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I
No início do ano de 1806, Nikolai Rostóv voltou para casa, de licença. Deníssov também ia para casa, em Vorónej, mas Rostóv o convenceu a acompanhá-lo a Moscou e ficar em sua casa. Na penúltima estação, ao encontrar um camarada do Exército, Deníssov bebeu com ele três garrafas de vinho e, no caminho para Moscou, apesar dos buracos na estrada, não acordou, deitado no fundo do trenó puxado por cavalos de muda, junto a Rostóv, que à medida que se aproximava de Moscou ficava cada vez mais impaciente.
“Não pode ir mais depressa? Não pode ir mais depressa? Ah, que insuportáveis essas ruas, lojas, confeitarias, lampiões, coches de praça!”, pensava Rostóv, quando suas licenças já tinham sido registradas na barreira da cidade, e eles já haviam entrado em Moscou.
— Deníssov, chegamos! Está dormindo! — disse Rostóv, inclinando o corpo todo para a frente, como se esperasse, com aquela posição, acelerar o movimento do trenó. Deníssov não reagiu.
— Lá está o cruzamento onde o cocheiro de praça Zakhar faz ponto; lá está ele, o Zakhar, e aquele mesmo cavalo. Olhe lá aquela lojinha onde comprávamos pão de mel. Não pode ir mais depressa? Puxa!
— Qual é a casa? — perguntou o cocheiro.
— Lá embaixo, lá no fim, aquela grande, não está vendo? Aquela é a nossa casa — disse Rostóv. — Olhe, aquela é a nossa casa! Deníssov! Deníssov! Vamos chegar num instante.
Deníssov levantou a cabeça, tossiu e não respondeu nada.
— Dmítri — Rostóv voltou-se para o lacaio na boleia. — Aquela luz não é na nossa casa?
— Isso mesmo, tem uma luz acesa no escritório do seu pai.
— Ainda não foram dormir? Hã? O que acha? Cuide para que eu não me esqueça de pegar o casaco húngaro novo — acrescentou Rostóv, apalpando o bigode, que não tinha antes. — Puxa, vamos logo — gritou para o cocheiro. — Chega de dormir, Vássia — voltou-se para Deníssov, que baixara a cabeça outra vez. — Vamos, vamos logo com isso, vai ganhar três rublos para a vodca, vamos! — gritou Rostóv quando o trenó já estava a três casas da sua. Parecia-lhe que os cavalos não saíam do lugar. Por fim, o trenó virou à direita, na entrada da casa; acima da sua cabeça, Rostóv avistou a cornija conhecida, com o reboco quebrado, o alpendre, o pilar na calçada. Saltou do trenó ainda em movimento e correu para a porta. A casa continuava inabalável, sem alegria, como se não tivesse nada a ver com quem estava chegando. No saguão, não havia ninguém. “Meu Deus! Será que estão todos bem?”, pensou Rostóv, parando por um instante, com o coração apertado, mas logo disparou a correr adiante, pelo saguão e pelos degraus tortos da escada, seus conhecidos. A velha maçaneta da porta, cuja sujeira irritava a condessa, girou frouxa como sempre. No vestíbulo, ardia uma vela de sebo.
O velho Mikhail dormia sobre uma arca. Prokófi, o lacaio, aquele que era tão forte que erguia uma carroça pela traseira, estava sentado e trançava as beiradinhas de uma sandália de palha. Levantou os olhos na direção da porta que se abriu, e sua fisionomia indiferente, sonolenta, transformou-se de repente numa expressão de susto e entusiasmo.
— Deus do céu! O jovem conde! — gritou, ao reconhecer o jovem patrão. — Ora, vejam só! O meu querido! — E Prokófi, trêmulo de emoção, atirou-se para a porta da sala, na certa a fim de dar a notícia, mas pelo visto pensou melhor, voltou e abraçou-se ao ombro do jovem patrão.
— Estão bem? — perguntou Rostóv, desvencilhando o braço.
— Graças a Deus! Tudo bem, graças a Deus! Acabaram de jantar! Deixe-me olhar para o senhor, vossa excelência!
— Está tudo em ordem?
— Graças a Deus, graças a Deus!
Rostóv, totalmente esquecido de Deníssov, sem querer que ninguém o anunciasse, tirou a peliça e correu na ponta dos pés para a sala grande e escura. Tudo estava igual, as mesmas mesas de jogo, o mesmo lustre coberto por uma capa; mas alguém já via o jovem patrão, e ele mal teve tempo de chegar correndo à sala quando alguém, impetuosamente, como um tufão, saiu voando de uma porta lateral, abraçou-o e começou a beijá-lo. Mais alguém, e ainda uma terceira criatura, igual às outras, pularam de uma outra porta e de uma terceira; e mais abraços, mais beijos, mais gritos, lágrimas de alegria. Ele não conseguia atinar onde estava e quem era o seu pai, quem era Natacha, quem era Pétia. Todos gritavam, falavam e o beijavam ao mesmo tempo. Só a mãe não estava entre eles — isso ele percebeu.
— E eu nem sabia... Nikóluchka... meu amigo!
— Aí está ele... o nosso... Meu amigo, Kólia... Como está mudado! As velas! O chá!
— Eu também, me dê um beijo!
— Queridinho... em mim também!
Sônia, Natacha, Pétia, Anna Mikháilovna, Vera, o velho conde abraçavam-no; e os criados, que enchiam a sala, falavam e soltavam exclamações.
Pétia agarrou-se às pernas dele.
— Em mim também! — gritava.
Natacha, depois de puxá-lo para junto de si, cobriu todo o seu rosto de beijos, afastou-se um pouco do irmão com um pulinho e, segurando o seu casaco húngaro pela gola, começou a saltar como uma cabra, sem sair do lugar, enquanto soltava gritinhos estridentes.
Em todos os lados havia lágrimas brilhantes de alegria, olhos amorosos, em todos os lados havia lábios à procura de beijos.
Sônia, vermelha como um kumátch,1 também segurava no braço dele, toda radiante, numa expressão de júbilo dirigida aos olhos de Rostóv, pelos quais ela esperava. Sônia já havia completado dezesseis anos e estava muito bonita, ainda mais naquele momento de felicidade, de animação entusiasmada. Olhava para ele sem desviar os olhos, sorria e prendia a respiração. Rostóv lançou um olhar agradecido para Sônia, mas continuava a esperar e a procurar alguém. A velha condessa ainda não viera. E então ouviram-se passos na porta. Passos tão ligeiros que não podiam ser os passos da mãe.
Mas era ela, num vestido novo, que ele não conhecia, costurado em sua ausência. Todos se afastaram de Rostóv, e ele correu para a mãe. Quando se aproximaram, ela caiu no peito do filho, soluçando. Não conseguia levantar o rosto, que apenas apertava aos alamares frios do casaco húngaro de Rostóv. Deníssov, a quem ninguém dava atenção, entrou na sala, ficou parado no mesmo lugar e, olhando para eles, enxugava os olhos.
— Vassíli Deníssov, amigo do seu filho — disse ele, apresentando-se ao conde que o observava com ar interrogativo.
— Seja bem-vindo. Conheço, conheço — disse o conde, beijando e abraçando Deníssov. — Nikóluchka escreveu... Natacha, Vera, este é o Deníssov.
Os mesmos rostos felizes, entusiasmados, voltaram-se para a figura peluda de Deníssov e o rodearam.
— Meu querido Deníssov! — exclamou Natacha em voz estridente, fora de si de tanta emoção, pulou na direção dele, abraçou-o e beijou-o. Todos ficaram embaraçados com o gesto de Natacha. Deníssov também ficou vermelho, mas sorriu, segurou a mão de Natacha e beijou-a.
Levaram Deníssov para um quarto preparado para ele, enquanto todos os Rostóv se reuniram na sala de estar em torno de Nikóluchka.
A velha condessa, sem largar a mão do filho, a qual beijava a todo instante, estava sentada ao seu lado; os demais, aglomerados à sua volta, sorviam cada um de seus gestos, palavras, olhares, e não desviavam dele os olhos entusiasticamente amorosos. O irmão e a irmã discutiam e trocavam de lugar, um com o outro, no esforço de ficar mais perto de Rostóv, e brigavam para decidir quem ia trazer o chá, o lenço, o cachimbo.
Rostóv estava muito feliz com o amor que lhe demonstravam; mas o primeiro momento do encontro fora tão extasiante que a sua felicidade de agora lhe parecia pequena, e ele continuava a esperar mais alguma coisa, e mais, e mais.
Na manhã seguinte, os recém-chegados de viagem dormiram até as dez horas.
No quarto vizinho, houve um rebuliço de sabres, bolsas, sacolas, malas abertas, botas sujas. Dois pares engraxados, com esporas, foram colocados junto à parede naquele instante. Criados trouxeram lavatórios, água quente para fazer a barba e roupas limpas. Havia um cheiro de tabaco e de homens.
— Ei, Grichka, o cachimbo! — gritou Vaska Deníssov, com voz rouca. — Rostóv, levante!
Rostóv, esfregando os olhos colados, ergueu a cabeça desgrenhada do travesseiro quente.
— O que foi, já é tarde?
— É tarde, vai dar dez horas — respondeu a voz de Natacha, e no quarto vizinho ouviu-se o farfalhar de roupas engomadas, um rumor de vozes e risos de meninas, e na porta apenas entreaberta rebrilhou algo azul, fitas, cabelos negros e um rosto alegre. Era Natacha, com Sônia e Pétia, que tinham vindo saber se eles já haviam levantado.
— Nikólienka, levante! — ouviu-se de novo a voz de Natacha, na porta.
— Já vai!
Naquele momento, Pétia, no quarto principal, depois de avistar e segurar os sabres, e experimentando aquele entusiasmo que sentem os meninos quando veem o irmão mais velho de volta do Exército, e esquecido de que para as irmãs era indecente ver homens despidos, escancarou a porta.
— Este sabre é o seu? — gritou ele. As meninas afastaram-se de um salto. Deníssov, com os olhos assustados, escondeu as pernas peludas debaixo do cobertor, enquanto olhava para o lado, em busca do socorro do seu camarada. A porta deixou Pétia passar e fechou-se outra vez. Atrás da porta, soaram risos.
— Nikólienka, venha para fora de roupão — exclamou a voz de Natacha.
— Este sabre é o seu? — perguntou Pétia. — Ou é do senhor? — Com um respeito servil, voltou-se para o bigodudo e moreno Deníssov.
Rostóv calçou-se depressa, vestiu o roupão e saiu. Natacha havia calçado uma bota com esporas e estava enfiando-se na outra. Sônia estava rodando, queria fazer o seu vestido inflar e tentava ficar de cócoras, exatamente na hora em que ele saiu do quarto. As duas usavam vestidos iguais, novos, azul-claros — frescas, coradas, alegres. Sônia fugiu, mas Natacha, pegando o irmão pelo braço, levou-o para a sala de estar, e teve início uma conversa entre os dois. Nem davam tempo, um ao outro, para perguntar e responder a questões sobre milhares de coisas miúdas, que só a eles podiam interessar. Natacha ria a cada palavra que o irmão falava e que ela falava, não porque fosse engraçado o que diziam, mas porque estavam alegres, e ela não era capaz de conter sua alegria, expressa pelo riso.
— Ah, que bom, que ótimo! — exclamava ela a tudo. Rostóv sentia-se como que sob o efeito de quentes raios de amor, pela primeira vez em um ano e meio, na sua alma e no seu rosto abriu-se aquele sorriso infantil que ele não sorrira nem uma vez, desde que partira de casa.
— Não, escute — dizia Natacha. — Você agora é mesmo um homem? Estou tremendamente feliz de você ser meu irmão. — Ela tocou no bigode dele. — Eu queria saber como são vocês, os homens. São iguais a nós? Não?
— Por que a Sônia fugiu? — perguntou Rostóv.
— Pois é. É uma história muito comprida! Como você vai se dirigir à Sônia? Vai tratá-la de “você” ou de “senhora”?
— Depende — respondeu Rostóv.
— Trate-a de “senhora”, por favor, depois eu explico.
— O que é?
— Bem, vou explicar logo de uma vez. Você sabe que a Sônia é minha amiga, que eu daria o meu braço por ela. Assim, olhe só. — Arregaçou a manga de musselina e mostrou, no seu bracinho comprido, magro e meigo, muito acima do cotovelo (num lugar que fica escondido mesmo em vestidos de baile), uma cicatriz vermelha.
— Fui eu mesma que queimei, para provar a ela o meu amor. Eu só esquentei uma reguinha na chama e depois apertei aqui.
Sentado no velho cômodo onde antigamente tinha aulas, num sofá com almofadinhas entre os braços, e olhando para os olhos desvairadamente animados de Natacha, Rostóv entrou novamente naquele seu mundo familiar e infantil, que não tinha sentido nenhum para ninguém, senão para ele, mas que lhe proporcionava um dos melhores prazeres da vida; e a queimadura no braço feita com uma reguinha, como prova de amor, não lhe parecia um despropósito: ele entendia e não se admirava daquilo.
— Mas e então? Só isso? — perguntou ele.
— Puxa, somos tão amigas, tão amigas! Isso é uma bobagem, a reguinha; mas nós somos amigas para sempre. Quando ela ama alguém, é para sempre; já eu não entendo, eu esqueço logo.
— Mas o que há?
— Pois bem, é assim que ela gosta de mim e também de você. — Natacha de repente ficou vermelha. — Então, você se lembra, antes da sua partida... Ela disse que você ia esquecer aquilo tudo... Ela falou: Eu vou amar o Nikolai para sempre, mas vou deixar que ele seja livre. Não é verdade que isso é bonito, nobre? Não é, não é? Muito nobre, não é? — perguntava Natacha, com um ar tão sério e emocionado que logo se percebia que aquilo que ela dizia agora já dissera antes, com lágrimas.
Rostóv refletiu um pouco.
— Não admito faltar à minha palavra — disse ele. — Além do mais, Sônia é tão encantadora que só um imbecil recusaria tamanha felicidade.
— Não, não — gritou Natacha. — Eu e ela já falamos sobre o assunto. Sabíamos que você diria isso. Mas é impossível, porque, entenda, se você disser isso... considerar-se preso à sua palavra, o que vai acontecer é que parecerá que ela disse isso de propósito. Vai acontecer que você, apesar de tudo, vai casar com ela à força, e não pode acontecer isso.
Rostóv viu que elas haviam ponderado tudo aquilo muito bem. Sônia o impressionara pela sua beleza, já no dia anterior. E hoje, ao vê-la de passagem, ela lhe parecera ainda mais bonita. Era uma encantadora menina de dezesseis anos, que obviamente o amava com ardor (disso ele não duvidava nem por um minuto). Por que ele não haveria de amar Sônia agora, e até casar-se, pensou Rostóv, mas naquele momento havia tantas outras alegrias e interesses! “Sim, elas refletiram muito bem sobre esse assunto”, pensou ele, “é preciso continuar livre.”
— Bem, então está ótimo — disse ele. — Depois conversaremos. Ah, como estou contente de ver você! — acrescentou. — Mas e você, não traiu o Boris? — acrescentou o irmão.
— Mas que bobagem! — gritou Natacha, rindo. — Não penso nele nem em ninguém, e nem quero saber disso.
— Ora, veja só! Então, no que você está pensando?
— Eu? — perguntou Natacha, e um sorriso feliz iluminou o seu rosto. — Você viu o Duport?
— Não.
— O famoso Duport, o bailarino, não viu? Bem, então você não vai entender. É nisso que estou pensando.
Natacha curvou os braços, segurou a saia, como fazem os dançarinos, deu alguns passos de dança, girou, fez um entrechat,2 bateu os pezinhos um no outro e, parada bem na pontinha dos pés, deu alguns passos.
— Vê como eu me equilibro? Olhe só — disse ela; mas não se aguentou na pontinha dos pés. — Então é nisso que estou pensando! Nunca vou me casar com ninguém; e vou ser bailarina. Mas não conte para ninguém.
Rostóv soltou uma gargalhada tão alta e tão divertida que Deníssov, no quarto, sentiu inveja, e Natacha não conseguiu se conter, começou a rir junto com o irmão.
— Não vai ser bom? — dizia ela sem parar.
— Está bem, mas então já não quer mais casar com o Boris?
Natacha ruborizou-se.
— Não quero casar com ninguém. Eu mesma vou dizer isso para ele, quando eu o encontrar.
— Veja só! — disse Rostóv.
— Ora, puxa vida, tudo isso é bobagem — Natacha não parava de tagarelar. — E o Deníssov, ele é bom?
— Bom.
— Está bem, então até logo, vá se vestir. Ele é terrível, o Deníssov?
— Terrível, por quê? — perguntou Nicolas. — Não. Vaska é ótimo.
— Você o chama de Vaska... é estranho. Mas e então, ele é muito bom?
— Muito bom.
— Bem, venha logo tomar o chá. Todos juntos.
E Natacha ergueu-se na pontinha dos pés e saiu da sala como fazem os bailarinos, mas sorrindo como só as meninas felizes de quinze anos sorriem. Ao encontrar Sônia na sala de visitas, Rostóv ruborizou-se. Não sabia como tratá-la. No dia anterior, os dois tinham se beijado no primeiro instante de alegria, pelo reencontro, mas agora sentiam que era impossível fazer isso; Rostóv sentia que todos, a mãe e a irmã, o observavam de maneira interrogativa e aguardavam para ver como ele ia se portar com Sônia. Rostóv beijou a mão dela e tratou Sônia de “senhora”. Mas os olhos dos dois, ao se encontrarem, diziam “você” um para o outro e beijavam-se com carinho. Ela, com o olhar, pedia perdão por ter se atrevido a recordá-lo, por intermédio de Natacha, da promessa que ele fizera, e agradecia a Rostóv o seu amor. Ele, com o seu olhar, agradecia a Sônia o oferecimento da liberdade e dizia que, de toda maneira, jamais deixaria de amá-la, pois era impossível não amar.
— Mas como é esquisito — disse Vera, escolhendo um minuto de silêncio geral — que Sônia e Nikólienka, agora que se reencontraram, tratem um ao outro de “senhor” e “senhora”, como se fossem estranhos.
A observação de Vera era justa, como eram todas as suas observações; mas, como também acontecia com a maior parte de suas observações, todos ficaram embaraçados, e não apenas Sônia, Nikolai e Natacha, mas também a velha condessa, receosa de que aquele amor do filho por Sônia pudesse privá-lo de um partido mais brilhante, também ela ficou vermelha, como uma menina. Deníssov, para surpresa de Rostóv, num uniforme novo, perfumado e de cabelo empomadado, apareceu na sala de visitas com a mesma elegância com que se mostrava nas batalhas, e tão amável com as damas e com os cavalheiros como Rostóv jamais esperava vê-lo.
II
Ao voltar do Exército para Moscou, Nikolai Rostóv foi recebido pelas pessoas de sua casa como o melhor dos filhos, um herói e o querido Nikóluchka; pelos parentes, como um jovem gentil, simpático e respeitoso; pelos conhecidos, como um bonito tenente dos hussardos, um dançarino ágil e um dos melhores partidos de Moscou.
Toda a Moscou era conhecida dos Rostóv; dinheiro, naquele ano, o velho conde tinha bastante, porque havia renovado a hipoteca de todas as propriedades, e por isso Nikóluchka, montando o seu próprio cavalo trotador e vestindo calças de montaria no rigor da moda, exclusivas, como mais ninguém usava em Moscou, e calçando botas no máximo rigor da moda, com pontinhas finíssimas e esporas de prata miúdas, passava o seu tempo muito alegre. De volta para casa, Rostóv experimentava uma sensação agradável, tendo se adaptado, após certo tempo, às antigas condições de vida. Tinha a impressão de que havia crescido e se tornado um homem adulto. O desespero por ter sido reprovado na prova de catecismo, os pedidos de dinheiro emprestado a Gavrila e ao cocheiro, os beijos às escondidas com Sônia, de tudo isso ele se lembrava como se fossem criancices, das quais, agora, se achava incalculavelmente distante. Agora, ele era um tenente dos hussardos, com um dólmã prateado, condecorado com a Cruz de São Jorge, adestrava o seu cavalo trotador para as corridas, junto com corredores famosos, experientes, respeitáveis. Havia uma dama conhecida, num bulevar, a quem ele visitava à noite. Comandava a mazurca nos bailes em casa dos Arkhárov, conversava sobre a guerra com o marechal de campo Kamiénski, frequentava o Clube Inglês e tratava por “você” um coronel de quarenta anos a quem Deníssov o apresentara.
A sua paixão pelo imperador havia enfraquecido um pouco em Moscou, pois durante esse tempo ele não o viu. Porém, mesmo assim, muitas vezes falava sobre o soberano, sobre o seu amor por ele, deixando a impressão de que ainda não tinha contado tudo, de que ainda havia mais alguma coisa em seu sentimento pelo soberano que não poderia ser compreendida pelos demais; e com toda a sua alma compartilhava o sentimento geral em Moscou, naquela época, de adoração pelo imperador Alexandre Pávlovitch, que em Moscou naquela época era chamado de “anjo encarnado”.
Na curta estada de Rostóv em Moscou, até sua partida para o Exército, ele não se aproximou de Sônia, ao contrário, afastou-se. Ela era muito bonita, meiga e obviamente apaixonada por ele; mas Rostóv estava naquela fase da mocidade em que parece que há tantas coisas a fazer que um rapaz nunca se ocupa desse tipo de assunto e receia prender-se — valoriza muito a própria liberdade, da qual ele precisa para muitas outras coisas. Quando pensava em Sônia, naquela nova temporada em Moscou, dizia consigo: “Eh! Ainda há muitas, muitas ainda vão aparecer, em algum lugar, outras que eu ainda não conheço. Ainda terei tempo para me ocupar do amor, quando quiser, mas agora não tenho”. Além do mais, o convívio com mulheres parecia-lhe humilhante para a sua masculinidade. Nikolai Rostóv ia aos bailes e frequentava a sociedade feminina, fingindo que fazia isso a contragosto. As corridas, o Clube Inglês, as farras com Deníssov, as idas àquele tal lugar — isso tudo era diferente: eram coisas que ficavam muito bem para um hussardo.
No início de março, o velho conde Iliá Andreitch Rostóv andou muito ocupado com a organização de um almoço no Clube Inglês, em homenagem ao príncipe Bagration.
O conde, de roupão, andava pelo salão, dando ordens ao mordomo do clube e ao famoso Feoktist, o chefe de cozinha do Clube Inglês, sobre o aspargo, os pepinos frescos, os morangos, a vitela e o peixe para o almoço do príncipe Bagration. O conde, desde o dia da fundação, era membro e diretor do clube. Foi encarregado da organização da solenidade em homenagem a Bagration, pois era difícil encontrar alguém que soubesse organizar um banquete com tanta hospitalidade e fartura, ainda mais porque era difícil encontrar alguém que pudesse e quisesse empregar o seu próprio dinheiro, se isso fosse necessário, na organização do banquete. O cozinheiro e o mordomo do clube escutavam as ordens do conde com rostos alegres, porque sabiam que com ele, melhor do que com qualquer outra pessoa, poderiam tirar vantagens daquele almoço, que ia custar vários milhares de rublos.
— Então, vejam bem, as cristas de galo, não esqueçam de pôr cristas de galo na sopa de tartaruga, certo?
— Quer dizer que vão ser três molhos frios para a sopa? — perguntou o cozinheiro. O conde refletiu um pouco.
— Menos não é possível, três... Um é o de maionese — disse, abaixando um dedo...
— Então o senhor quer que mande trazer esturjões grandes? — perguntou o mordomo.
— O que se vai fazer? Mande trazer, mesmo que não baixem o preço. Ah, é, meu Deus, já ia esquecendo. Vamos precisar de mais uma entrada na mesa. Ah, meu Pai! — Pôs as mãos na cabeça. — Quem é que vai me fornecer as flores? Mítienka! Ei, Mítienka! Vá agora mesmo a galope à minha propriedade nos arredores de Moscou — pediu ao administrador, que entrou atendendo ao seu chamado. — Vá a galope à minha propriedade nos arredores de Moscou e dê uma ordem urgente ao jardineiro Maksimka. Diga para trazer tudo o que tiver nas estufas, envolvido em feltro. Quero que na sexta-feira estejam aqui duzentos vasos.
Depois de dar ainda várias ordens, ele quis sair para descansar um pouco com a condessinha, mas lembrou ainda outra coisa importante, voltou, chamou de volta o cozinheiro e o mordomo e, de novo, passou a dar ordens. Na porta, ouviu-se um passo ligeiro, masculino, um tinido de esporas e, bonito, corado, com um bigodinho bem preto, entrou o jovem conde, visivelmente descansado e mimado pela vida tranquila em Moscou.
— Ah, meu amigo! A minha cabeça está dando voltas — disse o velho, como que envergonhado, diante do filho. — Quem sabe você pode me ajudar! Ainda precisamos de cantores. Música já tenho, mas e se chamássemos uns ciganos? Vocês, companheiros de armas, adoram isso.
— Francamente, paizinho, acho que o príncipe Bagration, quando se preparava para a batalha de Schöngraben, não estava tão preocupado quanto o senhor está agora — disse o filho, sorrindo.
O velho conde fingiu se zangar.
— Sei, falar é fácil, experimente só, para você ver!
E o conde voltou-se para o cozinheiro, que com o rosto inteligente e respeitoso olhava o pai e o filho, de modo afetuoso e observador.
— Está vendo como é a mocidade, hein, Feoktist? — disse ele. — Riem de nós, os mais velhos.
— Pois é, vossa excelência, comer, isso eles sabem fazer muito bem, mas preparar tudo e servir, isso não é com eles.
— Isso mesmo — gritou o conde e, alegremente, segurou as duas mãos do filho e gritou: — Então, aqui está, você caiu nas minhas mãos! Vá agora mesmo pegar o trenó com uma parelha de cavalos, corra à casa de Bezúkhov e diga que o conde Iliá Andreitch mandou pedir ao senhor da casa morangos e abacaxis frescos. Não vamos conseguir isso com mais ninguém, a não ser com Bezúkhov. Ele mesmo não está em casa, por isso você vai entrar e pedir à princesa, e de lá, então, veja bem, você vai para Razguliái, o cocheiro Ipatka sabe onde é, encontre lá o cigano Iliúchka, aquele que dançava na casa do conde Orlóv, lembra, de jaqueta branca, e traga-o aqui, para falar comigo.
— E junto com ele trago as ciganinhas? — perguntou Nikolai, rindo. — Ora, ora!...
Naquele momento, em passos silenciosos, com aquele ar atarefado, preocupado, e ao mesmo tempo dócil e cristão, que nunca a deixava, Anna Mikháilovna entrou. Apesar de todo dia Anna Mikháilovna ver o conde de roupão, ele sempre se mostrava embaraçado diante dela e pedia desculpa pelo traje.
— Não tem importância, meu caro conde — disse ela, fechando os olhos, com docilidade. — Eu mesma irei à casa de Bezúkhov — disse. — Pierre chegou, e agora, conde, vamos conseguir tudo nas estufas dele. Além disso, eu preciso falar com Pierre. Ele me mandou uma carta de Boris. Graças a Deus, agora Boris está no Estado-Maior.
O conde alegrou-se por Anna Mikháilovna ter assumido uma parte dos seus encargos e mandou preparar para ela uma pequena carruagem.
— A senhora diga a Bezúkhov para vir também. Vou escrever para ele. E como andam as coisas com a esposa? — perguntou.
Anna Mikháilovna levantou os olhos, e no seu rosto expressou-se um desgosto profundo...
— Ah, meu amigo, ele é muito infeliz — disse ela. — Se for verdade o que andam dizendo, é horrível. Ficamos tão alegres com a felicidade dele que jamais poderíamos imaginar uma coisa dessas! E que espírito elevado, celestial, tem o jovem Bezúkhov! Sim, eu lamento por ele, do fundo do coração, e vou me esforçar para lhe dar todo o alívio que depender de mim.
— Mas o que há? — perguntaram os dois Rostóv, o jovem e o velho.
Anna Mikháilovna deu um suspiro profundo:
— Dólokhov, o filho de Mária Ivánovna — disse ela, num sussurro, em tom de segredo —, pelo que dizem, comprometeu completamente a esposa dele. Pierre lhe prestou ajuda, convidou-o para ir à sua casa em Petersburgo, e aí está... Ela veio para cá, e esse desaforado veio atrás dela — disse Anna Mikháilovna, querendo expressar solidariedade a Pierre, mas nas entonações involuntárias e no seu meio sorriso mostrava solidariedade pelo desaforado, como ela chamava Dólokhov. — Dizem que o próprio Pierre está completamente arrasado pela sua amargura.
— Bem, mesmo assim, diga a ele para vir ao clube... vai se alegrar. Será um banquete formidável.
No dia seguinte, 3 de março, já depois da uma hora da tarde, duzentos e cinquenta membros do Clube Inglês e mais cinquenta convidados aguardavam para o almoço o convidado principal, o herói da campanha da Áustria, o príncipe Bagration. Nos primeiros momentos em que soube da notícia da batalha de Austerlitz, Moscou ficou perplexa. Naquela ocasião, os russos estavam tão acostumados a vitórias que, ao receber a notícia da derrota, alguns simplesmente não acreditavam, outros procuravam em causas extraordinárias a explicação para um acontecimento tão estranho. No Clube Inglês se reuniam todas as pessoas ilustres, todos os que tinham informações fidedignas, e no mês de dezembro, quando começaram a chegar as notícias, ninguém falava nada sobre a guerra e a última batalha, como se tivessem combinado calar-se a respeito do assunto. As pessoas que davam rumo às conversas, gente como o conde Rostoptchin, o príncipe Iúri Vladímirovitch Dolgorúkov, Valúiev, o conde Markóv, o príncipe Viázemski, não apareciam no clube, mas reuniam-se nas residências, em seus círculos íntimos, e os moscovitas que só falavam aquilo que os outros diziam (entre os quais estava Iliá Andreitch Rostóv) ficaram por um breve tempo sem opinião definida sobre a guerra e sem líderes. Os moscovitas sentiam que havia acontecido algo ruim e que era difícil debater aquelas notícias ruins, por isso achavam melhor calar-se. Porém, passado algum tempo, como jurados que saem da sala de deliberações, apareceram no clube as figuras importantes que emitiam opiniões, e tudo passou a ser dito de forma clara e bem definida. Encontraram-se as causas daquele acontecimento incrível, inaudito e impossível, a derrota dos russos, tudo ficou claro e em todos os cantos de Moscou falavam a mesma coisa. As causas foram as seguintes: a traição dos austríacos, o abastecimento precário das tropas, a traição do polonês Przebyszéwski e do francês Langeron, a incapacidade de Kutúzov e (diziam baixinho) a juventude e a inexperiência do soberano, que confiara em gente ruim e insignificante. Mas as tropas, as tropas russas, diziam todos, foram extraordinárias e praticaram prodígios de bravura. Os soldados, os oficiais, os generais eram heróis. Mas o herói dos heróis foi o príncipe Bagration, glorificado por sua luta em Schöngraben e pela retirada em Austerlitz, onde só ele conduzira a sua coluna em perfeita ordem e, durante um dia inteiro, resistira a um inimigo duas vezes mais forte. Para o fato de Bagration ter sido eleito como herói em Moscou pesou também a circunstância de ele não ter ligação com Moscou, ser alguém de fora. Na sua pessoa, fazia-se a honra devida ao combatente russo simples, ao soldado sem intrigas e sem conhecimentos na sociedade, ainda ligado às lembranças da campanha da Itália pelo nome de Suvórov. Além disso, ao prestar a ele tal reconhecimento, mostrava-se melhor ainda a antipatia e o descontentamento em relação a Kutúzov.
— Se Bagration não existisse, il faudrait l’inventer 3 — disse o galhofeiro Chinchin, parodiando as palavras de Voltaire. Sobre Kutúzov, ninguém falava, mas alguns o xingavam aos sussurros, chamando-o de cortesão frívolo e velho sátiro.
Em toda a Moscou, repetiam-se as palavras do príncipe Dolgorúkov: “De tanto colar aqui e ali, um dia você também acaba colado”, o que nos consolava da derrota com a lembrança das vitórias anteriores, e repetiam-se as palavras de Rostoptchin, sobre que era preciso estimular os soldados franceses para a batalha com frases empoladas, que com os alemães era preciso raciocinar com lógica, convencendo-os de que era mais perigoso fugir do que avançar; mas que com os soldados russos era preciso apenas contê-los e pedir: mais devagar! De todos os lados, ouviam-se sempre novos relatos sobre exemplos individuais de bravura, praticados pelos nossos soldados e oficiais em Austerlitz. Um salvara uma bandeira, outro matara cinco franceses, um outro carregara e disparara cinco canhões. Falavam também de Berg, pessoas que não o conheciam, e contavam que, ferido na mão direita, ele empunhara a espada na mão esquerda e avançara. Sobre Bolkónski, ninguém falava, e só os seus conhecidos mais íntimos lamentavam que ele tivesse morrido cedo, deixando a esposa grávida e um pai excêntrico.
III
No dia 3 de março, em todas as salas do Clube Inglês havia um burburinho de vozes que conversavam, e, como abelhas na revoada da primavera, membros e convidados do clube trançavam para a frente e para trás, pousavam, levantavam, reuniam-se e separavam-se, em uniformes, em fraques, e ainda alguns com pó de arroz e de cafetã. Lacaios empoados, de libré, meias de seda e sapatos de verniz, postados em todas as portas, esforçavam-se nervosamente para captar todos os movimentos dos convidados e membros do clube, a fim de oferecer os seus serviços. A maioria dos presentes eram velhos, respeitáveis, de rostos largos e confiantes, dedos gordos, gestos e vozes firmes. Os convidados e membros desse tipo ocupavam lugares já conhecidos e habituais e se reuniam em círculos já conhecidos e habituais. Uma pequena parte dos presentes consistia em convidados eventuais — sobretudo jovens, entre os quais estavam Deníssov, Rostóv e Dólokhov, que era de novo oficial no regimento de Semiónov. No rosto dos jovens, em especial dos militares, havia a expressão de um sentimento de desprezo respeitoso em relação aos velhos, que parecia dizer à velha geração: “Estamos prontos a respeitar e honrar os senhores, mas lembrem-se de que o futuro nos pertence”.
Nesvítski estava ali, como um membro antigo do clube. Pierre, que por ordem da esposa deixara crescer o cabelo, não usava mais os óculos e se vestia na moda, mas andava pelos salões com um ar tristonho e desalentado. Como acontecia em toda parte, cercava-o uma atmosfera de gente que se curvava diante da sua riqueza, e ele tratava essas pessoas com a sua soberania habitual e com um desprezo difuso.
Pela idade, ele deveria estar com os jovens, pela riqueza e pelas relações na sociedade, ele era membro dos círculos dos velhos e respeitáveis, por isso passava de um círculo para o outro. Os velhos mais destacados formavam o núcleo de círculos dos quais até desconhecidos se aproximavam respeitosamente, a fim de escutar pessoas renomadas. Os círculos maiores formavam-se em torno do conde Rostoptchin, de Valúiev e de Naríchkin. Rostoptchin contava como os russos haviam sido pisoteados pelos austríacos em fuga e tiveram de abrir caminho à baioneta, em meio aos fugitivos.
Valúiev contava, em tom confidencial, que Uvárov fora enviado de Petersburgo para conhecer a opinião dos moscovitas sobre Austerlitz.
No terceiro círculo, Naríchkin falava sobre a reunião do conselho de guerra austríaco, em que Suvórov cantara como um galo em resposta à estupidez dos generais austríacos. Chinchin, que também estava ali, quis fazer graça e disse que aquela arte — cantar de galo —, que aliás não era difícil, Kutúzov não conseguira aprender com Suvórov; mas os velhos fitaram o gozador com ar severo, dando a entender que ali, e logo naquele dia, era muito inconveniente falar sobre Kutúzov.
O conde Iliá Andreitch Rostóv, preocupado, afobado, passava da sala de jantar para a sala de visitas, em suas botas macias, cumprimentando às pressas, e exatamente da mesma forma, pessoas importantes e sem importância, todos eles seus conhecidos, e de vez em quando procurava com os olhos seu filho esbelto e jovem, detinha nele o olhar e piscava com alegria. O jovem Rostóv estava junto à janela com Dólokhov, a quem conhecia havia pouco tempo, conhecimento que ele prezava. O velho conde aproximou-se deles e apertou a mão de Dólokhov.
— Faça a bondade de visitar a minha casa, afinal o senhor é conhecido do meu garoto... Estavam juntos lá, foram heróis juntos... Ah! Vassíli Ignátitch... Saudações, meu velho — voltou-se para um velhote que passava, mas mal teve tempo de terminar o cumprimento, quando tudo se agitou, e um lacaio acudiu às pressas, com o rosto assustado, e comunicou: “Chegou!”.
Soaram campainhas; os diretores do clube vieram logo para a frente; os convidados, dispersos em várias salas, como centeio sacudido em uma pá, aglomeraram-se num só amontoado na grande sala de visitas, parados junto à porta do salão.
Na porta do vestíbulo, surgiu Bagration, sem o chapéu e sem a espada, que, segundo o costume do clube, ele havia deixado na portaria. Não estava com o quepe de pele de cordeiro na cabeça nem com o látego de correias sobre o ombro, como Rostóv o vira na noite da véspera da batalha de Austerlitz, mas num uniforme novo, justo, com medalhas russas e estrangeiras e com a estrela de São Jorge no lado esquerdo do peito. Era evidente que pouco antes do almoço havia aparado o cabelo e as costeletas, o que alterava a sua fisionomia de modo desfavorável. No rosto, havia algo de ingenuamente festivo, que em combinação com suas feições firmes e viris lhe dava até uma expressão ligeiramente cômica. Beklechóv e Fiódor Petróvitch Uvárov, que tinham vindo com ele, detiveram-se na porta, para que ele, como convidado principal, entrasse na frente. Bagration ficou embaraçado, não quis tirar vantagem da cortesia deles; houve uma pausa na porta, mas por fim, apesar de tudo, Bagration seguiu adiante. Sem saber o que fazer com as mãos, acanhado, sem jeito, caminhava sobre o assoalho da sala de recepção: para ele, era mais fácil e mais rotineiro caminhar sob as balas num campo arado, como andara à frente do regimento de Kursk, em Schöngraben. Os diretores o receberam na primeira porta, disseram algumas palavras sobre a alegria de acolher um convidado tão querido e, sem esperar sua resposta, como se tomassem posse dele, cercaram-no e levaram-no para a sala. Não era possível passar pela porta da sala, por causa da aglomeração de membros do clube e de convidados, que se esmagavam uns aos outros e, por cima dos ombros uns dos outros, esforçavam-se para ver Bagration, como se fosse um animal raro. O conde Iliá Andreitch, com mais força que todos, ria e repetia: “Deixe passar, mon cher, deixe passar!”, e abriu caminho na multidão, conduziu os convidados até a sala de visitas e lá sentou-os no meio de um sofá. Os figurões do clube, os membros mais veneráveis, rodearam de novo os recém-chegados. O conde Iliá Andreitch, abrindo caminho outra vez na multidão, saiu da sala e, após um minuto, apareceu com outro diretor, trazendo uma grande travessa de prata, que ofereceu ao príncipe Bagration. Na travessa, estavam versos compostos e impressos em homenagem ao herói. Bagration, ao ver a travessa, olhou para os lados com ar assustado, como se procurasse ajuda. Mas em todos os olhos havia a exigência de que ele se resignasse. Sentindo-se em poder deles, Bagration, com as duas mãos, num gesto decidido, pegou a travessa e, com ar zangado, de censura, olhou para o conde que a oferecia. Alguém, solicitamente, tomou a travessa das mãos de Bagration (do contrário, ele parecia ter a intenção de segurá-la até a noite, e ir assim para a mesa) e chamou a sua atenção para os versos. “Está bem, eu vou ler”, parecia dizer Bagration e, após cravar os olhos cansados no papel, começou a ler, com um ar concentrado e sério. O próprio autor pegou os versos e pôs-se a ler. O príncipe Bagration inclinou a cabeça e escutou:
Glória do século de Alexandre
E, para nós, proteção de Tito em seu trono,
Guia temível e homem de bem,
Rifeu na pátria e César no campo de luta.
Feliz Napoleão,
Que aprendeu na prática quem é Bagration,
Não se atreva a perturbar de novo os Alcides russos...4
Mas ele nem havia terminado de ler os versos quando um mordomo estrondoso proclamou: “A refeição está servida!”. A porta se abriu, e da sala de refeições ribombou a polonesa
Retumbe, trovão da vitória,
rejubile bravo russo 5
e o conde Iliá Andreitch, fitando com ar zangado o autor, que continuava a ler os versos, cumprimentou Bagration com uma inclinação de cabeça. Todos levantaram, sentindo que o almoço era mais importante do que os versos, e Bagration, de novo à frente de todos, seguiu para a mesa. Puseram Bagration no lugar mais importante, entre os dois Aleksandr — Beklechóv e Naríchkin, o que também tinha um significado por causa da alusão ao nome do soberano: trezentas pessoas se distribuíram pela sala de refeição, segundo o seu posto e a sua importância — os mais importantes, mais próximos do convidado de honra: tão natural quanto a água correr para o fundo, onde o terreno é mais baixo.
Antes do almoço propriamente dito, o conde Iliá Andreitch apresentou o filho ao príncipe. Bagration o reconheceu, disse algumas palavras desajeitadas, acanhadas, como todas as palavras que disse naquele dia. O conde Iliá Andreitch, com ar alegre, olhava para todos à sua volta, enquanto Bagration conversava com o filho dele.
Nikolai Rostóv, Deníssov e Dólokhov, seu novo conhecido, sentaram-se juntos, quase no meio da mesa. De frente para eles, estava Pierre, ao lado do príncipe Nesvítski. O conde Iliá Andreitch sentou-se em frente do príncipe Bagration, com outros diretores do clube, e cobria o príncipe de atenções, personificando a hospitalidade moscovita.
Seus esforços não foram em vão. O almoço estava magnífico, tanto os pratos sem carne como os com carne, mas apesar disso ele só conseguiu se acalmar de todo no fim do banquete. Piscava os olhos para o copeiro, sussurrava ordens para os lacaios e, não sem emoção, esperava cada prato novo, que ele já sabia qual era. Tudo estava excelente. No segundo prato, junto com um esturjão colossal (ao vê-lo, Iliá Andreitch ficou vermelho de alegria e de acanhamento), os lacaios já começaram a espocar as rolhas e a servir o champanhe. Depois do peixe, que produziu certa sensação, o conde Iliá Andreitch trocou olhares com outros diretores. “Vai haver muitos brindes, é melhor começar logo!”, sussurrou ele e, depois de segurar a taça na mão, levantou-se. Todos se calaram e esperaram que ele falasse.
— À saúde do soberano imperador! — gritou, e no mesmo instante os seus olhos bondosos umedeceram-se de lágrimas de alegria e de entusiasmo. Naquele exato instante, começaram a tocar: “Retumbe, trovão da vitória”. Todos levantaram de seus assentos e começaram a gritar “Hurra!”, e Bagration também gritou “Hurra!”, com a mesma voz com que gritou no campo de batalha de Schöngraben. A voz entusiasmada do jovem Rostóv foi ouvida acima de todas as trezentas vozes. Ele estava à beira de chorar.
— À saúde do soberano imperador — gritou ele. — Hurra! — Depois de sorver de uma só vez a sua taça, atirou-a no chão. Muitos seguiram o seu exemplo. E gritos fortes continuaram a soar por muito tempo. Quando as vozes silenciaram, os lacaios recolheram as taças quebradas, e todos começaram a sentar-se e, sorrindo da gritaria, conversavam entre si. O conde Iliá Andreitch levantou-se outra vez, olhou de relance para um papelzinho que estava ao lado do seu prato e propôs um brinde à saúde do herói da nossa última campanha, o príncipe Piotr Ivánovitch Bagration, e de novo os olhos azuis do conde umedeceram-se de lágrimas. “Hurra!”, gritaram de novo as vozes dos trezentos convidados, mas, em vez dos instrumentos, ouviram-se coristas, que cantaram uma cantata composta por Pável Ivánovitch Kutúzov.6
Para os russos, são inúteis todas as barreiras,
A bravura é o penhor da vitória,
Nós temos Bagration,
Todos os inimigos irão se curvar... etc.
Assim que os coristas terminaram, seguiram-se brindes e mais brindes, com os quais o conde Iliá Andreitch foi ficando cada vez mais comovido, quebraram-se ainda mais taças, e gritou-se ainda mais. Beberam à saúde de Beklechóv, Naríchkin, Uvárov, Dolgorúkov, Apráksin, Valúiev, à saúde dos diretores do clube, à saúde do administrador, à saúde de todos os membros do clube, à saúde de todos os convidados do clube e por fim à saúde do organizador do almoço, o conde Iliá Andreitch. Nesse brinde, o conde pegou um lenço, cobriu o rosto e desatou a chorar abertamente.
IV
Pierre estava sentado em frente a Dólokhov e a Nikolai Rostóv. Comia e bebia muito e com avidez, como sempre. Mas aqueles que o conheciam de perto viam que, naquele dia, uma grande transformação se passava nele. Ficou calado durante todo o tempo do almoço e olhava à sua volta, contraindo os olhos e franzindo as sobrancelhas, ou, de olhar fixo, com um ar de total alheamento, esfregava o dedo de leve sobre o nariz. Seu rosto estava triste e sombrio. Parecia não ver nem ouvir nada do que se passava à sua volta e pensar numa só coisa, grave e insolúvel.
A questão insolúvel que o atormentava eram as alusões da princesa, em Moscou, à proximidade entre Dólokhov e sua esposa e também uma carta anônima que ele recebera naquela manhã, na qual se dizia, no tom jocoso e infame próprio a todas as cartas anônimas, que ele estava enxergando muito mal com os seus óculos e que a ligação da esposa com Dólokhov só era um segredo para ele. Pierre, com firmeza, não acreditou nas alusões da princesa nem na carta, mas agora, para ele, era terrível olhar para Dólokhov, sentado à sua frente. Toda vez que seu olhar, como que por acaso, encontrava os olhos lindos e insolentes de Dólokhov, Pierre sentia que algo horrível e repulsivo se erguia dentro da sua alma, e logo virava o rosto. Lembrando-se, contra a vontade, de todo o passado de sua esposa e de suas relações com Dólokhov, Pierre via claramente que aquilo que a carta dizia podia ser verdade, podia pelo menos parecer verdadeiro, caso não se tratasse da sua esposa. Pierre, contra a vontade, lembrou como Dólokhov, que recebera de volta o seu posto de oficial, após a campanha, voltou para Petersburgo e o procurou. Aproveitando-se das relações de amizade com Pierre em suas farras, Dólokhov foi direto à sua casa, e Pierre alojou-o ali, emprestou-lhe dinheiro. Pierre lembrava como Hélène, sorrindo, expressava a sua insatisfação com o fato de Dólokhov morar na casa deles e como Dólokhov, cinicamente, elogiava a beleza da sua esposa, e como Dólokhov, desde aquele tempo até a vinda para Moscou, não se separava deles nem por um instante.
“Sim, ele é muito bonito”, pensava Pierre, “eu o conheço. Para ele, seria um prazer especial cobrir o meu nome de vergonha e zombar de mim, justamente porque eu intercedi em seu favor e lhe dei abrigo, ajudei-o. Eu sei, eu entendo, aos olhos dele, isso deve acrescentar uma pitada de sal à sua traição, se isso fosse verdade. Se isso fosse verdade; mas não acredito, não tenho o direito e não posso acreditar.” Pierre lembrava-se da expressão que tomava o rosto de Dólokhov em seus momentos de crueldade, como quando amarrou o guarda de quarteirão a um urso e jogou-o na água, ou quando sem nenhum motivo desafiou um homem para um duelo, ou quando matou com a pistola o cavalo de um mensageiro. Aquela expressão aparecia muitas vezes no rosto de Dólokhov, quando Pierre o olhava. “Sim, ele é um duelista”, pensou Pierre, “para ele, matar uma pessoa não significa nada, deve ter a impressão de que todos o temem, deve gostar disso. Deve pensar que tenho medo dele. E de fato eu tenho medo dele”, pensou Pierre, e de novo, com tais pensamentos, sentia que algo horrível e repulsivo se erguia dentro da sua alma. Dólokhov, Deníssov e Rostóv estavam sentados agora bem na frente de Pierre e pareciam muito alegres. Rostóv conversava alegremente com seus dois amigos, um dos quais era um hussardo violento, o outro, um famoso duelista e farrista, e de vez em quando, com ar zombeteiro, Rostóv olhava de relance para Pierre, que naquele almoço impressionava pela sua figura concentrada, alheia, volumosa. Rostóv olhava para Pierre de modo inamistoso, primeiro porque Pierre, aos seus olhos de hussardo, era um civil ricaço, marido de uma beldade, em suma, um maricas; em segundo lugar, porque Pierre, na concentração e no alheamento do seu estado de ânimo, não reconheceu Rostóv e não respondeu ao seu cumprimento, feito com uma inclinação de cabeça. Quando começaram a beber à saúde do soberano, Pierre, mergulhado em pensamentos, não se levantou e não pegou a taça.
— O que há com o senhor? — gritou Rostóv para ele, fitando-o com olhos arrebatados de indignação. — Por acaso não ouviu? À saúde do soberano imperador! — Pierre soltou um suspiro, levantou-se submisso, sorveu toda a sua taça e, depois de esperar um pouco que todos se sentassem, dirigiu-se a Rostóv, com o seu sorriso bondoso:
— Puxa, eu nem reconheci o senhor — disse ele. Porém Rostóv não queria saber disso, gritava “Hurra!”.
— Você devia se apresentar de novo — disse Dólokhov para Rostóv.
— Que se dane, esse idiota — disse Rostóv.
— É preciso mimar os maridos de mulheres bonitinhas — disse Deníssov. Pierre não ouvia o que eles diziam, mas sabia que estavam falando dele. Ficou vermelho e virou o rosto.
— Bem, agora à saúde das mulheres bonitas — disse Dólokhov, e com uma expressão séria, mas com um sorriso no canto da boca, voltou-se para Pierre, com a taça na mão. — À saúde das mulheres bonitas, Petrucha, e de seus amantes — disse.
Pierre, de olhos baixos, bebeu da sua taça, sem olhar para Dólokhov nem lhe responder. Um lacaio que distribuía a letra da cantata de Kutúzov deu uma folhinha para Pierre, na condição de convidado mais ilustre. Pierre quis pegá-la, mas Dólokhov inclinou-se sobre a mesa, arrancou a folhinha da mão dele e começou a ler. Pierre lançou um olhar para Dólokhov, suas pupilas abaixaram: aquela coisa terrível e amorfa, que o atormentava durante todo o tempo do almoço, ergueu-se e dominou-o. Pierre inclinou-se com todo o seu corpo obeso sobre a mesa:
— Não se atreva a pegar! — gritou ele.
Ao ouvir o grito e ver a quem se dirigia, Nesvítski e o vizinho do lado direito voltaram-se para Bezúkhov, afobados e temerosos.
— Calma, calma, o que há com o senhor? — sussurraram vozes assustadas. Dólokhov fitou Pierre com olhos brilhantes, alegres, cruéis, com um sorriso que parecia dizer: “Disto, sim, eu gosto”.
— Não vou dar — disse ele, claramente.
Pálido, com o lábio trêmulo, Pierre tomou a folha de papel.
— O senhor... o senhor... é um canalha!... Eu desafio o senhor — exclamou e, empurrando a cadeira, levantou-se. No mesmo instante em que fazia isso e pronunciava essas palavras, Pierre sentiu que a questão da culpa da esposa, que o atormentara nos últimos dias, estava encerrada e resolvida, sem nenhuma dúvida, de forma afirmativa. Ele a odiava e estava rompido com ela para sempre. Apesar do pedido de Deníssov para que Rostóv não se metesse naquele assunto, Rostóv aceitou ser o padrinho de Dólokhov e, depois da festa, foi conversar com Nesvítski, o padrinho de Bezúkhov, sobre as condições do duelo. Pierre foi para casa, mas Rostóv, Dólokhov e Deníssov ficaram no clube até tarde, ouvindo os ciganos e outros cantores.
— Então até amanhã, em Sokólniki — disse Dólokhov, ao despedir-se na saída do clube.
— E você, está calmo? — perguntou Rostóv.
Dólokhov parou.
— Veja bem, em duas palavras vou lhe revelar todo o segredo de um duelo. Se você vai travar um duelo e redige um testamento e cartas carinhosas para os pais, se você fica pensando que pode ser morto, você é um burro e provavelmente vai tombar; mas se vai para o duelo com a firme intenção de matar o outro, do modo mais rápido e mais seguro possível, então tudo vai dar certo. É como me dizia o nosso caçador de ursos, em Kostromá: quem é que não tem medo de um urso? Mas quando a gente vê o urso, o medo passa, e a gente só pensa em não deixar o urso fugir! Pois eu sou assim também. À demain, mon cher! 7
No dia seguinte, às oito horas da manhã, Pierre e Nesvítski chegaram à floresta de Sokólniki e, lá, já se encontravam Dólokhov, Deníssov e Rostóv. Pierre tinha o aspecto de um homem ocupado com pensamentos que nada tinham a ver com o duelo. O rosto emagrecido estava amarelo. Era evidente que não havia dormido naquela noite. Olhava distraído à sua volta e franzia o rosto, como que incomodado pela claridade do sol. Dois pensamentos o preocupavam exclusivamente: a culpa da esposa, sobre a qual, após uma noite insone, não restava a menor dúvida, e a inocência de Dólokhov, que não tinha nenhum motivo para proteger a honra de um homem estranho para ele. “Talvez eu fizesse o mesmo no lugar dele”, pensou Pierre. “É até seguro que eu faria o mesmo; para que este duelo, este assassinato? Ou eu vou matá-lo, ou ele me acerta na cabeça, no cotovelo, no joelho. Ir embora daqui, fugir, esconder-me em algum lugar”, veio-lhe à cabeça. Mas, no exato instante em que lhe vieram tais pensamentos, ele, com um aspecto especialmente calmo e distraído, que despertou o respeito daqueles que o observavam, perguntou:
— Ainda vai demorar? Ainda não está pronto?
Quando tudo estava pronto, os sabres fincados na neve, para assinalar a barreira até onde se podia avançar, e as pistolas carregadas, Nesvítski aproximou-se de Pierre.
— Eu faltaria ao meu dever, conde — disse ele, com voz tímida —, e não justificaria a confiança e a honra que o senhor me deu ao me escolher como padrinho, se neste momento importante, neste momento muito importante, eu não dissesse ao senhor toda a verdade. Afirmo que este duelo não tem motivo suficiente e que não vale a pena derramar sangue por isso... O senhor não tinha razão, não tinha razão nenhuma, o senhor se exaltou...
— Ah, sim, é uma idiotice tremenda... — disse Pierre.
— Então permita que eu transmita o seu pesar e estou convencido de que os nossos oponentes concordarão em aceitar as suas desculpas — disse Nesvítski (que, como outras testemunhas de duelos, e como todos em situações semelhantes, também não conseguia acreditar que aquilo chegaria a ser um duelo de verdade). — O senhor sabe, conde, que é imensamente mais nobre reconhecer o próprio erro do que levar as coisas até uma situação irreparável. Não houve ofensa de nenhum dos lados. Permita que eu negocie...
— Não, de que adianta falar? — exclamou Pierre. — Tanto faz... Está tudo pronto? — acrescentou. — O senhor me diga apenas para onde caminhar e para onde atirar — disse Pierre, sorrindo de um jeito dócil e forçado. Pegou a pistola na mão e passou a perguntar sobre o funcionamento do gatilho, pois até então nunca tivera uma pistola nas mãos, o que ele não queria confessar. — Ah, sim, isso mesmo, já sei, eu só tinha esquecido — disse.
— Nada de desculpas, nem pensar — disse Dólokhov para Deníssov, que por sua vez fazia também uma tentativa de conciliação, e também seguiu para o lugar assinalado.
Escolheram para o duelo um local a mais ou menos oitenta passos da estrada onde haviam ficado os trenós, numa clareira pequena, numa floresta de pinheiros cobertos pela neve que derretia por causa do degelo que começara nos últimos dias. Os oponentes estavam a quarenta passos um do outro, nas extremidades da clareira. Os padrinhos, medindo os passos, deixaram pegadas impressas na neve funda e molhada, desde o lugar onde estavam até os sabres de Nesvítski e de Deníssov, que marcavam a barreira, espetados a dez passos um do outro. O degelo e a neblina continuavam; a quarenta passos de distância, não se enxergava nada. Fazia três minutos que tudo estava pronto e, no entanto, demoravam a começar, todos estavam calados.
V
— Bem, vamos começar! — disse Dólokhov.
— Vamos logo — disse Pierre, sorrindo da mesma forma que antes.
A situação ficou terrível. Estava claro que o duelo, que começara de maneira tão fácil, já não poderia ser impedido, havia tomado um rumo próprio, já não dependia da vontade das pessoas e teria de se realizar. Deníssov avançou primeiro até a barreira e proclamou:
— Como os oponentes recusaram a conciliação, tenham a bondade de começar: peguem as pistolas e, quando eu falar a palavra “três”, comecem a avançar. Um! Dois! Três!... — gritou Deníssov com voz irritada e afastou-se para o lado. Os dois caminharam pela trilha aberta pelas pegadas, cada vez mais próximos, enquanto iam reconhecendo um ao outro, dentro da neblina. Os oponentes tinham o direito de atirar quando quisessem, enquanto se aproximavam da barreira. Dólokhov avançava devagar, sem erguer a pistola, fitando, com seus olhos claros, brilhantes e azuis, o rosto do seu adversário. Como sempre, a boca tinha um arremedo de sorriso.
Ao som da palavra “três”, Pierre avançou a passos ligeiros, desviando-se da trilha marcada pelas pegadas e pisando na neve lisa. Pierre segurava a pistola com o braço direito esticado para a frente, obviamente com medo de matar a si mesmo com a arma. Esforçava-se para manter o braço esquerdo afastado para trás, pois tinha o impulso de apoiar nele a mão direita, e sabia que isso não era permitido. Ao completar seis passos e desviar-se da trilha marcada na neve, Pierre olhou para os pés, lançou de novo um olhar rápido para Dólokhov e, puxando o dedo, como lhe haviam ensinado, disparou. Como não esperava de forma alguma um som tão forte, Pierre sobressaltou-se com o próprio tiro, depois sorriu da própria reação e ficou parado. A fumaça, especialmente densa por causa da neblina, impediu que ele enxergasse, no primeiro momento; mas o outro tiro, que ele esperava, não veio. Só se ouviam os passos apressados de Dólokhov e, de trás da neblina, surgiu a sua figura. Segurava com a mão o lado esquerdo do corpo, com a outra mão apertava a pistola, que pendia para baixo. Seu rosto estava pálido. Rostóv correu até ele e lhe disse algo.
— Não... não — disse Dólokhov, entre os dentes. — Não, ainda não acabou. — E, depois de dar mais alguns passos claudicantes, quase caindo, até chegar ao sabre, tombou ao lado dele, sobre a neve. A mão esquerda estava ensanguentada, Dólokhov a esfregou no casaco e apoiou-se nela. Seu rosto estava pálido, franzido, e tremia.
— Por fav... — começou Dólokhov, mas não conseguiu pronunciar de imediato. — Por favor — falou com esforço. Pierre, mal conseguindo conter os soluços, correu na direção de Dólokhov e já estava prestes a atravessar o espaço marcado pela barreira, quando Dólokhov gritou: — Para a barreira! — E Pierre, entendendo do que se tratava, parou junto ao seu sabre. Apenas dez passos os separavam. Dólokhov baixou a cabeça na direção da neve, abocanhou a neve com sofreguidão, levantou de novo a cabeça, ajeitou-se, puxou as pernas e sentou-se, procurando um centro de gravidade firme. Engolia e sugava a neve gelada; seus lábios tremiam, mas continuavam a sorrir; os olhos brilhavam com esforço e com a raiva das suas últimas forças concentradas. Levantou a pistola e começou a mirar.
— Fique de lado, proteja-se com a pistola — exclamou Nesvítski.
— Proteja-se! — O próprio Deníssov, sem conseguir conter-se, gritou para o adversário.
Pierre, com um dócil sorriso de pena e de arrependimento, as pernas e os braços abertos e sem defesa, o peito largo exposto, estava parado na frente de Dólokhov e olhava para ele com ar triste. Deníssov, Rostóv e Nesvítski semicerraram os olhos. Ouviram ao mesmo tempo o tiro e o grito de raiva de Dólokhov.
— Errei! — gritou Dólokhov e, sem forças, estirou-se na neve, com o rosto para baixo. Pierre agarrou a cabeça entre as mãos, virou-se, caminhou para dentro da floresta, pisava afundando as pernas na neve, enquanto dizia palavras incompreensíveis.
— Estupidez... estupidez! Morte... Mentira... — repetia, de rosto franzido. Nesvítski o deteve e levou-o para casa.
Rostóv e Deníssov levaram Dólokhov ferido.
Em silêncio, com os olhos fechados, Dólokhov ficou deitado no trenó e nada respondia às perguntas que lhe faziam; porém, ao entrar em Moscou, ele despertou de repente e, após levantar a cabeça com esforço, segurou a mão de Rostóv, sentado a seu lado. Rostóv impressionou-se com a expressão no rosto de Dólokhov, que se modificara por completo e, inesperadamente, havia tomado um ar de arrebatamento e ternura.
— E então? Como está se sentindo? — perguntou Rostóv.
— Péssimo! Mas isso não interessa. Meu amigo — disse Dólokhov, com voz entrecortada —, onde estamos? Estamos em Moscou, eu sei. Comigo não houve nada, mas eu a matei, matei... Ela não vai suportar isso. Ela não vai suportar...
— Quem? — perguntou Rostóv.
— A minha mãe. A minha mãe, o meu anjo, o meu anjo adorado, a mãe. — E Dólokhov desatou a chorar, apertando a mão de Rostóv. Quando se acalmou um pouco, explicou para Rostóv que ele morava com a mãe, que, se a mãe o visse moribundo, não iria suportar. Implorou a Rostóv que fosse falar com ela e a preparasse.
Rostóv partiu na frente para cumprir a missão e, para sua grande surpresa, soube que Dólokhov, aquele duelista desordeiro, morava em Moscou com a mãe velhinha e uma irmã corcunda, e era o filho e o irmão mais carinhoso que podia existir.
VI
Pierre, nos últimos tempos, raramente se encontrava com a esposa frente a frente. A sua casa de Petersburgo e a de Moscou estavam sempre cheias de hóspedes. Na noite seguinte ao duelo, Pierre, como fazia muitas vezes, não foi para o quarto de dormir, ficou no imenso escritório do pai, o mesmo onde o velho conde Bezúkhov havia morrido. Por mais torturante que tivesse sido todo o trabalho interior da noite insone, agora começava um outro, mais torturante ainda.
Deitou-se no sofá e quis dormir para esquecer tudo o que havia acontecido, mas não conseguiu. Uma tal tempestade de sentimentos, pensamentos, lembranças, levantou-se de repente na sua alma que ele não só não conseguiu dormir como não conseguiu ficar parado num lugar, e teve de levantar-se de um salto e caminhar pelo cômodo, a passos rápidos. Ora ela surgia em seu pensamento, tal como era nos primeiros tempos após o casamento, com os ombros descobertos e o olhar cansado, ardente, e logo aparecia ao seu lado o rosto bonito, insolente, implacavelmente debochado, de Dólokhov, tal como estava no almoço, e ora surgia em seu pensamento o mesmo rosto de Dólokhov, pálido, trêmulo, sofrendo, tal como estava na hora em que se virou e caiu sobre a neve.
“O que aconteceu?”, perguntou para si mesmo. “Eu matei o amante, sim, matei o amante da minha esposa. Sim, foi o que aconteceu. Por quê? Como cheguei a esse ponto?... Porque você casou com ela”, respondeu uma voz interior.
“Mas qual é a minha culpa?”, perguntou a si mesmo. “A de ter casado sem amar sua esposa, a de ter enganado a si mesmo e a ela também.” E Pierre relembrou nitidamente o momento após o jantar, em casa de Vassíli, em que ele dissera aquelas palavras que não queriam sair da sua boca: “Je vous aime”. “Tudo por causa disso! Eu bem que senti na hora”, pensou ele, “senti na hora que não era nada disso, que eu não tinha o direito. Mesmo assim, aconteceu.” Pierre lembrou-se da lua de mel e ruborizou-se com aquelas recordações. Para ele, era especialmente viva, acintosa e vergonhosa a lembrança de como, certa vez, logo depois do casamento, pouco antes do meio-dia, ele, de roupão de seda, saiu do quarto de dormir, foi para o escritório e ali deparou com o administrador-geral, que lhe dirigiu um cumprimento respeitoso com a cabeça, olhou para o rosto de Pierre, para o seu roupão, e sorriu de leve, como se exprimisse com aquele sorriso uma respeitosa aprovação da felicidade do seu senhor.
“E quantas vezes me orgulhei dela”, pensou, “me orgulhei da sua beleza magnífica, do seu tato na sociedade; me orgulhei da minha casa onde ela recebia toda a Petersburgo, me orgulhei do seu caráter inacessível e da sua beleza. Veja só do que eu me orgulhava! Eu pensava que não a compreendia. Quantas vezes, ao ponderar sobre o caráter dela, eu dizia a mim mesmo que o culpado era eu, que não a compreendia, não compreendia aquela permanente serenidade, satisfação e ausência de quaisquer paixões e desejos, enquanto a solução para tudo isso estava nesta palavra terrível, que ela é uma mulher depravada: eu disse para mim mesmo essa palavra terrível e tudo ficou claro!
“Anatole ia vê-la para lhe pedir dinheiro e beijava os seus ombros nus. Ela não lhe dava dinheiro, mas deixava que ele a beijasse. O pai, de brincadeira, tentava provocar ciúmes nela; com um sorriso sereno, ela respondia que não era tola de ter ciúmes: ele pode fazer o que quiser, dizia, referindo-se a mim. Certa vez, perguntei se não estava sentindo algum sinal de gravidez. Ela riu com desprezo e disse que não era idiota para querer ter filhos e que, de mim, ela não ia ter filhos.”
Depois, Pierre lembrou a franqueza e a brutalidade de seus pensamentos e a vulgaridade das expressões tão características dela, apesar de ter sido educada em altos círculos da aristocracia. “Não sou nenhuma besta... Experimente só para você ver uma coisa... Allez vous promener”,8 dizia ela. Muitas vezes, ao ver o sucesso da esposa aos olhos dos velhos e dos jovens, dos homens e das mulheres, Pierre não conseguia entender por que não a amava. “Sim, eu nunca a amei”, disse Pierre, consigo. “Eu sabia que era uma depravada”, repetiu, “mas não tinha coragem de admitir.”
“E agora, Dólokhov... lá está ele caído sobre a neve, sorri de modo forçado e morre, talvez, enquanto responde ao meu arrependimento com uma espécie de bravura fingida!”
Pierre era uma dessas pessoas que, apesar de aparentar aquilo que chamam de fraqueza de caráter, não procuram um confidente para a sua mágoa. Ele elaborava sozinho, dentro de si, a sua mágoa.
“Ela, só ela é a culpada de tudo”, disse para si mesmo. “Mas e daí? Para que me uni a ela, para que eu lhe disse isto: ‘Je vous aime’, o que era mentira, e pior do que mentira”, disse para si mesmo. “Eu sou culpado e tenho de suportar... Mas o quê? A desonra do nome, a infelicidade da vida? Ah, tudo isso é bobagem”, pensou. “A desonra do nome, a honra... tudo isso é convenção, tudo isso não depende de mim.”
“Executaram Luís XVI porque eles diziam que o rei era infame e criminoso (passou pela cabeça de Pierre), e eles tinham razão, do seu ponto de vista, assim como também tinham razão aqueles que, pelo rei, morreram martirizados e os que o incluíram entre os santos. Depois, executaram Robespierre porque era um déspota. Quem tem razão, quem é culpado? Ninguém. Viva enquanto está vivo: amanhã, vamos morrer, como eu podia ter morrido uma hora atrás. Vale a pena atormentar-se por isso, quando resta só um segundo de vida, em comparação com a eternidade?” Mas, no instante em que Pierre se considerava apaziguado com esse tipo de raciocínio, de repente ela surgiu no seu pensamento, naqueles instantes em que ele, com mais força, lhe mostrava o seu amor insincero, e Pierre sentiu o sangue afluir ao coração, e teve de se levantar outra vez, mover-se, e quebrar e fazer em pedaços tudo o que lhe caía nas mãos. “Para que fui lhe dizer: Je vous aime?”, não parava de repetir a si mesmo. E, depois de repetir dez vezes essa pergunta, veio-lhe à cabeça a frase de Molière: Mais que diable allait-il faire dans cette galère?,9 e riu de si mesmo.
À noite, chamou o camareiro e mandou fazer as malas com a intenção de partir para Petersburgo. Não podia viver com ela, debaixo do mesmo teto. Não podia conceber que, tal como estava agora, pudesse falar com ela. Resolveu partir no dia seguinte e deixar-lhe uma carta, na qual comunicaria sua intenção de separar-se para sempre.
Pela manhã, quando o camareiro entrou no escritório trazendo o café, Pierre estava deitado na otomana e dormia com um livro aberto na mão.
Acordou e, por muito tempo, ficou olhando em volta assustado, incapaz de compreender onde estava.
— A condessa mandou perguntar se vossa excelência está em casa — perguntou o camareiro.
Mas Pierre nem teve tempo de resolver o que responder quando a condessa em pessoa, num roupão branco de cetim, bordado com fios de prata, e com um penteado simples (duas imensas tranças en diadème 10 contornavam duas vezes sua cabeça encantadora), entrou no escritório, com ar sereno e altivo; sua testa, um pouco proeminente, como que de mármore, tinha uma ruga de ira. Com sua calma imperturbável, ela não começou a falar em presença do camareiro. Tinha sabido do duelo e viera conversar sobre o assunto. Esperava que o camareiro terminasse de servir o café e saísse. Pierre, timidamente, fitou-a através dos óculos e, como uma lebre cercada de cães encolhe as orelhas e se mantém deitada e quieta diante dos inimigos, assim também ele tentou continuar a ler; mas sentiu que era absurdo e impossível, e mais uma vez olhou para a esposa timidamente. Ela não sentou e, com um sorriso de desprezo, fitava-o, esperando que o camareiro saísse.
— Que história é essa? O que você andou fazendo? Eu quero saber — perguntou ela, em tom severo.
— Eu?... O quê? Eu... — disse Pierre.
— Olhe só para o grande valente! Vamos, responda logo, que duelo foi esse? O que o senhor quer provar com isso? O quê? Estou perguntando ao senhor. — Pierre virou-se pesadamente no sofá, abriu a boca, mas não conseguiu responder.
— Se o senhor não responde, eu mesma vou falar... — continuou Hélène. — O senhor acredita em tudo o que lhe contam. Contaram ao senhor... — Hélène riu — ... que Dólokhov é meu amante — disse ela em francês, no seu modo grosseiro e direto de falar, pronunciando a palavra “amante” como uma palavra qualquer. — E o senhor acreditou! Mas o que foi que o senhor provou com isso? O que o senhor provou com esse duelo? Que o senhor é um tolo, que vous êtes un sot; mas disso todos já sabiam. Então qual vai ser a consequência? É que eu vou virar o motivo de riso de toda a Moscou; todos vão dizer que o senhor, embriagado e sem a menor ideia do que estava fazendo, desafiou para um duelo um homem de quem tinha ciúmes sem nenhum fundamento — Hélène elevava cada vez mais a voz e se empolgava —, e que é melhor do que o senhor em todos os aspectos...
— Hm... hm... — grunhiu Pierre, franzindo o rosto, sem olhar para ela e sem mover nenhum membro do corpo.
— E por que o senhor pôde acreditar que ele é meu amante?... Por quê? Porque eu gosto da companhia dele? Se o senhor fosse mais inteligente e mais simpático, eu preferiria a companhia do senhor.
— Não fale comigo... eu imploro — sussurrou Pierre, com voz rouca.
— E por que é que eu não vou falar? Eu posso falar e digo sem medo que é raro achar uma mulher com um marido como o senhor que não arranje amantes (des amants), mas eu não fiz isso — falou Hélène. Pierre quis dizer alguma coisa, fitou-a com olhos estranhos, cuja expressão ela não entendeu, e deitou-se outra vez. Ele sofria fisicamente naquele momento: sentia um aperto no peito e não conseguia respirar. Sabia que tinha de fazer alguma coisa para cessar aquele sofrimento, mas o que ele queria fazer era terrível demais.
— É melhor nos separarmos — disse ele, com voz entrecortada.
— Eu me separo, estou às suas ordens, mas só se o senhor me der a fortuna — disse Hélène. — Separar, olhe só com o que ele quer me meter medo!
Pierre levantou-se do sofá de um salto e, cambaleante, atirou-se contra ela.
— Vou matar você! — começou a gritar, arrancou da mesa o tampo de mármore com uma força que até então desconhecia, deu um passo na direção da esposa e ergueu-o na frente dela.
O rosto de Hélène tomou um aspecto terrível; ela soltou um grito estridente e afastou-se. A linhagem do pai manifestou-se nele. Pierre sentia o arrebatamento e o fascínio da fúria. Jogou para o lado o tampo de mármore, partiu-o e, aproximando-se de Hélène com as mãos abertas, gritou: “Fora!”, com uma voz tão estranha que, na casa inteira, ouviram com horror aquele grito. Deus sabe o que Pierre faria naquele momento se Hélène não saísse correndo do escritório.
Uma semana depois, Pierre deu à esposa uma procuração para administrar todas as suas propriedades na Grande Rússia,11 que formavam a parte principal da sua fortuna, e partiu sozinho para Petersburgo.
VII
Haviam se passado dois meses desde que chegaram a Montes Calvos as notícias sobre a batalha de Austerlitz e a morte do príncipe Andrei. E, apesar de todas as cartas enviadas por intermédio da embaixada e apesar de todas as buscas, seu corpo não foi localizado e seu nome não estava entre os prisioneiros. O pior de tudo para seus parentes era que, a despeito de tudo isso, restava uma esperança de ele ter sido recolhido pelos habitantes locais, no campo de batalha, e quem sabe estivesse convalescente, ou agonizante em algum lugar, sozinho, entre estranhos, e sem condições de mandar notícias. Nos jornais, por meio dos quais o velho príncipe tivera as primeiras informações sobre a derrota em Austerlitz, escreveram, como sempre, de modo resumido e vago ao extremo, que os russos, depois de batalhas brilhantes, tiveram de bater em retirada, e a retirada se dera em perfeita ordem. O velho príncipe compreendeu, daquela notícia oficial, que os nossos tinham sido derrotados. Uma semana depois de os jornais trazerem a notícia da batalha de Austerlitz, chegou uma carta de Kutúzov, comunicando ao príncipe a sorte que coubera ao seu filho.
“O filho do senhor, diante dos meus olhos”, escreveu Kutúzov, “com uma bandeira nas mãos, à frente de um regimento, tombou como um herói, digno do seu pai e da sua pátria. Para grande pesar meu e de todo o Exército, até agora não se sabe se está vivo ou morto. Por mim e pelo senhor, alimento a esperança de que o seu filho esteja vivo, do contrário, o seu nome estaria incluído entre os oficiais encontrados no campo de batalha, cuja lista me foi entregue pelos negociadores.”
Como recebeu essa notícia já bem tarde, quando estava sozinho em seu escritório, o velho príncipe não contou nada a ninguém. No dia seguinte, como de costume, ele saiu para a sua caminhada matinal; mas se manteve calado diante do administrador, do jardineiro e do arquiteto, e, embora tivesse um ar de cólera, não dizia nada para ninguém.
Quando a princesa Mária entrou em seu escritório no horário de costume, o velho príncipe estava junto ao torno mecânico, torneava uma peça de madeira, mas, como de costume, não se virou para olhar para ela.
— Ah! Princesa Mária! — falou de repente, de modo forçado, e pôs de lado o formão. (A roda continuou a girar com o impulso. A princesa Mária lembrou-se por muito tempo daquele rangido da roda, que foi morrendo aos poucos, e que para ela se fundiu ao que veio em seguida.)
A princesa Mária aproximou-se, viu o rosto do pai, e de repente algo desceu sobre ela. Seus olhos pararam de enxergar com clareza. Pelo rosto do pai, que não estava triste nem abatido, mas feroz e tenso de uma forma anormal, ela percebeu que uma infelicidade terrível, que já pairava sobre ela, estava prestes a esmagá-la, a pior infelicidade que já havia experimentado na vida, uma infelicidade irremediável, inconcebível, a morte de alguém que se ama.
— Mon père... André? — disse a princesa, desajeitada e sem graça, com um encanto de desgosto e de abnegação tão indescritível que o pai não suportou o seu olhar, soltou um soluço e lhe deu as costas.
— Recebi notícias. Não está na lista dos prisioneiros, nem na lista dos mortos. Kutúzov escreve... — gritou ele, em tom estridente, como se quisesse mandar a princesa embora com aquele grito. — Morto!
A princesa não caiu, não teve tonturas. Já estava pálida, mas quando ouviu aquelas palavras seu rosto se transformou, e algo se iluminou em seus olhos lindos e radiantes. Uma espécie de alegria, uma alegria suprema, independente das dores e das alegrias deste mundo, derramou-se por cima da dor forte que havia nela. A princesa esqueceu todo o medo que tinha do pai, aproximou-se dele, pegou sua mão, puxou-o para si e abraçou-o pelo pescoço magro e musculoso.
— Mon père — disse ela. — Não me dê as costas, vamos chorar juntos.
— Miseráveis! Canalhas! — começou a gritar o velho, afastando da filha o seu rosto. — Destruir o exército, destruir as pessoas! Para quê? Vá, vá, conte para Liza.
A princesa, sem forças, desabou numa poltrona ao lado do pai e desatou a chorar. Via agora o irmão no instante em que se despedia dela e de Liza, com o seu aspecto carinhoso e ao mesmo tempo altivo, via o irmão no instante em que ele, com carinho e um ar zombeteiro, pendurava o santinho no pescoço. “Será que ele acreditava? Será que se arrependeu da sua falta de fé? Será que está lá? Lá, na morada da beatitude e da serenidade eterna?”, pensava ela.
— Mon père, conte-me como aconteceu — pediu, entre lágrimas.
— Vá, vá; morto numa batalha em que enviaram para morrer as melhores pessoas da Rússia e a glória russa. Vá, princesa Mária. Vá e conte para Liza. Eu irei depois.
Quando a princesa Mária voltou da conversa com o pai, a pequena princesa estava sentada, se dedicava a seu trabalho, e olhou para a princesa Mária com aquela expressão especial de um olhar interior e serenamente feliz, peculiar das mulheres grávidas. Era evidente que os seus olhos não viam a princesa Mária, mas olhavam para dentro, para ela mesma — para algo feliz e misterioso que se cumpria dentro dela.
— Marie — disse Liza, afastando o bastidor e inclinando-se com esforço para trás. — Dê aqui a sua mão. — Pegou a mão da princesa e colocou-a sobre a barriga.
Seus olhos sorriram, à espera, o lábio com um bigodinho levantou-se e se manteve levantado, numa felicidade infantil.
A princesa Mária ficou de joelhos diante dela e escondeu o rosto nas dobras do vestido da cunhada.
— Olhe, olhe... está sentindo? Para mim é tão estranho... Sabe, Mária, eu vou amar muito o meu filho — disse Liza, fitando a cunhada com os olhos radiantes de felicidade. A princesa Mária não conseguia levantar a cabeça: estava chorando.
— O que você tem, Macha?
— Não é nada... é que fiquei triste... triste pelo Andrei — disse ela, enxugando as lágrimas nos joelhos da cunhada. Por diversas vezes, no correr da manhã, a princesa Mária começou a preparar a cunhada e, em todas as vezes, se pôs a chorar. As lágrimas, cuja razão a pequena princesa não entendia, deixaram-na alarmada, embora fosse muito pouco observadora. Não dizia nada, mas olhava inquieta para os lados, em busca de alguma coisa. Antes do almoço, veio ao seu quarto o velho príncipe, a quem ela sempre temia, e que agora tinha o rosto especialmente inquieto e feroz, e saiu sem dizer nenhuma palavra. Liza olhou para a princesa Mária, depois refletiu um pouco, com aquela expressão de uma atenção dos olhos voltada para dentro de si, que ocorre nas mulheres grávidas, e de repente começou a chorar.
— Receberam alguma notícia do Andrei? — disse ela.
— Não, você sabe que ainda não seria possível chegarem notícias, mas mon père anda inquieto, e eu fico assustada.
— Então não há nada?
— Nada — disse a princesa Mária, com os olhos radiantes que fitavam a cunhada com firmeza. Resolveu não contar para ela e convencer o pai a esconder da cunhada a terrível notícia, até o parto, que devia acontecer em poucos dias. A princesa Mária e o velho príncipe, cada um à sua maneira, suportavam e escondiam sua dor. O velho príncipe não queria ter esperanças: resolveu que o príncipe Andrei estava morto e, apesar de ter enviado um funcionário até a Áustria em busca do rastro do filho, encomendou em Moscou um monumento em memória dele, com a intenção de colocá-lo no jardim, e a todos dizia que o filho tinha sido morto. Esforçava-se para manter seu antigo modo de vida, mas as forças lhe faltavam: caminhava menos, comia menos, dormia menos e a cada dia ficava mais fraco. A princesa Mária tinha esperanças. Rezava pelo irmão, como por uma pessoa viva, e esperava a todo minuto notícias do seu regresso.
VIII
— Ma bonne amie — disse a pequena princesa, na manhã do dia 19 de março, depois do desjejum, e seu lábio com um bigodinho levantou-se por um velho hábito; porém, como havia uma dor não só em todos os sorrisos, mas também em todos os sons da fala, e até nos passos, naquela casa, desde o dia em que chegara a notícia terrível, também agora o sorriso da pequena princesa, rendendo-se ao estado de ânimo geral, embora ela ignorasse a sua causa, tinha tal aspecto que trazia mais ainda à lembrança aquela dor geral.
— Ma bonne amie, je crains que le fruschtique (comme dit Foká, o cozinheiro) de ce matin ne m’ait fait du mal.12
— O que você tem, minha querida? Está pálida. Ah, está muito pálida — disse a princesa Mária, assustada, enquanto se aproximava da cunhada, com seus passos suaves e lentos.
— Vossa excelência não quer que mande chamar a Mária Bogdánovna? — perguntou uma criada que estava ali. (Mária Bogdánovna era a parteira de uma vila do distrito, que estava morando em Montes Calvos já fazia uma semana.)
— De fato — concordou a princesa Mária —, talvez seja preciso. Eu vou chamar. Courage, mon ange! 13 — Beijou Liza e fez menção de sair do quarto.
— Ah, não, não! — E no rosto da pequena princesa, além da palidez, exprimiu-se o pavor infantil do sofrimento físico inevitável.
— Non, c’est l’estomac... Dites que c’est l’estomac, dites, Marie, dites...14 — E a princesinha desatou a chorar de modo caprichoso, num sofrimento infantil e até um tanto fingido, retorcendo as mãozinhas miúdas. A princesa saiu do quarto correndo para buscar Mária Bogdánovna.
— Ah. Mon Dieu! Mon Dieu! 15 — ouviu às suas costas.
Esfregando as mãos gordas, brancas e pequenas, a parteira já acudia ao seu encontro, com o rosto calmo e compenetrado.
— Mária Bogdánovna! Parece que começou — disse a princesa Mária, de olhos arregalados de susto diante da velhinha.
— Bem, graças a Deus, princesa — disse Mária Bogdánovna, sem interromper os passos. — As senhoras, as donzelas, não entendem dessas coisas.
— Mas e o médico que ainda não chegou de Moscou! — disse a princesa. (Segundo o desejo de Liza e de Andrei, mandaram vir, no prazo marcado, um médico parteiro de Moscou e aguardavam a sua chegada a qualquer momento.)
— Não tem importância, princesa, não fique nervosa — disse Mária Bogdánovna. — Mesmo sem o médico, tudo vai correr bem.
Cinco minutos depois, a princesa ouviu, do seu quarto, que carregavam algo pesado. Pôs a cabeça na porta para olhar — por algum motivo, copeiros carregaram para o quarto de dormir o sofá de couro que ficava no escritório do príncipe Andrei. Havia algo solene e calmo no rosto dos carregadores.
A princesa Mária ficou sentada sozinha no seu quarto, atenta aos sons da casa, abria a porta de vez em quando, se passava alguém, e dava uma olhada no que estava acontecendo no corredor. Várias mulheres andavam para lá e para cá, em passos silenciosos, viravam-se para olhar para a princesa e lhe davam as costas. Ela não tinha coragem de perguntar, fechava a porta, voltava para o quarto e ora ficava sentada em sua poltrona, ora se agarrava ao livro de orações, ora se punha de joelhos diante dos ícones. Para sua infelicidade e surpresa, sentia que as preces não aplacavam sua comoção. De repente a porta se abriu devagar e, na soleira, surgiu, envolta num xale, a sua velha babá, Prascóvia Sávichna, que quase nunca entrava no seu quarto, conforme uma proibição do príncipe.
— Vim ficar com você um pouquinho, Máchenka — disse a babá. — Olhe, eu trouxe as velas do casamento do príncipe para acender diante dos santos, meu anjo — disse ela, ao entrar.
— Ah, como isso me deixa contente, babá.
— Deus é misericordioso, minha cara. — A babá acendeu diante dos ícones velas envoltas em ouro e sentou-se junto à porta, tricotando uma meia de lã. A princesa Mária pegou um livro e começou a ler. Só quando se ouviam passos ou vozes, a princesa, com ar assustado, interrogativo, e a babá olhavam uma para a outra. O mesmo sentimento que a princesa Mária experimentava, sentada em seu quarto, derramava-se por todos os cantos da casa e a todos dominava. Conforme a crendice de que, quanto menos gente sabe dos sofrimentos da parturiente, menos ela sofre, todos tentavam fingir não saber de nada; ninguém falava do assunto, mas em todas as pessoas, além da habitual gravidade e do respeito às boas maneiras que imperavam na casa do príncipe, percebia-se uma espécie de cuidado geral, uma brandura no coração e a consciência de que algo grande, inconcebível, se realizava naquele momento.
No amplo quarto das criadas, não se ouvia nenhum riso. No cômodo dos copeiros, todos estavam em silêncio, a postos para alguma coisa. Nos aposentos da criadagem, acenderam velas e lascas de madeira e não dormiam. O velho príncipe, pisando com os calcanhares, andava dentro do seu escritório e mandou Tíkhonka perguntar para Mária Bogdánovna o que havia.
— Diga só isto: o príncipe mandou perguntar o que há. E venha me contar o que ela disse.
— Comunique ao príncipe que o parto começou — disse Mária Bogdánovna, depois de fitar o mensageiro com ar importante. Tíkhon voltou e trouxe a resposta.
— Está bem — disse o príncipe, fechando a porta atrás de si, e Tíkhon não ouviu nenhum ruído no escritório. Depois de esperar um pouco, Tíkhon entrou no escritório como se fosse para ajeitar as velas. Ao ver que o príncipe estava deitado no sofá, Tíkhon olhou para ele, para o seu rosto abalado, balançou a cabeça, aproximou-se em silêncio e, depois de beijar o seu ombro, saiu, sem ajeitar as velas e sem dizer para que tinha vindo. O mistério, o mais solene do mundo, continuava a se cumprir. Terminou o entardecer, começou a noite. E o sentimento de expectativa e de brandura no coração diante do inconcebível não diminuía, mas aumentava. Ninguém dormia.
Era uma dessas noites de março em que o inverno parece querer retomar o seu domínio e derrama, com uma fúria desesperada, a última neve e as últimas tempestades. Ao encontro do médico alemão que vinha de Moscou e era esperado a qualquer minuto, tinha sido enviada uma muda de cavalos para a estrada principal, e cavaleiros com lanternas também foram enviados para o cruzamento com as estradas vicinais, a fim de guiar o médico pelos buracos e atoleiros de gelo derretido na estrada.
A princesa Mária havia muito que deixara o livro de lado: sentada em silêncio, cravava os olhos radiantes no rosto da babá, enrugado e conhecido em seus mínimos detalhes: as mechinhas de cabelos grisalhos que saíam por baixo do xale, o saquinho de pele que pendia embaixo do queixo.
A babá Sávichna, com a meia de lã nas mãos, contava em voz baixa, sem ouvir e sem entender ela mesma as próprias palavras, a história, já repetida centenas de vezes, de como a falecida princesa dera à luz a princesa Mária, em Kichenióv, assistida por uma camponesinha moldava, em vez de por uma velha experiente.
— Deus ajuda, ninguém precisa de médico nenhum — disse ela. De repente, uma rajada de vento bateu com força num dos caixilhos da janela do qual fora retirado o vidro (por ordem do príncipe, quando chegavam as cotovias, em todos os cômodos sempre se deixava um caixilho sem vidro)16 e, depois de rebentar um ferrolho mal fechado, o vento sacudiu a cortina adamascada e, num sopro frio, com neve, apagou a vela. A princesa Mária estremeceu; a babá pôs de lado a meia de lã, foi até a janela e, debruçada para fora, tentou pegar a banda da janela arrombada. O vento frio sacudia as pontas do seu xale e as mechas soltas dos cabelos grisalhos.
— Princesa, querida, está vindo alguém pela alameda! — exclamou, segurando a banda da janela, sem fechá-la. — Com lanternas; deve ser o médico...
— Ah, meu Deus! Graças a Deus! — disse a princesa Mária. — Tenho de ir recebê-lo: ele não sabe falar russo.
A princesa Mária cobriu-se com um xale e correu ao encontro de quem estava chegando. Quando passou pela antessala, viu pela janela que uma carruagem com lanternas estava parada na entrada. Ela saiu na direção da escada. Numa colunazinha do corrimão, havia uma vela de sebo acesa que gotejava por causa do vento. O copeiro Filipp, com o rosto assustado e outra vela na mão, estava parado mais abaixo, no primeiro patamar da escada. Mais abaixo ainda, depois da curva da escada, ouviam-se passos que se aproximavam, em botas de neve. E uma voz algo familiar, assim pareceu à princesa Mária, falava.
— Graças a Deus! — disse a voz. — E o papai?
— Deitou-se para dormir — respondeu a voz do mordomo Demian, que já havia descido.
Depois, aquela voz falou mais alguma coisa, Demian respondeu, e os passos das botas de neve começaram a se aproximar mais depressa da curva da escada, que ela não via. “É o Andrei!”, pensou a princesa Mária. “Não, não pode ser, seria extraordinário demais”, pensou, e, no instante em que pensou isso, no patamar da escada onde estava o copeiro com uma vela na mão, surgiu o rosto e a figura do príncipe Andrei, de casaco de pele, com a gola coberta de neve. Sim, era ele, porém pálido e magro, e com uma expressão mudada, estranhamente suavizada, embora firme, no rosto. Avançou pela escada e abraçou a irmã.
— Não receberam minha carta? — perguntou e, sem esperar a resposta, que ele também não receberia, pois a princesa não conseguia falar, o príncipe Andrei voltou atrás e, agora com o médico parteiro, que entrara em seguida (os dois se encontraram na última estação de muda de cavalos), avançou pela escada a passos ligeiros e de novo abraçou a irmã.
— Que lance do destino! — exclamou ele. — Macha, querida! — E, depois de tirar o casaco e as botas, seguiu para os aposentos da princesa.
IX
A pequena princesa estava deitada sobre travesseiros, de touquinha branca (o sofrimento havia diminuído naquele instante), os cabelos pretos se enroscavam em mechas sobre as suas faces inflamadas, cobertas de suor; a boquinha rosada, encantadora, com o lábio coberto por cabelinhos pretos, estava aberta, e ela sorria de modo alegre. O príncipe Andrei entrou no quarto e parou de frente para ela, junto ao pé do sofá onde estava deitada. Os olhos brilhantes, que fitavam com emoção e um ar de susto infantil, detiveram-se nele, sem mudar de expressão. “Eu amo todos vocês, não fiz mal a ninguém, por que estou sofrendo? Ajudem-me”, dizia a sua fisionomia. Ela via o marido, mas não entendia o significado da sua aparição, agora, diante dela. O príncipe Andrei contornou o sofá e beijou-a na testa.
— Minha querida! — disse ele, uma expressão que nunca lhe dizia. — Deus é misericordioso... — Ela o fitava de modo interrogativo, com um ar de censura infantil.
“De você, eu esperava ajuda, mas nada, nada, nem de você!”, diziam os olhos dela. A pequena princesa não se admirava de ele ter vindo; não compreendia que ele havia chegado. A sua chegada não tinha nenhuma relação com os seus sofrimentos nem com o seu alívio. Os tormentos recomeçaram, e Mária Bogdánovna aconselhou o príncipe Andrei a sair do quarto.
O médico parteiro entrou. O príncipe Andrei saiu e, ao encontrar a princesa Mária, aproximou-se dela outra vez. Conversavam em sussurros, mas a todo instante a conversa silenciava. Esperavam e escutavam com atenção.
— Allez, mon ami 17 — disse a princesa Mária. O príncipe Andrei foi de novo para os aposentos da esposa, sentou-se num cômodo vizinho ao que ela estava e aguardou. Uma mulher saiu do quarto dela, com o rosto assustado, e se perturbou ao ver o príncipe Andrei. Ele cobriu o rosto com as mãos e ficou sentado, assim, alguns minutos. Gemidos queixosos, de um animal indefeso, ouviam-se do outro lado da porta. O príncipe Andrei levantou-se, aproximou-se da porta e quis abri-la. Alguém segurava a porta.
— Não pode, não pode! — exclamou de lá uma voz assustada. Ele se pôs a andar pelo quarto. Os gritos cessaram, mais alguns segundos passaram. De repente, um grito terrível — não dela, ela não podia gritar assim — irrompeu no quarto vizinho. O príncipe Andrei correu para junto da porta; o grito cessou, mas ouviu-se um outro grito, o grito de um bebê.
“Para que trouxeram um bebê aqui?”, pensou no primeiro instante o príncipe Andrei. “Um bebê? Qual?... Por que tem um bebê lá dentro? Ou será que esse bebê nasceu?”
Quando, de repente, compreendeu todo o sentido feliz daquele grito, as lágrimas o sufocaram, e ele, apoiando-se com as duas mãos no peitoril da janela, soluçou, chorou, como choram as crianças. A porta abriu. O médico, com as mangas da camisa arregaçadas, sem casaco, pálido, com o queixo trêmulo, saiu do quarto. O príncipe Andrei dirigiu-se a ele, mas o médico lançou-lhe um olhar desnorteado e, sem dizer nenhuma palavra, retirou-se. Uma mulher saiu do quarto correndo, mas, ao ver o príncipe Andrei, parou hesitante na soleira da porta. Ele entrou no quarto da esposa. Ela jazia morta na mesma posição em que a vira cinco minutos antes, e, apesar dos olhos parados e da palidez das faces, havia a mesma expressão naquele rostinho encantador, tímido, infantil, com o lábio coberto por cabelinhos pretos.
“Eu amava vocês todos, não fiz mal nenhum a ninguém, e o que vocês fizeram comigo? Ah, o que vocês fizeram comigo?”, dizia o seu rosto encantador, sofrido e morto. Num canto do quarto, alguma coisa pequena, vermelha, soltava pios e grunhidos nas mãos brancas e trêmulas de Mária Bogdánovna.
Duas horas depois, o príncipe Andrei entrou no escritório do pai, a passos silenciosos. O velho já sabia de tudo. Estava parado junto à porta e, assim que ela abriu, o velho, em silêncio, com os braços ásperos e decrépitos, enlaçou como um torno o pescoço do filho e começou a soluçar como uma criança.
Três dias depois, a pequena princesa foi enterrada e, para despedir-se dela, o príncipe Andrei subiu os degraus do estrado onde estava o caixão. E dentro do caixão estava o mesmo rosto, embora de olhos fechados. “Ah, o que vocês fizeram comigo?”, continuava a dizer, e o príncipe Andrei sentiu que algo se rompeu na sua alma, que ele era culpado de uma falta que não podia remediar nem esquecer. Ele não conseguia chorar. O velho também entrou e beijou a mãozinha dela, cor de cera, pousada serena e alta sobre a outra mão, e o rosto lhe disse: “Ah, o que e por que vocês fizeram isso comigo?”. E o velho virou-se, zangado, ao perceber aquele rosto.
Só cinco dias depois o pequeno príncipe Nikolai Andreitch foi batizado. A ama de leite segurou a fralda com o queixo, no momento em que o sacerdote passou uma peninha de ganso nas palminhas das mãos enrugadas e vermelhas e nas solas dos pés do bebê.
O padrinho — o avô —, trêmulo, com receio de deixá-lo cair, carregou o bebê ao redor da pia batismal, de lata e amassada, e entregou-o para a madrinha, a princesa Mária. O príncipe Andrei, quase desfalecendo de medo de que afogassem a criança, ficou num outro cômodo, à espera do final do sacramento. Lançou um olhar alegre para o bebê quando a babá o trouxe para ele e acenou com a cabeça, em sinal de aprovação, quando a babá comunicou que a bolinha de cera com cabelinhos da criança não afundara ao ser colocada na água da pia batismal, mas flutuara.18
X
A participação de Rostóv no duelo de Dólokhov com Bezúkhov foi abafada, graças aos esforços do velho conde, e Rostóv, em lugar de ser rebaixado, como esperava, foi nomeado ajudante de ordens do governador-geral de Moscou. Por isso ele não pôde ir para o campo com toda a família, ficou preso às suas novas obrigações em Moscou durante todo o verão. Dólokhov se restabeleceu, e Rostóv tomou por ele uma amizade especial, durante a sua convalescença. Doente, Dólokhov ficou na casa da mãe, que o amava com paixão e ternura. A velhinha Mária Ivánovna, que se afeiçoara a Rostóv por sua amizade com Fiédia, lhe falava constantemente sobre o filho.
— Sim, conde, ele é uma alma muito nobre e pura — dizia ela —, para o nosso mundo depravado de hoje em dia. Ninguém gosta da virtude, ela arde nos olhos de todo mundo. Mas me diga, conde, foi justo, foi honrado isso o que o Bezúkhov fez? E o Fiédia, com a sua nobreza, gostava dele, e ainda agora nunca diz nenhuma palavra ruim sobre ele. Em Petersburgo, teve aquelas travessuras com um guarda de quarteirão, fizeram lá umas brincadeiras, e eles dois não estavam juntos? E, veja só, com o Bezúkhov não aconteceu nada, tudo foi cair nas costas do Fiédia! Nem lhe conto o que ele teve de suportar! Está certo, foi promovido de novo, mas, também, como é que podiam não promover? Acho que jovens como ele, um bravo, um filho da pátria, devia haver poucos por lá. E, agora, vem esse duelo. Será que essa gente tem sentimento, honra? Sabendo que ele é filho único, desafiar para um duelo, e atirar bem em cima! Que bom que Deus teve misericórdia de nós. E para quê, afinal? Ora, quem é que em nosso tempo não tem lá as suas intrigas? Puxa, se ele estava tão enciumado, eu acho que podia ter dado algum sinal antes, afinal de contas fazia um ano que aquilo já estava acontecendo. E então ele fez o desafio para um duelo achando que o Fiédia não ia se bater porque lhe devia algum dinheiro. Que baixeza! Que sordidez! Eu sei, o senhor entendeu o Fiédia, meu caro conde, por isso eu gosto do senhor, de coração, acredite. Pouca gente o compreende. É um espírito tão elevado, celestial...
O próprio Dólokhov, durante a sua convalescença, muitas vezes dizia para Rostóv palavras que ele jamais esperaria ouvir do amigo.
— Acham que sou uma pessoa má, eu sei — disse —, deixe que pensem. Não quero saber de ninguém, exceto daqueles de quem gosto; mas aqueles de quem gosto, eu gosto a ponto de dar a vida por eles, e o resto, eu esmago todos os que ficarem no meu caminho. Tenho uma mãe adorada, inestimável, dois ou três amigos, você entre eles, e nos outros só presto atenção quando são úteis ou nocivos. E quase todos são prejudiciais, sobretudo as mulheres. Sim, meu caro — prosseguiu —, homens, eu já encontrei afetuosos, nobres, elevados; mas nas mulheres, seja condessa ou cozinheira, ainda não encontrei nada, senão bestas que se vendem. Ainda não encontrei aquela pureza celestial, aquela devoção que eu procuro nas mulheres. Se um dia eu achasse uma mulher assim, daria a minha vida por ela. Mas essas!... — Fez um gesto de desprezo. — E, acredite em mim, se eu ainda tenho algum apreço à vida, é só porque ainda espero encontrar essa criatura celestial que me regeneraria, purificaria e elevaria. Mas você não entende isso.
— Não, eu entendo muito bem — respondeu Rostóv, que se encontrava sob a influência do novo amigo.
No outono, a família Rostóv voltou para Moscou. No início do inverno, Deníssov também voltou e hospedou-se em casa dos Rostóv. Aquele inverno de 1806, o primeiro que Nikolai Rostóv passava em Moscou, foi um dos mais felizes e alegres para ele e para toda a sua família. Atraíra consigo, para a casa dos pais, muitos rapazes. Vera era uma bela moça de vinte anos; Sônia era uma mocinha de dezesseis, com todo o encanto de uma flor que acaba de desabrochar; Natacha era meio mulher, meio menina, ora criança engraçada, ora moça fascinante.
Na casa dos Rostóv, naquela ocasião, pairava uma atmosfera especial de sentimentos amorosos, como acontece numa casa onde há mocinhas muito gentis e muito jovens. Todo rapaz que vinha à casa dos Rostóv, ao ver aqueles rostos jovens e receptivos de moças que riam sem saber de quê (provavelmente da própria felicidade), ao ver aquela correria animada, ao ouvir aquele tagarelar feminino, jovem, incoerente, mas carinhoso com todos, pronto para tudo e cheio de esperança, ao ouvir aqueles sons incoerentes, ora de cantos, ora de instrumentos musicais, experimentava aquele mesmo sentimento de disposição para o amor e de esperança de felicidade que as jovens da casa dos Rostóv experimentavam.
Entre os rapazes apresentados por Rostóv, um dos primeiros foi Dólokhov, de quem todos na casa gostaram, exceto Natacha. Por causa de Dólokhov, ela quase brigou com o irmão. Natacha insistia em que ele era má pessoa, que, no duelo, Pierre estava certo e Dólokhov estava errado, que ele era desagradável e artificial.
— Não há nada o que entender! — gritou Natacha, com uma cisma obstinada. — Ele é mau e sem sentimentos. Já o seu Deníssov, desse eu gosto, também é um farrista, mas mesmo assim eu gosto dele, portanto eu compreendo, sim. Não sei como dizer... O outro já tem tudo calculado, e disso eu não gosto. O Deníssov...
— Bem, o Deníssov é um caso diferente — retrucou Nikolai, dando a entender que, em comparação com Dólokhov, até Deníssov não era nada. — É preciso entender que alma tem o Dólokhov, é preciso vê-lo com a mãe, que coração ele tem!
— Disso eu já não sei nada, mas sei que não fico à vontade com ele. E você sabia que ele está apaixonado pela Sônia?
— Que bobagem...
— Tenho certeza, você vai ver.
A previsão de Natacha se realizou. Dólokhov, que não gostava do convívio com as damas, passou a frequentar a casa com assiduidade, e a questão de quem era o motivo de suas visitas logo encontrou a resposta (embora ninguém falasse sobre o assunto), quando se estabeleceu a certeza de que ele vinha por causa de Sônia. E Sônia, embora nunca se atrevesse a falar sobre isso, sabia que era assim, e toda vez ficava muito vermelha em presença de Dólokhov.
Muitas vezes, Dólokhov almoçava na casa dos Rostóv, nunca perdia um espetáculo a que eles comparecessem e frequentava os bailes para adolescentes19 em casa de Vogel, aonde os Rostóv sempre iam. Prestava uma atenção especial em Sônia e a fitava com tais olhos que não só a jovem não conseguia enfrentar aquele olhar sem ficar vermelha, como a velha condessa e Natacha também se ruborizavam, ao perceber o olhar.
Era evidente que aquele homem forte e estranho se achava sob a influência irresistível da moreninha graciosa, que amava outro.
Rostóv percebeu algo novo entre Dólokhov e Sônia; mas não definiu para si que novas relações eram aquelas. “Estão sempre apaixonadas por alguém”, pensava ele, a respeito de Sônia e de Natacha. Mas Nikolai já não se sentia à vontade como antes quando estava com Sônia e Dólokhov, e passou a ficar menos tempo em casa.
A partir do outono de 1806, todos voltaram a falar sobre a guerra contra Napoleão, ainda com mais fervor do que no ano anterior.20 Foi decretado o recrutamento não só de dez homens em cada mil habitantes para o Exército regular, como também de nove em cada mil, para as milícias. Em toda parte, lançavam o anátema contra Napoleão, e em Moscou não se falava de outra coisa que não da guerra iminente. Para a família Rostóv, todo o interesse de tais preparativos para a guerra residia apenas em que Nikóluchka não admitia de maneira nenhuma ficar em Moscou e só estava esperando o fim das férias de Deníssov para partir junto com ele para o regimento, depois das festas de fim de ano. A partida iminente não só não o impedia de divertir-se como o estimulava mais ainda a fazê-lo. Passava a maior parte do tempo fora de casa, em jantares, saraus e bailes.
XI
No terceiro dia depois do Natal, Nikolai jantou em casa, o que ultimamente era raro acontecer. Tratava-se de um jantar oficial de despedida, já que ele e Deníssov iriam para o regimento depois da Epifania. Cerca de vinte pessoas participavam do jantar, entre elas Dólokhov e Deníssov.
Nunca na casa dos Rostóv a atmosfera amorosa se fizera sentir com tanta força como naqueles feriados. “Agarre os minutos de felicidade, faça-se amar e apaixone-se também! Só isso é real no mundo, o resto é bobagem. E aqui, nós só estamos interessados nisso”, dizia aquela atmosfera.
Nikolai, como sempre, depois de exaurir duas parelhas de cavalos sem, no entanto, conseguir estar em todos os lugares aonde precisava ir e para os quais tinha sido convidado, chegou em casa em cima da hora do jantar. Assim que entrou, percebeu e sentiu a tensão da atmosfera amorosa na casa, porém, além disso, notou a estranha perturbação que imperava entre alguns dos presentes. Especialmente agitados estavam Sônia, Dólokhov, a velha condessa e, um pouco, Natacha. Nikolai entendeu que devia ter acontecido alguma coisa entre Sônia e Dólokhov antes do jantar e, com a sensibilidade de coração que lhe era própria, Nikolai mostrou-se muito afetuoso e delicado com ambos durante o jantar. Nessa mesma noite do terceiro dia após o Natal, devia realizar-se na casa de Vogel (o professor de dança) um daqueles bailes que ele oferecia nos feriados para todos os seus alunos e alunas.
— Nikólienka, você não vai à casa do Vogel? Por favor, vá sim — disse Natacha. — Ele fez um convite especial para você, e o Vassíli Dmítritch (era Deníssov) também vai.
— Aonde é que eu não vou para atender um pedido da linda condessa? — disse Deníssov, que em casa dos Rostóv representava jocosamente o papel de escudeiro de Natacha. — Estou pronto para dançar o pas de châle.21
— Se eu tiver tempo! Prometi aos Arkhárov, eles estão dando um sarau hoje — disse Nikolai. — E você?... — voltou-se para Dólokhov. E assim que perguntou, percebeu que nem era necessário fazer a pergunta.
— Sim, pode ser... — respondeu Dólokhov, com frieza e irritação, depois de lançar um olhar para Sônia e, de sobrancelhas franzidas, exatamente com o mesmo olhar com que no banquete do Clube Inglês havia fitado Pierre, olhou de novo para Nikolai.
“Há alguma coisa”, pensou Nikolai, e ficou ainda mais convencido daquela suposição quando Dólokhov se retirou logo depois do jantar. Chamou Natacha e perguntou o que havia.
— Mas eu estava mesmo procurando você — respondeu Natacha. — Eu bem que lhe disse, e você não quis acreditar — disse ela em tom de triunfo. — Ele pediu Sônia em casamento.
Por menos que Nikolai se interessasse por Sônia naquela ocasião, algo dentro dele pareceu se romper ao ouvir aquilo. Dólokhov era um ótimo partido e, em certos aspectos, até mesmo excepcional para uma jovem órfã e sem dote como Sônia. Do ponto de vista da velha condessa e da sociedade, era impossível rejeitá-lo. Por isso, o primeiro sentimento de Nikolai, ao saber daquilo, foi de rancor em relação a Sônia. Já se preparava para dizer: “Que ótimo, e é claro que é preciso deixar de lado as promessas infantis e aceitar esse pedido”; mas não teve tempo de dizê-lo...
— E você nem imagina! Ela recusou, recusou de modo inapelável! — falou Natacha. — Disse que amava outro — acrescentou, após um momento de silêncio.
“A minha Sônia não poderia mesmo agir de outro modo!”, pensou Nikolai.
— Por mais que mamãe lhe pedisse, ela recusou, e eu sei que ela não vai voltar atrás no que disse...
— E a mamãe pediu a ela! — exclamou Nikolai em tom de censura.
— Foi — disse Natacha. — Sabe, Nikólienka, não fique zangado; mas eu sei que você não vai casar com ela. Eu sei, só Deus sabe por quê, mas eu sei com certeza que você não vai casar com ela.
— Ora, isso é uma coisa que você não sabe mesmo — retrucou Nikolai. — Mas eu preciso conversar com ela. Que encanto, essa Sônia! — acrescentou ele, sorrindo.
— É mesmo um encanto! Vou trazê-la até você. — Natacha beijou o irmão e saiu correndo.
Um minuto depois, Sônia entrou, assustada, atônita e culpada. Nikolai aproximou-se dela e beijou sua mão. Desde a chegada de Nikolai, era a primeira vez que os dois se falavam cara a cara, e a respeito do seu amor.
— Sophie — disse ele, de início tímido e depois cada vez mais audacioso —, a senhora quer rejeitar um partido não só excelente, como também vantajoso; e ele é uma pessoa ótima, nobre... é meu amigo...
Sônia o interrompeu.
— Já rejeitei — disse, depressa.
— Se está rejeitando por mim, eu receio que, da minha parte...
Sônia o interrompeu de novo. Ela o fitava com um olhar suplicante, assustado.
— Nicolas, não me diga isso — falou.
— Não, eu devo. Talvez seja suffisance 22 da minha parte, mas é melhor falar tudo. Se a senhora está rejeitando esse pedido por minha causa, tenho de lhe dizer toda a verdade. Eu amo você, eu acho, mais do que tudo.
— Para mim, isso já basta — disse Sônia, ruborizada.
— Não, acontece que eu já me apaixonei mil vezes e vou me apaixonar de novo, embora não tenha por ninguém um sentimento de amizade, de confiança, de amor, como este que tenho pela senhora. Afinal, sou jovem. Maman não quer isso. Pois bem, eu simplesmente não prometo nada. E peço à senhora que reflita melhor sobre a proposta de Dólokhov — disse Nikolai, pronunciando com dificuldade o nome do amigo.
— Não me diga isso. Não quero nada. Amo o senhor como um irmão e sempre amarei, e não preciso de mais nada.
— A senhora é um anjo, eu não mereço a senhora, mas apenas receio criar uma ilusão na senhora. — Nikolai beijou-lhe a mão outra vez.
XII
Na casa de Vogel, havia os bailes mais animados de Moscou. Assim falavam as mães, olhando para as suas adolescentes, enquanto estas executavam os passos que tinham acabado de aprender; assim falavam as próprias adolescentes e os adolescents que dançavam até cair de cansados; assim falavam as moças e os rapazes já adultos que vinham àqueles bailes com a ideia de aceitar o convite por gentileza, mas acabavam encontrando neles a melhor diversão. Naquele mesmo ano, armaram-se dois casamentos naqueles bailes. As duas bonitas princesas Gortchakóv encontraram noivos e casaram, e desse modo aumentaram mais ainda a fama dos bailes. O singular naqueles bailes era que não tinham anfitrião nem anfitriã: havia, sim, o simpático Vogel, que voava como uma pena, fazia rapapés segundo as regras da sua arte e recebia de todos os convidados bilhetinhos em troca de lições;23 além disso, àqueles bailes só ia quem estava disposto a dançar e divertir-se, como desejam as meninas de treze ou catorze anos que usam pela primeira vez um vestido longo. Todas, com pouquíssimas exceções, eram ou pareciam bonitas: tamanho o entusiasmo em seus sorrisos, tamanho o ardor em seus olhos. Às vezes, as melhores alunas dançavam até o pas de châle, e a melhor de todas era Natacha, que se destacava por sua graça; porém, naquele último baile, só estavam dançando a escocesa, a inglesa e a mazurca, que acabara de entrar na moda. Vogel pedira a Bezúkhov que cedesse um dos salões da sua casa, e o baile era um sucesso, como todos diziam. Eram muitas as mocinhas bonitas, mas as senhoritas da família Rostóv eram as mais belas. As duas estavam especialmente felizes e alegres naquela noite. Sônia, orgulhosa do pedido feito por Dólokhov, da sua recusa e da conversa com Nikolai, ainda antes de sair de casa circulava sem parar e não deixava que a criada terminasse de prender suas tranças, e agora toda ela resplandecia com uma alegria impetuosa.
Natacha, não menos orgulhosa por usar, pela primeira vez, um vestido longo, e num baile de verdade, estava mais feliz ainda. As duas usavam vestidos brancos de musselina, com fitas cor-de-rosa.
Natacha ficou apaixonada no mesmo instante em que entrou no baile. Não ficou apaixonada por alguém em especial, mas por todos. Ficava apaixonada por qualquer um para quem olhasse, no mesmo instante em que olhava.
— Ah, como é bonito! — dizia ela sem parar, correndo para perto de Sônia.
Nikolai e Deníssov andavam pelas salas, olhavam com carinho e com ar protetor para as moças que dançavam.
— Como ela é graciosa, vai ser uma beldade — disse Deníssov.
— Quem?
— A condessa Natacha — respondeu Deníssov. — E como dança, que graça! — falou de novo, após um breve silêncio.
— Mas de quem você está falando?
— Da sua irmã, ora essa — gritou Deníssov, irritado. Rostóv sorriu.
— Mon cher comte; vous êtes l’un des mes meilleurs écoliers, il faut que vous dansiez — disse o pequenino Vogel, aproximando-se de Nikolai. — Voyez combien de jolies demoiselles.24 — E, com o mesmo pedido, dirigiu-se a Deníssov, também seu ex-aluno.
— Non, mon cher, je ferai tapisserie 25 — respondeu Deníssov. — Será que o senhor não lembra como aproveitei mal as suas lições?...
— Oh, não! — disse Vogel, apressando-se para incentivá-lo. — O senhor apenas não prestava atenção, mas tinha talento, sim, o senhor tinha talento.
Começaram a tocar a mazurca, introduzida nos bailes pouco antes. Nikolai não recusou o apelo de Vogel e convidou Sônia para dançar. Deníssov sentou-se junto às velhas e, com o cotovelo apoiado no sabre, marcando o compasso com o pé, relatava algo com alegria e fazia rir as damas idosas, ao mesmo tempo que olhava para a juventude que dançava. Vogel formava o primeiro par com Natacha, o seu orgulho e a sua melhor aluna. Com suavidade, ternura, movendo os pezinhos em seus sapatinhos, primeiro Vogel saiu voando pelo salão, junto com Natacha, que mesmo tímida executava os passos com esmero. Deníssov não tirava os olhos dela e, com o sabre, marcava o ritmo com uma expressão que dizia claramente que ele mesmo não estava lá dançando não porque não queria, mas porque não podia. No meio de uma figura da dança, ele chamou a atenção de Rostóv, que estava passando na sua frente.
— Não é nada disso — falou. — Que mazurca polonesa é essa? Mas ela dança magnificamente.
Ciente de que Deníssov ganhara fama até na Polônia com a sua mestria ao dançar a mazurca polonesa, Nikolai correu até Natacha.
— Vá tirar o Deníssov. Ele dança que é uma maravilha! — disse.
Quando chegou de novo a vez de Natacha, ela ergueu-se e, movendo rapidamente os seus sapatinhos com lacinhos, ruborizando-se, atravessou o salão sozinha e foi até o canto onde estava Deníssov. Ela via que todos a observavam e esperavam. Nikolai viu que Natacha e Deníssov, sorrindo, discutiam e que Deníssov recusava o convite, mas sorria com alegria. Nikolai aproximou-se ligeiro.
— Por favor, Vassíli Dmítritch — disse Natacha. — Venha, por favor.
— Ora, não, me desculpe, condessa — respondeu Deníssov.
— Vamos lá, Vássia, chega — disse Nikolai.
— Querem me convencer como se eu fosse o gatinho Vaska — disse Deníssov, brincando.
— Eu vou cantar para o senhor uma noite inteira — disse Natacha.
— Que feiticeira, ela faz de mim o que bem entende! — disse Deníssov, e desafivelou o sabre. Saiu de trás das cadeiras, segurou sua dama pela mão com firmeza, levantou a cabeça e afastou os pés, à espera do compasso. Assim como acontecia quando montava a cavalo, também na mazurca não se percebia a pequena estatura de Deníssov, e ele aparentava ser tão robusto quanto se sentia. Depois que pegou o compasso, olhando para a dama de lado, com ar triunfante e jocoso, bateu inesperadamente com um pé e saltou do chão de modo flexível, como uma bolinha, e precipitou-se num círculo pelo salão, arrebatando consigo a sua dama. Voou metade do salão num pé só, sem fazer ruído, parecia não ver as cadeiras que estavam à sua frente e avançava direto para elas; mas de repente estalou as esporas, afastou os pés, parou apoiado no salto das botas, ficou assim por um segundo, começou a bater os pés no chão sem sair do lugar, com um barulho forte das esporas deu um giro rápido e, batendo o pé esquerdo no direito, de novo precipitou-se num círculo. Natacha adivinhava na mesma hora o que ele tencionava fazer e, sem que ela mesma soubesse como, acompanhava-o — entregava-se a ele. Deníssov a girava ora na mão direita, ora na esquerda; ora caía de joelhos e a guiava num círculo à sua volta, e de novo se erguia de um salto e arremetia para a frente com tamanho ímpeto que parecia ter a intenção de atravessar todas as salas correndo, sem parar para tomar fôlego; ora parava outra vez, de repente, e outra vez fazia uma figura de dança nova e inesperada. Quando depois de levar a dama de volta ao seu lugar com um ágil rodopio ele retiniu as esporas e curvou-se diante dela, Natacha nem o cumprimentou com uma reverência. Perplexa, ela o fitava nos olhos, sorrindo, como se não o reconhecesse.
— Mas o que foi isso? — exclamou ela.
Apesar de Vogel não reconhecer que aquela fosse a mazurca autêntica, todos ficaram admirados com a mestria de Deníssov, não paravam de vir convidá-lo para dançar, e os velhos, sorrindo, começaram a falar sobre a Polônia e sobre os bons e velhos tempos. Deníssov, ruborizado por causa da mazurca, enxugando-se com o lenço, ficou sentado junto a Natacha e não se afastou dela durante todo o baile.
XIII
Por dois dias depois disso, Rostóv não viu Dólokhov em sua casa e também não conseguiu encontrá-lo na casa do próprio Dólokhov; no terceiro dia, recebeu um bilhete.
“Como não pretendo mais ir à sua casa, por motivos que você conhece, e estou de partida para o Exército, vou oferecer hoje à noite aos meus amigos uma festa de despedida. Vá ao Hotel Inglês.” No dia marcado, Rostóv saiu às dez horas do teatro, onde estivera com sua família e com Deníssov, e dirigiu-se ao Hotel Inglês. Na mesma hora, foi conduzido à melhor acomodação do hotel, naquela noite ocupada por Dólokhov.
Uns vinte homens se amontoavam em torno da mesa, à qual Dólokhov estava sentado entre duas velas. Sobre a mesa, havia moedas de ouro e dinheiro em cédulas, e Dólokhov fazia a banca do jogo. Depois do pedido de casamento e da recusa de Sônia, Nikolai ainda não se encontrara com Dólokhov e sentia um constrangimento ao pensar que os dois iam se ver.
O olhar frio e luminoso de Dólokhov recebeu Rostóv ainda na porta, como se o esperasse havia muito tempo.
— Faz tempo que não nos vemos — disse. — Obrigado por ter vindo. Assim que eu terminar de fazer a banca, Iliúchka vai chegar com os cantores.
— Estive mais de uma vez na sua casa à sua procura — disse Rostóv, ruborizando-se.
Dólokhov não respondeu.
— Pode fazer sua aposta — disse.
Naquele instante, Rostóv lembrou-se de uma conversa estranha que tivera com Dólokhov, certa vez. “Só os tolos podem jogar confiando na sorte”, dissera Dólokhov, naquela ocasião.
— Ou será que você está com medo de jogar comigo? — perguntou Dólokhov, como se adivinhasse os pensamentos de Rostóv, e sorriu. Por trás do sorriso, Rostóv percebeu aquele estado de espírito em que Dólokhov estivera no jantar do clube, e em que ficava, em geral, nas horas em que, como se estivesse aborrecido com a vida cotidiana, sentia uma necessidade de fugir dela por meio de um ato estranho e, na maioria das vezes, cruel.
Rostóv sentia-se embaraçado; procurava mas não encontrava em seu pensamento os gracejos com que poderia responder às palavras de Dólokhov. Porém, antes que conseguisse fazê-lo, Dólokhov, olhando direto para o seu rosto, lhe disse, devagar e pronunciando com clareza, para que todos pudessem ouvir:
— E não se esqueça do que conversei com você sobre o jogo... Quem quer jogar confiando na sorte é um tolo; para jogar, é preciso ter certeza de ganhar, e eu quero experimentar.
“Experimentar jogar na sorte ou na certeza?”, pensou Rostóv.
— É melhor que você não jogue — acrescentou ele, cortou o baralho e disse: — Banca, senhores!
Dólokhov empurrou o dinheiro para a frente e preparou-se para começar o jogo. Rostóv sentou-se ao seu lado e, de início, não jogou. Dólokhov lançou um olhar para ele.
— Por que não joga? — perguntou Dólokhov. E, estranhamente, Rostóv sentiu uma necessidade de pegar uma carta, apostar nela uma soma insignificante e entrar no jogo.
— Não tenho dinheiro aqui comigo — disse Rostóv.
— Confio em você!
Rostóv apostou cinco rublos na carta e perdeu, apostou mais cinco e perdeu de novo. Dólokhov matou, ou seja, venceu Rostóv em dez cartas seguidas.
— Senhores — disse ele, depois de ficar algum tempo na banca do jogo —, peço que coloquem o dinheiro sobre as cartas, senão posso me enganar nas contas.
Um dos jogadores disse esperar que pudessem confiar na sua palavra.
— Posso confiar, mas tenho medo de me enganar nas contas; peço que coloquem o dinheiro sobre as cartas — respondeu Dólokhov. — Não fique constrangido, faremos as contas depois — acrescentou para Rostóv.
O jogo prosseguiu; o lacaio não parava de servir champanhe.
Todas as cartas de Rostóv foram derrotadas, e ele já havia perdido oitocentos rublos. Chegou a escrever oitocentos rublos numa carta, porém, na hora em que lhe serviram champanhe, ele pensou melhor e escreveu de novo a soma insignificante de costume, vinte rublos.
— Deixe — disse Dólokhov, embora parecesse nem olhar para Rostóv. — Logo vai ter a sua desforra. Estou perdendo para os outros, mas ganho de você. Ou será que está com medo de mim? — repetiu.
Rostóv obedeceu, deixou escrito o número oitocentos e colocou na mesa um sete de copas com um canto rasgado, que pegou no chão. Mais tarde, ia se lembrar disso muito bem. Baixou na mesa o sete de copas, atrás do qual havia escrito oitocentos, com um giz quebrado, em algarismos redondos e claros; bebeu até o fim uma taça de champanhe amornado que lhe serviram, sorriu para as palavras de Dólokhov e, com o coração na mão, esperando um sete, pôs-se a olhar para as mãos de Dólokhov, que segurava o baralho. Ganhar ou perder aquele sete significava muito para Rostóv. No domingo da semana anterior, o conde Iliá Andreitch dera para o filho dois mil rublos e o conde, que jamais gostava de falar a respeito de dificuldades financeiras, lhe dissera que aquele dinheiro era o último que lhe daria até o mês de maio e por isso pediu ao filho que, daquela vez, fosse mais econômico. Nikolai havia respondido que, para ele, era até demais e dera sua palavra de honra de não pedir mais dinheiro até a primavera. Agora, daquele dinheiro, restavam mil e duzentos rublos. Portanto, o sete de copas significava não só a perda de mil e seiscentos rublos como também a necessidade de faltar à sua palavra. Com o coração na mão, ele olhava para as mãos de Dólokhov e pensava: “Vamos, rápido, me dê logo essa carta, e então eu pego o meu chapéu, vou para casa, jantar com Deníssov, Natacha e Sônia, e juro que nunca mais ponho minhas mãos num baralho”. Naquele instante, a sua vida doméstica — as brincadeiras com Pétia, as conversas com Sônia, os duetos com Natacha, o jogo de piquet com o pai e até a cama sossegada na casa da rua Povarskaia — surgiu no seu pensamento com tamanha força, clareza e encanto, como se tudo aquilo fosse uma felicidade perdida, inestimável, num passado já distante. Não conseguia admitir que um acaso idiota, que colocava um sete de copas à direita em vez de à esquerda, pudesse privá-lo de toda aquela felicidade, que acabara de ser compreendida, que acabara de se iluminar e de lançá-lo no sorvedouro de uma infelicidade ainda não experimentada por ele e indefinida. Aquilo não era possível, mas mesmo assim ele esperava, com o coração na mão, os movimentos das mãos de Dólokhov. Aquelas mãos avermelhadas, de ossos grandes, com pelos que se enxergavam por baixo das mangas, pousaram o baralho na mesa e pegaram a taça e o cachimbo que haviam lhe oferecido.
— Então você não tem medo de jogar comigo? — repetiu Dólokhov e, como se fosse contar uma história divertida, baixou as cartas, recostou-se no espaldar da cadeira e, devagar e com um sorriso, começou a falar: — Sim, senhores, me disseram que corre em Moscou o boato de que sou trapaceiro, por isso aconselho os senhores a ter muito cuidado comigo.
— Vamos, jogue logo! — disse Rostóv.
— Ah, essas mexeriqueiras de Moscou! — disse Dólokhov e, com um sorriso, pegou as cartas.
— Oooh! — quase gritou Rostóv, agarrando os cabelos com as mãos. O sete, de que ele precisava, já estava virado para cima, a primeira carta do baralho. Ele perdeu mais do que podia pagar.
— Veja lá, não vá ficar na miséria — disse Dólokhov, olhando de relance para Rostóv, e continuou a fazer a banca.
XIV
Uma hora e meia depois, a maioria dos jogadores já levava o seu próprio jogo na brincadeira.
O jogo todo se concentrava apenas em Rostóv. Em vez de mil e seiscentos rublos, tinha anotado contra si uma comprida coluna de algarismos, que ele havia estimado em dez mil rublos, mas que agora, como ele confusamente supunha, já se elevava a quinze mil. Na realidade, a cifra já superara os vinte mil rublos. Dólokhov não queria mais saber de ouvir nem de contar histórias; acompanhava todos os movimentos das mãos de Rostóv e, de vez em quando, passava os olhos nas suas contas. Resolveu prosseguir o jogo até que as contas alcançassem quarenta e três mil. Escolhera aquele número porque quarenta e três era a soma dos seus anos de vida com os anos de Sônia. Rostóv, com as mãos na cabeça, estava sentado à mesa, toda rabiscada, suja de vinho e atulhada de cartas. Uma impressão torturante não o largava: aquelas mãos avermelhadas, de ossos grandes, com pelos que se enxergavam por baixo das mangas, aquelas mãos que ele amava e invejava, tinham-no sob o seu poder.
“Seiscentos rublos, um ás, o canto da carta, um nove... É impossível recuperar o que perdi!... E como estaria feliz, em casa... Aposta em dobro no valete... Não pode ser!... Mas por que ele está fazendo isso comigo?...”, pensava e lembrava Rostóv. Às vezes, fazia uma aposta maior, mas Dólokhov se recusava a cobrir, e ele mesmo estabelecia outro valor. Nikolai obedecia, e ora rezava para Deus, como havia rezado no campo de batalha, na ponte de Amstetten; ora inventava que a primeira carta que viesse para a sua mão, tirada do bolo de cartas amassadas debaixo da mesa, seria aquela que iria salvá-lo; ora calculava quantos cordões havia nos galões do seu casaco e apostava a soma de todas as suas perdas numa carta com aquele mesmo número; ora olhava para os outros jogadores em busca de socorro; ora fitava o rosto, agora frio, de Dólokhov e tentava enxergar o que se passava em seu interior.
“Afinal, ele sabe”, dizia consigo, “o que essa perda significa para mim. Não é possível que deseje a minha perdição. Afinal, era meu amigo. Afinal, eu gostava dele... Mas não tem culpa; o que pode fazer, se tem tanta sorte? Eu também não tenho culpa”, disse consigo. “Não fiz nada de ruim. Por acaso matei alguém, ofendi, desejei algum mal? Então por que essa desgraça horrível? E quando começou? Faz tão pouco tempo que me aproximei desta mesa com a ideia de ganhar uns cem rublos, comprar um porta-joias para dar de aniversário à mamãe e ir para casa, eu era tão feliz, tão livre, alegre! E eu nem percebia como era feliz! Quando foi que aquilo acabou e quando começou esta situação nova, horrível? O que foi que assinalou a mudança? Fiquei o tempo todo neste mesmo lugar, diante desta mesa, tirando e baixando as cartas, e olhando para essas mãos ágeis, de ossos grandes. Quando isso aconteceu, e o que foi que aconteceu? Sou saudável, forte, o mesmo de sempre, fiquei no mesmo lugar o tempo todo. Não, isso não é possível! Com certeza, tudo isso não vai dar em nada.”
Estava vermelho, coberto de suor, apesar de no quarto não fazer calor. O seu rosto estava terrível, lamentável, sobretudo por causa do seu desejo impotente de parecer calmo.
As contas alcançaram a fatídica cifra de quarenta e três mil. Rostóv preparou uma carta dobrando o canto para indicar que ia apostar em dobro os três mil rublos que acabara de ganhar, quando Dólokhov bateu com o baralho sobre a mesa, colocou-o para o lado, pegou o giz e, rapidamente, com letra firme, quebrando o giz, começou a fazer os cálculos para determinar o total da dívida de Rostóv.
— Vamos jantar, está na hora de jantar! Os ciganos já estão aí!
De fato, com o seu sotaque cigano, mulheres e homens morenos já estavam entrando, vindo do frio lá de fora, e falavam alguma coisa. Nikolai entendeu que estava tudo acabado; mas disse, com voz indiferente:
— Mas como? Não vai jogar mais? Eu tenho uma cartinha fantástica já pronta. — Parecia que o que mais lhe interessava era a diversão do jogo em si.
“Está tudo acabado, estou perdido!”, pensou. “Agora, uma bala na testa é só o que me restou.” Mas, em lugar disso, falou com voz alegre:
— Vamos, só mais uma cartinha.
— Está bem — respondeu Dólokhov, após terminar a soma. — Está bem! São vinte e um rublos — disse ele, apontando para o número vinte e um, com o qual a dívida ultrapassava os quarenta e três mil redondos, pegou o baralho e preparou-se para fazer a banca. Rostóv, submisso, desdobrou o canto da carta e, em vez dos seis mil que pretendia apostar, escreveu vinte e um, com cuidado.
— Para mim, tanto faz — disse ele. — Só estou interessado em saber se você vai matar minha carta ou me dar aquele dez.
Dólokhov, sério, começou a jogar. Oh, como Rostóv, naquele momento, odiava aquelas mãos avermelhadas, com dedos curtos, com pelos que se enxergavam por baixo das mangas, e que tinham Rostóv sob o seu poder... O dez saiu para ele.
— O senhor deve quarenta e três mil, conde — disse Dólokhov e, espreguiçando-se, levantou-se da mesa. — Cansa ficar tanto tempo sentado — disse.
— Sim, eu também estou cansado — disse Rostóv.
Dólokhov, como que para lembrar Rostóv de que não ficava bem, para ele, dizer gracejos, interrompeu-o:
— Quando vou receber o dinheiro, conde?
Rostóv ruborizou-se e conduziu Dólokhov para outro quarto.
— Não posso pagar tudo de repente, você vai ficar com uma nota promissória — disse.
— Escute, Rostóv — respondeu Dólokhov, sorrindo sem disfarces e fitando Nikolai nos olhos. — Você conhece o ditado: “Feliz no amor, infeliz no jogo”. A sua prima está apaixonada por você. Eu sei.
“Ah! Como é horrível sentir-se sob o poder de uma pessoa como essa”, pensou Rostóv. Sabia que golpe ele daria no pai e na mãe quando comunicasse aquela perda no jogo; sabia que felicidade seria poder livrar-se de tudo aquilo e entendia que Dólokhov sabia que podia livrá-lo daquela vergonha e daquele desgosto, mas agora queria continuar a brincar com ele, como um gato brinca com um rato.
— A sua prima... — Dólokhov começou a falar; mas Nikolai interrompeu.
— Minha prima não tem nada a ver com o caso, e não há nenhum motivo para falar dela! — gritou, com raiva.
— Então, quando vou receber? — perguntou Dólokhov.
— Amanhã — respondeu Rostóv e saiu do quarto.
XV
Dizer “amanhã” e manter o tom de cortesia era fácil, mas chegar sozinho em casa, ver a irmã, o irmão, a mãe, o pai, confessar e pedir um dinheiro ao qual não tinha direito, depois de dar a sua palavra de honra, era horrível.
Em casa, ainda não estavam dormindo. As jovens da casa dos Rostóv, ao voltarem do teatro, jantaram e sentaram-se ao clavicórdio. Assim que Nikolai entrou na sala, foi envolvido por aquela atmosfera amorosa e poética que reinava na casa naquele inverno e que agora, depois do pedido de casamento feito por Dólokhov e após o baile de Vogel, parecia se adensar mais ainda, como o ar antes de uma tempestade, acima de Sônia e de Natacha. Nos vestidos azul-claros com que tinham ido ao teatro, Sônia e Natacha estavam bonitas, e sabiam disso, paradas de pé junto ao clavicórdio, felizes e sorridentes. Vera e Chinchin jogavam xadrez na sala de visitas. A velha condessa, à espera do filho e do marido, jogava paciência com a velha fidalga que residia com eles. Deníssov, com olhos brilhantes e cabelos eriçados, estava sentado junto ao clavicórdio, com uma perna para trás, e, batendo no instrumento com seus dedinhos curtos, tirava acordes, revirava os olhos e, com sua voz pequena, rouca, mas segura, cantava um poema composto por ele, chamado “Feiticeira”, no qual tentava pôr uma melodia.
Feiticeira, diga que força
Me arrasta para as cordas esquecidas;
Que fogo você lançou no coração,
Que ardor se derramou pelos dedos!
Ele cantava com voz apaixonada, enquanto os seus olhos negros, cor de ágata, brilhavam para a assustada e feliz Natacha.
— Lindo! Excelente! — gritou Natacha. — Mais uma estrofe — disse ela, sem perceber Nikolai.
“Entre eles, continua tudo igual”, pensou Nikolai, lançando um olhar para a sala, onde viu Vera, a mãe e a velha.
— Ah! Aí está o Nikólienka! — Natacha correu para ele.
— Papai está em casa? — perguntou.
— Como estou contente por você ter chegado! — exclamou Natacha, sem responder. — Estamos tão alegres! Vassíli Dmítritch vai ficar mais um dia, por minha causa, sabia?
— Não, o papai ainda não veio — disse Sônia.
— Nikolai, você chegou? Venha para perto de mim, querido — soou a voz da condessa, na sala de visitas. Nikolai foi ter com a mãe, beijou sua mão e, após sentar em silêncio à sua mesa, pôs-se a olhar para as mãos dela, que dispunham as cartas sobre a mesa. Da sala, continuavam a vir risos e vozes alegres, que tentavam convencer Natacha.
— Certo, está bem, está bem — gritou Deníssov. — Mas agora não tem motivo para recusar, cante uma barcarolla, eu suplico à senhora.
A condessa virou-se para o filho calado.
— O que você tem? — perguntou a mãe para Nikolai.
— Ah, não é nada — respondeu, como se estivesse farto de ouvir sempre a mesma pergunta. — O papai vai demorar?
— Acho que não.
“Entre eles, continua tudo igual. Não sabem de nada! Onde é que eu vou me esconder?”, pensou Nikolai e foi de novo para a sala, onde estavam todos perto do clavicórdio.
Sônia estava sentada diante do clavicórdio e tocava uma introdução daquela barcarola, da qual Deníssov gostava em especial. Natacha se preparava para cantar. Deníssov olhava para ela, com olhos emocionados.
Nikolai se pôs a andar na sala, de um lado para o outro.
“E eles ainda têm ânimo de obrigá-la a cantar! O que é que ela pode cantar? Aqui não tem nada de alegre”, pensava Nikolai.
Sônia tocava os primeiros acordes da introdução.
“Meu Deus, sou um infame, um homem perdido. Uma bala na testa é só o que me restou, e eles ainda vão cantar”, pensou. “Fugir? Mas para onde? Tanto faz, deixe que cantem!”
Nikolai continuava a andar pela sala, com ar sombrio, lançava olhares para Deníssov e para as moças, evitando os olhos deles.
“Nikólienka, o que você tem?”, perguntava o olhar de Sônia, cravado nele. Sônia percebeu na mesma hora que algo havia acontecido com Nikolai.
Nikolai lhe deu as costas. Natacha, com a sua sensibilidade, também percebeu no mesmo instante o estado do irmão. Percebeu, mas estava tão alegre naquela hora, tão distante do desgosto, da tristeza, das recriminações que ela (como acontece tantas vezes com os jovens) se iludiu voluntariamente. “Não, agora estou alegre demais para estragar a minha alegria com a piedade por um desgosto alheio”, sentiu e disse consigo: “Não, na certa estou enganada, ele deve estar tão alegre quanto eu”.
— Pronto, Sônia — disse Natacha, dirigindo-se para o meio da sala, onde, na sua opinião, a acústica era melhor. De cabeça erguida, braços para baixo, pendentes e sem vida, como fazem as bailarinas, Natacha, passando dos saltos para a ponta dos pés, com um gesto enérgico, alcançou o meio da sala e parou.
“Aí está, eu sou assim!”, parecia dizer, em resposta ao olhar admirado de Deníssov, que a observava.
“Do que é que ela se alegra?”, pensou Rostóv, ao olhar para a irmã. “Como é que ela não fica deprimida e com vergonha?” Natacha atacou a primeira nota, sua garganta dilatou-se, o peito aprumou-se, os olhos tomaram uma expressão séria. Ela não pensava em nada nem em ninguém, naquele instante, e da boca armada num sorriso derramaram-se sons, aqueles sons que qualquer boca pode produzir, nos mesmos intervalos de ritmo, nos mesmos intervalos de notas, mas que deixam os ouvintes frios mil vezes, para na milésima primeira vez fazer tremer e chorar.
Natacha, naquele inverno, pela primeira vez passara a cantar a sério, sobretudo porque Deníssov se empolgava com o seu canto. Agora, ela não cantava à maneira infantil, já não havia no seu canto aquele esforço cômico, de criança, que havia antes; mas ainda não cantava bem, segundo diziam todos os juízes entendidos que a ouviam. “Uma voz linda, mas ainda não trabalhada, é preciso trabalhar”, diziam todos. Porém geralmente diziam isso muito depois de Natacha haver terminado de cantar. Na hora em que soava aquela voz não trabalhada, que respirava de forma errada, que fazia força demais nas modulações, até os juízes entendidos não diziam nada e apenas se deleitavam com aquela voz ainda não trabalhada, e tudo o que queriam era ouvi-la mais uma vez. Na voz de Natacha, havia uma virgindade, uma integridade, um desconhecimento das próprias forças, além daquele aveludado ainda não trabalhado, que se aliavam de tal forma com as deficiências da arte do canto que parecia impossível alterar o que quer que fosse naquela voz, sem estragá-la.
“O que é isso?”, pensou Nikolai, ao ouvir a voz da irmã, e arregalou os olhos. “O que aconteceu com ela? Como está cantando hoje!”, pensou. E de repente, para ele, o mundo inteiro concentrou-se na expectativa da nota seguinte, da frase seguinte, e tudo no mundo se dividiu em três tempos: “Oh, mio crudele affetto...26 Um, dois, três... um, dois... três... um... Oh, mio crudele affetto... Um, dois, três... um. Ah, que vida tola, a nossa!”, pensou Nikolai. “Tudo isso, a infelicidade, o dinheiro, Dólokhov, o ódio, a honra, tudo isso é absurdo... isto aqui, sim, é a realidade... Vamos, Natacha, vamos, minha doçura! Vamos, meu bem!... Como é que ela vai cantar esse si... Cantou? Graças a Deus!” E Nikolai, sem notar que ele mesmo cantava, para reforçar aquele si, cantou uma segunda e uma terça acima da nota. “Meu Deus! Que bonito! Será possível que fui mesmo eu quem cantou? Que felicidade!”, pensou ele.
Oh, como aquela terça vibrou e como se comoveu, na sua alma, algo daquilo que Rostóv tinha de melhor. E aquele algo era independente de tudo no mundo, superior a tudo no mundo. O que importavam aqui as perdas, os Dólokhov e a palavra de honra?... Tudo era um absurdo! Podia-se matar, roubar e mesmo assim ser feliz...
XVI
Já fazia muito que Rostóv não experimentava com a música tanto prazer quanto naquele dia. Mas, assim que Natacha terminou a sua barcarola, a realidade voltou à sua lembrança. Nikolai saiu sem dizer nada e desceu para o quarto. Quinze minutos depois, o velho conde chegou do clube, alegre e satisfeito. Nikolai ouviu a sua chegada e foi ao encontro dele.
— Bem, e então, divertiu-se? — perguntou Iliá Andreitch, sorrindo alegre e orgulhoso para o filho. Nikolai quis responder “sim”, mas não conseguiu: estava à beira de chorar. O conde acendeu o cachimbo e não percebeu o estado do filho.
“Eh, é inevitável!”, pensou Nikolai pela primeira e última vez. E de súbito, no tom mais desleixado, que até para ele mesmo pareceu sórdido, como se pedisse uma carruagem para ir à cidade, contou ao pai:
— Pai, vim falar com o senhor a respeito de negócios. Eu quase ia esquecendo. Preciso de dinheiro.
— Aí está — disse o pai, que se encontrava num estado de ânimo especialmente alegre. — Eu lhe disse que não era o suficiente. E é muito?
— Muito mesmo — respondeu Nikolai, ruborizando-se, com um sorriso tolo e desleixado, de que depois, por muito tempo, ele não conseguiu se perdoar. — Perdi um pouco no jogo, quero dizer, muito, muito mesmo, quarenta e três mil.
— O quê? Para quem?... Está brincando! — gritou o conde, apoplético de repente, com o pescoço e a nuca vermelhos, como acontece com os velhos.
— Prometi pagar amanhã — disse Nikolai.
— Puxa!... — exclamou o velho conde, abrindo os braços e deixando-se cair no sofá, sem forças.
— O que se vai fazer? Afinal, com quem é que não acontecem essas coisas? — disse o filho, num tom desembaraçado, atrevido, enquanto na alma ele se considerava um canalha, um patife, que nem com uma vida inteira poderia redimir o seu crime. Queria beijar as mãos do pai, pedir o seu perdão de joelhos, mas dizia, num tom desleixado e até rude, que aquilo acontecia com qualquer um.
O conde Iliá Andreitch baixou os olhos após ouvir as palavras do filho e começou a procurar algo às pressas.
— Sim, sim — falava —, é difícil, eu receio, é difícil conseguir... Com quem é que não acontece? Pois é, com quem é que não acontece... — O conde olhou de passagem para o rosto do filho e saiu do quarto... Nikolai havia se preparado para enfrentar resistência, mas de forma nenhuma esperava aquilo.
— Papai! Pa... pai! — começou a gritar atrás dele, soluçando. — Desculpe! — E, depois de agarrar a mão do pai, apertou nela os lábios e desatou a chorar.
Enquanto o filho se explicava para o pai, entre a mãe e a filha ocorria uma explicação não menos importante. Natacha, comovida, veio correndo até a mãe.
— Mamãe!... Mamãe!... Ele me pediu...
— Pediu o quê?
— Pediu, pediu em casamento. Mamãe! Mamãe! — gritava.
A condessa não acreditava em seus ouvidos. Deníssov fizera um pedido de casamento. Para quem? Para aquela menininha de nada, a Natacha, que havia pouco tempo brincava de boneca e ainda tinha aulas.
— Natacha, já chega, que bobagem! — disse ela, ainda com esperança de que fosse uma brincadeira.
— Que bobagem, nada! Estou falando sério com a senhora — disse Natacha, zangada. — Vim perguntar o que fazer, e a senhora me diz: “bobagem”...
A condessa encolheu os ombros.
— Se é verdade que Monsieur Deníssov pediu você em casamento, embora seja ridículo, diga a ele que é um tolo, e pronto.
— Não, ele não é um tolo — disse Natacha, ofendida e séria.
— Bem, o que você quer, então? Hoje, todo mundo está apaixonado. Bem, se está apaixonada, case-se — disse a condessa, rindo, zangada —, e que Deus a proteja!
— Não, mamãe, não estou apaixonada por ele, eu acho que não estou apaixonada por ele.
— Então diga isso para ele.
— Mamãe, a senhora está zangada? Não se zangue, não, minha querida, que culpa eu tenho?
— Mas, então, o que você quer, minha amiga? Quer que eu vá lá e fale com ele? — perguntou a condessa, sorrindo.
— Não, eu mesma falo, é só a senhora me ensinar. Para a senhora, tudo é fácil — acrescentou, em resposta ao sorriso da mãe. — Se a senhora tivesse visto como ele me falou! E eu sei muito bem que ele não queria falar; mas, por descuido, acabou falando.
— Bem, mesmo assim é preciso recusar.
— Não, não é preciso. Sinto tanta pena dele! É tão gentil.
— Bem, então aceite o pedido de casamento. Afinal, já está na hora de se casar — disse a mãe, em tom zangado e zombeteiro.
— Não, mãe, tenho tanta pena dele. Não sei como vou dizer.
— Mas você não precisa dizer nada, eu mesma falo com ele — respondeu a condessa, indignada por alguém ter ousado olhar para a sua pequenina Natacha como se fosse uma adulta.
— Não, de jeito nenhum, eu mesma falo, mas a senhora vai escutar atrás da porta — e Natacha correu da sala de visitas para o salão, onde, na mesma cadeira, junto ao clavicórdio, Deníssov estava sentado, com o rosto coberto pelas mãos. Levantou-se de um salto ao ouvir os passos ágeis de Natacha.
— Nathalie — disse ele, aproximando-se em passos ligeiros. — Resolva o meu destino. Ele está nas mãos da senhora!
— Vassíli Dmítritch, tenho tanta pena do senhor!... Não, mas o senhor é tão gentil... mas isso... não importa... e eu sempre vou gostar do senhor.
Deníssov curvou-se sobre a mão dela, e Natacha ouviu uns sons estranhos, incompreensíveis. Ela beijou-o na cabeça morena, abaixada, crespa. Naquele instante, ouviu-se o rumor afobado do vestido da condessa. Aproximou-se deles.
— Vassíli Dmítritch, agradeço ao senhor essa honra — disse a condessa com voz constrangida, mas que, para Deníssov, pareceu severa. — Mas a minha filha é muito menina e achei que o senhor, como amigo do meu filho, fosse primeiro se dirigir a mim. Nesse caso, o senhor não me poria na obrigação de recusar.
— Condessa... — disse Deníssov, de olhos baixos e com ar de culpa, quis ainda falar algo, mas titubeou.
Natacha não conseguia manter a calma ao vê-lo tão abatido. Começou a soluçar alto.
— Condessa, eu lhe devo desculpas — prosseguiu Deníssov, com voz entrecortada. — Mas saiba que eu adoro de tal maneira a sua filha e toda a sua família que eu daria duas vidas... — Olhou para a condessa e, após entender o seu olhar severo... — Mas, adeus, condessa — disse, após beijar sua mão, e, sem olhar para Natacha, retirou-se a passos ligeiros e resolutos.
No dia seguinte, Rostóv acompanhou a despedida de Deníssov, que não quis ficar em Moscou nem mais um dia. Todos os colegas moscovitas de Deníssov levaram-no aos ciganos para uma festa de despedida e, mais tarde, ele não se lembrava nem de como fora posto no trenó, nem das três primeiras estações da viagem.
Após a partida de Deníssov, Rostóv, à espera do dinheiro, que o velho conde não conseguira reunir de uma hora para outra, passou ainda mais duas semanas em Moscou, sem sair de casa, ficando sobretudo no quarto das senhorinhas.
Sônia tratava-o com ainda mais devoção e ternura do que antes. Parecia querer mostrar-lhe que a sua perda no jogo era uma façanha pela qual ela agora o amava mais ainda; mas Nikolai, agora, se considerava indigno dela.
Ele encheu os álbuns das moças com versos e anotações e, sem despedir-se de nenhum de seus conhecidos, depois de mandar, afinal, os quarenta e três mil rublos e receber um recibo de Dólokhov, partiu no fim de novembro para alcançar o seu regimento, que já estava na Polônia.
1 Tecido de algodão vermelho tradicional.
2 Salto em que o bailarino cruza e descruza os pés no ar, rapidamente.
3 Francês: “seria preciso inventá-lo”.
4 Alcides: outro nome de Hércules, herói da mitologia grega; Rifeu: personagem da Eneida, de Virgílio, a imagem do homem honrado; Tito: imperador romano. Os versos aqui citados por Tolstói são do poeta Nikolai Petróvitch Níkoliev (1758-1815).
5 Composição de Ióssif Kozlóvski (1757-1831), com versos do poeta Gavrila Derjávin (1743-1816).
6 Não confundir com o comandante em chefe Mikhail Ilariónovitch Kutúzov.
7 Francês: “Até amanhã, meu caro!”.
8 Francês: “Não amole”.
9 Francês: “Para que diabo ele foi se meter nessa confusão?”. Da peça Artimanhas de Scarpino, de 1641.
10 Francês: “em diadema”.
11 Nome arcaico para designar as terras do ducado de Moscóvia na Idade Média, que deu origem à Rússia.
12 Francês: “Minha boa amiga, receio que o ‘fruschtique’ [Frühstück, “desjejum”, em alemão] (como diz Foká, o cozinheiro) desta manhã não tenha me feito bem”.
13 Francês: “Coragem, meu anjo”.
14 Francês: “Não, é o estômago... Diga que é o estômago, diga, Marie, diga...”.
15 Francês: “Ah. Meu Deus! Meu Deus!”.
16 Por causa do frio no inverno, as janelas eram duplas (com dois caixilhos), e a intenção do príncipe era arejar a casa. A menção às cotovias indica que o clima ficara mais ameno, a primavera se aproximava.
17 Francês: “Vá, meu amigo”.
18 No batismo da Igreja ortodoxa, a criança é ungida com uma pena de ganso e imersa na pia batismal. No fim do ritual, o padre corta alguns fios do cabelo do bebê, cola-os com cera de vela e coloca a bolinha de cera na pia; se ela afundar, é sinal de má sorte.
19 Em francês no original.
20 Em meados de setembro de 1806, foi selada uma nova coalizão contra os franceses, formada por Prússia, Rússia, Inglaterra e Suécia. No fim de setembro, Napoleão atacou a Prússia, ocupou Berlim, e em novembro invadiu a Polônia. A fronteira seguinte era a da Rússia.
21 Refência à dança do xale, em voga na época.
22 Francês: “petulância”.
23 Assim ele registrava os seus serviços para, mais tarde, cobrar por eles.
24 Francês: “Meu caro conde, o senhor é um dos meus melhores alunos, é preciso que o senhor dance [...] Veja quantas moças bonitas”.
25 Francês: “Não, meu caro, vou só fazer parte da decoração”.
26 Italiano: “Oh, meu cruel afeto”.
I
Depois da conversa que tivera com a esposa, Pierre partiu para Petersburgo. Na estação de posta de Torjók, não havia cavalos de muda, ou o encarregado não quisera lhe fornecer. Pierre teve de esperar. Sem trocar de roupa, deitou-se num sofá de couro diante de uma mesa redonda, apoiou sobre a mesa os pés grandes, em pesadas botas de frio, e pôs-se a refletir.
— O senhor quer que traga as malas? Quer que prepare uma cama, quer que traga um chá? — perguntou o camareiro.
Pierre não respondeu, porque não escutava nem via nada. Tinha começado a refletir ainda na estação anterior e continuava pensando na mesma coisa — algo tão importante que ele não prestava a menor atenção no que se passava à sua volta. Não só não lhe interessava que sua chegada a Petersburgo fosse ocorrer mais tarde ou mais cedo do que o esperado, ou que ele tivesse ou não um lugar para repousar naquela estação de posta, como para ele também, em comparação com os pensamentos que agora o ocupavam, não fazia a menor diferença se passaria algumas horas ou a vida inteira naquela estação.
O encarregado da posta e a esposa, o camareiro e a camponesa que vendia bordados de ouro e prata1 entravam no quarto oferecendo os seus serviços. Pierre, sem mudar de posição, com as pernas levantadas, olhava para eles através dos óculos e não entendia o que podiam querer e de que forma todos eles conseguiam viver sem solucionar aquela questão que o ocupava. Pierre andava às voltas com as mesmas questões desde o dia em que, após o duelo, voltou de Sokólniki e passou a primeira noite insone e aflitiva; só que agora, na viagem solitária, aquelas questões o dominavam com uma força diferente. O que quer que ele começasse a pensar, acabava sempre voltando às mesmas questões, que não conseguia resolver e que não conseguia parar de apresentar a si mesmo. Parecia que, dentro da sua cabeça, o parafuso principal em que toda a sua vida se apoiava tinha perdido a pressão. O parafuso não apertava nem afrouxava, mas girava sem nada prender, sempre na mesma ranhura, e mesmo assim era impossível impedir que continuasse a girar.
O encarregado entrou e começou a pedir humildemente à sua excelência que esperasse só mais duas horinhas, depois do que, ele (aconteça o que acontecer) forneceria a sua excelência os cavalos de posta. Era óbvio que o encarregado estava mentindo e queria apenas receber do viajante um dinheiro extra. “Será que isso é bom ou ruim?”, perguntava-se Pierre. “Para mim, é bom, para o próximo viajante, é ruim, e para ele mesmo é inevitável, porque não tem o que comer: o encarregado contou que um oficial lhe deu uma surra por não ter cavalos. E o oficial lhe dera uma surra porque precisava viajar mais depressa. Já eu dei um tiro em Dólokhov porque me considerei ofendido. Mas Luís XVI foi executado porque o consideravam um criminoso, e um ano depois executaram aqueles que o haviam executado, também pela mesma razão. O que é ruim? O que é bom? O que se deve amar, e o que se deve odiar? Para que se deve viver e o que eu sou? O que é a vida, o que é a morte? Que força governa tudo?”, ele se perguntava. E não havia resposta para nenhuma dessas perguntas, a não ser uma resposta sem lógica, e que nem mesmo respondia a tais perguntas. A resposta era a seguinte: “Você vai morrer e tudo vai terminar. Você vai morrer e vai ficar sabendo de tudo... ou vai parar de perguntar”. Mas morrer também era terrível.
A vendedora de bordados de Torjók, com voz esganiçada, oferecia as suas mercadorias e, em especial, chinelos de couro de cabra. “Possuo centenas de rublos, com os quais não tenho a menor ideia do que fazer, enquanto ela está aí com o seu casaco esburacado e me olha com timidez”, pensou Pierre. “E para que ela precisa desse dinheiro? Por acaso esse dinheiro pode lhe trazer um pingo de felicidade, de serenidade de espírito? Por acaso alguma coisa neste mundo pode deixar a ela e a mim menos sujeitos ao mal e à morte? A morte, que põe um fim a tudo e que pode vir hoje ou amanhã... isso não faz diferença, é só um instante em comparação com a eternidade.” E de novo ele apertou o parafuso que não encontrava resistência em nada e, tal como antes, o parafuso girou sem sair do lugar.
O criado lhe trouxe um livro dobrado ao meio, um romance epistolar de Madame de Souza. Pierre começou a ler sobre os sofrimentos e as lutas virtuosas de uma certa Amélie Mansfield.2 “E por que ela se opôs ao seu sedutor”, pensou, “se ela o amava? Deus não podia incutir no seu espírito uma aspiração contrária à vontade Dele. Minha ex-esposa não se opôs, e talvez tivesse razão. Nada foi descoberto”, disse de novo para si mesmo, “nada foi inventado. Nós só podemos saber que não sabemos nada. E esse é o grau mais elevado da sabedoria humana.”
Tudo dentro de Pierre, e até a seu redor, lhe pareceu confuso, absurdo e asqueroso. Mas, naquele mesmo asco em relação a tudo o que o rodeava, Pierre encontrou uma espécie de prazer exasperante.
— Atrevo-me a pedir a vossa excelência que ceda um lugarzinho para outro cavalheiro — disse o encarregado, entrando no quarto e trazendo atrás de si outro viajante que também tinha ficado sem cavalos. O viajante era um velho baixote, de ossos proeminentes, amarelado, enrugado, com sobrancelhas grisalhas e pendentes sobre os olhos brilhantes, de uma cor acinzentada indefinida.
Pierre tirou suas pernas da mesa, levantou-se e estendeu-se na cama preparada para ele, olhando de vez em quando para o homem que entrara, o qual, com um ar tristonho e cansado, sem olhar para Pierre, trocava de roupa com dificuldade, ajudado por um criado. Sem tirar o sobretudo com gola de pele, surrado, forrado de nanquim, e com botas de feltro nos pés magros e ossudos, o viajante sentou-se no sofá, escorou no encosto a sua cabeça muito grande e larga nas têmporas, de cabelo bem curto, e lançou um olhar para Bezúkhov. A expressão severa, inteligente e penetrante daquele olhar impressionou Pierre. Ele teve vontade de começar a conversar com o viajante, mas, quando fez menção de dirigir-se a ele com uma pergunta sobre a estrada, o viajante já fechara os olhos, e com as mãos velhas e enrugadas entrecruzadas, numa das quais, num dedo, havia um anel grande, de ferro, com a imagem de um crânio e dois ossos cruzados, o homem jazia imóvel, ou descansava, ou meditava sobre alguma coisa de modo sereno e profundo, como parecia a Pierre. O criado do viajante era todo coberto de rugas, também velho e amarelado, sem barba nem bigode, não que tivessem sido raspados, mas pareciam, isto sim, que nunca haviam crescido no seu rosto. O velho e hábil criado retirou das malas as bebidas, arrumou a mesa de chá e trouxe o samovar fervente. Quando tudo ficou pronto, o viajante abriu os olhos, aproximou-se da mesa e, após servir para si um copo de chá, serviu outro para o velhote sem barba e lhe deu. Pierre começou a sentir uma inquietação e a necessidade, e até mesmo a inevitabilidade, de travar conversa com aquele viajante.
O criado trouxe de volta o seu copo vazio, virado de boca para baixo, com um torrãozinho de açúcar não comido de todo por cima, e perguntou-lhe se ainda precisava de alguma coisa.3
— Nada. Dê-me o livro — disse o viajante. O criado lhe entregou um livro, que a Pierre pareceu um livro religioso, e o viajante afundou na leitura. Pierre olhava para ele. De repente, o viajante baixou o livro, marcou a página, fechou-o e, de novo de olhos fechados, recostou-se no espaldar e acomodou-se na sua posição anterior. Pierre estava olhando para ele e não teve tempo de desviar o olhar, quando o velho abriu os olhos e cravou o seu olhar firme e severo direto no rosto de Pierre.
Pierre sentiu-se confuso e quis esquivar-se daquele olhar, mas os olhos reluzentes e velhos o atraíam de modo irresistível.
II
— Tenho o prazer de falar com o conde Bezúkhov, se não me engano — disse o viajante, sem pressa e em voz bem alta. Pierre, calado, fitou o seu interlocutor através dos óculos, com ar interrogativo.
— Ouvi falar do senhor — prosseguiu o viajante — e do que lhe aconteceu, meu caro, uma infelicidade. — Pareceu sublinhar a última palavra, como se dissesse: “Sim, uma infelicidade, não importa que nome o senhor dê a isso, eu sei que o que se passou com o senhor em Moscou foi uma infelicidade”. — Lastimo profundamente tudo isso, meu senhor.
Pierre ruborizou-se e, após baixar suas pernas da cama rapidamente, inclinou-se para o velho com um sorriso tímido e forçado.
— Eu não estou recordando esse fato por curiosidade, meu senhor, e sim por motivos mais importantes. — Calou-se um pouco, sem desviar de Pierre o olhar, e deslocou-se no sofá, convidando Pierre, com tal gesto, a sentar-se ao seu lado.
— O senhor é infeliz, meu caro — prosseguiu. — O senhor é jovem, e eu, velho. Gostaria de ajudá-lo, na medida das minhas forças.
— Ah, sim — disse Pierre, com um sorriso forçado. — Fico muito grato ao senhor... De onde o senhor está vindo? — O rosto do viajante não era afetuoso, era até frio e severo, mas, apesar disso, a fala e o rosto do seu novo conhecido produziam em Pierre uma atração irresistível.
— Porém, se, por qualquer motivo, a conversa comigo for desagradável ao senhor — falou o velho —, me diga, meu senhor. — E, de repente, deu um inesperado sorriso terno e paternal.
— Ah, não, absolutamente, ao contrário, estou muito contente em conhecer o senhor — disse Pierre e, após lançar de novo um olhar para as mãos do seu novo conhecido, observou o anel com mais cuidado. Viu ali um crânio com dois ossos cruzados, um símbolo da maçonaria.
— Permita que eu lhe pergunte — disse Pierre. — O senhor é maçom?
— Sim, pertenço à irmandade dos pedreiros-livres — respondeu o viajante, que fitava de modo cada vez mais profundo os olhos de Pierre. — E em meu nome e em nome deles, estendo ao senhor uma mão fraterna.
— Receio — disse Pierre, sorrindo e hesitando entre a confiança que lhe inspirava a personalidade do maçom e a habitual zombaria com que encarava as crenças dos maçons —, receio que eu esteja muito longe da compreensão, como vou dizer, receio que minha forma de pensar acerca de todo o sistema do universo seja tão contrária à do senhor que não vamos nos entender.
— Conheço a forma de pensar do senhor — disse o maçom —, e essa sua forma de pensar, da qual o senhor fala e que lhe parece produto do seu trabalho mental, é a forma de pensar da maioria das pessoas, fruto monótono do orgulho, da preguiça e da ignorância. Perdoe-me, meu senhor, mas, se eu não a conhecesse, não teria começado esta conversa. A sua forma de pensar é uma ilusão lamentável.
— Exatamente da mesma forma, eu posso supor que o senhor está iludido — disse Pierre, sorrindo debilmente.
— Eu nunca me atreveria a dizer que conheço a verdade — disse o maçom, que impressionava Pierre, cada vez mais, com a precisão e a firmeza de suas palavras. — Ninguém pode, sozinho, alcançar a verdade; só com a participação de todos, pedra após pedra, por milhões de gerações, desde o nosso primeiro pai, Adão, até o nosso tempo, poderá ser erguido o templo digno de ser a morada do Grande Deus — disse o maçom e fechou os olhos.
— Tenho de dizer ao senhor que não acredito, não... acredito em Deus — disse Pierre, com esforço e pena, sentindo a necessidade de revelar toda a verdade.
O maçom fitou Pierre atentamente e sorriu, como um ricaço que tivesse milhões nas mãos sorriria para um indigente que lhe dissesse que não tinha os cinco rublos capazes de fazer a sua felicidade.
— Mas o senhor não o conhece, meu caro — disse o maçom. — O senhor não pode conhecê-lo. O senhor não o conhece e por isso é infeliz.
— Sim, sim, sou infeliz — confirmou Pierre. — Mas o que posso fazer?
— O senhor não o conhece, meu caro, e por isso é muito infeliz. O senhor não o conhece, mas ele está aqui, ele está em mim, está nas minhas palavras, está em você e até nessas palavras sacrílegas que você acabou de pronunciar — disse o maçom, com voz trêmula e severa.
Calou-se um pouco e respirou, obviamente tentando acalmar-se.
— Se ele não existisse — falou, em tom tranquilo —, eu e o senhor não estaríamos falando sobre ele, meu caro. Sobre o quê, sobre quem estamos falando? Quem você nega? — perguntou, de repente, com uma severidade exaltada e uma autoridade na voz. — Quem o inventou, se ele não existe? Por que surgiu na sua mente a ideia de que tal ser incompreensível existe? Por que você e todo mundo supõem a existência de um tal ser inconcebível, um ser onipotente, eterno e infinito em todos os seus atributos?... — Parou e ficou em silêncio por muito tempo.
Pierre não pôde nem quis interromper aquele silêncio.
— Ele existe, mas entendê-lo é difícil — falou de novo o maçom, que olhava não para o rosto de Pierre, mas para a frente, e folheava o livro com as mãos velhas, que não conseguiam ficar tranquilas por causa da agitação interior. — Caso se tratasse de uma pessoa, de cuja existência você duvidasse, eu traria essa pessoa e poria na sua frente, pegaria a mão dela e mostraria a você. Mas como eu, um mortal insignificante, vou mostrar toda a onipotência, toda a eternidade, toda a bondade Dele a quem é cego, ou a quem fecha os olhos para não o ver, não o entender, e também para não enxergar e não entender toda a própria baixeza e o próprio vício? — Calou-se um pouco. — Quem é você? O que é você? Você sonha que é um sábio porque é capaz de pronunciar essas palavras sacrílegas — disse, com um sorrisinho sombrio e desdenhoso —, mas você é mais tolo e mais louco do que um menino que, ao brincar com as peças de um relógio habilmente montado, se atreve a dizer que, como não compreende o propósito do relógio, também não acredita no artesão que o fez. Conhecê-lo é difícil. Desde séculos, desde o primeiro pai, Adão, até os nossos dias, trabalhamos para esse conhecimento e estamos infinitamente longe de alcançar o nosso objetivo; mas, nessa incompreensão, vemos apenas a nossa fraqueza e a grandeza dele...
Pierre, com o coração na mão, fitando com olhos brilhantes o rosto do maçom, escutava-o, não interrompia, não perguntava, e acreditava com toda a alma no que aquele desconhecido lhe dizia. Será que Pierre acreditava por causa dos argumentos racionais que havia nas palavras do maçom, ou acreditava, como acreditam as crianças, por causa da entonação, da convicção e do ardor que havia nas palavras do maçom, por causa do tremor da sua voz, que de vez em quando quase impedia o maçom de falar, ou por causa daqueles olhos velhos e brilhantes, que haviam envelhecido sempre na mesma convicção, ou por causa da calma, da firmeza e da certeza da sua vocação, que irradiavam de todo o ser do maçom e que o impressionavam com uma força especial em comparação com o seu próprio abatimento e desesperança?... De todo modo, Pierre, com toda a alma, queria acreditar, e acreditava, e experimentava um alegre sentimento de tranquilidade, de regeneração e de retorno à vida.
— Ele não é apreendido pela razão, mas pela vida — disse o maçom.
— Não compreendo — respondeu Pierre, sentindo com horror que a dúvida se levantava dentro dele. Pierre receava a obscuridade e a fraqueza dos argumentos do seu interlocutor, receava não acreditar nele. — Não compreendo — disse — de que modo a razão humana não pode alcançar esse conhecimento do qual o senhor está falando.
O maçom sorriu com o seu sorriso dócil e paternal.
— A sabedoria e a verdade supremas são como um líquido puríssimo que queremos absorver — disse. — Poderei eu, um recipiente impuro, absorver esse líquido puro e julgar a sua pureza? Só com a purificação interior de mim mesmo poderei manter com certa pureza esse líquido absorvido.
— Sim, sim, é isso mesmo! — disse Pierre, com alegria.
— A sabedoria suprema não se baseia na razão, nem nas ciências mundanas da física, da história, da química etc., nas quais se divide o conhecimento intelectual. A sabedoria suprema é uma só. A sabedoria suprema tem uma ciência: a ciência de tudo, a ciência que explica todo o universo e o lugar que, nele, o homem ocupa. Para abrigar em si essa ciência, é necessário que o homem se purifique e se renove, e, por isso, antes de saber, é preciso acreditar e aprimorar-se. A fim de alcançar esses objetivos, foi colocada em nossa alma uma luz divina chamada consciência.
— Sim, sim — confirmou Pierre.
— Contemple o seu interior com olhos espirituais e pergunte a si mesmo se está satisfeito consigo. O que você alcançou, guiado apenas pela razão? O que é você? O senhor é jovem, é rico, é inteligente, instruído, meu senhor. O que o senhor fez de todas essas bênçãos que lhe foram concedidas? Está satisfeito consigo e com a sua vida?
— Não, eu odeio a minha vida — respondeu Pierre, de sobrancelhas franzidas.
— Você odeia, então mude a sua vida, purifique-se, e por meio da purificação conhecerá a sabedoria. Observe a sua vida, meu senhor. Como o senhor levou a sua vida? Em orgias desenfreadas e na depravação, recebendo tudo da sociedade, sem nada lhe dar. O senhor recebeu a riqueza. Que proveito o senhor tirou disso? O que fez para o próximo? Pensou nas dezenas de milhares de escravos do senhor? Ajudou-os material e moralmente? Não. O senhor tirou proveito do trabalho deles, a fim de levar uma vida devassa. Aí está o que o senhor fez. O senhor por acaso escolheu uma função na qual gerasse benefícios para o próximo? Não. O senhor levava a sua vida no ócio. Depois o senhor casou, meu caro, assumiu a responsabilidade da conduta de uma jovem, e o que o senhor fez? O senhor não a ajudou a encontrar o caminho da verdade, meu senhor, mas a lançou no sorvedouro da mentira e da infelicidade. Um homem ofendeu o senhor, e o senhor o matou, e o senhor diz que não conhece Deus e que odeia a sua vida. Nisso, não há nada de complicado, meu senhor!
Depois dessas palavras, o maçom, como que cansado com a conversa prolongada, recostou-se de novo no encosto do sofá e fechou os olhos. Pierre observou aquele rosto severo, imóvel, velho, quase morto, e movia os lábios sem emitir nenhum som. Queria dizer: sim, uma vida abjeta, ociosa, dissoluta; mas não se atreveu a quebrar o silêncio.
O maçom soltou uma tosse rouca, de velho, e chamou o criado.
— E os cavalos? — perguntou, sem olhar para Pierre.
— Os cavalos de muda chegaram — respondeu o criado. — Não vai descansar?
— Não, mande atrelar.
“Será que ele vai embora e me deixar sozinho sem dizer tudo até o fim e sem me prometer ajuda?”, pensou Pierre, levantando-se e, depois de abaixar a cabeça, começou a andar pela sala, olhando de vez em quando para o maçom. “Sim, eu não pensava assim, mas levava uma vida desprezível, dissoluta, só que eu não amava essa vida, não a queria”, pensou Pierre, “mas esse homem conhece a verdade e, se quisesse, poderia revelar a verdade para mim.” Pierre queria dizer isso para o maçom, mas não se atrevia. O viajante, depois de arrumar seus pertences com as mãos velhas e experientes, começou a abotoar o sobretudo. Quando terminou de abotoar, voltou-se para Bezúkhov e, num tom indiferente, cortês, lhe disse:
— Permite que lhe pergunte para onde está indo, agora, meu senhor?
— Eu?... Vou para Petersburgo — respondeu Pierre com voz infantil, indecisa. — Sou muito grato ao senhor. Estou plenamente de acordo com o senhor. Mas não pense que sou tão ruim. Com toda a minha alma, eu desejava ser aquilo que o senhor queria que eu fosse; mas nunca encontrei ajuda, de ninguém... De resto, sou eu mesmo, acima de qualquer outra coisa, o culpado de tudo. Ajude-me, ensine-me, e talvez eu vá... — Pierre não conseguiu mais falar; fungou e virou-se de costas.
O maçom ficou longo tempo calado, obviamente refletindo.
— A ajuda só pode vir de Deus — disse. — Mas a medida de ajuda que depender da nossa ordem, essa ela prestará ao senhor, meu caro. O senhor está indo para Petersburgo, transmita isto ao conde Villárski (pegou uma carteira e, numa grande folha de papel dobrada em quatro, escreveu algumas palavras). Permita que lhe dê um conselho. Ao chegar à capital, dedique as primeiras horas à solidão, ao exame de si mesmo, e não recaia nos caminhos anteriores da sua vida. Com isso, desejo-lhe boa viagem, meu senhor — disse, ao notar que o criado havia entrado no quarto. — E sucesso...
O viajante era Ióssif Alekséievitch Bazdiéiev, como Pierre soube pelo livro de registro do encarregado da estação de muda. Bazdiéiev era um dos mais famosos maçons e martinistas desde a época de Novíkov.4 Durante muito tempo após a partida dele, Pierre, sem se deitar para dormir e sem perguntar pelos cavalos, ficou andando pela sala da estação de muda, refletindo sobre o seu passado devasso e, com o entusiasmo de uma regeneração, imaginava o seu futuro bem-aventurado, imaculado e virtuoso, que lhe parecia tão distante. Ele, assim lhe parecia, fora devasso só porque calhara de esquecer como era bom ser virtuoso. Na sua alma, não restara nenhum vestígio das dúvidas de antes. Ele acreditava com firmeza que a fraternidade das pessoas era possível, unidas com o propósito de se apoiarem umas às outras no caminho da virtude, e era assim que a maçonaria se afigurava para ele.
III
Ao chegar a Petersburgo, Pierre não avisou a ninguém que havia chegado, não foi a parte alguma e passou o dia inteiro na leitura de Tomás de Kempis,5 um livro que ele já nem sabia mais quem lhe dera. O que Pierre entendia ao ler aquele livro era uma coisa só, e mais nada; entendia o prazer, que ainda não lhe fora concedido, de acreditar na possibilidade de alcançar as virtudes e na possibilidade daquele amor fraterno e atuante entre as pessoas, que Ióssif Alekséievitch lhe havia revelado. Uma semana depois da sua chegada, o jovem conde polonês Villárski, que Pierre conhecia superficialmente da sociedade petersburguesa, procurou-o à tarde em seus aposentos com o mesmo ar oficial e solene com que o padrinho de Dólokhov entrara em sua casa antes do duelo e, após fechar a porta às suas costas e certificar-se de que não havia no quarto mais ninguém além de Pierre, voltou-se para ele:
— Vim visitar o senhor, conde, com uma proposta e com uma missão — disse, sem se sentar. — Uma pessoa especial, de posição muito elevada na nossa irmandade, solicitou que o senhor fosse acolhido na irmandade num prazo mais curto que o habitual e me incumbiu de ser o responsável pelo senhor. Considero um dever sagrado o cumprimento da vontade dessa pessoa. O senhor deseja, sob a minha responsabilidade, ingressar na irmandade dos pedreiros-livres?
O tom frio e severo do homem, que Pierre via quase sempre em bailes com um sorriso amável, em companhia das mulheres mais radiantes, surpreendeu Pierre.
— Sim, eu quero — respondeu Pierre.
Villárski inclinou a cabeça.
— Mais uma pergunta, conde — disse ele. — Peço que o senhor responda, não como futuro maçom, mas como um homem honesto (galant homme), com toda a sinceridade: o senhor renegou suas convicções anteriores, o senhor acredita em Deus?
Pierre refletiu um pouco.
— Sim... sim, eu acredito em Deus — respondeu.
— Nesse caso... — começou Villárski, mas Pierre o interrompeu.
— Sim, eu acredito em Deus — disse mais uma vez.
— Nesse caso, podemos ir — disse Villárski. — A minha carruagem está à disposição do senhor.
Villárski ficou em silêncio durante todo o trajeto. Às perguntas de Pierre sobre o que devia fazer e como devia responder, Villárski disse apenas que irmãos mais dignos do que ele iriam pôr Pierre à prova, e que não era preciso fazer nada, senão dizer a verdade.
Após cruzar os portões de uma casa grande, onde estava instalada a loja maçônica, e subir uma escada escura, os dois entraram numa antessala iluminada e pequena, onde tiraram os casacos de pele, sem a ajuda de criados. Da entrada, passaram para outro cômodo. Um homem em trajes estranhos surgiu na porta. Villárski, indo ao encontro dele, disse-lhe algo em francês e em voz baixa e aproximou-se de um pequeno armário, dentro do qual Pierre notou uns trajes diferentes, como nunca tinha visto. Depois de tirar um lenço do armário, Villárski cobriu com ele os olhos de Pierre e amarrou-o com um nó atrás da cabeça, repuxando dolorosamente os seus cabelos. Em seguida, puxou Pierre na sua direção, beijou-o, tomou-o pelo braço e conduziu-o para algum lugar. Pierre sentia dor por causa do cabelo preso ao nó do lenço, franzia o rosto de dor e sorria de vergonha, por algum motivo. Sua figura enorme, com os braços abaixados e o rosto franzido e sorridente, movia-se em passos vacilantes, tímidos, atrás de Villárski.
Após levá-lo pelo braço por uns dez passos, Villárski parou.
— Aconteça o que acontecer — disse —, o senhor deve suportar tudo com valentia, se o senhor tem a firme resolução de ingressar em nossa irmandade. (Pierre respondeu afirmativamente com uma inclinação de cabeça.) Quando o senhor ouvir uma batida na porta, tire a venda dos olhos — acrescentou Villárski. — Desejo-lhe coragem e sucesso. — Villárski apertou a mão de Pierre e saiu.
Sozinho, Pierre continuava a sorrir da mesma forma. Umas duas vezes encolheu os ombros, levou a mão até o lenço, como se quisesse retirá-lo, e de novo baixou a mão. Os cinco minutos que passou com os olhos vendados lhe pareceram uma hora. Suas mãos inchavam, os pés fraquejavam; parecia estar ficando cansado. Experimentava os sentimentos mais complexos e variados. Temia o que estava para acontecer com ele e temia mais ainda demonstrar medo. Tinha curiosidade de saber o que ia acontecer, o que lhe seria revelado; porém, acima de tudo, estava contente por ter chegado a hora em que, afinal, ele tomaria o rumo da regeneração e da vida atuante e virtuosa com que sonhava desde o seu encontro com Ióssif Alekséievitch. Na porta, soaram batidas fortes. Pierre retirou a venda e lançou um olhar à sua volta. No quarto, a escuridão era completa: só num ponto ardia uma lamparina dentro de alguma coisa branca. Pierre aproximou-se e viu que a lamparina estava sobre uma mesa preta, na qual havia um livro aberto. O livro era o Evangelho; a coisa branca dentro da qual ardia a lamparina era um crânio humano, com seus buracos e dentes. Depois de ler as primeiras palavras do Evangelho, “No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus”, Pierre contornou a mesa e viu uma caixa grande, aberta, com alguma coisa dentro. Era um ataúde com ossos. Ele não sentiu nenhuma surpresa com o que viu. Na esperança de ingressar numa vida totalmente nova, totalmente distinta da vida anterior, já esperava tudo de extraordinário, coisas muito mais extraordinárias do que aquilo que estava vendo. O crânio, o ataúde, o Evangelho — ele tinha a impressão de que já esperava tudo aquilo, esperava ainda mais. Esforçando-se para despertar em si um sentimento de comoção, Pierre olhava à sua volta. “Deus, a morte, o amor, a fraternidade das pessoas”, disse consigo, amarrando com essas palavras conceitos confusos, mas alegres. A porta abriu, e alguém entrou.
Sob a luz fraca, à qual, porém, Pierre já conseguira acostumar os olhos, entrou um homem baixo. Como obviamente vinha da luz para o escuro, o homem parou; depois, em passos cautelosos, aproximou-se da mesa e colocou sobre ela as mãos pequenas, calçadas com luvas de couro.
O homem baixo vestia um avental branco de couro, que recobria o peito e uma parte das pernas, usava no pescoço uma espécie de colar e, do colar, subiam umas pregas altas e brancas, que orlavam o seu rosto alongado, iluminado de baixo para cima.
— Para que o senhor veio aqui? — perguntou o homem, voltando-se para o lado de onde viera um rumor feito por Pierre. — Para que o senhor, que não acredita na verdade da luz e que não vê a luz, para que o senhor veio aqui, o que o senhor quer de nós? Sabedoria, virtude, esclarecimento?
Na hora em que a porta abriu e o homem desconhecido entrou, Pierre experimentou um sentimento de medo e de reverência semelhante ao que ele, na infância, experimentava na hora da confissão: sentia-se frente a frente com um completo estranho pelas condições da vida, mas alguém próximo pela fraternidade dos seres humanos. Pierre, com a respiração tolhida e o coração palpitante, aproximou-se do reitor (assim é chamado, na maçonaria, o irmão que prepara o recipiendário a ingressar na irmandade). Pierre, ao aproximar-se, identificou no reitor um homem conhecido, Smolianínov, mas ficou desgostoso por pensar que o homem que entrara era um seu conhecido: o homem que entrara, para ele, devia ser apenas um irmão e um orientador virtuoso. Pierre, por muito tempo, não foi capaz de dizer nenhuma palavra, por isso o reitor teve de repetir a pergunta.
— Sim, eu... eu... quero a regeneração — pronunciou Pierre, com dificuldade.
— Muito bem — disse Smolianínov, e logo prosseguiu: — O senhor tem conhecimento dos meios pelos quais a nossa santa ordem ajudará o senhor a alcançar o seu objetivo? — perguntou o reitor, depressa e em tom sereno.
— Eu... espero... orientação... ajuda... para a regeneração — disse Pierre, com voz trêmula e com dificuldade para falar, fruto da emoção e da falta de costume de falar em russo a respeito de temas abstratos.
— O que o senhor sabe da franco-maçonaria?
— Eu suponho que a franco-maçonaria é a fraternité 6 e a igualdade das pessoas com propósitos virtuosos — disse Pierre, envergonhando-se, à medida que falava, da incompatibilidade entre as suas palavras e a solenidade da ocasião. — Eu suponho...
— Muito bem — disse o reitor, depressa, pelo visto plenamente satisfeito com tal resposta. — O senhor procurou na religião os meios para alcançar os seus objetivos?
— Não, eu a considerava injusta e não a seguia — respondeu Pierre, tão baixo que o reitor não ouviu e perguntou o que estava dizendo. — Eu era ateu — respondeu Pierre.
— O senhor está em busca da verdade a fim de seguir as suas leis na vida; portanto o senhor está em busca da sabedoria e da virtude, não é assim? — perguntou o reitor, após um instante de silêncio.
— Sim, sim — confirmou Pierre.
O reitor tossiu, cruzou as mãos enluvadas sobre o peito e começou a falar.
— Agora tenho de revelar ao senhor a finalidade principal da nossa ordem — disse ele —, e caso essa finalidade coincida com a do senhor, será vantajoso ingressar em nossa irmandade. O primeiro e principal objetivo, e também o fundamento da nossa ordem, sobre o qual ela está firmada e que nenhuma força humana é capaz de derrubar, é a guarda e a transmissão para a posteridade de certo mistério importante... que veio dos séculos mais remotos, desde o primeiro homem, até nós, um mistério do qual, talvez, dependa o destino da espécie humana. Mas, como esse mistério é de tal ordem que ninguém pode conhecê-lo nem dele tirar proveito, se antes não tiver se preparado por meio de uma longa e aplicada purificação de si mesmo, não são todos os que podem esperar alcançá-lo em pouco tempo. Por isso temos um segundo objetivo, que consiste em preparar os nossos membros, o mais possível, corrigir o coração deles, purificar e ilustrar a sua razão, com os meios que nos foram revelados pela tradição que vem de homens que se empenharam na busca desse mistério, e assim torná-los aptos à sua compreensão. Purificando e corrigindo os nossos membros, tentamos, em terceiro lugar, corrigir toda a espécie humana, oferecendo a ela um exemplo de devoção e de virtude em nossos membros, e assim tentamos, com todas as forças, combater o mal que reina no mundo. Reflita sobre isso e venho de novo ao seu encontro — disse, e saiu da sala.
— Combater o mal que reina no mundo... — repetiu Pierre, e imaginou as suas atividades futuras, naquele campo. Pensou nas mesmas pessoas com quem ele andava apenas duas semanas antes e, mentalmente, dirigiu a elas um discurso sentencioso e doutoral. Imaginou pessoas devassas e infelizes, às quais ajudava com palavras e ações; imaginou os opressores, cujas vítimas ele salvava. Dos três objetivos nomeados pelo reitor, aquele último, a reabilitação da espécie humana, era especialmente caro a Pierre. O mistério importante mencionado pelo reitor, embora atiçasse a sua curiosidade, não lhe parecia essencial; já o segundo objetivo, a purificação e a correção de si mesmo, pouco interessava a ele, porque naquele momento Pierre se sentia, com prazer, já inteiramente regenerado dos vícios anteriores e pronto a praticar só o bem.
Meia hora depois, o reitor voltou para transmitir ao buscador da verdade as sete virtudes que correspondem aos sete degraus do templo de Salomão e que cada maçom devia cultivar em si mesmo. Essas virtudes eram: 1) a discrição, a defesa do segredo da ordem; 2) a obediência aos membros superiores da ordem; 3) os bons costumes; 4) o amor à humanidade; 5) a coragem; 6) a generosidade; 7) o amor à morte.
— Em sétimo lugar — disse o reitor —, tente, pensando na morte com frequência, alcançar um estágio em que ela não lhe pareça mais um inimigo terrível, e sim um amigo... que liberta desta vida funesta a alma atormentada pelos trabalhos da virtude, a fim de conduzi-la ao local de repouso e de recompensa.
“Sim, deve ser assim”, pensou Pierre, quando o reitor, depois de dizer tais palavras, saiu e deixou-o numa reflexão solitária. “Deve ser assim, mas eu ainda estou tão fraco que amo a minha vida, cujo sentido só agora vai se revelando aos poucos para mim.” Porém, as cinco virtudes que Pierre recordava contando nos dedos, ele as sentia na alma: a coragem, a generosidade, os bons costumes, o amor à humanidade, e em especial a obediência, que nem lhe parecia uma virtude, mas uma felicidade. (Estava, agora, muito contente por livrar-se da própria arbitrariedade e submeter a sua vontade àquele e àqueles que conheciam a verdade indiscutível.) A sétima virtude Pierre esqueceu e não conseguia lembrar de forma alguma.
Pela terceira vez, o reitor voltou pouco depois e perguntou a Pierre se continuava firme na sua intenção e se estava decidido a sujeitar-se a tudo o que dele exigissem.
— Estou preparado para tudo — disse Pierre.
— Devo ainda comunicar ao senhor — disse o reitor — que a nossa ordem não apresenta a sua doutrina apenas por meio de palavras, mas por outros meios, que talvez ajam no verdadeiro buscador da sabedoria e da virtude com mais força do que as explicações meramente verbais. Esta sala, com seus apetrechos, que o senhor está vendo, já deve explicar ao seu coração, se ele é sincero, mais do que as palavras; e o senhor verá, talvez, na continuidade da sua iniciação, uma forma semelhante de esclarecimento. A nossa ordem imita as sociedades ancestrais que revelavam a sua doutrina por meio de hieróglifos. Um hieróglifo — disse o reitor — é a representação de uma coisa não apreensível pelos sentidos e que contém atributos semelhantes àquilo que é representado.
Pierre sabia muito bem o que era um hieróglifo, mas não se atrevia a falar. Escutava em silêncio o reitor, sentindo, em tudo aquilo, que logo ia ter início a sua provação.
— Se o senhor se mantém firme, devo proceder à sua iniciação — disse o reitor, aproximando-se mais um pouco de Pierre. — Em sinal de generosidade, peço ao senhor que me entregue todos os seus pertences de valor.
— Mas eu não tenho nada aqui comigo — respondeu Pierre, supondo que lhe exigiam a entrega de tudo o que possuía.
— Aquilo que está com o senhor: o relógio, o dinheiro, os anéis...
Pierre pegou às pressas a carteira, o relógio e demorou muito tempo para tirar do dedo gordo a aliança de casamento. Quando isso foi feito, o maçom disse:
— Em sinal de obediência, peço ao senhor que se dispa. — Pierre tirou o fraque, o colete e a bota esquerda, seguindo as indicações do reitor. O maçom abriu a camisa de Pierre no lado esquerdo do peito e, abaixando-se, levantou a perna esquerda da calça acima do joelho. Pierre quis logo descalçar também a bota direita e arregaçar a calça, a fim de livrar daquele trabalho o homem desconhecido, mas o maçom lhe disse que não era necessário e lhe deu um chinelo para o pé esquerdo. Com um sorriso infantil de vergonha, de dúvida e de zombaria de si mesmo, que apareceu no seu rosto contra a sua vontade, Pierre ficou parado, braços abaixados e pernas separadas, diante do irmão-reitor, à espera de novas ordens.
— E por fim, em sinal de sinceridade, peço ao senhor que me revele a sua principal paixão — disse.
— A minha paixão! Eu tinha tantas — disse Pierre.
— Aquela paixão que, mais do que todas as outras, obrigava o senhor a vacilar no caminho da virtude — disse o maçom.
Pierre ficou em silêncio por um tempo, procurando.
“A bebida? A comida? O ócio? A preguiça? A raiva? As mulheres?”, examinava os seus vícios, avaliando-os mentalmente, sem saber a qual dar a primazia.
— As mulheres — disse Pierre, em voz baixa, quase inaudível. O maçom nem se mexeu e, depois dessa resposta, ficou muito tempo sem falar. Por fim, aproximou-se de Pierre, pegou um lenço que estava sobre a mesa e vendou seus olhos de novo.
— Pela última vez, digo ao senhor: volte toda a sua atenção para si, ponha uma corrente nos seus sentidos e procure a beatitude não nas paixões, mas no coração... A fonte da beatitude não está fora, mas dentro de nós...
Pierre já sentia dentro de si a refrescante fonte de beatitude que agora enchia sua alma de alegria e de ternura.
IV
Logo depois, quem entrou na sala escura para buscar Pierre já não foi o reitor de antes, e sim Villárski, o seu patrono, que Pierre reconheceu pela voz. Às novas perguntas sobre a firmeza de suas intenções, Pierre respondeu:
— Sim, sim, concordo — e, com um sorriso infantil radiante e o peito gordo descoberto, em passos tímidos e claudicantes, um pé descalço e outro calçado, andou em frente, enquanto Villárski mantinha uma espada encostada em seu peito desnudo. Da sala, passaram para corredores que viravam para um lado e para o outro e, por fim, chegaram à porta da loja. Villárski tossiu, em resposta soaram as batidas maçônicas de martelos, a porta abriu à frente deles. Uma voz de baixo (os olhos de Pierre continuavam vendados) lhe perguntou quem ele era, quando e onde nascera etc. Depois, o levaram de novo para algum lugar, sem tirar a venda dos olhos, e durante o caminho lhe contaram alegorias sobre as atribulações de sua jornada, sobre a amizade sagrada, sobre o Eterno Arquiteto do universo, sobre a coragem com que devia suportar as atribulações e os perigos. Durante esse caminho, Pierre notou que o chamavam ora de “buscador”, ora de “sofredor”, ou então de “requerente”, e batiam com os martelos e as espadas de forma diferente, a cada uma dessas palavras. Na hora em que o aproximaram de certo objeto, notou uma perturbação e uma confusão entre os seus guias. Ouviu que as pessoas à sua volta começaram a discutir aos sussurros e que uma delas insistia em que Pierre devia ser conduzido por certo tapete. Depois disso, seguraram a sua mão direita, colocaram-na sobre alguma coisa, mandaram que ele, com a mão esquerda, encostasse um compasso no lado esquerdo do peito e obrigaram Pierre a repetir as palavras que um outro lia, um juramento de fidelidade às leis da ordem. Em seguida, apagaram as velas, inflamaram álcool, o que Pierre percebeu pelo cheiro, e disseram que ele ia ver uma pequena luz. Retiraram a venda de seus olhos, e Pierre, como num sonho, na luz fraca da chama do álcool, via várias pessoas que, com o mesmo avental do reitor, estavam de pé na sua frente e seguravam espadas, apontadas para o peito de Pierre. Entre elas, estava um homem de camisa branca ensanguentada. Ao ver isso, Pierre inclinou o peito para a frente, de encontro às espadas, no intuito de que as cravassem em seu peito. Mas as espadas se afastaram e, imediatamente, a venda foi amarrada em seus olhos outra vez.
— Agora você viu a pequena luz — disse-lhe uma voz. Em seguida, acenderam de novo as velas, disseram que ele precisava ver a luz plena, e de novo retiraram a venda, e mais de dez vozes falaram, de repente: Sic transit gloria mundi.7
Pierre começou a se recuperar aos poucos e a olhar para o quarto à sua volta e para as pessoas que ali se encontravam. Em redor de uma mesa comprida, coberta de preto, estavam sentados uns doze homens, todos vestidos da mesma forma que os homens que vira antes. Alguns Pierre conhecia da sociedade petersburguesa. Na cadeira de presidente, estava um jovem desconhecido, com uma cruz diferente no pescoço. À sua direita, estava o abade italiano que Pierre tinha visto dois anos antes em casa de Anna Pávlovna. Havia também um funcionário público do mais alto escalão e o preceptor suíço que antes morava na casa dos Kuráguin. Todos se mantinham solenemente calados, ouviam as palavras do presidente, que empunhava um martelo. Na parede, estava embutida uma estrela luminosa; num lado da mesa, havia um tapete pequeno com diversas imagens, no outro lado havia uma espécie de altar, com o Evangelho e um crânio. Em torno da mesa, estavam sete castiçais grandes, do tipo usado na igreja. Dois irmãos conduziram Pierre na direção do altar, colocaram seus pés em ângulo reto e ordenaram que deitasse, dizendo que ele ia prosternar-se diante dos portões do templo.
— Primeiro ele tem de receber a colher de pedreiro — disse um dos irmãos, num sussurro.
— Ah! Chega, por favor — disse outro.
Com os olhos míopes desnorteados, sem obedecer, Pierre olhava à sua volta e de repente lhe veio uma dúvida: “Onde estou? O que estou fazendo? Será que não estão zombando de mim? Não terei vergonha de lembrar tudo isso depois?”. Mas a dúvida só durou um instante. Pierre olhou para os rostos sérios das pessoas que o rodeavam, lembrou-se de tudo por que já havia passado e entendeu que era impossível parar no meio do caminho. Horrorizou-se com a própria dúvida e, tentando despertar em si o sentimento anterior de ternura, prosternou-se diante dos portões do templo. E, de fato, um sentimento de ternura, ainda mais forte do que o anterior, dominou-o. Depois que permaneceu deitado por um tempo, mandaram que levantasse e vestisse um avental branco, de couro, igual ao que os outros vestiam, puseram em suas mãos uma colher de pedreiro e três pares de luvas, e então o grão-mestre se voltou para Pierre. Disse que tentasse não manchar com nada a brancura daquele avental, símbolo da fortaleza e da castidade; em seguida, a respeito da colher de pedreiro, até ali sem explicação, disse que Pierre devia, com ela, empenhar-se em purgar o coração dos vícios e, de modo indulgente, devia alisar com ela o coração do próximo. Em seguida, a respeito do primeiro par de luvas masculinas, disse que Pierre não podia saber o significado delas, mas devia guardá-las; sobre o outro par de luvas masculinas, disse que Pierre devia calçá-las nas reuniões e, por fim, sobre o terceiro par de luvas, que eram de mulher, disse:
— Prezado irmão, essas luvas de mulher também são destinadas ao senhor. Entregue-as à mulher que o senhor há de respeitar mais do que todas. Esse presente será o penhor da pureza do seu coração para aquela que o senhor escolher para si como digna companheira de um pedreiro. — Calou-se por um momento e acrescentou: — Mas, prezado irmão, cuidado para que essas luvas não venham a enfeitar mãos impuras. — No momento em que o grão-mestre pronunciou aquelas últimas palavras, Pierre teve a impressão de que o presidente ficou perturbado. Pierre perturbou-se ainda mais, ruborizou-se até às lágrimas, como se ruborizam as crianças, pôs-se a olhar em redor com inquietação, e formou-se um silêncio embaraçoso.
O silêncio foi interrompido por um dos irmãos, que, enquanto conduzia Pierre para o tapete, começou a ler num caderno a explicação de todas as figuras nele representadas: o sol, a lua, o martelo, o prumo, a colher de pedreiro, a pedra bruta e a pedra cúbica, a coluna, as três janelas etc. Em seguida, indicaram a Pierre o seu lugar, mostraram-lhe as insígnias da loja, disseram a senha de entrada e, por fim, permitiram que sentasse. O grão-mestre começou a ler o estatuto. Era muito longo, e Pierre, por causa da alegria, da agitação e da vergonha, não estava em condições de compreender o que liam. Só prestou atenção nas últimas palavras do estatuto, que ficaram na sua memória.
— “Em nossos templos” — leu o grão-mestre —, “não reconhecemos outros títulos que não aqueles que se colocam entre a virtude e o vício. Evite fazer qualquer distinção que possa perturbar a igualdade. Corra para ajudar o irmão, quem quer que ele seja, dê conselhos ao que estiver em erro, erga o que cair, e nunca alimente o ódio ou a inimizade por um irmão. Seja carinhoso e amável. Atice a chama da virtude no coração de todos. Compartilhe a felicidade com o próximo, e que a inveja nunca perturbe esse deleite puro. Perdoe ao seu inimigo, não se vingue dele, exceto fazendo-lhe o bem, apenas. Se cumprir dessa forma a lei suprema, há de recuperar os atributos da antiga grandeza que você perdeu” — concluiu e, após se levantar, abraçou e beijou Pierre.
Com lágrimas de alegria, Pierre olhava em redor sem saber o que responder aos cumprimentos e felicitações dos conhecidos que o rodeavam. Ele não demonstrou reconhecer nenhum deles; em todas aquelas pessoas via apenas irmãos com os quais ardia de impaciência para começar a trabalhar.
O grão-mestre bateu o martelo, todos sentaram em seus lugares, e um deles leu um ensinamento sobre a necessidade da humildade.
O grão-mestre propôs que se cumprisse a última obrigação, e o importante funcionário de alto escalão, que tinha o título de coletor de esmolas, começou a coleta entre os irmãos. Pierre queria registrar na lista de esmolas todo o dinheiro que possuía, mas receou que assim demonstrasse orgulho, e só registrou a mesma quantia que os demais.
A iniciação estava concluída, e ao voltar para casa Pierre teve a impressão de que chegava de uma viagem a terras distantes, onde passara dezenas de anos, mudara por completo e se livrara dos velhos hábitos e do antigo regime de vida.
V
No dia seguinte à sua acolhida na loja, Pierre estava em casa, lendo um livro, tentando penetrar no significado de um quadrado, no qual um dos lados representava Deus, o outro, a moral, o terceiro, a matéria, e o quarto, a combinação. De quando em quando, ele se desprendia do livro e do quadrado e, na sua imaginação, traçava para si um novo plano de vida. No dia anterior, na loja, disseram-lhe que os rumores sobre o duelo haviam chegado ao conhecimento do imperador e que seria mais sensato Pierre manter-se afastado de Petersburgo. Pierre tinha intenção de ir para a sua propriedade rural no sul e, lá, ocupar-se dos seus camponeses. Refletia alegremente sobre essa vida nova quando o príncipe Vassíli entrou no quarto de modo inesperado.
— Meu amigo, que confusão foi essa que você arranjou em Moscou? Por que discutiu com Lióliei,8 mon cher? Você está enganado — disse o príncipe Vassíli, ao entrar no quarto. — Eu soube de tudo, posso lhe dizer com segurança que Hélène é inocente diante de você, como Cristo diante dos judeus.
Pierre quis responder, mas ele o interrompeu.
— E por que você, simplesmente, não se dirigiu diretamente a mim, como a um amigo? Eu sei de tudo, compreendo tudo — disse —, você se portou como convém a um homem que tem apreço à própria honra; talvez tenha sido afoito demais, mas não vamos julgar isso. Apenas considere a situação em que você a colocou, e a mim também, aos olhos de toda a sociedade e até da corte — acrescentou, abaixando a voz. — Ela está morando em Moscou, você aqui. Chega, meu caro — e segurou Pierre pelo braço. — Não passa de um mal-entendido; você mesmo, eu creio, sente isso. Vamos escrever uma carta agora mesmo, e ela virá para cá, tudo ficará explicado, e todos esses rumores vão terminar, do contrário eu lhe digo que você pode, muito facilmente, vir a sofrer, meu caro.
O príncipe Vassíli lançou um olhar persuasivo para Pierre.
— Eu soube, de boas fontes, que a imperatriz viúva tem muito interesse em todo esse caso. Você sabe, ela é muito benévola com Hélène.
Várias vezes, Pierre fez menção de falar, mas, de um lado, o príncipe Vassíli não lhe permitia, interrompendo-o afobado, e de outro lado, o próprio Pierre receava começar a falar num tom de voz que não fosse o de categórica recusa e discordância, no qual estava firmemente resolvido a responder ao sogro. Além disso, recordava as palavras do estatuto da maçonaria: “Seja carinhoso e amável”. Franziu o rosto, ruborizou-se, levantou-se e sentou-se, em luta consigo mesmo, naquela que era, para ele, a tarefa mais difícil de todas — falar, cara a cara, algo desagradável a um homem, não dizer aquilo que esse homem esperava, fosse ele quem fosse. Pierre estava tão habituado àquele tom de autoconfiança negligente em que o príncipe Vassíli lhe falava que, também agora, sentia que não ia ter forças para contrapor-se a ele; porém sentia que todo o seu destino dependia do que ele ia dizer, agora: tomaria o velho caminho de antes, ou o novo, que os maçons lhe haviam mostrado de modo tão atraente e no qual Pierre acreditava, com firmeza, que encontraria a regeneração para uma vida nova?
— Bem, meu caro — disse o príncipe Vassíli, em tom jocoso —, diga-me “sim”, e escreverei para ela, eu mesmo, e assim vamos matar o novilho cevado.9 — Mas o príncipe Vassíli não conseguiu terminar o seu gracejo, pois Pierre, com fúria no rosto, o que lhe dava um aspecto semelhante ao de seu pai, e sem fitar os olhos do interlocutor, pronunciou num sussurro:
— Príncipe, eu não chamei o senhor para falar comigo, vá embora, por favor, vá embora! — Levantou-se de um salto e abriu a porta para ele. — Vá embora, já — repetiu, sem que ele mesmo acreditasse, e alegrou-se com a expressão de perplexidade e medo que surgiu no rosto do príncipe Vassíli.
— O que há com você? Está doente?
— Vá embora! — exclamou mais uma vez, com voz ameaçadora. E o príncipe Vassíli teve de sair, sem receber nenhuma explicação.
Uma semana mais tarde, depois de se despedir dos novos amigos maçons e lhes entregar uma quantia volumosa em esmolas, Pierre partiu para a sua propriedade. Seus novos irmãos deram-lhe cartas para Kíev e Odessa, para os maçons de lá, e prometeram escrever e orientá-lo em sua nova atividade.
VI
O caso entre Pierre e Dólokhov foi abafado, e apesar da severidade do soberano naquele tempo em relação a duelos, nem os dois oponentes nem os seus padrinhos sofreram nenhuma consequência. No entanto a história do duelo, confirmada pela separação entre Pierre e a esposa, espalhou-se pela sociedade. Pierre, a quem viam de modo condescendente, protetor, quando era um filho ilegítimo, a quem bajulavam e exaltavam quando era o melhor noivo do Império russo, após o casamento, quando as noivas e as mães já não podiam esperar nada dele, caiu muito no conceito da sociedade, e mais ainda porque Pierre não sabia, nem queria, obter com lisonjas a benevolência da sociedade. Agora, culpavam apenas Pierre pelo que havia ocorrido, diziam que era um ciumento obtuso, sujeito aos mesmos ataques de fúria sanguinária que o seu pai. E quando, depois da partida de Pierre, Hélène voltou para Petersburgo, foi recebida por todos os seus conhecidos não apenas cordialmente, como até com um toque de reverência, por causa da sua infelicidade. Quando a conversa tocava no seu marido, Hélène adotava uma expressão digna, que ela — embora sem compreender o significado — havia aprendido graças ao tato que lhe era peculiar. Aquela expressão dizia que Hélène resolvera não se queixar e suportar o seu infortúnio, e que o marido era a cruz que Deus lhe havia destinado. O príncipe Vassíli exprimia a sua opinião de modo mais franco. Encolhia os ombros, quando a conversa tocava no nome de Pierre, e, apontando para a testa, dizia:
— Un cerveau fêlé... Je le disais toujours.10
— Eu disse primeiro — dizia Anna Pávlovna, a respeito de Pierre. — Eu disse desde o início, e antes de todos (insistia na sua prioridade), que era um jovem louco, corrompido pelos ideais depravados do século. Eu já dizia isso quando todos se maravilhavam com ele, na época em que o rapaz tinha acabado de chegar do exterior e, lembram, certa noite, em minha casa, quis fazer o papel de um Marat. Viram no que deu? Na ocasião, eu já era contrária a esse casamento e predizia tudo o que ia acontecer.
Anna Pávlovna, como antes, nos dias livres, oferecia em sua casa, à noite, aquelas mesmas festas, que só ela tinha o dom de saber organizar — festas em que, antes de tudo, se reuniam la crème de la véritable bonne société, la fine fleur de l’essence intellectuelle de la société de Pétersbourg,11 como dizia a própria Anna Pávlovna. Além daquela refinada seleção da sociedade, as festas de Anna Pávlovna destacavam-se também pelo fato de ela sempre oferecer a seus convidados uma personalidade nova, interessante, e porque em nenhum outro lugar se revelava, de modo tão claro e seguro como nas suas festas, o grau do termômetro político em que estava o ânimo da legítima sociedade da corte de Petersburgo.
No fim de 1806, quando já eram conhecidos todos os tristes pormenores da destruição do exército prussiano por Napoleão, em Iena e Auerstadt, e da capitulação de grande parte das fortalezas prussianas, quando as nossas tropas já haviam entrado na Prússia e iniciado a nossa segunda guerra contra Napoleão, Anna Pávlovna promoveu uma festa, numa noite, em sua casa. La crème de la véritable bonne société consistia na fascinante e infeliz Hélène, abandonada pelo marido, em Mortmart, no fascinante príncipe Hippolyte, que acabara de chegar de Viena, em dois diplomatas, na velha tia, num jovem que, no salão, gozava apenas do título de un homme de beaucoup de mérite,12 em uma dama de honra recém-nomeada e na mãe dela, além de vários outros indivíduos menos notáveis.
A pessoa que, naquela noite, Anna Pávlovna apresentava como uma novidade a seus convidados era Boris Drubetskói, que acabara de chegar como mensageiro do Exército prussiano, no qual tinha o posto de ajudante de ordens, e era uma figura muito importante.
O termômetro político da sociedade naquela festa dizia o seguinte: por mais que todos os soberanos e comandantes militares europeus se esforcem para mostrar-se complacentes com Bonaparte, a fim de causar a mim, e a nós em geral, esses aborrecimentos e dissabores, a nossa opinião a respeito de Bonaparte não pode mudar. Não vamos deixar de exprimir a nossa franca forma de pensar sobre isso e só podemos dizer ao rei da Prússia e aos outros: “Pior para os senhores. Tu l’as voulu, George Dandin,13 é tudo o que podemos dizer”. Eis o que indicava o termômetro político da festa de Anna Pávlovna. Quando Boris, que devia ser oferecido aos convidados, entrou no salão, já quase toda a sociedade estava reunida, e a conversa, guiada por Anna Pávlovna, tratava das nossas relações com a Áustria e da esperança de uma aliança com ela.
Boris, num elegante uniforme de ajudante de ordens, mais robusto, jovial e corado, entrou com desembaraço no salão e, como convinha, foi conduzido para apresentar seus cumprimentos à velha tia, antes de vir de novo unir-se ao círculo comum.
Anna Pávlovna lhe deu a mão para beijar, apresentou-o a diversas pessoas que ele não conhecia e, num sussurro, definia cada uma delas para Boris.
— Le prince Hippolyte Kouraguine... charmant jeune homme. Monsieur Kroug, chargé d’affaires de Copenhague... un esprit profond... — E simplesmente: — Monsieur Shittoff, un homme de beaucoup de mérite 14 — a propósito do homem que todos designavam assim.
Boris, durante o seu tempo de serviço militar, graças aos esforços de Anna Mikháilovna, aos seus próprios gostos e às peculiaridades do seu caráter discreto, havia conseguido colocar-se na posição mais vantajosa possível no serviço militar. Era ajudante de ordens de uma figura muito importante, tinha um encargo muito importante na Prússia e acabara de chegar de lá, na condição de mensageiro. Havia assimilado inteiramente aquela forma de subordinação que não estava escrita nos regulamentos e que lhe agradara em Olmütz, segundo a qual um sargento podia ficar numa posição incomparavelmente mais elevada do que um general e segundo a qual, para alcançar o sucesso no serviço militar, não eram necessários o esforço, o trabalho, a coragem, a perseverança, mas apenas a capacidade de manipular as pessoas que distribuem as recompensas pelo serviço militar — e ele muitas vezes se espantava com os seus êxitos rápidos e se perguntava como os outros podiam não entender isso. Em consequência de tal revelação, toda a sua forma de viver, todas as relações com os conhecidos de antes, todos os seus planos para o futuro mudaram completamente. Não era rico, mas empregava até o último centavo para vestir-se melhor do que os outros; preferia privar-se de muitos prazeres a permitir-se embarcar numa carruagem ruim, ou mostrar-se nas ruas de Petersburgo num uniforme velho. Só se aproximava e só procurava tornar-se conhecido de pessoas que estivessem acima dele e que, por isso, pudessem lhe ser úteis. Amava Petersburgo e desprezava Moscou. As recordações da casa dos Rostóv e do seu amor de infância por Natacha eram-lhe desagradáveis, e ele, desde que partira para o Exército, não estivera na casa dos Rostóv nem uma vez. No salão de Anna Pávlovna, onde estar presente era para ele o mesmo que uma importante promoção na carreira militar, Boris compreendeu, na mesma hora, qual era o seu papel e deixou que Anna Pávlovna tirasse proveito do interesse que ele pudesse ter para ela, enquanto observava cada pessoa atentamente e avaliava as vantagens e as possibilidades da aproximação com cada uma. Sentou-se no lugar que lhe foi indicado, ao lado da bela Hélène, e acompanhou a conversa geral.
— “Vienne trouve les bases du traité proposé tellement hors d’atteinte, qu’on ne saurait y parvenir même par une continuité de succès les plus brillants, et elle met en doute les moyens qui pourraient nous les procurer.” C’est la phrase authentique du cabinet de Vienne 15 — disse o chargé d’affaires 16 dinamarquês.
— C’est le doute qui est flatteur!17 — disse, com um sorriso sutil, l’homme à l’esprit profond.18
— Il faut distinguer entre le cabinet de Vienne et l’empereur d’Autriche — disse Mortmart. — L’empereur d’Autriche n’a jamais pu penser à une chose pareille, ce n’est que le cabinet qui le dit.19
— Eh, mon cher vicomte — interveio Anna Pávlovna —, l’Urope (por algum motivo, ela pronunciava Urope, como um requinte especial da língua francesa que ela podia se permitir quando falava com um francês), l’Urope ne sera jamais notre alliée sincère.20
Em seguida, Anna Pávlovna conduziu a conversa para a bravura e a firmeza do rei da Prússia, a fim de integrar Boris na conversa.
Boris escutava atentamente cada pessoa que falava, esperando a sua vez, mas ao mesmo tempo conseguia, várias vezes, olhar de relance para a sua vizinha, a bela Hélène, que, com um sorriso, cruzava seu olhar com o daquele ajudante de ordens bonito e jovem.
De modo completamente natural, falando sobre a situação da Rússia, Anna Pávlovna pediu a Boris que contasse a sua viagem a Glogau21 e a situação em que encontrou o Exército russo. Boris, sem se afobar, num francês puro e correto, relatou inúmeros detalhes interessantes sobre as tropas, a corte, e durante todo o tempo do seu relato evitou cuidadosamente expressar a sua opinião sobre os fatos que estava relatando. Por algum tempo, Boris dominou a atenção geral, e Anna Pávlovna sentiu que a novidade que ela estava servindo naquela noite era recebida com satisfação por todos os convidados. Quem mais prestava atenção no relato de Boris era Hélène. Várias vezes lhe fez perguntas sobre diversos pormenores da sua viagem e parecia muito interessada na situação do Exército prussiano. Assim que ele terminou, Hélène, com o seu sorriso de costume, voltou-se para ele.
— Il faut absolument que vous veniez me voir — disse ela, num tom de voz que dava a impressão de que, por uma série de motivos que Boris não podia conhecer, aquilo era algo totalmente indispensável. — Mardi entre les huit et neuf heures. Vous me ferez grand plaisir.22
Boris prometeu satisfazer o desejo de Hélène e queria entabular conversa com ela, quando Anna Pávlovna o chamou sob o pretexto de que a velha tia queria falar com ele.
— O senhor por acaso conhece o marido dela? — perguntou Anna Pávlovna, de olhos fechados, apontando para Hélène com um gesto triste. — Ah, que mulher infeliz e encantadora! Não fale com ela sobre o marido, por favor, não fale. É doloroso demais para ela!
VII
Quando Boris e Anna Pávlovna voltaram ao círculo geral, o príncipe Hippolyte dominava a conversa. Com o corpo para a frente, na beirada da poltrona, ele dizia:
— Le roi de Prusse! — e em seguida começou a rir. Todos estavam voltados para ele. — Le roi de Prusse? — perguntou Hippolyte, riu de novo e, sério e calmo, acomodou-se de novo na parte mais funda da poltrona. Anna Pávlovna esperou um pouco que ele voltasse a falar, mas, como Hippolyte parecia resolvido a não dizer mais nada, ela passou a contar como o herege Bonaparte havia roubado, em Potsdam, a espada de Frederico, o Grande.
— C’est l’epée de Frédéric le Grand, que je...23 — ela quis começar, mas Hippolyte interrompeu-a com estas palavras:
— Le roi de Prusse... — e de novo, assim que os outros se voltaram para ele, Hippolyte pediu desculpas e calou-se. Anna Pávlovna franziu as sobrancelhas. Mortmart, amigo de Hippolyte, lhe disse em tom resoluto:
— Voyons à qui en avez-vous avec votre roi de Prusse? 24
Hippolyte começou a rir como se tivesse vergonha do próprio riso.
— Non, ce n’est rien, je voulais dire seulement... (Tinha a intenção de repetir a anedota que ouvira em Viena e para a qual vinha tentando, a noite inteira, encontrar um momento oportuno.) Je voulais dire seulement, que nous avons tort de faire la guerre pour le roi de Prusse.25
Boris sorriu com cautela, de um modo que o seu sorriso poderia ser entendido como desdém ou como aprovação do gracejo, dependendo de como o gracejo viesse a ser recebido pelos demais. Todos riram.
— Il est très mauvais, votre jeu de mot, très spirituel, mais injuste — disse Anna Pávlovna, ameaçando-o com o dedo encarquilhado. — Nous ne faisons pas la guerre pour le roi de Prusse, mas pour les bons principes. Ah, le méchant, ce prince Hippolyte!26 — disse ela.
A conversa não esfriou durante toda a noite e girou, sobretudo, em torno das notícias políticas. No fim, ganhou um ânimo especial, quando o assunto passou a ser as recompensas concedidas pelo soberano.
— N. N. já ganhou, no ano passado, uma tabaqueira com um retrato — disse l’homme à l’esprit profond. — Por que então S. S. não pode ganhar a mesma recompensa?
— Je vous demande pardon, une tabatière avec le portrait de l’empereur est une récompense, mais point une distinction — disse um diplomata —, un cadeu plutôt.27
— Il y a eu plutôt des antécédents, je vous citerai Schwarzenberg.28
— C’est impossible 29 — objetou um outro.
— Pode apostar. Le grand cordon, c’est différent...30
Quando se levantaram para sair, Hélène, que havia falado muito pouco durante toda a festa, dirigiu-se de novo a Boris com um pedido, em tom de ordem carinhosa e importante, de que ele fosse à casa dela na terça-feira.
— Preciso muito disso — falou Hélène, com um sorriso, virando-se para Anna Pávlovna, e Anna Pávlovna, com o mesmo sorriso triste que acompanhava suas palavras sobre a sua eminente protetora, confirmou o desejo de Hélène. Parecia que, de algumas palavras ditas por Boris naquela noite sobre o Exército prussiano, Hélène descobrira de repente uma necessidade de vê-lo. Pareceu prometer a ele que, quando fosse lá, na terça-feira, ela explicaria aquela necessidade.
Quando foi ao suntuoso salão de Hélène, na terça-feira à noite, Boris não recebeu uma explicação clara sobre a necessidade da sua presença ali. Havia outros convidados, a condessa pouco falou com ele e, só ao despedir-se, quando Boris beijou sua mão, Hélène, com uma estranha ausência de sorriso, de modo inesperado, num sussurro, lhe disse:
— Venez demain dîner... le soir. Il faut que vous veniez... Venez.31
Naquela estada em Petersburgo, Boris tornou-se uma pessoa íntima na casa da condessa Bezúkhov.
VIII
A guerra se inflamava, e o teatro de operações se aproximava das fronteiras russas. Em toda parte, ouviam-se maldições contra Bonaparte, o inimigo da espécie humana; milicianos e recrutas eram convocados nas aldeias e, do teatro de operações, chegavam notícias contraditórias, falsas como sempre e, por isso, interpretadas de várias maneiras.
A vida do velho príncipe Bolkónski, do príncipe Andrei e da princesa Mária havia mudado muito, desde o ano de 1805.
Em 1806, o velho príncipe foi indicado para ser um dos oito comandantes das forças voluntárias, nomeados então em toda a Rússia. O velho príncipe, apesar da sua fraqueza de velho, que se tornara mais perceptível na época em que acreditava que o filho estava morto, não julgava ter o direito de faltar a um dever do qual fora incumbido pelo próprio soberano, e aquela nova atividade que lhe surgiu o estimulava e revigorava. Fazia rondas constantes pelas três províncias confiadas a ele; era meticuloso até o pedantismo no cumprimento de suas obrigações, severo até a ferocidade com os seus subordinados e observava pessoalmente os mínimos detalhes das tarefas. A princesa Mária havia parado de ter aulas de matemática com o pai e só pela manhã, acompanhada pela ama de leite e pelo pequeno príncipe Nikolai (como o avô o chamava), entrava no escritório do pai, quando ele estava em casa. O bebê, príncipe Nikolai, vivia com a ama de leite e a babá Sávichna nos aposentos da falecida senhora princesa, e a princesa Mária passava a maior parte do dia no quarto da criança, substituindo, como podia, a mãe do pequeno sobrinho. Mlle Bourienne, também, assim parecia, amava o menino com ardor, e a princesa Mária, muitas vezes, a fim de ceder à amiga, se privava do prazer de cuidar do pequeno anjo (como ela chamava o sobrinho) e de brincar com ele.
Junto ao altar da igreja de Montes Calvos havia uma capela sobre a sepultura da pequena princesa, e na capela fora colocado um monumento de mármore, trazido da Itália, que representava um anjo de asas abertas, pronto para voar para o céu. O anjo tinha o lábio superior um pouco levantado, como se tivesse a intenção de sorrir, e certa vez o príncipe Andrei e a princesa Mária, ao saírem da capela, admitiram um para o outro que, estranhamente, o rosto daquele anjo fazia lembrar o rosto da falecida. Porém o mais estranho, e o que o príncipe Andrei não falou para a irmã, era que, na expressão que por acaso o artista dera ao rosto do anjo, o príncipe Andrei lia as mesmas palavras de repreensão dócil que lera, então, no rosto da esposa falecida: “Ah, por que vocês fizeram isso comigo?...”.
Pouco depois da volta do príncipe Andrei, o velho príncipe dividiu seus bens e deu ao filho a grande propriedade de Bogutchárovo, situada a quarenta verstas de Montes Calvos. Em parte por causa das lembranças penosas ligadas a Montes Calvos, em parte porque nem sempre o príncipe Andrei se sentia com forças para suportar o caráter do pai, em parte porque ele precisava de solidão, o príncipe Andrei fez bom proveito de Bogutchárovo, construiu uma casa e ficava lá a maior parte do tempo.
Depois da campanha de Austerlitz, o príncipe Andrei decidiu, com firmeza, nunca mais servir no Exército; e quando a guerra começou, e todos tinham de servir, ele, para livrar-se do serviço ativo no Exército, assumiu, sob o comando do pai, a função de recrutar as milícias. O velho príncipe e o filho pareciam ter trocado de papéis, depois da campanha de 1805. Estimulado pela atividade, o velho príncipe tinha as melhores expectativas na campanha em curso; ao contrário, sem participar da guerra e lamentando-a no fundo da alma, o príncipe Andrei só via coisas ruins.
No dia 26 de fevereiro de 1807, o velho príncipe partiu numa ronda. Como acontecia na maioria das vezes em que o pai estava fora, o príncipe Andrei ficou em Montes Calvos. O pequeno Nikóluchka estava adoentado já fazia quatro dias. Os cocheiros que levaram o velho príncipe voltaram da cidade e trouxeram documentos e cartas para o príncipe Andrei.
O camareiro com as cartas, ao não encontrar o jovem príncipe em seu escritório, seguiu para os aposentos da princesa Mária; mas ele tampouco estava lá. Disseram ao camareiro que o príncipe tinha ido ao quarto da criança.
— Com licença, vossa excelência, Petrucha trouxe uns papéis — disse uma das mocinhas que ajudavam a babá, dirigindo-se ao príncipe Andrei, que, sentado numa cadeirinha de criança, com as mãos trêmulas, de sobrancelhas franzidas, pingava gotas de um frasco de remédio dentro de um cálice cheio de água até a metade.
— O que é? — disse ele, zangado, e depois de sacudir a mão de modo descuidado fez cair do frasco para o cálice uma quantidade excessiva de gotas. Jogou no chão o remédio que estava no cálice e pediu água de novo. A criada lhe deu.
No quarto, havia um berço, duas arcas, duas poltronas, uma mesa, e uma mesinha e uma cadeirinha de criança, na qual o príncipe Andrei estava sentado. A janela tinha a cortina fechada, e sobre a mesa ardia uma vela, protegida por um livro de partituras musicais, para evitar que a luz batesse no berço.
— Meu amigo — disse a princesa, de pé junto ao berço, dirigindo-se ao irmão —, é melhor esperar um pouco... depois...
— Ah, por favor, você só diz bobagens, está sempre mandando esperar e esperar — disse o príncipe Andrei num sussurro exasperado, obviamente com o desejo de ferir a irmã.
— Meu irmão, sinceramente, é melhor não acordar, ele pegou no sono — disse a princesa, com voz de súplica.
O príncipe Andrei levantou-se e, na ponta dos pés, com o cálice na mão, aproximou-se do berço.
— Então, você acha mesmo que é melhor não acordar? — perguntou, indeciso.
— Como você preferir... mas, sinceramente... eu acho — disse a princesa Mária, visivelmente intimidada e envergonhada por sua opinião estar vencendo. Acenou para o irmão apontando a presença da criada que o chamava num sussurro.
Era a segunda noite que os dois não dormiam, cuidando do menino que ardia em febre. Durante aqueles dois dias e duas noites, sem confiar de todo no médico da família e à espera do médico que mandaram vir da cidade, eles experimentavam ora um remédio, ora outro. Extenuados pelas noites em claro e alarmados, atiravam o seu desgosto um contra o outro, censuravam-se mutuamente e discutiam.
— Petrucha trouxe uns documentos que papai mandou — sussurrou a criada. O príncipe Andrei saiu do quarto.
— Pois então, o que foi? — exclamou ele, zangado, e depois de ouvir as ordens verbais do pai e de pegar os envelopes e a carta que o pai enviara, voltou para o quarto da criança.
— E aí? — perguntou o príncipe Andrei.
— Está na mesma, espere um pouquinho, pelo amor de Deus. Karl Ivánitch sempre diz que o sono é o mais importante — sussurrou a princesa Mária, num suspiro. O príncipe Andrei aproximou-se do bebê e apalpou-o. A criança ardia em febre.
— Para o inferno, vocês e o seu Karl Ivánitch! — Ele pegou o cálice com as gotas e aproximou-se de novo.
— André, não precisa! — disse a princesa Mária.
Mas ele, com raiva e ao mesmo tempo com um ar sofrido, franziu a cara para a irmã e, com o cálice, curvou-se sobre a criança.
— Mas eu quero — disse ele. — Vamos, eu lhe peço, dê para ele.
A princesa Mária encolheu os ombros, mas pegou o cálice, submissa, e começou a dar o remédio com a ajuda da babá. O bebê desatou a gritar e a ofegar. O príncipe Andrei, de cara franzida, segurou a cabeça entre as mãos, saiu do quarto e sentou-se no sofá, no quarto vizinho.
Todas as cartas estavam na sua mão. Mecanicamente, abriu uma e começou a ler. O velho príncipe, num papel azul, com sua letra graúda, alongada, utilizando abreviaturas aqui e ali, escrevia o seguinte:
Recebi do cocheiro neste momento uma notícia muito alegre. Se não for lorota o que dizem, Bennigsen obteve uma vitória completa sobre Buonaparte em Preussische-Eylau. Todos rejubilam em Petersburgo, e recompensas sem conta foram enviadas para o Exército. Apesar de ele ser alemão, felicito-o. Não entendo o que faz o comandante de Kórtchevo, um tal de Khandrikóv: até agora, não chegaram os homens e as provisões adicionais. Vá a galope até lá imediatamente e diga que vou arrancar a cabeça dele se daqui a uma semana não estiver tudo pronto. Sobre a batalha de Preussische-Eylau, recebi também uma carta de Piétienka: tomou parte dela — é tudo verdade. Quando as pessoas que não devem se meter não se metem, até um alemão vence o Buonaparte. Dizem que está fugindo em total desordem. Trate de galopar bem depressa até Kórtchevo e fazer o que mandei!
O príncipe Andrei soltou um suspiro e rompeu o lacre de outro envelope. Era uma carta de Bilíbin, em duas folhinhas cobertas de letras miúdas. Dobrou-a sem ler e releu a carta do pai, que terminava com as palavras: “Trate de galopar bem depressa até Kórtchevo e fazer o que mandei!”.
“Não, o senhor me desculpe, não irei agora, enquanto o bebê não melhorar”, pensou e, aproximando-se da porta, lançou um olhar para o quarto da criança. A princesa Mária continuava de pé junto ao berço e balançava a criança, de leve.
“Sim, o que mais ele escreveu de desagradável?”, o príncipe Andrei quis se lembrar do conteúdo da carta do pai. “Sim. A vitória que alcançamos contra Bonaparte, justamente quando eu não estou no serviço militar. Sim, sim, sempre zombando de mim... bem, que faça bom proveito...” E passou a ler a carta em francês escrita por Bilíbin. Lia sem entender metade, lia só para, ainda que fosse apenas por um minuto, parar de pensar naquilo que ele vinha pensando já havia tempo demais, de uma forma atormentada e que excluía todo o resto.
IX
Bilíbin tinha agora o cargo de funcionário diplomático no quartel-general do Exército e, embora em língua francesa, com gracejos e expressões francesas, descrevia toda a campanha com um atrevimento na autocondenação e na autozombaria que era tipicamente russo. Bilíbin escrevia que a sua discrétion 32 diplomática o atormentava e que estava feliz por ter como correspondente fiel o príncipe Andrei, diante de quem podia derramar toda a bílis acumulada em razão do que via acontecer no Exército. A carta era antiga, anterior à batalha de Preussische-Eylau.
“Depuis nos grands succès d’Austerlitz, vous savez, mon cher prince”, escrevia Bilíbin,
que je ne quitte plus les quartiers généraux. Décidément j’ai pris le goût de la guerre, et bien m’en a pris. Ce que j’ai vu ces trois mois, est incroyable.
Je commence ab ovo. L’ennemi du genre humain, comme vous savez, s’attaque aux Prussiens. Les Prussiens sont nos fidèles alliés, qui ne nous ont trompés que trois fois depuis trois ans. Nous prenons fait et cause pour eux. Mais il se trouve que l’ennemi du genre humain ne fait nulle attention à nos beaux discours, et avec sa manière impolie et sauvage se jette sur les Prussiens sans leur donner le temps de finir la parade commencée, en deux tours de main les rosse à plate couture et va s’installer au palais de Potsdam.
“J’ai le plus vif désir”, écrit le roi de Prusse à Bonaparte, “que V. M. soit accueillie et traitée dans mon palais d’une manière qui lui soit agréable et c’est avec empressement, que j’ai pris à cet effet toutes les mesures que les circonstances me permettaient. Puissé-je avoir réussi!” Les généraux prussiens se piquent de politesse envers les Français et mettent bas les armes aux premières sommations.
Le chef de la garnison de Glogau avec dix mille hommes, demande au roi de Prusse, ce qu’il doit faire s’il est sommé de se rendre?... Tout cela est positif.
Bref, espérant en imposer seulement par notre attitude militaire, il se trouve que nous voilà en guerre pour tout de bon, et ce qui plus est, en guerre sur nos frontières avec et pour le roi de Prusse. Tout est au grand complet, il ne nous manque qu’une petite chose, c’est le général en chef. Comme il s’est trouvé que les succès d’Austerlitz auraient pu être plus décisifs si le général en chef eût été moins jeune, on fait la revue des octogénaires et entre Prosorofsky et, Kamensky, on donne la préférence au dernier. Le général nous arrive en kibik à la manière Souvoroff, et est accueilli avec des acclamations de joie et de triomphe.
Le 4 arrive le premier courrier de Pétersbourg. On apporte les malles dans le cabinet du maréchal, qui aime à faire tout par lui même. On m’appelle pour aider à faire le triage des lettres et prendre celles qui nous sont destinées. Le maréchal nous regarde faire et attend les paquets qui lui sont adressés. Nous cherchons — il n’y en a point. Le maréchal devient impatient, se met lui même à la besogne et trouve des lettres de l’empereur pour le comte T., pour le prince V. et autres. Alors le voilà qui se met dans une de ses colères bleues. Il jette feu et flamme contre tout le monde, s’empare des lettres, les décachète et lit celles de l’empereur adressées à d’autres. Ah, então é assim que me trata. Não tem confiança em mim! Ah, manda me vigiarem, que beleza; que vão para o inferno! Et il écrit le fameux ordre du jour au général Bennigsen:
“Estou ferido, não posso montar e portanto não posso comandar o exército. O senhor conduziu o seu contigente de campanha derrotado para Pultusk: ali ele se encontra vulnerável, sem lenha e sem forragem, portanto precisa de ajuda e, como o senhor mesmo comunicou ontem ao conde Buxhöwden, era necessário pensar numa retirada rumo à nossa fronteira, o que se deve fazer hoje mesmo.”
“Por causa de todas as minhas andanças a cavalo”, écrit-il à l’empereur, “peguei uma ferida de sela que, acrescida aos meus curativos anteriores, me impede completamente de montar e de comandar um exército tão vasto, e, por isso, passei o comando para o general mais antigo, depois de mim, o conde Buxhöwden, transmiti a ele todo o serviço e tudo o que lhe diz respeito, recomendei-lhe que, se faltar alimento, retire as tropas para um local mais próximo, para o interior da Prússia, porque só resta comida para um dia, mas em certos regimentos não há mais nenhum alimento, como informaram os comandantes de divisão Osterman e Sedmorétski, e o que os mujiques possuíam foi tudo devorado; eu mesmo vou ficar no hospital de Ostrolenka até me restabelecer. Na data em que encaminho mui respeitosamente este boletim a vossa majestade, faço saber que, caso o exército permaneça nos acampamentos atuais por mais quinze dias, na primavera não vai restar nem um único soldado sadio.
“Permita que se retire para o campo um velho que, de resto, já está coberto de desonra por não poder cumprir o destino magnífico e glorioso para o qual foi escolhido. A benevolentíssima autorização de vossa alteza, vou aguardá-la aqui no hospital, para não representar o papel de ‘escrivante’, em vez de comandante, das tropas. A minha desoneração do Exército não há de produzir a mais ínfima perturbação, é como se um cego se afastasse do exército. Tal como eu, há na Rússia milhares.”
Le maréchal se fâche contre l’empereur et nous punit tous; n’est ce pas que c’est logique!
Voilà le premier acte. Aux suivants l’intérêt et le ridicule montent comme de raison. Après le départ du maréchal il se trouve que nous sommes en vue de l’ennemi, et qu’il faut livrer bataille. Buxhœvden est général en chef par droit d’ancienneté, mais le général Bennigsen n’est pas de cet avis; d’autant plus qu’il est, lui, avec son corps en vue de l’ennemi, et qu’il veut profiter de l’occasion d’une bataille “aus eigener Hand” comme disent les Allemands. Il la donne. C’est la bataille de Pultusk, qui est censée être une grande victoire, mais qui à mon avis ne l’est pas du tout. Nous autres pékins, avons, comme vous savez, une très vilaine habitude de décider du gain ou de la perte d’une bataille. Celui qui s’est retiré après la bataille l’a perdu, voilà ce que nous disons, et à ce titre nous avons perdu la bataille de Pultusk. Bref, nous nous retirons après la bataille, mais nous envoyons un courrier à Pétersbourg, qui porte les nouvelles d’une victoire, et le général ne cède pas le commandement en chef à Buxhœvden, espérant recevoir de Pétersbourg, en reconnaissance de sa victoire, le titre de général en chef. Pendant cet interrègne, nous commençons un plan de manœuvres excessivement intéressant et original. Notre but ne consiste pas, comme il devrait l’être, à éviter ou à attaquer l’ennemi, mais uniquement à éviter le général Buxhœvden, qui par droit d’ancienneté serait notre chef. Nous poursuivons ce but avec tant d’énergie, que, même en passant une rivière qui n’est pas guéable, nous brûlons les ponts pour nous séparer de notre ennemi, qui, pour le moment, n’est pas Bonaparte, mais Buxhœvden. Le général Buxhœvden a manqué d’être attaqué et pris par des forces ennemies supérieures à cause d’une de nos belles manœuvres qui nous sauvait de lui. Buxhœvden nous poursuit — nous filons. À peine passe-t-il de notre côté de la rivière, que nous repassons de l’autre. À la fin notre ennemi Buxhœvden nous attrappe et s’attaque à nous. Les deux généraux se fâchent. Il y a même une provocation en duel de la part de Buxhœvden et une attaque d’épilepsie de la part de Bennigsen. Mais au moment critique le courrier, qui porte la nouvelle de notre victoire de Pultusk, nous apporte de Pétersbourg notre nomination de général en chef, et le premier ennemi Buxhœvden est enfoncé: nous pouvons penser au second, à Bonaparte. Mais ne voilà-t-il pas qu’à ce moment se lève devant nous un troisième ennemi, c’est le exército ortodoxo qui demande à grands cris du pain, de la viande, des souchary, du foin, que sais-je! Les magasins sont vides, les chemins impraticables. Le exército ortodoxo se met à la maraude, et d’une manière dont la dernière campagne ne peut vous donner la moindre idée. La moitié des régiments forme des troupes libres, qui parcourent la contrée en mettant tout à feu et à sang. Les habitants sont ruinés de fond en comble, les hôpitaux regorgent de malades, et la disette est partout. Deux fois le quartier général a été attaqué par des troupes de maraudeurs et le général en chef a été obligé lui-même de demander un bataillon pour les chasser. Dans une de ces attaques on m’a emporté ma malle vide et ma robe de chambre. L’empereur veut donner le droit à tous les chefs de divisions de fusiller les maraudeurs, mais je crains fort que cela n’oblige une moitié de l’armée de fusiller l’autre.33
O príncipe Andrei, de início, lia apenas com os olhos, mas depois, sem perceber, aquilo que lia (embora ele soubesse em que medida devia acreditar em Bilíbin) começou a interessá-lo cada vez mais. Tendo lido até aquele ponto, amassou a carta e jogou-a para o lado. Não ficou irritado com o que lera na carta, mas com o fato de aquela vida remota, alheia a ele, ser capaz de perturbá-lo. Fechou os olhos, esfregou a testa com a mão, como que para extirpar todo interesse por aquilo que lia, e pôs-se a ouvir com atenção o que se passava no quarto da criança. De repente, pareceu ouvir um barulho estranho atrás da porta. Teve medo; receou que tivesse acontecido algo com o bebê, enquanto lia a carta. Na ponta dos pés, aproximou-se da porta e abriu.
No instante em que entrou, viu que a babá, com ar assustado, escondia dele alguma coisa e que a princesa Mária já não estava junto ao berço.
— Meu amigo — ouviu às suas costas o sussurro da princesa Mária, que lhe pareceu desesperado. Como acontece muitas vezes depois de um longo tempo sem dormir e de uma prolongada agitação, ele sentiu um medo sem motivo: lhe veio à cabeça a ideia de que o bebê tinha morrido. Tudo o que via e escutava lhe parecia confirmar o seu medo.
“Está tudo acabado”, pensou, e um suor frio cobriu sua testa. Desconcertado, aproximou-se do berço, convicto de que o encontraria vazio, de que a babá havia escondido o bebê morto. Ele abriu o cortinado do berço e por um longo tempo os seus olhos assustados, desnorteados, não conseguiram localizar o bebê. Por fim, o viu: o menino rosado estava deitado no berço, de braços abertos e na diagonal, a cabeça mais baixa do que o travesseiro e, dormindo, ele movia os lábios, estalava beijinhos, e respirava num ritmo regular.
O príncipe Andrei alegrou-se ao ver o bebê assim, pois tinha a impressão de já ter perdido o filho. Curvou-se e, como a irmã havia ensinado, verificou com os lábios se a criança estava com febre. A testa delicada estava úmida, ele roçou a mão na cabeça do bebê — até os cabelos estavam molhados, de tanto que a criança havia suado. Não só não havia morrido, como agora era evidente que a crise terminara e que a criança se recuperava. O príncipe Andrei teve vontade de pegar, de apertar, de esmagar contra o peito aquela criatura pequenina e indefesa; não teve coragem de fazer isso. Ficou parado ao seu lado, olhando para a cabeça dele, para os braços, para as perninhas, que ressaltavam por baixo da manta. Ouviu um sussurro ao seu lado, e uma sombra apareceu por trás do mosquiteiro do berço. Ele não se virou para ver e, olhando para o rosto do bebê, não parava de escutar a sua respiração ritmada. A sombra escura era da princesa Mária, que, em passos silenciosos, aproximou-se do berço, levantou o mosquiteiro e deixou-o cair por trás de si. O príncipe Andrei, sem virar-se para ver, reconheceu a irmã e lhe estendeu a mão. Ela apertou a mão dele.
— Ele está suando — disse o príncipe Andrei.
— Fui procurar você para dizer isso.
O bebê, dormindo, mexeu-se bem de leve, sorriu e esfregou a cabeça no travesseiro.
O príncipe Andrei olhou para a irmã. Os olhos radiantes da princesa Mária, na penumbra opaca do mosquiteiro, brilhavam mais do que de costume, por causa das lágrimas de felicidade que havia neles. A princesa Mária esticou-se para junto do irmão e beijou-o, repuxando de leve o mosquiteiro do berço. Os dois se advertiram mutuamente com um gesto e continuaram parados sob a luz opaca do mosquiteiro, como se não quisessem afastar-se daquele mundo, em que os três se achavam separados do mundo inteiro. Emaranhando os cabelos na musselina do mosquiteiro, o príncipe Andrei afastou-se primeiro do berço. “Sim, isso é tudo o que me restou agora”, disse, num suspiro.
X
Pouco depois da sua admissão na confraria dos maçons, Pierre, levando consigo um guia completo, redigido por ele mesmo, no qual definia o que devia fazer em suas propriedades, partiu para a província de Kíev, onde se encontrava a maior parte de seus camponeses.
Ao chegar a Kíev, Pierre chamou todos os administradores ao escritório principal e explicou-lhes suas intenções e desejos. Disse que, rapidamente, seriam tomadas providências para a completa libertação dos camponeses do regime de servidão, que a partir de já os camponeses não deviam ser sobrecarregados de trabalho, que as mulheres e as crianças não deviam ser postas para trabalhar, que se devia prestar ajuda aos camponeses, que os castigos deviam ser verbais, e não corporais, que em todas as propriedades deviam ser instalados hospitais, asilos e escolas. Alguns administradores (havia ali intendentes semianalfabetos) escutavam assustados, supondo que o sentido daquele discurso era que o jovem conde estava insatisfeito com a administração deles e com o desvio de dinheiro; outros, depois do medo inicial, começaram a achar engraçado o ceceio de Pierre e também as palavras novas, que nunca tinham ouvido; outros, ainda, achavam simplesmente um prazer ouvir como o seu senhor falava; outros, os mais inteligentes, entre os quais estava o administrador-geral, entenderam de todo aquele discurso que seria preciso encontrar algum modo de ludibriar o patrão para que pudessem alcançar os seus objetivos.
O administrador-geral expressou uma grande simpatia pelas intenções de Pierre; mas observou que, além daquelas transformações, era indispensável cuidar dos assuntos gerais que estavam em situação ruim.
Apesar da imensa riqueza do conde Bezúkhov, desde quando Pierre a recebera e passara a receber também, segundo diziam, quinhentos mil rublos de renda por ano, ele se sentia muito menos rico do que quando ganhava os seus dez mil rublos do falecido conde. Em termos gerais, Pierre compreendia vagamente que o seu orçamento era o seguinte: ao Conselho, pagava cerca de oitenta mil rublos referentes a todas as suas propriedades; cerca de trinta mil era o custo da manutenção da propriedade nos arredores de Moscou, da casa de Moscou e a renda das princesas; cerca de quinze mil eram gastos em pensões, a mesma quantia destinada a instituições de caridade; para o sustento da condessa, mandava cento e cinquenta mil; cerca de setenta mil eram pagos de juros das dívidas; a construção já iniciada de uma igreja custara, naqueles dois anos, cerca de dez mil; o restante, cerca de cem mil, se dissipava nem ele sabia como, e quase todo ano Pierre era obrigado a pedir dinheiro emprestado. Além disso, todo ano, o administrador-geral escrevia falando ora de incêndios, ora de safras ruins, ora da necessidade de reformar fábricas e oficinas. Assim, a primeira tarefa que se impunha a Pierre era aquela para a qual ele tinha menos capacidade e inclinação: cuidar dos negócios.
Todos os dias, Pierre “cuidava de negócios” com o administrador-geral. Mas sentia que a sua atividade não fazia os negócios avançar nem um passo. Sentia que a sua atividade transcorria de forma independente dos negócios, que ela não se prendia aos negócios e não obrigava os negócios a se mover. De um lado, o administrador-geral, apresentando os negócios do pior ângulo possível, mostrava para Pierre a necessidade de liquidar as dívidas e empreender novos trabalhos com as forças dos mujiques em regime de servidão, com o que Pierre não concordava; de outro lado, Pierre exigia providências para a libertação dos servos, a que o administrador-geral reagia dizendo que antes era preciso pagar a dívida com o Conselho Tutelar,34 e por isso não era possível executar o projeto com rapidez.
Mas o administrador não dizia que era totalmente impossível e, para a realização daquele objetivo, sugeria a venda das florestas da província de Kostromá, a venda das terras da parte baixa do rio, mais afastadas das nascentes, e a venda da propriedade da Crimeia. Porém, na visão do administrador, todas essas operações estavam ligadas a tamanha complicação de processos, de levantamento de interdições, de requisição, de licenças etc. que Pierre se perdia e limitava-se a responder:
— Sim, sim, faça isso.
Pierre não tinha a tenacidade prática que lhe daria a possibilidade de cuidar de seus negócios de um modo direto, por isso não gostava do assunto e, diante do administrador, tentava apenas fingir que cuidava dos negócios. O administrador, por sua vez, diante do conde, tentava fingir que considerava aquelas tarefas de grande proveito para a propriedade e trabalhosas para ele.
Na cidade, Pierre encontrava conhecidos; os desconhecidos apressavam-se em se fazer conhecer e, cordialmente, saudavam o ricaço recém-chegado, o maior proprietário da província. As tentações relativas à principal fraqueza de Pierre, aquela que ele admitira por ocasião do seu ingresso na loja maçônica, eram também tão fortes que Pierre não conseguia se conter. Novamente, dias inteiros, semanas e meses da vida de Pierre passavam tão ocupados e absorvidos em festas, jantares, lanches, bailes que não lhe sobrava tempo para refletir, tal como acontecia em Petersburgo. Em vez da vida nova que Pierre esperava levar, vivia a mesma vida de antes, só que num outro cenário.
Dos três preceitos da maçonaria, Pierre reconhecia não cumprir aquele que prescrevia a todo maçom ser um exemplo de vida moral, e das sete virtudes não possuía, em absoluto, duas delas: os bons costumes e o amor à morte. Consolava-se com a ideia de que, em compensação, cumpria um outro preceito, o aprimoramento da espécie humana, e também possuía outras virtudes, o amor ao próximo e sobretudo a generosidade.
Na primavera de 1807, Pierre resolveu voltar a Petersburgo. Na viagem de volta, tinha a intenção de percorrer todas as suas propriedades, certificar-se pessoalmente de que estava sendo feito o que ele havia determinado e ver em que estado se achava, agora, o povo que Deus lhe havia confiado e que Pierre se empenhava em cumular de favores.
O administrador-geral, que considerava todas as fantasias do jovem conde uma semiloucura, desvantajosa para o administrador, para o conde, para os camponeses, fazia concessões. Embora continuasse a encarar como impossível o projeto da libertação dos servos, ele ordenava construir em todas as propriedades grandes prédios destinados a abrigar escolas, hospitais e orfanatos; para a vinda do patrão, o administrador preparava em toda parte recepções sem pompa nem cerimônia, pois sabia que Pierre não gostava disso, mas com símbolos religiosos de gratidão, ícones, pão e sal,35 o que, no seu modo de entender o patrão, havia de produzir efeito sobre ele e enganá-lo.
A primavera no sul, a viagem tranquila, rápida, numa carruagem vienense, e a solidão da estrada produziram um efeito alegre em Pierre. As propriedades que ele não tinha visitado antes eram cada uma mais pitoresca do que a outra; em toda parte, o povo se apresentava próspero e agradecido, de um modo comovente, pelos benefícios que havia recebido. Em toda parte, havia acolhidas que, embora deixassem Pierre embaraçado, despertavam no fundo da sua alma um sentimento de alegria. Em certo lugar, os mujiques lhe ofereceram pão e sal e uma imagem de Pedro e Paulo, e pediram licença para construir, em sinal de amor e gratidão pelos benefícios recebidos, e a expensas deles mesmos, uma capela nova na igreja, em homenagem a Pedro e Paulo, os santos padroeiros de Pierre.36 Num outro lugar, Pierre foi recebido por mulheres com crianças de peito, que lhe agradeceram por estarem dispensadas dos trabalhos pesados. Numa terceira propriedade, foi recebido por um sacerdote com uma cruz, rodeado por crianças, a quem ele estava alfabetizando e ensinando religião, graças à misericórdia do conde. Em todas as propriedades, Pierre via com os próprios olhos prédios de pedra já em construção, para hospitais, escolas, asilos de idosos, todos erguidos segundo a mesma planta, e que dali a pouco tempo deveriam estar abertos. Em toda parte, Pierre via relatórios dos administradores sobre a redução, em comparação a antes, do trabalho gratuito prestado ao senhor de terras, e ouvia agradecimentos comoventes de representantes dos camponeses, que vestiam cafetãs azuis.
Pierre não sabia que no local onde lhe ofereceram pão e sal e iam construir uma capela em homenagem a Pedro e Paulo havia uma aldeia mercantil e uma feira dedicada ao dia de Pedro, não sabia que a capela já fora construída havia muito, por mujiques ricos da aldeia, os mesmos que vieram falar com ele, e que nove décimos dos mujiques daquela aldeia se achavam em completa miséria. Não sabia que, em consequência da sua ordem de não mandarem mais mulheres com filhos lactentes para trabalhar de graça nas terras do proprietário, essas mesmas mulheres, agora, executavam um trabalho ainda mais pesado nas próprias terras. Não sabia que o sacerdote que viera recebê-lo com uma cruz oprimia os mujiques com os tributos cobrados pela Igreja, e que os pais dos alunozinhos reunidos à sua volta tinham entregado seus filhos à força, com lágrimas nos olhos, e depois ainda tinham de pagar uma grande soma para resgatá-los. Pierre não sabia que os prédios de pedra, construídos conforme a planta, estavam sendo erguidos pelos seus próprios camponeses e aumentavam o tempo de trabalho gratuito que prestavam ao senhor de terras, que só diminuía no papel. Não sabia que ali onde o administrador lhe mostrava, nos livros de contabilidade, a redução de um terço do tributo pago pelos servos ao proprietário, como Pierre havia ordenado, o que havia era o aumento de um meio do trabalho gratuito prestado ao senhor de terras. Por isso Pierre estava encantado com a sua viagem pelas propriedades, voltara inteiramente àquela disposição filantrópica com a qual havia partido de Petersburgo e escrevia cartas entusiasmadas ao seu irmão-mentor, como ele chamava o grão-mestre da maçonaria.
“Como é fácil, como é preciso pouco esforço para fazer tanto bem”, pensava Pierre, “e como nos preocupamos pouco com isso!”
Estava feliz com a gratidão que lhe haviam demonstrado, mas tinha vergonha de recebê-la. Aquela gratidão lhe fazia lembrar quanta coisa mais ele estava em condições de fazer para aquelas pessoas simples, boas.
O administrador-geral, homem muito estúpido e astuto, que entendia com toda a clareza o conde ingênuo e inteligente e o manobrava como a um brinquedo, ao se dar conta do efeito produzido em Pierre por aquelas recepções preparadas, apresentou-lhe, de modo ainda mais resoluto, as causas da impossibilidade e, sobretudo, da falta de necessidade da libertação dos camponeses, que sem isso já estavam perfeitamente felizes.
Pierre, no íntimo da alma, concordava com o administrador em que seria difícil imaginar uma gente mais feliz e que só Deus sabia o que aguardava os camponeses, quando estivessem em liberdade; mas Pierre, embora a contragosto, insistia no que considerava justo. O administrador prometia empregar todas as forças para realizar as vontades do conde, compreendendo claramente que o conde nunca estaria em condições de verificar não só se tinham sido tomadas todas as providências para a venda das florestas e das propriedades e para quitar a dívida com o Conselho, como também, provavelmente, nunca mais perguntaria a respeito nem chegaria a saber que os prédios construídos estavam vazios e que os camponeses continuavam a dar em trabalho e em dinheiro tudo o que os camponeses davam nas propriedades dos outros, ou seja, tudo o que podiam dar.
XI
No estado de espírito mais feliz possível, durante a volta da sua viagem ao sul, Pierre realizou um desejo muito antigo — visitar o seu amigo Bolkónski, a quem não encontrava havia dois anos.
Na última estação de posta, ao saber que o príncipe Andrei não estava em Montes Calvos, e sim na sua nova propriedade particular, Pierre foi ao encontro dele.
Bogutchárovo ficava num local feio, plano, coberto de campos e florestas de bétulas e abetos, umas derrubadas, outras não. A casa senhorial ficava na extremidade da aldeia, que se estendia ao longo da estrada reta, atrás de um tanque recém-cavado, cheio até a borda, cujas margens ainda não estavam cobertas de grama, no meio de um bosque novo onde havia alguns pinheiros grandes.
A casa senhorial consistia em uma eira coberta, dependências externas, estrebaria, casa de banho, um anexo e uma grande casa de pedra com um frontão semicircular, ainda em construção. Em torno da casa fora plantado um jardim novo. As cercas e os portões eram sólidos e novos; debaixo de um telheiro, havia duas bombas de incêndio e uma pipa d’água pintada de verde; as estradas eram retas, as pontes eram fortes, com balaustradas. Em tudo havia um sinal de esmero e de boa administração. Os criados que Pierre encontrou, e a quem perguntou onde o príncipe morava, apontaram para um anexo pequeno e novo, bem na beirada do tanque. Anton, o velho preceptor do príncipe Andrei, ajudou Pierre a descer da carruagem, disse que o príncipe estava em casa e conduziu-o a uma antessala pequena e limpa.
Pierre ficou impressionado com a modéstia da casinha pequena, mas bem limpa, depois das instalações suntuosas onde encontrara o amigo da última vez, em Petersburgo. Entrou depressa na sala pequena, com aroma de pinheiro e paredes sem reboco, e quis seguir em frente, mas Anton se adiantou a ele correndo na ponta dos pés e bateu na porta.
— Então, o que é? — ouviu-se uma voz brusca, desagradável.
— Uma visita — respondeu Anton.
— Peça para esperar — e ouviu-se uma cadeira ser empurrada. Pierre, a passos ligeiros, avançou em direção à porta e deu de cara com o príncipe Andrei, que saía ao seu encontro, de rosto franzido e envelhecido. Pierre abraçou-o, tirou os óculos, beijou-o no rosto e olhou-o de perto.
— Puxa, eu não esperava, que alegria — disse o príncipe Andrei. Pierre nada disse; admirado, sem baixar os olhos, fitava o amigo. Estava impressionado com a transformação ocorrida no príncipe Andrei. As palavras eram afetuosas, havia um sorriso nos lábios e no rosto do príncipe Andrei, mas o olhar estava apagado, morto, e, apesar de um desejo evidente, o príncipe Andrei não conseguia dar ao olhar um brilho alegre e contente. Não era o fato de o seu amigo ter ficado mais magro, mais pálido, mais maduro; mas aquele olhar e as rugas na testa, que denotavam uma longa concentração em um só assunto, foi que impressionaram Pierre e causaram certa entranheza, enquanto ele não se habituou àquilo.
Como sempre acontece em encontros após uma longa separação, a conversa demorou a se estabelecer; perguntavam e respondiam de modo breve sobre assuntos que eles mesmos sabiam que era preciso falar longamente. Por fim, aos poucos, a conversa passou a se deter naquilo que, antes, tinha sido dito de modo fragmentário, questões sobre a vida passada, sobre os planos para o futuro, sobre a viagem de Pierre, sobre as suas ocupações, sobre a guerra etc. A concentração e o abatimento que Pierre notara no olhar do príncipe Andrei agora o impressionavam com mais força ainda no sorriso com que ouvia Pierre, em especial quando falava, com um entusiasmo alegre, sobre o passado ou o futuro. Parecia que o príncipe Andrei queria, mas não conseguia, tomar parte no que ele dizia. Pierre começou a sentir que, diante do príncipe Andrei, o entusiasmo, os sonhos, as esperanças na felicidade e no bem eram coisas inconvenientes. Sentia escrúpulos de exprimir todos os seus novos pensamentos maçônicos, particularmente renovados e estimulados após a sua mais recente viagem. Pierre continha-se, receava ser ingênuo; ao mesmo tempo, tinha uma vontade incontida de mostrar logo ao amigo que agora ele era um outro Pierre, melhor do que aquele que existia em Petersburgo.
— Nem posso dizer ao senhor quanta coisa se passou comigo nesse tempo. Nem eu reconheço a mim mesmo.
— Sim, mudamos muito, muito, desde então — disse o príncipe Andrei.
— Mas e o senhor? — perguntou Pierre. — Quais são os seus planos?
— Planos? — reagiu com ironia o príncipe Andrei. — Meus planos? — repetiu, como que admirado com o sentido de tal palavra. — É isto que você está vendo, faço obras, quero mudar-me de vez para cá, no ano que vem...
Pierre ficou calado, olhando com muita atenção o rosto envelhecido de Andrei.
— Não, eu estou perguntando... — disse Pierre, mas o príncipe Andrei o interrompeu.
— Para que falar de mim... Conte, conte a sua viagem, tudo o que você fez em suas propriedades, como foi?
Pierre começou a contar o que tinha feito nas suas propriedades, tentando esconder, o mais possível, a sua participação nos melhoramentos promovidos por ele. O príncipe Andrei, várias vezes, se antecipava ao amigo e completava o que Pierre ia dizer, como se tudo o que ele tinha feito já fosse uma história conhecida, havia muito tempo, e escutava não só sem interesse como até parecia envergonhar-se do que Pierre contava.
Pierre ficou sem graça e até constrangido na companhia do amigo. Calou-se.
— Pois é isso, meu caro — disse o príncipe Andrei, que obviamente também se sentia constrangido e embaraçado com o visitante. — Estou aqui acampado, vim só fazer uma vistoria. Hoje mesmo volto para junto da minha irmã. Vou apresentá-lo a ela. Aliás, você já a conhece, eu acho — disse, obviamente para entreter uma visita com a qual sentia, agora, não ter nada em comum. — Iremos para lá depois do jantar. E, agora, quer ver a minha propriedade? — Os dois saíram e caminharam até a hora do jantar, conversando como se fossem pessoas de pouca intimidade sobre as notícias políticas e os conhecidos comuns. Com alguma animação e interesse, o príncipe Andrei falava sobre sua nova propriedade e sobre as obras promovidas por ele, mas ali também, no meio da conversa, no andaime de uma obra, quando o príncipe Andrei descrevia para Pierre as futuras instalações da casa, ele parou de repente. — De resto, aqui não há nada de interessante. Vamos jantar e depois partiremos. — Durante o jantar, a conversa girou em torno do casamento de Pierre.
— Fiquei muito admirado quando soube disso — falou o príncipe Andrei.
Pierre ruborizou-se, como sempre acontecia quando se falava do assunto, e disse, apressado:
— Um dia vou contar ao senhor como tudo aconteceu. Mas o senhor sabe que tudo isso está terminado, e para sempre.
— Para sempre? — perguntou o príncipe Andrei. — Nada é para sempre.
— Mas o senhor sabe como tudo terminou? Teve notícia do duelo?
— Sim, você teve de passar também por isso.
— Só agradeço a Deus não ter matado aquele homem — disse Pierre.
— Mas por quê? — perguntou o príncipe Andrei. — Matar um cão raivoso é até muito bom.
— Não, matar um homem é ruim, é injusto...
— Mas por que é injusto? — repetiu o príncipe Andrei. — Não compete às pessoas decidir o que é justo e injusto. As pessoas sempre erraram e continuarão a errar, acima de tudo quando querem decidir o que é justo e injusto.
— Injusto é aquilo que causa mal a outra pessoa — disse Pierre, sentindo com satisfação que, pela primeira vez desde o momento da sua chegada, o príncipe Andrei animava-se, começava a falar e queria contar tudo aquilo que o deixara como estava agora.
— E quem disse a você o que é o mal para outra pessoa? — perguntou ele.
— O mal? O mal? — disse Pierre. — Todos nós sabemos o que é o mal para nós mesmos.
— Certo, sabemos, mas esse mal, que eu conheço para mim, não posso infligi-lo a outra pessoa — disse o príncipe Andrei, cada vez mais animado e, era evidente, desejoso de expor para Pierre a sua nova maneira de ver as coisas. Ele falou em francês: — Je ne connais dans la vie que deux maux bien réels: c’est le remords et la maladie. Il n’est de bien que l’absence de ces maux.37 Viver para si, apenas evitando esses dois males, essa é toda a minha sabedoria, agora.
— Mas e o amor ao próximo, e a abnegação? — exclamou Pierre. — Não, eu não posso concordar com o senhor! Viver só para isso, só para não fazer o mal, só para não se arrepender, é pouco. Eu vivia assim, vivia para mim, e estraguei a minha vida. Só agora, quando estou vivendo, ou pelo menos tento (emendou Pierre, por modéstia) viver para os outros, só agora entendo toda a felicidade da vida. Não, eu não vou concordar com o senhor, e o senhor não pensa de fato assim como está dizendo. — O príncipe Andrei fitou Pierre em silêncio e sorriu com ar zombeteiro.
— Daqui a pouco vai ver a minha irmã, a princesa Mária. Com ela, o senhor vai concordar — disse. — Talvez o senhor tenha razão, para si — prosseguiu, após um breve silêncio. — Mas cada um vive ao seu jeito: você vivia para si e diz que assim, por pouco, não destruiu a própria vida, e que só descobriu a felicidade quando passou a viver para os outros. No entanto, eu experimentei o contrário. Eu vivia para a glória. (E, afinal, o que é a glória? O mesmo amor pelos outros, o desejo de fazer algo para eles, o desejo de receber os seus elogios.) Assim, eu vivia para os outros e não digo que por pouco não destruí a minha vida, mas que a destruí por completo. E, desde que passei a viver só para mim, fiquei tranquilo.
— Mas como é possível viver só para si? — perguntou Pierre, exaltado. — E o filho, a irmã, o pai?
— Sim, tudo isso sou eu também, não são os outros — disse o príncipe Andrei. — Quanto aos outros, os próximos, le prochain, como o senhor e a princesa Mária chamam, aí está a principal fonte do erro e do mal. Le prochain são aqueles seus mujiques de Kíev aos quais o senhor quer fazer o bem.
E fitou Pierre com ar zombeteiro e olhar provocador. Era evidente que estava provocando Pierre.
— O senhor está brincando — disse Pierre, cada vez mais animado. — Como pode haver erro e mal no fato de que eu desejava (e só realizei muito pouco, e mal) fazer o bem, e fiz, embora pouco? Que mal pode haver no fato de que uma gente infeliz, os nossos mujiques, gente igual a nós, que cresce e morre sem nenhuma noção de Deus ou da verdade, a não ser um ícone ou uma prece absurda, passe a aprender as consoladoras crenças na vida futura, na punição, na recompensa, no consolo? Que mal e que erro pode haver no fato de que, quando pessoas estão morrendo doentes por não receber nenhum socorro, e ainda por cima é tão fácil prestar ajuda material, eu lhes dou médicos, hospital e asilo para os velhos? E por acaso não é um bem palpável, indiscutível, o fato de que, quando o mujique, a camponesa e o seu filho não têm nem um dia nem uma noite de sossego, eu lhes dou descanso e lazer? — disse Pierre, afobado e com um ceceio na voz. — E eu fiz isso, embora pouco, embora malfeito, mas fiz alguma coisa para eles, e o senhor não só não vai me dissuadir de que o que fiz é bom, como também não vai me dissuadir de que o senhor mesmo não pensa assim. E o mais importante — continuou Pierre —, eu sei o seguinte, e sei com certeza: o prazer de fazer esse bem é a única felicidade segura na vida.
— Sim, se a questão for colocada desse jeito, o caso é outro — disse o príncipe Andrei. — Eu construo uma casa, planto um jardim, e você, hospitais. As duas coisas podem servir para encher o tempo. Mas o que é justo, o que é bom, vamos deixar que seja decidido por aquele que sabe tudo, não por nós. Mas, muito bem, você quer discutir — acrescentou. — Então, vamos lá.
— Os dois levantaram-se da mesa e caminharam para o alpendre, que fazia as vezes de uma varanda.
— Pois bem, vamos discutir — disse o príncipe Andrei. — Você falou de escolas — prosseguiu, e dobrou um dedo —, aulas e tudo o mais, ou seja, você quer erguer aquele homem — disse, apontando para um mujique que tirou o chapéu ao passar por eles — da sua condição animal e lhe transmitir as exigências morais. Pois, a mim, parece que a única felicidade possível é uma felicidade animal, mas você quer justamente privá-lo disso. Eu invejo esse homem, e você quer torná-lo como eu, sem lhe dar a minha inteligência, os meus sentimentos, os meus recursos. Em segundo lugar, você fala em tornar mais leve o trabalho dele. Pois, a meu ver, o trabalho braçal é para ele uma necessidade, uma condição da sua existência, assim como é, para você e para mim, o trabalho intelectual. Você não pode ficar sem pensar. Eu me deito para dormir depois das duas horas, os pensamentos me vêm à cabeça, e eu não consigo pegar no sono, fico me revirando, só durmo de manhã, porque penso e não consigo ficar sem pensar, assim como ele não consegue ficar sem arar, sem ceifar; de outro modo, acaba indo para a taberna ou então fica doente. Assim como eu não suportaria o seu terrível trabalho braçal e morreria em uma semana, ele também não suportaria a minha ociosidade física, ia engordar e morrer. Em terceiro lugar... do que mais você falou?
O príncipe Andrei dobrou o terceiro dedo.
— Ah, sim. Hospitais, remédios. Ele tem um ataque, está morrendo, você faz uma sangria, ele se cura, vai andar aleijado por dez anos, vai ser um peso para todos. Era muito mais tranquilo e mais simples, para ele, morrer. Outros estão nascendo e, como eles, existem muitos. Se você se lamentasse por ficar com um trabalhador a menos, pois é como um trabalhador que eu o vejo, estaria muito bem, mas você quer medicá-lo por amor a ele. E ele não precisa disso. Além do mais, onde já se viu a medicina curar alguém, algum dia?... Matar, sim! — disse, com o rosto franzido raivosamente, e virou-o para o lado, evitando o olhar de Pierre.
O príncipe Andrei expunha seus pensamentos de modo tão claro e compreensível que era evidente haver pensado sobre o assunto muitas vezes, e falava com gosto, depressa, como uma pessoa que ficou muito tempo sem falar. Seu olhar tanto mais se animava quanto mais desesperada era a sua opinião.
— Ah, isso é horrível, horrível! — disse Pierre. — Só não entendo como é possível viver com tais ideias. Já passei por momentos assim também, não faz muito tempo, em Moscou e na viagem, mas nessas horas eu afundo a tal ponto que nem vivo mais, tenho nojo de tudo, e de mim mesmo, acima de tudo. Fico sem comer, não tomo banho... Pois bem, e como é que o senhor...
— Por que não vou me lavar? A questão não é de limpeza — disse o príncipe Andrei. — Ao contrário, é preciso tentar tornar nossa própria vida o mais agradável possível. Eu vivo e não tenho culpa disso, portanto tenho de viver da melhor maneira, sem incomodar ninguém, até a morte.
— Mas o que estimula o senhor a viver? Com essas ideias, vai ficar parado, sem se mexer, sem realizar nada.
— A vida, sozinha, já cuida de não nos dar sossego. Eu ficaria contente de não fazer nada, mas veja, de um lado, a nobreza local concedeu-me a honra de eleger-me decano da nobreza;38 a muito custo, consegui me livrar disso. Eles não conseguiam entender que não tenho o atributo necessário, essa espécie de vulgaridade bondosa e preocupada, indispensável para o cargo. Além do mais, veja, é preciso construir esta casa, para que eu tenha o meu canto, onde eu possa ficar sossegado. E agora há o recrutamento das milícias.
— Por que o senhor não está servindo no Exército?
— Depois de Austerlitz! — exclamou o príncipe Andrei, em tom sombrio. — Não, muito obrigado, jurei a mim mesmo que não vou mais servir no Exército russo ativo. E não vou servir. Se Bonaparte estivesse aqui, em Smolensk, ameaçando Montes Calvos, nem assim eu iria servir no Exército russo. Pois bem, como eu estava lhe dizendo — prosseguiu o príncipe Andrei, acalmando-se —, agora há o recrutamento das milícias, meu pai é o comandante-geral da terceira circunscrição, e o único meio de eu me livrar do serviço militar é estar sob as ordens dele.
— Portanto o senhor está servindo, não é?
— Estou. — Ficou em silêncio um momento.
— Para que está servindo, então?
— O motivo é o seguinte. Meu pai é uma das pessoas mais notáveis do seu tempo. Mas está envelhecendo e, não que seja cruel, mas tem um caráter enérgico em demasia. Ele se tornou terrível por causa do seu costume de ter um poder ilimitado, e ainda mais agora, com esse poder sobre a milícia que o soberano concedeu ao comandante-geral. Duas semanas atrás, se eu tivesse chegado duas horas atrasado, ele teria mandado enforcar o encarregado das atas de alistamento em Iúkhnovo — disse o príncipe Andrei com um sorriso. — Então eu estou servindo porque, além de mim, ninguém tem influência sobre o meu pai e, volta e meia, eu o salvo de praticar ações que, mais tarde, iriam atormentá-lo.
— Ah, então, está vendo só?
— Sim, mais ce n’est pas comme vous l’entendez 39 — continuou o príncipe Andrei. — Eu não desejava, e não desejo, o mínimo bem para aquele canalha encarregado das atas de alistamento que roubou umas botas nas milícias; eu até ficaria bem satisfeito de ver o homem enforcado, mas tenho pena do meu pai, ou seja, de mim mesmo, outra vez.
O príncipe Andrei animava-se cada vez mais. Seus olhos brilhavam febrilmente enquanto tentava provar para Pierre que, no seu gesto, não havia o menor desejo de fazer bem ao próximo.
— Pois bem, você então quer libertar os camponeses — prosseguiu. — Isso é muito bom; mas não para você (você, eu creio, nunca chicoteou alguém até matar, nem mandou ninguém para a Sibéria), e menos ainda para os camponeses. Se são espancados, açoitados com um sabre e mandados para a Sibéria, eu acho até que não se sentem pior por causa disso. Na Sibéria, eles continuam a levar a mesma vida de gado, as marcas das chicotadas no corpo cicatrizam, e eles ficam tão felizes quanto antes. Isso é necessário, sim, para as pessoas que definham moralmente, acumulam remorsos, reprimem seus remorsos e se tornam brutais porque têm a possibilidade de infligir castigos, com razão ou sem razão. É desses que tenho pena e, para o bem deles, eu gostaria de libertar os camponeses. Você talvez não tenha visto, mas eu vi que pessoas boas, educadas nessa tradição de poder ilimitado, como deuses, quando ficam mais irritadas, se tornam cruéis, brutais, sabem disso, não conseguem se conter e se tornam cada vez mais infelizes.
O príncipe Andrei falou com tamanho fervor que Pierre não pôde deixar de pensar que tais ideias foram sugeridas a Andrei pelo pai. Pierre nada lhe respondeu.
— Então é disto que tenho pena: da dignidade humana, da serenidade da consciência, da pureza, não das costas e das testas deles, que, por mais que você açoite, por mais que raspe os seus cabelos, vão continuar a ser exatamente as mesmas costas e as mesmas testas.40
— Não, não, mil vezes não! Nunca vou concordar com o senhor — disse Pierre.
XII
Ao entardecer, o príncipe Andrei e Pierre tomaram assento na carruagem e partiram para Montes Calvos. O príncipe Andrei, que observava Pierre, interrompia o silêncio de quando em quando com palavras que demonstravam que ele estava numa boa disposição de espírito.
Apontando para o campo, falava sobre os seus aprimoramentos agrícolas.
Pierre mantinha-se calado e sombrio, respondia com monossílabos e parecia mergulhado nos próprios pensamentos.
Pensava que o príncipe Andrei estava infeliz, que estava errado, que não conhecia a luz verdadeira, que Pierre devia lhe prestar ajuda, iluminá-lo e levantá-lo. Porém, assim que Pierre escolheu o que dizer, e como dizer, pressentiu que o príncipe Andrei, com uma palavra, com um argumento, derrubaria toda a sua doutrina, e receava começar, receava expor a um possível ridículo aquilo que ele tinha de mais sagrado.
— Afinal, por que o senhor pensa — começou Pierre, de repente, baixando a cabeça e tomando o aspecto de um touro que vai dar chifradas —, por que o senhor pensa assim? O senhor não devia pensar desse modo.
— Pensar o quê? — perguntou o príncipe Andrei, com surpresa.
— Sobre a vida, sobre o destino do homem. Não pode ser isso. Eu mesmo pensava assim e fui salvo, o senhor sabe pelo quê? Pela maçonaria. Não, não ria. A maçonaria não é uma seita religiosa, ritualística, como eu pensava, a maçonaria é a melhor, a única expressão dos aspectos melhores e eternos da humanidade. — E passou a explicar a maçonaria para o príncipe Andrei, da forma como ele a entendia.
Disse que a maçonaria é a doutrina do cristianismo, liberta dos grilhões do Estado e da religião; uma doutrina de igualdade, de fraternidade e de amor.
— Só a nossa santa irmandade possui o real sentido da vida; todo o restante é sonho — disse Pierre. — Entenda, meu amigo, que, fora dessa união, tudo está repleto de mentira e de falsidade, e concordo com o senhor que, para um homem inteligente e bom, não resta outra coisa senão cuidar da própria vida, como faz o senhor, tentando apenas não atrapalhar os outros. Mas adote as nossas convicções fundamentais, entre na nossa irmandade, entregue-se a nós, permita que o senhor seja orientado, e logo vai sentir-se, como eu me senti, uma parte dessa enorme corrente invisível, cujo princípio está oculto nos céus — disse Pierre.
Em silêncio, olhando para a frente, o príncipe Andrei escutava as palavras de Pierre. Algumas vezes, não ouvia, por causa do barulho da carruagem, e pedia para Pierre repetir as palavras não ouvidas. Pelo brilho especial que se acendeu nos olhos do príncipe Andrei, e pelo seu silêncio, Pierre via que suas palavras não eram ditas em vão, que o príncipe Andrei não ia interromper e não ia rir das suas palavras.
Os dois se aproximaram de um rio que havia transbordado e que teriam de atravessar numa balsa. Enquanto a carruagem e os cavalos eram acomodados, os dois embarcaram na balsa.
Em silêncio, com os cotovelos apoiados na amurada, o príncipe Andrei fitava a cheia, ao longe, que rebrilhava sob o sol poente.
— E então, o que o senhor pensa sobre isso? — perguntou Pierre. — Por que está calado?
— O que estou pensando? Eu estava escutando você. Tudo isso está certo — disse o príncipe Andrei. — Mas você diz: entre na nossa irmandade, e nós lhe mostraremos o propósito da vida, o destino do homem e as leis que governam o mundo. Mas quem somos nós? Pessoas. Por que vocês sabem tudo? Por que só eu não vejo o que vocês veem? Vocês veem no mundo um reino do bem e da verdade, mas eu não vejo.
Pierre interrompeu.
— O senhor acredita na vida após a morte? — perguntou.
— Na vida após a morte? — repetiu o príncipe Andrei, mas Pierre não lhe deu tempo de responder e tomou aquela repetição por uma negativa, tanto mais porque conhecia as crenças ateístas anteriores do príncipe Andrei.
— O senhor diz que não consegue ver o reino do bem e da verdade na Terra. Eu também não via; e é impossível vê-lo, se olharmos para a nossa vida como se fosse o fim de tudo. Na terra, justamente nesta terra (Pierre apontou para o campo), não existe verdade, tudo é mentira e mal; mas no universo, no universo todo, existe um reino da verdade, e nós, agora, somos filhos da terra, mas, eternamente, somos filhos do universo todo. Por acaso eu não sinto na minha alma que sou uma parte desse todo imenso e harmônico? Por acaso não sinto que, nessa quantidade inumerável de seres, nos quais se manifesta uma divindade, uma força suprema, se preferir, eu constituo um elo, um estágio, no caminho que parte dos seres inferiores rumo aos superiores? Se eu vejo, e vejo com clareza, essa escada que leva da planta até o homem, por que eu devo supor que essa escada, cuja extremidade inferior eu não vejo, se extingue nas plantas? Por que, também, eu devo supor que essa escada cessa em mim, em vez de seguir além, sempre além, até os seres superiores? Eu sinto não só que eu não posso desaparecer, como também que nada desaparece no universo, e que eu vou existir sempre, e que sempre existi. Sinto que, além de mim, acima de mim, vivem espíritos e que neste universo a verdade existe.
— Sim, essa é a doutrina de Herder41 — disse o príncipe Andrei —, mas não é isso, meu caro, o que me convence, mas, sim, a vida e a morte, eis o que convence. O que convence é ver uma criatura que nos é cara, ligada a nós, a quem devemos desculpas e diante de quem esperamos poder nos redimir (a voz do príncipe Andrei tremeu, e ele virou-se), e de repente essa criatura sofre, padece tormentos e deixa de existir... Por quê? Não é possível que não exista uma resposta! E eu acredito que existe... Aí está o que convence, aí está o que me convenceu — disse o príncipe Andrei.
— Sim, está certo — disse Pierre —, e não é isso mesmo o que eu estou dizendo?
— Não. Só estou dizendo que não são argumentos o que nos convence da necessidade de uma vida após a morte, e sim seguirmos pela vida de mãos dadas com uma pessoa e, de repente, essa pessoa desaparece lá, em lugar nenhum, e nós mesmos ficamos parados diante desse abismo e olhamos para ele. E eu olhei bem...
— Pois então, aí está! O senhor não sabe que existe um lá e que existe um alguém? O lá é a vida após a morte. O alguém é Deus.
O príncipe Andrei não respondeu. A carruagem e os cavalos já tinham sido levados para a outra margem e atrelados havia muito tempo, o sol já estava oculto até a metade, e a geada do anoitecer recobria de estrelas as poças perto da balsa, mas Pierre e Andrei, para espanto dos criados, cocheiros e barqueiros, continuavam na balsa e conversavam.
— Se Deus existe e existe vida após a morte, então existe a verdade, existe a virtude; e a felicidade suprema do homem consiste em lutar para alcançá-las. É preciso viver, é preciso amar, é preciso acreditar — disse Pierre — que vivemos não só hoje e neste pedaço de terra, mas já vivemos e vamos viver eternamente, lá, no todo (apontou para o céu). — O príncipe Andrei ficou parado, com os cotovelos apoiados na amurada da balsa e, enquanto escutava Pierre, não baixava os olhos, fitava o reflexo vermelho do sol na água azulada da cheia. Pierre calou-se. O silêncio era completo. A balsa estava atracada havia muito tempo e só as ondas da correnteza batiam no fundo da balsa, com um som fraco. O príncipe Andrei tinha a impressão de que aquele gargarejo das ondas repetia, em resposta às palavras de Pierre: “É a verdade, acredite nisso”.
O príncipe Andrei suspirou e, com um olhar radiante, infantil, afetuoso, fitou o rosto de Pierre, vermelho de emoção, mas sempre tímido diante do amigo, a quem dava a primazia.
— Pois é, quem dera fosse assim! — disse o príncipe Andrei. — Mas, enfim, vamos para a carruagem — acrescentou e, ao sair da balsa, olhou para o céu, para o qual Pierre havia apontado, e pela primeira vez desde Austerlitz ele viu aquele céu alto, eterno, que tinha visto, deitado no campo de Austerlitz, e algo havia muito tempo adormecido, algo daquilo que de melhor existia nele, despertou de repente, alegre e jovem, no seu espírito. Tal sentimento desapareceu assim que o príncipe Andrei retomou as condições de vida habituais, mas sabia que aquele sentimento que ele não soubera fomentar vivia dentro dele. O encontro com Pierre foi, para o príncipe Andrei, o momento marcante em que teve início uma vida nova no seu mundo interior, embora exteriormente fosse a mesma de antes.
XIII
Já estava anoitecendo quando o príncipe Andrei e Pierre se aproximaram da entrada principal da casa de Montes Calvos. Quando estavam chegando, o príncipe Andrei, com um sorriso, chamou a atenção de Pierre para um rebuliço que ocorria no alpendre dos fundos. Um pouco à frente, uma velha arqueada, com um alforje nas costas, e um homem baixo, de roupas pretas e cabelos compridos, depois de avistarem a carruagem que se aproximava, correram esbaforidos para o portão. Duas mulheres saíram correndo atrás deles, e os quatro, depois de virar-se para olhar a carruagem, correram assustados para o alpendre dos fundos.
— Aqueles são o tal povo de Deus, da Macha — disse o príncipe Andrei. — Eles nos tomaram pelo meu pai. E esse é o único ponto em que ela não obedece ao pai: ele manda expulsar esses peregrinos, mas ela os recebe.
— Mas o que significa povo de Deus? — perguntou Pierre.
O príncipe Andrei não soube responder. Os criados vieram ao seu encontro, e ele perguntou onde estava o velho príncipe e se esperavam que chegasse logo.
O velho príncipe ainda estava na cidade, e o aguardavam a qualquer momento.
O príncipe Andrei levou Pierre para os seus aposentos, sempre perfeitamente arrumados e à sua espera, na casa do pai, e de lá seguiu sozinho para o quarto do filho.
— Vamos ver a minha irmã — disse o príncipe Andrei, depois de voltar ao encontro de Pierre. — Ainda não a vi, ela agora está escondida, junto ao seu povo de Deus. É bem feito para ela, vai ficar embaraçada, e você vai ver o povo de Deus. C’est curieux, ma parole.42
— Qu’est-ce que c’est que 43 povo de Deus? — perguntou Pierre.
— Você vai ver.
De fato, quando os dois entraram, a princesa Mária ficou embaraçada e seu rosto corou. Em seu quarto aconchegante, com lamparinas votivas diante dos quadros de ícones, um rapazinho de nariz comprido e cabelos compridos, com uma batina de monge, estava sentado ao lado dela, no sofá, atrás de um samovar.
Numa poltrona, ao lado, estava sentada uma velha magra, enrugada, com uma expressão dócil no rosto infantil.
— André, pourquoi ne pas m’avoir pas prévenue? 44 — disse ela, com uma repreensão humilde, colocando-se diante dos seus peregrinos como uma galinha choca diante dos pintos.
— Charmée de vous voir. Je suis très contente de vous voir 45 — disse para Pierre, quando ele beijou a sua mão. Ela o conhecia desde criança, e agora a amizade entre ele e Andrei, o seu infortúnio com a esposa e sobretudo o seu rosto bom, simples, despertavam a simpatia da princesa Mária. Ela o fitava com seus olhos lindos, radiantes, e parecia dizer-lhe: “Gosto muito do senhor, mas, por favor, não ria dos meus”. Depois de trocarem as primeiras expressões de cumprimento, sentaram-se.
— Ah, o Ivánuchka também está aqui — disse o príncipe Andrei, com um sorriso, apontando para o jovem peregrino.
— André! — exclamou a princesa Mária, suplicante.
— Il faut que vous sachiez que c’est une femme 46 — disse Andrei para Pierre.
— André, au nom de Dieu!47 — repetiu a princesa Mária.
Era evidente que o tratamento zombeteiro do príncipe Andrei dirigido aos peregrinos e o apelo inútil da princesa Mária em favor deles eram relações rotineiras, já estabelecidas entre os dois irmãos.
— Mais, ma bonne amie — disse o príncipe Andrei —, vous devriez au contraire m’être reconnaissante de ce que j’explique à Pierre votre intimité avec ce jeune homme.48
— Vraiment? 49 — perguntou Pierre com curiosidade e ar sério (e por isso a princesa Mária sentiu-se especialmente agradecida a Pierre), observando através dos óculos o rosto de Ivánuchka, que, entendendo que falavam dele, mirava todos com olhos astutos.
Não havia nenhum motivo para a princesa Mária sentir-se embaraçada com os seus. Eles não estavam nem um pouco acanhados. A velha, com os olhos baixos, mas espiando de esguelha os recém-chegados, apoiou sobre o pires a xícara virada para baixo, deixou ao lado um torrão de açúcar roído e continuou tranquilamente sentada na sua poltrona, esperando que lhe oferecessem mais chá. Ivánuchka, sorvendo golinhos do pires, observava de esguelha os dois homens, com os olhos ladinos de mulher.
— E então, esteve em Kíev? — perguntou o príncipe Andrei à velha.
— Estive, pai — respondeu a velha, disposta a falar. — Justamente no Natal, tive a felicidade de participar dos sagrados mistérios celestiais junto ao povo santo. E agora estou vindo de Koliázin, pai, onde se revelou uma enorme bênção...
— E você, Ivánuchka?
— Eu sigo o meu caminho, benfeitor — disse Ivánuchka, tentando falar com voz de baixo. — Só encontrei a Pelagueia em Iúkhnovo.
Pelaguêiuchka interrompeu o seu colega; era evidente que ela queria contar o que tinha visto.
— Em Koliázin, pai, uma enorme bênção se revelou.
— O que foi? Relíquias novas? — perguntou o príncipe Andrei.
— Chega, Andrei — disse a princesa Mária. — Não conte, Pelaguêiuchka.
— O que foi, mãe, por que não contar? Eu gosto dele. Ele é bom. Um enviado de Deus, um benfeitor, ele me deu dez rublos, eu lembro. Quando eu estava em Kíev, Kiriucha, o iuródivi,50 falou comigo, um verdadeiro homem de Deus, que anda descalço no inverno e no verão. Para onde você está indo, me disse ele, não é o lugar certo, vá para Koliázin, lá tem um ícone milagroso, a Santa Mãe de Deus se revelou. Com essas palavras, eu me despedi do povo santo e parti...
Todos ficaram em silêncio, só a peregrina falava, com voz ritmada, respirando fundo.
— Cheguei, meu pai, o povo vem e me diz: uma grande bênção se revelou, os santos óleos pingam das faces da Santa Mãe de Deus...
— Está bem, está bem, depois você conta — disse a princesa Mária, ruborizada.
— Permita que eu lhe pergunte — disse Pierre. — Você mesma viu? — perguntou.
— Como não, pai, eu mesma tive essa felicidade. Na carinha, havia uma coisa azulada, feito uma luz do céu, e das faces da Mãe de Deus, pingava sem parar, pingava sem parar...
— Ora, mas isso é uma fraude — disse Pierre, ingenuamente, depois de escutar a velha com atenção.
— Ah, pai, o que está dizendo? — exclamou Pelagueia, com horror, voltando-se para a princesa Mária em busca de proteção.
— Estão enganando o povo — repetiu Pierre.
— Nosso Senhor Jesus Cristo — exclamou a peregrina, benzendo-se. — Ah, não fale assim, pai. Um anaral 51 também não acreditou e disse: “Os monges estão enganando”. E, na mesma hora em que falou, ficou cego. Então ele teve um sonho em que a Santa Virgem de Kíev dizia: “Acredite em mim, e eu vou curar você”. Então ele começou a pedir: “Me levem, me levem até ela”. É a verdade que eu estou dizendo, eu mesma vi. Levaram o cego diante da Virgem; ele chegou, caiu, disse: “Cure! Eu te darei tudo o que o tsar me concedeu”, falou assim. Eu mesma vi, pai, uma estrela apareceu nela. E então ele voltou a enxergar! Falar assim é pecado. Deus castiga — dirigiu-se a Pierre, num tom de repreensão.
— Como foi que uma estrela apareceu na imagem? — perguntou Pierre.
— Também promoveram a Virgem a general? — disse o príncipe Andrei, sorrindo.
Pelagueia de repente empalideceu e entrelaçou as mãos.
— Pai, pai, é pecado, é pecado. Você tem um filho! — começou a falar a velha, que de repente passou da palidez para o vermelho-claro. — Pai, o que você disse, Deus o perdoe. — Ela se benzeu. — Deus, perdoe. Minha cara, o que é isso? — voltou-se para a princesa Mária. Levantou-se e, à beira de chorar, pôs-se a arrumar o seu alforje. Era óbvio que ela estava assustada, lamentava pela pessoa que tinha falado aquilo, sentia vergonha de ter recebido favores numa casa onde podiam falar aquilo, e lamentava que agora fosse preciso privar-se dos favores daquela casa.
— Mas que prazer vocês têm com isso? — disse a princesa Mária. — Por que vieram me ver?...
— Não, por favor, Pelaguêiuchka, eu estava só brincando — disse Pierre. — Princesse, ma parole, je n’ai pas voulu l’offenser,52 falei por falar. Não pense mal, foi só uma brincadeira — disse, sorrindo com timidez e querendo redimir sua culpa.
Pelaguêiuchka parou, desconfiada, mas no rosto de Pierre havia um arrependimento tão sincero, e o príncipe Andrei olhava ora para Pelagueia, ora para Pierre de modo tão dócil e sério que aos poucos ela se acalmou.
XIV
A peregrina acalmou-se e, retomando a conversa, contou demoradamente a respeito do padre Amfílokhi, que levava uma vida tão santa que as palmas das suas mãozinhas cheiravam a incenso, e contou que os monges que conhecera na sua última peregrinação a Kíev lhe deram as chaves das catacumbas e que ela, só com umas torradas, passara dois dias inteiros nas catacumbas, junto aos santos. “Eu rezava para um, fazia uma reverência, passava para outro. Dormia um pouco e ia de novo beijar; e lá dentro fazia tanto silêncio, minha nossa!, era tanta bênção que a gente nem queria mais sair para a luz de Deus.”
Pierre escutava com atenção e seriedade. O príncipe Andrei saiu do quarto. Em seguida, deixando o povo de Deus ali para que terminasse de beber o chá, a princesa Mária levou Pierre para a sala.
— O senhor é muito bom — disse para Pierre.
— Ah, na verdade eu não queria ofendê-la, eu compreendo esses sentimentos e dou muito valor a eles.
A princesa Mária fitou-o em silêncio e sorriu com ternura.
— Pois eu conheço o senhor há muito tempo e amo o senhor, como a um irmão — disse. — O que acha do Andrei? — perguntou depressa, sem lhe dar tempo de responder às suas palavras carinhosas. — Ando muito preocupada com ele. Sua saúde no inverno está melhor, mas na primavera passada a ferida reabriu, e o médico falou que ele devia viajar para se tratar. E eu temo muito por Andrei, do ponto de vista moral. O caráter dele não é como o nosso, das mulheres, que sofremos e choramos para desafogar o nosso desgosto. Ele carrega o seu desgosto dentro de si. Hoje está alegre e animado; mas foi a vinda do senhor que produziu esse efeito; é raro ficar assim. Quem dera o senhor pudesse convencê-lo a ir para o exterior! Ele precisa de atividade, essa vida monótona, parada, está destruindo o Andrei. Os outros não notam, mas eu vejo.
Antes das dez horas, os criados correram para o alpendre ao ouvir os guizos da carruagem do velho príncipe, que se aproximava. O príncipe Andrei e Pierre também saíram para o alpendre.
— Quem é esse? — perguntou o velho príncipe, ao sair da carruagem e ver Pierre. — Ah! É um grande prazer! Beije-me — disse, ao reconhecer quem era o jovem desconhecido.
O velho príncipe estava de bom humor e cobriu Pierre de atenções.
Antes do jantar, o príncipe Andrei, ao voltar para o gabinete do pai, encontrou-o numa discussão candente com Pierre. Este demonstrava que ia chegar um tempo em que não haveria mais guerras. O velho príncipe, em tom de zombaria, mas sem zangar-se, contestava.
— Retire o sangue das veias e depois encha com água, aí, sim, não vai haver mais guerra. Maluquices de mulher, maluquices de mulher — exclamou, mas mesmo assim dava palmadinhas afetuosas no ombro de Pierre e aproximou-se da mesa onde o príncipe Andrei, que obviamente não queria interferir na conversa, folheava os documentos que o pai trouxera da cidade. O velho príncipe aproximou-se e passou a falar de trabalho.
— O decano da nobreza, o conde Rostóv, não forneceu nem metade dos homens. Mal chegou à cidade, cismou de me convidar para um jantar... pois eu lhe dei um jantar daqueles... Mas, veja só... Pois é, meu caro — o príncipe Nikolai Andreitch dirigiu-se ao filho, enquanto dava palmadinhas no ombro de Pierre —, este seu jovem amigo aqui, sabe, gosto muito dele! Ele me aquece. Os outros falam coisas inteligentes, mas nem dá vontade de escutar o que dizem, enquanto ele também conta as suas lorotas, mas me aquece, a mim, um velho. Bem, vocês podem ir, podem ir — disse —, quem sabe eu vá jantar com vocês. Vamos discutir mais uma vez. Desfrute a companhia da minha tola, a princesa Mária — gritou para Pierre, na porta.
Só então, na sua estada em Montes Calvos, Pierre avaliou toda a força e todo o encanto da sua amizade com o príncipe Andrei. Aquele encanto se exprimia não só nas suas relações com ele, como também nas relações com todos os seus familiares e com as pessoas da casa. Diante do velho príncipe rigoroso e da dócil e tímida princesa Mária, apesar de os conhecer muito pouco, Pierre sentia-se rapidamente como um velho amigo. Todos gostavam dele. Não só a princesa Mária, cativada por sua atitude dócil em relação aos peregrinos, fitava Pierre com o olhar mais radiante, como também o pequeno príncipe Nikolai, como o avô o chamava, de apenas um ano de idade, sorria para Pierre e ia de bom grado para os seus braços. Mikhail Ivánitch e Mlle Bourienne olhavam para ele com sorrisos alegres, enquanto conversava com o velho príncipe.
O velho príncipe veio jantar: pelo visto, fez isso por causa de Pierre. Tratou-o de forma extremamente carinhosa nos dois dias em que esteve em Montes Calvos e convidou-o a voltar.
Quando Pierre partiu e toda a família se reuniu outra vez, cada um deu sua opinião sobre ele, como sempre acontece depois da estada de uma pessoa nova, e, como é raro acontecer, todos só falaram bem a seu respeito.
XV
Daquela feita, ao voltar das férias, Rostóv sentiu e reconheceu, pela primeira vez, como era forte a sua ligação com Deníssov e com todo o regimento.
Quando Rostóv chegou ao regimento, experimentou uma sensação semelhante àquela que experimentava ao chegar à casa da rua Povarskaia, em Moscou. Quando reconheceu o primeiro hussardo do seu regimento, de uniforme desabotoado, quando reconheceu o ruivo Deméntiev e avistou as estacas onde ficavam presos os cavalos alazões, quando Lavruchka gritou alegre para o patrão: “O conde chegou!” — e o descabelado Deníssov, que estava na cama dormindo, saiu correndo do abrigo escavado na terra e veio abraçá-lo, e os oficiais se juntaram em volta do recém-chegado —, Rostóv experimentou a mesma sensação de quando a mãe, o pai e as irmãs o abraçavam, e lágrimas de alegria tomaram sua garganta, impediram-no de falar. O regimento era também um lar, e um lar sempre doce e querido, como a casa dos seus pais.
Depois de se apresentar ao comandante do regimento e ser indicado para o mesmo esquadrão de antes, depois de ficar de plantão e tratar do abastecimento de forragem para os cavalos, enfronhando-se em todos os assuntos cotidianos do regimento, e depois de sentir-se privado de liberdade e acorrentado a uma estrutura estreita e imutável, Rostóv experimentou a mesma calma, o mesmo amparo e a mesma consciência que sentia na casa dos pais, de estar em casa, no seu lugar. Não havia toda aquela balbúrdia do mundo livre, onde ele não encontrava o seu lugar e se enganava nas escolhas; não existia Sônia, com quem devia ou não devia se explicar. Não havia a possibilidade de ir para um lado ou não; não havia aquelas vinte e quatro horas do dia, que era possível usar das maneiras mais variadas; não havia aquela interminável multidão de pessoas, das quais nenhuma era próxima, e nenhuma era distante; não havia aquelas vagas e imprecisas relações pecuniárias com o pai; não havia a lembrança do horrível jogo de cartas que perdera para Dólokhov! Ali, no regimento, tudo era claro e simples. O mundo inteiro estava dividido em duas partes desiguais: uma era o nosso regimento de Pávlograd; a outra, todo o resto. E com esse resto, ele não tinha nada a ver. No regimento, tudo estava determinado: quem era o tenente, quem era o capitão, quem era bom, quem era mau, e sobretudo quem era um camarada. O merceeiro vendia fiado, o soldo era pago de quatro em quatro meses; nada havia para inventar nem para decidir, bastava não fazer algo tido como ruim no regimento de Pávlograd; e, quando davam uma ordem, bastava fazer o que era ordenado, de forma clara e precisa, e tudo ficaria bem.
Ao reingressar naquelas condições bem definidas da vida do regimento, Rostóv experimentou uma alegria e uma calma semelhantes ao que sente um homem cansado quando deita para repousar. Tanto mais agradável era para Rostóv a vida do regimento naquela campanha, porquanto, após a perda que sofrera para Dólokhov no jogo (ato que, apesar de todo o consolo recebido de seus familiares, ele não podia se perdoar), Rostóv resolvera não servir da maneira como fizera antes, mas, sim, para expiar a culpa, servir bem e ser um camarada e um oficial excelente em todos os aspectos, ou seja, uma pessoa maravilhosa, o que parecia bem difícil na “sociedade”, mas bem possível no regimento.
Após a perda que sofrera no jogo, Rostóv resolveu pagar em cinco anos aquela dívida com os pais. Ganhava dez mil por ano e então resolveu tomar para si apenas dois mil e dar o restante aos pais, para saldar a dívida.
O nosso exército, depois de repetidos recuos, avanços e batalhas em Pultusk, em Preussische-Eylau, concentrara-se em Bartenstein. Aguardavam a chegada do soberano para darem início à nova campanha.
O regimento de Pávlograd, que se encontrava na parte do exército que participara da campanha de 1805, havia completado o seu efetivo com reforços que vieram da Rússia e aguardava as primeiras ações da nova campanha. O regimento não esteve nem em Pultusk, nem em Preussische-Eylau e, na segunda parte da campanha, foi integrado ao exército ativo e incorporado à divisão de Plátov.
A divisão de Plátov agia de forma independente do exército. Por várias vezes, os soldados do regimento de Pávlograd participaram de tiroteios com o inimigo, fizeram prisioneiros e, certa vez, até tomaram as carroças de equipamento militar do marechal Oudinot. Em abril, os soldados do regimento de Pávlograd ficaram estacionados durante algumas semanas junto a uma aldeia alemã vazia e totalmente devastada, e não saíram de lá.
Era a época do degelo, havia lama, frio, o gelo trincava nos rios, as estradas tornaram-se intransitáveis; por vários dias, não chegaram provisões nem para os cavalos, nem para os homens. Como o abastecimento era impossível, os soldados se dispersavam pelas aldeias abandonadas e vazias em busca de batatas, mas até isso já era raro encontrar.
Tudo tinha sido devorado, e todos os habitantes haviam fugido; os que ficaram estavam piores do que mendigos, não havia o que tomar deles, e mesmo os soldados, que não costumavam ter pena de ninguém, muitas vezes, em vez de se aproveitar deles, lhes davam a última coisa que possuíam.
O regimento de Pávlograd só tivera dois feridos em combate; mas perdera quase metade do efetivo por causa da fome e das doenças. Nos hospitais, era tão certo morrer que os soldados, com febre ou inchados por causa da comida ruim, preferiam ficar de serviço e ir para o front, mesmo arrastando as pernas com as últimas forças, a seguir para o hospital. Desde o começo da primavera, os soldados começaram a encontrar uma planta, que mal chegava a despontar na terra, semelhante ao aspargo, a qual, não se sabe por quê, eles chamaram de doce raiz de Maria, e se espalhavam pelos pastos e pelos campos em busca daquela doce raiz de Maria (que era muito amarga), desenterravam-na com os sabres e a comiam, apesar das ordens de não comer aquela planta nociva. Na primavera, surgiu uma nova doença entre os soldados — os braços, as pernas e o rosto inchavam, e os médicos acreditavam que a causa era o consumo da raiz. Porém, apesar da proibição, os soldados de Pávlograd do esquadrão de Deníssov comiam sobretudo a doce raiz de Maria, porque já fazia duas semanas que o resto de pão seco estava racionado, só forneciam duzentos e vinte gramas por pessoa, e as batatas da última remessa vieram estragadas pelo frio, além de greladas.
Também fazia duas semanas que os cavalos só se alimentavam da palha do telhado das casas, estavam medonhamente magros e ainda cobertos com os pelos do inverno, que se amontoavam em tufos.
Apesar de tamanha calamidade, os soldados e os oficiais viviam exatamente como sempre; apesar dos rostos pálidos e inchados e dos uniformes esfarrapados, também agora os hussardos se punham em forma para a chamada, cuidavam da faxina, limpavam os cavalos e as armas, arrancavam a palha dos telhados para servir de forragem e iam jantar no rancho, de onde saíam esfomeados, zombando da comida repugnante e da própria fome. Como sempre, quando livres do serviço, os soldados acendiam fogueiras, ficavam nus para se aquecer ao vapor das chamas, fumavam, colhiam e assavam batatas greladas, podres, contavam e ouviam histórias, as façanhas de Potiómkin ou de Suvórov, ou os contos de Aliocha, o espertalhão, ou de Mikolka, o empregado do padre.53
Os oficiais, como de costume, moravam em dois, ou em três, em casas semidestruídas. Os mais graduados cuidavam do fornecimento da palha e da batata, e da alimentação em geral dos soldados, e entre os oficiais menos graduados, como sempre, uns se ocupavam de jogar cartas (havia muito dinheiro, apesar de não haver provisões), outros, de jogos inocentes — a sváika e os goródki.54 Falavam muito pouco sobre a situação geral da guerra, em parte porque nada sabiam de forma segura, em parte porque sentiam vagamente que a situação geral da guerra era muito ruim.
Rostóv, como antes, morava com Deníssov, e o laço de amizade entre os dois ficara ainda mais estreito, depois das férias. Deníssov nunca falava sobre os familiares de Rostóv, mas, pela afetuosa amizade que o comandante demonstrava pelo seu oficial, Rostóv sentia que o amor infeliz do velho hussardo por Natacha havia influenciado aquele reforço da amizade. Deníssov, obviamente, tentava expor Rostóv ao mínimo de perigo possível, protegia-o e, após um combate, era com uma alegria especial que o recebia de volta são e salvo. Numa de suas missões, Rostóv achou numa aldeia abandonada e devastada, aonde fora em busca de provisões, uma família formada por um velho polonês e a sua filha, com uma criança de peito. Estavam quase sem roupa, esfomeados, não puderam fugir e não tinham meios de sair de lá. Rostóv trouxe-os para o seu acampamento, alojou-os no seu quarto e, durante algumas semanas, enquanto o velho se recuperava, sustentou-os. Um camarada de Rostóv, ao falar sobre mulheres, começou a rir de Rostóv, dizendo que ele era o mais astuto de todos e que não seria nada mau se apresentasse aos camaradas a bonita polonesa salva por ele. Rostóv tomou a brincadeira como uma ofensa e, inflamado, desatou a dizer coisas tão desagradáveis ao oficial que Deníssov teve dificuldade para impedir que os dois travassem um duelo. Quando o oficial saiu e Deníssov, que não sabia que relações Rostóv tinha com a polonesa, começou a repreendê-lo por sua ira, Rostóv lhe disse:
— Pense o que quiser... Ela é como uma irmã para mim, e não posso descrever como isso me ofendeu... porque... bem, por isso...
Deníssov bateu no ombro do amigo e seguiu ligeiro para o seu alojamento, sem olhar para Rostóv, como fazia nos momentos em que estava de ânimo agitado.
— Que gente mais tola, essa raça dos Rostóv — exclamou, e Rostóv percebeu lágrimas nos olhos de Deníssov.
XVI
No mês de abril, as tropas animaram-se com a notícia da chegada do soberano ao exército. Rostóv não teve a sorte de estar presente na revista de tropas que o soberano comandou em Bartenstein: os soldados de Pávlograd se achavam estacionados nos postos avançados, longe, bem à frente de Bartenstein.
Estavam em acampamentos. Deníssov e Rostóv moravam num abrigo de terra que os soldados tinham escavado para eles, recoberto de ramagens e capim. Esses abrigos, então em voga, eram construídos da seguinte forma: escavavam uma vala de um archin e meio de largura, dois de profundidade e três e meio de comprimento.55 Numa ponta da vala, faziam uns degraus, e isso era a entrada, o alpendre; a própria vala era o alojamento, em que os felizardos, como o comandante do esquadrão, tinham, na extremidade oposta aos degraus, uma prancha apoiada em quatro estacas: era a mesa. Ao longo da vala, nos dois lados, foi erguido um archin de terra, e isso vinham a ser as camas e os sofás. O telhado era construído de tal modo que no meio se podia ficar de pé e nas camas era possível até sentar-se, se a pessoa ficasse perto da mesa. No abrigo de Deníssov, que vivia com luxo porque os soldados do seu esquadrão gostavam dele, havia ainda uma tábua no frontão do telhado e, nessa tábua, havia um vidro quebrado, que no entanto fora colado. Quando fazia muito frio, retiravam brasas das fogueiras dos soldados, colocavam sobre uma folha de ferro dobrada e levavam para a escadinha (a antessala, como Deníssov chamava aquela parte do abrigo), e isso fornecia tanto calor que os oficiais, sempre frequentes em grande número no abrigo de Deníssov e Rostóv, ficavam ali só de camisa.
Durante o mês de abril, Rostóv ficou de serviço. Depois das sete horas da manhã, ao voltar para o alojamento após uma noite sem dormir, ele mandou trazer o aquecimento, trocou as roupas de baixo, que estavam ensopadas de chuva, rezou para Deus, bebeu bastante chá, aqueceu-se, pôs em ordem as coisas no seu cantinho e na mesa e, com o rosto curtido pelo vento e afogueado, só de camisa, deitou-se de costas, com as mãos cruzadas embaixo da cabeça. Pensava com prazer no fato de que, dali a alguns dias, deveria receber uma promoção por causa da última operação de reconhecimento, e esperava a chegada de Deníssov, que não sabia onde estava. Rostóv queria falar com ele.
Ouviu-se, por trás da cabana, ressoar o grito de Deníssov, obviamente exaltado. Rostóv veio até a janela para olhar com quem ele gritava e viu o furriel Toptchéienko.
— Eu ordenei que você não deixasse ninguém comer essa desgraça de raiz de Maria! — gritou Deníssov. — Pois eu mesmo vi o Lazartchuk trazer um punhado do campo.
— Eu mandei, vossa excelentíssima, eles é que não obedecem — respondeu o furriel.
Rostóv deitou-se de novo na cama e pensou, com satisfação: “Agora, ele que se mexa e cuide de tudo, eu já fiz a minha parte e vou ficar deitado, que ótimo!”. Através da paredinha, ouviu que, além do furriel, Lavruchka, o esperto e maroto lacaio de Deníssov, também falava. Lavruchka contava algo a respeito de carroções, pães secos e bois, que ele tinha visto quando saíra em busca de provisões.
De dentro da cabana, ouviu-se de novo um grito de Deníssov, que se afastava, e as palavras: “Selar cavalos... Segundo pelotão!”.
“Para onde estão indo?”, pensou Rostóv.
Cinco minutos depois, Deníssov entrou na cabana, estirou-se na cama com os pés enlameados, começou a fumar um cachimbo com irritação, espalhou todas as suas coisas em volta, pegou o açoite e o sabre e fez menção de sair do abrigo de terra. À pergunta de Rostóv — aonde ia? —, retrucou, irritado e de modo vago, que ia fazer o seu trabalho.
— Que Deus e o grande soberano sejam os meus juízes! — disse Deníssov, ao sair; e Rostóv ouviu que, atrás da cabana, as patas de vários cavalos estalavam na lama. Rostóv nem se deu o trabalho de procurar saber aonde ia Deníssov. Aquecido no seu canto, pegou no sono e só saiu do abrigo à beira do anoitecer. Deníssov ainda não tinha voltado. A noite estava clara; em redor dos abrigos vizinhos, dois oficiais e um junker jogavam a sváika, entre risos, atirando rábanos que ficavam cravados na terra enlameada e mole. Rostóv uniu-se a eles. No meio do jogo, os oficiais avistaram umas carroças que vinham na direção deles: uns quinze hussardos vinham atrás, em seus cavalos magros. As carroças, escoltadas pelos hussardos, aproximaram-se das estacas de prender os cavalos, e uma multidão de hussardos rodeou-os.
— Ora, vejam só! O Deníssov não parava de se lamentar — disse Rostóv —, e as provisões chegaram.
— É mesmo! — disseram os oficiais. — Os soldados vão ficar contentes! — Um pouco atrás dos hussardos, vinha Deníssov, acompanhado de dois oficiais da infantaria, com os quais conversava. Rostóv foi ao seu encontro.
— Eu estou avisando o senhor, capitão — disse um dos oficiais, magro, de baixa estatura e, pelo visto, exasperado.
— Pois eu já disse que não vou dar — respondeu Deníssov.
— O senhor, capitão, vai ter de responder por esta violência... apoderar-se dos nossos mantimentos! O nosso pessoal não come faz dois dias.
— E o meu não come faz duas semanas — respondeu Deníssov.
— Isso é roubo, e vai responder por isso, prezado senhor! — retrucou o oficial da infantaria, erguendo a voz.
— Escute, por que está me importunando desse jeito? Hein? — gritou Deníssov, inflamando-se de repente. — Eu vou responder, e não vocês, agora é melhor parar de encher os meus ouvidos, enquanto vocês estão inteiros. Vão embora! — gritou para os oficiais.
— Pois muito bem! — gritou o oficial pequeno, sem se atemorizar e sem se afastar. — Isso é praticar pilhagem, e por isso eu vou...
— Vá para o diabo, e rápido, enquanto ainda está inteiro. — E Deníssov virou o cavalo para o oficial.
— Muito bem, muito bem — exclamou o oficial, num tom de ameaça, depois virou o cavalo e partiu a trote, sacolejando sobre a cela.
— Um cachorro em cima de uma cerca, igualzinho a um cachorro em cima de uma cerca — disse Deníssov olhando para ele. Era a maior zombaria que um cavalariano podia lançar a um infante e, ao se aproximar de Rostóv, desatou a gargalhar.
— Tomei da infantaria, tomei à força os mantimentos! — disse ele. — Acha que eu ia deixar o pessoal morrer de fome?
As carroças que se aproximavam dos hussardos eram destinadas a um regimento de infantaria, mas, avisado por Lavruchka de que aquele comboio seguia sem escolta, Deníssov tomou-o à força, com os hussardos. Distribuíram pão seco à vontade entre os soldados, até dividiram com outros esquadrões.
No dia seguinte, o comandante do regimento convocou Deníssov ao seu alojamento e lhe disse, com a mão por cima dos olhos e os dedos entreabertos:
— Vejo essa história da seguinte maneira: eu nada sei do assunto e não vou começar uma questão por causa disso; mas recomendo que vá ao Estado-Maior e lá, no departamento de intendência, esclareça esse assunto e, se possível, deixe assinado que recebeu tal quantidade de provisões; caso contrário, o regimento de infantaria vai registrar uma reclamação, vai começar uma questão, e a história pode acabar mal.
Deníssov foi direto do comandante do regimento para o Estado-Maior, com o desejo sincero de seguir o conselho dele. Ao anoitecer ele voltou ao seu abrigo de terra num estado em que Rostóv jamais vira o amigo. Deníssov não conseguia falar e arquejava. Quando Rostóv perguntou o que ele tinha, Deníssov, com voz rouca e fraca, apenas pronunciou palavrões e ameaças.
Assustado com a situação de Deníssov, Rostóv sugeriu que ele trocasse de roupa, bebesse água e mandou vir o médico.
— Vou ser processado por roubo... ah!... Me dê água... Pois podem processar, eu vou, vou sempre surrar os canalhas, e vou contar ao soberano. Me dê gelo — exclamou.
Ao chegar, o médico do regimento falou que era preciso fazer uma sangria. Um prato fundo de sangue escuro saiu do braço peludo de Deníssov, e só então ele ficou em condições de contar tudo o que havia acontecido.
— Cheguei lá — contou Deníssov. — “Onde está o comandante aqui?” Mostraram. “Tenha a bondade de esperar.” “Eu tenho muito o que fazer, viajei trinta verstas, não tenho tempo para esperar, me anuncie.” Muito bem, lá veio o tal ladrão-chefe: ele também cismou de me dar lições. “Isso é roubo!” Eu digo: “Roubar não é tomar as provisões para alimentar os seus soldados, mas tomar as provisões para meter no próprio bolso!”. Muito bem. Ele diz: “Vá assinar uma declaração no comissariado, pois o seu caso será transferido ao comando”. Chego ao comissariado. Entro... Atrás da mesa... quem está lá?! Não, tente só adivinhar!... Quem é que está nos matando de fome? — gritou Deníssov, batendo com o punho grande na mesa com tanta força que ela quase caiu, e os copos deram um pulo. — Teliánin! “Então é você que está nos matando de fome?!” E pronto, acertei logo uma no meio da cara dele, aconteceu muito rápido... “Ah!... seu patife...” E saiu rolando! Pois foi divertido, valeu a pena, posso garantir — gritou Deníssov, alegre e raivoso, com os dentes brancos arreganhados por baixo do bigode preto. — Eu teria matado o sujeito, se não viessem me afastar.
— Mas o que é isso, não grite assim, acalme-se — disse Rostóv. — Pronto, o sangue está correndo outra vez. Espere aí, vamos ter de refazer o curativo.
Trocaram o curativo de Deníssov e o puseram para dormir. No dia seguinte, ele acordou alegre e calmo.
Mas ao meio-dia o ajudante de ordens do regimento, com o rosto sério e pesaroso, veio ao abrigo de terra de Deníssov e Rostóv e, com tristeza, mostrou um documento oficial dirigido ao major Deníssov, da parte do comandante do regimento, no qual se faziam indagações sobre o ocorrido na véspera. O ajudante de ordens comunicou que a questão devia tomar um rumo bastante ruim, que tinha sido instituída uma corte marcial e que, em razão da severidade vigente com relação a atos de pilhagem e de insubordinação militar, na melhor das hipóteses o processo podia terminar com uma pena de rebaixamento de posto.
Do ponto de vista da parte queixosa, o caso se apresentava da seguinte maneira: depois da pilhagem dos mantimentos, o major Deníssov, sem ter sido convocado, e com aspecto de bêbado, apareceu diante do chefe da intendência, chamou-o de ladrão, ameaçou espancá-lo e, ao ser retirado de lá, atirou-se para dentro de um escritório, esmurrou dois intendentes e destroncou o braço de outro.
Diante das novas perguntas de Rostóv, Deníssov disse rindo que, de fato, parecia que uma outra pessoa tinha se metido na história, mas que tudo aquilo era bobagem, um disparate, que ele não tinha medo do julgamento de ninguém e que, se aqueles canalhas ousassem vir pegá-lo, ele daria uma resposta que nunca mais iriam esquecer.
Deníssov falava com desdém sobre todo aquele caso; mas Rostóv o conhecia muito bem para não perceber que, no fundo (escondido dos outros), ele temia o julgamento e se atormentava com aquele caso, que obviamente teria consequências ruins. Todo dia chegavam documentos com perguntas e exigências para o julgamento, e no dia 1o de maio veio a ordem para Deníssov passar o comando para o mais graduado do seu esquadrão e apresentar-se ao Estado-Maior da divisão para prestar esclarecimento acerca do caso da violência praticada na comissão de abastecimento. Na véspera daquele dia, Plátov fez uma operação de reconhecimento do inimigo com dois regimentos de cossacos e dois esquadrões de hussardos. Deníssov, como sempre, seguiu na linha de frente, fazendo alarde da sua coragem. Uma das balas disparadas pelos fuzileiros franceses acertou a carne da parte superior da sua perna. Em outra situação, com um ferimento tão ligeiro, talvez Deníssov não tivesse deixado o regimento, mas naquelas circunstâncias ele aproveitou o incidente para se recusar a comparecer à divisão e foi para o hospital.
XVII
No mês de junho ocorreu a batalha de Friedland, na qual os soldados de Pávlograd não tomaram parte, e em seguida foi declarado um armistício. Rostóv, que sentia muito a ausência do amigo, estava sem receber notícias dele desde a sua partida e, preocupado com o andamento do seu processo e com o estado do seu ferimento, aproveitou o armistício e obteve permissão para ir visitar Deníssov no hospital.
O hospital ficava num pequeno povoado prussiano, devastado duas vezes, pelas tropas russas e pelas tropas francesas. Justamente porque era verão, época em que o campo é tão bonito, aquele povoado, com suas cercas e telhados arrasados, suas ruas emporcalhadas, com os habitantes esfarrapados e os soldados bêbados ou doentes que por elas vagavam, apresentava um espetáculo especialmente desolador.
O hospital ficava numa casa de pedra, num terreno cercado pelos restos de um muro desmantelado, com janelas e vidros em parte quebrados. Vários soldados enfaixados, pálidos, inchados, caminhavam ou ficavam sentados no pátio, sob o solzinho.
Assim que Rostóv atravessou a porta, um cheiro de carne em putrefação e de hospital o envolveu. Na escada, foi ao encontro de um médico militar russo, de charuto na boca. Atrás do médico, vinha um enfermeiro russo.
— Não posso estar em toda parte ao mesmo tempo — dizia o médico. — Vá à tardinha à casa de Makar Alekséievitch que estarei lá.
O enfermeiro lhe fez mais uma pergunta.
— Eh! Faça o que achar melhor! Afinal, não é sempre a mesma coisa?
O médico viu Rostóv, que subia pela escada.
— O que deseja, vossa excelência? — perguntou o médico. — O que deseja? Se não foi atingido por uma bala, está querendo pegar tifo? Aqui, meu caro, é a casa dos leprosos.
— Como assim? — perguntou Rostóv.
— O tifo, meu caro. Quem entra aqui morre. Só eu e o Makéiev (apontou para o enfermeiro) ainda estamos aguentando. Já morreram aqui cinco dos nossos irmãos médicos. Sempre que chega um novato, numa semana está acabado — disse o médico, com visível satisfação. — Mandaram vir médicos prussianos, mas os nossos aliados não gostam disso.
Rostóv explicou que desejava ver um major dos hussardos, Deníssov, que estava internado ali.
— Não conheço, não sei dizer, meu caro. Afinal, pense só, eu sozinho cuido de três hospitais, mais de quatrocentos pacientes! Ainda bem que umas senhoras prussianas virtuosas nos trazem café e gaze, umas duas libras por mês, senão estávamos perdidos. — Ele deu uma risada. — Quatrocentos, meu caro; e estão sempre me trazendo novos. Então, não são quatrocentos? Hein? — voltou-se para o enfermeiro.
O enfermeiro parecia esgotado. Era evidente que estava aborrecido, esperando que o médico tagarela saísse de uma vez.
— Major Deníssov — repetiu Rostóv. — Foi ferido em Molliten.
— Parece que morreu. Hein, Makéiev? — perguntou o médico para o enfermeiro, em tom indiferente.
O enfermeiro, porém, não confirmou as palavras do médico.
— Não era um alto, assim, meio ruivo? — perguntou o médico.
Rostóv descreveu o aspecto de Deníssov.
— É, tinha um assim — exclamou o médico, como se estivesse contente. — Esse na certa morreu, mas eu vou conferir, eu tinha umas listas. Não estão com você, Makéiev?
— As listas estão com o Makar Alekséievitch — respondeu o enfermeiro. — Mas tenha a bondade de ir à enfermaria dos oficiais, o senhor mesmo vai ver — acrescentou, dirigindo-se a Rostóv.
— Eh, é melhor não ir, meu caro — disse o médico. — Senão o senhor também vai acabar ficando por lá! — Mas Rostóv despediu-se do médico e pediu ao enfermeiro que lhe mostrasse o caminho.
— Depois não vá pôr a culpa em mim — gritou o médico, ao pé da escada.
Rostóv e o enfermeiro entraram no corredor. O cheiro de hospital era tão forte naquele corredor escuro que Rostóv tapou o nariz e teve de parar a fim de recuperar as forças, antes de poder seguir adiante. Uma porta se abriu à direita, e de lá surgiu, de muletas, um homem magro, amarelo, descalço, em roupas de baixo. Apoiado na ombreira da porta, com olhos brilhantes, invejosos, ele observou as pessoas que passavam. Ao olhar para a porta, Rostóv viu, lá dentro, doentes e feridos deitados no chão, em cima de palha e de capotes.
— O que é isso? — perguntou.
— São os soldados — respondeu o enfermeiro. — O que se vai fazer? — acrescentou, como que se desculpando.
— Posso entrar para ver? — perguntou Rostóv.
— Mas ver o quê? — disse o enfermeiro. Porém, exatamente porque o enfermeiro obviamente não queria deixar que ele visse, Rostóv entrou na enfermaria dos soldados. O cheiro, que Rostóv, no corredor, só conseguira tolerar depois de um tempo, ali era ainda mais forte. O cheiro, ali, era um pouco diferente: era mais cortante e sentia-se logo que era exatamente dali que ele provinha.
Numa sala comprida, bem iluminada pelo sol da janela, os doentes e os feridos estavam deitados em duas fileiras, com a cabeça voltada para a parede e deixando um corredor no meio. Grande parte deles estava inconsciente e não prestou atenção nos homens que entraram. Os que estavam conscientes se ergueram ou levantaram o rosto magro, amarelo, todos com a mesma expressão de esperança de receber alguma ajuda, de censura e de inveja da saúde alheia, e fitavam Rostóv fixamente, sem baixar os olhos. Rostóv andou até o meio da sala, lançou um olhar para as duas salas vizinhas através das portas escancaradas e, nos dois lados, viu a mesma coisa. Ficou parado, em silêncio, olhando à sua volta. Não contava de maneira alguma ver aquilo. Bem na sua frente, quase atravessado no corredor entre as duas fileiras de homens, um doente jazia estirado no chão, na certa um cossaco, pois tinha os cabelos raspados. O cossaco jazia de costas, as pernas e os braços enormes muito abertos. O rosto tinha uma cor vermelha carregada, os olhos estavam totalmente revirados, de modo que só se via a parte branca, e nos pés descalços e nas mãos, ainda vermelhas, as veias ressaltavam tensas como cordas. Ele bateu com a nuca no chão, pronunciou algo com voz rouca e começou a repetir a mesma palavra. Rostóv prestou atenção no que ele dizia e decifrou a palavra repetida. A palavra era: beber... beber... beber! Rostóv olhou em redor, procurando alguém que pudesse colocar aquele paciente no seu lugar e lhe dar água.
— Quem cuida dos pacientes aqui? — perguntou ao enfermeiro. Naquele momento, marcando o passo, o soldado encarregado, de plantão no hospital, veio da sala vizinha e ficou em posição de sentido na frente de Rostóv.
— Saudações, vossa excelência! — gritou o soldado, arregalando os olhos para Rostóv e, era evidente, tomando-o pelo diretor do hospital.
— Coloque-o no lugar, dê água para ele — disse Rostóv, apontando para o cossaco.
— Às suas ordens, vossa excelência — proferiu o soldado com satisfação, arregalando os olhos ainda mais e esticando-se ainda mais na posição de sentido, mas sem sair do lugar.
“Não, aqui ninguém faz nada”, pensou Rostóv, baixando os olhos, e pensou em sair, mas sentiu do lado direito um olhar expressivo dirigido a ele e virou-se para lá. Quase no canto, sobre um capote, com um rosto amarelo, severo, magro como um esqueleto, estava sentado um velho soldado, de barba grisalha e crescida, e fitava Rostóv com tenacidade. Um vizinho ao velho soldado sussurrou-lhe algo, apontando para Rostóv. Rostóv entendeu que o velho tinha a intenção de pedir alguma coisa. Aproximou-se e viu que o velho só tinha uma perna, dobrada sob o corpo, da outra perna só restava um coto que não chegava ao joelho. Outro paciente vizinho ao velho, deitado imóvel, com a cabeça inclinada para trás, bem distante dele, era um soldado jovem com uma palidez de cera no rosto de nariz arrebitado, coberto de sardas, e com os olhos revirados para baixo das pálpebras. Rostóv observou o soldado de nariz arrebitado, e um calafrio correu pela sua espinha.
— Mas esse parece que... — virou-se para o enfermeiro.
— Quantas vezes já pedimos, vossa excelência — disse o velho soldado, com o queixo trêmulo. — Está morto desde a manhã. Afinal, também somos gente, e não cachorros...
— Vou mandar que levem agora mesmo, pode deixar — disse o enfermeiro, afobado. — Tenha a bondade, vossa excelência.
— Vamos, vamos! — disse Rostóv às pressas e, de olhos baixos e contraídos, tentando passar despercebido através daquela fileira de olhos acusadores e invejosos apontados para ele, saiu da sala.
XVIII
Passando para o corredor, o enfermeiro conduziu Rostóv para a enfermaria dos oficiais, que consistia em três salas de portas escancaradas. Naquelas salas, havia leitos; os oficiais feridos e os doentes estavam sentados ou deitados sobre as camas. Alguns andavam pelas salas em roupões de hospital. A primeira pessoa com quem Rostóv deparou na enfermaria dos oficiais foi um homem miúdo, magro, sem um braço, de gorro e roupão de hospital, que andava pela primeira sala, com um cachimbo apertado entre os dentes. Rostóv, olhando atentamente para ele, tentava lembrar onde o tinha visto.
— Puxa, olhe só onde fomos nos encontrar — disse o homem miúdo. — Sou o Túchin, Túchin... Não lembra? Levei o senhor na carroça lá em Schöngraben. Tiraram um pedacinho de mim, olhe só... — disse ele, sorrindo a apontando para a manga vazia do roupão. — Está procurando o Vassíli Dmítritch Deníssov? O seu companheiro, não é? — disse ele, adivinhando o que Rostóv queria. — Por aqui, por aqui. — E Túchin conduziu-o para outra sala, da qual se ouviam diversas vozes e risos.
“Mas como eles conseguem não só rir, mas até viver aqui?”, pensou Rostóv, sentindo sempre o mesmo cheiro de carne morta que o impregnara na enfermaria dos soldados, e vendo ainda à sua volta os mesmos olhares invejosos que o seguiam dos dois lados e o rosto daquele soldado jovem, com os olhos revirados por baixo das pálpebras.
Deníssov, com a cabeça debaixo de um cobertor, dormia numa cama, apesar de já ser meio-dia.
— Ah! Rostóv! Como vai? Como vai? — gritou, com a mesma voz que usava no regimento; mas Rostóv notou com tristeza que, por trás da habitual descontração e entusiasmo, um sentimento novo, ruim, oculto, transparecia na expressão do rosto, na entonação e nas palavras de Deníssov.
Seu ferimento, apesar de insignificante, ainda não havia cicatrizado, embora já tivessem passado seis semanas desde que ele fora ferido. No rosto, havia a mesma palidez e inchaço que havia no rosto de todos os hospitalizados. Mas não foi isso o que impressionou Rostóv; impressionou-o, sim, o fato de Deníssov parecer não estar contente de vê-lo e de sorrir para ele de maneira forçada. Deníssov nada perguntou sobre o regimento, nem sobre a situação geral da guerra. Quando Rostóv falou a respeito disso, Deníssov não prestou atenção.
Rostóv notou que Deníssov mostrava até desagrado quando lhe recordavam o regimento e, no geral, aquela outra vida, livre, que se passava fora do hospital. Deníssov parecia esforçar-se para esquecer a sua vida anterior e só se interessava pela rixa com os intendentes. À pergunta de Rostóv sobre como estava o seu processo, Deníssov imediatamente tirou de debaixo do travesseiro um documento recebido do comissariado e o rascunho da sua resposta. Animou-se ao começar a ler o documento e chamou a atenção de Rostóv, em especial, para as tiradas mordazes que ele lançava aos seus inimigos naquele documento. Os camaradas de hospital de Deníssov, que haviam rodeado Rostóv — uma pessoa recém-chegada do mundo livre —, começaram a dispersar aos poucos, assim que Deníssov se pôs a ler o documento. Pelo rosto deles, Rostóv entendeu que todos aqueles senhores já tinham ouvido várias vezes a mesma história e já estavam fartos. Só o paciente do leito vizinho, um ulano gordo, sentado na cama de lona, de rosto franzido, com ar sombrio, fumando um cachimbo, e o pequeno Túchin, sem braço, continuaram a escutar, balançando a cabeça em sinal de desaprovação. No meio da leitura, o ulano interrompeu Deníssov.
— Para mim — disse, voltando-se para Rostóv —, é preciso apenas pedir perdão ao soberano. Dizem que agora as recompensas vão ser muitas e na certa vão perdoar...
— Eu, pedir perdão ao soberano? — disse Deníssov, numa voz a que ele queria imprimir a energia e o ardor de antes, mas que soava apenas com uma irritação inútil. — Perdão de quê? Se eu fosse um bandido, pediria perdão, mas eu estou sendo julgado por ter desmascarado os bandidos. Pois podem julgar, não tenho medo de nada; servi honradamente o tsar e a pátria e não roubei! E ainda querem me rebaixar, ora... Escute só, estou escrevendo para eles assim, bem direto: “Se eu fosse um ladrão do dinheiro público...”.
— Muito bem escrito, nem se discute — disse Túchin. — Mas a questão não é essa, Vassíli Dmítritch — dirigia-se também a Rostóv. — É preciso ser submisso, e o Vassíli Dmítritch não quer. Afinal, o auditor já disse ao senhor que o seu caso está indo por um mau caminho.
— Pois que vá por um mau caminho — retrucou Deníssov.
— O auditor redigiu um apelo para o senhor — prosseguiu Túchin —, e é preciso assinar e encaminhar por meio dele. Na certa ele (e apontou para Rostóv) tem um bom conhecimento do Estado-Maior. O senhor não vai ter uma oportunidade melhor do que esta.
— Mas eu já disse que não vou me acovardar — interrompeu Deníssov e recomeçou a leitura do seu documento.
Rostóv não se atreveu a tentar convencer Deníssov, embora sentisse por instinto que o caminho proposto por Túchin e por outros oficiais era o mais seguro, e embora fosse ficar feliz se pudesse oferecer alguma ajuda a Deníssov: conhecia muito bem a vontade inflexível de Deníssov e a sua sincera impetuosidade.
Quando chegou ao fim a leitura dos venenosos papéis de Deníssov, que se prolongou por mais de uma hora, Rostóv não falou nada e, no estado de ânimo mais triste possível, de novo na companhia dos camaradas de hospital de Deníssov, que se reuniram à sua volta, passou o resto do dia contando o que sabia e escutando o relato dos demais. Deníssov manteve-se calado, sombrio, durante toda a tarde.
Rostóv preparou-se para ir embora, já bem tarde, e perguntou a Deníssov se não queria algum favor dele.
— Sim, espere — disse Deníssov, olhou para os oficiais à sua volta, pegou os seus papéis embaixo do travesseiro, foi até a janela, onde ele tinha deixado um tinteiro, e sentou-se para escrever.
— Pelo visto, não adianta dar murro em ponta de faca — disse, ao voltar da janela, entregando a Rostóv um envelope grande. Era o apelo dirigido ao soberano, redigido pelo auditor, em que Deníssov, sem fazer nenhuma menção ao departamento da intendência, pedia apenas clemência.
— Entregue, parece que... — Não terminou de falar e deu um sorriso doentio e forçado.
XIX
Depois de voltar ao regimento e informar ao comandante em que pé estava o processo de Deníssov, Rostóv seguiu para Tilsit, com a carta dirigida ao soberano.
No dia 13 de junho, os imperadores francês e russo chegaram a Tilsit. Boris Drubetskói havia pedido a uma figura importante, junto à qual fora designado para trabalhar, que o incluísse na comitiva escalada para ir a Tilsit.
— Je voudrais voir le grand homme 56 — disse ele, referindo-se a Napoleão, a quem ele, até aquela ocasião, como todos, chamava sempre de Buonaparte.
— Vous parlez de Buonaparte? 57 — perguntou, rindo, o seu general.
Boris olhou com ar interrogativo para o general e logo entendeu que era um teste jocoso.
— Mon prince, je parle de l’empereur Napoléon 58 — respondeu.
O general tocou-o no ombro, com um sorriso.
— Você ainda vai longe — disse, e levou-o consigo.
Boris foi um dos poucos que estavam no rio Niemen no dia do encontro dos imperadores; viu as balsas com as insígnias, a travessia de Napoleão para a outra margem, afastando-se da guarda francesa, viu a figura pensativa do imperador Alexandre, calado, num albergue às margens do Niemen, à espera da chegada de Napoleão; viu os dois imperadores entrarem nos barcos, e Napoleão, que chegou à balsa primeiro, caminhar em frente a passos rápidos e, ao receber Alexandre, estender-lhe a mão, e viu os dois imperadores desaparecerem dentro de um pavilhão. Desde o seu ingresso nas altas esferas, Boris adquirira o hábito de observar com atenção o que se passava à sua volta e anotar tudo. Por ocasião do encontro em Tilsit, ele perguntou o nome das pessoas que vieram com Napoleão, perguntou sobre os uniformes que vestiam e escutava com toda a atenção as palavras ditas por pessoas importantes. No instante mesmo em que os imperadores entraram no pavilhão, Boris olhou o relógio e não esqueceu de olhar outra vez, quando Alexandre saiu do pavilhão. O encontro durou uma hora e cinquenta e três minutos: Boris anotou isso naquela noite, entre outros fatos que, assim ele supunha, tinham relevância histórica. Uma vez que a comitiva do imperador não era muito grande, estar em Tilsit na ocasião do encontro dos imperadores era uma questão muito importante para qualquer pessoa que tinha em alta conta o sucesso no serviço público, e Boris, que estava em Tilsit, sentia que a partir daquele momento a sua posição se consolidara por completo. Não só reconheciam Boris, como o observavam com atenção, e habituaram-se a ele. Por duas vezes, Boris cumpriu tarefas junto ao próprio imperador; assim, o imperador o conhecia pessoalmente, e agora todas as pessoas próximas ao imperador não só não se esquivavam de Boris, a exemplo do que faziam antes, tomando-o por um novato, como ficariam até surpresas se ele não estivesse presente.
Boris morava com outro ajudante de ordens, o conde polonês Jilínski. Educado em Paris, Jilínski era rico, adorava os franceses com ardor, e quase todo dia, durante a estada em Tilsit, oficiais franceses da guarda e do Estado-Maior francês se reuniam para jantar e almoçar com Jilínski e Boris.
No dia 24 de junho, à noite, o conde Jilínski, que dividia o alojamento com Boris, organizou um jantar para os seus conhecidos franceses. No jantar, havia um convidado de honra — um ajudante de ordens de Napoleão —, vários oficiais da guarda francesa e um jovem de uma antiga família aristocrática francesa, pajem de Napoleão. Naquele mesmo dia, aproveitando-se da escuridão para não ser reconhecido em trajes civis, Rostóv chegou a Tilsit e entrou no alojamento de Jilínski e de Boris.
Aquela reviravolta de atitude em relação a Napoleão e aos franceses, que passaram de inimigos a amigos, ainda estava longe de se cumprir em Rostóv, assim como em todo o exército de onde ele tinha vindo, mas já era um fato consumado no quartel-general e também em Boris. Todos no exército ainda continuavam a experimentar o mesmo sentimento misto de raiva, desprezo e medo em relação a Bonaparte e aos franceses. Pouco tempo antes, em conversa com um oficial cossaco de Plátov, Rostóv teve uma discussão em que disse que, se Napoleão fosse feito prisioneiro, seria tratado não como um soberano, mas como um criminoso. Pouco tempo antes, numa estrada, ao encontrar um coronel francês ferido, Rostóv exasperou-se ao explicar a ele que não poderia haver paz entre um soberano legítimo e o criminoso Bonaparte. Por isso, a visão de oficiais franceses no alojamento de Boris, e nos mesmos uniformes em que ele estava acostumado a avistá-los dos postos avançados, em circunstâncias muito diferentes, causou em Rostóv uma impressão estranha. Assim que viu um oficial francês surgir na porta, aquele sentimento de guerra, de hostilidade, que ele sempre experimentava ao ver o inimigo, dominou-o de súbito. Rostóv ficou parado na soleira e perguntou em russo se Drubetskói morava ali. Boris, ao ouvir uma voz estranha na porta, veio ao seu encontro. No primeiro minuto, ao reconhecer Rostóv, seu rosto exprimiu um desgosto.
— Ah, é você, estou muito contente, muito contente em vê-lo — disse, no entanto, sorrindo e aproximando-se. Mas Rostóv percebeu a sua primeira reação.
— Parece que chego numa hora inoportuna — disse. — Eu não viria, mas tenho um assunto sério — disse, com frieza...
— Não, apenas fiquei admirado de ver você fora do regimento. Dans un moment je suis à vous 59 — respondeu a uma voz que o chamou.
— Estou vendo que vim numa hora inoportuna — repetiu Rostóv.
A expressão de desgosto já havia desaparecido da fisionomia de Boris; depois de, obviamente, ter pensado melhor e decidido o que devia fazer, Boris, com uma tranquilidade especial, segurou as duas mãos de Rostóv e levou-o para um cômodo vizinho. Os olhos de Boris, que fitavam os de Rostóv com tranquilidade e firmeza, pareciam encobertos como que por uma tampa — sobre eles estavam os óculos azuis das convenções sociais. Assim pareceu a Rostóv.
— Ah, chega, por favor, nenhuma hora é inoportuna para receber você — disse Boris. Levou Rostóv para uma sala onde o jantar estava servido, apresentou-o aos convidados, disse o nome dele e explicou que não era um civil, mas um oficial dos hussardos e seu velho amigo. — O conde Jilínski, le comte N. N., le capitaine S. S. — Boris apresentou os convidados. Rostóv olhava para os franceses de sobrancelhas franzidas, cumprimentava-os com uma reverência a contragosto e ficava calado.
Jilínski, estava claro, não recebia com satisfação aquele novo russo em seu círculo e nada dizia para Rostóv. Boris, pelo visto, não percebia o constrangimento produzido pela chegada do novo personagem e, com a mesma tranquilidade simpática e a mesma cobertura sobre os olhos com que recebera Rostóv, tentava manter a conversa animada. Um dos franceses, com a cortesia habitual dos franceses, dirigiu-se a Rostóv, que se mantinha tenazmente calado, e perguntou se tinha vindo a Tilsit para ver o imperador.
— Não, tenho um assunto para resolver — respondeu Rostóv, lacônico.
Rostóv ficou de mau humor desde o instante em que percebeu a insatisfação na fisionomia de Boris e, como sempre acontece em pessoas de mau humor, parecia-lhe que todos o olhavam com hostilidade e que ele incomodava a todos. E, de fato, Rostóv estava incomodando a todos e só ele permanecia de fora da conversa geral, logo retomada. “Para que ele está aqui?”, diziam os olhares dirigidos a Rostóv. Ele ergueu-se e aproximou-se de Boris.
— Vejo que estou atrapalhando — disse em voz baixa. — Vamos tratar do meu assunto e depois eu vou embora.
— Não, de jeito nenhum — respondeu Boris. — Mas, se você está cansado, vamos ao meu quarto, lá você pode deitar e repousar.
— Sim, na verdade...
Foram para o quarto pequeno onde Boris dormia. Sem se sentar, Rostóv, de imediato e com irritação — como se Boris fosse culpado de alguma coisa perante ele —, passou a contar-lhe o caso de Deníssov, perguntando se Boris queria e podia apelar ao soberano em favor de Deníssov por intermédio do seu general e, por meio dele, entregar-lhe uma carta. Quando ficaram a sós, Rostóv se convenceu pela primeira vez de que era constrangedor fitar Boris nos olhos. De pernas cruzadas e afagando a mão esquerda com os dedos finos da mão direita, Boris escutava Rostóv como um general escuta o relatório de um subordinado, ora olhando para o lado, ora fitando direto nos olhos de Rostóv, com aquela mesma cobertura sobre o olhar. Toda vez que isso acontecia, Rostóv ficava constrangido e baixava os olhos.
— Já ouvi falar de processos desse mesmo tipo e sei que o soberano é muito severo em tais casos. Acho que não se deve apresentar o apelo à sua alteza. A meu ver, seria melhor pedir diretamente ao comandante da tropa... Mas, de resto, eu creio que...
— Se não quer fazer nada, diga logo de uma vez! — quase gritou Rostóv, sem fitar Boris nos olhos. Boris sorriu:
— Ao contrário, farei o que posso, apenas acho que...
Naquele instante, ouviu-se atrás da porta a voz de Jilínski chamando Boris.
— Está bem, vá, vá — disse Rostóv, recusou o convite para jantar e ficou sozinho no quarto, andando de um lado para o outro e ouvindo a alegre conversa em francês no cômodo vizinho.
XX
Rostóv chegou a Tilsit no dia menos apropriado possível para interceder em favor de Deníssov. Ele mesmo não podia procurar o general comandante, pois estava de fraque e viera a Tilsit sem autorização dos seus superiores, e Boris, mesmo que quisesse, não pôde tratar do assunto no dia seguinte à chegada de Rostóv. Naquele dia 27 de junho foram assinadas as primeiras cláusulas do acordo de paz. Os imperadores trocaram condecorações: Alexandre recebeu a Legião de Honra, e Napoleão a Ordem de Santo André de primeiro grau, e naquele dia um batalhão da guarda francesa promoveu um jantar para o batalhão de Preobrajénski. Os soberanos deviam comparecer a esse jantar.
Rostóv sentia-se tão mal e tão incomodado na companhia de Boris que, quando o amigo veio vê-lo depois do jantar, Rostóv fingiu que estava dormindo e no dia seguinte, de manhã bem cedo, saiu da casa esforçando-se para não cruzar com Boris. De fraque e de chapéu redondo, Nikolai vagou pela cidade, observando os franceses e os seus uniformes, observando as ruas e as casas onde se alojavam o imperador russo e o francês. Numa praça, viu mesas montadas e os preparativos para o jantar; nas ruas, viu panos pendurados com as cores das bandeiras russa e francesa e enormes monogramas “A” e “B”. Nas janelas das casas, também havia bandeiras e monogramas.
“Boris não quer me ajudar, e eu também não quero pedir a ele. Isso já está decidido”, pensou Nikolai. “Entre nós, está tudo acabado, mas não irei embora daqui antes de fazer tudo o que puder em favor de Deníssov e, acima de tudo, antes de entregar a carta ao soberano. O soberano!? Ele está aqui!”, pensou Rostóv, aproximando-se de novo, e sem querer, da casa ocupada por Alexandre.
Na frente da casa, havia cavalos de montaria, e a comitiva estava chegando, pelo visto preparavam-se para a saída do soberano.
“A qualquer minuto poderei vê-lo”, pensou Rostóv. “Se ao menos eu pudesse lhe entregar diretamente a carta e dizer tudo... Será que não vão me prender porque estou de fraque? Não é possível! Ele compreenderia de que lado está a justiça. Ele compreende tudo, sabe tudo. Quem pode ser mais justo e generoso do que ele? Ora, e se me prenderem por eu estar aqui, que mal há nisso?”, pensou, enquanto olhava para um oficial que entrava na casa ocupada pelo soberano. “Pronto, já estão entrando. Eh! Tudo isso é bobagem! Irei lá e entregarei eu mesmo a carta ao soberano: pior para o Drubetskói, que me levou a fazer isso.” E de repente, com uma determinação que ele mesmo não esperava de si, depois de apalpar a carta dentro do bolso, Rostóv andou direto para a casa ocupada pelo soberano.
“Não, agora não vou perder a oportunidade, como aconteceu depois de Austerlitz”, pensou, na expectativa de encontrar o soberano a qualquer segundo, e sentindo o sangue afluir ao coração, só de pensar nisso. “Vou me jogar aos pés dele e pedir. Ele vai me levantar, vai me escutar e ainda vai me agradecer.” “Fico feliz quando posso fazer o bem, mas corrigir uma injustiça é a felicidade suprema”, imaginava Rostóv as palavras que o soberano ia lhe dizer. E passou pelas pessoas que o observavam com curiosidade no alpendre da casa ocupada pelo soberano.
Do alpendre, uma escada larga conduzia direto ao primeiro andar; à direita, via-se uma porta fechada. Debaixo da escada, outra porta dava para o andar de baixo.
— Quem é o senhor? — perguntou alguém.
— Vim entregar uma carta, um apelo à sua alteza — disse Nikolai, com voz trêmula.
— Um apelo... Vá ao oficial de serviço, por favor, é por ali (apontaram a porta de baixo). Só que não estão recebendo.
Ao ouvir aquela voz indiferente, Rostóv assustou-se com o que estava fazendo; a ideia de que, a qualquer minuto, ia encontrar-se com o soberano era para Rostóv tão sedutora e, por isso, tão terrível que ele já se preparava para fugir dali, mas o camareiro que o encontrou abriu a porta do oficial de serviço, e Rostóv entrou.
Naquele quarto, estava um homem gordo e baixo, de uns trinta anos, de calça branca, botas, e com uma camisa de cambraia que, pelo visto, acabara de vestir; um criado abotoava nas suas costas lindos suspensórios novos, bordados em seda, que por algum motivo chamaram a atenção de Rostóv. Aquele homem falava com alguém que estava num outro cômodo.
— Bien faite et la beauté du diable 60 — dizia o homem e, ao ver Rostóv, parou de falar e fechou a cara. — O que o senhor deseja? Uma petição?...
— Qu’est-ce que c’est? 61 — perguntou alguém no outro cômodo.
— Encore un pétitionnaire 62 — respondeu o homem de suspensórios.
— Diga para vir depois. Ele vai sair agora, temos de partir.
— Depois, depois, amanhã. Mais tarde...
Rostóv virou-se e fez menção de sair, mas o homem de suspensórios o deteve.
— Da parte de quem? Quem é o senhor?
— Do major Deníssov — respondeu Rostóv.
— Quem é o senhor? Um oficial?
— Tenente, conde Rostóv.
— Que audácia! Encaminhe pelo comando. E saia, saia logo... — Começou a vestir o uniforme que o criado lhe dera.
Rostóv saiu de novo na direção da porta da rua e notou que, no alpendre, já havia muitos oficiais e generais em uniforme de gala, pelos quais ele tinha de passar.
Maldizendo a sua audácia, abalado com a ideia de que a qualquer minuto poderia encontrar-se com o soberano e que por isso poderia passar uma vergonha e ser preso, dando-se conta plenamente de toda a inconveniência do seu gesto e arrependido de ter agido assim, Rostóv, de olhos baixos, já estava saindo da casa, rodeada pela multidão da comitiva suntuosa, quando uma voz conhecida o chamou, e a mão de alguém o segurou.
— O senhor, meu caro, o que está fazendo de fraque? — perguntou uma voz de baixo.
Era um general de cavalaria que, naquela campanha, recebera um favor especial do imperador e que antes tinha sido o comandante da divisão em que Rostóv servia.
Rostóv, assustado, começou a se desculpar, mas, ao perceber o rosto bondoso e bem-humorado do general, trouxe-o para o lado, com voz comovida, explicou-lhe todo o caso e pediu que intercedesse em favor de Deníssov, a quem o general conhecia. Após escutar Rostóv, o general balançou a cabeça com ar sério.
— Que pena, coitado do bravo rapaz; me dê a carta...
Rostóv mal teve tempo de entregar a carta e contar todo o caso de Deníssov quando, na escada, soaram passos rápidos, com esporas, e o general, afastando-se dele, avançou na direção do alpendre. Os senhores da comitiva do soberano desceram correndo pela escada e seguiram na direção dos cavalos. O escudeiro Eneux, o mesmo que estivera em Austerlitz, trouxe o cavalo do soberano, e ouviu-se na escada um leve rangido de passos, que Rostóv logo reconheceu. Esquecido do perigo de ser reconhecido, Rostóv aproximou-se do alpendre, junto com alguns civis curiosos, e de novo, após dois anos, avistou as mesmas feições adoradas, o mesmo rosto, o mesmo olhar, o mesmo porte, a mesma conjunção de grandeza e docilidade... E o sentimento de entusiasmo e de amor pelo soberano renasceu na alma de Rostóv com a mesma força de antes. O soberano, com o uniforme do regimento de Preobrajénski, de botas altas, brancas, feitas de couro de alce, com uma medalha que Rostóv não conhecia (era a Légion d’Honneur),63 saiu para o alpendre, com o chapéu debaixo do braço e calçando a luva. Parou, olhou em volta, e tudo ao redor se iluminou com o seu olhar. Disse algumas palavras a um dos generais. Reconheceu também o ex-comandante da divisão de Rostóv, sorriu para ele e chamou-o para junto de si.
Toda a comitiva recuou, e Rostóv viu que o general falou demoradamente com o soberano.
O soberano lhe disse algumas palavras e deu um passo na direção dos cavalos. De novo a multidão da comitiva e a multidão da rua, na qual estava Rostóv, aproximaram-se do imperador. Parado junto ao cavalo e segurando a sela com a mão, o soberano voltou-se para o general de cavalaria e lhe falou bem alto, obviamente para que todos ouvissem.
— Não posso, general, e não posso porque a lei é mais forte do que eu — disse o soberano, e colocou o pé no estribo. O general baixou a cabeça com respeito, o soberano montou e partiu a galope pela rua. Rostóv, fora de si de tanto entusiasmo, correu junto com a multidão atrás dele.
XXI
Na praça para onde o soberano se dirigia, estavam frente a frente o batalhão de Preobrajénski, à direita, e o batalhão da guarda francesa, à esquerda, com chapéus de pele de urso.
Na hora em que o soberano passava a cavalo junto a um flanco dos batalhões, que apresentavam armas, outro grupo de cavaleiros se aproximava a galope do flanco oposto, e à frente deles Rostóv reconheceu Napoleão. Não podia ser outro. Ia a galope, com um chapéu pequeno, com a fita da condecoração de Santo André sobre o ombro, num uniforme azul aberto sobre um colete branco, num extraordinário cavalo árabe tordilho puro-sangue, com um xairel bordado em dourado e em cor de framboesa. Aproximando-se de Alexandre, Napoleão levantou o chapéu e, ao fazer esse gesto, os olhos de cavalariano de Rostóv não puderam deixar de perceber que Napoleão estava mal montado e sem firmeza sobre o cavalo. Os batalhões gritaram: “Hurra!” e “Vive l’empereur!”. Napoleão disse algo para Alexandre. Os dois imperadores desmontaram e apertaram-se as mãos. No rosto de Napoleão havia um sorriso desagradável e fingido. Alexandre, com uma expressão afetuosa, lhe disse algo.
Rostóv, sem baixar os olhos, apesar do tropel dos cavalos dos gendarmes franceses, que continham a multidão, acompanhava todos os movimentos dos imperadores Alexandre e Bonaparte. Impressionou-o, pelo inesperado, o fato de Alexandre portar-se diante de Bonaparte como um igual, e de Bonaparte tratar o tsar russo como um igual, com total liberdade, como se tal intimidade com o soberano fosse algo natural e rotineiro para ele.
Alexandre e Napoleão, seguidos pela longa comitiva, aproximaram-se do flanco direito do batalhão de Preobrajénski, avançando em linha reta para a multidão que estava ali. De modo inesperado, a multidão se viu tão próxima dos imperadores que Rostóv, postado nas primeiras filas, sentiu medo de ser reconhecido.
— Sire, je vous demande la permission de donner la Légion d’Honneur au plus brave de vos soldats 64 — disse uma voz fina, cortante, que articulava todas as letras.
Foi Bonaparte, de pequena estatura, quem falou, fitando os olhos de Alexandre, de baixo para cima. Alexandre escutou atentamente o que lhe diziam e, após inclinar a cabeça, sorriu com simpatia.
— À celui qui s’est le plus vaillamment conduit dans cette dernière guerre 65 — acrescentou Napoleão, escandindo cada sílaba com uma tranquilidade e uma segurança revoltantes para Rostóv, enquanto corria os olhos pelas fileiras de soldados russos em posição de sentido à sua frente, todos apresentando armas e olhando imóveis para o rosto do seu imperador.
— Votre Majesté me permettra-t-elle de demander l’avis du colonel 66 — disse Alexandre e deu alguns passos apressados na direção do príncipe Kozlóvski, comandante do batalhão. Enquanto isso, com a pequena mão branca, Bonaparte começou a descalçar a luva e, como ela rasgou, jogou-a fora. Um ajudante de ordens precipitou-se para a frente e apanhou a luva.
— A quem se pode dar? — perguntou baixo e em russo o imperador Alexandre para Kozlóvski.
— A quem vossa alteza mandar.
O soberano franziu as sobrancelhas, descontente, olhou para trás e disse:
— Mas é preciso dar uma resposta a ele.
Kozlóvski voltou-se para as fileiras com ar decidido, e o seu olhar bateu em Rostóv. “Serei eu?”, pensou Rostóv.
— Lázariev! — ordenou o coronel, de cara franzida; e o primeiro soldado da tropa, Lázariev, adiantou-se com presteza.
— Aonde vai? Fique parado! — sussurraram vozes para Lázariev, que não sabia para onde devia ir. Lázariev parou assustado, olhando de esguelha para o coronel, e o seu rosto tremeu, como acontece com os soldados chamados à frente das fileiras.
Napoleão virou ligeiramente a cabeça para trás e levou a mão pequena e roliça para trás, como se quisesse apanhar alguma coisa. Os membros da sua comitiva, adivinhando no mesmo instante do que se tratava, agitaram-se, sussurraram, enquanto passavam um objeto de um para o outro, e um pajem, o mesmo que Rostóv tinha visto no dia anterior na casa de Boris, correu para a frente e, inclinando-se respeitosamente diante da mão estendida, e sem deixar que ela esperasse nem um segundo, colocou sobre ela uma medalha presa a uma fita vermelha. Sem olhar, Napoleão fechou dois dedos. A medalha ficou presa entre eles. Napoleão aproximou-se de Lázariev, que, de olhos arregalados, continuava a fitar obstinadamente apenas o seu soberano, e Bonaparte voltou-se para o imperador Alexandre, demonstrando assim que aquilo que estava fazendo agora ele o fazia para o seu aliado. A mão branca e pequena, com a medalha, tocou num botão do soldado Lázariev. Era como se Napoleão soubesse que, para que aquele soldado se tornasse para sempre feliz, recompensado e destacado de todos no mundo, bastava que a mão dele, Napoleão, se dignasse a tocar uma vez no peito do soldado. Napoleão apenas colocou a cruz no peito de Lázariev e, ao baixar a mão, voltou-se para Alexandre, como se soubesse que a cruz tinha de aderir ao peito de Lázariev. A cruz de fato aderiu, porque mãos obsequiosas, russas e francesas, imediatamente agarraram a cruz e a fixaram no uniforme. Lázariev, com ar sombrio, olhou para o homem pequeno, de mãos brancas, que havia feito algo diante dele e, continuando imóvel, em posição de apresentar armas, voltou a olhar direto para os olhos de Alexandre, como se perguntasse a Alexandre: devia continuar ali parado, ou agora lhe ordenavam que fosse embora, ou quem sabe devia fazer outra coisa? Mas não lhe deram ordem nenhuma, e Lázariev permaneceu bastante tempo imóvel, naquela posição.
Os soberanos montaram em seus cavalos e foram embora. Os soldados do regimento de Preobrajénski desfizeram as fileiras, misturaram-se com os franceses da guarda e sentaram-se às mesas preparadas para eles.
Lázariev sentou-se no lugar de honra; oficiais russos e franceses o abraçavam, cumprimentavam, apertavam suas mãos. Multidões de oficiais e de civis se aproximaram só para ver Lázariev. Um rumor de falas, em russo e em francês, e também de risos pairava na praça, em redor das mesas. Dois oficiais de rostos avermelhados, alegres e felizes, passaram por Rostóv.
— Que banquete, hein, irmão... tudo na prataria — disse um. — Viu o Lázariev?
— Vi.
— Dizem que amanhã são os soldados de Preobrajénski que vão oferecer um jantar para eles.
— Imagina! Mas que sorte teve o Lázariev! Uma pensão vitalícia de mil e duzentos francos.67
— Olhem só que chapéu, pessoal! — gritou um soldado de Preobrajénski que usava um chapéu francês peludo.
— Que maravilha, uma beleza!
— Já soube qual é a contrassenha? — perguntou um oficial da guarda para o outro. — Anteontem foi Napoléon, France, bravoure, ontem foi Alexandre, Russie, grandeur,68 um dia é o nosso soberano que dá a contrassenha, no outro, é Napoleão. Amanhã o soberano vai dar uma medalha de São Jorge ao mais corajoso dos soldados da guarda francesa. Não tem jeito! Tem de responder da mesma forma.
Boris e o seu camarada Jilínski também vieram presenciar o banquete do regimento de Preobrajénski. Ao virar-se para trás, Boris notou Rostóv, parado junto ao canto de uma casa.
— Rostóv! Como vai? Nós mal chegamos a nos ver — disse, e não conseguiu se conter e deixar de perguntar o que havia com ele, tão estranhas e soturnas estavam as feições de Rostóv.
— Nada, nada — respondeu.
— Você vai à minha casa?
— Vou, sim.
Rostóv ficou muito tempo parado, junto ao canto da casa, olhando de longe os comensais. Na sua cabeça, passava-se um trabalho torturante, que ele não conseguia levar ao fim. Dúvidas terríveis erguiam-se na sua alma. Ora lembrava-se de Deníssov, com a sua expressão alterada, com a sua submissão, e do hospital inteiro, com aqueles braços e pernas amputados, com a imundície e as doenças. Rostóv teve uma impressão tão nítida de que estava sentindo agora o cheiro de carne morta do hospital que olhou para trás para entender de onde poderia vir o cheiro. Ora se lembrava de Bonaparte, cheio de si, com a sua mão branca, que agora era um imperador a quem o imperador Alexandre amava e respeitava. Para que tinham sido amputados os braços e as pernas, para que as pessoas tinham sido mortas? Ora se lembrava de Lázariev, condecorado, e de Deníssov, castigado e sem perdão. Rostóv se viu diante de pensamentos tão estranhos que teve medo deles.
O cheiro da comida dos soldados de Preobrajénski e a fome fizeram-no sair daquele estado: tinha de comer alguma coisa, antes de ir embora. Foi a um hotel que tinha visto naquela manhã. No hotel, deparou com tanta gente e tantos oficiais que, como ele, tinham vindo em roupas civis que só a muito custo Rostóv conseguiu jantar. Dois oficiais da mesma divisão que ele se aproximaram. A conversa, naturalmente, tratou do acordo de paz. Os oficiais, camaradas de Rostóv, a exemplo da maior parte do Exército, estavam descontentes com a paz selada após a batalha de Friedland. Diziam que, se os russos tivessem resistido mais um pouco, Napoleão estaria perdido, que suas tropas não tinham pão seco, nem munições tinham mais. Nikolai comia em silêncio e, sobretudo, bebia. Tomou duas garrafas de vinho. O trabalho que se processava em sua mente não parava de torturá-lo, sem chegar a uma conclusão. Rostóv temia exprimir seus pensamentos e não conseguia se desvencilhar deles. De repente, a uma palavra de um dos oficiais, para quem era uma humilhação olhar para os franceses, Rostóv começou a gritar com uma fúria que nada justificava e que, por isso, surpreendeu muito os dois oficiais.
— E como vocês podem julgar o que era melhor?! — desatou a gritar, com o rosto de repente vermelho. — Como vocês podem julgar os atos do soberano, que direito nós temos de entender?! Não podemos compreender nem os objetivos nem os atos do soberano!
— Mas eu não falei nenhuma palavra sobre o soberano — justificou-se o oficial, que não conseguia explicar o arrebatamento de Rostóv senão por estar bêbado.
Mas Rostóv não lhe deu ouvidos.
— Nós não somos funcionários diplomáticos, somos soldados e mais nada — prosseguiu. — Eles nos mandam morrer, e nós morremos. Se nos castigam, quer dizer que somos culpados; não cabe a nós julgar nada. Se convém ao soberano imperador reconhecer Bonaparte como imperador e selar um acordo de paz com ele, quer dizer que isso é necessário. Se nós começarmos a querer julgar e discutir tudo, aí não vai restar mais nada de sagrado. Aí vamos dizer que Deus não existe, que não existe nada — gritou Nikolai, esmurrando a mesa, falando de modo totalmente despropositado, na opinião dos seus interlocutores, mas totalmente coerente com o curso dos próprios pensamentos. — Nossa tarefa é cumprir o nosso dever, combater e não pensar, só isso — concluiu.
— E beber — disse um dos oficiais, que não queria discutir.
— Sim, e beber — concordou Nikolai. — Ei, você! Mais uma garrafa! — gritou.
1 Tipo de bordado tradicional da região de Torjók.
2 Adelaide Filleul de Souza-Botelho (1761-1836) era uma escritora francesa, esposa do embaixador português na Rússia e popular no país no início do século XIX. Mas o romance Amélie Mansfield (1803) é de Sophie Cottin (1770-1807).
3 O copo virado para baixo indicava que o criado não queria mais chá. Também havia o costume de mordiscar o torrão de açúcar, em vez de dissolvê-lo no chá.
4 Tolstói baseou o personagem Bazdiéiev na figura histórica de I. A. Pozdiéiev, líder maçom em Moscou. Martinistas eram os maçons seguidores de Martinez Pasqually (século XVIII). Nikolai Ivánovitch Novíkov (1744-1818) foi um famoso militante maçom, dedicado sobretudo a atividades educacionais. Preso em 1792, foi solto em 1796. A maçonaria estava bastante difundida na Rússia no início do século XIX e, desde o século anterior, atraía jovens nobres com aspirações de liberdades políticas. Foi reprimida por Catarina I e floresceu sob Alexandre I. Porém, Nicolau I (que reinou de 1825 a 1855), temeroso de sociedades secretas, perseguiu a maçonaria até a sua extinção.
5 Tomás de Kempis (c. 1380-1471) foi um monge e escritor alemão, autor de Imitação de Cristo, tratado religioso que explora o mundo interior e o valor da contemplação.
6 Francês: “fraternidade”.
7 Latim: “Assim caminha a glória do mundo”.
8 Apelido de Hélène.
9 Referência à parábola do filho pródigo (Lc 15,23). O pai manda matar um novilho cevado para celebrar a volta do filho.
10 Francês: “Um cérebro perturbado... Eu sempre disse”.
11 Francês: “a nata da verdadeira boa sociedade, a fina flor da essência intelectual da sociedade de Petersburgo”.
12 Francês: “um homem de muito mérito”.
13 Francês: “Foi você quem quis, George Dandin”. Da peça George Dandin, ou o marido confundido, de Molière. Conta a história de um camponês rico que compra um título de nobreza e toma uma jovem aristocrata em casamento. Ela, no entanto, não se sujeita ao marido e é cortejada por um libertino da corte.
14 Francês: “O príncipe Hippolyte Kuráguin... um jovem encantador. O senhor Kroug, diplomata de Copenhague... um espírito profundo [...] Senhor Shittoff, um homem de muito mérito”.
15 Francês: “‘Viena acha as bases do tratado proposto tão inviáveis que nem mesmo com uma série de êxitos espetaculares seria possível realizá-las, e põe em dúvida os meios pelos quais se poderia alcançá-las.’ É a frase textual do gabinete de Viena”. Referência ao Tratado de Bartenstein. Na verdade, as conversações para esse tratado só ocorreram mais tarde, em abril de 1807.
16 Francês: “diplomata”.
17 Francês: “A dúvida é que é lisonjeira!”.
18 Francês: “o homem de espírito profundo”.
19 Francês: “É preciso distinguir o gabinete de Viena do imperador da Áustria [...] O imperador da Áustria nunca foi capaz de pensar numa coisa semelhante, é só o gabinete que o diz”.
20 Francês: “Eh, meu caro visconde [...] a Europa [...] a Europa nunca será nossa aliada sincera”.
21 Fortaleza prussiana situada no rio Oder.
22 Francês: “É absolutamente necessário que o senhor venha me visitar [...] Terça-feira, entre oito e nove horas. O senhor me dará um grande prazer”.
23 Francês: “É a espada de Frederico, o Grande, que eu...”.
24 Francês: “Vamos, o que o senhor tem a ver com o rei da Prússia?”.
25 Francês: “Não, eu só queria dizer que... [...] Eu só queria dizer que agimos de forma errada ao fazer a guerra pelo rei da Prússia”. Em francês, “pour le roi de Prusse” [pelo rei da Prússia] é uma expressão e significa “por uma ninharia”.
26 Francês: “É muito malvado o seu jogo de palavras, muito espirituoso, mas injusto... [...] Nós não estamos fazendo a guerra pelo rei da Prússia, mas pelos bons princípios. Ah, como é maldoso, esse príncipe Hippolyte!”.
27 Francês: “Queira desculpar, uma tabaqueira com um retrato do imperador é uma recompensa, mas não é uma distinção [...] é antes um presente”.
28 Francês: “Há muitos antecedentes, posso citar o caso de Schwarzenberg”.
29 Francês: “É impossível”.
30 Francês: “A grande condecoração é diferente...”.
31 Francês: “Venha jantar amanhã à noite. É preciso que o senhor venha... Venha”.
32 Francês: “discrição”.
33 Francês: “Desde os nossos grandes êxitos em Austerlitz, o senhor sabe, meu caro príncipe [...] que eu não mais me afasto dos quartéis-generais. Decididamente, tomei gosto pela guerra, e por mim está muito bem assim. O que vi nesses três anos é inacreditável.
“Começo ab ovo. O inimigo da espécie humana, como o senhor sabe, ataca os prussianos. Os prussianos são nossos fiéis aliados, que só nos enganaram três vezes, em três anos. Fizemos nossa a causa deles. Mas acontece que o inimigo da espécie humana não dá a menor atenção aos nossos discursos bonitos e, com a sua maneira mal-educada e selvagem, se lança contra os prussianos sem lhes dar tempo de terminar a parada que haviam começado e, num piscar de olhos, faz deles picadinho e vai instalar-se no palácio de Potsdam.
“‘Tenho o mais vivo desejo’, escreve o rei da Prússia para Bonaparte, ‘que V. M. seja recebido e tratado em meu palácio de uma forma que lhe seja agradável e foi com presteza que, para tal fim, tomei todas as providências que as circunstâncias me permitiam. Deus queira que eu tenha conseguido!’ Os generais prussianos se esmeram em gentilezas em relação aos franceses e baixam as armas diante das primeiras intimações.
“O comandante da guarnição de Glogau, com dez mil homens, pergunta ao rei da Prússia o que deve fazer, no caso de ser intimado a render-se... Tudo isso são fatos concretos.
“Em suma, na esperança de nos impor somente com a nossa atitude militar, eis-nos agora em guerra total, e, o pior, em guerra nas nossas fronteiras, com e pelo rei da Prússia. Tudo está pronto, só nos falta uma coisinha: é o general em chefe. Como se constatou que os êxitos de Austerlitz poderiam ter sido mais decisivos se o general em chefe fosse menos jovem, passaram em revista os octogenários e, entre Prozoróvski e Kamiénski, deu-se preferência a este último. O general nos chega em kibítka [carroça coberta], à maneira de Suvórov, e é recebido com aclamações de alegria e de triunfo.
“No dia 4 chega o primeiro correio de Petersburgo. Transportam as malas para o gabinete do marechal, que adora fazer tudo sozinho. Sou chamado para ajudar a fazer a triagem das cartas e pegar aquelas que nos são destinadas. O marechal nos observa trabalhar e aguarda a correspondência a ele endereçada. Nós procuramos — não há nenhuma. O marechal fica impaciente, atira-se ele mesmo ao trabalho e encontra cartas do imperador para o conde T., para o príncipe V., e outros. Então ele tem um de seus ataques de cólera. Cospe fogo contra todo mundo, apodera-se das cartas, abre e lê as cartas do imperador destinadas a outras pessoas [...] E escreve a famosa ordem do dia para o general Bennigsen.
“[...] escreve ele ao imperador [...]
“O marechal se zangou com o imperador e nos castiga a todos; não é perfeitamente lógico?
“Esse é o primeiro ato. Nos atos seguintes, o interesse e o ridículo aumentam, como é justo. Depois da partida do marechal, constata-se que estamos à vista do inimigo e que é necessário travar batalha. Buxhöwden é o general em chefe por direito de antiguidade, mas o general Bennigsen não pensa assim; tanto mais que são ele e o seu contingente de campanha que estão à vista do inimigo, e ele tenciona tirar proveito da oportunidade de uma batalha ‘aus eigener Hand’ [com as próprias mãos], como dizem os alemães. E assim faz. É a batalha de Pultusk, classificada como uma grande vitória, mas que, a meu ver, não o é de maneira alguma. Nós, civis, como o senhor sabe, temos o hábito detestável de decidir se uma batalha foi perdida ou ganha. Aquele que se retirou depois da batalha perdeu-a, eis o que dizemos, e nesse caso perdemos a batalha de Pultusk. Numa palavra, batemos em retirada após a batalha, mas enviamos um mensageiro para Petersburgo, levando notícias de uma vitória, e o general não cede o comando geral para Buxhöwden, esperando receber de Petersburgo, em sinal de reconhecimento por sua vitória, o título de general em chefe. Durante esse interregno, damos início a um plano de manobras deveras interessante e original. Nosso objetivo não consiste, como deveria ser, em evitar ou atacar o inimigo; mas unicamente em evitar o general Buxhöwden, que por direito de antiguidade será o nosso chefe. Perseguimos esse objetivo com tamanha energia que, mesmo tendo cruzado um rio que não se pode atravessar a pé, queimamos as pontes a fim de nos manter separados do nosso inimigo, que, por ora, não é Bonaparte, mas Buxhöwden. O general Buxhöwden escapou de ser atacado e capturado pelas forças inimigas, superiores às dele, graças a uma de nossas belas manobras para nos salvar de Buxhöwden. O general Buxhöwden nos persegue — nós escapulimos. Mal ele passa para a nossa margem do rio, nós passamos de novo para a margem oposta. Ao fim, o nosso inimigo Buxhöwden nos apanha de emboscada e nos ataca. Os dois generais se irritam. Chega a haver uma provocação para um duelo da parte de Buxhöwden e um ataque de epilepsia da parte de Bennigsen. Porém, no momento crítico, o mensageiro que leva a notícia da nossa vitória de Pultusk nos traz de Petersburgo a nomeação do nosso general em chefe, e o primeiro inimigo, Buxhöwden, leva a pior: podemos pensar no segundo, Bonaparte. Mas acontece que exatamente nesse momento se ergue à nossa frente um terceiro inimigo: o exército ortodoxo, que a grandes brados exige pão, carne, sucharí [torradas], feno, sei lá o quê! As lojas estão vazias, as estradas, intransitáveis. O exército ortodoxo parte para a pilhagem, e de uma forma que a última campanha não pode dar ao senhor a mais pálida ideia. Metade dos regimentos forma um bando sem lei, que percorre os campos e tudo massacra e incendeia. Os habitantes são deixados em completa ruína, os hospitais regurgitam de enfermos, e a penúria reina em toda parte. Duas vezes o quartel-general foi atacado por bandos de saqueadores, e o general em chefe foi obrigado a pedir, ele mesmo, um batalhão para dispersá-los. Num desses ataques, levaram minha mala vazia e o meu robe. O imperador quer dar a todos os chefes de divisão o direito de fuzilar os saqueadores, mas receio muito que isso obrigue metade do exército a fuzilar a outra metade.”
34 Organização patrocinada pela família do tsar que cuidava de escolas, orfanatos, asilos de idosos, cegos, surdos etc. Essas instituições se mantinham, em parte, graças a doações.
35 O pão e o sal são símbolos tradicionais de boas-vindas na Rússia.
36 Na Rússia, celebram-se São Pedro e São Paulo no mesmo dia. Pierre (Pedro), portanto, tinha ambos como padroeiros.
37 Francês: “Na vida, só conheço dois males bem reais: o remorso e a doença. Não existe outro bem que não a ausência desses dois males”.
38 Representante oficial da nobreza em um determinado distrito.
39 Francês: “mas não é como o senhor está entendendo”.
40 O senhor de terras podia banir seus servos para a Sibéria, onde era costume raspar metade do cabelo dos condenados, para que fossem identificados, caso fugissem.
41 Johann Gottfried von Herder (1744-1803), escritor e filósofo alemão.
42 Francês: “É curioso, palavra de honra”.
43 Francês: “O que vem a ser esse?”.
44 Francês: “Andrei, por que não me avisou?”.
45 Francês: “Encantada de ver o senhor. Estou muito contente de ver o senhor”.
46 Francês: “É preciso que o senhor saiba que se trata de uma mulher”.
47 Francês: “Andrei, pelo amor de Deus!”.
48 Francês: “Mas, minha cara amiga [...] a senhora, ao contrário, deveria ser grata a mim por eu explicar ao Pierre a sua intimidade com esse jovem”.
49 Francês: “É verdade?”.
50 Mendigo tido pelos crentes como um louco divino.
51 Ela quis dizer “general”.
52 Francês: “Princesa, palavra de honra, eu não quis ofender”.
53 Contos populares.
54 Na sváika, era preciso acertar um grande prego numa argola que jazia sobre a terra. No goródki, era peciso lançar bastões de madeira e acertar um pequeno alvo, formado por outros bastões, sobre o chão.
55 Em metros, as dimensões citadas aqui são: 1,06 de largura, 1,42 de profundidade e 2,48 de comprimento.
56 Francês: “Eu gostaria de ver o grande homem”.
57 Francês: “O senhor se refere a Buonaparte?”.
58 Francês: “Meu príncipe, estou falando do imperador Napoleão”.
59 Francês: “Estarei à sua disposição num minuto”.
60 Francês: “Bem-feita e de uma beleza diabólica”.
61 Francês: “O que é?”.
62 Francês: “Mais um peticionário”.
63 Francês: “Legião de Honra”.
64 Francês: “Senhor, peço permissão para conceder a Legião de Honra ao mais corajoso dos seus soldados”.
65 Francês: “Àquele que se portou com mais valentia nesta última guerra”.
66 Francês: “Vossa majestade permitirá que eu peça a opinião do coronel”.
67 A medalha da Legião de Honra dava direito automático a essa pensão.
68 Francês: “Napoleão, França, bravura [...] Alexandre, Rússia, grandeza”.
I
No ano de 1808, o imperador Alexandre foi a Erfurt para mais um encontro com Napoleão, e na alta sociedade de Petersburgo falava-se muito sobre a grandiosidade daquele encontro solene.
No ano de 1809, a proximidade entre os dois potentados do mundo, como eram chamados Napoleão e Alexandre, chegou a tal ponto que, quando Napoleão declarou guerra contra a Áustria, nesse ano, tropas russas partiram para o exterior a fim de ajudar o seu inimigo de antes, Bonaparte, contra o aliado de antes, o imperador austríaco, e na alta sociedade comentava-se um possível casamento entre Napoleão e uma das irmãs do imperador Alexandre. No entanto, além das razões políticas externas, daquela vez a atenção da sociedade russa estava voltada, com especial vivacidade, para as reformas internas, que se produziam naquela ocasião em todos os setores da administração do Estado.
A vida, entretanto, a vida real das pessoas, com seus interesses básicos, como a saúde, a doença, o trabalho, o repouso, com seus interesses no pensamento, na ciência, na poesia, na música, no amor, na amizade, na inveja, nas paixões, seguia como sempre, independente, alheia à proximidade ou à hostilidade política em relação a Napoleão Bonaparte e alheia a todas as possíveis reformas.
O príncipe Andrei viveu dois anos no campo, sem sair de lá. Todos os empreendimentos que Pierre havia tentado implementar nas suas propriedades, sem nenhum resultado, pois toda hora passava de um a outro, aqueles empreendimentos foram todos realizados pelo príncipe Andrei, sem que ele falasse do assunto com quem quer que fosse e sem aparente dificuldade.
O príncipe Andrei possuía, em alto grau, a tenacidade prática que tanta falta fazia a Pierre e que, sem esforço nem ansiedade por parte do príncipe Andrei, punha seus projetos em movimento.
Numa de suas propriedades, com trezentas almas,1 os camponeses foram transferidos para a condição de agricultores livres2 (foi um dos primeiros exemplos na Rússia); em outras propriedades, a corveia foi transformada em um tributo pago ao senhor de terras. Em Bogutchárovo, às expensas dele, uma parteira experiente foi contratada para ajudar as gestantes, e um sacerdote recebia um ordenado para alfabetizar os filhos dos camponeses e dos criados.
O príncipe Andrei passava metade do tempo em Montes Calvos, com o pai e o filho, que ainda estava sob os cuidados de babás; na outra metade do tempo, ficava no monastério de Bogutchárovo, como o pai chamava a aldeia do príncipe Andrei. Apesar da indiferença que havia demonstrado a Pierre em relação a todos os eventos do mundo exterior, o príncipe Andrei os acompanhava com afinco, recebia muitos livros e, para a própria surpresa, quando chegavam visitas para ele ou para o pai, vindas diretamente de Petersburgo, o próprio redemoinho da vida, o príncipe Andrei notava que aquelas pessoas, no que dizia respeito a tudo o que ocorria na política externa e interna, sabiam muito menos do que ele, que jamais saía do campo.
Além dos afazeres das propriedades, além da leitura dos livros mais variados, o príncipe Andrei se ocupava com a análise crítica das nossas duas últimas campanhas militares malsucedidas e com a elaboração de um projeto de mudança dos nossos regulamentos e estatutos militares.
Na primavera de 1809, o príncipe Andrei foi para as propriedades de Riazan, que pertenciam ao seu filho, de quem era tutor.
Aquecido pelo sol da primavera, sentado na carruagem, olhava para o primeiro capim, para as primeiras folhas das bétulas e para os primeiros rolos de nuvens brancas da primavera, que corriam pelo céu brilhante e azulado. Não pensava em nada, mas olhava para os lados, alegre e distraído.
Fez a travessia de balsa, onde um ano antes havia conversado com Pierre. Passou por uma aldeia imunda, por estábulos, por campos de cereais de inverno, por uma encosta com um resto de neve perto de uma ponte, por uma subida de barro erodido pelas águas, por faixas de restolhos e por arbustos que verdejavam aqui e ali, e entrou numa floresta de bétulas que se erguia dos dois lados da estrada. Dentro da floresta, quase fazia calor, não se ouvia o vento. As bétulas, salpicadas de folhas verdes e viscosas, não se mexiam, e, sobre a terra, por baixo das folhas do ano anterior, levantando-as, despontavam a primeira relva verde e flores lilases. Espalhados aqui e ali pelo bosque de bétulas, pinheiros miúdos, com a sua permanente e rude cor verde, faziam lembrar o inverno de modo desagradável. Os cavalos passaram a bufar, ao penetrar na floresta, e começaram a suar visivelmente.
O lacaio Piotr disse algo para o cocheiro, o cocheiro respondeu que sim. Mas era evidente que o apoio do cocheiro era pouco para Piotr: ele voltou-se na boleia para o patrão.
— Vossa excelência, que bom! — disse, sorrindo com respeito.
— O quê?
— Que bom, vossa excelência.
“Do que ele está falando?”, pensou o príncipe Andrei. “É sobre a primavera, sem dúvida”, pensou, olhando para os lados. “Puxa, tudo já está verde... Que rapidez! As bétulas, as cerejeiras, os amieiros já começaram... Mas os carvalhos ainda não aparecem. Mas olhe, lá está ele, um carvalho.”
Na beira da estrada, havia um carvalho. Provavelmente dez vezes mais velho do que as bétulas que formavam o bosque, ele era também dez vezes mais grosso e duas vezes mais alto do que todas as bétulas. Era um carvalho enorme, seriam necessárias duas pessoas para abraçá-lo, e era evidente que, muito tempo antes, alguns galhos tinham sido quebrados, e sua casca estava lascada com cicatrizes de feridas antigas. Com as mãos e os dedos imensos muito abertos, retorcidos, desajeitados, assimétricos, ele se erguia no meio das bétulas sorridentes como um velho monstro irritado e desdenhoso. Só ele não queria se render ao encanto da primavera e não queria ver nem a primavera nem o sol.
“Primavera, amor, felicidade!”, parecia dizer o carvalho. “Como vocês podem não estar fartos dessa ilusão tola, absurda e sempre repetida? A mesma coisa, sempre, e sempre a mesma ilusão! Não existe primavera, não existe sol, não existe felicidade. Olhem lá, onde estão os pinheiros sufocados, mortos, sempre sozinhos, e olhem também para mim, eu arreganho os meus dedos quebrados, esfolados, onde quer que eles cresçam, nas costas, nos flancos. Do jeito que eles crescem, assim eu fico, e não acredito nas esperanças e ilusões de vocês.”
O príncipe Andrei virou-se várias vezes para olhar aquele carvalho, enquanto passava pelo bosque, como se esperasse dele alguma coisa. Havia flores e relva também ao pé do carvalho, mas ele fechava a cara e continuava imóvel no meio delas, monstruoso e obstinado.
“Sim, ele tem razão, esse carvalho tem mil vezes razão”, pensou o príncipe Andrei. “Outros, mais jovens, até podem ceder mais uma vez a essa ilusão, mas nós sabemos que a vida, a nossa vida, está acabada!” Toda uma sequência nova de pensamentos desesperados, mas melancolicamente agradáveis, relacionados com aquele carvalho, acudiram ao espírito do príncipe Andrei. Durante aquela viagem, ele pareceu refletir de novo sobre toda a sua vida e chegou à mesma conclusão, tranquilizadora e sem esperanças, de que ele não precisava começar nada, de que devia apenas tocar o resto da vida sem praticar o mal, sem se inquietar e sem desejar nada.
II
Por causa de questões relativas à tutela da propriedade de Riazan, o príncipe Andrei teve de encontrar-se com o decano da nobreza do distrito. O decano da nobreza era o conde Iliá Andréievitch Rostóv, e o príncipe Andrei, no meio do mês de maio, foi à casa dele.
A primavera já estava numa fase quente. O bosque já estava todo vestido de folhas, havia poeira e fazia tanto calor que, quando se passava perto da água, dava vontade de banhar-se.
O príncipe Andrei, tristonho e preocupado com as considerações e com as questões sobre as quais teria de indagar ao decano da nobreza, avançava pela alameda do jardim da casa dos Rostóv, em Otrádnoie. À direita das árvores, ouviu um grito alegre de mulher e avistou um bando de moças que corriam e atravessavam o caminho da sua carruagem. À frente das outras, mais perto, veio na direção da carruagem uma jovem de cabelo preto, muito franzina, estranhamente franzina, num vestido de chita amarelo, com um lenço branco amarrado na cabeça, por baixo do qual escapavam mechas dos cabelos penteados. A mocinha gritava alguma coisa, mas, ao avistar o estranho, correu para trás, rindo e sem olhar mais para ele.
O príncipe Andrei, de repente, por algum motivo, sentiu uma dor. O dia estava tão bonito, o sol estava tão brilhante, tudo em volta era tão alegre; mas aquela moça franzina e bonitinha não sabia e não queria saber da existência dele, e estava satisfeita e feliz com a sua vida isolada, certamente tola, porém alegre e feliz. “Por que está tão alegre? Em que está pensando? Não é sobre os regulamentos militares, nem sobre o regime de tributação dos servos na propriedade de Riazan. No que ela está pensando? Com o que ela está tão feliz?”, não podia deixar de se perguntar o príncipe Andrei, com curiosidade.
No ano de 1809, o conde Iliá Andreitch vivia em Otrádnoie da mesma forma que antes, ou seja, mantendo quase toda a província ocupada com caçadas, apresentações teatrais, jantares e música. Como ocorria com todos os novos visitantes, ele ficou feliz com a chegada do príncipe Andrei e, quase à força, o fez pernoitar em sua casa.
Ao longo do dia maçante em que o príncipe Andrei foi alvo das atenções constantes dos velhos anfitriões e de seus convidados mais respeitáveis, dos quais a casa do velho conde estava repleta por causa de um aniversário que se aproximava, Bolkónski, enquanto olhava diversas vezes para Natacha, que ria por algum motivo e se divertia entre a outra metade dos presentes, os jovens, não parava de se perguntar: “No que ela está pensando? Com o que está tão alegre?”.
À noite, ao se ver sozinho num local novo, o príncipe Andrei ficou muito tempo sem conseguir pegar no sono. Leu, depois apagou a vela e acendeu-a de novo. No quarto, com os contraventos das janelas fechados por dentro, fazia calor. O príncipe Andrei estava aborrecido com aquele velho tolo (assim chamava Rostóv), que o retinha em sua casa, assegurando que os documentos necessários ainda não tinham sido trazidos da cidade, e estava aborrecido consigo mesmo, por ter ficado ali.
O príncipe Andrei levantou-se e aproximou-se da janela para abri-la. Assim que abriu os contraventos, o luar, como se já estivesse de sobreaviso havia muito tempo, aguardando junto à janela, irrompeu para dentro do quarto. Ele abriu totalmente a janela. A noite estava fresca, imóvel e clara. Bem em frente à janela, havia uma fileira de árvores podadas, negras de um lado e prateadas de luz do outro. Ao pé das árvores, havia uma vegetação viçosa, molhada, densa, com folhas e hastes prateadas aqui e ali. Adiante, atrás das árvores negras, havia uma espécie de telhado, que reluzia com o orvalho; à direita, uma grande árvore frondosa, com o tronco e os galhos brancos e brilhantes, e acima dela, a lua quase cheia no céu luminoso da primavera, quase sem estrelas. O príncipe Andrei apoiou os cotovelos na janela, e seus olhos detiveram-se naquele céu.
O quarto do príncipe Andrei ficava no andar do meio; em quartos em cima do dele também estavam acordados. Ouviu uma conversa de mulheres no andar de cima.
— Só mais uma vez — disse uma voz de mulher, que o príncipe Andrei logo reconheceu.
— Mas quando é que você vai dormir? — retrucou outra voz.
— Não vou dormir, não consigo dormir, o que eu posso fazer? Vamos, só mais uma vez...
Duas vozes de mulher cantaram uma frase melódica, que formava o fecho de alguma música.
— Ah, que bonito! Mas agora vamos dormir, e está acabado.
— Você vai dormir, eu não posso — respondeu a primeira voz, que se aproximou da janela. Pelo visto, ela estava bastante debruçada para fora da janela, pois se ouvia o rumor da sua roupa e até a respiração. Tudo ficou em silêncio, imóvel, como a lua, o luar e as sombras. O príncipe Andrei também temia se mexer, para não revelar a sua presença involuntária.
— Sônia! Sônia! — ouviu-se de novo a primeira voz. — Puxa, como é possível alguém dormir? Olhe só que beleza! Ah, mas que beleza! Vamos, acorde, Sônia — disse, quase com lágrimas na voz. — Uma noite tão linda como esta nunca houve, nunca.
Sônia respondeu algo, a contragosto.
— Não, venha ver, que lua!... Ah, mas que beleza! Vamos, venha cá. Minha querida, minha adoradinha, venha cá. Pronto, está vendo? Dá vontade de ficar de cócoras, assim, olhe, e apertar os joelhos com os braços... mais forte, o mais forte que a gente conseguir, tem de fazer muita força mesmo... e aí, sair voando. Assim, olhe!
— Chega, olhe que você vai cair.
Ouviu-se uma briga, e a voz descontente de Sônia:
— Já passa da uma hora.
— Ah, você sempre estraga tudo. Está bem, vá, vá logo.
De novo, tudo ficou em silêncio, mas o príncipe Andrei sabia que ela continuava sentada ali, ouvia às vezes um ligeiro rumor de pano, outras vezes, suspiros.
— Ah, meu Deus! Meu Deus! Mas que coisa! — exclamou ela de repente. — Se é para dormir, vamos dormir, então! — E fechou bruscamente a janela.
“E nem se dá conta da minha existência!”, pensava o príncipe Andrei, enquanto ouvia a voz dela, esperando e temendo, por algum motivo, que falasse algo sobre ele. “Lá está ela outra vez! Parece de propósito!”, pensava. No seu espírito, levantou-se de repente uma tal barafunda inesperada de pensamentos e de esperanças joviais, em contradição com toda a sua vida, que ele, sentindo-se incapaz de esclarecer a sua situação, pegou no sono imediatamente.
III
No dia seguinte, após se despedir apenas do conde, sem esperar a saída das damas, o príncipe Andrei partiu para casa.
Junho já havia começado quando o príncipe Andrei, na viagem de volta, entrou de novo no bosque de bétulas onde o velho carvalho retorcido o havia impressionado de modo tão estranho e memorável. Na floresta, os guizos da carruagem ressoavam ainda mais abafados do que um mês antes; tudo estava cheio, sombreado, denso; os pinheiros jovens, espalhados pela floresta, não perturbavam a beleza geral e, adaptando-se ao caráter de tudo, verdejavam de forma delicada com os jovens brotos felpudos.
Fez calor o dia inteiro, em algum lugar se formava uma tempestade, mas só uma nuvenzinha pequena borrifou as folhas viçosas e a poeira da estrada. O lado esquerdo da floresta estava escuro, na sombra; o lado direito, molhado, lustroso, reluzia ao sol, oscilava bem de leve com o vento. Tudo estava em flor; os rouxinóis piavam e passavam voando, ora perto, ora longe.
“Sim, aqui, nesta floresta, estava o carvalho com o qual eu concordei”, pensou o príncipe Andrei. “Onde está ele?”, pensou de novo, olhando para o lado esquerdo da estrada e, sem se dar conta, sem reconhecê-lo, contemplava com admiração o mesmo carvalho que estava procurando. Totalmente transfigurado, o velho carvalho abria os braços das folhagens viçosas e escuras, como um pavilhão, entorpecia-se lânguido aos raios do sol da tarde, balançando muito de leve. Não havia dedos retorcidos, nem feridas, nem o velho desgosto, nem a desconfiança — nada disso era visível. Através da casca centenária, áspera, sem raminhos, brotavam folhas jovens, viçosas, de tal modo que era quase impossível acreditar que aquele velho as havia gerado. “Sim, é o mesmo carvalho”, pensou o príncipe Andrei, e de repente lhe veio um sentimento gratuito e primaveril de alegria e de renovação. Os minutos mais marcantes de sua vida, de repente, vieram à sua memória ao mesmo tempo. Austerlitz, com o céu alto, o rosto de censura da esposa morta, Pierre na balsa, a mocinha emocionada com a beleza da noite, aquela noite, a lua — tudo isso lhe veio à memória de repente.
“Não, a vida não está acabada aos trinta e um anos”, resolveu de repente o príncipe Andrei, de modo conclusivo, categórico. “Não basta que eu conheça tudo o que existe dentro de mim, é preciso que todos também o conheçam: Pierre, aquela moça que queria sair voando, é preciso que todos me conheçam, para que a minha vida não sirva só para mim, para que eles não vivam como aquela moça, alheios à minha vida, para que a minha vida se reflita em todos eles e para que todos vivam junto comigo!”
De volta daquela viagem, o príncipe Andrei resolveu ir a Petersburgo no outono e inventou diversos motivos para tal decisão. Toda uma série de argumentos racionais, lógicos, em favor da necessidade de ir a Petersburgo, e até de servir no Exército, estavam prontos a socorrê-lo a todo momento. Agora, ele nem mesmo compreendia como, alguma vez, tinha sido capaz de duvidar da necessidade de participar ativamente da vida, assim como um mês antes ele não compreendia como a ideia de sair do campo poderia ainda passar pela sua cabeça. Parecia-lhe claro que todas as suas experiências de vida acabariam sendo em vão e sem sentido, se ele não as aplicasse na prática e se não participasse ativamente da vida outra vez. Ele nem mesmo compreendia como era possível que antes, com base naqueles pobres argumentos racionais, lhe parecera muito claro que ele se humilharia, caso acreditasse de novo na possibilidade de ser útil e na possibilidade da felicidade e do amor, depois das lições que a vida lhe dera. Agora, a razão sugeria algo totalmente distinto. Depois daquela viagem, o príncipe Andrei passou a se aborrecer no campo, as ocupações anteriores não lhe interessavam e, muitas vezes, sozinho no escritório, ele se levantava, ia até o espelho e mirava o seu rosto por muito tempo. Em seguida, virava-se e olhava para o retrato da falecida Liza, que, com mechas de cabelo armadas à la grecque,3 o fitava, meiga e alegre, na moldura dourada. Ela já não dizia ao marido as terríveis palavras de antes, simplesmente o fitava, alegre, e com um ar curioso. E o príncipe Andrei ficava muito tempo andando pelo escritório com as mãos cruzadas nas costas, ora franzia as sobrancelhas, ora sorria, enquanto repassava na mente aqueles pensamentos irracionais, inexprimíveis em palavras, secretos como um crime, relacionados com Pierre, com a glória, com a moça na janela, com o carvalho, com a beleza feminina e com o amor, e que haviam modificado a sua vida por completo. E em tais momentos, quando alguém entrava no escritório, ele se mostrava especialmente seco, severo, resoluto e sobretudo antipaticamente lógico.
— Mon cher — dizia a princesa Mária, por exemplo, ao entrar num daqueles momentos. — O Nikóluchka não pode passear hoje: está muito frio.
— Se estivesse calor, ele iria passear só de camisa — respondia à irmã o príncipe Andrei, com especial secura, em tais momentos —, mas já que está frio é preciso que vista uma roupa quente, que foi criada exatamente para isso. Essa é a consequência do fato de estar frio, e não que ele tem de ficar em casa, quando a criança precisa de ar livre — dizia, com uma lógica exacerbada, como se estivesse punindo alguém por todo aquele trabalho interior, secreto e ilógico, que se passava nele. A princesa Mária, naquelas ocasiões, pensava em como o trabalho intelectual tornava os homens secos.
IV
O príncipe Andrei chegou a Petersburgo em agosto de 1809. Era a época do apogeu da fama do jovem Speránski e do ímpeto das reformas realizadas por ele. Naquele mesmo mês de agosto, o soberano caiu da carruagem, feriu a perna e ficou três semanas em Peterhof, reunindo-se todos os dias, e exclusivamente, com Speránski. Nessa ocasião, foram elaborados não só dois decretos famosos, que abalaram a sociedade, sobre a eliminação de cargos da corte e sobre a realização de concursos para preencher os cargos de assessor colegiado e conselheiro de Estado,4 mas também toda uma nova Constituição do Estado, que devia transformar toda a ordem judiciária, administrativa e financeira vigente na Rússia, desde o Conselho de Estado até o governo dos distritos. Naquele momento, estavam se cumprindo e tomando corpo os vagos sonhos liberais com que o imperador Alexandre subira ao trono e que ele tanto almejara realizar com a ajuda dos seus colaboradores: Czartoryski, Novossíltsev, Kotchubei e Strógonov, aos quais ele mesmo, de brincadeira, chamava de comité de salut public.5
Agora, todos eles tinham sido substituídos por Speránski, na parte civil, e por Araktchéiev, na parte militar. O príncipe Andrei, pouco depois da sua chegada, na condição de camarista, apresentou-se na corte e numa recepção. Por duas vezes, ao vê-lo, o soberano não se dignou a lhe dizer nenhuma palavra. Desde antes, o príncipe Andrei sempre tivera a impressão de que era antipático aos olhos do soberano, de que o seu rosto e toda a sua pessoa desagradavam ao soberano. No olhar seco, distante, com que o soberano o fitou, o príncipe Andrei viu, ainda mais do que antes, a confirmação daquela suposição. Os cortesãos explicavam ao príncipe Andrei que a desatenção do soberano em relação a ele decorria de sua alteza estar descontente com o fato de Bolkónski não ter mais servido no Exército desde 1805.
“Eu mesmo sei que não temos poder sobre as nossas simpatias e antipatias”, pensou o príncipe Andrei, “e por isso nem adianta pensar em apresentar pessoalmente ao soberano o meu projeto de um novo estatuto militar, o melhor é que o projeto fale por si mesmo.” Falou do seu projeto a um velho marechal de campo, amigo do seu pai. O marechal marcou uma hora com ele, recebeu-o afetuosamente e prometeu informar o soberano. Alguns dias depois, comunicaram ao príncipe Andrei que ele devia apresentar-se ao ministro da Guerra, o conde Araktchéiev.
Às nove horas da manhã do dia marcado, o príncipe Andrei se apresentou na sala de espera do gabinete do conde Araktchéiev.
O príncipe Andrei não conhecia pessoalmente o conde Araktchéiev e nunca o tinha visto, mas tudo o que sabia sobre ele lhe inspirava pouco respeito por aquela pessoa.
“Ele é o ministro da Guerra, pessoa de confiança do soberano imperador; ninguém deve pôr em questão as suas qualidades pessoais; ele foi incumbido de examinar o meu projeto, portanto só ele pode dar andamento ao projeto”, pensava o príncipe Andrei, enquanto aguardava, entre muitas pessoas importantes e desimportantes, na sala de espera do conde Araktchéiev.
O príncipe Andrei, quando serviu no Exército, boa parte do tempo como ajudante de ordens, viu muitas salas de espera de pessoas importantes e, para ele, era muito fácil distinguir os diversos tipos de salas de espera. A sala de espera do conde Araktchéiev era de um tipo completamente especial. No rosto das pessoas sem importância que, na sala de espera do conde Araktchéiev, aguardavam a sua vez de ter uma audiência, estava gravado um sentimento de vergonha e de submissão; no rosto das pessoas com um cargo mais alto, exprimia-se um sentimento geral de constrangimento, oculto por uma máscara de desembaraço e de zombaria dirigida a elas mesmas, à sua posição e também à pessoa que as fazia esperar. Alguns, com ar pensativo, andavam para lá e para cá; outros, aos cochichos, riam, e o príncipe Andrei ouviu o sobriquet “Sila Andreitch”6 e as palavras “o titio vai pôr fogo pelas ventas”, referindo-se ao conde Araktchéiev. Um general (uma pessoa importante), visivelmente ofendido com o fato de ter de esperar tanto tempo, mantinha-se sentado, toda hora mudava as pernas de lugar e sorria desdenhosamente de si mesmo.
Porém, assim que a porta se abria, em todos os rostos exprimia-se instantaneamente só uma coisa: o medo. O príncipe Andrei pediu mais uma vez ao oficial de serviço que o anunciasse, mas olharam para ele com zombaria e disseram que sua vez ia chegar na hora devida. Depois que diversas pessoas foram levadas para dentro do gabinete do ministro e trazidas para fora por um ajudante de ordens, conduziram àquela porta terrível um oficial que impressionou o príncipe Andrei por seu aspecto humilde e assustado. A audiência do oficial demorou muito. De repente, ouviu-se por trás da porta o estrondo de uma voz desagradável, e o oficial saiu de lá pálido, de lábios trêmulos, com a cabeça entre as mãos, e atravessou a sala de espera.
Logo em seguida, o príncipe Andrei foi levado até a porta, e o oficial de serviço disse, num sussurro:
— À direita, na direção da janela.
O príncipe Andrei entrou num gabinete pequeno e limpo e, à mesa, avistou um homem de uns quarenta anos, de cintura larga, cabeça comprida, cabelos bem curtos, rugas grossas, sobrancelhas franzidas acima dos olhos verde-acastanhados e embotados, e um nariz vermelho e pendente. Araktchéiev virou a cabeça para o príncipe Andrei, sem olhar para ele.
— E o senhor, o que vem pedir? — perguntou Araktchéiev.
— Eu não... venho pedir nada, vossa excelência — falou em voz baixa o príncipe Andrei. Os olhos de Araktchéiev voltaram-se para ele.
— Sente-se, príncipe Bolkónski — disse Araktchéiev.
— Não venho pedir nada, mas o soberano imperador dignou-se a encaminhar a vossa excelência um projeto enviado por mim...
— Permita que lhe diga, meu caríssimo, que li o seu projeto — interrompeu Araktchéiev, que, logo depois de falar em tom cordial as primeiras palavras, afastou o olhar outra vez do rosto do príncipe Andrei e retomou, cada vez mais, o tom rabugento e desdenhoso. — O senhor propõe novas leis militares? Há muitas leis, e ninguém para cumprir as velhas. Hoje em dia, todo mundo escreve leis, escrever é mais fácil do que cumprir.
— Eu vim, pela vontade do soberano imperador, saber de vossa excelência que rumo o senhor propõe dar ao projeto apresentado — disse o príncipe Andrei, com civilidade.
— Minha resolução foi anexada ao projeto do senhor e encaminhada ao comitê. Eu não aprovo — disse Araktchéiev, levantando-se e pegando um documento na escrivaninha. — Tome. — Entregou ao príncipe Andrei.
No papel, em diagonal, a lápis, sem letras maiúsculas, sem ortografia, sem sinais de pontuação, estava escrito: “formulado sem fundamento uma imitação copiada do estatuto militar francês se desvia sem necessidade do código militar”.
— A que comitê foi encaminhado o projeto? — perguntou o príncipe Andrei.
— Ao comitê do estatuto militar, e sugeri que vossa senhoria seja nomeado membro do comitê. Mas sem honorários.
O príncipe Andrei sorriu.
— Não desejo isso.
— Membro, sem honorários — repetiu Araktchéiev. — Foi uma honra falar com o senhor. Ei! Mande entrar! Tem mais alguém? — gritou, despedindo-se do príncipe Andrei com um meneio de cabeça.
V
Enquanto aguardava o aviso da sua nomeação como membro do comitê, o príncipe Andrei retomou seus antigos contatos, em especial com as pessoas que ele sabia que estavam no poder e podiam lhe ser úteis. Agora, em Petersburgo, ele experimentava uma sensação semelhante à que experimentava na véspera de uma batalha, quando uma curiosidade inquieta o afligia e o arrastava de modo inexorável para as esferas superiores, lá onde se preparava o futuro do qual dependia o destino de milhões. Pela irritação dos velhos, pela curiosidade dos não iniciados, pela discrição dos iniciados, pela pressa e pela preocupação de todos, pela inumerável quantidade de comitês e comissões, de cuja existência ele tomava conhecimento renovado todos os dias, o príncipe Andrei sentia que agora, no ano de 1809, preparava-se ali, em Petersburgo, uma espécie de enorme batalha civil, cujo comandante-geral era um desconhecido para ele, alguém misterioso e que lhe parecia um gênio — Speránski. Aquela reforma, que ele mesmo conhecia de modo vago, e Speránski, o seu principal agente, passaram a interessá-lo de forma tão apaixonada que a questão do estatuto militar bem depressa começou a se deslocar para um segundo plano na sua consciência.
O príncipe Andrei se achava numa das posições mais favoráveis para ser bem recebido nas esferas mais altas e variadas da sociedade de Petersburgo na época. O partido dos reformistas recebeu-o e tratou-o com cordialidade, em primeiro lugar porque o príncipe Andrei tinha reputação de homem inteligente e de grande erudição, em segundo lugar porque, ao emancipar os seus camponeses, já havia adquirido uma reputação de liberal. O partido dos velhos insatisfeitos, que condenava as reformas, o tratava com simpatia só por ser filho do velho príncipe Bolkónski. As mulheres da sociedade, o “mundo”, o recebiam de forma cordial, porque ele podia casar, era rico e nobre, além de ser quase uma nova pessoa, envolvido pelo halo da história romântica da sua morte fictícia e do fim trágico da esposa. Além disso, a opinião geral a seu respeito, de todos os que o conheciam desde antes, era que o príncipe Andrei tinha mudado muito, e para melhor, naqueles cinco anos, ficara mais brando e mais maduro, já não havia nele a afetação, o orgulho e o sarcasmo de antes, e tinha aquela tranquilidade que se adquire com os anos. Falavam a seu respeito, interessavam-se por ele, e todos queriam vê-lo.
No dia seguinte à sua visita ao conde Araktchéiev, o príncipe Andrei foi, ao anoitecer, à casa do conde Kotchubei. Contou ao conde o seu encontro com “Sila Andreitch” (Kotchubei chamava assim a Araktchéiev, com o mesmo vago tom de chacota que o príncipe Andrei havia notado na sala de espera do ministro da Guerra).
— Mon cher — disse Kotchubei. — Mesmo nesse caso, o senhor não vai escapar de Mikhail Mikháilovitch.7 C’est le grand faiseur.8 Vou falar com ele. Prometeu vir esta noite...
— O que tem Speránski a ver com as normas militares? — perguntou o príncipe Andrei.
Kotchubei, sorrindo, balançou a cabeça, como que admirado com a ingenuidade de Bolkónski.
— Eu e ele conversamos sobre o senhor há poucos dias — prosseguiu Kotchubei —, sobre os seus lavradores livres...
— Ora, então é o senhor o príncipe que libertou os seus mujiques? — disse um velho dos tempos da imperatriz Catarina, lançando um olhar de desdém para Bolkónski.
— Era uma propriedade pequena que não dava rendimento nenhum — respondeu Bolkónski, tentando atenuar as suas ações aos olhos do velho, para não irritá-lo à toa.
— Vous craignez d’être en retard 9 — disse o velho, olhando para Kotchubei. — Só não entendo uma coisa — prosseguiu o velho. — Quem vai lavrar a terra, se der liberdade a eles? É fácil escrever leis, mas governar é difícil. É igual a isto, agora, e eu lhe pergunto, conde, quem vai ser chefe da administração, se todos têm de prestar concurso?
— Aquele que passar no concurso, eu creio — respondeu Kotchubei, cruzando as pernas e olhando em redor.
— Vejam, o Priánitchnikov trabalha para mim, um homem formidável, um homem de ouro, mas tem sessenta anos, será que ele vai prestar concurso?...
— Sim, é um problema, pois a educação é pouquíssimo difundida, mas... — O conde Kotchubei não concluiu a frase, levantou-se, tomou o príncipe Andrei pelo braço e foi ao encontro de alguém que acabara de chegar, um homem alto, calvo, louro, de uns quarenta anos, de testa grande e descoberta e de rosto alongado, de uma brancura estranha, fora do comum. Vestia um fraque azul, trazia uma cruz no pescoço e uma estrela no lado esquerdo do peito. Era Speránski. O príncipe Andrei reconheceu-o de imediato, e algo estremeceu no seu espírito, como acontece nos momentos importantes da vida. Se era respeito, inveja, expectativa — ele não sabia. Toda a figura de Speránski era de um tipo especial, pelo qual era possível reconhecê-lo imediatamente. Na sociedade em que o príncipe Andrei vivia, ele nunca tinha visto, em ninguém, aquela calma e segurança, com movimentos desajeitados e deselegantes, não via em ninguém aquele olhar firme e ao mesmo tempo suave, de olhos semicerrados e um pouco úmidos, não via em ninguém tamanha firmeza num sorriso que não significava nada, aquela voz fina, monótona, baixa e, acima de tudo, a meiga brancura do rosto, e em especial das mãos, um pouco largas, mas extraordinariamente roliças, meigas e brancas. Tal brancura e meiguice no rosto, o príncipe Andrei só tinha visto em soldados internados por muito tempo no hospital. Aquele era Speránski, o secretário de Estado, o relator do soberano e companheiro dele em Erfurt, onde mais de uma vez se encontrou e conversou com Napoleão.
Speránski não corria os olhos de um rosto para outro, como fazemos sem querer ao entrar numa sociedade numerosa, e não tinha pressa em falar. Falava baixo, com a certeza de que iriam escutá-lo, e mirava só para o rosto da pessoa com quem estava falando.
O príncipe Andrei acompanhava com uma atenção especial cada palavra e cada movimento de Speránski. Como acontece sobretudo com pessoas que julgam com severidade os seus próximos, o príncipe Andrei, ao conhecer uma pessoa nova, ainda mais alguém como Speránski, cuja reputação ele conhecia, sempre esperava encontrar nessa pessoa o primor das virtudes humanas.
Speránski disse a Kotchubei que lamentava não ter podido chegar mais cedo, porque o haviam retido na corte. Não disse que o soberano o reteve. E o príncipe Andrei notou essa afetação de modéstia. Quando Kotchubei lhe apresentou o príncipe Andrei, Speránski voltou lentamente os olhos para Bolkónski, com o mesmo sorriso, e pôs-se a fitá-lo em silêncio.
— Estou muito contente em conhecer o senhor, ouvi falar a seu respeito, como todos — disse.
Kotchubei falou algumas palavras sobre a audiência que Araktchéiev concedera a Bolkónski. Speránski sorriu mais ainda.
— O diretor do comitê do estatuto militar é um bom amigo meu, o sr. Magnítski — disse ele, articulando bem cada sílaba e cada palavra — e, se o senhor assim o desejar, posso encaminhá-lo até ele. (Fez um breve silêncio no ponto-final.) Espero que o senhor encontre nele a simpatia e o desejo de cooperar, em tudo o que for razoável.
Imediatamente, formara-se um círculo em torno de Speránski, e aquele velho que falara sobre o seu funcionário Priánitchnikov também dirigiu uma pergunta a Speránski.
O príncipe Andrei, sem entrar na conversa, observava todos os movimentos de Speránski, homem que pouco tempo antes era um seminarista insignificante e que agora tinha nas mãos — aquelas mãos brancas, roliças — o destino da Rússia, como pensava Bolkónski. O príncipe Andrei ficou impressionado com a calma desdenhosa e extraordinária com que Speránski respondeu ao velho. Parecia dirigir-lhe, de uma altura incomensurável, a sua palavra indulgente. Quando o velho se pôs a falar alto demais, Speránski sorriu e disse que não podia julgar a vantagem ou a desvantagem de algo que era do gosto do soberano.
Depois de conversar por algum tempo no círculo geral, Speránski levantou-se, aproximou-se do príncipe Andrei e levou-o para a extremidade oposta da sala. Era evidente que ele julgava necessário dar atenção a Bolkónski.
— Não tive tempo de falar com o senhor, príncipe, em meio à animada conversa em que fui envolvido por aquele venerável ancião — disse, sorrindo de maneira docilmente desdenhosa, e com aquele sorriso parecia reconhecer que ele e o príncipe Andrei compreendiam a insignificância das pessoas com quem ele acabara de conversar. Essa atitude lisonjeou o príncipe Andrei. — Conheço o senhor há muito tempo: em primeiro lugar, por seu procedimento com os seus camponeses, é o nosso primeiro exemplo, o qual tanto desejamos que seja seguido por muitos outros; em segundo lugar, porque o senhor é um dos camaristas que não se consideraram ofendidos com a nova lei sobre os cargos da corte, a qual despertou tantos rumores e mexericos.
— Sim — respondeu o príncipe Andrei —, meu pai não quis que eu me beneficiasse desse direito; comecei a servir nos cargos inferiores.
— O seu pai, um homem do século passado, obviamente está acima dos nossos contemporâneos, que tanto condenaram essa medida, que apenas restabelece a justiça natural.
— Penso, no entanto, que há certo fundamento nessas críticas — disse o príncipe Andrei, tentando resistir à influência de Speránski, que ele começava a sentir. Não lhe agradava concordar com Speránski em tudo: queria contradizer. O príncipe Andrei, que costumava falar bem e com facilidade, sentia agora, ao conversar com Speránski, uma dificuldade para se expressar. Estava ocupado demais em observar a personalidade do homem célebre.
— Um fundamento para a ambição pessoal, talvez —Speránski introduziu o seu comentário em voz baixa.
— E também em parte para o Estado — disse o príncipe Andrei.
— Como assim? — perguntou Speránski, em voz baixa e de olhos baixos.
— Sou um admirador de Montesquieu — respondeu o príncipe Andrei. — E a sua ideia de que le principe des monarchies est l’honneur, me paraît incontestable. Certains droits et privilèges de la noblesse me paraissent être des moyens de soutenir ce sentiment.10
O sorriso desapareceu do rosto branco de Speránski, e sua fisionomia ganhou muito com isso. Provavelmente, a ideia do príncipe Andrei lhe pareceu interessante.
— Si vous envisagez la question sous ce point de vue 11 — começou, com evidente dificuldade para se expressar em francês, e falando ainda mais devagar do que falava em russo, mas com absoluta calma. Disse que a honra, l’honneur, não pode se sustentar em privilégios prejudiciais ao bom andamento do serviço público, que a honra, l’honneur, é ou uma noção negativa, a abstenção da prática de atos condenáveis, ou uma conhecida fonte de concorrência para a obtenção de louvores e recompensas, que constituem a expressão da honra.
Seus argumentos eram concisos, simples e claros.
— O instituto que sustenta essa honra, fonte de concorrência, é um instituto semelhante à Légion d’Honneur do grande imperador Napoleão, que não prejudica, e sim contribui para o sucesso do serviço público, mas não é um privilégio de classe ou da corte.
— Não discuto isso, mas não se pode negar que o privilégio da corte alcançou esse mesmo objetivo — disse o príncipe Andrei. — Todos os membros da corte se consideram obrigados a manter com dignidade a sua posição.
— Mas o senhor não quis se beneficiar desse privilégio, príncipe — disse Speránski, mostrando com um sorriso que desejava encerrar de forma amável uma discussão embaraçosa para o seu interlocutor. — Se o senhor me der a honra de me procurar na quarta-feira — acrescentou —, eu já terei falado com Magnítski e comunicarei ao senhor aquilo que possa lhe interessar, e além disso terei o prazer de conversar mais detalhadamente com o senhor. — Fechou os olhos, curvou-se à la française,12 e saiu da sala sem se despedir, tentando não ser notado.
VI
No início da sua estada em Petersburgo, o príncipe Andrei sentiu que todo o repertório de ideias elaboradas durante a sua vida solitária acabou ficando completamente obscurecido pelas preocupações miúdas que o envolviam em Petersburgo.
Ao voltar para casa ao anoitecer, anotava na sua agenda o horário marcado de quatro ou cinco visitas ou rendez-vous13 indispensáveis. A mecânica da vida e a organização do seu dia de modo a ter tempo de ir a toda parte consumiam a maior parcela da própria energia da vida. Ele não fazia nada, já nem pensava em coisa alguma e nem tinha tempo para pensar, apenas falava, e falava com sucesso aquilo que antes, no campo, tivera tempo para refletir.
Às vezes notava com desagrado que lhe acontecia de, num mesmo dia, repetir a mesma coisa para pessoas diferentes. Mas andava tão atarefado o dia inteiro que não conseguia se dar conta de que não fazia nada.
Speránski, tal como acontecera no primeiro encontro na casa de Kotchubei, causou uma forte impressão no príncipe Andrei naquela quarta-feira, em sua casa, quando recebeu Bolkónski para uma conversa frente a frente.
O príncipe Andrei tinha na conta de criaturas desprezíveis e insignificantes uma quantidade tão grande de pessoas, sentia tanta vontade de encontrar em alguém o ideal vivo da perfeição a que aspirava que foi fácil para ele acreditar que em Speránski havia encontrado esse ideal de homem plenamente racional e virtuoso. Se Speránski proviesse da mesma sociedade que o príncipe Andrei, tivesse a mesma formação e os mesmos hábitos morais, Bolkónski logo veria nele aspectos fracos, humanos, não heroicos, mas aquela constituição lógica da inteligência, estranha ao príncipe Andrei, lhe inspirava ainda mais respeito pelo fato de não a compreender de todo. Além disso, ou porque estimasse a capacidade do príncipe Andrei, ou porque achasse necessário conquistar o seu apoio, Speránski exibia-se diante do príncipe Andrei com a sua inteligência serena e imparcial e o adulava com aquela lisonja sutil que se confunde com a presunção e que consistia num reconhecimento tácito de que o seu interlocutor era a única pessoa, além dele mesmo, capaz de entender toda a tolice de todos, os demais, bem como a racionalidade e a profundidade das suas próprias ideias.
Durante a longa conversa na noite de quarta-feira, Speránski disse várias vezes: “Nós vemos tudo o que se destaca do nível geral dos hábitos enraizados...”, ou, com um sorriso: “Mas nós queremos que os lobos fiquem saciados e que as ovelhas permaneçam intactas...”, ou: “Eles não conseguem entender isso...” — e sempre com a mesma expressão, que dizia: “Nós, o senhor e eu, entendemos o que são eles e quem somos nós”.
Essa primeira e longa conversa com Speránski apenas reforçou no príncipe Andrei o sentimento com que ele vira Speránski pela primeira vez. Vira nele um homem de uma inteligência enorme, que raciocinava de modo sensato e austero, que alcançara o poder por meio da energia e da tenacidade, e que só se servia do poder em benefício da Rússia. Speránski, aos olhos do príncipe Andrei, era exatamente o homem que ele gostaria de ser, alguém que explicava de maneira sensata todos os fenômenos da vida, que só reconhecia como válido aquilo que fosse razoável e que era capaz de aplicar a tudo o critério da racionalidade. Tudo se apresentava tão simples e tão claro na exposição de Speránski que o príncipe Andrei, mesmo sem querer, concordava com ele em tudo. Se objetava e discutia, era só porque desejava, de modo deliberado, mostrar-se independente e não se submeter de todo às opiniões de Speránski. Tudo era certo, tudo era bom, mas uma coisa perturbava o príncipe Andrei: era o olhar de Speránski, frio, espelhado, que não deixava enxergar a sua alma, e também a sua mão branca, meiga, para a qual o príncipe Andrei olhava sem querer, como olhamos em geral para as mãos das pessoas que detêm o poder. O olhar espelhado e a mão meiga, por algum motivo, irritavam o príncipe Andrei. Dava-lhe uma sensação desagradável também o excessivo desprezo pelas pessoas que notava em Speránski, e também a diversidade de métodos de demonstração que empregava para sustentar suas opiniões. Utilizava todas as figuras de pensamento possíveis, exceto a comparação, e, assim parecia ao príncipe Andrei, passava de uma para outra de forma excessivamente ousada. Ora se colocava no terreno dos homens práticos e condenava os sonhadores, ora no terreno dos satíricos e, com ironia, zombava dos seus opositores, outras vezes se fazia severamente lógico, e de repente se elevava ao domínio da metafísica. (Este último meio de demonstração, ele o empregava com especial frequência.) Transportava a questão às alturas metafísicas, passava para definições de espaço, tempo, pensamento e, extraindo daí refutações, descia de novo para o terreno da discussão.
Em suma, o traço principal da inteligência de Speránski, que impressionava o príncipe Andrei, era a fé indubitável, inabalável, na força e na legitimidade da inteligência. Era evidente que nunca poderia entrar na cabeça de Speránski a ideia, trivial para o príncipe Andrei, de que era impossível exprimir tudo o que se pensava, e nunca lhe ocorreria a dúvida: não será tolice tudo aquilo que penso e tudo aquilo em que acredito? E essa conformação especial da inteligência de Speránski, mais que tudo, atraía o príncipe Andrei.
No início de suas relações com Speránski, o príncipe Andrei nutriu por ele um apaixonado sentimento de admiração, semelhante ao que, no passado, experimentara por Bonaparte. A circunstância de Speránski ser filho de um sacerdote, o que podia levar muita gente tola a desprezá-lo, como tantos faziam, por sua condição de homem da plebe e filho de pope, obrigava o príncipe Andrei a tratar com um cuidado especial o seu sentimento por Speránski e, de modo inconsciente, reforçar dentro de si mesmo esse sentimento.
Na primeira noite em que Bolkónski esteve na casa de Speránski, e conversou sobre a comissão legisladora, Speránski contou ao príncipe Andrei, com ironia, que havia cento e cinquenta anos que a comissão legisladora existia, custava milhões e não fazia nada, que Rosenkampf apenas colara etiquetas em todos os artigos que se relacionavam entre si, em diversos códigos.
— E foi por isso e mais nada que o Estado pagou milhões! — disse ele. — Queremos conferir um novo poder jurídico ao Senado, mas não temos leis. Por isso, agora, é um pecado que pessoas como o senhor, príncipe, não estejam servindo ao Estado.
O príncipe Andrei respondeu que, para isso, era necessária uma educação jurídica que ele não tinha.
— Mas ninguém tem, e então o que o senhor quer? É um circulus viciosus, do qual é preciso sair à força.
Uma semana depois, o príncipe Andrei era membro do comitê de elaboração do estatuto militar e, algo que jamais esperara, chefe de uma seção da comissão legisladora. Por um pedido de Speránski, ele se encarregou da primeira parte do Código Civil e, com a ajuda do Code Napoléon e Justiniani,14 trabalhou na elaboração da seção “Direitos da Pessoa”.
VII
Mais ou menos dois anos antes, em 1808, ao voltar para Petersburgo da viagem por suas propriedades, Pierre, a contragosto, se tornou chefe da maçonaria petersburguesa. Organizou lojas de mesa e lojas funerárias, recrutou membros novos, cuidou da união de lojas diversas e da aquisição de atas autênticas. Dava dinheiro para a construção de templos e suplementava, na medida do possível, a coleta de esmolas, na qual os membros, em sua maioria, se mostravam avarentos e inconstantes. Quase que só com os seus recursos, ele sustentava um abrigo de pobres construído pela ordem em Petersburgo.
Enquanto isso, a sua vida corria como antes, com os mesmos arroubos e os mesmos desregramentos. Gostava de beber e de comer bastante e, embora julgasse também isso humilhante e imoral, não conseguia se esquivar dos divertimentos dos grupos de solteiros dos quais tomava parte.
Em meio ao tumulto de seus afazeres e de seus arroubos, Pierre, no entanto, começou a sentir, decorrido um ano, que o terreno da maçonaria, no qual ele se achava, mostrava-se tanto mais instável sob os seus pés quanto mais firmemente Pierre tentava se colocar sobre ele. Ao mesmo tempo, sentia que, quanto mais fundo seus pés penetravam no terreno em que se achava, mais ficava ligado involuntariamente àquele terreno. Quando Pierre entrou na maçonaria, experimentou o sentimento de um homem que põe o pé com confiança na superfície lisa de um pântano. Quando calcou o pé, ele afundou. A fim de se convencer por completo da firmeza do terreno em que se achava, calcou o outro pé e afundou mais ainda, atolou, e agora, sem querer, andava pelo pântano imerso até os joelhos.
Ióssif Alekséievitch não estava em Petersburgo. (Ultimamente, andava afastado dos assuntos das lojas de Petersburgo e morava em Moscou, sem nunca sair de lá.) Todos os irmãos, membros das lojas, eram pessoas conhecidas de Pierre, e ele tinha dificuldade em ver neles apenas irmãos na maçonaria, e não o príncipe B., ou Ivan Vassílievitch D., que Pierre conhecia na vida comum sobretudo como pessoas fracas e insignificantes. Por baixo do avental e das regras da maçonaria, Pierre via naqueles homens os uniformes e as medalhas que eles almejavam conquistar na vida comum. Muitas vezes, ao reunir as esmolas e contar vinte, trinta rublos, registrados como receita, mas na maior parte apenas prometidos por uma dezena de membros, metade deles tão ricos como ele mesmo, Pierre lembrava-se do juramento maçônico em que todo irmão prometia dar todos os seus bens para o próximo, e na sua alma erguia-se uma dúvida, na qual Pierre tentava não se fixar.
Ele dividia em quatro categorias todos os irmãos que conhecia. Na primeira categoria, incluía os irmãos que não participavam ativamente nem dos assuntos da loja, nem dos problemas humanos, e ocupavam-se apenas com os mistérios da ciência da ordem, com as questões da tríplice denominação de Deus, ou dos três princípios das coisas — o enxofre, o mercúrio e o sal —, ou com o sentido do quadrado e de todas as figuras do templo de Salomão. Pierre respeitava essa categoria de irmãos maçons, à qual, na opinião de Pierre, pertenciam sobretudo irmãos antigos e o próprio Ióssif Alekséievitch, mas Pierre não compartilhava de seus interesses. Seu coração não pendia para o lado místico da maçonaria.
Na segunda categoria, Pierre incluía a si mesmo e os irmãos semelhantes a ele, que procuravam, vacilavam, ainda não haviam encontrado na maçonaria um caminho reto e claro, mas tinham esperança de encontrá-lo.
Na terceira categoria, incluía os irmãos (eram a maioria) que não viam na maçonaria nada além das formas exteriores e dos rituais e valorizavam o cumprimento rigoroso dessas formas exteriores, sem se preocupar com o seu conteúdo nem com o seu sentido. Assim era Villárski e até o grão-mestre da loja principal.
À quarta categoria, enfim, pertenciam irmãos, também em grande quantidade, que haviam ingressado na ordem sobretudo nos últimos tempos. Segundo as observações de Pierre, eram pessoas que não acreditavam em nada, não desejavam nada, e só entraram na maçonaria para ficar perto de irmãos jovens, ricos e poderosos em razão de suas relações e conhecimentos e que eram muito numerosos na loja.
Pierre começava a sentir-se insatisfeito com a sua atividade. A maçonaria, pelo menos aquela maçonaria que ele conhecia ali, parecia-lhe às vezes quase que fundamentada apenas nos aspectos exteriores. Ele nem pensava em pôr em dúvida a maçonaria em si, mas desconfiava que a maçonaria russa tomara um caminho errado e se desviara da fonte. Por isso, no fim do ano, Pierre partiu para o exterior a fim de se iniciar nos mistérios mais elevados da ordem.
Ainda no verão de 1809, Pierre voltou a Petersburgo. Pela correspondência entre os nossos maçons e os estrangeiros, soube-se que Bezúkhov conseguira conquistar a confiança de muitas pessoas de posição elevada, penetrara em muitos mistérios, fora promovido ao grau mais elevado e trazia consigo muitos projetos para o bem geral dos assuntos da maçonaria na Rússia. Todos os maçons de Petersburgo foram visitá-lo, o bajulavam, e todos tinham a impressão de que ele estava escondendo e preparando alguma coisa.
Marcaram uma sessão solene da loja de segundo grau, na qual Pierre prometeu que ia comunicar o que tinha a transmitir aos irmãos de Petersburgo da parte dos diretores supremos da ordem. A sessão ficou lotada. Depois das cerimônias de costume, Pierre levantou-se e começou o seu discurso.
— Queridos irmãos — começou, ruborizando-se, gaguejando e segurando na mão o discurso escrito. — Não basta zelar pelos nossos mistérios na tranquilidade da loja... É preciso agir... Agir. Estamos adormecidos, mas precisamos agir. — Pierre ergueu o seu caderno e começou a ler. “Para a difusão da verdade pura e para o triunfo da virtude”, leu, temos de livrar as pessoas dos preconceitos, difundir regras em conformidade com o espírito do tempo, assumir a tarefa de educar os jovens, unir-nos com laços indissolúveis às pessoas mais inteligentes, de modo audacioso e ao mesmo tempo sensato superar a superstição, a descrença e a estupidez, formar, entre aqueles fiéis a nós, pessoas ligadas entre si por um mesmo objetivo e dotadas de poder e de força.
“Para alcançar tal objetivo, temos de permitir que a virtude prevaleça sobre o vício, temos de nos esforçar para que o homem puro ganhe, ainda neste mundo, uma recompensa eterna por sua virtude. Mas no caminho dessas nossas elevadas intenções se interpõe uma infinidade de instituições políticas atuais. O que fazer diante de tal estado de coisas? Favorecer as revoluções, derrubar tudo, combater a força com a força?... Não, estamos muito longe disso. Toda reforma violenta merece reprovação, porque pouco irá remediar o mal enquanto as pessoas permanecerem como são, e porque a sabedoria não precisa da violência.
“Todo o plano da ordem deve se basear na formação de pessoas firmes, virtuosas e unidas pela mesma convicção, que consiste em combater, em toda parte e com todas as forças, o vício e a estupidez e patrocinar os talentos e a virtude: extrair do pó pessoas dignas, unindo-as à nossa irmandade. Só então a nossa ordem terá o poder de, imperceptivelmente, amarrar as mãos dos promotores da desordem e guiá-los de modo que eles não percebam. Numa palavra, cumpre instituir uma forma universal e soberana de governo, que se difunda por todo o mundo, sem romper os vínculos de cidadania, e sob a qual todos os demais governos possam continuar em sua ordem de costume e fazer tudo, exceto criar obstáculos ao grande objetivo da nossa ordem, qual seja, alcançar o triunfo da virtude sobre o vício. Esse objetivo é o que supõe o próprio cristianismo. Ele ensinou as pessoas a ser sábias e boas e, em seu próprio benefício, a seguir o exemplo e os conselhos das pessoas melhores e mais sábias.
“Antes, quando tudo estava imerso nas trevas, bastava pregar, é claro: a novidade da verdade lhe conferia uma força especial; mas hoje precisamos de meios muito mais poderosos. Hoje, o homem guiado pelos seus sentidos precisa encontrar na virtude um encanto sensual. É impossível extirpar as paixões; deve-se apenas tentar dirigi-las para um objetivo virtuoso e por isso cumpre que cada um possa satisfazer suas paixões nos limites da virtude e que nossa ordem ofereça meios para isso.
“Logo que tenhamos certo número de pessoas dignas em todos os Estados, cada uma delas irá formar mais duas pessoas, e todas ficarão estreitamente unidas, e então tudo será possível para a ordem, que em segredo já conseguiu realizar tanto para o bem da humanidade.”
Esse discurso produziu na loja não só uma forte impressão, mas também uma agitação. A maioria dos irmãos viu no discurso os perigos das ideias dos illuminati 15 e, para surpresa de Pierre, recebeu-o com frieza. O grão-mestre começou a formular objeções. Pierre explanou suas ideias com um ardor cada vez maior. Havia muito tempo não ocorria uma sessão tão agitada. Formaram-se partidos: uns condenavam Pierre, julgando que pertencia aos illuminati; outros o apoiavam. Naquela reunião, pela primeira vez, Pierre se impressionou com a infinita diversidade de intelectos humanos, cuja consequência é que nenhuma verdade se apresenta da mesma forma para duas pessoas. Até os membros que pareciam estar do lado dele compreendiam-no à sua própria maneira, com limitações e alterações com as quais Pierre não podia concordar, pois a principal aspiração de Pierre era justamente transmitir o seu pensamento aos outros da forma exata como ele o entendia.
No fim da sessão, o grão-mestre, com malevolência e ironia, chamou a atenção de Pierre por seu ardor exaltado e frisou que não tinha sido apenas o amor à virtude que o guiara à discussão, mas também a paixão pela luta. Pierre não respondeu e indagou, de modo lacônico, se a sua proposta seria aceita. Disseram-lhe que não, e Pierre, sem esperar as formalidades de costume, saiu da loja e foi para casa.
VIII
Pierre foi de novo dominado pela melancolia que tanto receava. Durante os três dias seguintes ao seu discurso na loja, ele ficou em casa, deitado no sofá, não recebeu ninguém e não foi a parte alguma.
Durante esse tempo, recebeu uma carta da esposa, que implorava um encontro com ele, escrevia sobre a sua saudade de Pierre e sobre o desejo de consagrar a ele toda a sua vida.
No fim da carta, avisava que em poucos dias chegaria a Petersburgo, de volta do exterior.
Em seguida à carta, um dos irmãos maçons que ele menos respeitava rompeu o isolamento de Pierre e, conduzindo a conversa para as suas relações conjugais, à guisa de um conselho fraternal, exprimiu a opinião de que a severidade de Pierre com a esposa era injusta e que ele estava violando as primeiras regras de um maçom, ao não perdoar um penitente.
Na mesma ocasião, sua sogra, a esposa do príncipe Vassíli, lhe mandou um recado, implorando que a visitasse, ainda que só por alguns minutos, para tratarem de um assunto da máxima importância. Pierre percebeu que havia um conluio contra ele, que desejavam uni-lo à esposa, e isso até que não lhe era desagradável, na situação em que ele se encontrava. Para Pierre, não fazia diferença: achava que nada na vida tinha grande importância e, sob a influência da melancolia que agora o dominava, Pierre não valorizava nem a sua liberdade, nem a sua insistência em punir a esposa.
“Ninguém tem razão, ninguém tem culpa, portanto ela não é culpada”, pensava. Se Pierre não manifestou imediatamente sua concordância em unir-se à esposa foi só porque, no estado de melancolia em que se encontrava, ele não tinha forças para realizar nada. Se a esposa viesse ao seu encontro, ele agora não a rechaçaria. Afinal, em comparação com aquilo que o preocupava, não lhe era de todo indiferente viver ou não com a esposa?
Sem nada responder à esposa ou à sogra, Pierre fez as malas e partiu para Moscou a fim de encontrar-se com Ióssif Alekséievitch. No seu diário, escreveu o seguinte:
Moscou, 17 de novembro
Acabei de chegar da casa do meu benfeitor e me apresso em anotar tudo o que experimentei nesse encontro. Ióssif Alekséievitch vive em pobreza e há três anos sofre de uma penosa enfermidade na bexiga. Ninguém jamais ouviu dele um lamento ou uma palavra de queixa. Desde a manhã até tarde da noite, exceto nos horários em que se alimenta com uma refeição muito simples, ele se dedica à ciência. Recebeu-me com benevolência e me fez sentar ao seu lado, na cama onde estava deitado; fiz-lhe o sinal dos Cavaleiros do Oriente e de Jerusalém, ele me respondeu da mesma forma e, com um sorriso dócil, perguntou o que eu havia aprendido e ganhado nas lojas prussianas e escocesas.16 Contei-lhe tudo o que sabia, transmiti as teses que propus na nossa loja em Petersburgo, comuniquei a reação ruim que recebi e a ruptura ocorrida entre mim e os irmãos. Ióssif Alekséievitch, depois de ficar bastante calado e pensativo, me expôs a sua opinião, que de pronto me esclareceu todo o passado e todo o caminho futuro que se apresenta à minha frente. Surpreendeu-me ao perguntar se eu me lembrava do tríplice objetivo da ordem: 1) a guarda e o estudo do mistério; 2) a purificação e a regeneração de si mesmo, para a compreensão do mistério; 3) a regeneração da espécie humana, mediante o esforço para alcançar essa purificação. Qual dos três objetivos era o primeiro e o mais importante? A regeneração e a purificação de si mesmo, é claro. É o único objetivo pelo qual nós podemos lutar sempre, independentemente de todas as circunstâncias. Mas ao mesmo tempo é esse objetivo que exige de nós os maiores esforços, e por isso, iludidos pelo orgulho, deixamos de lado esse objetivo e nos ocupamos ou do mistério, que não somos dignos de compreender por causa da nossa impureza, ou nos ocupamos da regeneração da espécie humana, quando nós mesmos somos um exemplo de indecência e depravação. A doutrina dos illuminati não é pura justamente porque foi seduzida pela ação social e dominada pelo orgulho. Com base nisso, Ióssif Alekséievitch condenou o meu discurso e toda a minha atividade. Concordei com ele, no fundo da minha alma. Quando de nossa conversa a respeito de meus assuntos familiares, ele me disse: “A principal obrigação do verdadeiro maçom, como eu disse ao senhor, é o aprimoramento de si mesmo. Porém muitas vezes achamos que, afastando de nós todas as dificuldades da vida, logo alcançaremos esse objetivo; ao contrário, meu senhor”, disse ele, “só no meio das agitações mundanas podemos alcançar os três objetivos principais: 1) o autoconhecimento, pois o homem só pode se conhecer por meio da comparação; 2) o aprimoramento, que só se alcança por meio da luta; 3) alcançar a principal virtude: o amor à morte. Só as vicissitudes da vida podem nos mostrar o vazio da vida e contribuir para o nosso inato amor à morte, ou para o renascimento para uma vida nova”. Essas palavras são ainda mais notáveis porque Ióssif Alekséievitch, apesar de seus árduos sofrimentos físicos, nunca se queixa da vida, mas ainda não se sente suficientemente preparado para amar a morte, a despeito de toda a pureza e de toda a elevação do seu homem interior. Em seguida o meu benfeitor me explicou por completo o sentido do grande quadrado da criação do mundo e mostrou que os números três e sete são a base de tudo. Aconselhou-me a não me afastar da sociedade dos irmãos de Petersburgo e, ocupando-me na loja só com os deveres do segundo grau, tentar conduzir os irmãos para o caminho verdadeiro do autoconhecimento e do aprimoramento, desviando-os das seduções do orgulho. Além disso, para mim pessoalmente, aconselhou-me acima de tudo vigiar a mim mesmo e, com tal objetivo, me deu um caderno, este mesmo em que estou escrevendo e em que vou anotar daqui para a frente todos os meus atos.
Petersburgo, 23 de novembro
Estou vivendo de novo com a minha esposa. Minha sogra me procurou em lágrimas e disse que Hélène estava aqui e que ela suplicava que eu a ouvisse, que ela era inocente, que estava infeliz com a minha rejeição e muito mais. Eu sabia que, assim que eu admitisse vê-la, não teria mais forças para negar o seu desejo. Na minha dúvida, eu não sabia a quem pedir ajuda e conselho. Se o benfeitor estivesse aqui, ele me diria. Retirei-me para o meu quarto, reli as cartas de Ióssif Alekséievitch, lembrei-me das conversas com ele e de tudo isso concluí que não devia recusar o que me pediam, devia estender a mão para ajudar todos, mais ainda uma pessoa tão ligada a mim, e devia carregar a minha cruz. Mas, se eu a perdoava em nome da virtude, era melhor que minha união com ela tivesse apenas uma finalidade espiritual. Assim resolvi e assim escrevi para Ióssif Alekséievitch. Falei para a minha esposa que lhe pedia que esquecesse todo o passado, que me perdoasse por aquilo que eu pudesse ter feito de mau a ela, e que eu nada tinha para lhe perdoar. Senti alegria ao lhe dizer isso. É melhor que ela não saiba como me foi penoso voltar a vê-la. Instalei-me na casa grande, no andar superior, e experimento um sentimento feliz de renovação.
IX
Como sempre, também naquela ocasião, a alta sociedade que se reunia na corte e nos grandes bailes se distribuía em vários círculos, cada um com a sua própria nuance. Entre eles, o mais numeroso era o círculo francês, partidário da aliança com Napoleão — do conde Rumiántsev e Caulaincourt. Nesse círculo, Hélène ocupou um dos lugares mais destacados, assim que se instalou em Petersburgo, com o marido. À sua casa, vinham senhores da embaixada francesa e uma grande quantidade de pessoas, conhecidas por sua inteligência e amabilidade, que pertenciam a essa tendência.
Hélène estava em Erfurt na época do célebre encontro dos imperadores e de lá trouxe essa ligação com todos os notáveis napoleônicos da Europa. Em Erfurt, ela fizera um sucesso enorme. O próprio Napoleão reparou nela no teatro, perguntou quem era e disse: “C’est un superbe animal”.17 O sucesso de Hélène na condição de mulher bonita e elegante não surpreendia Pierre, pois com os anos ela se tornara ainda mais bonita. Surpreendia-o o fato de sua esposa, durante aqueles dois anos, ter conseguido adquirir a reputação “d’une femme charmante, aussi spirituelle que belle”.18 O famoso prince de Ligne 19 lhe escreveu uma carta de oito páginas. Bilíbin reservava seus mots para dizê-los pela primeira vez diante da condessa Bezúkhova. Ser recebido no salão da condessa Bezúkhova era considerado um diploma de inteligência; os jovens liam livros antes de ir a um sarau em casa de Hélène, para falar sobre eles no salão, e os secretários da embaixada e até os embaixadores confiavam a ela segredos diplomáticos, e assim Hélène era uma espécie de potentado. Ciente de que a esposa era muito tola, Pierre às vezes presenciava, com um sentimento de perplexidade e temor, seus saraus e jantares, onde se conversava sobre política, poesia, filosofia. Naqueles saraus, Pierre experimentava uma sensação parecida com a que devia experimentar um ilusionista que a todo instante teme que o seu truque seja revelado. Porém, ou porque o necessário para presidir um salão fosse justamente a tolice, ou porque os próprios iludidos tinham prazer na sua ilusão, a ilusão não era revelada, e a reputação d’une femme charmante et spirituelle 20 se fixara de modo tão inexorável em Hélène Vassílievna Bezúkhova que ela podia dizer as maiores banalidades e tolices, que todos se maravilhavam com cada uma de suas palavras e descobriam nelas um sentido profundo, do qual a própria Hélène nem desconfiava.
Pierre era exatamente o tipo de marido necessário para aquela brilhante mulher da sociedade. Era o excêntrico distraído, o marido grand seigneur,21 que não incomodava ninguém e não só não estragava a impressão geral de tom elevado do salão, como também, pelo contraste com a elegância e o tato da esposa, servia como um pano de fundo vantajoso para ela. Pierre, durante aqueles dois anos, em consequência da sua ocupação constante e concentrada em interesses imateriais, e do seu sincero desprezo por todo o resto, havia adquirido no meio social da esposa, que não o interessava, aquele tom de indiferença, de desatenção, de benevolência com todos, que não se adquire artificialmente e que por isso inspira um respeito involuntário. Ele entrava no salão da esposa como num teatro, era conhecido de todos, igualmente simpático a todos e igualmente indiferente a todos. Às vezes entrava numa conversa que o interessava e então, sem se preocupar se estavam ali ou não les messieurs de l’ambassade,22 mastigando as palavras, declarava as suas opiniões, que às vezes eram totalmente inadequadas ao tom daquele momento. Mas já estava tão consolidada a opinião geral a respeito do excêntrico marido de la femme la plus distinguée de Pétersbourg 23 que ninguém levava au sérieux 24 as suas extravagâncias.
Entre os numerosos jovens que vinham cotidianamente à casa de Hélène, Boris Drubetskói, já muito bem-sucedido no serviço militar, era, desde que Hélène voltara de Erfurt, a pessoa mais íntima na casa dos Bezúkhov. Hélène o chamava de mon page 25 e o tratava como uma criança. O sorriso que lhe dirigia era o mesmo que dirigia a todos, mas às vezes, para Pierre, era desagradável ver aquele sorriso. Boris tratava Pierre com uma reverência especial, digna, tristonha. Aquele matiz de reverência também perturbava Pierre. Três anos antes, Pierre havia sofrido tanto por causa do ultraje provocado pela esposa que agora se resguardava da possibilidade de um ultraje semelhante, e assim, em primeiro lugar, não era o marido da sua esposa, em segundo lugar, não se permitia desconfiar.
“Não, agora que ela se tornou uma bas-bleu,26 renunciou para sempre aos arroubos de antes”, dizia ele consigo. “Não há exemplo de uma bas-bleu que tenha arroubos do coração”, repetia para si essa regra, que extraíra não sabia de onde e na qual ele acreditava de modo inquestionável. Mas, coisa estranha, a presença de Boris no salão da esposa (e ele quase não faltava) tinha um efeito físico sobre Pierre: tolhia todos os membros do seu corpo, aniquilava a espontaneidade e a liberdade dos seus movimentos.
“Que antipatia estranha”, pensava Pierre, “e antigamente eu até gostava dele.”
Aos olhos do mundo, Pierre era um grande fidalgo, um pouco cego, o marido ridículo de uma esposa notável, um excêntrico inteligente que não fazia nada, mas que também não fazia mal a ninguém, um sujeito bom e simpático. Na alma de Pierre, porém, durante todo aquele tempo, se realizava um complexo e difícil trabalho de desenvolvimento interior, que lhe revelava muita coisa e o conduzia a muitas dúvidas e alegrias espirituais.
X
Ele continuou o seu diário, e eis o que escreveu naquela ocasião:
24 de novembro
Levantei às oito horas, li as Sagradas Escrituras, depois fui cuidar de minhas obrigações (Pierre, por recomendação do seu benfeitor, passara a trabalhar num dos comitês), voltei para jantar, jantei sozinho (a condessa tinha muitos convidados que não me agradavam), comi e bebi moderadamente e, depois do jantar, copiei textos para os irmãos. À noite, fui à sala da condessa e contei uma história engraçada sobre B. e só lembrei que não devia fazer isso quando todos riram bem alto.
Já estou na cama, para dormir, com um sentimento feliz e sereno. Senhor, ajude-me a trilhar as suas sendas: 1) vencer a parte da ira, pela serenidade e pela paciência; 2) vencer a luxúria, pela abstinência e pela repulsa; 3) afastar-me da agitação mundana, mas não abandonar: a) as atividades do serviço público; b) as obrigações familiares; c) as relações com os amigos, e d) os assuntos econômicos.
27 de novembro
Acordei tarde e fiquei deitado na cama por muito tempo, sem dormir, entregue à preguiça. Meu Deus, ajude-me e me fortaleça, para que eu possa trilhar os seus caminhos. Li as Sagradas Escrituras, mas sem o sentimento devido. O irmão Urússov veio me ver, conversamos sobre futilidades mundanas. Ele falou das novas prescrições do soberano. Fiz menção de condená-las, mas lembrei-me das minhas regras e das palavras do nosso benfeitor, segundo as quais o maçom verdadeiro deve ser um aplicado servidor do Estado quando se exige a sua participação, e um contemplador sereno daquilo para o qual ele não é chamado. Minha língua é minha inimiga. Os irmãos G. V. e O. me visitaram, tivemos uma conversa preparatória em vista da recepção de um novo irmão. Incumbiram-me das obrigações de orador. Sinto-me fraco e indigno. Depois falou-se da explicação das sete colunas e dos degraus do templo: as sete ciências, as sete virtudes, os sete vícios, os sete dons do Espírito Santo. O irmão O. foi muito eloquente. À noite, houve a cerimônia de recepção. As instalações da nova sede contribuíram para a grandiosidade do espetáculo. O membro admitido era Boris Drubetskói. Eu o apresentei e fui o orador. Um sentimento estranho me perturbou durante todo o tempo em que estive com ele, no templo escuro. Surpreendi em mim um sentimento de ódio contra ele, sentimento que, em vão, eu tentei vencer. Por isso mesmo eu desejava, de fato, salvá-lo do mal e conduzi-lo para o caminho da verdade, mas os pensamentos ruins sobre ele não me deixavam. Fiquei pensando que o seu objetivo, ao entrar na irmandade, era apenas satisfazer o desejo de se aproximar de pessoas, obter favores dos membros da nossa loja. Exceto pelo fato de ter perguntado várias vezes se N. e S. estavam na nossa loja (ao que não pude responder), exceto por ele, segundo as minhas observações, ser incapaz de sentir respeito pela nossa ordem sagrada e por viver ocupado e satisfeito demais com o seu homem exterior para desejar o aprimoramento espiritual, eu não tinha motivos para duvidar de Boris Drubetskói; mas ele me pareceu insincero e, o tempo todo em que estive com ele, frente a frente, no templo escuro, pareceu-me que sorria com desprezo das minhas palavras e, na verdade, tive vontade de perfurar o seu peito nu com a espada que eu mantinha encostada nele. Não consegui ser eloquente e não consegui comunicar com sinceridade a minha dúvida aos irmãos e ao grão-mestre. Grande Arquiteto da natureza, ajude-me a encontrar o caminho verdadeiro, a sair do labirinto da mentira.
Depois disso, havia três páginas em branco no diário e então vinha escrito o seguinte:
Tive uma conversa demorada e instrutiva, a sós, com o irmão V., que me aconselhou a ter cuidado com o irmão A. Muito me foi revelado, embora eu seja indigno. Adonai é o nome do criador do mundo. Eloim é o nome daquele que tudo governa. O terceiro nome, um nome impronunciável, significa Tudo. As conversas com o irmão V. revigoraram-me, reanimaram-me e me restabeleceram no caminho da virtude. Na presença do irmão V., não há lugar para a dúvida. Está clara para mim a diferença entre a pobre doutrina das ciências comuns e a nossa doutrina sagrada, que abrange tudo. As ciências do homem subdividem tudo para entender, matam tudo para examinar. Na ciência sagrada da ordem, tudo é uno, tudo é conhecido em seu conjunto e em vida. A Trindade — os três princípios das coisas — são o enxofre, o mercúrio e o sal. O enxofre é de propriedade oleosa e ignífera; unido ao sal, por sua capacidade de combustão, suscita nele um anseio por meio do qual atrai o mercúrio, o agarra, o retém e, junto com ele, produz corpos individuais. O mercúrio é a essência espiritual fluida e volátil, é o Cristo, o Espírito Santo, Ele.
3 de dezembro
Acordei tarde, li as Sagradas Escrituras, mas estava insensível. Depois saí e fiquei andando pelo salão. Queria meditar, mas em vez disso a imaginação me apresentou um evento ocorrido quatro anos atrás. Depois do meu duelo, o sr. Dólokhov encontrou-se comigo em Moscou, disse-me que esperava que eu estivesse gozando de plena paz de espírito, apesar da ausência da minha esposa. Na hora, nada respondi. Mas agora recordei todos os detalhes desse encontro e, na minha alma, eu lhe disse as palavras mais raivosas e as respostas mais mordazes. Tentei me dominar e só me livrei desse pensamento quando me vi fora de mim de tanta raiva; mas não me arrependi o bastante. Em seguida, chegou Boris Drubetskói e pôs-se a contar várias aventuras; desde a sua chegada, me mostrei descontente com a visita dele e logo lhe disse alguma coisa antipática. Ele protestou. Eu me exaltei e desandei a lhe dizer coisas desagradáveis e até grosseiras. Ele ficou calado, e eu só me recobrei quando já era tarde. Meu Deus, não consigo de maneira alguma tratá-lo direito! A causa é o meu amor-próprio. Eu me coloco acima dele e por isso me torno muito pior do que ele, pois ele é indulgente com as minhas grosserias, enquanto eu, ao contrário, alimento o desprezo por ele. Meu Deus, permita que, em presença dele, eu veja melhor a minha baixeza e aja de modo benéfico para ele. Dormi depois do almoço e, enquanto dormia, escutei claramente uma voz que me disse no ouvido esquerdo: “É o teu dia”.
Eu me vi andando na neve, na escuridão, e de repente estava cercado de cachorros, mas caminhava sem medo; de repente um cão pequeno mordeu minha coxa esquerda e não soltou. Comecei a bater nele com as mãos. E, assim que me livrei do cachorro, um outro cão, maior, agarrou-se com os dentes ao meu peito. Livrei-me dele, mas um terceiro, ainda maior, veio me dar dentadas. Comecei a erguê-lo e, quanto mais o erguia, maior e mais pesado ficava o cachorro. E de repente apareceu o irmão A., pegou-me pelo braço, levou-me consigo na direção de um prédio, onde, para poder entrar, era preciso passar por uma tábua estreita. Pus o pé sobre a tábua, ela virou e caiu, e eu comecei a escalar uma cerca, que minhas mãos mal conseguiam alcançar. Depois de um grande esforço, consegui suspender o meu corpo de modo que as pernas ficaram penduradas de um lado e o tronco do outro. Olhei ao redor e vi o irmão A. de pé sobre a cerca, apontava para uma grande alameda e para um jardim, e no jardim havia um prédio grande e lindo. Acordei. Senhor, Grande Arquiteto da natureza! Ajude-me a afastar de mim os cães, as minhas paixões — até a última, aquela que reúne em si a força de todas as paixões anteriores, e ajude-me a entrar no templo da virtude, cuja contemplação alcancei no sonho.
7 de dezembro
Sonhei que Ióssif Alekséievitch estava em minha casa, eu estava muito contente e queria cobri-lo de atenções. Eu conversava o tempo todo com estranhos e de repente lembrei que ele podia não gostar disso e quis me aproximar dele e abraçá-lo. No entanto, assim que me aproximei, vi que seu rosto se transformara, ficara jovem, e ele me disse muito baixinho algo extraído da doutrina da ordem, mas tão baixinho que não consegui escutar. Depois saímos todos da sala, e aconteceu uma coisa estranha. Estávamos sentados ou deitados no chão. Ele me disse algo. Eu quis mostrar-lhe a minha sensibilidade e, sem escutar o que ele dizia, comecei a imaginar a situação do meu homem interior e a graça com que Deus me inundava. Lágrimas vieram aos meus olhos, e eu fiquei satisfeito por ele perceber. Mas ele me lançou um olhar de aborrecimento e ergueu-se de um salto, interrompendo a nossa conversa. Fiquei intimidado e perguntei se o que ele havia falado se referia a mim; mas ele nada respondeu, mostrou-me um ar afetuoso e depois, de repente, estávamos no meu quarto, onde havia uma cama de casal. Ele deitou-se num lado e eu, ardendo de desejo de fazer carinhos nele, deitei-me ali também. Ele me perguntou: “Diga a verdade, qual é a sua principal paixão? Será que o senhor sabe qual é? Acho que o senhor já sabe”. Embaraçado com tal pergunta, respondi que minha principal paixão era a preguiça. Ele balançou a cabeça, incrédulo. E eu, mais embaraçado ainda, respondi que embora eu morasse com a minha esposa, conforme o conselho dele, não vivia maritalmente com ela. A isso ele retrucou que o marido não devia privar a esposa dos seus carinhos, deu a entender que essa era a minha obrigação. Mas respondi que eu tinha vergonha; e de repente tudo se ocultou. Acordei e encontrei em meus pensamentos um texto das Sagradas Escrituras: “A vida é a luz do homem, e a luz acende na treva, e a treva não a acolhe”. O rosto de Ióssif Alekséievitch era jovial e radiante. Neste dia recebi uma carta do meu benfeitor na qual ele escreve acerca dos deveres matrimoniais.
9 de dezembro
Tive um sonho do qual acordei com o coração trêmulo. Vi que estava em Moscou, na minha casa, na grande sala de estar, e Ióssif Alekséievitch entrou, vindo do salão de visitas. Logo percebi que nele havia se realizado o processo de regeneração e corri ao seu encontro. Beijei-lhe o rosto e as mãos, e ele disse: “Notou que o meu rosto agora está diferente?”. Olhei para ele, continuei a segurá-lo com meus abraços e vi que seu rosto era jovem, mas o cabelo na cabeça não era, e suas feições estavam muito diferentes. E então eu lhe disse: “Eu o reconheceria, se o encontrasse por acaso”. E ao mesmo tempo pensei: “Será que eu disse a verdade?”. E de repente vi que ele estava deitado como um cadáver; depois, aos poucos, voltou a si e entrou comigo no escritório grande, segurando um livro grande, com pinturas, em papel vegetal. E eu disse: “Fui eu que pintei isso”. E ele me respondeu com um aceno de cabeça. Abri o livro, e em todas as páginas havia desenhos lindos. Eu sabia que aquelas pinturas representavam as aventuras amorosas da alma com o seu amado. E nas páginas vi uma imagem linda de uma jovem numa roupa transparente, com o corpo transparente, que voava para as nuvens. E eu sabia que aquela jovem nada mais era do que uma imagem do Cântico dos Cânticos. E, enquanto olhava para os desenhos, sentia que estava fazendo algo errado, mas não conseguia me desviar deles. Senhor, ajuda-me! Meu Deus, se esse meu afastamento de Ti for obra Tua, que seja feita a Tua vontade; mas, se a causa for eu mesmo, ensina-me o que devo fazer. Se me abandonares por completo, vou sucumbir por causa da minha própria depravação.
XI
A situação econômica dos Rostóv não havia melhorado durante os dois anos em que a família morara no campo.
Apesar de Nikolai Rostóv manter-se firme na sua intenção de continuar a servir num regimento obscuro e gastar relativamente pouco, em Otrádnoie viviam de tal modo, e em especial Mítienka geria os negócios de tal maneira, que as dívidas aumentavam todo ano, de modo incontrolável. A única solução que o velho conde, pelo visto, conseguiu imaginar foi um cargo no serviço público e partiu para Petersburgo a fim de procurar uma vaga; procurar uma vaga e, ao mesmo tempo, como ele dizia, divertir as meninas pela última vez.
Logo depois da chegada dos Rostóv a Petersburgo, Berg pediu Vera em casamento, e o seu pedido foi aceito.
Apesar de, em Moscou, os Rostóv pertencerem à alta sociedade, sem que se dessem conta disso e sem que pensassem que pertenciam à alta sociedade, em Petersburgo a sua sociedade era confusa e indefinida. Em Petersburgo, eles eram provincianos, e as mesmas pessoas que, em Moscou, comiam na casa dos Rostóv sem lhes perguntar a que sociedade eles pertenciam, ali na capital nem os visitavam.
Os Rostóv, em Petersburgo, viviam de modo tão hospitaleiro como em Moscou, e em seus jantares reuniam-se as pessoas mais diversas: vizinhos de Otrádnoie, um velho proprietário rural empobrecido com suas filhas, a dama de honra da corte Perónskaia, Pierre Bezúkhov e o filho do chefe do correio distrital, que tinha um emprego público em Petersburgo. Entre os homens que logo se tornaram íntimos da família estavam Boris, Pierre, que o velho conde encontrou na rua e arrastou na mesma hora para a sua casa, e Berg, que passava dias inteiros na casa dos Rostóv e dedicava à condessinha Vera, a mais velha, toda a atenção que pode demonstrar um jovem disposto a fazer um pedido de casamento.
Não era à toa que Berg exibia a todos o seu braço direito ferido na batalha de Austerlitz e segurava com a mão esquerda a espada completamente inútil. Relatava todos aqueles acontecimentos com tal tenacidade e com tal importância que todos acreditavam na utilidade e no mérito daquele feito — e Berg havia recebido duas condecorações por Austerlitz.
Na guerra da Finlândia,27 ele também conseguiu se destacar. Pegou um estilhaço de granada que acabara de matar um ajudante de ordens do comandante em chefe e o levou para o seu comandante. Tal como acontecia no caso de Austerlitz, Berg relatava aqueles acontecimentos com tamanha tenacidade e de modo tão demorado que todos acreditavam também que fora necessário fazer aquilo — e Berg ganhou duas condecorações na guerra da Finlândia. Em 1809, ele era capitão da guarda, condecorado, e ocupava cargos especiais e lucrativos em Petersburgo.
Embora alguns céticos sorrissem quando lhes falavam dos méritos de Berg, era impossível não reconhecer que era um oficial aplicado, corajoso, tido em alta conta pelos superiores, além de ser um jovem modesto e bem-comportado, com uma carreira brilhante à sua frente e até com uma posição sólida na sociedade.
Quatro anos antes, ao encontrar-se com um colega alemão na plateia de um teatro de Moscou, Berg havia lhe apontado Vera Rostóv e lhe dissera, em alemão: “Das soll mein Weib werden”,28 e naquele instante resolvera casar-se com ela. Agora, em Petersburgo, ponderando a sua situação e a situação dos Rostóv, Berg resolveu que havia chegado a hora e fez o pedido de casamento.
O pedido de Berg foi recebido, de início, com uma perplexidade pouco lisonjeira para ele. De início, pareceu estranho que o filho de um obscuro fidalgo da Lituânia pedisse em casamento uma condessa Rostova; mas o principal atributo da personalidade de Berg consistia num egocentrismo tão ingênuo e simpático que os Rostóv, mesmo sem querer, acharam que o casamento poderia ser bom, uma vez que o próprio Berg se mostrava tão firmemente convencido de que era bom, e até muito bom. De mais a mais, os negócios dos Rostóv andavam muito abalados, coisa que o noivo não podia ignorar e, acima de tudo, Vera tinha vinte e quatro anos, ia a toda parte e, apesar de ser incontestavelmente bonita e ajuizada, até então ninguém lhe fizera um pedido de casamento. Foi dada a aprovação.
— Pois é, veja bem — disse Berg a um de seus camaradas, a quem chamava de amigo só porque sabia que todo mundo tinha amigos. — Veja bem, eu examinei toda a situação e não iria me casar se eu não tivesse pensado em tudo e se, por qualquer motivo, fosse algo inconveniente. Mas, ao contrário, agora o papai e a mamãe têm uma situação confortável, eu consegui para eles um arrendamento na região báltica,29 e posso viver perfeitamente em Petersburgo com os meus honorários, com a fortuna dela e com o meu rigor no controle das despesas. É possível viver perfeitamente. Não vou casar por dinheiro, considero isso uma baixeza, mas é preciso que a esposa traga a sua parte, e o marido, a sua. Eu tenho um cargo público, ela tem boas ligações e poucos recursos. Hoje em dia, isso não é de se jogar fora, é? E acima de tudo ela é linda, respeitável e me ama...
Berg ficou vermelho e sorriu.
— E eu a amo, pois ela tem um caráter sensato... muito bom. Veja só a irmã dela... É da mesma família, mas completamente distinta, e tem um caráter desagradável, e a inteligência não é igual, é assim, sabe?... É desagradável... Mas a minha noiva... Escute, venha... — prosseguiu Berg, e quis dizer “venha almoçar”, mas pensou melhor e disse: — ... venha tomar chá conosco. — E, dobrando a língua rapidamente, soltou uma pequena rodela de fumaça de tabaco, a encarnação perfeita dos seus sonhos de felicidade.
Depois da sensação inicial de perplexidade que o pedido de casamento de Berg despertou nos pais de Vera, instalou-se na família a alegria e o ânimo festivo costumeiros nesses casos, só que a alegria não era sincera, mas exterior. Nos sentimentos dos pais em relação àquele casamento, percebia-se certa perturbação e certo acanhamento. Como se agora tivessem vergonha de terem amado Vera pouco e se desfizessem dela, agora, com satisfação. O mais constrangido de todos era o velho conde. Na certa, ele não saberia dizer a causa do seu constrangimento, mas a causa era a sua situação financeira. Ele não sabia absolutamente o que possuía, quanto devia e o que estava em condições de dar de dote para Vera. Quando nasceram as filhas, a cada uma couberam trezentas almas de dote; mas uma daquelas aldeias já fora vendida, outra estava hipotecada e com as prestações tão atrasadas que também teria de ser vendida, por isso era impossível dar uma propriedade. Dinheiro também não havia.
Berg já era noivo havia mais de um mês, e só faltava uma semana para o casamento, mas o conde não resolvia a questão do dote e não falava sobre o assunto nem com a esposa. O conde ora queria dar a Vera a propriedade de Riazan, ora queria dar uma floresta, ora queria tomar dinheiro emprestado em troca de uma promissória. Quando faltavam poucos dias para o casamento, Berg entrou no escritório do conde bem cedo e, com um sorriso simpático, pediu respeitosamente ao futuro sogro que lhe informasse o que daria de dote à condessa Vera. O conde ficou tão confuso diante daquela pergunta, prevista desde muito tempo, que falou sem pensar a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
— Acho ótimo que esteja interessado nisso, acho ótimo, vai ficar satisfeito...
Levantou-se e deu umas palmadinhas no ombro de Berg, no intuito de interromper a conversa. Mas Berg, com um sorriso simpático, explicou que, se ele não soubesse com certeza qual seria o dote de Vera, e se ele não recebesse adiantado pelo menos uma parte do que estava reservado à noiva, seria obrigado a desistir.
— Pois, pense bem, conde, se eu agora me permitisse casar sem ter os recursos necessários para sustentar a minha esposa, estaria agindo de modo infame...
A conversa terminou com o conde, no intuito de mostrar-se generoso e não se sujeitar a novos pedidos, dizendo que daria uma promissória de oitenta mil rublos. Berg sorriu docilmente, beijou o conde no ombro e disse que estava muito agradecido, mas era de todo impossível organizar uma vida nova sem receber trinta mil em dinheiro vivo.
— Pelo menos, vinte mil, conde — acrescentou. — E uma promissória só de sessenta mil.
— Sim, sim, está certo — disse o conde, afobado. — Mas, me desculpe, meu amigo, darei vinte mil e além disso uma promissória de oitenta mil rublos. Assunto encerrado. Beije-me.
XII
Natacha fez dezesseis anos, e era 1809, a mesma data que ela, quatro anos antes, havia assinalado para Boris, contando nos dedos, depois que os dois se beijaram. Desde então, Natacha não vira Boris nem uma vez. Diante de Sônia e da mãe, quando a conversa tratava de Boris, Natacha dizia com total liberdade, como se fosse uma questão resolvida, que tudo o que havia ocorrido antes era uma infantilidade sobre a qual não valia a pena falar e que já estava esquecida havia muito tempo. Porém, nas profundezas mais sombrias da sua alma, a questão de saber se o seu compromisso com Boris era uma brincadeira ou uma promessa importante que os unia continuava a atormentá-la.
Desde o tempo em que Boris partira de Moscou e entrara no Exército, em 1805, ele nunca mais estivera com os Rostóv.
Às vezes Natacha pensava que Boris não queria vê-la, e essas conjeturas eram confirmadas pelo tom triste que os mais velhos usavam ao falar sobre ele.
— Hoje em dia, já não se lembram dos velhos amigos — dizia a condessa quando Boris era mencionado.
Anna Mikháilovna, que ultimamente vinha pouco à casa dos Rostóv, também se portava com uma dignidade especial e sempre falava com entusiasmo e gratidão sobre os méritos do filho e sobre a carreira brilhante que ele estava fazendo. Quando os Rostóv chegaram a Petersburgo, Boris veio visitá-los.
Foi visitá-los não sem emoção. As recordações que Boris tinha de Natacha eram as suas recordações mais poéticas. Mas ao mesmo tempo ele foi com a firme intenção de dar a entender, a ela e aos pais, que as relações infantis entre ele e Natacha não podiam representar um compromisso, nem para ela, nem para ele. Boris tinha uma posição de destaque na sociedade, graças à intimidade com a condessa Bezúkhova, tinha uma posição de destaque no serviço público, graças à proteção de uma pessoa importante, que nele confiava plenamente, e Boris alimentava planos de casamento com uma das noivas mais ricas de Petersburgo, planos que podiam se concretizar com muita facilidade. Quando Boris entrou no salão dos Rostóv, Natacha estava no quarto. Ao saber da sua chegada, ela, ruborizada, entrou quase correndo no salão, radiante, com um sorriso mais do que afetuoso.
Boris lembrava-se da Natacha de vestido curto, de olhos pretos que brilhavam embaixo dos cachinhos e de um riso infantil e sem freios, a quem ele conhecera quatro anos antes, e por isso, quando entrou uma outra Natacha, totalmente diferente, Boris perturbou-se, e seu rosto exprimiu uma surpresa extasiada. A expressão do rosto dele deixou Natacha contente.
— O que foi? Não está reconhecendo a sua velha amiga travessa? — disse a condessa. Boris beijou a mão de Natacha e disse que estava admirado com a mudança nela ocorrida.
— Como a senhora ficou bonita!
“Não é mesmo?”, diziam os olhos radiantes de Natacha.
— E o papai, envelheceu? — perguntou ela. Natacha sentou-se e, sem entrar na conversa entre Boris e a condessa, examinava em silêncio o seu noivo de infância, até os mínimos detalhes. Boris sentia sobre si o peso daquele olhar afetuoso e persistente e, de vez em quando, lançava um olhar para ela.
O uniforme, as esporas, a gravata, o penteado de Boris — tudo estava no rigor da moda e comme-il-faut.30 Natacha percebeu isso na mesma hora. Boris estava sentado um pouco de lado na poltrona, perto da condessa, ajeitava com a mão direita a luva limpíssima que envolvia bem justa a mão esquerda, falava, com uma especial e refinada contração dos lábios, a respeito dos divertimentos da mais alta sociedade de Petersburgo e, com uma leve ironia, recordava os velhos tempos de Moscou e os antigos conhecidos moscovitas. Não por acaso, assim pareceu a Natacha, Boris recordou, ao mencionar a mais alta aristocracia, um baile na embaixada ao qual comparecera e os convites que recebera para ir à casa de N. N. e de S. S.
Natacha ficou calada o tempo todo, olhando para ele com o canto dos olhos. Aquele olhar, cada vez mais, inquietava e perturbava Boris. Ele virava-se muitas vezes, a fim de olhar para Natacha, e interrompia os relatos. Boris ficou não mais de dez minutos e levantou-se, inclinando a cabeça, em sinal de despedida. E sempre os mesmos olhos curiosos, provocantes e um pouco zombeteiros o fitavam. Depois da primeira visita, Boris disse consigo que Natacha, para ele, estava tão atraente como antes, mas que ele não devia ceder a tal sentimento, porque casar com ela — uma menina quase sem bens — seria a ruína da sua carreira, e reatar as antigas relações sem o propósito de casar seria um procedimento indigno. Boris decidiu evitar encontrar-se com Natacha, porém, apesar de tal decisão, veio visitar os Rostóv alguns dias depois e passou a vir com frequência e a passar dias inteiros na casa deles. Tinha consciência de que era preciso dar uma explicação a Natacha, dizer a ela que todo o passado tinha de ser esquecido, que apesar de tudo... ela não podia ser sua esposa, que ele não tinha fortuna e nunca deixariam que Natacha casasse com ele. Mas Boris não conseguia fazer isso de maneira alguma e sentia-se completamente sem jeito de dar tal explicação. Dia a dia, cada vez mais, ele se complicava. Natacha, segundo as observações da mãe e de Sônia, parecia enamorada de Boris como antes. Cantava para ele as suas canções prediletas, mostrava-lhe o seu álbum, obrigava-o a escrever no álbum, não lhe permitia lembrar os velhos tempos, dando a entender que os novos eram lindos; e todo dia Boris deixava aquela casa envolto numa nuvem, sem ter dito aquilo que tinha a intenção de dizer, sem saber o que estava fazendo, nem para que tinha ido lá, nem como aquilo ia terminar. Boris parou de ir à casa de Hélène, todos os dias recebia dela bilhetes de censura e mesmo assim passava dias inteiros na casa dos Rostóv.
XIII
Certa noite, quando a velha condessa, de touca e blusa de dormir, sem os cachinhos postiços, e só com um pobre tufo de cabelo saindo por baixo da touquinha branca de calicô, abaixava-se sobre um tapetinho suspirando e gemendo em curvaturas até o chão nas suas orações noturnas, a porta do seu quarto rangeu e, com chinelos nos pés descalços, também de blusinha de dormir e com papelotes nos cabelos, Natacha entrou correndo. A condessa virou-se e olhou, zangada. Estava terminando a sua última oração: “Não será este leito o meu túmulo?”. O seu estado de devoção e prece foi aniquilado. Natacha, vermelha, animada, ao ver a mãe rezando, parou de repente de correr, abaixou-se e, sem querer, pôs a língua para fora, repreendendo a si mesma. Ao notar que a mãe continuava a rezar, Natacha, na ponta dos pés, correu na direção da cama, esfregou os pezinhos um no outro rapidamente, desfez-se dos chinelos e saltou para o leito que a condessa temia que fosse o seu túmulo. O leito era alto, de penas, com cinco travesseiros, arrumados do maior para o menor. Natacha pulou, afundou-se no colchão de penas, rolou na direção da parede e começou a brincar debaixo da colcha, cobria-se, encolhia os joelhos até o queixo, esperneava e ria muito baixinho, ora cobria a cabeça, ora espiava a mãe. A condessa terminou as orações e, com o rosto severo, veio para a cama; mas, ao ver que Natacha estava de cabeça coberta, sorriu com o seu sorriso fraco e bom.
— Ora, ora, ora — disse a mãe.
— Mamãe, a gente pode conversar, pode? — disse Natacha. — Vamos, só uma vez, na sua covinha, e agora mais uma vezinha só. — Natacha abraçou o pescoço da mãe e beijou-a debaixo do queixo. Na sua atitude com a mãe, Natacha mostrava certa rudeza de maneiras, mas era tão delicada e afetuosa que, por mais que apertasse as mãos da mãe, sempre conseguia fazer isso de modo que não doía, não desagradava, não incomodava.
— E então, o que vai ser hoje? — perguntou a mãe, depois de se ajeitar nos travesseiros, e esperou que Natacha sacudisse as pernas, rolasse sobre si mesma umas duas vezes e, afinal, ficasse deitada ao seu lado, debaixo da mesma coberta, com os braços para fora e com uma fisionomia séria.
Aquelas visitas noturnas de Natacha, que se prolongavam até que o conde voltasse do clube, eram um dos prazeres prediletos da mãe e da filha.
— O que vai ser hoje? Tenho de falar com você...
Natacha cobriu a boca da mãe com a mão.
— Sobre o Boris... Eu sei — disse ela, séria. — Vim por causa disso mesmo. Não fale, eu sei. Não, me diga! — Tirou a mão. — Vamos, me diga, mãe: ele não é gentil?
— Natacha, você tem dezesseis anos, na sua idade eu já estava casada. Você diz que o Boris é gentil. É muito gentil, e eu gosto dele como um filho, mas o que você quer?... O que você está pensando? Você virou completamente a cabeça do rapaz, é o que estou vendo...
Ao dizer isso, a condessa olhou para a filha, ao seu lado. Natacha estava deitada, reta e imóvel, olhando para a frente, na direção de uma das esfinges de mogno esculpidas nos cantos do leito, e assim a condessa via só o perfil do rosto da filha. O rosto impressionou a condessa por sua seriedade especial e por sua expressão concentrada.
Natacha escutava e refletia.
— Mas e daí? — perguntou.
— Você virou completamente a cabeça do rapaz, por quê? O que está querendo dele? Você sabe que não pode casar com ele.
— Mas por quê? — disse Natacha, sem mudar de posição.
— Porque ele é jovem, porque é pobre, porque é um parente... Porque você mesma não o ama.
— E como é que você sabe?
— Eu sei. Isso não está certo, meu anjo.
— Mas e se eu quiser...
— Natacha, estou falando sério...
Natacha não deixou a mãe terminar de falar, puxou para si a mão grande da condessa e beijou-a por cima, depois beijou a palma da mão, depois virou-a de novo e começou a beijar o ossinho da articulação de um dedo, em seguida o intervalo entre os dedos, depois o ossinho da articulação seguinte, enquanto não parava de sussurrar: “Janeiro, fevereiro, março, abril, maio”.
— Fale, mamãe, por que está calada? Fale — disse ela, virando-se para olhar para a mãe, que fitava a filha com uma expressão carinhosa e que, naquela contemplação, parecia ter esquecido tudo o que pretendia dizer.
— Isso não fica bem, minha querida. Nem todo mundo vai entender a ligação infantil entre vocês, e o fato de as pessoas verem o Boris tão próximo de você pode prejudicá-la aos olhos dos outros jovens que vêm à nossa casa, e acima de tudo, isso perturba o rapaz à toa. Talvez ele já tivesse encontrado um bom partido, uma noiva rica; e agora ele está meio doido.
— Doido? — repetiu Natacha.
— Vou lhe contar uma coisa. Eu tinha um cousin...
— Eu sei. Kiril Matvieitch. Mas ele é um velho, não é?
— Nem sempre foi velho. Pois bem, Natacha, eu vou falar com o Boris. Ele não precisa vir aqui com tanta frequência...
— Por que não precisa, se ele tem vontade?
— Porque eu sei que isso não vai dar em nada.
— Por que você sabe? Não, mamãe, não fale com ele. Não se atreva a falar com ele. Mas que bobagem! — disse Natacha, no tom de uma pessoa de quem estão querendo tomar algo que lhe pertence. — Está bem, eu não vou casar, e daí? Deixe que ele venha, se ele fica contente com isso, e eu também. — Natacha, sorrindo, olhava para a mãe.
— Não vou casar, e daí? — repetiu Natacha.
— Como assim, minha querida?
— Pronto, e daí? Não há jeito de ele casar comigo... e daí?
— E daí, e daí — repetiu a condessa e, tremendo com o corpo todo, desatou uma boa e inesperada gargalhada de velha.
— Chega de rir, pare, vamos — começou a gritar Natacha. — Está fazendo tremer a cama toda. Você é horrivelmente parecida comigo, dá as mesmas gargalhadas... Espere... — Segurou as mãos da condessa, beijou o osso do dedo mindinho — ... junho... — e continuou a beijar julho e agosto na outra mão. — Mamãe, ele está muito apaixonado? O que a senhora acha? E pela senhora, ficavam apaixonados assim também? E ele é muito gentil, muito, muito gentil! Só que não é nem um pouco do meu gosto... Ele é assim, estreito, feito um relógio de parede... A senhora não entende? Estreito, sabe, cinza, cinza-claro...
— Que história é essa que está inventando agora? — disse a condessa.
Natacha continuou:
— Será que a senhora não entende? O Nikólienka ia entender... O Bezúkhov... é assim, azul, azul-escuro, e vermelho, quadrado.
— Com ele também você se faz de coquete — disse a condessa, rindo.
— Não, ele é franco-maçom, eu descobri. Ele é direito, azul-escuro e vermelho, como vou explicar à senhora?...
— Condessinha — ouviu-se a voz do conde por trás da porta. — Não vai dormir? — Natacha levantou-se de um pulo, descalça, agarrou os chinelos nas mãos e foi correndo para o seu quarto.
Ficou muito tempo sem conseguir dormir. Não parava de pensar no fato de que ninguém conseguia entender tudo o que ela entendia e tudo o que havia dentro dela.
“A Sônia?”, pensava Natacha, olhando para aquela gatinha adormecida, encolhida, com a sua trança imensa. “Não, nem de longe! Ela é virtuosa. Está apaixonada pelo Nikólienka e não quer saber de mais nada. Nem a mamãe nem ela entendem. Que coisa espantosa como eu sou inteligente e como... ela é meiga”, prosseguiu Natacha, falando de si mesma na terceira pessoa e imaginando que assim falava sobre ela um homem muito inteligente, o mais inteligente e o mais bonito que existia... “Tudo, dentro dela há tudo”, continuou a pensar aquele homem. “De uma inteligência extraordinária, gentil e ainda por cima bonita, extraordinariamente bonita, ágil... Nada, anda a cavalo muito bem, e que voz! Pode-se dizer que tem uma voz admirável!” Natacha cantarolou a sua melodia predileta, de uma ópera de Cherubini, jogou-se na cama, desatou a rir com o pensamento alegre de que logo iria dormir, gritou para Duniacha apagar a vela, e Duniacha mal teve tempo de sair do quarto, quando Natacha já passava para um mundo ainda mais feliz, o mundo dos sonhos, onde tudo era tão fácil e belo quanto na realidade, só que ainda melhor, porque era diferente.
No dia seguinte, a condessa convidou Boris para vê-la, conversou com ele e, a partir desse dia, Boris deixou de visitar os Rostóv.
XIV
No dia 31 de dezembro, véspera do Ano-Novo de 1810, le réveillon, um grande fidalgo dos tempos de Catarina oferecia um baile em sua casa. Ao baile, viriam o corpo diplomático e o soberano.
Na rua do Cais Inglês, a casa do famoso fidalgo resplandecia com as luzes incontáveis. Na entrada iluminada, forrada com um tapete de feltro vermelho, a polícia estava a postos, e não só os gendarmes, mas o próprio chefe de polícia estava na entrada, junto com dezenas de oficiais da polícia. Carruagens partiam e outras chegavam a todo instante, com lacaios de vermelho e com lacaios de penas no chapéu. Dos veículos, saltavam homens de uniforme, com medalhas e fitas; damas de cetim e arminho desciam com cuidado pelos estribos desdobrados ruidosamente e passavam depressa e sem fazer ruído pela entrada atapetada.
Quase toda vez que chegava uma nova carruagem, um rumor percorria a multidão, e as pessoas tiravam os chapéus.
— É o soberano?... Não, é um ministro... um príncipe... um embaixador. Não está vendo as plumas?... — falavam na multidão. Uma daquelas pessoas, mais bem-vestida do que as outras, parecia conhecer todos e sabia o nome dos fidalgos mais ilustres da época.
Um terço dos convidados já havia chegado, mas na casa dos Rostóv, que também deviam ir ao baile, ainda estavam nos apressados preparativos do vestuário.
Foram muitos os comentários e os preparativos para aquele baile, na família dos Rostóv, foram muitos os temores de que os convites não chegassem, de que os vestidos não ficassem prontos e de que tudo não corresse como era necessário.
Junto aos Rostóv, iria ao baile Mária Ignátievna Perónskaia, amiga e parenta da condessa, uma dama de honra da antiga corte, mulher magra e amarelada, que guiava os passos dos provincianos Rostóv na mais alta sociedade de Petersburgo.
Às dez horas da noite, os Rostóv deviam buscar a dama de honra no Jardim Tavrítcheski; naquela altura, já faltavam cinco minutos para as dez, e as mocinhas ainda não estavam vestidas.
Era o primeiro grande baile da vida de Natacha. Naquele dia, ela acordou às oito horas da manhã e passou o dia inteiro numa agitação e numa atividade febris. Desde a manhã, todas as suas energias estavam voltadas para que todas elas — a mãe, Sônia e ela mesma — ficassem vestidas da melhor forma possível. Sônia e a condessa confiavam-se inteiramente a Natacha. A condessa devia usar um vestido de veludo, cor de vinho, as meninas, vestidos brancos vaporosos, com bainhas de seda cor-de-rosa, e rosas no corpete. Os cabelos deviam estar penteados à la grecque.
Todo o essencial já estava pronto: os pés, as mãos, o pescoço e as orelhas já tinham sido lavados, perfumados e empoados de forma especial e com afinco, como um baile exigia; as meias rendilhadas de seda e os sapatos brancos de cetim com lacinhos já estavam calçados; os penteados já estavam quase prontos. Sônia terminava de vestir-se, e a condessa também; mas Natacha, que ajudava a todos, se atrasara. Ainda estava sentada diante do espelho, com um penhoar sobre os ombros magros. Sônia, já vestida, de pé no meio do quarto, apertava o alfinete com o dedo pequeno, até doer, para fixar a última fita, que rangia sob a pressão do alfinete.
— Assim não, assim não, Sônia! — disse Natacha, e virou a cabeça, sem se importar com o penteado, agarrando com as duas mãos os cabelos que a criada, que os segurava, não tivera tempo de soltar. — A fita não pode ficar assim, venha cá. — Sônia agachou-se. Natacha prendeu a fita de outro modo.
— Desculpe, patroazinha, assim não pode — disse a criada, que segurava os cabelos de Natacha.
— Ah, meu Deus, deixe para depois! Pronto, é assim, Sônia.
— Vai demorar? — Ouviu-se a voz da condessa. — Já são dez horas.
— Já vai, já vai. A senhora está pronta, mãe?
— Só falta prender a touca.
— Não faça isso sem mim — gritou Natacha. — A senhora não sabe!
— Mas já são dez horas.
Tinham resolvido chegar ao baile às dez e meia, mas Natacha ainda tinha de se vestir, e eles precisavam passar antes no Jardim Tavrítcheski.
Concluído o penteado, Natacha, de anágua, sob a qual se viam os sapatinhos de baile, e com uma blusinha de dormir da mãe, correu na direção de Sônia, observou-a e depois correu para a mãe. Virando a cabeça da mãe para os lados, Natacha prendeu a touca e mal teve tempo de beijar seus cabelos grisalhos, quando correu outra vez para as criadas que costuravam a bainha da sua saia.
O problema era que a saia de Natacha estava comprida demais; duas criadas costuravam a bainha, rompendo a linha com os dentes, às pressas. Uma outra, com um alfinete entre os lábios e os dentes, corria da condessa para Sônia; uma quarta segurava na mão erguida, bem alto, o vestido vaporoso.
— Mávrucha, depressa, queridinha!
— Dê aqui o dedal, patroazinha.
— Mas, afinal, ainda vai demorar? — disse o conde, entrando por uma porta. — Os perfumes de vocês estão aqui. A Perónskaia já está esperando.
— Pronto, patroazinha — disse a criada, levantando com dois dedos o vestido vaporoso com a bainha pronta e limpando e sacudindo alguma coisa, a fim de, com aquele gesto, chamar a atenção para a limpeza e a vaporosidade do objeto que ela segurava.
Natacha começou a pôr o vestido.
— Já vai, já vai, não entre, papai! — gritou para o pai, que havia aberto a porta, na hora em que Natacha ainda tinha o rosto totalmente coberto pela saia vaporosa, que estava vestindo. Sônia bateu a porta com força. Um minuto depois, deixaram o conde entrar. Ele estava de fraque azul, meias e sapatos, perfumado e com pomada no cabelo.
— Papai, como está bonito, que encanto! — disse Natacha, de pé no meio do quarto, ajeitando as pregas do vestido vaporoso.
— Com licença, patroazinha, com licença — dizia uma criada, de joelhos, puxando o vestido para ajeitá-lo, enquanto, com a língua, passava os alfinetes de um lado para outro da boca.
— Você é que sabe — gritou Sônia, em desespero, depois de olhar para o vestido de Natacha. — Você é que sabe, mas continua comprido!
Natacha afastou-se um pouco mais a fim de mirar-se no espelho da cômoda. O vestido estava comprido.
— Não é nada, senhora, não tem nada de comprido — disse Mávrucha, de gatinhas no chão, perto de Natacha.
— Muito bem, está comprido, o jeito é alinhavar a bainha, vamos alinhavar num minuto — disse Duniacha com determinação, pegando uma agulha no xalezinho que tinha no peito e lançando-se de novo ao trabalho, agachada no chão.
Nessa altura, entrou a condessa, acanhada, em passos silenciosos, com a sua touca e num vestido de veludo.
— Oh! Minha beldade! — gritou o conde. — A mais bonita de todas!... — Quis abraçá-la, mas a condessa, ruborizando-se, esquivou-se a fim de não amarrotar a roupa.
— Mamãe, a touca tem de ficar mais de lado — explicou Natacha. — Eu vou prender com um alfinete. — E precipitou-se para a frente, mas as criadas que alinhavavam a sua bainha não conseguiram se mover atrás dela e rasgaram um pedacinho do vestido vaporoso.
— Meu Deus! O que é isso? Puxa, não tive culpa...
— Não é nada, eu costuro, ninguém vai notar — disse Duniacha.
— Que beldade, essa é a minha rainha! — disse a babá, que veio de trás da porta. — Ah, Sóniuchka, que beldades!...
Às dez e quinze, enfim, eles subiram na carruagem e partiram. Mas ainda era preciso passar no Jardim Tavrítcheski.
Perónskaia já estava pronta. Apesar da idade avançada e da feiura, acontecera em sua casa exatamente o mesmo que na casa dos Rostóv, ainda que não com tanta afobação (para ela, era algo habitual), mas o seu corpo velho e feio também estava perfumado, lavado e empoado, e a parte de trás das orelhas tinham sido do mesmo modo aplicadamente limpas, e, como acontecera entre os Rostóv, até a velha criada de quarto admirou-se com entusiasmo ao ver a indumentária da sua senhora, quando ela saiu para a sala num vestido amarelo, com o emblema de dama de honra da corte bordado. Perónskaia elogiou as roupas dos Rostóv.
Os Rostóv elogiaram o gosto de Perónskaia e a sua roupa e, às onze horas, tomando cuidado com os penteados e os vestidos, embarcaram nas carruagens e partiram.
XV
Desde a manhã daquele dia, Natacha não teve um só minuto de liberdade e não conseguira pensar nenhuma vez naquilo que a aguardava.
No ar úmido e frio, no aperto e na semiescuridão da carruagem, que avançava aos solavancos, Natacha, pela primeira vez, imaginou de modo vivo o que a aguardava no baile, nos salões iluminados — a música, as flores, as danças, o soberano, toda a brilhante juventude de Petersburgo. O que a aguardava era tão lindo que Natacha nem acreditava que fosse acontecer: era incompatível demais com a sensação de frio, de aperto e de escuro, dentro da carruagem. Ela só entendeu tudo o que a aguardava quando, depois de passar pelo tapete de feltro vermelho da entrada, chegou ao vestíbulo, tirou o casaco de pele e, entre flores, ao lado de Sônia e à frente da mãe, subiu a escada iluminada. Só então Natacha recordou como devia se portar num baile e esforçou-se para adotar as maneiras solenes que ela considerava indispensáveis para uma jovem, num baile. Porém, para sua sorte, Natacha sentiu que seus olhos se nublavam: ela não enxergava nada com clareza, seu pulso batia cem vezes por minuto e o sangue começou a martelar forte no coração. Ela não conseguia adotar aquelas maneiras, que a deixariam ridícula, e continuava a andar, à beira de um desmaio de tanta emoção, empregando todas as suas forças só para esconder essa emoção. E essa era a atitude que combinava melhor com Natacha. À frente e atrás delas, subiam outras convidadas, também conversando em voz baixa e também em vestidos de baile. Os espelhos junto à escada refletiam as damas em vestidos brancos, azuis, cor-de-rosa, com diamantes e pérolas nos braços e no pescoço descoberto.
Natacha olhava para o espelho e, no reflexo, não conseguia se distinguir das outras. Todas se confundiam num cortejo brilhante. Na entrada do primeiro salão, um rumor de vozes, passos, cumprimentos, ensurdecia Natacha; a luz e o brilho a cegavam ainda mais. A anfitriã e o anfitrião já estavam na porta de entrada havia meia hora e diziam as mesmas palavras aos que chegavam: “Charmé de vous voir”,31 e assim também saudaram os Rostóv e Perónskaia.
As duas mocinhas de vestidos brancos, com rosas iguais nos cabelos pretos, fizeram a mesma reverência, mas a anfitriã, sem querer, deteve o olhar mais tempo na franzina Natacha. Observou-a e, além do seu sorriso de anfitriã, sorriu de um modo diferente, só para Natacha. Ao olhar para Natacha, a anfitriã recordava, talvez, os seus tempos dourados de mocidade, perdidos para sempre, e o seu primeiro baile. O anfitrião também se demorou com os olhos em Natacha e perguntou ao conde qual delas era a sua filha.
— Charmante! — disse, depois de beijar a pontinha dos próprios dedos unidos.
Os convidados estavam no salão, aglomerados na frente da porta de entrada, à espera do soberano. A condessa tomou posição nas primeiras fileiras daquela multidão. Natacha escutava e percebia que diversas vozes indagavam a respeito dela e que a observavam. Natacha se dava conta de que estava agradando àqueles que prestavam atenção nela, e essa observação a tranquilizou um pouco.
“Existem algumas iguais a nós, mas também existem piores”, pensou ela.
Perónskaia apontava para a condessa as pessoas mais ilustres presentes no baile.
— Olhe, aquele é o embaixador holandês, veja, o grisalho — disse Perónskaia, indicando um velhote de cãs prateadas nos cabelos crespos e abundantes, rodeado por senhoras, às quais ele fazia rir de alguma coisa.
— E lá está ela, a rainha de Petersburgo, a condessa Bezúkhova — disse Perónskaia, apontando para Hélène, que acabara de entrar. — Que bonita! Não fica nada a dever a Mária Antónovna;32 veja como os jovens e os velhos a cortejam. E, além de bonita, é inteligente. Dizem que o príncipe... está louco por ela. E veja aquelas duas, embora não sejam bonitas, há mais gente ainda em torno delas.
Apontou para uma senhora que atravessou o salão com a sua filha feia.
— É um partido milionário — disse Perónskaia. — E lá estão os pretendentes. Esse é o irmão de Bezúkhova, Anatole Kuráguin — disse, apontando para um belo oficial da cavalaria da guarda que passava por elas, com a cabeça muito empinada, olhando para algum ponto além das duas mulheres. — Como é bonito! Não é verdade? Dizem que vai casar com aquela ricaça. Mas o cousin da senhora, o Drubetskói, também a corteja bastante. Dizem que ela possui milhões. Pois é, aquele é o embaixador francês em pessoa — respondeu Perónskaia a uma pergunta da condessa sobre Caulaincourt. — Parece até que é o rei de alguma coisa. Mesmo assim, são gentis, os franceses, muito gentis. Em sociedade, não há mais gentis do que eles. Ah, lá está ela! Não, a nossa Mária Antónovna é a mais bela de todas! E como se veste com simplicidade. Um encanto! E aquele gordo de óculos é o farmaçon33 universal — disse Perónskaia, apontando para Bezúkhov. — Ponha-o ao lado da esposa: um verdadeiro palhaço!
Pierre andava gingando o seu corpo gordo, abria caminho na multidão, lançava cumprimentos à direita e à esquerda, tão displicente e simpático como se andasse no meio da multidão no mercado público. Avançava pela multidão visivelmente à procura de alguém.
Natacha olhou com alegria para o conhecido rosto de Pierre, aquele verdadeiro palhaço, como o chamou Perónskaia, e sabia que Pierre procurava por elas na multidão, em especial por Natacha. Pierre lhe prometera que iria ao baile e lhe apresentaria cavalheiros para dançar.
Porém, antes de chegar a elas, Pierre parou ao lado de um moreno baixo, muito bonito, de uniforme branco, que junto à janela conversava com um homem alto, com medalhas e galões. Natacha logo reconheceu o jovem baixo, de uniforme branco: era Bolkónski, que lhe pareceu muito mais jovem, mais alegre e mais bonito.
— Olhe ali mais um conhecido, o Bolkónski, está vendo, mamãe? — disse Natacha, apontando para o príncipe Andrei. — Lembra, ele dormiu em nossa casa em Otrádnoie.
— Ah, vocês o conhecem? — disse Perónskaia. — Não consigo suportar. Il fait à présent la pluie et le beau temps.34 E que orgulho sem limite! Puxou ao pai. E está ligado ao Speránski, redige sei lá que projetos. Vejam como trata as damas! Uma estava falando com ele, mas ele lhe deu as costas — disse Perónskaia, apontando para Bolkónski. — Se agisse comigo como faz com aquelas senhoras, eu lhe daria uma boa lição.
XVI
De repente, todos se agitaram, a multidão começou a falar, a se mexer, avançou outra vez e, no caminho aberto entre duas fileiras, aos sons da música que começou a soar, entrou o soberano. Atrás dele, vinham o anfitrião e a anfitriã. O soberano caminhava ligeiro, cumprimentava com a cabeça à direita e à esquerda, como se tentasse se livrar logo daqueles primeiros momentos da sua recepção. Os músicos tocaram uma polonesa, famosa na época, por causa da letra que acompanhava a melodia. Os versos começavam assim: “Alexandre, Elizavieta, vocês nos deixam maravilhados”. O soberano seguiu para o salão de festa, a multidão se precipitou na direção da porta; algumas pessoas com a fisionomia alterada andavam às pressas de um lugar para o outro. Mais uma vez, a multidão afastou-se rapidamente da porta onde surgiu o soberano, conversando com a anfitriã. Um jovem de aspecto desnorteado avançou para as damas, pedindo que abrissem caminho. Algumas, com rostos que exprimiam um completo esquecimento de todas as normas da sociedade, empurravam-se e chegavam a estragar sua toalete para ficar na frente. Os homens começaram a tirar as damas para dançar, e os pares da polonesa se formavam.
Todos deram passagem, e o soberano, sorrindo e conduzindo a anfitriã pelo braço, mas fora do ritmo, saiu pela porta do salão. Atrás dele, foram o anfitrião e M. A. Naríchkina; 35 em seguida, os embaixadores, os ministros e diversos generais, que Perónskaia, sem parar de falar, ia indicando pelo nome. Mais da metade das damas tinham cavalheiros e tomavam posição para a polonesa, ou se preparavam para isso. Natacha percebeu que ela, junto com a mãe e Sônia, fazia parte de uma minoria de damas que, recuadas para junto da parede, ninguém vinha tirar para dançar a polca. Natacha estava de pé, parada, os braços franzinos caídos, o peito, ainda pouco definido, levantava e baixava ritmadamente, ela continha a respiração e, com olhos assustados e brilhantes, mirava à sua frente, com uma expressão alerta, preparada para a maior alegria e para o maior desgosto. Não lhe interessavam nem o soberano nem as pessoas ilustres para as quais Perónskaia apontava — só tinha um pensamento: “Será que ninguém vai me tirar para dançar, será que não vou dançar entre as primeiras, será que não reparam em mim todos esses homens, que agora parecem que nem estão me vendo, e que, se olham para mim, olham com uma expressão que parece dizer: ‘Ah! Não é ela, nem vale a pena olhar!’. Não, não pode ser!”, pensava Natacha. “Eles devem saber como é grande a minha vontade de dançar, como eu danço bem e como ficariam contentes de dançar comigo.”
Os sons da polonesa, que se prolongou por muito tempo, já começavam a soar, para Natacha, como reminiscências tristes. Tinha vontade de chorar. Perónskaia havia se afastado delas. O conde estava do outro lado do salão, a condessa, Sônia e ela estavam sozinhas, como numa floresta, inúteis e sem interesse para ninguém, no meio daquela multidão desconhecida. O príncipe Andrei passou por elas com uma dama e obviamente não as reconheceu. O belo Anatole, sorrindo, disse algo à dama a quem conduzia e lançou um olhar para o rosto de Natacha, com a mesma expressão com que se olha para uma parede. Boris passou por elas duas vezes e sempre se esquivava. Berg e a esposa, que não estavam dançando, vieram na direção das Rostóv.
Para Natacha, aquele grupo familiar, ali no baile, parecia algo vergonhoso, como se não houvesse outro lugar para as conversas da família que não fosse num baile. Natacha não escutava as palavras de Vera nem olhava para ela, que lhe dizia algo sobre o seu próprio vestido verde.
Por fim, o soberano parou ao lado de sua última dama (havia dançado com três), a música cessou; um ajudante de ordens pressuroso correu para as Rostóv e pediu que recuassem ainda mais, embora já estivessem junto à parede, e os sons nítidos e precisos de uma valsa irromperam de onde estava a orquestra, num ritmo arrebatador. O soberano, com um sorriso, lançou um olhar para o salão. Passou um minuto — ninguém começava. O ajudante de ordens e mestre de cerimônias aproximou-se da condessa Bezúkhova e tirou-a para dançar. Sorrindo, ela ergueu a mão e colocou-a no ombro do ajudante de ordens, sem olhar para ele. O ajudante de ordens, mestre do seu ofício, com convicção, sem pressa e no ritmo, abraçado com firmeza ao seu par, lançou-se com ela, de início, num glissade 36 pela margem do círculo; ao chegar ao canto do salão ergueu a mão esquerda, virou-a e, por trás dos sons cada vez mais acelerados da música, ouvia-se apenas o tilintar ritmado das esporas nos pés velozes e ágeis do ajudante de ordens e, a cada três compassos, o vestido de veludo da sua dama, esvoaçando, parecia incendiar-se. Natacha olhava para eles e estava à beira de chorar, pois não era ela quem dançava a primeira volta da valsa.
O príncipe Andrei, em seu uniforme branco de coronel (da cavalaria), de meias e sapatos de gala, animado e alegre, se achava nas primeiras fileiras do círculo, não distante das Rostóv. O barão Firhoff conversava com ele a respeito da primeira sessão do Conselho de Estado, marcada para o dia seguinte. Na condição de uma pessoa próxima de Speránski, envolvida nos trabalhos da comissão legisladora, o príncipe Andrei podia dar informações fidedignas sobre a sessão do dia seguinte, em torno da qual corriam diversos rumores. Mas ele não dava atenção ao que Firhoff lhe dizia e olhava ora para o soberano, ora para os cavalheiros que tinham intenção de dançar, mas que não se atreviam a entrar no círculo.
O príncipe Andrei observava aqueles cavalheiros, tímidos na presença do soberano, e as damas, que desfaleciam de vontade de serem tiradas para dançar.
Pierre aproximou-se do príncipe Andrei e segurou-o pelo braço.
— O senhor sempre dança. Está aqui a minha protégée, a jovem Rostova, tire-a para dançar — disse.
— Onde está? — perguntou Bolkónski. — Queira desculpar — disse, voltando-se para o barão. — Terminaremos esta conversa em outro lugar, mas num baile é preciso dançar. — Avançou na direção que Pierre lhe apontava. O rosto de Natacha, desesperado e abatido, chamou a atenção do príncipe Andrei. Ele a reconheceu, adivinhou o seu sentimento, entendeu que era uma estreante, recordou a conversa ouvida na janela e, com uma expressão alegre no rosto, aproximou-se da condessa Rostova.
— Permita que lhe apresente a minha filha — disse a condessa, ruborizando-se.
— Já tive o prazer de ser apresentado, caso a condessa se lembre de mim — respondeu o príncipe Andrei, inclinando bastante a cabeça numa reverência respeitosa, em total desacordo com os comentários de Perónskaia sobre a sua rudeza, e aproximou-se de Natacha, erguendo o braço para envolver a sua cintura, antes mesmo de haver terminado o convite para a dança. Propôs dançar a valsa. A expressão abatida do rosto de Natacha, pronta para o desespero e para o êxtase, iluminou-se de repente com um sorriso alegre, agradecido, infantil.
“Faz muito tempo que eu esperava por você”, parecia dizer aquela menina assustada e feliz, com o sorriso radiante por trás das lágrimas já prontas, enquanto levantava a mão e a apoiava no ombro do príncipe Andrei. Os dois formaram o segundo par a entrar no círculo. O príncipe Andrei era um dos melhores dançarinos do seu tempo. Natacha dançava esplendidamente. Seus pezinhos, em sapatos de baile feitos de cetim, faziam o seu trabalho com rapidez, leveza, e independentes de Natacha, e seu rosto brilhava no enlevo da felicidade. O pescoço e os braços nus eram magros e feios em comparação com os ombros de Hélène. Natacha tinha os ombros magros, o peito ainda indefinido, os braços finos; no entanto, em Hélène, já havia como que um verniz deixado pelos milhares de olhos que haviam deslizado pelo seu corpo, enquanto Natacha parecia uma garota a quem desnudavam pela primeira vez, e que sentiria muita vergonha disso, se não a tivessem convencido de que tinha de ser assim.
O príncipe Andrei adorava dançar e, desejoso de se livrar o mais depressa possível das conversas políticas e intelectuais que todos queriam entabular com ele, e desejoso de romper, o mais depressa possível, aquele círculo constrangedor que o aborrecia, criado pela presença do soberano, ele foi dançar, e escolheu Natacha porque Pierre a indicara, e porque, entre as mulheres bonitas, ela foi a primeira que lhe chamou a atenção; porém, assim que abraçou o talhe fino, maleável, palpitante, e Natacha começou a se mover tão perto dele, sorrindo tão perto dele, o vinho do seu encanto subiu à cabeça do príncipe Andrei: ele sentia-se reanimado e rejuvenescido quando, depois de conduzir Natacha de volta ao seu lugar, deteve-se, ainda recuperando o fôlego, e ficou a observar os outros pares que dançavam.
XVII
Depois do príncipe Andrei, Boris veio ao encontro de Natacha e convidou-a para dançar, o mesmo fez o ajudante de ordens dançarino que havia aberto o baile, e também vários jovens, e Natacha, que transferia para Sônia os cavalheiros que lhe sobravam, feliz e ruborizada, não parou de dançar a noite inteira. Não notava e não via nada do que interessava a todos naquele baile. Não só não notou que o soberano conversava bastante com o embaixador francês, que o soberano conversava de um modo especialmente afável com uma certa dama, que os príncipes fulano e beltrano fizeram isso e disseram aquilo, que Hélène alcançara um grande sucesso e merecera uma atenção especial de certa pessoa; Natacha nem mesmo viu o soberano e só notou que ele havia saído porque, depois da sua saída, o baile ficou mais animado. Num dos cotilhões mais alegres, antes do jantar, o príncipe Andrei dançou de novo com Natacha. Lembrou a ela o primeiro encontro entre ambos, na alameda da propriedade de Otrádnoie, e lembrou como ela não conseguia dormir naquela noite de luar, quando ele a escutara sem querer, pela janela. Natacha ruborizou-se ao ouvir aquelas recordações e tentava justificar-se, como se houvesse algo de vergonhoso no sentimento que o príncipe Andrei, sem querer, a ouviu exprimir na janela.
A exemplo de toda gente criada na sociedade, o príncipe Andrei gostava de encontrar na sociedade algo que não trouxesse em si a marca mundana comum. E assim era Natacha, com a sua surpresa, alegria e timidez, e até com os seus erros de francês. O príncipe Andrei a tratava com uma ternura e uma solicitude especiais. Sentado a seu lado, conversando com Natacha sobre os assuntos mais simples e insignificantes, deliciava-se com o brilho alegre dos olhos e do sorriso da jovem, que se referia não às palavras ditas de fato, mas à sua própria felicidade interior. Quando outros tiravam Natacha para dançar e ela se punha de pé com um sorriso e dançava pelo salão, o príncipe Andrei se deliciava, em especial, com a sua graça tímida. No meio do cotilhão, após terminar uma das figuras previstas na dança, Natacha voltou ao seu lugar ainda ofegante. Um outro cavalheiro tirou-a para dançar de novo. Natacha estava cansada, ofegante, e visivelmente pensou em recusar o convite, mas logo ergueu a mão com alegria até o ombro do cavalheiro e sorriu para o príncipe Andrei.
“Eu bem que gostaria de descansar e ficar sentada ao lado do senhor, estou cansada; mas, como está vendo, já que me tiram para dançar, e isso me deixa contente, e estou feliz, e gosto de todos, eu e o senhor compreendemos tudo isso”, e muito, muito mais dizia aquele sorriso. Quando o cavalheiro a deixou, Natacha correu pelo salão a fim de unir-se a duas damas para uma figura da dança.
“Se ela se aproximar primeiro da sua prima e depois da outra dama, ela será minha esposa”, disse consigo o príncipe Andrei, de forma completamente inesperada, olhando para Natacha. Ela se aproximou primeiro da prima.
“Que absurdos passam pela nossa cabeça, às vezes!”, pensou o príncipe Andrei. “Mas na verdade essa menina é tão doce, tão diferente, que não vai dançar aqui nem um mês, sem que se case... É uma peça rara, por aqui”, pensou, quando Natacha, ajeitando uma rosa que se soltara do corpete, veio sentar-se ao lado dele.
No fim do cotilhão, o velho conde, em seu fraque azul, aproximou-se dos dançarinos. Convidou o príncipe Andrei a visitar a sua casa e perguntou à filha se estava se divertindo. Natacha não respondeu, apenas sorriu, com um sorriso que dizia, em tom de recriminação: “Como pode perguntar uma coisa dessas?”.
— Nunca me diverti tanto na vida! — disse ela, e o príncipe Andrei notou como os braços de Natacha se ergueram depressa como se fossem abraçar o pai, mas logo depois baixaram. Ela estava mais feliz do que nunca, em toda a sua vida. Estava naquele grau supremo de felicidade, quando a pessoa se torna inteiramente boa e bela e não acredita na possibilidade do mal, da infelicidade e do desgosto.
No baile, Pierre, pela primeira vez, sentiu-se ofendido com a posição que a esposa ocupava nas mais altas esferas. Pierre estava triste e alheio. Ao longo da testa, havia uma ruga profunda, e ele, parado junto à janela, olhava através dos óculos sem ver ninguém.
Natacha passou por ele quando se encaminhava para o jantar.
O rosto sombrio, infeliz, de Pierre impressionou-a. Ela parou diante dele. Tinha vontade de ajudá-lo, transmitir-lhe a felicidade que tinha de sobra.
— Como o baile está divertido, conde — disse Natacha. — Não é verdade?
Pierre sorriu, desatento, visivelmente sem entender o que ela dizia.
— Sim, estou muito contente — respondeu.
“Como é possível ficar descontente com alguma coisa?”, pensou Natacha. “Ainda mais alguém tão bom, como o Bezúkhov.” Aos olhos de Natacha, todos os que estavam no baile eram pessoas igualmente boas, gentis, lindas, que se amavam umas às outras: ninguém podia ofender o outro, e portanto todos tinham de estar felizes.
XVIII
No dia seguinte, o príncipe Andrei lembrou-se do baile do dia anterior, mas logo foi interrompido por pensamentos: “Sim, o baile foi esplêndido. Além disso... sim, Rostova é muito graciosa. Nela, há um frescor diferente, que não é de Petersburgo, e que a distingue”. Aí está tudo o que pensou a respeito do baile da véspera, e depois de tomar o chá foi cuidar do trabalho.
Porém, por cansaço ou por ter dormido mal, o dia foi ruim para os seus afazeres, e o príncipe Andrei não conseguiu produzir nada, não parava de criticar o próprio trabalho, como não era raro acontecer, e ficou contente quando vieram avisar que alguém tinha chegado.
O visitante era Bítski, que servia em diversas comissões, frequentava todos os círculos sociais de Petersburgo, um entusiasmado admirador das novas ideias e de Speránski, e um zeloso difusor de mexericos em Petersburgo, uma dessas pessoas que escolhem uma tendência como se escolhe um vestido — pela moda, mas que por isso mesmo parecem os mais fervorosos partidários dessa tendência. Preocupado, mal tendo tempo de tirar o chapéu, entrou afoito no escritório do príncipe Andrei e logo começou a falar. Tinha acabado de saber de pormenores da sessão do Conselho de Estado daquela manhã, aberta pelo soberano, e relatou com entusiasmo o que sabia. O discurso do soberano fora extraordinário. Um daqueles discursos que só monarcas constitucionais pronunciavam. “O soberano disse abertamente que o Conselho e o Senado são corporações do Estado; disse que o governo deve ter por base não o arbítrio, e sim princípios sólidos. O soberano disse que as finanças têm de ser reformadas e que os relatórios das contas do Estado têm de ser públicos”, contou Bítski, enfatizando certas palavras e arregalando os olhos de modo significativo.
— Sim, os acontecimentos de hoje marcam o início de uma era, a era mais importante da nossa história — concluiu.
O príncipe escutou o relato da abertura da sessão do Conselho de Estado, que ele aguardava com tanta impaciência e à qual atribuía tanta relevância, e admirou-se ao ver que aquele acontecimento, agora que se realizara, não só não o comovia como lhe parecia ainda menos do que insignificante. Com uma ironia serena, ouvia o relato empolgado de Bítski. Passou pela sua cabeça este pensamento muito simples: “O que importa para mim e para o Bítski, o que nos importa se o soberano achou conveniente falar no Conselho? Por acaso tudo isso pode me tornar mais feliz e melhor?”.
E, de repente, esse simples raciocínio tornou insignificante para o príncipe Andrei todo o seu antigo interesse pelas reformas iminentes. Naquele mesmo dia, o príncipe Andrei deveria jantar com Speránski, “en petit comité ”,37 como lhe disse o anfitrião, ao convidá-lo. Aquele jantar, no círculo da família e dos amigos de um homem que tanto o maravilhava, era até então de grande interesse para o príncipe Andrei, sobretudo porque ainda não tinha visto Speránski na sua vida doméstica; só que agora não sentia mais nenhuma vontade de ir.
Na hora marcada para o jantar, porém, o príncipe Andrei entrou na casa pequena de Speránski, no Jardim Tavrítcheski. Na sala de jantar, com soalho de parquê, da casinha pequena, que se destacava pela limpeza incomum (fazia lembrar uma limpeza monástica), o príncipe Andrei, um pouco atrasado, já encontrou reunida ali, às cinco horas, toda a sociedade daquele petit comité, os conhecidos íntimos de Speránski. Não havia nenhuma dama, exceto a filha pequena de Speránski (de rosto comprido, parecida com o pai) e sua preceptora. Os convidados eram Gervais, Magnítski e Stolípin. Ainda no vestíbulo, o príncipe Andrei ouviu vozes altas e uma gargalhada ruidosa e bem definida — uma gargalhada semelhante àquelas com que riem num palco de teatro. A voz de alguém, parecida com a voz de Speránski, estalava de modo bem claro: Ha, ha, ha. O príncipe Andrei nunca ouvira Speránski rir, e aquele riso ruidoso, agudo, de um homem de Estado, causou-lhe uma impressão estranha.
O príncipe Andrei entrou na sala de jantar. Todo o grupo se achava de pé entre duas janelas, perto de uma pequena mesa com antepastos. Speránski, num fraque cinza com uma medalha, pelo visto com o mesmo colete branco e a mesma gravata branca e alta que usara na tão falada sessão do Conselho de Estado, com o rosto alegre, estava de pé junto à mesa. Os convidados o rodeavam. Magnítski, que se dirigia a Mikhail Mikháilovitch, contava uma piada. Speránski escutava e ria ainda antes de Magnítski terminar de contar. No momento em que o príncipe Andrei entrou na sala, as palavras de Magnítski foram, outra vez, abafadas pelo riso. Stolípin falou em voz grossa, de baixo, enquanto mastigava um pedaço de pão com queijo; Gervais chiava num riso baixo, e Speránski ria de modo estalado e agudo.
Sem parar de rir, Speránski estendeu para o príncipe Andrei a mão branca e feminina.
— Tenho muito prazer em ver o senhor, príncipe — disse. — Só um minuto... — dirigiu-se para Magnítski, interrompendo o seu relato. — Fizemos um trato: é um jantar de lazer, nenhuma palavra sobre trabalho. — E voltou-se de novo para o contador de histórias e riu outra vez.
O príncipe Andrei, com o espanto e a tristeza da decepção, escutava aquele riso e observava o gargalhante Speránski. Não era o mesmo Speránski, mas, sim, outra pessoa, pensou o príncipe Andrei. Tudo aquilo que antes, em Speránski, parecia ao príncipe Andrei misterioso e cativante de súbito se tornara banal e sem graça.
À mesa, a conversa não cessava nem por um minuto e parecia uma antologia de anedotas engraçadas. Magnítski mal tinha tempo de terminar a piada, quando outro já deixava claro que estava pronto para contar uma história ainda mais engraçada. A maior parte das piadas tratava, se não do mundo do serviço público em si, das próprias pessoas dos servidores. Parecia que o grupo decretara a insignificância daquelas pessoas de maneira tão categórica que a única atitude possível em relação a elas era de uma zombaria indulgente. Speránski contou que, no conselho daquela manhã, quando ele respondeu a um dignitário surdo que lhe havia perguntado a sua opinião, o mesmo dignitário replicou que era da mesma opinião. Gervais contou a história inteira de uma inspeção, notável pela insensatez de todas as pessoas envolvidas. Stolípin, gaguejando, interveio na conversa e, com ardor, começou a falar dos abusos vigentes na antiga ordem das coisas, ameaçando dar à conversa um caráter sério. Magnítski passou a escarnecer do entusiasmo de Stolípin. Gervais introduziu uma brincadeira, e a conversa tomou, de novo, o rumo divertido de antes.
Era evidente que Speránski, depois do trabalho, gostava de repousar e divertir-se entre amigos, e todos os seus convidados, entendendo o seu desejo, tentavam alegrá-lo e alegrar-se a si mesmos. Mas aquela alegria pareceu pesada e sem graça ao príncipe Andrei. O som agudo da voz de Speránski o impressionava de modo desagradável, e o riso incessante, com o seu tom falso, por algum motivo ultrajava o sentimento do príncipe Andrei. Ele não ria e receava ser um incômodo para aquela reunião. Mas ninguém percebia a sua incompatibilidade com o estado de ânimo geral. Parecia que todos estavam muito alegres.
Algumas vezes ele quis entrar na conversa, mas suas palavras eram sempre jogadas para longe, como uma rolha de cortiça que se joga na água; e ele não conseguia gracejar junto aos outros.
Nada havia de ruim ou despropositado no que diziam, tudo era espirituoso e talvez fosse engraçado; no entanto, não só não havia justamente aquilo que constitui o sal da alegria, como eles nem sabiam que tal coisa pudesse existir.
Depois do jantar, a filha de Speránski e sua preceptora levantaram-se. Speránski afagou a filha com a mão branca e beijou-a. E esse gesto pareceu artificial ao príncipe Andrei.
Os homens, à maneira inglesa, permaneceram à mesa e tomaram vinho do Porto. No meio da conversa que se iniciara a respeito das ações de Napoleão na Espanha,38 aprovadas por todos em opinião unânime, o príncipe Andrei começou a contradizê-los. Speránski sorriu e, obviamente a fim de desviar a conversa para um rumo agradável, contou uma piada que não tinha relação com a conversa. Durante alguns momentos, todos ficaram calados.
Depois de permanecer um tempo sentado à mesa, Speránski arrolhou a garrafa de vinho e disse: “Hoje em dia, os bons vinhos andam com as próprias pernas”, entregou a garrafa ao criado e levantou-se. Todos se levantaram e, conversando da mesma forma ruidosa, seguiram para a sala de estar. Entregaram a Speránski dois envelopes trazidos pelo correio. Ele tomou-os e foi para o escritório. Assim que deixou a sala, a alegria geral silenciou, e os convidados passaram a trocar comentários uns com os outros, em tom ponderado e em voz baixa.
— Bem, agora, a declamação! — disse Speránski ao sair do escritório. — Um talento formidável! — dirigiu-se ao príncipe Andrei. Magnítski levantou-se de pronto, fez uma pose e começou a dizer uns versos jocosos em francês, criados por ele, sobre algumas personalidades famosas de Petersburgo, e foi várias vezes interrompido por aplausos. O príncipe Andrei, ao final dos versos, aproximou-se de Speránski e despediu-se.
— Aonde vai tão cedo? — perguntou Speránski.
— Prometi ir a uma festa...
Todos ficaram em silêncio. O príncipe Andrei mirava de perto aqueles olhos espelhados, que não se deixavam ver, e sentiu-se ridículo por ter esperado algo de Speránski, por todas as suas atividades associadas a ele, e por ter atribuído relevância ao que Speránski fazia. O riso estudado, sem alegria, continuou a ressoar por muito tempo nos ouvidos do príncipe Andrei, depois que ele deixou Speránski.
De volta para casa, o príncipe Andrei pôs-se a recordar sua vida em Petersburgo durante aqueles quatro meses como se fosse algo novo. Lembrou seus esforços, suas bajulações, a história do seu projeto de um estatuto militar, que fora recebido para avaliação, mas sobre o qual se empenhavam em fazer silêncio só porque outro projeto, muito ruim, já tinha sido preparado e apresentado ao soberano; lembrou as reuniões do comitê do qual Berg era um dos membros; lembrou como naquelas reuniões debatiam, com afinco e demoradamente, tudo o que dizia respeito às formas e aos procedimentos da reunião do comitê e como se desviavam, com afinco e presteza, de tudo aquilo que tinha relação com o essencial da questão. Lembrou o seu trabalho legislador e como havia traduzido cuidadosamente para o russo os artigos dos códigos francês e romano, e sentiu vergonha de si mesmo. Em seguida, reviu em pensamento, de modo vivo, a propriedade de Bogutchárovo, as suas ocupações no campo, a sua viagem a Riazan, lembrou os mujiques, o estaroste de Dron, e aplicou a eles os Direitos da Pessoa, que ele havia dividido em parágrafos, e ficou surpreso ao ver como havia podido se ocupar por tanto tempo com um trabalho tão improdutivo.
XIX
No dia seguinte, o príncipe Andrei foi visitar algumas residências, aonde não tinha ido até então, entre elas a casa dos Rostóv, com quem retomara o contato no último baile. Além das normas de cortesia, segundo as quais ele tinha de visitar os Rostóv, o príncipe sentia vontade de ver a casa daquela mocinha diferente, vivaz, que deixara nele uma lembrança agradável.
Natacha foi uma das primeiras a recebê-lo. Estava num vestido azul doméstico, no qual pareceu, ao príncipe Andrei, ainda mais bonita do que no baile. Natacha e toda a família Rostóv receberam o príncipe Andrei como um velho amigo, de maneira simples e cordial. Toda a família, que antes o príncipe Andrei julgara com severidade, agora lhe parecia formada por pessoas bonitas, simples e boas. A hospitalidade e a bondade do velho conde, que surpreendiam de modo especialmente encantador em Petersburgo, eram tamanhas que o príncipe Andrei não pôde recusar o convite para o jantar. “Sim, é uma gente boa, formidável”, pensou Bolkónski. “Claro, não têm a mínima ideia do tesouro que possuem em Natacha; mas são pessoas boas, formam o melhor pano de fundo possível para que nele sobressaia essa mocinha excelente, singularmente poética e transbordante de vida!”
O príncipe Andrei sentia, em Natacha, a presença de um mundo diferente, de todo estranho a ele, repleto de alegrias desconhecidas, um mundo estranho que, já naquela noite de luar em Otrádnoie, o intrigara muito. Agora, esse mundo já não o intrigava mais, não era mais um mundo estranho; porém, mesmo depois de ter entrado naquele mundo, o próprio príncipe Andrei encontrava nele um prazer novo.
Após o jantar, Natacha, a pedido do príncipe Andrei, sentou-se ao clavicórdio e começou a cantar. O príncipe Andrei ficou de pé junto à janela, conversava com as senhoras e escutava Natacha. No meio de uma frase, o príncipe Andrei calou-se e, de modo inesperado, sentiu-se sufocado por lágrimas, algo cuja possibilidade ele desconhecia em si mesmo. Olhou para Natacha, que cantava, e algo novo e feliz aconteceu em sua alma. Estava feliz e, ao mesmo tempo, estava triste. Decididamente, não havia motivo para chorar, no entanto ele estava à beira de chorar. Por quê? Por causa do seu amor passado? Da pequena princesa? De suas decepções?... De suas esperanças no futuro? Sim e não. O motivo mais importante para ter vontade de chorar era a súbita e nítida consciência da contradição terrível, para o príncipe Andrei, entre algo infinitamente grande e indeterminado, que havia dentro dele, e algo estreito e corpóreo, que ele mesmo era, e ela também. Tal contradição o afligia e o alegrava durante o canto de Natacha.
Assim que Natacha terminou de cantar, aproximou-se do príncipe Andrei e lhe perguntou se gostava de sua voz. Fez a pergunta e logo depois se encabulou de ter dito tal coisa, compreendendo que não devia perguntar. Ele sorriu, olhando para Natacha, e disse que gostava da sua voz, assim como gostava de tudo o que ela fazia.
O príncipe Andrei saiu da casa dos Rostóv já bem tarde. Deitou-se para dormir pelo hábito de deitar-se, mas logo percebeu que não conseguia dormir. Ora acendia a vela e sentava na cama, ora se levantava, ora deitava outra vez, nem um pouco aborrecido com a falta de sono: sentia a alma tão alegre e tão renovada como se tivesse saído de um quarto abafado em direção ao ar livre. Nem passava pela sua cabeça que estivesse apaixonado por Natacha; não estava pensando nela; apenas a via na imaginação, e por isso toda a sua vida se apresentava sob uma luz nova. “Por que me debato, por que me preocupo tanto nesse âmbito estreito, fechado, quando a vida, a vida inteira, com todas as suas alegrias, está aberta para mim?”, disse consigo. E, pela primeira vez desde muito tempo, pôs-se a fazer planos felizes para o futuro. Resolveu que devia cuidar da educação do filho, achar um educador que se incumbisse dele; depois, era preciso pedir demissão e ir para o exterior, ver a Inglaterra, a Suíça, a Itália. “Tenho de desfrutar a minha liberdade enquanto sinto em mim a energia e a juventude”, disse consigo. “Pierre tinha razão quando disse que era preciso acreditar na possibilidade da felicidade para ser feliz, e eu agora acredito nela. Que os mortos enterrem os mortos, mas, enquanto estou vivo, é preciso viver e ser feliz”, pensou.
XX
Certa manhã, o coronel Adolph Berg, que Pierre conhecia, como conhecia todos em Moscou e Petersburgo, veio à sua casa num uniforme muito limpo e novo em folha, com o cabelo empomadado e penteado para a frente, sobre as frontes, como fazia o soberano Alexandre Pávlovitch.
— Acabei de estar com a condessa, a esposa do senhor, e fiquei muito infeliz por saber que o meu apelo não podia ser atendido; espero que com o senhor, conde, eu tenha mais sorte — disse, sorrindo.
— O que o senhor deseja, coronel? Estou às ordens.
— Agora, conde, eu já estou perfeitamente instalado em minha nova residência — informou Berg, pelo visto convencido de que ouvir essa notícia não podia deixar de ser agradável. — Por isso desejo oferecer uma pequena festa para os conhecidos, meus e da minha esposa. (Sorriu de modo ainda mais simpático.) Eu queria pedir à condessa e ao senhor que me dessem a honra de vir à nossa casa para tomar uma xícara de chá e... jantar.
Só a condessa Elena Vassílievna, que considerava humilhante o convívio com gente como os Berg, podia ter a crueldade de recusar tal convite. Berg explicou de modo tão claro por que desejava reunir em sua casa um grupo bom e pequeno, por que aquilo seria uma satisfação para ele, e também por que lamentava o dinheiro gasto com baralhos e outras coisas nocivas, mas estava pronto a não medir despesas em nome da boa sociedade, que Pierre não conseguiu recusar e prometeu ir.
— Mas não se atrase, conde, se me permite o atrevimento; às dez para as oito, mais ou menos, se me permite o atrevimento. Vamos jogar uma partida, o nosso general estará lá. Ele é muito bom para mim. Jantaremos, conde. Então o senhor me faça esse obséquio.
Contrariamente ao seu hábito de se atrasar, Pierre, naquele dia, chegou à casa dos Berg não às dez para as oito, mas às quinze para as oito.
Os Berg haviam se abastecido de tudo o que era preciso para uma festa e já estavam prontos para receber os convidados.
Berg e a esposa estavam no escritório novo, limpo, iluminado, enfeitado com pequenos bustos, quadros e mobiliário novo. Num uniforme novinho e todo abotoado, Berg estava sentado ao lado da esposa, explicava a ela que sempre é possível e necessário travar conhecimento com pessoas de posição mais elevada do que eles, pois só nesse caso existe alguma satisfação em travar conhecimentos.
— A gente pode imitar alguma coisa, pode pedir alguma coisa. Veja só como eu progredi, desde os postos mais baixos (Berg contava a sua vida não pelos anos, mas pelas condecorações oficiais). Meus camaradas agora ainda não são nada, enquanto eu só estou à espera de uma vaga para ocupar o posto de comandante de regimento, e tenho a felicidade de ser o marido da senhora (levantou-se e beijou a mão de Vera, mas no caminho ajeitou o canto do tapete, que estava virado). E como obtive tudo isso? Sobretudo graças à habilidade na escolha das pessoas com quem travo conhecimento. Nem é preciso dizer que é preciso ser virtuoso e metódico...
Berg sorriu com a consciência da sua superioridade em relação à mulher frágil e calou-se, refletindo que aquela sua esposa gentil era apesar de tudo uma mulher frágil que não podia alcançar tudo aquilo que constituía a dignidade de um homem — ein Mann zu sein.39 Vera, ao mesmo tempo, sorriu também com a consciência da sua superioridade em relação ao marido bom e virtuoso, mas que apesar de tudo, como todos os homens, na opinião de Vera, entendia a vida de modo equivocado. Berg, tomando a esposa como medida, julgava todas as mulheres frágeis e tolas. Vera, tomando só o seu marido como medida e generalizando essa observação para todos, supunha que todos os homens atribuíam a razão apenas a si mesmos, mas na verdade não compreendiam nada, eram orgulhosos e egoístas.
Berg levantou-se, abraçou a esposa com cuidado para não amarrotar as rendas da pelerine, pela qual ele havia pagado caro, e beijou-a no meio dos lábios.
— A única questão é que não devemos ter filhos tão cedo — disse ele, seguindo de modo inconsciente um encadeamento de ideias.
— Sim — respondeu Vera. — Não quero isso de forma alguma. É preciso viver para a sociedade.
— A princesa Iussúpova vestia uma igualzinha a essa — disse Berg com um sorriso feliz e bondoso, apontando para a pelerine.
Naquele momento anunciaram a chegada do conde Bezúkhov. Os dois cônjuges entreolharam-se com um sorriso cheio de si, cada um atribuindo a si mesmo a honra daquela visita.
“Aí está o que significa saber travar conhecimentos”, pensou Berg. “Aí está o que significa saber se conduzir!”
— Mas me faça um favor — disse Vera. — Não me interrompa quando eu estiver entretendo os convidados, pois eu sei o que interessa a cada um deles e o que se deve dizer a cada companhia.
Berg também sorriu.
— Mas é impossível: com os homens, às vezes tem de haver conversas de homem — respondeu.
Pierre foi recebido numa sala novinha em folha, onde era impossível sentar-se em qualquer lugar sem perturbar a simetria, a limpeza e a ordem, e por isso era perfeitamente compreensível e nada tinha de estranho que Berg se propusesse, generosamente, a desfazer a simetria das poltronas ou do sofá para o querido convidado, porém, encontrando-se visivelmente numa indecisão penosa quanto a isso, transferiu a solução do problema para o próprio convidado. Pierre destruiu a simetria, deslocando uma cadeira na sua direção, e imediatamente Berg e Vera começaram a festa, interrompendo-se um ao outro, enquanto entretinham o convidado.
Vera havia decidido em seu íntimo que era preciso entreter Pierre com uma conversa a respeito da embaixada francesa e logo deu início a tal conversa. Berg havia decidido que era necessária também uma conversa masculina e interrompeu a esposa, levantou a questão da guerra contra a Áustria e, sem querer, saltou de uma conversa de teor geral para considerações pessoais a respeito das propostas que lhe haviam feito para participar da campanha austríaca e dos motivos pelos quais não aceitara. Apesar de a conversa estar muito incoerente, e apesar de Vera ter ficado aborrecida com a intromissão do elemento masculino, os dois cônjuges sentiam com satisfação que, embora só um convidado estivesse ali, a festa havia começado muito bem e seria igual, como duas gotas de água, a todas as outras festas, com conversas, chá e velas acesas.
Logo chegou Boris, antigo camarada de Berg. Boris tratava Berg e Vera com certo matiz de superioridade e de proteção. Depois dele, chegou uma dama com um coronel, depois o general, depois os Rostóv, e a festa, sem sombra de dúvida, já estava em tudo semelhante a todas as festas. Berg e Vera não conseguiam reprimir um sorriso de alegria ao ver o movimento na sala, o som da conversação incoerente, do rumor dos vestidos e dos cumprimentos. Tudo era como na casa de todos, em particular o general, que elogiava as instalações, com palmadinhas no ombro de Berg, e dava instruções para a arrumação da mesa para o jogo de bóston com uma arbitrariedade paternal. O general sentou-se ao lado do conde Iliá Andreitch, por ser o convidado mais ilustre, depois dele mesmo. Os velhos com os velhos, os jovens com os jovens, a anfitriã na mesa de chá, onde havia biscoitos em cestinhos de prata, exatamente como nas festas na casa dos Panin,40 tudo era absolutamente igual à casa dos outros.
XXI
Pierre, por ser um dos convidados mais respeitáveis, tinha de sentar-se à mesa do jogo de bóston com Iliá Andreitch, o general e o coronel. Calhou de Pierre sentar-se de frente para Natacha e ele se impressionou com a estranha mudança que nela havia ocorrido desde o dia do baile. Natacha se mostrava mais calada, e não só não estava tão bonita quanto no baile, como estaria até feia, não fosse o seu aspecto dócil e indiferente em relação a tudo.
“O que há com ela?”, pensou Pierre, lançando um olhar para Natacha. Estava sentada ao lado da irmã junto à mesa de chá e, a contragosto, sem olhar para ele, respondia algo para Boris, que viera sentar-se ao seu lado. Depois de jogar uma partida inteira e, para a satisfação do seu parceiro, recolher cinco vazas, Pierre, ao ouvir palavras de saudação e o som de passos que entravam na sala, no momento em que recolhia as cartas, olhou de novo para Natacha.
“O que aconteceu com ela?”, disse consigo, ainda mais admirado.
O príncipe Andrei, com uma expressão contidamente terna, estava parado diante de Natacha e lhe dizia alguma coisa. Ela, de cabeça erguida, corada e tentando visivelmente conter a respiração agitada, olhava para ele. A luz brilhante de uma chama interior, antes apagada, ardia de novo em Natacha. Ela se transfigurara completamente. De feia, tornou-se de novo tal como estivera no baile.
O príncipe Andrei aproximou-se de Pierre, que notou uma nova expressão jovial no rosto do amigo.
Pierre mudou várias vezes de assento durante o jogo de cartas, ora de costas, ora de frente para Natacha, e durante os seis róberes do jogo observou bem a ela e ao seu amigo.
“Está acontecendo alguma coisa muito importante entre eles”, pensou Pierre, e um sentimento alegre, e ao mesmo tempo amargo, deixou-o agitado e obrigou-o a esquecer o jogo.
Depois de seis róberes, o general levantou-se, dizendo que daquele jeito era impossível jogar, e Pierre foi liberado. Natacha, num canto, conversava com Sônia e Boris. Vera dizia algo para o príncipe Andrei, com um sorriso sutil. Pierre aproximou-se do amigo, perguntou se não era segredo o que estavam conversando e sentou-se ao lado deles. Vera, ao notar a atenção que o príncipe Andrei dedicava a Natacha, resolvera que numa festa, numa festa de verdade, eram indispensáveis alusões sutis aos sentimentos e, aproveitando um momento em que o príncipe Andrei estava sozinho, entabulou com ele uma conversa sobre os sentimentos em geral, e também sobre a irmã. Com um convidado tão inteligente (assim ela considerava o príncipe Andrei), era preciso empregar, naquela tarefa, a sua arte diplomática.
Quando Pierre se aproximou dos dois, notou que Vera, cheia de si, havia se empolgado na conversação, e o príncipe Andrei parecia embaraçado (o que era raro acontecer).
— O que o senhor acha? — disse Vera, com um sorriso sutil. — O senhor, príncipe, compreende o caráter das pessoas de modo tão sagaz e tão rápido. O que acha de Nathalie? Ela pode ser constante nas suas afeições, pode, como outras mulheres (Vera se referia a si mesma), apaixonar-se por um homem e ser fiel a ele para sempre? É isso que eu considero o amor verdadeiro. O que o senhor acha, príncipe?
— Conheço muito pouco a irmã da senhora — disse o príncipe Andrei com um sorriso zombeteiro, sob o qual queria esconder o seu embaraço — para responder a uma pergunta tão delicada; além do mais, notei que quanto menos atraente é uma mulher, mais constante ela se mostra — acrescentou e lançou um olhar para Pierre, que se aproximava deles naquele momento.
— Sim, isso é verdade, príncipe; em nosso tempo — continuou Vera (mencionando o nosso tempo como, em geral, gostam de fazer as pessoas limitadas, supondo que elas descobriram e avaliaram as particularidades do nosso tempo e que as qualidades das pessoas mudam com o tempo) —, em nosso tempo, uma jovem tem tanta liberdade que le plaisir d’être courtisées abafa muitas vezes o sentimento verdadeiro. Et Nathalie, il faut l’avouer, y est très sensible.41 — O retorno a Nathalie obrigou de novo o príncipe Andrei a franzir o rosto de maneira desagradável; quis levantar-se, mas Vera continuou, com um sorriso ainda mais sutil.
— Creio que ninguém foi tão courtisée quanto ela — disse Vera —, mas nunca, até hoje, ela gostou a sério de alguém. Veja, conde, o senhor sabe — dirigiu-se a Pierre —, até o nosso gentil cousin Boris, que foi, entre nous, muito longe dans le pays du tendre...42 — disse Vera, aludindo a um mapa do amor então em voga.
O príncipe Andrei, de rosto franzido, não disse nada.
— O senhor não é amigo de Boris? — perguntou Vera.
— Sim, eu o conheço...
— Sem dúvida ele lhe contou a respeito do seu amor de criança por Natacha, não foi?
— Então houve um amor de criança? — perguntou o príncipe Andrei, ruborizando de repente e de modo inesperado.
— Sim. Vous savez, entre cousin et cousine cette intimité mène quelquefois à l’amour: le cousinage est un dangereux voisinage. N’est-ce pas? 43
— Oh, sem dúvida — respondeu o príncipe Andrei e, de repente, animando-se de maneira forçada, passou a gracejar com Pierre sobre como teria de ser cauteloso em suas relações com as primas quinquagenárias de Moscou, e no meio da conversa jocosa levantou-se, tomou Pierre pelo braço e levou-o para um canto.
— O que é? — disse Pierre, olhando com surpresa a estranha animação do amigo e notando o olhar que, ao levantar-se, o príncipe Andrei havia dirigido a Natacha.
— Eu preciso, preciso conversar com você — disse o príncipe Andrei. — Você conhece as nossas luvas de mulher (referia-se às luvas da maçonaria dadas ao maçom na sua iniciação, para que ele as entregue à mulher amada).44 Eu... Mas não é isso, depois vou conversar com você... — E, com um brilho estranho nos olhos e uma inquietação nos movimentos, aproximou-se de Natacha e sentou-se ao seu lado. Pierre viu que o príncipe Andrei perguntou algo, e ela, ruborizada, respondeu.
Mas, naquele instante, Berg se aproximou de Pierre, rogando com insistência que viesse tomar parte na discussão entre o general e o coronel sobre a questão espanhola.
Berg estava satisfeito e feliz. O sorriso de alegria não deixava o seu rosto. A festa estava indo muito bem, exatamente igual às outras festas que ele via. Tudo era semelhante. As conversas sutis das damas, o jogo de baralho, o general erguendo a voz com as cartas na mão, o samovar, os biscoitos; mas ainda faltava uma coisa que Berg sempre via nas festas e que ele queria imitar. Faltava uma conversa ruidosa entre homens e uma discussão em tom sério e inteligente. O general deu início a essa conversa, e Berg atraiu Pierre para ela.
XXII
No dia seguinte, o príncipe Andrei foi almoçar na casa dos Rostóv, a convite do conde Iliá Andreitch, e passou o dia todo lá.
Todos da casa percebiam para que o príncipe Andrei tinha ido, e ele, sem dissimular, tentou ficar o tempo todo com Natacha. Não só na alma de Natacha, assustada, mas feliz e entusiasmada, como também em todos da casa, havia uma sensação de medo perante algo importante que estava prestes a acontecer. Com olhos tristes, gravemente severos, a condessa fitava o príncipe Andrei enquanto ele conversava com Natacha, e de maneira tímida e dissimulada, começava uma conversa sem importância sobre qualquer assunto, assim que o príncipe Andrei voltava os olhos para ela. Sônia temia se afastar de Natacha e também temia ser incômoda quando estava com os dois. Natacha empalidecia, no temor da expectativa, quando ficava sozinha com ele. O príncipe Andrei impressionava Natacha por sua timidez. Ela sentia que ele precisava lhe dizer alguma coisa, mas não conseguia se atrever.
Quando o príncipe Andrei foi embora, à noite, a condessa aproximou-se de Natacha e disse, num sussurro:
— E então?
— Mamãe! Pelo amor de Deus, não me pergunte nada agora. Não se pode falar desse assunto — disse Natacha.
Porém, apesar disso, naquela noite, ora emocionada, ora assustada, com os olhos fixos, Natacha ficou muito tempo deitada na cama da mãe. Contou-lhe que ele a elogiara, que ele dizia que ia partir para o exterior, que perguntara onde eles iam passar o verão, que lhe fizera perguntas a respeito de Boris.
— Mas tanto... tanto... nunca aconteceu comigo! — disse Natacha. — Só que sinto medo quando estou com ele, tenho sempre medo diante dele, o que isso quer dizer? Quer dizer que é de verdade, é isso? Mamãe, está dormindo?
— Não, meu bem, eu também sinto medo — respondeu a mãe. — Vá dormir.
— Não me importa ficar sem dormir. Que bobagem dormir! Mamãe, mamãe, uma coisa assim nunca aconteceu comigo! — disse, com admiração e medo diante do sentimento que descobria dentro de si. — Quem podia imaginar!...
Natacha tinha a impressão de que, já na primeira vez em que vira o príncipe Andrei, em Otrádnoie, se apaixonara por ele. E parecia assustada com a estranha e inesperada felicidade de ver que aquele que ela havia escolhido ainda naquela ocasião (estava firmemente convencida disso), que aquele mesmo homem, agora, a encontrava de novo e parecia não ser indiferente a ela. “E tinha de aparecer justamente agora em Petersburgo, quando também estamos aqui. E tinha de nos encontrar justamente naquele baile. Tudo isso é o destino. Claro, foi o destino que fez tudo seguir esse caminho. Desde antes, quando eu o via, sentia alguma coisa diferente.”
— E o que mais ele lhe disse? Como são aqueles versos? Recite... — disse a mãe com ar pensativo, referindo-se aos versos que o príncipe Andrei havia escrito no álbum de Natacha.
— Mãe, não é motivo de vergonha ele ser viúvo?
— Já chega, Natacha. Reze a Deus. Les mariages se font dans les cieux.45
— Queridinha, mamãezinha, como eu gosto da senhora, como me sinto bem! — gritou Natacha, chorando lágrimas de felicidade e de emoção e abraçando a mãe.
Naquela mesma hora, o príncipe Andrei estava com Pierre e lhe falava do seu amor por Natacha e da firme intenção de casar-se com ela.
Nesse dia, houve uma recepção na casa da condessa Elena Vassílievna, à qual compareceram o embaixador francês, um príncipe, que pouco tempo antes se tornara uma visita constante na casa da condessa, e também muitas damas e homens ilustres. Pierre desceu, andou pelas salas e impressionou a todos por seu aspecto concentrado, sombrio e alheio.
Desde o baile, Pierre sentia a chegada de um ataque de hipocondria e, com um esforço desesperado, tentava rechaçá-lo. Depois da aproximação entre o príncipe e a sua esposa, Pierre foi inesperadamente nomeado camareiro da corte e, a partir de então, passou a se sentir oprimido e envergonhado na alta sociedade, e com mais frequência lhe vinham pensamentos sombrios sobre a vaidade de todas as coisas humanas. Ao mesmo tempo, o sentimento que notara entre a sua protegida Natacha e o príncipe Andrei e o contraste entre a sua situação e a do amigo acentuavam ainda mais aquele ânimo sombrio. Pierre tentava igualmente evitar os pensamentos a respeito da esposa, de Natacha e do príncipe Andrei. Mais uma vez, tudo lhe parecia insignificante em comparação com a eternidade, mais uma vez lhe vinha a pergunta: para quê? E ele, dias e noites, obrigava-se a se dedicar aos afazeres da maçonaria, na esperança de barrar a aproximação do espírito do mal. À meia-noite, após ter deixado os aposentos da condessa, Pierre estava no andar de cima, em seu quarto enfumaçado de cigarro, diante da mesa, num roupão surrado, e copiava as atas escocesas autênticas, quando alguém entrou no seu quarto. Era o príncipe Andrei.
— Ah, é o senhor — disse Pierre, com um ar distraído e descontente. — Estou trabalhando — disse, apontando para o caderno, com aquele ar que têm as pessoas infelizes quando encaram o trabalho como uma salvação das adversidades da vida.
O príncipe Andrei, com o rosto radiante, alvoroçado, renascido para a vida, ficou parado diante de Pierre e, sem perceber o rosto triste do amigo, sorriu para ele com o egoísmo da felicidade.
— Bem, meu caro — disse o príncipe Andrei —, ontem eu queria lhe dizer uma coisa e hoje vim aqui para isso. Nunca experimentei nada parecido. Estou apaixonado, meu amigo.
Pierre, de repente, deu um suspiro profundo e deixou o seu corpo pesado cair no sofá, ao lado do príncipe Andrei.
— Por Natacha Rostova, não é?
— Sim, sim, por quem mais poderia ser? Eu nunca acreditaria, mas esse sentimento é mais forte do que eu. Ontem, eu sofria, me atormentava, mas mesmo aquele tormento eu não trocaria por nada neste mundo. Antes, eu não vivia. Só agora estou vivendo, mas não posso viver sem ela. E será possível que ela me ame?... Sou velho para ela... Por que você não diz nada?
— Eu? Eu? O que posso dizer ao senhor? — disse Pierre de repente, levantando-se e começando a andar pelo quarto. — Sempre pensei nisso... Essa menina é um tesouro tão grande, tão... É uma menina rara... Caro amigo, peço ao senhor, não se perca em filosofias, não invente dúvidas, case, case e case... Estou convencido de que não existirá homem nenhum mais feliz do que o senhor.
— Mas e ela?
— Ela ama o senhor.
— Não diga tolices... — exclamou o príncipe Andrei, sorrindo e fitando Pierre nos olhos.
— Ama, eu sei — gritou Pierre, zangado.
— Não, escute — disse o príncipe Andrei, segurando-o pelo braço. — Sabe em que situação eu me encontro? Preciso falar disso tudo com alguém.
— Muito bem, diga, é um prazer para mim — respondeu Pierre e, de fato, seu rosto modificou-se, as rugas se alisaram, e ele escutou o príncipe Andrei com alegria. O príncipe Andrei parecia, e era de fato, outra pessoa, um homem novo. Onde estava a sua melancolia, o seu desprezo pela vida, o seu desencanto? Pierre era a única pessoa a quem ele se atrevia a falar com franqueza; portanto lhe contou tudo o que se passava em sua alma. Ora fazia planos fáceis e audaciosos para um futuro longo, dizia que não podia sacrificar a sua felicidade por um capricho do pai, que ia obrigar o pai a concordar com o casamento e a adorar Natacha, ou se arranjaria mesmo sem a concordância dele; ora se admirava do sentimento que o dominara, como se fosse algo estranho, alheio e independente dele mesmo.
— Eu não acreditaria se alguém me dissesse que eu era capaz de amar tanto — disse o príncipe Andrei. — É um sentimento completamente diferente do que experimentei antes. O mundo inteiro se dividiu para mim em duas partes iguais: uma é ela, e lá está toda a felicidade, a esperança, a luz; a outra metade é tudo em que ela não está, e lá tudo é melancolia e escuridão...
— Escuridão e trevas — repetiu Pierre. — Sim, sim, entendo isso.
— Não posso deixar de amar a luz, não tenho culpa disso. E estou muito feliz. Você me entende? Sei que está contente por mim.
— Sim, sim — concordou Pierre, fitando o amigo com olhos comovidos e tristes. Quanto mais radiante lhe parecia o destino do príncipe Andrei, tanto mais sombrio lhe parecia o seu próprio.
XXIII
Para o casamento, era necessária a concordância do pai, e por isso, no dia seguinte, o príncipe Andrei partiu para a propriedade do pai.
O pai recebeu a notícia do filho com uma calma exterior, mas com uma raiva interior. Não conseguia entender por que alguém podia querer mudar de vida, introduzir nela algo novo, quando a vida para ele já estava encerrada. “Não podem deixar que eu viva até o fim do jeito que eu quero, para depois fazerem o que bem entendem?”, dizia o velho consigo. No entanto, com o filho, empregou a mesma diplomacia que empregava nas ocasiões importantes. Adotando um tom sereno, discutiu a questão em seu todo.
Em primeiro lugar, não era um casamento brilhante em relação ao parentesco, à riqueza e à posição social. Em segundo lugar, o príncipe Andrei não estava mais na primeira juventude e tinha a saúde frágil (o velho enfatizou esse ponto de modo especial), ao passo que ela era muito jovem. Em terceiro lugar, havia o filho, e seria uma lástima confiá-lo a uma menina. Em quarto lugar, por fim, disse o pai, fitando o filho com ar zombeteiro, “peço a você que deixe o assunto de lado por um ano, vá para o exterior, trate da saúde, encontre um alemão ao seu gosto para ser o preceptor do príncipe Nikolai, e depois, se o amor, a paixão, a teimosia, o que você quiser, for mesmo tão enorme, então case. E essa é a minha última palavra, veja bem, a última...”, concluiu o príncipe, num tom de voz que mostrava que nada no mundo seria capaz de obrigá-lo a mudar de opinião.
O príncipe Andrei via claramente que o velho esperava que o seu sentimento, ou o da sua futura noiva, não suportasse a prova de um ano, ou então que ele mesmo, o velho príncipe, morresse naquele prazo, e decidiu atender à vontade do pai: fazer a proposta e adiar o casamento por um ano.
Três semanas depois da sua última noite na casa dos Rostóv, o príncipe Andrei voltou a Petersburgo.
No dia seguinte à conversa que teve com a mãe, Natacha esperou o dia inteiro por Bolkónski, mas ele não veio. No segundo e no terceiro dia, a mesma coisa. Pierre também não veio, e Natacha, sem saber que o príncipe Andrei tinha partido ao encontro do pai, não conseguia explicar a sua ausência.
Assim se passaram três semanas. Natacha não queria sair nem ir a lugar nenhum e, como uma sombra, ociosa e desanimada, vagava pelos cômodos, chorava ao anoitecer, escondida de todos, e à noite não ia ao quarto da mãe. Ruborizava-se e irritava-se a toda hora. Tinha a impressão de que todos sabiam da sua decepção, riam e tinham pena dela. Como se não bastasse toda a força da sua mágoa interior, a vaidade ferida reforçava mais ainda a sua infelicidade.
Uma vez, Natacha foi ao quarto da condessa, quis dizer alguma coisa e de repente desatou a chorar. Suas lágrimas eram as de uma criança castigada sem saber por quê.
A condessa tratou de acalmar Natacha. De início, a filha escutou as palavras da mãe, mas de repente a interrompeu:
— Pare, mãe, eu não estou pensando e não quero pensar! Pronto, foi só isso, ele foi embora, e acabou, acabou...
Sua voz vacilou, por pouco ela não começou a chorar, mas se recuperou e prosseguiu com calma:
— Eu não quero casar, de jeito nenhum. Eu tenho até medo dele; agora estou calma, completamente calma...
No dia seguinte a essa conversa, Natacha usou um velho vestido pelo qual tinha um apego especial porque a deixava alegre pelas manhãs e, a partir daquela manhã, retomou a antiga forma de vida, da qual se afastara depois do baile. Após o chá, foi para a sala que ela apreciava em particular pela forte ressonância e começou a cantar seus solfejos (os exercícios de canto). Terminada a primeira lição, ficou de pé no meio da sala e repetiu uma frase musical de que gostava especialmente. Escutou com alegria (como se fosse algo que ela não esperasse) o encanto com que aqueles sons, ao reverberarem, preencheram todo o vazio da sala e lentamente se extinguiram, e de súbito Natacha se sentiu alegre. “Para que pensar tudo isso, assim também estou bem”, disse consigo e começou a andar pela sala, de um lado para o outro, mas, em vez de pisar no assoalho ressonante em passos simples, a cada passo batia no chão com o salto e com o bico (estava com uns sapatos novos, os seus prediletos) e, com a mesma alegria com que escutava os sons da sua voz, escutava também aquele patear cadenciado do salto e do bico do sapato, que rangia. Quando passou diante do espelho, Natacha se olhou de relance. “Veja, eu sou ela!”, como se a imagem do seu rosto falasse ao ver a si mesma. “Ora, também estou bonita. E não preciso de ninguém.”
Um lacaio quis entrar para arrumar alguma coisa na sala, mas Natacha não deixou, fechou a porta assim que ele se foi e, mais uma vez, continuou a caminhar. Naquela manhã, ela havia retornado ao seu estado de ânimo preferido, de amor e de admiração por si mesma. “Que encanto, essa Natacha!”, disse ela, outra vez, as palavras de uma terceira pessoa, coletiva e masculina. “Bonita, voz boa, jovem, e não perturba ninguém, se a deixarem em paz.” Porém, por mais que a deixassem em paz, Natacha já não conseguia ficar em paz e imediatamente se deu conta disso.
Na entrada da casa, a porta se abriu, e alguém perguntou: está em casa? E ouviram-se passos. Natacha olhou-se no espelho, mas não se viu. Ouviu ruídos na entrada. Quando viu a si mesma, seu rosto estava pálido. Era ele. Natacha sabia disso com certeza, embora mal pudesse ouvir o som da voz dele, atrás das portas fechadas.
Natacha, pálida e assustada, entrou correndo na sala de visitas.
— Mamãe, Bolkónski chegou! — disse ela. — Mamãe, é horrível, é insuportável! Não quero... sofrer! O que vou fazer?...
A condessa nem teve tempo de responder, quando o príncipe Andrei, com o rosto alarmado e sério, entrou na sala de visitas. Assim que viu Natacha, seu rosto se iluminou. Beijou a mão da condessa e de Natacha e sentou-se ao lado do sofá...
— Faz tempo que não temos o prazer... — fez menção de começar a condessa, mas o príncipe Andrei a interrompeu, respondendo à pergunta dela e, pelo visto, apressando-se em dizer logo aquilo que precisava.
— Não vim à casa das senhoras por todo esse tempo porque estive com o meu pai: eu precisava conversar com ele sobre um assunto de grande importância. Só voltei ontem à noite — disse, olhando para Natacha. — Preciso conversar com a senhora, condessa — acrescentou, após um momento de silêncio.
A condessa deu um suspiro profundo e baixou os olhos.
— Estou às suas ordens — respondeu a condessa.
Natacha sabia que tinha de sair, mas não conseguia fazer isso: algo apertava sua garganta, e ela, de olhos muito abertos, olhava direto para o príncipe Andrei, sem obedecer às normas de cortesia.
“Agora? Neste instante!... Não, não pode ser!”, pensava.
De novo, ele lançou um olhar para Natacha, e aquele olhar a convenceu de que não estava enganada. Sim, agora, naquele mesmo instante, o seu destino seria decidido.
— Vá, Natacha, eu chamarei você — disse a condessa num sussurro.
Natacha, com olhos assustados e suplicantes, lançou um olhar para o príncipe Andrei, para a mãe, e saiu.
— Condessa, eu vim pedir a mão da sua filha — disse o príncipe Andrei.
O rosto da condessa ruborizou-se, mas ela não disse nada.
— O pedido do senhor... — começou a condessa, em tom ponderado. Ele ficou em silêncio, fitando a condessa nos olhos. — O pedido do senhor... (ela se confundiu) nos agrada, e... aceito o pedido do senhor, isso me deixa contente. O meu esposo também... eu espero... mas vai depender dela mesma...
— Falarei com ela, depois que tiver o consentimento da senhora... Então, a senhora consente? — perguntou o príncipe Andrei.
— Sim — respondeu a condessa, estendeu-lhe a mão e, com um sentimento misto de alheamento e ternura, comprimiu os lábios contra a testa dele, quando o príncipe Andrei se curvou para beijar-lhe a mão. A condessa queria amá-lo como um filho, mas sentia que era um homem estranho e terrível para ela.
— Estou segura de que o meu marido vai concordar — disse a condessa —, mas o pai do senhor...
— Meu pai, a quem comuniquei meus planos, apresentou uma condição indispensável para dar o seu consentimento: que o casamento não ocorra antes de um ano. E era isso o que eu queria comunicar à senhora — disse o príncipe Andrei.
— É verdade que Natacha ainda é jovem, mas... tanto tempo?
— Não poderá ser de outro modo — disse o príncipe Andrei, com um suspiro.
— Vou chamá-la para o senhor — disse a condessa, e saiu.
— Deus tenha piedade de nós — repetia a condessa, enquanto procurava a filha. Sônia disse que Natacha estava no quarto de dormir. Natacha estava sentada na sua cama, pálida, com os olhos secos, fitava um ícone e, fazendo o sinal da cruz rapidamente, sussurrava algo. Ao ver a mãe, ergueu-se de um salto e atirou-se na sua direção.
— O que é, mamãe?... O que foi?
— Vá, vá falar com ele. Pediu a sua mão em casamento — disse a condessa com frieza, pareceu a Natacha. — Vá... vá — falava a mãe, em tom de tristeza e repreensão, com um suspiro profundo, enquanto a filha saía correndo.
Natacha não lembrava como havia entrado na sala. Ao cruzar a porta e ver o príncipe Andrei, parou. “Será possível que esse homem, um estranho para mim, tornou-se agora tudo para mim?”, perguntou a si mesma e, no mesmo instante, respondeu: “Sim, tudo: agora, só ele é mais querido do que tudo no mundo para mim”. O príncipe Andrei aproximou-se dela, de olhos baixos.
— Amei a senhora desde o primeiro minuto em que a vi. Posso ter esperanças?
Olhou bem para ela, e a paixão séria da expressão do seu rosto impressionou-o. O rosto de Natacha dizia: “Para que pergunta? Para que ter dúvidas do que é impossível ignorar? Para que falar, quando é impossível exprimir com palavras o que sentimos?”.
Aproximou-se dele mais um pouco e parou. Ele segurou a mão de Natacha e a beijou.
— A senhora me ama?
— Sim, sim — exclamou Natacha, como se estivesse zangada, respirou fundo, depois mais uma vez, e com frequência cada vez maior, até desfazer-se em soluços.
— O que foi? O que a senhora tem?
— Ah, estou tão feliz — respondeu, sorriu em meio às lágrimas, inclinou-se para ele, cada vez mais perto, refletiu um segundo, como se perguntasse algo a si mesma, e beijou-o.
O príncipe Andrei segurou a mão de Natacha, fitou-a nos olhos e não encontrou na sua alma o amor de antes por ela. Na sua alma, de repente, algo tomou um novo rumo: não havia mais o encanto do desejo poético e misterioso, havia pena da fraqueza feminina e infantil de Natacha, havia o pavor perante a sua devoção e a sua confiança, a opressiva e ao mesmo tempo alegre consciência do dever que o ligava a ela para sempre. O sentimento atual, embora não fosse tão radiante e poético como o anterior, era mais sério e mais forte.
— A maman disse à senhora que não pode ser antes de um ano? — perguntou o príncipe Andrei, ainda fitando Natacha nos olhos.
“Será possível que seja eu, esta menina criança (todos dizem isso de mim)”, pensou Natacha, “será possível que agora, a partir deste minuto, eu seja uma esposa, alguém igual a esse homem estranho, gentil, inteligente, respeitado até pelo meu pai? Será que isso é verdade? Será verdade que agora já é impossível brincar com a vida, que agora já sou grande, que agora já tenho responsabilidade por todos os meus atos e palavras? Sim, o que foi que ele me perguntou?”
— Não — respondeu Natacha, mas não lembrava o que ele havia perguntado.
— Perdoe-me — disse o príncipe Andrei —, mas a senhora é tão jovem, e eu já passei por muita coisa na vida. Temo pela senhora. A senhora não se conhece.
Com atenção concentrada, Natacha ouvia, tentava entender o sentido das palavras, mas não entendia.
— Como será duro para mim esse ano que vai adiar a minha felicidade — prosseguiu o príncipe Andrei. — Nesse prazo, a senhora vai adquirir confiança em si mesma. Peço à senhora que daqui a um ano faça a minha felicidade; mas a senhora é livre: nosso noivado continuará secreto e, se a senhora se convencer de que não me ama, ou se acaso se apaixonar... — disse o príncipe Andrei, com um sorriso forçado.
— Por que o senhor diz isso? — interrompeu Natacha. — O senhor sabe que, desde o dia em que veio a Otrádnoie pela primeira vez, eu me apaixonei pelo senhor — disse, segura de que dizia a verdade.
— Em um ano, a senhora vai se conhecer melhor...
— Um ano in-tei-ro! — exclamou Natacha de repente, só agora entendendo que o casamento seria adiado por um ano. — Mas por que um ano? Por que um ano?... — O príncipe Andrei começou a lhe explicar os motivos daquele adiamento. Natacha não o escutava.
— Mas não pode ser de outro modo? — perguntou ela. O príncipe Andrei não respondeu, mas no rosto exprimia a impossibilidade de mudar aquela decisão.
— É horrível! Não, é horrível, horrível! — exclamou Natacha de repente, e de novo se desfez em soluços. — Vou morrer, esperando um ano: é impossível, é horrível. — Voltou os olhos para o rosto do noivo e viu uma expressão de compaixão e de perplexidade.
— Não, não, eu farei qualquer coisa — disse ela, contendo as lágrimas de repente. — Estou tão feliz!
O pai e a mãe entraram e abençoaram o noivo e a noiva.
A partir desse dia, o príncipe Andrei passou a ir à casa dos Rostóv na condição de noivo.
XXIV
Não houve nenhuma cerimônia e ninguém foi informado do noivado de Bolkónski e Natacha; o príncipe Andrei fez questão de que fosse assim. Disse que, como era ele a causa do adiamento, ele devia suportar toda a sua carga. Disse que estava comprometido para sempre com a sua palavra, mas que não queria prender Natacha e lhe concedia toda a liberdade. Se, dali a meio ano, ela sentisse que não o amava, teria todo o direito de abandoná-lo. É claro que nem os pais nem Natacha queriam ouvir aquilo; mas o príncipe Andrei fincou pé na sua ideia. Todo dia visitava a casa dos Rostóv, mas não se portava com Natacha como um noivo; tratava-a de “senhora” e beijava só a sua mão. Entre o príncipe Andrei e Natacha, depois do dia do pedido de casamento, estabeleceram-se relações simples e íntimas, muito diferentes das que tinham antes. Parecia que até então eles não se conheciam. E os dois gostavam de lembrar como se viam um ao outro quando ainda não eram “nada”; agora, eles sentiam-se criaturas totalmente distintas: antes, afetadas; agora, simples e sinceras. De início, na família, sentia-se certo constrangimento nas relações com o príncipe Andrei; parecia um homem de outro mundo, e Natacha levou muito tempo para habituar seus familiares ao príncipe Andrei, garantindo a todos com orgulho que ele apenas parecia ser diferente, mas era igual a todos, e que ela não tinha medo dele e que ninguém devia ter medo. Depois de alguns dias, a família habituou-se e, sem acanhamentos, diante dele, levava a mesma forma de vida anterior, da qual o príncipe Andrei também tomava parte. Sabia conversar sobre assuntos agrícolas com o conde, sobre roupas com a condessa e Natacha, e sobre álbuns e bordados com Sônia. Às vezes, os Rostóv, entre si e em presença do príncipe Andrei, admiravam-se de como tudo havia ocorrido e de como eram evidentes os presságios de que aquilo teria de acontecer: a ida do príncipe Andrei a Otrádnoie, a vinda deles a Petersburgo, a semelhança entre Natacha e o príncipe Andrei, que a babá havia notado na primeira visita do príncipe, o desentendimento entre o príncipe Andrei e Nikolai em 1805, e muitos outros presságios daquilo que havia ocorrido eram apontados pelos Rostóv.
Na casa, reinavam o marasmo e o silêncio poético que sempre acompanham a presença de um noivo e de uma noiva. Não raro, sentados, juntos, todos ficavam calados. Às vezes, levantavam e saíam, e o noivo e a noiva, deixados a sós, continuavam também calados. Raramente conversavam sobre a vida futura. O príncipe Andrei sentia medo e vergonha de falar sobre isso. Natacha partilhava aquele sentimento, como todos os sentimentos dele, que ela sempre adivinhava. Certa vez, Natacha começou a indagar a respeito do filho dele. O príncipe Andrei ruborizou-se, o que agora acontecia com frequência, e o que muito agradava a Natacha, e disse que o filho não iria viver com eles.
— Por quê? — disse Natacha, assustada...
— Não posso afastá-lo do avô, e também...
— Como eu iria amar o seu filho! — exclamou Natacha, adivinhando na mesma hora o pensamento do príncipe Andrei. — Mas eu sei, o senhor não quer que haja pretextos para que critiquem o senhor e a mim.
O velho conde às vezes se aproximava do príncipe Andrei, beijava-o, pedia o seu conselho sobre a educação de Pétia ou sobre a carreira militar de Nikolai. A velha condessa suspirava, olhando para eles. Sônia, a cada minuto, temia ser incômoda e se esforçava em achar pretextos para deixá-los a sós, em momentos em que os dois nem tinham necessidade disso. Quando o príncipe Andrei falava (ele se expressava muito bem), Natacha escutava-o com orgulho; quando ela falava, notava com temor e alegria que ele a fitava de modo atento e perscrutador. Ela se perguntava, com perplexidade: “O que ele procura em mim? O que está buscando com o seu olhar? E se não existir, em mim, o que ele procura com esse olhar?”. Às vezes Natacha entrava naquele seu estado de ânimo peculiar, de louca alegria, e então adorava ver e ouvir como o príncipe Andrei ria. Ele raramente ria, mas em compensação, quando ria, rendia-se de todo ao seu riso, e sempre, depois daquele riso, Natacha sentia-se mais próxima dele. Natacha estaria completamente feliz se a ideia da separação que a aguardava e se aproximava não a assustasse.
Na véspera da sua partida de Petersburgo, o príncipe Andrei trouxe Pierre, que desde o baile não viera mais à casa dos Rostóv. Pierre parecia perturbado e confuso. Ficou conversando com a mãe. Natacha sentou-se com Sônia à mesinha de jogar xadrez, convidando dessa maneira o príncipe Andrei a se aproximar. Ele juntou-se a elas.
— Então a senhora conhece Bezúkhov há muito tempo? — perguntou. — Gosta dele?
— Sim, ele é ótimo, mas muito engraçado.
E Natacha, como sempre acontecia ao falar sobre Pierre, pôs-se a contar casos divertidos da sua distração, anedotas que até já andavam inventando a respeito dele.
— A senhora sabe, eu contei a ele o nosso segredo — disse o príncipe Andrei. — Eu o conheço desde criança. É um coração de ouro. Vou fazer um pedido à senhora, Nathalie — disse, de repente em tom sério. — Eu vou partir. Só Deus sabe o que pode acontecer. A senhora pode deixar de... Bem, sei que não devo falar disso. É só que... o que quer que aconteça com a senhora, enquanto eu estiver longe...
— Mas o que pode acontecer?...
— Se acontecer alguma desgraça — prosseguiu o príncipe Andrei —, peço à senhora, mademoiselle Sophie,46 o que quer que aconteça, procure apenas a ele, Bezúkhov, para pedir conselho e ajuda. Esse homem é distraído e engraçado, mas tem um coração de ouro.
Nem o pai, nem a mãe, nem Sônia, nem o próprio príncipe Andrei podiam prever como a separação do seu noivo agiria sobre Natacha. Vermelha e agitada, com os olhos secos, ela ficou andando pela casa naquele dia, ocupada com os afazeres mais insignificantes, como se não entendesse o que a aguardava. Não chorou, nem no instante em que ele, ao se despedir, beijou sua mão pela última vez.
— Não vá embora! — exclamou ela, apenas, com uma voz que o obrigou a pensar duas vezes se não deveria mesmo ficar e da qual ele se lembraria durante muito tempo depois. Quando o príncipe Andrei partiu, Natacha também não chorou; mas em alguns dias, ela, sem chorar, ficava no seu quarto sem se interessar por nada e só falava, de vez em quando: “Ah, para que foi embora?”.
No entanto, duas semanas depois da partida do príncipe Andrei, Natacha despertou da sua enfermidade moral; de modo igualmente inesperado para as pessoas próximas, tornou-se tal como antes, apenas com a fisionomia moral alterada, como as crianças se levantam da cama com um rosto diferente, depois de uma longa doença.
XXV
A saúde e o caráter do príncipe Nikolai Andréievitch Bolkónski se debilitaram muito naquele último ano, após a partida do filho. Ele se tornou ainda mais irritadiço, e a maior parte dos seus acessos de raiva gratuitos recaía sobre a princesa Mária. Ele parecia procurar com afinco todos os pontos mais sensíveis da filha, para atormentá-la do modo mais cruel possível. A princesa Mária tinha duas paixões e, portanto, duas alegrias: o sobrinho Nikóluchka e a religião, e ambos eram temas prediletos para os ataques e as zombarias do príncipe. Qualquer que fosse o assunto da conversa, ele a desviava para a superstição das solteironas e para os mimos que estragavam as crianças. “Você quer que ele (Nikóluchka) fique igual a uma solteirona, como você; não convém: o príncipe Andrei precisa de um filho, não de uma solteirona”, dizia. Ou, dirigindo-se a Mlle Bourienne, perguntava, diante da princesa Mária, se ela gostava dos nossos popes e dos ícones, e zombava...
Sem cessar, ofendia dolorosamente a princesa Mária, mas a filha nem precisava fazer esforço para perdoar o pai. Como poderia ele ser culpado perante ela, e como o seu pai, que (ela sabia disso, apesar de tudo) a amava, poderia ser injusto com ela? E, afinal, o que era a justiça? A princesa nunca pensava a respeito dessa palavra orgulhosa: justiça. Todas as complicadas leis da humanidade resumiam-se para ela numa única lei simples e clara — a lei do amor e da abnegação, ensinada a nós por aquele que, embora fosse Deus, sofreu por amor à humanidade. O que tinha ela a ver com a justiça ou com a injustiça das outras pessoas? Ela mesma tinha de sofrer e amar, e era o que fazia.
No inverno, o príncipe Andrei tinha vindo a Montes Calvos, estava alegre, dócil e afetuoso, como a princesa Mária não o via desde muito tempo. Pressentia que algo havia acontecido com o irmão, mas ele nada contou para a princesa Mária sobre o seu amor. Antes da partida, o príncipe Andrei teve uma conversa demorada com o pai, e a princesa Mária notou que, na hora da partida, os dois estavam descontentes um com o outro.
Logo depois da partida do príncipe Andrei, a princesa Mária escreveu de Montes Calvos para Petersburgo, à sua amiga Julie Karáguina, que a princesa Mária sonhava, como as moças sempre sonham, ver casada com o irmão e que, naquele momento, estava de luto por causa da morte do próprio irmão, morto em combate na Turquia.
Parece que o desgosto é a nossa sina comum, querida e afetuosa amiga Julie.
A sua perda é tão terrível que não posso explicá-la senão como uma graça especial de Deus, que quer pôr à prova o seu amor — o seu e o da sua excelente mãe. Ah, minha amiga, a religião e só a religião pode, não digo nos consolar, mas nos livrar do desespero; só a religião pode nos explicar aquilo que, sem a sua ajuda, o homem não pode entender: por quê, para que as criaturas boas, elevadas, capazes de encontrar felicidade na vida, que não só não fazem mal a ninguém como também são indispensáveis à felicidade de outros, são chamadas ao encontro de Deus, enquanto continuam a viver as criaturas más, inúteis, nocivas ou criaturas tais que são um peso para si e para os outros? A primeira morte que vi e que nunca esquecerei — a morte da minha querida cunhada — deixou em mim essa impressão. Assim como você pergunta ao destino para que tinha de morrer o seu belo irmão, também eu perguntei para que teve de morrer aquele anjo — Liza, que não só não fazia mal a pessoa alguma como nunca tinha na alma nada que não fossem bons pensamentos. E então, minha amiga? Eis que se passaram cinco anos, e eu, com a minha inteligência insignificante, começo a compreender com clareza para que era preciso que ela morresse e de que forma essa morte foi apenas a expressão da misericórdia infinita do Criador, de quem todas as ações, embora não possamos compreendê-las em sua maior parte, são apenas a manifestação do seu amor infinito por sua criação. Muitas vezes penso até que ela talvez fosse angelical e inocente demais para ter forças de suportar todos os deveres da maternidade. Ela era irrepreensível, como jovem esposa; talvez não fosse capaz de ser uma mãe também assim. Agora, além de ter deixado em nós, e sobretudo no príncipe Andrei, a compaixão e as lembranças mais puras, no céu seguramente receberá um lugar que não me atrevo a esperar para mim. Mas, para não falar só dela, essa morte prematura e terrível, apesar de toda a tristeza, teve uma influência muito benéfica sobre mim e meu irmão. Na época, no instante da perda, esses pensamentos não poderiam me ocorrer; na época, eu os rechaçaria com horror, mas agora está claro e evidente. Escrevo tudo isso a você, minha amiga, só para convencê-la da verdade evangélica, que se tornou para mim uma regra de vida: nem um cabelo da nossa cabeça cairá sem a vontade Dele. Mas a vontade Dele é governada apenas pelo Seu ilimitado amor por nós e, portanto, tudo, qualquer coisa que nos aconteça, é para o nosso bem. Você quer saber se passaremos o próximo inverno em Moscou? Apesar de todo o desejo de vê-la, não penso e não desejo tal coisa. E você ficará surpresa em saber que a causa disso é Bonaparte. Eis por quê: a saúde do meu pai se debilita a olhos vistos: ele não consegue tolerar nenhuma contradição e se torna irritadiço. Tal irritação, como sabe, se volta sobretudo para as questões políticas. Ele não consegue suportar a ideia de que Bonaparte trate os assuntos de Estado de igual para igual com todos os soberanos da Europa, e em especial com o nosso, o neto de Catarina, a Grande! Como você sabe, sou de todo indiferente aos assuntos políticos, mas, pelas palavras do meu pai e de suas conversas com Mikhail Ivánovitch, sei tudo o que se passa no mundo e, em especial, todas as honras prestadas a Bonaparte, que, pelo visto, de todo o globo terrestre, só em Montes Calvos não é reconhecido como um grande homem, e menos ainda como imperador francês. Meu pai não consegue suportar isso. Parece-me que meu pai, sobretudo por causa de sua visão dos assuntos políticos, e prevendo os conflitos decorrentes do seu modo de exprimir suas opiniões sem se constranger diante de quem quer que seja, só a contragosto fala da viagem a Moscou. Tudo o que ele ganha com o tratamento médico perde por causa das discussões sobre Bonaparte, que são inevitáveis. Em todo caso, isso vai ser resolvido em breve. Nossa vida familiar segue como antes, exceto pela ausência do meu irmão Andrei. Como já lhe escrevi, ele mudou muito, ultimamente. Depois do seu desgosto, só agora, neste ano, restabeleceu-se moralmente de todo. Está como eu o conhecia, quando criança: bom, afetuoso, com um coração de ouro que nunca vi igual. Entendi, assim me parece, que a vida para ele não acabou. Porém, junto com essa mudança moral, ele enfraqueceu muito, fisicamente. Ficou mais magro, mais nervoso do que antes. Temo por ele e estou contente por ter empreendido essa viagem ao exterior, que os médicos já tinham recomendado há muito tempo. Espero que fique curado. Você me escreve que, em Petersburgo, referem-se a ele como um dos jovens mais ativos, cultos e inteligentes. Perdoe pela presunção de irmã — eu nunca tive dúvidas sobre isso. É impossível calcular o bem que ele fez a todos aqui, desde os seus mujiques até os nobres. Em sua estada em Petersburgo, ele apenas recebeu o que lhe era devido. Fico admirada de como os rumores chegam de Petersburgo a Moscou, e sobretudo um falso rumor como este sobre o qual você me escreve — o boato de um imaginário casamento do meu irmão com a caçula Rostova. Não creio que Andrei algum dia se case com quem quer seja, muito menos com ela. E vou dizer por quê: em primeiro lugar, sei que, embora raramente fale sobre a esposa falecida, a dor dessa perda criou raízes fundas demais no seu coração para que algum dia ele se atreva a dar uma sucessora para ela e uma madrasta para o nosso pequenino anjo. Em segundo lugar, até onde sei, essa moça não pertence em absoluto à classe de mulheres que podem agradar ao príncipe Andrei. Não acho que o príncipe Andrei a escolha para esposa e afirmo com sinceridade: não desejo isso. Mas já falei demais, estou terminando a segunda folha. Adeus, minha cara amiga; que Deus a proteja sob o Seu manto sagrado e poderoso. Minha gentil amiga, Mlle Bourienne, lhe manda um beijo.
Marie
XXVI
Em meados do verão, a princesa Mária recebeu da Suíça uma carta inesperada do príncipe Andrei, na qual dava uma notícia estranha e inesperada. O príncipe Andrei anunciava seu noivado com Rostova. A carta inteira respirava entusiasmo amoroso pela noiva e confiança e terna amizade pela irmã. Ele dizia que nunca tinha amado como amava agora e que só agora entendia e descobria o que era a vida. Pedia à irmã que o perdoasse por ele, na sua estada em Montes Calvos, não ter dito nada a respeito daquela decisão, embora tivesse falado sobre o assunto com o pai. Nada dissera a ela porque sabia que a princesa Mária iria logo pedir ao pai o seu consentimento e, além de não alcançar esse objetivo, irritaria o pai e teria de suportar todo o peso do descontentamento dele. De resto, escrevia ele, a questão naquela altura ainda não estava definitivamente decidida, como agora. “Naquela ocasião, papai estabeleceu um ano de prazo para mim, e eis que já se passaram seis meses, metade do ano estabelecido e, mais do que nunca, permaneço firme na minha decisão. Se os médicos não me retivessem aqui na estação de águas, eu já estaria na Rússia, mas agora ainda devo adiar o meu regresso por mais três meses. Você me conhece e conhece as minhas relações com o papai. Não preciso de nada dele, fui e serei sempre independente, mas agir contra a vontade dele, ser objeto da sua ira, quando talvez lhe reste pouco tempo entre nós, destruiria metade da minha felicidade. Agora vou escrever para ele uma carta sobre isso e peço a você que escolha um bom momento, entregue-lhe a carta, me informe como ele encara toda a questão e se há esperança de aceitar reduzir o prazo em três meses.”
Depois de muitas hesitações, dúvidas e preces, a princesa Mária entregou a carta ao pai. No dia seguinte, o velho príncipe lhe disse, em tom calmo:
— Escreva ao seu irmão e diga que espere até eu morrer... Não vai demorar... em breve o deixarei livre...
A princesa quis retrucar algo, mas o pai não permitiu e passou a erguer a voz cada vez mais:
— Case, case, meu querido... Uma família excelente!... Pessoas inteligentes, não é? Ricas, não é? Sim. Vai ser uma bela madrasta para o Nikóluchka. Escreva para ele que pode casar amanhã, se quiser. Ela vai ser a madrasta de Nikóluchka... e eu vou casar com Bourienne!... Ha, ha, ha! Para que ele também não fique sem madrasta! Só tem uma coisa, na minha casa, não precisamos mais de mulher nenhuma; pode casar, e vá viver por conta própria. Quem sabe você não quer ir morar com ele? — Voltou-se para a princesa Mária. — Pois vá com Deus, vá embora, no frio, no frio e na neve!...
Depois desse ataque, o príncipe não falou mais nenhuma vez sobre o assunto. Mas a irritação reprimida, causada pela falta de coragem do filho, manifestava-se nas relações com a filha. Aos pretextos de zombarias anteriores, o príncipe acrescentou outro, novo — conversas sobre a madrasta e galanteios dirigidos a Mlle Bourienne.
— Por que eu não iria me casar com ela? — dizia para a filha. — Vai ser uma princesa formidável! — E nos últimos tempos, para a sua própria perplexidade e surpresa, a princesa Mária passou a notar que o pai, de fato, começava a se aproximar cada vez mais da francesinha. A princesa Mária escreveu ao príncipe Andrei contando como o pai havia recebido sua carta; mas consolou o irmão, dando esperanças de conciliar o pai com aquela ideia.
Nikóluchka e a sua educação, André e a religião, eram esses os consolos e as alegrias da princesa Mária; mas, além disso, assim como todos precisam de certas esperanças pessoais, a princesa Mária tinha, no fundo mais secreto da alma, um sonho e uma esperança oculta, que lhe proporcionavam o principal consolo da vida. Aquela esperança e aquele sonho consolador vinham do povo de Deus — os mesmos mendigos visionários e peregrinos que a visitavam às escondidas do príncipe. Quanto mais a princesa Mária vivia, mais ela experimentava a vida e mais a observava, porém se admirava com a miopia das pessoas, que procuravam aqui na terra o prazer e a felicidade; trabalhavam, sofriam, lutavam e faziam mal umas às outras para alcançar aquela felicidade impossível, ilusória, viciosa. “O príncipe Andrei amava a esposa, ela morreu, foi pouco para ele, quer unir sua felicidade a outra mulher. Papai não quer isso porque deseja para Andrei uma esposa mais rica e ilustre. E todos brigam, sofrem, atormentam e estragam toda a sua alma, a sua alma eterna, para alcançar um bem que só dura um instante. Além de sabermos disso nós mesmos, Cristo, o filho de Deus, desceu à Terra e nos disse que esta vida é uma vida passageira, uma provação, e todos nós nos agarramos a ela e achamos que nela vamos encontrar felicidade. Como ninguém entendeu isso?”, pensava a princesa Mária. “Ninguém, exceto o desprezado povo de Deus, que, de sacolas nos ombros, vem me visitar no alpendre dos fundos, com receio de ser visto pelo príncipe, e não porque tenha medo de ser maltratado por ele, mas para que ele não cometa um pecado. Deixar para trás a família, a terra natal, todas as preocupações com os bens mundanos, para não se prender a nada, caminhar em andrajos de cânhamo, de um lugar para outro, sob um nome que não é o seu, sem fazer mal às pessoas e rezando por elas, rezando tanto por aqueles que oprimem como por aqueles que protegem: não há verdade nem vida superiores a esta verdade e a esta vida!”
Havia uma peregrina, Fedóssiuchka, de cinquenta anos, miúda, mansinha, com marcas de varíola no rosto, que havia trinta anos caminhava descalça e com correntes presas ao corpo. A princesa Mária tinha uma afeição especial por ela. Certa vez, num cômodo escuro, sob a luz apenas de uma lamparina, Fedóssiuchka estava contando a sua vida e, de repente, veio à princesa Mária com tanta força a ideia de que só Fedóssiuchka havia encontrado o caminho certo da vida que ela mesma resolveu largar tudo e vagar pelo mundo. Quando Fedóssiuchka se retirou para dormir, a princesa Mária refletiu sobre isso durante muito tempo e, por fim, resolveu que, por mais estranho que fosse, ela precisava vagar pelo mundo em peregrinação. Só confiou sua intenção ao monge confessor, o padre Akínfi, e o confessor aprovou a sua intenção. Sob o pretexto de dar um presente aos peregrinos, a princesa Mária muniu-se da indumentária completa de uma peregrina: camisolão, sandálias de palha, cafetã e xale preto. Muitas vezes, ao se aproximar da cômoda onde guardava o seu segredo, a princesa Mária ficava indecisa, sem saber se já havia chegado a hora de pôr em prática o seu projeto.
Muitas vezes, ao ouvir os relatos dos peregrinos, ela se empolgava a tal ponto com as suas palavras simples, para eles mecânicas, mas para ela repletas de um sentido profundo, que várias vezes esteve à beira de largar tudo e fugir de casa. Na sua imaginação, ela já se via com Fedóssiuchka, em andrajos ordinários, caminhando a passo por uma estrada poeirenta, com uma vareta e um alforje nas costas, conduzindo a sua peregrinação sem inveja, sem amor pelas coisas humanas, sem desejo, de um santuário para outros santuários até, por fim, chegar lá onde não há aflições, nem suspiros, mas a alegria e a beatitude eternas.
“Chegarei a um lugar, rezarei; não vou ter tempo de me acostumar, de me afeiçoar, e seguirei adiante. E vou continuar andando, enquanto as pernas não fraquejarem, e então vou deitar e morrer em qualquer parte e, enfim chegarei ao refúgio eterno e sereno, onde não há aflições nem suspiros!...”
Mas depois, ao ver o pai e sobretudo o pequeno Koko,47 sua intenção perdia a força, ela chorava baixinho e sentia que era uma pecadora; amava o pai e o sobrinho mais do que amava a Deus.
1 O termo “alma” servia para designar os servos de uma propriedade rural.
2 Categoria especial de camponeses, libertos da servidão, por uma lei de 1803. O senhor de terras permitia que eles ficassem em liberdade e lhes fornecia a sua terra em troca de pagamento. Apesar da lei, foram raríssimos os casos em que isso ocorreu. Em seguida, o texto menciona a corveia (barschina), trabalho gratuito e obrigatório que os servos tinham de prestar ao senhor de terras.
3 Francês: “À grega”.
4 O serviço público civil tinha uma hierarquia à imagem das patentes militares. Os dois cargos citados correspondem, aproximadamente, a tenente-coronel e coronel.
5 Francês: “Comitê de salvação pública”. Referência ao órgão que levava esse nome e que fora criado durante a Revolução Francesa com a incumbência de impor a nova ordem e reprimir os inimigos da Revolução.
6 Sobriquet: “apelido”, em francês; Sila em russo significa “força”.
7 Refere-se a Speránski.
8 Francês: “Meu caro [...] É o grande criador”.
9 Francês: “O senhor teme estar atrasado”.
10 Francês: “O princípio das monarquias é a honra, me parece incontestável. Certos direitos e privilégios da nobreza me parecem ser os meios de sustentar esse sentimento”.
11 Francês: “Se o senhor encara a questão desse ponto de vista”.
12 Francês: “à francesa”.
13 Francês: “encontros”.
14 Referência ao Código Civil Francês, instituído por Napoleão em 1804, e ao Código de Justiniano, imperador de Roma no século VI.
15 Referência aos chamados illuminati da Baviera, organização secreta de cunho conspiratório do século XVIII, criada por Adam Weishaupt, regida por uma hierarquia rigorosa e cujos fins só eram conhecidos pelos membros da sua cúpula. Entre eles estava a substituição da monarquia pela república.
16 Certas lojas maçônicas na Alemanha se denominavam escocesas.
17 Francês: “É um animal soberbo”.
18 Francês: “de uma mulher encantadora, tão inteligente quanto bela”.
19 Francês: “príncipe de Ligne”.
20 Francês: “de uma mulher encantadora e inteligente”.
21 Francês: “senhor importante”.
22 Francês: “os senhores da embaixada”.
23 Francês: “da mulher mais distinta de Petersburgo”.
24 Francês: “a sério”.
25 Francês: “meu pajem”.
26 Francês: “mulher pedante”.
27 Hoje chamada Guerra Russo-Sueca, de 1808-9. Por causa dessa guerra, a Finlândia foi incorporada à Rússia. A Suécia obrigou-se a participar do bloqueio à Inglaterra, promovido por Napoleão, e fechou seus portos às embarcações inglesas.
28 Alemão: “Aquela moça será a minha esposa”.
29 A título de prêmio, ou por favoritismo político, o governo concedia o usufruto de terras (“arrendamentos”). A região báltica do Império russo, então, compreendia a Lituânia, a Estônia e a Curlândia.
30 Francês: “como convém”.
31 Francês: “Encantado de ver o senhor”.
32 Cortesã célebre e amante de Alexandre I.
33 Pronúncia incorreta da expressão francesa franc-maçon (pedreiro-livre).
34 Expressão francesa para caracterizar alguém que está com muito poder. Literalmente: “Ele faz chover e fazer sol”.
35 Referência a Mária Antónovna, mencionada pouco antes.
36 Movimento deslizante dos pés.
37 Francês: “numa reunião íntima”.
38 A conversa se passa em 1810. Em 1807, Napoleão invadira a Espanha e em 1808 coroara o seu irmão rei do país. Os espanhóis resistiram à ocupação por meio de guerrilhas (que se revelaram um inimigo terrível das tropas francesas) semelhantes àquelas que Napoleão mais tarde viria a enfrentar na Rússia. Os combates na Espanha se estenderam até 1813 e enfraqueceram muito o império napoleônico.
39 Alemão: “ser um homem”.
40 Referência a uma antiga linhagem de nobres russos.
41 Francês: “o prazer de ser cortejada [...] E Natália, é preciso admitir, é muito sensível a isso”.
42 Francês: “cortejada [...] primo [...] entre nós [...] no país da ternura”.
43 Francês: “O senhor sabe, entre primo e prima essa intimidade às vezes leva ao amor: primos são uma vizinhança perigosa. Não é?”.
44 Nos rascunhos do romance, o príncipe Andrei também era iniciado na franco-maçonaria. Na versão final, a cena foi eliminada. Porém essa alusão à sua iniciação escapou à revisão do autor.
45 Francês: “Os casamentos se fazem no céu”.
46 Refere-se a Sônia.
47 Apelido de Nikolai.
I
A tradição bíblica diz que a ausência de trabalho — o ócio — era a condição da beatitude do primeiro homem, até a sua queda. O amor ao ócio permaneceu o mesmo no homem decaído, mas a maldição continua a pesar sobre o homem, e não só porque precisamos ganhar o nosso pão com o suor do rosto, mas também porque, em razão dos nossos atributos morais, não conseguimos estar ociosos e nos sentir tranquilos. Uma voz misteriosa diz que devemos sentir culpa se ficamos ociosos. Se o homem pudesse encontrar uma situação na qual, estando ocioso, se sentisse útil e cumpridor do dever, teria encontrado uma parte da beatitude do primeiro homem. Porém tal situação de ócio forçado e ao mesmo tempo irrepreensível é desfrutada por uma classe inteira — a classe militar. Nesse ócio forçado e irrepreensível residia e continuará a residir o principal atrativo do serviço militar.
Nikolai Rostóv provava essa beatitude por completo desde 1807, continuando a servir no regimento de Pávlograd, no qual já comandava um esquadrão, em lugar de Deníssov.
Rostóv se tornara um rapagão simpático e de maneiras rudes, a quem os seus conhecidos moscovitas teriam achado um pouco mauvais genre,1 mas era amado e respeitado pelos camaradas, subordinados e superiores, e estava satisfeito com a sua vida. Ultimamente, ou seja, no ano de 1809, com uma constância cada vez maior, ele encontrava nas cartas que recebia de casa queixas da mãe a respeito dos negócios da família, que pioravam cada vez mais, e ela dizia que já era hora de Nikolai voltar para casa a fim de alegrar e tranquilizar os velhos pais.
Ao ler aquelas cartas, Nikolai experimentava o temor de que quisessem retirá-lo do meio em que ele, protegido de todas as embrulhadas do cotidiano, vivia calmo e sossegado. Sentia que cedo ou tarde teria de entrar de novo no redemoinho da vida, com a desordem e a recuperação das finanças, com os acertos de contas dos administradores, as brigas, as intrigas, as alianças, a sociedade, o amor de Sônia e a promessa feita a ela. Tudo isso era terrivelmente difícil, confuso, e ele respondia às cartas da mãe com cartas frias e clássicas, que começavam assim: “Ma chère maman”,2 e terminavam com: “votre obéissant fils”,3 sem dizer nada sobre quando tencionava voltar. Em 1810, Nikolai recebeu uma carta dos pais que comunicavam o noivado de Natacha com Bolkónski, e diziam que o casamento seria dali a um ano porque o velho príncipe não queria consentir. A carta deixou Nikolai amargurado e ofendido. Em primeiro lugar, lamentava que Natacha saísse de casa, pois era a pessoa que ele mais amava na família; em segundo lugar, do seu ponto de vista de hussardo, lamentava que ele não estivesse presente na ocasião, pois mostraria àquele Bolkónski que ter um vínculo com a família dele não era nenhuma grande honra e que, se ele amava Natacha, podia abrir mão do consentimento do seu pai extravagante. Por um momento hesitou, pensando se devia pedir licença para visitar Natacha enquanto ainda era noiva, mas começaram as manobras, vieram ponderações a respeito de Sônia, da sua situação confusa, e Nikolai adiou mais uma vez. Porém, na primavera do mesmo ano, recebeu uma carta da mãe, escrita às escondidas do conde, e essa carta o convenceu a partir. Ela dizia que, se Nikolai não fosse para casa e não tomasse as rédeas dos negócios da família, a propriedade inteira seria penhorada, e todos teriam de pedir esmolas. O conde estava tão fraco, acreditava tanto em Mítienka, era tão bom, e todos o enganavam tanto que, cada vez mais, tudo ia de mal a pior. “Pelo amor de Deus, eu lhe suplico, venha agora mesmo, se não quiser ver a mim e a toda a sua família na desgraça”, escrevia a condessa.
Essa carta impressionou Nikolai. Ele tinha aquele bom senso da mediocridade, que lhe mostrava o que devia fazer.
Agora tinha de ir, se não desligado do Exército em definitivo, então ao menos de licença. Por que era preciso ir, ele não sabia; porém, depois de dormir após o almoço, mandou selar o tordilho Marte, um garanhão terrivelmente bravio que havia muito não era montado, e quando voltou com o garanhão coberto de espuma avisou a Lavruchka (o lacaio de Deníssov passara a servir Rostóv) e aos seus camaradas que tinham vindo à noite que ele ia tirar licença e viajar para casa. Por mais duro e estranho que fosse para ele pensar que ia partir sem ter notícia do Estado-Maior sobre algo no qual tinha tanto interesse, se fora ou iria ser promovido ao posto de capitão da cavalaria ou se receberia a condecoração de Santa Ana pelas últimas manobras; por mais estranho que fosse pensar que ia partir sem ter vendido ao conde Golukhóvski a troica de cavalos comuns que o conde polonês estava negociando com ele e que Rostóv apostara que ia conseguir vender por dois mil rublos; por mais que parecesse incompreensível que fosse se realizar sem ele o baile que os hussardos deviam oferecer à sra. Przazdziecka, ilustre polonesa, para provocar os ulanos, que tinham promovido um baile em homenagem à sra. Borzozowska — ele sabia que era preciso partir daquele mundo claro, bom, e ir para um lugar onde tudo era absurdo e confuso. Uma semana depois, partiu de licença. Os hussardos, os camaradas, não só do regimento, mas da brigada, deram um jantar em homenagem a Rostóv, ao preço de quinze rublos por pessoa — duas orquestras tocaram, dois coros cantaram; Rostóv dançou o trepak com o major Bássov; os oficiais embriagados abraçaram, sacudiram e soltaram Rostóv; os soldados do terceiro esquadrão o sacudiram de novo e gritaram “Hurra!”. Depois, puseram Rostóv no trenó e o acompanharam até a primeira estação de muda de cavalos.
Na primeira metade da viagem, como sempre acontece, de Krementchug até Kíev, todos os pensamentos de Rostóv foram para o que deixara para trás — no esquadrão; porém, cumprida a metade do caminho, ele começou a esquecer a troica de cavalos comuns e o seu furriel Dojóiveiko e passou a se perguntar com ansiedade sobre o que iria encontrar em Otrádnoie e como estaria a situação por lá. Quanto mais se aproximava, mais fortes, imensamente mais fortes (como se o sentimento moral estivesse subordinado à lei da gravidade, inversamente proporcional ao quadrado da distância), eram seus pensamentos sobre a sua casa; na última estação de muda antes de Otrádnoie, deu ao cocheiro três rublos para uma vodca e, como um menino, subiu ofegante a escadinha da entrada de casa.
Depois das efusões do reencontro e depois daquele estranho sentimento de insatisfação, por não encontrar aquilo que esperava (tudo está igual, então por que me apressei tanto?), Nikolai começou a se habituar com o seu antigo mundo doméstico. O pai e a mãe estavam iguais, tinham apenas envelhecido um pouco. O que havia de novo neles era uma certa inquietação e, de vez em quando, alguma discordância que antes não existia e que, como Nikolai logo descobriu, decorria da má situação dos negócios. Sônia já estava perto de fazer vinte anos. Já deixara de se tornar mais bonita, nada prometia além do que nela já havia; mas o que havia era o bastante. Toda ela exalava felicidade e amor, desde que Nikolai chegara, e o amor fiel, inabalável, daquela moça produzia nele um efeito de alegria. Mais que tudo, Nikolai admirou-se com Pétia e Natacha. Pétia já era um menino grande, de treze anos, bonito, alegre, inteligente e travesso, cuja voz já começava a mudar. Com Natacha, Nikolai se espantou e riu demoradamente, enquanto olhava para ela.
— Está completamente mudada — disse ele.
— Como assim, fiquei feia?
— Ao contrário, e como está importante! Uma princesa? — disse, num sussurro.
— Sim, sim, sim — disse Natacha, com alegria.
Natacha contou-lhe o seu romance com o príncipe Andrei, a vinda dele a Otrádnoie, e mostrou-lhe a última carta.
— E então, está contente? — perguntou Natacha. — Eu agora ando tão calma, tão feliz.
— Estou muito contente — respondeu Nikolai. — Ele é uma pessoa excelente. E você, está muito apaixonada?
— Como vou lhe dizer? — respondeu Natacha. — Estive apaixonada por Boris, pelo professor, por Deníssov, mas isto é muito diferente. Estou tranquila, firme. Sei que não há ninguém melhor do que ele e agora me sinto calma, me sinto bem. É muito diferente do que aconteceu antes...
Nikolai declarou a Natacha a sua insatisfação com o fato de o casamento ter sido adiado por um ano; mas Natacha, com obstinação, contestou o irmão, mostrou-lhe que não poderia ser de outro modo, que seria ruim entrar na família contra a vontade do pai do noivo, que ela mesma queria assim.
— Você não entende nada, nada — disse ela. Nikolai ficou em silêncio e concordou com ela.
Enquanto olhava para ela, o irmão se admirou muitas vezes. Não parecia nem um pouco uma noiva apaixonada, distante do noivo. Ela estava senhora de si, tranquila, alegre, exatamente como antes. Isso surprendeu Nikolai e até o obrigou a encarar com incredulidade o pedido de casamento de Bolkónski. Não acreditava que o destino da irmã já estivesse decidido, ainda mais porque não via o príncipe Andrei ao lado dela. O tempo todo, tinha a impressão de que havia algo errado naquele suposto casamento.
“Para que o adiamento? Por que não casar?”, pensava. Certa vez, ao conversar com a mãe sobre a irmã, Nikolai, para sua surpresa, e em parte para sua satisfação, descobriu que a mãe também, no fundo da alma, às vezes encarava aquele casamento com incredulidade.
— Olhe — disse a condessa, mostrando ao filho uma carta do príncipe Andrei, com aquele sentimento latente de hostilidade que há sempre na mãe contra a futura felicidade conjugal da filha. — Ele escreve que não virá antes de dezembro. Que assunto é esse capaz de retê-lo? Com certeza, uma doença! Tem a saúde muito fraca. Não diga nada para a Natacha. Não dê importância por ela estar alegre: está vivendo o final dos seus tempos de menina, e eu sei o que se passa com a Natacha toda vez que recebe uma carta dele. No fim, se Deus quiser, tudo vai dar certo — a condessa sempre terminava assim. — Ele é uma pessoa excelente.
II
No início da sua estada em casa, Nikolai andava pensativo e até tristonho. Atormentava-o a necessidade iminente de imiscuir-se nos assuntos estúpidos da administração doméstica, para os quais a mãe o havia chamado. A fim de retirar aquele fardo dos ombros o mais depressa possível, no terceiro dia depois de chegar, sem responder a Natacha, que lhe perguntou aonde ia, Nikolai saiu com ar zangado, de sobrancelhas franzidas, rumo à casa dos fundos, ao encontro de Mítienka, e exigiu dele as contas de tudo. O que vinham a ser as contas de tudo, Nikolai sabia ainda menos do que o perplexo e apavorado Mítienka. A conversa e as contas de Mítienka não demoraram muito tempo. O estaroste, o representante dos camponeses e o do conselho rural, que aguardavam na entrada da casa dos fundos, escutaram com medo e satisfação como a voz do jovem conde repicou, de início, e estalou cada vez mais aguda, e depois escutaram palavras terríveis e ofensivas, disparadas uma depois da outra.
— Bandido! Besta ingrata!... Vou fazer o cachorro em pedaços... Não está falando com o papai... Estava roubando... canalha.
Depois disso, com não menos satisfação e medo, as pessoas viram que o jovem conde, todo vermelho, com os olhos injetados de sangue, arrastou Mítienka para fora, segurando-o pelo cangote, enquanto com grande agilidade, no momento propício, entre uma palavra e outra, batia nele por trás com os pés e com os joelhos, gritando: “Fora, suma! E nunca mais dê as caras por aqui, seu miserável!”.
Mítienka, a toda a pressa, desceu os seis degraus e fugiu para o bosque. (O bosque era um conhecido local de refúgio para criminosos em Otrádnoie. O próprio Mítienka, ao chegar embriagado da cidade, escondia-se naquele bosque, e muitos habitantes de Otrádnoie que se escondiam de Mítienka conheciam o poder salvador do bosque.)
A esposa e a cunhada de Mítienka, com rostos assustados, surgiram no saguão pela porta do quarto, onde um samovar lustroso chiava e onde a cama alta do administrador se erguia sob um cobertor acolchoado, costurado com pequenos pedacinhos de pano.
O jovem conde, ofegante, sem lhes dar atenção, passou por elas em passos resolutos e voltou para casa.
A condessa, que por intermédio das criadas soube na mesma hora o que se passava na casa dos fundos, de um lado tranquilizou-se, pois agora a situação deles devia se restabelecer, de outro lado inquietou-se com o efeito que aquilo teria sobre o filho. Várias vezes, na ponta dos pés, aproximou-se da porta do quarto de Nikolai e ficou escutando, enquanto ele fumava um cachimbo depois do outro.
No dia seguinte, o velho conde chamou o filho para uma conversa particular e, com um sorriso encabulado, disse-lhe:
— Sabe, meu querido, você se aborreceu à toa! Mítienka me contou tudo.
“Eu sabia”, pensou Nikolai, “que jamais ia conseguir entender nada neste mundo idiota.”
— Você se irritou por ele não ter registrado aqueles setecentos rublos. Acontece que eles foram transportados para a página seguinte, e você não olhou na outra página.
— Papai, ele é um miserável e um ladrão, eu sei. E o que fiz está feito. Mas, se o senhor não quiser, não vou falar mais nada para ele.
— Não, meu querido. (O conde também estava constrangido. Sentia que havia administrado mal a propriedade da esposa e sentia-se culpado perante os filhos, mas não sabia como corrigir isso.) Não, eu peço a você que se encarregue dos negócios, eu estou velho, eu...
— Não, papai, o senhor me desculpe se eu lhe causei algum embaraço; sei menos do que o senhor.
“Que o diabo o carregue com os seus mujiques, com o seu dinheiro, com as suas cifras transportadas”, pensou. “Tempos atrás eu ainda sabia como vencer seis rodadas seguidas num jogo de cartas, mas desses transportes de cifras para a outra página eu não entendo nada”, disse consigo e, a partir de então, não se meteu mais nos negócios. Só uma vez a condessa chamou o filho ao seu quarto, informou-lhe que tinha uma letra de câmbio de Anna Mikháilovna no valor de dois mil rublos e perguntou a Nikolai o que ele pensava fazer a respeito.
— Pois bem — respondeu Nikolai. — A senhora me disse que isso depende de mim; não gosto de Anna Mikháilovna, não gosto de Boris, mas eles foram amigos nossos e são pobres. Então será assim! — E rasgou a letra de câmbio, e com esse gesto fez a velha condessa soluçar com lágrimas de alegria. Em seguida, o jovem Rostóv, já sem se intrometer em nenhum assunto financeiro, passou a se interessar com um entusiasmo apaixonado por uma atividade nova para ele, a caçada com cães, que era praticada em grande escala na propriedade do velho conde.
III
Já haviam começado as primeiras geadas, a friagem matinal recobria a terra molhada pela chuva de outono, a vegetação já ficava mais densa e, verde-clara, se destacava das faixas do restolho de inverno, que ficara pardo, pisado pelo gado, e do restolho amarelo-claro da primavera, com as faixas vermelhas do trigo-sarraceno. Os cumes e os bosques, que no fim de agosto ainda eram como ilhas verdes entre os campos negros do inverno e os restolhos, transformaram-se em ilhas douradas e vermelho-claras em meio às sementeiras verde-claras de outono. As lebres já haviam trocado metade do pelo, as crias das raposas começavam a se dispersar, e os lobos jovens estavam maiores do que cães. Era a melhor época para caçar. Os cães do jovem e ardente caçador Rostóv não só estavam com o corpo tão fora de forma para a caça como se achavam tão exaustos que, numa reunião de caçadores, ficou resolvido conceder aos cães três dias de descanso e dar a partida para a caçada no dia 16 de setembro, começando em Dubrav, onde havia uma ninhada de lobos ainda intacta.
Essa era a situação no dia 14 de setembro.
O dia inteiro, os caçadores ficaram dentro de casa; fazia uma friagem cortante, mas a partir do fim da tarde o tempo melhorou, e começou a degelar. No dia 15 de setembro, de manhã cedo, quando o jovem Rostóv olhou pela janela, de roupão, deparou com a melhor manhã para a caça que poderia existir: o céu parecia derreter e, sem vento, descia sobre a terra. O único movimento que havia no ar era o suave movimento para baixo de gotas microscópicas de cerração ou de névoa. Nos ramos desnudos do jardim, pendiam gotas transparentes que tombavam sobre as folhas recém-caídas. A terra na horta negrejava reluzente e encharcada, como sementes de papoula, e a pouca distância dali fundia-se com a névoa embaçada e úmida. Nikolai saiu para o alpendre molhado e sujo de lama; havia um cheiro de folhas murchas e de cachorro. A cadela Milka, malhada de preto, de quadril largo, olhos pretos, grandes e saltados, depois de reconhecer o dono, levantou-se, espreguiçou-se nas patas traseiras e deitou-se à maneira de uma lebre, em seguida saltou de modo inesperado e lambeu-o em cheio no nariz e no bigode. Na vereda do jardim, outro cão, um borzói,4 ao avistar o dono, arqueou as costas, lançou-se para o alpendre e, com o rabo empinado, começou a se esfregar nas pernas de Nikolai.
— Oh-hoi! — ouviu-se então o grito inimitável dos caçadores, que une em si o baixo mais profundo e o tenor mais agudo; e, de trás de um canto da casa, saiu Danilo, o adestrador dos cães e guia de todas as caçadas, com o cabelo tosquiado em forma de ferradura, à maneira ucraniana, grisalho, enrugado, com um chicote dobrado na mão e aquela expressão de autossuficiência e desprezo por todo mundo que só os caçadores têm. Ele tirou o chapéu circassiano diante do patrão e fitou-o com ar de desprezo. Aquele desprezo não era ofensivo para o patrão: Nikolai sabia que Danilo, que a todos desprezava e que se punha acima de todos, era, apesar de tudo, seu servo e seu caçador.
— Danilo! — exclamou Nikolai, sentindo timidamente que, em face do clima propício para caçadas, em face dos cães e do caçador, era dominado por aquele sentimento irresistível de caçada, em que a pessoa se esquece de todas as intenções anteriores, como um homem apaixonado em presença da amada.
— Quais são as ordens, vossa excelência? — perguntou numa voz rouca, de tanto atiçar cães de caça, num tom de baixo como o de um arquidiácono, e dois olhos pretos e brilhantes relancearam de soslaio o patrão, calado. “E então, será que vai conseguir aguentar?”, pareciam dizer os dois olhos.
— Diazinho bonito, não é? Que tal um galope, uma caçada, hein? — disse Nikolai, enquanto coçava atrás das orelhas de Milka.
Danilo não respondeu e piscou os olhos.
— Bem cedinho, mandei Uvarka dar uma espiada — falou sua voz de baixo, após um minuto calado. — Ele disse que ela levou para a reserva de caça de Otrádnoie, estavam uivando naquelas bandas. (Ela levou queria dizer que a loba, da qual ambos já sabiam, se deslocara com os filhotes para a floresta de Otrádnoie, que ficava a duas verstas da casa e não era uma área grande.)
— E então, não devemos ir até lá? — disse Nikolai. — Venha comigo e traga Uvarka.
— Às suas ordens!
— Então, não dê comida aos cães ainda.
— Sim, senhor.
Cinco minutos depois, Danilo e Uvarka estavam no amplo escritório de Nikolai. Apesar de Danilo não ter estatura elevada, vê-lo no escritório produzia uma impressão semelhante a ver um cavalo ou um urso sobre o assoalho, entre os móveis e os apetrechos da vida doméstica. O próprio Danilo tinha a mesma sensação e, como de costume, ficava parado bem junto à porta, fazia força para falar baixo, para não se mexer, a fim de não quebrar alguma coisa nos aposentos dos senhores, e tentava falar tudo o mais depressa possível para sair logo de debaixo daquele teto e ir para o ar livre, sob o céu.
Tendo terminado as perguntas e tendo conseguido arrancar de Danilo a confissão de que não havia problema com os cães (o próprio Danilo também queria ir), Nikolai mandou selar os cavalos. Porém, assim que Danilo fez menção de sair, Natacha entrou a passos ligeiros, ainda sem ter se penteado nem trocado de roupa, com um xale grande da babá. Pétia entrou correndo com ela.
— Você vai? — perguntou Natacha. — Eu bem sabia! Sônia estava dizendo que vocês não iam. Mas eu sabia que hoje está um dia tão bonito que era impossível não ir.
— Vamos — respondeu Nikolai a contragosto, pois naquele dia, como tinha intenção de fazer uma caçada de lobos a sério, não queria levar Natacha e Pétia. — Vamos, sim, mas só para caçar lobos: você vai se aborrecer.
— Você sabe que esse é o meu maior prazer — disse Natacha. — Não está certo você resolver ir, mandar selar os cavalos e não nos dizer nada.
— Para os russos, são inúteis todas as barreiras,5 vamos lá! — gritou Pétia.
— Mas você não pode: mamãe disse que não pode — retrucou Nikolai, voltando-se para Natacha.
— Não, eu vou, sim, vou de qualquer jeito — disse Natacha em tom decidido. — Danilo, mande selar os cavalos para nós, e mande o Mikhail trazer os meus cães — disse, voltando-se para o adestrador dos cães de caça.
E, assim, se estar ali no escritório já parecia a Danilo inconveniente e embaraçoso, tratar qualquer assunto de trabalho com uma jovem senhora parecia para ele algo impossível. Baixou os olhos e saiu depressa, como se aquele assunto não lhe dissesse respeito, esforçando-se para não machucar a senhorinha sem querer.
IV
O velho conde, que sempre mantivera um aparato enorme para caçadas, mas agora deixara tudo aquilo aos cuidados do filho, estava bastante alegre naquele dia 15 de setembro e também se preparava para caçar.
Uma hora depois, todo o grupo de caça estava junto ao alpendre. Nikolai, com ar severo e grave, que indicava que não tinha tempo para se ocupar com bobagens, passou direto por Natacha e Pétia, que lhe falaram alguma coisa. Observou todos os componentes da caçada, mandou uma matilha e alguns caçadores seguirem na frente, como batedores, montou o seu alazão do Don e, depois de dar um assovio para os cães da matilha, avançou através da eira coberta rumo a um campo que ia dar na reserva de caça de Otrádnoie. O cavalo do velho conde, um alazão de crina e rabo esbranquiçados, chamado Vifliánka, era levado pelos arreios por um cavalariço; o próprio conde devia ir de charrete, direto para um posto de observação reservado para ele.
No total, estavam levando cinquenta e quatro cães galgos, com seis homens na função de caçadores e chefes de matilha. Além dos patrões, havia oito homens incumbidos de se manter a postos na orla da floresta, acompanhados por mais de quarenta cães borzóis, e assim, somando isso com as matilhas dos senhores, havia no campo cento e trinta cães e vinte caçadores a cavalo.
Cada cão conhecia o seu dono e atendia ao chamado dele. Cada caçador sabia qual era a sua função, o seu lugar e o seu destino. Assim que atravessaram a sebe, todos, sem fazer barulho e sem conversar, distribuíram-se de modo uniforme e tranquilo pela estrada e pelo campo que iam dar na floresta de Otrádnoie.
Os cavalos pisavam no campo como se fosse um tapete macio, às vezes chapinhavam nas poças quando cruzavam a estrada. O céu nublado continuava a baixar sobre a terra, de maneira imperceptível e uniforme; o ar estava parado, morno, silencioso. De vez em quando se ouviam ora o assovio de um caçador, ora o resfolegar de um cavalo, ou então o estalo de um chicote ou o ganido de um cão que se afastara do seu lugar.
Quando já haviam percorrido mais ou menos uma versta, outros cinco cavaleiros saíram da neblina, acompanhados por seus cães, e vieram ao encontro do grupo de caça de Rostóv. À frente deles, vinha um velho jovial e bonito, com grandes bigodes grisalhos.
— Bom dia, titio! — disse Nikolai, quando o velho se aproximou.
— Muito bem, vamos lá, avante!... Eu já sabia — disse o tio (era um parente distante dos Rostóv, um vizinho sem fortuna). — Eu já sabia que você não ia se conter, e é bom que venha mesmo. Vamos lá, avante! (Era a expressão predileta do tio.) Ocupe logo a reserva de caça, pois o meu Guirtchik avisou que os Iláguin estão em Kornik com os seus caçadores. Vamos lá, avante, senão eles vão tomar os filhotes debaixo do seu nariz.
— Estou mesmo indo para lá. E então, vamos juntar as matilhas? — perguntou Nikolai. — Juntar...
Uniram os cães numa só matilha, e o tio e Nikolai seguiram lado a lado. Natacha, coberta de xales, sob os quais se viam o rosto animado e os olhos brilhantes, galopou até eles, acompanhada por Pétia e pelo caçador Mikhail, que não se afastavam dela, e também pelo mestre de equitação, que a babá incumbira de seguir Natacha. Pétia ria de alguma coisa, chicoteava e atiçava o seu cavalo. Natacha montava o seu murzelo Arábtchik e o conduzia com agilidade e segurança, sem esforço e com mão firme.
O tio voltou-se com ar desaprovador para Pétia e Natacha. Não gostava de misturar brincadeiras com a atividade séria da caça.
— Bom dia, titio, nós também vamos — gritou Pétia.
— Bom dia, bom dia, mas não esmaguem os cães — disse o tio, em tom severo.
— Nikólienka, mas que cachorro maravilhoso é o Trunila! Ele me reconheceu — disse Natacha, referindo-se ao seu cão galgo predileto.
“Em primeiro lugar, Trunila não é um cachorro, mas um galgo”, Nikolai pensou e lançou um olhar severo para a irmã, tentando fazê-la entender a distância que deveria separá-los naquele momento. Natacha compreendeu.
— Tio, o senhor não fique pensando que nós vamos atrapalhar — disse Natacha. — Ficaremos no nosso lugar e não vamos nem nos mexer.
— Isso é muito bom, condessinha — respondeu o tio. — Mas não vá cair do cavalo — acrescentou —, senão, já sabe, vamos lá, avante! Você não vai ter onde se segurar.
A umas cem sájeni, via-se a ilha de mata formada pela reserva de caça de Otrádnoie, e o grupo de caça aproximava-se de lá. Depois de ter resolvido com o tio em definitivo onde deixar os cães e de ter indicado a Natacha o lugar em que ela devia ficar, um local por onde era impossível que algum animal tentasse fugir, Rostóv dirigiu-se a galope para o alto da ravina.
— Preste atenção, sobrinho, você vai topar com um lobo muito forte — disse o tio. — Cuidado, não vá deixar o bicho escapulir.
— Pois é o que vamos ver — respondeu Rostóv. — Karai, fiuí! — assoviou, respondendo às palavras do tio com esse chamado. Karai era um cão velho, medonho, de pelos compridos e focinho peludo, famoso por ter enfrentado sozinho um lobo adulto. Todos tomaram as suas posições.
O velho conde, que conhecia a paixão do filho pela caça, apressou-se a fim de não haver atrasos, e os outros ainda não haviam sequer chegado à suas posições quando Iliá Andreitch, alegre, corado, com as bochechas trêmulas, no carro puxado por seus cavalos murzelos, avançava sobre a vegetação rasteira, já perto do posto de observação reservado para ele e, após ajeitar melhor o casaco de pele e envergar o equipamento de caça, passou para o cavalo Vifliánka, de passo suave, corpo farto, pacífico, bondoso e encanecido, como o próprio conde. A charrete e os cavalos foram mandados de volta. O conde Iliá Andreitch, embora não fosse um entusiasta das caçadas, conhecia com segurança as regras da caça e, assim, seguiu para a beira dos arbustos, onde devia ficar, firmou bem as rédeas na mão, ajeitou-se sobre a sela e, sentindo-se pronto, olhava em redor, sorrindo.
A seu lado, estava Semion Tchekmar, o seu criado de quarto, antigo cavaleiro, mas que ganhara muito peso. Tchekmar trazia, presos a uma trela, três cães lobeiros bravios, mas que haviam começado a engordar, a exemplo do dono e do cavalo. Outros dois cães, inteligentes, velhos, estavam deitados, sem trela. A uns cem passos dali, na orla da floresta, estava outro cavalariço do conde, Mitka, um cavaleiro arrojado, apaixonado por caçadas. Segundo um hábito antigo, o conde havia bebido antes da caçada um cálice de prata de um licor reservado para aquelas ocasiões, também beliscara alguma coisinha e bebera meia garrafa do seu bordeaux favorito.
Iliá Andreitch estava um pouco vermelho por causa da bebida e da cavalgada; seus olhos, cobertos de umidade, brilhavam de modo especial, e ele, bem agasalhado no casaco de pele, montado sobre a sela, tinha o aspecto de uma criança que levaram para dar um passeio.
Tchekmar, magro, de faces cavadas, depois de cumprir as suas tarefas, fitou o patrão, com quem vivia em perfeita harmonia havia trinta anos, e compreendendo que o conde estava numa disposição de ânimo agradável já esperava uma conversa também agradável. Uma terceira pessoa se aproximou cautelosamente, vindo de dentro da floresta (era evidente que havia recebido instruções), e parou atrás do conde. Essa pessoa era um velho de barba grisalha, casaco de mulher e gorro alto. Era o bufão, de nome Nastássia Ivánovna.6
— Ora, Nastássia Ivánovna — disse o conde, num sussurro, piscando os olhos para ele. — Se assustar as feras, o Danilo faz picadinho de você.
— Não nasci ontem — disse Nastássia Ivánovna.
— Pchhhh! — fez o conde, pedindo silêncio, e voltou-se para Semion. — Viu a Natália Ilínitchna? — perguntou a Semion. — Onde está ela?
— Estava com o Piotr Ilitch, perto das ervas daninhas da mata de Járov — respondeu Semion, sorrindo. — As senhoras também gostam de caçadas.
— E você não fica admirado de ver como ela monta bem... hein? — disse o conde. — Tão bem quanto um homem!
— Como é que não vou ficar admirado? Corajosa, ágil!
— E o Nikóluchka, onde está? No alto do morro de Liádov, não é? — perguntou o conde, sempre num sussurro.
— Exatamente. Ele sabe muito bem onde deve ficar. E sabe montar tão bem que, outro dia, eu e o Danilo ficamos maravilhados — disse Semion, que sabia como agradar ao patrão.
— Monta bem, não é? E que figura em cima de um cavalo, hein?
— Que nem um quadro! Um dia desses, ele levantou uma raposa nas ervas daninhas do matagal de Zavárzinski. Deu cada salto pelo mato fechado, dava até medo na gente... Um cavalo de mil rublos, mas o cavaleiro nem tem preço! É, não se acha outro garoto igual por aí, pode procurar!
— Procurar... — repetiu o conde, visivelmente lamentando que a fala de Semion tivesse terminado tão cedo. — Procurar — disse, abrindo a aba do casaco de pele e pegando a tabaqueira.
— Outro dia, quando ele saía da missa todo enfeitado, o Mikhail Sidóritch... — Semion não terminou de falar; tinha ouvido nitidamente, no ar parado, o som de uma caça acuada e os uivos de apenas dois ou três galgos. De cabeça inclinada, ele escutou com atenção e, em silêncio, fez sinal com o dedo para o patrão ficar calado. — Acharam uma ninhada... — sussurrou. — Foram direto para o morro de Liádov.
O conde, que se esquecera de apagar o sorriso do rosto, olhava para a frente, ao longe, através da estreita abertura na mata, e segurava a tabaqueira sem cheirar o rapé. Após o latido dos cães, ouviu-se a voz de baixo de Danilo emitindo um chamado de lobo; a matilha se reuniu aos três cães que estavam adiantados, e ouviu-se o alarido do latido dos galgos, com aquele uivo peculiar que serve de sinal de que estão no encalço de um lobo. Os caçadores haviam chegado lá e já não atiçavam os cães com chicotes, mas gritavam “uliú-uliú”, e por trás de todas as vozes ouvia-se a voz de Danilo, ora em tom de baixo, ora fina e estridente. A voz de Danilo parecia encher a floresta inteira, sair da floresta e ressoar no campo, ao longe.
Depois de escutar com atenção por alguns segundos, em silêncio, o conde e o cavalariço se convenceram de que os galgos haviam se dividido em duas matilhas: uma, grande, que latia com uma fúria especial, começou a afastar-se, enquanto a outra parte da matilha saiu em disparada ao longo da floresta, passou ao lado do conde, e com essa matilha ouviam-se os gritos de “uliú-uliú” de Danilo. Os latidos das duas matilhas fundiam-se, reverberavam, mas os dois grupos se afastavam. Semion soltou um suspiro e inclinou-se a fim de ajeitar a trela em que um cão jovem havia se emaranhado. O conde também soltou um suspiro e, ao notar a tabaqueira na mão, abriu-a e tirou uma pitada de rapé.
— Para trás! — gritou Semion para um cão que saiu da orla da floresta. O conde estremeceu e deixou a tabaqueira cair. Nastássia Ivánovna desmontou e foi pegá-la.
O conde e Semion olharam para ele. De repente, como acontece muitas vezes, o som dos latidos aproximou-se depressa, parecia que a boca dos cães que latiam e os gritos “uliú-uliú” de Danilo já estavam ali mesmo, diante deles.
O conde olhou para trás e, à direita, viu Mitka, que de olhos arregalados fitava o conde e, depois de tirar o chapéu para o patrão à sua frente, apontou para o outro lado.
— Cuidado! — gritou com uma voz que deixava claro que aquela palavra pedia com desespero, havia muito tempo, para ser solta. E avançou a galope na direção do conde, depois de soltar os seus cães.
O conde e Semion saíram de um salto da orla da floresta e viram, à esquerda, um lobo que, pisando de leve, num trote silencioso, se aproximava deles pela esquerda, rumo ao mesmo reduto de mata em que eles estavam. Os cães ferozes ganiram e, soltando-se das trelas, correram na direção do lobo, entre as pernas dos cavalos.
O lobo freou sua corrida, meio desajeitado, como alguém que sofre de angina, virou a cabeça testuda para os cães e, movendo-se com enorme suavidade, saltou uma, duas vezes e, sacudindo a cauda, desapareceu na orla da mata. Naquele exato instante, na orla do lado oposto da mata, com um rugido que parecia um choro, um galgo saltou desnorteado, depois outro, e um terceiro, e a matilha inteira atravessou o campo, exatamente pelo mesmo caminho onde o lobo havia corrido. Com a passagem dos cães, os arbustos de aveleira se abriram ao meio, e surgiu o cavalo castanho-acinzentado de Danilo, enegrecido pelo suor. Sobre o longo dorso do cavalo, como uma bolinha, estava montado Danilo, inclinado para a frente, sem gorro, com os cabelos grisalhos eriçados acima do rosto vermelho e suado.
— Uliú-uliú-uliú! Uliú-uliú-uliú!... — gritava. Quando viu o conde, um raio rebrilhou nos seus olhos. — Rrr...! — gritou, ameaçando o conde com o chicote erguido. — Deixaram o lobo passar!... Que caçadores! — E, como se não valesse a pena dizer mais nada ao confuso e assustado conde, Danilo, com toda a raiva armada para atacar o conde, golpeou as ancas salientes e molhadas do seu cavalo castrado e partiu atrás dos galgos. O conde, como se tivesse levado um castigo, ficou parado, olhando para os lados e tentando, com um sorriso, atrair a solidariedade de Semion para a sua situação. Mas Semion já não estava ali: saíra a galope contornando os arbustos, tentando evitar que o lobo entrasse na mata. Os galgos ferozes também corriam pelos dois lados. Mas o lobo passou pelos arbustos, e nenhum dos caçadores conseguiu barrar o seu caminho a tempo.
V
Nikolai Rostóv, enquanto isso, mantinha-se em seu lugar, à espera dos lobos. Pela aproximação e pelo afastamento dos latidos, pelo som das vozes dos cães, que ele conhecia, pela aproximação, pelo afastamento e pela elevação das vozes dos caçadores, ele percebia o que se passava na mata. Sabia que lá havia lobos filhotes e adultos; sabia que os cães haviam se dividido em duas matilhas, que haviam acuado um lobo em algum lugar, e que algo dera errado. A cada segundo, esperava que a fera surgisse ao seu lado. Nikolai inventava milhares de hipóteses diferentes a respeito de como a fera viria correndo e de que lado, e de como ele iria enfrentá-la. A esperança alternava com o desespero. Várias vezes, dirigiu preces a Deus, pedindo que o lobo viesse na sua direção; rezava com a paixão e com o sentimento envergonhado com que rezam as pessoas no momento de uma forte emoção causada por um motivo insignificante. “Puxa, o que custa a você fazer isso para mim?”, dizia a Deus. “Sei que você é muito grande e que, para você, é um pecado uma coisa dessas; mas, por favor, faça um lobo adulto vir na minha direção e, diante dos olhos do meu tio, que está lá olhando, faça o Karai voar sobre o lobo e segurá-lo pelo pescoço numa mordida mortal.” Mil vezes, durante aquela meia hora, Rostóv lançou olhares tenazes, tensos e inquietos para a orla da mata, onde dois carvalhos de folhagem escassa se erguiam acima de uns choupos mirrados, para o barranco com a beirada erodida pela chuva, e para o gorro do tio, que mal se via por trás dos arbustos à direita.
“Não, não vou ter essa sorte”, pensou Rostóv. “Mas o que custava? Não vou ter! Sempre, nas cartas, na guerra, sempre tenho azar.” Austerlitz e Dólokhov apareciam no seu pensamento com nitidez, mas alternavam-se rapidamente. “Só uma vez, uma vez na vida, pegar um lobo adulto, e não quero mais nada!”, pensava, forçando os ouvidos e os olhos, espiando à esquerda e à direita outra vez e prestando atenção nos mínimos matizes dos latidos. Lançou um olhar à direita outra vez e viu que, pelo campo vazio, algo corria na sua direção. “Não, não pode ser!”, pensou Rostóv, com um suspiro profundo, como respira um homem quando vê realizar-se algo que ele esperou por muito tempo. O grande lance de sorte aconteceu — e de maneira tão simples, sem alarde, sem brilho, sem celebração. Rostóv não acreditou nos próprios olhos, e aquela dúvida durou mais de um segundo. Um lobo corria à sua frente e, com um salto pesado, atravessou o barranco que estava no seu caminho. Era um lobo velho, com o dorso grisalho e a barriga avermelhada e farta. Corria sem pressa, pelo visto convencido de que ninguém o via. Rostóv, sem respirar, virou-se para os cães. Estavam deitados ou em pé, parados, sem ver o lobo e sem entender nada. O velho Karai, com a cabeça virada e os dentes arreganhados, irritado, catava pulgas, estalando os dentes sobre as coxas traseiras.
— Uliú-uliú-uliú — fez Rostóv, num sussurro, esticando os lábios. As argolas de ferro das trelas tilintaram, os cães levantaram-se de um salto, com as orelhas alertas. Karai terminou de fuçar sua coxa, levantou-se com as orelhas alertas e abanou o rabo, do qual pendiam tufos de pelo.
“Avançar? Não avançar?”, disse consigo Nikolai na hora em que o lobo se aproximava dele, afastando-se da mata. De repente, toda a fisionomia do lobo se modificou; o animal teve um sobressalto ao ver, cravados nele, olhos humanos, provavelmente nunca vistos pelo lobo até então, e, depois de voltar a cabeça ligeiramente na direção do caçador, parou — para trás ou para a frente? “Ah, tanto faz, para a frente!...”, o lobo pareceu dizer a si mesmo e avançou, já sem olhar para trás, num galope suave, espaçado, sereno, mas resoluto.
— Uliú-uliú-uliú!... — gritou Nikolai com uma voz diferente da sua, e por conta própria o seu bom cavalo partiu a toda a pressa morro abaixo, saltando sobre as valas, para barrar o caminho do lobo; os cães partiram ainda mais depressa, ultrapassaram o cavalo, Nikolai não ouvia os próprios gritos, não sentia que saltava, não via nem os cães, nem o terreno por onde passava a galope; só via o lobo, que havia forçado a corrida e galopava pelo vale, sem mudar de direção. A primeira a aparecer perto da fera foi a cadela Milka, malhada de preto, de ancas largas, que começou a se aproximar do lobo. Mais perto, mais perto... e num instante havia alcançado a fera. Mas o lobo apenas olhou-a de esguelha, e Milka, de repente, em vez de acelerar como sempre fazia, levantou o rabo e tropeçou nas patas dianteiras.
— Uliú-uliú-uliú! — gritou Nikolai.
O vermelho Liubim avançou de um salto por trás de Milka, atirou-se com ímpeto sobre o lobo e agarrou-o pela coxa de uma das patas traseiras, mas no mesmo segundo pulou assustado para o outro lado. O lobo parou de cócoras, arreganhou os dentes, levantou-se de novo e partiu a galope para a frente, seguido a um archin de distância por todos os cães, que não se aproximavam dele.
“Vai fugir! Não, não é possível!”, pensou Nikolai, enquanto continuava a gritar com voz enrouquecida.
— Karai! Uliú-uliú-uliú!... — gritava, procurando com os olhos o velho cão, sua única esperança. Karai, com todas as suas velhas forças, esticando-se o mais que podia, olhando para o lobo, galopava a passos pesados ao lado da fera, para barrar o seu caminho de fuga. Porém, pela rapidez do galope do lobo e pela lentidão do galope do cão, era claro que o cálculo de Karai estava errado. Nikolai já via à sua frente, não muito distante, a mata para onde o lobo certamente fugiria, se lá chegasse. À sua frente, surgiram cães e um caçador, correndo quase de encontro ao lobo. Ainda havia uma esperança. Um cão que Nikolai não conhecia, ruivo-acastanhado, de patas, orelhas e focinho escuros, jovem e alongado, de outra matilha, voou impetuosamente ao encontro do lobo, de frente para ele, e quase o derrubou. O lobo, com uma rapidez que ninguém poderia esperar, levantou-se e arremeteu contra o cão ruivo-acastanhado, fez os dentes estalarem — e o cão, com o flanco ensanguentado, dilacerado, começou a soltar ganidos estridentes e enfiou a cabeça na terra.
— Karáiuchka! Meu paizinho!... — gritou Nikolai, num lamento.
Graças à parada que ocorrera quando o lobo teve o seu caminho cortado, o velho cão, com seus tufos de pelo sacudindo nas coxas, já estava agora a cinco passos da fera. Como que pressentindo o perigo, o lobo virou-se para Karai, escondeu mais ainda o rabo entre as pernas e acelerou o galope. Mas então — Nikolai só viu que algo estava acontecendo com Karai —, num piscar de olhos, o velho cão pulou sobre o lobo, e os dois juntos tombaram aos trambolhões dentro de uma vala, à frente deles.
O instante em que Nikolai viu os cães fervilharem dentro da vala onde o lobo havia caído, enquanto por trás dos cães se via o pelo grisalho do lobo, a sua perna traseira esticada, as orelhas contraídas e a cabeça assustada, sufocada (Karai o mantinha preso pelo pescoço) — o instante em que viu aquilo foi, para Nikolai, o momento mais feliz da sua vida. Já segurava no arção da sela para desmontar e atacar o lobo, quando de repente, do meio daquela massa de cães, despontou a cabeça da fera, depois as patas dianteiras começaram a subir para a borda da vala. O lobo rangia os dentes (Karai já não o segurava pelo pescoço), saltou para fora da vala com as patas traseiras e, com o rabo encolhido, desvencilhou-se de novo dos cães e moveu-se para a frente. Karai, com o pelo eriçado, na certa machucado ou ferido, saiu da vala com dificuldade.
— Meu Deus! Para quê?... — gritou Nikolai com desespero.
O caçador do tio galopava pelo outro lado, para cortar o caminho do lobo, e de novo os seus cães detiveram a fera. De novo o cercaram.
Nikolai, o seu cavalariço, o tio e o caçador dele voltaram-se na direção da fera, gritando “uliú-uliú-uliú”, prontos para desmontar toda vez que o lobo se agachava sobre as patas traseiras, mas toda vez arremetiam para a frente, assim que o lobo se sacudia e se movia para a mata, onde contava salvar-se.
Ainda no início daquela perseguição, Danilo, ao ouvir os gritos de “uliú-uliú-uliú”, galopou para fora da orla da floresta. Viu que Karai havia apanhado o lobo e deteve o cavalo, supondo que a tarefa estava terminada. Mas quando os caçadores não desmontaram, e o lobo sacudiu-se e abalou de novo para a frente, Danilo lançou o seu cavalo pardo não na direção do lobo, mas em linha reta, rumo à mata, como fizera Karai — para cortar o caminho da fera. Graças a essa direção, ele estava se aproximando do lobo na hora em que os cães do tio o detiveram pela segunda vez.
Danilo galopava em silêncio, com o punhal já na mão esquerda e fora da bainha, enquanto moía os flancos encolhidos do seu cavalo com o chicote, como se fosse um mangual.
Nikolai não viu nem ouviu Danilo, até que o cavalo pardo resfolegou bem perto dele, arquejante, e Nikolai ouviu o baque da queda de um corpo e viu que Danilo já estava deitado no meio dos cães, por cima do quadril do lobo, tentando segurá-lo por trás, pelas orelhas. Parecia evidente para os caçadores e também para os cães, e até para o lobo, que agora tudo havia terminado. A fera, assustada, com as orelhas encolhidas, tentou levantar-se, mas os cães saltaram sobre ela por todos os lados. Danilo soergueu-se, deu um passo cambaleante e, com todo o seu peso, como se deitasse para descansar, desabou sobre o lobo e agarrou-o pelas orelhas. Nikolai quis cravar a faca na fera, mas Danilo sussurrou: “Não precisa, vamos passar uma corda”. Mudou de posição e pisou no pescoço do lobo. Puseram um toco de pau atravessado entre os dentes do lobo, amarraram-no com uma trela, como se fossem rédeas, e Danilo virou o lobo de um lado para o outro, duas ou três vezes.
Com o rosto feliz, estafados, depuseram o lobo adulto e vivo sobre um cavalo, que bufou e empinou e, junto com os cães, que ganiam para o cavalo e o acompanhavam, partiram para o lugar onde todos deviam reunir-se. Os galgos haviam matado dois filhotes, e os borzóis três. Os caçadores juntaram-se em torno de suas presas e de suas histórias, e todos se aproximavam para ver o lobo adulto, que com a cabeça testuda pendente e o toco de pau apertado entre os dentes, fitava com os grandes olhos vidrados todo aquele bando de cães e de gente à sua volta. Quando tocavam no lobo, ele sacudia as patas amarradas e fitava todos com um ar feroz e ao mesmo tempo simples.
O conde Iliá Andreitch também se aproximou e tocou no lobo.
— Ah, que grande — disse ele. — Adulto, hein? — perguntou para Danilo, que estava ao seu lado.
— Adulto, vossa excelência — respondeu Danilo, tirando depressa o gorro.
O conde lembrou-se do lobo que ele deixara escapar e do seu atrito com Danilo.
— Puxa, irmão, quando você se zanga, se zanga mesmo — disse o conde. Danilo nada respondeu e apenas sorriu acanhado, um sorriso infantil, tímido e simpático.
VI
O velho conde foi para casa. Natacha e Pétia ficaram com os caçadores, prometendo que iriam logo depois. A caçada continuou, pois ainda era cedo. No meio do dia, soltaram os galgos numa ravina coberta por uma floresta espessa e jovem. Nikolai, parado no restolhal, via todos os seus caçadores.
À frente de Nikolai havia um campo de cereais em brotos, e lá estava um dos seus caçadores, sozinho, num esconderijo cavado na terra, atrás de um mirrado arbusto de aveleira. Assim que soltaram os galgos, Nikolai ouviu, a intervalos, o latido de um cão que ele conhecia — Voltorn; outros cães uniram-se a ele, ora ficavam em silêncio, ora recomeçavam a latir. Um minuto depois, soou na mata o aviso de que tinham achado uma raposa, e a matilha inteira, numa torrente, precipitou-se pela ravina, na direção do campo de brotos de cereais, à frente de Nikolai.
Ele viu os caçadores galopando, de gorros vermelhos, na beira da ravina coberta de mata, viu até mesmo os cães, e esperava que a qualquer momento, daquele lado, no campo de brotos de cereais, surgisse a raposa.
O caçador que estava escondido num fosso moveu-se e soltou seus cães, e Nikolai avistou a raposa-vermelha, baixa, estranha, de cauda erguida, passar em desabalada carreira pelo campo de brotos de cereais. Os cães começaram a cercá-la. À medida que se aproximavam, a raposa corria entre eles em círculos cada vez menores, sacudia em volta de si o rabo peludo, até que um cão branco partiu atrás da raposa, seguido por um cão preto, e tudo se tornou confuso, e os cães formaram uma estrela, com os quadris virados para fora, enquanto balançavam o próprio corpo bem de leve. Dois caçadores galoparam na direção dos cães: um de gorro vermelho, outro de cafetã verde.
“O que está havendo?”, pensou Nikolai. “De onde saiu aquele caçador? Não é do tio.”
Os caçadores abateram a raposa e ficaram desmontados por muito tempo, sem amarrá-la. À volta deles, os cavalos estavam parados, com seus arreios e suas selas proeminentes. Os caçadores mexiam as mãos e faziam algo com a raposa. De lá, veio o som de uma corneta — o sinal combinado para uma luta.
— Um caçador dos Iláguin arranjou alguma briga com o nosso Ivan — disse o cavalariço de Nikolai.
Nikolai mandou o cavalariço trazer a irmã e Pétia para junto dele e, devagar, seguiu para o local onde os caçadores mais velhos estavam reunindo os galgos. Alguns caçadores galoparam para o local da luta.
Nikolai desceu do cavalo, ficou ao lado dos galgos, junto com Natacha e Pétia, que vieram logo, à espera da notícia do fim da questão. De trás da orla da mata, veio o caçador que tinha ido brigar, com a raposa amarrada na garupa do cavalo, e aproximou-se do jovem patrão. Ainda de longe, havia tirado o gorro e fez força para falar respeitosamente; mas estava pálido, ofegante, e tinha o rosto raivoso. Um olho estava roxo e fechado, mas pelo visto ele nem se dava conta disso.
— O que aconteceu? — perguntou Nikolai.
— Pois é, onde já se viu? Ele acha que pode caçar uma raposa que os galgos da gente pegaram? E foi a minha cadela cinzenta que apanhou. Que vá à justiça! Ele vem e agarra a raposa! Eu me atraco com ele para pegar a raposa. Olhe só, ele está aqui na garupa do cavalo. E isto aqui, quer? — disse o caçador, apontando para o punhal, provavelmente imaginando que ainda falava com o seu inimigo.
Nikolai, sem falar com o caçador, pediu à irmã e a Pétia que o esperassem e foi ao local onde estavam os caçadores de Iláguin.
O caçador vencedor foi juntar-se ao seu grupo de caçadores e lá, cercado por curiosos solidários, contou sua façanha.
Acontecera que Iláguin, com quem os Rostóv tinham uma desavença e um processo correndo na justiça, costumava caçar em locais que, por costume, pertenciam aos Rostóv e naquela vez, como que de propósito, mandara seus caçadores para a mata onde os Rostóv estavam caçando e permitiu que seus caçadores apanhassem uma presa já debaixo do nariz dos galgos de outros caçadores.
Nikolai nunca via Iláguin, porém, como sempre acontecia com seus juízos e sentimentos, avessos ao meio-termo, Nikolai odiava-o de todo o coração por causa dos boatos sobre a brutalidade e a arbitrariedade daquele senhor de terras e considerava-o seu inimigo figadal. Agora ia ao encontro dele, exaltado e com raiva, segurando o chicote com força na mão, totalmente disposto às ações mais resolutas e perigosas contra o seu inimigo.
Mal saiu de uma ponta da floresta, Nikolai viu que vinha ao seu encontro um senhor gordo, com um quepe feito de pelo de castor, montado num belo cavalo murzelo, acompanhado por dois cavalariços.
Em lugar de um inimigo, Nikolai encontrou em Iláguin um fidalgo simpático e respeitoso, especialmente interessado em conhecer o jovem conde. Ao chegar perto de Rostóv, Iláguin levantou o quepe de pelo de castor e disse lamentar muito o que havia ocorrido; disse que mandara castigar o caçador que se atrevera a tomar a caça aos cães de outros caçadores, pediu ao conde que se conhecessem melhor e ofereceu-lhe suas reservas para caçar.
Natacha, com receio de que o irmão fizesse algo terrível, seguiu-o agitada, mas sem se aproximar muito. Ao ver que os inimigos conversavam amistosamente, foi até eles. Iláguin levantou o quepe de castor mais alto ainda diante de Natacha e, sorrindo com simpatia, disse que a condessa era um retrato da deusa Diana, pela paixão às caçadas e também pela beleza, sobre a qual ele ouvira falar muito.
Para compensar o erro do seu caçador, Iláguin pediu com insistência que Rostóv fosse à sua reserva de caça, situada num morro a uma versta, que ele mantinha para si e que, pelo que dizia, estava repleta de lebres. Nikolai aceitou o convite, e o grupo de caça, agora duas vezes maior, foi adiante.
Para chegar ao morro de Iláguin, era preciso atravessar os campos. Os caçadores se distribuíram em uma linha. Os senhores seguiam lado a lado. O tio, Rostóv e Iláguin olhavam furtivamente para os cães uns dos outros, tentando evitar que os outros notassem, enquanto procuravam com ansiedade, entre os cães alheios, rivais para os seus próprios cães.
Rostóv ficou especialmente impressionado com a beleza de uma pequena cadela borzói, estreitinha, mas com músculos de aço, boticão fino (focinho), olhos negros saltados e malhada de vermelho, que Iláguin levava numa trela. Nikolai ouvira falar da ligeireza dos cães de Iláguin e viu, naquela cadela bonita, uma rival para a sua Milka.
No meio de uma conversa ponderada, iniciada por Iláguin, sobre a colheita daquele ano, Nikolai apontou para a cadela malhada de vermelho.
— Que bonita essa sua cadela! — exclamou em tom descontraído. — É rápida?
— Essa? Sim, é uma boa cadela, sabe caçar — respondeu Iláguin, com voz indiferente, referindo-se à sua Erzá, malhada de vermelho, em troca da qual cedera, um ano antes, três famílias de servos a um vizinho. — E nas terras do senhor, a colheita dos cereais também não foi grande coisa, não é, conde? — prosseguiu a conversa iniciada antes. E, julgando educado pagar na mesma moeda ao jovem conde, Iláguin observou os cães de Nikolai e escolheu Milka, que chamou sua atenção pela largura.
— Bonita essa sua cadela, a malhada de preto... que beleza! — disse.
— Sim, não é má, sabe correr — respondeu Nikolai. “Se uma lebre adulta disparasse pelo campo agora, eu mostraria a você do que ela é capaz!”, pensou. E, voltando-se para o cavalariço, disse que daria um rublo ao caçador que levantasse, ou seja, que achasse uma lebre em sua toca.
— Não entendo — disse Iláguin — como caçadores podem ter inveja das presas e dos cães dos outros. É o que digo para mim mesmo, conde. Sabe, passear me alegra; veja só, poder estar numa companhia como esta... o que pode haver de melhor? — Tirou de novo o quepe de castor, virando-se para Natacha. — Mas ficar contando peles de animais, quantos cada um pegou... não vejo nisso a menor graça!
— Pois é.
— Ou ficar ofendido porque o cão de outro pegou a caça, e não um dos meus... O que eu admiro é só a caçada, não acha, conde? Além do mais, acho que...
— Atu! Pega! — ouviu-se então o grito arrastado de um dos guias dos borzóis. Ele estava numa elevação no restolhal, com o chicote erguido, e repetiu o grito arrastado: — A-tu! Pega! (Aquele som e o chicote erguido significavam que estava vendo, à sua frente, uma lebre escondida.)
— Puxa, parece que ele levantou uma lebre — disse Iláguin, sem dar importância. — E então, conde, vamos caçar?
— Sim, é preciso ir até lá... mas, então, vamos juntos? — perguntou Nikolai, e olhou de relance para Erzá e para o vermelho Rugai, do tio, dois rivais com os quais os seus cães ainda não haviam tido chance de medir forças. “Puxa, e se desbancarem a minha Milka?”, pensou, enquanto avançava rumo à lebre, junto com o tio e com Iláguin.
— É adulta? — perguntou Iláguin, ao se aproximar do caçador que levantara a lebre, e virou-se com certa agitação para olhar Erzá, que gania... — E o senhor, Mikhail Nikanóritch? — voltou-se para o tio. O tio seguia a cavalo, de cara fechada.
— Para que me intrometer? Afinal, vamos lá, avante!, o senhor pagou uma aldeia por cada um dos seus cães, milhares de rublos. Vocês dois competem com os seus cães que eu fico só olhando! Rugai! Vem, vem! — gritou. — Rugáiuchka! — acrescentou, exprimindo sem querer, com esse diminutivo, a ternura e a esperança que depositava naquele cão vermelho. Natacha via e sentia a agitação que os dois velhos e o irmão escondiam, e ela mesma sentiu-se agitada.
O caçador continuava sobre a elevação no restolhal, de chicote erguido, e os senhores aproximaram-se dele devagar; os galgos que andavam na linha do horizonte estavam de costas para a lebre; os caçadores, mas não os senhores, também se afastavam. Todos se moviam de modo lento e ponderado.
— Para que lado está a cabeça da lebre? — perguntou Nikolai, quando chegou a uns cem passos do caçador que levantara a caça. Mas o caçador não teve tempo de responder, pois a lebre, farejando a geada que viria na manhã seguinte, não quis mais ficar escondida e deu um pulo. O bando de galgos, presos às trelas por argolas, partiu com um rugido morro abaixo atrás da lebre; de todos os lados, os borzóis que não estavam presos a trelas se lançaram atrás dos galgos e da lebre. Todos os caçadores, que se moviam devagar — os que acompanhavam os galgos continham os cães com gritos de “Pare!”, e os que acompanhavam os borzóis indicavam a eles a direção com gritos de “Atu!” —, agora saíram a galope pelo campo. O calmo Iláguin, Nikolai, Natacha e o tio voaram em seus cavalos, sem saber como nem para onde, só viam os cães e a lebre, e seu único receio era perder de vista o desenrolar da caçada, ainda que só por um segundo. Calhou de a lebre ser adulta e ágil. Depois de erguer-se de um salto, ela não saiu correndo de imediato, em vez disso levantou as orelhas, atenta aos gritos e ao tropel que, de repente, irrompeu de todos os lados. Em seguida, a lebre pulou umas dez vezes, sem muita pressa, deixando que os cães se aproximassem, e por fim compreendeu o perigo, escolheu uma direção, baixou as orelhas e correu a toda a velocidade. A lebre estava escondida no restolhal, mas à sua frente havia o campo de cereais em brotos, com terra lamacenta. Dois cães do caçador que levantara a lebre, como estavam mais próximos da presa do que todos os outros, foram os primeiros a avistar a caça e a partir atrás dela; mas ainda não tinham se aproximado muito quando, de trás deles, veio voando a cadela Erzá, de Iláguin, malhada de vermelho, aproximou-se da lebre até a distância de um corpo e, com uma rapidez terrível, acelerou mais ainda e pulou, mirando na cauda da lebre, e, pensando que a tinha agarrado, desabou aos trambolhões. A lebre arqueou as costas e aumentou mais ainda a velocidade. Por trás de Erzá, veio em disparada a cadela Milka, de ancas largas e malhada de preto, e pôs-se a acossar velozmente a lebre.
— Míluchka! Mãezinha! — ouviu-se o grito triunfante de Nikolai. Parecia que Milka estava prestes a dar o bote e agarrar a lebre, mas em vez disso Milka ultrapassou-a e seguiu adiante. A lebre havia se agachado e parado. De novo a beldade Erzá avançou com um salto e ficou suspensa acima do rabo da lebre, como se estivesse avaliando bem para, dessa vez, não errar e agarrar a coxa traseira da presa.
— Erzinka! Irmãzinha! — ouviu-se a voz de Iláguin, chorosa, diferente da sua voz habitual. Erzá não atendeu a sua súplica. No exato momento em que se esperava que fosse agarrar a lebre, a presa deu uma guinada e rolou para a estreita faixa de terra que fazia a divisa entre o campo de cereais em brotos e o restolhal. Erzá e Milka aprumaram-se e lançaram-se mais uma vez, como uma parelha de cavalos, no encalço da lebre; ali na divisa do campo de cereais com o restolhal, a lebre ficava ainda mais veloz, os cães já não se aproximavam dela tão depressa.
— Rugai! Rugáiuchka! Vamos lá, avante! — passou a gritar, então, uma voz nova, e Rugai, o cão corcunda e vermelho do tio, esticando e arqueando as costas, alcançou os dois cães que iam na frente, adiantou-se a eles e, com uma tremenda abnegação, já em cima da lebre, deu um bote, derrubou-a da faixa divisória para o campo de cereais, deu outro bote com ainda mais raiva para dentro do campo de cereais lamacento, afundou-se até os joelhos, e só se via que Rugai, emporcalhando as costas na lama, rolava aos trambolhões junto com a lebre. Uma estrela de cães os rodeou. Um minuto depois, todos estavam parados junto aos cães ali aglomerados. Só o tio, feliz, desmontou e cortou a pata traseira da lebre. Enquanto sacudia a lebre para o sangue escorrer, ele olhava em volta com ar de triunfo, corria os olhos em redor, sem achar uma posição para os pés e para os braços, e falava, sem que ele mesmo soubesse com quem e para quê: “Aí está, vamos lá... isto é que é um cão... deixou todos para trás, milhares de rublos e tudo, vamos lá, avante!”, dizia, enquanto ofegava e olhava em redor, com raiva, como se quisesse brigar com alguém, como se todos fossem seus inimigos, como se todos o tivessem ofendido e só agora, enfim, ele conseguisse ir à forra. “Vejam só, milhares de rublos... Vamos lá, avante!”
— Rugai, tome a pata da lebre — disse ele, jogando no chão a pata cortada e suja de lama. — Fez por merecer, vamos lá, avante!
— Ela já estava esgotada, tinha dado três corridas sozinha — disse Nikolai, também sem ouvir ninguém e sem se importar se o escutavam ou não.
— Puxa, como é que foi passar na frente desse jeito! — exclamou um cavalariço de Iláguin.
— Depois que a lebre diminuiu a corrida, qualquer vira-lata pegava — falou Iláguin ao mesmo tempo, vermelho, enquanto a custo recuperava o fôlego, por causa do galope e da emoção. Ao mesmo tempo, Natacha, sem fôlego, soltou um grito agudo, com alegria e entusiasmo, um grito tão estridente que os ouvidos chegavam a tilintar. Com aquele grito agudo, exprimia tudo o que os demais caçadores também exprimiam com sua conversa, na qual todos falavam ao mesmo tempo. E seu grito foi tão estranho que ela mesma haveria de ficar envergonhada daquele grito selvagem, e todos haveriam de ficar espantados com ela, se fosse numa outra ocasião. O próprio tio amarrou a lebre à sua sela, lançou-a com desembaraço e agilidade sobre a garupa do cavalo, como se com aquele gesto acusasse todos os demais e, com uma fisionomia de quem não queria falar com ninguém, montou seu alazão e foi embora. Todos os outros se afastaram, tristonhos e humilhados, e só muito depois conseguiram voltar à mesma indiferença fingida de antes. Olharam ainda durante muito tempo para o vermelho Rugai, que, com as costas corcundas sujas de lama e tilintando as argolas da trela, andava atrás das patas do cavalo do tio com um jeito calmo de vencedor.
“Pois é, quando não se trata de perseguir uma caça, sou igual a todos os outros. Mas, se for isso, cuidado comigo!”, parecia dizer o aspecto do cão, aos olhos de Nikolai.
Passado certo tempo, quando o tio se aproximou de Nikolai e conversou com ele, Nikolai ficou cheio de si porque o tio, depois de tudo o que havia acontecido, ainda se dignava a conversar com ele.
VII
Quando, ao anoitecer, Iláguin despediu-se de Nikolai, este se achava tão distante de casa que aceitou a sugestão do tio de passar a noite na casa dele, junto ao grupo de caça, na aldeia de Mikháilovka.
— E se forem para a minha casa, vamos lá, avante! — disse o tio —, vai ser melhor; vejam, o tempo está úmido — continuou o tio —, vocês poderão descansar, e a condessinha pode voltar depois, de charrete. — O convite do tio foi bem recebido, mandaram um caçador ir a Otrádnoie para trazer a charrete, enquanto Nikolai, Natacha e Pétia foram para a casa do tio.
Cinco criados domésticos, grandes e pequenos, acudiram às pressas para receber o patrão no alpendre da frente. Dezenas de mulheres, velhas, grandes e pequenas, espicharam a cabeça do alpendre dos fundos para espiar os caçadores que chegavam. A presença de Natacha, uma mulher, uma fidalga a cavalo, levou a curiosidade das criadas do tio a tal extremo de admiração que muitas, sem se constranger com a presença dela, aproximavam-se, fitavam-na nos olhos e, mesmo diante de Natacha, trocavam entre si comentários a seu respeito, como se falassem de um fenômeno exposto numa feira, que não era humano e não podia ouvir nem entender o que diziam a seu respeito.
— Arinka, olhe só, senta de lado. Vai sozinha, e a saia balança... Olhe, tem até uma corneta!
— Deus do céu, também tem uma faquinha!...
— Olhe só, é uma tártara!
— Como é que não caiu de cabeça para baixo? — perguntou a mais atrevida, dirigindo-se diretamente a Natacha.
O tio desmontou do cavalo diante do alpendre da sua casinha de madeira, com um jardim frondoso, lançou um olhar para a criadagem e gritou de modo autoritário que aqueles que não tivessem o que fazer ali fossem embora e tomassem todas as providências necessárias para hospedar as visitas e o grupo de caça.
Todos se dispersaram. O tio desceu Natacha do cavalo e levou-a pelo braço enquanto subia os instáveis degraus de tábuas do alpendre. A casa, por dentro, com paredes feitas de troncos de árvore, sem reboco, não era muito limpa — não se percebia que o objetivo das pessoas que ali moravam era não haver manchas —, mas também não se via sujeira. Na entrada, havia um cheiro de maçãs frescas, e peles de lobo e de raposa pendiam nas paredes.
O tio conduziu os hóspedes através da antessala e entrou com eles numa sala pequena, com uma mesa dobrável e cadeiras vermelhas, e depois numa sala de estar, com uma mesa redonda, de bétula, e um sofá, e dali passaram para um escritório com um sofá esfarrapado, um tapete surrado e retratos de Suvórov, do pai e da mãe do dono da casa, e também dele mesmo, em uniforme militar. Havia, no escritório, um cheiro forte de tabaco e de cachorro.
No escritório, o tio pediu aos hóspedes que sentassem e ficassem à vontade, e saiu. Rugai entrou no escritório, com as costas sujas, e estirou-se no sofá, limpando-se com a língua e com os dentes. Do escritório, saía um corredor, onde se viam biombos com cortinas rasgadas. Atrás dos biombos, ouvia-se um riso de mulher e um sussurro. Natacha, Nikolai e Pétia tiraram os agasalhos e sentaram no sofá. Pétia recostou-se no braço e na mesma hora adormeceu; Natacha e Nikolai ficaram calados. Tinham o rosto afogueado, estavam com muita fome e muito alegres. Olhavam um para o outro (depois da caçada, dentro de casa, Nikolai já não achava necessário mostrar sua superioridade masculina diante da irmã); Natacha piscou o olho para o irmão, e os dois não se contiveram por muito tempo, soltaram uma gargalhada sonora, antes mesmo de terem tempo de inventar algum pretexto para o riso. Pouco depois o tio voltou, de casaco curto, calça azul e botas de cano curto. Natacha sentiu que aquele traje — o mesmo em que ela, com surpresa e zombaria, tinha visto o tio em Otrádnoie — era uma roupa excelente, que nada deixava a dever a um fraque ou a uma sobrecasaca. O tio também estava alegre; não só não se ofendeu com o riso dos dois irmãos (não podia passar pela sua cabeça que estivessem rindo do seu jeito de viver) como se uniu ele mesmo ao riso gratuito dos dois.
— Vejam só a jovem condessa, vamos lá, avante! Nunca vi outra igual! — exclamou o tio, oferecendo a Nikolai um cachimbo de tubo comprido, enquanto segurava com três dedos, num gesto habitual, outro cachimbo, mais curto, de tubo cortado. — Andou a cavalo para lá e para cá o dia inteiro, igual a um homem, e parece que nem aconteceu nada!
Pouco depois do tio, uma jovem, obviamente descalça, pelo barulho dos pés, abriu a porta, e por ali, com uma bandeja grande e cheia nas mãos, entrou uma mulher bonita, gorda, rosada, de uns quarenta anos, com uma papada e lábios fartos e rosados. Olhou para os hóspedes com uma expressão hospitaleira e uma amabilidade no olhar e em todos os gestos, e os cumprimentou respeitosamente inclinando a cabeça com um sorriso carinhoso. Apesar do seu volume, maior do que o habitual, que a deixava com o peito e a barriga mais para a frente e a cabeça mais para trás, aquela mulher (a governanta da casa do tio) pisava de modo extraordinariamente leve. Aproximou-se da mesa, baixou a bandeja e, agilmente, com as mãos brancas, rechonchudas, tirou da bandeja garrafas, antepastos e iguarias e colocou sobre a mesa. Feito isso, afastou-se e ficou parada na porta, com um sorriso no rosto. “Pronto, aí está, eu sou ela! Agora você entende o titio?”, dizia para Rostóv a sua aparição ali. E como não entender? Não só Rostóv como também Natacha entenderam o tio e entenderam o sentido das sobrancelhas franzidas e do sorriso feliz, satisfeito, que enrugou um pouquinho seus lábios, quando Aníssia Fiódorovna entrou. Na bandeja havia boldo, licor de frutas, cogumelos, panquecas de farinha preta, mel em favo, mel cozido e espumoso, maçãzinhas, nozes cruas e torradas e nozes ao mel. Depois Aníssia Fiódorovna trouxe também um doce de frutas com mel e açúcar, além de presunto e galinha, recém-tirados do fogo.
Tudo aquilo era feito em casa, escolhido e cozido por Aníssia Fiódorovna. Tudo aquilo tinha o cheiro, o apelo, o gosto de Aníssia Fiódorovna. Tudo sugeria suculência, limpeza, brancura e um sorriso de simpatia.
— Prove, patroazinha condessa — dizia ela, oferecendo a Natacha ora uma coisa, ora outra. Natacha comia de tudo e lhe pareceu que nunca tinha comido nem visto nada semelhante àquelas panquecas, àquele doce de frutas tão aromático, àquelas nozes ao mel e àquela galinha. Aníssia Fiódorovna saiu. Rostóv e o tio, regando o jantar com um licor de cereja, conversavam sobre a caçada recente e as caçadas futuras, sobre Rugai e os cães de Iláguin. Natacha, com os olhos radiantes, estava sentada no sofá, as costas eretas, e os escutava. Por várias vezes tentou acordar Pétia para lhe dar de comer, mas Pétia falava algo incompreensível, obviamente ainda dormindo. Natacha experimentava tamanha alegria no coração, sentia-se tão bem naquele ambiente novo para ela que seu único receio era de que viessem buscá-la cedo demais com a charrete. Depois de um momento casual de silêncio, como quase sempre acontece com pessoas que recebem conhecidos em casa pela primeira vez, o tio falou, em resposta ao pensamento que estava na cabeça dos hóspedes:
— É assim que vou levando a vida que me resta... A gente morre, vamos lá, avante! Não sobra nada. Então, o que tem de mais pecar um pouquinho?
O rosto do tio se tornou muito expressivo, e até bonito, quando ele disse isso. Rostóv não pôde deixar de lembrar todas as coisas boas que ouvia o pai e os vizinhos dizerem a respeito do tio. Em todos os arredores da província, o tio tinha a reputação de ser o excêntrico mais nobre e desinteressado que existia. Era chamado para ser o árbitro das questões da família, era escolhido como testamenteiro, contavam-lhe os segredos, elegiam-no para o cargo de juiz e para outras funções, mas ele sempre recusava obstinadamente cargos no serviço público, passava o outono e a primavera nos campos, andando no seu cavalo alazão castrado, no inverno ficava em casa e no verão repousava no seu jardim frondoso.
— Por que não entra para o serviço público, tio?
— Já servi, mas larguei. Não presto para isso, vamos lá, avante! Eu não entendo nada. É bom para vocês, não tenho cabeça para isso. Mas com caçadas, a conversa é outra... Aí, sim, vamos lá, avante! Ei, abram essa porta — gritou. — Para que fecharam? — A porta no fim do corredor (que o tio chamava de coledor) dava para a ala dos caçadores: assim chamavam o quarto dos criados. Pés descalços palmilharam ligeiro no chão, e uma mão invisível abriu a porta que dava para a ala dos caçadores. Do corredor, ouviam-se nitidamente os sons de uma balalaica, tocada, ao que parecia, por um mestre do instrumento. Natacha já estava ouvindo aqueles sons havia muito tempo e agora seguiu até o corredor para ouvir melhor.
— Esse é o meu cocheiro, o Mitka... Comprei uma boa balalaica para ele, eu gosto — disse o tio. Na casa do tio, quando ele chegava de uma caçada, era costume Mitka tocar balalaica na ala dos caçadores. O tio gostava de ouvir aquela música.
— Que bonito! De fato, é bom — disse Nikolai com certo desprezo involuntário, como se tivesse vergonha de admitir que aqueles sons lhe agradavam muito.
— Como assim, é bom? — exclamou Natacha, em tom de recriminação, percebendo o tom com que o irmão havia falado. — Não é bom nada, é um verdadeiro encanto, isso sim! — Da mesma forma que os cogumelos, o mel e os licores do tio pareceram os melhores do mundo, assim também aquela canção lhe parecia, naquele momento, o auge do encantamento musical.
— Toque mais, por favor, toque mais — disse Natacha na porta, no instante em que a balalaica parou. Mitka afinou as cordas e retiniu “Patroazinha”, com firulas de dedilhado e quebras de ritmo. O tio ficou quieto, escutando, a cabeça inclinada para o lado, com um sorriso quase imperceptível. O tema de “Patroazinha” repetiu-se umas cem vezes. A balalaica era afinada diversas vezes, de novo retiniam os mesmos sons, e os ouvintes não se fartavam, só queriam saber de ouvir Mitka tocar de novo e mais uma vez. Aníssia Fiódorovna entrou e encostou o corpo farto na ombreira da porta.
— Está ouvindo, condessinha? — falou para Natacha, com um sorriso extremamente parecido com o sorriso do tio. — Ele toca que é uma beleza, aqui para a gente — disse.
— Ora, nessa virada não é assim que se toca — disse o tio de repente, com um gesto enérgico. — Aí tem de soltar mais... vamos lá, avante... soltar.
— Ah, então o senhor sabe tocar? — perguntou Natacha. O tio, sem responder, sorriu.
— Vá ver, Aníssiuchka, se o violão está com as cordas todas. Faz tempo que não ponho as mãos nele, vamos lá, avante! Larguei de tocar.
Aníssia Fiódorovna, com o seu passo leve, foi de bom grado cumprir a incumbência do seu senhor e lhe trouxe o violão.
O tio, sem olhar para ninguém, soprou a poeira, bateu com os dedos ossudos no tampo do violão, afinou as cordas e ajeitou-se melhor na poltrona. Segurou na ponta do braço do violão (com o cotovelo esquerdo muito aberto, num gesto um tanto teatral) e, depois de piscar o olho para Aníssia, começou a tocar, mas não “Patroazinha”, em vez disso tirou um acorde sonoro, puro; e de um jeito cadenciado e sereno, porém firme, no andamento mais tranquilo possível, começou a reproduzir as notas de uma canção famosa, “Pela rua calçada”. O tema da canção, com aquela alegria grave (a mesma que exalava de todo o ser de Aníssia Fiódorovna), passou a vibrar na alma de Nikolai e de Natacha, ao mesmo tempo e no mesmo ritmo. Aníssia Fiódorovna ficou ruborizada, cobriu o rosto com um lenço, rindo, e saiu. O tio continuou a executar a canção, de modo puro, esmerado, firme e vigoroso, fitando com um olhar alterado o lugar de onde Aníssia Fiódorovna havia acabado de sair. Algo ria lá longe no seu rosto, só de um lado, por baixo do bigode grisalho, e ria em especial quando a canção ficava mais solta, o ritmo se acelerava, e quando nas passagens em dedilhado alguma coisa se desprendia.
— Que maravilha, que maravilha, titio! Toque mais, mais! — começou a gritar Natacha, assim que ele terminou. Erguendo-se de um salto, ela abraçou e beijou o tio. — Nikólienka, Nikólienka! — exclamou, voltando-se para o irmão, como se perguntasse: o que é isso?
Nikolai também tinha gostado muito do violão do tio. Mais uma vez, o tio tocou a canção. O rosto sorridente de Aníssia Fiódorovna apareceu de novo na porta e, por trás dela, também outros rostos.
Espere, ele grita para a menina
Que foi buscar água fresca na fonte
tocou o tio, fez de novo um ágil dedilhado, parou bruscamente e sacudiu os ombros.
— Puxa, puxa, titio querido — Natacha começou a gemer num tom tão suplicante que sua vida parecia depender daquilo. O tio levantou-se e foi como se nele houvesse duas pessoas: uma sorria com ar grave para a outra, um brincalhão, que fazia uns gestos ingênuos e gaiatos, preparando-se para uma dança popular.
— Muito bem, sobrinha! — gritou o tio, abanou a mão para Natacha e fez soar um acorde.
Natacha livrou-se do seu xale, correu para postar-se diante do tio e, com as mãos na cintura, fez uns movimentos com os ombros e ficou parada, à espera.
Onde, como, quando aquela condessinha, educada por uma emigrante francesa, havia assimilado o ar russo que ela exalava por todos os poros — e aquele jeito, de onde ela foi tirar aquelas maneiras que o pas de châle havia muito devia ter apagado? No entanto eram exatamente aquelas maneiras e aquele ar russo, que não se imitam, não se ensinam, que o tio esperava dela. Assim que Natacha ficou em posição e sorriu com ar triunfante, orgulhoso, alegre e astuto, o temor que de início dominara Nikolai e todos os presentes, o temor de que ela não faria o que devia fazer, passou, e eles logo ficaram encantados com Natacha.
Ela fez o que devia, e com tal exatidão, com uma exatidão tão completa, que Aníssia Fiódorovna, que logo lhe dera o lenço necessário para a dança, derramou lágrimas por trás do riso, enquanto olhava para aquela condessa franzina, graciosa, tão diferente dela, criada entre sedas e veludos, e que sabia compreender tudo o que havia em Aníssia, bem como no pai de Aníssia, na tia, na mãe, e em todos os russos.
— Muito bem, condessa, vamos lá, avante! — exclamou o tio, rindo com alegria, ao fim da dança. — Ah, mas que sobrinha! Só falta escolher um bom jovem para ser o seu marido, vamos lá, avante!
— Já está escolhido — disse Nikolai, sorrindo.
— Oh? — exclamou o tio, admirado, olhando para Natacha com ar interrogativo. Natacha, com um sorriso feliz, fez que sim com a cabeça.
— E um marido muito bom! — disse ela. Porém, assim que falou, uma série de pensamentos novos, diferentes, surgiu dentro dela. “O que significa o sorriso de Nikolai, quando disse: ‘Já está escolhido’? Ele está contente com isso ou não? Dá a impressão de achar que o meu Bolkónski não aprovaria, não compreenderia esta nossa alegria. Não, ele compreenderia tudo. Onde estará ele agora?”, pensou Natacha, e de repente seu rosto ficou sério. Mas isso durou apenas um segundo. “Não pense, não se atreva a pensar nisso”, disse consigo e, sorrindo, veio sentar-se de novo perto do tio e pediu que tocasse mais alguma coisa.
O tio tocou outra canção e uma valsa; em seguida, depois de um breve silêncio, tossiu e começou a cantar a sua canção de caça predileta.
Como a neve da tarde
Caía bonita...
O tio cantava como o povo canta, com aquela ingênua e plena convicção de que todo o significado da canção se encerra apenas nas palavras, de que a melodia vem por si mesma, de que não existe uma melodia independente da letra e de que a melodia só serve para separar as sílabas. Daí aquelas melodias inconscientes, como a melodia de um passarinho e a do tio, eram extraordinariamente bonitas. Natacha ficou entusiasmada com o canto do tio. Resolveu que não ia mais aprender a tocar harpa, ia tocar só violão. Pediu o violão ao tio e, na mesma hora, encontrou o acorde para uma canção.
Já passava das nove horas quando chegaram um breque, uma charrete e três cavaleiros, para buscar Nikolai e Natacha. O conde e a condessa não sabiam onde os filhos se encontravam e estavam muito inquietos, como disse o mensageiro.
Acordaram Pétia e colocaram-no no breque como se fosse um corpo morto; Natacha e Nikolai tomaram assento na charrete. O tio agasalhou Natacha e despediu-se dela com uma ternura inteiramente nova. Acompanhou-os a pé até a ponte e, como esta não podia ser usada, e era preciso atravessar o rio a vau, mandou caçadores seguirem na frente, com lanternas.
— Adeus, querida sobrinha! — gritou uma voz na escuridão, não a voz que Natacha conhecera antes, mas aquela que cantou “Como a neve da tarde”.
Na aldeia por onde eles passaram, havia luzinhas vermelhas e um cheiro alegre de fumaça.
— Mas que encanto esse titio! — disse Natacha, quando tomaram a estrada principal.
— Sim — respondeu Nikolai. — Não está com frio?
— Não, estou ótima, ótima. Estou me sentindo tão bem — falou Natacha, até com certa perplexidade. Ficaram muito tempo calados.
A noite estava escura e cinza. Nem se enxergavam os cavalos; apenas se ouvia como eles patinhavam na lama invisível.
O que se passava naquela alma suscetível de criança que agarrava e assimilava com tamanha avidez todas as mais variadas impressões da vida? Como tudo aquilo se organizava dentro dela? Natacha, em todo caso, estava muito feliz. Já chegando perto de casa, de repente ela começou a cantar a canção “Como a neve da tarde”, tema que tentara lembrar durante todo o trajeto e, por fim, conseguira.
— Lembrou? — disse Nikolai.
— E você, sobre o que está pensando agora, Nikólienka? — perguntou Natacha. Os dois adoravam perguntar isso um ao outro.
— Eu? — disse Nikolai, e tentou lembrar. — Pois veja só, eu agora mesmo estava pensando que o Rugai, o cão vermelho, é parecido com o tio e que, se ele fosse um homem, ficaria com o tio sempre perto de si, se não pela força na corrida, então pelo seu jeito, ficaria com ele sempre perto. Que pessoa boa é o tio! Não é verdade? Mas e você, no que estava pensando?
— Eu? Espere, espere. Sim, primeiro eu estava pensando que nós estamos aqui, viajando, pensando que vamos para casa, mas só Deus sabe para onde estamos indo no meio dessa escuridão, e que de repente a gente chega e vê que não estamos em Otrádnoie, mas num reino encantado. Depois pensei também... Não, não pensei em mais nada.
— Eu sei, eu tenho certeza de que estava pensando nele — disse Nikolai, sorrindo, como Natacha adivinhou pelo som da sua voz.
— Não — respondeu Natacha, embora de fato, ao mesmo tempo, estivesse pensando no príncipe Andrei e em como ele haveria de gostar do tio. — Mas eu não parei de repetir, por todo o caminho, não parei de repetir: como Aníssiuchka é boa, muito boa... — disse Natacha. E Nikolai ouviu o riso sonoro, gratuito e feliz da irmã. — Sabe de uma coisa? — disse ela, de repente. — Sei que nunca mais vou me sentir tão feliz, tão tranquila, como agora.
— Mas que absurdo, que bobagem, que disparate — disse Nikolai e pensou: “Mas que encanto, esta minha Natacha! Não tenho e nunca terei outro amigo como ela. Para que ela vai casar? Podíamos ficar sempre juntos!”.
“Mas que encanto este Nikolai!”, pensou Natacha.
— Ah! Ainda tem luz na sala — disse ela, apontando para as janelas da casa, que brilhavam bonitas na escuridão úmida e aveludada da noite.
VIII
O conde Iliá Andreitch abandonara o cargo de decano da nobreza porque aquela obrigação acarretava despesas grandes demais. Porém suas finanças nem por isso melhoraram. Muitas vezes Natacha e Nikolai viam as conversas misteriosas e nervosas dos pais e ouviam rumores sobre a venda da luxuosa casa patrimonial dos Rostóv nos arredores de Moscou. Sem o cargo de decano da nobreza, não era preciso ter um local tão grande para recepções, e a vida em Otrádnoie corria mais sossegada do que nos anos anteriores; porém, mesmo assim, a casa enorme e seus anexos estavam repletos de gente, à mesa sentavam sempre mais de vinte pessoas. Todos eram gente de casa, pessoas que se estabeleceram na residência do conde, quase membros da família ou que, assim parecia, deviam forçosamente viver na casa do conde. Assim eram, por exemplo, Dimmler, o músico, e a esposa; Vogel, o professor de dança, e a família; Belova, uma velha solteirona que morava na casa, além de muitos outros: os professores de Pétia, a ex-preceptora das mocinhas e qualquer pessoa para quem era melhor ou mais vantajoso morar na casa do conde do que na própria casa. Não havia recepções tão grandes como antes, mas a vida em geral seguia da mesma forma, pois nem o conde nem a condessa conseguiam conceber a sua vida fora disso. Havia o mesmo aparato para caçadas, que Nikolai aumentara mais ainda, os mesmos cinquenta cavalos e os quinze cocheiros na estrebaria; os mesmos presentes caros que davam uns aos outros nos dias de aniversário e os mesmos jantares solenes oferecidos ao distrito inteiro; os mesmos jogos de uíste e de bóston do conde, nos quais ele, deixando as cartas à vista de todos, perdia centenas de rublos todos os dias para os vizinhos, que com razão encaravam uma partida de cartas com o conde como o mais lucrativo dos investimentos.
O conde se movimentava em suas finanças como em redes imensas, tentando acreditar que não se emaranhava, enquanto a cada passo se emaranhava cada vez mais, e sentia-se incapaz de romper as redes que o prendiam ou de lançar-se com zelo e paciência ao trabalho de desemaranhar-se. A condessa, com o seu coração amorosíssimo, sentia que os filhos ficariam arruinados, que o conde não tinha culpa, que ele não podia ser o que não era, que ele mesmo estava sofrendo (embora o escondesse) por vergonha da ruína, sua e dos filhos, e assim a condessa procurava meios de remediar as finanças. Do seu ponto de vista de mulher, só concebia um meio: o casamento de Nikolai com uma noiva rica. A condessa sentia que essa era a última esperança e que, se Nikolai rejeitasse o partido que ela havia encontrado, seria preciso renunciar para sempre à possibilidade de recuperar as finanças da família. O partido era Julie Karáguina, filha de pais excelentes e virtuosos, conhecida dos Rostóv desde a infância, e agora rica herdeira em virtude da morte do último de seus irmãos.
A condessa escreveu diretamente para Karáguina, em Moscou, propondo o casamento da filha com o seu filho e recebeu dela uma resposta favorável. Karáguina respondeu que, da sua parte, estava de acordo, tudo dependeria da concordância da filha. Karáguina convidou Nikolai para ir a Moscou.
Diversas vezes, com lágrimas nos olhos, a condessa disse ao filho que, agora que as suas duas filhas estavam encaminhadas, seu único desejo era ver o filho casado. Disse que iria em paz para o túmulo se aquilo se realizasse. Depois disse que tinha em vista uma jovem maravilhosa e procurou saber a opinião do filho a respeito do casamento.
Em outras conversas, a condessa elogiava Julie e recomendava que Nikolai viajasse a Moscou nos feriados para se divertir. Nikolai adivinhava aonde a mãe queria chegar com aquelas conversas e, numa delas, induziu-a a falar com toda a franqueza. A mãe revelou-lhe que toda a esperança de pôr as finanças em ordem repousava agora no seu casamento com Karáguina.
— Quer dizer que, se eu amasse uma jovem sem fortuna, a senhora, maman, exigiria que eu sacrificasse o sentimento e a honra em troca da fortuna? — perguntou à mãe, sem entender a crueldade da sua pergunta e desejando apenas mostrar-se virtuoso.
— Não, você não me entendeu — disse a mãe, sem saber como se justificar. — Você não me entendeu, Nikólienka. Eu desejo a sua felicidade — acrescentou e sentiu que não dizia a verdade, que estava embaraçada. Começou a chorar.
— Mamãe, não chore, é só me dizer que deseja isso e a senhora sabe que darei toda a minha vida para que a senhora fique tranquila — disse Nikolai. — Sacrificarei tudo pela senhora, até o meu sentimento.
Mas a condessa não queria pôr a questão naqueles termos: não queria sacrifícios do filho, ela mesma queria sacrificar-se por ele.
— Não, você não me entendeu bem, não vamos falar disso — pediu ela, enxugando as lágrimas.
“Sim, pode acontecer de eu amar uma jovem pobre”, disse Nikolai consigo, “e então como eu iria sacrificar o sentimento e a honra pela fortuna? Eu me admiro que mamãe possa me falar isso. Só porque ela é pobre”, pensou, “eu não posso amar Sônia, não posso corresponder ao seu amor fiel e devotado? Além do mais, sem dúvida eu serei mais feliz com ela do que com essa espécie de boneca que é a Julie. Não posso controlar meu sentimento”, disse consigo. “Se amo Sônia, esse meu sentimento é mais forte e mais elevado do que tudo o mais para mim.”
Nikolai não foi a Moscou, a condessa não retomou a conversa a respeito de casamento e, com tristeza, mas às vezes com irritação, via sinais de uma aproximação cada vez maior entre seu filho e Sônia, que não tinha nenhum dote. A condessa se recriminava por isso, mas não podia deixar de resmungar com Sônia, de criar caso com ela, muitas vezes a detinha sem nenhum motivo, ralhava com ela e chamava-a de “minha cara senhora”. O que mais irritava a boa condessa era o fato de Sônia, aquela sobrinha pobre e de olhos negros, ser tão dócil, tão bondosa, tão devotadamente agradecida aos seus benfeitores, e tão fiel, tão constante em seu amor desinteressado por Nikolai que era impossível censurar nela o que quer que fosse.
As férias de Nikolai iam passando, e ele não saía da casa dos pais. Chegara de Roma a quarta carta do príncipe Andrei, o noivo, na qual dizia que já estaria a caminho da Rússia desde muito tempo, se a sua ferida não tivesse aberto outra vez, inesperadamente, em razão do clima, o que o obrigava a adiar a partida até o início do ano seguinte. Natacha estava muito apaixonada pelo noivo, muito tranquila com aquele amor e muito receptiva a todas as alegrias da vida; mas, no fim do quarto mês de separação, começaram a surgir momentos de tristeza, contra os quais ela não conseguia lutar. Natacha tinha pena de si mesma, lamentava perder todo aquele tempo à toa, para ninguém, enquanto continuava a sentir-se tão capaz de amar e de ser amada.
Na casa dos Rostóv não havia alegria.
IX
Chegaram as festas de Natal e, afora a missa solene, afora os cerimoniosos e enfadonhos cumprimentos dos vizinhos e dos servos, afora as roupas novas que todos vestiam, nada de especial marcava as festas de Natal, porém na friagem sem vento de vinte graus negativos, nos dias claros de sol ofuscante e na luz das noites estreladas de inverno, sentia-se a necessidade de celebrar de algum modo aquele momento.
No terceiro dia das festas de Natal, depois do almoço, todas as pessoas de casa se retiraram para os seus quartos. Era a hora mais maçante do dia. Nikolai, que pela manhã tinha ido à casa dos vizinhos, adormeceu num sofá. O velho conde ficou descansando no seu escritório. Sônia ficou sentada na sala de visitas, à mesa redonda, copiando o desenho de um bordado. A condessa jogava paciência. Nastássia Ivánovna, o bufão, estava sentado, de rosto triste, junto à janela, com duas velhinhas. Natacha entrou na sala, aproximou-se de Sônia, observou o que ela estava fazendo, depois chegou perto da mãe e ficou parada, em silêncio.
— Por que fica andando que nem uma alma penada? — perguntou a mãe. — Do que você precisa?
— Preciso dele... agora, neste instante, eu preciso dele — disse Natacha, com os olhos brilhando e sem sorrir. A condessa levantou a cabeça e olhou com atenção para a filha. — Não fique olhando para mim, mãe, não fique olhando, senão vou começar a chorar.
— Sente, fique aqui comigo — disse a condessa.
— Mamãe, eu preciso dele. Para que eu tenho de perder tanto tempo, mãe?... — Sua voz se desfez, lágrimas romperam nos olhos, e ela, a fim de escondê-las, virou-se depressa e saiu da sala. Foi para a saleta, parou, de pé, pensou um pouco e seguiu para o aposento das criadas. Lá, uma velha criada de quarto ralhava com uma jovem serva que, ofegante por causa do frio, havia acabado de chegar do aposento dos criados.
— Só quer saber de brincar — disse a velha. — Tem hora para tudo.
— Deixe a menina, Kondrétievna — pediu Natacha. — Vá, Mávrucha, vá.
E, depois de liberar Mávrucha, Natacha atravessou o salão e foi para a saleta da entrada. Um velho e dois jovens lacaios jogavam cartas. Interromperam a partida e levantaram-se diante da patroa. “O que vou fazer com eles?”, pensou Natacha.
— Sim, Nikita, por favor, vá... — “Para onde vou mandá-lo?” — Sim, vá lá nos fundos e traga um galo, por favor; sim, e você, Micha, traga aveia.
— A senhora quer muita aveia? — perguntou Micha, alegre e bem-disposto.
— Vá, vá logo — insistiu o velho.
— E você, Fiódor, me traga um giz.7
Ao passar pela copa, Natacha mandou preparar o samovar, embora ainda estivesse muito longe da hora.
O copeiro Foká era a pessoa mais irritadiça na casa. Natacha gostava de experimentar o seu poder sobre ele. Foká não acreditou naquela ordem e foi perguntar a Natacha se era verdade.
— Essa patroazinha tem cada uma! — exclamou Foká, fingindo fazer cara feia para Natacha.
Entre os patrões, ninguém pedia tanta coisa aos criados quanto Natacha, nem lhes dava tanto o que fazer. Ela não conseguia olhar para os criados com indiferença, sem mandá-los fazer alguma coisa. Parecia querer verificar se não iam se zangar, irritar-se com ela, mas os criados gostavam de cumprir as ordens de Natacha mais do que as de qualquer outra pessoa. “O que vou fazer? Para onde ir?”, pensava Natacha, enquanto andava devagar pelo corredor.
— Nastássia Ivánovna, o que eu darei à luz? — perguntou ao bufão, que vinha na direção dela, na sua kutsaveika.8
— Você? Pulgas, libélulas, ferreiros — respondeu o bufão.
“Meu Deus, meu Deus, é sempre a mesma coisa! Ah, onde vou me enfiar? O que vou fazer de mim?” E ela, rapidamente, batendo os pés no chão, correu pela escada para o quarto de Vogel, que morava com a esposa no primeiro andar. No quarto de Vogel, duas preceptoras estavam sentadas à mesa, onde havia pratos com passas, nozes e amêndoas. As preceptoras conversavam sobre onde a vida era mais barata, em Moscou ou em Odessa. Natacha sentou-se, escutou a conversa com ar sério e pensativo e levantou-se.
— Ilha de Madagascar — disse. — Ma-da-gas-car — repetiu, separando bem cada sílaba e, sem responder à pergunta de Mme Schoss sobre o que ela havia falado, saiu do quarto.
Pétia, seu irmão, também estava no primeiro andar: com o preceptor, ele preparava os fogos de artifício que iam soltar à noite.
— Pétia! Pétka! — gritou para ele. — Carregue-me para baixo! — Pétia veio correndo para a irmã e lhe ofereceu as costas. Natacha montou nele, abraçou o seu pescoço, e Pétia, aos saltos, começou a correr com a irmã nas costas. — Não, não precisa... Ilha de Madagascar — falou Natacha, desmontou das costas de Pétia e desceu a escada.
Como se tivesse percorrido os seus domínios, posto à prova o seu poder e se convencido de que todos eram obedientes, mas que mesmo assim tudo era maçante, Natacha seguiu para a sala, pegou o violão, sentou-se num canto escuro atrás de um armário pequeno e pôs-se a dedilhar as cordas mais graves, procurando uma frase que recordava de uma ópera a que assistira em Petersburgo, na companhia do príncipe Andrei. Para ouvidos alheios, o que ela tocava no violão não faria o menor sentido, mas na sua imaginação, por trás daqueles sons, renascia toda uma série de recordações. Natacha ficou atrás daquele armário pequeno, os olhos fixos na faixa de luz que vinha da porta da copa, ouvia a si mesma e lembrava. Natacha entregava-se às suas memórias.
Sônia passou pela sala com um cálice, rumo à copa. Natacha lançou um olhar para ela, para a fresta da porta da copa, e lhe pareceu lembrar já ter visto a faixa de luz que vinha da porta da copa e Sônia passar com um cálice na mão. “Sim, isso já aconteceu exatamente desse jeito”, pensou Natacha.
— Sônia, o que é isto? — gritou Natacha, calcando a corda grave com os dedos.
— Ah, você está aí! — exclamou Sônia com um sobressalto, aproximou-se e escutou. — Não sei. Uma tempestade? — disse com timidez, receosa de errar.
“Puxa, ela ficou sobressaltada do mesmo jeito, aproximou-se e sorriu com timidez exatamente assim, na outra vez em que isso aconteceu”, pensou Natacha. “E também exatamente assim... eu pensei que faltava alguma coisa nela.”
— Não, é o coro dos Aguadeiros,9 não percebeu? — E Natacha cantou a melodia do coro para mostrar a Sônia. — E aonde você está indo?
— Vou trocar a água do cálice. Estou quase acabando o desenho do bordado.
— Você está sempre fazendo alguma coisa, mas eu não consigo — disse Natacha. — E o Nikólienka, onde está?
— Está dormindo, parece.
— Sônia, vá acordá-lo — disse Natacha. — Diga que eu o estou chamando para cantar. — Natacha ficou parada um instante, pensou no que aquilo significava, no que vinha a ser tudo aquilo e, sem conseguir esclarecer a questão, e sem ficar nem um pouco triste por causa disso, transportou-se de novo, na imaginação, para o tempo em que ela e ele estavam juntos e em que ele a fitava com os olhos apaixonados.
“Ah, quem dera ele chegasse logo. Tenho tanto medo de que isso não aconteça! E o pior é que estou ficando velha, isso sim! Já não vai mais haver em mim aquilo que existe agora. Mas quem sabe ele vai chegar hoje, agora mesmo? Quem sabe ele já chegou e está lá na sala de visitas? Quem sabe ele veio ontem mesmo, e eu esqueci?” Natacha levantou-se, pôs o violão de lado e seguiu para a sala de visitas. Todas as pessoas de casa, os professores, as preceptoras e as visitas já estavam sentadas à mesa de chá. Os criados estavam de pé em torno da mesa — mas o príncipe Andrei não estava ali, e era a mesma vida rotineira de antes.
— Ah, aí está ela — disse Iliá Andreitch, ao ver Natacha, que entrara. — Bem, sente-se ao meu lado. — Mas Natacha ficou parada junto à mãe, olhando em volta como que à procura de alguma coisa.
— Mamãe! — exclamou. — Dê-me ele, dê, mamãe, depressa, depressa. — E, de novo, teve dificuldade para conter os soluços.
Natacha sentou-se à mesa e escutou um pouco a conversa dos mais velhos e de Nikolai, que também tinha vindo até a mesa. “Meu Deus, meu Deus, as mesmas pessoas, as mesmas conversas, o papai segura a xícara do mesmo jeito e sopra do mesmo jeito de sempre!”, pensou Natacha, sentindo com horror uma repulsa erguer-se dentro dela contra todas as pessoas de casa por serem sempre do mesmo jeito.
Depois do chá, Nikolai, Sônia e Natacha foram para a saleta do divã, para o seu cantinho predileto, onde sempre tinham início as suas conversas íntimas.
X
— Com você acontece — perguntou Natacha para o irmão, quando se sentaram na saleta —, com você acontece de ter a impressão de que nada vai acontecer, nada; de que tudo o que há de melhor já passou? E de ficar com uma sensação não de tédio, mas de tristeza?
— É claro! — disse ele. — Comigo aconteceu que tudo estava muito bem, na maior alegria, e de repente me veio a ideia de que eu já estava farto de tudo aquilo e de que todos temos de morrer. Uma vez, no regimento, eu não fui passear, fiquei tocando música... e de repente me veio um tédio tão grande...
— Ah, eu sei como é. Eu sei, sim — concordou Natacha. — Eu ainda era pequena e me acontecia isso. Lembra uma vez em que me castigaram por causa de umas ameixas, e enquanto vocês todos dançavam eu fiquei na sala de aula, chorando? Chorei tanto que nunca mais vou esquecer. Fiquei triste também, e tive pena de todos, tive pena de mim e de todo mundo. E o pior é que eu não tive culpa — disse Natacha. — Lembra?
— Lembro — disse Nikolai. — Lembro que fui falar com você depois, tive vontade de consolar você e, sabe, eu estava com vergonha. Nós éramos tremendamente ridículos. Na época, eu tinha um boneco e queria dar para você. Lembra?
— E você lembra — disse Natacha, com um sorriso pensativo — que muito, muito tempo atrás, quando ainda éramos bem pequenos, o titio nos chamou ao escritório, ainda na casa antiga, e estava escuro, a gente foi, e de repente lá estava...
— Um negro — concluiu Nikolai com um sorriso alegre. — Como é que eu poderia esquecer? E mesmo agora eu não sei dizer se era um negro ou se nós estávamos sonhando, ou se foi uma coisa que nos contaram.
— Ele era grisalho, lembra? E tinha dentes brancos... estava de pé, parado, e olhava para a gente...
— A senhora lembra, Sônia? — perguntou Nikolai.
— Sim, sim, também me lembro de alguma coisa — respondeu Sônia com timidez.
— Eu até perguntei sobre aquele negro para o papai e para a mamãe — disse Natacha. — Responderam que nunca houve negro nenhum aqui. Mas olhe só como você está lembrando!
— Como não? Lembro daqueles dentes como se estivesse vendo agora.
— Que estranho, parece até um sonho. Eu gosto disso.
— E lembra que um dia a gente estava rolando ovos no chão do salão e de repente entraram duas velhas e começaram a dar voltas no tapete? Isso aconteceu mesmo ou não? Lembra como era bom?...
— Sim. E lembra quando o papai, na varanda, de peliça azul, deu um tiro com o fuzil? — Interrompiam-se, sorriam com o prazer das recordações, não lembranças de velhos tristonhos, mas recordações poéticas de jovens, impressões do passado mais remoto, nas quais o sonho se fundia com a realidade, e riam baixinho, alegrando-se sem saber por quê.
Sônia, como sempre, mantinha-se à margem, embora as recordações deles fossem comuns.
Ela não lembrava de muitas das coisas que os outros dois recordavam, e aquilo que Sônia lembrava não despertava nela o mesmo sentimento poético que Natacha e Nikolai experimentavam. Sônia apenas se deliciava com a alegria dos outros dois e tentava imitá-la.
Só tomou parte na conversa quando recordaram a chegada de Sônia à casa deles. Sônia contou como tinha medo de Nikolai porque ele usava uma japona com uns cordões, e a babá lhe dissera que também iam costurá-la toda com os cordões.
— E lembro também que me disseram que você tinha nascido debaixo de um pé de repolho — continuou Natacha. — Lembro que, na época, eu não me atrevi a duvidar, mas sabia que não era verdade, e isso me deixou muito sem graça.
Nessa altura da conversa, uma criada pôs a cabeça na porta dos fundos da saleta.
— Patroa, já trouxeram o galo — disse a menina, num sussurro.
— Não precisa mais, Pólia, mande levar de volta — respondeu Natacha.
No meio da conversa que ocorria na saleta, Dimmler entrou e aproximou-se da harpa que ficava num canto. Tirou a capa do instrumento, e a harpa emitiu uma nota desafinada.
— Edward Karlitch, por favor, toque a minha predileta, o “Nocturne”, de Field10 — disse a voz da velha condessa, na sala de visitas.
Dimmler tocou um acorde e, voltando-se para Natacha, Nikolai e Sônia, disse:
— Como a mocidade está sossegada!
— Sim, estamos filosofando — disse Natacha, virando-se para ele um instante, e continuou a conversa. Agora conversavam sobre sonhos.
Dimmler começou a tocar. Natacha, em silêncio, na ponta dos pés, chegou perto da mesa, pegou uma vela, voltou e, sem fazer barulho, sentou-se no seu lugar. Estava escuro na sala, em especial no sofá onde estavam os jovens, mas a luz prateada da lua cheia caía sobre o chão, através das janelas grandes.
— Sabe, eu acho — disse Natacha, num sussurro, chegando mais pertinho de Nikolai e de Sônia, quando Dimmler já havia terminado de tocar e continuava dedilhando as cordas de leve, obviamente indeciso, pensando se devia parar ou começar outra música —, eu acho que quando a gente lembra assim e fica lembrando e lembrando até o fim, acaba lembrando o que aconteceu antes de a gente nascer.
— Isso é metempsicose — disse Sônia, que sempre estudava muito e aprendia tudo. — Os egípcios acreditavam que as nossas almas antes estiveram em animais e depois voltarão para os animais.
— Não, sabe, eu não acredito que nós estivemos em animais — disse Natacha, sempre num sussurro, embora a música já tivesse terminado. — Sei com certeza que nós fomos anjos no céu, e também aqui na Terra, e nos lembramos disso tudo...
— Posso me juntar a vocês? — perguntou Dimmler, que se aproximou de mansinho e sentou-se perto deles.
— Se nós fomos anjos, por que fomos rebaixados? — perguntou Nikolai. — Não, isso não é possível.
— Não fomos rebaixados, quem disse que fomos rebaixados?... Pois eu sei o que fui antes — protestou Natacha com toda a convicção. — Afinal, a alma é imortal... quer dizer, se vou viver para sempre, então eu também existi sempre, existi por toda a eternidade infinita.
— Sim, mas é difícil conceber a eternidade — disse Dimmler, que se aproximara dos jovens com um sorriso dócil e desdenhoso, mas agora falava baixo e em tom sério, da mesma forma que eles.
— E por que é difícil imaginar a eternidade? — perguntou Natacha. — Hoje existe, amanhã existirá, sempre existirá, e ontem existiu, anteontem existiu...
— Natacha! Agora é a sua vez. Cante alguma coisa para mim — soou a voz da condessa. — O que estão fazendo aí, tão quietos? Parecem uns conspiradores.
— Mãe! Não estou com vontade — respondeu Natacha, mas ao mesmo tempo levantou-se.
Nenhum deles, nem o já maduro Dimmler, tinha vontade de interromper a conversa e sair da saleta, mas Natacha levantou-se, e Nikolai sentou-se ao clavicórdio. Como sempre, de pé no meio da sala, no lugar onde a ressonância era mais favorável, Natacha começou a cantar a música predileta da mãe.
Disse que não tinha vontade, mas fazia muito tempo que não cantava tão bem como cantou naquela noite, e depois levou muito tempo para voltar a cantar assim. O conde Iliá Andreitch, do escritório, onde conversava com Mítienka, ouviu a canção e, como um aluno ansioso para brincar ao fim da aula, atrapalhou-se com as palavras, enquanto dava as ordens para o administrador, até que, por fim, calou-se, e Mítienka, também escutando em silêncio, ficou parado com um sorriso diante do conde. Nikolai não desviava o olhar da irmã e respirava junto com ela. Sônia, enquanto escutava, pensava na enorme diferença que havia entre ela e a sua amiga e em como era impossível para ela ser, por pouco que fosse, fascinante como a prima. A velha condessa, com um sorriso feliz e melancólico, e com lágrimas nos olhos, balançava a cabeça de vez em quando. Pensava em Natacha, na sua própria juventude, e pensava que havia algo anormal e terrível no futuro casamento de Natacha com o príncipe Andrei.
Dimmler veio sentar-se junto à condessa e escutava de olhos fechados.
— Não, condessa — disse ele, por fim. — É um talento europeu, ela não tem nada o que aprender, essa suavidade, essa ternura, essa força...
— Ah! Como eu temo por ela, como eu temo — disse a condessa, sem lembrar com quem estava falando. O seu sentimento maternal lhe dizia que havia algo de excessivo em Natacha e que, por isso, ela não seria feliz. Natacha ainda não terminara de cantar, quando Pétia, de catorze anos, entrou na sala correndo, eufórico com a notícia de que os mascarados tinham chegado.
Natacha parou de repente.
— Seu bobo! — gritou para o irmão, correu para uma cadeira, deixou-se cair sobre ela e desatou a chorar de tal modo que demorou muito tempo para conseguir parar. — Não é nada, mamãe, juro, não é nada. O Pétia me assustou, foi só isso — disse, tentando sorrir, mas as lágrimas continuavam a rolar, e os soluços lhe apertavam a garganta.
Os servos estavam fantasiados: ursos, turcos, taberneiros, fidalgas, medonhos e ridículos, trazendo consigo a alegria e a friagem lá de fora, aglomeraram-se de início timidamente no vestíbulo; depois, escondendo-se uns atrás dos outros, passaram para o salão; e de início acanhados, mas depois, cada vez mais alegres e descontraídos, deram início às canções, às danças populares, às brincadeiras de Natal. A condessa, após reconhecer o rosto dos mascarados e rir das fantasias, foi para a sala de visitas. O conde Iliá Andreitch, com um sorriso radiante, sentado no salão, dava apoio aos foliões. Os jovens haviam sumido.
Meia hora depois, no salão, apareceu também, entre outros mascarados, uma velha de saia grande com anquinhas — era Nikolai. A mulher turca era Pétia. O palhaço era Dimmler, o hussardo era Natacha e o circassiano era Sônia, com bigodes e sobrancelhas pintados com rolha queimada.
Depois de simular surpresa, desconhecimento e ouvir os elogios dos que não estavam fantasiados, os jovens acharam que as roupas estavam tão bonitas que era preciso mostrá-las para outras pessoas.
Nikolai, que tinha vontade de levar todos na sua troica pela estrada excelente, sugeriu ir à casa do tio, levando consigo uns dez servos mascarados.
— Não, ora essa, vocês vão perturbar o velho! — disse a condessa. — E na casa dele não vão ter espaço nem para se mexer. É melhor ir à casa dos Meliukóv.
A sra. Meliukova era uma viúva que morava a quatro verstas dos Rostóv, com filhos de idades variadas, além de preceptores e governantas.
— Que boa ideia, ma chère — apoiou o velho conde, animado. — Vou me arrumar num instante e irei com vocês. Vou animar a Pacheta.
Mas a condessa não deixou o conde ir: a perna dele estava doendo havia muitos dias. Resolveram que Iliá Andreitch não podia ir, mas que, se Luísa Ivánovna (Mme Schoss) fosse, Natacha e Sônia poderiam ir à casa dos Meliukóv. Sônia, sempre tímida e acanhada, começou a insistir, com mais ênfase do que todos os outros, para que Luísa Ivánovna não recusasse.
A fantasia de Sônia era a melhor de todas. Seus bigodes e sobrancelhas lhe caíam extraordinariamente bem. Todos lhe diziam que estava muito bonita, e Sônia se achava num estado de ânimo entusiasmado e vigoroso, incomum para ela. Uma voz interior lhe dizia que o seu destino seria decidido naquele dia ou nunca, e Sônia, em sua fantasia de homem, parecia outra pessoa. Luísa Ivánovna concordou e, meia hora depois, quatro troicas, com guizos e sinetas, guinchando e assoviando sobre a neve endurecida pela friagem, encostaram diante da varanda.
Natacha foi a primeira a dar o tom de alegria natalina, e aquela alegria, refletindo-se de um para o outro, aumentava cada vez mais e chegou ao auge na hora em que todos saíram para o ar gelado e, falando entre si, chamando uns aos outros, rindo e gritando, subiram nos trenós.
Duas troicas eram de serviço comum, a terceira era a do velho conde, com um cavalo trotador, vindo de Orlóv, atrelado ao varal, e a quarta era a troica pessoal de Nikolai, com o seu cavalo murzelo baixinho e peludo atrelado entre outros dois. Nikolai, na sua fantasia de velha, sobre a qual vestira uma capa de hussardo cingida por um cinto, estava de pé, no meio do trenó, com as rédeas em punho.
Estava tão claro que ele via brilhar, aos raios da lua, as chapinhas de metal dos arreios e os olhos dos cavalos, que, assustados, viravam a cabeça para os passageiros, que faziam muito barulho à sombra do telhado da varanda.
No trenó de Nikolai, sentaram Natacha, Sônia, Mme Schoss e duas criadas. No trenó do velho conde, sentaram Dimmler, sua esposa e Pétia. Nos outros, distribuíram-se os servos fantasiados.
— Vá na frente, Zakhar! — gritou Nikolai ao cocheiro do trenó do pai, para ter a chance de ultrapassá-lo na estrada.
A troica do velho conde, na qual iam Dimmler e outros mascarados, arrancou e foi em frente, com os patins do trenó assoviando, como se aderissem à neve, e as sinetas graves tilintando. Os cavalos dos lados comprimiam-se aos varais e afundavam as patas no solo, espirrando a neve brilhante e dura como açúcar.
Nikolai partiu atrás da primeira troica; atrás dele, as demais troicas faziam barulho e assoviavam. De início, seguiram a trote suave pela estrada estreita. Quando passaram pelo bosque, muitas vezes as sombras das árvores nuas estendiam-se atravessadas no caminho e escondiam a luz clara da lua; no entanto, assim que deixaram a cerca para trás, uma planície coberta de neve, com o brilho azulado de um diamante, toda banhada pelo resplendor da lua e imóvel, abriu-se em todas as direções. O trenó da frente sacudiu duas vezes num buraco da estrada; o trenó seguinte sacudiu da mesma forma, e também o seguinte, e assim, rompendo com audácia o silêncio gelado, os trenós começaram a deslizar um atrás do outro.
— Tem um rastro de lebre, tem muitos rastros! — ressoou, no ar enregelado, a voz de Natacha.
— A gente enxerga tudo, Nicolas! — falou a voz de Sônia. Nikolai virou-se para trás, na direção de Sônia, e inclinou-se para observar seu rosto mais de perto. Um rosto completamente novo, meigo, de sobrancelhas e bigodes pretos, na luz da lua, próximo e distante, despontava na pele de zibelina.
“Antes isso era a Sônia”, pensou Nikolai. Olhou para ela bem de perto e sorriu.
— O que há com você, Nikolai?
— Nada — respondeu, e virou-se de novo para os cavalos.
Ao tomarem a estrada principal, mais batida, que os patins dos trenós haviam deixado escorregadia, toda retalhada pelas marcas dos cascos, bem visíveis à luz da lua, os cavalos começaram, por conta própria, a forçar as rédeas e a ganhar velocidade. O cavalo da esquerda, com a cabeça arqueada, repuxava seus tirantes aos arrancos. O cavalo do meio balançava-se, mexendo as orelhas, como se perguntasse: “É para começar? Ou ainda é cedo?”. Na frente, já distante, destacada e ressoando a sineta grave cada vez mais longe, via-se claramente na neve branca a troica negra de Zakhar. Ouviam-se os gritos, os risos e as vozes dos mascarados do seu trenó.
— Vamos lá, meus amigos! — gritou Nikolai, puxando as rédeas para um lado e brandindo o chicote na mão. E só pelo vento, que ficara mais forte e parecia vir de encontro a eles, e pelos solavancos do galope dos cavalos das laterais da troica, que puxavam e forçavam cada vez mais, percebia-se como o trenó corria com ímpeto. Nikolai virou-se e olhou para trás. Com um grito e um assovio, brandindo o chicote e obrigando o cavalo do meio a galopar, as outras troicas seguiam ligeiro. O cavalo do meio sacudia-se com valentia sob o arco dos arreios, sem pensar em desistir, e prometendo acelerar mais e mais, quando fosse necessário.
Nikolai alcançou a primeira troica. Desceram um morro e adentraram numa estrada larga, cheia de sulcos, sobre um prado à margem de um rio.
“Onde estamos?”, pensou Nikolai. “Deve ser o prado de Kossói. Mas, não, é uma coisa nova, algo que nunca vi. Não é o prado de Kossói, nem é o monte Diómkin, só Deus sabe que lugar é este! É uma coisa nova e mágica. Bem, seja lá o que for, isso não importa!” E, após gritar para os cavalos, começou a ultrapassar a primeira troica.
Zakhar refreou um pouco seus cavalos e virou o rosto, já coberto de fragmentos de gelo até as sobrancelhas.
Nikolai acelerou seus cavalos, e Zakhar, com os braços estendidos para a frente, estalou os lábios e também acelerou os seus cavalos.
— Puxa, cuidado, patrão — exclamou. As troicas corriam ainda mais rápidas, lado a lado, e as patas dos cavalos a galope revezavam-se velozmente. Nikolai começou a tomar a frente. Zakhar, sem mudar a posição dos braços estendidos, soergueu uma das mãos com as rédeas.
— Está sonhando, patrão — gritou. Nikolai acelerou ao máximo o galope dos cavalos e ultrapassou Zakhar. Os cavalos espirravam uma neve miúda e seca que cobria todo o rosto dos passageiros, enquanto ao lado deles soava um tilintar ligeiro, e misturavam-se as patas que se moviam depressa e as sombras da troica ultrapassada. O chiado dos patins dos trenós sobre a neve e a voz esganiçada das mulheres ressoavam de vários lados.
Nikolai reduziu a velocidade dos cavalos e olhou à sua volta. Tudo em redor era a mesma planície mágica, banhada pelo luar, salpicada de estrelas.
“Zakhar está gritando para que eu vire à esquerda; mas por que à esquerda?”, pensou Nikolai. “Será que estamos indo na direção da casa dos Meliukóv? Será que aqui é Meliukovka? Só Deus sabe onde estamos, só Deus sabe o que está acontecendo conosco... E é muito estranho e bom o que está acontecendo conosco.” Virou-se e olhou para dentro do trenó.
— Olhe só o bigode e as pestanas dele, está tudo branco — disse uma das pessoas estranhas, bonitinhas e desconhecidas sentadas ali, aquela com bigode e sobrancelhas finas.
“Aquela parece que é a Natacha”, pensou Nikolai. “E aquela outra, a Mme Schoss; mas pode não ser, e esse circassiano de bigodes... eu não sei quem é, mas eu a adoro.”
— Vocês não estão com frio? — perguntou Nikolai. Elas não responderam e começaram a rir. Dimmler gritou alguma coisa do trenó de trás, na certa algo engraçado, mas era impossível entender o que estava gritando.
— Sim, sim — responderam as vozes, rindo.
No entanto, eis que surge uma floresta mágica, com sombras negras derramadas, cintilações de diamante, uma série de degraus de mármore, telhados de prata de um castelo encantado e o ganido estridente de animais. “Mas se isto for de fato Meliukovka, mais estranho ainda é que nós, correndo sem saber para onde, fomos dar justamente em Meliukovka”, pensou Nikolai.
De fato, era Meliukovka, e criadas e lacaios saíram às pressas para a entrada da casa, com velas e o rosto alegre.
— Quem é? — perguntaram da entrada.
— São os mascarados do conde, estou reconhecendo pelos cavalos — responderam algumas vozes.
XI
Pelagueia Danílovna Meliukova, mulher vigorosa e larga, de óculos e roupão folgado, estava sentada na sala de visitas, cercada pelas filhas, às quais ela tentava divertir. Em silêncio, derretiam a cera de velas e observavam as figuras que se formavam nas sombras,11 quando veio da entrada o rumor dos passos e das vozes dos recém-chegados.
Hussardos, fidalgas, bruxas, palhaços, ursos, tossindo e enxugando o rosto cheio de fragmentos de gelo, atravessaram a porta e entraram no salão, onde velas foram acesas às pressas. O palhaço Dimmler e a fidalga Nikolai deram início à dança. Rodeados por crianças que gritavam, os fantasiados, de rosto coberto e disfarçando a voz, curvaram-se em cumprimento diante da dona da casa e espalharam-se pela sala.
— Ah, é impossível reconhecer! Mas essa é a Natacha? Olhem só o jeito dela! Sério, me lembra alguém. E esse é o Edward Karlitch, como está bonito! Nem reconheci. Puxa, como dança! Ah, meus amigos, e esse circassiano aí? Sério, como a Sóniuchka fica bem. E esses aqui, quem serão? Puxa, que diversão nos trouxeram! Retirem as mesas, Nikita e Vánia. E nós, que estávamos aqui tão quietinhas!
— Ha, ha, ha!... Olhem o hussardo, olhem o hussardo! Igualzinho a um menino, e os pés!... Não consigo nem olhar... — ouviam-se vozes.
Natacha, a predileta das jovens Meliukóv, sumiu com elas nos aposentos dos fundos, onde pediram rolhas de cortiça e diversos roupões e trajes masculinos, que os braços nus de meninas receberam de um lacaio, por trás de uma porta entreaberta. Dez minutos depois, toda a parte jovem da família Meliukóv veio se unir aos mascarados.
Pelagueia Danílovna, que dera ordem de fazer uma limpeza nos aposentos reservados para as visitas e de trazer comes e bebes para os senhores e para os servos, caminhou entre os mascarados, com um sorriso contido, sem tirar os óculos, fitando de perto o rosto deles, sem reconhecer ninguém. Não só não reconheceu os Rostóv e Dimmler como também não conseguia de forma alguma reconhecer nem as próprias filhas, nem os roupões e os uniformes masculinos que elas vestiam.
— Mas e essa aí, é qual delas? — perguntou, dirigindo-se para a sua preceptora enquanto fitava o rosto da própria filha, disfarçada de tártaro de Kazan. — Parece alguém dos Rostóv. Puxa, e o senhor, meu cavalheiro hussardo, está em que regimento? — perguntou para Natacha. — E aquela turquinha ali, vamos, deem um doce para ela — disse para um copeiro que servia as visitas. — A lei deles não proíbe isso.
De vez em quando, ao ver os passos estranhos, mas engraçados, que davam os dançarinos — convencidos de uma vez por todas de que estavam bem fantasiados e de que ninguém os reconheceria, e por isso sem timidez —, Pelagueia Danílovna cobria o rosto com um lenço, e todo o seu corpo obeso sacudia-se com um bom e irresistível riso de velha.
— Aquela é a minha Sáchinet! — exclamou.
Depois das danças russas e das danças de roda, Pelagueia Danílovna reuniu todos os servos e senhores num grande círculo; trouxeram um arco, um cordão e uma moeda de um rublo, e todos participaram da brincadeira.
Uma hora depois, todas as roupas estavam amarrotadas e desarrumadas. Os bigodes e as sobrancelhas desenhados com rolha de cortiça queimada desmanchavam-se nos rostos suados, afogueados e alegres. Pelagueia Danílovna começou a reconhecer os mascarados, maravilhada com a maneira como as indumentárias estavam bem-feitas, como as fantasias ficavam especialmente bem nas jovens senhoras e agradeceu a todos por terem lhe trazido tanta alegria. Convidaram as visitas para jantar na sala de refeições e para os servos serviram comes e bebes no salão.
— Não, ler a sorte na casa de banhos, é isso o que dá o maior medo! — disse, durante o jantar, uma solteirona que morava na casa dos Meliukóv.
— Mas por quê? — perguntou a filha mais velha dos Meliukóv.
— Não vá, estou avisando, tem de ter muita coragem...
— Pois eu vou — disse Sônia.
— Conte o que aconteceu com aquela moça — pediu a segunda Meliukova.
— Pois bem, uma jovem foi lá sozinha — contou a solteirona —, levou um galo, pratos e talheres para dois, tudo como deve ser, e sentou-se. Ficou quieta, só escutando, e de repente lá vem ele... um trenó, com sinetas, guizos; ela presta atenção, alguém está vindo. E ele entra, numa imagem humana perfeita, igualzinho a um oficial, aproxima-se e senta junto dela, diante do prato e dos talheres.
— Ah! Ah!... — começou a gritar Natacha, arregalando os olhos com horror.
— Puxa, mas e ele também fala?
— Sim, igual a uma pessoa, tudo certinho, e vai indo, e vai indo, até convencer. Só que ela precisava mantê-lo ocupado com a conversa até o galo cantar; mas a moça teve medo; e, assim que teve medo, cobriu o rosto com as mãos. E aí ele agarrou a moça. Por sorte, as criadas acudiram naquele instante...
— Ora, para que meter medo nos outros! — exclamou Pelagueia Danílovna.
— Mas, mamãe, a senhora mesma foi ler a sorte... — disse a filha.
— E como se lê a sorte no celeiro? — perguntou Sônia.
— Podemos ir agora mesmo ao celeiro, se quiser, e ficar escutando. Depende do que vai escutar: se batem pregos, martelam, é ruim, mas se derramam trigo é bom; às vezes acontece de...
— Mamãe, conte o que aconteceu com a senhora, no celeiro!
Pelagueia Danílovna sorriu.
— Ora, mas eu já esqueci — respondeu. — E então, nenhuma de vocês quer ir?
— Sim, eu vou; Pelagueia Danílovna, me deixe ir — disse Sônia.
— Está bem, se você não tem medo.
— Luísa Ivánovna, posso ir? — perguntou Sônia.
Quando brincavam com o arco, com o cordão ou com a moeda de um rublo, ou quando conversavam, como agora, Nikolai não se afastava de Sônia e a observava com um olhar inteiramente novo. Parecia-lhe que só naquele dia, pela primeira vez, e graças àqueles bigodes de rolha queimada, reconhecia Sônia por inteiro. De fato, naquela noite, Sônia estava alegre, animada e bonita, como Nikolai nunca tinha visto.
“Então é assim que ela é, mas como sou tolo!”, pensou ele, enquanto fitava os olhos brilhantes de Sônia e o seu sorriso feliz, entusiasmado, que, embaixo do bigode, formava covinhas nas faces, um sorriso que Nikolai nunca tinha visto.
— Não tenho medo de nada — disse Sônia. — Pode ser agora? — Levantou-se. Disseram para Sônia onde ficava o celeiro, explicaram que devia ficar quieta e escutar com atenção e lhe deram uma peliça. Cobriu a cabeça com a peliça e lançou um olhar para Nikolai.
“Que encanto, essa menina!”, ele pensou. “Onde andei com a cabeça, esse tempo todo?”
Sônia saiu para o corredor a fim de seguir até o celeiro. Nikolai foi depressa para a varanda da frente, dizendo que estava com calor. De fato, estava abafado dentro de casa, por causa da aglomeração de pessoas.
Lá fora, havia o mesmo frio imóvel, a mesma lua, só que ainda mais luminosa. O brilho era tão forte e eram tantas as estrelas na neve que nem se tinha vontade de olhar para o céu, e as estrelas de verdade passavam despercebidas. No céu, estava tudo negro e sem graça, na terra, havia alegria.
“Como sou tolo, mas que tolo! O que fiquei esperando até agora?”, pensou Nikolai e, depois de descer correndo da varanda, contornou o canto da casa pelo atalho que levava para a varanda dos fundos. Sabia que Sônia ia passar por ali. Na metade do caminho, havia toras de lenha empilhadas, com neve por cima, e aquele monte de lenha projetava uma sombra; para além das toras, e ao lado delas, as sombras das velhas tílias desfolhadas caíam e se entrelaçavam sobre a neve e a vereda. A vereda levava ao celeiro. As paredes de troncos do celeiro e o telhado, coberto de neve, como que esculpidos numa espécie de pedra preciosa, reluziam à luz do luar. No jardim, uma árvore estalou e, de novo, tudo ficou em completo silêncio. Parecia que o peito respirava não o ar, mas uma alegria e uma força eternamente jovens.
Soaram passos na escadinha da varanda dos fundos, veio o rangido mais forte do último degrau, onde a neve se acumulara, e a voz de uma velha criada falou:
— Reto, sempre reto, por essa vereda aí, patroazinha. Mas não olhe para trás!
— Não tenho medo — respondeu a voz de Sônia e, pela vereda, na direção de onde vinha Nikolai, os pezinhos de Sônia, nos sapatos delicadinhos, rangiam, assoviavam.
Sônia caminhava, toda enrolada na peliça. Já estava a dois passos de Nikolai quando o viu; ela o viu também não da forma como o conhecia e que sempre temia um pouquinho. Nikolai estava numa roupa de mulher, de cabelos desgrenhados e com um sorriso feliz e novo para Sônia. Ela correu depressa ao encontro dele.
“Ela está completamente diferente e ainda é a mesma”, pensou Nikolai, olhando para o rosto de Sônia, todo iluminado pelo luar. Ele enfiou as mãos debaixo da peliça que recobria a cabeça de Sônia, abraçou-a, apertou-a contra si e beijou-a nos lábios, rematados por um bigode e com cheiro de rolha queimada. Sônia beijou-o bem nos lábios e, estendendo as mãos pequenas, segurou-o pelos dois lados do rosto.
“Sônia!...” “Nicolas!...” Foi tudo o que os dois disseram. Correram para o celeiro e de lá voltaram para a casa, cada um pela sua varanda.
XII
Quando todos partiram da casa de Pelagueia Danílovna, Natacha, que sempre notava tudo, organizou de tal modo a distribuição dos passageiros que Luísa Ivánovna e ela ficaram num trenó com Dimmler, enquanto Sônia e Nikolai foram para o trenó com as criadas.
Nikolai já não ultrapassava os outros trenós, fez o caminho de volta em velocidade regular e, olhando toda hora para Sônia, sob aquele luar estranho, procurava, por trás do bigode e das sobrancelhas, naquela luz que tudo transformava, a sua Sônia de antes e a de agora, de quem ele resolvera nunca mais se separar. Nikolai olhava com atenção e, quando reconhecia nela a mesma de antes e uma outra, e se lembrava daquele cheiro de rolha queimada, misturado com a sensação do beijo, inspirava fundo e enchia o peito com o ar gelado e, olhando para a terra que fugia e para o céu que brilhava, sentia-se de novo num reino encantado.
— Sônia, você está bem? — perguntava ele, de vez em quando.
— Sim — respondia Sônia. — E você?
No meio do caminho, Nikolai passou as rédeas para o cocheiro e, por um momento, correu para o trenó de Natacha e ficou de pé no estribo.
— Natacha — disse num sussurro, em francês. — Sabe, tomei uma decisão sobre a Sônia.
— Falou com ela? — perguntou Natacha, de repente radiante de alegria.
— Ah, mas como você está estranha com esse bigode e essas sobrancelhas, Natacha! Está contente?
— Estou tão contente, mas tão contente! Eu já estava ficando zangada com você. Eu não dizia nada, mas você estava agindo mal com ela. Sônia tem um coração tão bom, Nicolas, como estou contente! Às vezes sou muito má, mas eu tinha vergonha de ser feliz sozinha, sem a Sônia — prosseguiu Natacha. — Agora estou muito contente. Pronto, agora vá correndo para ela.
— Não, espere um pouco, ah, como você está engraçada! — disse Nikolai, que não parava de observá-la e encontrava na irmã algo novo, extraordinário e de um frescor cativante, que ele nunca tinha visto. — Natacha, é uma coisa mágica. Hein?
— É, sim — respondeu ela. — Você agiu muito bem.
“Se eu antes tivesse visto a Sônia como vejo agora”, pensou Nikolai, “há muito tempo eu teria perguntado o que fazer, faria tudo o que ela ordenasse e tudo estaria bem.”
— Então você está mesmo contente, e eu fiz bem, não foi?
— Ah, como é bom! Ainda há pouco tempo eu e a mamãe discutimos por causa disso. Mamãe disse que ela anda atrás de você. Como a mamãe pôde falar uma coisa dessas! Quase briguei com a mamãe. Nunca vou deixar ninguém falar ou pensar nada de mau sobre a Sônia, porque tudo nela é ótimo.
— Então, está bem? — disse Nikolai, observando mais uma vez a expressão no rosto da irmã, para ver se aquilo era mesmo verdade e, rangendo as botas, desceu do estribo com um pulo e correu para o seu trenó. O mesmo circassiano feliz e sorridente, de bigodes e de olhos brilhantes, olhando por baixo do chapéu de zibelina, estava ali sentado, e aquele circassiano era Sônia, e aquela Sônia era com certeza a sua futura esposa, feliz e adorada.
Depois de chegar em casa e contar à mãe como haviam passado o tempo na casa dos Meliukóv, as jovens foram para o quarto. Trocaram de roupa e, sem apagar os bigodes, ficaram por muito tempo conversando sobre a sua felicidade. Conversaram sobre como iam viver quando casadas, como os seus maridos seriam amigos e como elas seriam felizes. Na mesinha de cabeceira de Natacha, estavam os espelhos que Duniacha deixara ali, prontos, desde a véspera.
— Mas quando tudo isso vai acontecer? Temo que nunca aconteça... Seria bom demais! — disse Natacha, levantando-se e aproximando-se do espelho.
— Sente-se, Natacha, quem sabe você o vê? — disse Sônia. Natacha acendeu as velas e sentou-se diante do espelho.
— Estou vendo alguém de bigode — disse Natacha, vendo o próprio rosto.
— Não pode rir, patroazinha — disse Duniacha.
Com a ajuda de Sônia e da criada, Natacha encontrou a posição certa do espelho; seu rosto adquiriu uma expressão séria, e ela ficou em silêncio. Por muito tempo, continuou parada, olhando para a fileira de velas que fugia para o fundo do espelho, supondo (com base nos contos que tinha ouvido) que tinha visto ora um caixão, ora ele, o príncipe Andrei, dentro daquele último e vago quadrado, cujas formas se dissolviam. No entanto, por mais que Natacha estivesse disposta a interpretar o mais ínfimo borrão como a figura de um homem ou de um caixão, não via nada. Piscava os olhos muitas vezes e chegava bem perto do espelho.
— Por que as outras veem, e eu não estou vendo nada? — disse. — Puxa, fique aqui você, então, Sônia; hoje você tem de ver — disse. — Só por mim... Hoje estou com tanto medo!
Sônia sentou-se diante do espelho, corrigiu a posição e começou a observar.
— Agora é a Sofia Aleksándrovna que vai ver — disse Duniacha num sussurro. — A senhora ri o tempo todo.
Sônia ouviu aquelas palavras e também ouviu o que Natacha disse, num sussurro:
— Eu sei que ela vai ver; no ano passado já viu.
Durante três minutos, todas ficaram em silêncio. “Tem de ver!”, sussurrou Natacha, e mal havia terminado de falar quando... de repente, Sônia afastou de si o espelho, que estava segurando, e cobriu os olhos com a mão.
— Ah, Natacha! — disse.
— Viu? Viu? O que você viu? — gritou Natacha.
— Eu bem que falei — disse Duniacha, segurando o espelho.
Sônia não tinha visto nada, só queria piscar os olhos e levantar-se, quando ouviu a voz de Natacha que dizia “Tem de ver”... Ela não queria enganar Duniacha, nem Natacha, mas era incômodo continuar parada diante do espelho. Nem ela mesma sabia como e por que razão havia soltado aquele grito, na hora em que cobriu os olhos com a mão.
— Você o viu? — perguntou Natacha, segurando a mão de Sônia.
— Sim. Espere... eu... o vi — disse Sônia, sem querer, ainda sem saber a quem Natacha designava com o pronome o: ele ou ele, Nikolai ou Andrei?
“Mas por que não posso dizer que vi? Afinal, outras já viram! E quem vai poder me desmentir e saber se eu vi ou não vi?”, passou pela cabeça de Sônia.
— Sim, eu o vi — disse ela.
— Como foi? Como estava? De pé ou deitado?
— Não, eu vi... Numa hora, eu não estava vendo nada, de repente, olho e vejo que ele está deitado.
— Andrei, deitado? Está doente? — perguntou Natacha, fitando a amiga com olhos paralisados de medo.
— Não, ao contrário, ao contrário... tinha o rosto alegre, e virou-se para mim... — E, na hora em que ela disse isso, pareceu à própria Sônia que tinha visto de fato o que estava contando.
— Puxa, mas e depois, Sônia?
— Aí eu enxerguei alguma coisa azul e vermelha...
— Sônia! Quando ele vai voltar? Quando é que eu vou vê-lo? Meu Deus! Como eu temo por ele e por mim, e sinto medo de tudo... — falou Natacha e, sem responder às palavras de consolo de Sônia, deitou-se na cama e, muito tempo depois de terem apagado as velas, continuava deitada de olhos abertos, imóvel sobre a cama, e olhava para o luar gelado através do vidro da janela, coberto de gelo.
XIII
Logo depois do Natal, Nikolai falou à mãe sobre o seu amor por Sônia e sobre a sua firme resolução de casar-se com ela. A condessa, que havia muito percebia o que se passava entre Sônia e Nikolai e já esperava aquela notícia, escutou em silêncio as palavras do filho e disse que podia se casar com quem quisesse; mas nem ela nem o pai lhe dariam a bênção para tal casamento. Pela primeira vez, Nikolai sentiu que a mãe estava desgostosa com ele e que, apesar de todo o seu amor por Nikolai, ela não ia ceder. A condessa, com ar frio e sem olhar para o filho, mandou chamar o marido; e, quando ele chegou, a condessa quis comunicar-lhe do que se tratava, de modo frio e breve, na presença de Nikolai, mas não se conteve: começou a chorar com lágrimas de desgosto e saiu do quarto. O velho conde pôs-se a repreender o filho num tom hesitante e pediu que desistisse. Nikolai respondeu que não podia faltar à palavra dada, e o pai, depois de dar um suspiro, obviamente constrangido, logo interrompeu a conversa e foi ao encontro da condessa. Em todos os confrontos com o filho, o conde estava sempre consciente da sua culpa em relação a ele, por causa da desordem das finanças da família, e por isso não podia se zangar com Nikolai por não querer se casar com uma noiva rica e por preferir Sônia, que nada possuía — naquela situação, o conde se lembrava de maneira ainda mais viva que, se as finanças não estivessem em desordem, seria impossível Nikolai querer uma esposa melhor do que Sônia; e que o culpado pela desordem das finanças era só ele mesmo, o seu Mítienka e os seus hábitos irremediáveis.
O pai e a mãe não falaram mais sobre o assunto com o filho; porém, alguns dias depois, a condessa chamou Sônia ao seu quarto e, com uma crueldade que nenhuma das duas esperava, a condessa recriminou a sobrinha por seduzir o seu filho e acusou-a de ingratidão. Sônia, em silêncio, de olhos baixos, escutava as palavras cruéis da condessa e não entendia o que estavam exigindo dela. Sônia estava pronta a sacrificar tudo pelos seus benfeitores. A ideia do autossacrifício era a preferida do seu pensamento; porém, naquele caso, Sônia não conseguia entender por quem e por que ela devia se sacrificar. Não podia deixar de amar a condessa e toda a família Rostóv, mas também não podia deixar de amar Nikolai e não podia ignorar que a felicidade dele dependia daquele amor. Sônia ficou calada e triste e não respondeu. Pareceu a Nikolai que era impossível suportar aquela situação e foi ter uma explicação com a mãe. Nikolai ora suplicava à mãe que perdoasse a ele e à Sônia e concordasse com o casamento, ora a ameaçava dizendo que, se ficassem perseguindo Sônia, casaria com ela em segredo imediatamente.
A condessa, com uma frieza que o filho nunca tinha visto, respondeu que ele era maior de idade, que o príncipe Andrei ia se casar sem o consentimento do pai e que ele podia fazer o que quisesse, mas que ela jamais iria reconhecer aquela “intrigante” como sua filha.
Com a palavra “intrigante”, Nikolai explodiu, sua voz se elevou, disse para a mãe que nunca tinha imaginado que ela fosse forçá-lo a vender os seus sentimentos e que, se era assim, aquela era a última vez que lhe falava... Mas não teve tempo de dizer as últimas palavras resolutas que, pela expressão do seu rosto, a mãe já esperava com horror e que talvez fossem permanecer para sempre como uma recordação cruel entre ambos. Nikolai não conseguiu terminar de falar tais palavras porque Natacha, com o rosto pálido e sério, entrou pela porta, junto à qual estava escutando.
— Nikólienka, você está falando bobagens, cale-se, cale-se! Estou lhe dizendo, fique quieto!... — quase gritou Natacha, para abafar a voz do irmão.
— Mamãe, minha querida, não é nada disso... minha querida, pobrezinha — voltou-se para a mãe, que, sentindo-se à beira de uma ruptura, olhava para o filho com horror, mas, por causa da obstinação e do fervor da luta, não queria e não podia ceder.
— Nikólienka, deixe que explico a você, agora vá embora... Escute, mãezinha querida — disse para a mãe.
Suas palavras eram sem sentido; mas alcançaram o resultado que Natacha pretendia.
A condessa começou a chorar e a soluçar, afundou o rosto no peito da filha, enquanto isso Nikolai levantou-se e saiu do quarto com a cabeça entre as mãos.
Natacha empenhou-se no processo de reconciliação e conseguiu que Nikolai recebesse da mãe a promessa de que Sônia não seria perseguida, ao passo que ele mesmo prometia que não tomaria nenhuma iniciativa às escondidas dos pais.
Com a firme intenção de deixar o serviço militar depois de acertar sua situação no regimento, e de voltar para casa a fim de se casar com Sônia, Nikolai, tristonho e sério, em desacordo com os pais, porém, assim lhe parecia, terrivelmente apaixonado, partiu para o regimento no início de janeiro.
Depois da partida de Nikolai, a casa dos Rostóv ficou mais triste do que nunca. A condessa ficou doente em razão daqueles transtornos emocionais.
Sônia estava abatida por causa da separação de Nikolai e mais ainda por causa do tom hostil que a condessa não conseguia deixar de usar ao falar com ela. O conde, mais do que nunca, andava ocupado com a má situação das finanças, que exigiam medidas enérgicas. Era indispensável vender a casa de Moscou e a propriedade nos arredores da cidade, mas para efetuar a venda era preciso viajar a Moscou. No entanto, a saúde da condessa o obrigava a adiar a viagem dia após dia.
Natacha, que nos primeiros tempos suportara com facilidade e até com alegria a separação do noivo, agora ficava, a cada dia, mais agitada e impaciente. O pensamento de que a melhor época da sua vida, que ela deveria dedicar ao amor pelo noivo, era desperdiçada, sem proveito para ninguém, atormentava Natacha com tenacidade. As cartas dele, na maior parte das vezes, a irritavam. Era ofensivo para Natacha pensar que, enquanto ela vivia só dos pensamentos sobre o noivo, o príncipe Andrei vivia a vida real, conhecia lugares novos, pessoas novas, interessantes para ele. Quanto mais interessantes eram as cartas do príncipe Andrei, mais desgostosa Natacha ficava. Já as cartas dela para ele não só não traziam consolo a Natacha como lhe pareciam uma obrigação maçante e falsa. Natacha não conseguia escrever porque não conseguia conceber a possibilidade de exprimir com veracidade numa carta sequer a milésima parte do que estava acostumada a exprimir com a voz, o sorriso e o olhar. Escrevia para ele cartas clássicas, monótonas, secas, a que ela mesma não atribuía nenhuma importância e em cujos rascunhos a condessa corrigia os seus erros ortográficos.
A saúde da condessa continuava sem apresentar melhoras; mas já não era mais possível adiar a viagem a Moscou. Era preciso preparar o enxoval, era preciso vender a casa, e além do mais o príncipe Andrei era aguardado em Moscou, onde o príncipe Nikolai Andreitch estava passando aquele inverno, e Natacha estava convencida de que ele chegaria logo.
A condessa ficou no campo, mas o conde partiu para Moscou no fim de janeiro, levando Sônia e Natacha.
1 Francês: “de maus modos”.
2 Francês: “Minha cara mamãe”
3 Francês: “seu filho obediente”.
4 Cão russo semelhante ao galgo, criado para caçar lobos. Tem menos faro do que o galgo, porém tem mais velocidade e mais força. É preciso que lhe apontem a caça.
5 Trecho do hino composto por Pável Ivánovitch Kutúzov em homenagem ao general Bagration, citado no tomo II, primeira parte, capítulo III.
6 Entre os senhores de terras, era costume ter, entre os servos, artistas, músicos e até um bufão. O costume perdurou mesmo após o fim da servidão, em 1861. No caso, o bufão tem nome de mulher.
7 Os pedidos de Natacha se relacionam a costumes da época do Natal para ler a sorte.
8 Jaqueta russa de mulher, com babados ou forrada de pele.
9 Referência à ópera Les Deux Journées ou Le Porteur d’eau [Os dois dias ou Os Aguadeiros] (1800), de Luigi Cherubini (1760-1842).
10 Referência a John Field (1782-1837), compositor irlandês que morou em São Petersburgo entre 1804 e 1831.
11 Tradição muito comum na Rússia até hoje: a cera de uma vela é derretida sobre a água de uma bacia, e as formas projetam sombras, que são interpretadas.
I
Depois do noivado do príncipe Andrei com Natacha, Pierre, de repente, sem nenhuma causa visível, sentiu que era impossível continuar a viver como antes. Por mais que estivesse convencido das verdades reveladas a ele pelo seu benfeitor, por mais alegres que fossem para ele os primeiros momentos de entusiasmo com o trabalho interior de autoaprimoramento, a que se dedicava com tanto ardor — depois do noivado do príncipe Andrei com Natacha e depois da morte de Ióssif Alekséievitch, cuja notícia Pierre recebera quase ao mesmo tempo, todo o encanto daquela vida se perdeu de repente para ele. Só restou o esqueleto de uma vida: sua casa com a esposa esplendorosa, que agora gozava dos favores de uma personalidade importante, relações em toda a Petersburgo e o serviço público, com suas formalidades maçantes. E de repente aquela vida anterior se apresentou a Pierre com uma sordidez inesperada. Ele parou de escrever o diário, evitava a sociedade dos irmãos, voltou a frequentar o clube, voltou a beber muito, voltou a se aproximar dos grupos de solteiros e passou a viver de tal modo que a condessa Elena Vassílievna julgou necessário repreendê-lo com severidade. Pierre sentiu que ela estava certa e, a fim de não comprometer a esposa, partiu para Moscou.
Em Moscou, assim que entrou na sua casa imensa, com as princesas murchas e secas, com a enorme criadagem, assim que ele viu — ao passar pela cidade — a capela de Nossa Senhora da Ibéria com as incontáveis velas acesas diante dos adornos dourados dos ícones, e viu a praça do Krêmlin com a neve sem marcas de veículos, e os cocheiros, as choupanas da Sívtsev Vrajók,1 viu os velhos moscovitas que nada desejavam e que não tinham pressa de ir a parte alguma, vivendo os dias que lhes restavam, e assim que viu as velhas damas moscovitas, os bailes moscovitas e o Clube Inglês moscovita, Pierre sentiu-se em casa, num refúgio sossegado. Em Moscou, Pierre sentiu-se tranquilo, aquecido, familiarizado e sujo, como se vestisse um roupão velho.
Toda a sociedade moscovita, desde as velhas até as crianças, recebeu Pierre como um hóspede esperado havia muito tempo, cujo lugar sempre estivera pronto e desocupado. Para a sociedade moscovita, Pierre era o excêntrico mais gentil, mais bondoso, mais inteligente, alegre e generoso, um nobre distraído, cordial, ao velho estilo russo. Seu porta-moedas estava sempre vazio, pois vivia aberto para todos.
Espetáculos beneficentes, pinturas ruins e estátuas, sociedades filantrópicas, ciganos, escolas, almoços por subscrição, farras, maçons, igrejas, livros — ninguém nem nada recebia uma negativa e, se não fossem dois amigos que lhe tomavam muito dinheiro e o mantinham sob tutela, Pierre teria dado tudo o que tinha. No clube, não havia jantar nem noitada sem a sua presença. Assim que se encostava no seu lugar do sofá, depois de duas garrafas de Margaux, Pierre era logo rodeado e começavam o falatório, as discussões, as piadas. Onde surgia uma desavença, Pierre — só com o seu sorriso bondoso e com um gracejo oportuno — reconciliava. Os salões das lojas maçônicas eram maçantes e sem graça se ele não estava presente.
Quando, após um jantar de solteiros, Pierre, com um sorriso bondoso e doce, cedendo aos pedidos dos companheiros alegres, levantava-se para sair com eles, irrompiam gritos festivos de vitória entre os jovens. Nos bailes, se faltasse um par, ele dançava. As jovens damas e as senhoras gostavam de Pierre porque, sem cortejar nenhuma delas, era igualmente amoroso com todas, sobretudo após o jantar. “Il est charmant, il n’a pas de sexe”,2 diziam a seu respeito.
Pierre era um daqueles camareiros da corte aposentados, dos quais havia centenas em Moscou, que viviam os seus últimos anos com toda a simpatia do mundo.
Como Pierre teria ficado horrorizado se, sete anos antes, quando havia acabado de chegar do exterior, alguém lhe dissesse que não era preciso procurar nem imaginar nada, que o seu caminho já estava traçado havia muito tempo, determinado eternamente, e que, por mais que ele se agitasse, acabaria sendo o mesmo que tinham sido todos os outros que estiveram na sua situação. Pierre não podia acreditar nisso. Afinal, não desejara ele, com toda a alma, ora a implantação da república na Rússia, ora ser ele mesmo Napoleão, ou um filósofo, ou um estrategista que venceria Napoleão? Não achara ele possível e não desejara com tanto fervor regenerar a espécie humana pervertida e alcançar, para si, o grau mais elevado de perfeição? Não havia construído escolas, hospitais e libertado os camponeses da servidão?
Mas, em vez de tudo isso, ali estava ele, o marido rico de uma esposa infiel, o camareiro da corte aposentado, o amante de comer, de beber e de criticar de leve o governo, depois de se pôr à vontade e desabotoar o casaco, ali estava o membro do Clube Inglês de Moscou, estimado por todos os demais membros da sociedade moscovita. Durante muito tempo, Pierre não conseguiu se reconciliar com a ideia de que ele era aquele camareiro da corte aposentado moscovita, um tipo que, sete anos antes, ele desprezava tão profundamente.
Às vezes, Pierre se consolava com o pensamento de que levava aquela vida apenas provisoriamente; mas depois o apavorava um outro pensamento, de que muitas pessoas já haviam entrado naquela vida e naquele clube também provisoriamente, como ele, com todos os dentes e com todos os fios de cabelo, e tinham saído de lá sem dente e sem cabelo nenhum.
Nos momentos de orgulho, quando Pierre pensava na sua situação, parecia-lhe que era uma pessoa totalmente diversa, distinta daqueles camareiros da corte aposentados que ele antes desprezava, que eram vulgares e tolos, satisfeitos e tranquilos com a sua situação, “enquanto eu, ainda agora, continuo insatisfeito, continuo a querer fazer alguma coisa para a humanidade”, dizia consigo nos momentos de orgulho. “Mas talvez todos os meus companheiros, exatamente como eu, tenham lutado, procurado para si um caminho novo na vida e, também como eu, por força das circunstâncias, da sociedade, da natureza, daquela força cega contra a qual o ser humano nada pode fazer, acabaram sendo levados para a mesma situação em que estou”, dizia consigo nos momentos de modéstia e, depois de viver algum tempo em Moscou, Pierre já não desprezava, mas começava a apreciar e a respeitar os seus companheiros de destino, e a ter pena deles, como tinha de si mesmo.
Pierre não tinha mais os minutos de desespero, de melancolia e de nojo da vida; mas a doença, que antes se exprimia em ataques agudos, voltara-se para dentro e não o largava nem por um instante. “Para quê? Por quê? O que se passa no mundo?”, perguntava a si mesmo com perplexidade, várias vezes por dia, e sem querer começava a refletir sobre o sentido do fenômeno da vida; porém, sabendo por experiência que não havia respostas para tais perguntas, Pierre logo se esforçava para afastar-se delas, agarrava-se a um livro, ou ia depressa para o clube, ou para a casa de Apollon Nikoláievitch, tagarelar sobre os mexericos da cidade.
“Elena Vassílievna, que nunca amou nada senão o próprio corpo e que é uma das mulheres mais tolas do mundo”, pensava Pierre, “parece aos olhos das pessoas o cume da inteligência e da argúcia, e todos se curvam diante dela. Napoleão Bonaparte era desprezado por todos enquanto era grande, e agora, quando se tornou um comediante lamentável, o imperador Francisco tenta lhe oferecer a filha como esposa ilegal.3 Os espanhóis erguem preces de agradecimento a Deus, por meio do clero católico, por terem vencido os franceses em 14 de junho, mas os franceses também erguem preces de agradecimento a Deus, por meio do clero católico, por terem vencido os espanhóis em 14 de junho. Os meus irmãos maçons juram pelo próprio sangue que estão prontos a sacrificar-se pelo próximo, mas não pagam nem um rublo nas coletas para os pobres e intrigam a Loja Astreia contra a Loja dos Buscadores do Maná e fazem todas as manobras para conseguir o verdadeiro tapete escocês e as atas,4 cujo sentido é ignorado até por quem as escreveu e das quais ninguém tem a menor necessidade. Todos nós professamos a doutrina cristã do perdão às ofensas e do amor ao próximo — doutrina pela qual nós erguemos em Moscou quarenta vezes quarenta igrejas, no entanto ontem mesmo açoitamos um desertor até a morte, e um servidor dessa mesma doutrina de amor e de perdão, o sacerdote, ofereceu uma cruz para o soldado beijar antes da execução.” Assim pensava Pierre, e aquela mentira geral, reconhecida por todos, sempre o deixava espantado, como se fosse algo novo, por mais que já estivesse habituado. “Compreendo essa mentira e essa confusão”, pensou Pierre, “mas como posso explicar a eles tudo o que compreendo? Eu sentia, e sempre achei que no fundo da alma eles também compreendiam o mesmo que eu, apenas se esforçavam para não ver. Quem sabe as coisas tenham de ser assim mesmo? Mas e eu, o que vou fazer?”, pensava Pierre. Gozava de uma faculdade funesta, que muita gente possui, sobretudo os russos — a faculdade de ver e de acreditar na possibilidade do bem e da verdade, mas de ver também o mal e a mentira da vida com tamanha nitidez que faltam forças para tomar parte na vida com seriedade. Todo o campo do trabalho, aos olhos de Pierre, fundia-se com o mal e com o engano. Não importa o que tentasse ser, não importa a que ramo se dedicasse — o mal e a mentira o repeliam e lhe barravam todos os caminhos de atividade. No entanto era preciso viver, era preciso ocupar-se. Seria horrível demais ficar sob o jugo daquelas insolúveis questões da vida, e Pierre, só para esquecê-las, entregava-se aos primeiros entusiasmos que aparecessem. Frequentava todas as companhias possíveis, bebia muito, comprava pinturas, fazia obras e, acima de tudo, lia.
Lia e lia, tudo o que caísse na sua mão, e lia de tal modo que, ao chegar em casa, quando o lacaio ainda estava tirando o casaco dos seus ombros, Pierre já pegava um livro e começava a ler — e da leitura passava ao sono; do sono, ao falatório nos salões e no clube; do falatório, à farra e às mulheres; da farra, de novo ao falatório, à leitura e ao vinho. Beber vinho tornou-se, para ele, e cada vez mais, uma exigência física e também moral. Apesar de os médicos lhe dizerem que, com a sua corpulência, o vinho representava um perigo, Pierre bebia muito. Só se sentia inteiramente bem quando, sem que ele mesmo notasse, depois de despejar na boca vários copos de vinho, experimentava um calor agradável no corpo, uma ternura por todas as pessoas próximas e uma presteza do intelecto para apoiar de forma superficial toda e qualquer ideia, sem aprofundar-se na sua essência. Só depois de beber uma ou duas garrafas de vinho, Pierre se dava conta vagamente de que aquele terrível e confuso nó da vida, que antes o horrorizava, não era tão terrível como lhe parecia. Com um rumor na cabeça, tagarelando, escutando as conversas, ou lendo depois do almoço e do jantar, Pierre via o tempo todo aquele nó, em algum de seus aspectos. No entanto, só sob o efeito do vinho, ele dizia consigo: “Não há de ser nada. Vou desfazer esse nó... Já tenho uma solução pronta. Só que agora me falta tempo... Depois eu penso nisso tudo!”. Mas aquele “depois” não chegava nunca.
De manhã, em jejum, todas aquelas questões se apresentavam tão insolúveis e terríveis como antes, e Pierre, afobado, apanhava um livro e se alegrava quando alguém vinha visitá-lo.
Às vezes, Pierre se lembrava de uma história que tinha ouvido sobre soldados que, na guerra, sob tiros, dentro das trincheiras, quando não tinham nada para fazer, procuravam ferrenhamente uma ocupação, a fim de suportar melhor o perigo. E para Pierre todas as pessoas pareciam soldados que fugiam da vida: uns pela ambição, outros pelas cartas, uns pela redação de leis, outros pelas mulheres, uns pelas brincadeiras, outros pelos cavalos, uns pela política, outros pela caça, uns pelo vinho, outros pelos assuntos de Estado. “Não existe nada insignificante, nem nada importante, é tudo a mesma coisa; a questão é fugir dela, de um jeito ou de outro!”, pensou Pierre. “A questão é não ver a ela, essa terrível ela!”
II
No início do inverno, o príncipe Nikolai Andreitch Bolkónski e a filha vieram para Moscou. Pelo seu passado, pela sua inteligência e originalidade, em especial por causa do enfraquecimento, que se verificava naquela ocasião, do entusiasmo pelo reinado do imperador Alexandre I, e também por causa do antifrancesismo e da tendência patriótica que então imperavam em Moscou, o príncipe Nikolai Andreitch logo se tornou objeto de um respeito especial dos moscovitas e o centro da oposição moscovita ao governo.
O príncipe tinha envelhecido muito naquele ano. Manifestavam-se nele flagrantes sinais de senilidade: o sono inesperado, o esquecimento dos fatos mais recentes e a lembrança dos mais antigos, e também a vaidade infantil com que aceitava o papel de líder da oposição moscovita. Apesar disso, quando o velho, sobretudo à noite, saía de seus aposentos para tomar chá, vestido em sua peliça antiquada e com uma peruca polvilhada de pó de arroz, e instigado por alguém desatava suas histórias desconexas sobre o passado, ou suas opiniões ainda mais desconexas e incisivas sobre o presente, ele despertava em todas as visitas o mesmo sentimento de respeito reverente. Para os visitantes, toda aquela casa antiga, com seus imensos espelhos sobre aparadores, a mobília de antes da revolução, os lacaios polvilhados de pó de arroz, e o próprio velho, inteligente e de maneiras bruscas, uma figura do século anterior, com a filha dócil e uma francesinha bonita que o tratavam com reverência, pareciam um espetáculo majestoso e agradável. Porém os visitantes não pensavam que, além daquelas duas ou três horas em que viam o dono da casa, restavam ainda mais vinte e duas horas no dia, tempo em que transcorria a misteriosa vida íntima da casa.
Nos últimos tempos, em Moscou, aquela vida íntima se tornara muito penosa para a princesa Mária. Em Moscou, ela se via privada de suas melhores alegrias — as conversas com o povo de Deus e a solidão, que em Montes Calvos a revigoravam —, e não tinha nenhuma das vantagens e das alegrias da vida na capital. Não frequentava a sociedade; todos sabiam que o pai não a deixava sair sem a sua presença, e ele mesmo, por sua saúde precária, não podia sair, e assim a princesa Mária já não era convidada para jantares e festas. Ela perdera toda a esperança de um casamento. Via a frieza e a irritação com que o príncipe Nikolai Andreitch recebia e mandava embora os rapazes que poderiam ser seus noivos e que às vezes apareciam em sua casa. A princesa Mária não tinha amigos; na sua estada em Moscou, ela se decepcionara com as duas amigas mais próximas: Mlle Bourienne, com quem antes não conseguia ser inteiramente sincera, agora se tornara desagradável para ela, e a princesa Mária, por várias razões, passou a evitá-la; Julie, que estava em Moscou e com quem a princesa Mária trocara cartas durante cinco anos seguidos, lhe pareceu uma completa estranha quando voltou a encontrar-se com ela pessoalmente. Nessa ocasião, por causa da morte dos irmãos, Julie se tornara uma das jovens solteiras mais ricas de Moscou e estava no auge dos prazeres mundanos. Vivia cercada de jovens que, de repente, assim pensava Julie, haviam passado a apreciar os seus méritos. Julie se achava naquele estágio das damas de sociedade já não tão jovens que sentem estar diante da sua última chance de casar e sentem que o seu destino tem de se resolver agora ou nunca. Às quintas-feiras, a princesa Mária, com um sorriso triste, lembrava que agora não tinha mais para quem escrever, pois Julie, a Julie cuja presença não lhe dava a menor alegria, estava ali mesmo e encontrava-se com ela todas as semanas. A exemplo da história do antigo emigrado que se recusou a casar com a dama com quem passara suas noites por vários anos, porque, uma vez casado, ele não saberia onde mais passar suas noites, a princesa Mária lamentava o fato de Julie estar ali agora e de ela não ter mais para quem escrever. Em Moscou, a princesa Mária não tinha com quem conversar, não tinha ninguém a quem confiar os seus desgostos, e muitos desgostos novos se acrescentaram naquele tempo. O prazo para o regresso do príncipe Andrei e para o seu casamento se aproximava do fim, porém a incumbência da princesa Mária de preparar o pai para aquilo não só não fora cumprida como, ao contrário, a causa parecia totalmente perdida, e a simples lembrança da condessa Rostova deixava fora de si o velho príncipe, que sem isso já passava a maior parte do tempo de mau humor. Um novo desgosto que se acrescentara nos últimos tempos para a princesa Mária foram as aulas que dava para o sobrinho de seis anos. Em suas relações com Nikóluchka, ela reconhecia em si, com horror, um traço da irritabilidade do pai. Por mais que dissesse a si mesma que não devia se irritar quando ensinava o sobrinho, quase toda vez que ela sentava diante da cartilha de francês, com a ponteira na mão, era tão grande a sua vontade de transferir, da maneira mais rápida e mais fácil possível, o seu conhecimento para o sobrinho, o qual já vivia com medo de que a tia a qualquer momento fosse ficar irritada, que a princesa Mária, diante da menor desatenção do menino, se sobressaltava, se afobava, se irritava, erguia a voz e às vezes o puxava pelo braço e o punha de castigo num canto. Depois de pôr o sobrinho de castigo, ela mesma começava a chorar por causa da sua natureza raivosa e má, e Nikóluchka, imitando os soluços da tia, saía do castigo sem permissão, aproximava-se dela, abria as mãos molhadas com que a princesa Mária cobria o rosto e a consolava. No entanto, mais do que tudo, o que afligia a princesa Mária era a irritabilidade do pai, sempre dirigida contra a filha, e que, ultimamente, se transformara em franca crueldade. Se ele a obrigasse a ficar de joelhos noites inteiras, se batesse nela, se a obrigasse a carregar lenha e água, não passaria pela cabeça da princesa Mária que a sua situação era difícil; mas aquele torturador amoroso — ainda mais cruel porque ele a amava e por isso torturava a si e a ela — sabia como deliberadamente não só ofender e humilhar, como também provar para a filha que ela era sempre a culpada de tudo. Nos últimos tempos, surgira no pai um traço novo, que mais do que tudo afligia a princesa Mária — era a sua maior proximidade com Mlle Bourienne. A ideia jocosa que lhe viera no primeiro instante em que soube da intenção do filho, a ideia de que, se Andrei ia se casar, também ele se casaria com Mlle Bourienne, havia lhe agradado, era evidente, e nos últimos tempos, com afinco e (assim parecia à princesa Mária) só para ofendê-la, demonstrava um carinho especial por Mlle Bourienne e mostrava a sua insatisfação com a filha por meio de suas demonstrações de amor por Bourienne.
Certa vez, em Moscou, na presença da princesa Mária (pareceu-lhe que o pai fizera aquilo de propósito), o velho príncipe beijou a mão de Mlle Bourienne e, puxando-a para si, abraçou-a carinhosamente. A princesa Mária ruborizou-se e saiu correndo da sala. Alguns minutos depois, Mlle Bourienne entrou no quarto da princesa Mária sorrindo, alegre, e contou algo com a sua voz agradável. A princesa Mária enxugou as lágrimas depressa, aproximou-se de Bourienne a passos resolutos e, obviamente sem que ela mesma percebesse o que estava fazendo, pôs-se a gritar com a francesinha, com afobação raivosa e frêmitos na voz:
— É asqueroso, torpe, desumano tirar proveito da fraqueza... — Não terminou a frase. — Saia do meu quarto — gritou e desatou a chorar.
No dia seguinte, o príncipe não disse nenhuma palavra para a filha; mas a princesa notou que, durante o jantar, ele mandou que servissem primeiro Mlle Bourienne. No fim do jantar, quando o copeiro, segundo um costume antigo, começou a servir o café pela princesa Mária, o príncipe de repente ficou furioso, jogou sua muleta em Filipp e imediatamente deu ordens para que ele fosse mandado para o Exército...
— Não obedece... Falei duas vezes!... Não obedece! Ela tem a primazia nesta casa; ela é a minha melhor amiga — gritou o príncipe. — E se você se permitir de novo — começou a berrar com raiva, dirigindo-se pela primeira vez à princesa Mária —, como ontem se atreveu... a descontrolar-se diante dela, eu vou lhe mostrar quem é que manda nesta casa. Fora daqui! Não quero ver você; peça perdão a ela!
A princesa Mária pediu perdão a Amali Evguênievna, e também pediu perdão ao pai, por si mesma e pelo copeiro Filipp, que havia pedido a sua intercessão.
Em tais momentos, na alma da princesa Mária, formava-se um sentimento semelhante ao orgulho do sacrifício. E de repente, em tais momentos, diante da princesa Mária, aquele pai que ela havia censurado procurava os óculos, tateando perto deles, sem vê-los, ou esquecia o que havia acabado de acontecer, ou dava um passo nervoso com as pernas enfraquecidas e olhava para trás, com medo de que alguém tivesse visto sua fraqueza, ou, o que era o pior de tudo, durante o jantar, quando não tinha visitas para animá-lo, ele cochilava de repente, largava o guardanapo e inclinava a cabeça trêmula em cima do prato. “Ele está velho e fraco, e eu tenho a coragem de censurá-lo!”, pensava ela, com repulsa de si mesma, em tais momentos.
III
Em 1811, vivia em Moscou um médico francês que rapidamente entrou na moda, esbelto, de estatura elevada, amável, como são os franceses, e, como todos diziam em Moscou, um médico de talento extraordinário: Métvier. Era recebido nas residências da mais alta sociedade não como médico, mas como um igual.
O príncipe Nikolai Andreitch, que zombava da medicina, ultimamente, por recomendação de Mlle Bourienne, chamava aquele médico à sua casa e se habituara a ele. Métvier ia ver o príncipe mais ou menos duas vezes por semana.
No dia de São Nicolau, 6 de dezembro, em que se comemorava o aniversário do príncipe, toda a Moscou foi até a porta da sua casa, mas ele deu ordem para não receber ninguém; só convidou para almoçar uns poucos, cuja lista entregou à princesa Mária.
Métvier, que de manhã fora lhe dar os parabéns, na condição de médico, achou adequado de forcer la consigne,5 como disse para a princesa Mária, e entrou para ver o príncipe. Calhou de, naquela manhã do seu aniversário, o velho príncipe estar num de seus piores estados de humor. Andou pela casa a manhã inteira com ar cansado, repreendendo a todos e fingindo que não entendia o que lhe diziam. A princesa Mária conhecia muito bem aquele estado de ânimo, de uma rabugice cismada e calada, que costumava culminar num acesso de fúria, e passou a manhã inteira como se estivesse diante da mira de um fuzil carregado e engatilhado, à espera de um tiro inevitável. A manhã transcorreu a salvo, até a chegada do médico. Depois que deixou o médico entrar, a princesa Mária sentou-se com um livro na sala, junto à porta, de onde podia ouvir tudo o que se passava dentro do escritório do pai.
De início, ouviu só a voz de Métvier, depois, a voz do pai; depois, as duas vozes começaram a falar ao mesmo tempo, a porta se abriu de supetão e, na soleira, surgiram a figura assustada e bonita de Métvier, com o seu topete preto, e a figura do príncipe, de barrete e roupão, o rosto desfigurado pela fúria e as pupilas dos olhos abaixadas.
— Não está entendendo? — gritava o príncipe. — Mas eu entendo! Espião francês! Lacaio de Bonaparte, espião, para fora da minha casa, fora daqui, estou dizendo! — E bateu a porta.
Métvier, encolhendo os ombros, aproximou-se de Mlle Bourienne, que acudira do quarto vizinho, ao ouvir os gritos.
— O príncipe está muito mal... La bile et le transport au cerveau. Tranquillisez-vous, je repasserai demain6 — disse Métvier e, pondo um dedo sobre os lábios, foi embora depressa.
Atrás da porta, ouviam-se passos em chinelas e gritos: “Espiões, traidores, traidores em toda parte! Nem dentro da minha própria casa eu posso ter um minuto de sossego!”.
Depois da partida de Métvier, o velho príncipe chamou a filha, e toda a força da sua raiva desabou sobre ela. A princesa era a culpada por deixar um espião entrar em casa. Pois ele tinha dito, tinha dito exatamente para ela, que fizesse uma lista e não deixasse entrar os que não estivessem na lista. Por que deixaram entrar aquele canalha? Era ela a causa de tudo. Com ela, não se podia ter nem um minuto de sossego, ele não podia nem morrer em paz, disse.
— Não, minha querida, temos de nos separar, nos separar, a senhora sabe disso, sabe! Já não posso mais — disse, e saiu da sala. E, como se temesse que a filha soubesse encontrar algum consolo, o príncipe voltou-se para ela e, tentando mostrar um ar sereno, acrescentou: — Não pense que estou lhe dizendo isso num momento de irritação, pois estou calmo e pensei bem no assunto; vai ser assim, vamos nos separar, cada um para o seu lado!... — Mas não conseguiu se conter e, com o ânimo exaltado que só existe numa pessoa que ama, o príncipe, ele mesmo sofrendo visivelmente, brandiu os punhos para a filha e gritou:
— Quem dera que algum imbecil quisesse casar com ela! — Bateu a porta com força, chamou Mlle Bourienne e ficou em silêncio dentro do escritório.
Às duas horas chegaram as seis pessoas escolhidas para o almoço. Os convidados — o famoso conde Rostoptchin, o príncipe Lopukhin e o sobrinho dele, o general Tchatróv, antigo camarada de armas do príncipe, e os jovens Pierre e Boris Drubetskói — aguardavam o príncipe na sala de visitas.
De férias e havia poucos dias em Moscou, Boris desejava ser apresentado ao príncipe Nikolai Andreitch e soubera granjear a sua simpatia a tal ponto que o príncipe abriu para ele uma exceção entre todos os jovens solteiros, que não admitia em sua casa.
A casa do príncipe não era aquilo que se chama de “sociedade”, mas constituía um círculo tão pequeno que, embora não fosse objeto de muitos comentários na cidade, era mais lisonjeiro ser recebido ali do que em qualquer outro círculo. Boris tinha compreendido aquilo uma semana antes, quando, na sua presença, Rostoptchin respondera ao comandante em chefe que não poderia atender ao convite dele para almoçar na sua casa no dia de São Nicolau:
— Nesse dia, sempre vou render homenagens às relíquias do príncipe Nikolai Andreitch.
— Ah, sim, sim — respondeu o comandante em chefe. — Como vai ele?...
A pequena sociedade reunida antes do almoço na sala de visitas antiquada e pomposa, de mobiliário velho, mais parecia a reunião solene de um conselho de justiça. Todos se mantinham calados e, se falavam, falavam baixo. O príncipe Nikolai Andréievitch veio para a sala sério e taciturno. A princesa Mária parecia ainda mais calada e tímida do que de costume. Os convidados dirigiam-se à princesa a contragosto, pois viam que não se interessava pela conversa deles. O conde Rostoptchin sustentava sozinho o fio da conversa, falando das últimas notícias da cidade e da política.
Lopukhin e o velho general raramente tomavam parte na conversa. O príncipe Nikolai Andréievitch escutava, como um juiz supremo escuta um relatório que lhe apresentam, mostrando só de vez em quando, por um resmungo ou por uma palavra breve, que tomava em consideração o que lhe diziam. O tom da conversa era tal que logo se percebia que ninguém ali aprovava o que se passava no mundo político. Falavam de acontecimentos que, pelo visto, confirmavam que tudo ia de mal a pior; mas em todos os relatos e juízos chamava a atenção o fato de que o falante se interrompia ou era interrompido toda vez que chegava ao limite em que a condenação podia atingir a pessoa do soberano imperador.
Durante o almoço, a conversa tratou da última notícia política, a tomada do território do grão-ducado de Oldenburg por Napoleão e a nota do governo russo, hostil a Napoleão, enviada a todas as cortes da Europa.7
— Bonaparte trata a Europa como um pirata a bordo de um navio conquistado — disse o conde Rostoptchin, repetindo uma frase já repetida por ele várias vezes. — A única coisa que surpreende é a paciência excessiva ou a cegueira dos soberanos. Agora chegou a vez do papa, e Bonaparte, que já não se constrange com nada, quer derrubar o chefe da religião católica, e todos ficam em silêncio.8 Só o nosso soberano protestou contra a tomada do grão-ducado de Oldenburg. E isso... — O conde Rostoptchin calou-se, sentindo que chegara ao limite além do qual era impossível fazer críticas.
— Ofereceram outros territórios em troca do grão-ducado de Oldenburg — disse o príncipe Nikolai Andreitch. — Da mesma forma que eu mando meus mujiques de Montes Calvos para Bogutchárovo, assim ele faz com os duques.
— Le duc d’Oldenbourg supporte son malheur avec une force de caractère et une résignation admirable 9 — disse Boris, intervindo respeitosamente na conversa. Disse aquilo porque, em sua viagem de Petersburgo a Moscou, tivera a honra de ser apresentado ao duque. O príncipe Nikolai Andreitch olhou para o jovem como se quisesse lhe dizer alguma coisa a respeito do assunto, mas mudou de ideia, considerando o rapaz jovem demais para isso.
— Li o nosso protesto sobre a questão de Oldenburg e me admirei com a péssima redação daquela nota — disse o conde Rostoptchin, no tom descuidado de uma pessoa que avalia um assunto que conhece muito bem.
Pierre olhou para Rostoptchin com uma surpresa ingênua, sem entender por que ele se inquietava com a péssima redação da nota.
— Mas a maneira como está escrita a nota tem alguma importância, conde? — disse ele. — Se o seu conteúdo é forte.
— Mon cher, avec nos cinq cent mille hommes de troupe, il serait facile d’avoir un beau style 10 — disse o conde Rostoptchin. Pierre entendeu por que o conde se inquietava com a péssima redação da nota.
— Parece que os escribas agora proliferam — disse o velho príncipe —, lá em Petersburgo todos escrevem, não apenas notas: todos escrevem leis novas. O meu Andriucha está lá e escreveu um volume inteiro de leis para a Rússia. Hoje em dia, todo mundo está escrevendo! — E riu de modo forçado.
A conversa silenciou um minuto; o velho general tossiu para chamar a atenção para si.
— Os senhores souberam dos últimos acontecimentos na revista de tropas em Petersburgo? Como se comportou o novo embaixador francês!
— Ora! Sim, ouvi falar; ele disse algo inadequado na presença de sua alteza.
— Sua alteza chamou a atenção dele para a divisão de granadeiros e para a parada cerimonial — prosseguiu o general — e parece que o embaixador não prestou a menor atenção e ainda se permitiu dizer que “na França nós não prestamos atenção nessas bobagens”. O soberano não disse nada. Na revista de tropas seguinte, dizem, o soberano não dirigiu a palavra a ele nem uma vez.
Todos ficaram em silêncio: em relação àquele fato, como dizia respeito pessoalmente ao soberano, não se podia apresentar nenhuma crítica.
— Insolentes! — disse o príncipe. — Conhecem Métvier? Hoje mesmo, eu o expulsei da minha casa. Esteve aqui, deixaram que entrasse, apesar de eu ter dito para não permitirem a entrada de ninguém — disse o príncipe, olhando furioso para a filha. E relatou toda a sua conversa com o médico francês e os motivos por que estava convencido de que Métvier era um espião. Embora tais motivos fossem mais do que insuficientes, além de obscuros, ninguém fez nenhuma objeção.
Junto com o assado, serviram o champanhe. Os convidados ficaram de pé e parabenizaram o velho príncipe. A princesa Mária também se aproximou do pai.
O príncipe lançou para ela um olhar frio, maldoso, e lhe ofereceu para beijar a face enrugada e barbeada. Toda a expressão do rosto dele lhe dizia que a conversa daquela manhã não estava esquecida, que a sua decisão permanecia de pé com a mesma força e que só não lhe dizia aquilo agora por causa da presença dos convidados.
Quando foram para a sala de visitas para tomar o café, os velhos sentaram-se juntos.
O príncipe Nikolai Andreitch ficou mais animado e expôs o seu modo de pensar a respeito da guerra iminente.
Disse que nossas guerras contra Bonaparte seriam malsucedidas enquanto procurássemos aliança com os alemães e nos imiscuíssemos nos assuntos europeus, para os quais fomos arrastados pelo tratado de paz de Tilsit. Não precisávamos lutar nem a favor nem contra a Áustria. Nossa política era toda do Oriente, e em relação a Bonaparte só tínhamos de fazer uma coisa — armar as fronteiras e ser firmes na política, pois assim ele nunca se atreveria a atravessar a fronteira russa, como em 1807.
— E como poderíamos combater os franceses, príncipe? — disse o conde Rostoptchin. — Por acaso podemos empunhar armas contra os nossos mestres e os nossos deuses? Veja a nossa juventude, veja as nossas senhoras. Os nossos deuses são os franceses, o nosso reino do céu é Paris.
Passou a falar mais alto, obviamente para que todos o escutassem.
— Roupas francesas, pensamerntos franceses, sentimentos franceses! O senhor pôs Métvier para fora da sua casa porque é francês e canalha, mas as nossas senhoras rastejam atrás dele. Ontem estive numa festa na qual três das cinco senhoras presentes eram católicas e, conforme a decisão do papa, bordavam na talagarça aos domingos. E estavam ali quase nuas, como os letreiros das casas de banho comerciais, se me permitem dizer. Ah, quando se observa a nossa juventude, príncipe, dá vontade de retirar o velho porrete de Pedro, o Grande, do museu de arte e, em bom russo, cobrir essa gente de pancada, e aí quem sabe toda a estupidez fosse embora!
Todos ficaram em silêncio. O velho príncipe, com um sorriso no rosto, fitava Rostoptchin e balançava a cabeça num gesto de aprovação.
— Bem, adeus, vossa excelência, muita saúde — disse Rostoptchin, levantando-se com os movimentos rápidos que lhe eram peculiares e estendendo a mão para o príncipe.
— Adeus, meu caro... e o seu gúsli,11 sempre gostei de ouvi-lo! — disse o velho príncipe, segurando a sua mão e oferecendo a face para um beijo. Outros também se levantaram com Rostoptchin.
IV
A princesa Mária, que estava na sala e escutava as conversas e os mexericos dos velhos, nada compreendia daquilo que escutava; só pensava uma coisa: se as visitas não teriam notado as atitudes hostis do pai em relação a ela. A princesa nem notava a atenção e a amabilidade especial que, durante todo o tempo daquele almoço, lhe demonstrava Drubetskói, que já pela terceira vez visitava a casa deles.
A princesa Mária, com um olhar distraído e interrogativo, voltou-se para Pierre, o último dos convidados que restava, e Pierre, com o chapéu na mão e um sorriso no rosto, aproximou-se dela depois que o príncipe se retirou e os dois ficaram sozinhos na sala.
— Posso ficar mais um pouco? — perguntou Pierre, tombando o corpo gordo na poltrona ao lado da princesa Mária.
— Ah, sim — respondeu ela. “O senhor não percebeu nada?”, dizia o seu olhar.
Pierre se encontrava naquele estado de ânimo agradável que se experimenta depois de um almoço. Olhava para a frente e sorria de leve.
— Faz muito tempo que conhece esse jovem, princesa? — perguntou.
— Quem?
— Drubetskói.
— Não, há pouco tempo...
— E a senhora gosta dele?
— Sim, é um jovem simpático... Por que está me perguntando isso? — disse a princesa Mária, continuando a pensar na conversa daquela manhã com o pai.
— Porque observei uma coisa: um rapaz costuma vir de Petersburgo a Moscou em suas licenças apenas quando tem por objetivo se casar com uma noiva rica.
— O senhor observou isso? — perguntou a princesa Mária.
— Sim — prosseguiu Pierre, com um sorriso. — E esse rapaz agora se porta de tal modo que, onde quer que haja noivas ricas, lá está ele também. Sei exatamente o que ele pensa, como se fosse um livro aberto. Agora, está indeciso sobre quem deve atacar: a senhora ou a Mademoiselle Julie Karáguina. Il est très assidu auprès d’elle.12
— Ele vai à casa dela?
— Sim, com muita frequência. E a senhora sabe qual é a nova maneira de fazer a corte? — perguntou Pierre, com um sorriso, visivelmente naquele espírito alegre de zombaria simpática, que ele tanto censurava em si mesmo, no seu diário.
— Não — respondeu a princesa Mária.
— Agora, para agradar às moças moscovitas, il faut être mélancolique. Et il est très mélancolique auprès de mademoiselle Karáguin13 — disse Pierre.
— Vraiment? 14 — disse a princesa Mária, fitando o rosto bondoso de Pierre, sem parar de pensar no seu desgosto. “Seria mais fácil para mim”, pensou, “se eu resolvesse confiar a alguém tudo o que sinto. E é exatamente para Pierre que eu gostaria de contar tudo. Ele é tão bom e nobre. Seria mais fácil para mim. Ele me daria um conselho!”
— A senhora se casaria com ele? — perguntou Pierre.
— Ah, meu Deus, conde! Há momentos em que eu casaria com qualquer um — disse a princesa Mária de repente, de modo inesperado até para si mesma, com lágrimas na voz. — Ah, como é penoso amar uma pessoa próxima e sentir que... nada (prosseguiu com voz trêmula) podemos fazer por essa pessoa, a não ser lhe causar desgosto, e quando sabemos que é impossível mudar a situação. Então, só resta uma coisa: fugir. Mas para onde eu vou fugir?
— O que foi, o que há com a senhora, princesa?
Mas a princesa, sem responder, desatou a chorar.
— Não sei o que há comigo hoje. Não me dê atenção, esqueça o que eu disse.
Toda a alegria de Pierre desapareceu. Interrogou a princesa com ar preocupado, pediu que lhe explicasse tudo, que lhe confiasse o seu desgosto; mas ela apenas repetia o pedido para que esquecesse o que havia falado, disse que ela mesma não entendia o que havia falado e que não tinha nenhum desgosto, exceto o que Pierre já conhecia — o desgosto de ver que o casamento do príncipe Andrei ameaçava indispor o pai contra o filho.
— O senhor teve notícias dos Rostóv? — perguntou ela, para mudar de assunto. — Disseram-me que virão para cá em breve. Também espero todo dia a chegada de André. Eu gostaria que eles se encontrassem aqui.
— Mas como ele encara agora essa questão? — perguntou Pierre, subentendendo por “ele” o velho príncipe. A princesa Mária balançou a cabeça.
— Mas o que se vai fazer? Faltam só alguns meses para completar um ano. E isso não é possível. Eu gostaria de poupar o meu irmão dos primeiros momentos. Eu gostaria que eles chegassem logo. Tenho esperança de me encontrar com ela... O senhor os conhece há muito tempo — disse a princesa Mária. — Diga-me, com a mão no coração, toda a verdade sincera, diga-me que tipo de moça é essa e o que o senhor acha dela. Mas a verdade completa; porque, o senhor entenda bem, Andrei está pondo em risco tanta coisa ao fazer isso contra a vontade do pai que eu gostaria de saber...
Um instinto obscuro disse a Pierre que, naquelas ressalvas e naqueles repetidos pedidos de contar “toda a verdade”, exprimia-se certa má vontade da princesa Mária com relação à futura cunhada, e que ela queria que Pierre não aprovasse a escolha de Andrei; mas Pierre disse antes o que sentia do que o que pensava.
— Não sei como responder à sua pergunta — disse, ruborizando-se sem que ele mesmo soubesse por quê. — Não sei com certeza que tipo de moça ela é; não consigo analisá-la. Ela é fascinante. E por isso eu não sei: é tudo o que posso dizer sobre ela. — A princesa Mária deu um suspiro, e a expressão do seu rosto dizia: “Sim, era isso o que eu esperava e temia”.
— É inteligente? — perguntou a princesa Mária. Pierre pensou bem.
— Acho que não — disse ele. — Ou antes, ao contrário, é sim. Para ela, não basta ser inteligente... Mas, não, ela é fascinante e mais nada. — A princesa Mária balançou a cabeça, de novo com ar desaprovador...
— Ah, eu quero tanto gostar dela! O senhor lhe diga isso, se a encontrar antes de mim.
— Ouvi dizer que eles vão chegar daqui a alguns dias — disse Pierre.
A princesa Mária comunicou a Pierre o seu plano de, assim que os Rostóv chegassem, aproximar-se da futura cunhada e tentar acostumar o velho príncipe a ela.
V
Boris não conseguiu um casamento com uma noiva rica em Petersburgo e, com esse objetivo, foi para Moscou. Em Moscou, ele se viu indeciso entre duas noivas riquíssimas — Julie e a princesa Mária. Embora a princesa Mária, apesar da sua feiura, lhe parecesse mais atraente do que Julie, por algum motivo ele achava desconfortável fazer a corte à princesa. Em seu último encontro com ela, no aniversário do velho príncipe, a todas as suas tentativas de lhe falar sobre sentimentos, ela respondera de modo despropositado e obviamente sem ouvi-lo.
Julie, ao contrário, recebia de bom grado a sua corte, ainda que na sua maneira diferente e peculiar.
Julie tinha vinte e sete anos. Depois da morte dos irmãos, ela se tornara muito rica. Agora, estava realmente feia; mas pensava que estava não apenas tão bonita quanto antes como infinitamente mais atraente. Ela se mantinha em seu engano, em primeiro lugar, por ter se tornado uma noiva rica, em segundo lugar porque quanto mais velha ficava, quanto menos perigosa era para os homens, tanto mais livremente os homens podiam se dirigir a ela e, sem assumir nenhuma obrigação, podiam desfrutar os seus jantares, as suas festas e a animada sociedade que se reunia em sua casa. Um homem que, dez anos antes, teria medo de ir todos os dias a uma casa onde havia uma jovem senhora de dezessete anos, para não comprometê-la e também para não criar um compromisso para si mesmo, agora frequentava todos os dias sem receios a casa de Julie e a tratava não como uma senhorita casadoura, mas como uma conhecida, sem sexo.
A casa dos Karáguin, naquele inverno, em Moscou, era a mais agradável e hospitaleira de todas. Além das festas e dos jantares de gala, todos os dias reunia-se na casa dos Karáguin uma grande sociedade, sobretudo de homens, que jantavam depois das onze horas da noite e lá ficavam até depois das duas da madrugada. Não havia baile, teatro, passeio a que Julie não fosse. Suas roupas estavam sempre no rigor da moda. Porém, apesar disso, Julie parecia decepcionada com tudo, dizia a todos que não acreditava nem na amizade, nem no amor, nem em nenhuma alegria da vida e que só esperava o repouso lá. Havia adotado o tom de uma jovem que sofrera uma grande decepção, uma jovem que parecia ter perdido a pessoa amada ou ter sido cruelmente enganada por ela. Embora não tivesse acontecido nada de semelhante, olhavam para Julie como se fosse assim, e ela mesma acreditava que havia sofrido muito na vida. Essa melancolia, que não a impedia de divertir-se, também não impedia que jovens frequentassem a sua casa e ali passassem um tempo agradável. Toda visita, ao chegar à casa dela, rendia seu tributo ao estado melancólico da anfitriã e depois se ocupava das conversas mundanas, das danças, dos jogos intelectuais e dos torneios de bouts-rimés,15 que estavam em voga na casa dos Karáguin. Apenas alguns jovens, entre os quais Boris, aprofundavam-se no estado melancólico de Julie, e com esses jovens Julie tinha conversas mais prolongadas, em particular sobre a vaidade de todas as coisas mundanas, e mostrava para eles os seus álbuns, repletos de desenhos, frases e poemas tristonhos.
Julie era especialmente afetuosa com Boris; lamentava o seu desengano prematuro com a vida, oferecia a ele os consolos da amizade que podia oferecer, pois ela havia sofrido tanto na vida, e lhe mostrava os seus álbuns. Boris desenhou duas árvores no álbum para Julie e escreveu: “Arbres rustiques, vos sombres rameaux secouent sur moi les ténèbres et la mélancolie”.16
Num outro lugar, desenhou um túmulo e escreveu:
La mort est secourable et la mort est tranquille.
Ah! Contre les douleurs il n’est pas d’autre asile.17
Julie disse que aquilo era excelente.
— Il y a quelque chose de si ravissant dans le sourire de la mélancolie! 18 — disse para Boris, palavra por palavra, a frase lida por ela num livro. — C’est un rayon de lumière dans l’ombre, une nuance entre la douleur et le désespoir, qui montre la consolation possible.19
Em resposta a isso, Boris escreveu um poema para ela:
Aliment de poison d’une âme trop sensible,
Toi, sans qui le bonheur me serait impossible,
Tendre mélancolie, ah!, viens me consoler,
Viens calmer les tourments de ma sombre retraite,
Et mêle une douceur secrète
à ces pleurs, que je sens couler.20
Julie tocava para Boris, na harpa, os noturnos mais tristonhos. Boris lia em voz alta para ela Pobre Liza 21 e, várias vezes, interrompia a leitura por causa da emoção que o sufocava. Reunidos em sociedade, Julie e Boris olhavam um para o outro como se fossem os únicos que se compreendiam mutuamente num mundo de pessoas indiferentes.
Anna Mikháilovna, que muitas vezes ia à casa dos Karáguin, jogava cartas com a mãe ao mesmo tempo que tomava informações seguras sobre o que seria herdado por Julie (caberiam a ela as duas propriedades de Penza e uma floresta em Níjni-Nóvgorod). Anna Mikháilovna, com comoção e devoção à vontade da Providência, observava a tristeza refinada que unia seu filho à rica Julie.
— Toujours charmante et mélancolique, cette chère Julie 22 — dizia para a filha. — Boris diz que a alma dele repousa na casa da senhora. Boris sofreu tantas decepções e é tão sensível — dizia para a mãe.
— Ah, meu amigo, como fiquei apegada a Julie ultimamente — dizia para o filho. — Nem posso lhe contar! Mas, afinal, quem poderia não gostar dela? É uma criatura tão celestial! Ah, Boris, Boris! — Calava-se um minuto. — E que pena tenho da sua maman — prosseguia. — Ainda hoje ela me mostrou contas e cartas de Penza (eles possuem imensas propriedades lá) e ela, a pobrezinha, tem de resolver tudo sozinha; vive sendo enganada!
Boris sorria de modo quase imperceptível enquanto escutava a mãe. Ria com docilidade diante da sua astúcia ingênua, no entanto a escutava até o fim e às vezes lhe fazia perguntas atentas a respeito das propriedades de Penza e de Níjni-Nóvgorod.
Julie esperava, havia muito tempo, o pedido de casamento do seu melancólico adorador e estava disposta a aceitá-lo; mas um sentimento misterioso de repulsa por Julie, pelo seu desejo apaixonado de casar, pela sua falta de naturalidade, e um sentimento de horror em face da renúncia da possibilidade de um amor verdadeiro ainda detinham Boris. O prazo da sua licença já estava terminando. Todo santo dia, ele passava o dia inteiro na casa dos Karáguin, e todo dia, ao refletir, dizia para si mesmo que faria o pedido de casamento no dia seguinte. Porém, em presença de Julie, olhando para o seu rosto vermelho, para o seu queixo quase sempre coberto de pó de arroz, para os seus olhos úmidos e para a expressão do seu rosto, que revelava uma constante prontidão para passar de imediato da melancolia para um afetado êxtase de felicidade conjugal, Boris não conseguia pronunciar as palavras decisivas; apesar disso, na sua imaginação, havia muito tempo que ele já se considerava de posse das propriedades de Penza e de Níjni-Nóvgorod e distribuía a aplicação dos seus rendimentos. Julie via a indecisão de Boris e às vezes lhe vinha a ideia de que ela lhe causava repulsa; porém, na mesma hora, uma autoilusão feminina consolava Julie, e ela dizia para si mesma que Boris estava apenas acanhado com o amor. A melancolia de Julie, no entanto, começou a se transformar em irritabilidade e, pouco antes da partida de Boris, ela pôs em ação um plano decisivo. Na mesma ocasião em que chegava ao fim o prazo da licença de Boris, Anatole Kuráguin apareceu em Moscou e também, nem é preciso dizer, na casa dos Karáguin, e Julie, inesperadamente deixando de lado a melancolia, tornou-se muito alegre e cheia de atenções com Kuráguin.
— Mon cher — disse Anna Mikháilovna para o filho —, je sais de bonne source que le prince Basile envoie son fils à Moscou pour lui faire épouser Julie.23 Eu gosto tanto de Julie que lamento por ela. O que você acha, meu amigo? — disse Anna Mikháilovna.
A ideia de ser feito de bobo e de ter desperdiçado todo aquele mês de árduos serviços melancólicos com Julie, e de ver que os rendimentos das propriedades de Penza, que ele já havia distribuído e empregado como convinha na sua imaginação, iriam parar nas mãos de outro — e ainda mais nas mãos do tolo Anatole — ofendia Boris. Dirigiu-se à casa dos Karáguin com a firme intenção de fazer um pedido de casamento. Julie recebeu-o com ar alegre e despreocupado, contou-lhe de modo descontraído como ela havia se divertido no baile do dia anterior e perguntou quando Boris ia partir. Apesar de Boris ter vindo com a intenção de falar do seu amor e, portanto, com a intenção de se mostrar carinhoso, ele começou a falar de modo irritado sobre a inconstância feminina: sobre como as mulheres podiam facilmente passar da tristeza para a alegria e como a disposição de ânimo das mulheres dependia apenas de quem lhes fazia a corte. Julie sentiu-se ofendida e disse que era verdade que as mulheres precisavam de variedade e que a mesma coisa o tempo todo enchia a paciência de qualquer um.
— Por isso recomendo à senhora... — começou Boris, no intuito de dizer algo mordaz; mas naquele momento lhe veio a ideia ultrajante de que ele poderia partir de Moscou sem alcançar o seu objetivo, tendo desperdiçado todos os seus esforços (algo que jamais havia acontecido com ele). Deteve-se no meio da frase, baixou os olhos para não ver o rosto desagradável, irritado e indeciso de Julie, e disse: — Não foi de maneira alguma para discutir com a senhora que vim aqui hoje. Ao contrário... — Lançou um olhar para ela a fim de se convencer de que podia continuar. Toda a irritação de Julie havia desaparecido de repente, e os olhos inquietos, suplicantes, estavam cravados nele, com uma ávida expectativa. “Sempre posso dar um jeito de ver Julie raramente”, pensou Boris. “O assunto já começou, e agora é preciso ir até o fim!” Ruborizou-se muito, ergueu os olhos para ela e disse: — A senhora conhece os meus sentimentos pela senhora! — Não era preciso falar mais nada: o rosto de Julie se iluminou de triunfo e de satisfação consigo mesma; porém, ela obrigou Boris a falar tudo o que se diz nesses casos, que ele a amava e que nunca tinha amado outra mulher mais do que a ela. Julie sabia que, em troca das propriedades de Penza e de Níjni-Nóvgorod, ela podia exigir aquilo, e recebeu o que exigia.
O noivo e a noiva, sem mencionar mais as árvores que derramavam sombras e melancolia sobre eles, traçaram os planos da futura instalação de uma casa magnífica em Petersburgo, fizeram visitas e convidaram todos para o matrimônio suntuoso.
VI
No fim de janeiro, o conde Iliá Andreitch chegou a Moscou, junto com Natacha e Sônia. A saúde da condessa não havia melhorado, e ela não podia viajar — mas era impossível continuar esperando até a sua recuperação: o príncipe Andrei era esperado em Moscou a qualquer dia; além disso, era preciso comprar o enxoval, era preciso vender a propriedade nos arredores de Moscou e era preciso aproveitar a presença do velho príncipe em Moscou para apresentar-lhe a sua futura nora. A casa dos Rostóv em Moscou não estava aquecida; além do mais, eles iam passar pouco tempo na cidade, a condessa não estava com eles, e por tudo isso o conde Iliá Andreitch resolveu que, em Moscou, ficaria hospedado na casa de Mária Dmítrievna Akhrossímova, que havia muito tempo oferecia ao conde a sua hospitalidade.
Tarde da noite, os quatro trenós dos Rostóv entraram no pátio de Mária Dmítrievna, na rua da Estrebaria Velha. Mária Dmítrievna morava sozinha. Sua única filha já havia casado. Seus filhos estavam no serviço militar.
Continuava aprumada como antes, dizia suas opiniões a todos com a mesma voz firme, alta e decidida de antes, e toda a sua pessoa parecia censurar os outros por toda e qualquer fraqueza, paixão ou impulso, cuja possibilidade ela não admitia. Desde cedo, apenas com um casaquinho curto, ela cuidava dos assuntos domésticos, depois saía de casa: nos feriados ia à missa e depois da missa às prisões e cadeias, onde tratava de assuntos sobre os quais não falava com ninguém, mas nos dias úteis, bem-vestida, recebia em casa pessoas de várias classes sociais que apresentavam suas solicitações e vinham procurá-la todos os dias, e depois disso ela almoçava; no almoço, farto e gostoso, sempre havia três ou quatro convidados; após o almoço, jogava uma partida de bóston; de noite, obrigava alguém a ler jornais e livros novos em voz alta, enquanto ela tricotava. Raramente abria uma exceção para sair de casa e, se saía, era só para ir à casa das pessoas mais importantes da cidade.
Ela ainda não tinha ido para a cama quando os Rostóv chegaram, e a porta da frente rangeu na dobradiça para que entrassem os Rostóv e seus criados, fugindo da friagem lá de fora. Mária Dmítrievna, com os óculos que haviam descido até a ponta do nariz, a cabeça inclinada para trás, estava de pé na porta da sala e, com ar severo e irritado, fitava os recém-chegados. Caso não estivesse ao mesmo tempo dando ordens cuidadosas para os criados sobre como acomodar os hóspedes e sua bagagem, podia-se pensar que estava furiosa com as visitas e que as expulsaria de casa imediatamente
— São as coisas do conde? Traga para cá — disse, apontando para as malas, sem cumprimentar ninguém. — As das senhoras, para lá, à esquerda. Ora, por que ficam perdendo tempo com essas mesuras! — gritou para as criadas. — É preciso esquentar o samovar! Ficou mais gorda, ficou mais bonita — exclamou, trazendo Natacha, vermelha de frio, para perto de si, puxando-a pelo capuz. — Puxa, como está gelada! Vá logo trocar de roupa — gritou para o conde, que queria se aproximar da sua mão. — Está todo gelado, eu aposto. Tragam rum com chá! Sóniuchka, bonjour 24 — disse para Sônia, sublinhando naquela saudação francesa a sua atitude ligeiramente desdenhosa, e também carinhosa, em relação a Sônia.
Depois que todos haviam trocado de roupa, se refeito da viagem e vieram para o chá, Mária Dmítrievna beijou um por um, da forma devida.
— Que alegria que vocês chegaram e que vão ficar hospedados em minha casa — disse. — Já não era sem tempo — exclamou, lançando um olhar significativo para Natacha. — O velho está aqui e esperam a chegada do filho a qualquer dia. É preciso, é preciso ir visitá-lo. Bem, sobre isso falaremos mais tarde — acrescentou, lançando um olhar para Sônia e mostrando que não queria falar do assunto diante dela. — Agora, escute — voltou-se para o conde. — O que você quer fazer amanhã? A quem vai mandar chamar? Chinchin? — Dobrou um dedo. — A chorona Anna Mikháilovna... Dois. Ela está aqui com o filho. E o filho vai casar! Depois, o Bezúkhov, que tal? Ele também está em Moscou, junto com a esposa. Bezúkhov a abandonou, e ela logo correu aos pulos atrás dele. Bezúkhov almoçou comigo na quarta-feira. Bem, quanto a elas — apontou para as duas jovens —, amanhã vou levá-las à capela de Nossa Senhora de Ibéria e depois vamos ver a Ober-Chelmá.25 Pois aposto que vocês querem fazer vestidos novos, não é? Não me tomem por modelo, hoje em dia as mangas vão até aqui! Outro dia, a jovem princesa Irina Vassílievna veio me visitar: dava até medo de olhar, parecia que estava com duas barricas nos braços. Todo dia surge uma nova moda. Sim, mas e você, tem algum assunto particular? — voltou-se para o conde, com ar severo.
— Tudo veio ao mesmo tempo — respondeu o conde. — Comprar os trapos e também arranjar um comprador para a propriedade nos arredores de Moscou e para a casa. Se a senhora puder me fazer essa bondade, eu vou separar um tempinho para ir a Marínskoie, por um diazinho só, e vou confiar minhas meninas à senhora.
— Está bem, está bem, ficarão a salvo comigo. Como se estivessem no Conselho Tutelar. Vou levá-las aonde for preciso, vou dar carões e carinhos — disse Mária Dmítrievna, tocando com a mão grande a bochecha de Natacha, sua afilhada e sua favorita.
No dia seguinte, de manhã, Mária Dmítrievna levou as duas jovens para a capela de Nossa Senhora de Ibéria e para a Mme Aubert-Chalmé, que tinha tanto medo de Mária Dmítrievna que sempre a deixava levar roupas abaixo do preço de custo, só para livrar-se dela mais depressa. Mária Dmítrievna encomendou quase todo o enxoval. Depois que voltou para casa, mandou todos saírem do quarto, menos Natacha, e chamou a sua favorita para perto da sua poltrona.
— Bem, agora vamos conversar. Dou meus parabéns pelo noivo. Fisgou um rapagão! Estou contente por você; e ele, eu o conheço desde que tinha esta idade (estendeu a mão a um archin de altura). — Natacha ficou vermelha de alegria. — Gosto dele e de toda a sua família. Agora, escute bem. Como você sabe, o velho príncipe Nikolai não queria de jeito nenhum que o filho casasse. É um velho temperamental! Claro, o príncipe Andrei não é nenhuma criança e não precisa dele para nada, mas entrar na família contra a sua vontade não é bom. É preciso fazer isso de modo pacífico, amoroso. Você é inteligente, vai saber lidar com a situação. Use a sua bondade e a sua inteligência. Assim, tudo vai dar certo.
Natacha ficou calada por timidez, pensou Mária Dmítrievna, mas no fundo Natacha não gostava que se intrometessem nos assuntos do seu amor pelo príncipe Andrei, que lhe pareciam tão diferentes de todos os assuntos humanos que ninguém, no seu modo de ver, conseguiria compreendê-los. Natacha só amava e só sabia do príncipe Andrei, ele a amava e chegaria a qualquer dia para levá-la. Natacha não precisava saber de mais nada além disso.
— Veja bem, eu o conheço há muito tempo e também gosto muito da Máchenka, sua futura cunhada. Cunhadas dão unhadas, é o que dizem, mas essa é incapaz de fazer mal a uma mosca. Ela me pediu que mandasse você à casa dela. Amanhã de manhã, você vai lá com o seu pai, e seja carinhosa e boa: você é mais jovem do que ela. Quando o seu noivo chegar, você já será conhecida da irmã e do pai, e eles já estarão encantados com você. Não é mesmo? Não vai ser melhor assim?
— Melhor — respondeu Natacha, a contragosto.
VII
No dia seguinte, por recomendação de Mária Dmítrievna, o conde Iliá Andreitch foi com Natacha à casa do príncipe Nikolai Andreitch. O conde aprontou-se para aquela visita num espírito nada alegre: no fundo, ele tinha medo. Ainda estava na memória do conde Iliá Andreitch o último encontro dos dois, por ocasião do alistamento do corpo de voluntários, quando o conde teve de ouvir do velho príncipe, em resposta a um convite que fizera para jantar, um discurso furioso por não ter reunido um efetivo de número suficiente. Natacha, em seu melhor vestido, estava, ao contrário, na mais alegre disposição de ânimo. “É impossível que não gostem de mim”, pensava ela, “todos sempre gostaram de mim. E estou tão disposta a fazer por eles tudo o que desejarem, tão disposta a amar a ele, porque é o pai, e a ela, porque é a irmã, que não existe motivo para não gostarem de mim!”
Aproximaram-se da casa antiga, sombria, na rua Vzdvíjenka, e entraram no vestíbulo.
— Bem, que Deus nos proteja — exclamou o conde, meio de brincadeira, meio a sério; mas Natacha notou que o pai ficou agitado quando chegou à saleta da entrada e perguntou em voz baixa e tímida se o príncipe e a princesa estavam em casa. Depois do anúncio da chegada deles, houve uma confusão entre os criados do príncipe. Um lacaio que havia corrido para anunciá-los foi detido por um outro lacaio na sala, e os dois cochicharam entre si. Uma criada de quarto veio correndo para a sala e, às pressas, também falou alguma coisa, referindo-se à princesa. Por fim, um lacaio velho, de rosto zangado, veio e comunicou aos Rostóv que o príncipe não podia recebê-los, mas a princesa pedia que fossem aos seus aposentos. A primeira a vir ao encontro das visitas foi Mlle Bourienne. Mostrou-se especialmente cordial com o pai e com a filha e levou-os até a princesa. Com o rosto nervoso, assustado e coberto de manchas vermelhas, a princesa veio depressa ao encontro das visitas, pisando com força e tentando inutilmente mostrar-se solícita e hospitaleira. Ao primeiro olhar, Natacha não gostou da princesa Mária. Pareceu-lhe excessivamente elegante, levianamente alegre e vaidosa. A princesa Mária não sabia que, antes mesmo de ver a futura cunhada, já estava predisposta contra Natacha por uma inveja involuntária da sua beleza, da sua juventude, da sua felicidade, e por ciúmes do amor do irmão. Além desse vago sentimento de antipatia por ela, a princesa Mária naquele momento estava perturbada também porque, assim que foi anunciada a chegada dos Rostóv, o príncipe começou a gritar que não queria saber deles, que a princesa Mária fosse recebê-los, se quisesse, e que não deixassem os Rostóv entrar em seus aposentos. A princesa Mária decidiu receber os Rostóv, mas temia que a qualquer momento o príncipe fizesse uma incursão repentina, pois parecia muito perturbado com a vinda dos Rostóv.
— Pois aí está, querida princesa, trouxe para a senhora o meu passarinho cantor — disse o conde, ruborizando-se e olhando inquieto para os lados, como se temesse que o velho príncipe aparecesse do nada. — Como estou contente por vocês se conhecerem. Lamento, lamento muito que o príncipe ainda esteja adoentado. — E, após dizer mais uma série de lugares-comuns, levantou-se. — Se me permite, princesa, vou deixar a minha Natacha nas mãos da senhora por um quartozinho de hora apenas, enquanto dou um pulo a dois passos daqui, na praça dos Cães, à casa de Anna Semiónovna, e depois virei buscá-la.
Iliá Andreitch inventou aquela astúcia diplomática para dar às futuras cunhadas a chance de se entenderem livremente (como explicou depois para a filha), e também para evitar a possibilidade de um encontro com o príncipe, que ele temia. Isso o conde não disse para a filha, mas Natacha percebeu o medo e a inquietação do pai e sentiu-se ofendida. Ruborizou-se por causa do pai, irritou-se mais ainda por ficar ruborizada e, com um olhar atrevido e provocador, que dizia que não tinha medo de nada, fitou a princesa. A princesa disse ao conde que estava muito contente e apenas lhe pediu que ficasse mais tempo na casa de Anna Semiónovna, e Iliá Andreitch saiu.
Mlle Bourienne, apesar dos olhares inquietos dirigidos a ela pela princesa Mária, que desejava conversar a sós com Natacha, não saiu do quarto e iniciou, com firmeza, uma conversa sobre os divertimentos e os teatros de Moscou. Natacha estava ofendida com a confusão que ocorrera na entrada, com o nervosismo do pai e com o tom artificial da princesa, que — era essa a sua impressão — fazia um favor ao recebê-la. Por isso, tudo lhe desagradava. Natacha não gostou da princesa Mária. Pareceu-lhe muito simplória, fingida e seca. De repente, Natacha se retraiu e, sem querer, adotou um ar tão displicente que afastou ainda mais a princesa Mária. Depois de cinco minutos de uma conversa pesada, fingida, ouviram-se passos rápidos, em chinelos, que se aproximavam. O rosto da princesa Mária exprimiu pavor, a porta do quarto se abriu, e o príncipe entrou, de roupão de dormir e barrete branco.
— Ah, senhora fidalga — disse ele. — Senhora condessa... condessa Rostova, se não me engano... peço que me desculpe, me desculpe... eu não sabia, senhora. Deus é testemunha, eu não sabia que a senhora nos dava a honra da sua visita, por isso entrei no quarto da minha filha nestes trajes. Peço que me desculpe... Deus é testemunha que eu não sabia — repetiu com tanta falta de naturalidade, enfatizando a palavra “Deus”, e de modo tão desagradável, que a princesa Mária ficou parada, de olhos baixos, sem se atrever a olhar nem para o pai, nem para Natacha. Depois de se levantar e fazer uma reverência, Natacha também não sabia o que fazer. Só Mlle Bourienne sorria com simpatia.
— Peço que me desculpe! Peço que me desculpe! Deus é testemunha, eu não sabia — resmungou o velho e saiu, depois de observar Natacha da cabeça aos pés. Mlle Bourienne foi a primeira a se recuperar depois daquela aparição e começou uma conversa sobre a saúde debilitada do príncipe. Natacha e a princesa Mária olhavam caladas uma para a outra e, quanto mais olhavam caladas uma para a outra, sem exprimir o que precisavam exprimir, tanto mais pensavam uma na outra com animosidade.
Quando o conde voltou, Natacha alegrou-se com sua chegada de um modo nada polido e apressou-se para ir embora: naquele instante, Natacha quase odiou aquela princesa velha e seca, que podia deixá-la em tal situação constrangedora e passar meia hora com ela sem dizer nada sobre o príncipe Andrei. “Pois eu não podia começar a falar sobre ele diante dessa francesinha”, pensou Natacha. A princesa Mária, enquanto isso, atormentava-se pela mesma razão. Sabia o que tinha de falar com Natacha, mas não conseguia fazer isso, porque Mlle Bourienne a deixava constrangida, e também porque, sem que ela mesma soubesse a razão, era muito penoso falar sobre aquele casamento. Quando o conde já havia saído do quarto, a princesa Mária aproximou-se de Natacha a passos ligeiros, segurou a mão dela e, depois de um suspiro profundo, disse: “Espere, eu preciso...”. Natacha fitou a princesa Mária com ar irônico, sem saber por quê.
— Querida Nathalie — disse a princesa Mária. — Saiba que estou feliz por meu irmão ter encontrado a felicidade... — Ela se deteve, sentindo que não dizia a verdade. Natacha percebeu aquela interrupção e adivinhou o motivo.
— Acho, princesa, que agora não convém falar sobre isso — disse Natacha, com dignidade exterior, com frieza e com lágrimas que sentiu na garganta.
“O que eu disse, o que eu fiz!”, pensou Natacha, assim que saiu do quarto.
Naquele dia, esperaram por muito tempo que Natacha viesse jantar. Estava no quarto e chorava como uma criança, fungava e soluçava. Sônia estava ao seu lado e beijava os cabelos dela.
— Natacha, o que é que tem? — perguntava. — Que importância eles têm para você? Tudo vai dar certo, Natacha.
— Não, se você soubesse como é ofensivo... é como se eu...
— Não fale, Natacha, você não tem culpa de nada, então que importância tem isso? Beije-me — disse Sônia.
Natacha levantou a cabeça e, depois de beijar sua amiga nos lábios, estreitou o rosto molhado ao rosto de Sônia.
— Não consigo falar, não sei. Ninguém tem culpa — disse Natacha. — Eu sou a culpada. Tudo isso dói horrivelmente. Ah, por que ele não vem?...
Com os olhos vermelhos, foi jantar. Mária Dmítrievna, ciente da maneira como o príncipe havia recebido os Rostóv, fingia não perceber o rosto aflito de Natacha e, em voz alta e firme, dizia gracejos à mesa para o conde e para os outros convidados.
VIII
Naquela noite, os Rostóv foram à ópera, para a qual Mária Dmítrievna havia conseguido ingressos.
Natacha não tinha vontade de ir, mas era impossível esquivar-se da gentileza de Mária Dmítrievna, premeditada exclusivamente para ela. Quando Natacha, já vestida, veio para a sala, à espera do pai, e lançou um olhar para o espelho grande, viu que estava bonita, muito bonita, e sentiu-se ainda mais triste; porém de uma tristeza doce e amorosa.
“Meu Deus! Se ao menos ele estivesse aqui, eu não teria agido como fiz, com essa timidez estúpida diante de qualquer coisa, e sim de um jeito novo, simples, eu o abraçaria, me apertaria a ele, eu o obrigaria a olhar para mim com aqueles olhos penetrantes, curiosos, com os quais tantas vezes ele me olhava, e depois eu o obrigaria a rir, como ria antes, e os seus olhos, eu estou até vendo aqueles olhos!”, pensou Natacha. “Mas o que tenho eu a ver com o pai e a irmã dele: amo só a ele, ele, ele, com aquele rosto e aqueles olhos, com o seu sorriso, másculo e ao mesmo tempo infantil... Não, é melhor não pensar nele, não pensar, esquecer, esquecer completamente neste momento. Eu não vou suportar essa espera, estou à beira de chorar”, e afastou-se do espelho, fazendo um esforço para não chorar. “Mas como a Sônia consegue amar Nikólienka de modo tão constante, sereno, e esperar tanto tempo e com tanta paciência?”, pensou Natacha, olhando para Sônia, que chegava também já vestida, com um leque na mão. “Não, ela é muito diferente. Eu não consigo!”
Natacha sentia-se tão comovida e enternecida naquele momento que não lhe bastava amar e saber que era amada: agora, tinha necessidade de abraçar o homem amado, falar e ouvir dele as palavras de amor de que seu coração estava cheio. Enquanto andava até a carruagem, sentava ao lado do pai e olhava pensativa as luzes das lanternas da rua que cintilavam através da janela coberta de gelo, Natacha sentia-se ainda mais apaixonada e triste e esqueceu com quem estava e para onde ia. A carruagem dos Rostóv entrou na fila de carruagens e, com as rodas rangendo lentamente sobre a neve, seguiu rumo ao teatro. Natacha e Sônia desceram da carruagem às pressas, levantando os vestidos; o conde desceu apoiando-se nos lacaios e, em meio às senhoras e aos cavalheiros que entravam no teatro e aos vendedores de programas, os três seguiram para o corredor dos camarotes do primeiro andar. Atrás das portas entreabertas, já se ouviam os sons da música.
— Nathalie, vos cheveux 26 — sussurrou Sônia. O camaroteiro esgueirou-se para o lado, rápido e respeitosamente diante das damas, e abriu a porta do camarote. A música se fez ouvir com mais clareza, através da porta rebrilharam as fileiras de camarotes, iluminados pelos ombros e braços desnudos das damas, e a plateia, que rumorejava e reluzia de uniformes. Uma dama entrou no corredor que levava ao camarote vizinho e lançou para Natacha um olhar invejoso de mulher. A cortina ainda não havia subido, e estavam tocando a abertura da ópera. Natacha, ajeitando o vestido, avançou junto com Sônia e sentou-se, lançando um olhar para as fileiras de camarotes iluminados no lado oposto. A sensação, que não experimentava fazia muito tempo, de ter centenas de olhos voltados para os seus braços e para o seu pescoço desnudos dominou-a de repente de um modo agradável, e também desagradável, e despertou uma série de lembranças, desejos e emoções ligados àquela sensação.
Natacha e Sônia, duas moças de beleza notável, e o conde Iliá Andreitch, que fazia muito não era visto em Moscou, atraíam as atenções gerais. Além disso, todos sabiam vagamente do noivado de Natacha com o príncipe Andrei, sabiam que, desde então, os Rostóv moravam no campo e, com curiosidade, observavam a noiva de um dos melhores partidos da Rússia.
Natacha ficara mais bonita no campo, como todos lhe diziam, mas naquela noite, graças ao seu estado de agitação, estava especialmente bonita. Ela impressionava pela plenitude de vida e de beleza, associada à indiferença a tudo o que a cercava. Seus olhos negros fitavam a multidão sem encontrar ninguém, o braço fino, desnudo até acima do cotovelo, se apoiava no parapeito de veludo do camarote, enquanto a mão, num gesto obviamente inconsciente, fechava e abria no ritmo da música de abertura, amassando o programa da ópera.
— Olhe lá a Alénina — disse Sônia. — Está com a mãe, parece.
— Meu Deus! Mikhail Kirílitch ficou ainda mais gordo! — disse o velho conde.
— Olhem só a touca da nossa Anna Mikháilovna!
— Os Karáguin, a Julie, e o Boris está com eles. Dá para ver logo que estão noivos.
— Drubetskói fez o pedido de casamento! Como não? Foi anunciado hoje — disse Chinchin, que entrou no camarote dos Rostóv.
Natacha olhou para onde o pai olhava e avistou Julie, que com pérolas no pescoço vermelho e grosso (Natacha sabia que estava coberto de pó de arroz) estava sentada, com ar alegre, ao lado da mãe. Atrás delas, com um sorriso que aproximava a orelha à boca de Julie, via-se a cabeça bonita de Boris, com um penteado muito liso. Ele olhava de soslaio para os Rostóv e, sorrindo, dizia algo para a sua noiva.
“Estão falando de nós, de mim e dele!”, pensou Natacha. “Na certa, ele está aplacando os ciúmes que sua noiva tem de mim. Pois estão perdendo tempo! Se soubessem como dou pouca importância ao que eles pensam.”
Atrás, estava sentada Anna Mikháilovna, com a touca verde e o rosto festivo, feliz e devotado à vontade de Deus. No camarote deles, havia aquela atmosfera de noiva e noivo, que Natacha conhecia tão bem e amava. Virou-se para o outro lado e, de repente, lembrou-se de tudo o que houvera de humilhante na visita daquela manhã.
“Que direito tem ele de não querer me aceitar na sua família? Ah, é melhor não pensar nisso, não pensar, até a chegada dele!”, disse para si e passou a observar os rostos conhecidos e desconhecidos na plateia. Diante da plateia, bem no centro, em pé, de costas para a ribalta e apoiado nos cotovelos, estava Dólokhov, com uma enorme mecha do cabelo encaracolado penteada para cima, num traje ao estilo persa. Estava bem à vista de todo o teatro, ciente de que chamava a atenção da sala inteira, e se mostrava tão à vontade como se estivesse no próprio quarto. À sua volta, agrupava-se a juventude mais brilhante de Moscou, e Dólokhov, visivelmente, tinha a primazia entre eles.
O conde Iliá Andreitch, rindo, deu um empurrãozinho na ruborizada Sônia, enquanto lhe apontava o antigo admirador.
— Reconheceu? — perguntou. — De onde ele saiu? — voltou-se o conde para Chinchin. — Andou sumido.
— Sumiu mesmo — respondeu Chinchin. — Foi para o Cáucaso, mas fugiu de lá, dizem que foi ministro de algum príncipe regente na Pérsia, e lá matou o irmão do xá; pois é, agora todas as jovens fidalgas de Moscou andam loucas por ele! Dolochoff le Persan, e acabou-se. Agora, não há conversa em que não se fale de Dólokhov: juram pelo nome dele, chamam os outros para vê-lo, como se oferecessem um prato de esturjão — disse Chinchin. — Dólokhov e Anatole Kuráguin deixaram loucas todas as nossas jovens fidalgas.
No camarote vizinho, entrou uma dama alta, bonita, com uma trança enorme, ombros e pescoço fartos, brancos e muito desnudos, com um colar duplo de pérolas grandes, que demorou muito para se instalar na cadeira, enquanto seu vestido de seda grossa rumorejava.
Natacha não pôde deixar de observar aquele pescoço, aqueles ombros, aquele penteado e admirou-se com a beleza dos ombros e das pérolas. Na hora em que Natacha olhava pela segunda vez para ela, a dama virou-se e, ao encontrar os olhos do conde Iliá Andreitch, cumprimentou-o com um meneio de cabeça e sorriu. Era a condessa Bezúkhova, esposa de Pierre. Iliá Andreitch, que conhecia todos na sociedade, inclinou-se na direção dela e começou a falar.
— Faz tempo que está na cidade, condessa? — disse. — Irei, irei visitá-la e beijar sua mão. Pois acabei de chegar para tratar de negócios, mas aqui estão as minhas meninas, eu as trouxe comigo. Dizem que Semiónova representa de modo incomparável27 — disse. — O conde Piotr Kirílovitch nunca se esquece de nós. Onde está ele, agora?
— Sim, ele queria vir — respondeu Hélène e olhou para Natacha com atenção.
O conde Iliá Andreitch sentou-se de novo no seu lugar.
— Então, não é bonita? — sussurrou para Natacha.
— Maravilhosa! — respondeu Natacha. — Os homens devem se apaixonar na mesma hora! — Naquele momento, ouviram-se os últimos acordes da abertura, e começaram a soar as batidas da batuta do maestro. Na plateia, alguns retardatários tomaram seus assentos, e a cortina foi erguida.
Assim que ergueram a cortina, nos camarotes e na plateia todos ficaram em silêncio, e todos os homens, velhos e jovens, de uniforme e de fraque, todas as mulheres, com pedras preciosas sobre o corpo nu, voltaram para o palco toda a atenção, com ávida curiosidade. Natacha também se pôs a assistir.
IX
No centro do palco havia tábuas lisas, nos cantos erguiam-se formas de papelão pintado representando árvores, atrás se estendia uma tela acima das tábuas. No centro do palco, moças estavam sentadas, de corpete vermelho e saia branca. Uma delas, muito gorda, de vestido branco de seda, mantinha-se mais à parte, sentada num banquinho baixo, atrás do qual estava colado um papelão verde. Todas estavam cantando. Quando terminaram a canção, a moça de branco aproximou-se da cabine do ponto, e um homem de calça de seda colante nas pernas grossas, com uma pluma e um punhal, aproximou-se dela e começou a cantar e a abrir os braços.
O homem de calça colante cantou sozinho, depois ela cantou. Depois os dois ficaram calados, a música continuou, e o homem começou a contar os compassos com os dedos, tocando na mão da moça de vestido branco, visivelmente à espera do compasso em que, de novo, ia começar a cantar a sua parte junto com ela. Os dois cantaram juntos até o fim, e todos no teatro começaram a gritar e a bater palmas, enquanto o homem e a mulher sobre o palco, que faziam papel de apaixonados, começaram a sorrir e, abrindo os braços, curvavam-se para agradecer.
Depois da temporada no campo, e no estado de espírito sério em que Natacha se encontrava, tudo aquilo era absurdo e surpreendente para ela. Não conseguia acompanhar o sentido da ópera, não conseguia nem escutar a música: só enxergava os papelões pintados, os homens e as mulheres com roupas estranhas que se moviam, falavam e cantavam de modo estranho, sob a luz radiosa; Natacha sabia que tudo aquilo era para representar, mas tudo aquilo era tão falso e afetado, tão artificial, que ela ora sentia vergonha pelos atores, ora tinha vontade de rir deles. Olhava à sua volta, para o rosto dos espectadores, procurando neles o mesmo sentimento de ridículo e de perplexidade que havia nela; porém todos os rostos estavam atentos para o que se passava no palco e exprimiam, assim pareceu a Natacha, uma admiração fingida. “Na certa, tem de ser assim mesmo!”, pensou Natacha. Virava-se e olhava, alternadamente, ora para as fileiras de cabeças empomadadas na plateia, ora para as mulheres desnudas nos camarotes, em especial para a sua vizinha Hélène, que, totalmente despida, com um sorriso leve e sereno, sem baixar os olhos, olhava para o palco. Sentindo em si a luz radiosa que se derramava por toda a sala e o ar quente, aquecido pela multidão, aos poucos Natacha começou a se aproximar de um estado de embriaguez que não experimentava havia muito tempo. Não lembrava quem era, onde estava, nem o que se passava na sua frente. Olhava e pensava, e os pensamentos mais estranhos surgiam inesperadamente, sem nexo, na sua cabeça. Ora lhe vinha a ideia de pular para cima do parapeito do camarote e cantar a ária que a atriz estava cantando, ora tinha vontade de cutucar com o leque um velho sentado perto dela, ou então de inclinar-se na direção de Hélène e fazer-lhe cócegas.
Num dos minutos em que tudo ficava em silêncio no palco, à espera do começo de uma ária, a porta de entrada rangeu, e, pelo tapete da plateia do lado oposto ao do camarote dos Rostóv, ressoaram os passos de um homem retardatário. “Lá está ele, Kuráguin!”, sussurrou Chinchin. A condessa Bezúkhova virou-se, sorrindo, para o homem que entrara. Natacha olhou na mesma direção que os olhos da condessa Bezúkhova e avistou um ajudante de ordens de beleza extraordinária, que se aproximou do camarote delas com um aspecto confiante e ao mesmo tempo educado. Era Anatole Kuráguin, que ela vira e notara, muito tempo antes, num baile em Petersburgo. Agora, vestia uniforme de ajudante de ordens, com dragonas e alamares. Caminhava num passo contido, jovial, que seria ridículo se ele não fosse tão bonito e se não houvesse tamanha expressão de alegria e de contentamento cordial em seu belo rosto. Apesar de a ópera já estar em andamento, Kuráguin, sem se apressar, caminhou pelo tapete do corredor inclinado, fazendo retinir as esporas e o sabre, com a cabeça bonita e perfumada erguida de modo firme. Depois de lançar um olhar para Natacha, ele se aproximou da irmã, colocou a mão, calçada numa luva bem justa, sobre o parapeito do camarote da condessa, meneou a cabeça para ela e, inclinando-se, perguntou algo, apontando para Natacha.
— Mais charmante! 28 — disse ele, visivelmente referindo-se a Natacha, de um modo que ela não só ouvisse como também entendesse pelos movimentos dos lábios. Depois ele seguiu para a primeira fila, sentou-se ao lado de Dólokhov e, de forma amistosa e descontraída, tocou com o cotovelo o mesmo Dólokhov com quem os outros se portavam de modo tão bajulador. Piscou um olho para ele alegremente, sorriu, suspendeu os pés e apoiou-os na beira da ribalta.
— Como a irmã e o irmão se parecem! — disse o conde. — E como os dois são bonitos.
Chinchin, a meia-voz, começou a contar para o conde a história de uma intriga de Kuráguin em Moscou, à qual Natacha escutou justamente por ele dito que ela era charmante.
Terminou o primeiro ato, na plateia todos se levantaram, embaralharam-se e se puseram a caminhar, entrando e saindo.
Boris veio ao camarote dos Rostóv, recebeu os parabéns de maneira muito simples e, com as sobrancelhas levantadas e um sorriso distraído, transmitiu a Natacha e a Sônia o pedido de sua noiva de que fossem ao casamento, e saiu. Natacha, com um sorriso alegre e sedutor, conversou com ele e parabenizou pelo casamento o mesmo Boris com quem antes havia namorado. No estado de embriaguez em que se achava, tudo parecia simples e natural.
A nua Hélène estava sentada perto de Natacha e sorria igualmente para todos; Natacha sorrira da mesma forma para Boris.
O camarote de Hélène estava cheio e cercado do lado da plateia pelos homens mais notáveis e inteligentes, que pareciam competir no intuito de mostrar a todos que eram conhecidos da condessa.
Kuráguin, durante todo o intervalo, ficou ao lado de Dólokhov, junto à ribalta, olhando para o camarote dos Rostóv. Natacha sabia que Kuráguin estava falando sobre ela, e isso lhe dava prazer. Natacha até virou-se para que ele visse o seu perfil, o seu melhor ângulo, na opinião dela. Antes do início do segundo ato, surgiu na plateia a figura de Pierre, que ainda não estivera com os Rostóv desde que tinham chegado à cidade. O rosto de Pierre estava triste, e ele havia engordado mais ainda, desde a última vez que Natacha o vira. Pierre, sem ninguém notar, foi para as primeiras filas. Anatole aproximou-se dele e começou a lhe falar alguma coisa, enquanto olhava e apontava para o camarote dos Rostóv. Pierre, depois de avistar Natacha, animou-se e seguiu depressa entre as fileiras de poltronas na direção do camarote dos Rostóv. Ao chegar diante deles, Pierre apoiou-se no cotovelo e, sorrindo, conversou demoradamente com Natacha. Durante a conversa com Pierre, Natacha ouviu no camarote da condessa Bezúkhova uma voz de homem e, por algum motivo, reconheceu ser de Kuráguin. Virou-se, e os olhos dos dois se encontraram. Ele, quase sorrindo, fitou-a direto nos olhos, com um olhar tão cheio de admiração, tão carinhoso, que pareceu estranho para Natacha estar tão perto dele, olhar assim para Kuráguin, estar tão segura de lhe agradar, e não ser uma pessoa íntima dele.
No segundo ato, havia papelões que representavam túmulos e um buraco na tela que representava a lua, tinham suspendido uns abajures na ribalta, as trompas e os contrabaixos começaram a tocar em timbre grave, e da esquerda e da direita vieram muitas pessoas em mantos pretos. As pessoas puseram-se a abanar as mãos, mas nas suas mãos havia uma espécie de punhal; depois entraram correndo mais algumas pessoas e começaram a puxar para a frente a mesma jovem que antes estava de branco, mas que agora usava um vestido azul-claro. Não a levaram de uma vez, em vez disso cantaram junto com ela por muito tempo, só depois a levaram, e nos bastidores bateram três vezes em algum objeto de ferro, todos se puseram de joelhos e entoaram uma prece. Por várias vezes, toda aquela encenação foi interrompida pelos gritos entusiasmados dos espectadores.
Durante aquele ato, toda vez que Natacha lançava um olhar para a plateia via Anatole Kuráguin com o braço jogado para trás do encosto da poltrona, olhando para ela. Agradava a Natacha ver que Kuráguin estava tão cativado por ela, e nem lhe passava pela cabeça que houvesse naquilo algo de ruim.
Quando terminou o segundo ato, a condessa Bezúkhova levantou-se, virou-se para o camarote dos Rostóv (seu peito estava totalmente desnudo), com um dedo enluvado chamou o velho conde e, sem dar atenção às pessoas que entravam em seu camarote, começou a conversar com ele, sorrindo de maneira amável.
— Mas me apresente as suas filhas encantadoras — disse a condessa. — Toda a cidade não cansa de falar delas, e eu não as conheço.
Natacha levantou-se e fez uma reverência para a magnífica condessa. Natacha gostou tanto de ser elogiada por aquela beldade esplêndida que ficou vermelha de prazer.
— Agora eu também quero me tornar uma moscovita — disse Hélène. — Como o senhor não se envergonha de manter tais pérolas enterradas no campo?
A condessa Bezúkhova tinha, com justiça, a reputação de mulher cativante. Era capaz de falar o que não pensava e, sobretudo, adular de uma forma absolutamente simples e natural.
— Não, caro conde, o senhor vai permitir que agora eu cuide de suas filhas. Embora eu não vá ficar em Moscou por muito tempo, e o senhor também não, vou me esforçar para diverti-las. Ainda em Petersburgo, ouvi falar muito sobre a senhora e queria conhecê-la — disse para Natacha, com o seu sorriso monotonamente bonito. — Ouvi falar da senhora por um conhecido, Drubetskói. A senhora sabia que ele vai casar? E também por um amigo do meu marido, Bolkónski, o príncipe Andrei Bolkónski — disse com uma ênfase especial, indicando assim que conhecia as relações entre ele e Natacha. A fim de se conhecerem melhor, pediu que uma das jovens fidalgas ficasse com ela em seu camarote no resto do espetáculo, e Natacha passou para o camarote da condessa.
No terceiro ato, o palco representava um palácio, com muitas velas acesas, e havia quadros pendurados com a imagem de cavaleiros de barbicha. Na frente estavam, ao que parecia, o rei e a rainha. O rei brandiu a mão direita e, visivelmente intimidado, cantou mal alguma coisa e sentou-se num trono rubro. A moça, que no início estava de branco e depois de azul-claro, agora vestia só um camisolão, de cabelos soltos, e estava parada perto do trono. Cantou alguma coisa com amargura, voltando-se para a rainha; mas o rei brandiu a mão com ar severo e, dos cantos, entraram homens de pernas nuas e mulheres de pernas nuas e começaram a dançar, todos juntos. Depois os violinos tocaram, muito agudos e alegres. Uma das moças, de pernas nuas e grossas e braços magros, separou-se das outras, saiu para os bastidores, ajeitou o corpete, veio para o meio do palco e começou a pular e a bater depressa um pé no outro. Todos na plateia aplaudiram e gritaram “Bravo”. Em seguida, um homem se colocou num canto. Na orquestra, os címbalos e as trompas tocaram mais alto, e um daqueles homens de pernas nuas começou a pular muito alto e a cruzar rapidamente os pés no ar. (Aquele homem era Duport, que ganhava sessenta mil rublos de prata em troca daquela arte.) Todos na plateia, nos camarotes e na galeria começaram a aplaudir e a gritar com toda a força, e o homem parou, começou a sorrir e a curvar-se para todos os lados. Depois, dançaram ainda outros homens e mulheres, de pernas nuas, depois de novo o rei gritou alguma coisa por cima da música, e todos começaram a cantar. Mas de repente se formou uma tormenta, na orquestra ressoaram escalas cromáticas e acordes de sétima menor, todos correram e de novo arrastaram uma das pessoas para os bastidores, e a cortina baixou. Ergueu-se de novo entre os espectadores um rumor e um estrondo terrível, e todos passaram a gritar, com o rosto entusiasmado:
— Diupora! Diupora! Diupora!
Natacha já não achava aquilo estranho. Com prazer, sorrindo alegremente, olhava à sua volta.
— N’est-ce pas qu’il est admirable... Duport? 29 — perguntou Hélène, dirigindo-se a Natacha.
— Oh, oui 30 — respondeu Natacha.
X
No intervalo, no camarote de Hélène, soprou um ar frio, a porta se abriu, e, curvando-se e tentando não esbarrar em ninguém, entrou Anatole.
— Permita que lhe apresente o meu irmão — disse Hélène, enquanto os olhos iam e vinham de modo inquieto de Natacha para Anatole. Natacha virou a cabeça bonita, por cima do ombro nu, para o belo rapaz e sorriu. Anatole, que de perto era tão bonito quanto de longe, sentou-se perto dela e disse que havia muito desejava ter aquele prazer, desde o baile de Naríchkin, em que tivera o prazer, que não esquecera, de ver Natacha. Kuráguin era muito mais simples e mais inteligente com as mulheres do que na companhia dos homens. Falava de maneira decidida e simples, e Natacha ficou agradavelmente impressionada não só por não haver nada de tão terrível naquele homem, sobre o qual contavam tantas histórias, como também por ele ter, ao contrário disso, um sorriso muito simpático e ingenuamente alegre.
Anatole Kuráguin perguntou qual a sua impressão do espetáculo e contou que, num espetáculo anterior, Semiónova havia caído enquanto representava.
— Sabe, condessa — disse ele, de repente voltando-se para Natacha como se ela fosse uma pessoa conhecida havia muito tempo —, vamos promover uma competição de fantasias; a senhora precisa participar: vai ser muito divertido. Todos vão se reunir na casa dos Arkhárov. Por favor, venha, não falte, hein? — exclamou.
Enquanto dizia aquilo, ele não desviava os olhos sorridentes do rosto, do pescoço e dos braços nus de Natacha. Ela sabia sem dúvida alguma que Anatole estava encantado com ela. Aquilo agradava a Natacha, mas por algum motivo sentia-se constrangida, acalorada e aflita na presença dele. Quando não estava olhando para ele, Natacha sentia que Anatole olhava para os seus ombros e, sem querer, interceptava o olhar dele para que, em vez disso, olhasse para os seus olhos. Porém, quando o fitava nos olhos, Natacha sentia com temor que, entre Anatole e ela, não havia aquela barreira de pudor que sempre sentira entre ela e outros homens. Sem que ela mesma soubesse como, em cinco minutos já se sentia tremendamente próxima daquela pessoa. Quando Natacha se virava e lhe dava as costas, temia que ele segurasse por trás o seu braço nu, a beijasse no pescoço. Os dois conversavam sobre as coisas mais simples, mas Natacha sentia que eram pessoas próximas, como ela nunca fora de um homem. Natacha voltava os olhos para Hélène e para o pai, como se lhes perguntasse o que aquilo significava; mas Hélène estava ocupada numa conversa com um certo general e não respondeu ao seu olhar, ao passo que o olhar do pai nada lhe dizia, além do que ele sempre falava: “Está se divertindo? Então eu também estou contente”.
Num dos minutos de silêncio embaraçoso, momentos em que Anatole, com seus olhos proeminentes, a observava com calma e tenacidade, Natacha, a fim de interromper aquele silêncio, perguntou-lhe se gostava de Moscou. Natacha perguntou e ruborizou-se. O tempo todo, ao conversar com ele, lhe parecia que fazia algo indecente. Anatole sorriu, como que para animá-la.
— No início, gostei pouco de Moscou, porque o que torna uma cidade agradável? Ce sont les jolies femmes, não é verdade? Mas agora estou gostando muito — disse, olhando para ela de modo significativo. — A senhora irá à competição de fantasias, não é, condessa? Por favor, não deixe de ir — disse, estendeu a mão para o buquê de Natacha e, baixando a voz, falou: — Vous serez la plus jolie. Venez, chère comtesse, et comme gage donnez-moi cette fleur.31
Natacha não entendeu o que ele tinha dito, assim como o próprio Anatole, mas ela sentiu que nas suas palavras incompreensíveis havia um sentido indecente. Natacha não sabia o que dizer e lhe deu as costas, como se não estivesse ouvindo o que ele dizia. Mas, assim que se virou, pensou que ele estava ali atrás, tão perto dela.
“Como ele está agora? Confuso? Irritado? Será preciso consertar isso?”, perguntava a si mesma. Natacha não conseguiu se conter e ficar sem olhar para ele. Virou-se e fitou-o direto nos olhos, e a proximidade de Anatole, a sua convicção e o carinho bondoso do seu sorriso a conquistaram. Natacha sorriu também, igual a ele, fitando-o direto nos olhos. E de novo, com horror, ela sentiu que não havia nenhuma barreira entre os dois.
A cortina foi erguida de novo. Anatole saiu do camarote, tranquilo e alegre. Natacha voltou para o camarote do pai, já completamente subjugada por aquele mundo em que se encontrava. Tudo o que se passava diante dela já lhe parecia completamente natural; por outro lado, nenhum dos seus pensamentos anteriores sobre o noivo, sobre a princesa Mária, sobre a vida no campo, lhe vinha à cabeça nem uma vez, como se tudo aquilo pertencesse a um passado muito, muito remoto.
No quarto ato havia uma espécie de diabo que cantava, abanando o braço, até que puxaram as tábuas debaixo dos pés dele, e ele caiu por ali. Foi só isso o que Natacha viu do quarto ato: algo a perturbava e afligia, e o motivo da perturbação era Kuráguin, a quem ela, sem querer, acompanhava com os olhos. Quando saíram do teatro, Anatole aproximou-se dos Rostóv, chamou a carruagem deles e ajudou-os a subir. Ao ajudar Natacha, apertou seu braço acima do cotovelo. Natacha, perturbada, vermelha e feliz, virou-se para ele. Anatole, com um brilho nos olhos e sorrindo com ternura, a fitava.
Assim que chegaram em casa, Natacha pôde refletir com clareza a respeito de tudo o que estava acontecendo com ela e, de repente, lembrou-se do príncipe Andrei, ficou horrorizada e, durante o chá que todos foram tomar após o teatro, deixou escapar uma exclamação, ficou vermelha e saiu correndo da sala. “Meu Deus! Estou perdida!”, disse consigo. “Como pude descer a este ponto?”, pensou. Ficou muito tempo sentada, o rosto vermelho coberto pelas mãos, tentando dar a si mesma uma resposta clara sobre o que se passava com ela, e não conseguia entender o que se passava com ela nem o que sentia. Tudo lhe parecia sombrio, obscuro e terrível. Lá, naquele salão enorme e iluminado, onde, sobre as tábuas úmidas, com as pernas nuas e uma jaqueta enfeitada de lantejoulas, Duport pulava ao som da música, e as moças, os velhos e a nua Hélène, com um sorriso tranquilo e orgulhoso, gritavam “Bravo” com entusiasmo — lá, à sombra daquela Hélène, lá, tudo aquilo era claro e simples; porém, agora, sozinha consigo mesma, aquilo era incompreensível. “O que é isso? O que era aquele temor que senti dele? O que são estes remorsos que estou sentindo agora?”, pensava Natacha.
Apenas para a velha condessa, à noite, em sua cama, Natacha seria capaz de contar tudo o que estava pensando. Sônia, Natacha sabia, com seu olhar severo e íntegro, ou não entenderia nada, ou ficaria horrorizada com a sua confissão. Natacha se esforçava para resolver sozinha aquilo que a atormentava.
“Será que estou perdida para o amor do príncipe Andrei, ou não?”, perguntou-se Natacha, e respondeu para si mesma, com zombaria tranquilizante: “Que tola eu sou de perguntar uma coisa dessas! O que aconteceu comigo? Nada. Não fiz nada, não provoquei nada disso. Ninguém vai saber, e eu nunca mais vou vê-lo”, disse consigo. “Portanto está claro que não aconteceu nada, não há nada do que se arrepender, o príncipe Andrei pode me amar também como estou. Mas como estou? Ah, meu Deus! Por que ele não está aqui?” Natacha acalmou-se por um momento, mas depois, de novo, uma espécie de instinto lhe disse que, embora tudo aquilo fosse verdade e embora não tivesse acontecido nada — o instinto lhe disse que toda a antiga pureza do seu amor pelo príncipe Andrei estava perdida. E Natacha repetiu de novo em pensamento toda a sua conversa com Kuráguin e visualizou o rosto, os gestos e o sorriso terno daquele homem bonito e decidido, no momento em que ele apertou o seu braço.
XI
Anatole Kuráguin estava morando em Moscou porque o pai o mandara embora de Petersburgo, onde esbanjava mais de vinte mil rublos por ano, em dinheiro, e onde fizera dívidas no mesmo valor, que os credores vinham cobrar do pai.
O pai comunicou ao filho que pagaria pela última vez a metade de suas dívidas; mas só se ele fosse para Moscou na função de ajudante de ordens do comandante em chefe, posto que o pai havia conseguido para ele, e lá conseguisse, afinal, casar com um bom partido. Indicou-lhe a princesa Mária e Julie Karáguina.
Anatole concordou e partiu para Moscou, onde ficou hospedado na casa de Pierre. De início, Pierre recebeu Anatole de má vontade, mas depois se acostumou com ele; às vezes ia com Anatole às suas farras e, à guisa de empréstimos, lhe dava dinheiro.
Anatole, como dissera Chinchin com toda a razão, desde que chegara a Moscou, deixara loucas todas as jovens fidalgas moscovitas, em especial porque as desdenhava e a elas, visivelmente, preferia as ciganas e as atrizes francesas, sobretudo Mlle George, com quem diziam que mantinha relações íntimas. Anatole não perdia nenhuma orgia na casa de Danílov e de outros farristas de Moscou, bebia noites inteiras em sequência, bebia mais que todos, e não faltava a nenhuma festa ou baile da alta sociedade. Falavam de várias intrigas suas com damas de Moscou e, nos bailes, ele flertava com algumas. Porém, com as mocinhas, em especial com as casadouras ricas, que na maior parte eram feias, Anatole não queria nada, ainda mais porque ele, fato que ninguém sabia, exceto seus amigos mais chegados, havia casado dois anos antes. Na ocasião em que seu regimento ficara estacionado na Polônia, dois anos antes, um fazendeiro polonês sem fortuna obrigara Anatole a casar com a sua filha.
Anatole abandonara a esposa logo depois e, em troca de um dinheiro que combinou mandar para o sogro, garantira para si o direito de se fazer passar por um homem solteiro.
Anatole estava sempre satisfeito com a sua situação, satisfeito consigo e com os outros. De modo instintivo, com todo o seu ser, estava convencido de que para ele era impossível viver de outra maneira, senão daquela como vivia, e de que nunca fizera nada de ruim em toda a vida. Era incapaz de conceber que suas ações podiam afetar outras pessoas, ou imaginar o que poderia resultar desta ou daquela ação praticada por ele. Anatole estava convencido de que, assim como um pato foi criado para viver na água, também ele tinha sido criado por Deus para viver com uma renda de trinta mil rublos e para ocupar sempre a posição de mais destaque na sociedade. Anatole acreditava nisso com tanto afinco que, ao olhar para ele, até os outros se convenciam da mesma coisa e não lhe recusavam nem a posição de mais destaque na sociedade nem o dinheiro, que ele tomava emprestado da primeira pessoa que aparecia na sua frente, obviamente sem dizer nenhuma palavra sobre pagamento.
Não era um jogador, pelo menos nunca queria ganhar no jogo, e também não se importava em perder. Não era vaidoso. Para ele, não tinha a menor importância o que pensavam a seu respeito. Também não podia ser acusado de ambicioso. Várias vezes irritara o pai, ao prejudicar a própria carreira, e desdenhava todas as honrarias. Não era avarento e nunca negava o que lhe pediam. A única coisa que amava era a diversão e as mulheres; e como, na sua opinião, não havia em tal gosto nada de indigno, e como ele era incapaz de imaginar o que poderia resultar para os outros da satisfação do seu gosto, Anatole se considerava, no fundo da alma, uma pessoa irrepreensível, desprezava sinceramente as pessoas canalhas e más e, com a consciência tranquila, andava de cabeça erguida.
Os farristas, esses homens madalenas, assim como as mulheres madalenas, têm o misterioso sentimento de uma consciência inocente, fundamentado na própria esperança do perdão. “A ela, tudo será perdoado, porque amou muito; e a ele, tudo será perdoado, porque se divertiu muito.”
Dólokhov, que naquele ano, depois do exílio e das aventuras persas, reaparecera em Moscou, onde levava uma vida luxuosa, de jogo e de farras, aproximou-se de Kuráguin, seu antigo camarada de Petersburgo, e fazia uso dele para os seus objetivos.
Anatole gostava sinceramente de Dólokhov, por sua inteligência e audácia; Dólokhov, que precisava do nome, da notoriedade, das relações de Anatole Kuráguin como chamariz de jovens ricos para seu círculo de jogo, aproveitava-se de Kuráguin e divertia-se às suas custas, sem deixar que ele percebesse. Além do cálculo, pelo qual ele precisava de Anatole, o próprio processo de comandar a vontade alheia era um prazer, um hábito e uma necessidade para Dólokhov.
Natacha produzira uma forte impressão em Kuráguin. Depois do teatro, durante o jantar, ele descreveu para Dólokhov, com métodos de um perito, as virtudes dos braços, dos ombros, dos pés e do cabelo de Natacha, e anunciou sua decisão de flertar com ela. O que poderia resultar daquele flerte — Anatole não era capaz de saber nem de imaginar, assim como nunca sabia o que resultaria de cada uma de suas ações.
— É bonita, meu amigo, mas não é para nós — disse Dólokhov.
— Vou dizer para a minha irmã convidá-la para almoçar — explicou Anatole. — Que tal?
— Seria melhor esperar até ela casar...
— Você sabe — respondeu Anatole —, j’adore les petites filles: 32 num instante perdem a cabeça.
— Você já foi apanhado uma vez por uma petite fille — disse Dólokhov, que sabia do casamento de Anatole. — Cuidado.
— Bem, é impossível acontecer duas vezes! Hein? — disse Anatole, rindo com animação.
XII
No dia seguinte ao teatro, os Rostóv não foram a lugar nenhum e ninguém veio visitá-los. Mária Dmítrievna, às escondidas de Natacha, conversou demoradamente com o pai dela sobre alguma coisa. Natacha adivinhou que falavam a respeito do velho príncipe e que planejavam algo, e isso a deixava inquieta e ofendida. Esperava a chegada do príncipe Andrei a qualquer momento e por duas vezes naquele dia mandou um criado até a rua Vzdvíjenka para ver se ele não havia chegado. Ele não chegara. Agora Natacha sofria ainda mais do que nos primeiros dias da sua estada em Moscou. À sua impaciência e tristeza por causa do príncipe Andrei somava-se a lembrança desagradável do encontro com a princesa Mária e com o velho príncipe, além de um medo e de uma inquietação cuja causa ela ignorava. Parecia-lhe ou que ele não viria nunca mais, ou que, antes que viesse, alguma coisa aconteceria com ela. Natacha não conseguia pensar no príncipe Andrei de modo calmo e prolongado, sozinha consigo mesma, como fazia antes. Assim que começava a pensar nele, a essa lembrança vinha somar-se a lembrança do velho príncipe, da princesa Mária, do espetáculo recente e de Kuráguin. Natacha voltava a se perguntar se não seria culpada, se não teria rompido sua fidelidade ao príncipe Andrei, e de novo se via recordando, nos mínimos detalhes, cada palavra, cada gesto, cada nuance da fisionomia do rosto do homem que conseguira despertar nela um sentimento terrível e incompreensível. Aos olhos das pessoas da família, Natacha estava mais animada do que o habitual, mas ela estava longe de sentir-se tão calma e feliz como antes.
Domingo de manhã, Mária Dmítrievna convidou os hóspedes para ir à missa na sua paróquia, na igreja da Assunção da Santíssima Mãe de Deus.
— Não gosto dessas igrejas da moda — disse, visivelmente orgulhosa da sua liberdade de pensamento. — Deus é um só em toda parte. Nosso pope é excelente, reza a missa muito bem, até com nobreza, e o diácono também. Por acaso um lugar é mais santo só porque cantam concertos no coro? Não gosto, é só ostentação!
Mária Dmítrievna gostava dos dias de domingo e sabia comemorá-los. Sua casa era toda lavada e limpa no sábado; ela e os criados não trabalhavam, todos se vestiam em trajes de festa e todos iam à missa. Acrescentavam-se pratos extras ao jantar dos patrões e, para os criados, serviam vodca, pato assado ou leitão. Porém, na casa inteira, nada exprimia tanto o dia festivo quanto o rosto largo e severo de Mária Dmítrievna, que nesse dia assumia uma expressão imutável de solenidade.
Quando já haviam tomado o café, depois da missa, na sala de visitas, de cujos móveis tinham sido removidas as capas, avisaram a Mária Dmítrievna que a carruagem estava pronta, e ela, com ar severo, vestindo um xale de gala, com o qual fazia suas visitas, ergueu-se e comunicou que ia à casa do príncipe Nikolai Andréievitch Bolkónski, para conversar a respeito de Natacha.
Depois que Mária Dmítrievna saiu, uma modista do ateliê de Mme Chalmé veio ao encontro dos Rostóv, e Natacha, muito satisfeita com aquela distração, fechou a porta do quarto vizinho à sala de visitas e ocupou-se em experimentar os vestidos novos. Na hora em que provava a parte de cima de um vestido, sem mangas, apenas alinhavado, com os fios ainda à mostra, virando a cabeça para olhar no espelho como estavam as costas, Natacha ouviu, na sala de visitas, o som da voz animada do pai e o som de uma outra voz, de mulher, que a deixou ruborizada. Era a voz de Hélène. Natacha ainda não havia terminado de provar a roupa quando a porta se abriu, e a condessa Bezúkhova adentrou o quarto, radiante, com um sorriso simpático e afetuoso, num vestido de veludo lilás-escuro, de gola alta.
— Ah, ma délicieuse! 33 — disse, para a ruborizada Natacha. — Charmante! Não, não é possível uma coisa dessas, meu caro conde — disse para Iliá Andreitch, que entrou logo atrás. — Como se pode viver em Moscou e não ir a parte alguma? Não, eu não vou mais largar o senhor! Hoje à noite, Mademoiselle George vai declamar em minha casa, e algumas pessoas vão se reunir lá; e se o senhor não for com as suas beldades, que são mais bonitas do que Mademoiselle George, ficarei de mal do senhor. Meu marido não está em casa, partiu para Tvier, se não fosse por isso eu o mandaria vir buscar o senhor. O senhor irá, sem falta, depois das oito horas. — Cumprimentou com a cabeça a modista conhecida, que saudou a condessa com uma reverência, e sentou-se na poltrona junto ao espelho, desdobrando de modo pitoresco as pregas do seu vestido de veludo. Ela não parava de tagarelar de forma simpática e alegre, elogiando o tempo todo a beleza de Natacha. Examinava e elogiava os vestidos dela e também elogiava o próprio vestido novo en gaz métallique,34 que havia recebido de Paris, e recomendou a Natacha que fizesse um igual.
— De resto, tudo fica bem na senhora, minha linda — disse.
O sorriso de satisfação não abandonava o rosto de Natacha. Sentia-se feliz e florescente sob os elogios daquela gentil condessa Bezúkhova, que antes lhe parecia uma dama tão importante e inacessível e que agora se tornara tão boa para ela. Natacha estava alegre e sentia-se quase apaixonada por aquela mulher tão bela e tão simpática. Hélène, por seu lado, elogiava Natacha com sinceridade e queria alegrá-la. Anatole pedira que a irmã o aproximasse de Natacha, e por isso Hélène viera visitar os Rostóv. A ideia de aproximar o irmão de Natacha a divertia.
Embora, tempos antes, em Petersburgo, Hélène tivesse ficado aborrecida com Natacha por haver lhe tomado Boris, agora ela nem pensava mais no assunto e, com todo o coração, e à sua maneira, queria o bem de Natacha. Ao deixar a casa dos Rostóv, Hélène chamou à parte a sua protégée.
— Ontem, meu irmão almoçou na minha casa... Quase morremos de rir... Ele não come e só faz suspirar pela senhora, meu encanto. Il est fou, mais amoureux fou de vous, ma chère.35
Natacha ficou muito vermelha ao ouvir aquelas palavras.
— Como ela fica vermelha, como fica vermelha, ma délicieuse! — exclamou Hélène. — A senhora tem de ir, sem falta. Si vous aimez quelqu’un, ma délicieuse, ce n’est pas une raison pour se cloîtrer. Si même vous êtes promise, je suis sûre que votre promis aurait désiré que vou alliez dans le monde en son absence plutôt que de dépérir d’ennui.36
“Então ela sabe que estou noiva, então ela e o marido, Pierre, o justo Pierre”, pensou Natacha, “conversaram e riram sobre isso. Então isso não tem importância.” E de novo, sob a influência de Hélène, aquilo que antes se apresentava como terrível agora parecia simples e natural. “E ela é tão grande dame, tão gentil e, é evidente, gosta tanto de mim com toda a alma”, pensou Natacha. “E afinal, por que não me divertir?”, pensou, enquanto fitava Hélène com os olhos enormes, arregalados e surpresos.
Mária Dmítrievna voltou na hora do jantar, séria, calada, e era claro que havia sofrido uma derrota na casa do velho príncipe. Ainda estava perturbada demais com o embate recente para ter forças de contar com calma o que ocorrera. A uma pergunta do conde, ela respondeu que estava tudo bem e que no dia seguinte contaria. Ao saber da visita da condessa Bezúkhova e do convite para o sarau, Mária Dmítrievna falou:
— Não gosto de andar com Bezúkhova, e não recomendo isso; mas, bem, se já prometeu, vá, é uma distração — acrescentou, dirigindo-se a Natacha.
XIII
O conde Iliá Andreitch levou suas meninas à casa da condessa Bezúkhova. Havia muita gente no sarau. Mas toda aquela sociedade era desconhecida para Natacha. O conde Iliá Andreitch notou, com descontentamento, que toda aquela sociedade era formada sobretudo por homens e mulheres conhecidos pela liberdade de conduta. Mlle George, rodeada pela juventude, estava num canto da sala. Havia diversos franceses, entre eles Métvier, que desde a chegada de Hélène a Moscou era uma pessoa íntima na casa dela. O conde Iliá Andreitch resolveu não jogar cartas, não se afastar das filhas e ir embora assim que terminasse a apresentação de George.
Anatole, visivelmente, aguardava na porta a chegada dos Rostóv. Logo depois de cumprimentar o conde, aproximou-se de Natacha e seguiu-a. Assim que Natacha o viu, tal como acontecera no teatro, foi dominada por um sentimento de satisfação vaidosa por ser admirada por ele e de temor diante da ausência de barreiras morais entre os dois.
Hélène recebeu Natacha com alegria e elogiou em voz alta sua beleza e sua roupa. Logo após a chegada deles, Mlle George retirou-se para trocar de roupa. Começaram a distribuir cadeiras pela sala e a sentar-se. Anatole empurrou uma cadeira para Natacha e fez menção de sentar ao lado dela, mas o conde, que não tirava os olhos da filha, sentou ao seu lado. Anatole sentou atrás.
Mlle George, com os braços nus, grossos e cheios de covinhas, com um xale vermelho cobrindo um ombro só, veio para um local vazio reservado para ela, entre as cadeiras, e parou numa pose afetada. Ouviu-se um sussurro de entusiasmo.
Mlle George olhou para a plateia com ar severo e sombrio e começou a dizer uns versos em francês, que falavam do seu amor criminoso pelo próprio filho. Erguia a voz em certos trechos, sussurrava em outros, levantando a cabeça com ar de triunfo, em outros trechos parava e, girando os olhos, falava com voz rouca.
— Adorable, divin, délicieux! 37 — ouvia-se de todos os lados. Natacha olhava para a gorda George, mas não escutava nada, não via nem entendia nada do que se passava na sua frente; apenas se sentia de novo, completa e irremediavelmente, naquele mundo estranho, louco, tão distante do mundo anterior, um mundo em que era impossível saber o que era bom e o que era ruim, o que era razoável e o que era louco. Anatole estava sentado atrás dela, e Natacha, sentindo sua proximidade, esperava alguma coisa, assustada.
Depois do primeiro monólogo, todos se levantaram e rodearam Mlle George, manifestando a ela o seu entusiasmo.
— Como é bonita! — disse Natacha para o pai, que se levantara junto com os demais e, em meio à multidão, se movia na direção da atriz.
— Não acho, olhando para a senhora — disse Anatole, seguindo Natacha. Falou isso num momento em que só ela podia ouvi-lo. — A senhora é encantadora... Desde o instante em que a vi, não parei de...
— Vamos, vamos, Natacha — disse o conde, voltando-se para a filha. — Como é bonita!
Natacha, sem dizer nada, aproximou-se do pai e, com olhos admirados e interrogativos, olhava para ele.
Após diversas declamações, Mlle George saiu, e a condessa Bezúkhova pediu à sociedade que passasse para o salão.
O conde quis ir embora, mas Hélène suplicou a ele que não estragasse o seu baile improvisado. Os Rostóv ficaram. Anatole convidou Natacha para uma valsa e, durante a valsa, apertando a sua cintura e a sua mão, disse que ela era ravissante 38 e que a amava. Na hora da escocesa, que Natacha dançou novamente com Kuráguin, quando os dois ficaram sozinhos, Anatole não lhe disse nada, apenas olhava para ela. Natacha estava em dúvida, não sabia se era um sonho ou se de fato tinha visto que ele falara com ela durante a valsa. No fim da primeira figura da dança, Anatole apertou de novo a mão dela. Natacha ergueu para ele os olhos assustados, mas havia uma expressão tão segura e terna no olhar carinhoso e no sorriso de Anatole que ela não conseguiu, olhando para ele, falar aquilo que tinha de falar. Baixou os olhos.
— Não me diga essas coisas, eu estou noiva e amo outro homem — disse depressa... Olhou de relance para ele. Anatole não se encabulou e não se ofendeu com o que ela disse.
— Não me fale disso. O que me importa? — respondeu. — Estou dizendo que estou loucamente, loucamente enamorado da senhora. Por acaso tenho culpa se a senhora é maravilhosa?... É nossa vez de começar.
Natacha, animada e triunfante, com os olhos assustados e muito abertos, olhava ao redor e parecia mais alegre do que o habitual. Não entendia quase nada do que aconteceu naquela noite. Dançaram a escocesa e a Grossvater,39 o pai convidou-a para ir embora, Natacha pediu para ficar. Onde quer que ela estivesse, com quem quer que falasse, sentia em si o olhar dele. Lembrava que, mais tarde, pediu ao pai permissão para ir ao toucador a fim de ajeitar o penteado, que Hélène veio atrás dela e lhe falou sorrindo a respeito do amor do seu irmão, que na saleta ela encontrou-se de novo com Anatole, que Héléne sumiu de repente e que os dois ficaram sozinhos, e que Anatole pegou sua mão e disse, com voz terna:
— Não posso ir à casa da senhora, mas será possível que não a veja nunca? Eu a amo loucamente. Será possível que nunca...? — E, barrando o caminho de Natacha, aproximou seu rosto do rosto dela.
Os grandes olhos masculinos e brilhantes de Anatole estavam tão perto dos seus olhos que Natacha não via mais nada, além daqueles olhos.
— Nathalie?! — a voz dele sussurrou em tom indagador, e alguém apertou as mãos de Natacha de forma dolorosa. — Nathalie?!
“Não sei de nada, não tenho nada o que dizer”, dizia o olhar de Natacha.
Lábios ardentes comprimiram seus lábios, e naquele instante Natacha sentiu-se livre de novo, e no quarto ouviu-se o rumor dos passos e do vestido de Hélène. Natacha virou-se para Hélène, depois, ruborizada e trêmula, lançou para ele um olhar assustado e interrogativo, e seguiu na direção da porta.
— Un mot, un seul mot, au nom de Dieu 40 — disse Anatole.
Natacha se deteve. Precisava muito que ele lhe dissesse aquela palavra que explicaria, para ela, o que havia acontecido, e com a qual Natacha lhe responderia.
— Nathalie, un mot, un seul 41 — ele não parava de repetir, obviamente sem saber mais o que falar, e repetiu a mesma coisa, até que Hélène se aproximou deles.
Hélène e Natacha foram de novo para a sala de visitas. Sem esperar o jantar, os Rostóv foram embora.
Em casa, Natacha passou a noite toda sem dormir; foi atormentada pela questão insolúvel de saber a quem amava: Anatole ou o príncipe Andrei? O príncipe Andrei ela amava — entendia claramente como o amava. Porém o Anatole ela também amava, disso não tinha dúvida. “De outro modo, como tudo isso poderia ter acontecido?”, pensava. “Se eu pude, depois daquilo, responder com um sorriso ao sorriso dele na hora de me despedir, se pude chegar a esse ponto, quer dizer que eu, desde o primeiro minuto, amei Anatole. Quer dizer que ele é bom, nobre e belo, e que era impossível não o amar. O que vou fazer, se amo a ele e também amo outro?”, dizia consigo, sem achar respostas para aquelas perguntas terríveis.
XIV
Veio a manhã, com seus afazeres e seu rebuliço. Todos se levantaram, começaram a se movimentar, falar, de novo vieram as modistas, de novo veio Mária Dmítrievna, e chamaram para o chá. Natacha, com os olhos muito abertos, como se quisesse captar todo e qualquer olhar dirigido a ela, olhava para todos de maneira inquieta e fazia força para se mostrar com o mesmo aspecto de sempre.
Depois do café da manhã, Mária Dmítrievna (era o seu horário predileto) sentou-se na sua poltrona e chamou Natacha e o velho conde para junto de si.
— Pois é, meus amigos, agora eu já refleti sobre toda essa questão, e aqui está o meu conselho para vocês — começou. — Ontem, como vocês sabem, estive na casa do príncipe Nikolai; pois é, e conversei com ele... Agora, inventou de ficar gritando. Mas ninguém grita mais do que eu! Eu soltei os cachorros!
— Mas e ele? — perguntou o conde.
— Ele? Está doido... Não quer nem escutar; ora, mas de que adianta falar, assim só atormentamos a pobre menina — disse Mária Dmítrievna. — Mas o meu conselho é que terminem os seus assuntos aqui e voltem para casa, para Otrádnoie... e fiquem esperando lá...
— Ah, não! — exclamou Natacha.
— Não, é preciso partir — disse Mária Dmítrievna. — E ficar esperando lá. Se o noivo chegasse aqui agora, não há dúvida de que haveria brigas, mas se ele ficar sozinho com o velho tudo será contornado, e depois ele irá ao encontro de vocês.
Iliá Andreitch aprovou aquela proposta, compreendeu de pronto toda a sua sensatez. Se o velho ficasse mais brando, seria melhor vir visitá-lo em Moscou, ou até em Montes Calvos, mais tarde; do contrário, só seria possível casar contra a vontade dele em Otrádnoie.
— É a pura verdade — disse ele. — E lamento ter ido à casa dele e ter levado Natacha — disse o velho conde.
— Não, para que lamentar? Como estavam aqui, era impossível não ir apresentar os seus respeitos. Pois bem, se ele não quer, é problema dele — disse Mária Dmítrievna, enquanto procurava alguma coisa na sua bolsinha. — Aliás, o enxoval está pronto, o que ainda estiverem esperando, o que ainda não estiver pronto, eu mando para vocês. Por mais que eu lamente a partida de vocês, é melhor ir com Deus. — Encontrando dentro da bolsinha aquilo que procurava, entregou para Natacha. Era uma carta da princesa Mária. — Escreveu para você. Como sofre, a pobrezinha! Teme que você não tenha compreendido que ela gosta de você.
— Mas ela não gosta de mim — disse Natacha.
— Não diga bobagens — gritou Mária Dmítrievna.
— Não vou acreditar em ninguém; sei que ela não gosta de mim — atreveu-se a dizer Natacha, depois de pegar a carta, e no seu rosto exprimiu-se uma determinação seca e maldosa, que forçou Mária Dmítrievna a fitá-la atentamente e de rosto zangado.
— Minha querida, não responda assim — disse. — O que estou dizendo é verdade. Escreva para ela.
Natacha não respondeu e foi para o quarto ler a carta da princesa Mária.
A princesa Mária escrevia que estava muito aflita com o mal-entendido que se passara entre elas. A despeito dos sentimentos do pai, escrevia a princesa Mária, pedia para Natacha acreditar que ela não podia deixar de gostar daquela que era a escolhida do seu irmão, e que pela felicidade do irmão ela estava pronta a sacrificar tudo.
“De resto”, escrevia, “não pense que meu pai quer mal a você. É um homem velho e doente, a quem é preciso perdoar; mas ele é bom, generoso e vai amar aquela que fará a felicidade do filho dele.” A princesa Mária pedia também que Natacha indicasse um momento para, quando pudesse, encontrar-se com ela outra vez.
Depois de ler a carta, Natacha sentou-se à escrivaninha a fim de redigir a resposta. “Chère princesse!”, escreveu de forma rápida e mecânica, e parou. O que mais poderia escrever, depois de tudo o que havia ocorrido no dia anterior? “Sim, sim, tudo aquilo aconteceu, e agora já está tudo diferente”, pensou Natacha, diante da carta que mal havia começado. “É preciso romper com ele? Será mesmo preciso? É terrível!...” E, para evitar aqueles pensamentos terríveis, foi ao encontro de Sônia e ficou junto com ela escolhendo desenhos de bordados.
Após o almoço, Natacha foi para o quarto e pegou de novo a carta da princesa Mária. “Será mesmo que está tudo acabado?”, pensou. “Será mesmo que tudo isso aconteceu assim tão rápido e destruiu tudo o que havia?” Com a mesma força de antes, recordou o seu amor pelo príncipe Andrei e, ao mesmo tempo, sentia que amava Kuráguin. Natacha se via nitidamente em pensamento como a esposa do príncipe Andrei, via em pensamento o retrato da felicidade dos dois juntos, tantas vezes repetido na sua imaginação, e ao mesmo tempo ardia de agitação ao ver em pensamento todos os detalhes do seu encontro com Anatole, na véspera.
“Por que não podem ser as duas coisas?”, pensava ela, às vezes, num completo atordoamento. “Só assim eu poderia ser totalmente feliz, mas agora eu tenho de escolher e não posso ser feliz sem um dos dois. Só que”, pensava ela, “contar para o príncipe Andrei o que aconteceu ou esconder isso dele são duas coisas igualmente impossíveis. Porém, com aquele, nada está perdido. Mas será possível abandonar para sempre a felicidade do amor pelo príncipe Andrei, amor com o qual vivi tanto tempo?”
— Patroazinha — disse uma criada, num sussurro e com um ar misterioso, entrando no quarto. — Um homem me mandou entregar. — A criada lhe deu uma carta. — Mas, pelo amor de Deus, patroazinha... — ainda falou a criada, quando Natacha, sem pensar, com um gesto mecânico, rompeu o lacre e leu a carta de amor de Anatole, da qual ela, sem entender nenhuma palavra, compreendeu apenas que vinha dele, daquele homem que ela amava. “Sim, ela o amava, do contrário como poderia ter acontecido o que aconteceu? Era mesmo possível que, na sua mão, estivesse uma carta de amor de Anatole?”
Com as mãos trêmulas, Natacha segurava aquela terrível carta de amor, que Dólokhov escrevera para Anatole, e ao ler a carta encontrava ali ecos do que, assim lhe parecia, ela mesma estava sentindo.
“Desde ontem à noite, meu destino está decidido: ser amado pela senhora, ou então morrer. Não tenho outra saída”, começava a carta. Depois, dizia saber que os pais dela não o aceitariam, que para isso havia motivos secretos, os quais um dia ele poderia revelar para Natacha, mas que, se ela de fato o amava, bastaria dizer uma palavra, “sim”, e nenhuma força humana impediria a felicidade dos dois. O amor havia de derrotar tudo. Ele iria raptá-la e levá-la para o fim do mundo.
“Sim, sim, eu o amo!”, pensou Natacha, relendo a carta pela vigésima vez e procurando em cada palavra um sentido profundo e especial.
Naquela noite, Mária Dmítrievna ia à casa dos Arkhárov e convidou as jovens para ir junto. Natacha, sob o pretexto de uma dor de cabeça, ficou em casa.
XV
Mais tarde, naquela noite, ao voltar para casa, Sônia entrou no quarto de Natacha e, para sua surpresa, encontrou-a ainda vestida dormindo no sofá. Sobre a mesa ao seu lado, estava aberta a carta de Anatole. Sônia pegou a carta e começou a ler.
Sônia lia e olhava para Natacha, que dormia, olhava para o seu rosto, à procura de uma explicação para o que estava lendo, e não encontrava. O rosto estava calmo, dócil e feliz. Apertando o próprio peito para não sufocar, Sônia, pálida e trêmula de medo e de emoção, sentou-se na poltrona e derramou-se em lágrimas.
“Como é que não percebi nada? Como isso pode ter ido tão longe assim? Será que ela deixou de amar o príncipe Andrei? E como pôde permitir que esse Kuráguin chegasse a tal ponto? É um enganador e um canalha, não há a menor dúvida. O que será de Nicolas, o gentil e nobre Nicolas, quando souber disso? Então essa é a explicação para o rosto agitado, decidido e pouco natural de Natacha, anteontem, ontem e hoje”, pensou Sônia. “Mas não é possível que ela ame Kuráguin! Talvez tenha aberto a carta sem saber de quem vinha. Na certa, ficou ofendida. Ela não pode fazer uma coisa dessas!”
Sônia enxugou as lágrimas e aproximou-se de Natacha, observando outra vez o seu rosto.
— Natacha! — disse, de forma quase inaudível.
Natacha acordou e viu Sônia.
— Ah, já voltou?
E, com a decisão e a ternura, que se manifestam no instante do despertar, abraçou a amiga. Mas, ao notar a perturbação no rosto de Sônia, o rosto de Natacha exprimiu perturbação e desconfiança.
— Sônia, você leu a carta? — perguntou.
— Li — respondeu, em voz baixa.
Natacha sorriu, numa euforia.
— Não, Sônia, eu não aguento mais! — disse. — Não posso mais esconder de você. Sabe, nós nos amamos!... Sônia, minha querida, ele escreveu... Sônia...
Como se não acreditasse em seus ouvidos, Sônia fitava, de olhos arregalados, os olhos de Natacha.
— E Bolkónski? — perguntou.
— Ah, Sônia, ah, se você pudesse saber como estou feliz! — disse Natacha. — Você não sabe o que é o amor...
— Mas, Natacha, será possível que tudo aquilo esteja acabado?
Com os olhos bem abertos e enormes, Natacha fitou Sônia como se não compreendesse a sua pergunta.
— Então você rompeu com o príncipe Andrei? — disse Sônia.
— Ah, você não entende nada, não diga bobagens, escute — disse Natacha, com uma irritação momentânea.
— Não, eu não consigo acreditar nisso — repetiu Sônia. — Não compreendo. Como é que você pôde amar um homem durante um ano inteiro e de repente... Afinal, você só o viu três vezes. Natacha, não acredito em você, está brincando, não é? Em três dias, esquecer tudo desse jeito...
— Três dias — disse Natacha. — Para mim, parece que eu o amo há cem anos. Parece que nunca amei ninguém antes dele. Sim, e nunca amei ninguém tanto quanto a ele. Você não pode entender isso, Sônia, espere, sente aqui. — Natacha abraçou e beijou Sônia. — Tinham me contado que isso existia, e você, certamente, também ouviu falar, mas só agora experimentei esse amor. Não é como antes. Assim que o vi, senti que ele é o meu senhor, e eu sou a sua escrava, e que não posso deixar de amá-lo. Sim, escrava! O que ele mandar, eu farei. Você não entende isso. O que posso fazer? O que posso fazer, Sônia? — disse Natacha, com o rosto feliz e assustado.
— Mas pense bem no que está fazendo — disse Sônia. — Não posso deixar que isso fique assim. Essas cartas secretas... Como é que você deixou que ele chegasse a esse ponto? — disse, com um horror e uma repugnância que ela escondia com dificuldade.
— Eu já disse para você — retrucou Natacha — que não tenho mais vontade própria, você não entende isto: eu o amo!
— Não vou permitir que aconteça, eu vou contar — gritou Sônia, rompendo em lágrimas.
— O que você vai fazer, pelo amor de Deus?... Se contar, você é minha inimiga — exclamou Natacha. — Você quer a minha infelicidade, quer que nos separem...
Ao ver o pavor de Natacha, Sônia começou a chorar com lágrimas de vergonha e de pena da amiga.
— Mas o que aconteceu entre vocês? — perguntou. — O que ele lhe disse? Por que ele não vem à nossa casa?
Natacha não respondeu à pergunta.
— Pelo amor de Deus, Sônia, não conte a ninguém, não me faça sofrer — suplicou Natacha. — Você entende que é impossível se intrometer nesses assuntos. Eu revelei a você...
— Mas para que esses segredos? Por que ele não vem à nossa casa? — perguntou Sônia. — Por que ele não pede a sua mão em casamento da maneira correta? Afinal, o príncipe Andrei, se for mesmo assim, deu-lhe toda a liberdade; mas eu não acredito nisso. Natacha, você pensou bem no que podem ser esses “motivos secretos”?
Natacha fitou Sônia com olhos surpresos. Era evidente que ela mesma se fazia aquela pergunta pela primeira vez e não sabia o que responder.
— Que motivos, eu não sei. Mas devem existir motivos!
Sônia suspirou e balançou a cabeça, incrédula.
— Se existem motivos... — começou ela. Mas Natacha, adivinhando as dúvidas de Sônia, interrompeu, assustada.
— Sônia, é impossível duvidar dele, é impossível, impossível, será que você não entende? — gritou.
— Será que ele ama você?
— Se ele me ama? — repetiu Natacha, com um sorriso de pena da falta de compreensão da amiga. — Afinal, você leu a carta, você o viu?
— Mas e se ele for um homem indigno?
— Ele, um homem indigno? Se você soubesse! — disse Natacha.
— Se é um homem digno, ele deve ou comunicar as suas intenções, ou parar de ver você; e se você não quiser fazer isso, eu mesma vou fazer, vou escrever para ele e vou contar para o papai — disse Sônia, decidida.
— Mas eu não posso viver sem ele! — gritou Natacha.
— Natacha, eu não entendo você. O que está dizendo? Pense no papai, no Nicolas.
— Não preciso de ninguém, não amo ninguém a não ser ele. Como você se atreve a dizer que ele não é digno? Por acaso não sabe que eu o amo? — gritou Natacha. — Sônia, saia daqui, não quero brigar com você, saia, pelo amor de Deus, saia: você está vendo como eu sofro — gritou Natacha, com raiva e com uma voz de desespero e de irritação contida. Sônia desatou a chorar e saiu do quarto correndo.
Natacha foi até a mesa e, sem pensar um minuto sequer, escreveu para a princesa Mária a resposta que não conseguira escrever durante a manhã inteira. Na carta, escrevia sucintamente que todos os mal-entendidos entre elas estavam terminados, que graças à generosidade do príncipe Andrei, que ao partir lhe dera toda a liberdade, ela pedia que a princesa esquecesse tudo e a perdoasse, caso tivesse feito algum mal, mas que não podia ser esposa dele. Tudo isso lhe parecia muito fácil, simples e claro naquele momento.
Na sexta-feira, os Rostóv deviam partir para o campo, e na quarta-feira o conde foi à sua propriedade nos arredores de Moscou em companhia de um possível comprador.
No dia da viagem do conde, Sônia e Natacha foram convidadas para um grande jantar na casa dos Kuráguin, e Mária Dmítrievna levou-as até lá. Naquele jantar, Natacha encontrou-se de novo com Anatole, e Sônia notou que Natacha disse algo para ele, de maneira que ninguém ouvisse, e durante todo o tempo do jantar ela ficou ainda mais agitada do que antes. Quando voltaram para casa, Natacha tomou a iniciativa de dar as explicações que a amiga esperava.
— Veja, Sônia, você disse muitas bobagens sobre ele — começou Natacha, com voz dócil, a voz com que se fala às crianças quando se quer elogiá-las. — Hoje eu e ele esclarecemos a situação.
— Bem, e aí, o que houve? Então, o que ele disse? Natacha, como estou contente por você não ter ficado zangada comigo. Conte-me toda a verdade. O que foi que ele disse?
Natacha pensou um pouco.
— Ah, Sônia, se você o conhecesse como eu! Ele disse... Ele me perguntou o que eu prometi a Bolkónski. Alegrou-se por eu estar livre para romper com ele.
Sônia suspirou com tristeza.
— Mas você não rompeu com Bolkónski, rompeu? — perguntou.
— Talvez, talvez eu tenha rompido! Talvez tudo esteja acabado entre mim e Bolkónski. Por que você pensa tão mal de mim?
— Não estou pensando nada, só que eu não entendo esse...
— Espere, Sônia, você vai entender tudo. Vai ver que homem ele é. Não pense mal de mim, nem dele.
— Não penso mal de ninguém: gosto de todos e tenho pena de todos. Mas o que vou fazer?
Sônia não se rendeu ao tom terno com que Natacha se dirigia a ela. Quanto mais branda e insinuante era a expressão do rosto de Natacha, mais sério e severo era o rosto de Sônia.
— Natacha — disse —, você me pediu para não falar desse assunto com você, e eu não falei, agora foi você mesma quem começou. Natacha, eu não acredito nele. Para que esse segredo?
— De novo, de novo! — cortou Natacha.
— Natacha, eu temo por você.
— Teme o quê?
— Temo que você vá se perder — disse Sônia, decidida, assustada ela mesma com o que dizia. O rosto de Natacha exprimia raiva outra vez.
— Vou me perder, sim, vou me perder, e que eu me perca logo de uma vez. Não é da sua conta. O mal não será para você, mas para mim. Vá embora, me deixe. Eu odeio você.
— Natacha! — gritou Sônia, com voz esganiçada.
— Odeio, odeio! E você é minha inimiga para sempre!
Natacha saiu correndo do quarto.
Natacha não falou mais com Sônia e a evitava. Sempre com uma expressão de surpresa perturbada e de culpa, ela andava pelos cômodos da casa, ocupando-se ora com uma coisa, ora com outra, para logo deixar de lado o que havia começado.
Por mais que aquilo fosse penoso para Sônia, ela seguia a amiga e não tirava os olhos dela.
Na véspera do dia em que o conde devia voltar, Sônia percebeu que Natacha passara a manhã inteira na janela da sala, como que à espera de alguma coisa, e que havia feito um sinal para um militar que passara, que Sônia deduziu ser Anatole.
Sônia passou a observar a amiga ainda com mais atenção e notou que durante todo o almoço e toda a tarde Natacha ficou num estado estranho e pouco natural (dava respostas despropositadas ao que lhe perguntavam, começava as frases e não terminava, ria para todos).
Depois do chá, Sônia viu, junto à porta do quarto de Natacha, uma jovem criada que, muito acanhada, esperava que ela passasse. Deixou que ela fosse embora, escutou junto à porta e compreendeu que, outra vez, uma carta fora entregue.
E de repente ficou claro para Sônia que Natacha tinha um plano terrível para aquele fim de tarde. Sônia bateu na porta. Natacha não a deixou entrar.
“Ela vai fugir com ele!”, pensou Sônia. “Ela é capaz de tudo. No seu rosto, hoje, havia algo especialmente sofrido e determinado. Ela começou a chorar ao se despedir do titio”, lembrou Sônia. “Sim, não há dúvida, vai fugir com ele... mas o que vou fazer?”, pensou Sônia, recordando agora aqueles indícios que provavam claramente que Natacha tinha alguma intenção terrível. “O conde não está em casa. O que vou fazer? Escrever para Kuráguin, exigindo dele uma explicação? Mas o que é que o obriga a me dar uma resposta? Escrever para Pierre, como pediu o príncipe Andrei, no caso de alguma desgraça?... Mas, quem sabe, ela de fato já rompeu com Bolkónski (no dia anterior, ela mandara uma carta para a princesa Mária). E o titio não está em casa!”
Contar para Mária Dmítrievna, que acreditava tanto em Natacha, parecia algo horrível para Sônia.
“Mas, de um jeito ou de outro”, pensou Sônia, parada no corredor escuro, “agora ou nunca, é a hora de provar que eu não esqueço o bem que a família deles me fez e que eu amo Nicolas. Não, ainda que eu fique três noites sem dormir, não vou sair deste corredor, não vou deixar de jeito nenhum que ela saia e não vou deixar que a desonra desabe sobre a família deles”, pensou.
XVI
Nos últimos dias, Anatole estava morando na casa de Dólokhov. O plano do rapto da Rostova fora traçado e preparado por Dólokhov já fazia alguns dias, e, no mesmo dia em que Sônia, após escutar junto à porta de Natacha, resolveu protegê-la, o plano devia ser executado. Natacha prometeu encontrar Kuráguin na porta dos fundos às dez horas da noite. Kuráguin iria acomodá-la numa troica, já preparada, e levá-la para a aldeia de Kámenka, a sessenta verstas de Moscou, onde já os aguardava um pope afastado da Igreja, que devia casá-los. Em Kámenka, estava preparada uma muda de cavalos que devia conduzi-los para a estrada de Varsóvia, e de lá, com cavalos de posta, eles deviam seguir a galope rumo ao exterior.
Anatole tinha também um passaporte, um pedido para cavalos de posta, dez mil rublos, tomados de empréstimo da irmã, e mais dez mil rublos, emprestados por intermédio de Dólokhov.
As duas testemunhas — Khvóstikov, um ex-escriturário que Dólokhov usava no jogo, e Makárin, um hussardo na reserva, homem bondoso e fraco, que nutria um amor ilimitado por Kuráguin — estavam sentadas na primeira sala, tomando chá.
No grande escritório de Dólokhov, revestido até o teto de tapetes persas, peles de urso e armas, estava Dólokhov, com uma túnica de viagem e botas, diante de uma escrivaninha aberta, sobre a qual estavam um ábaco e maços de dinheiro. Anatole, de uniforme desabotoado, andava da sala onde estavam as testemunhas até o quarto dos fundos, onde o seu lacaio francês e outros terminavam de fazer as malas. Dólokhov contava o dinheiro e anotava.
— Bem — disse ele —, é preciso dar dois mil para Khvóstikov.
— Certo, dê logo — disse Anatole.
— O Makarka (assim eles chamavam Makárin), esse, por você, enfrenta o fogo e a água sem pedir nada em troca. Pronto, as contas estão terminadas — disse Dólokhov, mostrando as anotações. — E então?
— Está bem, é claro — respondeu Anatole, que visivelmente não havia escutado Dólokhov e, com um sorriso que não abandonava o rosto, olhava fixo para a frente.
Dólokhov fechou a escrivaninha de modo brusco e voltou-se para Anatole com um sorriso zombeteiro.
— Sabe de uma coisa? Esqueça tudo isso: ainda há tempo! — disse.
— Imbecil! — disse Anatole. — Pare de falar bobagens. Se você soubesse... Só o diabo sabe o que é isso!
— Vamos, esqueça essa história — disse Dólokhov. — Falando sério. Não é uma brincadeira, isso que você inventou?
— Ora, de novo, está brincando comigo de novo? Vá para o diabo! Uh?... — retrucou Anatole, de cara feia. — Estou falando sério, chega dessas suas brincadeiras idiotas. — E saiu do escritório.
Dólokhov sorriu com ar de desdém e de superioridade, quando Anatole saiu.
— Espere! — disse atrás de Anatole. — Não estou zombando de você, estou falando sério, venha cá, venha.
De novo, Anatole entrou no escritório e, tentando concentrar a atenção, olhava para Dólokhov, deixando-se dominar visivelmente por ele, de modo involuntário.
— Escute, vou lhe dizer pela última vez. Para que eu iria zombar de você? Por acaso contrariei você? Quem foi que organizou tudo para você, quem foi que achou um pope, quem foi que arranjou um passaporte, quem foi que levantou o dinheiro? Eu fiz tudo.
— Certo, sou grato a você. Acha que não estou agradecido? — Anatole deu um suspiro e abraçou Dólokhov.
— Ajudei você, mesmo assim tenho a obrigação de lhe dizer a verdade: é um assunto perigoso e, se analisar bem, estúpido. Veja, você vai embora com ela, muito bem. Mas acha que eles vão deixar por isso mesmo? Logo vão ficar sabendo que você é casado. No fim, vão arrastar você à justiça criminal...
— Ah! Tolices, tolices! — exclamou Anatole, de novo de cara feia. — Já expliquei para você. Hein? — E Anatole, com a parcialidade especial que têm as pessoas obtusas a favor da conclusão a que chegaram com a própria razão, repetiu o mesmo raciocínio que já repetira umas cem vezes para Dólokhov. — Afinal, já expliquei para você, eu resolvi: se aquele casamento não for considerado válido — disse, dobrando um dedo —, então eu não vou ter de responder por ele; mas, se for válido, então tanto faz: no exterior, ninguém vai saber de nada disso, ora, o que é que tem? Não fale mais, não fale, não fale!
— Muito bem, vamos deixar para lá! Mas com isso você só vai se complicar...
— Vá para o diabo! — disse Anatole e, puxando os cabelos, saiu para o outro cômodo, logo voltou e sentou-se de pernas abertas na poltrona bem em frente de Dólokhov. — Só o diabo sabe o que é isso! Hein? Veja, sinta aqui como está batendo! — Pegou a mão de Dólokhov e colocou sobre o coração. — Ah! Quel pied, mon cher, quel regard! Une déesse! 42 Hein?
Dólokhov, sorrindo com frieza, os olhos bonitos e insolentes brilhando, fitava o amigo, obviamente com a intenção de divertir-se com ele mais um pouco.
— Pois bem, o dinheiro vai acabar, e depois?
— E depois? Hein? — repetiu Anatole, francamente perplexo em face da ideia do futuro. — E depois? Depois, eu sei lá... Mas que besteira para se dizer! — Olhou para o relógio. — Está na hora!
Anatole foi para o quarto dos fundos.
— E então, já aprontaram tudo? Vamos deixar de moleza! — gritou para os criados.
Dólokhov guardou o dinheiro, gritou para o criado que trouxesse algo para comer e beber na viagem e foi para o cômodo onde estavam Makárin e Khvóstikov.
Anatole estava deitado no escritório, sobre o sofá, apoiado no cotovelo, sorria pensativo e sussurrava algo sozinho, em tom carinhoso.
— Venha comer alguma coisa. Venha, beba! — gritou Dólokhov, do outro cômodo.
— Não quero! — respondeu Anatole, continuando a sorrir.
— Venha, Balagá chegou.
Anatole levantou-se e foi para a sala. Balagá era um famoso cocheiro de troica, conhecido de Dólokhov e de Anatole já havia uns seis anos, e que os atendia com a sua troica. Várias vezes, quando o regimento de Anatole estava em Tvier, Balagá levara-o de Tvier à noite, deixara-o em Moscou ao raiar do dia e trouxera-o de volta na noite seguinte. Várias vezes ajudara Dólokhov a escapar de perseguições, várias vezes levara-os a galope pela cidade, com ciganos e senhorinhas, como dizia Balagá. Várias vezes, enquanto os servia, atropelou pessoas e carruagens em Moscou, e os senhores, como ele os chamava, sempre o salvavam. Tinha esgotado as forças de vários cavalos a serviço dos dois. Várias vezes apanhara deles, várias vezes fora obrigado por eles a se embriagar com champanhe e vinho Madeira, que Balagá adorava, e de cada um deles conhecia mais de uma estripulia pela qual normalmente um homem qualquer já estaria, desde muito tempo, cumprindo pena na Sibéria. Muitas vezes convidavam Balagá para as suas farras, obrigavam-no a beber, a dançar com os ciganos e mais de mil rublos deles já haviam passado pelas mãos do cocheiro. A serviço deles, Balagá arriscava a própria vida e a própria pele vinte vezes por ano, e a serviço deles levou à morte mais cavalos do que o dinheiro que lhe pagavam podia comprar. Mas Balagá gostava deles, adorava aquelas corridas loucas, a dezoito verstas por hora, adorava capotar uma carruagem e atropelar um pedestre em Moscou, passar voando a pleno galope pelas ruas de Moscou. Adorava ouvir atrás de si aqueles gritos enraivecidos de vozes bêbadas: “Vamos! Vamos!”, quando já era impossível ir mais depressa; adorava dar uma chicotada dolorosa no pescoço de um mujique que com isso, mais morto que vivo, abria caminho para ele. “Um verdadeiro cavalheiro!”, pensava Balagá.
Anatole e Dólokhov também adoravam Balagá por sua perícia na condução do veículo e também porque gostava das mesmas coisas que eles. Com os outros, Balagá combinava um preço, cobrava vinte e cinco rublos por uma corrida de duas horas e, com os outros, só raramente conduzia ele mesmo a troica, na maioria das vezes mandava os seus rapazes. Porém, com os seus senhores, como os chamava, Balagá sempre ia em pessoa e nunca exigia nada em troca do trabalho. Somente quando sabia, por intermédio dos criados, que eles tinham dinheiro, uma vez a cada dois ou três meses, ele aparecia de manhã, sóbrio, fazia uma reverência até o chão e pedia que o ajudassem. Os senhores sempre o mandavam sentar.
— Por favor, me socorra, patrão Fiódor Ivánitch, ou vossa excelência — dizia ele. — Estou completamente sem cavalos, tenho de ir à feira, avaliem os senhores mesmos, o que puderem está bom.
E Anatole e Dólokhov, quando estavam com dinheiro, lhe davam mil e até dois mil rublos.
Balagá era um mujique de cabelo castanho-claro, rosto vermelho, com um pescoço especialmente vermelho e grosso, baixote, de nariz arrebitado, uns vinte e sete anos, olhos miúdos e brilhantes e barbicha pequena. Vestia um cafetã fino e azul, com forro de seda, por cima de um casaco de pele curto.
Balagá fez o sinal da cruz no canto dos ícones e aproximou-se de Dólokhov, estendendo a mão escura e pequena.
— Fiódor Ivánovitch! — disse, curvando-se numa reverência.
— Salve, meu velho. Pronto, aqui está ele.
— Boa tarde, vossa excelência — disse Balagá para Anatole, que entrou, e também lhe estendeu a mão.
— Escute aqui uma coisa, Balagá — disse Anatole, colocando as mãos nos ombros do cocheiro. — Você gosta mesmo de mim, ou não? Hein? Agora, faça um serviço para mim... Mas que cavalos você trouxe? Hein?
— Fiz como o mensageiro mandou, os cavalos do senhor, os bravos — respondeu Balagá.
— Está certo, agora escute bem, Balagá! Mate os três cavalos de correr, mas você tem de chegar lá em três horas. Hein?
— Quando eles morrerem, como é que a gente vai seguir viagem? — disse Balagá, piscando os olhos.
— Olhe aqui, não fique de brincadeiras que eu amasso o seu focinho! — gritou Anatole de repente, de olhos arregalados.
— Que brincadeira nada — disse o cocheiro, rindo. — Por acaso eu não faço tudo pelos senhores? O que os cavalos puderem galopar, eles vão galopar.
— Ah! — exclamou Anatole. — Vamos, sente.
— Ande, sente logo! — disse Dólokhov.
— Vou ficar de pé, Fiódor Ivánovitch.
— Sente, que bobagem, beba — disse Anatole e serviu-lhe um grande copo de vinho Madeira. Os olhos do cocheiro começaram a reluzir com o vinho. Depois de recusar por uma questão de boas maneiras, bebeu tudo e enxugou-se com um lenço vermelho de seda, que trazia dentro do gorro.
— E aí, quando partimos, vossa excelência?
— Pois é... (Anatole olhou para o relógio.) Agora mesmo. Mas veja lá, hein, Balagá. Vai chegar na hora?
— Depende da partida: se for boa, não tem como não chegar na hora — disse Balagá. — A gente não conseguiu chegar a Tvier em sete horas? Acho que está lembrado, não é, vossa excelência?
— Sabe, uma vez, no Natal, parti de Tvier — disse Anatole, com um sorriso de recordação, para Makárin, que mirava Kuráguin de olhos arregalados e cheio de ternura. — Acredite, Makarka, era de tirar o fôlego o jeito como a gente voava. Topamos de repente com um comboio e aí saltamos por cima de duas carroças. Que tal?
— Mas também, aquilo é que eram cavalos! — continuou Balagá a contar o caso. — Naquele dia, atrelei dois cavalos jovens, um de cada lado do alazão. — Voltou-se para Dólokhov: — Acredite, Fiódor Ivánitch, aquelas feras voaram por sessenta verstas; não dava nem para segurar, as mãos estavam geladas, fazia um frio de rachar. Soltei as rédeas... Se segure, vossa excelência, mas fui eu mesmo que caí dentro do trenó. Pois é, a questão não é atiçar os cavalos, o negócio é que não dá para segurar os animais. Chegaram lá em três horas, os demônios. Só o da esquerda morreu de cansaço.
XVII
Anatole saiu do quarto e, alguns minutos depois, voltou com um casaco de pele cingido por um cinturão prateado e com um gorro de zibelina, que usava meio de lado, com elegância, e que combinava muito bem com o seu rosto bonito. Depois de se olhar no espelho, Anatole postou-se na frente de Dólokhov e, na mesma pose que havia tomado diante do espelho, segurou um copo de vinho.
— Pois bem, Fiédia, adeus, obrigado por tudo, adeus — disse Anatole. — Pois bem, camaradas, amigos... — refletiu um pouco — ... da minha... mocidade... adeus. — Voltou-se para Makárin e para os outros.
Embora todos fossem seguir com ele, era evidente que Anatole queria fazer daquela despedida dos camaradas algo tocante e solene. Falou com voz lenta, alta e, de peito estufado, balançava de leve uma perna.
— Por favor, cada um pegue um copo; você também, Balagá. Muito bem, camaradas, amigos da minha mocidade, fizemos muita farra, gozamos bem a vida, fizemos muita farra. Hein? E agora, quando vamos nos ver outra vez? Parto para o estrangeiro. Gozamos a vida, adeus, rapazes. Saúde! Hurra!... — disse, bebeu até o fim o seu copo e espatifou-o contra o chão.
— Saúde — exclamou Balagá, que também bebeu o seu copo até o fim e enxugou-se com o lenço. Makárin, com lágrimas nos olhos, abraçou Anatole.
— Ah, príncipe, que tristeza para mim despedir-me de você — exclamou.
— Vamos embora! Vamos embora! — gritou Anatole.
Balagá fez menção de sair do quarto.
— Não, esperem um pouco — disse Anatole. — Tranque a porta, temos de sentar. Isso, assim. — Trancaram a porta e todos sentaram.43
— Pronto, agora, sim, em marcha, rapazes! — disse Anatole, erguendo-se.
O lacaio Joseph entregou para Anatole uma bolsa e um sabre, e todos saíram para o vestíbulo.
— E o casaco de pele, onde está? — disse Dólokhov. — Ei, Ignáchka! Procure a Matriona Matviéievna, peça um casaco de mulher, o de zibelina. Eu sei como são esses raptos — disse Dólokhov, piscando o olho. — Pois é, ela aparece de repente, mais morta que viva, do jeito como estava em casa; qualquer atraso, lá vêm lágrimas, e papai para cá, mamãe para lá, e num instante ela fica gelada, quer voltar... mas você a enrola depressa no casaco de pele e a leva para o trenó.
O lacaio trouxe o casaco de mulher, de pele de raposa.
— Imbecil, pedi o de zibelina. Ei, Matriocha, o de zibelina! — gritou ele tão forte que sua voz ressoou longe, por todos os cômodos.
Uma ciganinha bonita, magra e pálida, de olhos negros e brilhantes, cabelos cacheados e pretos, com um reflexo cinza-azulado, num xale vermelho, veio correndo com o casaco de pele de zibelina na mão.
— O que foi, não estou com pena, não, pode levar — disse ela, visivelmente intimidada diante dos patrões e com pena de ter de dar o casaco.
Dólokhov, sem responder, pegou o casaco de pele, jogou-o em cima de Matriocha e agasalhou-a.
— Vejam, é assim — disse Dólokhov. — E depois, assim — disse e levantou a gola em volta da cabeça dela, deixando aberta só uma fresta diante do rosto. E depois, assim, olhem, estão vendo? — E puxou a cabeça de Anatole para a fresta na gola, pela qual se via o sorriso radiante de Matriocha.
— Bem, adeus, Matriocha — disse Anatole, e beijou-a. — Eh, está terminada a minha farra por aqui! Mande meus cumprimentos para a Stiochka. Bem, adeus! Adeus, Matriocha; deseje felicidade para mim.
— Certo, príncipe, que Deus traga uma felicidade das grandes para o senhor — disse Matriocha para Anatole, com o seu sotaque cigano.
Diante da varanda, estavam paradas duas troicas, dois cocheiros jovens seguravam os cavalos. Balagá sentou-se na primeira troica e, levantando os cotovelos bem alto, segurou as rédeas sem afobação. Anatole e Dólokhov sentaram junto dele. Makárin, Khvóstikov e um lacaio sentaram na segunda troica.
— Estão prontos? E aí? — perguntou Balagá. — Vamos! — gritou, enrolando as rédeas na mão, e a troica arrancou a galope pelo bulevar Nikítski.
— Tprru! Vamos, ei!... Tprru! — só se ouviam os gritos de Balagá e de um rapaz sentado na boleia. Na praça Arbat, a troica esbarrou numa carroça, algo começou a estalar, ouviu-se um grito, e a troica saiu voando pela rua Arbat.
Depois de percorrer, de ponta a ponta, o bulevar Podnovínski, Balagá começou a conter os cavalos, fez o retorno e parou junto à esquina da rua da Estrebaria Velha.
O rapaz saltou da boleia a fim de segurar os cavalos pelo bridão. Anatole e Dólokhov seguiram pela calçada. Ao se aproximar do portão, Dólokhov assoviou. Um assovio respondeu a ele, e em seguida veio uma criada de quarto correndo.
— Entre pelo pátio, senão vão ver. Já vai sair — disse ela.
Dólokhov ficou junto ao portão. Anatole entrou pelo pátio atrás da criada, virou no canto da casa e entrou correndo na varanda.
Gavrila, um lacaio enorme de Mária Dmítrievna que acabara de sair, topou com Anatole.
— Vá ver a patroa, por favor — disse o lacaio, com voz de baixo, barrando o caminho de saída.
— Que patroa? Quem é você? — perguntou Anatole, num sussurro arquejante.
— Por favor, tenho ordem de levá-lo.
— Kuráguin! Volte! — gritou Dólokhov. — Traição! Volte!
Dólokhov, no portão, junto ao qual havia ficado, lutava com o zelador, que tentava trancar a fechadura para Anatole não sair. Dólokhov, num último esforço, empurrou o zelador, agarrou o braço de Anatole, que viera correndo, puxou-o para fora do portão e correu, junto com ele, rumo à troica.
XVIII
Mária Dmítrievna encontrou Sônia chorando no corredor e obrigou-a a confessar tudo. Depois de interceptar o bilhete de Natacha e de lê-lo, Mária Dmítrievna entrou no quarto da afilhada com o bilhete na mão.
— Canalha, desavergonhada — disse ela. — Não quero ouvir nem uma palavra! — Depois de empurrar Natacha, que a fitava com olhos supresos, mas secos, trancou-a à chave, em seguida mandou que o zelador deixasse entrar pelo portão as pessoas que viriam naquela noite, mas que não as deixasse sair, mandou que o lacaio trouxesse aquelas pessoas ao seu encontro e sentou-se na sala, à espera dos raptores.
Quando Gavrila veio avisar Mária Dmítrievna que as pessoas que tinham vindo pelo portão haviam fugido, ela levantou-se e ficou muito tempo andando pela sala, de rosto franzido e as mãos cruzadas nas costas, refletindo no que iria fazer. À meia-noite, apalpou a chave dentro do bolso e foi na direção do quarto de Natacha. Sônia, em soluços, estava no corredor.
— Mária Dmítrievna, deixe-me entrar e falar com ela, pelo amor de Deus! — disse. Mária Dmítrievna, sem responder, destrancou a porta e entrou. “Nojo, indecência... Dentro da minha casa, que mocinha canalha... Tenho pena do pai!”, pensava Mária Dmítrievna, tentando conter a raiva. “Por mais difícil que seja, vou mandar que todos fiquem de bico fechado e vou esconder do conde.” Mária Dmítrievna entrou no quarto a passos resolutos. Natacha estava deitada no sofá, a cabeça coberta pelas mãos, e não se mexia. Estava na mesma posição em que Mária Dmítrievna a havia deixado.
— Bonito, muito bonito! — disse Mária Dmítrievna. — Marcar encontros com amantes dentro da minha casa! Não adianta fingir. Escute com atenção quando eu falo. — Mária Dmítrievna tocou na mão de Natacha. — Escute com atenção quando eu falo. Você se cobriu de vergonha, como a pior das moças. Sei o que devia fazer com você, mas tenho pena do seu pai. Vou esconder isso dele. — Natacha não mudou de posição, mas o seu corpo inteiro começou a se sacudir com os soluços silenciosos e convulsivos que a sufocavam. Mária Dmítrievna virou-se para Sônia e sentou-se no sofá ao lado de Natacha. — Foi sorte dele ter conseguido fugir de mim; mas vou achá-lo — disse, com sua voz rouca. — Está escutando o que eu digo? — Com a mão grande, agarrou o rosto de Natacha por baixo e virou-o para si. E Mária Dmítrievna e Sônia se admiraram ao ver o rosto de Natacha. Tinha os olhos brihantes e secos, os lábios contraídos, as faces encovadas.
— Deixe-me... Não me interessa... Vou morrer... — falou Natacha, desvencilhando-se de Mária Dmítrievna com um esforço raivoso, e estirou-se na mesma posição de antes.
— Natália!... — disse Mária Dmítrievna. — Eu quero bem a você. Fique deitada, pronto, fique deitada assim, não vou tocar em você, escute bem... Nem preciso dizer o mal que você fez. Você mesma sabe. Mas amanhã o seu pai vai chegar, e o que é que eu vou dizer a ele? Hein?
De novo, o corpo de Natacha começou a tremer de soluços.
— E se ele souber, e o seu irmão, e o seu noivo!
— Não estou noiva, eu rompi — gritou Natacha.
— Tanto faz — prosseguiu Mária Dmítrievna. — Pois bem, quando eles souberem, vão deixar por isso mesmo? Ora, o seu pai, eu o conheço... E se ele o desafiar para um duelo, vai ser bom? Hein!
— Ah, me deixe, por que vocês estragaram tudo? Por quê? Por quê? Quem foi que pediu? — gritou Natacha, erguendo-se no sofá e olhando com raiva para Mária Dmítrievna.
— E o que você queria? — gritou Mária Dmítrievna, de novo irritada. — Por acaso você ficava aqui trancada à chave? E afinal quem é que o impedia de vir aqui em casa? Para que raptar você como se fosse uma cigana?... Pois bem, e se ele raptasse você, por acaso acha que não ia ser encontrado? O seu pai, ou o seu irmão, ou o noivo? Acontece que ele é um canalha, um patife, isso sim!
— Ele é melhor do que todos vocês — gritou Natacha, levantando-se. — Se não tivessem atrapalhado... Ah, meu Deus, o que é isso, o que é isso! Sônia, por quê? Vão embora!... — E desatou a soluçar com um desespero que só acontece com as pessoas que choram as mágoas das quais sentem ser elas mesmas a causa. Mária Dmítrievna fez menção de recomeçar a falar, mas Natacha se pôs a gritar: — Vão embora, vão embora, vocês todos me odeiam, me desprezam! — E jogou-se no sofá outra vez.
Mária Dmítrievna tentou ainda, por algum tempo, chamá-la à razão e convencê-la de que era preciso esconder tudo aquilo do conde e de que ninguém ia saber de nada, bastava que Natacha tratasse de esquecer tudo e não deixasse ninguém notar nenhum sinal do que havia acontecido. Natacha não respondeu. Já não soluçava mais, porém teve um calafrio e um tremor. Mária Dmítrievna colocou um travesseiro debaixo da sua cabeça, cobriu-a com duas colchas e trouxe, ela mesma, um chá de folhas de tília, mas Natacha não mostrou a menor reação.
— Bem, vamos deixar que ela durma — disse Mária Dmítrievna, ao sair do quarto, pensando que Natacha estava dormindo. Mas não estava e, com os olhos muito abertos e parados no rosto pálido, olhava fixo para a frente. Natacha passou a noite inteira sem dormir, não chorou nem falou com Sônia, que se levantou e veio para junto dela várias vezes.
No dia seguinte, no café da manhã, como havia prometido, o conde chegou da sua propriedade nos arredores de Moscou. Estava muito alegre: o negócio com o comprador estava indo bem, e agora nada mais o prendia em Moscou, afastado da condessa, de quem tinha saudade. Mária Dmítrievna recebeu-o e comunicou que Natacha havia passado muito mal à noite, que tinham chamado um médico, mas agora ela já estava melhor. Natacha, naquela manhã, não saíra do quarto. Com os lábios comprimidos e rachados, olhos secos e parados, ela estava sentada junto à janela, olhava com ar inquieto para as pessoas que passavam na rua e virava os olhos, ansiosa, para quem entrava no quarto. Era óbvio que esperava notícias dele, esperava que ele mesmo viesse ou lhe escrevesse.
Quando o conde subiu ao quarto de Natacha, ela se virou ansiosa ao som dos passos masculinos, e o seu rosto adquiriu a mesma expressão fria e até maldosa de antes. Ela nem se levantou para recebê-lo.
— O que você tem, meu anjo, está doente? — perguntou o conde.
Natacha ficou calada um momento.
— Sim, estou doente — respondeu.
Às aflitas perguntas do conde, que queria saber por que estava tão abatida e também se não tinha acontecido alguma coisa entre ela e o noivo, Natacha garantiu que não era nada e pediu que não se preocupasse. Mária Dmítrievna confirmou para o conde as garantias de Natacha de que não havia acontecido nada. O conde, tendo em vista a doença fictícia, a perturbação da filha, o rosto transtornado de Sônia e de Mária Dmítrievna, percebia claramente que, na sua ausência, devia ter acontecido alguma coisa; mas, para ele, era tão terrível pensar que havia acontecido algo vergonhoso com a sua filha querida, e ele amava tanto o seu alegre sossego, que evitava fazer perguntas e tentava, o tempo todo, se convencer de que não havia nada de especial e se afligia apenas porque a enfermidade de Natacha adiava a partida deles para o campo.
XIX
Desde o dia da chegada da esposa a Moscou, Pierre alimentou a intenção de partir para qualquer lugar, só para não ficar com ela. Pouco depois da chegada dos Rostóv a Moscou, a impressão que Natacha produzira nele obrigou Pierre a apressar a realização do seu intento. Partiu para Tvier, para a casa da viúva de Ióssif Alekséievitch, que havia muito lhe prometera entregar os papéis do falecido.
Quando Pierre voltou para Moscou, entregaram-lhe uma carta de Mária Dmítrievna que o chamava à sua casa para tratar de um assunto de grande importância, relativo a Andrei Bolkónski e sua noiva. Pierre evitava Natacha. Parecia-lhe que tinha por ela um sentimento mais forte do que um homem casado deveria ter pela noiva de um amigo. Mas o destino constantemente o conduzia para junto dela.
“O que será que aconteceu? E o que eu tenho a ver com isso?”, pensava, enquanto trocava de roupa para ir à casa de Mária Dmítrievna. “Era melhor que o príncipe Andrei viesse logo e casasse com ela de uma vez!”, pensava Pierre, a caminho da casa de Akhrossímova.
No bulevar Tviérski, alguém o cumprimentou.
— Pierre! Chegou há muito tempo? — gritou uma voz conhecida. Pierre levantou a cabeça. Num trenó de luxo, com dois cavalos puros-sangues cinzentos, cujas patas espirravam neve na parte dianteira do trenó, Anatole passou voando, em companhia do seu eterno camarada Makárin. Anatole estava sentado em posição ereta, na pose clássica dos militares esnobes, com a parte de baixo do rosto agasalhada na gola de pele de castor e com a cabeça um pouco inclinada. Tinha o rosto rosado e fresco, o chapéu com uma pena branca estava inclinado sobre a cabeça, deixando à mostra o cabelo encaracolado, empomadado e todo polvilhado de neve.
“Na verdade, aí está um verdadeiro sábio!”, pensou Pierre. “Não enxerga nada além do momento real de prazer, nada o perturba... e por isso está sempre alegre, satisfeito e tranquilo. Eu daria tudo para ser como ele!”, pensou Pierre, com inveja.
No vestíbulo da casa de Akhrossímova, o lacaio que tirou o casaco de Pierre lhe disse que Mária Dmítrievna pedia que fosse ao quarto dela.
Ao abrir a porta para a antecâmara, Pierre avistou Natacha, sentada junto à janela, com o rosto seco, pálido e rancoroso. Ela virou-se para Pierre, franziu o rosto e saiu, com uma expressão de dignidade fria.
— O que aconteceu? — perguntou Pierre, ao entrar no quarto de Mária Dmítrievna.
— Uma coisa formidável! — respondeu Mária Dmítrievna. — Já vivi cinquenta e oito anos neste mundo e nunca vi tamanha indecência. — E, depois de pedir a Pierre a palavra de honra de que manteria em segredo o que ia saber, Mária Dmítrievna informou que Natacha havia rompido o noivado sem o conhecimento dos pais, que o motivo do rompimento era Anatole Kuráguin, a quem fora conduzida pela esposa de Pierre, e que Natacha tinha tentado fugir com ele durante a ausência do pai, a fim de casar-se em segredo.
Pierre, de ombros erguidos e boca aberta, escutava o que Mária Dmítrievna contava, sem acreditar nos próprios ouvidos. A noiva do príncipe Andrei, tão querida, aquela Natacha Rostova, antes tão meiga, ia trocar Bolkónski pelo imbecil Anatole, que já era casado (Pierre conhecia o segredo do casamento dele), e se apaixonara por ele a ponto de aceitar fugir! Isso Pierre não conseguia entender, não conseguia sequer imaginar.
A impressão meiga que tinha de Natacha, a quem conhecia desde a infância, não podia combinar, na alma de Pierre, com a nova imagem da sua infâmia, estupidez e crueldade. Lembrou-se da esposa. “Todas são iguais, a mesma coisa”, disse consigo, pensando que afinal não tocava só a ele a triste sorte de ser ligado a uma mulher vil. Mesmo assim, teve pena do príncipe Andrei, teve pena do orgulho dele e sentiu-se à beira das lágrimas. E quanto mais lamentava o amigo, tanto maior o desprezo e até a repulsa com que pensava em Natacha, que havia acabado de passar por ele, na sala, com aquela expressão de dignidade fria. Pierre não sabia que a alma de Natacha estava repleta de desespero, vergonha, humilhação, e que ela não tinha culpa de o seu rosto exprimir, sem querer, severidade e dignidade serena.
— Mas como assim, casar? — exclamou Pierre, ao ouvir as palavras de Mária Dmítrievna. — Ele não pode casar: já é casado.
— Era só o que faltava — exclamou Mária Dmítrievna. — Bom menino, ele! Mas que canalha! E ela está esperando, esperando há dois dias. Pelo menos vai parar de esperar, é preciso contar a ela.
Após saber, por Pierre, dos detalhes sobre o casamento de Anatole e dar vazão à sua raiva por meio de palavras injuriosas, Mária Dmítrievna explicou a Pierre por que o havia chamado. Mária Dmítrievna temia que o conde ou Bolkónski, que podia chegar a qualquer momento, soubessem do caso, disse que sua intenção era esconder de todos eles aquela história, para que não desafiassem Kuráguin para um duelo, e por isso pedia que Pierre, em nome dela, mandasse o cunhado sair de Moscou, e que ele não se atrevesse a aparecer diante dos olhos dela. Pierre prometeu cumprir o seu desejo e só então se deu conta do perigo que ameaçava o velho conde, Nikolai e o príncipe Andrei. Tendo explicado as suas exigências de modo simples e sucinto, Mária Dmítrievna levou-o para a sala.
— Veja bem, o conde não sabe de nada. Aja como se não soubesse de nada — disse ela. — E eu vou dizer a Natacha que não adianta nada esperar! Mas fique para o almoço, se quiser — gritou Mária Dmítrievna para Pierre.
Pierre foi ao encontro do velho conde. Ele estava perturbado e confuso. Naquela manhã, Natacha lhe dissera que havia rompido o noivado com Bolkónski.
— É uma desgraça, é uma desgraça, mon cher — disse para Pierre. — É uma desgraça estar com essas moças sem a mãe; como eu me arrependo de ter vindo. Vou ser sincero com o senhor. O senhor soube que ela rompeu com o noivo sem perguntar nada a ninguém, não é? Bem, até admito que esse casamento nunca me alegrou muito. Admito que ele é um homem bom, mas, afinal, contra a vontade do pai, não haveria felicidade, e não faltam pretendentes para Natacha. Mesmo assim, já havia durado tanto tempo, e ainda por cima dar um passo desses sem consultar o pai e a mãe! Agora ela está doente, e só Deus sabe o que vai acontecer! É péssimo, conde, é péssimo ficar com as filhas sem a mãe... — Pierre via que o conde estava muito abalado, tentava desviar a conversa para outro assunto, mas o conde voltava de novo para o seu desgosto.
Sônia entrou na sala com o rosto perturbado.
— Natacha não está bem de saúde; está no quarto e queria falar com o senhor. Mária Dmítrievna está com ela e também pede que o senhor vá lá.
— Sim, afinal, o senhor é muito amigo de Bolkónski, na certa ela quer mandar algum recado — disse o conde. — Ah, meu Deus, meu Deus! Como tudo teria sido bom! — E, agarrando os raros cabelos das têmporas, o conde saiu da sala.
Mária Dmítrievna comunicou a Natacha que Anatole era casado. Natacha não quis acreditar e exigiu uma confirmação do próprio Pierre. Sônia comunicou isso a Pierre na hora em que o conduzia pelo corredor, rumo ao quarto de Natacha.
Pálida, severa, Natacha estava sentada ao lado de Mária Dmítrievna e, assim que Pierre apareceu na porta, voltou para ele um olhar indagador brilhante e febril. Não sorriu, não o cumprimentou com uma inclinação de cabeça, apenas o fitava de maneira tenaz, e seu olhar só lhe perguntava uma coisa: ele era amigo ou inimigo, como todos os outros, com relação a Anatole? Era evidente que Pierre, em si mesmo, não existia para ela.
— Ele sabe de tudo — disse Mária Dmítrievna, apontando para Pierre e voltando-se para Natacha. — Deixe que ele diga se não falei a verdade.
Assim como um animal ferido, acuado, olha para os cães e para os caçadores que se aproximam, Natacha olhava ora para um, ora para o outro.
— Natália Ilínitchna — começou Pierre, de olhos baixos, com um sentimento de pena dela e de repulsa pela tarefa que teria de cumprir —, verdade ou não, para a senhora não deve fazer diferença, porque...
— Então não é verdade que ele é casado?
— Não, é verdade.
— Ele é casado, e há muito tempo? — perguntou ela. — Palavra de honra?
Pierre lhe deu a sua palavra de honra.
— Ele ainda está aqui? — perguntou Natacha, depressa.
— Sim, eu o vi há pouco.
Era evidente que Natacha estava sem forças para falar e fez sinais com as mãos para que a deixassem sozinha.
XX
Pierre não ficou para almoçar, em vez disso saiu logo do quarto e foi embora. Andou pela cidade em busca de Anatole Kuráguin, e agora, só de pensar nele, todo o seu sangue afluía ao coração e Pierre tinha dificuldade para respirar. Nos morros, nos ciganos, no Comoneno, ele não estava. Pierre foi ao clube. Lá, tudo corria na ordem habitual: os frequentadores que tinham se reunido para almoçar estavam sentados em grupos, cumprimentaram Pierre e conversavam sobre as notícias da cidade. O lacaio, depois de cumprimentá-lo, ciente dos seus hábitos e dos seus conhecidos, comunicou que havia um lugar para ele na saleta de refeições, que o príncipe Mikhail Zakháritch estava na biblioteca, mas que Pável Timofiéitch ainda não tinha chegado. Um dos conhecidos de Pierre, no meio de uma conversa sobre o tempo, perguntou se ele não tinha ouvido falar do rapto da jovem Rostova cometido por Kuráguin, de que andavam falando na cidade, e perguntou se era mesmo verdade. Pierre riu e disse que aquilo era um absurdo, pois ele acabara de chegar da casa dos Rostóv. Perguntou a todos por Anatole; um lhe disse que ele ainda não tinha vindo, outro, que ele viria almoçar mais tarde. Pierre achou estranho olhar para aquela multidão calma, indiferente, que não sabia o que se passava na sua alma. Andou pelos salões, à espera de que todos chegassem e, como Anatole não aparecia, Pierre não ficou para almoçar e seguiu para casa.
Anatole, a quem ele procurava, foi almoçar naquele dia em casa de Dólokhov e pedir conselhos sobre como remediar o seu caso fracassado. Tinha a impressão de que era necessário encontrar-se com Rostova. Ao entardecer, foi à casa da irmã a fim de tratar dos meios de organizar esse encontro. Quando Pierre voltou para casa, depois de rodar em vão Moscou inteira, o criado de quarto lhe comunicou que o príncipe Anatole Vassílievitch estava com a condessa. A sala de visitas da condessa estava repleta de convidados.
Pierre, sem cumprimentar a esposa, a quem não tinha visto desde que viera para Moscou (naquele momento, ela lhe parecia mais detestável do que nunca), entrou na sala, avistou Anatole e aproximou-se dele.
— Ah, Pierre — disse a condessa, aproximando-se do marido. — Você não imagina em que situação está o nosso Anatole... — Parou ao ver, na cabeça baixa do marido, em seu rosto, em seus olhos brilhantes, em seu passo resoluto, aquela expressão terrível de raiva e de força que ela já conhecia e que já havia experimentado pessoalmente, após o duelo com Dólokhov.
— Onde a senhora estiver, vai estar a depravação, a maldade — disse Pierre para a esposa. — Anatole, venha cá, tenho de falar com o senhor — disse em francês.
Anatole olhou de lado para a irmã e levantou-se, obediente, pronto a seguir Pierre.
Pierre tomou-o pelo braço, puxou-o para si e foi para fora da sala.
— Si vous vous permettez dans mon salon...44 — falou Hélène num sussurro; mas Pierre, sem responder, saiu da sala.
Anatole foi atrás dele, no seu passo garboso habitual. Mas no rosto dele se percebia uma inquietação.
Ao entrar em seu escritório, Pierre fechou a porta e voltou-se para Anatole, sem olhar para ele.
— O senhor prometeu à condessa Rostova casar com ela? Queria sequestrá-la?
— Meu caro — respondeu Anatole em francês (como foi toda a conversa) —, não me considero obrigado a responder a perguntas feitas nesse tom.
O rosto de Pierre, antes pálido, ficou desfigurado pela raiva. Com sua mão grande, agarrou Anatole pela gola do uniforme e passou a sacudi-lo de um lado para o outro, até que o semblante de Anatole tomasse uma expressão de medo.
— Eu estou dizendo que tenho de falar com o senhor... — repetiu Pierre.
— Puxa, mas que tolice é essa? Hein? — disse Anatole, apalpando um botão que fora arrancado da gola com um pedaço de tecido.
— O senhor é um canalha e um crápula e não sei o que me impede de ter o prazer de esmagar a sua cabeça com isto — disse Pierre, expressando-se de modo tão artificial porque falava em francês. Segurou na mão um volumoso peso de papéis, levantou-o de modo ameaçador, mas logo se apressou em largá-lo de volta no lugar.
— O senhor prometeu casar com ela?
— Eu, eu, eu não estava pensando; aliás, eu nunca prometi nada, porque...
Pierre interrompeu-o.
— Tem cartas dela? Tem cartas? — repetiu Pierre, avançando na direção de Anatole.
Anatole lançou um olhar para ele e no mesmo instante enfiou a mão no bolso e tirou a carteira.
Pierre pegou a carta que lhe foi entregue e, empurrando para o lado uma mesa que estava no caminho, desabou no sofá.
— Je ne serai pas violent, ne craignez rien 45 — disse Pierre, em resposta a um gesto assustado de Anatole. — Primeiro, as cartas — disse, como se repetisse uma lição para si mesmo. — Segundo — prosseguiu depois de um minuto de silêncio, levantando-se de novo e começando a caminhar —, amanhã o senhor vai ter de ir embora de Moscou.
— Mas como é que eu posso...
— Terceiro — prosseguiu Pierre, sem lhe dar ouvidos —, o senhor nunca deverá dizer nenhuma palavra sobre o que aconteceu entre o senhor e a condessa. Isso, eu sei, não posso impedir que o senhor faça, mas se o senhor tiver um grão de consciência... — Pierre atravessou o quarto várias vezes em silêncio. Anatole estava sentado à mesa e, de rosto franzido, mordia o lábio. — Afinal, o senhor não pode deixar de compreender que, além do seu prazer, existe a felicidade, a tranquilidade das outras pessoas, que o senhor vai destruir uma vida inteira só porque deseja se divertir. Distrair-se com mulheres iguais à minha esposa, nisso o senhor está no seu direito, elas sabem o que o senhor quer com elas. Estão armadas contra o senhor pela mesma experiência de depravação; mas prometer a uma mocinha casar-se com ela... enganar, raptar... Como é que o senhor não compreende que isso é tão sórdido como espancar um velho ou um bebê?!...
Pierre calou-se um pouco e olhou para Anatole, já sem ira, mas com um olhar interrogativo.
— Isso eu não sei. Hein? — disse Anatole, que se animava à medida que Pierre superava sua ira. — Isso eu não sei nem quero saber — disse, sem olhar para Pierre e com um leve tremor da mandíbula. — Mas o senhor me disse certas palavras: crápula e coisas parecidas, que eu, comme un homme d’honneur,46 não admito que ninguém use.
Pierre fitou-o com surpresa, incapaz de compreender o que ele queria.
— Apesar de ter sido numa conversa a sós — continuou Anatole —, eu não posso...
— Como assim? O senhor quer uma satisfação? — perguntou Pierre em tom de escárnio.
— Pelo menos, o senhor poderia retirar suas palavras. Hein? Se o senhor quiser que eu cumpra o seu desejo. Hein?
— Eu retiro, retiro — exclamou Pierre —, e peço ao senhor que me desculpe. — Pierre, sem querer, olhou de relance para o botão arrancado da roupa. — E darei um dinheiro, se o senhor precisar para a viagem. — Anatole sorriu.
A expressão daquele sorriso tímido e canalha, que ele conhecia da esposa, fez Pierre explodir.
— Ah, raça canalha e sem coração! — exclamou Pierre, e saiu do escritório.
No dia seguinte, Anatole partiu para Petersburgo.
XXI
Pierre foi à casa de Mária Dmítrievna para comunicar que o desejo dela tinha sido cumprido — a expulsão de Kuráguin de Moscou. A casa inteira estava em terror e perturbação. Natacha estava muito doente, pois, na mesma noite em que ficara sabendo que Anatole era casado, como Mária Dmítrievna contou a Pierre em segredo, envenenara-se com arsênico, que havia obtido às escondidas. Depois de engolir um pouco, ficou tão assustada que acordou Sônia e avisou o que havia feito. As providências necessárias contra o veneno foram tomadas a tempo e agora ela estava fora de qualquer perigo; no entanto se encontrava tão fraca que era impossível pensar em levá-la para o campo, e a condessa fora chamada. Pierre viu o conde envergonhado e Sônia chorosa, mas não pôde falar com Natacha.
Naquele dia, Pierre jantou no clube e, de todos os lados, ouviu boatos sobre a tentativa de rapto da jovem Rostova; refutou com obstinação tais boatos, convencendo todos de que não havia acontecido nada, de que o seu cunhado apenas havia feito um pedido de casamento a Rostova e recebera uma recusa. Pierre achava que era seu dever ocultar todo aquele caso e resguardar a reputação da jovem Rostova.
Esperava com terror o regresso do príncipe Andrei e ia à casa do velho príncipe todos os dias, para saber dele.
O príncipe Nikolai Andréievitch, por intermédio de Mlle Bourienne, sabia de todos os boatos que corriam pela cidade e leu o bilhete dirigido à princesa Mária no qual Natacha rompia o noivado. Ele se mostrava mais alegre do que o habitual e esperava o filho com grande impaciência.
Alguns dias depois da partida de Anatole, Pierre recebeu um bilhete do príncipe Andrei, no qual o avisava da sua chegada e convidava Pierre para vê-lo.
O príncipe Andrei chegou a Moscou e, no primeiro minuto em que chegou, recebeu do pai o bilhete de Natacha para a princesa Mária, no qual ela rompia o noivado (o bilhete fora roubado da princesa Mária e entregue ao príncipe por Mlle Bourienne), e ouviu do pai, com acréscimos, os boatos sobre o rapto de Natacha.
O príncipe Andrei chegou à noite. Na manhã seguinte, Pierre foi à sua casa. Pierre esperava encontrar o príncipe Andrei quase no mesmo estado em que se achava Natacha e por isso ficou surpreso quando, ao entrar na sala, ouviu a voz forte do príncipe Andrei no escritório, falando animadamente a respeito de alguma intriga de Petersburgo. O velho príncipe e a voz de uma outra pessoa o interrompiam de vez em quando. A princesa Mária veio ao encontro de Pierre. Ela suspirou, apontando com os olhos para a porta, atrás da qual estava o príncipe Andrei, visivelmente no intuito de exprimir sua compaixão pela mágoa dele; mas Pierre viu no rosto da princesa Mária que ela estava contente com o que havia acontecido e também com a maneira como o irmão recebera a notícia da traição da noiva.
— Ele disse que esperava por isso — disse ela. — Sei que o orgulho dele não lhe permite exprimir o seu sentimento, mesmo assim recebeu a notícia melhor, infinitamente melhor, do que eu esperava. É evidente que tinha de ser assim...
— Mas será possível que tudo está terminado? — disse Pierre.
A princesa Mária fitou-o com admiração. Nem compreendia como era possível perguntar tal coisa. Pierre entrou no escritório. O príncipe Andrei, inteiramente mudado, com a saúde obviamente recuperada, mas com uma nova ruga transversal entre as sobrancelhas, estava de pé, em frente ao pai e ao príncipe Mechérski, em roupas civis, e discutia com ardor, gesticulando de maneira enérgica.
A conversa tratava de Speránski, da notícia da sua repentina deportação e suposta traição, que acabara de chegar a Moscou.
— Agora o acusam e o incriminam (Speránski) todos aqueles que um mês atrás se empolgavam com ele — disse o príncipe Andrei —, e também aqueles que não tinham condições de compreender os propósitos de Speránski. É muito fácil condenar um homem em desgraça e atribuir a ele todos os erros dos outros; mas eu digo que, se algo de bom foi feito no reinado atual, foi feito por ele e só por ele... — Parou ao ver Pierre. Seu rosto estremeceu e, na mesma hora, tomou uma expressão dura. — A posteridade lhe fará justiça — concluiu e logo depois se dirigiu a Pierre. — E então, como vai? Cada vez mais gordo — disse, animado, mas de novo a ruga ainda mais funda surgiu na sua testa. — Sim, estou bem de saúde — disse, em resposta a uma pergunta de Pierre, e forçou um sorriso. Para Pierre, estava claro que seu sorriso forçado significava: “Estou bem de saúde, mas minha saúde não traz benefício a ninguém”. Depois de falar algumas palavras para Pierre sobre a estrada horrível que vinha da fronteira da Polônia, sobre como havia encontrado na Suíça pessoas conhecidas de Pierre e sobre o sr. Dessalles, que ele trouxera do exterior para ser professor do filho, o príncipe Andrei, de novo com entusiasmo, interveio na conversa a respeito de Speránski, que prosseguia entre os dois velhos.
— Se houvesse traição e se houvesse provas de sua relação secreta com Napoleão, teriam sido amplamente divulgadas — disse, com entusiasmo e pressa. — Pessoalmente, eu não gosto e não gostei de Speránski, mas amo a justiça. — Pierre reconhecia agora, no amigo, aquela necessidade, tão conhecida sua, de agitar-se e de discutir sobre assuntos alheios a ele mesmo, apenas para sufocar pensamentos íntimos opressivos demais.
Quando o príncipe Mechérski saiu, o príncipe Andrei pegou Pierre pelo braço e convidou-o para ir ao quarto que fora preparado para ele. No quarto, via-se uma cama surrada, malas e arcas abertas. O príncipe Andrei aproximou-se de uma delas e pegou uma caixa. Da caixa, retirou um maço de folhas embrulhado em papel. Fez tudo isso em silêncio e muito depressa. Levantou-se e tossiu. Seu rosto estava contraído e os lábios, encolhidos.
— Desculpe-me, se eu o aborreço... — Pierre entendeu que o príncipe Andrei queria falar sobre Natacha, e seu rosto largo exprimiu pesar e compaixão. Aquela expressão do rosto de Pierre irritou o príncipe Andrei; em tom resoluto, alto e desagradável, ele continuou: — Recebi a recusa da condessa Rostova e chegaram-me boatos sobre o pedido de casamento que o seu cunhado fez a ela, ou algo parecido. Isso é verdade?
— Verdade e mentira — começou Pierre; mas o príncipe Andrei interrompeu-o.
— Aqui estão as cartas dela — disse. — E o retrato. — Pegou um embrulho na mesa e entregou a Pierre. — Entregue à condessa... se a encontrar.
— Ela está muito doente — disse Pierre.
— Então ela ainda está aqui? — disse o príncipe Andrei. — E o príncipe Kuráguin? — perguntou depressa.
— Partiu faz tempo. Ela esteve à beira da morte...
— Lamento muito que ela esteja doente — disse o príncipe Andrei. Sorriu de modo frio, maldoso, desagradável, como o pai. — Mas o sr. Kuráguin, portanto, não honrou a condessa Rostova com a sua mão? — perguntou Andrei. Ele fungou algumas vezes.
— Ele não podia se casar, porque já é casado — respondeu Pierre.
O príncipe Andrei deu uma risada desagradável, de novo fazendo lembrar o pai.
— Mas onde ele se encontra agora, o cunhado do senhor, posso saber? — disse.
— Ele foi para Peter... na verdade, eu não sei — disse Pierre.
— Ora, mas isso não faz nenhuma diferença — disse o príncipe Andrei. — Comunique à condessa Rostova que ela estava e está completamente livre, e que eu lhe desejo tudo de bom.
Pierre tomou na mão o maço de papéis. O príncipe Andrei, como se tentasse lembrar se ainda era necessário dizer mais alguma coisa, ou como se esperasse para ver se Pierre não tinha mais qualquer coisa para lhe dizer, fitava o amigo com um olhar imóvel.
— Escute, o senhor se lembra da discussão que tivemos em Petersburgo — disse Pierre —, se lembra do...
— Lembro — respondeu apressado o príncipe Andrei —, eu disse que era preciso perdoar uma mulher decaída, mas não disse que eu sou capaz de perdoar. Não sou capaz.
— Mas será que é possível comparar isso...? — perguntou Pierre. O príncipe Andrei interrompeu-o. Abruptamente, começou a gritar:
— Certo, pedir de novo a mão dela, ser generoso e coisas assim?... Sim, isso é muito nobre, mas não sou capaz de andar sur les brisées de monsieur.47 Se você quiser ser meu amigo, nunca mais fale comigo sobre isso... sobre tudo isso. Bem, adeus. Então, vai entregar...?
Pierre saiu e foi ao encontro do velho príncipe e da princesa Mária.
O velho parecia mais animado do que o habitual. A princesa Mária estava como sempre, mas, por trás da compaixão pelo irmão, Pierre percebia nela uma alegria com o fracasso do casamento do irmão. Olhando para os dois, Pierre se deu conta de quanto desprezo e raiva todos eles tinham contra os Rostóv, e se deu conta de que, entre eles, era impossível sequer mencionar o nome daquela que fora capaz de trocar o príncipe Andrei por um qualquer.
Durante o jantar, a conversa tratou da guerra, cuja proximidade já se tornara evidente.48 O príncipe Andrei falava sem parar e discutia o assunto ora com o pai, ora com Dessalles, o professor suíço, e parecia mais animado do que o habitual — com uma animação cuja causa moral Pierre conhecia muito bem.
XXII
Nessa mesma noite, Pierre foi à casa dos Rostóv a fim de cumprir sua missão. Natacha estava de cama, o conde estava no clube, e Pierre, depois de entregar as cartas a Sônia, foi falar com Mária Dmítrievna, que estava interessada em saber como o príncipe Andrei havia recebido a notícia. Dez minutos depois, Sônia entrou no quarto de Mária Dmítrievna.
— Natacha faz questão de ver o conde Piotr Kirílovitch — disse ela.
— Como assim? Vamos levá-lo até lá? O quarto de vocês não foi arrumado — exclamou Mária Dmítrievna.
— Não, ela trocou de roupa e foi para a sala — respondeu Sônia.
Mária Dmítrievna apenas encolheu os ombros.
— E essa condessa, que não chega nunca? Ela me deixou esgotada. E você, preste bem atenção, não vá dizer tudo para ela — voltou-se para Pierre. — Não é possível repreendê-la, dá tanta pena dela, tanta pena!
Natacha, muito magra, com o rosto pálido e severo (nem um pouco envergonhada, como Pierre esperava vê-la), estava de pé no centro da sala. Quando Pierre surgiu à porta, ela se mexeu, obviamente indecisa entre ir ao seu encontro ou esperá-lo.
Pierre aproximou-se depressa. Achou que Natacha lhe estenderia a mão, como sempre; mas, aproximando-se bastante de Pierre, ela parou, com a respiração ofegante e os braços abaixados, sem vida, exatamente na mesma postura que antes tomava no centro da sala, para cantar, porém com uma expressão inteiramente diversa.
— Piotr Kirílovitch — começou a falar, depressa —, o príncipe Bolkónski era amigo do senhor, e ainda é seu amigo — corrigiu-se (Natacha tinha a impressão de que tudo havia acabado e que agora tudo tinha ficado diferente). — Uma vez ele me disse que eu deveria procurar o senhor...
Pierre fungou em silêncio, olhando para ela. Até então, no fundo da alma, ele a censurava e tentava desprezá-la; mas agora sentia tamanha pena de Natacha que não havia, em sua alma, lugar para censuras.
— Ele está na cidade, agora, diga a ele... que me perd... me perdoe. — Natacha deteve-se e começou a respirar ainda mais depressa, mas não chorou.
— Sim... direi a ele — respondeu Pierre. — Mas... — Não soube o que dizer.
Natacha obviamente se assustou com algo que Pierre poderia pensar.
— Não, eu sei que tudo está acabado — apressou-se em dizer. — Não, nunca mais pode acontecer. Só me atormenta o mal que fiz a ele. Diga-lhe apenas que peço que me perdoe, me perdoe, me perdoe por tudo... — Começou a tremer com todo o corpo e sentou-se à mesa.
Um sentimento de pena, como nunca havia experimentado, inundou a alma de Pierre.
— Vou dizer a ele, vou dizer a ele mais uma vez — respondeu Pierre. — Mas... eu gostaria de saber uma coisa...
“Saber o quê?”, indagou o olhar de Natacha.
— Eu gostaria de saber se a senhora amava... — Pierre não sabia como nomear Anatole e ruborizou-se ao pensar nele. — Se a senhora amava aquele homem perverso.
— Não o chame de perverso — respondeu Natacha. — Mas eu não sei mais de nada, não sei mais de nada... — Começou a chorar outra vez.
E um sentimento ainda maior de pena, de ternura e de amor dominou Pierre. Sentiu que as lágrimas corriam por trás dos óculos e esperava que não fossem notadas.
— Não vamos mais falar disso, minha amiga — disse Pierre.
De repente, aquela voz dócil, terna, sincera pareceu muito estranha para Natacha.
— Não vamos falar disso, minha amiga, eu direi tudo para ele; mas vou lhe pedir uma coisa: considere-me seu amigo e, se precisar de ajuda, de um conselho, ou simplesmente desabafar a alma com alguém... não agora, mas quando a senhora tiver o espírito mais claro, lembre-se de mim. — Pegou a mão dela e beijou-a. — Ficarei feliz se eu estiver em condições de... — Pierre ficou embaraçado.
— Não fale comigo assim: não sou digna disso! — exclamou Natacha e fez menção de sair da sala, mas Pierre segurou-a pelo braço. Sabia que ainda tinha de dizer algo para ela. Mas, quando falou, surpreendeu-se com as próprias palavras.
— Não, não diga isso, a senhora tem a vida inteira à sua frente — disse Pierre.
— Eu? Não! Para mim, está tudo acabado — respondeu, com vergonha e humilhação.
— Tudo acabado? — repetiu Pierre. — Se eu não fosse quem sou, mas o homem mais bonito, mais inteligente e melhor do mundo, e se fosse livre, neste exato minuto eu me poria de joelhos e pediria a mão e o amor da senhora.
Natacha, pela primeira vez após vários dias, chorou com lágrimas de gratidão e de ternura e, depois de lançar um olhar para Pierre, saiu da sala.
Pierre também saiu quase correndo para a antessala, logo após Natacha, contendo lágrimas de ternura e de felicidade que sufocavam sua garganta, vestiu o casaco de pele, mesmo sem encontrar a manga, e sentou-se no trenó.
— Para onde o senhor quer ir agora? — perguntou o cocheiro.
“Para onde?”, perguntou-se Pierre. “Para onde posso ir agora? Será possível ir ao clube, ou fazer visitas?” Todos lhe pareciam tão dignos de pena, tão infelizes em comparação com o sentimento de ternura e de amor que ele experimentava; em comparação com aquele olhar suave de gratidão que ela, por último, dirigiu a ele, por trás das lágrimas.
— Para casa — disse Pierre e, apesar do frio de dez graus abaixo de zero, abriu o casaco de pele de urso no peito largo, alegre e arfante.
O ar estava calmo e gelado. Acima das ruas imundas, meio escuras, acima dos telhados pretos, pairava o céu escuro e estrelado. Pierre, olhando apenas para o céu, não sentia a mesquinharia injuriosa de toda a terra, em comparação com a elevação em que se achava a sua alma. Ao chegar à praça Arbat, a imensa vastidão do céu escuro e estrelado abriu-se aos olhos de Pierre. Quase no centro daquele céu, acima do bulevar Pretchístienski, rodeado e polvilhado de estrelas por todos os lados, mas destacando-se de todas elas pela proximidade da terra, pairava o imenso e brilhante cometa do ano de 1812, com uma luz branca e uma cauda comprida e voltada para cima, o cometa que, segundo diziam, prenunciava todos os horrores e o fim do mundo. Mas, para Pierre, aquela estrela luminosa, com a cauda comprida e radiante, não despertava nenhum sentimento terrível. Ao contrário, com alegria e com os olhos molhados de lágrimas, Pierre olhava para aquela estrela luminosa que, depois de ter voado por uma vastidão imensurável, numa velocidade indescritível e numa linha em parábola, parecia ter se cravado de repente num local escolhido por ela mesma, no meio do céu negro, assim como uma seta se finca na terra, e ali ficou parada, com a cauda vigorosamente erguida, reluzindo e ostentando a sua luz branca no meio das outras estrelas, inumeráveis e cintilantes. Pierre tinha a impressão de que aquela estrela correspondia plenamente ao que se passava na sua alma, que se aplacava, se reanimava e desabrochava para uma vida nova.
1 Rua na região central de Moscou.
2 Francês: “Ele é encantador, ele não tem sexo”.
3 Napoleão já era casado.
4 Referência a duas lojas maçônicas de São Petersburgo. O texto refere-se também a um tapete com símbolos desenhados, tido como acessório importante para as lojas. As atas são documentos que contêm as regras da ordem maçônica.
5 Francês: “tentar entrar sem ser convidado”.
6 Francês: “A bile e o transtorno do cérebro. Fique tranquila, voltarei amanhã”.
7 Em 1810, Napoleão anexou à França o grão-ducado de Oldenburg. O duque era tio do tsar Alexandre I. Outra fonte de divergência entre o tsar e Napoleão era o fato de cada um deles desejar o domínio sobre a Polônia. Porém, na ocasião, o Exército francês enfrentava sérios reveses na Espanha, e por isso Napoleão teve de adiar o seu ataque contra a Rússia.
8 Em junho de 1809, os exércitos franceses tomaram Roma. O papa ficou sob a guarda dos franceses e foi levado para o sul da França.
9 Francês: “O duque de Oldenburg suporta a sua desgraça com uma força de caráter e uma resignação admiráveis”.
10 Francês: “Meu caro, com as nossas tropas de quinhentos mil soldados, seria fácil ter um estilo bonito”.
11 Instrumento de cordas russo semelhante ao saltério.
12 Francês: “Ele é muito assíduo à casa dela”.
13 Francês: “é preciso ser melancólico. E ele é muito melancólico quando está com a senhorita Karáguina”.
14 Francês: “É mesmo?”.
15 Francês: “finais rimados”. Jogo em que se improvisavam versos, em geral de cunho jocoso, ou sem nexo lógico, a partir de uma rima inicial.
16 Francês: “Árvores rústicas, vossas ramagens sombrias lançam sobre mim as trevas e a melancolia”.
17 Francês: “A morte é benfazeja e a morte é tranquila/ Ah! Contra as dores não existe melhor abrigo”.
18 Francês: “Há algo tão fascinante no sorriso da melancolia!”.
19 Francês: “É um raio de luz nas sombras, um meio-tom entre a dor e o desespero, que mostra o possível consolo”.
20 Francês: “Alimento venenoso para uma alma sensível demais,/ Tu, sem a qual a felicidade me seria impossível,/ Terna melancolia, ah!, vem me consolar,/ Vem acalmar os tormentos do meu sombrio retiro,/ E mistura uma doçura secreta/ A estas lágrimas que sinto correr”.
21 Novela de Nikolai Mikháilovitch Karamzin (1766-1826), publicada em 1792. Conta o amor infeliz de uma jovem camponesa por um nobre. O tanque onde a jovem se afogou, junto ao mosteiro de Símonov, tornou-se um local de peregrinação sentimental, um verdadeiro modismo da época.
22 Francês: “Sempre encantadora e melancólica, a querida Julie”.
23 Francês: “Meu querido [...] sei de boa fonte que o príncipe Vassíli mandou o filho para Moscou a fim de casá-lo com Julie”.
24 Francês: “bom dia”.
25 “A grande velhaca.” Trocadilho com o Aubert-Chalmé, nome de uma francesa que tinha uma loja de modas em Moscou.
26 Francês: “Natália, seus cabelos”.
27 Referência a Nimfódora Semiónova (1788-1876), mais conhecida como atriz do que como cantora de ópera.
28 Francês: “Mas é encantadora!”.
29 Francês: “Não é mesmo admirável, o Duport?”.
30 Francês: “Ah, sim”.
31 Francês: “São as mulheres bonitas [...] A senhora será a mais bonita. Venha, cara condessa, e como penhor me dê esta flor”.
32 Francês: “eu adoro as meninas”.
33 Francês: “Ah, minha deliciosa!”.
34 Francês: “em gaze metálica”.
35 Francês: “Ele está louco, mas louco de amor pela senhora, minha querida”.
36 Francês: “minha deliciosa! [...] Se a senhora ama alguém, minha deliciosa, isso não é motivo para se enclausurar. Mesmo que a senhora esteja prometida, tenho certeza de que o seu prometido gostaria que a senhora frequentasse a sociedade na ausência dele, em vez de definhar de tédio”.
37 Francês: “Adorável, divino, delicioso!”.
38 Francês: “fascinante”.
39 Grossvater Tanz: música tradicional alemã do século XVII, era geralmente executada no final dos bailes.
40 Francês: “Uma palavra, uma só palavra, em nome de Deus”.
41 Francês: “Natália, uma palavra, só uma”.
42 Francês: “Que pé, meu caro, que olhar! Uma deusa!”.
43 Trata-se de um costume russo: antes de uma partida, em circunstâncias solenes, todos sentam e ficam um momento em silêncio.
44 Francês: “Se o senhor se atrever no meu salão...”.
45 Francês: “Não vou ser violento, não tema nada”.
46 Francês: “como um homem de honra”.
47 Francês: “Não sou capaz de competir com esse senhor”.
48 Napoleão se deu conta de que não conseguiria forçar a Rússia e entrar em guerra contra a Inglaterra. A passageira aliança entre a Rússia e a França se desfez e, no verão de 1812, os dois governos tinham concluído os preparativos para a guerra. A França selara uma aliança com a Prússia e a Áustria. A Rússia fizera aliança com a Suécia e assinara a paz com a Turquia, liberando tropas para a iminente guerra contra Napoleão.