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Tolstói escreveu Guerra e paz entre 1863 e 1869, em sua propriedade rural. Havia se casado no ano anterior e tinha 35 anos quando começou a redigir o livro. Seu plano inicial era um romance sobre os chamados decembristas, grupo de oficiais e nobres revolucionários, influenciados pelo Iluminismo francês, que em dezembro de 1825 desencadearam um movimento contra o tsar Nicolau I.
Como de hábito, Tolstói pesquisou a fundo o assunto, não só em textos como por meio de testemunhos orais colhidos pessoalmente. Concluiu que, para tratar dos decembristas, era preciso recuar no tempo e remontar ao ano de 1812, quando a invasão napoleônica foi rechaçada do solo russo. Todavia, num desdobramento bem expressivo de seu ânimo questionador, Tolstói se convenceu de que era necessário ainda retroceder até 1805, ano em que as tropas napoleônicas derrotaram de forma arrasadora as forças austro-russas na batalha de Austerlitz.
Durante os primeiros anos de trabalho, o título do livro foi 1805. À medida que o romance incorporava novos temas e ampliava sua abrangência histórica, o título passou a desagradar ao autor. Em sua busca de outro título, Tolstói topou com a solução na obra do sociólogo anarquista francês Proudhon intitulada La Guerre et la paix (1861), e adotou-a de imediato. Foi esse o título da primeira edição em livro, em 1867, que trouxe a público as partes iniciais do romance, ainda em andamento.
I
— Eh bien, mon prince. Gênes et Lucques ne sont plus que des apanages, des propriedades, de la famille Buonaparte. Non, je vous préviens, que si vous ne me dites pas, que nous avons la guerre, si vous vous permettez encore de pallier toutes les infamies, toutes les atrocités de cet Antéchrist (ma parole, j’y crois), je ne vous connais plus, vous n’êtes plus mon ami, vous n’êtes plus meu fiel escravo, comme vous dites. Bem, boa noite, boa noite. Je vois que je vous fais peur,1 sente-se e conte-me as novidades.
Assim falou em julho do ano de 1805 a famosa Anna Pávlovna Scherer, dama de honra e favorita da imperatriz Maria Fiódorovna, ao receber o ilustre e eminente príncipe 2 Vassíli, o primeiro a chegar à sua recepção. Anna Pávlovna tossia um pouco havia alguns dias, estava com gripe, como ela dizia (“gripe” era então uma palavra nova, só raramente empregada). Nos bilhetinhos, enviados naquela manhã por um lacaio em trajes de gala, estava escrito para todos, sem distinção:
Si vous n’avez rien de mieux à faire, M. le comte (ou mon prince), et si la perspective de passer la soirée chez une pauvre malade ne vous effraye pas trop, je serai charmée de vous voir chez moi entre sept et dix heures. Annette Scherer.3
— Dieu, quelle virulente sortie! 4 — respondeu o príncipe que chegara, sem perturbar-se em nada com tal acolhida, num uniforme bordado de cortesão, com meias, sapatos, medalhas em forma de estrela no peito, uma expressão radiante no rosto chato. Falava naquele francês requintado em que não só falavam como também pensavam nossos avós e com as entonações suaves, protetoras, próprias de um homem importante que envelheceu na sociedade e na corte. Ele aproximou-se de Anna Pávlovna, beijou sua mão, mostrando-lhe a calva perfumada e reluzente, e sentou-se com tranquilidade no sofá.
— Avant tout dites-moi, comment vous allez, chère amie? 5 Tranquilize um amigo — disse ele, sem alterar a voz e o tom em que, por trás do decoro e da simpatia, transpareciam a indiferença e até a zombaria.
— Como é possível estar saudável... quando se sofre moralmente? Acaso é possível estar calma em nosso tempo, se a pessoa tem sentimentos? — disse Anna Pávlovna. — O senhor vai ficar em minha casa a noite toda, espero.
— E a festa da embaixada inglesa? Hoje é quarta-feira. Tenho de comparecer — disse o príncipe. — Minha filha virá me buscar e me levará.
— Pensei que a festa de hoje tinha sido cancelada. Je vous avoue que toutes ces fêtes et tous ces feux d’artifice commencent à devenir insipides.6
— Se soubessem que a senhora assim o desejava, teriam cancelado a festa — respondeu o príncipe, que por hábito, como um relógio em que tivessem dado corda, dizia coisas em que nem mesmo ele queria que os outros acreditassem.
— Ne me tourmentez pas. Eh bien, qu’a-t-on décidé par rapport à la dépêche de Novosilzoff? Vous savez tout.7
— Como vou dizer à senhora? — respondeu o príncipe em tom frio e enfadado. — Qu’a-t-on décidé? On a décidé que Buonaparte a brûlé ses vaisseaux, et je crois que nous sommes en train de brûler les nôtres.8 — O príncipe Vassíli sempre falava com languidez, como um ator que representa um papel numa peça antiga. Anna Pávlovna Scherer, ao contrário, apesar de seus quarenta anos, era cheia de animação e arrebatamento.
Ser entusiasmada tornara-se o seu papel social, e às vezes, quando nem ela mesma o queria, mostrava-se entusiasmada, a fim de não frustrar a expectativa das pessoas que a conheciam. O sorriso contido que brincava constantemente no rosto de Anna Pávlovna, apesar de não combinar com seus traços animados, exprimia, como nas crianças mimadas, a plena consciência de seu adorado defeito, do qual ela não queria, não podia e não julgava necessário corrigir-se.
No meio da conversa sobre as atividades políticas, Anna Pávlovna exaltou-se.
— Ah, nem me fale da Áustria! Talvez eu não entenda nada, mas a Áustria jamais quis e não quer a guerra. Ela nos atraiçoa. A Rússia sozinha deve ser a salvadora da Europa. Nosso benfeitor sabe da sua elevada missão e será fiel a ela. É a única coisa em que acredito. Nosso bondoso e admirável soberano desempenha um papel colossal no mundo e ele é tão virtuoso e bom que Deus não vai abandoná-lo e ele há de cumprir a sua missão de esmagar a hidra da revolução, que agora está ainda mais horrenda na pessoa desse assassino e celerado. Só nós devemos redimir o sangue dos justos... Em quem vamos depositar esperanças, pergunto ao senhor... A Inglaterra, com seu espírito comercial, não compreende e não consegue compreender toda a estatura do espírito do imperador Alexandre. Ela negou-se a evacuar Malta. Ela quer ver, procura uma intenção oculta em nossas ações. O que eles disseram a Novossíltsev?... Nada. Não compreendem, não conseguem compreender a abnegação do nosso imperador, que nada quer para si e quer tudo pelo bem do mundo. E o que eles prometeram? Nada. E mesmo o que prometeram não vai se realizar! A Prússia já declarou que Bonaparte é invencível e toda a Europa nada pode contra ele... E eu não creio em nenhuma palavra nem de Hardenberg, nem de Haugwitz. Cette fameuse neutralité prussienne, ce n’est qu’un piège.9 Creio no único Deus e no destino elevado do nosso querido imperador. Ele salvará a Europa!... — Parou de repente, com um sorriso de zombaria do seu ardor.
— Creio — disse o príncipe, sorrindo — que se mandassem a senhora em lugar do nosso querido Wintzingerode, a senhora teria conquistado a concordância do rei prussiano. A senhora é tão eloquente. Pode me servir um chá?
— Agora mesmo. À propos — acrescentou, calma outra vez —, hoje teremos duas pessoas muito interessantes, le vicomte de Mortmart, il est allié aux Montmorency par les Rohan, uma das melhores famílias da França. É um dos bons emigrantes, dos autênticos. E depois l’abbé Morio:10 o senhor conhece essa inteligência profunda? Foi recebido pelo soberano. O senhor conhece?
— Ah! Vou ficar muito contente — disse o príncipe. — Diga — acrescentou, como se só então tivesse lembrado algo, e de modo especialmente desatento, quando de fato aquilo que falava era o objetivo principal da sua visita —, é verdade que l’impératrice-mère deseja a nomeação do barão Funke para o cargo de primeiro-secretário em Viena? C’est un pauvre sire, ce baron, à ce qu’il paraît.11 — O príncipe Vassíli desejava nomear o filho para aquele cargo, para o qual outros, por intermédio da imperatriz Maria Fiódorovna, empenhavam-se em nomear o barão.
Anna Pávlovna quase fechou os olhos em sinal de que nem ela nem ninguém podia julgar algo que era do agrado e do desejo da imperatriz.
— Monsieur le baron de Funke a été recommandé à l’impératrice-mère par sa sœur 12 — limitou-se ela a dizer, em tom triste e seco. No momento em que Anna Pávlovna mencionou a imperatriz, seu rosto mostrou de repente uma expressão profunda e muito sincera de dedicação e respeito, misturada à tristeza, que nela surgia toda vez que, em conversa, lembrava a sua eminente protetora. Disse que sua majestade havia se dignado a demonstrar beaucoup d’estime 13 pelo barão Funke e de novo o seu olhar se encobriu de tristeza.
O príncipe, com ar de indiferença, ficou calado. Anna Pávlovna, com sua habilidade feminina e sua rapidez de tato própria de uma pessoa da corte, quis alfinetar o príncipe por ter ousado referir-se de tal modo a uma pessoa recomendada à imperatriz, e ao mesmo tempo consolá-lo.
— Mais à propos de votre famille — disse ela —, caso o senhor ainda não saiba, sua filha, desde que frequenta a sociedade, fait les délices de tout le monde. On la trouve belle, comme le jour.14
O príncipe fez uma reverência em sinal de respeito e gratidão.
— Penso muitas vezes — prosseguiu Anna Pávlovna, após um minuto de silêncio, aproximando-se do príncipe e sorrindo para ele com afeição, como se com isso indicasse que as conversas políticas e mundanas estavam encerradas e que agora tinha início a conversa íntima —, penso muitas vezes como a felicidade da vida é repartida às vezes de forma injusta. Por que o destino deu ao senhor dois filhos tão excelentes (excluo Anatole, o seu caçula, dele eu não gosto) — interrompeu ela em tom peremptório, e ergueu as sobrancelhas —, filhos tão encantadores? E o senhor, francamente, preza os seus filhos menos que todos e por isso não os merece.
E ela sorriu, com o seu sorriso de triunfo.
— Que voulez-vous? Lavater 15 aurait dit que je n’ai pas la bosse de la paternité 16 — disse o príncipe.
— Pare de brincar. Quis falar a sério com o senhor. Sabe, estou insatisfeita com seu filho menor. Aqui entre nós (seu rosto assumiu uma expressão triste), falaram a respeito dele com sua majestade a imperatriz e lamentaram pelo senhor...
O príncipe não respondeu, mas ela, em silêncio, fitando-o de modo significativo, aguardava a resposta. O príncipe Vassíli franziu as sobrancelhas.
— O que a senhora quer que eu faça? — disse, por fim. — A senhora sabe, fiz pela educação deles tudo o que um pai pode fazer, e ambos saíram des imbéciles.17 Hippolyte, pelo menos, é um imbecil quieto, mas o Anatole é inquieto. Essa é a diferença — disse ele, sorrindo de modo mais artificial e animado do que de costume, exprimindo além disso, de maneira especialmente incisiva, nas rugas que se formaram nos cantos da boca, algo inesperadamente triste e desagradável.
— E para que pessoas como o senhor têm filhos? Se não fosse pai, eu nada teria a censurar no senhor — disse Anna Pávlovna, levantando os olhos com ar pensativo.
— Je suis votre fiel escravo, et à vous seule je puis l’avouer. Meus filhos... ce sont les entraves de mon existence. Essa é a minha cruz. Assim explico para mim mesmo. Que voulez-vous?...18 — Calou-se, exprimindo com um gesto a sua submissão ao destino cruel.
Anna Pávlovna ponderou um pouco.
— O senhor nunca pensou em casar o seu filho pródigo, Anatole? Dizem — prosseguiu ela — que as solteironas ont la manie des mariages. Ainda não sinto em mim essa fraqueza, mas sei de uma petite personne que vive muito infeliz com o pai, une parente à nous, une princesse 19 Bolkónskaia. — O príncipe Vassíli não respondeu, porém, com a rapidez de compreensão e de memória própria a pessoas da sociedade, demonstrou com um movimento de cabeça que levaria em conta aquela informação.
— Não, a senhora deve saber que aquele Anatole me custa quarenta mil por ano — disse ele, visivelmente incapaz de conter o rumo tristonho dos seus pensamentos. Calou-se um pouco. — O que será dele daqui a cinco anos, se continuar assim? Voilà l’avantage d’être père.20 É rica, a sua princesa?
— O pai é muito rico e avarento. Mora no campo. Sabe, é o famoso príncipe Bolkónski, aposentado ainda no tempo do imperador falecido e chamado de rei prussiano. É um homem muito inteligente, mas difícil, e tem as suas extravagâncias. La pauvre petite est malheureuse, comme les pierres.21 Tem um irmão, casou-se há pouco tempo com Lise Meinen, ele é ajudante de ordens de Kutúzov. Virá hoje à minha casa.
— Écoutez, chère Annette — disse o príncipe que de repente segurou a mão da sua interlocutora e, por algum motivo, inclinou-a para baixo. — Arrangez-moi cette affaire et je suis votre fiel escravo à tout jamais, escrafo, como o meu estaroste m’écrit des 22 relatórios: com f ! Ela é de boa família e é rica. É tudo de que eu preciso.
E, com os movimentos desenvoltos, familiares e graciosos que o distinguiam, segurou a mão da dama de honra, beijou-a e, após beijá-la, apertou a mão da dama de honra e refestelou-se na poltrona, enquanto olhava para o outro lado.
— Attendez — disse Anna Pávlovna, enquanto refletia. — Hoje mesmo falarei com Lise (la femme du jeune Bolkónski). E talvez dê certo. Ce sera dans votre famille, que je ferai mon apprentissage de vieille fille.23
II
A sala de visitas de Anna Pávlovna começou a encher-se aos poucos. Compareceu toda a nobreza de Petersburgo, pessoas as mais variadas pela idade e pelo caráter, mas iguais pela sociedade em que viviam; veio a filha do príncipe Vassíli, a bela Hélène, para buscar o pai a fim de irem juntos à festa do embaixador. Estava de vestido de gala e com o seu emblema de dama de honra. Veio também a jovem e pequena princesa Bolkónskaia, conhecida como la femme la plus séduisante de Pétersbourg,24 que casara no inverno anterior e que agora não aparecia no grande mundo por causa da sua gravidez, mas ainda frequentava as reuniões pequenas. Veio o príncipe Hippolyte, filho do príncipe Vassíli, com Mortmart, a quem apresentou, veio também o abade Morio, além de muitas outras pessoas.
— O senhor ainda não viu? — Ou: — O senhor não conhece ma tante? 25 — dizia Anna Pávlovna às visitas que chegavam e com toda a gravidade as levava até uma velhinha miúda, com grandes laços de fita, que surgira de um outro cômodo assim que os convidados começaram a chegar; dizia o nome deles, enquanto lentamente passava os olhos do convidado para ma tante e depois se afastava.
Todos os convidados cumpriam o ritual de cumprimentar aquela tia que ninguém queria conhecer, pela qual ninguém tinha interesse e da qual ninguém tinha necessidade. Anna Pávlovna, com uma atenção tristonha, solene, acompanhava aqueles cumprimentos, aprovando-os em silêncio. Ma tante dizia a todos as mesmas palavras sobre a saúde deles, sobre a sua própria saúde e sobre a saúde de sua majestade, que agora, graças a Deus, estava melhor. Todos os que se aproximavam, embora por decoro evitassem demonstrar pressa, separavam-se da velhinha com um sentimento de alívio, por já terem cumprido uma obrigação penosa e por não ser preciso aproximar-se dela mais nenhuma vez durante o resto da noite.
A jovem princesa Bolkónskaia trouxe um trabalho numa bolsa de veludo bordado em ouro. Seu bonito labiozinho superior, com um bigodinho preto quase imperceptível, era curto demais para os dentes, porém assim ficava mais gracioso quando se abria e ainda mais gracioso quando se esticava para baixo, ao encontro do lábio inferior. Como sempre acontece com mulheres em tudo atraentes, as suas imperfeições — o lábio curto e a boca entreaberta — pareciam ser a sua singularidade, o traço especial da sua beleza. Todos se alegravam em ver aquela futura mãe bonita, cheia de saúde e de vitalidade, que suportava com tanta leveza a sua condição. Os velhos e os jovens entediados, soturnos, depois de vê-la, depois de ficar ao seu lado e conversar com ela por um tempo, tinham a impressão de que eles mesmos se tornavam semelhantes à princesa. Quem falava com ela e via, a cada palavra sua, o sorriso radiante e os dentes brancos e reluzentes, que se punham à mostra sem cessar, logo pensava que nesse dia estava especialmente amável. E assim pensavam todos.
A pequena princesa, virando-se com esforço, contornou a mesa em passinhos ligeiros e miúdos, com a bolsinha de trabalho na mão, e ajeitando alegremente o vestido sentou-se no divã, ao lado de um samovar de prata, como se tudo o que ela fazia fosse part de plaisir 26 para ela e para todos os que a rodeavam.
— J’ai apporté mon ouvrage — disse ela, abrindo a bolsinha e dirigindo-se a todos ao mesmo tempo. — Veja, Annette, ne me jouez pas un mauvais tour — disse para a anfitriã. — Vous m’avez écrit, que c’était une toute petite soirée; voyez, comme je suis attifée.27
E abriu os braços para mostrar-se no vestido elegante, cinza, de rendas, cingido por uma fita larga um pouco abaixo do peito.
— Soyez tranquille, Lise, vous serez toujours la plus jolie 28 — respondeu Anna Pávlovna.
— Vous savez, mon mari m’abandonne — continuou ela no mesmo tom, dirigindo-se a um general —, il va se faire tuer. Dites-moi, pourquoi cette vilaine guerre? 29 — disse para o príncipe Vassíli e, sem esperar a resposta, voltou-se para a filha do príncipe Vassíli, a bela Hélène.
— Quelle délicieuse personne, que cette petite princesse! 30 — disse o príncipe Vassíli, em voz baixa, para Anna Pávlovna.
Pouco depois da pequenina princesa, entrou um jovem gordo e corpulento, cabelo bem curto, de óculos, calça clara, como era moda então, colarinho alto e fraque marrom. Esse jovem corpulento era o filho ilegítimo de um famoso grão-senhor do tempo da imperatriz Catarina, o conde Bezúkhov, que estava moribundo em Moscou. Ele ainda não havia trabalhado em parte alguma, acabara de chegar do exterior, onde fora educado, e pela primeira vez estava numa reunião social. Anna Pávlovna recebeu-o com a inclinação de cabeça que dirigia às pessoas da mais baixa hierarquia em seu salão. Porém, apesar daquele cumprimento, no rosto de Anna Pávlovna, ao ver Pierre entrar, estampou-se uma inquietação e um medo semelhantes ao que se manifestam quando se está diante de algo grande demais e inadequado ao lugar. Embora Pierre fosse, de fato, um pouco maior do que os outros homens no salão, aquele medo só podia se referir ao olhar inteligente e, ao mesmo tempo, tímido, observador e natural, que o distinguia de todos os demais naquela sala.
— C’est bien aimable à vous, monsieur Pierre, d’être venu voir une pauvre malade 31 — disse Anna Pávlovna, enquanto trocava um olhar assustado com a tia, para junto de quem estava levando Pierre. O jovem resmungou algo incompreensível e continuou a procurar alguma coisa com os olhos. Sorriu com alegria e satisfação ao cumprimentar a pequena princesa com uma reverência, como se fosse uma pessoa muito próxima, e seguiu para junto da tia. O medo de Anna Pávlovna não era infundado, pois Pierre deu as costas para a tia antes de ouvir até o fim as palavras dela sobre a saúde de sua majestade. Anna Pávlovna deteve-o, assustada, com as palavras:
— O senhor não conhece o abade Morio? É um homem muito interessante... — disse ela.
— Sim, ouvi falar do seu projeto de uma paz perpétua, e isso é muito interessante, mas pouco viável...
— O senhor acha?... — disse Anna Pávlovna, para falar alguma coisa, e quis voltar-se de novo para suas ocupações de anfitriã, mas Pierre cometeu uma indelicadeza inversa. Antes, ele se afastara sem ouvir até o fim as palavras da interlocutora; agora, com a sua fala, reteve a interlocutora, que precisava deixá-lo. Pierre, de cabeça baixa e com os pés grandes afastados, pôs-se a demonstrar a Anna Pávlovna por que ele acreditava que o plano do abade era uma quimera.
— Conversaremos depois — disse Anna Pávlovna, sorrindo.
E, após separar-se do jovem que não sabia como se conduzir, voltou-se para as suas ocupações de anfitriã e continuou a escutar e a observar, pronta a prestar socorro onde quer que a conversa esmorecesse. A exemplo do patrão de uma oficina de tecelagem que, depois de instalar os operários em seus lugares, anda de um lado para o outro pela fábrica e, ao notar alguma trava ou anormalidade num fuso, que range com um som alto demais, vai até lá rapidamente, prende ou solta o mecanismo para girar na velocidade devida, assim também caminhava Anna Pávlovna em seu salão de visitas, aproximava-se de um círculo que emudecera ou que falava em excesso e, com uma palavra ou com uma troca de posições, restabelecia mais uma vez a regular e decorosa máquina de conversação. Mas, em meio a tais cuidados, via-se nela o tempo todo um medo especial em relação a Pierre. Observou-o com cuidado no momento em que ele se aproximou para ouvir o que diziam em redor de Mortmart e afastou-se rumo a um outro grupo, onde quem falava era o abade. Para Pierre, educado no exterior, aquela noite em casa de Anna Pávlovna era a primeira reunião social de que participava na Rússia. Sabia que ali se achava reunida toda a intelligentsia de Petersburgo e, como uma criança numa loja de brinquedos, não sabia o que escolher. O tempo todo, receava deixar escapar as conversas inteligentes que ali poderia escutar. Olhando para as expressões compenetradas e elegantes dos rostos ali reunidos, esperava a todo momento qualquer coisa de especialmente sábio. Por fim, aproximou-se de Morio. A conversa lhe pareceu interessante e ali Pierre se deteve, esperando uma oportunidade para expressar seus pensamentos, como os jovens gostam de fazer.
III
A festa de Anna Pávlovna corria às mil maravilhas. De todos os lados, os fusos zumbiam de forma regular e sem emudecer. Além da ma tante, perto da qual estava sentada apenas uma senhora de certa idade, de rosto magro e consumido por lágrimas, um pouco estranha àquela sociedade radiante, a festa se dividia em três círculos. Num deles, mais masculino, o centro era o abade; no outro, de jovens, eram a bela princesa Hélène, filha do príncipe Vassíli, e a pequenina princesa Bolkónskaia, bonita, corada, um pouco cheia demais para a sua idade tão jovem. No terceiro, eram Mortmart e Anna Pávlovna.
O visconde era um jovem bonito, de feições e maneiras suaves, que obviamente se considerava uma celebridade, mas por cortesia e modéstia se punha ao dispor da sociedade em que se encontrava. Anna Pávlovna, obviamente, o servia aos seus convidados. Assim como um bom maître d’hôtel oferece como algo excepcionalmente admirável um pedaço de carne que ninguém ia querer comer se o visse na cozinha imunda, também naquela noite Anna Pávlovna servia a seus convidados primeiro o visconde e depois o abade, como algo excepcionalmente refinado. No círculo de Mortmart, logo começaram a falar sobre a execução do duque d’Enghien.32 O visconde disse que o duque d’Enghien perecera por causa da sua magnanimidade e que existiam motivos particulares para o rancor de Bonaparte.
— Ah! voyons. Contez-nous cela, vicomte 33 — disse Anna Pávlovna, sentindo com alegria que naquela frase ecoava algo à la Louis XV. — Contez-nous cela, vicomte.
O visconde fez uma reverência com a cabeça em sinal de submissão e sorriu com cortesia. Anna Pávlovna formou um círculo em redor do visconde e convidou todos a escutar o relato.
— Le vicomte a été personnellement connu de monseigneur — sussurrou Anna Pávlovna para um. — Le vicomte est un parfait conteur — afirmou para outro. — Comme on voit l’homme de la bonne compagnie 34 — disse ela para um terceiro; e o visconde foi servido à sociedade sob a luz mais elegante e vantajosa para ele, como um rosbife numa travessa bem quente, guarnecido com verduras.
O visconde queria começar logo o seu relato e sorria de modo sutil.
— Venha cá, chère Hélène 35 — disse Anna Pávlovna para a bela princesa, que estava sentada mais distante e ocupava o centro de um outro círculo.
A princesa Hélène sorriu; levantou-se com o mesmo sorriso imutável de uma mulher bela em tudo, com o qual havia entrado no salão. Com um leve rumor do vestido branco de baile, enfeitado com hera e musgo, e radiante com a brancura dos ombros, o lustro dos cabelos e dos brilhantes, ela passou em linha reta no meio dos homens, que lhe abriram caminho, sem olhar para ninguém, mas sem parar de sorrir e como que concedendo amavelmente a todos o direito de admirar a beleza do seu talhe, dos ombros fartos, do peito e das costas muito descobertos, como então era moda, e, parecendo levar consigo o brilho do baile, aproximou-se de Anna Pávlovna. Hélène era tão bonita que não só não se percebia nela o menor traço de coquetismo como, ao contrário, ela parecia ter vergonha de sua beleza incontestável, que produzia um efeito forte e triunfante demais. Hélène parecia querer e não conseguir atenuar o efeito de sua beleza. Quelle belle personne!,36 diziam todos que a viam.
Como que espantado por algo fora do comum, o visconde encolheu os ombros e baixou os olhos no momento em que ela sentou à sua frente e o iluminou também com aquele mesmo sorriso imutável.
— Madame, je crains pour mes moyens devant un pareil auditoire 37 — disse ele, curvando a cabeça com um sorriso.
A princesa apoiou o braço farto e desnudo sobre a mesinha e não julgou necessário falar nada. Sorrindo, aguardava. Durante todo o tempo do relato, ficou sentada bem reta, de vez em quando olhava ora para o seu braço farto e bonito, que pela pressão da mesa mudara de feitio, ora para o seu peito, ainda mais bonito, onde ajeitava o colar de brilhantes; volta e meia ajeitava as pregas do vestido e, quando o relato causava mais impressão, olhava para Anna Pávlovna e prontamente assumia a mesma expressão que estava no rosto da dama de honra, e depois de novo se acalmava num sorriso radiante. A pequenina princesa também havia deixado a mesa de chá e viera atrás de Hélène.
— Attendez-moi, je vais prendre mon ouvrage — disse ela. — Voyons, à quoi pensez-vous? — Voltou-se para o príncipe Hippolyte: — Apportez-moi mon réticule.38
A princesa, sorrindo e falando com todos, provocou um súbito rebuliço e, após sentar, ajeitou-se alegremente.
— Agora estou bem — disse e, pedindo ao visconde que começasse, pegou o seu trabalho.
O príncipe Hippolyte trouxe-lhe a bolsa, passou por trás dela, puxou uma cadeira para perto da poltrona da princesa e sentou-se ao seu lado.
Le charmant Hippolyte 39 impressionava por sua extraordinária semelhança com a bela irmã, e mais ainda porque, apesar da semelhança, era de uma feiura chocante. Tinha os traços do rosto iguais aos da irmã, mas ela era sempre iluminada pelo sorriso imutável, satisfeito, jovem, cheio de alegria de viver, e também pela extraordinária beleza clássica do corpo; no irmão, ao contrário, o mesmo rosto era ensombrecido por um idiotismo e exprimia, de forma constante, um azedume presunçoso, ao passo que o corpo era franzino e fraco. Olhos, nariz e boca — tudo se comprimia como que numa careta única, imprecisa e aborrecida, enquanto braços e pernas assumiam sempre uma posição artificial.
— Ce n’est pas une histoire de revenants? 40 — perguntou ele, sentando ao lado da princesa e ajeitando o lornhão na altura dos olhos, como se na falta daquele instrumento não pudesse começar a falar.
— Mais non, mon cher 41 — respondeu o surpreso narrador, contraindo os ombros.
— C’est que je déteste les histoires de revenants 42 — disse ele, num tom que mostrava que havia falado aquelas palavras para só depois entender o que significavam.
Pela presunção com que falava, ninguém podia saber ao certo se o que ele dizia era muito inteligente ou muito estúpido. Vestia um fraque verde-escuro, calças da cor de cuisse de nymphe effrayée,43 como ele mesmo chamava, meias e sapatos.
O visconde contou de modo muito gracioso uma história então em voga, na qual o duque d’Enghien viajara em segredo para Paris a fim de encontrar-se com Mlle George 44 e na casa dela encontrou-se com Bonaparte, que também gozava dos favores da atriz famosa, e lá, ao encontrar-se com o duque, Napoleão por acaso tombou num daqueles desmaios a que era sujeito, e assim ficou à mercê do duque, circunstância de que este não quis tirar proveito; mais tarde, no entanto, Bonaparte vingou-se dessa magnanimidade com a morte do duque.
O relato foi muito gracioso e interessante, em especial no momento em que os rivais de repente se reconhecem um ao outro, e as senhoras pareceram ficar emocionadas.
— Charmant 45 — disse Anna Pávlovna, olhando com ar interrogativo para a pequenina princesa.
— Charmant — murmurou a pequenina princesa, enfiando a agulha no trabalho, como em sinal de que o interesse e o encanto do relato a impediam de continuar o trabalho.
O visconde apreciou esse elogio mudo e, sorrindo agradecido, quis continuar; mas nesse momento Anna Pávlovna, que observava o tempo todo aquele jovem para ela tão assustador, notou que ele falava com o abade num tom ardoroso e alto demais e apressou-se em ir ao local do perigo para prestar socorro. De fato, Pierre conseguira entabular com o abade uma conversa sobre o equilíbrio político, e o abade, visivelmente interessado pelo entusiasmo ingênuo do jovem, explanava para ele a sua tese predileta. Os dois escutavam e falavam de modo excessivamente vivo e espontâneo, e isso não agradava a Anna Pávlovna.
— O caminho é o equilíbrio europeu e o droit de gens 46 — disse o abade. — Para um Estado poderoso como a Rússia, com fama de bárbaro, basta colocar-se de forma desinteressada à frente de uma aliança que tenha por objetivo o equilíbrio da Europa, e assim salvará o mundo!
— Como o senhor vai encontrar tal equilíbrio? — Pierre fez menção de começar, porém, nesse instante, Anna Pávlovna se aproximou e, após lançar um olhar severo para Pierre, perguntou ao italiano como ele vinha suportando o clima local. O rosto do italiano modificou-se de repente e assumiu uma expressão ofendida, simuladamente doce, que, via-se bem, era nele habitual nas conversas com mulheres.
— Estou tão fascinado com os encantos da inteligência e da cultura da sociedade, em especial da sociedade feminina, em que tenho a satisfação de ser recebido, que ainda não tive tempo de pensar no clima — respondeu ele.
Sem largar o abade e Pierre, Anna Pávlovna trouxe ambos para o círculo principal, onde podia exercer sua vigilância com mais comodidade.
Naquele momento, entrou na sala uma pessoa nova. Essa pessoa nova era o jovem príncipe Andrei Bolkónski, marido da pequenina princesa. O príncipe Bolkónski era um jovem bonito, de baixa estatura, feições marcadas e secas. Tudo em sua figura, desde o olhar cansado, aborrecido, até os passos silenciosos e cadenciados, apresentava um contraste brutal com sua esposa pequenina e vivaz. Via-se logo que o príncipe não só conhecia bem todos os presentes no salão como já estava farto de todos, de tal modo que só olhar para aquelas pessoas ou escutá-las era muito aborrecido para ele. Entre todos os rostos que o aborreciam, o da sua esposa bonita lhe parecia o mais maçante de todos. Com uma careta que estragava o seu belo rosto, deu as costas para ela. Beijou a mão de Anna Pávlovna e, contraindo os olhos, correu um olhar por toda a sociedade ali reunida.
— Vous vous enrôlez pour la guerre, mon prince? 47 — perguntou Anna Pávlovna.
— Le général Koutouzoff — disse Bolkónski, acentuando a última sílaba zoff, como um francês — a bien voulu de moi pour aide de champ...48
— Et Lise, votre femme? 49
— Ela irá para o campo.
— Não é um pecado da parte do senhor nos privar da sua esposa encantadora?
— André — chamou a esposa, dirigindo-se ao marido com o mesmo tom coquete que usava para se dirigir a estranhos. — Que história nos contou o visconde sobre Mademoiselle George e Bonaparte!
O príncipe Andrei semicerrou os olhos e lhe deu as costas. Pierre, que desde o momento da entrada do príncipe Andrei no salão não desviava dele os olhos alegres, amistosos, aproximou-se e segurou-o pelo braço. O príncipe Andrei, sem olhar para o lado, franziu o rosto numa careta que expressava irritação contra aquele que tocara em seu braço, mas ao ver o rosto sorridente de Pierre, deu um inesperado sorriso bondoso e simpático.
— Ora, veja só!... Você, na alta sociedade! — disse para Pierre.
— Eu sabia que você estaria aqui — respondeu Pierre. — Irei jantar na sua casa — acrescentou em voz baixa, para não atrapalhar o visconde, que continuava a sua história. — Posso?
— Não, não pode — respondeu o príncipe Andrei, rindo, e, com um aperto de mão, deu um sinal para Pierre de que nem precisava perguntar tal coisa.
Ainda queria falar mais, porém nesse momento o príncipe Vassíli aproximou-se com sua filha, e os dois jovens levantaram-se para lhes dar passagem.
— O senhor me perdoe, meu caro visconde — disse o príncipe Vassíli para o francês, segurando-o delicadamente pela manga para que ele não se levantasse da cadeira. — Essa malfadada festa na casa do embaixador me priva de um prazer e interrompe o senhor. Lamento muito deixar a sua festa maravilhosa — disse para Anna Pávlovna.
Sua filha, a princesa Hélène, segurando com leveza as dobras do vestido, passou entre as cadeiras, e o sorriso brilhou ainda mais luminoso em seu rosto lindo. Pierre olhou com olhos quase assustados, admirados, para aquela beldade, quando ela passou por ele.
— Muito bonita — disse o príncipe Andrei.
— Muito — disse Pierre.
Ao passar, o príncipe Vassíli tomou a mão de Pierre e voltou-se para Anna Pávlovna.
— Domestique para mim este urso — disse ele. — Veja, faz um mês que mora em minha casa, e esta é a primeira vez que o vejo em sociedade. Não existe nada mais necessário para um jovem do que o convívio com mulheres inteligentes.
IV
Anna Pávlovna sorriu e prometeu cuidar de Pierre, que, ela sabia, era parente do príncipe Vassíli por parte de pai. A senhora de idade que estava sentada perto de ma tante levantou-se apressada e alcançou o príncipe Vassíli na saída. Do rosto da mulher, desapareceu todo o fingimento de interesse que antes havia. O rosto bondoso, consumido por lágrimas, exprimia apenas inquietude e medo.
— O que o senhor me diz sobre o meu Boris, príncipe? — perguntou a mulher, ao alcançá-lo na saída. (Pronunciou o nome Boris com um acento especial no o.) — Não posso ficar mais em Petersburgo. Diga, que notícias posso levar para o meu pobre menino?
Apesar de o príncipe Vassíli escutar a senhora de idade a contragosto, quase de modo indelicado, e de até manifestar impaciência, ela sorria para ele com um ar afetuoso e comovente e, para que não fosse embora, segurava-o pelo braço.
— O que custa ao senhor dizer uma palavra ao soberano, ele seria transferido diretamente para a guarda — pediu.
— Creia, princesa, farei tudo o que posso — respondeu o príncipe Vassíli. — Mas para mim é difícil pedir ao soberano; eu recomendo à senhora que procure Rumiántsev, por intermédio do príncipe Golítsin: seria mais sensato.
A senhora de idade chamava-se princesa Drubetskaia, uma das melhores famílias da Rússia, mas ela era pobre, havia muito que se afastara da sociedade e perdera os contatos influentes que tinha antes. Viajara até ali para obter a nomeação do seu filho único para a guarda. Havia comparecido à festa de Anna Pávlovna só para encontrar o príncipe Vassíli, e só por isso escutou a história do visconde. Assustou-se com as palavras do príncipe Vassíli; o seu rosto, bonito no passado, tomou uma expressão de ofensa, mas isso durou só um minuto. Sorriu de novo e apertou o braço do príncipe com mais força ainda.
— Escute, príncipe — disse ela. — Nunca pedi ao senhor, e nunca pedirei ao senhor outra vez, nunca invoquei a amizade que o meu pai tinha pelo senhor. Mas agora, em nome de Deus, suplico, faça isso pelo meu filho, e terei o senhor como meu benfeitor — acrescentou às pressas. — Não, o senhor não fique zangado, mas me prometa. Pedi ao Golítsin, ele recusou. Soyez le bon enfant que vous avez été 50 — disse ela, esforçando-se para sorrir, enquanto em seus olhos havia lágrimas.
— Papai, vamos chegar atrasados — disse a princesa Hélène, que esperava na porta, virando a cabeça bonita sobre os ombros de linhas clássicas.
A influência na sociedade é um capital que é preciso poupar, para que ele não acabe. O príncipe Vassíli sabia disso e, assim que se deu conta de que se começasse a pedir por todos os que lhe pediam em pouco tempo não poderia mais pedir por si mesmo, raramente fazia uso da sua influência. No caso da princesa Drubetskaia, porém, ele sentiu, após o seu novo apelo, uma espécie de dor na consciência. Ela lembrou-lhe uma verdade: seus primeiros passos no serviço público, ele devia ao pai da princesa. Além disso, por suas maneiras, via que era uma dessas mulheres, sobretudo mães, que depois que enfiam uma ideia na cabeça não dão sossego enquanto não alcançam o que desejam e, em caso de uma recusa, estão prontas a importunar dia após dia, minuto após minuto, e até a fazer escândalos. Esta última consideração o abalou.
— Chère Anna Mikháilovna — disse ele, com sua habitual familiaridade e enfado na voz. — Para mim é quase impossível fazer o que a senhora deseja; mas, para lhe mostrar como gosto da senhora e em memória do seu falecido pai, farei o impossível: o seu filho será transferido para a guarda, tome aqui, aperte a minha mão. Está satisfeita?
— Meu querido, o senhor é um benfeitor! Não esperava outra coisa do senhor; sabia que o senhor era bom.
Ele quis ir embora.
— Espere, só mais duas palavras. Une fois passé aux gardes... 51 — Ela hesitou. — O senhor tem boas relações com Mikhail Ilariónovitch Kutúzov, recomende Boris para ser seu ajudante de ordens. Então ficarei tranquila, e então...
O príncipe Vassíli sorriu.
— Isso eu não prometo. A senhora não sabe como assediam Kutúzov desde que ele foi nomeado comandante em chefe.52 Ele mesmo me disse que todas as senhoras de Moscou conspiraram para lhe oferecer seus filhos para o posto de ajudante de ordens.
— Não, prometa, não vou largar o senhor, meu querido, meu benfeitor...
— Papai! — repetiu a beldade, no mesmo tom. — Vamos chegar atrasados.
— Bem, au revoir,53 adeus.
— Então amanhã o senhor vai falar com o soberano?
— Sem falta, mas quanto a Kutúzov, eu não prometo.
— Não, prometa, prometa, Basile — disse, atrás dele, Anna Mikháilovna, com um sorriso de jovem coquete que, em outros tempos, lhe ficava bem, talvez, mas que agora não combinava com o seu rosto exaurido.
Parecia ter esquecido sua idade e, pela força do hábito, punha em ação todos os velhos expedientes femininos. Mas assim que ele foi embora, seu rosto assumiu a mesma expressão fria, fingida, que tinha antes. Ela voltou para o círculo em que o visconde continuava a falar, e de novo fez de conta que escutava, enquanto esperava a hora de sair, uma vez que sua tarefa ali já estava cumprida.
— Mas o que o senhor acha de toda essa recente comédia du sacre de Milan? — perguntou Anna Pávlovna. — Et la nouvelle comédie des peuples de Gênes et de Lucques, qui viennent présenter leurs vœux à monsieur Buonaparte assis sur un trône, et exauçant les vœux des nations! Adorable! Non, mais c’est à en devenir folle! On dirait, que le monde entier a perdu la tête.54
O príncipe Andrei deu um sorriso, fitando diretamente no rosto de Anna Pávlovna.
— “Dieu me la donne, gare à qui la touche” — disse ele (palavras de Bonaparte, ditas na sua coroação). — On dit qu’il a été très beau en prononçant ces paroles 55 — acrescentou e mais uma vez repetiu aquelas palavras, em italiano: “Dio mi la dona, guai a chi la tocca”.
— J’espère enfin — continuou Anna Pávlovna — que ça a été la goutte d’eau qui fera déborder le verre. Les souverains ne peuvent plus supporter cet homme, qui menace tout.56
— Les souverains? Je ne parle pas de la Russie — disse o visconde, com polidez, mas sem esperança. — Les souverains, madame! Qu’ont-ils fait pour Louis XVI, por la reine, pour madame Elisabeth? Rien — prosseguiu, animando-se. — Et croyez-mois, ils subissent la punition pour leur trahison de la cause des Bourbons. Les souverains? Ils envoient des ambassadeurs complimenter l’usurpateur.57
E ele, depois de dar um suspiro de desprezo, mudou novamente de posição. O príncipe Hippolyte, que havia observado demoradamente o visconde através do lornhão, ao som daquelas palavras virou todo o seu corpo para a pequenina princesa, pediu a sua agulha e passou a lhe mostrar, num desenho feito com a agulha sobre a mesa, o brasão dos Condé.58 Explicou aquele brasão para a princesa com uma fisionomia tão séria como se ela lhe tivesse pedido tal explicação.
— Bâton de gueules, engrêlé de gueules d’azur... maison Condé 59 — disse ele.
A princesa escutava, sorrindo.
— Se Bonaparte continuar no trono da França durante mais um ano — prosseguiu o visconde, com o aspecto de um homem que não escuta os outros, apenas segue o fio dos próprios pensamentos, num assunto que conhece melhor do que ninguém —, essa história terá ido longe demais. Por meio da intriga, da força bruta, dos exílios, das torturas, a sociedade francesa, eu me refiro à boa sociedade, será aniquilada para sempre, e então...
Encolheu os ombros e abriu os braços. Pierre fez menção de dizer algo: a conversa o interessava, mas Anna Pávlovna, que o vigiava, interrompeu:
— O imperador Alexandre — disse ela com a tristeza que sempre acompanhava suas palavras sobre a família do imperador — declarou que deixará que os próprios franceses escolham sua forma de governo. E eu penso não haver dúvida de que a nação inteira, uma vez livre do usurpador, se lançará nos braços do rei legítimo — disse Anna Pávlovna, tentando mostrar-se amável com o emigrante realista.
— Isso é duvidoso — disse o príncipe Andrei. — Monsieur le vicomte 60 tem toda a razão ao supor que essa história já foi longe demais. Creio que será difícil voltar ao que era.
— Pelo que ouvi dizer — interveio Pierre de novo, ruborizando-se —, quase toda a nobreza já passou para o lado de Bonaparte.
— É o que dizem os bonapartistas — respondeu o visconde, sem olhar para Pierre. — Neste momento é difícil saber qual a opinião pública na França.
— Bonaparte l’a dit 61 — disse o príncipe Andrei, com um sorriso.
(Era visível que não simpatizava com o visconde e que, embora não o fitasse, era contra ele que dirigia suas palavras.)
— “Je leur ai montré le chemin de la gloire” — disse, depois de um breve silêncio, repetindo mais uma vez palavras de Napoleão: — “ils n’en ont pas voulu; je leur ai ouvert mes antichambres, ils se sont précipités en foule”... Je ne sais pas à quel point il a eu le droit de le dire.62
— Aucun — retrucou o visconde. — Depois do assassinato do duque, até as pessoas mais parciais pararam de ver nele um herói. Si même ça a été un héros pour certaines gens — disse o visconde, voltando-se para Anna Pávlovna —, depuis l’assassinat du duc il y a un martyr de plus dans le ciel, un héros de moins sur la terre.63
Anna Pávlovna e os outros mal tiveram tempo de sorrir para mostrar sua apreciação das palavras do visconde, quando Pierre irrompeu de novo na conversa e Anna Pávlovna, embora pressentindo que ele ia dizer algo inconveniente, já não pôde detê-lo.
— A execução do duque d’Enghien — disse M. Pierre — foi um imperativo de Estado; e vejo exatamente nisso uma grandeza de espírito, por Napoleão não haver temido assumir sozinho a responsabilidade de tal ato.
— Dieu! Mon Dieu! 64 — exclamou Anna Pávlovna, num sussurro apavorado.
— Comment, monsieur Pierre, vous trouvez que l’assassinat est grandeur d’âme65 — disse a pequenina princesa, sorrindo e aproximando de si o seu trabalho de costura.
— Ah! Oh! — exclamaram várias vozes.
— Capital! — exclamou em inglês o príncipe Hippolyte e deu umas palmadinhas no joelho.
O visconde apenas encolheu os ombros. Pierre olhou com ar de triunfo para os ouvintes, por cima dos óculos.
— Falo assim — continuou ele, com audácia — porque os Bourbon fugiram da Revolução, abandonando o povo à anarquia; só Napoleão soube entender a Revolução e derrotá-la, e por isso, para o bem geral, ele não podia deter-se diante da vida de um homem.
— O senhor não gostaria de ir para aquela mesa? — disse Anna Pávlovna.
Mas Pierre, sem responder, continuou sua fala.
— Não — disse, cada vez mais entusiasmado. — Napoleão é grande porque se colocou acima da Revolução, reprimiu seus abusos, preservou tudo o que havia de bom, a igualdade dos cidadãos, a liberdade de expressão e de imprensa, e só por isso chegou ao poder.
— Sim, se ele, depois de tomar o poder, não o usasse para cometer assassinatos e o devolvesse para o rei legítimo — disse o visconde —, então eu o chamaria de grande homem.
— Ele não poderia fazer isso. O povo lhe deu o poder exatamente para livrar-se dos Bourbon e por isso o povo viu nele um grande homem. A Revolução foi um acontecimento grandioso — prosseguiu M. Pierre, mostrando com essa afirmação atrevida e provocativa a sua extrema juventude e o desejo de dizer tudo de uma só vez.
— A Revolução e o regicídio são acontecimentos grandiosos?... Depois disso... o senhor não gostaria de ir para aquela mesa? — repetiu Anna Pávlovna.
— Contrat social 66 — disse o visconde, com um sorriso dócil.
— Não estou falando de regicídio. Estou falando de ideias.
— Sim, ideias de pilhagem, de assassinato e de regicídio — interrompeu de novo uma voz irônica.
— Esses foram excessos, é claro, mas a importância não está toda nisso, a importância está nos direitos do homem, na emancipação dos preconceitos, na igualdade dos cidadãos; e Napoleão sustentou todas essas ideias com todas as suas forças.
— Liberdade e igualdade — disse o visconde, com desprezo, como se tivesse afinal resolvido mostrar a sério para aquele jovem toda a tolice de suas palavras. — Palavras retumbantes que há muito já se comprometeram. Quem não gosta de liberdade e de igualdade? Já o nosso Salvador pregava a liberdade e a igualdade. Será que depois da Revolução as pessoas se tornaram mais felizes? Ao contrário. Queríamos a liberdade, e Bonaparte a destruiu.
O príncipe Andrei, com um sorriso, olhava ora para Pierre, ora para o visconde, ora para a anfitriã. No primeiro minuto da investida de Pierre, Anna Pávlovna horrorizou-se, apesar de estar habituada à sociedade; mas quando viu que, apesar das palavras sacrílegas ditas por Pierre, o visconde não se mostrava alterado, e quando ela se convenceu de que já não era possível abafar aquelas palavras, reuniu suas forças, aliou-se ao visconde e atacou o orador.
— Mais, mon cher monsieur Pierre 67 — disse Anna Pávlovna —, como o senhor explica que um grande homem possa executar um duque, afinal, um homem comum, sem julgamento e sem culpa?
— E eu perguntaria — disse o visconde — como o Monsieur explica o Dezoito de Brumário. Por acaso não foi um embuste? C’est un escamotage, qui ne ressemble nullement à la manière d’agir d’un grand homme.68
— E os prisioneiros na África que ele matou? — disse a pequenina princesa. — É horrível! — E contraiu os ombros.
— C’est un roturier, vous aurez beau dire 69 — disse o príncipe Hippolyte.
M. Pierre não sabia a quem responder, olhava para todos e sorria. Não era, como nas outras pessoas, um sorriso que se confundia com uma feição séria. Ao contrário, quando lhe vinha um sorriso, instantaneamente desaparecia o rosto sério e até um pouco lúgubre e aparecia um outro, infantil, bondoso, e até tolo, que dava a impressão de pedir desculpas.
Para o visconde, que o via pela primeira vez, ficou claro que aquele jacobino não tinha nada de tão temível quanto suas palavras. Todos ficaram calados.
— Como os senhores podem querer que ele responda a todos de uma só vez? — disse o príncipe Andrei. — Além do mais, nos atos de um homem de Estado, é preciso distinguir os atos da vida privada, os de chefe militar e os de imperador. É o que me parece.
— Sim, sim, é claro — apoiou Pierre, alegre com a ajuda que recebia.
— É impossível não reconhecer — continuou o príncipe Andrei — que Napoleão agiu como um grande homem na ponte de Arcola, no hospital em Jafa, onde apertou a mão dos contaminados pela peste, mas... mas há outras ações difíceis de justificar.70
O príncipe Andrei, que visivelmente pretendera atenuar o desconforto causado pelas palavras de Pierre, levantou-se, preparando-se para ir embora, e fez um sinal para a esposa.
De repente o príncipe Hippolyte levantou-se, deteve todos com gestos da mão e, pedindo que sentassem, falou:
— Ah! Aujourd’hui on m’a raconté une anecdote moscovite, charmante: il faut que je vous en régale. Vous m’excusez, vicomte, il faut que je raconte en russe. Autrement on ne sentira pas le sel de l’histoire.71
E o príncipe Hippolyte começou a falar em russo tal como o pronunciam os franceses depois de viver um ano na Rússia. Todos aguardaram: tamanha foi a animação e a insistência com que o príncipe Hippolyte exigiu a atenção para a sua história.
— Em Moscou há uma certa fidalga, une dame. E ela é muito avarenta. Precisava de dois valets de pied para acompanhar a carruagem. E precisavam ser bem altos. Era o gosto dela. E tinha uma femme de chambre,72 também alta. Ela disse...
Nesse ponto o príncipe Hippolyte parou para pensar, com uma visível dificuldade para organizar as ideias.
— Ela disse... sim, ela disse: “Menina (à la femme de chambre), vista a livrée e venha comigo na carruagem faire des visites”.73
Aqui o príncipe Hippolyte bufou e soltou uma gargalhada muito antes que seus ouvintes, o que produziu uma impressão desfavorável para o narrador. Contudo alguns sorriram, entre os quais a senhora de idade e Anna Pávlovna.
— E lá foi ela. De repente, bateu um vento forte. A mocinha perdeu o chapéu e os cabelos compridos se soltaram...
Aqui ele já não conseguiu mais se conter e pôs-se a rir em espasmos e, no meio daquela risada, falou:
— E todo mundo soube...
Assim terminou a anedota. Embora fosse incompreensível por que ele a contara e por que precisava tanto contar em russo, Anna Pávlovna e os outros apreciaram a cortesia mundana do príncipe Hippolyte, que assim encerrara a desagradável e descortês investida de M. Pierre. Depois da anedota, a conversa se dispersou em comentários miúdos e insignificantes sobre bailes futuros ou passados, sobre algum espetáculo, sobre quando e onde encontrariam esta ou aquela pessoa.
V
Depois de agradecer a Anna Pávlovna por sua charmante soirée,74 os convidados começaram a ir embora.
Pierre era um desajeitado. Gordo, de estatura mais alta do que o habitual, largo, com imensas mãos vermelhas, ele, como dizem, não sabia como entrar num salão e menos ainda como sair, ou seja, dizer algo especialmente agradável antes de se retirar. Além disso, era distraído. Ao levantar-se, em vez do seu chapéu, pegou um chapéu de general, com três pontas e um penacho, e ficou com ele na mão, sacudindo o penacho, até que o general veio pedi-lo de volta. Mas toda a sua distração e incapacidade de entrar num salão e ali travar conversas era compensada por sua expressão de benevolência, simplicidade e modéstia. Anna Pávlovna voltou-se para ele e, com uma brandura cristã que exprimia perdão à sua investida na conversa, cumprimentou-o com um meneio de cabeça e disse:
— Espero ver o senhor de novo, mas espero também que mude de opinião, meu caro Monsieur Pierre — disse ela.
Quando ela lhe falou assim, ele nada respondeu, apenas fez uma reverência com a cabeça e mostrou a todos, mais uma vez, o seu sorriso, que nada dizia, senão isto: “Opiniões são opiniões, mas vocês estão vendo como sou um rapaz bom e simpático”. E todos, inclusive Anna Pávlovna, sentiram isso espontaneamente.
O príncipe Andrei saiu para o vestíbulo e, de costas para o lacaio que punha em seus ombros uma capa, ouvia com indiferença o tagarelar da esposa e do príncipe Hippolyte, que também viera para o vestíbulo. O príncipe Hippolyte estava ao lado da bela princesinha grávida e a fitava obstinadamente através do lornhão.
— Vá logo, Annette, a senhora vai se resfriar — disse a pequenina princesa, despedindo-se de Anna Pávlovna. — C’est arrêté 75 — acrescentou, em voz baixa.
Anna Pávlovna já tivera tempo de trocar algumas palavras com Liza a respeito do casamento que planejava realizar entre Anatole e a cunhada da pequenina princesa.
— Conto com a senhora, minha querida amiga — disse Anna Pávlovna, também em voz baixa. — Escreva para ela e diga-me comment le père envisagera la chose. Au revoir 76 — e retirou-se do vestíbulo.
O príncipe Hippolyte aproximou-se da pequenina princesa e, curvando o rosto para perto, pôs-se a falar algo em sussurros.
Dois lacaios, um da princesa e outro de Hippolyte, esperavam que terminassem de falar, postados um com o xale e outro com o redingote, e ouviam a conversa em francês, para eles incompreensível, com ar de quem entendia o que estava sendo dito mas não queria demonstrar. A princesa, como sempre, falava sorrindo e escutava rindo.
— Estou muito contente por não ter ido à embaixada — disse o príncipe Hippolyte. — É um tédio... Que festa maravilhosa, não é verdade? Maravilhosa.
— Dizem que o baile vai ser muito bom — respondeu a princesinha, levantando o lábio com um bigodinho. — Todas as mulheres bonitas da sociedade estarão lá.
— Nem todas, porque a senhora não estará lá; nem todas — disse o príncipe Hippolyte; rindo com alegria, tomou o xale das mãos do lacaio, a quem até empurrou, e tratou de vestir com ele a princesinha.
Por um descuido ou de propósito (ninguém poderia decidir isso), ele demorou muito tempo para baixar o braço, depois que o xale já estava vestido, e parecia abraçar a jovem.
Mas ela, de maneira graciosa, sempre sorrindo, afastou-se, deu-lhe as costas e lançou um olhar para o marido. Os olhos do príncipe Andrei estavam fechados: parecia muito cansado e com sono.
— A senhora está pronta? — perguntou para a esposa, desviando dela o olhar.
O príncipe Hippolyte vestiu às pressas seu redingote, que ia até os calcanhares, como ditava a moda, e, tropeçando nele, correu pelo alpendre no encalço da princesinha, que o lacaio ajudava a subir na carruagem.
— Princesse, au revoir 77 — gritou ele, tropeçando na língua, como nos pés.
A princesinha, puxando o vestido, sentou-se na sombra da carruagem; o marido ajeitou o sabre; o príncipe Hippolyte, sob o pretexto de ajudar, atrapalhava todos.
— Com licença, senhor — falou em russo o príncipe Andrei, em tom seco e desagradável, para o príncipe Hippolyte, que impedia a sua passagem. — Espero você, Pierre — exclamou a mesma voz do príncipe Andrei, em tom amigável e afetuoso.
O boleeiro deu a partida, e as rodas da carruagem começaram a retumbar. O príncipe Hippolyte ria de maneira espasmódica, parado no alpendre, à espera do visconde, a quem ele prometera acompanhar até sua casa.
— Eh bien, mon cher, votre petite princesse est très bien, très bien — disse o visconde, após sentar-se na carruagem com Hippolyte. — Mais très bien. — Beijou a pontinha dos dedos. — Et tout à fait Française.78
Hippolyte bufou e soltou uma risada.
— Et savez-vous que vous êtes terrible avec votre petit air innocent — continuou o visconde. — Je plains le pauvre mari, ce petit officier, qui se donne des airs de prince régnant.79
Hippolyte bufou de novo, em meio ao riso, e falou:
— Et vous disiez, que les dames russes ne valent pas les dames françaises. Il faut savoir s’y prendre.80
Pierre, que chegou antes do casal, como era uma pessoa de casa, seguiu direto para o escritório do príncipe Andrei e, sem demora, como de hábito, deitou no divã, pegou na estante o primeiro livro que lhe caiu na mão (eram os Comentários de César) e começou a ler do meio, apoiado num cotovelo.
— O que você aprontou com a Mademoiselle Scherer? Ela agora vai ficar doente de uma vez — disse o príncipe Andrei, ao entrar no escritório, esfregando as mãos pequenas e brancas.
Pierre virou todo o corpo, de tal modo que o divã soltou rangidos, e voltou para o príncipe o rosto animado, sorriu e acenou com a mão.
— Não, aquele abade é muito interessante, só que não entende do assunto... Para mim, a paz perpétua é possível, mas, não sei como dizer... Não vai vir por meio do equilíbrio político...
O príncipe Andrei, visivelmente, não estava interessado naquelas conversas abstratas.
— Não podemos, mon cher, dizer sempre e em toda parte aquilo que pensamos. Bem, e o que você resolveu, afinal? Vai ser cavaleiro da guarda ou diplomata? — perguntou o príncipe Andrei, após um minuto de silêncio.
Pierre se pôs sentado no divã, com as pernas dobradas sob o corpo.
— Pois é, eu ainda não sei. Não gosto nem de uma coisa nem de outra.
— Mas é preciso tomar uma decisão, não é? O seu pai está esperando.
Pierre, aos dez anos, tinha ido para o exterior em companhia de um abade, que era o seu preceptor, e lá vivera até os vinte. Quando voltou a Moscou, o pai despediu o abade e disse ao jovem: “Agora você irá para Petersburgo, vai observar e vai escolher. Concordarei com tudo. Tome aqui uma carta para o príncipe Vassíli, e também algum dinheiro. Escreva-me e conte tudo, lhe darei toda ajuda”. Já fazia três meses que Pierre estava escolhendo sua carreira e nada decidia. Era sobre tal escolha que falava o príncipe Andrei. Pierre esfregou a testa.
— Mas ele deve ser um maçom — disse, referindo-se ao abade que encontrara na festa.
— Tudo isso são loucuras — interrompeu-o de novo o príncipe Andrei. — É melhor falarmos de assuntos sérios. Você esteve na cavalaria da guarda?...
— Não, não estive, mas veja o que me veio à cabeça, eu queria dizer a você. Agora há uma guerra contra Napoleão. Se essa fosse uma guerra pela liberdade, eu entenderia, seria o primeiro a ingressar no serviço militar; mas ajudar a Inglaterra e a Áustria contra o maior homem do mundo... isso não está certo...
O príncipe Andrei apenas encolheu os ombros ante as palavras infantis de Pierre. Deu a entender que era impossível responder tamanha tolice; mas na verdade era difícil responder àquela questão a não ser da forma como respondeu o príncipe Andrei.
— Se todos fossem para a guerra só por causa de suas convicções, não haveria guerras — disse.
— E isso seria maravilhoso — disse Pierre.
O príncipe Andrei deu um sorriso.
— É muito provável que seria maravilhoso, mas nunca vai acontecer...
— Bem, e então para que o senhor vai para a guerra? — perguntou Pierre.
— Para quê? Não sei. Porque é preciso. Além disso eu vou... — Parou. — Vou porque esta vida que levo aqui, esta vida... não me serve!
VI
No cômodo vizinho, soou o rumor de um vestido de mulher. Como se voltasse a si, o príncipe Andrei teve um sobressalto, e seu rosto adquiriu a expressão que tinha no salão de Anna Pávlovna. Pierre baixou as pernas do divã. A princesa entrou. Já estava com outro vestido, de uso doméstico, mas igualmente elegante e fresco. O príncipe Andrei levantou-se, oferecendo educadamente uma cadeira.
— Muitas vezes eu fico pensando — disse ela em francês, como sempre, enquanto, afoita e agitada, sentava na cadeira —, por que será que a Annette não casou? Como todos os senhores são tolos, Messieurs, por não terem casado com ela. Desculpem, mas os senhores não entendem nada de mulheres. E como o senhor gosta de discutir, Monsieur Pierre.
— Pois eu estava justamente discutindo com o seu marido; não entendo para que ele quer ir para a guerra — disse Pierre, sem o menor constrangimento (tamanha era a familiaridade nas relações entre o rapaz e a jovem), dirigindo-se à princesa.
Ela se agitou. Era evidente que as palavras de Pierre tinham tocado num ponto sensível.
— Ah, pois eu falo a mesma coisa! — exclamou ela. — Não entendo, positivamente eu não entendo por que os homens não podem viver sem a guerra. Por que nós, mulheres, não queremos nada, não precisamos de nada? Veja bem, o senhor será o juiz. Eu sempre digo para ele: aqui ele é ajudante de ordens do titio, tem uma posição formidável. Todos o conhecem muito bem, todos o estimam tanto. Há alguns dias, na casa de Apráksin, ouvi uma senhora perguntar: “C’est ça le fameux prince André?”. Ma parole d’honneur! 81 — Riu. — É assim que o recebem em toda parte. Poderia muito facilmente ser ajudante de ordens do imperador. O senhor sabia, o soberano falou com ele com grande atenção. Eu e Annette conversamos e seria muito fácil conseguir isso. O que o senhor acha?
Pierre fitou o príncipe Andrei e, ao notar que aquela conversa não agradava ao seu amigo, nada respondeu.
— Quando vai partir? — perguntou.
— Ah! Ne me parlez pas de ce départ, ne m’en parlez pas. Je ne veux pas en entendre parler — disse a princesa no tom caprichoso e jocoso que usara para falar com Hippolyte no salão de festa e que, obviamente, não combinava com o ambiente familiar, onde Pierre era quase como um parente. — Hoje, quando pensei que será preciso interromper todas essas queridas relações... E depois, sabe, André? — Piscou os olhos de modo significativo para o marido. — J’ai peur, j’ai peur! 82 — sussurrou, com um tremor nas costas.
O marido fitou-a como se tivesse ficado surpreso ao notar que alguém mais, além dele e de Pierre, estava presente; e voltou-se para a esposa num tom interrogativo e com uma polidez fria:
— Mas o que receia, Liza? Não consigo entender — disse.
— Aí está como todos os homens são egoístas; todos, todos são egoístas! Só pelos seus caprichos, Deus sabe para quê, vai me abandonar, vai me deixar trancada no campo, sozinha.
— Com o pai e a irmã, não esqueça — disse o príncipe Andrei, em voz baixa.
— Mesmo assim, sozinha, sem as minhas amigas... E ele ainda quer que eu não tenha medo.
Seu tom de voz agora já era mal-humorado, o lábio se erguera, o que dava ao rosto uma expressão não de alegria, mas de um animal, de um esquilo. Calou-se, como se achasse inconveniente falar a respeito da gravidez diante de Pierre, pois era esse o âmago da questão.
— Mesmo assim, não entendi de quoi vous avez peur 83 — disse o príncipe Andrei, lentamente, com os olhos fixos na esposa.
A princesa ruborizou-se e balançou as mãos em desespero.
— Non, André, je dis que vous avez tellement, tellement changé...84
— O seu médico quer que você vá se deitar mais cedo — disse o príncipe Andrei. — Era melhor ir dormir.
A princesa não disse nada e, de repente, o labiozinho curto e com um bigodinho estremeceu; o príncipe Andrei levantou-se, encolheu os ombros e pôs-se a andar pelo escritório.
Pierre, com ar surpreso e ingênuo, olhava através dos óculos ora para ele, ora para a princesa, e começou a se mexer, como se também quisesse levantar, mas mudou de ideia outra vez.
— O que me importa se Monsieur Pierre está aqui — disse de repente a pequenina princesa, e seu rosto bonito se desmanchou de súbito numa careta chorosa. — Faz muito que eu queria lhe dizer, André: por que você mudou tanto comigo? O que foi que eu lhe fiz? Você vai para o Exército; você não tem pena de mim. Por quê?
— Lise! — disse apenas o príncipe Andrei; mas nessa palavra havia um pedido e uma ameaça, e acima de tudo a convicção de que ela mesma iria se arrepender de suas palavras; mas a princesa continuou, afobada:
— Você me trata como uma doente ou como uma criança. Eu vejo tudo. Por acaso você era assim meio ano atrás?
— Lise, peço que a senhora pare — disse o príncipe Andrei, em tom ainda mais eloquente.
Pierre, cada vez mais perturbado com aquela conversa, levantou-se e aproximou-se da princesa. Ao que parecia, ele não conseguia suportar a visão de lágrimas e estava também à beira de chorar.
— Acalme-se, princesa. Assim parece à senhora, porque, eu lhe asseguro, eu mesmo experimentei... para que... porque... Não, perdoe, minha presença não é conveniente... Não, acalme-se... Peço à senhora...
O príncipe Andrei segurou-o pelo braço.
— Não, espere, Pierre. A princesa é tão boa que não vai querer privar-me do prazer de ter a sua companhia esta noite.
— Não, ele só pensa em si mesmo — exclamou a princesa, sem conter os olhos zangados.
— Lise — disse o príncipe Andrei, em tom seco, levantando a voz a um nível que demonstrava que a paciência havia esgotado.
De repente, a zangada expressão de esquilo do rostinho bonito da princesa transformou-se numa expressão de medo que despertava e pedia compaixão; olhava de esguelha para o marido, com seus olhos lindos, e em seu rosto mostrava-se a expressão tímida e agradecida de um cachorro que abana depressa, mas de leve, o rabo caído.
— Mon Dieu, mon Dieu! — exclamou a princesa e, segurando com a mão as dobras do vestido, aproximou-se do marido e beijou-lhe a testa.
— Bonsoir, Lise 85 — disse o príncipe Andrei, levantando-se e, educadamente, como a uma estranha, beijou sua mão.
Os amigos ficaram em silêncio. Nem um nem outro começava a falar. Pierre lançava olhares para o príncipe Andrei, o príncipe Andrei esfregava a testa com a mão pequena.
— Vamos jantar — disse, com um suspiro, levantando-se e dirigindo-se para a porta.
Entraram numa sala de jantar recém-decorada de maneira elegante e luxuosa. Tudo, dos guardanapos à prataria, da faiança aos cristais, trazia em si aquela marca do novo que se vê na residência dos recém-casados. No meio do jantar, o príncipe Andrei apoiou os cotovelos sobre a mesa e, como um homem que há muito tempo traz algo no coração e de repente resolve contar, com uma expressão de irritação nervosa que Pierre nunca tinha visto em seu amigo, começou a falar:
— Nunca, nunca se case, meu amigo; eis o conselho que lhe dou: não se case senão depois que você disser a si mesmo que fez tudo o que podia, senão depois que tiver deixado de amar a mulher que escolheu, depois que a tiver visto com toda a clareza; do contrário, vai enganar-se de modo cruel e irremediável. Case velho, quando não prestar para mais nada... Senão perderá tudo o que há de bom e elevado em você. Tudo vai ser consumido em ninharias. Sim, sim, sim! Não me olhe com essa cara de espanto. Se espera algo de si no futuro, então a cada passo vai sentir que tudo está acabado para você, tudo está fechado, exceto o salão de festas, onde você ficará em pé de igualdade com os lacaios e com os idiotas... É isso mesmo!...
Sacudiu a mão num gesto enérgico.
Pierre tirou os óculos, o que transformava o seu rosto, revelando ainda mais bondade, e olhou admirado para o amigo.
— Minha esposa — prosseguiu o príncipe Andrei — é uma mulher excelente. É uma dessas raras mulheres com quem podemos ficar tranquilos quanto à nossa honra; mas, meu Deus, o que eu não daria hoje para não estar casado! Você é o primeiro e o único a quem digo isso, pois gosto muito de você.
O príncipe Andrei, ao dizer isso, parecia-se ainda menos que antes com o Bolkónski que ficara refestelado nas poltronas do salão de Anna Pávlovna e, entre os dentes, de olhos semicerrados, falara expressões em francês. Seu rosto seco não parava de tremer com todos os músculos, numa excitação nervosa; os olhos, em que antes parecia apagado o fogo da vida, agora cintilavam com um brilho claro e radiante. Via-se que, quanto mais sem vida ele parecia nos períodos de rotina, tanto mais vigoroso se mostrava nesses minutos de irritação quase doentia.
— Você não entende por que digo isso — prosseguiu. — Pois é a história de toda uma vida. Você fala de Bonaparte e da carreira dele — disse, embora Pierre não tivesse falado de Bonaparte. — Você fala em Bonaparte; mas Bonaparte, quando trabalhava, caminhando passo a passo rumo ao seu objetivo, era livre, não tinha nada a não ser o seu objetivo... e o alcançou. Mas amarre-se a uma mulher e, como um condenado preso em grilhões, vai perder toda a liberdade. E tudo o que houver em você de força e de esperança, tudo será só um peso, e o arrependimento vai torturá-lo. Salões, mexericos, bailes, vaidade, futilidade... eis o círculo vicioso do qual não consigo sair. Agora vou partir para a guerra, para a maior guerra que já existiu, e não sei nada e não presto para nada. Je suis très aimable et très caustique — prosseguiu o príncipe Andrei —, e na casa de Anna Pávlovna me dão atenção. E essa sociedade estúpida, sem a qual minha esposa não pode viver, nem essas mulheres... Se você pudesse ao menos ter uma ideia do que são toutes les femmes distinguées 86 e as mulheres em geral! Meu pai tem razão. Egoísmo, vaidade, estupidez, futilidade em tudo: isso são as mulheres, quando se revelam por inteiro, tais como são. Quando a gente as observa na sociedade, parece existir alguma coisa, mas não há nada, nada, nada! É isso, não case, meu caro, não case — concluiu o príncipe Andrei.
— Acho até graça — disse Pierre — que o senhor, que o senhor se considere um incapaz, que considere a sua vida fracassada. O senhor tem tudo, tudo à sua frente. O senhor...
Pierre não disse você, mas seu tom de voz demonstrava a alta estima que tinha pelo amigo e o quanto esperava dele no futuro.
“Como pode dizer isso!”, pensou Pierre. Ele considerava o príncipe Andrei o modelo de todas as perfeições, justamente porque o príncipe Andrei reunia, no mais alto grau, todas as qualidades que Pierre não tinha e que podem ser mais bem definidas como força de vontade. Pierre sempre se admirava com a capacidade que tinha o príncipe Andrei de manter a calma diante de todo tipo de gente, com a sua memória extraordinária, com a sua erudição (lia tudo, conhecia tudo, tinha ideias a respeito de tudo) e, principalmente, com a sua capacidade de trabalhar e de aprender. Se muitas vezes Pierre ficava impressionado com a ausência, em Andrei, da capacidade de reflexão filosófica (para a qual Pierre tinha uma inclinação especial), outras vezes também via nisso não um defeito, mas uma força.
Mesmo nas melhores relações, nas mais amistosas e simples, a lisonja e o elogio são necessários, assim como a lubrificação é necessária para que as rodas sigam adiante.
— Je suis un homme fini 87 — disse o príncipe Andrei. — Para que falar de mim? Vamos falar de você — disse ele, após calar-se um minuto e sorrir com seus pensamentos consoladores.
Aquele sorriso, no mesmo instante, refletiu-se no rosto de Pierre.
— Mas, sobre mim, o que há para dizer? — perguntou Pierre, relaxando a boca num sorriso alegre e despreocupado. — O que sou? Je suis un bâtard. — E, de repente, ficou muito vermelho. Via-se que fazia um grande esforço para dizer aquilo. — Sans nom, sans fortune...88 E afinal, na verdade... — Mas não disse o que era verdade. — Enquanto isso, estou livre e para mim está tudo bem. Só que não consigo saber o que devo começar. Queria, com seriedade, pedir o conselho do senhor.
O príncipe Andrei fitou-o com olhos bondosos. Mas no seu olhar, amigável, afetuoso, exprimia-se, apesar de tudo, a consciência da sua superioridade.
— Gosto muito de você, sobretudo porque é a única pessoa viva em todo o nosso meio social. Para você, está tudo bem. Escolha o que quiser; tanto faz. Em toda parte você estará bem, mas tem uma coisa: evite ir à casa daquele Kuráguin e pare de levar essa vida. Não combina com você: todas essas farras, esses costumes de hussardos, e todas...
— Que voulez-vous, mon cher — disse Pierre, encolhendo os ombros. — Les femmes, mon cher, les femmes! 89
— Não entendo — respondeu Andrei. — Les femmes comme il faut, isso é outra coisa; mas les femmes de Kuráguin, les femmes et le vin,90 não entendo!
Pierre morava na casa do príncipe Vassíli Kuráguin e participava da vida de orgias de seu filho Anatole, o mesmo que pretendiam endireitar casando-o com a irmã do príncipe Andrei.
— Sabe de uma coisa? — disse Pierre, como se lhe tivesse ocorrido naquele instante uma ideia feliz. — Sério, tenho pensado nisso há muito tempo. Com esta vida, não consigo decidir nada, não consigo refletir. A cabeça dói, o dinheiro some. Hoje ele me chamou, mas eu não vou.
— Você me dá a sua palavra de honra de que não irá?
— Palavra de honra!
Já passava de uma hora da madrugada quando Pierre saiu da casa do amigo. Era uma noite petersburguesa de junho, sem nuvens. Pierre sentou numa carruagem de praça com a intenção de ir para casa. Mas quanto mais se aproximava, mais sentia que era impossível dormir numa noite como aquela, que mais parecia uma tarde ou uma manhã. Viam-se as ruas vazias até bem longe. No caminho, Pierre lembrou que naquela noite, em casa de Anatole Kuráguin, devia reunir-se o grupo de jogadores de costume, em seguida iriam para a bebedeira de costume, que se encerrava com um dos divertimentos prediletos de Pierre.
“Seria bom ir à casa de Kuráguin”, pensou.
Mas logo se lembrou da palavra de honra que dera ao príncipe Andrei, de não ir à casa de Kuráguin. Mas logo, como acontece com as pessoas ditas sem caráter, sentiu uma vontade tão forte de mais uma vez experimentar aquela vida desregrada, tão conhecida dele, que decidiu ir. E logo lhe veio à cabeça a ideia de que a palavra dada não significava nada, porque, ainda antes do príncipe Andrei, ele dera também ao príncipe Anatole a sua palavra de honra de que iria à casa dele; no fim das contas, pensou Pierre, o que são todas essas palavras de honra... coisas convencionais, não têm nenhum significado definido, ainda mais se levarmos em conta que amanhã, quem sabe, eu posso estar morto, ou pode me acontecer algo tão extraordinário que já não contará mais nada, nem a honra, nem a desonra. Esse tipo de raciocínio, que aniquilava todas as suas decisões e projetos, ocorria a Pierre com frequência. Ele foi à casa de Kuráguin.
Ao chegar à entrada do grande prédio do quartel da guarda de cavalaria, onde morava Anatole, Pierre subiu a escada para a varanda iluminada e entrou pela porta aberta. No vestíbulo, não havia ninguém; garrafas vazias caídas no chão, capas, galochas; um cheiro de vinho, ouviam-se vozes e gritos distantes.
O jogo e o jantar já haviam terminado, mas as visitas ainda não tinham dispersado. Pierre tirou a capa e entrou no primeiro cômodo, onde estavam os restos do jantar e um lacaio que, achando que ninguém olhava para ele, terminava de beber furtivamente os copos que não tinham sido esvaziados. Do terceiro cômodo, vinha uma algazarra, gargalhadas, gritos de vozes conhecidas e rugidos de urso. Uns oito jovens se aglomeravam, com ar preocupado, junto a uma janela aberta. Outros três brincavam com um filhote de urso, que um deles puxava por uma corrente e assustava os demais.
— Aposto cem no Stevens! — gritou um.
— Olhe que não aguenta! — gritou outro.
— Eu aposto em Dólokhov! — gritou o terceiro. — Separe, Kuráguin.91
— Está bem, larguem o Michka, vamos fechar a aposta.
— De um só gole, senão já perdeu — gritou um quarto.
— Iákov, traga uma garrafa, Iákov! — gritou o dono da casa, um rapaz alto e bonito, no meio do bando, vestindo apenas uma camisa fina, aberta no peito. — Esperem, senhores. Vejam quem está aqui. Petrucha, meu grande amigo — disse para Pierre.
Uma outra voz, de um homem baixo, de olhos azul-claros, que por sua expressão sensata causava um assombro especial no meio de todas aquelas vozes embriagadas, começou a gritar da janela:
— Venha cá... separe a aposta!
Era Dólokhov, um oficial do regimento de Semiónov, famoso jogador e duelista, que morava com Anatole. Pierre sorriu, olhando alegre à sua volta.
— Não estou entendendo nada. Do que se trata?
— Esperem aí, ele não está embriagado. Tragam uma garrafa — disse Anatole, pegou um copo na mesa e aproximou-se de Pierre.
— Antes de tudo, beba.
Pierre começou a beber um copo depois do outro, olhando de esguelha para os visitantes bêbados, que de novo se aglomeraram junto à janela, e pôs-se a escutar a conversa deles. Anatole servia-lhe vinho e contava que Dólokhov havia apostado com o inglês Stevens, da Marinha, ali presente, que ele, Dólokhov, beberia até o fim uma garrafa de rum, sentado na janela do terceiro andar, com as pernas penduradas para o lado de fora.
— Vamos, beba logo tudo! — disse Anatole, dando para Pierre o último copo. — Senão eu não largo você!
— Não, eu não quero — disse Pierre, empurrando Anatole, e aproximou-se da janela.
Dólokhov segurava a mão do inglês e pronunciava com clareza e precisão os termos da aposta, dirigindo-se sobretudo para Anatole e Pierre.
Dólokhov era de estatura mediana, cabelo crespo, olhos azul-claros. Tinha uns vinte e cinco anos. Não usava bigode, como todos os oficiais da infantaria, e sua boca, o traço mais marcante do seu rosto, ficava sempre visível. As linhas daquela boca eram curvadas com uma finura notável. O meio do lábio superior descia com energia, como uma cunha pontuda, sobre o forte lábio inferior, e nos cantos formava-se o tempo todo uma espécie de sorriso duplo, um para cada lado; e tudo isso junto, em especial somado ao olhar firme, insolente, inteligente, criava tal efeito que era impossível não notar aquele rosto. Dólokhov não era rico, não tinha conhecidos importantes. E, apesar de Anatole gastar dezenas de milhares de rublos, Dólokhov morava com ele, e soube arranjar as coisas de tal maneira que Anatole e todos aqueles que os conheciam tinham mais respeito por Dólokhov do que por Anatole. Dólokhov jogava todos os jogos e quase sempre ganhava. Por mais que bebesse, nunca perdia a clareza das ideias. E tanto Kuráguin como Dólokhov, naquela época, eram famosos no mundo dos pândegos e libertinos de Petersburgo.
Trouxeram a garrafa de rum; o caixilho da janela, que impedia que alguém sentasse no declive da amurada externa, estava sendo arrancado por dois lacaios, visivelmente apressados e intimidados pelas recomendações e pelos gritos dos cavalheiros em redor.
Anatole, com seu aspecto triunfal, aproximou-se da janela. Tinha vontade de quebrar alguma coisa. Empurrou os lacaios para trás e deu um puxão no caixilho, mas o caixilho não cedeu. Anatole quebrou o vidro.
— Tente você, atleta — disse para Pierre.
Pierre segurou a travessa da janela, deu um puxão e, com um estalo, arrancou o caixilho de carvalho.
— Tudo para fora, senão vão pensar que estou me segurando — disse Dólokhov.
— O inglês está se vangloriando... Hã?... Está direito?... — disse Anatole.
— Tudo certo — respondeu Pierre, olhando para Dólokhov, que, com a garrafa na mão, aproximou-se da janela, onde se via a luz do céu, na qual se confundiam o crepúsculo da manhã e o da noite.
Dólokhov, com a garrafa de rum na mão, saltou para a janela.
— Prestem atenção! — gritou, de pé no parapeito e voltado para dentro. Todos se calaram. — Eu aposto (ele falava em francês, para que o inglês compreendesse, e não falava muito bem essa língua). Eu aposto cinquenta imperiais,92 ou quer que aposte cem? — acrescentou, virando-se para o inglês.
— Não, cinquenta — disse o inglês.
— Muito bem, cinquenta imperiais... que vou beber uma garrafa de rum inteira, sem afastar o gargalo da boca, sentado para fora da janela, neste lugar aqui, olhe só (debruçou-se e apontou para a amurada em declive do lado de fora da janela), e sem segurar em nada... Está certo?
— Está certo — respondeu o inglês.
Anatole voltou-se para o inglês, segurou-o por um botão da casaca e, olhando-o de cima (o inglês era de baixa estatura), começou a repetir em inglês os termos da aposta.
— Espere aí! — gritou Dólokhov, batendo com a garrafa na janela, para que lhe dessem atenção. — Espere aí, Kuráguin, preste atenção. Se alguém mais fizer a mesma coisa, eu pago cem imperiais. Está entendido?
O inglês balançou a cabeça, sem indicar se tinha ou não a intenção de aceitar essa nova aposta. Anatole não largava o inglês e, apesar de este, balançando a cabeça, sugerir que tinha entendido tudo, Anatole traduziu-lhe as palavras de Dólokhov em inglês. Um jovem magricelo, um hussardo da guarda imperial que perdera tudo no jogo naquela noite, subiu na janela, inclinou-se e olhou para baixo.
— Oh!... Oh!... Oh!... — exclamou, olhando da janela, na direção da calçada de pedra.
— Cale a boca! — gritou Dólokhov e puxou para fora da janela o jovem oficial, que, tropeçando nas esporas, desceu para dentro com um pulo.
Depois de colocar a garrafa sobre o parapeito, numa posição em que fosse fácil pegá-la, Dólokhov subiu na janela com cuidado e com calma. Pôs as pernas para fora, segurou-se com as duas mãos na beira da janela e ajeitou-se, bem sentado, soltou as mãos, virou-se para a direita, para a esquerda, e pegou a garrafa. Anatole trouxe duas velas e colocou-as no parapeito, embora já estivesse bastante claro. As costas de Dólokhov, na camisa branca, e sua cabeça crespa ficaram iluminadas de ambos os lados. Todos se amontoaram junto à janela. O inglês ficou na frente. Pierre sorria e não falava nada. Um dos presentes, mais velho do que os demais, com o rosto assustado e irritado, de repente adiantou-se e quis puxar Dólokhov pela camisa.
— Senhores, isso é uma estupidez; ele vai se matar à toa — disse aquele homem, mais sensato do que os outros.
Anatole o deteve.
— Não toque nele, você vai assustar o Dólokhov, e ele vai se matar. Hã?... E aí?... Hã?...
Dólokhov virou-se para trás, corrigiu sua posição e de novo segurou-se com as mãos.
— Se mais alguém vier se meter na minha vida — disse ele, soltando as palavras espaçadamente através dos lábios finos e cerrados —, vou agarrar e jogar por esta janela afora. Está bem?...
Ao dizer “está bem”, virou-se de novo para trás, soltou as mãos, pegou a garrafa e levou-a até a boca, inclinou a cabeça para trás e ergueu a mão livre para equilibrar-se. Um dos lacaios, que começara a juntar os cacos de vidro, curvado sobre o chão, deteve-se, sem desviar os olhos da janela e das costas de Dólokhov. Anatole estava parado, ereto, de olhos arregalados. O inglês, com os lábios contraídos, olhava meio de lado. O homem a quem haviam rechaçado fugiu para um canto da sala e deitou-se num sofá, com a cara virada para a parede. Pierre cobriu os olhos, e um débil sorriso, por esquecimento, continuava em seu rosto, que apesar disso exprimia medo e horror. Todos ficaram em silêncio. Pierre tirou as mãos dos olhos: Dólokhov continuava sentado na mesma posição, só que com a cabeça inclinada para trás, e assim seus cabelos crespos da nuca roçavam no colarinho da camisa, enquanto a mão com a garrafa se erguia cada vez mais, estremecia e fazia força. A garrafa se esvaziava visivelmente, à medida que era levantada e a cabeça se inclinava para trás. “Por que demora tanto?”, pensou Pierre. Parecia-lhe que tinha passado mais de meia hora. De repente, Dólokhov fez um movimento para trás, com as costas, e sua mão começou a tremer nervosamente; esse tremor foi o bastante para todo o seu corpo se deslocar, na amurada em declive onde estava sentado. Deslocou-se inteiro, e as mãos e a cabeça, ao fazer esforço, passaram a tremer com mais intensidade ainda. Uma das mãos se ergueu para agarrar-se no parapeito, mas soltou-o de novo. Pierre fechou os olhos outra vez e disse para si mesmo que não os abriria mais. De repente sentiu que tudo em volta começara a se agitar. Deu uma espiada: Dólokhov estava de pé no parapeito, seu rosto estava pálido e alegre.
— Vazia!
Atirou a garrafa para o inglês, que a agarrou com habilidade. Dólokhov desceu da janela com um pulo. Vinha dele um cheiro forte de rum.
— Excelente! Bravo! Isso é que é aposta! Que o diabo os carregue! — gritavam de todos os lados.
O inglês pegou sua carteira e contou o dinheiro. Dólokhov fechou a cara e ficou calado. Pierre pulou para a janela.
— Senhores! Quem quer apostar comigo? Farei a mesma coisa — gritou de repente. — E olhem, nem é preciso apostar. Mandem trazer uma garrafa. Vou fazer... tragam logo.
— Deixe, deixe! — disse Dólokhov, sorrindo.
— O que deu em você? Ficou doido? Quem é que vai deixar você fazer isso? Sua cabeça já fica rodando só de subir a escada — começaram a falar de vários lados.
— Eu vou beber até o fim, me deem uma garrafa de rum! — desatou a gritar Pierre, batendo na mesa com um gesto resoluto e embriagado, e passou as pernas por cima da janela.
Seguraram-no pelo braço; mas Pierre era tão forte que empurrava para longe quem dele se aproximava.
— Não, assim não vão convencer o Pierre de jeito nenhum — disse Anatole. — Esperem, eu vou enganá-lo. Escute, faço uma aposta com você, mas amanhã. Agora, estamos todos indo para ***.
— Vamos lá — gritou Pierre. — Vamos!... E vamos levar o Michka com a gente...
Pegou o urso e, depois de abraçá-lo e levantá-lo, pôs-se a correr com ele em redor da sala.
VII
O príncipe Vassíli cumpriu a promessa feita na casa de Anna Pávlovna, naquela noite, para a princesa Drubetskaia, que lhe pedira um favor para o seu filho único, Boris. O soberano foi comunicado a respeito dele e, em caráter excepcional, o jovem foi promovido para a guarda do regimento de Semiónov, com o posto de sargento-mor. Porém, para o posto de ajudante de ordens ou subordinado direto de Kutúzov, Boris não foi indicado, apesar de todas as solicitações e intrigas de Anna Mikháilovna. Pouco tempo depois da festa em casa de Anna Pávlovna, Anna Mikháilovna voltou para Moscou e foi direto para a casa de seus parentes ricos, os Rostóv, onde se hospedava quando estava em Moscou e em cuja casa, desde pequeno, fora criado e morava, fazia muitos anos, o seu adorado Borienka, que mal havia ingressado no Exército e logo fora promovido para o posto de sargento-mor da guarda. A guarda já partira de Petersburgo no dia 10 de agosto, e o seu filho, que ficara em Moscou para providenciar a farda, devia alcançar seus companheiros na estrada, em Radzivílov.
Em casa dos Rostóv, era o aniversário das Natálias, a mãe e a filha caçula. Desde a manhã, sem cessar, chegavam e partiam carruagens com várias parelhas de cavalos, trazendo as felicitações para a grande casa da condessa Rostóv, conhecida em toda a Moscou, na rua Povarskaia. A condessa, a sua bela filha mais velha e os convidados não paravam de rir uns para os outros, sentados na sala de visitas.
A condessa era uma mulher de rosto magro, de tipo oriental, uns quarenta e cinco anos, visivelmente esgotada pelos filhos, em número de doze. A lentidão dos movimentos e da fala, consequência da diminuição de suas forças, dava-lhe um ar de importância, que inspirava respeito. A princesa Anna Mikháilovna Drubetskaia, como pessoa de casa, estava ali também, ajudando na tarefa de receber as visitas e manter a conversa em andamento. A juventude ficava nos cômodos de trás, julgando desnecessário participar da recepção das visitas. O conde recebia e conduzia as visitas para a sala, convidava todos para o jantar.
— Agradeço-lhe muito, muito, ma chère ou mon cher (dizia ma chère ou mon cher a todos, sem exceção, e sem a menor nuança que indicasse que a pessoa se situava abaixo ou acima dele), agradeço por mim e pelas queridas aniversariantes. Por favor, venham para o jantar. O senhor assim me ofende, mon cher. Sinceramente, peço à senhora em nome de toda a família, ma chère. — Falava tais palavras a todos, sem exceção e sem variação, com a mesma expressão no rosto farto, alegre e totalmente barbeado, com o mesmo forte aperto de mão e com repetidas e breves reverências. Após acompanhar uma visita até a saída, o conde voltava-se para outra, que ainda se achava na sala; puxava uma cadeira e, com o ar de um homem que gosta de gozar a vida e sabe como fazê-lo, separava as pernas de modo jovial, punha as mãos sobre os joelhos, balançava o corpo com ar importante, dava palpites sobre o tempo, pedia conselhos sobre a saúde, às vezes em russo, outras vezes num francês muito ruim, mas presunçoso, e de novo, com o aspecto de um homem cansado mas firme no cumprimento das suas obrigações, levantava-se para acompanhar uma visita, ajeitando os raros cabelos grisalhos sobre a calva, e de novo a convidava para jantar. Às vezes, ao voltar do vestíbulo, passava pelo jardim de inverno e pela ala de serviço, até a grande sala de mármore onde preparavam uma mesa de oitenta talheres e, olhando para os criados que levavam a prataria e a porcelana, armavam as mesas e desenrolavam as toalhas de damasco, chamava Dmítri Vassílievitch, um fidalgo que cuidava de todos os seus negócios, e lhe dizia:
— Muito bem, Mítienka, cuide para que tudo fique direito. Isso, isso — dizia, examinando com satisfação a imensa mesa desdobrada. — O importante é a mesa bem-posta. Certo, certo... — E, suspirando com ar satisfeito, saía de novo para a sala de visitas.
— Mária Lvóvna Karáguina e sua filha! — anunciou com voz de baixo o enorme lacaio a serviço do conde, chegando à porta da sala. A condessa refletiu um momento e aspirou numa tabaqueira de ouro que trazia o retrato do marido.
— Essas visitas me cansaram muito — disse ela. — Bem, ela será a última que vou receber. É muito afetada. Mande entrar — disse para o lacaio, com voz tristonha, como se dissesse: “Bem, faça como quiser!”.
Alta, farta, aspecto orgulhoso, a senhora de rosto redondo e sua filha sorridente entraram na sala, com vestidos farfalhantes.
— Chère comtesse, il y a si longtemps... Elle a été alitée la pauvre enfant... Au bal des Razoumovsky... Et la comtesse Apraksine... J’ai été si heureuse...93 — ressoaram as vozes femininas animadas, interrompendo-se umas às outras e misturando-se com o rumor dos vestidos e com o arrastar das cadeiras. Teve início aquele tipo de conversa que transcorre tão isenta de perturbações que, logo na primeira pausa, as pessoas se levantam, os vestidos farfalham, e elas dizem: “Je suis bien charmée; la santé de maman... Et la comtesse Apraksine”,94 e de novo com um farfalhar dos vestidos, elas seguem para a saída, vestem os casacos de pele ou as capas, e vão embora. A conversa tratava da principal novidade da cidade naquela ocasião, a doença de um célebre ricaço, o conde Bezúkhov, um dos mais belos homens nos tempos da imperatriz Catarina, e o seu filho ilegítimo, Pierre, que se comportara de forma tão inconveniente na festa em casa de Anna Pávlovna Scherer.
— Tenho muita pena do pobre conde — falou a visita. — Sua saúde anda tão ruim, e agora com o desgosto desse filho, isso ainda vai matá-lo!
— Mas o que há? — perguntou a condessa, como se não soubesse do que falava a visita, embora já tivesse ouvido falar umas quinze vezes da causa do desgosto do conde Bezúkhov.
— É o que dá essa educação de hoje em dia! Ainda no exterior — falou a visita —, deixaram o rapaz viver a seu bel-prazer, e agora, em Petersburgo, dizem que ele fez tais horrores que até chamaram a polícia para expulsá-lo.
— Não me diga! — exclamou a condessa.
— Ele escolheu mal suas companhias — intercedeu a princesa Anna Mikháilovna. — O filho do príncipe Vassíli, ele e um tal de Dólokhov, os dois, dizem, fazem coisas de que até Deus duvida. E os dois pagaram por isso. Dólokhov foi rebaixado no Exército, e o filho de Bezúkhov foi banido para Moscou. Quanto ao Anatole Kuráguin, o pai abafou o caso. Mas também foi banido de Petersburgo.
— Mas, afinal, o que foi que fizeram? — perguntou a condessa.
— São uns verdadeiros bandidos, sobretudo Dólokhov — disse a visita. — Ele é filho de Mária Ivánovna Dólokhova, uma senhora muito respeitável, mas, veja só! Imagine que os três arranjaram um urso, ninguém sabe onde, levaram o bicho numa carruagem junto com eles e foram para a casa de umas atrizes. A polícia acudiu para sossegá-los. Pois bem, eles capturaram um inspetor e amarraram-no ao urso, de costas um para o outro, e depois soltaram o urso no canal Moika; o urso saiu nadando, e o inspetor nas costas dele.
— Com que cara deve ter ficado esse inspetor, ma chère — exclamou o conde, morrendo de rir.
— Ah, mas que horror! Do que está rindo, conde?
Porém as senhoras, involuntariamente, riram também.
— A muito custo salvaram aquele infeliz — continuou a visita. — E pensar que é o filho do conde Kiril Vladímirovitch Bezúkhov que se diverte assim de modo tão intelectual! — acrescentou. — E ainda dizem que ele é muito instruído e inteligente. É isso o que dá toda essa educação no estrangeiro. Espero que aqui ninguém mais o receba agora, apesar de sua riqueza. Quiseram me apresentar esse jovem. Eu recusei com toda a firmeza: tenho filhas.
— Por que a senhora diz que esse jovem é tão rico? — perguntou a condessa, inclinando-se para longe das moças, que prontamente fingiram que não estavam escutando. — Afinal, ele só tem filhos ilegítimos. Parece... Pierre também é ilegítimo.
A visita abanou a mão.
— Ele tem uns vinte filhos ilegítimos, eu acho.
A princesa Anna Mikháilovna interveio na conversa, com o evidente desejo de mostrar suas relações e seu conhecimento de todas as circunstâncias mundanas.
— Trata-se do seguinte — disse ela, em tom de entendida, e também a meia-voz. — A reputação do conde Kiril Vladímirovitch é conhecida... Ele perdeu a conta de seus filhos, mas esse Pierre é o seu favorito.
— Que belo aspecto tinha o velho — disse a condessa —, ainda no ano passado! Nunca vi um homem mais bonito.
— Agora está muito mudado — disse Anna Mikháilovna. — Mas eu estava dizendo — continuou ela — que o herdeiro direto, por parte de mãe, de toda a propriedade, é o príncipe Vassíli, mas o pai gostou muito de Pierre, cuidou da sua educação e escreveu para o soberano... por isso ninguém sabe, no caso de ele morrer (e está tão mal que se espera isso a qualquer momento, e Lorrain já veio de Petersburgo), a quem caberá a imensa fortuna, a Pierre ou ao príncipe Vassíli. Quarenta mil almas e milhões de rublos. Eu sei disso muito bem, porque o próprio príncipe Vassíli me contou. Além do mais, Kiril Vladímirovitch é meu tio em terceiro grau por parte de mãe. Ele é o padrinho de Boris — acrescentou, como se não atribuísse nenhuma importância a tal detalhe.
— O príncipe Vassíli chegou ontem de Moscou. Vai fazer uma inspeção, me disseram — declarou a visita.
— Sim, mas, entre nous 95 — disse a princesa —, isso é um pretexto, ele veio especialmente para ver o conde Kiril Vladímirovitch, ciente de que está muito mal.
— Apesar de tudo, ma chère, foi uma brincadeira excelente — disse o conde e, ao notar que a visita mais idosa não lhe dava atenção, voltou-se para as senhoritas. — Eu só imagino com que cara ficou o tal inspetor da polícia.
E, imitando os gestos do inspetor com os braços, desatou a rir outra vez, com uma gargalhada sonora e em tom de baixo que fez sacudir todo o seu corpo farto, como riem as pessoas que sempre comeram bem e, sobretudo, beberam bem.
— Então, por favor, jante conosco — disse ele.
VIII
Seguiu-se um silêncio. A condessa olhou para a visita, sorriu de modo agradável, na verdade sem esconder que agora não se ofenderia de maneira alguma se a visita se levantasse e fosse embora. A filha da visita já estava ajeitando o vestido, olhando para a mãe com ar interrogativo, quando de súbito, do cômodo vizinho, ouviram-se passos femininos e masculinos que corriam rumo à porta e o estrépito de uma cadeira chutada e derrubada, e, correndo, uma menina de treze anos entrou e parou no meio da sala, com alguma coisa envolvida na saia curta de musselina. Era evidente que ela não esperava que, em sua corrida descontrolada, fosse parar tão longe. No mesmo instante, surgiram na porta um estudante de colarinho cor de framboesa, um oficial da guarda, uma menina de quinze anos e um garoto gordo, corado, com uma japona de criança.
O conde levantou-se de um salto, bamboleando-se, abriu muito os braços e abraçou a menina que entrara correndo.
— Ah, aí está ela! — gritou, rindo. — A aniversariante! Ma chère, a aniversariante!
— Ma chère, il y a un temps pour tout 96 — disse a condessa, fingindo severidade. — Você vai deixar a menina mimada, Elie — acrescentou para o marido.
— Bonjour, ma chère, je vous félicite — disse a visita. — Quelle délicieuse enfant! 97 — acrescentou, dirigindo-se à mãe.
De olhos pretos e boca grande, a menina, que não era bonita, mas cheia de vida, com seus ombrinhos infantis descobertos, que, contraindo-se, mexiam-se em seu corpete por causa da correria, com suas madeixas pretas que se embaraçavam nas costas, com os braços fininhos e nus, as perninhas miúdas em pequenas calças rendadas, e de sandálias, estava naquela idade meiga em que a menina já não é criança, mas a criança ainda não é moça. Depois de escapar do pai, ela correu para a mãe e, sem prestar nenhuma atenção à sua repreensão severa, escondeu o rosto ruborizado nas rendas da mantilha da mãe e começou a rir. Ria enquanto falava, com a voz entrecortada, sobre uma boneca que retirou de dentro da sua saiazinha.
— Estão vendo?... A boneca... Mimi... Olhem.
E Natacha 98 não conseguiu mais falar (tudo lhe parecia engraçado). Caiu sobre a mãe e desatou a gargalhar de modo tão alto e sonoro que todos, até a visita afetada, contra a própria vontade, começaram a rir.
— Agora vá, vá embora com o seu monstro! — disse a mãe, fazendo-se de zangada e repelindo a filha. — É a minha caçula — voltou-se para a visita.
Natacha, afastando o rosto do xale rendado da mãe por um instante, olhou-a de relance, de baixo para cima, através das lágrimas de riso, e escondeu o rosto outra vez.
A visita, obrigada a admirar aquela cena doméstica, achou que era necessário participar de alguma forma.
— Diga, minha querida — perguntou, dirigindo-se a Natacha —, essa Mimi é sua parente? É sua filha, não é mesmo?
Natacha não gostou do tom de condescendência com a conversa infantil usado pela visita. Não respondeu nada e olhou para a visita com ar sério.
Enquanto isso, toda a geração jovem: Boris — oficial, filho da princesa Anna Mikháilovna; Nikolai — estudante, filho mais velho do conde; Sônia — sobrinha de quinze anos do conde, e o pequeno Petruchka — o filho caçula, todos se instalaram na sala de visitas e, visivelmente, esforçavam-se para conter nos limites da decência a animação e a alegria que ainda exalavam em todas as suas feições. Era evidente que lá, nos cômodos dos fundos, de onde todos vieram correndo de forma tão precipitada, estavam travando uma conversa bem mais alegre do que ali, sobre os mexericos da cidade, o tempo e a comtesse Apraksine. De vez em quando eles se entreolhavam e mal conseguiam conter o riso.
Os dois jovens, o estudante e o oficial, amigos de infância, tinham a mesma idade e eram bonitos, mas não se pareciam. Boris era um rapaz alto, louro, de feições finas e regulares no rosto calmo e bonito; Nikolai era um jovem baixo e de cabelo crespo, com um rosto de expressão franca. No lábio superior já se viam uns pelinhos negros, e em toda a sua pessoa se exprimiam a impetuosidade e o entusiasmo. Nikolai ruborizou-se assim que entrou na sala. Era óbvio que procurava, e não encontrava, o que dizer; Boris, ao contrário, prontamente encontrou, e pôs-se a contar com calma, e em tom jocoso, que conhecera aquela boneca Mimi quando ainda era uma menininha pequena e seu nariz não estava estragado, e que, se bem lembrava, nos últimos cinco anos ela havia envelhecido muito, e agora a cabeça estava rachada em toda a extensão do crânio. Após dizer isso, lançou um olhar para Natacha. Ela deu as costas para Nikolai, voltou os olhos para o irmão caçula, que, de olhos semicerrados, se sacudia num riso silencioso, e Natacha, já sem forças para conter-se, levantou-se de um pulo e correu para fora da sala tão depressa como só seus pezinhos eram capazes de levá-la. Boris não riu.
— A senhora também queria ir, não é, mamãe? Precisa de uma carruagem? — perguntou ele, com um sorriso, dirigindo-se à mãe.
— Sim, vá, vá e mande preparar — respondeu ela, derramando-se num sorriso.
Boris saiu em silêncio pela porta e foi atrás de Natacha, o menino gordo correu zangado atrás deles, como que irritado por terem perturbado suas atividades.
IX
Dos jovens, sem contar a filha mais velha da condessa (que era quatro anos mais velha do que a irmã e já se portava como adulta) e a filha da visita, restaram na sala Nikolai e a sobrinha Sônia. Esta era uma moreninha em miniatura, fininha, com um olhar suave, sombreado pelas pestanas compridas, com uma trança negra e espessa que dava duas voltas na cabeça, e um matiz amarelado na pele do rosto e, em especial, no pescoço e nos braços magricelos e desnudos, mas graciosamente musculosos. Pela harmonia dos movimentos, pela suavidade e flexibilidade dos membros pequeninos e por sua maneira contida e esperta, ela fazia lembrar uma gatinha ainda não crescida de todo, que um dia se tornaria uma pequena gata encantadora. Era óbvio que Sônia julgava conveniente participar da conversa geral com um sorriso; mas, contra a própria vontade, seus olhos, por baixo das pestanas compridas e densas, fitavam o cousin 99 de partida para o Exército com tal adoração apaixonada de menina que o seu sorriso não conseguia enganar ninguém, nem por um segundo, e era óbvio que a gatinha estava ali parada só para pular e brincar com o cousin, com mais energia ainda, assim que eles dois, a exemplo de Boris e Natacha, conseguissem sair daquela sala.
— Sim, ma chère — disse o velho conde, voltando-se para a visita e apontando para o seu Nikolai. — O amigo dele, o Boris, foi promovido a oficial e, por amizade, não quer separar-se; vai abandonar a universidade e abandonar também a mim, o velho: vai partir para o serviço militar, ma chère. E já tinha um emprego e tudo o mais garantido para ele no Arquivo Público. Está vendo no que dá a amizade? — disse o conde, com ar interrogativo.
— Sim, a propósito, dizem que a guerra foi declarada — observou a visita.
— Dizem isso há muito tempo — retrucou o conde. — Vão dizer de novo, e vão dizer outra vez, e tudo vai ficar na mesma. Ma chère, veja no que dá a amizade! — repetiu ele. — Vai alistar-se nos hussardos.
A visita, sem saber o que dizer, balançou a cabeça.
— Não tem nada a ver com amizade — retrucou Nikolai, exaltando-se e defendendo-se, como que envergonhado com uma calúnia. — Não tem nada a ver com amizade, eu apenas sinto a vocação do serviço militar.
Virou-se para a prima e para a filha da visita: as duas olhavam para ele com um sorriso de aprovação.
— Hoje vem jantar conosco o Schubert, coronel do regimento dos hussardos de Pávlograd. Esteve aqui de férias e vai levá-lo consigo. O que fazer? — disse o conde, encolhendo os ombros e falando em tom de brincadeira sobre um assunto que, visivelmente, lhe causava muito desgosto.
— Eu já disse ao senhor, papai — falou o filho —, que, se o senhor não quiser me deixar ir, eu ficarei aqui. Mas sei que não sirvo para nada, senão para o serviço militar; não vou ser diplomata, nem funcionário público, não sei esconder o que sinto — disse, lançando o tempo todo, com a beleza sedutora da mocidade, olhares para Sônia e para a filha da visita.
A gatinha, devorando-o com os olhos, parecia pronta para, a qualquer segundo, começar a brincar e a demonstrar toda a sua natureza felina.
— Ora, está bem, está bem! — disse o velho conde. — Sempre fica exaltado. Esse Bonaparte deixou todo mundo de cabeça virada; todos ficam pensando como é que ele pulou de tenente para imperador. Bem, seja o que Deus quiser — acrescentou, sem notar o sorriso de zombaria da visita.
Os adultos passaram a falar sobre Bonaparte. Julie, filha de Karáguina, voltou-se para o jovem Rostóv:
— Que pena que o senhor não esteve na quinta-feira na casa dos Arkhárov. Fiquei entediada sem a sua companhia — disse ela, sorrindo com ternura.
O jovem, lisonjeado, com um sedutor sorriso juvenil, sentou-se mais perto dela e entabulou com a sorridente Julie uma conversa à parte, sem notar nem de longe que aquele seu sorriso involuntário, como uma faca de ciúme, cortava o coração de Sônia, que se ruborizou e sorria de maneira fingida. No meio da conversa, Nikolai virou-se para ela. Sônia lançou-lhe um olhar apaixonadamente irritado e, mal conseguindo conter as lágrimas, mas ainda com o sorriso fingido nos lábios, levantou-se e saiu da sala. Toda a animação de Nikolai desapareceu. Ele esperou a primeira pausa na conversa e, com o rosto aflito, saiu da sala à procura de Sônia.
— Como esses jovens escondem mal os seus segredos! — disse Anna Mikháilovna, apontando para Nikolai, que saíra. — Cousinage dangereux voisinage 100 — acrescentou.
— Sim — disse a condessa, assim que desapareceu o raio de sol que penetrara na sala junto com aqueles jovens, e como que em resposta a uma pergunta que ninguém fizera, mas que a preocupava o tempo todo. — Quanto sofrimento, quanta aflição suportamos para poder, agora, ter alguma alegria com eles! E agora, na verdade, o medo é maior do que a alegria. Estamos sempre com medo, sempre com medo! É exatamente a idade em que o perigo é maior, para as meninas e para os meninos.
— Tudo depende da educação — disse a visita.
— Sim, a senhora tem razão — prosseguiu a condessa. — Até agora fui, graças a Deus, uma amiga dos meus filhos e conto com toda a confiança deles — disse a condessa, repetindo o erro de muitos pais, que supõem que os filhos não têm segredos para eles. — Sei que serei sempre a primeira confidente de meus filhos e que se Nikólienka, com seu caráter impetuoso, fizer alguma travessura (os rapazes não conseguem evitar), não será como aqueles senhores de Petersburgo.
— Sim, são crianças maravilhosas, maravilhosas — confirmou o conde, que sempre resolvia as questões complicadas para ele dizendo que achava tudo maravilhoso. — Veja só, quer alistar-se nos hussardos! O que se vai fazer, ma chère?
— Que encantadora é a sua filha caçula — disse a visita. — É como pólvora!
— Sim, como pólvora — disse o conde. — Puxou a mim! E que voz: não é por ser minha filha, mas, verdade seja dita, ela será uma cantora, uma nova Salomoni.101 Contratamos um italiano para lhe dar aulas.
— Não será muito cedo? Dizem que é ruim para a voz estudar canto assim tão cedo.
— Ah, não, que cedo nada! — disse o conde. — As nossas mães não se casaram com doze ou treze anos?
— E ela já está apaixonada pelo Boris! Imagine! — disse a condessa, sorrindo de leve, enquanto olhava para a mãe de Boris, e, obviamente em resposta a um pensamento que sempre a preocupava, continuou: — Pois é, vejam só, se eu a reprimir com severidade, se eu a proibir... Só Deus sabe o que eles fariam às escondidas (a condessa subentendia: eles se beijariam), mas agora eu tenho conhecimento de todas as palavras deles. Ela mesma virá falar comigo, à noite, me contará tudo. Talvez eu esteja mimando demais a minha filha; porém, na verdade, isso parece melhor. A mais velha eu criei com severidade.
— Sim, eu fui criada de um modo muito diferente — disse a filha mais velha, a bela condessa Vera, sorrindo.
Mas o sorriso não embelezou o rosto de Vera, como acontece em geral; ao contrário, seu rosto tomou um aspecto artificial e portanto desagradável. Vera, a filha mais velha, era bonita, não era nada tola, aprendia com muita facilidade, era instruída, tinha a voz agradável, aquilo que dizia era justo e sensato; mas, coisa estranha, todos, a visita e a condessa, voltaram os olhos para ela como que surpresos de que ela tivesse dito aquilo e sentiram-se embaraçados.
— Sempre temos ideias exageradas com os filhos mais velhos, queremos fazer alguma coisa fora do comum — disse a visita.
— De que adianta esconder os erros, ma chère! A minha querida condessazinha complicou as coisas com a Vera — disse o conde. — Bem, o que importa? Mesmo assim, tornou-se uma filha maravilhosa — acrescentou, piscando o olho para Vera, com ar de aprovação.
As visitas se levantaram e saíram, prometendo vir para o jantar.
— Mas que maneiras! Parecia que nunca mais iam embora! — disse a condessa, pelas costas das visitas.
X
Quando Natacha saiu da sala e correu, só chegou até o jardim de inverno. Naquele cômodo, parou e pôs-se a escutar a conversa na sala, enquanto esperava que Boris saísse. Já estava ficando impaciente e batia com o pezinho no chão, como se estivesse prestes a chorar porque ele estava demorando a vir, quando de repente ouviu os passos silenciosos, mas ligeiros, respeitosos, do jovem. Natacha precipitou-se rapidamente, em meio aos vasos de flores, e escondeu-se.
Boris parou no meio do cômodo, olhou em redor, sacudiu um cisco da manga do uniforme com um gesto da mão e aproximou-se de um espelho para olhar o seu rosto bonito. Natacha, quieta, espiava do seu esconderijo, à espera do que ele iria fazer. Boris ficou algum tempo diante do espelho, sorriu e seguiu para a porta de saída. Natacha quis chamá-lo, mas depois pensou melhor: “Deixe que ele me procure”, disse consigo. Assim que Boris saiu, Sônia entrou toda vermelha pela outra porta, murmurando algo com raiva, entre lágrimas. Natacha conteve o seu primeiro impulso de correr ao encontro dela e ficou no esconderijo, como se estivesse sob um chapéu de invisibilidade, observando o que acontecia no mundo. Experimentava um prazer novo e especial. Sônia murmurava algo e olhava para trás, na direção da porta da sala. Da porta, veio Nikolai.
— Sônia! O que há com você? Mas será possível? — disse Nikolai, enquanto acorria a ela.
— Não foi nada, nada, fique longe de mim! — Sônia pôs-se a soluçar.
— Não, eu sei o que é.
— Então sabe, que ótimo, vá lá para junto dela.
— Sôôônia! Deixe-me dizer só uma coisa! Será possível que você torture a si mesma e também a mim por causa de uma fantasia? — disse Nikolai, segurando a mão de Sônia.
Ela não retirou a mão e parou de chorar.
Natacha, sem se mexer e sem respirar, com os olhos brilhando, observava do seu esconderijo. “O que vai acontecer agora?”, pensou.
— Sônia! Não preciso de mais nada no mundo! Para mim, você é tudo — disse Nikolai. — Vou provar para você.
— Não gosto quando fala assim.
— Então não falo mais, mas me perdoe, Sônia! — Puxou-a para si e lhe deu um beijo.
“Ah, que bonito!”, pensou Natacha, e quando Sônia e Nikolai saíram juntos ela foi atrás deles e chamou Boris.
— Boris, venha cá — disse ela, com um ar astuto e importante. — Preciso falar uma coisa com você. Venha cá, venha cá — disse e levou-o para o jardim de inverno, no mesmo lugar, entre os vasos, onde ela ficara escondida. Boris, sorrindo, andava atrás dela.
— E que coisa é essa? — perguntou.
Natacha perturbou-se, olhou em volta e, ao ver sua boneca largada sobre um vaso, pegou-a.
— Beije a boneca — disse.
Boris, com um olhar atento e afetuoso, fitou o rosto animado de Natacha e nada respondeu.
— Não quer? Bem, então venha cá — disse, dirigiu-se mais para o meio das flores e largou a boneca. — Mais perto, mais perto! — sussurrou ela.
Segurou com as mãos a ponta da manga do oficial e, no rosto ruborizado de Natacha, viam-se a seriedade e o medo.
— E a mim, quer beijar? — sussurrou num tom quase inaudível, olhando-o de esguelha, enquanto sorria, à beira de chorar de emoção.
Boris ruborizou-se.
— Como a senhora é engraçada! — exclamou, curvando-se na direção dela, mais vermelho ainda, porém sem tomar nenhuma decisão, aguardando.
De repente, Natacha pulou sobre um vaso para ficar mais alta do que ele, abraçou-o com os dois braços de modo que os bracinhos finos e nus se fecharam acima do pescoço do rapaz e, depois de jogar os cabelos para trás com um movimento da cabeça, beijou-o bem nos lábios.
Ela esgueirou-se para o outro lado das flores, entre os vasos de barro, e ali, de cabeça baixa, ficou parada.
— Natacha — disse Boris —, a senhora sabe que eu a amo, mas...
— O senhor está apaixonado por mim? — Natacha o interrompeu.
— Sim, estou, mas, por favor, não vamos fazer assim, agora... Ainda faltam quatro anos... Então vou pedir a sua mão.
Natacha pensou um pouco.
— Treze, catorze, quinze, dezesseis... — disse, contando nos dedos fininhos. — Ótimo! Está combinado?
E um sorriso de alegria e de tranquilidade iluminou o seu rosto animado.
— Combinado! — respondeu Boris.
— Para sempre? — perguntou a menina. — Até a morte?
E, depois de pegar a mão dele, Natacha andou ao seu lado, com um rosto feliz, para a sala de estar.
XI
A condessa ficou tão cansada com as visitas que deu ordem para não receber mais ninguém, e o porteiro foi instruído a apenas convidar para o jantar todos os que ainda viessem dar os parabéns. A condessa queria ter uma conversa particular com a sua amiga de infância, a princesa Anna Mikháilovna, a quem ela mal tinha visto desde a sua chegada de Petersburgo. Anna Mikháilovna, com seu rosto agradável e consumido pelas lágrimas, acomodou-se mais perto da poltrona da condessa.
— Com você, eu vou ser completamente sincera — disse Anna Mikháilovna. — Já restam poucas amigas dos velhos tempos! Por isso prezo tanto a sua amizade.
Anna Mikháilovna olhou para Vera e parou de falar. A condessa apertou a mão da amiga.
— Vera — disse a condessa, dirigindo-se para a filha mais velha, que obviamente não era sua favorita. — Como é que vocês não percebem? Não está sentindo que sua presença aqui é importuna? Vá para o quarto das crianças, ou então...
A bela Vera sorriu com desprezo, obviamente sem sentir a menor ofensa.
— Se a senhora tivesse dito mais cedo, mamãe, eu já teria saído — disse, e foi para o seu quarto.
Mas, ao passar pela sala de estar, notou que ali, sentados em duas janelinhas simétricas, estavam dois casais. Parou e sorriu com desprezo. Sônia estava sentada bem juntinho de Nikolai, que copiava uns versos para ela, os primeiros criados por ele. Boris e Natacha estavam sentados junto à outra janela, em silêncio, quando Vera entrou. Sônia e Natacha, com rosto feliz e culpado, olharam de relance para Vera.
Era divertido e comovente olhar para aquelas meninas apaixonadas, mas seu aspecto, era evidente, não despertava em Vera um sentimento agradável.
— Quantas vezes eu já pedi — disse ela — que não peguem as minhas coisas, vocês têm o seu próprio quarto. — Tomou o tinteiro de Nikolai.
— Já vai, já vai — disse ele, molhando a pena.
— Vocês sempre dão um jeito de fazer as coisas na hora errada — disse Vera. — Entraram todos correndo na sala de tal modo que todos ficaram com vergonha por vocês.
Apesar de ter dito algo totalmente justo, ou exatamente por isso, ninguém lhe respondeu, e os quatro apenas se entreolharam. Vera ainda demorou a ir para o quarto, mesmo com o tinteiro na mão.
— E, na idade de vocês, que segredos pode haver entre Natacha e Boris, ou entre vocês? Tudo isso é uma bobagem!
— Bem, e o que você tem a ver com isso, Vera? — falou Natacha, em voz baixinha, para se defender.
Era evidente que, naquele dia, ainda mais do que sempre, sentia-se boa e afetuosa com todos.
— É muito bobo — disse Vera. — Sinto vergonha por vocês. Que segredos?...
— Todo mundo tem seus segredos. Nós não nos metemos com você e o Berg — disse Natacha, começando a se exaltar.
— Acho melhor não se meter — disse Vera —, porque nas minhas ações nunca houve nem pode haver nada de ruim. E agora vou contar para mamãe como você se comporta com o Boris.
— Natália Ilínitchna se comporta muito bem comigo — disse Boris. — Não tenho nenhuma queixa.
— Pode deixar, Boris, o senhor é tão diplomata (a palavra “diplomata” estava muito em voga entre as crianças, no sentido especial que atribuíam a ela); que coisa maçante — disse Natacha, com voz ofendida, trêmula. — Por que ela fica no meu pé? Você não vai entender isso nunca — disse, voltando-se agora para Vera —, porque nunca amou ninguém; você não tem coração, é só uma madame de Genlis 102 (Nikolai dera a Vera esse apelido, considerado muito ofensivo), e o seu maior prazer é fazer coisas desagradáveis para os outros. Vá, pode se fazer de coquete com o Berg o quanto quiser — exclamou Natacha, depressa.
— Mas eu não fico correndo atrás de um rapaz na frente das visitas...
— Bem, já conseguiu o que queria — interveio Nikolai. — Já disse a todos coisas desagradáveis, magoou todo mundo. Vamos para o quarto das crianças.
Os quatro, como um bando de pássaros assustados, levantaram-se e saíram.
— A mim é que disseram coisas desagradáveis, eu não falei nada — disse Vera.
— Madame de Genlis! Madame de Genlis! — falaram, rindo, vozes por trás da porta.
A bonita Vera, que exercia sobre todos aquele efeito desagradável, irritante, sorriu e, obviamente nem um pouco afetada pelo que haviam dito, aproximou-se do espelho e ajeitou a posição da echarpe e do penteado. Enquanto olhava para o rosto bonito, parecia tornar-se mais fria e mais calma.
Na sala, a conversa prosseguia.
— Ah! Chère — disse a condessa. — Também na minha vida, tout n’est pas rose. Por acaso não estou vendo que du train que nous allons 103 nossa fortuna não vai durar muito? E tudo por causa do clube, e por causa da bondade dele. E quando estamos no campo você acha que temos sossego? Teatros, caçadas, e Deus sabe o que mais. Bem, mas para que falar de mim? Escute, como foi que você conseguiu isso? Muitas vezes, fico espantada com você, Annette, como você, com a sua idade, se mete numa carruagem e viaja para Moscou, Petersburgo, procura todos os ministros, todos os fidalgos, consegue falar com todos, eu fico espantada! Bem, diga, como conseguiu? Eu não seria capaz de nada disso.
— Ah, minha querida! — respondeu a princesa Anna Mikháilovna. — Deus queira que você nunca venha a saber como é duro ficar viúva, sem amparo e com um filho a quem ama até a adoração. Aprende-se tudo — prosseguiu, com certo orgulho. — Aprendi com o meu processo na Justiça. Se preciso falar com algum desses figurões, redijo um bilhete: “Princesse une telle 104 deseja ver fulano” e vou eu mesma num coche de praça, uma, duas vezes, três vezes, mesmo quatro, até conseguir aquilo de que preciso. Não me importa o que pensem de mim.
— Pois bem, a quem foi que você pediu no caso do Borienka? — perguntou a condessa. — Afinal, o seu filho já é oficial da guarda, enquanto Nikóluchka continua um junker.105 Não há ninguém que interceda por ele. E você, a quem foi que pediu?
— Ao príncipe Vassíli. Foi muito gentil. Na mesma hora concordou com tudo, procurou o soberano — disse a princesa Anna Mikháilovna, com entusiasmo, tendo esquecido completamente todas as humilhações por que havia passado para alcançar o seu objetivo.
— Envelheceu muito o príncipe Vassíli? — perguntou a condessa. — Não o vejo desde o tempo de nossas apresentações teatrais na casa dos Rumiántsev. E acho que se esqueceu de mim. Il me faisait la cour 106 — lembrou a condessa, com um sorriso.
— Está o mesmo — respondeu Anna Mikháilovna —, desfaz-se em amabilidades. Les grandeurs ne lui ont pas tourné la tête du tout. “Lamento que seja tão pouco o que posso fazer por você, querida princesa”, disse-me ele, “dê-me suas ordens.” Não, ele é uma pessoa formidável e um ótimo parente. Mas você, Nathalie, sabe do amor que tenho pelo meu filho. Não sei de nada que eu não faria pela felicidade dele. E meus negócios andam tão mal — continuou Anna Mikháilovna, com tristeza e abaixando a voz —, tão mal, que agora me encontro na pior situação possível. O meu infeliz processo na Justiça está comendo tudo o que possuo, e não anda. Imagine você, não tenho à la lettre 107 nem um tostão e não sei com o que vou pagar o uniforme de Boris. — Pegou um lenço e começou a chorar. — Preciso de quinhentos rublos, mas só possuo uma nota de vinte e cinco rublos. Estou numa situação que... Minha única esperança é o conde Kiril Vladímirovitch Bezúkhov. Se o conde não quiser amparar o afilhado, pois ele é o padrinho de Boris, e não destinar alguma renda para o sustento dele, todos os meus esforços irão por água abaixo: não terei meios de pagar o uniforme.
A condessa derramou algumas lágrimas e refletia sobre alguma coisa.
— Muitas vezes fico pensando, e talvez isso seja um pecado — disse a princesa —, mas muitas vezes penso assim: o conde Kiril Vladímirovitch Bezúkhov vive sozinho... aquela fortuna imensa... e para que ele vive? A vida para ele é um fardo, enquanto o Boris está apenas começando a viver.
— Com certeza vai deixar alguma coisa para o Boris — disse a condessa.
— Só Deus sabe, chère amie!108 Esses ricaços e magnatas são tão egoístas. Mas mesmo assim eu irei agora visitá-lo com o Boris e direi francamente do que se trata. Podem pensar de mim o que quiserem, para mim na verdade tanto faz, quando o destino de um filho depende disso. — A princesa levantou-se. — Agora são duas horas e às quatro vocês vão jantar. Tenho tempo.
E com os recursos de uma experiente dama petersburguesa, que sabe aproveitar o tempo, Anna Mikháilovna mandou chamar o filho e junto com ele saiu para a antessala.
— Até logo, minha querida — disse para a condessa, que a acompanhou até a porta. — Deseje-me sucesso — acrescentou num sussurro, para o filho não ouvir.
— Vão à casa do Kiril Vladímirovitch, ma chère? — disse o conde, que, saindo da sala de jantar, veio também para a antessala. — Se ele estiver melhor, convide o Pierre para vir jantar aqui. Afinal, ele já esteve em minha casa, dançou com minhas filhas. Não deixe de convidar, ma chère. Bem, vamos ver como o Tarás vai se destacar hoje. Anda dizendo que nem o conde Orlóv 109 deu um jantar como o que vamos ter hoje aqui.
XII
— Mon cher Boris — disse a princesa Anna Mikháilovna para o filho, quando a carruagem da condessa Rostova, na qual estavam, passou por uma rua atapetada de palha e entrou no amplo pátio do conde Kiril Vladímirovitch Bezúkhov. — Mon cher Boris — disse a mãe, retirando a mão de dentro do velho casaco e, com um movimento tímido e carinhoso, colocando-a sobre a mão do filho —, seja amável, seja atencioso. O conde Kiril Vladímirovitch, apesar de tudo, é o seu padrinho e dele depende o seu destino. Entenda isso, mon cher, seja gentil, como você sabe ser...
— Se eu soubesse que disso sairia alguma outra coisa além de humilhação... — respondeu o filho, com frieza. — Mas prometi à senhora e farei isso pela senhora.
Apesar de saber de quem era a carruagem junto à entrada, o porteiro, após observar a mãe e o filho (os quais, sem mandar que os anunciassem, entraram direto no vestíbulo envidraçado, entre duas fileiras de estátuas, dentro de nichos), examinou com um olhar significativo o velho casaco feminino e perguntou quem eles desejavam ver, as princesas ou o conde, e informado de que era o conde, falou que sua excelência estava pior naquele dia e que sua excelência não estava recebendo ninguém.
— Podemos ir embora — disse o filho, em francês.
— Mon ami! 110 — disse a mãe com voz de súplica, tocando de novo na mão do filho, como se tal contato pudesse acalmar ou levantar o ânimo dele.
Boris calou-se e, sem tirar o capote, fitou a mãe com ar indagador.
— Meu caro — falou Anna Mikháilovna, em voz baixa, voltando-se para o porteiro —, eu sei que o conde Kiril Vladímirovitch está muito doente... por isso mesmo eu vim... sou parente... Não vou incomodar, meu caro... Eu só preciso falar com o príncipe Vassíli Serguéievitch: pois ele está aqui. Anuncie-nos, por favor.
O porteiro, carrancudo, puxou uma campainha no andar de cima e deu meia-volta.
— A princesa Drubetskaia em visita ao príncipe Vassíli Serguéievitch — gritou para um empregado que descera correndo e, de meias, sapatos e fraque, espiou do patamar da escada.
A mãe arrumou as pregas do seu vestido de seda tingida, examinou-se num espelho veneziano de corpo inteiro, preso na parede, e subiu confiante pelo tapete da escada, com seus sapatos de sola gasta.
— Mon cher, vous m’avez promis 111 — disse ela mais uma vez para o filho, animando-o com um toque da mão.
O filho, de olhos baixos, foi atrás dela tranquilamente.
Entraram na sala, de onde uma porta levava para os aposentos reservados do príncipe Vassíli.
No momento em que mãe e filho, chegando ao centro do cômodo, tencionavam perguntar, para o velho empregado que se erguera de um salto ao vê-los, que caminho deviam tomar, a maçaneta de bronze de uma das portas girou, e o príncipe Vassíli, num casaco de veludo, com uma só estrela no peito, como costumava vestir-se em casa, saiu em companhia de um bonito homem moreno. Esse homem era Lorrain, o famoso médico de Petersburgo.
— C’est donc positif ? 112 — disse o príncipe.
— Mon prince, “errare humanum est”, mais...113 — respondeu o médico, com um erre gutural e pronunciando as palavras do latim com um sotaque francês.
— C’est bien, c’est bien...114
Ao reparar em Anna Mikháilovna e seu filho, o príncipe Vassíli dispensou o médico com uma saudação e, em silêncio, mas com um aspecto interrogativo, aproximou-se deles. O filho notou que, de repente, uma amargura profunda se exprimiu nos olhos da mãe e sorriu de leve.
— Sim, em que circunstâncias tristes viemos nos encontrar, príncipe... Bem, e o nosso querido enfermo? — perguntou, como se não notasse o olhar frio, ofensivo e fixo sobre ela.
O príncipe Vassíli fitou-a com ar interrogativo, e até perplexo, e depois olhou para Boris. Este fez uma reverência respeitosa. O príncipe Vassíli, sem responder à reverência, voltou-se para Anna Mikháilovna e respondeu à sua pergunta com um movimento da cabeça e dos lábios que indicava os piores prognósticos para o doente.
— Será possível? — exclamou Anna Mikháilovna. — Ah, que horror! É terrível pensar... Este é o meu filho — acrescentou, apontando para Boris. — Ele queria agradecer pessoalmente ao senhor.
Boris, de novo, fez uma reverência respeitosa.
— Creia, príncipe, um coração de mãe nunca esquecerá o que o senhor fez por nós.
— Estou contente de poder ter feito algo de bom para a senhora, minha querida Anna Mikháilovna — respondeu o príncipe Vassíli, ajeitando as pregas do colarinho e demonstrando, no gesto e na voz, ali em Moscou, diante da sua protegida Anna Mikháilovna, um ar de importância imensamente maior do que em Petersburgo, na festa em casa de Annette Scherer. — Tente ser um bom militar e mostrar-se digno — acrescentou, dirigindo-se para Boris, com ar severo. — Estou contente em vê-lo... O senhor está aqui de licença? — ditou ele, no seu tom impassível.
— Aguardo ordens, sua excelência, para encaminhar-me ao novo posto — respondeu Boris, sem demonstrar nem irritação com o tom brusco do príncipe, nem desejo de entabular conversa, mas com tanta calma e respeito que o príncipe olhou-o com atenção.
— O senhor está morando com sua mãe?
— Moro com a condessa Rostova — respondeu Boris e, de novo, acrescentou: — Sua excelência.
— Trata-se da casa de Iliá Rostóv, que casou com Nathalie Chinchiná — explicou Anna Mikháilovna.
— Sei, sei — disse o príncipe Vassíli com sua voz monótona. — Je n’ai jamais pu concevoir, comment Nathalie s’est decidée à épouser cet ours mal léché! Un personnage complètement stupide et ridicule. Et joueur à ce qu’on dit.115
— Mais très brave homme, mon prince 116 — observou Anna Mikháilovna, sorrindo de forma tocante, como se ela também soubesse que o conde Rostóv merecia aquela opinião, mas pedisse piedade para o pobre velho. — O que dizem os médicos? — perguntou a princesa, após um breve silêncio e de novo expressando grande tristeza no rosto consumido pelas lágrimas.
— Há poucas esperanças — respondeu o príncipe.
— E eu tinha tanta vontade de agradecer mais uma vez ao titio por todos os seus favores, para mim e também para o Boris. C’est son filleul 117 — acrescentou ela no tom de quem acreditava que tal informação havia de alegrar muito o príncipe Vassíli.
O príncipe Vassíli pôs-se a pensar e franziu o rosto. Anna Mikháilovna entendeu que ele temia encontrar nela uma rival no testamento do conde Bezúkhov. A princesa apressou-se em acalmá-lo.
— Se não fosse o meu amor sincero e minha dedicação ao titio — disse ela, pronunciando essa palavra com uma convicção e com uma espontaneidade peculiares. — Eu conheço o caráter dele, nobre, franco, mas só tem ao seu lado as princesas... Ainda são moças... — Ela inclinou a cabeça e acrescentou num sussurro: — Ele já recebeu o último sacramento, príncipe? Como são preciosos os últimos momentos! Afinal, isso não vai piorar a situação; é indispensável prepará-lo, se está tão mal assim. Nós, mulheres, príncipe — ela sorriu com ternura —, sempre sabemos como dizer essas coisas. É indispensável vê-lo. Por mais que seja triste para mim, mas já estou acostumada a sofrer.
O príncipe obviamente entendia, e entendia, como também ocorrera na festa de Annette Scherer, que era difícil livrar-se de Anna Mikháilovna.
— Mas não seria muito penoso para ele esse encontro, chère Anna Mikháilovna? — disse ele. — Vamos esperar até a noite, os médicos garantiram que virá uma crise.
— Mas nessas horas não se pode esperar muito, príncipe. Pensez, il y va du salut de son âme... Ah, c’est terrible, les devoirs d’un chrétien...118
Dos cômodos internos, abriu-se uma porta e saiu uma das princesas, as sobrinhas do conde, com um rosto triste e frio, e um tronco alto, numa chocante desproporção em relação às pernas.
O príncipe Vassíli voltou-se para ela:
— E então, como está ele?
— Na mesma. E o que se pode esperar, com todo esse barulho... — disse a princesa, virando-se e olhando para Anna Mikháilovna, como se fosse uma estranha.
— Ah, chère, je ne vous reconnaissais pas — disse Anna Mikháilovna, com um sorriso feliz, aproximando-se da sobrinha do conde com uns passinhos ligeiros. — Je viens d’arriver et je suis à vous pour vous aider à soigner mon oncle. J’imagine, combien vous avez souffert 119 — acrescentou, rolando os olhos com simpatia.
A princesa nada respondeu, nem sorriu, e retirou-se logo depois. Anna Mikháilovna tirou as luvas e, ocupando a posição que havia conquistado, instalou-se numa poltrona, convidando o príncipe Vassíli a sentar-se a seu lado.
— Boris! — disse para o filho e sorriu. — Vou ver o conde, o titio, e você, mon ami, enquanto isso, vá ver o Pierre, e não esqueça de transmitir a ele o convite dos Rostóv. Vão convidá-lo para o jantar. Suponho que não irá, não é mesmo? — voltou-se para o príncipe.
— Ao contrário — respondeu o príncipe, visivelmente de mau humor. — Je serais très content si vous me débarrassez de ce jeune homme...120 Ele não sai daqui. O conde não perguntou por ele nem uma vez.
Encolheu os ombros. Um criado conduziu o jovem para baixo e para cima, por outra escada, rumo aos aposentos de Pierre Kirílovitch.
XIII
Pierre ainda não havia conseguido escolher uma carreira para si em Petersburgo e, a rigor, fora banido para Moscou por perturbação da ordem. A história que contaram na casa do conde Rostóv era verdadeira. Pierre havia participado da farra em que amarraram um guarda às costas de um urso. Tinha chegado alguns dias antes e, como sempre, alojara-se na casa do pai. Embora supusesse que a história já fosse conhecida em Moscou e que as senhoras da roda do pai, sempre hostis em relação a ele, fossem tirar proveito daquele caso para instigar a antipatia do conde, mesmo assim, logo no dia da sua chegada a Moscou, Pierre foi aos aposentos do pai. Ao entrar na sala, reduto habitual das princesas, Pierre cumprimentou as senhoras, sentadas diante de seus bastidores de bordar e de um livro, que uma delas lia em voz alta. Eram três. A mais velha, uma jovem austera, asseada, de tronco alto, a mesma que viera ao encontro de Anna Mikháilovna, lia o livro; as mais jovens, ambas rosadas e bonitas, que só se distinguiam uma da outra pelo fato de uma delas ter um sinal sobre o lábio, o que a embelezava muito, bordavam nos bastidores. Pierre foi recebido como um cadáver ou um pestilento. A princesa mais velha interrompeu a leitura e observou-o em silêncio, com olhos assustados; a do meio, sem o sinal, recebeu-o com a mesma expressão; a mais jovem, com o sinal, de personalidade alegre e risonha, curvou-se sobre o bordado a fim de esconder um sorriso, na certa provocado pela cena que viria a seguir e cujo ridículo já previa. Ela empurrou para baixo os fios de lã e curvou-se, como se estivesse examinando os desenhos do bordado, e a muito custo reprimia o riso.
— Bonjour, ma cousine — disse Pierre. — Vous ne me reconnaissez pas? 121
— Reconheço o senhor perfeitamente, perfeitamente.
— Como está passando o conde? Posso vê-lo? — perguntou Pierre, embaraçado, como sempre, mas sem se perturbar.
— O conde está sofrendo física e moralmente e, ao que parece, o senhor fez o possível para aumentar esses sofrimentos morais.
— Posso ver o conde? — repetiu Pierre.
— Hm!... Se o senhor quiser matá-lo, matá-lo de uma vez, então pode vê-lo. Olga, vá ver se já está pronto o caldo de carne para o titio, já está quase na hora — acrescentou, com isso mostrando a Pierre que ali estavam ocupados, e ocupados com o alívio do pai dele, enquanto Pierre, pelo visto, só andava ocupado em lhe causar desgosto.
Olga saiu. Pierre ficou parado, observou as primas e, após curvar-se, falou:
— Então vou para a minha casa. Quando for possível, vocês me avisem.
Saiu, e o riso sonoro, mas não alto, da prima que tinha o sinal ressoou atrás dele.
No dia seguinte, o príncipe Vassíli chegou e instalou-se na casa do conde. Chamou Pierre para conversar e lhe disse:
— Mon cher, si vous vous conduisez ici, comme à Pétersbourg, vous finirez très mal; c’est tout ce que je vous dis.122 O conde está muito, muito doente: você não deve vê-lo de maneira nenhuma.
A partir daí, não incomodaram mais Pierre, e ele passava o dia inteiro sozinho no andar de cima, em seu quarto.
Na ocasião em que Boris veio à sua casa, Pierre estava andando no quarto, parava de vez em quando num canto, fazia gestos ameaçadores para a parede, como se atravessasse com uma espada um inimigo invisível, e olhava com ar severo por cima dos óculos, em seguida recomeçava mais uma vez a caminhada, enquanto falava palavras obscuras, encolhia os ombros e abanava as mãos.
— L’Angleterre a vécu — exclamou de cara fechada e apontando o dedo para alguém. — Monsieur Pitt comme traître à la nation et au droit des gens est condamné à...123 — Não tinha conseguido dizer até o fim a frase de Pitt,124 naquele momento em que se imaginava o próprio Napoleão e em que, na pessoa do seu herói, já havia concluído a perigosa travessia do Pas-de-Calais e conquistado Londres, quando viu que acabava de entrar no seu quarto um oficial jovem, garboso e bonito. Parou. Pierre deixara a Rússia quando Boris era um menino de catorze anos e não se lembrava dele nem um pouco; porém, apesar disso, com suas maneiras rápidas e cordiais, apertou a mão da visita e sorriu de forma amistosa.
— O senhor se lembra de mim? — perguntou Boris, em tom calmo, com um sorriso agradável. — Eu e minha mãe viemos visitar o conde, mas parece que ele está muito mal de saúde.
— Sim, parece que está mal. Não param de perturbá-lo — respondeu Pierre, enquanto tentava lembrar quem era aquele jovem.
Boris sentiu que Pierre não o reconhecia, mas não achava necessário apresentar-se e, sem experimentar o menor constrangimento, fitou-o direto nos olhos.
— O conde Rostóv pediu que o senhor fosse hoje jantar na casa dele — disse, após um silêncio bastante longo e incômodo para Pierre.
— Ah! O conde Rostóv! — exclamou Pierre, com alegria. — Então o senhor é o filho dele, Iliá. Imagine só, no primeiro momento eu não reconheci o senhor. Lembra que íamos juntos aos Montes dos Pardais125 com madame Jacquot?... Faz muito tempo.
— O senhor está enganado — disse Boris, sem pressa, com um sorriso atrevido e um pouco jocoso. — Sou Boris, filho da princesa Anna Mikháilovna Drubetskaia. O Rostóv pai se chama Iliá, mas o filho se chama Nikolai. E eu não conheço nenhuma Madame Jacquot.
Pierre sacudiu os braços e a cabeça como se mosquitos ou abelhas o tivessem atacado.
— Ah, mas o que é isso? Confundi tudo. Há tantos parentes em Moscou! O senhor é Boris... sim. Pronto, eu e o senhor chegamos a um acordo. Bem, o que o senhor pensa a respeito da expedição de Bolonha? Afinal, os ingleses ficarão em apuros apenas com o fato de Napoleão atravessar o canal, não acha? Penso que a expedição é muito viável. Se Villeneuve não fizer alguma bobagem!126
Boris nada sabia da expedição de Bolonha, não lia os jornais e era a primeira vez que ouvia falar de Villeneuve.
— Nós, aqui em Moscou, andamos mais ocupados com jantares e mexericos do que com política — disse ele, no seu tom calmo e jocoso. — Não sei nada a respeito disso e não acho nada. Moscou está ocupada, acima de tudo, com mexericos — prosseguiu. — Agora, andam falando sobre o senhor e o conde.
Pierre sorriu, com o seu sorriso bondoso, como se temesse pelo seu interlocutor, que podia acabar falando algo de que depois se arrependeria. Mas Boris falava com precisão, de modo claro e seco, fitando nos olhos de Pierre.
— Em Moscou, não se faz mais nada a não ser tratar de mexericos — continuou. — Todos andam ocupados em saber para quem o conde vai deixar sua fortuna, embora talvez ele ainda sobreviva a todos nós, o que eu, aliás, desejo de todo o coração...
— Sim, isso é muito triste — emendou Pierre —, é muito triste. — Pierre continuava a temer que aquele oficial, por descuido, se desviasse para uma conversa embaraçosa para ele mesmo.
— E deve parecer ao senhor — disse Boris, ruborizando-se de leve, mas sem alterar a voz e a postura —, deve parecer ao senhor, desde muito tempo, que todos andam ocupados apenas em conseguir tomar para si alguma coisa do ricaço.
“Aí está”, pensou Pierre.
— E eu quero precisamente lhe dizer, para evitar mal-entendidos, que o senhor muito se engana se julga que eu e minha mãe pertencemos a essa categoria de gente. Somos muito pobres, mas eu, pelo menos, falo por mim: exatamente pelo fato de o pai do senhor ser rico, não me considero seu parente e nem eu nem minha mãe nunca pediremos nada nem aceitaremos nada dele.
Pierre demorou bastante para entender, mas quando entendeu levantou-se de um salto do divã, segurou Boris pelo braço e, com a rapidez e o constrangimento que lhe eram próprios, ainda mais ruborizado do que Boris, começou a falar com um sentimento que misturava vergonha e irritação.
— Ora, que coisa estranha! E eu por acaso... quem é que poderia pensar... Eu sei muito bem...
Mas Boris interrompeu de novo:
— Estou contente de ter dito tudo logo. Talvez não seja agradável para o senhor. Queira me desculpar — falou, tranquilizando Pierre, em vez de tranquilizar a si mesmo —, mas espero não ter ofendido o senhor. Tenho por regra dizer tudo francamente... Que resposta devo dar? O senhor irá ao jantar na casa dos Rostóv?
E Boris, depois de dar a impressão de que tinha retirado de cima dos ombros uma pesada obrigação e que havia se livrado de uma situação embaraçosa, colocando nela uma outra pessoa, tornou-se de novo perfeitamente agradável.
— Não, escute — disse Pierre, acalmando-se. — O senhor é uma pessoa admirável. O que o senhor acabou de falar é muito bom, muito bom. Claro, o senhor não me conhece. Não nos vemos há tanto tempo... éramos crianças, ainda... O senhor pode supor que eu... Entendo o senhor, eu entendo muito bem. Eu não faria uma coisa dessas, eu não teria coragem, mas está ótimo. Estou muito contente de conhecer o senhor. É estranho — acrescentou, após um breve silêncio, e sorrindo — que o senhor tenha imaginado isso de mim! — Riu. — Mas e daí? Teremos tempo para nos conhecer melhor. Por favor. — Apertou a mão de Boris. — O senhor fique sabendo que eu não estive com o conde nem uma vez. Não me chamou... Tenho pena dele, como um homem... Mas, o que fazer?
— E o senhor acha que Napoleão vai conseguir atravessar com o exército? — perguntou Boris, sorrindo.
Pierre entendeu que Boris queria mudar de assunto e, concordando com ele, passou a expor as vantagens e as desvantagens da empreitada bolonhesa.
Um lacaio veio chamar Boris a mando da princesa. Ela estava de saída. Pierre prometeu ir ao jantar para que ele e Boris se conhecessem melhor, apertou sua mão com força, enquanto o fitava nos olhos com afeição, através dos óculos... Após a saída dele, Pierre continuou durante muito tempo a caminhar pelo quarto, já não atravessava com a espada um inimigo invisível, mas sorria com a lembrança daquele jovem gentil, inteligente e decidido.
Como acontece na primeira mocidade, e em especial com quem vive só, Pierre sentiu uma ternura gratuita por aquele jovem e prometeu a si mesmo fazer amizade com ele a todo custo.
O príncipe Vassíli acompanhava a princesa. Ela trazia um lenço nos olhos e seu rosto estava em lágrimas.
— É horrível! Horrível! — dizia ela. — Mas, ainda que isso me custe muito, vou cumprir o meu dever. Virei passar a noite. Ele não pode ser deixado assim. Cada minuto é precioso. Não entendo o que as princesas estão esperando. Talvez Deus me ajude a encontrar um meio de prepará-lo!... Adieu, mon prince, que le bon Dieu vous soutienne...127
— Adieu, ma bonne 128 — respondeu o príncipe Vassíli, dando-lhe as costas.
— Ah, ele está numa situação horrível — disse a mãe para o filho, quando os dois se sentaram de novo na carruagem. — Quase não reconhece ninguém.
— Não entendo, mamãe, quais são as relações entre ele e Pierre — perguntou o filho.
— O testamento vai revelar tudo, meu amigo; dele depende o nosso destino...
— Mas por que a senhora acha que ele vai deixar alguma coisa para nós?
— Ah, meu amigo! Ele é tão rico, e nós, tão pobres!
— Bem, isso não é motivo suficiente, mamãe.
— Ah, meu Deus! Meu Deus! Como ele está mal! — exclamava a mãe.
XIV
Quando Anna Mikháilovna saiu com o filho, rumo à casa do conde Kiril Vladímirovitch Bezúkhov, a condessa Rostova ficou muito tempo sozinha, com um lenço nos olhos. Enfim, tocou a campainha.
— O que há com você, querida? — disse, zangada, para a mocinha que a obrigara a esperar alguns minutos. — Não quer trabalhar, é isso? Posso arranjar para a senhora um outro emprego.
A condessa ficara transtornada com o desgosto e com a pobreza humilhante da amiga, e por isso estava de mau humor, o que nela sempre se traduzia naquela maneira de tratar a criada de “querida” e “senhora”.
— Desculpe, patroa — disse a criada.
— Diga ao conde para vir me ver.
O conde, em passo bamboleante, veio ao encontro da esposa, com certo ar de culpa, como sempre.
— Bem, minha condessazinha! Que sauté au madère de perdizes129 nós teremos, ma chère! Eu provei; não foram desperdiçados os mil rublos que paguei pelo Tarás. Vale o preço!130
Sentou-se ao lado da mulher, apoiou jovialmente os cotovelos nos joelhos e eriçou com as mãos os cabelos grisalhos.
— Para que me chamou, minha condessazinha?
— É o seguinte, meu amigo... mas como você se manchou aqui? — disse, apontando para o colete. — É o sauté, aposto — acrescentou, sorrindo. — Veja bem, conde: preciso de dinheiro.
O rosto dela tornou-se tristonho.
— Ah, minha condessazinha!...
E o conde se atrapalhou, enquanto pegava a carteira.
— Preciso de muito, conde, preciso de quinhentos rublos.
E, pegando um lenço de cambraia, esfregou o colete do marido.
— Agora mesmo, agora mesmo. Ei, tem alguém aí? — gritou ele, com uma voz que só é usada por pessoas convictas de que aqueles para quem estão gritando vão se lançar a toda a pressa para atender o seu apelo. — Mande o Mítienka vir falar comigo!
Mítienka, um filho de nobres, educado na casa do conde, que agora administrava todos os negócios dele, entrou com passos suaves.
— Veja bem, meu caro — disse o conde ao jovem respeitoso que entrara. — Traga-me... — refletiu um pouco. — Sim, setecentos rublos, sim. Mas, veja, não traga notas rasgadas e imundas como da outra vez, mas sim bonitas, para a condessa.
— Sim, Mítienka, por favor, que estejam limpinhas — disse a condessa, com um suspiro triste.
— Vossa excelência, quando quer que eu traga o dinheiro? — perguntou Mítienka. — Permita informar que... Mas não precisa se preocupar — acrescentou, ao notar que o conde já começava a respirar mais depressa e mais pesado, o que era sempre um sinal do começo da ira. — Eu já ia me esquecendo... Quer que traga agora mesmo?
— Sim, sim, quero, traga logo. Entregue para a condessa.
— Que tesouro, esse meu Mítienka — acrescentou o conde sorrindo, quando o jovem saiu. — Não há nada que seja impossível. É isso que não consigo tolerar. Para tudo há um jeito.
— Ah, o dinheiro, conde, o dinheiro, quantas desgraças no mundo por causa dele! — disse a condessa. — Mas eu preciso muito desse dinheiro.
— A senhora, minha condessazinha, é uma célebre esbanjadora — disse o conde e, após beijar a mão da esposa, foi de novo para o escritório.
Quando Anna Mikháilovna voltou da casa de Bezúkhov, o dinheiro já estava com a condessa, todo ele em notas novas, debaixo de um lenço na mesinha, e Anna Mikháilovna notou logo que a condessa estava preocupada com alguma coisa.
— Bem, e então, minha amiga? — perguntou a condessa.
— Ah, que situação horrível a dele! Está irreconhecível, e está tão mal, tão mal; fiquei só um minuto e não disse nem duas palavras...
— Annette, pelo amor de Deus, não recuse — disse de repente a condessa, ruborizando-se, o que ficava muito estranho em seu rosto velho, magro e grave, enquanto retirava o dinheiro de sob o lenço.
Anna Mikháilovna no mesmo instante entendeu do que se tratava e logo se curvou para, no momento devido, abraçar habilmente a condessa.
— Aqui está, é para o Boris, de minha parte, para fazer o uniforme dele...
Anna Mikháilovna já estava abraçando a condessa e chorava. A condessa chorava também. Choravam porque eram amigas; e porque eram boas; e porque, amigas de juventude, tinham de se preocupar com aquele assunto vulgar — o dinheiro; e porque a sua mocidade já tinha passado... Mas as lágrimas das duas lhes eram agradáveis...
XV
A condessa Rostova, suas filhas e um grande número de convidados já estavam na sala. O conde conduziu os homens ao seu escritório, para lhes mostrar sua coleção de cachimbos turcos. De vez em quando, ele saía e perguntava: já chegou? Estavam esperando Mária Dmítrievna Akhrossímova, chamada em sociedade de le terrible dragon,131 dama famosa não pela riqueza, nem pelas honrarias, mas pela franqueza da inteligência e pela sincera simplicidade das atitudes. Mária Dmítrievna conhecia a família do tsar, conhecia toda a Moscou e toda a Petersburgo, e as duas cidades, admirando aquela mulher, divertiam-se pelas suas costas com a sua grosseria, contavam anedotas a seu respeito; e ainda assim, todos, sem exceção, a respeitavam e a temiam.
No escritório, repleto de fumaça, conversavam sobre a guerra, anunciada por um manifesto, e sobre o recrutamento. O manifesto, ninguém ainda tinha lido, mas todos sabiam de sua publicação. O conde estava sentado numa otomana, entre dois fumantes, que conversavam. O conde mesmo não fumava e não falava, mas inclinava a cabeça ora para um lado, ora para outro, e com um visível prazer observava os fumantes e ouvia a conversa dos dois vizinhos, aos quais instigara um contra o outro.
Um dos que falavam era um civil, de rosto enrugado, irritadiço, magro e barbeado, que já se aproximava da velhice, embora estivesse vestido como um jovem no rigor da moda; estava sentado numa otomana, com as pernas dobradas sob o corpo, o aspecto de uma pessoa de casa e, com a boquilha de âmbar enfiada bem fundo no canto da boca, inalava a fumaça a intervalos e semicerrava os olhos. Era o velho solteirão Chinchin, primo da condessa, uma língua mordaz, como se referiam a ele nos salões moscovitas. Parecia se mostrar condescendente com o seu interlocutor. O outro, um oficial da guarda, rosado e fresco, impecavelmente lavado, abotoado e penteado, segurava a boquilha de âmbar no meio da boca e, com a ajuda dos lábios rosados, esticava um pouco as baforadas de fumaça, soltando-as em forma de anéis da boca bonita. Era o tenente Berg, oficial do regimento de Semiónov, com quem Boris iria partir, e o mesmo a quem Natacha, para provocar Vera, a princesa mais velha, chamava de seu noivo. O conde estava sentado entre eles e escutava com atenção. A ocupação mais agradável para o conde, exceto jogar bóston, que ele adorava, era ficar na posição de ouvinte, em especial quando conseguia instigar dois interlocutores loquazes.
— Bem, pois é, meu caro, mon très honorable Alphonse Karlitch — disse Chinchin, rindo e misturando (no que constituía a peculiaridade da sua fala) as expressões russas mais populares com termos franceses requintados. — Vous comptez vous faire des rentes sur l’État,132 está querendo obter um lucro com a companhia?
— Não, senhor, Piotr Nikolaitch, desejo apenas mostrar que na cavalaria as vantagens são muito menores do que na infantaria. Veja bem, compreenda a minha posição, Piotr Nikolaitch...
Berg sempre falava de modo muito preciso, calmo e respeitoso. Sua conversa sempre parecia tratar apenas dele mesmo; sempre ficava calado, calmo, enquanto falavam sobre algo que não tinha relação direta com ele. E podia ficar assim calado durante várias horas, sem experimentar nem causar nos outros a menor perturbação. Porém, tão logo a conversa o tocasse pessoalmente, Berg começava a falar de forma prolixa e com um visível prazer.
— Compreenda a minha situação, Piotr Nikolaitch: se eu estivesse na cavalaria, ganharia não mais de duzentos rublos por quadrimestre, mesmo no posto de tenente; mas agora ganho duzentos e trinta — disse, com um sorriso alegre e agradável, olhando para Chinchin e para o conde, como se para ele fosse evidente que o seu sucesso sempre constituía o principal desejo e objetivo de todos os demais.
— Além disso, Piotr Nikolaitch, transferindo-me para a guarda, eu fico em evidência — prosseguiu Berg —, e as vagas na infantaria são muito mais frequentes. Depois, pense o senhor mesmo, eu consigo me arranjar com duzentos e trinta rublos. Eu poupo algum dinheiro e ainda mando um pouco para o meu pai — prosseguiu, soltando aneizinhos de fumaça.
— La balance y est... O alemão debulha o milho com o cabo do machado, comme dit le proverbe 133 — disse Chinchin, passando a boquilha de âmbar para o outro canto da boca, e piscou para o conde.
O conde soltou uma gargalhada. Os outros convidados, vendo que Chinchin guiava a conversa, aproximaram-se para escutar. Berg, sem notar nem a zombaria, nem a indiferença, continuava a explicar que com a transferência para a guarda ele já ganhara um grau na hierarquia em relação a seus camaradas do corpo de oficiais, e que em tempo de guerra o comandante de uma companhia podia ser morto e ele, como o mais antigo na companhia, podia muito facilmente ser nomeado comandante, e que no regimento todos o admiravam, e que seu pai estava satisfeito com ele. Berg, visivelmente, deliciava-se ao contar tudo isso e não parecia nem desconfiar que os outros pudessem ter também os próprios interesses. Mas tudo o que Berg contava era tão encantadoramente solene, a ingenuidade do seu egoísmo de jovem era tão flagrante que ele desarmava os seus ouvintes.
— Bem, meu caro, o senhor, na infantaria, na cavalaria, seja onde for, sempre estará bem; isso eu posso vaticinar — falou Chinchin, segurando-o pelo ombro e baixando os seus pés da otomana.
Berg sorriu, alegre. O conde e os convidados saíram, rumo à sala de estar.
Era aquele momento, imediatamente anterior a um jantar de gala, em que os convidados reunidos, e à espera do chamado para o antepasto, não querem dar início a uma conversa mais longa e ao mesmo tempo acham necessário movimentar-se e não ficar em silêncio, a fim de mostrar que não estão nem um pouco impacientes para tomar seu lugar à mesa. Os anfitriões olhavam para a porta e de vez em quando se entreolhavam. Os convidados tentavam adivinhar, por aqueles olhares, quem ou o que ainda esperavam: um parente importante que se atrasara ou um prato que ainda não estava pronto.
Pierre chegou em cima da hora do jantar e, sem jeito, sentou-se no meio da sala, na primeira poltrona que encontrou, obstruindo a passagem de todos. A condessa queria forçá-lo a falar, mas Pierre olhava à sua volta com ar ingênuo, por trás dos óculos, como se procurasse alguém, e respondia com monossílabos a todas as perguntas da condessa. Ele estava atrapalhando e era o único que não o notava. Grande parte dos convidados, ciente da sua história com o urso, observava com curiosidade aquele homem grande, gordo e manso, sem entender como alguém tão pesadão e modesto pudera pregar tamanha peça num policial.
— O senhor chegou há pouco tempo? — perguntou a condessa.
— Oui, madame 134 — respondeu ele, enquanto olhava em volta.
— O senhor não esteve com o meu marido?
— Non, madame. — Sorriu sem nenhum motivo.
— O senhor, eu creio, esteve em Paris há pouco tempo, não é mesmo? É muito interessante, eu imagino.
— Muito interessante...
A condessa trocou um olhar com Anna Mikháilovna. Anna Mikháilovna entendeu que a condessa lhe pedia que cuidasse daquele jovem, sentou-se ao seu lado e começou a falar sobre o pai dele; mas, a exemplo do que fizera com a condessa, Pierre respondeu só com monossílabos. Os convidados estavam todos ocupados uns com os outros. Les Razoumovsky... Ça a été charmant... Vous êtes bien bonne... La comtesse Apraksine...135 ouvia-se de todos os lados. A condessa levantou-se e foi para o salão.
— Mária Dmítrievna? — ouviu-se a sua voz, do salão.
— Ela mesma — ouviu-se em resposta uma voz áspera de mulher e, em seguida, entrou Mária Dmítrievna.
Todas as senhoritas e mesmo as senhoras, com exceção das mais velhas, levantaram-se. Mária Dmítrievna havia parado na porta, no alto do seu corpo obeso mantinha bem erguida a cabeça quinquagenária, de cachos grisalhos, lançou um olhar em redor para os convidados e, como se as arregaçasse, ajeitou sem pressa as mangas largas do vestido. Mária Dmítrievna sempre falava em russo.
— Parabéns à aniversariante e seus filhos — disse com sua voz alta, grossa, que subjugava todos os outros sons. — Como vai, velho pecador? — dirigiu-se ao conde, que viera beijar-lhe a mão. — Está entediado em Moscou? Não tem lugar para caçar com seu cão? O que se vai fazer, meu caro, mas olhe só como esses passarinhos estão crescendo... — Apontou para as meninas. — Queira você ou não, é preciso arranjar noivos. Bem, e como vai o meu cossaco? (Mária Dmítrievna chamava Natacha de cossaco) — disse ela, enquanto afagava Natacha, que se aproximara da sua mão com alegria e sem medo. — Sei que é uma menina levada, mas gosto de você.
De dentro da bolsa enorme, retirou brinquinhos de rubis em forma de pera e, após entregá-los para Natacha, radiante e enrubescida com a comemoração do dia do seu santo,136 logo lhe deu as costas e virou-se para Pierre.
— Ei, ei! Meu querido! Venha cá! — disse Mária Dmítrievna, com voz fingidamente suave e aguda. — Venha cá, querido...
E ela, com ar ameaçador, arregaçou mais ainda a manga.
Pierre se aproximou, olhando-a de modo ingênuo através dos óculos.
— Chegue perto, chegue perto, querido! Mesmo ao seu pai, só eu dizia a verdade, quando era o caso, e Deus quer que eu também diga a você.
Calou-se. Todos ficaram em silêncio, à espera do que viria, sentindo que aquilo era só um preâmbulo.
— Bonito, nem se discute! Que belo menino!... O pai está no leito de morte e ele se diverte na farra, obriga um guarda a montar a cavalo num urso. Que vergonha, meu caro, que vergonha! Era melhor ir para a guerra.
Ela lhe deu as costas e estendeu a mão para o conde, que mal conseguia conter o riso.
— Bem, e então, vamos para a mesa, ou cheguei tarde demais? — disse Mária Dmítrievna.
O conde caminhou na frente junto com Mária Dmítrievna; depois, a condessa, que conduzia o coronel dos hussardos, homem útil, que iria acompanhar Nikolai até o regimento. Anna Mikháilovna foi com Chinchin. Berg deu a mão para Vera. A sorridente Julie Karáguina seguiu com Nikolai rumo à mesa. Atrás deles, vieram ainda outros pares, que se estenderam por todo o salão, e atrás de todos, à parte, as crianças, os preceptores e as preceptoras. Os criados agitaram-se, as cadeiras fizeram barulho, no balcão soou a música, e os convidados tomaram seus lugares. O som da música doméstica do conde foi substituído pelo som das facas e dos garfos, da conversa dos convidados, dos passos suaves dos criados. Na ponta da mesa, na cabeceira, estava a condessa. À direita, Mária Dmítrievna, à esquerda, Anna Mikháilovna e outras convidadas. Na outra ponta estava o conde, à esquerda o coronel dos hussardos, à direita Chinchin e outros convidados do sexo masculino. Num dos lados da mesa comprida, estava a juventude mais crescida: Vera ao lado de Berg, Pierre ao lado de Boris; do outro lado, as crianças, os preceptores e as preceptoras. O conde, por trás dos cristais, das garrafas e dos vasos com frutas, lançava olhares para a esposa e para a sua touca alta, com fitas azuis, e zelosamente servia mais vinho aos seus vizinhos, sem esquecer também de si. A condessa, da mesma forma, por trás dos ananases, sem esquecer os deveres de anfitriã, atirava olhares significativos para o marido, cujo rosto e cuja careca, com a sua vermelhidão, assim parecia à condessa, contrastavam de modo ainda mais gritante com os cabelos grisalhos. Na ponta das senhoras, havia um murmurar constante; na ponta masculina, ouviam-se vozes cada vez mais altas, em especial a do coronel dos hussardos, que ficava cada vez mais ruborizado e comia e bebia tanto que o conde já fazia dele um exemplo para os demais convidados. Berg, com um sorriso terno, dizia para Vera que o amor é um sentimento celestial, e não terreno. Boris dizia ao seu novo amigo, Pierre, o nome dos convidados à mesa e trocava olhares com Natacha, sentada à sua frente. Pierre falava pouco, observava os rostos novos e comia muito. Começando pelas duas sopas iniciais, das quais ele escolheu à la tortue,137 os pastelões de carne e as perdizes, ele não perdeu nenhum prato e nenhum vinho, sempre servido numa garrafa envolta num guardanapo que o mordomo mostrava, com ar misterioso, por cima do ombro do seu vizinho à mesa, e declarava “madeira seco”, ou “húngaro”, ou “renano”. Ele apanhava a primeira taça que tivesse à mão, entre as quatro taças de cristal, gravadas com o monograma do conde, colocadas diante de cada serviço, e bebia com prazer, olhando para os convidados com um aspecto cada vez mais simpático. Natacha, sentada à sua frente, olhava para Boris, como as meninas de treze anos olham para o rapaz com quem acabaram de trocar o primeiro beijo e por quem estão apaixonadas. O mesmo olhar, ela às vezes dirigia a Pierre, que diante do olhar daquela menina risonha, cheia de vida, também tinha vontade de rir, sem saber por quê.
Nikolai estava sentado longe de Sônia, ao lado de Julie Karáguina, e de novo com o mesmo sorriso involuntário conversava com ela. Sônia sorria com um ar altivo, mas visivelmente atormentada pelo ciúme: ora empalidecia, ora se ruborizava, e com todas as forças escutava atentamente aquilo que Nikolai e Julie conversavam entre si. A preceptora olhava em redor, preocupada, como que se preparando para reagir, caso alguém inventasse de criticar as crianças. O preceptor alemão fazia força para memorizar todos os tipos de pratos, sobremesas e vinhos, a fim de descrever tudo com precisão numa carta para seus familiares, na Alemanha, e ficava muito ofendido quando o mordomo, com uma garrafa envolta num guardanapo, passava direto sem servi-lo. O alemão fazia cara feia, tentava dar a impressão de que não queria tomar aquele vinho, mas sentia-se ofendido porque ninguém queria entender que ele precisava do vinho não para saciar a sede, nem por gulodice, mas sim por uma curiosidade meticulosa.
XVI
Na ponta masculina da mesa, a conversa animava-se cada vez mais. O coronel contava que o manifesto de declaração de guerra já fora publicado em Petersburgo e que um exemplar, que ele mesmo vira, fora entregue pelo correio, naquele dia, para o comandante em chefe.
— E por que diabos nós temos de entrar em guerra contra o Bonaparte? — perguntou Chinchin. — Il a déjà rabattu le caquet à l’Autriche. Je crains, que cette fois ce ne soit notre tour.138
O coronel era um alemão corpulento, alto e sanguíneo, obviamente dedicado ao serviço militar e patriota. E ofendeu-se com as palavras de Chinchin.
— Por esta razão, meu prezado senhor — disse ele, com pronúncia dura, à maneira alemã —, por esta razão, que o imperador conhece muito bem. Ele, no manifesto, declarou que não pode assistir com indiferença aos perigos que ameaçam a Rússia e a segurança do império, a sua dignidade e a santidade das alianças — disse o coronel, enfatizando por algum motivo a palavra “alianças”, como se ali estivesse toda a essência da questão.
E com a sua impecável memória oficial, tão peculiar a ele, repetiu as palavras de abertura do manifesto... “e o desejo, o único e imprescindível objetivo do soberano, que consiste em estabelecer na Europa as bases sólidas da paz... levou-o a deslocar uma parte do Exército para o estrangeiro e a tomar providências para que esses novos esforços alcancem o seu objetivo”.
— Aí está a razão, meu prezado senhor — concluiu o coronel, em tom sentencioso, terminando de beber um copo de vinho e olhando para o lado, na direção do conde, em busca de apoio.
— Connaissez-vous le proverbe: “Boa jornada faz quem em sua casa fica em paz” — disse Chinchin, franzindo as sobrancelhas e sorrindo. — Cela nous convient à merveille. Já tivemos o caso de Suvórov, e ele foi feito em pedacinhos, à plate couture, e onde está o nosso Suvórov agora? Je vous demande un peu139 — disse ele, saltando sem parar do francês para o russo.
— Nós devemos lutar até a última gota de nosso sangue — disse o coronel, batendo com a mão sobre a mesa. — E mor-r-rer pelo nosso imperador, e aí então tudo estará bem. E raciocinar o mí-í-ínimo (esticou a voz de modo especial na palavra “mínimo”), o mí-í-ínimo possível — concluiu o coronel, voltando-se de novo para o conde. — Assim nós, os velhos hussardos, vemos as coisas, e pronto. E o senhor, meu jovem rapaz e jovem hussardo, o que acha? — acrescentou, dirigindo-se a Nikolai, que ao notar que falavam sobre a guerra deixara de lado a sua interlocutora e só tinha olhos e ouvidos para o que dizia o coronel.
— Concordo inteiramente com o senhor — respondeu Nikolai, tomado de entusiasmo, girando o prato e mudando os copos de lugar, com um ar tão decidido e tão arrojado como se naquele instante estivesse exposto a um grande perigo. — Estou convencido de que os russos devem morrer ou vencer — disse Nikolai, sentindo, da mesma forma que os demais, depois que essas palavras foram ditas, que elas eram excessivamente entusiásticas e pomposas para aquela situação e que por isso eram incômodas.
— C’est bien beau ce que vous venez de dire 140 — disse Julie, sentada a seu lado, soltando um suspiro. Sônia tremeu toda e ruborizou-se até as orelhas, e para trás das orelhas, até o pescoço e os ombros, enquanto Nikolai falava. Pierre havia prestado atenção nas palavras do coronel e balançava a cabeça em sinal de aprovação.
— Excelente — disse ele.
— Um verdadeiro hussardo, meu jovem — gritou o coronel, depois de bater com a mão sobre a mesa outra vez.
— Que barulhada é essa que estão fazendo aí? — ouviu-se de repente, do outro lado da mesa, a voz de baixo de Mária Dmítrievna. — Por que está dando socos na mesa? — voltou-se para o hussardo. — Com quem está irritado? Acha que os franceses estão aqui na sua frente?
— Estou falando a verdade — respondeu o hussardo, sorrindo.
— Sempre a guerra — exclamou o conde, da outra ponta da mesa. — Pois tenho um filho que vai partir, Mária Dmítrievna, meu filho vai para a guerra.
— E eu que tenho quatro filhos no Exército, e nem por isso fico aflita. Tudo está nas mãos de Deus: podemos morrer em nossa casa, enquanto no campo de batalha Deus nos perdoa — ouviu-se a voz grossa de Mária Dmítrievna, sem o menor esforço, da outra extremidade da mesa.
— É isso mesmo.
E a conversa de novo se concentrou — as senhoras numa extremidade da mesa, os homens na outra.
— Duvido que você pergunte — dizia o irmão pequeno de Natacha. — Duvido que você pergunte.
— Vou perguntar — respondeu Natacha.
Seu rosto de repente se afogueou, expressando uma firmeza atrevida e alegre. Levantou-se, lançou um olhar para Pierre, sentado na sua frente, convidando-o a prestar atenção, e voltou-se para a mãe:
— Mamãe! — a sua voz infantil e profunda ressoou por toda a mesa.
— O que você quer? — perguntou a condessa, assustada, mas, ao ver pelo rosto da filha que se tratava de uma brincadeira, brandiu a mão com severidade na sua direção, fazendo com a cabeça um gesto de ameaça e de recusa.
A conversa silenciou.
— Mamãe! Que doce vamos ter? — ressoou a vozinha de Natacha, ainda mais resoluta e sem vacilar.
A condessa quis fazer cara feia, mas não conseguiu. Mária Dmítrievna ameaçou, levantando o dedo gordo.
— Cossaco — falou, em tom de ameaça.
A maioria dos convidados olhava para os mais velhos, sem saber como devia reagir àquela travessura.
— Olhe lá, hein! — disse a condessa.
— Mamãe! Que doce vamos ter? — gritou Natacha, já com audácia e um jeito de alegre capricho, segura de antemão de que a travessura seria bem recebida.
Sônia e o gordo Pétia curvaram-se de tanto rir.
— Pronto, perguntei — sussurrou Natacha para o irmão pequeno e para Pierre, a quem lançou de novo um olhar.
— Sorvete, só que você não vai ganhar — respondeu Mária Dmítrievna.
Natacha via que nada havia a temer e por isso não teve medo nem de Mária Dmítrievna.
— Mária Dmítrievna, que sorvete? Não gosto de sorvete de creme.
— É de cenoura.
— Não, qual é o sorvete, Mária Dmítrievna? Qual é? — quase gritou Natacha. — Quero saber!
Mária Dmítrievna e a condessa começaram a rir e, com elas, todos os convidados. Todos riram, não da resposta de Mária Dmítrievna, mas sim da inconcebível audácia e habilidade daquela menina, que tinha a coragem e a capacidade de falar assim com Mária Dmítrievna.
Natacha só recuou quando lhe disseram que seria de ananás. Antes do sorvete, serviram champanhe. A música soou de novo, o conde beijou a sua condessazinha, e os convidados, levantando-se, saudaram a condessa, brindaram curvados sobre a mesa, tocando suas taças com a taça do conde, com a das crianças e uns com os outros. Os criados se moveram afobados outra vez, cadeiras foram arrastadas, e na mesma ordem em que haviam entrado, porém com o rosto mais vermelho, os convidados voltaram para a sala e para o escritório do conde.
XVII
Armaram-se as mesas de jogar bóston, organizaram-se os grupos, e os convidados do conde acomodaram-se em duas salas de estar, na saleta e na biblioteca.
O conde, com as cartas em leque, a muito custo se continha, em razão do costume de dormir depois do jantar, e ria para todos. A juventude, instigada pela condessa, reuniu-se em torno do clavicórdio e da harpa. A pedido de todos, Julie foi a primeira, tocou na harpa uma pecinha com variações e, junto com as outras meninas, começou a pedir que Natacha e Nikolai, conhecidos por sua musicalidade, cantassem. Natacha, a quem tratavam como a uma adulta, ficava muito orgulhosa com isso, é claro, mas ao mesmo tempo se acanhava.
— O que vamos cantar? — perguntou Natacha.
— “A fonte” — respondeu Nikolai.
— Bem, então vamos logo. Boris, venha cá — disse Natacha. — E onde está Sônia?
Olhou em volta e, ao ver que sua amiga não estava na sala, correu à procura dela.
Depois de entrar correndo no quarto de Sônia e de não encontrar ali a amiga, Natacha correu para o quarto das crianças — e lá não havia ninguém. Natacha entendeu que Sônia estava no corredor, sobre a arca. A arca no corredor era o lugar das tristezas da jovem geração feminina da casa dos Rostóv. De fato, amassando o seu vaporoso vestido cor-de-rosa, Sônia estava deitada de bruços em cima do sujo e listrado edredom da babá, sobre a arca e, com o rosto coberto pelos dedinhos, chorava em soluços, estremecia de vez em quando com os ombros desnudos. O rosto de Natacha, animado durante todo aquele dia do aniversário, transformou-se de repente: os olhos pararam, depois o pescoço largo tremeu, os cantos dos lábios baixaram.
— Sônia! O que foi?... O que você tem? O-o-oh!...
E Natacha, abrindo a sua boca grande, o que a deixou muito feia, desatou a chorar como um bebê, sem saber a causa e só porque Sônia estava chorando. Sônia queria levantar a cabeça, queria responder, mas não conseguia e escondia-se mais ainda. Natacha chorava, sentada no edredom azul, e abraçava a amiga. Recobrando as forças, Sônia ergueu-se um pouco, enxugou as lágrimas e começou a contar.
— Nikólienka vai partir daqui a uma semana, o seu... documento... saiu... foi ele que me disse... Mesmo assim eu não devia chorar... (mostrou o papel que segurava na mão: eram versos escritos por Nikolai) eu não devia chorar... mas você não pode... ninguém pode entender... o que ele tem na alma.
E de novo desatou a chorar porque a alma de Nikolai era muito boa.
— Para você, está tudo bem... eu não tenho inveja... eu gosto de você, e de Boris também — disse Sônia, recuperando um pouco mais as forças —, ele é gentil... para vocês não existem obstáculos. Mas Nikolai é meu cousin... é preciso... o metropolita em pessoa...,141 e isso é impossível. Depois, se ela contar para mamãe... (Sônia considerava a condessa sua mãe e assim a chamava) vai achar que eu estou estragando a carreira de Nikolai, que não tenho coração, que sou ingrata, mas na verdade... Deus é testemunha... (ela fez o sinal da cruz) eu gosto tanto dela, e também de todos vocês, é só a Vera que... Por quê? O que fiz a ela? Sou tão grata a vocês que ficaria feliz de sacrificar tudo, mas não tenho nada...
Sônia não conseguiu falar mais e de novo escondeu a cabeça nas mãos e no edredom. Natacha começou a se acalmar, porém via-se pelo seu rosto que entendia todo o alcance da tristeza da amiga.
— Sônia! — disse ela, de repente, como se tivesse adivinhado a verdadeira causa da mágoa da prima. — Vera falou com você depois do jantar, não foi? Não foi isso?
— Sim, estes versos foram escritos pelo próprio Nikolai, e eu copiei mais uns outros; ela os achou em cima da minha mesa e disse que ia mostrar para a mamãe e ainda falou que sou uma ingrata, que a mamãe nunca ia deixar Nikolai casar comigo e que ele ia casar com Julie. Você viu como ele ficou junto dela o dia inteiro... Natacha! Por quê?...
E de novo desatou a chorar, com mais amargura do que antes. Natacha animou-a, abraçou-a e, sorrindo entre lágrimas, pôs-se a tranquilizá-la.
— Sônia, não acredite nela, minha querida, não acredite. Lembra o que eu, você e Nikólienka conversamos na saleta, lembra, depois do jantar? Então, nós já resolvemos como tudo vai ser. Não lembro mais como era, mas lembro que tudo ia ser bom e que tudo era possível. Olhe, o irmão do tio Chinchin é casado com uma prima em primeiro grau, e nós somos primos em segundo grau. E Boris disse que isso é bastante possível. Você sabe, eu contei tudo para ele. E ele é tão inteligente e tão bom... — disse Natacha. — Não chore, Sônia, minha querida, meu anjinho, Sônia. — E lhe deu um beijo, rindo. — Vera é má, pior para ela! Tudo vai dar certo, e ela não vai contar para a mamãe; o próprio Nikólienka vai contar, e ele nem está pensando na Julie.
E lhe deu um beijo na cabeça. Sônia ergueu-se um pouco e o gatinho se animou, os olhinhos começaram a brilhar e parecia pronto a sacudir a cauda a qualquer instante, pular sobre as patinhas macias e recomeçar a brincar com o novelo, como lhe era próprio.
— Você acha mesmo? De verdade? Jura? — perguntou, enquanto ajeitava o vestido e o penteado, às pressas.
— De verdade, juro! — respondeu Natacha, arrumando uma mecha de cabelos ásperos que havia se soltado por baixo de uma trança da amiga.
E as duas começaram a rir.
— Bem, vamos lá cantar “A fonte”.
— Vamos.
— E sabe aquele gordo Pierre que sentou na minha frente, ele é muito engraçado! — falou Natacha de repente, parando. — Estou tão alegre!
E Natacha disparou pelo corredor.
Sônia, depois de sacudir a penugem do edredom e de esconder os versos nos seios, com os ossos salientes na parte alta do peito, abaixo do pescocinho, correu atrás de Natacha pelo corredor, em passos alegres, o rosto ruborizado, rumo à saleta. A pedido dos convidados, os jovens cantaram “A fonte” em quarteto, o que agradou a todos; depois Nikolai cantou uma canção nova, que havia aprendido.
Numa noite amena, sob a luz da lua,
Que felicidade imaginar
Que há alguém neste mundo
Que pensa em mim!
Que ela também, com a mão bonita,
Que passeia por uma harpa de ouro,
Com a sua harmonia apaixonada
Chama sozinha, chama por mim!
Mais um dia, ou dois, e será o paraíso...
Mas, ah! O seu amigo não vai viver até lá!
E ainda não havia cantado as últimas palavras quando os jovens, no salão, já estavam prontos para as danças e, no palco, os músicos começaram a bater os pés e a tossir.
Pierre estava na sala, onde Chinchin havia entabulado com ele, na condição de alguém recém-chegado do exterior, uma conversa sobre política, maçante para Pierre, à qual se uniram outras pessoas. Quando a música tocou, Natacha entrou na sala e, indo direto para Pierre, risonha e ruborizada, falou:
— Mamãe mandou convidar o senhor para dançar.
— Tenho medo de confundir as figuras da dança — respondeu Pierre —, mas se a senhora quiser ser a minha professora...
E, abaixando o braço, ofereceu a mão gorda para a menina magrinha.
Enquanto os pares se punham em posição e os músicos afinavam os instrumentos, Pierre ficou na companhia da sua pequena dama. Natacha sentia-se completamente feliz; estava dançando com um adulto, com uma pessoa recém-chegada do exterior. Estava à vista de todos e conversava com eles, como uma adulta. Tinha na mão um leque, que uma senhora lhe dera para segurar. E, adotando a pose mais mundana (Deus sabe onde e quando aprendera aquilo), Natacha, abanando-se com o leque e sorrindo por trás do leque, conversava com o seu cavalheiro.
— Ora essa, como pode? Olhem só para ela — disse a velha condessa, passando pelo salão e apontando para Natacha.
Natacha ficou ruborizada e começou a rir.
— Puxa, o que há com a senhora, mamãe? O que foi? O que tem aqui de tão extraordinário?
No meio da terceira escocesa, ouviu-se um arrastar de cadeiras na sala de estar, onde jogavam o conde, Mária Dmítrievna e grande parte dos convidados de honra e dos velhos, que se esticavam depois de muito tempo sentados, e enquanto metiam nos bolsos as carteiras e os porta-moedas atravessaram a porta para o salão. Na frente, veio Mária Dmítrievna com o conde — os dois de rosto alegre. O conde, com uma cortesia jocosa, como que num bailado, oferecia o braço curvado para Mária Dmítrievna. Ele aprumou o corpo, e o rosto iluminou-se com um sorriso particularmente garboso e matreiro, e assim que terminaram de dançar a última figura da escocesa, o conde bateu palmas para os músicos e gritou para o palco, dirigindo-se ao primeiro violino:
— Semion! Sabe tocar Danilo Cooper?
Era a dança favorita do conde, que ele dançava na juventude. (Danilo Cooper, especificamente, era uma figura da anglaise.)142
— Olhem só o papai — gritou Natacha para o salão inteiro (ela já esquecera totalmente que estava dançando com os adultos), curvando até os joelhos a sua cabecinha de cabelos cacheados e derramando o seu riso sonoro por todo o salão.
De fato, todos os que estavam no salão olharam com um sorriso de alegria para o velhote alegre, que ao lado de sua dama imponente, Mária Dmítrievna, mais alta do que ele, curvava os braços, sacudia-os no compasso, endireitava os ombros, revirava os pés, batia de leve no chão o salto do sapato e, com um sorriso que se abria cada vez mais em seu rosto redondo, preparava os espectadores para o que viria a seguir. Assim que se ouviram os sons alegres e provocantes de Danilo Cooper, parecidos com um festivo trepak,143 todas as portas do salão se encheram de criados de rosto sorridente, homens de um lado e mulheres do outro, que vinham para ver o patrão se divertir.
— Olhe só o nosso paizinho! É uma águia! — exclamou bem alto a babá, numa das portas.
O conde dançava bem e sabia disso, mas a sua dama não sabia e não queria, de maneira alguma, dançar bem. O seu corpo enorme se mantinha reto, com os braços vigorosos abaixados (ela deixara a bolsinha com a condessa); só o seu rosto severo, mas bonito, dançava. Aquilo que se exprimia em toda a figura redonda do conde, em Mária Dmítrievna se exprimia apenas no rosto, cada vez mais sorridente, e no nariz empinado. Em compensação, se o conde, empolgando-se cada vez mais, cativava os espectadores com a surpresa das ágeis reviravoltas e dos saltos ligeiros de suas pernas moles, Mária Dmítrievna, com um esforço mínimo no movimento dos ombros ou dos braços curvados, durante as viradinhas e as batidas dos pés no chão, produzia uma impressão em nada inferior, que todos admiravam ainda mais por causa da sua obesidade e imponência costumeiras. A dança se animava cada vez mais. Os outros pares não conseguiam nem por um instante atrair para si as atenções e nem mesmo tentavam fazê-lo. Todos estavam atentos ao conde e a Mária Dmítrievna. Natacha puxava pela manga e pelo vestido todos os presentes, os quais mesmo sem isso não tiravam os olhos dos dançarinos, e exigia que olhassem para o seu pai. O conde, nos intervalos da dança, respirava bem fundo, acenava e gritava para os músicos, para que tocassem mais depressa. O conde dava voltas cada vez mais rápido, de modo cada vez mais arrojado, ora na ponta dos pés, ora no salto dos sapatos, em redor de Mária Dmítrievna, e por fim, após virar a sua dama na direção do lugar onde ela iria sentar, fez o último passo de dança, ergueu a perna mole para trás, curvou a cabeça suada, de rosto sorridente, e ergueu o braço direito em curva em meio a um estrondo de palmas e risos, sobretudo de Natacha. Os dois dançarinos pararam, respirando fundo, com esforço, e se enxugaram com lenços de cambraia.
— Era assim que se dançava no nosso tempo, ma chère — disse o conde.
— Ah, isto sim é que é um Danilo Cooper! — disse Mária Dmítrievna, respirando bem fundo, demoradamente, e arregaçando as mangas.
XVIII
No momento em que, no salão da casa dos Rostóv, dançavam a sexta anglaise ao som dos músicos que desafinavam de cansaço, e os criados e os cozinheiros fatigados preparavam a ceia, o conde Bezúkhov sofreu o sexto ataque. Os médicos informaram que não havia esperanças de cura; foi dada ao doente uma confissão muda e a comunhão; fizeram-se os preparativos para a extrema-unção, e na casa havia o rebuliço e a inquieta expectativa habituais em tais circunstâncias. Fora de casa, atrás do portão, à espera de uma encomenda muito cara para os funerais do conde, aglomeraram-se os fabricantes de caixão, que se escondiam quando uma carruagem se aproximava. O comandante em chefe de Moscou, que a toda hora mandava seus ajudantes tomarem informações sobre o estado de saúde do conde, veio em pessoa naquela noite despedir-se do célebre grão-senhor dos tempos da imperatriz Catarina, o conde Bezúkhov.
A suntuosa sala de espera estava repleta. Todos se levantaram com respeito quando o comandante em chefe, que ficara cerca de meia hora a sós com o doente, saiu do quarto, respondendo de leve aos cumprimentos e tentando esquivar-se, o mais depressa possível, dos olhares dos médicos, dos sacerdotes e dos parentes, concentrados sobre ele. O príncipe Vassíli, que naqueles últimos dias ficara mais magro e pálido, acompanhou o comandante em chefe e, em voz baixa, repetiu algo várias vezes para ele.
Depois de acompanhar o comandante em chefe até a saída, o príncipe Vassíli sentou-se no salão, sozinho, numa cadeira, as pernas cruzadas com o joelho bem erguido, o cotovelo apoiado sobre ele, e os olhos cobertos com a mão. Ficou assim algum tempo, levantou-se e, a passos apressados, o que não era do seu costume, olhando em redor com olhos assustados, atravessou o corredor comprido, rumo à parte de trás da casa, até o quarto da princesa mais velha.
As pessoas que se achavam no cômodo mal iluminado conversavam entre si, num sussurro entrecortado, calavam-se e, com olhos repletos de perguntas e de expectativa, viravam-se para a porta que dava para o quarto do moribundo toda vez que ela emitia um pequeno ruído, quando alguém saía ou entrava.
— Existe um limite para o homem — disse um velhote, um eclesiástico, para uma senhora sentada a seu lado, que o escutava com ar ingênuo. — O limite está estabelecido e não pode ser ultrapassado.
— Já não será tarde para a extrema-unção? — perguntou a senhora, acrescentando o título do eclesiástico, como se ela não tivesse a tal respeito nenhuma opinião própria.
— É grande o sacramento, minha cara — respondeu o eclesiástico, passando a mão na careca, na qual esvoaçavam algumas mechas de cabelo penteadas para trás e semigrisalhas.
— Quem era esse? Era o comandante em chefe mesmo? — perguntaram na outra ponta da sala. — Como é jovem!...
— E já passou dos sessenta! Mas dizem que o conde já não reconhece as pessoas, será mesmo? Parece que vão dar a extrema-unção.
— Conheci um que recebeu a extrema-unção sete vezes.
A segunda princesa, assim que saiu do quarto do doente, com olhos chorosos, sentou-se junto ao médico Lorrain, que com uma pose elegante, com os cotovelos apoiados sobre a mesa, estava sentado ao pé de um retrato de Catarina.
— Très beau — disse o médico, em resposta a uma pergunta sobre o tempo. — Très beau, princesse, et puis, à Moscou on se croit à la campagne.144
— N’est-ce pas? 145 — disse a princesa, suspirando. — Então podemos dar de beber a ele?
Lorrain refletiu um pouco.
— Ele tomou o remédio?
— Sim.
O médico olhou o relógio.
— Deixe que beba um copo de água fervida e coloque une pincée (com seus dedos finos, mostrou o que significava une pincée) de cremor tartari...146
— Nunca houve um caso — disse um médico alemão, com forte sotaque, ao seu ajudante — de alguém ficar vivo depois do terceiro ataque.
— E que frescor tinha esse homem! — disse o ajudante. — E para quem irá essa riqueza? — acrescentou num sussurro.
— Candidatos não vão faltar — respondeu o alemão, sorrindo.
Todos olharam de novo para a porta: ela rangeu, e a segunda princesa, após preparar a bebida receitada por Lorrain, levou-a para o doente. O médico alemão aproximou-se de Lorrain.
— Será possível que chegue até amanhã de manhã? — perguntou o alemão, falando em francês com dificuldade.
Lorrain comprimiu os lábios e, com ar severo, balançou o dedo negativamente diante do nariz.
— Hoje à noite, não mais que isso — respondeu em voz baixa, com um sorriso respeitoso, satisfeito por ser capaz de entender e exprimir de modo claro o estado do doente, e afastou-se.
Enquanto isso, o príncipe Vassíli abria a porta que dava para o quarto da princesa.
O quarto estava em penumbra; só duas lamparinas ardiam diante dos ícones, e havia um cheiro bom de incenso e flores. O quarto inteiro estava cheio de móveis pequenos, camiseirinhos, armariozinhos, mesinhas. Atrás de um biombo, viam-se as cobertas brancas de uma alta cama de penas. O cachorro latiu.
— Ah, é o senhor, mon cousin?
A princesa levantou-se e ajeitou os cabelos, que trazia sempre, mesmo naquela ocasião, tão extraordinariamente lisos que a cabeça e os cabelos, cobertos de laquê, pareciam uma só peça.
— O que foi, aconteceu alguma coisa? — perguntou ela. — Já estou tão assustada.
— Não houve nada, está tudo na mesma; vim só para falar de negócios com você, Katiche — explicou o príncipe, sentando, com ar cansado, na poltrona de onde a princesa acabara de se levantar. — Mas como você esquentou o quarto — reparou ele. — Bem, sente-se aqui, causons.147
— Achei que tinha acontecido alguma coisa — disse a princesa e, com sua fisionomia imutável, dura e severa, sentou-se diante do príncipe, preparando-se para ouvir.
— Eu queria dormir um pouco, mon cousin, mas não consigo.
— Bem, e então, minha cara? — disse o príncipe Vassíli, após pegar a mão da princesa e curvá-la para baixo, como era o seu costume.
Via-se que aquele “bem, e então” se referia a muita coisa que os dois entendiam, sem falar.
A princesa, com o seu tronco seco e reto, e desproporcionalmente comprido em relação às pernas, fitava de modo fixo e impassível os olhos saltados e cinzentos do príncipe. Ela balançou a cabeça, suspirou e olhou para os ícones. Seu gesto podia ser entendido como uma expressão de tristeza e de devoção, ou como uma expressão de cansaço e de esperança de um ligeiro repouso. O príncipe Vassíli entendeu aquele gesto como uma expressão de cansaço.
— E para mim — disse ele —, você acha que é fácil? Je suis éreinté, comme un cheval de poste;148 mesmo assim tenho de conversar com você, Katiche, e com muita seriedade.
O príncipe Vassíli calou-se, e suas bochechas começaram a repuxar nervosamente, ora num lado, ora no outro, dando ao seu rosto uma expressão desagradável, que nunca se via no rosto do príncipe Vassíli quando estava em uma sala de estar. Seus olhos também não estavam como sempre pareciam: ora fitavam com um ar cruamente zombeteiro, ora miravam de um jeito assustado.
A princesa, segurando o cachorro sobre os joelhos com as mãos secas, magras, fitava atentamente os olhos do príncipe Vassíli; mas era óbvio que ela não iria interromper o silêncio com uma pergunta, mesmo que tivesse de ficar calada até de manhã.
— Veja bem, minha cara princesa e prima, Katierina Semiónovna — prosseguiu o príncipe Vassíli, não sem travar uma visível luta interior para começar a falar. — Em momentos como este, todos temos de refletir. É preciso refletir sobre o futuro, sobre a senhora... Eu amo todas vocês, como minhas filhas, você sabe disso.
A princesa continuava a olhar para ele, como antes, imóvel e opaca.
— Enfim, é preciso pensar também na minha família — prosseguiu o príncipe Vassíli, afastando de si a mesinha, com ar zangado, e sem olhar para a princesa. — Você sabe, Katiche, que vocês, as três irmãs Mámontov, e a minha esposa são as únicas herdeiras diretas do conde. Sei, sei como é penoso para você falar e pensar sobre tais assuntos. Para mim também não é mais fácil; porém, minha amiga, já passei dos cinquenta, é preciso estar preparado para tudo. Você sabe que mandei chamar o Pierre e que o conde, apontando diretamente para o retrato dele, exigiu a sua presença?
O príncipe Vassíli fitou a princesa de modo indagador, mas não conseguiu entender se ela estava refletindo a respeito do que ele dizia ou se apenas olhava para ele...
— Só uma coisa eu não paro de pedir a Deus, mon cousin — respondeu a princesa. — Que Deus o perdoe e permita que a sua boa alma abandone com serenidade este...
— Sim, isso mesmo — prosseguiu o príncipe Vassíli, impaciente, esfregando a careca e aproximando de si, com raiva, outra vez, a mesinha deslocada. — Mas, enfim... enfim, a questão é que, você mesma sabe, no inverno passado o conde redigiu um testamento segundo o qual deixa todas as propriedades para Pierre, em detrimento dos herdeiros diretos, nós.
— Ele já fez tantos testamentos! — disse a princesa, tranquila. — Não pode deixar nada para Pierre em testamento. Pierre é filho ilegítimo.
— Ma chère — disse o príncipe Vassíli de repente, puxando mais um pouco a mesinha, reanimando-se e passando a falar mais depressa. — E se uma carta for enviada para o imperador e o conde pedir para perfilhar Pierre? Você entende, pelos serviços prestados pelo conde, um pedido dele será acatado...
A princesa sorriu, como sorriem as pessoas que acham que conhecem o assunto melhor do que aquele com quem estão conversando.
— Vou lhe dizer mais — continuou o príncipe Vassíli, tomando a mão dela. — Essa carta foi escrita, embora não tenha sido enviada, e o imperador tem conhecimento disso. A questão é apenas se a carta foi destruída ou não. Se não foi, assim que tudo terminar — o príncipe Vassíli suspirou, indicando desse modo o que ele entendia pelas palavras “tudo terminar” — e forem abertos os documentos do conde, o testamento e a carta serão enviados ao imperador, e o seu pedido, seguramente, será acatado. Pierre, na condição de filho legítimo, receberá tudo.
— E a nossa parte? — perguntou a princesa, sorrindo com ironia, como se tudo, menos isso, pudesse acontecer.
— Mais, ma pauvre Catiche, c’est clair, comme le jour.149 Pierre, sozinho, será então o herdeiro legítimo de tudo, e vocês não receberão nada. Você precisa saber, minha querida, se o testamento e a carta foram escritos, e se foram destruídos. E se por algum motivo foram esquecidos, você precisa saber onde estão e precisa encontrá-los, para que...
— Era só o que faltava! — cortou a princesa, sorrindo sarcástica e sem alterar a expressão dos olhos. — Eu sou mulher; para vocês, somos todas estúpidas; mas sei muito bem que um filho ilegítimo não pode herdar... Un bâtard — acrescentou, supondo demonstrar para o príncipe, com aquela tradução, o despropósito do que ele estava dizendo.
— Como é que você não entende, afinal, Katiche! Você é tão inteligente: como não entende... que se o conde escreveu uma carta para o imperador, na qual pede que reconheça o filho como legítimo, Pierre não será mais Pierre, mas sim o conde Bezúkhov, e então ganhará tudo conforme o testamento? E se o testamento e a carta não forem destruídos, você não ganhará nada, além do consolo de ter sido virtuosa et tout ce qui s’en suit.150 Disso não há dúvida.
— Sei que o testamento foi escrito; mas sei também que não tem validade, e o senhor parece que me considera uma imbecil, mon cousin — disse a princesa, com a expressão com que as mulheres dizem acreditar que falaram algo sagaz e ferino.
— Minha querida princesa Katierina Semiónovna — recomeçou o príncipe Vassíli, com impaciência. — Vim ao seu encontro não para travar um duelo verbal, mas sim para, na condição de minha parente, e uma parente boa, generosa, sincera, conversar sobre os seus próprios interesses. Já lhe disse dez vezes que, se a carta para o imperador e o testamento em favor de Pierre estiverem nos papéis do conde, você, minha cara, e suas irmãs não são herdeiras. Se não acredita em mim, acredite nas pessoas entendidas no assunto: acabei de conversar com Dmítri Onúfritch (o advogado da família), e ele disse a mesma coisa.
De maneira evidente, algo se alterou de súbito no pensamento da princesa; os lábios finos empalideceram (os olhos continuaram como antes), e a voz, no instante em que começou a falar, irrompeu com estrondos que ela mesma, pelo visto, não esperava.
— Isso seria bom — disse a princesa. — Eu não queria nada e não quero.
Enxotou dos joelhos o cachorro e ajeitou as dobras do vestido.
— Aí está a gratidão, aí está o reconhecimento que recebem as pessoas que sacrificaram tudo por ele — disse a princesa. — Que ótimo! Muito bem! Não preciso de nada, príncipe.
— Sim, mas você não está sozinha, tem suas irmãs — retrucou o príncipe Vassíli.
Porém a princesa não o escutava.
— Sim, eu sabia disso há muito tempo, mas tinha esquecido que nesta casa eu não podia esperar nada, a não ser baixeza, falsidade, inveja, intriga, nada a não ser a ingratidão, a mais negra ingratidão...
— Você sabe ou não sabe onde está esse testamento? — perguntou o príncipe Vassíli, com uma contração ainda maior do que antes no rosto.
— Sim, eu fui uma tola, eu ainda acreditava nas pessoas e as amava e me sacrificava. Mas só os maus e os torpes serão bem-sucedidos. Eu sei de onde partiram essas intrigas.
A princesa quis levantar-se, mas o príncipe a segurou pelo braço. A princesa tinha o aspecto de uma pessoa que de repente se desiludiu com toda a espécie humana; fitava com raiva o seu interlocutor.
— Ainda há tempo, minha amiga. Lembre, Katiche, que tudo isso foi feito de improviso, num momento de raiva, de doença, e depois foi esquecido. Nossa obrigação, minha querida, é corrigir esse erro, aliviar os últimos minutos do conde, para não deixar que ele faça essa injustiça, não deixar que ele morra pensando que causou a infelicidade daquelas pessoas que...
— Daquelas pessoas que tudo sacrificaram por ele — completou a princesa, de novo se esforçando para levantar, mas o príncipe não deixou. — Pessoas que ele nunca soube apreciar. Não, mon cousin — interrompeu, com um suspiro —, vou lembrar que neste mundo não se pode esperar uma recompensa, neste mundo não existe honra, nem justiça. Neste mundo, é preciso ser astuto e maldoso.
— Bem, voyons,151 acalme-se; conheço o seu coração excelente.
— Não, meu coração é maldoso.
— Conheço o seu coração — repetiu o príncipe —, estimo a sua amizade e gostaria que você tivesse a mesma opinião a meu respeito. Acalme-se e parlons raison,152 enquanto há tempo... pode demorar um dia, pode demorar uma hora; conte-me tudo o que sabe a respeito do testamento e, sobretudo, onde ele está: você tem de saber. Vamos pegá-lo agora mesmo e mostrá-lo para o conde. Sem dúvida ele se esqueceu disso e vai querer destruí-lo. Entenda que o meu único desejo é cumprir religiosamente a vontade dele; só por isso vim para cá. Só estou aqui para ajudar a ele e a vocês.
— Agora entendi tudo. Sei de onde partiram essas intrigas. Já sei — disse a princesa.
— Isso não vem ao caso, minha cara.
— É a protégée 153 do senhor, a sua querida princesa Drubetskaia, Anna Mikháilovna, que eu não gostaria de ter nem como criada de quarto, aquela mulher torpe, infame.
— Ne perdons point de temps.154
— Ah, não diga nada! No inverno passado, ela insinuou-se aqui e falou para o conde tamanhas baixezas, tamanhas indignidades sobre todos nós, em especial sobre Sophie — não sou capaz de repeti-las —, que o conde ficou doente e por duas semanas não quis nos ver. Nessa ocasião, sei que ele escreveu esse documento sórdido, infame; mas pensei que esse documento não significava nada.
— Nous y voilà,155 por que não me contou nada antes?
— Dentro de uma pasta com um mosaico que ele guarda debaixo do travesseiro. Agora eu já sei — disse a princesa, sem responder. — Sim, se trago em mim algum pecado, um grande pecado, é o ódio por essa miserável — quase gritou a princesa, completamente transtornada. — E por que ela tem de se insinuar aqui? Mas eu vou contar a todo mundo, todo mundo. Vai chegar a hora.
XIX
Enquanto essas conversas se passavam na sala de espera e no quarto da princesa, uma carruagem com Pierre (a quem foram chamar) e Anna Mikháilovna (que achou necessário vir com ele) chegava ao pátio da casa do conde Bezúkhov. Quando as rodas da carruagem começaram a ressoar suavemente sobre a palha que revestia a terra embaixo das janelas, Anna Mikháilovna voltou-se para o seu companheiro com palavras de consolo, viu que ele dormia no canto da carruagem e acordou-o. Desperto, Pierre desembarcou após Anna Mikháilovna e só então refletiu sobre o encontro com o pai moribundo, que o aguardava. Notou que eles não tinham vindo pela entrada principal, mas pela entrada dos fundos. No momento em que ele desceu do estribo da carruagem, dois homens em roupas vulgares afastaram-se às pressas para a sombra da parede, abrindo caminho para a porta. Pierre parou um instante e avistou, na sombra da casa, de ambos os lados, várias outras pessoas do mesmo tipo. Mas nem Anna Mikháilovna, nem o lacaio, nem o cocheiro, que não podiam deixar de ver aquelas pessoas, deram a elas a menor atenção. Portanto era necessário agir assim, resolveu Pierre, e foi atrás de Anna Mikháilovna. A passos rápidos, Anna Mikháilovna subiu a estreita escada de pedra, mal iluminada, chamando Pierre, que ficara para trás e que, embora não compreendesse por que precisava tanto assim ver o conde e menos ainda por que precisava subir pela escada dos fundos, resolveu, a julgar pela confiança e pela pressa de Anna Mikháilovna, que aquilo era absolutamente necessário. Na metade da escada, quase foram derrubados por pessoas que traziam uns baldes e, batendo forte com as botas nos degraus, desciam correndo ao encontro deles. Essas pessoas encostaram-se à parede para abrir caminho para Pierre e Anna Mikháilovna e não demonstraram a menor surpresa ao vê-los.
— Por aqui se vai para os aposentos das princesas? — perguntou Anna Mikháilovna a um deles.
— É por aqui — respondeu o lacaio em voz alta, destemida, como se agora tudo fosse permitido. — É a porta da esquerda, senhora.
— Talvez o conde não tenha me chamado — disse Pierre, no momento em que pisou no patamar. — Acho melhor ir para o meu quarto.
Anna Mikháilovna parou, a fim de esperar que Pierre a alcançasse.
— Ah, mon ami! — disse ela, tocando no seu braço, com o mesmo gesto que usara com o filho naquela manhã. — Croyez, que je souffre autant que vous, mais soyez homme.156
— Tenho de ir mesmo? — perguntou Pierre, olhando afetuosamente para Anna Mikháilovna, através dos óculos.
— Ah, mon ami, oubliez les torts qu’on a pu avoir envers vous, pensez que c’est votre père... peut-être à l’agonie. — Soltou um suspiro. — Je vous ai tout de suite aimé comme mon fils. Fiez-vous à moi, Pierre. Je n’oublierai pas vos intérêts.157
Pierre não estava compreendendo nada; de novo lhe pareceu, com mais força ainda, que tudo aquilo tinha de ser assim e, docilmente, seguiu Anna Mikháilovna, que já abria a porta.
A porta dava para uma antessala da parte dos fundos. No canto, estava sentado um velhinho, criado das princesas, que tricotava uma meia. Pierre nunca estivera naqueles aposentos nem supunha que tais lugares existissem. Anna Mikháilovna perguntou a uma jovem que os ultrapassou, com uma garrafa numa bandeja, (chamando-a de querida e meu bem) sobre a saúde das princesas e conduziu Pierre em frente, por um corredor de pedra. A primeira porta do corredor, à esquerda, dava para os aposentos das princesas. A criada de quarto, com uma garrafa, às pressas (como todos se moviam naquela casa, naquele momento, às pressas), não fechara a porta, e Pierre e Anna Mikháilovna, ao passarem por ali, olharam de relance e sem querer para dentro daquele quarto, onde conversavam, sentados bem perto um do outro, a princesa mais velha e o príncipe Vassíli. Ao ver os dois passando, o príncipe Vassíli fez um movimento impaciente e inclinou-se para trás; a princesa levantou-se de um salto e, com um gesto impetuoso, com toda a força, bateu a porta, fechando-a.
Esse gesto era tão discrepante da eterna serenidade da princesa, o medo que se exprimiu no rosto do príncipe Vassíli era tão impróprio à sua imponência, que Pierre parou e fitou, através dos óculos, com ar de interrogação, a sua guia. Anna Mikháilovna não manifestou surpresa, apenas sorriu de leve e soltou um suspiro, como que para mostrar que já esperava aquilo mesmo.
— Soyez homme, mon ami, c’est moi qui veillerai à vos intérêts 158 — disse ela, em resposta ao olhar de Pierre, e andou mais depressa ainda pelo corredor.
Pierre não entendia o que estava acontecendo, e menos ainda o que significava veiller à vos intérêts, mas entendia que tudo aquilo tinha de acontecer daquele modo. Pelo corredor, chegaram a uma sala mal iluminada, contígua à sala de espera do conde. Era um dos cômodos frios e luxuosos que Pierre já conhecia, mas apenas através da entrada principal. No meio daquele cômodo, estava uma banheira vazia, água havia respingado sobre o tapete. Um criado e um sacristão, com um incensório, vieram na direção deles, na ponta dos pés, sem prestar em ambos a menor atenção. Pierre e Anna Mikháilovna entraram na sala de espera, bem conhecida de Pierre, com duas janelas italianas que davam para o jardim de inverno, um grande busto e um retrato da imperatriz Catarina, de corpo inteiro. Todas as mesmas pessoas, quase nas mesmas posições, continuavam sentadas e trocavam sussurros na sala de espera. Todas se calaram, lançaram um olhar para Anna Mikháilovna, com o seu rosto pálido, consumido pelas lágrimas, e para o gordo e grande Pierre, que a seguia docilmente, de cabeça baixa.
O rosto de Anna Mikháilovna expressava a consciência de que o instante decisivo havia chegado; com os recursos de uma experiente dama petersburguesa, e sem se afastar de Pierre, ela entrou no quarto de maneira ainda mais arrojada do que de manhã. Sentia que, como trazia consigo a pessoa que o moribundo queria ver, era seguro que seria recebida. Após lançar um rápido olhar para todos os que estavam no quarto e notar a presença do confessor do conde, ela, sem se curvar propriamente, mas tornando-se de súbito mais baixa, aproximou-se do confessor a passos miúdos e esquipados e recebeu a bênção dele e depois de outro eclesiástico.
— Graças a Deus chegaram a tempo — disse ela para o sacerdote. — Todos nós, parentes, tivemos receio. Vejam, este jovem aqui é o filho do conde — acrescentou ela em voz baixa. — Que momento terrível!
Após falar essas palavras, ela se aproximou do médico.
— Cher docteur — disse-lhe —, ce jeune homme est le fils du comte... Y a-t-il de l’espoir? 159
O médico, em silêncio, num movimento rápido, levantou os olhos e os ombros. Anna Mikháilovna, com um movimento exatamente igual, levantou os ombros e os olhos, quase fechados, deu um suspiro, deixou o médico e se aproximou de Pierre. De modo especialmente respeitoso, afetuoso e triste, dirigiu-se a Pierre.
— Ayez confiance en Sa miséricorde 160 — disse ela, depois de lhe indicar um sofazinho, para sentar-se e ali esperar por ela, que sem fazer ruído foi até a porta, para a qual todos olhavam, e com um som quase imperceptível da porta desapareceu atrás dela.
Pierre, que decidira obedecer à sua guia em tudo, dirigiu-se ao sofazinho que ela indicara. Assim que Anna Mikháilovna desapareceu, Pierre notou que os olhares de todos no quarto se fixaram sobre ele, com algo mais do que curiosidade e interesse. Notou que todos trocavam sussurros, apontando-o com os olhos, como que com medo e até com servilismo. Demonstravam ter por ele um respeito que nunca antes haviam manifestado: uma senhora que Pierre não conhecia, e que estava conversando com os eclesiásticos, levantou-se e lhe ofereceu o seu lugar para sentar, um ajudante de ordens pegou uma luva que Pierre deixara cair e lhe entregou; os médicos calaram-se respeitosamente quando passou por eles e recuaram para lhe abrir mais caminho. Pierre, de início, quis sentar em outro lugar para não incomodar a senhora, quis pegar a luva ele mesmo e desviar-se dos médicos, que aliás em nada atrapalhavam sua passagem; mas de repente sentiu que aquilo não seria correto, sentiu que naquela noite ele era uma pessoa obrigada a cumprir um ritual terrível e esperado por todos, e que por isso tinha de receber os favores de todos. Em silêncio, recebeu a luva das mãos do ajudante de ordens, sentou-se no lugar da senhora, colocou as mãos grandes simetricamente sobre os joelhos, numa pose ingênua de estátua egípcia, e decidiu em seu íntimo que tudo aquilo tinha de se passar exatamente desse modo e que ele, naquela noite, para não sair do rumo e não fazer tolices, não devia agir segundo a sua razão, e tinha de render-se por inteiro à vontade daqueles que o guiavam.
Não haviam passado nem dois minutos quando o príncipe Vassíli, em seu cafetã com três condecorações em forma de estrela, a cabeça bem erguida e um ar majestoso, entrou no quarto. Parecia ter emagrecido desde a manhã; seus olhos estavam maiores do que o habitual, quando correu o olhar pelo quarto e avistou Pierre. Aproximou-se dele, pegou sua mão (o que nunca fazia) e puxou-a para baixo, como se quisesse verificar se estava bem presa ao braço.
— Courage, courage, mon ami. Il a demandé à vous voir. C’est bien...161 — e quis ir embora.
Mas Pierre julgou necessário perguntar:
— Como está a saúde...
Titubeou, sem saber se era correto chamar o moribundo de conde; tinha vergonha de chamá-lo de pai.
— Il a eu encore un coup, il y a une demi-heure. Teve outro ataque. Courage, mon ami...162
Pierre se achava em tal estado de confusão mental que, ao ouvir a palavra “ataque”, imaginou uma pancada de algum objeto. Perplexo, fitou o príncipe Vassíli e só mais tarde se deu conta de que o ataque se referia à doença. O príncipe Vassíli, de passagem, disse algumas palavras para Lorrain e cruzou a porta na ponta dos pés. Não sabia andar na ponta dos pés e assim dava saltinhos desajeitados com o corpo todo. Atrás dele, passou a princesa mais velha, depois os eclesiásticos e os sacristãos, e outras pessoas (criados) também cruzaram a porta. De trás da porta, ouviu-se um movimento e, por fim, com o mesmo rosto pálido, mas firme no cumprimento do dever, saiu Anna Mikháilovna e, tocando no braço de Pierre, falou:
— La bonté divine est inépuisable. C’est la cérémonie de l’extrême-onction qui va commencer. Venez.163
Pierre cruzou a porta, pisando no tapete macio, e notou que o ajudante de ordens, a senhora desconhecida e ainda um dos criados, todos vieram atrás dele, como se agora não fosse mais preciso pedir autorização para entrar no quarto.
XX
Pierre conhecia bem aquele quarto grande, dividido por colunas e arcos, as paredes todas forradas com tapetes persas. Uma parte do quarto, atrás das colunas, onde de um lado ficava uma alta cama de mogno, sob um cortinado de seda, e do outro um enorme quadro com ícones, estava iluminada de modo claro e forte, como ficam iluminadas as igrejas durante a missa das vésperas. Sob a moldura dos ícones, havia uma poltrona reclinada, comprida, estofada, fornida de almofadas brancas cor de neve, nem um pouco amarrotadas, obviamente trocadas pouco antes, e na poltrona, coberta até a cintura por uma manta verde-clara, jazia, bem conhecida de Pierre, a imponente figura do seu pai, o conde Bezúkhov, com a mesma juba de cabelo grisalho, que lembrava um leão, acima da testa larga, e com as mesmas rugas fortes e caracteristicamente nobres no belo rosto vermelho-amarelado. Ele jazia reto sob os ícones; as duas mãos grandes, gordas, estavam por fora da manta e jaziam sobre ela. Na mão direita, que jazia com a palma virada para baixo, fora colocada, entre o dedo indicador e o médio, uma vela de cera, que um velho criado escorava, inclinando-se por trás da poltrona. Junto à poltrona, estavam os eclesiásticos em seus trajes brilhantes e imponentes, com os cabelos compridos escorrendo por cima dos paramentos, com velas acesas nas mãos, e oficiavam a cerimônia de maneira lenta e solene. Um pouco atrás deles, estavam as duas princesas mais jovens, com um lenço nas mãos e nos olhos, e logo à frente, a mais velha, Katiche, com um aspecto maldoso e decidido, sem tirar os olhos dos ícones nem por um segundo, como se dissesse a todos que não responderia por si, se olhasse em outra direção. Anna Mikháilovna, com uma tristeza dócil no rosto e uma expressão de quem tudo perdoa, e a senhora desconhecida estavam junto à porta. O príncipe Vassíli estava do outro lado, perto da poltrona, atrás de uma cadeira de veludo, de madeira entalhada, cujo espaldar ele voltara para si, onde apoiava o cotovelo, segurando uma vela na mão esquerda, e fazia o sinal da cruz com a mão direita, levantando os olhos para cima na hora em que tocava os dedos na testa. Seu rosto exprimia devoção serena e obediência à vontade de Deus. “Se vocês não entendem estes sentimentos, pior para vocês”, parecia dizer o seu rosto.
Atrás dele, estavam o ajudante de ordens, os médicos e os criados; como se estivessem na igreja, os homens e as mulheres haviam se separado. Em silêncio, todos faziam o sinal da cruz, escutavam-se apenas os recitativos litúrgicos, o canto em voz grave de baixo e, nos instantes de silêncio, o movimento dos pés no chão e os suspiros. Anna Mikháilovna, com uma fisionomia solene que mostrava que ela sabia o que estava fazendo, atravessou o quarto inteiro, na direção de Pierre, e lhe deu uma vela. Ele a acendeu e, distraído na observação das pessoas em redor, começou a se benzer com a mão em que estava a vela.
A princesa mais jovem, a rosada e bem-humorada Sophie, com o sinalzinho, olhava para Pierre. Ela sorriu, escondeu o rosto num lenço e ficou muito tempo sem mostrá-lo; mas, depois de olhar para Pierre, pôs-se a rir de novo. Sentia-se, era evidente, incapaz de olhar para ele sem rir, mas não conseguia conter-se e deixar de olhar para Pierre, e por isso, a fim de fugir da tentação, deslocou-se de leve para trás de uma coluna. No meio da cerimônia, as vozes do clero silenciaram de repente; os eclesiásticos falaram algo, num sussurro, um para o outro; o velho criado que segurava a mão do conde ergueu-se e disse algo para as senhoras. Anna Mikháilovna avançou e, após curvar-se sobre o doente, acenou com o dedo nas costas, chamando Lorrain. O médico francês — que não tinha na mão nenhuma vela acesa e estava encostado numa coluna, naquela postura respeitosa de um estrangeiro que demonstra que, apesar das crenças distintas, compreende toda a importância do ritual em curso, e até o aprova — aproximou-se do doente com os passos inaudíveis de um homem na plena força da idade, segurou com os dedos brancos e finos a mão livre sobre a manta verde e, com o corpo meio virado, apalpou o pulso e refletiu. Deram de beber ao doente, começaram a mover-se em volta dele, depois retornaram a seus lugares, e a cerimônia recomeçou. Durante esse intervalo, Pierre notou que o príncipe Vassíli saiu de trás do espaldar da cadeira e, com a mesma expressão de quem sabe o que está fazendo e não dá a mínima se os outros não o compreendem, em vez de ficar perto do doente, passou por ele, foi para junto da princesa mais velha, e os dois seguiram para o fundo do quarto, rumo à cama alta sob um cortinado de seda. Para além da cama, o príncipe e a princesa desapareceram através da porta dos fundos, mas antes do fim da cerimônia os dois, um após o outro, voltaram a seus lugares. Pierre não prestou a tal circunstância mais atenção do que ao resto, tendo resolvido de uma vez por todas, em seu íntimo, que tudo o que se passava na sua frente naquela noite era absolutamente necessário.
Os sons do recitativo litúrgico cessaram e ouviu-se a voz de um eclesiástico que, respeitosamente, saudava o doente por ter recebido o sacramento. O doente jazia tão sem vida e imóvel como antes. À sua volta, todos começaram a mover-se, ouviram-se passos e sussurros, entre os quais o sussurro de Anna Mikháilovna sobressaía mais nítido do que todos.
Pierre ouviu que ela dizia:
— É preciso transferi-lo para a cama, aqui é completamente impossível...
Os médicos, as princesas e os criados rodearam o doente de tal modo que Pierre já não via mais a cabeça vermelho-amarelada, com a juba grisalha, que ele não perdera de vista nem por um segundo durante toda a cerimônia, apesar de olhar também para os outros rostos. Pierre, pelo movimento cuidadoso das pessoas que rodeavam a poltrona, adivinhava que estavam erguendo e carregando o moribundo.
— Segure-se no meu braço, assim vai deixar cair — ele ouviu o sussurro assustado de um criado.
— Pegue por baixo... mais um — falaram vozes, e a respiração pesada e o deslocamento dos pés das pessoas tornaram-se mais aflitos, como se o peso que carregavam estivesse acima de suas forças.
As pessoas que o carregavam, entre as quais estava Anna Mikháilovna, alcançaram Pierre e, por um instante, vistos por trás das costas e da nuca das pessoas, revelaram-se para ele o peito alto, obeso, descoberto, e os ombros balofos do doente, erguidos pelas pessoas, que o seguravam pelas axilas, e a cabeça grisalha, crespa, leonina. A cabeça, com a testa e as maçãs do rosto extraordinariamente largas, a boca bonita e sensual, e o olhar majestoso e frio, não estava desfigurada pela proximidade da morte. Estava como Pierre a conhecia e vira três meses antes, quando o conde o mandara para Petersburgo. Mas essa cabeça balançava desamparada por causa dos passos desiguais dos que o carregavam, e o olhar frio, indiferente, não sabia em que se deter.
Passaram alguns minutos de rebuliço, em redor da cama alta; as pessoas que carregaram o doente se dispersaram. Anna Mikháilovna tocou no braço de Pierre e lhe disse: “Venez”.164 Pierre, junto com ela, aproximou-se da cama em que o doente fora acomodado, numa pose solene, pelo visto relacionada ao sacramento que acabara de receber. Estava deitado, com a cabeça elevada e apoiada num travesseiro. As mãos repousavam simetricamente por cima da manta verde de seda, com a palma virada para baixo. Quando Pierre se aproximou, o conde olhou direto para ele, mas com aquele olhar cujo sentido e significado ninguém pode compreender. Ou tal olhar não significava absolutamente nada, senão que, enquanto os olhos existem, é preciso olhar para alguma direção, ou significava até demais. Pierre parou, sem saber o que fazer, e virou-se com ar interrogativo para a sua guia, Anna Mikháilovna. Ela lhe fez um gesto afobado com os olhos, apontando para a mão do doente, e também com os lábios, dando com eles um beijo no ar. Pierre, esticando o pescoço com cuidado para não tocar na manta, seguiu o conselho e beijou a mão de ossos largos e carnuda. Nem a mão nem músculo algum do rosto do conde sequer tremeu. Pierre olhou de novo, com ar interrogativo, para Anna Mikháilovna, perguntando o que fazer agora. Com os olhos, Anna Mikháilovna apontou para a poltrona que estava ao lado da cama. Pierre, obediente, sentou-se na poltrona enquanto continuava a perguntar, com os olhos, se estava agindo da forma correta. Anna Mikháilovna balançou a cabeça afirmativamente. Pierre tomou de novo a posição simétrica e ingênua de uma estátua egípcia, visivelmente lamentando o fato de seu corpo gordo e desajeitado ocupar tanto espaço, e empenhava toda a sua energia mental para se mostrar o menos possível. Olhava para o conde. O conde olhava para o lugar onde havia estado o rosto de Pierre, enquanto ele esteve de pé. Anna Mikháilovna mostrava, na sua atitude, a consciência da importância comovente daqueles últimos momentos do encontro entre o pai e o filho. Assim passaram dois minutos, que para Pierre pareceram uma hora. De repente, nos grandes músculos e rugas do rosto do conde, surgiu um tremor. O tremor ficou mais forte, a boca bonita se encolheu (só então Pierre entendeu a que ponto o pai estava perto da morte), ouviu-se da boca encolhida um som obscuro e rouco. Anna Mikháilovna fitava com atenção os olhos do doente e, esforçando-se para adivinhar o que ele precisava, apontava ora para Pierre, ora para a bebida, ora dizia o nome do príncipe Vassíli com um sussurro indagador, ora apontava para a manta. Os olhos e o rosto do doente demonstravam impaciência. Ele fazia um esforço para olhar para o criado que estava parado na cabeceira da cama.
— Quer virar para o outro lado — sussurrou o criado, e levantou-se para virar o corpo pesado do conde de cara para a parede.
Pierre levantou-se para ajudar o criado.
No momento em que viravam o conde, um braço, desamparado, pendeu para trás, e o conde fez um esforço em vão para puxá-lo. Ou o conde notou o olhar de horror com que Pierre observou aquele braço sem vida, ou algum outro pensamento atravessou sua cabeça moribunda naquele instante, o fato é que olhou para o braço desobediente, para a expressão de horror no rosto de Pierre, de novo para o braço, e em seu rosto apareceu um sorriso frouxo, sofrido, que não combinava com as suas feições e que exprimia uma espécie de zombaria da própria fraqueza. Inesperadamente, ao ver aquele sorriso, Pierre sentiu um tremor dentro do peito, uma comichão no nariz, e lágrimas turvaram sua visão. Viraram o doente de lado, de cara para a parede. Ele deu um suspiro.
— Il est assoupi — disse Anna Mikháilovna, ao notar que uma das princesas se aproximava para cumprir o seu turno de vigília. — Allons.165
Pierre saiu.
XXI
Na sala de espera, já não havia ninguém, a não ser o príncipe Vassíli e a princesa mais velha, os quais, sentados ao pé do retrato de Catarina, conversavam agitados. Assim que viram Pierre e a sua guia, calaram-se. A princesa escondeu alguma coisa, assim pareceu a Pierre, e sussurrou:
— Não suporto ver essa mulher.
— Catiche a fait donner du thé dans le petit salon — disse o príncipe Vassíli para Anna Mikháilovna. — Allez, ma pauvre Anna Mikháilovna, prenez quelque chose, autrement vous ne suffirez pas.166
Nada falou para Pierre, apenas apertou seu braço com emoção, logo abaixo do ombro. Pierre e Anna Mikháilovna passaram para o petit salon.
— Il n’y a rien qui restaure, comme une tasse de cet excellent thé russe après une nuit blanche 167 — disse Lorrain com uma expressão de animação contida, enquanto bebia aos goles em uma xícara chinesa fina e sem asa, na pequena sala circular, de pé, diante da mesa, sobre a qual havia um serviço de chá e uma ceia de frios. Ao redor da mesa, para recuperar as energias, reuniram-se todos os presentes na casa do conde Bezúkhov naquela noite. Pierre lembrava-se muito bem daquela pequena sala circular, com espelhos e mesinhas. No tempo dos bailes na casa do conde, Pierre, como não sabia dançar, gostava de vir sentar-se naquela pequena sala espelhada e observar as damas em trajes de baile, com brilhantes e pérolas nos ombros nus, passando por aquela sala, olhando-se nos espelhos claros e iluminados, que repetiam várias vezes seus reflexos. Agora, a mesma sala estava muito mal iluminada por duas velas, e no meio da noite, sobre uma mesinha, o serviço de chá e os pratos estavam postos em desordem, e pessoas diversas e em trajes comuns conversavam em sussurros, sentadas ali, mostrando em cada movimento, em cada palavra, que ninguém esquecia o que se passava naquele momento e o que ainda estava para acontecer, dentro do quarto. Pierre não comeu, embora tivesse muita vontade. Com ar interrogativo, olhou para trás, para a sua guia, e viu que ela estava saindo de novo, na ponta dos pés, rumo à sala de espera, onde ficaram o príncipe Vassíli e a princesa mais velha. Pierre supôs que também aquilo era necessário e, após demorar-se um pouco, foi atrás dela. Anna Mikháilovna estava de pé ao lado da princesa, e as duas falavam ao mesmo tempo num sussurro agitado:
— Então tenha a bondade de me dizer, princesa, o que é necessário e o que não é — disse a princesa mais velha, obviamente no mesmo estado de agitação em que se encontrava quando bateu a porta do quarto.
— Mas, minha querida princesa — disse Anna Mikháilovna, num tom dócil e persuasivo, barrando o caminho para o quarto e impedindo a princesa de passar. — Não será penoso demais para o pobre titio, num momento como este, quando ele precisa descansar? Em momentos como este, uma conversa sobre coisas mundanas, quando a alma dele já está preparada para...
O príncipe Vassíli estava sentado na poltrona, na sua atitude familiar, as pernas cruzadas com os joelhos bem altos. As bochechas contraíam-se com força e, quando relaxavam, pareciam mais gordas na parte de baixo; mas ele tinha o aspecto de alguém que dava pouca atenção à conversa das duas senhoras.
— Voyons, ma bonne Anna Mikháilovna, laissez faire Catiche.168 A senhora sabe que o conde gosta dela.
— E eu nem sei o que há neste papel — disse a princesa, dirigindo-se ao príncipe Vassíli e apontando para a pasta com o mosaico, que segurava nas mãos. — Só sei que o testamento autêntico ele guarda no escritório dele e que este papel esquecido...
Ela queria passar por Anna Mikháilovna, mas Anna Mikháilovna, agarrou a pasta na mão com tanta força que era evidente que não a soltaria mais tão cedo.
— Querida princesa, suplico à senhora, eu imploro, tenha pena dele. Je vous en conjure...169
A princesa calou-se. Ouviam-se apenas os sons dos esforços da luta pela posse da pasta. Era evidente que, se ela começasse a falar, não diria coisas lisonjeiras para Anna Mikháilovna. E Anna Mikháilovna resistia com esforço, mas apesar disso a voz conservava toda a sua doce viscosidade e brandura.
— Pierre, venha cá, meu amigo. Acho que ele deve fazer parte de um conselho de família; não é verdade, príncipe?
— Por que fica assim calado, mon cousin? — gritou a princesa, de repente, tão alto que a ouviram na sala e assustaram-se com a sua voz. — Por que não diz nada, quando bem na nossa frente uma pessoa que só Deus sabe quem é toma a liberdade de se intrometer e fazer uma cena na porta do quarto de um moribundo. Sua intrigante! — sussurrou com raiva e puxou a pasta com toda a força.
Mas Anna Mikháilovna deu alguns passos para não soltar a pasta e agarrou a mão dela.
— Oh! — exclamou o príncipe Vassíli, em tom de censura e surpresa. Levantou-se. — C’est ridicule. Voyons,170 larguem. Estou dizendo às senhoras.
A princesa soltou.
— E a senhora!
Anna Mikháilovna não obedeceu.
— Solte, estou mandando. Eu vou cuidar de tudo. Vou levar eu mesmo e perguntar a ele. Eu... já chega, minha senhora.
— Mais, mon prince — disse Anna Mikháilovna. — Depois de um tão grande sacramento, dê a ele um momento de tranquilidade. Veja, Pierre, dê a sua opinião — voltou-se para o jovem que, chegando até eles, olhava com espanto para o rosto exaltado da princesa, que já perdera toda a compostura, e para as bochechas infladas do príncipe Vassíli.
— Lembre-se de que terá de responder por todas as consequências — disse o príncipe Vassíli em tom severo. — A senhora não sabe o que está fazendo.
— Mulher infame! — gritou a princesa, atirando-se inesperadamente sobre Anna Mikháilovna e arrancando-lhe a pasta.
O príncipe Vassíli baixou a cabeça e abriu os braços.
Nesse instante, a porta, aquela porta terrível para a qual Pierre havia olhado tanto tempo e que se abria tão silenciosamente, escancarou-se de modo brusco, ruidoso, bateu na parede e dela saiu a princesa do meio, retorcendo as mãos.
— O que estão fazendo! — exclamou em desespero. — Il s’en va et vous me laissez seule.171
A princesa mais velha deixou a pasta cair. Anna Mikháilovna abaixou-se depressa e, após agarrar o objeto da disputa, correu para o quarto. A princesa mais velha e o príncipe Vassíli recuperaram-se do espanto e foram atrás dela. Depois de alguns minutos, saiu de lá primeiro a princesa mais velha, com o rosto pálido e seco, e mordendo o lábio inferior. Ao ver Pierre, o seu rosto exprimiu uma raiva incontrolável.
— Sim, fique alegre, agora — disse ela. — O senhor estava esperando isso.
E, em pranto, cobriu o rosto com um lenço e correu para fora da sala.
Após a princesa, veio o príncipe Vassíli. Cambaleante, foi até o sofá onde estava Pierre e ali se deixou cair, os olhos cobertos pela mão. Pierre notou que ele estava pálido e que o seu maxilar inferior saltava e sacudia, como num tremor de febre.
— Ah, meu amigo! — disse ele, segurando Pierre pelo cotovelo; e na sua voz havia uma sinceridade e uma fraqueza que Pierre nunca antes notara no príncipe Vassíli. — Quantas vezes pecamos, quantas vezes enganamos, e tudo para quê? Eu tenho quase sessenta anos, meu amigo... E para mim... Tudo termina com a morte, tudo. A morte é terrível. — Começou a chorar.
Anna Mikháilovna saiu em seguida. Ela se aproximou de Pierre a passos lentos, suaves.
— Pierre!... — disse ela.
Pierre fitou-a com ar interrogativo. Ela beijou a testa do jovem, umedecendo-a de lágrimas. Ficou um instante em silêncio.
— Il n’est plus...172
Pierre fitou-a através dos óculos.
— Allons, je vous reconduirai. Tâchez de pleurer. Rien ne soulage, comme les larmes.173
Ela o conduziu para a sala escura, e Pierre ficou contente por ninguém ali poder enxergar o seu rosto. Anna Mikháilovna disse para Pierre:
— Oui, mon cher, c’est une grande perte pour nous tous. Je ne parle pas de vous. Mais Dieu vous soutiendra, vous êtes jeune et vous voilà à la tête d’une immense fortune, je l’espère. Le testament n’a pas été encore ouvert. Je vous connais assez pour savoir que cela ne vous tournera pas la tête, mais cela vous impose des devoirs, et il faut être homme.174
Pierre ficou em silêncio.
— Peut-être plus tard je vous dirai, mon cher, que si je n’avais pas été là, Dieu sait ce qui serait arrivé. Vous savez, mon oncle avant-hier encore, me promettait de ne pas oublier Boris. Mais il n’a pas eu le temps. J’espère, mon cher ami, que vous remplirez le désir de votre père.175
Pierre, sem nada entender e calado, ruborizando-se de acanhamento, olhava para a princesa Anna Mikháilovna. Após falar com Pierre, Anna Mikháilovna saiu e foi para a casa dos Rostóv, para dormir. Ao acordar de manhã, contou aos Rostóv e a todos os conhecidos os detalhes da morte do conde Bezúkhov. Disse que o conde morrera como ela gostaria de morrer, que seu fim tinha sido não só comovente, mas edificante; o último encontro entre o pai e o filho tinha sido tão comovente que ela não conseguia recordá-lo sem lágrimas e não sabia dizer quem se portara melhor naqueles momentos terríveis: o pai, que se recordou de tudo e de todos nos últimos minutos e falou palavras tão comoventes para o filho, ou Pierre, que dava pena de ver, de tão arrasado, e que apesar disso se esforçava para esconder a tristeza, para não amargurar o pai moribundo.
— C’est pénible, mais cela fait du bien; ça élève l’âme de voir des hommes comme le vieux comte et son digne fils 176 — disse ela.
Quanto ao comportamento da princesa e do príncipe Vassíli, contou a respeito também, sem aprová-lo, mas em sussurros e como um grande segredo.
XXII
Em Montes Calvos, propriedade do príncipe Nikolai Andréievitch Bolkónski, aguardavam a qualquer momento a chegada do jovem príncipe Andrei e da princesa, sua esposa; mas a espera não perturbava a ordem rigorosa que regia a vida na casa do velho príncipe. O general em chefe177 e príncipe Nikolai Andréievitch, chamado na sociedade de le roi de Prusse,178 desde o tempo em que o imperador Paulo o baniu para o campo, vivia em seus Montes Calvos, sem sair de lá, com a filha, a princesa Mária, e com a dama de companhia dela, Mlle Bourienne. Quando subiu ao trono o novo tsar, embora o príncipe tenha sido autorizado a ir à capital, continuou a morar no campo, sem sair de suas terras, dizendo que se alguém precisasse dele poderia muito bem percorrer as cento e cinquenta verstas179 que separavam Montes Calvos de Moscou, e que ele não precisava de nada nem de ninguém. Dizia que só existem duas fontes para os vícios humanos: ociosidade e superstição; e que só existem duas virtudes: atividade e inteligência. Ele mesmo se encarregou da educação da filha e, para fomentar nela as duas principais virtudes, deu-lhe aulas de álgebra e geometria até os vinte anos de idade e dividiu todo o tempo da vida dela em ocupações incessantes. Ele mesmo vivia constantemente ocupado, ora com a redação de suas memórias, ora com cálculos de matemática avançada, ora com o torneamento de caixas de rapé num torno mecânico, ora com o trabalho no jardim e com a observação das construções, que nunca paravam na sua propriedade. Como a condição principal para a atividade é a ordem, no seu regime de vida a ordem era levada ao grau máximo de exatidão. Sua presença à mesa obedecia sempre às mesmas condições imutáveis, não só na mesma hora, como até nos mesmos exatos minutos. Com as pessoas à sua volta, desde a filha até os criados, o príncipe era ríspido e exigente de um modo inflexível, e por isso, sem ser brutal, despertava um medo e um respeito que nem a pessoa mais cruel conseguiria conquistar com facilidade. Apesar de estar aposentado e de não ter mais nenhuma influência nos assuntos de Estado, todos os dirigentes da província onde ficava a propriedade do príncipe consideravam um dever visitá-lo e, a exemplo do arquiteto, do jardineiro, ou da princesa Mária, aguardavam o horário marcado para a vinda do príncipe à sua imponente sala de trabalho. E naquela sala todos experimentavam o mesmo sentimento de respeito e até de medo, no momento em que se abria a enorme e imponente porta do gabinete e se revelava a figurinha baixa de um velho, de peruca empoada, mãozinhas miúdas e secas, e sobrancelhas grisalhas e pendentes, que às vezes, quando ele as franzia, encobriam o brilho dos olhos, inteligentes e cintilantes como os de um jovem.
No dia da chegada dos jovens, pela manhã, como de costume, a princesa Mária se dirigiu na hora marcada para a saudação matinal na sala de trabalho e, com medo, benzeu-se e disse uma prece matutina. Todo dia, ao entrar ali, ela rezava para que aquele encontro diário corresse bem.
Um velho criado empoado que ficava na sala de trabalho levantou-se com um movimento silencioso e pediu, num sussurro:
— Tenha a bondade, senhora.
Atrás da porta, ouviam-se os ruídos regulares de um torno. A princesa puxou timidamente a porta, que se abriu de leve e suave, e se deteve no limiar. O príncipe estava trabalhando no torno e, depois de olhar para ela, continuou o trabalho.
O enorme gabinete estava repleto de coisas, obviamente usadas com frequência. Uma mesa grande, sobre a qual estavam livros e projetos desenhados; altos armários de vidro de uma biblioteca, com chave nas portas; uma mesa alta para escrever de pé, sobre a qual havia um caderno aberto; um torno mecânico; ferramentas espalhadas e um círculo de aparas de madeira derramadas — tudo indicava uma atividade constante, variada e metódica. Pelos movimentos do pé pequeno, calçado numa botinha tártara bordada em prata, pelo firme esforço da mão fibrosa e seca, via-se no príncipe a energia ainda tenaz e muito resistente de uma velhice recente. Depois de fazer o torno rodar mais algumas vezes, retirou o pé do pedal, limpou o formão, largou-o dentro de uma bolsa de couro, presa ao torno, e ao se aproximar da mesa chamou a filha. Ele nunca abençoava os filhos, limitou-se a lhe oferecer o rosto eriçado, ainda não barbeado naquele dia, e disse, em tom severo, ao mesmo tempo que a fitava com atenção e ternura:
— Está se sentindo bem?... Certo, então sente-se!
O príncipe pegou o caderno de geometria, escrito com o próprio punho, e puxou uma cadeira com o pé.
— Para amanhã! — disse ele, enquanto procurava depressa a página e marcava um parágrafo após o outro com a unha dura.
A princesa inclinou-se sobre o caderno na mesa.
— Espere, há uma carta para você — disse o velho de repente, retirou de uma bolsa presa debaixo da mesa um envelope escrito com letra de mulher e jogou-a sobre a mesa.
O rosto da princesa cobriu-se de manchas vermelhas, ao ver a carta. Pegou o envelope depressa e curvou-se numa reverência para o pai.
— Da Heloísa? — perguntou o príncipe, com um sorriso frio, que deixava à mostra os dentes ainda fortes e amarelados.
— Sim, é da Julie180 — respondeu a princesa, olhando de relance e com timidez, e sorrindo com timidez.
— Vou deixar passar mais duas cartas, mas a terceira eu vou ler — disse o príncipe, em tom severo. — Temo que a senhora escreva muitos disparates. A terceira eu vou ler.
— Pode ler esta, se quiser, mon père 181 — respondeu a princesa, ruborizando-se ainda mais e entregando-lhe a carta.
— A terceira, eu já disse, a terceira — gritou o príncipe, para encerrar o assunto, repelindo a carta, e com os cotovelos apoiados na mesa puxou para si o caderno com desenhos de geometria.
— Bem, minha senhora — começou o velho, inclinando-se para mais perto da filha, por cima do caderno, e colocando um braço sobre as costas da cadeira em que estava sentada a princesa, de modo que ela se sentia cercada de todos os lados por aquele pai com um cheiro cáustico de tabaco e de velhice, que ela conhecia já havia muito tempo. — Bem, minha senhora, estes triângulos são iguais; tenha a bondade de ver que o ângulo ABC...
A princesa, assustada, olhava de relance para os olhos do pai, que brilhavam perto dela; manchas vermelhas transbordavam do seu rosto, e era evidente que ela não entendia nada e temia tanto que o medo a impedia de compreender todas as demoradas explicações do pai, por mais claras que fossem. Quer a culpa fosse do professor, quer fosse da aluna, todo dia a mesma coisa se repetia: os olhos da princesa turvavam-se, ela não enxergava mais nada, não ouvia, apenas sentia ao seu lado, bem perto, o rosto seco do pai severo, sentia a respiração e o cheiro do pai, e só pensava em como escapar o mais depressa possível do gabinete para, no seu quarto, sossegada, entender o exercício. O velho ficava transtornado: com estrondo, arrastava para trás e para a frente a cadeira em que estava sentado, fazia um esforço enorme para não se enfurecer e quase sempre se enfurecia, praguejava e às vezes atirava o caderno para longe.
A princesa errou na resposta.
— Puxa, como ela é burra! — gritou o príncipe, empurrando o caderno para trás e lhe dando as costas bruscamente, mas logo em seguida se levantou, pôs-se a caminhar, tocou o cabelo da princesa com as mãos e sentou-se de novo.
Chegou perto da filha e continuou as explicações.
— Não é possível, princesa, não é possível — disse ele, quando a princesa, que já havia recolhido e fechado o caderno com as lições prescritas, preparava-se para sair. — A matemática é uma matéria importante, minha senhora. E eu não quero que a senhora fique igual a essas nossas fidalgas imbecis. Habitue-se, que depois vai gostar. — Deu palmadinhas no rosto da filha. — Vai expulsar a tolice da sua cabeça.
Ela fez menção de sair, o pai a deteve com um gesto e pegou na mesa alta um livro novo, com as folhas ainda não cortadas.
— Tome isto aqui também, um tal de A chave do mistério,182 que a sua Heloísa mandou. Um livro de religião. E eu não me intrometo na crença de ninguém... Passei os olhos. Tome. Pronto, agora vá, vá!
Deu-lhe palmadinhas no ombro e fechou a porta depois que ela saiu.
A princesa Mária voltou para o quarto com uma fisionomia triste, assustada, que raramente a abandonava e que deixava ainda mais feio o seu rosto feio, doentio, e sentou-se à sua escrivaninha, repleta de retratos em miniatura e atulhada de cadernos e livros. A princesa era tão desorganizada quanto o seu pai era organizado. Largou o caderno de geometria e, ansiosa, rompeu o lacre da carta. Era uma carta de sua melhor amiga, desde a infância; essa amiga era a mesma Julie Karáguina que estivera na festa de aniversário em casa dos Rostóv.
Julie escrevia:
Chère et excellente amie, quelle chose terrible et effrayante que l’absence! J’ai beau me dire que la moitié de mon existence et de mon bonheur est en vous, que malgré la distance qui nous sépare, nos cœurs sont unis par des liens indissolubles; le mien se révolte contre la destinée, et je ne puis, malgré les plaisirs et les distractions qui m’entourent, vaincre une certaine tristesse cachée que je ressens au fond du cœur depuis notre séparation. Pourquoi ne sommes-nous pas réunies comme cet été dans votre grand cabinet sur le canapé bleu, le canapé à confidences? Pourquoi ne puis-je, comme il y a trois mois, puiser de nouvelles forces morales dans votre regard si doux, si calme et si pénétrant, regard que j’aimais tant et que je crois voir devant moi, quand je vous écris.183
Tendo lido até esse ponto, a princesa Mária suspirou e voltou os olhos para o espelho, num aparador à sua direita. O espelho refletiu o corpo feio, fraco, e o rosto magro. Os olhos, sempre tristes, agora se miravam no espelho de um modo especialmente desesperançado. “Ela me lisonjeia”, pensou a princesa, virou-se e continuou a ler. Julie, porém, não estava lisonjeando a amiga: de fato, os olhos da princesa, grandes, profundos e radiantes (às vezes, raios de uma luz quente pareciam sair deles, em feixes), eram tão bonitos que muitas vezes, apesar da falta de beleza do rosto inteiro, os olhos se tornavam mais encantadores do que a beleza em si. Mas a princesa nunca via a bela expressão dos seus olhos, a expressão que eles ganhavam nos momentos em que ela não pensava em si. Como acontece com todos, seu rosto ganhava uma expressão forçada, artificial, ruim, assim que ela se olhava no espelho. Continuou a ler:
Tout Moscou ne parle que guerre. L’un de mes deux frères est déjà à l’étranger, l’autre est avec la garde, qui se met en marche vers les frontières. Notre cher empereur a quitté Pétersbourg et, à ce qu’on prétend, compte lui-même exposer sa précieuse existence aux chances de la guerre. Dieu veuille que le monstre corsicain, qui détruit le repos de l’Europe, soit terrassé par l’ange que le Tout-Puissant, dans Sa miséricorde, nous a donnée pour souverain. Sans parler de mes frères, cette guerre m’a privée d’une relation des plus chères à mon cœur. Je parle du jeune Nicolas Rostoff, qui avec son enthousiasme, n’a pu supporter l’inaction et a quitté l’université pour aller s’enrôler dans l’armée. Eh bien, chère Marie, je vous avouerai que, malgré son extrême jeunesse, son départ pour l’armée a été un grand chagrin pour moi. Le jeune homme, dont je vous parlais cet été, a tant de noblesse, de véritable jeunesse qu’on rencontre si rarement dans le siècle où nous vivons parmi nos vieillards de vingt ans. Il a surtout tant de franchise et de cœur. Il est tellement pur et poétique, que mes relations avec lui, quelque passagères qu’elles fussent, ont été l’une des plus douces jouissances de mon pauvre cœur, qui a déjà tant souffert. Je vous raconterai un jour nos adieux et tout ce qui s’est dit en partant. Tout cela est encore trop frais. Ah! chère amie, vous êtes heureuse de ne pas connaître ces jouissances et ces peines si poignantes. Vous êtes heureuse, puisque les dernières sont ordinairement les plus fortes! Je sais fort bien, que le comte Nicolas est trop jeune pour pouvoir jamais devenir pour moi quelque chose de plus qu’un ami, mais cette douce amitié, ces relations si poétiques et si pures ont été un besoin pour mon cœur. Mais n’en parlons plus. La grande nouvelle du jour qui occupe tout Moscou est la mort du vieux comte Bezúkhov et son héritage. Figurez-vous que les trois princesses n’ont reçu que très peu de chose, le prince Basile rien, est que c’est M. Pierre qui a tout hérité, et qui par-dessus le marché a été reconnu pour fils légitime, par conséquent comte Bezúkhov est possesseur de la plus belle fortune de la Russie. On prétend que le prince Basile a joué un très vilain rôle dans toute cette histoire et qu’il est reparti tout penaud pour Pétersbourg.
Je vous avoue, que je comprends très peu toutes ces affaires de legs et de testament; ce que je sais, c’est que depuis que le jeune homme que nous connaissions tous sous le nom de M. Pierre tout court est devenu comte Bezúkhov et possesseur de l’une des plus grandes fortunes de la Russie, je m’amuse fort à observer les changements de ton et des manières de mamans accablées de filles à marier et des demoiselles elles-mêmes à l’égard de cet individu, qui, par parenthèse, m’a paru toujours être un pauvre sire. Comme on s’amuse depuis deux ans à me donner des promis que je ne connais pas le plus souvent, la chronique matrimoniale de Moscou me fait comtesse Bezúkhova. Mais vous sentez bien que je ne me soucie nullement de le devenir. À propos de mariage, savez-vous que tout dernièrement la tante en général Anna Mikháilovna, m’a confié sous le sceau du plus grand secret un projet de mariage pour vous. Ce n’est ni plus, ni moins, que le fils du prince Basile, Anatole, qu’on voudrait ranger en le mariant à une personne riche et distinguée, et c’est sur vous qu’est tombé le choix des parents. Je ne sais comment vous envisagerez la chose, mais j’ai cru de mon devoir de vous en avertir. On le dit très beau et très mauvais sujet; c’est tout ce que j’ai pu savoir sur son compte.
Mais assez de bavardage comme cela. Je finis mon second feuillet, et maman me fait chercher pour aller dîner chez les Apraksines. Lisez le livre mystique que je vous envoie et qui fait fureur chez nous. Quoiqu’il y ait des choses dans ce livre difficiles à atteindre avec la faible conception humaine, c’est un livre admirable dont la lecture calme et élève l’âme. Adieu. Mes respects à monsieur votre père et mes compliments à Mlle Bourienne. Je vous embrasse comme je vous aime.
Julie
P. S. Donnez-moi des nouvelles de votre frère et de sa charmante petite femme.184
A princesa refletiu, sorriu pensativa (com isso, o seu rosto, iluminado pelos olhos radiantes, transformou-se inteiramente) e, levantando-se de súbito, foi até a mesa em passos pesados. Pegou uma folha de papel, e a mão começou a andar ligeiro sobre ela. Assim escreveu a sua resposta:
Chère et excellente ami, votre lettre du 13 m’a causé une grande joie. Vous m’aimez donc toujours, ma poétique Julie. L’absence, dont vous dites tant de mal, n’a donc pas eu son influence habituelle sur vous. Vous vous plaignez de l’absence — que devrai-je dire moi, si j’osais me plaindre, privée de tous ceux qui me sont chers? Ah! si nous n’avions pas la religion pour nous consoler, la vie serait bien triste. Pourquoi me supposez-vous un regard sévère, quand vous me parlez de votre affection pour le jeune homme? Sous ce rapport je ne suis rigide que pour moi. Je comprends ces sentiments chez les autres et si je ne puis approuver ne les ayant jamais ressentis, je ne les condamne pas. Il me paraît seulement que l’amour chrétien, l’amour du prochain, l’amour pour ses ennemis est plus méritoire, plus doux et plus beau, que ne le sont les sentiments que peuvent inspirer les beaux yeux d’un jeune homme à une jeune fille poétique et aimante comme vous.
La nouvelle de la mort du comte Bezúkhov nous est parvenue avant votre lettre, et mon père en a été très affecté. Il dit que c’était avant-dernier représentant du grand siècle, et qu’à présent c’est son tour; mais qu’il fera son possible pour que son tour vienne le plus tard possible. Que Dieu nous garde de ce terrible malheur! Je ne puis partager votre opinion sur Pierre, que j’ai connu enfant. Il me paraissait toujours avoir un cœur excellent, et c’est la qualité que j’estime le plus dans les gens. Quant à son héritage et au rôle qu’y a joué le prince Basile, c’est bien triste pour tous les deux. Ah! chère amie, la parole de notre divin Sauveur qu’il est plus aisé à un chameau de passer par le trou d’une aiguille, qu’il ne l’est à un riche d’entrer dans le royaume de Dieu, cette parole est terriblement vraie; je plains le prince Basile et je regrette encore davantage Pierre. Si jeune et accablé de cette richesse, que de tentations n’aura-t-il pas à subir! Si on me demandait ce que je désirerais le plus au monde, ce serait d’être plus pauvre que le plus pauvre des mendiants. Mille grâces, chère amie, pour l’ouvrage que vous m’envoyez, et qui fait si grande fureur chez vous. Cependant, puisque vous me dites qu’au milieu de plusieurs bonnes choses il y en a d’autres que la faible conception humaine ne peut atteindre, il me paraît assez inutile de s’occuper d’une lecture inintelligible, qui par là même ne pourrait être d’aucun fruit. Je n’ai jamais pu comprendre la passion qu’ont certaines personnes de s’embrouiller l’entendement, en s’attachant à des livres mystiques, qui n’élèvent que des doutes dans leur esprit, exaltent leur imagination et leur donnent un caractère d’exagération tout à fait contraire à la simplicité chrétienne. Lisons les Apôtres et l’Évangile. Ne cherchons pas à pénétrer ce que ceux-là renferment de mystérieux, car, comment oserions-nous, misérables pécheurs que nous sommes, prétendre à nous initier dans les secrets terribles et sacrés de la Providence, tant que nous portons cette dépouille charnelle, qui élève entre nous et l’Eternel un voile impénétrable? Bornons-nous donc à étudier les principes sublimes que notre divin Sauveur nous a laissés pour notre conduite ici-bas; cherchons à nous y conformer et à les suivre, persuadons-nous que moins nous donnons d’essor à notre faible esprit humain et plus il est agréable à Dieu, qui rejette toute science qui ne vient pas de Lui; que moins nous cherchons à approfondir ce qu’il Lui a plu de dérober à notre connaissance, et plus tôt Il nous en accordera la découverte par Son divin esprit.
Mon père ne m’a pas parlé du prétendant, mais il m’a dit seulement qu’il a reçu une lettre et attendait une visite du prince Basile. Pour ce qui est du projet de mariage qui me regarde, je vous dirai, chère et excellente amie, que le mariage, selon moi, est une institution divine à laquelle il faut se conformer. Quelque pénible que cela soit pour moi, si le Tout-Puissant m’impose jamais les devoirs d’épouse et de mère, je tâcherai de les remplir aussi fidèlement que je le pourrai, sans m’inquiéter de l’examen de mes sentiments à l’égard de celui qu’il me donnera pour époux.
J’ai reçu une lettre de mon frère, qui m’annonce son arrivée à Montes Calvos avec sa femme. Ce sera une joie de courte durée, puisqu’il nous quitte pour prendre part à cette malheureuse guerre, à laquelle nous sommes entraînés, Dieu sait comment et pourquoi. Non seulement chez vous, au centre des affaires et du monde, on ne parle que de guerre, mais ici, au milieu de ces travaux champêtres et de ce calme de la nature, que les citadins se représentent ordinairement à la campagne, les bruits de la guerre se font entendre et sentir péniblement. Mon père ne parle que marche et contremarche, choses auxquelles je ne comprends rien; et avant-hier, en faisant ma promenade habituelle dans la rue du village, je fus témoin d’une scène déchirante... C’était un convoi des recrues enrôlées chez nous et expédiées pour l’armée... Il fallait voir l’état dans lequel se trouvant les mères, les femmes, les enfants des hommes qui partaient et entendre les sanglots des uns et des autres! On dirait que l’humanité a oublié les lois de son divin Sauveur, qui prêchait l’amour et le pardon des offenses, et qu’elle fait consister son plus grand mérite dans l’art de s’entre-tuer.
Adieu, chère et bonne amie, que notre divin Sauveur et Sa très Sainte Mère vous aient en Leur sainte et puissante garde.
Marie 185
— Ah, vous expédiez le courier, princesse, moi j’ai déjà expédié le mien. J’ai écrit à ma pauvre mère186 — disse Mlle Bourienne, sorridente, na sua vozinha ligeira, agradável, pitoresca, em que o erre soava gutural, e trazendo para a atmosfera compenetrada, tristonha e sombria da princesa Mária um mundo de todo diverso, alegre, frívolo e satisfeito consigo mesmo. — Princesse, il faut que je vous prévienne — acrescentou, baixando a voz. — Le prince a eu une altercation... altercation — disse ela, em tom especialmente gutural e ouvindo-se com prazer — une altercation avec Michel Ivanoff. Il est de très mauvaise humeur, très morose. Soyez prévenue, vous savez...187
— Ah! Chère amie — respondeu a princesa Mária —, je vous ai prié de ne jamais me prévenir de l’humeur dans laquelle se trouve mon père. Je ne me permets pas de le juger, et je ne voudrais pas que les autres le fassent.188
A princesa lançou um olhar para o relógio e, ao notar que já perdera cinco minutos do tempo que devia dedicar ao estudo do clavicórdio, dirigiu-se à saleta, com um ar assustado. Do meio-dia às duas horas, conforme a ordem do dia, o príncipe descansava, enquanto a princesa tocava clavicórdio.
XXIII
O camareiro grisalho estava sentado, cochilando e escutando o ronco do príncipe, dentro do imenso escritório. Do outro extremo da casa, por trás das portas fechadas, ouviam-se passagens difíceis de uma sonata de Dussek,189 repetidas vinte vezes.
Nesse momento, chegaram diante da varanda uma carruagem e uma charrete, o príncipe Andrei desembarcou da carruagem, ajudou sua pequena esposa a descer e deixou-a caminhar na sua frente. O grisalho Tíkhon, de peruca, pôs a cabeça para fora da porta da sala de trabalho, avisou num sussurro que o príncipe estava dormindo e fechou a porta depressa. Tíkhon sabia que nem a chegada do filho, assim como nenhum acontecimento extraordinário, devia perturbar a ordem do dia. O príncipe Andrei, era evidente, sabia disso tão bem quanto Tíkhon; olhou para o relógio como que para conferir se os hábitos do pai não tinham mudado desde a última vez que estivera com ele e, convencido de que não haviam mudado, voltou-se para a esposa:
— Daqui a vinte minutos ele vai acordar. Vamos falar com a princesa Mária — disse.
A pequena princesa engordara um pouco nesse tempo, mas os olhos e o lábio curto, com um bigodinho e um sorriso, elevavam-se da mesma forma alegre e meiga quando ela começava a falar.
— Mais c’est un palais — disse para o marido, enquanto olhava em redor com a expressão com que se faz um elogio ao anfitrião de um baile. — Allons, vite, vite!... — Olhando em redor, ela sorria para Tíkhon, para o marido e para o criado que os acompanhava. — C’est Marie qui s’exerce? Allons doucement, il faut la surprendre.190
O príncipe Andrei caminhava atrás dela com uma fisionomia cortês e tristonha.
— Você envelheceu, Tíkhon — disse de passagem para o velho, que lhe beijou a mão.
Antes de chegarem à sala de onde se ouvia o clavicórdio, uma francesinha bonita e loura saiu de um salto de uma porta lateral.
Mlle Bourienne parecia louca de alegria.
— Ah! Quel bonheur pour la princesse — exclamou ela. — Enfin! Il faut que je la prévienne.191
— Non, non, de grâce... Vous êtes mademoiselle Bourienne, je vous connais déjà par l’amitié que vous porte ma belle-sœur — disse a princesa, beijando a francesa. — Elle ne nous attend pas? 192
Aproximaram-se da porta da sala de onde se ouvia a mesma passagem da sonata repetidas vezes. O príncipe Andrei parou e franziu as sobrancelhas, como se esperasse algo desagradável.
A princesa entrou. A passagem se interrompeu no meio; ouviram-se um grito, os passos pesados da princesa Mária e o som de beijos. Quando o príncipe Andrei entrou, as duas princesas, que só tinham se visto uma vez, e por um breve tempo, no casamento do príncipe Andrei, enlaçadas uma à outra pelos braços, pressionavam com força os lábios no primeiro lugar que encontravam pela frente. Mlle Bourienne estava de pé, ao lado, a mão pressionada ao coração, e sorria com ar de devoção, obviamente tão disposta a chorar como a rir. O príncipe Andrei encolheu os ombros e franziu as sobrancelhas, como fazem os amantes da música quando ouvem uma nota desafinada. As duas mulheres soltaram-se; depois, de novo, como se tivessem medo de se atrasar, seguraram-se pelas mãos, começaram a beijar as mãos e as soltaram, e depois, mais uma vez, se puseram a beijar-se uma à outra no rosto e, de um modo de todo inesperado para o príncipe Andrei, as duas começaram a chorar e a beijar-se de novo. Mlle Bourienne também começou a chorar. O príncipe Andrei sentia-se obviamente incomodado; mas, para as duas mulheres, parecia muito natural que chorassem; parecia que elas não podiam imaginar esse encontro de nenhuma outra forma.
“Ah! Chère!... Ah! Marie!...”, puseram-se a falar as duas mulheres, de repente, e riram. “J’ai rêvé cette nuit...” “Vous ne nous attendiez donc pas?... Ah! Marie, vous avez maigri...” “Et vous avez repris...” 193
— J’ai tout de suite reconnu madame la princesse 194 — interveio Mlle Bourienne.
— Et moi qui ne me doutais pas!... — exclamou a princesa Mária. — Ah! André, je ne vous voyais pas. 195
O príncipe Andrei e a irmã, de mãos dadas, beijaram-se, e ele disse que ela era a mesma pleurnicheuse 196 de sempre. A princesa Mária voltou-se para o irmão e, por trás das lágrimas, o olhar amoroso, quente e dócil dos seus olhos grandes, radiantes e lindos, naquele momento, deteve-se no rosto do príncipe Andrei.
A princesa Liza falava sem parar. O curto lábio superior, com um bigodinho, volta e meia descia por um instante, tocava no rosado lábio inferior, no ponto necessário, e de novo se abria um sorriso, que brilhava pelos dentes e pelos olhos. A princesa Liza contou um caso ocorrido com eles no monte Spáski, uma situação de perigo para ela, no estado em que se encontrava, e logo depois informou que deixara todos os seus vestidos em Petersburgo e agora só Deus sabia com que roupa iria se apresentar ali, e que Andrei havia mudado muito, e que Kitti Odíntsova casara com um velho, e que havia um noivo pour tout de bon 197 para a princesa Mária, mas que sobre isso falariam mais tarde. A princesa Mária, sempre calada, observava o irmão, e nos seus olhos bonitos havia amor e tristeza. Era visível que, dentro dela, seus pensamentos tomavam agora seu próprio rumo, independentes das palavras da cunhada. No meio do relato sobre a mais recente festa em Petersburgo, ela voltou-se para o irmão:
— E você vai mesmo para a guerra, André ? — perguntou, com um suspiro.
Lise também teve um sobressalto.
— Amanhã mesmo — respondeu o irmão.
— Il m’abandonne ici, et Dieu sait pourquoi, quand il aurait pu avoir de l’avancement...198
A princesa Mária não ouviu até o fim e, seguindo o fio dos próprios pensamentos, voltou-se para a cunhada, apontando para a barriga, com os olhos afetuosos:
— Está confirmado? — perguntou.
O rosto da princesa Liza modificou-se. Ela deu um suspiro.
— Sim, não há dúvida — respondeu. — Ah! É terrível...
O lábio de Liza baixou. Ela aproximou seu rosto do rosto da cunhada e de novo, inesperadamente, desatou a chorar.
— Ela precisa descansar — disse o príncipe Andrei, franzindo as sobrancelhas. — Não é verdade, Liza? Leve-a para o seu quarto, enquanto vou ver o papai. Como está ele, sempre o mesmo?
— O mesmo, o mesmo de sempre; mas não sei como vai parecer aos seus olhos — respondeu a princesa com alegria.
— Os mesmos horários, os mesmos passeios pelas alamedas? O torno mecânico? — perguntou o príncipe Andrei com um sorriso quase imperceptível, que mostrava que, apesar de todo o seu amor e respeito pelo pai, ele compreendia as suas fraquezas.
— Os mesmos horários, e também o torno, ainda a matemática e as minhas lições de geometria — respondeu a princesa Mária com alegria, como se as aulas de geometria fossem uma das experiências mais alegres da sua vida.
Depois que passaram os vinte minutos necessários para terminar o horário de sono do velho príncipe, Tíkhon foi chamar o jovem príncipe para ver o pai. O velho abriu uma exceção na ordem rigorosa da sua vida em homenagem à chegada do filho: mandou que ele entrasse em seus aposentos na hora em que se vestia para o jantar. O príncipe arrumava-se à moda antiga, vestia um cafetã e usava pó de arroz. E na hora em que o príncipe Andrei (não com a expressão ranzinza, no rosto e nas maneiras, que afetava nos salões, mas sim com o rosto animado que tinha quando conversava com Pierre) foi ao encontro do pai, o velho estava sentado diante do toucador, numa larga cadeira de braços, forrada de marroquim, vestido com um guarda-pó, a cabeça entregue aos cuidados das mãos de Tíkhon.
— Ah! O guerreiro! Quer combater Bonaparte? — disse o velho e sacudiu a cabeça cheia de pó de arroz, o quanto lhe permitia a trança que as mãos de Tíkhon estavam armando. — Trate de se portar bem diante dele, senão, da maneira como vão as coisas, em breve nós também estaremos na lista dos seus súditos. Bem-vindo! — E lhe ofereceu o rosto.
O velho se achava num excelente estado de espírito, após o sono que antecedia o jantar. (Dizia que o sono após o jantar era de prata e antes do jantar era de ouro.) Com alegria, por baixo das sobrancelhas espessas e eriçadas, espiava o filho pelo canto dos olhos. O príncipe Andrei aproximou-se e beijou o pai no local indicado por ele. Não reagiu ao tema predileto do pai em suas conversas: zombarias sobre os militares contemporâneos, em especial sobre Bonaparte.
— Pois é, pai, chegamos agora à sua casa, eu e minha esposa grávida — disse o príncipe Andrei, seguindo com os olhos respeitosos e animados os movimentos de todos os traços do rosto do pai. — Como vai a saúde?
— Só não têm saúde os tolos e os devassos, meu rapaz, e você me conhece: fico ocupado desde a manhã até a noite, mantenho a temperança, e portanto tenho saúde.
— Graças a Deus — disse o filho, sorrindo.
— Deus nada tem a ver com o caso. Bem — prosseguiu, voltando-se para a sua nova ideia fixa —, conte-me como ensinaram vocês a lutar contra Bonaparte, os alemães, segundo essa nova ciência de vocês, chamada estratégia.
O príncipe Andrei sorriu.
— Deixe-me recuperar o fôlego, pai — respondeu com um sorriso que mostrava que as fraquezas do pai não o impediam de respeitá-lo e amá-lo. — Eu ainda nem me instalei em meu quarto.
— Bobagem, bobagem — gritou o velho, enquanto sacudia a trancinha para verificar se estava bem presa, e tomou o filho pelo braço. — A casa para a sua esposa está pronta. A princesa Mária vai levá-la, vai mostrar tudo a ela, e as duas vão falar até não poder mais. Isso é coisa de mulher. Estou contente com ela. Sente-se, conte-me. O exército de Mikhelson, eu entendo, o de Tolstói também... desembarque simultâneo... Um exército jovem, o que vai fazer? A Prússia, a neutralidade... isso eu sei. Mas e a Áustria? — disse, levantou-se da cadeira de braços e ficou andando pelo quarto, enquanto Tíkhon corria atrás dele e lhe dava as peças do vestuário. — E a Suécia? Como vão atravessar a Pomerânia? 199
O príncipe Andrei, vendo o sincero interesse do pai, a princípio de má vontade, mas depois animando-se cada vez mais e, sem querer, como de hábito, passando do russo para o francês no meio da explanação, começou a expor o plano de ação da campanha em projeto. Contou que um exército de noventa mil soldados devia ameaçar a Prússia para obrigá-la a sair da neutralidade e atraí-la para a guerra, que parte daquelas tropas devia unir-se às tropas suecas em Stralsund, que duzentos e vinte mil austríacos, juntos com cem mil russos, deviam agir na Itália e no Reno, e que cerca de cinquenta mil russos e cinquenta mil ingleses desembarcariam em Nápoles, e que ao todo um exército de quinhentos mil soldados, em ação em várias frentes, devia lançar o ataque contra os franceses. O velho príncipe não demonstrou o menor interesse pela explanação, parecia nem escutar e, continuando a se vestir enquanto andava, interrompeu-o por três vezes, de modo inesperado. Uma vez, parou e pôs-se a gritar:
— O branco! O branco!
Isso queria dizer que Tíkhon não lhe dera o colete que ele desejava. De outra vez, parou e perguntou:
— Mas ela vai dar à luz em pouco tempo? — E após balançar a cabeça num gesto de censura, disse: — É ruim! Continue, continue!
Na terceira vez, quando o príncipe Andrei estava terminando sua descrição, o velho começou a cantar, com voz desafinada, envelhecida: “Malbrough s’en va-t-en guerre. Dieu sait quand reviendra”.200
O filho apenas sorriu.
— Não digo que este seja um plano que eu aprove — disse o filho. — Só contei ao senhor como ele é. Napoleão já traçou o plano dele e não é pior do que este.
— Bem, você não me contou nenhuma novidade. — E o velho disse para si mesmo, pensativo, e rapidamente: — “Dieu sait quand reviendra”. Vá para a sala de jantar.
XXIV
Na hora marcada, empoado e de barba feita, o príncipe entrou na sala de jantar, onde o aguardavam sua nora, a princesa Mária, Mlle Bourienne e o arquiteto do príncipe Bolkónski, a quem, por um estranho capricho, ele admitia à mesa, embora por sua posição aquele homem insignificante não pudesse de forma alguma contar com tal honraria. O príncipe, que na vida observava com rigor as diferenças de classe e raramente admitia à mesa mesmo os mais altos funcionários do governo da província, de repente, no caso do arquiteto Mikhail Ivánovitch, que num canto assoava o nariz com um lenço xadrez, mostrava que todas as pessoas são iguais, e mais de uma vez quis convencer a filha de que Mikhail Ivánovitch não era em nada pior do que eles. À mesa, o príncipe dirigia-se ao calado Mikhail Ivánovitch com mais frequência do que a qualquer outra pessoa.
Na sala de jantar, enorme e imponente como todos os cômodos da casa, as pessoas da família e os criados aguardavam a entrada do príncipe, parados, de pé, cada um atrás de uma cadeira; o mordomo, com um guardanapo no braço, vigiava o serviço de mesa, piscava o olho para os lacaios e, o tempo todo, com ar inquieto, lançava olhares para o relógio de parede e para a porta onde o príncipe devia aparecer. O príncipe Andrei olhava para uma enorme moldura dourada, uma novidade para ele, com a imagem da árvore genealógica dos príncipes Bolkónski, pendurada de frente para uma moldura igualmente enorme, com um retrato malfeito (obviamente pela mão de um pintor doméstico)201 de um príncipe regente com uma coroa na cabeça, que devia ser um descendente de Rurik 202 e o fundador da linhagem dos Bolkónski. O príncipe Andrei olhava para aquela árvore genealógica, balançava a cabeça e dava risada como quem olha para um retrato tão semelhante ao modelo que se torna engraçado.
— Tudo isso é bem a cara dele! — disse para a princesa Mária, que viera para o seu lado.
A princesa Mária fitou o irmão com surpresa. Não compreendia do que ele estava rindo. Tudo o que seu pai fazia era, para ela, motivo de veneração, não estava sujeito à crítica.
— Cada um tem o seu calcanhar de aquiles — prosseguiu o príncipe Andrei. — Com a enorme inteligência dele, donner dans ce ridicule! 203
A princesa Mária não conseguia entender a audácia da opinião do irmão e preparava-se para retrucar quando soaram, vindos do gabinete, os passos esperados: o príncipe entrou ligeiro, alegre, como sempre caminhava, e com as suas maneiras apressadas parecia querer desmentir a ordem rigorosa que reinava na casa.
No mesmo instante, o grande relógio de parede bateu duas horas, e um outro na sala de visitas respondeu com uma vozinha fina. O príncipe parou. Por baixo das sobrancelhas espessas e eriçadas, os olhos animados, brilhantes e severos olharam para todos em volta e se detiveram na jovem princesa Liza. Ela experimentava, naquele momento, o sentimento que experimentam os cortesãos na hora da chegada do rei, o sentimento de medo e de respeito que aquele velho provocava em todas as pessoas próximas. Ele afagou a princesa na cabeça e depois, com um movimento desajeitado, deu palmadinhas na sua nuca.
— Estou contente, estou contente — falou e, após olhar fixamente para os olhos da nora, afastou-se ligeiro e sentou-se no seu lugar. — Sentem-se, sentem-se! Mikhail Ivánovitch, sente-se.
Apontou para a nora um lugar ao seu lado. Um criado afastou a cadeira para ela.
— Ho, ho! — exclamou o velho, notando a sua cintura bastante arredondada. — Você foi muito depressa, assim não é bonito!
Riu de modo seco, frio, desagradável, como sempre ria, só com a boca, não com os olhos.
— É preciso caminhar, caminhar o mais possível, o mais possível — disse.
A pequena princesa não escutava ou não queria escutar suas palavras, ficou em silêncio e parecia embaraçada. O príncipe perguntou-lhe sobre o pai, e a princesa começou a falar e a sorrir. Ele lhe perguntou sobre conhecidos comuns: a princesa animou-se mais ainda e passou a falar, transmitindo ao príncipe os cumprimentos e os mexericos da cidade.
— La comtesse Apraksine, la pauvre, a perdu son mari, et elle a pleuré les larmes de ses yeux 204 — disse ela, cada vez mais animada.
À medida que ela se animava, o príncipe a fitava cada vez mais severo e de repente, como se já tivesse estudado a nora o bastante e já tivesse formado uma ideia clara sobre ela, deu-lhe as costas e dirigiu-se a Mikhail Ivánovitch.
— Pois é, Mikhail Ivánovitch, o nosso Bonaparte está em apuros. Pelo que acabou de me explicar o príncipe Andrei (ele sempre se referia ao filho na terceira pessoa), quantas forças estão se reunindo contra ele! E eu e o senhor que sempre o consideramos um homem insignificante.
Mikhail Ivánovitch, que não tinha a menor ideia de quando “eu e o senhor” haviam falado tais coisas a respeito de Napoleão, mas, compreendendo que ele era necessário para iniciar uma conversa sobre o tema predileto do príncipe, olhou de relance para o jovem príncipe, sem saber o que ia resultar daquela história.
— Ele me saiu um grande tático! — disse o príncipe para o filho, apontando para o arquiteto.
E a conversa tratou da guerra, outra vez, de Bonaparte e dos generais e de figuras do governo daquele tempo. O velho príncipe parecia convencido de que não só todos os estadistas contemporâneos eram crianças, não entendiam o bê-á-bá dos assuntos militares e políticos, que Bonaparte não passava de um francesinho insignificante que só obteve êxito porque já não existiam os Potiómkin205 e os Suvórov para se opor a ele; como também estava convencido de que não existia nenhuma dificuldade política na Europa, não existia nem guerra, havia apenas uma comédia de marionetes em que as grandes figuras contemporâneas representavam papéis, fingindo fazer algo real. O príncipe Andrei suportava alegremente as zombarias do pai sobre as novas personalidades e, com uma alegria visível, instigava o pai a falar e o escutava com atenção.
— Tudo o que havia antes parece excelente ao senhor — disse o príncipe Andrei —, mas será que não foi esse mesmo Suvórov que caiu na armadilha preparada por Moreau206 e não soube como se livrar dela?
— Quem foi que lhe contou isso? Quem lhe disse? — gritou o príncipe. — Suvórov! — E empurrou para o lado o seu prato, que Tíkhon agilmente segurou. — Suvórov!... Pense bem, príncipe Andrei. São dois: Frederico207 e Suvórov... Moreau! Moreau teria sido feito prisioneiro se Suvórov tivesse as mãos livres; mas tinha nas mãos Hof-kriegs-wurst-schnaps-rath.208 Nem o diabo consegue aguentar. Quando você for lá, vai ver o que são esses Hof-kriegs-wurst-rath! Nem Suvórov pôde com eles, então como é que Mikhail Kutúzov vai poder? Não, meu amigo — prosseguiu —, vocês, com os seus generais, não vão conseguir nada contra o Bonaparte; precisamos de franceses e, assim, eles que são do mesmo povo, e se conhecem, que se matem entre si. Mandaram o alemão Pahlen a Nova York, na América, para buscar o francês Moreau — disse o príncipe Bolkónski, aludindo ao convite feito a Moreau, naquele ano, para se incorporar ao Exército russo. — Que maravilha!... Por acaso os Potiómkin, os Suvórov, os Orlóv eram alemães? Não, meu caro, ou todos vocês ficaram loucos, ou fui eu que perdi o juízo. Que Deus os ajude, e vamos ver o que vai acontecer. Para eles, Bonaparte é um grande chefe militar! Hm!...
— Eu não estou dizendo, de maneira alguma, que todas essas medidas são boas — disse o príncipe Andrei —, só que não consigo entender como o senhor pode ter tal juízo a respeito de Bonaparte. Pode rir o quanto quiser, mas Bonaparte é seguramente um grande chefe militar!
— Mikhail Ivánovitch! — gritou o velho príncipe para o arquiteto, que, ocupado com a sua carne assada, torcia para que o esquecessem. — Eu disse ao senhor que Bonaparte era um grande tático? Pois olhe só, ele também está dizendo.
— Como não, vossa excelência — respondeu o arquiteto.
O príncipe começou a rir de novo, com o seu riso frio.
— Bonaparte nasceu com boa estrela. Seus soldados são ótimos. Além do mais, começou atacando os alemães. Só os preguiçosos não vencem os alemães. Desde que o mundo é mundo, todos vencem os alemães. E eles não vencem ninguém. Só vencem uns aos outros. Bonaparte fez a sua glória em cima deles.
E o príncipe passou a analisar todos os erros que, a seu ver, Bonaparte cometera em todas as guerras e até nas questões de Estado. O filho não retrucava, mas estava bem claro que, quaisquer que fossem os argumentos que lhe apresentassem, ele também, a exemplo do velho, era bem pouco apto a mudar de opinião. O príncipe Andrei escutava, continha-se para não fazer objeções e não pôde deixar de ficar admirado ao ver como aquele velho, que havia tantos anos não deixava o seu isolamento no campo, era capaz de conhecer e julgar, em tais pormenores e com tal agudeza, todas as circunstâncias militares e políticas da Europa dos últimos anos.
— Você acha que eu, um velho, não compreendo a situação real dos fatos? — concluiu. — Ora, veja só! Eu nem durmo de noite, de tão preocupado. Pois bem, onde foi que esse seu grande chefe militar revelou sua capacidade?
— Levaria muito tempo para contar — respondeu o filho.
— Então vá logo encontrar o seu Bonaparte. Mademoiselle Bourienne, voilà encore un admirateur de votre goujat d’empereur! 209 — gritou, num francês excelente.
— Vous savez que je ne suis pas bonapartiste, mon prince.210
— “Dieu sait quand reviendra”... — cantarolou o príncipe, desafinado, riu mais desafinado ainda e deixou a mesa.
A pequena princesa Liza ficou em silêncio durante toda a discussão, assim como no resto do jantar, e olhava assustada ora para a princesa Mária, ora para o sogro. Quando saíram da mesa, ela tomou a cunhada pelo braço e chamou-a para a sala vizinha.
— Comme c’est un homme d’esprit votre père — disse ela. — C’est à cause de cela peut-être qu’il me fait peur.211
— Ah, ele é tão bom! — disse a princesa Mária.
XXV
O príncipe Andrei ia partir no dia seguinte à tarde. O velho príncipe, sem afrouxar a ordem da sua rotina, foi para o quarto após o jantar. A pequena princesa estava no quarto da cunhada. O príncipe Andrei, com uma sobrecasaca de viagem, sem dragonas, nos aposentos a ele reservados, começou a fazer as malas com a ajuda do seu criado. Depois de examinar pessoalmente a carruagem e a acomodação das bagagens, deu ordem para atrelar os cavalos. No quarto, ficaram apenas os objetos que o príncipe levava sempre consigo: um escrínio, um grande estojo de prata para apetrechos de chá, duas pistolas turcas e um sabre, presentes do pai, trazidos do sítio de Otchákov. Todos esses objetos preciosos se achavam em perfeito estado: tudo estava novo, limpo, encapado com feltro, firmemente amarrado com cadarços.
Na hora de uma partida, e de uma mudança de vida, as pessoas capazes de refletir sobre os seus atos se veem, em geral, num estado de espírito mais sério. Em tais momentos, é costume rever o passado e fazer planos para o futuro. O rosto do príncipe Andrei estava muito pensativo e terno. Com as mãos cruzadas atrás do corpo, ele andava ligeiro pelo quarto, de um canto para o outro, olhava para a frente e balançava a cabeça, com ar pensativo. Talvez tivesse medo de partir para a guerra, talvez estivesse triste por deixar a esposa — quem sabe eram as duas coisas juntas, mas, pelo visto, sem querer que o surpreendessem em tal estado de espírito, ao ouvir passos na entrada, ele rapidamente soltou as mãos, parou junto à mesa, como se estivesse amarrando a capa do escrínio, e assumiu a sua expressão calma e impenetrável de sempre. Eram os passos pesados da princesa Mária.
— Disseram-me que você mandou atrelar os cavalos — disse ela, arquejante (era evidente que viera correndo) —, eu queria muito conversar com você, a sós. Só Deus sabe daqui a quanto tempo vamos nos rever. Não está zangado por eu ter vindo? Você mudou muito, Andriucha — acrescentou, como que para explicar sua pergunta.
Ela sorriu ao pronunciar a palavra “Andriucha”. Via-se que, para ela mesma, era estranho pensar que aquele homem imponente, bonito, era o mesmo Andriucha, o menino magro, levado, seu companheiro de infância.
— E onde está Lise? — perguntou ele, respondendo só com um sorriso à pergunta da irmã.
— Ela está tão cansada que adormeceu no divã do meu quarto. Ah, André! Quel trésor de femme vous avez 212 — disse, enquanto sentava num divã de frente para o irmão. — É uma perfeita criança, tão meiga, tão alegre. Gosto muito dela.
O príncipe Andrei ficou em silêncio, mas a princesa notou uma expressão irônica e desdenhosa que surgiu no seu rosto.
— É preciso ser indulgente com os pequenos defeitos; quem não os tem, André? Não esqueça que ela foi educada e criada na sociedade. Além disso, a situação dela agora não é nenhum mar de rosas. Temos de nos colocar no lugar do outro. Tout comprendre, c’est tout pardonner.213 Pense como deve ser para ela, coitadinha, depois da vida à qual está habituada, viver longe do marido e ficar sozinha no campo, na situação em que ela se encontra. É muito difícil.
O príncipe Andrei sorriu, enquanto olhava para a irmã, como sorrimos ao ouvir as palavras de alguém cujos pensamentos acreditamos poder adivinhar.
— Você vive no campo e não acha horrível esta vida — disse ele.
— Comigo é diferente. Para que falar de mim? Não desejo outra vida, é verdade, e nem posso desejar, porque não conheço outra vida. Mas você, André, pense só, para uma jovem inexperiente, ficar enterrada no campo durante os melhores anos da vida, e sozinha, porque o papai vive ocupado o tempo todo, e eu... você me conhece... sou pobre en ressources,214 aos olhos de uma mulher habituada à melhor sociedade. Só a Mademoiselle Bourienne...
— Não me agradou nada a sua Bourienne — disse o príncipe Andrei.
— Ah, não! É muito gentil e bondosa, e sobretudo é uma mulher digna de pena. Ela não tem ninguém, ninguém. Para dizer a verdade, não só não preciso dela, como também me incomoda. Eu, você sabe, sempre fui arredia, e agora estou mais ainda. Gosto de ficar sozinha... Mon père gosta muito dela. Mikhail Ivánovitch e ela são as duas pessoas com quem ele sempre se mostra afetuoso e bom, porque os dois são alvo dos favores dele; como diz Sterne: “Amamos as pessoas menos pelo bem que elas nos fazem do que pelo bem que fazemos a elas”. Mon père acolheu-a quando ficou órfã sur le pavé,215 e ela é muito bondosa. E mon père gosta do seu modo de ler. Ela lê para ele em voz alta, à noite. Lê muito bem.
— Vamos, diga a verdade, Marie, você às vezes deve penar um bocado por causa do caráter do papai, não é? — perguntou o príncipe Andrei, de repente.
A princesa Mária sorriu, de início, depois se assustou com a pergunta.
— EU?... Eu?!... Penar um bocado?! — exclamou.
— Ele sempre foi rude; e agora deve estar mais difícil, imagino — disse o príncipe Andrei, com a evidente intenção de desconcertar ou testar a irmã, ao se referir ao pai de maneira tão desinibida.
— Você é todo bondade, André, mas há em você uma espécie de orgulho intelectual — disse a princesa, seguindo antes o rumo dos próprios pensamentos do que o rumo da conversa —, e isso é um grande pecado. Será que podemos julgar o papai? E mesmo se fosse possível, um homem como mon père poderia inspirar outro sentimento que não a vénération? 216 Vivo tão satisfeita e feliz com ele. Eu só queria que todos vocês fossem felizes como eu.
O irmão balançou a cabeça, incrédulo.
— Para lhe dizer a verdade, André, a única coisa penosa para mim é o modo de pensar do papai a respeito de religião. Não entendo como um homem com uma inteligência tão imensa não consiga enxergar algo claro como o dia e possa enganar-se a tal ponto. Essa é a minha única infelicidade. Mas também nisso, ultimamente, vejo uma sombra de melhora. Ultimamente, suas zombarias não têm sido tão cáusticas, e há um monge que papai aceitou receber, e até conversou com ele.
— Bem, minha amiga, receio que você e o seu monge vão gastar as energias à toa — disse o príncipe Andrei, num tom sarcástico, mas carinhoso.
— Ah! Mon ami. Eu apenas rezo a Deus e espero que Ele me ouça. André — disse ela, tímida, após um minuto de silêncio —, quero fazer um grande pedido a você.
— O que é, minha amiga?
— Não, primeiro prometa que não vai recusar. Não vai lhe custar trabalho nenhum e não haverá nisso nada indigno de você. Vai apenas me trazer consolo. Prometa, Andriucha — disse a princesa, enfiou a mão na bolsinha e segurou algo lá dentro, mas não mostrou o que era, como se aquilo que segurava e que constituía o objeto do seu pedido não pudesse ser retirado da bolsinha, senão depois de receber a promessa de que o pedido seria cumprido.
Tímida, ela fitou o irmão com um olhar de súplica.
— Ainda que fosse me custar um grande trabalho... — respondeu o príncipe Andrei, como que adivinhando do que se tratava.
— Você pode pensar o que quiser! Eu sei, você é igual ao mon père. Pense o que quiser, mas faça isso por mim. Faça, por favor! O pai do meu pai, o nosso avô, levou isto em todas as guerras... — Ela ainda não havia retirado da bolsinha aquilo que mantinha seguro na mão. — Então, promete?
— Claro, do que se trata?
— André, eu o abençoo com esta imagem, e você vai me prometer que nunca vai tirá-la do pescoço. Promete?
— Se não pesar dois pud 217 e não entortar o meu pescoço... Para deixar você contente... — disse o príncipe Andrei, mas no mesmo instante, ao notar a expressão de desgosto que tomou conta do rosto da irmã ao ouvir aquela brincadeira, ele se arrependeu. — Isso me deixa muito contente, de verdade, muito contente, minha amiga — acrescentou logo.
— Mesmo contra a sua vontade, Ele vai salvá-lo e ter misericórdia de você, e vai conduzi-lo para Ele, porque só Nele está a verdade e o consolo — disse a princesa com a voz trêmula de emoção, segurando nas duas mãos, num gesto solene diante do irmão, uma velha imagenzinha oval do Salvador, com uma carinha preta, numa moldura de prata, numa correntinha de prata, minuciosamente trabalhada.
A princesa fez o sinal da cruz, beijou a imagem e entregou para Andrei.
— Por favor, André, por mim...
Dos olhos grandes, reluziram raios de uma luz bondosa e tímida. Aqueles olhos iluminavam todo o rosto magro e doentio e o deixavam encantador. O irmão quis segurar logo a imagenzinha, mas ela o deteve. Andrei entendeu, fez o sinal da cruz e beijou a imagem. Seu rosto estava, ao mesmo tempo, terno (ele estava comovido) e zombeteiro.
— Merci, mon ami.218
A princesa beijou-o na testa e sentou-se de novo no divã. Os dois ficaram calados.
— Então, como eu lhe disse, André, seja bom e generoso, como sempre foi. Não julgue Lise com severidade — começou ela. — É tão meiga, tão boa, e a sua condição agora é muito difícil.
— Creio, Macha, que eu não lhe disse nada em que tenha criticado a minha esposa ou sugerido que estou descontente com ela. Para que você me diz isso o tempo todo?
A princesa Mária ruborizou-se, com manchas no rosto, e ficou em silêncio, como se sentisse culpa.
— Eu não lhe disse nada, mas já disseram a você. E, para mim, isso é triste.
Manchas vermelhas ainda mais fortes apareceram na testa, no pescoço e nas faces da princesa Mária. Queria falar algo e não conseguia pronunciar. O irmão adivinhou: a pequena princesa, depois do jantar, havia chorado, disse que pressentia um parto infeliz, disse que tinha medo e queixara-se do destino, do sogro e do marido. Depois das lágrimas, ela adormeceu. O príncipe Andrei teve pena da irmã.
— Entenda bem, Macha, em nada recrimino, não recriminei e nunca irei recriminar a minha esposa, e eu também nada tenho a me recriminar em relação a ela; e sempre será assim, sejam quais forem as circunstâncias em que eu me encontrar. Mas, se quer saber a verdade... quer saber se eu sou feliz? Não. Se ela é feliz? Não. Por que é assim? Não sei...
Ao dizer isso, levantou-se, aproximou-se da irmã, inclinou-se e beijou-a na testa. Os olhos bonitos do príncipe Andrei reluziram com um brilho inteligente, bondoso, fora do comum, mas ele olhava não para a irmã e sim para a sombra da porta aberta, atrás da cabeça dela.
— Vamos vê-la, preciso me despedir. Ou melhor, vá sozinha, acorde-a, irei logo depois. Petruchka! — gritou para o criado de quarto. — Venha cá, carregue a bagagem para mim. Ponha isto no assento e isto no lado direito.
A princesa Mária levantou-se e dirigiu-se para a porta. Parou.
— André, si vous aviez la foi, vous vous seriez adressé à Dieu, pour qu’Il vous donne l’amour que vous ne sentez pas, et votre prière aurait été exaucée.219
— Sim, pode ser! — respondeu o príncipe Andrei. — Vá, Macha, eu irei logo depois.
No caminho para o quarto da irmã, na galeria que ligava um quarto ao outro, o príncipe Andrei encontrou a gentil e sorridente Mlle Bourienne, e já era a terceira vez naquele dia que calhava de cruzar com ela, sempre com um sorriso entusiasmado e ingênuo, em passagens isoladas da casa.
— Ah! Je vous croyais chez vous 220 — disse ela, ruborizando-se e baixando os olhos, por algum motivo.
O príncipe Andrei fitou-a com severidade. No rosto do príncipe Andrei, de repente, exprimiu-se uma irritação. Nada lhe disse, porém, olhando para a testa e para os cabelos dela com tamanho desprezo, sem fitá-la nos olhos, que a francesinha ruborizou-se e foi embora, sem nada dizer.
Quando ele se aproximou do quarto da irmã, a princesinha já havia acordado e sua vozinha alegre, que atropelava as palavras, ouvia-se através da porta aberta. Falava como se, depois de conter-se por muito tempo, quisesse recuperar o tempo perdido.
— Non, mais figurez-vous, la vieille comtesse Zouboff avec de fausses boucles et la bouche pleine de fausses dents, comme si elle voulait défier les années...221 Ha, ha, ha, Marie!
Exatamente a mesma frase sobre a condessa Zúbova e o mesmo riso da esposa, diante de estranhos, já tinham sido ouvidos cinco vezes pelo príncipe Andrei. Ele entrou no quarto sem fazer barulho. A princesinha, gorduchinha, corada, com um trabalho de costura nas mãos, estava sentada numa poltrona e falava sem parar, recapitulando lembranças de Petersburgo e até expressões usuais na cidade. O príncipe Andrei aproximou-se, afagou a cabeça dela e perguntou se havia se refeito do cansaço da viagem. Ela respondeu e continuou a mesma conversa.
A carruagem puxada por seis cavalos estava diante da porta. Lá fora, era uma noite escura de outono. O cocheiro não enxergava o timão da carruagem. Na varanda, pessoas moviam-se agitadas com lanternas na mão. A casa enorme rebrilhava com as luzes através das janelas grandes. Na entrada, aglomeravam-se os criados, que desejavam despedir-se do jovem príncipe; na sala, estavam todas as pessoas de casa: Mikhail Ivánovitch, Mlle Bourienne, a princesa Mária e a princesinha. O príncipe Andrei foi chamado ao escritório do pai, que queria despedir-se dele a sós.
Quando o príncipe Andrei entrou no escritório, o velho príncipe, com os óculos de velho e o seu roupão branco, no qual não recebia ninguém a não ser o filho, estava sentado atrás da mesa e escrevia. Ergueu os olhos.
— Vai partir? — E pôs-se a escrever de novo.
— Vim me despedir.
— Beije aqui — mostrou a bochecha. — Obrigado, obrigado!
— Por que me agradece?
— Por não perder tempo, por não ficar agarrado à saia de uma mulher. O serviço militar antes de tudo. Obrigado, obrigado! — Continuou a escrever, e voavam respingos da pena que estalava. — Se precisa dizer algo, fale. As duas coisas podem ser feitas ao mesmo tempo — acrescentou.
— Sobre a minha esposa... Estou muito envergonhado por deixá-la nas mãos do senhor...
— Deixe de história. Diga o que é necessário.
— Quando chegar a hora de minha esposa dar à luz, mande vir um médico parteiro de Moscou... Queria que ele estivesse aqui.
O velho príncipe parou e, como se não entendesse, cravou os olhos severos no filho.
— Sei que ninguém pode ajudar, se a natureza não ajuda — disse o príncipe Andrei, visivelmente embaraçado. — Concordo que, entre um milhão de casos, há só um que dá errado, mas ela e eu estamos com essa cisma. Contaram coisas para ela, viu algo num sonho e está com medo.
— Hm... Hm... — disse consigo o velho príncipe, enquanto continuava a escrever até terminar. — Farei isso.
Rabiscou a assinatura, de repente voltou-se rápido para o filho e soltou uma risada.
— Mau negócio, hein?
— O quê, meu pai?
— A esposa! — respondeu o velho príncipe, de modo conciso e sugestivo.
— Não entendo — disse o príncipe Andrei.
— Ora, não há nada a fazer, meu amigo — disse o príncipe. — São todas assim, não podemos desfazer um casamento. E não tenha medo; não vou contar para ninguém; você sabe muito bem disso.
Agarrou a mão do filho em seu punho ossudo e pequeno, sacudiu-a, fitou-o direto no rosto com seus olhos rápidos, que pareciam enxergar por dentro da pessoa, e de novo gargalhou com o seu riso frio.
O filho deu um suspiro, admitindo com aquele suspiro que o pai o compreendia. O velho apanhava e largava o selo, o lacre e o papel, enquanto dobrava e lacrava a carta, com a sua rapidez habitual.
— O que se vai fazer? É bonita! Farei tudo isso. Fique tranquilo — disse ele, com voz entrecortada, na hora de impor o lacre.
Andrei ficou calado: gostava e não gostava de que o pai o compreendesse. O velho se levantou e entregou a carta para o filho.
— Escute — disse ele. — Quanto à esposa, não se preocupe: todo o possível será feito. Agora, escute bem: entregue esta carta para Mikhail Ilariónovitch.222 Escrevi para ele fazer uso de você em bons postos e não o conservar muito tempo como ajudante de ordens: um posto detestável! Diga-lhe que me lembro e gosto dele. E escreva me contando como ele o recebeu. Se ele for bom, sirva-o. O filho de Nikolai Andreitch Bolkónski não precisa servir ninguém que não seja bom. Agora, venha cá.
Falava tão depressa que não terminava a metade das palavras, mas o filho estava acostumado a entendê-lo. O velho príncipe conduziu o filho até a escrivaninha, levantou a tampa, puxou uma gaveta e retirou um caderno todo escrito na sua caligrafia de letras grandes, compridas e apertadas.
— Devo morrer antes de você. Veja, aqui estão os meus escritos, envie-os para o soberano após a minha morte. Agora, aqui está uma nota de crédito e uma carta: são o prêmio para quem escrever a história das guerras de Suvórov. Mande para a Academia. Aqui estão minhas anotações; depois que eu me for, trate de ler, vai achar útil.
Andrei não disse ao pai que, sem dúvida, ele ainda haveria de viver muito tempo. Entendia que não era preciso dizê-lo.
— Farei tudo, papai — respondeu.
— Mas, agora, adeus! — Deu a mão para o filho beijar e abraçou-o. — Lembre-se de uma coisa, príncipe Andrei: se o matarem, para mim, um velho, será doloroso... — Calou-se inesperadamente e de súbito, com voz cortante, prosseguiu: — E se eu souber que você não se portou como um filho de Nikolai Bolkónski, para mim... será uma vergonha! — gritou, com voz aguda.
— Isso o senhor não precisava me dizer, papai — disse o filho, sorrindo.
O velho ficou em silêncio.
— Eu ainda queria pedir uma coisa ao senhor — continuou o príncipe Andrei. — Se eu for morto e se eu tiver um filho, não o afaste de si, como eu lhe disse ontem, quero que ele seja criado junto do senhor... por favor.
— Para não deixá-lo com a esposa? — disse o velho e pôs-se a rir.
Ficaram em silêncio, de pé, um diante do outro. Os olhos rápidos do velho concentraram-se em cheio nos olhos do filho. Algo tremeu na parte inferior do rosto do velho príncipe.
— Já nos despedimos... Vá! — disse ele, de repente. — Vá! — gritou com voz alta e zangada, abrindo a porta do escritório.
— O que foi, o que houve? — perguntaram a princesinha e a princesa, ao ver o príncipe Andrei e a figura do velho, que havia gritado com voz zangada e aparecera só por um minuto, num roupão branco, sem peruca e com os óculos de velho.
O príncipe Andrei deu um suspiro e nada respondeu.
— Bem — disse ele, voltando-se para a esposa.
E aquele “bem” ressoava com uma ironia fria, como se dissesse: “Chegou a hora de você apresentar o seu número teatral”.
— André, déjà!223 — exclamou a princesinha, pálida e olhando com medo para o marido.
Ele abraçou-a. Ela soltou um grito e desabou sem sentidos no ombro do marido.
O príncipe Andrei, com cuidado, livrou o ombro em que ela jazia, lançou um olhar para o seu rosto, acomodou-a na poltrona com delicadeza.
— Adieu, Marie — disse em voz baixa para a irmã, beijou-a, segurando-a pela mão, e saiu a passos ligeiros.
A princesinha jazia na poltrona, Mlle Bourienne friccionava suas têmporas. A princesa Mária, amparando a cunhada, com os lindos olhos chorosos, continuava a olhar para a porta por onde o príncipe Andrei havia saído e fez o sinal da cruz na direção dele. Do escritório, ouviam-se, como tiros, os sons muito repetidos e irritados do velho que assoava o nariz. Assim que o príncipe Andrei saiu, a porta do escritório abriu bruscamente, e o vulto severo do velho de roupão branco surgiu.
— Já foi? Muito bem, tanto melhor! — disse; depois de olhar zangado para a princesinha desfalecida, balançou a cabeça com ar de censura e bateu a porta com estrondo.
1 Francês: “Bem, meu príncipe. Gênova e Luca não passam de apanágios, propriedades da família Buonaparte. Não, eu o advirto que, se me diz que não teremos guerra, se o senhor se permitir ainda abrandar todas as infâmias, todas as atrocidades desse Anticristo (palavra de honra, creio nisso), eu não o reconheço mais, o senhor não é mais meu amigo, não é mais meu fiel escravo, como diz o senhor. [...] Vejo que eu o assusto.” Como em todas as passagens em francês nesta edição, reproduz-se o texto tal como está no original de Tolstói, respeitando a mesma pontuação, que pode não seguir as normas do francês, mas segue as do russo. [Esta e as demais notas são do tradutor, exceto quando indicado de outro modo.]
2 Na Rússia, príncipe era um título de nobreza, equivalente ao de duque. Não tem relação com a família real. O filho do tsar não era chamado de príncipe, e sim de tsarévitche.
3 Francês: “Se o senhor não tiver nada melhor a fazer, sr. conde (ou meu príncipe), e se a perspectiva de passar a noite em casa de uma pobre enferma não o assusta em demasia, ficarei encantada de receber o senhor em minha casa entre sete e dez horas. Annette Scherer”.
4 Francês: “Deus, que investida virulenta!”.
5 Francês: “Antes de tudo, diga-me, como tem passado, querida amiga?”.
6 Francês: “Confesso ao senhor que todas essas festas e todos esses fogos de artifício começam a tornar-se insípidos”.
7 Francês: “Não me atormente. E então, o que ficou resolvido com relação ao despacho de Novossíltsev? O senhor sabe de tudo”.
8 Francês: “O que ficou decidido? Ficou decidido que Buonaparte queimou seus navios, e creio que estamos em via de queimar os nossos”. A expressão “brûler ses vaisseaux”, ou “queimar seus navios”, significa que é impossível recuar ou desistir de determinada situação.
9 Francês: “Essa famosa neutralidade prussiana não passa de uma cilada”.
10 Francês: “A propósito [...] o visconde de Mortmart, ele é aparentado aos Montmorency pelos Rohan [...] o abade Morio”.
11 Francês: “a imperatriz-mãe [...] É uma figura lamentável, esse barão, ao que parece”.
12 Francês: “O senhor barão Funke foi recomendado à imperatriz-mãe pela irmã dela”.
13 Francês: “muita estima”.
14 Francês: “Porém, a propósito da sua família [...] faz as delícias de todo mundo. Acham-na bela como o dia”.
15 Johann Kaspar Lavater (1741-1801), médico suíço que associava a fisionomia a características mentais.
16 Francês: “O que quer a senhora? Lavater diria que não tenho a vocação da paternidade”.
17 Francês: “uns imbecis”.
18 Francês: “Sou o seu fiel escravo, e só à senhora posso confessar [...] são os entraves da minha existência [...] O que quer a senhora?...”.
19 Francês: “têm mania de casamentos [...] pequenina pessoa [...] uma parente nossa, uma princesa”.
20 Francês: “Eis a vantagem de ser pai”.
21 Francês: “A pobre pequena é infeliz como as pedras”.
22 Francês: “Escute, querida Annette [...] Cuide desse caso para mim e serei seu fiel escravo para sempre [...] me escreve nos relatórios”.
23 Francês: “Espere [...] a mulher do jovem Bolkónski [...] Será na família do senhor que farei o meu aprendizado de solteirona”.
24 Francês: “a mulher mais sedutora de Petersburgo”.
25 Francês: “minha tia”.
26 Francês: “motivo de prazer”.
27 Francês: “Eu trouxe o meu trabalho [...] Annette, a senhora quis pregar uma peça em mim [...] A senhora me escreveu que era uma pequena reunião; veja como estou malvestida”.
28 Francês: “Fique sossegada, Liza, a senhora será sempre a mais bonita”.
29 Francês: “Sabem, o meu marido me abandona [...] ele vai se fazer matar. Diga-me, para que essa guerra horrível?”.
30 Francês: “Que pessoa encantadora essa pequenina princesa!”.
31 Francês: “É muita gentileza da sua parte, senhor Pierre, vir ver uma pobre enferma”.
32 O duque d’Enghien foi morto em 1804, acusado de conspirar contra Napoleão.
33 Francês: “Ah!, vamos. Conte-nos isso, visconde”.
34 Francês: “O visconde conheceu pessoalmente o monsenhor [...] O visconde é um ótimo contador de histórias [...] Vê-se logo que é um homem da boa sociedade”.
35 Francês: “querida Hélène”.
36 Francês: “Que pessoa encantadora!”.
37 Francês: “Senhora, temo por meu talento, diante de tal plateia”.
38 Francês: “Esperem, vou pegar o meu trabalho [...] Ora, o que o senhor está pensando? [...] Traga a minha bolsa”.
39 Francês: “O encantador Hippolyte”.
40 Francês: “Não é uma história de assombração?”.
41 Francês: “Ora, não, meu caro”.
42 Francês: “É que eu detesto histórias de assombração”.
43 Francês: “coxa de ninfa assustada”.
44 Pseudônimo de Marguerite Joséphine Weimer, atriz francesa de tragédias, amante de Napoleão por um tempo e que, entre 1808 e 1812, apresentou-se na Rússia, onde introduziu novas formas de representação e obteve grande sucesso com Fedra, de Racine. Púchkin se referiu a ela como “atriz francesa sem alma”.
45 Francês: “Encantador”.
46 Francês: “direito dos povos”.
47 Francês: “O senhor se alistou para ir à guerra, meu príncipe?”.
48 Francês: “O general Kutúzov [...] teve a bondade de me aceitar como ajudante de ordens”.
49 Francês: “E Liza, a sua esposa?”.
50 Francês: “Seja o bom menino que era antigamente”.
51 Francês: “Uma vez transferido para a guarda...”.
52 O general Kutúzov foi nomeado, em 1805, para comandar um exército de 50 mil homens para socorrer a Áustria.
53 Francês: “Até logo”.
54 Francês: “Da coroação de Milão [Napoleão se fez coroar rei da Itália em 1805, em Milão] [...] E a nova comédia do povo de Gênova e do povo de Luca, que acabam de prestar votos ao senhor Buonaparte, sentado num trono, e de receber os votos das nações! Adorável! Não, mas é de enlouquecer! Dir-se-ia que o mundo inteiro perdeu a cabeça”.
55 Francês: “‘Deus me deu a coroa, ai de quem a tocar’ [...] Dizem que estava muito bonito quando pronunciou essas palavras”.
56 Francês: “Espero enfim que essa tenha sido a gota d’água que fará transbordar a taça. Os soberanos não podem mais tolerar esse homem, que a todos ameaça”.
57 Francês: “Os soberanos? Não falo da Rússia [...] Os soberanos, madame! O que fizeram eles por Luís XVI, pela rainha, por Madame Elisabeth? Nada [Referência ao rei da França Luís xvi, à sua esposa, Maria Antonieta, e à sua irmã] [...] Creia-me, eles estão sofrendo o castigo por sua traição à causa dos Bourbon. Os soberanos? Eles enviam embaixadores para saudar o usurpador”.
58 Família da nobreza francesa, aparentada aos Bourbon.
59 Hippolyte confunde as palavras em francês e sua descrição não tem sentido.
60 Francês: “O senhor visconde”.
61 Francês: “Bonaparte o disse”.
62 Francês: “‘Eu lhes mostrei o caminho da glória’ [...] ‘eles não o quiseram; eu lhes abri minhas antecâmaras, e eles avançaram em multidão’... Não sei até que ponto ele tem o direito de falar assim”.
63 Francês: “Nenhum [...] Se mesmo assim ele era um herói para certas pessoas [...] após o assassinato do duque existe um mártir a mais no céu e um herói a menos na Terra”.
64 Francês: “Deus! Meu Deus!”.
65 Francês: “Como, senhor Pierre, pode achar que um assassinato é uma grandeza de espírito?”.
66 Francês: “Contrato social”.
67 Francês: “Mas, meu caro senhor Pierre”.
68 Francês: “É um embuste que não parece nem um pouco com o modo de agir de um grande homem”.
69 Francês: “É um vilão, diga o senhor o que disser”.
70 Na ponte de Arcola, perto de Verona, Napoleão venceu os austríacos, em 1796; e tomou o porto de Jafa, na Palestina, em 1799.
71 Francês: “Ah! Hoje me contaram uma anedota moscovita encantadora: tenho de lhes contar. O senhor me desculpe, visconde, tenho de contar em russo. Do contrário a história vai perder o sal”.
72 Francês: “uma senhora [...] lacaios [...] criada de quarto”.
73 Francês: “Libré [...] fazer algumas visitas”.
74 Francês: “festa encantadora”.
75 Francês: “Está resolvido”.
76 Francês: “como o pai vai encarar a questão. Até logo”.
77 Francês: “Princesa, até logo”.
78 Francês: “Ora viva, meu caro, a sua pequenina princesa é muito bonita, muito bonita [...] Mas muito bonita [...] E totalmente francesa”.
79 Francês: “E sabe que o senhor é terrível, com esse seu arzinho de inocente [...] Tenho pena do pobre marido, um reles oficial que se dá ares de príncipe regente”.
80 Francês: “E o senhor ainda diz que as damas russas não valem as damas francesas. É preciso saber lidar com elas”.
81 Francês: “‘Esse não é o famoso príncipe Andrei?’ Palavra de honra!”.
82 Francês: “Ah! Não me fale dessa partida, não me fale. Não quero ouvir falar disso [...] Tenho medo, tenho medo!”.
83 Francês: “de que a senhora tem medo”.
84 Francês: “Não, Andrei, eu acho que você está tão mudado, tão mudado...”.
85 Francês: “Boa noite, Liza”.
86 Francês: “Eu sou muito amável e muito cáustico [...] todas as mulheres distintas”.
87 Francês: “Sou um homem liquidado”.
88 Francês: “Eu sou um bastardo [...] Sem nome, sem fortuna”.
89 Francês: “O que quer, meu caro [...] As mulheres, meu caro, as mulheres!”.
90 Francês: “As mulheres decentes [...] as mulheres [...] as mulheres e o vinho”.
91 Os russos, para fechar uma aposta, apertavam as mãos, e uma terceira pessoa as separava.
92 Um imperial equivalia a dez rublos.
93 Francês: “Cara condessa, faz tanto tempo... Ela esteve de cama, a pobre criança... No baile dos Razumóvski... E a condessa Apráksina... Fiquei tão feliz...”.
94 Francês: “Estou muito encantada; a saúde de mamãe... E a condessa Apráksina”.
95 Francês: “entre nós”.
96 Francês: “Minha querida, há hora para tudo”.
97 Francês: “Bom dia, minha querida, meus parabéns [...] Que criança deliciosa!”.
98 Apelido de Natália.
99 Francês: “primo”.
100 “Primos são vizinhança perigosa”.
101 Atriz e cantora de um grupo teatral alemão, famoso em Moscou na época.
102 Félicité de Genlis (1746-1830), escritora francesa, autora de obras sobre a educação dos jovens e as normas de etiqueta da alta sociedade.
103 Francês: “nem tudo são flores [...] do jeito que estamos vivendo”.
104 Francês: “Princesa fulana”.
105 Militar voluntário, sem posto de oficial, oriundo das famílias ricas.
106 Francês: “Ele me fazia a corte”.
107 Francês: “A grandeza não subiu à cabeça dele [...] literalmente”.
108 Francês: “querida amiga”.
109 Conde Aleksei Grigórievitch Orlóv (1737-1808), militar e político, lutou na Guerra Russo-Turca (1668-1774) e era célebre pelas festas e pelos banquetes que promovia, na virada do século xviii para o xix.
110 Francês: “Meu amigo!”.
111 Francês: “Meu querido, você me prometeu”.
112 Francês: “Então, é seguro?”.
113 Francês e latim: “Meu príncipe, ‘errar é humano’, mas...”.
114 Francês: “Está bem, está bem...”.
115 Francês: “Jamais pude entender como Natália resolveu casar com aquele mal-educado! Um personagem completamente estúpido e ridículo. E um jogador, pelo que dizem”.
116 Francês: “Mas um homem de grande valor, meu príncipe”.
117 Francês: “É o afilhado dele”.
118 Francês: “Pense bem, disso depende o bem-estar da alma dele... Ah, são terríveis os deveres de um cristão...”.
119 Francês: “Ah, querida, eu não reconheci a senhora [...] Acabei de chegar e estou ao dispor da senhora para ajudá-la a cuidar do meu tio. Imagino como a senhora tem sofrido”.
120 Francês: “Ficarei muito contente se a senhora me livrar desse rapaz...”.
121 Francês: “Bom dia, minha prima [...] A senhora não está me reconhecendo?”.
122 Francês: “Meu caro, se o senhor continuar a se comportar como fez em Petersburgo, vai acabar muito mal; é só o que tenho a dizer”.
123 Francês: “A Inglaterra está acabada [...] O senhor Pitt, como traidor da nação e do direito dos povos, é condenado a...”.
124 William Pitt, o jovem (1759-1806), foi um lorde inglês, líder do Partido Conservador e primeiro-ministro, inimigo encarniçado da Revolução Francesa e de Napoleão.
125 Famoso bairro para passeios em Moscou.
126 Nessa época, Napoleão reunia suas forças na Bolonha, com a intenção de invadir a Inglaterra. Pierre-Charles Villeneuve (1763-1806) comandou a esquadra franco-espanhola na batalha de Trafalgar (1805), cujo objetivo era chegar à Inglaterra pelo canal da Mancha.
127 Francês: “Adeus, meu príncipe, que o bom Deus o ampare...”.
128 Francês: “Adeus, minha cara”.
129 Francês: “Cozido de perdizes ao molho madeira”.
130 Os servos domésticos podiam ser vendidos individualmente, como um bem privado. Os servos de gleba só eram vendidos junto com a terra.
131 Francês: “o dragão terrível”.
132 Francês: “meu muito honrado [...] O senhor espera obter um rendimento do Estado”.
133 Francês: “Isso é que é equilíbrio... [...] como diz o provérbio”.
134 Francês: “Sim, senhora”.
135 Francês: “Os Razumóvski... Isso foi elegante... A senhora é muito boa... A condessa Apráksina...”.
136 Os russos recebiam o nome de um santo, e o dia desse santo, no calendário da Igreja ortodoxa, era comemorado como o aniversário da pessoa. Chama-se santo onomástico.
137 Francês: “de tartaruga”.
138 Francês: “Ele já baixou a crista da Áustria. Temo que agora tenha chegado a nossa vez”.
139 Francês: “Os senhores conhecem o provérbio [...] Isso nos convém de modo maravilhoso [...] não sobrou nada [...] Permitam que lhes pergunte”. Aleksandr Suvórov (1729-1800) foi um generalíssimo do Exército russo que comandou o exército austro-russo na campanha da Itália, contra a França. Chinchin provavelmente se refere ao fato de as tropas de Suvórov, sem o apoio dos austríacos, terem sido obrigadas a se retirar pela Suíça, em condições precárias, e de Suvórov, célebre por suas vitórias militares, após voltar a Petersburgo, ter morrido no ostracismo.
140 Francês: “É muito bonito o que o senhor acabou de dizer”.
141 Para o casamento entre primos, era necessária a autorização da Igreja. O metropolita na Igreja ortodoxa equivale ao arcebispo da Igreja católica.
142 Anglaise (inglesa): contradança com muitas figuras de nomes fantasiosos.
143 Dança popular russa, de ritmo acelerado, em que o dançarino fica de cócoras e dá pequenos saltos, esticando para a frente uma perna de cada vez.
144 Francês: “Muito bonito [...] Muito bonito, princesa, e depois, em Moscou temos a impressão de que estamos no campo”.
145 Francês: “Não é mesmo?”.
146 Francês: “uma pitada [...] de cremor de tártaro”.
147 Francês: “vamos conversar”.
148 Francês: “Estou esgotado como um cavalo de posta”.
149 Francês: “Mas, minha cara Katiche, está claro como o dia”.
150 Francês: “e tudo o que daí se segue”.
151 Francês: “vejamos”.
152 Francês: “sejamos razoáveis”.
153 Francês: “protegida”.
154 Francês: “Não vamos perder tempo”.
155 Francês: “Aí está”.
156 Francês: “Ah, meu amigo [...] Acredite que eu sofro tanto quanto você, mas seja homem”.
157 Francês: “Ah, meu amigo, esqueça os erros cometidos contra você, pense que ele é seu pai... talvez em agonia [...] Eu amei você desde o início como se fosse meu filho. Confie em mim, Pierre. Não vou me esquecer dos seus interesses”.
158 Francês: “Seja homem, meu amigo, eu vou cuidar dos seus interesses”.
159 Francês: “Caro doutor [...] Este jovem aqui é o filho do conde... Há esperança?”.
160 Francês: “Tenha confiança na Sua misericórdia”.
161 Francês: “Coragem, coragem, meu amigo. Ele pediu para falar com você. Está tudo bem...”.
162 Francês: “Houve mais um ataque, faz meia hora [...] Coragem, meu amigo”.
163 Francês: “A bondade divina é inesgotável. Vai começar a cerimônia da extrema-unção. Venha”.
164 Francês: “Venha”.
165 Francês: “Ele está cochilando [...] Vamos”.
166 Francês: “Katiche mandou servir o chá na sala pequena [...] Vamos, minha pobre Anna Mikháilovna, beba alguma coisa, senão a senhora não vai aguentar”.
167 Francês: “Não há nada que restaure as energias como uma xícara deste excelente chá russo depois de uma noite sem dormir”.
168 Francês: “Vamos, minha boa Anna Mikháilovna, deixe a Katiche fazer o que quer”.
169 Francês: “Eu suplico à senhora...”.
170 Francês: “Isso é ridículo. Vamos”.
171 Francês: “Ele está partindo e todos me deixam sozinha”.
172 Francês: “Ele não é mais...”.
173 Francês: “Vamos, eu acompanharei o senhor de novo. Faça força para chorar. Nada alivia tanto como as lágrimas”.
174 Francês: “Sim, meu caro, é uma grande perda para todos nós. Não falo do senhor. Mas Deus vai ampará-lo, o senhor é jovem e agora está de posse de uma fortuna imensa, assim espero. O testamento ainda não foi aberto. Eu conheço o senhor o bastante para saber que isso não vai subir à sua cabeça, mas o fato lhe impõe certas obrigações, e é preciso ser homem”.
175 Francês: “Talvez mais tarde eu lhe conte, meu caro, que, se eu não estivesse lá, Deus sabe o que teria acontecido. O senhor sabe, meu tio anteontem ainda me prometeu que não ia se esquecer de Boris. Mas não teve tempo. Espero, meu caro amigo, que o senhor cumpra o desejo do seu pai”.
176 Francês: “É doloroso, mas faz bem; eleva a alma ver homens como o velho conde e seu digno filho”.
177 General em chefe era o posto mais elevado do generalato, no tempo da imperatriz Catarina ii.
178 Francês: “o rei da Prússia”.
179 Versta: medida russa, equivalente a 1,067 quilômetro.
180 Alusão ao livro Júlia ou a nova Heloísa, de Jean-Jacques Rousseau (1712-78).
181 Francês: “meu pai”.
182 Referência ao livro Zahlenlehre der Natur (1794), do filósofo e místico alemão Karl von Eckartshausen (1752-1803), traduzido para o russo em 1804.
183 Francês: “Cara e excelente amiga, que coisa terrível é a ausência! Por mais que eu me diga que metade da minha existência e da minha felicidade esteja na senhora, que apesar da distância que nos separa nossos corações estão unidos por laços indissolúveis, o meu se revolta contra o destino e não posso, a despeito dos prazeres e das distrações que me cercam, superar certa tristeza oculta que sinto no fundo do coração desde a nossa separação. Por que não estamos juntas, como no verão passado, no grande escritório da senhora, sobre o canapé azul, o canapé das confidências? Por que não posso, como três meses atrás, extrair novas forças morais do seu olhar tão doce, tão calmo, tão penetrante, olhar que eu amava tanto e que acredito estar vendo na minha frente, quando escrevo para a senhora?”.
184 Francês: “Em Moscou, só se fala de guerra. Um de meus irmãos já está no exterior, o outro está com a guarda, que vai marchar para a fronteira. Nosso querido imperador deixou Petersburgo e, pelo que dizem, pretende expor sua preciosa existência aos acasos da guerra. Deus queira que o monstro corso que arruína o repouso da Europa seja arrasado pelo anjo que o Todo-Poderoso, em Sua misericórdia, nos concedeu como soberano. Sem falar de meus irmãos, essa guerra me privou de uma relação das mais caras ao meu coração. Falo do jovem Nikolai Rostóv, que com seu entusiasmo não conseguiu suportar a inação e deixou a universidade para se alistar no Exército. Pois bem, minha cara Mária, vou confessar que, apesar de sua extrema juventude, a partida dele para o Exército foi para mim um grande desgosto. O jovem sobre o qual lhe falei no verão passado tem tanta nobreza e verdadeira juventude como raramente se encontram, no século em que vivemos, entre aqueles de vinte anos. Ele tem, sobretudo, tanta franqueza e tanto coração! É tão puro e poético que minhas relações com ele, por passageiras que tenham sido, foram um dos prazeres mais doces do meu pobre coração, que já sofreu tanto. Contarei à senhora, um dia, a nossa despedida e tudo o que foi dito, na hora da partida. Tudo isso ainda é muito recente. Ah! querida amiga, feliz é a senhora por não conhecer tais prazeres e penas tão pungentes. Feliz é a senhora, pois as últimas são em geral as mais fortes! Sei muito bem que o conde Nikolai é jovem demais para poder, algum dia, vir a ser para mim algo mais do que um amigo, mas essa doce amizade, essas relações tão poéticas e tão puras eram uma necessidade do meu coração. Mas não falemos mais disso. A grande novidade do momento, que ocupa Moscou inteira, é a morte do velho conde Bezúkhov e sua herança. Imagine que as três princesas ganharam muito pouco, o príncipe Vassíli, nada, e o senhor Pierre herdou tudo e ainda por cima foi reconhecido como filho legítimo, em consequência o conde Bezúkhov é o senhor da mais bela fortuna da Rússia. Dizem que o príncipe Vassíli desempenhou o papel mais infame em toda essa história e que voltou de cabeça baixa para Petersburgo.
“Confesso à senhora que entendo muito pouco de legados e testamentos; o que sei é que desde que o jovem que todos conhecemos pelo nome de senhor Pierre se transformou de uma hora para outra em conde Bezúkhov e em dono de uma das maiores fortunas da Rússia, eu me divirto muito observando as mudanças de tom e de maneira das mães atulhadas de filhas casadouras e das próprias senhoritas com relação a esse indivíduo, que, cá entre nós, sempre me pareceu um pobre coitado. Como há dois anos tanta gente se entretém em me arranjar noivos que muitas vezes eu nem sequer conheço, a crônica matrimonial de Moscou faz de mim condessa Bezúkhova. Mas a senhora bem sabe que eu nada faço para ganhar tal título. Quanto a casamento, saiba que recentemente Anna Mikháilovna, a tia de todos, me confidenciou, sob o maior segredo, um projeto de casamento para a senhora. Trata-se de ninguém mais ninguém menos que o filho do príncipe Vassíli, Anatole, que pretendem corrigir casando-o com uma noiva rica e distinta, e é sobre a senhora que recaiu a escolha dos pais. Não sei como a senhora vai encarar isso, mas achei que era meu dever preveni-la. Falam dele muito bem e muito mal; é tudo o que pude saber a seu respeito.
“Mas chega de tagarelices como essa. Terminei minha segunda folha, e mamãe mandou me chamar para ir jantar na casa dos Apráksin. Leia o livro místico que lhe mandei e que faz sucesso por aqui. Embora haja nele coisas difíceis de alcançar com a fraca razão humana, trata-se de um livro admirável cuja leitura acalma e eleva a alma. Adeus. Meus respeitos ao senhor seu pai e meus cumprimentos a Mlle Bourienne. Fique com o beijo desta que a ama.
“Julie
“P. S. Mande-me notícias de seu irmão e de sua encantadora e pequena esposa.”
185 Francês: “Querida e excelente amiga, sua carta do dia 13 deu-me grande alegria. Então a senhora ainda gosta de mim, minha poética Julie. Quer dizer que a ausência, da qual a senhora fala tão mal, não produziu seu efeito de costume. A senhora se queixa da ausência — o que diria eu, se me atrevesse a me queixar, privada de todas as pessoas que me são caras? Ah! a vida seria muito triste, se não tivéssemos a religião para nos consolar. Por que supõe que eu vou me mostrar severa, quando a senhora me fala a respeito da sua afeição pelo jovem? A tal respeito, não sou inflexível senão comigo mesma. Compreendo tais sentimentos nos outros e se não posso aprová-los, por nunca os ter experimentado, tampouco os condeno. Parece-me apenas que o amor cristão, o amor ao próximo, o amor aos inimigos é mais meritório, mais doce e mais belo do que os sentimentos que os olhos bonitos de um jovem podem inspirar numa jovem poética e amorosa como a senhora.
“A notícia da morte do conde Bezúkhov chegou-nos antes da sua carta, e meu pai ficou muito abalado. Diz que o conde era o penúltimo representante do século passado e que agora é a vez dele; mas que fará tudo o que puder para que a vez dele chegue o mais tarde possível. Que Deus nos proteja dessa terrível desgraça! Não posso compartilhar a sua opinião sobre Pierre, que conheci em criança. Ele sempre me pareceu ter um coração excelente, e essa é a qualidade que mais estimo nas pessoas. Quanto à herança dele e ao papel que nisso desempenhou o príncipe Vassíli, tudo isso é muito triste, para ambos. Ah! querida amiga, as palavras do nosso divino Salvador, de que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus, essas palavras são terrivelmente verdadeiras; lastimo o príncipe Vassíli e lamento mais ainda por Pierre. Tão jovem e esmagado por essa riqueza, quanta tentação terá de suportar! Se me perguntassem o que eu mais desejaria neste mundo, diria que é ser mais pobre do que o mais pobre dos mendigos. Mil vezes obrigada, querida amiga, pela obra que você me enviou e que faz grande sucesso, aí. No entanto, já que a senhora me diz que, no meio de muitas coisas boas, há outras que a fraca razão humana não consegue alcançar, parece-me inútil ocupar-se com uma leitura ininteligível, que por isso mesmo não poderá produzir nenhum fruto. Jamais consegui entender o entusiasmo que têm certas pessoas de embrulhar o pensamento dedicando-se a livros místicos, que só servem para despertar dúvidas no espírito, exaltando a imaginação e dando a ela um caráter de exagero completamente contrário à simplicidade cristã. Vamos ler os Apóstolos e o Evangelho. Não tentemos penetrar no que eles encerram de misterioso, pois como poderíamos nós, miseráveis pecadores que somos, nos atrever a tentar nos iniciar nos terríveis e sagrados segredos da Providência, visto que carregamos este despojo carnal, que ergue entre nós e o Eterno um véu impenetrável? Limitemo-nos a estudar os princípios sublimes que o nosso divino Salvador deixou-nos para guiar a nossa conduta aqui embaixo; tentemos nos conformar a isso e a segui-los, devemos nos persuadir de que quanto menos dermos asas ao nosso fraco espírito humano, mais agradável será para Deus, que rejeita toda ciência que não venha Dele; quanto menos tentarmos nos aprofundar naquilo que Ele houve por bem esconder da nossa consciência, tanto mais cedo Ele nos concederá a descoberta por meio do Seu espírito divino.
“Meu pai nada me disse sobre um pretendente, mas falou apenas que recebeu uma carta e que esperava uma visita do príncipe Vassíli. Quanto ao projeto de casamento que a mim se refere, direi à senhora, querida e excelente amiga, que o casamento, a meu ver, é uma instituição divina à qual é preciso conformar-se. Por mais penoso que venha a ser para mim se algum dia o Todo-Poderoso me impuser as obrigações de esposa e de mãe, eu tratarei de cumpri-las o mais fielmente que puder, sem me inquietar com o exame dos meus sentimentos em relação àquele que me derem por esposo.
“Recebi uma carta do meu irmão, que me anuncia a sua chegada a Montes Calvos, com a esposa. Será uma alegria de curta duração, pois ele nos deixará logo para tomar parte dessa guerra infeliz à qual fomos arrastados Deus sabe como e por quê. Não é apenas aí, no centro dos negócios e da vida mundana, que só se fala na guerra, aqui também, no meio dos trabalhos campestres e da calma da natureza, imagem habitual que os habitantes da cidade têm do campo, os rumores da guerra se fazem ouvir e sentir de modo doloroso. Meu pai só fala de marcha e contramarcha, coisas de que nada compreendo; e anteontem, ao dar o meu passeio habitual pela rua da aldeia, fui testemunha de uma cena dilacerante... Era um comboio de recrutas convocados em nossas terras e mandados para o Exército... A senhora precisava ver o estado das mães, mulheres e filhos dos homens que partiam e ouvir o choro e os soluços de todos eles! Parece que a humanidade se esqueceu das leis do seu divino Salvador, que pregava o amor e o perdão das ofensas, e parece que a humanidade atribui o maior mérito à arte de se matarem uns aos outros.
“Adeus, querida e boa amiga, que o nosso divino Salvador e Sua Mãe Santíssima tenham a senhora na Sua santa e poderosa guarda.
“Mária”.
186 Francês: “Ah, a senhora vai mandar sua correspondência, princesa, eu já mandei a minha. Escrevi para a minha pobre mãe”.
187 Francês: “Princesa, é preciso que eu previna a senhora [...] O príncipe teve uma discussão... discussão [...] uma discussão com Mikhail Ivánov. Está de muito mau humor, muito ranzinza. Esteja prevenida, a senhora sabe...”.
188 Francês: “Ah, querida amiga [...] já lhe pedi que nunca me previna quanto ao humor do meu pai. Eu não me permito julgá-lo e não gosto que os outros o façam”.
189 Johann Ladislas Dussek (1760-1812), pianista e compositor tcheco, muito popular na Rússia do início do século XIX.
190 Francês: “Mas é um palácio [...] Vamos, rápido, rápido [...] É Mária que se exercita? Vamos sem fazer barulho, temos de fazer uma surpresa”.
191 Francês: “Ah, que alegria para a princesa [...] Enfim! Preciso avisá-la”.
192 Francês: “Não, não, por favor... A senhora é Mademoiselle Bourienne, eu já a conheço pela amizade que minha cunhada tem pela senhora [...] Ela não está nos esperando?”.
193 Francês: “Ah! Querida!... Ah! Mária!... [...] Sonhei nessa noite...” “A senhora então não estava nos esperando?... Ah, Mária, a senhora emagreceu...” “E a senhora recuperou o peso...”.
194 Francês: “Eu reconheci logo a senhora princesa”.
195 Francês: “E eu que nem tinha ideia! [...] Ah! Andrei, eu não vi você”.
196 Francês: “chorona”.
197 Francês: “de verdade”.
198 Francês: “Ele vai me abandonar aqui, e Deus sabe por quê, quando ele poderia ter uma promoção...”.
199 Mikhelson e A. P. Tolstói eram generais do Exército russo. Trata-se de um plano de ataque a Napoleão traçado por Wintzingerode, general austríaco a serviço dos russos. O ataque teria três frentes: pelo norte, através da Pomerânia, pela Europa Central e pela Itália central.
200 Francês: “Malbrough vai para a guerra, só Deus sabe quando vai voltar”. Verso da tradicional canção infantil francesa “Malbrough s’en va-t-en guerre” (c. 1709), que narra a falsa morte de John Churchill, o duque de Malbrough, um dos maiores inimigos da França no início do século XVIII, que ocorreu de fato em 1722.
201 Os antigos senhores de terras tinham às vezes, entre seus servos, músicos e pintores.
202 Considerado o fundador da primeira dinastia de tsares da Rússia, no ano de 862, em Nóvgorod.
203 Francês: “permitir-se tal ridículo”.
204 Francês: “A condessa Apráksina, a coitada, perdeu o marido e chorou muito”.
205 Potiómkin (1739-91) foi um general e político poderoso no tempo da tsarina Catarina II, a Grande, e seu amante.
206 O general Jean Victor Marie Moreau (1763-1813) comandava as tropas francesas que lutavam contra o Exército austro-russo na campanha da Itália, na qual Suvórov, sem o apoio dos austríacos, foi obrigado a se retirar pelos Alpes.
207 Frederico II, o Grande (1712-86), rei da Prússia.
208 Alemão: “Conselho de guerra, chouriço e aguardente”, expressão com que o príncipe zomba do Hofkriegsrath, o alto conselho de guerra austríaco.
209 Francês: “Mademoiselle Bourienne, aqui está mais um admirador do seu imperador patife”.
210 Francês: “O senhor sabe que não sou bonapartista, meu príncipe”.
211 Francês: “Como o seu pai é um homem inteligente [...] Talvez seja por isso que ele me dá medo”.
212 Francês: “Que tesouro de mulher você tem”.
213 Francês: “Tudo compreender é tudo perdoar”.
214 Francês: “de recursos”.
215 Francês: “na rua”.
216 Francês: “veneração”.
217 Pud: medida russa antiga, equivalente a 16,3 quilos.
218 Francês: “Obrigada, meu amigo”.
219 Francês: “Andrei, se você tivesse fé, teria pedido a Deus para lhe dar o amor que você não sente, e a sua prece seria atendida”.
220 Francês: “Ah! Pensei que o senhor estava no seu quarto”.
221 Francês: “Não, mas, imagine só, a velha condessa Zúbova, com cachos de cabelo postiço e a boca cheia de dentes postiços, como se quisesse desafiar a sua idade...”. O nome Zúbov deriva do substantivo zub, que significa “dente”.
222 Refere-se ao general Kutúzov.
223 Francês: “Andrei, já?”.
I
Em outubro de 1805, os exércitos russos ocupavam vilas e cidades do arquiducado da Áustria,1 mais regimentos continuavam a chegar da Rússia e aquartelavam-se junto à fortaleza de Braunau, trazendo grande transtorno para os habitantes, em cujas casas se instalavam. Em Braunau, ficava o quartel-general do comandante em chefe Kutúzov.
No dia 11 de outubro de 1805,2 um dos regimentos de infantaria que haviam acabado de chegar a Braunau, enquanto aguardava a revista de tropas pelo comandante em chefe, mantinha-se estacionado a meia milha3 da cidade. Apesar de o terreno e o ambiente nada terem de russo (pomares, cercas de pedra, telhados de telhas, montanhas que se viam ao longe), assim como a população, que observava os soldados com curiosidade, o regimento tinha exatamente o mesmo aspecto de qualquer regimento russo preparado para uma revista de tropas, em qualquer parte do centro da Rússia.
Na véspera, no último trecho de marcha, chegara a ordem de que o comandante em chefe passaria a tropa em revista, em marcha. Embora as palavras da ordem tenham parecido pouco claras para o comandante do regimento e surgisse a questão de como entender tais palavras — deviam vestir farda de campanha ou não? —, ficou resolvido, num conselho dos comandantes de batalhão, apresentar o regimento em farda de desfile, com base no princípio de que melhor do que apenas fazer uma reverência completa é curvar-se numa reverência exagerada. E os soldados, sem pregar o olho, depois de uma marcha de trinta verstas, passaram a noite inteira fazendo consertos e limpezas; os ajudantes de ordens e os comandantes de companhia contavam e recontavam os soldados; e pela manhã o regimento, em vez da multidão espalhada e sem ordem, como estava na véspera, no último trecho de marcha, tomou a forma de uma compacta massa de dois mil homens, e todos sabiam o seu lugar, a sua função, em todos eles cada botãozinho de cada pequena correia estava em seu devido lugar e brilhava de limpeza. Mas não só o exterior estava em ordem, pois se o comandante em chefe desejasse espiar por baixo do uniforme veria em todos eles uma camisa limpa e encontraria dentro de cada mochila o número correto de apetrechos, “sovelinha e sabãozinho”, como dizem os soldados. Só havia uma circunstância em relação à qual ninguém conseguia ficar tranquilo. Eram os calçados. Mais de metade das botas estavam arrebentadas. Porém tal carência não era culpa do comandante do regimento, pois, apesar das repetidas reclamações, os artigos não eram liberados pela intendência austríaca, e o regimento havia caminhado mil verstas.
O comandante do regimento era um general de certa idade, de temperamento exaltado, sobrancelhas e costeletas grisalhas, corpulento, mais largo do peito até as costas do que de um ombro a outro. Vestia um uniforme novo em folha, com vincos bem passados, grossas dragonas douradas, que pareciam não empurrar para baixo os seus ombros obesos e sim levantá-los. O comandante do regimento tinha o aspecto de um homem que cumpria com felicidade uma das tarefas mais solenes da vida. Caminhava ao longo das filas de soldados e, indo e voltando, estremecia a cada passo, com as costas ligeiramente curvadas. Era evidente que o comandante adorava o seu regimento, estava satisfeito com ele, e todas as suas energias espirituais eram dedicadas apenas ao regimento; porém, apesar disso, o seu andar trêmulo parecia dizer que, além dos interesses militares, os interesses da vida social e do sexo feminino não ocupavam um espaço pequeno em seu espírito.
— Pois é, meu caro Mikhailo Mítritch — voltou-se o general para um dos comandantes de batalhão (sorrindo, o comandante de batalhão avançou; era evidente que os dois estavam felizes) —, tivemos uma noite bastante atarefada. No entanto, ao que parece, o regimento não está nada mau... Não é?
O comandante de batalhão entendeu a alegre ironia e riu.
— Nem no Prado Tsarítsin4 seríamos recusados.
— O quê? — disse o comandante.
Nesse momento, pela estrada que vinha da cidade, na qual haviam postado sentinelas, surgiram dois cavaleiros. Eram um ajudante de ordens e um cossaco, que vinha logo atrás.
O ajudante de ordens fora enviado pelo Estado-Maior para confirmar ao comandante do regimento aquilo que não ficara claro na ordem recebida no dia anterior, ou seja, que o comandante em chefe queria ver o regimento exatamente nas mesmas condições em que fazia a marcha — de capote, mochila, sem preparativos de nenhuma espécie.
Na véspera, Kutúzov recebera um membro do Hofkriegsrath, que viera de Viena trazendo a sugestão e a exigência de unir o quanto antes a tropa russa com os exércitos do arquiduque Ferdinando e de Mack, mas Kutúzov, que não via com bons olhos aquela fusão, pretendia, entre outros argumentos em favor do seu ponto de vista, mostrar ao general austríaco o estado deplorável em que se achavam os exércitos da Rússia. Com tal fim, ele quis ir ao encontro do regimento, e quanto pior fosse o estado do regimento, mais contente ficaria o comandante em chefe. Embora o ajudante de ordens ignorasse tais pormenores, transmitiu ao comandante do regimento a exigência inapelável do comandante em chefe de que os homens estivessem de capote e mochila e que, caso contrário, o comandante em chefe ficaria descontente. Ao ouvir aquelas palavras, o comandante do regimento baixou a cabeça, levantou os ombros em silêncio e, num gesto enraivecido, abriu os braços.
— Que trapalhada! — exclamou. — Eu bem que disse, Mikhailo Mítritch, em marcha queria dizer de capote — voltou-se para o comandante de batalhão, em tom de reprimenda. — Ah, meu Deus! — acrescentou e avançou, decidido. — Senhores comandantes de companhia! — gritou, com uma voz habituada a comandar. — Sargentos!... Será que falta pouco para ele nos dar a honra de sua visita? — perguntou para o ajudante de ordens recém-chegado, com uma expressão de cortesia respeitosa obviamente dirigida à pessoa da qual estava falando.
— Daqui a uma hora, eu acho.
— Dá tempo de trocar de roupa?
— Não sei, general...
O comandante do regimento, aproximando-se pessoalmente das fileiras, deu ordens para os soldados voltarem a vestir os capotes. Os comandantes de companhia puseram-se a correr pelas companhias, os sargentos alvoroçavam-se (os capotes não estavam em bom estado) e no mesmo instante os quadrados de soldados,5 que até então se mantinham em silêncio e em ordem, agitaram-se, espalharam-se, em meio a um vozerio. De todos os lados, soldados vinham e voltavam correndo, lançavam os ombros para trás, passavam a mochila por cima da cabeça, retiravam o capote de dentro dela e, erguendo os braços bem alto, enfiavam-no pelas mangas.
Meia hora depois, todos estavam de novo na mesma ordem de antes, só que os quadrados tinham ficado cinzentos em vez de pretos. O comandante do regimento, outra vez com o passo trêmulo, surgiu à frente do regimento e observou-o à distância.
— Mas o que é aquilo, agora? O que é? — esbravejou, detendo-se. — Comandante da terceira companhia!...
— Comandante da terceira companhia, para o general! Comandante para o general, terceira companhia para o comandante!... — soaram vozes pelas fileiras, e o ajudante de ordens correu em busca do oficial retardatário.
Quando o som das vozes obedientes, que deturpavam as palavras e já gritavam “o general para a terceira companhia”, chegou ao seu destino, o oficial convocado apareceu por trás da companhia e, embora já fosse um homem de certa idade e não estivesse acostumado a correr, dirigiu-se ao general a trote, de mau jeito, tropeçando na ponta das botas. O rosto do capitão tinha a expressão apreensiva de um aluno a quem cobram uma lição que ele não estudou. No nariz vermelho (obviamente por causa da intemperança), surgiam manchas, e a boca não encontrava uma posição. O comandante do regimento observava o capitão dos pés à cabeça, enquanto ele se aproximava, arquejante, e refreava os passos à medida que chegava perto.
— Daqui a pouco o senhor vai ter gente em trajes de camponesa por aqui! O que é isso? — gritou o comandante do regimento, avançando o maxilar inferior e apontando para um soldado, nas fileiras da terceira companhia, com um capote em feltro colorido, que contrastava com os demais capotes. — E o senhor, por onde andou? Estamos à espera do comandante em chefe, e o senhor se afasta do seu posto? Ahn?... Vou ensinar o senhor a apresentar soldados em roupinhas de festa numa revista de tropas!... Ahn?...
O comandante da companhia, sem desviar os olhos do superior, apertava cada vez mais os dois dedos contra a pala do quepe, como se agora só naquela pressão ele visse alguma chance de salvar-se.
— Então, por que continua calado? Quem é esse daí que na companhia do senhor anda fantasiado de húngaro? — escarneceu, severo, o comandante do regimento.
— Vossa excelência...
— Mas que “vossa excelência” o quê! Vossa excelência! Vossa excelência! Mas o que é vossa excelência, isso ninguém sabe.
— Vossa excelência, aquele é o Dólokhov, o que foi rebaixado... — disse o capitão em voz baixa.
— E foi rebaixado a marechal de campo ou a soldado? Se é soldado, tem de estar vestido como todos os outros, em uniforme.
— Vossa excelência, o senhor mesmo o autorizou, durante a marcha.
— Autorizei? Autorizei? Aí está, vocês, jovens, são sempre assim — disse o comandante do regimento, esfriando um pouco. — Autorizei? A gente fala qualquer coisa para vocês e aí vocês logo... — O comandante do regimento calou-se um pouco. — A gente fala qualquer coisa para vocês e aí vocês logo... O que é? — exclamou, de novo irritado. — Tenha a bondade de vestir as pessoas da forma adequada...
E o comandante do regimento, voltando os olhos para o ajudante de ordens, andou na direção do regimento, com o seu passo trêmulo. Estava bem claro que a sua fúria lhe era agradável e que, ao caminhar diante do regimento, gostaria de achar mais um pretexto para a sua raiva. Depois de passar uma descompostura num oficial por causa de uma insígnia mal polida, e num outro por causa de uma fileira desalinhada, aproximou-se da terceira companhia.
— E isso é posição? Cadê a perna? Onde está a perna? — pôs-se a gritar o comandante do regimento, com um tom de sofrimento na voz, quando ainda faltavam cinco soldados para chegar a Dólokhov, vestido num capote azulado.
Dólokhov esticou lentamente a perna dobrada e, com seu olhar claro e insolente, encarou o general.
— Por que o capote azul? Tire logo... Sargento! Troque a roupa dele... Que canalh... — Não teve tempo de terminar.
— General, sou obrigado a cumprir as ordens, mas não sou obrigado a suportar... — disse depressa Dólokhov.
— Em forma, ninguém fala nada!... Ninguém fala, ninguém fala!...
— Não sou obrigado a suportar insultos — disse Dólokhov em voz alta e sonora.
Os olhos do general e do soldado se encontraram. O general calou-se, puxando para baixo, irritado, o cachecol apertado.
— Tenha a bondade de trocar de roupa, estou pedindo ao senhor — disse ele, e se afastou.
II
— Está chegando! — gritou uma sentinela, naquele momento.
O comandante do regimento ficou vermelho, correu para o seu cavalo, segurou o estribo com as mãos trêmulas, içou o corpo, desembainhou a espada e, com um rosto feliz e resoluto, a boca aberta meio de lado, preparou-se para gritar. O regimento agitou-se, como um pássaro que alisa suas penas, e se pôs imóvel.
— Se-e-e-e-en-tido! — gritou o comandante do regimento com uma voz que abalava o espírito, soando alegre para ele, severa para o regimento, e dando boas-vindas para o superior que se aproximava.
Pela estrada grande, larga, margeada de árvores, sem calçamento, vinha, a trote acelerado, com as molas guinchando de leve, um cabriolé vienense azul e alto, puxado por dois cavalos, um atrás do outro. Atrás da carruagem, vinham a galope a comitiva e uma escolta de croatas.6 Ao lado de Kutúzov, estava sentado o general austríaco, num uniforme branco, estranho no meio dos uniformes pretos dos russos. A carruagem parou diante do regimento. Kutúzov e o general austríaco falaram algo em voz baixa, e Kutúzov sorriu de leve no momento em que, ao descer pesadamente da carruagem, apoiou o pé sobre o estribo, dando a impressão de não estarem ali aqueles dois mil homens que, prendendo a respiração, olhavam para ele e para o comandante do regimento.
Um grito de comando ressoou, de novo o regimento se agitou em seus vários grupamentos e tomou a posição de apresentar armas. No silêncio de morte, ouviu-se a voz fraca do comandante em chefe. O regimento soltou um urro: “Saúde para vossa ex-ex-ex-ex-celência!”. E de novo todos se puseram em silêncio. A princípio, Kutúzov ficou parado, enquanto o regimento se movia à sua frente; depois, Kutúzov, ao lado do general de branco, a pé, acompanhado pela comitiva, passou a caminhar pelas fileiras.
Pelo modo como o comandante do regimento saudava o comandante em chefe, devorando-o com os olhos, tomando a posição de sentido e aprumando o corpo, pelo modo como andava atrás dos generais, entre as fileiras, inclinado para a frente, mal conseguindo conter os seus tremores, e pelo modo como saltitava a cada palavra e gesto do comandante em chefe — via-se que ele cumpria os seus deveres de subordinado com ainda mais prazer do que cumpria os seus deveres de superior. O regimento, graças à severidade e ao esforço do comandante do regimento, estava em condições excelentes, em comparação com outros que haviam chegado a Braunau na mesma ocasião. Os doentes e os retardatários somavam apenas duzentos e dezessete soldados. E tudo estava em perfeitas condições, menos os calçados.
Kutúzov passava pelas fileiras, de vez em quando se detinha e dizia algumas palavras para os oficiais que ele conhecia da guerra turca, e às vezes para os soldados. Várias vezes, ao olhar para as botas, balançou a cabeça com desalento e as mostrava para o general austríaco, com expressão não de quem censurava alguém por causa daquilo, mas de quem não podia deixar de notar como a situação deles era ruim. O comandante do regimento adiantava-se correndo, toda vez que isso acontecia, com receio de perder as palavras do comandante em chefe relativas ao regimento. Atrás de Kutúzov, a uma distância de onde era possível ouvir mesmo as palavras pronunciadas em tom mais baixo, vinha a comitiva de vinte homens. Os senhores da comitiva conversavam entre si e às vezes riam. Mais próximo do comandante em chefe, vinha um bonito ajudante de ordens. Era o príncipe Bolkónski. A seu lado, vinha o seu camarada Nesvítski, um oficial do Estado-Maior de alta estatura, tremendamente gordo, com um rosto bondoso, sorridente e bonito, de olhos úmidos; Nesvítski mal conseguia conter o riso, provocado por um oficial hussardo muito moreno que caminhava a seu lado. O oficial hussardo, sem sorrir, sem alterar a expressão dos olhos parados, mirava com o rosto sério as costas do comandante do regimento e arremedava todos os seus movimentos. Toda vez que o comandante do regimento se sobressaltava e se inclinava para a frente, da mesma forma, exatamente igual a ele, o oficial hussardo se sobressaltava e se inclinava para a frente. Nesvítski ria e cutucava os outros, para que olhassem o gozador.
Kutúzov andava devagar e com moleza diante dos milhares de olhos que, saltando das órbitas, seguiam o superior. Ao chegar à terceira companhia, de repente ele parou. A comitiva, que não esperava aquela parada, não pôde deixar de continuar avançando até ele.
— Ah, Timókhin! — disse o comandante em chefe, reconhecendo o capitão de nariz vermelho que pouco antes passara maus bocados por causa do capote azul.
Parecia impossível ficar mais ereto do que Timókhin tinha ficado na hora em que o comandante do regimento o repreendeu. Mas no instante em que o comandante em chefe se dirigiu a ele, o capitão se esticou tanto que pareceu que não iria aguentar, se o comandante em chefe continuasse a olhar para ele durante mais tempo; e por isso Kutúzov, obviamente entendendo a sua situação e desejando, ao contrário, apenas o bem do capitão, deu-lhe as costas rapidamente. Um sorriso quase imperceptível percorreu o rosto de Kutúzov, rechonchudo, deformado por um ferimento.
— Mais um companheiro de Ismail 7 — disse ele. — Um bravo oficial! Está satisfeito com ele? — perguntou ao comandante do regimento.
E o comandante do regimento, como que refletido num espelho pelo oficial hussardo, mas sem se dar conta disso, sobressaltou-se, adiantou-se e respondeu:
— Muito satisfeito, vossa excelência.
— Todos temos as nossas fraquezas — disse Kutúzov, sorrindo, enquanto se afastava. — Ele era apegado aos prazeres de Baco.
O comandante do regimento assustou-se, com medo de ter alguma culpa naquilo, e nada respondeu. Nesse instante, o oficial hussardo notou a figura do capitão, com o nariz vermelho e a barriga encolhida, e arremedou o seu rosto e a sua postura com tamanha exatidão que Nesvítski não conseguiu conter o riso.
Kutúzov voltou-se. Era evidente que o oficial conseguia dar ao rosto o aspecto que bem entendesse: no instante em que Kutúzov se voltou, o oficial foi capaz de fazer uma careta e logo em seguida assumir a fisionomia mais séria, respeitosa e inocente do mundo.
A terceira companhia era a última, e Kutúzov estava pensativo, parecia que tentava recordar alguma coisa. O príncipe Andrei destacou-se da comitiva e falou em voz baixa, e em francês:
— O senhor ordenou que eu o lembrasse de Dólokhov, que foi rebaixado para este regimento.
— Onde está o Dólokhov? — perguntou Kutúzov.
Dólokhov, já com o capote cinzento dos soldados, não esperou que viessem chamá-lo. A figura esbelta do soldado louro, de olhos azul-claros, destacou-se das fileiras. Aproximou-se do comandante em chefe e tomou a posição de apresentar armas.
— Alguma queixa? — perguntou Kutúzov, com as sobrancelhas ligeiramente franzidas.
— Este é Dólokhov — disse o príncipe Andrei.
— Ah! — disse Kutúzov. — Espero que essa lição ensine a você a ser um bom soldado. O soberano é misericordioso. E eu não vou esquecer de você, caso se mostre digno disso.
Os olhos azul-claros fitavam o comandante em chefe de modo tão insolente como antes haviam fitado o comandante do regimento, e com a sua expressão pareciam rasgar a cortina de convenções que mantinha o comandante em chefe tão separado e distante de um soldado.
— Quero pedir só uma coisa, vossa excelência — disse ele, com a sua voz sonora, firme, sem pressa. — Peço que me deem a chance de expiar minha culpa e demonstrar a minha lealdade ao soberano imperador da Rússia.
Kutúzov lhe deu as costas. No seu rosto, perpassou o mesmo sorriso dos olhos, de quando deu as costas para o capitão Timókhin. Deu as costas e franziu o rosto, como se quisesse assim exprimir que tudo o que Dólokhov lhe disse, e tudo o que podia lhe dizer, ele já sabia desde muito, muito tempo, que ele já estava farto de tudo aquilo e que tudo aquilo era completamente inútil. Kutúzov lhe deu as costas e caminhou rumo à carruagem.
O regimento formou-se dividido por companhias e dirigiu-se para os alojamentos designados, nas imediações de Braunau, onde os soldados contavam receber botas, roupas e repousar, depois das marchas penosas.
— O senhor tem alguma queixa de mim, Prokhór Ignátitch? — perguntou o comandante do regimento, ultrapassando a terceira companhia, que se encaminhava para o seu posto, e aproximando-se do capitão Timókhin, que caminhava à frente dela. O rosto do comandante do regimento exprimia uma alegria incontida, uma vez que a revista de tropas terminara com sucesso. — A serviço do tsar... não se pode... às vezes, no front, a gente perde a cabeça... Eu mesmo sou o primeiro a me desculpar, o senhor me conhece... Estou muito agradecido! — E estendeu a mão ao comandante da companhia.
— Perdoe, general, se permite que eu me atreva! — respondeu o capitão, de nariz vermelho, sorrindo e deixando à mostra, com o sorriso, a falta de dois dentes frontais, perdidos por causa de uma coronhada, nos combates em Ismail.
— E transmita ao sr. Dólokhov que não vou esquecê-lo, que ele pode ficar tranquilo. E me diga, por favor, o tempo todo eu queria perguntar, como ele tem se portado? Em tudo...
— Quanto ao serviço, é muito correto, vossa excelência... mas o caráter... — disse Timókhin.
— O quê, o que tem o caráter? — perguntou o comandante do regimento.
— Depende do dia, vossa excelência — respondeu o capitão. — Tem dias em que é sensato, educado e bom. E outras vezes vira um bicho. Na Polônia, quase matou um judeu, se me permite informar...
— Sei, sei — disse o comandante do regimento. — Afinal, é preciso ter piedade de um jovem em seu infortúnio. De resto, ele tem boas relações... Portanto o senhor...
— Claro, perfeitamente, vossa excelência — respondeu Timókhin, dando a entender, com um sorriso, que compreendia o desejo do superior.
— Muito bem, muito bem.
O comandante do regimento afastou-se, foi ao encontro de Dólokhov no meio das fileiras e freou o cavalo.
— Na primeira ação, ganhará as dragonas — disse para ele.
Dólokhov lançou-lhe um olhar, nada disse e não alterou a expressão sorridente e zombeteira da boca.
— Pronto, agora está tudo bem — prosseguiu o comandante do regimento. — Um cálice de vodca para todos, por minha conta — acrescentou, para que os soldados ouvissem. — Agradeço a todos! Deus seja louvado! — E, após ultrapassar a terceira companhia, avançou para a companhia seguinte.
— Apesar de tudo, é um bom homem, correto; dá para servir sob o seu comando — disse Timókhin para um oficial subalterno que caminhava ao lado dele.
— Numa palavra, o rei de copas!... (chamavam o comandante do regimento de rei de copas) — disse rindo o oficial subalterno.
A ótima disposição de espírito dos superiores, depois da revista de tropas, contagiou também os soldados. A companhia caminhava alegre. De todos os lados, as vozes dos soldados trocavam opiniões.
— Então andaram dizendo que Kutúzov era caolho, só tinha um olho?
— E vai dizer que não é? É caolho mesmo.
— Não... irmão, enxerga melhor do que você. As botas, as perneiras... ele viu tudo...
— Quando ele olhou para os meus pés, meu irmão... Puxa! Fiquei só pensando...
— E o outro, o austríaco, que estava com ele, parecia todo lambuzado de giz. Branco feito farinha. Aposto que eles se limpam que nem limpam as armas.
— Escute aqui, Fiédechou!... Ele não falou quando a briga vai começar? Você estava mais perto. Todo mundo andou dizendo que o próprio Bonaparte está em Brunov.
— O Bonaparte! Que bobagem, sua besta! Não sabe nada! Agora os prussianos estão se rebelando. E os tais dos austríacos estão apertando eles. Quando os prussianos pedirem arrego, vai começar a guerra contra Bonaparte. E agora você vem me dizer que Bonaparte está em Brunov! Só uma besta feito você. Preste mais atenção.
— Que diabo de gente são esses oficiais que têm de arranjar alojamento para nós! A quinta companhia, veja só, já se instalou na aldeia, eles já vão ter cozinhado o mingau antes que a gente arranje um lugar.
— Ô, diabo, tem aí um biscoito?
— E você, me deu tabaco ontem? Está vendo, irmão? Bom, tome, Deus te ajude.
— Se não mandarem fazer uma parada aqui, vamos ter de andar mais cinco verstas sem comer nadinha.
— Puxa, foi muito bom quando os alemães mandaram aquelas carroças para levar a gente. Ali sentado, na carroça: feito um rei!8
— Por aqui, irmão, só tem um povo desembestado. Lá, pelo menos todo mundo parecia polonês, todo mundo sob a coroa russa, mas agora, irmão, são todos uns alemães, sem tirar nem pôr.
— Cantores, para a frente! — ouviu-se o grito do capitão.
E uns vinte homens, de diversas fileiras, correram para a frente da companhia. O tamboreiro e líder do coro virou o rosto para os cantores e, acenando com a mão, deu início à arrastada canção dos soldados, que começava assim:
Não é a aurora, o solzinho que se levanta?...
E terminava com as palavras:
Então, irmãos, a glória será nossa, com o pai Kamiénski...
Essa canção tinha sido composta na Turquia e agora a cantavam na Áustria, só que com uma alteração, em lugar de “com o pai Kamiénski”, diziam as palavras “com o pai Kutúzov”.9
Após esbravejar essas últimas palavras como fazem os soldados e brandir a mão como se jogasse alguma coisa no chão, o tamboreiro, um soldado magro e bonito, de uns quarenta anos, lançou um olhar severo para os soldados cantores e franziu as sobrancelhas. Depois, convencido de que todos os olhos estavam voltados para ele, levantou as mãos com cuidado, como se erguesse algo invísivel e precioso acima da cabeça, sustentou-o ali durante alguns segundos e, de repente, lançou aquilo ao chão, com força:
Ah, minha casinha, minha casinha!
“Minha casinha nova...”, entoaram vinte vozes, e o homem que tocava percussão com colheres de pau, apesar do peso do equipamento que levava, correu de um salto para a frente da companhia e começou a andar de costas, virado para os soldados, remexendo os ombros e parecendo ameaçar alguém com as colheres. Os soldados, sacudindo as mãos, marcavam o compasso da canção, andavam a passadas largas, acertando o passo espontaneamente. Por trás da companhia, ouviu-se o barulho de rodas, os estalos de molas e o tropel de cavalos. Kutúzov voltava para a cidade com a sua comitiva. O comandante em chefe deu um sinal para que os soldados continuassem a marcha à vontade, e no seu rosto, como no rosto de todos da sua comitiva, exprimia-se o prazer com os sons da canção, com o aspecto do soldado dançarino e dos soldados da companhia, que marchavam alegres e animados. Na segunda fileira, no flanco direito, junto ao qual a carruagem ultrapassava a companhia, um soldado de olhos azuis chamava involuntariamente a atenção. Era Dólokhov, que caminhava de forma especialmente animada e elegante, no ritmo da canção, e olhava para o rosto dos que passavam na carruagem com uma expressão que parecia dizer que tinha muita pena de todos que, naquele momento, não marchavam junto com a companhia. O alferes hussardo da comitiva de Kutúzov, que havia imitado o comandante do regimento, reteve o passo do seu cavalo, deixou a carruagem passar e aproximou-se de Dólokhov.
O alferes hussardo Jerkóv, em certa ocasião, em Petersburgo, pertencera ao grupo de valentões liderado por Dólokhov. No exterior, Jerkóv encontrara Dólokhov rebaixado ao posto de soldado e não achou útil mostrar que o reconhecia. Agora, depois da conversa de Kutúzov com o oficial rebaixado, Jerkóv dirigiu-se a ele com a alegria de um velho amigo:
— Ei, amigo do peito, como vai? — disse, em meio aos sons da canção, e acertou a marcha do cavalo com o passo da companhia.
— Como vou? — respondeu Dólokhov friamente. — Vou como você está vendo.
A música animada dava um significado especial ao tom de alegria veemente em que falava Jerkóv e ao tom de frieza intencional das respostas de Dólokhov.
— E então, como está se dando com os superiores? — perguntou Jerkóv.
— Tudo bem, são boa gente. E você, como é que se enfiou no Estado-Maior?
— Fui nomeado. Sou efetivo.
Ficaram um pouco em silêncio.
O falcão está solto, voou da manga direita
dizia a canção, que despertava um sentimento espontâneo de alegria e ânimo. A conversa deles, sem dúvida, seria diferente se não falassem ao som da música.
— É verdade que os austríacos foram derrotados? — perguntou Dólokhov.
— Só o diabo pode saber. Andam falando.
— Que bom — respondeu Dólokhov, de forma clara e concisa, como a canção exigia.
— E então, venha nos ver uma noite dessas, para jogar o faraó — disse Jerkóv.
— Quer dizer que está cheio de dinheiro?
— Venha.
— Não posso. Fiz um juramento. Não bebo e não jogo, enquanto não me promoverem.
— Ora, logo depois do primeiro combate...
— Vamos ver.
De novo, ficaram um pouco em silêncio.
— Se precisar de alguma coisa, todos no Estado-Maior vão ajudar... — disse Jerkóv.
Dólokhov deu uma risada.
— É melhor você não se preocupar. O que eu preciso, não vou pedir, eu mesmo consigo.
— Bem, é claro, eu só...
— Está certo, eu também.
— Até logo.
— Passe bem...
... e alto e para longe,
Na direção da nossa terra...
Jerkóv cravou as esporas no cavalo, que, por três vezes, irrequieto, confundiu as pernas, sem saber com qual delas começar, mas recobrou-se e disparou a galope, ultrapassando a companhia, até alcançar a carruagem, também no ritmo da canção.
III
De volta da revista das tropas, Kutúzov, acompanhado pelo general austríaco, entrou no seu gabinete, gritou chamando o ajudante de ordens, mandou que trouxesse os documentos referentes às condições das tropas que chegavam, bem como as cartas enviadas pelo arquiduque Ferdinando, comandante do Exército na linha de frente. O príncipe Andrei Bolkónski entrou no gabinete do comandante em chefe com os documentos solicitados. Kutúzov e o membro do Hofkriegsrath estavam sentados diante de um mapa aberto sobre a mesa.
— Ah... — disse Kutúzov, voltando-se para Bolkónski, como se com aquela palavra convidasse o ajudante de ordens a esperar um pouco, e prosseguiu a conversa em francês, já em andamento.
— Só digo uma coisa, general — falou Kutúzov com uma simpática elegância de fisionomia e de entonação que obrigava o interlocutor a escutar todas as suas palavras, pronunciadas sem pressa. Era visível que o próprio Kutúzov ouvia a si mesmo com prazer. — Só digo uma coisa, general: se dependesse do meu desejo pessoal, a vontade de sua alteza o imperador Francisco teria sido cumprida há muito tempo. Há muito tempo eu teria me unido ao arquiduque. E creia, pela minha honra, que para mim, pessoalmente, transferir o comando do Exército para um general mais competente e hábil do que eu, como existem em abundância na Áustria, e desvencilhar-me dessa responsabilidade tão árdua seria, para mim, pessoalmente, um prazer. Mas as circunstâncias são mais fortes do que nós, general.
E Kutúzov sorriu com uma expressão que parecia dizer: “O senhor tem todo o direito de não acreditar em mim, e de resto, para mim, tanto faz que o senhor acredite ou não, mas o senhor não tem motivo para me dizer isso. E a questão é só essa”.
O general austríaco tinha um aspecto insatisfeito, mas não podia responder a Kutúzov no mesmo tom.
— Ao contrário — disse ele, num tom irritado e rabugento, em clara contradição com o sentido lisonjeiro das palavras que pronunciava —, ao contrário, a participação de vossa excelência na missão comum é muito apreciada por sua alteza; mas nós estamos sugerindo que o presente atraso priva o glorioso Exército russo e o seu comandante em chefe dos louros que estão habituados a colher nas batalhas — concluiu a frase, visivelmente preparada de antemão.
Kutúzov fez uma reverência, sem alterar o sorriso.
— Mas estou convencido disso e, com base na última carta que sua alteza o arquiduque Ferdinando deu-me a honra de me enviar, acredito que as tropas austríacas, sob o comando de um colaborador tão hábil como o general Mack, agora já devem ter alcançado uma vitória decisiva e não precisam mais da nossa ajuda — disse Kutúzov.
O general franziu o rosto. Embora não houvesse notícias seguras da derrota austríaca, havia circunstâncias de sobra que confirmavam os generalizados rumores desfavoráveis; e por isso a suposição de Kutúzov de uma vitória austríaca se parecia muito com uma zombaria. Mas Kutúzov sorria de maneira dócil e sempre com a mesma expressão, que dizia que ele tinha o direito de pensar assim. De fato, a última carta que recebera do exército de Mack comunicava uma vitória e dava conta da excelente posição estratégica do exército.
— Dê-me aquela carta — disse Kutúzov, dirigindo-se para o príncipe Andrei. — Aqui está, tenha a bondade de ouvir. — E Kutúzov, com um sorriso de zombaria no canto dos lábios, leu em alemão para o general austríaco o seguinte trecho da carta do arquiduque Ferdinando:10
Wir haben vollkommen zusammengehaltene Kräfte, nahe an 70 000 Mann, um den Feind, wenn er den Lech passierte, angreifen und schlagen zu können. Wir können, da wir Meister von Ulm sind, den Vorteil, auch von beiden Ufern der Donau Meister zu bleiben, nicht verlieren; mithin auch jeden Augenblick, wenn der Feind den Lech nicht passierte, die Donau übersetzen, uns auf seine Kommunikations-Linie werfen, die Donau unterhalb repassieren und dem Feinde, wenn er sich gegen unsere treue Alliierte mit ganzer Macht wenden wollte, seine Absicht alsbald vereiteln. Wir werden auf solche Weise den Zeitpunkt, wo die Kaiserlich-Russische Armee ausgerüstet sein wird, mutig entgegenharren, und sodann leicht gemeinschaftlich die Möglichkeit finden, dem Feind das Schicksal zuzubereiten, so er verdient.11
Kutúzov deu um suspiro pesado, ao término dessa frase, e fitou com atenção e carinho o membro do Hofkriegsrath.
— Mas, vossa excelência, o senhor conhece a regra de sabedoria que recomenda prever o pior — disse o general austríaco, obviamente desejoso de pôr um fim aos gracejos e entrar logo no que interessava.
Ele não pôde deixar de virar-se e olhar para o ajudante de ordens.
— Queira perdoar, general — interrompeu-o Kutúzov e também se voltou para o príncipe Andrei. — Escute, meu caro, vá pedir ao Kozlóvski todos os relatórios dos nossos espiões. Aqui estão duas cartas do conde Nostitz, uma carta de sua alteza o arquiduque Ferdinando, e também isto aqui — disse ele e lhe entregou vários papéis. — De tudo isso, elabore um memorandum, bem claro, em francês, só uma notinha, em que se possam ver todas as notícias que recebemos sobre as ações do Exército austríaco. Pois bem, é isso, e depois entregue para sua excelência.
O príncipe Andrei curvou a cabeça em sinal de que havia entendido, desde as primeiras palavras, não só o que fora dito, mas também aquilo que Kutúzov queria lhe dizer. Juntou os papéis e, após despedir-se com uma reverência para ambos, seguiu para a sala de espera, pisando no tapete sem fazer barulho.
Apesar de não ter passado muito tempo desde que o príncipe Andrei havia deixado a Rússia, ele mudara muito. Na expressão do seu rosto, nos movimentos, no modo de andar, quase não se notavam mais a afetação, o cansaço e a preguiça de antes; mostrava o aspecto de um homem que não tinha tempo para pensar nas impressões que produzia nos outros, ocupado com assuntos agradáveis e interessantes. Seu rosto exprimia uma grande satisfação consigo mesmo e com as pessoas à sua volta, o sorriso e o olhar eram mais alegres e mais atraentes.
Kutúzov, a quem ele alcançara ainda na Polônia, recebeu-o com muita simpatia, prometeu não se esquecer dele, destacou-o entre os demais ajudantes de ordens, trouxe-o para Viena e lhe dava as incumbências mais graves. De Viena, Kutúzov escreveu para o seu velho companheiro, o pai do príncipe Andrei:
“O filho do senhor”, escreveu ele, “dá sinais de que será um oficial fora do comum, pela diligência, firmeza e pontualidade. Considero-me um felizardo por ter ao meu dispor um tal subordinado.”
No Estado-Maior de Kutúzov, entre os camaradas oficiais e no Exército de maneira geral, o príncipe Andrei, tal como acontecia na sociedade de Petersburgo, tinha duas reputações totalmente contraditórias. Uns, a minoria, reconheciam que o príncipe Andrei era diferente deles e de todos os demais, esperavam grandes façanhas da sua parte, ouviam-no com atenção, o admiravam, o imitavam; e com essas pessoas o príncipe Andrei mostrava-se simples e simpático. Os outros, a maioria, não gostavam do príncipe Andrei, consideravam-no presunçoso, frio e antipático. Mas com esses o príncipe Andrei sabia portar-se de tal modo que eles o respeitavam e até o temiam.
Ao sair para a sala de espera do gabinete de Kutúzov, o príncipe Andrei, com os papéis, aproximou-se de um companheiro, o ajudante de ordens de serviço, Kozlóvski, que estava sentado junto à janela, com um livro.
— E então, o que há, príncipe? — perguntou Kozlóvski.
— Uma ordem para redigir uma nota, sobre por que não avançamos.
— E por quê?
O príncipe Andrei encolheu os ombros.
— Não chegou nenhuma notícia de Mack? — perguntou Kozlóvski.
— Não.
— Se fosse verdade que ele foi derrotado, já teria chegado alguma notícia.
— É provável — disse o príncipe Andrei e seguiu para a porta de saída; mas no mesmo instante, na sua direção, e abrindo a porta com força, entrou na sala de espera um general austríaco, alto, obviamente recém-chegado, de sobretudo, com um lenço preto amarrado em volta da cabeça e com a medalha de Maria Teresa pendurada no pescoço. O príncipe Andrei se deteve.
— O general em chefe Kutúzov? — exclamou às pressas o general recém-chegado, com um forte sotaque alemão, olhando para os dois lados e, sem parar, seguindo rumo à porta do gabinete.
— O general em chefe está ocupado — Kozlóvski disse e foi ligeiro na direção do general desconhecido, barrando o caminho dele até a porta. — Como devo anunciar o senhor?
O general desconhecido virou-se e olhou de cima, com desprezo, para a baixa estatura de Kozlóvski, como que admirado de que ele pudesse não saber.
— O general em chefe está ocupado — repetiu Kozlóvski, em tom calmo.
O rosto do general se franziu numa careta, seus lábios se repuxaram e começaram a tremer. Pegou um caderninho de notas, rabiscou algo às pressas com um lápis, arrancou a folha, entregou-a, aproximou-se da janela a passos rápidos, largou o corpo sobre uma cadeira e fitou as pessoas presentes naquele cômodo, como se perguntasse: Por que eles estão olhando para mim? Depois, o general levantou a cabeça, esticou o pescoço, como se tivesse intenção de falar algo, mas logo em seguida, como que com negligência, começando a cantarolar para si mesmo, emitiu um som estranho, que logo se interrompeu. A porta do gabinete se abriu, e no limiar surgiu Kutúzov. O general com a cabeça amarrada curvou-se, como se quisesse esquivar-se de um perigo, e a passos grandes e rápidos de suas pernas magras, aproximou-se de Kutúzov.
— Vous voyez le malheureux Mack 12 — pronunciou, com voz vacilante.
O rosto de Kutúzov, parado na porta do gabinete, permaneceu absolutamente imóvel durante alguns instantes. Depois, como uma onda, uma ruga percorreu o seu rosto, a testa ficou lisa; ele inclinou a cabeça respeitosamente, fechou os olhos, não falou nada, abriu caminho para Mack passar e fechou ele mesmo a porta, depois de entrar.
Os rumores, que já haviam se espalhado, a respeito da derrota dos austríacos e da rendição do Exército inteiro, em Ulm, provaram ser verdade. Meia hora depois, ajudantes de ordens foram enviados em várias direções, com avisos de que em breve o Exército russo, até então inativo, também iria defrontar-se com o inimigo.
O príncipe Andrei era um dos raros oficiais no Estado-Maior que tinham o máximo interesse em estar a par do andamento geral das operações de guerra. Ao ver Mack e ter notícia dos detalhes da sua desgraça, entendeu que metade da campanha estava perdida, entendeu toda a verdade da situação do Exército russo e teve uma imagem muito nítida daquilo que aguardava o Exército e do papel que cabia a ele desempenhar. Sem querer, experimentou um sentimento empolgante e alegre, com a ideia da humilhação da presunçosa Áustria, e com a ideia de que dali a uma semana talvez ele tivesse de presenciar e tomar parte nos confrontos entre russos e franceses, os primeiros desde Suvórov. Mas ele temia o gênio de Bonaparte, que podia revelar-se mais forte do que toda a coragem do Exército russo, e ao mesmo tempo não podia admitir a desonra do seu herói.
Perturbado e irritado por esses pensamentos, o príncipe Andrei foi para o seu quarto a fim de escrever para o pai, a quem escrevia diariamente. No corredor, cruzou com o seu companheiro de quarto, Nesvítski, e com o brincalhão Jerkóv; como sempre, estavam rindo de alguma coisa.
— Por que está assim tão sombrio? — perguntou Nesvítski, ao notar o rosto pálido, de olhos brilhantes, do príncipe Andrei.
— Não há por que estar alegre — respondeu Bolkónski.
No momento em que o príncipe Andrei se encontrou com Nesvítski e Jerkóv, da outra ponta do corredor vieram em sua direção Strauch, um general austríaco do Estado-Maior de Kutúzov, encarregado do fornecimento de alimentos para o Exército russo, e também o membro do Hofkriegsrath que havia chegado no dia anterior. No corredor largo, havia espaço de sobra para os generais passarem pelos três oficiais; mas Jerkóv, cutucando Nesvítski com o braço, falou com voz ofegante:
— Estão vindo!... Estão vindo!... Abra caminho! Por favor, abra caminho!
Os generais passaram com o evidente desejo de evitar deferências incômodas. No rosto do brincalhão Jerkóv surgiu, de repente, um estúpido sorriso de alegria que ele parecia não conseguir conter.
— Vossa excelência — disse ele, em alemão, avançando e dirigindo-se ao general austríaco. — Tenho a honra de lhe dar os parabéns.
Inclinou a cabeça e, meio desajeitado, como uma criança que aprende a dançar, começou a fazer rapapés ora para um, ora para o outro.
O general membro do Hofkriegsrath virou-se para ele, com ar severo; ao notar a seriedade em seu sorriso idiota, não pôde recusar um minuto de atenção. Semicerrou os olhos, dando a entender que ia ouvi-lo.
— Tenho a honra de parabenizá-los. O general Mack chegou, em perfeita saúde, só se machucou um pouquinho, aqui — acrescentou, com um sorriso radiante, apontando para a cabeça.
O general fez uma carranca, deu-lhe as costas e seguiu adiante.
— Gott, wie naïv! 13 — disse, zangado, após afastar-se alguns passos.
Nesvítski, com uma gargalhada, abraçou o príncipe Andrei, mas Bolkónski, ainda mais pálido que antes, com uma expressão raivosa no rosto, empurrou-o e virou-se para Jerkóv. A excitação nervosa causada pela visão de Mack, pela notícia da derrota dele e pelos pensamentos sobre o que aguardava o Exército russo deu vazão a uma explosão de raiva com a brincadeira inconveniente de Jerkóv.
— Se o senhor, prezado cavalheiro — começou a falar, em tom estridente, com um ligeiro tremor no maxilar inferior —, quer bancar o palhaço, eu não posso me opor; mas aviso que, caso o senhor se atreva outra vez a fazer o papel de bufão na minha presença, terei de ensiná-lo a se comportar.
Nesvítski e Jerkóv ficaram tão surpresos com aquele rompante que fitaram Bolkónski em silêncio, de olhos arregalados.
— Puxa, eu só dei os parabéns — disse Jerkóv.
— Não estou brincando com o senhor, trate de ficar calado! — gritou Bolkónski e, tomando Nesvítski pelo braço, afastou-se de Jerkóv, que não achou o que responder.
— Puxa, o que deu em você, irmão? — disse Nesvítski, em tom calmo.
— Como assim? — exclamou o príncipe Andrei, detendo-se, em sua agitação. — Entenda bem que nós ou somos oficiais que, a serviço do tsar e da pátria, nos alegramos com o êxito comum e nos entristecemos com o fracasso comum, ou somos lacaios que nada têm a ver com os assuntos dos seus senhores. Quarante mille hommes massacrés et l’armée de nos alliés détruite, et vous trouvez là le mot pour rire — disse, como se com essa frase em francês reforçasse a sua opinião. — C’est bien pour un garçon de rien, comme cet individu, dont vous avez fait un ami, mais pas pour vous, pas pour vous.14 Só meninos podem se divertir assim — disse o príncipe Andrei, em russo, pronunciando essa palavra com sotaque francês, ao notar que Jerkóv ainda poderia ouvi-lo.
Esperou um pouco para ver o que o alferes respondia. Mas o alferes lhe deu as costas e seguiu pelo corredor.
IV
O regimento dos hussardos de Pávlograd se achava estacionado a duas milhas15 de Braunau. O esquadrão em que servia o junker Nikolai Rostóv se instalara na aldeia alemã de Salzeneck. O comandante do esquadrão, o capitão de cavalaria Deníssov, conhecido em todas as divisões da cavalaria pelo nome de Vaska Deníssov, foi alojado na melhor habitação da aldeia. O junker Rostóv, desde quando chegara ao regimento, na Polônia, residia na mesma casa que o comandante do esquadrão.
Em 11 de outubro, no mesmo dia em que no quartel-general todos estavam em polvorosa com a notícia da derrota de Mack, no Estado-Maior do esquadrão a vida de campanha continuava a correr tranquila como antes. Deníssov, que tinha passado a noite inteira jogando cartas, ainda não havia chegado em casa quando Rostóv, de manhã bem cedo, voltou a cavalo depois de cuidar do aprovisionamento da forragem. Em seu uniforme de junker, Rostóv aproximou-se dos degraus da entrada, freou o cavalo, passou a perna por cima da sela, com os movimentos maleáveis de um jovem, ficou de pé sobre o estribo por um instante, como se não quisesse separar-se do cavalo, por fim saltou para o chão e gritou para o ordenança.
— Ei, Bondarenko, meu amigo — exclamou para um hussardo, que correu afobado na direção do cavalo. — Leve-o para passear, amiguinho — disse com aquele carinho fraterno, alegre, com que falam todos os jovens bons, quando estão felizes.
— Às suas ordens, vossa excelência — respondeu o ucraniano, sacudindo a cabeça com alegria.
— Olha lá, hein, passeie direito!
Um outro hussardo também correu na direção do cavalo, mas Bondarenko já havia jogado as rédeas por cima do bridão. Estava claro que o junker lhe dava boas gorjetas para a vodca e que servi-lo era vantajoso. Rostóv afagou o pescoço do cavalo, depois a garupa, e ficou parado junto aos degraus da entrada da casa.
“Excelente! Que cavalo vai se tornar!”, pensou e, sorrindo e segurando o sabre, subiu correndo os degraus do alpendre, tilintando as esporas. O anfitrião alemão, de jaqueta acolchoada e barrete na cabeça, empunhando um forcado que usava para recolher o estrume, espiou lá do estábulo. O rosto do alemão se iluminou de repente, assim que reconheceu Rostóv. Sorriu com alegria e piscou os olhos:
— Schön gut’ Morgen, schön gut’ Morgen!16 — repetiu, obviamente satisfeito com a chegada do jovem.
— Schön fleissig! — respondeu Rostóv, com a alegria e o sorriso fraterno que nunca deixava o seu rosto animado. — Hoch Österreicher! Hoch Russen! Kaiser Alexander hoch! 17 — disse para o alemão, repetindo as palavras ditas com frequência pelo anfitrião alemão.
O alemão sorriu, saiu pela porta do estábulo, tirou o barrete e, sacudindo-o acima da cabeça, gritou:
— Und die ganze Welt hoch! 18
Rostóv, a exemplo do alemão, sacudiu o quepe acima da cabeça e, rindo, gritou:
— Und Vivat die ganze Welt! 19
Embora não houvesse nenhum motivo para tanta alegria, nem para o alemão, que limpava o seu estábulo, nem para Rostóv, que tinha ido com o pelotão buscar feno, os dois se olharam com uma comoção feliz e um amor fraternal, sacudiram a cabeça em sinal de afeição mútua e separaram-se sorrindo — o alemão entrou no estábulo e Rostóv entrou na isbá, onde estava alojado junto com Deníssov.
— Onde está o patrão? — perguntou para Lavruchka, o lacaio de Deníssov, conhecido no regimento inteiro como um velhaco.
— Não aparece desde ontem. Na certa, perdeu tudo no jogo — respondeu Lavruchka. — Eu já sei que, quando ganha, volta para casa cedo, para se gabar, mas se não aparece até de manhã, quer dizer que perdeu, vai chegar zangado. Quer que mande servir o café?
— Sirva, sirva.
Dez minutos depois, Lavruchka trouxe o café.
— Está chegando! — disse ele. — Lá vem desgraça.
Rostóv olhou pela janela e avistou Deníssov, que voltava para casa. Era um homem pequeno, de cara vermelha, olhos negros e brilhantes, cabelos e bigodes pretos, desgrenhados. Vestia um dólmã desabotoado, calça de cavalaria larga, repuxada por pregas, e na nuca um gorrinho hussardo amarrotado. De cabeça baixa, ar sombrio, ele se aproximava dos degraus de entrada da casa.
— Lavruchka — berrou, alto e irritado. — Vamos, tire logo o casaco, sua besta!
— Pronto, já vai, vou tirar — respondeu a voz de Lavruchka.
— Ah! Já está acordado — disse Deníssov, ao entrar no quarto.
— Faz tempo — respondeu Rostóv. — Já fui levar o feno e vi Fräulein Mathilde.
— Veja só! Pois eu, irmão, ontem, fiquei limpo no jogo, feito um filhote de cadela! — berrou Deníssov, que não conseguia pronunciar o r.20 — Que azar! Que azar! Logo depois que você saiu, começou. Ei, cadê o chá?
Deníssov, de cara franzida, com os dentes curtos e fortes à mostra, como se sorrisse, com as duas mãos de dedos curtos, como um cão, começou a revirar os cabelos pretos, espessos e alvoroçados.
— Foi o diabo que me levou à casa daquele Rato (era o apelido de um oficial) — disse ele, esfregando a testa e a cara com as duas mãos. — Dá para imaginar? Nenhuma rodada, nenhuma, não ganhei nenhuma rodada.
Deníssov pegou o cachimbo aceso que lhe foi oferecido, segurou no punho cerrado, bateu o cachimbo no chão, espalhando fagulhas, e não parava de gritar:
— Ele me deixava ganhar o simples e ganhava o paroli; me deixava ganhar o simples, e ganhava o paroli.21
Espalhou fagulhas, quebrou o cachimbo e o jogou longe. Deníssov calou-se um momento e, de repente, com os olhos pretos e brilhantes, fitou Rostóv com ar alegre.
— Se pelo menos tivesse umas mulheres. Mas, por aqui, a não ser beber, a gente não tem nada para fazer. Tomara que a gente comece logo a brigar. Ei, quem é que está aí? — gritou para a porta, depois de ouvir passos de botas grossas, que pararam, com um tinido de esporas, e uma tosse respeitosa.
— O furriel! — disse Lavruchka.
A cara de Deníssov ficou ainda mais franzida.
— Droga — exclamou, e jogou um porta-moedas, com algumas peças de ouro. — Rostóv, meu amigo, conte aí quanto sobrou e enfie o porta-moedas embaixo do travesseiro — disse e saiu ao encontro do furriel.
Rostóv pegou o dinheiro e, mecanicamente, começou a contar, separando as moedas de ouro novas e velhas em montinhos iguais.
— Ah! Teliánin! Como vai? Ontem me deram uma surra no jogo! — ouviu-se a voz de Deníssov, do outro quarto.
— Na casa de quem? Do Bíkov? Do Rato?... Eu soube — respondeu o outro, com voz fina, e logo em seguida entrou no quarto o tenente Teliánin, um oficial pequeno, do mesmo esquadrão.
Rostóv lançou o porta-moedas embaixo do travesseiro e apertou a mão pequena e úmida que lhe foi oferecida. Teliánin foi transferido da guarda, ninguém sabia por quê, pouco antes de começar a marcha. Portava-se muito bem no regimento; mas não gostavam dele, e Rostóv, em especial, não conseguia superar nem esconder sua repulsa gratuita por aquele oficial.
— E então, jovem cavaleiro, está satisfeito com o meu Corvinho? — perguntou. (Corvinho era um jovem cavalo de montaria e de carga que Teliánin vendera para Rostóv.)
O tenente nunca olhava nos olhos da pessoa com quem falava; seus olhos corriam o tempo todo de um objeto a outro.
— Eu vi, o senhor hoje montou nele...
— Sim, nada mau, é um bom cavalo — respondeu Rostóv, embora o cavalo, comprado por ele por setecentos rublos, não valesse nem metade do preço. — Começou a mancar na pata dianteira esquerda... — acrescentou.
— O casco rachou! Não é nada de mais. Vou ensinar ao senhor, vou mostrar como se prende com um prego.
— Ótimo, mostre, por favor — disse Rostóv.
— Vou mostrar, vou mostrar, não é nenhum segredo. Ainda vai me agradecer pelo cavalo.
— Então vou mandar trazer o cavalo — disse Rostóv, no intuito de livrar-se de Teliánin, e saiu para mandar que trouxessem o cavalo.
No saguão, Deníssov, com um cachimbo, estava agachado na soleira diante do furriel, que lhe comunicava alguma coisa. Ao ver Rostóv, Deníssov franziu o rosto e, apontando com o polegar por cima do ombro para o quarto onde estava Teliánin, fez uma careta e sacudiu-se.
— Ah, não gosto desse sujeito! — falou, sem se importar com a presença do furriel.
Rostóv encolheu os ombros, como se dissesse: “Eu também não, mas o que se vai fazer?”. E, depois de dar as ordens, voltou ao encontro de Teliánin.
Teliánin continuava sentado na mesma pose indolente em que Rostóv o deixara, esfregando as pequenas mãos brancas.
“Existem pessoas que são assim, repulsivas”, refletiu Rostóv, ao entrar no quarto.
— E então, mandou que trouxessem o cavalo? — perguntou Teliánin, levantando-se e olhando em volta, com ar negligente.
— Mandei.
— Bem, vamos lá, então. Vim aqui só para perguntar ao Deníssov sobre a ordem de ontem. Ei, Deníssov, já recebeu a ordem?
— Ainda não. E aonde vocês estão indo?
— Quero ensinar a este jovem como se ferra um cavalo — disse Teliánin.
Saíram para o alpendre e dali para a cavalariça. O tenente mostrou como pregar um casco rachado e foi embora.
Quando Rostóv voltou, havia na mesa uma garrafa de vodca e um chouriço. Deníssov estava sentado diante da mesa e estalava uma pena sobre um papel. Olhou sombrio para a cara de Rostóv.
— Estou escrevendo para ela — disse Deníssov.
Apoiou os cotovelos sobre a mesa, com a pena na mão, e obviamente satisfeito com a chance de dizer mais rápido, de uma só vez, tudo o que queria escrever, explicou sua carta para Rostóv.
— Veja só, meu amigo — disse ele. — Nós dormimos enquanto não estamos amando. Nós somos filhos do pó... mas aí você se apaixona... e vira Deus, fica puro, que nem no primeiro dia da Criação... Quem mais está aí? Mande para o inferno. Não tenho tempo! — gritou para Lavruchka, que se aproximava, sem se perturbar nem um pouco.
— Quem mais seria? O senhor mesmo mandou vir. O furriel veio buscar o dinheiro.
Deníssov fez uma careta, teve vontade de gritar alguma coisa, mas ficou quieto.
— Coisa mais chata — exclamou para si. — Quanto sobrou no porta-moedas? — perguntou para Rostóv.
— Sete novas e três velhas.
— Ah, inferno! Bom, o que está esperando, sua besta, traga o furriel — berrou Deníssov para Lavruchka.
— Por favor, Deníssov, posso lhe emprestar dinheiro, afinal eu tenho algum — disse Rostóv, ruborizando-se.
— Não gosto de pedir emprestado à minha gente, não gosto — resmungou Deníssov.
— Mas se não aceitar o meu dinheiro emprestado, como um camarada, vou ficar ofendido. Sério, eu tenho — repetiu Rostóv.
— Não, já falei que não.
E Deníssov foi até a cama para pegar o porta-moedas embaixo do travesseiro.
— Onde você colocou, Rostóv?
— Embaixo do travesseiro menor.
— Mas não está.
Deníssov jogou os dois travesseiros no chão. O porta-moedas não estava ali.
— Que coisa incrível!
— Espere aí, será que você não deixou cair? — perguntou Rostóv, levantando e sacudindo um travesseiro de cada vez.
Levantou e sacudiu o cobertor. O porta-moedas não apareceu.
— Será que eu esqueci? Não, eu até pensei que você ia ficar com ele debaixo da cabeça, que nem um tesouro — disse Rostóv. — Coloquei o porta-moedas bem aqui. Onde foi parar? — voltou-se para Lavruchka.
— Eu nem entrei no quarto. Tinha de estar onde o senhor o colocou.
— Mas não está...
— É sempre assim, você larga as coisas em qualquer lugar e depois esquece. Veja se não está no bolso.
— Não, senão eu não teria pensado num tesouro — respondeu Rostóv. — Além disso, eu lembro que coloquei ali.
Lavruchka revirou a cama toda, olhou debaixo dela, debaixo da mesa, revirou o quarto inteiro e ficou parado no meio do quarto. Calado, Deníssov observava os movimentos de Lavruchka e, quando este abriu os braços, espantado, e disse que o dinheiro não estava ali, Deníssov olhou de novo para Rostóv.
— Rostóv, você não é mais criança...
Rostóv sentiu sobre si o olhar fixo de Deníssov, levantou os olhos e abaixou-os no mesmo instante. Todo o seu sangue, que tinha ficado preso em algum ponto abaixo da garganta, subiu de um jato para o rosto e para os olhos. Rostóv não conseguia respirar.
— E ninguém esteve no quarto, a não ser o tenente e o senhor mesmo. Tem de estar em algum lugar aqui — disse Lavruchka.
— Então, seu boneco do demônio, procure, mexa-se — berrou de repente Deníssov, ruborizado e lançando-se sobre o lacaio com um gesto ameaçador. — Se o porta-moedas não aparecer, eu vou dar uma surra de açoite. Vou açoitar todo mundo!
Rostóv, evitando o olhar de Deníssov, começou a abotoar a japona, afivelou o sabre e pôs o quepe.
— Estou falando, eu quero esse porta-moedas — berrava Deníssov, enquanto sacudia o ordenança pelos ombros e o empurrava contra a parede.
— Deníssov, deixe-o em paz; eu sei quem pegou — falou Rostóv, enquanto andava na direção da porta, sem erguer os olhos.
Deníssov parou, pensou um pouco, pareceu entender o que Rostóv queria dizer e segurou-o pelo braço.
— Que absurdo! — berrou de tal modo que as veias incharam, como cordas, no pescoço e na testa. — Escute aqui, será que você ficou louco? Eu não vou permitir. O porta-moedas está aqui; nem que eu tenha de arrancar a pele desse canalha, o porta-moedas vai aparecer.
— Eu sei quem pegou — repetiu Rostóv, com voz trêmula, e andou para a porta.
— Já falei: não se atreva a fazer uma coisa dessas — gritou Deníssov, e atirou-se na direção do junker, para contê-lo.
Mas Rostóv soltou o braço com muita raiva, como se Deníssov fosse seu grande inimigo, e fitou-o direto nos olhos, com firmeza.
— Não entende o que está dizendo? — falou com voz trêmula. — Além de mim, não havia ninguém no quarto. Quer dizer, se não foi ele, então...
Não conseguiu terminar a frase e saiu às pressas do quarto.
— Ah, vá para o diabo, você e todo mundo — foram as últimas palavras que Rostóv ouviu.
Rostóv chegou ao alojamento de Teliánin.
— O patrão não está, foi para o Estado-Maior — disse o ordenança de Teliánin. — Aconteceu alguma coisa? — acrescentou o ordenança, surpreso com o rosto transtornado do junker.
— Não, nada.
— Por pouco não o encontrou — disse o ordenança.
O Estado-Maior ficava a três verstas de Salzeneck. Rostóv, sem voltar para casa, pegou um cavalo e foi para o Estado-Maior. Na aldeia ocupada pelo Estado-Maior havia uma taberna frequentada pelos oficiais. Rostóv entrou na taberna; na entrada, viu o cavalo de Teliánin.
Na segunda sala da taberna, estava o tenente, sentado diante de uma travessa de salsichas e de uma garrafa de vinho.
— Ah, você por aqui, meu jovem — disse ele, sorrindo e levantando bastante as sobrancelhas.
— É — disse Rostóv, como se pronunciar isso lhe custasse um esforço enorme, e sentou-se na cadeira vizinha.
Os dois ficaram calados; na sala, estavam dois alemães e um oficial russo. Todos calados, ouvia-se o barulho das facas nos pratos e da mastigação do tenente. Quando Teliánin terminou o desjejum, tirou do bolso um porta-moedas duplo, afastou as argolas, com os dedos brancos, pequenos, curvados para cima, pegou uma moeda de ouro e, com as sobrancelhas erguidas, entregou o dinheiro para o criado.
— Por favor, depressa — disse ele.
A moeda de ouro era nova. Rostóv levantou-se e aproximou-se de Teliánin.
— Deixe-me ver esse porta-moedas — disse em voz baixa, quase inaudível.
Com olhos esquivos, mas sobrancelhas ainda erguidas, Teliánin lhe entregou o porta-moedas.
— Pois é, um porta-moedas bonito... Sim... sim... — disse ele e de repente empalideceu. — Pode examinar, meu jovem — acrescentou.
Rostóv pegou o porta-moedas, examinou-o, bem como o dinheiro que estava ali dentro, e observou Teliánin. O tenente olhava para os lados, como era o seu costume, e de repente pareceu ficar muito alegre.
— Quando estivermos em Viena, gastarei tudo, mas aqui, nessas aldeias imundas, não há como torrar o dinheiro — disse. — Bem, me dê aqui, meu jovem, já estou indo.
Rostóv ficou em silêncio.
— O que o senhor vai fazer? Também vai tomar o desjejum? A comida aqui é razoável — prosseguiu Teliánin. — Agora, me dê.
Estendeu a mão para pegar o porta-moedas. Rostóv soltou-o. Teliánin pegou o porta-moedas e começou a enfiá-lo no bolso da calça de montaria, as sobrancelhas levantaram-se com um ar desleixado e a boca se abriu ligeiramente, como se dissesse: “Sim, sim, vou pôr no bolso o meu porta-moedas, isso é muito simples, e ninguém tem nada a ver com o assunto”.
— Bem, o que é, meu jovem? — disse Teliánin, depois de dar um suspiro e, por baixo das sobrancelhas levantadas, olhar de relance para os olhos de Rostóv. Com a velocidade de uma faísca elétrica, uma espécie de luz correu dos olhos de Teliánin para os olhos de Rostóv, e voltou, e depois foi e voltou outra vez, tudo num só instante.
— Venha aqui — falou Rostóv, segurando Teliánin pelo braço. Quase o arrastou até a janela. — Esse dinheiro é do Deníssov, o senhor o pegou... — sussurrou-lhe, ao pé do ouvido.
— O quê?... O quê?... Como o senhor se atreve? O quê?... — exclamou Teliánin.
Mas as palavras soaram como um grito de lamento, de desespero, como uma súplica de perdão. Assim que Rostóv ouviu o som daquela voz, a enorme pedra da dúvida saiu da sua alma. Ele sentiu uma alegria e, no mesmo instante, teve pena do infeliz que estava na sua frente; mas era preciso levar até o fim aquilo que ele havia começado.
— Aqui, Deus sabe o que as pessoas podem pensar — balbuciou Teliánin, tirando o quepe, e se encaminhou para uma sala pequena e vazia. — É preciso explicar-se...
— Eu sei, eu vou provar — disse Rostóv.
— Eu...
O rosto pálido e assustado de Teliánin começou a tremer com todos os músculos; os olhos não paravam de se esquivar, voltados para baixo, não para cima, não para a cara de Rostóv, e ouviam-se soluços.
— Conde!... não arruíne a vida de um jovem... tome aqui este dinheiro infeliz, pegue... — Jogou-o sobre a mesa. — Tenho um pai idoso, uma mãe!...
Rostóv pegou o dinheiro, evitando o olhar de Teliánin e, sem dizer nada, saiu da sala. Mas, na porta, parou e voltou-se.
— Meu Deus — exclamou, com lágrimas nos olhos —, como o senhor pôde fazer isso?
— Conde — disse Teliánin, e se aproximou do junker.
— Não toque em mim — falou Rostóv, afastando-se. — Se o senhor está precisando, tome este dinheiro. — Jogou para ele o porta-moedas e saiu depressa da taberna.
V
No anoitecer desse mesmo dia, no alojamento de Deníssov, houve uma conversa entre os oficiais do esquadrão.
— Estou lhe dizendo, Rostóv, o senhor tem de se desculpar perante o comando do regimento — disse um capitão de cavalaria, alto, de cabelos que começavam a ficar grisalhos, imensos bigodes e uma cara enorme, escura e enrugada, dirigindo-se a Rostóv, muito vermelho e transtornado.
O capitão Kírsten tinha sido rebaixado duas vezes ao posto de soldado por questões de honra, e por duas vezes fora promovido.
— Eu não vou admitir que ninguém diga que eu minto! — gritou Rostóv. — Ele me disse que eu minto, e eu lhe disse que ele é que mente. Foi assim e assim vai ficar. Pode me pôr de serviço todos os dias e pode até me deixar preso, mas ninguém vai me obrigar a pedir desculpas, por isso, se ele, como o comandante do regimento, achar que é indigno para ele me dar satisfações, então...
— Espere aí, espere um pouco, meu caro; o senhor me escute — interrompeu o capitão, com sua voz de baixo, enquanto desembaraçava, tranquilamente, os bigodes compridos. — O senhor, diante de outros oficiais, disse para o comandante do regimento que um oficial roubou...
— Não tenho culpa se a conversa se deu na presença de outros oficiais. Talvez não fosse preciso falar diante deles, mas eu não sou um diplomata. Por isso vim para os hussardos, achei que aqui não precisava dessas finezas, e ele me disse que eu estou mentindo... então ele é que deve me apresentar satisfações...
— Isso tudo está certo, ninguém acha que o senhor é um covarde, a questão não é essa. Pergunte aqui ao Deníssov se não é o maior absurdo do mundo um junker exigir satisfações do comandante do regimento.
Deníssov, mordendo os bigodes, escutava a conversa com um ar sombrio, e estava claro que não queria se meter no assunto. Ante a pergunta do capitão, ele balançou a cabeça negativamente.
— Diante de oficiais, o senhor falou com o comandante do regimento sobre essa patifaria — continuou o capitão. — Bogdánitch (assim se chamava o comandante do regimento) repreendeu o senhor.
— Não repreendeu, disse que estou mentindo.
— Pois bem, e o senhor lhe respondeu com tolices, e é preciso desculpar-se.
— De jeito nenhum! — gritou Rostóv.
— Eu não esperava isso do senhor — disse o capitão, em tom severo e grave. — O senhor não quer se desculpar, mas, meu caro, não só perante ele, como perante todo o regimento, o senhor é totalmente culpado. Veja bem: em vez de refletir a fundo e nos pedir conselhos sobre como contornar a situação, o senhor foi logo contar tudo, com o maior alarde, e diante de oficiais. O que pode fazer o comandante do regimento? Vai ter de levar o oficial a julgamento e assim enlamear o regimento inteiro? Envergonhar todo o regimento por causa de um canalha? Devia ser assim, na sua opinião? Mas não na nossa opinião. E Bogdánitch é um bom sujeito, ele lhe disse que o senhor não está dizendo a verdade. É desagradável, mas o que se vai fazer, meu caro? Foi o senhor mesmo que provocou. E agora, quando estão querendo abafar o assunto, o senhor, não sei por que ataque de orgulho, não quer se desculpar, quer contar para todo mundo. Está ofendido porque o puseram de serviço, mas o que custa pedir desculpas a um oficial velho e honesto? Seja lá como for, Bogdánitch é um velho coronel valente e honesto, e o senhor inventa de ficar ofendido; enlamear o regimento inteiro não é nada de mais para o senhor? — A voz do capitão começou a tremer. — O senhor, meu caro, mal acabou de entrar no regimento; hoje está aqui, amanhã vai ser transferido para ser ajudante de ordens de alguém; o senhor está se lixando, se disserem por aí: “Entre os oficiais do regimento de Pávlograd, há ladrões!”. Mas para nós não é indiferente. Não é isso, Deníssov? É indiferente para nós?
Deníssov continuava calado e não se mexia, de vez em quando espiava Rostóv, com os olhos pretos, brilhantes.
— Para o senhor, o seu orgulho é que tem valor, não quer pedir desculpas — prosseguiu o capitão —, mas para nós, os antigos, os que fomos criados no regimento e aqui, se Deus quiser, vamos morrer, para nós a honra do regimento é que tem valor, e Bogdánitch sabe disso. Ah, e que valor, meu caro! Isso está errado, está errado! Se fica ofendido ou não fica, não sei, mas eu sempre digo a verdade nua e crua. Está errado!
O capitão levantou-se e deu as costas para Rostóv.
— Ele está certo, e que o diabo me carregue! — gritou Deníssov, levantando-se de um salto. — Puxa, Rostóv! Vamos!
Rostóv, ruborizando e empalidecendo, olhava ora para um oficial, ora para o outro.
— Não, senhores, não... os senhores não estão pensando... eu entendo bem, os senhores perdem o seu tempo se pensam que... eu... para mim... eu dou valor à honra do regimento. Mas o que isso tem a ver? Vou dar provas em combate e, para mim, a honra da bandeira... bem, tanto faz, está certo, eu sou culpado!... — Tinha lágrimas nos olhos. — Sou culpado, a culpa é toda minha!... Bem, o que mais querem?...
— Assim é que se fala, conde — gritou o capitão, de volta, batendo com a mão grande no ombro de Rostóv.
— Eu não estou dizendo? Ele é um bom rapaz — gritou Deníssov.
— Assim é bem melhor, conde — repetiu o capitão, como se passasse a tratá-lo pelo título em recompensa por sua concordância. — Vá lá e peça desculpas, vossa excelência. Vá.
— Senhores, farei tudo, ninguém vai ouvir de mim nenhuma palavra — disse Rostóv, com voz de súplica. — Mas pedir desculpas eu não posso, por Deus, não posso, pensem o que quiserem! Como é que vou me desculpar, feito um menino que pede perdão?
Deníssov desatou a rir.
— Pior para você. O Bogdánitch é rancoroso, vai fazer você pagar caro a sua teimosia — disse Kírsten.
— Meu Deus, não é teimosia! Não consigo explicar para vocês qual é o sentimento, não posso...
— Bem, você é que sabe — disse o capitão. — E aquele canalha, onde é que se meteu? — perguntou para Deníssov.
— Declarou-se doente, amanhã a ordem de serviço vai mandar excluir o nome dele — falou Deníssov.
— É a doença, não tem outra explicação — disse o capitão.
— Pois, doente ou não, ele é que não apareça na minha frente... eu mato! — gritou Deníssov, sanguinário.
Jerkóv entrou no quarto.
— O que foi? — os oficiais voltaram-se de repente para ele.
— Em marcha, senhores. Mack rendeu-se ao inimigo, e com o exército inteiro.
— Não é possível!
— Eu mesmo vi.
— Como? Você viu Mack vivo? Em carne e osso?
— Em marcha! Em marcha! Vamos dar uma garrafa para ele, por ter trazido essa notícia. E como é que você veio parar aqui?
— Mandaram-me de volta para o regimento por causa desse demônio, o tal Mack. Um general austríaco queixou-se de mim. Eu lhe dei os parabéns pela chegada de Mack. E você, Rostóv, o que houve? Parece que saiu de uma sauna.
— Pois é, meu amigo, há dois dias que as coisas andam pegando fogo por aqui.
— Em marcha, senhores!
— Puxa, graças a Deus, já ficamos parados tempo demais.
VI
Kutúzov recuou para Viena, destruindo após sua passagem as pontes dos rios Inn (em Braunau) e Traun (em Linz). No dia 23 de outubro, as tropas russas cruzaram o rio Enns. Os comboios, a artilharia e as colunas de tropas russas, no meio do dia, marchavam na cidade de Enns, ocupando os dois lados da ponte.
Era um dia quente de outono, e chuvoso. O vasto panorama que se abria dos cumes onde estavam as baterias russas que protegiam a ponte ora era encoberto de repente pela cortina de musselina formada pela chuva oblíqua, ora se alargava de repente e, sob a luz do sol, os objetos ficavam visíveis, ao longe, e com nitidez, como se estivessem revestidos de um verniz. Lá embaixo, via-se uma cidadezinha com suas casas brancas e seus telhados vermelhos, a catedral e a ponte, sobre a qual, de ambos os lados, estendia-se e fluía a massa das tropas russas. Na curva do rio Danúbio, viam-se barcos, uma ilha e um castelo com um parque, cercado pelas águas do encontro do rio Enns com o Danúbio; via-se também a margem esquerda do Danúbio, rochosa e coberta por uma floresta de pinheiros, com uma vastidão misteriosa de cumes verdes e desfiladeiros azulados. Viam-se torres de um convento sobressaindo por trás da floresta de pinheiros, que parecia virgem, selvagem; ao longe, em frente, sobre a montanha, do outro lado do rio Enns, viam-se as patrulhas montadas do inimigo.
Entre os canhões, no alto e à frente, estava o general comandante da retaguarda, com um oficial da comitiva do tsar, observando a região com uma luneta. Um pouco atrás, sentado na beirada da carreta de um canhão, estava Nesvítski, enviado para a retaguarda pelo comandante em chefe. O cossaco que acompanhava Nesvítski lhe deu uma sacolinha e um frasco, e Nesvítski oferecia pasteizinhos aos oficiais e, na garrafa, Doppelkümmel 22 autêntico. Os oficiais o rodearam com alegria, uns de joelhos, outros sentados à maneira turca sobre o capim molhado.
— Sim, não era nada burro o príncipe austríaco que construiu aqui esse castelo. Que lugar excelente. Mas então, não vão comer, senhores? — disse Nesvítski.
— Muito obrigado, príncipe — respondeu um dos oficiais, satisfeito de poder conversar com um membro tão importante do Estado-Maior. — É um lugar maravilhoso. Nós passamos diante do parque, vimos dois cervos, e a construção, que espetáculo!
— Olhe lá, príncipe — disse um outro, que queria muito pegar mais um pastelzinho, mas tinha vergonha, e por isso fingia observar a paisagem. — Veja, nossos infantes já penetraram até aquela altura. Lá adiante, no prado, além da aldeia, três deles estão puxando alguma coisa. Eles vão tomar esse palácio — disse, com visível aprovação.
— Vão, sim, vão mesmo — disse Nesvítski. — Mas, sabe, o que eu gostaria mesmo — acrescentou, enquanto mastigava um pastelzinho na sua boca bonita e úmida — era enfiar-me lá por dentro.
Apontou para o convento com as torres, que se avistava em cima de um morro. Sorriu, seus olhos estreitaram-se e cintilaram.
— Ah, seria bom mesmo, senhores!
Os oficiais riram.
— Dar um susto naquelas freirinhas. São italianas, pelo que dizem, e jovens. Palavra, eu daria cinco anos da minha vida!
— E elas devem estar entediadas — disse rindo um oficial um pouco mais atrevido.
Enquanto isso, o oficial da comitiva do tsar, que estava mais à frente, apontava algo para o general; o general olhava através da luneta.
— É isso mesmo, isso mesmo — disse o general, aborrecido, tirando a luneta dos olhos e encolhendo os ombros —, é isso mesmo, vão começar a nos atacar durante a travessia. E por que eles se demoram tanto lá?
Na outra margem, viam-se a olho nu os inimigos e a sua bateria de canhões, da qual subia uma fumacinha branca e leitosa. Após a fumaça, ressoou um estampido distante, e via-se como as nossas tropas se apressavam na travessia do rio.
Resfolegando, Nesvítski subiu e, sorrindo, aproximou-se do general.
— Vossa excelência não gostaria de comer um pouquinho? — perguntou.
— A situação não é boa — disse o general, sem lhe responder. — Os nossos estão demorando demais.
— Não é melhor eu ir até lá, vossa excelência? — perguntou Nesvítski.
— Sim, vá, por favor — respondeu o general, e repetiu a ordem que já dera uma vez, em detalhes. — Diga aos hussardos que passem por último e incendeiem a ponte, como eu ordenei, e que verifiquem de novo o material inflamável na ponte.
— Muito bem — respondeu Nesvítski.
Gritou para o cossaco trazer o cavalo, mandou retirar a sacola e o frasco de bebida e, com agilidade, ergueu de um salto o corpo pesado sobre a sela.
— Sério, vou lá ver as freirinhas — disse para os oficiais, que olharam para ele com um sorriso, e seguiu montanha abaixo por uma trilha sinuosa.
— Ora, vamos ver até onde dá para alcançar, capitão, atire! — disse o general, dirigindo-se para o artilheiro. — Para quebrar o tédio.
— Soldados, para os canhões! — comandou o oficial.
E num minuto, alegres, os artilheiros vieram correndo das fogueiras e carregaram os canhões.
— Primeiro! — ouviu-se o comando.
O número 1 prontamente saltou para trás. O canhão ressoou de modo metálico, ensurdecedor, e a bala voou, assoviando, por cima da cabeça dos nossos, ao pé da montanha, caiu longe dos inimigos e estourou, indicando o local da queda com uma nuvem de fumaça.
Os rostos dos soldados e oficiais alegraram-se com aquele barulho; todos se levantaram e se ocuparam em observar com toda a nitidez, como que na palma da mão, os movimentos das nossas tropas logo abaixo e, mais à frente, os movimentos do inimigo, que se aproximava. Naquele exato instante, o sol saiu por inteiro de trás de uma nuvem, e o som bonito de um único estampido e o brilho do sol claro fundiram-se numa impressão de alegria e de brio.
VII
Duas balas de canhão inimigas já haviam passado por cima da ponte e, sobre a ponte, havia uma aglomeração. No meio, estava o príncipe Nesvítski, que descera do cavalo e tinha o corpo volumoso apertado contra o parapeito. Rindo, olhava para trás, para o cossaco que, alguns passos atrás dele, segurava os dois cavalos pelas rédeas. Toda vez que o príncipe tentava mover-se para a frente, os soldados e as carroças o empurravam de novo e o apertavam outra vez contra o parapeito, e não lhe restava escolha senão sorrir.
— Ei, olhe aí, meu irmão! — disse o cossaco para um soldado do comboio que fazia pressão, com uma carroça, contra os homens da infantaria aglomerados junto às rodas e aos cavalos. — Ei, você aí! Não, espere um pouco: olhe, o general quer passar.
Mas o soldado do comboio, sem dar nenhuma atenção à palavra “general”, gritou para os soldados que barravam o seu caminho:
— Ei! Compatriotas! Fiquem do lado esquerdo, esperem!
Mas os compatriotas, espremidos ombro a ombro, com as baionetas enganchando-se, e sem parar, deslocavam-se sobre a ponte como uma massa compacta. O príncipe Nesvítski olhou para baixo, sobre o parapeito, e viu as ondas rápidas, ruidosas e baixas do rio Enns, que, fundindo-se, encrespavam-se e dobravam-se em torno dos pilares da ponte, e corriam umas sobre as outras. Olhou de novo para a parte de cima da ponte e viu ondas vivas, uniformes como aquelas, de barretinas, penachos, ornatos, mochilas, capas, baionetas, fuzis compridos e, sob as barretinas, maçãs do rosto salientes, bochechas cavadas, fisionomias cansadas e desatentas, e pés que se moviam sobre a lama pegajosa que fora arrastada para as tábuas da ponte. Às vezes, entre as ondas contínuas de soldados, como um borrifo de espuma branca nas ondas do Enns, metia-se à força, no meio dos soldados, um oficial de capa, com a fisionomia bem distinta daquela dos soldados; às vezes, como uma lasca de madeira que balança sobre a água do rio, um hussardo a pé, um ordenança ou um civil eram arrastados pelas ondas da infantaria sobre a ponte; às vezes, como um tronco que flutua no rio, uma carroça de oficiais ou do comando de uma companhia, fechada de todos os lados, abarrotada de carga até em cima e coberta por peças de couro, navegava pela ponte.
— Olhe só, parece até que uma represa se rompeu — disse o cossaco, parando, sem esperança de avançar. — Ainda tem muitos de vocês lá?
— Um milhão menos um! — disse e piscou o olho um soldado gozador que passou bem perto, de capote esburacado, e sumiu; logo atrás veio um outro soldado, já velho.
— Se ele (ele era o inimigo) cismasse de nos dar um calor agora, aqui no meio da ponte, ninguém ia parar nem para coçar — disse o velho soldado, em tom sombrio, dirigindo-se a um camarada.
E o soldado passou também. Atrás dele veio um outro, numa carroça.
— Diabo, onde meteram as correias? — dizia um ordenança que seguia a carroça a pé, enquanto vasculhava a traseira.
Também ele passou, com a carroça. Atrás, vieram soldados alegres e, pelo visto, embriagados.
— Mas, meu caro, na hora em que ele acertou em cheio nos dentes, com a coronha... — disse um soldado, alegremente, num capote com a gola levantada bem alto, gesticulando com os braços abertos.
— Pois é, que presunto excelente — disse um outro, com uma risada.
Eles passaram também, e Nesvítski ficou sem saber quem tinha levado uma pancada nos dentes e o que tinha o presunto a ver com o caso.
— Ei, agora estão com pressa, só porque ele deu um tirinho ficam achando que vão matar todo mundo — disse um sargento, zangado e em tom de repreensão.
— Quando ela passou voando bem por cima de mim, tio, aquela bala de canhão — disse, com sua boca enorme, um soldado jovem, que mal conseguia conter o riso —, eu achei que ia morrer. Sério, meu Deus, me assustei muito, a coisa ficou feia! — dizia o soldado, como se estivesse se gabando de ter sentido medo. E também ele passou. Logo atrás, veio uma carroça diferente de todas as que haviam passado até então. Era alemã, puxada por uma parelha, e parecia carregar uma casa inteira; atrás da carroça, guiada por um alemão, estava amarrada uma bonita vaca malhada, com um úbere enorme. Sobre colchões de penas, estava sentada uma mulher com uma criança de peito, uma velha e uma mocinha alemã, corada, saudável. Estava claro que aqueles civis despejados tinham recebido uma permissão especial para passar por ali. Os olhos de todos os soldados se voltaram para as mulheres e, enquanto a carroça passava, movendo-se passo a passo, toda a atenção dos soldados se dirigiu para as duas mulheres. Em todos os rostos, havia quase que o mesmo sorriso de pensamentos indecentes sobre aquelas mulheres.
— Pois é, o salsichão também foi posto para correr!
— Me vende a mamãe — disse um outro soldado, pondo o acento na última sílaba, dirigindo-se ao alemão, que, de olhos baixos, irritado e com medo, andava a passos largos.
— Ei, como está toda arrumada! É o diabo!
— Quem dera você ficasse aquartelado na casa delas, hein, Fedótov?
— Já vi muitas, irmãos!
— Para onde vão? — perguntou um oficial da infantaria que comia uma maçã, também com um meio sorriso, e olhava para a moça bonita.
O alemão, de olhos fechados, fez um gesto para dizer que não entendia.
— Se quiser, pegue para você — disse o oficial e ofereceu a maçã para a moça. Ela sorriu e pegou a maçã. Nesvítski, como todos os que estavam na ponte, não tirava os olhos das mulheres, enquanto elas passavam. Depois que passaram, os soldados voltaram a caminhar do mesmo jeito de antes, com as mesmas conversas, mas por fim todos pararam. Como acontece muitas vezes, na saída da ponte, os cavalos da carroça do comando da companhia empacaram, e a multidão inteira teve de esperar.
— Ei, por que pararam? Ninguém deu ordem! — diziam os soldados. — Para que ficam empurrando? Diabo! Não tem nada que ficar aí parado. Vai ficar pior quando ele botar fogo na ponte. Olhe, espremeram aquele oficial lá — falavam de vários lados, na multidão parada, olhavam-se uns para os outros, e todos se comprimiam para a frente, rumo à saída.
Nesvítski olhou para a água do Enns, embaixo da ponte, e de repente ouviu um som novo para ele, aproximando-se rapidamente... alguma coisa grande, alguma coisa caiu com baque forte na água.
— Olhe só onde acertou! — disse, em tom severo, um soldado perto dele, olhando para o lado de onde veio o barulho.
— Querem animar a gente para a gente andar mais depressa — disse um outro, preocupado.
A multidão se pôs em movimento, outra vez. Nesvítski entendeu que era uma bala de canhão.
— Ei, cossaco, me dê o cavalo! — disse ele. — Ei, vocês! Para o lado! Saiam da frente! Abram caminho!
Com grande esforço, conseguiu chegar ao cavalo. Sem parar de gritar, moveu-se para a frente. Os soldados comprimiram-se para lhe dar passagem, mas de novo o pressionaram de tal modo que machucaram o seu pé, e os que estavam mais perto nem tinham culpa, porque eram apertados por outros com mais força ainda.
— Nesvítski! Nesvítski! Seu bandido! — ouviu-se naquele instante uma voz rouca, lá atrás.
Nesvítski virou-se e, a uns quinze passos, separado dele pela massa viva da infantaria em movimento, avistou Vaska Deníssov, vermelho, moreno, descabelado, o quepe na nuca e uma capa jogada jovialmente sobre os ombros.
— Dê ordem para que esses diabos, esses demônios, abram caminho — gritou Deníssov, visivelmente num de seus acessos de fúria, com os olhos negros como carvão brilhando e rodando na parte branca inflamada, enquanto brandia o sabre dentro da bainha, empunhado na mão pequena, nua e vermelha, como o rosto.
— Ei! Vássia! — respondeu Nesvítski, alegre. — O que está fazendo aí?
— O esquadrão não consegue passar — gritou Vaska Deníssov, pondo raivosamente à mostra os dentes brancos, enquanto esporeava o seu bonito cavalo murzelo, puro-sangue, chamado Beduíno, que contraía as orelhas por causa das baionetas nas quais esbarrava, e bufava, borrifando à sua volta a espuma que escorria pelo freio, tilintava os arreios, batia com os cascos nas tábuas da ponte e parecia pronto para pular sobre o parapeito, se o seu cavaleiro deixasse. — O que é isso? Parecem carneiros! Igualzinho a um monte de carneiros! Sai fora... Abram caminho!... Pare aí! Você da carroça, diabo! Vou fazer você em pedacinhos com o meu sabre! — berrava, e de fato sacou o sabre da bainha e pôs-se a brandi-lo no ar.
Os soldados, com caras assustadas, espremeram-se uns aos outros, e Deníssov conseguiu unir-se a Nesvítski.
— O que houve hoje que você não está embriagado? — perguntou Nesvítski para Deníssov, quando ele se aproximou.
— Não estão dando tempo nem para a gente beber! — respondeu Vaska Deníssov. — Arrastaram o regimento o dia inteiro de um lado para o outro. Se é para lutar, então vamos lutar. Mas, isto aqui, só o diabo sabe o que é!
— Mas como você hoje está elegante! — disse Nesvítski, observando a capa nova e o novo protetor de sela.
Deníssov sorriu, pegou na sua bolsa de couro um lenço que exalava perfume e esfregou no nariz de Nesvítski.
— Tem de ser, vou entrar em ação! Fiz a barba, escovei os dentes e me perfumei.
A figura garbosa de Nesvítski, acompanhado pelo cossaco, e a determinação de Deníssov, que brandia o sabre e berrava desenfreado, produziram tal efeito que eles conseguiram abrir caminho até o outro lado da ponte e pararam a infantaria. Nesvítski encontrou na saída da ponte o coronel a quem precisava transmitir a ordem e, uma vez cumprida a missão, voltou.
Após abrir o caminho, Deníssov parou na entrada da ponte. Segurando com ar desleixado o seu cavalo, que batia as patas no chão e se sacudia, Deníssov olhava para o esquadrão, que se deslocava ao seu encontro. Pelas tábuas da ponte, retumbaram os sons cristalinos dos cascos, como se vários cavalos galopassem, e o esquadrão, com os oficiais à frente, em filas de quatro, estendeu-se sobre a ponte e começou a sair do outro lado.
Parados, os soldados da infantaria aglomeravam-se na lama pisada junto à ponte com aquele típico sentimento hostil de estranhamento e de zombaria que se verifica em geral quando tropas de tipos diferentes se encontram, e olhavam para os hussardos que, limpos e elegantes, passavam com garbo diante deles.
— Que rapaziada chique! Parece até que vão desfilar em Podnovínski!23
— Para que serve essa gente? É só para encher os olhos! — disse um outro.
— Infantaria, não levante poeira! — brincou um hussardo, cujo cavalo bateu forte no chão e espirrou lama num infante.
— Se você tivesse feito duas marchas aceleradas com mochila nas costas, esses cordõezinhos aí iam estar bem castigados — disse o infante, limpando a lama do rosto com a mão. — Sentado aí em cima, parece mais um passarinho do que um homem.
— Pois é, Zikín, você a cavalo ia ficar bem jeitoso — um cabo zombou de um soldado muito curvado sob o peso da mochila.
— Põe um porrete entre as pernas e já vai ter um cavalo — retrucou o hussardo.
VIII
O resto da infantaria passava às pressas pela ponte, espremendo-se num funil, na saída. Por fim, todas as carroças passaram, o aperto diminuiu, e o último batalhão entrou na ponte. Só os hussardos do esquadrão de Deníssov ficaram postados do outro lado da ponte, de frente para o inimigo. Visível ao longe, do monte do lado oposto, o inimigo ainda não era visível de baixo, da ponte, pois o horizonte que se avistava do vale onde passava o rio terminava numa elevação situada a não mais de meia versta. À frente, havia uma área deserta onde, aqui e ali, moviam-se grupos dos nossos cossacos em patrulha. De repente, na estrada sobre a elevação lá adiante, surgiram tropas de casacos azuis e uma artilharia. Eram os franceses. As patrulhas de cossacos afastaram-se a trote, morro abaixo. Todos os oficiais e os membros do esquadrão de Deníssov, embora se esforçassem para falar de outros assuntos e olhar para outras direções, não cessavam de pensar unicamente no que estava lá no morro, e todos, de modo ininterrupto, observavam as manchas que desciam no horizonte, nas quais reconheciam as tropas inimigas. Depois do meio-dia, o tempo clareou de novo, o sol baixava bem luminoso acima do Danúbio e dos montes sombreados que o rodeavam. Havia um silêncio e, lá do morro, de vez em quando, vinham sons de cornetas e gritos do inimigo. Entre o esquadrão e o inimigo já não havia mais ninguém, exceto algumas pequenas patrulhas. Uma vastidão deserta, de umas trezentas sájeni,24 os separava. O inimigo parou de atirar e se fez sentir, de modo mais claro ainda, a linha rigorosa, terrível, inexpugnável e inapreensível que divide dois exércitos inimigos.
“Um passo além dessa linha, que lembra a linha que separa os vivos dos mortos, representa o desconhecido, o sofrimento e a morte. E o que existe lá? Quem está lá? Além daquele campo, e da árvore, e do telhado iluminado pelo sol? Ninguém sabe, e querem saber; dá medo cruzar a linha, e também dá vontade de cruzá-la; mas sei que, mais cedo ou mais tarde, vai ser preciso cruzá-la e conhecer o que está lá, do outro lado da linha, assim como é inevitável, um dia, saber o que está do outro lado da morte. Mas eu me sinto forte, saudável, alegre e animado, rodeado de pessoas igualmente saudáveis, confiantes e animadas.” Desse modo pensa, ou pelo menos sente, todo homem que se encontra à vista do inimigo, e tal sentimento confere um brilho especial e uma alegre impressão de agudeza a tudo o que acontece nesse instante.
Na colina do lado do inimigo, surgiu a fumaça de um tiro e, assoviando, uma bala de canhão voou por cima das cabeças do esquadrão de hussardos. Os oficiais, que estavam reunidos, espalharam-se para as suas posições. Os hussardos empenhavam-se com afinco em manter os cavalos alinhados. No esquadrão, estavam todos em silêncio. Todos olhavam para a frente, para o inimigo, e para o comandante do esquadrão, à espera das ordens dele. Passou outra bala de canhão, e uma terceira. Estava claro que atiravam nos hussardos; mas as balas, com um assovio rápido e uniforme, passaram por cima das cabeças dos hussardos e caíram em algum ponto bem atrás. Os hussardos não se viravam para olhar, mas a cada som de uma bala de canhão que passava por cima deles, o esquadrão inteiro, como que obedecendo a uma ordem, com seus rostos iguais e desiguais, prendendo a respiração enquanto a bala passava, erguia-se um pouco sobre os estribos, e depois baixava. Os soldados, sem virar a cabeça, olhavam de esguelha uns para os outros, examinavam a impressão dos camaradas. Em todos os rostos, de Deníssov ao corneteiro, em torno dos lábios e do queixo, revelou-se um traço comum, de luta, de cólera e de ansiedade. O furriel franziu o rosto ao virar-se e olhar para os soldados, como se os ameaçasse com um castigo. O junker Mirónov encolhia-se a cada bala de canhão que passava. Rostóv, no flanco esquerdo, montado no seu Corvinho, de pata ferida, mas mesmo assim vistoso, tinha o aspecto feliz de um estudante que é chamado a prestar exame diante de uma grande plateia, seguro de que vai se destacar. Olhava para todos à sua volta, com um ar sereno e radiante, como se pedisse que prestassem atenção na calma em que se mantinha sob as balas de canhão. Mas também no seu rosto, contra a sua vontade, apareceu em volta da boca aquele mesmo traço novo e severo.
— Quem é que está fazendo reverências aí? Junker Mirónov! Não está certo, olhe para mim! — gritou Deníssov, que não parava no lugar e rodava sobre o cavalo diante do esquadrão.
O rosto de cabelo preto e nariz arrebitado de Vaska Deníssov, e toda a sua figura pequena e parruda, de mão ossuda e fibrosa (com dedos curtos, cobertos de pelos), na qual segurava o sabre desembainhado, eram os mesmos de sempre, sobretudo ao entardecer, depois de ter bebido duas garrafas. Estava só mais vermelho do que o habitual e, com a cabeça peluda voltada para cima, como um pássaro quando canta, apertando as esporas sem piedade com seus pés pequenos nos flancos do bom Beduíno, Deníssov, como que tombando para trás, partiu a galope para o outro flanco do esquadrão e gritou, com voz rouca, que verificassem as pistolas. Aproximou-se de Kírsten. O capitão do Estado-Maior, numa égua volumosa e imponente, veio, a passo, ao encontro de Deníssov. O capitão do Estado-Maior, com seu bigode comprido, estava sério como sempre, só os olhos brilhavam mais do que o habitual.
— E aí? — disse para Deníssov. — Pelo jeito não vai ter luta. Você vai ver só, vamos recuar.
— Só o diabo é que sabe o que vão inventar! — rosnou Deníssov. — Eh! Rostóv! — gritou para o junker, ao notar sua cara alegre. — Puxa, esperou muito, mas chegou a hora!
E sorriu com aprovação, alegrando-se visivelmente com o junker. Rostóv sentia-se plenamente feliz. Nesse momento, o comandante apareceu na ponte. Deníssov galopou até ele.
— Vossa excelência! Deixe-nos atacar! Vou pôr essa gente para correr.
— Então, ao ataque — disse o comandante, com voz de tédio, franzindo o rosto, como que importunado por uma mosca. — Mas por que está aqui parado? Olhe lá, os flancos estão recuando. Mande o esquadrão voltar.
O esquadrão atravessou a ponte e saiu do alcance dos tiros, sem perder nenhum homem. Atrás dele, veio o segundo esquadrão, que estava na linha de frente, e os últimos cossacos deixaram aquela margem do rio.
Os dois esquadrões de Pávlograd, após cruzarem a ponte, um depois do outro, recuaram para a montanha. O comandante do regimento, Karl Bogdánitch Schubert,25 aproximou-se do esquadrão de Deníssov e seguiu, a passo lento, não longe de Rostóv, sem prestar a menor atenção nele, apesar de ser a primeira vez que os dois se viam desde a desavença por causa de Teliánin. Rostóv, sentindo-se no front e sob o poder de um homem diante do qual, agora, ele se considerava culpado, não desviava os olhos das costas atléticas, da nuca loura e do pescoço vermelho do comandante do regimento. Rostóv ora tinha impressão de que Bogdánitch apenas se fazia de desatento e que agora o seu único propósito era pôr à prova a coragem do junker, e então Rostóv se punha mais ereto sobre a sela e olhava para os lados com alegria; ora tinha a impressão de que Bogdánitch viera para perto dele de propósito, a fim de mostrar a Rostóv a sua coragem. Ora pensava que o seu inimigo, agora, de propósito, conduzia o esquadrão a um ataque desesperado para castigar a ele, Rostóv. Ora pensava que depois do ataque iria procurar o comandante e, generosamente, estender a ele, ferido, sua mão num gesto de reconciliação.
A figura de Jerkóv, com seus ombros altos, bem conhecida dos pavlogradenses (ele saíra do regimento havia pouco tempo), aproximou-se do comandante. Após sua expulsão do Estado-Maior do comandante em chefe, Jerkóv não permaneceu no regimento, dizendo que não era burro para ficar no front e comer o pão que o diabo amassou, quando no quartel-general, sem fazer nada, ganhava uma recompensa maior, e de fato conseguira o cargo de ordenança do príncipe Bagration. Aproximou-se do seu ex-comandante com a ordem enviada pelo comandante da retaguarda.
— Coronel — disse ele, com sua seriedade soturna, dirigindo-se ao inimigo de Rostóv e lançando um olhar para o seu camarada. — A ordem é parar, incendiar a ponte.
— Quem é que mandar? — perguntou o coronel, com ar sombrio.
— Isso eu já não sei, coronel, quem é que mandar — respondeu, sério, o alferes. — O príncipe apenas me ordenou: “Vá até lá e diga ao coronel que os hussardos voltem depressa e incendeiem a ponte”.
Depois de Jerkóv, veio ao encontro do coronel dos hussardos um oficial da comitiva do tsar, com a mesma ordem. Depois do oficial, veio o gordo Nesvítski num cavalo cossaco, que com grande esforço o levava a galope.
— O que está havendo, coronel? — gritou ele, ainda de longe. — Eu disse ao senhor para queimar a ponte, e agora alguém mudou tudo; lá em cima, todo mundo está feito louco, não estão entendendo nada.
O coronel, sem pressa, fez parar o regimento e voltou-se para Nesvítski:
— O senhor me falou de materiais inflamáveis — disse ele —, mas não me falou nada de incendiar.
— Mas, meu caro — disse Nesvítski, parando, enquanto tirava o quepe e, com a mão rechonchuda, arrumava o cabelo molhado de suor —, como é que eu não disse para incendiar a ponte, se instalaram o material inflamável?
— Não sou seu “caro”, senhor oficial do Estado-Maior, e o senhor não me disse para queimar a ponte! Conheço o meu dever e tenho o hábito de obedecer às ordens com rigor. O senhor disse que iam queimar a ponte, mas não disse quem ia queimar, e eu não podia saber por obra do Espírito Santo...
— Ora, é sempre a mesma história — disse Nesvítski, e abanou a mão. — E o que você está fazendo aqui? — voltou-se para Jerkóv.
— O mesmo que você. Mas está todo ensopado. Quer que eu torça você?
— O senhor disse, nobre oficial do Estado-Maior — continuou o coronel, num tom ofendido...
— Coronel — cortou o oficial da comitiva do tsar —, é preciso apressar-se, senão o inimigo vai aproximar os canhões e lançar fogo de metralha.
O coronel fitou em silêncio o oficial da comitiva do tsar, o gordo oficial do Estado-Maior e Jerkóv, e franziu o rosto.
— Eu vou incendiar a ponte — disse ele num tom solene, como se assim expressasse que, apesar de todos os aborrecimentos que lhe causavam, mesmo assim ele cumpriria o seu dever.
Bateu no cavalo com suas pernas compridas e musculosas, como se o animal fosse o culpado de tudo, avançou rumo ao segundo esquadrão, o mesmo em que Rostóv servia sob o comando de Deníssov, e deu ordem para voltar atrás, rumo à ponte.
“Ah, então é isso mesmo”, pensou Rostóv, “ele quer me pôr à prova!” Seu coração se contraiu, e o sangue afluiu de um jato para o rosto. “Pois que ele veja se sou um covarde”, pensou.
De novo, em todos os rostos alegres dos homens do esquadrão, surgiu aquele mesmo traço sério de quando estavam sob os tiros de canhão. Rostóv, sem baixar os olhos, fitava o seu inimigo, o comandante do regimento, desejando encontrar no rosto dele a confirmação das suas hipóteses; mas nem uma vez o coronel dirigiu os olhos para Rostóv e, como sempre no front, tinha um ar severo e solene. Ouviu-se a voz de comando.
— Depressa! Depressa! — exclamaram algumas vozes à sua volta.
Os sabres se enganchavam nas rédeas, as esporas retiniam com grande ruído, enquanto os hussardos desmontavam, afobados, ainda sem saber o que iam fazer. Os hussardos fizeram o sinal da cruz. Rostóv já não olhava para o comandante do regimento — não tinha tempo para isso. Temia, e temia com o coração aflito, ficar longe dos hussardos. Sua mão tremia quando deu o cavalo para o cavalariço, e sentiu como o sangue afluía para o coração com um baque forte. Deníssov passou por ele, inclinando-se para trás e gritando alguma coisa. Rostóv não via nada, exceto os hussardos que corriam à sua volta, embaraçando-se nas esporas, enquanto os sabres retiniam.
— Padiola! — gritou uma voz, atrás.
Rostóv não pensou o que significava o pedido de uma padiola: correu, tentando apenas ficar à frente de todos; mas diante da ponte, sem olhar onde punha os pés, chegou à lama pegajosa e muito pisada e, tropeçando, caiu apoiado nas mãos. Os outros passavam correndo por ele.
— Pelos duas lados, capitão — Rostóv ouviu a voz do comandante do regimento, que havia seguido na frente e estava montado no seu cavalo, perto da ponte, com o rosto triunfante e alegre.
Rostóv, enquanto esfregava as mãos sujas nas calças de montaria, olhou para trás, para o seu inimigo, e quis correr ainda mais adiante, supondo que, quanto mais à frente fosse, melhor seria. Mas Bogdánitch, embora não olhasse nem tivesse reconhecido Rostóv, gritou para ele:
— Quem é que está correndo aí no meio da ponte? Para o lado direito! Junker, para trás! — gritou zangado e voltou-se para Deníssov, que, para exibir a sua coragem, seguia a cavalo sobre as tábuas da ponte.
— Para que arriscar-se, capitão! Devia desmontar — disse o coronel.
— Ah! Ninguém morre na véspera — respondeu Vaska Deníssov, virando-se sobre a sela.
Enquanto isso, Nesvítski, Jerkóv e o oficial da comitiva do tsar estavam juntos, fora do alcance dos tiros, e olhavam ora para o pequeno grupo de homens com barretinas amarelas, japonas verde-escuras, alamares bordados e calças de montaria azuis, que se movimentavam afoitos perto da ponte, ora para o outro lado, para os capotes azuis e os grupos com cavalos, que se aproximavam ao longe e podiam ser facilmente reconhecidos pelas armas.
“Vão queimar ou não vão queimar a ponte? Quem chegará primeiro? Eles vão conseguir chegar e queimar a ponte ou os franceses terão tempo de se aproximar e matá-los com tiros de metralha?” Essas perguntas se faziam, involuntariamente e com o coração na mão, todos os numerosos soldados que se achavam numa posição mais elevada do que a ponte e, sob a luz clara do entardecer, olhavam para a ponte e para os hussardos, e também para o lado onde se movimentavam os capotes azuis, com as baionetas e as armas de artilharia.
— Oh! Os hussardos estão em apuros! — disse Nesvítski. — Agora não estão longe do alcance do fogo de metralha.
— Não havia motivo para ele mandar tanta gente — disse o oficial da comitiva do tsar.
— De fato — disse Nesvítski. — Se mandasse dois soldados valentes daria na mesma.
— Ah, vossa excelência — interveio Jerkóv, sem desviar os olhos dos hussardos, mas sempre com aquele seu jeito ingênuo, por trás do qual era impossível perceber se estava falando a sério ou não. — Ah, vossa excelência! Como pode dizer isso? Se ele manda dois homens para lá, quem é que vai dar a ele a medalha de Vladímir, com a fitinha? Já assim, mesmo que levem a maior surra, vai ser possível recomendar o esquadrão e ganhar ele mesmo uma fitinha. O nosso Bogdánitch sabe das coisas.
— Lá está — disse o oficial da comitiva do tsar —, aquilo é a metralha!
Apontou para as peças de artilharia francesa, que estavam sendo desamarradas dos carros e distribuídas às pressas.
No lado francês, nos grupos onde estavam os canhões, surgiu uma fumacinha, uma outra, uma terceira, quase ao mesmo tempo, e no instante em que chegou o som do primeiro tiro, surgiu a quarta. Dois sons, um após o outro, e um terceiro.
— Oh, oh! — gemeu Nesvítski, como se algo nele queimasse e doesse, e agarrou pelo braço o oficial da comitiva do tsar. — Veja, caiu um, caiu, caiu!
— Acho que são dois, não é?
— Se eu fosse o tsar, nunca entraria em guerra — disse Nesvítski, e virou a cara.
Os franceses carregaram os canhões de novo, rapidamente. A infantaria, em capotes azuis, moveu-se a pé na direção da ponte. De novo, mas a intervalos diversos, surgiram fumacinhas, e a metralha começou a estalar e a crepitar pela ponte. Mas dessa vez Nesvítski não pôde ver o que se passava na ponte. Ergueu-se da ponte uma nuvem densa de fumaça. Os hussardos haviam conseguido atear fogo na ponte, e as baterias francesas disparavam sobre eles, não mais para detê-los, mas porque os canhões estavam apontados e havia em quem atirar.
Os franceses tiveram tempo para lançar três cargas de metralha antes que os hussardos voltassem para os cavalariços. Erraram o alvo em duas descargas, e a metralha caiu muito longe, em compensação o último tiro caiu no meio de um grupo de hussardos e derrubou três soldados.
Rostóv, preocupado com suas relações com Bogdánitch, ficou na ponte, sem saber o que fazer. Não havia ninguém para ele golpear com o sabre (como sempre imaginara a si mesmo, numa batalha), também não podia ajudar no incêndio da ponte, pois não trouxera consigo feixes de palha, como haviam feito os demais soldados. Estava parado e olhava em volta, quando de repente pareceu que nozes caíam e estalavam sobre a ponte, e um dos hussardos, o que estava mais perto dele, tombou sobre o parapeito, com um gemido. Rostóv correu até ele, junto com outros. De novo, alguém gritou: “Padiola!”. Quatro homens agarraram o hussardo e começaram a levantá-lo.
— Ooooh!... Larguem, pelo amor de Deus — gritou o ferido; mesmo assim o levantaram e o colocaram na padiola.
Nikolai Rostóv afastou-se e, como se estivesse procurando alguma coisa, pôs-se a olhar ao longe, para a água do Danúbio, para o céu, para o sol. Como o céu estava bonito, como estava azul, sereno e profundo! Como o sol que se punha estava claro e solene! Como a água do Danúbio, ao longe, brilhava amena e lustrosa! E mais bonitas ainda eram as montanhas azuladas e distantes, para além do Danúbio, o convento, os desfiladeiros misteriosos, a floresta inundada até os cumes pela neblina... lá, havia calma, felicidade... “Nada, nada, eu não desejaria mais nada, não desejaria mais nada, se eu estivesse lá”, pensou Rostóv. “Só em mim e neste sol há tanta felicidade, enquanto aqui... gemidos, sofrimentos, horrores, e este tumulto, esta correria... Agora estão gritando de novo alguma coisa, e de novo todos correram para algum lugar lá atrás, e eu estou correndo junto com eles, e aí está ela, ela, a morte, sobre mim, à minha volta... Num instante, nunca mais verei este sol, esta água, aquele desfiladeiro...”
Nesse instante, o sol começou a se esconder atrás das nuvens; à frente de Rostóv, surgiram outras padiolas. E o medo da morte e das padiolas, e o amor ao sol e à vida — tudo se fundiu numa sensação mórbida e alarmante.
— Senhor Deus! Que está neste céu, me salve, me perdoe e me proteja! — sussurrou Rostóv.
Os hussardos correram até os cavalariços, as vozes ficaram mais altas e mais calmas, as padiolas haviam sumido de vista.
— E aí, irmão, sentiu o cheiro da pólvora?... — gritou para ele, junto ao ouvido, a voz de Vaska Deníssov.
“Tudo está terminado; mas eu sou um covarde, sim, sou um covarde”, pensou Rostóv e, com um suspiro profundo, tomou das mãos do cavalariço o seu Corvinho, que descansava a pata machucada, e começou a montar.
— O que foi isso, uma metralha? — perguntou para Deníssov.
— Sim, e que metralha! — gritou Deníssov. — Trabalharam muito bem! Mas é um serviço horrível! Um ataque é outra coisa, dá gosto, a gente ali, cara a cara, mas isso aí só o diabo sabe o que é, mais parece tiro ao alvo.
E Deníssov afastou-se rumo a um grupo que não estava distante de Rostóv: o comandante do regimento, Nesvítski, Jerkóv e o oficial da comitiva do tsar.
“No entanto, parece que ninguém percebeu”, pensou Rostóv. E de fato ninguém havia percebido nada, porque todos conheciam o sentimento que o junker, até então sem experiência de combate, havia experimentado pela primeira vez.
— Vamos fazer um daqueles relatórios de guerra — disse Jerkóv —, e, você vai ver, até a mim vão promover a alferes.
— Comunique ao príncipe que incendiei a ponte — disse o coronel em tom alegre e triunfante.
— E se perguntarem pelas perdas?
— Coisa à toa! — falou o coronel, com voz de baixo. — Dois hussardos feridos e um abatido em ação — disse, com visível alegria, incapaz de reprimir um sorriso feliz, pronunciando de forma bem sonora as palavras “abatido em ação”.
IX
Perseguido pelo exército francês de cem mil homens sob o comando de Bonaparte, encontrando uma população civil que lhe era hostil, descrente em seus aliados, carente de suprimentos e forçado a agir em condições de guerra diversas de tudo o que se havia previsto, o exército russo de trinta e cinco mil homens, sob o comando de Kutúzov, retirava-se às pressas no sentido das águas do Danúbio, parava apenas quando o inimigo o alcançava, e o rechaçava com ações da retaguarda só na medida em que isso era necessário para poder recuar sem perder sua carga e seus equipamentos. Houve combates em Lambach, Amstetten e Melk; mas, apesar da coragem e da tenacidade, reconhecidas até pelo inimigo, com que lutaram os russos, o resultado daqueles combates foi apenas uma retirada ainda mais rápida. As tropas austríacas, que haviam escapado de serem capturadas em Ulm e tinham se unido a Kutúzov em Braunau, agora se separavam do exército russo, e Kutúzov era deixado só com suas próprias forças, debilitadas e exaustas. Nem se podia mais pensar em defender Viena. Em lugar da guerra ofensiva, ponderada a fundo segundo as leis da nova ciência, a estratégia, cujo plano fora entregue a Kutúzov pelo Hofkriegsrath austríaco, quando ele esteve em Viena, o objetivo único, quase inatingível, que agora se oferecia a Kutúzov consistia em não perder o exército, como acontecera com Mack, em Ulm, e unir-se às novas tropas que vinham da Rússia.
No dia 28 de outubro, Kutúzov e o seu exército atravessaram o rio Danúbio para a margem esquerda e ali, pela primeira vez, pararam e tomaram posição, deixando o Danúbio entre as suas tropas e as forças principais dos franceses. No dia 30 ele atacou a divisão de Mortier, que estava na margem esquerda do Danúbio e a destruiu. Nesse combate, pela primeira vez, foram tomados troféus: bandeiras, canhões e dois generais inimigos. Pela primeira vez, após duas semanas de retirada, as tropas russas pararam e, após o combate, não só mantiveram o domínio do campo de batalha como rechaçaram os franceses. Apesar de as tropas estarem sem uniformes, esgotadas, reduzidas em um terço por causa dos retardatários, feridos, mortos e doentes; apesar de os doentes e os feridos terem sido deixados na outra margem do Danúbio, com uma carta de Kutúzov, confiando-os à humanidade do inimigo; apesar de os grandes hospitais e residências em Krems, transformadas em enfermarias militares, já não poderem abrigar todos os doentes e feridos — apesar de tudo isso, a parada em Krems e a vitória sobre Mortier levantaram o ânimo das tropas de modo significativo. Em todo o exército e no quartel-general corriam os rumores mais estimulantes, embora sem fundamento, sobre uma imaginária aproximação de colunas militares vindas da Rússia, sobre uma vitória conquistada pelos austríacos e sobre a retirada do amedrontado Bonaparte.
O príncipe Andrei, na hora da batalha, encontrava-se perto do general austríaco Schmidt, morto durante o combate. O seu cavalo foi ferido e ele mesmo sofreu um ligeiro arranhão na mão, causado por uma bala. Em sinal do apreço especial do comandante em chefe, o príncipe Andrei foi enviado com a notícia daquela vitória à corte austríaca, que já não se encontrava em Viena, ameaçada pelas tropas francesas, mas em Brünn. Na noite da batalha, emocionado, mas não cansado (apesar de sua constituição de aspecto fraco, o príncipe Andrei conseguia suportar o esforço físico muito melhor do que homens fortíssimos), depois de vir a cavalo até Krems trazendo um relatório do general Dokhtúrov para Kutúzov, o príncipe Andrei foi enviado para Brünn, como correio, nessa mesma noite. O seu envio como correio, além de ser um prêmio, representava um passo importante rumo à promoção.
A noite estava escura, estrelada; a estrada negrejava no meio da brancura da neve, que caíra na véspera, dia da batalha. Ora rememorando as impressões da batalha, ora imaginando com alegria a impressão que ia causar com a notícia da vitória, ora lembrando as despedidas do comandante em chefe e dos seus camaradas, o príncipe Andrei seguia a galope num coche de correio, com o sentimento de um homem que, depois de esperar muito tempo, afinal alcança o início da felicidade desejada. Mal fechava os olhos, irrompia em seus ouvidos o tiroteio dos fuzis e dos canhões, que se fundia com o barulho das rodas e com a sensação de vitória. Ora começava a imaginar que os russos estavam em fuga, que ele mesmo tinha sido morto; mas despertava às pressas, com felicidade, como se constatasse mais uma vez que nada disso era verdade e que, ao contrário, os franceses tinham sido derrotados. Lembrava de novo todos os pormenores da vitória, a sua bravura serena durante a batalha e, tranquilizando-se, cochilava... Depois de uma noite escura e estrelada, teve início uma manhã clara e alegre. A neve derretia sob o sol, os cavalos galopavam ligeiro e, à esquerda e à direita, de modo indiferente, passavam florestas, campos, aldeias.
Numa das estações de muda de cavalos, ele ultrapassou um comboio de soldados russos feridos. O oficial russo que comandava aquele transporte, refestelado numa carroça na dianteira do comboio, gritava alguma coisa, xingava um soldado com palavras grosseiras. Em compridas carroças alemãs, pela estrada de pedras, seguiam os feridos, sujos, enfaixados, pálidos, em grupos de seis ou mais. Alguns falavam (ele ouviu conversas em russo), outros comiam pão, os casos mais graves mantinham-se calados e olhavam, com a curiosidade dócil e infantil dos doentes, para o coche de correio que passava a galope por eles.
O príncipe Andrei mandou parar e perguntou aos soldados em que combate tinham sido feridos. “Anteontem, no Danúbio”, respondeu um soldado. O príncipe Andrei pegou o porta-moedas e deu ao soldado três moedas de ouro.
— É para todos — acrescentou, dirigindo-se ao oficial que se aproximava. — Fiquem curados logo, rapazes — disse para os soldados. — Ainda há muita luta.
— E então, ajudante de ordens, quais são as novidades? — perguntou o oficial, obviamente ansioso para conversar.
— Boas notícias! Em frente — gritou para o cocheiro e partiu a galope.
Já estava completamente escuro quando o príncipe Andrei entrou em Brünn e se viu cercado por prédios altos, pelas luzes das lojas, pelas janelas das casas e dos lampiões, pelas belas carruagens que faziam barulho no calçamento e por toda a atmosfera de uma grande cidade agitada, sempre tão atraente para um militar depois do tempo passado em acampamentos. O príncipe Andrei, apesar da viagem apressada e da noite sem dormir, ao se aproximar do palácio se sentia ainda mais animado do que na véspera. Só os olhos cintilavam com um brilho febril, e os pensamentos se modificavam com uma rapidez e uma nitidez extraordinárias. De novo, com vivacidade, vinham à mente todos os pormenores da batalha, já não de forma vaga, mas sim bem definida, no resumo conciso que ele, em pensamento, iria fazer para o imperador Francisco. Imaginava com clareza as perguntas de improviso que poderiam lhe apresentar e as respostas que daria. Supunha que seria prontamente levado à presença do imperador. Mas, diante da entrada principal do palácio, um funcionário veio ao seu encontro e, ao saber que se tratava de um mensageiro, levou-o para outra entrada.
— À direita, pelo corredor; lá, Euer Hochgeboren 26 encontrará o ajudante de ordens de serviço — disse o funcionário. — Ele vai levá-lo ao ministro da Guerra.
O ajudante de ordens de serviço, ao encontrar-se com o príncipe Andrei, pediu-lhe que esperasse e foi falar com o ministro da Guerra. Cinco minutos depois, o ajudante de ordens voltou e, curvando-se numa reverência especialmente respeitosa e deixando o príncipe caminhar à sua frente, conduziu-o por um corredor rumo ao gabinete onde trabalhava o ministro da Guerra. O ajudante de ordens, com sua cortesia requintada, queria, pelo visto, proteger-se de qualquer tentativa de familiaridade da parte do ajudante de ordens russo. O sentimento de alegria do príncipe Andrei enfraquecia bastante, à medida que ele se aproximava da porta do gabinete do ministro da Guerra. Sentiu-se ofendido e, num instante, sem que ele mesmo notasse, o sentimento de ofensa transformou-se num sentimento de desprezo, sem nenhuma justificação. Sua inteligência inventiva lhe sugeriu, no mesmo instante, um ponto de vista que lhe dava o direito de desprezar o ajudante de ordens e também o ministro da Guerra. “Para eles, que não sentem o cheiro da pólvora, deve parecer muito fácil alcançar uma vitória!”, pensou. Seus olhos se estreitaram com desprezo; ele entrou no gabinete do ministro da Guerra com uma lentidão estudada. Aquele sentimento reforçou-se mais ainda quando viu o ministro da Guerra sentado diante de uma mesa grande, sem voltar, durante os dois primeiros minutos, a atenção para o recém-chegado. O ministro da Guerra, calvo, de costeletas grisalhas, estava com a cabeça abaixada entre duas velas de cera e lia documentos, marcando-os com um lápis. Estava terminando de ler, sem erguer a cabeça, quando a porta se abriu e soaram passos.
— Tome isto e transmita — disse o ministro da Guerra para o seu ajudante de ordens, entregando-lhe os papéis, ainda sem voltar a atenção para o mensageiro.
O príncipe Andrei sentiu que, ou entre todos os assuntos que preocupavam o ministro da Guerra as operações do exército de Kutúzov era aquele que menos podia lhe interessar, ou ele precisava dar essa sensação ao mensageiro russo. “Mas para mim tanto faz”, pensou. O ministro da Guerra passou o resto dos papéis para outro lugar da mesa, alinhou-os pela margem das folhas e levantou a cabeça. Tinha uma cabeça inteligente e peculiar. Mas, no mesmo instante em que se voltou para o príncipe Andrei, a expressão inteligente e firme do rosto do ministro da Guerra se alterou de um modo obviamente habitual e deliberado: no seu rosto, fixou-se um sorriso idiota, fingido, que não escondia a sua falsidade, o sorriso de um homem que recebia, uma após outra, muitas pessoas que vinham lhe fazer pedidos.
— Da parte do general marechal Kutúzov? — perguntou ele. — Boas notícias, espero. Houve um combate com Mortier? Vitória? Já era tempo!
Pegou o despacho que vinha em seu nome e começou a ler, com expressão tristonha.
— Ah, meu Deus! Meu Deus! Schmidt! — exclamou em alemão. — Que infelicidade, que infelicidade!
Passou os olhos pelo despacho, colocou-o sobre a mesa e olhou para o príncipe Andrei, enquanto obviamente ponderava alguma coisa.
— Ah, que infelicidade! O combate, pelo que o senhor diz, foi decisivo? No entanto não capturaram Mortier. (Ele pensou um instante.) Fico muito feliz que o senhor tenha trazido boas notícias, embora a morte de Schmidt tenha sido um preço alto pela vitória. Sua alteza certamente vai querer ver o senhor, mas não hoje. Agradeço, vá descansar. Amanhã, esteja na recepção, após a parada. Ou melhor, mandarei avisar o senhor.
O sorriso idiota, que havia sumido durante a conversa, apareceu outra vez no rosto do ministro da Guerra.
— Até logo, e muito obrigado. O soberano imperador certamente vai querer ver o senhor — repetiu e inclinou a cabeça.
Quando o príncipe Andrei saiu do palácio, sentiu que todo o interesse e toda a felicidade que a vitória lhe havia trazido agora o haviam deixado, para ficar nas mãos indiferentes do ministro da Guerra e do respeitoso ajudante de ordens. Todo o teor de seus pensamentos num instante se alterou: a batalha surgiu para ele como uma lembrança remota, antiga.
X
O príncipe Andrei alojou-se em Brünn na casa de um conhecido, o diplomata russo Bilíbin.
— Ah, caro príncipe, o hóspede mais simpático que existe — disse Bilíbin, saindo ao encontro do príncipe Andrei. — Franz, leve a bagagem do príncipe para o meu quarto! — dirigiu-se ao criado que recebera Bolkónski. — E então, é o mensageiro da vitória? Excelente. E eu fico aqui, doente, como está vendo.
O príncipe Andrei, após lavar-se e trocar de roupa, seguiu para o escritório luxuoso do diplomata e sentou-se diante de um jantar preparado para ele. Bilíbin acomodou-se junto à lareira.
O príncipe Andrei, não só após a viagem, como também depois de toda a marcha, tempo durante o qual esteve privado de todas as comodidades da limpeza e dos requintes da vida, provava uma agradável sensação de repouso, em meio às luxuosas condições de vida a que estava habituado desde a infância. Além disso, depois da recepção austríaca, era agradável conversar, ainda que não fosse em russo (os dois conversavam em francês), mas pelo menos com uma pessoa russa, que ele supunha compartilhar a generalizada aversão russa (experimentada agora de modo especialmente vivo) em relação aos austríacos.
Bilíbin era um homem de uns trinta e cinco anos, solteiro, da mesma esfera social que o príncipe Andrei. Conheceram-se ainda em Petersburgo, mas se tornaram ainda mais próximos na última estada do príncipe Andrei em Viena, junto a Kutúzov. A exemplo do príncipe Andrei, que era um homem jovem e prometia ir longe na carreira militar, assim também Bilíbin prometia, e mais ainda, na carreira diplomática. Ainda era um homem jovem, mas já era um diplomata vivido, pois começara a carreira aos dezesseis anos, estivera em Paris, Copenhague, e agora ocupava um posto muito importante em Viena. Tanto o chanceler como o nosso embaixador em Viena o conheciam e o estimavam. Bilíbin não era um desses muitos diplomatas que, para serem tidos como ótimos diplomatas, são obrigados a possuir apenas qualidades negativas, não fazer determinadas coisas e falar francês; era um desses diplomatas que sabem e amam trabalhar e, apesar da preguiça, às vezes passava noites em claro na escrivaninha. Trabalhava igualmente bem, qualquer que fosse a natureza do serviço. Não lhe interessava a pergunta “Para quê?”, mas sim a pergunta “Como?”. Para ele, não importava em que consistia determinada questão diplomática; mas sim redigir, com habilidade, acerto e elegância, uma circular, um memorando ou um relatório — nisso ele encontrava um grande prazer. Além de seu talento no trabalho de escrita, os méritos de Bilíbin eram apreciados também na arte de tratar e conversar nas altas esferas.
Bilíbin gostava tanto de conversas quanto do trabalho, mas só quando a conversa podia ser elegante e espirituosa. Em sociedade, estava constantemente à espera de uma chance de falar algo admirável e não entrava numa conversa senão nessas condições. A conversa de Bilíbin era o tempo todo salpicada de frases bem-acabadas, originais e espirituosas, de interesse geral. Tais frases eram preparadas no laboratório interior de Bilíbin, intencionalmente, como se fossem um patrimônio móvel, para que as pessoas fúteis da sociedade pudessem, oportunamente, se lembrar delas e transportá-las de um salão para outro. E de fato les mots de Bilibine se colportaient dans les salons de Vienne,27 e muitas vezes tinham influência nos chamados assuntos importantes.
O seu rosto magro, exausto, amarelado, era todo coberto de rugas grandes, que sempre pareciam ter sido lavadas com tanto esmero e cuidado como ficam as pontinhas dos dedos depois do banho. Os movimentos dessas rugas constituíam a principal manobra da sua fisionomia. Ora ele franzia a testa com vincos largos, e as sobrancelhas levantavam-se, ora as sobrancelhas baixavam e, na bochecha, formavam-se rugas volumosas. Os olhos pequenos, afundados no rosto, sempre miravam de maneira franca e alegre.
— Bem, agora conte-nos as suas façanhas — disse ele.
Bolkónski, do modo mais modesto, sem mencionar a si mesmo nem uma vez, contou a batalha e a recepção do ministro da Guerra.
— Ils m’ont reçu avec ma nouvelle, comme un chien dans un jeu de quilles 28 — concluiu.
Bilíbin deu um sorriso e desfez os vincos do rosto.
— Cependant, mon cher — disse ele, examinando as unhas de longe e encolhendo a pele embaixo do olho esquerdo —, malgré la haute estime que je professe pour le Exército ortodoxo russo, j’avoue que votre victoire n’est pas des plus victorieuses.29
Continuou a falar em francês, pronunciando em russo apenas as palavras que ele queria sublinhar com desdém.
— Vejamos. Vocês, com a sua massa, desabaram sobre o pobre Mortier, que tinha uma única divisão, e esse Mortier ainda escapou das mãos de vocês? Onde está a vitória?
— No entanto, falando sério — respondeu o príncipe Andrei —, mesmo assim podemos dizer, sem nos vangloriar, que foi um pouco melhor do que aconteceu em Ulm...
— Por que não capturaram para nós um marechal, pelo menos um?
— Porque nem tudo acontece como se supõe, nem de modo tão regular como numa parada. Achávamos, como eu lhe disse, que íamos alcançar a retaguarda deles às sete horas da manhã, mas só chegamos às cinco da tarde.
— E por que não chegaram às sete da manhã? Era preciso chegar às sete da manhã — disse Bilíbin, sorrindo. — Era preciso chegar às sete da manhã.
— E por que vocês não conseguiram, pelas vias diplomáticas, convencer Bonaparte de que era melhor abandonar Gênova? — disse o príncipe Andrei, no mesmo tom.
— Eu sei — cortou Bilíbin —, você acha que é muito fácil prender marechais, quando se está sentado num sofá, na frente de uma lareira. É verdade, no entanto por que não o capturaram? E não se admire de que não só o ministro da Guerra mas também o augusto imperador e rei Francisco não fiquem muito exultantes com a sua vitória; até eu, um pobre secretário da embaixada russa, não sinto nenhum desejo de, em sinal de alegria, dar um táler para o meu criado Franz e lhe conceder folga para que passeie com a sua Liebchen30 no Prater...31 Na verdade, aqui não existe nenhum Prater.
Olhou direto nos olhos do príncipe Andrei e de repente relaxou a pele enrugada na testa.
— Agora, meu caro, é minha vez de perguntar a você “por quê” — disse Bolkónski. — Admito que não compreendo, talvez haja aqui sutilezas diplomáticas mais elevadas do que o meu fraco entendimento, mas eu não compreendo: Mack perde um exército inteiro, o arquiduque Ferdinando e o arquiduque Carlos não dão nenhum sinal de vida, cometem um erro após o outro, por fim só Kutúzov alcança uma autêntica vitória, quebra o charme 32 dos franceses, e o ministro da Guerra nem se interessa em saber dos detalhes.
— Exatamente por isso, meu caro. Voyez-vous, mon cher: Hurra ao tsar! À Rússia! À fé! Tout ça est bel et bon, mas para nós, quero dizer, para a corte austríaca, o que importam as vitórias de vocês? Se a boa notícia que o senhor nos traz fosse de uma vitória do arquiduque Carlos ou do arquiduque Ferdinando, un archiduc vaut l’autre, como o senhor sabe, ainda que fosse contra uma brigada de bombeiros de Bonaparte, aí era outra coisa, nós faríamos troar os canhões. Mas isso, e até parece de propósito, só serve para nos irritar. O arquiduque Carlos não faz nada, o arquiduque Ferdinando se cobre de vergonha. Vocês abandonam Viena, não a protegem mais, comme si vous nous disiez: Deus nos ajude, e que Deus ajude vocês e a sua capital. O único general a quem todos amávamos, Schmidt: vocês o puseram sob o fogo inimigo e nos congratulam com uma vitória!... Admita que é impossível imaginar uma notícia mais irritante do que essa que nos trouxe. C’est comme un fait exprès, comme un fait exprès.33 Além disso, ora, mesmo que vocês tivessem alcançado uma vitória brilhante, e até mesmo que o arquiduque Carlos tivesse obtido uma vitória, em que isso mudaria a marcha geral dos acontecimentos? Agora é tarde, pois Viena está ocupada pelas tropas francesas.
— Ocupada como? Viena, ocupada?
— Não só ocupada, como Bonaparte está em Schönbrunn,34 e o conde, o nosso querido conde Wrbna, recebe ordens dele.
Bolkónski, depois do cansaço e das impressões da viagem, da recepção e, em especial, depois do jantar, sentia que não estava compreendendo todo o sentido das palavras que ouvia.
— Esta manhã esteve aqui o conde Lichtenfels — prosseguiu Bilíbin — e mostrou-me uma carta que descreve, em detalhes, a parada dos franceses em Viena. Le prince Murat et tout le tremblement...35 Veja que a sua vitória não é lá das mais animadoras e que o senhor não pode ser recebido como um salvador...
— Na verdade, para mim tanto faz, não me importo! — disse o príncipe Andrei, começando a entender que a sua notícia sobre a batalha em Krems tinha, de fato, pouca importância, em vista de acontecimentos como a tomada da capital da Áustria. — Quer dizer que Viena foi ocupada? E a ponte e a famosa tête de pont,36 e o príncipe Auersperg? Ouvimos rumores de que o príncipe Auersperg estava protegendo Viena — disse ele.
— O príncipe Auersperg está do lado de cá, do nosso lado, e defende a nós; acho que defende muito mal, mas mesmo assim defende. No entanto Viena está do lado de lá. A ponte ainda não foi tomada e, espero, não será tomada, porque está minada e há ordens de explodir a ponte. Do contrário, há muito que estaríamos nas montanhas da Boêmia, e você e o seu exército teriam passado maus pedaços, entre dois fogos.
— Mas, mesmo assim, isso não quer dizer que a campanha está encerrada — disse o príncipe Andrei.
— Pois eu acho que está encerrada. E assim pensam os mandachuvas por aqui, mas não se atrevem a dizer. Vai acontecer aquilo que eu dizia no início da campanha, não será a sua échauffourée de Dürrenstein 37 e, no geral, também não será a pólvora que vai resolver a questão, mas sim aqueles que a inventaram — disse Bilíbin, repetindo um de seus mots,38 relaxando a pele da testa e fazendo uma pausa. — A questão toda depende do que virá do encontro em Berlim entre o imperador Alexandre e o rei da Prússia. Se a Prússia entrar na aliança, on forcera la main à l’Autriche,39 e haverá guerra. Se não, a questão se resume em resolver onde serão redigidos os artigos preliminares de um novo Campo Formio.40
— Mas que gênio extraordinário! — exclamou de repente o príncipe Andrei, cerrando a mão pequena e batendo com ela na mesa. — E que sorte tem esse homem!
— Buonaparte? — disse Bilíbin em tom interrogativo, franzindo a testa e assim dando a entender que, em seguida, viria mais um mot. — Buonaparte? — disse ele, enfatizando o u de modo especial. — Acho, porém, que agora, quando ele, instalado em Schönbrunn, dita leis para a Áustria, il faut lui faire grâce de l’u. Positivamente, farei uma inovação e vou chamá-lo de Bonaparte tout court.41
— Não, sem brincadeira — disse o príncipe Andrei —, você acha mesmo que a campanha terminou?
— Eis o que eu penso. A Áustria foi feita de boba, e não está acostumada a isso. E vai se vingar. Ela fez papel de boba porque, em primeiro lugar, as províncias foram devastadas (on dit, le ortodoxo est terrible pour le pillage), o Exército foi aniquilado, a capital foi tomada, e tudo isso pour les beaux yeux du sua majestade da Sardenha. E porque, entre nous, mon cher,42 eu farejo que estão nos enganando, eu farejo que há conversas com a França e projetos de paz, de uma paz secreta, feita em separado.
— Não pode ser! — disse o príncipe Andrei. — Seria sórdido demais.
— Qui vivra verra 43 — disse Bilíbin, relaxando de novo a pele da testa, em sinal de que a conversa havia terminado.
Quando o príncipe Andrei foi para o quarto preparado para ele e, num pijama limpo, deitou-se no colchão de penas e nos travesseiros aquecidos e perfumados — sentiu que aquela batalha da qual trouxera a notícia estava distante, muito distante dele. A aliança da Prússia, a traição da Áustria, o novo triunfo de Bonaparte, a recepção e a parada, e a audiência com o imperador Francisco no dia seguinte concentravam suas preocupações.
Fechou os olhos, mas no mesmo instante ressoaram em seus ouvidos descargas de canhões, tiros, o estrépito de rodas de carruagens, e de novo os mosqueteiros desciam das montanhas, dispostos em linha, os franceses atiravam, e ele sentia que o seu coração tremia, e ele avançava para a primeira fila junto de Schmidt, as balas assoviavam alegremente à sua volta, e ele provava aquela sensação da alegria da vida multiplicada por dez, como não sentia desde a infância.
Acordou...
“Sim, tudo isso aconteceu!...”, pensou, sorrindo para si mesmo, feliz, de modo infantil, e adormeceu num sono jovem e profundo.
XI
No dia seguinte, acordou cedo. Retomando as impressões recentes, recordou antes de tudo que naquele dia teria de se apresentar ao imperador Francisco, lembrou-se do ministro da Guerra, do cerimonioso ajudante de ordens austríaco, de Bilíbin e da conversa da noite anterior. Vestiu-se com o uniforme completo de parada, que já não vestia havia muito tempo, para ir ao palácio, e, fresco, animado e bonito, com a mão enfaixada, entrou no gabinete de Bilíbin. Havia quatro senhores do corpo diplomático dentro do gabinete. Bolkónski já conhecia o príncipe Hippolyte, secretário da embaixada; Bilíbin apresentou-o aos demais.
Os senhores que estavam no gabinete de Bilíbin, gente da sociedade, jovens, ricos e alegres, formavam, tanto ali como em Viena, um círculo à parte, que Bilíbin, o cabeça desse círculo, chamava de os nossos, les nôtres. Formado quase exclusivamente por diplomatas, o círculo tinha interesses próprios, que obviamente nada tinham a ver com a guerra e a política, mas sim com a mais alta sociedade, com as relações com certas mulheres e com o lado burocrático da carreira. Aqueles senhores, com prazer, pelo visto, receberam o príncipe Andrei como um igual em seu círculo (honra que a poucos concediam). Por cortesia, e como um pretexto para entabular conversa, fizeram-lhe algumas perguntas sobre o exército e a batalha, e a conversa dispersou-se de novo em gracejos e mexericos inconsequentes.
— Mas o melhor de tudo — disse um deles, que contava a desgraça de um colega diplomata —, o melhor de tudo foi que o chanceler lhe disse, de forma direta, que a sua nomeação para Londres era uma promoção e que ele também devia encará-la assim. Podem imaginar a cara que ele fez ao ouvir isso?...
— Mas o pior de tudo, senhores, e agora vou denunciar Kuráguin aos senhores, é que o homem está em desgraça, e disso se aproveita este don-juan, este homem detestável!
O príncipe Hippolyte estava estirado numa poltrona Voltaire, as pernas apoiadas sobre o braço da poltrona. Desatou uma risada.
— Parlez-moi de ça 44 — disse ele.
— Oh, don-juan! Oh, serpente — ouviram-se vozes.
— O senhor não sabe, Bolkónski — voltou-se Bilíbin para o príncipe Andrei —, que todos os horrores do Exército francês (por pouco não falei Exército russo) não são nada em comparação com o que anda fazendo este homem entre as mulheres.
— La femme est la compagne de l’homme 45 — declarou o príncipe Hippolyte e pôs-se a olhar, através do lornhão, para os próprios pés levantados.
Bilíbin e os nossos soltaram uma gargalhada, fitando os olhos de Hippolyte. O príncipe Andrei percebeu que o tal Hippolyte, do qual ele (tinha de reconhecer) quase sentira ciúmes por causa da sua esposa, era o bufão naquele grupo.
— Não, eu tenho que dar ao senhor uma amostra do Kuráguin — disse Bilíbin para Bolkónski em voz baixa. — Ele é encantador quando fala sobre política, só vendo que imponência.
Sentou-se ao lado de Hippolyte, armou suas rugas na testa e entabulou com ele uma conversa sobre política. O príncipe Andrei e os outros rodearam-nos.
— Le cabinet de Berlin ne peut pas exprimer un sentiment d’alliance — começou Hippolyte, olhando para todos com um ar significativo — sans exprimer... comme dans sa dernière note... vous comprenez... vous comprenez... et puis si Sa Majesté l’empereur ne déroge pas au principe de notre alliance... Attendez, je n’ai pas fini... — disse ele para o príncipe Andrei, segurando-o pelo braço. — Je suppose que l’intervention sera plus forte que la non-intervention. Et... — Fez uma pausa. — On ne pourra pas imputer à la fin de non-recevoir notre dépêche du 28 octobre. Voilà comment tout cela finira.46
E soltou o braço de Bolkónski, mostrando com isso que agora havia concluído de fato.
— Demosthène, je te reconnais au caillou que tu as caché dans ta bouche d’or!47 — disse Bilíbin, cujo gorro de cabelos sobre a cabeça se movia de contentamento.
Todos riram. Hippolyte riu mais alto que todos. Sofria visivelmente, sufocava, mas não conseguia conter a risada feroz, que distendia o seu rosto sempre imóvel.
— E agora, vejam, senhores — disse Bilíbin —, Bolkónski é meu hóspede, em minha casa, e está aqui em Brünn, e eu gostaria de lhe oferecer, na medida do possível, todas as alegrias da vida local. Se estivéssemos em Viena, seria fácil; mas aqui, dans ce vilain trou morave, é mais difícil, e peço ajuda a todos. Il faut lui faire les honneurs de Brünn.48 Os senhores se encarregam do teatro, eu, da sociedade, e você, Hippolyte, é claro, das mulheres.
— É preciso apresentar-lhe Amélie, é um encanto! — disse um dos nossos, e beijou a pontinha dos dedos.
— Em suma, é preciso voltar este soldado sanguinário — disse Bilíbin — para interesses mais filantrópicos.
— Mal pude aproveitar a hospitalidade dos senhores, e já está na hora de ir embora — disse Bolkónski, olhando de relance para o relógio.
— Para onde vai?
— A um encontro com o imperador.
— Oh! Oh! Oh!
— Bem, até logo, Bolkónski! Até a vista, príncipe; chegue mais cedo para o jantar — soaram vozes. — Contamos com o senhor.
— Faça um esforço para elogiar, o máximo possível, o fornecimento de provisões e o bom estado das estradas, quando estiver conversando com o imperador — disse Bilíbin, enquanto acompanhava Bolkónski até a saída.
— Bem que eu gostaria de elogiar, mas não posso, pelo que eu conheço — respondeu Bolkónski, sorrindo.
— Bem, então, no geral, fale o mais que puder. Ele tem paixão por audiências; e não gosta de falar, e nem sabe, como o senhor mesmo verá.
XII
Na recepção, o imperador Francisco apenas lançou um olhar demorado para o rosto do príncipe Andrei, que estava de pé no lugar que lhe fora indicado, entre os oficiais austríacos, e lhe dirigiu um aceno com a cabeça comprida. Mas, depois da cerimônia, o mesmo ajudante de ordens do dia anterior, com cortesia, transmitiu ao príncipe Bolkónski o desejo do imperador de lhe conceder uma audiência. O imperador Francisco recebeu-o de pé no meio da sala. Antes de começar a conversa, o príncipe Andrei surpreendeu-se ao ver que o imperador parecia embaraçado, sem saber o que dizer, e ruborizado.
— Diga-me, quando a batalha começou? — perguntou, às pressas.
O príncipe Andrei respondeu. Depois dessa pergunta, seguiram-se outras, igualmente simples: “Como vai a saúde de Kutúzov? Há quanto tempo saiu de Krems?” etc. O imperador falava com tal expressão que parecia ter o único propósito de formular um número determinado de perguntas. Já as respostas não conseguiam interessá-lo, como ficou evidente.
— A que horas começou a batalha? — perguntou o imperador.
— Não posso informar vossa alteza a que horas começaram os choques no front, mas em Dürrenstein, onde eu me encontrava, as tropas começaram o ataque às seis da tarde — disse Bolkónski, animando-se, e dessa vez supôs que teria a chance de apresentar o relato fidedigno, que já trazia preparado na cabeça, de tudo o que ele sabia e tinha visto.
Mas o imperador sorriu e interrompeu-o.
— Quantas milhas?
— De onde até onde, vossa alteza?
— De Dürrenstein a Krems.
— Três milhas e meia,49 vossa alteza.
— Os franceses abandonaram a margem esquerda?
— Pelo que informaram os espiões, os últimos atravessaram nas balsas à noite.
— Há forragem suficiente em Krems?
— A forragem não foi entregue na quantidade que...
O imperador interrompeu-o.
— A que horas o general Schmidt foi morto?...
— Às sete horas, mais ou menos.
— Às sete horas. É muito triste! Muito triste!
O imperador agradeceu e cumprimentou-o com uma reverência. O príncipe Andrei saiu e imediatamente foi cercado, de todos os lados, por cortesãos. Olhares carinhosos o miravam e ouviam-se palavras carinhosas de todos os lados. O ajudante de ordens do dia anterior lhe fez uma repreensão por não ter se hospedado no palácio e lhe ofereceu a própria casa. O ministro da Guerra aproximou-se, condecorou-o com a Ordem de Maria Teresa de terceira classe, que o imperador lhe conferiu. O camareiro da imperatriz convidou-o para ver sua alteza. A arquiduquesa também queria vê-lo. Ele não sabia a quem responder e levou alguns segundos para ordenar os pensamentos. O embaixador russo segurou-o pelo ombro, levou-o até a janela e pôs-se a falar com ele.
Ao contrário das palavras de Bilíbin, a notícia trazida pelo príncipe Andrei foi recebida com alegria. Mandaram celebrar uma missa em ação de graças. Kutúzov foi condecorado com a Grã-Cruz de Maria Teresa, e o exército inteiro recebeu condecorações. Bolkónski recebeu convites de todos os lados e, durante toda a manhã, teve de fazer visitas aos principais dignitários da Áustria. Após terminar suas visitas, já depois das quatro horas da tarde, redigindo mentalmente uma carta para o pai sobre a batalha e a viagem a Brünn, o príncipe Andrei voltou para a casa de Bilíbin. Diante da varanda da casa ocupada por Bilíbin, estava uma carroça cheia de bagagens até a metade, e Franz, o criado de Bilíbin, saiu pela porta carregando uma mala com esforço. Antes de ir à casa de Bilíbin, o príncipe Andrei havia passado numa livraria a fim de se abastecer de livros para a campanha e ficara ali por um tempo.
— O que houve? — perguntou Bolkónski.
— Ach, Erlaucht! — disse Franz, colocando a mala na carroça com dificuldade. — Wir ziehen noch weiter. Der Bösewicht ist schon wieder hinter uns her! 50
— Como assim? O que foi? — perguntou o príncipe Andrei.
Bilíbin foi ao encontro de Bolkónski. No rosto sempre calmo de Bilíbin havia uma perturbação.
— Non, non, avouez que c’est charmant — disse ele —, cette histoire du pont de Thabor. Ils l’ont passé sans coup férir.51
O príncipe Andrei não estava entendendo nada.
— Mas por onde o senhor andou que não sabe o que todos os cocheiros da cidade já sabem?
— Venho da casa da arquiduquesa. Lá, eu não soube de nada.
— E não viu que em toda parte todos estão fazendo as malas?
— Não vi... Mas o que aconteceu? — perguntou o príncipe Andrei, com impaciência.
— O que aconteceu? Aconteceu que os franceses atravessaram a ponte que Auersperg estava defendendo, não explodiram a ponte, e assim Murat está vindo pela estrada para Brünn, bem depressa, e hoje ou amanhã estarão aqui.
— Aqui? Como? Por que não explodiram a ponte, se estava minada?
— É o que eu pergunto ao senhor. Isso ninguém sabe, nem mesmo Bonaparte.
Bolkónski encolheu os ombros.
— Mas, se atravessaram a ponte, quer dizer que o exército está perdido: vão cortar o seu caminho — disse ele.
— Aí é que está a graça — respondeu Bilíbin. — Preste atenção. Os franceses tomam Viena, como eu lhe disse. Muito bem. No dia seguinte, ou seja, ontem, os senhores marechais Murat, Lannes e Belliard montam em seus cavalos e marcham rumo à ponte. (Observe que os três são gascões.) Senhores, diz um deles, sabemos que a ponte de Thabor está minada e contraminada e que diante dela estão uma terrível tête de pont e um exército de quinze mil homens, com ordens de explodir a ponte e não deixar que atravessemos. Mas o nosso soberano imperador Napoleão gostaria muito que tomássemos essa ponte. Vamos lá nós três e tomemos a ponte. Vamos, responderam os outros; e eles vão, e tomam a ponte, atravessam o rio e agora, com todo o exército do lado de cá do Danúbio, marcham contra vocês e as suas comunicações.
— Chega de brincadeira — disse o príncipe Andrei, em tom triste e sério.
Aquela notícia era amarga e, ao mesmo tempo, agradável para o príncipe Andrei. Assim que soube que o exército se achava em tal situação desesperadora, veio-lhe à cabeça que justamente ele estava predestinado a retirar o exército russo daquela situação, que aquilo seria a sua Toulon,52 que o destacaria das fileiras dos oficiais desconhecidos e lhe abriria as portas para a glória! Enquanto escutava Bilíbin, ele já imaginava como chegaria ao exército e, num conselho de guerra, daria a opinião que salvaria o exército e seria sozinho incumbido de executar aquele plano.
— Chega de brincadeira — disse ele.
— Não estou brincando — prosseguiu Bilíbin —, não há nada mais verdadeiro e mais triste. Aqueles senhores vêm até a ponte sozinhos e acenam com lenços brancos; asseguram que há um armistício e que eles, os marechais, vão travar conversações com o príncipe Auersperg. O oficial de serviço deixa que eles passem pela tête de pont. Eles lhe contam mil tolices gasconhas: dizem que a guerra acabou, que o imperador Francisco marcou uma reunião com Bonaparte, que eles querem se encontrar com o príncipe Auersperg e outras mil gasconadas desse tipo. O oficial manda avisar Auersperg; os três cavalheiros abraçam os oficiais, contam piadas, sentam-se sobre os canhões, e enquanto isso um batalhão francês entra na ponte discretamente, lança na água os sacos de material inflamável e se aproxima da tête de pont. Por fim, aparece o próprio tenente-general, o nosso querido príncipe Auersperg von Mautern. “Inimigo querido! Flor do Exército austríaco, herói da guerra turca! As hostilidades acabaram, podemos apertar as mãos... o imperador Napoleão está louco de vontade de conhecer o príncipe Auersperg.” Em suma, aqueles senhores, não por acaso gascões, de tal modo enchem Auersperg de palavras bonitas, e ele mesmo fica tão fascinado com a sua intimidade com os marechais franceses, alcançada tão rapidamente, e fica tão ofuscado com a visão do manto e das plumas de avestruz de Murat, qu’il n’y voit que du feu, et oublie celui qu’il devait faire sur l’ennemi. (Apesar do entusiasmo da sua fala, Bilíbin não esqueceu de fazer uma pausa depois desse mot, a fim de dar tempo para o ouvinte apreciá-lo.) O batalhão francês penetra ligeiro na tête de pont, fixa os canhões e toma a ponte. Mas o melhor de tudo não está nisso — prosseguiu, enquanto sua agitação se acalmava, por força do encanto do seu próprio relato —, o melhor de tudo é o que o sargento encarregado do canhão que daria o sinal para deflagrar as minas e explodir a ponte, esse mesmo sargento, ao ver que as tropas francesas corriam sobre a ponte, quis disparar, mas Lannes segurou o seu braço. O sargento, que pelo visto era mais inteligente do que o seu general, aproxima-se de Auersperg e diz: “Príncipe, estão enganando o senhor, os franceses estão aqui!”. Murat vê que vai perder a parada, se deixar o sargento falar. Então dirige-se a Auersperg com espanto (é um autêntico gascão): “Não estou reconhecendo a disciplina austríaca, tão apreciada em todo o mundo”, diz ele, “se o senhor pode permitir que um subalterno tão inferior lhe fale dessa maneira!”. C’est génial. Le prince d’Auersperg se pique d’honneur et fait mettre le sergent aux arrêts. Non, mais avouez que c’est charmant toute cette histoire du pont de Thabor. Ce n’est ni bêtise, ni lâcheté...53
— C’est trahison peut-être 54 — disse o príncipe Andrei, revendo em pensamento os capotes cinzentos, os feridos, a fumaça da pólvora, o barulho dos tiros e a glória que o aguardava.
— Non plus. Cela met la cour dans de trop mauvais draps — prosseguiu Bilíbin. — Ce n’est ni trahison, ni lâcheté, ni bêtise; c’est comme à Ulm... — Pareceu refletir um pouco, à procura de uma expressão. — C’est... c’est du Mack. Nous sommes mackés 55 — concluiu, sentindo que dizia um mot, e um mot novo em folha, um mot que iria ser repetido.
As rugas até então avolumadas na testa desmancharam-se rapidamente, em sinal de contentamento, e ele, sorrindo de leve, pôs-se a olhar para as unhas.
— Para onde vai? — perguntou de repente, voltando-se para o príncipe Andrei, que se levantara e seguia para o seu quarto.
— Vou partir.
— Para onde?
— Para o exército.
— Mas o senhor não queria ficar aqui dois dias?
— Agora vou partir logo.
E o príncipe Andrei, depois de dar ordens de preparar as malas para a sua partida, seguiu para o quarto.
— Sabe de uma coisa, meu caro — disse Bilíbin, entrando no quarto dele. — Fiquei pensando a respeito do senhor. Por que vai partir?
E, como prova de que o seu argumento era irrefutável, todas as rugas abandonaram o seu rosto.
O príncipe Andrei fitou o seu interlocutor com ar interrogativo e nada respondeu.
— Para que o senhor vai partir? Eu sei, o senhor acha que é seu dever ir a galope ao encontro do exército, agora que o exército está em perigo. Eu acho que isso, mon cher, c’est l’héroïsme.56
— Nada disso — respondeu o príncipe Andrei.
— Mas o senhor é un philosophe, pois então seja um filósofo por inteiro, examine as coisas de um outro ângulo e vai ver que o seu dever, ao contrário, é resguardar-se. Deixe isso para outros, que não servem para mais nada... O senhor não recebeu ordens para voltar, e aqui não o mandaram embora; talvez o senhor pudesse ficar e ir conosco para onde o destino infeliz nos arrastar. Dizem que vão para Olmütz. E Olmütz é uma cidade muito amável. Eu e o senhor viajaremos tranquilamente na minha carruagem.
— Pare de brincar, Bilíbin — disse Bolkónski.
— Estou falando com sinceridade e como amigo. Reflita bem. Para onde e para que o senhor irá agora, quando pode ficar aqui? À sua espera podem estar duas coisas (ele contraiu a pele sobre a têmpora esquerda): ou o senhor só chegará ao exército depois que a paz for assinada, ou tomará parte da derrota e da vergonha de todo o exército de Kutúzov.
E Bilíbin relaxou a pele, sentindo que aquele dilema era irrefutável.
— Não consigo raciocinar dessa forma — disse friamente o príncipe Andrei, e pensou: “Vou partir para salvar o exército”.
— Mon cher, vous êtes un héros 57 — disse Bilíbin.
XIII
Naquela mesma noite, depois de se despedir do ministro da Guerra, Bolkónski partiu para o exército, sem saber onde o encontraria e sob o risco de ser detido pelos franceses na estrada para Krems.
Em Brünn, todas as pessoas da corte faziam as malas e já haviam despachado a bagagem pesada para Olmütz. Perto de Hetzelsdorf, o príncipe Andrei tomou a estrada pela qual o exército russo se deslocava, em grande pressa e em grande desordem. A estrada estava tão atravancada de carroças que era impossível passar com a carruagem. Depois de pegar um cavalo e um cossaco com o comandante dos cossacos, o príncipe Andrei, faminto e cansado, ultrapassando os comboios, saiu à procura do comandante em chefe e sua carruagem. Na estrada, tinha ouvido os rumores mais sinistros sobre a situação do exército, e o aspecto afobado e sem ordem do exército vinha confirmar aqueles rumores.
“Cette armée russe que l’or de l’Angleterre a transportée, des extrémités de l’univers, nous allons lui faire éprouver le même sort (le sort de l’armée d’Ulm)”,58 ele recordou as palavras da proclamação de Bonaparte para o seu exército, no início da campanha, e aquelas palavras despertavam nele, ao mesmo tempo, a admiração pelo herói genial, o sentimento de orgulho ferido e uma esperança de glória. “E se nada mais restar, senão morrer?”, pensou ele. “Que seja, se for preciso! Não farei isso pior do que os outros.”
O príncipe Andrei olhava com desprezo para aqueles intermináveis aglomerados de destacamentos, carroças, peças de artilharia, e mais carroças, carroças e carroças de todos os feitios possíveis, que se ultrapassavam umas às outras e, em fileiras de três, de quatro, atravancavam a estrada enlameada. De todos os lados, atrás e na frente, até onde o ouvido alcançava, ouvia-se o barulho de rodas, o estrondo de carrocerias, de telegas e de carretas, o tropel de cavalos, chicotadas, gritos de incentivo, xingamentos de soldados, de ordenanças e de oficiais. Nas margens da estrada, viam-se constantemente ora cavalos caídos, esfolados ou não, ora carroças quebradas, nas quais um soldado sozinho, sentado, esperava alguém, ora soldados desgarrados do seu destacamento que, em bandos, se dirigiam às aldeias vizinhas ou traziam de lá galinhas, carneiros, feno ou sacos cheios de qualquer coisa. Nas descidas e subidas da estrada, a multidão se tornava mais densa, e se erguia um gemido contínuo, feito de gritos. Os soldados, afogando-se na lama até os joelhos, arrastavam com os braços os canhões e os carros de carga; chicotes estalavam, cascos patinavam, tirantes rompiam e peitos rebentavam de gritar. Os oficiais que orientavam a marcha moviam-se entre os comboios, ora para a frente, ora para trás. Suas vozes ouviam-se de modo fraco em meio ao rumor geral, e em seus rostos via-se que haviam perdido a esperança de conter aquela desordem. “Voilà le cher 59 Exército ortodoxo”, pensou Bolkónski, lembrando-se das palavras de Bilíbin.
No intuito de perguntar a alguma daquelas pessoas onde estava o comandante em chefe, aproximou-se de um comboio. Logo à sua frente, movia-se uma carruagem estranha, puxada só por um cavalo, visivelmente construída pelos próprios soldados com os meios que tinham à mão e que se apresentava como alguma coisa entre a telega, o cabriolé e a caleche. Na carruagem, um soldado guiava, e uma mulher estava sentada, toda envolta em xales, sob um toldo de couro, que servia de capota. O príncipe Andrei aproximou-se e já se dirigia ao soldado para fazer a pergunta, quando os gritos desesperados da mulher, sentada sob aquela tendinha, chamaram a sua atenção. O oficial que conduzia o comboio bateu no soldado que era o cocheiro daquela charretinha porque ele queria ultrapassar os outros, e o chicote atingiu a capota da viatura. A mulher soltava gritos estridentes. Ao ver o príncipe Andrei, ela pôs a cabeça para fora da capota e, agitando os braços magros, que saíram de sob um xale acolchoado, gritou:
— Ajudante de ordens! Senhor ajudante de ordens!... Graças a Deus... Me defenda... O que vai acontecer?... Sou a esposa do médico do sétimo regimento de caçadores... Ficamos para trás; nos perdemos dos nossos...
— Vou esmagar você feito uma panqueca! Volte! — gritou o oficial, exasperado, para o soldado. — Volte para trás com a sua vagabunda.
— Senhor ajudante de ordens, me defenda. O que é isso? — gritou a mulher.
— Deixe esta viatura passar. O senhor não está vendo que é uma mulher? — disse o príncipe Andrei, aproximando-se do oficial.
O oficial lançou um olhar para ele e, sem responder, voltou-se de novo para o soldado:
— Vou fazer picadinho de você!... Para trás!...
— Deixe passar, já disse ao senhor — repetiu o príncipe Andrei, contraindo os lábios.
— Mas quem é você? — voltou-se de repente para ele o oficial, com uma fúria embriagada. — Quem é você? Você (ele enfatizou o você, de modo especial) é por acaso o comandante? Aqui, o comandante sou eu, e não você. Vá para trás, você aí — repetiu. — Vou esmagar você feito uma panqueca.
Essa expressão obviamente agradava ao oficial.
— Levou um tremendo fora, o ajudante de campo — ouviu-se uma voz, atrás.
O príncipe Andrei viu que o oficial se encontrava naquele tipo de acesso de raiva embriagada e sem motivo em que as pessoas não sabem o que falam. Viu que a sua defesa da esposa do médico, na charretinha, deu ensejo àquilo que ele mais temia no mundo, aquilo que se chamava de ridicule, no entanto o seu instinto lhe dizia outra coisa. O oficial mal teve tempo de pronunciar as últimas palavras, quando o príncipe Andrei, com o rosto desfigurado pela cólera, aproximou-se dele e levantou o chicote:
— Dei-xe-que-e-la-pas-se!
O oficial abanou a mão e afastou-se às pressas.
— É tudo por causa deles, essa gente do Estado-Maior, toda essa desordem — resmungou. — Faça como quiser.
Depressa, sem erguer os olhos, o príncipe Andrei afastou-se da esposa do médico, que o chamava de seu salvador, e, lembrando com repugnância os mínimos detalhes daquela cena humilhante, seguiu a galope para longe dali, rumo à aldeia onde, segundo lhe disseram, estava o comandante em chefe.
Ao chegar à aldeia, desmontou e entrou na primeira casa que viu, com a intenção de descansar, ainda que só por um minuto, comer alguma coisa e lançar alguma luz em todos aqueles pensamentos vergonhosos e torturantes. “Isso é uma multidão de miseráveis, não é um exército”, pensava ao se aproximar da janela da primeira casa, quando uma voz conhecida o chamou pelo nome.
Virou-se. Numa janela pequena, apareceu o rosto bonito de Nesvítski. Mastigando alguma coisa na boca molhada e acenando com a mão, Nesvítski chamava-o.
— Bolkónski, Bolkónski! Não está ouvindo, não? Venha logo — gritava.
Quando entrou na casa, o príncipe Andrei viu Nesvítski e um outro ajudante de ordens, que comiam alguma coisa. Logo se dirigiram a Bolkónski e perguntaram se ele sabia de alguma novidade. No rosto de ambos, que conhecia tão bem, o príncipe Andrei leu uma expressão de alarme e perturbação. Essa expressão era especialmente perceptível no rosto sempre risonho de Nesvítski.
— Onde está o comandante em chefe? — perguntou Bolkónski.
— Aqui, naquela casa — respondeu o ajudante de ordens.
— E então, é verdade que assinaram a paz e a capitulação? — perguntou Nesvítski.
— Eu é que pergunto a vocês. Não sei de nada, a não ser que só consegui alcançá-los a muito custo.
— Pois por aqui, irmão, que coisa! Que horror! Tenho de pedir desculpas por ter zombado de Mack, a nossa situação é pior ainda — disse Nesvítski. — Mas sente-se, coma alguma coisa.
— Agora, príncipe, não se pode conseguir nem uma carroça, não se encontra nada de nada, e o seu Piotr,60 Deus sabe o que vai ser dele — disse o outro ajudante de ordens.
— Onde está o quartel-general?
— Vamos passar a noite em Znaim.
— Quanto a mim, juntei tudo o que eu precisava e pus em dois cavalos — disse Nesvítski —, e fizeram uns embrulhos ótimos para mim. Vai dar até para atravessar as montanhas da Boêmia. A coisa anda péssima, irmão. Mas o que há, será que você está passando mal, por que está tremendo? — perguntou Nesvítski, ao notar que o príncipe Andrei tremia, como se tivesse tocado numa garrafa de Leyden.61
— Não é nada — respondeu o príncipe Andrei.
Lembrou-se, naquele instante, da recente discussão da esposa do médico com o oficial do comboio.
— O que o comandante em chefe está fazendo aqui? — perguntou.
— Eu não estou entendendo nada — disse Nesvítski.
— Só sei que tudo isto é abominável, abominável, abominável — disse o príncipe Andrei e seguiu para a casa onde estava o comandante em chefe.
Passando pela carruagem de Kutúzov, pelos esgotados cavalos de sela da sua comitiva e pelos cossacos, que conversavam entre si em altas vozes, o príncipe Andrei entrou no vestíbulo. O próprio Kutúzov, como disseram ao príncipe Andrei, estava na isbá, com o príncipe Bagration e Weyrother. Weyrother era um general austríaco, substituto do falecido Schmidt. No vestíbulo, o pequeno Kozlóvski estava de cócoras, diante de um escrivão. Sobre um barrilete virado, o escrivão, com as mangas do uniforme dobradas, escrevia às pressas. O rosto de Kozlóvski estava esgotado — era óbvio que ele também tinha passado a noite sem dormir. Lançou um olhar para o príncipe Andrei e não o cumprimentou sequer com um aceno de cabeça.
— Segunda linha... Escreveu? — prosseguiu ele, ditando ao escrivão. — Os granadeiros de Kíev, de Podólia...
— Devagar, vossa excelência — respondeu o escrivão, lançando um olhar desrespeitoso e zangado para Kozlóvski.
Por trás da porta, ouviu-se naquele instante a voz descontente e agitada de Kutúzov, interrompida por outra voz, desconhecida. Pelo som daquelas vozes, pela desatenção com que Kozlóvski havia olhado para ele, pelo desrespeito do escrivão esgotado, pelo fato de o escrivão e Kozlóvski estarem sentados no chão, em torno de um barrilete, tão próximos do comandante em chefe, e pelo fato de os cossacos, que guardavam os cavalos, rirem alto junto à janela da casa — por tudo isso, o príncipe Andrei sentiu que estava à beira de acontecer algo importante e funesto.
O príncipe Andrei, com insistência, fez perguntas a Kozlóvski.
— Já vai, príncipe — respondeu Kozlóvski. — Disposições para Bagration.
— E a capitulação?
— Nenhum sinal; feitas as disposições para a batalha.
O príncipe Andrei seguiu para a porta, atrás da qual se ouviam as vozes. Mas na hora em que quis abrir a porta, as vozes lá dentro se calaram, a porta abriu, e Kutúzov, com seu nariz de águia no rosto gorducho, surgiu na soleira.
O príncipe Andrei se viu cara a cara com Kutúzov; mas, pela expressão do único olho do comandante em chefe que enxergava, percebia-se que o pensamento e as preocupações o absorviam tão intensamente que pareciam toldar sua visão. Olhava de frente para o rosto do seu ajudante em chefe, e não o reconhecia.
— E então, já terminou? — voltou-se para Kozlóvski.
— Num segundo, vossa excelência.
Bagration, baixo, com o seu rosto de tipo oriental, firme e imóvel, homem seco e ainda jovem, saiu logo depois do comandante em chefe.
— Tenho a honra de me apresentar — repetiu o príncipe Andrei, com voz bastante forte, entregando um envelope.
— Ah, de Viena? Está bem. Depois, depois!
Kutúzov e Bagration saíram para o alpendre.
— Bem, príncipe, adeus — disse Kutúzov para Bagration. — Que Cristo o acompanhe. Eu o abençoo com os votos de grandes façanhas.
O rosto de Kutúzov abrandou-se, de forma inesperada, e surgiram lágrimas em seus olhos. Puxou Bagration para si com a mão esquerda e, com a direita, na qual havia um anel, fez o sinal da cruz diante dele, num gesto visivelmente habitual, e lhe ofereceu a bochecha gorducha, porém Bagration beijou-o no pescoço.
— Que Cristo o acompanhe! — repetiu Kutúzov e seguiu para a caleche. — Venha comigo — disse para Bolkónski.
— Vossa excelência, eu gostaria de ser útil aqui. Permita-me ficar no destacamento do príncipe Bagration.
— Suba — disse Kutúzov. E, ao notar que Bolkónski hesitava, disse: — Tenho grande necessidade de bons oficiais, grande necessidade.
Sentaram-se na caleche e seguiram em silêncio durante alguns minutos.
— Ainda temos muita, muita coisa pela frente — disse ele, com a expressão de perspicácia de um velho, como se tivesse entendido tudo o que se passava na alma de Bolkónski. — Se do destacamento dele, amanhã, voltar a décima parte, eu vou dar graças a Deus — acrescentou Kutúzov, como se falasse para si mesmo.
O príncipe Andrei olhou para Kutúzov e, sem querer, a meio archin de distância,62 fixou os olhos nas rugas muito bem lavadas da cicatriz na têmpora de Kutúzov, onde uma bala, em Ismail, penetrara na sua cabeça e vazara o olho. “Sim, ele tem o direito de falar com essa tranquilidade sobre a morte daquelas pessoas!”, pensou Bolkónski.
— Por isso mesmo estou pedindo que o senhor me encaminhe para aquele destacamento — disse o príncipe Andrei.
Kutúzov não respondeu. Parecia já ter esquecido o que lhe haviam dito e se mantinha quieto e pensativo. Cinco minutos depois, balançando suavemente nas molas macias da caleche, Kutúzov voltou-se para o príncipe Andrei. No seu rosto, não havia nenhum traço de agitação. Com sutil zombaria, indagou do príncipe Andrei sobre detalhes do encontro com o imperador, sobre as referências ouvidas no palácio acerca dos acontecimentos em Krems e sobre algumas mulheres conhecidas de ambos.
XIV
Por intermédio de um espião, Kutúzov recebera, no dia 1o de novembro, a notícia de que o exército sob o seu comando estava numa situação quase sem saída. O espião comunicou que os franceses, com forças enormes, haviam atravessado a ponte de Viena e marchavam rumo às linhas de comunicação entre Kutúzov e as tropas que vinham da Rússia. Se Kutúzov resolvesse ficar em Krems, o exército de cento e cinquenta mil soldados de Napoleão iria cortar todas as suas linhas de comunicação, cercar o seu exército de quarenta mil soldados, e ele se veria na mesma situação de Mack, em Ulm. Se Kutúzov resolvesse abandonar a estrada que o mantinha em comunicação com as tropas que vinham da Rússia, teria de se aventurar por terras desconhecidas nas montanhas da Boêmia, sem estradas, defendendo-se das forças superiores do inimigo, e pôr de lado todas as esperanças de fazer contato com Buxhöwden. Se Kutúzov resolvesse retirar-se pela estrada que vai de Krems para Olmütz, para unir-se às tropas que vinham da Rússia, correria o risco de se ver barrado naquela estrada pelos franceses que haviam cruzado a ponte de Viena e, dessa forma, seria obrigado a travar batalha em plena marcha, com toda a sua bagagem pesada e os seus comboios, num confronto com um inimigo duas vezes mais forte e que o cercava de dois lados.
Kutúzov escolheu esta última saída.
Como o espião havia informado, os franceses, depois de atravessar a ponte em Viena, seguiram em marcha forçada para Znaim, que ficava no caminho da retirada de Kutúzov, ainda a mais de cem verstas à sua frente. Alcançar Znaim antes dos franceses significava ter uma grande esperança de salvar o exército; deixar que os franceses chegassem a Znaim na sua frente significava, com toda a certeza, expor o exército inteiro a uma desonra semelhante à de Ulm, ou à destruição total. Porém chegar lá antes dos franceses com todo o exército era impossível. A estrada dos franceses de Viena a Znaim era mais curta e melhor do que a estrada dos russos de Krems a Znaim.
Na noite em que chegou a notícia, Kutúzov enviou para as montanhas, à direita, a vanguarda de Bagration, de quatro mil soldados, da estrada Krems-Znaim rumo à estrada Viena-Znaim. Sem se deter para descansar, Bagration tinha de atravessar aquela passagem, posicionar-se de frente para Viena e de costas para Znaim e, caso conseguisse antecipar-se aos franceses, devia retê-los pelo maior tempo possível. Kutúzov, enquanto isso, deslocava-se para Znaim com todo o seu carregamento pesado.
Após cruzar quarenta e cinco verstas pelas montanhas, sem estradas, com soldados famintos e descalços, numa noite de tempestade, perdendo um terço de seus homens no caminho, como retardatários, Bagration chegou a Hollabrunn, na estrada de Viena para Znaim, algumas horas antes dos franceses, que se aproximavam de Hollabrunn, vindo de Viena. Kutúzov ainda precisava andar vinte e quatro horas, com seus comboios, para chegar a Znaim, portanto, a fim de salvar o exército, Bagration, com quatro mil soldados famintos e descalços, precisava conter, durante as próximas vinte e quatro horas, todo o exército inimigo, que vinha ao seu encontro em Hollabrunn, algo obviamente impossível. Mas o destino estranho tornou possível o impossível. O sucesso do embuste que entregou a ponte de Viena na mão dos franceses sem nenhum combate induziu Murat a tentar enganar Kutúzov da mesma forma. Murat, ao deparar com o fraco destacamento de Bagration na estrada para Znaim, pensou que se tratava de todo o exército de Kutúzov. A fim de esmagar aquele exército de modo cabal, Murat resolveu esperar a chegada das tropas que ainda estavam a caminho pela estrada de Viena e, com esse fim, propôs uma trégua de três dias, na condição de que as tropas de ambos os lados não mudassem de posição e não saíssem do local onde estavam. Murat garantiu que conversações de paz já estavam em andamento e que por isso, a fim de evitar o derramamento inútil de sangue, ele propunha a trégua. O conde Nostitz, general austríaco que ocupava a linha de frente, acreditou nas palavras de Murat e retirou-se, deixando descoberto o destacamento de Bagration. Um outro negociador foi ao encontro das linhas russas transmitir as mesmas notícias sobre conversações de paz e propor às tropas russas uma trégua de três dias. Bagration respondeu que não podia aceitar nem recusar a trégua e enviou o seu ajudante de ordens ao encontro de Kutúzov, com um relatório da proposta que lhe haviam feito.
Para Kutúzov, a trégua era o único meio de ganhar tempo, de dar descanso ao esgotado destacamento de Bagration e de obter para os comboios e transportes de carga (cujo deslocamento era ignorado pelos franceses) um dia que fosse de vantagem em sua marcha rumo a Znaim. A proposta de uma trégua criava uma possibilidade única e inesperada para salvar o exército. Ao receber essa notícia, Kutúzov rapidamente enviou ao acampamento do inimigo o general Wintzingerode, seu ajudante de ordens. Wintzingerode devia não só aceitar a trégua, como propor também as condições de uma capitulação, e enquanto isso Kutúzov mandou seus ajudantes de ordens à retaguarda para apressar ao máximo o movimento dos comboios e de todo o exército pela estrada que ia de Krems a Znaim. O descalço e faminto destacamento de Bagration devia permanecer sozinho e encobrir o deslocamento dos comboios e de todo o exército, mantendo-se imóvel diante de um inimigo com forças oito vezes superiores à sua.
De fato, realizaram-se as esperanças de Kutúzov de que a proposta de uma capitulação, que não o obrigava a nada, pudesse dar tempo para que uma parte dos comboios passasse, mas também de que o erro de Murat seria logo descoberto. Assim que Bonaparte, que se encontrava em Schönbrunn, a vinte e cinco verstas de Hollabrunn, recebeu um relatório de Murat e o projeto de trégua e de capitulação, percebeu o embuste e escreveu a seguinte carta para Murat:
Au prince Murat.
Schoenbrunn, 25 brumaire an 1805, à huit heures du matin.
Il m’est impossible de trouver des termes pour vous exprimer mon mécontentement. Vous ne commandez que mon avant-garde et vous n’avez pas le droit de faire d’armistice sans mon ordre. Vous me faites perdre le fruit d’une campagne. Rompez l’armistice sur-le-champ et marchez à l’ennemi. Vous lui ferez déclarer, que le général qui signe cette capitulation, n’a point le droit de le faire, qu’il n’y a que l’empereur de Russie qui ait ce droit.
Toutes les fois cependant que l’empereur de Russie ratifierait la dite convention, je la ratifierai. Mais ce n’est qu’une ruse. Marchez, détruisez l’armée russe... vous êtes en position de prendre son bagage et son artillerie.
L’aide de camp de l’empereur de Russie est un... Les officiers ne sont rien quand ils n’ont pas de pouvoirs; celui-ci n’en avait point... Les Autrichiens se sont laissés jouer pour le passage du pont de Vienne, vous vous laissez jouer par un aide de camp de l’empereur.
Napoléon 63
O ajudante de ordens de Bonaparte galopou com essa carta terrível, a toda a velocidade, ao encontro de Murat. O próprio Bonaparte, que não confiava em seus generais, partiu rumo ao campo de batalha com toda a guarda, temendo deixar escapar uma vítima já certa, enquanto os quatro mil soldados do destacamento de Bagration, com alegria, acendiam fogueiras, secavam-se, aqueciam-se, cozinhavam mingau pela primeira vez em três dias, e ninguém no destacamento sabia, nem sequer imaginava, aquilo que os aguardava.
XV
Entre três e quatro horas da tarde, o príncipe Andrei, que havia insistido em seu apelo a Kutúzov, chegou a Grunt e apresentou-se a Bagration. O ajudante de ordens de Bonaparte ainda não tinha chegado ao destacamento de Murat, e a batalha ainda não começara. No destacamento de Bagration, nada sabiam acerca do andamento geral das negociações, falavam de paz, mas não acreditavam na sua possibilidade. Falavam sobre a batalha, mas também não acreditavam na iminência da batalha. Bagration, que conhecia Bolkónski como um ajudante de ordens estimado e de confiança, recebeu-o com uma distinção especial e, com as atenções de um comandante, explicou-lhe que a batalha provavelmente ia ocorrer naquele dia ou no dia seguinte e lhe deu toda a liberdade para ficar ao seu lado durante a batalha ou na retaguarda, para zelar pela ordem da retirada, “o que também era muito importante”.
— De resto, o mais provável é que hoje não aconteça nada — disse Bagration, como que para acalmar o príncipe Andrei.
“Se ele for um desses esnobes tão comuns no Estado-Maior, enviados a fim de ganhar a sua cruzinha no peito, mesmo na retaguarda vai receber a sua condecoração, mas se quiser ficar ao meu lado, muito bem... vai ser útil, se for um oficial de coragem”, pensou Bagration. Sem nada responder, o príncipe pediu permissão do príncipe para percorrer as posições e conhecer a disposição das tropas, a fim de saber aonde ir no caso de ter de cumprir alguma ordem. O oficial de serviço do destacamento, um homem bonito, vestido com esmero, e com um anel de diamante no dedo indicador, que falava francês mal, porém com gosto, ofereceu-se para acompanhar o príncipe Andrei.
Por todos os lados, viam-se oficiais molhados, de rostos abatidos, como que à procura de alguma coisa, e soldados que arrastavam portas, bancos e cercas trazidos da aldeia.
— Olhe só, príncipe, não conseguimos livrar o povo disso — falou o oficial do Estado-Maior, apontando para aquelas pessoas. — Os comandantes os deixam soltos. E olhe aquilo — apontou para a barraca desdobrada de um vendedor de víveres —, eles se aglomeram e ficam ali. Hoje de manhã expulsei todos: olhe, está cheia de novo. Temos de ir lá, príncipe, assustá-los. É só um minuto.
— Vamos, e eu também vou pegar queijo e pão com ele — disse o príncipe Andrei, que ainda não tivera tempo de comer.
— Por que não disse antes, príncipe? Eu teria oferecido a minha hospitalidade.
Desmontaram dos cavalos e entraram debaixo da tenda do vivandeiro. Alguns oficiais, de caras vermelhas e esgotadas, sentados junto às mesas, bebiam e comiam.
— Mas o que é isso, meus senhores — disse o oficial do Estado-Maior, em tom de recriminação, como alguém que já tivesse repetido diversas vezes a mesma coisa. — Não podem se ausentar desse jeito. O príncipe deu ordem para ninguém deixar o seu posto. Vamos, olhe só para o senhor, capitão — voltou-se para um oficial de artilharia, pequeno, sujo, magro, que sem botas (dera as botas para o vivandeiro secar), só de meias, se pôs de pé diante dos oficiais que haviam entrado e sorriu de um modo nem um pouco natural. — Puxa, como é que o senhor não tem vergonha, capitão Túchin — continuou o oficial do Estado-Maior. — O senhor, ao que parece, como um artilheiro, deveria dar o exemplo, mas o senhor está sem botas. Se tocarem o alarme, o senhor vai fazer um belo papel, sem botas. (O oficial do Estado-Maior sorriu.) Queiram encaminhar-se para os seus postos, senhores, todos, todos — acrescentou, em tom de comando.
O príncipe Andrei não pôde deixar de sorrir, ao olhar para o capitão Túchin. Sorrindo e calado, tropeçando nos pés descalços, Túchin fitava com ar interrogativo, com seus olhos grandes, inteligentes e bondosos, ora o príncipe Andrei, ora o oficial do Estado-Maior.
— Os soldados dizem: sem botas, dá mais agilidade — falou o capitão Túchin, sorrindo, tímido, com o intuito evidente de passar para um tom de zombaria e escapar da situação embaraçosa.
Mas nem havia terminado de falar quando percebeu que seu gracejo não fora bem recebido e não produzira efeito. Ficou encabulado.
— Queira encaminhar-se para o seu posto — disse o oficial do Estado-Maior, tentando manter a seriedade.
O príncipe olhou mais uma vez para a figurinha do artilheiro. Nele, havia algo de especial, alheio à esfera militar, ligeiramente cômico, mas atraente ao extremo.
O oficial do Estado-Maior e o príncipe Andrei montaram em seus cavalos e foram em frente.
Após saírem da aldeia, ultrapassando ou cruzando o tempo todo com soldados a pé ou com oficiais de vários destacamentos, os dois avistaram à esquerda barricadas de barro vermelho, fresco, recém-cavado. Alguns batalhões de soldados só de camisa, apesar do vento frio, fervilhavam sobre aquelas barricadas como se fossem formigas brancas; detrás da barreira de terra, pazadas de barro vermelho eram lançadas sem cessar por pessoas invisíveis. Os dois se aproximaram da vala escavada, examinaram-na e seguiram adiante. Para além da vala, toparam com dezenas de soldados, que, a todo momento substituídos por outros, saíam às pressas daquela fossa. Os dois tiveram de apertar as narinas e fazer trotar os cavalos, a fim de fugir da atmosfera empesteada.
— Voilà l’agrément des camps, monsieur le prince 64 — disse o oficial de serviço do Estado-Maior.
Foram até um morro do lado oposto. Daquele morro, já se avistavam os franceses. O príncipe Andrei parou e se pôs a observar.
— Lá está a nossa bateria — disse o oficial do Estado-Maior e apontou para o local mais elevado. — A daquele sujeito gozado, que estava sem botas; de lá, dá para ver tudo; vamos, príncipe.
— Muito obrigado, mas agora irei sozinho — disse o príncipe Andrei, no intuito de livrar-se do oficial do Estado-Maior. — Não se preocupe, por favor.
O oficial do Estado-Maior recuou, e o príncipe Andrei seguiu sozinho.
Quanto mais ele avançava para perto do inimigo, mais as tropas se mostravam animadas e em ordem. O desânimo e a desordem mais fortes estavam nos comboios da estrada para Znaim, que o príncipe Andrei ultrapassara naquela manhã e que se achavam a dez verstas dos franceses. Em Grunt, também se sentiam certo alarme e certo medo. Porém, quanto mais próximo o príncipe Andrei chegava das linhas dos franceses, mais confiante era o aspecto das nossas tropas. Dispostos em fileiras, de capote, os soldados estavam parados, de pé, o sargento e o capitão contavam os homens, tocavam o dedo no peito do soldado da ponta de cada seção e faziam sinal para que ele levantasse o braço; dispersos por toda a área, soldados arrastavam lenhas e galhos e construíam pequenos abrigos, riam e conversavam com alegria; junto às fogueiras, estavam sentados homens vestidos ou nus, secavam as camisas, as perneiras, ou consertavam os capotes e as botas, aglomeravam-se em redor dos caldeirões e dos cozinheiros. Numa companhia, o almoço estava pronto, e os soldados, com rostos ávidos, olhavam para os caldeirões fumegantes e aguardavam o fim da prova, que o quarteleiro oferecia numa xícara de madeira a um oficial, sentado sobre um tronco na frente da sua barraca.
Em outra companhia, mais afortunada, pois nem todas tinham vodca, os soldados aglomeravam-se em torno de um sargento com marcas de varíola no rosto e de ombros largos, que, inclinando um pequeno barril, servia as bocas dos cantis estendidos para ele, um de cada vez. Os soldados, com rostos devotos, chegavam o cantil à boca, viravam-no e, depois de gargarejar e enxugar a boca na manga do capote, afastavam-se do sargento, com a cara muito satisfeita. Todos os rostos estavam tão calmos como se tudo aquilo não se passasse bem diante do inimigo, à beira de um combate no qual pelo menos metade da tropa havia de ficar no campo de batalha, mas sim como se estivessem em algum ponto da sua terra natal, acampados num local tranquilo. Depois de passar por um regimento de caçadores, pelas fileiras dos granadeiros de Kíev, gente simpática, ocupada com afazeres pacíficos, o príncipe Andrei, não distante do abrigo do comandante do regimento, num ponto elevado, destacado dos demais, chegou a um pelotão de granadeiros, diante dos quais jazia um homem nu. Dois soldados o seguravam e outros dois brandiam varas flexíveis e batiam nas costas nuas ritmadamente. A vítima do castigo gritava de modo forçado. Um major gordo caminhava diante da linha de frente e, sem parar e sem prestar a menor atenção nos gritos, dizia:
— Roubar é uma vergonha para um soldado; o soldado deve ser honrado, nobre e corajoso; se ele roubou seu irmão, é porque não há honra nele; é um canalha. Mais, mais!
E não paravam de soar os golpes flexíveis e os gritos desesperados, mas fingidos.
— Mais, mais — repetia o major.
Um jovem oficial, com uma expressão de perplexidade e de angústia no rosto, afastou-se do homem punido, virou-se e, com ar interrogativo, olhou para o ajudante de ordens que passava.
O príncipe Andrei, após chegar à linha de frente, atravessou-a. As nossas linhas e as dos inimigos ficavam distantes umas das outras no flanco esquerdo e no flanco direito, mas no meio, no local onde, naquela manhã, passaram os negociadores do armistício, as linhas ficavam tão próximas que era possível ver o rosto uns dos outros e trocar palavras. Além dos soldados que ocupavam as linhas naquele local, de um lado e do outro havia curiosos que, rindo, observavam os inimigos que lhes pareciam estranhos e exóticos.
Desde manhã cedo, apesar da proibição de aproximar-se das linhas, os comandantes não conseguiam livrar-se dos curiosos. Os soldados que estavam nas linhas de frente, como pessoas que exibem ao público algo fora do comum, já nem olhavam para os franceses, trocavam comentários sobre os curiosos e, entediados, esperavam a hora de serem rendidos. O príncipe Andrei deteve-se para observar os franceses.
— Olhe, olhe lá — disse um soldado para um camarada, apontando para um mosqueteiro russo que, com um oficial, fora até a linha de frente e, afoito e agitado, falava algo para um granadeiro francês. — Olhe só como ele sabe falar enrolado! Nem aquele francês lá consegue falar tão depressa. Que tal, Sídorov?
— Espere aí, escute. Puxa, como fala bem! — disse Sídorov, considerado um mestre para falar francês.
O soldado para o qual os dois gozadores apontavam era Dólokhov. O príncipe Andrei o reconheceu e prestou atenção na sua fala. Junto com o comandante do seu regimento, Dólokhov tinha saído do flanco esquerdo, onde estava o regimento, e viera para a linha de frente.
— Vamos, fale mais, fale mais! — o comandante do regimento o atiçava, inclinado para a frente e esforçando-se para não deixar escapar nenhuma palavra, todas incompreensíveis para ele. — Por favor, mais rápido. O que ele disse?
Dólokhov não respondeu ao comandante da companhia: estava empenhado numa discussão acalorada com o granadeiro francês. Falavam sobre a campanha, como era de esperar. O francês, confundindo os austríacos com os russos, queria provar que os russos tinham se rendido e fugido em Ulm; Dólokhov queria provar que os russos não se renderam, mas sim derrotaram os franceses.
— Agora, nos mandaram enxotar vocês, e vamos enxotar — disse Dólokhov.
— Tomem cuidado para vocês não serem todos capturados, com seus cossacos e tudo — disse o granadeiro francês.
Os ouvintes e espectadores franceses riram.
— Faremos vocês dançarem, como dançaram com Suvórov (on vous fera danser)65 — disse Dólokhov.
— Qu’est-ce qu’il chante? 66 — perguntou um francês.
— De l’histoire ancienne — respondeu outro, deduzindo que a discussão tratava das guerras anteriores. — L’empereur va lui faire voir à votre Souvara, comme aux autres...67
— Bonaparte... — Dólokhov começou a falar, mas o francês interrompeu.
— Não existe Bonaparte. Só existe imperador! Sacré nom...68 — gritou, irritado.
— Que o diabo carregue o seu imperador!
E Dólokhov, em russo, de modo grosseiro, desatou a xingar em linguagem de soldado e, pondo o fuzil nas costas, afastou-se.
— Vamos embora, Ivan Lukítch — disse para o comandante da companhia.
— Isso é que é falar o tal de francês — comentaram os soldados, na linha de frente. — E então, Sídorov?
Sídorov semicerrou os olhos e, voltando-se para os franceses, pôs-se a balbuciar palavras ininteligíveis:
— Karri, malá, tafá, safi, muter, kaská — balbuciou, tentando dar à voz uma entonação eloquente.
— Ho, ho, ho! Ha, ha, ha! Uh! Uh! — irrompeu com estrondo entre os soldados uma gargalhada tão alegre e salutar que, sem querer, contagiou também as fileiras dos franceses, e depois disso parecia que todos ali nada mais teriam a fazer, senão descarregar os fuzis, explodir as munições e dispersar-se a fim de voltar para casa, sem demora.
Mas os fuzis continuaram carregados, as seteiras continuaram nas casas, e as barricadas miravam para a frente da mesma forma terrível, e tal como antes os canhões continuavam desatrelados das carroças, apontados uns contra os outros.
XVI
Depois de percorrer toda a linha das tropas, do flanco direito ao flanco esquerdo, o príncipe Andrei subiu àquela bateria de onde, nas palavras do oficial do Estado-Maior, dava para ver todo o campo. Ali, desmontou e deteve-se junto à última das quatro peças de artilharia desatreladas das carroças. Diante do canhão, caminhava um artilheiro de sentinela, que ficou em posição de sentido perante o oficial, mas, em resposta a um sinal deste, retomou a sua ronda monótona e enfadonha. Atrás dos canhões, estavam as carroças, mais atrás ainda, as estacas para prender os cavalos e as fogueiras dos artilheiros. À esquerda, perto do canhão da ponta, havia uma barraca erguida pouco antes, com galhos trançados, de onde vinham vozes animadas de oficiais.
Da bateria avistavam-se, de fato, quase todas as posições das tropas russas e boa parte das posições do inimigo. Bem em frente, no horizonte formado por um morro do lado oposto, avistava-se a aldeia de Schöngraben; à esquerda e à direita, podiam-se distinguir, em três locais, em meio à fumaça das fogueiras, as massas das tropas francesas, e obviamente grande parte delas se encontrava na aldeia e atrás do morro. À esquerda da aldeia, na fumaça, havia algo parecido com uma bateria, mas era impossível enxergar direito a olho nu. O nosso flanco direito estava posicionado numa elevação bastante íngreme, que dominava do alto as posições dos franceses. Ali a nossa infantaria tomara posição e, bem na ponta, viam-se os dragões. No centro, onde se achava também a bateria de Túchin, local de onde o príncipe Andrei observava as posições das tropas, havia um declive e um aclive muito regulares, que iam dar no riacho que nos separava de Schöngraben. À esquerda, nossas tropas estavam junto da mata, onde nossas fogueiras fumegavam e os soldados da infantaria cortavam lenha. A linha dos franceses era mais vasta do que a nossa, e estava claro que os franceses podiam facilmente nos cercar por ambos os lados. Atrás das nossas posições, havia um barranco escarpado e profundo, por onde era difícil recuar a artilharia e a cavalaria. O príncipe Andrei apoiou-se no canhão, pegou um caderninho e desenhou, para si mesmo, um esquema da disposição das tropas. Em dois pontos, fez anotações a lápis, com a intenção de comunicá-las a Bagration. Em primeiro lugar, propunha concentrar toda a artilharia no centro e, em segundo lugar, transferir a cavalaria para trás, para o outro lado do barranco. O príncipe Andrei, que se mantinha o tempo todo ao lado do comandante em chefe, atento aos movimentos das massas de soldados e às disposições gerais do comando, sempre às voltas com os relatos históricos de batalhas, no caso daquele combate iminente não pôde deixar de visualizar também o curso das ações militares futuras apenas em seus traços gerais. Imaginava apenas grandes acontecimentos, do seguinte tipo: “Se o inimigo lançar um ataque no flanco direito”, disse consigo, “os granadeiros de Kíev e os caçadores de Podólia deverão manter suas posições, até que as forças de reserva do centro cheguem em seu socorro. Nesse caso, os dragões podem atacar pelo flanco e desbaratar o inimigo. No caso de um ataque no centro, colocaremos nesta elevação a bateria central e, sob a cobertura dos seus tiros, deslocaremos o flanco esquerdo e recuaremos até o barranco, com as tropas dispostas em escalões”, raciocinava...
O tempo todo em que esteve na bateria, junto aos canhões, ele, como acontece tantas vezes, ouvia sem cessar o som das vozes dos oficiais que falavam dentro da barraca, mas não entendia nenhuma palavra do que diziam. De repente, o som das vozes que vinha da barraca o surpreendeu com um tom tão afetuoso que, sem querer, passou a prestar atenção.
— Não, meu caro — disse uma voz agradável e que parecia conhecida do príncipe Andrei. — Garanto que, se fosse possível saber o que vai acontecer depois da morte, nenhum de nós jamais teria medo da morte. É isso mesmo, meu caro.
Uma outra voz, mais jovem, interrompeu-o:
— Com medo ou sem medo, dá na mesma, ninguém escapa.
— E vamos ter medo, de um jeito ou de outro! Ah, vocês, seus intelectuais — disse uma terceira voz, viril, interrompendo ambos —, pois é, vocês, artilheiros, são muito sabidos porque podem carregar tudo com vocês, bebidinhas e comidinhas.
E o dono da voz viril, pelo visto um oficial da infantaria, desatou a rir.
— Pois é, a gente vai ter medo — continuou a primeira voz, já conhecida. — A gente tem medo do desconhecido, essa é a questão. Por mais que você me diga que a alma vai para o céu... afinal, a gente sabe que o céu não existe, só existe a atmosfera.
De novo a voz viril interrompeu o artilheiro.
— Bem, sirva aí um pouco da sua aguardentezinha de erva, Túchin — disse ele.
“Ah, é o mesmo capitão que estava sem botas na tenda do vivandeiro”, pensou o príncipe Andrei, reconhecendo com satisfação a voz simpática que filosofava.
— A aguardentezinha de erva, sim, isso pode — disse Túchin. — Mas já entender a vida depois da morte...
Não terminou de falar. Nesse momento, ouviu-se um assovio no ar; cada vez mais perto, mais perto, mais rápida e mais audível, mais audível e mais rápida e, como se não tivesse terminado de falar tudo o que era preciso, uma bala de canhão chocou-se na terra perto da barraca, espirrando fragmentos com uma força sobre-humana. A terra pareceu soltar uma exclamação de surpresa, com o baque terrível.
No mesmo instante, o pequeno Túchin pulou para fora da barraca antes de todos, com um cachimbinho entre os dentes, no canto da boca; o rosto bondoso, inteligente, estava um pouco pálido. Atrás dele, veio o dono da voz viril, o oficial de infantaria valentão, e foi correndo para a sua companhia, abotoando-se enquanto corria.
XVII
O príncipe Andrei, a cavalo, estava parado na bateria e olhava para a fumaça do canhão de onde a bala havia partido. Seus olhos percorriam o espaço amplo. Só via que as massas de franceses, antes imóveis, começaram a agitar-se e que, à esquerda, havia de fato uma bateria. Nela, a fumacinha ainda não se dispersara. Dois cavaleiros franceses, na certa ajudantes de ordens, subiam o morro a galope. Ao pé do morro, na certa para reforçar as linhas, uma pequena coluna de inimigos se deslocava, visível com toda a nitidez. A fumaça do primeiro tiro ainda não se dissipara quando surgiu outra fumaça e soou um tiro. A batalha começara. O príncipe Andrei virou o cavalo e galopou para trás, para Grunt, ao encontro do príncipe Bagration. Atrás de si, ouviu o canhoneio cada vez mais constante e mais ruidoso. Via-se que os nossos haviam começado a responder. Embaixo, no local onde os negociadores do armistício tinham passado, soavam tiros de fuzil.
Lemarrois, com a terrível carta de Bonaparte, havia acabado de chegar a galope ao encontro de Murat, que, envergonhado, desejoso de redimir-se do seu erro, imediatamente deslocou suas tropas para o centro e em redor dos dois flancos, na esperança de aniquilar o insignificante destacamento à sua frente, antes da chegada do imperador.
“Começou! Aí está ela!”, pensou o príncipe Andrei, sentindo que o sangue começava a afluir com mais frequência ao seu coração. “Mas onde, e como, a minha Toulon vai se manifestar?”, pensava.
Ao passar por aquela mesma companhia onde, quatro horas antes, comiam mingau e bebiam vodca, ele viu em toda parte os mesmos movimentos dos soldados, que se organizavam em fileiras e preparavam os fuzis, e em todos os rostos reconheceu o sentimento de vitalidade que ele mesmo tinha em seu coração. “Começou! Aí está ela! Que terror e que alegria!”, dizia o rosto de cada soldado e oficial.
Antes de chegar à barricada que estavam construindo, ele avistou, na luz do entardecer do dia nublado de outono, homens a cavalo que vinham na sua direção. O cavaleiro da frente, de capa de feltro caucasiana e quepe de pele de cordeiro, montava um cavalo branco. Era o príncipe Bagration. O príncipe Andrei se deteve, à espera dele. O príncipe Bagration freou o cavalo e, após reconhecer o príncipe Andrei, cumprimentou-o com uma inclinação da cabeça. Continuou a olhar para a frente, enquanto o príncipe Andrei lhe dizia o que tinha visto.
A expressão de “Começou! Aí está ela!” se mostrava até no rosto forte e moreno do príncipe Bagration, de olhos meio fechados, turvos, como que sonolentos. O príncipe Andrei, com uma curiosidade inquieta, mirava atentamente aquele rosto imóvel e queria saber se aquele homem, naquele instante, pensava e sentia, e o que pensava e o que sentia. “Será que existe mesmo alguma coisa ali, atrás desse rosto imóvel?”, perguntava-se o príncipe Andrei, enquanto olhava para ele. O príncipe Bagration inclinou a cabeça, em sinal de que concordava com as palavras do príncipe Andrei, e disse “Está bem”, com uma expressão tal que parecia que tudo o que se passava e que lhe comunicavam era exatamente aquilo que ele havia previsto. O príncipe Andrei, ofegante com a rapidez do galope, falava depressa. O príncipe Bagration pronunciava as palavras com o seu sotaque oriental, de modo singularmente vagaroso, como se quisesse convencer os outros de que não havia razão nenhuma para pressa. No entanto, ele tocou seu cavalo a trote na direção da bateria de Túchin. O príncipe Andrei foi atrás, junto à comitiva. Atrás do príncipe Bagration, iam: o oficial da comitiva do tsar, o ajudante de ordens particular do príncipe, Jerkóv, um ordenança, o oficial de serviço do Estado-Maior num cavalo bonito, com o rabo cortado à inglesa, e um funcionário civil, um auditor que, por curiosidade, pediu para ir à batalha. O auditor, homem gordo, de cara gorda, com um sorriso ingênuo de alegria, olhava à sua volta, sacudia-se no seu cavalo e exibia um aspecto estranho, no seu capote feito de chamalote, montado numa sela de oficial, no meio daqueles hussardos, cossacos e ajudantes de ordens.
— Olhe só, ele quer ver a batalha — disse Jerkóv para Bolkónski, apontando para o auditor. — Mas já está com dor de barriga.
— Ora, já chega, senhores — exclamou o auditor, com um sorriso radiante, ingênuo e ao mesmo tempo astuto, como se estivesse lisonjeado por ser objeto dos gracejos de Jerkóv, e como se fizesse um esforço para parecer mais tolo do que era de fato.
— Très drôle, mon monsieur prince 69 — disse o oficial de serviço do Estado-Maior. (Ele lembrava que, em francês, o título de príncipe se dizia com as palavras numa ordem diferente, mas não conseguia acertar como era.)
Nessa altura, todos já haviam chegado à bateria de Túchin, e uma bala de canhão acertou bem na frente deles.
— O que foi isso que caiu? — perguntou o auditor, sorrindo ingenuamente.
— Panquecas francesas — respondeu Jerkóv.
— Quer dizer que atacam com isso? — perguntou o auditor. — Que horror!
E pareceu se desmanchar de contentamento. Mal havia terminado de falar, quando ressoou de novo, inesperadamente, um assovio terrível, interrompido de repente por uma pancada em algo líquido, e z-z-z-zás — um cossaco que cavalgava um pouco à direita e atrás do auditor desabou no chão, junto com o cavalo. Jerkóv e o oficial de serviço do Estado-Maior curvaram-se sobre a sela e desviaram seus cavalos para longe dali. O auditor permaneceu diante do cossaco, observando-o com atenção e curiosidade. O cossaco estava morto, o cavalo ainda se debatia.
O príncipe Bagration, de olhos semicerrados, olhou em volta e, ao reconhecer a causa da confusão que se formara, deu as costas com indiferença, como se dissesse: “Não vale a pena perder tempo com bobagens!”. Freava o cavalo pela rédea e, com a habilidade de um bom cavaleiro, curvou-se um pouco e soltou a espada que se enganchara atrás da capa. Era uma espada antiga, não como as que se usavam na época. O príncipe Andrei lembrou-se do relato de que Suvórov, na Itália, dera a sua espada para Bagration, e naquele momento a recordação lhe foi especialmente agradável. Aproximavam-se justamente da bateria onde estivera Bolkónski, quando observara o campo de batalha.
— Que companhia é esta? — perguntou o príncipe Bagration a um artilheiro postado junto a uns caixotes.
Ele perguntou: “Que companhia é esta?”, mas, na verdade, estava perguntando: “Já estão com medo, por aqui?”, e o artilheiro entendeu isso.
— Do capitão Túchin, vossa excelência — gritou com voz alegre o artilheiro ruivo, em posição de sentido, o rosto coberto de sardas.
— Certo, certo — exclamou Bagration, pensando em alguma coisa, e contornou as carroças na direção do canhão da ponta.
No momento em que se aproximava, ressoou um tiro daquele mesmo canhão, que ensurdeceu Bagration e a sua comitiva, e na fumaça que de súbito envolveu a arma viam-se os artilheiros, que agarraram o canhão e, tensos e afobados, rolavam-no para a posição em que estava antes. O soldado número 1, enorme, de ombros largos, com as pernas bem abertas, pulou para o lado da roda, empunhando a vareta de limpeza. O número 2, com mão trêmula, enfiou a munição na boca do canhão. Um homem pequeno e meio curvado, o oficial Túchin, tropeçando na carreta do canhão, correu para a frente sem notar a presença do general e olhou ao longe, por baixo da mãozinha pequena, para proteger-se da luz.
— Suba mais dois pontos que vai dar certinho — gritou com uma voz fininha, à qual ele se esforçava para imprimir um tom de valentia, que não combinava com a sua figura. — Segundo! — guinchou. — Arrebenta, Medviédev!
Bagration gritou para chamar o oficial, e Túchin, com um movimento tímido e embaraçado, bem diferente de uma saudação militar, mais parecido com um sacerdote que dá a bênção, encostou três dedos unidos na pala do quepe, ao aproximar-se do general. Embora os canhões de Túchin tivessem a missão de bombardear o vale, ele disparava balas incendiárias contra a aldeia de Schöngraben, que se avistava lá na frente e da qual saíam às pressas grandes massas de franceses.
Ninguém dera ordens a Túchin sobre onde ele devia atirar e com o quê, e assim, depois de trocar ideias com o seu sargento, Zakhártchenko, por quem tinha grande respeito, Túchin resolveu que seria bom incendiar a aldeia. “Muito bem!”, disse Bagration em resposta ao oficial e pôs-se a olhar para o campo de batalha, que se estendia por inteiro à sua frente, como se estivesse pensando em alguma coisa. No lado direito, os franceses haviam se aproximado mais do que nos outros pontos. Embaixo da elevação onde estava o regimento de Kíev, no vale do riacho, ouvia-se o estampido dos fuzis, estrondoso, de tirar o fôlego, e bem mais à direita, para além dos dragões, o oficial da comitiva do tsar apontou para o príncipe uma coluna de franceses que estava cercando o nosso flanco. À esquerda, o horizonte era delimitado pela floresta contígua. O príncipe Bagration deu ordem para que dois batalhões do centro fossem reforçar a ala direita. O oficial da comitiva do tsar tomou a liberdade de dizer para o príncipe que, com a saída daqueles batalhões, os canhões ficariam sem cobertura. O príncipe Bagration virou-se para o oficial da comitiva do tsar e, com olhos turvos, fitou-o em silêncio. O príncipe Andrei tinha a impressão de que a observação do oficial era pertinente e que, de fato, nada havia a dizer. Mas nesse instante chegou a galope um ajudante de ordens do comandante do regimento que estava no vale, com a notícia de que a imensa massa de franceses vinha descendo, que o regimento estava em desordem e ia recuar para junto dos granadeiros de Kíev. O príncipe Bagration inclinou a cabeça em sinal de concordância e aprovação. Seguiu devagar para a direita e mandou o ajudante de ordens rumo aos dragões, com a ordem de atacar os franceses. Mas o ajudante de ordens enviado para lá voltou meia hora depois com a notícia de que o comandante do regimento dos dragões já havia recuado para trás do barranco, pois contra ele foi disparado um tiroteio muito intenso, estava perdendo homens inutilmente e por isso apressou-se em dispor atiradores dentro da floresta.
— Muito bem! — disse Bagration.
No momento em que ele se afastou da bateria, também se ouviram tiros à esquerda, dentro da floresta, e como estava muito distante do flanco esquerdo para ter tempo de ele mesmo chegar ao local, o príncipe Bagration mandou Jerkóv até lá, a fim de dizer ao general comandante, o mesmo que havia perfilado o seu regimento diante de Kutúzov para uma revista de tropas em Braunau, que ele devia recuar o mais depressa possível para trás do barranco, pois o flanco direito provavelmente não teria forças para conter o inimigo por muito tempo. Quanto a Túchin e ao batalhão que lhe tinha dado cobertura, eles foram esquecidos. O príncipe Andrei escutava com atenção as conversas entre o príncipe Bagration e os comandantes para acompanhar as ordens que dava a eles, mas, com surpresa, notou que nenhuma ordem era dada e que o príncipe Bagration apenas se esforçava para dar a impressão de que tudo o que acontecia, por necessidade, por acaso e pela vontade dos diversos comandantes, que tudo aquilo se passava, ainda que não por suas ordens, ao menos de acordo com os seus planos. Graças ao tato que o príncipe Bagration demonstrava, o príncipe Andrei notou que, apesar do acaso dos acontecimentos e apesar de tais acontecimentos não dependerem da vontade do comandante, a sua presença tinha um grande efeito. Comandantes que vinham, com os rostos abatidos, falar com o príncipe Bagration ficavam calmos, soldados e oficiais o saudavam com alegria e ficavam mais animados na sua presença e, era visível, diante dele faziam alarde da sua coragem.
XVIII
O príncipe Bagration, depois de chegar ao ponto mais alto do nosso flanco direito, começou a descer ali onde se ouvia um tiroteio estrondoso e onde nada se conseguia enxergar, no meio da fumaça de pólvora. Quanto mais próximo eles chegavam do vale, menos conseguiam enxergar, no entanto mais se fazia sentir a proximidade do verdadeiro campo de batalha. Eles começaram a encontrar feridos. Um, com a cabeça ensanguentada, sem gorro, era carregado por dois soldados que o seguravam por baixo dos braços. O ferido arquejava e cuspia. A bala, pelo visto, acertara na boca ou na garganta. Um outro, que eles encontraram, caminhava sozinho e com ânimo, sem fuzil, gemia bem alto e sacudia o braço por causa de um ferimento recente, de onde o sangue escorria para seu capote, como se saísse de uma garrafinha. Seu rosto parecia mais assustado do que sofrido. Fora ferido um minuto antes. Depois de atravessarem a estrada, eles desceram uma ladeira íngreme e lá embaixo viram vários homens caídos; um bando de soldados vinha ao seu encontro, entre eles havia alguns sem nenhum ferimento. Os soldados caminhavam morro acima, com a respiração ofegante e, apesar da presença do general, conversavam em voz bem alta e gesticulavam. Mais à frente, na fumaça, já se viam fileiras de capotes cinzentos, e um oficial, ao avistar Bagration, correu com um grito atrás dos soldados que caminhavam em bando, exigindo que voltassem. Bagration aproximou-se das fileiras onde, aqui e ali, estalavam tiros que abafavam as vozes e os gritos de comando. O ar estava todo impregnado de fumaça de pólvora. Os rostos dos soldados estavam todos cobertos de pólvora e animados. Alguns batiam a vareta dentro do cano do fuzil, outros vertiam pólvora na caçoleta da arma, pegavam munição na cartucheira, outros atiravam. Mas em quem atiravam, isso não se podia enxergar por causa da fumaça da pólvora, que o vento não carregava. Com muita frequência, ouviam-se barulhos agradáveis, de zumbidos e assovios. “O que é isso?”, pensou o príncipe Andrei, enquanto se aproximava daquela multidão de soldados. “Não pode ser um ataque, pois eles não estão se movendo; não pode ser uma formação em quadrado: eles não estão nessa posição.”
O comandante do regimento, um velhinho magricelo, de aspecto fraco, com um sorriso agradável e pálpebras que cobriam mais da metade dos seus olhos de velho, dando a ele um ar dócil, aproximou-se do príncipe Bagration e recebeu-o como um anfitrião recebe uma visita muito querida. Comunicou ao príncipe Bagration que tinha havido um ataque de cavalaria dos franceses contra o seu regimento, mas que, embora o ataque tivesse sido rechaçado, o regimento perdera mais da metade dos homens. O comandante do regimento disse que o ataque fora rechaçado, achando que esse era o termo militar para o que havia ocorrido no seu regimento; mas, na verdade, ele não sabia o que havia ocorrido naquela meia hora com as tropas a ele confiadas e não podia dizer de maneira fidedigna se o ataque tinha sido rechaçado ou se as suas tropas tinham sido destruídas pelo ataque. No início do confronto, ele só sabia que balas de canhão e granadas começaram a voar sobre todo o seu regimento, atingindo os soldados, e que depois alguém começou a gritar: “Cavalaria”, e os nossos começaram a atirar. E ainda estavam atirando, não mais na cavalaria, que havia sumido, mas nos soldados da infantaria dos franceses, que apareceram no vale e atiravam contra os nossos. O príncipe Bagration inclinou a cabeça em sinal de que tudo aquilo estava perfeitamente de acordo com o que ele desejava e previa. Voltou-se para o ajudante de ordens e ordenou-lhe que trouxesse do alto do morro dois batalhões do sexto regimento de caçadores, pelo qual haviam acabado de passar. O príncipe Andrei, naquele instante, impressionou-se com uma mudança que ocorrera no rosto do príncipe Bagration. Seu rosto exprimia aquela determinação concentrada e feliz que se vê num homem que, num dia quente, se prepara para mergulhar na água e toma o último impulso. Não havia nem os olhos sonolentos, nem o aspecto fingidamente pensativo: os olhos redondos, firmes, de falcão, miravam para a frente, exaltados e com um certo desprezo, sem se deter em nada, ao que parecia, embora nos seus movimentos persistissem a mesma lentidão de antes e o mesmo comedimento.
O comandante do regimento voltou-se para o príncipe Bagration, pedindo que recuasse, pois ali estava perigoso demais. “Por favor, vossa excelência, pelo amor de Deus!”, disse ele e, em busca de apoio, olhou de relance para o oficial da comitiva do tsar, que lhe virou a cara. “Olhe só, tenha a bondade de ver!” Chamava a atenção para as balas que o tempo todo ganiam, cantavam e assoviavam em volta deles. Falava no tom de súplica e recriminação que um carpinteiro usaria ao falar com um patrão que tivesse empunhado um machado: “A gente está acostumado, mas o senhor vai fazer calos nas mãos”. Falava como se aquelas balas não pudessem matá-lo, e seus olhos meio fechados acrescentavam a suas palavras uma expressão ainda mais convincente. O oficial do Estado-Maior uniu-se às exortações do comandante do regimento; mas o príncipe Bagration não lhes respondeu, apenas deu ordem de cessar fogo e dispor as tropas de forma a abrir espaço para os dois batalhões que iam chegar. No momento em que ele dizia isso, como que puxada por uma mão invisível, a cortina de fumaça que encobria o vale foi erguida pelo vento, da direita para a esquerda, e o morro do lado oposto, com os franceses que se deslocavam na encosta, revelou-se à sua frente. Sem querer, todos os olhos se voltaram para aquela coluna de franceses que avançavam na direção deles e serpenteavam pelos desníveis do terreno. Já se avistavam os gorros peludos dos soldados; já se podiam distinguir os oficiais dos soldados comuns; via-se como suas bandeiras tremulavam nas varas.
— Marcham que é uma beleza — disse alguém na comitiva de Bagration.
A cabeça da coluna já havia descido ao vale. O choque se daria do lado de cá da descida...
O resto do nosso regimento engajado na luta apressou-se em tomar posição, afastando-se para a direita; atrás deles, dispersando os retardatários, aproximaram-se, bem alinhados em fileiras, os dois batalhões do sexto de caçadores. Ainda não tinham alcançado Bagration e já se ouviam os passos pesados, opressivos, da batida dos pés de toda aquela massa humana. Do flanco esquerdo, mais adiantado que todos na direção de Bagration, marchava um comandante de companhia, homem de cara redonda, garboso, com uma fisionomia tola e contente, o mesmo que saíra correndo da barraca. Pelo visto, naquele instante, ele não pensava em mais nada senão em passar com ar destemido na frente do comandante.
Com a presunção de um soldado num desfile, ele andava devagar sobre as pernas musculosas, como se flutuasse, mantendo-se ereto sem o menor esforço e, por causa dessa leveza, destacava-se do passo pesado dos soldados que marchavam acompanhando o seu passo. Levava junto à perna a espada desembainhada, fininha, estreitinha (uma espadinha recurvada, nem parecia uma arma), e olhando ora para o comandante, ora para trás, sem perder o passo, virava todo o seu tronco de modo flexível. Parecia que toda a força da sua alma estava dirigida a passar na frente do comandante da melhor forma possível e, sentindo que cumpria bem essa missão, ficou feliz. “Esquerda... esquerda... esquerda...”, ele parecia dizer interiormente a cada passo e, naquela cadência, movia-se a muralha de vultos de soldados, com rostos variados, pitorescos, austeros, sobrecarregados pelas mochilas e fuzis, e parecia que cada um daquelas centenas de soldados dizia em pensamento, a cada passo: “Esquerda... esquerda... esquerda...”. Um major gordo, resfolegante e com o passo desemparelhado, contornou um arbusto que estava no seu caminho; um soldado retardatário, arquejante, com o rosto assustado por seu descuido, ultrapassou a companhia a trote; uma bala de canhão, pressionando o ar, passou voando sobre a cabeça do príncipe Bagration e da sua comitiva, e também naquele mesmo ritmo: “esquerda... esquerda!”, atingiu a coluna. “Cerrar fileiras!”, ouviu-se a voz presunçosa do comandante da companhia. Os soldados, em arco, contornaram algo no lugar onde a bala havia caído; um velho sargento de flanco, condecorado, que havia ficado para trás junto aos mortos, alcançou a sua fileira, aos pulos, trocando as pernas, e então acertou o passo e olhou para trás, zangado. “Esquerda... esquerda... esquerda...”, parecia ouvir-se por trás do silêncio ameaçador e do som monótono dos pés que batiam na terra ao mesmo tempo.
— Coragem, rapazes! — disse o príncipe Bagration.
— Por vossa... ência-ência-ência-ência!... — ressoou pelas fileiras. Um soldado carrancudo, que marchava à esquerda gritando assim, voltou os olhos para Bagration com uma expressão que parecia dizer: “A gente já sabe”; um outro, sem se virar para olhar e como que com medo de se distrair, de boca escancarada, gritou e passou direto.
Mandaram os soldados parar e arriar as mochilas.
Bagration ultrapassou as fileiras que haviam passado por ele e desmontou. Deu a rédea para um cossaco, tirou a capa e entregou-a também, ajeitou as calças e corrigiu a posição da barretina na cabeça. Com os oficiais à frente, a cabeça da coluna dos franceses surgiu ao pé do morro.
— Deus esteja conosco! — exclamou Bagration com voz firme e audível, voltou-se por um momento para a linha de frente e, balançando os braços de leve, no passo desconfortável de um cavalariano, como que com esforço, avançou pelas irregularidades do terreno. O príncipe Andrei sentiu que uma espécie de força invencível o atraía para a frente e experimentou uma grande felicidade.70
Os franceses já estavam próximos; o príncipe Andrei, que marchava ao lado de Bagration, já distinguia com clareza as bandoleiras, as dragonas vermelhas, até o rosto dos franceses. (Ele via com clareza um velho oficial francês que, de pernas tortas e sapatos, subia o morro com dificuldade.) O príncipe Bagration não dava nenhuma ordem nova e, sempre calado, marchava à frente das fileiras. De repente, entre os franceses, rompeu um tiro, um outro, um terceiro... e por todas as desordenadas fileiras inimigas propagou-se uma fumaça e começou a crepitar o tiroteio. Alguns de nossos homens caíram, entre eles o oficial de cara redonda, que marchava tão contente e aplicado. Mas no mesmo instante em que rompeu o primeiro tiro, Bagration olhou para trás e gritou:
— Hurra-a-a-a!
— Hurra-a-a-a! — ressoou um grito prolongado em nossas linhas e, ultrapassando o príncipe Bagration e também uns aos outros, em um bando fora de formação, mas alegre e animado, os nossos soldados correram morro abaixo atrás dos franceses, em desordem.
XIX
O ataque do sexto de caçadores garantiu a retirada do flanco direito. No centro, a ação da esquecida bateria de Túchin, que tivera sucesso em incendiar Schöngraben, havia detido o avanço dos franceses. Os franceses estavam apagando o incêndio, espalhado pelo vento, e isso dava tempo para os russos recuarem. O recuo do centro pelo barranco se cumpriu de modo rápido e ruidoso; durante a retirada, no entanto, as tropas não misturaram seus destacamentos. Porém, atacado e ao mesmo tempo cercado pelas forças superiores dos franceses sob o comando de Lannes, o nosso flanco esquerdo, formado por infantes de Azov e de Podólia e por regimentos de hussardos de Pávlograd, foi posto em desordem. Bagration enviou Jerkóv até o general do flanco esquerdo com a ordem de recuar sem demora.
Jerkóv, prontamente, sem tirar a mão do quepe, virou o cavalo e partiu a galope. Mas, assim que se afastou de Bagration, sua coragem se desfez. Caiu sobre ele um pavor invencível, e Jerkóv não conseguia ir para onde estava o perigo.
Ao se aproximar das tropas do flanco esquerdo, Jerkóv não seguiu para a frente, onde havia o tiroteio; em vez disso, pôs-se a procurar o general e os comandantes em lugares onde eles não podiam estar e por isso não transmitiu as ordens.
O comando do flanco esquerdo cabia, por antiguidade, ao comandante daquele mesmo regimento que havia se perfilado em Braunau para a revista de tropas feita por Kutúzov e no qual Dólokhov servia no posto de soldado. Já o comando da extremidade do flanco esquerdo cabia ao comandante do regimento de Pávlograd, no qual servia Rostóv, e por isso havia uma desavença. Os dois comandantes estavam muito irritados um com o outro e, enquanto no flanco direito as ações já estavam em andamento havia muito tempo, e os franceses já iniciavam uma ofensiva, os dois comandantes mantinham-se ocupados em discussões cuja finalidade era ofender-se mutuamente. Os regimentos, tanto o de cavalaria como o de infantaria, estavam muito mal preparados para o confronto iminente. Os homens dos regimentos, desde os soldados até o general, não esperavam que houvesse uma batalha e entretinham-se tranquilamente com afazeres pacíficos: a alimentação dos cavalos, na cavalaria; a coleta de lenha, na infantaria.
— Já que ele, afinal, é mais antigo do que eu no posto — disse o alemão, coronel dos hussardos, ficando vermelho e dirigindo-se para um ajudante de ordens que se aproximara —, então deixe que ele faça o que bem entender. Eu é que não posso sacrificar os meus hussardos. Corneteiro! Toque de retirada!
Mas o caso exigia pressa. O canhoneio e o tiroteio se fundiam, ribombavam à direita e no centro, e os capotes franceses dos fuzileiros de Lannes já estavam ultrapassando a represa do moinho e tomavam posição do lado de cá, à distância de dois tiros de fuzil. O coronel de infantaria aproximou-se do cavalo no seu passo trêmulo, montou e, pondo-se muito reto e muito alto, seguiu na direção do comandante do regimento de Pávlograd. Os comandantes dos dois regimentos encontraram-se com saudações de cortesia e com um rancor escondido no coração.
— Mais uma vez, coronel — disse o general —, não posso, afinal de contas, deixar metade do meu pessoal na floresta. Peço ao senhor, peço ao senhor — repetiu — que tome posição e se prepare para o ataque.
— Peço ao senhor que não se meta no que não é da sua conta — respondeu o coronel, exaltando-se. — Se o senhor fosse um cavalariano...
— Não sou cavalariano, coronel, mas sou um general russo, e se o senhor não sabe disso...
— Sei muito bem, vossa excelência — gritou de repente o coronel, tocando o cavalo com a espora e ficando muito vermelho. — O senhor não quer ter a bondade de ir até as linhas de frente comigo e ver que aquela posição é totalmente desvantajosa? Não quero exterminar o meu regimento só para dar uma satisfação ao senhor.
— O senhor está esquecendo, coronel. Eu não estou pensando na minha satisfação e não permito que o senhor diga isso.
O general, aceitando o convite do coronel para um torneio de bravura, abriu o peito, franziu as sobrancelhas e seguiu com ele a cavalo na direção da linha de frente, como se todas as suas desavenças tivessem de se resolver lá, na linha de frente, debaixo das balas. Chegaram à linha de frente, algumas balas voaram por cima deles, e os dois pararam, calados. Nada havia para ver na linha de frente, pois do lugar onde eles antes se achavam já tinha ficado bem claro que era de fato impossível a cavalaria entrar em ação no meio dos arbustos e dos barrancos, e que os franceses estavam cercando o flanco esquerdo. O general e o coronel olhavam um para o outro, com um ar severo e bem significativo, como dois galos que se preparam para a briga, esperando em vão notar algum sinal de covardia. Os dois resistiram à prova. Como nada havia a dizer, e como nem um nem outro queriam dar motivo para o adversário falar que foi o outro o primeiro a se afastar da linha de fogo, ficariam muito tempo ali parados, pondo à prova a coragem um do outro, se naquele momento, na floresta, quase atrás deles, não tivessem ouvido estampidos de fuzis misturados com gritos abafados. Os franceses atacavam os soldados que estavam na floresta à cata de lenha. Já era impossível para os hussardos recuar junto com a infantaria. O caminho da retirada fora cortado à esquerda pelas linhas francesas. Agora, por pior que fosse a posição dos russos, era necessário atacar para abrir caminho.
O esquadrão em que servia Rostóv mal teve tempo de montar seus cavalos e logo se viu cara a cara com o inimigo. De novo, como na ponte de Enns, não havia ninguém entre o esquadrão e o inimigo e, entre eles, separando uns dos outros, estava aquela mesma terrível linha do desconhecido e do terror, semelhante à linha que separa os vivos dos mortos. Todos percebiam tal linha, e a questão de atravessá-la ou não, e de como atravessá-la, os perturbava.
O coronel seguiu para o front, respondeu algo para os oficiais em tom irritado e, como um homem que se aferra desesperadamente à sua ideia, deu uma ordem. Ninguém falou nada de específico, mas pelo esquadrão correu o rumor de que iam atacar. Ressoou a ordem de entrar em formação, depois os sabres ganiram, ao serem sacados das bainhas. Mas ninguém ainda se movia. As tropas do flanco esquerdo, infantes e hussardos, sentiam que o próprio comandante não sabia o que fazer, e a indecisão do comando contagiou as tropas.
“Depressa, vamos logo com isso”, pensou Rostóv, sentindo que por fim havia chegado a hora de experimentar a delícia do ataque, da qual tanto ouvira falar, entre os camaradas hussardos.
— Deus esteja conosco, rapazes — ressoou a voz de Deníssov. — A trote, marche!
Na primeira fileira, a garupa dos cavalos começou a balançar. Corvinho repuxou as rédeas e avançou por conta própria.
À direita, Rostóv viu as primeiras fileiras dos seus hussardos e mais além, à frente, viu uma faixa escura que ele não conseguia distinguir, mas achou que era o inimigo. Ouviam-se tiros, mas ao longe.
— Acelerar o trote! — ouviu-se a ordem, e Rostóv sentiu que o seu Corvinho, corcoveando a garupa, acelerava o galope.
Rostóv adivinhou os movimentos do cavalo e sentia-se cada vez mais alegre. Notou uma só árvore à sua frente. De início a árvore estava na frente, bem no meio da linha que parecia tão terrível. Mas de repente já haviam cruzado a linha e, não só nada de terrível acontecera, como a sensação de alegria e de entusiasmo aumentava mais e mais. “Ah, como vou dar golpes com o meu sabre”, pensou, apertando na mão o punho do sabre.
— U-u-u-u-a-a-a-a! — vozes começaram a zunir. “Pronto, pode vir, quem quer que seja”, pensou Rostóv, apertando as esporas no Corvinho e, ultrapassando os demais, lançou-o em desabalada carreira. À frente, já se via o inimigo. De repente, como uma larga vassoura, algo fustigou o esquadrão. Rostóv ergueu o sabre, preparando-se para golpear, mas nesse momento o soldado Nikítienko, que galopava na sua frente, afastou-se dele e Rostóv sentiu, como que num sonho, que continuava a sua corrida para a frente numa velocidade absurda e, ao mesmo tempo, não saía do lugar. Vindo de trás, um hussardo conhecido seu, Bandartchuk, saltou sobre ele e olhou-o com irritação. O cavalo de Bandartchuk empinou e ele se foi a galope.
“Como é que pode? Não estou em movimento?... Caí, estou morto...” Rostóv perguntou e respondeu ao mesmo tempo. Já estava sozinho no meio de um campo. Em vez das costas dos hussardos e dos cavalos em movimento, via à sua volta a terra imóvel e o restolho. Debaixo dele, havia sangue quente. “Não, eu fui ferido, e o cavalo foi morto.” Corvinho tentou levantar-se nas patas dianteiras, mas caiu e prendeu a perna do seu cavaleiro. Da cabeça do cavalo, o sangue escorria. Corvinho debatia-se e não conseguia erguer-se. Rostóv quis levantar-se e também caiu: a cartucheira havia se enganchado na sela. Onde estavam os nossos, onde estavam os franceses — ele não sabia. Não havia ninguém à sua volta.
Depois de soltar a perna, Rostóv levantou-se. “Onde, de que lado está agora a linha que separava as duas tropas com tanta força?”, ele se perguntava e não conseguia responder. “Será que alguma coisa ruim aconteceu comigo? Esses casos acontecem, e o que se deve fazer nesses casos?”, perguntou-se, enquanto levantava; naquele instante sentiu que algo pendia inútil do seu braço esquerdo entorpecido. O punho parecia de outra pessoa. Rostóv olhou para a mão à procura de sangue, mas em vão. “Pronto, alguém chegou”, pensou com alegria, ao ver algumas pessoas que vinham correndo na sua direção. “Vão me ajudar!” Na frente daquelas pessoas, corria um homem com uma barretina estranha e de capote azul, pele morena, queimada de sol, nariz adunco. Mais dois e depois uma porção corriam atrás. Um deles exclamou algo esquisito, não em russo. Entre as pessoas que vinham atrás, vestidas como aquele homem, com a mesma barretina, vinha um único hussardo russo. Traziam-no preso pelo braço; atrás dele, seguravam o seu cavalo.
“Na certa, um dos nossos, um prisioneiro... Sim. Será que vão me levar também? Que gente será essa?”, Rostóv não parava de pensar, sem acreditar em seus olhos. “Serão franceses?” Olhava para os franceses que se aproximavam e, embora um segundo antes galopasse apenas para conseguir alcançar aqueles franceses e retalhá-los com o sabre, sua proximidade lhe parecia agora tão aterradora que ele não acreditava em seus olhos. “Quem são eles? Para que estão correndo? Será que é para mim? Será que estão correndo para mim? E para quê? Para me matar? Logo eu, de quem todos gostam tanto?” Lembrou-se do amor que lhe tinham a sua mãe, a família, os amigos, e a intenção dos inimigos de matá-lo lhe pareceu impossível. “Mas pode ser... e vão matar!” Estava parado, de pé, havia mais de dez segundos, não saía do lugar e não entendia sua situação. O francês da frente, com nariz adunco, havia chegado tão perto que já dava para ver a expressão do seu rosto. E a fisionomia exaltada e estranha daquele homem, que com a baioneta calada, prendendo a respiração, corria ligeiro na sua direção, assustou Rostóv. Ele pegou a pistola, mas, em vez de atirar, jogou-a contra o francês e correu na direção dos arbustos com todas as forças que tinha. Não corria com aquele sentimento de dúvida e de conflito com que marchara na ponte de Enns, mas com o sentimento de uma lebre que foge de um cachorro. Um único e indivisível sentimento de temor pela sua vida jovem, feliz, dominava todo o seu ser. Atravessando aos saltos os fossos do terreno, no mesmo ímpeto com que corria quando brincava de pique-esconde, Rostóv voava pelo campo, de vez em quando virava o rosto pálido, bondoso, jovem, e um pavor frio corria pelas suas costas. “Não, é melhor não olhar”, pensou, mas depois que correu em direção aos arbustos, virou-se e olhou mais uma vez. Os franceses tinham ficado para trás e, no instante em que Rostóv se virou para olhar, o homem que vinha na frente deixou de trotar, começou a andar a passo e, virando-se, gritou algo com força para um camarada logo atrás. Rostóv parou. “Tem alguma coisa errada”, pensou, “não é possível que quisessem me matar.” Enquanto isso o seu braço esquerdo tinha ficado tão pesado como se nele estivesse pendurado um peso de dois pud. Rostóv não podia correr mais. O francês também havia parado e fez pontaria. Rostóv semicerrou os olhos e curvou-se. Uma bala e depois outra voaram por cima dele, zumbindo. Reuniu suas últimas forças, segurou a mão esquerda com a direita e alcançou os arbustos. Dentro dos arbustos, estavam os atiradores russos.
XX
Os regimentos de infantaria, atacados de surpresa na floresta, correram para fora da mata, e as companhias, misturando-se com outras companhias, fugiram em desordem, em bandos. Um soldado, de pavor, exclamou esta palavra terrível e insensata, na guerra: “Cercados!”, e a palavra, junto com o sentimento de pavor, contagiou toda a tropa.
— Cercados! Encurralados! Perdidos! — gritavam as vozes dos soldados em fuga.
O comandante do regimento, no momento em que ouviu o tiroteio e os gritos atrás, entendeu que havia acontecido algo horrível com o seu regimento, e a ideia de que ele, um oficial exemplar que servia havia muitos anos sem ter cometido nenhuma falta, poderia ser acusado pelos superiores de um descuido, ou de falta de iniciativa, abalou-o com tal força que, naquele instante, esquecendo tanto o coronel de cavalaria insubordinado quanto a sua própria estatura de general, e sobretudo esquecendo por completo o perigo que corria e qualquer sentimento de autopreservação, ele, agarrando-se ao arção da sela e esporeando o cavalo, galopou rumo ao regimento, sob as balas que o cobriam como uma saraivada, mas que felizmente não o atingiram. Só desejava uma coisa: saber o que tinha ocorrido, prestar socorro e corrigir, no caso de ter havido um erro da sua parte, e não ser ele o culpado, um oficial exemplar com vinte e dois anos de serviço sem receber nenhuma repreensão.
Depois de ter conseguido passar a galope, são e salvo, no meio dos franceses, ele chegou a um campo, por trás da floresta, onde os nossos soldados corriam em fuga e, sem obedecer às ordens, desciam pelo morro. Havia chegado aquele instante de instabilidade moral em que a sorte de uma batalha é decidida: ou os bandos de soldados em desordem ouviriam a voz do seu comandante ou, depois de apenas virar-se e olhar para ele, continuariam a correr. Apesar do grito desesperado da voz do comandante do regimento, antes tão temível para os soldados, apesar da cara do comandante do regimento, enfurecida, rubra, tão diferente do que costumava ser, e apesar de ele brandir a espada, os soldados continuaram a correr, a falar entre si, atiravam para o ar e não obedeciam às ordens. A instabilidade moral capaz de decidir a sorte de uma batalha se havia resolvido, pelo visto, em favor do medo.
O general sufocava com seus gritos e com a fumaça de pólvora, e parou em desespero. Tudo parecia perdido, mas naquele instante os franceses que atacavam os nossos, de repente, sem nenhum motivo aparente, correram para trás, desapareceram da orla da floresta e, dentro da floresta, surgiram os atiradores russos. Era a companhia de Timókhin que, sozinha, tinha se mantido em ordem na floresta e, entrincheirada num fosso da mata, atacou os franceses de surpresa. Timókhin lançou-se contra os franceses com gritos tão desesperados e, só com uma espadinha, avançou contra o inimigo com uma determinação tão louca e inebriada, que os franceses, sem tempo de pôr a cabeça no lugar, abandonaram as armas e correram em fuga. Dólokhov, que corria ao lado de Timókhin, matou um francês à queima-roupa e foi o primeiro a pegar pela gola um oficial que se rendera. Os soldados russos que tinham fugido retornaram, os batalhões se reagruparam, e os franceses, que quase tinham partido em dois o nosso flanco esquerdo, foram rechaçados. As forças de reserva conseguiram reunir-se, e os fugitivos pararam. O comandante do regimento estava ao lado do major Ekonómov, junto a uma ponte, e via passar na sua frente as companhias que recuavam, quando um soldado aproximou-se, segurou-se ao seu estribo e quase se encostou nele. O soldado vestia um capote azulado, de feltro grosso, sem mochila e sem barretina, a cabeça enfaixada, e sobre o ombro trazia uma cartucheira francesa. Nas mãos, empunhava uma espada de oficial. O soldado estava pálido, os olhos azuis fitavam com insolência o rosto do comandante do regimento, mas a boca sorria. Apesar de o comandante do regimento estar ocupado em transmitir as ordens para o major Ekonómov, não pôde deixar de dar atenção àquele soldado.
— Vossa excelência, tome aqui dois troféus — disse Dólokhov, indicando a espada e a cartucheira francesas. — Fiz prisioneiro um oficial. Eu contive a companhia. — Dólokhov respirava ofegante, de cansaço; falava com interrupções. — A companhia inteira pode testemunhar. Peço que lembre, vossa excelência!
— Muito bem, muito bem — disse o comandante do regimento e voltou-se para o major Ekonómov.
Mas Dólokhov não se afastou; desatou a faixa da cabeça, arrancou-a e mostrou o sangue ressecado nos cabelos.
— Um ferimento de baioneta, eu permaneci no front. Lembre, vossa excelência.
A bateria de Túchin fora esquecida, e só no fim do confronto, quando continuava a se ouvir o canhoneio no centro, o príncipe Bagration enviou para lá o oficial de serviço do Estado-Maior e depois também o príncipe Andrei, para ordenar que a bateria se retirasse o mais depressa possível. A tropa de cobertura que estava junto aos canhões de Túchin tinha ido embora por causa de alguma ordem, no meio da batalha; mas a bateria continuava a atirar e só não fora tomada pelos franceses porque o inimigo não podia imaginar que quatro canhões sem nenhuma proteção tivessem a audácia de continuar a dar tiros. Ao contrário, pelo vigor da atividade daquela bateria, os inimigos supunham que ali, no centro, concentravam-se as principais forças russas e por duas vezes tentaram atacar aquele ponto e em ambas as vezes foram rechaçados por tiros de metralha dos quatro canhões que estavam isolados naquela elevação.
Pouco depois que o príncipe Bagration se afastou, Túchin conseguiu incendiar Schöngraben.
— Olhe lá, estão na maior confusão! Pegou fogo! Olhe, quanta fumaça! Em cheio! Muito bom! Quanta fumaça, quanta fumaça! — começou a falar um soldado, animando-se.
Sem receber ordens, todos os canhões faziam fogo. Os soldados gritavam a cada tiro, como que para guiar a bala: “Em cheio! É assim que se faz! Olhe só... Muito bom!”. O incêndio, atiçado pelo vento, rapidamente se espalhou. As colunas francesas que tinham ido para a frente da aldeia voltaram atrás, no entanto, como que em vingança por aquele revés, o inimigo instalou dez canhões à direita da aldeia e começou a atirar contra Túchin.
No meio da alegria infantil causada pelo incêndio e da euforia com o êxito dos tiros contra os franceses, os nossos artilheiros só perceberam aquela bateria quando duas balas, e logo em seguida mais quatro, caíram no meio dos canhões, e uma delas derrubou dois cavalos e outra arrancou uma perna do cocheiro de uma carroça de munições. O entusiasmo, porém, uma vez estabelecido, não enfraqueceu, apenas mudou de feição. Os cavalos foram substituídos por outros, de uma carreta de reserva os feridos foram retirados, e as quatro peças de artilharia foram voltadas contra a bateria de dez canhões. Um oficial, camarada de Túchin, foi morto no início do combate e, depois de uma hora, dos quarenta soldados, dezessete haviam tombado, mas todos os artilheiros continuavam alegres e animados. Por duas vezes notaram os franceses surgirem, abaixo, perto deles, e então os atacaram com fogo de metralha.
O homem pequeno, com movimentos fracos, desajeitados, exigia sem cessar ao seu ordenança mais um cachimbinho por essa, como dizia, e soltando fogo do cachimbo, corria para a frente e olhava para os franceses por baixo da mão, que protegia os olhos.
— Arrebenta, pessoal! — exclamava, e ia ele mesmo agarrar as rodas de um canhão e desapertar os parafusos.
No meio da fumaça, ensurdecido pelos tiros ininterruptos, que a cada vez o faziam tremer, Túchin, sem soltar o seu cachimbo, corria de um canhão a outro, ora fazia pontaria, ora contava as cargas, ora dava ordens para retirar e trocar os arreios dos cavalos mortos e feridos, e gritava com sua voz fininha, fraca, vacilante. Seu rosto se animava cada vez mais. Só quando pessoas eram mortas ou feridas, ele franzia o rosto e, dando as costas para os mortos, gritava irritado para os homens que, como sempre, demoravam a levantar um ferido ou um cadáver. Os soldados, em sua maioria jovens bonitos (como sempre nas companhias de artilharia, duas cabeças mais altos do que o seu oficial e duas vezes mais largos do que ele), todos, como crianças numa situação embaraçosa, olhavam para o seu comandante, e a expressão no rosto de Túchin refletia-se fielmente no rosto deles.
Por causa do barulho, do fragor terrível, da necessidade de atenção e de ação, Túchin não experimentava a mínima sensação desagradável de medo, e o pensamento de que ele podia ser morto ou gravemente ferido não lhe passava pela cabeça. Ao contrário, ficava cada vez mais alegre. Túchin tinha a impressão de que aquele minuto em que tinha avistado o inimigo e dera o primeiro tiro já ficara para trás havia muito tempo, que fora até no dia anterior, e que o pedacinho de terra onde estava era conhecido por ele desde muito tempo, um lugar com que tinha uma afinidade pessoal. Apesar de lembrar-se de tudo, refletir sobre tudo e fazer tudo o que o melhor dos oficiais poderia fazer na sua situação, Túchin se achava num estado semelhante a um delírio febril ou ao de um homem embriagado.
Por causa do som ensurdecedor dos seus canhões, de todos os lados, por causa do assovio e dos choques dos obuses dos inimigos, por causa da visão dos soldados que suavam, ficavam vermelhos, afobavam-se em volta dos canhões, por causa da visão do sangue das pessoas e dos cavalos, por causa da visão das fumacinhas do inimigo do outro lado (depois das quais vinha sempre voando uma bala de canhão, acertava na terra, num homem, num canhão ou num cavalo), por causa da visão de todas essas coisas, formou-se na sua cabeça um mundo fantástico, que fazia a sua delícia naquele momento. Os canhões inimigos, na sua imaginação, não eram canhões, mas sim cachimbos dos quais um fumante invisível soltava fumaça em escassas baforadas.
— Olhe lá, bufou de novo — disse Túchin num sussurro para si mesmo, na hora em que uma nuvem de fumaça saltou do morro e, como uma fita, foi carregada para a esquerda pelo vento. — Agora, lá vem a bolinha... e a gente manda de volta.
— Qual é a ordem, vossa excelência? — perguntou um artilheiro, que estava perto dele e ouviu Túchin balbuciar algo.
— Nada, é uma granada... — respondeu.
“Vamos lá, nossa Matvievna”,71 falou consigo. Na sua imaginação, Matvievna era o nome do canhão grande e de fundição antiga, que ficava na ponta. Os franceses eram para ele formigas em volta dos seus canhões. O bonito homem embriagado que era o número 1 do segundo canhão representava, no seu mundo, o “titio”; Túchin olhava para ele mais do que para os outros e alegrava-se com todos os seus movimentos. O barulho do tiroteio dos fuzis ao pé do morro, que ora esmorecia, ora ficava mais forte outra vez, apresentava-se a ele como uma espécie de respiração. Túchin escutava com atenção o sobe e desce daqueles sons.
— Ih, começou a respirar com força de novo — dizia Túchin consigo.
Ele se imaginava um homem de enorme estatura, vigoroso, que arremessava com as mãos as balas de canhão contra os franceses.
— Vamos lá, Matvievna, minha querida, não faça feio! — disse, enquanto se afastava do canhão, na hora em que uma voz estranha, desconhecida, soou por cima da sua cabeça:
— Capitão Túchin! Capitão!
Túchin olhou para trás, assustado. Era o mesmo oficial do Estado-Maior que o expulsara da barraca em Grunt. Gritava para Túchin com voz ofegante:
— O que deu no senhor, está doido? Por duas vezes recebeu ordens para recuar, e o senhor...
“Puxa, por que estão com raiva de mim?...”, pensava Túchin, olhando com medo para o superior.
— Eu... nada... — falou, encostando dois dedos na pala do quepe. — Eu...
Mas o coronel não terminou de dizer tudo o que pretendia. Uma bala de canhão que passou perto obrigou-o a curvar-se sobre o cavalo, mergulhando o corpo para a frente. Calou-se um momento e, na hora em que pretendia falar de novo, uma outra bala de canhão o fez parar. Puxou as rédeas do cavalo e se foi a galope.
— Bater em retirada! Todo mundo, bater em retirada! — gritou, de longe. Os soldados desataram a rir. Um minuto depois, veio o ajudante de ordens com a mesma ordem.
Era o príncipe Andrei. A primeira coisa que viu quando chegou à área ocupada pelos canhões de Túchin foi um cavalo desatrelado com a pata quebrada, que relinchava em volta dos cavalos atrelados. Da sua pata, como de uma fonte, o sangue escorria. Entre as carretas jaziam vários mortos. Enquanto ele se aproximava, balas de canhão voavam por cima da sua cabeça, uma depois da outra, e ele sentiu uma espécie de tremor nervoso correr pelas costas. Mas a simples ideia de que tinha medo o animou outra vez. “Não posso ter medo”, pensou e desmontou bem devagar no meio dos canhões. Transmitiu a ordem e não se afastou da bateria. Decidiu que ficaria para presenciar a retirada das armas da posição e as acompanharia. Junto com Túchin, andando no meio dos cadáveres e sob o terrível fogo dos franceses, incumbiu-se da retirada das armas.
— Ainda agora veio aqui um oficial, mas logo foi embora correndo — disse um artilheiro para o príncipe Andrei. — Não era como vossa excelência.
O príncipe Andrei não falava nada com Túchin. Os dois estavam tão ocupados que pareciam nem enxergar um ao outro. Quando estavam descendo o morro, depois de ter amarrado nas carretas os dois canhões ainda inteiros, dos quatro que formavam a bateria (um canhão quebrado e um unicórnio72 foram abandonados), o príncipe Andrei aproximou-se de Túchin.
— Bem, até logo — disse o príncipe Andrei e estendeu a mão para Túchin.
— Até logo, meu caro — respondeu Túchin —, grande amigo! Até a vista, meu caro — disse Túchin, com lágrimas que por algum motivo surgiram de repente, sem ele perceber.
XXI
O vento havia cessado, nuvens negras pairavam baixas sobre o local da batalha, fundiam-se com a fumaça de pólvora no horizonte. Estava escurecendo, e assim, em dois locais, um clarão de incêndio destacava-se com mais brilho ainda. O canhoneio ficou mais fraco, mas os estampidos dos fuzis, atrás e à direita, soavam ainda mais próximos e mais frequentes. Assim que Túchin, com seus canhões, desviando-se dos feridos ou topando com eles no caminho, conseguiu sair do alcance do fogo inimigo e desceu no barranco, vieram ao seu encontro os comandantes e os ajudantes de ordens, entre os quais estavam o oficial do Estado-Maior e Jerkóv, enviado duas vezes à bateria de Túchin, mas que não chegou lá nem numa vez nem na outra. Todos eles, interrompendo-se uns aos outros, transmitiam ordens sobre como e aonde ir, faziam repreensões e observações a Túchin. Por sua vez, Túchin não deu nenhuma ordem e, calado, com medo de falar, porque, sem entender a razão, a cada palavra sentia-se à beira de chorar, recuou para perto do seu pangaré de artilharia. Embora houvesse a ordem de abandonar os feridos, muitos deles se arrastavam atrás das tropas e pediam para vir nas carretas dos canhões. Aquele garboso oficial de infantaria que, antes da batalha, saíra correndo da barraca de Túchin tinha sido colocado na carreta do canhão Matvievna, com uma bala na barriga. Ao pé do morro, um junker hussardo pálido, com uma das mãos segurando a outra, aproximou-se de Túchin e pediu que o deixasse ir na carreta.
— Capitão, pelo amor de Deus, fui ferido na mão — disse, tímido. — Pelo amor de Deus, não consigo andar. Pelo amor de Deus!
Era evidente que aquele junker já havia pedido várias vezes que o levassem nas carroças e todos recusaram. Pedia com voz hesitante e sofrida.
— Mande me dar um lugar, pelo amor de Deus.
— Suba, senhor, sente-se — disse Túchin. — Ei, você, titio, estenda o capote para ele — dirigiu-se ao seu soldado predileto. — E onde está aquele oficial ferido?
— Descarregaram, aquele já bateu as botas — respondeu alguém.
— Suba, senhor. Fique aí, meu caro, acomode-se. Estenda o capote, Antónov.
O junker era Rostóv. Segurava a mão, estava pálido, e o queixo tiritava com tremores de febre. Colocaram-no junto ao canhão Matvievna, no mesmo lugar de onde tinham descarregado o oficial morto. No capote estendido havia sangue, que manchou a calça e as mãos de Rostóv.
— O que houve, meu caro, o senhor se feriu? — perguntou Túchin, aproximando-se do canhão junto ao qual estava Rostóv.
— Não, é uma contusão.
— Então por que tem esse sangue aí na beira da carreta? — perguntou Túchin.
— É do oficial, vossa excelência, que sangrou aí — respondeu um soldado artilheiro, e esfregou o sangue com a manga do capote, como que se desculpando pela falta de limpeza em que se achava a carreta.
A muito custo, com a ajuda da infantaria, levaram os canhões morro acima e, depois de alcançar a aldeia de Guntersdorf, pararam. Já estava tão escuro que não se conseguia distinguir o uniforme dos soldados a dez passos de distância, e o tiroteio começava a diminuir. De repente, ali perto, do lado direito, ouviram-se gritos e disparos, de novo. Os tiros já brilhavam no escuro. Era o último ataque dos franceses, ao qual os soldados responderam, entrincheirados nas casas da aldeia. Todos abandonaram de novo a aldeia, mas os canhões de Túchin não podiam ser deslocados, e os artilheiros, Túchin e o junker trocavam olhares em silêncio, à espera do seu destino. O tiroteio começou a diminuir e, de uma rua lateral, afluíram uns soldados numa conversa animada:
— Está inteiro, Petrov? — perguntou um deles.
— Demos um calor neles, irmão. Agora não vão se meter mais com a gente — disse um outro.
— Não dá para enxergar nada. Mas como eles mandaram fogo na gente deles mesmos! Não se enxerga nada; que escuro, irmãos. Não tem nada aí para beber?
Os franceses foram rechaçados pela última vez. E de novo, na escuridão completa, os canhões de Túchin, como que emoldurados pela infantaria, que zumbia à sua volta, moveram-se adiante, ninguém sabia para onde.
No escuro, parecia correr um rio invisível e sombrio, sempre numa só direção, zumbindo num sussurro, em vozes e em sons de cascos e rodas. No rumor geral, entre todos os demais ruídos, os mais nítidos eram os lamentos e as vozes dos feridos, nas trevas da noite. Seus lamentos pareciam encher, sozinhos, toda a escuridão que rodeava a tropa. Seus lamentos e a escuridão daquela noite eram uma coisa só. Após algum tempo, houve um alvoroço na multidão que se deslocava. Alguém passou, com uma comitiva, montado num cavalo branco, e falou alguma coisa ao passar. O que falou? Para onde ir agora? Deviam parar ali? Será que agradeceu? — ouviam-se indagações ansiosas, de todos os lados, e toda a massa em movimento começou a fazer pressão contra si mesma (pelo visto, os da frente haviam parado), e correu o boato de que havia ordem de parar. Todos pararam onde estavam, no meio da estrada lamacenta.
Chamas começaram a brilhar, e vozes ficaram mais audíveis. O capitão Túchin deu as ordens para a companhia, enviou um soldado para procurar um posto de socorro ou um médico para o junker e sentou-se junto a uma fogueira, acesa na estrada pelos soldados. Rostóv arrastou-se também para perto do fogo. O tremor febril causado pela contusão, pelo frio e pela umidade sacudia todo o seu corpo. O sono se apoderava dele de modo irresistível, mas Rostóv não conseguia dormir por causa da dor torturante no braço machucado, que não encontrava uma posição. Ora fechava os olhos, ora mirava o fogo, que lhe parecia de um vermelho ardente, ora olhava para a fraca e encurvada figura de Túchin, sentado à maneira turca ao seu lado. Os olhos grandes, inteligentes e bondosos de Túchin se fixavam nele com simpatia e compaixão. Rostóv percebia que Túchin, com toda a sua alma, queria ajudá-lo, mas nada podia fazer.
De todos os lados, ouviam-se passos e vozes dos infantes que passavam a pé ou em carroças e iam se acomodando em redor. Sons de vozes, de passos e de cascos de cavalo que mudavam de lugar na lama, e dos estalos da lenha no fogo perto e longe fundiam-se num só rumor oscilante.
Agora o rio invisível já não fluía na escuridão como antes, em vez disso era como um mar sombrio que estremece e se aquieta, depois da tempestade. Rostóv olhava e escutava com ar atônito aquilo que se passava na sua frente e à sua volta. Um soldado de infantaria aproximou-se da fogueira, sentou-se de cócoras, estendeu as mãos até bem perto do fogo e virou a cara.
— Dá licença, vossa excelência? — disse ele em tom interrogativo, dirigindo-se a Túchin. — Eu me perdi da minha companhia, Vossa excelência; não sei onde foi parar. Que desgraça!
Um oficial de infantaria com a cara enfaixada aproximou-se da fogueira junto com o soldado e, dirigindo-se a Túchin, pediu que ele mandasse deslocar os canhões um pouquinho para dar passagem a uma carroça. Atrás do comandante, dois soldados correram para a fogueira. Eles xingavam-se e brigavam, os dois puxando uma bota, cada um para o seu lado.
— Como não foi você que pegou? Eh, seu mão-leve — gritava um, com voz rouca.
Depois chegou um soldado magro, pálido, com o pescoço envolto numa faixa ensanguentada, e com voz raivosa exigiu água dos artilheiros.
— Como é que pode, será que a gente tem de morrer feito um cachorro? — disse ele.
Túchin mandou lhe dar água. Depois chegou um soldado alegre, pedindo um pouco de fogo para a infantaria.
— Um foguinho bem aceso para a infantaria! Felicidades para vocês, conterrâneos, obrigado pelo fogo, vamos retribuir com juros — disse, e levou o tição avermelhado para algum lugar na escuridão.
Depois vieram quatro soldados carregando algo pesado num capote, passaram ao lado da fogueira. Um deles tropeçou.
— Puxa, que diabo, largaram lenha no meio do caminho — resmungou.
— Já bateu as botas, para que carregar? — disse um deles.
— Anda, vai!
E sumiram nas trevas, com o seu fardo.
— E aí? Está doendo? — perguntou Túchin para Rostóv, num sussurro.
— Dói.
— Vossa excelência, o general está chamando. Estão ali numa isbá — disse um artilheiro, aproximando-se de Túchin.
— Já vou, meu caro.
Túchin levantou-se e, abotoando o capote e arrumando-se, afastou-se da fogueira...
Não distante da fogueira dos artilheiros, numa isbá preparada para ele, o príncipe Bagration estava sentado diante do seu jantar, conversando com alguns comandantes reunidos à sua volta. Ali estava o velhinho de olhos semicerrados, roendo um osso de carneiro com sofreguidão; o general com vinte e dois anos de serviço irrepreensível, vermelho por causa dos cálices de vodca e do jantar; o oficial do Estado-Maior com um anel de sinete; Jerkóv, que olhava inquieto para todos, e o príncipe Andrei, pálido, de lábios contraídos e olhos febrilmente brilhantes.
Na isbá, a bandeira tomada dos franceses estava de pé, encostada num canto, o auditor de rosto ingênuo apalpava o pano da bandeira e, perplexo, balançava a cabeça, talvez porque se interessasse de fato pela bandeira, talvez porque, estando faminto, lhe fosse penoso ver um jantar no qual não conseguira um lugar. Na isbá vizinha, estava o coronel francês feito prisioneiro pelos dragões. À sua volta, aglomeravam-se os nossos oficiais, que o observavam. O príncipe Bagration agradeceu aos comandantes das unidades e pediu detalhes da luta e das baixas sofridas. O comandante do regimento que se apresentou para revista em Braunau relatou ao príncipe que, assim que o combate começou, ele retrocedeu para fora da floresta, reuniu os soldados que tinham ido buscar lenha, deixou que os franceses passassem por ele e, com dois batalhões, fez uma carga com baionetas e desbaratou os franceses.
— Assim que vi, vossa excelência, que o primeiro batalhão estava desorganizado, parei no meio da estrada e pensei: “Vou deixar que passem e depois vou ao encontro deles com fogo cerrado”; e assim fiz.
O comandante do regimento tinha tanta vontade de ter feito aquilo, e lamentava tanto não ter conseguido agir assim, que lhe parecia que tudo aquilo havia ocorrido exatamente como dizia. Talvez tivesse acontecido mesmo, quem sabe? No meio de todo aquele tumulto, seria possível distinguir o que houve e o que não houve?
— Além do mais é preciso notar, vossa excelência — continuou, lembrando-se da conversa de Dólokhov com Kutúzov e do último encontro que tivera com o rebaixado —, que um soldado, o rebaixado Dólokhov, diante dos meus olhos, fez prisioneiro um oficial francês e destacou-se de modo especial.
— Eu mesmo vi o ataque dos soldados de Pávlograd, vossa excelência — interveio Jerkóv, olhando para os lados, inquieto, sem que naquele dia tivesse visto os hussardos, apenas ouvira um oficial de infantaria falar a respeito deles. — Aniquilaram dois quadrados do inimigo, vossa excelência.
Ante as palavras de Jerkóv, alguns sorriram, pois sempre esperavam dele algum chiste; porém, ao notar que o que estava dizendo favorecia a glória das nossas armas e daquele dia, assumiram uma fisionomia séria, embora muitos deles soubessem muito bem que Jerkóv dizia uma mentira, sem o menor fundamento. O príncipe Bagration voltou-se para o coronel velhinho.
— Agradeço a todos, senhores, todas as unidades agiram com heroísmo: a infantaria, a cavalaria e a artilharia. Mas de que forma dois canhões foram abandonados no centro? — perguntou, procurando alguém com os olhos. (O príncipe Bagration não perguntou sobre as peças de artilharia do flanco esquerdo; sabia que lá, ainda no início do confronto, todos os canhões tinham sido abandonados.) — Parece-me que foi ao senhor que pedi — voltou-se para o oficial de serviço do Estado-Maior.
— Um estava danificado — respondeu o oficial do Estado-Maior —, mas o outro, eu não consigo entender; eu mesmo estive lá o tempo todo, tomando as providências, e só fui embora depois disso... A situação por lá estava quente, é verdade.
Alguém disse que o capitão Túchin estava ali mesmo, na aldeia, e que já o haviam chamado.
— O senhor também esteve lá — disse o príncipe Bagration, dirigindo-se ao príncipe Andrei.
— Pois é, por pouco não nos encontramos — disse o oficial do Estado-Maior, sorrindo com simpatia para Bolkónski.
— Não tive o prazer de ver o senhor — disse o príncipe Andrei, em tom frio e com voz entrecortada.
Todos ficaram calados. Na soleira, surgiu Túchin, que penetrou timidamente pelas costas dos generais. Contornando os generais na isbá repleta de gente, embaraçado como sempre diante dos superiores, Túchin não reparou na haste da bandeira e tropeçou nela. Ouviram-se algumas risadas.
— De que forma os canhões foram abandonados? — perguntou Bagration, com as sobrancelhas franzidas, não tanto para o capitão quanto para os que riram, entre os quais estava Jerkóv, cuja voz se ouviu mais alta que todas.
Só agora, ao ver o terrível comandante, Túchin se deu conta, em todo o seu horror, da culpa e da vergonha de continuar vivo depois de ter perdido dois canhões. Andara tão conturbado que até aquele instante não tivera tempo de pensar no assunto. O riso dos oficiais o deixou ainda mais desnorteado. Estava parado diante de Bagration, com o queixo trêmulo, e mal conseguiu falar:
— Não sei... Vossa excelência... não tinha mais gente, vossa excelência.
— O senhor podia tomar reforços das tropas de cobertura!
Túchin não falou que não havia tropas de cobertura, embora fosse a pura verdade. Temia criar com isso problemas para um outro superior e, calado, com um olhar fixo, fitava Bagration no rosto, de frente, como um estudante confuso fita os olhos do seu examinador.
O silêncio foi bastante prolongado. O príncipe Bagration, visivelmente, não queria mostrar-se severo e não achava o que dizer; os demais não se atreviam a intervir na conversa. O príncipe Andrei olhava de lado para Túchin, e os dedos da sua mão se mexiam nervosamente.
— Vossa excelência — o príncipe Andrei rompeu o silêncio com sua voz brusca. — O senhor se dignou a me enviar à bateria do capitão Túchin. Eu estive lá e encontrei mortos dois terços dos soldados e dos cavalos, dois canhões destroçados, e não havia nenhuma cobertura.
O príncipe Bagration e Túchin, com a mesma determinação, olhavam agora para Bolkónski, que falava com emoção contida.
— E se vossa excelência me permite expressar minha opinião — prosseguiu —, o êxito de hoje, nós o devemos, acima de tudo, à ação dessa bateria e ao heroico estoicismo do capitão Túchin e da sua companhia — disse o príncipe Andrei e, sem esperar resposta, levantou-se prontamente e se afastou da mesa.
O príncipe Bagration olhou bem para Túchin e, pelo visto, sem querer mostrar que não acreditava no juízo taxativo de Bolkónski e ao mesmo tempo sentindo-se sem condições de acreditar nele integralmente, inclinou a cabeça e disse para Túchin que ele podia ir. O príncipe Andrei saiu atrás dele.
— Puxa, obrigado: salvou minha pele, meu caro — disse Túchin.
O príncipe Andrei lançou um rápido olhar para Túchin e, sem dizer nada, afastou-se. O príncipe Andrei sentiu-se triste e abatido. Tudo aquilo era muito estranho, muito diferente do que imaginava.
“Quem são eles? Por que estão aqui? O que querem? E quando tudo vai terminar?”, pensava Rostóv, enquanto olhava para as sombras que se moviam à sua frente. A dor na mão se tornava cada vez mais torturante. O sono o dominava de forma irresistível, círculos vermelhos palpitavam em seus olhos, e a impressão daquelas vozes e daqueles rostos e o sentimento de solidão fundiam-se com a sensação de dor. Eram eles, aqueles soldados, os feridos e também os sem ferimento, eram eles que oprimiam, pesavam, sugavam as energias, queimavam a carne no seu braço quebrado e no seu ombro. A fim de se livrar deles, fechou os olhos.
Perdeu a consciência por um minuto, mas nesse breve intervalo de alheamento ele viu, em sonho, uma quantidade incontável de imagens: viu a mãe com sua mão grande e branca, viu os ombros magrinhos de Sônia, os olhos e o sorriso de Natacha, e Deníssov, com sua voz e seu bigode, e Teliánin, e todo o seu caso com Teliánin e Bogdánitch. Toda aquela história era a mesma coisa que o soldado de voz ríspida, e eram aquela história e o soldado que agarravam e apertavam seu braço de modo torturante e tenaz e o puxavam para um lado. Rostóv tentava afastar-se deles, mas não o largavam de maneira alguma, não soltavam seu ombro nem por um segundo. O ombro não estaria doendo, estaria curado, se não o puxassem; mas era impossível livrar-se deles.
Rostóv abriu os olhos e olhou para cima. A cortina negra da noite pendia um archin acima da luz dos carvões. Nessa luz, voavam grãos da neve que caía. Túchin não voltava, o médico não chegava. Rostóv estava só, agora apenas um soldadinho qualquer estava sentado e despido do outro lado do fogo e aquecia seu corpo magro e amarelo.
“Ninguém precisa de mim!”, pensou Rostóv. “Ninguém vem me ajudar, ninguém tem pena. Quem dera eu estivesse em casa, como antes, forte, alegre, amado.” Suspirou e com o suspiro, sem querer, pôs-se a gemer.
— Ei, está doendo, é? — perguntou o soldadinho, enquanto sacudia a camisa por cima do fogo e, sem esperar resposta, acrescentou num grasnido: — Quanta gente ficou aleijada hoje... que horror!
Rostóv não ouvia o soldado. Olhava para os cristais de neve que esvoaçavam acima do fogo e lembrava o inverno russo numa casa quente, clara, com um casaco de pele felpudo, com trenós ligeiros e com toda a sua adorada e atenciosa família. “O que eu vim fazer aqui?”, pensava ele.
No dia seguinte, os franceses não recomeçaram o ataque, e o resto do destacamento de Bagration uniu-se ao exército de Kutúzov.
1 O arquiducado da Áustria era a parte noroeste do Império austríaco.
2 As datas citadas por Tolstói seguem o calendário juliano, adotado na Rússia até a Revolução de Outubro de 1917. Ele ficava treze dias atrás do calendário gregoriano, adotado nas demais partes do mundo cristão ou ocidental.
3 Oitocentos metros.
4 Área em São Petersburgo, à margem do rio Nievá, onde se realizavam desfiles militares.
5 Formação das tropas em que os soldados ficam agrupados em quadrados e marcham sem sair dessa disposição.
6 A Croácia se encontrava sob o domínio do Império austríaco. A guarda pessoal do imperador austríaco era formada por cavaleiros croatas.
7 Cidade situada na Ucrânia. Kutúzov refere-se à tomada da fortaleza de Ismail, pelo general Suvórov, em dezembro de 1790, na Guerra Russo-Turca (1787-91).
8 Os exércitos russos partiram da Rússia em agosto de 1805 e deslocavam-se devagar. Quando se soube que as tropas de Napoleão já haviam chegado ao Reno, em setembro, as autoridades providenciaram carroças para que as tropas de Kutúzov pudessem percorrer cinquenta quilômetros por dia, em vez dos 25 quilômetros que os soldados perfaziam a pé.
9 Referência à guerra contra os turcos, entre 1769 e 1774, e ao general Kamiénski (1738-1809).
10 Trata-se de uma carta autêntica, citada pelo historiador russo Mikháilovski-Danílevski (1789-1848). Tolstói se apoiou bastante em sua obra, bem como na do historiador e político francês Adolphe Thiers (1797-1877). Além disso, teve acesso a muitos documentos e cartas particulares.
11 Alemão: “Concentramos nossas forças de quase setenta mil homens, prontas para atacar e derrotar o inimigo, caso ele atravesse o Lech. Além disso, como somos os senhores de Ulm, não podemos perder a vantagem de ter sob o nosso domínio as duas margens do Danúbio, e, assim, desde que o inimigo não atravesse o Lech, podemos cruzar o Danúbio, atacar as suas linhas de comunicação, cruzar de novo o rio mais abaixo e frustrar suas intenções caso pretenda voltar todas as suas forças contra os nossos fiéis aliados. Assim, aguardaremos confiantes o momento em que o Exército imperial russo estiver plenamente equipado, e então, unidos a ele, encontraremos com facilidade um modo de preparar o destino que o inimigo merece”.
12 Francês: “O senhor tem à sua frente o infeliz Mack”.
13 Alemão: “Meu Deus, que ingenuidade”.
14 Francês: “Quarenta mil homens massacrados e o Exército de nossos aliados destruído, e o senhor encontra nisso motivo para chacota [...] Isso pode ficar bem para um moleque à toa, como aquele indivíduo, do qual o senhor fez um amigo, mas não para o senhor, não para o senhor”.
15 Aproximadamente três quilômetros.
16 Alemão: “Muito bom dia! Muito bom dia!”.
17 Alemão: “Já está trabalhando! [...] Vivam os austríacos! Vivam os russos! Viva o imperador Alexandre!”.
18 Alemão: “E viva todo mundo!”.
19 Alemão: “E um salve a todo mundo!”.
20 Em russo, as falas do personagem omitem o fonema / R /.
21 Termos do jogo chamado faraó. O paroli consiste em deixar em jogo a aposta acrescida de tudo que já se ganhou.
22 Doppelkümmel ou kümmel: licor típico da Rússia, aromatizado com sementes de cominho ou alcaravia.
23 Famoso passeio público em Moscou.
24 Sájeni: medida russa, equivalente a 2,13 metros.
25 Trata-se de um alemão-russo, uma das nacionalidades constituintes do império. Tolstói retrata a fala de Bogdánitch na forma de um russo precário.
26 Alemão: “vossa excelência”.
27 Francês: “as palavras de Bilíbin eram difundidas nos salões de Viena”.
28 Francês: “Eles me receberam, eu e a minha notícia, como um cão que atrapalha um jogo de boliche”.
29 Francês: “Todavia, meu caro [...] apesar da alta estima que professo pelo Exército ortodoxo russo, confesso que a vitória dos senhores não é das mais vitoriosas”.
30 Alemão: “Namorada”.
31 Parque à beira do Danúbio.
32 Francês: “encanto”.
33 Francês: “Veja bem, meu caro [...] Tudo isso é belo e bom [...] um arquiduque vale o mesmo que outro [...] como se nos dissessem [...] Parece que é de propósito, de propósito”.
34 Referência ao palácio Schönbrunn, o palácio de verão do imperador austríaco.
35 Francês: “O príncipe Murat e todo o resto”.
36 Francês: “cabeça de ponte”.
37 “Escaramuça de Dürrenstein.” Trata-se da vitória sobre Mortier.
38 Francês: “ditos”.
39 Francês: “a Áustria ficará contra a parede”.
40 Em Campo Formio, na Itália, em 1797, foi assinado entre a França e a Áustria um acordo de paz vantajoso para Bonaparte.
41 Francês: “é preciso dispensá-lo do u [...] pura e simplesmente”.
42 Francês: “dizem que o [Exército] ortodoxo é terrível nas suas pilhagens [...] pelos belos olhos de [...] entre nós, meu caro”.
43 Francês: “Quem viver verá”.
44 Francês: “Nem me fale”.
45 Francês: “A mulher é a companheira do homem”.
46 Francês: “O gabinete de Berlim não pode exprimir um sentimento de aliança” [...] “sem exprimir... como na sua última nota... os senhores compreendem... os senhores compreendem... e depois se sua majestade o imperador não revogar o princípio da nossa aliança... Espere, eu não terminei [...] Acho que a intervenção terá mais força do que a não intervenção. E... [...] No fim, não poderão alegar não terem recebido o nosso despacho de 28 de novembro. Aí está como tudo vai terminar”.
47 Francês: “Demóstenes, eu te reconheço pelos seixos que escondeste dentro da tua boca de ouro!”.
48 Francês: “neste fim de mundo na Morávia [...] É preciso fazer a ele as honras de Brünn”.
49 Aproximadamente 5,5 quilômetros.
50 Alemão: “Ah, excelência! [...] Vamos mudar para mais longe. O bandido já está de novo nos nossos calcanhares!”.
51 Francês: “Não, não, admita que é encantadora [...] essa história da ponte de Thabor. Eles a atravessaram sem dar um tiro”.
52 Foi em Toulon, na França, em 1793, que Napoleão se destacou pela primeira vez, quando as tropas republicanas sitiaram a cidade, defendida pelos monarquistas.
53 Francês: “Que ele não enxerga mais nada e esquece o que devia fazer com o inimigo [...] É genial. O príncipe Auersperg sente o orgulho ferido e manda prender o sargento. Não, o senhor tem de admitir que toda essa história da ponte de Thabor é encantadora. Não é tolice, nem covardia...”.
54 Francês: “Talvez seja traição”.
55 Francês: “Também não. Isso deixa a corte em maus lençóis [...] Não é nem traição, nem covardia, nem tolice; é como em Ulm... [...] É... é uma coisa à moda de Mack. Nós fomos mackados”.
56 Francês: “meu caro, é heroísmo”.
57 Francês: “Meu caro, o senhor é um herói”.
58 Francês: “Esse exército russo, que o ouro da Inglaterra transportou desde os confins do universo, nós o faremos ter o mesmo destino (o destino do exército de Ulm)”.
59 Francês: “Aí está o querido”.
60 Refere-se a Piotr Ivánovitch Bagration, um dos comandantes russos nessa campanha.
61 Garrafa de Leyden: capacitor de alta tensão, inventado em 1745 por Von Musschenbroek, em Leiden (ou Leyden), Holanda.
62 Archin: medida russa, equivalente a 71 centímetros.
63 Francês: “Ao príncipe Murat. Schönbrunn, 25 de brumário de 1805 às oito horas da manhã.
“Para mim é impossível encontrar as palavras para exprimir ao senhor a minha insatisfação. O senhor comanda apenas a minha vanguarda e não tem o direito de fazer um armistício sem a minha ordem. O senhor me faz perder o fruto de uma campanha. Rompa o armistício já e marche contra o inimigo. O senhor mandará dizer ao inimigo que o general que assinou a capitulação não tinha o direito de fazê-lo, que só o imperador da Rússia tem tal direito.
“No entanto, assim que o imperador da Rússia ratifique a mencionada convenção, eu a ratificarei. Mas isso não passa de um embuste. Marche, destrua o exército russo... o senhor se acha em posição de capturar a sua carga e a sua artilharia.
“O ajudante de ordens do imperador da Rússia é um... Os oficiais não são nada, quando não têm poder: esse não tinha poder... Os austríacos deixaram-se enganar na travessia da ponte de Viena, o senhor deixou-se enganar por um ajudante de ordens.
“Napoleão”
64 Francês: “Aí está o encanto dos acampamentos, senhor príncipe”.
65 Francês: “faremos vocês dançarem”.
66 Francês: “O que ele está cantando?”.
67 Francês: “Uma história antiga [...] O imperador vai cuidar direitinho do seu Suvará, como fez com os outros...”.
68 Francês: “Nome sagrado”.
69 Francês: “Muito engraçado, senhor meu príncipe”.
7070 Esse foi o ataque sobre o qual Thiers escreveu: “Os russos se portaram com bravura e, coisa rara na guerra, viram-se duas massas de infantaria marchar resolutamente uma contra a outra sem que nenhuma delas cedesse antes de se confrontarem diretamente”. E Napoleão, na ilha de Santa Helena, disse: “Alguns batalhões russos demonstraram intrepidez”. [N. A.]
71 O canhão era chamado por um nome de mulher.
72 Unicórnio: tipo de canhão antigo russo, com a boca fina.
I
O príncipe Vassíli, em seu pensamento, não fazia planos. Muito menos pensava em fazer mal a alguém com o fim de conseguir alguma vantagem. Era apenas um homem mundano, de sucesso na sociedade, e habituado com esse sucesso. Conforme as circunstâncias e as relações com as pessoas, vinham-lhe constantemente diversos planos e ponderações dos quais ele mesmo não se dava conta de todo, mas que constituíam todo o interesse da sua vida. Não eram um ou dois planos e ponderações que surgiam em seu caminho, mas dezenas, entre os quais alguns apenas começavam a se apresentar, outros se realizavam, e outros ainda não davam em nada. E ele, por exemplo, não dizia para si: “Esse homem agora está com poder, eu devo conquistar sua confiança e amizade e, por meio dele, obter para mim o pagamento de um subsídio especial”. Tampouco dizia para si: “Pronto, o Pierre está rico, devo tratar de casá-lo com minha filha e pedir emprestados os quarenta mil rublos de que preciso”; mas, se um homem de poder cruzava o seu caminho, no mesmo instante o instinto lhe sugeria que aquele homem poderia ser útil, e o príncipe Vassíli aproximava-se dele e, na primeira oportunidade, sem nenhuma preparação, por instinto, adulava, fazia-se íntimo, falava sobre aquilo de que precisava.
Pierre estava bem à mão, em Moscou, e o príncipe Vassíli conseguiu que ele fosse nomeado pajem da corte, o que então equivalia ao cargo de conselheiro de Estado,1 e insistiu em que o jovem fosse com ele a Petersburgo e ficasse hospedado em sua casa. Como que distraidamente, e ao mesmo tempo com a convicção inabalável de que isso teria de acontecer, o príncipe fez tudo o que era necessário para casar Pierre com a sua filha. Se o príncipe Vassíli fizesse planos de antemão, não conseguiria tamanha naturalidade de atitude, nem tamanha simplicidade e familiaridade nas relações com todas as pessoas, situadas acima e abaixo da sua posição social. Algo o atraía o tempo todo para as pessoas mais fortes ou mais ricas do que ele, e o príncipe Vassíli era dotado da rara arte de saber agarrar o minuto exato em que era oportuno e possível tirar proveito das pessoas.
Pierre, que de modo inesperado se tornara rico e conde Bezúkhov, após a solidão e o ócio dos últimos tempos, sentia-se a tal ponto atarefado e cercado de gente que só na cama conseguia ficar sozinho consigo mesmo. Precisava assinar documentos, comparecer a repartições públicas de cuja função ele não tinha uma ideia clara, indagar do seu principal administrador sobre algo, ir à sua propriedade nos arredores de Moscou e receber uma porção de pessoas que antes nem queriam saber da sua existência, mas que agora ficariam ofendidas e magoadas se ele não quisesse vê-las. Todas aquelas pessoas tão diversas — negociantes, parentes, conhecidos —, todos mostravam-se igualmente cordiais e simpáticos com o jovem herdeiro; todos eles, de modo evidente e incontestável, estavam convencidos dos altos méritos de Pierre. Ele ouvia o tempo todo as palavras: “Com a sua extraordinária bondade”, ou “Com o seu excelente coração”, ou “O senhor é tão puro, conde...”, ou “Se ao menos ele fosse tão inteligente como o senhor” etc., e a tal ponto que ele começou a acreditar sinceramente na sua bondade extraordinária e na sua inteligência extraordinária, ainda mais porque, no fundo da alma, sempre lhe pareceu que era de fato muito bom e muito inteligente. Até pessoas que antes lhe eram desfavoráveis e abertamente hostis tornaram-se gentis e afetuosas com ele. A princesa mais velha e tão irritada, de tronco comprido e cabelos lisos como de uma boneca, veio ao quarto de Pierre depois do enterro. De olhos baixos e ruborizando-se a todo instante, ela lhe disse que lamentava muito os desentendimentos entre ambos e que agora não se sentia no direito de pedir nada, a não ser, depois do golpe que a atingira, a autorização de permanecer mais algumas semanas na casa que ela tanto amava e pela qual fizera tantos sacrifícios. Não conseguiu se conter e começou a chorar ao dizer essas palavras. Comovido ao ver que aquela princesa com pose de estátua tinha podido mudar tanto, Pierre pegou a mão dela e pediu desculpas, sem que nem ele mesmo soubesse por quê. A partir daquele dia, a princesa começou a tricotar uma echarpe listrada para Pierre e mudou por completo sua atitude em relação a ele.
— Faça isso para ela, mon cher; apesar de tudo, ela sofreu muito por causa do falecido — disse-lhe o príncipe Vassíli, e lhe deu para assinar um documento em benefício da princesa.
O príncipe Vassíli resolveu que apesar de tudo era preciso jogar aquele osso, um título de crédito no valor de trinta mil rublos, para a pobre princesa, a fim de evitar que ela tivesse a ideia de falar a respeito da participação do príncipe Vassíli no caso da pasta com o mosaico. Pierre assinou o título de crédito, e desde então a princesa ficou ainda mais bondosa. As irmãs mais novas tornaram-se igualmente afetuosas com ele, e em especial a caçula, bonitinha, com o sinalzinho, muitas vezes deixava Pierre embaraçado com os seus sorrisos e a sua agitação ao vê-lo.
Para Pierre parecia tão natural que todos o amassem, e pareceria tão anormal se alguém não gostasse dele, que não conseguia deixar de acreditar na sinceridade das pessoas ao seu redor. Além do mais, nem tinha tempo para perguntar a si mesmo a respeito da sinceridade ou da falta de sinceridade daquelas pessoas. Nunca tinha tempo para nada, sentia-se num permanente estado de embriaguez dócil e alegre. Sentia-se o centro de uma espécie de movimento importante e generalizado; sentia que sempre esperavam dele alguma coisa; que se ele não o fizesse, magoaria muitos e os privaria do que esperavam, mas se fizesse isso e aquilo, tudo ficaria bem — e Pierre fazia o que dele exigiam, no entanto o bem que se esperava ficava sempre para o futuro.
Naqueles primeiros tempos, mais do que ninguém, foi o príncipe Vassíli quem dominou os negócios de Pierre e o próprio Pierre. Depois da morte do conde Bezúkhov, ele não o largou mais. O príncipe Vassíli tinha o aspecto de um homem assoberbado de trabalho, cansado, atormentado, mas, por compaixão, incapaz de, afinal, abandonar aos caprichos do destino e dos trapaceiros aquele jovem desamparado, filho do seu amigo, après tout,2 e com tamanha fortuna. Naqueles poucos dias que passou em Moscou após a morte do conde Bezúkhov, convidava Pierre para vir à sua casa ou ia ele mesmo à casa de Pierre e lhe prescrevia o que era preciso fazer, num tal tom de cansaço e de certeza que parecia lhe dizer a cada vez: “Vous savez, que je suis accablé d’affaires et que ce n’est que par pure charité, que je m’occupe de vous, et puis vous savez bien que ce que je vous propose est la seule chose faisable”.3
— Bem, meu amigo, amanhã vamos partir, afinal — disse ele, um dia, fechando os olhos e tocando com os dedos o cotovelo de Pierre, como se aquilo já estivesse resolvido entre ambos havia muito tempo e não pudesse ser de outra forma. — Amanhã vamos partir, tenho um lugar para você na minha carruagem. Estou muito contente. Aqui, já terminamos tudo o que havia de importante. E eu já precisava ter ido há muito tempo. Veja o que recebi do chanceler. Pedi a ele por você, e você foi designado para o corpo diplomático e nomeado pajem da corte. Agora a carreira da diplomacia está aberta para você.
Apesar de todo o poder do tom de cansaço e de segurança com que foram ditas essas palavras, Pierre, que por tanto tempo havia pensado na sua carreira, fez menção de protestar. Mas o príncipe Vassíli interrompeu-o com um tom de arrulho e de baixo que excluía toda possibilidade de interromper suas palavras e que ele utilizava nos casos de extrema necessidade de persuasão.
— Mais, mon cher, eu fiz isso por mim, pela minha consciência, e você nada tem a me agradecer. Ninguém nunca se lamentou de ser amado em excesso; de resto, você é livre para amanhã exonerar-se. Você vai ver por si mesmo, em Petersburgo. E já é tempo de afastar-se dessas horríveis recordações. — O príncipe Vassíli deu um suspiro. — Pois é, meu caro. Deixe que o meu camareiro vá na sua carruagem. Ah, sim, eu já ia esquecendo — acrescentou ainda o príncipe Vassíli —, você sabe, mon cher, que o falecido tinha uma dívida comigo, assim recebi umas rendas de Riazan e continuo a receber: você não está precisando. Depois faremos as contas.
O que o príncipe chamou de “umas rendas de Riazan” eram vários milhares de rublos do tributo pago pelos servos de uma propriedade em Riazan, rublos que ele tomava para si.
Em Petersburgo, assim como em Moscou, uma atmosfera de pessoas carinhosas, amáveis, cercava Pierre. Ele não podia recusar o cargo, ou melhor, o título (porque ele nada fazia) que o príncipe Vassíli havia obtido para ele, e os convites dos conhecidos e as ocupações sociais eram tantos que Pierre, ainda mais do que em Moscou, provava um sentimento de turvação, de pressa, de procurar algo bom que não se realizava.
Quanto aos seus conhecidos solteiros de antes, muitos não estavam em Petersburgo. A guarda partira em campanha. Dólokhov tinha sido rebaixado, Anatole estava no Exército, numa província, o príncipe Andrei estava no exterior, e por isso Pierre não conseguia nem passar as noites como antes gostava, nem desabafar de vez em quando numa conversa afetuosa com um amigo mais velho e que ele respeitava. Passava todo o seu tempo em jantares, bailes e sobretudo na casa do príncipe Vassíli — em companhia da princesa gorda, esposa dele, e da bela Hélène.
Anna Pávlovna Scherer, a exemplo dos outros, mostrava para Pierre a mudança ocorrida na sociedade em relação a ele.
Antes, em presença de Anna Pávlovna, Pierre tinha o tempo todo a sensação de que aquilo que ele dizia era indecoroso, sem tato, inadequado; que as palavras que lhe pareciam inteligentes quando as pronunciava na sua imaginação tornavam-se tolas assim que as dizia em voz alta e que, ao contrário, as palavras mais obtusas de Hippolyte se revelavam inteligentes e gentis. Agora, o que quer que ele falasse, tudo se revelava charmant. Ainda que Anna Pávlovna não o disesse, Pierre notava que ela queria dizer isso e que só se continha por respeito à modéstia dele.
No início do inverno de 1805 para 1806, Pierre recebeu de Anna Pávlovna um bilhete, cor-de-rosa como de costume, um convite no qual havia acrescentado: “Vous trouverez chez moi la belle Hélène, qu’on ne se lasse jamais de voir”.4
Ao ler essa passagem, Pierre pela primeira vez sentiu que entre ele e Hélène se formava uma espécie de vínculo, reconhecido por outras pessoas, e tal pensamento o assustava, como se pusessem sobre seus ombros uma obrigação que ele não era capaz de aguentar, e ao mesmo tempo lhe agradava, como uma hipótese divertida.
A noite em casa de Anna Pávlovna foi igual à primeira, só que a novidade que Anna Pávlovna oferecia agora aos convidados não era Mortmart, mas um diplomata que chegara de Berlim e trouxera os detalhes mais recentes acerca da estada do imperador Alexandre em Potsdam e de como lá dois amigos majestosos juraram uma aliança indissolúvel para defender a causa do direito contra o inimigo da espécie humana. Pierre foi recebido por Anna Pávlovna com um toque de tristeza, pelo visto uma referência à perda recente que atingira o jovem, a morte do conde Bezúkhov (todos, sem cessar, julgavam que era seu dever convencer Pierre de que ele estava muito amargurado com a morte do pai, a quem ele quase não conhecera) — uma tristeza exatamente igual à tristeza majestosa que se exprimia quando ela se lembrava da muito augusta imperatriz Maria Fiódorovna. Pierre sentiu-se lisonjeado com isso. Anna Pávlovna, com sua arte habitual, formou círculos com as suas visitas. O círculo maior, onde estavam o príncipe Vassíli e uns generais, desfrutava a presença do diplomata. Um outro círculo menor se formara junto à mesinha de chá. Pierre queria unir-se ao primeiro círculo, mas Anna Pávlovna, que se achava no estado de agitação de um chefe militar num campo de batalha, quando lhe vêm à mente mil novas ideias brilhantes, as quais ele mal tem tempo de pôr em prática, Anna Pávlovna, ao ver Pierre, tocou um dedo na sua manga.
— Attendez, j’ai des vues sur vous pour ce soir. — Voltou os olhos para Hélène e sorriu. — Ma bonne Hélène, il faut que vous soyez charitable pour ma pauvre tante, qui a une adoration pour vous. Allez lui tenir compagnie pour dix minutes.5 E para que a senhora não fique muito entediada, aqui está o gentil conde, que não se negará a lhe fazer companhia.
A beldade seguiu em direção à tia, mas Anna Pávlovna ainda reteve Pierre a seu lado, fingindo que precisava lhe transmitir uma última e indispensável recomendação.
— Não é verdade que ela é maravilhosa? — disse para Pierre, e apontou para a beldade imponente que flutuava ao se afastar. — Et quelle tenue! 6 Uma mulher tão jovem, com tanto tato, e tamanha habilidade e mestria na maneira de se conduzir! Isso vem do coração! Feliz de quem ela tomar para si! Com ela, mesmo o homem menos afeito à vida social ocupará, sem querer, a posição mais destacada na sociedade. Não é certo? Eu só queria saber a sua opinião — e Anna Pávlovna soltou Pierre.
Com sinceridade, Pierre respondeu que sim à pergunta de Anna Pávlovna sobre a perícia de Hélène em sua maneira de se conduzir. Se alguma vez pensava em Hélène, ele pensava exatamente na sua beleza e na sua serena e habitual habilidade em se mostrar silenciosa e digna na sociedade.
A tia recebeu os dois jovens em seu cantinho, mas parecia desejar esconder a sua adoração por Hélène e, em troca, exprimir o seu temor de Anna Pávlovna. Lançava olhares para a sobrinha, como se lhe perguntasse o que ela devia fazer com aquelas pessoas. Ao afastar-se, Anna Pávlovna tocou de novo com o dedinho a manga de Pierre e falou:
— J’espère, que vous ne direz plus qu’on s’ennuie chez moi7 — e lançou um olhar para Hélène.
Hélène sorriu com o ar de quem diz que não admite a possibilidade de alguém vê-la e não ficar deslumbrado. A tia tossiu, engoliu a saliva e disse em francês que estava muito feliz de ver Hélène; depois se voltou para Pierre com o mesmo cumprimento e com a mesma cara. No meio da conversa enfadonha e claudicante, Hélène virou-se, olhou para Pierre e sorriu com o sorriso claro, bonito, com que sorria para todos. Pierre estava tão acostumado àquele sorriso, significava tão pouco para ele, que não lhe deu nenhuma atenção. A tia, naquela altura, falava da coleção de tabaqueiras do falecido pai de Pierre, o conde Bezúkhov, e mostrou a sua tabaqueira. A princesa Hélène pediu que ela mostrasse o retrato do marido, pintado na tabaqueira.
— Provavelmente foi feito por Vinesse — disse Pierre, citando o nome do famoso miniaturista, enquanto se inclinava na direção da mesa para pegar a tabaqueira e tentava escutar a conversa na mesa ao lado.
Fez menção de levantar-se para contornar a mesa, mas a tia entregou-lhe a tabaqueira de pronto, pelas costas de Hélène. A jovem inclinou-se para a frente a fim de dar espaço e, sorrindo, virou-se e olhou para Pierre. Como sempre acontecia nas festas, ela usava um vestido totalmente aberto na frente e atrás, como era moda então. Seu busto, que para Pierre sempre parecia de mármore, estava a tão curta distância dos seus olhos que ele, com seus olhos míopes, não pôde deixar de distinguir o vivo encanto dos ombros e do pescoço de Hélène, tão próximos dos seus lábios que bastaria inclinar-se um pouco para roçar nela. Pierre sentia o calor do corpo de Hélène, o perfume do seu hálito e o rangido do seu espartilho, quando se mexia. Pierre via não a sua beleza de mármore, que formava um todo com o seu vestido: via e sentia todo o encanto do seu corpo, coberto só por uma roupa. E depois de ver isso não foi capaz de ver mais nada, assim como não conseguimos crer de novo numa ilusão depois que ela é explicada.
“Então até agora o senhor não havia notado como sou bonita?”, parecia dizer Hélène. “O senhor não percebia que sou uma mulher? Sim, sou uma mulher, que pode pertencer a qualquer um, e ao senhor também”, dizia o seu olhar. E naquele momento Pierre sentiu que Hélène não só podia, como devia ser a sua esposa, e não podia ser de outra forma.
Ele soube disso naquele instante, e soube com tamanha certeza como se já estivesse com ela sob a coroa matrimonial, no altar.8 Como ia acontecer? E quando? Ele não sabia; nem mesmo sabia se era bom (Pierre chegou a ter a sensação de que aquilo, por algum motivo, seria ruim), mas sabia que ia acontecer.
Pierre baixou os olhos, levantou-os de novo e quis vê-la outra vez como aquela beldade tão distante e alheia que via antes, todos os dias; mas já não conseguia. Não conseguia, assim como um homem que avista hastes de ervas daninhas na neblina e pensa que são uma árvore não consegue, depois de reconhecer que são as hastes de ervas daninhas, ver de novo nelas uma árvore. Hélène estava terrivelmente perto de Pierre. Já tinha poder sobre ele. E entre ambos não havia mais nenhuma barreira, exceto a barreira da vontade própria de Pierre.
— Bon, je vous laisse dans votre petit coin. Je vois, que vous y êtes très bien 9 — disse a voz de Anna Pávlovna.
E Pierre, perguntando-se com horror se não havia feito algo censurável, olhou à sua volta, ruborizado. Tinha a impressão de que todos sabiam, tanto quanto ele, o que havia ocorrido.
Após algum tempo, quando Pierre se aproximou do círculo maior, Anna Pávlovna lhe disse:
— On dit que vous embellissez votre maison de Pétersbourg.10
(Era verdade: o arquiteto disse que era preciso, e Pierre, sem que ele mesmo soubesse para quê, estava reformando sua enorme casa em Petersburgo.)
— C’est bien, mais ne déménagez pas de chez le prince Basile. Il est bon d’avoir un ami comme le prince — disse ela, sorrindo para o príncipe Vassíli. — J’en sais quelque chose. N’est-ce pas?11 E o senhor ainda é tão jovem. Precisa de conselhos. Não me leve a mal se me prevaleço dos direitos de velha. — Calou-se por um momento, como as mulheres sempre se calam, à espera de alguma coisa, depois que falam da sua idade. — Se o senhor casar, aí é diferente. — E ela os uniu num só olhar. Pierre não olhou para Hélène, nem ela para ele. Mas Hélène estava terrivelmente perto. Pierre rosnou algo e ficou vermelho.
De volta para casa, Pierre ficou muito tempo sem conseguir dormir, pensando no que havia acontecido com ele. E o que havia acontecido? Nada. Apenas entendeu que uma mulher a quem conhecia desde criança, sobre a qual ele respondia distraidamente “sim, é bonita”, quando lhe diziam que Hélène era bonita, ele apenas entendeu que essa mulher podia pertencer a ele.
“Mas ela é tola, eu mesmo dizia que é tola”, pensou. “Há algo de repulsivo no sentimento que ela despertou em mim, algo proibido. Disseram que o irmão dela, Anatole, estava apaixonado por ela, e ela por ele, que havia toda uma história, e que por isso mesmo mandaram Anatole para longe. O irmão dela é Hippolyte... O pai dela é o príncipe Vassíli... Isso não está certo”, pensou Pierre; e, ao mesmo tempo que raciocinava assim (tais raciocínios ainda permaneciam incompletos), surpreendia a si mesmo sorrindo e se dava conta de que outra série de raciocínios emergia da primeira, se dava conta de que ele ao mesmo tempo pensava na nulidade de Hélène e sonhava que ela havia de ser a sua esposa, podia apaixonar-se por ele, podia vir a ser uma mulher em tudo diferente, e que tudo aquilo que ele pensava e ouvia a respeito de Hélène podia ser falso. E de novo Pierre a viu, não como a filha do príncipe Vassíli, viu sim o seu corpo inteiro, coberto apenas pelo vestido cinza. “Mas, espere, por que então esse pensamento não me veio antes?” E de novo disse a si mesmo que era impossível; que havia algo repulsivo, antinatural, assim lhe pareceu, havia algo impuro naquele casamento. Recordou as palavras e os olhares recentes de Hélène e as palavras e os olhares das pessoas que os viam juntos. Recordou as palavras e os olhares de Anna Pávlovna quando lhe falou sobre a casa, lembrou-se de mil alusões do mesmo tipo, da parte do príncipe Vassíli e de outros, e lhe veio o terror de se haver comprometido, de alguma forma, a cumprir uma ação que era obviamente ruim e que ele não desejava cumprir. Porém, ao mesmo tempo que declarava para si essa decisão, do outro lado da alma veio à tona de novo a imagem de Hélène, com toda a sua beleza feminina.
II
No mês de novembro do ano de 1805, Vassíli teve de partir numa viagem de inspeção por cinco províncias. Havia obtido tal encargo a fim de aproveitar e visitar as suas propriedades, que se achavam em abandono, apanhar no caminho o seu filho Anatole (no local onde estava estacionado o seu regimento) e ir junto com ele à casa do príncipe Nikolai Andréievitch Bolkónski para casar o seu filho com a filha daquele velho rico. Mas antes de partir e de tratar desses novos assuntos, o príncipe Vassíli precisava resolver um assunto com Pierre, que na verdade, ultimamente, passava os dias inteiros dentro de casa, ou seja, na casa de Vassíli, onde morava, e em presença de Hélène ficava engraçado, agitado e tolo (como ficam os apaixonados), mas ainda não tinha feito o pedido de casamento.
“Tout ça est bel et bon, mais il faut que ça finisse”,12 disse consigo um dia de manhã o príncipe Vassíli, com um suspiro de tristeza, dando-se conta de que Pierre, que lhe devia tantos favores (mas que Deus o proteja!), não estava se comportando nada bem naquele caso. “A juventude... a leviandade... bem, que Deus o proteja”, pensou o príncipe Vassíli, sentindo com prazer a sua benevolência: “Mais il faut que ça finisse. Depois de amanhã é o aniversário de Lelina,13 vou convidar algumas pessoas e, se ele não entender o que tem de fazer, eu mesmo vou cuidar do caso. Sim, eu mesmo. Eu sou o pai!”.
Um mês e meio depois da festa na casa de Anna Pávlovna e da noite de insônia e agitação em que ele decidiu que casar com Hélène seria uma desgraça e que precisava esquivar-se dela e fugir, Pierre, após aquela decisão, não se mudou da casa do príncipe Vassíli e, com horror, sentia que a cada dia, aos olhos das pessoas, ficava cada vez mais amarrado a Hélène, sentia que não havia meios de voltar à maneira como a encarava antes, que ele não conseguia tampouco desprender-se dela, que embora aquilo fosse horrível, teria de unir o seu destino ao dela. Talvez pudesse esquivar-se, mas não se passava um dia sem que, na casa do príncipe Vassíli (onde antes isso era raro), houvesse uma festa, à qual Pierre tinha de comparecer, se não quisesse frustrar a satisfação geral e desapontar a expectativa de todos. O príncipe Vassíli, nos raros minutos em que estava em casa, ao cruzar com Pierre, puxava-o pela mão, distraidamente lhe oferecia a bochecha barbeada e enrugada para beijar e dizia ou “até amanhã”, ou “até o jantar, se eu não o vir antes”, ou “é para o senhor que fico em casa”, e assim por diante. Mas apesar de o príncipe Vassíli, quando ficava em casa para Pierre (como ele dizia), não falar nem duas palavras com ele, Pierre não se sentia capaz de desapontar a expectativa do anfitrião. Todo dia, ele dizia a mesma coisa para si: “Afinal, é preciso avaliá-la e fazer um balanço para mim mesmo: Quem é ela? Eu estava enganado antes, ou me engano agora? Não, ela não é tola; não, ela é uma jovem encantadora!”, dizia consigo, às vezes. “Ela não comete nenhum erro, nunca falou nenhuma tolice. Pouco fala, mas o que fala é sempre simples e claro. Então não é tola. Nunca se confundiu e não se confunde. Então não é uma mulher má!” Várias vezes, aconteceu de Pierre começar a raciocinar com ela, pensar em voz alta, e Hélène sempre lhe respondia ou com uma observação curta, porém dita de modo oportuno, que mostrava que aquilo não lhe interessava, ou então com um sorriso e um olhar silenciosos, que mostravam para Pierre, da maneira mais perceptível, a superioridade dela. Hélène tinha razão ao considerar todos os raciocínios uma bobagem, em comparação com aquele sorriso.
Sempre se dirigia a Pierre com um sorriso alegre, confiante, reservado só para ele, e no qual havia algo mais importante do que o sorriso comum que sempre embelezava o seu rosto. Pierre sabia que todos apenas esperavam que ele, afinal, dissesse uma palavra, atravessasse uma determinada linha, e ele sabia que cedo ou tarde iria atravessá-la; porém um pavor incompreensível o dominava só de pensar naquele passo tremendo. Ao longo de um mês e meio, tempo em que se sentia cada vez mais arrastado para aquele abismo aterrador, Pierre dizia consigo: “Mas o que é isso? É preciso uma decisão! Será que não vou tomá-la?”.
Queria uma decisão, mas com horror sentia que, naquele caso, ele não tinha a firmeza que reconhecia em si mesmo e que de fato havia nele. Pierre pertencia às pessoas que são fortes só quando se sentem inteiramente puras. E desde o dia em que o dominou o sentimento de desejo que experimentara ao examinar a tabaqueira em casa de Anna Pávlovna, um inconsciente sentimento de culpa por aquela ânsia paralisava a sua decisão.
No dia do aniversário de Hélène, o pequeno grupo das pessoas mais próximas, como dizia a princesa, formado de parentes e amigos, veio jantar em casa do príncipe Vassíli. Deram a entender a todos aqueles parentes e amigos que nesse dia havia de resolver-se o destino da aniversariante. As visitas estavam sentadas para jantar. A princesa Kuráguina, mulher volumosa, bela em outros tempos, bem-apessoada, sentou-se na cabeceira da mesa. Junto a ela, de um lado e do outro, sentaram-se os convidados de honra — um velho general, sua esposa, e Anna Pávlovna Scherer; na outra ponta da mesa, sentaram-se os convidados de menos idade e menos importância, e a seguir sentaram-se as pessoas de casa, Pierre e Hélène — juntos. O príncipe Vassíli não jantava: caminhava em redor da mesa, num alegre estado de ânimo, sentava-se um pouquinho ora junto a um convidado, ora junto a outro. A todos dizia uma palavra descontraída, agradável, exceto a Pierre e Hélène, cuja presença parecia não notar. O príncipe Vassíli animava todos. As velas de cera ardiam luminosas, a prataria, os cristais e a louça brilhavam, bem como a roupa das damas, o ouro, a prata das dragonas; em redor da mesa, criados de cafetãs vermelhos moviam-se em azáfama; ouviam-se o som das facas, dos copos, dos pratos e o som de vozes animadas de algumas conversas em redor da mesa. Ouvia-se, de um lado, como o velho camareiro da corte assegurava a uma velhota baronesa do seu amor ardente por ela, e como ela ria; do outro lado, contavam a história do malogro de uma certa Mária Víktorovna. No meio da mesa, o príncipe Vassíli concentrava os ouvintes em torno de si. Contava para as damas, com um sorriso zombeteiro nos lábios, a última sessão — na quarta-feira — do Conselho de Estado, na qual fora recebido e lido, por Serguei Kuzmitch Viazmitínov, o novo governador-geral militar de Petersburgo, o então famoso rescrito do imperador Alexandre Pávlovitch, enviado do local onde estava o exército, em cujo texto o imperador, dirigindo-se a Serguei Kuzmitch, dizia que de toda parte recebia declarações da lealdade do povo e que a declaração de Petersburgo lhe agradara em especial, que estava orgulhoso com a honra de estar à frente de uma tal nação e que se esforçaria para ser digno de tal honra. O rescrito começava com as palavras: “Serguei Kuzmitch! De toda parte chegam aos meus ouvidos” etc.
— Mas será possível que não disse mais nada além de “Serguei Kuzmitch”? — perguntou uma senhora.
— Pois é, pois é, nem um fio de cabelo além desse ponto — respondeu o príncipe Vassíli, sorrindo. — “Serguei Kuzmitch... de toda parte. De toda parte, Serguei Kuzmitch...” O pobre Viazmitínov não conseguia de maneira alguma ir além. Diversas vezes retomou a leitura da carta, mas assim que dizia “Serguei”... soluços... “Kuz...mi...tch”... lágrimas... E “de toda parte” sufocava-se em pranto, não conseguia ir em frente. E de novo um lenço, de novo “Serguei Kuzmitch, de toda parte”, e lágrimas... de tal modo que pediram que outra pessoa lesse.
— Kuzmitch... de toda parte... e lágrimas — repetiu alguém, rindo.
— Não sejam cruéis — exclamou Anna Pávlovna, da outra ponta da mesa, ameaçando com o dedo —, c’est un si brave et excellent homme, notre bon Viasmitinoff...14
Todos riram muito. Na ponta de honra da mesa, todos pareciam estar alegres e sob a influência dos mais diversos e animados humores; só Pierre e Hélène se mantinham em silêncio, juntos, quase na extremidade oposta; no rosto de ambos, reprimia-se um sorriso radiante, que não dependia de Serguei Kuzmitch — um sorriso de vergonha dos próprios sentimentos. Por mais que os outros falassem, por mais que rissem e brincassem, por maior que fosse o seu apetite ao comer e ao beber o vinho do Reno, e o sauté, e o sorvete, por mais que evitassem olhar para aquele casal, por mais que parecessem indiferentes, desatentos em relação a eles, por alguma razão sentia-se, pelos olhares de vez em quando atraídos para eles, que o gracejo sobre Serguei Kuzmitch, o riso, a comida — tudo era fingimento, e que todas as forças da atenção de toda aquela sociedade estavam dirigidas só para aquele par — Pierre e Hélène. O príncipe Vassíli arremedava os soluços de Serguei Kuzmitch e ao mesmo tempo corria os olhos para a filha; e quando ria, a expressão do seu rosto dizia: “Está certo, tudo está indo bem; hoje tudo vai se resolver”. Anna Pávlovna o ameaçava por causa do notre bon Viasmitinoff, mas nos olhos dela, que naquele momento brilharam de passagem para Pierre, o príncipe Vassíli lia os parabéns pelo futuro genro e pela felicidade da filha. A velha princesa, enquanto oferecia vinho a sua vizinha com um suspiro triste e olhava zangada para a filha, parecia querer dizer com aquele suspiro: “Sim, minha querida, agora não nos resta mais nada, para você e para mim, senão beber vinho doce; agora é o tempo de essa mocidade ser feliz de maneira insolente e provocadora”. “E que tolice tudo isso que estou falando, como se tivesse algum interesse para mim”, pensou o diplomata, ao olhar de relance para os rostos felizes dos enamorados. “Aquilo é que é felicidade!”
Entre os pequenos e insignificantes interesses artificiais que uniam aquela sociedade, introduziu-se o simples sentimento de desejo dos jovens, homem e mulher, bonitos e saudáveis, um pelo outro. E esse sentimento humano esmagava tudo e pairava acima de toda a tagarelice artificial daquelas pessoas. Os gracejos não eram alegres, as novidades não tinham interesse, a animação era obviamente falsa. Mas não só eles, como também os criados que serviam a mesa pareciam sentir a mesma coisa e esqueciam a ordem do serviço, olhavam para a bela Hélène, com o seu rosto radiante, e para o rosto vermelho, gordo, feliz e inquieto de Pierre. Parecia que até as chamas das velas estavam concentradas só naqueles dois rostos felizes.
Pierre sentia que ele era o centro de tudo, e essa posição o alegrava e constrangia. Encontrava-se no estado de um homem absorto em alguma tarefa. Nada via com clareza, nada entendia nem ouvia. Só de vez em quando, de modo inesperado, faiscavam em sua alma ideias e impressões fragmentárias da realidade.
“Então, tudo está terminado!”, pensou. “E como tudo isso aconteceu? Tão rápido! Agora sei que não é só para ela, não é só para mim, mas também para todos que isso, inevitavelmente, tem de se realizar. Todos eles esperavam tanto isso, estão tão seguros de que isso vai acontecer que eu não posso, não consigo decepcioná-los. Mas como vai acontecer? Não sei; mas vai acontecer, é inevitável, vai acontecer!”, pensava Pierre, olhando para aqueles ombros deslumbrantes bem perto dos seus olhos.
De repente sentia vergonha de alguma coisa. Sentia-se constrangido por atrair a atenção de todos, por ser um felizardo aos olhos dos outros, por ele, com seu rosto feio, ser uma espécie de Páris, que conquistara uma Helena. “Quem sabe é sempre assim que acontece e é assim mesmo que tem de ser”, consolava-se. “De resto, o que eu fiz para acontecer isso? Quando começou? Vim de Moscou junto com o príncipe Vassíli. Naquela altura, ainda não havia nada. Mas, afinal, por que razão eu não ficaria na casa dele? Depois joguei cartas com ela, segurei a sua bolsinha, fui com ela passear de carruagem. Quando foi que isso começou, quando tudo isso aconteceu?” E lá está ele ao lado dela, como um noivo; vê, ouve, sente a proximidade dela, a sua respiração, os seus movimentos, a sua beleza. Então de súbito lhe parece que não é ela, mas sim ele mesmo que está tão extraordinariamente bonito, que por isso olham também para ele, e ele, feliz com a admiração geral, estufa o peito, levanta a cabeça e alegra-se com a própria felicidade. Soa uma voz, de repente, certa voz conhecida, e lhe diz alguma coisa pela segunda vez. Mas Pierre está tão absorto que não entende o que lhe dizem.
— Estou perguntando a você quando recebeu a carta de Bolkónski — repetiu pela terceira vez o príncipe Vassíli. — Como está distraído, meu rapaz.
O príncipe Vassíli sorriu, e Pierre viu que todos, todos sorriam para ele e para Hélène. “Bem, que importa, se todos vocês já sabem”, pensou Pierre. “Bem, que importa? É verdade.” E ele mesmo sorriu, com o seu sorriso dócil, infantil, e Hélène sorriu.
— Quando recebeu a carta? Veio de Olmütz? — repetiu o príncipe Vassíli, que parecia precisar saber disso para pôr fim a uma discussão.
“E acaso é possível falar e pensar em tais bobagens?”, pensou Pierre.
— Sim, de Olmütz — respondeu, com um suspiro.
Após o jantar, Pierre seguiu os demais e conduziu sua dama para o salão. Os convidados começaram a se dispersar e alguns foram embora, sem se despedir de Hélène. Como se não quisessem desviá-la da sua grave ocupação, alguns aproximavam-se por um minuto e logo se afastavam, proibindo Hélène de acompanhá-los. O diplomata estava triste e calado ao sair do salão. Ele se deu conta de toda a futilidade da sua carreira diplomática, em comparação com a felicidade de Pierre. O velho general resmungou com severidade para a esposa, quando ela lhe perguntou sobre o estado da sua perna. “Puxa, que velha burra”, pensou ele. “A Elena Vassílievna, essa sim, mesmo aos cinquenta anos, ainda há de ser uma beleza.”
— Creio que posso lhe dar os parabéns — sussurrou Anna Pávlovna para a princesa e beijou-a com entusiasmo. — Se eu não estivesse com dor de cabeça, ficaria mais.
A princesa nada respondia; a inveja da felicidade da filha a atormentava.
Durante as despedidas dos convidados, Pierre ficou muito tempo sozinho com Hélène numa sala pequena, onde estavam sentados. Ele ficara a sós com Hélène antes, e por muitas vezes durante o último mês e meio, mas nunca lhe falara nada a respeito de amor. Agora percebia que isso era necessário, mas não conseguia de forma alguma resolver-se a dar esse último passo. Tinha vergonha; parecia-lhe que ali, ao lado de Hélène, ele estava ocupando o lugar de alguma outra pessoa. Aquela felicidade não era para ele — dizia-lhe uma voz interior. — Aquela felicidade era para pessoas que não tinham o que ele tinha. Mas era preciso falar alguma coisa, e ele falou. Perguntou se ela estava satisfeita com a festa daquela noite. Com a sua simplicidade de sempre, ela respondeu que o aniversário daquele dia fora um dos mais agradáveis de sua vida.
Ainda restavam alguns parentes mais próximos. Estavam no salão. O príncipe Vassíli aproximou-se de Pierre em passadas indolentes. Pierre levantou-se e disse que já era tarde. O príncipe Vassíli fitou-o com ar severo e interrogativo, como se o que ele tinha dito fosse algo tão estranho que era impossível que tivesse ouvido bem. No entanto, em seguida, a expressão de severidade alterou-se, e o príncipe Vassíli puxou o braço de Pierre para baixo, obrigou-o a sentar e sorriu com carinho.
— Bem, e então, Lélia? — voltou-se de pronto para a filha, com aquele descuidado tom de voz de ternura costumeira, usado por pais que mimam os filhos desde pequenos, mas que o príncipe Vassíli só conseguia alcançar por meio da imitação de outros pais.
E voltou-se de novo para Pierre.
— “Serguei Kuzmitch, de toda parte” — exclamou, desabotoando o botão de cima do colete.
Pierre sorriu, mas pelo seu sorriso via-se que entendia que o que interessava ao príncipe Vassíli, naquele momento, não era a anedota de Serguei Kuzmitch; e o príncipe Vassíli entendeu que Pierre havia entendido isso. De repente, o príncipe Vassíli borbulhou alguma coisa entre os lábios e saiu. Pierre teve a impressão de que até o príncipe Vassíli estava embaraçado. A visão do embaraço daquele velho tão experiente na vida social comoveu Pierre; virou-se para Hélène — ela também parecia embaraçada e dizia, com o olhar: “Ora, o culpado é o senhor mesmo”.
“É preciso, a todo custo, dar o passo adiante, mas não consigo, não consigo”, pensava Pierre, e recomeçou a falar de assuntos sem importância, de Serguei Kuzmitch, e perguntou em que consistia, afinal, aquela anedota, pois não tinha ouvido bem. Com um sorriso, Hélène respondeu que também não sabia.
Quando o príncipe Vassíli entrou no salão, a princesa falava a respeito de Pierre em voz baixa, com uma senhora de idade.
— Claro, c’est un parti très brillant, mais le bonheur, ma chère...15
— Les mariages se font dans les cieux 16 — respondeu a senhora de idade.
O príncipe Vassíli, como se não escutasse as senhoras, seguiu rumo ao canto mais afastado e sentou-se num sofá. Fechou os olhos e pareceu cochilar. Sua cabeça começou a tombar, e ele acordou.
— Aline — disse para a esposa. — Allez voir ce qu’ils font.17
A princesa aproximou-se da porta, passou diante dela com um ar importante, indiferente, e olhou de relance para dentro da saleta. Pierre e Hélène continuavam sentados e conversavam, como antes.
— Sempre a mesma coisa — respondeu ela ao marido.
O príncipe Vassíli franziu as sobrancelhas, torceu a boca para o lado, suas bochechas começaram a tremer com uma expressão rude, desagradável, bem própria dele; levantou-se bruscamente, inclinou a cabeça para trás e, num passo resoluto, passou pelas senhoras e seguiu para a saleta. Aproximou-se de Pierre com ar alegre, a passos ligeiros. O rosto do príncipe estava tão extraordinariamente solene que Pierre se ergueu assustado, ao vê-lo.
— Graças a Deus! — disse o príncipe Vassíli. — Minha esposa me contou tudo! — Abraçou Pierre com um braço e, com o outro, a sua filha. — Meu amigo, Lélia! Estou muito, muito contente. — Sua voz tremia. — Eu adorava o seu pai... e ela será uma boa esposa para você... Que Deus os abençoe!...
Abraçou a filha, depois Pierre outra vez, e beijou-o com a boca malcheirosa. Lágrimas de verdade umedeceram suas faces.
— Princesa, venha cá — gritou.
A princesa chegou e também começou a chorar. A senhora idosa também se enxugava com um lenço. Beijaram Pierre, e ele, várias vezes, beijou a mão da linda Hélène. Depois de algum tempo, deixaram-nos de novo sozinhos.
“Tudo isso tinha de acontecer desse modo e não podia ser de outro jeito”, pensou Pierre. “Por isso não adianta perguntar se é bom ou se é ruim. É bom, porque já está determinado e não existe mais a dúvida aflitiva de antes.” Pierre, em silêncio, segurava a mão da noiva e olhava para o seu peito lindo, que levantava e abaixava.
— Hélène! — disse ele, em voz alta, e parou.
“É preciso dizer algo de especial, nesses casos”, pensou ele, mas não conseguia de maneira alguma lembrar o que exatamente diziam nesses casos. Fitou-a no rosto. Hélène moveu-se para perto dele. O rosto de Hélène ficou vermelho.
— Ah, tire esses... como é que esses... — ela apontou para os óculos.
Pierre tirou os óculos, e os seus olhos, além da estranheza comum aos olhos das pessoas que tiram os óculos, tinham um ar assustado e interrogativo. Ele quis inclinar-se sobre a mão dela e beijá-la; mas Hélène, rapidamente, com um movimento brusco da cabeça, interceptou os lábios de Pierre e conduziu-os para os seus. O rosto de Hélène impressionou Pierre pela transformação da fisionomia, desagradavelmente embaraçada.
“Agora já é tarde, está tudo acabado; e, sim, eu a amo”, pensou Pierre.
— Je vous aime! 18 — disse ele, lembrando o que era preciso dizer nesses casos; mas as palavras ressoaram de maneira tão pobre que Pierre sentiu vergonha de si mesmo.
Depois de um mês e meio, ele estava casado e estabelecido, como dizem, na condição de feliz proprietário de uma linda esposa e de milhões de rublos, na grande casa dos condes Bezúkhov em Petersburgo, mais uma vez reformada.
III
O velho príncipe Nikolai Andréievitch Bolkónski, em dezembro de 1805, recebeu uma carta do príncipe Vassíli, informando-lhe de sua chegada em companhia do filho. (“Estou numa viagem de inspeção e, claro, para mim não é nada de mais fazer um desvio de cem verstas a fim de visitar o senhor, meu estimadíssimo benfeitor”, escreveu, “e o meu Anatole me acompanhará, ele vai partir para o Exército; e eu espero que o senhor lhe permita expressar pessoalmente o grande respeito que ele tem pelo senhor, a exemplo do pai.”)
— Pronto, não é mais preciso levar Mária embora: os próprios noivos estão vindo até nós — disse a pequena princesa, em tom brincalhão.
O príncipe Nikolai Andréievitch fechou a cara e não falou nada.
Duas semanas depois do recebimento da carta, ao anoitecer, chegaram os criados do príncipe Vassíli, que vieram na frente, e no dia seguinte chegaram ele e o filho.
O velho Bolkónski sempre tivera em baixa conta o caráter do príncipe Vassíli, ainda mais nos últimos anos, quando o príncipe Vassíli, nos novos reinados dos tsares Paulo e Alexandre, foi nomeado para altos cargos e recebeu honrarias. Agora mesmo, pelas alusões à carta feitas pela pequena princesa, ele entendeu do que se tratava, e a baixa conta em que tinha o caráter do príncipe Vassíli transformou-se, na alma do príncipe Nikolai Andréievitch, num sentimento de desprezo malévolo. Bufava o tempo todo, falava sozinho. No dia da chegada do príncipe Vassíli, o príncipe Nikolai Andreitch estava especialmente descontente e de mau humor. Não se podia dizer se estava de mau humor porque o príncipe Vassíli havia chegado ou se estava descontente com a chegada do príncipe Vassíli porque estava de mau humor; o fato é que estava de mau humor, e Tíkhon ainda pela manhã havia aconselhado o arquiteto a não apresentar o seu relatório ao príncipe.
— Escute só como ele anda — disse Tíkhon, chamando a atenção do arquiteto para os sons dos passos do príncipe. — Bate direto com os calcanhares... nós sabemos...
Todavia, como de hábito, às nove horas o príncipe saiu para passear com o seu casaco de veludo, com gola de pele de marta e gorro também de pele de marta. Tinha nevado na véspera. A estradinha na qual o príncipe Nikolai Andreitch caminhava para a estufa de plantas estava limpa, viam-se marcas de vassoura na neve espalhada, e havia uma pá cravada num aterro de neve fofa, que se estendia dos dois lados da estradinha. O príncipe percorreu a estufa de plantas, as acomodações dos criados, as construções, de cara fechada e em silêncio.
— Dá para passar um trenó? — perguntou ao administrador venerável, que o acompanhara até a casa, com a atitude e o rosto semelhantes aos do patrão.
— A neve está funda, vossa excelência. Já mandei retirar a neve da alameda.
O príncipe inclinou a cabeça e seguiu para a escadinha da varanda. “Graças ao bom Deus”, pensou o administrador, “a tempestade acabou logo.”
— Ia ser difícil passar, vossa excelência — acrescentou o administrador. — Andam dizendo, vossa excelência, que um ministro vai conceder ao senhor a honra de uma visita. É verdade?
O príncipe voltou-se para o administrador e, com os olhos franzidos, fitou-o fixamente.
— O quê? Um ministro? Que ministro? Quem mandou? — pôs-se a exclamar com sua voz estridente, feminina. — Para a princesa, a minha filha, não retiraram a neve, mas retiraram para um ministro! Não quero saber de ministros em minha casa!
— Vossa excelência, eu pensei...
— Você pensou! — gritou o príncipe, falando cada vez mais depressa e de forma cada vez mais desconexa. — Você pensou... Ladrões! Patifes! Vou ensinar você a pensar. — Ergueu a bengala e brandiu-a na direção de Alpátitch, e o teria golpeado se o administrador não tivesse, por instinto, se desviado do golpe. — Pensou! Patifes! — gritou às pressas. Mas apesar de Alpátitch, mesmo assustado com a própria audácia de se desviar do golpe, ter se aproximado do príncipe e baixado a cabeça calva diante dele com submissão, ou talvez justamente por isso, o príncipe, que continuava a gritar “Patifes! Atravanquem a estrada com neve”, não levantou a bengala outra vez e entrou correndo em seus aposentos.
Na hora do jantar, a princesa e Mlle Bourienne, cientes de que o príncipe estava de mau humor, aguardavam-no de pé: Mlle Bourienne, com um rosto radiante que dizia: “Não sei de nada, sou a mesma de sempre”, e a princesa Mária — pálida, assustada, de olhos baixos. O mais penoso para a princesa Mária era saber que em tais casos era preciso portar-se como Mlle Bourienne, mas não conseguia agir assim. Tinha a seguinte impressão: “Se eu agir como se não notasse, ele vai pensar que não sou solidária com ele; se eu agir como se eu mesma estivesse aborrecida e de mau humor, ele vai dizer (como já aconteceu antes) que eu vivo desanimada” etc.
O príncipe lançou um olhar para o rosto assustado da filha e bufou.
— Imb... ou tola!... — exclamou ele.
“E a outra não está aqui! Já andaram fazendo mexericos para ela”, pensou, a respeito da pequena princesa, que não se encontrava na sala de jantar.
— Onde está a princesinha? — perguntou. — Escondeu-se?...
— Ela não está se sentindo muito bem — disse Mlle Bourienne, sorrindo alegremente. — Ela não vai vir jantar. É compreensível, na situação dela.
— Hm! Hm! Grr! Grr! — exclamou o príncipe e sentou-se à mesa.
O prato lhe pareceu não estar limpo; apontou para uma mancha e jogou-o longe. Tíkhon agarrou o prato e deu para um copeiro. A pequena princesa não estava passando mal; mas temia o príncipe de maneira tão inexorável que, ao saber que ele estava de mau humor, resolvera não ir jantar.
— Receio pelo bebê — disse ela para Mlle Bourienne. — Só Deus sabe o que pode acontecer por causa de um susto.
No geral, a pequena princesa vivia em Montes Calvos sob um constante sentimento de medo e de antipatia em relação ao velho príncipe, antipatia de que ela não se dava conta, pois o medo a dominava tão completamente que ela não conseguia senti-la. Da parte do príncipe, havia também uma antipatia, mas era abafada pelo desprezo. A princesinha, habituada com a vida em Montes Calvos, afeiçoara-se em especial a Mlle Bourienne, passava os dias com ela, pedia que dormisse em seu quarto e muitas vezes conversava com ela sobre o sogro e o criticava.
— Il nous arrive du monde, mon prince — disse Mlle Bourienne, enquanto desdobrava um guardanapo branco com suas mãos rosadinhas. — Son excellence le prince Kouraguine avec son fils, à ce que j’ai entendu dire? 19 — disse ela, em tom interrogativo.
— Hm... essa excellence não passa de um garoto... fui eu que arranjei um emprego para ele no ministério — disse o príncipe em tom ofendido. — E para que o filho, não consigo entender. A princesinha Lizaveta Karlovna e a princesa Mária talvez saibam; eu não sei para que ele está trazendo esse filho para cá. Não me serve para nada. — E olhou para a filha, ruborizada. — Será que ela está doente? Com medo do ministro, como o chamou hoje aquele palerma do Alpátitch.
— Não, mon père.
Embora tivesse sido infeliz na escolha do assunto para iniciar a conversa, Mlle Bourienne não parou e se pôs a tagarelar sobre a estufa de plantas, sobre a beleza de uma flor que acabara de desabrochar, e o príncipe, depois da sopa, mostrou-se mais brando.
Após o jantar, ele foi ao quarto da nora. A pequena princesa estava sentada a uma mesinha e tagarelava com Macha, a criada de quarto. Ela empalideceu ao ver o sogro.
A pequena princesa havia mudado muito. Agora estava mais feia do que bonita. As bochechas haviam caído, o lábio estava levantado, os olhos estavam repuxados para baixo.
— Pois é, eu sinto uma espécie de peso — respondeu ela à pergunta do príncipe sobre como se sentia.
— Está precisando de alguma coisa?
— Não, merci, mon père.20
— Então está bem, está bem.
Ele saiu e foi à sala dos copeiros. Alpátitch, de cabeça baixa, estava lá de pé.
— Atulharam de neve a estrada?
— Atulharam, sim, vossa excelência; pelo amor de Deus, o senhor perdoe essa tolice.
O príncipe interrompeu-o e pôs-se a rir com a sua risada artificial.
— Ora essa, está bem, está bem.
Estendeu a mão, que Alpátitch beijou, e seguiu para o escritório.
Ao anoitecer, chegou o príncipe Vassíli. Cocheiros e copeiros receberam-no na avenida (assim chamavam a alameda), com um grito encaminharam seus veículos de carga e seu trenó para a casa dos fundos, pelo caminho propositalmente atulhado de neve.
O príncipe Vassíli e Anatole foram conduzidos para quartos separados.
Depois de tirar o dólmã, Anatole pôs as mãos na cintura e sentou-se à mesa, em cujo canto ele, sorrindo, fixou seus olhos grandes e lindos, de maneira distraída. Encarava toda a sua vida como um divertimento ininterrupto que alguém, por algum motivo, tinha a obrigação de providenciar para ele. E agora era também assim que ele encarava a sua viagem à casa do velho raivoso e da herdeira rica e horrorosa. Tudo isso, nas suas conjeturas, poderia ser muito bom e divertido. “Por que não casar, se ela é tão rica? Isso nunca atrapalha”, pensava Anatole.
Ele fez a barba, perfumou-se com cuidado e afetação, o que se tornara um hábito, e com uma expressão, nele inata, de simpatia e de triunfo, com a bonita cabeça bem erguida, entrou no quarto do pai. Em redor do príncipe Vassíli, moviam-se atarefados seus dois camareiros, que o vestiam; ele mesmo olhava à sua volta com animação e acenou alegremente com a cabeça para o filho que entrara, como se dissesse: “Isso mesmo, é assim que eu quero ver você!”.
— Não, sem brincadeira, pai, ela é muito horrorosa? Hein? — perguntou Anatole, como se retomasse uma conversa já iniciada várias vezes durante a viagem.
— Chega. Bobagem! O importante é esforçar-se para ser respeitoso e sensato com o velho príncipe.
— Se ele começar a brigar, eu vou embora — disse Anatole. — Não consigo aturar esses velhos. Hein?
— Entenda que, para você, tudo depende disso.
Naquele momento, no quarto das criadas, não só já se sabia da chegada de um ministro e de seu filho, como a aparência de ambos já tinha sido descrita em detalhes. A princesa Mária estava sozinha em seu quarto e tentava inutilmente dominar a sua perturbação interior.
“Para que eles escreveram, para que Liza me falou sobre isso? Não pode ser!”, dizia consigo, olhando para o espelho. “Como vou poder ir para a sala? Ainda que ele me agradasse, eu agora não conseguiria agir com naturalidade em presença dele.” E lhe vinha um pavor, só de pensar no olhar do seu pai.
A pequena princesa e Mlle Bourienne já haviam recebido todas as informações necessárias da criada Macha, como o filho do ministro era bonito, corado e de sobrancelhas pretas, e como o pai havia arrastado as pernas com esforço ao subir a escada, enquanto o filho viera atrás, como uma águia, subindo três degraus a cada passo. Depois de receber essas informações, a pequena princesa e Mlle Bourienne, que já do corredor se faziam ouvir com suas vozes em conversa animada, entraram no quarto da princesa.
— Ils sont arrivés, Marie,21 a senhora já sabe? — disse a pequena princesa, passando com dificuldade por causa da barriga e deixando-se cair pesadamente na poltrona.
Ela já não estava com o blusão que usava de manhã, mas sim com um de seus melhores vestidos; sua cabeça estava cuidadosamente penteada, e no seu rosto havia uma animação, que porém não escondia os contornos abatidos e sem vida. Naquela indumentária com que costumava frequentar as reuniões sociais em Petersburgo, notava-se ainda mais como ela havia ficado feia. Em Mlle Bourienne, também se notava uma sutil melhora no vestido, que acrescentava ainda mais sedução ao seu rosto bonito e fresquinho.
— Eh bien, et vous restez comme vous êtes, chère princesse? — disse ela. — On va venir annoncer, que ces messieurs sont au salon; il faudra descendre, et vous ne faites pas un petit brin de toilette! 22
A pequena princesa levantou-se da poltrona, tocou a campainha para chamar a criada e, com rapidez e alegria, tratou de imaginar como a princesa Mária devia se arrumar, e logo pôs o seu projeto em prática. A princesa Mária sentia-se ofendida no seu amor-próprio pelo fato de a chegada do seu noivo prometido deixá-la perturbada, e sentia-se mais ofendida ainda porque suas duas amigas nem cogitavam que ela pudesse reagir de outro modo. Dizer-lhes que estava envergonhada, por si mesma e por elas, significaria confessar a sua perturbação; além disso, negar-se a se enfeitar como lhe propunham levaria a brincadeiras e a insistências prolongadas. Mária suspirou, seus olhos bonitos apagaram-se, seu rosto corou e, com a feia expressão de vítima que surgia em seu rosto com mais frequência do que qualquer outra, ela se rendeu ao poder de Mlle Bourienne e de Liza. As duas mulheres se empenharam com total sinceridade para deixá-la bonita. Mária era tão feia que nenhuma das duas poderia vê-la como uma rival; por isso elas se incumbiram do seu vestuário com uma sinceridade total, e com aquela certeza ingênua e firme das mulheres de que a roupa pode tornar um rosto bonito.
— Não, sério, ma bonne amie,23 esse vestido não fica bem — disse Liza, olhando para a princesa de longe e de lado. — Mande trazer aquele outro, o massaca.24 Sério! Afinal, talvez se decida agora o destino da sua vida. Mas esse é claro demais, está feio, não, ficou feio!
Feio não era o vestido, mas sim o rosto e toda a figura da princesa, porém Mlle Bourienne e a pequena princesa não percebiam isso; continuavam a ter a impressão de que se pusessem uma fita azul nos cabelos, repuxados para cima, se pusessem a echarpe azul mais embaixo no vestido castanho, e assim por diante, tudo ficaria bonito. Esqueciam que era impossível modificar o rosto assustado e a figura da princesa Mária, e por isso, por mais que transformassem a moldura e a ornamentação do rosto, o próprio rosto continuava feio e lamentável. Depois de duas ou três mudanças de roupa, às quais a princesa Mária se sujeitou com submissão, na hora em que ficou penteada com os cabelos para cima (um penteado que modificava e estragava completamente o seu rosto), vestida com a echarpe azul e o elegante vestido massaca, a pequena princesa deu duas voltas em torno dela, enquanto com a mãozinha pequena ajeitava uma prega no vestido aqui, encobria a echarpe ali, e observava, com a cabeça inclinada, ora de um lado, ora do outro.
— Não, não é possível — disse ela, em tom resoluto, e abriu os braços. — Non, Marie, décidément ça ne vous va pas. Je vous aime mieux dans votre petite robe grise de tous les jours. Non, de grâce, faites cela pour moi.25 Kátia — chamou a criada de quarto. — Traga para a princesa o vestido cinza, e veja bem, Mademoiselle Bourienne, como eu vou ajeitá-lo — disse com um sorriso que já antecipava a sua alegria artística.
Mas quando Kátia trouxe o vestido que lhe pediram, a princesa Mária ficou sentada imóvel diante do espelho, olhando para o seu rosto, e no espelho viu que em seus olhos havia lágrimas e que sua boca tremia, preparando-se para soluçar.
— Voyons, chère princesse — disse Mlle Bourienne —, encore un petit effort.26
A pequena princesa tomou o vestido das mãos da criada e aproximou-se da princesa Mária.
— Não, agora vamos fazer isso com simplicidade, com delicadeza — disse ela.
As vozes dela, de Mlle Bourienne e de Kátia, que ria por algum motivo, fundiram-se num balbucio alegre, semelhante ao canto de passarinhos.
— Non, laissez-moi 27 — disse a princesa.
E sua voz soou com tal seriedade e sofrimento que o balbucio dos passarinhos cessou no mesmo instante. Elas fitaram os olhos grandes, lindos, cheios de lágrimas e de pensamentos, que olhavam para elas de modo claro e suplicante, e entenderam que insistir seria inútil e até cruel.
— Au moins changez de coiffure — disse a pequena princesa. — Je vou disais — disse ela para Mlle Bourienne, em tom de recriminação —, Marie a une de ces figures, auxquelles ce genre de coiffure ne va pas du tout. Mais du tout, du tout. Changez de grâce.28
— Laissez-moi, laissez-moi, tout ça m’est parfaitement égal 29 — respondeu uma voz que mal conseguia conter as lágrimas.
Mlle Bourienne e a pequena princesa tiveram de reconhecer para si mesmas que a princesa Mária, naquele vestido, estava ainda mais feia, pior do que sempre; mas já era tarde. Ela olhava para as duas com uma expressão que elas conheciam, uma expressão pensativa e triste. Aquela expressão, vinda da princesa Mária, não lhes incutia medo. (Ela não incutia tal sentimento em ninguém.) Mas as duas sabiam que, quando surgia aquela expressão no seu rosto, ela ficava calada e inabalável em suas decisões.
— Vous changerez, n’est-ce pas? 30 — disse Liza, e quando a princesa Mária nada respondeu, Liza saiu do quarto.
A princesa Mária ficou só. Não satisfez o desejo de Liza e não só não mudou de penteado como nem olhou mais para si, no espelho. Sem forças, olhos e braços abaixados, ela ficou sentada em silêncio e pensou. Veio-lhe a imagem do marido, um homem, criatura forte, dominadora, e incompreensivelmente sedutora, que de repente a levava para o mundo dele, diferente em tudo, e feliz. O seu bebê era igual ao que tinha visto na véspera, na casa da filha da ama de leite — imaginava o bebê junto ao seu peito. O marido aguardava de pé e olhava com ternura para ela e para o bebê. “Mas, não, isso é impossível: sou feia demais”, pensou ela.
— Tenha a bondade de vir para o chá. O príncipe já está vindo — falou por trás da porta a voz da criada.
Ela despertou e assustou-se com o que estava pensando. E antes de descer, levantou-se, entrou no oratório, concentrou o olhar no rosto preto de uma grande imagem do Salvador, iluminada por uma lamparina, e ficou parada diante dela por vários minutos, com as mãos cruzadas. Na alma da princesa Mária havia uma dúvida angustiante. Seria possível para ela a alegria do amor, do amor terreno, por um homem? Nos devaneios sobre o casamento, a princesa Mária sonhava com a felicidade familiar e com filhos, mas seu sonho principal, mais forte, e mais escondido, era o amor terreno. O sentimento era tanto mais forte quanto mais ela tentava escondê-lo dos outros e até de si mesma. “Meu Deus”, disse ela, “como posso esmagar no meu coração esses pensamentos do diabo? Como posso renunciar para sempre a essas intenções perversas, para cumprir serenamente a Vossa vontade?” E, mal terminou de fazer a pergunta, Deus lhe respondeu, dentro do coração: “Não deseje nada para si; não procure, não se perturbe, não inveje. Para você, o futuro das pessoas e o seu próprio destino precisam se manter ignorados; mas viva como se estivesse preparada para tudo. Se for a vontade de Deus pôr você à prova nos deveres do casamento, esteja preparada para cumprir a vontade de Deus”. Com esse pensamento tranquilizante (mas mesmo assim com a esperança de realizar o seu sonho proibido, terreno), a princesa Mária suspirou, fez o sinal da cruz e desceu, sem pensar nem no vestido, nem no penteado, nem em como ia entrar na sala e no que ia dizer. Que importância tudo isso poderia ter, em comparação com a predeterminação de Deus, sem cuja vontade não cai nem um fio de cabelo da cabeça de uma pessoa?
IV
Quando a princesa Mária desceu, o príncipe Vassíli e o filho já estavam na sala de jantar, conversando com a pequena princesa e com Mlle Bourienne. Quando ela entrou, com seu passo pesado, batendo os calcanhares no chão, os homens e Mlle Bourienne levantaram-se, e a pequena princesa, apontando para ela, disse para os homens: “Voilà Marie!”.31 A princesa Mária viu todos e viu em detalhes. Viu o rosto do príncipe Vassíli, que se fez sério por um momento, ao ver a princesa, e logo depois sorriu, e viu o rosto da pequena princesa, que observava com curiosidade no rosto dos visitantes a impressão que Marie produzira. Viu também Mlle Bourienne, com a sua fita e o seu rosto bonito, e com um olhar animado como nunca, dirigido para ele; mas a ele a princesa Mária não conseguia ver, viu apenas algo grande, claro e belo, que avançou na sua direção, quando ela entrou na sala. Primeiro, aproximou-se o príncipe Vassíli, e ela beijou a cabeça careca que se inclinou sobre a sua mão e respondeu às palavras dele, dizendo que ela, ao contrário, se lembrava dele muito bem. Em seguida, Anatole se aproximou. Ela continuava sem vê-lo. Apenas sentiu uma mão carinhosa, que segurava com firmeza a sua mão, e ela mal roçou com os lábios a testa branca, sobre a qual lindos cabelos castanho-claros estavam cobertos de pomada. Quando pôs os olhos nele, sua beleza impressionou-a. Com o polegar da mão direita pousado por trás de um botão fechado do uniforme, o peito aberto, o pé recuado balançando por trás das costas, a cabeça ligeiramente inclinada, Anatole olhava para a princesa em silêncio, com um ar alegre, e era perfeitamente visível que não estava pensando nela. Anatole não tinha presença de espírito, não era ágil nem eloquente nas conversas, mas em compensação tinha a capacidade, muito valorizada na sociedade, de manter a calma e a segurança que nada consegue abalar. Se um homem inseguro fica em silêncio ao conhecer alguém e demonstra ter consciência da inconveniência do seu silêncio, deixando patente o desejo de encontrar alguma coisa para dizer, o resultado não é bom; mas Anatole se mantinha calado, balançava o pé, observava com ar divertido o penteado da princesa. Era evidente que ele podia ficar assim, calmo e calado, por muito tempo. “Se este silêncio estiver incomodando, podem conversar, eu não estou com vontade”, parecia dizer o seu aspecto. Além disso, no trato com as mulheres, Anatole tinha aquele ar que, mais que tudo, desperta nelas a curiosidade, o medo e até o amor — o ar de uma consciência desdenhosa da sua própria superioridade. Como se dissesse para elas: “Eu conheço vocês, conheço bem, para que perder tempo com vocês? E vocês bem que gostariam!”. Talvez ele não pensasse isso ao encontrar-se com mulheres (e até é provável que não, porque no geral ele mal chegava a pensar), mas tinha esse aspecto e esse ar. A princesa sentia isso e, como se desejasse mostrar que nem se atrevia a pensar em interessá-lo, voltou-se para o velho príncipe. A conversa seguiu animada e envolvendo a todos, graças à vozinha da pequena princesa e ao seu lábio com bigodinho, que se erguia acima dos dentes brancos. Ela recebeu o príncipe Vassíli com aquela atitude francamente jocosa, muitas vezes empregada por pessoas falantes e alegres, e que consiste em supor que, entre a pessoa a quem se dirigem dessa forma e elas mesmas, são partilhados certos gracejos divertidos, criados há muito tempo e que nem todos conhecem, bem como certas recordações engraçadas, embora na verdade não exista nenhuma recordação desse tipo, como também não existiam entre a pequena princesa e o príncipe Vassíli. O príncipe Vassíli adotou com prazer aquele tom; a pequena princesa atraiu Anatole, que ela quase não conhecia, para tais recordações de acontecimentos engraçados que nunca existiram. Mlle Bourienne também compartilhava aquelas recordações gerais e até a princesa Mária, com prazer, sentiu-se arrastada para as recordações alegres.
— Bem, pelo menos agora podemos ter o senhor só para nós, caro príncipe — disse a pequena princesa, em francês, é claro, para o príncipe Vassíli. — Não é como nas nossas festas em casa de Annette, onde o senhor sempre ia embora; lembra-se de cette chère Annette? 32
— Ah, mas a senhora não me venha falar de política, como a Annette!
— E a nossa mesinha de chá?
— Ah, sim!
— Por que o senhor nunca apareceu em casa de Annette? — perguntou a pequena princesa para Anatole. — Ah, já sei, já sei — disse e piscou o olho. — O seu irmão Hippolyte me contou o seu caso... Oh! — Ameaçou-o com o dedinho. — Até em Paris eu ouvi falar das suas travessuras!
— E ele, o Hippolyte, não lhe disse? — perguntou o príncipe Vassíli (dirigindo-se para o filho e segurando a princesa pelo braço como se ela quisesse fugir e ele mal conseguisse detê-la). — Mas ele não lhe disse que ele mesmo, o Hippolyte, estava morrendo de amores pela gentil princesa e que ela le mettait à la porte? Oh! C’est la perle des femmes, princesse!33 — disse ele, voltando-se para a princesa.
Por sua vez, ao ouvir a palavra “Paris”, Mlle Bourienne não deixou passar a oportunidade de entrar também na conversa geral sobre recordações.
Tomou a liberdade de perguntar se Anatole estivera em Paris havia muito tempo e se gostara da cidade. Anatole respondeu com muito gosto à francesinha e, sorrindo, olhando para ela, conversou sobre a sua terra natal. Ao ver a bonita Bourienne, Anatole resolveu que estar ali, em Montes Calvos, não seria maçante. “Bem bonitinha!”, pensou ele, virando-se e olhando para ela. “Bonitinha mesmo, essa demoiselle de compagnie.34 Espero que ela a conserve, depois que nos casarmos”, pensou. “La petite est gentille.” 35
O velho príncipe vestia-se em seu escritório, sem nenhuma pressa, de sobrancelhas franzidas, e refletia sobre o que havia de fazer. A chegada dos visitantes deixou-o irritado. “E eu lá quero saber do príncipe e do seu filho? O príncipe Vassíli é um fanfarrão, um vazio, mas o filho deve ser bom”, resmungava consigo. Estava irritado porque a chegada daquelas visitas levantava em sua alma uma questão não resolvida e constantemente abafada — uma questão a respeito da qual o velho príncipe sempre iludia a si mesmo. A questão era se, algum dia, ele ia se decidir a separar-se da princesa Mária e dar a mão dela em casamento. O príncipe nunca fizera a si mesmo essa pergunta com franqueza, sabendo de antemão que responderia conforme a justiça, e a justiça contradizia, mais do que o sentimento, a simples possibilidade da sua vida. Para o príncipe Nikolai Andréievitch, a vida sem a princesa Mária, apesar de ele parecer ter pouco apreço à filha, era impensável. “E para que ela vai casar?”, pensou. “Na certa, será infeliz. Veja só a Liza, que casou com o Andrei (e um marido melhor, hoje em dia, parece que é difícil encontrar), por acaso ela está contente com o seu destino? E quem vai casar com ela por amor? É feia, desajeitada. Vão casar por interesse, pela riqueza. E as solteiras não vivem? São até mais felizes!” Assim pensava o príncipe Nikolai Andréievitch, enquanto se vestia, e ao mesmo tempo a questão sempre posta de lado exigia uma solução rápida. O príncipe Vassíli trouxera o filho, obviamente, com o intuito de fazer o pedido de casamento e, sem dúvida, naquele dia ou no dia seguinte iriam cobrar uma resposta franca. O nome, a posição na sociedade eram adequados. “Ora, eu não sou contra”, disse consigo o príncipe, “mas será que ele é digno dela? Isso é o que veremos.”
— Isso é o que veremos — falou em voz alta. — Isso é o que veremos.
E entrou na sala a passos animados, como sempre, lançou um rápido olhar para todos, notou a mudança de vestido da pequena princesa, a fitinha de Bourienne, o horrendo penteado da princesa Mária, o sorriso de Bourienne e de Anatole, e o isolamento da sua princesa na conversa geral. “Enfeitou-se como uma burra!”, pensou ele, depois de olhar raivoso para a filha. “Não tem vergonha: e ele nem quer saber dela!”
Aproximou-se do príncipe Vassíli.
— Ora, como vai, como vai? Prazer em vê-lo.
— Para ver um caro amigo, sete verstas não são nada — começou a falar o príncipe Vassíli, como sempre, rápido, confiante e em tom familiar. — Aqui está o meu segundo filho, peço para ele o seu amor e a sua consideração.
O príncipe Nikolai Andréievitch voltou os olhos para Anatole.
— Que rapagão! Que rapagão! — disse ele. — Bem, venha cá e beije. — E lhe ofereceu a bochecha.
Anatole beijou o velho e fitou-o com curiosidade e absoluta calma, à espera de que ele, a qualquer momento, saísse com uma daquelas excentricidades, prometidas pelo pai.
O príncipe Nikolai Andréievitch sentou no seu lugar habitual na ponta do sofá, puxou para perto de si uma cadeira para o príncipe Vassíli, apontou-a para ele e pôs-se a indagar sobre assuntos políticos e novidades. Parecia ouvir com atenção o relato do príncipe Vassíli, mas não parava de olhar para a princesa Mária.
— Pois então, já estão vindo notícias de Potsdam? — repetiu as últimas palavras do príncipe Vassíli, mas de repente levantou-se, aproximou-se da filha.
— Você se arrumou assim por causa das visitas, não é? — disse ele. — Bonita, muito bonita. Fez um penteado novo para receber as visitas e, diante das visitas, eu lhe digo que daqui para a frente não se atreva a mudar de aspecto sem a minha permissão.
— Sou eu a culpada, mon père — interveio a pequena princesa, ruborizando-se.
— A senhora tem toda a liberdade — disse o príncipe Nikolai Andréievitch, e curvou-se numa reverência diante da nora. — Mas ela não tem motivo para se desfigurar... já é tão feia.
E sentou-se de novo no seu lugar no sofá, sem prestar a menor atenção na filha, levada às lágrimas.
— Ao contrário, esse penteado cai muito bem na princesa — disse o príncipe Vassíli.
— Pois bem, meu caro, o jovem príncipe, como ele se chama? — perguntou o príncipe Nikolai Andréievitch, voltando-se para Anatole. — Venha aqui, vamos conversar, vamos nos conhecer.
“Agora vai começar a diversão”, pensou Anatole e, com um sorriso, sentou-se perto do velho príncipe.
— Pois é, veja só: o senhor, meu caro, pelo que dizem, foi educado no exterior. Não é como eu e o seu pai, que aprendemos a escrever com um sacristão. Diga, meu caro, o senhor agora serve na guarda da cavalaria? — perguntou o velho, olhando para Anatole, de perto e fixamente.
— Não, eu me transferi para o Exército — respondeu Anatole, mal conseguindo conter o riso.
— Ah! Ótimo. Pois então, meu caro, o senhor quer servir ao tsar e à pátria? É tempo de guerra. Um rapagão como o senhor precisa servir, precisa servir. E então, vai para o front?
— Não, príncipe. O nosso regimento partiu. Mas eu fui designado. Para o que eu fui designado mesmo, pai? — voltou-se para o pai, com uma risada.
— Grande, isso que é servir no Exército. Para o que fui designado! Ha-ha-ha! — pôs-se a rir o príncipe Nikolai Andréievitch.
E Anatole riu mais alto ainda. De repente, o príncipe Nikolai Andréievitch ficou carrancudo.
— Bem, pode ir — disse ele para Anatole.
Com um sorriso, Anatole aproximou-se das damas.
— Pois então você o mandou para o exterior para ser educado, príncipe Vassíli? Eh? — o velho príncipe voltou-se para o príncipe Vassíli.
— Fiz o que pude; mas eu lhe digo que a educação lá fora é imensamente superior à nossa.
— Sim, hoje tudo é diferente, tudo é da maneira nova. Que belo rapagão! Que rapagão! Bem, venha comigo.
Tomou o príncipe Vassíli pelo braço e levou-o ao seu escritório.
O príncipe Vassíli, assim que ficou a sós com o príncipe, comunicou-lhe sem demora o seu desejo e as suas esperanças.
— Então você acha — disse o velho príncipe, irritado — que eu vou retê-la, que não posso separar-me dela? Mas que ideia! — exclamou, irritado. — Por mim, pode ir amanhã mesmo! Só lhe peço que me deixe conhecer melhor o meu genro. Você sabe qual é a minha regra: tudo às claras! Amanhã, na sua presença, vou perguntar a ela se quer, e então vamos deixar que ele passe um tempo aqui. Ele vai ficar aqui um tempo, e eu vou observar. — O príncipe bufou. — Que se case. Para mim, tanto faz — gritou com aquela voz estridente com que gritara com o filho na sua despedida.
— Vou falar francamente com o senhor — disse o príncipe Vassíli, no tom de um homem astuto convencido da futilidade da sua astúcia em face da sagacidade do interlocutor. — O senhor, nós sabemos, é capaz de enxergar através das pessoas. Anatole não é um gênio, mas é um rapaz honrado e bom, um excelente filho e parente.
— Sei, sei, está bem, veremos.
Como sempre acontece com mulheres solitárias que passaram muito tempo sem uma companhia masculina, diante do surgimento de Anatole, as três mulheres da casa do príncipe Nikolai Andréievitch sentiram, cada uma delas, que a vida que levavam até então não era vida. A força de pensar, de sentir, de observar decuplicou instantaneamente em todas elas e, como se até então tivessem vivido nas trevas, sua vida de repente se iluminou com uma luz nova, plena de sentido.
A princesa Mária não pensava no seu rosto e no seu penteado, nem sequer se lembrava disso. O rosto bonito, franco, do homem que talvez viesse a ser o seu marido engolia toda a sua atenção. Ele lhe parecia bom, corajoso, resoluto, viril e generoso. Ela estava convencida disso. Mil sonhos sobre a futura vida familiar apareciam na sua imaginação o tempo todo. Ela os enxotava e tentava escondê-los.
“Mas será que não estou sendo muito fria com ele?”, pensava a princesa Mária. “Eu me esforço para me conter porque, no fundo, já me sinto próxima demais dele; só que ele ignora tudo o que penso a seu respeito e pode imaginar que não gosto dele.”
E a princesa Mária se esforçava, mas não conseguia ser amável com o novo hóspede. “La pauvre fille! Elle est diablement laide”,36 pensava Anatole.
Mlle Bourienne, que com a chegada de Anatole também fora impelida a um alto grau de perturbação, pensava de outra maneira. Naturalmente, a bela jovem sem posição definida na sociedade, sem familiares e amigos, e até sem pátria, não pensava em consagrar toda a sua vida à prestação de serviços para o príncipe Nikolai Andréievitch, à leitura de livros para ele e à amizade com a princesa Mária. Havia muito que Mlle Bourienne esperava um príncipe russo que, com um só olhar, soubesse reconhecer a sua superioridade em relação às princesas russas, feias, feiamente vestidas e desajeitadas, e que se apaixonasse por ela e a raptasse; e lá estava aquele príncipe russo, afinal, enfim chegara. Mlle Bourienne ouvira uma história, contada por uma tia, para a qual ela mesma criara um desfecho e que gostava de repetir na imaginação. Era a história de uma jovem seduzida, diante da qual surgiu a pobre mãe, sa pauvre mère,37 que a recriminou por haver se entregado a um homem sem casamento. Mlle Bourienne muitas vezes se emocionava até às lágrimas, na imaginação contava para ele, o sedutor, essa história. Agora esse ele, um príncipe russo real, tinha surgido. Ele iria raptá-la, depois apareceria ma pauvre mère,38 e ele se casaria com ela. Desse modo se compunha, na cabeça de Mlle Bourienne, toda a sua história futura, no mesmo instante em que conversava com ele a respeito de Paris. Não eram os cálculos que conduziam Mlle Bourienne (a jovem não refletia nem por um minuto sobre o que devia fazer), mas tudo aquilo já estava pronto havia muito tempo dentro dela e agora apenas se agrupara em torno do surgimento de Anatole, a quem desejava e tentava agradar, o máximo possível.
A pequena princesa, como um velho cavalo de guerra quando ouve o som da corneta, de modo inconsciente e esquecida de sua posição, preparava-se para o habitual galope de coquetismo, sem nenhuma segunda intenção e sem nenhuma luta, mas com uma alegria ingênua e leviana.
Apesar de Anatole, quando em companhia feminina, colocar-se de costume na posição de um homem farto da correria de mulheres em sua perseguição, ele sentiu uma satisfação vaidosa ao perceber sua influência sobre aquelas três mulheres. Além disso, começava a experimentar em relação à bonitinha e provocante Bourienne aquele sentimento apaixonado, bestial, que nele surgia com uma rapidez extraordinária e o induzia aos atos mais rudes e atrevidos.
Depois do chá, o grupo passou para a sala de estar, e pediram à princesa que tocasse clavicórdio. Anatole apoiou-se nos cotovelos diante dela, ao lado de Mlle Bourienne, e seus olhos, risonhos e alegres, fitavam a princesa Mária. A princesa Mária, com uma perturbação torturante e alegre, sentia o olhar de Anatole sobre si. A sonata favorita transportou-a para o mais poético e emotivo dos mundos, mas o olhar que sentia sobre si acrescentava ainda mais poesia a esse mundo. No entanto, o olhar de Anatole, embora estivesse voltado para ela, estava interessado não nela, mas nos movimentos do pezinho de Mlle Bourienne, o qual naquele instante ele tocava com o seu pé por baixo do piano. Mlle Bourienne também olhava para a princesa, e nos seus lindos olhos havia uma expressão de alegria medrosa e de esperança, expressão também nova para a princesa Mária.
“Como ela me ama!”, pensava a princesa Mária. “Como estou feliz agora e como poderei ser feliz com uma tal amiga e um tal marido! Um marido, será possível?”, pensava, sem se atrever a olhar para o rosto dele, sentindo o tempo todo aquele mesmo olhar voltado para ela.
À noite, quando, após o jantar, as pessoas começaram a se dispersar, Anatole beijou a mão da princesa. Ela mesma não soube como teve tal coragem, mas olhou diretamente para o belo rosto que se aproximava dos seus olhos míopes. Depois da princesa, Anatole se aproximou da mão de Mlle Bourienne (isso não estava correto, mas ele fazia tudo de modo tão convicto e simples), e Mlle Bourienne ruborizou-se e lançou um olhar assustado para a princesa.
“Quelle délicatesse”,39 pensou a princesa. “Será que Amélie (assim chamavam Mlle Bourienne) pensa que eu posso ter ciúmes dela e não estimar o seu carinho puro e sua lealdade a mim?” Aproximou-se de Mlle Bourienne e beijou-a com força. Anatole aproximou-se da mão da pequena princesa.
— Non, non, non! Quand votre père m’écrira, que vous vous conduisez bien, je vous donnerai ma main à baiser. Pas avant.40 — E, com o dedo erguido e sorrindo, ela saiu do quarto.
V
Todos se retiraram e, exceto Anatole, que pegou no sono assim que deitou na cama, todos ficaram muito tempo acordados naquela noite.
“Será mesmo ele o meu marido, exatamente esse homem desconhecido, bonito, bom; sobretudo... bom”, pensava a princesa Mária, e o medo, que quase nunca a alcançava, alcançou-a. Tinha receio de olhar para trás; parecia que havia alguém de pé atrás do biombo, num canto escuro. E esse alguém era ele — o diabo, e ele — aquele homem de testa branca, sobrancelhas pretas e boca rosada.
Tocou a campainha para chamar a criada e pediu-lhe que dormisse no seu quarto.
Mlle Bourienne, naquela noite, ficou muito tempo caminhando pelo jardim de inverno, esperando alguém em vão, e ora sorria para alguém, ora comovia-se até às lágrimas com as palavras imaginárias que a pauvre mère dirigia a ela por causa da sua perdição.
A pequena princesa resmungou com a criada que a cama estava malfeita. Era impossível, para ela, deitar-se de lado ou de bruços. Tudo era pesado e incômodo. Sua barriga a atrapalhava. Atrapalhava mais do que nunca, sobretudo naquele dia, porque a presença de Anatole transportou-a para um outro tempo, mais vivo, em que aquilo não existia e ela estava sempre ágil e alegre. Sentou-se na poltrona, de camisola e touca. Kátia, sonolenta e com a trança solta, virou o pesado colchão de penas e deu tapas nele pela terceira vez, resmungando alguma coisa.
— Eu disse a você que está cheio de calombos e buracos — repetiu a pequena princesa —, eu ficaria muito contente de dormir, não é culpa minha. — E sua voz começava a tremer como a de uma criança prestes a chorar.
O velho príncipe também não dormia. Tíkhon, mesmo adormecido, ouvia como o patrão caminhava irritado e fungava. O velho príncipe tinha a impressão de que fora ofendido na pessoa da filha. A ofensa era tanto mais dolorosa porque se referia não a ele, mas a outra pessoa, sua filha, a quem ele amava mais do que a si mesmo. O velho príncipe dizia consigo que iria refletir sobre todo aquele caso e encontraria o que era justo e necessário fazer, mas em vez disso apenas ficava cada vez mais irritado.
“O primeiro transeunte que entra pela porta... o pai é logo esquecido, e ela corre para o quarto, penteia-se toda, abana o rabo, e nem parece mais a mesma pessoa! Larga o pai e vai embora, feliz da vida! E ela sabia que eu ia notar. Fr... Fr... Fr... E por acaso eu não estou vendo que esse imbecil só olha para Bourienne (é preciso despedi-la)? E como ela pode ter tão pouco orgulho para não entender isso? Se não tem orgulho por si mesma, então que tenha por mim, pelo menos. É preciso mostrar a ela que esse palerma nem pensa nela, só olha para Bourienne. Ela não tem orgulho, mas eu vou lhe mostrar isso...”
Se dissesse para a filha que ela estava iludida, que Anatole tinha intenção de cortejar Bourienne, o velho príncipe sabia que iria ferir o amor-próprio da princesa Mária e que a sua causa (o desejo de não se separar da filha) estaria ganha, e por isso acalmou-se. Gritou para Tíkhon e começou a despir-se.
“Que o diabo os carregue!”, pensou, enquanto Tíkhon cobria com a camisa de dormir o seu corpo seco, envelhecido, o peito coberto de pelos grisalhos. “Não convidei ninguém. Vieram para perturbar minha vida. E já me resta pouco para viver.”
— Para o diabo! — exclamou na hora em que a cabeça estava encoberta pela camisa.
Tíkhon conhecia o costume do príncipe de exprimir em voz alta seus pensamentos de vez em quando e por isso encarou, com o rosto imperturbável, o olhar irritado e interrogador do rosto que surgiu de trás da camisa.
— Foram deitar? — perguntou o príncipe.
Tíkhon, como todos os bons lacaios, sabia muito bem qual era a direção dos pensamentos do patrão. Adivinhou que a pergunta se referia ao príncipe Vassíli e seu filho.
— Já foram deitar-se e apagaram a luz, vossa excelência.
— Não há razão nenhuma... não há razão nenhuma — exclamou rapidamente o príncipe e, depois de enfiar os pés nos chinelos e os braços no roupão, seguiu para o sofá, onde dormia.
Apesar de nada ter sido dito entre Anatole e Mlle Bourienne, os dois entenderam-se perfeitamente a respeito da primeira parte do romance, até o surgimento da pauvre mère, entenderam que os dois tinham de dizer muita coisa em segredo, um para o outro, e por isso desde o amanhecer procuraram uma ocasião de se encontrarem a sós. No momento em que a princesa, na hora de costume, se dirigiu ao quarto do pai, Mlle Bourienne encontrou-se com Anatole no jardim de inverno.
A princesa Mária aproximou-se da porta do escritório com um tremor diferente. Parecia-lhe que todos sabiam não só que naquele dia iria decidir-se o seu destino, como sabiam também que ela estava pensando nisso. A princesa leu essa expressão no rosto de Tíkhon e no rosto do camareiro do príncipe Vassíli, que a encontrou no corredor quando trazia água quente e curvou-se numa reverência para cumprimentá-la.
O velho príncipe naquela manhã mostrou-se extraordinariamente amável e zeloso no trato com a filha. A princesa conhecia muito bem essa expressão de zelo. Era a mesma expressão que surgia no rosto do pai quando suas mãos secas cerravam os punhos de irritação por não ter a princesa Mária entendido um problema de aritmética, e ele, erguendo-se, afastava-se dela e repetia em voz baixa, várias vezes, as mesmas palavras, uma por uma.
O pai foi direto ao assunto e começou a conversa tratando-a por “a senhora”.
— Fizeram-me uma proposta de casamento em relação à senhora — disse, sorrindo de modo forçado. — A senhora, eu acho, já deve ter adivinhado — prosseguiu — que o príncipe Vassíli veio aqui e trouxe o seu pupilo (por algum motivo o príncipe Nikolai Andreitch chamava Anatole de pupilo) não pelos meus belos olhos. Ontem fizeram-me uma proposta de casamento em relação à senhora. E como a senhora conhece os meus princípios, estou transmitindo à senhora.
— Como devo entender o senhor, mon père? — pronunciou a princesa, empalidecendo e ruborizando.
— Como deve entender! — gritou o pai, irritado. — O príncipe Vassíli acha que você é do gosto dele para nora e está fazendo a você uma proposta de casamento em nome do seu pupilo. Aí está como deve entender. Como deve entender?!... Eu é que pergunto a você.
— Eu não sei como o senhor pensa, mon père — pronunciou a princesa, num sussurro.
— Eu? Eu? Como assim, eu? Não se incomode comigo. Não sou eu que vou casar. E a senhora? É isso o que eu gostaria de saber.
A princesa percebia que o pai não encarava o assunto com benevolência, mas naquele instante veio-lhe a ideia de que o destino da sua vida tinha de ser decidido naquela hora ou nunca. Baixou os olhos para não ver o olhar sob cuja influência sentia que não conseguia pensar e, por hábito, conseguia apenas obedecer, e falou:
— Só desejo uma coisa: cumprir a vontade do senhor — disse. — Mas se for necessário exprimir o meu desejo...
Não teve tempo de falar até o fim. O príncipe interrompeu-a.
— Que maravilha — gritou ele. — Ele vai carregar você e o dote, e de quebra ainda vai agarrar a Mademoiselle Bourienne. Ela será a esposa enquanto você...
O príncipe parou. Percebeu a impressão que aquelas palavras produziram na filha. Ela baixou a cabeça e estava à beira de chorar.
— Ora, ora, estou brincando, estou brincando — disse ele. — Lembre-se disto, princesa: eu defendo o princípio de que uma jovem tem todo o direito de escolher. E lhe dou a liberdade. Lembre-se disto: da sua decisão depende a felicidade da sua vida. Quanto a mim, não se preocupe.
— Mas eu não sei... mon père.
— Não precisa dizer nada! Ele recebe as ordens e vai casar com você ou com quem mandarem; mas você é livre para escolher... Vá para o seu quarto, reflita e daqui a uma hora venha me ver, e então, diante dele, fale: sim ou não. Eu sei, você vai ficar rezando. Muito bem, que reze, então. Mas trate de pensar bem. Pode ir. Sim ou não, sim ou não, sim ou não! — gritava, ainda quando a princesa, cambaleando como que num nevoeiro, já havia saído do escritório.
O seu destino estava decidido e decidido de maneira feliz. Mas o que o pai dissera a respeito de Mlle Bourienne... aquela alusão era horrível. Falsa, com certeza, mas mesmo assim era horrível, e ela não conseguia deixar de pensar nisso. Caminhava em linha reta, para a frente, através do jardim de inverno, sem ver nem ouvir nada, quando de repente o conhecido sussurro de Mlle Bourienne a despertou. Ergueu os olhos e, a dois passos, viu Anatole, que abraçava a francesinha e lhe sussurrava alguma coisa. Anatole, com uma expressão horrível no rosto bonito, virou os olhos para a princesa Mária e, no primeiro momento, não soltou a cintura de Mlle Bourienne, que não a via.
“Quem está aí? Para quê? Que esperem!”, parecia dizer o rosto de Anatole. A princesa Mária olhava para os dois em silêncio. Não conseguia entender aquilo. Por fim, Mlle Bourienne soltou um grito e fugiu, enquanto Anatole, com um sorriso alegre, saudou a princesa Mária com uma reverência, como se a convidasse a rir daquele caso estranho e, após encolher os ombros, seguiu para a porta que dava para os seus aposentos.
Uma hora depois, Tíkhon veio chamar a princesa Mária. Chamou-a para ir ao quarto do príncipe e acrescentou que lá também estava o príncipe Vassíli Sergueitch. A princesa, na hora em que Tíkhon veio chamá-la, estava sentada no sofá do seu quarto e abraçava Mlle Bourienne, que chorava. A princesa Mária afagava de leve a sua cabeça. Os lindos olhos da princesa, com toda a calma e luminosidade de antes, fitavam com amor terno e com pena o rostinho bonito de Mlle Bourienne.
— Non, princesse, je suis perdue pour toujours dans votre cœur 41 — disse Mlle Bourienne.
— Porquoi? Je vous aime plus, que jamais — disse a princesa Mária — et je tâcherai de faire tout ce qui est en mon pouvoir pour votre bonheur.42
— Mais vous me méprisez; vous si pure, vous ne comprendrez jamais cet égarement de la passion. Ah, ce n’est que ma pauvre mère...43
— Je comprends tout 44 — respondeu a princesa Mária, sorrindo com tristeza. — Acalme-se, minha amiga. Vou falar com o meu pai — disse, e saiu.
O príncipe Vassíli, de pernas cruzadas com os joelhos bem erguidos, a tabaqueira nas mãos, e parecendo comovido ao mais alto grau, como que se lamentando e rindo da própria comoção, tinha um sorriso de ternura no rosto quando a princesa Mária entrou. Ele, às pressas, levou uma pitada de rapé ao nariz.
— Ah, ma bonne, ma bonne — disse ele, levantando-se e segurando as duas mãos da princesa. Soltou um suspiro e acrescentou: — Le sort de mon fils est en vos mains. Décidez, ma bonne, ma chère, ma douce Marie, que j’ai toujours aimée, comme ma fille.45
Ele afastou-se. Lágrimas autênticas surgiram nos seus olhos.
— Fr... fr... — bufou o príncipe Nikolai Andreitch.
— O príncipe, em nome do seu pupilo... do seu filho, está fazendo uma proposta de casamento para você. Quer ou não quer ser esposa do príncipe Anatole Kuráguin? Você é que diz: sim ou não? — gritou. — Mas depois eu me reservo o direito de dizer a minha opinião. Sim, a minha opinião e só minha opinião — acrescentou o príncipe Nikolai Andreitch, dirigindo-se ao príncipe Vassíli, em resposta à sua expressão de súplica. — Sim ou não?
— O meu desejo, mon père, é nunca deixar o senhor, nunca separar a minha vida da sua. Não quero casar — disse ela, em tom resoluto, fitando com os olhos lindos o príncipe Vassíli e o pai.
— Absurdo, tolice! Absurdo, absurdo, absurdo! — pôs-se a gritar Nikolai Andreitch, de sobrancelhas franzidas, segurou a mão da filha, puxou-a para si, e não beijou, apenas inclinou a testa na direção da testa da filha até tocá-la, e apertou sua mão com tal força que a princesa franziu o rosto e deu um grito.
O príncipe Vassíli levantou-se.
— Ma chère, je vou dirai, que c’est un moment que je n’oublierai jamais, jamais; mais, ma bonne, est-ce que vous ne nous donnerez pas un peu d’espérance de toucher ce cœur si bon, si généreux? Dites, que peut-être... L’avenir est si grand. Dites: peut-être.46
— Príncipe, o que eu disse é tudo o que tenho no coração. Agradeço a honra, mas eu nunca me casarei com o seu filho.
— Bem, está encerrado, meu caro. Tive muito prazer em vê-lo, muito prazer em vê-lo. Vá para o seu quarto, princesa, vá — disse o velho príncipe. — Tive muito prazer em vê-lo, muito prazer — repetiu, enquanto abraçava o príncipe Vassíli.
“Minha vocação é outra”, pensava a princesa Mária. “Minha vocação é ser feliz com outra felicidade, a felicidade do amor e do autossacrifício. E, custe o que custar, farei a felicidade da pobre Amélie. Ela o ama com tanta paixão. Está arrependida com tanta paixão. Farei tudo para conseguir o seu casamento com ele. Se ele não é rico, darei a ela os recursos, vou pedir ao papai, vou pedir ao Andrei. Ficarei tão feliz quando ela for sua esposa. Ela é tão infeliz, uma estrangeira, solitária, desamparada! Meu Deus, com que paixão ela ama, se é capaz de perder o controle de si mesma de tal forma. Quem sabe eu também não faria o mesmo!...”, pensava a princesa Mária.
VI
Havia muito tempo que os Rostóv não tinham notícias de Nikóluchka; só no meio do inverno o conde recebeu uma carta em cujo endereço ele reconheceu a letra do filho. Ao receber a carta, o conde, assustado e às pressas, esforçando-se para não ser notado, correu na ponta dos pés para o seu escritório, trancou-se e começou a ler. Anna Mikháilovna, ao saber (como sempre sabia do que se passava em casa) da chegada da carta, entrou no escritório do conde a passos silenciosos e deparou com ele, com a carta nas mãos, soluçando e rindo ao mesmo tempo.
Anna Mikháilovna, apesar de sua situação ter melhorado, continuava a morar na casa dos Rostóv.
— Mon bon ami? 47 — pronunciou Anna Mikháilovna num tom triste e interrogativo, pronta para partilhar o que quer que fosse.
O conde soluçou mais ainda.
— Nikóluchka... uma carta... fo... foi... ferido... ma chère... ferido... meu querido... A condessinha... Promovido a oficial... graças a Deus... Como vou contar para a condessinha?
Anna Mikháilovna sentou-se perto dele, com o seu lenço enxugou as lágrimas nos olhos do conde, na carta, onde haviam pingado, e nos próprios olhos, leu a carta, acalmou o conde e resolveu que, até a hora do jantar e do chá, iria preparar a condessa, e depois do chá comunicaria tudo, e que Deus a ajudasse.
Durante todo o jantar, Anna Mikháilovna falou de casos da guerra, sobre Nikóluchka; perguntou duas vezes quando tinha chegado a última carta dele, embora já soubesse a resposta, e comentou que muito em breve, quem sabe naquele mesmo dia, chegaria uma outra carta. Toda vez que a condessa, ao ouvir tais comentários, começava a inquietar-se e olhava aflita ora para o conde, ora para Anna Mikháilovna, Anna Mikháilovna de forma extremamente discreta desviava a conversa para um assunto insignificante. Natacha, mais dotada do que qualquer outra pessoa na família da capacidade de perceber os matizes da entonação, dos olhares e das expressões do rosto, desde o início do jantar se pôs muito atenta e sabia que havia alguma coisa entre o pai e Anna Mikháilovna, alguma coisa relativa ao irmão, e que Anna Mikháilovna estava preparando o terreno. Apesar de toda a sua coragem (Natacha sabia como a mãe era sensível a tudo o que dizia respeito a notícias de Nikóluchka), ela não se resolveu a fazer nenhuma pergunta durante o jantar e, por aflição, nada comia, remexia-se na cadeira sem dar atenção às reprimendas da sua preceptora. Depois do jantar, lançou-se afoita no encalço de Anna Mikháilovna e, no sofá, com um pulo, atirou-se ao pescoço dela.
— Titia, minha querida, conte, o que há?
— Nada, minha amiga.
— Não, titia, querida, pombinha, doçura, meu pêssego, eu não vou desistir, eu sei que a senhora sabe.
Anna Mikháilovna balançou a cabeça.
— Vous êtes une fine mouche, mon enfant 48 — disse ela.
— Chegou uma carta do Nikólienka? Só pode ser! — gritou Natacha, lendo no rosto de Anna Mikháilovna a resposta afirmativa.
— Mas, pelo amor de Deus, seja mais cautelosa: você sabe como isso pode perturbar a sua maman.
— Vou ser, vou ser, mas conte. Não vai contar? Ah, então eu vou lá contar agora mesmo.
Anna Mikháilovna, em poucas palavras, contou para Natacha o conteúdo da carta, sob a condição de ela não dizer a ninguém.
— Palavra de honra, juro — disse Natacha e fez o sinal da cruz. — Não vou contar para ninguém — e na mesma hora correu ao encontro de Sônia.
— Nikólienka... uma carta... está ferido...
— Nicolas! — exclamou Sônia, e empalideceu no mesmo instante.
Natacha, ao ver a impressão que a notícia do ferimento do irmão produzira em Sônia, sentiu pela primeira vez todo o lado amargo daquela notícia.
Atirou-se para junto de Sônia, abraçou-a e começou a chorar.
— Só um pouquinho ferido, mas foi promovido a oficial; agora ele está bem, ele mesmo escreveu — disse, entre lágrimas.
— Vejam só como vocês mulheres são umas choronas — disse Pétia, que percorria a sala a passos largos e resolutos. — Estou muito contente, muito contente mesmo, por meu irmão ter se distinguido tanto. Vocês todas são umas choronas! Não entendem nada.
Natacha sorriu entre as lágrimas.
— Você leu a carta? — perguntou Sônia.
— Não li, mas ela disse que tudo já passou e que ele já é oficial...
— Graças a Deus — disse Sônia, fazendo o sinal da cruz. — Mas talvez ela tenha enganado você. Vamos falar com maman.
Pétia caminhava pela sala em silêncio.
— Se eu estivesse no lugar de Nikóluchka, teria matado mais franceses ainda — dizia ele. — São tão infames! Eu mataria tantos que faria uma pilha com eles — continuava Pétia.
— Cale-se, Pétia, como você é tolo!...
— Não sou tolo, tolo é quem chora por bobagem — respondeu Pétia.
— Lembra-se dele? — perguntou Natacha depois de um minuto de silêncio. Sônia sorriu:
— Se eu me lembro de Nicolas?
— Não é isso, Sônia, você se lembra dele assim, sabe, lembra muito bem, lembra de tudo? — disse Natacha com um gesto enérgico, obviamente no intuito de dar a suas palavras o significado mais sério do mundo. — Eu também me lembro de Nikólienka, eu lembro — disse. — Mas do Boris eu não me lembro. Não lembro nem um pouco...
— Como não? Não se lembra do Boris? — perguntou Sônia, com surpresa.
— Não é que eu não lembre... Eu sei quem é ele, mas não lembro como me lembro do Nikólienka. Dele, eu me lembro de olhos fechados, mas do Boris não (ela fechou os olhos), pronto, não... nada!
— Ah, Natacha — disse Sônia, olhando para a amiga com um ar admirado e sério, como se a julgasse indigna de ouvir o que ela queria dizer, e como se falasse aquilo para outra pessoa, com quem é impossível brincar. — Eu me apaixonei para sempre pelo seu irmão e, o que quer que aconteça com ele, ou comigo, nunca vou deixar de amá-lo, para toda a vida.
Com olhos curiosos, Natacha fitou Sônia com surpresa e ficou em silêncio. Sentiu que o que Sônia dissera era a verdade, que existia o amor de que Sônia falava; mas Natacha ainda não experimentara nada parecido. Acreditava que aquilo podia existir, mas não entendia.
— Vai escrever para ele? — perguntou.
Sônia ficou pensativa. A questão de escrever para Nicolas, se era preciso escrever e como, era uma questão que a atormentava. Agora que ele já era oficial e um herói ferido, seria certo da sua parte lembrá-lo dela e, assim ia parecer, lembrá-lo da obrigação que assumira em relação a ela?
— Não sei; acho que se ele escrever eu também escrevo — respondeu, ruborizando.
— E não vai ter vergonha de escrever para ele?
Sônia sorriu.
— Não.
— Pois eu tenho vergonha de escrever para o Boris, e não vou escrever.
— Mas por que ter vergonha?
— É assim, sei lá. Fico sem jeito, dá vergonha.
— Pois eu sei por que ela sente vergonha — disse Pétia, ofendido pelo primeiro comentário de Natacha. — É porque ela tinha ficado apaixonada por aquele gordo de óculos (assim Pétia se referia ao seu xará, o novo conde Bezúkhov); agora está apaixonada por aquele bêbado (Pétia falava de um italiano, o professor de canto de Natacha): é por isso que sente vergonha.
— Pétia, você é um bobo — disse Natacha.
— Não sou mais bobo do que você, minha cara — disse Pétia, de dez anos de idade, como se fosse um velho brigadeiro.
A condessa tinha sido preparada pelas alusões de Anna Mikháilovna durante o jantar. Quando foi para o quarto e sentou-se na poltrona, ela não tirou os olhos do retrato do filho, em miniatura, engastado na tabaqueira, e vieram as lágrimas. Anna Mikháilovna aproximou-se do quarto da condessa na ponta dos pés, com a carta na mão, e parou.
— Não entre — disse para o velho conde, que vinha atrás dela. — Depois. — Entrou e fechou a porta.
O conde encostou o ouvido na fechadura e se pôs a escutar.
De início, ouviu sons de palavras indiferentes, depois o som da voz de Anna Mikháilovna, que falava por mais tempo, depois um grito, depois um silêncio, depois de novo as duas vozes juntas falavam com entonações alegres, e depois passos, e Anna Mikháilovna abriu a porta para ele. No rosto de Anna Mikháilovna havia a expressão de orgulho de um cirurgião que concluiu uma amputação difícil e admite a entrada do público para que possam apreciar a sua arte.
— C’est fait!49 — disse para o conde, com um gesto solene, apontando para a condessa, que segurava numa das mãos a tabaqueira com o retrato e na outra a carta, e trazia aos lábios ora uma, ora a outra.
Ao ver o conde, estendeu as mãos para ele, abraçou sua cabeça careca e, por cima da careca, olhou de novo para a carta e para o retrato e, a fim de trazer outra vez os dois aos seus lábios, afastou um pouco a cabeça careca. Vera, Natacha, Sônia e Pétia entraram no quarto, e teve início a leitura. A carta descrevia, de forma resumida, a marcha e as duas batalhas de que Nikóluchka havia participado, a promoção a oficial, e dizia que ele beijava as mãos de maman e papa, pedia sua bênção, e beijava Vera, Natacha e Pétia. Além disso, mandava cumprimentos para M. Scheling e Mme Schoss e para a babá, e além disso pedia que mandassem um beijo para a querida Sônia, de quem ele tanto gostava e se lembrava o tempo todo, como sempre. Ao ouvir isso, Sônia ruborizou-se tanto que as lágrimas encheram seus olhos. E, sem forças para suportar os olhares voltados para ela, correu para a sala, desatou a correr e a girar em redor da sala e, com o vestido inflado como um balão, ruborizada e sorrindo, sentou-se no chão. A condessa chorava.
— Por que está chorando, maman? — perguntou Vera. — Pelo que ele escreve, temos de ficar alegres, e não chorar.
Isso era absolutamente correto, mas o conde, a condessa, Natacha — todos olharam para ela com ar de censura. “A quem foi que ela puxou?”, pensou a condessa.
A carta de Nikóluchka foi lida cem vezes, e aqueles considerados dignos de ouvi-la tinham de vir ao quarto da condessa, que não a soltava da mão. Vieram os preceptores, as babás, Mítienka, alguns conhecidos, e a cada vez a condessa relia a carta com um prazer novo e sempre descobria nela novas virtudes em seu Nikóluchka. Como para ela era estranho, extraordinário e alegre o fato de seu filho — o filho que ela mal sentia mexer os braços e as pernas dentro do seu corpo vinte anos antes, o filho por causa de quem ela tanto discutia com o conde que o mimava, o filho que primeiro aprendeu a falar “pera” e depois “mulher”, que aquele filho estivesse agora lá, numa terra estranha, num ambiente estranho, numa guerra de homens, sozinho, sem ajuda e orientação, cumprindo alguma tarefa de homem. A experiência universal dos séculos, que mostrou que as crianças partem do berço e se tornam homens por um caminho imperceptível, não existia para a condessa. O amadurecimento do filho, em cada uma de suas fases, era para ela algo tão extraordinário como se nunca tivessem existido milhões e milhões de pessoas que amadureceram exatamente da mesma forma. Assim como vinte anos antes não acreditava que a criatura pequena que vivia em algum lugar dentro dela, embaixo do seu coração, iria gritar, começaria a mamar em seu peito, começaria a falar, também agora ela não acreditava que essa mesma criatura pudesse ser aquele homem forte e corajoso, o filho e a pessoa exemplar que ele era agora, a julgar por aquela carta.
— E que estilo, como ele escreve bonito! — dizia a condessa, ao ler uma parte descritiva da carta. — E que espírito! Sobre ele mesmo, nada... nada! Fala de um tal de Deníssov, mas sem dúvida ele próprio é o mais corajoso de todos. Nada escreve sobre os seus sofrimentos. Que coração! Como eu o conheço! E como se lembrou de todos! Não esqueceu ninguém. Eu sempre, sempre disse, ainda quando ele era deste tamanho, eu sempre disse...
Durante mais de uma semana, cartas para Nikóluchka foram preparadas, rascunhadas, passadas a limpo por todos da casa; sob a supervisão da condessa e a solicitude do conde, reuniram-se os apetrechos e o dinheiro necessários para o uniforme e o equipamento do oficial recém-promovido. Anna Mikháilovna, mulher de espírito prático, conseguiu obter no Exército uma proteção para si e para o seu filho, até para a correspondência entre ambos. Obteve a chance de enviar suas cartas para o grão-príncipe Konstantin Pávlovitch,50 comandante da guarda. Os Rostóv supunham que “guarda russa no estrangeiro” era um endereço perfeitamente determinado e que se uma carta chegava ao grão-príncipe comandante da guarda não havia razão para não chegar também ao regimento de Pávlograd, que devia estar ali por perto; e por isso ficou resolvido que iam enviar as cartas e o dinheiro pelo correio do grão-príncipe para Boris, e que Boris devia entregar tudo isso para Nikóluchka. As cartas eram do velho conde, da condessa, de Pétia, de Vera, de Natacha, de Sônia e, por fim, seis mil rublos para o uniforme, além de diversos apetrechos que o conde mandou para o filho.
VII
No dia 12 de novembro, o exército de Kutúzov, que se achava acampado perto de Olmütz, preparava-se para a revista de tropas que seria feita no dia seguinte por dois imperadores — o russo e o austríaco. A guarda, recém-chegada da Rússia, pernoitava a quinze verstas de Olmütz e no dia seguinte viria para o campo de Olmütz, direto para a revista de tropas, às dez da manhã.
Nikolai Rostóv, naquele dia, recebeu de Boris um bilhete, informando que o regimento de Ismail estava pernoitando a quinze verstas de Olmütz, e que ele o esperava para entregar uma carta e um dinheiro. Rostóv tinha muita necessidade de dinheiro, agora, quando as tropas de volta da campanha estavam estacionadas perto de Olmütz e mercadores bem abastecidos e judeus austríacos, que ofereciam toda sorte de tentação, enchiam o acampamento. Entre os pavlogradenses, havia uma festa depois da outra, celebrações pelas condecorações recebidas na campanha, além de expedições a Olmütz, para a casa de Karolina, a Húngara, recém-chegada ali, que inaugurara uma taberna onde mulheres serviam os clientes. Rostóv havia comemorado pouco tempo antes sua promoção a alferes, comprara Beduíno, o cavalo de Deníssov, e estava totalmente endividado com os camaradas e com os mercadores. Ao receber o bilhete de Boris, Rostóv foi a Olmütz com um camarada, almoçou, bebeu uma garrafa de vinho e seguiu sozinho para o acampamento da guarda, à procura do seu amigo de infância. Rostóv ainda não tivera tempo de arranjar o uniforme. Vestia uma surrada japona de junker com uma cruz de soldado, calças de montaria forradas de couro, também enxovalhadas, e um sabre de oficial com fiador; o cavalo que montava era do Don, comprado de um cossaco durante a campanha; o amarrotado gorrinho de hussardo estava colocado um pouco para trás e de lado. Chegando ao acampamento do regimento de Ismail, ele pensou na impressão que iria causar em Boris e em todos os seus camaradas da guarda, com o seu aspecto de hussardo posto à prova no fogo das batalhas.
A guarda passara a campanha inteira como que num passeio, ostentando sua limpeza e sua disciplina. As marchas foram pequenas, as mochilas eram levadas em carroças, o comando austríaco preparava refeições maravilhosas para os oficiais nas etapas das marchas. Os regimentos entravam e saíam das cidades com música, e em todos os percursos (motivo do orgulho dos soldados da guarda) as tropas tinham de marchar em forma, por ordem do grão-príncipe, e os oficiais tinham de se manter em suas posições, a pé. Durante toda a campanha, Boris marchava e acampava junto de Berg, agora já comandante de companhia. Berg, que ganhara o comando da companhia durante a campanha, conseguira, graças à sua pontualidade e precisão, merecer a confiança dos superiores e obteve para si condições econômicas francamente vantajosas; Boris, durante a campanha, fez muitos conhecidos entre os militares que poderiam ser úteis a ele e, graças a uma carta de recomendação enviada por Pierre, travou conhecimento com o príncipe Andrei Bolkónski, por meio do qual esperava obter um posto no Estado-Maior do comando geral. Berg e Boris, vestidos com limpeza e esmero, haviam descansado depois da derradeira marcha do dia, estavam sentados num alojamento limpo designado para eles, diante de uma mesa redonda, e jogavam xadrez. Berg segurava um cachimbo aceso entre os joelhos. Boris, num esmero que lhe era peculiar, construía pirâmides com as peças do jogo, com suas mãos brancas e finas, à espera do lance de Berg, e fitava o rosto do parceiro, obviamente pensando no jogo, como sempre pensava apenas naquilo em que estava ocupado.
— Pois então, como você vai sair dessa? — perguntou.
— Vamos tentar — respondeu Berg, tocando num peão e afastando de novo a mão.
Nesse instante, a porta abriu.
— Aí está ele, afinal — gritou Rostóv. — E Berg está aqui! Ah, petizanfan, ale kuche dormir — gritou, repetindo as palavras da babá, de quem anos antes ele e Boris riam muito.51
— Meu Deus! Como está mudado! — Boris veio ao encontro de Rostóv, mas, ao levantar-se, não esqueceu de segurar e colocar no lugar as peças de xadrez que iam caindo, e quis abraçar o amigo, mas Nikolai evitou-o. Com aquele sentimento peculiar da mocidade que receia os caminhos muito batidos e não quer imitar os outros, mas sim exprimir seus sentimentos de um modo novo, próprio, contanto que não seja de forma insincera como o exprimem muitas vezes os mais velhos, Nikolai queria fazer algo especial no encontro com o amigo: queria como que beliscar, empurrar Boris, mas não queria de maneira alguma beijar, como todos faziam. Já Boris, ao contrário, abraçou-o de modo calmo e amistoso e beijou Rostóv três vezes.
Fazia quase meio ano que não se viam; e naquela idade em que os jovens dão os primeiros passos no caminho da vida, os dois encontraram um no outro mudanças enormes, reflexos inteiramente novos dos ambientes onde tinham dado seus primeiros passos na vida. Os dois haviam mudado muito desde o último encontro e os dois tinham pressa em mostrar um ao outro as mudanças que neles haviam ocorrido.
— Ah, seus malditos esnobes! Limpinhos, arrumadinhos, parece que vão dar um passeio, bem diferentes de nós, pecadores da linha de frente — disse Rostóv, com um som de barítono na voz, novo para Boris, e um jeito de soldado, mostrando suas calças salpicadas de lama.
A dona da casa, uma alemã, pôs a cabeça na porta ao ouvir a voz grossa de Rostóv.
— E então, é bonitinha? — perguntou, piscando o olho.
— Por que você grita desse jeito? Vai assustá-los — disse Boris. — Eu não esperava você hoje — acrescentou. — Só ontem lhe mandei o bilhete por intermédio de um ajudante de ordens de Kutúzov, um conhecido meu, o Bolkónski. Não imaginei que ele fosse alcançar você tão depressa... Puxa, e então, como vai? Já entrou em combate? — perguntou Boris.
Rostóv, sem responder, com um gesto de soldado, balançou a Cruz de São Jorge 52 pendurada nos alamares do uniforme e, apontando para a sua mão enfaixada, sorrindo, lançou um olhar para Berg.
— Como está vendo — disse.
— Ora, muito bem, muito bem! — disse Boris, sorrindo. — Mas nós também fizemos uma campanha excelente. Você sabe, é claro, sua alteza acompanhou o nosso regimento o tempo todo, por isso tivemos todo o conforto e todas as vantagens. Na Polônia, que recepções tivemos, que jantares, e que bailes... nem posso lhe contar. E o tsarévitche 53 foi muito gentil com todos os nossos oficiais.
E os dois amigos contaram um ao outro — um, sobre suas farras de hussardo e a vida na guerra, o outro, sobre os prazeres e as vantagens do serviço militar sob o comando de pessoas altamente situadas, e assim por diante.
— Ah, a guarda! — disse Rostóv. — Mas vamos, mande trazer um vinho.
Boris fechou a cara.
— Se você faz mesmo questão — respondeu.
Foi até a cama, pegou um porta-moedas debaixo dos travesseiros limpos e mandou trazer um vinho.
— Sim, e vou lhe entregar o dinheiro e a carta — acrescentou.
Rostóv pegou a carta, largou o dinheiro no sofá, apoiou os dois cotovelos sobre a mesa e começou a ler. Leu por alto várias linhas e olhou de relance para Berg com ar de raiva. Ao encontrar o seu olhar, Rostóv encobriu o rosto com a carta.
— No entanto mandaram um bom dinheiro para você — disse Berg, olhando para o pesado porta-moedas afundado no sofá. — Quanto a nós, temos de nos arranjar com o nosso soldo, conde. Por mim, eu lhe digo que...
— Olhe aqui, meu caro Berg — disse Rostóv —, se o senhor recebesse uma carta de seus familiares e estivesse com um amigo com quem quisesse conversar sobre uma porção de coisas, eu iria embora na mesma hora para não incomodar o senhor. Escute aqui, saia, por favor, vá para qualquer lugar, qualquer lugar... vá para o diabo! — gritou e no mesmo instante segurou-o pelo ombro, fitou-o no rosto com carinho, obviamente no intuito de suavizar a rudeza de suas palavras, e acrescentou: — O senhor entende, não fique zangado; meu caro, meu amigo, falo de coração, como um velho conhecido.
— Ah, desculpe, conde, entendo muito bem — respondeu Berg, levantando-se e falando na sua voz gutural.
— Vá ver os donos da casa; eles chamaram o senhor — acrescentou Boris.
Berg vestiu uma sobrecasaca limpinha, sem nenhuma manchinha ou cisco, diante do espelho arrumou para cima o cabelo nas têmporas, como fazia Alexandre Pávlovitch,54 e convencido pelo olhar de Rostóv de que sua sobrecasaca já tinha sido notada, saiu do quarto com um sorriso simpático.
— Ah, mas que besta que eu sou! — exclamou Rostóv, enquanto lia a carta.
— O que foi?
— Ah, mas que besta que eu sou por não ter escrito nem uma vez para eles e por ter assustado a todos desse jeito. Ah, que besta que eu sou — repetiu e de repente ficou vermelho. — E então, já mandou o Gavrila trazer o vinho? Ah, ótimo, vamos beber! — disse.
Nas cartas dos parentes também vinha anexada uma carta de recomendação para o príncipe Bagration, que, a conselho de Anna Mikháilovna, a condessa conseguira por intermédio de conhecidos e mandara para o filho, pedindo que ele a levasse ao seu destinatário e tirasse bom proveito dela.
— Veja que bobagem! E eu lá preciso disso? — exclamou Rostóv, jogando a carta debaixo da mesa.
— Por que jogou fora? — perguntou Boris.
— É uma espécie de carta de recomendação, sei lá. Para que diabo eu quero uma carta dessas?
— Como assim, para que diabo? — disse Boris, pegando-a do chão e lendo o nome do destinatário. — Esta carta é muito útil para você.
— Não preciso de nada e não vou ser ajudante de ordens de ninguém.
— Mas por quê? — perguntou Boris.
— É uma função de lacaios.
— Você continua o mesmo sonhador, pelo que vejo — disse Boris, balançando a cabeça.
— E você continua o mesmo diplomata. Bem, a questão não é essa... E você, como vai? — perguntou Rostóv.
— Assim, como você vê. Até agora, tudo correu bem; mas reconheço que eu gostaria muito de obter o cargo de ajudante de ordens, em vez de ficar no front.
— Por quê?
— Porque, uma vez que a pessoa entra na carreira do serviço militar, é preciso esforçar-se para fazer a carreira mais brilhante possível.
— Sim, é isso mesmo! — disse Rostóv, visivelmente pensando em outra coisa.
Ele fitava fixamente, e com ar interrogativo, os olhos do amigo, obviamente procurando em vão a resposta para uma certa pergunta.
O velho Gavrila trouxe o vinho.
— Não é melhor chamar agora o Alphonse Karlitch? — disse Boris. — Ele vai beber com você, pois eu não posso.
— Chame, chame! E então, que tal esse alemão? — perguntou Rostóv, com um sorriso de desprezo.
— Ele é um homem muito, muito bom, honesto e simpático — disse Boris.
Rostóv fitou de novo fixamente os olhos de Boris e deu um suspiro. Berg voltou e, diante da garrafa de vinho, a conversa entre os três oficiais animou-se. Os membros da guarda contaram para Rostóv a sua campanha, as homenagens que receberam na Rússia, na Polônia e no exterior. Contaram as palavras e as ações do seu comandante, o grão-príncipe, anedotas sobre a sua bondade e o seu jeito irascível. Berg, como de hábito, ficava calado quando o assunto não lhe dizia respeito de maneira pessoal, mas, no caso das anedotas sobre o jeito irascível do grão-príncipe, contou com prazer como, na Galícia, teve a chance de falar com o grão-príncipe, quando ele passava em revista os regimentos e ficara furioso com a falha de um movimento. Berg, com um sorriso simpático no rosto, contou como o grão-príncipe, muito irritado, foi até ele e gritou: “Arnautas!” (arnautas era a expressão predileta do tsarévitche, quando ficava com raiva)55 e exigiu a presença do comandante da companhia.
— Creia, conde, não fiquei nem um pouco assustado porque sabia que eu estava certo. Veja, conde, não quero me gabar, mas posso dizer que sei de cor a ordem do dia do regimento e os regulamentos também, assim como sei o “pai-nosso que estais no céu”. Por isso, conde, na minha companhia não acontecem falhas. Eu tinha a consciência tranquila. Apresentei-me. (Berg levantou-se, imitou a cara que tinha na hora, com a mão na pala do quepe. De fato, era difícil que um rosto pudesse exprimir mais respeito e autoconfiança.) Ele logo soltou os cachorros em cima de mim, como se diz, e não parava, e não era só da boca para fora, como se diz, mas para valer; e “Arnautas”, e diabos, e para a Sibéria — dizia Berg, sorrindo com ar sagaz. — Eu sabia que eu tinha razão, por isso fiquei calado: não está certo, conde? “O que foi, você é mudo ou o quê?”, gritou ele. Continuei calado. O que o senhor acha, conde? No dia seguinte, não havia nada na ordem do dia: é isso o que significa não perder o controle. Pois é, conde — disse Berg, fumando o cachimbo e soltando aneizinhos de fumaça.
— Sim, essa foi ótima — disse Rostóv, sorrindo.
Mas Boris, ao notar que Rostóv se preparava para zombar de Berg, mudou habilmente o rumo da conversa. Pediu a Rostóv que contasse como e onde ele fora ferido. Isso era agradável para Rostóv e, depois que começou a contar, a história ficou cada vez mais animada. Contou-lhes o seu incidente em Schöngraben exatamente como os que participaram de uma batalha costumam contá-la, ou seja, da forma como eles gostariam que fosse, da forma como eles ouviram outros contarem, pois assim era mais bonito contar, embora fosse completamente diferente do que de fato havia ocorrido. Rostóv era um jovem sincero, não contaria mentiras de propósito, de forma alguma. Começou a contar com a intenção de contar tudo exatamente como havia acontecido, porém, de modo imperceptível, involuntário e inevitável, passou para a mentira. Se contasse a verdade para seus ouvintes, que, como ele mesmo, já tinham ouvido muitas vezes relatos sobre os ataques e já tinham formado uma ideia bem definida do que era um ataque e esperavam que o relato fosse exatamente daquela forma — ou não acreditariam nele, ou, o que seria ainda pior, pensariam que Rostóv era o próprio culpado de não ter acontecido com ele o que acontece em geral com aqueles que contam ataques de cavalaria. Rostóv não podia lhes contar simplesmente que todos saíram a galope, que ele caiu do cavalo, deslocou o braço e, com todas as suas forças, correu para a floresta, fugindo dos franceses. Além disso, para contar tudo como havia ocorrido, era preciso fazer um grande esforço contra si mesmo, a fim de contar só aquilo que havia ocorrido. Contar a verdade é muito difícil; e os jovens raramente são capazes disso. Esperava-se o relato de como Rostóv ardera todo em chamas por dentro, sem sequer entender o que fazia, e como voou como um tufão contra o quadrado inimigo; e como abriu caminho à força entre eles, golpeando à direita e à esquerda; como o sabre provou a carne e como ele caiu de exaustão, e coisas semelhantes. E Rostóv contou-lhes tudo isso.
No meio do seu relato, no momento em que dizia: “Você não pode imaginar que estranho sentimento de fúria a gente experimenta na hora de um ataque”, entrou no quarto o príncipe Andrei Bolkónski, que estava à espera de Boris. O príncipe Andrei, que gostava de proteger os jovens, sentia-se lisonjeado por ser tratado por eles como um protetor e tinha simpatia por Boris, que soubera mostrar-se agradável no dia anterior, e desejava satisfazer um desejo do jovem. Encarregado por Kutúzov de levar documentos para o tsarévitche, ele veio ver o jovem Boris, na esperança de encontrá-lo sozinho. Ao entrar no quarto e ver que um hussardo do front contava suas aventuras militares (o príncipe Andrei não conseguia suportar esse tipo de pessoa), sorriu afetuosamente para Boris, fechou a cara, franziu os olhos na direção de Rostóv, fez uma ligeira reverência e sentou-se no sofá, de modo cansado e preguiçoso. Ficou descontente por se achar em companhia ruim. Rostóv corou, entendendo isso. Mas para ele não fazia diferença nenhuma: tratava-se de um estranho. Porém, ao olhar de relance para Boris, viu que ele também parecia estar com vergonha do hussardo do front. Apesar do ar desagradável e sarcástico do príncipe Andrei, apesar do desprezo generalizado que Rostóv, do seu ponto de vista de combatente do front, tinha em relação a todos aqueles ajudantes de ordens do Estado-Maior, aos quais obviamente pertencia o homem que acabara de entrar, Rostóv sentiu-se confuso, ficou vermelho e calou-se. Boris perguntou quais eram as novidades no Estado-Maior e se, sem querer ser indiscreto, tinha ouvido alguma notícia sobre as intenções do comando.
— Provavelmente, vão avançar — respondeu Bolkónski, visivelmente evitando falar mais diante de estranhos.
Berg aproveitou a oportunidade para perguntar, com uma cortesia especial, se agora, como tinha ouvido falar, iriam distribuir a forragem em dobro para os comandantes de companhia. A isso o príncipe Andrei respondeu, com um sorriso, que ele não podia julgar medidas governamentais de tamanha importância, e Berg soltou uma risada alegre.
— Quanto ao assunto do senhor — disse o príncipe Andrei, virando-se de novo para Boris e lançando um olhar para Rostóv —, conversaremos mais tarde. O senhor venha falar comigo depois da revista de tropas, vamos fazer tudo o que for possível.
E, depois de examinar o cômodo com um olhar, voltou-se para Rostóv, cujo estado de incontrolável embaraço infantil, já se transformando em raiva, o príncipe Andrei nem se deu ao trabalho de notar, e disse:
— O senhor, me parece, estava contando a respeito dos combates em Schöngraben, não é? O senhor esteve lá?
— Estive lá — disse Rostóv, com irritação, como se com isso quisesse ofender o ajudante de ordens.
Bolkónski percebeu a situação do hussardo e aquilo lhe pareceu engraçado. Sorriu de modo ligeiramente desdenhoso.
— Pois é! Agora andam contando muitas histórias sobre aquela batalha!
— Pois é, histórias — começou a falar Rostóv, em voz mais alta, de repente fitando com olhos raivosos ora Boris, ora Bolkónski. — Pois é, muitas histórias, mas as nossas histórias, as histórias de quem esteve lá, sob o fogo do inimigo, as nossas histórias têm peso, não são como as histórias desses sujeitos do Estado-Maior, que recebem condecorações sem fazer nada.
— Entre os quais o senhor acha que eu me incluo, não é? — perguntou o príncipe Andrei, sorrindo calmo e de modo especialmente simpático.
Um estranho sentimento de irritação e ao mesmo tempo um respeito diante da calma daquela figura combinaram-se, dessa vez, no espírito de Rostóv.
— Não estou falando do senhor — disse. — Não conheço o senhor e, admito, não quero conhecer. Estou falando do pessoal do Estado-Maior em geral.
— Pois vou lhe dizer uma coisa — interrompeu-o o príncipe Andrei, com uma autoridade calma na voz. — O senhor quis me ofender, mas estou pronto para concordar com o senhor que isso é muito fácil de fazer, se o senhor não tiver suficiente respeito por si mesmo; porém reconheça que a hora e o lugar são muito impróprios para tais insultos. Mais dia, menos dia, todos nós teremos de travar um grande duelo mais sério, além disso, Drubetskói, que diz ser seu velho amigo, não tem nenhuma culpa de minha fisionomia ter a infelicidade de não agradar ao senhor. De resto — disse, levantando-se —, o senhor conhece o meu sobrenome e sabe onde me encontrar; mas não esqueça — acrescentou — que, a meu ver, nem eu nem o senhor fomos ofendidos, e meu conselho, como um homem mais velho que o senhor, é deixar este assunto sem nenhuma consequência. Portanto, na sexta-feira, depois da revista de tropas, eu espero o senhor, Drubetskói; até a vista — concluiu o príncipe Andrei e saiu, depois de fazer uma reverência para ambos.
Rostóv só lembrou o que devia responder quando ele já havia saído. E ficou ainda mais irritado por ter esquecido de dizê-lo. Rostóv mandou trazer imediatamente o seu cavalo, despediu-se de Boris de modo seco e foi para o seu posto. Deveria ir no dia seguinte ao comando geral e desafiar aquele ajudante de ordens metido a besta ou deixar, de fato, o assunto de lado? Essa era a questão que o atormentava durante todo o trajeto. Ora pensava com raiva no prazer que sentiria ao ver o medo daquele homem pequeno, fraco e orgulhoso sob a mira da sua pistola, ora sentia com surpresa que, entre todas as pessoas que conhecia, nenhuma ele desejava tanto ter como amigo como aquele odiado ajudante de ordens.
VIII
No dia seguinte ao encontro entre Boris e Rostóv, houve a revista de tropas dos exércitos russo e austríaco, tanto as tropas recém-chegadas da Rússia como as que voltaram da campanha com Kutúzov. Os dois imperadores, o russo com o herdeiro tsarévitche e o austríaco com o arquiduque, passaram em revista o exército aliado de oitenta mil soldados.
Desde manhã cedo, as tropas elegantes, limpíssimas e enfeitadas começaram a movimentar-se, perfilando-se no campo diante da fortaleza. Ora moviam-se milhares de pernas e baionetas, com bandeiras agitadas, os soldados detinham-se a um comando dos oficiais, viravam-se, alinhavam-se nos intervalos das fileiras e passavam entre outras massas de infantes que usavam uniformes diferentes; ora a cavalaria em trajes de gala ressoava num tropel cadenciado e em tinidos, em seus uniformes bordados, azuis, vermelhos, verdes, com os músicos à frente, em roupas enfeitadas, em cavalos murzelos, alazões, cinzentos; ora a artilharia, com os canhões limpíssimos e reluzentes sacudindo nas carretas, propagando o seu som de cobre e o seu cheiro de pavio chamuscado, arrastava-se no meio da infantaria e da cavalaria e colocava-se nos locais designados. Não só os generais, em farda completa de parada, com as cinturas gordas ou finas apertadas até não poder mais, com os pescoços vermelhos escorados nas golas, de cachecol e com todas as medalhas; não só os oficiais, muito empomadados e elegantes, como também todos os soldados — de rosto fresco, lavado e barbeado, com o equipamento limpíssimo e reluzente ao mais alto grau, e todos os cavalos tão bem tratados que o pelo brilhava como cetim, e as crinas, tratadas com uma loção, jaziam fio sobre fio —, todos sentiam que algo muito sério, importante e solene se realizava. Cada general e cada soldado sentiam a sua insignificância, davam-se conta de que eram grãos de areia naquele mar de gente e, ao mesmo tempo, sentiam ser uma parte daquele todo enorme.
Desde manhã cedo, tiveram início os afazeres nervosos e o esforço geral, e às dez horas tudo estava em ordem, conforme exigido. No campo vasto, as fileiras estavam em forma. O exército inteiro estendia-se disposto em três linhas. Na frente, a cavalaria, atrás, a artilharia, e depois a infantaria.
Entre cada fileira das tropas, havia uma espécie de rua. As três partes daquele exército separavam-se nitidamente umas das outras: as tropas de guerra de Kutúzov (em cujo flanco direito, na linha da frente, estavam os pavlogradenses), os regimentos da guarda e do exército regular chegados da Rússia, e as tropas austríacas. Mas todos estavam dispostos em um só alinhamento, sob um só comando e uma só disciplina.
Como um vento nas folhas, ressoou um sussurro ansioso: “Estão vindo! Estão vindo!”. Ouviram-se vozes assustadas, e por todo o exército correu uma onda de agitação, com os últimos preparativos.
Um grupo se aproximou, na frente, vindo de Olmütz. E no mesmo instante, embora não houvesse vento naquele dia, um jato de vento correu pelo exército, e as fitinhas na ponta das lanças, e as bandeiras ariscas, palpitando junto aos seus mastros, oscilaram bem de leve. Parecia que o próprio exército, com aquele leve movimento, expressava a sua alegria com a aproximação do soberano. Ouviu-se uma voz: “Sentido!”. Depois, como galos ao nascer do sol, vozes se repetiram em vários extremos. E tudo ficou quieto.
No silêncio de morte, ouvia-se apenas um tropel de cavalos. Era a comitiva dos imperadores. Os soberanos aproximaram-se pelo flanco, e as cornetas do primeiro regimento de cavalaria ressoaram, tocando uma marcha militar. Parecia que não eram as cornetas que tocavam, mas sim que o próprio exército, alegrando-se com a aproximação do soberano, emitia espontaneamente aqueles sons. Por trás dos sons, ouvia-se com nitidez a voz jovem, simpática, do imperador Alexandre. Ele disse uma saudação, e o primeiro regimento bradou: Hurra!, de modo tão estrondoso, prolongado, alegre, que os próprios soldados se espantaram com a dimensão e a força do colosso formado por eles.
Rostóv, postado nas primeiras filas do exército de Kutúzov, às quais o soberano se dirigiu primeiro, experimentou a mesma sensação que todos os homens daquele exército — uma sensação de desprendimento, uma consciência orgulhosa da força, e um fascínio apaixonado por aquele que era o motivo de tamanha solenidade.
Sentia que uma palavra daquela pessoa bastaria para que todo aquele colosso (e Rostóv, preso a ele, era um insignificante grão de areia) partisse na direção do fogo e da água, do crime, da morte ou de grandes feitos heroicos, e por isso ele não podia deixar de tremer e desfalecer ante a aproximação daquela voz.
— Hurra! Hurra! Hurra! — retumbava de todos os lados, e um regimento após o outro recebia o soberano com sons de marcha militar; depois, Hurra!... a marcha militar e de novo Hurra! e Hurra!, que, cada vez mais forte e mais alto, fundiam-se num ronco ensurdecedor.
Enquanto o soberano não se aproximava, cada regimento, no seu silêncio e na sua imobilidade, parecia um corpo sem vida; assim que o soberano o alcançava, o regimento se animava e retumbava, unindo-se ao rugido de toda aquela fileira que o soberano já havia percorrido. Ao som tremendo, ensurdecedor, daquelas vozes, no meio da massa das tropas, imóveis, como que petrificadas em seus quadrados, moviam-se simetricamente, com displicência e sobretudo com liberdade, as centenas de cavaleiros da comitiva, com dois homens à frente deles — os imperadores. Sobre eles concentrava-se integralmente a atenção contidamente apaixonada de toda aquela massa de pessoas.
Belo, jovem, o imperador Alexandre, num uniforme da guarda da cavalaria, com um chapéu de três pontas, uma das pontas voltada para a frente, com seu rosto simpático e sua voz sonora, mas não muito alta, atraía toda a atenção.
Rostóv não estava distante do corneteiro e de longe, com seus olhos penetrantes, reconheceu o soberano e acompanhou sua aproximação. Quando o soberano se encontrava a uma distância de vinte passos, e Nikolai observou com nitidez, em todos os detalhes, o rosto bonito, jovem e feliz do imperador, experimentou um sentimento de ternura e de enlevo, como nunca havia experimentado. Tudo — cada traço, cada gesto — parecia-lhe fascinante no soberano.
Parado diante do regimento de Pávlograd, o soberano falou algo em francês para o imperador austríaco e sorriu.
Ao ver aquele sorriso, o próprio Rostóv não pôde deixar de sorrir também e sentiu um acesso de amor ainda mais forte pelo soberano. Tinha vontade de mostrar de algum modo o seu amor ao soberano. Sabia que isso era impossível e teve vontade de chorar.
O soberano chamou o comandante do regimento e lhe disse algumas palavras.
“Meu Deus! O que seria de mim se o soberano falasse comigo!”, pensou Rostóv. “Eu morreria de felicidade.”
O soberano disse também aos oficiais:
— A todos os senhores (Rostóv ouvia cada palavra como um som dos céus), eu agradeço de todo o coração.
Como Rostóv ficaria feliz se agora pudesse morrer pelo seu tsar!
— Os senhores mereceram a medalha de São Jorge e serão dignos dela.
“Só morrer, morrer por ele!”, pensava Rostóv.
O soberano ainda disse algo, que Rostóv não ouviu, e os soldados, comprimindo o peito, começaram a gritar: Hurra! Rostóv também gritou, com toda a força, inclinando-se sobre a sela, disposto a machucar-se com aquele grito, só para exprimir plenamente o seu entusiasmo com o soberano.
O soberano demorou-se alguns segundos diante dos hussardos, como se estivesse indeciso.
“Como o soberano pode estar indeciso?”, pensou Rostóv, mas depois até aquela indecisão lhe pareceu majestosa e fascinante, como tudo o mais que o soberano fazia.
A indecisão do soberano prolongou-se apenas um instante. O pé do soberano, com o bico fino e pontudo da bota, como se usava naquele tempo, tocou a virilha da égua baia de cauda curta que ele montava; a mão do soberano, numa luva branca, levantou as rédeas, ele se pôs em movimento, acompanhado por um mar de ajudantes de ordens, que começou a se movimentar desordenadamente. O soberano afastou-se cada vez mais, parou diante de outros regimentos e, por fim, Rostóv só via os seus penachos brancos, para além da comitiva que rodeava os imperadores.
Entre os senhores da comitiva, Rostóv reconheceu Bolkónski, montado em seu cavalo, com ar preguiçoso e descuidado. Rostóv lembrou-se da discussão com ele no dia anterior e lhe veio a questão de ser ou não conveniente desafiá-lo. “Claro que não”, concluiu agora Rostóv... “E acaso vale a pena pensar e falar sobre isso agora, num momento como este? Numa hora de tal sentimento de amor, de enlevo e de abnegação, o que importam todas as nossas discussões e ofensas? Eu agora amo todos, agora perdoo a todos”, pensou Rostóv.
Quando o soberano havia percorrido todos os regimentos, as tropas começaram a desfilar diante dele, em marcha solene, e Rostóv, no seu Beduíno, recém-comprado de Deníssov, passou no fim do seu esquadrão, ou seja, sozinho e perfeitamente visível diante do soberano.
Antes de chegar ao soberano, Rostóv, excelente cavaleiro, cravou as esporas duas vezes no seu Beduíno e induziu-o com êxito àquele trote de andadura frenética que Beduíno adotava quando atiçado. Com o focinho espumante dobrado na direção do peito, a cauda levantada, e como que voando no ar, sem tocar a terra, alternando as patas e erguendo-as bem alto e de forma graciosa, Beduíno, que também sentia sobre si o olhar do soberano, desfilou de modo magnífico.
O próprio Rostóv, com as pernas esticadas para trás, a barriga encolhida, e sentindo-se unido em um todo ao cavalo, com o rosto franzido, mas feliz, passou diante do soberano “feito um diabo”, como dizia Deníssov.
— Bravos rapazes, os pavlogradenses! — exclamou o soberano.
“Meu Deus! Como eu ficaria feliz se ele agora mandasse eu me atirar ao fogo”, pensou Rostóv.
Quando a revista de tropas terminou, os oficiais das tropas recém-chegadas e os oficias das tropas de Kutúzov reuniram-se em grupos e começaram a conversar sobre as condecorações, sobre os austríacos e seus uniformes, sobre o front deles, sobre Bonaparte e a situação em que se encontrava agora, sobretudo quando estava para chegar mais um corpo do Exército de Essen e a Prússia ia tomar o nosso lado.
Mas acima de tudo, em todas as rodas de oficiais, falavam sobre o imperador Alexandre, retransmitiam todas as suas palavras, os seus gestos, e empolgavam-se com ele.
Todos desejavam a mesma coisa: sob o comando do soberano, partir o mais depressa possível contra o inimigo. Sob as ordens do próprio soberano, era impossível não vencer quem quer que fosse, assim pensavam Rostóv e a maioria dos oficiais, depois da revista de tropas.
Todos, depois da revista de tropas, estavam convencidos da vitória, ainda mais do que poderiam estar, depois de vencer duas batalhas.
IX
No dia seguinte à revista de tropas, Boris, após vestir o seu melhor uniforme e receber votos de sucesso do seu camarada Berg, seguiu para Olmütz, ao encontro de Bolkónski, desejoso de tirar proveito da sua amabilidade e obter para si um posto melhor, sobretudo o posto de ajudante de ordens de alguma figura importante lhe parecia em especial atraente no Exército. “Para Rostóv, para quem o pai manda dez mil rublos toda hora, não tem nenhum problema declarar que não quer se curvar diante de ninguém, que não vai ser lacaio de ninguém; mas para mim, que não tenho nada a não ser a minha cabeça, é necessário construir a minha carreira, não perder as oportunidades, e sim tirar proveito delas.”
Em Olmütz, naquele dia, não encontrou o príncipe Andrei. Mas o aspecto de Olmütz, onde ficavam o quartel-general e o corpo diplomático, e onde residiam os dois imperadores com as suas comitivas — os cortesãos, os familiares —, só veio reforçar o seu desejo de pertencer àquele mundo superior.
Ele não conhecia ninguém e, apesar do seu elegante uniforme da guarda, todas aquelas pessoas superiores, que iam e vinham pelas ruas, em carruagens elegantes, com penachos, fitas e medalhas, cortesãos e militares, pelo visto se achavam tão incomensuravelmente acima dele, um oficialzinho da guarda, que não só não queriam como também não conseguiam reconhecer a sua existência. No alojamento do comandante em chefe Kutúzov, onde perguntou por Bolkónski, todos os ajudantes de ordens e até os ordenanças olharam para Boris como se quisessem persuadi-lo de que oficiais como ele entravam e saíam dali aos montes e que todos eles já estavam fartos até demais. Apesar disso, ou antes, por causa disso, no dia seguinte, dia 15, depois do almoço, ele foi de novo a Olmütz e, ao entrar na casa ocupada por Kutúzov, perguntou por Bolkónski. O príncipe Andrei estava em casa, e Boris foi levado a uma sala grande, onde antes certamente dançavam, mas na qual agora havia cinco camas e móveis diversos; uma mesa, uma cadeira e um clavicórdio. Um ajudante de ordens, perto da porta, de roupão persa, estava sentado à mesa e escrevia. Um outro, o vermelho e gordo Nesvítski, estava deitado na cama, as mãos atrás da cabeça, e ria com o oficial sentado a seu lado. Um terceiro tocava uma valsa vienense no clavicórdio, um quarto estava deitado sobre o clavicórdio e cantarolava junto com ele. Bolkónski não estava ali. Nenhum daqueles senhores, ao notar a presença de Boris, mudou de posição. O que escrevia, ao qual Boris se dirigiu, virou-se para trás com ar aborrecido e lhe disse que Bolkónski estava de serviço e que Boris devia tomar a porta da esquerda, para a recepção, se queria falar com Bolkónski. Boris agradeceu e seguiu para a recepção. Na recepção, estavam uns dez oficiais e generais.
Na hora em que Boris entrou, o príncipe Andrei, com os olhos desdenhosamente contraídos (com aquele jeito peculiar de cansaço cortês, que diz com clareza que, se não fosse essa a minha obrigação, eu não ficaria conversando nem um minuto com vocês), escutava um velho general russo, com medalhas, que quase na ponta dos pés, muito esticado, com uma expressão servil de soldado no rosto muito vermelho, comunicava algo ao príncipe Andrei.
— Muito bem, tenha a bondade de esperar um pouco — disse ele ao general, naquele russo com sotaque francês que ele falava quando queria exprimir desprezo e, ao notar Boris, não se dirigindo mais ao general (que foi atrás dele com um ar de súplica, pedindo que escutasse mais um pouco), o príncipe Andrei, com um sorriso alegre, dirigiu-se a Boris, cumprimentando-o com um aceno de cabeça.
Naquele instante, Boris entendeu com clareza aquilo que antes já previra, ou seja, que no Exército, além da subordinação e disciplina escritas no regulamento e bem conhecidas no regimento, ele sabia que também existia uma outra subordinação, mais importante, aquela que obrigava o general de roupa apertada e cara vermelha a ficar esperando, com respeito, o tempo que o príncipe Andrei, um capitão, para sua satisfação pessoal, achasse conveniente conversar com o sargento Drubetskói. Mais do que nunca, Boris ficou resolvido a, dali para a frente, servir no Exército não segundo o que estava escrito no regulamento, mas segundo aquela forma de subordinação que não estava escrita. Agora Boris sentia que, só por ser recomendado pelo príncipe Andrei, ele já se erguia, de uma só vez, acima de um general, que, em outras circunstâncias, no front, poderia esmagá-lo, um mero sargento da guarda. O príncipe Andrei aproximou-se de Boris e tomou-o pelo braço.
— Que pena que o senhor não me encontrou ontem. Andei ocupado o dia inteiro com os alemães. Fomos com Weyrother verificar o dispositivo. Quando os alemães cismam de ser meticulosos, é uma coisa sem fim!
Boris sorriu, como se tivesse entendido aquilo a que o príncipe Andrei havia aludido e como se fosse algo que todos soubessem. Mas era a primeira vez que ouvia o sobrenome Weyrother e até mesmo a palavra “dispositivo”.
— Pois então, meu caro, continua querendo ser ajudante de ordens? Tenho pensado no senhor nos últimos dias.
— Sim, eu pensei — disse Boris, ruborizando sem saber o motivo — em pedir ao comandante em chefe; o príncipe Kuráguin enviou para ele uma carta a meu respeito; eu só queria pedir porque — acrescentou, como que se desculpando — receio que a guarda não vá entrar em combate.
— Está bem! Está bem! Falaremos sobre tudo isso — respondeu o príncipe Andrei. — Deixe-me apenas transmitir o comunicado desse cavalheiro e depois eu pertencerei totalmente ao senhor.
Na hora em que o príncipe Andrei foi transmitir o comunicado do general de cara vermelha, esse general, que visivelmente não compartilhava o ponto de vista de Boris sobre as vantagens da subordinação não escrita, cravou os olhos de tal modo no impertinente sargento que atrapalhara sua conversa com o ajudante de ordens que Boris se sentiu embaraçado. Virou-se e esperou com impaciência que o príncipe Andrei voltasse do gabinete do comandante em chefe.
— Pois aqui está, meu caro, o que pensei a respeito do senhor — disse o príncipe Andrei, quando passavam pela sala grande onde estava o clavicórdio. — Com o comandante em chefe, o senhor não vai conseguir nada — disse o príncipe Andrei. — Ele vai lhe falar uma porção de amabilidades, vai dizer para ir jantar com ele (“isso não seria nada mau, no que diz respeito àquela outra subordinação”, pensou Boris), mas isso não ia dar em nada; nós, ajudantes de ordens e ordenanças, daqui a pouco já seremos um batalhão. Mas veja bem o que nós vamos fazer: tenho um bom amigo, um general ajudante de ordens do imperador, uma pessoa excelente, o príncipe Dolgorúkov; e, o senhor talvez não saiba, mas a questão é que, agora, Kutúzov, seu Estado-Maior e todos nós não temos nenhuma importância: agora tudo se concentra no soberano; portanto, vamos procurar o Dolgorúkov, eu também preciso falar com ele, já conversei com ele a seu respeito; então, vamos ver se ele acha possível arranjar um posto para o senhor ao seu lado, ou em algum outro lugar por lá, mais perto do sol.
O príncipe Andrei sempre se animava de um modo especial quando tinha de orientar um jovem e ajudá-lo a alcançar o sucesso mundano. Sob o pretexto de obter ajuda para os outros, ajuda que ele, por orgulho, jamais aceitaria para si, o príncipe Andrei se mantinha próximo daquele meio que proporcionava o sucesso e que o atraía. Com muito gosto, assumiu a causa de Boris e foi com ele ao encontro do príncipe Dolgorúkov.
A tarde já ia adiantada quando os dois subiram ao palácio de Olmütz, ocupado pelos imperadores e seus favoritos.
Naquele mesmo dia, houve um conselho de guerra do qual participaram todos os membros do Hofskriegrath e os dois imperadores. No conselho, em oposição à opinião dos velhos — Kutúzov e Schwartzenberg —, ficou decidido tomar a ofensiva rapidamente e travar uma batalha geral contra Bonaparte. Assim que o conselho de guerra terminou, o príncipe Andrei, acompanhado de Boris, chegou ao palácio em busca do príncipe Dolgorúkov. Todas as pessoas do quartel-general ainda estavam sob o fascínio do conselho de guerra daquele dia, vencido pelo partido dos jovens. As vozes dos que preferiam ganhar tempo e aconselhavam esperar ainda um pouco, sem atacar, foram abafadas de modo tão unânime, e suas razões foram de tal modo refutadas pelas evidências incontestáveis das vantagens de uma ofensiva que aquilo que se debatia no conselho, a futura batalha e, sem dúvida, a vitória, já parecia não estar no futuro, mas no passado. Todas as razões estavam a nosso favor. As forças imensas, sem dúvida superiores às forças de Napoleão, estavam concentradas num só lugar; as tropas estavam animadas com a presença dos imperadores e sôfregas para entrar em combate; o ponto estratégico onde teriam de combater era conhecido em seus mínimos detalhes pelo general austríaco Weyrother, comandante das tropas (por um acaso feliz, as tropas austríacas tinham feito manobras, no ano anterior, exatamente naqueles campos onde agora se previa um confronto com os franceses); o terreno era conhecido em seus mínimos detalhes e reproduzido em mapas, e Bonaparte, enfraquecido, obviamente não tomaria nenhuma iniciativa.
Dolgorúkov, um dos mais ardorosos partidários da ofensiva, acabara de voltar do conselho, cansado, extenuado, mas animado e orgulhoso com a vitória alcançada. O príncipe Andrei apresentou-lhe o oficial seu protegido, mas o príncipe Dolgorúkov, depois de apertar a mão de Boris com firmeza e cortesia, nada lhe disse e, pelo visto, incapaz de conter a expressão dos pensamentos que naquele instante o preocupavam com mais força que tudo, falou em francês, para o príncipe Andrei:
— Puxa, meu caro, que batalha nós travamos! Deus queira que a batalha que virá depois dessa seja igualmente vitoriosa. No entanto, meu caro — disse ele, com a voz entrecortada e cheia de entusiasmo —, devo admitir que eu estava errado quanto aos austríacos e em especial quanto a Weyrother. Que precisão, que minúcia, que conhecimento do terreno, que capacidade de prever todas as possibilidades, todas as condições, todos os mínimos pormenores! Não, meu caro, é impossível imaginar condições mais vantajosas do que estas em que nos encontramos. A aliança da exatidão austríaca com a coragem russa... o que mais podem querer?
— Então foi decidido, em definitivo, lançar uma ofensiva? — perguntou Bolkónski.
— E quer saber, meu caro, parece-me que Buonaparte positivamente desperdiçou o seu latim. O senhor sabia que hoje chegou uma carta dele para o imperador? — Dolgorúkov sorriu de modo significativo.
— Puxa! O que ele diz? — perguntou Bolkónski.
— O que ele pode dizer? Patati, patatá etc. etc., tudo só para ganhar tempo. Eu lhe digo que ele está em nossas mãos; isso é seguro! Porém o mais engraçado de tudo — disse, e começou a rir, cheio de simpatia, de repente — é que ninguém conseguia inventar um título para o destinatário da resposta. Se não se pode chamá-lo de cônsul e, é claro, muito menos de imperador, então o jeito seria mandar a carta para o general Buonaparte, e assim me pareceu.
— No entanto, entre não reconhecê-lo como imperador e chamá-lo de general Buonaparte, existe uma diferença — disse Bolkónski.
— Essa era a questão — disse Dolgorúkov depressa, interrompendo e rindo. — O senhor conhece o Bilíbin, é um homem muito inteligente, e ele sugeriu endereçar assim: “Ao usurpador e inimigo da humanidade”.
Dolgorúkov soltou uma gargalhada.
— Nada mais que isso? — observou Bolkónski.
— Apesar de tudo, o próprio Bilíbin encontrou um título sério para o destinatário. Que homem inteligente e espirituoso.
— De que modo?
— Ao chefe do governo francês, au chef du gouvernement français — disse o príncipe Dolgorúkov, em tom sério e com satisfação. — Não é verdade que assim fica bem?
— Fica bem, mas vai deixá-lo muito contrariado — comentou Bolkónski.
— Ah, muito mesmo! Meu irmão o conhece: jantou várias vezes com ele, o atual imperador, em Paris, e me disse que nunca viu um diplomata mais requintado e esperto: sabe, uma aliança da astúcia francesa com a teatralidade italiana. O senhor conhece a anedota dele e do conde Markóv? Só o conde Markóv sabia como lidar com ele. O senhor conhece a história do lenço? É excelente!
E o tagarela Dolgorúkov, dirigindo-se ora a Boris, ora ao príncipe Andrei, contou como Bonaparte, no intuito de pôr à prova o conde Markóv, nosso embaixador, deixou cair um lenço de propósito na frente dele e parou, olhando para o embaixador, na certa esperando um obséquio de Markóv, mas logo depois Markóv deixou cair o seu próprio lenço, bem ao lado, e pegou do chão o seu lenço, sem pegar o lenço de Bonaparte.
— Charmant — disse Bolkónski. — Mas veja, príncipe, eu vim trazer ao senhor uma solicitação deste jovem. Veja bem...
No entanto, o príncipe Andrei não pôde concluir, pois entrou no cômodo um ajudante de ordens que chamou Dolgorúkov à presença do imperador.
— Ah, que maçada! — exclamou Dolgorúkov, levantando-se às pressas e apertando a mão do príncipe Andrei e de Boris. — Os senhores sabem, fico muito feliz de fazer tudo o que está ao meu alcance, para o senhor e também para este caro jovem. — Apertou de novo a mão de Boris com uma expressão de leviandade simpática, sincera e animada. — Mas os senhores estão vendo... até uma outra vez!
Boris ficou perturbado com a ideia da proximidade do poder supremo, proximidade que ele sentia naquele instante. Ali ele se deu conta de estar em contato com as molas que dirigiam todos os vastos movimentos daquela massa da qual ele, em seu regimento, sentia-se uma parte pequena, modesta, insignificante. Os dois saíram para o corredor, após o príncipe Dolgorúkov, e encontraram (saindo da porta do quarto do soberano, pela qual Dolgorúkov entrara) um homem baixo, em trajes civis, rosto inteligente e feição abrupta do maxilar projetado para a frente, o que não o prejudicava e até lhe dava uma vivacidade especial e uma agudeza de expressão. Aquele homem baixo cumprimentou Dolgorúkov com um aceno de cabeça, como se fosse seu amigo, e com um olhar frio e fixo fitou o príncipe Andrei, enquanto andava reto na sua direção, obviamente esperando que o príncipe Andrei o cumprimentasse com uma reverência ou lhe abrisse caminho. O príncipe Andrei não fez nem uma coisa nem outra; em seu rosto, expressou-se a raiva, e o jovem, desviando-se, passou pelo lado do corredor.
— Quem é esse? — perguntou Boris.
— É um dos homens mais notáveis, e também dos mais desagradáveis para mim. É o ministro do Exterior, o príncipe Adam Czartoryski. É essa gente — disse Bolkónski, com um suspiro que ele não conseguiu conter, no momento em que saíram do palácio —, é essa gente que decide o destino dos povos.
No dia seguinte, as tropas puseram-se em marcha, e Boris, até a batalha de Austerlitz, não conseguiu mais falar com Bolkónski nem com Dolgorúkov e permaneceu ainda por um tempo no regimento de Ismail.
X
No amanhecer do dia 16, o esquadrão de Deníssov, no qual Nikolai Rostóv servia e que estava no destacamento do general Bagration, saiu da cama para a guerra, como diziam, e após percorrer cerca de uma versta atrás de outras colunas deteve-se na estrada principal. Rostóv viu que passaram à frente dele os cossacos do primeiro e do segundo esquadrão de hussardos, os batalhões de infantes, com a artilharia, e também passaram os generais Bagration e Dolgorúkov com os ajudantes de ordens. Todo o medo que, como de outras vezes, ele padecia antes de uma batalha; toda a luta interior no fim da qual ele superava aquele medo; todos os seus sonhos de destacar-se como um verdadeiro hussardo naquela batalha — foram em vão. O seu esquadrão foi designado para as forças de reserva, e Nikolai Rostóv passou o dia aborrecido e melancólico. Às nove horas da manhã, ouviu um tiroteio à sua frente, gritos de hurra, viu homens feridos trazidos para a retaguarda (eram poucos) e, por fim, viu que um destacamento inteiro de cavalarianos franceses passava no meio de uma centena de cossacos. Pelo visto, o combate havia terminado e, pelo visto, tinha sido um combate pequeno, mas bem-sucedido. Os soldados e os oficiais que voltaram falavam de uma vitória estupenda, da tomada da cidade de Wischau e da captura de um esquadrão francês inteiro. O dia estava claro, ensolarado, depois de uma noite de forte geada, e o brilho alegre do dia de outono estava bem de acordo com a notícia da vitória, transmitida não só pelo relato daqueles que dela participaram como também pela expressão alegre no rosto dos soldados, oficiais, generais e ajudantes de ordens que passavam para lá e para cá, diante de Rostóv. O coração de Rostóv se afligia mais ainda por ele ter sofrido em vão todo o medo que antecede a batalha e por ter passado aquele dia alegre na inatividade.
— Rostóv, venha cá, beba para afogar as mágoas! — gritou Deníssov, sentado na beira da estrada, diante de um cantil e de um pouco de comida.
Os oficiais reuniram-se numa roda, comiam e conversavam em torno das provisões de Deníssov.
— Olhe, ainda estão trazendo mais! — disse um dos oficiais, apontando para um dragão francês feito prisioneiro que dois cossacos levavam a pé.
Um deles trazia pela rédea um alto e bonito cavalo francês, tomado do prisioneiro.
— Me venda o cavalo! — gritou Deníssov para o cossaco.
— Pois não, vossa excelência...
Os oficiais levantaram-se e rodearam os cossacos e o prisioneiro francês. O dragão francês era um rapaz pequeno, alsaciano, que falava francês com sotaque alemão. Arquejava de agitação, tinha o rosto vermelho e, quando ouviu a língua francesa, rapidamente começou a falar com os oficiais, dirigindo-se ora a um, ora a outro. Disse que não o teriam capturado, que ele não tinha culpa de ter sido capturado, a culpa era de le caporal,56 que o mandara pegar uns xairéis, e que ele bem disse ao cabo que já havia uns russos por lá. E a cada palavra ele acrescentava: mais qu’on ne fasse pas de mal à mon petit cheval,57 e afagava o seu cavalo. Estava claro que não entendia muito bem onde estava. Ora se desculpava por ter sido capturado, ora, julgando-se diante de seus superiores, expressava o seu capricho e o seu zelo no cumprimento dos deveres de soldado. Ele trouxe consigo, para a nossa retaguarda, com todo o frescor, a atmosfera das tropas francesas, tão estranhas para nós.
Os cossacos venderam o cavalo por dois tchervónetsi,58 e Rostóv, que agora, depois de ter recebido dinheiro do pai, era o mais rico dos oficiais, comprou-o.
— Mais qu’on ne fasse pas de mal à mon petit cheval — disse o alsaciano para Rostóv, com bondade, quando o cavalo foi entregue ao hussardo.
Rostóv, sorrindo, tranquilizou o dragão e lhe deu um dinheiro.
— Aliê! Aliê! 59 — disse um cossaco, puxando o prisioneiro pelo braço, para que andasse em frente.
— O soberano! O soberano! — ouviu-se de repente entre os hussardos.
Todos puseram-se a correr, afobados, e Rostóv viu mais atrás, na estrada, alguns cavaleiros que se aproximavam, com penachos brancos nos chapéus. Num minuto, todos estavam a postos e esperavam.
Rostóv não entendeu nem sentiu como foi que saiu correndo de onde estava e montou em seu cavalo. Num instante, passou a sua tristeza por não ter participado do combate, passou o seu estado de espírito entediado no meio de pessoas que já estava farto de ver, num instante desapareceram todos os pensamentos sobre si mesmo: ele ficou totalmente absorvido por um sentimento de felicidade, causado pela proximidade do soberano. Só com essa proximidade, Rostóv sentia-se recompensado da perda daquele dia. Estava feliz como um amante quando chega a hora de um encontro desejado. Sem coragem de olhar à sua volta, e sem olhar à sua volta, Rostóv sentia-se perturbado ao intuir a aproximação do tsar. E sentia isso não por causa de um som de tropel de cavalos que se aproximavam, sentia isso porque, durante a aproximação, tudo ficava mais claro, mais alegre, mais significativo e festivo à sua volta. Aquele sol movia-se cada vez mais para perto de Rostóv, propagando a seu redor os raios de uma luz dócil e majestosa, e pronto, agora ele já se sente apanhado por aqueles raios, já ouve a sua voz — aquela voz afetuosa, serena, majestosa e ao mesmo tempo tão simples. E assim como tinha de ser, na maneira de sentir de Rostóv, teve início um silêncio mortal, e naquele silêncio ressoaram os sons da voz do soberano.
— Les houzards de Pavlograd? 60 — disse ele, em tom interrogativo.
— La réserve, sire! 61 — respondeu uma outra voz, muito humana, depois da voz não humana que tinha dito: “Les huzards de Pavlograd?”.
O soberano chegou até onde estava Rostóv e parou. O rosto de Alexandre estava ainda mais belo do que na revista de tropas, três dias antes. O rosto rebrilhava com tamanha alegria e juventude, com uma juventude tão inocente que lembrava a vivacidade de um menino de catorze anos e ao mesmo tempo era, apesar de tudo, o rosto de um imperador majestoso. Ao correr o olhar pelo esquadrão, ao acaso, os olhos do soberano encontraram-se com os olhos de Rostóv e detiveram-se neles não mais que dois segundos. Tenha ou não entendido o que se passava na alma de Rostóv (pareceu a Rostóv que ele entendeu tudo), o soberano observou o rosto de Rostóv por uns dois segundos, com os seus olhos azuis. (Uma luz derramava-se deles, suave e dócil.) Depois, de repente, ergueu as sobrancelhas, golpeou o cavalo com um movimento brusco do pé esquerdo e avançou a galope.
O jovem imperador não conseguiu conter o desejo de estar presente à batalha e, a despeito de todas as recomendações dos cortesãos, ao meio-dia separou-se da terceira coluna, junto à qual seguia, e galopou rumo à vanguarda. Ainda antes de chegar aos hussardos, alguns ajudantes de ordens vieram ao seu encontro com a notícia do desfecho feliz do combate.
A batalha, que consistiu apenas na captura de um esquadrão de franceses, foi retratada como uma vitória formidável sobre os franceses, e por isso o soberano e todo o exército, sobretudo quando a fumaça de pólvora ainda não se dissipara no campo de batalha, acreditaram que os franceses tinham sido vencidos e que se renderam contra a sua vontade. Alguns minutos após a passagem do soberano, a divisão de Pávlograd recebeu ordem de avançar. Na própria Wischau, pequena cidadezinha alemã, Rostóv avistou o soberano mais uma vez. Na praça da cidade, na qual, antes da chegada do soberano, tinha ocorrido um tiroteio muito forte, jaziam alguns homens mortos e feridos, que não haviam tido tempo de se retirar dali. O soberano, rodeado pela comitiva de militares e civis, montava uma outra égua baia de cauda curta, não a que montara na revista de tropas, e inclinado para o lado, segurando um lornhão de ouro junto aos olhos com um gesto gracioso, observava através dele um soldado que jazia de bruços, sem a barretina, com a cabeça ensanguentada. O soldado ferido estava tão sujo, tinha um aspecto tão grosseiro e repulsivo que a sua proximidade do soberano chocou Rostóv. Ele viu que os ombros arqueados do soberano estremeceram, como que atravessados por um calafrio, viu que o seu pé esquerdo começou a bater a espora convulsivamente no flanco da égua e viu que o animal bem ensinado olhou para trás com indiferença e não saiu do lugar. Um ajudante de ordens desmontou, pegou o soldado por baixo dos braços e tratou de colocá-lo numa padiola que apareceu ali. O soldado começou a gemer.
— Devagar, devagar, não podem fazer isso mais devagar? — exclamou o soberano, que parecia sofrer ainda mais do que o soldado moribundo, e seguiu adiante.
Rostóv viu as lágrimas que encheram os olhos do soberano e ouviu como ele, ao se afastar, disse em francês para Czartoryski:
— Que coisa horrível é a guerra, que coisa horrível! Quelle terrible chose que la guerre!
As tropas da vanguarda estacionaram diante de Wischau, à vista da linha de frente do inimigo, que ao longo de todo aquele dia, em face de um tiroteio leve, cedera terreno para nós. Um agradecimento do soberano foi transmitido à vanguarda, foram prometidas condecorações e distribuíram aos soldados uma ração dupla de vodca. Com ainda mais alegria do que na noite anterior, as fogueiras dos acampamentos crepitaram, e ressoaram as canções dos soldados. Deníssov, naquela noite, comemorou sua promoção a major, e Rostóv, já bastante embriagado no final da farra, propôs um brinde à saúde do soberano, mas “não do soberano-imperador, como dizem nos jantares dos oficiais”, disse ele, “mas à saúde do soberano, um grande homem, bondoso e encantador; bebamos pela sua saúde e pela vitória certa contra os franceses”.
— Se nós antes lutamos — disse ele — e não demos moleza para os franceses em Schöngraben, imaginem o que vai acontecer agora, que ele está à frente. Todos vamos morrer, e com satisfação vamos morrer por ele. E então, senhores? Talvez eu não esteja falando direito, bebi muito, mas é isso o que sinto, e vocês também. À saúde de Alexandre I! Hurra!
— Hurra! — ressoaram as vozes entusiasmadas dos oficiais.
E o velho capitão de cavalaria, Kírsten, gritava entusiasmado, e com uma sinceridade não menor do que a de Rostóv, que tinha vinte anos.
Quando os oficiais terminaram de beber e quebraram seus copos, Kírsten encheu outros e, só de camisa e calças de montaria, com um copo na mão, aproximou-se das fogueiras dos soldados, brandiu o braço para o alto e parou à luz de uma fogueira, numa pose imponente, com os bigodes compridos e grisalhos e o peito branco que se via por baixo da camisa aberta.
— Rapazes, à saúde do soberano-imperador, pela vitória sobre os inimigos, hurra! — gritou com sua voz intrépida de velho hussardo em tom de barítono.
Os hussardos aglomeraram-se em redor e responderam unidos num grito bem alto.
Tarde da noite, quando todos dispersaram, Deníssov bateu com a mão curtinha no ombro do seu favorito, Rostóv.
— Veja só, em campanha, não tem ninguém para a gente se apaixonar, e aí ele vai e se apaixona pelo tsar — disse Deníssov.
— Deníssov, não brinque com isso — gritou Rostóv —, é um sentimento tão elevado, tão belo, tão...
— Acredito, acredito, amiguinho, e compartilho e aprovo...
— Não, não entende!
Rostóv também se levantou e foi perambular entre as fogueiras, pensando na felicidade que seria morrer, não salvando a vida do soberano (nisso ele não se atrevia nem a sonhar), mas apenas morrer diante dos olhos dele. Estava de fato apaixonado pelo tsar e também pela glória das armas russas, e esperançoso de um futuro triunfo. E não era só ele que experimentava tal sentimento naqueles dias memoráveis que antecederam a batalha de Austerlitz: nove décimos dos soldados do Exército russo, naquele momento, estavam apaixonados, embora com menos entusiasmo, pelo tsar e pela glória das armas russas.
XI
No dia seguinte, o soberano ficou em Wischau. Villiers, o médico da corte, foi chamado várias vezes à sua presença. No quartel-general e nas tropas mais próximas, espalhou-se a notícia de que o soberano estava doente. Não comeu nada e dormiu mal naquela noite, pelo que diziam os mais próximos. A causa do mal-estar residia na forte impressão que a visão dos feridos e mortos deixara na alma sensível do soberano.
No amanhecer do dia 17, um oficial francês, que viera sob uma bandeira branca, foi conduzido dos postos avançados até Wischau e pedia um encontro com o imperador russo. O oficial era Savary. O soberano havia acabado de adormecer, e portanto Savary tinha de esperar. Ao meio-dia ele foi recebido pelo soberano e uma hora depois foi com o príncipe Dolgorúkov para os postos avançados do Exército francês.
Conforme se comentou, o propósito do envio de Savary foi a proposta de um encontro entre o imperador Alexandre e Napoleão. O encontro pessoal, para alegria e orgulho de todo o Exército, foi recusado e, em lugar do soberano, o príncipe Dolgorúkov, o vencedor de Wischau, foi enviado junto com Savary para negociar com Napoleão, caso tais negociações, contra todas as expectativas, tivessem por finalidade um verdadeiro desejo de paz.
Dolgorúkov voltou ao entardecer, seguiu direto ao encontro do soberano e ficou a sós com ele por muito tempo.
Nos dias 18 e 19 de novembro, as tropas avançaram mais dois dias de marcha, e os postos avançados do inimigo, depois de breves tiroteios, recuaram. Nas altas esferas do Exército, desde o meio-dia do dia 19, teve início uma intensa movimentação, ansiosa e agitada, que se prolongou até a manhã do dia seguinte, 20 de novembro, em que se deu a tão memorável batalha de Austerlitz.
Até o meio-dia do dia 19, as movimentações, as conversas animadas, a correria, o vaivém de ajudantes de ordens limitavam-se ao quartel-general dos imperadores; depois do meio-dia, a movimentação passou para o quartel-general de Kutúzov e para o Estado-Maior dos comandantes de coluna. Ao entardecer, por meio dos ajudantes de ordens, essa movimentação propagou-se por todos os setores e pontos extremos do exército e, na noite de 19 para 20, a massa de oitenta mil soldados das tropas aliadas levantou-se de seus acampamentos de pernoite, pôs-se a zunir num vozerio, agitou-se, e pôs-se em movimento numa imensa tela de nove verstas.
A movimentação concentrada, que começou pela manhã no quartel-general dos imperadores e impulsionou toda a movimentação posterior, era semelhante ao primeiro movimento da roda central de um grande relógio de torre. Lentamente, moveu-se uma roda, uma outra girou, e uma terceira, e cada vez mais rápido as rodas, as roldanas, as engrenagens começaram a girar, os carrilhões começaram a tocar, os bonecos começaram a pular, e os ponteiros começaram a mover-se de modo ritmado, mostrando o resultado daquela movimentação.
Como no mecanismo de um relógio, também no mecanismo da atividade militar, uma vez começado um movimento, ele segue de modo irresistível até o resultado final, e também permanecem imóveis e indiferentes, até o momento da transmissão do movimento, as partes do mecanismo ainda não alcançadas por aquele impulso. As rodas rangem nos eixos, os dentes agarram, as roldanas chiam por causa da velocidade em que giram, e no entanto uma roda contígua permanece quieta e imóvel, como se estivesse disposta a ficar centenas de anos nessa imobilidade; mas chega a hora — uma alavanca engata e, obedecendo ao movimento, a roda estala ao mexer-se e se une também à mesma ação, cujo resultado e propósito ela não entende.
Tal como num relógio o resultado do movimento complexo de inúmeras rodas e roldanas diferentes é apenas o movimento vagaroso e regular dos ponteiros que marcam o tempo, assim também o resultado de todos os complexos movimentos humanos daqueles cento e sessenta mil russos e franceses — todas as paixões, desejos, arrependimentos, humilhações, sofrimentos, acessos de orgulho, de medo, de entusiasmo daquela gente — foi apenas a derrota na batalha de Austerlitz, chamada de a batalha dos três imperadores, ou seja, o vagaroso deslocamento do ponteiro da história mundial no mostrador da história da humanidade.
O príncipe Andrei estava de serviço naquele dia e não saía de perto do comandante em chefe.
Às seis horas da tarde, Kutúzov chegou ao quartel-general dos imperadores e, depois de ficar com o soberano por um breve intervalo, seguiu ao encontro do alto marechal da corte, o conde Tolstói.
Bolkónski aproveitou esse intervalo para procurar Dolgorúkov e informar-se dos detalhes do que se passava. O príncipe Andrei sentia que Kutúzov estava abalado e desgostoso com alguma coisa, que no quartel-general estavam descontentes com ele, e que todos no quartel-general do imperador se dirigiam a ele naquele tom de quem sabe algo que os outros não sabem; e por isso Bolkónski queria conversar com Dolgorúkov.
— Ora, boa tarde, mon cher — disse Dolgorúkov, sentado com Bilíbin para tomar chá. — A festa será amanhã. Como vai o seu velho? Anda mal-humorado?
— Não digo que esteja mal-humorado, mas acho que ele gostaria de ser ouvido.
— Mas ele foi ouvido no conselho de guerra e será ouvido quando falar com juízo; mas adiar e esperar não se sabe o quê, agora quando Bonaparte receia mais que tudo uma batalha geral, é impossível.
— Mas o senhor esteve com ele? — perguntou o príncipe Andrei. — E então, que tal o Bonaparte? Que impressão o senhor teve dele?
— Sim, eu o vi e me convenci de que ele teme uma batalha geral, mais que tudo no mundo — repetiu Dolgorúkov, valorizando visivelmente aquela conclusão do seu encontro com Napoleão. — Se ele não temesse a batalha, para que iria solicitar um encontro, manter conversações e sobretudo recuar, quando o recuo é algo tão contrário a todo o seu método de conduzir a guerra? Acredite-me: ele está com medo, teme uma batalha geral, a hora dele chegou. Garanto isso ao senhor.
— Mas me conte, como ele é? — perguntou ainda o príncipe Andrei.
— Um homem numa sobrecasaca cinza que queria muito que eu o tratasse por “vossa majestade”, mas, para desgosto dele, não conseguiu arrancar de mim nenhum título. Aí está que homem ele é, e mais nada — respondeu Dolgorúkov, virando-se e olhando para Bilíbin com um sorriso.
— Apesar do meu total respeito pelo velho Kutúzov — prosseguiu ele —, faríamos um belo papel esperando não se sabe o quê, e assim lhe dando a chance de fugir, ou de nos enganar, quando agora ele está seguramente em nossas mãos. Não, é preciso não esquecer Suvórov e as suas regras: não se colocar na posição de quem é atacado, e sim atacar. Acredite, na guerra, a energia dos jovens muitas vezes aponta o caminho de modo mais correto do que toda a experiência dos velhos Cunctator.62
— Mas em que ponto nós vamos atacá-lo? Estive nos postos avançados hoje, e é impossível decidir onde exatamente estão as forças principais dele — disse o príncipe Andrei.
Queria expor para Dolgorúkov o seu próprio plano de ataque, que ele mesmo traçara.
— Ah, isso não faz a menor diferença — retrucou logo Dolgorúkov, levantando-se e abrindo um mapa sobre a mesa. — Todas as circunstâncias foram previstas: se ele estiver em Brünn...
E o príncipe, de modo rápido e sem clareza, explicou o plano do movimento de flanco de Weyrother.
O príncipe Andrei começou a fazer objeções e a expor o seu plano, que podia ser tão bom quanto o plano de Weyrother mas tinha o defeito de o plano de Weyrother já ter sido aprovado. Assim que o príncipe Andrei começou a explicar as desvantagens daquele plano e as vantagens do seu, o príncipe Dolgorúkov parou de escutá-lo e olhou distraído não para o mapa, mas para o rosto do príncipe Andrei.
— De resto, hoje haverá um conselho de guerra no alojamento de Kutúzov: lá, o senhor poderá expor tudo — disse Dolgorúkov.
— Farei isso — respondeu o príncipe Andrei, afastando-se dos mapas.
— Por que os senhores estão preocupados? — perguntou Bilíbin, que até então escutava a conversa deles com um sorriso alegre e agora, pelo visto, preparava-se para dizer um gracejo. — Haja uma vitória ou uma derrota amanhã, a glória das armas russas está garantida. Exceto o seu Kutúzov, não há mais nenhum russo no comando de uma coluna. Os comandantes são: Herr general Wimpfen, le comte de Langeron, le prince de Lichtenstein, le prince de Hohenlohe et enfin Prsch... Prsch... et ainsi de suite, comme tous le noms polonais.63
— Taisez-vous, mauvaise langue 64 — disse Dolgorúkov. — Não é verdade, agora já há dois russos: Milorádovitch e Dokhtúrov, e ainda haveria um terceiro, o conde Araktchéiev, mas ele tem os nervos fracos.
— Acho que agora Mikhail Ilariónovitch65 saiu — disse o príncipe Andrei. — Desejo felicidade e sucesso aos senhores — acrescentou e saiu, depois de apertar a mão de Dolgorúkov e de Bilíbin.
No caminho de volta, o príncipe Andrei não conseguiu se conter e perguntou ao silencioso Kutúzov, sentado a seu lado: o que ele pensava sobre a batalha do dia seguinte?
Kutúzov fitou o seu ajudante de ordens com ar severo e, após um instante de silêncio, respondeu:
— Acho que perderemos a batalha, e assim disse ao conde Tolstói e pedi que o transmitisse ao soberano. E o que você acha que ele me respondeu? Eh, mon cher général, je me mêle du riz et des côtelettes, mêlez-vous des affaires de la guerre.66 Pois é... Aí está o que me responderam!
XII
Já passava das nove horas quando Weyrother apareceu com os seus planos no quartel-general de Kutúzov, onde se devia realizar o conselho de guerra. Todos os comandantes de colunas foram convocados para a reunião com o comandante em chefe e, com exceção do general Bagration, que se recusou a ir, todos se apresentaram na hora marcada.
Weyrother, o responsável absoluto pela condução da batalha, em seu entusiasmo e afobação, apresentava um contraste gritante com o sonolento e descontente Kutúzov, que de má vontade cumpria o papel de presidente e diretor do conselho de guerra. Weyrother, obviamente, sentia-se à testa de um movimento que agora já era irrefreável. Parecia um cavalo atrelado a uma carroça que vai depressa ladeira abaixo. Se ele puxava ou se era puxado, não sabia; mas corria a toda a velocidade, sem ter mais tempo de ponderar aonde aquele movimento levaria. Naquela tarde, Weyrother foi duas vezes examinar pessoalmente as linhas do inimigo e esteve duas vezes com os soberanos, o russo e o austríaco, para apresentar relatórios e informações, e também no seu escritório, onde ditou o dispositivo em alemão. Exausto, foi então ao encontro de Kutúzov.
Pelo visto, ele andava tão atarefado que esqueceu até de ser respeitoso com o comandante em chefe: interrompia-o, falava ligeiro e sem muita clareza, sem olhar para o rosto do interlocutor, sem responder as perguntas que lhe eram dirigidas, estava sujo de lama e tinha um aspecto deplorável, exausto, desnorteado e ao mesmo tempo presunçoso e orgulhoso.
Kutúzov ocupava um pequeno castelo de fidalgos perto de Ostralitz. Na grande sala, transformada em gabinete do comandante em chefe, reuniram-se: o próprio Kutúzov, Weyrother e os membros do conselho de guerra. Bebiam chá. Esperavam apenas o príncipe Bagration para começar o conselho de guerra. Depois das oito horas, chegou um ordenança de Bagration com a notícia de que o príncipe não poderia vir. O príncipe Andrei foi transmitir essa informação ao comandante em chefe e ficou na sala para presenciar o conselho, aproveitando a autorização que Kutúzov lhe dera antes.
— Como o príncipe Bagration não virá, podemos começar — disse Weyrother, levantando-se rapidamente do seu lugar e aproximando-se da mesa onde estava aberto um imenso mapa dos arredores de Brünn.
Kutúzov, num uniforme desabotoado, do qual o seu pescoço gordo emergia por cima do colarinho, como se tivesse se soltado, estava sentado numa poltrona de espaldar alto, as mãos velhas e rechonchudas colocadas simetricamente sobre os braços da poltrona, e quase dormia. Ao som da voz de Weyrother, Kutúzov abriu com esforço o seu único olho.
— Sim, sim, por favor, mas já é tarde — disse e, depois de fazer um aceno com a cabeça, baixou-a e fechou de novo o olho.
Se, de início, os membros do conselho pensaram que Kutúzov fingia dormir, os sons que ele emitia pelo nariz durante a leitura que se seguiu demonstravam que, naquele momento, para o comandante em chefe, havia uma questão muito mais importante do que o desejo de mostrar o seu desprezo pelo dispositivo ou pelo que quer que fosse: para ele, tratava-se da satisfação irresistível de uma necessidade humana — o sono. Ele estava de fato dormindo. Weyrother, com o gesto de um homem ocupado demais para perder um só minuto que fosse, lançou um olhar para Kutúzov e, convencido de que dormia, pegou a folha de papel e, num tom alto e monótono, começou a ler o dispositivo da futura batalha, sob o título, que ele também leu:
“Dispositivo para o ataque à posição inimiga atrás de Kobelnitz e Sokolnitz, 20 de novembro do ano de 1805.”
O dispositivo era muito complicado e difícil. No original, o dispositivo começava assim:
Da der Feind mit seinem linken Flügel an die mit Wald bedeckten Berge lehnt und sich mit seinem rechten Flügel längs Kobelnitz und Sokolnitz hinter die dort befindlichen Teiche zieht, wir im Gegenteil mit unserem linken Flügel seinen rechten sehr debordieren, so ist es vorteilhaft letzteren Flügel des Feindes zu attackieren, besonders wenn wir die Dörfen Sokolnitz und Kobelnitz im Besitze haben, wodurch wir dem Feind zugleich in die Flanke fallen und ihn auf der Fläche zwischen Schlapanitz und dem Turaser-Walde verfolgen können, indem wir den Defileen von Schlapanitz und Bellowitz ausweichen, welche die feindliche Front decken. Zu diesem Endzwecke ist es nötig... Die erste Kolonne marschiert... die zweite Kolonne marschiert... die dritte Kolonne marschiert...67
E assim continuou a ler Weyrother. Os generais pareciam escutar a contragosto o difícil dispositivo. O general Buxhöwden, alto e louro, estava de pé, as costas apoiadas na parede e, com os olhos fixos numa vela que ardia, parecia não escutar e até não querer que pensassem que ele escutava. Bem em frente a Weyrother, com os olhos brilhantes e arregalados cravados sobre ele, numa pose de guerra, os braços apoiados nos joelhos, com os cotovelos abertos, estava sentado o corado Milorádovitch, com os ombros e os bigodes levantados. Mantinha-se obstinadamente calado, enquanto olhava para o rosto de Weyrother, e só desviou os olhos quando o comandante do Estado-Maior austríaco se calou. Nesse momento, Milorádovitch voltou-se para os outros generais com ar significativo. No entanto, por aquele olhar significativo, era impossível saber se ele estava de acordo ou em desacordo, satisfeito ou insatisfeito, com o dispositivo. Sentado mais perto de Weyrother do que todos os demais, estava o conde Langeron e, com o sorriso sutil no seu rosto do sul da França, que não o deixou durante todo o tempo da leitura, olhava para os seus dedos finos que faziam rodar pelos cantos uma tabaqueira de ouro com um retrato. No meio de uma das frases mais longas, ele parou o movimento giratório da tabaqueira, levantou a cabeça e, com um toque de cortesia desagradável no cantinho dos lábios finos, interrompeu Weyrother e fez menção de dizer alguma coisa; mas o general austríaco, sem interromper a leitura, franziu as sobrancelhas irritado e abanou os cotovelos, como se dissesse: depois, depois o senhor me dirá suas ideias, agora tenha a bondade de observar o mapa e escutar. Langeron ergueu os olhos com uma expressão de perplexidade, virou-se para Milorádovitch como se procurasse uma explicação, mas, ao deparar com o olhar significativo de Milorádovitch, cujo significado ninguém entendia, baixou os olhos com tristeza e pôs-se de novo a rodar a tabaqueira entre os dedos.
— Une leçon de géographie 68 — exclamou ele, como se falasse consigo, mas em tom alto o bastante para que ouvissem.
Przebyszéwski, com uma cortesia respeitosa, mas digna, tinha a mão em concha por trás da orelha voltada para Weyrother, com o aspecto de um homem absorvido pela atenção. Dokhtúrov, de baixa estatura, estava sentado de frente para Weyrother, com um aspecto esforçado e modesto, e inclinado sobre o mapa aberto, estudava escrupulosamente o dispositivo e o terreno, desconhecido para ele. Pediu várias vezes que Weyrother repetisse palavras que ouvira mal e nomes difíceis de aldeias. Weyrother atendia o seu desejo, e Dokhtúrov anotava.
Quando a leitura, que demorou mais de uma hora, terminou, Langeron parou de novo de rodar a tabaqueira e, sem olhar para Weyrother, nem para nenhuma pessoa em especial, começou a dizer como seria difícil executar tal dispositivo, no qual se supunha que a posição do inimigo era conhecida, quando na realidade talvez ignorássemos aquela posição, pois o inimigo se encontrava em movimento. As objeções de Langeron eram fundamentadas, mas obviamente tinham como principal objetivo o desejo de dar ao general Weyrother, que lera o seu dispositivo com a presunção de quem se dirige a crianças numa escola, a sensação de que ele estava tratando não com imbecis, mas com pessoas capazes de também lhe dar lições sobre assuntos de guerra. Quando a voz monótona de Weyrother silenciou, Kutúzov abriu o olho, como um moleiro acorda quando se interrompe o ruído soporífero das rodas do moinho, escutou um pouco o que Langeron dizia e, como se dissesse: “Mas vocês ainda estão falando dessa bobagem?”, tratou rapidamente de fechar o olho e baixou a cabeça mais ainda.
Esforçando-se ao máximo para ferir Weyrother, e do modo mais cáustico possível, na sua vaidade militar de autor, Langeron demonstrou que Bonaparte podia facilmente atacar, em vez de ser atacado, e em consequência tornar todo aquele dispositivo completamente inútil. A todas as objeções, Weyrother respondia com um firme sorriso de desprezo, pelo visto já preparado de antemão para toda e qualquer objeção, independentemente do que lhe dissessem.
— Se pudesse nos atacar, ele o faria hoje mesmo — disse Weyrother.
— O senhor, portanto, acha que Napoleão está enfraquecido — disse Langeron.
— E muito, se tiver quarenta mil homens — respondeu Weyrother, com o sorriso de um médico a quem uma curandeira quer receitar um tratamento.
— Nesse caso, ele caminha rumo à própria destruição, ficando à espera do nosso ataque — disse Langeron, com um sorriso sutil e irônico, virando-se de novo para Milorádovitch, perto dele, em busca de apoio.
Mas, pelo visto, a coisa em que Milorádovitch menos pensava naquele momento era o assunto que os generais discutiam.
— Ma foi 69 — exclamou ele —, amanhã veremos tudo isso no campo de batalha.
Weyrother sorriu de novo com aquele sorriso que dizia que ele achava ridículo e estranho encontrar objeções de generais russos e ainda ter de provar algo de que não só ele estava mais do que convencido, como também os imperadores estavam convencidos.
— O inimigo apagou as fogueiras e se ouve um barulho ininterrupto no seu acampamento — disse ele. — O que isso significa? Ou o inimigo está se afastando, a única coisa que devemos temer, ou está mudando de posição (sorriu). Mas, mesmo que tome posição em Thuerassa, ele apenas vai nos livrar de grandes trabalhos, e todas as disposições, até os mínimos detalhes, permanecerão as mesmas.
— Como assim? — perguntou o príncipe Andrei, que havia muito esperava uma chance de expressar suas dúvidas.
Kutúzov acordou, pigarreou com dificuldade e olhou para os generais.
— Senhores, o dispositivo para amanhã, ou melhor, para hoje (pois já é mais de meia-noite), não pode ser alterado — disse. — Os senhores o ouviram e todos nós cumpriremos o nosso dever. E antes de uma batalha não há nada mais importante do que... (calou-se por um momento) dormir bem.
Fez menção de levantar-se. Os generais despediram-se com uma reverência e afastaram-se. Já passava da meia-noite. O príncipe Andrei saiu.
O conselho de guerra, no qual o príncipe Andrei não conseguiu expressar sua opinião como esperava, deixou nele uma impressão confusa e alarmada. Quem tinha razão: Dolgorúkov e Weyrother, ou Kutúzov e Langeron e outros, que não aprovavam o plano de ataque — ele não sabia. “Mas será mesmo impossível para Kutúzov expor suas ideias diretamente ao soberano? Será que é mesmo impossível agir de outro modo? Será que por motivos pessoais e da corte se deve pôr em risco a vida de dezenas de milhares de pessoas e até a minha, a minha própria vida?”, pensava.
“Sim, pode muito bem acontecer que amanhã me matem”, pensou. E de repente, diante de tal pensamento sobre a morte, sua imaginação foi assaltada por toda uma série de recordações, as mais remotas e as mais afetivas; lembrou-se da última despedida do pai e da esposa; lembrou-se dos primeiros tempos do seu amor por ela! Lembrou-se da sua gravidez e teve pena dela e de si, e num estado de ânimo agitado, nervoso e comovido, saiu da isbá onde estava com Nesvítski e pôs-se a andar na frente da casa.
A noite estava enevoada, e os raios da lua irrompiam misteriosos através da neblina. “Sim, amanhã, amanhã!”, pensava. “Amanhã, para mim, talvez tudo termine, todas essas recordações não existirão mais. Todas essas recordações não terão mais nenhum sentido para mim. Amanhã, talvez, ou com certeza, amanhã, eu pressinto isso, pela primeira vez terei de mostrar, afinal, tudo o que sou capaz de fazer.” E viu a batalha em pensamento, estavam perdendo, viu a concentração do combate num só local e a perplexidade de todos os comandantes. E pronto, aquele momento feliz, aquela Toulon que o príncipe Andrei tanto esperava enfim se apresentava a ele. Expõe com clareza e em tom firme a sua opinião para Kutúzov, para Weyrother e para os imperadores. Todos ficam impressionados com a exatidão da sua ideia, mas ninguém se incumbe de cumpri-la, e então ele mesmo assume o comando de um regimento, de uma divisão, apresenta a condição de que ninguém deve interferir nas suas ordens e conduz a sua divisão para o ponto decisivo e sozinho alcança a vitória. Mas e a morte e os sofrimentos?, pergunta uma outra voz. No entanto o príncipe Andrei não responde a essa voz e continua nas suas vitórias. O dispositivo da batalha seguinte, é ele sozinho quem determina. Tem o título apenas de ajudante de ordens de Kutúzov, mas faz tudo sozinho. A batalha seguinte, ele a vence sozinho. Kutúzov é transferido, ele é nomeado em seu lugar... Bem, e depois?, pergunta de novo a outra voz, e depois, se antes disso você não tiver sido dez vezes ferido, ou morto, ou traído; e então, e depois, o quê? “Bem, depois”, responde para si o príncipe Andrei, “eu não sei o que vai acontecer depois, não quero e não posso saber: mas se há uma coisa que eu quero, eu quero a glória, quero ser famoso entre as pessoas, quero ser amado por elas, e não tenho culpa de querer isso, de querer só isso, de viver só para isso. Sim, só para isso! Nunca vou contar isso para ninguém, não, meu Deus! O que posso fazer se não amo nada tanto como a glória, o amor das pessoas? A morte, os ferimentos, a perda da família, nada me assusta. E por mais que tantas pessoas me sejam caras e queridas — o pai, a irmã, a esposa — as pessoas mais queridas para mim —, e por mais que isso pareça terrível e contrário à natureza, abro mão de todos eles agora, em troca de um minuto de glória, de triunfo sobre as pessoas, em troca do amor de pessoas que não conheço e não vou conhecer, do amor destas pessoas aqui”, pensou, enquanto ouvia o som de vozes no pátio do alojamento de Kutúzov. No pátio de Kutúzov, ouviam-se as vozes dos ordenanças que se preparavam para dormir; uma voz, na certa do cocheiro, mexia com o velho cozinheiro de Kutúzov, que o príncipe Andrei conhecia e a quem chamavam de Tit, e dizia:
— Tit, ei, Tit?
— O quê? — respondeu o velho.
— Tit, mas que apetite — disse o gozador.
— Xô, para o diabo — irrompeu a voz, encoberta pela gargalhada dos ordenanças e dos criados.
“E no entanto eu amo e prezo só o triunfo sobre todos eles, prezo essa misteriosa força e essa glória que paira sobre mim, aqui, nesta neblina!”
XIII
Rostóv, naquela noite, estava num pelotão nas fileiras de flanco, à frente do destacamento de Bagration. Os seus hussardos estavam distribuídos em pares na linha de combate; o próprio Rostóv percorria as linhas a cavalo, tentando dominar o sono que o assaltava de modo irresistível. Atrás dele, via-se a vasta extensão das fogueiras do nosso exército, que ardiam obscurecidas pela neblina; à sua frente, havia uma escuridão enevoada. Por mais que Rostóv observasse aquele espaço enevoado, nada enxergava: ora ficava cinzento, ora algo parecia enegrecer; ora tinha a impressão de que apareciam umas luzinhas, lá onde devia estar o inimigo; ora achava que era só um brilho nos seus olhos. Os olhos fechavam e, na imaginação, surgiam ora o soberano, ora Deníssov, ora recordações de Moscou, e ele abria de novo os olhos depressa, e na sua frente, bem perto, via a cabeça e as orelhas do cavalo em que estava montado e às vezes os vultos negros dos hussardos quando Rostóv chegava a seis passos deles, mas ao longe era sempre a mesma escuridão enevoada. “Por que não? É bem possível”, pensou Rostóv, “que o soberano me encontre e me dê uma incumbência como a que daria a qualquer oficial. Vai me dizer: ‘Vá até lá e descubra o que está acontecendo’. Muita gente já me contou como o soberano conheceu um oficial qualquer por puro acaso e acabou ficando amigo dele. Quem dera ele me tivesse por amigo! Ah, como eu o protegeria, como eu lhe diria toda a verdade, como eu iria desmascarar os impostores”, e Rostóv, a fim de retratar com vivacidade para si mesmo o seu amor e a sua devoção ao soberano, imaginava um inimigo ou um traidor alemão, que ele com prazer não só matava, como também esbofeteava no rosto, diante dos olhos do soberano. De repente, um grito distante despertou Rostóv. Num sobressalto, abriu os olhos.
“Onde estou? Sim, na linha de frente: palavra de ordem e senha: tirante, Olmütz. Que pena que o nosso esquadrão, amanhã, vai ficar nas forças de reserva...”, pensou. “Vou pedir para lutar. Talvez seja a única chance de ver o imperador. Sim, agora falta pouco para a troca de turno. Vou fazer mais uma ronda e, quando voltar, falarei com o general e pedirei a ele.” Ajeitou-se sobre a sela e tocou o cavalo com as esporas para fazer mais uma ronda pelos seus hussardos. Teve a impressão de que estava mais claro. Do lado esquerdo, viu uma encosta em declive iluminada, e na frente dela um morro preto, que parecia escarpado como uma parede. No morro, havia uma mancha branca que Rostóv não conseguia entender de maneira alguma: seria uma clareira na mata, iluminada pela lua, ou neve que não derretera, ou uma casa branca? Pareceu-lhe até que algo se mexia naquela mancha branca. “Deve ser neve... essa mancha; uma mancha... une tache”,70 pensou Rostóv. “Olhe, não fure o dedo na tacha...”
“Natacha, minha irmã, olhos pretos. Na... tachka.71 (Imagine só a cara dela quando eu lhe contar que vi o soberano!) Natachka... pegue a tachka...” “Vá para a direita, vossa excelência, aqui tem umas moitas”, disse a voz de um hussardo pelo qual Rostóv passou, pegando no sono. Rostóv levantou a cabeça, que havia baixado até a crina do cavalo, e parou ao lado do hussardo. Um sono infantil, de jovem, tomava conta dele de um modo irresistível. “Sim, o que era mesmo que eu estava pensando?... Não posso esquecer. Como vou falar com o soberano? Não, não é isso... isso vai ser amanhã. Sim, sim! Natacha... o ataque... atacar... quem? Os hussardos. Os hussardos de sardas... Na rua Tvierskaia passava um hussardo de sardas, eu pensei de novo sobre ele, bem na frente da casa do Gúriev... O velho Gúriev... Eh, grande companheiro, o Deníssov! Sim, tudo isso é bobagem. O importante agora é que o soberano está aqui. Do jeito como olhou para mim, queria me dizer uma coisa, mas não se atreveu... Não, eu é que não me atrevi. Mas isso é bobagem, o importante é não esquecer que tenho de pensar naquilo. Na... tachka, a...taque, sim, sim. Está bem.” E baixou de novo a cabeça sobre o pescoço do cavalo. De repente, teve a impressão de que estavam atirando contra ele. “O quê? O quê? O que foi?... Golpeie com a espada! O quê?...”, exclamou Rostóv, acordando. No instante em que abriu os olhos, Rostóv ouviu na sua frente, lá onde estava o inimigo, gritos prolongados de milhares de vozes. Seu cavalo e o hussardo que estava ao seu lado ficaram de ouvidos alertas com aqueles gritos. No lugar de onde se ouviam os gritos, uma luzinha acendeu e apagou, depois uma outra, e por toda a linha das tropas francesas, na montanha, acenderam-se luzes, e os gritos se tornaram cada vez mais fortes. Rostóv ouvia o som de palavras francesas, mas não conseguia distingui-las. Vozes demais bradavam. Só se ouvia: aaaa! e rrrr!
— O que é isso? O que você acha? — voltou-se para o hussardo que estava ao seu lado. — É o inimigo?
O hussardo não respondeu.
— Será que você não ouviu? — perguntou Rostóv de novo, depois de esperar a resposta por bastante tempo.
— Quem vai saber, vossa excelência? — respondeu o hussardo a contragosto.
— Pelo lugar, não deve ser o inimigo? — repetiu Rostóv.
— Pode ser, e pode não ser — disse o hussardo. — Está de noite. Ei, sossega! — gritou para o seu cavalo, que se remexia debaixo dele.
O cavalo de Rostóv também estava inquieto, batia a pata na terra congelada, enquanto ouvia os barulhos e espiava as luzes. Os gritos ficavam cada vez mais fortes e se fundiam num único ronco geral, que só podia ser produzido por um exército de vários milhares de soldados. As luzes se espalhavam cada vez mais, provavelmente ao longo da linha do acampamento dos franceses. Rostóv não tinha mais vontade de dormir. Os gritos alegres, de triunfo, no exército inimigo produziram sobre ele um efeito estimulante: “Vive l’empereur, l’empereur!”.72 Rostóv agora já ouvia com clareza.
— E não estão longe... na certa, logo depois do riacho, não é? — disse para o hussardo ao seu lado.
O hussardo só deu um suspiro, sem responder, e tossiu zangado. Ao longo da linha de frente dos hussardos, ouviu-se o tropel de um cavalo a galope e de repente, do meio da neblina noturna, parecendo um enorme elefante, emergiu o vulto de um sargento hussardo.
— Vossa excelência, os generais! — disse o sargento, aproximando-se de Rostóv.
Continuando a olhar na direção das luzes e dos gritos, Rostóv seguiu com o sargento ao encontro de alguns cavaleiros que vieram à linha de frente. Um deles estava num cavalo branco. O príncipe Bagration, o príncipe Dolgorúkov e os ajudantes de ordens vieram observar o estranho aparecimento de luzes e gritos no exército inimigo. Rostóv aproximou-se de Bagration, fez a ele um breve relatório e juntou-se aos ajudantes de ordens, atento ao que os generais diziam.
— Acreditem — disse o príncipe Dolgorúkov, dirigindo-se a Bagration —, isso não passa de um truque: ele recuou e mandou que a retaguarda acendesse luzes e fizesse barulho para nos enganar.
— É pouco provável — disse Bagration. — Eu os vi ao anoitecer naquele morro; se tivessem fugido, teriam saído de lá também. Oficial — o príncipe Bagration dirigiu-se a Rostóv —, as linhas de flanco deles ainda estão lá?
— De tarde, estavam, mas agora eu não posso saber, vossa excelência. Ordene que eu vá lá com alguns hussardos — disse Rostóv.
Bagration ficou parado e, sem responder, tentou enxergar o rosto de Rostóv na neblina.
— Muito bem, vá averiguar — disse ele, depois de um breve silêncio.
— Sim, senhor.
Rostóv bateu com as esporas no cavalo, gritou chamando o sargento Fiédtchenko e mais dois hussardos, ordenou que viessem com ele e, a galope, desceram o morro na direção dos gritos, que prosseguiam. Rostóv estava contente e apavorado de ir sozinho, com três hussardos, para dentro daquela vastidão enevoada, misteriosa e perigosa, aonde ninguém tinha ido antes dele. Bagration, da elevação onde estava, gritou-lhe que não fosse além do riacho, mas Rostóv fingiu não ouvir suas palavras e, sem parar, cavalgava cada vez mais para longe, enganando-se o tempo todo, tomando arbustos por árvores e barrancos por pessoas, e o tempo todo esclarecendo os seus enganos. Depois de descer o morro a galope, ele já não via nem os nossos, nem as luzes do inimigo, mas ouvia os gritos dos franceses cada vez mais claros e mais fortes. No vale, avistou à sua frente algo parecido com um rio, mas quando chegou lá, viu que era uma estrada que passava por ali. Uma vez na estrada, freou o cavalo, indeciso: seguir pela estrada ou atravessá-la e avançar pelo campo escuro para a montanha? Seguir pela estrada, iluminada dentro da neblina, era mais seguro, porque poderia enxergar as pessoas mais depressa. “Venham atrás de mim”, exclamou, atravessou a estrada e começou a subir a montanha a galope, para o lugar onde à tarde estava um piquete dos franceses.
— Vossa excelência, lá está! — exclamou um dos hussardos atrás dele.
E antes que Rostóv tivesse tempo de enxergar alguma coisa que enegrecera de repente na neblina, uma centelha brilhou, estalou um tiro e uma bala, como que se lamentando de alguma coisa, zumbiu no alto, na neblina, e voou longe, para fora do alcance da audição. Um outro fuzil engasgou ao disparar, só uma centelha brilhou na caçoleta. Rostóv virou o cavalo e partiu para trás a galope. Ressoaram mais quatro disparos em intervalos diversos, e balas cantaram em tons diversos em algum lugar na neblina. Rostóv freou o cavalo, que havia se animado, como ele, ao som dos tiros, e continuou devagar. “Vamos, mais um, mais um, vamos!”, dizia no seu pensamento uma voz alegre. Mas não houve mais tiros.
Só quando se aproximava de Bagration, Rostóv pôs o cavalo a galope e, com a mão na pala da barretina, parou diante dele.
Dolgorúkov continuou aferrado à sua opinião de que os franceses haviam recuado e só acendiam luzes para nos enganar.
— O que isso prova? — perguntou, na hora em que Rostóv se aproximou. — Eles podiam recuar e deixar para trás alguns piquetes.
— É evidente que nem todos foram embora ainda, príncipe — disse Bagration. — Esperemos até amanhã de manhã, amanhã de manhã vamos descobrir tudo.
— Na montanha há um piquete, vossa excelência, no mesmo lugar em que estava de tarde — informou Rostóv, inclinando-se para a frente, com a mão na pala da barretina e incapaz de conter um sorriso de alegria, causado pela sua incursão e, sobretudo, pelo som das balas.
— Muito bem, muito bem — disse Bagration. — Muito obrigado, senhor oficial.
— Vossa excelência — disse Rostóv —, permita-me fazer um pedido.
— O que é?
— Amanhã o nosso esquadrão vai ficar na reserva; permita que eu peça ao senhor que me transfira para o primeiro esquadrão.
— Como se chama?
— Conde Rostóv.
— Ah, muito bem. Fique a meu lado, como ordenança.
— É o filho de Iliá Andreitch? — perguntou Dolgorúkov.
Mas Rostóv não respondeu.
— Então eu vou esperar, vossa excelência.
— Mandarei minhas ordens.
“Amanhã pode muito bem acontecer que me mandem levar uma mensagem ao soberano”, pensou Rostóv. “Deus queira.”
* * *
Os gritos e as luzes no exército inimigo se explicavam porque, na hora em que as ordens de Napoleão eram lidas nas tropas, o próprio imperador percorria a cavalo os acampamentos. Os soldados, ao reconhecer o imperador, acendiam feixes de palha e, aos gritos de “Vive l’empereur!”, corriam atrás dele. As ordens de Napoleão eram as seguintes:
Soldados!
O exército russo avança contra nós para vingar o exército austríaco de Ulm. São os mesmos batalhões que vocês desbarataram em Hollabrunn73 e que, desde então, vocês têm perseguido sem cessar até este local. As posições que ocupamos são muito fortes e, enquanto eles avançam para me cercar pela direita, deixam seu flanco exposto para mim! Soldados! Eu comandarei em pessoa os seus batalhões. Vou me manter afastado do fogo, se vocês, com a sua bravura habitual, levarem a desordem e a confusão às fileiras do inimigo; mas se a vitória se mostrar duvidosa, ainda que só por um minuto, vocês verão o seu imperador expor-se aos primeiros golpes do inimigo, porque não pode haver hesitação na vitória, sobretudo neste dia, quando o que está em jogo é a honra da infantaria francesa, tão necessária para a honra da nossa nação.
Não desfaçam as fileiras sob o pretexto de remover os feridos! Todos devem estar bem compenetrados de que é preciso vencer esses lacaios da Inglaterra, dominados por um imenso ódio contra a nossa nação. Essa vitória será a conclusão da nossa campanha e poderemos voltar para os quartéis de inverno, onde virão ao nosso encontro as novas tropas francesas, que estão se formando na França; e então a paz que eu farei será digna do nosso povo, de vocês e de mim.
Napoleão
XIV
Às cinco horas da manhã, ainda estava totalmente escuro. As tropas do centro, das reservas e do flanco direito de Bagration ainda estavam imóveis; mas, no flanco esquerdo, as colunas da infantaria, da cavalaria e da artilharia, que deviam ser as primeiras a descer das elevações para atacar o flanco direito dos franceses e, segundo o dispositivo, rechaçá-lo para os montes da Boêmia, já começavam a se movimentar e levantavam seus acampamentos noturnos. A fumaça das fogueiras, em que os soldados lançavam tudo o que era supérfluo, fazia os olhos arderem. Estava frio e escuro. Os oficiais tomavam chá e comiam o desjejum às pressas, os soldados roíam pão seco, batiam com os pés no chão como um rufo de tambor para se esquentar e agrupavam-se perto das fogueiras, lançando na lenha os restos das barracas, cadeiras, mesas, rodas, barris, tudo o que era supérfluo, tudo o que era impossível carregar. Os comandantes de coluna austríacos iam e vinham no meio das tropas russas e serviam como arautos da ordem de marchar. Assim que surgia um oficial austríaco perto da barraca de um comandante de regimento, o regimento começava a se movimentar: os soldados afastavam-se das fogueiras correndo, escondiam cachimbos no cano das botas, colocavam as bolsas nas carretas, preparavam os fuzis e punham-se em forma. Os oficiais abotoavam os uniformes, afivelavam as espadas e as mochilas e, gritando, percorriam as fileiras; os carreteiros e os ordenanças atrelavam os animais, carregavam e amarravam as carretas. Os ajudantes de ordens, os comandantes de regimento e de batalhão montavam em seus cavalos, benziam-se, davam as últimas ordens, instruções e incumbências aos carreteiros que ficaram para trás, e ressoava o tropel monótono de milhares de pés. As colunas moviam-se sem saber para onde e também, por causa das pessoas em volta e por causa da fumaça e da neblina, que ficara mais pesada, sem enxergar nem o terreno de onde estavam saindo, nem aquele para onde estavam indo.
Um soldado em marcha é rodeado, limitado e arrastado pelo seu regimento, assim como um marinheiro pelo navio em que se encontra. Por mais longe que vá, por mais estranhas, desconhecidas e perigosas as regiões onde ele se embrenhe, à sua volta — como para um marinheiro sempre e em toda parte há o mesmo convés, os mesmos mastros e as mesmas cordas do seu navio —, sempre e em toda parte estarão os mesmos camaradas, as mesmas fileiras, o mesmo suboficial Ivan Mítritch, o mesmo cachorro do regimento, os mesmos comandantes. O soldado raramente quer saber do lugar em que se encontra todo o seu navio; mas no dia da batalha, só Deus sabe como e por quê, no mundo moral da tropa se ouve uma nota, severa para todos, que soa como a aproximação de algo decisivo e solene e que desperta uma curiosidade estranha a eles. No dia da batalha, os soldados tentam ansiosamente ir além dos interesses do seu regimento, escutam, olham e indagam com avidez sobre o que está acontecendo à sua volta.
A neblina ficou tão forte que, apesar de já estar amanhecendo, não se enxergava nada a dez passos de distância. Os arbustos pareciam árvores imensas, locais planos pareciam barrancos e ladeiras. Em toda parte, de todos os lados, era possível esbarrar com um inimigo que não se via a dez passos de distância. Mas as colunas caminharam por muito tempo naquela mesma neblina, descendo e subindo montes, evitando jardins e cercas, por um terreno novo e desconhecido, sem esbarrar com o inimigo em parte alguma. Ao contrário, ora na frente, ora atrás, de todos os lados, os soldados se davam conta de que outras colunas russas andavam na mesma direção. Todos os soldados ficavam contentes de saber que, para lá aonde estavam indo, ou seja, um lugar desconhecido, também iam muitos e muitos dos nossos.
— Olhe, os de Kursk também estão indo — diziam nas fileiras.
— É um espanto, meu irmão, quantas tropas nossas se juntaram! De noite eu vi, quando acenderam as fogueiras, nem dava para enxergar o fim. Uma Moscou, igualzinho!
Embora nenhum dos comandantes de coluna se aproximasse das fileiras ou falasse com os soldados (os comandantes de coluna, como vimos no conselho de guerra, estavam descontentes e partiam para a batalha a contragosto, e por isso apenas cumpriam as ordens, sem se preocupar em animar os soldados), apesar disso os soldados marchavam alegres, como sempre, quando iam para a batalha, em especial quando atacavam. Porém, depois de mais ou menos uma hora sempre numa densa neblina, a maior parte das tropas teve de parar, e espalhou-se pelas fileiras a desagradável consciência de uma desordem e de uma estupidez. De que forma se transmitiu essa consciência, é muito difícil determinar; porém, sem dúvida, aquilo que se transmitiu derramou-se depressa, com uma segurança fora do comum, de modo imperceptível e irresistível, como a água num vale. Se as tropas russas estivessem sozinhas, sem os aliados, talvez ainda se passasse muito mais tempo até que aquela consciência da desordem se transformasse numa certeza geral; mas agora, atribuindo aos estúpidos alemães, com especial prazer e naturalidade, a causa da desordem, todos estavam convencidos de que ocorria uma confusão perigosa, provocada por aqueles salsicheiros.
— Pararam por quê? Barraram o caminho? Ou já toparam com os franceses?
— Não, nem se ouve nada. Senão estavam atirando.
— Veja só, afobaram tanto para a gente avançar, e a gente avançou, para agora a gente ficar perdido no meio do campo... todos os malditos alemães só sabem fazer confusão. Diabo de gente estúpida!
— Pois é, se fosse eu, mandava essa gente logo para o front. Em vez disso, ficam amontoados lá atrás. E olhe só, agora a gente nem tem o que comer.
— Puxa, será que isso vai demorar? Dizem que a cavalaria bloqueou o caminho — falou um oficial.
— Eh, malditos alemães, não conhecem nem a própria terra — disse um outro.
— Vocês são de que divisão? — gritou um ajudante de ordens que se aproximou.
— Décima oitava.
— Mas então por que estão aqui? Há muito tempo que tinham de estar lá na frente, agora não vão chegar antes da noite.
— Olhe só que ordens mais idiotas; nem eles mesmos sabem o que estão fazendo — disse o oficial, e afastou-se.
Depois passou um general e, irritado, gritou algo em russo.
— Tafa-lafa, sei lá o que ele ficou resmungando, não dá para saber — disse um soldado, arremedando o general que se afastara. — Bem que eu queria dar um tiro neles, os canalhas!
— A ordem era a gente estar no local antes das nove horas, mas até agora não fizemos nem a metade do caminho. Isso é que são ordens! — repetiram de vários lados.
E o sentimento de energia com que as tropas partiram para a batalha começou a transformar-se em desgosto e raiva das ordens ineptas e dos alemães.
A causa da confusão residia em que, na hora da movimentação da cavalaria austríaca, que seguia no flanco esquerdo, o alto-comando achou que o nosso centro estava distante demais do flanco direito, e a cavalaria inteira recebeu ordem de passar para o lado direito. Milhares de cavalarianos passaram à frente da infantaria, que teve de esperar.
Na linha de frente, houve uma desavença entre um comandante de coluna austríaco e um general russo. O general russo gritava, exigindo que a cavalaria fosse detida; o austríaco mostrava que o culpado não era ele, mas o alto-comando. Enquanto isso, as tropas estavam paradas, aborreciam-se e perdiam o ânimo. Depois de uma hora de espera, as tropas enfim se moveram para a frente e começaram a descer um morro. A neblina, que se dispersava no morro, ficava ainda mais densa na parte baixa, para onde as tropas desciam. Na frente, na neblina, ressoou um tiro, e mais outro, de início sem ritmo, a intervalos irregulares: tratá... tat, e depois cada vez mais ritmados e mais constantes, e começou a batalha às margens do riacho Goldbach.
Como não contavam encontrar o inimigo lá embaixo, à beira do riacho, e toparam com ele por acaso no meio da neblina, sem ouvir uma palavra de incentivo dos superiores, com a consciência, disseminada pelas tropas, de que haviam se atrasado, e sobretudo sem enxergar nada em frente nem em volta na neblina espessa, os russos trocaram tiros com o inimigo de forma preguiçosa e lenta, moviam-se para a frente e paravam de novo, sem receber as ordens devidas, nem dos superiores, nem dos ajudantes de ordens, que vagavam na neblina, num terreno desconhecido, sem encontrar a sua parte das tropas. Assim teve início a batalha para a primeira, a segunda e a terceira colunas, que haviam descido. A quarta coluna, na qual estava Kutúzov, ficou estacionada no topo do monte Pratzen.
Embaixo, onde a batalha estava começando, a neblina continuava densa, na parte alta já estava claro, mas ainda não se enxergava nada do que acontecia à frente deles. Será que todas as forças do inimigo estavam a dez verstas de nós, como supúnhamos, ou não estaria o inimigo ali mesmo, naquela linha de neblina? Ninguém sabia, até as nove horas.
Agora, eram nove horas da manhã. A neblina se alastrava lá embaixo, como um mar contínuo, mas na aldeia de Schlapanitz, no alto, onde estava Napoleão, rodeado pelos seus marechais, estava totalmente claro. Acima dele, estava o céu brilhante, azul, e a imensa esfera do sol, como uma imensa boia oca e muito vermelha, ondulava na superfície de um leitoso mar de neblina. Não só todas as tropas francesas como o próprio Napoleão e o seu Estado-Maior estavam, não do lado onde ficavam os riachos e as terras baixas das aldeias de Sokolnitz e Schlapanitz, para além das quais nós pretendíamos tomar posição e começar a batalha, mas sim do lado de cá, tão perto das nossas tropas que Napoleão conseguia, a olho nu, distinguir a cavalaria da infantaria nas nossas tropas. Napoleão estava um pouco à frente dos seus marechais, num pequeno cavalo árabe cinzento, com uma túnica azul, a mesma em que fizera a campanha da Itália. Observava calado as colinas que pareciam emergir do mar de neblina, e nas quais ao longe se moviam as tropas russas, e escutava com atenção o som do tiroteio no vale. Naquela hora, ainda não se movera nenhum músculo no seu rosto magro; os olhos brilhantes estavam imóveis, concentrados num ponto. Suas hipóteses se revelaram corretas. As tropas russas, em parte, já haviam descido para o vale, rumo aos poços e lagos, e em parte deixavam o monte Pratzen, que ele planejava atacar e considerava uma posição-chave. Napoleão via, no meio da neblina, como as colunas russas, todas na mesma direção, moviam-se rumo aos vales, numa depressão formada entre dois morros, junto à aldeia de Pratzen, e uma após a outra, com as baionetas rebrilhando, desapareciam no mar de neblina. Pelas informações recebidas por ele na véspera, pelo barulho das rodas e dos passos ouvidos durante a noite nos postos avançados, pela desordem dos movimentos das colunas russas, por todas as hipóteses, Napoleão via claramente que os aliados julgavam que ele estava distante e à frente, via que as colunas que se deslocavam perto de Pratzen constituíam o centro do exército russo e que o centro já estava bastante enfraquecido para atacá-lo com êxito. No entanto ele ainda não queria dar início à batalha.
Para Napoleão, aquele era um dia solene — o aniversário da sua coroação. Antes de amanhecer, ele cochilara por algumas horas e, saudável, alegre, rejuvenescido, naquele estado de ânimo feliz em que tudo parece possível e tudo dá certo, montou o cavalo e foi para o campo. Ficou imóvel, olhando para os cumes que se viam acima da neblina e, no seu rosto frio, havia aquela coloração especial da autoconfiança, da felicidade merecida, que há no rosto dos apaixonados e de um menino feliz. Os marechais estavam atrás dele e não se atreviam a distrair sua atenção. Ele olhava ora para o monte Pratzen, ora para o sol, que emergia da neblina.
Quando o sol saiu completamente de dentro da neblina e jorrou um brilho ofuscante sobre os campos e a neblina (como se ele estivesse apenas esperando isso para o começo da batalha), Napoleão tirou a luva da bela mão branca, fez com ela um sinal para os marechais e deu a ordem de começar a batalha. Os marechais, acompanhados pelos ajudantes de ordens, partiram a galope em várias direções e, após alguns minutos, as forças principais do exército francês puseram-se rapidamente em movimento, rumo ao monte Pratzen, que as tropas russas deixavam cada vez mais vazio, descendo à esquerda para o vale.
XV
Às oito horas, Kutúzov partiu a cavalo para Pratzen, à frente da quarta coluna, a de Milorádovitch, aquela que devia tomar o lugar da coluna de Przebyszéwski e da coluna de Langeron, que já tinham descido para o vale. Kutúzov saudou os soldados do regimento que seguia na frente e deu ordem de marchar, mostrando com isso que ele mesmo tencionava comandar aquela coluna. Ao chegar à aldeia de Pratzen, ele parou. O príncipe Andrei, incorporado à enorme quantidade de pessoas que formavam a comitiva do comandante em chefe, estava ao seu lado. O príncipe Andrei sentia-se emocionado, exasperado e ao mesmo tempo controladamente calmo, como fica uma pessoa na hora em que chega um momento há muito desejado. Estava firmemente convencido de que aquele era o dia da sua Toulon, ou da sua ponte de Arcola. Como aquilo aconteceria, ele não sabia, mas estava firmemente convencido de que seria assim. A localização e a posição das nossas tropas eram conhecidas por ele até onde podiam ser conhecidas por quem quer que fosse em nossas tropas. O seu plano estratégico pessoal, que agora, obviamente, era impossível até pensar em pôr em prática, estava esquecido. Agora, já integrado ao plano de Weyrother, o príncipe Andrei ponderava sobre os acasos que podiam acontecer e fazia novas conjeturas, capazes de pôr à prova a sua rapidez de compreensão e de decisão.
À esquerda, embaixo, na neblina, ouvia-se um tiroteio entre tropas invisíveis. Parecia ao príncipe Andrei que ali se concentraria a batalha, ali se encontrava um obstáculo, e “para lá eu serei enviado”, pensava ele, “com uma brigada ou uma divisão, e lá, com uma bandeira na mão, eu vou avançar e derrubar tudo o que surgir na minha frente”.
O príncipe Andrei não conseguia olhar com indiferença para as bandeiras dos batalhões que passavam. Ao olhar para uma bandeira, não parava de pensar: quem sabe será essa mesma a bandeira com que terei de marchar à frente das tropas?
A neblina noturna, pela manhã, deixara no alto dos morros apenas uma geada, que ia se transformando em orvalho; já nos vales, a neblina se alastrava ainda como um mar leitoso e branco. Nada se enxergava no vale à esquerda, aonde as nossas tropas haviam descido e de onde subiam os sons do tiroteio. Acima dos cumes, estava o céu meio claro, meio escuro, e à direita a imensa esfera do sol. À frente, ao longe, na margem do mar de neblina, viam-se os cumes que se destacavam cobertos de mata, onde deveria estar o exército inimigo e onde se avistava alguma coisa. À direita, a guarda adentrava nos domínios da neblina, as rodas e o tropel ressoavam, e de vez em quando as baionetas rebrilhavam; à esquerda, por trás da aldeia, massas de cavalaria iguais àquela chegavam ao mar de neblina e desapareciam. À frente e atrás, a infantaria se deslocava. O comandante em chefe estava parado na saída da aldeia, vendo as tropas passarem à sua frente. Kutúzov, naquela manhã, parecia exausto e irritadiço. Ao passar na sua frente, a infantaria parou sem receber ordem, obviamente porque algo, na frente, a deteve.
— Vamos, diga logo para eles formarem em colunas de batalhões e marcharem em volta da aldeia — disse Kutúzov, irritado, para um general que se aproximara. — Prezado senhor, como vossa excelência não compreende que não é possível se estender assim num desfile pelas ruas de uma aldeia, quando estamos marchando contra o inimigo?
— Eu pretendia pôr as tropas em forma atrás da aldeia, vossa excelentíssima — respondeu o general.
Kutúzov soltou um riso raivoso.
— Belo papel fará o senhor, abrindo o nosso front à vista do inimigo, muito bom.
— O inimigo ainda está longe, vossa excelentíssima. Segundo o dispositivo...
— O dispositivo! — exclamou Kutúzov, com raiva. — E quem foi que falou disso com o senhor?... Tenha a bondade de fazer o que lhe ordenam.
— Sim, senhor.
— Mon cher — disse Nesvítski num sussurro para o príncipe Andrei. — Le vieux est d’une humeur de chien.74
Um oficial austríaco, com um penacho verde no chapéu e uniforme branco, veio a galope até Kutúzov e perguntou da parte do imperador: a quarta coluna havia entrado na batalha?
Kutúzov, sem responder, deu-lhe as costas, e seu olhar bateu por acaso no príncipe Andrei, que estava a seu lado. Ao ver Bolkónski, Kutúzov suavizou a expressão raivosa e mordaz do seu olhar, como que tomando consciência de que o seu ajudante de ordens não tinha culpa do que estava acontecendo. E, sem responder ao ajudante de ordens austríaco, voltou-se para Bolkónski:
— Allez voir, mon cher, si la troisième division a dépassé le village. Dites-lui de s’arrêter et d’attendre mes ordres.75
Mal o príncipe Andrei começou a se afastar, ele o deteve.
— Et demandez-lui, si les tirailleurs son postés — acrescentou. — Ce qu’ils font, ce qu’ils font! 76 — exclamou consigo, ainda sem responder ao oficial austríaco.
O príncipe Andrei partiu a galope para cumprir a ordem.
Depois de ultrapassar todos os batalhões que seguiam na frente, parou na terceira divisão e se convenceu de que, de fato, não havia uma linha de atiradores na frente das nossas colunas. O comandante à frente do regimento ficou muito admirado de receber do comandante em chefe a ordem de formar uma linha de atiradores. O comandante do regimento estava ali na plena convicção de que havia outras tropas russas à sua frente e que o inimigo não podia estar a menos de dez verstas. Na verdade, não se enxergava nada à sua frente, exceto um terreno vazio, que se inclinava em declive, encoberto pela densa neblina. Após dar as ordens, em nome do comandante em chefe, de corrigir aquelas falhas, o príncipe Andrei voltou a galope. Kutúzov continuava no mesmo lugar e, com seu corpo obeso de velho largado sobre a sela, bocejava longamente, de olhos fechados. As tropas já não se moviam, estavam em posição de descansar armas.
— Muito bem, muito bem — disse para o príncipe Andrei, e voltou-se para o general que, com o relógio na mão, dizia que já era hora de se pôr em movimento, pois todas as colunas do flanco esquerdo já haviam descido.
— Vamos esperar mais um pouco, vossa excelência — disse Kutúzov, no meio de um bocejo. — Vamos esperar! — repetiu.
Naquele momento, atrás de Kutúzov, ouviram-se ao longe os sons de saudações que partiam dos regimentos, e aquelas vozes começaram a se aproximar rapidamente, ao longo de toda a extensa linha das colunas russas que avançavam. Estava claro que aquele a quem saudavam cavalgava ligeiro. Quando os soldados do regimento à frente do qual estava Kutúzov começaram a gritar, ele se afastou um pouco para o lado e lançou um olhar à sua volta, com as sobrancelhas franzidas. Pela estrada que vinha de Pratzen, galopava uma espécie de esquadrão de cavaleiros em roupas coloridas. Dois deles vinham lado a lado num galope mais forte, à frente dos demais. Um estava de uniforme preto com um penacho branco, num cavalo alazão de rabo curto, o outro, de uniforme branco, num cavalo murzelo. Eram os dois imperadores com a comitiva. Kutúzov, afetando ares de um veterano no front, ordenou “sentido” às tropas que estavam em posição de descansar e, com uma saudação, aproximou-se do imperador. Todo o seu aspecto e a sua maneira modificaram-se de repente. Tomou o ar de um homem subserviente, que não raciocina. Afetando um respeito que obviamente causou uma impressão desagradável no imperador Alexandre, Kutúzov se aproximou e saudou-o.
A impressão desagradável, tal como um resto de neblina no céu claro, passou depressa pelo rosto jovem e feliz do imperador e desapareceu. Depois do seu mal-estar, ele estava um pouco mais magro naquele dia do que no campo de Olmütz, onde o príncipe Bolkónski o vira pela primeira vez no exterior; mas havia, em seus lindos olhos cinzentos, a mesma mistura encantadora de majestade e doçura, e nos lábios finos, a mesma possibilidade de expressões variadas e a mesma expressão predominante de bondade e de juventude inocente.
Na revista de tropas em Olmütz, ele estava mais majestoso; aqui, estava mais alegre e enérgico. Ficara um pouco vermelho após galopar aquelas três verstas e, depois de frear o cavalo, soltou um suspiro de alívio e olhou em volta para os rostos da sua comitiva, jovens e animados como o seu. Czartoryski, Novossíltsev, o príncipe Volkónski, Strógonov e os outros, todos em trajes de gala, alegres, jovens, em cavalos bonitos, bem tratados, descansados, apenas um pouco suados, conversando e sorrindo uns para os outros, pararam ao lado do soberano. O imperador Francisco, homem jovem, de rosto comprido e corado, montava, com o tronco extraordinariamente ereto, um belo garanhão murzelo e olhava à sua volta, com ar preocupado e sem afobação. Chamou um de seus ajudantes de ordens de uniforme branco e perguntou algo. “Na certa, a que horas partiram”, pensou o príncipe Andrei, observando o seu velho conhecido com um sorriso que não conseguiu conter, enquanto lembrava a audiência com o imperador austríaco. Na comitiva dos imperadores, estavam garbosos ordenanças russos e austríacos selecionados da guarda e dos regimentos do Exército. Entre eles, cavalariços conduziam os belos cavalos de reserva do tsar, cobertos com xairéis bordados.
Como se através de uma janela aberta num quarto abafado soprasse de repente um ar fresco do campo, assim também soprou, no abatido Estado-Maior de Kutúzov, a mocidade, a energia e a convicção da vitória que vinham daquela juventude radiosa que chegara a galope.
— Mas, então, por que o senhor não começa, Mikhail Ilariónovitch? — perguntou o imperador Alexandre, apressado, para Kutúzov, e ao mesmo tempo lançou um olhar respeitoso para o imperador Francisco.
— Estou esperando, vossa majestade — respondeu Kutúzov, e curvou-se respeitosamente.
O imperador inclinou a orelha, franzindo as sobrancelhas de leve, dando a entender que não tinha ouvido bem.
— Estou esperando, vossa majestade — repetiu Kutúzov (o príncipe Andrei notou que o lábio superior de Kutúzov tremia de uma forma anormal, na hora em que disse aquele estou esperando). — Nem todas as colunas estão reunidas, vossa majestade.
O soberano compreendeu, mas a resposta, era evidente, não lhe agradou; encolheu os ombros encurvados, lançou um olhar para Novossíltsev, ao seu lado, como que se queixando de Kutúzov com aquele olhar.
— Afinal, não estamos no Prado Tsarítsin, Mikhail Ilariónovitch, onde a parada não começa enquanto não chegam todos os regimentos — disse o soberano, e de novo mirou de relance os olhos do imperador Francisco, como se o convidasse, se não a tomar parte, ao menos a escutar aquilo que ele dizia; mas o imperador Francisco, sempre olhando para os lados, não lhe dava atenção.
— É por isso mesmo que não começo, soberano — disse Kutúzov, com voz sonora, como que se prevenindo da possibilidade de não ser ouvido, e no seu rosto algo tremeu de novo. — É por isso mesmo que não começo, soberano, porque não estamos numa parada, nem no Prado Tsarítsin — declarou de modo claro e nítido.
Na comitiva do soberano, em todos os rostos, que se entreolharam por um instante, exprimiu-se um descontentamento e uma recriminação. “Por mais que ele seja um velho, não devia, não devia de maneira alguma falar assim”, exprimiam aqueles rostos.
O soberano fitou Kutúzov nos olhos, com atenção e fixamente, esperando que ele falasse mais alguma coisa. Mas Kutúzov, por sua vez, depois de curvar a cabeça respeitosamente, também parecia esperar. O silêncio se prolongou cerca de um minuto.
— No entanto, se vossa majestade está ordenando — disse Kutúzov, levantando a cabeça e de novo mudando de tom, para aquele tom de antes, de um general obtuso, que não raciocina, mas obedece.
Tocou no seu cavalo com os calcanhares, chamou o comandante de coluna Milorádovitch e lhe deu a ordem do ataque.
As tropas começaram a se mexer outra vez, e dois batalhões do regimento de Nóvgorod e um batalhão do regimento de Ápcheron avançaram diante do soberano.
Na hora em que o batalhão do regimento de Ápcheron passou, o corado Milorádovitch, sem capote, de uniforme e com as suas medalhas, um chapéu de lado na cabeça com um imenso penacho, galopava para a frente em marcha acelerada e, com uma saudação garbosa, freou bruscamente o seu cavalo diante do soberano.
— Vá com Deus, general — disse-lhe o soberano.
— Ma foi, sire, nous ferons ce que qui sera dans notre possibilité, sire! 77 — respondeu em tom alegre, mas nem por isso deixou de provocar um sorriso zombeteiro entre os senhores da comitiva do soberano, por causa da sua pronúncia ruim do francês.
Milorádovitch deu uma guinada brusca no seu cavalo e ficou parado um pouco atrás do imperador. Os soldados de Ápcheron, comovidos com a presença do soberano, desfilaram diante do imperador e da sua comitiva em passos garbosos e decididos, batendo os pés cadenciados.
— Rapazes! — gritou Milorádovitch, com voz alta, alegre e segura de si, obviamente tão excitado pelos sons do tiroteio, pela expectativa da batalha e pelo aspecto dos bravos apcheronenses, seus velhos camaradas na campanha de Suvórov, que desfilavam com garbo diante dos imperadores, que ele se esqueceu da presença do soberano. — Rapazes, essa não é a primeira aldeia que vocês tiveram de tomar! — gritou.
— Lutaremos com alegria! — bradaram os soldados.
O cavalo do soberano empinou com o grito inesperado. Aquele cavalo, que o soberano havia montado ainda na revista de tropas na Rússia, e que ali no campo de Austerlitz levava o seu cavaleiro suportando as pancadas distraídas do seu pé esquerdo, punha em prontidão as orelhas ao som dos tiros, da mesma forma que fazia no Campo de Marte,78 sem entender o significado nem dos tiros que ouvia, nem da proximidade do cavalo murzelo do imperador Francisco, nem nada daquilo que dizia, pensava e sentia, nesse dia, a pessoa que o montava.
O soberano virou-se com um sorriso para um dos seus favoritos, apontando para os garbosos apcheronenses, e lhe disse alguma coisa.
XVI
Kutúzov, acompanhado por seus ajudantes de ordens, cavalgou a passo atrás dos carabineiros.
Depois de cavalgar meia versta no fim da coluna, ele parou numa casa abandonada e isolada (provavelmente uma antiga taberna), junto ao cruzamento de duas estradas. As duas estradas desciam o morro, e as tropas seguiam por elas.
A neblina começava a dissipar-se e, a umas duas verstas de distância, já se avistavam vagamente as tropas inimigas nas elevações à frente. Embaixo, à esquerda, o tiroteio se tornou mais audível. Kutúzov parou, conversando com um general austríaco. O príncipe Andrei, um pouco atrás, olhava para eles com atenção e virou-se para um ajudante de ordens a fim de pedir uma luneta.
— Olhe, olhe — disse o ajudante de ordens, olhando não para tropas distantes, mas sim ao pé do morro, bem à sua frente. — Aqueles são os franceses!
Os dois generais e os ajudantes de ordens quiseram agarrar a luneta e a tomavam um do outro. Todos os rostos se modificaram de repente e em todos estampou-se o horror. Supunham que os franceses estavam a duas verstas de nós, mas inesperadamente eles apareceram bem na nossa frente.
— É o inimigo?... Não!... Sim, olhe, é ele... sem dúvida... Como pode ser? — ouviam-se as vozes.
O príncipe Andrei, a olho nu, avistou embaixo, à direita, uma cerrada coluna de franceses que subia ao encontro do regimento de Ápcheron, a não mais de quinhentos passos do lugar onde estava Kutúzov.
“Aí está ele, chegou o instante decisivo! A batalha veio até mim!”, pensou o príncipe Andrei, bateu com a espora no cavalo e aproximou-se de Kutúzov.
— É preciso deter o regimento de Ápcheron, vossa excelência! — gritou ele. Mas nesse mesmo instante todos foram surpreendidos por uma fumaça, um tiroteio irrompeu ali perto, e uma voz ingênua e assustada, a dois passos do príncipe Andrei, começou a gritar: “Ai, irmãos, é o fim!”. E foi como se essa voz fosse um comando. Em obediência à voz, todos começaram a correr.
Uma multidão confusa e cada vez maior corria para trás, rumo ao local onde, cinco minutos antes, as tropas haviam desfilado diante dos imperadores. Não só era difícil deter aquela multidão como era impossível até não ser carregado para trás junto com ela.
Bolkónski apenas tentava não ser arrastado e olhava em volta, perplexo e incapaz de entender o que acontecia à sua frente. Nesvítski, com um aspecto exasperado, vermelho e irreconhecível, gritava para Kutúzov que, se ele não fugisse agora, certamente seria feito prisioneiro. Kutúzov continuava parado no mesmo lugar e, sem responder, pegou um lenço. Na sua bochecha, corria sangue. O príncipe Andrei abriu caminho à força para chegar até ele.
— O senhor está ferido? — perguntou, sem conseguir conter um tremor do maxilar inferior.
— A ferida não está aqui, mas sim lá! — disse Kutúzov, apertando o lenço na face ferida e apontando para os soldados em fuga. — Detenham-nos! — gritou, e ao mesmo tempo, provavelmente convencendo-se de que era impossível detê-los, bateu com as esporas no cavalo e partiu para a direita.
Uma nova multidão, numa enxurrada em fuga, apanhou-o de surpresa e arrastou-o para trás.
As tropas corriam numa multidão tão densa que, se alguém fosse apanhado no meio dela, seria difícil livrar-se. Um gritava: “Sai da frente! Por que está demorando?”. Outro virava para trás e atirava para o ar. Outro batia no cavalo em que o próprio Kutúzov estava montado. Depois de libertar-se da torrente da multidão com um esforço enorme para a esquerda, Kutúzov e sua comitiva, reduzida a menos do que a metade, partiram na direção de sons de tiros de artilharia, próximos dali. O príncipe Andrei desvencilhou-se da multidão em fuga e, tentando não se afastar de Kutúzov, avistou na descida do morro, na fumaça, uma bateria russa que ainda atirava e franceses que corriam na direção dela. Mais acima, estava a infantaria russa, que não se movia nem para a frente, a fim de ajudar a bateria, nem para trás, na mesma direção dos soldados em fuga. Um general a cavalo destacou-se daquela tropa de infantaria e aproximou-se de Kutúzov. Da comitiva de Kutúzov, só restavam quatro homens. Todos estavam pálidos e, calados, olhavam uns para os outros.
— Faça parar esses canalhas! — exclamou Kutúzov, arquejante, para o comandante do regimento, apontando para os soldados em fuga; porém, naquele exato instante, como que num castigo por suas palavras, balas voaram com um assovio, como um bando de passarinhos, sobre o regimento e a comitiva de Kutúzov.
Os franceses atacavam a bateria e, ao avistar Kutúzov, atiraram nele. Com aquela descarga, o comandante do regimento levou a mão à perna; alguns soldados caíram, e o porta-bandeira largou a bandeira que tinha nas mãos; a bandeira cambaleou e caiu, mas ficou agarrada nos fuzis de soldados vizinhos.
Os soldados, sem receber ordens, começaram a atirar.
— Oooh! — rosnou Kutúzov, com uma expressão de desespero, e olhou em redor. — Bolkónski — murmurou, com a voz trêmula por causa da consciência da sua fraqueza de velho. — Bolkónski — murmurou, apontando para o batalhão em desordem e para o inimigo —, o que é isso?
Mas, antes que terminasse de pronunciar essas palavras, o príncipe Andrei, sentindo as lágrimas da vergonha e da raiva subindo na sua garganta, já desmontava do cavalo com um salto e corria na direção da bandeira.
— Rapazes, em frente! — gritou ele, num tom estridente de criança.
“Aí está ela!”, pensou o príncipe Andrei, depois de apanhar o pau da bandeira, e ouviu com prazer o assovio de balas, obviamente dirigidas contra ele. Vários soldados caíram.
— Hurra! — começou a gritar o príncipe Andrei, que mal conseguia aguentar nas mãos a bandeira pesada, e correu para a frente com a convicção inabalável de que todo o batalhão ia correr atrás dele.
De fato, correu sozinho só alguns passos. Um soldado se pôs em marcha, um outro também, e o batalhão inteiro, com um grito de “hurra!”, começou a correr atrás e ultrapassou-o. O sargento do batalhão aproximou-se correndo, pegou a bandeira que, de tão pesada, oscilava nas mãos do príncipe Andrei, mas foi morto na mesma hora. O príncipe Andrei agarrou de novo a bandeira e, arrastando-a pela haste, correu junto com o batalhão. À sua frente, viu os nossos artilheiros, dos quais alguns lutavam, outros estavam abandonando os canhões e corriam ao encontro dele; viu também os soldados da infantaria francesa, que agarravam os cavalos dos artilheiros e viravam os canhões. O príncipe Andrei e o batalhão já estavam a vinte passos dos canhões. Ouvia acima de si o assovio ininterrupto das balas e, à sua direita e à sua esquerda, sem cessar, soldados gemiam e tombavam. Mas o príncipe Andrei não olhava para eles; só olhava para o que se passava à sua frente — na bateria. Já via claramente a figura de um artilheiro ruivo, com a barretina torta na cabeça, que puxava para si a ponta da vareta de limpeza de um canhão, enquanto um soldado francês puxava a vareta pela outra ponta para o lado oposto. O príncipe Andrei já enxergava claramente a expressão desnorteada e ao mesmo tempo exasperada do rosto daquelas duas pessoas, que obviamente não compreendiam o que estavam fazendo.
“O que estão fazendo?”, pensou o príncipe Andrei, olhando para eles. “Por que o artilheiro ruivo não foge, já que não tem arma nenhuma? Por que o francês não o fura? Ele não vai ter tempo de fugir, se o francês se lembrar do fuzil e o furar com a baioneta.”
De fato, um outro francês, com o fuzil em punho, veio correndo em direção aos dois que lutavam, e a sorte do artilheiro ruivo, que continuava sem entender o que o esperava e que, vitorioso, havia tomado à força a vareta do canhão, estava prestes a se decidir. Mas o príncipe Andrei não viu como aquilo terminou. Teve a impressão de que um dos soldados próximos a ele bateu na sua cabeça com toda a força, assim lhe pareceu, com um pedaço de pau. Não doeu muito, mas foi ruim sobretudo porque a dor o distraiu e o impediu de ver aquilo que estava olhando.
“O que é isso? Estou caindo? Minhas pernas estão fraquejando”, pensou, e caiu de costas. Abriu bem os olhos, na esperança de ver como tinha terminado a luta dos franceses contra o artilheiro e querendo saber se o artilheiro ruivo tinha sido morto ou não e se os canhões foram tomados ou salvos. Porém não viu nada. Acima dele, já não havia nada, senão o céu — um céu alto, não claro, mesmo assim incomensuravelmente alto, com nuvens cinzentas que deslizavam tranquilas. “Como está tranquilo, calmo e solene, muito diferente de quando eu corria”, pensou o príncipe Andrei. “Muito diferente de quando nós corríamos, gritávamos, lutávamos; completamente diferente da maneira como o francês e o artilheiro, com rostos assustados e raivosos, puxavam a vareta de limpeza do canhão um de cada lado... é de um modo completamente diferente que as nuvens deslizam por esse céu alto e infinito. Como é que antes eu não via esse céu alto? E como estou feliz, eu, que afinal descobri esse céu. Sim! Tudo é vazio, tudo é ilusão, exceto o céu infinito. Nada existe, nada, exceto ele. Mas nem isso existe, nada existe, exceto o silêncio, a tranquilidade. Graças a Deus!...”
XVII
No flanco direito, o de Bagration, às nove horas a batalha ainda não começara. Sem querer concordar com a exigência de Dolgorúkov de começar a batalha, e no intuito de livrar-se de tal responsabilidade, o príncipe Bagration sugeriu a Dolgorúkov que mandassem perguntar ao comandante em chefe. Bagration sabia que, por causa da distância de quase dez verstas que separava um flanco do outro, caso o enviado não fosse morto (o que era muito provável), e caso ele conseguisse localizar o comandante em chefe, o que era extremamente difícil, o enviado não teria tempo de voltar antes do anoitecer.
Bagration lançou um olhar para a sua comitiva, com seus olhos grandes, inexpressivos, sonolentos, e o rosto infantil de Rostóv, que, sem controle, estava à beira de desfalecer de emoção, foi o primeiro com que seus olhos toparam. Bagration enviou-o.
— E se eu encontrar sua majestade antes do comandante em chefe, vossa excelência? — disse Rostóv, com a mão na pala do chapéu.
— Pode transmitir a mensagem à sua majestade — disse Dolgorúkov, cortando às pressas a resposta de Bagration.
Como tinha sido transferido da linha de frente, Rostóv tivera tempo de dormir algumas horas antes do amanhecer e sentia-se alegre, destemido, resoluto, com aquela flexibilidade de movimentos, aquela convicção da própria felicidade e aquela disposição de ânimo em que tudo parece fácil, divertido e possível.
Todos os seus desejos se realizaram naquela manhã; aconteceu uma batalha geral, e ele estava participando dela; além disso, era ordenança do mais corajoso dos generais; e ainda mais, cavalgava com a incumbência de falar com Kutúzov e, quem sabe, com o próprio soberano. A manhã estava clara, seu cavalo era bom. Sua alma estava alegre e feliz. Após receber a incumbência, ele tocou o cavalo para a frente e galopou ao longo das linhas. De início, seguiu pela linha das tropas de Bagration, que ainda não haviam entrado em combate e estavam imóveis; depois adentrou a área ocupada pela cavalaria de Uvárov e ali já notou movimentos e sinais de preparativos para o combate; quando deixou para trás a cavalaria de Uvárov, já ouvia claramente sons de canhão e de tiros de fuzil à sua frente. O tiroteio ficava cada vez mais forte.
No ar fresco da manhã, já ressoavam tiros de canhão, não em intervalos esporádicos como antes, dois ou três de uma vez, seguidos de mais um ou dois, mas sim, pelo declive do morro à frente de Pratzen, ressoavam estrondos de tiroteios de fuzil interrompidos por disparos de canhão tão seguidos que às vezes os tiros de canhão já nem se separavam um do outro, fundiam-se num único fragor geral.
Viam-se, nas ladeiras, fumacinhas de fuzil, que pareciam correr, perseguindo-se umas às outras, e fumaças de canhão, que subiam em nuvens, alastravam-se e fundiam-se umas nas outras. Viam-se, pelo brilho das baionetas no meio da fumaça, as massas da infantaria que se deslocavam e estreitas faixas formadas pela artilharia, com suas caixas verdes de munição.
Rostóv, numa colina, parou o cavalo um instante para observar o que se passava; no entanto, por mais que forçasse a atenção, nada conseguia entender, nem distinguir, naquilo que se passava: lá, na fumaça, pessoas se moviam, barreiras de tropas se deslocavam para a frente e para trás; mas para quê? Quem? Para onde? Era impossível entender. Aquela visão e aqueles ruídos não só não despertavam em Rostóv nenhum sentimento de desânimo ou de temor como, ao contrário, lhe davam energia e determinação.
“Muito bem, mais, mais forte!”, disse Rostóv mentalmente para aqueles sons, e de novo partiu a galope pelas linhas, penetrando cada vez mais no território das tropas que já estavam em combate.
“Não sei o que vai acontecer lá, mas tudo vai dar certo!”, pensou Rostóv.
Depois de passar por algumas tropas austríacas, Rostóv notou que a parte seguinte das linhas (era a guarda) já havia entrado na batalha.
“Tanto melhor! Verei mais de perto”, pensou.
Seguia quase junto à linha de frente. Vários cavaleiros galopavam na sua direção. Eram os nossos ulanos da corte, que voltavam do ataque, em fileiras desordenadas. Rostóv esquivou-se deles, não pôde deixar de perceber que um deles estava ensanguentado e galopou adiante.
“Não tenho nada a ver com isso!”, pensou. Depois, mal teve tempo de avançar cem passos, quando à sua esquerda, cortando o caminho, surgiu em toda a extensão do campo uma imensa massa de cavalarianos, em cavalos murzelos, em reluzentes uniformes brancos, que vinha a trote bem na sua direção. Rostóv tocou o cavalo a pleno galope a fim de sair do caminho daqueles cavalarianos, e teria se esquivado deles, se tivessem continuado no mesmo passo, mas aumentaram a velocidade, tanto assim que alguns cavalos já estavam a galope. O tropel deles se fazia cada vez mais audível para Rostóv, bem como o tinido de suas armas, e eram cada vez mais visíveis os seus cavalos, as suas figuras e até os seus rostos. Era a nossa guarda de cavalaria, avançando em ataque contra a cavalaria francesa, que por sua vez vinha ao seu encontro.
Os membros da guarda de cavalaria galopavam, mas ainda continham os cavalos. Rostóv já via os seus rostos e ouvia o comando: “Marche, marche!”, proferido por um oficial que conduzia o seu cavalo puro-sangue a todo o galope. Rostóv, sob o risco de ser esmagado ou levado de roldão pelo ataque contra os franceses, galopava ao longo do front o mais rápido que seu cavalo conseguia, e mesmo assim não teve tempo de esquivar-se deles.
O cavalariano da ponta, homem bexigoso e de enorme estatura, franziu as sobrancelhas com raiva ao ver à sua frente Rostóv, com o qual iria inevitavelmente chocar-se. Aquele cavalariano da guarda teria certamente batido de cara com Rostóv e com o seu Beduíno, e teria derrubado a ambos (o próprio Rostóv teve a impressão de ser muito pequeno e fraco em comparação com aqueles homens e cavalos enormes), se Rostóv não tivesse a ideia de brandir o chicote diante dos olhos do cavalo da guarda. O cavalo murzelo, pesado, de cinco verchóki de altura,79 empinou, de orelhas abaixadas; mas o bexigoso cavalariano da guarda cravou com ímpeto em seu flanco as esporas enormes, e o cavalo, abanando o rabo e esticando o pescoço, disparou mais rápido ainda. Mal os cavalarianos haviam passado por Rostóv, quando ele ouviu o grito deles: “Hurra!”, olhou para trás e viu que as suas primeiras fileiras se embaralhavam com fileiras de cavalarianos estrangeiros, provavelmente franceses, de dragonas vermelhas. Não conseguiu ver mais nada porque, logo depois disso, de algum lugar, canhões começaram a disparar, e tudo foi envolto pela fumaça.
No instante em que os cavalarianos o ultrapassaram e sumiram na fumaça, Rostóv hesitou, sem saber se devia galopar atrás deles ou continuar para onde tinha de ir. Tratava-se do brilhante ataque da guarda da cavalaria, que surpreendeu os próprios franceses. Foi com horror que, mais tarde, Rostóv soube que de toda aquela massa enorme de jovens garbosos, de todos aqueles jovens ricos e ilustres, oficiais e junkers, em cavalos de milhares de rublos, que haviam passado por ele a galope, restaram depois do ataque apenas dezoito homens.
“Para que invejá-los? A minha chance ainda não se foi, e agora talvez eu veja o soberano!”, pensou Rostóv, e seguiu a galope.
Ao alcançar a infantaria da guarda, notou que, no meio e em volta dela, voavam balas de canhão, não tanto porque ele ouvia o barulho das balas, mas sim porque, no rosto dos soldados, ele viu uma inquietação e, no rosto dos oficiais, uma solenidade anormal, guerreira.
Quando passava por trás de uma das linhas dos regimentos da infantaria da guarda, ouviu uma voz que o chamava pelo nome.
— Rostóv!
— O que foi? — gritou ele, reconhecendo Boris.
— Veja só! Fomos parar na primeira linha! Nosso regimento partiu para o ataque! — disse Boris, sorrindo com aquele sorriso feliz que aparece nos jovens quando estão numa batalha pela primeira vez.
Rostóv parou.
— Puxa vida! — exclamou. — E aí?
— Rechaçamos! — respondeu Boris, animado, tornando-se muito falante. — Pode imaginar?
E Boris passou a contar de que modo a guarda, ao chegar à sua posição e avistar tropas à frente, pensou que eram os austríacos, e de repente, por causa das balas de canhão disparadas por aquelas tropas, a guarda se deu conta de que estava na primeira linha e, inesperadamente, teve de entrar em combate. Rostóv, sem terminar de ouvir o relato de Boris, tocou seu cavalo adiante.
— Para onde vai? — perguntou Boris.
— Levar uma mensagem para sua majestade.
— Lá está ele! — disse Boris, entendendo que Rostóv tinha de encontrar sua excelência, em vez de sua majestade.
E apontou para o grão-príncipe, que, a cem passos deles, de capacete e uniforme branco da cavalaria da guarda, ombros levantados e sobrancelhas franzidas, gritava algo para um oficial austríaco, branco e pálido.
— Mas aquele é o grão-príncipe, eu tenho de falar com o comandante em chefe ou com o soberano — disse Rostóv, e tocou seu cavalo adiante.
— Conde! Conde! — gritou Berg, tão animado quanto Boris, correndo para Rostóv pelo outro lado. — Conde, fui ferido no braço direito (disse ele, mostrando o punho ensanguentado, envolto num lenço) e fiquei no front. Conde, estou segurando a espada com a mão esquerda: na nossa família, os Von Berg, conde, todos foram cavaleiros.
Berg falou mais alguma coisa, mas Rostóv, sem escutar até o fim, continuou a galopar.
Depois de passar pela guarda e por uma área vazia, Rostóv, para não voltar a cair na primeira linha, como acontecera no caso do ataque da cavalaria da guarda, seguiu pelas linhas das tropas de reserva, contornando de longe o local onde se ouviam o tiroteio e o canhoneio mais acesos. De repente, à frente dele e atrás das nossas tropas, num local onde ele jamais poderia imaginar que estivesse o inimigo, Rostóv ouviu bem próximo um tiroteio de fuzis.
“O que pode ser isso?”, pensou Rostóv. “O inimigo na retaguarda das nossas tropas? Não pode ser”, pensou Rostóv, e de repente foi tomado pelo pavor, temeroso por si e pelo desfecho de toda a batalha. “Mas, seja lá o que for”, pensou, “agora já não posso me desviar. Tenho de procurar o comandante em chefe aqui e, se tudo estiver perdido, então é meu dever sucumbir junto com todos os outros.”
O mau pressentimento que viera a Rostóv de repente se confirmava cada vez mais, quanto mais ele penetrava numa área ocupada por uma multidão de tropas diversas, que se achavam atrás da aldeia de Pratzen.
— O que é isso? O que é isso? Em quem estão atirando? Quem está atirando? — perguntava Rostóv, ao cruzar por soldados russos e austríacos, que corriam em bandos e barravam o seu caminho.
— Só o diabo sabe! Estamos todos derrotados! Está tudo perdido! — respondiam em russo, em alemão e em tcheco os bandos em fuga, sem compreender nada do que ali se passava, exatamente como ele.
— Matem os alemães! — gritou um.
— Que o diabo os carregue... traidores.
— Zum Henker diese Russen...80 — urrou um alemão.
Vários feridos andavam pela estrada. Palavrões, gritos, lamentos fundiam-se num único rumor geral. O tiroteio silenciou, e, como Rostóv veio a saber mais tarde, os soldados russos e os austríacos haviam trocado tiros uns com os outros.
“Meu Deus! O que isso significa?”, pensou Rostóv. “E aqui, onde a qualquer minuto o soberano pode vê-los... Mas não, sem dúvida são só alguns poucos canalhas. Isso vai passar, não pode ser”, pensava ele. “Só tenho de deixá-los para trás depressa, bem depressa!”
A ideia da derrota e da fuga não podia entrar na cabeça de Rostóv. Embora estivesse vendo os canhões e as tropas francesas justamente no monte Pratzen, no mesmo lugar de onde ele fora enviado para procurar o comandante em chefe, Rostóv não conseguia e não queria acreditar naquilo.
XVIII
Rostóv recebera ordens de procurar Kutúzov e o soberano perto da aldeia de Pratzen. Mas eles não só não estavam ali, como não havia nenhum superior, apenas bandos diversos de tropas desorganizadas. Rostóv fustigava o seu cavalo já cansado para deixar para trás aqueles bandos mais rapidamente, no entanto, quanto mais ele avançava, mais desorganizados ficavam os bandos. Pela grande estrada que ele tomara, aglomeravam-se carretas e carruagens de todo tipo, soldados russos e austríacos, de todos os tipos de tropas, feridos e sem ferimentos. Tudo isso rugia e fervilhava em confusão, sob os sons sinistros de balas de canhão que partiam das baterias francesas, situadas no alto do monte Pratzen.
— Onde está o soberano? Onde está Kutúzov? — perguntava Rostóv a todos que podia deter, mas não conseguia obter uma resposta de ninguém.
Por fim, segurou um soldado pela gola do casaco e obrigou-o a responder.
— Eh! Irmão! Já faz tempo que todos se safaram na frente! — disse o soldado para Rostóv, rindo de alguma coisa e soltando-se.
Depois de deter aquele soldado, que pelo visto estava bêbado, Rostóv deteve o cavalo de um ordenança ou de um cavalariço de algum personagem importante e pôs-se a interrogá-lo. O ordenança explicou para Rostóv que, uma hora antes, tinham levado o soberano embora a toda a pressa, numa carruagem, por aquela mesma estrada, e que o soberano estava gravemente ferido.
— Não pode ser — disse Rostóv. — Na certa, é outra pessoa.
— Eu mesmo vi — disse o ordenança, com um sorrisinho cheio de si. — Já era tempo de eu saber reconhecer o soberano: já cansei de ver o soberano em Petersburgo. Pálido, todo pálido, lá foi ele dentro da carruagem. Como corria, puxado por quatro cavalos murzelos, meu caro, bem na nossa frente, fazia o maior barulho: já era tempo de eu saber reconhecer os cavalos do tsar e reconhecer o Iliá Ivánitch; afinal, o Iliá não serve de cocheiro a nenhuma outra pessoa que não seja o tsar.
Rostóv soltou o cavalo do outro e quis ir em frente. Um oficial ferido que passava dirigiu-se a ele.
— Quem é que o senhor está procurando? — perguntou o oficial. — O comandante em chefe? Foi morto por uma bala de canhão, acertou bem no peito, na frente do nosso regimento.
— Não foi morto, foi ferido — emendou um outro oficial.
— Quem? Kutúzov? — perguntou Rostóv.
— Não é Kutúzov, como é mesmo o nome dele?... Bem, dá na mesma, não sobrou muita gente viva. Vá para lá, lá naquela aldeia, todos os superiores se juntaram lá — disse o oficial, apontando para a aldeia de Hosjeradek, e foi embora.
Rostóv avançou a passo, sem saber agora para que continuar nem a quem procurar. O soberano estava ferido, a batalha fora perdida. Agora era impossível não acreditar nisso. Rostóv seguia na direção que lhe haviam indicado e na qual, ao longe, se avistavam as torres de uma igreja. Para que correr, agora? O que iria dizer ao soberano ou a Kutúzov, agora, no caso de estarem vivos e não terem sido feridos?
— É por esse caminho aqui, vossa excelência, se for direto por aí, vão matar — gritou-lhe um soldado. — Por aí, vão matar o senhor!
— Oh! O que está dizendo? — falou um outro. — Para onde ele está indo? Por aqui é mais perto.
Rostóv refletiu um pouco e seguiu na mesma direção por onde diziam que seria morto.
“Agora, tanto faz: se o soberano foi ferido, para que eu vou me poupar?”, pensou. Entrou na área em que havia morrido o maior número de homens, na fuga de Pratzen. Os franceses já não ocupavam mais aquele local, e os russos, os que estavam vivos ou feridos, tinham ido embora dali fazia tempo. Na terra, como medas de feno num bom campo lavrado, jaziam amontoados uns dez ou quinze mortos ou feridos a cada dessiatina.81 Feridos se arrastavam juntos, em pares ou em trios, e ouviam-se os seus gritos e gemidos desagradáveis, às vezes fingidos, assim parecia a Rostóv. Acelerou o galope do cavalo para não ver toda aquela gente que sofria e sentiu medo. Temia não pela sua vida, mas pela coragem que precisava ter e que, ele sabia, não iria resistir à visão daqueles infelizes.
Os franceses, que haviam parado de atirar contra aquele campo semeado de mortos e feridos por não haver ali mais ninguém vivo, ao verem um ajudante de ordens que cavalgava por aquele campo, apontaram um canhão contra ele e dispararam algumas balas. A sensação daqueles sons sibilantes e aterradores e os mortos que o rodeavam se fundiram numa sensação de terror e compaixão de si mesmo. Lembrou-se da última carta da mãe. “O que ela sentiria”, pensou ele, “se me visse agora aqui, neste campo, com canhões apontados contra mim?”
Na aldeia de Hosjeradek, havia tropas russas que haviam se retirado do campo de batalha e, embora confusas, estavam mais ordenadas. Ali, as balas de canhão francesas ainda não haviam chegado, e os sons de tiroteio pareciam distantes. Ali, todos já viam e falavam com clareza que a batalha estava perdida. Por mais que Rostóv indagasse, ninguém sabia dizer nem onde estava o soberano, nem onde estava Kutúzov. Uns diziam que o boato do ferimento do soberano era verdadeiro, outros diziam que não e explicavam a difusão daquele boato falso dizendo que, de fato, na carruagem do soberano, que havia batido em retirada do campo de batalha a galope, estava o pálido e assustado marechal da corte, conde Tolstói, que viera com outros na comitiva do imperador para o campo de batalha. Um oficial disse para Rostóv que, atrás da aldeia, à esquerda, tinha visto alguém do alto-comando, e Rostóv seguiu para lá, já sem esperança de achar quem quer que fosse, mas só por desencargo de consciência. Depois de percorrer cerca de três verstas e de passar pelas últimas tropas russas, perto de uma horta atravessada por um fosso, Rostóv avistou dois homens a cavalo parados diante do fosso. Um, de penacho branco no chapéu, por algum motivo pareceu conhecido a Rostóv; o outro, um cavaleiro desconhecido, num lindo cavalo alazão (o cavalo pareceu conhecido a Rostóv), aproximou-se do fosso, tocou as esporas no flanco do cavalo e, afrouxando as rédeas, pulou com agilidade por cima do fosso da horta. Só um pouquinho de terra se desprendeu do aterro, com o choque das patas traseiras do cavalo. Ele virou o cavalo de modo brusco, saltou de novo o fosso, de volta, e dirigiu-se respeitosamente ao cavaleiro com o penacho branco, sem dúvida sugerindo que ele fizesse o mesmo. O cavaleiro cuja figura parecia conhecida a Rostóv e que, por algum motivo, não podia deixar de prender a sua atenção, fez um gesto negativo com a cabeça e com a mão e, por aquele gesto, Rostóv reconheceu na mesma hora o seu chorado e idolatrado soberano.
“Mas não pode ser ele, sozinho no meio deste campo vazio”, pensou Rostóv. Naquele instante, Alexandre virou a cabeça, e Rostóv avistou as feições queridas, tão vivamente gravadas na sua memória. O soberano estava pálido, as faces cavadas e os olhos fundos; porém maior era o encanto e a brandura em suas feições. Rostóv ficou feliz ao se convencer de que o boato sobre o ferimento do soberano era falso. Ficou feliz ao vê-lo. Sabia que podia, e até devia, dirigir-se diretamente a ele e transmitir aquilo que Dolgorúkov havia lhe ordenado.
Porém, assim como um jovem enamorado treme e fica fascinado, sem coragem de contar aquilo que sonha à noite, e olha com medo à sua volta em busca de ajuda ou da possibilidade de um adiamento ou de uma fuga, quando chega o momento desejado e se encontra a sós com ela, assim também Rostóv, agora, ao alcançar aquilo que desejava mais que tudo no mundo, não sabia como se aproximar do soberano, e lhe vieram ao pensamento milhares de razões que tornavam aquilo incômodo, inconveniente e impossível.
“Ora essa! É como se eu ficasse contente com a chance de poder me aproveitar do fato de ele estar sozinho e abatido. Pode parecer-lhe desagradável e penoso ver uma pessoa desconhecida neste momento de dor; depois, o que posso lhe dizer agora, quando só de olhar para ele o meu coração para de bater e a boca fica seca?” Nenhuma das inúmeras frases que ele havia elaborado e, em sua imaginação, dirigia ao soberano lhe acudiam agora ao pensamento. Aquelas frases, em sua maioria, referiam-se a condições totalmente diversas, eram ditas, em sua maioria, num momento de vitória, de festa, e sobretudo no leito de morte, com ele gravemente ferido em combate, no instante em que o soberano vinha lhe agradecer o seu gesto heroico, e Rostóv, ao morrer, declarava-lhe o seu amor, demonstrado na guerra.
“E depois, para que vou perguntar ao soberano quais as suas ordens para o flanco direito, quando agora já são quatro horas da tarde, e a batalha foi perdida? Não, decididamente, não devo me aproximar dele. Não devo perturbar a sua meditação. É melhor mil vezes morrer do que receber dele um olhar ruim, uma opinião ruim”, resolveu Rostóv e, com tristeza e desespero no coração, foi embora, olhando a todo instante para trás, para o soberano, que continuava parado, na mesma atitude de indecisão.
Na hora em que Rostóv tinha esses pensamentos e se afastava com pesar do soberano, o capitão Von Toll chegava por acaso àquele mesmo local e, ao avistar o soberano, seguiu direto para ele, ofereceu-lhe os seus serviços e ajudou-o a atravessar o fosso a pé. O soberano, no intuito de repousar e sentindo-se um pouco mal, sentou-se embaixo de uma macieira, e Toll ficou ao seu lado. Rostóv, de longe, com inveja e arrependimento, viu como Toll conversou com o soberano com vagar e ardor, e como o soberano, que visivelmente tinha começado a chorar, cobriu os olhos com a mão e apertou a mão de Toll.
“E pensar que eu poderia muito bem estar no lugar dele”, refletiu Rostóv e, mal conseguindo conter as lágrimas de tristeza pelo destino do soberano, em total desespero, seguiu adiante, sem saber para onde nem para que cavalgava, agora.
Tanto maior era o seu desespero quanto mais ele sentia que sua própria fraqueza era a causa da sua desgraça.
Ele poderia... não só poderia como deveria ter se aproximado do soberano. Era uma oportunidade única para mostrar ao soberano a sua devoção. E Rostóv não a aproveitou... “O que foi que eu fiz?”, pensou. E virou o cavalo e galopou de volta para o lugar onde tinha visto o imperador; mas já não havia ninguém do outro lado do fosso. Só carroças e carruagens passavam. De um carroceiro, Rostóv soube que o Estado-Maior de Kutúzov estava ali perto, na aldeia para onde iam os comboios. Rostóv foi atrás deles.
À sua frente, caminhava o cavalariço de Kutúzov, levando cavalos de xairel, sem sela. Atrás do cavalariço, ia uma carroça e, atrás da carroça, caminhava um velho servo doméstico, de quepe, casaco de pele curto e pernas tortas.
— Tit, ei, Tit! — exclamou o cavalariço.
— O que é? — retrucou o velho, distraído.
— Tit! Controle esse apetite!
— Eh, sua besta, xô! — disse e cuspiu o velho zangado. Passou um tempo em que andaram em silêncio, e de novo repetiu-se a mesma piada.
Às cinco horas da tarde, a batalha tinha sido perdida em todos os pontos. Mais de cem canhões já se encontravam em poder dos franceses.
Przebyszéwski, com seu corpo de tropas, havia baixado as armas. Outras colunas, depois de perder cerca de metade do seu efetivo, retiravam-se em bandos desordenados e confusos.
O restante das tropas de Langeron e Dokhtúrov, misturadas, comprimia-se em torno das barragens e das margens dos açudes junto à aldeia de Auguesd.
Já passava das cinco horas e, no açude de Auguesd, ainda se ouvia um canhoneio intenso, só dos franceses, disparado por incontáveis baterias situadas na encosta do monte Pratzen e apontadas contra as nossas tropas em retirada.
Na retaguarda, Dokhtúrov e outros, reunindo batalhões, davam tiros para defender-se da cavalaria francesa, que perseguia os nossos. Começava a anoitecer. No açude estreito de Auguesd, onde por tantos anos um velho moleiro ficou sentado, tranquilo, com seu gorro e suas varas de pescar, enquanto o seu neto, com as mangas da camisa arregaçadas, observava um peixe prateado que se debatia dentro de um regador; naquele açude em que, durante tantos anos, moravianos passavam sossegadamente, em suas carroças puxadas por parelhas, carregadas de trigo, em gorros peludos e jaquetas azuis, e voltavam por aquele mesmo açude, com suas carroças brancas, polvilhadas de farinha — naquele açude estreito, agora, entre canhões e carretas militares, sob os cavalos e entre as rodas, aglomeravam-se pessoas desfiguradas pelo medo da morte, pisando-se umas às outras, morrendo, caminhando entre moribundos e matando-se umas às outras, apenas para, depois de avançarem mais alguns passos, serem mortas exatamente da mesma forma.
De dez em dez segundos, pressionando o ar, uma bala de canhão caía com um baque, ou explodia uma granada no meio daquela multidão compacta, matando e respingando de sangue os que estavam próximos. Dólokhov, a pé, ferido no braço, com uma dezena de soldados da sua companhia (ele já era oficial) e o comandante de regimento, a cavalo, representavam o que restara de todo o regimento. Empurrados pela multidão, comprimiam-se na entrada do açude e, espremidos de todos os lados, pararam porque à frente um cavalo havia caído sob um canhão, e a multidão estava empurrando o animal para fora dali. Uma bala de canhão matou alguém atrás deles, outra bala caiu na sua frente e respingou Dólokhov de sangue. A multidão avançava em desespero, comprimia-se, arrastava alguns passos e parava de novo.
“Se conseguir andar mais cem passos, na certa estarei salvo; se ficar parado mais dois minutos, na certa estarei perdido”, pensava cada um deles. Dólokhov, tolhido no meio da multidão, arremeteu para a beira do açude, derrubou dois soldados e desceu correndo pelo gelo escorregadio que recobria o tanque.
— Vire — começou a gritar, saltando pelo gelo, que estalava debaixo dele. — Vire! — gritava para o canhão. — Aguente!...
O gelo o aguentava, mas vergava e estalava, e era óbvio que iria romper-se a qualquer momento, não só sob o canhão ou sob a multidão, mas debaixo dele e mais nada. Olhavam para Dólokhov e comprimiam-se à margem, sem se resolverem ainda a avançar sobre o gelo. O comandante do regimento, que estava a cavalo junto à entrada, levantou a mão e abriu a boca, voltando-se para Dólokhov. De repente, uma das balas de canhão assoviou tão baixo acima da multidão que todos baixaram a cabeça. Algo tombou com um baque numa superfície molhada, e o general caiu do cavalo numa poça de sangue. Ninguém sequer lançou um olhar para o general, nem pensou em levantá-lo.
— Vamos para o gelo! Vamos para o gelo! Vamos! Virem! Não estão ouvindo? Vamos! — soaram várias vozes, de repente, depois que a bala de canhão derrubou o general, sem saber o que nem para que estavam gritando.
Um dos canhões de trás, que estava chegando ao açude, virou na direção do gelo. A multidão de soldados começou a correr do açude para o tanque congelado. Debaixo de um dos soldados da frente, o gelo rachou, e uma perna escapou para dentro da água; ele quis se erguer e afundou até a cintura. Os soldados mais próximos hesitaram, o cocheiro de uma carreta de artilharia deteve o seu cavalo, mas atrás dele continuaram a soar os gritos: “Vá para o gelo, por que parou, ande! Ande!”. E soaram gritos de horror na multidão. Os soldados que rodeavam o canhão acenavam para os cavalos, batiam neles, para que virassem e andassem. Os cavalos se puseram em movimento e desceram da margem. O gelo, que sustentava os homens a pé, ruiu num pedaço enorme, e cerca de quarenta homens que estavam sobre o gelo atiraram-se uns para a frente, outros para trás, afundando-se uns aos outros.
Tal como antes, balas de canhão assoviavam com regularidade e caíam com um baque sobre o gelo, dentro da água, e na maioria das vezes sobre a multidão que recobria o açude, os tanques e as margens.
XIX
No monte Pratzen, no mesmo lugar onde caíra com o pau da bandeira nas mãos, o príncipe Andrei Bolkónski jazia esvaindo-se em sangue e, sem saber, gemia num tom baixo, queixoso e infantil.
Ao anoitecer, parou de gemer e ficou quieto de todo. Não sabia quanto tempo havia durado a sua inconsciência. De repente, sentia-se vivo de novo e sofria uma ardente e lacerante dor na cabeça.
“Onde está ele, aquele céu alto que eu não conhecia até agora e que hoje descobri?”, foi o seu primeiro pensamento. “E este sofrimento, eu também não conhecia”, pensou. “Sim, eu não sabia nada, nada, até agora. Mas onde estou?”
Pôs-se a escutar e ouviu sons de um tropel de cavalos que se aproximavam e sons de vozes que falavam em francês. Abriu os olhos. Acima dele, estava de novo todo aquele céu alto, com nuvens que flutuavam e se erguiam mais alto ainda, entre as quais se via o infinito azulado. Ele não virou a cabeça e não via aqueles que, a julgar pelo som dos cascos e das vozes, haviam se aproximado e parado ali.
A cavalo, perto dele, estavam Napoleão e dois ajudantes de ordens. Bonaparte, percorrendo o campo de batalha, dava as últimas ordens para reforçar as baterias que atiravam contra o açude de Auguesd e observava os mortos e feridos deixados no campo de batalha.
— De beaux hommes! 82 — disse Napoleão, olhando para um granadeiro russo morto que, com o rosto afundado na terra e a nuca enegrecida, jazia de barriga para baixo e com o braço estirado ao máximo, já começando a endurecer de frio.
— Les munitions des pièces de position sont épuisées, sire! 83 — disse naquele momento um ajudante de ordens que chegou das baterias que atiravam contra Auguesd.
— Faites avancer celles de la réserve 84 — disse Napoleão, afastou-se alguns passos e parou perto de Andrei, que jazia de costas, com o pau da bandeira caído ao seu lado (a bandeira já fora levada pelos franceses, como troféu).
— Voilà une belle mort 85 — disse Napoleão, olhando para Bolkónski.
O príncipe Andrei entendeu que as palavras se referiam a ele e que foram ditas por Napoleão. Observou que quem falava tais palavras foi tratado de sire. Mas ouviu aquelas palavras da mesma forma como ouviria o zumbido de uma mosca. Não só não se interessou como nem se deu conta daquelas palavras e esqueceu-as imediatamente. Sua cabeça queimava; sentia que perdia sangue e via, acima, o céu distante, alto e eterno. Sabia que era Napoleão — o seu herói; mas naquele instante Napoleão lhe parecia um homem tão pequeno, insignificante, em comparação com o que se passava, agora, entre a sua alma e aquele céu alto e infinito, com nuvens que fugiam. Quem estava ao seu lado e o que falasse a seu respeito, isso era de todo indiferente para Andrei naquele instante; só estava contente porque pessoas haviam parado perto dele e só desejava que tais pessoas o ajudassem e o devolvessem à vida, que lhe parecia tão bela, pois agora ele a compreendia de um modo muito diferente. Reuniu todas as suas forças para mexer-se e emitir algum som. Moveu ligeiramente a perna e soltou um gemido fraco, dolorido, que causou pena nele próprio.
— Ah! Está vivo — disse Napoleão. — Levantem esse jovem, ce jeune homme,86 e levem para a enfermaria!
Dito isso, Napoleão seguiu adiante, ao encontro do marechal Lannes, que, sem chapéu e sorrindo, vinha a cavalo na direção do imperador, para cumprimentá-lo pela vitória.
O príncipe Andrei não notou mais nada: perdeu a consciência em razão da dor terrível causada pela sua remoção para a maca, pelos trancos durante o transporte e pelo exame do seu ferimento já na enfermaria. Só despertou no final do dia, quando, junto a outros oficiais russos feridos e capturados, foi levado para um hospital. Nessa transferência, sentiu-se um pouco mais animado e conseguiu olhar à sua volta e até falar.
As primeiras palavras que ouviu, quando voltou a si, foram de um oficial da cavalaria francesa, que falava depressa:
— Temos de parar aqui: o imperador vai passar daqui a pouco; ele vai gostar de ver estes senhores capturados.
— Tem tantos prisioneiros hoje, parece até o Exército russo inteiro, é capaz de ele já estar enjoado de ver — disse um outro oficial.
— Não interessa! Aquele ali, pelo que dizem, é o comandante de toda a guarda do imperador Alexandre — disse o primeiro, apontando para um oficial russo com o uniforme branco da cavalaria da guarda.
Bolkónski reconheceu o príncipe Repnin, que ele havia encontrado na sociedade de Petersburgo. Ao lado, estava um outro, um menino de dezenove anos, também um oficial da cavalaria da guarda, ferido.
Bonaparte, aproximando-se a galope, deteve o cavalo.
— Quem tem o posto mais alto? — perguntou, ao ver os capturados.
Chamaram o coronel, príncipe Repnin.
— O senhor é o comandante do regimento da cavalaria da guarda do imperador Alexandre? — perguntou Napoleão.
— Eu comandava um esquadrão — respondeu Repnin.
— O seu regimento cumpriu honradamente o seu dever — disse Napoleão.
— O elogio de um grande comandante é a melhor recompensa de um soldado — respondeu Repnin.
— É com satisfação que faço esse elogio ao senhor — disse Napoleão. — Quem é esse jovem ao lado do senhor?
O príncipe Repnin apresentou o tenente Sukhtiélen.
Após observá-lo, Napoleão disse, sorrindo:
— Il est venu bien jeune se frotter à nous.87
— A mocidade não impede a bravura — exclamou Sukhtiélen com voz entrecortada.
— Bela resposta — disse Napoleão. — Jovem, o senhor ainda vai longe!
O príncipe Andrei, que também fora levado para a frente, perto dos olhos do imperador, a fim de completar o troféu de prisioneiros, não pôde deixar de chamar a sua atenção. Napoleão, ao que pareceu, lembrou-se de ter visto aquele homem no campo de batalha e, dirigindo-se a ele, empregou o mesmo tratamento de jovem — jeune homme —, com o qual Bolkónski, na primeira vez, ficara gravado na sua memória.
— Et vous, jeune homme? E o senhor, jovem? — dirigiu-se a ele. — Como está se sentindo, mon brave?
Apesar de cinco minutos antes ter conseguido falar algumas palavras para os soldados que o carregavam, agora, com os olhos cravados em Napoleão, bem na sua frente, o príncipe Andrei ficou calado... Naquele momento, pareceram-lhe tão insignificantes todos os interesses que ocupavam Napoleão, tão mesquinho lhe pareceu o seu próprio herói, com aquela vaidade rasteira e sua alegria da vitória, em comparação com o céu alto, justo e bom, que ele via e compreendia — que não conseguiu responder.
Assim também tudo o mais lhe pareceu inútil e insignificante, em comparação com o pensamento austero e grandioso que o esgotamento das forças, a perda de sangue, o sofrimento e a expectativa da morte próxima haviam despertado nele. Fitando Napoleão nos olhos, o príncipe Andrei pensou na insignificância da grandeza, na insignificância da vida, cujo significado ninguém conseguia entender, e na insignificância ainda maior da morte, cujo sentido ninguém entre os vivos conseguia entender ou explicar.
O imperador, sem esperar a resposta, deu-lhe as costas e, ao afastar-se, dirigiu-se a um dos comandantes:
— Cuidem desses senhores e levem-nos para o meu acampamento; que o meu médico, o dr. Larrey, examine seus ferimentos. Até a vista, príncipe Repnin. — Tocou o cavalo com as esporas e partiu a galope.
No seu rosto havia um brilho de satisfação e felicidade.
Os soldados que carregaram o príncipe Andrei e que haviam percebido e tomado dele a imagenzinha de ouro que Mária, sua irmã, pusera em seu pescoço, ao ver a afeição com que o imperador se dirigia aos prisioneiros, rapidamente devolveram a imagenzinha.
O príncipe Andrei não viu como nem quem a colocou de novo no lugar, mas em seu peito, no meio do uniforme, de repente apareceu a imagenzinha, presa em uma fina correntinha de ouro.
“Como seria bom”, pensou o príncipe Andrei, depois de lançar um olhar para aquela imagenzinha que com tanto sentimento e veneração a irmã pendurara nele, “como seria bom se tudo fosse tão claro e tão simples como parece à princesa Mária. Como seria bom saber onde procurar ajuda nesta vida e o que esperar depois, além da morte! Como eu seria tranquilo e feliz se agora pudesse dizer: Senhor, tenha piedade de mim!... Mas para quem vou dizer isso? Para uma força indeterminada, inconcebível, à qual eu não só não posso me dirigir, como não sou sequer capaz de exprimi-la por meio de palavras, um grande todo ou o nada”, disse para si mesmo, “ou para este Deus, que está aqui, costurado neste amuleto pela princesa Mária? Nada, não há nada certo, a não ser a insignificância de tudo o que me é compreensível e a grandeza de algo incompreensível, porém mais importante!”
Carregaram as padiolas. A cada solavanco, ele sentia uma dor insuportável; o estado febril ficou mais forte, e ele começou a delirar. Os devaneios sobre o pai, a esposa, a irmã e o filho que estava para nascer, a ternura que ele havia sentido na noite da véspera da batalha, a figura do pequeno e insignificante Napoleão e, acima de tudo isso, o céu alto constituíam a matéria principal de suas visões febris.
Uma vida sossegada e tranquila de felicidade familiar em Montes Calvos surgia em seu pensamento. Ele já se deleitava com tal felicidade quando de repente aparecia o pequeno Napoleão com o seu olhar insensível, limitado e feliz com a infelicidade dos outros, e começavam as dúvidas, os tormentos, e só o céu prometia tranquilidade. Pela manhã, todos os delírios se misturaram e se fundiram num caos e nas trevas da inconsciência e do esquecimento, que na opinião do próprio Larrey, o médico de Napoleão, tinham muito mais probabilidade de terminar com a morte do que com a recuperação.
— C’est un sujet nerveux et bilieux — disse Larrey. — Il n’en rechappera pas.88
O príncipe Andrei, entre outros feridos desenganados, foi entregue aos cuidados dos habitantes locais.
1 Conselheiro de Estado era a quinta categoria de um total de onze que compunham a hierarquia do serviço público na Rússia tsarista.
2 Francês: “afinal de contas”.
3 Francês: “O senhor sabe que estou cheio de trabalho e que é por pura caridade que me ocupo do senhor, e depois o senhor sabe muito bem que isso que lhe proponho é a única coisa viável”.
4 Francês: “O senhor encontrará em minha casa a bela Hélène, a quem jamais cansamos de ver”.
5 Francês: “Espere, tenho planos para o senhor esta noite [...] Minha boa Hélène, seja caridosa com a minha pobre tia, que tem adoração pela senhora. Vá lhe fazer companhia por dez minutos”.
6 Francês: “E que porte!”.
7 Francês: “Espero que o senhor não diga mais que é aborrecido ficar em minha casa”.
8 Na cerimônia russa de casamento, os noivos eram coroados.
9 Francês: “Bem, deixo o senhor no seu cantinho. Vejo que aí o senhor está muito bem”.
10 Francês: “Dizem que o senhor está embelezando a sua casa em Petersburgo”.
11 Francês: “É bom fazer isso, mas não se mude da casa do príncipe Vassíli. É bom ter um amigo como o príncipe [...] Eu conheço um pouco desses assuntos. Não é mesmo?”.
12 Francês: “Tudo isso está muito bem, mas é preciso que termine”.
13 Apelido de Hélène.
14 Francês: “é um homem bravo e excelente, o nosso Viazmitínov”.
15 Francês: “é um excelente partido, mas a felicidade, minha querida...”.
16 Francês: “Os casamentos se fazem no céu”.
17 Francês: “Vá ver o que eles estão fazendo”.
18 Francês: “Eu amo a senhora”.
19 Francês: “Vem gente nos visitar, meu príncipe [...] Sua excelência o príncipe Kuráguin e o filho, pelo que eu soube?”.
20 Francês: “obrigada, meu pai”.
21 Francês: “Eles chegaram, Mária”.
22 Francês: “Mas, então, a senhora vai ficar como está, cara princesa? [...] Virão anunciar que aqueles senhores estão no salão; será preciso descer, e a senhora não se arrumou nem um pouco!”.
23 Francês: “minha boa amiga”.
24 Francês: Cor de berinjela, em moda na época, na França.
25 Francês: “Não, Mária, decididamente, isso não está bom. Prefiro a senhora no seu vestidinho cinza de todos os dias. Não, por favor, faça isso por mim”.
26 Francês: “Vamos lá, cara princesa [...] mais um pequeno esforço”.
27 Francês: “Não, deixem-me em paz”.
28 Francês: “Pelo menos, mude o penteado [...] Eu disse à senhora [...] Mária tem uma dessas feições em que esse penteado não fica bem. Não fica nada bem, nada bem. Mude, por favor”.
29 Francês: “Deixem-me em paz, deixem-me em paz, tudo isso não faz diferença nenhuma para mim”.
30 Francês: “A senhora vai trocar de vestido, não vai?”.
31 Francês: “Aí está Mária!”.
32 Francês: “a querida Annette?”.
33 Francês: “o mandou para o olho da rua? Oh! É a pérola das mulheres, princesa!”.
34 Francês: “senhorita de companhia”.
35 Francês: “A pequena é graciosa”.
36 Francês: “A pobre moça! Ele é diabolicamente feia”.
37 Francês: “sua pobre mãe”.
38 Francês: “minha pobre mãe”.
39 Francês: “Que delicadeza”.
40 Francês: “Não, não, não! Quando o seu pai me escrever dizendo que o senhor se porta bem, eu lhe darei minha mão para beijar. Não antes”.
41 Francês: “Não, princesa, estou para sempre perdida no coração da senhora”.
42 Francês: “Por quê? Amo a senhora mais do que nunca [...] e tentarei fazer tudo que puder para a felicidade da senhora”.
43 Francês: “Mas a senhora vai me desprezar, a senhora é tão pura, nunca vai compreender esse arrebatamento da paixão. Ah, só a minha pobre mãe...”.
44 Francês: “Eu compreendo tudo”.
45 Francês: “Ah, minha querida, minha querida [...] A sorte do meu filho está nas mãos da senhora. Decida, minha querida, minha cara, minha doce Mária, que sempre amei como minha filha”.
46 Francês: “Minha cara, direi à senhora que este é um momento que nunca esquecerei, nunca; mas, minha querida, a senhora não nos dará ao menos um pouco de esperança de tocar esse coração tão bom, tão generoso? Diga que talvez... O futuro é tão grande. Diga: talvez”.
47 Francês: “Meu bom amigo?”.
48 Francês: “A senhora é muito sabidinha, minha criança”.
49 Francês: “Está feito!”.
50 Referência ao irmão do tsar Alexandre I.
51 Boris imita a fala da babá, que ao dizer “Crianças, vão para a cama dormir” mistura o russo e o francês.
52 Instituída pela imperatriz Catarina II, em 1769, era a mais alta ordem conferida a um soldado por mérito militar e serviços de guerra.
53 Título oficial do filho do tsar.
54 Refere-se ao tsar Alexandre I.
55 Assim eram chamados os albaneses. O tsarévitche usava a expressão de forma pejorativa.
56 Francês: “cabo de esquadra”.
57 Francês: “mas não façam mal ao meu cavalinho”.
58 Tchervónetsi: moeda de ouro no valor de três rublos.
59 Imitação do francês Allez (“Anda”).
60 Francês: “Os hussardos de Pávlograd?”.
61 Francês: “A reserva, senhor!”.
62 Referência a Fabius Maximus Cunctator (275-203 a. C.), comandante militar romano, célebre por suas táticas protelatórias.
63 Francês: “O senhor general Wimpfen, o conde de Langeron, o príncipe de Lichtenstein, o príncipe de Hohenloe e enfim Prsch... Prsch... [refere-se ao general polonês Przebyszéwski], e assim por diante, como todos os nomes poloneses”.
64 Francês: “Cale-se, língua malvada”.
65 Prenome e patronímico de Kutúzov, um tratamento menos formal do que o sobrenome de família.
66 Francês: “Ora, meu caro general, eu cuido do arroz e das costeletas, cuide o senhor dos assuntos da guerra”.
67 Alemão: “Uma vez que a ala esquerda do inimigo se encontra em montes cobertos de bosques e a ala direita se espraia por Kobelnitz e Sokolnitz, para além dos alagados que há ali, ao passo que nós, por outro lado, com a nossa ala esquerda, ultrapassamos em muito a sua direita, é vantajoso atacar esta última ala do inimigo, sobretudo se ocuparmos as vilas de Sokolnitz e Kobelnitz, pois assim poderemos cair sobre o flanco inimigo e também dar perseguição ao inimigo na planície entre Schlapanitz e a floresta de Thuerassa, evitando os desfiladeiros de Schlapanitz e Bellowitz, que dão cobertura ao front do inimigo. Para tal propósito, é necessário que... A primeira coluna marche... a segunda coluna marche... a terceira coluna marche...”.
68 Francês: “Uma aula de geografia”.
69 Francês: “De fato”.
70 Francês: “uma mancha”.
71 Trocadilho com a palavra russa “tachka”: bolsinha de couro usada pelos hussardos.
72 Francês: “Viva o imperador, o imperador!”.
73 Trata-se da batalha de Schöngraben. As duas localidades eram vizinhas.
74 Francês: “Meu caro [...] o velho está com um humor de cão”.
75 Francês: “Vá ver, meu caro, se a terceira divisão ultrapassou a aldeia. Diga que parem e esperem as minhas ordens”.
76 Francês: “E pergunte se os atiradores estão em posição [...] Fazem cada coisa! Fazem cada coisa!”.
77 Francês: “Por minha fé, senhor, faremos o que estiver em nossas possibilidades, senhor!”.
78 Refere-se ao Prado Tsarítsin, em São Petersburgo, onde se realizavam desfiles militares.
79 Altura equivalente a 1,64 metro.
80 Alemão: “Enforquem esses russos...”.
81 Dessiatina: medida russa, equivalente a 1,09 hectare.
82 Francês: “Homens belos!”.
83 Francês: “As munições das peças de artilharia estão esgotadas, senhor!”.
84 Francês: “Faça avançar as da reserva”.
85 Francês: “Aí está uma bela morte”.
86 Francês: “esse jovem”.
87 Francês: “Ele é muito jovem para se meter conosco”.
88 Francês: “É uma pessoa nervosa e irritadiça [...] Ele não vai se recuperar”.