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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


GRITO DO VENTO / Sue Harrison
GRITO DO VENTO / Sue Harrison

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

GRITO DO VENTO

Primeira Parte

 

                      610 a. C.

A velha olhou para a criança. Os olhos do rapaz brilhavam, atentos. Ela estava cansada, mas quantas vezes é que uma contadora de histórias tinha o prazer de transmitir as suas histórias a uma criança como aquela? Quantas vezes é que nascia no seio do Povo um dzuuggi, uma criança destinada a ser uma contadora de histórias? E este era de certeza um dzuuggi. A velha ouvira a voz do rapaz em sonhos,quando a mãe ainda o trazia no ventre.

A velha também fora escolhida como dzuuggi na infância. Tinham-lhe ensinado as histórias do Povo Rio, mas agora o conhecimento era um fardo, tinha que se lembrar de tantas palavras! Todos os dias, quando contava as histórias ao rapaz, sentia-se aliviada do peso delas, e cada dia se sentia mais leve e mais forte, como se os seus velhos ossos se endireitassem e ela voltasse a caminhar com passos firmes.

Segurou uma tigela de madeira com chá de casca de salgueiro nas mãos. Levou o chá à boca e bebeu. A tigela escurecera com a passagem do tempo e a madeira estava enriquecida pelos muitos chás que recebera, pelas muitas histórias que ouvira.

“Seja como esta tigela, pequeno dzuuggi”, pensou a velha, e fechou os olhos, levantando a cabeça para que aqueles pensamentos se elevassem como uma prece. “Seja como esta tigela. Recebe muito, dá muito e enriquece-te com o que está dentro de ti.”

Então, filho, lembras-te daqueles dois contadores de histórias, Aqamdax e Chakliux? perguntou ela.

O rapaz fez um sinal afirmativo e pronunciou os nomes em voz baixa.

Tu não ouves falar muito a respeito de contadores de histórias; ouves as suas vozes, mas só isso. Portanto isto é algo invulgar.

A velha calou-se e contemplou a fogueira no meio da sua cabana. A pilha de madeira ainda era grande, um banquete para a boca ardente que acabaria por consumir o que ela oferecera. Estendeu os braços para a fumaça e levou ao rosto a mão em forma de concha, como que para extrair palavras das chamas.

E lembras-te que Chakliux pertencia ao Povo Rio, tal como nós? perguntou ela. Lembras-te que ele também foi escolhido como dzuuggi, como tu?

Embora as suas palavras fossem perguntas, ela não lhe deu tempo para responder e continuou:

E a mulher, Aqamdax, era o quê?

Uma Caçadora Marinha, dos Primeiros Homens, respondeu o rapaz.

A velha acenou com a cabeça.

Não era uma Rio, acrescentou o rapaz.

Não era uma Rio, mas não era muito diferente de nós. Somos do mesmo sangue, pelo menos alguns de nós. A velha ergueu um dedo e pousou-o nas rugas que se lhe abriam em leque entre os olhos. Lembras-te que Chakliux tinha um pouco de sangue de Caçador Marinho, embora fosse um Rio. Eu falei-te no pé dele.

Descalçou uma das botas forradas de pele que usava na cabana. A sola de couro, amaciada pelo uso e escurecida pela fumaça da lareira, era mais fina por baixo dos dedos. Com a mão, a velha encostou a parte lateral do pé no chão.

Era enrolado na ponta, como a pata de uma lontra quando se desloca na água, e os dedos dos pés dele estavam unidos por membranas. Como os das lontras.

A velha coçou o pé descalço e cantarolou em surdina. Depois calçou a bota.

Talvez agora seja eu a ouvir e tu me fales um pouco de Chakliux, o dzuuggi disse ela.

O rapaz endireitou-se e começou a falar em voz baixa. A velha interrompeu-o:

Julgas que alguém consegue ouvir-te se falares dessa maneira?

A velha levou as mãos ao arco por baixo das costelas.

Daqui, as tuas palavras têm de vir daqui.

Expeliu o ar que tinha no peito e o rapaz fez o mesmo.

Agora, ordenou ela, e o rapaz voltou a falar, dessa vez muito mais alto. Assim mesmo, disse a velha. Agora posso dizer que as palavras vêm do teu coração.

Quando era bebê, Chakliux foi abandonado no Rochedo do Avô para morrer, começou o rapaz.

Quê? disse a velha, como se estivesse ouvindo uma história verdadeira e as palavras do dzuuggi a tivessem surpreendido. Um dzuuggi abandonado?

É verdade, concordou o rapaz. O avô abandonou-o por causa do pé. Ele não o via como uma lontra, mas apenas como uma maldição, e abandonou Chakliux. Mas Chakliux não morreu. A mulher K’os apareceu e encontrou-o ali. Levou-o para casa e ele passou a ser o seu filho. Mas ela odiava-o. Odiava todo mundo, também, depois de os homens a terem possuído pela força no Rochedo do Avô e terem matado os espíritos dos seus filhos não nascidos. Ela julgou que Chakliux era uma dádiva para a compensar do que acontecera.

Quando Chakliux cresceu, ela invejava-o por ele ser ajuizado e por ter sido escolhido para dzuuggi. Até lhe matou a mulher e o bebê.

Eles devem tê-la expulsado da cidade depois disso, concluiu a velha.

O rapaz inclinou-se para a velha e baixou a voz:

Não. Ela o fez às escondidas, com veneno, e por isso todos julgaram que eles tinham morrido de doença.

Foi ela que começou a guerra entre as aldeias de Rio Próximo e Rio Primo, sabes? lembrou a velha. De tudo o que te ensinei, não há nada mais importante do que a recordação dessa guerra. Embora isso tenha acontecido há longo tempo, muita coisa mudou por causa da luta. Morreu muita gente do Povo Rio e as aldeias que tinham sido fortes enfraqueceram.

Parecia que tinha um nó na garganta, como se estivesse quase chorando, mas quando o rapaz reparou nos olhos dela viu que estavam secos e duros. A velha ergueu o punho na direção da fogueira, e ele pensou se fumaça não faria regressar o ódio dela àquele povo insensato.

- Os povos de Rio Próximo e de Rio Primo lutaram um com o outro - prosseguiu ela. - Eles eram parentes, eram primos, os homens e as mulheres das duas aldeias, mas mesmo assim lutaram.

- Porquê? - indagou o rapaz.

- Por nada que fosse importante - respondeu a mulher. - A maioria das lutas começa sem um motivo importante. É por isso que temos dzuuggis, para nos lembrarem a nossa insensatez, para não voltarmos a fazer as mesmas coisas.

- Chakliux tentou impedir a luta.

- Sim, mas eles lutaram mesmo assim.

- E o povo de Rio Próximo é que venceu - afirmou o rapaz.

- Pensa nisso por instantes - retorquiu a velha. - Alguém ganhou verdadeiramente? Lembra-te de todas as vidas perdidas e dos Invernos difíceis que as duas aldeias passaram por terem morrido tantos dos seus homens.

A velha suspirou e abanou a cabeça. Olhou para o rapaz e pediu:

- Fala-me de K'os.

- Ela vivia na aldeia de Rio Primo e enganava a gente de lá - disse ele. - Quando percebeu que o seu povo era fraco demais para vencer a guerra, ajudou os homens de Rio Próximo a matar os rapazes e as mulheres mais robustas, e depois abandonou os outros. Mas os de Rio Próximo não confiaram nela e fizeram-na escrava.

- Aaa - proferiu a velha. - Compreendo. Durante algum tempo manteve-se em silêncio e depois continuou:

- Falei-te de Aqamdax, que deixou o seu povo e se juntou ao de Rio, como esposa do caçador Sok, irmão de Chakliux. Sok não a quis e expulsou-a.

A velha espetou o dedo e agitou-o, como se fizesse um aviso.

Vou dizer-te uma coisa, filho. Talvez ouças alguém dizer que, como Aqamdax era uma Caçadora Marinha, o que ela fez não foi importante para nós. Mas quem te disser isso é tolo. Sabes, cada história é como uma pequena fogueira, que dá luz e calor. Porque julgas que cada aldeia tem mais do que uma lareira?

O rapaz ergueu as mãos, com os dedos esticados.

Só com uma haveria escuridão demais, respondeu.

Para uma criança, és muito sábio, observou a velha. Fala-me um pouco de Aqamdax.

Chakliux e Aqamdax amavam-se muito. Chakliux queria casar com ela, mas ela foi vendida como escrava a K’os. Mais tarde, o caçador Homem Noturno comprou-a para fazer dela sua mulher. Chakliux descobriu onde ela estava e, quando a luta terminou, foi viver com o povo de Rio Primo para estar perto de Aqamdax. Casou com a irmã de Homem Noturno para estar próximo dela.

A velha sorriu.

Tens boa memória, disse ela ao rapaz.

Bebeu um grande gole do seu chá de salgueiro e depois apontou para o odre que estava pendurado nas traves da cabana por cima das cabeças de ambos. O rapaz levantou-se e abriu o odre. Deu-lhe e ela colocou água na tigela. Mergulhou os dedos na água e jogou umas gotas para cima da fogueira. Voltou a beber e falou:

Acho que estás pronto para saber o que se passou a seguir. Escuta.


         FIM DO VERÃO

         6458 a. C.

 

                   CAULE TORTO, VIÚVA DO POVO DE RIO PRIMO

Às vezes, quando acordo de manhã, não sei onde estou. Como é que este lugar pode ser a nossa aldeia? Onde estão os nossos caçadores, as nossas jovens?

As crianças choram de fome; as mulheres já não saúdam o dia com júbilo. Os cânticos fúnebres enchem a atmosfera até ser escuro como breu. À noite, quando fecho os olhos para dormir, vejo as nossas cabanas ardendo. Vejo as ossadas dos meus filhos e netos profanadas pelos nossos inimigos.

Lembro-me daquele tempo em que os povos de Rio Próximo e Rio Primo eram um só, em que celebravam juntos os grandes caçadores que são antepassados das duas aldeias.

Como é que a raiva nos fez esquecer esse laço? Como é que o ódio se introduziu nos nossos corações e se apoderou das nossas almas?

Receio por aqueles que ainda não nasceram. O que lhes deixaremos? O orgulho de sermos quem somos, a alegria e a beleza desta terra? Não, não quando passarmos a nossa inimizade como herança, de mãe para filha, de pai para filho.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

As velhas prepararam uma panela especial com carne e caldo para as três mulheres da aldeia que estavam grávidas: Aqamdax, Estrela e Folha Vermelha. Certas partes do caribu estavam-lhes vedadas. A carne e os ossos do pescoço tiravam a graça dos filhos que elas traziam no ventre, e as pernas dianteiras e a carne do cachaço e dos beiços tinham que ser guardadas para os velhos.

Aqamdax sabia que o seu filho era um rapaz. Disfarçou o riso quando as outras mulheres lhe disseram que era uma rapariga porque ela tinha a barriga caída. Então ela não o ouvia sussurrar e cantar nos seus sonhos? É claro que era um rapaz. Ela sabia-o desde a quarta lua de gravidez, quando ele se mexera pela primeira vez no seu ventre.

Na Primavera, como só restavam seis caçadores na aldeia depois da luta, os homens não tinham conseguido levar todos os caribus de que precisavam, mas pelo menos haviam matado suficientes para enganar a fome. As mulheres tinham secado a carne, sem permitirem que uma única lasca fosse desperdiçada. As peles, perfuradas pelos respiradouros das larvas de varejeiras, não serviam para nada e era quase impossível raspá-las, mas com as cabanas queimadas e as despensas saqueadas, como é que as mulheres podiam jogar fora aquelas peles?

Agora, no fim do Verão, Chakliux e Sok, o irmão mais velho, tinham apanhado um caribu bem gordo. Durante uma noite inteira, as pessoas afastaram o seu ódio, esqueceram o seu desamparo e celebraram o acontecimento com um banquete.

Enquanto comia, Aqamdax cantava em surdina para o seu bebê, dizia-lhe para crescer forte como um caribu. Entoava algumas canções à maneira do Povo Rio, a que pertencia o marido. Mas aprendera a maior parte com o seu próprio povo, os Primeiros Homens, que viviam à beira do grande mar do Norte.

As canções mantinham-na ocupada, pensando no filho e no marido, longe do caçador Chakliux, venerado como dzuuggi contador de histórias daquela aldeia. Este era jovem, mas sensato, uma dádiva das lontras, como dizia o povo. Quem não via que lhe corria sangue de lontra nas veias, com o pé esquerdo curvo na ponta e os dedos unidos por membranas?

Quando todos acabaram de comer e as mulheres abafaram o fogo, fazendo fumaça para afastar os insetos noturnos que ainda havia no fim do Verão, Chakliux e Sok contaram a história da caçada.

Aqamdax agachou-se e afastou as pernas para acomodar a barriga. Reparou que o marido, Homem Noturno, a observava, e teve o cuidado de não deixar que o seu olhar se demorasse demais em Chakliux.

“Agradece a Homem Noturno”, pensou Aqamdax. “Agradece por seres uma mulher casada e não uma escrava. Alegra-te com o filho que ele te deu e respeita o teu marido.”

Sentou-se com o irmão, Ghaden, um rapaz com cinco Verões, à direita e Yaa, a meia-irmã de Ghaden, à esquerda. Ambos tinham perdido os pais e sido adotados por Estrela, a mulher de Chakliux. Mas era Aqamdax que cuidava deles, lhes fazia a roupa e lhes preparava a comida. Estrela levara-os por capricho, como uma criança que resolve tomar conta da cria de uma raposa. Quem podia confiar nela para tratar de duas crianças?

Yaa aconchegou-se a Aqamdax, mas Ghaden ficou de pé, de olhos arregalados, enquanto Sok e Chakliux descreviam a caçada.

As palavras de Chakliux formavam imagens na mente de Aqamdax, que via o caribu, as listas brancas que lhe atravessavam os flancos misturando-se com as luzes e as sombras das bétulas-anãs entre as quais se encontrava o animal; farrapos de pele ensangüentada pendiam-lhe das hastes e as pontas córneas tinham manchas avermelhadas, como as uvas-de-urso no Outono.

Então Estrela enfiou-se entre Ghaden e Aqamdax, interrompendo aquela visão do caribu. Empinou o queixo, como que desafiando Aqamdax e puxou Ghaden para o colo.

Ele resistiu, e ambos começaram a brigar, primeiro em voz baixa e depois num crescendo de lamúrias. Aqamdax inclinou-se, encarou o irmão e levou os dedos à boca em sinal de silêncio. Ghaden, furioso, fez beicinho mas virou-se para dar atenção aos homens.

Estrela fez um sorriso complacente a Aqamdax e depois se aproximou dela e cochichou:

Daqui a poucas luas, terei dois filhos. Olhou para a barriga de Aqamdax e acrescentou: Na melhor das hipóteses, tu só terás um.

Aqamdax fechou os olhos à insensatez de Estrela e não respondeu. Só podia lamentar o filho de Chakliux, adormecido no berço duro dos ossos de Estrela.

Numa única noite de festim o caribu desapareceu, exceto o caldo que ainda era possível fazer dos ossos da cabeça e das costelas. As palavras e os cânticos das histórias dos caçadores fizeram-se ouvir até a atmosfera noturna os dissipar como se fossem fumaça. Pairaram sobre a aldeia adormecida até as pessoas os convocarem nos seus sonhos.

Aqamdax dormiu, quente nos seus cobertores de pele de lebre, na cabana de Estrela, do lado das mulheres. A seu lado, a velha Olhos Grandes dormia também. Olhos Grandes era a mãe de Estrela e de Homem Noturno, e desde a morte do marido que mais parecia uma criança do que uma mulher, como se o seu espírito tivesse seguido o do marido para o mundo dos mortos. Muitas vezes ficava acordada durante a noite, gemendo estranhas canções, mas a barriga cheia obrigara-a a dormir. Os pensamentos de Aqamdax transformaram-se em imagens. Ela estava junto do marido quando Chakliux e Sok trouxeram o caribu para a aldeia. Homem Noturno resmungava, com o braço inútil atado ao corpo com tiras de pele de caribu.

Aqamdax evitou olhar para Chakliux. Homem Noturno observava-a, como fazia sempre que Chakliux estava perto. Ela virou a cabeça para olhar para o marido, sorriu e inclinou-se para ele até as ancas de ambos se tocarem. Havia muitas pequenas maneiras de mostrar respeito a um marido que não o embaraçassem na presença de outros homens.

Aos sonhos de Aqamdax sucederam-se recordações da sua vida de criança, quando vivia com os Primeiros Homens à beira do grande mar do Norte. O pai ainda era vivo e pegou-lhe no colo, agarrando-a pela cintura. De repente, apertou-a tanto que ela não conseguia respirar. Ela gritou-lhe que parasse, depois olhou para baixo e viu que ele estava morto, com a pele escura e os lábios azulados como daquela vez em que estivera prestes a afogar-se. Ouviu a mãe desatar num pranto terrível e tão alto que acordou Aqamdax.

Estrela e Yaa estavam a seu lado.

Tu gritaste, disse Yaa. O que se passa? Aqamdax abanou a cabeça e tentou quebrar os últimos fios que a ligavam ao sono.

Foi apenas um sonho afirmou ela, ofegando quando a dor se apoderou de novo dela, envolvendo-lhe as ancas e comprimindo-lhe os ossos.

Estrela afastou-se, com as mãos sobre a pequena protuberância que era o seu bebê.

Sai daqui, disse ela a Yaa. O filho dela pode obrigar o meu a nascer.

Estrela recuou para o outro extremo da cabana, sem reparar que estava pisando a cama do marido para chegar lá.

Chakliux levantou-se apoiado num cotovelo. Primeiro olhou para a mulher e depois para Aqamdax.

O que há? perguntou.

Estrela apontou rudemente com os polegares.

É ela, o bebê dela. Quer nascer.

Chakliux pôs uma manta pelos ombros e aproximou-se de Homem Noturno rastejando. Sacudiu-o até ele acordar.

O filho da tua mulher está nascendo, anunciou Chakliux. Vou chamar a minha tia.

A dor aliviou e Aqamdax conseguiu falar.

É cedo. O bebê não deve nascer senão daqui a mais de uma lua disse ela.

Vai para a tua cabana de partos. Eu vou buscar a Ligige’ ordenou Chakliux.

Não tenho cabana de partos.

Qual a mulher que lhe prepararia a cabana uma lua inteira antes do parto? Para quê obrigar uma criança a vir ao mundo quando ela não tem ainda forças suficientes para sobreviver?

Vai para a de Folha Vermelha. A dela está pronta, não está?

Aqamdax fez um sinal afirmativo. Sentiu outra dor e fechou os olhos com força até ela passar. Não queria ir para a cabana de Folha Vermelha, mas como poderia objetar? Não podia ficar ali, amaldiçoando os homens e as suas armas e talvez o bebê de Estrela, que ainda não nascera. Folha Vermelha matara a mãe de Aqamdax e o avô de Chakliux. Tentara matar Ghaden. Como podia Aqamdax usar uma cabana de partos construída por uma mulher cujo coração estava manchado de sangue?

Com a ajuda de Yaa, Aqamdax conseguiu sair da cabana cambaleando, mas mesmo à entrada do túnel sentiu outra dor. Pôs-se de cócoras e antes de a dor lhe cortar a respiração pediu a Yaa que fosse buscar a prancha de embalar e as peles de lebre que ela preparara.

Yaa deixou-a sozinha e, precisamente no momento em que a dor aliviou, voltou com a prancha e as peles. Ajudou Aqamdax a levantar-se e depois dirigiram-se ambas para o extremo da aldeia.

Quando chegaram ao local isolado em que Folha Vermelha construíra a sua cabana de partos, Aqamdax reparou que havia luz lá dentro. Chakliux devia ter ido chamar Ligige’, mas como é que a velha conseguira acender uma fogueira tão depressa?

Alguém chamou. Devia ser Chakliux, pensou Aqamdax, e ficou admirada. A maioria dos homens afastava-se o mais possível de uma mulher que estivesse prestes a dar à luz. O poder de uma mulher era grande nesses momentos e, embora não fosse pernicioso, podia destruir a sorte de um homem na caça.

Não consigo encontrar Ligige’, disse Chakliux. A velha colocou a cabeça para fora da cabana.

Há mais alguém que me queira? perguntou ela. Depois, ao ver Aqamdax, franziu o sobrolho. Tu também?

Uma dor obrigou Aqamdax a agachar-se e a cruzar os braços em volta do corpo, mas ouviu a conversa de Yaa e de Ligige’.

Tenho aqui Folha Vermelha, informou Ligige’. Ainda falta algum tempo para o bebê dela nascer. Quando é que as dores de Aqamdax começaram?

Há pouco tempo, mas são cada vez menos espaçadas, umas a seguir das outras, respondeu Yaa.

Às vezes isso acontece quando um bebê nasce mais cedo disse Ligige’. Não podemos ter as duas mulheres na mesma cabana. A morte de uma criança poderia amaldiçoar o nascimento da outra.

As palavras de Ligige’ trespassaram o coração de Aqamdax. Como é que aquela mulher podia falar com tal ligeireza da criança que ela gerara e que amava mais do que a própria vida?

Leva-a para a minha cabana ordenou Ligige’. Irei lá assim que puder.

Enfiou a cabeça lá dentro e depois espreitou de novo para o exterior.

No caminho, acorda Mulher Diurna e diz-lhe que venha cá. Ela não vai querer, mas lembra-lhe que o bebê de Folha Vermelha também pertence a Sok, o filho dela.

Chakliux viu Yaa saindo da cabana da mãe e esta encaminhando-se para a cabana de partos. Aqamdax parou uma vez, tropeçou com as dores, dirigiu-se para a cabana de Ligige’ e entrou. Dali a pouco, a luz da lareira iluminava as paredes da cabana, e os pensamentos de Chakliux viraram-se para a sua primeira mulher, Gguzaakk.

Durante muito tempo depois da sua morte, Chakliux não conseguira encontrar motivos para viver, exceto os seus deveres de dzuuggi e o seu desejo de manter a paz entre os povos de Rio Primo e Rio Próximo, mas depois resolvera ir viver na aldeia de Rio Próximo e Aqamdax entrara na sua vida.

Ela era uma contadora de histórias na tradição dos Primeiros Homens. Chakliux começara a amá-la e resolvera pedir-lhe que o desposasse. O que poderia ser melhor do que dois contadores de histórias vivendo juntos, aprendendo um com o outro? Mas o comerciante Cen roubara Aqamdax, levara-a para a aldeia de Rio Primo e vendera-a como escrava. Antes de Chakliux descobrir para onde Cen a levara, Homem Noturno comprara Aqamdax para fazer dela sua mulher, e agora ela ia dar à luz o filho de Homem Noturno.

Chakliux abanou a cabeça. Homem Noturno era tão estúpido quanto a irmã, Estrela. O fato de o filho de Aqamdax ser dele preocupava Chakliux. Aqamdax fora obrigada a deitar-se com outros caçadores quando era escrava. Se o bebê nascesse grande e forte não era filho de Homem Noturno, embora fosse de esperar que este tivesse o bom senso de o criar como seu. Se fosse pequeno um sinal de que nascera antes do tempo era com certeza filho dele mas talvez viesse a morrer.

Chakliux não sabia ao certo como dirigir as suas preces: haveria tristeza, quer a criança vivesse quer morresse. Por isso, rezou por Aqamdax. Para que ela vivesse. Como suportaria ele voltar a perder uma mulher que amava?

Neve-no-Cabelo deu a Sok uma tigela de caldo e ele dirigiu-lhe palavras duras. O caldo ralo e quase sem carne aumentou a sua ira. Qualquer mulher teria vergonha de oferecer ao marido um alimento tão fraco. O que acontecera ao estômago do caribu que tinham assado inteiro, cheio das tenras plantas de Verão que o animal comera antes de Sok e Chakliux o terem matado? O que acontecera ao belo caldo feito da cabeça? Com certeza que sobrara algum. Quem merecia comê-lo mais do que ele?

Voltou a insultar a mulher, mas quando viu o filho, Chora-Alto, encostando-se à parte lateral da cabana envergonhou-se subitamente da sua fúria. Não era o caldo que lhe atormentava a alma, mas sim o nascimento do filho de Folha Vermelha. Ele ficaria com o bebê se este fosse saudável, mas o que aconteceria a Folha Vermelha?

Ela custara a Sok a liderança do povo de Rio Próximo. Um dia, ele teria sido o chefe dos caçadores, e Chakliux conservaria o lugar honroso de contador de histórias. Juntos, teriam guiado o povo, o teriam afastado da guerra e obrigado a fazer-se respeitar, mas Folha Vermelha destruíra qualquer chance de tal acontecer quando lhe matara o avô. Agora Sok vivia num exílio forçado por aquilo que a mulher fizera, e deixara a sua aldeia natal.

Folha Vermelha só estava viva porque trazia no ventre o filho de Sok. Afirmara que matara por amor a ele, para lhe dar a oportunidade de ocupar o lugar do avô como chefe dos caçadores. Nesse sentido, talvez ele fosse quase tão culpado como Folha Vermelha. Mas nunca desejara a morte do avô.

Durante todas as luas que antecederam a noite do nascimento, Sok não conseguira resolver o que fazer. Agora, não tinha dúvidas de que era o chefe dos caçadores, entre os poucos que restavam na aldeia de Rio Primo. A honra não era grande, mas ainda assim as pessoas contavam com ele para lhes fornecer alimento. Enfrentavam um Inverno rigoroso. A sua única esperança de sobrevivência era uma caçada bem sucedida ao caribu no Outono.

Se ele matasse Folha Vermelha, o sangue dela impediria que os animais se entregassem à sua lança? Se ele não matasse Folha Vermelha, a sede de vingança do avô afastaria os caribus dos caçadores de Rio Primo?

 

Ao amanhecer, as dores de Aqamdax pararam. Ligige’ dera-lhe chá de raiz de choupo-balsâmico e começara a ter esperança que o medicamento atuasse. Se Aqamdax conseguisse manter a criança na barriga por mais oito ou dez dias, haveria uma chance de esta sobreviver.

Depois de Aqamdax adormecer, Ligige’ atravessou a aldeia na direção da cabana de Estrela e entrou. Acordou-a e disse-lhe que o trabalho de parto de Aqamdax estacionara, e depois reparou que tanto Chakliux como Homem Noturno estavam acordados.

A criança? perguntou Homem Noturno.

As dores de parto pararam.

E Aqamdax? perguntou Chakliux.

A sua voz era um murmúrio e Ligige’ não percebeu se ele falara apenas para pronunciar o nome dela ou para saber como estava.

Ela é forte. Não é com Aqamdax que eu estou preocupada.

Em seguida, Ligige’ dirigiu-se à cabana de partos de Folha Vermelha. O dia estava clareando e o céu estava limpo e sem nuvens. Ligige’ não se deu ao trabalho de gritar nem de arranhar a aba. Limitou-se a afastá-la para o lado e inclinou-se para entrar.

Mulher Diurna levantou a cabeça e sorriu, com um bebê no colo.

Uma filha disse ela. Bela e forte. É parecida com Sok.

A boca do bebê estava franzida e mamava na mão dela. Ligige’ agachou-se e afastou os cobertores de pele de esquilo que cobriam a criança. Inspecionou-lhe os braços e as pernas, as mãos e os pés. Apertou na barriga do bebê e riu quando os olhos escuros da criança se abriram e a boca se escancarou como forma de protesto.

Ela é saudável, comentou Ligige’. Onde está Folha Vermelha?

Mulher Diurna apontou com o queixo para os fundos da cabana onde Folha Vermelha jazia imóvel e lívida, de olhos fechados. Tinha uma mancha de sangue no rosto, mas os cobertores de pele de lebre tapavam-na até aos ombros, e não havia outros sinais de que tivesse dado à luz.

Folha Vermelha já a amamentou?

Não.

Ainda bem. Não a deixes amamentar a criança antes de Sok resolver o que vai fazer. Se ele matar Folha Vermelha, não precisamos do poder do leite dela para encaminhar a criança para o mundo dos espíritos.

Uma filha, disse Sok, franzindo a testa. Ligige’ suspirou e tocou na criança para ele a ver do local onde estava sentado, junto da lareira.

Uma filha não é uma coisa assim tão terrível, observou ela. Tens Chora-Alto e Leva-Muito, dois filhos robustos que vivem aqui contigo, e aquele outro filho que está agora no mundo dos espíritos. Mas algum deles tomará conta de ti quando fores velho? Um dia, ficarás satisfeito por teres uma filha.

Eu estou satisfeito por ter uma filha, afirmou ele, ainda com a boca franzida. Deixa-me pegá-la.

Ligige’ pôs-lhe o bebê nos braços e ele pegou-lhe desajeitadamente, a uma certa distância do corpo.

A tua mãe diz que ela é parecida contigo.

Ah, isso não é bom para uma menina, comentou Sok, mas sorriu e agarrou com mais força a criança, que se aconchegou ao seu peito.

Por instantes Ligige’ não disse nada, mas por fim percebeu que tinha que falar. Neve-no-Cabelo e o seu filho pequeno Leva-Muito, assim como Chora-Alto, o filho de Folha Vermelha, estavam na cabana, mas na opinião de Ligige’ eles faziam parte da decisão que Sok devia tomar, fosse ela qual fosse.

Folha Vermelha ainda não amamentou a tua filha, afirmou Ligige’. Chamariz tem leite que chegue. Queres que eu lhe leve o bebê?

Sok devolveu a criança a Ligige’. Quando as palavras surgiram, eram lentas e carregadas de tristeza.

Primeiro tenho que falar com o meu irmão. Diz-lhe que, até eu tomar a minha decisão, a criança só deverá beber água.

O bebê de Folha Vermelha emagreceu por estar dois dias só a água. Por fim, Sok foi ao encontro de Ligige’ para lhe comunicar o que deveria ser feito. Chegou, silencioso e digno, e Ligige’ soube qual era a sua decisão ainda antes de ele a dizer, mas esperou que as palavras saíssem da boca de Sok.

Chakliux diz que precisamos de mulheres fortes, e o meu filho Chora-Alto pede que a vida da mãe seja poupada, mas concluí que corremos um grande risco ao mantê-la entre nós.

Então vais expulsá-la da aldeia? perguntou Ligige’, embora soubesse que não fora essa a decisão de Sok.

Ela tem que morrer respondeu ele.

Creio que não serve de nada dizer-te que te arriscas a uma maldição ainda maior ao matar uma mulher com a força do sangue de um parto recente.

Esperarei que o sangue deixe de correr.

Isso é sensato.

Ligige’ encheu uma tigela de guisado de esquilo que tirou da panela. Estendeu-a a Sok, mas ele abanou a cabeça.

Pões a tua força em risco recusando-te a comer? perguntou ela.

Ele pegou a tigela, agachou-se, mergulhou os dedos na carne e enfiou-a na boca.

Folha Vermelha já sabe? perguntou Ligige’.

Não, mas não espera outra coisa.

Serás tu a matá-la?

Quem seria? Não posso pedir tal coisa a Chakliux. Porque poríamos em risco os seus dotes de caçador por causa daquilo que a minha mulher fez?

Eu faço isso por ti.

E se ela oferecer resistência? Tu não és suficientemente forte.

Ela não espera isso de mim. Posso esperar que ela esteja dormindo. Ou posso recorrer ao veneno.

Há alguma coisa que a mate depressa?

Talvez.

Durante muito tempo, Sok manteve-se em silêncio, com uma mão na testa e a outra segurando a tigela. Ligige’ voltou-lhe as costas, fingindo-se muito ocupada.

 

Já sabes o que vai acontecer a Folha Vermelha? perguntou Estrela a Aqamdax.

Já, respondeu Aqamdax.

Não queria falar no assunto, não queria pensar nele. Já lhe bastava ter que se preocupar com o próprio filho.

Estrela evitava Aqamdax desde que esta regressara à cabana, e quem podia censurá-la? Aqamdax teria feito o mesmo, embora fosse talvez um pouco menos ostensiva. Para quê pôr em risco um filho em nome da delicadeza? Mas agora Estrela aproximava-se dela e Aqamdax percebeu que a conversa ainda não acabara.

Não sei como é que Sok vai matá-la. Talvez seja com uma faca, como Folha Vermelha costumava fazer...

Não deves aproximar-te tanto de mim, recomendou Aqamdax à mulher, e Estrela susteve a respiração, como se tivesse percebido o perigo que o filho corria.

Afastou-se para o outro lado da cabana. Aqamdax fechou os olhos, espreguiçou-se e endireitou as costas.

Vou lá para fora, irmã, disse ela a Estrela. É mais seguro.

Estava tecendo esteiras de erva para o chão da cabana. Naquele local que o Povo Rio escolhera para viver, a erva não era tão boa como a que crescia junto das aldeias dos Primeiros Homens, mas fazia esteiras resistentes. Uma vez, as mulheres tinham rido das esteiras que ela fazia. A sua aldeia era forte nesse tempo, e havia peles de caribu que serviam para atapetar o chão. Agora, as peles nem eram suficientes para revestir as paredes.

Aqamdax agachou-se do lado do sol. Na sua aldeia, teria encontrado um lugar ao abrigo do vento, mas ali habituara-se a apreciar um dia ventoso. O som deste lembrava-lhe o seu próprio povo, a aldeia dos Primeiros Homens e o ruído das ondas.

Lá, Aqamdax habituara-se à vastidão do mar e dos horizontes que se estendiam até aos confins da Terra. O território do Povo Rio estava dividido em pequenas parcelas separadas por árvores e montes. Às vezes, nos dois anos que passara com o Povo Rio, sentira-se enclausurada, como se a tivessem obrigado a ficar muito tempo num espaço acanhado, com as pernas e os braços encolhidos.

Uma sombra projetou-se no seu trabalho. Aqamdax levantou a cabeça e viu o filho de Sok, Chora-Alto. Em tempos, numa época que agora parecia muito distante, ele e o irmão mais velho, esse primeiro Leva-Muito, tinham sido seus enteados. Agora, apesar de ela já não ser a mulher do pai, Chora-Alto ia muitas vezes ao seu encontro para lhe confiar as suas pequenas vitórias de criança, os seus problemas e as suas interrogações.

O rapaz agachou-se a seu lado e cruzou as pernas. Aqamdax acolheu-o com um sorriso e não ficou admirada quando Chora-Alto proferiu:

Estrela disse-me que a minha mãe vai morrer.

Aqamdax teve vontade de pegar o rapaz no colo e de abraçá-lo como abraçava Ghaden quando este estava triste ou cansado, mas Chora-Alto não era um bebê. Tinha oito Verões. Dentro de pouco tempo iria à caça com os homens.

Entendes porquê? perguntou Aqamdax.

Entendo.

Sabes que foi uma decisão difícil para o teu pai?

Ele fez um sinal afirmativo.

Estrela disse-me que isso tinha que ser feito porque existe uma maldição. Achas que todas as lutas e todas as coisas terríveis que nos aconteceram foram um resultado daquilo que a minha mãe fez?

Não sou suficientemente sábia para ter certeza disso, Chora-Alto. Houve muita gente além da tua mãe que fez asneiras. Sei da história dos cães que morreram na aldeia de Rio Próximo. Foi um xamã que fez isso. Com certeza os seus poderes eram superiores aos da tua mãe. Havia uma mulher chamada K’os que vivia nessa aldeia antes de tu e o teu pai virem para cá. Agora ela não está aqui, mas era muito má e até chegou a mandar matar pessoas.

Alguém a matou?

Não.

O meu pai diz que eu não posso ver a minha mãe. Diz que eu não posso voltar a falar com ela.

Os olhos de Aqamdax encheram-se de lágrimas. Mas que disparate, toda aquela matança.

Tens que recordar os bons tempos que passaste com a tua mãe e todas as coisas boas que ela fez. A tua nova irmã vai precisar que a protejas. Tu és o irmão mais velho dela e de Leva-Muito.

Quando Aqamdax falou em Leva-Muito, sentiu Chora-Alto estremecer e percebeu que ele estava pensando no irmão mais velho, morto durante a luta.

Depois, embora não tencionasse contar nenhuma história, Aqamdax lembrou-se de um antigo conto do Povo Rio.

Era uma vez um porco-espinho e um corvo maluco, disse ela. As palavras saíam-lhe da boca como se cantarolasse. Sentiu que Chora-Alto se descontraía a seu lado.

Ele já era crescido para ouvir uma história infantil, mas estava atento ao que Aqamdax dizia.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

K’os inclinou-se sobre a panela e fingiu que não ouvia o que Flor Azul estava dizendo. Como viúva do xamã de Rio Próximo, Flor Azul detinha uma posição respeitável e podia obrigar as esposas mais novas a correr para satisfazer os seus desejos limitando-se a erguer os olhos para o céu, como se fosse dotada de poderes espirituais especiais. Afirmava ser a curandeira da aldeia, embora soubesse apenas algumas das cantilenas que o marido usava noutros tempos.

K’os a vira curar fraturas tão mal que os braços e as pernas ficariam aleijados para sempre. Era raro Flor Azul ir colher plantas para fazer mezinhas e parecia conhecer apenas as mais familiares, casca de salgueiro para aliviar as dores e erva-de-fogo para o estômago. Até uma criança sabia essas coisas!

K’os oferecera-se para ensinar Flor Azul a conhecer as ervas e as plantas, mas a mulher reagira, horrorizada. Quem cometeria a loucura de confiar numa escrava de Rio Primo?

Apesar de Flor Azul ser uma curandeira incompetente, K’os admirava-a pelo lugar de honra que ela conquistara. K’os ouvira contar à boca fechada as histórias do marido de Flor Azul, Lobo-e-Corvo, que matara às escondidas os cães de Rio Próximo para que, quando as mortes cessassem, ele pudesse afirmar que conseguira expulsar o mal da sua aldeia. Que motivos tinha Flor Azul para se vangloriar de ter sido mulher de um homem assim? O seu plano fora descoberto por uma velha, a tal que se chamava Ligige’. Alguns diziam, evidentemente, que Ligige’ tivera a ajuda de Chakliux.

Chakliux era filho de K’os. Era ainda mais louco do que Lobo-e-Corvo. O povo de Rio Próximo tinha-o em grande apreço. Então porque permitira que um homem como Raposa-Que-Ladra o tivesse expulsado daquela aldeia? Ela ensinara-o melhor! Com velhos tão fracos como Raposa-Que-Ladra e Chama-o-Sol, ele teria assegurado a liderança dentro de pouco tempo.

Flor Azul ergueu uma concha na direção de K’os e cochichou alguma coisa às outras mulheres. Estas riram. K’os voltou-lhes as costas e começou a cantarolar palavras absurdas. Pouco depois elas calaram-se e K’os começou a cantar mais alto. Saíram uma a uma, até K’os ficar sozinha com as poucas crianças que andavam sempre perto das lareiras à espera de comida.

K’os continuou a cantar e acenou à criança mais pequena com um pedaço de peixe cozido pingando, que retirou do caldo. A criança avançou engatinhando e, assim que o apanhou, deu meia volta e desatou a correr. Um rapaz mais velho tentou roubar-lhe o peixe, mas K’os chamou-o e deu-lhe um pedaço de carne. Pouco depois, todas as crianças tinham alguma coisa para comer e, quando se instalaram à sua volta, ela começou a contar uma história, algo de que se lembrava dos seus tempos de infância.

K’os gostava de crianças, com os seus dedos lambuzados sempre prontos a mexer ou a agarrar e as suas vozes lamurientas disputando as atenções. Mas vira como Aqamdax passara de escrava a esposa na aldeia de Rio Primo, e Aqamdax começara com as crianças. Que melhor maneira de conquistar os pais do que insinuar-se junto dos filhos?

 

Dii estremeceu quando o marido lhe tocou. Sabia que devia estar grata por ele a ter escolhido entre as meninas de Rio Primo feitas escravas, mas quando ele a chamou para a cama ela teve que fazer o possível para não fugir das suas mãos.

Ele era preguiçoso e todas as manhãs dormia até tarde. Muitas vezes, Dii perguntava a si própria por que motivo é que o povo de Rio Próximo o escolhera como chefe dos mais velhos. Até Chama-o-Sol parecia ser uma melhor opção. Era tímido na fala, e as palavras saíam-lhe da boca em frases entrecortadas e titubeantes, mas havia nele uma sabedoria que Dii registrara quando ele se dirigira à sua cabana pela primeira vez.

Raposa-Que-Ladra afastou a manta de pele de lebre que o cobria e Dii viu que o seu pênis inchara, pronto para ela. Pelo menos aquilo seria rápido, pensou ela ao despir a sua longa camisa de pele de caribu e ao deslizar para junto dele. Ele agarrou-lhe os seios e ela retraiu-se. Dentro de pouco tempo estaria no seu período lunar e eles ficariam macios.

Pensou em coisas agradáveis, como fazia sempre que estava na cama com o marido. Se permitisse que a sua mente se enchesse de tristeza, as carícias e os ímpetos do marido pareciam-lhe sempre mais dolorosos. Afinal, ela era a segunda esposa de um homem que era o chefe dos velhos. Tinha a sua própria cabana, que era boa, e o marido recebia avultados quinhões da carne que os caçadores traziam para a aldeia, por isso a sua despensa estava quase cheia ainda antes da caça ao caribu no Outono.

Os espíritos deviam ter-se condoído dela devido às suas perdas: a morte da mãe durante a viagem para aquela aldeia; o assassinato do pai, do tio e dos irmãos na luta. Sim, eles tinham-se condoído e permitido que ela fosse escrava apenas durante uns dias antes de Raposa-Que-Ladra a ter escolhido. Apresentara-a à primeira esposa, Bico-de-Gaivota, uma velha cujos dentes estavam gastos até as gengivas, mas que era simpática e tinha bom coração. Não pedia muito a Dii e costurava quase toda a roupa de Raposa-Que-Ladra. Dii esperava que Bico-de-Gaivota vivesse durante muito tempo. Com certeza Raposa-Que-Ladra não seria benevolente com as costuras de Dii depois de ter usado as belas roupas que Bico-de-Gaivota confeccionara para ele durante tantos anos.

Raposa-Que-Ladra gemeu e depois o seu corpo relaxou-se sobre o dela. Agora adormeceria, encurralando Dii debaixo dele a menos que ela conseguisse escapar.

Tenho que ir para as lareiras informou ela em voz baixa. É a minha vez.

Ele respondeu alguma coisa entre dentes e depois rolou para o lado para que ela pudesse sair da cama. Dii esgueirou-se e respirou fundo.

Traz-me alguma coisa quando voltares, ordenou ele. Estarei pronto para comer.

Com as pontas dos dedos, Dii limpou o suor de Raposa-Que-Ladra do peito e da barriga. Vestiu as calças que lhe davam pelo joelho e que usava no Verão, calçou as botas e vestiu a parka. As botas tinham sola de pele de alce, mas a parte de cima e o resto do seu vestuário eram feitos de pele de caribu, tudo costurado pela mãe no Inverno anterior à luta.

Dii olhou para Raposa-Que-Ladra, que estava de olhos fechados. A cicatriz que lhe descia da testa por cima do olho direito e lhe chegava ao queixo repuxava-lhe a pele como se uma mulher lhe tivesse passado uma linha pela carne e a tivesse puxado com força. Ainda bem que Raposa-Que-Ladra não permitia que ela comesse com ele. Dii teria dificuldade em engolir a comida se tivesse que olhar para a cara do marido. É claro que havia outras pessoas na aldeia que tinham cicatrizes. Terceira Árvore só tinha um olho e Tagarela tinha as marcas das queimaduras que sofrera em criança quando a cabana da mãe se incendiara. Essas cicatrizes, embora fossem piores que a de Raposa-Que-Ladra, não revolviam o estômago de Dii. Mas quem reparava no olho vazado de Terceira Árvore quando ele começava a contar as suas anedotas? E quem reparava nas queimaduras de Tagarela quando a sua suavidade se destacava da sua ternura?

Dii deixou o marido e dirigiu-se para as lareiras. Ainda não estava habituada à proximidade das cabanas de Rio Próximo. Na sua aldeia, as cabanas estavam suficientemente afastadas umas das outras para que uma mulher pudesse estar perto dos seus estrados de seca. Ali, as mulheres armavam-nos no extremo do círculo de terra em forma de tigela em que a aldeia estava alojada. Perdiam carne e peixe seco por causa dessa estranha prática. Os animais selvagens aventuravam-se mais a roubar nas zonas limítrofes da aldeia do que entre as cabanas, onde tinham que enfrentar os cães e as pessoas. É claro que as crianças montavam guarda aos estrados, em geral os rapazes, pelo menos aqueles que ainda não tinham idade para ir caçar. Mas qual o lobo ou o lince que tinha medo de um rapaz?

Dii evitava o mais possível os extremos da aldeia. Onde estariam os espíritos dos guerreiros, os das aldeias de Rio Primo e de Rio Próximo, que tinham morrido na luta? Em algum lugar lá fora encontravam-se o pai e os irmãos. Com certeza a odiavam, agora que ela era mulher de um dos velhos de Rio Primo.

Dii não se importava de fazer o seu turno nas lareiras da cozinha, embora não fosse como na aldeia de Rio Primo, em que todas as mulheres participavam e riam. Aqui, a mistura das pessoas de Rio Primo e Rio Próximo ainda era embaraçosa, mas nas últimas luas as mulheres pareciam ter chegado a um entendimento favorecido por todas. As mulheres de Rio Primo, que agora eram quase todas esposas, chegavam cedo e acendiam o lume quando a aurora era ainda uma promessa cinzenta de luz. Mais tarde, quando os maridos começavam a acordar, chegavam as mulheres de Rio Próximo e saíam as de Rio Primo, levando uma parte da comida para as suas cabanas. Daí em diante faziam turnos. Só à noite, quando todas tinham fome, é que os dois grupos se juntavam.

Dii fizera um turno ao amanhecer e agora eram as mulheres de Rio Próximo que deviam estar na lareira, mas era preferível estar junto delas do que debaixo do corpo suado de Raposa-Que-Ladra. Baixou a cabeça, determinada a falar pouco, sem dar razão para ser apanhada em falta. Mas quando chegou junto das lareiras, só K'os estava lá.

Quando vivia na aldeia de Rio Primo, Dii tinha medo de K’os. Esta fora a curandeira da aldeia e conseguira ajudar muita gente com as suas mezinhas. Mas quem não ouvira contar as histórias de homens e mulheres aqueles que K’os odiava que tinham tido mortes horríveis? Havia quem dissesse que ela matara a mulher do próprio filho. Na aldeia de Rio Primo, Dii raramente falara com a mulher e tentava não olhar para ela, mas ali K’os não passava de uma escrava.

Ninguém solicitava as suas mezinhas. Ninguém lhe prestava as honras devidas a uma curandeira. Na aldeia de Rio Primo, muitos homens visitavam a sua cabana e ofereciam-lhe presentes em troca dos seus favores. K’os devia ser velha, mas tinha o cabelo negro e espesso como o de uma jovem, a pele sem rugas, os olhos grandes e brilhantes. Até os dentes eram fortes e estavam inteiros.

K’os levantou a cabeça e cumprimentou-a. Dii não podia ignorá-la. A mãe ensinara-lhe que todo mundo devia ser tratado com delicadeza, mesmo os escravos.

Bom dia, saudou Dii. O meu marido mandou-me buscar comida.

Mergulhou a concha numa panela e mexeu o conteúdo.

És a esposa de Raposa-Que-Ladra, afirmou K’os.

Sou, respondeu Dii, que não sabia o que mais dizer.

Não queria gabar-se de ser uma esposa, quando K’os continuava a ser uma escrava. Por fim, acrescentou:

A segunda esposa.

Ah, sim, há essa outra... Bico-de-Gaivota. É esse o seu nome?

Dii fez um sinal afirmativo.

Ela é velha, essa, prosseguiu K’os, tirando um pedaço de peixe da panela que estava mexendo e comendo-o.

Dii ficou de olhos esbugalhados, admirada. As escravas não podiam comer das panelas sem autorização, mas quem estava ali para a impedir? Lembrou-se que a própria K’os tivera uma escrava, Aqamdax, a mulher Caçadora Marinha. Lembrou-se da magreza e do aspecto gasto de Aqamdax. Às vezes, a mãe de Dii dava um pouco de comida à mulher, apesar de ela ser escrava, apesar de ela ser Caçadora Marinha.

Dii tentou lembrar-se qual a família de Rio Próximo a que K’os pertencia. As famílias eram muitas para que ela aprendesse o nome de todas, mas agora sabia quais eram os amigos do marido ou os que tinham qualquer parentesco com ele.

Ela tem filhos, essa tal Bico-de-Gaivota? perguntou K’os.

Nenhum sobreviveu, respondeu Dii. E é tão velha que já nem sequer vai para a cabana do sangue lunar.

Então, creio que Raposa-Que-Ladra espera que lhe dês um filho.

Dii corou subitamente.

Sim respondeu ela em voz baixa.

Dii imaginou-se grávida. Não seria fácil dar à luz um filho naquela aldeia, sem a ajuda da mãe, mas lembrou-se das luas durante a gravidez em que Raposa-Que-Ladra não poderia pedir-lhe que fosse para a cama dele. Isso tinha o seu valor. E o que dizer da alegria de ter alguém que lhe pertencesse verdadeiramente, que trouxesse nas veias o sangue do pai e da mãe dela?

Seria bom ter um bebê observou Dii. K’os fez um sinal afirmativo.

Filha-do-Sol, é esse o teu nome, não é?

Eu mudei-o. Agora chamo-me Dii. Porque ninguém da minha família ainda está vivo.

Dii virou a cabeça, lembrando-se que devia ser cautelosa. Só um louco confiaria em alguém que era capaz de rir dos desgostos alheios.

Amanhã, vem outra vez às lareiras pela manhã, disse K’os. Se eu não estiver aqui, volta no dia seguinte. Vou trazer-te uma coisa. Não ajuda todo mundo... não me ajudou... mas talvez te dê um filho.

Dii agradeceu-lhe e depois começou a encher o pequeno odre de pele de caribu que trouxera consigo. Raposa-Que-Ladra estava à espera dela.

Admira-me que o teu marido mantenha a primeira esposa, velha como está e incapaz de lhe dar filhos, comentou K’os.

É por causa da costura. Ela tem jeito. Ele guarda as melhores parkas para si e consegue ganhar muito na venda das outras. Os animais veneram-no pelo respeito que ele revela por eles pelo modo como se veste.

Então é só por causa das parkas, concluiu K’os. Dii olhou para ela para ver se as suas palavras eram uma pergunta, mas era como se K’os se tivesse esquecido da sua presença. A mulher olhou para cima e lá para fora, para além do telhado das cabanas.

 

Então o que sabes da mulher chamada Bico-de-Gaivota? perguntou K’os.

Dois Punhos, a esposa do dono de K’os, franziu a testa. O sorriso de K’os morreu-lhe na boca. Dois Punhos desconfiaria da freqüência com que o marido levava K’os para a sua cama? Era provável, mas ela só os apanhara uma vez, a preguiçosa, quando voltava das lareiras muito antes do que devia. A mulher virou a cara sem responder.

“Ela que me ignore”, pensou K’os. “Tenho mais a quem perguntar.” Continuou a mexer a panela, encheu as tigelas para dois caçadores e depois, quando Dois Punhos apontou com o dedo do pé para uma das lareiras, tirou um braçado de lenha de um monte que havia ali perto e juntou cuidadosamente vários pedaços ao fogo.

Havia cinco lareiras em círculo no meio da aldeia, cada uma com o nome das quatro direções do vento e outra com o nome do Sol. K’os não sabia se havia lareiras acesas em Rio Primo, nem se o povo fora para os seus pesqueiros de Verão. Talvez tivessem ficado na aldeia de Inverno. Esta ficava perto do Lago do Avô, e a pesca era abundante nesse lago, tanto no Verão quanto no Inverno. Além disso, os pesqueiros de Rio Próximo e Rio Primo ficavam a menos de um dia de caminho. Porque eles de viveriam tão perto daqueles que quase os tinham destruído?

A maioria do povo de Rio Próximo optara por ficar na sua aldeia de Inverno, embora a pesca do salmão não fosse tão boa ali como na foz do rio. É claro que um acampamento de pesca não era propriamente uma aldeia, mas sim um grupo de tendas dispersas umas aqui, outras mais a montante e outras ainda mais para lá. Um local fácil para os guerreiros desejosos de vingança matarem famílias, uma a uma. K’os colocou o último pedaço de lenha numa lareira e levantou-se. Esfregou as mãos e depois começou a mexer uma panela.

Julguei que sabias os nomes de todas as mulheres desta aldeia, observou Dois Punhos. Estás conosco há quase cinco luas.

Elas são muitas e eu não consigo aprender os seus nomes tão depressa, respondeu K’os.

É claro que conhecia quase todos os homens, muitos deles porque a tinham visitado quando ela vivia na aldeia de Rio Primo. Em geral, as mulheres não eram tão importantes para ela. Porque seriam? Os homens é que detinham o poder.

Quando K’os viera para a aldeia de Rio Próximo, Raposa-Que-Ladra escolhera-a e ela concluíra que a vingança não seria fácil. Devia-lhe muito mais do que aquela violação e aquelas agressões remotas, que a tinham impedido de ter filhos. A sua vingança seria também por aquilo que ele fizera ao seu povo na aldeia de Rio Primo. Ele morreria, sim, mas não de uma morte rápida. Como sua escrava, ela decerto teria oportunidade de lhe colocar veneno na comida um pouco todos os dias até a doença o enfraquecer e o seu espírito já não ser capaz de fazer frente à morte.

No entanto, apesar de ele conservar quase todos os seus pertences, pouco depois vendera-a a Boca Negra. Agora seria mais difícil K’os levar a cabo os seus planos de vingança, mas talvez Bico-de-Gaivota fosse a solução.

Bico-de-Gaivota é muito reservada, afirmou Dois Punhos. Não é fácil agradar ao marido e todos os filhos dela morreram. Raposa-Que-Ladra conserva-a por causa das parkas que ela faz. Ela é habilidosa.

K’os ouvia Dois Punhos, que continuava falando da mulher, mas fingiu-se aborrecida. Não tardaria a ir visitar Bico-de-Gaivota, mas Dois Punhos não precisava saber.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Como compreendes, eu não tenho alternativa disse Sok a Folha Vermelha.

Os dois estavam a sós. Ele chamara-a à porta da cabana de partos e mantivera-se afastado dela enquanto falava.

A minha filha está bem? perguntou ela, como se ele não lhe tivesse falado do seu destino. Haviam-lhe levado a criança há três dias.

Sim, é forte. Chamariz é que está amamentando-la.

E Chora-Alto?

É bom. Um belo filho.

Folha Vermelha ergueu o rosto para ele. Sok percebeu que era a primeira vez que ela olhava para ele desde que ele descobrira que ela lhe matara o avô.

Como é que morrerei?

Sok foi apanhado de surpresa pela pergunta e depois pensou que, se estivesse na situação dela, perguntaria a mesma coisa.

Ainda não resolvi.

Antes... Antes disso, posso ver os meus filhos pela última vez? perguntou Folha Vermelha.

Sok olhou para o céu. Estava escurecendo; as estrelas abriam caminho através de uma leve camada de nuvens.

Não, respondeu ele. Para eles já morreste.

Era quase noite quando Chora-Alto foi falar com Chamariz.

O meu pai quer ver a nova filha, anunciou ele.

Eu levo-a assim que der de comer ao meu marido respondeu ela.

Ele disse-me que levasse a criança.

Chamariz olhou para Espreita-o-Céu. Ele encolheu os ombros.

Ela é filha dele, não tua. Já te disse muitas vezes para não te esqueceres disso.

Chamariz dirigiu-se à trave da cabana onde estava pendurada a prancha do bebê e desatou os fios que a prendiam. Era uma bela menina, dormia bem e chorava pouco. Tinha um rosto ossudo como o do pai, mas era morena como Folha Vermelha.

Chamariz foi atrás de Chora-Alto até o exterior da cabana e confiou-lhe a prancha de embalar.

Traga-a quando ela tiver fome, recomendou-lhe ela. Viu-o encaminhar-se para a cabana de Sok, depois virou costas e foi para junto do marido, sorrindo antes de entrar na cabana.

Não te preocupes, mulherzinha, disse Espreita-o-Céu, agarrando-a e puxando-a para o seu lado. Além disso, não levarei muito tempo pondo outro bebê dentro de ti. Depois terás dois para te ajudarem a esquecer aquele que perdemos.

 

Chakliux esgueirou-se sem fazer barulho das peles da cama para não acordar os outros que se encontravam na cabana. Dissera a Estrela que passaria o dia junto do Lago do Avô arpoando salmões num dos ribeiros de escoamento. Ela manifestou desejo de o acompanhar, mas ele sabia que ela seria um estorvo. Também sabia que, se a deixasse, ela seria um problema para qualquer pessoa da aldeia, muito provavelmente para Aqamdax.

Vestiu as perneiras de Verão e depois pegou a parka e o arpão, uma tábua de arremesso e os anzóis. Passaria pela cabana da mãe, que era madrugadora. Talvez ela quisesse passar o dia com Estrela.

Parou ao afastar a aba da porta para o lado, olhou para Aqamdax adormecida nas peles da cama e deixou-se ficar olhando para ela. Era alta para uma mulher e ele ouvira vários homens da aldeia criticarem as suas feições características dos Primeiros Homens um nariz pequeno demais, um rosto muito arredondado, uma boca ávida, pois com certeza uma boca tão grande devia falar e comer mais do que lhe competia. Mas lembrou-se do seu sorriso, dos seus olhos negros espalhando alegria, das suas histórias cheias de sabedoria e do seu riso travesso.

Ela merecia um homem melhor do que Homem Noturno.

Ligige’ avivou as brasas da lareira com um pau e vestiu a parka. Na sua idade, tinha muitas vezes frio e por isso habituara-se a dormir de perneiras e com uma camisa de mangas compridas feita de pele de caribu.

Os seus sonhos tinham sido tão vivos que a haviam acordado. Os homens de Rio Próximo tinham resolvido lançar um novo ataque? Eles não sabiam que já não havia mais nada para eles naquela pobre aldeia?

Ligige’ ouviu vozes e depois o latir dos cães. Calçou as botas de Verão e foi lá fora. Na cabana de Mulher Diurna a lareira estava acesa e a da cabana de Estrela também começava a brilhar. Sok passou por ela correndo e Ligige’ chamou-o.

O que aconteceu?

É a nossa mãe, gritou ele. Traga os seus medicamentos.

Ligige’ correu para o interior da sua cabana e pegou a pele de marta em que guardava as suas plantas medicinais. Quando entrou no túnel, rastejando, a maioria das pessoas da aldeia já se reunira em volta da cabana de Mulher Diurna. Ligige’ abriu caminho a custo.

Lá dentro, Sok e Chakliux estavam ajoelhados junto da mãe. Estrela também estava lá, em silêncio, por uma vez, com os seus olhos grandes e escuros, de expressão infantil, ao ver Ligige’.

Alguém a matou, declarou Estrela em voz baixa.

Não, retorquiu Sok. Pousara a cabeça e os ombros da mãe no colo e embalava-a como se fosse uma criança. Ela não está morta.

Ligige’ passou a mão pela boca de Mulher Diurna e sentiu um leve sopro. Com as pontas dos dedos verificou-lhe a pulsação na parte lateral do pescoço.

Ela está viva. O que aconteceu? perguntou Ligige’.

Havia mezinhas que ela poderia aplicar se algum espírito tivesse tentado parar o coração de Mulher Diurna, e chás para fortalecer o corpo, para combater qualquer mal que tivesse se apoderado dela.

Chakliux afastou o cobertor devagarinho, e Ligige’ susteve a respiração ao ver o sangue.

Uma faca, diria eu, observou Chakliux.

Viam-se muitos golpes nos braços da mulher, e até nas mãos.

Ela foi apunhalada várias vezes na barriga, concluiu Chakliux. Reparem nas mãos. Ela ofereceu resistência. Tinha o braço parcialmente ligado quando eu a encontrei. Deve ter tentado estancar a hemorragia. Vim aqui dizer-lhe aonde ia hoje. Julguei que a iria encontrar acordada, mas deparei com isto.

Com o queixo, Chakliux apontou para as esteiras em que Mulher Diurna dormia.

Deve ter sido atacada durante o sono. Tem a cama cheia de sangue.

Isto não foi há muito tempo, caso contrário ela estaria morta, comentou Ligige’, e depois entregou um punhado de gálio-boreal fresco a Estrela. Aquece isto num cilt’ogho de água. Deixa as plantas inteiras. Não as fervas.

Estrela pegou o gálio-boreal, mas ficou olhando para ele. Exasperada, Ligige’ tirou-o das mãos e afastou a aba interior para o lado. A velha Caule Torto estava de quatro no túnel de entrada.

Toma, disse Ligige’, entregando-lhe as plantas. Aquece-as em água. Já.

Sentiu uma ligeira pressão da mão de Chakliux no braço e sabia que ele lhe estava dizendo para se acalmar.

Como podia ela manter a calma se as suas mezinhas não eram suficientes para salvar Mulher Diurna, e de que serviam as suas preces? Pouco fizera na vida para conquistar o poder de que precisava para combater aqueles terríveis ferimentos. Era como uma criança, e a consciência do seu desamparo enfurecia-a.

Ligige’ olhou para Chakliux, e as lágrimas pesavam tanto que pareciam pedras nos seus olhos.

Não posso salvá-la, disse-lhe ela.

Porém, voltou para a cabana, e tentou impedir que o sangue que Mulher Diurna ainda tinha no corpo escorresse para o chão.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Bico-de-Gaivota, chamou K’os.

Era de manhã, mas não tão cedo que a velha ainda estivesse dormindo. Mas o que tinha Bico-de-Gaivota para fazer além da costura? Porque não ficaria preguiçosa?

Trouxe-te madeira, exclamou K’os, deixando cair o braçado de ramos de árvores derrubadas pelo vento junto da cabana de Bico-de-Gaivota. Era uma boa cabana, bem feita, apesar de K’os ter reparado que as peles de caribu começavam a esgarçar nas costuras.

K’os apanhou um ramo e arranhou as paredes da cabana.

Tu, escrava! O que desejas?

K’os voltou-se e viu Bico-de-Gaivota caminhando na sua direção.

Julgavas que eu estava dormindo a esta hora do dia? Uma mulher sensata tem mais que fazer do que dormir.

K’os ficou furiosa mas não disse nada. Se Bico-de-Gaivota era tão sensata porque lhe falava daquela maneira? Apesar de K’os ser escrava, tinha poder suficiente para lhe tirar a vida.

Vim trazer-te lenha, declarou K’os com uma voz meiga e baixando o olhar em sinal de respeito.

Bico-de-Gaivota parou ao ver o molho de ramos.

Quem te disse para fazeres isto? O meu marido? perguntou ela.

Era uma mulher simples, alta e muito magra, com orelhas grandes e olhos pequenos. Com certeza que o seu verdadeiro nome não era Bico-de-Gaivota. Quem lhe teria posto o nome de um pássaro tão preguiçoso como a gaivota? Mas K’os compreendia que lhe tivessem dado aquele nome. O nariz dela era comprido e afilado como o bico de uma ave e a voz era tão alta que se sobrepunha aos sons da aldeia como o grito de uma gaivota.

Ninguém. Até uma escrava tem tempo para ajudar os outros.

Bico-de-Gaivota deu uma gargalhada.

Mas nenhuma escrava o faria. Eu não sou estúpida. Sei como são os escravos de Rio Primo. Tu não tens o suficiente para comer. A pele da tua parka está ficando rala e não te aquecerá bem no Inverno. Se ninguém te mandou fazer isto, porque o fizeste?

K’os semicerrou os olhos. Bico-de-Gaivota era mais inteligente do que ela julgava. Quem pensaria que uma mulher com um resquício de inteligência fosse esposa de Raposa-Que-Ladra?

Na minha aldeia, eu era curandeira, informou-a K’os. Tinha tudo o que queria. O meu marido era o chefe dos caçadores. Eu até tinha uma escrava, embora me condoesse dela e fizesse o possível para que ela arranjasse marido. Não quero ser escrava para sempre.

Não tens nada que me dizer o que foste. Eu sei. Todo mundo sabe. Lembramo-nos da visita que fizeste à nossa aldeia e da morte do teu marido no incêndio de uma cabana em que também te encontravas. Como podes ter esperança de arranjar marido se todos os homens presenciaram o azar do teu? Julgas que algum caçador desta aldeia se arriscaria a tomar-te como esposa? Na opinião da maioria das pessoas, Boca Negra foi imprudente ao aceitar-te como escrava.

Aconteceu alguma desgraça a Boca Negra? perguntou K’os. Tem sido infeliz na caça? Os filhos dele adoeceram? A mulher morreu? Não. Os seus dotes de caçador aumentaram, há duas luas que a mulher dele deu à luz um filho robusto e os outros filhos estão bem.

Se és tão feliz, resmungou Bico-de-Gaivota, porque é que Boca Negra não casa contigo?

Dois Punhos não quer que ele tenha uma segunda esposa.

Bico-de-Gaivota encolheu os ombros. Tinha uma lareira no exterior da cabana, como se estivesse num pesqueiro. Pegou em vários ramos, os pôs sobre as brasas e acrescentou um pedaço de casca de bétula que tirou de uma bolsa que trazia à cintura. Pouco depois, as chamas lambiam os ramos. Pôs um tripé por cima da lareira e pendurou nele uma panela, entrou na cabana engatinhando e voltou com um odre de água. Despejou a água dentro da panela.

Fica mais um pouco, disse ela a K’os. A lenha que trouxeste dá-te direito a comeres alguma coisa. Ontem apanhei um pato bem gordo com as minhas boleadeiras e o meu marido trouxe-me umas martas. Juntos fazem um belo guisado.

K’os agachou-se junto da lareira, mas Bico-de-Gaivota fez um gesto rude com a mão.

Não sou tua escrava, declarou. Não fiques esperando que eu faça o trabalho todo. Vai buscar uma parte da lenha que trouxeste para alimentar o fogo. Depois diz-me por que razão vieste.

Na esperança de comer uma boa refeição, respondeu K’os, escolhendo uns ramos no monte de lenha.

És uma mulher cujo pensamento vai além da barriga, observou Bico-de-Gaivota.

K’os sorriu. Talvez gostasse de Bico-de-Gaivota.

Desde criança que tudo me foi dado, afirmou K’os. Agora, a vida não é fácil. De que serve a uma mulher ser escrava? No primeiro Inverno rigoroso, ela é entregue ao vento, para que a sua comida seja tragada por outros. Mas ensinaram-me a ser curandeira, e eu reparei que não há nenhuma nesta aldeia.

Flor Azul, disse Bico-de-Gaivota. Deu uma tigela a K’os, depois encheu a sua e apontou para a panela fervendo. Não tires muito. O meu marido terá vontade de comer mais tarde.

K’os estivera observando Bico-de-Gaivota e sabia que era raro Raposa-Que-Ladra ir à cabana da mulher, mas se lhe tinha dado carne de marta na véspera, talvez esperasse comer um pouco do guisado dela. Encheu metade da tigela, embora estivesse com fome e o seu corpo ansiasse por gordura.

Flor Azul não é curandeira, declarou K’os. Bico-de-Gaivota fez estalar os dedos ao vento.

Com certeza que não vieste aqui só para me dizeres isso.

Quero ser a curandeira desta aldeia. Bico-de-Gaivota riu.

Achas que confiarão em ti, uma escrava do povo de Rio Primo? Achas que eles tomarão as tuas mezinhas? Tanto podias curá-los como matá-los.

Por isso é que vim falar contigo. Bico-de-Gaivota abanou a cabeça e ergueu as sobrancelhas.

E se eu te ensinasse a fazer as mezinhas e tu as desses às pessoas?

Porque farias uma coisa dessas?

Com os artigos que recebes em troca, poderias comprar-me de Boca Negra. Eu trabalharia contigo como curandeira até as pessoas começarem a confiar em mim. Depois, talvez algum caçador quisesse receber-me como esposa, quando visse que eu não dava azar.

Como é que eu sei que posso confiar nas tuas mezinhas? E se tu só fizesses isso para te vingares?

Eu própria tomarei todas as mezinhas antes de as darmos a alguém.

Bico-de-Gaivota pegou a tigela da carne e comeu até esvaziá-la.

Quando terminou, deu um estalido com a boca em sinal de apreço e depois declarou:

Eu tenho comida. Tenho um marido. Sou respeitada nesta aldeia pelas parkas que faço. Não quero ser curandeira.

Eu tenho visto as tuas parkas, disse K’os. São muito bonitas. É pena que não tenhas uma escrava. Não terias que trabalhar tanto tomando conta das armadilhas nem pescando salmão. Devias ter mais tempo para costurar.

K’os comeu o resto da carne, levantou-se e agradeceu delicadamente a comida a Bico-de-Gaivota.

Agora vou embora, disse ela, despedindo-se segundo a tradição de Rio. Dois Punhos deve andar à minha procura. Ao sair, acrescentou: Pelo menos, ainda bem que o teu marido não é preguiçoso. Ainda bem que Raposa-Que-Ladra te traz sempre tanta carne.

E afastou-se com um sorriso.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Depois de Mulher Diurna ter morrido, Sok dirigiu-se à cabana de partos de Folha Vermelha. Ela já tinha matado antes. O que a impediria de voltar a fazê-lo? Que melhor maneira de se vingar do que matar a mãe de Sok?

Chamou-a e, como não obteve resposta, afastou a aba da entrada e viu Chora-Alto sozinho lá dentro, enrolado como uma bola. Sok respirou de alívio quando tocou no filho e este se levantou de um salto.

Ela foi-se embora e levou a nossa irmã, comunicou Chora-Alto antes que Sok falasse. Saiu durante a noite. Eu trouxe-lhe comida e o bebê. Não me interessa o que me possas fazer. Eu não podia deixar que matasses a minha mãe.

Sok fechou os olhos. Folha Vermelha. A mulher causara-lhe mais infelicidade do que alguém poderia suportar. Matara-lhe o avô, agora roubara-lhe a filha e talvez lhe tivesse morto a mãe. Quem mais faria tal coisa?

Folha Vermelha não pensara na maldição que lançara sobre o rapaz, o filho mais velho de Sok? Dormir naquela cabana, um local ensopado de sangue do parto, podia destruir os seus dotes de caça para toda a vida. E Sok estava ali amaldiçoando-se, tal como o filho fora amaldiçoado.

Vem comigo. Não devemos ficar aqui, ordenou ele a Chora-Alto.

Levou o rapaz para a cabana de Estrela, para junto do seu irmão Chakliux. Quem era mais sensato do que ele? Quem saberia melhor o que fazer?

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Só por sorte é que K’os soubera do sofrimento da velha Rato Silvestre. Estava sentada à porta da cabana de Dois Punhos fazendo linha de costurar de um pedaço de tendão de baleia-branca. Dois Punhos comprara o tendão de um mercador e gabara-se às outras mulheres de que as botas e a parka do marido ficariam muito bem costuradas com tendão forte de beluga. Mas não era ela que tinha que extrair aqueles malditos fios, muito mais difíceis de partir do que os tendões de caribu.

Que importância tinha isso? pensou K’os consigo mesma. Para compensar o seu trabalho árduo, conseguira roubar um pedaço de pele de lince, só um pedacinho cortado da ponta da barriga, mas o suficiente para as suas necessidades. Escondera-o junto das outras relíquias que já acumulara, o olho de uma raposa acabada de ser morta e que agora depois de seco era apenas um círculo estaladiço, fino como uma folha; o bico de um martim-pescador e a pele do peito, ainda por depenar, de um papa-moscas.

Quando ouviu dizer que Rato Silvestre vinha descendo o carreiro, K’os não levantou a cabeça do que estava fazendo. Uma vantagem de ser escrava era ser ignorada pela maioria das pessoas. Mas, de repente, Rato Silvestre começou a gemer. Levando a mão à barriga, agachou-se por instantes no carreiro e desatou a chorar como uma criança. K’os continuou a costurar e por fim aproximaram-se duas mulheres, que ajudaram Rato Silvestre a levantar-se e a ajudaram a ir para a sua cabana, mas não sem que K’os tivesse ouvido a velha queixando-se do sangue na urina e de dores e cãibras no baixo-ventre.

Mais tarde, quando K’os acabou de cortar os tendões e Dois Punhos a mandou ajudar na represa do peixe, arranjou maneira de passar pela tenda de Bico-de-Gaivota, parou e chamou-a em voz baixa. Quando Bico-de-Gaivota saiu, K’os inclinou-se para ela e segredou:

Rato Silvestre está doente.

Tens alguma mezinha que a ajude? K’os fez um sinal afirmativo.

Arranjarei um pretexto para vires à minha cabana esta noite, depois de os homens terem comido.

K’os encaminhou-se para o rio e meteu-se na água. Cerrou os dentes com o frio e lançou a sua pequena rede. Ficou ali até os peixes julgarem que as suas pernas não passavam de cepos, Por fim, aproximou-se um salmão, e, com um movimento rápido, K’os levantou a rede, tirando o peixe da água. Em seguida, lançou-o para a margem, onde os rapazes o aguardavam com paus.

Voltou a baixar a rede e, para se distrair das dores nos ossos provocadas pela água fria, começou a planejar o que faria à bela parka que Bico-de-Gaivota estava confeccionando para Raposa-Que-Ladra. Esta dissera a K’os que a enfeitaria com símbolos sagrados. Círculos com penas de águia nos ombros, para ele ter uma visão nítida; orelhas de castor costuradas dos dois lados do capuz para lhe fortalecer o ouvido; uma tira de pele de peixe mesmo por cima da bainha para o proteger dos espíritos desconhecidos quando andava longe da aldeia. No peito, costuraria uma tira de bicos de corvo que comprara. Sempre que Raposa-Que-Ladra usasse a parka, os bicos atrairiam o sol e as penas dançariam ao vento.

Todavia, quando K’os lhe juntasse os seus amuletos e maldições, sempre que ele vestisse aquela parka os bicos gritariam aos espíritos: ali está um homem que rouba a alegria das jovens mulheres. As penas de águia diriam: Tenham cuidado com um velho que construiu o seu poder à custa de mortes e de mentiras.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Yaa encolheu-se em um canto nos fundos da cabana de Estrela e tentou pensar apenas na sua costura. Não era delicado ouvir as conversas das outras pessoas, mas as palavras de Ligige’ ressoavam nas paredes de pele de caribu. E apesar de a voz de Chakliux não ser estridente, era a voz de um contador de histórias, e, embora ele falasse baixinho, a sua voz parecia ir ao encontro de quem ouvia. Pelos cálculos de Yaa, eles deviam estar lá fora, atrás da cabana.

Tens certeza? perguntou Chakliux.

Yaa sentiu a exasperação nas palavras de Ligige’ quando esta voltou a dizer:

Tenho certeza. Foi Folha Vermelha. Eu vi as feridas de Ghaden depois de ela o ter atacado. Eu própria preparei o corpo do meu irmão para os rituais da morte depois de ela... A voz de Ligige’ falhou, e por instantes Yaa não ouviu nada.

Depois, Chakliux voltou a falar:

Então ela tinha um motivo para matar, por muito estúpido que ele nos pudesse parecer. Mas porque ela mataria a minha mãe?

Para fugir! respondeu Ligige’.

Então porque foi à cabana de Mulher Diurna? Porque não se limitou a abandonar a aldeia? Se ela atacou a minha mãe na cama, não foi com certeza porque Mulher Diurna tentasse impedir-lhe a fuga.

Talvez houvesse alguma coisa na cabana que Folha Vermelha queria, observou Ligige’. Talvez ela fosse lá roubar alguma coisa e Mulher Diurna tivesse acordado.

Talvez...

As vozes de ambos desvaneceram-se e Yaa percebeu que eles deviam estar afastando-se da cabana. Largou o que estava costurando e observou Olhos Grandes. A velha estava dormindo, pronunciando entre dentes longas seqüências de palavras, confusas demais para que Yaa as entendesse. No meio dos seus sonhos, Olhos Grandes afastara o seu cobertor de pele de coelho e Yaa foi tapá-la outra vez.

Estás em segurança, tranqüilizou-a Yaa e acariciou o cabelo de Olhos Grandes. Entoou uma canção em voz baixa e pensou em Folha Vermelha. Como era estranho que uma mulher vivesse entre eles como uma pessoa normal e depois se tornasse uma assassina. O que poderia levar uma pessoa a fazer tal coisa?

Os homens resolveram não ir atrás de Folha Vermelha. Para quê? Talvez ela e o bebê já estivessem mortos. O cheiro do sangue do parto de Folha Vermelha e o hálito leitoso do bebê atrairiam os lobos. Yaa estremeceu ao pensar nas suas mortes e nos dentes afiados e dilacerantes dos animais. E o que fizera aquele bebê para merecer tal morte?

Yaa vira Chamariz chorando por aquela menina, apesar de Sok não ter lamentado a filha. Disse a Chakliux que estava satisfeito por Folha Vermelha ter levado o bebê. Não queria criá-lo; ele só lhe lembraria a morte da mãe.

Yaa contou os dias nos dedos. Já havia três que a aldeia estava de luto. Mais um dia e poriam o corpo de Mulher Diurna na armação fúnebre que seria levada para a floresta sagrada. Em seguida, a sua pequena cabana seria queimada. Um desperdício lamentável de peles de caribu, mas que outra coisa poderiam fazer? Nem sequer Ligige’ teria coragem de viver numa cabana cheia do sangue de uma morte como a de Mulher Diurna. Na sua vida só houvera tristeza. Era melhor expurgar a aldeia daquela má sorte do que salvar algumas peles de caribu já gastas.

Yaa recomeçou a costurar e afastou os pensamentos de morte e de assassinato. Estava fazendo umas perneiras para Ghaden e não queria que a tristeza ou o azar ficassem presos nas costuras. Em vez disso, pensou em falcões e em léngues. Que melhores animais existiam para dar sorte e perícia a Ghaden na sua caçada?

 

Aqamdax era cautelosa. Nunca pegava grandes pesos. Caminhava devagar e pensava em coisas boas. Entoava canções de paciência ao filho que trazia no ventre e rezava para que ele não nascesse cedo demais. Os bebês do sexo masculino eram mais frágeis do que as meninas, segundo diziam as velhas, e tinham menos gordura debaixo da pele para lhes manter a vida.

Contudo, dois dias depois do fim do luto por Mulher Diurna, Aqamdax acordou com dores.

Estava sentada nas peles da cama, com as mãos sobre a barriga, quando Estrela acordou e começou a gritar:

Sai! Sai da minha cabana! Se o meu bebê nascer mais cedo por causa de ti, mato o teu filho!

Os seus gritos despertaram Chakliux. Este puxou Estrela da cama e levou-a lá para fora. Depois Homem Noturno também acordou. Esfregou os olhos e perguntou:

As dores recomeçaram?

Não são fortes, respondeu Aqamdax.

É melhor saíres.

Ela ficou à espera que ele prometesse rezar pela sua segurança, pela sua vida e pela do filho, mas ele não o fez. Estrela dissera-lhe que Homem Noturno receava que o bebê não fosse dele, e Aqamdax via-lhe esse receio no olhar.

Tivera um período de sangue lunar antes de se tornar mulher de Homem Noturno, e K’os não a entregara a nenhum homem depois disso. O filho tinha que ser de Homem Noturno. Ela dissera-lhe, mas ele ignorava-a, como se ela não dissesse absolutamente nada.

Aqamdax juntou as suas coisas, os amuletos de nascimento e os apetrechos para o bebê. Não fizera um berço segundo a tradição dos Primeiros Homens uma estrutura de madeira quadrada, pendurada nas traves da cabana, que suportava uma rede onde o bebê dormia. Para agradar ao marido, aplicara numa prancha dura um encosto de madeira de abeto e tiras de couro entrelaçado para segurar a cabeça do bebê, para este se manter na posição adequada .

Nos dois dias que se seguiram ao luto por Mulher Diurna, Aqamdax fizera um abrigo com esteiras e paus de salgueiro para dar à luz. Era pequeno, mas Ligige’ emprestara-lhe uma pele de caribu raspada para enrolar no topo, e Aqamdax construíra-o debaixo de um grande abeto branco na esperança de que a árvore a abrigasse da chuva e do vento.

Ao sair da cabana de Estrela, Aqamdax pediu a Yaa que levasse vários odres com água e uma bolsa de sal seco. Yaa saltou da cama para seguir Aqamdax e virou-se para xingar o irmão, Ghaden, quando este tentou retê-la.

Mordedor, o cão de Ghaden, foi atrás de Yaa, e Ghaden protestou de novo, até que Homem Noturno lhe deu um olhar fulminante.

Te comporta como um homem, ordenou. Não és um bebê como aquele que vai nascer.

Então Ghaden calou-se e, quando achou que Homem Noturno não estava olhando, enfiou o dedo na boca, meteu a cabeça debaixo de um cobertor de pele de lebre e fingiu que estava dormindo.

Quando Estrela e Chakliux voltaram para a cabana, Estrela calou-se e Ghaden, espreitando por baixo dos cobertores, viu que havia calma no seu olhar. Mesmo sem Yaa na cabana, talvez o dia fosse bom.

Levantou-se da cama, foi até à beira do rio e fez as suas necessidades. Tirou vários peixes de um dos estrados e enfiou-os nas mangas da parka. Como todos os rapazes da aldeia, passaria uma parte do dia guardando os estrados de seca das raposas e dos corvos que tentavam roubar carne.

A princípio, a vigilância não oferecera dificuldade. Um pau erguido e um grito eram suficientes para os afastar, mas, sempre que conseguiam roubar alguma coisa, as raposas tornavam-se mais atrevidas e agora rosnavam-lhe quando ele se aproximava. Esquilo contara a Ghaden que uma raposa lhe abocanhara a ponta do pau e tentara tirar-lhe das mãos. Por fim, o irmão de Esquilo vira o que estava acontecendo e conseguira afastar a raposa atirando-lhe pedras.

Depois de ouvir a história de Esquilo, Ghaden pedira a Yaa que lhe fizesse uma pequena bolsa. Naquele momento, debruçou-se na margem e encheu a bolsa de pedras. Depois, voltou para a cabana.

Acompanhara Chakliux no luto por Mulher Diurna, lembrando-se do desgosto que tivera quando a sua própria mãe, Daes, morrera, embora isso tivesse acontecido há muito tempo. Agora, mal se lembrava do rosto dela, apenas do seu sorriso. Todos os dias repetia mentalmente as palavras na língua dos Caçadores Marinhos que ela lhe ensinara, para não se esquecer delas também. Quando estas desaparecessem, o que restaria dela?

Às vezes, falava nela à irmã, Aqamdax, mas quando o fazia ela ficava sempre triste. Um dia, lhe faria uma surpresa com esses termos, e talvez ela ficasse satisfeita. Gostava que Aqamdax vivesse na cabana deles e que já não pertencesse a K’os. Esta fora má para Aqamdax, obrigara-a a dormir no túnel de entrada, mesmo em pleno Inverno.

Agora, era preferível que Aqamdax fosse mulher de Homem Noturno, apesar de este estar quase sempre zangado com ela, muitas vezes aos gritos, embora fosse quase sempre Estrela que causava problemas. Que outra mulher da aldeia estragava sempre as roupas que estava tentando fazer ou deixava pegar fogo na panela? Quem mais deixava esturrar a carne?

Embora Chakliux houvesse dado a Estrela peles de caribu suficientes para construir uma nova cabana, e Chakliux, Ghaden e até Homem Noturno tivessem cavado um círculo, cortado estacas e carregado pedras, Estrela ainda nem começara a costurar o telhado.

Seria mais fácil pôr Estrela noutra cabana, embora Ghaden não soubesse se ele e Yaa ficariam com Homem Noturno e Aqamdax ou iriam com Estrela e Chakliux. Homem Noturno não gostava de Chakliux, apesar de este ser um bom marido para Estrela, sempre dando-lhe pequenos presentes, como penas de pássaro ou caudas de raposa.

Ghaden entrou de novo na cabana e não fez barulho ao aproximar-se da cama de Olhos Grandes. A velha ainda estava dormindo. Estrela estava fazendo algo ao que tinha na panela e pouco depois saiu da cabana, talvez para ir buscar mais comida, pensou Ghaden, mas muito provavelmente para passear pela aldeia, sem fazer nada.

Ghaden pegou duas tigelas de carne, deu uma a Homem Noturno e a outra a Chakliux. Este ergueu a sobrancelha e levantou a tigela ao mesmo tempo, mas Ghaden abanou a cabeça e tirou um peixe da manga. Chakliux sorriu-lhe e começou a comer.

Ghaden jogou-se na cama. Quem dera que Yaa não tivesse levado Mordedor! Ele gostava de ter o cão junto de si.

Pelo menos Folha Vermelha fora-se embora da aldeia. Ghaden sabia que fora ela quem matara a sua mãe. Também o apunhalara, e os locais dos golpes às vezes ainda lhe doíam, sobretudo quando estava frio lá fora.

Tentou não pensar na noite em que tal acontecera, tentou não se lembrar de que a culpa fora dele. Vira Folha Vermelha vestida de homem, de caçador, e julgara que ela era o pai, o comerciante Cen. Saíra correndo da sua cabana segura ao encontro de Folha Vermelha e a mãe fora atrás dele. Se ele tivesse ficado com a mãe, Folha Vermelha nunca teria sabido que eles estavam ali, à espera que a esposa-irmã da mãe adormecesse para eles voltarem para a cabana. Ghaden continuava a não entender por que motivo tinham sempre que fazer o mesmo quando iam visitar Cen na sua cabana de comerciante, nem sabia porque não viviam com o pai. Mas havia muitas coisas no mundo que ele não compreendia, coisas que pareciam confundir a própria Yaa.

Agora, porém, Folha Vermelha partira. Morreria dentro de pouco tempo, segundo diziam, longe da aldeia e com um bebê para criar. Isso era péssimo, pensou Ghaden. Queria que ela vivesse até ele ser um homem para depois matá-la.

Aqamdax agachou-se à entrada da cabana de partos. Construíra a cabana com a porta virada a nascente, para honrar a luz. Desde que saíra da cabana de Estrela que a aurora se espalhara no céu, afastando as estrelas, expulsando-as uma a uma. As dores apoderavam-se dela, que respirava fundo e demoradamente até elas passarem. Não eram dores insuportáveis, nem sequer parecidas com aquelas que sentira pela primeira vez quando entrara em trabalho de parto. Não estava preocupada. O chá de Ligige’ já lhe aliviara as dores e voltaria a fazê-lo.

Em criança, muitas vezes vira mulheres da aldeia dos Primeiros Homens andando apesar das dores do parto. Sorriu ao lembrar-se dos cochichos das mulheres e da expressão grave dos homens, fingindo que não sabiam que ia nascer um bebê.

Até ali, no Povo Rio, a maioria das mulheres caminhava para acelerar o parto, mas Aqamdax deixava-se ficar quieta. Era preferível que o bebê não nascesse por enquanto, que esperasse mais uns dias.

Pouco depois, Yaa apareceu com Ligige’ e a velha começou a resmungar por causa de Aqamdax, ordenando a Yaa que fosse buscar lenha, fizesse uma fogueira e trouxesse água. Ligige’ trouxera um tripé da sua própria lareira, e quando as chamas se extinguiram ela colocou-o sobre as brasas. Parecia preocupada com alguma coisa.

Estás bem? perguntou Aqamdax por fim.

Ligige’ fez um sinal afirmativo.

Estão todos bem na aldeia? insistiu Aqamdax.

Estão todos bem, mas há um certo espírito de desordem no trabalho. O meu cão soltou-se esta manhã e as brasas da minha lareira se apagaram.

Continuou a resmungar contra os cães e as brasas. Aqamdax, aliviada, tentou não rir. Era sempre embaraçoso quando as brasas da lareira de uma mulher se apagavam, sobretudo para uma velha que não possuía filhos para cuidar, que não tinha que cuidar de nada exceto da sua cabana.

Eu teria feito este chá muito mais cedo se não me tivessem acontecido todas aquelas coisas.

Aqamdax, acometida de outra dor, não disse nada. Ligige’ parou olhando para ela.

As dores não são tão insuportáveis? perguntou ela.

Não, respondeu Aqamdax. Nem tão juntas.

Ainda bem. Então talvez não seja grave que este chá esteja atrasado.

Com uma tigela de madeira, Ligige’ tirou água da panela, mergulhou nela um pouco de raiz de choupo-balsâmico, retirou-a e estendeu a tigela a Aqamdax.

Bebe depressa antes que venha outra dor. Aqamdax bebeu um gole. Estava quente demais, mas ela bebeu. Queimou-lhe o tubo digestivo e ela rezou para que as dores parassem.

Tens andado? perguntou Ligige’.

Julguei que seria melhor não o fazer.

Ainda bem, fique quieta. Yaa, vai à tua cabana. Vai buscar alguma coisa que mantenha ocupadas as mãos de Aqamdax.

O meu cesto, pediu Aqamdax a Yaa, e a menina desatou a correr.

Isso impedirá que penses no bebê. Talvez quando ele perceber que ninguém está pensando nele resolva esperar e nascer noutro dia.

Yaa entrou na cabana. Mordedor tinha ido com ela e saltou por cima de Ghaden, fazendo o rapaz rir. Homem Noturno e Chakliux estavam a comendo. Ela não lhes disse nada, esperando por delicadeza que Homem Noturno perguntasse pela mulher. Por fim, pegou o cesto, passou de propósito junto dele, mas, quando falou, este disse apenas:

Volta logo que possas. Olhos Grandes não tarda a acordar e Estrela não está aqui.

A tua mulher... começou ela, mas Homem Noturno virou a cabeça para o lado.

Como está Aqamdax? perguntou finalmente Chakliux.

Homem Noturno fez um trejeito com a boca, mas Yaa respondeu:

A Ligige’ deu-lhe outra vez o remédio para impedir que o bebê nasça.

Yaa ficou à espera de mais perguntas, mas nenhum dos homens falou e ela disse a Ghaden que enrolasse as esteiras da cama e fosse buscar lenha. Ele fez uma careta, mas ela sabia que ele atenderia ao seu pedido.

Não te esqueças de Olhos Grandes, recomendou Homem Noturno quando ela saiu da cabana.

Chakliux sentou-se junto de Homem Noturno, à espera que ele iniciasse as orações ou os cânticos. Certos maridos até jejuavam quando as mulheres estavam dando à luz, mas Homem Noturno não era desses. Chakliux ficou, julgando que Homem Noturno queria falar de alguma coisa. Mas este agiu como se estivesse sozinho na cabana, e Chakliux não sabia se deveria ir embora. Queria fazer as suas próprias orações, entoar os seus próprios cânticos, para proteger Aqamdax e o filho dela.

Resolveu esperar que Yaa voltasse. Ela poderia dizer-lhe mais uma vez o que Aqamdax estava fazendo. Por fim, a aba da porta abriu-se e Yaa entrou. No mesmo instante, Olhos Grandes acordou, percorreu a cabana com o olhar e deu um grito ao ver Chakliux, mas depois acalmou-se quando reparou que Homem Noturno estava ao lado dele. Homem Noturno ajudou Yaa a levantar Olhos Grandes da cama, disse à menina que a levasse à latrina das mulheres e que depois a trouxesse e lhe desse comida. Yaa vestiu em Olhos Grandes uma parka de Verão, apertou-lhe os atilhos das botas e depois ela e Homem Noturno ajudaram a velha a sair da cabana.

Chakliux ouviu Yaa e Homem Noturno conversando mas não conseguiu decifrar as suas palavras. Quando Homem Noturno voltou, Chakliux perguntou-lhe por Aqamdax, mas ele encolheu os ombros.

Não me interessa, declarou ele. Mergulhou a tigela na panela. Queres mais? perguntou, mas de repente Chakliux não foi capaz de comer.

Viu Homem Noturno levar a tigela à boca e engolir vários pedaços de carne.

Tu não te interessas, observou Chakliux. Homem Noturno baixou a tigela.

Não fui eu que a escolhi. Ela não é do nosso povo, mas não é má mulher e por isso vou conservá-la. Que outra mulher me aceitaria? indagou ele, apontando para o braço inutilizado. Não quero que ela morra, mas o bebê não significa nada para mim.

Mesmo que seja um rapaz?

Tenho certeza de que não é meu.

Chakliux sentiu-se corar, primeiro de incredulidade e depois de raiva.

Julgas que ela dormiu com outro homem?

Não, desde que é minha mulher. Mas antes disso era escrava. K’os obrigava-a a dormir com outros homens e depois ficava com os presentes. O filho pode ser de algum guerreiro que já não exista, morto pelos de Rio Próximo na luta.

Mesmo assim seria teu... Uma filha para cuidar de ti na velhice, um filho para te trazer carne...

E se o espírito do verdadeiro pai voltar para ver esse filho, para o ver tornar-se homem e descobrir que eu o usurpei? Achas que ele ficaria satisfeito ao ver o filho criado por um homem que se deitou na sua cama e que não fez nada, enquanto as pessoas de Rio Próximo matavam todo mundo e roubavam as nossas mulheres?

Creio que ele ficaria satisfeito que um homem de bom coração estivesse criando-lhe o filho.

Porém, Homem Noturno declarou:

Se o bebê nascer cedo e for suficientemente forte para viver, tenho certeza de que não é meu.

O chá não fez parar as dores. Cada uma era um pouco mais forte e mais prolongada. Por fim, Ligige’ disse a Aqamdax que fosse para a cabana de partos. Ajudou-a a deitar-se nas esteiras.

Ligige’ tirou a parka de Verão que Aqamdax trazia vestida, despiu-lhe as calças de pele de caribu e depois, no meio de uma dor, enfiou-lhe um dedo na vagina.

Também podes ir lá para fora e andar, sugeriu Ligige’, ajudando Aqamdax a levantar-se. Já estás meio aberta, pelo menos. Não creio que o meu chá te seja útil agora. O bebê resolveu nascer.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Bico-de-Gaivota aproximou-se de K’os quando esta estripava e cortava o salmão e depois o entregava à filha de Dois Punhos, que pendurava as carcaças cortadas pela cauda nos estrados de seca.

O remédio deu resultado, cochichou Bico-de-Gaivota.

A faca de K’os, que fazia cortes horizontais na carne espessa e rosada, parou por instantes, e depois continuou, como se Bico-de-Gaivota não tivesse dito nada.

Trouxe-te contas de osso de peixe.

K’os levantou-se, limpou uma das mãos nas calças de pele de caribu e abriu uma bolsa que trazia pendurada à cintura. Bico-de-Gaivota colocou as contas dentro da bolsa e K’os puxou os atilhos com força.

Vem falar comigo se souberes de mais casos, disse ela a Bico-de-Gaivota. Depois agachou-se de novo diante do monte de peixe reluzente.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Aqamdax agarrou-se à corda. Atara-a ao ramo grosso do abeto-branco que estava por cima da cabana de partos. A corda desapareceu na esteira que fazia de telhado, e Aqamdax desejou ir lá para fora com ela, longe das dores e do ambiente carregado, do cheiro penetrante de suor e de fluidos do parto.

Ouviu Ligige’ dizendo-lhe para fazer força, para fazer força e respirar, mas as palavras eram distantes e difíceis de entender. Cada dor parecia uma onda e Aqamdax tentava flutuar, como se fosse no pequeno iqyax com Sok, navegando no mar do Norte quando chegou como sua noiva e conheceu o Povo Rio.

Depois, de repente, a dor aumentou, tanto, tão dilacerante que ela julgou que não conseguiria suportá-la, mas em seguida ouviu-se outra voz, o som súbito de um bebê chorando. Um choro intenso, zangado.

Um filho, exclamou Ligige’. Um rapaz, um caçador.

Ele é grande? É perfeito? perguntou Aqamdax.

É pequeno, mas é forte. Ouve-o chorar.

Em seguida, Ligige’ pegou a criança e depositou-a nos braços de Aqamdax. Esta tentou deitar-se de costas, mas Ligige’ impediu-a.

Espera que as secundinas saiam, ordenou ela, e depois chamou Yaa como se visse através das paredes de esteira e soubesse que a menina esperava lá fora.

Yaa entrou na cabana.

Como sabias que eu estava ali? perguntou ela. Depois, antes que Ligige’ respondesse, indagou: Menino ou menina?

Menino, respondeu Ligige’. Eu sabia que estavas ali, porque se eu estivesse no teu lugar era o que faria.

Yaa riu e Ligige’ apontou para Aqamdax com o queixo.

Vai sentar-te junto dela. Mantêm-na sentada até as secundinas saírem.

O cordão, espesso e azulado, pendia retorcido da barriga do bebê. Quando já não pulsava, Ligige’ atou-o junto do umbigo e depois deu outro nó a um palmo de distância. Cortou-o entre os nós com a lâmina de obsidiana da sua faca de partos. Em seguida, a placenta saiu num jato de sangue e de água, e Ligige’ envolveu-a numa esteira e a pôs de lado para mais tarde queimá-la.

Deita-a, ordenou ela a Yaa.

Yaa amparou Aqamdax pelas costas e instalou-a com cuidado no chão coberto de esteiras. Ligige’ limpou Aqamdax e tapou-a. Depois, tirou-lhe o bebê dos braços e lavou-o. Envolveu-o nas peles de lebre macias que Aqamdax preparara para ele e entregou-o de novo à mãe.

É tão pequenino que pode não saber mamar. Tenta. Ligige’ observou Aqamdax quando esta rolou o corpo para o lado, levantou a camisa e ofereceu o mamilo ao bebê. Este virou a cabeça, agarrou-o e começou a mamar. Ligige’ riu.

Yaa, fica aqui com ela. Eu tenho outras coisas a fazer. Ligige’ saiu, levando as secundinas. Quando acabou de queimá-las, regressou à cabana e pôs a cabeça lá dentro.

Estão os dois dormindo, cochichou-lhe Yaa.

Fica junto deles até Aqamdax despertar. Não a acordes, deixa-a dormir. Depois vai chamar-me.

Ligige’ dirigiu-se para a aldeia. Era agradável participar a um pai o nascimento de um filho. A criança era pequena, nascera prematuramente, sem dúvida, mas era forte. Mamava bem e Aqamdax seria uma boa mãe. A criança viveria, pelo menos até ao período de fome do fim do Inverno. Depois, quem poderia dizer? Mas para quê pensar em desgostos que talvez nunca viessem? Mais tarde haveria tempo para chorar, se a criança morresse.

Ligige’ raspou na cabana de Estrela e ouviu Olhos Grandes levantar a voz numa resposta vaga. Inclinou-se para entrar e quase esbarrou em Chakliux.

Um filho! exclamou ela, cantarolando. Reparou no olhar preocupado de Chakliux.

E Aqamdax? perguntou ela.

É uma mulher forte. Será uma boa mãe. Chakliux fechou os olhos e respirou fundo.

Onde está Homem Noturno?

Lá dentro.

Chakliux recuou e abriu a aba. Esperou que Ligige’ entrasse e depois mexeu os lábios numa prece silenciosa de ação de graças. Ao entrar, ouviu Homem Noturno levantar a voz, furioso, e por isso ficou à entrada, desviando o olhar.

Tens certeza de que a criança nasceu mais cedo? perguntou Homem Noturno.

Ligige’ agachara-se junto dele, com as mãos pousadas nos joelhos, e Chakliux, olhando rapidamente para ela e depois desviando o olhar, reparou que ela estava com um ar cansado. Afinal, era uma velha e fora acordada muito cedo para ir tratar de Aqamdax.

Ele é muito pequenino, mas é forte. Já está mamando informou ela.

Achas então que ele sobreviverá?

Ninguém pode dizer ao certo. Ele é que tem de decidir se quer ficar neste mundo. Tenho visto morrer bebês maiores e viver outros mais pequenos, mas não há motivo para que esta criança morra.

Homem Noturno resmungou.

Se quiseres vê-lo, disse Ligige, eu trago-o aqui fora. Vai ao extremo da aldeia.

Não, eu espero que chegue o momento de a mãe sair da cabana de partos.

Ligige’ encolheu os ombros e Chakliux percebeu que, como Estrela não estava, talvez ele devesse oferecer-lhe comida.

Tia, estás com fome, afirmou ele, pegando uma tigela e enchendo-a de caldo e de carne.

Ela pegou a tigela e comeu e, para surpresa de Chakliux, Olhos Grandes levantou-se, abriu um odre de água e ofereceu-o a Ligige’. Talvez um bebê naquela cabana lhes devolvesse Olhos Grandes. Noutros tempos, fora uma boa esposa para Topa-Nuvens. Seria um bom indício se o espírito dela tivesse resolvido regressar à aldeia.

Chakliux ouviu alguém arrastar os pés no túnel de entrada e depois Yaa entrou na cabana, com os olhos brilhando.

Fui primeiro à tua cabana, disse ela a Ligige’. Depois, calculei que estivesses aqui. Aqamdax acordou.

Não há problemas?

Não me parece.

Ligige’ levantou-se e colocou a tigela na panela.

Então vou comer mais um pouco antes de voltar. Tens a comida que Aqamdax separou para ela? perguntou, com a boca cheia de carne.

Está na despensa, respondeu Yaa.

Vai buscá-la. Eu levo-a quando for.

Yaa voltou depressa com um saco de erva entrançada. Ligige’ largou a tigela vazia e abriu o saco, vasculhando o conteúdo.

Não podes deixar que uma mulher que acabou de dar à luz coma carne fresca, disse ela a Yaa. Peixe fumado, sim. Isto é do ano passado? Esta aldeia não perdeu toda a carne do ano passado na luta? perguntou ela, tirando várias tiras de carne seca.

Fui eu que lhe dei, esclareceu Chakliux. É da que trouxe comigo quando vim da aldeia de Rio Próximo.

Dos caçadores de Rio Próximo? perguntou Homem Noturno.

É carne de foca dos Primeiros Homens. Passei o último Inverno na aldeia deles.

Homem Noturno franziu a testa.

Tens certeza que não é de Rio Próximo?

Não é.

Chakliux estava prestes a explodir de raiva e desviou o olhar. Quem é que não sabia que uma mulher precisava de carne depois de dar à luz? Contudo, aquele homem sacrificaria as energias da mulher pelo seu ódio pelo povo de Rio Próximo. Quase lhe fazia lembrar o Homem Noturno que iniciara a luta, que fora o primeiro a atacar, mas não permitiu que aquilo que sentia se transformasse em palavras. Levantou-se e proferiu:

Tenho que ir à procura da minha mulher para lhe dizer que tem um sobrinho.

Saiu da cabana, satisfeito por se afastar do ódio latente de Homem Noturno.

O bebê é meu irmão? perguntou Ghaden a Yaa. Acariciou o dorso de Mordedor com as pontas dos dedos, deixando estrias que pareciam pequenos vales no pelo castanho do cão.

O bebê de Estrela é que será teu irmão ou irmã, e o de Aqamdax é teu primo, respondeu Yaa. Fez uma pausa e depois acrescentou: Bem, não. Aqamdax é tua irmã, portanto, tu és tio dele. Pelo menos, é o que eu acho. E eu sou uma espécie de tia.

Ghaden encheu o peito de ar.

Terei que tomar conta dele. Terei que ensinar-lhe a caçar. Dirigiu-se para a zona em que Homem Noturno e Chakliux guardavam as lanças e as armas de arremesso, as setas e os dardos. Tinha ali boleadeiras e uma lanceta. Esta era apenas um brinquedo, apesar de a ponta de madeira ter sido afiada e endurecida ao fogo. Mas as boleadeiras eram uma arma a sério. Fora Chakliux quem as fizera e estava ensinando-o a usá-las para ele não se machucar com as pedras aguçadas. Ghaden ainda não apanhara nenhum pássaro, mas não tardaria a fazê-lo. Depois ofereceria uma das penas ao bebê, algo que Aqamdax pudesse juntar ao seu amuleto. Pegou as boleadeiras e passou as mãos pelo cabo entrançado e pelas pedras. Cada pedra estava bem presa à extremidade de uma das fitas de couro.

Ghaden queria levar a arma para junto de Yaa, mantê-la no regaço e pensar nos pássaros que mataria e nos elogios que receberia de Yaa e de Aqamdax quando elas juntassem a carne e os ossos desses pássaros à panela, ou os assassem num graveto, mas Yaa era uma menina. Podia retirar poder das boleadeiras. Por isso Ghaden voltou a pendurá-la num dos postes da cabana e depois foi sentar-se ao lado de Mordedor.

De repente, a aba da porta abriu-se e Estrela entrou.

És uma preguiçosa, disse ela a Yaa. Verificaste as armadilhas? E tu podias ir buscar madeira acrescentou, dirigindo-se a Ghaden.

Ghaden sabia que Yaa estava cansada por se ter levantado cedo com Aqamdax e ter ajudado Ligige’. Calçou as botas de Verão e foi atrás de Yaa e de Mordedor. Quando ia saindo do túnel ainda ouviu Estrela dizer a Homem Noturno:

Disseram-me que ela teve um filho.

Ghaden parou por instantes para ouvir a resposta de Homem Noturno, mas não conseguiu entender as palavras pronunciadas entre dentes.

A voz de Estrela elevou-se numa gargalhada e depois Ghaden ouviu Olhos Grandes também rir, um som que parecia um eco a dissipar-se.

Achas que é teu? perguntou Estrela. Com todos os homens que K’os levou para a cabana dela, acreditas que o filho de Aqamdax é teu?

E riu de novo.

Por qualquer motivo, aquele som fez estremecer Ghaden.

Nessa noite, depois de Ligige’ ter ido embora, Aqamdax ainda não conseguira adormecer. A alegria e o embevecimento pelo fato de ter o seu próprio filho tinham-se apoderado dela.

Passou um dedo pela face do filho. Mesmo dormindo, a criança reagiu ao toque, abrindo a boca e mexendo a cabeça até conseguir levar a ponta do dedo dela aos lábios. Chuchou-o por instantes e depois largou-o. Ela tinha acabado de amamentá-lo, por isso sabia que ele não tinha fome. Ainda se via uma pequena bolha de leite no canto da boca.

Em Rio Primo, eram os homens que davam o nome aos bebês. Homem Noturno lhe daria um nome de Rio, mas isso não tinha importância. Aqamdax lhe chamaria Angax, a palavra dos Primeiros Homens que designava “poder”. Com certeza um nome como esse lhe daria as forças de que ele precisava para sobreviver.

Angax era parecido com Homem Noturno; até Ligige’ o dissera. Tinha o queixo robusto e os olhos tombados de Homem Noturno. Mesmo por cima da testa, um caracol de cabelo negro formava um pequeno círculo, como um remoinho num rio; também isso era de Homem Noturno. Aqamdax contara os dedos das mãos e dos pés do filho; eram dedos compridos e esguios como os dela. E tapara-o e destapara-o muitas vezes.

Quando o amamentou, sentiu umas dorzinhas no baixo-ventre, mas Ligige’ chamara-lhe dores pós-parto, e explicara-lhe que todas as mulheres as tinham e que não eram motivo para preocupação.

Por isso, tudo agora era felicidade para Aqamdax. Ficara à espera que Homem Noturno fosse ver o bebê, mas talvez isso fosse contra os tabus de Rio. Era um povo estranho, com muitas coisas proibidas tanto aos homens quanto às mulheres.

Aqamdax saíra uma vez da cabana para ir fazer as suas necessidades e atara o bebê ao peito, mas depois deitara-o e ficara observando-o.

Não fora um parto prolongado, segundo lhe dissera Ligige’. Muitas mulheres levavam um dia ou mais para darem à luz o primeiro filho. Mas Aqamdax sorrira e dissera a Ligige’ que para ela fora o suficiente.

Antes de sair, Ligige’ pedira-lhe para pegar o bebê e depois estimulara-o até Angax fazer uma careta e desatar a chorar. Mas a velha sorriu e, para alívio de Aqamdax, declarou que ele era saudável.

Quando Ligige’ saiu, prometeu mandar Yaa ao encontro dela, por isso Aqamdax não ficou admirada quando ouviu alguém aproximar-se da cabana. Conseguiu sentar-se na almofada fofa de musgo e de erva-de-fogo que recebera o seu sangue pós-parto; porém, quando a aba se afastou, viu que era Estrela.

Venho ver o meu sobrinho anunciou ela. Aqamdax sentiu o coração a acelerar-se quando Estrela estendeu as mãos para o bebê.

Ele agora está dormindo disse ela, desejosa que Ligige’, ou mesmo Yaa, estivessem ali.

Arregaçou a parte da frente da camisa e ajustou o decote que alargara para enfiar o bebê quando o atara ao seu peito.

Estás vendo? salientou ela, mostrando a Estrela a cabeça do filho.

Os olhos da criança estavam fechados e a mãozinha encontrava-se encostada à boca.

Aqui está muito escuro para eu o ver, observou Estrela.

Aqamdax levantou-se devagar. A primeira vez que se levantara depois de dar à luz, a escuridão começara a fechar-se à sua volta, mas desde então não tivera problemas.

Eu vou lá fora, comunicou ela a Estrela. Começava a escurecer, mas o Sol ainda estava alto e Aqamdax avistou o azul límpido do céu por uma fresta na parede da cabana.

Lá fora, voltou a puxar o decote da camisa. Estrela acariciou a cabeça do bebê e perguntou a Aqamdax se já lhe arranjara um nome. Aqamdax não lhe disse o nome dos Primeiros Homens do filho. Era preferível manter esse nome como proteção e dá-lo a conhecer apenas às poucas pessoas que lhe mereciam confiança.

Julguei que Homem Noturno é que lhe dava o nome.

Estrela encolheu os ombros. Depois apontou para a aldeia com o queixo.

Olha. O meu irmão quer ver o filho. Não pode aproximar-se muito, como sabes, mas está à espera que eu lhe leve a criança.

Aqamdax agarrou-se a Angax, quente e em segurança, encostado à sua pele. O medo inundou-lhe o peito, impedindo-a de respirar. Em seguida, o medo deu lugar à raiva, como se ela fosse uma loba a proteger as suas crias. Como podia ela entregar o seu precioso filho a Estrela? Talvez se Ligige’ tivesse aparecido e lhe fizesse o mesmo pedido, ela não se importasse...

Aqamdax ignorou Estrela e pensou no marido, sentindo a segurança da sua presença. O que podia acontecer a uma criança numa distância tão curta? Como podia ser tão estúpida ao ponto de ter medo da irmã do marido?

Deixa-me embrulhar o bebê para ele não apanhar vento disse ela a Estrela. Depois entrou na cabana.

A criança acordou quando Aqamdax o atou à prancha de embalar, mas não chorou. A mãe olhou para ele. Por instantes, pareceu-lhe que o filho a examinava e sentiu como ambos estavam perto um do outro, como as suas almas eram quase uma só. Em seguida, levou-o lá para fora e entregou-o a Estrela.

Viu-a afastar-se lentamente para ir ao encontro de Homem Noturno e fechou os olhos, aliviada, ao ver o marido pegar na prancha de embalar e apoiá-la no forte braço direito. Admirada, viu os dois darem meia volta e começarem a dirigir-se para a aldeia. Mas o que sabia ela dos costumes do Povo Rio? Talvez fossem mostrar o bebê às outras pessoas.

Desejou que a gente dessa aldeia seguisse as praxes da sua. Lá, quando terminava o período de isolamento da mãe, esta levava o bebê ao ulax do marido. Em seguida, vinham todas as mulheres da aldeia, cada uma com o seu presente. Sentavam-se em círculo e cada uma pegava no bebê à vez, formulando votos de felicidades em voz baixa, sob o olhar da mãe e da avó.

Tragam-no depressa! gritou Aqamdax. Daqui a pouco, terá fome.

Estrela virou-se e acenou-lhe. Depois, desapareceram ambos, ocultos pelas cabanas e pelos alpendres da aldeia de Rio Primo.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Raposa-Que-Ladra estava junto das lareiras e ergueu as mãos ao céu. Louvou o rio pela abundância de peixe, lembrando às pessoas que no Verão anterior o salmão escasseara. Louvou os caribus que aguardavam os seus caçadores, e falou dos guerreiros de Rio Próximo, os que ainda viviam na aldeia e os que tinham morrido na luta.

As poucas famílias de Rio Próximo que haviam passado o Verão nos pesqueiros já tinham regressado. Pouco depois, os primeiros grupos partiriam da aldeia para ir à caça do caribu.

Com as despensas cheias de peixe seco e defumado, era uma boa altura de rejubilarem com as barrigas cheias e os braços fortes, de se empanturrarem de salmão e de frutos de Verão e de sonharem com a promessa dos caribus. E porque ele não diria também às pessoas que escolhera um novo nome, mais apropriado ao homem que os conduzia?

Dali em diante, chamar-se-ia Anaay. Existiria um nome melhor? Anaay, aquele que se mexe. A sua mente estava sempre em movimento, planejando o que seria melhor para a aldeia E quem não sabia que o Povo Rio também dava esse nome à manada de caribus à medida que ela avançava, tanto no Verão como no Inverno? Com um nome como Anaay, os seus poderes não teriam fim.

Os caribus o reconheceriam como um dos seus, lhe cantariam nos ossos durante as suas viagens, e assim ele saberia sempre onde é que o seu povo devia caçar, fossem quais fossem os caminhos escolhidos pelas manadas.

Então, quem poderia negar que ele merecia o lugar de chefe dos velhos? Afinal, ainda era um bom caçador e tinha uma mulher jovem para lhe aquecer a cama à noite. Quem poderia esquecer os dotes da sua primeira mulher com a agulha e o furador? Todas as suas mulheres possuíam uma boa cabana. As suas despensas estavam cheias. Nem Chakliux, com todas as suas histórias, nem Sok, com os seus braços possantes e a sua lança poderosa, podiam comparar-se com Anaay.

Numa ponta, K’os observava Raposa-Que-Ladra enquanto este falava à multidão. A cada palavra que pronunciava, saía-lhe ar do peito, mas os braços e as pernas eram delgados, e ele não podia aumentar de tamanho limitando-se a encher o peito de ar. A barriga dele engordara desde que ela viera para a aldeia; nem a esplendorosa parka de pele de caribu, enfeitada com pele de castor e de marta, nem as contas de osso de pássaro que lhe adornavam os mocassins de Verão até ao joelho, escondiam a sua verdadeira forma.

K’os ouviu-o elogiar o povo de Rio Próximo, a sua força, a sua astúcia, e cerrava os dentes a cada palavra que ele pronunciava. Queria gritar o seu ódio, mas para quê revelar as suas intenções? Pouco faltava para que Raposa-Que-Ladra soubesse que ela continuava a ser uma inimiga temível.

Cansada das suas fanfarronices, K’os virou-se para se ir embora, mas então Raposa-Que-Ladra anunciou que escolhera um novo nome. Anaay, disse ele, e a raiva de K’os dissipou-se numa onda de júbilo. Talvez ela tivesse que fazer menos do que pensava. Até uma criança percebia que o nome gabava os seus poderes de encaminhar os caçadores para os caribus. Até uma criança via que Raposa-Que-Ladra não tinha força espiritual para fazer tal coisa.

Na sua vida, K’os só ouvira falar de um homem que conhecia os caminhos dos caribus. Morrera quando ela ainda era pequena, mas K’os lembrava-se dele. Humildemente, dera a si próprio o nome de Koldze’ Nihwdelnen e, fiel ao seu nome, não guardava nada para si. Era magro e as suas roupas eram velhas. A mulher morrera antes de K’os nascer e ele não voltara a casar. Ia de cabana em cabana, vivendo com uma família, depois com outra, e todos os caçadores esperavam que Koldze’ Nihwdelnen ficasse com eles e desse sorte às suas armas.

Como é que Raposa-Que-Ladra podia comparar-se com alguém assim? Os caribus perceberiam a sua ganância, e a insensatez de Raposa-Que-Ladra se ergueria como espinhos de xos cogh e afastaria os animais.

Mas embora estes pensamentos fossem tão altos como qualquer das palavras de Raposa-Que-Ladra, K’os mantinha-os atrás dos dentes cerrados, e quando ele acabou de falar ela abriu caminho silenciosamente entre a multidão quando esta se reuniu à volta das fogueiras da aldeia.

K’os serviu-se de um ramo grosso para tirar uma pedra quente do fogo e depois, com o pau e a tenaz de salgueiro verde, levou-a para uma das panelas. Fez estalar a língua para as pessoas se afastarem do seu caminho e caminhou lentamente para não tropeçar na pedra se a deixasse cair.

Virou o rosto para o lado e deixou cair a pedra dentro da panela. O caldo esguichou e a pedra sibilou, mas não se partiu. K’os serviu-se da tenaz para tirar uma pedra fria e depois levou-a, pingando gordura e caldo, para a fogueira, onde a colocou entre as brasas.

Agachando-se de costas para as pessoas, limpou o caldo da tenaz com os dedos e depois lambeu-os. Como escrava, não tinha autorização de comer senão quando todos os outros tivessem comido, mesmo as crianças. Quem sabia o que restava? Mas ela habituara-se a roubar caldo dos paus com que mexia a panela, peixe dos estrados de seca e carne das crianças pequenas demais para irem contar a alguém o que ela fizera.

Levava uma pedra para outra panela quando viu Bico-de-Gaivota debruçada junto de Raposa-Que-Ladra. A mulher tinha alguma coisa nos braços, decerto um presente, porque o cobrira com uma esteira de erva. Várias pessoas repararam também no que Bico-de-Gaivota estava fazendo e pouco depois quase todas as mulheres e muitos homens a observavam. Bico-de-Gaivota abriu a esteira e depositou uma parka no colo de Raposa-Que-Ladra. Este sorriu, repuxando a cicatriz que lhe desfigurava a face e depois ergueu o presente para que todos o pudessem admirar.

A parka era feita de peles de animais poderosos: castor, marmota e carcaju. A marmota era um animal da montanha. Quantas coisas Bico-de-Gaivota tivera que trocar para conseguir peles de marmota suficientes? interrogou-se K’os. A parte de trás da parka e os braços estavam costurados com contas de concha que formavam desenhos sagrados de círculos e linhas. Das costuras do capuz saíam caudas de doninha com pintas pretas e dos dois lados viam-se orelhas de castor para ajudar Raposa-Que-Ladra a ouvir. Uma faixa de bicos de corvo, reluzentes de óleo, oscilava mesmo por cima da bainha do tufo de pele de carcaju e, tal como Bico-de-Gaivota dissera a K’os, nos ombros viam-se peles de águia que formavam círculos.

Raposa-Que-Ladra levantou-se, despiu a parka velha e depois vestiu a nova.

Que mulher faria melhor? gabou-se ele. Um dos jovens gritou:

Então, Anaay, e o que ofereces em troca? Raposa-Que-Ladra pronunciou algumas palavras entre dentes e depois abriu os braços para abarcar o banquete e declarou:

Esta comida, um Verão farto. Os salmões regressaram ao nosso rio. Ofereço todas estas coisas.

K’os, porém, reparou nos olhares furtivos, ouviu os murmúrios irritados. Como se atrevia Raposa-Que-Ladra a reclamar como seu o que dera tanto trabalho a todos?

Dii, a nova e jovem esposa de Raposa-Que-Ladra, falou a Bico-de-Gaivota. Depois aproximou-se do marido, pôs-se nas pontas dos pés e disse-lhe alguma coisa ao ouvido. Embora K’os estivesse longe demais para ouvir o que Dii proferira, de repente, era como se tivessem lhe dito. Mordeu os lábios para não sorrir. Quando Raposa-Que-Ladra trouxera K’os para a aldeia de Rio Próximo, vendera-a tão depressa a Boca Negra que ela julgara que levaria muito tempo a ter uma oportunidade de se vingar.

Raposa-Que-Ladra faria o que as suas mulheres lhe pediam? K’os ficou à espera e fez uma promessa enquanto observava a cena: Se não me aceitares agora, Raposa-Que-Ladra, não tem importância. Prometi matar-te e fá-lo-ei.


Pegou a parka de Verão e levou-a a Boca Negra. Ergueu o queixo na direção de K’os. Boca Negra apontou para as botas de Raposa-Que-Ladra, mas este limitou-se a dar uma gargalhada. Boca Negra apontou para os colares que o homem usava. Raposa-Que-Ladra tirou um, mais dois, e por fim Boca Negra concordou.

Uma escrava para a minha mulher, anunciou Raposa-Que-Ladra. K’os, para lhe facilitar a vida, para que ela possa fazer mais parkas.

As pessoas riram e K’os juntou-se a elas.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Aqamdax meteu as mãos debaixo da camisa e apalpou os seios. O leite escorreu-lhe entre os dedos. Levantou-se outra vez da almofada de musgo e espreitou lá para fora pela aba da porta. O céu estava escuro. O seu estômago comprimiu-se e ela fechou a boca ao sentir uma náusea súbita.

Há muito tempo que eles tinham partido. E se Homem Noturno houvesse pedido a Estrela para lhe levar Angax e a mulher tivesse ido visitar alguém e esquecesse o bebê? E se o houvesse deixado lá fora? E se ele tivesse começado a chorar e Estrela se irritasse?

Mas com certeza que, se lhe tivesse acontecido qualquer coisa, Ligige’ ou mesmo Yaa teriam vindo avisá-la.

Aqamdax calçou as botas de Verão, atou-as e saiu. Por instantes, ficou ali olhando para a aldeia, esperando ver Homem Noturno ou Estrela. As árvores e o mato escondiam algumas das cabanas, mas Aqamdax avistou a cabana de Ligige’, iluminada por dentro pela lareira.

Se caminhasse pelo meio das árvores e tivesse o cuidado de se afastar dos caminhos usados pelos caçadores, talvez não fizesse mal ir à cabana de Ligige’. Optou pelo caminho mais difícil, por um matagal de rebentos de amieiro. Por fim, aproximou-se o suficiente para ver a sombra da mulher lá dentro.

Não quis percorrer o terreno nu entre a cabana e as árvores, por isso chamou primeiro pela velha até lhe doer a garganta. Ligige’ não apareceu, e Aqamdax encaminhou-se para os fundos da cabana, arranhou o teto de pele de caribu e depois chamou outra vez. Ouviu a voz de Ligige’.

Quem é? Tsaani, meu irmão? Raposa Pequena, minha irmã? Vieram buscar-me para o mundo dos mortos?

Ligige’, é Aqamdax.

Então Ligige’ espiou pela parte lateral da cabana, com os olhos esbugalhados de admiração.

Porque estás aqui? perguntou ela. Bem sabes que podias amaldiçoar os nossos caçadores. O bebê está doente?

Aqamdax recuou, afastando-se da cabana, e Ligige’ foi atrás dela, servindo-se das mãos para varrer o chão que ela pisara.

Eu não tenho o bebê, disse Aqamdax a Ligige’. Ligige’ calou-se de repente e olhou para ela.

O quê? Onde está ele?

Não o viste? indagou Aqamdax. Estrela não te trouxe?

Entregaste o teu filho a Estrela? perguntou Ligige’, falando com tal horror que Aqamdax se inclinou e começou a vomitar.

 

Marido, comecei a costurar a cobertura de pele de caribu para a nossa cabana, afirmou Estrela, erguendo as mãos, de dedos espetados. Qualquer dia, as minhas mãos parecem as de uma velha.

És uma boa esposa, observou Chakliux, embora não estivesse sendo sincero. Qualquer outra mulher já teria feito a cobertura.

Não se ouviu raspar na aba da porta, nem palavras corteses nem ninguém a pigarrear, mas de repente Ligige’ entrou na cabana. Apontando para Estrela, perguntou:

Onde está o bebê?

Estrela acariciou a barriga e sorriu.

Não. O filho de Aqamdax disse Ligige’. Estrela encolheu os ombros e inclinou-se sobre a pele de caribu.

Chakliux levantou-se e lançou um olhar duro a Ligige’.

O que aconteceu? perguntou ele.

Aqamdax está na minha cabana. Veio perguntar se eu tinha visto o filho dela. Diz que Estrela e Homem Noturno o levaram.

Tu levaste-o? perguntou Chakliux à mulher, mas Estrela limitou-se a fazer beicinho e não respondeu.

Chakliux agachou-se junto dela, pegou-lhe no queixo e levantou-lhe a cabeça. Ela afastou-lhe a mão.

Como saberia o que aconteceu ao bebê? disse ela. Não lhe fiz nada. Talvez Aqamdax o tenha perdido. Ela é descuidada.

Tu sabes que isso não é verdade, contrapôs Ligige’ a Estrela. Onde está Homem Noturno?

Esperas que eu responda pelo meu irmão? Já me basta tomar conta dessas duas crianças de Rio Próximo.

Então, onde estão elas? perguntou Ligige’.

Com Espreita-o-Céu e a mulher respondeu Estrela. Espreita-o-Céu prometeu mostrar a Ghaden...

Chakliux interrompeu-a:

Estrela, tu e Homem Noturno foram buscar o bebê de Aqamdax?

Fomos, respondeu Estrela. E qual é o problema? Homem Noturno é o pai do menino. Pelo menos Aqamdax diz que é.

Então é Homem Noturno que tem o bebê? perguntou Ligige’.

Estrela fez um sinal afirmativo.

Isso é bom, comentou Ligige’.

Estrela baixou a cabeça, mas não sem que Chakliux tivesse visto um sorriso trocista nos seus lábios.

Não, Ligige’, isso não é bom, respondeu ele à tia. Tirou a parka do cabide e saiu às pressas pelo túnel. Dirigiu-se para a cabana dos caçadores, embora esta fosse mais um alpendre do que uma cabana, desde que o povo de Rio Próximo incendiara a aldeia.

Ligige’ chamou-o. Ele parou e virou-se para trás.

Aonde vais?

À procura de Homem Noturno. Vai para junto de Aqamdax recomendou ele. Fica junto dela até eu trazer o bebê.

Na cabana dos caçadores, Chakliux interrompeu uma história que o velho Leva-Mais estava contando, o que lhe valeu olhares carregados devido à sua indelicadeza. Perguntou-lhes se sabiam onde estava Homem Noturno, mas ninguém o vira. Em seguida, foi às outras cabanas da aldeia, raspou nas abas das portas e esperou, impaciente, que alguém lhe respondesse. Por fim, Caule Torto disse que vira Homem Noturno com alguma coisa na mão, dirigindo-se para o Lago do Avô. Então, embora o céu estivesse escuro e o seu pé de lontra lhe doesse, Chakliux desatou a correr.

Aqamdax aconchegou-se na parte de trás da cabana de Ligige’ e ficou à espera. Controlava os seus medos e não permitia que eles se transformassem em pensamentos na sua mente, mas sentia um peso no peito como se este estivesse cheio de pedras. Porque deixara que Estrela levasse o bebê? Porque confiara na mulher? Mas o que havia de fazer? Homem Noturno queria ver o filho. Entoou canções de embalar que aprendera em criança com a mãe, na esperança de que elas tivessem poder para manter o seu bebê em segurança, mesmo naquela terra tão longe da sua.

Depois, ouviu Ligige’ perguntar:

Aqamdax, estás aí?

Tia, estou atrás da sua cabana. Encontrou o meu filho?

Ligige’ não respondeu, mas aproximou-se dela, e Aqamdax não conseguiu conter um soluço ao ver que os braços de Ligige’ estavam vazios.

Fiz um disparate ao entregá-lo a Estrela. Eu devia ter pensado...

Ligige’ puxou Aqamdax para si e deu-lhe uma palmadinha nas costas, como se ela fosse uma criança.

Agora, cala-te. Estrela não o tem. Ela diz que o bebê está com Homem Noturno.

A esperança aliviou em parte a dor de Aqamdax, que levantou a cabeça e olhou primeiro para Ligige’ e depois para a aldeia.

Onde está ele? perguntou ela.

Estrela não sabe, mas Chakliux prometeu encontrá-lo. Então Aqamdax avistou alguém correndo. Embora a escuridão fosse interrompida apenas pela luz que se escoava de cada cabana, apostava que se tratava de Chakliux. Este desapareceu por trás de um alpendre e depois ela viu-o no caminho que ia dar ao Lago do Avô.

Afastou-se de Ligige’ e, antes que a velha pudesse detê-la, foi correndo atrás dele.

 

As árvores e os arbustos tentavam impedir a passagem de Chakliux, mas ele continuava correndo. Tropeçou duas vezes, mas apoiou-se nas pontas dos dedos e conseguiu levantar-se. Quando chegou ao Lago do Avô, a Lua já se via no céu, projetando reflexos de prata na água. A princípio, Chakliux, com a mente embotada pelo cansaço, julgou tratar-se de gelo.

Na floresta de abetos-negros ouviu-se o piar de um mocho e Chakliux estremeceu ao lembrar-se daquilo que tal chamamento poderia significar. Concedeu a si próprio um momento de descanso e depois subiu a colina na direção do Rochedo do Avô. Em geral, evitava o rochedo. Estivera lá quando era bebê, entregue ao vento pelo avô Tsaani devido ao seu pé de lontra. Para quê voltar e recordar aos ventos o que lhes tinha sido tirado? Quem sabia qual a dádiva que poderiam exigir em troca?

Seguiu o seu caminho, subiu o mais depressa que pôde, por vezes trepando de quatro. Mas quando chegou ao rochedo, não viu nada além do luar que iluminava o seu cume negro e plano.

De repente, foi como se uma parte do rochedo se tivesse mexido. A faca surgiu tão depressa na mão de Chakliux que ele nem se lembrava de a ter desembainhado. Depois, avistou um homem acocorado junto do rochedo.

Eu sabia que poderias aparecer.

Chakliux reconheceu a voz de Homem Noturno.

Onde está o teu filho? perguntou Chakliux.

Ele não é meu filho.

Homem Noturno pôs-se de pé, levantou um cobertor de pele de lebre e estendeu-o sobre o Rochedo do Avô.

Julgavas que eu o deixaria aqui? Ouvi contar como é que chegaste até nós, oferecido por um animal e encontrado aqui neste rochedo, por K’os. Julgavas que quando resolvi livrar-me do filho da minha mulher o deixaria neste rochedo?

Este rochedo permitiu que vivesses quando devias morrer, o meu pai e dois dos meus irmãos estão mortos e eu nunca mais serei caçador.

Homem Noturno estendeu o braço engelhado.

Negas que foi a tua lança que fez isto?

Onde está o bebê, Homem Noturno? perguntou Chakliux, num tom gélido.

Homem Noturno apontou para o lago.

Ali, na água. Afogado.

A raiva apoderou-se de Chakliux como uma tempestade, rugiu nos seus ouvidos como o vento.

Julgas que mataste apenas um bebê, mas mataste também o caçador que ele teria sido! Mataste os seus filhos, e todos aqueles a quem ele teria dado de comer. Uma aldeia inteira pereceu com esta morte!

Chakliux calou-se, sem fôlego. Quando voltou a falar, estava calmo.

Ligige’ disse-te que ele nascera antes do tempo. Aqamdax disse que o filho era teu.

Homem Noturno cuspiu.

Ligige’ é tua tia. É de Rio Próximo. Porque confiaria nela? Quanto a Aqamdax... Qualquer mulher mentiria para salvar um filho.

Estúpido! Dilaceraste o coração da tua mulher devido ao teu orgulho. Mesmo que Aqamdax estivesse enganada, mesmo que o filho não fosse teu, devias tê-lo ensinado, e desse modo ele absorveria uma parte do teu espírito. Assim como os filhos e os netos dele.

Segundo as tradições do nosso povo, eu tenho o direito a fazer o que fiz.

Se os costumes do teu povo toleram o mal, então ele iniciou a sua própria destruição respondeu Chakliux.

Falas de mal quando tu mesmo mataste tanta gente? Darei outro filho a Aqamdax, e dessa vez terei a certeza que é meu.

Quando Aqamdax chegou ao Lago do Avô, ouviu apenas a sua própria respiração entrecortada. Com certeza que dentro de pouco tempo acordaria na sua cabana de partos. O filho mamaria no seu peito, e os finos cabelos negros acariciariam a sua pele, os dedinhos fechar-se-iam à volta do seu polegar. Ela nunca conhecera nada mais precioso do que tê-lo nos seus braços. Nunca sentira uma alegria mais profunda.

Ao luar, viu que tinha a parte de cima dos mocassins manchada de sangue. Ouvira falar de mulheres que sangravam até à morte depois de dar à luz mas, se o filho estivesse morto, ela não se importava. Preferia ir com ele para o mundo dos espíritos. Quem tomaria conta dele se ela não o acompanhasse? Talvez a mãe, mas quem poderia ter a certeza? Talvez a mãe dela não reconhecesse Angax como neto. Ele era muito mais parecido com o Povo Rio.

Quando Aqamdax recuperou o fôlego, endireitou-se. Não passara por Chakliux no caminho, portanto ele tinha que estar ali. Mas, mesmo ao luar, seria difícil vê-lo. Talvez algum movimento lhe chamasse a atenção...

Foi então que ouviu vozes, não os chamamentos dos animais noturnos mas o ruído de homens discutindo. Encaminhou-se para o lugar de onde vinham as vozes, subiu a colina na direção do Rochedo do Avô e pareceu-lhe que não tinha força nas pernas. Às vezes, os bebês eram abandonados naquele rochedo para morrer.

Antes de chegar ao rochedo, reconheceu as vozes de Homem Noturno e Chakliux. O tom furioso deste deu-lhe forças.

Quando eles a viram, Homem Noturno levantou a mão saudável num gesto de proteção para se defender dos poderes da mulher que acabara de dar à luz.

Onde está o meu filho? perguntou-lhe ela. Durante muito tempo, Homem Noturno não disse nada.

Depois, Aqamdax viu o cobertor de pele de lebre nas suas mãos. Correu para o marido e tirou-lhe.

Onde está o meu filho? gritou ela.

O medo causava-lhe um tremor na voz. Passou as mãos pelo rochedo, certa de que encontraria o sangue do filho, mas sentiu apenas o contato dos líquenes quebradiços e a pedra ainda quente do calor do sol acumulado durante o dia.

Então, Chakliux pousou-lhe as mãos nos ombros e ela sentiu a força dele. Descontraiu-se e deixou cair a cabeça sobre o peito, mas Homem Noturno disse:

Dei-o ao lago. Agora ele está lá, com os espíritos da água.

Estas palavras surtiram o efeito da lâmina de uma faca que tivesse trespassado a carne de Aqamdax e chegado aos ossos até só lhe restar gritar.

Libertou-se de Chakliux e desatou a correr.

Não vás atrás dela, gritou Homem Noturno. Já te amaldiçoaste ao tocar-lhe. Ela ainda está sangrando do parto.

Chakliux, porém, virou-lhe as costas e foi atrás de Aqamdax pela colina abaixo. Foi dar com ela ajoelhada na beira da água, de mãos estendidas para o lago. Abraçou-a, mas ela repeliu-o.

O meu filho, disse ela, de olhos fixos na água. Está ali, estou vendo. Está flutuando naquela onda. Se eu esperar, ele virá comigo.

Aqamdax, Aqamdax, ele partiu. Não há nada na água. Temos que regressar à aldeia. Ligige’ tem um remédio para ti, algo que te ajudará a recuperar as forças.

Ela levantou-se e Chakliux abraçou-a, tentando afastá-la daquele lugar, mas ela libertou-se e desatou a correr para a água, arrastando o cobertor que tinha nas mãos. Ele foi atrás dela e apanhou-a. Esperava que ela se debatesse, mas ela deixou que ele a levasse de novo para a margem. Depois, virando-se para ele, sorriu e ergueu um pequeno ramo bifurcado numa das extremidades.

Eu bem te disse. Aqui está ele. Olha. Ele não morreu. Vê, disse ela.

Ajoelhou-se, envolveu cuidadosamente o ramo no cobertor encharcado e apertou-o contra o peito. Chakliux, com as lágrimas a queimarem-lhe os olhos, puxou-a para si e levou-a para a aldeia.

 

As histórias vinham desde o Inverno e prolongavam-se pelo Verão. Todas as manhãs e todas as noites, a velha contava ao rapaz mais coisas a respeito de Aqamdax e de Chakliux. Ainda tinha muito para lhe contar, mas as primeiras flores da erva-de-fogo já despontavam no topo dos caules. Dentro de pouco tempo, as folhas mudariam de cor e as pessoas iriam atrás dos caribus.

A velha levantou-se e saiu de cócoras pela aba da sua cabana do pesqueiro. Depois dessa noite, se seguiriam alguns dias sem histórias até eles regressarem à aldeia de Inverno. Ela estendeu os braços e reparou como estavam frágeis, pouco mais do que pele e osso. A longa caminhada não seria fácil para ela, mas, quando viu o rapaz chegando, o seu rosto abriu-se num sorriso e ela percebeu que teria as forças necessárias.

Ele levantou a mão num gesto de saudação e ela recebeu-o na sua cabana, oferecendo-lhe peixe fresco que ela própria grelhara lá fora. Não esperou que ele acabasse de comer para começar a falar. As histórias se acumulavam na garganta, e as palavras misturavam-se umas nas outras até chegarem aos ouvidos do rapaz.

A aldeia de Rio Próximo, disse ela. K’os e Raposa-Que-Ladra. Ouve:

 

                   K’OS, ESCRAVA DO POVO DE RIO PRÓXIMO

Ele autodenomina-se Anaay e espera atrair os caribus. Estúpido! Não basta o poder de um nome para afastar dele o cheiro da raposa.

Nessa noite, depois de me comprar para servir as suas esposas, levou-me para a cabana de Bico-de-Gaivota. Disse-me que eu passaria a viver ali, e eu fiquei satisfeita. A cabana dela bem podia se habituar a mim, pois dentro de pouco tempo seria minha. Julguei que passaríamos ali a noite, Bico-de-Gaivota e eu, mas ele mandou-a embora.

Não levou presentes, mas, como eu era uma escrava, não estava à espera de nenhum. Levou-me para a cama de Bico-de-Gaivota e, com uma faca na mão, obrigou-me a deitar de barriga para baixo.

Eu conheço as tuas mãos, disse ele.

Então eu percebi que ele não esquecera o que eles me haviam feito há muito tempo. Ele e os amigos. Dois desses três homens tinham sentido a minha vingança. Raposa-Que-Ladra é o que se segue, e terá uma morte mais horrível do que os outros.

Olhem! O que vejo eu? Os corvos regozijam com o seu festim, arrancando os olhos primeiro.

Raposa-Que-Ladra, compreendes o enigma?

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Mantém ela quieta ordenou K’os.

A criança estava deitada a seu lado num tapete de pele de caribu, enquanto o pai lhe agarrava as pernas. K’os embrulhara um seixo do rio, com metade do tamanho do seu punho, numa pele de lontra. Pegou a pedra com uma mão e disse ao pai:

A pele é sagrada, entendes?

Ele fez um sinal afirmativo e K’os colocou a pedra na axila da criança. Em seguida, empurrou o braço para baixo.

Os soluços da criança transformaram-se num grito quando o osso do braço voltou a encaixar-se na cavidade do ombro.

Mataste-a, gritou Perneiras Vermelhas, a mãe, mas o pai da menina apressou-se a repreendê-la.

Estúpida! O braço voltou ao lugar. Vê com os teus próprios olhos.

Agora ela tem que sentar-se disse K’os.

O homem pegou a menina no colo e ficou observando enquanto K’os lhe atava o braço com uma atadura de pele de caribu.

Está pronto, afirmou K’os. Vou dar folhas-de-caribu à tua mulher para ela aquecer e lhe pôr no ombro. Amortece as dores.

Levantou a cabeça e olhou para Perneiras Vermelhas, perguntando:

Sabes fazer chá de salgueiro?

Perneiras Vermelhas desviou o olhar, mas o marido respondeu:

Ela sabe.

K’os tirou da sua bolsa outra tira de pele de caribu raspada e amaciada e fez uma alça. Empinou o queixo e disse a Perneiras Vermelhas:

Anda cá. Vou ensinar-te a atá-la.

Perneiras Vermelhas avançou, fungando como uma criança, mas K’os ignorou os seus olhos vermelhos e acusadores, ligou o braço da menina e atou a alça de modo que o nó não lhe roçasse na nuca.

Fez um sinal a Bico-de-Gaivota, que tirou um pacote de folhas-de-caribu da bolsa dos medicamentos e o entregou a K’os. Esta abriu o embrulho, retirou uma folha, aplicou-a no braço da menina e esfregou-a na pele. Era uma escrava, e de Rio Primo. Levaria muito tempo a conquistar a confiança das pessoas.

Estás vendo? Não lhe vai doer, disse ela.

Mas o pai da menina olhou para Bico-de-Gaivota e perguntou:

Isto são folhas-de-caribu, como ela disse?

São folhas-de-caribu. Eu estava presente quando ela as apanhou, respondeu Bico-de-Gaivota.

O ombro dela vai doer, mas dentro de um ou dois dias começará a mexer o braço disse K’os, como se o pai não tivesse manifestado as suas dúvidas, como se Bico-de-Gaivota nem sequer estivesse na cabana. Usa as folhas-de-caribu e dá-lhe chá de salgueiro. Obriga-a a usar a atadura e a alça durante uns dias.

Flor Azul disse-me que devíamos cantar alguma coisa, adiantou Perneiras Vermelhas.

K’os encolheu os ombros.

Diz a Flor Azul que venha cantar, mas durante o dia de hoje deixa a menina descansar e dormir.

Quando ela e Bico-de-Gaivota saíram da cabana, K’os perguntou:

O que lhes pedirás em troca dos nossos remédios?

Achas que uma pele de caribu será demasiado?

Eles só têm aquela filha. Pede uma pele e também aquela fiada de dentes de foca que eu vi pendurada num poste da tenda. Esses serão para mim, se os conseguires. Caso contrário, ficarei com metade da pele.

K’os olhou de soslaio para ver se Bico-de-Gaivota protestaria, mas ela não o fez. Afinal, a cabana da mulher já estava cheia de coisas boas que os dotes de K’os lhe tinham proporcionado: contas, peles cruas e curtidas, cestos e até uma lamparina de pedra que consumia gordura, um objeto trazido para a aldeia por um comerciante.

Bico-de-Gaivota ergueu o queixo, apontando para o centro da aldeia.

Vai fazer o turno das lareiras. Se alguém precisar de nós, irei chamar-te. Tenho que costurar umas contas nas botas que estou fazendo para o meu marido.

K’os obedeceu a Bico-de-Gaivota. Era preferível fazer um turno nas fogueiras do que ficar trabalhando no rio, apanhando peixe ou raspando a pele de alce que Raposa-Que-Ladra conseguira arrebatar de algum caçador.

O vento era forte. Varria a aldeia vindo do norte e levava o aroma do Inverno. Os choupos-balsâmicos estavam amarelando, as folhas caíam, davam uma nova tonalidade ao solo e faziam uma cama para a neve. Já tinham partido dois grupos da aldeia para a caça ao caribu, mas Raposa-Que-Ladra ficara. Dizia que estava jejuando para poder ouvir melhor os caribus. Mas, até então, a sua fome ainda não atraíra os animais aos seus sonhos. Era estranho que, na cabana de um homem que estava jejuando, as panelas de guisado que todas as noites se enchiam estivessem quase vazias de manhã.

Jejuando ou não, Raposa-Que-Ladra teria que decidir rapidamente aonde iriam caçar. De outro modo, os caribus lhes escapariam, em segurança nos seus pastos de Inverno.

Raposa-Que-Ladra tencionava levar K’os e Dii e deixar Bico-de-Gaivota na aldeia de Inverno. Eram tantos os preparativos a fazer para a caçada que K’os ainda não tivera oportunidade de acabar o presente especial para ele. Tinha que trabalhar sempre que Bico-de-Gaivota estava ocupada noutro local qualquer e não interferia com ela. Poderia K’os arriscar-se a que Bico-de-Gaivota visse as tiras de pele de papa-moscas, as penas de martim-pescador ou os pedaços de pele do pescoço de mergulhão? Se uma esposa podia abençoar um homem com os seus dotes de costura, porque não podia uma escrava amaldiçoá-lo com os seus?

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Homem Noturno levantou o braço esquerdo e, cerrando os dentes, endireitou-o lentamente. Levou-o cinco vezes ao lado, esticou os dedos, depois baixou-o e fechou o punho.

Aconteceu aqui alguma coisa boa, declarou ele por fim.

À medida que o meu filho cresce, tu ganhas forças respondeu Estrela, pousando a mão na pequena saliência da barriga.

Aqamdax inclinou a cabeça sobre a costura e fingiu que não ouvia. Não conseguia sentir alegria pelo fato de o marido ter recuperado a força. Talvez ele percebesse que, se voltasse a adoecer, Aqamdax não contribuiria para a sua cura. E que chances teria se fossem apenas Estrela e Olhos Grandes a cuidar dele?

Talvez o filho de Aqamdax tenha levado a dor com ele ao morrer, sugeriu Estrela.

Aqamdax susteve a respiração. A estupidez de Estrela não teria limites? Levantou-se, deixando a sua costura no meio do chão. Era uma bota para Homem Noturno. A irmã que lhe acabasse. Aqamdax vestiu a sua parka de Inverno. Estava frio lá fora e o solo endurecia cada vez mais com as baixas temperaturas noturnas. Nevara há dois dias, embora ao meio-dia o sol já tivesse derretido a neve. Aqamdax saiu da cabana sem dizer onde ia nem quando voltaria. Como poderia dizer-lhes se nem ela própria sabia?

Encaminhou-se para a cabana de Ligige’, mas depois enveredou pela floresta de abetos. O vento fustigava as árvores, e Aqamdax puxou o capuz da parka até o tufo lhe tapar as orelhas. Havia um grande rochedo negro no meio do caminho para a floresta e ela encaminhou-se para lá. O rochedo parecia não ter poderes especiais, nada para dar mas também nada para tirar, sobretudo de alguém como Aqamdax, que o desgosto debilitara.

Agachou-se, virada para o caminho que ia dar à aldeia.

Quando saíra da aldeia dos Primeiros Homens? perguntou a si própria. Só há dois anos?

Que idiota fora ao abandonar a velha Qung e o seu confortável ulax! Lá, aprendera a ser contadora de histórias e acabara por ser venerada pelo povo que a desprezara durante tanto tempo. Com certeza, se tivesse tido paciência, um dos homens acabaria por fazer dela sua esposa. Com certeza nenhum homem dos Primeiros Homens lhe teria matado o filho.

As lágrimas reprimidas fizeram-lhe um nó na garganta.

Havia outras mulheres que tinham perdido os bebês, pensou. Pássaro Amarelo, Ligige’ e Caule Torto haviam ido falar com ela para lhe manifestar a sua tristeza e tinham falado de bebês mortos há muito tempo. Essas mulheres tratavam-na agora como igual, unidas pela mesma dor. Pelo menos era uma consolação no meio do seu desgosto.

Isso foi há muito tempo, dissera Chamariz na véspera. Volta para a cama do teu marido e tem esperança de gerares outro filho.

As regras tinham faltado a Chamariz na última lua, e Aqamdax reparara na alegria da mulher pela esperança que trazia dentro de si. Mas o marido de Chamariz não matara o primeiro filho.

Como é que Aqamdax poderia voltar para a cama de Homem Noturno? Como é que poderia suportar que ele lhe tocasse? Baixou a cabeça e desatou a chorar. Às vezes, as lágrimas ajudavam, embora ela as escondesse de Estrela e de Homem Noturno. Para quê mostrar-lhes a sua fraqueza? De repente, sentiu uma mão forte no ombro. Susteve a respiração, deu um salto e depois viu Chakliux.

Reprimiu as lágrimas.

Estás bem? perguntou ele.

Ela pigarreou e fez um sinal afirmativo.

Está nevando outra vez, disse ele.

Ela olhou para o céu e viu os grandes flocos de neve caírem lentamente no solo.

Foi Homem Noturno que te mandou procurar-me? perguntou ela.

Não. Venho para aqui para me afastar da aldeia, para ter tempo para os meus próprios pensamentos.

Chakliux agachou-se ao lado dela e cruzou os braços sobre os joelhos levantados. Apontou para a parka dela e sugeriu:

Talvez pudesses fazer-me uma como essa. Aqamdax cortara a sua parka à maneira dos Primeiros Homens, por isso tinha espaço suficiente para tapar as pernas quando estava de cócoras. Puxou-a para baixo e enrolou-a em volta dos pés.

Tu darias um jeito quando fosses caçar, disse ela, mas depois reconheceu que o ofendera. Mas se quiseres uma...

Se tiveres tempo para fazê-la, afirmou ele.

Eu tenho tempo, respondeu Aqamdax. Depois, disfarçando o seu embaraço com palavras, acrescentou: Não tarda que partas para a caça ao caribu. Homem Noturno disse que não ia. Vais caçar com Sok?

Talvez. Chakliux passou-lhe o braço pelos ombros, pegou-lhe a mão esquerda e arregaçou a manga da parka para ver a pulseira que ela trazia. Era uma pulseira feita de tendão, com nós, para simular o focinho de uma lontra. Trouxera-a do povo Morsa e oferecera a ela na noite em que fora avisar o povo Primo do ataque de Rio Próximo.

Continuas a usá-la, observou ele.

Ela sorriu. Tinha a pele do rosto ressequida pelas lágrimas, mas era agradável sorrir. Virou o queixo para ele e olhou para o dente de baleia trabalhado que ele trazia pendurado no cinto. Fora ela que lhe oferecera. Passara de mão em mão na aldeia dos Primeiros Homens, de uns contadores de histórias para outros, há tanto tempo que nem sequer Qung sabia porque fora trabalhado assim.

Ele olhou-a nos olhos e de repente ela sentiu-se pouco à vontade. Começou a falar da neve e das árvores. Falou-lhe da primeira vez que fora àquela floresta, ela e o irmãozinho Ghaden com o comerciante Cen e o irmão de Homem Noturno, Tikaani. Falou-lhe do pai e da mãe, e das suas brincadeiras de criança.

Enquanto falava, havia uma voz interior que a repreendia, dizendo que ela se tornara demasiado parecida com o Povo Rio, tentando encher o mundo com as suas palavras.

Já se esquecera que era indelicado interromper os pensamentos de outra pessoa com conversas inúteis?

Por fim, Chakliux disse:

Cala-te, Aqamdax. Não precisas esconder o teu desgosto quando estás junto de mim. Às vezes as lágrimas são a melhor coisa.

Então Aqamdax encostou a cabeça ao ombro de Chakliux e ele abraçou-a enquanto ela chorava.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

Os cães estavam a latindo, mas isso era muito freqüente. Com certeza quase todo mundo saíra da aldeia para ir à caça ao caribu. Caía uma nevasca forte. A neve cobria as marcas deixadas por Folha Vermelha, o que era bom, mas ela sentia-a através da sua parka. A filha mexeu-se junto do seu peito e Folha Vermelha susteve a respiração com receio de que o bebê começasse a chorar. Ficou à espera, mas a criança embrenhou-se ainda mais no sono.

À luz mortiça do anoitecer, Folha Vermelha examinou os depósitos de víveres, cada um dos quais uma estrutura coberta, de formato quadrado, assente em quatro pés altos. Escolheu a que estava mais perto, pegou a escada e encostou-a. Os cães latiram ainda com mais intensidade. Alguém poderia vir espiar, mas talvez julgassem que se tratava apenas de uma raposa, e o que poderia uma raposa fazer se todas as escadas estavam encostadas às cabanas e às pilhas de lenha?

Folha Vermelha subiu a escada, abriu a porta da despensa e olhou lá para dentro. Havia vários fardos de pele de caribu cheios de mantimentos. Escolhe bem, disse ela para consigo, e escolheu o maior. Pegou-o, desceu a escada e fugiu correndo. Se a camada de neve não aumentasse muito, ela conseguiria chegar ao seu abrigo antes do amanhecer.

Construíra o abrigo junto de um abeto derrubado. As raízes tinham arrancado um grande torrão e ela servira-se dele como muro de proteção contra o vento norte, cobrindo-o de ramos de abeto e estendendo uma pele de caribu para fazer um abrigo. Durante algum tempo, conseguira apanhar lebres e ptármigas, mas nos últimos dias fora dar com as armadilhas vazias e gastara o peixe seco que trouxera da aldeia de Rio Primo.

“Ah, ainda bem que o peixe se acabou”, pensou ela, depois de comer o último pedaço. “Quanto menos coisas tiver daquele lugar, melhor.” Mas sem nada para comer exceto um pobre chá de salgueiro, cuja casca amargava com a aproximação do Inverno, começou a pensar em voltar para trás.

É claro que Sok a mataria se ela o fizesse. Que alternativa tinha ele? Apesar de ela lhe ter morto o avô para reservar ao marido o lugar honroso de chefe dos caçadores da aldeia de Rio Próximo. Apesar de lhe ter dado dois belos filhos. Ela morreria. Sentiu o ódio a remexendo-lhe as entranhas, mas afastou-o, fingindo que ele não estava lá. O que mais podia fazer Sok? Tinha de vingar a morte do avô.

A filha mexeu-se outra vez e por isso, a cada passo, Folha Vermelha fazia pequenos movimentos de ajustamento. Pelo menos, estava suficientemente longe de qualquer aldeia para que alguém a ouvisse se o bebê chorasse. Exceto os lobos, que às vezes a seguiam quando ela saía do abrigo. Parou, atou o embrulho de pele de caribu às costas e, para o bebê não chorar, começou a cantar uma canção de embalar que Aqamdax lhe ensinara quando era sua esposa-irmã. Pelo menos, Sok tivera o bom senso de expulsar Aqamdax. Não era má mulher, mas quem sabia as maldições que poderia arrastar, vinda da aldeia dos Caçadores Marinhos? Eles não seguiam os caminhos sagrados.

O vento estava aumentando e a neve caía com tanta força que impedia Folha Vermelha de caminhar. Quem lhe dera ter trazido sapatos próprios para a neve da aldeia de Rio Primo, mas, com a pressa, esquecera-se de muitas coisas. Além disso, quem poderia adivinhar que uma tempestade de Inverno chegaria tão cedo?

Pelo menos quando chegasse à floresta de abetos as árvores a abrigariam do vento. Continuou a andar. Com o fardo de pele de caribu às costas e o peso da filha ao peito, cada vez se aproximava mais do solo. O vento mudara de direção e soprava do norte, e Folha Vermelha levantou o braço para proteger o rosto. Anoitecera e ela não conseguia ver nada.

De súbito, chocou com alguma coisa, machucou o braço e soltou um grito de protesto, logo seguido de um sentimento de gratidão.

Era uma árvore, tinha certeza. Chegara à floresta de abetos. Apesar da tempestade, da neve e da carga que transportava, chegara à floresta. Endireitou-se, sentiu que a filha lhe largava o mamilo e ficou à espera que a criança chorasse. Mas tal não aconteceu. Talvez estivesse dormindo.

Folha Vermelha era uma mulher corpulenta, de seios pesados, até quando não amamentava. Mesmo durante aqueles dias de míngua, continuara a ter abundância de leite para a filha. Era forte mas, no meio da tempestade, o fardo pesava-lhe nas costas. Ficou aliviada ao largá-lo.

O seu abrigo não ficava longe da orla da floresta, embora ela soubesse que não se encontrava no trilho dos animais que seguira desde as árvores até à aldeia. Mesmo assim, ficaria abrigada do vento pela faixa de amieiros e de salgueiros que cresciam entre os abetos e a tundra. Se dirigiria para o ribeiro que serpenteava entre as árvores e o seguiria; até a curva que não ficava distante do local em que se encontrava o abeto caído.

Folha Vermelha tocou na árvore com que se chocara. Era estranho que não tivesse sentido o mato debaixo dos pés, mas talvez o peso da neve molhada houvesse dobrado os ramos o suficiente para ela caminhar sobre eles. Deu mais uns passos a custo até chegar à árvore seguinte e depois, de repente, percebeu onde estava. A descoberta foi como um peso que se abatesse sobre ela da cabeça aos pés. Sentou-se na neve e encostou-se ao fardo que trazia às costas.

Ao andar, descrevera um grande círculo e regressara aos. depósitos de víveres de Quatro Rios.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Anaay estava deitado na sua cama. Dii observava-o pelo canto do olho e de vez em quando olhava para o furador que usava. Por duas vezes o espetara nos dedos, mas o que era um fio de sangue comparado com o trabalho do marido quando este ia no encalce dos caribus, tentando sentir o cantar das pernas dos animais ao dirigirem-se para os seus pastos de Inverno no Sul?

Ficou admirada por ele a ter deixado ficar na cabana. Com certeza os caribus perceberiam a presença dela, uma mulher que agora sangrava da ponta de dois dedos e se assustariam com o chamamento de Anaay. Mas ele pedira-lhe que ficasse, e talvez fosse bom que ela o tivesse feito. Quem levaria água a Anaay se ela não estivesse lá? Quem lhe levaria o recipiente da urina e o tiraria dali para que o cheiro não ofendesse os caribus?

Já há três dias que estavam na cabana. Anaay passava a maior parte do tempo dormindo, pois quando é que os caribus visitam um homem a não ser em sonhos? Que outra forma tem um homem de ouvir o canto dos caribus exceto quando o seu espírito está sossegado e longe do corpo, nesse mundo do sono?

Ah! Ah! Ah! gritou Anaay.

Dii pousou o furador e ficou à espera que ele lhe pedisse alguma coisa, mas ele não disse mais nada.

Talvez os caribus lhe ensinassem alguma coisa em sonhos. Talvez agora Anaay soubesse para aonde deviam ir os seus caçadores. Dii queria ficar para ver, mas concluiu que talvez os caribus não falassem com o marido se ela não saísse da cabana. Tirou a parka de uma cavilha e saiu pelo túnel. Se manteria suficientemente perto da porta para ouvir Anaay, se ele a chamasse.

Ficou admirada ao ver que anoitecera. Quando é que a noite caíra? Era estranho porque, durante o sono de Anaay, ela não conseguira dormir, como se o marido lhe tivesse roubado os sonhos para ter mais para si próprio, e ela ficara vagando num mundo de vigília.

Ah! Ah! Ah! ouviu ela outra vez, mas não entrou.

Agachou-se, encolhendo-se para se proteger do frio. Metade do céu estava cheio de estrelas e a outra metade estava às escuras. As nuvens vinham do Norte, talvez anunciando neve. Em seguida, Dii ouviu outro som, tão baixo e distante que a princípio o sentiu apenas no peito, como se fosse um ritmo, como se de súbito outro coração palpitasse ao lado do seu.

Era um ruído contínuo e monótono, como as primeiras gotas de chuva no teto de uma cabana, mas a pouco e pouco passou-lhe do peito para os braços e pernas. Tornou-se atroador, subiu-lhe pelo pescoço e por fim chegou-lhe aos ouvidos. Então ela percebeu o que era e teve que tapar a boca com as mãos para evitar um grito de espanto.

Entrou na cabana correndo, esperando ver o marido acordado e preparando-se para contar aos caçadores o que ouvira, o que agora sabia. Mas ele estava a dormindo, de boca aberta, com um braço sobre os olhos e o outro sobre o peito, de punho cerrado.

Evidentemente, pensou ela. O que havia de esperar? Ela ouvira os caribus, ouvira o ruído dos seus cascos, mas não sabia onde estavam, a que distância se encontravam do acampamento, em que direção seguiam. Havia muito mais para saber, e decerto eram essas coisas que Anaay aprendia durante o sono.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

Folha Vermelha queria ficar onde estava. Talvez, mesmo no meio da tempestade, as roupas a aquecessem o suficiente para que conseguisse dormir um pouco. Andara tanto e vinha de tão longe! A dor da barriga vazia estendera-se a todo o corpo, e não lhe parecia que tinha fome mas sim que estava doente. Além disso, custava-lhe muito desatar o fardo de pele de caribu que trazia às costas, abri-lo e tirar comida,

No entanto, era um disparate morrer naquele sítio, tão perto do calor das cabanas e das despensas cheias. Ela não ia morrer, evidentemente. Ia adormecer, mais nada. Um soninho...

Não! O som foi tão alto que Folha Vermelha esbugalhou os olhos e, através da cortina de neve e de escuridão, tentou ver quem é que lhe teria gritado.

Por fim, percebeu que fora a sua própria voz. “A morte deve andar perto”, pensou.

Inclinando-se para a frente para agarrar um dos postes da despensa, levantou-se e depois cambaleou. Tinha o vento pelas costas, tal como ao sair e tal como teria se caminhasse direito. Começou a andar e desta vez contou os passos. De vez em quando parava para se certificar de que tinha o vento por trás.

Ouviu um choro débil. Era o vento, pensou, e deu mais alguns passos. Parou, verificou a direção da neve a cair e recomeçou a andar. Cinco passos. O choro continuava, até que Folha Vermelha percebeu que se tratava da filha. Talvez a criança não conseguisse agarrar no mamilo da mãe.

Parou e ajoelhou-se, tirou uma das luvas de pele de caribu com os dentes e segurou-a na boca para o vento não lhe levar. Retirou o braço da manga da parka e enfiou-o no espaço quente em que a filha se encontrava. A criança estava nua, exceto o musgo e as peles de esquilo que tinha entre as pernas. Folha Vermelha levantou o seio e encaminhou-o para a boca do bebê. Sentiu uma tensão súbita quando o bebê começou a mamar e o leite lhe saiu do corpo.

Folha Vermelha voltou a enfiar a mão e o braço na manga e depois calçou a luva. Apoiando-se nas mãos e nos pés, tentou levantar-se. Não conseguiu. O pânico apoderou-se dela. Voltou a tentar, mas caiu e rolou para o lado, arrastada pela carga que trazia às costas.

Protegeu a filha com os braços e permaneceu quieta, deixando que a neve a cobrisse.

Come bem, minha querida segredou ela. Come muito bem.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Ao amanhecer, o céu estava repleto de nuvens carregadas e escuras, com umas barrigas tão cheias que Dii nem via o sol. Correu para as lareiras. Um vento de leste fustigava-lhe a parka, trazendo-lhe o aroma da neve, o odor penetrante do Inverno. Deixara de sentir o ruído aterrador dos cascos dos caribus e não percebia o que ouvira Anaay, que continuava perdido nos seus sonhos.

Comeu às pressa para voltar para junto dele e quando chegou à cabana o marido estava acordado. Saudou-a com um olhar carrancudo e pediu-lhe água num tom ríspido, mas ela ficou radiante ao saber que os sonhos lhe tinham trazido o que ele procurava. Quando ele abriu as roupas de pele para lhe mostrar o seu desejo, pela primeira vez ela foi para a cama do marido com satisfação.

 

                    ALDEIA DE QUATRO RIOS

Folha Vermelha acordou às escuras com alguma coisa perto da face. Esbracejou até se lembrar do que fizera. Sentiu a filha mexendo-se no interior da parka, e desatou a rir. Preparara-se para morrer mas estava viva. Quem acreditaria em tal coisa?

A dor nas pernas recordou-lhe a dureza da luta, mesmo depois de ter caído. Cortara as fitas que lhe prendiam o fardo de pele de caribu às costas, mas nem sem esse peso conseguira levantar-se. Por fim deitara-se, imóvel, resignada a morrer, mas a filha mamando recordara-lhe a sua própria fome e ela resolvera comer também. Para quê morrer com o estômago vazio se tinha comida ao seu alcance?

Cortou os pontos em cruz que fechavam o saco de pele e censurou-se pela ganância que a levara a trazer o fardo maior. Podia ter continuado a andar se a carga não fosse tão pesada. Talvez fosse o próprio fardo que a fizera voltar à aldeia. Talvez ele tivesse resolvido ficar junto daquela gente que o enchera de comida para o Inverno.

Mas assim que o abriu, não conseguiu arrepender-se da sua decisão. O fardo estava cheio de gordura, da gordura espessa que se forma nos quadris do caribu e do alce, e de pedaços mais pequenos dos carneiros da montanha uma reserva de gordura que daria para manter uma família forte pelo menos durante uma lua de Inverno, ou talvez mais.

Escolheu um pedaço de gordura de carneiro, deu-lhe uma dentada e sentiu-a a desfazer-se na boca. Tinha o gosto das montanhas, ao vento e ao sol, e ateava-lhe um fogo desde a boca até a barriga, aquecendo-a como se ela tivesse engolido brasas de uma fogueira.

Comeu até já não ter fome, até a gordura quente lhe escorrer da boca e lhe cobrir os lábios. Amoleceu um pedaço na mão e em seguida esfregou-o na face para aliviar a queimadura provocada pelo vento e pela neve.

Enquanto comia, servira-se do fardo cheio para se abrigar do vento. Quando acabou, reparou que se formara uma corrente de ar por cima dela e do fardo. De repente, teve uma idéia, tão estranha que quase a fez rir. Remexeu na neve por baixo dela, com gestos amplos das mãos. Fez um buraco com o comprimento do fardo de pele de caribu e com o dobro da largura.

 

Quando sentiu as juncas e as ervas da tundra, parou e abriu a pele, empilhando as tiras de gordura ao abrigo do vento. Em seguida, cobriu-as de neve. Estendeu a pele vazia do outro lado do buraco, com a abertura virada para a pilha de gordura e rastejou lá para dentro. De vez em quando, enfiava o braço na neve, afastando-a para não sufocar.

 

Por fim, não conseguiu manter-se acordada. “Se eu morrer, morro”, pensou. É o que o meu marido queria. Pelo menos, se eu morrer, ele fica satisfeito.

Mas agora estava acordada e viva, talvez em algum mundo dos espíritos, mas não pensou nisso. Estaria dentro da pele de caribu se tivesse ido para um mundo dos espíritos? A filha estaria mamando no seu peito?

Levantou o braço e furou a camada de neve com facilidade. Uma lufada de ar frio inundou a pele de caribu, e um raio de luz. O vento desaparecera. A tempestade desvanecera-se. Folha Vermelha resolveu comer primeiro. Depois voltaria a enrolar a pele de caribu e a levaria para o seu abrigo.

Pegou uma tira de gordura. Tinha gosto de abeto acre, amarga e percebeu que ela vinha de um alce no cio. Fez uma careta mas continuou a comer. Embora não fosse tão boa como a gordura adocicada do carneiro, lhe daria as forças de que ela precisava para regressar ao abrigo.

Estava lambendo o resto da gordura que ficara nas pontas dos dedos quando uma pequena cascata de neve caiu sobre ela. Levantou o braço e abriu o respiradouro. Em seguida ouviu um uivo forte e sentiu umas unhas a roçarem na pele.

Lobos, pensou, e o coração alvoroçou-se de tal maneira que ela sentiu o seu pulsar na garganta. Tirou a faca que trazia na manga.

Pelo menos, um deles morreria antes de a apanharem.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Dii dirigiu-se primeiro a Chama-o-Sol, depois a Dá-Carne, os dois homens mais velhos, além de Anaay, que tinham ficado na aldeia de Rio Próximo depois da luta. Levou-os à cabana onde Anaay aguardava. Este envergava a sua parka mais requintada e usava todos os seus colares e amuletos, que se lhe amontoavam no pescoço. Sem o capuz, a cabeça de Anaay parecia pequena demais para o corpo, como se tivesse deslizado e se perdesse no meio da pele e das contas.

Anaay observou por instantes os dois homens sentados junto do fogo. Chama-o-Sol pequeno mas direito, enrolando e desenrolando uma luva de pele de caribu com os dedos nervosos, e Dá-Carne babando como uma criança e de olhar vago, como se não soubesse onde estava e depois disse a Dii que fosse chamar também os outros caçadores, mesmo os rapazes mais velhos. O que ele tinha a dizer era tão importante que todos os homens, e não só os mais velhos, deviam saber.

Dii precisara de toda a sua coragem para ir chamar os dois mais velhos para a sua cabana. Agora vai chamar os caçadores... Porque lhe dariam ouvidos, uma mulher que ainda há pouco tempo era escrava?

Há tantos caçadores, marido, e eu sou nova na aldeia, disse ela em voz baixa. E se eu me esquecer de algum? Posso ir buscar Bico-de-Gaivota para me ajudar? Anaay franziu a testa e ela acrescentou às pressas: Se formos duas, eles virão mais depressa, e Bico-de-Gaivota poderá ajudar-me na comida.

Ele levantou a cabeça e olhou para a parte de cima da cabana, como se ponderasse as palavras de Dii e depois respondeu:

Sim, é melhor. Vai buscar Bico-de-Gaivota.

Dii foi buscar Bico-de-Gaivota, que encarregou K’os de encher as panelas, e depois pararam ambas junto da cabana de cada caçador, raspando na aba da entrada e chamando-os. A maioria dos homens, ocupados preparando as armas para a caça ao caribu, franziu-lhes a testa e virou a cara para o lado enquanto as mulheres falavam.

Dii e Bico-de-Gaivota, porém, transmitiram a todos o que Anaay dissera, explicaram que os caribus tinham feito chegar o seu canto aos ossos de Anaay e que este sabia onde é que os homens de Rio Próximo deviam ir caçar.

K’os agachou-se no túnel de entrada da cabana de Bico-de-Gaivota e observou os homens. Ah, quem lhe dera ter o poder de se transformar em pulga ou mosca e escutar o que Raposa-Que-Ladra tinha a dizer! Com certeza era qualquer coisa relacionada com a caça ao caribu. Em que outra coisa pensavam os homens naquela época? Com a liberdade que Bico-de-Gaivota lhe concedera para ir colher plantas e raízes, K’os começara a oferecer-se aos caçadores. Havia locais sossegados na floresta e tufos de salgueiros em que as esposas não viam nada. A generosidade deles permitira-lhe encher o seu saco de costura de contas, penas, conchas e dentes.

No entanto, ultimamente, quase todos os homens andavam atarefados demais para estar com ela. Tinham que se afastar das mulheres e purificar-se para os caribus, segundo lhe disseram. Por isso, quando ela preparara os guisados de carne que Bico-de-Gaivota lhe pedira, acrescentara uma boa porção de violetas amarelas secas e reduzidas a pó. Não sabia como Anaay iria explicar as dores de estômago e a diarréia dos homens. Talvez eles percebessem que ele não tinha os poderes de que se vangloriava. Pelo menos, o mal-estar dele atrasaria o início da caçada e daria tempo a K’os para acabar o seu trabalho na parka de Anaay.

Para cada amuleto que Bico-de-Gaivota costurara nas bainhas, nas peles e nas contas e penas, K’os acrescentara uma maldição. Tufos de pele de lince para endurecer as articulações de Anaay; filamentos de penas de martim-pescador costuradas com agulhas às costuras debaixo dos braços para realçar a sua imprudência; olhos de raposa secos pregados ao círculo de penas de águia para entortar a vista de Anaay. Tiras finas de pele de papa-moscas costuradas debaixo do tufo do capuz para provocar uma morte demorada.

Ainda tinha que fazer um corte nas orelhas de castor que Bico-de-Gaivota costurara no capuz da parka. K’os faria apenas uns cortes minúsculos, com a largura suficiente para enfiar ossos dos ouvidos do bacalhau, achatados e brancos. delicados como flocos de neve, nas orelhas de castor. Usaria o furador mais fino para fechar cada corte e depois esmagaria os ossos já no interior das orelhas de castor E o ouvido de Anaay ficaria afetado e destruído.

Talvez dali a algumas luas, Anaay percebesse que a sua nova parka só lhe dera azar, mas a culpa decerto recairia em Bico-de-Gaivota. Não era que K’os tivesse qualquer contencioso com ela. A mulher tratava-a mais como uma esposa-irmã do que como uma escrava. Mas ia a caminho. Que bom era ela ser velha! Os velhos morrem sempre durante os Invernos rigorosos. Pelo menos, ela morreria depressa, uma morte que Raposa-Que-Ladra viria a invejar um dia.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

Folha Vermelha abriu caminho através da neve, usando a sua faca e gritando. Um dos lobos uivou de dor e depois Folha Vermelha ouviu a voz admirada de um homem. Parou, enfiou firmemente os pés na pilha de neve que lhe dera abrigo e enfrentou-o de faca em punho. Deslocou a lâmina para a esquerda ao ouvir um rosnar e depois viu que se tratava apenas de um cão, cinzento e preto. No topo da cabeça do animal, um corte sangrava.

Batedor! Fica quieto! gritou o homem ao cão. O caçador levantou os braços com as palmas das mãos viradas para a frente.

Não te farei mal, disse ele, e Folha Vermelha teve vontade de rir.

Ele não trazia faca. A lança e a arma de fogo como aquelas que o povo de Rio Primo usara contra a aldeia dela vinham penduradas às costas. O capuz estava puxado bem para a frente, protegendo-lhe os olhos do sol na neve e ela não lhe via a cara.

Julguei que o teu cão era um lobo, disse Folha Vermelha. Afasta-o de mim.

O homem empinou o queixo ao ver o monte de neve.

Dormiste aqui? perguntou ele.

A tempestade apanhou-me. Qual era a alternativa?

Tu não és da aldeia de Quatro Rios.

Folha Vermelha ia a dizer que era de Rio Próximo, mas havia sempre quem considerasse que a gente de outra aldeia era inimiga. Para quê dizer uma coisa que poderia ser usada contra ela?

És de Quatro Rios? perguntou ela. Ele encolheu os ombros e respondeu:

Este Inverno, sou.

Devias ver o teu cão. A ferida continua sangrando.

As feridas na cabeça sangram muito, observou ele, mas aproximou-se do cão, serviu-se da mão enluvada para estancar o sangue e depois limpou-a na neve.

Precisas ir a algum lugar? perguntou-lhe ele. Posso ajudar-te.

A minha cabana não fica longe respondeu ela. Posso viajar sozinha.

Não tens raquetes de neve?

Quando saí da minha cabana não estava nevando disse ela.

Tentou sorrir, mas os lábios esticaram e estalaram antes de ela sentir o sabor do sangue.

Segue o teu caminho. Eu tenho que ir buscar comida. Folha Vermelha inclinou-se como se se preparasse para entrar de novo na sua gruta de neve, mas ele não se mexeu. Alguém tirou comida da minha despensa, disse ele. Um fardo de pele de caribu cheio de gordura. Eu sou comerciante. Preciso dessa gordura. O que eu não comer neste Inverno, trocarei na Primavera.

Ela manteve-se de costas, mas ele continuou a falar.

Nem imaginas o que as pessoas oferecem nestas luas de míngua por um pedaço de gordura. Parkas cheias de bordados, sapatos fúnebres com solas de contas, coisas que não têm muito valor para uma barriga vazia.

Ela virou a cabeça e olhou para ele por cima do ombro, dizendo:

Então é melhor ires depressa para apanhar quem te roubou.

O cão rosnou outra vez, e Folha Vermelha apontou-lhe a faca.

O Batedor diz que foste tu.

Não tenho mais nada além dos meus próprios mantimentos. Bateu no peito e acrescentou: Um ciltogho de carvão e peixe seco. Queres me tirar?

Só levo o que é meu, respondeu ele, e depois chamou o cão.

Antes que Folha Vermelha tivesse tempo de protestar, o animal deitou-a ao chão. O comerciante pegou-lhe na mão que segurava a faca, tirou-lhe a arma e aproximou-a do pescoço de Folha Vermelha até ela gritar:

Chama o teu cão que eu dou-te o que tenho. O homem falou ao animal numa língua que Folha Vermelha não conhecia. O cão recuou, mas continuou a arreganhar os dentes. Folha Vermelha, que caíra de costas, ia pôndo-se de quatro, mas o cão rosnou outra vez e avançou.

Isto não leva muito tempo disse-lhe o comerciante. Mas eu continuaria a mentir se estivesse no teu lugar.

Golpeou a neve endurecida com um cajado até chegar a pele de caribu. Apalpou as fitas.

É minha, declarou ele.

Encontrei-a, reagiu ela. Enfrentava a tempestade quando encontrei a pele. Estava semienterrada na neve. Deu um bom abrigo, mas não é minha. Se é tua, leva-a com a minha gratidão. Deu-me jeito.

E a gordura que eu guardei lá dentro? Folha Vermelha encolheu os ombros.

A pele estava vazia quando a encontrei.

Mais uma vez caiu ao chão e tentou levantar-se. Mais uma vez o cão rosnou.

Não tenho armas disse ela. Diz ao teu cão...

Batedor!

O cão sentou-se, ganiu, e Folha Vermelha levantou-se e recuou.

Batedor! gritou o caçador, apontando para a gruta na neve. Aqui, busca!

Folha Vermelha começou a andar. Talvez o homem, ao encontrar as suas tiras de gordura, concluísse que não valia a pena segui-la. Detestava ficar sem a faca. Só tinha mais uma, e era uma faca de mulher com uma lâmina curva. Mas era preferível salvar a vida do que ficar à espera que ele lhe devolvesse a arma.

O homem gritou, mas ela não olhou para trás nem abrandou o passo. A neve era profunda e macia. Então, Folha Vermelha sentiu uma mão agarrando-lhe o capuz. Tentou libertar-se mas não conseguiu. Virou-se para o comerciante e este agitou um pedaço de gordura esbranquiçada do tamanho de uma mão na sua cara.

- É isto?

Onde encontraste isso? perguntou ela, tentando fingir-se admirada.

No buraco que tu abriste.

Se eu soubesse, teria enchido a barriga durante aquela longa tempestade comentou ela.

O homem empurrou o capuz da parka até às orelhas e, pela primeira vez, Folha Vermelha viu-o bem. Sentiu um aperto no peito, admirada.

Era Cen, o comerciante que levara Daes, a mulher Caçadora Marinha, para a aldeia de Rio Próximo. Embora Daes tivesse dado à luz a Ghaden várias luas depois de Cen a ter deixado na aldeia, quase todas as mulheres de Rio Próximo sabiam que ele era o pai de Ghaden.

O rosto de Cen modificara-se desde a última vez que ela o vira. Tinha o nariz torto e uma cicatriz ao lado da boca, mas Folha Vermelha sabia que ele era Cen. Não lhe vira a cara durante tantas noites, ao homem acusado daquilo que ela fizera? Mas como podia Cen estar vivo? Com certeza que morrera depois da pancada que apanhara quando o povo se convencera de que ele matara Tsaani, o avô de Sok, e também Daes.

Eu não a roubei. Encontrei-a, disse ela outra vez.

O que andavas fazendo aqui fora? perguntou ele.

O meu marido é comerciante de várias coisas afirmou ela, balbuciando o primeiro nome que lhe veio à cabeça. Como poderia dizer o seu nome? Ele podia já saber que fora ela que matara Daes e Tsaani. Se se preocupasse com a mulher, quereria vingar-se. Mesmo que não quisesse, decerto a mataria pelas feridas que o seu filho Ghaden sofrera, e pelos seus próprios ferimentos.

O teu marido é comerciante? perguntou ele, falando devagar. Onde está ele neste momento?

Ele é preguiçoso. Ficou na nossa cabana e eu fui espreitar as armadilhas. A tempestade apanhou-me antes de eu conseguir voltar.

Nunca conheci um comerciante que fosse preguiçoso.

Então não deves conhecer o meu marido, respondeu Folha Vermelha. Virou-lhe as costas e recomeçou a andar, mas disse-lhe por cima do ombro: Lamento que tenham roubado o fardo de pele de caribu da tua despensa. Ainda bem que eu o encontrei.

Continuou a andar, na esperança de que ele ficasse com a sua mercadoria, mas de repente sentiu as mãos do homem nos seus ombros. Perdeu o equilíbrio e caiu de costas na neve. Cen ajoelhou-se junto dela, soltou-lhe a fita do capuz e tirou-lhe. Ficou a observá-la, mas por fim abanou a cabeça e disse:

Vejo muitas mulheres na minha profissão.

Ao ver que ele não a reconhecera, Folha Vermelha tentou não mostrar o seu alívio.

Sei que foste tu que me roubaste o fardo de pele de caribu e a gordura que eu tinha armazenado. O meu cão detectou o teu cheiro na despensa e trouxe-me até junto de ti.

Folha Vermelha riu-se.

Qual o cão que faria uma coisa dessas?

Este faz. Cen inclinou a cabeça ao olhar para ela e acrescentou: Julguei que eras um homem. O fardo é pesado.

Eu não o roubei, repetiu Folha Vermelha.

Mas Cen continuou a falar como se ela não tivesse dito nada.

És uma mulher grande, forte.

Ajudou-a a levantar-se, arregaçou-lhe uma das mangas da parka e observou-lhe o braço.

Não tens comido muito ultimamente. Quem és?

Porque não contar-lhe uma boa história? pensou Folha Vermelha, e começou a falar, desfiando mentiras:

Há uns anos, quando eu era quase uma mulher, vivia na aldeia de Rio Próximo. O meu pai morreu e a minha mãe casou com um homem que negociava com as aldeias de Rio Próximo e Rio Primo. Era assim que nós vivíamos. Um dia, trouxe-me um homem para casar comigo. Tornei-me esposa e tive um bebê. Uma filha.

Folha Vermelha parou e viu que Cen estava outra vez observando-a, de olhos semicerrados. Esperava que a alusão à aldeia de Rio Próximo não lhe lembrasse de repente quem ela era.

Então vais voltar para o teu marido? perguntou ele.

Não.

Porquê?

Ele não queria uma filha. Resolveu dá-la à irmã que vive no Norte, em Rio Grande. Ela tem muitos filhos mas precisa de uma filha para cuidar dela na velhice. Eu fugi para poder ficar com o meu bebê.

De repente, a criança começou a chorar, e Folha Vermelha soltou a fita do decote da parka para Cen ver o bebê.

Onde vives? perguntou ele.

Há uma floresta de abetos a menos de um dia de caminho daqui. Fiz um abrigo nas raízes de uma árvore caída.

Como te chamas?

O medo revolveu-lhe as entranhas e Folha Vermelha sentiu as mãos tremendo. O homem não se lembrava da cara dela, e se soubesse o seu nome? A filha parecia sentir o medo de Folha Vermelha e desatou de novo a chorar, dessa vez alto, um choro prolongado. Folha Vermelha começou a cantarolar baixinho e convenceu-a a aceitar o peito. Deslocou-se lentamente, embalando o bebê e entoando uma canção de embalar, sempre pensando em nomes.

Gheli, disse ela por fim.

Gheli?

Sim, o meu nome é Gheli.

Deixa ele pensar que ela se chamava assim, que fora o pai ou o tio que lhe dera o nome, em homenagem ao que ela fora. Uma mulher chamada Gheli boa, verdadeira roubaria uma despensa? Mataria?

Gheli, pronunciou Cen, apontando para o buraco na neve. Enche outra vez a minha pele de caribu.

Folha Vermelha pensou em recusar, mas ele tinha a sua faca. Como poderia lutar com ele? Além disso, podia ter a oportunidade de enfiar um pedaço de gordura na manga da parka.

Aproximou-se de novo da pele, retirou-a da neve e depois bateu-a com as mãos para soltar o gelo que se formara com o seu hálito, endurecendo o interior. Voltou a embrulhar os pedaços de gordura, um por um, observando Cen pelo canto do olho e por duas vezes enfiando gordura na manga da parka. Quando terminou, arrastou a pele até ao local em que ele se encontrava.

As fitas estão cortadas, afirmou ela.

Cen retirou um rolo de babiche da parka e serviu-se dele para atar o fardo, fazendo um aceno de cabeça quando Folha Vermelha se inclinou para o ajudar. Esta julgou que ele lhe diria para levar a pele, mas ele a pôs às costas e começou a seguir o seu caminho através da neve na direção da aldeia de Quatro Rios.

Folha Vermelha ficou olhando durante algum tempo e depois começou a andar na direção oposta. Ainda não dera meia dúzia de passos quando ouviu chamá-la.

Gheli! exclamou ele. Tenho uma cabana quente e preciso de uma esposa.

Ela virou-se e olhou para ele. Seria perigoso ter Cen por marido. Um dia ele acabaria por descobrir quem ela era e o que fizera, mas que chance tinha ela de viver sozinha, sem comida? Talvez pudesse ficar com ele o tempo suficiente para pôr de lado carne e peles e guardá-las longe da aldeia para poder sobreviver, se tivesse que partir às pressas.

Aproximou-se. As raquetes dele calcavam a neve e assim os pés de Folha Vermelha não se enterravam ao andar. E lá foram eles, Cen, Gheli e o cão, Batedor, para a aldeia de Quatro Rios.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Dii pendurou a panela num poste da cabana. Estava pesada, cheia de gordura e de carne do alce que os caçadores tinham apanhado há uns dias. Pegou uma série de tigelas e encheu-as. Ofereceu a primeira ao marido, Anaay, mas ele afastou-a. Deu-a então a Chama-o-Sol e depois pousou outra ao lado de Dá-Carne. Este entornou a tigela e depois começou a comer o guisado com os dedos, apanhando-o do chão e esfregando-o na face. Dii desviou o olhar, fingindo que não via. Às vezes os velhos faziam aquilo, e só uma pessoa insensata riria deles. Quem sabia se um dia ela própria não faria a mesma coisa?

Bico-de-Gaivota e K’os chegaram à cabana com mais panelas. Penduraram-nas junto da porta e começaram a ajudar Dii. Anaay levantou-se e Dii olhou o marido com orgulho, acariciando com o olhar a parka nova que ele vestia, recordando o calor da sua pele quando fora deitar na cama dele nessa manhã.

Sentiu um ardor na barriga e pensou se não teriam feito um filho nesse dia. Bebera o chá de folhas de framboesa que K’os lhe dera. Ele fortaleceria o seu ventre, segundo a promessa de K’os. Mas que filho maravilhoso ela e Anaay teriam concebido, quando o som dos caribus ainda fazia estremecer os ossos dos pais.

Anaay começou a falar e a sua voz encheu a cabana.

Sonhei com o canto dos caribus anunciou ele.

Vários dos caçadores mais novos pousaram as tigelas e ergueram a voz num rápido cântico de caça, um grito que fez Dii estremecer de alegria. Ela não quisera vir para aquela aldeia, não quisera pertencer a Anaay. Seria mais fácil viver com a mãe e o pai, com os irmãos e o tio. Mas agora que era uma esposa, que mais podia desejar do que ser a mulher de Anaay, um homem que sonhava com caribus?

Chamei os animais e eles vêm na nossa direção. Temos que deixar a nossa aldeia e prepararmo-nos para ir ao seu encontro.

Enquanto Anaay falava, os homens continuaram a comer e pouco depois o guisado de carne acabou-se. Bico-de-Gaivota fez sinal a Dii, que se encontrava no túnel de entrada, para que ela fosse às lareiras buscar mais comida. Dii esperava estar na cabana quando Anaay explicasse onde estavam os caribus. Tal como Anaay, também ela tinha o conhecimento nos ossos, que estremecia dentro dela, exigindo ser transmitido.

Mas Bico-de-Gaivota era a primeira esposa, e Dii tinha que fazer o que ela pedisse. Suspirando, saiu da cabana. Se se apressasse, talvez não deixasse de ouvir uma grande parte do que o marido tinha a dizer.

K’os, satisfeita, observava os homens comendo o guisado. Nessa noite, dormiriam pouco. Reprimiu o riso e passou um odre de água a um dos caçadores mais jovens. Por duas vezes o satisfizera na última lua, antes do início dos preparativos para a caça ao caribu. Chamava-se Dança-no-Gelo e era um jovem cheio de si próprio. Durante a cópula, ele fingira que sabia o que estava fazendo, mas os seus modos eram toscos e as suas tentativas para entrar nela hesitantes e inseguras. K’os piscou-lhe o olho e ele resfolegou.

Rapazinho, eu já possuí quase todos os homens que se encontram nesta cabana, pensou K’os. Mas sorriu-lhe e deixou que ele acreditasse na sua própria importância.

Dii voltou com uma panela de carne de lebre e de ptármiga. Bico-de-Gaivota tirou-lhe a panela das mãos quando ela entrou na cabana, mas poucos foram os caçadores que pediram mais comida. A maior parte deles estava atenta ao que Anaay dizia. As tigelas, algumas ainda meio cheias, jaziam esquecidas no chão.

Anaay entoou um cântico que os sonhos lhe tinham trazido, e as palavras chegaram aos ouvidos de Dii ao ritmo dos cascos dos caribus. Então, ele calou-se de repente, e todos os que se encontravam na cabana ficaram à espera, sem mexer as mãos e com um olhar atento.

Por fim, ele disse:

Isto ouvi eu nos meus sonhos com os caribus. Durante três dias, caminharemos para norte, e depois dois dias para leste.

Os homens respiraram fundo e o ruído parecia um suspiro, o som da água correndo na areia. Os velhos caçadores começaram a cantar e os mais jovens juntaram-se a eles.

Anaay olhou para as suas esposas e para K’os, que se encontrava nos fundos da cabana. Franziu a testa e fez-lhes sinal para saírem. Havia planos e cânticos que uma mulher não devia ouvir.

Quando saíram, Dii ficou no alpendre e viu Bico-de-Gaivota e K’os afastarem-se. Bico-de-Gaivota era uma mulher magra e desajeitada. Parecia que os ossos eram grandes demais para a sua pele, mas K’os caminhava com graciosidade, e a sua parka de pele acompanhava-lhe os movimentos como se ela fosse um animal dentro da sua própria pelagem.

Dii queria ficar perto da cabana, para ver se a voz de Anaay se ouvia através das paredes de pele de caribu, mas qual a esposa que se arriscaria a amaldiçoar o marido dessa maneira? Optou por se dirigir a um rochedo que descobrira na aldeia, à beira do rio. Era um local aconchegado, exposto ao sol mas abrigado do vento pelas árvores que cresciam! dos dois lados. Dii subiu ao topo e pousou o queixo nos joelhos.

Três dias para norte, dissera o marido, e dois dias para leste. Ela sentira os cascos dos caribus. Até ouvira as suas articulações a estalar um ritmo sagrado que o povo aprendera e imitara com os seus chocalhos feitos de cascos e os seus tambores. E de manhã, ela percebera que o som vinha do Ocidente e que estava perto, nem sequer a cinco dias de caminho.

Manteve a sua mente em silêncio durante algum tempo, quase sem respirar, à espera de os ouvir de novo, esses caribus. Mas tinha a cabeça cheia dos sons da aldeia, das vozes das mulheres, das brincadeiras das crianças e do rumor do Rio Próximo, correndo entre as margens.

Porém, Anaay estava certo, evidentemente. Que estúpida fora ao pensar que tinha ouvido os caribus. Era uma mulher, e nem sequer daquela aldeia. Não era de admirar que ouvisse tudo ao contrário.

 

                     ALDEIA DE RIO PRIMO

Se o dia estiver bom, partiremos amanhã, disse Chakliux.

Aqamdax estremeceu ao ouvir estas palavras, embora já soubesse o que ele ia dizer.

Ela e Chakliux estavam sentados no local a que tinham dado o nome de Pedra Negra. Quase todos os dias arranjavam tempo para se encontrarem ali. Umas vezes discutiam os problemas da aldeia; outras seguiam o hábito dos Primeiros Homens e sentavam-se em silêncio.

Quantos irão? perguntou Aqamdax.

Aqueles de nós que são caçadores: Sok e eu, Espreita-o-Céu, Leva-Mais e Homem Risonho. Sok levará Chora-Alto e Neve-no-Cabelo. Espreita-o-Céu levará Chamariz. Estrela disse que não quer ir, portanto Ligige’ irá.

Será uma viagem dura para Ligige’.

Ela é forte. E tem um bom cão.

Homem Noturno diz que nós ficamos.

Eu sei. Perguntei-lhe se podia levar-te, visto que Estrela não quer deixar a mãe.

Aqamdax perdeu o fôlego.

Perguntaste-lhe se podias levar-me?

Chakliux baixou a cabeça e passou os dedos pelo tufo de pele na parte de baixo da parka.

Eu disse-lhe que não esperava usufruir dos direitos dos parceiros de caça.

Aqamdax sentiu-se corar. Por vezes, os parceiros de caça partilhavam as esposas, sobretudo em viagens longas, quando uma mulher ia ajudar a cortar a carne e a outra ficava tomando conta das crianças muito pequenas ou dos velhos muito fracos para irem também.

Aqamdax esperou que Chakliux dissesse mais alguma coisa, mas ele não o fez. Ela fechou os olhos e tentou imaginar como seria ir à caça do caribu com Chakliux. Nunca fora a uma caçada, mas, quando vivia na aldeia de Rio Próximo, as mulheres falavam-lhe dos longos dias de caminho em que construíam sebes de pedras e de ramos para dirigir os animais para um cercado em que os homens os matavam com fortes lanças de salgueiro. Em seguida, começavam a cortar e a embalar a carne.

Às vezes, se estavam longe da aldeia, o tempo estava quente e a carne não congelava, ficavam onde estavam. Os homens faziam estrados e as mulheres cortavam a carne em fatias finas para secar, mas em geral as noites eram suficientemente frias para que a carne congelasse, e eles regressavam à aldeia, carregados.

Cada caçador tinha um abrigo de pele de caribu. Aqamdax imaginou-se dormindo com Chakliux num desses abrigos, com uma fogueira do lado aberto para conservar o calor. Imaginou-o a seu lado durante a noite, e sentiu como era perigosa a necessidade que a levara à cama de muitos homens, quando vivia na aldeia dos Primeiros Homens.

Isso fora depois de o pai ter morrido afogado e de a mãe ter fugido com Cen, o comerciante de Rio. Aqamdax não tinha ninguém, e só quando estava quente e nos braços de um caçador é que se sentia segura.

Depois de Qung a levar para sua casa e de lhe ensinar a contar histórias, o vazio abandonara-a, e não voltara nem sequer quando Sok tentara vendê-la ao xamã Morsa, nem quando ele a rejeitara. Durante todas as luas em que vivera com o povo de Rio Primo, primeiro como escrava e depois como esposa, o vazio não voltara. Mas agora, depois da morte do seu bebê e com o seu ódio a Homem Noturno aumentando, era como se o seu coração tivesse encolhido, deixando-lhe um grande vazio no peito.

Subitamente, teve medo de ficar a sós com Chakliux

Agora vou-me embora, disse ela. Mas depois aproximou-se mais dele e cochichou: Quem me dera ir contigo. Quem me dera que fosses o parceiro de caça de Homem Noturno.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Nessa noite, os caçadores acordaram com dores que os revolviam da barriga até o ânus. Primeiro chamaram Flor Azul, que lhe cantou as suas canções. Como estas não lhes aliviaram as dores, mandaram chamar Bico-de-Gaivota e K’os, que lhes deram chás de raiz de amora-da-silva-salmão. Mas Dii adormeceu sem saber o que tinha acontecido.

Anaay, ansioso por contar aos homens os seus sonhos, comera depois de todos saírem, e então só restava o guisado de lebre e de ptármiga nas lareiras da aldeia. Resmungou um pouco e ralhou com Dii por não lhe ter guardado uma parte da carne do alce. Ela não se lembrava que guisado de alce era o seu prato favorito? Que tipo de esposa era ela para se esquecer de tal coisa?

De manhã, Dii levantou-se cedo e dirigiu-se às lareiras. Esperava que lá estivessem outras mulheres e que elas lhe falassem dos planos que os seus homens tinham feito para a caçada. Talvez ela fosse com Anaay, mas ele era velho e, como chefe dos velhos, com certeza que receberia o seu quinhão de carne. Talvez ele ficasse na aldeia de Inverno e deixasse que os outros fossem caçar em seu lugar.

Ficou admirada ao ver que as lareiras estavam desertas, ainda com as brasas da noite da véspera. Estariam todas as mulheres ajudando os maridos a acondicionar a comida e os mantimentos? Partiriam já naquele dia?

Dii pegou em várias braçadas de lenha e depois afastou cuidadosamente as cinzas da lareira do lado do nascente. Com uma tenaz de salgueiro, expôs as brasas, salpicou-as com mãos cheias de junco e espevitou o lume com o seu sopro. Acendeu as cinco lareiras, uma a uma, e pendurou algumas das panelas vazias que trouxera da cabana nos tripés.

Essas não são as desta noite?

Dii não levantou a cabeça. Era Bico-de-Gaivota. Tinha olheiras profundas e fios de cabelo soltos que se haviam desprendido das tranças.

São, respondeu Dii.

Comeste delas?

Só o guisado de ptármiga e de lebre respondeu ela.

Estás doente?

Não. E tu?

Só comi quando voltei para a minha cabana, mas todos os homens que comeram na tua cabana estão doentes. K’os, eu e Flor Azul passamos a noite em claro dando chás para as dores de barriga. Não sabias?

Eu estava dormindo.

Anaay não está doente? perguntou Bico-de-Gaivota.

Ele só comeu ptármiga e lebre, apesar de ter ficado zangado por não ter sobrado carne de alce respondeu Dii.

Bico-de-Gaivota abanou a cabeça.

Ele devia estar agradecido, disse ela. Eu vou para a cama. Se Anaay me chamar, diz-lhe que estou ocupada. Raspa as panelas e lava-as antes de pores mais carne lá dentro.

Depois de Bico-de-Gaivota se afastar, apareceram várias outras mulheres, e uma delas, a mãe do jovem chamado Dança-no-Gelo, chamou-a.

Então tu também estiveste acordada tratando do teu marido doente? perguntou ela.

Anaay não está doente, respondeu Dii. A mulher franziu a testa.

Talvez ele esteja habituado aos teus pobres pratos. Apesar de Dii estar acostumada a não responder quando as mulheres de Rio Próximo a desafiavam, dessa vez não ignorou o insulto.

A comida veio da cabana de Bico-de-Gaivota, disse ela.

No entanto, ao afastar-se, perguntou a si própria qual teria sido a causa da doença. Talvez, ao comerem o alce, os caçadores de Rio Próximo tivessem quebrado algum tabu. Ou talvez fosse o castigo por aquilo que o povo de Rio Próximo fizera à aldeia de Rio Primo. Não, concluiu ela. Como é que o incêndio de uma aldeia inteira podia merecer um castigo tão insignificante?

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

Folha Vermelha esperava ir encontrar um abrigo de comerciante. Por isso, quando Cen prendeu Batedor do lado de fora de uma cabana grande e bem construída, as perguntas vieram-lhe à boca.

Vives aqui? perguntou ela.

Como ele não respondeu, ela concluiu que Cen pedira Batedor emprestado para o ajudar a encontrar a pele de caribu, e que agora devolvia o cão ao dono.

Então o Batedor não é o teu cão, acrescentou ela. Mais uma vez ele não respondeu, e por isso ela começou a falar do que lhe ocupara o pensamento durante o caminho para a aldeia.

Disseste que precisavas de uma mulher. O que aconteceu à tua esposa?

Por fim, depois de ter o cão preso e alimentado, Cen virou-se para Folha Vermelha e disse:

Gheli, és uma mulher de muitas palavras. Cala-te. Se observares e escutares, saberás tudo o que precisas saber e, graças ao teu silêncio, as pessoas te considerarão sensata.

Virou-lhe as costas e dirigiu-se para as despensas. Estaria à espera que ela fosse atrás dele? Como saberia o que ele queria que ela fizesse se não respondia às suas perguntas? Pedira-lhe que viesse com ele. Ela podia ter ido para o seu próprio abrigo. À noite estaria lá, mas ali encontrava-se numa aldeia desconhecida, com um homem que a mataria se soubesse o seu verdadeiro nome.

Cen parou, olhou para ela e depois apontou para a cabana com o queixo.

Entra, incitou ele.

Ela rastejou para o túnel de entrada e parou para raspar na aba da porta. Como não obteve resposta, entrou. A cabana era grande e muito bem construída. O revestimento de pele de caribu estendia-se quase até o orifício da chaminé e estava decorada com círculos claros e escuros que lhe pareciam nuvens. O chão estava coberto de esteiras de erva, tecidas como as que Aqamdax fazia. No meio da cabana, o chão fora cavado mais do que um palmo na terra e forrado de pedras e areia para fazer uma lareira.

Folha Vermelha remexeu as cinzas, mas não viu nenhuma faísca. Não sabia se devia ou não acender o fogo. E se aquela não fosse a cabana de Cen? O que pensaria a dona se viesse a descobrir que uma desconhecida acendera a sua lareira?

Talvez ficasse satisfeita por ter a cabana aquecida, pensou Folha Vermelha, e procurou na sua parka o cilt’ogho onde se encontrava o carvão que ela trouxera do seu próprio abrigo.

Calculou que pudesse estar apagado, visto ela não lhe’ mexer há muito tempo, apesar de lhe ter acrescentado mais um nó de madeira. Enfiou o carvão e as cinzas na lareira e sorriu ao ver a faísca débil no meio de um dos nós. Atiçou o fogo com junco e pedaços de casca de bétula até fazer chama e depois juntou a madeira.

Quando o fogo estava forte, Folha Vermelha retirou a filha do calor da sua parka. A criança chorou ao sentir o frio súbito da cabana.

Chiu, fique calada, cantarolou Folha Vermelha.

Atirou a fralda de musgo da criança no fogo e limpou-a. Em seguida, revestiu a sua envolta de pele de esquilo com musgo fresco tirado de uma pequena bolsa que trazia nas perneiras. Pôs de novo o bebê debaixo da parka e atou as fitas que a mantinham segura debaixo dos seios.

Quando a criança começou a mamar, Folha Vermelha foi lá fora e encheu uma panela de neve limpa. Na cabana, pendurou a panela num tripé por cima da lareira. Encontrou vários odres de água vazios e amaciou-os fazendo-os rolar nas palmas das mãos para que eles ficassem prontos a encher assim que a neve derretesse.

Por fim, ouviu alguém no túnel de entrada e levantou-se, com a boca cheia de palavras de explicação pelo fato de estar ali.

Era Cen. O homem apontou para o fogo e estendeu-lhe um saco de pele de peixe cheio de salmão defumado. O seu cheiro fez revolver o estômago de Folha Vermelha.

Come, disse ele e depois retirou a mão.

Ela deu-lhe um pedaço de peixe e tirou outro para si. Depois comeu tão depressa que ainda sentia a barriga vazia quando acabou. Verificou a neve que colocara na panela. Já se derretera. Encheu um odre de água, deu-o a Cen e depois saiu a fim de ir buscar mais neve. Quando voltou, ele estava encostado a um espaldar de salgueiro.

O ribeiro do lado norte da aldeia é um bom local para ir buscar água, disse-lhe ele. As mulheres mantêm-no aberto durante a maior parte do Inverno. Ele escoa para um pequeno lago não muito longe daqui.

As mulheres não se importam que eu vá lá buscar água?

Ele encolheu os ombros.

Eu não sou mulher. O que posso dizer-te? Deixa-me ver a tua filha.

Folha Vermelha ficou admirada com o interesse dele, mas afastou o bebê do peito, retirou-o da parka e estendeu-o a Cen para ele o ver. Os olhos da criança estavam fechados, mas a sua boca estava franzida como se ainda estivesse mamando.

Deste-lhe um nome?

Não.

Eu devia dar-lhe um nome, agora que sou o pai dela, disse Cen.

Folha Vermelha tentou disfarçar a surpresa. Ele já se considerava pai?

Ela precisa de um nome, reconheceu Folha Vermelha

Em tempos houve uma mulher que eu conheci, uma boa mulher evocou Cen. O seu nome precisa de ser recordado.

Olhou para a criança e semicerrou os olhos como que avaliando se o nome lhe assentaria bem. Por fim, disse: Sim. Ela vai chamar-se Daes.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

O vento acordou Aqamdax e ela ficou ouvindo-o fustigar as paredes, tentando entrar. Saberia ele que naquela cabana havia apenas mulheres e crianças? Chakliux e Homem Noturno passavam a noite com os outros homens na aldeia. A cabana dos caçadores fora destruída durante a luta, e agora eles só tinham um abrigo tosco mas, como dissera Chakliux, as suas canções ainda eram sagradas e as suas histórias agradáveis de ouvir.

Aqamdax apoiou-se nos cotovelos. Estrela dormia de boca aberta e Olhos Grandes estava imóvel. Ghaden e Yaa estavam enroscados em Mordedor, o cão. Aqamdax voltou a deitar-se, mas sentia um peso no peito ao pensar que Chakliux partia no dia seguinte. Agarrou-se à camisa de noite com as duas mãos, segurou-a com força e tentou não pensar na barriga vazia nem na dor dos seios. Como poderia viver sem Chakliux e sem o filho?

Pouco depois, o marido a levaria para a cama. Todas as noites ela se interrogava se ele a chamaria, mas alguns homens esperavam duas ou três luas depois do nascimento de uma criança, até se sentirem livres do perigo que o poder do sangue das mulheres poderia representar. Tentou não pensar nas mãos dele no seu corpo e imaginou que a sua barriga voltaria a inchar com um bebê. Dessa vez, não permitiria que a criança saísse dos seus braços. Fugiria, como Folha Vermelha fugira, em vez de se arriscar a que Homem Noturno lhe matasse o filho.

Sentia os músculos tensos e aos saltos debaixo da pele, e virou-se e revirou-se no colchão. Por fim, levantou-se da cama, pegou a parka e as botas e saiu ao encontro da noite

Esperava que a atmosfera estivesse fria, ainda na véspera nevara um pouco mas o vento mudara e soprava agora de sul, trazendo calor como uma recordação do Verão. Aqamdax vestiu a parka, calçou as botas, atravessou a aldeia às pressas e descobriu o caminho que ia dar à floresta de abetos.

Um lugar onde não deveria ir sozinha à noite, pensou. Havia lobos. Talvez um lince. Mas mesmo assim continuou a andar, assustada com o que estava fazendo, mas levada pelo vazio que se abrira de novo no seu peito.

O que importava se os lobos a matassem? E o lince? Pelo menos, iria para junto do filho, da mãe e do pai. Talvez caminhasse para sempre na floresta, ou na tundra, até a morte a arrebatar de uma forma ou de outra.

Afastou os rostos que lhe vinham à mente: Ghaden, Yaa, Chakliux e Ligige’. Ligige’ estava velha, e portanto não tinha mais muitos Verões para viver. E Ghaden e Yaa tinham-se um ao outro. Mas Aqamdax não encontrava desculpa para abandonar Chakliux.

Quando chegou à Pedra Negra, sentiu-se cansada. Subiu para o rochedo, enrolou a parka em volta dos pés, levantou as pernas e apoiou a cabeça nos joelhos. Estava uma noite boa para ficar ao ar livre, pensou Aqamdax, olhando para as estrelas e tentando afastar os pensamentos tristes.

Chakliux saiu da cabana dos caçadores. Os outros estavam dormindo, mas desde que Homem Noturno matara o filho de Aqamdax que Chakliux detestava estar na mesma cabana com ele. A sua respiração parecia envenenar o ar e os seus sonhos lutavam com os de Chakliux, perturbando-lhe o sono. Chakliux receava que tal inimizade afastasse a sorte dos homens na caça, por isso, saiu, arrastando as suas frustrações para a noite, onde os ventos as afastariam.

Levou consigo a sua roupa de dormir e o cobertor de pele de lebre que Folha Vermelha lhe oferecera quando ele ainda vivia com o povo de Rio Próximo. Estava muito bem feita, essa roupa, com tranças e laçadas que mantinham um homem quente, mesmo nas noites mais frias, mas quem sabia o que poderia acontecer? Talvez essas mesmas tranças e laçadas fossem uma rede que apanhava os sonhos de Homem Noturno e os encaminhava para Chakliux. Ou talvez o cobertor retivesse o ódio de Chakliux e, apesar de parecer leve, pesasse com a sua necessidade de vingança. Como podia ele deixá-lo na cabana dos caçadores, onde poderia afastar dotes de caça, a precisão de uma lança, a força de um arco?

Chakliux encaminhou-se para a Pedra Negra. Era um bom local, aquele rochedo. O pensamento acalmou-o. Não estranhou ao encontrar Aqamdax ali, mesmo de noite. Instalou-se a seu lado, sentiu-a tremer e percebeu que ela estava chorando.

Abraçou-a e ela encostou-se a ele. Não trocaram uma palavra, o ódio dele dissipou-se e Aqamdax manteve-se em silêncio. O único movimento entre eles era o da respiração

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Uma noite antes de os caçadores partirem da aldeia. Anaay acordou Dii e passou para a cama dela. Dii ficou admirada. Um homem prestes a partir para a caça ao caribu não devia levar consigo o cheiro de uma mulher.

Quando era pequena, Dii ouvira as histórias que as mulheres contavam à lareira, palavras que passavam de umas para as outras. Falavam da necessidade que os homens tinham de mulheres depois de matarem os caribus, quando já não era possível perderem a sorte na caça.

As mulheres, exaustas com o corte da carne, muitas vezes não partilhavam a alegria dos homens na cópula e limitavam-se a suportá-los, só pelo fato de, pelo menos, poderem estar deitadas nesse momento e satisfeitas por saberem que os homens mergulhariam num sono profundo pouco depois.

A mãe de Dii repreendia as mulheres quando elas se queixavam dos desejos dos homens. Quem arriscava a vida para que o povo tivesse carne para comer? Quem é que trabalhava mais para matar os caribus? Não eram as mulheres.

Dá graças, dissera ela a Dii, quando o teu marido te desejar. Rejubila por poderes levar alegria à vida dele.

Por isso, Dii não se atrevia a aborrecer-se com a escolha de Anaay. Fechou os olhos e recordou-o quando ele falava aos caçadores, recordou a veneração de que ele era alvo por sonhar com caribus. E nem se permitiu pensar nos seus próprios sonhos, no canto que sentira nos ossos, quente e forte como o vento sul.

 

ALDEIA DE RIO PRIMO

Aqamdax encostou-se a ele e Chakliux sentiu-lhe os calos das mãos quando ela lhe acariciou os braços e o peito. Enfiou as mãos debaixo da parka dela e só parou quando lhe agarrou nos seios, sentindo os mamilos firmes e duros nos seus dedos. Depois, afastou-se, pedindo desculpa pelo que fizera.

Não, Chakliux, não pares, suplicou Aqamdax. Preciso que me abraces. Preciso...

Ele puxou-a para si, como se ela fosse uma criança, acariciou-lhe o cabelo, encostou a sua face à dela e contentou-se com isso. Mesmo no tempo em que vivia com Gguzaakk, apesar das alegrias partilhadas entre marido e mulher, nunca desejara tanto uma mulher como Aqamdax, mas possuí-la agora, naquele local, às escondidas do marido dela e da mulher dele, com a necessidade alimentada pela raiva...

No dia seguinte, partiria para a caça ao caribu. Como podia esperar que os animais se oferecessem se ele não tinha força de vontade para fazer o que estava certo? Como podia esperar que os animais o respeitassem se ele desonrasse a mulher e o irmão da mulher? E como podia esperar que Aqamdax o refreasse?

Quando ambos viviam na aldeia de Rio Próximo, eram amigos. Ele partilhara as alegrias e as tristezas da vida dele, e ela partilhara as dela. Ele sabia que ela levara para a cama muitos dos homens da aldeia dos Primeiros Homens, mas só para preencher o vazio da sua vida.

Talvez ela não precisasse verdadeiramente dele mas apenas esquecer a sua própria perda.

Chakliux, por favor, quero ser tua esposa, disse ela em voz baixa. Não quero viver com Homem Noturno. Abandono-o e fico contigo. Não me importo que fiques com Estrela. Serei segunda esposa.

Aqamdax envolveu-lhe o rosto com as mãos e, apesar de ele não lhe ver os olhos na escuridão, percebeu pela voz que ela estava chorando.

Te darei um filho. Muitos filhos.

Aqamdax, disse ele e, pegando-lhe as mãos, levou-as ao peito. Tem calma, fica calada e ouve. Quando terminar a caçada e nós trouxermos os caribus de que precisamos para o Inverno, então poderás abandonar Homem Noturno e eu te aceitarei como esposa. Na Primavera, se quiseres, sairemos desta aldeia. Se preferires viver com o teu povo, iremos para lá. Faremos o que quiseres, mas só depois de nós trazermos a carne de que precisamos para passar o Inverno.

Então ela calou-se. Fez-lhe apressadamente um carinho no rosto e depois retirou a mão com a mesma rapidez. Desceu do rochedo.

Tem cuidado. Caça bem, disse ela.

Mais tarde, na cabana de Estrela, Aqamdax estava deitada no meio das suas peles e lembrou-se das promessas que tanta gente lhe fizera: Nasce-o-Dia, aquele caçador dos Primeiros Homens que prometera tomá-la como esposa; a mãe, que dissera que voltaria mas que nunca voltou; Homem Noturno, que lhe prometera filhos e que afinal...

Porque confiaria em Chakliux? cochichou-lhe uma voz na escuridão. Porquê confiar em alguém? Mas como poderia duvidar? Naqueles breves momentos em que estivera nos braços de Chakliux, a dor provocada pela sua perda diminuíra e ela quase se sentira viva de novo.

Agarrou o amuleto e sentiu a saliência dura do pauzinho que trouxera do Lago do Avô na noite em que o filho morrera.

Embora ela não se lembrasse, Chakliux contara-lhe que ela entrara no lago e voltara com aquele pau e o embrulhara como se fosse um bebê. Guardou-o durante três dias até perceber do que se tratava.

Lembrava-se desse momento, de ver o pau dentro de um cobertor de pele de lebre, chorando ao saber que o seu filho estava morto. Encontrava-se na sua cabana de partos, ainda sangrando e incapaz de viver na aldeia, mas Ligige’ fizera-lhe companhia...

Até essa noite, não se importara de estar viva ou morta. A dor que sentia era muito maior do que aquilo que os seus olhos viam ou os seus ouvidos ouviam. Mas agora Chakliux dera-lhe esperança. Seria seu marido. Ambos teriam que suportar a separação provocada pela caça ao caribu. Entretanto, ela continuaria a ser esposa de Homem Noturno, e rezaria todos os dias para que ele não a chamasse para a sua cama.

Os seus pensamentos foram interrompidos pelo rosnar de Mordedor.

Estrela e ela levantaram-se quase ao mesmo tempo, seguidas por Ghaden e Yaa. Ghaden correu para o canto onde se encontravam as armas e tinha a sua lança na mão quando Homem Noturno afastou a aba da porta e entrou na cabana.

Não cumprimentou ninguém. Pestanejou até conseguir fixar o olhar em Estrela, à luz das brasas da lareira.

Irmã, resolvi ir com eles, disse ele. Tenho um braço são. Isso basta para atirar uma lança.

Ainda há uma lua, se Aqamdax tivesse ouvido aquelas palavras ao marido, teria rejubilado por ele ter recuperado as forças, mas nessa noite elas não tiveram qualquer significado para ela, até que ele disse:

Mulher, tu vens comigo.

Então ela baixou a cabeça às pressas, para ele não ver a alegria no seu olhar nem perceber o motivo da sua satisfação.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

No meio da manhã, os homens estavam prontos para partir. Levavam as armas, pranchas de arremesso e lanças. Alguns dos jovens caçadores tinham feito arcos para atirar flechas de fogo, mas outros argumentavam que tais armas lhes dariam azar. Teriam esquecido os jovens de que os caçadores de Rio Primo tinham usado arcos contra eles? E o velho Gaio Azul? Fora ele que trouxera a arma para a aldeia há muito tempo. Pendurara-a na parede da sua cabana para lhe dar sorte. Ele, a mulher, a cabana e tudo o que possuíam, não tinham perecido num incêndio?

Eram muitas as conversas, as queixas e as acusações. Anaay levantou-se e ergueu o cajado para o céu.

Ouçam, caçadores, exclamou ele. Quando os homens se calaram, ele olhou para os que empunhavam armas de fogo e disse:

Os jovens procuram sempre algo novo. Deixemos servirem-se da arma e verem por si próprios que os caribus veneram as lanças.

Anaay mexeu os ombros para aliviar a dor nas costas Devia ter voltado para a sua cama durante a noite em vez de ter ficado com Dii. Por sinal, devia ter passado a noite com Bico-de-Gaivota, mas era difícil optar pelas suas rugas e ossos ressequidos quando Dii estava perto.

Quando voltassem com os caribus, ele passaria a primeira noite na aldeia com Bico-de-Gaivota. Assim ela ficaria satisfeita. Anaay olhou para trás e viu que Dii e K’os tinham ocupado os seus lugares de cada lado dos três cães. As mulheres tinham sido carregadas com os fardos de comida e as camas. Ele, tal como os outros caçadores, levava apenas as suas armas, embora isso já bastasse.

Anaay não sabia ao certo como iniciar a caminhada. Precisava de palavras sagradas, de uma oração, um cântico, mas não lhe ocorreu nada. Perguntou a Espreita-o-Céu e a outros:

Estão prontos?

Ouviu-se um burburinho entre os homens e depois alguém explicou que estavam à espera de Dança-no-Gelo, o rapaz.

Quando Dança-no-Gelo se juntou a eles, Anaay reparou que ele se sentara ao lado de K’os e que não tirava os olhos dela. Anaay sabia o que isso era. Se alguma mulher sabia excitar um homem, era K’os. Até o seu andar lembrava a Anaay o que ela tinha entre as pernas, mas quem podia confiar nela? Devia tê-la deixado com a gente de Rio Primo.

K’os afirmava que era curandeira, e era verdade que as suas mezinhas tinham ajudado o povo daquela aldeia, mas Anaay recomendara a todos que tivessem cuidado com as curas dela.

Os seus próprios poderes eram superiores aos dela, disso não tinha dúvidas. Se não fossem, porque seria ela sua escrava? Mas mesmo assim ele tinha cuidado. Não podia arriscar estupidamente a vida. O que faria o seu povo sem ele? Escolheriam Chakliux, um aleijado, para os orientar, e Sok seria o chefe dos caçadores. O que aconteceria a uma aldeia conduzida por homens assim? Dentro de pouco tempo, todos estariam fracos e amaldiçoados.

Por fim, quando a impaciência se manifestou num vozerio e no latir dos cães, Anaay ergueu de novo o seu cajado e gritou:

Vamos embora. Tragam os pensamentos sagrados que honram os caribus.

De repente, todos se calaram, como se esperassem que ele dissesse mais alguma coisa. Anaay pensou num enigma, mas reconheceu que ele lhes poderia fazer lembrar Chakliux, o tal que lhe ensinara a construir enigmas. Então, contou como ouvira o canto dos caribus em sonhos, como jejuara e cantara. Ao falar sentiu-se grande, como se aqueles que o rodeavam não passassem de crianças.

Depois reparou que as mulheres se apoiavam ora num pé ora noutro e que mexiam a cabeça e os ombros debaixo das alças das suas pesadas cargas. Os homens começaram a dedilhar as suas armas, a verificar as botas e a ajustar os capuzes das parkas. Como podiam esperar que a caçada fosse bem sucedida se nem conseguiam passar algum tempo pensando nas coisas sagradas?

Aborrecido, Anaay virou-lhes as costas e começou a andar.

 

                   O POVO DE RIO PRIMO

Estrela choramingava sem parar, atrasando-lhes a marcha, mas Chakliux estava radiante. Embora viesse como esposa de Homem Noturno, Aqamdax estava com eles.

Chakliux não olhava para ela e os seus pensamentos erguiam-se em cânticos de homenagem aos caribus, mas a alegria estava lá, empolgando-o a cada passo, de tal modo que nem o seu pé de lontra se cansava ao andar.

Marido, preciso descansar disse Estrela, destacando-se do grupo de esposas para se juntar a ele que seguia junto dos caçadores.

Espreita-o-Céu franziu-lhe a testa e atirou a cabeça para trás, apontando para as mulheres.

Não devias vir conosco advertiu ele, mas Estrela fez beicinho e continuou agarrada a Chakliux.

Mulher, eu disse-te para não vires nesta viagem, lembrou Chakliux. Disse-te para ficares com a tua mãe e com Ligige’. Vou levar-te para casa. Se caminharmos até à noite, chegaremos à aldeia a tempo de dormires na tua cabana e amanhã ou no dia seguinte conseguirei apanhar os outros.

Não quero voltar, só quero parar. Já andamos o suficiente para um dia.

A sua voz transformou-se num lamento esganiçado que atacou os dentes traseiros de Chakliux e lhe fez doer a cabeça.

Pára se quiseres, mas nós continuaremos a andar. Já participaste de uma caçada. Sabes que só descansamos à noite.

Estrela afastou-se dele batendo os pés e foi queixar-se às outras mulheres. Elas ignoraram-na. Embora o bebê de Chakliux fosse ainda uma pequena saliência na barriga de Estrela, era ela que levava o fardo mais leve. Até Yaa, que era uma menina, ia mais pesada.

Chakliux regressou aos cânticos ao caribu, mas não sem que antes o seu olhar pousasse em Aqamdax por instantes. Ela observava-o, e sorriu quando o viu olhando para ela.

Então ele rezou para que os caribus fossem abundantes, para que a caçada corresse bem e fosse rápida, e pouco depois ele faria de Aqamdax sua esposa.

 

                     O POVO DE RIO PRÓXIMO

Caminhavam apenas há quatro dias quando depararam com vestígios de outro acampamento. K’os reprimiu o riso. Era um acampamento de Rio Primo. Tinham acendido a fogueira à beira do rio e prendido as extremidades dos seus abrigos com montes de terra.

 

K’os reparou no ar carrancudo de Raposa-Que-Ladra e ouviu-o praguejar. Ele julgara que o povo de Primo já não ia atrás dos caribus? Julgava que podia reclamar facilmente o território de caça que lhes pertencia?

Quando ele falara ao povo nos sonhos com os caribus, K’os não percebera se ele sabia que os animais de que estava a falar três dias para norte e dois para leste eram aqueles que seriam caçados pelos homens de Primo. Julgaria ele que os homens de Rio Próximo seriam bem-vindos? Julgaria que as mulheres de Primo que acompanhavam os caçadores como suas esposas e escravas não gostariam de se juntar ao seu próprio povo? Estúpido! Talvez os amuletos que ela costurara à parka dele já estivessem surtindo efeito. Ela conseguira acrescentar o último na noite da véspera da partida.

É um acampamento de Primo, disse-lhe Dii.

K’os estava tão embrenhada nos seus pensamentos que deu um salto ao ouvir aquelas palavras.

Dii repetiu o que dissera e depois acrescentou:

Achas que Anaay sabe?

Devia saber. Qual o caçador que não sabe?

Ele é de Rio Próximo. Pode não reconhecer as coisas como nós.

K’os encolheu os ombros.

Já vieste a alguma caçada? perguntou ela.

Duas vezes, com o meu... Calou-se.

K’os ergueu as sobrancelhas para lhe mostrar que compreendera. Era tabu falar nos mortos, e Dii teve o bom senso de se calar, em especial quando o marido se revelava tão estúpido e impotente.

Então conheces como se vai daqui para o território dos caribus.

Dii fez um sinal afirmativo.

Achas que devo dizer alguma coisa a Anaay?

Se eu estivesse no teu lugar, não diria, respondeu K’os.

E se ele não sabe?

A escrava dele que lhe diga, insistiu K’os. É preferível que uma jovem esposa não seja humilhada.

K’os viu a gratidão no olhar de Dii e sorriu-lhe. Deixa ela pensar que o fazia por bondade. A gratidão era uma dívida pesada.

Anaay interrompeu Chama-o-Sol. A gaguez do homem fazia-lhe doer a cabeça.

Achas que este é um acampamento de Primo? perguntou Anaay. Eles nem sequer têm caçadores suficientes para saírem da aldeia. Julgam que os caribus os respeitam depois do que eles fizeram no ano passado, da luta que começaram, da derrota que sofreram às nossas mãos.

Eu... Eu n-não sei na-nada di-disso, mas este ac-campamento é de Pr-Primo.

Ele tem razão.

A voz, a voz de K’os, obrigou Anaay a levantar-se.

Julgas que acredito na palavra de uma escrava? perguntou ele.

K’os tirou o capuz da parka e agachou-se junto do que restava de uma fogueira. Quando falou, era para Chama-o-Sol, para Dança-no-Gelo e para os outros homens que se encontravam junto deles.

Olhem, disse ela. Vejam como as pedras estão empilhadas em círculo aqui, com dois palmos de altura. Isto é obra do povo Primo. E reparem... Olhem para este buraco. Eles afiam os pés dos tripés. Os de Rio Próximo não o fazem.

Então, talvez sejam de Quatro Rios ou de Caribu, disse Anaay.

Ela fez um sorriso trocista e Anaay estendeu o braço para a esbofetear, mas K’os levantou-se de um salto e afastou-se. Ele desequilibrou-se e quase caiu em cima das cinzas. Vários caçadores viraram a cabeça. Anaay evitou pensar nos sorrisos que eles disfarçavam.

Faz o que quiseres, disse K’os. Isso não me interessa, mas eu não me admiraria que os caçadores Primo, por muito poucos que restem, seguissem os seus hábitos e fossem caçar para o rio Caribu.

U-uma ca-caçada no rio, explicou Chama-o-Sol aos caçadores mais jovens. Qu-quando eu era no-novo, ho-houve um ano em que fo-fomos caçar com eles. Foi tal a dis-discórdia quanto à dis-distribuição da carne que nun-nunca mais fomos ca-caçar com eles.

K’os empinou o queixo para Anaay.

Julgas que os cânticos que ouviste eram dos animais que os Primo caçam todos os anos? perguntou ela.

Anaay semicerrou os olhos e respondeu-lhe entre dentes:

Volta para junto das mulheres. Até a minha mulher tem mais juízo e não fala quando os caçadores resolvem o que vão fazer. Tu és escrava. Não te esqueças disso.

Talvez tenha chegado o momento de ela ser vendida, sugeriu Dança-no-Gelo, mas Anaay ignorou a sua impertinência. Era pouco mais do que um rapaz. Ia deixá-lo tentar controlar uma mulher como K’os.

K’os afastou-se, rebolando, e os caçadores seguiram-na com o olhar até ela se perder no grupo das mulheres que se juntavam ao pé dos cães e dos fardos.

Então talvez Anaay tenha que fazer algo mais do que sonhar disse um dos caçadores. Não precisamos gastar forças e armas com os homens de Primo. Mesmo que eles sejam poucos, eu não quero lutar. A minha mulher esta aqui, com o meu filho mais velho.

Alguns de nós têm mulheres de Primo, disse Primeira Águia, um dos caçadores mais novos. Como sabemos que elas não irão juntar-se ao seu povo e lutar contra nós no nosso próprio acampamento?

Choramingas tanto que até pareces uma mulher, repreendeu Anaay, com um ar carrancudo. Em geral caçamos com cercas e um curral para que os animais venham ao encontro das nossas armas. Os Primo servem-se da água para abrandar a marcha dos caribus, e as mulheres ficam no rio para os animais flutuarem até elas. Não somos muito experientes neste tipo de caçada, mas talvez o seu cantar tenha chegado até mim porque este ano temos que atravessar um rio. Deixem-me em paz, que eu vou pensar nisso. Acampem aqui e dêem-me tempo para rezar.

Anaay afastou-se deles, sem olhar para trás. Para quê dar ouvidos ao que resmungavam? Tinham eles ouvido o cantar dos caribus? Entendiam mais de caribus do que ele?

Quando perdeu o acampamento de vista, longe do burburinho das mulheres, Anaay desembainhou as armas e as pôs no chão. Agachou-se junto delas e colocou a mão direita na tábua de arremesso e na lança. Depois fechou os olhos e começou a cantar. Era uma canção que em tempos pertencera ao velho Tsaani.

Tsaani oferecera-a ao neto, Sok, portanto ela não pertencia a Anaay, mas Sok já não vivia com o povo de Rio Próximo. Não saberia que Anaay a usava. E com certeza Tsaani não se importaria. Afinal, fora a mulher de Sok que matara Tsaani, e Anaay dissera ao povo quem fora o assassino. Tsaani devia-lhe isso, pelo menos uma canção.

Anaay tentou recordar-se da noite em que sonhara com os caribus. Vira-os, ouvira o estrépito da sua passagem, como pedras chocalhando umas nas outras. Sentira o chão tremendo e virara a cara para a parede nordeste da cabana. De que mais precisava? Se os seus sonhos lhe tinham dito para ir para norte e para leste, era o que faria.

Pensou outra vez no que Chama-o-Sol lhe dissera sobre a caçada no rio. Chama-o-Sol parecia não se lembrar que Anaay partira o braço nesse Outono e que, portanto, não estivera lá.

Enquanto os outros homens caçavam, Anaay ficara na aldeia e conquistara Bico-de-Gaivota como esposa. Ela fora segunda esposa de um homem que andava na caça ao caribu e, quando o marido regressara à aldeia de Inverno, Anaay já estava vivendo na cabana dela. Portanto, como podia ele lamentar não ter participado na caçada? Havia outras maneiras de aprender a matar caribus durante a travessia dos rios.

Com certeza K’os participara em caçadas no rio, mas ele não podia permitir que ela soubesse que ele nunca caçara caribus assim. K’os era uma mulher que sabia usar esses conhecimentos para se vingar. Ele não podia esquecer-se de que, há muito tempo, ela lhe matara o irmão, Asa-de-Gaivota, só com uma faca que trazia na manga. É claro que Asa-de-Gaivota merecera a morte que tivera. Fora dele a idéia de violar K’os, embora ela fosse apenas uma menina. A princípio, Anaay e Dorminhoco tinham ficado apenas observando e, se Asa-de-Gaivota não os tivesse desafiado, eles nunca teriam feito uma coisa daquelas.

Fechou os olhos por instantes e lembrou-se desse dia no Rochedo do Avô. Enterrara-se na carne macia de K’os e sentira-a a lutar com ele. O que esperava ela? Flertara com os três homens quando eles comiam na cabana da mãe e depois seguira-os até a aldeia. Julgaria ela que eles eram feitos de pedra?

Anaay convencera-se de que eles a tinham matado. K’os ficara imóvel durante tanto tempo, com a parka enfiada na boca e tapando-lhe a cabeça. Depois, horrorizado, vira-a mexer-se, deslizando rapidamente do rochedo e atirar a sua faca ao coração de Asa-de-Gaivota sem que ninguém pudesse detê-la. Era uma vingança à medida da morte de Asa-de-Gaivota que K’os fosse agora escrava de Anaay. Mas este não podia esquecer por um dia que fosse o que K’os fizera.

Anaay começou a cantar outra canção e depois pensou na sua nova esposa, Dii. Apesar de ser nova, talvez ela tivesse acompanhado o povo Primo nas caçadas no rio.

Ele quer-te, disse-lhe K’os.

Dii olhou para o rosto de K’os e tentou ler-lhe os pensamentos, mas os olhos de K’os eram tão escuros como se a luz não entrasse neles que Dii nem percebia como é que ela conseguia ver.

O meu marido? perguntou Dii.

Sim, Raposa-Que-Ladra, o teu marido. Dii estremeceu ao sentir o desrespeito nas palavras de K’os. De todas as pessoas da aldeia de Rio Próximo, K’os era a única que não lhe dava a honra de o tratar pelo seu novo nome. Mas não fora ela sempre uma mulher desrespeitadora? Dii lembrava-se das esposas de Primo falando de K’os em voz baixa enquanto cuidavam das lareiras. Ainda agora, apesar de K’os ser escrava, as mulheres, tanto as de Rio Primo como as de Rio Próximo, falavam dela.

K’os fora com os homens para a floresta e voltara com os presentes que uma escrava só conseguia ganhar de uma maneira, mas isso não era da conta de Dii, visto que a sua esposa-irmã, Bico-de-Gaivota, e o marido não se importavam.

É claro que K’os ficara zangada por Anaay a ter feito escrava em vez de fazer dela uma esposa. Talvez ela responsabilizasse Anaay pela derrota do povo Primo, mas mesmo assim devia respeitar-lhe o nome. Relacionava-se com o poder dos sonhos com caribus, e quem não sabia que todos os nomes têm o seu próprio espírito, além do espírito da pessoa que o usa?

Onde está Anaay? perguntou ela a K’os, dizendo o nome em voz alta e de queixo erguido. Pelo menos K’os ficaria sabendo que ela respeitava o marido.

K’os encolheu os ombros mas, ao afastar-se, Dii viu-a abanar a cabeça ao olhar para o rio. Quando a mulher desapareceu, Dii levantou-se em bicos de pés e examinou os arbustos que assinalavam o curso do rio.

A princípio, não o viu. Ele vestia a parka nova e os tons castanhos e dourados das peles misturavam-se com as pedras e a erva destruída pelo orvalho. Depois, como se a vista se lhe tivesse desanuviado de repente, viu-lhe os contornos do cabelo, escuro como uma sombra. Estava sentado numa grande pedra equilibrada, ao que parecia, nos seixos, e na madeira flutuante que emergiam da água. Quando ele a viu, chamou-a, mas ela não o ouviu. O rio fazia barulho ao correr no seu leito pedregoso.

Ela aproximou-se e ele ficou colado ao solo. A pedra em que estava sentado deslocou-se.

Olhem! O que vejo? disse-lhe ele, e era bom ouvir o início de um enigma. O povo de Rio Próximo não era bom em enigmas como o de Rio Primo. Exige poder mas não tem força para além do seu tamanho.

Dii ergueu as sobrancelhas e sorriu. Era um enigma fraco, sem dificuldade. É claro que ele se referia à pedra. Devia ter sido atirada para as margens durante o degelo da Primavera, mas as pedras mais pequenas que se encontravam por baixo afastavam-na da força da terra. Se ela não tocava na terra, como podia ser forte? Mas Dii não queria insultar o marido e por isso a sua primeira resposta foi o rio.

O rio? disse ele, e riu até Dii corar de vergonha. Julguei que o povo Primo era bom em enigmas.

Então, Dii deixou que a sua raiva falasse por ela e replicou:

E somos. A resposta é a pedra em que estás sentado.

Ele calou-se, amuado, examinou-a por instantes e depois, sem se referir ao enigma, disse-lhe que se agachasse ao lado da pedra. Os seixos rolados não ofereciam firmeza e, para olhar para ele, ela tinha que torcer o pescoço, mas lembrou-se de que ele era seu marido, que sonhava com caribus, e ignorou as dores, tentando equilibrar-se, e ouviu o que ele tinha a dizer.

Ele começou por falar do tempo em que era criança, e depois referiu-se à primeira vez que matara. Falou da primeira mulher que levara para a cama. Não era um assunto que ela estivesse particularmente interessada em conhecer, e os seus pensamentos voaram para outras coisas a roupa que tinha que consertar, uma bainha esgarçada, a sola de uma bota que começava a ficar gasta. Já não era a primeira vez que desejava que Bico-de-Gaivota tivesse vindo naquela viagem.

K’os podia fazer o seu turno na fogueira e também faria uma grande parte do trabalho nas tendas e no acampamento, mas não costurava. Quando Dii lhe fizera o pedido, ela agitara os braços em forma de protesto, mostrando os dedos tortos e as articulações inchadas que, segundo afirmava, não lhe permitiam pegar na agulha nem no furador. A verdade é que, apesar de ter o rosto e o corpo de uma jovem, tinha as mãos deformadas de uma velha.

Quando viviam na aldeia de Primo, K'os ainda costurava, e um homem que recebera uma das suas parkas vestiu-a, orgulhoso, porque ela fazia trabalhos tão requintados como qualquer outra - ainda mais belos que os de Bico-de-Gaivota.

Dii tentara que ela fizesse uma parka a Anaay, e até lhe dera peles e tiras de intestino de caribu secas ao frio para que o intestino adquirisse um belo e puro tom de branco. Mas apesar de K'os ter prometido tentar, Dii ainda não vira quaisquer resultados. Detestava perguntar pela pele e pelas tripas. Para quê desanimar a mulher? Era preferível dar graças pela força das suas próprias mãos.

De repente, Dii reparou que Anaay deixara de falar e estava olhando para ela como se esperasse uma resposta. Abriu muito os olhos, desolada, e balbuciou a primeira coisa que lhe veio à cabeça:

- Não sei.

- Não te lembras da primeira vez em que participaste na caça ao caribu? - perguntou ele, elevando o tom de voz ao pronunciar as últimas palavras.

Dii ficou sem fôlego e respondeu:

- O que eu queria dizer é que não me lembro exatamente de quantos Verões eu tinha.

Ficou à espera que o marido ralhasse com ela, indignado, mas ele dirigiu-se num tom suave e adulador:

- És a minha esposa favorita, bem sabes. Não só em relação a Bico-de-Gaivota como a todas as esposas que deixei.

Dii não sabia ao certo se as palavras do marido eram um cumprimento ou um aviso. Ele deixara algumas esposas. Tem cuidado. Não ignores as palavras do teu marido, deixando-te levar por devaneios quando ele está falando contigo. Se tivesse sido a sua primeira mulher, gostaria de ter sido abandonada, ou mesmo expulsa da aldeia. Pelo menos, poderia ter tentado voltar para o seu povo.

- Só quero saber mais a teu respeito - continuou Anaay. - Como andamos à caça do caribu, pensei que seria bom falarmos dos tempos em que estiveste numa caçada.

Dii começou pelos preparativos, mas ao ver a impaciência no olhar de Anaay descreveu os percursos que faziam.

Ele inclinou-se para a frente, fez perguntas e acenava com a cabeça.

Voltou a ficar impaciente quando ela lhe disse que sabia apenas o que as mulheres faziam: apanhavam os animais mortos que boiavam devido às suas peles grossas, e depois esquartejavam-nos e arrastavam-nos. Por fim, Anaay agitou a mão na sua direção como se a repelisse e, como ela ficou onde estava, ele gritou:

Vai buscar-me comida! Qualquer boa esposa veria que eu estou com fome!

Então ela foi, satisfeita por esticar as pernas e pôr os pés em solo firme. Estava envergonhada com a sua falta de respeito. Ele era seu marido e chefe do seu povo, mas ao olhar para trás viu-o sentado na pedra, lembrou-se do enigma e perguntou a si própria se a resposta não seria a pedra mas sim o próprio Anaay. Embora ele falasse de poder e ocupasse o primeiro lugar entre o povo de Rio Próximo, havia momentos em que parecia não ter qualquer poder, quando alguém o empurrava e ele tropeçava como uma pedra assente em vários seixos.

 

                   O POVO DE RIO PRIMO

Três dias depois de terem armado as suas tendas de caça à beira do rio Caribu, ainda ninguém vira vestígios de caribus. Enviaram rapazes como batedores e ficaram à espera, os homens agitados, as mulheres irascíveis, com o medo e a esperança debatendo-se nas suas mentes.

Sok e Chakliux foram os primeiros a ver o filho de Sok, Chora-Alto, correndo para o acampamento. O rapaz ofegava tanto que a princípio só conseguiu pôr-se de quatro. Mas quando levantou a cabeça, o seu sorriso os fez adivinhar o que ele viera dizer-lhes.

Onde? perguntou Sok. Depois sorriu a Chakliux. Esta caçada no rio... Isto é novo para mim.

É mais fácil, disse Chakliux.

Sok deu-lhe uma palmada nas costas e riu, dizendo:

Para ti, Lontra, para ti. Nasceste para viver na água. Era um cumprimento e Chakliux pôs a mão no ombro do sobrinho. O irmão gerara bons filhos.

Eles vêm aí, disse outra vez Chora-Alto, como que a lembrar ao pai que tinha algo mais a dizer.

Onde estava o Sol quando começaste a correr, perguntou Sok, e levantou a cabeça quando Chora-Muito apontou para o ponto mais alto do céu e depois fez descer a mão até o local em que o Sol se encontrava naquele momento.

Uma longa corrida, pensou Chakliux, e por instantes, sentiu uma ponta de inveja a que deu lugar o orgulho pela força das pernas do sobrinho. Sok olhou para Chakliux por cima da cabeça do filho.

Amanhã?

Os caribus devem estar aqui ao anoitecer.

Pau Preto e os outros rapazes continuam observando a manada? perguntou Sok a Chora-Alto.

Sim. Ele ou o irmão virão avisar-nos se eles mudarem de direção.

Ainda bem. Vai pedir à tua mãe... começou ele, mas depois o seu rosto ensombrou-se. Vai pedir a Neve-no-Cabelo que te dê alguma coisa para comer e depois atravessa o rio com Ghaden. Parem na segunda cumeeira. As árvores são altas nesse local. Subam nelas para verem o terreno em redor, e, quando avistarem os caribus, um de vocês que venha avisar-nos.

Chakliux viu o rapaz afastar-se. As suas perneiras de pele de caribu estavam molhadas devido à travessia do rio.

Vai buscar outras perneiras gritou ele ao sobrinho. Chora-Alto virou-se para trás e levantou a mão como resposta.

Chakliux correu para o seu abrigo. Esperava que Estrela não estivesse lá. Ela iria protestar pelo fato de Ghaden ser um vigia, mas quem era melhor subindo em árvores do que ele?

Chakliux foi encontrar o rapaz do lado de fora da tenda, entrançando quatro tiras de babiche para fazer uma longa corda. Mordedor estava no chão a seu lado, de cabeça levantada, vendo a atividade nas tendas próximas. A trança estava firme e perfeita, e quando Chakliux se agachou ao lado de Ghaden, elogiou-o pelo seu trabalho.

É para o Mordedor explicou Ghaden, pousando a mão no dorso do cão. Ele roeu a outra.

Os cães fazem isso, disse Chakliux.

Sim, mas ele é um bom cão. Melhor do que qualquer outro neste acampamento.

Não digas isso a Sok. Ele acha que Nariz Preto é o melhor.

Ora! Ele é forte.

Ghaden não tirava os olhos da trama e continuou a entrançar o babiche.

Falta muito para acabares? perguntou finalmente Chakliux.

Um bocado.

Lembras-te dos sinais que Sok e eu te ensinamos a fazer com a mão?

Para caçar?

Para caçar.

Lembro.

E se eu te pedisse para ires espiar os caribus com Chora-Alto?

Ghaden levantou a cabeça e olhou fixamente para Chakliux.

Sério?

Eu te pediria se não quisesse que tu fosses?

Quando?

Quando acabares de fazer a trama. Ghaden atirou-a no chão.

Está pronta.

Ghaden ia perguntar se podia levar Mordedor, mas depois lembrou-se que uma pergunta tão estúpida podia custar-lhe a oportunidade. Então, após preparar alguns mantimentos, sentou-se ao lado do cão e apresentou-lhe as suas desculpas. Houvera momentos na sua vida em que quisera ser cão, livre das tarefas e podendo dormir quando queria, mas agora sentia apenas compaixão pelo fato de Mordedor ter que ficar no acampamento e ouvir as mulheres conversando.

Yaa viu-o sentado ao lado de Mordedor e agachou-se junto deles.

As mulheres dizem que vais fazer vigia. Ghaden encheu o peito de ar e fez um sinal afirmativo

Tentou esboçar um sorriso, mas recordou-se de que os homens eram solenes quando falavam da caça e por isso cerrou os lábios.

Para onde vais? Já sabes?

Ele ia a dizer-lhe, mas depois lembrou-se de que o assunto podia ser sagrado demais para os ouvidos de uma menina.

Isso é uma coisa que só os homens devem saber - respondeu.

Então porque te disseram? perguntou Yaa. Tu não és um homem.

Ele não teve resposta e ficou momentaneamente irritado. Aproximou-se dela e bateu-lhe no braço.

Ah! Pois então julgas que é assim que os homens agem?

Só com as irmãs.

Yaa ia responder, mas depois riu, o que irritou ainda mais Ghaden.

Eles não me pediriam se não me considerassem um homem, ou pelo menos quase um homem! gritou ele.

Yaa começou a cantarolar, uma canção gozadora que as meninas às vezes cantavam, e ele iniciou um cântico de caça. Subiu o tom de voz para se sobrepor ao dela e depois Yaa começou também a cantar mais alto. Por fim, surgiu uma sombra entre eles. Ghaden levantou a cabeça e viu Homem Noturno.

Homem Noturno levantou o queixo para Yaa.

Ela é uma menina. Eu esperava que ela reagisse assim, comentou ele. Não olhou para Ghaden, ignorando-o como se ele não passasse de um bebê numa prancha de embalar. Esperava melhor de ti.

Ghaden baixou a cabeça e Yaa lançou-lhe um olhar de raiva.

Sobrinha, vai fazer o teu trabalho e eu que não te apanhe outra vez desafiando o teu irmão. Não quero que esta caça ao caribu falhe por causa de uma menininha tonta. Yaa afastou-se e Ghaden sentiu que a boca se entreabria num sorriso.

Então, Homem Noturno disse:

Sobrinho, isto é pior para ti. Não amaldiçoes a tua sorte na caça com conversas frívolas. Quando uma mulher discutir contigo, afasta-te.

Ghaden baixou a cabeça e acariciou o dorso de Mordedor.

Pega a tua bagagem. Chora-Alto está à tua espera na cabana de Sok.

Ghaden pôs-se de pé de um salto e correu para a tenda. Chora-Alto estava lá, levantou-se e olhou para as cumeeiras que se avistavam logo a seguir ao acampamento. Chakliux e Sok estavam a seu lado.

A segunda cumeeira, indicou Chakliux. Fica no meio do aglomerado de árvores. Escolhe uma das mais altas para Ghaden ver bem.

Virou-se para trás e viu Ghaden.

Ouviste o que eu disse a Chora-Alto? perguntou.

Ouvi.

Ainda bem. Sobe o mais alto que puderes. Chakliux deu a Ghaden uma corda de babiche.

Usa isto para te amarrares à árvore quando encontrares o melhor local para te sentares. Assim que vires qualquer coisa, chama Chora-Alto. Ele virá avisar-nos.

Ghaden sentiu uma ponta de orgulho ao ouvir as palavras de Chakliux. Seria ele o primeiro a ver os caribus.

Espero que eles passem ou aviso Chora-Alto assim que os vir?

Grita assim que os vires, mas Chora-Alto ficará à espera que tu digas se eles vão para montante ou para jusante do nosso acampamento.

Ghaden fez um sinal afirmativo. Seria empolgante ser o primeiro a chegar à aldeia com as notícias dos caribus, mas Chora-Alto era o rapaz que corria mais depressa, e Ghaden era o melhor trepador.

Vai então, ordenou Sok. Força! Porta-te bem.

Estás pronto? perguntou Chora-Alto. Ghaden pôs a bagagem no ombro.

Isto é para ti, disse Sok, aproximando-se e depositando um embrulho comprido e estreito na mão de Ghaden,

Estava envolta numa tira fina de pele de caribu e Ghaden sabia que era uma faca. Olhou para Sok com um misto de alegria e de incredulidade.

Bem, assim embrulhada não te servirá de nada disse Sok.

Ghaden afastou a pele de caribu. A bainha possuía umas fitas que serviam para prender a arma ao braço. Ghaden desembainhou a faca e perdeu o fôlego. A lâmina de sílex tinha mais ou menos o comprimento do seu dedo mindinho. Estava impecavelmente afiada e tinha um cabo de chifre de caribu.

O rapaz abriu a boca para agradecer a Sok, mas não teve palavras. Sok inclinou-se e atou a bainha ao pulso esquerdo de Ghaden. Em seguida, disse com uma voz áspera:

Não atrases a tua partida. Os caribus estarão em cima de nós antes de estares pronto.

Ghaden pôs-se ao lado de Chora-Alto. Este sorriu-lhe e arregaçou a manga para lhe mostrar que também tinha uma faca nova. Ghaden não queria acreditar em tamanha felicidade. Não havia nada melhor do que ser um homem. Não havia nada melhor do que ser caçador.

De súbito, o grito agudo de uma mulher interrompeu a sua alegria. Olhou para trás e viu Estrela correndo para ele, chamando-o e rogando pragas ao marido e ao irmão.

Corre! disse ele a Chora-Alto, mas já estavam no rio e Chora-Alto tentava ver através do reflexo do sol na água a língua de areia que indicava a zona menos profunda.

Ghaden entrou na água e ouviu Chora-Alto gritar:

Aí não. É muito fundo.

De repente, Ghaden deu um passo em falso e sentiu o fundo do rio fugindo. Abriu a boca para gritar, mas a água tapou-o até ao nariz e inundou-lhe os pulmões. Por fim, tocou no fundo, esperneando, e içou o corpo. Sufocou, tentou gritar e cuspiu água. Conseguiu respirar, mas o peso do fardo e da parka molhada empurraram-no de novo para baixo. Lutou contra a corrente, susteve a respiração até os pulmões o obrigarem a inalar. Engoliu água e o rio levou-o para jusante.

Tinha dificuldade em pensar e abriu os olhos. Tentou subir à superfície, mas as suas pernas pareciam toras de madeira, de tão entorpecidas pelo frio. Bateu numa rocha e a corrente envolveu-o. Levantou a cabeça, cuspiu água, respirou e depois foi de novo sugado para baixo. Agarrou-se à rocha e enterrou os dedos nos limos que a cobriam. O rio puxou-o e ele sentiu uma das unhas partindo-se. Mesmo assim, agarrou-se. Levantou a cabeça mais uma vez, mas então engoliu água. Tinha a garganta e os pulmões ardendo. As trevas reclamaram-no e ele deixou de ver.

Depois, Ghaden fechou os olhos e adormeceu.

 

Quando Aqamdax ouviu o choro de Estrela, não interrompeu a costura. Estrela estava sempre aborrecida com alguma coisa.

Então, as outras mulheres começaram a gritar e Aqamdax ouviu os pedidos de socorro que se sobrepunham aos seus gritos. Correu para o extremo do acampamento e viu Chakliux no rio e Sok amparando Estrela. A mulher debatia-se, mordendo, arranhando e dando pontapés.

Segurem-na! gritou Sok.

Aqamdax avançou, agarrou Estrela por trás, pela cintura. que começava a engrossar. Sok largou-a e correu atrás de Chakliux. Estrela deu um pontapé em Aqamdax e tentou virar a cabeça, mostrando os dentes como se fosse morder-lhe Em seguida. Espreita-o-Céu também agarrou a mulher. Por fim, Chamariz trouxe um cobertor de pele de lebre e atirou-o em cima da cabeça de Estrela.

Larga-a, disse Espreita-o-Céu a Aqamdax. Aqamdax largou-a e Espreita-o-Céu empurrou Estrela para o chão e sentou-se em cima dela.

Caule Torto deu um grito lancinante. Aqamdax levantou a cabeça e viu Chakliux a encaminhando-se para elas. Trazia nos braços Ghaden, inerte.

Sok aproximou-se e ao passar por Espreita-o-Céu e por Estrela disse entre dentes:

Ela devia estar morta, aquela. Roubou a vida deste rapaz, e eu próprio a matarei de boa vontade.

Aqamdax olhou, atordoada, como se visse tudo num sonho. Ouviu as perguntas dos que a rodeavam. O que acontecera? O que fizera Estrela? Sentiu que a agarravam, mas libertou-se. Acabara de perder o filho. Iria agora perder o irmão?

A culpa é minha, disse Yaa em voz baixa, agarrando-se ao braço de Aqamdax.

Chiu, fica calada. Tu não fizeste nada.

As pessoas tinham se agrupado junto do abrigo de Chakliux. As mulheres sentaram-se à porta, enquanto os homens andavam por ali e alguns levantavam a mão para proteger os olhos da luz, olhando para o rio.

Como Ligige’ ficara na aldeia de Inverno, a velha Caule Torto era a que melhor podia fazer as vezes de curandeira. Estava lá dentro com Ghaden, Sok e Chakliux. Neve-no-Cabelo levara Estrela para o abrigo de Caule Torto, que lhe dera uma chávena de chá de matricária.

Dizem que ele ainda está vivo, observou Chamariz.

Mas outra mulher abanou a cabeça.

Vivo, pensou Yaa, e repetiu a palavra mentalmente, guardando-a como se ela fosse um amuleto com o poder de proteger Ghaden da morte.

Prometi à mãe dele que seria uma boa irmã, disse ela a Aqamdax. Prometi, mas...

Aqamdax abraçou-a e embalou-a como se Yaa fosse um bebê.

Chiu, fica calada. Todos os irmãos e irmãs brigam.

Chakliux aproximou-se delas. Fez sinal a Aqamdax para que o seguisse e ignorou Homem Noturno quando este resmungou.

Yaa, tu também, chamou ele.

Yaa entrou na tenda atrás de Aqamdax. A pele em volta dos olhos e da boca de Ghaden estava azulada, mas ele não parecia estar morto. Tinham-lhe despido as roupas molhadas, e um dos braços, nu e inerte, estava por cima do cobertor.

Ele está dormindo? perguntou Aqamdax.

Não me parece, respondeu Chakliux. Não conseguimos acordá-lo.

Yaa ficou sem fôlego. Ela sabia que havia espíritos da água. Viviam nos lagos e nos rios. Teria um deles roubado a alma de Ghaden? Ficaria ele como Olhos Grandes, que vagueava mas não sabia nada?

De repente, a força fugiu-lhe das pernas e ela caiu no chão junto de Ghaden, estendeu o braço e acariciou-lhe a testa. Ele estava quente, mas quando ela lhe tocou na face sentiu o mesmo calor e percebeu que os seus próprios dedos é que estavam gelados de medo.

Homem Noturno espiou o interior da tenda, olhou para Ghaden e não disse nada. Pôs a mão no ombro de Aqamdax e, quando Chakliux lhe pediu que ficasse junto de Ghaden, protestou.

Sok repeliu-o com palavras rápidas e duras, e Homem Noturno afastou-se batendo os pés.

Eu também ficarei com ele, declarou Yaa em voz baixa.

Tenho outra coisa para tu fazeres, disse-lhe Sok. Vem comigo.

Yaa foi atrás dele para a tenda, certa de que ele lhe iria ralhar por ela ter discutido com Ghaden. Pensou que era merecedora da ira de Sok, mas, quando chegaram à tenda, ele estendeu-lhe um fardo e disse:

Tens aí peixe fumado. Botas secas e perneiras. Precisas arranjar um odre de água. Tens uma faca?

Uma faca de mulher.

Leva-a e muda as botas e as perneiras assim que atravessares o rio.

De súbito, o receio de Yaa em ser admoestada transformou-se em terror.

Vais mandar-me embora? perguntou ela com uma voz débil.

Viu a surpresa no rosto de Sok. Depois ele disse:

Vais vigiar os caribus com Chora-Alto. Os outros rapazes estão com a manada e não podemos dispensar nenhum dos nossos caçadores. Os nossos velhos não correm depressa nem trepam bem. Tu és a única mulher que não teve uma lua de sangue.

Sok parou e olhou para ela.

Não tiveste, não é? perguntou.

Não, respondeu ela em voz baixa.

Sok deu-lhe um pouco de corda de babiche e mostrou-lhe como devia atá-la à cintura e depois à árvore para se manter segura nos ramos. Deu-lhe uma mão-cheia de pedras e disse-lhe que as rolasse na palma das mãos para que a dor provocada pelas pontas aguçadas a mantivessem acordada durante a noite.

Tem cuidado, preveniu ele. Não faças nada que dê azar. Nem sequer fales. Comunica com Chora-Alto por sinais, talvez batendo as palmas ou assobiando, para ele saber o que estás vendo. Não queremos que os caribus ouçam uma voz de menina. Fica na árvore depois de os caribus passarem e até que alguém vá buscar-te.

Sok pegou um odre de água que estava pendurado no teto do abrigo.

Toma, leva isto. Agora espera por Chora-Alto, disse ele.

Sok saiu do abrigo e Yaa ajoelhou-se. Entoou um cântico em surdina que aprendera em criança, indicado para os momentos em que uma mulher estava inquieta ou cansada.

Mãe, ajuda-me, disse ela e ficou à espera, vendo se sentia o espírito da mãe por perto, mas não sentiu nada.

Pai, cochichou ela, e atreveu-se a recordar o rosto do pai.

Ele sofrera muito com a última doença. A sua esposa favorita, a mãe de Ghaden, morrera, e Ghaden ficara muito machucado. Mas, apesar do seu desgosto, cuidara da filha e transferira as lágrimas de Yaa para os seus próprios olhos. Por isso ela tivera força suficiente para suportar a sua tristeza.

Como uma capa quente por cima dos ombros, Yaa sentiu a força do pai. Embora reparasse no ar contrariado de Chora-Alto quando se aproximou dela, a força não a abandonou. Os seus passos eram firmes, e não fraquejou na corrente rápida do rio.

Quando chegaram ao local dos abetos, Chora-Alto escolheu o maior. Yaa subiu, usando os braços e as pernas como numa escada, e chegou ao topo.

Não viu nenhum caribu, mas avistou o acampamento da sua gente. O rio era uma faixa larga e brilhante que se destacava dos tons dourados e vermelhos da tundra. À direita e à esquerda havia outras árvores, algumas quase tão altas como aquela em que ela se encontrava, e embora Yaa soubesse que os ramos mais fortes de uma árvore cresciam para sotavento, era como se todos se virassem para o poente nas últimas horas do dia.

Atou a corda de babiche à cintura e em volta da árvore, tirou as pedras que Sok lhe dera e conservou-as na mão esquerda. Ficou à espera e à espreita até o pôr do Sol e depois, às escuras, manteve-se à escuta, porque às vezes os caribus deslocam-se mesmo durante a noite, e ela sabia que ouviria os estalidos das suas pernas e o ruído dos seus cascos.

Inspirou grandes quantidades de ar, para ver se lhe cheirava a caribu e abriu bem os olhos, para ver melhor à luz das estrelas. Quando começou a ficar sonolenta, fechou a mão esquerda até as pedras se lhe enterrarem na carne e a dor a manter acordada.

 

Aqamdax ficou sentada junto de Ghaden durante a noite, com uma mão no peito dele para ter a certeza de que o rapaz continuava respirando. Em algum momento nessa longa escuridão, Mordedor entrou na tenda e deitou-se ao lado de Ghaden, farejando-o de vez em quando. Quando surgiu a primeira luz acinzentada da manhã, Chakliux foi falar com eles. Sentou-se ao lado de Aqamdax e o seu calor confortou-a.

Aqamdax sabia que ele estivera rezando, disse-lhe em voz baixa que ia lhe buscar comida e água e ia levantando-se quando ele disse:

Preciso mais de ti aqui do que de comida ou de água.

Onde está Estrela? perguntou ela em voz baixa.

Com Caule Torto. Aqamdax estava de cócoras à maneira do povo dos Primeiros Homens, com os pés colados ao chão e os joelhos para cima. Sentiu os dedos de Chakliux acariciarem-lhe o pescoço. Em seguida, a aba da tenda abriu-se e alguém a agarrou por um braço e a obrigou a levantar-se. Aqamdax viu que era Homem Noturno. Estrela vinha atrás dele, com os dedos na boca como se fosse uma criança.

O teu marido está aqui, disse Homem Noturno a Estrela, empurrando-a para o interior da tenda.

A mulher começou a chorar, e Aqamdax tentou libertar-se da mão de Homem Noturno, mas ele apertou-a ainda mais.

Autorizo-te a ficares com o teu irmão e o que vejo? Estás com outro homem.

Homem Noturno agarrou a pulseira de lontra que ela trazia no pulso e torceu-a até conseguir tirá-la da mão dela.

Julgas que não sei onde arranjaste isto? perguntou ele. Julgas que não sei porque a usas?

Estrela calou-se e Chakliux saiu da tenda.

Larga Aqamdax, disse ele a Homem Noturno.

Dizes a um marido o que ele deve fazer à esposa? perguntou Homem Noturno, que, no entanto, largou o braço de Aqamdax, jogou fora a pulseira de lontra e pisou-a na lama com o pé.

As mulheres são mortas por traírem os maridos, exclamou Homem Noturno.

Ela não te traiu.

O filho que ela gerou. Julgas que não sei que ele era teu? Ele morreu para vingar as mortes do meu pai e dos meus irmãos. Mas esta, enquanto for minha, fará o que eu mandar, disse ele, apontando para Aqamdax.

Tu tens o direito de o abandonar.

A voz veio de trás dela e Aqamdax deu um pulo. Era Sok, e Aqamdax ficou admirada por ele a defender.

Não fiz nada daquilo de que ele me acusa, mas não posso abandoná-lo, disse ela. Não me arrisco a que as lanças dos nossos homens não apanhem os caribus. Porquê lançar uma maldição sobre um caçador deste acampamento?

Aqamdax deu meia volta e encaminhou-se para o abrigo de Homem Noturno, mas olhou para trás e ainda disse a Sok:

Não deixes que o teu irmão me siga. Ele que fique aqui com Ghaden.

Quando chegaram à tenda, Homem Noturno obrigou Aqamdax a entrar. Tirou-lhe as roupas, despiu-se, abriu-lhe as pernas à força, acariciou-se e entrou nela. Aqamdax ficou imóvel, afastou os seus pensamentos do que estava acontecendo e rezou para que não concebesse um filho.

 

Yaa abriu a mão esquerda, deixou cair as pedras no saco e esticou os dedos devagar. Tinha a palma da mão cheia de sangue seco. Embora o Sol ainda não tivesse nascido, o céu estava clareando a leste, mas ela via ainda algumas estrelas a oeste.

Ouviu Chora-Alto assobiar e usou o sinal que ele lhe indicara, batendo três vezes com a mão no saco para lhe dizer que não vira caribus.

Pegou o odre e bebeu um gole de água. Quem saberia dizer há quanto tempo ela estava no topo daquela árvore? Tinha que poupar a água o mais que pudesse. Voltou a olhar para norte, leste e oeste. Às vezes uma manada separava-se ao atravessar os rios ou os lagos e surgia de várias direções ao mesmo tempo.

Tirou um pedaço de carne seca de caribu do fardo e ergueu-o para que o cheiro chegasse até aos espíritos que pudessem estar perto.

Isto. Isto. Precisamos de caribus e depois vos enviaremos o cheiro agradável dos fogos e da carne seca.

 

Chakliux pegou Estrela no colo e embalou-a como se, ela fosse um bebê. Por fim, começou a contar-lhe uma história que as mães e os pais contam aos filhos. Sentiu-a descontrair-se e a cabeça dela caiu em peso no seu ombro. Deitou-a nas esteiras do chão ao lado de Ghaden e tapou-a com um cobertor de pele de lebre. Reparou que o ventre dela começava a arredondar e não pôde deixar de pousar a mão nele, lembrando-se da primeira mulher, Gguzaakk, e do filhinho.

Há quantas luas estava Estrela grávida? Três, quatro? Como marido dela, devia saber, mas às vezes nem pensava nisso. Como poderia ele cuidar de Estrela e do bebê? Faria Estrela um disparate qualquer que ferisse o bebê? Pelo menos, ele teria Yaa para lhe dar uma ajuda, mas o que faria Estrela quando Chakliux aceitasse Aqamdax como sua esposa? E agora Ghaden...

Depois, como se o rapaz tivesse ouvido os pensamentos de Chakliux, começou a balbuciar. Mordedor deu um salto e começou a lamber a cara de Ghaden. Chakliux obrigou o cão a recuar, mas parou ao ver Ghaden virar a cabeça para se afastar da língua de Mordedor.

Mordedor! exclamou Ghaden.

Então Estrela acordou e ficou na expectativa, de olhos muito abertos.

Chakliux levou os dedos à boca e pediu-lhe silêncio. Ghaden ainda não abrira os olhos. Estrela tapou a boca com as mãos e nesse momento a aba abriu-se e Aqamdax entrou. Tirara a pulseira de lontra da lama e balançava-a nos dedos. Chakliux olhou para ela, viu a dureza da sua expressão e percebeu o que Homem Noturno fizera. Mas apontou para Ghaden, ergueu as sobrancelhas, pegou o pulso de Aqamdax e puxou-a para o seu lado.

Aqamdax abriu a boca para falar, mas Estrela tapou-a com a mão. De repente, no meio do silêncio, Mordedor latiu, um ruído forte que obrigou Estrela a tapar os ouvidos.

Ghaden abriu os olhos.

Mordedor, seu cão sapeca, balbuciou ele. Então desatou a rir e Aqamdax começou a chorar.

Yaa não devia estar lá em cima. É uma menina disse Ghaden, cuja voz mais parecia um lamento. Eu sinto-me bem. Posso ir para lá. Terei mais cuidado ao atravessar o rio.

A tua mãe não quer que vás, disse-lhe Chakliux.

Estrela não é minha mãe retorquiu Ghaden. Yaa é que é. Eles fizeram dela minha mãe quando vivíamos na aldeia de Rio Próximo.

Chakliux alisava uma lança de madeira de bétula com a ponta de um buril de pedra.

Olhem! O que vejo eu? exclamou Chakliux. Ele chora se os corvos lhe tiram uma parte da presa e queixa-se de que as raposas lhe roubam o que é seu.

Carcaju, disse Ghaden em voz baixa. Chakliux recorria com freqüência a este enigma quando Ghaden estava aborrecido. Os carcajus eram egoístas em relação ao que matavam. Escondiam o que não podiam comer, deixavam apodrecer os restos na sua urina almiscarada e raramente voltavam a tocar-lhes. Ir vigiar os caribus era ser egoísta? Ele já era crescido e Yaa tinha os seus afazeres de menina.

Ainda hoje te levo para a árvore, se os caribus não tiverem chegado. Nessa altura, Yaa estará pronta a vir para casa. Vai precisar dormir antes de ficar outra noite de vigia.

E Estrela?

Aqamdax encarrega-se de a entreter para ela não saber senão quando tu já estiveres longe.

Venha cá, chamou Aqamdax. Lembras-te que, há muito tempo, prometeste ensinar-me a fazer cestos de pele de peixe? Eu raspei as peles como me ensinaste. Agora como é que as costuro?

Estrela endireitou os ombros, cheia de importância, e tirou as peles de peixe e a agulha das mãos de Aqamdax. Esta sentou-se de costas para o rio, e a tenda de Estrela ficou entre elas e as margens. Durante algum tempo, Estrela costurou, inclinada sobre o seu trabalho, mas depois várias outras mulheres que estavam trabalhando ao ar livre começaram a olhar para o rio, de mãos nas ancas.

Aqamdax sentiu-se frustrada por não lhes ter dito o que tencionava fazer. Aproximou-se de Estrela, distraiu-a com muitas perguntas, mas por fim esta levantou a cabeça e viu as mulheres.

Levantou-se. Aqamdax tentou obrigá-la a sentar-se de novo, mas Estrela fugiu e aproximou-se das outras. Aqamdax foi atrás dela, esperando ter força para obrigá-la a voltar. Pousou-lhe a mão no ombro e avistou Chakliux e Ghaden no meio do rio.

Ali, estás vendo? disse Estrela a Aqamdax. Ghaden vai de qualquer maneira. Não devias ter tentado retê-lo da última vez. Isso causou muitos problemas.

Uma das outras mulheres olhou para Estrela, admirada, e abriu a boca para dizer alguma coisa, mas Aqamdax percebeu e fez-lhe sinal para que se calasse.

Tens razão, Estrela, disse Aqamdax. Mas às vezes é difícil deixarmos que os rapazes se tornem homens.

Um movimento no ponto mais distante do horizonte chamou a atenção de Yaa. Da última vez, julgou ter visto alguma coisa, mas era o vento. Era difícil manter-se acordada, e não sabia se conseguiria passar mais uma noite de olhos abertos. O que faziam os rapazes? Com certeza, havia algo melhor do que pedras pontiagudas. Pestanejou e virou a cabeça para ver melhor. Continuou a olhar até que teve certeza de que estava vendo alguma coisa. Não era uma manada de caribus, mas uma coisa só, talvez um dos lobos que acompanhavam sempre uma manada, correndo ao lado, rodeando-a pela frente e por trás, sempre à espera de um animal mais fraco.

Yaa lembrou-se das histórias de lobos que o pai lhe contava, como eles agiam em grupo, às vezes obrigando a manada a correr para as crias ficarem para trás e serem uma presa fácil. Não sabia se tinham sido os lobos ensinando os homens a caçar em grupo, em vez de irem sozinhos.

Talvez Chakliux soubesse se os lobos tinham sido os professores dos homens. Yaa sentiu que os seus pensamentos se aproximavam das histórias que ele contava e depois lembrou-se das de Aqamdax, das histórias dos Primeiros Homens, tão diferentes das do Povo Rio.

Yaa sentiu as pálpebras pesadas e os olhos ardendo. Pestanejou para afastar o ardor. Estava sentada com um grupo de amigas Fita Azul, Bom Punho, Colar Azul meninas que ela conhecera na aldeia de Rio Próximo. Ghaden também estava presente, saudável e forte, e encontravam-se todos nos ramos da árvore.

Yaa desatou a rir. De onde tinham eles vindo? Como a tinham encontrado naquele local? Depois, fungou e acordou sobressaltada. Estivera sonhando!

Enfiou o dedo mindinho na boca e mordeu-o até sentir o gosto do sangue. A dor desanuviou-lhe o espírito, e Yaa voltou a olhar para o horizonte entre os ramos das árvores A princípio não avistou nada a não ser a tundra, mas depois viu de novo um movimento.

Não, não era um lobo, pensou, e ficou observando até perceber que se tratava de um homem. Assobiou a Chora-Alto, ficou à espera e, como não obteve resposta, voltou a assobiar. Por fim, ouviu-o gritar:

Caribus?

Pela rouquidão da voz, percebeu que ele estivera dormindo, mas era ela a vigia, e não Chora-Alto, e talvez ele tivesse outras regras a seguir.

Yaa bateu três vezes no fardo. Não, não eram caribus

Lobo? gritou-lhe ele.

Ela não tinha sinal para lobo, por isso bateu mais três vezes no saco. Talvez ele percebesse o que ela queria dizer.

Lobo? perguntou ele outra vez, e ela voltou a bater três vezes.

Alce? Três vezes.

Então o que é?

Yaa percebeu a irritação na voz dele.

Chakliux? Três vezes.

Ele não fez mais perguntas, apesar de Yaa ficar à espera. De repente, apareceu a seu lado, com a cabeça enfiada nos ramos de abeto.

Estás doente? O que se passa?

Ela inclinou-se para ele e falou tão baixo que nem um caribu ali perto a ouviria.

Um homem, andando.

Onde? perguntou Chora-Alto, içando-se e sentando-se ao lado dela.

Olhou para o rio, para o acampamento de caça do povo Primo, mas Yaa abanou a cabeça e apontou para leste. Chora-Alto observou o homem durante muito tempo e depois disse:

Não o conheço. Ele não é da nossa aldeia.

Yaa voltou a olhar, reparou na rapidez com que o caçador batia com as mãos nos lados do corpo, como inclinava a cabeça e empinava o queixo. De súbito, percebeu quem era. Tapou a boca com as mãos e Chora-Alto olhou para ela, surpreendido.

Sabes quem é? perguntou ela.

Um rapaz de Rio Próximo, respondeu ela, esquecendo-se de falar baixo.

Chora-Alto abanou a cabeça e pôs os dedos na boca. Ela franziu a testa.

De Rio Próximo? exclamou Chora-Alto. Tens certeza? Eles não caçam aqui.

Tu o conhece cochichou Yaa. É Dança-no-Gelo. Yaa inclinou-se ainda mais e murmurou:

Lembras-te? Um dia parti-lhe o nariz. Chora-Alto fez um sorriso maroto.

Não me lembrava, disse ele.

Yaa fechou o punho e fingiu que ia dar-lhe um murro na cara. Ele encolheu-se e abriu-lhe os olhos, e ela foi obrigada a cerrar os dentes para não rir.

Tenho que ir avisar o meu pai disse-lhe Chora-Alto. Se vires caribus, terás que descer sozinha e de ir dizer às pessoas, mas vai-te embora assim que avistares os primeiros animais, e corre depressa para eles não te verem.

Chora-Alto começou a descer a árvore. Depois parou e olhou para Yaa.

Já que temos uma menina fazendo a vigia, fico satisfeito por seres tu, comentou ele.

Era o melhor cumprimento que Yaa recebera. A menina tapou a face para esconder o rubor. Quando retirou as mãos, Chora-Alto já descera metade da árvore.

 

                   ACAMPAMENTO DE RIO PRÓXIMO

K’os viu Anaay à porta da tenda de Dii. O homem não estava fazendo nada, nem sequer tinha uma arma na mão. Ela aproximou-se e agachou-se a seu lado. Ele olhou para ela, admirado, e K’os viu o escárnio no seu olhar.

Não tens nada que fazer? perguntou ele.

Dei de comer aos teus cães e limpei as tuas perneiras. Tu comeste e tens um odre de água a teu lado. As armadilhas que eu e a tua mulher pusemos estavam vazias esta manhã. Estamos à espera dos caribus. Tiveste mais sonhos? Chamaste-os para nós?

A insolência dela era como farpas na pele de Anaay. Como se atrevia ela a falar-lhe daquela maneira? Era uma escrava e ele era o chefe de toda a aldeia de Rio Próximo. Toda aquela gente estava ali porque ele os levara para aquele lugar. Ela não passava de uma mulher que dava comida aos cães e aquecia as camas dos homens que escolhia.

Ele não era obrigado a responder, mas a raiva obrigou-o a falar.

Chamei os caribus e eles vêm a caminho. Ordenei aos nossos caçadores mais novos que os fossem vigiar. Falta pouco para que todas as mulheres não tenham mãos a medir com as facas.

K’os levantou-se e olhou para ele. Fez um sorriso gozador e disse:

Não me digas que chamaste os caribus. Eu sou de Rio Primo. Passamos pelos marcos de pedra colocados pelos antepassados de Rio Primo. Eles orientam os nossos caçadores e os caribus. Tu andas roubando carne do povo Primo. Julgas que eu não sei? Se tens o poder de chamar os caribus, então porque estamos aqui e não noutro local qualquer!

Anaay pegou o cajado que estava no chão e agitou-o na direção de K’os, mas esta era ágil e limitou-se a rir dele. afastando-se dançando enquanto ele a amaldiçoava em palavras e pensamentos.

 

                       ACAMPAMENTO DO POVO PRIMO

Chora-Alto encontrou Chakliux e Ghaden quando eles vinham do rio.

Caribus? perguntou Chakliux, mas Chora-Alto não respondeu e inclinou-se para dar uma palmada nas costas de Ghaden.

Estás vivo! gritou. Depois, como se só então tivesse ouvido Chakliux, respondeu: Não, nada de caribus, mas Yaa viu um homem. Diz que é alguém da aldeia de Rio Próximo. Um rapaz chamado Dança-no-Gelo.

Chakliux encheu as bochechas de ar e soprou, irritado.

Ela tem a certeza? perguntou. Chora-Alto fez um sinal afirmativo.

Ele é um problema de que não precisamos, comentou Chakliux. Ela viu mais algum caçador de Rio Próximo?

Não.

Talvez eles estivessem cansados dos disparates do rapaz e o tivessem obrigado a abandonar a aldeia. Ou talvez a gente de Rio Próximo julgue que a vitória lhes deu o direito de caçar no nosso rio.

Chakliux levantou a cabeça e olhou para o céu. Se os caçadores de Rio Próximo tencionavam roubar-lhes os caribus, havia poucas esperanças de que o povo Primo sobrevivesse ao Inverno. Talvez por sorte conseguissem deslocar-se depressa e encontrar outra manada, mas isso era improvável. Nem sequer tinham a certeza de que os caribus fossem para junto deles naquele lugar, embora os animais se encontrassem a meio dia de caminho daquele local, tanto quanto Chakliux se lembrava. Talvez o povo de Rio Próximo também soubesse disso. As mulheres de Primo que eles haviam levado como esposas e escravas talvez lhe tivessem ensinado a caçar quando os animais atravessavam o rio.

Agora K’os vivia com o povo de Rio Próximo. Uma mulher que mataria o seu próprio neto não teria problemas em trair o seu povo se tal implicasse ter a barriga cheia. E como podiam eles esperar combater com a gente de Rio Próximo se havia apenas cinco homens saudáveis no acampamento de Rio Primo?

Vai avisar o teu pai, disse Chakliux a Chora-Alto. Come e dorme. Depois, se os caribus ainda não tiverem chegado, volta para a árvore.

Chakliux ficou olhando até Chora-Alto chegar à outra margem são e salvo. Depois encaminhou-se com Ghaden para as sombras escuras da cumeeira de abetos.

 

Yaa ouviu alguém a subir e ficou admirada por Chora-Alto ter voltado tão depressa. Quando Chakliux apareceu a seu lado na árvore, perdeu o fôlego.

Trouxe Ghaden para ficar de vigia e tu poderes voltar para o acampamento e dormires.

Assim que Chakliux pronunciou o nome de Ghaden, Yaa quase falou em voz alta e só quando abriu a boca é que se lembrou de que tinha de falar baixo.

Ele não está ferido?

Está bem, mas não quero deixá-lo aqui de vigia durante a noite. Volta e vai dormir e depois regressa antes do pôr do Sol. Eu fico com ele. Desce e diz-lhe que suba, mas, primeiro, onde está esse caçador de Rio Próximo de que Chora-Alto nos falou?

Yaa apontou com o queixo para Dança-no-Gelo. O jovem encontrava-se suficientemente perto para ela distinguir várias lanças penduradas ao seu ombro.

Tens certeza de que é Dança-no-Gelo?

Olha, disse Yaa em voz baixa. Vês como ele anda de cabeça erguida? Vês como ele mexe os braços?

Ele está só? perguntou Chakliux. Yaa fez um sinal afirmativo.

Desce e diz a Ghaden que suba. Yaa desatou-se e atou o fardo às costas. Quando estava quase no chão, viu Ghaden. As lágrimas saltaram-lhe dos olhos, e ela percebeu que ele ficaria triste por sua causa.

Desceu agarrada ao tronco, virando a cara até chegar ao solo, e limpou a face com as mãos. Depois, apontou para cima mas não disse nada. Ghaden estava pálido, mas tinha os olhos límpidos.

Chora-Alto falou-nos em Dança-no-Gelo disse ele. Yaa inclinou-se e segredou:

Sobe e vê o que achas.

Vais para o acampamento?

Vou dormir. Volto esta noite se os caribus ainda não tiverem chegado.

Yaa ajudou-o a subir e, quando ele se encontrava bem seguro, largou-a. Olhou para baixo, sorriu-lhe e depois desapareceu entre os ramos grossos da árvore.

Sok saiu do acampamento assim que Chora-Alto lhe falou de Dança-no-Gelo. Não se deu ao trabalho de levar um fardo. Pegou apenas na sua lança e correu para o rio. Atravessou-o e começou a chamar quando chegou à segunda cumeeira. Embrenhou-se no amieiro que crescia junto dos abetos e depois ouviu a voz de Chakliux. Dirigiu-se para a árvore onde Chakliux e Ghaden estavam de vigia.

Subiu e ganhou fôlego antes de fazer as suas perguntas:

Tens certeza de que é Dança-no-Gelo? Há outros? Ghaden estendeu o braço e apontou:

Ali. Olha.

Sok observou-o durante algum tempo e depois disse:

Sim, é ele.

Não vi mais ninguém, declarou Chakliux. Achas que ele é um batedor?

Ghaden, ele tem um cão? perguntou Sok.

Sim, um grande e preto. Mau, respondeu Ghaden.

Ele teria trazido o cão se fosse vender qualquer coisa, e o seu fardo seria maior.

Avistaram Dança-no-Gelo quando este subiu a colina sem árvores, olhou para o rio durante algum tempo e depois deu uma corrida e voltou ao local de onde viera.

Eles mandaram-no à procura do rio, disse Chakliux.

Sok apalpou a faca que trazia presa ao braço esquerdo.

Haverá luta se eles julgam que podem apoderar-se do nosso acampamento e caçar os nossos caribus.

Chakliux tentou desanuviar a mente das imagens que a assolavam. Homens moribundos. Mulheres chorando os mortos. O cheiro acre das cabanas ardendo. Mas a destruição fora maior do que isso. Quando os guerreiros ocupassem o seu lugar no mundo dos espíritos, o que fariam? Com certeza as suas almas seriam destruídas pelo seu ódio.

Ao anoitecer, Yaa e Chora-Alto voltaram. Yaa subiu para o seu poleiro em cima da árvore, cumprimentando Chakliux e Ghaden em surdina, e viu-os descer. Embora tivesse passado quase toda a tarde dormindo, ainda lhe custava manter-se acordada depois do pôr do Sol. Os seus olhos continuavam a fechar-se. Então, mordeu o interior da face e serviu-se do sabor do seu próprio sangue para afugentar os sonhos que se acumulavam nas pálpebras.

A Lua ainda não se via no céu e as estrelas pareciam difusas. É a pior fase da noite, pensou, e lembrou-se dos caribus que viriam, dos dias que as mulheres passariam separando a carne dos ossos, cortando-a em fatias finas para a levar ao fogo e comendo alguns pedaços crus, ainda quentes e ensangüentados.

Como ela fora uma das vigias, talvez Chakliux a deixasse ficar com uns dentes de caribu para fazer um colar. Pensou nas parkas quentes que as mulheres fariam com as peles e nos remates das botas feitos com a pele das pernas. Nomeou mentalmente os rapazes de Primo que tinham ido procurar os caribus, Esquilo, Cauda-de-Caribu e Pau Preto e perguntou a si própria se Dança-no-Gelo não andaria fazendo o mesmo para o povo de Rio Próximo.

Sabia que Chakliux ficara inquieto ao ver Dança-no-Gelo perto do acampamento de Rio Primo, mas talvez o rapaz tivesse vindo sozinho. Ele era assim. Fazia o que queria e não assumia a responsabilidade se as suas opções causavam problemas. Além disso, por que motivo havia a gente de Rio Próximo de caçar durante a travessia de um rio? Nunca o tinham feito.

Yaa esperava que Dança-no-Gelo não tivesse sido expulso da aldeia de Rio Próximo. Se tal tivesse acontecido, era provável que ele os procurasse e lhes pedisse para se juntar ao povo Primo. Como poderiam eles recusá-lo? Ele era forte e eram necessários mais caçadores.

Ela lhes diria que não o aceitassem... Talvez Chakliux lhe desse ouvidos, e decerto Sok sabia que Dança-no-Gelo poderia tornar-se um problema.

Um som interrompeu-lhe os pensamentos. Não eram caribus, mas sim uma brisa que varria os ramos da sua árvore. As agulhas sussurraram e falaram-lhe em enigmas:

Escuta. O que ouves?

Então ela ouviu o estrépito dos cascos, não nos ouvidos mas nas mãos com que se agarrava à árvore. O seu andar era uma pulsação, como se ela sentisse o coração da terra batendo.

A Lua nascera e era um grande círculo amarelo numa ponta do céu, ainda não muito alta para iluminar. Mesmo assim, Yaa avistou os caribus, o pescoço branco e as estrias largas que lhes brilhavam nos flancos. Eles eram um rio, uma alternância de claro e escuro, que fluía na tundra, e Yaa ouviu o seu canto: o bater das hastes e o estalido das articulações das pernas, como se fossem bailarinos dançando ao ritmo dos cânticos sagrados.

Yaa deu um longo e nítido assobio. Sorriu ao ouvir Chora-Alto gritar:

Caribus! Caribus! Caribus!

 

Chakliux foi o primeiro a sentir a terra tremendo debaixo do seu pé de lontra e depois ouviu Chora-Alto gritando ao entrar correndo no acampamento.

Caribus! Os caribus vêm aí! Caribus!

Onde? perguntou Chakliux e ouviu Sok, Homem Noturno e várias mulheres fazendo a mesma pergunta.

A oeste, vêm do oeste e vão para sul. Alguns já começaram a nadar.

Então, os caçadores desataram a correr, pegando as lanças e as lancetas e dirigindo-se para o rio em direção à nascente, dizendo às mulheres para se reunirem mais abaixo, no lugar em que a água era menos profunda, o rio era mais largo e a corrente mais lenta.

As mulheres corriam também, pondo cordas nos ombros e agarrando os fardos cheios de facas e de buris.

Ao luar, Chakliux viu que os caribus eram uma manada mista conduzida por uma grande fêmea com uma cria a seu lado. Nadavam com a cabeça e o peito fora da água e as caudas curtas empinadas. A primeira fêmea e a cria foram poupadas das lanças. Se eles matassem o chefe, como é que os caribus saberiam para onde ir no ano seguinte? Quem os encaminharia para o acampamento do povo Primo?

Mas seguiram-se outras fêmeas e depois os machos. Os caçadores ficaram nas margens e alguns aventuraram-se nos locais de menor profundidade. O primeiro animal abatido por Chakliux foi uma fêmea. Era velha e tinha um chifre partido. A lança de Chakliux atirada ao dorso exposto atingiu-lhe a espinha, e os seus pelos ocos mantiveram-na boiando quando a corrente a levou, rio abaixo, para o local em que as mulheres esperavam.

Os caribus que chegaram à outra margem não olharam para trás; subiram o talude e continuaram o caminho, como se nada tivesse acontecido, como se aquele rio fosse igual a tantos outros que haviam atravessado.

A segunda presa de Chakliux foi um macho jovem, bom para carne e pele. O animal, ao evitar um dos outros caçadores, começou a nadar na direção de Chakliux. Este ficou imóvel e empunhou a lança, pronto a atirá-la. Quando o macho o viu, rolou os olhos nas órbitas e começou a virar, proporcionando a Chakliux uma estocada fácil na espinha, na base do pescoço. O golpe foi forte, mas a ponta da lança partiu-se entre duas vértebras. Ele puxou com força a ponta de bétula, perdeu o equilíbrio e escorregou no rio. A corrente empurrou-o para as carcaças dos caribus que corriam para a foz, mas o seu pé de lontra embateu num toro submerso e ficou preso. Chakliux conseguiu soltar-se, avançou para um local menos profundo, tirou outra lança das que trazia às costas e ficou à espera de uma nova vítima.

Durante a travessia, apanhou várias fêmeas e crias e dois jovens machos antes de os grandes passarem por ele. As suas peles, com cicatrizes de muitos anos de luta, serviam essencialmente para fazer tendas e cabanas. Os machos estavam quase na época do cio e a sua necessidade de fêmeas dava à carne um sabor acre. Chakliux só matou dois e depois a manada desapareceu. Fora uma boa caçada, ninguém se ferira e as presas eram muitas.

De súbito, Sok começou a rir, batendo com as mãos nos joelhos. Depois, também os outros riram e, apesar de Chakliux saber que o riso mostrava a alegria que sentiam, lembrou-se de que também deveriam manifestar o seu reconhecimento. Ergueu a voz numa velha canção de ação de graças conhecida dos homens das aldeias de Rio Primo e Rio Próximo.

Os caçadores juntaram-se a ele: Espreita-o-Céu, cuja mão direita estava atada e sangrava; Chora-Alto, que depois daquela caçada passara a ser um homem. Sok, Homem Noturno, Leva-Mais e Homem Risonho, todos tinham a sua história para contar.

Espreita-o-Céu arrastara a primeira fêmea para a margem e agora chamava Chakliux. Elogiou o caribu pela sua carne e depois ajudou Leva-Mais a extrair o coração e o fígado. distribuídos em partes iguais.

Enquanto comiam, os caçadores deixaram de palavras elogiosas e prestaram a sua homenagem em silêncio. Chakliux tirou a sua parte, e quando o sangue lhe ensopou as mãos, a carne, quente na sua boca, tirou-lhe do corpo o frio e o cansaço resultantes da caçada.

Aqamdax esperava junto das outras mulheres, a jusante da travessia e do acampamento. Tinham escolhido uma área larga com bancos de areia onde a corrente abrandava e dividiam-se pelas duas margens. Aqamdax estava junto de Estrela, para se certificar de que a mulher não faria nenhum disparate. Yaa ainda não fora se juntar a elas, e Aqamdax sabia que Sok lhe dissera para ficar em cima da árvore até os caribus passarem. Era bom que ela demorasse tanto, pensou Aqamdax. Era sinal de que a manada era grande e não apenas alguns animais à margem de um grupo que passava para leste ou para oeste.

A melhor coisa que os caribus têm é boiarem, explicou Caule Torto a Aqamdax. A velha mastigava as palavras como se estivesse comendo. Deves pensar nisto já que esta é a tua primeira caçada.

Caule Torto pegou um pedaço de pele de caribu e atirou-o para a corrente. A pele manteve-se na superfície até que a água a levou.

São animais terrestres, entendes? disse Caule Torto. Quando estão no rio, os espíritos da água querem que eles saiam. Além disso, cheiram muito a erva e a terra, por isso o rio mantém-nos à superfície, bem altos. Desse modo. eles vêem o caminho para terra.

Várias mulheres começaram a gritar. Aqamdax viu o que elas viram, as carcaças dos caribus aproximando-se delas e o seu sangue tingindo a água. Quase todos os animais eram fêmeas. Aqamdax viu Tigela Vazia e Caule Torto entrarem no rio, com água pela cintura. Ataram uma corda aos chifres delgados de uma fêmea e depois puxaram-na para terra. Depois, outras mulheres desse lado do rio ajudaram-nas a içar a carcaça para longe da água.

Estrela agarrou-se ao braço de Aqamdax, que viu um caribu dirigindo-se para elas. Cada uma pegou uma haste e ambas puxaram o animal para a margem. Aqamdax ouviu Caule Torto chamá-la. Havia mais um caribu boiando daquele lado do rio, e mais outro. Aqamdax encarregou-se do primeiro e sentiu os pés afastarem-se do fundo quando agarrou o animal. Era um grande macho, de pescoço possante, e as manchas escuras da sua pele eram quase negras ao luar. Quando ela o arrastou para a margem, viu que as outras mulheres se dirigiam para a água. Então, olhou para trás e viu que o rio estava cheio de caribus, boiando como uma jangada que unisse as duas margens.

Já estava cansada e com frio, mas sentia-se satisfeita e queria cantar. Com tanta carne, passariam melhor o Inverno. O que lhe dissera Chakliux? Cinqüenta caribus por caçador durante um ano, alguns apanhados nas caçadas da Primavera, outros no Outono, para que tivessem comida, cabanas, roupas e óleo em abundância.

Aqamdax arrastou o caribu para a margem e foi buscar outro, optando por ir para o meio do rio, visto que era jovem e forte. E para cada caribu que apanhava, nascia um cântico de ação de graças no seu coração. E com ele, outra canção: Esposa de Chakliux! Esposa de Chakliux!

Yaa viu o último caribu passar pela crista do monte e depois esperou mais um pouco. Não queria amaldiçoar a sorte de ninguém na caça nem obrigar os caribus a voltarem para trás, mas por fim desatou-se da árvore e lançou um último olhar.

Amanhecera, e o Sol subia no céu. Yaa agarrou-se ao ramo em que estava sentada e saltou. Depois, avistou alguma coisa mexendo-se na tundra. Suspirou. Talvez fossem mais caribus perdidos da manada principal. Voltou para o seu poleiro. Estava cansada da árvore e queria participar na tarefa empolgante do corte da carne; porém, se viessem aí mais caribus, ela esperaria como Sok lhe dissera.

Levantou uma mão para proteger os olhos, piscou e depois percebeu que não eram caribus, mas sim caçadores. Um grupo de três, vindos de noroeste. Seriam de Rio Próximo? O que estariam fazendo ali? Depois de o povo de Rio Primo ter morto os caribus, estariam os de Rio Próximo planejando roubar-lhes a carne?

Isso seria péssimo. O povo de Rio Próximo sabia que aquele local era reclamado pelo povo Primo. Os caribus sempre tinham atravessado aquele rio, umas vezes em grandes manadas, outras em pequenos grupos, mas sempre o tinham atravessado, e o povo Primo sempre os caçara naquele local. Pelo menos fora o que Estrela lhe dissera. Haveria mais luta?

Encostou a face ao tronco da árvore. O aroma frio e intenso do abeto-negro acalmou-a, mas continuou a ouvir a sua própria respiração na garganta, irregular, como se tivesse andado correndo. Por fim, ouviu uns gritos tênues e viu que os caçadores tinham apontado as suas lanças para a cumeeira, para as árvores altas do meio. Saberiam que ela estava ali? Como era possível?

Então Yaa percebeu que eles eram pequenos demais para serem caçadores do Povo Rio. Eram rapazes, e o do meio coxeava. Esquilo não torcera o tornozelo apenas uns dias antes de saírem do acampamento? E o irmão, Pau Preto, vinha a seu lado.

Como ela era menina, Sok não pudera ensinar-lhe os sinais que os vigias usavam. Mas, apesar de fingir que estava ocupada com tarefas de mulheres, Yaa escutava-o sempre que ele ensinava Ghaden.

Fechou os olhos e tentou lembrar-se do sinal que indicava a presença de caribus. Uma lança ou um pau três vezes levantado para o céu. Sim. Ficou observando, e os olhos doíam-lhe pelo esforço de tentar ver algo tão distante.

Depois teve certeza de que vira o sinal, teve certeza de que todos os rapazes elevavam um pau três vezes para o céu. Mas o que devia ela de fazer? Não tinha ninguém junto de si que levasse a notícia e os rapazes ainda vinham longe. Além disso, quando chegassem ao acampamento o encontrariam vazio, e como podiam saber o caminho que o povo tomara?

Yaa desceu da árvore e correu para o rio.

O que é? perguntou Aqamdax. Estrela apontou para Yaa.

Yaa! Estás bem? gritou Aqamdax.

Os rapazes! gritou Yaa. Os rapazes! Esquilo! Pau Preto! Cauda-de-Caribu!

Sem fôlego, a menina não conseguiu dizer mais nada e Aqamdax percebeu que ela já vinha correndo há muito tempo.

Foi ao seu encontro, agarrou-a pelos ombros e disse-lhe:

Não fales. Respira fundo. Outra vez. Assim. Agora conta-me o que aconteceu.

Eu estava... Eu estava na árvore... À espera, como Chakliux me disse... Depois avistei Esquilo, Pau Preto e Cauda-de-Caribu... Eles fizeram o sinal do caribu. Estavam muito longe e Chora-Alto já tinha ido ajudar os homens, por isso vim eu e...

Caribus? Ela disse que vêm aí caribus? Mais caribus? Era Caule Torto, e pouco depois as outras mulheres aproximaram-se.

Temos que falar com Chakliux disse Estrela, e por uma vez Aqamdax concordou com ela.

Deve Yaa ir avisá-los? perguntou Chamariz.

Ela é a única de nós que tem idade suficiente para ir sozinha e que ainda não teve uma lua de sangue.

Virá uma maldição, exclamou Estrela.

Não fales em maldições, disse Caule Torto. Olhou para as outras mulheres e depois para os caribus mortos que tinham trazido do rio. Alguém tem uma pele?

Nós temos, disse Tigela Vazia.

Me dá.

Ela e a irmã, Pássaro Amarelo, trouxeram a pele, dobrada pelo lado da carne.

Abram-na, ordenou-lhes Caule Torto. Agora enrolem-na na menina.

Yaa estremeceu quando as mulheres lhe puseram a pele nos ombros. Ainda nem fora raspada, e estava cheia de gordura e de vasos sanguíneos cortados.

- Assim mesmo. Agora o rio julgará que ela é um caribu e ela não amaldiçoará ninguém - disse Caule Torto.

- Devíamos cantar alguma coisa - sugeriu Estrela, e as outras mulheres olharam umas para as outras, sem saberem o que cantar.

- Aqamdax. Tu és contadora de histórias. Canta algo - pediu Caule Torto.

Os primeiros cânticos de que Aqamdax se lembrou foram os que ela aprendera na sua aldeia, mas as palavras usadas pelos Primeiros Homens seriam boas para os caribus? Talvez não. Depois, recordou-se de uma coisa que Chakliux lhe ensinara, um cântico de ação de graças usado pelo Povo Rio.

Era uma canção infantil, mas ela cantou-a e pouco depois as outras mulheres juntaram-se a ela. O que há de melhor que a gratidão? O que dá mais poder do que a ação de graças?

Enquanto cantava, Aqamdax reparou que Yaa estava tremendo. Não era de frio, não, que a pele de caribu depressa afastara o resfriamento causado pela travessia do rio. Talvez fosse do nervosismo, pelo fato de ela ter que ir sozinha aos territórios de caça dos homens.

Por isso, quando a canção terminou e Yaa partiu, correndo o mais depressa que podia com a pesada pele de caribu em cima do corpo. Aqamdax começou a cantar outra canção, apenas na sua mente, uma canção de força e de coragem para a irmãzinha que levava a boa nova dos caribus.

 

Yaa tremia debaixo da pele de caribu, mas fazia o possível para correr. O que era um coração aos pulos e umas pernas cansadas comparados com uma barriga cheia de carne de caribu no Inverno? Abriu caminho entre as margens cobertas de mato, e ia perdendo a pele de caribu quando os ramos de um salgueiro ganancioso se estenderam para lhe tirar, mas ela agarrou-se à pele, esgueirou-se e conseguiu fugir.

Lembrou-se de uma história que ouvira contar uma vez a Chakliux, sobre um homem que conseguira transformar-se numa árvore. Perguntou a si própria se aquele salgueiro seria esse homem e se ele a amaldiçoaria pelo seu egoísmo de querer conservar a pele.

Não posso te dar porque não é minha, disse ela em voz baixa, esperando que o vento levasse as suas palavras ao homem-árvore, de pés enfiados no solo.

Por fim, chegou a um local em que o rio fazia uma curva e corria do norte, e depois descrevia outra curva de leste para oeste. Os salgueiros e os amieiros estavam pisados e todos os ramos ostentavam zonas brancas causadas por cortes recentes. No solo viam-se trilhos de caribu, como cicatrizes. No local em que o rio corria a direita, o mato era mais ralo e Yaa avistou os homens, ouviu as suas vozes e os seus risos.

Havia fumaça. Yaa sentiu o seu cheiro e o odor de carne cozida. Em seguida, ouviu a exclamação de uma voz aguda de rapaz. Era Ghaden, tinha a certeza. Parou ali mesmo e ficou esperando. Eles que fossem ao encontro dela. Afastou a pele para eles lhe verem o rosto.

Ghaden chamou-a e disse qualquer disparate a respeito de um caribu que ia comê-la. Depois, Homem Noturno, Chakliux e Sok aproximaram-se dela, todos fazendo perguntas. Yaa não sabia a quem responder primeiro, por isso esperou que Chakliux pusesse a mão no ar, e os homens calaram-se.

- Porque vieste? - perguntou ele, e a sua voz era dura, irritada, para que Yaa soubesse que arriscara muito ao dirigir-se àquele local sagrado.

- Foram as mulheres que me mandaram - respondeu ela.

- Porquê? - perguntou Homem Noturno, e a sua voz era ainda mais terrível que a de Chakliux.

De súbito, o peso da pele de caribu, o calor e o cheiro pareceram-lhe pedras nos ombros, e Yaa perdeu a força nas pernas. Sok ajudou-a a levantar-se, mas ninguém tocou na pele, e ela teve que se concentrar tanto para não cair que mal tinha forças para falar.

- Caribus, m-mais caribus - balbuciou ela.

De repente, todos os caçadores se reuniram em volta dela, e o interesse que demonstravam parecia devolver a força à sua voz.

- Eu vi Esquilo, Pau Preto e Cauda-de-Caribu chegarem. Vi-os da árvore onde estava à espreita. Eles levantaram três vezes os paus no ar. Esse é o sinal do caribu, não é?

Depois, Yaa hesitou. Afinal, ninguém lhe ensinara os sinais. Ela limitara-se a ouvir o que Ghaden estava aprendendo. Talvez estivesse enganada e tudo aquilo que as mulheres lhe tinham dito fosse um disparate. O que lhe fariam os homens?

- É esse o sinal - respondeu Ghaden, abrindo caminho entre Sok e Chakliux.

Ghaden olhou para Yaa e depois enfiou-se debaixo da pele com ela e puxou uma parte para os seus ombros.

Os homens conversavam, tentando decidir se deviam voltar à aldeia ou ficar onde estavam.

- Os rapazes fizeram algum sinal quanto à direção que os caribus seguiam? - perguntou o caçador chamado ESpreita-o-Céu.

-Conheces os sinais? perguntou Sok. - Só alguns respondeu Yaa, cabisbaixa.

Um cajado no ar agitado numa ou noutra direção. fizeram esse sinal?

Yaa fechou os olhos e tentou ver de novo os rapazes.

Eles iam correndo disse ela. Levantaram os paus no ar, agitaram-nos três vezes para trás e para a frente, na direção do acampamento.

Yaa abriu os olhos e olhou para Sok.

Temos que ir ao encontro das mulheres para lhes dizermos o que têm a espera, disse Espreita-o-Céu.

Eu sou o mais lento disse Chakliux. Fico aqui tomando conta disto. Ghaden pode ajudar-me.

Então os homens começaram a reunir as armas e os mantimentos. Tinham deixado os cães com as mulheres, até Mordedor, por isso Yaa ficou à espera para ver se Chakliux queria que ela ajudasse a levar alguns dos mantimentos que os outros caçadores tinham deixado.

Agachou-se, puxou a pele para a cabeça e ficou olhando para eles até que Ghaden tocou no braço de Chakliux e apontou para ela. Chakliux ficou admirado.

Julguei que tinhas ido embora disse ele. Volta para junto das mulheres. Há aqui coisas que não deves ver.

Yaa suspirou, levantou-se e enrolou-se o melhor que pôde na pele. Pelo menos dessa vez não era obrigada a correr.

Aqamdax trabalhava depressa, cortando a carne, retocando ou mudando a lâmina da faca quando ela embotava e depois cortando outra vez. Cortava primeiro a barriga do animal, retirava o fígado, o coração e os rins e depois a camada de gordura que revestia os intestinos. O estômago, assado inteiro, cheio das juncas e das ervas comidas pelo caribu, era só por si um banquete, e os intestinos, depois de limpos e raspados, davam bons tubos para a água potável ou para armazenar uma mistura feita de gordura, carne e frutos secos As mulheres ferviam as cabeças para fazer uma bela sopa e coziam os ossos para extrair a gordura da medula.

Das pesadas tiras de tendão ao longo da espinha faziam-se as melhores linhas, e as mulheres guardavam os ossos e as hastes para fazer ferramentas e armas, utensílios de cozinha, agulhas e furadores. Os cascos eram bons para cola e chocalhos de dança, e os dentes para ornamentos. Era um animal útil, o caribu, apesar de Aqamdax considerar que a sua gordura não era tão boa como a do leão-marinho e os seus dentes não eram tão bonitos como os dentes de foca.

Estrela fora passear, deixando Aqamdax e Caule Torto trabalhando sem ela. Caule Torto começara a resmungar baixinho, falando mal de Estrela, mas Aqamdax fingiu que não ouvia. Já era irmã de Estrela pelo casamento e dentro de pouco tempo seria sua esposa-irmã. Não queria agravar a situação criticando a mulher, embora todos soubessem que Estrela era preguiçosa.

De repente, os cães começaram a latir porque os homens estavam chegando, e todos corriam exceto Leva-Mais. Homem Noturno foi falar com Aqamdax, disse-lhe que Yaa os encontrara e que os caribus iam para o acampamento. As mulheres continuaram trabalhando, embora Estrela começasse a chorar por Chakliux. Onde estava ele? Estava ferido? Fora morto na caçada? E onde estava o seu filho, Ghaden?!

Homem Noturno respondeu à irmã gritando, dizendo-lhe que Chakliux viria mais tarde, assim como Ghaden. Aqamdax manteve-se de cabeça baixa, tentando não denunciar o alívio que sentira.

Caule Torto entoou uma canção rápida de ação de graças e depois disse:

O teu marido, Homem Noturno, é bom para ti. Sei que choras pelo teu filho, mas às vezes as mulheres não compreendem os desígnios dos homens.

E embora a raiva que sentia por Homem Noturno lhe empurrasse palavras de desprezo para a boca, Aqamdax cerrou os dentes e não disse nada enquanto a sua faca cortava.

Os rapazes disseram que os caribus vinham do Norte, uma grande manada com tantos animais que nem se via o fim, mesmo das árvores mais altas. Os caribus separaram-se junto das cumeeiras de abetos e aqueles que iam para leste não atravessaram o rio e seguiram o seu curso na mesma direção. O grupo que foi para oeste parou na margem um pouco acima do acampamento do povo Primo e ficou ali. Alguns animais iniciaram a travessia mas voltaram para trás e depois deitaram-se, mascando erva que regurgitaram.

Era como se soubessem que as pessoas precisavam de tempo para se prepararem para eles, disse Caule Torto, e os homens e as mulheres trabalharam juntos, cortando caribus e carregando os cães, enviando até uma parte da carne pelo rio acima, boiando, embrulhada nas peles felpudas, para o acampamento de caça. Quando todos chegaram ao acampamento, as mulheres trabalharam durante toda a noite, reservando curtos períodos para dormir, e depois cortando, cortando, gratas por os homens estarem ali para afiar as lâminas das facas e as ajudarem a manusear as pesadas peles.

De manhã, quando os caribus pareciam prontos a partir, as mulheres armazenaram a carne que ainda não estava nos estrados de seca e deram graças por o tempo estar suficientemente frio para conservar a carne crua.

Yaa e os rapazes ficaram tomando conta dos fumeiros e guardando a carne dos lobos e dos necrófagos, e as mulheres foram para jusante, apanhar aqueles caribus que se entregaram às lanças dos homens.

 

                   ACAMPAMENTO DE RIO PRÓXIMO

Dança-no-Gelo chegou ao acampamento muito depois de os outros jovens terem voltado. Anaay dirigiu-lhe a palavra, aborrecido, e perguntou-lhe porque se demorara tanto. Encontrara uma mulher em algum na tundra?

Anaay ficou à espera de uma resposta torta, mas Dança-no-Gelo limitou-se a encolher os ombros e a dizer:

Vejo que não queres saber o que tenho para te contar.

Dirigiu-se a Chama-o-Sol. O velho estava sentado à porta da tenda cortando pedaços de sílex com um martelo de pedra e um garfo de chifre.

Os outros vigias viram caribus? perguntou Dança-no-Gelo.

Chama-o-Sol abanou a cabeça.

N-não, e n-não há si-sinais deles. Dança-no-Gelo ficou todo inchado.

Eu vi, disse ele. Uma manada atravessou o rio no local em que os homens de Primo caçam.

Anaay seguira Dança-no-Gelo até ao abrigo de Chama-o-Sol e, como se não tivesse sido insultado, perguntou.

E os caçadores de Primo estão lá?

Estão, e apanharam muitos caribus.

São aqueles que eu ouvi no meu sonho. Doninha Pequena, um dos filhos de Chama-o-Sol, juntou-se a eles, ouviu as palavras de Anaay e disse:

Se eram os caribus que ouviste, todo o teu jejum e todas as tuas preces foram inúteis para nós. Ou então andavas rezando mais pelo povo Primo do que por nós. Durante anos, os de Rio Primo caçaram naquele rio, e nós optamos por caçar na tundra. Porque nos trouxeste para cá? Para vermos os outros apanhando caribus enquanto os nossos passavam noutro local?

Anaay, indignado com a insolência de Doninha Pequena. começou a defender os seus sonhos com os caribus, mas Dança-no-Gelo interrompeu-o para dizer:

A segunda manada era muito maior.

Que manada? perguntou Doninha Pequena.

A que veio atrás da primeira. Chegou meio dia depois e dividiu-se numa cumeeira. Uns foram para oeste e outros para leste. Encontrei uma árvore alta nessa cumeeira e subi. De lá vi o acampamento dos Primo do outro lado do rio. Era como se eles tivessem escolhido os que iam para oeste, embora a maioria dos caribus tenha ido para leste.

Aqueles caribus que veneram o Sol também venerarão os nossos caçadores, disse Anaay, em voz alta e forte para se sobrepor às vozes dos outros homens. As nossas lanças apanharão muitos. Agora vão preparar a caçada. Partimos assim que Dança-no-Gelo tiver oportunidade de descansar e de comer. Ele nos mostrará o caminho e nós apanharemos caribus.

Anaay foi para a sua tenda e não deu ouvidos àqueles homens que ergueram a sua voz para perguntar quem entre eles é que sabia caçar caribus nos rios. Como é que eles podiam caçar sem a ajuda de cercados para encaminhar os animais para as suas lanças? Como é que eles podiam caçar na água? O rio não os arrastaria?

 

                     ACAMPAMENTO DE RIO PRIMO

Aqamdax embrulhou-se nas peles da cama e fechou os olhos. Não se lembrava de alguma vez ter se sentido tão cansada. A segunda caçada trouxera o dobro dos caribus da primeira. Quando acabou a matança, os homens juntaram-se as mulheres e levaram a carne preparada para o acampamento principal, mas as mulheres ficaram no local do corte, tirando as peles, estripando as carcaças e cortando pedaços de carne crua para comer enquanto trabalhavam, para não terem que parar exceto para mudar ou afiar as facas.

No fim do segundo dia, os homens voltaram e ajudaram a levar o resto da carne para o acampamento. Mais uma vez resolveram levá-la boiando rio acima sobre as peles, embora as mulheres, esgotadas, tivessem começado a gritar de fúria quando Leva-Mais perdeu uma pele inteira cheia de carne com osso.

A carne fora uma dádiva ao rio, disse-lhes Sok, e Leva-Mais era mais sensato do que desajeitado. A maioria das mulheres concluiu que Sok tinha razão, mas Caule Torto continuou a resmungar. Fora ela que cortara aquela carne, e a pele era particularmente boa, com riscas brancas e largas nos flancos do animal. Tencionava fazer dela uma parka nesse Inverno.

Alguns caribus mortos escapavam sempre das mãos das mulheres e desapareciam boiando rio abaixo, disse Caule Torto. Isso não era suficiente? Aquele rio era assim tão ávido?

Continuou a lamentar-se até que todas as mulheres fugiram dela, desviando o olhar. Aqamdax murmurou desculpas em surdina, esperando que aquilo que o rio fizesse a Caule Torto pela sua insolência não se repercutisse nas outras pessoas do acampamento.

Por fim, Chakliux teve que lembrar a Caule Torto que podiam acontecer coisas horríveis se ela continuasse a lamentar-se. Depois, caminharam em silêncio, carregados de carne. A maior parte das mulheres estava cansada demais para conversar e até para entoar cânticos de ação de graças pela carne que as faria viver mais um Inverno.

 

                     O POVO DE RIO PRÓXIMO

Dii estava radiante por ir de novo para o rio Caribu, mas também triste por se lembrar da mãe e do pai, dos irmãos e do tio. Ainda há um ano estavam vivos. Ainda há um ano ela e as amigas se preocupavam apenas com os pequenos problemas próprios das meninas. Ela e a prima, Furador, riam muito dos caçadores que as conduziam. Agora, quase todos esses caçadores tinham morrido e as amigas eram esposas ou escravas dos homens de Rio Próximo.

Dii pensou que não podia se queixar do modo como Anaay a tratava. A prima Furador também tivera sorte com o novo marido.

Dii olhou para Anaay, que caminhava à sua frente. Além do cajado, levava apenas armas, como a maior parte dos homens, enquanto que as mulheres transportavam cargas pesadas. Pelo menos, Anaay tinha três cães possantes, que davam uma grande ajuda.

K’os era inteligente com os cães. Sugerira que dividissem a carga entre dois animais e deixassem que um cão levasse apenas um fardo leve, e depois substituíssem os cães, dando tempo a cada um para descansar.

É pena que Bico-de-Gaivota não tenha vindo, gracejara Dii dirigindo-se a K’os. Assim as esposas de Anaay também levariam a carga revezando.

Dii julgou que o comentário faria K’os rir, mas esta limitou-se a empinar o queixo e a semicerrar os olhos como se estivesse zangada.

Caminharam durante um dia inteiro e parte de uma noite antes de acamparem. Os jovens que haviam sido enviados como batedores tinham encontrado um bom abrigo, seco e com uma fileira de árvores que os protegia do vento.

Anaay escolheu vários caçadores para ir à frente, à procura dos caribus que Dança-no-Gelo avistara. Os homens e as mulheres que ficaram no campo foram alojados em tendas separadas. Para quê correr o risco de uma mulher arruinar a sorte do marido na caça? Talvez até a respiração dela surtisse esse efeito. Quem podia pôr em risco tal coisa?

De manhã, os batedores tinham voltado. Os caribus estavam perto, segundo disseram, apenas a meio dia de caminho, ou talvez menos. Dii, certa de que os homens diriam às mulheres para se afastarem da manada enquanto eles se dirigiam para leste, voltou a carregar os cães, pegou o seu próprio fardo e os pôs fora do acampamento, encaminhando-os para oeste.

Anaay, porém, disse que iriam todos juntos, que se dirigiriam para leste a fim de impedir o avanço da manada. Em seguida, os batedores cercariam os caribus e os obrigariam a atravessar o rio.

Dii viu as mulheres de Primo com os olhos arregalados de surpresa e ouviu os seus cochichos.

Como reagiriam os caribus ao ver mulheres junto dos caçadores? Que maior insulto poderia haver? E quando os animais fossem mortos na água, quem os apanharia se as mulheres se encontravam junto com os homens?

Eu podia falar ao meu marido, disse Dii a K’os, mas esta abanou a cabeça.

Julgas que ele te daria ouvidos? Julgas que qualquer destes homens te daria ouvidos? Nós é que somos os caçadores?

Dii viu o peso desse conhecimento no olhar de todas as mulheres de Primo e, quando eles saíram do acampamento, elas continuaram a trabalhar em silêncio.

Por duas vezes durante aquele meio dia de caminho, Dii tentou aproximar-se de Anaay, para lhe dizer o que sabia da caça no rio, mas os outros homens afastavam-na sempre. Por fim, gritou, chamando o marido pelo nome. Anaay olhou para trás e quando ela ergueu as mãos num gesto de súplica, ele aproximou-se dela e das outras mulheres. Aliviada, Dii começou a explicar que as mulheres deviam ficar a jusante, longe da vista dos homens durante a caçada, mas, quando se atreveu a olhar para a cara de Anaay, viu que ele estava rubro de cólera e que a cicatriz que ia do sobrolho ao queixo estava dura como a neve.

Anaay ergueu o cajado e Dii esquivou-se, mas ele atingiu-a nos ombros. Com a força da batida, o fardo atirou-a ao chão. Ele atacou-lhe os braços e as pernas com o cajado até que ela se enrolou numa bola. O fardo parecia a concha dura de um molusco protegendo as partes moles do interior. Quando esgotou a sua raiva, Anaay afastou-se e Dii levantou-se devagar. Ocupou o seu lugar ao lado de K’os e as suas pernas doridas tentaram acertar o passo com as da escrava.

Porque tentaste ajudá-lo? perguntou K’os. Ele é um idiota. Deixa-o ser. É preferível que nos calemos, recuemos e deixemos os outros receberem o castigo que a inteligência de Raposa-Que-Ladra lhes trouxer.

Nessa noite, Dii e K’os montaram a sua tenda separada das outras. K’os levou pedras para fazer uma lareira separada e nenhuma das outras esposas se aproximou dela.

De noite, o cântico fez-se de novo sentir nos ossos de Dii. Em sonhos, ela ouviu os caribus e soube que eles estavam perto. Quando o estrondo da sua passagem a despertou, levantou-se da cama e acordou K’os. Tinham dormido de parka, perneiras e botas, para não terem que se vestir e calçar antes de sair. A leste, o céu estava clareando com a promessa de sol, mas a oeste Dii avistou uma mancha escura em movimento. Caribus.

Os homens gritavam no rio. Tinham matado alguns animais, mas outros caçadores atrapalharam-se na escuridão da madrugada. Dii ficou à escuta até que ouviu Anaay dizer às mulheres que fossem para jusante.

Como esperava Anaay que elas contornassem a manada? Não podiam atravessá-la.

Então Dii reparou que as mulheres de Rio Próximo empunhavam paus de salgueiro descascados e que algumas tinham cobertores de pele de lebre branca. Os homens chegaram com as armas, instalaram-se ao lado das esposas, olharam quando as mulheres agitaram os cobertores, ergueram os paus e obrigaram os caribus dos extremos da manada a ir para o meio do grupo.

De súbito, uma das mulheres começou a gritar, a chorar pela filhinha. Então, como se os caribus tivessem percebido o pânico dela, afastaram-se do rio e correram para o acampamento.

K'os soltou os cães e depois ela e Dii largaram tudo e desataram a correr. Tropeçaram em moitas, enchendo as mãos de espinhos de xos cogh, mas levantaram-se e continuaram a correr.

Um grande macho aproximou-se tanto de Dii que esta julgou que ele a esmagaria. Corria de cabeça levantada, olhos orlados de branco e boca espumando. Dii esticou os braços, retesou os músculos e fez toda a força que tinha. O animal chocou com ela, e Dii sentiu as pernas cedendo. De repente, o caribu desapareceu e surgiram fêmeas com crias no seu encalço. O seu bafo parecia fumaça no meio da escuridão.

«É um sonho», disse Dii a si própria, mas continuou a correr. Como a parka era pesada, começou a transpirar, embora a atmosfera estivesse suficientemente fria para tornar visível a sua respiração e congelar-lhe as sobrancelhas e as pestanas. As tranças soltaram-se e o cabelo fugiu-lhe para o rosto pelas extremidades do capuz. Doíam-lhe os pulmões e as pernas do cansaço, mas continuou a correr.

O céu clareava com o amanhecer quando ela percebeu de que o estouro ficara para trás.

Parou e caiu de joelhos. Quando conseguiu voltar a respirar, viu K'os sentada no chão, um pouco mais atrás.

- K'os! - gritou Dii, e como a mulher não respondesse, ela levantou um braço e depois deixou-o cair, como se até esse gesto fosse demasiado violento para as forças que lhe restavam.

Dii olhou para os pés. Estes sangravam através das botas, colorindo as plantas da tundra, mas o frio do solo amortecera a dor. Então, Dii começou a tirar os espinhos de xos cogh das mãos.

 

                   ACAMPAMENTO DE RIO PRIMO

Ghaden tentou obrigar Mordedor a sair da tenda. Comera demais, aquele cão, e agora estava tão preguiçoso que só queria dormir.

Mordedor, é a tua vez de ires vigiar a carne. Sai! disse Ghaden em voz baixa.

Mordedor deitou-se de barriga para o ar, mas quando Ghaden passou por cima dele, o cão levantou-se, sacudiu-se e foi atrás dele para o rio. Pararam num local pouco profundo em que a areia formara um declive suave desde a margem até ao leito do rio. Ghaden puxou as perneiras para cima e entrou na água. Inclinou-se para beber e depois molhou o rosto.

Virou-se para os arbustos para urinar, mas então viu uma coisa flutuando mesmo a seu lado. Alguém matara um caribu naquela manhã? Julgava que todos os homens estavam no acampamento. Talvez uma manada tivesse atravessado o rio bastante mais acima e os lobos tivessem matado um, perdido na corrente. Ghaden avançou até conseguir agarrar na carcaça, mas esta era mais pesada do que ele julgava e começou a arrastá-lo para jusante.

Mordedor começou a latir e Ghaden gritou por Chakliux e Sok e depois pelos rapazes que ele ia ajudar nos estrados de seca.

Pau Preto desceu a margem a correndo e disse-lhe que largasse a carcaça, mas Ghaden não tinha pé e, se se agarrasse ao caribu, pelo menos boiava.

Vão chamar Chakliux. Vão chamar Sok! disse Ghaden.

Quando Pau Preto desatou a correr para o acampamento, Ghaden, assustado, sentiu os braços fraquejando. E se Pau Preto não voltasse a tempo? Já tinha as mãos dormentes. Então, de repente, Mordedor apareceu a seu lado, no rio. Ghaden largou o caribu e agarrou-se ao pescoço felpudo do cão.

Pau Preto falou tão depressa que Chakliux teve que o obrigar a repetir o que ele dissera.

É Ghaden disse Pau Preto, sem fôlego. Chakliux ficou pálido.

O rapaz caiu no rio.

Ele está ali, no rio. Havia um caribu boiando...

Mas Chakliux não esperou por mais nada do que Pau Preto tinha para dizer. Correu para o rio e nadou na direção da carcaça. A água fria ardia no peito e tentava chegar-lhe ao coração.

“Sou uma lontra”, pensou Chakliux. “Sou uma lontra. O frio não pode deter-me.” Os braços e as pernas ficaram rígidos, mas ele conseguiu agarrar o caribu. Ghaden não estava ali.

Ghaden! gritou. Ghaden!

Depois ouviu vozes na margem, levantou a cabeça e avistou Sok, Espreita-o-Céu e Pau Preto. Ghaden, com o cabelo e a roupa a pingando, estava junto deles, com Mordedor ao lado.

Chakliux não largou o caribu e conseguiu empurrar a carcaça para um local onde a água era pouco profunda. Espreita-o-Céu puxou o caribu para a margem.

Sok ajudou Chakliux a levantar-se, mas Espreita-o-Céu inclinou-se sobre a carcaça e apontou para a ponta de uma lança espetada no pescoço do animal. Fez uma careta ao ver as marcas e disse:

Rio Próximo.

 

                   ACAMPAMENTO DE RIO PRÓXIMO

Anaay tapou os ouvidos com as mãos para não ouvir os cânticos fúnebres. Alguém conseguiria chefiar gente tão estúpida? Como é que aquelas mulheres se tinham posto entre os homens e os animais? Haviam amaldiçoado a caçada assim que os caribus lhes sentiram o cheiro. E que mãe tão idiota - Perneiras Vermelhas, não era? - permitira que a filha de quatro anos ficasse com ela? A mulher julgaria que a filha era suficientemente crescida para apanhar um caribu morto?

E os homens... tinham-se portado muito melhor? Quase todos haviam ido para o rio só com uma lança e, depois de a atirarem, restavam-lhes apenas as lâminas curtas das facas. Assim que a primeira mulher fora ferida, o marido interrompeu a caçada e tentou aproximar-se dela, deixando o caribu para os outros caçadores.

Anaay pegou o cajado e ficou no meio do que restava do acampamento. Ergueu a voz num cântico de proteção mas, ao cantar, a sua boca pronunciou outras palavras: Estúpidos! Estúpidos.

Dii acariciou o cabelo de Furador, que tossiu mas tentou sorrir.

- K'os diz que tens as costelas partidas. Só isso - disse Dii.

Onde estava Primeira Águia? Se ele estivesse ali, Furador se sentiria melhor. E se ele fosse um dos que haviam morrido? Dii não sabia ao certo quantos homens tinham perdido a vida. Poucos, pensou. Eram mais as mulheres e as crianças que tinham morrido, mas, das mulheres de Primo, só Fica-Pequena é que morrera, esmagada entre dois caribus quando tentava ajudar Perneiras Vermelhas, irmã de Primeira Águia. E de que servira? A irmã morrera, assim como a filhinha.

Flor Azul parou e agachou-se junto de Dii. A mulher afirmava ser curandeira, mas K'os dissera que ela entendia menos de mezinhas do que uma criança.

- Devias tirá-la do solo molhado - sugeriu Flor Azul, apontando com o queixo para a água que escorria da lama.

Dii sabia que o local não era bom para acampar, mas como podia dizê-lo se fora Anaay que o escolhera? De cada lado do acampamento, o solo formava um declive longo e pouco pronunciado que se estendia até ao rio. Anaay não sabia que o declive constituía uma passagem natural para os caribus?

Dii olhou para Flor Azul.

- Não te importas de ir buscar Primeira Águia? - pediu ela.

A mulher franziu o sobrolho e Dii fez outro pedido:

- Tu és curandeira. Ficas aqui com Furador enquanto eu vou buscar o marido dela? Ele ajuda-me a levá-la.

- K'os já a viu? - perguntou Flor Azul.

- Já.

- E o que disse?

- Que ela tem as costelas partidas.

- Isso não é assim tão mau. Há ferimentos piores. Primeira Águia está ocupado com os outros. Ela cospe sangue?

- Não.

Flor Azul encolheu os ombros.

- Tenho coisas mais importantes a fazer do que procurar pelo marido de uma mulher de Primo, mas se vir Primeira Águia digo-lhe para vir aqui.

Quando Flor Azul se afastou, Dii gritou-lhe:

- Viste o meu marido?

Flor Azul rosnou:

-Não o ouves cantando?

O ruído dos choros e dos gritos de dor parecia encaminhar-se para o local inclinado em que Dii se encontrava, mas ela apurou o ouvido e por fim ouviu a voz de Anaay. Ele cantava uma oração que ela ainda não conhecia; pedia poder, proteção. Para ele próprio, não para os outros.

Anaay, repara no que a tua estupidez nos custou, comentou Dii em surdina, cheia da mesma repulsa que sentira quando se tornara sua esposa.

Ele colocara-os no caminho dos caribus, e quando os animais entraram em pânico voltaram para trás e destruíram o acampamento. Anaay não pedira conselho, apesar de não entender nada de caçadas nas travessias dos rios. Além disso, aquele rio era reclamado pelo povo Primo. Porque ele se convencera de que podia caçar ali?

De que lhe serviam as salmodias se eram entoadas com egoísmo? Um homem tornava-se tão poderoso que até podia esquecer os tabus? Algum povo prosperava quando ignorava as leis da honra e do respeito?

 

                   ACAMPAMENTO DE RIO PRIMO

Yaa agachou-se junto da tenda de Chakliux, ao abrigo do vento. Doíam-lhe os braços desde os pulsos até aos ombros e parecia-lhe que ainda tinha os dedos agarrados ao raspador. O entusiasmo provocado pela abundância de carne no acampamento esmorecera, e agora ela pensava apenas no trabalho árduo que ainda havia a fazer. Não tinham organizado nenhum banquete para comemorar, mas o verdadeiro festim, com danças e histórias, só se realizaria quando regressassem à aldeia de Inverno. Ainda teriam que passar muitos dias raspando e cortando, caminhando e transportando.

O céu estava cinzento e frio. Yaa fechou os olhos e deixou-se adormecer. Estrela pusera-a a raspar peles. Era apenas a primeira raspagem, e quase todas as peles tinham sido tão bem esfoladas que havia pouco a fazer, mas para quê correr o risco de que alguns pedacinhos de gordura se entranhassem no pêlo, roubando a força da pele, ou de que o sangue a apodrecesse?

Todas as mulheres usavam um raspador feito de osso da perna de caribu, cortado em diagonal na extremidade e entalhado, acionando o utensílio na direção do corpo, contrabraceado por uma tira de couro.

Yaa, cujos braços ainda eram muito curtos para trabalhar devidamente com um raspador de osso de caribu, usava um raspador de buril, especialmente indicado para extremidades rasgadas e orifícios existentes nas peles.

Yaa já nem sabia quantas peles tratara nesse dia, ocupando-se das extremidades depois de Estrela ou Aqamdax terem raspado o resto. Já lhe bastava ter gasto todos os seus buris. Estrela dissera-lhe que Homem Noturno tinha alguns prontos e mandara-a buscá-los. Mas não seria grave se ela descansasse um pouco. Como é que Estrela podia queixar-se? Nenhuma das mulheres descansava mais do que ela.

Yaa ouviu alguém aproximar-se e parar junto dela. Suspirou. Devia ser Estrela, sempre pronta a ralhar com ela. Abriu os olhos apenas o suficiente para ver através das pestanas. Chora-Alto estava à sua frente.

Ia cumprimentá-lo, mas as palavras enrolaram-se na garganta e saíram em forma de guincho. Ele deixou-se cair a seu lado e sorriu.

Já não tens que ajudar mais? perguntou ele.

Estou apenas descansando. Mandaram-me ir falar com Homem Noturno para trazer mais raspadores.

Estás cansada?

Ela fez um sinal afirmativo.

Estou. Mas ainda há muitas peles para arrumar, e depois há a pele das pernas...

Yaa olhou de soslaio para Chora-Alto. Não queria que ele julgasse que ela estava a lamentando-se.

Mas estou contente, apressou-se ela a dizer. É bom ter esta carne e estas peles todas.

É bom, concordou ele. O Inverno não será tão duro.

Levantou a cabeça e olhou para as tendas do acampamento. Manteve-se em silêncio durante muito tempo e depois acrescentou:

Às vezes penso que, se ficar olhando durante muito tempo, a verei.

Yaa sentiu um nó na garganta. Ele estava falando da mãe, Folha Vermelha. Yaa não entendia como é que ele continuava pensando nela. Folha Vermelha matara Daes e o velho Tsaani, e depois Mulher Diurna, a avó de Chora-Alto.

Ela fez coisas más, e eu sei que não devia falar nela, comentou Chora-Alto. O meu pai diz que ela morreu, assim como a nossa irmã.

Como pode ele esperar que tu a esqueças? perguntou Yaa. Ela foi uma boa mãe para ti e para o teu irmão

Sinto falta dela... E dos meus amigos da aldeia de Rio Próximo, disse ele.

Eu também.

As palavras de Yaa quase não se ouviram. Em geral, não pensava na aldeia de Rio Próximo. Eram pensamentos muito tristes, que talvez abrissem a porta a maldições.

Ela não matou a minha avó, declarou Chora-Alto. Yaa não sabia o que dizer, por isso pegou um pau que estava no chão e fez um desenho na lama.

Na noite em que a minha mãe partiu, levei-lhe a minha irmã e fiquei observando-a até ela desaparecer na escuridão. Fui com ela até a tundra. Ela não fez nada à minha avó. Nem se aproximou da cabana dela.

Yaa franziu a testa.

Talvez tenha voltado. Mais tarde.

Porque o faria? Ela foi-se embora. Se voltasse, alguém poderia vê-la. Além disso, ela gostava da minha avó.

Falaste nisso ao teu pai?

Ele não me daria ouvidos.

Yaa fazia círculos na lama. Por fim, Chora-Alto inclinou-se e deu-lhe uma pequena pedra.

Encontrei isto. Podes ficar com ela disse ele Era branca, translúcida, como um pedaço de lua que tivesse caído à Terra. Yaa levantou a cabeça para lhe agradecer, mas ele já ia afastando-se. Yaa guardou a pedra na mão e sentiu-se corar. Quando um rapaz oferecia alguma coisa a uma menina, qual era o significado desse gesto? Yaa desejou que a sua amiga Bom Punho estivesse ali. Seria um bom segredo para partilhar com ela, aquele presente. Yaa levantou-se e guardou a pedra na bolsa de amuletos que trazia no pescoço. De repente, deixou de sentir cansaço. Correu para a tenda de Homem Noturno, pegou os buris e levou-os a Estrela.

Estrela ralhou com ela por demorar tanto, mas Yaa não se importou. Cantarolou em surdina, pensando em Chora-Alto. Acabou de raspar as pontas de uma pele, dobrou-a com a parte da carne para dentro, enrolou-a e tirou outra da pilha de Estrela. Estendeu a pele sobre a sua tora, mergulhou a mão na água e esfregou as pontas. Enquanto trabalhava, pensou em Folha Vermelha.

Chora-Alto era muito parecido com ela, grande e forte. Folha Vermelha era a mais rápida tratando das peles na aldeia, mas apesar de Yaa ter boas recordações sobre a mulher, não tinha pena dela. Duas pessoas boas tinham perdido a vida devido ao egoísmo de Folha Vermelha.

E talvez Mulher Diurna. Embora Chora-Alto tivesse dito...

Então Yaa susteve a respiração e estremeceu apesar de não ter frio. Se não fora Folha Vermelha que matara Mulher Diurna, quem fora?

 

Os homens de Primo passaram o dia inteiro no rio, observando. Mandaram embora as mulheres e os rapazes, e não lhes disseram o que encontraram. Tinham discutido por causa do primeiro caribu. Fora a gente de Rio Próximo que matara. Deviam entregá-lo às mulheres para cortar? Isso não quebraria algum tabu?

Eles levaram a nossa carne, assaltaram as nossas reservas, afirmou Homem Noturno, furioso, olhando para Sok. Porque hesitar em levar a carne deles? Como os outros homens concordaram, Chakliux pôs de lado o seu desagrado e ajudou a levar o animal às mulheres, mas isso fora antes de encontrarem no rio o corpo de um homem de Rio Próximo, um caçador que Sok e Chakliux conheciam e que se chamava Rato Almiscarado. Até ao fim desse dia, o rio levou-lhes sete caribus, dois caçadores e uma jovem, todos mortos.

Nessa noite, eles contaram às mulheres, e no dia seguinte, ainda antes do nascer do Sol, Chakliux, Sok, Espreita-o-Céu e Leva-Mais puseram os corpos em cima de um trenó e puxaram-no revezando até o rio, na direção do acampamento de Rio Próximo. Todos os homens iam armados, mas Chakliux não esperava que houvesse luta.

Quando se aproximaram do acampamento, foram quase ignorados. Quase todo mundo estava reunido em volta dos feridos ou dos mortos. Uma velha vigiava uma panela fervendo, mas Chakliux não viu mais comida. Ainda havia uma tenda de pé; as outras resumiam-se a um amontoado de peles e de postes partidos.

Raposa-Que-Ladra foi ao encontro deles. Tinha a parka manchada de sangue e o rosto e as mãos cheios de terra. Apontou com o cajado para o céu límpido a nascente e para o Sol e disse:

- Vocês vieram para ver a nossa desgraça. Olhem, até o Sol afasta as nuvens para nos observar.

- Viemos oferecer ajuda - disse Leva-Mais. - Temos comida, se precisarem, e trouxemos estes cadáveres.

Raposa-Que-Ladra passou por eles e levantou os cobertores que cobriam os corpos. Em seguida, gritou:

- Sem-Dentes, o teu filho está morto. Boca Negra, aqui está a tua mulher.

Os choros atravessaram o ar, e as mulheres de Rio Próximo juntaram-se em volta do trenó. Raposa-Que-Ladra começou a cantar algo que Chakliux ouvira do avô, Tsaani. Desgostoso, virou-se para o rio. A terra estava molhada e a lama das margens empapadas escorria para o rio.

- E também trouxeram os nossos caribus, aqueles que nós matamos? - gritou-lhe Raposa-Que-Ladra, num tom rude, interrompendo o cântico. - Vocês trouxeram os nossos mortos, mas não a nossa carne. Tencionam ficar com ela?

- Vão vocês buscá-la. Nós não a trazemos aqui - disse Sok.

Raposa-Que-Ladra fez um sorriso gozador.

- Pois então vocês resolveram ir viver com o povo Primo, ou com o que resta dele - disse ele a Sok e a Chakliux. Sorriu a Sok. - Não me surpreende que Chakliux tenha feito essa opção, mas tu podias ter feito melhor escolha. O mau cheiro deste acampamento não te incomoda?

Sok virou as costas ao homem, como se não tivesse ouvido as suas provocações.

- E Folha Vermelha, a tua mulher? Deixaste-a viver ou mataste-a? E a criança era um menino ou uma menina? Ou não sabes?

Sok virou-se, levantou o braço e esbofeteou Raposa-Que-Ladra. Este pegou o cajado, mas Sok agarrou-o e partiu-o sobre o joelho. Afastou-se e gritou a Chakliux:

- Entende-te com ele. Encontramo-nos no acampamento.

- Vão com Sok - ordenou Chakliux em voz baixa a Espreita-o-Céu e a Leva-Mais.

Leva-Mais fez um gesto obsceno a Raposa-Que-Ladra e depois correu para Sok, mas Espreita-o-Céu abanou a cabeça.

- Eu fico. Não podes ficar sozinho com esta gente.

- O teu irmão é um idiota. - observou Raposa-Que-Ladra, esfregando a face. - Mas tu não precisas que eu te diga tal coisa.

- Nós temos a tua carne - afirmou Chakliux. - Se precisares dela, manda algumas das tuas mulheres buscá-la. Não vás tu nem mandes os teus homens.

 

                   O POVO DE RIO PRÓXIMO

Passaram quatro dias chorando os mortos. A maior parte dos homens queria regressar à aldeia de Inverno e a partir daí sair em grupos de dois e de três para caçar os caribus e os alces que encontrassem. Anaay insistiu para que ficassem onde estavam, e a maioria ficou, mas Boca Negra pegou a mulher morta e partiu, embora Anaay o tivesse avisado de que os lobos farejavam os mortos e roubariam o cadáver antes que ele conseguisse chegar à aldeia.

Mais tarde, na privacidade da sua tenda, Dii viu o marido lançar uma maldição sobre Boca Negra, e estremeceu ao pensar no que aconteceria ao homem, sozinho com a mulher morta naquele longo caminho até a aldeia de Inverno.

Outros queriam ir. Dii via-lhes o desejo nos olhos. Várias famílias - aquelas que não tinham perdido ninguém ficaram dois dias chorando e depois também partiram. Anaay tinha razão quanto aos lobos, diziam muitos. Era preferível queimar os cadáveres depois do luto. Não era um hábito que os seus antepassados remotos tinham seguido? Depois os ossos poderiam ser limpos e levados para a aldeia de Inverno. Pelo menos, podiam fazer isso.

Dii foi uma das mulheres escolhidas para ficarem acordadas na noite da cremação, para proteger as ossadas e as cinzas dos lobos e dos corvos, dos espíritos que sentiriam a fumaça e julgariam que havia um presente para eles nas fogueiras. Estremeceu ao pensar nessa noite, e protegeu-se com amuletos e todos os cânticos e preces que sabia. Não comera nada na véspera - nem do peixe que os homens estavam apanhando no rio, nem das ptármigas que K'os apanhara nas armadilhas. Para quê condimentar o seu hálito com o sabor da carne? Não era preciso lembrar aos espíritos atraídos pelo cheiro da carne queimada que já não podiam comer.

Quem dera que o marido de Flor Azul, o xamã de Rio Próximo, não tivesse morrido na luta. Se eles tivessem um xamã, talvez fosse ele guardando aqueles cadáveres cremados, e ela poderia ficar a salvo no acampamento.

Anaay acendera o fogo quando ainda havia luz, mas à noite, reunira-se com os caçadores no local mais distante do acampamento, bem para lá do estábulo. Anaay mandou-a embora com um aceno de cabeça brusco e disse apenas "Vai", como se se arriscasse pelo simples fato de lhe dirigir a palavra. Foram escolhidas seis mulheres. Eram de Rio Primo exceto uma, e essa realidade queimava o peito de Dii.

- Agora somos esposas, não escravas - comentou Pássaro Verde quando os maridos lhes disseram que partissem. As esposas têm o mesmo valor, quer sejam de Rio Primo ou de Rio Próximo.

Mas as outras mulheres riram dela. Cabelo Claro, a única mulher de Rio Próximo, foi a que mais riu.

- Mesmo que dês ao teu marido duas mãos-cheias de filhos, todos rapazes robustos, nunca terás o valor de uma esposa de Rio Próximo - declarou ela.

Depois, embora ela também tivesse sido condenada a ficar de guarda à cremação, esticou a cabeça e olhou para elas com altivez.

Havia duas mulheres que levavam bebês debaixo das Parkas, mas os filhos pertenciam aos seus maridos de Primo. As outras três, incluindo Dii, não tinham filhos, e Dii tivera a sua lua de sangue durante a viagem para o rio Caribu, portanto sabia que não concebera durante as noites em que ouvira o cantar dos caribus.

Caminhavam na escuridão, tropeçando nos tufos de erva e no solo irregular. Os homens tinham lhes dado tochas, mas avisaram-nas de que não as acendessem senão quando se aproximassem da fogueira. A luz em demasia poderia permitir que os espíritos voltassem ao acampamento.

Dii puxou o capuz da parka bem para a cara, manteve a boca fechada, apertou o nariz e só abria as narinas quando tinha que respirar. Para quê permitir aos espíritos da noite que entrassem no seu corpo?

Uma das outras mulheres, Caça-Mochos, aproximou-se dela e perguntou:

- Onde está K'os? Porque Anaay não a mandou em teu lugar?

Dii fizera a si própria a mesma pergunta e ficara ofendida com a escolha do marido, mas limitou-se a responder:

- Quem pode confiar em K'os? Gostarias que ela estivesse aqui conosco?

Caça-Mochos não respondeu, e Dii percebeu que dera a resposta certa a uma pergunta astuta. Já junto da fogueira, apesar de se sentir nauseada com o ruído e o cheiro dos cadáveres queimando, Dii sentira uma volta nas entranhas ao lembrar-se da gordura e da carne. De súbito, foi obrigada a afastar-se da fogueira e da luz das chamas, tropeçando na escuridão, para vomitar.

Voltou para junto das outras e estremeceu ao ver como o fogo alterara os seus rostos; as sobrancelhas, os narizes e as faces projetavam sombras que distorciam os olhos e as bocas, como se a passagem pela escuridão correspondesse a uma incursão noutro mundo qualquer.

Dii desviou o olhar e em seguida aproximou-se do monte de gravetos que os homens tinham empilhado a uma certa distância da fogueira. Trouxe alguns ramos e começou a atirá-los para as chamas. Então, uma por uma, as outras fizeram o mesmo, até que finalmente Cabelo Claro exclamou que deviam ir duas a duas, uma das quais com uma tocha acesa, para afastar os espíritos e os animais. Dii estremeceu de novo, pensando como fora imprudente ao ir sozinha para a escuridão, ofuscada pela luz da fogueira.

Depois de todas as mulheres terem trazido lenha, sentaram-se em silêncio. Dii, Cabelo Claro e Caça-Mochos eram as que estavam mais longe da fogueira. As outras três mulheres - Orelha Cortada, a sua prima Pássaro Verde e Folha-de-Salgueiro - aninharam-se do lado do acampamento.

Nesse dia, Dii ouvira Anaay explicar aos homens como deveriam fazer a fogueira. Cada cadáver deveria ser colocado numa camada de ramos, uns por cima dos outros. Mas Chama-o-Sol, um homem que em geral concordava com o que Anaay dizia, lembrara-lhes, gaguejando, que os corpos eram muitos para isso. O fogo consumiria os ramos do fundo e as camadas superiores cairiam.

- Vocês não sabem quantos morreram? - perguntara-lhes ele, e depois deu a sua própria resposta. - Duas mãos-cheias ao todo, sem contar Dois Punhos, que o marido levou.

- E as mulheres? Podem ser cremadas com os homens?

Dii não sabia ao certo o que fora decidido, mas a fogueira parecia suficientemente grande para comportar três corpos estendidos lado a lado, e ela sentiu-se um pouco reconfortada ao saber que Anaay não era o único a tomar decisões no acampamento.

Se ela e as outras mulheres alimentassem a fogueira durante toda a noite, no dia seguinte talvez pudessem retirar as ossadas e regressar ao acampamento de Inverno. Embora estivessem acampados em terrenos do povo Primo, parecia que estes já não lhes pertenciam. Nesse rio, o povo dela sempre conhecera mais alegrias do que tristezas. Agora Dii só se lembrava do terror, do cheiro desagradável dos corpos queimados, da tristeza e dos cânticos fúnebres.

Uma das mulheres do outro lado da fogueira começou a falar, e a sua voz sobrepôs-se ao crepitar do fogo. Esta era diferente, como se não pertencesse a nenhuma delas, mas as palavras eram familiares, e a mulher parecia verbalizar os Próprios pensamentos de Dii.

- Podíamos ir para o acampamento de Primo. Podíamos chegar lá antes que os homens de Rio Próximo soubessem que tínhamos partido.

As palavras elevaram-se no ar com as chamas, transformaram-se em fumaça, e Dii teve a sensação de que as recolhera no seu peito. Ali ficaram tremeluzindo, como o sol ou a água, atravessando a escuridão.

Regressar ao seu próprio povo. Regressar à sua aldeia de Inverno.

A mãe, o pai e os irmãos não estariam lá, mas Espreita-O-Céu, fora um dos que levara os mortos a Anaay. Talvez ele a aceitasse como segunda esposa. Também poderia ser esposa do velho Leva-Mais, embora a primeira esposa deste fosse uma mulher de língua afiada e modos bruscos.

Pelo canto do olho, Dii observou Cabelo Claro. O rosto da mulher de Rio Próximo era duro à luz da fogueira e a boca arreganhava-se numa careta. Mas foi a primeira a responder.

- Se eu estivesse no teu lugar, iria - disse ela. - Isto não presta, este acampamento de caça, e o Inverno será longo.

As suas palavras não foram surpresa. Se alguma das esposas de Rio Primo partisse, haveria mais comida para os que ficavam. O que tinham eles levado, cinco ou seis caribus? Isso mal dava para alimentar o acampamento de caça durante a viagem de regresso à aldeia de Inverno. Eles não levariam nada para as despensas exceto as peles, e o que eram seis peles de caribu para tanta gente?

- Como é que saberemos o caminho? - perguntou uma das mulheres.

- Eles estão acampados neste rio - disse Caça-Mochos. - Basta-nos segui-lo até avistarmos as tendas.

- E se eles não nos quiserem? - perguntou Orelha Cortada.

- Isso é um disparate. Nós somos filhas deles. Irmãs deles. Serias capaz de as expulsar se elas tivessem sido levadas à força?

- E se eles já tiverem partido para a aldeia de Inverno?

- Nós sabemos o caminho para a aldeia de Rio Primo. Não é difícil.

- Eu vou - afirmou Orelha Cortada.

- Eu também - assentiu Pássaro Verde.

O coração de Dii saltou de esperança. Mas como podia ela deixar Anaay?

- E os nossos maridos? - perguntou ela.

- Os abandonamos - respondeu Caça-Mochos. - Se eles nos mandaram vigiar estes ossos queimando é porque não se importam muito conosco.

- Furador está aqui com o marido, e está ferida. Não posso abandoná-la.

- Faz o que quiseres - disse Caça-Mochos.

Enfiou a tocha na fogueira para renovar a chama e depois, na companhia de Pássaro Verde, Orelha Cortada e Folha-de-Salgueiro, afastou-se da pira funerária.

Dii seguiu-as com o olhar até a tocha de Caça-Mochos ser apenas uma estrela minúscula na escuridão. Quando voltou a sentar-se, sentiu um vazio no peito, como se uma parte dela tivesse partido com as outras e ela transportasse apenas a sua própria alma.

 

                     ACAMPAMENTO DE RIO PRIMO

Chakliux viu as mulheres saindo do mato do lado leste do acampamento. Passava pouco do meio-dia, e a princípio nem reparou no aspecto delas. Eram Orelha Cortada, Folha-de-Salgueiro e Pássaro Verde. Ele crescera com elas.

Depois Chakliux percebeu que as três pertenciam ao grupo de mulheres e de meninas que K'os levara para o acampamento de Rio Próximo. Atrás das três mulheres mais novas vinha Caça-Mochos, uma das que fora levada como escrava durante o ataque de retaliação.

Outras pessoas que se encontravam no acampamento levantaram a cabeça, continuaram trabalhando, mas depois soltaram exclamações de alegria. Largaram as panelas e os estrados de seca, correram para as quatro mulheres, abriram os braços e saudaram-nas.

Contudo, Chakliux e Sok foram buscar as armas e mantiveram-se a postos. Aquelas quatro eram escravas ou talvez esposas de Rio Próximo. A quem seriam leais?

Espreita-o-Céu saiu do acampamento e levou um cão, mas Chakliux não abrandou a sua vigilância nem sequer quando Espreita-o-Céu regressou e confirmou que as mulheres não tinham sido seguidas.

Os homens de Primo reuniram-se na tenda de Chakliux, discutindo o que fazer. Se a história das mulheres fosse verdadeira, e parecia ser, elas tinham fugido de noite. Se os maridos resolvessem vir buscá-las, não tardariam a chegar, a menos que planejassem um ataque. Então, talvez esperassem um ou dois dias, para preparar as armas e fazer as suas orações.

Fosse como fosse, era preferível partirem o quanto antes. A carne estava quase toda cortada. As noites eram cada vez mais frias e o solo mantinha-se gelado até muito depois do meio-dia, por isso não seria difícil caminhar pela tundra, mesmo com os fardos pesados e os trenós.

Chamaram Caule Torto e disseram às mulheres que se preparassem para partir. Os homens aprontaram as armas e ficaram à espreita.

Caule Torto levou a mensagem dos homens às esposas, e apesar de Aqamdax ter ficado satisfeita por regressarem à aldeia de Inverno dali a pouco tempo, percebeu que as outras mulheres resmungavam, descontentes. Não se preparavam para abandonar os maridos. Não tinham esperança de virem a ser esposas de um homem tão bom como Chakliux. Queriam mais dois ou três dias para terminar o que estavam fazendo antes de preparar a bagagem.

Muita coisa já estava feita. Toda a carne dos órgãos que não se comiam - fora fervida e cortada, enfiada em tiras de intestino com frutos secos trazidas da aldeia de Inverno e depois seladas com gordura derretida. Os buchos também estavam prontos. Muitos tinham sido assados inteiros, e Aqamdax ainda se lembrava do sabor agridoce de cada fatia, com o molho escorrendo-lhe pelos dedos e pelos braços enquanto ela comia. Outros haviam sido raspados e usados como recipientes de armazenagem. As bexigas tinham sido esvaziadas, sopradas e usadas para transportar água.

As mulheres guardaram todas as traquéias, rasparam-nas por dentro e por fora, lavaram-nas e encheram-nas de erva murcha. Se congelassem até ficarem secas, tornavam-se brancas e macias, boas para enfeitar parkas e botas. Aqamdax aproveitava as tripas e as traquéias para fazer chigdax impermeáveis, uma espécie de parkas usadas pelos Primeiros Homens. Embora as outras mulheres gozassem dela, seria a vez de Aqamdax rir quando as parkas de pele das outras deixavam entrar a chuva e a dela ficasse seca. Fizera um chigdax para Ghaden e outro para Homem Noturno, embora este não o usasse.

Todas as peles tinham sido tiradas das carcaças dos caribus, e os tendões que acompanhavam os ossos encontravam-se já secando. O que espantava Aqamdax era a rapidez com que as mulheres de Primo faziam aquilo, trabalhando em conjunto nas carcaças grandes e pesadas.

Nos primeiros dias depois da caçada, as mulheres tinham fervido as cabeças. O que havia de melhor do que a carne macia das bochechas e o sabor adocicado da gordura em volta dos olhos? Agora descarnavam as peles e, com o tempo frio, podiam dobrar e enrolar as que restavam e levá-las para o acampamento de Inverno sem receio de que elas apodrecessem. Algumas continuavam cortando carne, mas todos os ossos tinham sido fervidos para extrair o óleo e a medula.

Seria preferível terem mais um ou dois dias para terminar as peles, mas Aqamdax compreendia que Chakliux tivesse necessidade de se deslocar. Mais do que qualquer, outra mulher, ela estava satisfeita por Caça-Mochos e as outras terem conseguido regressar à sua aldeia. Ela sabia o que era ter saudades de casa. E se os maridos de Rio Próximo tentassem ir buscá-las?

Ao voltar ao acampamento, Caça-Mochos trocara um marido vivo por outro morto há uns meses durante a luta.

Agora sou viúva, embora ainda ontem fosse esposa, afirmou ela. Mas é muito melhor ter um marido-espírito que era de Rio Primo do que um homem vivo que é de Rio Próximo. Não esperem que eu chore por ele. Durante todas estas luas em que vivi com o povo de Rio Próximo cantei os meus cânticos fúnebres.

Ela e as outras mulheres, apesar de terem caminhado durante toda a noite, ajudavam a empacotar e a carregar. Aqamdax observava o entusiasmo delas, e as suas mãos pareciam trabalhar ainda mais depressa.

Desde que o filho nascera, só uma vez é que Homem Noturno a levara para a sua cama, e ela já tivera uma lua de sangue desde então. Durante a viagem, com certeza que ele ficaria com os outros homens, guardando o acampamento, e o próximo filho que cresceria debaixo do seu coração seria de Chakliux.

O casamento de ambos não seria isento de dificuldades. Homem Noturno ficaria zangado quando soubesse que ela o rejeitara. Mas, desde a morte do filho, quantas mulheres lhe tinham confessado em surdina a sua raiva ou a sua compaixão?

Enquanto trabalhavam, Caça-Mochos gracejava acerca do marido de Rio Próximo e todas riam. De súbito, o grito de Estrela sobrepôs-se à sua tagarelice:

- Não, não! Não é bom que essas escravas tenham voltado!

Aqamdax deixou as outras e foi falar com Estrela. Esta estava à porta da tenda de Chakliux, a discutindo com o pequeno Pau Preto.

- Tu não entendes nada! - gritava Pau Preto, tão indignado que até cuspia ao falar. - Pássaro Verde é nossa irmã. Julgávamos que ela tinha morrido. E se um dos teus irmãos mortos voltasse? Dizias-lhe que não o querias aqui?

- Queres outra luta com os guerreiros de Rio Próximo? - perguntou Estrela. - Só nos restam seis homens. Já te esqueceste disso?

As mulheres interromperam o trabalho e reuniram-se junto do abrigo de Chakliux.

- O povo de Rio Próximo está tentando reaver as mulheres? - perguntou Rato Pequeno.

Então Caule Torto levantou a voz e disse:

- De que serve discutirmos umas com as outras? Temos que nos preparar para partir amanhã de manhã. Temos carne para acondicionar, cães para alimentar e trenós para carregar. De que serve preocuparmo-nos com as pessoas de Rio Próximo? Isso aliviará o nosso trabalho?

Várias mulheres começaram a entoar canções fúnebres e juntaram-se umas às outras como se o povo de Rio Próximo já tivesse lançado o ataque.

- Isto é um disparate - disse-lhes Caule Torto, e afastou-se, irritada, resmungando que pelo menos ela estaria pronta para partir, que a tenda e a carne dela estariam empacotadas e que o cão dela estaria alimentado e pronto para Puxar um trenó de manhã.

Estrela agachou-se e várias outras agacharam-se a seu lado. Aqamdax sabia o que era ter medo, mas qual era a utilidade do medo? Dirigindo-se às mulheres, confrontou-as com um enigma.

Olhem! O que vejo eu? disse ela, e repetiu as palavras até captar a atenção das outras. Eles chegam, furiosos, e não têm dó das nossas lágrimas.

São os de Rio Próximo, os que chegam furiosos, afirmou Estrela, com uma voz de criança.

Não, retorquiu Aqamdax. Os nossos próprios homens é que ficam furiosos se não estivermos prontas para a viagem. Julgam que eles se compadecem das nossas lágrimas?

Quem és tu para nos dizeres isso? perguntou Rato Pequeno. Eras de Rio Próximo antes de vires para a nossa aldeia, e antes disso eras Caçadora Marinha. Parece que nenhuma aldeia te quer. Porque te daríamos ouvidos

Outras começaram também a insultá-la, e Aqamdax virou-lhes as costas. De que servia obrigá-las a abrir os olhos se elas não queriam ver?

Depois, admirada, ouviu Estrela dizer:

Aqamdax tem razão. Somos umas parvas. Estamos aqui gritando quando poderíamos fazer alguma coisa para ajudarmos a nós mesmas.

Obrigou Rato Pequeno a levantar-se. Pouco depois, estavam todas ocupadas separando a carne e desmontando os estrados de seca. E Aqamdax esperava que o trabalho afastasse o medo dos seus corações.

 

                   ACAMPAMENTO DE RIO PRÓXIMO

Anaay apertou as mãos e cerrou os dentes. Queria dar um murro em Chama-o-Sol. Embora este repetisse o que Anaay lhe ordenara, que era um disparate lutar tão pouco tempo depois de uma caçada desastrosa, o seu gaguejar arrastava-se e distorcia as palavras, ao ponto de até um ouvinte atento perder a paciência.

Era preferível interrompê-lo antes que qualquer outro caçador o fizesse, pensou Anaay, mas antes de se levantar, Muitas Palavras pôs-se de pé. Fez um gesto violento com a mão, como que para interromper a fala entrecortada de Chama-o-Sol.

Caça-Mochos, uma mulher de Primo, fora a segunda esposa de Muitas Palavras. Era uma mulher lenta e desprovida de inteligência, e Anaay julgara que Muitas Palavras ficaria satisfeito por ela se ter ido embora. Havia poucos homens na aldeia de Rio Próximo. Porque não livrar-se de Caça-Mochos e escolher uma das meninas?

Mas naquele momento, ao ouvir Muitas Palavras falar, Anaay percebeu que o homem queria ir atrás de Caça-Mochos e trazê-la de volta à força, se necessário fosse, ainda que tivesse de enfrentar irmãos ou primos dispostos a lutar.

É me-me-melhor ir com pre-pre-presentes e boas papa-palavras disse Chama-o-Sol.

Anaay aproveitou a interrupção de Chama-o-Sol para lembrar aos homens como as mulheres de Rio Primo eram incompetentes. Passavam o tempo chorando pelos maridos, pais e filhos mortos. Faziam mal as botas, cujos atilhos abriam feridas nos pés de um homem, e os seus cobertores de pele de lebre não eram suficientemente grossos.

Para quê preocuparmo-nos com essas mulheres que nos deixaram? disse Anaay. São só quatro e não valem muito.

Os quatro maridos levantaram as vozes em sinal de protesto, mas Anaay gritou:

Vocês deviam era tê-las feito vossas escravas, e então elas seriam vossas e vocês poderiam ir atrás delas. Como esposas, elas têm o direito de vos abandonar.

Deixaram de se ouvir imprecações. Como é que os homens podiam negar o que dissera Anaay? As mulheres eram esposas. Tinham os seus direitos.

Elas não merecem que lutem por elas, afirmou Terceira Árvore.

Anaay levantou a voz para concordar e depois acrescentou:

Neste momento, temos uma alternativa. Ou vamos atrás delas, lutamos e talvez morramos, ou regressamos à aldeia de Inverno, dividimo-nos em grupos e vamos caçar a carne de que precisamos para o Inverno.

Eu prefiro ir ca-caçar disse Chama-o-Sol. Mas Muitas Palavras exclamou:

Julgas que não conseguimos vencer? Eles não têm mais de seis ou oito homens.

Eles agora têm Chakliux e Sok, lembrou Primeira Águia.

Muitas Palavras respondeu:

E quem são eles? Dois desgraçados, que foram viver com os seus inimigos. Devíamos ter dado cabo deles quando estavam no nosso acampamento.

Mas tiveram a bondade de nos devolver os nossos mortos.

Se lutarmos com os de Primo, poderemos ficar com os caribus e as mulheres deles, insistiu Muitas Palavras.

Queres morrer por causa disso? perguntou Primeira Águia.

Não tenciono morrer.

Alguns mo-morrerão. Isso é gue-guerra disse Chama-o-Sol em voz baixa.

Continuaram a discutir. As palavras deles fustigavam os ouvidos de Anaay, mas este só falou quando ouviu os primeiros murmúrios dos jovens que estavam sentados junto dele, atribuindo os seus problemas a Anaay e à sua visão dos caribus. Então Anaay levantou-se e apontou para os que lamuriavam, dizendo:

Tu, tu e tu, Muitas Palavras, vão lutar. Façam bem os vossos planos, porque a gente de Primo não é parva. Mas lembrem-se que, para eles, as mulheres são filhas e irmãs. Para nós, são apenas esposas. Vão, todos, e lutem, mas lembrem-se daqueles que mataram na última batalha, e depois decidam quais de vós estão dispostos a morrer por este novo disparate.

E enquanto vocês lutam, Chama-o-Sol e eu levaremos as nossas mulheres e os nossos cães e voltaremos para a aldeia de Inverno.

Chama-o-Sol levantou-se e declarou numa voz surpreendentemente clara:

Não é tempo de lutar. É tempo de caçar.

Em seguida, ele e Anaay voltaram para o que restava das suas tendas e os outros homens também saíram, um por um.

 

Podias ter ido com aquelas quatro mulheres, disse K’os a Dii. Porque ficaste?

Dii abanou a cabeça.

Eu sou esposa. Tinha que ficar com o meu marido.

Aquelas mulheres, todas, tinham maridos melhores do que o teu. Raposa-Que-Ladra é um velho, um inútil.

Dii abriu a boca para defender Anaay, mas K’os desatou a rir.

Ele leva-te para a cama quase todas as noites, mas a tua barriga não incha com um filho. Ele levou-nos para o rio Caribu, e embora nunca tivesse caçado num rio, não deu ouvidos àquelas de nós que sabem como isso se faz.

K’os virou a cabeça para o local em que os homens tinham se reunido, em que haviam passado a maior parte da manhã discutindo.

O meu segundo marido... tu o conheceste... conduziu assim os nossos homens? Teria permitido tal discussão!

Dii lembrou-se dos tempos em que Bate-no-Chão fora o chefe dos caçadores do povo de Rio Primo. Parecia estranho que K’os tivesse sido casada com o homem mais importante da aldeia, que tivesse sido mãe do dzuuggi Chakliux. Mas, Apesar de Dii ser pouco mais do que uma criança, ouvira cochichar acerca de K’os. Diziam que ela utilizava mal os seus poderes de curandeira, que recebera muitos homens na sua cama. Como é que Bate-no-Chão podia ter sido um chefe melhor do que Anaay se suportara uma mulher assim? Mas para quê dizer uma coisa dessas a K’os se as recordações desses tempos eram talvez a única alegria da vida dela?

K’os encolheu os ombros e alisou o cabelo com as mãos.

Todas as mulheres vêem alguma coisa de especial nos maridos. Já que resolveste ficar com Raposa-Que-Ladra, é melhor pensares que ele é bom homem. Ouve, anda comigo. Há coisas que deves saber acerca do teu marido, coisas que eu não contei a ninguém, mas que te direi agora.

K’os levou-a para o mato à beira do rio, onde a ramagem densa abafaria as palavras de ambas para os outros não ouvirem. Umedeceu os lábios, acocorou-se, e, pela primeira vez, Dii viu nela um certo nervosismo.

Uma vez, há muito tempo, quando eu ainda era pequena e não era esposa de ninguém, Raposa-Que-Ladra e dois caçadores de Rio Próximo vieram à nossa aldeia. O meu pai, por delicadeza, levou-os à nossa cabana, deu-lhes de comer e ofereceu-lhes um lugar para passarem a noite. No dia seguinte, os homens regressaram à sua aldeia de Inverno. A minha mãe pediu-me para ir ao Lago do Avô apanhar raízes de abeto. Esses homens seguiram-me...

K’os fez uma pausa e Dii levantou a cabeça, olhou para ela e viu um desvario tal que não queria ouvir mais nada.

Estava eu apanhando as raízes e dando graças aos abetos quando dois desses homens me atacaram. Raposa-que-Ladra não estava junto deles. Eles obrigaram-me... obrigaram-me...

K’os não conseguiu falar e tapou os olhos com uma das mãos. Foi num tom calmo que prosseguiu.

Mas Raposa-Que-Ladra veio depois e matou um deles.

O outro... Não sei o que ele lhe fez, mas o homem fugiu. Então, Raposa-Que-Ladra ajudou-me a voltar para a cabana da minha mãe.

Toda a gente julga que eu o desrespeito quando não o trato pelo seu novo nome, mas agora percebes que eu lhe chamo Raposa-Que-Ladra para honrar essa recordação do que ele me fez há tanto tempo.

K’os levantou o queixo, e Dii reparou que os olhos dela estavam secos e tinham uma expressão dura. Aquele soluço que obrigara K’os a calar-se fora imaginação dela?

Mas encontrei um bom marido e esqueci Raposa-QueLadra até ele me comprar de Boca Negra. Depois, percebi que ele também se lembrava. Ele viu que eu não era feliz como escrava, e comecei a ter esperanças de que ele me aceitasse como terceira esposa, mas ele é o chefe desta aldeia e não tem tempo para muitas esposas. Além disso, quantos filhos lhe posso dar? Estou ficando velha. Ainda bem que ele te tem.

Mas não gosto de viver com Bico-de-Gaivota. As palavras dela são afiadas como o seu nome. Agora que vejo que os homens não foram atrás das nossas mulheres, resolvi que voltarei também para o Povo Primo. Sobretudo desde que sei que o meu filho Chakliux resolveu viver entre eles.

Mas não quero sair deste acampamento sem fazer alguma coisa por Raposa-Que-Ladra e por ti.

K’os pegou o saco de pele de lontra que trazia pendurado à cintura e retirou um embrulho atado com fita vermelha

Podes fazer um chá disto para fortalecer o sêmen de Raposa-Que-Ladra. Ele está velho, e às vezes os velhos não fazem bebês tão depressa como faziam quando eram novos. Daqui a pouco tempo, ficarás grávida de um filho do teu marido.

Como devo proceder? perguntou Dii, pegando o pacote.

Uma vez por dia... só uma pitada que caiba na ponta de um dedo. Misturas o pó com água a ferver e esperas que arrefeça.

Devo tomá-lo de manhã ou à tarde? O que é melhor?

Não, apressou-se a dizer K’os. Tu não o tomas. O chá é para Raposa-Que-Ladra. À noite, antes dele adormecer, é melhor, mas pode ser a qualquer hora, uma vez por dia. É melhor não lhe dizeres para o que é. Às vezes, os velhos são patetas quando se trata de coisas como esta.

Obrigada, agradeceu Dii em voz baixa. Pegou a mão de K’os, mas esta levantou-se e recuou, sorrindo.

Partirei esta noite, por isso tenho muito que fazer

Tem cuidado, disse Dii.

Eu tenho sempre cuidado, respondeu K’os.

K’os partiu depois do anoitecer, afastando-se das fogueiras do acampamento e ignorando a bênção murmurada de Dii. Era bom afastar-se da mulher e do estúpido do marido. K’os manteve-se colada ao chão, e quando chegou ao local em que os homens guardavam os cães, falou em voz baixa e passou a mão por cada trela até encontrar aquela em que dera um nó nesse dia, quando fora levar a comida aos cães.

O animal pertencia a Chama-o-Sol e era um dos cães de olhos dourados que ela e Bate-no-Chão tinham trazido para a aldeia de Inverno de Rio Próximo. Como todos os cães de olhos dourados, era um belo cão, largo de peito e com um pêlo grosso e de bom temperamento. Embora ela e Bate-no-Chão tivessem oferecido cães de olhos dourados às pessoas de Rio Próximo, restavam muito poucos na aldeia.

Aqueles homens de Rio Próximo pouco percebiam de reprodução. Os cães de olhos dourados só se cruzavam com outros da mesma raça ou, às vezes, com um cão cuja mãe ou cujo pai tivesse olhos dourados. As pessoas de Rio Próximo não isolavam as fêmeas quando elas estavam com o cio, e perguntavam aos irmãos e aos primos quais os machos que deviam ser usados no acasalamento. Se eles não sabiam apreciar o presente que ela lhes dera, porque não havia ela de levá-lo?

K’os cortou a corda que prendia o cão e obrigou-o a segui-la desde a aldeia. A sua recepção no acampamento de Rio Primo seria diversificada, tinha a certeza. As mulheres ficariam preocupadas por causa dos maridos, mas aceitariam bem as mezinhas dela, e com certeza que os homens ficariam satisfeitos ao ver voltar um cão de olhos dourados.

Quando K'os já estava suficientemente longe do acampamento, parou, tirou um dos fardos que trazia às costas, atou-o ao dorso do cão e deu-lhe um pedaço de carne de caribu seca. Não gostava de andar de noite, mas qual era a alternativa?

Olhou para trás por cima do ombro, para a luz difusa das fogueiras de Rio Próximo. Por mais estúpidos que eles fossem, custava-lhe deixá-los. Queria ver em Raposa-Que-Ladra os efeitos destruidores da parka que ela amaldiçoara. Mas talvez já tivesse visto o suficiente. O que seria pior do que aquela caça ao caribu? Além disso, o azar estende-se àqueles que se aproximam demais. Pelo menos com as folhas de erva-de-são-cristóvão em pó que ela dera a Dii, a sua vingança sobre Raposa-Que-Ladra seria total. Era uma pena que ela já não estivesse lá para assistir, mas todas as noites, quando se encontrasse na cama, a imaginaria. Isso já não era mau.

Chegara o momento de estar com Chakliux. A mulher e o filho que ela lhe tirara eram apenas o princípio. O faria sofrer ainda mais do que Raposa-Que-Ladra.

 

                   ACAMPAMENTO DE RIO PRIMO

Em grupos de dois ou de três, as mulheres afastaram-se ao amanhecer, duas mãos-cheias delas, além dos filhos e das filhas, porque nenhuma deixara a prole atrás quando os maridos de Rio Próximo lhes disseram que tinham que ir na caçada. Qual delas confiaria um filho às mulheres de Rio Próximo?

Quando já estavam mais oito mulheres no acampamento, Chakliux convocou os homens. Resolveram que seria um disparate abandonar o acampamento naquele momento. Se todas aquelas mulheres tinham ido ao encontro deles, os maridos de Rio Próximo viriam atrás. Era melhor prepararem-se para o ataque. Era melhor estarem prontos para lutar no local em que se encontravam do que serem apanhados no caminho de regresso à aldeia de Inverno.

Afastaram o acampamento da vegetação da margem e Chakliux disse aos rapazes que cortassem os salgueiros e os amieiros que podiam servir para fazer uma vedação e ser utilizados para proteger um homem que atirasse uma lança ou uma flecha. As mulheres desembrulharam as bexigas, as membranas que revestiam o coração e os buchos de caribu que tinham preparado como recipientes e encheram-nos de água, caso o ataque durasse muito tempo. Os ramos das árvores cortadas foram amontoados em volta do acampamento para servir de barreira às setas e às lanças. Caule Torto fora incumbida de manter a fogueira acesa de dia e de noite e de guardar sacos de comida prontos para quem tivesse fome e água quente para quem precisasse de remédios.

Depois, ficaram à espera.

A última mulher a chegar foi K’os, seguida por um cão de olhos dourados.

É uma armadilha! exclamou Espreita-o-Céu. Não confiem nela.

Mas K’os atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.

Julgas que desisti tão facilmente do meu ódio? Julgas que lutaria pelo povo de Rio Próximo depois do que eles nos fizeram? Eles mantiveram-me como escrava.

É verdade, disse Caça-Mochos. Ela era escrava daquele a quem chamas Raposa-Que-Ladra.

Porque trouxeste o cão? perguntou Espreita-o-Céu.

Estou velha. Esperavas que fosse eu a transportar o meu próprio fardo?

Espreita-o-Céu olhou para Chakliux.

Ela é tua mãe. Diz-nos o que fazer. Chakliux olhou para Sok.

Eu não a conheço, disse Sok. A decisão é tua.

Uma vez, ela deu-me um remédio para a cabeça recordou Folha-de-Salgueiro, esfregando uma mão no cabelo espesso. Ela pode ajudar-nos se algum de nós for ferido.

Chakliux apontou para Caule Torto e também para Chamariz, a esposa de Espreita-o-Céu.

Vocês as duas, fiquem de olho nela. Se ela vos der mezinhas, obriguem-na a prová-las primeiro.

Caule Torto começou a resmungar, mas Chakliux disse a K’os:

Por agora, podes ficar conosco.

Que estranho acampamento o vosso, comentou K’os, encaminhando o cão para o mato, entre os fardos e as tendas.

É um acampamento sagrado, construído para nos proteger respondeu Chakliux.

E tu submetes-te com tanta facilidade, disse-lhe K’os, olhando em seguida para o povo reunido. Nenhum de vocês se importou que Chakliux ficasse ao lado do povo de Rio Próximo na última luta? Nenhum de vocês o considera perigoso? Todos têm medo de mim, eu que fui escrava e fui tratada pelos de Rio Próximo pior do que eles tratam os cães.

Não tens motivos para te queixar. Para uma escrava não tiveste uma vida assim tão má, replicou Orelha Cortada, virando as costas a K’os.

Se não fosse eu, todos vocês estariam mortos, respondeu K’os. Teriam ficado na aldeia e combatido, e talvez tivessem morrido, queimados no interior das cabanas,

Poucos foram os que morreram, observou Sok. Mas isso foi porque o teu filho os avisou do ataque.

K’os virou-se para ele.

E tu, Sok, julgas que não sei quem és? Conheci o teu pai há muito tempo. Rezo para que não sejas como ele

Sok aproximou-se de K’os e levantou a mão como se fosse lhe bater, mas limitou-se a agarrar-lhe no capuz da parka, arrastou-a para a fogueira e deitou-a ao chão, aos pés de Caule Torto.

Se ela causar problemas, chama-me. Eu próprio a matarei, disse ele a Caule Torto.

Ordenaram a Chora-Alto, Ghaden e Pau Preto que se escondessem na vegetação à beira do rio, à espreita dos homens de Rio Próximo.

Ghaden foi o primeiro a vê-los chegar. Alguns transportavam fardos, mas quase todos traziam apenas armas. De repente, ficou com a boca tão seca que nem conseguiu gritar aos outros rapazes. Correu então para onde julgava que Chora-Alto estava à espera, mas ele não se encontrava ali.

O coração de Ghaden batia com tanta força que ele sentia o seu palpitar nos ouvidos, nos pulsos e nos joelhos. Teria de voltar para o acampamento sozinho.

Meteu-se no meio do mato quase sem fazer barulho. O suor escorria-lhe para os olhos, fazendo-os arder. Quando estava quase chegando ao acampamento, esgueirou-se para o perímetro das árvores, onde o mato dava lugar à tundra. Se corresse o mais que podia, conseguiria avisar os seus antes de os homens de Rio Próximo se aproximarem o suficiente para atirarem as suas lanças.

Respirou fundo duas vezes e depois entrou no descampado.

O sol estava forte nesse dia, e o solo amaciara. Por duas vezes, Ghaden calculou mal os seus passos e enterrou-se até aos joelhos no musgo vermelho da tundra que crescia, forte, por cima de pequenos riachos. Tropeçou num tufo de erva, conseguiu levantar-se e depois ouviu alguém atrás de si.

Seria Chora-Alto? Parou e olhou para trás. Não, era um dos homens de Rio Próximo. Ghaden corria tanto que a respiração lhe chocalhava na garganta. Sentiu uma dor num dos lados do corpo, mas não parou. Quando a vedação do acampamento já estava perto, Ghaden elevou a voz e gritou: Os de Rio Próximo! Os de Rio Próximo! Então uma mão agarrou-lhe o ombro e fê-lo parar tão depressa que Ghaden caiu. Aterrou sentado e desatou aos pontapés. O caçador inclinou-se sobre ele, agarrou-o pelos pés e manteve-o de cabeça para baixo. Ghaden olhou para cima e viu que quem o agarrava era Dança-no-Gelo.

De súbito, Ghaden perdeu uma parte do medo. Dança-no-Gelo era mais velho e maior, mas era mais um rapaz do que um homem. Quem podia esquecer que Yaa lhe esmurrara o nariz? Ghaden impeliu a perna direita, conseguiu livrar-se de Dança-no-Gelo e deu-lhe um pontapé na cara. O rapaz deu um berro, atirou Ghaden ao chão e sentou-se em cima dele. Puxou uma faca e encostou-a mesmo ao queixo de Ghaden.

Eu podia mudar-te o formato da boca, ameaçou ele. Ou talvez arrancar-te os olhos...

Então uma sombra abateu-se sobre eles. Era um caçador de Rio Próximo. Ghaden já o vira mas não se lembrava do nome.

O caçador tocou em Dança-no-Gelo com o dedo do pé.

Nós viemos buscar as nossas mulheres e não matar crianças. Deixa-o levantar-se.

Dança-no-Gelo esfregou o queixo.

Ele deu-me um pontapé.

O caçador agarrou Dança-no-Gelo por um braço e afastou-o de Ghaden. Este respirou fundo, levantou-se e recuou.

Chamo-me Primeira Águia, apresentou-se o outro homem. És Ghaden, não és?

Ghaden fez um sinal afirmativo.

Agora vives com o povo Primo?

Vivo.

Vi-te com a tua irmã durante a luta. Quando viemos à aldeia de Rio Primo. Lembras-te?

Ghaden não percebeu se o homem estava perguntando-lhe se se lembrava dele ou da luta, por isso não respondeu. Quem podia esquecer a luta? Mas como podia ele lembrar-se de um homem entre tantos? Havia muita fumaça e muito medo.

Vos daremos luta outra vez, declarou Ghaden. Vocês não mataram todos os nossos homens, e não nos matarão agora.

Ah, rapazinho, fazes-me lembrar o teu pai. Recordo-me do dedo que ele ofereceu aos espíritos em troca da tua vida.

O seu pai? Rosto-de-Verão, o velho que morrera? O pai cortara um dedo para que Ghaden pudesse continuar a viver? Quando Ghaden estava na cabana do xamã se recuperando da facada, o pai já tinha morrido. Ninguém lhe dissera como, e Ghaden não fizera muitas perguntas sobre a sua morte. O pai estava velho. Mas se o pai sacrificara um dedo da mão por ele, isso teria provocado a sua morte? Os homens enfraquecidos pela idade morriam de coisas como essas?

Ghaden sentiu os olhos marejados de lágrimas e, irritado, levantou um braço para as expulsar.

Não te assustes, disse Primeira Águia, e havia uma ternura na sua voz que surpreendeu Ghaden. Viemos buscar as nossas esposas. Mais nada.

Ghaden engoliu o medo e afastou as lágrimas.

Se elas não quiserem ir convosco, Sok e Chakliux não as obrigarão, declarou ele em voz baixa.

Um velho juntou-se a eles, e depois outros caçadores de Rio Próximo. Ghaden nunca os vira. O velho era Raposa-Que-Ladra. Era indolente e muitas vezes grosseiro, mas agora parecia dizer aos outros o que deviam fazer.

Começaram a conversar. Quase todos estavam irritados, mas Primeira Águia parecia apenas triste. Ninguém olhava para Ghaden. Este agachou-se e engatinhou entre as pernas deles.

Raposa-Que-Ladra agarrou-o pelo capuz da parka e obrigou-o a levantar-se.

Não saias daqui! ordenou Raposa-Que-Ladra. Julgas que agora és de Rio Primo? Já te esqueceste que vivias conosco?

Largou Ghaden e tocou-lhe com a ponta da lança nas costas. Ghaden deixou-se cair e agachou-se, até que os homens estivessem prontos a avançar para o acampamento. A maioria mostrara-se contrária à luta, mas outros gracejavam, falando em matar o resto do povo de Rio Primo, em livrar-se deles de uma vez por todas.

Quando começaram a andar, Raposa-Que-Ladra continuou a agarrar o capuz da parka de Ghaden. Este soltou o atilho, mas Raposa-Que-Ladra limitou-se a agarrá-lo ainda melhor até Ghaden quase sufocar. Contudo, ainda conseguiu dizer:

A minha irmã, Yaa, está aqui no acampamento de Primo.

Quem? perguntou Raposa-Que-Ladra.

Yaa, a minha irmã. Ghaden tentou virar a cabeça para ver se Raposa-Que-Ladra entendera, mas o homem tinha muita força. Ela não é de Primo. Não a matem.

Chakliux tinha pedido a três das mulheres Primo recém-chegadas que ficassem junto da vedação e gritassem se vissem um dos rapazes enviados como vigias. Uma decisão disparatada, pensou Chakliux, quando a primeira mulher gritou que avistara caçadores de Rio Próximo. As outras duas começaram a gritar, e uma caiu ao chão e soluçava tanto que todos os homens de Primo saíram correndo das suas tendas, de lança na mão.

Eles atacaram? perguntou Sok.

Chakliux soprou, aborrecido, e inclinou a cabeça apontando para as três mulheres.

Não, mas elas viram alguma coisa.

Talvez fosse um esquilo sugeriu Leva-Mais.

Não, disse Sok. Olhem, homens de Rio Próximo.

Os homens de Rio Próximo caminhavam ostensivamente, sem tentar esconder-se nem às armas. Quando se aproximaram, Raposa-Que-Ladra destacou-se do grupo e Chakliux viu que ele tinha Ghaden.

Ghaden, disse Sok, erguendo o queixo para o rapaz. E onde estão Chora-Alto e Pau Preto?

Não digas nada, recomendou Chakliux. As mulheres não precisam se preocupar com os filhos.

Em seguida, ouviu um sopro e viu a mãe de Pau Preto espiando de um local baixo na vedação. Chakliux ficou à espera de uma explosão de lágrimas e de choros, mas ela endireitou-se, empinou a cabeça, como se fosse uma guerreira, e aguardou, com uma mão na faca que trazia pendurada ao pescoço.

Os homens de Rio Próximo pararam a alguns passos da vedação e Raposa-Que-Ladra gritou:

Como vêem, tenho um dos vossos rapazes. Ele diz que é um guerreiro de Primo, embora diga que a irmã é de Rio Próximo.

Ghaden sentiu a gozação na voz do homem e tentou libertar-se dele, mas Raposa-Que-Ladra agarrou-lhe de tal maneira o capuz que Ghaden mal podia respirar.

Tens as nossas esposas?

Chakliux olhou para Sok e este disse:

Fala por nós. Espreita-o-Céu concordou com um aceno de cabeça, mas Homem Noturno evitou o seu olhar.

Aqui, todas as mulheres são irmãs ou mães, filhas ou primas, afirmou Chakliux. Nenhuma é esposa.

O caçador de Rio Próximo, Muitas Palavras, avançou e ergueu uma lança sobre a cabeça de Chakliux.

Mentes, Chakliux, disse ele. Julguei que os dzuuggi estavam proibidos de mentir. A minha esposa, Caça-Mochos, está aqui contigo.

Qualquer homem que chame mentiroso ao meu irmão é um louco, advertiu Sok.

Muitas Palavras continuou com os seus insultos, mas Chakliux interrompeu-o:

As mulheres estão neste acampamento por vontade própria. As mulheres de Rio Próximo já não têm autorização para abandonar os maridos?

Há uma que não é esposa mas escrava, disse Raposa-Que-Ladra. Talvez ela não te tenha dito isto.

Qual? perguntou Chakliux, apesar de saber a resposta.

K’os.

Ainda bem que só K’os que é escrava. Julguei que houvesse mais, disse Chakliux aos homens de Primo.

Como vês, encontrei um pequeno escravo, salientou Raposa-Que-Ladra.

Levantou Ghaden pelo capuz da parka. O rapaz começou a espernear e por fim deu um pontapé que obrigou Raposa-Que-Ladra a largá-lo. Depois, levantou-se a custo e correu para a vedação. Raposa-Que-Ladra fez recuar a sua lança e atirou-a, com a ponta para a frente. Esta atingiu Ghaden no meio das costas. O rapaz deu um grito e caiu ao chão.

Vários homens de Primo ergueram as suas vozes, furiosos, mas Raposa-Que-Ladra limitou-se a sorrir, e a cicatriz que lhe marcava a face arrepanhou-lhe a boca de um lado, obrigando-o a mostrar os dentes.

Então Chakliux ouviu um grito, e, antes que pudesse impedi-la, Estrela abriu caminho através da vedação. Aqamdax vinha atrás dela e ambas ajoelharam junto de Ghaden. Chakliux começou também a atravessar a vedação, mas Sok agarrou-o pelos ombros, gritou-lhe e conseguiu imobilizá-lo.

Eles não fazem mal a uma mulher, mas a ti... advertiu Sok.

Os homens de Rio Próximo teriam sobrevivido ao primeiro ataque se eu não lhes tivesse dito o que fazer? perguntou Chakliux. Todos aqueles homens me devem a vida. Bem sabes.

Eu sei, mas o ódio leva um homem a esquecer as suas dívidas. E a sua honra, insistiu Sok.

Sok apontou para Espreita-o-Céu, Homem Risonho, Leva-Mais e Homem Noturno. Todos estavam a postos, de lanças e tábuas de arremesso na mão.

Então Chakliux e Sok também ergueram as suas armas. Chakliux respirou fundo várias vezes para evitar a tremura das mãos quando colocou a ponta de uma lança no suporte de osso, pronto a atirar.

Aqamdax levantou a cabeça e olhou para Raposa-Que-Ladra. O homem era um covarde, cheio de medo e de ódio, furioso com todos aqueles que mostravam sabedoria ou coragem e desdenhando dos que considerava mais fracos do que ele. Aqamdax sentia o bater reconfortante do coração de Ghaden nas pontas dos seus dedos. A lança de Raposa-Que-Ladra tirara o fôlego do rapaz. Aqamdax rezou para que não lhe tivesse atingido a espinha. Baixou-se e viu as pálpebras de Ghaden a entreabrirem-se.

- Estás bem? - perguntou ela.

Estrela continuava a gritar desde que vira Ghaden cair, amaldiçoando Raposa-Que-Ladra e os homens de Rio Próximo. Mas Aqamdax conseguiu pegar-lhe uma das mãos e pousá-la num determinado local do pescoço de Ghaden, para ela lhe sentir a pulsação. A mulher esbugalhou os olhos e calou-se, embora as lágrimas ainda lhe corressem pela face.

- Ele não está morto. Nem sequer está ferido - declarou Raposa-Que-Ladra. - Mas não tentem levá-lo. Eu apanhei-o. Ele é meu escravo, e farei dele o que eu quiser.

- Escravizarias um rapaz da tua própria aldeia? - perguntou Aqamdax. Olhou bem para ele e depois, para o insultar, desviou rapidamente o olhar. - Este homem é o vosso chefe? - perguntou Aqamdax aos outros caçadores de Rio Próximo. - Eu estive com o vosso povo apenas durante algumas luas, mas ainda me lembro que ele ficava em casa muitas vezes enquanto os outros iam caçar. Lembro-me de que a cabana da sua segunda esposa estava desmoronando-se, e que ele não conseguia tirar os olhos nem as mãos das meninas. E é ele o vosso chefe? - concluiu ela, abanando a cabeça.

Raposa-Que-Ladra tirou uma lanceta curta da bainha que trazia às costas.

Aqamdax perguntou a si própria se ele se atreveria a matá-la. Quem era ela para falar assim aos caçadores? Porque dariam eles ouvidos a uma mulher, sobretudo a uma que nem sequer tinha sangue dos Rio a correr-lhe nas veias. Mas Aqamdax sabia que Raposa-Que-Ladra era um covarde. Ele não ignorava com certeza que as lanças dos homens de Rio Próximo estavam a postos. Ficou à espera da sua gozação dos seus insultos, mas quando ele falou, declarou apenas:

- Sou Anaay, aquele que canta aos caribus. Sou o chefe deste povo. A nossa aldeia é grande e forte. Derrotamos guerreiros de Primo. O que lhes és tu? Ouvimos dizer que eras apenas uma escrava aqui.

É verdade. Vim para cá como escrava, mas agora sou esposa, e como tal tenho direito a ficar. Esse rapaz não te pertence, nem como escravo nem por opção própria. Ele é de Primo.

Ele estava em Rio Próximo antes de ser de Primo, e isso é algo que não podes alterar.

Ele é meu irmão de sangue, através da minha mãe, que foi morta na tua aldeia. Se não pode ser de Primo porque antes era de Rio Próximo, então também não pode ser de Rio Próximo porque antes era Caçador Marinho.

Raposa-Que-Ladra franziu a testa e corou.

Ele não sabe nada dos Caçadores Marinhos. Como é que ele pode ser algo que nunca viu? Tu és estúpida...

Um dos outros homens de Rio Próximo interrompeu-o, falando tão baixo que Aqamdax só ouviu algumas palavras, mas Estrela segredou-lhe:

Ele está dizendo a Raposa-Que-Ladra que têm coisas mais importantes em que pensar do que em Ghaden.

Aqamdax fez um sinal afirmativo e inclinou-se para perguntar a Ghaden se conseguia mexer-se.

Eu não estou ferido respondeu o rapaz, e Aqamdax percebeu a impaciência na sua voz. Lamento ter sido apanhado.

Levantou-se com a ajuda das mãos e dos joelhos, arqueando as costas, e pôs-se de pé. Quando Raposa-Que-Ladra o viu, soltou um urro.

Voltemos para o nosso acampamento, disse Aqamdax.

Prova que ele é um Caçador Marinho, exigiu Raposa-Que-Ladra. Se for, deixo-o partir.

Aqamdax mordeu o lábio. Como podia provar tal coisa? Ghaden virou-se para Raposa-Que-Ladra e, empertigando-se, disse:

Tutxakuxtxin hi? Unangax uting.

Admirada, Aqamdax tapou a boca com a mão. Quem ensinara a Ghaden palavras dos Primeiros Homens? A mãe de ambos?

O que disse ele? perguntou Raposa-Que-Ladra.

Ele fala a língua do nosso povo, os Primeiros Homens, respondeu Aqamdax. Aqueles a quem chamas Caçadores Marinhos. Ele perguntou: “Ouves?” Depois disse-te que pertence aos Primeiros Homens.

Raposa-Que-Ladra ficou de boca aberta, e Aqamdax empurrou Ghaden à sua frente e atravessou a vedação. Não viu Estrela pegar a lança de Raposa-Que-Ladra, mas olhou para trás ao ouvir o homem gritar. Era uma bela lança, com um cabo de bétula enfeitado com penas escuras e rematado por um dente de morsa, e com uma pesada ponta de sílex. Ostentava as estrias pretas e brancas de uma arma de Rio Próximo, mas também tinha as marcas azuis e amarelas de Raposa-Que-Ladra.

Estrela levantou a cabeça e olhou Raposa-Que-Ladra de frente. Espetou a ponta de sílex no braço e sorriu ao amaldiçoar a lança com sangue de mulher.

 

Por fim, depois de argumentos e discussões, os homens de Rio Primo aceitaram que os de Rio Próximo falassem com as mulheres que tinham sido suas esposas. Encontraram-se do lado de fora da vedação, e Chakliux ou Sok ficaram ao lado de cada uma das mulheres, levando a mão às facas embainhadas que traziam penduradas à cintura sempre que qualquer homem tentava obrigar uma mulher a acompanhá-lo.

Três das mulheres resolveram voltar com os maridos. Nenhuma delas tinha parentes próximos ainda vivos no povo de Rio Primo, e uma estava grávida do marido de Rio Próximo. As outras quiseram ficar e, para surpresa de Chakliux, um dos homens de Rio Próximo, Primeira Águia, pediu autorização para se juntar à esposa, Furador, no acampamento de Primo.

Homem Noturno e Espreita-o-Céu discordaram, mas Sok disse que Primeira Águia era um bom caçador e elogiou-o pela sua coragem. Furador era a sua primeira esposa, sobrinha de Caule Torto. Não havia dúvidas de que era uma mulher forte. Conseguira ir a pé até o acampamento de Primo apesar de ter as costelas partidas.

Além disso, disse Sok, eles precisavam de mais um caçador na aldeia, de muitos mais caçadores. Chakliux, Homem Risonho e Leva-Mais concordaram com Sok, e Primeira Águia foi autorizado a ficar. Restava Raposa-Que-Ladra, que continuava a exigir que a escrava K’os lhe fosse devolvida.

Ela não é esposa, vociferou ele.

Quem podia negá-lo? E quem do povo de Rio Primo que desejava verdadeiramente o regresso de K’os?

Ela é tua mãe. Tens que ser tu a decidir disse Sok a Chakliux.

Eu falarei com ele, proferiu K’os. Não tenho medo. Lhe direi que pertenço ao meu filho, Chakliux.

Chakliux olhou para o belo rosto de K’os. Um homem que visse apenas aquele rosto e o corpo flexível de K’os julgaria que ela era jovem, mas quando olhasse os seus olhos perceberia que nela só havia maldade?

K’os tirou o capuz da parka e soltou o cabelo, apanhado atrás com uns ganchos. Este, de um negro reluzente, chegava-lhe à cintura, e brilhava como obsidiana. K’os olhou por cima do ombro para os homens que se encontravam à volta de Chakliux.

Talvez haja aqui alguém que queira ser meu marido, declarou ela.

Sok riu e Espreita-o-Céu abanou a cabeça, mas Leva-Mais semicerrou os olhos, parecendo considerar a oferta dela.

Há poucos de nós que queiram morrer como os teus maridos morreram, declarou Chakliux.

Leva-Mais abriu muito os olhos e Chakliux esperava que ele se lembrasse das histórias da morte lenta de Dá-Nomes, da doença que parecia consumir-lhe o ventre até ele começar a cuspir sangue. E quem queria arder como Bate-no-Chão na cabana de um estranho?

Então Leva-Mais afastou-se também, e a doçura no rosto de K’os deu lugar ao ódio.

Tu, Chakliux! rosnou ela. Não posso acreditar que te chamo filho! Qualquer outro homem teria tentado comprar a liberdade da sua mãe! Esqueceste que me deves a vida?

Essa dívida foi paga por Gguzaakk e pelo nosso filho lembrou-lhe Chakliux, com um misto de amargura e de tristeza.

Julgou ver uma chispa de medo nos olhos de K’os, mas foi tudo tão rápido que não teve a certeza. Ela recearia o espírito de Gguzaakk? Sentiria a presença de Gguzaakk como ele às vezes sentia? Ou teria medo que ele não a defendesse de Raposa-Que-Ladra e dos homens de Rio Próximo?

- Vamos embora - ordenou ele, agarrando uma lança com a mão esquerda. Apontou com o queixo para o cão que K'os trouxera e ordenou-lhe que o levasse.

Quando ela abriu a boca para protestar, Chakliux disse:

- Tens medo que eu proponha ficar com o cão e não contigo?

Então K'os calou-se e saiu do acampamento atrás dele. Atravessou a vedação, na direção dos homens de Rio Próximo.

Anaay ficou tenso ao ver Chakliux. A sua melhor lança estava no chão, manchada de sangue. Não era bom que um homem lutasse sem a sua arma mais forte. K'os foi atrás de Chakliux, com o cão de olhos dourados que roubara.

Anaay lembrou-se de um enigma e riu com a sua própria astúcia.

- Olhem! O que vejo? - exclamou ele. - Três cães. Franziu a testa ao ver que Chakliux não reagira ao insulto. Depois acrescentou: - Devolveste-a. Ou talvez queiras ser tu a comprá-la. - Riu demoradamente. O que ofereces? Ela vale um caribu em troca de uma noite na tua cama.

- Eu daria isso por ela - declarou Dança-no-Gelo. Anaay fez estalar os dedos, mostrando-lhe que se sentira insultado.

- É claro que, como seu filho, talvez não tenhas gostado dela dessa maneira - disse Anaay a Chakliux.

Mas enfiou a língua na bochecha, insinuando o contrário. Vários homens de Rio Próximo desataram a rir.

- Eu não a quero - proferiu Chakliux. K'os praguejou.

- Dois caribus pelo cão - propôs Chakliux.

- Não - respondeu Anaay.

Doninha Pequena deu um passo em frente. Era um homem alto e magro, com rosto de falcão, olhos pequenos e redondos e nariz adunco. Olhou para Anaay e aproximou-se de Chakliux, dizendo:

- O cão é do meu pai. Este ano, a nossa caçada não correu bem, Chakliux. Aceito três caribus por ele, com as peles.

As nossas mulheres já cortaram e desossaram os caribus. Dou-te a carne de três, os intestinos de um, recheado com gordura e frutos secos, e duas peles.

E duas bexigas, raspadas, para servirem de odres.

Aceito, disse Chakliux.

Afastou-se de K’os e atravessou a vedação. Depois voltou, na companhia de Sok e de Espreita-o-Céu, com a carne e as peles que prometera. Quando ele trouxe o último naco de carne, Anaay avançou, pegou o braço de K’os e começou a puxá-la.

K’os cuspiu para Chakliux e disse com uma voz sibilante:

Quem me dera ter te deixado no Rochedo do Avô. Devias estar morto.

Então Chakliux declarou:

Dou o mesmo por K’os que dei pelo cão. Anaay olhou para ele e depois para K’os. De súbito, nas pupilas dela, ele viu-se outra vez quando era novo, deitado entre as pernas dela, penetrando-a até o sangue jorrar. Largou-lhe o braço tão depressa que ela quase caiu.

Eu levo os caribus, disse ele.

Quando Chakliux regressou com K’os, os homens do acampamento nem olharam para ele. Até Sok desviou o, olhar, debitando insultos em surdina a mulheres como K’os.

Vai ajudar Aqamdax, ordenou Chakliux a K’os. Há muito que fazer.

Virou-lhe as costas e ficou olhando para a vedação e para os homens de Rio Próximo que levavam a carne que ele lhes dera.

Tens homens ou mulheres feridos? perguntou’ K’os, a seu lado.

Depois, susteve a respiração e apontou para o movimento nos amieiros junto do rio.

Chakliux piscou; depois, a boca abriu-se num sorriso quando Chora-Alto e Pau Preto saíram de um buraco na vedação. Chamou Neve-no-Cabelo e a mãe de Pau Preto. Elas receberam os rapazes com lágrimas.

- Hoje, vais ajudar as mulheres deste acampamento, disse Chakliux a K'os.

- Eu sou tua mãe. Não te consideres meu dono - respondeu K'os.

- A minha mãe morreu - retorquiu Chakliux. - Hoje, és escrava e vais ajudar as mulheres. Amanhã, estás livre. Sairás daqui pela manhã. - Agarrou-a com força pela parte da frente da parka e acrescentou: - Por Gguzaakk, pelo meu filho, eu devia ter te matado há muito tempo. Aceita a liberdade que te ofereço e dá graças.

Largou-a e ela sibilou:

- Tu ofereceste-me a morte!

- Eu conheço-te melhor do que isso, K'os - disse ele. Apontou para uma despensa ao lado da sua tenda. - Podes limpar aquilo. É abrigo suficiente para uma noite. De manhã, partes.

Ela virou-lhe as costas e ele pegou o cão de olhos dourados, atou-o à parte lateral do seu abrigo e depois foi de tenda em tenda, verificando todos os cães do acampamento. Parou junto do abrigo de Sok e ficou pensando. Deu um salto quando Sok, que viera encontrá-lo e se encontrava a seu lado, começou a falar.

- Deste-lhes demais - comentou Sok.

- É um bom cão - contrapôs Chakliux.

- Não é pelo cão. É por K'os.

- Há algumas dívidas muito difíceis de pagar.…

- Eu não a quero aqui. O azar persegue-a.

- Ela vai embora amanhã.

Sok fez um sinal de aprovação e Chakliux apontou para um dos cães de Sok, um macho preto, com a barriga e o Peito brancos, cabeça grande e orelhas pequenas.

- Aquele cão. Aceitas um de olhos dourados em troca dele? - perguntou Chakliux.

K'os lamentou-se e resmungou enquanto trabalhava e, apesar de os outros a ignorarem, Yaa deu consigo a observá-la. Lembrava-se do tempo em que Aqamdax era escrava de K'os, e como esta fora má. Quando Chora-Alto convencera Yaa que não fora Folha Vermelha quem matara Mulher Diurna o seu primeiro pensamento fora para K'os. Era com certeza uma mulher suficientemente má para matar. Mas quando Folha Vermelha morrera, K'os era escrava, e parecia mesmo uma escrava, com a parka velha e gasta, com o rosto descascado. Qual a escrava que fugiria para matar e depois voltaria ao seu dono?

Por isso, K'os não podia ser a assassina, mas se não fora ela, então devia ter sido alguém que vivia na aldeia de Rio Primo. Yaa estremeceu e pegou a faca, a única arma que possuía, e desejou ser um rapaz com uma grande faca de caça para se proteger a si própria e a Ghaden.

 

K'os esperou pelo período mais escuro da noite. Conhecia o ciclo da Lua; sabia que ela esconderia a sua face até quase ao amanhecer. Teria que caminhar com todo o cuidado na escuridão, mas com o cão não seria difícil. Trabalhara na véspera, como Chakliux lhe ordenara, a princípio com raiva mas depois com alegria, ao ver que as mulheres estavam ocupadas e que nem dariam pelo roubo da carne.

Com os muitos caribus que tinham matado, as pessoas da aldeia de Rio Primo sobreviveriam àquele Inverno. Mas viria um ano em que os caribus não seriam tão abundantes, e então o que fariam eles com tão poucos caçadores e tantas mulheres para alimentar?

É claro que algumas das velhas morreriam nesse Inverno. Era sempre assim. E haveria outras mortes, inesperadas.

Quando fora escrava na aldeia de Rio Próximo, K'os Perguntara por Mulher Diurna, a esposa-irmã de Bico-de-Gaivota. Onde estava ela? Morrera?

Bico-de-Gaivota explicara que Mulher Diurna resolvera sair da aldeia com os filhos Sok e Chakliux. Fora o melhor. A mulher era um problema, segundo lhe disse Bico-de-Gaivota. Estava sempre chorando, sempre preocupada. K'os esperava ver Mulher Diurna ali. Estava velha, mas não tanto que não pudesse ajudar numa caçada.

K'os fizera as perguntas em voz baixa a Aqamdax, manifestara-se preocupada com Mulher Diurna por uma questão de amizade, mas Aqamdax conhecia-a muito bem.

De doença ou de acidente? perguntara K’os.

De doença, respondera finalmente Aqamdax, mas a sua hesitação provou a K’os que havia algo que Aqamdax não lhe dissera.

E Olhos Grandes? perguntara K’os.

Ficou na aldeia com Ligige’ respondeu Aqamdax.

Ligige’?

A tia de Sok e de Chakliux, disse Aqamdax. Da aldeia de Rio Primo.

Então ela também veio com o meu filho?

Também.

K’os apontara para Neve-no-Cabelo.

E aquela também.

Sim, como esposa de Sok.

Ele tinha outra esposa, se bem me lembro, mas esqueci-me do nome dela.

Deixa esquecer disse Aqamdax. Morreu.

De acidente ou de doença? voltou a perguntar K’os.

Desta vez, Aqamdax respondeu sem hesitar:

De doença.

Às escuras, K’os saiu do abrigo, com o fardo na mão. Levava o cobertor de pele de lebre que Estrela lhe emprestara para passar a noite. Rira ao descobrir que Chakliux aceitara Estrela como esposa, mostrara-se compadecida com a morte do bebê de Aqamdax, mas sentira uma alegria desdenhosa quando Estrela lhe contara o que Homem Noturno fizera.

Os bebês recém-nascidos morrem com muita freqüência dissera K’os a Estrela, e olhara para o ventre dela.

Estrela cruzara as mãos sobre a barriga e afastara-se às pressas. K’os gostaria de ficar para ver o filho que Estrela daria a Chakliux. Talvez lhe poupasse a vida, mesmo que fosse um rapaz. Talvez Chakliux se sentisse mais angustiado ao ver o filho criado por uma mulher como Estrela do que ao perder o recém-nascido.

K’os dirigiu-se às despensas improvisadas, àquelas em que se encontrava a melhor carne, e encheu os fardos. Depois voltou para o seu abrigo, pegou os odres de água, enrolou as esteiras que lhe serviam de cama e rastejou até ao local em que Chakliux prendera os cães. Eram quatro, e ela aproximou-se deles com cuidado, oferecendo-lhes pedaços de carne para se manterem calados. Sabia que ele prendera o de olhos dourados mais perto da porta. Às escuras, procurou a corda do cão, cortou-a e encaminhou o animal para a vedação. Aí foi mandada parar por um dos rapazes que estava de sentinela.

Sou a mãe de Chakliux. Tu conheces-me, sou K’os disse ela.

Ele disse que partirias amanhã.

Parto agora, informou ela, atravessando a vedação antes que ele fizesse perguntas acerca do cão.

Na véspera, K’os contara os passos até à vedação. Eram oito desde o local em que ela estivera com Raposa-QueLadra. Quanto à outra distância, medira-a apenas com os olhos. Deu três longos passos, baixou-se e tateou o solo, aproximando-se lentamente da vedação. Por fim, encontrou a bela lança de Raposa-Que-Ladra, com a sua ponta de bétula, e riu, satisfeita.

Virou-lhe a ponta para cima, lançou uma maldição sobre Raposa-Que-Ladra e depois outra sobre Chakliux. Aqueles dois homens, entre si, tinham-lhe arruinado a vida, despojando-a de todas as coisas boas. Mas a estúpida da Dii já começara a dar o seu veneno a Raposa-Que-Ladra. Quanto a Chakliux, ela descobriria algo melhor. Ele próprio já fizera um belo trabalho ao aceitar uma esposa como Estrela.

K’os puxou o cão para o rio. A água fria fez-lhe doer as pernas, e a corrente tentou arrastá-la, mas ela agarrou-se firmemente ao cão, deixando-se boiar nos sítios mais fundos. Quando chegaram ao outro lado, K’os calçou umas botas secas e deu tempo ao cão para lamber as patas e as pernas. Depois olhou para o céu, orientou-se pela cauda das estrelas a que o povo de Rio chamava Cet ’aeni, aqueles inimigos de cauda que viviam nas árvores, e encaminhou-se para a aldeia de Quatro Rios.

Chakliux acordou com os guinchos de Estrela, mas limitou-se a esfregar os olhos e a espreguiçar-se. Ela estava a seu lado, abanando-o e puxando-o para fora dos cobertores

A tua mãe... A tua mãe... A tua mãe... Chakliux pôs-lhe os dedos na boca.

Fica calada. A minha mãe foi-se embora, eu sei. E levou um dos cães.

Estrela ergueu a testa, admirada.

O de olhos dourados, informou ela.

Não. O Sok é que tem o de olhos dourados. Eu troquei-o por um dos dele.

Sabias que a tua mãe ia embora? Ela te disse?

Vivi com ela o suficiente para saber que ela faria uma coisa dessas, e que ela levaria o cão e roubaria carne

E deixaste-a?

O que é melhor? Tê-la aqui conosco ou perder um pouco de carne e o cão velho de Sok?

A pouco e pouco, Estrela começou a sorrir, mas depois fez beicinho.

Eu queria que ela ficasse durante aqui algum tempo para me fazer uma bela parka, se tu lhe desses as peles. Estrela inclinou a cabeça e fechou os olhos. Eu queria pele de raposa e de lince com riscas pretas de pele de perna de cisne. Eu queria contas de concha e bicos de pica-pau para dar sorte. Agora, quem me fará?

Chakliux sentiu um nó no estômago ao pensar que Estrela seria a mãe dos seus filhos. Os filhos de ambos seriam como ela, com mentes tão tortuosas e estúpidas? Puxou-a da cama e, ao fazê-lo, verificou que tinha as unhas sujas de sangue, do corte da carne. Lembrou-se das noites em que tocara em Estrela como esposa, e de repente pareceu-lhe que aquele sangue era dela, uma maldição por tudo o que ele fizera, para lhe retirar o poder e a proteção.

Dobrou os dedos e sentiu-os rígidos, como se o sangue lhe tivesse passado das unhas para as mãos. E depois era o sangue de todos os homens, de Primo e de Próximo, mortos na luta.

Convencera-se de que fizera o que pudera, mas isso seria verdade? Trabalhara o suficiente para alcançar a paz? Ou permitira sempre que a raiva e a impaciência enfraquecessem as suas preces?

Houvera luas em que se contentara em ser apenas um caçador, não um dzuuggi, não um chefe. E houvera aquele longo Inverno em que ele fora à procura de Aqamdax, até os Primeiros Homens, julgando que ela fugira para aquele local distante, e ela fora apanhada como escrava na aldeia de Rio Primo.

- Vais encontrar alguém para fazer a minha parka? perguntou-lhe Estrela.

Ele franziu-lhe a testa, abanou a cabeça para desanuviar os pensamentos, perdeu a paciência e respondeu bruscamente:

- Faz o que todas as mulheres fazem. Faças tu. Calçou as botas e as perneiras e vestiu a parka. Saiu da tenda e afastou-se a passos largos para ela não o apanhar. Passou pela tenda de Sok para se assegurar de que o cão de olhos dourados estava lá. E estava, atento e observando a atividade do acampamento, enquanto os outros cães de Sok dormiam. Em seguida, foi para o rio.

A geada embranquecera o solo, fazendo estalar a erva debaixo dos pés. As poucas folhas escuras que restavam nos amieiros chocalhavam ao vento e adejavam como uma pele esfarrapada de caribu na Primavera. Mas cada passo de Chakliux libertava o aroma limpo e penetrante da terra antes do Inverno.

Chakliux descalçou as botas e entrou numa poça pouco profunda e arenosa, quebrando a camada de gelo que se formara à superfície. Esfregou as mãos debaixo de água até o sangue lhe sair das unhas e a pele ficar vermelha de frio. Olhou para o rio. Ficara escuro, devido aos sedimentos remexidos pela caçada, manchado de sangue de caribu. Agora estava limpo, e Chakliux viu os seixos rolados que lhe cobriam o leito, castanhos e dourados.

A sua parte de lontra queria nadar, sentir o impulso da corrente e o fluxo límpido da água. Voltou para a margem, despiu as perneiras e a parka, e entrou na água com um mergulho, roçando no fundo. O frio comprimiu-lhe o peito, procurou-lhe o coração com dedos fortes e anelantes e entorpeceu-lhe o corpo, tornando-o insensível a tudo exceto ao poder que o rio encerrava, preparando-se para descansar, escuro e silencioso, sob o gelo do Inverno.

K’os parou, tirou o fardo das costas e pousou-o num tufo de erva. O Sol ia alto no horizonte, e era um alívio caminhar à luz do dia. Despiu as calças, levantou a parka e afastou as pernas para urinar. O cão alçou a perna junto de um tufo de erva e K’os riu.

O animal olhou para ela, e K’os susteve a respiração e aproximou-se mais dele. Pegou-lhe o focinho e levantou-lhe a cabeça. O cão tinha olhos castanho-escuros, e o pêlo à volta da boca era grisalho. O animal rosnou e ela bateu-lhe. Ele arreganhou os dentes e ela ergueu a lança de Raposa-Que-Ladra. Ele acovardou-se, com a cauda enfiada entre as pernas traseiras, tremendo. K’os cerrou os dentes e soltou um grito de raiva, enfiando a ponta da lança na terra.

De repente, atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada. Porque não apreciar a peça de Chakliux? Afinal, quem é que lhe ensinara aqueles métodos tortuosos?

Agachou-se e examinou o cão, pensando ao mesmo tempo. Era suficientemente forte para levar os fardos do cão e o dela, mas iria recusar a proteção de um animal que lhe fora oferecido?

A proteção de quê? Se fosse o jovem animal de olhos dourados, era uma coisa, mas aquele? Um bom cão teria se atirado a ela quando fora ameaçado com uma lança.

Até onde podia ela ir para que ele não conseguisse dar com o caminho de volta ao acampamento? Talvez mais meio dia. Levaria pelo menos três dias a chegar à aldeia de, Quatro Rios. Se o animal a ajudasse a levar uma parte da bagagem mesmo que fosse num percurso curto, ela beneficiaria com isso.

Procurou na sua bolsa de medicamentos de pele de lontra do rio e encontrou o embrulho que atara com tendão vermelho com quatro nós duplos. Tirou uma pena de corvo que andara poupando e arrancou vários cabelos. Em seguida, enrolou-os na pena.

Olhem, o que vejo eu? proferiu ela em voz alta, segurando a pena entre os olhos. Escuridão, mesmo à luz do Sol.

O cão ganiu ao ouvir aquelas palavras.

 

                   ACAMPAMENTO DE RIO PRIMO

O cão voltou dali a três dias. Esquilo levou-o para o acampamento. O animal mancava e tinha as patas cheias de espinhos de xos cogh. Trazia um amuleto ao pescoço, uma pena de corvo atada com longos cabelos pretos.

Chakliux queimou o amuleto no exterior do acampamento e depois enterrou as cinzas. O poder de K’os era menos do que fogo, menos do que terra. Tirou os espinhos das patas do cão e esfregou as feridas com banana-da-terra misturada com gordura de caribu. Nesse dia, o cão bebeu muita água, comeu erva e vomitou bílis.

Depois de o animal ter defecado fezes soltas e sanguinolentas, Caule Torto deu-lhe para beber um chá de azedas e lavou-lhe as patas com água de casca de salgueiro cortada, mas o animal cada vez estava mais fraco. Chakliux levou-o para fora do acampamento, sentou-se junto dele, fez orações e cantou, coisas que ele nunca fizera por um cão. Quando o animal acabou por morrer, Chakliux queimou o corpo tal como queimara o amuleto e depois enterrou as cinzas bem fundo na terra.

Rezou e jejuou um dia e uma noite antes de regressar ao acampamento, e depois lavou-se no rio. Mas, apesar de ter feito tudo isso, o medo apertava-lhe o coração. Respondia às perguntas com maus modos e não conseguia afastar-se da vedação, como se estivesse à espera que os de Rio Primo atacassem. Quando tinha as mãos ocupadas embalando carne ou consertando armas, os seus olhos estavam no povo, que ele vigiava, sem saber se o cão trouxera alguma doença que fizesse parte da vingança de K’os.

 

                   ACAMPAMENTO DE RIO PRÓXIMO

Três dias depois de os homens de Rio Próximo regressarem ao acampamento dos caribus, Anaay mandou alguns caçadores à procura de caça. Ordenou às mulheres que começassem a preparar a bagagem para a viagem de regresso a aldeia de Inverno e depois foi para a sua tenda e disse a Dii, que afastasse as pessoas.

Ela levou-lhe água e guisado feito com a carne macia da cabeça dos poucos caribus que tinham conseguido salvar da caçada. Ele comeu, mas quando ela olhou para a cama do marido, oferecendo-lhe o conforto do seu corpo, ele rejeitou-a.

Dii censurou-se pelo alívio que sentiu e tentou afastar os pensamentos daquelas mulheres de Rio Primo que os haviam deixado. Furador e o marido tinham envergonhado todo o acampamento ao resolver ficar com o povo de Rio Primo. A maioria das outras mulheres também ficara, e os maridos haviam regressado sem elas. Com menos mulheres de Primo no acampamento, as de Rio Próximo eram mais ruidosas nos seus insultos.

Nessa noite, Dii dormira sozinha na tenda que em tempos partilhara com K’os e voltara a sonhar com caribus. Acordou em pânico, convencida de que eles iam pisar em seu abrigo. Saiu da tenda engatinhando e olhou para a Lua. Já não estava cheia, mas dava luz suficiente para distinguir as tendas e as lareiras. Dii levantou-se e percebeu que o solo não estava a tremendo. Reinava o silêncio, exceto o grito ocasional de um animal noturno.

Então, ela percebeu que o tremor fora de novo nos seus ossos e que os caribus estavam a leste do campo, a um dia de caminho.

És parva comentou ela em surdina. Os caribus não cantam às mulheres.

Mas continuou a ouvi-los no silêncio da noite. Escutava com clareza o bater das suas pernas, o ruído suave dos seus cascos, os grunhidos dos machos, que dentro de pouco tempo estariam no cio. Quando ela fechava os olhos, via-os. Durante muito tempo ficou ao luar, ajoelhada no meio do acampamento, vendo caribus.

 

                   ACAMPAMENTO DE QUATRO RIOS

Folha Vermelha viu a mulher aproximando-se do acampamento e a princípio julgou tratar-se de um caçador, tal era o seu ar de desafio, de cabeça erguida, com uma bela lança numa das mãos e um grande fardo às costas. Vinha só. Qual a mulher que percorria sozinha qualquer distância? E era alta, mais alta do que a maioria das mulheres. Mas, quando ela se aproximou, Folha Vermelha não teve dúvidas.

Era K’os, a mulher de Rio Primo. Folha Vermelha tivera pena dela quando K’os perdera o marido num incêndio durante uma visita à aldeia de Inverno de Rio Próximo. Mas haviam feito uma má escolha ao ficarem com a velha Canção. Às vezes, os velhos eram imprudentes com as fogueiras, e Canção ficara com uma lamparina acesa na sua cabana. Que disparate!

O que estaria K’os fazendo ali? Fora uma das mulheres feitas prisioneiras na aldeia de Rio Próximo. Não fora Aqamdax quem lhe dissera? Então, com certeza K’os soubera o que Folha Vermelha fizera. Folha Vermelha virou-se antes que a mulher lhe visse o rosto. Sentia um peso no peito, como se alguém o pisasse, e não conseguia respirar. Agora, qual era a alternativa que tinha? Cen e os caçadores talvez só voltassem na lua cheia seguinte. Ou depois. Ela seria obrigada a sair da aldeia antes disso, mas pelo menos teria tempo de preparar comida e roupa quente para a viagem.

Por instantes, viu o rosto de seu filho Chora-Alto, as lágrimas dele quando ela saíra da aldeia de Rio Primo. Sentiu um nó na garganta. Dois filhos perdidos para ela, e agora um segundo marido.

Então ouviu K’os gritar uma saudação que os desconhecidos usavam entre si, algo mais adequado entre homens. Folha Vermelha não se virou. Apertou o passo e dirigiu-se para a cabana de Cen. Apesar da neve que quase lhe custara a vida já se ter derretido há muito, o solo estava duro de tão gelado, e os seus ossos pareciam estremecer a cada passo.

Então sentiu uma mão no ombro e ouviu K’os perguntar:

Não ouviste a minha saudação?

Folha Vermelha parou mas não se virou, mantendo a cabeça baixa.

Os homens andam na caça? perguntou K’os.

Sim, andam, respondeu Folha Vermelha em voz baixa.

K’os baixou a cabeça para tentar ver a cara de Folha Vermelha. Esta esperava que o capuz da parka fizesse sombra suficiente para lhe distorcer as feições.

Há aqui alguma velha com quem eu possa falar? Alguém que esteja disposto a dar-me abrigo? perguntou K’os. Apesar da gente desta aldeia não me conhecer, conhece um irmão meu que viveu aqui há muito tempo. Ele e a mulher já morreram, segundo me disseram, mas ele era um ótimo caçador. Alguém se lembrará dele.

Folha Vermelha apontou para uma cabana no meio da aldeia e depois, sempre cabisbaixa, contornou K’os. Só respirou quando entrou no túnel da cabana de Cen.

 

                     ACAMPAMENTO DE RIO PRIMO

Aqamdax viu Chakliux andando, e era como se o nervosismo se entranhasse nas mãos, tornando-a desajeitada. Ela e Estrela trabalhavam juntas, cortando longas tiras de pele de caribu para fazer amarras.

O entusiasmo provocado pelo êxito da caçada passara, e os homens estavam entediados. Alguns iam à procura de alces ou de caribus e em geral voltavam apenas com uns gansos de cabeça branca.

As mulheres mostravam-se cansadas; até os rapazes que tinham participado na caçada estavam ficando lamurientos. As suas pequenas rixas descambavam em discussões entre as mães, e às vezes até os tios ou os pais se envolviam. As pessoas tinham que saber quando voltariam para a aldeia de Inverno. Duas famílias já haviam partido, levando a sua parte de carne e de peles.

Aqamdax e Estrela acabaram o corte da carne e Estrela começou a embirrar com Chamariz e com Caça-Mochos, que raspavam uma pele de caribu. Aqamdax viu Chakliux escapulir-se pela vedação. Homem Noturno estava sentado com Homem Risonho, entretidos jogando com pauzinhos. Homem Noturno estava perdendo, apostava Aqamdax, avaliando pela carranca do marido. Largou a pilha de atilhos e encaminhou-se para o extremo do acampamento, tentando que as tendas e as pessoas a escondessem do marido. Depois, perguntou a si própria porque se importava. Não lhe importava o que ele pensava, e era óbvio que ele não se preocupava com ela, apostando a comida e as peles de ambos no jogo com Homem Risonho.

Aqamdax saiu pela abertura na vedação e procurou convencer-se de que não ia falar com Chakliux, mas apenas fugir ao barulho das pessoas do acampamento.

Não viu Chakliux e ficou aborrecida com o seu desapontamento, mas um movimento à beira do rio chamou-lhe a atenção. Seguiu nessa direção, sustendo o fôlego a cada passo até estar certa de que era ele, e não um lobo ou um urso. Ele agachou-se num aglomerado de salgueiros, cujas folhas compridas e finas estavam amarelecidas pelo orvalho e estaladiças demais para serem colhidas e conservadas em óleo para comer no Inverno. Aqamdax esgueirou-se por entre as árvores e agachou-se junto dele, como tantas vezes faziam quando viviam na aldeia de Rio Próximo, quando partilhavam histórias e aprendiam a língua um do outro.

Chakliux estava sentado numa rocha, um pouco mais acima do que ela, e o sol fresco e suave do Outono iluminava-lhe o rosto quase sem sombras. O vento afastava-lhe o cabelo da testa e despenteava-lhe as tranças escuras.

Ela sorriu, mas ele não correspondeu.

- Partiremos em breve para a aldeia de Inverno? Perguntou ela.

Ele não respondeu e ela sentiu a inquietação já familiar que a assolara quando era jovem, como se os músculos exercessem pressão sobre a pele. Queria que ele lhe dirigisse a palavra, que lhe explicasse porque é que nem sequer olhara para ela nesses últimos dias. Agora que a caça ao caribu terminara, agora que não tardariam a regressar ao acampamento de Inverno, ele arrependera-se de lhe ter prometido aceitá-la como esposa? Pensaria que havia problemas demais com Homem Noturno e Estrela? Teria dito que a queria como esposa só para a ajudar a suportar o desgosto pela morte do filho?

O vazio provocado por esse desgosto ainda a acompanhava, despertava-a de noite de sonhos com Angax, em que este se afastava flutuando sobre o Lago do Avô. Aqamdax fechou os olhos para não sentir o ardor das lágrimas, tirou o capuz da parka e pensou apenas no calor do sol. Em breve este desapareceria. O solo debaixo dos seus pés já estava frio, avisando que o Inverno se aproximava, mas para quê pensar no futuro? Ninguém, nem mesmo o caçador mais robusto, podia ter a certeza de que sobreviveria a qualquer Inverno.

Aqamdax descontraiu-se, satisfeita por se encontrar junto de Chakliux e, quando estava quase adormecendo, ouviu a voz dele, suave e profunda, dizer em voz baixa:

O que vejo eu? O Inverno envelhece e, furioso, envia o vento.

Aqamdax abriu os olhos e virou-se para ele.

O Inverno ainda não chegou aqui - afirmou ela. Ele sorriu, mas foi um sorriso triste.

Não é um enigma sobre o Inverno. É sobre a minha mãe disse ele.

O que significa? perguntou Aqamdax.

Significa que, quando ela não consegue controlar o que lhe acontece, zanga-se e tenta destruir todos os que estão perto dela.

Achas que ela ficou perto ou que voltou para a nossa aldeia de Inverno?

Chakliux abanou a cabeça.

Se ela estivesse perto, teria feito algo mais do que devolver-nos o cão. Ele fez uma longa caminhada. É claro que era velho e podia ter se perdido.

Mas o Povo Primo caça aqui todos os anos, não é verdade? perguntou Aqamdax. O cão já estivera aqui.

Sim.

Julgas então que ela nos amaldiçoou? O amuleto era uma espécie de maldição. Mas Sok disse-nos que tu o queimaste e que enterraste as cinzas. Como pode ela ser mais forte do que isso? Se ela tem tanto poder, porque continuou a ser escrava de Raposa-Que-Ladra? Se ela possuía tanto poder, porque partiu quando lhe ordenaste? Porque levou o cão velho e não o de olhos dourados?

Chakliux voltou a sorrir, e dessa vez o sorriso iluminou-lhe o olhar. Aproximou-se e acariciou o cabelo de Aqamdax.

Porque me preocupar com ela se dentro de pouco tempo terei a esposa que desejo há tanto tempo? Disse ele.

Ao ouvir estas palavras, Aqamdax teve que conter as lágrimas. Mais uma vez ficaram ali sentados em silêncio, mas os pensamentos de Aqamdax já não eram visões obscuras de tristeza e de morte.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

O velho dizia chamar-se Trepador, um nome disparatado para quem mal possuía forças para se sentar direito. Tinha os olhos remelosos e inflamados. O que era bom, pensou K’os; uma curandeira podia fazer alguma coisa por isso. Percebeu o ressentimento da esposa do velho. A mulher não lhe oferecera nada, nem sequer água, senão quando o marido a repreendera com um insulto que incluía o irmão dela e os cães.

K’os despira as duas parkas, a interior e a outra, assim que entrara na cabana. Largara-as no colo e enfiara as mãos debaixo da pele quente. Reparou que a mulher Mosquito-Pólvora, como o marido lhe chamava, sorriu ao ver as suas mãos deformadas e a odiara por isso. Mas os olhos de Trepador tinham-se demorado nos seios redondos e nos mamilos escuros de K’os, empinados sobre as parkas de pele.

Nem Trepador nem Mosquito-Pólvora fizeram as perguntas que a maioria teria feito: Porque viera sozinha? Onde estava o marido? E a sua aldeia?

Era preciso ter cuidado se uma mulher aparecia sozinha na cabana deles. E se ela fosse uma pária, expulsa de uma aldeia por ter feito algo terrível? Mas também podia ser uma mulher-animal, que umas vezes era humana e outras não era. Quem se arriscaria a insultar alguém assim? Quem se recusaria a dar-lhe comida e bebida, e um lugar seguro para ficar?

Há muito tempo que K’os não gozava o calor de uma cabana de Inverno e que não comia uma tigela de comida quente. Trepador, velho como era, merecia uma certa delicadeza, apesar de a mulher ser mal-educada. Por isso, embora ele não tivesse feito perguntas, K’os disse:

Ouviram falar da luta entre as aldeias de Rio Primo e Rio Próximo?

O comerciante Cen agora vive aqui. Ele contou-nos, respondeu Trepador.

Surpreendida, K’os quase se esqueceu do que ia dizer. Cen! Julgava que ele havia morrido. Afinal, ele não morrera durante a luta. Covarde! Devia ter fugido dos guerreiros de Rio Primo quando vira que eles não tinham chance de vencer os de Rio Próximo.

Conheces Cen? perguntou o velho e, inclinando-se para a frente, prescrutou-a através da fumaça da lareira que ardia entre eles.

K’os ia dizer-lhe que não, mas depois lembrou-se de que tinha que falar verdade. Se Cen estava na aldeia, decerto diria às pessoas que a conhecia.

Sim, conheço-o, mas estou admirada por ele viver aqui. Disseram-me que ele morrera.

Ele passou aqui o Verão, embora tenha estado ausente durante um certo tempo, negociando informou o velho. Agora foi caçar caribus com outros homens da nossa aldeia. Partiram quase há uma lua.

Não - disse a mulher, corrigindo-o. Só partiram na lua cheia. E tu? És de Rio Próximo ou de Rio Primo?

De Rio Primo, e fui levada como escrava para Rio Próximo, respondeu K’os, vendo a alegria no olhar da velha. Eles não me trataram bem, como podem ver insistiu K’os, mostrando as mãos.

A velha tapou a boca, como se não tivesse reparado nas mãos de K’os nem tivesse se divertido com a sua deformidade.

Não me doem tanto como vocês possam pensar, sublinhou K’os. Posso costurar e fazer tudo o que uma mulher tem que fazer.

Falou com uma voz doce, sem permitir que a raiva transparecesse nas suas palavras, mas olhou para o velho e ergueu as sobrancelhas.

- Os homens de Rio Próximo resolveram ir caçar no rio Caribu neste Outono.

- E o povo de Rio Primo? É aí que eles caçam, não é? - perguntou o velho.

K'os encolheu os ombros e respondeu:

- O que eles podem fazer? A maioria dos seus caçadores morreu. Levaram os caribus que puderam e regressaram à aldeia de Inverno. Mas uma noite, quando os de Rio Próximo ainda estavam no acampamento dos caribus, fugi. Não quero ser escrava. Por isso é que estou nesta aldeia.

- Para encontrares um marido? - perguntou a velha, desatando a rir. - Qual a mulher que encontra o seu próprio marido?

K'os ignorou o seu riso e olhou para o velho.

- Os teus olhos incomodam-te? - perguntou ela.

O velho baixou os olhos e K'os percebeu que ele ficara embaraçado.

- Sou curandeira - informou ela em voz baixa. Deixem-me ficar nesta cabana até os vossos caçadores voltarem. Farei o que puder por vocês. Além disso...

Levantou-se e tirou os fardos pesados do túnel de entrada, onde os deixara. Desatou o maior e retirou vários pedaços de carne de caribu.

- Não deixei os caçadores de Rio Próximo sem me servir dos seus estrados de seca.

Trepador franziu a testa à mulher, mas ela virou-lhe as costas. Ele olhou para K'os, que tinha a carne nas mãos.

- És bem-vinda na cabana da minha esposa - disse ele.

Folha Vermelha tirou uma barriga de caribu da parte de trás da despensa. Estava cheia de pássaros, de andorinhas conservadas em óleo. Eram boas para levar. Cen tinha muito peixe naquela despensa e alguma carne de alce congelada, várias tiras de intestino cheias de gordura e de frutos secos. Ela tencionava levá-los, além do fardo que trouxera quando roubara a despensa dele pela primeira vez.

Cen ia ficar zangado, mas como podia ela viver de peixe seco no Inverno? Ele não tinha gordura suficiente para a manter quente no frio.

Folha Vermelha não tinha a certeza de o encontrar.

Além disso, com a sua parte da caçada, Cen teria gordura mais do que suficiente para passar o Inverno e ainda lhe sobraria alguma para negociar na Primavera.

Seria muito melhor que Folha Vermelha pudesse passar ali o Inverno. Porque escolhera K’os aquela aldeia? Quando Folha Vermelha vivia na aldeia de Rio Primo e esperava o nascimento da filha, ouvira Aqamdax falar de K’os de vez em quando. É claro que ela fora escrava de K’os. Qual o escravo que gosta do seu dono?

Folha Vermelha não podia deixar de admirar a força de K’os. Quando Bate-no-Chão, o marido de K’os, morrera no incêndio que consumira a cabana de Canção, esta não acusara ninguém e até presenteara as pessoas da aldeia por a terem ajudado no luto.

Folha Vermelha levou os mantimentos para o túnel de entrada, onde eles se manteriam frescos. Cen deixara um dos seus cães, uma cadela velha que talvez fosse comida durante o Inverno. Folha Vermelha iria levá-la para carregar alguns fardos. O mais importante era sair da aldeia antes que K’os a visse e percebesse quem ela era. Com certeza iria contar a Cen o que Folha Vermelha fizera. Embora Cen pudesse deixá-la partir com uma parte da sua comida e a sua velha cadela, sem dúvida iria atrás dela se soubesse que fora ela quem matara Daes.

 

                   ACAMPAMENTO DE RIO PRIMO

Aqamdax passou os dedos pelas mãos de Chakliux. O contato despertou-o dos seus pensamentos, da escuridão que parecia tê-lo engolido desde que K’os partira do acampamento.

Tenho que voltar disse ela, inclinando-se para falar cochichando.

Não, respondeu ele, percebendo logo a insensatez do seu protesto.

Ela pertencia a outro homem, estavam no acampamento de caça. Havia ali trabalho suficiente para três aldeias de mulheres. Mas naquele local tranqüilo à beira do rio, escondido pelos salgueiros, o silêncio parecia retê-lo, e Chakliux queria que Aqamdax ficasse.

Tenho que ir repetiu ela, ajoelhando-se.

Ele estendeu-lhe os braços, pensando em mantê-la por pouco tempo junto a si, em prometer-lhe de novo em surdina que a aceitaria como sua esposa.

Aqamdax puxara o capuz para trás e os cabelos caíam-lhe sobre os ombros como um rio caudaloso e brilhante, Chakliux acariciou-lhe a nuca e ela inclinou-se e encostou a face ao seu pescoço.

Quando eu te tiver como esposa... disse ele, passando-lhe a língua pela orelha.

Então Aqamdax colocou as mãos debaixo da parka dele, frias em contato com a sua pele. Ele puxou-lhe a parka para cima e tocou nas saliências macias que eram os seios dela. Abraçaram-se e trocaram carícias durante muito tempo. Depois, Chakliux despiu a parka e a pôs no chão. Aqamdax deitou-se em cima da pele e não protestou quando ele a despiu e os seus olhos encontraram os dela. Tirou as perneiras e deitou-se sobre ela, aquecendo a barriga com o calor do corpo dela e com o vento esfriando-lhe as costas.

Não devia fazer aquilo, pensou. Se um dzuuggi não conseguia controlar a sua paixão, como poderia ensinar os outros a fazê-lo? Mas com o calor de Aqamdax debaixo dele, declarando-lhe o seu amor...

“Tu és caçador”, pensou ele, e depois ouviu as mesmas palavras noutra voz, talvez a do pai, Bate-no-Chão, ou do pai de Estrela, Topa-Nuvens. Qual o animal que venera um homem que possui a esposa de outro homem?

Chakliux apoiou as mãos no solo e afastou-se dela. Haveria outro local para aquilo. Quando eles não fossem obrigados a esconder-se das outras pessoas.

Olhou para Aqamdax e viu que ela estava chorando.

Sem ti, eu teria morrido, disse ela. Teria morrido como o meu filho.

Chakliux abraçou-a de novo. Como podia deixá-la? O que representava mais uma maldição sobre a sua caçada.

Como é que o fato de possuir aquela mulher podia ser pior do que ter K’os como mãe?

Possuiu-a devagar, como se fosse o primeiro homem que ela conhecia, e quando ambos se moviam ao ritmo da sua necessidade, ele falou-lhe em voz baixa na língua dela, e ela falou-lhe na língua de Rio, unidos por palavras de promessa e de esperança.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

Nessa noite, na cabana de Mosquito-Pólvora, K’os ficou acordada olhando para a escuridão. Quando ouviu a velha ressonando, pensou em ir para a cama de Trepador. Mas ele era tão velho que talvez já não pudesse gozar uma mulher. Além disso, sempre que olhasse para ela, se lembraria do que perdera. Era preferível ela ficar onde estava, lançando-lhe olhares quando ele falava, sorrindo-lhe com malícia quando a mulher não estivesse olhando. Seria mais seguro.

Mosquito-Pólvora levara-a à zona das mulheres, mostrara-lhe a cabana onde as mulheres ficavam quando tinham a sua lua de sangue e indicara-lhe onde ficava a sua despensa. Falara-lhe nas pessoas importantes da aldeia. Havia um xamã e um chefe dos caçadores, Primeira Lança, que tinha muitas esposas. Havia uma velha que se considerava curandeira, mas que não era, confiou-lhe Mosquito-Pólvora.

Antes de eu ser escrava, fui curandeira, lembrou K’os à mulher, e mais uma vez lhe pediu autorização para fazer um remédio para Trepador.

Mosquito-Pólvora olhou-a com uns olhos arregalados e estúpidos, como se ponderasse o pedido, e depois continuou a enumerar os donos de cada cabana. K’os escondeu o seu desagrado, mas, para sua surpresa, quando voltaram para a cabana de Mosquito-Pólvora, a velha disse ao marido que K’os lhe faria um remédio.

K’os passou o resto do dia fazendo lavagens nos olhos e chás, e depois ungüentos para as articulações de Mosquito-Pólvora e um tônico para a barriga da velha. Comeram uma bela refeição de peixe guisado, e K’os colocou-os na cama como se eles fossem duas crianças.

Mesmo depois de Trepador juntar os seus roncos aos da mulher, K’os não conseguia adormecer. Doíam-lhe as pernas. Os dias de caminhada tinham sido duros. Por duas vezes nevara e a neve derretera, tornando escorregadios os musgos e as ervas. Dentro de pouco tempo, a neve viria para ficar. Mosquito-Pólvora dissera que a aldeia de Quatro Rios fora fustigada por uma tempestade quase há uma lua, mas que a neve também derretera alguns dias depois. Era um ano estranho. Talvez o Inverno fosse rigoroso, o que era mais um motivo para K’os viver nessa aldeia até concluir qual a melhor maneira de se vingar de um filho que não tinha pena da mãe.

Por agora, talvez ele julgasse que ela fora comida de lobos, que as suas ossadas estavam sendo espalhadas por raposas e corvos. Ele veria como estava enganado.

Chakliux e Sok tinham sido abençoados com caribus. Raposa-Que-Ladra podia tê-los expulsado da aldeia de Rio Próximo, mas não podia destruir os dotes de liderança de ambos.

Quantos homens seriam capazes de pegar um grupo tão dizimado como o povo de Rio Primo e de, apenas em algumas luas, dar-lhes a força e a confiança de que precisavam para apanhar todos aqueles caribus? Ainda não tinham caçadores suficientes. Uma caçada fraca dali a um ou dois anos poderia custar-lhes a vida. Mas que aldeia mesmo a mais forte não vivia de Inverno a Inverno, rezando para ter sorte na caça?

E quantos homens seriam capazes de pegar uma aldeia forte como Rio Primo e levá-la à destruição, como Raposa -Que-Ladra levara?

K’os pensou em Sok. Gostaria de o ter na sua cama. Ele era grande e forte, e o seu corpo era musculoso. Sok e Chakliux eram muito parecidos de rosto. Ambos tinham sobrancelhas que se assemelhavam a asas de gaivota, narizes grandes e malares salientes. Eram homens esbeltos e, apesar de Chakliux ser mais pequeno, as linhas flexíveis do seu corpo não eram desagradáveis, e os seus braços eram quase tão grossos como os de Sok. K’os sorriu, lembrando-se que Neve-no-Cabelo se recusara a aceitá-lo como marido por causa do pé. Que estúpida!

K’os não conhecia bem Sok, mas o fato de ele ter aceitado Neve-no-Cabelo como esposa não dizia muito da sua sensatez. Ela era uma bela mulher, mas pequena e lamurienta. Um dia no acampamento de caça de Rio Primo fora suficiente para K'os perceber isso. E se o filho dela saísse à mãe?

K'os vira um rapaz naquele acampamento que era muito parecido com Sok, e concluíra que era filho da outra esposa de Sok. Como se chamava ela?

Folha Vermelha, sim. K'os ouvira várias histórias na aldeia de Rio Próximo. Folha Vermelha matara o velho chamado Tsaani, avô de Chakliux. Também matara a mulher dos Caçadores Marinhos que era mãe de Aqamdax.

Era uma pena que Folha Vermelha tivesse morrido. Uma mulher que custara a Sok e a Chakliux os seus lugares na aldeia de Rio Próximo era digna de ser conhecida. Bico-de-Gaivota contara a K'os que Folha Vermelha engravidara. K'os não sabia se tinham esperado que o bebê nascesse ou se tinham matado os dois, levando Folha Vermelha antes de ela dar à luz.

Uma cãibra apertou-lhe os músculos da perna direita. K'os saiu da cama e pôs-se em pé.

- Tenho uma cãibra na perna. Andei muito ao fugir do povo de Rio Próximo - disse ela. - Não te importas que eu avive as brasas para fazer um chá.

- Tens remédios para as cãibras?

- Tenho.

- Prepara-me também alguns.

K'os escondeu um suspiro de irritação. Espevitou as brasas e juntou-lhes casca de bétula e alguns gravetos até fazer chama. Enquanto esperavam que a panela aquecesse, a velha tagarelava, contando algumas histórias das pessoas que viviam na aldeia, gente que K'os não conhecia e que não lhe interessava.

Quando a água estava quase fervendo, K'os retirou um embrulho de casca de bordo da sua bolsa dos remédios e colocou uma pequena porção no fundo de duas chávenas de madeira, que encheu até meio de água quente. Mosquito-Pólvora levou a chávena à boca, mas K'os levantou a mão.

- Espera. Primeiro tem de esfriar.

Em seguida, agachou-se de novo ao lado da mulher e fechou os olhos, ignorando a tagarelice de Mosquito-Pólvora. Por fim, levou a chávena à boca, inalou o aroma intenso e bebeu um gole. O calor espalhou-se pelo seu corpo, chegando-lhe aos braços e às pernas.

Isto é bom disse a velha. Sim, é bom. Tens que fazer isto para Cen.

Sim, farei.

K’os sorriu. Tivera amantes melhores, mas Cen não era assim tão mau. Talvez ela se tornasse sua esposa. Gostaria de o acompanhar em algumas das suas viagens de negócios, sobretudo à aldeia de Rio Primo. É claro que ele teria relutância em voltar a essa aldeia. Sobretudo porque não lutara com os homens de Primo como prometera. Talvez ele tivesse sede de vingança, ou talvez não. Valeria a pena, ouviria sua versão da história. Sim, teria uma boa vida como esposa de um comerciante. Seria a primeira a escolher as mercadorias que ele trazia das suas viagens. Teria oportunidade de visitar muitas aldeias e descobrir novas remédios. E, evidentemente, poderia vingar-se de Chakliux. Isso seria muito mais fácil se...

As palavras de Mosquito-Pólvora interromperam os pensamentos de K’os. Ela estava falando da esposa de Cen? Ele tinha uma esposa? Bem, porque não? Se um homem quisesse ficar numa aldeia, precisava de uma esposa que lhe tomasse conta da cabana e das despensas. Ele quisera K’os para sua esposa, e ela teria aceitado se não fosse por Tikaani, e depois por Espreita-o-Céu...

Ele tem uma esposa? perguntou ela, interrompendo as divagações da velha.

Quem? indagou Mosquito-Pólvora, e K’os pensou que talvez ela estivesse falando de outra pessoa.

Cen, o comerciante.

Oh, sim.

Uma das filhas desta aldeia?

A mulher soltou uma risadinha.

Havia muitas mães que andavam de olho nele. Lago Branco ficou tão zangada quando ele trouxe a sua nova mulher para o acampamento que o repreendeu em frente de todos. E Feto...

Então essa mulher é de outra aldeia?

- Quem?

- A esposa de Cen! - exclamou K'os, perdendo a paciência.

- Diz que é da aldeia de Rio Próximo, mas que saiu de lá quando era pequena. Feto tem um irmão que vive lá com a esposa e diz que ele nunca falou de ninguém com esse nome. É claro que os homens não têm o hábito de falar das mulheres. Pensam mais na caça...

- Como se chama ela?

- Gheli.

K'os não a conhecia. Uma esposa, o que não era nada bom. É claro que K'os poderia ser uma segunda esposa, ou talvez encontrar um caçador mais jovem que não tivesse nenhuma. Os jovens eram fáceis de controlar, mas não havia tanta liberdade no fato de ser esposa de um caçador, e com o filho de Cen, Ghaden, na aldeia de Rio Primo, decerto poderiam combinar reaver o rapaz, permitindo assim que K'os se vingasse. Mas esta esposa era um problema.

Por enquanto, talvez a melhor coisa a fazer fosse tornar-se esposa de um caçador mais jovem, concluiu K'os. E se ele interferisse nos planos dela, poderia sempre morrer.

É claro que, primeiro, as pessoas da aldeia teriam que aceitá-la, o que não era fácil, para uma forasteira. Mas havia o irmão dela que morrera...

- Tive um irmão que viveu nesta aldeia - disse K'os, interrompendo o que Mosquito-Pólvora estava a dizendo.

K'os viu que a velha ficara admirada.

- Ele vive aqui? - perguntou ela.

- Viveu. Morreu, ele e a mulher.

K'os desembainhou uma faca que trazia à cintura.

- Foi ele que me fez isto - disse ela, entregando-a a Mosquito-Pólvora e observando-a a virar a faca nas mãos.

A velha esfregou os dedos na pele de caribu que envolvia o cabo e disse:

- É antiga, esta faca, mas parece que me lembro de um homem que fazia facas como esta... Ele era da aldeia de Rio Primo. Queres trocá-la?

- Essa, não - respondeu K'os.

Trocá-la? Não. Sem aquela faca, há muito tempo que teria morrido. Às mãos de Raposa-Que-Ladra, e do irmão, - O verdadeiro pai de Chakliux - Asa-de-Gaivota, e daquele estúpido, o Dorminhoco. Sem aquela faca, ela perderia toda a sua sorte.

A faca é tudo o que eu tenho para recordar o meu irmão. Não posso trocá-la, mas talvez, quando a virem, os homens desta aldeia se lembrem dele e me deixem ficar aqui!

Mosquito-Pólvora devolveu-lhe a faca e concordou.

Talvez tenhas razão. K’os guardou a faca na bainha e depois bebeu um gole de chá. Sentiu-se descontraída e deixou-se ficar sentada, cochilando, enquanto Mosquito-Pólvora tagarelava.

Mas por fim as palavras da velha começaram a abrandar.

As pálpebras fecharam-se e ela perguntou:

Achas que é hora de dormir agora?

Sim, é hora de dormir, respondeu K’os. Abafou o fogo e depois encaminhou a velha para a cama. És uma boa mulher, declarou Mosquito-Pólvora. É pena que aquela outra tenha aparecido. Cen te aceitaria como esposa. Piscou-lhe o olho e acrescentou: Talvez ele a rejeite quando te vir. Tu és mais bonita. Gheli é calada e não muito simpática. Qual o homem que quer uma mulher assim? Talvez não seja também muito simpática na cama dele. Mosquito-Pólvora deu uma gargalhada e K’os riu também, contrafeita. É claro que ela costura bem. Tens que ver as parkas que ela faz para Cen e os cobertores para o bebê.

Eles já têm um bebê?

Ela apareceu com o bebê. Mas é uma menina, grande e forte como a mãe. Mas aquelas parkas... Quem me dera ter uma.

K’os pôs a mão na boca da velha.

Agora, cala-te, tia. O teu marido está dormindo, e tu também devias estar.

K’os ajudou a mulher a deitar-se, tapou-a e depois deitou-se na sua cama.

Uma esposa... Gheli. Em surdina, K’os amaldiçoou a mulher e a filha. Pelo menos, era uma filha, essa criança. A mulher sabia costurar. Bem, K’os ainda conheceria uma mulher que fosse mais dotada no manejo do furador e da agulha do que ela. Nem sequer Bico-de-Gaivota... Nem sequer Folha Vermelha.

K'os sentou-se na cama. Folha Vermelha. A primeira mulher que encontrara na aldeia. Era alta e larga como Folha Vermelha. Levava um bebê debaixo da parka, que era avantajada no pescoço e nos ombros. E aquela parka... K'os lembrava-se de ter admirado as parkas de Folha Vermelha durante aquele curto período que passara na aldeia de Rio Próximo, no Inverno antes da luta.

K'os saiu da cama e abanou Mosquito-Pólvora até ela acordar. A velha olhou para ela, confusa, como se não soubesse onde estava.

- Trepador está doente? - perguntou ela.

- Não, está dormindo.

- Porque me acordaste?

- Eu... Eu tinha receio de ter feito o teu chá forte demais. Adormeceste tão depressa... Mas vejo que estás bem.

Mosquito-Pólvora deu uma palmadinha na mão de K'os.

- Sim, estou bem - respondeu ela. - Devias fazer um chá para as tuas mãos, sabes? Talvez ajudasse. - Mosquito-Pólvora fechou os olhos, balbuciando: - Um chá, um chá qualquer. Quem me dera conhecer uma espécie de... Quem me dera...

- Tia, a esposa de Cen foi com ele à caça ou está aqui na aldeia? - perguntou K'os, beliscando o braço da velha para a fazer falar.

Mosquito-Pólvora abriu os olhos a custo.

- A mulher de Cen? A mulher de Cen? Oh, está aqui. Ele não a deixaria ir com o bebê. Ela está aqui. Posso levar-te até ela. Amanhã vamos visitá-la.

Mosquito-Pólvora fechou os olhos e adormeceu.

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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