempre com uma viva alegria; por fim todos seguiram o caminho. Posteriormente, jurou ele que se afastara com os outros; talvez dissesse a verdade, ninguém nunca soube de nada ao certo. Mas cinco ou seis meses mais tarde, a gravidez de Lisavieta excitava a indignação de toda a cidade, e procurou-se descobrir quem pudera ultrajar a pobre criatura. Um boato terrível circulou em breve, acusando Fiódor Pávlovitch. Donde vinha ele? Do bando farrista não restava então na cidade senão um homem de idade madura, respeitável conselheiro de Estado, pai de filhas adultas, o qual nada teria contado, mesmo se se tivesse passado qualquer coisa; os outros tinham-se dispersado. Mas o boato persistente continuava a apontar Fiódor Pávlovitch. Ele não se deu por achado e desdenhou responder a lojistas e pequenos-burgueses. Era orgulhoso então e não dirigia a palavra senão à sua sociedade de funcionários e nobres, a quem tanto divertia. Foi então que Grigóri tomou energicamente o partido de seu amo; não somente defendeu-o contra qualquer insinuação, como também discutiu bastante calorosamente a esse respeito e conseguiu mudar a opinião de muitos. “A culpa é dela mesma, daquela criatura”, afirmava ele, e seu sedutor não era outro senão “Karp, o Parafuso” (assim se chamava um detento bastante perigoso, que se havia evadido da prisão da capital e se ocultara em nossa cidade). Essa conjetura pareceu plausível; foi lembrado que Karp vagueara por aquelas mesmas noites de outono e saqueara três pessoas. Mas essa aventura e esses rumores, longe de desviar as simpatias pela pobre idiota, valeram-lhe um redobramento de solicitude. Uma viúva bastante rica, a negociante Kondrátievna, decidiu recolhê-la em sua casa, no fim de abril, para que ela ali desse à luz. Vigiavam-na severamente. Apesar de tudo, uma noite, no dia mesmo do parto, Lisavieta fugiu da casa de sua protetora e foi cair no jardim de Fiódor Pávlovitch. Como pudera ela, em seu estado, transpor uma paliçada tão alta? Isso permaneceu um enigma. Uns asseguravam que a haviam carregado, outros viam naquilo uma intervenção sobrenatural. Tudo leva a crer que aquilo se realizou de uma maneira engenhosa, mas natural, e que Lisavieta, habituada a penetrar através das sebes nos pomares, para neles passar a noite, trepou, apesar de seu estado, sobre a paliçada de Fiódor Pávlovitch, donde saltou, ferindo-se no jardim. Grigóri correu a buscar sua mulher para os primeiros cuidados: ele mesmo foi à procura de uma velha parteira que morava bem perto. Salvou-se o menino, mas Lisavieta morreu ao romper do dia. Grigóri pegou o recém-nascido, levou-o para o pavilhão e depositou-o sobre os joelhos de sua mulher: “Eis um filho de Deus, um órfão de que seremos os pais. É o pequeno morto que no-lo envia. Nasceu de um filho de Satanás e duma justa. Cria-o e não chores mais doravante.” Foi assim que Marfa Ignátievna criou o menino. Foi batizado com o nome de Páviel, ao qual toda a gente ajuntou, e eles também, Fiódorovitch como nome patronímico. Fiódor Pávlovitch não fez objeção e achou mesmo a coisa divertida, negando porém energicamente aquela paternidade. Aprovaram-no por ter recolhido o órfão. Mais tarde, deu-lhe como nome de família Smierdiákov, de acordo com o sobrenome da mãe dele, Smierdiáchtchaia. Servia ele a Fiódor Pávlovitch como segundo criado e vivia, no começo de nossa narrativa, no pavilhão, ao lado do velho Grigóri e da velha Marfa. Tinha o emprego de cozinheiro. Seria preciso consagrar-lhe um capítulo especial, mas tenho escrúpulo de reter por tanto tempo a atenção do leitor para simples criados e continuo esperando que se tratará muito naturalmente de Smierdiákov no curso da narrativa.

 

III


Confissão de um coração ardente, em versos


Ouvindo a ordem que lhe gritava seu pai, da caleça, ao partir do mosteiro, ficou Aliócha algum tempo imóvel e bastante perplexo. Mas, dominando sua perturbação, dirigiu-se logo à cozinha do padre abade, para procurar saber o que havia feito Fiódor Pávlovitch. Depois pôs-se a caminho, esperando resolver, enquanto andava, um problema que o atormentava. Digamo-lo imediatamente: os gritos de seu pai e a ordem de mudar-se, com travesseiros e colchão, não lhe inspiravam nenhum temor. Compreendia perfeitamente que aquela ordem, gritada entre gestos, fora dada “por pura excitação”, por assim dizer, e até mesmo para a plateia, à maneira daquele pequeno-burguês que recentemente em sua cidade, tendo festejado demasiado seu aniversário e furioso porque não lhe davam mais vodca, pôs-se, diante de seus convidados, a quebrar a própria louça, a rasgar as roupas e as de sua mulher, a partir os móveis e as vidraças, tudo isso por pura exibição. No dia seguinte, naturalmente, o burguês desembriagado lamentava as xícaras e os pires quebrados. Aliócha sabia que o velho o deixaria seguramente voltar ao mosteiro no dia seguinte, talvez naquele mesmo dia. E mais, estava persuadido de que seu pai não quereria jamais ofendê-lo, e que jamais ninguém no mundo, não somente não o quereria, mas não o poderia. Era para ele um axioma, admitido de uma vez por todas, e a esse respeito caminhava tranquilo, sem a menor excitação.

Mas naquele momento, outro temor o agitava, duma espécie bem diversa, e tanto mais penoso quanto ele mesmo não o teria podido definir, o temor de uma mulher, daquela Katierina Ivânovna, que insistia tanto, em sua carta entregue de manhã pela senhora Khokhlakova, para que fosse vê-la. Esse pedido e a necessidade de a ele obedecer causavam-lhe uma impressão dolorosa, que, durante toda a tarde, não fez senão agravar-se, malgrado as cenas e as aventuras que se haviam desenrolado no mosteiro etc. Seu temor não provinha de ignorar o que ela lhe diria e o que ele responderia. Não era tampouco a mulher que ele temia nela; decerto, conhecia pouco as mulheres, mas não tinha, no entanto, vivido senão com elas, desde a tenra infância até a chegada ao mosteiro. Temia aquela mulher, precisamente Katierina Ivânovna, e isso desde o primeiro encontro. Ora, ele a havia encontrado duas ou três vezes no máximo, e trocado por acaso algumas palavras com ela. Lembrava-se dela como de uma bela moça, altiva e imperiosa. Não era sua beleza que o atormentava, mas algo de diferente, e sua impotência em explicar o medo que ela lhe inspirava aumentava esse medo. O fim que a jovem tinha em vista era dos mais nobres, ele o sabia: esforçava-se por salvar Dimítri, culpado para com ela, e só agia por generosidade. Pois bem, malgrado sua admiração por esses nobres sentimentos, percorria-lhe o corpo um arrepio, à medida que se aproximava da casa dela.

Deu-se conta de que não encontraria em sua companhia Ivan, seu íntimo, retido então certamente por seu pai. Quanto a Dimítri, não podia tampouco estar em casa de Katierina Ivânovna, pressentindo ele a razão disso. A conversa entre ambos ocorreria, pois, a sós, mas antes desejava Aliócha ver Dimítri e, sem mostrar-lhe a carta, trocar com ele algumas palavras. Ora, Dimítri morava longe e não estaria sem dúvida em sua casa naquele momento. Tendo parado um minuto, decidiu-se por fim. Depois de um sinal da cruz apressado, sorriu misteriosamente e dirigiu-se, resoluto, para a terrível pessoa.

Conhecia-lhe a casa. Mas, se tivesse de passar pela rua Grande, depois atravessando a praça, etc., seria bastante distante. Sem ser grande, nossa cidade é muito dispersa e as distâncias, consideráveis. Além do mais, seu pai o esperava: lembrava-se talvez da ordem que lhe dera e era capaz de fazer das suas. Era preciso, pois, apressar-se para chegar a tempo. Em virtude dessas considerações, resolveu Aliócha abreviar o caminho tomando por atalhos; conhecia todos aqueles becos como seu bolso. Por atalhos significava quase com caminhos traçados costear tapumes desertos, transpor por vezes cercas particulares, atravessar pátios onde, aliás, todos o conheciam e o cumprimentavam. Podia assim alcançar a rua Grande em duas vezes menos tempo. Em certo lugar, teve de passar bem perto da casa paterna, precisamente ao lado do jardim contíguo ao deles, que dependia de uma casinha de quatro janelas arruinada e inclinada para o lado. A proprietária dessa casinha era, como Aliócha o sabia, uma pequena-burguesa da cidade, velha inválida, que vivia com a filha, antiga arrumadeira na capital, recentemente ainda a serviço em casa de generais, tendo voltado para casa, havia um ano, por causa da doença da mãe e exibindo-se com vestidos elegantes. Essas duas mulheres tinham no entanto caído em profunda miséria e iam mesmo todos os dias, como vizinhas, procurar pão e sopa na cozinha de Fiódor Pávlovitch. Marfa Ignátievna fazia-lhes boa acolhida. Mas a filha, embora indo procurar sopa, não vendera nenhum de seus vestidos: um deles tinha mesmo uma cauda bastante comprida. Aliócha soubera desse detalhe, completamente por acaso, da boca de seu amigo Rakítin, ao qual nada escapava do que se passava na cidadezinha: é certo, porém, que o esquecera logo. Ao chegar diante do jardim da vizinha, lembrou-se daquela cauda, ergueu rapidamente a cabeça curvada, pensativa, e... teve de súbito o encontro mais inesperado.

Por trás da cerca, de pé sobre um montículo e visível até o peito, seu irmão Dimítri fazia-lhe sinais, chamava-o com grandes gestos, evitando não somente gritar, mas até mesmo dizer uma palavra, com medo de ser ouvido. Aliócha correu para a cerca.

— Por felicidade levantaste os olhos, senão teria sido obrigado a gritar — cochichou jovialmente Dimítri Fiódorovitch. — Salta-me esta cerca, depressa! Como chega a propósito! Pensava em ti...

Aliócha não estava menos contente, embaraçado apenas por ter de pular a cerca. Mas Mítia, com mão de atleta, ergueu-o pelo cotovelo e ajudou-o a saltar, o que ele fez, de batina arrepanhada, com a agilidade de um garoto.

— E agora, em frente, marcha! — murmurou Mítia, num transporte de alegria.

— Mas para onde? — perguntou do mesmo modo Aliócha, olhando por todos os lados e vendo-se num jardim deserto, onde não havia ninguém senão eles. O jardim era pequeno, mas a casa encontrava-se a cinquenta passos pelo menos. — Não há ninguém aqui. Por que falamos em voz baixa?

— Por quê? Que o diabo me carregue! — exclamou de súbito Dimítri Fiódorovitch a plena voz. — Que adianta falar em voz baixa? Vês tu mesmo como se pode ser absurdo. Estou aqui para espionar um segredo. As explicações virão depois, mas, sob a impressão do mistério, pus-me a falar misteriosamente, a cochichar como um tolo, sem razão. Vamos! Vem e cala-te. Mas quero beijar-te.


Glória ao Eterno sobre a terra.

Glória ao Eterno em mim...


Eis o que eu repetia ainda há pouco, sentado no jardim, naquele lugar...

O jardim de cerca de uma diesiatina estava todo cercado de árvores ao longo de seu recinto: pereiras, bordos, tílias, bétulas. O centro formava uma espécie de pequeno prado onde se recolhia feno, no verão. A proprietária alugava aquele jardim desde a primavera por alguns rublos. Havia pés de framboesa, groselhas de várias espécies, igualmente perto das cercas; a horta, cultivada desde pouco tempo, achava-se perto da casa. Dimítri conduziu seu irmão para o canto mais afastado do jardim. Ali, entre as tílias muito próximas e velhas moitas de groselheiras e de sabugueiros, de bolas-de-neve e de lilases, avistavam-se as ruínas de um antigo pavilhão verde, enegrecido e empenado, de paredes com claraboia, mas ainda coberto e onde a gente podia abrigar-se da chuva. Segundo a tradição, fora esse pavilhão construído, havia cinquenta anos, por um antigo proprietário, Alieksandr Kárlovitch von Schmidt, tenente-coronel reformado. Tudo caía em poeira, o soalho estava podre, as tábuas balançavam, a madeira tresandava umidade. Havia uma mesa de madeira pintada de verde, enterrada no chão, cercada de bancos que ainda podiam servir. Aliócha notara o entusiasmo do irmão; ao entrar no pavilhão, viu sobre a mesa uma garrafa de conhaque pela metade e um copinho.

— É conhaque! — disse Mítia, com uma explosão de riso. — Vais pensar: “Ele continua bebendo.” Não te fies nas aparências.


Na gente mentirosa e vã, não creias,

Às tuas suspeitas renuncia...[ 69 ]


— Eu não me embriago, “beberico”, como diz aquele porco do Rakítin, teu amigo, e o dirá ainda, mesmo quando tornar-se conselheiro de Estado. Senta-te, Aliócha: gostaria de apertar-te em meus braços, de esmagar-te, porque, no mundo inteiro, crê-me, na verdade, na ver-da-de, não amo senão a ti!

Pronunciou as derradeiras palavras numa espécie de frenesi.

— A ti e também a uma debochada pela qual me embeicei, para desgraça minha. Mas embeiçar-se não é amar. A gente pode embeiçar-se e odiar. Lembra-te disso. Até aqui, falo alegremente. Senta-te à mesa, perto de mim, para que te veja. Tu me escutarás em silêncio e direi tudo, porque o momento de falar chegou. Mas fica sabendo, refleti, é preciso falar verdadeiramente baixo porque aqui... há talvez orelhas às escutas. Saberás tudo, disse: a continuação virá. Por que tinha eu tamanha vontade de ver-te, desde cinco dias que aqui estou e ainda há pouco? É que tu me és necessário... é que a ti somente direi tudo... é que amanhã uma vida acaba e outra começa para mim. Já experimentaste alguma vez em sonho a sensação de rolar num precipício? Pois bem, agora caio realmente. Oh! Não tenho medo e tu também não tens. Isto é, sim, tenho medo, mas é um medo suave, ou antes, embriaguez... E, depois, para o diabo! Que importa! Espírito forte, espírito fraco, espírito de mulher, que importa? Louvemos a natureza! Vê que belo sol, que céu puro, por toda parte folhagens verdes; é na verdade ainda o verão. Estamos às quatro horas da tarde, está tudo calmo!... Aonde ias?

— Ia à casa de meu pai e queria ver, de passagem, Katierina.

— À casa dela e à casa de papai? Que coincidência! Pois, por que te chamei, por que te desejava do fundo do coração, com todas as fibras de meu ser? Precisamente para mandar-te à casa de papai, depois à casa dela, a fim de acabar isso de uma vez com um e com outra. Enviar um anjo! Teria podido enviar não importa quem, mas era-me preciso um anjo. E eis que ias tu mesmo para lá!

— Deveras? Querias mandar-me lá? — perguntou Aliócha, com uma expressão dolorosa.

— Espera, tu o sabias. Vejo que compreendeste tudo; mas cala-te. Não me lamentes, não chores!

Dimítri levantou-se, com ar meditativo:

— Foi ela quem te chamou; deve ter-te escrito, senão não irias...

— Aqui está seu bilhete... — Aliócha tirou-o do bolso. Mítia leu-o rapidamente.

— E tomavas o caminho mais curto! Ó deuses! Agradeço-vos o tê-lo dirigido para este lado e trazido para mim tal como o peixinho de ouro que foi cair nas mãos do velho pescador, segundo o conto.[ 70 ] Escuta, Aliócha, escuta, meu irmão. Agora, resolvi dizer tudo. É preciso que me expanda, afinal! Depois de ter-me confessado a um anjo do céu, vou confessar-me a um anjo da terra. Porque és um anjo. Tu me escutarás e me perdoarás... Tenho necessidade de ser absolvido por um ser mais nobre do que eu. Escuta, pois. Suponhamos que duas criaturas se libertem das servidões terrestres e planem numa região superior, uma delas, pelo menos. Que esta, antes de voar ou desaparecer, se aproxima da outra e lhe diga: “Faze por mim isto ou aquilo”, coisas que jamais se costumam exigir, que só se pedem no leito de morte. Será que o que fica se recusará, se é um amigo, um irmão?

— Eu o farei, mas dize-me de que se trata, e dize-me quanto antes — falou Aliócha.

— Depressa... Hum! Não te apresses, Aliócha. Apressando-te, atormentas-te. É inútil apressar-se agora. O mundo entra agora numa era nova. Que pena, Aliócha, que nunca te entusiasmes. Mas que digo eu? Sou eu que careço de entusiasmo! Que digo eu, tolo que sou?


Homem, sê nobre!


De quem é este verso?

Aliócha resolveu esperar. Compreendera que toda a sua atividade, com efeito, estava talvez concentrada agora naquele lugar. Mítia ficou um momento pensativo, de cotovelos sobre a mesa, a fronte na mão. Ambos mantinham-se calados.

— Aliócha, somente tu me escutarás sem rir. Gostaria de começar... minha confissão... por um hino à alegria, como Schiller, An die Freude!. Mas não sei alemão, sei somente que é An die Freude. Não vás imaginar que tagarelo sob o domínio da embriaguez. Para embriagar-me são necessárias duas garrafas de conhaque.


Como Sileno vermelho

No seu asno vacilante.


Ora, não bebi um quarto de garrafa e não sou Sileno. Não Sileno, mas Hércules, porque tomei uma resolução heroica. Perdoa-me essa aproximação de mau gosto, terás bem mais outras coisas a perdoar-me hoje. Não te inquietes, não invento, falo seriamente e vou direto ao fato. Não serei duro ao disparo como um judeu. Espera, como é que é mesmo?

Ergueu a cabeça, refletiu, depois começou a recitar com entusiasmo:


Nu, tímido, selvagem, se ocultava

O troglodita nas cavernas;

O nômade nos campos pervagava

A devastá-los sem cessar;

O caçador com sua lança e flechas,

Terrível, as florestas percorria;

Desgraça para os náufragos lançados

Pelas ondas naquela praia inóspita.


Das alturas do Olimpo, Ceres[ 71 ]

Desce, à procura de Prosérpina,

Ao seu amor arrebatada;

A seus olhos o mundo é todo horror.

Nenhum asilo, nem mesmo oferendas

À deusa são apresentadas.

Aqui não se conhece culto aos deuses,

Nem templos há para adorá-los.


Os frutos do pomar, as uvas doces

Não alegram nenhum festim;

Só os restos das vítimas fumegam

Sobre as aras ensanguentadas.

E em vão de Ceres vaga o triste olhar;

Por toda parte avista o homem

Numa profunda humilhação.


Soluços escaparam-se do peito de Mítia; agarrou Aliócha pela mão.

— Amigo, amigo, sim, na humilhação, na humilhação ainda agora! O homem sofre na terra males sem conta. Não penses que seja eu apenas um boneco vestido de oficial, bom para beber e para fazer farras. A humilhação, que é a partilha do homem, eis, irmão, quase o único objeto de meu pensamento. Deus me guarde de mentir e de gabar-me. Penso nesse homem humilhado, porque sou ele eu mesmo.


Para que possa sair da abjeção

O homem, por força de sua alma,

Deve aliança eterna concluir

Com sua velha mãe, a Terra.


Somente, porém, como concluir essa aliança eterna? Não fecundo a terra, abrindo-lhe o seio; far-me-ei mujique ou pastor? Ando sem saber para onde vou, para a luz radiosa ou para a vergonha infecta. Está nisso a desgraça, porque tudo é enigma neste mundo. Quando me achava mergulhado na mais abjeta degradação (era todo o tempo), sempre reli esses versos a respeito de Ceres e da miséria do homem. Corrigiram-me? Não! Porque sou um Karamázov! Porque, quando rolo no abismo, é diretamente, de cabeça à frente; agrada-me mesmo cair assim, vejo beleza nessa queda. E do seio da vergonha entoo um hino. Sou maldito, vil e degradado, mas beijo a fímbria da veste em que se envolve o meu Deus; sou a estrada diabólica, mas sou, no entanto, Teu filho, Senhor, e Te amo, sinto a alegria sem a qual o mundo não poderia subsistir.


A alegria eterna anima

Toda a alma da criação,

Transmite a chama da vida

Na força oculta dos germes;

Foi quem fez surgir a relva,

Transformou o caos em sóis,

Espalhados nos espaços

Longe da vista dos homens.

Tudo quanto na boa natureza

Respira, dela extrai sua alegria,

Arrasta atrás de si seres e povos;

Foi ela quem nos deu

Amigos na desgraça,

Dos cachos d’uva o suco,

Das Graças a grinalda,

Ao inseto, a luxúria...


E o Anjo, para levar-nos

À presença de Deus.


Mas basta de versos. Deixa-me chorar. Que seja um absurdo de que o mundo inteiro zombe, exceto tu. Eis teus olhos brilhando. Basta de versos. Quero agora falar-te dos “insetos”, daqueles a quem Deus gratificou com a luxúria. Eu mesmo sou um deles e isso se aplica a mim. Nós, Karamázov, somos todos assim; esse inseto vive em ti, que és um anjo, e aí suscita tempestades. Porque a sensualidade é uma tempestade e até mesmo algo mais. A beleza é uma coisa terrível e espantosa. Terrível, porque indefinível, e não se pode defini-la porque Deus só criou enigmas. Os extremos se tocam, as contradições vivem juntas. Sou pouco instruído, irmão, mas tenho pensado muito nessas coisas. Quantos mistérios acabrunham o homem! Penetra-os e volta intacto. Assim a beleza. Não posso tolerar que um homem de grande coração e de alta inteligência comece pelo ideal da Madona e venha a acabar no de Sodoma. Mas o mais horrível é, trazendo no seu coração o ideal de Sodoma, não repudiar o da Madona, arder por ele como nos seus jovens dias de inocência. Não, o espírito humano é demasiado vasto, gostaria de restringi-lo. O diabo é quem sabe de tudo. O coração acha beleza até na vergonha, no ideal de Sodoma, que é o da imensa maioria. Conheces esse mistério? É o duelo do diabo e de Deus, sendo o coração humano o campo de batalha. Ora, fala-se daquilo que faz a gente sofrer. Vamos, pois, ao fato.

 

IV


Confissão de um coração ardente. — Anedotas


— Entregara-me à devassidão. Meu pai dizia ainda há pouco que gastei milhares de rublos para seduzir donzelas. Imaginação de porco! É uma mentira, porque minhas conquistas não me custavam nada, a bem dizer. Para mim o dinheiro não passa do acessório, a encenação. Hoje, sou o amante de uma dama, amanhã de uma mulher das ruas. Divirto as duas, prodigalizando dinheiro aos punhados, com música e ciganos. Se for possível, dou dinheiro a elas, porque de qualquer forma o dinheiro não lhes desagrada; elas nos agradecem. Amaram-me senhoritas, não todas, mas as houve e muitas. Gostava dos becos, das vielas sombrias e desertas, teatro de aventuras, de surpresas, por vezes de pérolas na lama. Exprimo-me, alegoricamente, irmão, esses becos só existiam figuradamente. Se fosses semelhante a mim, compreenderias. Gostava da devassidão por sua abjeção mesma. Gostava da crueldade; não sou um percevejo, um inseto malfazejo? Um Karamázov, está tudo dito! Uma vez, houve um grande piquenique, para onde fomos em sete troicas, no inverno, num tempo sombrio; no trenó cobri de beijos minha vizinha, filha de um funcionário, sem fortuna, encantadora e tímida; no escuro, permitiu-me ela carícias demasiado livres. A pobrezinha imaginava que, no dia seguinte, iria eu pedi-la em casamento (porque era eu apreciado como possível noivo); mas fiquei cinco meses sem dizer-lhe uma palavra. Muitas vezes, quando se dançava, via-a seguir-me com o olhar num canto do salão, com os olhos a arderem duma terna indignação. Esse jogo só fazia deleitar minha sensualidade perversa. Cinco meses depois, casou-se ela com um funcionário e partiu... furiosa e talvez amando-me ainda. Vivem felizes, agora. Nota que ninguém sabe de nada, sua reputação está intacta; malgrado meus vis instintos e meu amor à baixeza, não sou desonesto. Tu coras. Teus olhos cintilam. Estás farto dessa lama. No entanto, não passam de grinaldas à Paulo de Kock.[ 72 ] Tenho, irmão, um álbum inteiro de recordações. Que Deus as guarde a essas queridas criaturas. No momento de romper, evitava as querelas. Jamais vendi nem comprometi nenhuma. Mas isto basta. Crês que te chamei somente por causa dessas sujeiras? Não, foi a fim de contar-te algo de mais curioso; mas não fiques surpreendido pelo fato de não ter eu vergonha diante de ti, sinto-me mesmo à vontade.

— Fazes alusão ao meu rubor — observou, de súbito, Aliócha. — Não são tuas palavras, nem mesmo tuas ações que me fazem corar. Coro porque sou igual a ti.

— Tu? Estás indo um pouco longe.

— Não, não exagero — declarou Aliócha, com calor. (Via-se que estava presa dessa ideia fazia muito tempo.) — A escada do vício é a mesma para todos. Acho-me no primeiro degrau; estás mais alto, no 13º, admitamos. Acho que é absolutamente a mesma coisa: uma vez posto o pé no primeiro degrau, é preciso galgar todos.

— O melhor, então, é não começar?

— Evidentemente, se é possível.

— Pois bem, és capaz?

— Creio que não.

— Cala-te, Aliócha, cala-te, meu querido, tenho vontade de beijar-te a mão cheio de enternecimento. Ah! Essa marota da Grúchenhka conhece os homens; dizia-me, uma vez, que um dia ou outro te devoraria. Está bem, calo-me! Mas deixemos esse terreno emporcalhado pelas moscas para chegar à minha tragédia, emporcalhada, também ela, pelas moscas, isto é, por todas as espécies de baixezas possíveis. Se bem que o velho tenha mentido a respeito de minhas pretensas seduções, isso aconteceu-me; no entanto, uma vez somente; e ainda assim não chegou a executar-se. Ele, que me censurava coisas imaginárias, nada sabe disso; não o contei a ninguém, és o primeiro a quem falo, exceto Ivan, bem entendido. Ele sabe de tudo desde muito tempo. Mas Ivan é mudo como um túmulo.

— Como um túmulo?

— Sim.

Aliócha redobrou de atenção.

— Embora alferes num batalhão de linha, era objeto de certa vigilância, a modo dum deportado. Mas acolhiam-me bastante bem na cidadezinha. Prodigalizava dinheiro, acreditavam-me rico e eu acreditava que o era. Devia agradar também por outras razões. Embora abanando a cabeça por causa de minhas estroinices, tinham afeição por mim. Meu tenente-coronel, um velho, antipatizou comigo de repente. Pôs-se a amofinar-me, mas eu tinha costas largas; toda a cidade ficou a meu lado, não podia ele fazer grande coisa. A culpa era minha; por tola altivez, não lhe prestava eu as homenagens a que tinha ele direito. Aquele velho teimoso, bom homem no íntimo e muito hospitaleiro, fora casado duas vezes. Era viúvo. Sua primeira mulher, de baixa condição, deixara-lhe uma filha tão simples quanto ela mesma. Tinha a moça então 24 anos e vivia com o pai e a tia materna. Longe de ter a ingenuidade silenciosa da tia, a isso juntava muita vivacidade. Jamais encontrei caráter feminino mais encantador. Chamava-se Agáfia, imagina, Agáfia Ivânovna. Bastante bonita, ao gosto russo, grande, de boas carnes, de belos olhos, mas de expressão um pouco vulgar. Ficara solteira, malgrado dois pedidos de casamento, e conservava sua jovialidade. Travei amizade com ela, tudo muito direito, com muita honestidade. Porque travei mais de uma amizade feminina, perfeitamente pura. Falava com ela em termos bastante livres, e ela só fazia rir. Muitas mulheres gostam dessa liberdade de expressão, nota-o bem; além do mais, era muito divertido com uma moça igual a ela. Um traço ainda: não se podia qualificá-la de senhorita. A tia e ela viviam em casa do pai, numa espécie de rebaixamento voluntário, sem se igualarem ao resto da sociedade. Estimavam-na, apreciavam seus talentos de costureira, porque não cobrava ela nada, trabalhando por gentileza para as amigas, sem todavia recusar o dinheiro, quando lhe era oferecido. Quanto ao coronel, era um dos homens notáveis do lugar. Vivia à larga. Toda a cidade era recebida em sua casa; ceava-se, dançava-se. Por ocasião de minha entrada para o batalhão, só se falava, na cidade, da próxima chegada da segunda filha do coronel. Famosa por sua beleza, acabava de sair de um internato aristocrático da capital. É Katierina Ivânovna, a filha da segunda mulher do coronel. Esta última era nobre, de grande casa, mas não trouxera dote algum ao marido; sei-o de boa fonte. Era de boa família, com algumas esperanças, mas nada de efetivo. No entanto a jovem chegou para uma temporada, e a cidadezinha ficou como que galvanizada; nossas damas mais distintas, duas Excelências, uma coronela, e todas as outras, em seguimento, disputavam-na; festejavam-na, era a rainha dos bailes, dos piqueniques; organizaram-se quadros vivos em benefício de não sei quais professoras. Quanto a mim, calo-me, farreio; imaginei então uma pilhéria à minha moda, que deu que falar à cidade inteira. Uma noite, em casa do comandante da bateria, Katierina Ivânovna lançou-me um olhar de alto a baixo; não me aproximei dela, desdenhando travarmos conhecimento. Abordei-a algum tempo depois, igualmente num sarau. Falei-lhe. Olhou-me apenas, com os lábios desdenhosos. “Espera um pouco, pensei, vingar-me-ei!” Era eu então um sujeito verdadeiramente estourado na maior parte dos casos e sentia isso. Sentia sobretudo que Kátienhka, longe de ser uma pensionista ingênua, tinha caráter, altivez e verdadeira virtude, sobretudo muita inteligência e instrução, o que me faltava totalmente. Pensas que eu queria pedir-lhe a mão? Absolutamente. Queria somente me vingar de sua indiferença a meu respeito. Foi então uma farra de arrebentar. Por fim, o tenente-coronel infligiu-me três dias de detenção. Naquela ocasião, nosso pai enviou-me seis mil rublos em troca de uma renúncia formal a todos os meus direitos e pretensões à fortuna de minha mãe. Nada entendia disso então; até minha chegada aqui, irmão, até estes últimos dias e talvez mesmo agora, nada compreendi dessas disputas de dinheiro entre mim e meu pai. Mas, para o diabo tudo isso, tornaremos a falar. Já de posse desses seis mil rublos, a carta de um amigo me fez ciente de uma coisa bastante interessante, a saber, que estavam descontentes com nosso tenente-coronel, suspeito de malversações, e que seus inimigos lhe preparavam uma surpresa. Com efeito, o chefe da divisão apareceu para dirigir-me vigorosa reprimenda. Pouco depois, foi obrigado a demitir-se. Não te contarei todos os detalhes desse negócio; tinha ele, com efeito, inimigos; ocorreu na cidade brusco resfriamento de relações com ele e toda a sua família; todo mundo os abandonava. Foi então que pus em prática minha primeira treta: encontro Agáfia Ivânovna, de quem me mantinha sempre amigo, e digo-lhe: “Faltam 4.500 rublos no caixa de seu pai...” “Como? Quando o general veio, recentemente, a soma estava completa...” “Estava então, mas não mais agora.” Ela ficou apavorada. “Não me apavore, rogo-lhe, donde soube isso?” “Tranquilize-se — digo-lhe —, não falarei a ninguém, sabe você que a esse respeito sou um túmulo. Queria somente dizer-lhe isto, de qualquer modo: quando reclamarem de seu pai esses 4.500 rublos que lhe faltam, em vez de passar em julgamento na sua idade e ser degradado, mande-me sua irmã secretamente; acabo de receber dinheiro, remeter-lhe-ei a soma e ninguém ficará sabendo de nada.” “Ah, que patife é você! — disse ela. — Que canalha! Como ousa?” Ela foi-se embora, sufocada de indignação, e gritei-lhe às costas que o segredo seria inviolavelmente guardado. Aquelas duas mulheres, Agáfia e a tia, eram verdadeiros anjos; adoravam a altiva Kátia, serviam-na humildemente. Agáfia deu parte de nossa conversa à irmã, como vim a saber mais tarde. Era justamente o que me era preciso.

“Entrementes, chega novo major para tomar o comando do batalhão. O velho coronel cai doente; fica no quarto dois dias inteiros e não presta suas contas. O doutor Krávtchenko assegura que a doença não é simulada. Mas eis o que eu sabia com certeza, e desde muito tempo: após cada revisão de seus chefes, o coronel fazia desaparecer certa soma por algum tempo; isso remontava a quatro anos. Emprestava-a a um homem de toda a confiança, um negociante, viúvo barbudo, de óculos de ouro. Trífonov. Este ia à feira, servia-se do dinheiro para seus negócios e restituía-o logo ao coronel, com um presente e uma boa comissão. Mas dessa vez, Trífonov, de volta da feira, nada entregara (soube-o, por acaso, de seu filho, um fedelho, garoto pervertido dos que mais o sejam). O coronel acorreu: Jamais recebi nada do senhor, respondeu o velhaco. O infeliz não põe mais o pé fora de casa, com a cabeça enrolada num penso, as três mulheres aplicando-lhe gelo sobre o crânio. Chega um ordenança com a ordem de entrega do caixa imediatamente, dentro de duas horas. Ele assinou, vi mais tarde sua assinatura no registro, levantou-se, dizendo que ia vestir o uniforme, e passou para o quarto de dormir. Ali pegou seu fuzil de caça, carregou-o com bala, descalçou o pé direito, apoiou a arma contra o peito, tateando com o pé para premir o gatilho. Mas Agáfia, que não esquecera minhas palavras, suspeitava de alguma coisa; tendo-se aproximado furtivamente, vigiava-o. Precipitou-se, cercou-o com os braços pelas costas; o tiro partiu para o ar, sem ferir ninguém. Os outros acorreram, arrancaram-lhe a arma, segurando-o pelas mãos... Encontrava-me então em casa, ao crepúsculo, a ponto de sair, vestido, penteado, o lenço perfumado; pegara meu casquete; de repente, a porta se abre e vejo entrar Katierina Ivânovna.

“Há coisas estranhas: ninguém a notara na rua quando vinha ela para minha casa, nem visto, nem conhecido. Eu morava em casa de duas mulheres de funcionários, pessoas idosas; faziam elas o serviço, para tudo me escutavam com deferência e guardavam por ordem minha segredo absoluto. Compreendi no mesmo instante do que se tratava. Ela entrou, de olhar fito em mim; seus olhos sombrios exprimiam a decisão, a audácia mesmo, mas o jeito de seus lábios revelava a perplexidade.

“— Minha irmã me disse que o senhor daria 4.500 rublos, se eu viesse buscá-los... em pessoa. Eis-me aqui... dê-me o dinheiro!... — Sufocava, tomada de terror; sua voz extinguiu-se, seus lábios tremiam... Aliócha, tu me escutas ou dormes?”

— Mítia, sei que me dirás toda a verdade — replicou Aliócha, comovido.

— Podes contar com isso, não me pouparei. Meu primeiro pensamento foi o de um Karamázov. Um dia, irmão, fui picado por uma centopeia e tive de ficar 15 dias de cama, com febre; pois bem, senti então no coração a picada da centopeia, um animal venenoso, bem sabes. Eu a examinava de alto a baixo. Viste-a? É uma beleza. Mas era bela então por sua nobreza moral, por sua grandeza de alma e por seu devotamento filial, a meu lado, vil e repugnante personagem. Era, no entanto, de mim que “toda” ela dependia, corpo e alma, como que prisioneira. Confessá-lo-ei: aquele pensamento, o pensamento da centopeia, dominou-me o coração com tal intensidade que acreditei morrer de angústia. Parecia que nenhuma luta era possível: conduzir-me baixamente, como uma tarântula venenosa, sem sombra de compaixão... Isso atravessou-me mesmo o espírito. No dia seguinte, bem entendido, iria eu pedir-lhe a mão, para terminar tudo da maneira mais nobre, e ninguém teria sabido nada do caso. Porque, se tenho instintos baixos, sou contudo leal. E, de súbito, ouço que me murmuram ao ouvido: “Amanhã, quando fores oferecer-lhe tua mão, ela não se mostrará e mandará expulsar-te pelo cocheiro. Podes difamar-me pela cidade, dirá ela, não tenho medo de ti!” Olhei para a jovem, a fim de ver se aquela voz não mentia. A expressão de seu rosto não deixava nenhuma dúvida, pôr-me-iam pela porta afora. A cólera dominou-me, tive vontade de pregar-lhe a peça mais vil, uma sujeira de bodegueiro: olhá-la ironicamente e, enquanto ela se conservasse diante de mim, consterná-la, tomando a inflexão de que só são capazes os bodegueiros:

“— Quatro mil e quinhentos rublos! Mas eu estava brincando! A senhorita contou muito facilmente com isso! Duzentos rublos, com prazer e de boa vontade; mas quatro mil é dinheiro isso; não se pode dá-lo assim levianamente. A senhorita incomodou-se por coisa alguma.

“Vês tu, teria eu tudo perdido, ela teria fugido, mas aquela vingança infernal teria compensado o resto. Eu lhe teria pregado essa peça, pronto a lamentá-la em seguida a vida inteira! Acreditarás que, em semelhantes minutos, jamais olhei uma mulher, quem quer que ela fosse, com um ar de ódio — mas, juro-o sobre a cruz, durante alguns segundos contemplei-a com um ódio intenso —, o ódio que só está separado do amor mais ardente por um cabelo. Aproximei-me da janela, apoiei a fronte na vidraça gelada, lembro-me de que o frio fazia-lhe o efeito de uma queimadura. Não a retive muito tempo, fica tranquilo; fui à minha mesa, abri uma gaveta, dela retirei um cheque de cinco mil rublos ao portador, que se encontrava no dicionário de francês. Sem dizer uma palavra, mostrei-lhe o cheque, dobrei-o, entreguei-o a ela, depois eu mesmo abri a porta da antecâmara e fiz uma profunda saudação. Ela estremeceu toda, olhou fixamente um segundo, ficou branca como um linho e, sem proferir uma palavra, sem brusquidão, mas ternamente, docemente, prosternou-se a meus pés, com a fronte no chão, não como uma pensionista, mas à russa! Levantou-se e fugiu. Após sua partida, tirei minha espada e quis matar-me; por quê, não sei dizê-lo; teria sido absurdo, evidentemente; sem dúvida, por entusiasmo. Compreendes que possa a gente matar-se de alegria? Mas limitei-me a beijar a lâmina e repu-la na bainha... Poderia muito bem não ter-te falado disso. Parece-me, aliás, que floreei um tanto, para me gabar, contando-te as lutas de minha consciência. Mas que importa! Ao diabo todos os espiões do coração humano! Eis toda a minha aventura com Katierina Ivânovna. És o único, com Ivan, a conhecê-la.

Dimítri Fiódorovitch levantou-se, dando alguns passos com hesitação, tirou seu lenço, enxugou a testa, depois tornou a sentar-se, mas num outro lugar, no banco em frente, contra a outra parede, de modo que Aliócha teve de voltar-se totalmente para seu lado.

 

V


Confissão de um coração ardente e desbocado


— Pois bem! — disse Aliócha. — Conheço agora a primeira parte do caso.

— Isto é, um drama, que se passou lá. A segunda parte será uma tragédia e se desenrolará aqui.

— Não compreendo nada dessa segunda parte.

— E eu, será que eu compreendo alguma coisa?

— Escuta, Dimítri, há um ponto importante. Dize-me, ainda és noivo?

— Não fiquei noivo imediatamente, mas só três meses depois daquele acontecimento. No dia seguinte, disse a mim mesmo que estava tudo liquidado, terminado, que não haveria consequências. Ir pedi-la em casamento pareceu-me uma baixeza. De seu lado, não me deu ela sinal de vida durante as seis semanas que passou ainda na cidade. De parte uma exceção, entretanto: no dia seguinte à sua visita, a arrumadeira delas introduziu-se em minha casa e, sem dizer uma palavra, entregou-me um envelope a mim endereçado. Abro-o: continha o restante dos cinco mil rublos. Fora preciso restituir 4.500, a perda de venda da obrigação ultrapassava duzentos rublos. Ela me restituía 260, creio — não me lembro exatamente —, e sem uma palavra de explicação. Procurei no pacote um sinal qualquer a lápis, nada! Fiz farra com o que me restava de meu dinheiro, a tal ponto que o novo major se viu forçado a fazer-me censuras. O tenente-coronel entregara seu caixa intacto, para espanto geral, porque acreditava-se a coisa impossível. Depois do quê, caiu doente, ficou três semanas de cama e sucumbiu em cinco dias a um amolecimento cerebral. Enterraram-no com honras militares, porque não tivera ele tempo de ser reformado. Katierina Ivânovna, sua irmã e sua tia, dez dias após o enterro, partiram para Moscou. No dia da partida somente (não as havia revisto), recebi um bilhete azul, com esta única linha escrita a lápis: “Escrever-lhe-ei. Espere. K.”

“Em Moscou, os negócios delas arranjaram-se duma maneira tão rápida quão extraordinária, tal como um conto d’As mil e uma noites. A principal parenta de Katierina Ivânovna, uma generala, perdeu bruscamente as duas sobrinhas, suas herdeiras mais próximas, mortas, na mesma semana, de varíola. Transtornada, ligou-se a Kátia como à própria filha, vendo nela sua derradeira esperança, refez seu testamento em seu favor e deu-lhe — de mão para mão — oitenta mil rublos de dote, para dispor deles à vontade. É histérica; tive ocasião de observá-la mais tarde em Moscou. Uma bela manhã, recebo pelo correio 4.500 rublos, com extrema surpresa minha, bem entendido. Três dias depois, chega a carta prometida. Tenho-a ainda, conservá-la-ei até minha morte; queres que a mostre? Não deixes de lê-la: oferece-se ela mesma a partilhar minha vida. ‘Amo-o loucamente; que não me ame, não me importa, contente-se em ser meu marido. Não se espante, não o incomodarei em nada; serei um de seus móveis, o tapete sobre o qual você anda... Quero amá-lo eternamente, salvá-lo-ei de você mesmo...’ Aliócha, sou mesmo indigno de repetir estas linhas em minha vil linguagem, com o tom de que jamais pude corrigir-me! Até agora, essa carta transpassou-me o coração, e acreditas que me sinto à vontade hoje? Respondi-lhe imediatamente (era-me impossível ir a Moscou). Escrevi com minhas lágrimas. Envergonhar-me-ei eternamente de ter-lhe lembrado que era ela agora rica e dotada — e eu sem recursos. Falei de dinheiro. Deveria ter-me contido, mas minha pena traiu-me. Escrevi também a Ivan, então em Moscou, e expliquei-lhe tudo quanto era possível: uma carta de seis páginas; mandei Ivan à casa dela. Que tens que te faz olhar-me? Sim, Ivan apaixonou-se por ela; ainda o está agora, sei disso. Cometi uma tolice, do ponto de vista mundano, mas talvez seja essa tolice que nos salvará a todos. Não vês que ela o honra, que o estima? Pode ela, depois, deter-nos comparando um com o outro, amar um homem tal como eu, sobretudo depois do que se passou aqui?”

— Estou persuadido de que é um homem como tu que ela deve amar, e não um homem como ele.

— É a própria virtude que ela ama e não a mim — deixou Dimítri escapar, malgrado seu, com irritação. Pôs-se a rir, mas de súbito seus olhos cintilaram; tornou-se totalmente vermelho e deu um violento murro na mesa.

— Juro-o, Aliócha — exclamou ele, num acesso de furor, não fingido contra si mesmo —, podes crê-lo ou não, tão verdade como Deus é santo e que o Cristo é Deus, e, se bem que haja eu zombado de seus nobres sentimentos, não duvido da angélica sinceridade deles; sei que minha alma é um milhão de vezes mais vil que a ideia. É nessa certeza que consiste a tragédia. A bela desgraça! Declame-se um pouco! Eu também declamo e, no entanto, sou perfeitamente sincero. Quanto a Ivan, imagino que deve ela maldizer a natureza, ele que é tão inteligente! Quem teve a preferência? Um monstro tal como eu, que não pude arrancar-me da devassidão, quando todos me observavam e isso sob os olhos de minha noiva! E sou eu o preferido? Mas por quê? Porque aquela moça quer, como prova de reconhecimento, constranger-se a uma existência desgraçada! É absurdo! Jamais falei a Ivan nesse sentido, e ele, bem entendido, jamais fez a menor alusão a isso; mas o destino se cumprirá, cada qual segundo seus méritos; o réprobo afundar-se-á definitivamente no lamaçal de que gosta. Estou dizendo incoerências, as palavras não exprimem meu pensamento, como se as empregasse ao acaso, mas o que fixei realizar-se-á. Afogar-me-ei na lama, e ela casará com Ivan.

— Irmão, espera — interrompeu Aliócha, numa agitação extraordinária. — Há um ponto que ainda não me explicaste: continuas seu noivo. Como queres romper, se ela a isso se opõe?

— Sou noivo, recebemos a bênção oficial. Ocorreu em Moscou, quando cheguei em grande cerimônia, com os ícones. A generala nos abençoou; imagina que chegou mesmo a felicitar Kátia: “Escolheste bem — disse ela. — Leio em seu coração.” Quanto a Ivan, não lhe agradou; ela não lhe dirigiu nenhum cumprimento. Em Moscou tive longas conversas com Kátia; pintei-me nobremente, tal como era, com toda a sinceridade. Ela tudo escutou:


Houve um enleio encantador

E ternas palavras ouviram-se...


Houve também palavras altivas. Arrancou-me a promessa de corrigir-me. Prometi. E eis em que ponto estou.

— E então, o quê?

— Chamei-te, trouxe-te aqui hoje, lembra-te, para enviar-te hoje mesmo à casa de Katierina Ivânovna, e...

— Que mais?

— Dize-lhe que não irei mais à casa dela, cumprimentando-a de minha parte.

— Será possível?

— Não, é impossível; assim, peço-te que vás lá em meu lugar, não poderia dizer-lhe isso eu mesmo.

— E tu, aonde irás?

— Voltarei ao meu lodaçal.

— Isto é, à casa de Gruchka! — exclamou tristemente Aliócha, juntando as mãos. — Rakítin tinha, pois, razão. E eu que acreditava que era apenas uma ligação passageira!

— Um noivo com uma amante! Seria possível, com tal noiva e aos olhos de todos? Não perdi de todo a honra. Desde o momento em que passei a frequentar Grúchenhka, deixei de ser noivo e homem honesto, dou-me conta disso. Que tens para me olhar assim? Fui à casa dela a primeira vez na intenção de bater-lhe. Soubera, e sei agora de fonte limpa, que aquele capitão, delegado por meu pai, entregara a Grúchenhka uma ordem de pagamento assinada por mim; tratava-se de processar-me na justiça, na esperança de abater-me e de obter minha desistência. Queriam amedrontar-me. Ia eu pois surrá-la. Já tivera ocasião de vê-la ligeiramente. Uma mulher muito ordinária. Sabia da história daquele velho comerciante seu amante, que não durará muito mais tempo, mas lhe deixará uma bela soma. Sabia que ela era também gananciosa, emprestando com usura, velhaca e debochada, sem compaixão! Fui para dar-lhe uma correção e fiquei em casa dela. Aquela mulher é a peste. Contaminei-me, tenho-a na pele. Tudo está acabado doravante, não há mais outra perspectiva. O ciclo dos tempos passou. Eis onde me encontro. Como que de propósito tinha eu então três mil rublos no bolso. Fomos a Mókroie, a 25 verstas daqui, mandei buscar ciganos, ofereci champanha a todos os mujiques, às mulheres e às moças do local. Três dias depois, estava sem nada. E pensas que obtive o mínimo favor? Ela nada me mostrou. Asseguro-te, é toda sinuosa. A intrujona, seu corpo lembra uma cobra, vê-se isso em suas pernas, até o dedo mindinho de seu pé esquerdo tem essa sinuosidade. Vi-o e beijei-o, mas foi tudo, juro-te. Ela me disse: “Queres, casarei contigo, embora pobre. Se me prometes não me bater e deixar-me fazer tudo quanto quiser, talvez me case”, e riu, e ri também agora!

Dimítri Fiódorovitch ergueu-se presa duma espécie de furor. Tinha ar de ébrio. Seus olhos estavam injetados de sangue.

— Pretendes seriamente casar com ela?

— Se ela consentir, será imediatamente; se recusar, ficarei ainda assim com ela, serei seu criado. Tu, tu... Aliócha... — Parou diante dele e se pôs a sacudi-lo violentamente pelos ombros. — Sabes tu, inocente, que tudo isso é delírio, um delírio inconcebível, porque há nisso uma tragédia? Fica sabendo, Aliócha, que posso ser um homem perdido, de paixões vis, mas que Dimítri Karamázov jamais será um ladrão, um vulgar ratoneiro. Pois bem, fica sabendo agora que sou esse ladrão, esse ratoneiro! Quando ia eu à casa de Grúchenhka para castigá-la, naquela manhã mesma Katierina Ivânovna mandou-me chamar e pediu-me com grande segredo (ignoro por qual motivo) que eu fosse à sede da província enviar três mil rublos a Agáfia Ivânovna, em Moscou. Ninguém devia saber disso na cidade. Fui à casa de Grúchenhka com aqueles três mil rublos no bolso, e eles serviram para pagar nossa excursão a Mókroie. Em seguida, fiz que ia à sede da província, que tinha enviado o dinheiro; quanto ao recibo, “esqueci-me” de levá-lo, malgrado minha promessa. Agora, que pensas? Irás dizer-lhe: “Ele manda cumprimentá-la.” Ela te perguntará: “E o dinheiro?” E tu lhe responderás: “Ele é uma criatura de uma sensualidade animal, uma criatura vil, incapaz de conter-se. Em lugar de enviar seu dinheiro, gastou-o, não podendo resistir à tentação.” Mas podes também acrescentar: “Dimítri Fiódorovitch não é um ladrão; aqui estão seus três mil rublos que ele restitui, envie-os a senhorita mesma a Agáfia Ivânovna e receba as homenagens dele.” Seria apenas meio mal, não, porém, se ela te perguntar: “Onde está o dinheiro?”

— Mítia, és desgraçado, mas não tanto quanto pensas. Não te mates de desespero!

— Pensas que vou estourar os miolos, se não conseguir reembolsar esses três mil rublos? Absolutamente. Não tenho a mínima coragem agora; mais tarde, talvez... agora vou à casa de Grúchenhka... Lá deixarei a pele.

— E então?

— Casarei com ela, se ela me quiser; quando seus amantes chegarem, passarei para o quarto vizinho. Estarei lá para engraxar os sapatos deles, aquecer o samovar, levar recados...

— Katierina Ivânovna compreenderá tudo — declarou solenemente Aliócha. — Compreenderá teu profundo pesar e te perdoará. Tem espírito elevado, verá que não se pode ser mais desgraçado do que tu.

— Ela não perdoará tudo — sorriu Mítia. — Há nisso uma coisa imperdoável aos olhos de toda mulher. Sabes o que vale mais a pena fazer?

— Que é?

— Entregar-lhe os três mil rublos.

— Onde arranjá-los? Escuta, tenho dois mil, Ivan dar-te-á mil, e estará completa a conta.

— Quando receberei os teus três mil rublos? És ainda menor, quanto ao mais é preciso absolutamente que rompas com ela por mim, hoje mesmo, entregando o dinheiro ou não, porque não posso demorar mais tempo, no ponto em que estão as coisas. Amanhã, já seria demasiado tarde. — Vai à casa de papai.

— À casa de nosso pai?

— Sim, primeiro à casa dele. Pede-lhe o dinheiro.

— Mítia, ele jamais o dará.

— Ora essa, sei bem disso! Alieksiêi, sabes o que seja o desespero?

— Sim.

— Escuta, juridicamente, ele não me deve nada. Recebi minha parte, sei disso. Mas moralmente, deve-me ele alguma coisa, sim ou não? Foi com os 28 mil rublos de minha mãe que ele ganhou cem mil. Que me dê apenas três mil rublos, não mais, e terá salvo minha alma do inferno e muitos pecados lhe serão perdoados. Contentar-me-ei com essa soma, juro-te, ele não ouvirá mais falar de mim. Forneço-lhe uma derradeira ocasião de ser um pai. Dize-lhe que é Deus que a oferece.

— Mítia, ele não os dará a preço algum.

— Sei bem disso, tenho certeza. Agora sobretudo! Mas há melhor. Nos últimos dias, soube ele pela primeira vez seriamente (note esse advérbio) que Grúchenhka não estava brincando e se decidiria talvez a dar o salto, a casar-se comigo. Conhece o caráter daquela gata. Pois bem, dar-me-ia ele dinheiro ainda por cima, para favorecer a coisa, quando está louco por ela? Não é tudo, escuta isto. Há já cinco dias, pôs ele de parte três mil rublos em notas de cem, num grande envelope com cinco sinetes, amarrado por uma fita cor-de-rosa. Vês como estou a par? O envelope traz escrito: “Para meu anjo, Grúchenhka, se consentir em vir à minha casa.” Ele mesmo rabiscou isso, às ocultas, e todo mundo ignora que tem ele esse dinheiro, exceto o criado Smierdiákov, em quem confia ele tanto quanto em si mesmo. Há três ou quatro dias que aguarda Grúchenhka, na esperança de que ela irá buscar o envelope; ela fê-lo saber “que talvez fosse”. Se ela for à casa do velho, poderei eu esposá-la? Compreendes tu agora por que me escondo aqui e tocaio?

— Ela?

— Sim. As proprietárias cederam um quartinho a Fomá, antigo soldado de nossa guarnição. Está a serviço delas, monta guarda de noite e caça tetrazes durante o dia. Instalei-me em casa dele; essas mulheres e ele ignoram meu segredo, isto é, que estou aqui de tocaia.

— Somente Smierdiákov o sabe?

— Sim. Será ele quem me advertirá, se Grúchenhka for à casa do velho.

— Foi ele quem te falou do pacote?

— Com efeito. É um grande segredo. O próprio Ivan ignora. O velho mandou-o dar um passeio a Tchermachniá por dois ou três dias; apareceu um comprador para a madeira, oferecendo oito mil rublos; o velho pediu a Ivan que o ajudasse, que fosse em lugar dele. Quer afastá-lo para receber Grúchenhka.

— Ele a espera, por conseguinte, hoje?

— Não, ela não irá hoje, de acordo com certos indícios. Decerto que não! — exclamou Mítia. — É também a opinião de Smierdiákov. Papai está agora à mesa com Ivan, a beber. Vá, pois, Alieksiêi, e pede-lhe esses três mil rublos.

— Mítia, meu caro, que tens!? — exclamou Aliócha, saltando de seu lugar para examinar o rosto desvairado de Dimítri. Acreditou por um instante que ele estivesse louco.

— Pois bem! O quê? Não perdi a razão — declarou ele, de olhar fixo e quase solene. — Não temas. Sei o que digo, creio nos milagres.

— Nos milagres?

— Nos milagres da Providência. Deus conhece meu coração. Vê meu desespero. Permitiria ele que se realizasse tal horror? Aliócha, creio nos milagres, vá!

— Irei. Dize-me, esperar-me-ás aqui?

— Decerto. Compreendo que será demorado, não se pode abordá-lo diretamente. Está bêbedo agora. Esperarei aqui, três, quatro, cinco horas, mas fica sabendo que hoje, até mesmo à meia-noite, deves ir à casa de Katierina, com ou sem dinheiro. Dirás: “Dimítri Fiódorovitch pediu-me que lhe apresentasse seus cumprimentos.” Quero que lhe repitas essa frase exatamente.

— Mítia! E se Grúchenhka for hoje... ou amanhã, ou depois de amanhã?

— Grúchenhka? Vigiarei, forçarei a porta, impedirei.

— Mas se...

— Então, matarei. Não suportarei isso.

— A quem matarás?

— O velho. Nela não tocarei.

— Irmão, que dizes?

— Não sei, não sei... Talvez mate, talvez não mate. Receio que sua cara se me torne odiosa no momento. Odeio sua papada, seu nariz, seus olhos, seu sorriso impudente. Dão-me náuseas. Esse ódio é que me causa medo. Não poderia resistir a ele.

— Irei, Mítia. Creio que Deus arranjará tudo da melhor forma possível e nos poupará essas coisas horríveis.

— E eu aguardarei o milagre. Mas se ele não se realizar, então...

Aliócha, pensativo, dirigiu-se à casa de seu pai.

 

VI


Smierdiákov


Encontrou Fiódor Pávlovitch ainda à mesa. Como de hábito, a mesa fora posta no salão e não na sala de jantar. Era a peça maior da casa, mobiliada com certa pretensão antiquada. Os móveis, bastante antigos, eram brancos, cobertos por um estofo vermelho, meio seda, meio algodão. Havia tremós de molduras pretensiosas, esculpidas à velha moda, igualmente brancas e douradas. Nas paredes, cuja tapeçaria branca estava rasgada em muitos lugares, figuravam dois grandes retratos: o de um antigo governador-geral da província e o de um prelado, também morto há muito tempo. No ângulo que fazia face à porta de entrada encontravam-se vários ícones, diante dos quais ardia uma lâmpada durante a noite, menos por devoção do que para iluminar a sala. Fiódor Pávlovitch deitava-se muito tarde, às três ou quatro horas da madrugadas e até então passeava de lá para cá ou meditava em sua poltrona. Tornara-se isso um hábito. Passava muitas vezes a noite sozinho, depois de ter despedido os criados, mas a maior parte do tempo o criado Smierdiákov dormia na antecâmara, deitado em cima de uma comprida arca. À chegada de Aliócha, o jantar estava no fim, haviam-se servido a sobremesa e o café. Fiódor Pávlovitch gostava de doces com conhaque após o jantar. Ivan estava tomando café com o pai. Os criados, Grigóri e Smierdiákov, conservavam-se perto da mesa. Amos e servidores achavam-se visivelmente de bom humor. Fiódor Pávlovitch ria às gargalhadas; desde o vestíbulo, reconheceu Aliócha sua risada semelhante a latidos que lhe era tão familiar. Concluiu dali que seu pai, ainda longe da embriaguez, encontrava-se em felizes disposições.

— Ei-lo, afinal! — exclamou Fiódor Pávlovitch, encantado com a chegada de Aliócha. — Vem sentar-te conosco. Queres café forte? É famoso e está fervendo. Não te ofereço conhaque porque estás jejuando. Mas se quiseres... Não, dar-te-ei antes licores de boa qualidade. Smierdiákov, abre o armário, eles se acham na segunda prateleira, à direita, aqui estão as chaves. Ufa!

Aliócha fez gesto de que recusava os licores.

— Servi-los-ão mesmo assim para nós, já que não queres. Dize-me, já jantaste?

Aliócha respondeu que sim; na realidade, comera um pedaço de pão e bebera um copo de kvas na cozinha do padre abade.

— Tomarei de bom grado uma xícara de café quente.

— Ah! O espertalhão! Não recusa o café! Será preciso esquentá-lo? Mas não, está ainda fervendo. É café famoso, preparado por Smierdiákov. É mestre em fazer café, tortas e sopas de peixe. Virás um dia tomar a sopa de peixe aqui. Avisa-me com antecedência. A propósito, não te disse que transportasses teu colchão e teus travesseiros hoje mesmo? Já o fizeste? Ah! Ah! Ah!

— Não, não os trouxe — respondeu Aliócha, também rindo.

— Ah, tiveste medo, no entanto, tiveste medo! Serei capaz de fazer-te sofrer, meu querido? Escuta, Ivan, não posso resistir, quando ele me fita nos olhos, rindo. A alegria dilata-me as entranhas, somente ao vê-lo. Gosto dele! Aliócha, vem receber minha bênção.

Aliócha levantou-se, mas Fiódor Pávlovitch reconsiderara.

— Não, farei somente um sinal da cruz, assim, vá te sentar. Pois bem, ficarás contente, a propósito de teu assunto favorito, vais rir. A burra de Balaão[ 73 ] falou, e que linguagem a dela!

A burra de Balaão não era outro senão o criado Smierdiákov, rapaz de 24 anos, insociável e taciturno, embora não fosse selvagem ou acanhado; pelo contrário, era arrogante e parecia desprezar todo mundo. Chegou o momento de falar a seu respeito, ainda que pouco. Educado por Marfa Ignátievna e Grigóri Vassílievitch, o garoto, “natureza ingrata”, segundo a expressão de Grigóri, crescera selvagem em seu canto. Na sua infância, tinha prazer em enforcar os gatos, enterrando-os depois com grande cerimonial. Para fazer isso, cobria-se com uma colcha de cama, à guisa de casula, e cantava, agitando um simulacro de turíbulo por cima do cadáver. Tudo isso no maior mistério. Grigóri surpreendeu-o um dia e chicoteou-o rudemente. Durante uma semana, o garoto enfurnou-se num canto, olhando de través. “Ele não gosta de nós, o monstro”, dizia Grigóri a Marfa. “Aliás, não gosta de ninguém. — És verdadeiramente um ser humano? — perguntou ele uma vez a Smierdiákov. — Mas não, nasceste da umidade do banheiro...” Smierdiákov, como se viu posteriormente, jamais lhe perdoara essas palavras. Grigóri ensinou-o a ler a história sagrada desde que completou 12 anos. Mas essa tentativa foi infeliz. Um dia, numa das primeiras lições, o menino pôs-se a rir.

— Que tens? — perguntou Grigóri, olhando-o severamente por cima de seus óculos.

— Nada. Deus criou o mundo no primeiro dia; o Sol, a Lua e as estrelas no quarto dia. Donde vinha, pois, a luz do primeiro dia?

Grigóri ficou estupefato. O menino olhava seu amo com ar irônico, seu olhar parecia mesmo provocá-lo. Grigóri não pôde conter-se: “Eis donde ela veio!”, exclamou, esbofeteando-o violentamente. O menino não se moveu, mas meteu-se de novo no canto por vários dias. Uma semana depois, teve ele uma primeira crise de epilepsia, doença que não o deixou mais dali por diante. Tendo conhecimento disso, Fiódor Pávlovitch mudou logo sua maneira de tratar o garoto. Até então olhava-o com indiferença, se bem que não o repreendesse nunca e lhe desse um copeque todas as vezes que o encontrava. Quando estava de bom humor, mandava-lhe sobremesa de sua mesa. A doença do menino provocou sua solicitude; mandou buscar um médico; ensaiou-se um tratamento, mas Smierdiákov era incurável. Em média, tinha uma crise uma vez por mês, a intervalos irregulares. Os ataques variavam de intensidade, ora fracos, ora violentos. Fiódor Pávlovitch proibiu terminantemente que Grigóri batesse no menino e deu-lhe acesso à sua casa. Proibiu igualmente qualquer estudo até nova ordem. Um dia — tinha Smierdiákov então 15 anos — Fiódor Pávlovitch viu-o lendo os títulos das obras através dos vidros da biblioteca. Fiódor Pávlovitch possuía uma centena de volumes, mas nunca fora visto a folheá-los. Deu logo as chaves a Smierdiákov. “Toma, serás meu bibliotecário; senta-te e lê, será melhor do que andares à toa pelo pátio. Toma isto — e Fiódor Pávlovitch deu-lhe Serões na quinta de Dikanhka.[ 74 ]

Esse livro não agradou ao rapaz, que o acabou de ler com ar sombrio, sem ter rido uma vez sequer.

— Pois bem! Não é divertido? — perguntou Fiódor Pávlovitch.

Smierdiákov permaneceu calado.

— Responde, pois, imbecil.

— Só há mentiras aqui dentro — resmungou Smierdiákov, sorrindo.

— Vá para o diabo, alma de lacaio! Espera, eis aqui a História universal, de Smarágdov. Aqui tudo é verdadeiro. Lê.

Mas Smierdiákov não chegou a ler dez páginas. Achava aquilo enfadonho. Não se falou mais em biblioteca. Em breve, Marfa e Grigóri levaram ao conhecimento de Fiódor Pávlovitch que Smierdiákov, pouco a pouco, se tornara de trato muito difícil, fazendo-se requintado; contemplando seu prato de sopa, examinava-o, curvado, enchia um colher, que olhava à luz.

— Uma barata, talvez? — perguntava por vezes Grigóri.

— Ou então uma mosca? — insinuava Marfa.

O meticuloso rapaz não respondia nunca, mas procedia da mesma maneira com o pão, a carne, todas as comidas; pegando um pedaço com o garfo, estudava-o à luz, como num microscópio, e, após reflexão, decidia-se a levá-lo à boca. “Dir-se-ia que é o filho de um senhor”, murmurava Grigóri, olhando-o. Posto ao corrente dessa mania de Smierdiákov, Fiódor Pávlovitch logo decretou que tinha ele vocação para cozinheiro e mandou-o a aprender sua arte em Moscou. Passou ali vários anos e voltou bastante mudado de aspecto; envelhecido demasiadamente para a idade, enrugado, amarelecido, assemelhava-se a um skópiets. Moralmente, era quase o mesmo de antes da partida; sempre um verdadeiro selvagem que não procurava absolutamente a sociedade. Não dizia palavra em Moscou, como se soube mais tarde. A própria cidade muito pouco o interessara. Tendo ido uma vez ao teatro, voltou descontente. Usava roupas de linho convenientes, escovava cuidadosamente os ternos duas vezes por dia; gostava muito de engraxar as botas elegantes, de bezerra, com uma graxa inglesa especial, que as fazia reluzir como um espelho. Revelou-se excelente cozinheiro. Fiódor Pávlovitch decidiu pagar-lhe ordenado que era quase todo gasto em roupas, pomadas, perfumes, etc. Parecia fazer tão pouco caso das mulheres quanto dos homens, mostrando-se para com elas empertigado e quase inabordável. Fiódor Pávlovitch pôs-se a considerá-lo de um ponto de vista um pouco diferente. Suas crises tornavam-se mais frequentes. Marfa substituía-o naqueles dias na cozinha, o que não convinha absolutamente a seu amo.

— Por que tens crises mais frequentemente? — E olhava carrancudo para o novo cozinheiro. — Deverias arranjar mulher, queres que te case?

Mas Smierdiákov não respondia nada àquelas palavras que o tornavam lívido de despeito. Fiódor Pávlovitch ia-se embora, dando de ombros. Sabia-o visceralmente honesto, incapaz de tomar ou roubar o que quer que fosse, e era o essencial. Estando bêbedo, perdeu Fiódor Pávlovitch em seu pátio três cédulas de cem rublos que acabava de receber e só se deu conta disso no dia seguinte. Ao cascavilhar nos bolsos, viu-os em cima da mesa. Smierdiákov tinha-os achado e trazido na véspera. “Nunca encontrei outro igual a ti, meu bravo”, disse laconicamente Fiódor Pávlovitch e presenteou-o com dez rublos. É preciso acrescentar que não somente estava certo de sua honestidade, mas tinha afeição por ele, muito embora o rapaz lhe fizesse má cara, como aos outros. Se alguém que o visse perguntasse: por que se interessa esse rapaz, que é que o preocupa sobretudo? — não se teria podido responder, olhando-o. Entretanto, em casa, no pátio ou na rua, parava por vezes, pensativo, e ficava assim uma dezena de minutos. O rosto de Smierdiákov nada teria revelado a um fisionomista; nenhum pensamento, pelo menos, mas somente uma espécie de contemplação. Há um notável quadro do pintor Kramskói, intitulado “O contemplativo”. Uma floresta no inverno; na estrada vê-se um mujique, vestido com um cafetã rasgado e com sapatos de tília. Ali está numa solidão profunda e parece refletir, mas não pensa, contempla alguma coisa. Se se desse nele um encontrão, estremeceria e olharia como quem desperta, mas sem compreender. Na verdade, voltaria logo a si, mas, se lhe perguntassem em que pensava, certamente não se lembraria de nada, mas em compensação, decerto guardaria para si a impressão sob cujo império se achava durante sua contemplação. Essas impressões são-lhe caras e se acumulam nele, imperceptivelmente, sem que o perceba; com qual fim, ele o ignora. Um dia, talvez, depois de havê-las armazenado durante anos, deixará tudo e partirá para Jerusalém, a fim de tratar de sua salvação. Ou então deitará fogo à aldeia natal, talvez faça mesmo as duas coisas sucessivamente. Há muitos contemplativos em nosso povo. Smierdiákov era certamente um tipo desse gênero e armazenava avidamente suas impressões, quase sem conhecer a razão disso.

 

VII


Uma controvérsia


Ora, a burra de Balaão pôs-se a falar de repente e a respeito de um tema estranho. De manhã, achando-se Grigóri na venda do comerciante Lukiánov, ouviu-o contar o seguinte. Um soldado russo foi feito prisioneiro numa região afastada por asiáticos que o intimaram, sob ameaça de tortura e morte, a abjurar o cristianismo e a converter-se ao islã. Tendo recusado trair sua fé, sofreu o martírio, deixou-se esfolar, morreu glorificando o Cristo. Esse fim heroico era relatado no jornal recebido naquela mesma manhã. Grigóri falou disso à mesa. Fiódor Pávlovitch sempre gostara, à sobremesa, de brincar e tagarelar, mesmo com Grigóri. Estava dessa vez de humor jovial, sentindo um relaxamento agradável. Depois de ter escutado a notícia, bebericando seu conhaque, insinuou que deveriam ter canonizado aquele soldado e transferido sua pele para um mosteiro. “O povo cobri-la-ia de dinheiro.” Grigóri fechou a cara, vendo que Fiódor Pávlovitch, longe de se emendar, continuava a zombar das coisas santas. Naquele momento, Smierdiákov, que se mantinha perto da porta, sorriu. Já antes era muitas vezes admitido na sala de jantar, ao fim da refeição. Desde a chegada de Ivan Fiódorovitch, ali comparecia quase diariamente.

— Pois bem? O quê? — perguntou Fiódor Pávlovitch, compreendendo que aquele sorriso visava a Grigóri.

— Penso naquele bravo soldado — disse, de repente, Smierdiákov, em voz alta. — Seu heroísmo é sublime, mas na minha opinião não teria havido, em semelhante caso, nenhum pecado em renegar o nome do Cristo e o Batismo, para assim salvar sua vida e consagrá-la às boas obras, que resgatariam um momento de fraqueza.

— Como, nenhum pecado? Mentes; isso te valerá ir para o inferno, onde te assarão como a um carneiro — replicou Fiódor Pávlovitch.

Foi então que chegou Aliócha, para grande satisfação de Fiódor Pávlovitch, como se viu.

— Trata-se de teu tema favorito — continuou ele, com um riso de escárnio, fazendo Aliócha sentar-se.

— Tolices tudo isso, não haverá nenhuma punição, não deve haver, em toda justiça — afirmou Smierdiákov.

— Como em toda justiça!? — exclamou Fiódor Pávlovitch, redobrando de alegria e empurrando Aliócha com os joelhos.

— Um desavergonhado, eis o que ele é! — deixou escapar Grigóri, fitando Smierdiákov com cólera.

— Quanto a isso de desavergonhado, refreie-se, Grigóri Vassílievitch! — replicou Smierdiákov, conservando o sangue-frio. — Pense antes que, caído em poder dos que torturam os cristãos, e intimado por eles a maldizer o nome de Deus e renegar meu Batismo, minha própria razão me autoriza a isso plenamente, porque não pode haver aí nenhum pecado.

— Já o disseste, não divagues, mas prova-o! — gritou Fiódor Pávlovitch.

— Queima-panelas! — murmurou Grigóri com desprezo.

— Queima-panelas, espere um pouco, e sem palavrões, julgue você mesmo, Grigóri Vassílievitch. Porque, logo que dissesse a meus carrascos: “Não, não sou cristão e maldigo o verdadeiro Deus”, tornar-me-ia anátema aos olhos da justiça divina, seria separado da Santa Igreja, como um pagão, de sorte que, no instante mesmo, não de proferir essas palavras, mas de pensar em proferi-las, estou excomungado, não é verdade, sim ou não, Grigóri Vassílievitch? — Smierdiákov dirigia-se com satisfação visível a Grigóri, embora respondendo somente às perguntas de Fiódor Pávlovitch; dava-se perfeitamente conta disso, mas fingia crer que era Grigóri quem lhe fazia tais perguntas.

— Ivan! — exclamou Fiódor Pávlovitch. — Chega perto de meu ouvido. Toda essa peroração dele é para ti, quer receber teus elogios. Dá-lhe esse prazer.

Ivan ouviu com grande seriedade a observação do pai.

— Espera um minuto, Smierdiákov — continuou Fiódor Pávlovitch. — Ivan, aproxima-te de novo.

Ivan inclinou-se, sempre com o mesmo ar sério.

— Amo-te tanto quanto a Aliócha. Não vás crer que não te amo. Um pouco de conhaque?

— De boa vontade. “Tu pareces já ter passado da conta”, disse Ivan a si mesmo, fitando o pai. Observava Smierdiákov com extrema curiosidade.

— Já és agora maldito e anátema — explodiu Grigóri —, e como ousas, depois disso, desavergonhado, discutir se...

— Nada de injúrias, Grigóri, acalma-te! — interrompeu-o Fiódor Pávlovitch.

— Tenha paciência, Grigóri Vassílievitch, ainda que seja um momentinho, e continue a escutar, porque ainda não acabei. No momento em que renego a Deus, nesse instante mesmo, tornei-me uma espécie de pagão, meu Batismo apagou-se e não conta para nada, não é bem isso?

— Apressa-te em concluir, meu caro — estimulou-o Fiódor Pávlovitch, bebericando, deleitado.

— Ora, se não sou mais cristão, não menti então aos meus carrascos, quando perguntaram: “És cristão ou não?”, porque já estava “descristianizado” pelo próprio Deus, em consequência apenas de minha intenção e antes de ter aberto a boca. Ora, se estou decaído, como e com que direito me pedirão contas no outro mundo, na qualidade de cristão, por ter abjurado o Cristo, quando, pela simples premeditação, já teria sido desbatizado? Se não sou mais cristão, não posso mais abjurar o Cristo, porque isso já estaria feito. Quem pois, mesmo no céu, pedirá contas a um tártaro pagão por não ter nascido cristão e quem quererá puni-lo? Não diz o provérbio que não se deverá esfolar duas vezes o mesmo touro? Se o Todo-Poderoso exige contas a um tártaro, por ocasião de sua morte, supondo que o punirá levemente (não podendo absolvê-lo totalmente), estimando não ser culpa dele o ter nascido pagão, de pais que o eram. Será que o Senhor pode pegar à força um tártaro e dizer dele que era cristão? Seria o mesmo que dizer então que o Todo-Poderoso profere uma verdadeira mentira. Ora, pode ele mentir, ele que reina sobre a terra e nos céus, ainda mesmo por uma só de suas palavras?

Grigóri ficou estupefato e examinou o orador, de olhos escancarados. Embora não compreendendo bem do que se tratava, apanhara uma parte daquele galimatias e assemelhava-se a um homem que dera com a cabeça de encontro a um muro. Fiódor Pávlovitch acabou de beber seu copinho e explodiu numa risada aguda.

— Aliócha, Aliócha, que homem! Ah, o casuísta! Deve ter frequentado os jesuítas, em algum lugar, Ivan. Tresandas a jesuíta, quem pois te instruiu? Mas tu mentes desavergonhadamente, casuísta, tu divagas. Não te desoles, Grigóri, vamos reduzi-lo a pó. Responde a isso, burra: tens razão perante teus carrascos, seja, mas abjuraste a fé em teu coração e dizes tu mesmo que foste logo atingido de anátema. Ora, como tal, não te passarão a mão pelos cabelos no inferno. Que pensas disso, meu bom padre jesuíta?

— É fora de dúvida que abjurei em meu coração, no entanto não há nisso nenhum pecado especialmente, quando muito um pecado dos mais veniais.

— Como? Dos mais veniais?

— Mentes, maldito! — murmurou Grigóri.

— Julgue você mesmo, Grigóri Vassílievitch — continuou comedidamente Smierdiákov, consciente de sua vitória, mas fazendo-se de generoso para com um adversário abatido —, julgue você mesmo; está dito na Escritura que, se tiverdes fé, ainda que seja do tamanho de um grão de mostarda, e disserdes a uma montanha que se precipite no mar, ela irá, sem nenhuma demora, assim que derdes a primeira ordem. Pois bem, Grigóri Vassílievitch, se não sou crente e se você o é, a ponto de me invectivar sem cessar, tente você mesmo dizer a essa montanha que vá, não para o mar (porque está ele muito longe daqui), mas mesmo para aquele riacho infecto que corre por trás de nosso jardim, e verá logo que ela não se moverá e que não haverá mudança alguma, por mais que você grite. Ora, isso significa que você não crê da maneira que convém, Grigóri Vassílievitch, e que, em compensação, você invectiva os outros. Suponhamos ainda que ninguém, em nossa época, não somente você, mas ninguém decididamente, desde as pessoas mais altamente colocadas até o derradeiro mujique, possa empurrar as montanhas para o mar, a não ser um homem no mundo inteiro, dois quando muito, ainda assim talvez aqueles que tratam de sua salvação, ocultamente, no deserto do Egito e que não podem ser encontrados. Se assim é, se todos os outros são incréus, será possível que estes, isto é, a população do mundo inteiro, com exceção dos dois anacoretas, sejam amaldiçoados pelo Senhor, e que não perdoe Ele a nenhum, dada a Sua misericórdia bem conhecida? De modo que espero que minhas dúvidas me serão perdoadas, quando derramar lágrimas de arrependimento.

— Espera! — guinchou Fiódor Pávlovitch, no cúmulo do entusiasmo.

— De modo que supões que há dois homens capazes de mover montanhas? Ivan, nota esse detalhe, nota bem. O homem russo inteiro está aí!

— O senhor notou com bastante justeza que é esse um sinal da fé popular — disse Ivan Fiódorovitch, com um sorriso de aprovação.

— Estás de acordo? É então verdade, já que estás de acordo. É exato, Aliócha? Assemelha-se isso perfeitamente à fé russa?

— Não, Smierdiákov não tem de todo a fé russa — declarou Aliócha, num tom sério e firme.

— Não falo de sua fé, mas desse detalhe, desses dois anacoretas, nada mais do que esse detalhe: não é bem russo?

— Sim, esse detalhe é perfeitamente russo — aprovou Aliócha, sorrindo.

— Essa frase merece um ducado, burra, e eu a enviarei hoje mesmo, mas, quanto ao resto, tu mentes, tu divagas; fica sabendo, imbecil, que neste mundo todos nós não cremos somente por frivolidade, porque falta tempo; os negócios nos absorvem, os dias só têm 24 horas, não temos tempo não só de nos arrependermos, mas de dormir à vontade. Mas tu, tu abjuraste diante dos carrascos, quando não tinhas de pensar senão em tua fé e que era preciso justamente testemunhá-la! Isso constitui um pecado, meu caro, penso eu!

— Decerto, constitui um, mas um pecado venial, julgue você mesmo, Grigóri Vassílievitch. Porque, se tivesse eu então crido na verdade, como importa crer nela, teria sido verdadeiramente um pecado não sofrer o martírio e converter-me à maldita religião de Maomé. Mas não teria sofrido o martírio, porque me bastaria dizer àquela montanha: marcha e esmaga o carrasco, para que ela se pusesse logo em movimento e o esmagasse como a uma barata, e ter-me-ia retirado como se de nada se tratasse, glorificando e louvando a Deus. Mas, se naquele momento, já o tivesse tentado e gritado à montanha: esmaga os carrascos, sem que ela me obedecesse, como então, digam-me, não teria eu duvidado naquela hora terrível de pavor mortal? Fora isso, já sei que não obterei inteiramente o reino dos céus (porque, se a montanha não se moveu à minha voz, é que minha fé não goza de muito crédito lá em cima e que a recompensa que me espera no outro mundo não é bastante elevada), por que, pois, ainda por cima, deixar-me-ia esfolar sem nenhum proveito? Porque, mesmo esfolado até a metade das costas, minhas palavras ou meus gritos não deslocariam aquela montanha. Num tal minuto, não somente a dúvida pode invadir-nos, mas o medo pode tirar-nos a razão e impedir-nos de decidir. Por consequência, sou tão culpado assim, se salvo pelo menos a pele, não vendo em parte alguma um proveito ou uma recompensa? Assim, confiante na misericórdia divina, espero ser inteiramente perdoado...

 

VIII


Saboreando o conhaque


A discussão chegara ao fim, mas, coisa estranha, Fiódor Pávlovitch, tão alegre até então, ensombreceu-se. Serviu-se de mais um copo de conhaque, o que já era demais.

— Vão-se embora, jesuítas, fora daqui! — gritou ele para os criados. — Vá, Smierdiákov, receberás hoje o ducado prometido. Não te desoles, Grigóri, vá procurar Marfa, ela te consolará, cuidará de ti. Esses canalhas não nos deixam descansar — disse ele, de mau humor, quando os criados saíram obedecendo-lhe às ordens. — Smierdiákov vem agora aqui todos os dias depois do jantar. És tu que o atrais, que o tratas com mimos? — perguntou ele a Ivan Fiódorovitch.

— Absolutamente — respondeu ele. — Deu-lhe na veneta mostrar respeito por mim, é um lacaio, um pulha. Fará parte da vanguarda, quando o momento chegar.

— Da vanguarda?

— Haverá outros e melhores, mas haverá muitos como ele.

— E quando chegará o momento?

— O foguete arderá, mas talvez não até o fim. No momento, não gosta o povo de ouvir esses queima-panelas.

— Com efeito, aquela burra de Balaão pensa que não acaba mais e Deus sabe até onde isso pode ir.

— Ele armazena ideias — observou Ivan, sorrindo.

— Vês tu? Sei que ele não me pode tolerar, nem a mim nem aos outros, e a ti em primeiro lugar, se bem que creias que “lhe deu na veneta mostrar respeito por ti”. E, quanto a Aliócha, ele despreza Aliócha. Mas não é ladrão, nem falador; não sai espalhando coisas; faz excelentes pastéis de peixe... Ah, afinal que o diabo o leve! Vale a pena falar dele?

— Decerto que não.

— E, quanto ao que ele pensa lá consigo, é preciso em geral chicotear o mujique russo. Sempre foi minha opinião. Nosso mujique é um velhaco, indigno de compaixão, e fazem bem em bater-lhe por vezes ainda agora. É a bétula que faz a força da terra russa, e ela perecerá com as florestas. Sou a favor das pessoas de espírito. Deixamos de bater nos mujiques, por liberalismo, mas eles continuam a chicotear a si mesmos. E fazem bem, “Com a medida com que medirdes, vos medirão a vós”.[ 75 ] É bem isto, não é?... Meu caro, se soubesses como odeio a Rússia... isto é, não a Rússia, mas, todos os seus vícios... e talvez a Rússia. Tout cela, c’est de la cochonnerie.[ 76 ] Sabes o que amo? Amo o espírito.

— O senhor serviu-se de outro copo. Já bebeu bastante.

— Espera, tomarei ainda dois e acabou-se. Mas me interrompeste. De passagem por Mókroie, conversei um dia com um velho, que me disse: “Gostamos, mais do que tudo, de condenar as moças a açoites, e encarregamos os rapazes de executar a sentença. Em seguida, o rapaz toma como noiva aquela a quem chicoteou, de modo que se tornou isso um costume entre nós para as moças.” Que sadistas, hem? Digam o que disserem, é engraçado. Se fôssemos ver isso, hem? Aliócha, ficas corado? Não te envergonhes, meu filho. É pena que não tenhas ficado hoje para jantar com o padre abade. Teria falado aos monges a respeito das moças de Mókroie. Aliócha, não me queiras mal por ter ofendido o padre abade. A cólera arrebata-me. Porque, se há um Deus, se Ele existe, evidentemente sou culpado então, e responderei por isso; mas se Ele não existe, há necessidade ainda desses teus padres? Não seria demais se lhes cortassem a cabeça, porque eles impedem o progresso. Crês tu, Ivan, que isso me atormenta? Não, tu não o crês, vejo-o em teus olhos. Crês que não sou senão um palhaço, como se pretende. Aliócha, crês tu nisso, crês tu?

— Não, não o creio.

— E eu estou persuadido de que falas sinceramente e que vês com justeza. Não é como Ivan. Ivan é presunçoso... No entanto, gostaria de acabar com teu mosteiro. Seria preciso suprimir duma vez essa engenhoca mística em toda a terra russa, para converter todos os imbecis à razão. Quanto dinheiro e quanto ouro afluiriam para o Tesouro!

— Mas por que suprimir os mosteiros? — perguntou Ivan.

— A fim de que a verdade resplandeça mais depressa.

— Quando essa verdade resplandecer, primeiramente despojá-lo-ão, depois... suprimi-lo-ão.

— Ora? Mas talvez tenhas razão. Que asno sou! — exclamou Fiódor Pávlovitch, coçando a testa. — Paz a teu mosteiro, Aliócha, se é assim. Nós, pessoas de espírito, ficamos no quente e bebemos conhaque. É sem dúvida a vontade expressa de Deus. Ivan, dize-me, há um Deus, sim ou não? Espera, responde-me seriamente! Por que ris ainda?

— Rio de sua observação espirituosa a respeito da fé que revelou Smierdiákov a respeito dos dois eremitas capazes de mover montanhas.

— É a mesma coisa?

— Totalmente.

— Pois bem, por consequência, sou também um homem russo, com a mesma característica russa, e tu, filósofo, podes ser apanhado com uma característica do mesmo gênero. Queres que te apanhe? Apostemos que será amanhã. Mas dize-me, no entanto, há um Deus ou não? Somente é preciso que me fales seriamente.

— Não, não há Deus.

— Aliócha, Deus existe?

— Sim, existe.

— Ivan, há imortalidade? Por pequena que seja, por mais modesta?

— Não, não há.

— Nenhuma?

— Nenhuma.

— Quer dizer, um zero absoluto, ou uma parcela? Não haveria uma parcela?

— Um zero absoluto.

— Aliócha, há imortalidade?

— Sim.

— Deus e a imortalidade juntos?

— Sim. É em Deus que repousa a imortalidade.

— Hum! Deve ser Ivan quem tem razão. Senhor, quando se pensa quanto de fé e de energia essa quimera tem custado ao homem, em pura perda, desde milhares de anos! Quem, pois, zomba assim da humanidade? Ivan, pela derradeira vez e categoricamente: há um Deus, sim ou não?

— Não, pela derradeira vez.

— Quem, pois, zomba do mundo, Ivan?

— O diabo provavelmente — escarneceu Ivan.

— O diabo existe?

— Não, não existe.

— Tanto pior. Não sei o que teria eu feito ao primeiro fanático que inventou Deus. Enforcá-lo seria insuficiente!

— Sem essa invenção, não haveria civilização.

— Deveras? Sem Deus?

— Sim. E não haveria conhaque tampouco. Vai ser preciso retirá-lo.

— Espera, espera! Mais um copinho! Ofendi Aliócha. Não me queres mal, não é, meu queridinho Alieksiêitchik?[ 77 ]

— Não, não lhe quero mal. Conheço seus pensamentos. Seu coração vale mais que sua cabeça.

— Meu coração vale mais que minha cabeça? De quem são essas palavras? Ivan, gostas de Aliócha?

— Sim, amo-o.

— Ama-o (Fiódor Pávlovitch estava meio embriagado). Escuta, Aliócha, fui grosseiro há pouco com teu stáriets, mas estava superexcitado. É um homem inteligente, que achas, Ivan?

— Poderia ser.

— Decerto, il y a du Piron là-dedans.[ 78 ] É um jesuíta russo. A necessidade de representar a comédia, de usar uma máscara de santidade, indigna-o interiormente, porque é um caráter nobre.

— Mas ele crê em Deus.

— Nem um copeque. Não o sabias? Ele mesmo fala disso a todo mundo, ou antes, a todas as pessoas inteligentes que vão vê-lo. Declarou sem rebuços ao governador Schultz: “Creio, mas ignoro em quê.”

— Deveras?

— É textual. Mas estimo-o. Há nele alguma coisa de Mefistófeles, ou melhor, do Um herói de nosso tempo...[ 79 ] Arbiénin, é esse mesmo seu nome?... Vês tu? É um sensual, e a tal ponto que não estaria tranquilo, mesmo agora, se minha mulher ou minha filha fossem confessar-se com ele. Quando começa ele a contar, se tu soubesses... Há três anos, convidou-nos a tomar chá, com licores (porque as damas enviam-lhe licores); pôs-se a descrever sua vida de outrora, de modo que a gente só faltava morrer de rir... e como teve de avir-se para curar uma senhora... “Se não tivesse dor nas pernas, disse ele, dançaria para vocês certa dança.” Hem? Que sujeito! “Eu também levei vida alegre”, acrescentou ele. Extorquiu sessenta mil rublos ao negociante Diemídov.

— Como? Roubando-o?

— O outro havia-os confiado a ele, acreditando-o um homem de honra. “Guarde-os para mim, amanhã vão passar minha casa em revista.” O santo homem guardou tudo. “Tu os deste para a Igreja”, disse ele. Disse-lhe que era ele um tratante. “Não, replicou ele, mas tenho ideias largas...” De resto, é de um outro que se trata. Confundi... sem dar por isso. Mais um copinho e pronto. Leva a garrafa, Ivan. Por que não me detiveste em minhas mentiras?

— Sabia que o senhor mesmo se deteria.

— É falso, somente por maldade não disseste nada. No fundo, tu me desprezas. Vieste à minha casa para mostrar teu desprezo.

— Vou-me embora; o conhaque começa a subir-lhe à cabeça.

— Pedi-te insistentemente que fosses passar um ou dois dias em Tchermachniá, mas não fizeste caso.

— Partirei amanhã, já que faz tanta questão.

— Não há perigo. Queres espionar-me; tal é teu fito, maldito, e o que te retém aqui.

O velho não se acalmava. Estava naquele ponto em que certos bêbedos, até então pacíficos, fazem de repente questão de se mostrarem malvados.

— Que tens para me olhares assim? Teus olhos me dizem: “Vil beberrão.” Revelam desconfiança e desprezo. És um velhaco astuto. O olhar de Aliócha resplandece. Ele não me despreza. Alieksiêi, cuida de não amar Ivan.

— Não se zangue contra meu irmão! Basta de ofendê-lo — proferiu Aliócha, num tom firme.

— Pois bem, seja! Ah, que dor de cabeça! Ivan, leva o conhaque, pela terceira vez te digo. — Pôs-se a pensar e mostrou de súbito um sorriso astuto. — Não te zangues, Ivan, contra um pobre velho. Não gostas de mim, eu o sei, mas não te zangues. Não há razão para amar-me. Partirás para Tchermachniá, irei encontrar-te lá e te levarei um presente. Mostrar-te-ei lá uma mocinha, atrás de quem ando há muito tempo. Anda ainda descalça, mas não tenhas medo das moças descalças, não se deve desprezá-las, elas são umas pérolas!...

E estalou um beijo na mão.

— Para mim — animou-se subitamente, como que desembriagado por um instante, abordando seu tema favorito —, para mim... Ah! Meus filhos, meus leitõezinhos... para mim... jamais encontrei uma mulher feia, eis minha máxima! Compreendem? Não, não podem. Não é sangue, é leite que corre nas veias de vocês, ainda não quebraram a casca completamente! Na minha opinião, pode-se encontrar em toda mulher algo de muito interessante, que lhe é particular, somente é preciso saber descobri-lo, eis o quid! É um talento! Para mim nunca houve feionas. Basta o sexo e é já muito... Mas isso está fora do alcance de vocês! Até mesmo entre as solteironas velhas, encontram-se por vezes encantos tais, que a gente pergunta a si mesmo como é que imbecis puderam deixá-las envelhecer sem as notar! É preciso, em primeiro lugar, surpreender uma dessas que andam descalças, é assim que se deve fazer. Não o sabias? É preciso que ela fique maravilhada e confusa por ver um bárin[ 80 ] amoroso do focinhozinho dela. Por sorte, há e sempre haverá senhores para tudo ousar e criadas para obedecer-lhes. Basta isso para felicidade da existência! A propósito, Aliócha, sempre causei espanto à tua defunta mãe, mas duma outra maneira. Por vezes, depois de havê-la privado de carícias, expandia-me diante dela num momento dado, caía a seus joelhos, beijando-lhe os pés, e sempre lhe provocava uma risadinha convulsiva, aguda mas sem estrépito. Ela não ria de outra forma. Sabia que sua crise começava sempre assim, que, no dia seguinte, ela gritaria como uma possessa, e que aquela risadinha só exprimia a aparência de um entusiasmo; mas era sempre isso! A gente sempre encontra, quando sabe procurar. Um dia, um tal Bieliávski, um rico bonitão, que lhe fazia a corte e frequentava nossa casa, esbofeteou-me na presença dela. Mansa como um carneiro, pensei que ela ia bater-me: “Tu foste agredido, ele te esbofeteou! — dizia ela. — Tu me vendias a ele... Como ousou ele, em minha presença? Trata de não me aparecer, corre a desafiá-lo a um duelo!...” Conduzi-a então ao mosteiro, onde rezaram sobre ela para acalmá-la, mas, juro-te perante Deus, Aliócha, jamais ofendi minha pequena endemoniada. Uma vez somente, foi no primeiro ano de nosso casamento, rezava ela demais, observava estritamente as festas da Virgem, e recusava-me a entrada em seu quarto. Vou curá-la de seu misticismo! — pensava eu. “Vês — disse — este ícone que tens como milagroso? Tiro-o, vou cuspir em cima dele em tua presença e nenhum castigo sofrerei!” Meu Deus, ela vai matar-me — digo a mim mesmo. Ela, porém, teve apenas um sobressalto, juntou as mãos, ocultou o rosto, foi tomada dum tremor e caiu sobre o soalho... Aliócha! Aliócha! Que tens? Que tens?

O velho levantou-se, aterrorizado. Desde que se começou a falar de sua mãe, o rosto de Aliócha alterava-se pouco a pouco; corou, seus olhos cintilaram, seus lábios tremeram... O velho bêbedo nada notara, até o momento em que Aliócha teve uma crise estranha, reproduzindo, traço por traço, o que acabava ele de contar a respeito da “endemoniada”. De súbito, levantou-se da cadeira, exatamente como a mãe; de acordo com a narrativa, juntou as mãos, ocultou o rosto, deixou-se cair sobre a cadeira, sacudido por uma crise de histeria, acompanhada de lágrimas silenciosas.

— Ivan! Ivan! Água, depressa! Completamente como a mãe dele. Tira água com a colher grande e asperge-o, como eu fazia com ela. É por causa de sua mãe, por causa de sua mãe... — murmurou ele a Ivan.

— Sua mãe era também a minha, suponho, que pensa o senhor? — não pôde Ivan impedir-se de dizer, com um desprezo cheio de cólera. Seu olhar faiscante fez o velho estremecer. Coisa estranha, por um instante, o velho pareceu perder de vista que a mãe de Aliócha era também a de Ivan...

— Como, tua mãe? — murmurou, sem compreender. — Por que dizes isso? A propósito de que mãe? Será que ela... Ah, diabo! É também a tua! Pois bem, onde tinha eu a cabeça? Desculpa-me, mas eu, acreditava, Ivan... Eh! Eh! Eh! — Parou, com um sorriso idiota de bêbedo. No mesmo instante, um barulho reboou no vestíbulo, gritos furiosos se elevaram, a porta abriu-se e Dimítri Fiódorovitch irrompeu na sala. O velho apavorado precipitou-se para Ivan:

— Ele vem matar-me! Não me entregues! — exclamou ele, agarrado às abas do paletó de Ivan.

 

IX


Os sensuais


Grigóri e Smierdiákov corriam atrás de Dimítri. No vestíbulo, tinham lutado com ele, para impedi-lo de entrar (de conformidade com as instruções dadas por Fiódor Pávlovitch alguns dias antes). Aproveitando-se do fato de ter Dimítri Fiódorovitch, ao penetrar na sala, parado um minuto para orientar-se, deu Grigóri volta à mesa, fechou os dois batentes da porta do fundo, que dava para os aposentos interiores, e conservou-se diante dessa porta, de braços estendidos em cruz, pronto a defender-lhe a entrada até o derradeiro suspiro. Vendo isso, Dimítri rugiu mais do que gritou e precipitou-se contra Grigóri.

— Então ela está aí! Foi lá que a esconderam! Para trás, patife!

Quis afastar Grigóri, mas ele o repeliu. Louco de raiva, Dimítri ergueu a mão e golpeou Grigóri com toda a força. O velho caiu como que ceifado e Dimítri, pulando por cima de seu corpo, forçou a porta. Smierdiákov, pálido e tremendo, ficara na outra extremidade da mesa, apertado contra Fiódor Pávlovitch.

— Ela está aqui — gritou Dimítri Fiódorovitch. — Acabo de vê-la dirigir-se a esta casa, mas não pude alcançá-la. Onde está ela? Onde está ela?

Aquele grito de “ela está aqui” causou uma impressão inexplicável em Fiódor Pávlovitch; todo o seu pavor desapareceu.

— Detenham-no, detenham-no! — guinchou ele, precipitando-se no encalço de Dimítri. Enquanto isso, Grigóri havia-se levantado, mas ainda estava zonzo. Ivan Fiódorovitch e Aliócha correram para deter o pai. No quarto vizinho, ouviu-se o barulho de um objeto que caía e se quebrava. Era um grande vaso de vidro (de pouco valor), sobre um pedestal de mármore em que Dimítri tropeçara ao passar.

— Socorro! — urrou o velho.

Ivan e Aliócha alcançaram-no e arrastaram-no à força para a sala de jantar.

— Por que o persegue? Ele seria capaz de matá-lo! — exclamou com cólera Ivan Fiódorovitch.

— Vânia, Aliócha! Ela está aqui, Grúchenhka; ele mesmo disse que a viu entrar.

Fiódor Pávlovitch perdia o fôlego. Não esperava Grúchenhka naquela ocasião, e a notícia imprevista de sua presença perturbava a razão. Estava todo tremente, como que perdera o espírito.

— O senhor mesmo viu que ela não veio — gritou Ivan.

— Mas talvez por outra entrada?

— Está fechada essa entrada, e o senhor tem a chave...

Dimítri tornou a aparecer na sala de jantar. Naturalmente, havia encontrado aquela entrada fechada e era mesmo Fiódor Pávlovitch que tinha a chave dela no bolso. Todas as janelas estavam igualmente fechadas; Grúchenhka não pudera, pois, entrar nem sair por nenhuma via de acesso.

— Detenham-no! — vociferou Fiódor Pávlovitch, assim que avistou Dimítri. — Roubou dinheiro em meu quarto de dormir! — Arrancando-se dos braços de Ivan, lançou-se de novo contra Dimítri. Este ergueu as mãos e, agarrando o velho pelos dois únicos tufos de cabelo que lhe restavam nas têmporas, fê-lo dar uma pirueta e atirou-o violentamente no soalho. Deu-lhe ainda dois ou três golpes com o tacão no rosto, quando ele estava caído. O velho lançou um gemido agudo. Ivan, embora mais fraco que Dimítri, agarrou-o pelo braço e afastou-o do velho. Aliócha, ajudando-o com todas as forças, agarrara seu irmão pela frente.

— Louco, tu o mataste! — gritou Ivan.

— Tem o que merece! — exclamou Dimítri, ofegante. — Se não o matei, voltarei. Vocês não o resguardarão.

— Dimítri, fora daqui agora mesmo! — gritou imperiosamente Aliócha.

— Alieksiêi! Só tenho confiança em ti; dize-me se Grúchenhka estava aqui há pouco ou não. Eu mesmo a vi costear a sebe e desaparecer nesta direção. Chamei-a, ela fugiu...

— Juro-te que ela não está aqui e que ninguém a espera!

— Mas eu a vi... portanto ela... Saberei agora mesmo onde ela está... Adeus, Alieksiêi! Nem uma palavra a Esopo a respeito do dinheiro, mas vai imediatamente à casa de Katierina Ivânovna e dize-lhe: “Ele me ordenou que a saudasse, precisamente que a saudasse e tornasse a saudar!” Descreve-lhe a cena.

Enquanto isso, Ivan e Grigóri tinham levantado e instalado o velho numa poltrona. Seu rosto estava ensanguentado, mas não perdera os sentidos. Parecia-lhe sempre que Grúchenhka se encontrava em alguma parte da casa. Dimítri lançou-lhe um olhar de ódio ao retirar-se.

— Não me arrependo de ter derramado teu sangue! — exclamou ele. — Toma cuidado, velho, vigia teu sonho, porque eu também tenho um. Eu mesmo te maldigo e te renego para sempre...

Lançou-se para fora da sala.

— Ela está aqui, ela está certamente aqui — estertorou o velho com uma voz mal perceptível, fazendo sinal a Smierdiákov.

— Não, ela não está aqui, velho insensato — gritou com raiva Ivan. — Bem, ei-lo que desmaia! Água, um guardanapo! Apressa-te, Smierdiákov!

Smierdiákov correu a buscar água. Depois que lhe tiraram a roupa, levaram o velho para o quarto de dormir e deitaram-no na cama. Cercaram-lhe a cabeça com um guardanapo molhado. Enfraquecido pelo conhaque, pelas emoções violentas e pelos golpes, fechou ele os olhos e adormeceu assim que pousou a cabeça no travesseiro. Ivan Fiódorovitch e Aliócha voltaram ao salão. Smierdiákov retirou os cacos do vaso partido. Grigóri mantinha-se perto da mesa, sombrio, de cabeça baixa.

— Devias também molhar tua cabeça e deitar-te — disse-lhe Aliócha. — Nós cuidaremos dele; meu irmão golpeou-te violentamente a cabeça.

— Ele o ousou! — proferiu Grigóri, com ar sombrio.

— Ousou também contra o próprio pai, não somente contra ti! — observou Ivan, com os lábios contraídos.

— Lavei-o pequenino na tina e ele ousou! — repetiu Grigóri.

— Com os diabos! Se eu não o tivesse retido, tê-lo-ia matado. Pouco faltou a Esopo para morrer — murmurou Ivan a Aliócha.

— Que Deus o preserve! — exclamou Aliócha.

— Por quê? — continuou Ivan, no mesmo tom, com o rosto numa contração de ódio. — Que os reptis se devorem, tal é seu destino!

Aliócha estremeceu.

— Bem entendido, não deixarei que se dê um assassinato, como fiz agora. Fica aqui, Aliócha, vou andar no pátio, começo a ter dor de cabeça.

Aliócha foi para o quarto de dormir e ficou uma hora à cabeceira do pai, por trás do biombo. De súbito, o velho abriu os olhos e olhou-o muito tempo em silêncio, esforçando-se visivelmente por coordenar suas lembranças. Uma agitação extraordinária pintou-se em seu rosto.

— Aliócha — cochichou ele, apreensivo —, onde está Ivan?

— No pátio; está com dor de cabeça. Está de guarda a nós.

— Dá-me o espelhinho que está ali.

Aliócha entregou-lhe um espelhinho oval, que se achava sobre a cômoda. O velho mirou-se nele. O nariz estava bastante inchado e, na testa, acima da sobrancelha esquerda, via-se uma equimose roxa.

— Que diz Ivan? Aliócha, meu querido, meu único filho, tenho medo de Ivan; tenho mais medo dele do que do outro. Só de ti é que não tenho medo.

— Não tenha medo tampouco de Ivan; ele se zanga, mas o defenderá.

— Aliócha, e o outro? Correu para a casa de Grúchenhka? Meu anjo, dize-me a verdade: estava Grúchenhka ainda há pouco aqui ou não?

— Ninguém a viu! É uma ilusão, ela não estava aqu!

— Mítia quer casar com ela, sabes?

— Ela não quererá.

— Ela não quererá, ela não quererá a preço nenhum! — exclamou o velho, fremente de alegria, como se nada lhe pudessem dizer de mais agradável no momento. Em seu entusiasmo, agarrou a mão de Aliócha e a apertou contra o coração. Lágrimas mesmo brilharam em seus olhos. — Toma essa imagem da Virgem de que falei ainda há pouco, leva-a contigo. E permito que voltes ao mosteiro... Estava brincando, não te zangues. A cabeça me dói, Aliócha... tranquiliza-me, sê meu bom anjo, dize a verdade!

— Sempre a mesma ideia, se ela veio ou não — disse tristemente Aliócha.

— Não, não, acredito em ti. Mas vá à casa de Grúchenhka, ou procura vê-la; pergunta-lhe o mais breve possível — penetra seu segredo — quem ela prefere, ele ou eu? Podes ou não?

— Se a encontrar, perguntar-lhe-ei — murmurou Aliócha, confuso.

— Não, ela não te dirá — interrompeu o velho —, é uma criança terrível. Começará por beijar-te, dizendo que é a ti que ela quer. É astuta e descarada, não, não podes ir à casa dela.

— Com efeito, meu pai, não estaria absolutamente bem.

— Aonde te enviava ele, ainda há pouco, quando gritou: “Vá”, ao retirar-se?

— À casa de Katierina Ivânovna.

— Para lhe pedir dinheiro?

— Não, para isso, não.

— Ele não tem dinheiro, nem um copeque. Escuta, Aliócha, refletirei durante a noite. Vá... talvez a encontres. Vem ver-me amanhã de manhã sem falta. Tenho alguma coisa para dizer-te. Virás?

— Virei.

— Terás o ar de vir saber notícias de mim. Não digas a ninguém que te chamei. Nem uma palavra a Ivan.

— Está entendido.

— Adeus, meu anjo. Tomaste minha defesa, ainda há pouco, não o esquecerei nunca. Dir-te-ei uma palavra amanhã... mas isso exige reflexão.

— Como se sente agora?

— Amanhã estarei de pé, completamente restabelecido, com a saúde perfeita!...

No pátio, Aliócha encontrou Ivan sentado em um banco, perto do portão; anotava qualquer coisa a lápis em seu caderno. Aliócha informou-o de que o velho recuperara os sentidos e deixava que ele passasse a noite no mosteiro.

— Aliócha, sentiria grande prazer em ver-te amanhã de manhã — disse Ivan, num tom amável, de todo inesperado para Aliócha.

— Estarei amanhã em casa das senhoras Khokhlakovi, talvez também em casa de Katierina Ivânovna, se não a encontrar em casa agora.

— Vais lá mesmo? É para “saudá-la, saudá-la” — pilheriou Ivan.

Aliócha perturbou-se.

— Penso ter compreendido as exclamações de Dimítri e um pouco o que se passou. Ele pediu que fosse vê-la para dizer-lhe que ele... pois bem... numa palavra, para despedir-se.

— Meu irmão, como terminará esse pesadelo para Dimítri e para nosso pai!? — exclamou Aliócha.

— É difícil adivinhá-lo. Talvez dê tudo em nada. Aquela mulher é um monstro. Em todo caso, é preciso que o velho fique em casa e que Dimítri aqui não entre.

— Meu irmão, permita-me ainda uma pergunta. Pode dar-se que cada qual tenha o direito de julgar seus semelhantes e de decidir quem é digno de viver e quem não o é?

— Quem vem fazer aqui a apreciação dos méritos? O coração humano não se baseia nos méritos para resolver essa questão, mas em outros motivos bem mais naturais. Quanto ao direito, quem, pois, não tem o direito de desejar?

— Não a morte de outrem.

— E por que não a morte? De que serve mentir para si mesmo, quando todos vivem assim e sem dúvida não podem viver de outro modo? Pensas no que disse ainda há pouco, que “os dois reptis se devoram um ao outro”? Crês-me capaz, como Dimítri, de derramar o sangue de Esopo, de matá-lo, enfim?

— Que dizes, Ivan? Jamais me veio tal ideia! E não creio que Dimítri...

— Obrigado — disse Ivan, sorrindo. — Fica sabendo que o defenderei sempre. Mas, no caso particular, deixo o campo livre para meus desejos. Até amanhã. Não me julgues, não me olhes como a um celerado — acrescentou.

Apertaram-se as mãos mais cordialmente do que jamais o fizeram. Aliócha compreendeu que seu irmão se aproximava dele com um certo fim, intencionalmente.

 

X


Os dois juntos


Aliócha saiu da casa do pai mais abatido e mais acabrunhado do que à chegada. Suas ideias eram fragmentárias, confusas; ele próprio se dava conta de que temia reuni-las, tirar uma conclusão geral das contradições dolorosas de que se compusera aquele dia. Experimentava um sentimento vizinho do desespero, o que jamais lhe acontecera. Uma questão dominava as outras, fatal e insolúvel: que aconteceria a seu pai e Dimítri em presença daquela mulher terrível? Vira-os engalfinhados. O único verdadeiramente infeliz era seu irmão Dimítri; a fatalidade o tocaiava. Outros encontravam-se misturados a tudo isso e talvez mais do que parecia antes a Aliócha. Era enigmático. Ivan dera os primeiros passos para ele, esperados desde muito tempo, e agora sentia ele certa apreensão. Outra coisa estranha: enquanto que antes ia à casa de Katierina Ivânovna numa extraordinária perturbação, nenhuma sentia agora; apressava-se mesmo, como se esperasse dela uma indicação. No entanto, o recado era ainda penoso de dar: a questão dos três mil rublos estava liquidada e Dimítri, sentindo-se definitivamente desonrado, cairia cada vez mais baixo. Além disso, devia Aliócha narrar a Katierina Ivânovna a cena que acabava de desenrolar-se em casa de seu pai.

Eram sete horas e a noite estava a cair, quando Aliócha chegou à casa de Katierina Ivânovna, que morava num prédio vasto e confortável da rua Grande. Sabia que ela vivia com duas tias. Uma, a tia de sua irmã Agáfia Ivânovna, era aquela pessoa silenciosa que tomara conta dele depois que saíra do internato. A outra era uma senhora de Moscou, bastante digna, mas sem fortuna. Sabia-se que as duas senhoras se submetiam em tudo a Katierina Ivânovna e só permaneciam em sua companhia para manter o decoro. Katierina Ivânovna só dependia de sua benfeitora, a generala, cuja saúde a retinha em Moscou e a quem estava ela obrigada a dar, duas vezes por semana, notícias suas pormenorizadas.

Quando Aliócha, no vestíbulo, fez-se anunciar pela arrumadeira que lhe abrira a porta, sabia-se já, no salão, de sua chegada, evidentemente (talvez o tivessem visto pela janela); o fato é que ele ouviu rumor, passos precipitados ressoaram com um fru-fru de vestidos, duas ou três mulheres teriam saído correndo. Aliócha achou estranho que sua chegada produzisse tal agitação. Fizeram-no entrar logo no salão, uma grande peça mobiliada com elegância, que nada tinha de provinciana. Muitos canapés, divãs, poltronas, mesas de centro; quadros nas paredes, vasos e lâmpadas, um ramalhete de flores, havendo mesmo um aquário, perto da janela. O crepúsculo ensombrecia a sala. Aliócha avistou em cima dum canapé uma mantilha de seda abandonada, e sobre a mesa, em frente, duas xícaras onde restava chocolate, biscoitos, uma taça de cristal com passas de uvas, outra com bombons. Vendo aquela refeição, adivinhou Aliócha que havia convidados e franziu o cenho. Mas logo o reposteiro se ergueu e Katierina Ivânovna entrou a passos rápidos, estendendo-lhe as duas mãos com alegre sorriso. Ao mesmo tempo, uma criada trouxe e colocou em cima da mesa duas velas acesas.

— Louvado seja Deus, ei-lo afinal! Rezei a Deus o dia inteiro para que você viesse! Sente-se.

A beleza de Katierina Ivânovna já havia impressionado Aliócha três semanas antes, quando Dimítri o levara à casa dela para apresentá-lo, porque ela desejava muito conhecê-lo. Não haviam conversado por ocasião daquele encontro. Pensando que Aliócha estava muito acanhado, Katierina Ivânovna quis pô-lo à vontade e conversou todo o tempo com Dimítri. Aliócha mantivera-se em silêncio, mas observara muitas coisas. Impressionaram-no o porte nobre, a desenvoltura altiva, a segurança da orgulhosa moça. Seus grandes olhos negros e brilhantes pareceram-lhe em perfeita harmonia com a palidez mate de seu rosto oval. Mas seus olhos, seus lábios encantadores, por mais capazes que fossem de excitar o amor de seu irmão, não poderiam talvez retê-lo por muito tempo. Foi quase franco com Dimítri, quando este, após a visita, insistiu, rogando-lhe que não ocultasse a impressão que lhe causara sua noiva.

— Serás feliz com ela, mas talvez não uma felicidade calma.

— Meu irmão, mulheres como essa permanecem iguais a si mesmas, não se resignam diante do destino. De modo que, pensas que não a amarei sempre?

— Não, tu a amarás sempre, é possível, mas não serás talvez sempre feliz com ela...

Aliócha exprimira sua opinião corando, aborrecido por ter, para ceder aos rogos de seu irmão, formulado ideias tão “tolas”, porque sua opinião lhe parecera a ele próprio bastante tola, logo que fora emitida. Tivera vergonha de haver-se exprimido tão categoricamente a respeito de uma mulher. Sua surpresa foi tanto maior sentindo, ao primeiro olhar lançado agora sobre Katierina Ivânovna, que se tinha talvez enganado então em seu julgamento. Dessa vez, o rosto da moça irradiava uma bondade ingênua e uma sinceridade ardente. Da “altivez e do orgulho” de então, que haviam impressionado tanto Aliócha, não restava senão uma nobre energia, uma confiança serena e forte em si mesma. Ao primeiro olhar, às primeiras palavras, compreendeu Aliócha que o trágico de sua situação a respeito do homem a quem ela tanto amava não lhe escapava e que, talvez, já soubesse de tudo. E no entanto, malgrado isso, seu rosto radiante exprimia a fé no futuro. Aliócha sentiu-se culpado perante ela, vencido e cativo ao mesmo tempo. Além disso, observou, às suas primeiras palavras, que se encontrava ela numa violenta agitação, talvez insólita nela, e que confinava mesmo com a exaltação.

— Eu o esperava, porque é só de você, agora, que posso saber toda a verdade.

— Vim... — gaguejou Aliócha — eu... ele me enviou.

— Ah! Ele o enviou? Está bem. Pressentia isso. Agora, sei tudo, tudo — disse Katierina Ivânovna, com os olhos cintilantes. — Espere, Alieksiêi Fiódorovitch, vou dizer-lhe por que desejava tanto vê-lo. Sei muito mais do que você mesmo; não são notícias que reclamo de você. Quero saber de sua derradeira impressão sobre Dimítri, quero que você me conte o mais francamente, o mais grosseiramente que puder (oh, não se acanhe!) o que pensa dele agora e de sua situação depois da conversa de vocês, hoje. Valerá isso talvez melhor que uma explicação entre nós dois, uma vez que ele não quer vir ver-me. Compreendeu o que espero de você? Agora, por qual motivo o enviou? Fale francamente, não mastigue as palavras...

— Encarregou-me de... saudá-la, de dizer-lhe que não viria mais e de saudá-la...

— Saudar? Disse assim, foi assim que se exprimiu?

— Sim.

— Talvez se haja enganado, por acaso, e não empregou a palavra devida.

— Não, insistiu precisamente para que eu lhe repetisse essa palavra “saudar”. Recomendou-me três vezes.

O sangue subiu ao rosto de Katierina Ivânovna.

— Ajude-me, Alieksiêi Fiódorovitch, tenho agora necessidade de você. Eis o que penso, diga-me se tenho ou não razão: se ele o tivesse encarregado de saudar-me, ligeiramente, sem insistir na transmissão da palavra, sem sublinhá-la, tudo estaria acabado. Mas se apoiou particularmente nesse termo, se lhe ordenou expressamente que me transmitisse essa “saudação”, é que estava superexcitado, fora de si talvez. A decisão que tomou terá espantado a ele próprio! Não me deixou com segurança, precipitou-se ladeira abaixo. O sublinhamento dessa palavra tem o sentido de uma bravata...

— É isso, é isso — afirmou Aliócha. — Tenho a mesma impressão.

— Nesse caso, nem tudo está perdido! Ele apenas está ele desesperado, posso ainda salvá-lo. Ele não lhe falou de dinheiro, de três mil rublos?

— Não somente me falou deles, mas é talvez isso que mais o acabrunha. Disse que nada mais lhe importa agora, agora que perdeu a honra — respondeu Aliócha que se sentia renascer para a esperança e entrevia a possibilidade de salvar seu irmão. — Mas sabe... de que dinheiro se trata? — acrescentou ele e de repente calou-se.

— Desde muito tempo que o sei e com certeza. Telegrafei para Moscou, onde nada tinham recebido. Ele não remeteu o dinheiro, mas eu me calei. Soube na última semana como estava ele necessitado... Só tenho um fito em tudo isso: é que ele saiba a quem se dirigir e onde encontrar a amizade mais fiel. Mas não quer ele crer que seu mais fiel amigo sou eu; só considera a mulher, em mim. Atormentei-me a semana inteira: como fazer para que ele não core diante de mim por ter gasto esses três mil rublos? Que se envergonhe ele diante de todos e se envergonhe de si mesmo, mas não diante de mim! Como ignora até agora tudo quanto posso suportar por ele? Como pode ele me desconhecer, depois de tudo que se passou? Quero salvá-lo para sempre. Que deixe de ver em mim sua noiva! E teme por sua honra para comigo? Mas não receia abrir-se a você, Alieksiêi Fiódorovitch. Por que não mereci ainda sua confiança?

Pronunciou essas derradeiras palavras com os olhos cheios de lágrimas.

— Devo relatar-lhe — disse Aliócha, com voz trêmula — a cena que acaba de ter com o próprio pai. — E contou tudo: como Dimítri o havia mandado pedir dinheiro, depois irrompera na casa, batera em Fiódor Pávlovitch e, na ocasião, recomendara com insistência a Aliócha que viesse “saudá-la”. — Ele foi à casa daquela mulher... — acrescentou Aliócha, em voz baixa.

— Pensa que não suportarei sua ligação com aquela mulher? Ele também o pensa, mas não casará com ela. — Soltou uma risadinha nervosa. — Será que um Karamázov pode queimar-se com um ardor eterno? É um entusiasmo passageiro, não é amor. Ele não casará com ela, porque ela não o quererá — disse, com o mesmo riso estranho.

— Ele se casará talvez com ela — disse tristemente Aliócha, de olhos baixos.

— Ele não se casará com ela, afirmo-lhe! Aquela moça é um anjo! Sabia-o!? Sabia-o!? — exclamou Katierina Ivânovna, com um calor extraordinário. — É a mais fantástica das criaturas. É sedutora, decerto, mas tem um caráter nobre e bom. Por que me olha desse jeito, Alieksiêi Fiódorovitch? Talvez minhas palavras lhe causem espanto, talvez não me acredite. Agrafiena Alieksándrovna, meu anjo — exclamou ela, de súbito, com os olhos voltados para a peça vizinha —, venha cá, este gentil rapaz está ao corrente de todos os nossos negócios, apareça, pois!

— Só esperava seu chamado — disse uma voz doce e até mesmo melíflua.

O reposteiro ergueu-se e... Grúchenhka em pessoa, risonha, alegre, caminhou para a mesa. Aliócha sentiu uma comoção. Os olhos fixos nela, não podia desviá-los de seu rosto. Ei-la, aquela mulher temível, “aquele monstro”, como a chamara seu irmão Ivan meia hora antes. No entanto, tinha ele diante de si a criatura mais vulgar, mais simples à primeira vista, uma mulher encantadora e boa, bonita, decerto, mas parecendo-se com todas as mulheres bonitas “comuns”. Na verdade, era até mesmo bela, bastante bela, uma beleza russa, a que suscita tantas paixões. De estatura bastante elevada, sem igualar, no entanto, a de Katierina Ivânovna (que era muito alta), forte, com movimentos mansos e silenciosos, como que enlanguescidos numa doçura de acordo com sua voz. Adiantou-se, não como Katierina Ivânovna, mas com um passo firme e seguro, embora silencioso. Não fazia quase ruído ao andar. Deixou-se cair numa poltrona, com um rumor leve de seu elegante vestido de seda preta, cobriu friorentamente com um xale de lã seu pescoço branco como neve e seus largos ombros. Tinha 22 anos e seu rosto indicava essa idade. Sua pele era muito branca, com um matiz de reflexos rosa pálido, o oval do rosto um tanto largo, o maxilar inferior um pouco saliente. O lábio superior era delgado, o inferior, que avançava, duas vezes mais forte e túmido. Uma magnífica cabeleira castanha muito abundante, supercílios escuros, admiráveis olhos dum cinzento-azulado de longos cílios: o mais indiferente, o mais distraído dos homens, perdido na multidão, passeando, não teria deixado de parar diante daquele rosto e de recordá-lo por muito tempo. O que mais impressionava Aliócha era sua expressão infantil e ingênua. Tinha ela olhar e alegria de criança, aproximara-se da mesa verdadeiramente alvoroçada, como se esperasse alguma coisa, curiosa e impaciente. Seu olhar alegrava a alma, sentia-o Aliócha. Havia ainda nela algo de que não teria ele podido ou sabido dar conta, mas que sentia talvez inconscientemente, aquela languidez de movimentos, aquela ligeireza felina de seu corpo, no entanto, vigoroso e gordo. Seu xale desenhava espáduas cheias, um firme busto de mulher jovem. Aquele corpo prometia talvez as formas da Vênus de Milo, mas já em proporções um tanto exageradas, adivinhava-se. Conhecedores da beleza russa, ao examinar Grúchenhka, teriam predito com certeza que, ao aproximar-se dos trinta anos, aquela beleza tão fresca ainda perderia a harmonia, alterar-se-ia, o rosto se empastaria; rugas se formariam rapidamente na testa e em redor dos olhos; a tez murcharia, avermelhar-se-ia talvez; numa palavra, era a beleza do diabo, beleza efêmera, tão frequente na mulher russa. Aliócha, bem entendido, não pensava nisso, mas, embora sob o encanto, perguntava a si mesmo com mal-estar e como a contragosto: por que arrasta ela assim as palavras e não pode falar naturalmente? Grúchenhka achava decerto bonito aquele rotacismo e aquelas entonações cantantes. Não era senão um sabido mau gosto, índice de uma educação inferior, duma falsa noção das conveniências. No entanto, aquela fala afetada parecia a Aliócha quase incompatível com aquela expressão ingênua e radiosa, aquele brilho dos olhos ridentes duma alegria de bebê. Katierina Ivânovna fizera-a sentar-se em frente de Aliócha e beijara várias vezes com entusiasmo seus lábios sorridentes. Parecia apaixonada por ela.

— Vemo-nos pela primeira vez, Alieksiêi Fiódorovitch — disse ela, encantada. — Queria conhecê-la, vê-la, ir à casa dela; ela mesma, porém, veio a meu primeiro chamado. Estava certa de que arranjaríamos tudo! Meu coração pressentia-o... Tinham-me rogado que desistisse desse passo, mas previa-lhe o resultado e não me enganei. Grúchenhka explicou-me todas as suas intenções; veio como um anjo bom trazer-me a paz e a alegria...

— Você não me desdenhou, cara senhorita — disse Grúchenhka, com voz arrastada e seu doce sorriso.

— Evite dizer-me tais palavras, encantadora mágica! Desdenhá-la? Vou beijar mais uma vez seu lindo lábio. Tem o ar de estar intumescido, pois vou torná-lo mais intumescido ainda... Veja como ri, Alieksiêi Fiódorovitch, é uma alegria para o coração olhar esse anjo...

Aliócha corava e estremecia ligeiramente.

— Você está-me mimando, cara senhorita, mas não mereço talvez suas carícias.

— Não as merece! — exclamou com o mesmo calor Katierina Ivânovna. — Saiba, Alieksiêi Fiódorovitch, que temos aí uma cabeça fantasista, independente, mas um coração altivo, oh, muito altivo! É nobre e generosa, Alieksiêi Fiódorovitch, sabia-o? Era apenas infeliz, pronta inteiramente a sacrificar-se a um homem talvez indigno ou leviano. Havia um oficial a quem amava, deu-lhe tudo, há muito tempo isso, cinco anos, e ele a esqueceu, casou-se. Tendo ficado viúvo, escreveu, está a caminho, é a ele somente, fique sabendo, que ama e sempre amou! Ele chega, e Grúchenhka será de novo feliz, depois de ter sofrido durante cinco anos. Que se lhe pode censurar? Quem pode gabar-se de ter-lhe conquistado as belas graças? Aquele velho negociante impotente, mas era antes um pai, um amigo, um protetor; encontrou-a desesperada, atormentada, abandonada... Porque queria ela afogar-se, aquele velho a salvou, salvou-a!

— Você me defende demais, cara senhorita, vai um pouco longe demais — disse de novo, arrastadamente, Grúchenhka.

— Eu a defendo? Cabe a mim defendê-la, ousaríamos nós defendê-la? Grúchenhka, meu anjo, dê-me sua mão. Olhe essa mãozinha rechonchuda, essa deliciosa mãozinha, Alieksiêi Fiódorovitch; está vendo-a? Foi ela que me trouxe a felicidade, que me ressuscitou, vou beijá-la dos dois lados... assim, assim!

Beijou três vezes, como que arrebatada, a mão verdadeiramente encantadora, talvez demasiado rechonchuda, de Grúchenhka. Ela, com um riso nervoso e sonoro, consentia na carícia; mirava a “cara senhorita” e tinha prazer com aquilo... “Ela talvez se exalte demasiado”, pensou Aliócha. Corou, seu coração não estava tranquilo.

— Quer fazer-me corar, cara senhorita, beijando assim minha mão diante de Alieksiêi Fiódorovitch.

— Mas foi minha intenção fazê-la corar? — proferiu Katierina Ivânovna um pouco admirada. — Ah, minha cara, como me compreende mal!

— Mas talvez não me compreenda tampouco, cara senhorita. Sou talvez pior do que pareço. Tenho coração mau, sou caprichosa. Foi somente para zombar do pobre Dimítri Fiódorovitch que o conquistei.

— Mas agora você o salvará, prometeu-o. Far-lhe-á compreender, revelar-lhe-á que desde muito tempo ama outro pronto a desposá-la...

— Mas não, não lhe prometi nada de semelhante. Foi você quem disse tudo isso e não eu.

— Compreendi-a mal então — declarou Katierina Ivânovna, que baixou a voz e empalideceu ligeiramente. — Você prometeu...

— Ah! Não, angélica senhorita, não lhe prometi nada — interrompeu-a Grúchenhka, com a mesma expressão alegre, tranquila, inocente. — Veja, digna senhorita, como sou má e voluntariosa. O que me agrada, faço-o; ainda há pouco talvez lhe haja feito uma promessa, e agora digo a mim mesma: se Mítia viesse a agradar-me de novo, porque já uma vez me agradou quase uma hora, talvez vá dizer-lhe que fique morando comigo a partir de hoje... Veja como sou inconstante...

— Ainda há pouco falava você de maneira totalmente diversa... — murmurou Katierina Ivânovna.

— Sim, ainda há pouco! Mas tenho o coração terno, sou tola! Basta pensar em tudo quanto ele sofreu por mim; se, de volta a minha casa, tiver piedade dele, que acontecerá?

— Eu não esperava...

— Oh, senhorita, quanto é boa e nobre comparada comigo! E talvez, agora, vai deixar de amar-me vendo meu caráter. Dê-me sua bonita mão, angélica senhorita — pediu ela, tomando com respeito a mão de Katierina Ivânovna. — Vou beijar sua mão, cara senhorita, como fez você à minha. Deu-me três beijos, deveria dar-lhe bem uns trezentos para ficar quite. Assim será, e depois, seja o que Deus quiser: talvez seja sua escrava e haverei de querer comprazê-la em tudo quanto Deus queira, sem convenção alguma nem promessas. Dê-me sua mão, sua linda mão, cara senhorita, bela entre todas!

Levou docemente aquela mão a seus lábios, com o fito estranho de “saldar a conta” dos beijos recebidos. Katierina Ivânovna não retirou a mão. Havia escutado com tímida esperança a derradeira promessa de Grúchenhka, por mais estranhamente expressa que tivesse sido, de “comprazê-la em tudo”; olhava-a com ansiedade bem dentro dos olhos; via ali a mesma expressão ingênua e confiante, a mesma jovialidade serena... “Ela é talvez demasiado ingênua!”, disse a si mesma Katierina Ivânovna, num clarão de esperança. Entretanto Grúchenhka, encantada com aquela “linda mãozinha”, levava-a lentamente aos lábios. Ia quase tocar-lhe, quando a reteve para refletir.

— Sabe, meu anjo — disse ela, arrastadamente, com sua voz mais melíflua —, feitas as contas, não lhe beijarei a mão. — E soltou uma risadinha alegre.

— Como queira... Que tem? — estremeceu Katierina Ivânovna.

— Lembre-se disso: você beijou minha mão, mas eu não beijei a sua.

Um clarão brilhou em seus olhos. Fitava com obstinação Katierina Ivânovna.

— Insolente! — exclamou esta, que começava a compreender. Levantou-se vivamente, tomada de cólera. Sem se apressar, Grúchenhka fez o mesmo.

— Vou contar a Mítia que você beijou minha mão, mas que eu não quis beijar a sua. Isso vai fazê-lo rir.

— Fora daqui, canalha!

— Ah, que vergonha! É indecente de sua parte empregar tais palavras, cara senhorita.

— Fora daqui, fêmea vendida! — vociferou Katierina Ivânovna. Todo o seu rosto convulsionado tremia.

— Vendida, seja. Você mesma, mocinha, saía à noite em busca de dinheiro entre rapazes, traficando seus encantos; sei de tudo.

Katierina Ivânovna lançou um grito, quis atirar-se contra ela, mas Aliócha reteve-a com todas as forças.

— Não se mova, nem uma palavra! Não lhe responda, ela partirá agora mesmo!

As duas parentas de Katierina Ivânovna e a arrumadeira acorreram a seu grito. Precipitaram-se para ela.

— Está bem! Vou-me embora — declarou Grúchenhka, tomando sua mantilha de cima do divã. — Aliócha, meu bem, acompanha-me!

— Vá-se o mais depressa possível — implorou Aliócha, de mãos juntas.

— Aliócha querido, acompanha-me. No caminho, dir-te-ei uma palavra, algo de muito gentil! Foi por ti, Aliócha, que representei essa cena. Vem, meu caro, não o lamentarás ter vindo.

Aliócha voltou-se, torcendo as mãos. Grúchenhka saiu rindo, sonoramente.

Katierina Ivânovna teve um ataque de nervos; soluçava, espasmos sufocavam-na. Todos se mostravam solícitos em torno dela.

— Eu a havia prevenido — disse-lhe a mais velha das tias — e desaconselhado tal passo... você é demasiado viva... pode-se arriscar tal coisa? Você não conhece essas criaturas, e dizem dessa que é a pior de todas... Você só faz o que lhe dá na cabeça!

— É uma tigresa! — vociferou Katierina Ivânovna. — Por que me reteve, Alieksiêi Fiódorovitch? Ter-lhe-ia batido, batido...

Estava incapaz de conter-se diante de Alieksiêi, talvez mesmo não o quisesse.

— Merecia ser chicoteada em público, pela mão do carrasco.

Alieksiêi aproximou-se da porta.

— Oh, meu Deus! — exclamou Katierina Ivânovna, juntando as mãos. — Mas ele! Pôde ser tão desleal, tão inumano?! Porque foi ele que contou àquela criatura o que se passou naquele dia fatal e para sempre maldito! “Você ia traficar seus encantos, cara senhorita!” Ela sabe! Seu irmão é um canalha, Alieksiêi Fiódorovitch!

Aliócha quis dizer alguma coisa, mas não encontrou uma palavra sequer; seu coração cerrava-se a ponto de doer-lhe.

— Vá-se embora, Alieksiêi Fiódorovitch! Tenho vergonha, é horrível! Amanhã... Rogo-lhe de joelhos, venha amanhã. Não me julgue, perdoe-me, não sei de quê sou capaz!

Aliócha saiu cambaleante. Teria querido também chorar; de repente a criada alcançou-o.

— A senhorita esqueceu-se de entregar-lhe esta carta da senhora Khokhlakova; estava com ela desde o jantar.

Aliócha pegou o pequeno envelope cor-de-rosa e meteu-o quase inconscientemente no bolso.

 

XI


Outra reputação perdida


Da cidade ao mosteiro era apenas uma versta. Aliócha caminhava rapidamente pela estrada, deserta àquela hora. Era quase noite e difícil, a trinta passos, distinguir os objetos. Em meio do caminho, no centro duma encruzilhada, elevava-se um salgueiro isolado, sob o qual percebia-se um vulto. Mal Aliócha chegara àquele local, o vulto destacou-se da árvore e lançou-se a ele, gritando:

— A bolsa ou a vida!

— Como, és tu, Mítia! — exclamou, espantado, Aliócha, bastante comovido.

— Ah! Ah, não esperavas por isto, hem? Perguntava a mim mesmo onde esperar-te. Perto da casa dela? Há três caminhos que partem dali, e eu podia não te encontrar. Tive a ideia afinal de esperar-te aqui, porque devias necessariamente passar por esta estrada, uma vez que não há outra para ir ao mosteiro. Pois bem, dize-me a verdade, esmaga-me como a uma barata... Que tens, então?

— Não é nada, irmão... É o medo. Ah! Dimítri! Ainda há pouco, esse sangue de nosso pai (Aliócha pôs-se a chorar, desde muito tinha vontade disso, parecia-lhe que alguma coisa se dilacerava dentro dele). Tu quase o mataste... tu o amaldiçoaste... e eis que agora... aqui... fazes brincadeira... a bolsa ou a vida!

— Ah! Sim. Pois bem! É indecente? Não convém isso à situação?

— Mas não, dizia isso...

— Espera, olha essa noite; vê como está sombria, aquelas nuvens, esse vento que se levantou. Oculto sob o salgueiro, esperava-te e, de repente, disse a mim mesmo (Deus me seja testemunha!): “Que adianta sofrer ainda, por que esperar? Eis um salgueiro, tenho meu lenço e minha camisa, a corda ficaria trançada em breve, com meus suspensórios ainda por cima... A terra ficaria livre de mim, não mais a desonraria com a minha presença!” E eis que ouço teus passos. Senhor, foi como se um raio descesse sobre mim! “Há pois um homem a quem amo, ei-lo, esse homenzinho, o meu querido irmãozinho, a quem amo mais que tudo no mundo e é o único a quem amo!” Tão vivo era meu afeto naquele minuto que pensei: “Vou atirar-me a seu pescoço!” Mas veio-me uma ideia estúpida: “Para diverti-lo, vou fazer-lhe medo.” E gritei como um imbecil: “A bolsa!” Perdoa minha tolice; é absurdo, mas no fundo da alma... bom... Pois bem! Com o diabo, fala pois, que houve lá? Que foi que ela disse? Esmaga-me, bate-me, não me poupes! Ela está exasperada?

— Não... não é totalmente isso, Mítia. Encontrei as duas.

— Quais duas?

— Grúchenhka em casa de Katierina Ivânovna.

Dimítri ficou estupefato.

— É impossível! — exclamou. — Deliras! Grúchenhka em casa dela?

Numa narrativa despida de artifício, mas não de clareza, expôs Aliócha o essencial do que se passara, acrescentando-lhe as próprias impressões. Seu irmão escutava-o em silêncio, fixando-o com um ar impassível, mas Aliócha via claramente que ele já havia compreendido tudo, elucidado todo o caso. À medida que a narrativa avançava, seu rosto tornava-se não sombrio, mas ameaçador. Franzia o cenho, de dentes cerrados, o olhar ainda mais fixo, mais terrível em sua obstinação... A mudança súbita que ocorreu em seu rosto encolerizado foi por isso mesmo totalmente inesperada; seus lábios crispados distenderam-se; e Dimítri Fiódorovitch explodiu na gargalhada mais irresistível e mais franca. Ficou um bom momento sem poder falar, à força de rir.

— De modo que ela não lhe beijou a mão! Fugiu sem beijar-lhe a mão! — exclamou ele num arrebatamento mórbido, que se teria podido qualificar de impudente, se não fosse tão ingênuo. — E a outra chamou-a de tigresa? É uma mesmo! Devia subir ao cadafalso! Certamente, estou de acordo; deveriam tê-lo feito há muito. Mas não é tudo, irmão, é preciso em primeiro lugar recuperar a saúde. Ela está toda inteira nesse beijo de mão, aquela rainha da impudência, aquela criatura infernal! É a rainha de todas as fúrias que se possam imaginar! De encher de entusiasmo, de certa maneira! Partiu para sua casa? Agora mesmo... corro até lá. Aliócha, não me acuses, convenho que seria pouco estrangulá-la...

— E Katierina Ivânovna? — perguntou tristemente Aliócha.

— Também a compreendo, como até agora tenho compreendido! É a descoberta das quatro partes do mundo, das cinco, quero dizer! Tal passo que deu! É bem mesma Kátienhka, a pensionista que não receia ir ter com um oficial grosseiro, com o nobre desígnio de salvar seu pai, arriscando-se a ser insultada! Mas essa altivez, essa sede do perigo, esse desafio ao destino, até os derradeiros limites!... Sua tia, dizes, queria impedi-la? É uma mulher despótica, irmã daquela generala de Moscou; fazia muito embaraço, mas seu marido foi acusado de malversações, perdeu tudo, seus bens e o resto, sua orgulhosa esposa teve de baixar o tom. De modo que retinha ela Kátia, mas esta não a escutou. “Posso tudo vencer, tudo me é submetido, enfeitiçarei Grúchenhka, se quiser.” Acreditava bem nisso, decerto, e forçou seu talento. De quem a culpa? Pensas que tenha sido intencionalmente que beijou por primeira a mão de Grúchenhka, por cálculo e por astúcia? Não, deixou-se enfeitiçar nada mais, nada menos por Grúchenhka, isto é, não por ela, mas por seu sonho, por seu desejo, muito simplesmente, porque esse sonho, esse desejo eram os seus! Aliócha, como pudeste escapar a semelhantes mulheres? Fugiste, arrepanhando a batina, hem? Ah! Ah! Ah!

— Irmão, não pensaste, creio, na ofensa que fizeste a Katierina Ivânovna contando a Grúchenhka sua visita à tua casa; Grúchenhka lançou-lhe em rosto que “ela ia furtivamente traficar seus encantos”. Há pior injúria, meu irmão?

A ideia de que seu irmão se rejubilava com a humilhação de Katierina Ivânovna atormentava Aliócha, embora sem razão, evidentemente.

— Ah, sim! — disse Dimítri, franzindo as sobrancelhas e batendo na testa. Somente agora se dava conta, se bem que Aliócha tivesse contado tudo ao mesmo tempo” a injúria e o grito de Katierina Ivânovna: “Seu irmão é um canalha!” — Sim, com efeito, devo ter falado a Grúchenhka daquele “dia fatal”, como diz Kátia. Deveras, contei-lhe, lembro-me! Foi em Mókroie, enquanto os ciganos cantavam; estava embriagado... Mas então eu soluçava, rezava de joelhos diante da imagem de Kátia. Grúchenhka compreendia-o, ela mesma chorava... Ah, diabos! Poderia ser de outro modo agora? Ela chorava então, agora crava um punhal no coração. Eis as mulheres!

Pôs-se a refletir, de cabeça baixa.

— Sim, sou um verdadeiro canalha — proferiu ele, de súbito, com voz sombria. — Que tenha chorado ou não, tanto faz. Conta-lhe que aceito o qualificativo, se isso pode consolá-la. Pois bem! Chega, de que serve tagarelar? Não é divertido. Sigamos cada qual nossa estrada. Não quero mais rever-te antes do derradeiro momento. Adeus, Alieksiêi!

Apertou fortemente a mão de Aliócha e, sem erguer a cabeça, como um evadido, caminhou a grandes passadas para a cidade. Aliócha acompanhou-o com o olhar, não podendo crer que tivesse ele partido deveras.

— Espera, Alieksiêi, ainda uma confissão, para ti somente! (Dimítri retrocedera.) Olha-me bem no rosto: aqui, vês tu, aqui, uma infâmia execrável se prepara. (Ao dizer isso, Dimítri batia no peito com um ar estranho, como se a infâmia estivesse depositada em seu peito ou suspensa a seu pescoço.) Já me conheces como um canalha chapado. Mas, fica sabendo, o que quer que eu tenha feito, o que quer que possa fazer no futuro, nada se compara em baixeza com a infâmia que trago em meu peito e que poderia reprimir, mas não o farei, fica sabendo. Prefiro cometê-la. Tudo te contei há pouco, exceto isso, não tinha coragem! Posso ainda deter-me e, dessa maneira, recuperar amanhã a metade de minha honra, mas não renunciarei a isso, cumprirei meu negro desígnio, poderás ser testemunha de que falo disso antecipadamente e cientificamente. Perdição e trevas! Inútil explicar-te, sabê-lo-ás a seu tempo. A lama é uma verdadeira fúria! Adeus. Não rezes por mim, não sou digno e não tenho necessidade de oração nenhuma... Sai de meu caminho!...

Afastou-se, dessa vez definitivamente. Aliócha seguiu para o mosteiro. “Como! Não o verei mais? Que é que ele diz?” Isso pareceu-lhe esquisito. “Amanhã, sem falta, pôr-me-ei à sua procura. Que quis ele dizer?”

Contornou o mosteiro e seguiu diretamente para o eremitério, através do bosque de pinheiros. Abriram-lhe a porta, se bem que não deixassem entrar ninguém àquela hora. Entrou na cela do stáriets, com o coração palpitante. “Por que partira ele? Por que o haviam enviado ao mundo? Aqui, a paz, a santidade; lá, a perturbação, as trevas nas quais a gente se perde...”

Na cela encontravam-se o noviço Porfíri e um religioso, o padre Paísi, que o dia inteiro viera a cada hora saber notícias do padre Zósima. Seu estado piorava, como veio a saber Aliócha, com espanto. A conversa habitual da noite com a comunidade não pudera realizar-se daquela vez. Comumente, à noite, após o ofício, a comunidade, antes de ir repousar, reunia-se na cela do stáriets; cada qual lhe confessava bem alto suas faltas do dia, os sonhos culpados, as ideias, as tentações, até as rusgas entre monges, se alguma ocorrera. Outros se confessavam, de joelhos. O stáriets absolvia, acalmava, ensinava, impunha penitências, abençoava e despedia. Era contra essas “confissões” fraternais que se levantavam os adversários do stáriets, dizendo que era aquilo uma profanação da confissão, como sacramento, quase um sacrilégio, se bem que fosse coisa bem diversa. Haviam mesmo feito denúncia à autoridade diocesana de que não somente aquelas confissões não atingiam seu fim, mas eram na realidade uma fonte de pecados e de tentações. A muitos, na comunidade, repugnava ir à casa do stáriets e ali apareciam de má vontade, a fim de não passarem por orgulhosos e revoltados de espírito. Contava-se que certos monges, ao ir à confissão da noite, entendiam-se entre si de antemão: “Direi que me zanguei contra ti esta manhã, tu o confirmarás”, isto a fim de ter alguma coisa que dizer e ver-se livre daquilo. Aliócha sabia que as coisas se passavam por vezes assim. Sabia também que alguns se indignavam bastante contra o costume segundo o qual as cartas, mesmo dos pais, recebidas pelos solitários, eram levadas em primeiro lugar ao stáriets, para que ele as abrisse e lesse antes de seus destinatários. Supunha-se, bem entendido, que essas práticas deviam realizar-se livre e sinceramente, de todo o coração, com um fim de edificação salutar e de submissão voluntária; de fato, acontecia que, longe de serem sinceras, não eram senão fingidas. Mas os mais idosos e os mais experimentados da comunidade persistiam em sua ideia, estimando que “os que tinham transposto o recinto para cuidar sinceramente de sua salvação encontravam naquela obediência e naquela abdicação de si mesmos um proveito dos mais salutares; mas que os que murmuravam com repugnância não tinham a vocação e melhor teriam feito se tivessem ficado no mundo. O pecado e a tentação vos tocaiam não somente no mundo, mas no santuário, melhor valia não se prestar a isso”.

— Está enfraquecendo, sonolento — murmurou padre Paísi a Aliócha. — É difícil despertá-lo. E para quê? Acordou por uns cinco minutos e pediu que se transmitisse sua bênção à comunidade, cujas preces solicita. Amanhã de manhã, tem intenção de comungar de novo. Lembrou-se de ti, Aliócha, informou-se de onde estavas, disseram-lhe que havias partido para a cidade. “Minha bênção o acompanhe ali; seu lugar é lá e não aqui.” És o objeto de seu amor e de sua solicitude, compreendes essa honra? Mas por que te marca ele um estágio no mundo? Será que pressente alguma coisa em teu destino? Se voltares ao mundo, é para cumprir uma tarefa imposta por teu stáriets, compreende-o, Alieksiêi, e não para te entregares à agitação vã e às obras do século...

O padre Paísi saiu. Alieksiêi não duvidava de que o fim do stáriets estivesse próximo, muito embora pudesse viver ainda um dia ou dois. Jurou a si mesmo, malgrado os compromissos tomados para com o pai, as senhoras Khokhlakovi, o irmão, Katierina Ivânovna, não deixar o mosteiro no dia seguinte e ficar junto do stáriets até seu derradeiro momento. Seu coração abrasava-se de amor e censurava-se amargamente ter podido esquecer um instante, lá embaixo, aquele que deixara em seu leito de morte e a quem venerava acima de tudo. Passou para o quarto de dormir, ajoelhou-se, prosternou-se diante da cama dele. O stáriets repousava tranquilamente, mal se ouvia sua respiração. Seu rosto estava calmo.

Voltando ao quarto vizinho, onde tivera lugar a recepção da manhã, contentou-se Aliócha com tirar suas botas e estendeu-se sobre o estreito e duro divã de couro onde se acostumara a dormir, valendo-se apenas de um travesseiro. Desde muito tempo renunciara ao colchão de que falava seu pai. Só fazia tirar a batina que lhe servia de coberta. Antes de adormecer, ajoelhou-se e pediu a Deus, numa prece fervorosa, que o esclarecesse, ansioso por tornar a encontrar o apaziguamento que experimentava sempre outrora, depois de ter louvado e glorificado a Deus, como o fazia comumente em sua prece da noite. A alegria que o invadia proporcionava-lhe um sono leve e tranquilo. Enquanto rezava, sentiu em seu bolso o envelopezinho cor-de-rosa, entregue pela criada de Katierina Ivânovna, que o alcançara na rua. Ficou perturbado, mas acabou sua prece. Depois abriu o envelope, com alguma hesitação. Continha um bilhete a ele dirigido, assinado por Lisa, a filha da senhora Khokhlakova, que zombara dele pela manhã, na presença do stáriets.

Alieksiêi Fiódorovitch:

Escrevo-lhe às ocultas de todos e de minha mãe, e sei que isto não está bem. Mas não posso viver mais tempo sem dizer-lhe o que me nasceu no coração e que ninguém, a não ser nós dois, deve saber até nova ordem. Dizem que o papel não cora, que engano! Asseguro-lhe que estamos agora bem corados um e outro. Querido Aliócha, eu o amo, eu o amo desde minha infância, desde Moscou, quando era você bem diferente do que é agora. Elegi-o em meu coração para me unir a você e acabarmos nossos dias juntos. Bem entendido, com a condição de que deixe você o mosteiro. Quanto à nossa idade, esperaremos tanto quanto a lei o exija. Daqui até lá, estarei restabelecida, andarei, dançarei. Isso não tem dúvida nenhuma.

Vê você que calculei tudo, mas há uma coisa que não posso imaginar: que pensará você de mim lendo estas linhas? Rio, brinco, fi-lo zangar-se há pouco, mas asseguro-lhe que, antes de pegar da pena, rezei diante da imagem da Virgem, quase chorando.

Meu segredo está em suas mãos e, quando você vier, amanhã, não sei como poderei encará-lo. Alieksiêi Fiódorovitch, que acontecerá, se não puder impedir-me de rir ao vê-lo, como esta manhã? Você me tomará por uma zombadora implacável e duvidará de minha carta. Assim, suplico-lhe, meu querido, que não me olhe demasiado o rosto quando vier, porque pode acontecer que rebente a rir à vista de sua batina comprida... Já agora, meu coração fica gelado só de pensar nisso; para começar, lance seus olhares para mamãe ou para a janela...

Eis que lhe escrevi uma carta de amor. Meu Deus, que fiz eu? Aliócha, não me desprezes; se agi mal e o magoo, desculpe-me. Agora, a sorte de minha reputação, talvez perdida, está em suas mãos.

Haverei de chorar hoje por certo. Adeus, até esse encontro terrível...


Lisa.


P.S — Aliócha, venha sem falta, sem falta. Lisa.


Aliócha leu duas vezes aquela carta com surpresa, ficou pensativo, depois riu docemente de prazer. Estremeceu, aquele riso lhe parecia culpado. Mas, ao fim de um instante, repetiu o riso feliz. Tornou a pôr a carta no envelope, fez um sinal da cruz e deitou-se. Sua alma havia reencontrado a calma. “Senhor, perdoa-lhes a todos, protege esses felizes e agitados, guia-os, mantém-nos no bom caminho. Tu que és o Amor, concede a todos a alegria!” E Aliócha adormeceu num sono tranquilo.


Segunda parte


Livro IV

Os tumultos


I


O padre Fierapont


Aliócha despertou antes do amanhecer. O stáriets já não dormia e se sentia bastante fraco, mas quis levantar-se e sentar-se numa cadeira. Estava em plena consciência. Seu rosto, embora esgotado, refletia uma alegria serena, o olhar alegre, afável, atraía. “Talvez não veja o fim deste dia”, disse ele a Aliócha. Quis logo confessar-se e comungar. Seu diretor habitual era o padre Paísi. Depois administraram-lhe a extrema-unção. Os religiosos reuniram-se; a cela, pouco a pouco, encheu-se; o dia amanhecera; vieram também monges do mosteiro. Depois do ofício, o stáriets quis despedir-se de todos e beijou a todos. Tendo em vista a exiguidade da cela, os primeiros chegados cediam lugar aos outros. Aliócha mantinha-se junto do stáriets, de novo sentado em sua cadeira. Falava e ensinava de acordo com suas forças; sua voz, embora fraca, era ainda bastante nítida. “Há tantos anos vos instruo pela palavra, que se tornou isso para mim um hábito tal que o silêncio me seria quase mais penoso, caros padres e irmãos, mesmo agora, em meu estado de fraqueza”, disse ele, brincando, olhando com ar enternecido aqueles que se acotovelavam em redor dele. Aliócha lembrou-se depois de algumas de suas palavras. Mas, muito embora sua voz fosse distinta e suficientemente firme, sua fala era bastante desconexa. Falou muito, como se tivesse querido, naquela hora suprema, exprimir tudo quanto não pudera dizer durante sua vida, não com o único fim de instruir, mas para fazer todos partilharem de sua alegria e de seu êxtase, expandir por uma derradeira vez seu coração...

— Amai-vos uns aos outros, meus padres — ensinava o stáriets (segundo as recordações de Aliócha). Amai o povo cristão. Não somos mais santos do que os leigos, por ter vindo encerrar-nos nestas paredes; pelo contrário, todos aqueles que estão aqui têm reconhecido, pelo simples fato de sua presença, ser piores do que os leigos e do que todo mundo... E quanto mais o religioso viver em seu retiro, tanto mais deverá ter consciência disso. De outro modo, não valeria a pena vir para cá. Quando compreender que não somente é pior que todos os leigos, mas culpado de tudo para com todos, de todos os pecados coletivos e individuais, então somente o fim de nossa união será atingido. Porque, sabei, meus irmãos, que cada um de nós é certamente culpado aqui na Terra de tudo para com todos, não somente pela falta coletiva da humanidade, mas de cada um individualmente, por todos os outros na Terra inteira. A consciência de nossa culpabilidade é o coroamento da carreira religiosa, bem como de cada homem na Terra. Porque os religiosos não são homens à parte, mas somente tais como deveriam ser todas as pessoas neste mundo. Então somente vosso coração será penetrado dum amor infinito, universal, jamais saciado. Então cada um de vós será capaz de ganhar o mundo inteiro pelo amor e de lavar-lhe os pecados com suas lágrimas... Que cada qual entre em si mesmo e se confesse sem cessar. Não temais vosso pecado, mesmo se tiverdes consciência dele, contanto que vos arrependais, mas não imponhais condições a Deus. Eu vo-lo repito, não vos orgulheis, nem diante dos pequenos nem diante dos grandes. Não odieis aqueles que vos repelem, vos desonram, aqueles que vos insultam e vos caluniam. Não odieis os ateus, os professores do mal, os materialistas, mesmo os maus dentre eles, porque muitos são bons, sobretudo em nossa época. Lembrai-vos deles em vossas orações, dizei: “Salvai, Senhor, aqueles por quem ninguém reza, salvai aqueles que não querem rezar para Vós.” E acrescentai: “Não é por orgulho que vos dirijo esta prece, Senhor, porque sou eu mesmo vil entre todos...” Amai o povo cristão, não abandoneis vosso rebanho aos estrangeiros, porque, se adormecerdes na cupidez, virão de todos os países para arrebatar vosso rebanho. Não vos cansais de explicar o Evangelho ao povo... Não vos entregueis à avareza... Não vos ligueis ao ouro e à prata... Tende fé, mantende firme e alto o estandarte...

O stáriets exprimia-se, aliás, duma maneira mais desconexa do que foi acima exposta e do que Aliócha a escreveu depois. Por vezes parava completamente, como para reunir forças, ofegava, mas estava como em êxtase. Escutavam-no com enternecimento, muito embora muitos se espantassem com suas palavras e as achassem obscuras... Posteriormente, todos se recordaram delas. Quando Aliócha deixou a cela por um instante, ficou impressionado com a agitação geral e com a expectativa da comunidade que se comprimia na cela e em redor. Aquela expectativa era em alguns quase ansiosa, em outros, solene. Todos aguardavam alguma coisa de grande imediatamente após o desenlace do stáriets. Muito embora em certo sentido fosse expectativa quase frívola, os monges mais severos estão a ela sujeitos. O rosto mais sério era o do padre Paísi. Aliócha só se ausentara porque um monge o chamava de parte de Rakítin, que viera da cidade com uma carta da senhora Khokhlakova para ele. Comunicava curiosa notícia chegada muito a propósito. Na véspera, entre as mulheres do povo, que eram crentes e tinham vindo prestar homenagem ao stáriets e receber sua bênção, encontrava-se uma velha da cidade, Prókhorovna, viúva dum suboficial. Perguntara ao stáriets se se podia mencionar como defunto, na oração pelos mortos, seu filho Vássienhka, que partira para seu serviço militar em Irkutsk, na Sibéria, do qual estava ela sem notícias havia um ano. Ele o havia severamente proibido disso, tratando tal prática de análoga à feitiçaria. Mas, indulgente para com a ignorância dela, acrescentara uma consolação, “como se visse no livro do futuro” (segundo expressão da senhora Khokhlakova); o filho dela, Vássia, estava certamente vivo, chegaria em breve ou lhe escreveria, tendo ela apenas de ficar esperando em casa. E então, acrescentava a senhora Khokhlakova, entusiasmada, “a profecia cumprira-se ao pé da letra e mesmo além”. Assim que a boa mulher regressara a casa, entregaram-lhe uma carta da Sibéria, que a esperava. Mais ainda, nessa carta escrita de Ekatierinburg, Vássia informava sua mãe de que voltava para a Rússia em companhia dum funcionário, e que, duas ou três semanas após o recebimento daquela carta, esperava beijar sua mãe. A senhora Khokhlakova rogava insistentemente a Aliócha que comunicasse o novo milagre daquela predição ao padre abade e a toda a comunidade. “É importante que todos o saibam!”, exclamava ela ao fim de sua carta, escrita à pressa: a emoção refletia-se nela em cada linha. Mas Aliócha nada tinha de comunicar à comunidade, todos já o sabiam. Ao enviar o monge à sua procura, encarregara o Rakítin, além disso, de informar respeitosamente Sua Reverência, o padre Paísi, que tinha de comunicar-lhe um caso sem demora, visto sua importância, e rogava-lhe humildemente que lhe perdoasse a ousadia. Tendo o monge transmitido em primeiro lugar ao padre Paísi o pedido de Rakítin, não restava a Aliócha, depois de ter lido a carta, senão comunicá-la ao padre, a título de documentário. E eis que aquele homem rude, desconfiado, lendo, de sobrancelhas contraídas, a notícia do “milagre”, não foi inteiramente senhor de seu sentimento íntimo. Seus olhos brilharam, mostrou um sorriso grave, penetrante.

— Veremos bem mais outros — deixou ele escapar.

— Veremos bem mais outros! — repetiram os monges; mas o padre Paísi, franzindo de novo as sobrancelhas, rogou a todos que não falassem a ninguém no momento, “até que isso se confirme, porque há muita frivolidade nas notícias do mundo, e aquele caso podia ter ocorrido duma maneira natural”, concluiu ele, prudentemente, como para desencargo de consciência, mas quase sem acrescentar fé ele próprio à sua reserva, o que observaram muito bem seus ouvintes. Na mesma hora, naturalmente, o “milagre” era conhecido de todo o mosteiro, e até mesmo de muitos leigos, vindos para assistir à missa. O mais impressionado parecia ser o monge chegado de véspera de São Silvestre, pequeno mosteiro de Obdorsk, no Norte longínquo, o que prestara homenagem ao stáriets ao lado da senhora Khokhlakova e lhe perguntara com ar penetrante, designando a filha daquela senhora: “Como ousa fazer tais coisas?”

Estava agora presa de certa perplexidade e não sabia quase mais em quem crer. Na véspera, à noite, fizera visita ao padre Fierapont em sua cela particular, atrás do apiário, e trouxera dessa entrevista uma impressão lúgubre. O padre Fierapont era aquele velho monge, grande jejuador e observador do silêncio, que já citamos como adversário do stáriets Zósima e sobretudo do “starietismo”, que considerava uma novidade nociva e frívola. Era um adversário bastante temível, se bem que, taciturno, não falasse quase com ninguém. Era sobretudo perigoso por causa da sincera simpatia que lhe testemunhava a maioria da comunidade; muitos leigos o veneravam como um grande justo e um asceta, vendo nele ao mesmo tempo um verdadeiro insensato. Mas sua loucura cativava. O padre Fierapont não ia nunca à casa do stáriets Zósima. Se bem que viesse ao eremitério, não lhe impunham demasiado a regra, porque tinha ele um proceder de inocente. Tinha 75 anos, senão mais, e morava atrás do apiário, no ângulo de um muro, numa cela de madeira, caindo quase em ruínas, instalada havia bastante tempo, ainda no último século, por outro grande jejuador e taciturno, o padre Iona,[ 81 ] que vivera até os 105 anos e cujas façanhas constituíam ainda o objeto de narrativas bastante curiosas, no mosteiro e nos arredores.

O padre Fierapont obtivera por fim permissão de instalar-se naquela cela isolada, uma simples isbá, mas que se assemelhava bastante a uma capela, porque continha grande quantidade de ícones com lâmpadas a arderem perpetuamente; provinham de donativos, e o padre Fierapont parecia encarregado de guardá-las e acendê-las. Comia, pelo que se contava (e era verdade), somente duas libras de pão em três dias, não mais; era o guarda do apiário, que morava no local, quem lhas trazia, mas trocava raramente uma palavra com aquele homem. Aquelas quatro libras, com o pão bento do domingo, enviado regularmente ao inocente pelo padre abade, constituíam sua alimentação da semana. Renovava-se cada dia a água de seu jarro. Assistia raramente ao ofício. Seus admiradores encontravam-no, por vezes, dias inteiros em oração, sempre ajoelhado e sem olhar em torno de si. Se entrava em conversa com eles, mostrava-se lacônico, brusco, estranho e quase sempre grosseiro. Havia, no entanto, casos muito raros em que conversava com os visitantes, mas a maior parte das vezes contentava-se com pronunciar uma palavra estranha que intrigava sempre seu interlocutor; em seguida, a despeito de todos os rogos, não dava jamais uma palavra de explicação. Jamais fora ordenado padre. Circulava um boato estranho, na verdade, entre os mais ignorantes, segundo o qual o padre Fierapont estava em relação com os espíritos celestes e se entretinha somente com eles, o que explicava seu silêncio com as pessoas. O monge de Obdorsk, que entrara no apiário depois da indicação do guarda, monge igualmente sombrio e taciturno, dirigiu-se para o ângulo em que se erguia a cela do padre Fierapont. “Talvez queira ele falar-te por tua qualidade de estranho, talvez também nada consigas dele”, prevenira-o o guarda. O monge aproximou-se, como o contou mais tarde, com um grande medo. Já se fazia tarde. O padre Fierapont estava sentado num banquinho, diante de sua cela. Acima de sua cabeça rumorejava levemente um velho olmo gigantesco. Caía o frescor da noite. O monge prosternou-se diante do recluso e pediu-lhe a bênção.

— Queres tu, monge, que também eu me prosterne diante de ti? — proferiu o padre Fierapont. — Levanta-te.

O monge levantou-se.

— Abençoante e abençoado, senta-te ali. Donde vens?

O que impressionou mais o pobre mongezinho foi que o padre Fierapont, a despeito de seus jejuns prolongados e de sua idade avançada, tinha ainda o ar de um ancião vigoroso, de elevada estatura, mantendo-se ereto, o rosto fresco, se bem que magro, mas sadio. Tinha certamente conservado uma força notável e era de constituição atlética. Malgrado a avançada idade, os cabelos, outrora negros e espessos, bem como a barba, não estavam todos grisalhos. Tinha grandes olhos cinzentos, luminosos, mas bastante salientes, o que chamava a atenção. Falava acentuando fortemente a letra “o”. Seu hábito consistia num longo gabão avermelhado, de pano grosseiro, como para os prisioneiros, com uma corda à guisa de cinturão. O pescoço e o peito estavam nus. Uma camisa de pano muito grosso, quase enegrecida, que ele usava durante meses, aparecia sob o gabão. Dizia-se que carregava consigo correntes de 35 libras. Estava calçado com velhos sapatos quase desfeitos.

— Acabo de chegar do pequeno mosteiro de Obdorsk, de São Silvestre — respondeu humildemente o visitante, observando o asceta com seus olhos vivos e curiosos, mas um pouco inquietos.

— Estive no teu São Silvestre. Vivi ali. Passa ele bem?

O monge perturbou-se.

— Vós sois gente de poucas luzes! Que jejum observais?

— Nossa mesa é regulada segundo o antigo uso monacal. Durante a Quaresma, nas segundas, quartas e sextas, não se servem alimentos. Nas terças e quintas, dá-se à comunidade pão branco, uma tisana com mel, amoras silvestres ou couves salgadas, e farinha de aveia. No sábado, sopa de couve, aletria com ervilhas, trigo-sarraceno com azeite de cânhamo. No domingo, acrescentam-se à sopa peixe seco e trigo-sarraceno. Na Semana Santa, da segunda ao sábado à noite, pão, água e somente legumes não cozidos, em quantidade moderada; ainda assim não se deve comer todos os dias, mas conformar-se com as instruções dadas para a primeira semana da Quaresma. Na Sexta-Feira Santa, jejum completo; no sábado, até as três horas da tarde, quando se pode tomar um pouco de pão e de água, e beber um copo de vinho. Na Quinta-Feira Santa, comemos alimentos cozidos sem manteiga, bebemos vinho e observamos o uso de alimentos secos. Porque já o Concílio de Laodiceia se exprime assim a respeito da Quinta-Feira Santa: “Não convém romper o jejum na quinta-feira da última semana e desonrar, assim, a Quaresma inteira.” Eis o que se passa entre nós. Mas que é isso em comparação convosco, eminente padre — acrescentou o monge que havia retomado coragem —, porque o ano inteiro, mesmo na Páscoa, vós só vos nutris de pão e água? O pão que consumimos em dois basta-vos para a semana inteira. Vossa abstinência é verdadeiramente maravilhosa.

— E os cogumelos? — perguntou de súbito o padre Fierapont.

— Os cogumelos? — repetiu o monge com espanto.

— Justamente. Passo sem o pão deles, não tenho nenhuma necessidade dele, mesmo na floresta; nutro-me de cogumelos ou de bagas, eles não podem passar sem pão, estão pois ligados ao demônio. Agora, pretendem os pagãos que é inútil jejuar tanto. Tal é o raciocínio deles, arrogante e ímpio.

— Ai, sim! — suspirou o monge.

— Viste os diabos em casa deles? — perguntou o padre Fierapont.

— Em casa de quem? — informou-se timidamente o monge.

— No ano passado, fui à casa do padre abade, em Pentecostes. Depois não voltei mais lá. Vi um diabo escondido no peito de um monge, sob a batina, aparecendo somente os chifres; um segundo tinha um no bolso, espiando, de olhos vivos. Eu lhe causava medo; um terceiro dava asilo a um diabinho em suas entranhas impuras, enfim outro carregava um, suspenso a seu pescoço, agarrado, sem o ver.

— Vós... víeis? — perguntou o monge.

— Digo-te que vejo, vejo através. Ao deixar o padre abade, avistei um diabo que se escondia de mim atrás da porta, era de bela estatura, um archin e meio ou mais, a cauda espessa, fulva, comprida; a ponta ficou presa na fenda, não hesitei e fechei violentamente a porta, apertando o rabo dele. O meu diabo pôs-se a gemer e debater-se. Fiz sobre ele três vezes o sinal da cruz. Arrebentou ali mesmo como uma aranha esmagada. Deve ter apodrecido num canto; fede, mas eles não o veem nem o sentem. Há um ano que não vou mais lá. A ti somente, como estranho, revelo isso.

— Vossas palavras são terríveis! Dizei-me, eminente e bem-aventurado padre, é verdade o que relatam de vós nas terras mais longínquas, que estaríeis em relação permanente com o Espírito Santo?

— Ele desce por vezes sobre mim.

— Sob que forma?

— A forma dum pássaro.

— O Espírito Santo sob a forma de uma pomba?

— Isso é o Espírito Santo, sim, mas falo do Santo Espírito, que é diferente. Pode descer sob a forma dum outro pássaro, uma andorinha ou um pintassilgo, por vezes um melharuco.

— Como podeis reconhecê-lo?

— Ele fala.

— Como fala ele, em que língua?

— Na língua humana.

— E que vos diz?

— Hoje, anunciou-me a visita de um imbecil que me faria perguntas ociosas. Monge, és bem curioso.

— Vossas palavras são temíveis, bem-aventurado e venerando padre. — O monge abanava a cabeça, mas a desconfiança aparecia em seus olhos medrosos.

— Vês aquela árvore? — perguntou, após uma pausa, o padre Fierapont.

— Vejo-a, bem-aventurado padre.

— Para ti, é um olmo; mas para mim, outro quadro.

— Qual? — E o monge esperou ansiosamente.

— Vês aqueles dois ramos? De noite, por vezes, são os braços do Cristo que se estendem para mim e me procuram, vejo-o claramente e estremeço. Oh, é terrível!

— Por que terrível, se é o próprio Cristo?

— Ele me agarrará e me levará.

— Vivo?

— Não sabes então nada da glória de Elias? Ele vos agarra e vos leva.

Depois dessa conversa, o monge de Obdorsk regressou à cela que lhe haviam designado; estava bastante perplexo, mas seu coração o inclinava mais para o padre Fierapont que para o padre Zósima. Nosso monge estimava mais que tudo o jejum e não lhe causava surpresa que um grande jejuador como o padre Fierapont visse maravilhas. Suas palavras tinham ar de absurdas, evidentemente, mas Deus sabia o que elas significavam e muitas vezes os inocentes, por amor do Cristo, falam e agem duma maneira ainda mais estranha. Sentia prazer em crer sinceramente no diabo e em seu rabo preso, não somente no sentido alegórico, mas literal. Além do mais, desde antes de sua chegada ao mosteiro, tivera grande prevenção contra o “starietismo”, que considerava, segundo muitos outros, como uma inovação nociva. Durante o dia passado no mosteiro, pudera notar o murmúrio secreto de certos grupos frívolos, opostos àquela instituição. Além disso, era uma natureza insinuante e sutil, testemunhando por tudo grande curiosidade. Assim, a notícia do novo “milagre” realizado pelo stáriets Zósima mergulhou-o numa profunda perplexidade. Mais tarde, Aliócha lembrou-se, entre os religiosos que se comprimiam em torno do stáriets e de sua cela, da frequente aparição daquele hóspede curioso que se intrometia em toda parte, de ouvidos atentos e interrogando todo mundo. Não lhe deu atenção então... Tinha outra grande coisa na cabeça: o stáriets, que voltara a deitar-se, sentindo lassitude, lembrou-se dele ao despertar e reclamou sua presença. Aliócha acorreu. Em redor do moribundo não havia então senão o padre Paísi, o padre Ióssif e o noviço Porfíri. O velho, fixando Aliócha com seus olhos fatigados, perguntou-lhe:

— Será que os teus te esperam, meu filho?

Aliócha ficou embaraçado.

— Não têm eles necessidade de ti? Prometeste a alguém ir vê-lo hoje?

— Prometi a meu pai... a meus irmãos... a outras pessoas também...

— Está vendo? Vi imediatamente e não te aflijas. Fica sabendo, não morrerei sem ter pronunciado diante de ti minhas supremas palavras aqui na Terra. É a ti que as legarei, meu caro filho, porque sei que me amas. E agora vá cumprir tua promessa.

Aliócha submeteu-se logo, se bem que lhe custasse afastar-se. Mas a promessa de ouvir as derradeiras palavras de seu mestre, como um legado pessoal, arrebatava-o de alegria. Apressava-se, a fim de poder voltar mais depressa, depois de ter terminado tudo. Justamente, o padre Paísi lhe dirigiu, antes de sua partida, palavras que o impressionaram profundamente. Foi depois de haverem deixado a cela.

— Lembra-te sempre, rapaz — começou o padre, sem preâmbulos —, de que a ciência do mundo, tendo-se desenvolvido neste século sobretudo, dissecou nossos livros santos e, após uma análise impiedosa, nada deixou subsistir. Mas dissecando as partes, perderam de vista o conjunto, e sua cegueira é de causar espanto. O conjunto se ergue diante dos olhos deles, tão inabalável quanto antes, e o inferno não prevalecerá contra ele. Será que o Evangelho não tem 19 séculos de existência, não vive ainda agora nas almas dos indivíduos e nos movimentos das massas populares? Subsiste mesmo, sempre inabalável, nas almas dos ateus destruidores de toda crença! Porque os que renegaram o cristianismo e se revoltam contra ele, esses mesmos permaneceram no íntimo à imagem do Cristo, porque nem sua sabedoria nem sua paixão puderam criar outro modelo para o homem superior ao indicado outrora pelo Cristo. As tentativas nesse sentido não passaram de monstruosidades. Lembra-te disso sobretudo, rapaz, pois teu stáriets moribundo te envia para o mundo. Talvez lembrando-te desse grande dia, não esqueças minhas palavras, dirigidas para teu bem, porque és jovem, as tentações do mundo são grandes e não tens força para suportá-las. E agora vai, pobre órfão.

Ao terminar, o padre Paísi deu-lhe sua bênção. Refletindo nessas palavras imprevistas, compreendeu Aliócha que encontrara novo amigo e um guia cheio de amor naquele monge até então rigoroso e rude para com ele, como se o stáriets Zósima lhe houvesse legado isso ao morrer. “Talvez se hajam entendido entre si”, pensou Aliócha. A dissertação que acabara de ouvir atestava somente o zelo do padre Paísi: apressava-se em armar aquele jovem espírito para a luta contra as tentações e em preservar aquela jovem alma que lhe legavam, elevando em torno dela o baluarte mais sólido que pôde imaginar.

 

II


Aliócha em casa de seu pai


Aliócha começou por ir em primeiro lugar à casa de seu pai. Ao aproximar-se, lembrou-se da recomendação feita na véspera, de entrar sem que Ivan ficasse sabendo. “Por quê? — perguntou a si mesmo. — Se meu pai quer fazer-me uma confidência, é essa uma razão para entrar furtivamente? Queria, sem dúvida, em sua emoção, dizer-me outra coisa ontem e não pôde”, decidiu ele. No entanto, sentiu-se satisfeito ao saber de Marfa Ignátievna, que lhe abriu a porta do jardim (Grigóri estava deitado, doente), que Ivan saíra havia duas horas.

— E meu pai?

— Levantou-se, está tomando o café — respondeu a velha.

Aliócha entrou. O velho, sentado à mesa, de chinelos e com um casaco bastante surrado, examinava contas para se distrair, sem grande interesse de resto. Encontrava-se sozinho na casa, tendo Smierdiákov saído para comprar provisões. Sua atenção estava alhures. Se bem que se tivesse levantado bem cedo e bancado de corajoso, parecia fatigado, fraco. A testa, onde, durante a noite, se haviam formado equimoses, estava enrolada num lenço de seda vermelha. O nariz, muito inchado, dava ao rosto uma expressão particularmente má, irritada. O velho dava-se conta disso e acolheu Aliócha com um olhar pouco amigável.

— O café está frio — disse ele num tom seco —, não te ofereço. Hoje, meu caro, tenho apenas uma magra sopa de peixe e não convido ninguém. Por que vieste?

— Vim saber notícias suas — declarou Aliócha.

— Sim. Aliás, tinha-te pedido ontem que viesses. Tolices tudo isso. Tu te incomodaste em vão. Sabia bem que haverias de vir...

Suas palavras refletiam o sentimento mais hostil. Entretanto, havia-se levantado e examinava ansiosamente seu nariz no espelho (pela quadragésima vez, talvez, desde a manhã). Arranjou com extremo cuidado seu lenço vermelho na testa.

— O vermelho assenta melhor, o branco lembra imediatamente hospital — observou ele, num tom sentencioso. — Pois bem! Que há de novo? Como vai teu stáriets?

— Está muito mal, morrerá talvez hoje — disse Aliócha; mas o pai não lhe prestou atenção.

— Ivan saiu — disse ele, de repente. — Esforça-se por furtar a noiva de Mítia. Por isso é que permanece aqui — acrescentou com raiva, a boca contraída, olhando Aliócha.

— Ele mesmo lhe disse isso?

— Desde muito tempo, há já três semanas. Não foi para assassinar-me às ocultas que ele veio; tem, pois, um fito.

— Como! Por que diz isso? — perguntou Aliócha, com angústia.

— Não pede dinheiro, é verdade, aliás, não terá nada. Eu, meu caríssimo Alieksiêi Fiódorovitch, tenho a intenção de viver o máximo de tempo possível, toma nota disso; assim, tenho necessidade de todo o meu dinheiro, e, quanto mais avançar em idade, mais precisarei — continuou Fiódor Pávlovitch, com as mãos nos bolsos do casaco manchado de corante amarelo. — Agora, aos 55 anos, conservei minha força viril, e conto bem que isso durará ainda vinte anos; ora, envelhecerei, tornar-me-ei repulsivo, as mulheres não virão mais de boa vontade; então, precisarei de dinheiro. Eis por que, agora, amealho o máximo possível, para mim só, meu caro filho Alieksiêi Fiódorovitch, fica sabendo bem, porque quero viver até o fim na libertinagem. É a existência mais agradável; todo mundo deblatera contra ela e todo mundo nela vive, mas às ocultas, e eu, em pleno dia. É por causa de minha franqueza que todos os canalhas me caíram em cima. Quanto a teu paraíso, Alieksiêi Fiódorovitch, fica sabendo que não o quero, é até mesmo inconveniente para um homem às direitas, se é que existe. A gente dorme para não mais despertar, eis minha ideia. Manda rezar uma missa por mim, se quiseres, senão, que o diabo vos leve! Eis minha filosofia. Ontem, Ivan falou bem a este respeito; no entanto, estávamos bêbedos. É um falador desprovido de erudição... não tem instrução, cala-se e ri da gente em silêncio, eis todo o seu talento.

Aliócha escutava sem dizer palavra.

— Por que não me fala ele? E quando fala, faz-se malicioso; é um miserável o teu Ivan! Casarei imediatamente com Grúchenhka, se quiser. Porque com dinheiro basta querer. Alieksiêi Fiódorovitch, tem-se tudo. É disto que Ivan tem medo; vigia-me para impedir meu casamento e com esse fito impele Mítia a fazer dela sua esposa; dessa maneira, entende preservar-me de Gruchka (na esperança de herdar, se não me casar com ela!); por outra parte, de Mítia se casar com ela, toma-lhe Ivan sua rica noiva, eis seu cálculo! É um miserável o teu Ivan!

— Como está o senhor irascível! É o resultado de ontem; o senhor deveria deitar-se — disse Aliócha.

— Tuas palavras não me irritam — observou o velho —, ao passo que vindas de Ivan me zangariam; somente contigo tenho tido bons momentos, porque sou mau.

— O senhor não é mau, o senhor tem é o espírito corrompido — sorriu Aliócha.

— Pois seja; eu queria mandar prender aquele bandido do Mítia e agora não sei que partido tomar. Sem dúvida, em nosso tempo, passa por preconceito respeitar pai e mãe; entretanto, as leis não permitem ainda arrastar um pai pelos cabelos, bater-lhe no rosto com golpes de botas, na própria casa e ameaçá-lo, diante de testemunhas, de vir liquidá-lo. Se eu quisesse, domá-lo-ia e poderia mandá-lo prender por causa da cena de ontem.

— Então, não quer dar queixa?

— Ivan dissuadiu-me disso. Zombo de Ivan, mas há uma coisa...

Inclinou-se para Aliócha e continuou num tom confidencial:

— Se mandar prender o canalha, ela ficará sabendo e correrá para ele. Mas se souber que ele quase me mata, a mim, débil velho, abandoná-lo-á talvez e virá ver-me... Tal é seu caráter, só age contraditoriamente. Conheço-o a fundo! Não queres conhaque? Toma café frio, servir-te-ei um quarto de cálice, isso dá bom gosto.

— Não, obrigado. Levarei este pão, se o permitir — disse Aliócha, pegando um pãozinho francês de três copeques, que meteu no bolso da batina. — O senhor não deveria beber mais conhaque — aconselhou, timidamente, lançando uma olhadela furtiva para o velho.

— Tens razão, isso irrita. Mas só um copinho...

Abriu o armário, serviu-se um copinho, tornou a fechar o armário e a pôr a chave no bolso.

— Isto basta, não arrebentarei por causa dum copinho...

— Ei-lo melhor!

— Hum! Gosto de ti, mesmo sem conhaque e sou um canalha para os canalhas! Ivan não parte para Tchermachniá porque tem intenção de espionar-me. Quer saber quanto darei a Grúchenhka, se ela vier. Todos uns miseráveis! Aliás, renego Ivan, não o compreendo. Donde vem ele? Sua alma não é como a nossa. Conta com minha herança. Mas não deixarei testamento, fica sabendo. Quanto a Mítia, eu o esmagarei como a uma barata; faço-as arrebentar à noite sob meu chinelo; teu Mítia arrebentará da mesma maneira. Digo “teu” Mítia porque o amas, mas isso não me dá medo. Se fosse Ivan que o amasse, temeria por mim mesmo. Mas Ivan não ama ninguém, não é dos nossos; as pessoas como ele, meu caro, não são semelhantes a nós, são poeira... Se o vento sopra, essa poeira se levanta... Foi uma fantasia que se apoderou de mim ontem, quando te disse que viesses hoje; queria informar-me por meio de ti a respeito de Mítia; será que, em troca de mil ou dois mil rublos, aquele tratante, aquele bandido, consentiria em ir-se daqui por cinco anos, ou melhor, por 35 anos, e em renunciar a Grúchenhka? Hem?

— Eu... eu lhe perguntarei — murmurou Aliócha. — Por três mil rublos, talvez ele...

— Não, senhor! Não é preciso perguntar nada agora! Mudei de ideia. Foi um capricho que me deu ontem. Não darei nada, nem um níquel, eu mesmo tenho necessidade de meu dinheiro. (O velho teve um gesto expressivo.) De qualquer maneira, esmagá-lo-ei como a uma barata. Não lhe digas nada, senão vai imaginar coisas. Mas tu mesmo nada tens a fazer em minha casa, vá. E sua noiva, Katierina Ivânovna, que sempre ocultou de mim tão cuidadosamente, casar-se-á com ela ou não? Estavas ontem em casa dela, certo?

— Ela não quer abandoná-lo por preço nenhum.

— Eis os indivíduos a quem essas ternas senhoritas amam: farristas, malandros! Não valem nada essas pálidas criaturas. Que ideia! Pois bem, se tivesse a juventude dele e meu corpo de então (porque aos 28 anos era melhor do que ele), lograria o mesmo êxito. Canalha, sim!... Mas não terá Grúchenhka, não a terá... Eu o esmagarei...

Tornou-se de novo colérico ao proferir as últimas palavras.

— Vá também, nada tens a fazer em minha casa hoje — disse, secamente.

Aliócha aproximou-se dele para despedir-se e beijou-o no ombro.

— Por quê? — espantou-se o velho. — Nós nos tornaremos a ver, ou pensas que é a derradeira vez?

— Absolutamente, foi por acaso...

— Eu também... digo isso por dizer... — declarou o velho, fitando-o. — Escuta, escuta — gritou ele às costas de Aliócha —, volta em breve, haverá uma sopa de peixe famosa, não como hoje. Vem amanhã, ouviste?

Assim que Aliócha saiu, voltou o velho ao armário e tomou meio copo.

— Basta — murmurou ele, resfolegando. Tornou a fechar o armário, repôs a chave no bolso; depois, já sem forças, foi estender-se sobre o leito onde adormeceu imediatamente.

 

III


O encontro com os colegiais


“Felizmente meu pai me fez perguntas a respeito de Grúchenhka”, dizia a si mesmo Aliócha, dirigindo-se para a casa da senhora Khokhlakova. “Teria sido preciso contar-lhe o encontro de ontem com ela.” Pensava com pesar que, durante a noite, os adversários haviam retomado forças, que seus corações estavam de novo endurecidos. “Meu pai está irritado e cheio de maldade, continua ancorado em sua ideia. Dimítri também se refirmou e deve ter um plano... É absolutamente preciso que o encontre hoje...”

Mas as reflexões de Aliócha foram interrompidas por um incidente que o impressionou, malgrado a pouca importância. Ao aproximar-se da rua de São Miguel, paralela à rua Grande, da qual só estava separada por um riacho (nossa cidade é cortada por ele), avistou lá embaixo, diante do passadiço, um pequeno grupo de colegiais, meninos de nove a 12 anos no máximo. Voltavam para suas casas após as aulas, carregando as sacolas a tiracolo ou amarradas nas costas por meio de correias; uns tinham apenas uma jaqueta, outros, sobretudos; alguns calçavam botas dessas pregueadas, com as quais gostam de exibir-se os meninos mimados por pais abastados. O grupo discutia com animação, parecia manter conselho. Aliócha interessava-se sempre pelas crianças que encontrava (era o caso em Moscou) e, muito embora preferisse os bebês de três anos, os escolares de dez e de 11 lhe agradavam muito. Assim, malgrado sua preocupação, quis abordá-los, entrar em conversa com eles. Ao aproximar-se, observava-lhe os rostos vermelhos e notou que todos os meninos tinham uma pedra na mão, até mesmo duas. Do outro lado do riacho, a cerca de trinta passos, mantinha-se, encostado a uma paliçada, um escolar, com a sacola sobre o quadril, parecendo ter no máximo uns dez anos, pálido, de ar doentio, com olhos negros que cintilavam. Esquadrinhava com o olhar os seis colegiais, seus camaradas, com os quais parecia estar brigado. Aliócha avançou e, dirigindo-se a um menino de cabelos cacheados, louro, corado, de jaqueta preta, observou, olhando-o:

— Quando eu tinha tua idade, carregava-se a sacola do lado esquerdo, a fim de alcançá-la com a mão direita; mas a tua está do lado direito, não deve ser cômodo.

Sem nenhuma premeditação, começara Aliócha com essa observação prática; um adulto não pode proceder de outra forma, se quer ganhar a confiança de uma criança e sobretudo dum grupo de crianças. Era preciso começar seriamente, praticamente, para ficar em pé de igualdade. Instintivamente, dava-se Aliócha conta disso.

— Ele é canhoto — respondeu logo outro menino de 11 anos, de ar resoluto.

Os cinco outros fitavam Aliócha.

— Ele atira pedras com a mão esquerda — notou um terceiro.

No mesmo instante, foi lançada uma pedra contra o grupo, roçando o canhoto, mas foi perder-se adiante, embora atirada com habilidade e vigor. Fora lançada pelo menino colocado do outro lado do riacho.

— Duro com ele, acerta bem, Smúrov! — gritaram todos. O canhoto não se fez de rogado e retribuiu imediatamente; não teve êxito e sua pedra bateu no chão. O adversário ripostou com um seixo que atingiu Aliócha bastante rudemente no ombro. Via-se a trinta passos que aquele garoto tinha os bolsos do sobretudo cheios de pedras.

— Foi no senhor, no senhor; fez pontaria de propósito no senhor. Porque o senhor é um Karamázov! — exclamaram os meninos, desatando a rir. — Vamos, todos ao mesmo tempo, contra ele, fogo!

Seis pedras voaram juntas. Atingido na cabeça, o garoto caiu, mas para se levantar logo e responder com encarniçamento. Dos dois lados houve um bombardeio ininterrupto; muitos, no grupo, tinham também os bolsos cheios de projetis.

— Mas o que é isso? Não têm vergonha, meus amigos? Seis contra um! Vão matá-lo! — exclamou Aliócha.

Correu para a frente, a fim de se expor aos projetis, protegendo assim o garoto do outro lado do riacho. Três ou quatro pararam por um minuto.

— Foi ele quem começou! — gritou com voz irritada um menino de blusa vermelha; é um bandido; ainda há pouco feriu, na aula, Krasótkin[ 82 ] com um canivete, correu sangue, Krasótkin não quis fazer queixa; é preciso dar uma surra nele...

— Mas por quê? Precisam mesmo persegui-lo?

— Ele atirou outra pedra nas costas do senhor. Ele o conhece — gritaram os meninos. — É contra o senhor que está fazendo pontaria agora. Vamos, todos de novo contra ele, não deixe de acertar, Smúrov!... O bombardeio recomeçou, desta vez implacável. O garoto, sozinho, recebeu uma pedrada no peito; lançou um grito, pôs-se a chorar, fugiu pela subida para a rua de São Miguel. No grupo vociferava-se: “Ah! Ele teve medo, fugiu, aquele “esfregão de tília!”

— O senhor ainda não sabe, Karamázov, como ele é ruim; seria pouco matá-lo — repetiu o menino de jaqueta, de olhos ardentes, e que parecia ser o mais velho.

— É um linguarudo? — perguntou Aliócha.

Os meninos trocaram olhares com ar zombeteiro.

— O senhor vai pela rua de São Miguel? — continuou o mesmo. — Então, alcance-o... Veja, parou de novo; espera e olha para o senhor.

— Olha para o senhor, olha para o senhor! — repetiram os meninos.

— Pergunte-lhe então se ele gosta de um esfregão de tília desmanchado. Entendeu? Pergunte assim.

Houve então uma explosão geral de gargalhadas. Aliócha e os meninos cruzavam olhares.

— Não vá lá, ele o ferirá — gritou, solícito, Smúrov.

— Meus amigos, não farei a ele a pergunta a respeito do esfregão de tília, porque é com isso que vocês o maltratam, mas me informarei com ele do motivo pelo qual vocês o odeiam tanto...

— Informe-se, informe-se — gritaram os meninos, rindo-se.

Aliócha transpôs o passadiço e subiu a ladeira ao longo da paliçada, diretamente para o lado de seu agressor.

— Atenção — gritaram-lhe —, ele não tem medo do senhor e vai atingi-lo à traição, como fez com Krasótkin.

O menino esperava-o imóvel. Chegando bem perto, encontrou-se Aliócha diante de um menino de nove anos, fraco, raquítico, de rosto oval, pálido, magro, com grandes olhos escuros que o olhavam cheios de ódio. Vestia um velho sobretudo bastante gasto e muito curto. Seus braços nus saíam das mangas. Havia um grande remendo no joelho direito da calça e, dissimulado com tinta, um buraco no sapato do pé direito, no lugar do dedo grande. Os bolsos do sobretudo estavam cheios de pedras. Aliócha parou a dois passos, olhando-o com ar interrogador. O garoto, adivinhando pelos olhos de Aliócha que não tinha este intenção de bater-lhe, retomou a coragem e falou em primeiro lugar:

— Eu estava sozinho contra seis... Hei de matá-los todos — disse ele, com olhar faiscante.

— Uma pedrada deve ter-lhe feito bastante mal — observou Aliócha.

— Mas eu acertei bem na cabeça de Smúrov! — replicou ele.

— Disseram-me que você me conhecia e atirou-me pedras de propósito — disse Aliócha.

O menino olhava-o com um olhar sombrio.

— Não o conheço. Você me conhece? — continuou Aliócha.

— Deixe-me em paz! — gritou, de súbito, o menino com voz irritada, mas sem sair de seu lugar, como na expectativa de alguma coisa, o olhar hostil.

— Está bem, vou-me embora — disse Aliócha —, mas não o conheço e não quero importuná-lo. No entanto, seus colegas me disseram como deveria eu fazer. Adeus.

— Seu fradeco! — gritou o garoto, acompanhando Aliócha com o mesmo olhar cheio de ódio e provocante; pôs-se na defensiva, acreditando que Aliócha iria lançar-se contra ele, mas aquele voltou-se, olhou-o e seguiu seu caminho. Não havia dado três passos quando recebeu nas costas o mais grosso dos seixos que enchiam o bolso do sobretudo.

— Como? Por trás? É então verdade o que eles dizem, que você ataca como traidor?

Aliócha voltou-se; visado no rosto, teve tempo de prevenir-se e novo projetil atingiu-o no cotovelo.

— Não tem vergonha? Que lhe fiz eu!? — exclamou ele.

O garoto esperava, silencioso e agressivo, persuadido de que, daquela vez, Aliócha lhe cairia em cima; vendo que sua vítima não se movia, ficou furioso como uma pequena fera e avançou. Antes que Aliócha tivesse podido fazer um movimento, o diabrete agarrou-lhe a mão esquerda e mordeu-lhe cruelmente um dedo. Aliócha soltou um grito de dor, esforçando-se por livrar-se. O garoto largou-o por fim, recuando para a distância anterior. A mordidela, perto da unha, era profunda; o sangue corria. Aliócha tirou o lenço, enrolando com ele apertadamente a mão ferida. Isso levou cerca de um minuto. Entretanto o menino esperava. Aliócha pousou sobre ele um olhar calmo.

— Está bem — disse ele —, veja como me mordeu profundamente. Isso basta, creio. Agora, diga-me, que lhe fiz eu?

O menino fitou-o, surpreso.

— Não o conheço absolutamente e vejo-o pela primeira vez — prosseguiu Aliócha, com a mesma calma —, mas devo ter-lhe feito alguma coisa, do contrário não me teria você agredido por coisa nenhuma. Vamos, diga-me que lhe fiz eu e que culpa cometi para com você?

Como resposta, o menino pôs-se a soluçar e fugiu. Aliócha seguiu-o lentamente pela rua de São Miguel e avistou-o ainda por muito tempo, correndo e chorando, sem se voltar. Prometeu a si mesmo, desde que tivesse tempo, tornar a encontrá-lo, para esclarecer aquele enigma.

 

Em casa das senhoras Khokhlakovi


Não demorou a chegar à residência da senhora Khokhlakova, cuja casa de pedra, de um andar, era uma das mais belas de nossa cidade. Se bem que vivesse ela a maior parte do tempo numa propriedade situada em outra província, e em sua casa de Moscou, possuía uma em nossa cidade, que lhe vinha da família. De resto, a maior de suas três propriedades encontrava-se em nosso distrito, mas só raramente havia ela vindo à nossa província. Acorreu ao encontro de Aliócha no vestíbulo.

— Recebeu minha carta a propósito do novo milagre? — perguntou ela, nervosamente.

— Sim, recebia-a.

— Fê-la circular, mostrou-a a todos? Ele restituiu um filho à mãe!

— Morrerá hoje — disse Aliócha.

— Sei. Oh! Como gostaria de falar de tudo isso, com você ou com outro! Não, com você, com você! E dizer que não posso vê-lo! É pena. Toda a cidade está emocionada, todos estão na expectativa. A propósito... sabe que Katierina Ivânovna acha-se neste momento em nossa casa?

— Ah, que feliz encontro! — exclamou Aliócha. — Ontem recomendou-me que viesse vê-la sem falta.

— Sei, sei. Contaram-me, pormenorizadamente, o que se passou ontem... aquela cena horrível com aquela... criatura. C’est tragique! No lugar dela, não sei o que teria feito. E seu irmão, Dimítri Fiódorovitch, que homem, meu Deus! Alieksiêi Fiódorovitch, estou-me atrapalhando; imagine que seu irmão está aqui, isto é, não aquele terrível personagem, mas o outro, Ivan Fiódorovitch. Está tendo uma conversa solene com Katierina Ivânovna... Se você soubesse o que se passa entre eles, é terrível, é dilacerante, é um conto inverossímil; atormentam-se com prazer, eles mesmos o sabem e disso extraem um gozo acre. Eu o esperava, tinha sede de você! Sobretudo, não posso suportar isso. Vou contar-lhe tudo, mas há outra coisa, essencial. Ah! Tinha esquecido que era o essencial. Diga-me, por que Lisa está com uma crise nervosa? Ficou assim logo que foi informada de sua chegada.

— Mamãe, é a senhora quem está agora numa crise, e não eu — gorjeou de repente a voz de Lisa, que vinha do quarto vizinho, através da porta entreaberta. A abertura era exígua, e a voz aguda, tal qual como quando se tem uma violenta vontade de rir e se faz esforço para reprimi-la. Aliócha notara aquela fenda, por onde Lisa devia examiná-lo de sua cadeira, sem que ele pudesse dar-se conta disso.

— Pode bem dar-se, Lisa, que esteja eu com uma crise, diante de teus caprichos, e, no entanto, Alieksiêi Fiódorovitch, esteve ela bastante doente a noite inteira: febre, gemidos! Com que impaciência esperei o raiar do dia e a chegada do doutor Herzenstube! Diz ele que não compreende nada, que é preciso esperar. Quando vem, diz sempre. Assim que o senhor entrou, lançou ela deu um grito e quis ser transportada para seu antigo quarto...

— Mamãe, eu não sabia absolutamente que ele vinha; não foi para evitá-lo que quis passar para meu quarto.

— Não é verdade, Lisa, Iúlia tocaiava a chegada de Alieksiêi Fiódorovitch e correu a anunciar-te a chegada dele.

— Querida mamãezinha, não está direito isso, de sua parte; se quer dizer algo de mais espirituoso, diga a nosso caro visitante, Alieksiêi Fiódorovitch, que demonstrou ele sua falta de espírito, somente com decidir vir à nossa casa, depois do dia de ontem, e apesar de toda a gente zombar dele.

— Lisa, vais longe demais, e asseguro-te que recorrerei a medidas rigorosas. Ninguém zomba dele, estou tão contente por ter ele vindo! É-me necessário, indispensável. Oh! Alieksiêi Fiódorovitch, quanto sou infeliz!

— Que tem então a senhora, mamãezinha?

— O que me mata, Lisa, são teus caprichos, tua inconstância, tua doença, essa terrível noite de febre, aquele horrendo, aquele eterno Herzenstube, enfim, tudo, tudo... E depois esse milagre! Oh, como ele me impressionou, me transtornou, querido Alieksiêi Fiódorovitch! E aquela tragédia no salão, que não posso suportar, afirmo-lhe, é impossível. Uma comédia, talvez, e não uma tragédia. Diga-me, o stáriets Zósima viverá até amanhã? Oh, meu Deus! Que é que me acontece? Fecho os olhos a cada instante e digo a mim mesma que tudo é absurdo, absurdo.

— Ficar-lhe-ia muito grato — interrompeu-a de repente Aliócha — se me desse um pedacinho de pano para pensar meu dedo: feri-me e está-me doendo muito.

Aliócha descobriu seu dedo mordido, o lenço cheio de sangue. A senhora Khokhlakova lançou um grito, fechou os olhos.

— Meu Deus! Que ferimento, é horrível!

Assim que Lisa viu o dedo de Aliócha através da fenda, escancarou a porta.

— Venha, venha ter comigo — disse ela, com uma voz imperiosa —, agora, chega de tolices! Oh! Deus! Por que ficou tanto tempo sem nada dizer? Teria ele podido perder todo o seu sangue, mamãe! Onde e como lhe aconteceu isso? Antes de tudo água, água! É preciso lavar a ferida, mergulhar o dedo na água fria para fazer cessar a dor e conservá-lo ali muito tempo... Depressa, água, mamãe, numa tigela! Mais depressa, vamos — disse ela, com um movimento nervoso. Estava bastante amedrontada; a ferida de Aliócha consternava-a.

— Não será preciso ir chamar Herzenstube!? — exclamou a mãe.

— Mamãe, a senhora me mata. Seu doutor virá para dizer que não compreende nada! Água, água, mamãe, pelo amor de Deus! Vá a senhora mesma estimular Iúlia que se retardou não sei onde; nunca pode chegar a tempo! Mais depressa, mamãe, ou eu morro... morro...

— Mas é uma coisa de nada! — exclamou Aliócha, espantado com aquele terror.

Iúlia acorreu com a água. Aliócha mergulhou nela o dedo.

— Mamãe, suplico-lhe, traga um pouco de gaze e daquela água turva para cortes, como é que se chama? Temos dela, temos dela... mamãe, a senhora sabe onde está o frasco, em seu quarto de dormir, no armário à direita; há um grande frasco e esparadrapo.

— Imediatamente, Lisa, mas não grites, não te enerves. Tu vês com que coragem Alieksiêi Fiódorovitch suporta sua dor. Onde se feriu o senhor assim, Alieksiêi Fiódorovitch?

Ela saiu imediatamente. Lisa só esperava por isso.

— Antes de tudo, responda à minha pergunta — disse ela rapidamente. — Onde pôde ferir-se assim? Depois falaremos de outra coisa. Vamos!

Adivinhando que o tempo se tornava precioso, Aliócha fez-lhe uma narrativa exata, se bem que resumida, de seu estranho encontro com os colegiais. Depois de havê-lo escutado, Lisa juntou as mãos.

— Como pode você, e ainda mais com esse hábito, andar às voltas com garotos!? — exclamou ela, encolerizada, como se tivesse direitos sobre ele. — Mas, afinal, não passa você mesmo de um garoto, o menor dentre eles. No entanto, não deixe de informar-se a respeito desse diabrete e conte-me tudo; deve haver nisso um segredo. Outra coisa agora. Poderia você, malgrado sua dor, falar discretamente a respeito de bagatelas, Alieksiêi Fiódorovitch?

— Mas, sim, aliás não me está doendo mais tanto.

— É porque seu dedo está dentro d’água. É preciso mudá-la imediatamente, ela esquentará. Iúlia, vá procurar um pedaço de gelo na adega e nova tigela com água. Já se foi ela, abordo o assunto. Meu querido Alieksiêi Fiódorovitch, queira entregar-me imediatamente minha carta, mamãe pode voltar dum minuto para outro, e eu não quero...

— Não a tenho comigo.

— Não é verdade, tem sim, estava certa de que você me daria essa resposta. Lamentei tanto a noite inteira aquela estúpida pilhéria! Entregue-me minha carta agora mesmo. Entregue-me!

— Deixei-a em casa!

— Você não pode tomar-me por uma meninota; depois da tola pilhéria de minha carta. Peço-lhe perdão! Mas traga-me; se verdadeiramente não está com você, traga-a hoje sem falta.

— Hoje é impossível, porque volto para o mosteiro e não tornarei a vê-la por dois dias, três ou quatro talvez, porque o stáriets Zósima...

— Quatro dias, que absurdo! Escute, riu muito de mim?

— Absolutamente.

— Por que então?

— Porque acreditei em você, absolutamente.

— Você me ofende!

— De modo algum. Pensei, imediatamente depois de ter lido, que isso se daria, porque desde que o stáriets tiver morrido, terei de deixar o mosteiro. Em seguida, acabarei meus estudos, farei meus exames e depois do prazo legal casar-nos-emos. Amá-la-ei bastante. Embora não tenha tido tempo de pensar nisso, refleti que não encontraria jamais uma mulher melhor que você, e o stáriets ordena que eu me case...

— Sou um monstro, fazem-me rodar numa cadeira! — objetou, rindo, Lisa, com as faces incendiadas.

— Eu mesmo a farei rodar, mas estou certo de que até lá estará você restabelecida.

— Mas você está louco! — proferiu Lisa, nervosamente. — Tirar tal conclusão duma simples brincadeira!... Aí vem mamãe, talvez muito a propósito. Mamãe, como se pode demorar tanto tempo?! E eis Iúlia que traz o gelo.

— Ah! Minha Lisa, não grites, não grites principalmente. Tenho a cabeça arrebentada... é culpa minha que hajas posto o esparadrapo noutro lugar?... Procurei, procurei... Suponho que o fizeste de propósito.

— Eu não podia adivinhar que ele chegaria com um dedo mordido, se soubesse tê-lo-ia feito de propósito. Minha querida mamãe, a senhora começa a dizer coisas muito espirituosas.

— Espirituosas? Pois seja. Mas quanta pena do dedo de Alieksiêi Fiódorovitch, Lisa, e de tudo isso! Oh! Meu caro Alieksiêi Fiódorovitch, não são os detalhes que me matam, nem um Herzenstube qualquer, mas tudo junto, tudo reunido, eis o que não posso suportar.

— Basta de tanto Herzenstube, mamãe — continuou Lisa, com um riso jovial —, dê-me mais depressa a gaze e a água. É muito simples, “água branca”, Alieksiêi, o nome me ocorre, um excelente remédio. Mamãe, imagine a senhora que ele brigou com garotos na rua e um deles lhe deu uma dentada; não é ele mesmo um garotinho e poderá ele casar-se, mamãe, depois dessa aventura? Porque, imagine a senhora, ele quer casar-se! Pode imaginá-lo casado? Não é de morrer de rir?

E Lisa ria, aquela sua risadinha nervosa, olhando maliciosamente para Aliócha.

— Mas como haveria ele de casar-se, Lisa, que coisa sem pé nem cabeça! É muito fora de propósito de tua parte... Aquele garoto poderia estar danado!

— Ah, mamãe, há crianças danadas?

— Por que não, Lisa? Nem que estivesse eu dizendo uma bobagem! Aquele garoto foi mordido por um cão danado, ele mesmo ficou danado, passa a morder alguém por sua vez. Como o curou bem ela, Alieksiêi Fiódorovitch! Eu não teria podido fazê-lo assim. Sente dor?

— Muito pouca.

— Não tem medo da água? — perguntou Lisa.

— Basta, Lisa, falei talvez demasiado apressadamente de raiva, a propósito daquele garoto, e tu concluis Deus sabe o quê. Katierina Ivânovna acaba de saber de sua chegada, Alieksiêi Fiódorovitch. Deseja ardentemente vê-lo.

— Ah! Mamãe, vá sozinha; ele não pode ainda, sofre demais.

— Não estou sofrendo absolutamente, posso muito bem ir — protestou Aliócha.

— Como? Vai-se embora? Ah, é assim?

— Pois bem, quando terminar, voltarei e poderemos tagarelar tanto quanto você queira. Tenho pressa de ver Katierina Ivânovna, porque desejo voltar o mais cedo possível para o mosteiro.

— Mamãe, leve-o bem depressa. Alieksiêi Fiódorovitch, não se dê ao trabalho de vir ter amigos depois de ter visto Katierina Ivânovna. Volte direto para seu mosteiro, é sua vocação! Eu estou com vontade de dormir, passei a noite em claro.

— Ah! Lisa, estás brincando, decerto, mas se dormisses deveras?

— Ficarei ainda uns três minutos, até mesmo cinco se você quiser — balbuciou Aliócha.

— Leve-o, pois, depressa, mamãe, é um monstro.

— Lisa, perdeste a cabeça. Vamos, Alieksiêi Fiódorovitch, está ela demasiado caprichosa hoje, tenho medo de enervá-la. Oh, que desgraça uma mulher nervosa, Alieksiêi Fiódorovitch! Mas talvez tenha ela realmente vontade de dormir. Como sua presença a inclinou depressa para o sono! Que coisa boa!

— Mamãe, como fala gentilmente a senhora! Dou-lhe um beijinho por isso.

— Eu também, Lisa. Escute, Alieksiêi Fiódorovitch — cochichou ela com um ar misterioso, importante, afastando-se com o rapaz —, não quero influenciá-lo nem erguer o véu; vá ver você mesmo o que se passa: é terrível. A comédia mais fantástica; ela ama seu irmão, Ivan Fiódorovitch e trata de persuadir-se de que está apaixonada por Dimítri Fiódorovitch. É horrível! Acompanho-o, e, se quiserem, esperarei.

 

V


O tumulto no salão


A conversa no salão tinha terminado; Katierina Ivânovna, superexcitada, mostrava, no entanto, um ar resoluto. Quando Aliócha e a senhora Khokhlakova entraram, Ivan Fiódorovitch levantava-se para partir. Estava um pouco pálido e seu irmão examinou-o com inquietação. Aliócha encontrava agora a solução para uma dúvida, para um enigma que o atormentava havia algum tempo. Por diversas vezes, desde um mês, tinham-lhe sugerido que seu irmão Ivan amava Katierina Ivânovna, e sobretudo que ele estava a “tomá-la” de Mítia. Até então parecera isso monstruoso a Aliócha, inquietando-o fortemente. Amava seus dois irmãos e aterrorizava-se com a rivalidade deles. Entretanto, Dimítri havia-lhe declarado na véspera que se sentia feliz por ter como rival seu irmão, que isso lhe prestava grande serviço. Em quê? Para se casar com Grúchenhka? Mas era essa resolução desesperada. Além disso, crera Aliócha firmemente, até a véspera à noite, no amor apaixonado e obstinado de Katierina Ivânovna por Dimítri, até a véspera à noite somente. Parecia-lhe também que ela não podia amar um homem como Ivan, mas que amava Dimítri tal como ele era, malgrado a estranheza de tal amor. Mas durante a cena com Grúchenhka, suas impressões tinham mudado. A palavra “dilacerante”, empregada havia pouco pela senhora Khokhlakova, perturbava-o, porque, na noite passada, semiacordado ao raiar do dia, pronunciara-a ele duas vezes, provavelmente, sob a impressão de seu sonho, a noite inteira revira aquela cena. Agora, a afirmação categórica da senhora Khokhlakova, de que a moça amava Ivan, que seu amor por Dimítri não passava de um logro, de um amor de empréstimo que ela se infligia por jogo, por “dilaceramento”, sob o império da gratidão, essa afirmação impressionava Aliócha: “Talvez seja verdade!” Mas então qual era a situação de Ivan? Aliócha adivinhava que um caráter como o de Katierina Ivânovna tinha necessidade de dominar; ora, aquele domínio não podia exercer-se senão sobre Dimítri e não sobre Ivan. Porque somente Dimítri (suponhamos que só por pouco tempo) poderia, enfim, submeter-se a ela “para sua felicidade” (isso teria desejado também Aliócha), mas Ivan não o poderia; aliás, essa submissão não o teria tornado feliz. Tal era a ideia que Aliócha fazia involuntariamente de Ivan. Era presa dessas hesitações e dessas reflexões ao entrar no salão. Outra ideia se impôs a ele de repente: “E se ela não amasse nem um nem outro?” Notemos que Aliócha tinha vergonha de tais pensamentos e censurava a si próprio, quando por vezes lhe sobrevinham, no derradeiro mês. “Que entendo eu do amor e das mulheres e como posso tirar tais conclusões?”, dizia a si mesmo, depois de cada conjetura. Entretanto a reflexão se impunha. Adivinhava que aquela rivalidade era capital no destino de seus dois irmãos. “Os reptis devorar-se-ão um ao outro”, dissera ontem Ivan em sua irritação, a propósito de seu pai e de Dimítri. Assim, era Dimítri um reptil aos olhos dele, há muito tempo talvez. Não seria depois que ele próprio viera a conhecer Katierina Ivânovna? Aquelas palavras haviam, sem dúvida, escapado a Ivan involuntariamente, mas eram por isso mesmo mais graves. Naquelas condições que paz, que paz poderia haver? Não eram, pelo contrário, novos motivos de ódio e de inimizade na família deles? Sobretudo, a quem deveria ele, Aliócha, lamentar? E que desejar a cada um deles? Amava-os igualmente, mas que desejar aos dois, entre tão temíveis contradições? Era caso de perder-se naquele labirinto, e o coração de Aliócha não podia suportar a incerteza, porque seu amor tinha sempre um caráter ativo. Incapaz de amar passivamente, sua afeição traduzia-se em uma ajuda. Mas para isso era preciso ter um fito, saber claramente o que convinha a cada um e ajudá-los em consequência. Em lugar desse fito, só havia confusão e embrulhada. Tinha-se falado em “dilaceramento”. Mas que poderia ele compreender, até mesmo desse dilaceramento? Não compreendia a primeira palavra daquele enigma!

Vendo Aliócha, Katierina Ivânovna disse vivamente a Ivan Fiódorovitch, que se levantara para partir:

— Um instante! Quero ter a opinião de seu irmão, em quem tenho plena confiança. Katierina Óssipovna, fique também — continuou ela, dirigindo-se à senhora Khokhlakova. Esta se colocou ao lado de Ivan Fiódorovitch, e Aliócha, em frente, perto da moça.

— Eis, meus amigos, os únicos que tenho no mundo — começou ela com uma voz ardente em que tremiam lágrimas de sincera dor, e Aliócha sentiu-se de novo atraído para ela. — Você, Alieksiêi Fiódorovitch, assistiu ontem àquela cena horrível, viu-me. Ignoro o que pensava de mim, mas sei que, nas mesmas circunstâncias minhas palavras e meus gestos seriam idênticos. Deve lembrar-se de ter-me contido... (Ao dizer isso, corou e seus olhos cintilaram.) Declaro-lhe, Alieksiêi Fiódorovitch, que não sei que partido tomar. Ignoro se o amo agora, a ele. Causa-me compaixão, o que é uma ruim marca de amor. Se o amasse, se continuasse a amá-lo, não seria compaixão, mas ódio o que sentiria eu agora...

Sua voz tremia, lágrimas brilhavam em seus cílios, Aliócha estava comovido; aquela moça era leal, sincera, pensava ele, é... não ama mais Dimítri.

— É isso! É isso mesmo! — exclamou a senhora Khokhlakova.

— Espere, cara Katierina Óssipovna. Não lhe disse o essencial, a decisão que tomei esta noite. Sinto que minha resolução é talvez terrível, para mim, mas pressinto que não a mudaria por preço nenhum. Meu caro conselheiro, bom e generoso, meu confidente, o único amigo que tenho no mundo, Ivan Fiódorovitch, aprova-me inteiramente e louva minha resolução...

— Sim, aprovo-a — disse Ivan, em voz baixa, mas firme.

Mas desejo que Aliócha — desculpe-me chamá-lo assim —, desejo que Alieksiêi Fiódorovitch me diga agora, diante de meus dois amigos, se tenho razão ou não. Adivinho que você, Aliócha, meu caro irmão (porque o é) — repetia ela com arrebatamento, agarrando-lhe a mão gelada com a sua ardente —, adivinho que sua decisão, sua aprovação me tranquilizarão, malgrado meus sofrimentos, porque após suas palavras acalmar-me-ei e resignar-me-ei, pressinto-o!

— Ignoro o que me vai pedir — disse Aliócha, corando. — Sei somente que a amo e que lhe desejo neste momento mais felicidade que a mim mesmo!... Mas nada entendo de tais negócios... — apressou-se ele em acrescentar sem saber por quê...

— O essencial, em tudo isso, é a honra e o dever, e algo de mais alto, que ultrapassa talvez o próprio dever. Meu coração me dita esse sentimento irresistível e me arrasta. Em suma, minha decisão está tomada. Mesmo se ele desposar aquela... criatura, a quem não poderei jamais perdoar, não o abandonarei, no entanto! Doravante, não o abandonarei jamais! — disse ela, presa de uma exaltação mórbida. — Bem entendido, não tenho a intenção de correr atrás dele, de impor-lhe minha presença, de importuná-lo, oh, não! Irei para outra cidade, não importa onde, mas não deixarei de interessar-me por ele. Quando se sentir infeliz com a outra — e isso não tardará —, que ele venha a mim, encontrará uma amiga, uma irmã... Uma irmã apenas, decerto, e isso para toda a vida, uma irmã amorosa, que lhe terá sacrificado sua existência. Conseguirei, à força de perseverança, fazer-me afinal apreciar por ele, ser sua confidente, sem que ele venha a corar por isso! — exclamou ela, como que enlouquecida. — Serei seu Deus, a quem dirigirá ele suas preces, é o menos que ele me deve por ter-me traído e por tudo quanto suportei ontem por causa dele. E ele verá que permanecerei eternamente fiel à palavra uma vez dada, malgrado suas infidelidades e sua traição. Serei apenas o meio, o instrumento de sua felicidade, por toda a sua vida, por toda a sua vida! Eis minha decisão. Ivan Fiódorovitch aprova-me inteiramente.

Sufocava. Talvez tivesse querido exprimir seu pensamento com mais dignidade, naturalmente, mas o fez com demasiada precipitação e sem rebuços. Havia em suas palavras muita exuberância juvenil; refletiam elas a irritação da véspera, a necessidade de orgulhar-se; ela mesma dava-se conta disso. De súbito, seu rosto ensombreceu-se, seu olhar tornou-se mau. Aliócha percebeu-o e a compaixão despertou nele. Seu irmão acrescentou algumas palavras.

— É, com efeito, a expressão de meu pensamento. Em qualquer outra, isso teria parecido excessivo e atormentado. Outra não teria tido razão, mas você a tem. Não sei como motivar isso, mas vejo que você é completamente sincera e por isso é que tem razão...

— Mas só por um instante... Ora, que é esse instante? É unicamente o ressentimento de ontem — não pôde impedir-se de dizer com justeza a senhora Khokhlakova, malgrado seu desejo de não intervir.

— Oh, sim! — disse Ivan, com uma espécie de irritação e visivelmente vexado por ter sido interrompido. — É isso; numa outra esse instante não seria senão uma impressão passageira, mas com o caráter de Katierina Ivânovna durará isso toda a sua vida. O que para outras não seria senão uma promessa no ar, será para ela um dever eterno, penoso, sombrio talvez, mas incessante. E ela se repastará com o sentimento desse dever cumprido! Sua existência, Katierina Ivânovna, consumir-se-á agora numa dolorosa contemplação de seus sentimentos heroicos e de seu pesar. Mas com o tempo esse sofrimento se acalmará, viverá você na doce contemplação dum desígnio firme e altivo, realizado duma vez por todas, desesperado na verdade, mas que você logrou vencer. Esse estado de espírito proporcionar-lhe-á, por fim, a satisfação mais completa e reconciliá-la-á com tudo o mais...

Exprimira-se com uma espécie de rancor, visivelmente intencional e sem procurar dissimular sua intenção irônica.

— Oh!, Deus, quanto tudo isso é falso! — exclamou de novo a senhora Khokhlakova.

— Alieksiêi Fiódorovitch, fale! Tarda-me conhecer sua opinião! — disse Katierina Ivânovna, que se pôs a derramar lágrimas. Aliócha levantou-se.

— Não é nada, não é nada! — prosseguiu ela, chorando. — É o nervoso, a insônia, mas com amigos como seu irmão e você, sinto-me fortificada... porque sei que vocês não me abandonarão nunca...

— Infelizmente, deverei talvez partir amanhã para Moscou, deixá-la por muito tempo... Essa viagem é indispensável — declarou Ivan Fiódorovitch.

— Amanhã, para Moscou!? — exclamou Katierina Ivânovna, de rosto crispado. — Meu Deus!, que felicidade! — continuou ela, com uma voz de súbito mudada, contendo suas lágrimas, de que não restou mais nenhum traço. Essa mudança súbita, que impressionou fortemente Aliócha, foi de fato repentina; a infeliz moça, ofendida, chorosa, de coração dilacerado, deu lugar de repente a uma mulher perfeitamente senhora de si mesma e, além do mais, satisfeita como após uma alegria inesperada. — Não é sua partida que me alegra, decerto — retificou ela, com o encantador sorriso de uma dama da sociedade. — Um amigo como você não pode crer nisso; sinto-me, pelo contrário, muito infeliz com sua partida (avançou para Ivan Fiódorovitch e, agarrando-lhe as mãos, apertou-as com calor); mas o que me rejubila é que possa você agora expor em Moscou à minha tia e a Agáfia minha situação em todo o seu horror, francamente com Agáfia, mas poupando minha tia querida, como é você capaz de fazê-lo. Não pode você imaginar quanto me sentia infeliz ontem e esta manhã, perguntando a mim mesma como escrever a elas essa terrível carta... porque não se pode exprimir isso por escrito... Agora, ser-me-á fácil escrever-lhes, porque estará você em pessoa em casa delas para explicar tudo. Oh! Como sou feliz! Mas por isso somente, repito-lhe. Você me é indispensável, certamente... Corro a escrever essa carta — concluiu ela, dando um passo para sair do salão.

— E Aliócha? E a opinião de Alieksiêi Fiódorovitch que você desejava tão vivamente conhecer!? — exclamou a senhora Khokhlakova, com uma entonação sarcástica e irritada.

— Não o esqueci — disse Katierina Ivânovna, parando. — Mas por que se mostra a senhora de tão má vontade para comigo neste momento, Katierina Óssipovna? — proferiu ela, num tom amargo de censura. — Confirmo o que disse. Tenho necessidade de saber sua opinião e, bem mais ainda, sua decisão! Será uma lei para mim, tanta sede tenho de suas palavras, Alieksiêi Fiódorovitch... Mas que tem?

— Jamais pensei, não posso imaginar isso! — disse Aliócha, com ar aflito.

— O quê?

— Ele parte para Moscou, testemunha-lhe a senhorita sua alegria, fê-lo de propósito! Em seguida, explica que não é sua partida que a rejubila, que a lamenta, pelo contrário, que perde... um amigo. Mas aí também representava de propósito... como no teatro, numa comédia!...

— No teatro? Como?... Que diz você!? — exclamou Katierina Ivânovna estupefata; corou, franziu o cenho.

— Por mais que afirme lamentar o amigo que parte, declara-lhe redondamente que sua partida é uma felicidade... — proferiu Aliócha ofegante. Mantinha-se de pé, perto da mesa.

— Que quer dizer? Não compreendo...

— Eu mesmo não sei... É como uma iluminação repentina... Sei que faço mal em dizer isso, mas falarei ainda assim — prosseguiu ele, com uma voz trêmula, entrecortada. — A senhorita talvez nunca tenha amado Dimítri... Ele tampouco, sem dúvida, a ama absolutamente... desde o começo... estima-a, eis tudo... Na verdade, não sei como tenho a audácia... mas é bem preciso que alguém diga a verdade, pois que ninguém aqui ousa fazê-lo.

— Que verdade? — perguntou Katierina Ivânovna com exaltação.

— Ei-la — balbuciou Aliócha, tomando sua decisão, como se se precipitasse no vácuo. — Mande chamar Dimítri — eu o encontrarei —, que ele venha aqui pegar sua mão e a de meu irmão Ivan para uni-los. Porque a senhorita faz Ivan sofrer somente porque o ama... e seu amor por Dimítri é uma dolorosa mentira... da qual procura a senhorita persuadir-se...

Aliócha calou-se bruscamente.

— Você... você é um pobre de espírito — replicou Katierina Ivânovna, pálida, de lábios crispados. Ivan Fiódorovitch levantou-se, de chapéu na mão.

— Tu te enganaste, meu bom Aliócha — disse ele, com uma expressão que seu irmão jamais lhe vira, uma expressão de sinceridade juvenil, de irresistível franqueza. — Katierina Ivânovna jamais amou a mim! Conhecia desde muito tempo meu amor por ela, se bem que nunca lhe houvesse revelado, mas não correspondia a ele. Não fui tampouco seu amigo, em momento algum; seu orgulho não tinha necessidade de minha amizade. Mantinha-me perto dela para se vingar em mim das ofensas contínuas que lhe infligia Dimítri desde o primeiro encontro deles, porque este ficou em seu coração como uma ofensa. Meu papel consistiu em ouvir falar de seu amor por ele. Parto, afinal, mas fique sabendo, Katierina Ivânovna, que você não ama, na realidade, senão ele. E isso na proporção de suas ofensas. Eis o que a dilacera. Ama-o tal como ele é, com suas faltas para com você. Se ele se emendasse, você o abandonaria logo e deixaria de amá-lo. Mas ele lhe é necessário para você contemplar nele sua fidelidade heroica e censurar-lhe sua traição. Tudo isso por orgulho! Você sente-se humilhada e rebaixada, mas seu orgulho é a causa disso... Sou demasiado jovem, amava-a demais. Sei que não deveria ter-lhe falado assim, que teria sido mais digno de minha parte deixá-la simplesmente; teria sido menos magoante para você. Mas parto para longe e não voltarei mais... É para sempre... Não quero respirar esse ar de exaltação... Aliás, não tenho mais nada a dizer, é tudo... Adeus, Katierina Ivânovna, não fique zangada comigo, porque estou sendo cem vezes mais castigado que você, castigado pelo simples fato de que jamais tornarei a vê-la. Adeus. Não quero pegar sua mão. Você me fez sofrer demasiado conscientemente para que eu possa perdoar nesta hora. Mais tarde, talvez, mas agora não quero sua mão.


Den Dank, Dame, begehr’ich nicht...[ 83 ]


— acrescentou ele com um sorriso constrangido, provando assim que conhecia Schiller, a ponto de sabê-lo de cor, o que Aliócha ter-se-ia recusado a acreditar antes. Saiu sem mesmo cumprimentar a dona da casa. Aliócha juntou as mãos.

— Ivan! — gritou-lhe, transtornado. — Volta, Ivan! Não, agora não voltará ele por coisa alguma do mundo! — exclamou, com um pressentimento amargo. — Mas a culpa é minha, fui eu que comecei! Ivan falou com cólera, injustamente. É preciso que ele volte!... — exclamava Aliócha, como fora de si.

Katierina Ivânovna passou para outra peça.

— Você nada tem a censurar-se, sua conduta é a de um anjo — murmurou para o triste Aliócha a senhora Khokhlakova, entusiasmada. — Farei todo o possível para impedir que Ivan Fiódorovitch parta...

A alegria iluminava seu rosto, para grande mortificação de Aliócha, mas Katierina Ivânovna reapareceu de súbito. Tinha na mão duas cédulas de cem rublos.

— Tenho um grande obséquio a pedir-lhe, Alieksiêi Fiódorovitch — começou ela com uma voz calma e igual, como se nada se tivesse passado. — Há cerca de uma semana, Dimítri Fiódorovitch deixou-se levar a praticar uma ação injusta e escandalosa. Há aqui um cabaré mal-
-afamado, onde encontrou aquele oficial reformado, aquele capitão que seu pai empregava em certos negócios. Irritado contra aquele capitão por um motivo qualquer, Dimítri Fiódorovitch agarrou-o pela barba e arrastou-o naquela posição humilhante até a rua, onde continuou ele ainda por muito tempo. Dizem que o filho dele, jovem escolar, corria a seu lado, soluçando diante daquele espetáculo, pedia por seu pai e rogava aos passantes que o defendessem; mas todo mundo ria. Desculpe-me, Alieksiêi Fiódorovitch, não posso lembrar-me sem indignação desse ato vergonhoso... de que somente Dimítri Fiódorovitch é capaz, presa da cólera... e de suas paixões! Não posso contá-lo, isso me faz mal... embaraço-me. Tomei informações a respeito daquele infeliz e soube que ele é muito pobre, chama-se Snieguiriov. Tornou-se culpado duma falta em seu serviço, deram-lhe baixa, não posso fornecer detalhes, e agora, com sua desgraçada família, as crianças doentes, a mulher louca, parece, caiu em profunda miséria. Mora na cidade desde muito tempo, era copista em alguma parte, mas neste momento não ganha nada. Lancei os olhos em você... isto é, pensei, ah!, confundo-me, queria pedir-lhe, meu caro Alieksiêi Fiódorovitch, que fosse à casa dele, sob um pretexto qualquer, e, delicadamente, prudentemente, como só você é capaz (Aliócha corou), entregar-lhe este socorro, estes duzentos rublos... Ele os aceitará decerto... isto é, persuada-o a aceitá-los... veja você, não é uma indenização, para evitar que ele apresente queixa (porque queria fazê-lo, ao que parece), mas simplesmente uma marca de simpatia, o desejo de ir em seu auxílio, em meu nome, como noiva de Dimítri Fiódorovitch, e não no dele... Eu mesma teria ido, mas você sair-se-á melhor do que eu. Ele mora na rua do Lago, na casa da senhora Kalmíkova... Pelo amor de Deus, Alieksiêi Fiódorovitch, faça isto agora... estou um pouco fatigada. Adeus...

Desapareceu tão rapidamente por trás da porta que Aliócha não teve tempo de dizer uma palavra. Teria querido pedir perdão, acusar-se, dizer qualquer coisa afinal, porque seu coração transbordava e não podia ele decidir-se a afastar-se assim. Mas a senhora Khokhlakova pegou-o pelo braço e levou-o. No vestíbulo, fê-lo parar como ainda há pouco.

— Ela é orgulhosa, luta consigo mesma, mas é uma natureza boa, encantadora, generosa! — murmurou ela a meia-voz. — Oh, como gosto dela, por momentos, e quanto me sinto de novo contente! Meu caro Alieksiêi Fiódorovitch, sabe que nós todas, suas duas tias, eu e até mesmo Lisa, não temos senão um desejo, desde um mês: suplicamos-lhe que abandone seu favorito Dimítri Fiódorovitch, que não a ama absolutamente, e case com Ivan, esse excelente rapaz tão instruído e de quem ela é o ídolo. Urdimos uma verdadeira conspiração, e é essa talvez a única razão que me retém ainda aqui.

— Ela, porém, chorou, sente-se de novo ofendida! — exclamou Aliócha.

— Não creia nas lágrimas de uma mulher, Alieksiêi Fiódorovitch! Sou sempre contra as mulheres neste caso e do lado dos homens.

— Mamãe, a senhora o estraga e o perde — repercutiu a voz agudazinha de Lisa, por trás da porta.

— Não, sou eu que sou causa de tudo, sou muito culpado! — repetiu Aliócha, inconsolável, experimentando uma vergonha dolorosa com aquela sua saída, o rosto oculto nas mãos.

— Pelo contrário, você agiu como um anjo, como um anjo, estou pronta a repeti-lo mil vezes.

— Mamãe, em que agiu ele como um anjo? — perguntou de novo Lisa.

— Imaginei, não sei por quê — prosseguiu Aliócha, como se não ouvisse Lisa —, que ela amava Ivan e disse aquela tolice... Que irá acontecer?

— De que se trata? — indagou Lisa. — Mamãe, quer matar-me? Interrogo-a e a senhora não me responde.

Naquele momento, acorreu a arrumadeira.

— Katierina Ivânovna está passando mal... chora, está com um ataque de nervos.

— Que há? — gritou Lisa, com a voz alarmada — Mamãe, sou eu que vou ter um ataque!

— Lisa, pelo amor de Deus, não grites, tu me matas! Na tua idade não podes saber de tudo como as pessoas grandes; quando eu voltar, contar-te-ei o que puderes saber. Oh, meu Deus! Corro até lá... um ataque é bom sinal, Alieksiêi Fiódorovitch, é excelente que tenha ela um ataque. Em semelhantes casos, estou sempre contra as mulheres, seus ataques e suas lágrimas. Iúlia, corre a dizer que já vou. Se Ivan Fiódorovitch partiu daquela maneira, a culpa é dela. Mas ele não partirá. Lisa, pelo amor de Deus, não grites. Ah! Não és tu quem grita, sou eu, perdoa tua mãe. Mas estou entusiasmada, arrebatada! Notou, Alieksiêi Fiódorovitch, como seu irmão partiu com um ar viril, ainda há pouco? Disse-lhe o que tinha de dizer-lhe e partiu! Dizia a mim mesma: ele é tão culto, um universitário, e, de repente, tal calor, uma franqueza juvenil, inexperiência, e tudo isso é tão gentil, tão gentil, absolutamente como você... E aquele verso alemão que ele citou, afinal como você, mas vou correndo, Alieksiêi Fiódorovitch, despache-se a cumprir sua missão e volte bem depressa. Lisa, não tens necessidade de nada? Pelo amor de Deus, não retenhas Alieksiêi Fiódorovitch, ele vai voltar para ti.

A senhora Khokhlakova foi-se embora, afinal. Aliócha, antes de sair, quis abrir a porta de Lisa.

— Por coisa alguma do mundo! — exclamou Lisa. — Não quero vê-lo, Alieksiêi Fiódorovitch. Fale-me através da porta. Como foi que virou um anjo? É tudo quanto desejo saber.

— Com minha tremenda estupidez, Lisa, adeus!

— Não parta assim! — exclamou ela.

— Lisa, tenho um pesar muito sério! Volto imediatamente, mas tenho um grande, um enorme pesar.

Saiu correndo.

 

VI


O tumulto na Isbá


Tinha Aliócha na verdade um pesar sério, como raramente experimentara até então. Interviera e cometera uma rata, e num caso de sentimento, ainda por cima! “Mas que é que compreendo disso, que posso eu conhecer dessas coisas? Oh! A vergonha não é nada, a vergonha é um castigo merecido. A desgraça é que serei certamente a causa de novas calamidades... E dizer que o stáriets me enviou para reconciliar e unir! É assim que se une?” Lembrou-se então como tinha “unido as mãos” e a vergonha reapossou-se dele. “Muito embora tenha agido de boa-fé, será preciso ser mais inteligente no futuro”, concluiu ele e nem mesmo sorriu de sua conclusão.

O encargo de Katierina Ivânovna conduzia-o à rua do Lago, e seu irmão morava precisamente daquele lado, numa ruela vizinha. Decidiu Aliócha passar primeiro em casa dele, de qualquer forma, pressentindo que não o encontraria lá. Suspeitava de que Dimítri quisesse talvez esconder-se dele agora, mas era preciso descobri-lo a qualquer preço. O tempo passava; a ideia do stáriets moribundo não o deixava um minuto, desde sua partida do mosteiro.

Na narrativa de Katierina Ivânovna figurava uma circunstância que o interessava bastante, igualmente; quando a moça falara do pequeno escolar, filho do capitão, que corria soluçando ao lado do pai, viera subitamente a Aliócha a ideia de que deveria ser ele o mesmo que lhe mordera o dedo, quando lhe perguntou em que o ofendera. Agora estava Aliócha quase certo, sem saber ainda por quê. Essas preocupações secundárias desviaram sua atenção. Resolveu não mais pensar no mal que acabava de fazer, não se atormentar pelo arrependimento, mas agir. Aconteceria lá o que acontecesse. Essa ideia restituiu-lhe toda a coragem. Ao entrar no beco onde morava Dimítri, teve fome e tirou do bolso o pãozinho que pegara em casa do pai. Comeu-o, enquanto caminhava; isso reconfortou-o.

Dimítri não estava em casa. Os donos da casinha — um velho carpinteiro, a mulher e o filho — olharam Aliócha com ar suspeitoso. “Há três dias que ele não passa a noite aqui, partiu talvez para algum lugar”, respondeu o velho às suas perguntas. Aliócha compreendeu que ele se conformava com instruções recebidas. Quando perguntou se Dimítri não estava em casa de Grúchenhka, ou de novo oculto em casa de Fomá (Aliócha falava assim abertamente de propósito), todos o olharam com ar receoso. “Gostam dele, estão de seu lado”, pensou ele. “Está bem.”

Por fim descobriu na rua do Lago a casa da senhora Kalmíkova, em mau estado e arriada, com três janelas para a rua, um pátio sujo, no meio do qual se achava uma vaca. Entrava-se pelo pátio para o vestíbulo; à esquerda vivia a velha proprietária com a filha igualmente idosa, sendo surdas as duas, ao que parece. A pergunta várias vezes repetida para saber onde morava o capitão, uma delas, compreendendo por fim que perguntavam pelos inquilinos, apontou-lhe com o dedo, do outro lado do vestíbulo, a porta que dava para a mais bela peça da isbá. O apartamento do capitão consistia, com efeito, apenas dessa peça. Aliócha pusera a mão na maçaneta para abrir a porta, quando o impressionou o silêncio completo que reinava no interior. Sabia, no entanto, de acordo com a narrativa de Katierina Ivânovna, que o capitão tinha família. “Dormem todos, ou então me ouviram chegar e esperam que eu abra; será melhor bater antes.” Bateu. Ouviu-se uma resposta, mas não imediatamente, talvez ao fim de dez segundos.

— Quem é? — gritou uma voz grossa e irritada.

Aliócha abriu então e transpôs o limiar. Encontrava-se numa sala bastante espaçosa, mas extremamente atravancada de gente e de toda espécie de objetos caseiros. À esquerda, havia uma grande estufa russa. Da estufa à janela da esquerda, uma corda estendida através de todo o quarto suportava diversos trapos. De cada lado se encontrava um leito com cobertas tricotadas. Em um deles, o da esquerda, quatro travesseiros empilhados, uns menores que os outros. Sobre o leito da direita, só se via um, muito pequeno. Mais longe, no ângulo da frente, havia um espaço reservado, separado por uma cortina ou um lençol, fixado a uma corda estendida de través no ângulo. Por trás aparecia um leito improvisado em um banco e uma cadeira colocada junto. Uma simples mesa de mujique, quadrada, de madeira, estava instalada perto da janela do meio. As três janelas, de vidraças cobertas de mofo esverdeado que as empanava, estavam hermeticamente fechadas, de modo que se sufocava na peça semiescura. Em cima da mesa, uma estufa com um resto de ovos num prato, uma fatia de pão já mordida, meio litro de aguardente, quase vazio de seu conteúdo. Perto do leito da esquerda estava sentada, numa cadeira, uma mulher, tendo um ar senhoril, com um vestido de chita da Índia. Demasiado magra e de rosto amarelo, suas faces cavadas atestavam ao primeiro olhar seu estado doentio. Mas o que impressionou sobretudo Aliócha foi o olhar da pobre senhora, olhar ao mesmo tempo interrogador e arrogante. Enquanto Aliócha se explicava com o dono da casa, seus grandes olhos castanhos iam de um para outro, com tanta curiosidade quanto arrogância. Ao lado dela, perto da janela da esquerda, mantinha-se de pé uma moça de rosto pouco simpático, de cabelos ruivos e ralos, vestida pobremente, embora muito limpa. Olhou desdenhosamente para Aliócha, quando ele entrou. À direita, igualmente perto do leito, estava sentada uma pessoa do sexo feminino, uma pobre criatura ainda jovem, de uns vinte anos, mas corcunda e aleijada, de pés secos, como explicaram depois a Aliócha. Viam-se suas muletas a um canto, entre o leito e a parede. Os magníficos olhos da pobre moça fitavam Aliócha com doçura. Sentada à mesa e acabando a omeleta, via-se um personagem de 45 anos, de pequena estatura, magro, de constituição débil, cuja barba arruivada e rala assemelhava-se bastante a um esfregão de tília desfiado (esta comparação e sobretudo a palavra “esfregão” surgiram ao primeiro lance de vista no espírito de Aliócha, lembrou-se ele mais tarde). Fora ele, evidentemente, quem respondera de dentro, porque não havia outro homem no quarto. Quando Aliócha entrou, levantou-se bruscamente, limpou a boca com um guardanapo esburacado e apressou-se em ir-lhe ao encontro.

— Um monge que pede esmolas para seu mosteiro encontrou a quem se dirigir! — proferiu a moça que se mantinha no ângulo da esquerda. O indivíduo que correra ao encontro de Aliócha girou nos calcanhares e respondeu-lhe num tom entrecortado.

— Não, Varvara Nikoláievna, não é isso, você não adivinhou! Permita-me que lhe pergunte — disse, voltando-se para Aliócha, — o que o levou a visitar... este antro?

Aliócha observou-o atentamente. Via aquele homem pela primeira vez. Havia nele algo de áspero, de apressado, de irritado. Tinha certamente bebido, mas não estava bêbedo. Seu rosto refletia uma caracterizada impudência e, ao mesmo tempo — coisa estranha —, uma covardia visível. Assemelhava-se a um homem muito tempo submetido e sofredor, mas que de repente sentisse ímpetos de reerguer-se e de manifestar-se. Ou, melhor ainda, um homem que ardia do desejo de bater na gente, mas temendo nossos golpes. Em suas palavras e na entonação de sua voz, bastante penetrante, distinguia-se uma espécie de humor esquisito, ora mau, ora tímido, intermitente e de tom desigual. Falara do antro, como a tremer, com os olhos arregalados e mantendo-se tão perto de Aliócha, que este deu maquinalmente um passo para trás. O personagem trazia um paletó de ganga, escuro, em muito mau estado, remendado, manchado. Suas calças muito claras, como não se usam mais há muito tempo, eram de quadrados dum pano muito ralo, esfiapadas embaixo, e subiam-lhe nas pernas a ponto de dar-lhe o ar dum menino que cresceu demais.

— Eu sou... Alieksiêi Karamázov... — respondeu Aliócha.

— Sei bem — replicou o outro, dando a entender que lhe conhecia a identidade. — E eu sou o capitão Snieguiriov. Mas importa saber o que o traz...

— Vim por vir. De fato, queria dizer-lhe uma palavra, em meu nome... se o permite...

— Neste caso, eis uma cadeira, queira sentar-se. É nas velhas comédias que diziam: “Queira sentar-se...”

Com um gesto rápido, o capitão agarrou uma cadeira livre (uma simples cadeira de mujique, de madeira), que colocou quase no meio do quarto; tomou outra igual para si e sentou-se diante de Aliócha, de novo tão perto que seus joelhos quase se tocavam.

— Nikolai Ilitch Snieguiriov, ex-capitão de infantaria russa, envilecido por seus vícios, mas, apesar de tudo, capitão. Deveria antes dizer: capitão Slovoiérsov e não Snieguiriov, pois, na segunda metade de minha vida, comecei empregar a letra “s”. Esta letra “s” aprende-se na abjeção.[ 84 ]

— É assim mesmo — disse Aliócha, sorrindo. — Somente se aprende sem querer ou de propósito?

— Deus o vê, involuntariamente. Nunca a tinha dito, passei toda a minha vida sem dizê-la e, de repente, comecei a empregar o “s”. Faz-se assim por força maior. Vejo que o senhor se interessa pelos problemas contemporâneos. Mas que pode infundir-lhe tanta curiosidade, pois vivo em um meio impossível para receber-se alguém.

— Vim justamente por causa disso...

— Disso quê? — interrompeu o capitão, impaciente.

— A propósito de seu encontro com meu irmão, Dimítri Fiódorovitch — replicou Aliócha, constrangido.

— Que encontro? Não será o mesmo, isto é, a respeito do “esfregão de tília”?

Avançou de tal maneira desta vez que seus joelhos bateram nos de Aliócha. Seus lábios cerrados formavam uma linha estreita.

— Que “esfregão de tília”? — murmurou Aliócha.

— É para se queixar de mim, papai, que ele veio! — ressoou uma voz por trás da cortina, uma voz já conhecida de Aliócha, a do menino de ainda há pouco. — Eu mordi o dedo dele hoje!

A cortina afastou-se, e Aliócha avistou seu recente inimigo, no canto sob os ícones, sobre um leito formado por um banco e uma cadeira. O menino estava deitado, coberto por seu pequeno sobretudo e por um velho cobertor acolchoado. Era visível que estava doente e com febre, a julgar por seus olhos ardentes. Intrépido, olhava para Aliócha, com ar de dizer: “Aqui em casa, nada me podes fazer.”

— Como? De quem ele mordeu o dedo? — sobressaltou-se o capitão. — Foi o seu?

— Sim, o meu. Ainda há pouco, batia-se a pedradas na rua com seus camaradas; eram seis contra ele. Aproximei-me, atirou-me ele uma, depois outra à cabeça. Perguntei-lhe o que eu lhe tinha feito. De súbito, avançou e me mordeu cruelmente o dedo. Ignoro-o por quê.

— Vou açoitá-lo! — exclamou o capitão, que saltou da cadeira.

— Mas não me estou queixando, contava somente... Não quero que o açoite! Aliás, creio que está doente...

— E pensava o senhor que eu ia fazer isso? Que eu ia agarrar Iliúchka e açoitá-lo diante do senhor para sua inteira satisfação? Quer isso imediatamente? — proferiu o capitão, voltando-se para Aliócha com um gesto ameaçador, como se quisesse lançar-se sobre ele. — Lamento seu dedo, senhor, mas não quererá que antes de açoitar Iliúchka corte meus quatro dedos diante do senhor, com esta faca, para sua justa satisfação? Penso que quatro dedos lhe bastarão, o senhor não reclamará o quinto, para aplacar sua sede de vingança!... — Parou de súbito, como sufocado. Cada traço de seu rosto se agitava e se contraía, seu olhar era dos mais provocantes. Estava como que enlouquecido.

— Agora, compreendi tudo — disse Aliócha, num tom doce e triste, sem se levantar. — De modo que tem o senhor um bom filho, que ama seu pai e lançou-se sobre mim por ser eu o irmão do ofensor do senhor... Compreendo, agora — repetiu, pensativo. — Mas, meu irmão Dimítri lamenta seu ato, eu o sei, e, se puder vir à sua casa, ou, ainda melhor, encontrá-lo no mesmo lugar, pedir-lhe-á perdão diante de todo mundo... se o senhor o desejar.

— Quer dizer que puxou minha barba e pede desculpas... arranjou assim tudo, deu satisfação, não é?

— Oh! não! Pelo contrário, fará tudo quanto lhe agradar e como lhe agradar!

— Do mesmo modo que eu rogasse a Sua Alteza Sereníssima que se ajoelhasse diante de mim, naquele mesmo cabaré, o botequim A Capital.

— Sim, ele se poria de joelhos.

— O senhor transpassou-me, comoveu-me até as lágrimas. Estou demasiado inclinado a sentir a generosidade de seu irmão. Permita-me que lhe apresente minha família, minhas duas filhas e meu filho, minha ninhada. Se eu morrer, quem os amará? E, enquanto eu viver, quem me amará com todos os meus defeitos, senão eles? O Senhor Deus fez bem as coisas para cada homem de minha espécie, porque mesmo um homem de minha qualidade deve ser amado por um ser qualquer...

— Ah, é perfeitamente verdadeiro! — exclamou Aliócha.

— Basta de palhaçadas! O senhor nos expõe ao ridículo diante do primeiro imbecil que aparece — exclamou de repente a moça que se conservava perto da janela, dirigindo-se ao pai, com a fisionomia cheia de desprezo.

— Espere um pouco, Varvara Nikoláievna, permita-me que continue meu pensamento — gritou-lhe o pai num tom imperioso, enquanto a olhava aprovoradamente. — É esse seu caráter — disse ele, voltando-se para Aliócha.


E na natureza inteira

Nada queria abençoar.[ 85 ]


O sujeito aqui deveria ser feminino: ela nada queria abençoar. E agora, permita-me que lhe apresente minha esposa, Arina Pietrovna, dama imponente de 43 anos; anda, mas muito pouco. É de baixa condição; Arina Pietrovna, componha seu semblante para que eu lhe apresente Alieksiêi Fiódorovitch Karamázov. Levante-se, Alieksiêi Fiódorovitch — pegou-o pelo braço e, com uma força de que não o teriam julgado capaz, ergueu-o. — Apresentam-no a uma dama, é preciso que se levante. Não foi este Karamázov, mámienhka, que... hum!, etc. mas seu irmão, reluzente de virtudes pacíficas. Permita, Arina Pietrovna, permita, mámienhka, que lhe beije em primeiro lugar a mão.

Beijou a mão de sua mulher com respeito, com ternura mesmo. A moça, perto da janela, voltava as costas àquela cena com indignação; o rosto arrogante e interrogativo da mãe exprimiu, de súbito, grande afabilidade.

— Bom dia, sente-se, senhor Tchernomázov[ 86 ] — proferiu ela.

— Karamázov, mámienhka, Karamázov (somos de baixa condição) — soprou ele de novo.

— Está bem! Karamázov ou como seja, eu digo sempre Tchernomázov... Sente-se. Por que ele o levantou? Uma dama sem pés, diz ele, tenho pés, sim, mas estão inchados como cântaros, e eu estou ressequida. Outrora, era eu duma grossura... e agora dir-se-ia que engoli uma agulha...

— Somos de baixa condição, de bem baixa — repetiu o capitão.

— Bátiuchka, ah!, bátiuchka — exclamou de repente a corcunda, que ficara até então silenciosa e cobrira bruscamente os olhos com o lenço.

— Palhaço! — gritou a moça que estava perto da janela.

— Veja o que se passa em nossa casa — e a mãe estendeu os braços, apontando as filhas. — É como se nuvens passassem, passam e nossa música recomeça. Outrora, quando éramos militares, vinham ver-nos muitos visitantes semelhantes. Não faço comparação, meu senhor. É preciso gostar de todos. A mulher do diácono vem por vezes e diz: “Alieksandr Alieksándrovitch é um homem de alma excelente, mas Nastássia Pietrovna, diz ela, é uma endemoniada.” — “Pois bem, respondo-lhe eu, isso depende de quem se ama, ao passo que tu não passas de uma trouxinha, mas fedorenta.” — “Tu, diz-me ela, só mereces que te tratem com rigor.” — “Ah, negra, a quem vens tu dar lições!?” — “Eu, diz ela, deixo entrar o ar puro, e tu, o ar pestilento.” — “Pergunta, respondo-lhe eu, aos senhores oficiais se o ar é pestilento em minha casa.” Assim, isso me aflige tanto que, ainda há pouco, sentada como agora, acreditei ver entrar aquele general que chegou aqui pela Páscoa. “Pois bem, digo-lhe eu, pode, Excelência, uma dama nobre deixar entrar o ar de fora?” — “Sim, responde ele, a senhora deveria abrir a porta ou o postigo, porque o ar não está puro em sua casa.” E todos são iguais! Por que implicam com o ar de minha casa? Os mortos fedem muito mais. Eu não corrompo o ar de sua casa, mandarei fazer sapatos e ir-me-ei embora. Meus filhos, não queiram mal à sua mãe! Nikolai Ilitch, meu bátiuchka, será que deixei de agradar-te? Porque só tenho Iliúchka para me querer bem, quando volta da escola. Ontem, trouxe-me uma maçã. Perdoem sua mãe, meus bons amigos, perdoem uma pobre abandonada! Que têm contra o ar de minha casa?

A pobre demente desatou a soluçar, suas lágrimas corriam. O capitão precipitou-se.

— Mámienhka, querida mámienhka, basta! Não estás abandonada, todos te amam e te adoram! — Recomeçou a beijar-lhe as mãos e se pôs a acariciar-lhe o rosto; com um guardanapo enxugou-lhe mesmo as lágrimas. Pareceu a Aliócha que havia até lágrimas nos olhos dele. — Pois bem! Viu o senhor, entendeu? — Voltou-se, de súbito, para ele, encolerizado, apontando com o dedo a pobre demente.

— Vejo e entendo — murmurou Aliócha.

— Papai, papai! Como podes falar com ele... deixa-o, papai! — gritou o menino, que se erguera no leito, com o olhar ardente.

— Basta de palhaçadas, de recorrer a suas estúpidas manigâncias que nunca levam a nada! — gritou de seu canto Varvara Nikoláievna, exasperada; bateu mesmo com o pé no chão.

— Você tem totalmente razão, desta vez, de ficar encolerizada, Varvara Nikoláievna, e lhe darei imediatamente satisfação. Cubra-se, Alieksiêi Fiódorovitch, pego meu boné, e vamos. Tenho de falar-lhe seriamente, mas não aqui. Aquela jovem sentada é minha filha, Nina Nikoláievna, esqueci-me de apresentar-lhe, um anjo encarnado... que desceu entre os mortais... se é que o senhor poderia compreender isso...

— Está ele todo agitado, como se tivesse convulsões — continuou Varvara Nikoláievna, indignada.

— Essa que acaba de bater com o pé e de me chamar de palhaço é também um anjo encarnado, deu-me o nome que me convém. Vamos, Alieksiêi Fiódorovitch, é preciso acabar...

E, pegando Aliócha pelo braço, conduziu-o para fora.

 

VII


E ao ar livre


— O ar é puro, mas em meus aposentos não é verdadeiramente fresco, de modo algum. Caminhemos um pouco, senhor. Gostaria bem que se interessasse por mim.

— Eu mesmo tenho uma importante comunicação a fazer-lhe... — declarou Aliócha. — Somente não sei por onde começar.

— Como não adivinhar que o senhor precisa falar-me? Sem isso, jamais teria tido sua visita. Ou só teria vindo para queixar-se de meu rapaz? Ora, é inverossímil. A propósito de meu filho, não pude contar-lhe tudo lá dentro, mas agora descrever-lhe-ei a cena. Veja o senhor, o “esfregão de tília” estava mais espesso há uma semana — é de minha barba que falo; deram-lhe esse apelido, sobretudo os escolares. — E eis que seu irmão me arrastou pela barba, fez violências por causa de uma bagatela; caí, arrastou-me pela praça, onde no momento os colegiais saíam, e entre eles Iliúchka. Assim que ele me viu naquela posição, correu para mim: “Bátiuchka, gritava ele, bátiuchka!” Agarra-se a mim, abraça-me, quer libertar-me, grita para meu agressor: “Largue-o, largue-o, é meu pai, perdoe-lhe!” Com seus bracinhos agarrou meu agressor e beijou-lhe a mão, aquela mesma mão... Lembro-me de sua carinha naquele momento, não a esquecerei jamais!...

— Juro-lhe — exclamou Aliócha — que meu irmão lhe exprimirá um arrependimento completo, da maneira mais sincera, até mesmo de joelhos naquela mesma praça... Obrigá-lo-ei a isso, senão deixará de ser meu irmão!

— Ah, ah! Acha-se ainda em estado de projeto! Isso vem não dele, mas da nobreza de seu coração generoso. Deveria o senhor tê-lo dito. Não, nesse caso, permita-me que me refira ao espírito cavalheiresco e à nobreza de seu irmão, como oficial, porque os revelou então. Parou de puxar-me pela barba e largou-me: “És um oficial, disse ele, e eu também; se puderes encontrar para testemunha um homem decente, envia-o amim, que te darei satisfação, se bem que sejas um tratante!” Tais foram suas palavras. Um espírito verdadeiramente cavalheiresco! Afastamo-nos com Iliúchka, e aquela cena de família ficou gravada na memória para sempre. De que nos serve permanecer nobres? Aliás, julgue o senhor mesmo; estava ainda há pouco em meus aposentos e o que viu? Três mulheres, das quais uma aleijada, fraca de espírito; outra, aleijada e corcunda; a terceira, válida, mas demasiado inteligente, é estudante, arde por voltar a Petersburgo, a fim de descobrir às margens do Nievá os direitos da mulher russa. Não falo de Iliúchka, só tem nove anos, está inteiramente só, porque, se eu morrer, que acontecerá a meu lar, pergunto-lhe eu? Nessas condições, se eu o provocar para um duelo e ele me matar, que acontecerá então? Que se tornarão eles todos? Será ainda pior se ele não me matar, mas me estropiar apenas. Ficarei incapaz de trabalhar, mas será preciso comer. Quem me nutrirá, então, bem como a eles todos? Ou então mandarei Iliúchka todos os dias pedir esmola, em lugar de ir à escola. Eis o que significa para mim uma provocação para um duelo; é um absurdo e nada mais.

— Ele lhe pedirá perdão, lançar-se-á a seus pés bem no meio da praça! — exclamou de novo Aliócha, de olhar aceso.

— Tinha pensado em citá-lo perante o juiz — continuou o capitão —, mas abra nosso código. Posso esperar receber uma justa satisfação de meu ofensor? E eis que Agrafiena Alieksándrovna me manda chamar e me ameaça: “Nem penses nisso! Se o citares, arranjar-me-ei para fazer constar publicamente que ele te bateu por causa de tua maroteira, e então será a ti que processarão.” Ora, só Deus sabe quem é o autor dessa maroteira e sob as ordens de quem eu agi como comparsa. Não foi mesmo de acordo com as instruções dela e de Fiódor Pávlovitch? “Além do mais, acrescentou ela, despedir-te-ei para sempre e não ganharás mais nada a meu serviço. Direi também a meu comerciante (é assim que ela chama seu velho), de modo que ele também te despedirá.” E digo a mim mesmo: “Se esse comerciante me despede também, como poderei ganhar a vida? Porque não me restam senão esses dois, visto como seu pai, Fiódor Pávlovitch, não só retirou de mim sua confiança, por um outro motivo, mas ele próprio, munido de meus recibos, quer processar-me. Por essas razões, mantive-me quieto e o senhor viu o meu antro. E agora, diga-me, Iliúchka feriu-o muito, mordendo-o? Não podia entrar em detalhes na presença dele.

— Sim, bastante mal, ele estava muito irritado. Vingou em mim a ofensa que fizeram ao senhor, pelo fato de ser eu um Karamázov, compreendo-o agora. Mas se o senhor o tivesse visto bater-se a pedradas com os colegas! É muito perigoso, podem matá-lo; os meninos são estúpidos, uma pedra pode facilmente rachar a cabeça.

— Sim, ele recebeu uma, mas não na cabeça, no peito, acima do coração; tem uma equimose, voltou para casa chorando, gemendo e lá está doente.

— E sabe que é ele o primeiro a atacar os outros? Tornou-se mau, por causa do senhor. Seus colegas contam que ele há pouco deu uma canivetada nas costelas do menino Krasótkin.

— Sei também disso, é perigoso. O pai era funcionário aqui e isso pode atrair complicações...

— Eu aconselharia — continuou Aliócha, com calor — que não o enviasse à escola durante algum tempo, até que ele se acalme... e que sua cólera passe...

— A cólera! — concordou o capitão. — É bem isso. Uma grande cólera numa pequena criatura. O senhor não sabe de tudo. Permita-me que lhe explique com detalhes. Depois do acontecido, os colegiais começaram a infernizá-lo, chamando-o esfregão de tília. Essa idade é impiedosa; tomados separadamente são uns anjos, mas todos juntos são implacáveis, sobretudo na escola. Perseguiam-no e um nobre sentimento despertou-se em Iliúchka. Um menino comum, fraco como ele, ter-se-ia resignado; teria tido vergonha do pai; mas ele se ergueu contra todos, em favor do pai, da verdade e da justiça. Porque o que ele tem sofrido, desde que beijou a mão de seu irmão, gritando-lhe “Perdoe meu papai, perdoe meu papai!”, só Deus e eu sabemos. E assim nossos filhos, não os dos senhores, os nossos, os filhos dos mendigos desprezados, mas nobres, aprendem a conhecer a verdade, desde a idade de nove anos. Como os ricos a aprenderiam? Não penetram jamais nessas profundezas, ao passo que Iliúchka percorreu toda a verdade, naquele minuto na praça, beijando aquela mão. Aquela verdade penetrou nele; e magoou-o para sempre! — proferiu apaixonadamente o capitão, com ar desvairado, batendo sua mão esquerda com o punho direito, como se quisesse mostrar materialmente a contusão feita em Iliúchka pela “verdade”. — Naquele dia teve ele febre, delirou a noite inteira. Durante todo o dia, falou-me pouco, ficou mesmo silencioso; notei que ele me observava de seu canto, fingindo aprender suas lições, mas não eram as lições que o preocupavam. No dia seguinte, embriaguei-me de pesar; a gente é fraca e esqueci muitas coisas. A mamãe também se pôs a chorar — amo-a muito — então, de dor. Embriaguei-me com meus últimos níqueis. Não me despreze, senhor. Na Rússia, os piores ébrios são as pessoas melhores e reciprocamente. Estava deitado e não pensava em Iliúchka; mas, naquele mesmo dia, os garotos divertiam-se à custa dele, desde a manhã: “Psiu, ‘esfregão de tília’! — gritavam-lhe. — Arrastaram teu pai por sua barba em forma de esfregão para fora do cabaré; tu corrias ao lado dele pedindo misericórdia.” Era no dia seguinte; voltou da escola pálido e desfeito. “Que tens?”, perguntei-lhe. Calou-se; era impossível conversar em casa; sua mãe e suas irmãs ter-se-iam metido imediatamente, as moças tinham ficado cientes do caso desde o primeiro dia. Varvara Nikoláievna já começava a resmungar! “Palhaço, bobo, será possível que nada saiba fazer que seja sensato? — É verdade, digo eu, Varvara Nikoláievna, poderemos fazer algo que seja sensato?” Saí-me assim dessa vez. À noite saí a passear com o petiz. É preciso dizer-lhe que todas as noites, já antes, vínhamos passear por este mesmo caminho, até aquela enorme pedra isolada, lá embaixo perto da sebe, onde começam os pastos comunais: um lugar deserto e encantador. Caminhávamos de mãos dadas, como de costume; uma mãozinha bem pequena, de dedos delgados, gelados, porque ele sofre do peito. “Pápotchka, diz ele, pápotchka!” — “Que há?” — pergunto-lhe (via seus olhos cintilarem). — “Como te tratou ele, papai!” — “Que fazer, Iliúchka?” — “Não faças as pazes com ele, pápotchka, de modo nenhum. Os alunos dizem que ele te deu dez rublos por isso.” — “Não, meu pequeno, por coisa alguma do mundo aceitaria dinheiro dele, agora.” (Ele se pôs a tremer, agarrou minha mão nas suas, beijou-a.) — “Pápotchka, provoca-o para um duelo, na escola eles me infernizam dizendo que és um covarde, que não te baterás, mas que aceitarás dele dez rublos.” — “Não posso provocá-lo para um duelo, Iliúchka” — respondo-lhe, e lhe expus brevemente o que acabo de dizer ao senhor a esse respeito. Ele me escutou. — “Pápotchka — diz ele, no entanto —, não faças as pazes com aquele homem; quando eu crescer, eu mesmo o provocarei e o matarei!” Seus olhos brilhavam com um clarão intenso. Apesar de tudo, era pai dele e tornava-se necessário dizer-lhe uma palavra de verdade: “É um pecado — expliquei eu — matar seu próximo, mesmo em duelo.” — “Pápotchka, eu o derrubarei, quando for grande, farei saltar seu sabre de suas mãos e me lançarei sobre ele, brandindo o meu, e lhe direi: poderia matar-te, mas perdoo-te!” Está vendo, senhor, está vendo que trabalho se operou na cabecinha dele durante esses dois dias? Só fazia pensar na vingança com um sabre e deve ter falado disso em seu delírio. Quando voltou da escola, cruelmente batido, soube de tudo e, o senhor tem razão, não voltará mais lá. Fico sabendo que ele se levanta contra a classe inteira, que provoca a todos; está exasperado, seu coração arde de ódio, e então tenho medo por ele. Voltamos a passear. “Pápotchka — pergunta ele —, os ricos são os mais fortes neste mundo?” — “Sim, Iliúchka, não há ninguém mais poderoso que o rico.” — “Pápotchka — diz ele —, ficarei rico, serei oficial e baterei todos os inimigos, o czar me recompensará, voltarei para junto de ti e então ninguém ousará...” Após um silêncio, continuou, com os lábios trêmulos como antes: “Pápotchka, que cidade de gente ruim essa nossa!” — “Sim, Iliúchka, é uma cidade de gente ruim.” — “Pápotchka, vamos morar em outra, onde não nos conheçam.” — “Gostaria bem, Iliúchka, mudemo-nos; somente é preciso juntar dinheiro.” Rejubilo-me por poder assim distraí-lo de seus sombrios pensamentos; pusemo-nos a fazer projetos sobre a instalação numa outra cidade, a compra de um cavalo e de uma telega. “A mamãe e as manas montariam nela, nós as cobriríamos bem, nós mesmos caminharíamos ao lado, tu montarias de vez em quando, enquanto eu iria a pé, porque é preciso poupar o cavalo, todos não poderão ir ao mesmo tempo, seria assim que viajaríamos.” Ficou encantado, sobretudo por ter um cavalo que o conduziria. Sabe-se que um menino russo não vê nada de mais belo que um cavalo. Nós tagarelamos muito tempo. “Deus seja louvado — pensei eu —, distraí-o e consolei-o.” Foi anteontem, de noite; no dia seguinte, voltou da escola bastante sombrio. À noite, por ocasião do passeio, permaneceu silencioso. O vento sorpou mais forte, o sol desapareceu, sentia-se o outono e já estava escuro; estávamos tristes. “Pois bem, meu rapaz, como vamos fazer nossos preparativos?” Pensava retomar a conversa da véspera. Nem uma palavra. Mas seus dedinhos tremiam na minha mão. Isto vai mal, disse a mim mesmo, há novidade. Chegamos, como agora, até aquela pedra; sentei-me nela, haviam empinado papagaios que estalavam ao vento; havia bem uns trinta. É a estação agora. “Deveríamos nós também, Iliúchka, empinar o papagaio do ano passado. Consertá-lo-ei. Que fizeste dele?” Meu filho cala-se, olha para o lado, desviando a vista. De repente, o vento se põe a assobiar, levantando areia... Lança-se para mim, com ambos os braços enlaça-me o pescoço, abraça-me. Sabe que quando os meninos são taciturnos e altivos retêm muito tempo as lágrimas, mas, quando elas brotam, por motivo dum grande pesar, não correm, mas jorram? Suas lágrimas ardentes inundaram-me o rosto. Ele soluçava, convulsivamente, apertava-me contra ele. “Pápotchka — gritou ele —, meu querido pápotchka, como ele te humilhou!” Então os soluços dominaram-me e nos abalavam, enlaçados sobre esta pedra. Ninguém nos via então, exceto Deus. Talvez leve isso em conta. Agradeça a seu irmão, Alieksiêi Fiódorovitch. Não, não açoitarei meu filho para causar-lhe satisfação!

Terminou da mesma maneira esquisita e complicada de ainda há pouco. No entanto sentia Aliócha que aquele homem tinha confiança nele e não teria “conversado” assim com outro, nem feito aquela confidência. Isso encorajou Aliócha, que estava comovido até as lágrimas.

— Ah! Como gostaria de fazer as pazes com seu rapaz! — exclamou ele. — Se o senhor se encarregasse disso...

— Decerto — murmurou o capitão.

— Mas agora não é disso que se trata, escute! — prosseguiu Aliócha. — Tenho uma incumbência para o senhor. Meu irmão Dimítri insultou também sua noiva, uma nobre senhorita da qual o senhor já deve ter ouvido falar. Tenho o direito de revelar-lhe esse insulto, devo mesmo fazê-lo, porque, tendo sabido da ofensa que o senhor sofreu e de sua situação infeliz, ela me encarregou há pouco... de entregar-lhe este auxílio de sua parte... mas somente de sua parte, não em nome de Dimítri, que a abandonou, nem de mim, seu irmão, nem de ninguém, mas unicamente da parte dela! Suplica-lhe que aceite seu auxílio... Foram ambos ofendidos pelo mesmo homem... Ela só se lembrou do senhor quando sofreu de parte de Dimítri a mesma injúria que o senhor (igualmente gravíssima). É, pois, uma irmã que vem em auxílio de um irmão... Ela me encarregou precisamente de persuadi-lo a aceitar estes duzentos rublos de sua parte, como de parte de uma irmã, que conhece suas dificuldades. Ninguém ficará sabendo disto, não haverá que temer nenhuma comadrice malévola... Eis os duzentos rublos e, juro-lhe, deve aceitá-los, senão... senão só haveria inimigos no mundo! Mas há também irmãos... O senhor tem alma nobre... Deve compreendê-lo!...

E Aliócha estendeu-lhe duas cédulas de cem rublos novinhas. Ambos encontravam-se então justamente perto da grande pedra, na direção da paliçada; não havia ninguém nos arredores. Parece que as cédulas causaram profunda impressão no capitão; estremeceu, mas foi a princípio unicamente de surpresa; não pensava em nada de semelhante e não esperava absolutamente tal desenlace. Mesmo em sonho, jamais sonhara uma ajuda qualquer, e sobretudo tão importante. Pegou as cédulas e, durante quase um minuto, esteve incapacitado de responder; uma expressão nova apareceu em seu rosto.

— É para mim tanto dinheiro, duzentos rublos? Justo céu! Há quatro anos que não via tanto dinheiro, Senhor Deus! E ela diz que é uma irmã... É verdade, é verdade mesmo?

— Juro-lhe que tudo quanto disse é verdade! — exclamou Aliócha.

O capitão corou.

— Escute, meu caro, escute; se aceitar, não serei um covarde? A seus olhos, Alieksiêi Fiódorovitch, não o serei? Não, Alieksiêi Fiódorovitch, escute, escute — repetia ele a cada instante, tocando em Aliócha —, o senhor me persuade a aceitar sob o pretexto de que é uma “irmã” que o envia; mas o senhor mesmo, no íntimo, não sentirá desprezo por mim, se eu aceitar, hem?

— Não, mil vezes não! Juro-o por minha salvação! E ninguém jamais o saberá, exceto nós: o senhor, eu, ela e ainda uma dama, sua grande amiga...

— Que dama? Escute, Alieksiêi Fiódorovitch, escute, é agora indispensável porque o senhor não pode mesmo compreender o que representam para mim estes duzentos rublos — prosseguiu o infeliz, dominado pouco a pouco por uma exaltação desordenada, selvagem. Estava desorientado, falava com grande pressa, como se receasse que não o deixassem dizer tudo. — Além do fato de provir este dinheiro duma fonte honesta, duma “irmã” tão respeitável, sabe que posso tratar agora da mãe e de Nínotchka, minha filha, minha angélica corcundinha? O doutor Herzenstube foi à minha casa, por bondade de alma; examinou-as uma hora inteira: “Não compreendo nada”, disse ele. No entanto, a água mineral que lhe prescreveu fez-lhe certamente bem, ordenou também que ela banhasse os pés com remédios. A água mineral custa trinta copeques, talvez seja preciso beber umas quarenta garrafas. Peguei a receita e coloquei-a na prateleira, abaixo dos ícones, e lá está. Para Nínotchka, prescreveu banhos quentes numa solução especial, todos os dias, de manhã e de noite; como poderíamos nós seguir semelhante tratamento, alojados como estamos, sem criada, sem ajuda, nem água, nem utensílios? Ora, Nínotchka está entrevada de reumatismo, esqueci-me de dizer-lhe; de noite, todo o lado lhe dói, sofre um martírio, acreditaria o senhor? Aquele anjo se enrijece para não nos inquietar, contém-se para não gemer, a fim de não nos despertar. Comemos o que se apresenta, o que se encontra; ora, ela come o último bocado, bom para atirar ao cão. “Não mereço esse bocado, privo-os dele, sou uma carga para vocês.” Eis o que quer exprimir seu olhar celeste. Nós a servimos e isto lhe pesa. “Não o mereço; sou uma aleijada indigna de cuidados, boa para nada”, como se não os merecesse, quando sua doçura angélica é uma bênção para todos. Sem sua palavra mansa, a casa seria um inferno. Ela enterneceu a própria Vária. Não condene tampouco Varvara Nikoláievna; é também um anjo, também ela é infeliz. Chegou à nossa casa no verão, com 16 rublos, ganhos em dar lições e destinados a pagar seu regresso a Petersburgo, no mês de setembro, isto é, agora. Ora, nós comemos seu dinheiro e ela não tem mais nenhum com que possa voltar, eis a verdade. Aliás, não poderia partir, porque trabalha para nós como um galé, fizemos dela uma besta de carga, ocupa-se com tudo; é ela quem remenda, lava, varre, deita a mãe; ora, a mãe é caprichosa, chorona, uma louca!... Agora, com estes duzentos rublos, posso alugar uma criada, compreende o senhor, Alieksiêi Fiódorovitch, para cuidar daquelas queridas criaturas; enviarei a estudante para Petersburgo, comprarei carne, estabelecerei novo regime. Senhor, isso é um sonho!

Aliócha estava encantado por ter trazido tanta felicidade e ver que o pobre-diabo queria mesmo ser feliz.

— Espere, Alieksiêi Fiódorovitch, espere — e o capitão, agarrando-se a um novo sonho que se oferecia, recomeçou a taramelar com a mesma velocidade. — Sabe que com Iliúchka realizaremos, talvez, agora nosso sonho? Compraremos um cavalo e uma carriola, um cavalo preto, ele o pediu expressamente, e partiremos como marcamos anteontem. Conheço um advogado na província de K***, um amigo de infância. Deu-me a saber, por intermédio de um homem de confiança, que, se eu aparecesse lá, dar-me-ia ele, por exemplo, um lugar de secretário em seu escritório; quem sabe? Talvez dê mesmo... Então, a mãe e Nínotchka subiriam na carriola, Iliúchka conduziria, eu iria a pé, toda a família seria transportada... Senhor Deus, se pudesse eu apenas recuperar uma quantia que me devem, aqui, seria o bastante mesmo para essa viagem!

— Seria o bastante, seria o bastante! — exclamou Aliócha. — Katierina Ivânovna lhe mandará mais, tanto quanto o senhor queira, e sabe?, tenho também dinheiro, aceite o que precisar, como de um irmão, como de um amigo, depois o senhor me restituirá... (O senhor ficará rico!) Saiba que não poderia imaginar nunca nada de melhor do que essa mudança! Seria a salvação, sobretudo para seu rapaz; deveria partir mais depressa, antes do inverno, antes dos frios: o senhor nos escreveria de lá, ficaríamos irmãos... Não, não é um sonho!

Aliócha gostaria de abraçá-lo, tão contente estava. Mas, depois de fitá-lo, parou bruscamente: o capitão, de pescoço e lábios tensos, com o rosto lívido e exaltado, remexia os lábios como se quisesse dizer alguma coisa; nenhum som saía e seus lábios mexiam-se. Era estranho.

— Que tem? — indagou Aliócha, num estremecimento súbito.

— Alieksiêi Fiódorovitch... Eu... lhe... — murmurou o capitão, aos repelões, fixando-o com um ar estranho e selvagem, o ar de um homem que se vai lançar no vácuo, ao mesmo tempo que seus lábios sorriam. — Eu... lhe... Quer que lhe mostre um jogo de mãos? — cochichou ele, de súbito, rapidamente, num tom firme, sem parar.

— Que jogo?

— Um jogo, o senhor vai ver — repetiu o capitão, com a boca crispada; o olho esquerdo piscava, seu olhar não largava Aliócha, como pregado nele.

— Que tem o senhor então? De que jogo fala!? — exclamou Aliócha, bastante espantado.

— Ei-lo! Olhe! — vociferou o capitão.

E, mostrando-lhe as duas cédulas que durante a conversa mantinha entre o polegar e o índice, agarrou-as com raiva e amarrotou-as em seu punho fechado.

— O senhor viu, o senhor viu? — gritou ele, lívido, frenético; ergueu o punho e, com toda a força, atirou as duas células amarrotadas sobre a areia. — Viu? — vociferou de novo, mostrando-as com o dedo. — Pois bem, veja!

Com um encarniçamento selvagem, pôs-se a pisá-las com o calcanhar. Ofegava e lançava exclamações a cada golpe.

— Eis o que faço de seu dinheiro, eis o que faço dele!

De súbito, saltou para trás, ergueu-se diante de Aliócha. Toda a sua pessoa transpirava um orgulho indizível.

— Vá dizer aos que o enviaram que o esfregão de tília não vende sua honra! — exclamou ele, com o braço estendido. Depois girou rapidamente nos calcanhares e se pôs a correr. Mal dera cinco passos, quando se voltou para Aliócha, fazendo-lhe com a mão um gesto de adeus. Ao fim de outros cinco passos, voltou-se de novo; desta vez seu rosto não estava mais crispado pelo riso, mas estremecia todo sacudido pelo pranto. Gaguejou num tom lacrimoso. entrecortado:

— Que teria eu dito a meu rapaz, se tivesse aceitado o preço de nossa vergonha?

Depois disso, retomou sua carreira, desta vez sem se voltar. Aliócha acompanhou-o com os olhos, numa indizível tristeza. Compreendia que, até o derradeiro momento, o desgraçado não sabia que amarrotaria e atiraria fora as cédulas. Não se voltou mais uma vez sequer em sua carreira; Aliócha estava certo disso de antemão. Não quis persegui-lo e chamá-lo, sabia por quê. Quando o capitão se perdeu de vista, Aliócha apanhou as duas cédulas. Estavam muito amarrotadas, enrugadas, afundadas na areia, mas intatas, e estalaram mesmo como novas, quando Aliócha as descobriu e desenrolou. Depois de havê-las dobrado, meteu-as no bolso e foi dar conta a Katierina Ivânovna do resultado de sua missão.


Livro V

Pró e contra


I


Noivado


Foi a senhora Khokhlakova quem recebeu de novo Aliócha, toda azafamada; a crise de Katierina Ivânovna terminara com um desmaio, seguido “dum profundo abatimento. Agora ela delirava, presa da febre. Tinham mandado chamar Herzenstube e as tias. Estas já estavam lá. Esperava ansiosamente, enquanto jazia ela sem sentidos. Ah, se fosse uma febre nervosa”!

Assim dizendo, tinha a boa senhora o ar sério e inquieto. “É sério, desta vez, é sério”, acrescentava ela a cada palavra, como se tudo quanto lhe acontecera até então não contasse. Aliócha escutava-a com pesar. Quis contar-lhe sua aventura; ela, porém, interrompeu-o às primeiras palavras: não tinha tempo, rogou-lhe que fizesse companhia a Lisa, enquanto a esperasse.

— Lisa, meu caro Alieksiêi Fiódorovitch — cochichou-lhe quase ao ouvido —, Lisa espantou-me ainda há pouco, mas também enterneceu-me, por isso meu coração tudo lhe perdoa. Imagine que, logo depois de sua saída, revelou sincero pesar por ter zombado de você ontem e hoje. Mas não eram zombarias, ela brincava simplesmente. Quase chorava, o que me surpreendeu. Jamais antes se arrependia seriamente de suas zombarias a meu respeito, eram meras brincadeiras. Acontece-lhe a cada instante rir de mim. Mas agora, é sério, faz grande caso de sua opinião, Alieksiêi Fiódorovitch; se for possível, poupa-a, não lhe guarde rancor. Eu mesma só faço poupá-la, porque ela é tão inteligente, acredita-o? Dizia ela ainda há pouco que você era seu amigo de infância, “o mais sério”, imagine essa amizade séria; e eu, então? A este respeito tem sentimentos bastante sérios e até mesmo recordações, sobretudo essas frases, essas pequenas palavras, que brotam quando menos se espera. Recentemente, a propósito de um pinheiro, por exemplo. Havia um pinheiro em nosso jardim, quando ela era bem pequena, talvez exista ainda e não tenho razão de falar no passado. Os pinheiros não são como a pessoas, ficam muito tempo sem mudar, Alieksiêi Fiódorovitch. “Mamãe, disse ela, lembro-me daquele pinheiro como em sonho.”[ 87 ] Deve ter-se exprimido doutra forma; há aqui uma confusão; pinheiro é uma palavra tão boba... Em todo o caso, disse-me a esse respeito algo de original, que não atino repetir. Aliás, esqueci tudo. Pois bem, até logo, estou toda emocionada, é de perder a cabeça. Alieksiêi Fiódorovitch, estive louca duas vezes e curaram-me. Vá ver Lisa. Reconforte-a como você sabe tão bem fazer. Lisa — gritou ela, aproximando-se da porta —, trago-te tua vítima, Alieksiêi Fiódorovitch, que não está absolutamente zangado, asseguro-te; pelo contrário, admira-se de que hajas podido acreditar em tal.

— Merci, maman. Entre, Alieksiêi Fiódorovitch.

Aliócha entrou. Lisa olhou-o com um olhar confuso e corou até as orelhas. Parecia envergonhada e, como se faz em semelhantes casos, pôs-se a falar com rapidez a respeito de coisa bem diversa, fingindo interessar-se por isso exclusivamente.

— Mamãe acaba de contar-me, Alieksiêi Fiódorovitch, a história daqueles duzentos rublos e de sua missão... junto àquele pobre oficial... descrevendo-me aquela cena atroz, como o insultaram e sabe, muito embora mamãe conte muito mal... duma maneira desconchavada..., derramei lágrimas ao ouvir aquilo. Pois bem! Entregou-lhe você o tal dinheiro e como aquele desgraçado...

— Justamente não o entreguei a ele. É uma história muito longa — respondeu Aliócha, parecendo, por seu lado, sobretudo, preocupado com aquele caso; no entanto, notava Lisa que também ele desviava a vista e tinha visivelmente o espírito em outra parte. Aliócha sentou-se e começou a narrativa; desde as primeiras palavras, seu constrangimento desapareceu por completo e cativou por sua vez Lisa. Falava sob a influência da emoção e da viva impressão que sentira ainda há pouco, duma maneira interessante e pormenorizada. Já em Moscou, quando Lisa era ainda menina, gostava ele de visitá-la, quer para contar uma aventura recente, uma leitura que o impressionara, quer para lembrar um episódio de sua infância. Por vezes devaneavam juntos e compunham os dois verdadeiras novelas, na maior parte das vezes alegres e cômicas. Agora reviviam essas recordações, velhas, de dois anos. Lisa ficou vivamente emocionada pela narrativa dele. Aliócha pintou-lhe com calor Iliúchka. Depois que descreveu com detalhes a cena em que o infeliz havia pisoteado o dinheiro, Lisa juntou as mãos e não pôde impedir-se de exclamar:

— Então você não lhe deu o dinheiro, deixou-o partir? Deveria ter-lhe corrido atrás, procurando alcançá-lo...

— Não, Lisa, é melhor assim — disse Aliócha, que se levantou e se pôs a andar, com ar preocupado.

— Como melhor, melhor em quê? Agora, eles vão morrer de fome!

— Não morrerão, porque esses duzentos rublos lhes chegarão às mãos. De qualquer maneira, ele amanhã os aceitará. Estou certo disso — declarou Aliócha, andando, perplexo. — Veja você, Lisa — prosseguiu ele, parando bruscamente diante dela —, cometi um erro, mas teve ele um feliz resultado.

— Que erro e por que um feliz resultado?

— Eis por quê. Aquele homem é poltrão e de caráter fraco. Está muito ressentido, mas é um homem bom. Não cesso de perguntar a mim mesmo por que se ofendeu ele subitamente e pisou a pés o dinheiro, porque, asseguro-lhe, até o derradeiro momento não sabia ele que iria pisoteá-lo. E creio que se ofendeu por diversas razões... não podia ser de outro modo em sua situação... Em primeiro lugar, rejubilou-se por demais diante de mim à vista do dinheiro e não soube ocultar isso. Se tivesse mostrado uma alegria moderada e feito cerimônia, como outros em casos semelhantes fazem careta, teria podido resignar-se a aceitar, mas sua alegria foi demasiado sincera e isso lhe causou vexame. Lisa, ele é um homem sincero e bom, eis o pior em tais situações! Falava todo o tempo com uma voz fraca, debilitada, e tão depressa, tão depressa, que se teria dito que ria ou mesmo chorava... chorou mesmo de alegria... falou de suas filhas, do lugar que lhe dariam em outra cidade, e depois de ter-se expandido, teve vergonha de súbito de haver-me mostrado sua alma. Imediatamente detestou-me. É desses pobres envergonhados, extremamente orgulhosos. Ofendeu-se sobretudo por me ter tomado demasiado depressa por seu amigo e cedido tão rapidamente; depois de ter-se lançado contra mim para intimidar-me, abraçou-me e me acariciou à vista das cédulas. Naquela posição deve ter ressentido toda a sua humilhação, e foi então que eu cometi um erro grave. Declarei-lhe que, se não tivesse ele bastante dinheiro para mudar-se para outra cidade, dar-lhe-iam mais, eu mesmo lhe daria com meus próprios recursos. Eis o que o magoou: por que vinha também eu em seu socorro? Sabe você, Lisa, é extremamente penoso para um desgraçado ver que todos se consideram como benfeitores seu... ouvi-o dizer, o stáriets me falou disso! Não sei como exprimi-lo, mas tenho-o notado eu mesmo. E experimento o mesmo sentimento. Mas sobretudo, se bem que ignorasse ele até o derradeiro momento que pisotearia as cédulas, pressentia-o, é fatal. Eis por que experimentava tal alegria... E eis como, por mais desagradável que isso seja, tudo vai muito bem. Sou mesmo de opinião que nada poderia ocorrer de melhor.

— Como é isso possível!? — exclamou Lisa, olhando Aliócha com estupefação.

— Lisa, se, em lugar de pisotear esse dinheiro, tivesse-o ele aceitado, ao chegar em casa, uma hora depois, teria chorado de humilhação, é mais do que certo. No dia seguinte, viria lançar-me o dinheiro à cara, tê-lo-ia pisado, talvez, como ainda há pouco. Agora partiu todo orgulhoso e em triunfo, muito embora saiba que “se perde”. Portanto, nada é mais fácil, agora, do que obrigá-lo a aceitar esses duzentos rublos, não mais tarde do que amanhã, porque mostrou que era honrado, atirou fora e pisou o dinheiro. No entanto, tem necessidade urgente dessa soma. Por mais orgulhoso que ainda esteja neste momento, vai pensar no socorro de que se privou. Pensará nele ainda mais nesta noite, pensará amanhã de manhã talvez, estará pronto a correr à minha casa e desculpar-se. Será então que me apresentarei: “O senhor é orgulhoso, demonstrou-o. Pois bem, aceite agora, perdoe-nos.” Então ele aceitará.

Foi com uma espécie de embriaguez que Aliócha pronunciou estas palavras: “Então ele aceitará!” Lisa bateu palmas.

— Ah, é verdade, compreendi tudo de repente! Aliócha, como sabe você tudo isso? Tão jovem e já conhecedor do coração humano... Não o teria jamais acreditado.,.

— É preciso sobretudo persuadi-lo agora de que se acha em pé de igualdade com todos nós, embora aceite o dinheiro — prosseguiu Aliócha, exaltado —, e não somente de igualdade. mas mesmo de superioridade...

— “Em pé de superioridade!” É encantador, Aliócha, mas fale, fale!

— Quer dizer que não me exprimi como era devido... no caso de pé... mas isso não importa... porque...

— Mas isso não importa, decerto, absolutamente! Perdoe-me, querido Aliócha... Até agora, quase não tinha respeito por você... isto é, tinha, mas decerto num pé de igualdade, doravante será num pé de superioridade... Meu querido, não se zangue se procuro fazer espírito — encareceu com vivo sentimento. — Sou uma pequena zombeteira, mas você, você!... Diga-me, Alieksiêi Fiódorovitch, não há em toda a nossa discussão... desdém por esse infeliz... pelo fato de dissecarmos sua alma com certa altivez, dando como certo desde agora que aceitará o dinheiro?

— Não, Lisa, não há desdém — respondeu com firmeza Aliócha, como se previsse essa pergunta —, já pensei nisso ao vir para cá. Julgue você mesma: que desdém pode haver, quando somos todos iguais a ele, quando todos o são? Porque não valemos mais. Fôssemos nós melhores, seríamos semelhantes no lugar dele. Ignoro o que seja você, Lisa, mas acho que tenho a alma mesquinha para muitas coisas. A alma dele não é mesquinha, mas bastante delicada... Não, Lisa, não há nenhum desdém para com ele! Sabe, Lisa, meu stáriets disse uma vez: “É preciso muitas vezes tratar as pessoas como as crianças e algumas como a doentes.

— Caro Alieksiêi Fiódorovitch, quer que tratemos as pessoas como a doentes?

— Decerto, Lisa, estou disposto a isso, mas não completamente, por vezes mostro-me por demais impaciente ou então não reparo em nada. Você, você não é assim.

— Ah, não o creio! Alieksiêi Fiódorovitch, quanto sou feliz!

— Como é bom que você diga isso, Lisa!

— Alieksiêi Fiódorovitch, você é de uma bondade surpreendente, mas por vezes tem o ar pedante... no entanto, vê-se que você não o é. Vá sem fazer rumor abrir a porta e veja se mamãe não nos escuta — cochichou rapidamente Lisa.

Aliócha fez o que ela pedia e declarou que ninguém estava à escuta.

— Venha cá, Alieksiêi Fiódorovitch — prosseguiu Lisa, corando cada vez mais. — Dê-me sua mão; assim. Escute, tenho uma grande confissão a fazer-lhe: escrevi-lhe ontem, não por brincadeira, mas seriamente...

E cobriu os olhos com a mão. Via-se que esta confissão lhe custava muito. De repente, agarrou a mão de Aliócha e beijou-a três vezes, impetuosamente.

— Ah, Lisa, é admirável! — exclamou Aliócha, todo contente. — Eu sabia bem que era sério...

— Vejam só que segurança! — Repeliu-lhe a mão sem contudo a largar, corou, e riu-se, levemente, cheia de felicidade. — Beijo-lhe a mão, e ele acha isso admirável.

Censura injusta, aliás; Aliócha estava também bastante perturbado.

— Gostaria de agradar-lhe sempre, Lisa, mas não sei como fazer — murmurou ele, corando por sua vez.

— Aliócha, meu querido, você é frio e presunçoso. Vejam só isso! Não se dedignou de escolher-me por esposa e ei-lo tranquilo! Estava certo de que lhe tinha escrito seriamente. Mas isso é pura presunção!

— Estava eu errado acreditando estar certo? — E Aliócha pôs-se a rir.

— Pelo contrário, Aliócha, estava muito bem.

Lisa olhou-o ternamente e cheia de felicidade. Aliócha havia mantido a mão dela na sua. De repente, inclinou-se e beijou-a na boca.

— Que é isso? Que tem você!? — exclamou Lisa. Aliócha ficou todo desconcertado.

— Perdoe-me, se fiz mal... Talvez tenha cometido uma tolice... Você me achava frio e então eu a beijei... Mas vejo que foi uma tolice...

Lisa desatou a rir e ocultou o rosto nas mãos.

— E com esse traje! — deixou ela escapar, rindo; mas, de súbito, parou, ficou séria, quase severa. — Não, Aliócha, para mais tarde os beijos, porque nós dois não entendemos disso ainda e é preciso esperar ainda muito tempo — concluiu ela. — Diga-me antes por que escolhe para esposa uma tola e uma doente como eu, você tão inteligente, tão refletido, tão penetrante? Aliócha, sinto-me muito feliz, porque sou indigna de você.

— Mas não, Lisa! Em breve deixarei o mosteiro completamente. Ao voltar para o mundo, terei de casar-me, eu o sei. “Ele” me ordenou. Quem acharia eu melhor que você... e quem haveria de querer-me, senão você? Já refleti nisso. Em primeiro lugar, você me conhece desde a infância; em segundo lugar, tem você muitas qualidades que me faltam totalmente. É mais alegre do que eu; sobretudo, mais ingênua, porque eu já aflorei muitas coisas... Ah, não sabe você que sou um Karamázov? Que importa que você ria e pilherie, e mesmo à minha custa? Fico tão contente com isso... Mas você ri como uma menina e se atormenta com seus pensamentos.

— Como, me atormento? Como isso?

— Sim, Lisa, sua pergunta, ainda há pouco: “não há desdém por esse infeliz, pelo fato de dissecarmos assim sua alma?”, é uma pergunta dolorosa... Vê você? Não sei explicar-me, mas os que fazem tais perguntas são capazes de sofrer. Em sua cadeira, deve você meditar muito...

— Aliócha, dê-me sua mão. Por que a retira? — murmurou Lisa, numa voz enfraquecida pela felicidade. — Escute, como se trajará você, quando sair do mosteiro? Não ria e trate de não se zangar, é muito importante para mim.

— Quanto ao traje, Lisa, ainda não pensei nele, mas escolherei aquele que lhe agradar.

— Gostaria de vê-lo usar um casaco de veludo azul-escuro, um colete de piquê branco e um chapéu de feltro cinzento... Diga-me, acreditou você ainda há pouco que eu não o amava, quando me desdisse de minha carta de ontem?

— Não, não acreditei.

— Oh, o insuportável, incorrigível!

— Vê você? Sabia que você... me amava, mas fingi crer que você não me amava mais, para ser-lhe... agradável...

— É pior ainda! Tanto pior e tanto melhor. Aliócha, eu o adoro. Antes de sua chegada, tinha dito a mim mesma: “Vou pedir-lhe a carta de ontem e, se ele me restitui-la sem dificuldade (como se pode esperar de sua parte), isso significa que ele não me ama absolutamente mais, que não sente nada, que não passa de um garoto tolo e que estou perdida.” Mas você deixou a carta na cela e isso me restituiu coragem; não teria sido pelo fato de pressentir você que eu tornaria a pedir-lhe e a fim de não me restituir? Não é verdade?

— Não é isso de todo, Lisa, porque tenho a carta comigo, como a tinha ainda há pouco; está neste bolso, ei-la.

Aliócha tirou a carta rindo e mostrou-lhe de longe.

— Somente não lhe darei. Contente-se com olhá-la.

— Como, você mentiu? Você, um monge, mentindo?

— É verdade que menti, mas foi para não lhe devolver a carta. É preciosa para mim — acrescentou, com fervor, corando de novo — e não a darei a ninguém.

Lisa examinava-o, encantada.

— Aliócha — cochichou ela —, vá ver se mamãe não nos está escutando.

— Bem, Lisa, olharei, mas não seria melhor não fazê-lo? Por que suspeitar que sua mamãe pratique essa baixeza?

— Como? Que baixeza? Mas vigiar a filha é seu direito, não há baixeza. Esteja certo, Alieksiêi Fiódorovitch, de que, quando eu for mãe e tiver uma filha, igual a mim, vigiá-la-ei da mesma maneira.

— Deveras, Lisa? Mas isso não está bem.

— Meu Deus! Que baixeza há nisso? Se ela escutasse uma conversa mundana, seria vil; mas trata-se da filha a sós com um rapaz... Saiba, Aliócha, que vou vigiá-lo desde que nos casarmos, abrirei todas as suas cartas para lê-las... Já está prevenido...

— Decerto, se faz questão disso... — murmurou Aliócha. — Mas não será louvável...

— Que desdém! Aliócha, meu bem, não briguemos desde o começo. Prefiro falar-lhe francamente: é censurável, decerto, escutar às portas, estou errada e você está certo, mas isso não me impedirá de escutar.

— Pois escute. Você nunca me haverá de apanhar em falta — disse, rindo, Aliócha.

— Outra coisa: obedecer-me-á você em tudo? É preciso decidir isso também desde já.

— De muito boa vontade, Lisa, salvo nas coisas essenciais. Nesses casos, mesmo se você não estiver de acordo comigo, só me submeterei à minha consciência.

— Isso é o que deve ser. Saiba que não somente estou pronta a obedecer-lhe nos casos graves, mas cederei a você em tudo, juro-lhe desde agora, em tudo e por toda a minha vida — gritou Lisa apaixonadamente —, e isso com felicidade, com alegria! Além do mais, juro-lhe jamais escutar às portas e ler suas cartas, porque você tem razão. Por mais forte que seja minha curiosidade, resistirei a isso, pois que você acha isso vil. Você é agora a minha Providência... Diga-me, Alieksiêi Fiódorovitch, por que está você tão triste nos últimos dias? Sei que tem aborrecimentos, pesares, mas noto ainda em você uma tristeza oculta, talvez.

— Sim, Lisa, tenho uma tristeza oculta. Vejo que você me ama, uma vez que adivinhou isso.

— Que tristeza? A propósito de quê? Pode-se saber? — perguntou timidamente Lisa.

— Mais tarde, Lisa, lhe direi... — Aliócha perturbou-se. — Agora você não compreenderia. E eu mesmo não saberia explicar-lhe.

— Sei também que você se atormenta por causa de seus irmãos e de seu pai.

— Sim, de meus irmãos — proferiu Aliócha, pensativo.

— Não gosto de seu irmão Ivan Fiódorovitch, Aliócha.

Essa observação surpreendeu Aliócha, mas não a rebateu.

— Meus irmãos se perdem — prosseguiu ele — e meu pai igualmente. Arrastam outros consigo. É a “força da terra” própria dos Karamázov, segundo a expressão do padre Paísi, uma força violenta e brutal... Ignoro mesmo se o espírito de Deus domina essa força. Sei somente que eu mesmo sou um Karamázov... Sou um monge, um monge... Dizia você ainda há pouco que sou um monge?

— Sim, disse-o.

— Ora, talvez não creia em Deus.

— Não crê? Que está dizendo? — murmurou Lisa, com reserva. Mas Aliócha não respondeu. Havia naquelas palavras bruscas algo de misterioso, de demasiado subjetivo talvez, que ele próprio não explicava a si mesmo e que o atormentava.

— Além do mais, meu amigo se vai; o mais eminente dos homens vai deixar a terra. Se você soubesse, Lisa, os laços morais que me ligam àquele homem! Vou ficar só... Voltarei a vê-la, Lisa... Doravante, estaremos sempre juntos.

— Sim, juntos, juntos! Desde agora e por toda a vida. Beije-me, permito-lhe.

Aliócha beijou-a.

— Agora, vá embora! Que o Cristo esteja com você! (Fez sobre ele o sinal da cruz.) Vá vê-lo enquanto ainda é tempo. Tenho sido cruel, retendo-o. Hoje rezarei por ele e por você. Aliócha, seremos felizes, não é verdade?

— Creio que sim, Lisa.

Aliócha não tinha intenção de procurar a senhora Khokhlakova ao sair do quarto de Lisa, mas encontrou-a na escada. Desde as primeiras palavras adivinhou que ela o esperava.

— É horrível Alieksiêi Fiódorovitch. É uma infantilidade e uma tolice. Espero que você não vá imaginar... Tolices, tolices! — exclamou ela, zangada.

— Mas não lhe diga; isso a agitaria e lhe faria mal.

— Eis a palavra sábia dum jovem prudente. Devo entender que você estava consentindo unicamente por piedade por seu estado doentio, com medo de irritá-la, contradizendo-a?

— Absolutamente; falei-lhe com toda a seriedade — declarou Aliócha com firmeza.

— Deveras? É impossível. Em primeiro lugar, nossa casa ser-lhe-á fechada, em seguida; partirei e levá-la-ei comigo, fique sabendo!

— Mas por quê? — disse Aliócha. — Ainda está longe, 18 meses talvez a esperar.

— É verdade, Alieksiêi Fiódorovitch, e em 18 meses poderão vocês brigar e separar-se. Mas sou tão infeliz! São tolices, de acordo, mas isso me consternou. Sou como Famússov na derradeira cena,[ 88 ] o senhor é Tchátski, ela é Sófia. Corri aqui para encontrá-lo. Na comédia, também as peripécias se passam na escada. Ouvi tudo, mal me podia conter. Eis pois a explicação para essa noite em claro e as recentes crises nervosas! O amor para a filha, morte para a mãe! Agora, um segundo ponto, essencial: que carta é essa que Lisa lhe escreveu? Mostre-me imediatamente!

— Não, para quê? Dê-me notícias de Katierina Ivânovna, isso me interessa bastante.

— Continua a delirar e não recuperou os sentidos; suas tias estão aqui a se lamentar, com seus ares imponentes. Herzenstube veio, ficou de tal modo espantado que eu não sabia o que fazer, queria mesmo mandar chamar outro médico. Levaram-no em meu carro. E, para dar cabo de mim, ei-lo com essa carta! É verdade que 18 meses nos separam de tudo isso. Em nome do que há de mais sagrado, em nome de seu stáriets moribundo, mostre-me essa carta, a mim, mãe dela. Segure-a, se quiser, eu a lerei a distância.

— Não, não lhe mostrarei, Katierina Óssipovna, mesmo que ela o permitisse. Voltarei amanhã, conversaremos, se quiser; agora, adeus.

E Aliócha saiu precipitadamente.

 

II


Smierdiákov e seu violão


Não tinha, aliás, tempo. Ao despedir-se de Lisa, viera-lhe uma ideia: como fazer para encontrar imediatamente o irmão Dimítri, que parecia evitá-lo? Já eram três horas da tarde: Aliócha experimentava vivo desejo de voltar ao mosteiro, para ir ter com o “ilustre” moribundo; mas a necessidade de ver Dimítri venceu-o; o pressentimento de uma catástrofe iminente crescia em seu espírito. De que natureza era ela, que teria ele querido dizer agora a seu irmão, ele mesmo não tinha ideia nítida. “Que meu benfeitor morra sem mim! Pelo menos, não me censurarei toda a minha vida por não ter salvo alguém, quando talvez podia fazê-lo, ter passado além na pressa de regressar à casa. Aliás, obedeço assim à vontade dele...”

Seu plano consistia em surpreender Dimítri de improviso. Eis como: escalando a cerca, como na véspera, penetraria no jardim e se instalaria no pavilhão. “Se ele não estiver lá, sem nada dizer a Fomá nem às proprietárias, ficarei oculto, a esperar até a noite. Se Dimítri está ainda tocaiando ali a vinda de Grúchenhka, virá provavelmente ao pavilhão... ” Aliás, Aliócha não se deteve em detalhes do plano, mas resolveu executá-lo, embora devesse não voltar ao mosteiro naquele dia.

Tudo se passou sem obstáculo; transpôs a cerca quase no mesmo lugar que na véspera e dirigiu-se secretamente para o pavilhão. Não desejava ser notado; a propriedade, bem como Fomá (se estivesse lá) poderiam ficar do lado de seu irmão e conformar-se com suas instruções, portanto não deixar Aliócha entrar no jardim ou advertir Dimítri, a tempo, de sua presença. Sentou-se no mesmo lugar e se pôs à espera; o dia era tão belo como o anterior, mas o pavilhão pareceu-lhe mais arruinado do que na véspera. O pequeno copo de conhaque deixara um círculo sobre a mesa verde. Ideias ociosas vinham-lhe ao espírito, como acontece sempre por ocasião de uma espera aborrecida: por que se sentara ele precisamente no mesmo lugar e não em outro? A tristeza invadia-o, proveniente duma vaga inquietação. Esperava havia um quarto de hora apenas, quando ressoaram perto os acordes de um violão. Provinha das moitas a uns vinte passos, quando muito. Aliócha lembrou-se de ter entrevisto na véspera, perto do tapume, à esquerda, um velho banco rústico e verde, entre os arbustos. Era dali que partiam os sons. Uma voz masculina cantava em falsete, acompanhando-se do violão:


Uma força pertinaz

À amada preso me traz,

Senhor, tende piedade,

Dela e de mim!

Dela e de mim!


A voz parou: voz de tenorino com floreios de lacaio. Uma voz de mulher, cariciosa e tímida, proferiu, afetadamente:

— Por que se vê você tão raramente, Páviel Fiódorovitch, por que se esquece de nós?

— Nada disso — respondeu a voz de homem, com uma dignidade firme, se bem que cortês. Via-se que era o homem quem dominava, que a mulher o cortejava. “Deve ser Smierdiákov — pensou Aliócha —, a julgar pela voz pelo menos. A mulher é decerto a filha da dona da casa, a que voltou de Moscou e vai de vestido de cauda tomar sopa em casa de Marfa Ignátievna...”

— Adoro os versos, quando são harmoniosos — prosseguiu a voz feminina. — Continue.

A voz voltou a cantar:


Pouco me importa a coroa,

Se minha amada está boa,

Senhor, tende piedade,

Dela e de mim!

Dela e de mim!


— Da vez passada foi bem melhor — observou a mulher. — Você cantava, a propósito da coroa: “Se meu benzinho está bem.” Era mais terno.

— Versos são ninharias! — cortou Smierdiákov.

— Oh! Não, adoro os versos.

— Os versos! Não há nada de mais tolo. Julgue você mesma; será que a gente fala rimando? Se falássemos todos rimando, mesmo por ordem das autoridades, seria isso por muito tempo? Os versos não são coisa séria, Maria Kondrátievna.

— Como você é inteligente! Onde aprendeu tudo isso? — continuou a voz, cada vez mais cariciosa.

— Saberia muito mais, se a sorte não me tivesse sido sempre contrária. Teria matado em duelo aquele que me chamasse de vilão, porque não tenho pai e nasci duma fedorenta.[ 89 ] Eis o que me lançaram em rosto, em Moscou, onde souberam disso por Grigóri Vassílievitch. Ele me censura por me revoltar contra meu nascimento: “Tu lhe rompeste as entranhas.” Pois seja, mas teria preferido que me matassem no ventre de minha mãe a ter nascido. Dizia-se no mercado — e sua mãe me contou isso com sua falta de delicadeza — que a cabeça de minha mãe era ninho de galinha e que tinha de altura apenas dois archini e pico. Por que dizer “e pico”, quando podiam ter dito, como toda gente costuma dizer, simplesmente: “e um pouco mais”? É essa uma maneira boba de falar, muito própria de gente rústica. Pode o mujique falar direito diante de um homem culto? Por efeito de sua incultura, não possui senso nenhum do bem falar. Eu, desde menino, sempre que ouvia esse “e pico”, tinha vontade de dar cabeçadas na parede. Detesto tudo quanto é russo, Maria Kondrátievna.

— Se você fosse um cadete ou um jovem hussardo, não falaria assim, mas tiraria seu sabre em defesa da Rússia.

— Não somente não desejaria ser hussardo, Maria Kondrátievna, mas desejo, pelo contrário, a supressão de todos os soldados.

— E se o inimigo vier, quem nos defenderá?

— De que servirá? Em 1812, viu a Rússia a grande invasão do imperador dos franceses, Napoleão I, pai do atual,[ 90 ] e bom teria sido se os franceses nos tivessem conquistado; uma nação inteligente teria subjugado um povo estúpido, anexando-o. Tudo teria marchado de outra maneira.

— Quer dizer com isso que eles valem mais do que nós? Pois eu não trocaria um de nossos elegantes por três ingleses jovens — declarou com voz terna Maria Kondrátievna, acompanhando (provavelmente) suas palavras com o olhar mais langoroso.

— Isto depende dos gostos.

— Você parece um estrangeiro entre nós, o mais nobre estrangeiro, digo-o sem nenhuma vergonha.

— Para falar a verdade, no que diz respeito à corrupção, as pessoas de lá e as de cá se assemelham. Todos uns velhacos, com esta diferença: o estrangeiro anda de botas envernizadas, ao passo que nosso tratante nacional vive de cócoras em sua miséria e não se queixa. É preciso fustigar o povo russo, como o disse ontem com razão Fiódor Pávlovitch, muito embora ele e seus filhos não passem de uns loucos.

— Você respeita muito Ivan Fiódorovitch, você mesmo o disse.

— Mas tratou-me de lacaio fedorento. Toma-me por um revoltado, no que se engana. Se tivesse eu algum dinheiro, desde muito haveria fugido daqui. Dimítri Fiódorovitch é pior que um lacaio, por sua conduta e por sua inteligência; é um balaio furado, um bom para nada e, no entanto, o respeitam. Eu não passo de um queima-panelas, admitamos; mas, com sorte, poderia abrir um café-restaurante em Moscou, na rua de São Pedro. Porque, com efeito, preparo pratos especiais e nenhum de meus colegas, em Moscou, é capaz disso, exceto os estrangeiros. Dimítri Fiódorovitch é um vagabundo, mas, se provocar para duelo um filho de conde, não se recusará ele a comparecer ao terreno. Ora, que tem ele mais do que eu? É infinitamente mais estúpido. Quanto dinheiro já não gastou, sem mais nem menos?

— Isso de duelo deve ser coisa muito interessante — insinuou Maria Kondrátievna.

— Como assim?

— É espantoso, tal bravura, sobretudo quando jovens oficiais trocam balas por causa de uma mulher. Que quadro! Ah! Se as mulheres pudessem assistir a isso... Eu gostaria tanto...

— É bonito quando se presencia; mas, quando o alvo é a garganta da gente, a impressão não é nada agradável. Você sairia a correr, Maria Kondrátievna.

— E você, fugiria também?

Smierdiákov não se dignou responder. Depois de uma pausa, novo acorde soou, e a voz de falsete entoou a derradeira copla:


Por mais esforços que façam,

Ninguém aqui me retém,

Vou gozar a minha vida,

Vou viver na capital,

E não hei de lamentar-me,

Não, não me lamentarei...


Nesse momento, sobreveio um incidente. Aliócha espirrou; o silêncio se fez no banco. Levantou-se e marchou para o lado deles. Era com efeito Smierdiákov, trajado com todo o apuro, empomadado, creio que até mesmo de cabelos frisados e botinas envernizadas. Trazia seu violão a tiracolo. A mulher era Maria Kondrátievna, a filha da proprietária, moça nada feia, mas de rosto demasiado redondo, semeado de sardas; trazia um vestido azul-claro, com uma cauda de dois archini.

— Meu irmão Dimítri tardará a chegar? — perguntou Aliócha, com o tom mais calmo possível.

Smierdiákov levantou-se lentamente; sua companheira imitou-o.

— Como posso eu saber das idas e vindas de Dimítri Fiódorovitch? Seria diferente se fosse eu seu guardião — respondeu tranquilamente Smierdiákov, com um matiz de desdém.

— Perguntava simplesmente se você sabia.

— Ignoro onde ele se encontra e não quero sabê-lo.

— Meu irmão me disse que você o informava de tudo quanto se passa na casa e lhe havia prometido anunciar-lhe a chegada de Agrafiena Alieksándrovna.

Smierdiákov, impassível, ergueu os olhos para Aliócha.

— Como fez para entrar? Há já uma hora que a porta foi aferrolhada.

— Ora, escalei a cerca. Espero que me desculpe (dirigia-se a Maria Kondrátievna), estava com pressa de ver meu irmão.

— Ah, nada há que desculpar! — murmurou a jovem, lisonjeada. — Dimítri introduz-se muitas vezes dessa maneira no pavilhão; já está instalado, antes que a gente o tenha visto.

— Estou à sua procura, gostaria muito vê-lo. Não poderia dizer-me onde se encontra ele neste momento? É para um negócio sério que lhe diz respeito.

— Ele não nos diz para onde vai — balbuciou a moça.

— Mesmo aqui, em casa de meus conhecidos, seu irmão me perseguia com perguntas a respeito de meu amo — disse Smierdiákov. — Que se passa em casa dele, quem entra, quem sai, se não tenho nada a comunicar-lhe? Por duas vezes ameaçou matar-me.

— Será possível? — admirou-se Aliócha.

— Pensa que ele se constrangeria, com o caráter que tem? Pode o senhor mesmo julgar por ontem. “Se não conseguir ter com Agrafiena Alieksándrovna e ela passar a noite em casa do velho, não respondo por sua vida”, disse-me ele. Tenho muito medo, e, se ousasse, deveria denunciá-lo às autoridades. Deus sabe do que é ele capaz.

— Um dia desses, disse-lhe: “Eu te pilaria num pilão” — acrescentou Maria Kondrátievna.

— Talvez não passe isso de palavras vazias... — observou Aliócha. — Se eu pudesse vê-lo, falar-lhe-ia a esse respeito.

— Eis tudo quanto posso comunicar-lhe — disse Smierdiákov, depois de ter refletido. — Venho frequentemente aqui como vizinho. Por que não? Por outra parte, Ivan Fiódorovitch mandou-me hoje bem cedo à casa de Dimítri Fiódorovitch, na rua do Lago, para dizer-lhe que fosse sem falta jantar com ele no botequim da praça. Fui lá, mas não o encontrei; já eram oito horas. “Ele veio e depois partiu”, disse-me textualmente o dono da casa. Dir-se-ia que haviam combinado isso. Neste momento, talvez esteja à mesa com Ivan Fiódorovitch, porque este não voltou para jantar; quanto a Fiódor Pávlovitch, há já uma hora que jantou e agora faz a sesta. Mas rogo-lhe instantemente que não revele nada disso, ele seria capaz de matar-me por uma bagatela.

— Meu irmão Ivan marcou encontro com Dimítri no botequim, hoje? — insistiu Aliócha.

— Sim.

— No botequim A Capital, na praça?

— Precisamente.

— É bem possível! — exclamou Aliócha, agitado. — Agradeço-lhe, Smierdiákov, a notícia é importante, corro lá imediatamente.

— Não me atraiçoe.

— Não, apresentar-me-ei como por acaso, fique tranquilo.

— Aonde vai então? Vou abrir-lhe a porta — gritou Maria Kondrátievna.

— Não, é mais perto por aqui. Vou transpor a cerca.

Aquela notícia impressionara Aliócha, que correu ao botequim. Não seria conveniente entrar ali com aquele seu traje, mas podia informar-se e chamar seus irmãos à escada. Assim que se aproximou do botequim, uma janela se abriu e Ivan gritou-lhe:

— Aliócha, podes vir ter aqui comigo? Ficar-te-ei infinitamente grato.

— Sim, mas com esta roupa...

— Estou num gabinete reservado, sobe o patamar, vou a teu encontro.

Um instante depois, estava Aliócha sentado ao lado do irmão. Ivan jantava sozinho.

 

III


Os irmãos travam amizade


Na verdade, a mesa de Ivan, perto da janela, estava protegida por um simples biombo contra os olhares indiscretos. Encontrava-se ao lado do balcão, na primeira sala, em que os garçons circulavam a todo instante. Somente um velhinho, militar reformado, bebia chá num canto. Em outras salas, ouvia-se o barulho habitual dos botequins: chamados, garrafas que se desarrolhavam, os choques das bolas no bilhar. Um órgão fazia-se ouvir. Aliócha sabia que seu irmão não gostava dos botequins e a eles quase nunca ia. Sua presença só se explicava, pois, pela entrevista marcada com Dimítri.

— Vou mandar pedir para ti uma sopa de peixe ou outra coisa. Não vives de chá somente. — Ivan estava visivelmente encantado com a companhia de Aliócha. Acabara de jantar e tomava chá.

— De acordo, e em seguida chá, estou com fome — disse Aliócha num tom jovial.

— E doce de cerejas? Lembras-te de como gostavas dele, em tua infância, em casa de Políenov?

— Ah! Lembras-te? Quero sim, gosto ainda dele.

Ivan tocou a campainha, ordenou uma sopa de peixe, chá e doces.

— Lembro-me de tudo, Aliócha. Tu tinhas 11 anos e eu 15. A camaradagem entre irmãos não é possível naquela idade, com quatro anos de diferença. Não sei mesmo se gostava de ti. Nos primeiros anos de minha estada em Moscou, nem mesmo pensava em ti. Depois, quando lá apareceste por tua vez, encontramo-nos uma única vez, creio. Há quatro anos que vivo aqui e não temos conversado. Parto amanhã e pensava ainda há pouco nos meios de ver-te para dizer-te adeus. Chegas a propósito.

— Desejavas muito ver-me?

— Muito. Quero que aprendamos a conhecer-nos mutuamente. Em seguida, nos separaremos. Em minha opinião, vale melhor conhecermo-nos antes de separar-nos. Tenho notado como me observavas, durante esses três meses. Lia-se em teus olhos uma expectativa contínua. Não saberia tolerar isso e era o que me mantinha a distância. Afinal, aprendi a estimar-te: eis, pensava eu, um homenzinho de caráter firme. Nota que falo seriamente, embora rindo. Porque tu és firme, não és? Gosto de firmeza, por não importa qual motivo e mesmo na tua idade. Enfim, teu olhar ansioso deixou de desagradar-me, tornou-se-me mesmo simpático. Dir-se-ia que tens afeição por mim, Aliócha.

— Decerto, Ivan. Dimítri diz que és um túmulo. Eu digo que és um enigma. Tu o és ainda agora para mim, no entanto começo a compreender-te, desde esta manhã apenas.

— Que queres dizer? — disse Ivan, rindo.

— Não te zangarás, pelo menos? — perguntou Aliócha, rindo também.

— E então?

— Então, descobri que és um rapaz semelhante a todos os outros, aos 23 anos, um rapaz bem viçoso, bem gentilmente ingênuo, um verdadeiro fedelho, em uma palavra. Minhas palavras não te ofendem?

— Pelo contrário, estou admirado duma coincidência! — exclamou Ivan, com ímpeto. — Acreditarias que, desde nossa conversa desta manhã, só penso na ingenuidade de meus 23 anos, e é por isso que começas, como se o tivesses adivinhado? Sabes o que dizia a mim mesmo ainda há pouco? Se não tivesse mais fé na vida, se duvidasse duma mulher amada, da ordem universal, persuadido ao contrário de que tudo não é senão um caos infernal e maldito e estivesse eu presa dos horrores da desilusão — mesmo então quereria viver ainda assim. Depois de ter bebido na taça encantada, só a deixaria uma vez esgotada. Aliás, perto dos trinta anos, pode ser que sinta saudade dela, mesmo inacabada, e irei... não sei aonde. Mas até os trinta anos, tenho certeza, minha mocidade triunfará de tudo, do desencanto, do desgosto de viver. Muitas vezes tenho perguntado a mim mesmo se haveria no mundo um desespero capaz de vencer em mim esse furioso apetite de viver, inconveniente talvez; e penso que ele não existe, pelo menos antes de trinta anos. Esta sede de viver é chamada de vil por certos moralistas a catarrentos e tuberculosos, sobretudo por poetas. É verdade que é um traço característico dos Karamázov, essa sede de viver a qualquer preço; encontra-se em ti, mas por que haveria de ser vergonhoso? Há ainda muita força centrípeta em nosso planeta, Aliócha. Quer-se viver, e eu vivo, mesmo a despeito da lógica. Não creio na ordem universal, pois seja; mas amo os brotos tenros na primavera, o céu azul, amo certas pessoas, sem saber por quê. Amo o heroísmo, no qual talvez tenha deixado de crer desde muito tempo, mas que, venero por hábito. Eis que te trazem a sopa de peixe. Bom apetite. É excelente, preparam-na bem aqui. Quero viajar pela Europa, Aliócha. Sei que não encontrarei lá senão um cemitério, mas quão querido! Queridos mortos nele repousam, cada pedra atesta a vida ardente deles, a fé apaixonada em seus ideais, a luta pela verdade e pela ciência. Oh! Cairei de joelhos diante daquelas pedras, beijá-las-ei, derramando lágrimas. Convencido, aliás, intimamente, de que tudo aquilo não é senão um cemitério e nada mais. E não serão lágrimas de desespero, mas de felicidade. Embriago-me com meu enternecimento. Gosto dos brotos tenros da primavera e do céu azul. A inteligência e a lógica não entram nisso absolutamente, é o coração que ama, é o ventre, gosta-se das primeiras forças juvenis... Compreendes tu alguma coisa dessa minha arenga, Aliócha? — E Ivan pôs-se a rir.

— Compreendo por demais, Ivan; desejar-se-ia amar pelo coração e pelo ventre, como bem o disseste. Estou encantado com esse teu ardor de viver. Penso que se deve amar a vida acima de tudo.

— Amar a vida, em vez do sentido da vida?

— Decerto. Amá-la antes de raciocinar, sem lógica, como dizes; então somente compreender-se-á o sentido dela. Eis o que entrevejo há muito tempo. A metade de tua tarefa está realizada e adquirida, Ivan: amas a vida. Ocupa-te com a segunda parte, é a salvação.

— Estás muito apressado em salvar-me, talvez não esteja eu ainda perdido. Em que consiste essa segunda parte?

— Em ressuscitar teus mortos, que estão talvez ainda vivos. Dá-me chá. Estou satisfeito com nossa conversa, Ivan.

— Vejo que estás de veia. Gosto dessas professions de foi,[ 91 ] da parte de um noviço. Sim, tens firmeza, Alieksiêi. É verdade que queres deixar o mosteiro?

— Sim, meu stáriets me envia para o mundo.

— Então, nós tornaremos a ver-nos antes de meus trinta anos, quando começar a desdenhar a taça. Nosso pai não quer renunciar a ela antes dos setenta anos, ou mesmo dos oitenta. Disse-o muito seriamente, embora seja um palhaço. Agarra-se à sua sensualidade como a um rochedo... Na verdade, após os trinta anos, não há outro recurso talvez. Mas é vil entregar-se a isso até os setenta. Melhor vale cessar aos trinta. Conserva-se uma aparência de nobreza, ao mesmo tempo que engana a si mesmo. Não viste Dimítri hoje?

— Não, mas vi Smierdiákov. — E Aliócha fez a seu irmão um relato pormenorizado de seu encontro com Smierdiákov. Ivan escutava-o com ar preocupado e insistiu sobre certos pontos.

— Rogou-me que não repetisse a Dimítri o que disse dele — acrescentou Aliócha.

Ivan franziu as sobrancelhas e pôs-se a refletir.

— Foi por causa de Smierdiákov que fechaste a cara?

— Sim. Que o diabo o carregue! Queria, com efeito, ver Dimítri; agora, é inútil... — declarou Ivan a contragosto.

— Partes deveras tão cedo, irmão?

— Sim.

— Como acabará tudo isso, entre Dimítri e nosso pai? — perguntou Aliócha, com inquietação.

— Voltas sempre a isso! Que posso eu fazer? Serei o guarda de meu irmão Dimítri? — replicou Ivan, com irritação. De repente teve um sorriso amargo. — É a resposta de Caim a Deus. Pensas nisso neste momento, talvez, hem? Mas que diabo! Não posso, no entanto, ficar aqui para vigiá-los! Meus negócios terminaram, parto. Não vás crer que eu estava com ciúmes de Dimítri, que procurava tomar-lhe a noiva, durante esses três meses. Oh, não, tinha meus negócios. Acabaram, parto. Viste o que se passou?

— Em casa de Katierina Ivânovna?

— Decerto. Libertei-me dum só golpe. Que me importa Dimítri? Nada tem ele a ver com o caso. Tinha eu meus negócios próprios com Katierina Ivânovna. Sabes tu mesmo que Dimítri se portou como se estivesse conivente comigo. Não lhe pedi nada, foi ele mesmo quem a transmitiu a mim solenemente, com sua bênção. É de causar riso. Aliócha, se soubesses como me sinto leve, atualmente! Aqui, jantando, queria pedir champanha para celebrar minha primeira hora de liberdade. Puxa! Seis meses de servidão, quase, e, de repente, eis-me desembaraçado! Ontem ainda, não tinha a menor ideia de que era tão fácil dar tudo por acabado.

— Queres falar de teu amor, Ivan?

— Sim, do amor, se queres. Apaixonei-me por uma colegial e causávamos sofrimento um ao outro. Não pensava senão nela... e de repente tudo se desmorona. Ainda há pouco falava eu com ar inspirado, mas saí rindo às gargalhadas, acreditas nisso? É a pura verdade.

— Falas disso ainda agora com alegria — notou Aliócha, examinando o rosto radiante de seu irmão.

— Mas como podia eu saber que não a amava absolutamente? Era, no entanto, a verdade. Mas quanto ela me agradava, e ainda ontem quando eu discorria! Mesmo agora agrada-me muito, entretanto deixo-a de coração leve. Pensas talvez que banco o fanfarrão.

— Não, talvez não fosse amor.

— Aliócha — disse Ivan, rindo —, não raciocines a respeito do amor, isso não te convém. Como te salientaste ainda há pouco! Esqueci-me de abraçar-te por isso... Quanto ela me atormentava! Era um verdadeiro dilaceramento. Oh, ela sabia que eu a amava! Era a mim que ela amava e não a Dimítri — afirmou alegremente Ivan. — Dimítri só lhe serve para torturar-se. Tudo quanto lhe disse é a verdade pura. Somente, ser-lhe-ão precisos talvez 15 ou vinte anos para dar-se conta de que não ama realmente a Dimítri, mas apenas a mim, a quem ela faz sofrer. Talvez mesmo não o adivinhe nunca, malgrado a lição de hoje. Será melhor assim. Deixei-a para sempre. A propósito, que há com ela? Que se passou depois de minha partida?

Aliócha contou-lhe que Katierina Ivânovna tivera uma crise de nervos e delirava agora sem conhecimento.

— Não estará mentindo aquela Khokhlakova?

— Creio que não.

— É preciso saber notícias dela. Não se morre duma crise de nervos. Aliás, foi bondade de Deus conceder isso às mulheres. Não irei à casa dela. Para quê?

— Tu lhe disseste, no entanto, que ela jamais te amara.

— Foi de propósito, Aliócha. Vou pedir champanha, bebamos à minha liberdade! Se soubesses como estou contente!

— Não, meu irmão, não bebamos, aliás sinto-me triste.

— Sim, és triste, percebi-o há muito tempo.

— Então partes decididamente amanhã de manhã?

— Amanhã, mas não disse de manhã... Aliás, pode ser que sim. Acreditarias que hoje jantei aqui unicamente para evitar o velho, de tal modo me causa ele aversão? Se só houvesse ele, teria partido daqui há muito tempo. Por que te inquietas tanto com minha partida? Temos ainda tempo daqui até lá, toda uma eternidade!

— Como, se partes amanhã?

— Que é que isso pode mesmo fazer? Teremos sempre tempo para tratar do assunto que nos interessa. Por que me olhas com espanto? Responde, por que estamos reunidos aqui? Para falar do amor de Katierina Ivânovna, do velho ou de Dimítri? Do estrangeiro? Da situação fatal da Rússia? Do imperador Napoleão? É para isso?

— Não.

— Portanto, compreendes tu mesmo por quê. Nós outros, fedelhos, temos como tarefa resolver as questões eternas, eis nosso fim. Agora, toda a jovem Rússia só faz dissertar sobre essas questões primordiais, ao passo que os velhos se limitam às questões práticas. Por que me olhaste durante três meses com um ar ansioso, senão para me perguntar: “Tens fé ou não tens?” Eis o que exprimiam os teus olhares, Alieksiêi Fiódorovitch; não é verdade?

— Pode muito bem ser — concedeu Aliócha, sorrindo. — Mas não estás zombando de mim neste momento, meu irmão?

— Zombando de ti? Não haveria de querer causar pesar a meu jovem irmão, que me olhou durante três meses com tanta ansiedade. Aliócha, olha-me de frente: sou um menino igual a ti, com a diferença que és noviço. Como procede a juventude russa, pelo menos uma parte? Vai a um botequim de ar viciado, tal como este, por exemplo, e instala-se num canto. Esses rapazes não se conhecem e ficarão quarenta anos sem tornar a encontrar-se. Que discutem eles naqueles breves minutos? Apenas questões essenciais: se Deus existe, se a alma é imortal. Os que não creem em Deus discorrem sobre o socialismo, a anarquia, sobre a renovação da humanidade; ora, essas questões são as mesmas, mas encaradas sob outra face. E boa parte da juventude russa, a mais original, hipnotiza-se com essas questões. Não é verdade?

— Sim, para os verdadeiros russos, as questões da existência de Deus, da imortalidade da alma, ou, como dizes, as mesmas encaradas sob outra face, são primordiais, e tanto melhor assim — disse Aliócha, olhando seu irmão, com um sorriso escrutador.

— Aliócha, ser russo não é sempre uma prova de inteligência. Não há nada de mais tolo que as ocupações atuais da juventude russa. No entanto, há um adolescente russo a quem amo bastante.

— Como expuseste bem tudo isso! — disse Aliócha, rindo.

— Pois bem, dize-me por onde começar. Pela existência de Deus?

— Como queiras, podes mesmo começar pela “outra face”. Proclamaste ontem que Deus não existia. — Aliócha olhou o irmão com um olhar penetrante.

— Disse isso ontem em casa do velho, expressamente para irritar-te. Vi teus olhos faiscarem. Mas agora estou disposto a entreter-me seriamente contigo. Desejo entender-me contigo, Aliócha, porque não tenho amigo e quero ter um. Imagina que admito talvez Deus — disse Ivan, rindo. — Não esperavas por isso, hem?

— Sem dúvida, se não brincas neste momento.

— Vamos lá! Foi ontem, em casa do stáriets, que se podia achar que eu estava brincando. Sabes, meu caro, que havia um velho pecador no século XVIII que disse: “Si Dieu n’existait pas, il foudrait l’inventer”?[ 92 ] E, com efeito, foi o homem quem inventou Deus. E o que é espantoso, não é que Deus exista realmente, mas que essa ideia da necessidade de Deus tenha vindo ao espírito de um animal feroz e mau como o homem, tão santa, comovente e sábia é ela, tanta honra faz ao homem. Quanto a mim, renunciei há muito tempo a perguntar a mim mesmo se foi Deus quem criou o homem ou o homem quem criou Deus. Bem entendido, não passarei em revista todos os axiomas que os adolescentes russos deduziram das hipóteses europeias, porque o que, na Europa, é uma hipótese, torna-se logo um axioma para os ditos adolescentes, e não somente para eles, mas para seus professores, que muitas vezes se lhes assemelham. De modo que afasto todas as hipóteses: qual é, com efeito, nosso desígnio? Meu desígnio é explicar-te o mais rapidamente possível a essência de meu ser, minha fé e minhas esperanças. Assim declaro admitir Deus, pura e simplesmente. É preciso notar, no entanto, que, se Deus existe, se criou verdadeiramente a terra, fê-la, como se sabe, segundo a geometria de Euclides,[ 93 ] e não deu ao espírito humano senão a noção das três dimensões do espaço. Entretanto, encontraram-se, encontram-se ainda geômetras e filósofos, mesmo eminentes, para duvidar de que todo o Universo e até mesmo todos os mundos tenham sido criados somente de acordo com os princípios de Euclides. Ousam mesmo supor que duas paralelas que, de acordo com as leis de Euclides, jamais se poderão encontrar na Terra, possam encontrar-se, em alguma parte, no infinito. Decidi, sendo incapaz de compreender mesmo isso, não procurar compreender Deus. Confesso humildemente minha incapacidade em resolver tais questões; tenho esssencialmente o espírito de Euclides: terrestre. De que serve querer resolver o que não é deste mundo? E aconselho-te a jamais quebrar a cabeça a respeito, meu amigo Aliócha, sobretudo a respeito de Deus: existe ele ou não? Essas questões estão fora do alcance dum espírito que só tem a noção das três dimensões. Assim, admito Deus, não só voluntariamente, mas ainda Sua sabedoria, Seu fim que nos escapa; creio na ordem, no sentido da vida, na harmonia eterna, na qual se pretende que nos fundiremos um dia: creio no Verbo para o qual propende o Universo que está em Deus e que é ele próprio Deus, até o infinito. Estou no bom caminho? Imagina que, em definitivo, esse mundo de Deus, eu não o aceito, e embora saiba que ele existe, não o admito. Não é Deus que repilo, nota bem, mas a Criação; eis o que me recuso admitir. Explico-me: estou convencido, como uma criança, de que o sofrimento desaparecerá, que a comédia revoltante das contradições humanas se esvanecerá como uma lamentável miragem, como a manifestação vil da impotência mesquinha, como um átomo do espírito de Euclides; que, no fim do drama, quando aparecer a harmonia eterna, uma revelação se produzirá, preciosa a ponto de enternecer todos os corações, de acalmar todas as indignações, de resgatar todos os crimes e o sangue vertido; de sorte que se poderá não só perdoar, mas justificar tudo quanto se passou sobre a Terra. Que tudo isso se realize, seja, mas não o admito e não quero admiti-lo. Que as paralelas se encontrem sob meus olhos, verei e direi que se encontraram; e, no entanto, não o admitirei. Eis o essencial, Aliócha, eis minha tese. Comecei expressamente nossa conversa duma maneira que não podia ser mais idiota, mas levei-a até minha confissão, porque é o que esperas. Não era a questão de Deus que te interessava, mas a vida espiritual de teu irmão querido. Tenho dito.

Ivan acabou sua longa tirada com uma emoção singular, inesperada.

— Mas por que começaste de “uma maneira que não podia ser mais idiota”? — perguntou Aliócha, olhando com ar pensativo.

— Em primeiro lugar, por cor local: as conversas dos russos sobre esse tema travam-se sempre idiotamente. Em seguida, a idiotice aproxima do fim e da clareza. É concisa e não faz astúcia, o espírito usa de atalhos e escapa-se. O espírito é desleal, mas há honestidade na idiotice. Quanto mais idiotamente confessar o desespero que me acabrunha, tanto melhor valerá isso para mim.

— Explicar-me-ás por que “não admites o mundo”?

— Decerto, não é um segredo e ia fazer isso mesmo. Meu irmãozinho, não tenho a intenção de perverter-te, nem de abalar tua fé. Sou eu antes que quereria curar-me a teu contato — disse Ivan com o sorriso duma criança. Aliócha jamais o vira sorrir assim.

 

IV


A revolta


— Devo confessar-te uma coisa — começou Ivan. — Jamais pude compreender como se pode amar o próximo. É precisamente, na minha ideia, o próximo que não se pode amar, ou somente a distância. Li, em alguma parte, a propósito de um santo, João, o Misericordioso,[ 94 ] a quem um passante faminto e transido de frio foi um dia suplicar que o aquecesse; o santo deitou-se com ele, tomou-o nos braços e se pôs a insuflar o hálito na boca purulenta do infeliz, infectada por uma horrível moléstia. Estou persuadido de que fez isso com esforço, mentindo a si mesmo, num sentimento de amor ditado pelo dever e por espírito de penitência. Para que possa amá-lo, é preciso que um homem esteja oculto; desde que ele mostra o rosto, o amor desaparece.

— O stáriets Zósima falou por várias vezes disso — observou Aliócha. — Dizia também que, muitas vezes, para almas inexperientes, o rosto de um homem é um obstáculo ao amor. Há, no entanto, muito amor na humanidade, um amor quase igual ao do Cristo, eu mesmo o sei, Ivan...

— Pois bem, eu, eu não o sei ainda e não posso compreendê-lo; muitos estão no mesmo caso. Trata-se de saber se isso provém dos maus pendores, ou se é inerente à natureza humana. Em minha opinião, o amor do Cristo pelos homens é uma espécie de milagre impossível na Terra. É verdade que ele era Deus; mas nós não somos deuses. Suponhamos, por exemplo, que eu sofro profundamente, outro não poderá jamais conhecer a que ponto sofro, porque é outro e não eu. Além do mais, é raro que um indivíduo consinta em reconhecer o sofrimento de seu próximo (como se fosse uma dignidade!). Por que isso, que pensas? Talvez porque cheiro mal, tenho o ar estúpido ou terei pisado o pé daquele senhor! Além disso, há diversos sofrimentos: o que humilha, a fome, por exemplo, meu benfeitor quererá bem admiti-lo; mas desde que meu sofrimento se eleva, que se trata de uma ideia, por exemplo, só nela crerá por exceção porque, talvez, examinando-me, verá que não tenho o rosto que sua imaginação empresta a um homem que sofre por uma ideia. Logo cessará seus benefícios e isso sem maldade. Os mendigos, sobretudo aqueles que têm alguma nobreza, não deveriam jamais mostrar-se, mas pedir esmola por intermédio dos jornais. Em teoria, ainda, pode-se amar o próximo, e até mesmo de longe; de perto, é quase impossível. Se, pelo menos, tudo se passasse como no palco, nos balés, em que os pobres em farrapos de seda e com rendas rasgadas mendigam, dançando graciosamente, poder-se-ia ainda admirá-los, não amá-los. Mas basta, a respeito. Queria somente colocar-te em meu ponto de vista. Queria falar dos sofrimentos da humanidade em geral, mas vale mais que me limite aos sofrimento das crianças. Meu argumento ficará reduzido à décima parte, mas é melhor assim. Perco com isso, bem entendido. Em primeiro lugar, pode-se amar as crianças de perto, mesmo sujas, mesmo feias (parece-me, no entanto, que as crianças nunca são feias). Em seguida, se não falo dos adultos, é que não somente são repelentes e indignos de ser amados, mas têm uma compensação: comeram o fruto proibido, discerniram o bem do mal, tornaram-se “semelhantes a deuses”. Continuam a comê-lo. Mas as criancinhas nada comeram e são ainda inocentes. Gostas de crianças, Aliócha? Sei que as amas e compreenderás por que só quero falar delas. Sofrem muito, também elas, sem dúvida; é para expiar a falta dos pais que comeram o fruto; mas é o raciocínio dum outro mundo, incompreensível para o coração humano aqui embaixo. Um inocente não saberia sofrer por outro, sobretudo um pequeno ser! Isso te surpreenderá, Aliócha, mas eu também adoro as crianças. Nota que os homens cruéis, de paixões selvagens, os Karamázov, amam por vezes muito as crianças. Até os sete anos, as crianças diferem enormemente do homem; são como outro ser, com outra natureza. Conheci um bandido num cárcere; durante sua carreira, quando se introduzia de noite nas casas para roubar, assassinara famílias inteiras, inclusive as crianças. No entanto, na prisão, amava-as estranhamente. Só fazia olhar as que brincavam no pátio da prisão e tornou-se amigo de um menino habituado a brincar sob sua janela... Sabes por que digo isso, Aliócha? Estou com dor de cabeça e sinto-me triste.

— Estás com um ar esquisito, como se não estivesses em teu normal — observou Aliócha, com inquietação.

— A propósito, um búlgaro contava-me outrora em Moscou — continuou Ivan, como se não tivesse ouvido o irmão — as atrocidades dos turcos e dos cherqueses em seu país: temendo um levante geral dos eslavos, incendeiam, estrangulam e violam mulheres e crianças; pregam os prisioneiros nas paliçadas pelas orelhas, abandonam-nos assim até de manhã, depois os enforcam, etc. Compara-se por vezes a crueldade do homem com as dos animais selvagens; é uma injustiça para com estes. As feras não atingem jamais os refinamentos do homem. O tigre dilacera a presa e a devora; não conhece outra coisa. Não lhe viria à ideia pregar as pessoas pelas orelhas, ainda mesmo que o pudesse fazer. São os turcos os que torturam crianças com um prazer sádico, arrancam os bebês do ventre materno, lançam-nos no ar para recebê-los nas pontas das baionetas, sob os olhos das mães cuja presença constitui o principal prazer. Eis outra cena que me impressionou. Pensa nisto: um bebê ainda de peito, nos braços da mãe trêmula, e em torno deles os turcos. Ocorre-lhes uma ideia divertida: acariciando o bebê, conseguem fazê-lo rir; depois um deles aponta-lhe um revólver bem junto ao rosto. A criança ri alegremente e estende as mãozinhas para agarrar o brinquedo; de repente, o artista puxa o gatilho e arrebenta-lhe a cabeça. Os turcos gostam muito, segundo dizem, de coisas doces.

— Meu irmão, a que vem tudo isso?

— Penso que, se o diabo não existe e foi por conseguinte criado pelo homem, este deve tê-lo feito à sua imagem.

— Como Deus, então?

— Sabes muito bem usar as palavras, como diz Polônio no Hamlet — continuou Ivan, rindo. — Pegaste nessa frase; pois seja, isso me agrada. Mas é belo o teu Deus, se o homem O fez à sua imagem. Perguntavas ainda há pouco a que vem tudo isso? Vê, sou um diletante, um amador de fatos e anedotas; recolho-os dos jornais, anoto o que me é contado; isso já forma uma bela coleção. Os turcos nela figuram, naturalmente, com outros estrangeiros, mas tenho também casos nacionais que os ultrapassam. Entre os russos, as varas e o chicote têm sobretudo lugar de honra; não se prega ninguém pelas orelhas, ora essa, somos europeus, mas nossa especialidade é açoitar e não se poderia privar-nos dela. Dir-se-ia que essa prática desapareceu no estrangeiro em consequência do abrandamento dos costumes, ou então porque as leis naturais proíbem que o homem açoite seu semelhante. Em compensação, existe lá como aqui um costume, a tal ponto nacional, que seria quase impossível na Rússia, muito embora se implante também entre nós, sobretudo em virtude do movimento religioso na alta sociedade. Possuo uma interessante brochura traduzida do francês, em que se conta a execução em Genebra, há cinco anos, de um assassino chamado Richard, que se converteu ao cristianismo antes de morrer, na idade de 24 anos. Era filho natural, “dado” por seus pais, quando tinha seis anos, a pastores suíços, que o educaram para fazer dele um trabalhador. Cresceu como um pequeno selvagem, sem nada aprender; aos sete anos, mandaram-no para fazer pastar o rebanho, ao frio e à umidade, malvestido e faminto. Aquela gente não sentia nenhum remorso ao tratá-lo assim; pelo contrário, achava que tinha direito de fazê-lo, porque lhe haviam dado Richard como uma coisa e não julgava mesmo necessário nutri-lo. O próprio Richard conta que então, como o filho pródigo do Evangelho, quis mesmo comer a lavagem destinada aos porcos que eram engordados, mas era privado disso e batiam-lhe quando ele a roubava dos animais; foi assim que passou a infância e a mocidade, até que, tornando-se grande e forte, pôs-se a roubar. Aquele selvagem ganhava a vida em Genebra como jornaleiro, bebia seu salário, vivia como um monstro e acabou por assassinar um velho para roubá-lo. Foi preso, julgado e condenado à morte. Não se é sentimental naquela cidade! Na prisão, é logo cercado pelos pastores, pelos membros de associações religiosas, pelas senhoras patrocinadoras. Aprendeu a ler e a escrever, explicaram-lhe o Evangelho e, à força de doutriná-lo, e de catequizá-lo, acabou por confessar solenemente seu crime. Dirigiu ao tribunal uma carta declarando que era um monstro, mas que o Senhor se havia dignado esclarecê-lo e enviar-lhe Sua graça. Toda Genebra ficou emocionada, a Genebra filantrópica e beata. Tudo quanto havia de nobre e de bem-pensante acorreu à prisão. Beijam-no, abraçam-no: “Tu és nosso irmão! Foste tocado pela graça!” Richard chora de enternecimento: “Sim, Deus iluminou-me! Em minha infância e em minha mocidade, invejava eu a lavagem dos porcos; agora, a graça tocou-me, morro no Senhor!” — “Sim, Richard, tu derramaste sangue e deves morrer. Não é culpa tua se ignoravas Deus, quando roubavas a lavagem dos porcos e batiam-te por causa disso (aliás, tinhas bastante culpa porque é proibido roubar), mas derramaste sangue e deves morrer.” Enfim chega o derradeiro dia, Richard, enfraquecido, chora e só faz repetir a cada instante: “Eis o mais belo dia de minha vida, porque vou para Deus!” — “Sim — exclamam pastores, juízes e senhoras patrocinadoras —, é o mais belo dia de tua vida, porque vais para Deus!” O grupo se dirige para o cadafalso, atrás da carreta ignominiosa que leva Richard. Chega-se ao local do suplício. “Morre, irmão — gritam para Richard —, morre no Senhor, Sua graça te acompanhe.” E, coberto de beijos, o irmão Richard sobe ao cadafalso, colocam-no na guilhotina e sua cabeça cai, em nome da graça divina. É característico. A referida brochura foi traduzida para o russo pelos luteranos da alta sociedade e distribuída como suplemento gratuito a diversos jornais e publicações, para instruir o povo. A aventura de Richard é interessante porque nacional. Na Rússia, se bem que seja absurdo decapitar um irmão pela única razão de ter-se tornado dos nossos e tê-lo tocado a graça, temos quase coisa igual. Entre nós, torturar batendo constitui uma tradição histórica, um gozo pronto e imediato. Niekrássov[ 95 ] conta, num de seus poemas, como um mujique bate com o chicote nos olhos de seu cavalo. Quem já não viu isso? É bem russo. O poeta mostra que o cavalicoque que sobrecarregado, atolado com sua carroça, não pode desvencilhar-se. Então o mujique bate-lhe encarniçadamente, bate sem compreender o que faz; os golpes chovem numa espécie de embriaguez. “Não podes puxar, pois puxarás assim mesmo; morre, mas puxa.” A besta sem defesa debate-se desesperadamente, enquanto o dono açoita seus doces olhos, donde rolam lágrimas. Enfim, consegue ele desatolar-se e lá se vai tremendo, sem fôlego, num andar cambaleante, constrangido, vergonhoso. Produziu isso em Niekrássov uma impressão espantosa. Mas também não se trata apenas de um cavalo que Deus criou para ser chicoteado? Foi o que nos explicaram os tártaros, que nos legaram o chicote. No entanto, pode-se também açoitar as pessoas. Um senhor culto e a mulher sentem prazer em açoitar com varas a filhinha de sete anos. E o papai sente-se feliz porque as varas têm espinhos. “Isso causará mais dor assim”, diz ele. Há seres tais que se excitam a cada golpe, até o sadismo, progressivamente. Bate-se na criança um minuto, depois cinco, depois dez, sempre mais fortemente. Ela grita, afinal, já sem forças, sufoca: “Papai, meu papaizinho, tenha dó!” O caso torna-se escandaloso e recorre-se ao tribunal. Toma-se um advogado. Há muito tempo que o povo russo chama o advogado de “uma consciência que se aluga”. O defensor pleiteia em nome de seu cliente: “O caso é simples; é uma cena de família, como se veem muitas. Um pai açoitou a filha, é uma vergonha processá-lo!” O júri fica convencido, recolhe-se e traz um veredicto negativo. O público exulta por ver absolvido aquele carrasco. Ai! Não assistia eu à audiência. Teria proposto fundar uma bolsa em honra daquele bom pai de família!... Eis um belo quadro! No entanto, tenho ainda melhor, Aliócha, e sempre a propósito de crianças russas. Trata-se de uma menina de sete anos, por quem criaram aversão seu pai e sua mãe, honrados funcionários instruídos e bem-educados. Repito-o, é um pendor especial de muitas pessoas o prazer de torturar as crianças, mas somente as crianças. Para com outros indivíduos, esses carrascos se mostram afáveis e ternos, como europeus instruídos e humanos, mas sentem prazer em fazer as crianças sofrerem, é a maneira de amá-las. A confiança angélica dessas criaturas sem defesa seduz os seres cruéis. Não sabem aonde ir, nem a quem se dirigir, e isso excita os maus instintos. Cada homem oculta em si um demônio: acesso de cólera, sadismo, desencadeamento de paixões ignóbeis, doenças contraídas na devassidão, ou então a gota, a hepatite, isso varia. Portanto, aqueles pais instruídos praticavam muitas sevícias na pobre menininha. Açoitavam-na, espezinhavam-na sem razão, seu corpo vivia coberto de equimoses. Imaginaram por fim um refinamento de crueldade: pelas noites glaciais, no inverno, encerravam a menina na privada, sob pretexto de que ela não pedia a tempo, à noite, para ir ali (como se, naquela idade, uma criança que dorme profundamente pudesse sempre pedir a tempo). Esfregavam-lhe os próprios excrementos na cara, e a mãe, a própria mãe obrigava-a a comê-los! E essa mãe dormia tranquila, insensível aos gritos da pobre criança fechada naquele lugar repugnante! Vês tu daqui aquele pequeno ser, não compreendendo o que lhe acontece, no frio e na escuridão, bater com os pequeninos punhos no peito ofegante e derramar lágrimas inocentes, chamando o “bom Deus” em seu socorro? Compreendes esse absurdo, tem ele um fim, meu amigo e meu irmão, tu, noviço piedoso? Dizem que tudo isso é indispensável para estabelecer a distinção entre o bem e o mal no espírito do homem. Para que pagar tão caro essa distinção diabólica? Toda a ciência do mundo não vale as lágrimas das crianças. Não falo dos sofrimentos dos adultos. Eles comeram o fruto proibido, que o diabo os leve! Mas as crianças! Faço-te sofrer, Aliócha, tens ar de não estar passando bem. Queres que me detenha?

— Não, também quero sofrer. Continua.

— Ainda um pequeno quadro característico. Acabo de ler nos Arquivos russos ou em A antiguidade russa, não sei bem. Era na época mais sombria da servidão, no começo do século XIX. Viva o czar libertador! Um antigo general, com importantes relações, rico proprietário rural, vivia numa de suas propriedades da qual dependiam duas mil almas. Era um desses indivíduos (na verdade já pouco numerosos então) que, uma vez retirados do serviço militar, estavam quase convencidos de seu direito de vida e de morte sobre seus servos. Cheio de arrogância, tratava do alto seus modestos vizinhos, como se fossem parasitas e palhaços seus. Tinha ele uma centena de capatazes, todos a cavalo e uniformizados, e várias centenas de galgos. Ora, eis que um dia, um pequeno servo de oito anos, que se divertia atirando pedras, feriu na pata um daqueles cães favoritos. Vendo seu cão coxear, perguntou o general a causa. Explicaram-lhe o caso, designando o culpado. Mandou imediatamente agarrar o menino, a quem arrancaram dos braços da mãe e fizeram passar a noite na prisão. No dia seguinte, logo ao romper da aurora, o general, em uniforme de gala, monta a cavalo para ir à caça, cercado de seus parasitas, de seus monteiros, de seus cães, de seus capatazes. Reúne-se toda a famulagem para dar-se um exemplo, e a mãe do culpado é trazida, bem como o menino. Era uma manhã de outono, brumosa e fria, excelente para a caça. O general manda que se tire toda a roupa do menino, o que foi feito. O menino tremia, louco de medo, não ousando dizer uma palavra. “Façam-no correr”, ordena o general. — “Corre! Corre!”, gritam-lhe os capatazes. O menino põe-se a correr. “Cisca! Cisca!”, berra o general e açula toda a sua matilha. Os cães estraçalharam a criança diante dos olhos da mãe. O general, parece, foi posto sob tutela. Pois bem, que merecia ele? Seria preciso fuzilá-lo? Fala, Aliócha.

— Sim, fuzilá-lo! — proferiu mansamente Aliócha, totalmente pálido, com um sorriso convulso.

— Bravo! — exclamou Ivan, encantado. — Se o dizes, tu, é que... Vejam só, o asceta! Tens, pois, também um diabinho no coração, Aliócha Karamázov?

— Disse uma tolice, mas...

— Sim, mas... Fica sabendo, noviço, que as tolices são necessárias ao mundo; sobre elas é que ele se funda: sem essas tolices, nada se passaria aqui na Terra. Sabemos o que sabemos.

— Que sabes tu?

— Nada compreendo — prosseguiu Ivan, como em sonho —, nada quero compreender agora. Atenho-me aos fatos. Tentando compreender, altero os fatos...

— Por que me atormentas? — disse dolorosamente Aliócha. — Dir-me-ás por fim?

— Decerto. Preparava-me para dizer-te. Gosto de ti e não quero abandonar-te a teu Zósima.

Ivan calou-se um instante e seu rosto entristeceu-se de súbito.

— Escuta, limitei-me às crianças para ser mais claro. Nada disse das lágrimas humanas de que a Terra está saturada, abreviando de propósito meu assunto. Confesso humildemente não compreender a razão desse estado de coisas. Os homens são os únicos culpados: tinham-lhes dado o paraíso, cobiçaram a liberdade e arrebataram o fogo do céu, sabendo que seriam infelizes; não merecem, pois, nenhuma compaixão. Segundo meu pobre espírito terrestre, sei apenas que o sofrimento existe, que não há culpados, que tudo se encadeia, tudo passa e se equilibra. São as patacoadas de Euclides, eu sei, mas não posso consentir em viver baseando-me nisso. Que bem me pode fazer tudo isso? Preciso é de uma compensação, do contrário destruir-me-ia a mim mesmo. E não uma compensação em alguma parte, no infinito, mas aqui embaixo, que eu mesmo a veja. Acreditei, quero ser testemunha, e, se já estou morto, que me ressuscitem; se tudo se passasse sem mim seria bastante aflitivo. Não quero que meu corpo com seus sofrimentos e suas faltas sirva unicamente para arder a serviço de alguma harmonia futura. Quero ver com meus olhos a corça dormir junto do leão, a vítima beijar seu matador. É sobre esse desejo que repousam todas as religiões e eu tenho fé. Quero estar presente quando todos souberem o porquê das coisas. Mas as crianças, que farei delas? Não posso resolver essa questão. Se todos devem sofrer, a fim de concorrer com seu sofrimento para a harmonia eterna, qual o papel das crianças? Não se compreende por que deveriam sofrer, também elas, em nome da harmonia. Por que serviriam de materiais destinados a prepará-la? Compreendo bem a solidariedade do pecado e do castigo, mas não pode ela aplicar-se aos inocentezinhos, e, se na verdade são solidários com os malfeitos de seus pais, é uma verdade que não é deste mundo e que eu não compreendo. Um galhofeiro malicioso objetará que as crianças crescerão e terão ocasião de pecar, mas aquele menino de oito anos ainda não havia crescido e foi estraçalhado pelos cães. Aliócha, não estou blasfemando. Compreendo como estremecerá o Universo, quando o céu e a terra se unirem no mesmo grito de alegria, quando tudo quanto vive ou viveu proclamar: “Tens razão, Senhor Deus, porque Tuas vias nos são reveladas!”, quando o carrasco, a mãe, o menino se beijarem e declararem com lágrimas: “Tens razão, Senhor Deus!” Sem dúvida então, a luz se fará, e tudo será explicado. Mas eis a dificuldade: não posso admitir tal solução. E tomo minhas providências a tal respeito, enquanto me encontro ainda aqui na terra. Acredita-me, Aliócha, pode ser que eu viva até esse momento ou que ressuscite então, e exclamarei talvez com os outros, vendo a mãe beijar o carrasco do filho: “Tu tens razão, Senhor Deus!”, mas será contra minha vontade. Enquanto ainda é tempo, recuso-me a aceitar essa harmonia superior. Acho que não vale ela uma lágrima de criança, daquela pequenina vítima que batia no peito e rezava ao “bom Deus”, em seu canto infecto; não as vale, porque aquelas lágrimas não foram redimidas. Enquanto assim for, não se poderá falar de harmonia. Ora, não há possibilidade de redimi-las. Os carrascos sofrerão no inferno, dir-me-ás tu. Mas de que serve esse castigo, uma vez que as crianças tiveram também seu inferno? Aliás, que vale essa harmonia que comporta um inferno? Quero o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento. E, se o sofrimento das crianças serve para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo desde agora que essa verdade não vale tal preço. Não quero que a mãe perdoe ao carrasco, não tem esse direito. Que lhe perdoe seu sofrimento de mãe, mas não o que sofreu seu filho estraçalhado pelos cães. Ainda mesmo que seu filho perdoasse, não teria ela o direito. Se o direito de perdoar não existe, que vem a tornar-se a harmonia? Há no mundo um ser que tenha esse direito? Por amor pela humanidade é que não quero essa harmonia. Prefiro conservar meus sofrimentos não redimidos e minha indignação persistente, mesmo se não tivesse razão! Aliás, deram realce excessivo a essa harmonia, a entrada custa demasiado caro para nós. Prefiro entregar meu bilhete de entrada. Como homem de bem, tenho mesmo obrigação de devolvê-lo o mais cedo possível. É o que faço. Não recuso admitir Deus, mas muito respeitosamente devolvo-lhe meu bilhete.

— Mas isso é revolta — disse mansamente Aliócha, de olhos baixos.

— Revolta? Não era meu desejo ver-te empregar essa palavra. Pode-se viver revoltado? Ora, eu quero viver. Responde-me francamente. Imagina que os destinos da humanidade estejam entre tuas mãos e que, para tornar as pessoas definitivamente felizes, proporcionar-lhes afinal a paz e o repouso, seja indispensável torturar um ser apenas, a criança que batia no peito com seu pequeno punho, e basear sobre suas lágrimas a felicidade futura. Consentirias tu, nessas condições, em edificar semelhante felicidade? Responde sem mentir.

— Não, não consentiria.

— Então, podes admitir que os homens consentiriam em aceitar essa felicidade ao preço do sangue dum pequeno mártir?

— Não, não posso admiti-lo, meu irmão — declarou Aliócha, com os olhos cintilantes. — Perguntaste se existe no mundo inteiro um Ser que teria o direito de perdoar. Sim, este Ser existe. Pode tudo perdoar, a todos e por tudo, porque foi Ele quem verteu Seu sangue inocente por todos e por tudo. Tu O esqueceste, é Ele a pedra angular do edifício e é a Ele que se deve gritar: “Tu tens razão, Senhor Deus, porque Tuas vias nos são reveladas.”

— Ah! Sim, “o único impecável” e “Seu sangue”. Não, não O esqueci, admirava-me, pelo contrário, de que não O tivesses ainda mencionado, porque nas discussões os vossos começam habitualmente por colocá-LO à frente. Fica sabendo, mas não rias, que compus um poema, há um ano. Se puderes conceder-me ainda dez minutos, receitá-lo-ei.

— Escreveste um poema?

— Não — disse Ivan, rindo —, porque jamais compus dois versos sequer em minha vida. Mas sonhei esse poema e lembro-me dele. Serás meu primeiro leitor, isto é, meu ouvinte. Por que não aproveitar tua presença? Queres?

— Sou todo ouvidos.

— Meu poema intitula-se “O grande inquisidor”, é absurdo, mas quero que o fiques conhecendo.

 

V


O grande inquisidor


— É necessário um preâmbulo do ponto de vista literário. A ação se passa no século XVI. Sabes que, nessa época, era de uso fazer intervirem nos poemas as potências celestiais. Não falo de Dante. Na França, os 180 clérigos julgadores e os monges davam representações em que se punham em cena. Nossa Senhora, os anjos, os santos, o Cristo e Deus Pai. Eram espetáculos ingênuos. Em “Notre-Dame de Paris”, de Vítor Hugo, em honra ao nascimento do Delfim,[ 96 ] no reinado de Luís XI, em Paris, é o povo convidado a uma representação edificante e gratuita, Le bon jugement de la très sainte et gracieuse Vierge Marie.[ 97 ] Nesse mistério, aparece a Virgem em pessoa para pronunciar o seu bon jugement. Entre nós, em Moscou, antes de Pedro, o Grande, davam-se, de tempos em tempos, representações desse gênero, tiradas sobretudo do Antigo Testamento. Além disso, circulava uma porção de recitativos e de poemas em que figuravam, de acordo com as necessidades, os santos, os anjos, o exército celeste. Em nossos mosteiros, traduziam-se, copiavam-se esses poemas, compunham-se mesmo novos, e isso sob a dominação tártara. Por exemplo, existe um pequeno poema monástico, sem dúvida traduzido do grego: “La vierge chez les damnés”,[ 98 ] com quadros duma audácia dantesca. A Virgem visita o inferno, guiada por são Miguel Arcanjo. Vê os condenados e seus tormentos. Entre outras, há uma categoria de pecadores num lago de fogo. Alguns afundam-se no lago e não aparecem mais; são esses “esquecidos pelo próprio Deus”, expressão duma profundeza e duma energia notáveis. A Virgem, banhada em pranto, cai de joelhos diante do trono de Deus e pede perdão para todos os pecadores que viu no inferno, sem distinção. Seu diálogo com Deus é de um interesse extraordinário. Suplica, insiste, e, quando Deus lhe mostra os pés e as mãos de Seu filho transpassados pelos cravos e lhe pergunta: “Como poderei eu perdoar a seus carrascos?”, ordena Ela a todos os santos, a todos os mártires, a todos os anjos que caiam de joelhos com Ela e implorem perdão para os pecadores, sem distinção. Afinal, obtém a cessação dos tormentos, cada ano, da Sexta-Feira Santa a Pentecostes, e os condenados, do fundo do inferno, agradecem a Deus e exclamam: “Senhor, Tua sentença é justa!” Pois bem! Meu pequeno poema teria sido nesse gosto, se tivesse aparecido naquela época. Deus aparece; não diz nada, só faz passar. Quinze séculos decorreram, desde que ele prometeu voltar ao Seu reino, depois que Seu profeta escreveu: “Voltarei em breve. Quanto ao dia e à hora, o próprio Filho não os conhece, mas somente meu Pai que está no céu”, segundo as próprias palavras na terra. E a humanidade o espera com a mesma fé de outrora, uma fé mais ardente ainda, porque 15 séculos se passaram desde que o céu deixou de dar testemunhos ao homem.


Daquilo que o coração diz

O céu não dá testemunho.


“E só resta a fé no referido coração. É verdade que numerosos milagres se verificavam então; santos realizavam curas maravilhosas. A Rainha dos Céus visitava certos justos, de acordo com a biografia deles. Mas o diabo não dorme; a humanidade começou a duvidar da autenticidade daqueles milagres. Naquele momento, nascia na Alemanha uma terrível heresia que negava os milagres. ‘Uma grande estrela ardente como um facho caiu sobre as fontes das águas, que se tornaram amargas.’[ 99 ] A fé dos fiéis só fez redobrar. As lágrimas da humanidade elevam-se para Ele como outrora, aguardam-nO, amam-nO, espera-se n’Ele como antes... Depois de tantos séculos, a humanidade reza com fervor: ‘Senhor Deus, dignai-vos aparecer-nos’, depois de tantos séculos grita ela para Ele, Ele que quis, na Sua misericórdia infinita, descer entre Seus fiéis. Outrora, já havia visitado justos, mártires, santos anacoretas, como o narram suas biografias. Entre nós, Tiútchev,[ 100 ] que acreditava profundamente na verdade de suas palavras, proclamou que


Sob o peso da cruz, esmagador,

O Rei dos Céus, de servo disfarçado,

Toda te percorreu, terra natal,

solo teu inteiro abençoando.


“Mas eis que quis Ele mostrar-se por um instante pelo menos ao povo sofredor e miserável, ao povo que se arrastava no pecado, mas que O ama ingenuamente. A ação se passa na Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da Inquisição, quando todos os dias no país ardiam as fogueiras à glória de Deus e


Em esplêndidos autos de fé

Queimavam-se horríveis heréticos.


“Oh! Não foi assim que Ele prometeu voltar no fim dos tempos, em toda a Sua glória celeste, subitamente, ‘como um relâmpago que brilha do Oriente ao Ocidente’. Não, quis visitar Seus filhos, no lugar onde crepitavam precisamente as fogueiras dos heréticos. Em Sua misericórdia infinita, volta ao convívio dos homens sob a forma que tivera durante os três anos de Sua vida pública. Ei-lo que desce para as ruas ardentes da cidade meridional, onde justamente na véspera, na presença do rei, dos cortesãos, dos cavaleiros, dos cardeais e das mais encantadoras damas da corte, o grande inquisidor mandara queimar uma centena de heréticos ad majorem gloriam Dei.[ 101 ] Apareceu docemente, sem se fazer notar, e — coisa estranha — todos O reconheciam. Seria uma das mais belas passagens de meu poema, explicar a razão disso. Atraído por uma força irresistível, o povo comprime-se à Sua passagem e segue-Lhe os passos. Silencioso, passa Ele por entre a multidão com um sorriso de compaixão infinita. Seu coração está abrasado de amor, Seus olhos desprendem a Luz, a Ciência, a Força, que irradiam e despertam o amor nos corações. Estende-lhes os braços, abençoa-os, uma virtude salutar emana de Seu contato e até mesmo de Suas vestes. Um velho, cego de infância, exclama em meio à multidão: ‘Senhor, cura-me e eu Te verei!’ Uma casca cai de seus olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão sobre as marcas de Seus passos. As crianças lançam flores à Sua passagem, canta-se, grita-se: ‘Hosana!’ É Ele, deve ser Ele! — exclama-se. — Só pode ser Ele! Ele para no adro da catedral de Sevilha no momento em que trazem um pequeno ataúde branco no qual repousa uma menina de sete anos, a filha única de uma pessoa notável. A morta está coberta de flores.

“— Ele ressuscitará tua filha — gritam na multidão para a mãe lacrimosa. O padre, que sai para receber o ataúde, olha com ar perplexo e franze o cenho. De súbito, repercute um grito, a mãe se lança a Seus pés — ‘Se és Tu, ressuscita minha filha!’, e estende os braços para Ele. O cortejo para, deposita-se o caixão sobre as lajes. Ele a contempla, cheio de compaixão, e sua boca profere docemente mais uma vez: ‘Talitha kumi’,[ 102 ] e a menina se levantou. A morta se levanta, senta-se e olha em redor de si, sorridente, com ar admirado. Tem na mão o buquê de rosas brancas que haviam depositado no caixão. No meio da turbamulta há agitação, grita-se, chora-se. Naquele momento passa pela praça o cardeal, grande inquisidor. É um ancião quase nonagenário, de elevada estatura, de rosto dessecado, olhos cavados, mas onde luz ainda uma centelha. Não traz mais a pomposa veste com a qual se pavoneava ontem diante do povo, enquanto eram queimados os inimigos da Igreja romana. Retomara sua velha batina grosseira. Seus sombrios auxiliares e a guarda do Santo Ofício seguem-no a uma distância respeitosa. Detém-se diante da multidão e observa de longe. Viu tudo, o caixão depositado diante d’Ele, a ressurreição da menininha, e seu rosto ensombreceu-se. Franze as espessas sobrancelhas e seus olhos brilham com um clarão sinistro. Aponta-O com o dedo e ordena aos guardas que O prendam. Tão grande é o seu poder e o povo está de tal maneira habituado a submeter-se, a obedecer-lhe tremendo, que a multidão se afasta imediatamente diante dos esbirros; em meio a um silêncio de morte, estes O pegam e levam-nO. Como um só homem aquele povo se inclina até o chão diante do velho inquisidor, que o abençoa sem dizer palavra e prossegue seu caminho. O Prisioneiro é conduzido ao sombrio e velho edifício do Santo Ofício, onde O encerram numa estreita cela abobadada. O dia chega ao fim, vem a noite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar está embalsamado do perfume de loureiros e limoeiros. Nas trevas, a porta de ferro da masmorra abre-se de repente e o grande inquisidor aparece, com um facho na mão. Está só, a porta torna a fechar-se atrás dele. Para no limiar e observa longamente a Santa Face. Por fim, aproxima-se, pousa o facho sobre a mesa e diz-lhe:

“— És Tu, és Tu? — Não recebendo resposta, acrescenta rapidamente: — Não digas nada, cala-Te. Aliás, que poderias dizer? Sei demais. Não tens o direito de acrescentar uma palavra mais ao que já disseste outrora. Por que vieste estorvar-nos? Porque Tu nos estorvas, bem o sabes. Mas sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem Tu és e não quero sabê-lo: Tu ou apenas Sua aparência; mas amanhã eu Te condenarei e serás queimado como o pior dos heréticos, e esse mesmo povo que hoje Te beijava os pés precipitar-se-á amanhã, a um sinal meu, para alimentar Tua fogueira. Sabes disso? Talvez — acrescenta o velho, pensativo, com os olhos sempre fixos em seu Prisioneiro.”

— Não compreendo bem o que, quer isso dizer, Ivan — observou Aliócha, que escutara em silêncio. — É uma fantasia, um erro do ancião, um quiproquó estranho?

— Admite esta última suposição — disse Ivan, rindo —, se o realismo moderno te tornou a esse ponto refratário ao sobrenatural. Seja como quiseres. É verdade que meu inquisidor tem noventa anos e sua ideia pode ter-lhe desde muito tempo transtornado o espírito. Afinal, é talvez um simples delírio, o devaneio de um velho antes de seu fim, com a imaginação esquentada pelo recente auto de fé. Mas quiproquó ou fantasia, que nos importa? O que é preciso somente notar é que o inquisidor revela afinal seu pensamento, desvenda o que calou durante toda a sua carreira.

— E o Prisioneiro não diz nada? Contenta-se com olhá-lo?

— Com efeito. Só pode calar-se. O próprio ancião faz-lhe observar que não tem Ele o direito de acrescentar uma palavra às suas antigas palavras. É talvez o traço fundamental do catolicismo romano, em minha humilde opinião: “Tudo foi transmitido por Ti ao papa, tudo depende pois agora do papa, não venha estorvar-nos antes do tempo, pelo menos.” Tal é a doutrina deles, dos jesuítas, em todo o caso. Encontrei-a em seus teólogos. “Tens Tu o direito de nos revelar um só dos segredos do mundo donde vens?”, pergunta o velho, que responde em seu lugar: “Não, não tens o direito, porque essa revelação se juntaria à de outrora, e seria isso retirar aos homens a liberdade que defendias tanto na terra. Todas as Tuas revelações novas feriram a liberdade da fé, porque pareceriam miraculosas; ora, Tu punhas acima de tudo, há 15 séculos, essa liberdade da fé. Não disseste bem muitas vezes: “Quero tornar-vos livres?” Pois bem, viste-os, os homens “livres” — acrescenta o velho, com ar sarcástico. — Sim, isso nos custou caro — prosseguiu ele, olhando-o com severidade —, mas levamos a cabo afinal aquela obra em Teu nome. Foram-nos precisos 15 séculos de rude labor para instaurar a liberdade; mas está feito, e bem-feito. Não o crês? Olhas-me com doçura, sem mesmo fazer-me a honra de Te indignares. Mas fica sabendo que jamais os homens se creram tão livres como agora, e, no entanto, a liberdade deles depositaram-na humildemente a nossos pés. Isto é a nossa obra, para dizer a verdade: “É a liberdade com que sonhavas?”

— Não compreendo de novo — interrompeu Aliócha. — Ironiza ele, zomba?

— Absolutamente! Vangloria-se de ter, ele e os seus, suprimido a liberdade, com o fito de tornar os homens felizes. “Porque é agora, pela primeira vez (fala ele, bem entendido, da Inquisição), que se pode pensar na felicidade dos homens. São naturalmente revoltados; revoltados podem ser felizes? Tu estavas advertido — diz-lhe ele —, conselhos não Te faltaram, mas não os levaste em conta, rejeitaste o único meio de proporcionar a felicidade aos homens; felizmente, ao partires, Tu nos transmitiste a obra, prometeste, concedeste-nos solenemente o direito de ligar e desligar; decerto, não podes pensar em retirar de nós agora esse direito. Por que então vieste estorvar-nos?”

— Que significa isso: “As advertências e os conselhos não Te faltaram?” — perguntou Aliócha.

— Mas é o ponto capital no discurso do ancião.

“O Espírito terrível e profundo, o Espírito da destruição e do nada — continua ele —, falou-te no deserto e as Escrituras relatam que ele Te ‘tentou’. É verdade? E nada se podia dizer de mais penetrante que o que Te foi dito nas três perguntas ou, para falar com as Escrituras, as ‘Tentações’ que repeliste? Se jamais houve na Terra um milagre autêntico e retumbante, foi o dia daquelas três tentações. O simples fato de terem sido formuladas aquelas três perguntas constitui um milagre. Suponhamos que tenham desaparecido das Escrituras, que seja preciso reconstituí-las, imaginá-las de novo para substituí-las ali, e que se reúnam para esse efeito todos os sábios da Terra, homens de Estado, prelados, sábios, filósofos, poetas, dizendo-lhes: imaginai, redigi três perguntas que não somente correspondam à importância do acontecimento, mas ainda exprimam em três frases toda a história da humanidade futura — acreditas que esse areópago da sabedoria humana poderia imaginar nada de tão forte e de tão profundo como as três questões que Te propôs então o poderoso Espírito? Essas três questões provam por si sós que se tem de ver com o Espírito eterno e absoluto e não com um espírito humano transitório. Porque resumem e predizem, ao mesmo tempo, toda a história ulterior da humanidade, são as três formas em que se cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana. Não se podia, na ocasião, perceber isso, porque o futuro estava velado; mas agora, após 15 séculos decorridos, vemos que tudo fora previsto naquelas três perguntas e realizou-se a ponto de ser impossível acrescentar-lhes ou retirar-lhes uma só palavra.

“Decide, pois, Tu mesmo quem tinha razão: Tu, ou aquele que Te interrogava? Lembra-Te da primeira pergunta, do sentido, senão do teor: queres ir para o mundo de mãos vazias, pregando aos homens uma liberdade que a estupidez e a ignomínia naturais deles os impedem de compreender, uma liberdade que lhes causa medo, porque não há, e jamais houve, nada de mais intolerável, para o homem e para a sociedade! Vês aquelas pedras naquele deserto árido? Muda-as em pão e atrás de Ti correrá a humanidade, como um rebanho dócil e reconhecido, tremendo, no entanto, no receio de que Tua mão se retire e não tenham eles mais pão.

“Mas, Tu não quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, estimando que era ela incompatível com a obediência comprada por meio de pães. Replicaste que o homem não vive somente de pão; mas sabes que, em nome desse pão terrestre, o Espírito da Terra se insurgirá contra Ti, lutará e Te vencerá, que todos o seguirão, gritando: ‘Quem é semelhante a esse animal? Ele nos deu o fogo do céu!’ Séculos passarão, e a humanidade proclamará pela boca de seus sábios e de seus intelectuais que não há crimes e, por conseguinte, não há pecado; só há famintos. “Nutre-os e então exige deles que sejam virtuosos!” Eis o que se inscreverá sobre o estandarte da revolta que abaterá Teu templo. Em seu lugar, elevar-se-á novo edifício, uma segunda torre de Babel, que ficará sem dúvida inacabada, como a primeira, mas Tu terias podido poupar aos homens essa nova tentativa e mil anos de sofrimento. Porque virão eles procurar-nos, depois de ter penado mil anos para construir sua torre! Procurar-nos-ão sob a terra como outrora, nas catacumbas onde estaremos escondidos (perseguir-nos-ão de novo), e clamarão: ‘Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinham prometido o fogo do céu não no-lo deram.’ Então, acabaremos a torre deles, porque para isso basta apenas o alimento, e nós os nutriremos, utilizando-nos falsamente de Teu nome, e os faremos crescer. Sem nós, estarão sempre famintos. Nenhuma ciência lhes dará pão, enquanto permanecerem livres, mas acabarão por depositá-la a nossos pés, essa liberdade, dizendo: ‘Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis.’ Compreenderão, por fim, que a liberdade e o pão da terra à vontade para cada um são inconciliáveis, porque jamais saberão reparti-los entre si! Convencer-se-ão também de sua impotência para ser livres sendo fracos, depravados, nulos e revoltados. Tu lhes prometias o pão do céu; ainda uma vez, é ele comparável ao da terra aos olhos da fraca raça humana, eternamente ingrata e depravada? Milhares e dezenas de milhares de almas seguir-Te-ão por causa desse pão, mas que acontecerá aos milhões e bilhões que não terão a coragem de preferir o pão do céu ao da terra? Será que só preferes os grandes e os fortes, aos quais os outros, a multidão inumerável, que é fraca, mas Te ama, só serviria de matéria explorável? Eles também nos são queridos, os seres fracos. Embora depravados e revoltados, tornar-se-ão finalmente dóceis. Ficarão espantados e acreditarão que somos deuses por ter consentido, pondo-nos a comandá-los, em assumir a liberdade que os atemorizava e reinar sobre eles, de modo que, ao final, terão medo de ser livres. Mas lhes diremos que somos Teus discípulos e reinamos em Teu nome. Enganá-los-emos de novo, porque então não deixaremos que Te aproximes de nós. E será essa impostura que constituirá nosso sofrimento, porque será preciso que mintamos. Tal é o sentido da primeira pergunta que Te foi feita no deserto, e eis o que rejeitaste em nome da liberdade, que punhas acima de tudo. No entanto, ocultava ela o segredo do mundo. Consentindo no milagre dos pães, terias acalmado a eterna inquietação da humanidade — indivíduos e coletividade —, isto é: ‘Diante de quem se inclinar?’ Porque não há para o homem, que fica livre, preocupação mais constante e mais ardente do que procurar um ser diante do qual se inclinar. Mas só quer ele inclinar-se diante de uma força incontestada, que todos os humanos respeitem por consenso universal. Porque essas pobres criaturas atormentar-se-ão em procurar um culto que reúna não somente alguns fiéis, mas no qual todos juntos comunguem, unidos pela mesma fé. Porque essa necessidade da comunidade na adoção é o principal tormento de cada indivíduo e da humanidade inteira, desde o começo dos séculos. É para realizar esse sonho que se têm os homens exterminado pelo gládio. Os povos forjaram deuses e desconfiaram uns dos outros: ‘Abandonai vossos deuses, adorai os nossos, senão, ai de vós e de vossos deuses!’ E assim será até o fim do mundo, mesmo quando os deuses tiverem desaparecido; prosternar-se-ão diante dos ídolos. Tu não ignoravas, Tu não podias ignorar esse segredo fundamental da natureza humana e, no entanto, repeliste a única bandeira infalível que Te ofereciam e que teria curvado sem contestação todos os homens diante de Ti, a bandeira do pão terrestre; rejeitaste-a em nome do pão do céu e da liberdade! Vê o que fizeste em seguida, sempre em nome da liberdade! Não há, repito-Te, preocupação mais aguda para o homem que encontrar o mais cedo possível um ser a quem delegar esse dom da liberdade que o infeliz traz consigo ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é preciso dar-lhes a paz da consciência. O pão Te garantia o êxito; o homem se inclina diante de quem lhe dá, porque é uma coisa incontestável; mas, se um outro se torna senhor da consciência humana, largará ali mesmo o Teu pão para seguir aquele que cativa sua consciência. Nisso Tu tinhas razão, porque o segredo da existência humana consiste não somente em viver, mas ainda em encontrar um motivo de viver. Sem uma ideia nítida da finalidade da existência, prefere o homem a ela renunciar e se destruirá em vez de ficar na Terra, embora cercado de montes de pão. Mas o que aconteceu? Em lugar de Te apoderares da liberdade humana, Tu ainda a estendeste! Esqueceste-Te então de que o homem prefere a paz e até mesmo a morte à liberdade de discernir o bem e o mal? Não há nada de mais sedutor para o homem do que o livre-arbítrio, mas também nada de mais doloroso. E em lugar de princípios sólidos que teriam tranquilizado para sempre a consciência humana, Tu escolheste noções vagas, estranhas, enigmáticas, tudo quanto ultrapassa a força dos homens e, com isso, agiste como se não os amasses, Tu, que vieras dar Tua vida por eles! Aumentaste a liberdade humana em vez de confiscá-la, e assim impuseste para sempre ao ser moral os pavores dessa liberdade. Querias ser livremente amado, voluntariamente seguido pelos homens fascinados. Em lugar da dura lei antiga, o homem devia doravante, com coração livre, discernir o bem e o mal, não tendo para se guiar senão Tua imagem, mas não previas que ele repeliria, afinal, e contestaria mesmo Tua imagem e Tua liberdade, esmagado sob essa carga terrível: a liberdade de escolher? Gritarão, por fim, que a verdade não estava em Ti, de outro modo não os terias deixado numa incerteza tão angustiosa, com tantas preocupações e problemas insolúveis. Preparaste assim a ruína de Teu reino. Não acuses ninguém. Entretanto, era isso que Te propunham? Há três forças, as únicas que possam subjugar para sempre a consciência desses fracos revoltados, a saber: o milagre, o mistério, a autoridade! Tu rejeitaste todas três, dando assim um exemplo. O espírito terrível e profundo havia-Te transportado ao pináculo e havia-Te dito: ‘Queres saber se és o filho de Deus? Lança-te daqui abaixo, porque está escrito que os anjos O sustentarão e O carregarão, e Ele não sofrerá nenhum ferimento. Saberás então se és o Filho de Deus e provará, assim, Tua fé em Teu Pai.’ Mas repeliste essa proposta, não Te precipitaste. Mostraste então uma altivez sublime, divina, mas os homens, raça fraca e revoltada, não são deuses! Sabias que, dando um passo, um gesto para Te precipitares, terias tentado o Senhor e perdido a fé n’Ele, ter-Te-ias rebentado sobre aquela terra que vinhas salvar, para grande alegria do tentador. Mas há muitos como Tu? Podes admitir um instante que os homens teriam a força de suportar semelhante tentação? É próprio da natureza humana repelir o milagre e, nos momentos graves da vida, diante das questões capitais e dolorosas, agarrar-se à livre decisão do coração? Oh! Tu sabias que Tua firmeza seria relatada nas Escrituras, atravessaria as idades e iria até as regiões mais longínquas e esperavas que, seguindo Teu exemplo, o homem se contentaria com Deus, sem recorrer ao milagre. Mas ignoravas que o homem rejeita Deus ao mesmo tempo que o milagre, porque é sobretudo o milagre que ele procura. E, como não saberia passar sem ele, forja novos, os seus próprios, inclinar-se-á diante dos prodígios de um mágico, dos sortilégios de uma feiticeira, ainda que seja um revoltado, um herege, um ímpio confesso. Tu não desceste da cruz, quando zombavam de Ti e gritavam-Te, por derrisão, ‘Desce da cruz e creremos em Ti.’ Não o fizeste, porque de novo não quiseste sujeitar o homem por meio de um milagre. Desejavas uma fé livre e não inspirada pelo maravilhoso. Tinhas necessidade de um livre amor e não dos transportes servis dum escravo aterrorizado. Aí ainda, fazias ideia demasiado alta dos homens, porque são escravos, se bem que tenham sido criados rebeldes. Vê e julga, após 15 séculos decorridos: quem elevaste até a Ti? Juro-o, o homem é mais fraco e mais vil do que o pensavas. Pode ele, pode ele realizar o mesmo que Tu? A grande estima que tinhas por ele fez mal à compaixão. Exigiste demasiado dele. Tu, no entanto, que o amavas mais do que a ti mesmo! Estimando-o menos, ter-lhe-ias imposto um fardo mais leve, mas em relação com Teu amor. Ele é fraco e covarde. Que importa que, no presente, se insurja por toda parte contra nossa autoridade e se mostre orgulhoso de sua revolta? É o orgulho de jovens escolares que se amotinaram em aula e expulsaram seu mestre. Mas a alegria dos garotos terá fim e lhes custará caro. Derrubarão os templos e inundarão a Terra de sangue. Mas perceberão por fim, essas crianças estúpidas, que são apenas fracos revoltosos, incapazes de revoltar-se por muito tempo. Derramarão lágrimas bobas e compreenderão que o Criador, fazendo-os rebeldes, quis zombar deles, certamente. Gritarão contra Ele com desespero e essa blasfêmia torná-los-á ainda mais infelizes, porque a natureza humana não tolera a blasfêmia e acaba sempre por tirar vingança dela. Assim, a inquietação, a perturbação, a desgraça, tal a partilha dos homens, após os sofrimentos que suportaste pela liberdade deles. Teu eminente profeta diz, em sua visão simbólica, que viu todos os participantes da primeira ressurreição e que havia 12 mil para cada tribo. Para serem tão numerosos, deveriam ser mais que homens, quase deuses. Suportaram Tua cruz e a existência no deserto, nutrindo-se de gafanhotos e de raízes; decerto, podes orgulhar-Te desses filhos da liberdade, do livre amor, de seu sublime sacrifício em Teu nome. Mas lembra-Te, não eram eles senão alguns milhares e quase deuses, e o resto? É falta deles, dos outros, dos fracos humanos, se não puderam suportar o que suportam os fortes? É culpada a alma fraca por não poder conter dons tão terríveis? Vieste na verdade apenas para os eleitos? Então, é um mistério, incompreensível para nós, e teremos o direito de pregá-lo aos homens, de ensinar que não é a livre decisão dos corações nem o amor que importam, mas o mistério, ao qual devem eles submeter-se cegamente, mesmo malgrado sua consciência. E o que temos feito. Corrigimos Tua obra baseando-a no milagre, no mistério, na autoridade. E os homens regozijaram-se por serem de novo levados como um rebanho e libertados daquele dom funesto que lhes causava tais tormentos. Tínhamos razão de agir assim, dize-me? Não era amar a humanidade compreender sua fraqueza, aliviar seu fardo com amor, tolerar mesmo o pecado à sua fraca natureza, contanto que fosse com nossa permissão? Por que então vir entravar nossa obra? Por que guardas Tu o silêncio, fixando-me com Teu olhar penetrante e terno? É preferível que Te zangues, não quero o Teu amor, porque eu mesmo não Te amo. Por que haveria eu de dissimular isso? Sei a quem falo, Tu conheces o que tenho a dizer-Te, vejo-o em Teus olhos. Cabe a mim esconder-Te nosso segredo? Talvez o queiras ouvir de minha boca. Ei-lo: não estamos Contigo, mas com ele, desde muito tempo já. Há justamente oito séculos que recebemos dele esse derradeiro dom que Tu repeliste com indignação, quando ele Te mostrava todos os reinos da Terra; aceitamos Roma e o gládio de César e declaramo-nos os únicos reis da Terra, se bem que até agora não tenhamos tido ainda tempo de completar nossa obra. Mas de quem a culpa? Oh! O negócio está apenas começado, bem longe de ser completado, e a Terra terá de sofrer ainda muito, mas atingiremos nosso fim, seremos césares e então pensaremos na felicidade universal.

“Entretanto, terias podido então tomar o gládio de César. Por que repeliste esse derradeiro dom? Seguindo esse terceiro conselho do poderoso Espírito, realizavas tudo quanto os homens procuram na Terra: um senhor diante de quem inclinar-se, um guarda de sua consciência e o meio de se unirem finalmente na concórdia em uma comunidade de formigueiro, porque a necessidade da união universal é o terceiro e derradeiro tormento da raça humana. A humanidade teve sempre tendência no conjunto para organizar-se sobre uma base universal. Houve grandes povos de história gloriosa, mas à medida que se elevaram, sofreram mais, experimentando mais fortemente que os outros a necessidade da união universal. Os grandes conquistadores, os Tamerlão e Gêngis-Khan,[ 103 ] que percorreram a Terra como um furacão, encarnavam, também eles, sem ter disso consciência, essa aspiração dos povos à unidade. Aceitando a púrpura de César, terias fundado o império universal e dado a paz ao mundo. Com efeito, quem está qualificado para dominar os homens senão aqueles que lhes dominam a consciência e dispõem de seu pão? Tomamos o gládio de César e, assim fazendo, nós Te abandonamos para segui-lo. Oh! Decorrerão ainda séculos de licença intelectual, de vã ciência e de antropofagia, porque será nisso que eles acabarão, depois de ter edificado a torre de Babel sem nós. Mas então a besta virá para nós arrastando-se, lamberá nossos pés, regá-los-á com lágrimas de sangue. E nós montaremos nela, ergueremos no ar uma taça em que estará gravada a palavra, ‘Mistério’. Então somente a paz e a felicidade reinarão sobre os homens. Tu Te orgulhas de Teus eleitos, mas não passam de um escol, ao passo que nós daremos o repouso a todos. Aliás, entre esses fortes destinados a ser eleitos, quantos se cansaram por fim de esperar-Te, levaram e levarão ainda a outras partes as forças de seu espírito e o ardor do coração, quantos acabarão por insurgir-se contra Ti em nome da liberdade! Mas serás Tu que a terás dado a eles. Nós tornamos todos os homens felizes, e as revoltas e os massacres inseparáveis de Tua liberdade cessarão. Oh! Nós os persuadiremos de que não serão verdadeiramente livres senão abdicando da liberdade em nosso favor. Pois bem, diremos a verdade ou mentiremos? Convencer-se-ão eles próprios de que dizemos a verdade, porque se lembrarão daquela servidão e daquela perturbação em que os mergulhou a Tua liberdade. A independência, o livre-pensamento, a ciência tê-los-ão desviado num tal labirinto, posto em presença de tais prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes furiosos, destruir-se-ão a si mesmos, e os outros, rebeldes, porém fracos, multidão covarde e miserável, se arrastarão a nossos pés, gritando: ‘Sim, tínheis razão, somente vós possuíeis Seu segredo e nós voltamos a vós; salvai-nos de nós mesmos!’ Sem dúvida, recebendo de nós os pães, verão bem que tomamos os deles, ganhos com seu próprio trabalho, para distribuí-los, sem nenhum milagre; verão bem que não mudamos as pedras em pão; mas o que lhes causará mais prazer que o próprio pão será recebê-lo de nossas mãos! Porque se lembrarão de que outrora o próprio pão, fruto de seu trabalho, mudava-se em pedra em suas mãos, ao passo que, quando voltaram a nós, as pedras tornaram-se pão. Compreenderão o valor da submissão definitiva. E, enquanto os homens não a tiverem compreendido, serão infelizes. Quem mais contribuiu para essa incompreensão, dize-me? Quem dividiu o rebanho e dispersou-o por estradas desconhecidas? Mas o rebanho se recomporá, voltará a obedecer e será isso para todo o sempre. Então, dar-lhe-emos uma felicidade mansa e humilde, uma felicidade adaptada a criaturas fracas como eles. Nós os persuadiremos, por fim, a não se orgulharem, porque foste Tu, elevando-os, quem os ensinou a serem orgulhosos; provar-lhes-emos que são débeis, que são crianças dignas de dó, mas que a felicidade infantil é a mais deleitável. Tornar-se-ão tímidos, não nos perderão de vista e se comprimirão contra nós com medo, como uma tenra ninhada sob a asa materna. Sentirão uma surpresa medrosa e terão orgulho de toda aquela energia e inteligência que nos permitiram domar a multidão inumerável dos rebeldes. Nossa cólera fá-los-á tremerem, a timidez dominá-los-á, seus olhos tornar-se-ão lacrimosos como os das crianças e das mulheres; mas, a um sinal nosso, passarão bem facilmente ao riso e à alegria, à alegria radiosa das crianças. Decerto, sujeitá-los-emos ao trabalho, mas, nas horas de lazer, organizaremos sua vida como um brinquedo de criança, com cantos, coros, danças inocentes. Oh! Permitiremos mesmo que pequem — são fracos —, e nos amarão por causa disso como crianças. Dir-lhes-emos que todo pecado será redimido, se for cometido com nossa permissão; por amor é que lhes permitiremos que pequem e assumiremos o castigo de tais pecados. Amar-nos-ão como a benfeitores que tomam a si a carga de seus pecados perante Deus. Não terão segredo algum para conosco. De acordo com seu grau de obediência, permitir-lhes-emos ou proibir-lhes-emos que vivam com as mulheres e as amantes, que tenham filhos ou não tenham, e eles nos escutarão com alegria. Submeter-nos-ão os segredos mais penosos da consciência, resolveremos todos os casos e eles aceitarão nossa decisão com alegria, porque ela lhes poupará a grave preocupação de resolverem eles mesmos livremente. E todos serão felizes, milhões de criaturas, exceto uns cem mil, seus diretores, exceto nós, os depositários do segredo. Os felizes contar-se-ão por bilhões e haverá cem mil mártires encarregados do conhecimento maldito do bem e do mal. Morrerão tranquilamente, extinguir-se-ão mansamente em Teu nome e, no outro mundo, nada encontrarão senão a morte. Mas nós guardaremos o segredo; nós os ninaremos, para sua felicidade, com uma recompensa eterna no céu. Porque, se houvesse outra vida, não seria decerto para criaturas como eles. Profetiza-se que voltarás para vencer de novo, cercado de Teus eleitos, poderosos e orgulhosos; diremos que eles só se salvaram a si mesmos, ao passo que nós salvamos o mundo inteiro. Dizem que a fornicadora, montada na besta e tendo nas mãos a taça do mistério, será desonrada, que os fracos se revoltarão de novo, rasgarão sua púrpura e desnudarão seu corpo “impuro”. Eu me levantarei então e Te mostrarei os bilhões de felizes que não conheceram o pecado. E nós, que nos sobrecarregamos com seus pecados, para sua felicidade, nós nos ergueremos diante de Ti, dizendo: ‘Não Te tememos; também eu estive no deserto, vivi de gafanhotos e de raízes; também eu abençoei a liberdade com que gratificaste os homens e me preparava para figurar entre Teus eleitos, os poderosos e os fortes, ardendo por completar-lhes o número. Mas dominei-me e não quis servir uma causa insensata. Voltei a juntar-me àqueles que corrigiram Tua obra. Abandonei os orgulhosos, voltei aos humildes, para fazer a felicidade deles. O que Te digo realizar-se-á e nosso império edificar-se-á. Repito-Te, amanhã, a um sinal meu, verás aquele rebanho dócil trazer carvões acesos para a fogueira a que subirás, por teres vindo estorvar nossa obra. Porque, se alguém mereceu mais que todos a fogueira, foste Tu. Amanhã, queimar-te-ei. Dixi.’”[ 104 ]

Ivan parou. Exaltara-se ao discorrer e falava com animação; ao terminar, sorriu.

Aliócha escutara em silêncio, com emoção extrema. Por várias vezes, tinha querido interromper o irmão, mas contivera-se.

— Mas... é absurdo! — exclamou, corando. — Teu poema é um elogio de Jesus e não uma censura... como o querias. Quem acreditará no que dizes da liberdade? É assim que se deve compreendê-la? É essa a concepção da Igreja ortodoxa?... É Roma, e não toda, são os piores elementos do catolicismo, os inquisidores, os jesuítas!... Não existe personagem fantástico como teu inquisidor. Quais são esses pecados dos outros dos quais se assume a carga? Quem são esses detentores do mistério, que se encarregam do anátema pela felicidade dos homens? Quando se viu isso? Conhecemos os jesuítas, fala-se mal deles, mas são semelhantes aos teus? De modo algum!... É simplesmente o exército romano, o instrumento da futura dominação universal, com um imperador, o pontífice romano, à frente... eis o ideal deles, não há aí mistério nenhum, nem tristeza sublime... A sede de reinar, a vulgar cobiça dos vis bens terrestres... uma espécie de servidão futura em que eles se tornariam proprietários de terras... eis tudo. Talvez mesmo não creiam em Deus. Teu inquisidor não passa de uma ficção...

— Para, para! — disse, rindo, Ivan. — Como te acaloras! Uma ficção, dizes? Pois seja, evidentemente. No entanto, crês verdadeiramente que todo o movimento católico dos derradeiros séculos seja apenas inspirado pela sede do poder, em vista somente dos bens terrestres? Não será o padre Paísi quem te ensina isso?

— Não, não, pelo contrário, o padre Paísi falou uma vez em teu mesmo sentido... mas, decerto, não disse de todo a mesma coisa — emendou Aliócha.

— Eis uma informação preciosa, apesar de teu “não de todo a mesma coisa”. Mas por que os jesuítas e os inquisidores ter-se-iam unido unicamente em vista da felicidade terrestre? Não se pode encontrar entre eles um só mártir, presa dum nobre sofrimento e amando a humanidade? Suponhamos que entre essas criaturas sedentas somente de bens materiais seja encontrada numa só como meu velho inquisidor que viveu de raízes no deserto e encarniçou-se em domar seus sentidos para se tornar livre, para atingir a perfeição; no entanto, sempre amou a humanidade. De repente, vê claro, dá-se conta de que é uma felicidade medíocre atingir a liberdade perfeita, quando milhões de criaturas permanecem para sempre desgraçadas, demasiado fracas para usar da liberdade, de que esses revoltados débeis não poderão jamais terminar a torre, e de que não é para tais gansos que o grande idealista sonhou a harmonia. Depois de ter compreendido tudo isso, meu inquisidor volta atrás e... alia-se às pessoas de espírito. Será, pois, impossível?

— Alia-se a quem, a que pessoas de espírito!? — exclamou Aliócha, quase zangado. — Não têm espírito, não detêm mistérios, nem segredos... O ateísmo, eis o segredo deles. Teu inquisidor não crê em Deus.

— Pois bem, e se assim fosse? Adivinhaste, afinal. É bem isso, eis todo o segredo, mas não é um sofrimento, pelo menos para um homem como ele, que sacrificou a vida a seu ideal no deserto e não cessou de amar a humanidade? No declínio de seus dias, convence-se claramente de que somente os conselhos do grande e terrível Espírito poderiam tornar suportável a existência dos revoltados débeis, “desses seres abortados, criados por derrisão”. Compreende que é preciso escutar o Espírito profundo, esse Espírito de morte e de ruína, e, para isso fazer, admitir a mentira e a fraude, conduzir cientemente os homens à morte e à ruína, enganando-os durante o caminho todo, a fim de ocultar-lhes para onde os leva, e para que esses lastimáveis cegos tenham a ilusão da felicidade. Nota isto: a fraude em nome d’Aquele no qual o velho acreditou ardentemente durante toda a sua vida! Não é uma desgraça? E se se encontra, seja apenas uma criatura semelhante, à frente desse exército “ávido de poder em vista apenas de bens vis”, não é bastante para suscitar uma tragédia? Bem mais ainda, basta um só chefe semelhante para encarnar a verdadeira ideia diretriz do catolicismo romano, com seus exércitos e seus jesuítas, a ideia superior. Declaro-te que estou persuadido de que esse tipo único jamais faltou entre os que estão à testa do movimento. Quem sabe se não houve talvez alguns entre os pontífices romanos? Quem sabe? Talvez aquele maldito velho, que ama tão obstinadamente a humanidade, à sua maneira, exista ainda agora em vários exemplares, e isso não por efeito do acaso, mas sob a forma de uma aliança, de uma liga secreta, organizada fez muito tempo para manter o mistério, roubá-lo aos desgraçados e aos fracos, para torná-los felizes? Deve certamente ser assim, é fatal. Imagino mesmo que os franco-maçons têm um mistério análogo na base de sua doutrina, e é por isso que os católicos odeiam os franco-maçons; veem neles uma concorrência, a difusão da ideia única, quando deve haver um só rebanho sob um só pastor. Aliás, defendendo meu pensamento, tenho o ar de um autor que não suporta tua crítica. Basta disso.

— Talvez seja tu mesmo um franco-maçom — deixou escapar de súbito Aliócha. — Não crês em Deus — acrescentou com profunda tristeza. Parecera-lhe que seu irmão o olhava com ar zombeteiro. — Como acabou teu poema? — continuou, de olhos baixos. — Ou já se acabou?

— Queria acabá-lo assim: o inquisidor se cala, espera um momento a resposta do Prisioneiro. Seu silêncio lhe pesa. O Cativo escutou-o todo o tempo, fixando-o com Seu olhar penetrante e calmo, visivelmente decidido a não lhe dar resposta. O velho queria que Ele lhe dissesse alguma coisa, ainda que fossem palavras amargas e terríveis. De repente, o Prisioneiro aproxima-se em silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios exangues. É toda a sua resposta. O velho estremece, seus lábios tremem, vai à porta, abre-a e diz: “Vá e não voltes mais... nunca mais!” E deixa que Ele se vá pelas trevas da cidade. O Prisioneiro sai.

— E o velho?

— O beijo queima-lhe o coração, mas ele persiste em sua ideia.

— E tu estás com ele, também tu! — exclamou amargamente Aliócha.

— Que absurdo, Aliócha! É apenas um poema destituído de sentido, a obra dum fedelho estudante que jamais fez versos. Pensas que vou agora meter-me com os jesuítas, juntar-me àqueles que corrigiram Sua obra? Oh, Senhor! Que me importa? Já te disse: assim que atingir os meus trinta anos, quebrarei a taça.

— E os brotos tenros, os túmulos queridos, o céu azul, a mulher amada? Como viverás, qual será teu amor por eles!? — exclamou
Aliócha, cheio de dor. — Pode-se viver com tanto inferno no coração e na cabeça? Sim, vais juntar-te a eles... se não, tu te suicidarás, desesperado.

— Há em mim uma força que resiste a tudo! — declarou Ivan, com um frio sorriso.

— Qual?

— A dos Karamázov... a força que eles haurem de sua baixeza.

— Quer dizer mergulhar na corrupção, perverter a alma, não é?

— Poderia ser isso também... Talvez escape a isso até os trinta anos e depois...

— Como poderás escapar a isso? É impossível, com suas ideias.

— Também karamazovianas!

— Quer dizer que “tudo é permitido”, não é?

Ivan franziu o cenho e empalideceu estranhamente.

— Ah! Apanhaste no ar aquela frase de ontem que tanto ofendeu Miúsov... e que Dimítri repetiu tão ingenuamente. Pois seja, “tudo é permitido”, já que se disse isso. Não me retrato. Aliás, Mítia formulou-a bastante bem.

Aliócha examinava-o em silêncio.

— Na véspera de partir, meu irmão, pensava que tinha só a ti no mundo, mas vejo agora que, mesmo em teu coração, não há mais lugar para mim, meu caro eremita. Não renegarei esta fórmula de que “tudo é permitido”, e serás tu então que me renegarás, não é?

Aliócha aproximou-se dele e beijou-lhe suavemente os lábios.

— É um plágio! — exclamou Ivan, de súbito exaltado. — Tiraste isso de meu poema. Agradeço-te, no entanto. É tempo de partir, Aliócha, para ti e para mim.

Saíram. No patamar, pararam.

— Escuta, Aliócha — disse Ivan num tom firme —, se posso ainda amar os brotos primaveris, será graças à tua lembrança. Bastar-me-á saber que estás aqui, em alguma parte, para retomar gosto pela vida. Estás contente? Se quiseres, toma isso como uma declaração de amizade. Agora, sigamos cada qual para seu lado. E chega, entendes-me? Quer dizer que, se não partir amanhã (o que não é provável) e nos encontrarmos de novo, nem uma palavra a respeito dessas questões. Peço-te formalmente. E, quanto a Dimítri, rogo-te também que não me fales mais dele, nunca mais. O assunto está esgotado, não? Em troca, prometo-te, aos trinta anos, quando eu quiser “atirar minha taça”, voltar a conversar ainda contigo, onde quer que te aches, ainda que esteja eu na América. Interessar-me-á muito então ver o que te tornaste. Eis uma promessa solene, com efeito. Nós nos despediremos por dez anos, talvez. Vai ter com teu Pater seraphicus, que está morrendo; se morresse em tua ausência, haverias de ficar zangado comigo porque te retive. Adeus; beija-me ainda uma vez, e agora vá...

Ivan afastou-se e seguiu seu caminho sem voltar-se. Fora assim que Dimítri partira na véspera, em condições muitíssimo diversas, é verdade. Essa observação estranha atravessou como uma flecha o espírito entristecido de Aliócha. Ficou alguns instantes a acompanhar seu irmão com o olhar. De repente, percebeu, pela primeira vez, que Ivan gingava ao andar e que tinha, visto de costas, o ombro direito mais baixo que o outro. Mas, de súbito, Aliócha deu meia-volta e dirigiu-se, quase correndo, para o mosteiro. A noite caía; estava inquieto, invadido por um pressentimento indefinível. Como na véspera, o vento elevou-se, e os pinheiros centenários rugitavam lugubremente, quando entrou no bosque do eremitério. Corria quase. “Pater seraphicus, donde tirara ele esse nome? Ivan, pobre Ivan, quando tornarei a ver-te?... Aqui está o eremitério, Senhor! Sim, é ele, o Pater seraphicus, que me salvará... dele para sempre!”

Várias vezes, mais tarde, admirou-se de ter podido, após a partida de Ivan, esquecer-se tão totalmente de Dimítri, a quem prometera a si mesmo, naquela manhã mesma, procurar e descobrir, embora tivesse de passar a noite fora do mosteiro.

 

VI


Onde reina ainda a obscuridade


Por seu lado, depois de ter deixado Aliócha, dirigiu-se Ivan Fiódorovitch à casa do pai. Coisa estranha, sentiu de repente uma ansiedade intolerável, que aumentava à medida que se aproximava da casa. Não era a sensação que lhe causava espanto, mas a impossibilidade de defini-la. Conhecia a ansiedade por experiência e não o surpreendia senti-la naquele momento, quando, depois de ter rompido com tudo quanto o retinha naqueles lugares, ia engajar-se numa via nova e desconhecida, sempre também solitária, cheio de esperança sem finalidade, de confiança excessiva na vida, mas incapaz de precisar sua expectativa e suas esperanças. Naquele instante, se bem que apreendesse o desconhecido, não era isso que o atormentava. “Não será a aversão pela casa paterna?”, pensava ele. “Seria na verdade isso, tanto ela me repugna, muito embora lhe transponha os umbrais hoje pela derradeira vez... Mas não, não é isso. Foram talvez as despedidas com Aliócha, depois de nossa conversa. Conservei-me calado por tanto tempo, sem dignar-me falar, e eis que passo a acumular tantos absurdos.” Na realidade, podia ser o despeito da inexperiência e da vaidade juvenis, a despeito de não ter revelado seu pensamento, sobretudo com uma criatura como Aliócha, de quem esperava ele certamente muito em seu foro íntimo. Sem dúvida, esse despeito existia, era fatal, mas havia outra coisa. “Estar ansioso até a náusea e não poder precisar o que quero. Não pensar, talvez...”

Ivan Fiódorovitch tentou “não pensar”, mas nada conseguiu. O que o irritava sobretudo era que aquela ansiedade tinha uma causa fortuita, exterior, sentia-o ele. Um ser ou um objeto obsedava-o vagamente, da mesma maneira que se tem por vezes diante dos olhos, sem que se perceba, durante um trabalho ou uma conversação animada, alguma coisa irritante até o sofrimento, até que nos vem por fim a ideia de afastar aquele objeto incômodo, muitas vezes uma bagatela: uma coisa que não está no lugar, um lenço caído no chão, um livro fora da estante, etc. De muito mau humor, chegou Ivan à casa paterna; a 15 passos da porta ergueu os olhos e adivinhou de repente o motivo de sua perturbação.

Sentado num banco, perto do portão, o criado Smierdiákov tomava fresco. Ao primeiro olhar, compreendeu Ivan que aquele Smierdiákov o incomodava e que sua alma não podia suportá-lo. Foi como um raio de luz. Ainda há pouco, quando Aliócha contava seu encontro com Smierdiákov, sentira uma sombria repulsa, e, por contragolpe, animosidade. Em seguida, durante a conversa, não pensou mais naquilo, mas, desde que se encontrou só, a sensação esquecida emergiu do inconsciente. “Será possível que esse miserável me inquiete a tal ponto?”, pensava ele, exasperado.

Com efeito, havia pouco, sobretudo nos últimos dias, tomara aversão àquele homem. Ele próprio acabara por notar aquela antipatia crescente. O que a agravava talvez é que, no começo de sua estada entre nós, experimentava Ivan Fiódorovitch por Smierdiákov uma espécie de simpatia. Achara-o a princípio muito original e conversava habitualmente com ele, julgando-o um pouco limitado ou antes inquieto, e sem compreender o que podia mesmo atormentar constantemente aquele contemplador. Entretinham-se também com questões filosóficas, perguntando mesmo por que a luz brilhava no primeiro dia — quando o Sol, a Lua e as estrelas só tinham sido criados no quarto dia — e a maneira de compreender isso. Mas em breve Ivan Fiódorovitch convenceu-se de que Smierdiákov interessava-se mediocremente pelos astros e que lhe era preciso outra coisa. Manifestava um amor-próprio excessivo e ofendido. Isso desagradou bastante a Ivan e engendrou sua aversão. Mais tarde, sobrevieram incidentes desagradáveis, o aparecimento de Grúchenhka, as brigas de Dimítri com o pai; houve barulhos. Se bem que Smierdiákov sempre falasse com agitação, não se podia nunca saber o que desejava ele para si mesmo. Alguns de seus desejos, quando os formulava involuntariamente, impressionavam por sua incoerência. Eram constantemente perguntas, alusões que ele não explicava, interrompendo-se ou falando de outra coisa no momento mais animado. Mas o que exasperava Ivan e acabara por tornar-lhe Smierdiákov antipático era a familiaridade chocante que este lhe testemunhava cada vez mais. Não que fosse descortês, pelo contrário; mas Smierdiákov chegara a um ponto, Deus sabe por quê, em que se acreditava solidário com Ivan Fiódorovitch; exprimia-se sempre como se existisse entre eles uma aliança secreta conhecida só dos dois e incompreensível para os que os cercavam. Ivan Fiódorovitch levou muito tempo para compreender a causa de sua repulsa crescente e só muito recentemente dera-se conta disso. Queria passar irritado e desdenhoso, sem nada dizer a Smierdiákov, mas este se levantou e esse gesto revelou a Ivan Fiódorovitch seu desejo de falar-lhe em particular. Olhou-o e parou, e o fato de agir assim, em lugar de passar adiante como era sua intenção, transtornou-o. Olhava com cólera e repulsa aquela figura de eunuco, de cabelos penteados sobre as têmporas, com uma mecha levantada. O olho esquerdo piscava maliciosamente, como para dizer-lhe: “Tu não passarás, vês bem que nós, gente de espírito, temos de conversar.” Ivan Fiódorovitch estremeceu.

“Para trás, miserável! Que há de comum entre nós, imbecil?!”, quis gritar; mas em lugar dessa descompostura, e para grande assombro seu, proferiu coisa bem diversa:

— Meu pai ainda está dormindo? — perguntou, num tom resignado e, sem pensar nisso, sentou-se no banco. Um instante, quase teve medo, lembrou-se depois. Smierdiákov mantinha-se diante dele, com as mãos atrás das costas, e olhava-o com segurança, quase com severidade.

— Repousa ainda — disse, sem se apressar. (Foi ele quem me dirigiu por primeiro a palavra!) — O senhor me causa espanto — acrescentou depois de algum silêncio, os olhos baixos com afetação, brincando com a ponta de sua botina engraxada, com o pé direito para a frente.

— Que é que te causa espanto? — perguntou secamente Ivan Fiódorovitch, esforçando-se por conter-se, mas nauseado por sentir viva curiosidade, que queria satisfazer a qualquer preço.

— Por que não vai a Tchermachniá? — perguntou Smierdiákov, com um sorriso familiar. “Deves compreender meu sorriso, se és um homem de espírito”, parecia dizer seu olho esquerdo.

— Que irei fazer em Tchermachniá? — admirou-se Ivan Fiódorovitch.

Houve um silêncio.

— Fiódor Pávlovitch rogou-lhe insistentemente — disse por fim, sem se apressar, como se não ligasse nenhuma importância à resposta dele: “Indico-te um motivo de terceira ordem, unicamente para dizer alguma coisa.”

— Com os diabos! Fala mais claramente. Que queres? — exclamou Ivan Fiódorovitch, com cólera, tornando-se grosseiro.

Smierdiákov puxou o pé direito para junto do esquerdo, endireitou-se, sempre com o mesmo sorriso fleumático.

— Nada de sério... Era só por falar.

Novo silêncio. Ivan Fiódorovitch compreendia que teria devido levantar-se, zangar-se; Smierdiákov mantinha-se diante dele e parecia esperar: “Vejamos, zangar-te-ás ou não?” Tinha pelo menos a impressão disso. Por fim, fez um movimento para levantar-se. Smierdiákov aproveitou a ocasião.

— Terrível situação a minha, Ivan Fiódorovitch, não sei como sair do aperto — disse com voz firme, depois do que suspirou. Ivan tornou a sentar-se.

— Ambos perderam a cabeça, dir-se-iam crianças. Falo de seu pai e de seu irmão Dimítri Fiódorovitch. Daqui a pouco, Fiódor Pávlovitch vai-se levantar e perguntar-me a cada instante: “Por que ela não veio?”, até meia-noite e mesmo depois. Se Agrafiena Alieksándrovna não vier (creio que não tem ela absolutamente intenção disso), amanhã de manhã virá ele perguntar-me de novo: “Por que ela não veio? Quando virá ela?”, como se fosse culpa minha! Do outro lado, é a mesma estória; ao cair da noite, por vezes antes, chega seu irmão, armado: “Toma cuidado, tratante, queima-panelas, se a deixas passar sem me prevenir, matar-te-ei em primeiro lugar!” De manhã, atormenta-me ele como Fiódor Pávlovitch, tanto que pareço também responsável perante ele pelo fato de não ter vindo sua dama. A cólera deles cresce todos os dias, a ponto de sonhar eu por vezes em suicidar-me, tal é o medo que tenho. Não espero nada de bom.

— Por que te meteste nisso? Por que te tornaste o espião de Dimítri Fiódorovitch?

— Como agir de outro modo? Aliás, não me meti em nada, se quer saber. No começo calava-me, não ousando replicar. Fez ele de mim seu servidor. Depois, são ameaças contínuas: “Eu te matarei, patife, se a deixares entrar.” Estou certo, senhor, de ter amanhã uma longa crise.

— Que crise?

— Mais uma crise longa, muito longa. Durará várias horas, um dia ou dois, talvez. Uma vez, durou três dias, ficando eu sem conhecimento. Caíra do celeiro. Fiódor Pávlovitch mandou chamar Herzenstube, que prescreveu gelo sobre o crânio, depois outro remédio. Estive à morte.

— Mas dizem que é impossível prever as crises de epilepsia. Como podes saber que será amanhã? — perguntou Ivan Fiódorovitch com uma curiosidade a que se misturava cólera.

— É verdade.

— Além do mais, caíras do celeiro daquela vez.

— Poderei cair amanhã, porque subo lá todos os dias. Se não for no celeiro, cairei na adega. Vou lá também todos os dias.

Ivan examinou-o longamente.

— Tu tramas alguma coisa que não compreendo bem — disse ele em voz baixa, mas com ar ameaçador. — Não terás a intenção de simular uma crise por três dias!

— Se eu pudesse simular — não passa de um brinquedo, quando se tem experiência —, teria plenamente o direito de recorrer a esse meio para salvar minha vida, porque, quando estou nesse estado, até mesmo se Agrafiena Alieksándrovna chegasse, seu irmão não poderia exigir contas a um doente. Teria vergonha.

— Com os diabos! — exclamou Ivan Fiódorovitch, com as feições contraídas pela cólera. — Por que tens de temer sempre por tua vida? As ameaças de Dimítri são falas de um homem furibundo e nada mais. Matará alguém, mas não tu.

— Matar-me-ia como a uma mosca, a mim em primeiro lugar. Receio ainda mais passar por seu cúmplice, se ele atacasse loucamente seu pai.

— Por que te acusariam de cumplicidade?

— Porque lhe revelei um segredo... os sinais.

— Que sinais? Que o diabo te leve! Fala claramente.

— Devo confessar — disse arrastadamente Smierdiákov, com ar doutoral —, temos um segredo, Fiódor Pávlovitch e eu. O senhor sabe sem dúvida que, desde alguns dias, ele se tranca com ferrolho assim que chega a noite. Nesses tempos, o senhor regressa cedo, sobe imediatamente para seus aposentos, ontem mesmo nem chegou a sair, de modo que ignora talvez com que cuidado ele se embarricava. Se Grigóri Vassílievitch chegasse, ele só lhe abriria a porta depois de reconhecer-lhe a voz. Mas Grigóri Vassílievitch não vem, porque sou eu somente que sirvo nos aposentos de seu pai — decidiu ele assim desde aquela intriga com Agrafiena Alieksándrovna; de acordo com suas instruções, passo a noite no pavilhão: até meia-noite devo montar guarda, vigiar o pátio para o caso de ela vir: desde alguns dias a espera o torna louco. Eis seu raciocínio: “Dizem que ela tem medo dele (de Dimítri Fiódorovitch, entende-se), portanto virá de noite pelo pátio; fica de vigia lá até depois de meia-noite. Assim que ela chegar lá, corre a bater na porta ou na janela no jardim, duas vezes de leve, assim, depois três vezes mais depressa, toc, toc, toc. Então compreenderei que é ela e te abrirei devagarinho a porta.” Deu-me outro sinal para os casos extraordinários, primeiro, dois golpes depressa, toc, toc, depois, após um intervalo, uma vez forte. Compreenderá que há novidade e me abrirá e eu farei meu relatório. Isso no caso em que viesse de parte de Agrafiena Alieksándrovna, ou se Dimítri Fiódorovitch chegasse, a fim de assinalar sua aproximação. Ele tem muito medo e, mesmo se estivesse trancado com sua beldade e o outro chegasse, sou obrigado a informá-lo disso imediatamente, dando três pancadas. O primeiro sinal, cinco pancadas, quer pois dizer: “Agrafiena Alieksándrovna chegou”; o segundo, três pancadas, significa: “Negócio urgente.” Fez-me ensaiar várias vezes. E como ninguém no mundo conhece esses sinais, exceto ele e eu, abrir-me-á a porta sem hesitar, nem chamar (receia muito fazer barulho). Ora, Dimítri Fiódorovitch está ao corrente desses sinais.

— Por quê? Foste tu que lhos transmitiste? Como ousaste?

— Tinha medo. Podia eu guardar o segredo? Dimítri Fiódorovitch insistia cada dia: “Tu me enganas, tu me ocultas alguma coisa! Quebrar-te-ei as pernas!” Falei para provar-lhe minha submissão e persuadi-lo de que não o engano, bem pelo contrário.

— Pois bem, se pensas que ele quer entrar por meio desse sinal, impede-o!

— E, se eu tiver minha crise, como o impedirei, admitindo que o ouse? Ele é tão violento!

— Que o diabo te carregue! Por que estás tão certo de ter uma crise amanhã? Zombas de mim!

— Não mo permitiria; aliás, não é momento para riso. Pressinto que terei uma crise, basta o medo para provocá-la.

— Se estiveres deitado, será Grigóri quem velará. Previne-o, ele o impedirá.

— Não ouso revelar os sinais a Grigóri Vassílievitch, sem a permissão do patrão. Aliás, Grigóri Vassílievitch está doente desde ontem e Marfa Ignátievna prepara-se para cuidar dele. É bastante curioso: ela conhece e tem de reserva uma infusão fortíssima, feita de certa erva, é um segredo. Três vezes por ano, dá esse remédio a Grigóri Vassílievitch, quando corre o lumbago e ele fica como que paralítico. Ela pega um guardanapo embebido desse licor e esfrega-lhe com ele as costas uma meia hora, até que lhe fique a pele avermelhada e até mesmo inchada. Depois dá-lhe de beber o resto do frasco, recitando uma oração. Ela mesma toma um pouco. Não tendo ambos costume de beber, caem ali mesmo e adormecem num sono profundo que dura muito tempo. Ao despertar, Grigóri Vassílievitch está quase sempre curado, ao passo que a mulher fica com enxaqueca. De sorte que, se amanhã Marfa Ignátievna puser seu projeto em execução, não ouvirão eles Dimítri Fiódorovitch e o deixarão entrar. Estarão dormindo.

— Que absurdo! Tudo se arranjará como de propósito: tu terás tua crise, os outros estarão adormecidos. É de acreditar-se que tens intenções... — exclamou Ivan Fiódorovitch, franzindo o cenho.

— Como poderia eu arranjar tudo isso e para quê, quando tudo depende unicamente de Dimítri Fiódorovitch? Se ele quiser agir, agirá, senão não irei procurá-lo para empurrá-lo à casa do pai.

— Mas por que viria ele, e às ocultas ainda por cima, se Agrafiena Alieksándrovna não vem, como tu mesmo dizes? — prosseguiu Ivan Fiódorovitch, pálido de cólera. — Eu também sempre pensei que era uma fantasia do velho, que jamais aquela criatura viria aqui à casa dele. Por que, pois, Dimítri forçaria a porta? Fala, quero conhecer teu pensamento.

— O senhor mesmo sabe por que ele virá, de que adianta aqui meu pensamento? Virá ele por animosidade ou por desconfiança, se eu estiver doente, por exemplo; terá dúvidas e quererá explorar ele próprio os aposentos, como ontem de noite, ver se ela não teria entrado sem que ele o soubesse. Sabe também que Fiódor Pávlovitch preparou um grande envelope contendo três mil rublos, selado com três sinetes e amarrado por uma fita. Escreveu do próprio punho: “Para meu anjo, Grúchenhka, se ela quiser vir.” Três dias depois, acrescentou: “Para minha franguinha.” Aí tem o senhor o perigo!

— Que absurdo! — exclamou Ivan Fiódorovitch fora de si. — Dimítri não irá roubar dinheiro e matar o pai ao mesmo tempo. Ontem, teria podido matá-lo como um louco furioso por causa de Grúchenhka, mas não irá roubar.

— Tem ele extrema necessidade de dinheiro, Ivan Fiódorovitch. O senhor nem mesmo pode fazer ideia — explicou Smierdiákov com grande calma e bem nitidamente. — Aliás, acha ele que esses três mil rublos lhe pertencem e declarou-me: “Meu pai me deve justamente três mil rublos.” Além do mais, Ivan Fiódorovitch, considere isto: está ele quase certo de que Agrafiena Alieksándrovna, se o quiser, obrigará Fiódor Pávlovitch a casar-se com ela. Acho que ela não virá, mas talvez queira ela algo mais, queira tornar-se uma dama. Sei que seu amante, o comerciante Samsónov, dizia-lhe francamente que não seria esse um mau negócio e ria. Ela mesma não é tola; não tem razão nenhuma para casar-se com um pobretão como Dimítri Fiódorovitch. Nesse caso, Ivan Fiódorovitch, sabe o senhor muito bem que nem o senhor nem seus irmãos herdarão de seu pai um rublo sequer, porque se Agrafiena Alieksándrovna casar com ele, será para pôr tudo em seu nome e ficar com todos os seus capitais. Se o pai dos senhores morrer agora, receberá cada um quarenta mil rublos, até mesmo Dimítri Fiódorovitch, a quem ele detesta tanto, porque seu testamento ainda não está feito... Dimítri Fiódorovitch está ao corrente de tudo isso...

As feições de Ivan contraíram-se. Corou.

— Por que, pois — interrompeu bruscamente —, me aconselhas a partir para Tchermachniá? Que tencionavas com isso? Após minha partida, acontecerá aqui alguma coisa.

Ofegava.

— Justamente — disse num tom calmo Smierdiákov, fixando Ivan Fiódorovitch.

— Como justamente? — repetiu Ivan Fiódorovitch, procurando conter-se, com o olhar ameaçador.

— Digo isso por compaixão pelo senhor. Em seu lugar, largaria tudo... para me afastar de tal negócio — replicou Smierdiákov, com ar franco. Ambos se calaram.

— Tens cara dum chapado imbecil... e dum perfeito canalha!

Ivan Fiódorovitch levantou-se dum salto. Queria transpor a pequena porta, mas parou e voltou-se para Smierdiákov. Passou-se então algo de estranho: Ivan Fiódorovitch mordeu os lábios, cerrou os punhos e esteve a ponto de lançar-se contra Smierdiákov. Este percebeu isso a tempo, estremeceu e recuou. Mas nada de desagradável aconteceu, e Ivan Fiódorovitch, silencioso e perplexo, dirigiu-se para a porta.

— Parto amanhã para Moscou, se o queres saber, amanhã de manhã, eis tudo! — gritou ele, com raiva, surpreendido ele mesmo por ter podido dizer isso a Smierdiákov.

— Perfeito! — replicou este, como se já o esperasse. — Somente, talvez tenham de telegrafar-lhe para lá, caso aconteça alguma coisa.

Ivan Fiódorovitch voltou-se de novo, mas uma mudança súbita operara-se em Smierdiákov. Toda a sua familiaridade displicente desaparecera; todo o seu rosto exprimia uma atenção e uma expectativa extremas, mas tímidas e servis. “Não acrescentarás nada?”, lia-se em seu olhar fixo sobre Ivan Fiódorovitch.

— E não me chamariam também de Tchermachniá, se acontecesse alguma coisa? — vociferou Ivan Fiódorovitch, elevando a voz sem saber por quê.

— Também o avisarão em Tchermachniá... — murmurou Smierdiákov, em voz baixa, sem cessar de fitar Ivan bem nos olhos.

— Somente Moscou é longe e Tchermachniá é perto; será que lamentas as despesas por ter eu de dar uma grande volta?

— Justamente — murmurou Smierdiákov, com voz mal segura e um sorriso vil, pronto de novo a saltar para trás. Mas, para grande surpresa sua, Ivan Fiódorovitch desatou a rir. Transposta a porta, ria ainda. Quem o tivesse observado naquele instante não teria atribuído aquele riso à jovialidade. Ele próprio não teria podido explicar o que sentia. Andava maquinalmente.

 

VII


Dá gosto falar com um homem de espírito


Falava sozinho também. Encontrando Fiódor Pávlovitch no salão, gritou-lhe, gesticulando: “Subo para meu quarto, não irei aos seus aposentos... adeus!”, e passou, evitando olhar o pai. Sem dúvida, sua aversão pelo velho dominou-o naquele momento, mas essa animosidade manifesta com tal sem cerimônia surpreendeu o próprio Fiódor Pávlovitch. Tinha evidentemente algo de urgente a dizer ao filho e viera a seu encontro com esse fim; diante daquela indelicada acolhida, calou-se e acompanhou-o com um olhar irônico até que ele desapareceu.

— Que tem ele? — perguntou a Smierdiákov, que chegava.

— Está zangado. Quem sabe por quê? — respondeu evasivamente Smierdiákov.

— Ao diabo sua zanga! Apressa-te em trazer-me o samovar e vá. Nada de novo?

Vieram então as perguntas de que Smierdiákov acabava de queixar-se a Ivan Fiódorovitch, referentes à visitante esperada, mas silenciamos a respeito. Meia hora mais tarde, a casa estava fechada, e o velho apaixonado pôs-se a andar para lá e para cá, com o coração palpitante, aguardando o sinal convencionado. Por vezes olhava as janelas sombrias, mas só via a noite.

Já era bastante tarde e Ivan Fiódorovitch não dormia. Meditava e só se deitou às duas horas. Não exporemos o curso de seus pensamentos; não chegou o momento de entrar naquela alma; chegará a vez dela. Seria, aliás, bastante árduo, porque não eram pensamentos, mas antes uma agitação vaga. Ele próprio sentia que perdia a fé. Desejos estranhos o atormentavam; assim, depois da meia-noite, sentiu uma vontade irresistível de descer, de abrir a porta e ir ao pavilhão dar uma surra em Smierdiákov; mas, se lhe tivessem perguntado por quê, não teria podido indicar um só motivo, salvo talvez que aquele lacaio se lhe tornara odioso, como o pior ofensor que existisse. Por outra parte, uma timidez inexplicável, humilhante, invadiu-o várias vezes, paralisando suas forças físicas. Sua cabeça girava, doía-lhe. Uma sensação de ódio aguilhoava-o, como se fosse ele vingar-se de alguém. Odiava até mesmo Aliócha, lembrando-se de sua recente conversa, e, por instantes, detestava a si mesmo. Esquecera Katierina Ivânovna e admirou-se mais tarde, lembrando-se de que, na véspera, quando se gabava diante dela de partir para Moscou no dia seguinte, dizia a si mesmo: “É absurdo, não partirás e não romperás tão facilmente, fanfarrão!” Muito tempo depois, lembrou-se Ivan Fiódorovitch com repulsa de que, naquela noite, foi de mansinho, como se temesse ser percebido, abrir a porta, saiu para o patamar e pôs-se a escutar as idas e vindas do pai no andar térreo; escutou por muito tempo, com estranha curiosidade, retendo a respiração e com o coração batendo. Ele próprio ignorava por que agia assim. Toda a vida tratou aquele processo como indigno, considerando-o, no fundo de sua alma, o mais vil que tinha a censurar-se. Não sentia então nenhum ódio contra Fiódor Pávlovitch, mas somente uma curiosidade intensa; que poderia ele estar fazendo lá embaixo? Via-o olhando as janelas sombrias, parando de repente no meio do quarto para escutar se não batiam. Por duas vezes, saiu Ivan Fiódorovitch para o patamar. Cerca das duas horas, quando tudo ficou calmo, ele próprio se deitou, ávido de sono, porque se sentia extenuado. Na verdade, adormeceu profundamente, sem sonhos, e, quando despertou, já era dia. Ao abrir os olhos, surpreendeu-se ao sentir uma energia extraordinária, levantou-se, vestiu-se a pressa e pôs-se a arrumar a mala. A lavadeira acabava justamente de trazer-lhe a roupa branca, e ele sorriu ao pensar que nada se opunha à sua repentina partida. Era repentina, com efeito. Se bem que Ivan Fiódorovitch tivesse declarado na véspera a Katierina Ivânovna, a Aliócha, a Smierdiákov, que partia no dia seguinte para Moscou, lembrava-se de que, ao meter-se na cama, não pensava em partir, pelo menos, não imaginava que, ao despertar, começaria a arrumar a mala. Por fim, ficou ela pronta, bem como seu saco de viagem; eram já nove horas, quando Marfa Ignátievna veio perguntar-lhe, como de costume: “Toma o chá no quarto ou vai descer?” Desceu quase alegre, muito embora suas palavras e seus gestos traíssem certa agitação. Saudou afavelmente o pai, perguntou mesmo por sua saúde, mas sem esperar sua resposta declarou-lhe que partia dentro de uma hora para Moscou e pediu que preparassem os cavalos. O velho escutou-o sem o menor espanto, descuidou mesmo de mostrar, por convenção, um ar aflito; em compensação, agitou-se, lembrando-se muito a propósito de um negócio importante para ele.

— Ah! Parece incrível! Nada me disseste ontem. Não importa, não é tarde demais. Faze-me um grande prazer, meu caro, passa por Tchermachniá. Basta dobrares à esquerda na estação de Volóvia, uma dúzia de verstas no máximo, e lá estarás.

— Desculpe-me, mas não posso; há oitenta verstas até a estação, o trem de Moscou parte às sete horas da noite, tenho o tempo justo.

— Terás muito tempo, amanhã ou depois de amanhã, mas hoje vai a Tchermachniá. Que te custa tranquilizar teu pai? Se não estivesse ocupado, teria eu mesmo ido lá há muito tempo, porque o negócio é urgente, mas... não posso ausentar-me no momento... Vês? Possuo matas, em dois lotes, em Bieguítchev e em Diátchkino, nas charnecas. Os Máslovi, pai e filho, negociantes, só oferecem oito mil rublos pela lenha; no ano passado apresentou-se um comprador que dava 12 mil, mas não é daqui, nota bem. Porque não há comprador entre os daqui. Os Máslovi, que possuem centenas de milhares de rublos, é que fazem os preços: é preciso aceitar-lhes as condições, ninguém ousa disputar com eles. Ora, o padre Ilinski escreveu-me na quinta-feira passada noticiando-me a chegada de Górstkin, também comerciante, que eu conheço e tem a vantagem de não ser daqui, mas de Pogrébov, não temendo, portanto, os Máslovi. Oferece 11 mil rublos, entendes-me? Ficará lá uma semana no máximo, escreveu-me o padreco. Irás negociar a coisa com ele...

— Escreva então ao padreco, ele se encarregará disso.

— Não saberá fazê-lo, eis a dificuldade. Esse padreco não entende nada disso. Vale seu peso em ouro, eu lhe confiaria vinte mil rublos sem recibo, mas não tem faro, é uma criança. Contudo é um erudito, imagina só! Esse Górstkin tem o ar de um mujique, de blusa azul, mas é um perfeito tratante, eis a desgraça: mente. E por vezes a tal ponto que a gente pergunta por quê. Uma vez, contou que a mulher tinha morrido e ele tornara a casar; era tudo mentira; a mulher continua viva e surra-o regularmente. Trata-se, pois, agora, de saber se ele quer comprar mesmo por 11 mil rublos.

— Mas eu tampouco entendo coisa alguma dessas espécies de negócio.

— Espera, sair-te-ás bem, vou dar-te todos os pormenores a respeito desse Górstkin. Há muito tempo que mantenho relações de negócios com ele. Escuta lá: é preciso olhar para a barba que ele tem, ruiva e maltratada. Quando ela se agita e ele mesmo se zanga enquanto fala, a coisa vai bem, fala ele a verdade e quer ultimar; mas, se acaricia a barba com a mão esquerda, sorrindo, é que quer enrolar-nos, trapaceia. Inútil olhar-lhe os olhos, é água turva; olha a barba. Seu verdadeiro nome não é Górstkin, mas Liagávi,[ 105 ] mas cuida de não chamá-lo Liagávi, pois se ofenderia. Se vês que o negócio se arranja, escreve-me umas linhas. Mantém o preço de 11 mil rublos. Podes baixar uns mil, mas não mais. Pensa pois, oito e 11, faz isso três mil de diferença. É para mim dinheiro achado e tenho extrema precisão dele. Se me anunciares que a coisa é séria, haverei de achar tempo para dar um pulo até lá e ultimar o negócio. Que adianta deslocar-me daqui agora, se o padre estiver enganado? Pois bem, irás ou não?

— Ah! Não tenho tempo, dispense-me.

— Presta esse serviço a teu pai, não me esquecerei disso. Vocês todos não têm coração. Que é para ti um dia ou dois? Aonde vais agora, a Veneza? Ela não vai desmoronar-se, tua Veneza. Teria bem mandado Aliócha, mas entende ele disso? Ao passo que tu és astuto, vejo-o bem. Não és negociante de madeira, mas tens olho. Trata-se de ver se aquele homem fala seriamente ou não. Repito-o: olha sua barba; se ela mexer-se, é sério.

— Então, manda-me o senhor mesmo a essa maldita Tchermachniá!? — exclamou Ivan com um sorriso mau.

Fiódor Pávlovitch não notou ou não quis notar a maldade e reteve só o sorriso.

— Com que então, vais, não é? Vou dar-te um bilhete.

— Não sei, decidirei isso no caminho.

— Por que no caminho? Decide agora. Fechado o negócio, escreve-me duas linhas, entrega-as ao padre, que fará chegar às minhas mãos teu bilhete. Depois disso, estarás livre e poderás partir para Veneza. O pope te levará de carro à estação de Volóvia.

O velho exultava; escreveu umas linhas, mandou buscar um carro, serviu-se um desjejum, conhaque. A alegria tornava-o habitualmente expansivo, mas desta vez parecia conter-se. Nem uma palavra a respeito de Dimítri Fiódorovitch. De modo algum afetado pela separação, nada achava para dizer. Ivan Fiódorovitch ficou impressionado: “Eu o aborrecia”, pensava. Ao acompanhar o filho, o velho agitou-se como se quisesse beijá-lo. Mas Ivan Fiódorovitch apressou-se em estender-lhe a mão, visivelmente desejoso de evitar o beijo. Ele compreendeu logo e parou.

— Deus te guarde! — repetiu ele do patamar. — Voltarás algum dia, não? Terei sempre prazer em ver-te! Que o Cristo esteja contigo!

Ivan Fiódorovitch subiu no tarantás.

— Adeus, Ivan, não me queiras mal! — gritou-lhe uma última vez o pai.

Os criados, Smierdiákov, Marfa, Grigóri, tinham vindo dizer-lhe adeus. Ivan deu a cada um dez rublos. Smierdiákov correu a arranjar o tapete.

— Estás vendo? Vou a Tchermachniá... — deixou de súbito Ivan escapar, como contra sua vontade e com um riso nervoso. Muito tempo depois, lembrou-se disso.

— É então verdade o que se diz: dá gosto falar com um homem de espírito — replicou Smierdiákov, com um olhar penetrante.

O tarantás partiu a galope. O viajante estava preocupado, mas olhava avidamente os campos, os outeiros, um bando de gansos selvagens que voavam alto no céu claro. De repente, experimentou uma sensação de bem-estar, tentou conversar com o cocheiro e interessou-se bastante por uma resposta do mujique; mas em breve deu-se conta de que seu espírito estava em outra parte. Calou-se, respirando com delícia o ar puro e fresco. A lembrança de Aliócha e de Katierina Ivânovna atravessou-lhe o espírito; sorriu docemente, soprou seus queridos fantasmas, que desapareceram. “Mais tarde!”, pensou. Chegaram bem depressa à estação de posta; os cavalos foram substituídos para se dirigirem a Volóvia. “Por que dá gosto falar com um homem de espírito, que queria ele dizer com isso?”, perguntou a si mesmo, de súbito. “Por que lhe disse eu que ia a Tchermachniá?”

Chegando à estação de Volóvia, Ivan desceu e foi cercado pelos cocheiros; tratou o preço para Tchermachniá, 12 verstas por uma estrada vicinal. Mandou atrelar, entrou no posto, olhou a encarregada, tornou a sair para o patamar.

— Não vou mais a Tchermachniá. Terei tempo, irmãos, de chegar às sete horas à estação?

— Às suas ordens. É preciso atrelar?

— Agora mesmo. Será que um de vocês não vai amanhã à cidade?

— Mítri irá justamente.

— Poderias tu, Mítri, prestar-me um obséquio? Vá à casa de meu pai, Fiódorovitch Pávlovitch Karamázov e dize-lhe que não fui a Tchermachniá.

— Por que não? Conhecemos Fiódor Pávlovitch há muito tempo.

— Toma, eis aqui uma gorjeta, porque não se pode contar muito com ele... — disse jovialmente Ivan Fiódorovitch.

— É verdade — disse Mítri rindo. — Obrigado, senhor, darei seu recado.

Às sete horas da noite, tomou Ivan o trem para Moscou. “Para trás todo o passado! Está acabado para sempre! Que não ouça mais falar dele! Para um novo mundo, para novas terras, sem olhar para trás!” Mas, de repente, sua alma ensombreceu-se e uma tristeza tal como nunca sentira apertou-lhe o coração. Meditou toda a noite. Somente pela manhã, ao chegar a Moscou, pareceu voltar a si.

— Sou um miserável! — disse.

Fiódor Pávlovitch, após a partida do filho, sentiu-se de coração leve. Durante duas horas, esteve quase feliz, com a ajuda do conhaque, quando sobreveio um incidente desagradável que o consternou; ao dirigir-se à adega, Smierdiákov caiu do primeiro degrau da escada. Marfa Ignátievna, que se achava no pátio, não viu a queda, mas ouviu o grito, o grito esquisito do epiléptico presa duma crise, que ela conhecia bem. Tivera ele, ao descer os degraus, um ataque que o fizera rolar até embaixo inconsciente, ou então foram a queda e o choque que o provocaram? Não se sabia de nada. O certo é que o encontraram no fundo da adega, torcendo-se em horríveis convulsões, os lábios espumantes. A princípio acreditou-se que ele se contundira, fraturara um membro, mas “o Senhor o preservara”, segundo a expressão de Marfa Ignátievna. Estava indene, contudo deu um trabalhão fazê-lo subir. Conseguiu-se com a ajuda dos vizinhos. Fiódor Pávlovitch, que assistia à remoção, também ajudou. Estava transtornado. O doente permanecia inconsciente: a crise, que cessara, recomeçou; concluiu-se disso que as coisas se passariam como no ano anterior, quando caíra ele do celeiro. Tinham-lhe então posto gelo na cabeça. Restava ainda algum na adega, que Marfa utilizou. Ao anoitecer, Fiódor Pávlovitch mandou chamar o doutor Kerzenstube, que chegou sem demora. Depois de ter examinado atentamente o doente (era o médico mais meticuloso da província, um velhinho respeitável), concluiu que era uma crise extraordinária, que podia ocasionar complicações; que, para o momento, não compreendia bem, mas que, no dia seguinte de manhã, se os remédios prescritos não tivessem agido, tentaria outro tratamento. Deitaram o doente no pavilhão, num quartinho contíguo ao de Grigóri. Em seguida, Fiódor Pávlovitch só teve aborrecimentos: a sopa, preparada por Marfa Ignátievna, comparada com a que fazia Smierdiákov, não passava de uma água suja; e a galinha estava tão dura que não havia jeito de trincá-la. Diante das amargas censuras, aliás justificadas, de seu amo, a boa mulher replicou que a galinha era velha e que ela mesma não era cozinheira de profissão. À noitinha, outro aborrecimento. Soube Fiódor Pávlovitch que Grigóri, que estava doente desde a antevéspera, fora para a cama, presa de lumbago. Apressou-se em tomar o chá e trancou-se, extremamente agitado. Era a noite em que esperava, quase com certeza, a visita de Grúchenhka; pelo menos Smierdiákov lhe assegurara, naquela manhã mesma, que ela prometera vir. O coração do incorrigível velho batia violentamente; ia e vinha pelos quartos vazios, prestando ouvidos. Era preciso estar de vigia: talvez Dimítri Fiódorovitch o espionasse nos arredores e, assim que ela batesse na janela (Smierdiákov afirmava que ela conhecia o sinal), seria preciso abrir-lhe imediatamente, não a retendo no vestíbulo, no receio de que ela se amedrontasse e fugisse. Fiódor Pávlovitch estava inquieto, mas nunca esperança mais doce lhe havia embalado o coração: estava quase certo de que dessa vez ela viria.


Livro VI

Um monge russo


I


O stáriets Zósima e seus hóspedes


Quando Aliócha entrou, ansioso, na cela do stáriets, sua surpresa foi grande. Em lugar do moribundo, talvez inconsciente, que ele temia ver, encontrou-o sentado numa poltrona, enfraquecido, mas com ar alegre, disposto, cercado de visitantes com os quais se entretinha tranquilamente. Tinha-se levantado um quarto de hora, quando muito, antes da chegada de Aliócha; os visitantes reunidos na cela aguardavam seu despertar, confiantes na firme garantia do padre Paísi de que “o mestre levantar-se-ia certamente para conversar ainda uma vez com aqueles a quem amava, como o prometera pela manhã”. O padre Paísi cria firmemente naquela promessa, como em tudo quanto o monge dizia, a ponto de, se o tivesse visto inconsciente e até mesmo sem respiração, duvidar da própria morte e esperar que ele voltasse a si para cumprir sua palavra. De manhã mesmo, o stáriets Zósima dissera-lhe, ao ir repousar: “Não morrerei sem entreter-me ainda uma vez convosco, meus bem-amados, verei vossos queridos rostos, expandir-me-ei pela derradeira vez.” Os que se tinham reunido para aquela última entrevista eram os melhores amigos do stáriets, desde muitos anos. Contavam-se quatro: os padres Ióssif, Paísi e Mikhail, este último superior do ascetério, homem de certa idade, bem menos culto que os outros, de condição modesta, mas de espírito firme, ao mesmo tempo sólido e cândido, ar rude, mas de coração terno, se bem que dissimulasse pudicamente essa ternura. O quarto era um velho monge simples, filho de pobres camponeses, o irmão Anfim, muito pouco instruído, taciturno e manso, o mais humilde entre os humildes, parecendo sempre sob a impressão dum grande terror, que o teria dominado. Esse homem timorato era bastante querido pelo stáriets Zósima, que teve durante toda a vida muita estima por ele, se bem que só trocassem raríssimas palavras. No entanto, tinham percorrido juntos a santa Rússia durante anos. Remontava isso a quarenta anos, aos começos do apostolado do stáriets; pouco depois de sua entrada em um mosteiro pobre e obscuro da província de Kostroma, acompanhou ele o padre Anfim nas suas coletas em favor do dito mosteiro. Os visitantes mantinham-se no quarto de dormir do stáriets, bastante exíguo, como já se disse, de modo que havia apenas lugar para eles quatro, sentados em torno de sua poltrona (ficando de pé o noviço Porfíri). Já estava escuro, o quarto era iluminado por lamparinas e círios acesos diante dos ícones. À vista de Aliócha, que parara, embaraçado, na soleira, o stáriets mostrou um sorriso alegre e estendeu-lhe a mão.

— Boa tarde, meu doce amigo, chegaste. Sabia que virias.

Aliócha aproximou-se, inclinou-se até o chão e pôs-se a chorar. Sentia um aperto no coração, a alma fremente, um desejo irreprimível de soluçar.

— Terás tempo de chorar — sorriu o stáriets, abençoando-o. — Vês? Converso, tranquilamente sentado, talvez viva ainda vinte anos, como me desejou ontem aquela boa mulher de Vichegórie, com sua filhinha Lisavieta. Senhor, lembra-te delas! (e benzeu-se) Porfíri, levaste seu donativo aonde eu disse?

Referia-se aos sessenta copeques dados com alegria por aquela mulher, para remetê-los “a uma mais pobre do que ela”. Tais donativos são uma penitência que a pessoa se impõe voluntariamente e devem provir do trabalho pessoal do doador. O stáriets tinha mandado Porfíri à casa de uma pobre viúva, reduzida à mendicidade com seus filhos, após um incêndio. O noviço respondeu imediatamente que fizera o necessário e entregara aquele donativo, de acordo com a ordem recebida, “da parte de uma benfeitora desconhecida”.

— Levanta-te, meu caro — prosseguiu o stáriets —, para que eu te veja. Estiveste em casa dos teus e viste teu irmão?

Pareceu estranho a Aliócha que ele o interrogasse expressamente a respeito de um de seus irmãos, mas qual? Era, então, por causa desse irmão, talvez, que o enviara à cidade ontem e hoje.

— Vi um deles — respondeu.

— Quero falar do mais velho, diante do qual me prosternei.

— Vi-o ontem, mas foi-me impossível encontrá-lo hoje — disse Aliócha.

— Apressa-te em encontrá-lo, volta amanhã e deixa tudo o mais. Pode ser que tenhas tempo de evitar uma tremenda desgraça. Ontem, inclinei-me diante do profundo sofrimento futuro dele.

Calou-se, de repente, com ar pensativo. Aquelas palavras eram estranhas. O padre Ióssif, testemunha daquela cena na véspera, trocou um olhar com o padre Paísi. Aliócha não se conteve mais.

— Meu pai e meu mestre — disse ele, presa de grande agitação —, vossas palavras não são claras. Que sofrimento o espera?

— Não sejas curioso. Ontem, tive uma impressão terrível: pareceu-me ler todo o seu destino. Tinha um olhar... que me fez fremir ao pensar na sorte que aquele homem preparava para si mesmo. Uma vez ou duas em minha vida, vi em alguns tal expressão... parecendo revelar seu destino, e ele se cumpriu, ai! Enviei-te para seu lado, Alieksiêi, com a ideia de que tua presença fraternal o aliviaria. Mas tudo vem do Senhor, e nossos destinos dependem dele. “Em verdade, em verdade vos digo que, se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica infecundo; mas, se morrer, produz muito fruto.”[ 106 ] Lembra-te disso. Quanto a ti, Alióchka, abençoei-te muitas vezes em pensamento por causa de teu rosto, fica-o sabendo — declarou o stáriets com um doce sorriso. — Eis minha ideia a teu respeito: deixarás esses muros, viverás no mundo como um religioso. Terás numerosos adversários, mas teus próprios inimigos te amarão. A vida trar-te-á muitas desgraças, mas encontrarás nisso a felicidade, tu a abençoarás e obrigarás os outros a abençoá-la, o que é o essencial. Meus padres — e mostrou um sorriso amável ao dirigir-se a seus hóspedes —, jamais disse até agora, mesmo a esse rapaz, por que seu rosto me era tão caro à alma. Foi para mim como uma recordação e um presságio. Na aurora da vida, ainda menino, tinha um irmão mais velho que morreu à minha vista, com a idade de 17 anos apenas. Posteriormente, no curso dos anos, convenci-me pouco a pouco de que aquele irmão foi, no meu destino, como que uma indicação, um decreto da Providência, porque sem ele, bem decerto, não me teria feito religioso, nem entrado nessa estrada preciosa. Essa primeira manifestação produziu-se em minha infância, e, ao término de minha carreira, tenho à minha vista como que sua repetição. O milagre, meus padres, é que, sem se parecer muito com ele de rosto, pareceu-me Aliochka de tal modo semelhante a ele espiritualmente que, muitas vezes, o considerei como meu jovem irmão, vindo para encontrar-me no final de minha jornada, como lembrança do passado, tanto que eu mesmo me admirei dessa estranha ilusão. Ouves, Porfíri? — dirigia-se ao noviço ligado a seu serviço. — Vi-te muitas vezes pesaroso porque preferia Aliochka a ti. Ficas conhecendo agora o motivo, mas eu te amo, fica sabendo, e teu pesar muitas vezes me magoou. Quero falar-vos, meus caros hóspedes, de meu jovem irmão, porque nada se passou em minha vida de mais significativo, nem de mais comovedor. Tenho o coração enternecido e toda a minha existência me aparece nesse instante como se a revivesse...


*


Devo fazer notar que essa derradeira conversa do stáriets com seus visitantes no dia de sua morte foi conservada em parte por escrito. Foi Alieksiêi Fiódorovitch Karamázov quem a redigiu de memória algum tempo depois. É uma reprodução integral ou se valeu ele de trechos de outras conversas com seu mestre? Não saberia dizê-lo. Aliás, o discurso do stáriets nesse manuscrito é por assim dizer interrompido, como se ele fizesse um relato de sua vida a seus amigos, ao passo que, certamente, segundo o que se contou depois, foi uma conversa geral, na qual os hóspedes tomaram parte, a ela misturando as próprias recordações. Assim, também, não podia esse relato ser ininterrupto, porque o stáriets sufocava-se por vezes, perdia a voz, estendia-se no leito para repousar, mantendo-se acordado e os visitantes ficando em seus lugares. Por duas vezes o padre Paísi leu o Evangelho no intervalo. Coisa curiosa, ninguém esperava que ele morresse naquela noite. Com efeito, depois de ter dormido profundamente durante o dia, tinha como que haurido de si mesmo uma força nova, que o sustentou por toda aquela longa conversa com os amigos. Mas aquela animação incrível, devida à emoção, foi breve, porque ele se extinguiu bruscamente... Preferi, sem entrar nos detalhes, limitar-me à narrativa do stáriets de acordo com o manuscrito de Alieksiêi Fiódorovitch Karamázov. Será mais curto e menos fatigante, se bem que, repito-o, Aliócha tenha aproveitado muito de conversas anteriores.

 

II


Biografia do stáriets Zósima, morto com Deus, redigida segundo suas palavras por Alieksiêi Fiódorovitch Karamázov


a) O jovem irmão do stáriets Zósima.


Meus caros padres, nasci numa província longínqua do Norte, em V***, de um pai nobre, mas de condição modesta. Morreu quando tinha eu dois anos e não me lembro absolutamente dele. Deixou à minha mãe uma isbá, e um capital suficiente para viver com os filhos ao abrigo da necessidade. Éramos dois: meu irmão mais velho Márkel e eu, Zinóvi. Oito anos mais velho do que eu, era arrebatado, irascível, porém bom, sem malícia e estranhamente taciturno, sobretudo em casa, com nossa mãe, os criados e comigo. No ginásio, era um bom aluno, não se juntava com os colegas nem brigava com eles, pelo menos minha mãe o contava. Seis meses antes de seu fim, quando já tinha 17 anos, pôs-se a procurar um deportado, exilado de Moscou em nossa cidade, por causa de suas ideias liberais. Era um sábio e um filósofo conhecido na Universidade. Tomou amizade a Márkel, a quem recebia em casa. Durante todo o inverno, o jovem passou noites inteiras em casa dele, até o momento em que o deportado foi chamado a Petersburgo para ocupar um lugar oficial, que solicitara, pois tinha protetores. Chega a Quaresma e Márkel nega-se a jejuar, invectiva, zomba: “São absurdos, Deus não existe”, o que fazia estremecer nossa mãe, os criados e eu mesmo, porque, embora só tivesse nove anos, ficava cheio de terror ao ouvir tais palavras. Tínhamos quatro criados, todos servos, comprados de um proprietário conhecido nosso. Lembro-me de que minha mãe vendeu por sessenta rublos um dos quatro, a cozinheira Afímia, coxa e idosa, e contratou em seu lugar uma serva de condição livre. Na sexta semana da Quaresma, meu irmão sentiu-se subitamente pior; sempre doente, de constituição débil, predisposto à tuberculose, era de estatura média, magro e fraco, o rosto distinto. Resfriou-se e, em breve, o doutor disse baixinho à minha mãe que era tísica e galopante e que ele não passaria da primavera. Nossa mãe pôs-se a chorar, a rogar a meu irmão, com precaução (a fim de não espantá-lo), que se confessasse e comungasse, porque estava ainda de pé então. A essas palavras, zangou-se, deblaterou contra a Igreja, mas pôs-se, no entanto, a refletir; adivinhou que estava perigosamente doente e que, por essa razão, sua mãe mandava-o comungar enquanto tinha ele força para isso. Aliás, sabia, há muito tempo, que estava condenado; um ano antes, dissera-nos uma vez à mesa: “Não fui feito para viver neste mundo convosco, não durarei talvez um ano.” Foi como uma predição. Três dias se passaram, começou a Semana Santa. Meu irmão foi à igreja desde a terça-feira. “Faço isso pela senhora, mamãe, para lhe ser agradável e tranquilizá-la”, disse-lhe. Nossa mãe chorou de alegria e de pesar: “Seu fim está então próximo, se se opera nele tal mudança.” Mas, dentro em pouco, acalmou-se, de modo que se confessou e comungou em casa. O tempo tornara-se claro e sereno, o ar embalsamado; a Páscoa caía tarde naquele ano. Tossia ele a noite inteira, lembro-me, dormia mal, de manhã vestia-se, tentava sentar-se numa cadeira. Revejo-o sentado, doce e calmo, sorridente, doente, mas de rosto alegre e jovial. Mudara moralmente por completo. Era surpreendente. A velha criada entrava em seu quarto. “Deixa-me acender a lâmpada diante da imagem, meu bem.” — Outrora, opunha-se a isso, apagava mesmo a lâmpada. — “Acende, minha amiga, era eu um monstro para proibir-te disso antes. O que fazes é uma prece, bem como a alegria que experimento por isso. Portanto, rezamos a um só Deus.” Essas palavras pareceram-nos estranhas, minha mãe foi chorar em seu quarto, voltando depois para junto dele a enxugar os olhos. “Não chores, querida mamãe — dizia ele, por vezes —, viverei ainda muito tempo, divertir-me-ei com a senhora, a vida é tão alegre, tão divertida!” — “Ai, meu querido, onde está a alegria, quando tens febre a noite inteira e tosses como se teu peito fosse arrebentar?” — “Mamãe, não chores, a vida é um paraíso, onde todos estamos, mas não queremos sabê-lo, senão amanhã a Terra inteira tornar-se-ia um paraíso.” Suas palavras surpreendiam todo mundo por sua estranheza e por sua decisão, ficava-se comovido até as lágrimas. Conhecidos vinham à nossa casa: “Caros amigos — dizia ele —, que fiz eu para merecer o vosso amor, porque me amais tal como sou? Outrora ignorava isso e não o apreciava.” Aos criados que entravam, dizia a cada instante: “Meus queridos, por que me servis, serei eu digno de ser servido? Se Deus me concedesse a graça de deixar-me vivo, eu mesmo vos serviria, porque todos devem servir uns aos outros.” Nossa mãe, escutando-o, abanava a cabeça: “Meu querido, é a doença que te faz falar assim.” — “Mãe adorada, deve haver amos e servidores, mas quero servir os meus como eles me servem. Dir-te-ei ainda, mamãe, que cada um de nós é culpado diante de todos por tudo e eu mais do que os outros.” Nossa mãe nesse instante sorria através de suas lágrimas: “Como podes ser mais que todos culpado diante de todos? Há assassinos, bandidos, que pecados cometeste para te acusar mais que todos?” — “Querida mãe, felicidade minha (tinha dessas frases cariciosas, inesperadas), sabes que, na verdade, cada qual é culpado diante de todos por todos e por tudo. Não sei como te explicar isso, mas sinto que é assim e isso me atormenta. Como podíamos viver, irritar-nos, sem nada saber, então?” Cada dia despertava mais enternecido, mais jovial, fremente de amor. O doutor Eisenschmidt, um velho alemão, visitava-o: “Como é, doutor, viverei ainda mais um dia?”, brincava ele por vezes. — “Viverás mais que um dia, meses e anos!”, replicava o doutor. — “Que são meses e anos!?”, exclamava ele. — “Para contar os dias, basta um dia ao homem para conhecer toda a felicidade. Meus bem-amados, de que serve discutirmos, vangloriar-nos, guardar rancor um contra o outro? Vamos antes passear, recrear-nos no jardim, beijar-nos-emos, abençoaremos a vida.” — “Seu filho não está destinado a viver”, dizia o doutor à nossa mãe, quando esta o acompanhava até o patamar. — “A doença o faz perder a razão.” Seu quarto dava para o jardim, sombreado por velhas árvores, os rebentos haviam brotado, os pássaros primaveris tinham chegado, cantavam sob as janelas, sentia ele prazer em olhá-los, e eis que se pôs a pedir-lhes também perdão: “Pássaros do bom Deus, alegres pássaros, perdoai-me, porque pequei também contra vós.” Nenhum de nós pôde então compreendê-lo, e ele chorava de alegria: “Sim, a glória de Deus me cercava: os pássaros, as árvores, os prados, o céu; só eu vivia na vergonha, desonrando a Criação, cuja beleza e cuja glória não notava.” — “Tu te responsabilizas por muitos pecados”, chorava por vezes nossa mãe. — “Mamãe querida, é de alegria e não de pesar que choro. Tenho vontade de ser culpado diante deles, não posso explicar-te isso, porque não sei como amá-los. Se tenho pecado para com todos, todos me perdoarão, eis o paraíso. Não estou nele agora?” Disse ainda muitas coisas que esqueci. Lembro-me de que um dia entrei sozinho em seu quarto, não havia ninguém a seu lado. Era à noitinha, o sol poente iluminava o quarto com seus raios oblíquos. Fez-me sinal para que me aproximasse, pôs as mãos em meus ombros, fitou-me com ternura durante um minuto, sem dizer uma palavra. “Pois é, vai brincar agora, vive por mim!” Saí e fui brincar. Posteriormente, lembrei-me de muitas dessas palavras, chorando. Disse ainda muitas coisas espantosas, admiráveis, que não podíamos compreender então. Morreu três semanas após a Páscoa, em plena consciência e, se bem que não falasse mais, ficou o mesmo até o fim; a alegria brilhava em seus olhos, procurava-nos com o olhar, sorria para nós, chamava-nos. Mesmo na cidade falou-se muito de sua morte. Era eu bem jovem então, mas tudo isso deixou em meu espírito uma marca inapagável. Mais tarde, devia manifestar-se. Foi o que aconteceu.


b) A Sagrada Escritura na vida do stáriets Zósima.


Ficamos sós, minha mãe e eu. Boas amizades aconselharam-na em breve a que — uma vez que possuía meios — faria bem enviando-me a Petersburgo e que mantendo-me a seu lado entravaria talvez minha carreira. Aconselharam-na a pôr-me no Corpo de Cadetes, para entrar em seguida na Guarda Imperial. Minha mãe hesitou muito tempo em separar-se de seu derradeiro filho, mas decidiu-se no entanto, não sem muitas lágrimas, pensando em contribuir para minha felicidade. Conduziu-me a Petersburgo e colocou-me como lhe haviam dito. Jamais tornei a vê-la. Morreu, com efeito, ao fim de três anos, passados na tristeza e na ansiedade por causa de nós dois. Só tenho preciosas recordações do lar paterno, porque são para o homem as mais preciosas de todas, as recordações da primeira infância em casa dos pais; é quase sempre assim, contanto que o amor e a concórdia reinem, ainda que pouco, na família. E pode-se conservar uma recordação comovida da pior família, se se tem uma alma capaz de emoção. Entre essas recordações um lugar pertence à História sagrada, que me interessava muito, apesar de minha pouca idade. Tinha eu então um livro com magníficas gravuras intitulado Cento e quatro histórias santas tiradas do Antigo e do Novo Testamento onde aprendi a ler. Conservo-o ainda hoje como uma relíquia. Mas antes de saber ler, aos oito anos, experimentava certa impressão das coisas espirituais, lembro-me disso. Minha mãe levou-me à missa na segunda-feira da Semana Santa. Era um dia claro, torno a ver o incenso subindo lentamente para a abóbada; por uma janela estreita da cúpula, os raios de sol desciam até nós, as nuvens de incenso pareciam neles fundir-se. Olhei com enternecimento e, pela primeira vez, minha alma recebeu conscientemente a semente da Palavra Divina. Um adolescente avançou para o meio do templo com um grande livro, tão grande que me parecia que ele o carregava com dificuldade, depositou-o no atril, abriu-o, pôs-se a ler. Compreendi então que liam num templo consagrado a Deus. “Havia no país de Hus um homem justo e piedoso, que possuía grandes riquezas, não só em camelos, como em ovelhas e jumentas; seus filhos viviam em prazeres, ele os amava e rogava a Deus por eles, no receio de que, divertindo-se, pecassem. E eis que o diabo sobe até junto de Deus ao mesmo tempo que os filhos de Deus e diz ao Senhor que percorreu todo o país, abaixo e acima. “Viste meu servo Jó?”, pergunta-lhe Deus. E fez ao diabo o elogio de Seu nobre servidor. O diabo sorriu àquelas palavras. “Entrega-me e verás que Teu servidor murmurará contra Ti e amaldiçoará Teu nome.” Então Deus entregou ao diabo o justo a quem estimava. O diabo matou-lhe os filhos e os rebanhos, aniquilou suas riquezas com uma rapidez fulminante e Jó rasgou suas vestes, lançou-se de rosto ao chão, exclamou: “Saí nu do ventre de minha mãe, voltarei nu à terra. Deus me havia tudo dado; Deus tudo me retomou. Que Seu nome seja abençoado agora e para sempre!” Meus padres, desculpai minhas lágrimas, porque é toda a minha infância que surge diante de mim, parece-me que tenho oito anos e sinto-me como então admirado, perturbado, arrebatado. Os camelos falavam à minha imaginação, e Satanás, que fala daquela maneira a Deus, e Deus, que entrega Seu servidor à ruína, e este que, exclama: “Que Teu nome seja abençoado, apesar de Teu rigor!” Depois o canto suave e doce no templo. “Que minha prece seja ouvida”, de novo o incenso e a oração de joelhos! Desde então — e aconteceu ontem ainda —, não posso ler aquela tão santa história sem derramar lágrimas. Que grandeza, que mistério inconcebível! Ouvi mais tarde palavras de zombadores e detratores, blasfemadores, palavras soberbas. Como podia o Senhor entregar ao diabo para que com isso se divertisse um santo a quem Ele estimava, arrebatar-lhe os filhos, cobri-lo de úlceras a ponto de limpar Ele suas chagas purulentas com um caco de telha, e tudo isso para quê? Para se vangloriar diante de Satanás: “Eis o que pode suportar um santo por amor a Mim!” Mas o que faz a grandeza do drama é o mistério, é que aqui a aparência terrestre e a verdade eterna se confrontaram. A verdade terrestre vê cumprir-se a verdade eterna. Aqui o Criador, aprovando Sua obra, como nos primeiros dias da Criação, contempla Jó e se orgulha de novo de Sua criatura. E Jó, louvando o Senhor, serve não somente a Ele, mas a toda a Criação, de geração em geração, e aos séculos dos séculos, porque estava a isso predestinado. Senhor, que livro e que lições! Que força miraculosa dá ao homem a Escritura Sagrada! É como a representação do mundo, do homem e de seu caráter. Quantos mistérios resolvidos e revelados: Deus reexalta Jó, restitui-lhe sua riqueza, anos decorrem e tem ele outros filhos e os ama. “Como podia ele amar esses novos filhos, depois de ter perdido os primeiros? A recordação deles permite que ele seja perfeitamente feliz, como outrora, por mais queridos que sejam os novos?” Mas decerto; a dor antiga se transforma misteriosamente pouco a pouco numa doce alegria; à impetuosidade juvenil sucede a serenidade da velhice; abençoo cada dia o nascer do sol, meu coração canta-lhe um hino como outrora, mas prefiro seu poente de raios oblíquos, evocando doces e ternas recordações, queridas imagens da vida, longa vida abençoada e, dominando tudo, a verdade divina que acalma, reconcilia, absolve! Eis-me ao termo de minha existência, eu o sei, e sinto todos os dias minha vida terrestre ligar-se já à vida eterna, desconhecida, mas bem próxima e cujo pressentimento faz vibrar minha alma de entusiasmo, ilumina minha mente, enternece-me o coração... Amigos e mestres, tenho muitas vezes ouvido dizer, e agora mais que nunca, que os padres, sobretudo os do campo, queixam-se da insuficiência do que ganham e de sua mediocridade; afirmam mesmo — vi-o — que já não podem mais explicar a Escritura ao povo, em vista de seus fracos recursos, que se os luteranos chegarem e se puserem esses heréticos a desviar suas ovelhas, tanto pior, porque não ganham eles o bastante. Que Deus lhes assegure o pagamento tão precioso aos olhos deles (porque sua queixa é legítima), mas, na verdade, se alguém é responsável por esse estado de coisas, nós mesmos o somos pela metade! Porque admitamos que o tempo seja escasso, que o padre tenha razão, que seja ele sobrecarregado pelo trabalho e por seu ministério; encontrará ele sempre, nem que seja uma hora, por semana para se lembrar de Deus. Aliás, não está ele ocupado o ano inteiro. Reúna em sua casa uma vez por semana, à noite, as crianças, para começar. Seus pais saberão e virão em seguida. Inútil construir um local para isso; basta recebê-los na isbá; não temais que a sujem, é apenas por uma hora. Abre-se a Bíblia para fazer-se uma leitura, sem palavras sábias, sem soberba ou ostentação, mas com uma doce simplicidade, na alegria de ler para eles, de ser escutado e de ser por eles compreendido, detendo-se por vezes para explicar um termo ignorado pelas pessoas simples; não tenhais receio, eles vos compreenderão, um coração ortodoxo compreende tudo. Lede para eles a história de Abraão e de Sara, de Isaac e de Rebeca, como Jacó foi à casa de Labão e lutou em sonho com o Senhor, dizendo: “Este lugar é terrível”, e impressionareis o espírito piedoso do povo simples. Contai-lhes, sobretudo às crianças, como o jovem José, futuro intérprete de sonhos e grande profeta, foi vendido por seus irmãos, que disseram a seu pai que o filho tinha sido devorado por uma besta feroz, mostrando-lhe suas vestes ensanguentadas. Como, posteriormente, chegaram seus irmãos ao Egito à procura de trigo, e José, alto dignitário, que eles não reconheceram, perseguiu-os, acusou-os de roubo e reteve seu irmão Benjamim, se bem que os amasse. Porque se lembrava sempre de como seus irmãos o tinham vendido aos comerciantes, à beira de um poço, em alguma parte do deserto ardente, como chorava e como lhes suplicava, de mãos juntas, que não o vendessem como escravo em terra estrangeira; revendo-os após tantos anos, amou-os de novo ardentemente, mas fê-los sofrer e perseguiu-os, embora amando-os. Retira-se afinal, não podendo mais conter-se, lança-se sobre seu leito e desata a chorar; depois enxuga o rosto e volta radiante para declarar-lhes: “Eu sou José, vosso irmão!” E a alegria do velho Jacó, ao saber que seu filho bem-amado estava vivo! Fez a viagem ao Egito, abandonou sua pátria, morreu em terra estrangeira, legando aos séculos dos séculos uma grande palavra, guardada misteriosamente durante toda a sua vida em seu coração tímido, saber que de sua raça, da tribo de Judá, sairia a esperança do mundo, o Reconciliador e o Salvador! Padres e mestres, desculpai-me que eu, um menino, vos explique o que sabeis desde muito tempo e que poderíeis ensinar-me com bem mais arte. É o entusiasmo que me faz falar, perdoai minhas lágrimas, porque esse Livro me é querido; e, se o padre também chora, verá sua emoção partilhada por seus ouvintes. Basta uma minúscula semente; uma vez lançada na alma do povo simples, não perecerá e ali ficará até o fim, entre as trevas e a infecção do pecado, como um ponto luminoso e uma recordação sublime. Nada de longos comentários, de homilias, ele compreenderá tudo simplesmente. Duvidais disso? Lede-lhe a história tocante da bela Ester e da orgulhosa Vasti, ou a maravilhosa narrativa de Jonas no ventre da baleia. Não esqueçais tampouco as parábolas do Senhor, sobretudo no Evangelho segundo são Lucas (como sempre o fiz), em seguida, nos Atos dos Apóstolos, a conversão de Saulo (isto absolutamente!). Por fim, no Martirológio, bastaria a vida de santo Aleixo, homem de Deus, e da mártir sublime entre todas, Maria, a Egipcíaca. Essas narrativas singelas comoverão o coração do povo; e isso apenas uma hora por semana, malgrado vossos fracos recursos. O padre dar-se-á conta de que nosso povo misericordioso, reconhecido, lhe retribuirá seus benefícios ao cêntuplo; lembrando-se do zelo de seu pastor e de suas palavras comovidas, ajudá-lo-á no campo, na casa, testemunhar-lhe-á mais respeito que antes e então seu estipêndio aumentará. É uma coisa tão simples que, por vezes, tememos mesmo em falar dela, porque zombarão da gente, e no entanto, como é certa! Aquele que não crê em Deus, não crê em seu povo. Quem creu no povo de Deus verá Seu santuário mesmo que nele não tivesse crido até então. Somente o povo e sua força espiritual futura converterão nossos ateus desprendidos da terra natal. E que é a palavra de Cristo sem o exemplo? Sem a palavra de Deus, o povo perecerá, porque sua alma está ávida dessa palavra e de toda ideia nobre. Em minha juventude, vai fazer em breve quarenta anos, percorríamos a Rússia, o padre Anfim e eu, pedindo esmolas para nosso mosteiro; passamos uma vez a noite com pescadores, à margem dum grande rio navegável; um jovem camponês de belo rosto, parecendo ter uns 18 anos, veio sentar-se perto de nós; apressava-se em chegar no dia seguinte a seu posto para sirgar uma barca mercante. Seu olhar era doce e límpido. Fazia uma noite clara, calma e quente, uma noite de julho; uma bruma subia do rio e nos refrescava; de tempos em tempos, um peixe emergia, os pássaros haviam-se calado, tudo respira paz, oração. Éramos os únicos que não dormiam, aquele jovem e eu. Falamos da beleza do mundo e de seu mistério. Cada erva, cada escaravelho, uma formiga, uma abelha dourada, todos conheciam o caminho duma maneira admirável, por instinto, atestam o mistério divino, cumprem-no eles próprios continuadamente. Vi que o coração daquele moço se aquecia. Confiou-me que amava a floresta e os pássaros que a habitam; era passarinheiro, compreendia-lhes os cantos, sabia atrair todos eles. “Para mim, não existe nada de melhor que a vida na floresta — dizia ele —, embora tudo esteja bem.” — “É verdade — respondi-lhe —, tudo é bom e magnífico, porque tudo é verdade. Olha o cavalo, nobre animal, familiar ao homem, ou o boi, que o nutre e trabalha para ele, curvado, pensativo; considera a fisionomia deles: que mansidão, que apego ao dono, que muitas vezes lhes bate sem piedade, que mansidão, que confiança, que beleza! Chega a comover saber que nele não há pecado, porque tudo é perfeito, inocente, exceto o homem, e o Cristo está em primeiro lugar com os animais.” — “Será possível — perguntou o adolescente — que o Cristo esteja também com eles?” — “Como poderia ser de outro modo — repliquei —, pois que o Verbo é destinado a todos? Todas as criaturas, cada folha, aspiram, ao Verbo, cantam a glória de Deus, gemem inconscientemente o Cristo. É esse o mistério de sua existência sem pecado. Lá, na floresta, vaga um urso temível, ameaçador e feroz, sem que nisso haja culpa sua.” E contei-lhe como um grande santo que fazia penitência na floresta, onde tinha sua cela, recebeu um dia a visita de um urso. Apiedou-se do animal, abordou-o sem temor, deu-lhe um pedaço de pão. “Vá — disse-lhe —, que o Cristo esteja contigo!” E a fera retirou-se docilmente, sem lhe fazer mal. O rapaz ficou comovido ao saber que o eremita ficara indene e que Cristo também estava com o urso. “Que bom! Como todas as obras de Deus são boas e maravilhosas!” E mergulhou num doce devaneio. Vi que ele havia compreendido. Adormeceu a meu lado, com um sono leve, inocente. Que o Senhor abençoe a juventude! Rezei por ele antes de adormecer. Senhor, envia a paz e a luz aos Teus!


c) Recordações da mocidade do stáriets Zósima ainda no mundo. O duelo.


Passei quase oito anos em Petersburgo, no Corpo dos Cadetes. Essa educação nova sufocou muitas das impressões de minha infância, mas sem fazer que as esquecesse. Em troca, adquiri uma porção de hábitos e até mesmo de opiniões novas que fizeram de mim um indivíduo quase selvagem, cruel e tolo. Adquiri um verniz de polidez e prática do mundo ao mesmo tempo que do francês, mas todos considerávamos os soldados que nos serviam no Corpo como verdadeiros brutos. Eu talvez mais do que os outros, porque de todos os meus camaradas era o mais impressionável. Tornados oficiais, estávamos prontos a derramar nosso sangue para vingar a honra do regimento; quanto à verdadeira honra, nenhum de nós tinha dela noção dela, e se a tivesse aprendido, teria sido o primeiro a rir dela. A embriaguez, a devassidão, a impudência nos tornavam quase altivos. Não direi que fôssemos pervertidos; todos aqueles rapazes tinham boa natureza, mas portavam-se mal, eu sobretudo. Estava de posse de meu capital, de modo que vivia à minha fantasia, com todo o ardor da juventude, sem peias; navegava com todas as velas desdobradas. Mas eis uma coisa que causava admiração: lia por vezes, e até mesmo com grande prazer; não abri quase nunca a Bíblia naquela época, porém ela não me largava; andava por toda parte comigo, conservava esse livro, sem dar-me conta disso, “cada dia e cada hora, cada mês e cada ano”. Depois de quatro anos de serviço, encontrei-me por fim na cidade de K***, onde nosso regimento tinha guarnição. A sociedade ali era variada, divertida, acolhedora e rica; fui bem recebido em toda parte, sendo como era alegre de natureza; além do mais, passava por ter fortuna, o que não prejudica nunca na sociedade mundana. Sobreveio uma circunstância que foi o ponto de partida de tudo o mais. Liguei-me a uma moça encantadora, inteligente e distinta, de caráter nobre, de família respeitável. Seus pais, ricos e influentes, davam-me boa acolhida. Pareceu-me que aquela moça tinha inclinação por mim; meu coração inflamou-se com essa ideia. Compreendi mais tarde que, provavelmente, não a amava com tanta paixão, mas que a elevação de seu caráter inspirava-me respeito, o que era inevitável. No entanto, o egoísmo impediu-me então de pedir-lhe a mão; parecia-me demasiado duro renunciar às seduções da devassidão, à minha independência de celibatário jovem e rico. Fiz, no entanto, alusões, mas adiei para mais tarde qualquer passo decisivo. Fui então enviado em comando de serviço para outro distrito; de volta, após dois meses de ausência, soube que a moça se casara com um rico proprietário dos arredores, mais velho do que eu, porém, jovem ainda, com relações na melhor sociedade, coisa de que eu não gozava, homem bastante amável e instruído, quando não era eu nada disso absolutamente. Esse desenlace inesperado consternou-me a ponto de perturbar-me o espírito, tanto mais que, como o soube então, aquele jovem proprietário era noivo dela fazia muito tempo. Havia-o encontrado muitas vezes em casa dela, sem nada notar, cego que estava por minha fatuidade. Era isso, sobretudo, que me vexava: como quase toda gente estava ao corrente, ao passo que eu de nada sabia? E experimentei de súbito um ressentimento intolerável. Rubro de cólera, lembrei-me de quantas vezes lhe havia quase declarado meu amor e, como não me havia ela nem detido, nem prevenido, concluí daí que ela havia zombado de mim. Mais tarde, evidentemente, dei-me conta de meu erro; lembro-me de que ela punha fim, gracejando, a tais conversas e falava de outra coisa, mas, no momento, estava incapaz de raciocinar e ardia por vingar-me. Lembro-me com surpresa de que minha animosidade e minha cólera causavam repugnância a mim mesmo, porque, com meu caráter leviano, era incapaz de permanecer muito tempo zangado com alguém; de modo que me excitava artificialmente até a extravagância. Esperei a ocasião e, numa reunião mundana bastante numerosa, consegui ofender meu “rival”, por um motivo totalmente estranho, zombando de sua opinião a propósito de um acontecimento então importante — estava-se em 1826 — e, escarnecendo dele com espírito, pelo que disseram. Em seguida, provoquei uma explicação de sua parte e mostrei-me tão grosseiro nessa ocasião que ele aceitou a luva, malgrado a enorme diferença que nos separava, porque era eu mais jovem que ele, insignificante e de posição inferior. Mais tarde, soube de fonte certa que aceitara ele minha provocação também por ciúme de mim; já antes se mostrara um pouco ciumento de mim em relação à sua mulher, então sua noiva; disse a si mesmo que, se ela soubesse agora que eu o insultara, sem que ele me houvesse provocado para um duelo, desprezá-lo-ia involuntariamente e seu amor ficaria abalado. Encontrei logo como testemunha um camarada, tenente de nosso regimento. Se bem que os duelos fossem então rigorosamente reprimidos, eram moda entre os militares, de tal modo se desenvolvem e enraízam preconceitos absurdos. Junho chegava ao fim; nosso encontro estava marcado para o dia seguinte de manhã, às sete horas, fora da cidade, e eis que me aconteceu algo de verdadeiramente fatal. À noite, voltando para casa de muito mau-humor, zangara-me com meu ordenança, Afanássi, e havia-lhe batido violentamente no rosto, a ponto de ensanguentá-lo. Estava havia pouco tempo a meu serviço e eu já lhe havia batido, mas jamais com tal selvageria. Acreditá-lo-íeis, meus queridos, quarenta anos se passaram desde então e lembro-me daquela cena com vergonha e dor. Deitei-me e, quando despertei, ao fim de três horas, era já dia. Levantei-me, não tendo mais vontade de dormir, fui à janela, que dava para um jardim; o sol se levantara, fazia um tempo magnífico, os pássaros gorjeavam. Que será isso?, pensei. Experimento uma espécie de sentimento de infâmia e de baixeza. Não será pelo fato de que vou derramar sangue? Não, pensei, não é isso. Ou porque tenho medo da morte, medo de ser morto? Não, absolutamente, longe disso... E adivinhei, de repente, que eram os golpes dados em Afanássi na noite anterior. Revi a cena, como se ela se repetisse; ele, de pé diante de mim que lhe bato no rosto com toda a força, suas mãos na costura das calças, a cabeça ereta, os olhos escancarados, estremecendo a cada pancada, não ousando mesmo levantar os braços para se resguardar, e ali estava um homem reduzido àquele estado, batido por outro homem! Que crime! Foi como uma agulha que me transpassou a alma. Estava como que fora de mim, e o sol brilhava, as folhas agradavam à vista, os pássaros louvavam a Deus. Cobri o rosto com as mãos, estendi-me no leito e desatei a chorar. Lembrei-me então de meu irmão Márkel e de suas derradeiras palavras aos criados: “Meus bem-amados, por que me servis? Por que me amais, serei digno de ser servido?” “Sim, serei digno?”, perguntei a mim mesmo, de repente. Com efeito, a que título merecia eu ser servido por outro homem, feito como eu à imagem de Deus? Essa questão atravessou-me assim o espírito pela primeira vez. “Mãe querida, na verdade, cada qual é culpado diante de todos e por todos, somente os homens ignoram isso; se o soubessem, seria logo o paraíso!” “Senhor, seria isso verdade — pensei, orando —, sou talvez o mais culpado de todos e o pior que existe?” E, de súbito, o que eu ia fazer apareceu-me em plena luz, em todo o seu horror: ia matar um homem de bem, nobre, inteligente, sem nenhuma ofensa de sua parte, e tornar assim sua mulher para sempre infeliz, torturá-la, fazê-la morrer. Estava deitado de bruços, com a face contra o travesseiro, tendo perdido a noção do tempo. De repente, entrou meu camarada, o tenente, que vinha procurar-me com pistolas: “Eis o que está bem — disse ele —, já te levantaste, está na hora, vamos.” Minhas ideias desconcertaram-se, perdi a cabeça; contudo saímos para subir ao carro. “Espera-me — disse-lhe —, volto imediatamente, esqueci meu porta-moedas.” Voltei correndo a casa e fui ao quartinho de Afanássi. “Afanássi, ontem bati-te duas vezes no rosto, perdoa-me!” Ele estremeceu como se tivesse medo; vi que não era bastante e prosternei-me a seus pés, pedindo-lhe perdão. Ficou estupidificado. “Vossa nobreza, bárin, como... mereço eu?...” Pôs-se a chorar como eu havia pouco, com o rosto oculto nas mãos, e voltou-se para a janela, abalado pelos soluços; corri a juntar-me a meu camarada e partimos: “Viste o vencedor — gritei-lhe —, ei-lo diante de ti!” Estava repleto de alegria, rindo todo o tempo, tagarelava sem cessar, a respeito de não sei mais o quê. O tenente olhava-me: “Pois bem, camarada, és um bravo; vejo que sustentarás a honra do uniforme.” Chegamos ao terreno, onde éramos esperados. Colocaram-nos a 12 passos um do outro, meu adversário devia atirar em primeiro lugar; mantinha-me diante dele, alegremente, sem pestanejar, examinando-o com afeto. Ele atirou, fui somente arranhado na face e na orelha. “Louvado seja Deus! — digo. — O senhor não matou um homem!” Quanto a mim, dei meia-volta e atirei minha arma para o ar, na direção da floresta: “Eis teu lugar!”, exclamei. Depois, encarando meu adversário: “Senhor, perdoe a um estúpido rapaz tê-lo ofendido e obrigado a atirar contra ele. O senhor vale dez vezes mais do que eu, é superior a mim. Transmita minhas palavras à pessoa a quem o senhor respeita mais no mundo.” Apenas acabara de falar, todos três exclamaram: “Permita — disse meu adversário, encolerizado —, se o senhor não queria bater-se, por que nos incomodou?” — “Ainda ontem era eu estúpido. Hoje, tornei-me mais avisado” — respondi-lhe, alegremente. — “Acredito-o a respeito de ontem, mas quanto a hoje, é difícil dar-lhe razão.” — “Bravo! — disse eu, batendo palmas. — Estou de acordo com o senhor a respeito, mereci-o!” — “Senhor, quer ou não quer atirar?” — “Não atirarei, atire mais uma vez se quiser, mas faria melhor abstendo-se.” As testemunhas gritam, sobretudo a minha: “Pode-se desonrar o regimento pedindo perdão no terreno; se o tivesse pelo menos sabido!” Declarei então a todos, num tom sério: “Senhores, é tão espantoso assim, em nossa época, encontrar um homem que se arrepende de sua tolice e que reconhece publicamente suas faltas?” — “Sim, mas não no terreno” — replica minha testemunha. — “Eis o que é espantoso: teria eu devido pedir desculpas desde nossa chegada aqui, antes que o cavalheiro atirasse, e não induzi-lo em pecado mortal, mas nossos usos são tão absurdos que era quase impossível ter agido assim, porque minhas palavras não têm valor, a seus olhos, senão pronunciadas depois de ter sido alvo de seu tiro a 12 passos; antes, ter-me-ia ele tomado por um covarde, indigno de ser escutado. Senhores — exclamei, com todo o coração —, olhai as obras de Deus: o céu está claro, o ar puro, a erva tenra, os pássaros cantam, a natureza é magnífica e inocente; somente, nós, ímpios e estúpidos, não compreendemos que a vida é um paraíso, porque basta que queiramos compreender isso para vê-la aparecer em toda a sua beleza e então nos abraçaríamos, chorando...” Quis continuar, mas não pude, faltou-me a respiração, senti uma felicidade tal que depois jamais experimentei. “Eis sábias e piedosas palavras — disse meu adversário. — Em todo o caso, o senhor é original.” — “O senhor ri — disse-lhe eu, sorrindo —, porém mais tarde me louvará.” — “Agora também estou pronto a louvá-lo, estendendo-lhe a mão, porque o senhor me parece verdadeiramente sincero.” — “Não, agora não, mais tarde, quando eu me tiver tornado melhor e merecido seu respeito, o senhor a estenderá a mim, fará bem então.” Voltamos para casa; minha testemunha resmungava todo o tempo e eu o beijava. Meus camaradas, postos ao corrente, reuniram-se naquele mesmo dia para julgar-me. “Ele desonrou o uniforme, deve pedir baixa.” Encontrei defensores: “No entanto, recebeu ele um tiro.” — “Sim, mas teve medo dos outros e pediu perdão no terreno.” — “Se tivesse tido medo — replicavam meus defensores —, teria primeiro atirado antes de pedir perdão, ao passo que lançou a pistola ainda carregada na floresta; não, passou-se algo de diferente, de original.” Eu escutava, divertindo-me em observá-los: “Caros amigos e camaradas, não se atormentem por causa de minha baixa. Já está dada. Enviei o pedido essa manhã e, assim que ela for aceita, entrarei para um mosteiro. Eis por que peço baixa.” A essas palavras, todos explodiram em risadas: “Deverias ter começado por advertir-nos. Agora, tudo se explica, não se pode julgar um monge.” Não paravam de rir, mas sem zombar, com uma doce alegria. Todos gostavam de mim, até mesmo meus mais fogosos acusadores. Em seguida, durante o último mês, até que fosse eu reformado, era como se me carregassem em triunfo: “Ah, o monge!”, diziam. Cada qual tinha por mim uma palavra gentil, puseram-se a dissuadir-me, a lamentar-me mesmo: “Que vais fazer?” — “Não, é um bravo, recebeu um tiro e podia ele próprio atirar, mas tivera um sonho na véspera que o impelia a fazer-se monge, eis a razão.” Foi quase a mesma coisa na sociedade local. Até então, não atraía eu a atenção; recebiam-me cordialmente, e nada mais; agora, cada qual que disputasse conhecer-me e convidar-me para sua casa: riam de mim, ao mesmo tempo que me estimavam. Se bem que se falasse abertamente de nosso duelo, o caso não teve consequências, porque meu adversário era parente próximo de nosso general e, como não houvera efusão de sangue, e eu pedira baixa, a coisa virou brincadeira. Pus-me então a falar bem alto e sem temor, malgrado as zombarias, porque não eram elas propriamente malévolas. Essas conversas realizavam-se sobretudo à noite, em companhia de senhoras; as mulheres gostavam ainda mais de escutar-me e obrigavam os homens a fazer o mesmo. “Como pode dar-se que seja eu culpada por todos?” — e cada qual ria-me na cara. — “Vejamos, posso ser culpada por você, por exemplo?” — “Donde o saberia — respondia-lhes eu —, quando o mundo inteiro está há muito tempo engajado numa outra via, quando tomamos a mentira pela verdade e exigimos de outrem a mesma mentira? Uma vez, em minha vida, resolvi agir sinceramente, e todos vós acreditastes que eu estava louco. Embora, gostando de mim, ríeis de mim. — “Como não gostar de alguém como o senhor?” — disse-me a dona da casa, rindo bem alto. Havia muita gente em casa dela. De repente, vejo levantar-se a jovem que fora causa de meu duelo e a quem quisera fazer minha noiva pouco tempo antes; não havia notado sua chegada. Dirigiu-se para mim e estendeu-me a mão: “Permita-me — disse — que lhe declare que, longe de rir do senhor, agradeço-lhe com emoção e respeito-o por sua maneira de agir.” Seu futuro marido aproximou-se, tornei-me o centro da reunião, quase me beijavam. Sentia-me contente assim; minha atenção foi atraída por um senhor de certa idade, que me tinha igualmente abordado; até então conhecia-o somente de nome, sem ter jamais trocado uma palavra com ele.


d) O misterioso visitante.


Era um funcionário que ocupava havia muito tempo um lugar de destaque em nossa cidade. Homem respeitado por todos, rico, reputado por sua beneficência, doara importante soma ao hospício e ao orfanato e praticara muito bem em segredo, sem o revelar, o que só se veio a saber após sua morte. De cerca de cinquenta anos, tinha o ar quase severo, falava pouco; estava casado havia dez anos com uma mulher ainda jovem, de quem tinha três filhos em tenra idade. No dia seguinte à noite, estava eu em casa, quando a porta se abriu e entrou aquele senhor.

É preciso notar que eu não morava mais na mesma casa; assim que dei baixa, instalara-me em casa de uma senhora idosa, viúva dum funcionário, cuja criada me servia, porque, no dia mesmo do meu duelo, mandara embora Afanássi para a companhia militar, corando ao olhá-lo de frente depois do que se passara, de tal modo um leigo não preparado é inclinado a ter vergonha da ação mais justa.

— Há vários dias que o escuto com grande curiosidade — disse-me o visitante, ao entrar. — Desejei por fim conhecê-lo para me entreter com o senhor ainda mais pormenorizadamente. Poderia o senhor prestar-me esse grande serviço?

— De muito boa vontade, e olharei isso com uma honra muito particular — respondi-lhe. Estava quase amedrontado, de tal maneira me impressionara ele desde a primeira vez. Porque, muito embora me escutassem com curiosidade, ninguém me havia ainda abordado com ar tão sério e severo. Além do mais, viera procurar-me em minha casa. Sentou-se.

— Noto no senhor — prosseguiu ele — uma grande força de caráter, porque não temeu servir à verdade num caso em que arriscava, por sua franqueza, atrair para si o desprezo geral.

— Os seus elogios talvez sejam bastante exagerados — disse-lhe eu.

— Absolutamente. Esteja certo de que tal ato é bem mais difícil de praticar do que o senhor pensa. Eis somente o que me impressionou, e por isso vim vê-lo. Se minha curiosidade talvez indiscreta não o chocar, descreva-me suas sensações no momento em que se decidiu a pedir perdão, por ocasião do duelo, admitindo-se que o senhor se lembre delas. Não atribua à frivolidade minha pergunta; pelo contrário, ao fazer-lhe, tenho um fim secreto que lhe explicarei provavelmente mais tarde, se aprouver a Deus que ainda nos encontremos.

Enquanto ele falava, eu o fitava e experimentei de repente por ele uma confiança completa, ao mesmo tempo que viva curiosidade, porque sentia que sua alma guardava um segredo.

— Deseja conhecer minhas sensações no momento em que pedia perdão a meu adversário? — respondi-lhe. — Mas vale mais a pena contar-lhe em primeiro lugar os fatos ainda ignorados dos outros. — E narrei-lhe toda a cena com Afanássi e como me havia prosternado diante dele. — O senhor mesmo pode ver depois disso — concluí eu — que, durante o duelo, já me sentia mais à vontade, porque tinha começado ainda em casa e, uma vez entrado nessa via, continuei não somente sem esforço, mas com alegria.

Ele me escutava com atenção e simpatia.

— Tudo isso é bastante curioso. Voltarei a vê-lo.

A partir de então, visitou-me quase todas as noites. E teríamos ficado grandes amigos, se me tivesse falado de si próprio. Mas quase não falava, limitando-se a interrogar-me a respeito de mim mesmo. No entanto, tomei-lhe amizade e confiava-lhe todos os meus sentimentos, pensando: “Não tenho necessidade de seus segredos para saber que é um justo... Além do mais, um homem tão sério e bem mais idoso que eu que me vem procurar e faz caso dum rapaz.” Soube dele muitas coisas úteis, porque era homem de alta inteligência. “Penso também há muito tempo que a vida é um paraíso”, e acrescentou: “Só penso nisso.” Olhava-me sorrindo. “Estou ainda mais convencido disso que o senhor mesmo, mais tarde saberá por quê.” Eu o escutava, dizendo a mim mesmo: “Tem decerto uma revelação a fazer-me.” “O paraíso — dizia ele — está oculto no íntimo de cada um de nós; nesse momento eu o oculto em mim e, se quiser, realizar-se-á amanhã verdadeiramente para toda a minha vida.” Falava com enternecimento, olhando-me com ar misterioso, como se me interrogasse. “Quanto à culpabilidade de cada um por todos e por tudo, aos seus pecados, suas considerações a esse respeito são perfeitamente justas e é espantoso que tenha podido o senhor abraçar essa ideia com tal amplitude. Quando os homens a compreenderem será certamente para eles o advento do reino dos céus, não em sonho, mas na realidade.” — “Mas quando acontecerá isso!? — exclamei, doloridamente. — Talvez não seja senão um sonho.” — “Como o senhor mesmo não crê no que prega?! Saiba que esse sonho, como diz o senhor, realizar-se-á certamente, mas não agora, porque tudo é regido por leis. É um fenômeno moral, psicológico. Para renovar o mundo, é preciso que os próprios homens mudem de caminho. Enquanto cada qual não for verdadeiramente o irmão de seu próximo, não haverá fraternidade. Jamais os homens saberão, em nome da ciência ou do interesse, repartir pacificamente entre si a propriedade e os direitos. Ninguém terá bastante, e todos murmurarão, terão inveja uns dos outros, exterminar-se-ão mutuamente. Pergunta o senhor quando isso se realizará? Isso virá, mas somente quando tiver terminado o período de isolamento humano.” — “Que isolamento?” — perguntei. — “Reina ele em toda parte na hora atual, mas não está terminado e seu termo ainda não chegou. Porque, no presente, cada qual aspira a separar sua personalidade dos outros, quer gozar ele próprio a plenitude da vida; entretanto, todos esses esforços, longe de atingir o alvo, só resultam num suicídio total, porque, em lugar de afirmar plenamente sua personalidade, caem numa solidão completa. Com efeito, neste século, todos se fracionaram em unidades, cada qual se isola em seu buraco, separa-se dos outros, oculta-se, ele e seus bens, afasta-se de seus semelhantes e os afasta de si. Amontoa riqueza sozinho, felicita-se por seu poder e por sua opulência; ignora, o insensato, que, quanto mais amontoa, mais se enterra numa impotência fatal. Porque está habituado a só contar consigo mesmo e destacou-se da coletividade, acostumou-se a não crer na entreajuda, no próximo, na humanidade e treme somente à ideia de perder a fortuna e os direitos que ela lhe confere. Por toda parte, em nossos dias, o espírito humano começa ridiculamente a perder de vista que a verdadeira garantia do indivíduo consiste não no esforço pessoal isolado, mas na solidariedade. Mas esse isolamento terrível terá certamente fim e todos compreenderão, ao mesmo tempo, quanto a separação mútua era contrária à natureza. Tal será a tendência da época, e causará espanto o ter-se demorado tanto tempo nas trevas, sem ver a luz. Então aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem... Mas, até então, é preciso guardar o estandarte e — ainda que sozinho a agir — o homem deve mostrar o exemplo e sair do isolamento para se reaproximar dos irmãos, mesmo passando por maluco. Isso a fim de impedir que uma grande ideia pereça.”

Esses temas apaixonantes enchiam nossos serões. Abandonei mesmo a sociedade e minhas visitas tornaram-se mais raras; além disso, comecei a passar de moda. Não digo isso para queixar-me, porque continuavam a estimar-me e fazer-me boa cara, mas é preciso convir que a moda tem grande império no mundo. Acabei ficando entusiasmado por meu misterioso visitante, porque sua inteligência me arrebatava; além disso, tinha a intuição de que nutria ele um projeto e se preparava para uma ação talvez heroica. Sem dúvida mostrava-se grato pelo fato de não procurar eu conhecer seu segredo e de não fazer-lhe nenhuma alusão. Notei por fim que começava ele a ser atormentado pelo desejo de fazer-me uma confidência. Pelo menos, tornou-se isso evidente ao fim de um mês mais ou menos. “Sabe — perguntou-me uma vez — que se interessam muito por nós na cidade e que minhas frequentes visitas causam espanto? Pois seja, em breve tudo se explicará.” Por vezes era presa, de súbito, de uma agitação extraordinária; quase sempre então se levantava e ia-se embora. Acontecia-lhe fitar-me muito tempo com um olhar penetrante. Pensava eu: “Ele vai falar”, mas parava e discorria a respeito de um assunto vulgar. Começou a queixar-se de dores de cabeça. Um dia em que havia conversado muito tempo e apaixonadamente, vi-o de repente empalidecer, seu rosto contraiu-se, fitava-me com ar esgazeado.

— Que tem — perguntei —, sente-se mal?

— Eu... saiba... eu... cometi um assassinato.

Sorria ao falar, branco como linho. “Por que sorri ele?” Esse pensamento atravessou-me a mente antes que tivesse eu coordenado minhas ideias. Eu empalideci.

— Que está dizendo!? — exclamei.

— Veja — respondeu-me com o mesmo sorriso triste —, a primeira palavra custou-me. Agora que comecei, continuarei.

Não lhe dei crédito imediatamente, mas somente ao fim de três dias, quando me contou todos os detalhes. Eu acreditava que ele estivesse louco, no entanto acabei por convencer-me de que dizia a verdade, para doloroso espanto meu. Assassinara, 14 anos antes, uma jovem senhora rica e encantadora, viúva de um proprietário rural, que possuía em nossa cidade uma casa para suas estadas aqui. Sentiu por ela viva paixão, fez-lhe uma declaração e quis decidi-la a tornar-se sua esposa. Ela, porém, já havia concedido seu coração a outro, oficial distinto, então em campanha, cujo regresso ela aguardava. Recusou-lhe o pedido de casamento e rogou-lhe que cessasse suas visitas. Recusado e conhecendo a disposição da casa, nela se introduziu uma noite pelo jardim e pelo telhado, com uma audácia extraordinária, arriscando-se a ser descoberto. Mas, como acontece frequentemente, os crimes audaciosos são muitas vezes mais bem-sucedidos que os outros. Tendo entrado no celeiro por uma trapeira, desceu para os quartos por uma pequena escada, sabendo que os criados não fechavam sempre a chave a porta de comunicação. Contava com a negligência deles ainda dessa vez e não se enganava. No escuro, dirigiu-se para o quarto de dormir, onde ardia uma lâmpada de cabeceira. Como de propósito, as duas criadas de quarto tinham saído às ocultas, convidadas a uma cena festiva na vizinhança. Os outros criados dormiam no rés do chão. Vendo-a adormecida, sua paixão despertou, depois um furor vingativo e ciumento apoderou-se dele e, não mais podendo dominar-se, mergulhou-lhe uma faca no coração, sem que ela lançasse um grito. Com uma astúcia infernal tratou de voltar as suspeitas contra os criados; deixou de lado o porta-moedas dela, mas abriu a cômoda com as chaves encontradas debaixo do travesseiro e subtraiu, como um criado ignorante, o dinheiro e as joias de acordo com o tamanho, deixando de lado as mais preciosas, bem como os objetos de valor. Apropriou-se também de algumas lembranças de que voltarei a falar. Realizado o crime, voltou pelo mesmo caminho. Ninguém, nem no dia seguinte, quando foi dado o alarme, nem mais tarde, teve a ideia de suspeitar do verdadeiro culpado. Ignorava-se seu amor pela vítima, porque fora ele sempre taciturno, fechado e não possuía amigos. Passava simplesmente por um conhecido da viúva, a quem não via, aliás, desde duas semanas. Suspeitou-se logo de Piotr, criado-servo da vítima e, imediatamente, todas as circunstâncias contribuíram para confirmar essa suspeita, porque sabia ele que sua senhora estava decidida a fazê-lo arrolar entre os recrutas que devia fornecer, visto como era só e de má conduta. Estando bêbedo, ameaçara-a de morte no botequim. Fugira dois dias antes do assassinato e no dia seguinte encontraram-no totalmente embriagado, caído na estrada, nos arredores da cidade, com uma faca no bolso e a mão direita ensanguentada. Sustentou ele que o sangue era de seu nariz, mas não lhe deram crédito. As criadas confessaram que se haviam ausentado e tinham deixado a porta de entrada aberta até a volta. Houve outros indícios análogos, que provocaram a detenção desse criado inocente. Instauraram o processo, mas, ao fim duma semana, contraiu ele febre maligna e morreu no hospital, inconsciente. O caso foi arquivado, submeteram-se à vontade de Deus e todos, juízes, autoridades, público, ficaram convencidos de que aquele criado era o assassino. Começou então o castigo. Aquele visitante misterioso, que se tornara meu amigo, confiou-me que, a princípio, não tinha sentido nenhum remorso. Lamentava somente ter matado a mulher amada e, suprimindo-a, suprimira seu amor, quando o fogo da paixão lhe queimava as veias. Mas então quase esquecia o sangue inocente derramado, o assassinato de um ser humano. A ideia de que sua vítima teria podido tornar-se a esposa dum outro parecia-lhe impossível, de modo que ficou muito tempo persuadido de que não podia ter agido de outro modo. A detenção do criado perturbou-o, mas sua doença e morte tranquilizaram-no, porque aquele indivíduo sucumbira certamente — pensava ele — não pelo medo causado por sua detenção, mas pelo resfriamento contraído por ter jazido uma noite inteira sobre a terra úmida. Os objetos e o dinheiro roubados não o inquietavam, porque roubara, não por cupidez, mas para desviar as suspeitas. A soma era insignificante e, em breve, doou-a, aumentando-a consideravelmente, a um hospício que se fundava em nossa cidade. Fê-lo de propósito, para apaziguar sua consciência, e, coisa curiosa, conseguiu isso por um tempo bastante longo, como me contou mais tarde. Redobrou de atividade em seu serviço, fez-se confiar uma missão árdua que lhe tomou dois anos, e esqueceu quase o que se passara, graças à firmeza de seu caráter; quando se lembrava do crime, esforçava-se por não pensar nele. Consagrou-se igualmente à beneficência, ocupou-se com boas obras em nossa cidade, assinalou-se nas capitais, foi eleito, em Petersburgo e Moscou, membro de sociedades filantrópicas. Por fim, foi invadido por um devaneio doloroso que ultrapassava suas forças. Apaixonou-se então por uma moça encantadora, com quem logo se casou, na esperança de que o casamento dissiparia sua angústia solitária e, se cumprisse escrupulosamente seus deveres para com a mulher e os filhos, baniria as recordações de outrora. Mas aconteceu precisamente o contrário do que esperava. Desde o primeiro mês de seu casamento, uma ideia o atormentava sem cessar: “Minha mulher me ama, mas que aconteceria se ela soubesse?” Quando ela ficou grávida de seu primeiro filho e comunicou-lhe, ele perturbou-se: “Dou a vida e eu mesmo a tirei.” Os filhos vieram ao mundo: “Como ousarei amá-los, instruí-los, educá-los, como lhes falarei da virtude? Derramei sangue.” Teve belos filhos, vinha-lhe a vontade de acariciá-los: “Não posso fitar-lhes os rostos inocentes; não sou digno.” Por fim, teve a visão ameaçadora e lúgubre do sangue de sua vítima, que gritava vingança da jovem vida que ele destruíra. Sonhos terríveis surgiram-lhe. Tendo o coração firme, suportou por muito tempo esse suplício: “Expio meu crime sofrendo secretamente.” Mas era uma esperança vã; seu sofrimento só fazia agravar-se com o tempo. O mundo respeitava-o por sua atividade beneficente, se bem que seu caráter sombrio e severo inspirasse temor; mas, quanto mais crescia esse respeito, mais se lhe tornava intolerável. Confessou-me que pensara suicidar-se. Mas outro sonho pôs-se a persegui-lo, um sonho julgado a princípio impossível e insensato, que acabou, no entanto, por incorporar-se a seu coração a ponto de não poder arrancá-lo dali. Pensava em fazer a confissão pública de seu crime e passou três anos presa dessa obsessão, que se apresentava sob diversas formas. Por fim, creu, de todo o coração, que depois de ter confessado seu crime aliviaria sua consciência e recuperaria o repouso para sempre. Malgrado esta certeza, encheu-se de terror; como fazê-lo, com efeito? Sobreveio então aquele incidente em meu duelo. “Ao vê-lo, tomei minha decisão.”

— Será possível — exclamei juntando as mãos — que um incidente tão insignificante tenha podido engendrar semelhante determinação!?

— Minha determinação estava concebida faz já três anos, aquele incidente serviu-lhe de impulso. Olhando o senhor, fiz censuras a mim mesmo e invejei-o — declarou ele com rudeza.

— Não lhe darão crédito — observei eu — passados 14 anos.

— Tenho provas esmagadoras. Apresentá-las-ei.

Pus-me então a chorar, beijei-o.

— Decida a respeito de um ponto, de um só! — disse-me ele (como se tudo dependesse de mim agora). — Minha mulher, meus filhos! Ela morrerá de pesar, talvez, meus filhos conservarão a posição e a propriedade, mas serão para sempre os filhos de um forçado. E que recordação de mim guardarão eles no coração!

Mantinha-me calado.

— Como separar-me deles, deixá-los para sempre?

Eu estava sentado, murmurando mentalmente uma prece. Levantei-me, por fim, apavorado.

— E então? — e ele me fixava.

— Vá — disse eu —, faça sua confissão. Tudo passa, só a verdade fica. Seus filhos, quando crescerem, compreenderão a grandeza de sua determinação.

Ao deixar-me, sua resolução parecia tomada. Mas veio ver-me durante mais de duas semanas, todas as noites, sempre a se preparar, sem poder decidir-se. Angustiava-me. Por vezes, chegava resoluto, dizendo com ar enternecido:

— Sei que, desde que tiver confessado, será para mim o paraíso. Durante 14 anos estive no inferno. Quero sofrer. Aceitarei o sofrimento e começarei a viver. Agora, não ouso amar nem meu próximo, nem mesmo meus filhos. Senhor, eles compreenderão talvez o que me custou meu sofrimento e não me censurarão!

— Todos compreenderão seu ato, se não agora, mais tarde, porque o senhor terá servido à verdade superior, que não é deste mundo...

Deixava-me, aparentemente, consolado, e voltava no dia seguinte zangado, pálido, o tom irônico.

— Cada vez que volto, o senhor me examina com curiosidade: “Ainda não confessaste?” Espere, não me despreze demais. Não é tão fácil de fazer como o senhor pensa. Talvez não o faça. O senhor não irá denunciar-me, não é?

Por vezes, longe de experimentar uma curiosidade desarrazoada, tinha até medo de fitá-lo. Sofria, estava aflito, tinha a alma cheia de lágrimas. Cheguei a perder o sono.

— Estava com minha mulher há pouco — continuou ele. — Compreende o senhor o que é uma mulher? Ao sair, os meninos gritaram para mim: “Adeus, papai, volte depressa para ler para nós.” Não, o senhor não pode compreender isso. A desgraça alheia não pode ser compreendida.

Tinha os olho cintilantes, os lábios trêmulos. De súbito, deu um murro na mesa; os objetos que nela estavam tremeram. Um homem tão manso... acontecia-lhe isso pela primeira vez.

— Devo denunciar-me? É preciso fazê-lo? Ninguém foi condenado, ninguém foi para a prisão por minha causa, o criado morreu de doença. Expiei por meus sofrimentos o sangue derramado. Aliás, não me acreditarão, não darão fé às minhas provas. Será preciso confessar? Estou pronto a expiar meu crime até o fim, contanto que ele não reflita sobre minha mulher e meus filhos. É justo perdê-los ao mesmo tempo que me perco? Não será isso um pecado? Onde está a verdade? Saberão essas pessoas reconhecê-la, apreciá-la?

“Senhor — pensava eu —, pensa ele na estima pública em semelhante momento!” Inspirava-me tal piedade que teria partilhado sua sorte, quando menos para aliviá-lo. Tinha o ar desvairado. Estremeci, não somente porque compreendia, mas sentia o que custa semelhante determinação.

— Decida minha sorte! — exclamou ele.

— Vá denunciar-se — murmurei. A voz me faltava, mas murmurei com tom firme. Peguei em cima da mesa o Evangelho e mostrei-lhe o versículo 24 do capítulo XII de são João: “Em verdade, em verdade vos digo que, se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica infecundo; mas, se morrer, produz muito fruto.” Acabara de ler esse versículo antes da chegada dele.

Ele o leu.

— É verdade. — Mas deu um sorriso amargo. — É terrível o que se encontra nesses livros — disse, após uma pausa. — É fácil aplicar o que dizem aos outros. E quem os escreveu? Foram homens?

— Foi o Espírito Santo.

— É fácil para o senhor tagarelar. — Sorriu de novo, mas quase com ódio.

Retomei o livro, abri-o noutro lugar e mostrei-lhe a Epístola aos hebreus, capítulo X, versículo 31. Ele leu: “É coisa horrenda cair nas mãos do Deus vivo.”

Rejeitou o livro, todo trêmulo.

— Eis um versículo terrível. Palavra, o senhor soube escolhê-lo. — Levantou-se. — Pois bem! Adeus, talvez não volte... haveremos de tornar a ver-nos no paraíso. Portanto, há 14 anos que “caí nas mãos do Deus vivo”. Amanhã, rogarei a essas mãos que me soltem...

Quis abraçá-lo, beijá-lo, mas não ousei; causava dó ver seu rosto contraído. Saiu. “Senhor — pensei —, aonde irá ele?” Caí de joelhos diante do ícone e roguei por ele à Santa Mãe de Deus, mediadora e auxiliadora. Meia hora se passou em lágrimas e preces; era já tarde, cerca de meia-noite. De súbito, a porta se abre, era ele de volta. Espantei-me.

— Onde estava o senhor? — perguntei-lhe.

— Creio que esqueci alguma coisa... meu lenço... Está bem, mesmo que não haja esquecido nada, deixe que me sente...

Sentou-se. Fiquei de pé diante dele.

— Sente-se também.

Foi o que fiz. Ficamos assim dois minutos. Ele me fitava; de repente, sorriu, depois abraçou-me, beijou-me...

— Lembra-te de que voltei a procurar-te. Ouves-me? Lembra-te!

Era a primeira vez que me tuteava. Partiu. “Amanhã”, pensei.

Adivinhara certo. Ignorava então, não tendo ido a parte alguma naqueles últimos dias, que seu aniversário caía precisamente no dia seguinte. Naquela ocasião, havia em casa dele uma recepção a que comparecia a cidade em peso. Realizou-se como de costume. Após o banquete, avançou até os convidados, tendo na mão um papel dirigido a seus superiores. Como estivessem eles presentes, leu o que estava escrito para todos os que ali se encontravam: um relato detalhado de seu crime! “Sendo um monstro, separo-me da sociedade. Deus me visitou — concluía ele. — Quero sofrer.” Ao mesmo tempo, depôs sobre a mesa as provas guardadas durante 14 anos: joias da vítima, roubadas para desviar as suspeitas, uma medalha e uma cruz tiradas do pescoço dela, seu caderninho de notas e duas cartas: uma, do noivo informando-a de sua chegada e a que ela começara em resposta para enviar no dia seguinte. Por que ter ficado com essas duas cartas e tê-las conservado durante 14 anos, em lugar de destruí-las como provas? O que aconteceu é que todos foram tomados de surpresa e de terror, mas ninguém quis acreditar nele, se bem que o escutassem com uma curiosidade extraordinária, como se escuta um doente; alguns dias depois, todos concordaram que o infeliz estava louco. Seus superiores e a justiça foram obrigados a dar prosseguimento ao caso, mas, em breve, arquivaram-no; muito embora os objetos apresentados e as cartas dessem o que pensar, achava-se que, mesmo se fossem autênticas aquelas peças, não podiam servir de base a uma acusação formal. A própria defunta poderia ter-lhes confiado. Soube depois que a autenticidade delas fora verificada por numerosos conhecidos e amigos da vítima e que não restava dúvida alguma. Mas, de novo, o caso iria dar em nada. Cinco dias após, soube-se que o infeliz caíra doente e temia-se por sua vida. Não posso explicar a natureza de sua doença, atribuída a perturbações cardíacas; soube-se que a junta médica, a pedido de sua mulher, o examinara também do ponto de vista mental e concluíra pela existência da loucura. Não fui testemunha de nada, contudo crivaram-me de perguntas e, quando quis visitá-lo, foi-me isso proibido por muito tempo, principalmente por sua mulher. “Foi o senhor — disse-me ela — quem o transtornou. Ele já era melancólico, mas, no último ano, sua agitação extraordinária e suas esquisitices chamaram a atenção de toda a gente, e o senhor o pôs a perder; foi o senhor quem o doutrinou, ele não o deixava durante este mês.” Ora, não somente sua mulher, mas todos na cidade caíam-me em cima e acusavam-me: “É culpa sua”, diziam. Calava-me com o coração alegre por aquela manifestação da misericórdia divina para com um homem que se havia condenado a si mesmo. Quanto à sua loucura, não podia acreditar nela. Permitiram, afinal, que o visse. Ele mesmo pedira com insistência minha presença para despedir-se de mim. À primeira vista, verifiquei que seus dias estavam contados. Enfraquecido, a tez amarela, as mãos trêmulas, sufocava, mas havia alegria, emoção em seu olhar.

— Consumou-se! — declarou. — Há muito tempo que desejava ver-te. Por que não vieste?

Dissimulei-lhe que me fora proibido visitá-lo.

— Deus teve piedade de mim e me chama para seu lado. Sei que vou morrer, mas sinto-me calmo e alegre, pela primeira vez desde tantos anos. Depois de minha confissão, minha alma entrou no paraíso. Agora ouso amar meus filhos e beijá-los. Não me acreditam, ninguém acreditou em mim, nem minha mulher, nem meus juízes; meus filhos não acreditarão nunca. Vejo nisso a prova da misericórdia divina para com eles. Herdarão um nome sem mancha. Agora, pressinto Deus, meu coração exulta, como no paraíso... Cumpri meu dever...

Incapaz de falar, ofegava, apertava-me a mão, olhava-me com um ar exaltado. Mas não conversamos muito tempo, sua mulher vigiava-nos furtivamente. Pôde ele, no entanto, murmurar:

— Lembras-te de como voltei à tua casa à meia-noite? Recomendei-te mesmo que te lembrasses. Sabes por que voltava eu? Voltava para matar-te!

Estremeci.

— Depois de haver-te deixado, vaguei pelas trevas, em luta comigo mesmo. De repente, senti por ti um ódio quase intolerável. “Agora — pensei — tem-me ele em suas mãos, é meu juiz, sou forçado a denunciar-me, porque ele sabe tudo.” Não que eu temesse tua denúncia (não pensava nisso), mas dizia a mim mesmo: “Como ousarei olhá-lo, se não me acusar?” E mesmo que estivesses nos antípodas, a simples ideia de que existias e me julgavas, sabendo de tudo, teria sido insuportável. Detestava-te como responsável por tudo. Voltei à tua casa, lembrando-me de que tinhas um punhal em cima da mesa. Sentei-me e roguei-te que fizesses o mesmo. Durante um minuto refleti. Matando-te, perdia-me, mesmo sem confessar o outro crime. Mas não pensava nisso, não queria pensar nisso naquele instante. Odiava-te e ardia de desejo de vingar-me de ti. Mas o Senhor venceu o diabo em meu coração. Fica sabendo, pois, que nunca estiveste tão perto da morte.

Morreu ao fim duma semana. Toda a cidade acompanhou-lhe o enterro. O padre pronunciou uma alocução comovida. Deplorou-se a terrível doença que pusera fim a seus dias. Mas toda a gente ergueu-se contra mim por ocasião de seus funerais. Cessaram mesmo de receber-me. No entanto, algumas pessoas, depois um maior número, admiram a verdade de suas alegações, vêm muitas vezes interrogar-me com maligna curiosidade, porque a queda e a desonra do justo causam satisfação. Mas guardei silêncio e logo deixei definitivamente a cidade. Cinco meses depois, o Senhor julgou-me digno de entrar no bom caminho e eu O bendigo por me ter tão visivelmente guiado. Quanto ao infortunado Mikhail, menciono-o todos os dias em minhas orações.

 

III


Extratos das conversações e da doutrina do stáriets Zósima


e) Do religioso russo e de seu possível papel


Padres e mestres, que é um religioso? Em nossos dias, nos meios esclarecidos, pronuncia-se esse termo com ironia, por vezes mesmo como uma injúria. E isso vai aumentando. É verdade, ai!, que se contam, mesmo entre os monges, muitos mandriões, sensuais, libidinosos e desavergonhados vagabundos. “Não passais de preguiçosos, de membros inúteis da sociedade, vivendo do trabalho alheio, mendigos sem-vergonhas.” Entretanto, quantos monges são humildes e mansos, aspiram à solidão para nela se entregar a fervorosas preces! Não se fala deles, cercam-nos de silêncio e causarei espanto a muita gente dizendo que são eles que salvarão talvez ainda uma vez a terra russa! Porque estão verdadeiramente prontos para “o dia e a hora, o mês e o ano”. Guardam na sua solidão a imagem do Cristo, esplêndida e intacta, na pureza da verdade divina, legada pelos padres da Igreja, pelos apóstolos e pelos mártires, e, quando a hora chegar, revelá-lo-ão ao mundo abalado. É uma grande ideia. Essa estrela brilhará no Oriente.

Eis o que penso dos religiosos. Enganar-me-ei talvez, será presunção minha? Olhai os leigos e esse mundo que se ergue acima do povo cristão: não alterou ele a imagem de Deus e sua verdade? Têm a ciência, mas somente a ciência sujeita aos sentidos. Quanto ao mundo espiritual, a metade superior do ser humano, rejeitam-no, banem-no alegremente, mesmo com ódio. O mundo proclamou a liberdade, sobretudo nestes derradeiros anos, e que representa ela? Nada mais senão a escravidão e o suicídio! Porque o mundo diz: “Tu tens necessidades, satisfazê-las, porque possuis os mesmos direitos que os grandes e os ricos. Não temas satisfazê-las, aumenta-as mesmo.” Eis o que se ensina atualmente. Tal é a concepção deles de liberdade. E que resulta desse direito de aumentar as necessidades? Entre os ricos, a solidão e o suicídio espiritual; entre os pobres, a inveja e o crime, porque conferiram-se direitos, mas ainda não se indicaram os meios de satisfazer as necessidades. Assegura-se que o mundo, abreviando as distâncias, transmitindo o pensamento pelos ares, unir-se-á sempre cada vez mais, que a fraternidade reinará. Ai! Não acrediteis nessa união dos homens. Concebendo a liberdade como o aumento das necessidades e sua pronta satisfação, alteram-lhes a natureza, porque fazem nascer neles uma multidão de desejos insensatos, de hábitos e imaginações absurdos. Não vivem senão para invejar-se mutuamente, para a sensualidade e a ostentação. Dar jantares, viajar, possuir carruagens, cargos, lacaios, passa tudo como uma necessidade à qual se sacrifica até a vida, a honra e o amor à humanidade; matar-se-ão mesmo, na impossibilidade de satisfazê-la. O mesmo ocorre entre aqueles que são ricos; quanto aos pobres, a insatisfação das necessidades e a inveja são no momento afogadas na embriaguez. Mas, em breve, em lugar de vinho, embriagar-se-ão de sangue, é o fim para que os conduzem. Dizei-me se tal homem é livre. Um “campeão da ideia” contava-me que, estando na prisão, privaram-no de fumo e que essa privação lhe foi tão penosa que quase traiu sua ideia para obtê-lo. Ora, esse indivíduo pretendia lutar pela humanidade. De que pode ser ele capaz? Quando muito dum esforço momentâneo, que não sustentará por muito tempo. Nada de admirar que os homens tenham encontrado sua servitude em lugar da liberdade, e que, em lugar de servir à fraternidade e à união, tenham caído na desunião e na solidão, como me dizia outrora meu visitante misterioso e mestre. De modo que a ideia do devotamento à humanidade, da fraternidade e da solidariedade desaparece gradualmente do mundo; na realidade, acolhem-na mesmo com derrisão, porque como desfazer-se de seus hábitos, aonde irá aquele prisioneiro das necessidades inumeráveis que ele próprio inventou? Na solidão, preocupa-se muito pouco com a coletividade. Afinal de contas, os bens materiais aumentaram e a alegria diminuiu.

Bem diferente é o caminho do religioso. Zombam da obediência, do jejum, da oração, entretanto é a única via que conduz à verdadeira liberdade; suprimo as necessidades supérfluas, domo e flagelo pela obediência minha vontade egoísta e orgulhosa, chego assim, com a ajuda de Deus, à liberdade do espírito e com ela à alegria espiritual! Qual dentre eles é mais capaz de exaltar uma grande ideia, de pôr-se a seu serviço, o rico isolado ou o religioso liberto da tirania dos hábitos? Censura-se ao religioso o isolamento: “Tu te retiraste para um mosteiro para cuidar de tua salvação, e desertaste a causa fraternal da humanidade.” Mas vejamos quem serve mais à fraternidade. Porque o isolamento está do lado deles e não do nosso, mas eles não o notam. Foi do nosso meio que saíram outrora os homens de ação do povo. Por que não será assim em nossos dias? Esses jejuadores e esses taciturnos mansos e humildes se erguerão para servir a uma nobre causa. É o povo quem salvará a Rússia. O mosteiro russo sempre esteve com o povo. Se o povo é isolado, nós também o somos. Ele partilha nossa fé e um político incréu jamais fará nada na Rússia, seja embora sincero e genial. Lembrai-vos disso. O povo derrubará o ateu, e a Rússia será unificada da ortodoxia. Preservai o povo e velai por seu coração. Instruí-o na paz. Eis vossa missão de religiosos, porque esse povo traz Deus em si.


f) Amos e servos podem tornar-se mutuamente irmãos em espírito?


É preciso confessar que o povo também está presa do pecado. A corrupção aumenta visivelmente todos os dias. O isolamento invade o povo; os açambarcadores e os sanguessugas aparecem; já o comerciante se mostra mais ávido de honras, aspira a mostrar sua instrução, sem que tenha nenhuma; com esse fito, desdenha os antigos usos, envergonha-se mesmo da fé dos pais. Vai à casa dos príncipes, embora não passe de um mujique depravado. O povo está desmoralizado pela bebedeira e não pode curar-se dela. Quantas crueldades na família, para com a mulher e mesmo para com os filhos, causadas por ela! Vi nas fábricas crianças de nove anos, débeis, atrofiadas, curvadas e já corruptas. Um local sufocante, o barulho das máquinas, o trabalho incessante, as obscenidades, a aguardente, é isso que convém à alma dum menino? Precisa é de sol, dos jogos de sua idade, de bons exemplos e de um mínimo de simpatia. É preciso que isso cesse, religiosos, meus irmãos, os sofrimentos das crianças devem ter um fim, levantai-vos e pregai. Mas Deus salvará a Rússia, porque, se o povo baixo está pervertido e atola-se no pecado, sabe que Deus tem horror ao pecado e se sente culpado perante Ele. De modo que nosso povo não cessou de crer na verdade, reconhece Deus, derrama lágrimas de enternecimento. Não acontece o mesmo entre os grandes. Adeptos da ciência, querem organizar-se equitativamente pela razão apenas, mas sem o Cristo, como outrora; já proclamaram que não há crime nem pecado. Têm razão de acordo com seu ponto de vista, porque sem Deus, onde está o crime? Na Europa, já o povo se subleva contra os ricos, por toda parte seus chefes o incitam ao assassinato e lhe ensinam que sua cólera é justa. Mas “maldita é sua cólera, porque é cruel”. Quanto à Rússia, o Senhor a salvará como a salvou muitas vezes. É do povo que virá a salvação, de sua fé, de sua humildade. Meus padres, preservai a fé do povo, não estou sonhando: toda a minha vida fui impressionado pela nobre dignidade de nosso grande povo, vi-a, posso atestá-la. Não é servil, após uma escravidão de dois séculos. É livre em seu comportamento e em suas maneiras, mas sem querer ofender ninguém. Não é vingativo, nem invejoso. “Tu és distinto, rico, inteligente, tens talento. Pois seja, que Deus te abençoe. Respeito-te, mas sabe que também eu sou um homem. O fato de respeitar-te sem invejar-te revela-te minha dignidade humana.” Na verdade, se não o dizem (porque não sabem ainda dizê-lo), agem assim, vi-o, experimentei-o eu mesmo e, acreditá-lo-íeis? quanto mais pobre e humilde o homem russo mais se nota nele essa nobre verdade, porque os ricos entre eles, os açambarcadores e os sanguessugas já estão na maior parte pervertidos e nossa negligência, nossa indiferença são muito culpadas por isso. Mas Deus salvará os seus, porque a Rússia é grande por sua humildade. Penso em nosso futuro, parece-me vê-lo aparecer, porque acontecerá que o rico mais depravado acabará por envergonhar-se de sua riqueza diante do pobre, e o pobre, vendo sua humildade, compreenderá e lhe cederá, responderá jovialmente, amigavelmente, à sua nobre confusão. Ficai certos desse desenlace; tende-se para ele! Só há igualdade na dignidade espiritual, e isso só é compreendido entre nós. Havendo irmãos, a fraternidade reinará, e sem a fraternidade não se partilharão jamais os bens. Guardamos a imagem do Cristo e ela resplandecerá aos olhos do mundo inteiro como um diamante precioso... Assim seja!

Padres e mestres, aconteceu-me uma vez algo de tocante. Por ocasião de minhas peregrinações, encontrei na cidade de K*** meu antigo ordenança Afanássi, oito anos depois de me haver separado dele. Tendo-me visto, por acaso, no mercado, reconheceu-me, acorreu todo alegre: “Bátiuchka, bárin, é mesmo o senhor? Será possível que esteja vendo mesmo o senhor?” Conduziu-me à sua casa. Livre do serviço militar, casara-se, tinha já dois filhos. Ele e a mulher viviam de um pequeno negócio de frutas e hortaliças. Seu quarto era pobre, mas limpo e alegre. Fez-me sentar, preparou o samovar, mandou chamar a mulher, como se fosse uma festa minha visita à sua casa. Apresentou-me os dois filhos: “Abençoe-os, meu padre.” — “Cabe a mim abençoá-los? — respondi. — Não passo de um humilde religioso, mas rogarei a Deus por eles; quanto a ti, Afanássi Pávlovitch, não te esqueço nunca em minhas orações, desde aquele famoso dia, porque és a causa de tudo.” Expliquei-lhe da melhor maneira. Ele me olhava sem poder afazer-se à ideia de que eu, seu antigo amo, um oficial, me encontrasse agora diante dele naquele hábito, e chegou mesmo a chorar. “Por que choras — perguntei-lhe —, tu a quem não posso esquecer? Rejubila-te antes comigo, meu caro, porque meu caminho está iluminado de felicidade.” Ele não falava, mas suspirava e abanava a cabeça com enternecimento. “Que fez de sua fortuna?” — “Dei-a ao mosteiro, vivemos em comunidade.” Depois do chá, despedi-me deles. Deu-me cinquenta copeques, oferenda para o mosteiro, e vejo que ele me enfia cinquenta outros na mão apressadamente. “É para o senhor — disse-me —, que viaja. Isso posso servir-lhe, meu padre.” Aceitei sua esmola, saudei-o, a ele e à esposa, e parti alegre, pensando no caminho: “Todos dois, sem dúvida, ele em sua casa e eu que caminho, suspiramos e nos sorrimos alegremente, de coração contente, lembrando-nos de como Deus fez que nos encontrássemos.” Jamais o tornei a ver depois. Eu era seu amo, ele, meu servidor, e agora, beijando-nos com emoção, confundimo-nos numa nobre união. Pensei muito nisso e agora digo a mim mesmo: é inconcebível que essa grande e franca união possa realizar-se por toda parte à sua hora, entre os russos? Creio que ela se realizará e que a hora está próxima.

A propósito dos servidores, acrescentarei o que segue: em minha juventude, irritava-me frequentemente contra eles: “a cozinheira serviu demasiado quente, o ordenança não escovou minhas roupas”. Mas fui esclarecido pelo pensamento de meu querido irmão, que ouvira em minha infância: “Serei digno de ser servido por outrem? Tenho o direito de explorar sua miséria e sua ignorância?” Admirava-me então de que as ideias mais simples, as mais evidentes nos venham tão tarde ao espírito. Não se pode passar sem servidores neste mundo, mas fazei de maneira a que o vosso se sinta em vossa casa mais livre moralmente do que se não fosse um servidor. E por que não serei o servidor do meu, e que ele o veja, sem nenhum orgulho de minha parte nem desconfiança da dele? Por que meu servidor não seria como meu parente, que aceitaria, afinal, com alegria em minha família? De agora em diante, é isso realizável e servirá de base à magnífica união do futuro, quando o homem não quererá mais transformar em servidores seus semelhantes, como agora, mas desejará ardentemente, pelo contrário, tornar-se ele próprio o servidor de todos, segundo o Evangelho. Seria um sonho crer que o homem encontrará afinal sua alegria unicamente nas obras de civilização e de caridade, e não, como em nossos dias, nas satisfações brutais, na glutonaria, na fornicação, no orgulho, na presunção, na supremacia invejosa de uns sobre os outros? Estou persuadido de que não é um sonho e que os tempos estão próximos. Riem, perguntam: quando chegarão esses tempos, é provável que cheguem? Penso que realizaremos essa grande obra com o Cristo. Quantas ideias neste mundo, na história da humanidade, eram irrealizáveis dez anos atrás e, no entanto, apareceram de repente, quando foi chegado seu termo misterioso e se espalharam por toda a Terra! O mesmo acontecerá conosco, nosso povo brilhará diante do mundo e todos dirão: “A pedra que os arquitetos tinham rejeitado tornou-se a pedra angular.” Poder-se-ia perguntar aos zombadores: se nós sonhamos, quando erguereis vós o vosso edifício, quando vos organizareis equitativamente de acordo apenas com a vossa razão, sem o Cristo? Se afirmarem tender também para a união, somente os mais ingênuos entre eles poderão acreditar nisso, muito embora possa causar espanto essa ingenuidade. Na realidade, há mais fantasia entre eles que entre nós. Podem organizar-se segundo a justiça, mas, tendo repudiado o Cristo, acabarão por inundar o mundo de sangue, porque o sangue chama o sangue e o que tirar a espada perecerá pela espada. Sem a promessa do Cristo, exterminar-se-iam até só restarem dois. E no orgulho, não poderiam esses conter-se, o derradeiro suprimiria o penúltimo e a si mesmo em seguida. Eis o que aconteceria sem a promessa do Cristo de deter essa luta por amor dos dois e dos humildes. Depois de meu duelo, estando ainda de uniforme, aconteceu-me falar dos servidores em sociedade e lembro-me de que causei espanto a todo mundo. “Com que então seria preciso instalar o servidor no sofá e oferecer-lhe chá?” Respondi-lhes: “Por que não, ainda que fosse uma vez ou outra?” A gargalhada foi geral. A pergunta deles era frívola e minha resposta não era clara, mas acho que encerrava certa verdade!


g) Da oração, do amor, do contato com outros mundos.


Jovem, não esqueças a oração. Cada uma delas, se sincera, exprime um novo sentimento, fonte duma ideia nova que ignoravas e que te reconfortará, e compreenderás que a prece é uma educação. Lembra-te ainda de repetir cada dia, e todas as vezes que puderes, mentalmente: “Senhor, tem piedade de todos aqueles que comparecem agora diante de Ti.” Porque a cada hora, milhares de seres terminam a existência terrestre e suas almas chegam à presença do Senhor; quantos entre eles deixaram a Terra no isolamento, ignorados de todos, tristes e angustiados por causa da indiferença geral! E talvez, na outra extremidade do mundo, tua prece por ele chegará a Deus, sem que vós vos tivésseis conhecido. A alma, tomada de temor na presença do Senhor, comover-se-á por ter também na Terra alguém que a ama e intercede por ela. E Deus vos olhará a ambos com mais misericórdia, porque se tens tal compaixão daquela alma, Ele terá muito mais, Ele cuja misericórdia e cujo amor são infinitos. E a perdoará por tua causa.

Meus irmãos, não temais o pecado, amais o homem mesmo no pecado, é isso a imagem do amor divino, amor que não há maior na Terra. Amai toda a criação em seu conjunto e em seus elementos, cada folha, cada raio de luz, os animais, as plantas. Amando cada coisa, compreendereis o mistério divino nas coisas. Tendo-o compreendido uma vez, vós o conhecereis sempre mais, cada dia. E acabareis por amar o mundo inteiro com um amor universal. Amai os animais, porque Deus lhes deu o princípio do pensamento e uma alegria tranquila. Não a perturbeis, não os atormenteis tirando-lhes essa alegria, não vos oponhais ao plano de Deus. Homem, não te ergas acima dos animais; eles não têm pecado, ao passo que com tua grandeza manchas a Terra com tua aparição, deixando após ti um rasto de podridão — ai, quase todos nós! — Amai particularmente as crianças, porque elas, como os anjos, também não têm pecado; existem para comover-nos os corações, purificá-los, são para nós como uma indicação. Maldito o que ofende um desses pequeninos! Foi o padre Anfim quem me ensinou a amá-los; sem nada dizer, com os copeques que nos davam em nossas peregrinações, comprava por vezes bolinhos e doces para distribuí-los entre eles; não podia passar perto das crianças sem ficar comovido.

Pergunta-se por vezes, sobretudo em presença do pecado: “É preciso recorrer à força ou ao amor humilde?” Não empregueis jamais senão esse amor, podereis assim submeter o mundo inteiro. A humildade cheia de amor é uma força tremenda, sem nenhuma outra igual. Cada dia, a cada instante, vigiai-vos, mantende uma atitude digna. Passastes ao lado duma criança blasfemando, sob o império da cólera, sem notá-la; ela, porém, vos viu e guarda talvez em seu coração inocente vossa imagem envilecedora. Vós não a viste e talvez semeastes em sua alma um mau germe que poderá desenvolver-se e isso porque não vos contivestes diante dessa criança, não cultivastes em vós o amor ativo, refletido. Meus irmãos, o amor é mestre, mas é preciso saber adquiri-lo, porque se adquire dificilmente ao preço dum esforço prolongado; é preciso amar, com efeito, não por um instante, mas até o fim. Qualquer um, até mesmo um celerado, é capaz de um amor fortuito. Meu irmão pedia perdão aos pássaros; isso parece absurdo, mas é justo, porque tudo se assemelha ao oceano, onde tudo se derrama e comunica, toca-se num lugar e repercute em outra extremidade do mundo. Admitamos que seja uma loucura pedir perdão aos pássaros, mas os pássaros, e a criança, e cada animal que vos cerca sentir-se-iam mais à vontade, se vós mesmos, fôsseis mais dignos do que o sois agora, um pouco que seja. Então rezaríeis aos pássaros, possuídos totalmente pelo amor numa espécie de êxtase, vós lhes rogaríeis que vos perdoassem vossos pecados. Estimai esse êxtase, por mais absurdo que pareça aos homens.

Meus amigos, pedi a Deus a alegria. Sede alegres como as crianças, como as aves dos céus. No vosso apostolado não vos deixeis perturbar pelo pecado, não temais que ele macule vossa obra e vos impeça de realizá-la, não digais: “o pecado, a impiedade, o mau exemplo são poderosos, ao passo que nós somos fracos, isolados; o mal triunfará, sufocará o bem”. Não vos deixeis abater assim, meus filhos! Só há um meio de salvação: toma a teu cargo todos os pecados dos homens. Com efeito, meu amigo, desde que responderes sinceramente por todos e por tudo, verás logo que é verdadeiramente assim, que és culpado por todos e por tudo. Mas, atirando tua preguiça e tua fraqueza sobre os outros, tornar-te-ás finalmente cheio de um orgulho satânico e murmurarás contra Deus. Eis o que penso desse orgulho; é-nos difícil compreendê-lo aqui embaixo, por isso é que se cai tão facilmente no erro, a ele nos abandonamos, imaginando realizar algo de grande, de nobre. Entre os sentimentos e os movimentos mais violentos de nossa natureza, há muitos que não podemos ainda compreender aqui embaixo; não te deixes seduzir, não penses que isso te possa servir, no que quer que seja de justificação, porque o Juiz soberano te pedirá conta do que podias compreender e não do resto; convencer-te-ás disso tu mesmo, porque discernirás tudo exatamente e não farás objeção. Sobre a Terra, vagamos sem rumo, e, se não tivéssemos a preciosa imagem do Cristo para guiar-nos, sucumbiríamos e nos perderíamos totalmente, como o gênero humano antes do dilúvio. Muitas coisas nos estão ocultas neste mundo; em compensação, temos a sensação misteriosa do liame vivo que nos prende ao mundo celeste e superior, as raízes de nossos sentimentos e de nossas ideias não estão aqui, mas em outra parte. Eis por que dizem os filósofos que é impossível sobre a Terra compreender a essência das coisas. Deus tomou de empréstimo aos outros mundos as sementes para semeá-las aqui embaixo e cultivou seu jardim. Tudo quanto podia brotar, brotou, mas as plantas que somos vivem somente pelo sentimento de seu contato com esses mundos misteriosos; quando esse sentimento se enfraquece ou desaparece, o que havia em nós brotado perece. Tornamo-nos indiferentes à vida, sentimos mesmo aversão por ela. É essa pelo menos minha ideia.


h) Pode-se ser o juiz de seus semelhantes? Fé até o fim.


Lembra-te de que não podes ser o juiz de ninguém. Porque, antes de julgar um criminoso, deve o juiz saber que é ele próprio tão criminoso quanto o acusado, e talvez mais que todos culpado do crime dele. Quando tiver compreendido isso, poderá ser juiz. Por mais absurdo que pareça, é verdade. Porque, se eu mesmo fosse um justo, talvez não houvesse diante de mim um criminoso. Se podes encarregar-te do crime do acusado que julgas em teu coração, fá-lo imediatamente e sofre em seu lugar; quanto a ele, deixa-o ir sem censura. E mesmo se a lei te instituiu juiz dele, tanto quanto é possível, faze também a justiça naquele espírito, porque, uma vez partido, condenar-se-á ele ainda mais severamente que teu tribunal. Se ele se vai insensível a teu bom tratamento e zombando de ti, não fiques impressionado; é que a hora dele ainda não chegou, mas chegará; e em caso contrário, um outro em lugar dele compreenderá, sofrerá, condenar-se-á, acusar-se-á e a verdade será cumprida. Crê firmemente nisso, é aí que repousam a esperança e a fé dos santos. Não te canses de agir. Se te lembrares à noite, antes de dormir, que não cumpriste o que era preciso, levanta-te logo para cumpri-lo. Se os que te cercam, por malícia ou indiferença, recusam ouvir-te, põe-te de joelhos e pede-lhes perdão, porque, na verdade, é culpa tua se não querem escutar-te. Se não podes falar àqueles que estão envinagrados, serve-os em silêncio e na humildade, sem jamais desesperar. Se todos te abandonam e se te expulsam com violência, ao ficares sozinho, prosterna-te, beija a terra, rega-a com tuas lágrimas, e essas lágrimas darão frutos, ainda mesmo que ninguém te visse, nem te ouvisse em tua solidão. Crê até o fim, mesmo que todos os homens se hajam desviado e tenhas ficado fiel sozinho; leva então tua oferenda e louva Deus, por teres sido o único a manter a fé. E se dois, tais como vós, se reúnem, então eis a plenitude do amor vivo, beijai-vos com efusão e louvai o Senhor, porque Sua verdade cumpriu-se, ainda que apenas em vós dois.

Se tu mesmo pecaste e estejas mortalmente aflito por isso, rejubila-te por outro, por um justo, rejubila-te por ser ele, em compensação, um justo e não ter pecado.

Se estás indignado e aflito por causa da iniquidade dos homens, a ponto de quereres vingar-te, teme acima de tudo esse sentimento; impõe-te o mesmo castigo como se fosses tu mesmo culpado do crime deles. Aceita esse castigo e suporta-o, teu coração se acalmará, compreenderás que tu também és culpado, porque terias podido esclarecer os celerados mesmo na qualidade de único justo, e não o fizeste. Esclarecendo-os, ter-lhes-ia mostrado um outro caminho, e o autor do crime não o teria talvez cometido, graças à luz. Se os homens ficarem mesmo insensíveis a essa luz malgrado teus esforços, e negligenciarem a salvação, fica firme e não duvides do poder da luz celeste; persuade-te de que se não foram eles salvos agora, sê-lo-ão mais tarde. Senão, seus filhos serão salvos em lugar deles, porque tua luz não perecerá, mesmo se estiveres morto. O justo desaparece, mas a luz fica. Após a morte do Salvador é que a gente se salva. O gênero humano repele seus profetas, massacra-os, mas os homens amam seus mártires e veneram aqueles que eles mesmos fizeram perecer. É pela coletividade que trabalhas, pelo futuro que ages. Não procures recompensa jamais, porque tens já uma grande nesta Terra: tua alegria espiritual que somente o justo partilha. Não temas nem os grandes nem os poderosos, mas sê sábio e sempre digno. Segue a medida, conhece os termos, instrui-te a esse respeito. Retirado na solidão, reza. Prosterna-te com amor e beija a terra. Ama incansavelmente, insaciavelmente, todos e tudo, procura esse êxtase e essa exaltação. Rega a terra de lágrimas de alegria, ama essas lágrimas. Não te envergonhes desse êxtase, ama-o, porque é um grande dom de Deus, concedido somente aos eleitos.


i) Do inferno e do fogo eterno. Consideração mística.


Meus padres, pergunto a mim mesmo: “Que é o inferno?” Defino-o assim: “O sofrimento por não poder mais amar.” Uma vez, no infinito do espaço e do tempo, um ser espiritual, por sua aparição na Terra, teve a possibilidade de dizer: “Eu sou e eu amo.” Uma vez somente foi-lhe concedido um momento de amor ativo e vivo, para isso foi-lhe dada a vida terrestre, limitada no tempo; ora, esse ser feliz repeliu esse dom inestimável, nem o apreciou nem o amou, considerou-o ironicamente, ficou a ele insensível. Tal ser, tendo deixado a Terra, vê o seio de Abraão, entretém-se com ele como está dito na parábola de Lázaro e do mau rico, contempla o paraíso, pode elevar-se até o Senhor, mas o que o atormenta, precisamente, é que se apresenta sem ter amado, entra em contato com aqueles que amaram e cujo amor desdenhou. Porque tem uma clara noção das coisas e diz a si mesmo: “Agora tenho o conhecimento e, malgrado minha sede de amor, esse será sem valor, não representará nenhum sacrifício, porque a vida terrestre terminou e Abraão não virá aplacar — ainda que com uma só gota de água viva — minha sede ardente de amor espiritual, que agora me abrasa, depois de tê-la desdenhado na Terra. A vida e o tempo passaram agora. Daria com alegria minha vida pelos outros, mas é impossível, porque a vida que se podia sacrificar ao amor já decorreu, um abismo a separa da existência atual.” Fala-se do fogo do inferno no sentido literal; temo sondar esse mistério, mas penso que se houvesse mesmo verdadeiras chamas, os danados se regozijariam, porque esqueceriam nos tormentos físicos, ainda que por um instante, a mais horrível tortura moral. É impossível libertá-los dela, porque esse tormento está neles e não fora. E, se se pudesse, penso que mais desgraçados seriam ainda. Porque mesmo se os justos do paraíso lhes perdoassem à vista de seus sofrimentos e os chamassem a si no seu amor infinito, não faria senão aumentar-lhes esses sofrimentos, excitando neles essa sede ardente dum amor correspondente, ativo e grato, doravante impossível. Na timidez de meu coração, penso, no entanto, que a consciência dessa impossibilidade acabaria por aliviá-los, porque tendo aceitado o amor dos justos sem poder a ele corresponder, sua humilde submissão criaria uma espécie de imagem e de imitação desse amor ativo e desdenhado por eles na Terra... Lamento, irmãos e amigos, não poder formular claramente isso. Mas infelizes daqueles que destruíram a si mesmos, infelizes dos suicidas! Penso que não pode haver mais infelizes do que eles. É um pecado, dizem-nos, orar a Deus por eles, e a Igreja aparentemente os repudia, mas meu pensamento íntimo é que se poderia rezar por eles também. O amor não haveria de irritar o Cristo. Toda a minha vida tenho rezado em meu coração por esses desafortunados, confesso-vos-lo, meus padres, e ainda agora.

Oh! Há no inferno seres que permanecem soberbos e intratáveis, malgrado seu conhecimento incontestável e a contemplação da verdade inelutável; há-os terríveis, que se tornaram totalmente presa de Satanás e de seu orgulho. São mártires voluntários que não podem satisfazer-se com o inferno. Porque são eles próprios malditos, tendo amaldiçoado Deus e a vida. Nutrem-se de seu orgulho irritado como um sedento no deserto se poria a sugar o próprio sangue. Mas são insaciáveis por todos os séculos dos séculos e repelem o perdão. Amaldiçoam Deus que os chama e quereriam que Deus se aniquilasse, Ele e toda a Sua criação. E arderão eternamente no fogo de sua cólera, terão sede da morte e do nada. Mas a morte fugirá deles...


*


Aqui termina o manuscrito de Alieksiêi Fiódorovitch Karamázov. Repito-o: está incompleto e fragmentário. As informações biográficas, por exemplo, só abarcam a primeira juventude do stáriets. Aproveitaram de seu ensino e de suas opiniões, para resumi-los num todo, coisas ditas evidentemente em várias ocasiões e em várias vezes. As afirmativas do stáriets em suas derradeiras horas não são precisas, dá-se somente uma ideia do espírito e do caráter dessa conversação, comparados com extratos de outras lições, no manuscrito de Alieksiêi Fiódorovitch. O fim do stáriets sobreveio duma maneira verdadeiramente inesperada, porque, muito embora todos os assistentes daquela derradeira noite se dessem conta de que sua morte se aproximava, não se podia imaginar que ela ocorresse tão subitamente; pelo contrário, como já o observamos, seus amigos, vendo-o tão disposto e loquaz naquela noite, acreditaram numa melhora sensível, ainda que passageira. Cinco minutos antes de sua morte, não se podia ainda nada prever. Sentiu de repente uma dor aguda no peito, empalideceu, apoiou as mãos no coração. Todos se reuniram solícitos em torno dele; sorrindo, malgrado seus sofrimentos, escorregou da cadeira, pôs-se de joelhos, prosternou-se com a face inclinada para o chão, estendeu os braços, depois, como em êxtase, beijando a terra e rezando (ele próprio o havia ensinado), entregou suavemente, alegremente, sua alma a Deus. A notícia de sua morte espalhou-se logo no eremitério e alcançou o mosteiro. Os íntimos do defunto e os designados por sua posição procederam ao amortalhamento, segundo o antigo rito, e a comunidade reuniu-se na igreja. Antes do dia, tornou-se a notícia conhecida na cidade, constituindo-se o assunto de todas as conversas; muitas pessoas dirigiram-se ao mosteiro. Mas falaremos disso no livro seguinte; digamos somente, por antecipação, que, durante aquele dia, ocorreu um acontecimento tão inesperado e, segundo a impressão que produziu entre os monges e na cidade, a tal ponto estranho e desconcertante, que, até agora, após tantos anos, se guardou em nossa cidade a mais viva recordação daquele dia movimentado...


Terceira parte


Livro VII

Aliócha


I


O odor deletério


O corpo do padre Zósima foi preparado para a inumação segundo o rito estabelecido. Não se lavam os monges e os ascetas falecidos, o fato é notório. “Quando um monge é chamado ao Senhor (lê-se no Grande ritual), o irmão preposto ao encargo esfrega-lhe o corpo com água morna, traçando previamente, com a esponja, uma cruz sobre a fronte do morto, sobre o peito, mãos, pés e joelhos e nada mais.” Foi o padre Paísi quem levou a cabo essa operação. Em seguida, revestiu o defunto com o hábito monástico e envolveu-o numa capa, fendendo-a um pouco, como está prescrito, para lembrar a forma da cruz. Puseram-lhe na cabeça um capuz terminado por uma cruz de oito braços, ficando o rosto coberto por um véu negro, e, nas mãos, um ícone do Salvador. O cadáver, assim vestido, foi posto pela manhã num ataúde preparado há muito tempo. Decidiu-se deixá-lo por todo aquele dia no quarto grande que servia de salão. Como pertencesse o defunto à categoria de ieromonakh, convinha ler em sua intenção não o Saltério, mas o Evangelho. Depois do ofício dos mortos, o padre Ióssif começou a leitura; quanto ao padre Paísi, que queria substituí-lo em seguida pelo resto do dia e da noite, estava no momento muito ocupado e inquieto, bem como o superior do eremitério. Verificava-se, com efeito, entre a comunidade e os leigos que acorreram em multidão algo de extraordinário, uma agitação inaudita, inconveniente mesmo, uma expectativa febril. Os dois religiosos faziam tudo quanto estava ao alcance para acalmar os espíritos superexcitados. Quando clareou suficientemente, viram-se chegar fiéis trazendo consigo seus doentes, sobretudo as crianças, como se só estivessem à espera daquele momento, aguardando uma cura imediata, que não podia tardar em operar-se, segundo a crença deles. Foi somente então que se verificou a que ponto todos tinham o hábito de considerar o defunto stáriets, ainda quando vivo, um verdadeiro santo. E os recém-chegados estavam longe de pertencer ao baixo povo. Aquela ansiosa expectativa dos crentes, que se manifestava abertamente, com uma impaciência quase imperiosa, parecia escandalosa ao padre Paísi e ultrapassava suas previsões. Encontrando religiosos bastante emocionados, falou-lhes assim: “Essa expectativa frívola e imediata de grandes coisas não é possível senão entre os leigos e não convém a nós.” Mas não lhe davam ouvidos, e o padre Paísi percebia isso com inquietação, se bem que ele próprio (se não se quer nada ocultar), embora reprovando esperanças demasiado prontas que achava frívolas e vãs, partilhava delas secretamente, no fundo do coração, quase no mesmo grau, do que se dava conta. No entanto, certos encontros lhe desagradavam bastante e excitavam dúvidas nele, por uma espécie de pressentimento. Foi assim que, na multidão que se aglomerava na cela, notou com repugnância (e censurou-se por isso imediatamente) a presença de Rakítin e do religioso de Obdorsk, que se retardava no mosteiro. Todos dois pareceram de súbito suspeitos ao padre Paísi, embora não fossem os únicos a respeito. Em meio à agitação geral, o monge de Obdorsk movimentava-se mais que todos, viam-no por toda parte fazendo perguntas, de ouvido à escuta, cochichando com ar misterioso. Parecia impaciente e como que irritado pelo fato de não se ter ainda produzido o milagre há muito esperado. Quanto a Rakítin, encontrava-se desde bem cedo no eremitério, como se soube mais tarde, seguindo instruções da senhora Khokhlakova. Assim que essa mulher boa, porém desprovida de caráter e que não tinha acesso ao ascetério, soube, ao despertar, da notícia, foi tomada de tal curiosidade que enviou imediatamente Rakítin com a missão de tudo observar e mantê-la ao corrente por escrito, mais ou menos a cada meia hora, de tudo quanto acontecesse. Tinha ela Rakítin na conta de um rapaz duma piedade exemplar, tão insinuante era ele e tanto sabia fazer-se valer aos olhos de todos, contanto que encontrasse nisso o mínimo lucro. Como o dia se anunciasse belo, numerosos fiéis comprimiam-se em torno dos túmulos; a maior parte agrupava-se em torno da igreja, outros disseminavam-se aqui e ali. O padre Paísi, que dava volta pelo ascetério, pensou de repente em Aliócha, a quem não via há muito tempo. Avistou-o no mesmo instante, no canto mais afastado, perto da cerca, sentado na tumba dum religioso, morto havia muitos anos e famoso por seu ascetismo. Estava de costas para o eremitério, de frente para a cerca, e o monumento quase o escondia. Ao aproximar-se, viu o padre Paísi que ele havia ocultado o rosto nas mãos e chorava amargamente, com o corpo sacudido pelos soluços. Observou-o um instante.

— Basta de choro, caro filho, basta, meu amigo — disse ele por fim com simpatia. — Por que chorar? Rejubila-te, pelo contrário. Ignoras, pois, que este dia é um dia sublime para ele? Pensa somente no lugar onde ele se encontra agora, neste minuto!

Aliócha olhou o monge, descobrindo o rosto molhado de lágrimas como o de um menininho, mas voltou-se imediatamente e tornou a cobrir o rosto com as mãos.

— Talvez tenhas razão em chorar — declarou o padre Paísi, com ar pensativo. — Foi o Cristo quem te enviou essas lágrimas. “Tuas lágrimas de enternecimento são apenas um repouso da alma e servirão para distrair-te o coração” — acrescentou ele consigo mesmo, pensando com afeto em Aliócha. Apressou-se em afastar-se, sentindo que também ele iria chorar, se o olhasse. Entretanto o tempo decorria, sucediam-se as cerimônias fúnebres. O padre Paísi substituiu o padre Ióssif junto do ataúde e prosseguiu a leitura do Evangelho. Mas antes das três horas da tarde ocorreu aquilo de que já falei no fim do livro precedente: um acontecimento tão inesperado, tão contrário à esperança geral, que, repito-o, nossa cidade e seus arredores dele se lembram até hoje com um interesse extraordinário. Acrescentarei que me repugna quase falar desse acontecimento escandaloso, no fundo dos mais vulgares e naturais, e tê-lo-ia decerto passado em silêncio, se não tivesse influído de maneira decisiva sobre a alma e o coração do principal, embora futuro, herói de minha narrativa, Aliócha, nele provocando uma espécie de revolução que lhe agitou a razão, mas o fortaleceu definitivamente para um fim determinado.

Quando, ainda antes do amanhecer, o corpo do stáriets foi posto no caixão e transportado para o primeiro quarto, alguém perguntou se era preciso abrir as janelas. Mas essa pergunta, feita incidentemente, ficou sem resposta e quase não foi percebida, exceto por alguns. A ideia de que tal morto pudesse corromper-se e cheirar mal pareceu-lhes absurda e desagradável (se não cômica), por causa do pouco de fé e da frivolidade que revelava, porque se esperava justamente o contrário. Pouco depois do meio-dia, começou uma coisa, a princípio notada em silêncio por aqueles que iam e vinham, cada qual temendo visivelmente dizer aos outros do que pensava; cerca das três horas, foi aquilo verificado com tal evidência que a notícia se espalhou entre todos os visitantes do eremitério, alcançou o mosteiro, onde mergulhou toda a gente em espanto, e, logo depois, atingiu a cidade, agitando crentes e incréus. Estes se rejubilaram; quanto aos crentes, houve entre eles quem se rejubilasse ainda mais, porque “a queda do justo e de sua honra causam prazer”, como dizia o defunto numa de suas lições. O fato é que o ataúde pôs-se a exalar um odor deletério, que foi aumentando. Procurar-se-ia em vão, nos anais de nosso mosteiro, um escândalo semelhante àquele que se desenrolou entre os próprios religiosos, logo após a comprovação do fato, e que teria sido impossível em outras circunstâncias. Bem muitos anos depois, alguns dentre eles, lembrando-se dos incidentes daquele dia, perguntavam a si mesmos com horror como pudera o escândalo atingir tais proporções. Porque, já antes, religiosos irreprocháveis, duma santidade reconhecida, stártsi piedosos tinham morrido e seus caixões haviam espalhado um odor deletério que se manifestava naturalmente, como no caso de todos os mortos, mas sem causar escândalo, nem mesmo emoção alguma. Sem dúvida, segundo a tradição, os restos de outros religiosos, mortos há muito tempo, tinham escapado à corrupção, coisa de que a comunidade conservava uma recordação comovida e misteriosa, vendo naquilo um fato miraculoso e a promessa duma glória ainda maior provinha de seus túmulos, se tal fosse a vontade divina. Entre eles, guardavam-se sobretudo a memória do stáriets Jó, morto cerca de 1810, na idade de 105 anos, famoso asceta, grande jejuador e taciturno, cujo túmulo era mostrado com veneração a todos os fiéis que chegavam pela primeira vez ao mosteiro, com alusões misteriosas às grandes esperanças que ele suscitava. (Era o túmulo onde o padre Paísi encontrara Aliócha pela manhã.) Além desse, citava-se igualmente o padre Varsonófi, o stáriets ao qual havia sucedido o padre Zósima, o qual, quando vivo, todos os fiéis que frequentavam o mosteiro tinham por “inocente”. A tradição pretendia que aqueles dois personagens jaziam em seus ataúdes como se estivessem vivos, que os tinham enterrado intactos, que seus rostos mesmos estavam de certa forma luminosos. Outros relembravam com insistência que seus corpos exalavam um odor suave. No entanto, malgrado lembranças tão sugestivas, seria difícil explicar exatamente como uma cena tão absurda e chocante pôde passar-se junto ao caixão do padre Zósima. Quanto a mim, atribuo-a a diferentes causas que agiram todas juntas. Assim, aquele ódio inveterado ao “starietismo”, tido como uma inovação perniciosa, que existia ainda entre numerosos monges. Em seguida, havia sobretudo a inveja que se tinha à santidade do defunto, tão solidamente estabelecida quando era ele vivo que se tornara como que proibido discuti-la. Porque, muito embora o stáriets conquistasse uma multidão de corações mais pelo amor que pelos milagres e tivesse constituído como que uma falange com aqueles que o amavam, atraíra, no entanto, por isso mesmo, invejosos, depois inimigos encarniçados, declarados e ocultos, não somente no mosteiro, mas também entre os leigos. Se bem que não houvesse causado dano a ninguém, dizia-se: “Por que passa ele por santo a tal ponto?” E somente essa pergunta, à força de repetida, acabara por engendrar um ódio inextinguível. De modo que, penso que muitos, ao saber que ele cheirava mal ao fim de tão pouco tempo — pois ainda não se passara um dia que ele morrera —, ficaram encantados; da mesma maneira, aquele acontecimento foi quase um ultraje e uma ofensa pessoal para alguns dos partidários do stáriets que até então o haviam reverenciado. Eis em que ordem se sucederam as coisas.

Desde que se declarou a corrupção, bastava ver o aspecto dos religiosos que entravam na cela, podia-se adivinhar o motivo que os levava. O que entrava, tornava a sair ao fim de um momento para confirmar a notícia à multidão dos outros que o esperavam. Uns abanavam a cabeça com tristeza, outros não dissimulavam a alegria, que explodia em seus olhares maliciosos. E ninguém lhes fazia censuras, ninguém elevava a voz em favor do defunto, o que era mesmo estranho, porque seus partidários formavam a maioria no mosteiro; mas via-se que o Senhor mesmo permitia que a maioria triunfasse provisoriamente. Em breve, apareceram na cela, também como emissários, leigos, na maior parte pessoas instruídas. O baixo povo não entrava, muito embora se comprimisse em multidão às portas do eremitério. É incontestável que a afluência dos leigos aumentou notavelmente, após três horas, em consequência daquela notícia escandalosa. Os que não teriam talvez vindo naquele dia, chegavam agora com um propósito, e entre eles algumas pessoas duma posição notável. Aliás, o decoro não fora ainda abertamente perturbado, e o padre Paísi, com olhar severo, continuava a ler o Evangelho à parte, com firmeza, como se não notasse nada do que se passava, se bem que já tivesse observado algo de insólito. Mas vozes a princípio tímidas, que se firmaram pouco a pouco e tomaram certa audácia, chegaram até seus ouvidos. “De modo que o julgamento de Deus não é dos homens!”, ouviu de repente o padre Paísi. Essa reflexão foi formulada a princípio por um leigo, funcionário da cidade, homem de certa idade, que passava por muito piedoso; não fez, aliás, senão repetir em voz alta o que os religiosos diziam entre si ao ouvido há muito tempo. O pior é que proferiam essas palavras pessimistas com uma espécie de satisfação que ia aumentando. Em breve, começou o decoro a ser perturbado, dir-se-ia que todos se sentiam autorizados a agir assim. “Como pôde ocorrer isso?”, diziam alguns, a princípio como se lamentando, “ele não era corpulento, só tinha a pele e os ossos, por que haveria de feder?” — “É uma advertência de Deus”, apressavam-se em acrescentar outros, cuja opinião prevalecia, porque indicavam que se o odor tivesse sido natural, como para todo pecador, ter-se-ia manifestado mais tarde, após 24 horas pelo menos, mas “isso adiantou-se à natureza”, portanto deve-se ver nisso o dedo de Deus. Esse raciocínio era irrefutável. O manso padre Ióssif, o bibliotecário, favorito do defunto, pôs-se a objetar contra certos maldizentes que “não era em toda parte assim”, que a incorruptibilidade do corpo dos justos não era um dogma da ortodoxia. mas apenas uma opinião, e que, nas regiões mais ortodoxas, no monte Atos, por exemplo, dá-se menos importância ao odor deletério; não é a incorruptibilidade física que passa lá como o principal sinal da glorificação dos redimidos, mas a cor de seus ossos, depois que seus corpos permaneceram longos anos sob a terra: “Se os ossos se tornarem amarelos como a cera, significa que o Senhor glorificou um justo; mas se ficarem negros, é que o Senhor não o julgou digno. Eis como se procede no monte Atos, santuário onde se conservam em toda a pureza as tradições da ortodoxia”, concluiu o padre Ióssif. Mas as palavras do humilde padre não causaram impressão e provocaram mesmo réplicas irônicas: “Tudo isso é erudição e novidades, não adianta ouvi-lo”, decidiram entre si os religiosos. “Mantemos os antigos usos; seria preciso imitar todas as novidades que apareçam?”, acrescentavam outros. “Temos tantos santos quanto eles. No monte Atos, sob o jugo turco, esqueceram tudo. A ortodoxia alterou-se entre eles faz muito tempo, nem sinos têm”, encareciam os mais irônicos. O padre Ióssif retirou-se cheio de pesar, tanto mais quanto exprimira sua opinião com pouca segurança e sem ajuntar-lhe muita fé. Previa, em sua perturbação, uma cena chocante e um começo de insubordinação. Pouco a pouco, em seguida ao padre Ióssif, todas as vozes prudentes se calaram. Como por uma espécie de acordo, todos aqueles que haviam amado o defunto e aceitado com terna submissão a instituição do “starietismo”, foram de súbito tomados de pavor e limitavam-se a trocar olhares tímidos quando se encontravam. Os inimigos do “starietismo”, a que consideravam novidade, erguiam altivamente a cabeça: “Não somente o padre Varsonófi não fedia, mas espalhava um odor suave”, recordavam eles com alegria maligna. “Seus méritos e não sua posição lhe tinham valido essa justificação.” Em seguida, a censura e até mesmo as acusações não foram poupadas contra o defunto: “Ensinava erradamente que a vida é uma grande alegria e não uma humilhação dolorosa”, diziam alguns entre os mais obtusos. “Cria segundo a nova moda, não admitia o fogo material no inferno”, acrescentavam outros ainda mais obtusos. “Não jejuava rigorosamente, permitia-se o uso de doces, comia mesmo docinhos de cereja com chá, de que gostava muito e que lhe eram enviados pelas senhoras. Convém a um asceta beber chá?”, diziam outros invejosos. “Pontificava cheio de orgulho — lembravam com encarniçamento os mais malévolos —, acreditando-se um santo, ajoelhavam-se diante dele que aceitava isso como coisa devida.” “Abusava do sacramento da confissão”, cochichavam malignamente os mais fogosos adversários do “starietismo” e, entre eles, religiosos idosos, de uma devoção rigorosa, verdadeiros jejuadores taciturnos, que haviam guardado silêncio durante a vida do defunto, mas abriam agora a boca, coisa deplorável, porque suas palavras influíam fortemente sobre os jovens religiosos, ainda hesitantes. O monge de São Silvestre, vindo de Obdorsk, era todo ouvidos, suspirava profundamente, abanava a cabeça: “O padre Fierapont tinha razão ontem”, pensava ele consigo, e justamente naquele momento apareceu ele, como para redobrar a confusão.

Já dissemos que ele raramente deixava sua cela de madeira no apiário, ficava mesmo muito tempo sem ir à igreja, e que não ligavam a essas fantasias atribuídas à sua maluquice, desobrigando-o do regulamento. Mas, para falar toda a verdade, viam-se seus superiores obrigados a mostrar-se tolerantes para com ele. Porque teriam escrúpulo em impor formalmente a regra comum a tão grande jejuador, e taciturno, que rezava dia e noite, adormecendo mesmo de joelhos. “E mais santo que nós todos e suas austeridades ultrapassam a regra”, teriam dito então os religiosos; “se não vai à igreja, sabe ele mesmo quando é preciso ir, segue sua própria regra”. Era para evitar esses murmúrios prováveis e o escândalo que se deixava em paz o padre Fierapont. Como todos o sabiam, sentia ele verdadeira aversão pelo padre Zósima e, de repente, soube em sua cela que “o julgamento de Deus não era o dos homens e havia-se adiantado à natureza”. Pode-se crer que o monge de Obdorsk, que voltara cheio de medo de sua visita da véspera, tivesse sido um dos primeiros a correr para dar-lhe a notícia. Mencionei também que o padre Paísi, que lia impassível o Evangelho diante do ataúde, sem ver nem ouvir o que se passava lá fora, havia, no entanto, pressentido o essencial, porque conhecia a fundo o seu meio. Não estava perturbado e, pronto para qualquer eventualidade, observava com um olhar penetrante a agitação cujo resultado já previa. De repente, um rumor insólito e inconveniente no vestíbulo, feriu-lhe os ouvidos. A porta escancarou-se, e o padre Fierapont apareceu no limiar.

Da cela, distinguiam-se nitidamente numerosos monges que o tinham acompanhado e se comprimiam no pé do patamar e entre eles leigos. No entanto, não entraram, mas esperaram o que diria e faria o padre Fierapont, porque previam, não sem temor, malgrado sua ousadia, que, por algum motivo comparecera ele ali. Parando no limiar, o padre Fierapont ergueu as mãos, e, por baixo de seu braço direito assomaram os olhos agudos e curiosos do visitante de Obdorsk, incapaz de conter-se, tendo subido sozinho atrás dele por causa de sua extrema curiosidade. Os outros, uma vez que a porta se abriu com estrondo, recuaram, pelo contrário, presas dum medo súbito. De braços erguidos, o padre Fierapont vociferou:

— Eu afugento os demônios! — E pôs-se logo, voltando-se sucessivamente para os quatro cantos da cela, a fazer o sinal da cruz. Os que o acompanhavam compreenderam imediatamente o sentido de seu ato, sabendo que não importa aonde ele fosse, antes de sentar-se e de falar, exorcismava o maligno.

— Fora daqui, Satanás, fora daqui! — repetia ele a cada sinal da cruz. — Afugento os demônios! — vociferou de novo. Sua batina grosseira estava cingida por uma corda, sua camisa de cânhamo deixava ver seu peito cabeludo. Tinha os pés inteiramente nus. Assim que agitou os braços, ouviu-se o tinir das pesadas correntes que trazia sob o hábito. O padre Paísi parou de ler, adiantou-se e ficou diante dele na expectativa.

— Por que vieste, reverendo padre? Por que perturbar a ordem? Por que escandalizar o rebanho humilde? — proferiu ele afinal, olhando-o com severidade.

— Por que vim? Que perguntas tu? Que crês tu? — gritou o padre Fierapont com ar desvairado. — Vim afugentar vossos hóspedes, os demônios impuros. Verei se vós abrigastes muitos na minha ausência. Quero varrê-los daqui.

— Afugentas o maligno e talvez tu mesmo o sirvas — prosseguiu intrepidamente o padre Paísi —, e quem pode dizer de si mesmo: “Sou santo”? És tu, meu padre?

— Sou manchado e não santo. Não me sento numa cadeira e não quero ser adorado como um ídolo! — trovejou o padre Fierapont. — Agora, os homens arruínam a santa fé. O defunto, vosso santo — e voltou-se para a multidão, apontando com o dedo o caixão —, rejeitava os demônios. Dava uma droga contra eles. E ei-los que pululam em vossa casa, como as aranhas nos cantos. Agora, ele próprio fede. Vemos nisso uma séria advertência do Senhor.

Era uma alusão a um fato real. O maligno aparecera a um dos religiosos, a princípio em sonho, depois em estado de vigília. Apavorado, relatou a coisa ao stáriets Zósima, que lhe prescreveu um jejum rigoroso e orações fervorosas. Como nada desse jeito, aconselhou-o a tomar um remédio, sem renunciar às práticas piedosas. Muitos então ficaram chocados e discorriam entre si, abanando a cabeça, sobretudo o padre Fierapont, ao qual certos detratores se tinham apressado em ir contar aquela prescrição “insólita” do stáriets.

— Vá embora, padre! — disse imperiosamente o padre Paísi. — Não cabe aos homens julgar, mas a Deus. Talvez vejamos aqui uma “advertência” que ninguém é capaz de compreender, nem tu nem eu. Vá embora, padre, e não escandalizes o rebanho! — repetiu ele num tom firme.

— Não observava ele o jejum prescrito aos professos, eis donde vem essa advertência. Isso é claro, é um pecado dissimulá-lo! — prosseguiu o fanático, deixando-se arrebatar por seu zelo extravagante. — Adorava os bombons que as senhoras lhe traziam nos bolsos; sacrificava seu ventre, enchia-se de doçuras, nutria seu espírito de pensamentos arrogantes... De modo que está sofrendo essa ignomínia...

— Tuas palavras são fúteis, padre. Admiro teu jejum e teu ascetismo, mas tuas palavras são fúteis, tais como as que pronunciaria no mundo um rapazola inconstante e estouvado. Vá, padre, ordeno-te! — concluiu o padre Paísi, com voz trovejante.

— Ir-me-ei! — proferiu o padre Fierapont, como que desconcertado, mas sempre cheio de cólera. — Vós vos orgulhais de vossa ciência diante de minha nulidade. Cheguei aqui pouco instruído, aqui esqueci o que sabia, o Senhor mesmo me preservou, a mim, mesquinho que sou, de vossa grande sabedoria...

Imóvel diante dele, o padre Paísi esperava com firmeza.

O padre Fierapont calou-se alguns instantes e, de súbito, ensombreceu-se, levou a mão direita à face, e pronunciou com voz arrastada, olhando o caixão do stáriets:

— Amanhã cantar-se-á para ele: “Ajuda e Protetor”, hino glorioso, e para mim, quando eu arrebentar, apenas: “Que vida bem-aventurada”,[ 107 ] medíocre versículo — disse ele, num tom de pesar. — Vós vos orgulhastes e inchastes, este lugar está deserto! — berrou ele, como um insensato, e, agitando os braços, voltou-se rapidamente e desceu à pressa os degraus do patamar. A multidão que o esperava hesitou; alguns o seguiram imediatamente, outros demoraram, porque a cela continuava aberta e o padre Paísi, que saíra para o patamar, observava, imóvel. Mas o velho fanático não acabara: a vinte passos, voltou-se para o sol poente, ergueu os braços no ar e — como que ceifado — desabou no chão, gritando:

— Meu Senhor venceu! O Cristo venceu o sol poente! — urrava ele como um possesso, os braços estendidos para o sol e caído com o rosto contra o chão; chorava como uma criancinha, sacudido pelos soluços, afastando os braços na terra. Todos então lançaram-se para ele, repercutiram exclamações, soluços... Uma espécie de delírio apoderara-se de todos eles.

— Eis um santo! Eis um justo! — exclamava-se sem temor. — Merece ser stáriets — acrescentavam outros com arrebatamento.

— Ele não quererá ser stáriets... ele próprio recusará... não servirá a essa novidade maldita... não irá imitar as loucuras deles — continuaram outras vozes.

É difícil imaginar o que teria acontecido, mas justamente naquele momento o sino tocou chamando ao serviço divino. Todos se benzeram. O Padre Fierapont levantou-se e fez o mesmo, depois dirigiu-se para sua cela sem se voltar, pronunciando palavras incoerentes. Pequeno número de pessoas o seguiu, mas a maior parte se dispersou, com pressa de ir à cerimônia. O padre Paísi cedeu o lugar ao padre Ióssif e saiu. Os clamores dos fanáticos não podiam abalá-lo, mas sentiu de súbito uma tristeza e uma angústia singulares invadirem-lhe o coração. Perguntou a si mesmo donde lhe vinha essa tristeza que chegava até o abatimento e compreendeu que provinha, ao que parecia, duma causa insignificante. O fato é que, na multidão que se apertava à entrada da cela, avistara Aliócha entre os agitados e lembrava-se de ter experimentado então uma espécie de sofrimento. “Esse rapaz manteria agora tal lugar em meu coração?”, perguntou a si mesmo, com surpresa. Naquele instante, passou Aliócha ao lado dele, apressando-se não se sabe para onde, mas não para a igreja. Seus olhares encontraram-se. Aliócha desviou os olhos e baixou-os; somente por seu aspecto adivinhou o padre Paísi a profunda mudança que se operava nele naquele momento.

— Foste também seduzido!? — exclamou o padre Paísi. — Estarias também com as pessoas de pouca fé? — acrescentou, tristemente.

Aliócha parou, olhou-o vagamente, depois de novo desviou os olhos e baixou-os. Mantinha-se de lado, sem encarar seu interlocutor. O padre Paísi observava-o atentamente.

— Aonde vais tão depressa? Tocam para o ofício — disse ele ainda, mas Aliócha não respondeu.

— Deixarias o eremitério sem autorização, sem receber a bênção?

De repente Aliócha sorriu constrangidamente, lançou um olhar dos mais estranhos ao padre Paísi, que o interrogava, aquele padre ao qual o confiara, antes de morrer, seu antigo diretor, o mestre de seu coração e de seu espírito, seu stáriets bem-amado; depois, sempre sem responder, agitou a mão como se já nem cuidasse do respeito devido e dirigiu-se a passos rápidos para a saída do eremitério.

— Tu voltarás! — murmurou o padre Paísi, acompanhando-o com os olhos e com dolorosa surpresa.

 

II


Momento crítico


O padre Paísi não se enganava ao decidir que seu “caro rapaz” voltaria; talvez mesmo compreendera, senão totalmente, pelo menos com sagacidade, o verdadeiro estado d’alma de Aliócha. Não obstante, confesso que me seria agora muito difícil definir exatamente aquele momento estranho da vida do jovem e simpático herói de minha narrativa. A pergunta entristecida que o padre Paísi fazia a Aliócha: “Estarias também com as pessoas de pouca fé?”, poderia eu decerto responder com firmeza em lugar dele: “Não, não está com elas.” Mais ainda, era até muito pelo contrário: sua perturbação provinha precisamente de sua fé ardente. Existia, contudo, essa perturbação, e tão dolorosa que, mesmo muito tempo depois, considerava Aliócha aquele triste dia como um dos mais penosos e dos mais funestos de sua vida. Se se pergunta: “É possível que experimentasse ele tanta angústia e agitação unicamente porque o corpo de seu stáriets, em lugar de operar milagres, se havia, pelo contrário, rapidamente decomposto?”, responderei sem rebuços: “Sim, é bem isso.” Rogarei todavia ao leitor que não se apresse em rir da simplicidade de meu rapaz. Não somente não tenho a intenção de pedir perdão por ele, ou de desculpar e de justificar sua fé ingênua atribuindo-a à sua juventude, por exemplo, ou aos fracos progressos realizados em seus estudos, etc., mas declaro, pelo contrário, sentir sincero respeito pela natureza de seu coração. Seguramente, outro rapaz, acolhendo com reserva as impressões do coração, morno e não ardente em suas afeições, leal, mas de espírito por demais judicioso para sua idade, tal rapaz, digo eu, teria evitado o que aconteceu ao meu; mas, em certos casos, é mais honroso ceder por inteiro ao impulso, ainda que pouco sensato, provocado por um grande amor, que a ele resistir. Com mais forte razão na juventude, porque um rapaz constantemente judicioso é suspeito e não vale grande coisa, eis minha opinião! “Mas — dirão talvez as pessoas sensatas — todo rapaz não pode crer em tal preconceito e o vosso não é um modelo para os outros.” Ao que responderei: “Sim, meu rapaz acreditava com fervor, totalmente, mas não pedirei perdão para ele.”

Muito embora haja eu declarado mais acima (talvez com demasiada pressa) não querer desculpar nem justificar meu herói, vejo que uma explicação é necessária para a compreensão ulterior da narrativa. Não se tratava aqui de esperar milagres com uma impaciência frívola. E não é para o triunfo de certas convicções que Aliócha tinha então necessidade de milagres, nem pelo que alguma ideia preconcebida sobre alguma outra, de maneira alguma; antes de tudo, no primeiro plano, surgia diante dele uma figura que absorvia tudo, a figura de seu stáriets bem-amado, do justo a quem tanto venerava. Era sobre ele, sobre ele só, que se concentrava por vezes, pelo menos em seus mais vivos impulsos, todo o amor que ele trazia em seu jovem coração “por todos e por tudo”, agora e no ano anterior. Na verdade, aquele ser encarnava desde tanto tempo a seus olhos o ideal absoluto, que a ele aspirava com todas as forças de sua juventude, exclusivamente, até a esquecer, por momentos “todos e tudo”. (Lembrou-se mais tarde de ter completamente esquecido, naquele penoso dia, seu irmão Dimítri, com o qual tanto se preocupava na véspera; esquecera-se também de levar os duzentos rublos ao pai de Iliúcha, como prometera a si mesmo fazê-lo.) Não era de milagres que necessitava, mas somente da justiça suprema, violada a seus olhos, o que o magoava profundamente. Que importava que aquela justiça esperada por Aliócha tomasse pela força das coisas a forma de milagres operados imediatamente pelos despojos de seu antigo diretor a quem adorava? Era o que pensava e esperava todo mundo, no mosteiro, mesmo aqueles diante dos quais ele se inclinava, o padre Paísi, por exemplo; Aliócha, sem se deixar perturbar pela dúvida, pensava da mesma maneira que eles. Um ano inteiro de vida monástica o havia preparado para isso, seu coração estava acostumado àquela expectativa. Mas tinha sede de justiça e não somente de milagres! E aquele que deveria ter sido, segundo sua esperança, elevado acima de todos, achava-se rebaixado e coberto de vergonha! Por que isso? Quem era juiz? Essas questões atormentavam seu coração inocente. Fora ofendido e ficara mesmo irritado por ver o justo entre os justos entregue às zombarias malévolas da multidão frívola, tão inferior a ele. Que nenhum milagre se houvesse realizado, que a expectativa geral tivesse sido iludida, ainda passava! Mas por que aquele opróbrio, aquela decomposição apressada que “se adiantava à natureza”, como diziam os monges malévolos? Por que aquela “advertência” com que triunfavam em companhia do padre Fierapont, por que se criam autorizados a isso? Onde estava, pois, a Providência? Com que fim se havia Ela retirado “no momento decisivo” (pensava Aliócha), parecendo submeter-se às leis cegas e impiedosas da natureza?

De modo que o coração de Aliócha sangrava; como já o dissemos, tratava-se do ser a quem ele mais amava no mundo e que ficara “coberto de ignomínia e de infâmia!”. Queixas fúteis e insensatas, mas, repito-o pela terceira vez (e talvez com frivolidade, concordo): causa-me satisfação não se ter meu rapaz mostrado discreto em semelhante momento, porque a discrição vem sempre a seu tempo, quando não se é tolo; ao passo que se num momento como aquele não tivesse havido amor no coração do rapaz, quando teria havido? É preciso mencionar, no entanto, um fenômeno estranho, mas passageiro, que se manifestou no espírito de Aliócha naquele instante crítico. Era, a intervalos, uma impressão dolorosa resultante da conversa da véspera com seu irmão Ivan, que o obsedava agora. Não que suas crenças fundamentais estivessem de algum modo abaladas: amava seu Deus e Nele cria firmemente, se bem que houvesse murmurado subitamente contra Ele. No entanto, uma impressão confusa, mas penosa e má, proveniente daquela conversa, surgiu em sua alma, tendendo a impor-se cada vez mais. Ao cair da noite, Rakítin, que atravessava o bosque de pinheiros para ir ao mosteiro, avistou Aliócha, estendido sob uma árvore, o rosto contra a terra, imóvel e parecendo dormir. Aproximou-se e interpelou-o.

— És tu, Alieksiêi? Será possível que tu... — proferiu ele, admirado, mas não terminou. Queria dizer: “Será possível que hajas chegado a esse ponto?” Aliócha não voltou a cabeça, mas, segundo um movimento que ele fez, adivinhou Rakítin que ele o ouvia e compreendia.

— Que tens afinal? — prosseguiu ele, surpreso, mas um sorriso irônico aparecia já em seus lábios. — Escuta, procuro-te há mais de duas horas. Desapareceste de repente. Que fazes, pois, aqui? Olha-me, pelo menos!

Aliócha ergueu a cabeça, sentou-se, encostando-se à árvore. Não chorava, mas seu rosto exprimia o sofrimento. Lia-se a irritação nos olhos. Aliás, não olhava Rakítin, mas para o lado.

— Mas não tens mais o mesmo rosto! Tua famosa doçura desapareceu. Zangaste-te contra alguém? Ofenderam-te?

— Deixa-me! — disse de súbito Aliócha, sem olhá-lo, com um gesto de lassidão.

— Oh! Oh, eis como estamos! Um anjo, gritar como os simples mortais! Ora essa, Aliócha, francamente, tu me surpreendes, a mim que de nada me espanto. Acreditava que fosses um homem instruído.

Aliócha olhou para ele afinal, mas com um ar distraído, como se o compreendesse mal.

— E tudo isso porque o teu velho cheira mal! Acreditavas seriamente que ele ia fazer milagres? — exclamou Rakítin, com sincero espanto.

— Acreditei-o, acredito-o, quero acreditá-lo sempre! Que precisas mais? — perguntou Aliócha, com irritação.

— Nada absolutamente, meu caro. Que diabo, os escolares de 13 anos não creem mais nisso! Então, tu te zangaste, eis-te agora revoltado contra Deus: nada de pagamento, nada de condecoração! Que miséria!

Aliócha olhou-o longamente, com os olhos semicerrados, um clarão passou neles... mas não era de cólera contra Rakítin.

— Não me revolto contra meu Deus, apenas não aceito Seu Universo — disse ele, com um sorriso constrangido.

— Como, não aceitas o Universo? — e Rakítin refletiu um instante. — Que trapalhada é essa?

Aliócha não respondeu.

— Deixemos essas bagatelas; ao fato! Comeste hoje?

— Não me lembro... Creio que sim.

— Deves restaurar-te, tens ar de esgotamento, faz pena ver. Não dormiste esta noite, ao que parece, tiveste uma sessão. Em seguida toda essa barafunda, essas palhaçadas. Com certeza não te empanturraste senão de pão bento. Tenho no bolso um salsichão que trouxe ainda há pouco da cidade, por prevenção, mas não haverias de querer...

— Dá-me.

— Ah! Ah! Então, é a revolta franca, as barricadas! Pois bem, irmão, não percamos tempo. Vem à minha casa... Beberei de boa vontade vodca, estou fatigadíssimo. A vodca, decerto, não te tenta... Gostarias?

— Dá-me vodca também.

— Ah, bravo! É curioso! — exclamou Rakítin, lançando-lhe um olhar estupefato. — Seja como for, vodca ou salsichão não são de desdenhar, vamos!

Aliócha levantou-se sem dizer palavra e seguiu Rakítin.

— Se teu irmão Ivan Fiódorovitch te visse, ele é quem ficaria surpreendido! A propósito, sabes que ele partiu esta manhã para Moscou?

— Sei — disse Aliócha, com indiferença. De repente, a imagem de Dimítri apareceu-lhe, um instante apenas; lembrou-se vagamente de um negócio urgente, de um dever imperioso a cumprir, mas essa recordação não lhe causou nenhuma impressão, não chegou até seu coração, apagou-se logo de sua memória. Mais tarde, lembrou-se disso por muito tempo.

— Teu irmão Vânia chamou-me uma vez de palerma liberal. Tu mesmo me deste um dia a entender que eu era desonesto... Pois seja. Vão ser vistas agora vossas capacidades e vossa honestidade (isso Rakítin cochichou para si mesmo). Escuta — continuou ele em voz alta —, evitemos o mosteiro, a vereda nos leva diretamente à cidade... Hum! Devo passar em casa da Khokhlakova. Escrevi-lhe a respeito dos acontecimentos e imagina que ela me respondeu por um bilhete a lápis (adora escrever, essa dona) que “não teria jamais esperado semelhante conduta da parte de um stáriets tão respeitável como o padre Zósima!”. Sic. Ela também zangou-se. Sois todos iguais! Espera!

Parou bruscamente e, com a mão sobre o ombro de Aliócha, reteve-o, dizendo:

— Sabes, Aliócha? — Olhava-o bem dentro dos olhos, sob a impressão de uma ideia súbita que temia visivelmente formular, malgrado seu ar zombeteiro, tanta dificuldade tinha em crer nas novas disposições de Aliócha. — Sabes aonde faríamos bem em ir? — disse, num tom insinuante.

— Aonde queiras... tanto faz.

— Vamos à casa de Grúchenhka, hein? Queres? — disse por fim Rakítin, todo tremente de expectativa.

— Vamos — respondeu tranquilamente Aliócha. Rakítin esperava tão pouco esse pronto consentimento que quase deu um salto para trás.

— Até que enfim! — ia ele exclamar, mas agarrou Aliócha pelo braço e arrastou-o rapidamente, temendo vê-lo mudar de opinião. Caminhavam em silêncio. Rakítin tinha medo de falar.

— Como ficará ela contente!... — quis ele dizer, mas calou-se. Não era decerto para fazer prazer a Grúchenhka que lhe levava Aliócha; um homem sério como ele só agia por interesse. Tinha um duplo fim: vingar-se em primeiro lugar, contemplar “a ignomínia do justo” e a “queda” provável de Aliócha, “de santo tornado pecador”, do que se rejubilava de antemão; além disso, tinha em vista uma vantagem material de que se tratará mais longe.

“Eis uma ocasião que é preciso agarrar pelos cabelos”, pensava ele com uma alegria maligna.

 

III


A cebola


Grúchenhka morava no bairro mais animado, perto da praça da igreja, em casa da viúva do comerciante Morózov, onde ocupava no pátio um pequeno pavilhão de madeira. A casa Morózova,[ 108 ] de pedra, de dois andares, era velha e feia. A proprietária, mulher idosa, vivia ali sozinha com duas sobrinhas, solteironas. Não tinha necessidade de alugar seu pavilhão, mas sabia-se que admitira Grúchenhka como locatária (quatro anos antes) unicamente para comprazer seu parente, o comerciante Samsónov, protetor declarado de Grúchenhka. Dizia-se que o velho ciumento, instalando em casa dela sua “favorita”, contava com a vigilância da velha para fiscalizar a conduta de sua locatária. Mas essa vigilância tornou-se em breve inútil, de sorte que a senhora Morózova só via raramente Grúchenhka e cessara de importuná-la espionando-a. Na verdade, quatro anos já haviam decorrido desde que o velho trouxera da sede do distrito aquela jovem de 18 anos, tímida, acanhada, franzina, magra, pensativa e triste, e muita água havia passado sob as pontes. Não se sabia nada de preciso sobre ela em nossa cidade e nada mais se soube depois, mesmo quando muitos começaram a interessar-se pela beleza perfeita que se tornara, em quatro anos, Agrafiena Alieksándrovna. Contava-se que, aos 17 anos, fora seduzida por um oficial que logo a abandonara. Partira para casar-se, deixando Grúchenhka na ignomínia e na miséria. Dizia-se, aliás, que, apesar de tudo, provinha Grúchenhka de uma família honrada e dum meio eclesiástico, sendo filha de um diácono em disponibilidade, ou algo parecido. Em quatro anos, a órfã sensível, desgraçada, franzina tornara-se viçosa, rosada, uma beleza russa de caráter enérgico, orgulhosa, impudente, hábil em manejar o dinheiro e em adquirir, avara e avisada, que soubera, honestamente ou não, amontoar certo capital. Uma única coisa não deixava dúvida alguma: é que Grúchenhka era inacessível e, exceto o velho, seu protetor, ninguém, durante quatro anos, pudera vangloriar-se de ter-lhe conquistado os favores. O fato era certo, porque muitos suspirantes se haviam apresentado, sobretudo nos dois últimos anos. Mas todas as tentativas fracassaram e alguns tiveram de bater em retirada, cobertos de ridículo, graças à resistência daquela jovem criatura de caráter enérgico. Sabia-se ainda que ela se ocupava com negócios, sobretudo desde um ano, e manifestava nisso capacidades notáveis, tanto que muitos tinham acabado por chamá-la de judia. Não que emprestasse com usura, mas sabia-se, por exemplo, que, em companhia de Fiódor Pávlovitch Karamázov, resgatara, durante algum tempo, promissórias a preço vil, pelo décimo do valor, conseguindo recuperar em seguida, em certos casos, a totalidade da dívida. O velho Samsónov, cujos pés inchados não o transportavam mais havia um ano, viúvo que tiranizava os filhos maiores, capitalista duma avareza impiedosa, caíra, no entanto, sob a influência de sua protegida, a quem no começo tratara com mesquinharia, a pão e laranja, a “óleo de semente de cânhamo”, como diziam os zombadores. Mas Grúchenhka soubera emancipar-se, ao mesmo tempo que lhe inspirava uma confiança sem limites quanto à sua fidelidade. Aquele velho, grande homem de negócios, tinha também um caráter notável: avaro e duro como pedra, se bem que Grúchenhka o tivesse subjugado a ponto de não poder ele passar sem ela, não chegou a conceder-lhe capitais importantes e, mesmo se ela o houvesse ameaçado de abandoná-lo, teria ficado inflexível. Em compensação, reservou-lhe certa soma, e, quando se soube disso, foi motivo de espanto para todo mundo. “Tu não és tola — disse ele, dando-lhe oito mil rublos —, opera tu mesma, mas fica sabendo que fora de tua pensão anual, como antes, não receberás nada mais até minha morte e que não te deixarei nada em testamento.” Manteve a palavra e seus filhos, que sempre mantivera em sua casa como criados com as mulheres e os filhos, herdaram tudo; Grúchenhka nem mesmo mencionada foi no testamento. Com seus conselhos sobre a maneira de fazer valer seu capital, ajudou-a ele notavelmente e indicou-lhe “negócios”. Quando Fiódor Pávlovitch Karamázov, que entrou em relações com Grúchenhka, a propósito duma operação “fortuita”, acabou ficando apaixonado por ela a ponto de perder a razão. O velho Samsónov, que já estava com um pé na sepultura, divertiu-se muito. É de notar que Grúchenhka foi, durante todo o tempo de suas relações com o velho, plena e até cordialmente sincera para com ele, e isso, ao que parece, não o fora com nenhum outro homem do mundo. Mas, quando Dimítri Fiódorovitch entrou na fila, o velho cessou de rir: “Se for preciso escolher entre os dois — disse-lhe ele, uma vez, seriamente —, escolhe o pai, mas com a condição de que o velho patife case contigo e te consigne antecipadamente certo capital. Não te ligues com o capitão, não tirarás disso nenhum proveito.” Assim falou o velho libertino, pressentindo seu fim próximo: morreu, com efeito, cinco meses depois. Seja dito de passagem, se bem que na cidade a rivalidade absurda e chocante dos Karamázov, pai e filho, fosse conhecida há muito, que as verdadeiras relações de Grúchenhka com cada um deles permaneciam ignoradas da maior parte. Até mesmo as criadas (após o drama de que falaremos) testemunharam em justiça que Agrafiena Alieksándrovna recebia Dimítri Fiódorovitch unicamente por temor, porque ameaçara matá-la. Tinha duas criadas, uma cozinheira bastante idosa, há muito tempo a serviço da família, doente e quase surda, e sua neta, esperta, arrumadeira de vinte anos de idade. Grúchenhka vivia muito parcamente, num interior dos mais modestos, três peças mobiliadas de acaju pela proprietária, no estilo de 1820. À chegada de Rakítin e Aliócha, era já noite, mas ainda não haviam acendido as luzes. A jovem mulher estava estendida no salão, sobre seu divã de espaldar de acaju, duro e recoberto de couro, já usado e furado, com a cabeça apoiada em dois travesseiros. Repousava de costas, imóvel, com as mãos atrás da cabeça, trajava um vestido de seda preta, com um toucado de renda que lhe assentava admiravelmente; nos ombros, um fichu preso por um broche de ouro maciço. Esperava alguém, inquieta e impaciente, a tez pálida, os lábios e os olhos ardentes, com o pezinho a bater compassadamente no braço do divã. Ao rumor que fizeram os visitantes ao entrar, saltou para o soalho, gritando com voz de terror: “Quem vem lá?” A arrumadeira apressou-se em tranquilizar a ama.

— Não é ele, não tenha medo.

“Que terá ela?”, murmurou Rakítin, levando Aliócha pelo braço para o salão. Grúchenhka continuava de pé, ainda mal reposta de seu terror. Uma grossa mecha dos cabelos castanhos, escapada de seu toucado, caía-lhe sobre o ombro esquerdo; ela, porém, não lhe deu atenção e só a arranjou quando reconheceu os visitantes.

— Ah! És tu, Rakitka? Causaste-me medo! Com quem estás? Meu Deus, eis quem me trazes! — exclamou ela, ao perceber Aliócha.

— Manda então acender a luz! — disse Rakítin, com o tom dum familiar que tem direito de mandar na casa.

— Decerto... Fiénia, traze-lhe uma vela... Achaste o momento azado para trazê-lo. — Fez um sinal com a cabeça a Aliócha e arranjou seus cabelos diante do espelho. Parecia descontente.

— Não te agrada isso? — perguntou Rakítin, com súbito ar de enfado.

— Causaste-me medo, Rakitka, eis tudo — e Grúchenhka voltou-se sorrindo para Aliócha. — Não tenhas medo de mim, meu caro Aliócha, estou encantada com tua visita inesperada. Pensava que era Mítia que queria entrar à força. Vês tu? Enganei-o ainda há pouco, jurou-me que acreditava em mim e menti-lhe. Disse-lhe que ia à casa de meu velho Kuzmá Kuzmitch fazer contas a noite toda. Vou lá, com efeito, uma vez por semana. Fechamo-nos a chave: ele cavaca suas contas, e eu escrevo nos livros. Ele só se fia em mim. Como foi que Fiénia deixou que vocês entrassem? Fiénia, corre ao portão, verifica se o capitão não anda rondando por perto! Está talvez escondido e nos espiona, tenho um medo terrível!

— Não há ninguém, Agrafiena Alieksándrovna. Olhei para todos os lados, vou espiar a cada instante pelas frestas, porque eu também tenho medo.

— Os postigos estão fechados, Fiénia, fecha as cortinas, senão ele verá a luz. Temo hoje teu irmão Mítia, Aliócha. — Grúchenhka falava muito alto, com ar inquieto e superexcitado.

— Por que o temes tanto hoje? — perguntou Rakítin. — Comumente, ele não te causa terror. Tu o fazes andar como bem entendes.

— Digo-te que espero uma notícia, de modo que Mítia seria aqui demais agora. Não acreditou que eu ia à casa de Kuzmá Kuzmitch, tenho essa impressão. Agora, deve estar montando guarda no jardim da casa de Fiódor Pávlovitch. Se está emboscado lá, não virá aqui, tanto melhor! Fui deveras à casa do velho e Mítia me acompanhava; fi-lo prometer ir procurar-me à meia-noite. Dez minutos depois, saí e corri até aqui, tremendo de medo de que ele me tornasse a encontrar.

— Por que estás tão bem-vestida? Tens um toucado bastante curioso.

— Tu mesmo é que és bastante curioso, Rakítin! Repito-te que estou esperando uma notícia. Assim que a receber, levantarei voo e vocês não me verão mais. Eis por que me preparei assim.

— E para onde levantarás voo?

— Se te perguntarem, dirás que não sabes de nada.

— Como está ela alegre!... Nunca te vi assim. Está enfeitada como quem vai a um baile! — admirou-se Rakítin, examinando-a.

— Estás ao corrente dos bailes?

— E tu?

— Eu vi um baile. Há três anos, quando Kuzmá Kuzmitch casou seu filho; eu olhava da tribuna. Mas por que conversarei contigo, quando tenho um príncipe como hóspede? Meu caro Aliócha, não quero crer em meus olhos; como aconteceu que viesses à minha casa? Na verdade, não te esperava, jamais acreditei que pudesses vir. O momento é mal escolhido, no entanto estou bem contente. Senta-te no divã, aqui, meu belo astro! Na verdade, ainda não voltei a mim... Rakitka, se o tivesses trazido ontem ou anteontem!... Pois bem, assim mesmo estou contente. Mais vale talvez agora, em tal minuto, que em outro dia...

Sentou-se vivamente ao lado de Aliócha, examinando-o, extasiada. Estava verdadeiramente contente e não mentia. Seus olhos brilhavam, sorria, mas com bondade. Aliócha não esperava ver nela uma expressão tão benévola... Fizera dela uma ideia aterrorizadora. Seu rompante pérfido contra Katierina Ivânovna havia-o transtornado na antevéspera, agora se espantava por vê-la tão mudada. Por mais acabrunhado que se sentisse pelo próprio pesar, examinava-a, malgrado seu, com atenção. Suas maneiras tinham melhorado, as entonações melífluas, a languidez dos movimentos tinham quase desaparecido... agora, simplicidade, gestos prontos, sinceros, mas via-se que estava superexcitada.

— Meu Deus, que coisas estranhas se passam hoje! Por que me sinto tão feliz por ver-te, Aliócha? Ignoro-o.

— É mesmo verdade? — perguntou Rakítin, sorrindo. — Antes, tinhas um fito ao insistir para que eu o trouxesse aqui.

— Sim, um fito que não existe mais agora, o momento passou. E agora vou tratar bem vocês. Tornei-me melhor agora, Rakitka. Senta-te também. Mas já o fizeste. Ele não se esquece. Vês tu, Aliócha? Está ressentido porque não o convidei em primeiro lugar para sentar-se. É muito suscetível, esse meu caro amigo. Não te zangues, Rakitka, sinto-me boa nesse momento. Por que estás tão triste, Aliócha? Terias medo de mim? — E Grúchenhka sorriu maliciosamente, olhando-o bem nos olhos.

— Tem um pesar. Uma recusa de posto.

— Que posto?

— O stáriets dele cheira mal.

— Como assim? Tagarelas, alguma vilania ainda, sem dúvida. Aliócha, deixa-me sentar-me em teus joelhos, assim. — E logo se instalou sobre os joelhos dele, risonha, tal como uma gata cariciosa, com o braço direito ternamente passado em redor do pescoço dele.

— Saberei bem fazer-te rir, meu gentil devoto! Na verdade, deixa-me sobre teus joelhos, isso não te causa zanga? Basta que o digas e me levantarei.

Aliócha calava-se. Não ousava mover-se, não respondendo às palavras ouvidas, como que inerte. Mas não experimentava o que podia imaginar Rakítin, por exemplo, que o observava com ar galhofeiro. Seu grande pesar absorvia as sensações possíveis e, se tivesse ele podido analisar-se naquele momento, teria compreendido que estava encouraçado contra as tentações. Não obstante, malgrado a inconsciência de seu estado e a tristeza que o acabrunhava, causava-lhe espanto uma sensação estranha: aquela mulher terrível não lhe inspirava mais aquele terror, inseparável em seu coração da ideia da mulher. Pelo contrário, instalada em seus joelhos e enlaçando-o, despertava nele um sentimento inesperado, uma extraordinária e cândida curiosidade, sem o menor pavor; eis o que o surpreendia a seu malgrado.

— Basta de tanta conversa sem nada dizer! — exclamou Rakítin. — Manda antes servir o champanha. Sabes que prometeste isso.

— É verdade, Aliócha, prometi-lhe antes de tudo champanha, se ele te trouxesse. Fiénia, traze a garrafa que Mítia deixou, despacha-te. Se bem que avarenta, darei uma garrafa, não para ti. Rakítin, não passas de um pobre-diabo, mas para ele. Embora não esteja disposta a isso, quero beber com vocês.

— Qual é afinal essa “notícia”? Pode-se saber, é segredo? — insistiu Rakítin, fingindo não notar o motejo lançado contra ele.

— Um segredo de que estás a par — disse Grúchenhka, com ar preocupado. — O meu oficial vai chegar, Rakítin.

— Ouvi dizer isso; mas está tão perto assim?

— Acha-se ele agora em Mókroie, donde me enviará um portador. Acabo de receber uma carta dele. Aguardo.

— Ora essa! Por que em Mókroie?

— Seria longo demais contá-lo. Chega.

— Mas então, Mítia está sabendo?

— Nem uma palavra. Senão me mataria. Aliás, não tenho mais medo dele agora. Cala-te, Rakitka; não quero ouvir mais falar disso. Causou-me ele muito mal. E não quero mais pensar nisso, prefiro pensar em Aliócha, olhá-lo... Sorri, pois, meu querido, desenruga o rosto, dar-me-ás prazer... Mas ele sorriu! Vê como me olha com olhar acariciante. Sabes, Aliócha, acreditava que me querias mal por causa da cena de ontem, em casa daquela senhorita. Fui grosseira... “No entanto, apesar de tudo, a coisa foi bem-sucedida. Esteve bem e esteve mal” — disse Grúchenhka, pensativamente, com um sorriso mau. — Mítia me contou que ela gritava: “É preciso chicoteá-la!” Ofendi-a gravemente. Atraiu-me à sua casa, querendo subjugar-me, seduzir-me com seu chocolate... Não, o que se passou, correu muito bem. — Sorriu de novo. — Somente, receio que te hajas zangado...

— Na verdade, Aliócha, ela tem medo de ti, de ti, o pintainho — interveio Rakítin, com real surpresa.

— Para ti, Rakítin, é que é ele um pintainho, porque não tens consciência. Eu o amo. Acreditas, Aliócha, amo-te de toda a minha alma.

— Ah, a desavergonhada! Faz-te uma declaração, Aliócha.

— E com isso? Amo-o.

— E o oficial? E a feliz notícia de Mókroie?

— Não é a mesma coisa.

— Eis a lógica das mulheres!

— Não me aborreças, Rakítin. Digo-te que não é a mesma coisa. Amo Aliócha de outra maneira. Na verdade, Aliócha, tive maus desígnios a teu respeito. Sou vil, sou violenta, mas, em certos momentos, olhava-te como minha consciência. Dizia a mim mesma: “Como deve ele desprezar-me agora!” Pensava assim antes de ontem, ao sair da casa daquela senhorita. Há muito tempo me chamaste a atenção, Aliócha; Mítia sabe-o, compreende-me. Acreditarias tu? Sou por vezes tomada de vergonha ao olhar-te. Como vim a pensar em ti e desde quando, ignoro-o.

Fiénia entrou, pousou sobre a mesa uma bandeja com uma garrafa desarrolhada e três copos cheios.

— Eis o champanha! — exclamou Rakítin. — Estás excitada, Agrafiena Alieksándrovna. Depois de beberes, por-te-ás a dançar. Que falta de habilidade! — acrescentou ele. — Já está vertida e morna, sem a rolha.

Nem por isso deixou de esvaziar seu copo dum trago e enchê-lo de novo.

— Ocasiões como esta são raras — observou, enxugando os lábios. — Vamos, Aliócha, pega teu copo e mostra-te corajoso. Mas, a que beberemos? Toma o teu, Grucha, e bebamos às portas do paraíso.

— Que queres dizer com isso?

Ela pegou um copo. Aliócha bebeu um bom gole do seu e depô-lo sobre a mesa.

— Não, prefiro abster-me — disse ele, com um doce sorriso.

— Ah, tu te gabavas! — gritou Rakítin.

— Eu também, então — disse Grúchenhka — Acaba a garrafa, Rakitka. Se Aliócha beber, beberei.

— Eis que começam as efusões! — zombeteou Rakítin. — E está sentada nos joelhos dele! Ele está pesaroso, convenho, mas tu, que tens tu? Ele está revoltado contra seu Deus, ia comer salsichão!

— Como assim?

— O stáriets dele morreu hoje, o velho Zósima, o santo.

— Ah! Morreu? Não sabia de nada. — Benzeu-se. — Meu Deus, e eu que estou sentada nos joelhos dele!

Levantou-se vivamente e sentou-se no divã. Aliócha olhou-a com surpresa e seu rosto iluminou-se.


— Rakítin — proferiu ele, num tom firme —, não me irrites dizendo que me revoltei contra meu Deus. Não tenho animosidade contra ti, sê, pois, melhor, tu também. Sofri uma perda inestimável e não podes julgar-me neste momento. Olha-a, viste sua mansuetude para comigo? Vim aqui para encontrar uma alma perversa, impelido por meus maus sentimentos; encontrei uma verdadeira irmã, uma alma amorosa, um tesouro... Agrafiena Alieksándrovna, é de ti que falo. Regeneraste minha alma.

Opresso, Aliócha calou-se, com os lábios trêmulos.

— Dir-se-ia que ela te salvou! — zombou Rakítin. — Mas sabes que ela queria comer-te?

— Basta, Rakitka! Calem-se ambos: tu, Aliócha, porque tuas palavras me causam vergonha. Acreditas que sou boa, mas sou má. Tu, Rakitka, porque mentes. Tinha-me proposto comer-te, mas é coisa do passado, isso. Que eu não te ouça mais falar assim, Rakitka! — Grúchenhka exprimira-se com viva emoção.

— Estão os dois com o diabo no corpo! — murmurou Rakítin, observando-os com surpresa. — Acreditaria a gente estar numa casa de saúde. Agora mesmo vão chorar, decerto!

— Sim, chorarei, sim, chorarei! — afirmou Grúchenhka. — Ele me chamou sua irmã, não o esquecerei jamais! Por pior que eu seja, Rakitka, dei, no entanto, uma cebola.

— Que cebola? Com os diabos, estão mesmo malucos, não há que ver!

A exaltação deles espantava Rakítin, que teria devido compreender que tudo concorria para agitá-los duma maneira excepcional. Mas Rakítin, sutil quando se tratava de si mesmo, destrinçava mal os sentimentos e as sensações de seu próximo, tanto por inexperiência juvenil como por egoísmo.

— Vês tu, Aliócha? — e Grúchenhka riu nervosamente. — Gabei-me a Rakítin de ter dado uma cebola. Vou explicar-te a coisa com toda a humildade. É apenas uma lenda. Matriona, a cozinheira, contava-me quando eu era menina: “Havia uma megera que morreu sem deixar atrás de si uma única virtude. Os diabos apoderaram-se dela e lançaram-na no lago de fogo. Seu anjo da guarda quebrava a cabeça para descobrir nela uma virtude e falar a respeito com Deus. Lembrou-se e disse ao Senhor: — ‘Ela arrancou uma cebola na horta para dá-la a um mendigo.’ — Deus respondeu-lhe: — ‘Pega essa cebola, entrega-a àquela mulher lá no lago para que nela se agarre. Se conseguires retirá-la de lá, irá ela para o paraíso; se a cebola se partir, ficará ela onde está.’ — O anjo correu à mulher e estendeu-lhe a cebola. — ‘Toma — disse ele —, segure-a bem.’ — Pôs-se a puxá-la com precaução e ela já estava quase saindo. Os outros pecadores, vendo que a retiravam do lago, agarraram-se a ela, querendo aproveitar a boa fortuna. Mas a mulher, que era muito má, dava-lhes pontapés: ‘É a mim que estão tirando e não a vocês. A cebola é minha e não de vocês.’ A essas palavras, a cebola se partiu. A mulher recaiu no lago onde está-se queimando até agora. O anjo partiu, chorando.” Eis essa lenda, Aliócha. Não acredites que eu seja boa, é bem o contrário. Teus elogios causar-me-iam vergonha. Desejava de tal modo tua vinda, que prometi 25 rublos a Rakítin, se ele te trouxesse. Um instante.

Foi abrir uma gaveta, pegou seu porta-moedas e dele retirou uma cédula de 25 rublos.

— É absurdo! — exclamou Rakítin, embaraçado.

— Toma, Rakitka, estou quite contigo. Não haverás de recusar, tu mesmo pediste. — E atirou-lhe a cédula.

— Como é isso? — replicou ele, visivelmente confuso, mas esforçando-se por ocultá-lo. — Tudo é lucro, os tolos existem no interesse das pessoas de espírito.

— E agora, cala-te, Rakitka. O que vou dizer não se dirige a ti. Tu não gostas de nós.

— E por que haveria eu de gostar de vocês? — disse ele, brutalmente. Contara ser pago sem que o soubesse Aliócha, cuja presença causava-lhe vergonha e irritava-o. Até então, por política, poupara Grúchenhka, malgrado suas palavras picantes, porque ela parecia dominá-lo. Mas a cólera tomava conta dele.

— Gosta-se em troca de alguma coisa. Que fizeram por mim todos dois?

— Ama em troca de nada, como Aliócha.

— Como te ama ele e que provas te deu disso? Por que todo esse alvoroço?

De pé no meio do salão, Grúchenhka falava com valor, com voz exaltada:

— Cala-te, Rakitka, não compreendes nada de nossos sentimentos. E cessa de tutear-me, proíbo-te. Donde te vem essa audácia? Senta-te num canto e nem mais uma palavra! Agora, Aliócha, vou confessar-me a ti somente, para que saibas o que sou. Queria perder-te, estava decidida a isso, a ponto de comprar Rakítin para que ele te trouxesse. E por que isso? Tu de nada sabias, desviavas-te de mim, passavas de olhos baixos. Eu interrogava as pessoas a teu respeito. Teu rosto me perseguia: “Ele me despreza — pensava eu — e nem mesmo quer olhar-me.” Por fim, perguntei a mim mesma com surpresa: “Por que temer esse rapazola? Eu o devorarei. Isso me divertirá.” Estava exasperada. Acredita-me, ninguém aqui ousaria faltar ao respeito a Agrafiena Alieksándrovna; não tenho senão aquele velho ao qual me vendi. Foi Satanás que nos uniu e ninguém mais. Havia, pois, decidido que serias minha presa, era um jogo para mim. Eis a detestável criatura que chamaste de irmã. Agora meu sedutor chegou, espero notícias. Sabes o que era ele para mim? Há cinco anos, quando Kuzmá Kuzmitch me trouxe para aqui, eu me ocultava por vezes para não ser vista, nem ouvida; como uma tola, soluçava, não dormia mais, dizendo a mim mesma: “Onde está ele, o monstro? Deve rir de mim com uma outra. Oh, como me vingarei, se algum dia o encontrar!” Na escuridão, soluçava em meu travesseiro, torturava meu coração de propósito: “Ele me pagará!”, exclamava eu. Ao pensar que era impotente, que ele zombava de mim, havia-me talvez completamente esquecido, deslizava de meu leito para o soalho, inundada de lágrimas, presa de uma crise de nervos. Passara a odiar todo mundo. Em seguida, formei um capital, endureci o coração, engordei. Pensas que me tornei mais sensata? Absolutamente. Ninguém o imagina, mas, quando chega a noite, acontece-me, como há cinco anos, ranger os dentes e chorar: “Hei de vingar-me! Hei de vingar-me!” Estás-me acompanhando? Então, que pensas disso? Há um mês recebo uma carta anunciando-me sua chegada. Ficou viúvo. Quer ver-me. Fiquei sufocada. Meu Deus, ele vai chegar e chamar-me, arrastar-me-ei para ele como um cão batido, como uma culpada! Não posso crer nisso eu mesma! “Terei ou não a baixeza de correr para ele?” E uma cólera contra mim mesma me dominou, nessas últimas semanas, mais violenta do que há cinco anos. Vês minha exasperação, Aliócha, confessei-me a ti. Mítia não passava de uma diversão. Cala-te, Rakitka, não te cabe julgar-me. Antes da chegada de vocês, eu esperava, pensava em meu futuro, e vocês jamais conhecerão meu estado d’alma. Aliócha, dize àquela senhorita que não me queira mal por causa da cena de anteontem!... Ninguém no mundo pode compreender o que sinto agora... Talvez leve uma faca, ainda não decidi.

Incapaz de conter-se, Grúchenhka interrompeu-se, cobriu o rosto com as mãos, deixou-se cair sobre o divã, soluçou como uma criança. Aliócha levantou-se e aproximou-se de Rakítin.

— Micha — disse ele —, ela te ofendeu, mas não te zangues. Ouviste-a? Não se pode exigir demais de uma alma, é preciso ter misericórdia.

Aliócha pronunciou suas palavras num impulso irresistível. Tinha necessidade de expandir-se e tê-las-ia dito mesmo que estivesse só. Mas Rakítin olhou-o ironicamente e Aliócha deteve-se.

— Estás com a cabeça cheia de teu stáriets e me bombardeias à sua maneira, Aliócha, homem de Deus — disse ele, com um sorriso odiento.

— Não zombes, Rakítin, não fales do morto, ele era superior a todos na terra — exclamou Aliócha, com lágrimas na voz. — Não é como juiz que te falo, mas como o derradeiro dos acusados. Que sou eu diante dela? Viera aqui para perder-me, por covardia. Ela, porém, após cinco anos de sofrimentos, por causa de uma palavra sincera que ouve, perdoa, esquece tudo, e chora! Seu sedutor voltou, chama-a, ela lhe perdoa e corre alegremente para ele. Porque ela não levará faca, não. Não sou assim, Micha, ignoro se o és. É uma lição para mim... Ela é superior a nós... Tinhas ouvido antes o que ela acaba de contar? Não, sem dúvida, porque terias compreendido tudo há muito tempo... Ela perdoará, também, aquela que foi ofendida anteontem, quando souber de tudo... Essa alma ainda não se reconciliou, é preciso poupá-la... oculta talvez um tesouro...

Aliócha calou-se, porque lhe faltava a respiração. Malgrado sua irritação, Rakítin olhava-o, espantado. Não esperava semelhante tirada do pacífico Aliócha.

— Aqui temo-lo, um advogado! Estarias apaixonado por ela? Agrafiena Alieksándrovna, viraste a cabeça de nosso asceta! — exclamou ele com uma risada impudente.

Grúchenhka ergueu a cabeça, sorriu docemente para Aliócha, com o rosto ainda cheio das lágrimas que acabava de derramar.

— Deixa-o, Aliócha, meu querubim, vês como ele é. Que adianta falar-lhe? Mikhail Óssipovitch, queria pedir-te perdão, mas agora desisto disso. Aliócha, vem sentar-te aqui (ela pegou-lhe a mão e olhava-o, radiante), dize-me, será que eu o amo, sim ou não, o meu sedutor? Perguntava-o a mim mesma, aqui, no escuro. Esclarece-me, chegou a hora, farei o que disseres. Será preciso perdoar?

— Mas já perdoaste.

— É verdade — disse Grúchenhka, pensativa. — Oh, o coração covarde! Vou beber à minha covardia. — Pegou um copo que esvaziou dum trago, depois atirou-o ao chão. Havia crueldade em seu sorriso.

— Talvez não tenha ainda perdoado — disse ela, com ar ameaçador, de olhos baixos, como que falando a si mesma. — Talvez meu coração pense somente em perdoar. Vês tu, Aliócha? São meus cinco anos de lágrimas o que eu amava, a ofensa que sofri, e não ele.

— Pois bem! Não gostaria de estar em sua pele — disse Rakítin.

— Mas jamais o estarás, Rakitka. Limparás meus sapatos. Será nisto que te empregarei. Uma mulher como eu não foi feita para ti... E talvez também não para ele...

— Então, por que tão bem-vestida?

— Não censures meu traje, Rakitka, não conheces meu coração! Se quiser, agora mesmo mudarei de vestido. Não sabes por que o vesti. Talvez vá dizer-lhe: “Jamais me viste tão bela?” Quando ele me deixou, era eu uma mocinha de 17 anos, magrela e chorona. Eu o acariciarei, excitá-lo-ei: “Vês o que me tornei? Então, meu caro, basta de conversa, isso põe-te água na boca, mas vai beber em outra parte!” Eis, Rakitka, para que servirá talvez este vestido. Estou arrebatada, Aliócha. Posso rasgar este vestido, desfigurar-me, sair a pedir esmola. Sou capaz de ficar em minha casa agora, de devolver a Kuzmá seu dinheiro, seus presentes e prestar serviço de diarista. Pensas que me faltaria coragem, Rakitka? Basta que me levem aos extremos... Quanto ao outro, eu o enxotarei, zombarei dele...

Proferindo estas derradeiras palavras como numa crise, cobriu o rosto com as mãos, lançou-se sobre as almofadas, soluçando de novo. Rakítin levantou-se.

— Está ficando tarde — disse ele —, não nos deixarão entrar no mosteiro.

Grúchenhka sobressaltou-se.

— Como, Aliócha, queres deixar-me!? — exclamou, com dolorosa surpresa. — Pensas fazê-lo? Transtornaste-me, e agora eis de novo a noite, a solidão!

— Ele não pode, entretanto, passar a noite em tua casa. Mas, se ele quiser, fique. Vou-me embora sozinho! — disse malignamente Rakítin.

— Cala-te, malvado! — gritou Grúchenhka, encolerizada. — Nunca me disseste semelhantes palavras!

— Que palavras?

— Não sei, nada de extraordinário, mas ele revirou-me o coração... O primeiro, o único que teve piedade de mim. Por que não vieste mais cedo, querubim? — E caiu de joelhos diante dele, como em êxtase. — Toda a minha vida, esperei alguém como tu, que me traria o perdão. Acreditei que me amariam por outro motivo que não apenas o de ser uma perdida...

— Que fiz eu por ti? — perguntou Aliócha, com um terno sorriso, inclinado sobre ela e tomando-lhe as mãos. — Dei uma cebola, a menor de todas, eis tudo!...

As lágrimas inundaram-lhe os olhos. Naquele momento, ouviu-se um rumor, alguém entrava no vestíbulo; Grúchenhka levantou-se aterrorizada. Fiénia irrompeu barulhentamente no quarto.

— Minha senhora, minha boa e querida senhora, o correio chegou! — exclamou ela alegremente, toda ofegante. — O tarantás chega de Mókroie, com o postilhão Timofiéi. Vão trocar de cavalos... Uma carta, senhora, eis aqui uma carta!

Brandia a carta, gritando. Grúchenhka apoderou-se dela, aproximou-a da vela. Era um bilhete de algumas linhas que leu num instante.

— Ele me chama! — Estava pálida, o rosto contraído por um sorriso mórbido. — Ele assobia para mim! Arrasta-te, cãozinho! — Mas ficou apenas um momento indecisa; de repente o sangue subiu-lhe ao rosto.

— Parto! Adeus, meus cinco anos! Adeus, Aliócha, a sorte está lançada... Afastem-se todos, vão-se embora, que eu não os veja mais! Grúchenhka voa para uma vida nova... Não me guardes rancor, Rakitka. É talvez para a morte que sigo! Oh, sinto-me como que embriagada!

Precipitou-se para o quarto de dormir.

— Agora não precisa mais de nós — resmungou Rakítin. — Vamos embora. Essa música poderia muito bem recomeçar; estou com os ouvidos mais que cheios...

Aliócha deixou-se levar maquinalmente.

No pátio, viam-se idas e vindas à luz duma lanterna; trocava-se a atrelagem de três cavalos. Mal os dois jovens tinham descido o patamar, abriu-se a janela do quarto de dormir e a voz de Grúchenhka elevou-se, sonora.

— Aliócha, saúda teu irmão Mítia, dize-lhe que não guarde uma má lembrança de mim. Repete-lhe minhas palavras: “Foi a um miserável que Grúchenhka se deu e não a ti, que és nobre!” Acrescenta que Grúchenhka o amou durante uma hora, nada mais que uma hora; que ele se recorde sempre dessa hora, doravante, é Grúchenhka quem lhe ordena... por toda a sua vida...

Acabou com soluços na voz. A janela tornou a fechar-se.

— Hum! — murmurou Rakítin rindo. — Ela estrangula Mítia e quer que ele se lembre disso por toda a vida. Que ferocidade!

Aliócha pareceu não ter ouvido. Caminhava rapidamente ao lado de Rakítin; tinha o ar apalermado. Rakítin teve de súbito a sensação de que lhe metiam um dedo numa chaga viva. Esperava outra coisa ao pôr Aliócha em presença de Grúchenhka e estava decepcionado.

— É o polonês, o tal oficial dela — prosseguiu ele, contendo-se. — Aliás, não é mais oficial agora, esteve servindo na alfândega na Sibéria, na fronteira chinesa. Deve ser um pobre-diabo. Dizem que perdeu o posto. Tendo sabido que Grúchenhka tem dinheiro, voltou; isso explica tudo.

De novo, Aliócha pareceu não ter ouvido. Rakítin não se conteve mais.

— Então, converteste uma pecadora? Puseste uma mulher de má vida no bom caminho? Expulsaste os demônios, hem? Ei-los, os milagres que esperávamos: realizaram-se!

— Para com isso, Rakítin! — disse Aliócha, de alma dolorida.

— Tu me desprezas agora por causa dos 25 rublos que recebi? Vendi um verdadeiro amigo. Mas tu não és o Cristo e eu não sou Judas.

— Rakítin, asseguro-te que não pensava mais nisso, és tu quem o recordas.

Mas Rakítin estava exasperado.

— Que o diabo leve vocês todos! — vociferou de repente. — Por que, diabo, liguei-me a ti? Doravante, não quero mais saber de ti. Vá sozinho, eis teu caminho.

Dobrou numa outra rua, deixando Aliócha sozinho ali, nas trevas. Aliócha saiu da cidade e voltou ao mosteiro pelos campos.

 

IV


As bodas de Caná


Era já muito tarde para a entrada no mosteiro, quando Aliócha chegou ao eremitério; o irmão porteiro introduziu-o por uma entrada particular. Tinham soado nove horas, a hora do repouso, após um dia tão agitado. Aliócha abriu timidamente a porta e penetrou na cela do stáriets, onde se encontrava agora seu ataúde. Não havia ninguém, exceto o padre Paísi, lendo o Evangelho diante do morto e o jovem noviço Porfíri, esgotado pela conversação da derradeira noite e pelas emoções do dia; dormia o profundo sono da mocidade, deitado no chão, na peça vizinha. O padre Paísi, que ouvira Aliócha entrar, nem mesmo voltou a cabeça. Aliócha ajoelhou-se num canto e pôs-se a rezar. Sua alma transbordava, mas suas sensações permaneciam confusas, uma afugentando a outra, numa espécie de movimento giratório uniforme. Coisa estranha, experimentava ele uma sensação de bem-estar e não se admirava disso. Contemplava de novo aquele morto que lhe era tão querido, mas a compaixão lacrimosa e dolorosa da manhã desaparecera. Ao entrar, caíra de joelhos diante do caixão como diante de um santuário e, no entanto, a alegria esplendia em sua alma. Um ar fresco entrava pela janela aberta. “O cheiro deve ter então aumentado, do contrário não se teriam decidido a abrir uma janela”, pensou Aliócha. Mas não se sentia mais angustiado, nem indignado por causa daquela ideia da corrupção. Pôs-se a rezar mansamente e, em breve, percebeu que o fazia quase maquinalmente. Fragmentos de ideias surgiam, tais como fogos-fátuos; em compensação, reinavam em sua alma uma certeza, um apaziguamento de que tinha consciência. Punha-se a rezar com fervor, cheio de reconhecimento e de amor... Em breve passava para outra coisa, esquecendo a oração e o que a interrompera. Prestou ouvidos à leitura do padre Paísi, mas acabou por dormitar, esgotado...

“Três dias depois celebraram-se umas bodas em Caná da Galileia; encontrava-se lá a Mãe de Jesus.”

“E foi também convidado Jesus com seus discípulos para as bodas.”[ 109 ]

— As bodas?... — Essa ideia turbilhonava no espírito de Aliócha. — Ela também é feliz... foi a um festim... Não, decerto, não levou faca... Era simplesmente uma palavra desagradável... Deve-se perdoar sempre as palavras desagradáveis. Consolam a alma... Sem elas a dor seria insuportável. Rakítin seguiu pelo beco. Enquanto pensar ele em seus agravos, seguirá sempre por um beco... Mas a estrada, a grande estrada reta, clara, cristalina, com o sol resplandecente, no final... Que é que se lê?

“... E faltando o vinho, a mãe de Jesus disse-lhe: ‘Não têm vinho’”, ouviu Aliócha.

— Ah! Sim, perdi o começo. É pena, gosto dessa passagem: as bodas de Caná, o primeiro milagre... Que belo milagre! Foi consagrado à alegria e não ao luto... “Quem ama os homens, ama também sua alegria.” O defunto repetia isto a cada instante, era uma de suas ideias principais. Não se pode viver sem alegria, disse Mítia... Tudo quanto é verdadeiro e belo respira sempre o perdão, dizia ele também.

“... E Jesus disse-lhe: ‘Mulher, que nos importa a mim e a ti isso? Ainda não chegou a minha hora.’”

“Disse sua mãe aos que serviam: ‘Fazei tudo o que ele vos disser.’”

Fazei... Dai alegria à gente muito pobre... Muito pobres, seguramente, pois que até mesmo em suas bodas o vinho faltou... Os historiadores contam que em torno do lago de Genesaré e na região estava então disseminada a população mais pobre que se possa imaginar... E sua mãe, de grande coração, sabia que ele não viera somente cumprir sua missão sublime, mas que partilhava a alegria ingênua das pessoas simples e ignorantes que o convidavam cordialmente para suas humildes bodas. “Minha hora ainda não chegou.” Fala com um doce sorriso (deve ter-lhe sorrido ternamente). Na realidade, pode dar se que tenha baixado à Terra para multiplicar o vinho em bodas de pobres? Mas fez o que ela lhe pedia...

“... Disse-lhes Jesus: ‘Enchei as talhas de água.’ E encheram-nas até em cima.”

“Então disse-lhes Jesus: ‘Tirai agora e levai ao mestre de cerimônias.’ E eles levaram.”

“E o mestre-sala, logo que provou a água convertida em vinho, como não sabia donde lhe viera aquele vinho, ainda que o soubessem os serventes, porque tinham tirado a água, chamou o esposo e disse-lhe:

“— Todo homem põe primeiro o bom vinho e, quando já o têm bebido bem, então apresenta o inferior; tu, ao contrário, tiveste o bom vinho guardado até agora.”

— Mas que acontece? Por que o quarto está oscilando? Ah! Sim... são as bodas, o casamento... decerto. Eis os convidados, os jovens esposos, a multidão alegre e... onde está então o prudente mestre de cerimônias? Que é isso? O quarto oscila de novo... Quem se levanta à grande mesa? Como... ele também está aqui? Mas estava em seu caixão... Levantou-se, viu-me, vem para cá... Meu Deus!...

Com efeito, ele aproximou-se, o velhinho seco, de rosto sulcado de rugas, rindo docemente. O caixão desapareceu, ele está vestido como ontem, em companhia deles, quando seus visitantes se reuniram. Seu rosto está descoberto, seus olhos brilham. Como pode ser isso, também ele no festim, também ele convidado para as bodas de Caná?

— Tu estás também convidado, meu querido, com todas as regras — disse sua voz tranquila. — Por que te escondes aqui, não te veem... Vem para junto de nós.

É sua voz, a voz do stáriets Zósima... Como não haveria de ser ele, pois está chamando? O stáriets toma a mão de Aliócha, que se levantou.

— Regozijemo-nos — prosseguiu o ancião —, bebamos o vinho novo, o vinho da grande alegria. Vês aqueles convidados? Eis o noivo e a noiva, eis o prudente mestre de cerimônias, prova o vinho novo. Por que estás surpreendido por ver-me? Dei uma cebola e eis-me aqui. Muitos dentre nós não deram senão uma cebola, uma bem pequena cebola... Que são nossas obras? E tu também, meu terno e manso rapaz, tu também soubeste hoje dar uma cebola a uma faminta. Começa tua obra, meu querido! Estás vendo o nosso Sol, tu O percebes?

— Tenho medo... não ouso olhar... — balbuciou Aliócha.

— Não tenhas medo d’Ele. Sua majestade é terrível. Sua grandeza nos esmaga, mas Sua misericórdia é sem limites; por amor fez-SE semelhante a nós e se rejubila conosco, muda a água em vinho, para não interromper a alegria dos convidados, aguarda outros, chama-os continuamente por todos os séculos dos séculos. E eis que trazem o vinho novo, vê os copos...

Algo ardia no coração de Aliócha, enchia-o até doer-lhe, lágrimas de alegria derramaram-se de sua alma... Estendeu os braços, lançou um grito, despertou...

De novo, o caixão, a janela aberta, e a leitura calma, grave, ritmada do Evangelho. Mas Aliócha não escutava mais. Coisa estranha, adormecera de joelhos e encontrava-se agora de pé. De súbito, como erguido de seu lugar, aproximou-se em três passos do ataúde, bateu mesmo com o ombro no padre Paísi sem dar-se conta disso. O padre ergueu os olhos, mas retomou logo a sua leitura, percebendo que o rapaz não se achava em seu estado normal. Aliócha contemplou um instante o caixão, o morto que estava dentro dele estendido, de rosto coberto, com o ícone no peito, o capuz encimado pela cruz de oito braços. Acabava de ouvir sua voz, ecoava ainda em seus ouvidos. Escutou ainda, esperou... de súbito voltou-se bruscamente e saiu da cela.

Desceu o patamar sem se deter. Sua alma exaltada tinha sede de liberdade, de espaço. Acima de sua cabeça, a abóbada celeste estendia-se até o infinito, as estrelas calmas cintilavam. Do zênite ao horizonte aparecia, indistinta ainda, a Via Láctea. A noite serena envolvia a terra. As torres brancas e as cúpulas douradas destacavam-se sobre o céu de safira. As opulentas flores de outono, em redor da casa, haviam adormecido até a manhã. A calma da terra parecia confundir-se com a dos céus, o mistério terrestre confinava com o das estrelas. Aliócha, imóvel, olhava; de súbito, como que ceifado, prosternou-se.

Ignorava por que estreitava a terra, não compreendia por que teria querido, irresistivelmente, abraçá-la toda inteira, mas abraçava-a chorando, inundando-a: com suas lágrimas, e prometia a si mesmo, com exaltação, amá-la sempre. “Rega a terra com lágrimas e alegria e ama-as...” Essas palavras repercutiam em sua alma. A respeito de que choraria? Oh! Em seu êxtase, chorava mesmo a respeito daquelas estrelas que cintilavam no infinito, e não se envergonhava daquela exaltação. Dir-se-ia que os filhos daqueles mundos inumeráveis convergiam em sua alma e que toda ela fremia, em contato com outros mundos. Teria querido perdoar, a todos e por tudo, e pedir perdão, não por ele, mas pelos outros e por tudo, “os outros o pedirão por mim”. Essas palavras também lhe vinham à memória. De mais a mais, sentia claramente e como que tangivelmente algo de firme e de inabalável penetrar em sua alma. Uma ideia apoderava-se de seu espírito, por toda a vida e para sempre. Havia-se prosternado, fraco adolescente e reergueu-se lutador sólido para o resto de seus dias. Teve consciência disso, e sentiu-o naquele momento de sua crise. E nunca mais, dali por diante, pôde Aliócha esquecer aquele instante. “Minha alma foi visitada naquela hora”, dizia ele, mais tarde, crendo firmemente na verdade de suas palavras.

Três dias depois, deixou o mosteiro, de conformidade com a vontade de seu stáriets, que lhe havia ordenado que “vivesse no mundo”.

 

 

 


C   O   N   T   I   N   U   A