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GUERRA E PAZ
GUERRA E PAZ

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

I

A partir do fim de 1811, teve início um armamento intenso e uma concentração de forças da Europa Ocidental, e no ano de 1812 essas forças — milhões de pessoas (contando aqueles que transportavam e alimentavam as tropas) — deslocaram-se do Ocidente para o Oriente, rumo às fronteiras da Rússia, para onde também, justamente a partir do ano de 1811, se encaminharam as forças da Rússia. No dia 12 de junho, as forças da Europa Ocidental atravessaram as fronteiras da Rússia, e começou a guerra, ou seja, teve lugar um acontecimento contrário à razão humana e a toda a natureza humana. Milhões de pessoas praticaram, umas contra as outras, uma quantidade tão inumerável de crimes, embustes, traições, roubos, fraudes, falsificações de dinheiro, pilhagens, incêndios e assassinatos, como não se encontra nos autos de todos os tribunais do mundo em séculos inteiros, e, naquele período, as pessoas que agiam assim não consideravam que nada disso fosse um crime.

O que produziu tal acontecimento extraordinário? Quais foram suas causas? Os historiadores dizem, com uma segurança ingênua, que as causas de tal acontecimento foram a afronta imposta ao duque de Oldenburg, a desobediência ao Sistema Continental,1 a ambição de Napoleão, a tenacidade de Alexandre, os erros dos diplomatas etc.

Em consequência, bastaria apenas que Metternich, Rumiántsev ou Taleyrand, entre uma recepção e uma festa, fizessem gentilmente o esforço de redigir um bilhete habilidoso, ou que Napoleão escrevesse para Alexandre: Monsieur mon frère, je consens à rendre le duché au duc d’Oldenbourg 2 — e não haveria guerra.

É compreensível que a questão se apresentasse assim para os contemporâneos. É compreensível que Napoleão achasse que a causa da guerra eram as intrigas da Inglaterra (como ele disse na ilha de Santa Helena);3 é compreensível que, aos membros do Parlamento inglês, parecesse que a causa da guerra era a ambição de Napoleão; que ao duque de Oldenburg parecesse que a causa da guerra era a violência praticada contra ele; que aos comerciantes parecesse que a causa da guerra era o Sistema Continental, que estava levando a Europa à ruína; que aos velhos soldados e aos generais parecesse que a causa principal da guerra era a necessidade de pôr todos eles em atividade; aos legitimistas daquele tempo, que era necessário restaurar les bons principes,4 e aos diplomatas daquele tempo, que tudo resultava do fato de que não se teve a necessária habilidade para manter escondida de Napoleão a aliança selada entre a Rússia e a Áustria em 1809 5 e que o memorando no 178 fora escrito de maneira canhestra. É compreensível que essas, bem como uma quantidade inumerável e infinita de causas, cuja quantidade depende das inúmeras diferenças de ponto de vista, se apresentassem aos contemporâneos; mas para nós, a posteridade, que contemplamos a imensidão dos acontecimentos em todo o seu volume e sondamos o seu sentido simples e terrível, tais causas parecem insuficientes. Para nós, não é compreensível que milhões de pessoas cristãs tenham matado e martirizado umas às outras porque Napoleão era ambicioso, Alexandre era obstinado, a política da Inglaterra era astuta e o duque de Oldenburg fora ultrajado. É impossível entender que vínculo existe entre essas circunstâncias e o assassinato e a violência, propriamente ditos; por que razão, em consequência de o duque ter sofrido um ultraje, milhares de pessoas do outro extremo da Europa mataram e destruíram pessoas das províncias de Smolensk e de Moscou e foram mortas por elas.

Para nós, a posteridade, que não somos historiadores nem entusiastas dos métodos de pesquisa, e que por isso contemplamos o acontecimento com um bom senso desanuviado, as suas causas se apresentam numa quantidade inumerável. Quanto mais nos aprofundamos na busca das causas, um maior número delas se revela para nós, e cada causa tomada em separado ou toda uma série de causas nos parecem igualmente justas em si mesmas, e também igualmente ilusórias, por sua insignificância em comparação com a enormidade do acontecimento, e igualmente ilusórias pela incapacidade (sem a participação de todas as demais causas concomitantes) de produzir o acontecimento que se deu. A recusa de Napoleão em retirar suas tropas para além do rio Vístula e em devolver o ducado de Oldenburg nos parece uma causa tão boa como a vontade ou a falta de vontade de um cabo francês qualquer de servir no Exército uma segunda vez: porque, se ele não tivesse querido servir, e um segundo, e um terceiro e também mil outros cabos e soldados não tivessem querido servir, haveria um número tão pequeno de pessoas nas tropas de Napoleão que nem poderia ter ocorrido uma guerra.

Se Napoleão não se ofendesse com a exigência de recuar para além do Vístula e não ordenasse às tropas que avançassem, não haveria guerra; mas, se todos os sargentos não quisessem servir no Exército pela segunda vez, também não haveria guerra. Tampouco poderia ter ocorrido a guerra se não houvesse as intrigas da Inglaterra, se não existissem o duque de Oldenburg e o sentimento de ofensa em Alexandre, se não houvesse um governo autocrático na Rússia, se não tivessem acontecido a Revolução Francesa, a ditadura e o império subsequente, bem como tudo aquilo que decorreu da Revolução Francesa, e assim por diante. Sem uma dessas causas, nada poderia ocorrer. Portanto todas essas causas — bilhões de causas — coincidiram para produzir o que ocorreu. E por consequência nada foi a causa exclusiva do acontecimento, e um acontecimento tem de ocorrer apenas porque tem de ocorrer. Milhões de pessoas, renegando seus sentimentos humanos e sua razão, tinham de ir do Ocidente para o Oriente e matar seus semelhantes, assim como, alguns séculos antes, multidões vieram do Oriente para o Ocidente, matando seus semelhantes.6

Os atos de Napoleão e de Alexandre, de cujas palavras parecia depender a realização ou não do acontecimento, eram tão pouco voluntários quanto os atos de qualquer soldado que entrou na campanha por um lance do destino ou por causa do recrutamento militar. Não poderia ocorrer de outro modo porque, a fim de que a vontade de Napoleão e de Alexandre (as pessoas de quem o acontecimento parecia depender) fosse cumprida, era necessária a coincidência de inúmeras circunstâncias, sem uma das quais o acontecimento não poderia se realizar. Era indispensável que milhões de pessoas, em cujas mãos estava o poder de fato, os soldados que atiravam, transportavam provisões e canhões, era preciso que eles concordassem em cumprir a vontade daquelas pessoas, individuais e fracas, e que fossem coagidos a isso por uma inumerável quantidade de causas complexas e variadas.

O fatalismo na história é inevitável para a explicação de fenômenos irracionais (ou seja, fenômenos cuja razão não compreendemos). Quanto mais tentamos explicar racionalmente tais fenômenos na história, mais eles se tornam irracionais e incompreensíveis para nós.

Todo homem vive para si, emprega a liberdade para alcançar seus objetivos pessoais e sente, com todo o seu ser, que agora pode ou não pode executar determinada ação; porém, assim que ele a executa, aquela ação, realizada num dado momento do tempo, se torna irreversível e passa a ser propriedade da história, na qual ela não tem um significado livre, mas predeterminado.

Em toda pessoa, a vida tem dois lados: a vida pessoal, que é tanto mais livre quanto mais abstratos são os seus interesses, e a vida elementar, de colmeia, na qual a pessoa cumpre inevitavelmente as leis a ela prescritas.

A pessoa vive para si de forma consciente, mas serve de instrumento inconsciente para a realização dos objetivos históricos. Um ato executado é irreversível, e sua ação, coincidindo no tempo com milhões de ações de outras pessoas, recebe um significado histórico. Quanto mais alto se situa uma pessoa na escala social, quanto mais está ligada a pessoas importantes, tanto maior o poder que exerce sobre as demais, tanto mais evidentes são a predestinação e a inevitabilidade de todos os seus atos.

“O coração do rei está na mão de Deus.”

O rei é escravo da história.

A história, ou seja, a vida inconsciente, comum, a vida de colmeia da humanidade, usa todos os minutos da vida do rei para si mesma, como um instrumento para alcançar os seus objetivos.

Embora, mais do que nunca, agora em 1812 parecesse a Napoleão que dependia dele verser ou não verser le sang de ses peuples 7 (como escreveu em sua última carta para o tsar Alexandre), nunca ele estivera mais sujeito a leis inexoráveis, que o obrigavam (enquanto agia em obediência a si mesmo, como lhe parecia, segundo o seu próprio arbítrio) a fazer, para a obra comum, para a história, aquilo que tinha de se cumprir.

Pessoas do Ocidente deslocaram-se para o Oriente a fim de se matarem umas às outras. E, segundo a lei da coincidência das causas, milhares de causas pequeninas se concatenaram por si mesmas e coincidiram com esse acontecimento para que houvesse tal movimento e para que houvesse a guerra: as acusações de desobediência ao Sistema Continental, o duque de Oldenburg, o movimento de tropas na Prússia, cuja finalidade (assim pareceu a Napoleão) era apenas conseguir uma paz armada,8 e o amor e o hábito da guerra que tinha o imperador francês, em concordância com a índole do seu povo, e a paixão pela grandiosidade dos preparativos, e as despesas com os preparativos, e a necessidade de obter lucros que pagassem tais despesas, e as intoxicantes honrarias que recebera em Dresden,9 e as negociações diplomáticas que, aos olhos dos contemporâneos, foram conduzidas com o sincero desejo de alcançar a paz, mas que apenas espicaçaram o orgulho de ambas as partes, e milhões de milhões de outras causas, que se concatenaram para realizar o acontecimento, e coincidiram com ele.

Quando a maçã fica madura e cai — por que cai? Porque a gravidade a atrai para a terra, ou porque sua haste está murcha, ou porque ela secou no sol, ficou muito pesada, o vento a derrubou, ou porque um menino que está embaixo da árvore quer comer a maçã?

Nada é a causa. Tudo isso é apenas a coincidência das condições sob as quais ocorre qualquer acontecimento vivo, orgânico, elementar. E o botânico que acha que a maçã cai porque a celulose se decompõe, e coisas semelhantes, terá tanta razão, e tanta falta de razão, quanto o menino que está embaixo da árvore e diz que a maçã caiu porque ele queria comê-la e rezou para ela cair. Assim também terá razão e não terá razão quem disser que Napoleão avançou para Moscou porque quis fazer isso, e que foi destruído porque Alexandre quis que o destruíssem: assim também terá razão e não terá razão quem disser que uma montanha de milhões de pud foi solapada e desmoronou porque um último operário bateu pela última vez debaixo dela com a sua picareta. Nos acontecimentos históricos, os assim chamados grandes homens não passam de rótulos com que se denominam os acontecimentos e, assim como os rótulos, têm com os acontecimentos propriamente ditos menos relação do que qualquer outra coisa.

Todos os seus atos, que a eles mesmos parecem voluntários, no sentido histórico são involuntários, estão ligados a todo o movimento da história e determinados desde sempre.

II

No dia 29 de maio,10 Napoleão saiu de Dresden, onde ficara por três semanas, rodeado por uma corte formada de príncipes, duques, reis e até um imperador. Napoleão, antes de partir, cumulou de atenções os príncipes, os reis e o imperador que as mereciam, repreendeu os reis e os príncipes com os quais não estava plenamente satisfeito, entregou pérolas e diamantes de sua propriedade, ou seja, tomados de outros reis, à imperatriz austríaca e, depois de abraçar com ternura a imperatriz Maria Luísa, como diz o seu historiador,11 deixou-a magoada com a separação, que ela — essa Maria Luísa considerava Napoleão seu marido, embora existisse outra esposa em Paris — parecia não ter forças para suportar. Apesar de os diplomatas ainda acreditarem com firmeza na possibilidade da paz e trabalharem com afinco para alcançar esse objetivo, apesar de o próprio imperador Napoleão ter escrito uma carta ao imperador Alexandre, tratando-o de monsieur mon frère e assegurando sinceramente que não desejava a guerra e que sempre iria amá-lo e respeitá-lo, ele partiu ao encontro do exército e a cada estação dava novas ordens, cujo propósito era apressar o deslocamento do exército do Ocidente para o Oriente. Napoleão viajava num coche puxado por seis cavalos, cercado por pajens, ajudantes de ordens e toda uma escolta, num trajeto que passava por Posen, Thorn, Dantzig e Königsberg. Em cada uma dessas cidades, milhares de pessoas o recebiam com entusiasmo e temor.

O exército se deslocava do Ocidente para o Oriente, e renovadas juntas de seis cavalos continuaram a transportar Napoleão na mesma direção. No dia 10 de junho ele alcançou o exército e pernoitou na floresta de Wilkowyski, num aposento preparado especialmente para ele na propriedade de um conde polonês.

No dia seguinte, Napoleão ultrapassou o exército, seguiu de carruagem até o rio Niemen e, a fim de avaliar o local de travessia, vestiu um uniforme polonês e foi até a margem.12

Ao ver na outra margem os cossacos (les cosaques) e as estepes (les steppes) que se espraiavam, no meio das quais estava Moscou, la ville sainte,13 capital daquele reino semelhante à Cítia, por onde havia passado Alexandre da Macedônia, Napoleão, de forma inesperada para todos e contrária à opinião dos estrategistas e dos diplomatas, deu ordem de atacar, e no dia seguinte as suas tropas começaram a atravessar o Niemen.

No dia 12, de manhã cedo, ele saiu da barraca, erguida naquele mesmo dia na íngreme margem esquerda do Niemen, e observou através de uma luneta as multidões das suas tropas que emergiam da floresta de Wilkowyski e se derramavam por três pontes que cruzavam o Niemen. As tropas sabiam da presença do imperador, procuravam-no com os olhos e, quando avistavam, na elevação à frente da barraca, a figura de casaco e chapéu afastada do seu séquito, os soldados jogavam os chapéus para o alto e gritavam: “Vive l’empereur!” — e um atrás do outro jorravam sem cessar, jorravam da enorme floresta, que até então os mantinha ocultos, e desmanchando as fileiras atravessavam para o outro lado pelas três pontes.

— On fera du chemin cette fois-ci. Oh! Quand il s’en mêle lui-même ça chauffe... Nom de Dieu... Le voilà! Vive l’empereur! Les voilà donc les steppes de l’Asie! Vilain pays tout de même. Au revoir, Beauché; je te réserve le plus beau palais de Moscou. À revoir! Bonne chance... L’as-tu vu, l’empereur? Vive l’empereur!... preur! Si on me fait gouverneur aux Indes, Gérard, je te fais ministre du Cachemire, c’est arrêté. Vive l’empereur! Vive! Vive! Vive! Les gredins de cosaques, comme ils filent! Vive l’empereur! Le voilà! Le vois-tu? Je l’ai vu deux fois comme je te vois. Le petit caporal... Je l’ai vu donner la croix à l’un des vieux... Vive l’empereur!...14 — diziam as vozes de velhos e de jovens, de diversos caracteres e posições sociais. No rosto de todas aquelas pessoas, havia a mesma expressão geral de alegria pelo início de uma campanha esperada havia muito tempo, de entusiasmo e de devoção ao homem de casaco cinza que estava postado no alto do morro.

No dia 13 de junho, deram a Napoleão um cavalo árabe pequeno, puro-sangue, ele montou e partiu a galope rumo a uma das pontes sobre o rio Niemen, ensurdecido pelos incessantes gritos de entusiasmo que, claramente, Napoleão só tolerava porque era impossível proibi-los de expressar com tais gritos o seu amor por ele; mas os gritos, que o acompanhavam em toda parte, o incomodavam e o distraíam das preocupações militares, que o absorviam desde que ele se juntara às tropas. Napoleão passou para o outro lado do rio por uma das pontes, que oscilavam, escoradas em barcos, fez uma guinada brusca para a esquerda e seguiu a galope na direção de Kovno, precedido por caçadores da guarda de cavalaria que, entusiasmados, quase sufocados de felicidade, galopavam à sua frente, abrindo caminho no meio das tropas. Ao chegar ao largo rio Víliya, Napoleão parou junto a um regimento de ulanos poloneses que estava na margem.

— Viva! — gritaram os poloneses de modo igualmente entusiasta, desmanchando as fileiras do front e comprimindo-se uns aos outros a fim de vê-lo. Napoleão observou o rio, desceu do cavalo e sentou-se numa tora colocada na margem. Em resposta a um sinal mudo, deram-lhe uma luneta, ele a apoiou nas costas de um pajem, que logo acudiu, feliz da vida, e pôs-se a examinar o outro lado. Em seguida mergulhou no exame de um mapa, desdobrado entre as toras de madeira. Sem levantar a cabeça, disse algo, e dois de seus ajudantes de ordens saíram a galope na direção dos ulanos poloneses.

— O quê? O que foi que ele disse? — ouviu-se nas fileiras dos ulanos poloneses, quando um ajudante de ordens chegou a galope até onde eles estavam.

A ordem era encontrar um vau no rio e atravessar para o outro lado. O coronel dos ulanos poloneses, um velho bonito, que se ruborizou e se confundiu com as palavras devido à emoção, perguntou ao ajudante de ordens se tinha permissão para atravessar o rio a nado com os seus ulanos, em vez de procurar um vau. Com um medo evidente de receber uma resposta negativa, como um menino que pede permissão para montar num cavalo, o coronel perguntou se lhe permitiam atravessar o rio a nado diante dos olhos do imperador. O ajudante de ordens disse que sem dúvida o imperador não ficaria descontente com tal excesso de fervor.

Assim que o ajudante de ordens disse isso, o velho oficial bigodudo, com o rosto feliz e os olhos radiantes, ergueu o sabre e gritou: “Viva!” — e, depois de ordenar aos ulanos que o seguissem, esporeou o cavalo e partiu a galope na direção do rio. Incitou cruelmente o seu cavalo, que hesitava, lançou-se para dentro da água, rumando para o fundo, na direção da correnteza rápida. Centenas de ulanos galoparam atrás dele. No meio do rio, na correnteza, estava frio e assustador. Os ulanos se empurravam uns aos outros, caíam dos cavalos, alguns cavalos se afogaram, pessoas também se afogaram, os outros se esforçavam em nadar, uns agarrados na sela, outros na crina. Esforçavam-se em nadar adiante, para o outro lado, e apesar de haver um baixio a meia versta dali, gabavam-se de nadar e de se afogar naquele rio, sob os olhos de um homem sentado numa tora, que nem estava olhando para o que eles faziam. Quando o ajudante de ordens voltou e, escolhendo um momento apropriado, dignou-se a chamar a atenção do imperador para a dedicação dos poloneses à sua pessoa, o homem pequeno de casaco cinza levantou-se, chamou Berthier e pôs-se a caminhar com ele de um lado para outro, pela margem do rio, dando-lhe ordens e, de vez em quando, lançando olhares descontentes para os ulanos que se afogavam e distraíam a sua atenção.

Para ele, não era novidade a crença de que só a sua presença em qualquer canto do mundo, da África até as estepes da Moscóvia, bastava para transtornar as pessoas e precipitá-las nas loucuras do desprendimento. Mandou que lhe trouxessem um cavalo e partiu para o seu acampamento.

Cerca de quarenta ulanos se afogaram no rio, apesar dos barcos enviados em socorro. A maioria foi lançada de volta para a margem. O coronel e alguns homens conseguiram cruzar o rio a nado e, com dificuldade, galgaram a margem oposta. Porém, assim que conseguiram subir, em sua roupa encharcada, colada ao corpo e escorrendo aos borbotões, gritaram: “Viva!”, olhando com entusiasmo para o local onde estava Napoleão, mas onde ele já não estava mais, e naquele instante se consideraram felizes.

À noite, Napoleão, entre uma ordem e outra — uma para que as notas falsas de dinheiro russo preparadas de antemão fossem enviadas para a Rússia o mais depressa possível, e outra para fuzilar o saxão com quem haviam interceptado uma carta na qual se encontravam informações sobre as ordens recebidas pelo Exército francês —, deu uma terceira ordem — a nomeação para a Legião de Honra (Légion d’Honneur), da qual Napoleão era chefe, do coronel que, sem necessidade, se lançara ao rio.

Quos vult perdere — dementat.15

III

O imperador russo, enquanto isso, estava em Vilna já fazia mais de um mês, passando as tropas em revista e participando de manobras. Nada estava preparado para a guerra, que todos esperavam e para cujos preparativos o imperador viera de Petersburgo. Não havia um plano geral de ação. As hesitações em escolher um plano, entre todos aqueles sugeridos, apenas aumentaram após um mês de estadia do imperador no quartel-general. Os três exércitos tinham, cada um, o seu próprio comandante em chefe,16 mas não havia um comandante-geral para todos os exércitos, e o imperador não atribuía a si aquela função.

Quanto mais tempo o imperador ficava em Vilna, menos preparativos faziam para a guerra, já cansados de tanto esperar por ela. Todos os esforços das pessoas que rodeavam o soberano pareciam voltados apenas para obrigar o soberano a esquecer a guerra iminente, passando o tempo de forma agradável.

No mês de junho, depois de muitos bailes e festas oferecidos por magnatas poloneses, por cortesãos e pelo próprio soberano, um dos generais poloneses que eram ajudantes de ordens do soberano teve a ideia de oferecer um jantar e um baile ao soberano, em nome dos seus generais ajudantes de ordens. Essa ideia foi recebida com alegria por todos. O soberano comunicou sua concordância. Os generais ajudantes de ordens fizeram uma subscrição para coletar dinheiro. A pessoa tida como a mais agradável ao soberano foi convidada para ser a anfitriã do baile. O conde Bennigsen, senhor de terras na província de Vilna, ofereceu a sua casa de campo para aquela festa, e marcaram para o dia 13 de junho um jantar, um baile, um passeio de barco e um espetáculo de fogos de artifício em Zakret, casa de campo do conde Bennigsen.

No mesmo dia em que Napoleão deu ordem para cruzar o rio Niemen e em que os postos avançados de suas tropas rechaçaram os cossacos e atravessaram a fronteira russa, Alexandre passou a noite na casa de campo de Bennigsen — num baile, oferecido pelos generais ajudantes de ordens.

Foi uma festa alegre, radiante; os entendidos no assunto diziam que raramente tantas beldades se reuniram num mesmo lugar. A condessa Bezúkhova, entre outras damas russas que vieram de Petersburgo até Vilna seguindo o soberano, estava no baile, obscurecendo com a sua beleza pesada, a dita beleza russa, as refinadas damas polonesas. Ela foi notada, e o soberano lhe concedeu uma dança.

Boris Drubetskói, en garçon (solteiro), como ele dizia, tendo deixado sua esposa em Moscou, também estava no baile e, embora não fosse um general ajudante de ordens, participou com uma grande soma na subscrição para o baile. Agora Boris era um homem rico, que alcançara altas honrarias, já não procurava padrinhos e tratava de igual para igual as mais altas personalidades da sua geração.

À meia-noite, os pares ainda estavam dançando. Hélène, na falta de um par à altura, convidou Boris, ela mesma, para dançar a mazurca. Posicionaram-se como o terceiro par. Boris, contemplando com sangue-frio os radiantes ombros despidos de Hélène, que brotavam de um vestido de gaze escura bordado em ouro, conversava sobre velhos conhecidos e ao mesmo tempo, sem que ele mesmo notasse, nem as outras pessoas, não parava de observar o soberano, que se achava na mesma sala. O soberano não estava dançando; estava parado junto à porta e detinha ora um, ora outro, com as palavras gentis que só ele sabia dizer.

No início da mazurca, Boris viu que o general ajudante de ordens Balachov, uma das pessoas mais próximas do soberano, aproximou-se e, de modo estranho aos hábitos da corte, ficou bem perto do soberano, que estava falando com uma dama polonesa. Quando terminou de falar com a dama, o soberano lançou um olhar interrogativo e, pelo visto, entendendo que Balachov só havia agido assim porque havia motivos importantes, despediu-se da dama com um ligeiro aceno de cabeça e voltou-se para Balachov. Assim que Balachov começou a falar, a surpresa manifestou-se no rosto do soberano. Segurou Balachov pelo braço e, com ele, atravessou o salão, enquanto as pessoas à sua frente abriam, de ambos os lados, e de modo inconsciente, um amplo corredor de umas três braças de largura. Boris notou o rosto nervoso de Araktchéiev, na mesma hora em que o soberano passou com Balachov. Araktchéiev, olhando para o soberano de soslaio e fungando com seu nariz vermelho, destacou-se da multidão, como que esperando que o soberano se dirigisse a ele. (Boris entendia que Araktchéiev tinha inveja de Balachov e que estava descontente com o fato de uma notícia obviamente importante não ter sido transmitida ao soberano por seu intermédio.)

Entretanto, o soberano e Balachov, sem reparar em Araktchéiev, seguiram para o jardim iluminado através da porta de saída. Araktchéiev, segurando a espada e olhando à sua volta com ar malévolo, seguiu-os a uns vinte passos de distância.

Enquanto Boris continuava a executar as figuras da mazurca, não cessava de atormentá-lo o pensamento de que notícia poderia ser aquela transmitida por Balachov e de que forma ele poderia saber disso antes dos outros.

Na figura da dança em que ele teria de escolher outra dama, sussurrou para Hélène que desejava escolher a condessa Potocka, que pelo visto tinha saído para a varanda, e Boris, deslizando os pés no assoalho, saiu ligeiro pela porta que dava para o jardim e, ao notar que o soberano voltava para o terraço com Balachov, se deteve. O soberano e Balachov tomaram a direção da porta. Boris, pressuroso, como se não tivesse tempo de sair do caminho, encolheu-se respeitosamente junto à ombreira da porta e curvou a cabeça.

O soberano, com a perturbação de um homem insultado pessoalmente, estava terminando de dizer as seguintes palavras:

— Invadir a Rússia sem declarar guerra. Só vou selar a paz quando não restar nenhum inimigo armado na minha terra — disse. Pareceu a Boris que o soberano teve prazer em pronunciar essas palavras: sentiu-se satisfeito com a forma de expressar seu pensamento, mas ficou descontente por Boris ter ouvido.

— Que ninguém saiba disso! — acrescentou o soberano, com as sobrancelhas franzidas. Boris entendeu que aquilo se referia a ele e, de olhos fechados, inclinou a cabeça de leve. O soberano entrou de novo no salão e continuou no baile durante mais ou menos meia hora.

Boris foi o primeiro a saber da notícia de que as tropas francesas haviam atravessado o Niemen e, graças a isso, teve a oportunidade de mostrar a diversas pessoas importantes que muita coisa oculta dos demais era conhecida por ele e, dessa maneira, teve a oportunidade de subir mais ainda no conceito daquelas personalidades.

A inesperada notícia sobre a travessia do Niemen pelos franceses era especialmente inesperada após um mês de espera vã, e ainda mais num baile! O soberano, no primeiro momento após receber a notícia, sob o efeito da indignação e da ofensa, encontrou aquela frase, depois célebre, que lhe agradou e que exprimia plenamente os seus sentimentos. Ao voltar do baile para casa, às duas horas da madrugada, o soberano mandou chamar o seu secretário Chichkóv e lhe ditou uma ordem para as tropas e um rescrito para o marechal de campo príncipe Saltikóv, no qual exigiu a todo custo que fossem inseridas as palavras segundo as quais ele não selaria a paz enquanto permanecesse um único francês armado em terra russa.

No dia seguinte, foi escrita a seguinte carta para Napoleão:

Monsieur mon frère. J’ai appris hier que malgré la loyauté avec laquelle j’ai maintenu mes engagements envers Votre Majesté, ses troupes ont franchi les frontières de la Russie, et je reçois à l’instant de Pétersbourg une note par laquelle le comte Lauriston, pour cause de cette agression, annonce que Votre Majesté s’est considérée comme en état de guerre avec moi dès le moment où le prince Kourakine a fait la demande de ses passeports. Les motifs sur lesquels le duc de Bassano fondait son refus de les lui délivrer, n’auraient jamais pu me faire supposer que cette démarche servirait jamais de prétexte à l’agression. En effet, cet ambassadeur n’a jamais été autorisé, comme il l’a déclaré lui-même, et aussitôt que j’en fus informé, je lui ai fait connaître combien je le désapprouvais en lui donnant l’ordre de rester à son poste. Si Votre Majesté n’est pas intentionnée de verser le sang de nos peuples pour un malentendu de ce genre et qu’elle consente à retirer ses troupes du territoire russe, je regarderai ce qui s’est passé comme non avenu, et un accommodement entre nous sera possible. Dans le cas contraire, Votre Majesté, je me verrai forcé de repousser une attaque que rien n’a provoquée de ma part. Il dépend encore de Votre Majesté d’éviter à l’humanité les calamités d’une nouvelle guerre.

Je suis etc.

(Signé) Alexandre 17

IV

No dia 13 de julho, às duas horas da madrugada, após chamar Balachov à sua presença e ler para ele a carta para Napoleão, o soberano o ordenou que levasse a carta e entregasse pessoalmente ao imperador francês. Ao despedir-se de Balachov, o soberano repetiu suas palavras de que não selaria a paz enquanto restasse um único inimigo armado em terra russa e ordenou que transmitisse a todo custo aquelas palavras a Napoleão. O soberano não escreveu aquelas palavras na carta porque sentia, com o tato que lhe era próprio, que aquelas palavras eram inconvenientes num momento em que se fazia a última tentativa de conciliação; mas ordenou que Balachov, a todo custo, as transmitisse pessoalmente a Napoleão.

Após partir na noite de 13 para 14 de junho, Balachov, acompanhado por um corneteiro e por dois cossacos, chegou no raiar do dia à aldeia de Rykonty, nos postos avançados dos franceses na margem de cá do rio Niemen. Foi detido pelas sentinelas da cavalaria francesa.

Um suboficial hussardo francês, de uniforme vermelho e chapéu de pelo, gritou para Balachov, que vinha se aproximando, e ordenou que parasse. Balachov não parou de imediato, continuou a se aproximar pela estrada a passo lento.

O suboficial franziu as sobrancelhas, resmungou algum palavrão, avançou o peito do seu cavalo na direção de Balachov, sacou o sabre e gritou de modo grosseiro para o general russo, perguntando se ele era surdo, se não ouvia o que lhe diziam. Balachov disse o seu nome. O suboficial mandou um soldado chamar um oficial.

Sem prestar atenção em Balachov, o suboficial passou a falar com os seus camaradas a respeito de assuntos do regimento e nem olhava para o general russo.

Para Balachov, depois de estar perto do poder e das mais elevadas autoridades, depois de ter conversado com o soberano três horas antes e, em geral, estando habituado às honrarias em seu serviço, foi excepcionalmente estranho ver ali, em terra russa, aquele tratamento hostil e sobretudo desrespeitoso dirigido a ele com força bruta.

O sol apenas começava a se erguer por trás das nuvens; o ar estava fresco e orvalhado. Pela estrada que vinha da aldeia, tocavam um rebanho. Nos campos, uma após a outra, como bolhas na água, as cotovias levantavam voo, com trinados.

Balachov olhava à sua volta, à espera da chegada do oficial que vinha da aldeia. Os cossacos russos, o corneteiro e os hussardos franceses de vez em quando se entreolhavam em silêncio.

O coronel hussardo francês, que obviamente havia acabado de levantar da cama, veio da aldeia num bonito cavalo cinzento e bem alimentado, acompanhado por dois hussardos. No oficial, nos hussardos e também em seus cavalos, eram evidentes o contentamento e o capricho.

Era aquela primeira fase das campanhas, na qual as tropas ainda se encontram em perfeito apuro, quase como numa revista de tropas em tempo de paz, apenas com um elegante matiz de belicosidade nas roupas e com o saudável matiz de alegria e de espírito de iniciativa que sempre acompanham o início das campanhas militares.

O coronel francês reprimiu um bocejo com dificuldade, mas foi respeitoso e, obviamente, compreendeu muito bem a importância de Balachov. Conduziu-o entre os seus soldados para trás das linhas e comunicou que o seu desejo de ser levado à presença do imperador seria prontamente atendido, com toda a certeza, pois o alojamento do imperador, até onde ele sabia, ficava perto dali.

Passaram pela aldeia de Rykonty, entre os postes de amarrar cavalos dos hussardos franceses, entre sentinelas e soldados, que prestavam continência ao seu coronel e observavam com curiosidade o uniforme russo, e chegaram ao outro lado da aldeia. Segundo as palavras do coronel, a dois quilômetros estava o comandante da divisão, que ia receber Balachov e levá-lo ao seu destino.

O sol já havia se levantado e brilhava com alegria na folhagem radiante.

Assim que passaram por uma hospedaria no alto de um monte, veio lá de baixo ao encontro deles um grupo de cavaleiros, à frente do qual, num cavalo negro-azeviche, com arreios que brilhavam ao sol, estava um homem de estatura elevada, de chapéu com plumas e cabelos pretos, crespos, até os ombros, capa vermelha e pernas compridas, esticadas para a frente, como em geral cavalgam os franceses. Esse homem veio a galope ao encontro de Balachov, brilhando e esvoaçando, no radiante sol de junho, com suas plumas, suas pedras preciosas e seus galões dourados.

Balachov já estava à distância de dois cavalos do cavaleiro que galopava ao seu encontro com um rosto solenemente teatral, com braceletes, plumas, colares e ouro, quando Ulner, o coronel francês, sussurrou respeitosamente: “Le roi de Naples”. Na verdade, era Murat, agora chamado de rei de Nápoles. Apesar de ser totalmente incompreensível por que chamar Murat de rei de Nápoles, ele era chamado assim, e o próprio Murat estava convencido disso e portanto tinha um aspecto mais solene e imponente do que antes. Murat estava tão convencido de que era de fato o rei de Nápoles que quando, na véspera da sua partida, num passeio pelas ruas de Nápoles com sua esposa, alguns italianos gritaram para ele: “Viva il re!”, Murat voltou-se com um sorriso triste para a esposa e disse: “Les malheureux, ils ne savent pas que je les quitte demain!”.18

Apesar de acreditar com firmeza que era o rei de Nápoles e de lamentar a tristeza dos seus súditos aos quais teria de deixar, nos últimos tempos, depois que havia recebido ordens de retomar o serviço no Exército, e sobretudo depois do encontro com Napoleão em Dantzig, quando o seu augusto cunhado lhe disse: “Je vous ai fait roi pour régner à ma manière, mais pas à la vôtre”,19 Murat assumiu com alegria o ofício que ele tão bem conhecia e, como um cavalo bem alimentado, mas não gordo, e orgulhoso do seu serviço, sentindo-se preso aos seus arreios, brincava entre os varais da carruagem e, enfeitado da maneira mais cara e colorida possível, galopava sem saber para onde nem para quê, pelas estradas da Polônia.

Ao ver o general russo, ele, solene, à maneira de um rei, inclinou para trás a cabeça, com os cabelos crespos até os ombros, e fitou o coronel francês com ar interrogativo. O coronel transmitiu respeitosamente à sua alteza a missão de Balachov, cujo nome de família não conseguiu pronunciar.

— De Bal-machève! — disse o rei (superando com o seu ar decidido a dificuldade que o coronel enfrentava) —, charmé de faire votre connaissance, général 20 — acrescentou com um gesto de régia benevolência. Assim que o rei começou a falar em voz alta e rápida, toda a dignidade real o abandonou no mesmo instante e, sem que ele mesmo notasse, Murat passou para o tom de familiaridade simpática que lhe era próprio. Colocou a mão na crina do cavalo de Balachov.

— Eh bien, général, tout est à la guerre, à ce qu’il paraît 21 — disse, como se lamentasse uma circunstância que ele não podia julgar.

— Sire — respondeu Balachov —, l’empereur mon maître ne désire point la guerre, comme Votre Majesté le voit 22— disse Balachov, empregando por via das dúvidas o tratamento Votre Majesté, título repetido com uma afetação inevitável, pois se dirigia a uma pessoa para quem aquele título ainda era uma novidade.

O rosto de Murat brilhava com satisfação tola enquanto ouvia M. de Balachoff. Mas royauté oblige: 23 ele sentiu necessidade de conversar com o mensageiro de Alexandre a respeito de assuntos de Estado, como rei e aliado. Desmontou do cavalo, tomou Balachov pelo braço e, afastando-se alguns passos da sua comitiva, que aguardava respeitosamente, pôs-se a caminhar com ele de um lado para outro, tentando falar de modo importante. Mencionou o fato de que o imperador Napoleão ficara ofendido com a exigência de retirar suas tropas da Prússia, em especial agora, que tal exigência se tornara conhecida de todos e com isso a dignidade da França fora ultrajada. Balachov disse que tal exigência nada tinha de ofensivo, porque... Murat interrompeu-o.

— Então o senhor considera que o provocador não é o imperador Alexandre? — perguntou de modo inesperado, com um sorriso simpático e tolo.

Balachov disse por que ele de fato acreditava que o iniciador da guerra era Napoleão.

— Eh, mon cher général — interrompeu de novo Murat —, je désire de tout mon cœur que les empereurs s’arrangent entre eux, et que la guerre commencée malgré moi se termine le plus tôt possible — disse num tom de conversa de criados que desejam continuar bons amigos, apesar da briga entre os patrões. E passou a indagar sobre o grão-duque, sobre sua saúde e sobre as lembranças dos tempos alegres e divertidos que passara com ele, em Nápoles. Depois, como se de repente se lembrasse da sua dignidade real, Murat empertigou-se com ar solene, assumiu a mesma pose da coroação e, abanando a mão direita, disse: — Je ne vous retiens plus, général; je souhaite le succès de votre mission24 — e, esvoaçando com sua capa vermelha bordada e suas plumas, e brilhando com as suas joias, seguiu na direção da comitiva, que o aguardava respeitosamente.

Balachov foi em frente, supondo pelas palavras de Murat que logo seria apresentado ao próprio Napoleão. Porém, em vez de um encontro com Napoleão, as sentinelas da unidade de infantaria de Davout o retiveram de novo no povoado seguinte, como na primeira linha, e chamaram um ajudante de ordens do comandante da unidade para levá-lo à aldeia, ao encontro do marechal Davout.

V

Davout era o Araktchéiev do imperador Napoleão — um Araktchéiev não covarde mas igualmente aplicado, cruel, e incapaz de exprimir sua devoção a não ser na forma de crueldade.

No interior da máquina do organismo do Estado, tais pessoas são necessárias como são necessários os lobos no organismo da natureza, e elas sempre existem, sempre aparecem e perduram, por mais absurdas que pareçam a sua presença e a sua proximidade do chefe do governo. Só por meio dessa necessidade é possível explicar como o cruel Araktchéiev, homem inculto e alheio à corte, que arrancou pessoalmente os bigodes de um granadeiro e que por causa dos nervos fracos era incapaz de encarar um perigo, conseguiu manter tamanho poder junto ao caráter cavalheiresco, bondoso e terno de Alexandre.

Balachov encontrou o marechal Davout no telheiro da isbá de um camponês, sentado numa barrica, ocupado com tarefas burocráticas (conferia contas). Um ajudante de ordens estava de pé ao seu lado. Poderia ter conseguido um local melhor, mas o marechal Davout era uma dessas pessoas que se colocam de propósito nas condições de vida mais sombrias, a fim de ter o direito de serem sombrias. Por isso sempre se encontram zelosa e apressadamente atarefadas. “Como vou pensar no lado feliz da vida humana, quando, como vocês estão vendo, estou sentado numa barrica, num telheiro imundo, trabalhando?”, dizia a expressão do seu rosto. A principal satisfação e necessidade dessas pessoas consiste em, ao encontrar alguém animado com a vida, jogar na cara desse animado a sua atividade sombria, tenaz. Foi esse o prazer que Davout proporcionou a si mesmo, quando trouxeram Balachov à sua presença. Afundou-se mais ainda no seu trabalho quando o general russo entrou e, após olhar através dos óculos para o rosto de Balachov, um rosto animado sob a impressão da manhã bonita e da conversa com Murat, não se levantou, nem sequer se mexeu, franziu mais ainda as sobrancelhas e deu um sorriso malévolo.

Ao notar no rosto de Balachov a impressão desagradável que aquela recepção havia produzido, Davout levantou a cabeça e perguntou friamente o que ele queria.

Supondo que tal recepção pudesse ter ocorrido apenas porque Davout não sabia que ele era um general ajudante de ordens do imperador Alexandre e até o seu representante junto a Napoleão, Balachov se deu pressa em comunicar a sua missão e o seu objetivo. Ao contrário do que esperava, Davout, depois de escutar Balachov, mostrou-se ainda mais severo e rude.

— Onde está a mensagem do senhor? — perguntou. — Donnez-le moi, je l’enverrai à l’empereur.25

Balachov respondeu que tinha ordens de entregar pessoalmente o envelope ao próprio imperador.

— As ordens do seu imperador são cumpridas no Exército de vocês, mas aqui — disse Davout — o senhor tem de fazer o que lhe dizem.

E, como que para fazer o general sentir mais ainda a sua sujeição à força bruta, Davout mandou um ajudante de ordens chamar o oficial de serviço.

Balachov pegou o envelope onde estava lacrada a carta do soberano e colocou-o na mesa (mesa feita de uma porta apoiada sobre duas barricas, na qual sobressaíam as dobradiças arrancadas da parede). Davout pegou o envelope e leu o sobrescrito.

— O senhor tem todo o direito de mostrar ou não mostrar respeito por mim — disse Balachov. — Mas permita que eu lembre ao senhor que tenho a honra de ocupar o posto de general ajudante de ordens de sua majestade...

Davout lançou um olhar para ele, em silêncio, e certa perturbação e constrangimento que se expressaram no rosto de Balachov visivelmente lhe deram prazer.

— O senhor receberá o que é devido — disse ele, pôs o envelope no bolso e saiu do telheiro.

Um minuto depois, entrou um ajudante de ordens do marechal, o sr. De Castries, e levou Balachov para um aposento preparado para ele.

Balachov almoçou com o marechal, nesse dia, naquele mesmo telheiro, naquela mesma prancha sobre as barricas.

No dia seguinte, Davout saiu de manhã cedo e, depois de chamar Balachov, disse-lhe em tom grave que lhe pedia que permanecesse ali, que só partisse com suas bagagens se recebesse ordens para isso e que não falasse com ninguém, exceto com o sr. De Castries.

Depois de quatro dias de isolamento, de tédio, de consciência da sua sujeição e insignificância, especialmente sensível depois do ambiente de poder no qual ele estivera tão pouco tempo antes, após várias marchas com a equipagem do marechal, com as tropas francesas que ocupavam toda aquela localidade, Balachov foi levado para Vilna, agora ocupada pelos franceses, aonde chegou pela mesma entrada de onde ele havia partido quatro dias antes.

No dia seguinte, o camareiro do imperador, M. Turenne, veio ao encontro de Balachov e lhe comunicou o desejo do imperador Napoleão de lhe conceder uma audiência.

Quatro dias antes, na mesma casa para a qual levaram Balachov, tinham estado de guarda sentinelas do regimento de Preobrajénski, mas agora ali estavam postados dois granadeiros franceses de uniforme azul aberto no peito e chapéu de pelo, uma escolta de hussardos e ulanos, além de uma radiante comitiva de ajudantes de ordens, pajens e generais, que esperavam a saída de Napoleão, em torno de um cavalo de sela que estava junto à varanda e do mameluco Rustan.26 Napoleão recebeu Balachov na mesma casa em Vilna da qual Alexandre o tinha enviado em sua missão.

VI

Apesar de Balachov estar habituado à solenidade palaciana, o luxo e a pompa da corte do imperador Napoleão o impressionaram.

O conde Turenne levou-o para uma ampla sala de recepção, onde muitos generais, camareiros e magnatas poloneses aguardavam, muitos dos quais Balachov tinha visto na corte do imperador russo. Duroc disse que o imperador Napoleão receberia o general russo antes do seu passeio.

Depois de vários minutos de espera, o camareiro de serviço entrou na grande sala de recepção e, após inclinar-se respeitosamente para Balachov, convidou-o a segui-lo.

Balachov entrou numa pequena sala de recepção, onde havia uma porta que dava para o escritório, o mesmo escritório de onde o imperador russo o enviara em missão. Balachov ficou esperando um ou dois minutos. Atrás da porta, ouviram-se passos apressados. Abriram-se rapidamente as duas folhas da porta, o camareiro que abriu a porta ficou respeitosamente parado, esperando, tudo ficou quieto, e do escritório ressoaram outros passos, firmes, resolutos: era Napoleão. Tinha acabado de se aprontar para o seu passeio a cavalo. Usava uniforme azul, aberto sobre um colete branco que cobria a barriga redonda, calções de montaria brancos feitos de camurça, muito justos nas coxas gordas das pernas curtas, e botas de montar. Seu cabelo curto, era evidente, tinha acabado de ser penteado, mas uma mecha pendia no meio da testa larga. O pescoço branco e roliço sobressaía nitidamente da gola preta do uniforme; dele, vinha um cheiro de água-de-colônia. No rosto jovial e cheio, com um queixo proeminente, havia uma expressão de saudação imperial, benevolente e majestosa.

Napoleão entrou, com um tremor ligeiro a cada passo e com a cabeça um pouco inclinada para trás. Toda a sua figura baixa e gorducha, com os ombros largos e gordos, a barriga e o peito involuntariamente projetados para a frente, tinha o aspecto imponente, garboso, das pessoas de quarenta anos que vivem cercadas de cuidados. Além disso, era evidente que naquele dia ele se encontrava no seu melhor estado de ânimo.

Inclinou a cabeça em resposta à reverência acentuada e respeitosa de Balachov e, aproximando-se dele, pôs-se logo a falar como um homem que dá grande valor a cada minuto do seu tempo, que não se dá ao trabalho de fazer preparativos para o que tem a dizer e que está convencido de que sempre fala bem e aquilo que é preciso dizer.

— Bom dia, general! — disse ele. — Recebi a carta do imperador Alexandre que o senhor entregou e estou muito contente em vê-lo. — Lançou um olhar para o rosto de Balachov, com seus olhos grandes, e logo passou a olhar para a frente, sem fitá-lo.

Era evidente que a pessoa de Balachov não lhe interessava nem um pouco. Estava claro que só aquilo que se passava na sua alma tinha interesse para ele. Tudo o que estava fora dele não tinha importância para ele, porque tudo no mundo, assim lhe parecia, dependia apenas da sua vontade.

— Não desejo e não desejava a guerra — disse. — Mas me obrigaram a ela. Eu, mesmo agora (falou essa palavra com ênfase), estou pronto a aceitar todas as explicações que o senhor puder me dar. — E passou a expor, de modo claro e conciso, as causas do seu descontentamento com o governo russo.

A julgar pelo tom moderado, sereno e amistoso com que falava o imperador francês, Balachov ficou firmemente convencido de que ele desejava a paz e de que tinha a intenção de abrir negociações.

— Sire! L’empereur mon maître...27 — começou Balachov a sua fala, já preparada havia muito tempo, depois que Napoleão terminou de falar e olhou com ar interrogativo para o emissário russo; mas os olhos do imperador dirigidos para ele o perturbaram. “O senhor está perturbado — componha-se”, parecia dizer Napoleão, que com um sorriso quase imperceptível examinava o uniforme e a espada de Balachov. Balachov se recompôs e começou a falar. Disse que o imperador Alexandre não considerava a exigência do passaporte por Kurákin um motivo suficiente para a guerra, que Kurákin agira dessa forma por vontade própria e sem o consentimento do soberano, que o imperador Alexandre não desejava a guerra e que não existiam relações de nenhum tipo com a Inglaterra.

— Ainda não — interrompeu Napoleão e, como se temesse se deixar levar pelo sentimento, franziu as sobrancelhas e inclinou a cabeça de leve, dando assim a entender a Balachov que ele podia continuar.

Tendo dito tudo aquilo que lhe haviam ordenado, Balachov acrescentou que o imperador desejava a paz, mas que só abriria as negociações na condição de... Aqui, Balachov hesitou: lembrou-se das palavras que o imperador Alexandre não havia escrito na carta, mas que ordenara incluir a todo custo no rescrito para Saltikóv e também ordenara a Balachov transmitir a Napoleão. Balachov lembrou-se destas palavras: “Enquanto restar um único inimigo armado em terra russa”, mas um sentimento complicado dominou-o. Não conseguia falar aquelas palavras, embora quisesse. Titubeou e disse: na condição de que as tropas francesas recuem para a outra margem do Niemen.

Napoleão percebeu a perturbação de Balachov ao pronunciar as últimas palavras; o rosto de Napoleão estremeceu, a panturrilha esquerda começou a tremer de modo ritmado. Sem sair do lugar, com a voz mais alta e mais apressada do que antes, ele começou a falar. Durante as palavras que se seguiram, Balachov não baixou os olhos nenhuma vez, e não pôde deixar de perceber o tremor da panturrilha esquerda de Napoleão, que se tornava mais forte à medida que ele levantava a voz.

— Eu desejo a paz tanto quanto o imperador Alexandre — começou Napoleão. — Não estou há dezoito meses fazendo de tudo para conseguir a paz? Há dezoito meses eu espero explicações. Mas, para dar início a negociações, o que exigem de mim? — disse, franzindo as sobrancelhas e fazendo um gesto enérgico e interrogativo com a mão pequena, branca e gorducha.

— O recuo das tropas para a outra margem do Niemen, soberano — disse Balachov.

— A outra margem do Niemen? — repetiu Napoleão. — Então vocês querem que recuemos para a outra margem do Niemen... É só ir para a outra margem do Niemen? — repetiu Napoleão, olhando direto nos olhos de Balachov.

Balachov inclinou a cabeça respeitosamente.

Em lugar da exigência de quatro meses antes, de retirar suas tropas da Pomerânia, agora exigiam que ele se retirasse apenas para a outra margem do Niemen. Rapidamente, Napoleão deu meia-volta e pôs-se a andar pelo aposento.

— O senhor diz que exigem de mim que retire as tropas para a outra margem do Niemen para dar início a negociações; mas assim também, dois meses atrás, exigiam de mim a retirada para a outra margem do Oder e do Vístula, e apesar disso vocês concordam em abrir negociações.

Ficou andando em silêncio de um canto para outro e parou de novo na frente de Balachov. O rosto parecia ter se petrificado na sua fisionomia severa, e a perna esquerda tremia ainda mais depressa do que antes. Aquele tremor da perna esquerda, Napoleão já o conhecia muito bem. La vibration de mon mollet gauche est un grand signe chez moi 28 — disse ele, tempos depois.

— Tais propostas, como a de retirar minhas tropas para a outra margem do Oder e do Vístula, podem ser feitas ao príncipe de Baden, mas não a mim — quase gritou Napoleão, de forma totalmente inesperada, até para ele mesmo. — Ainda que vocês me dessem Petersburgo e Moscou, eu não aceitaria essas condições. Vocês dizem que eu comecei a guerra? Mas quem foi que pôs o Exército em ação primeiro? O imperador Alexandre, não eu. E agora vocês vêm me propor a abertura de negociações, mas enquanto eu gastava milhões, vocês faziam uma aliança com a Inglaterra, e quando a posição de vocês fica ruim, me propõem abrir negociações! Mas qual é o propósito da sua aliança com a Inglaterra? O que ela deu a vocês? — Napoleão falava depressa, obviamente já orientando suas palavras não no sentido de demonstrar as vantagens de assinar a paz e de avaliar a possibilidade de um tratado de paz, mas apenas para provar a sua razão e a sua força, e para provar o engano e os erros de Alexandre.

O início da sua fala tinha obviamente o propósito de ressaltar a vantagem da sua posição e de mostrar que, apesar disso, ele ia aceitar a abertura de negociações. Porém, depois que começou a falar, quanto mais falava, menos se via em condições de governar as próprias palavras.

Todo o propósito das suas palavras, agora, já era obviamente apenas o de exaltar a si mesmo e de aviltar Alexandre, ou seja, fazer exatamente aquilo que ele menos queria, no início da conversa.

— Dizem que vocês assinaram a paz com os turcos, é verdade?

Balachov inclinou a cabeça afirmativamente.

— Foi assinada a paz... — começou. Mas Napoleão não o deixou falar. Era evidente que tinha a necessidade de falar sozinho, e continuou a falar com a veemência e com a irritação destemperada tão comuns nas pessoas mimadas.

— Sim, eu sei, vocês assinaram a paz com os turcos, sem receber em troca a Moldávia nem a Valáquia. E eu teria dado ao seu soberano essas províncias, assim como lhe dei a Finlândia. Sim — prosseguiu —, eu prometi e teria dado ao imperador Alexandre a Moldávia e a Valáquia, mas agora ele não vai ter essas belas províncias. No entanto ele poderia ter unido essas províncias ao seu império, e estenderia a Rússia, num só reino, desde o golfo da Bótnia até a foz do Danúbio. Catarina, a Grande, não teria feito melhor — disse Napoleão, cada vez mais inflamado, enquanto andava pelo aposento e repetia para Balachov quase as mesmas palavras que dissera ao próprio Alexandre em Tilsit. — Tout cela il l’aurait dû à mon amitié... Ah! Quel beau règne, quel beau régne!29 — repetiu várias vezes, parou, tirou do bolso uma tabaqueira de ouro e, com avidez, aspirou-a com o nariz.

— Quel beau règne aurait pu être celui de l’empereur Alexandre!30

Lançou um olhar de pena para Balachov e, assim que Balachov fez menção de observar algo, Napoleão interrompeu-o às pressas outra vez.

— O que pode ele desejar e procurar que não fosse encontrar na minha amizade?... — disse Napoleão, encolhendo os ombros com perplexidade. — Não, ele achou melhor rodear-se dos meus inimigos, e logo quem? — prosseguiu. — Chamou para junto de si os Stein, os Armfeldt, os Wintzingerode, os Bennigsen. Stein, um homem deportado do seu país natal; Armfeldt, um devasso e intrigante; Wintzingerode, um súdito francês foragido; Bennigsen, um pouco mais militar do que os outros, mas mesmo assim um incompetente, que nada foi capaz de fazer em 1807 e que deveria despertar no imperador Alexandre lembranças horríveis... Mas, vamos admitir, se eles fossem competentes, até que poderiam ser de alguma utilidade — continuou Napoleão, que mal dava tempo para as palavras amadurecerem, por causa das reflexões que lhe ocorriam de modo incessante e que lhe demonstravam a sua razão e a sua força (o que a seus olhos eram uma coisa só) —, mas não é assim: eles não prestam nem para a guerra, nem para a paz. Barclay, dizem, é o mais sensato de todos; mas eu não diria isso, a julgar por seus primeiros movimentos. E eles, o que fazem? O que fazem todos esses cortesãos? Pfuhl propõe, Armfeldt discute, Bennigsen reflete, e Barclay, convocado a agir, não sabe o que decidir, e o tempo vai passando. Só Bagration é um militar. É um tolo, mas tem experiência, visão e decisão... E qual o papel do seu jovem soberano no meio desse bando medonho? Eles vão comprometê-lo, vão derramar sobre ele a responsabilidade de tudo o que acontecer. Un souverain ne doit être à l’armée que quand il est général 31 — disse, proferindo essas palavras obviamente como um desafio lançado direto ao rosto do soberano. Napoleão sabia como o imperador Alexandre desejava ser um chefe militar.

— Já faz uma semana que a campanha começou, e vocês não foram capazes de defender Vilna. Vocês foram cortados em duas partes e expulsos das províncias polonesas. O seu Exército está insatisfeito...

— Ao contrário, vossa alteza — disse Balachov, que mal tinha tempo de guardar na memória o que lhe era dito e acompanhava com dificuldade aqueles fogos de artifício de palavras —, as tropas ardem de vontade...

— Sei de tudo — cortou Napoleão. — Sei de tudo, e sei o número dos seus batalhões com a mesma exatidão com que sei o número dos meus. Vocês não têm duzentos mil homens, mas eu tenho três vezes isso. Dou a minha palavra de honra — disse Napoleão, esquecendo que a sua palavra de honra não podia ter a menor importância —, dou ao senhor ma parole d’honneur que j’ai cinq cent trente mille hommes de ce côté de la Vistule.32 Os turcos não vão ajudar vocês: não prestam para nada e já mostraram isso quando assinaram a paz com vocês. E os suecos, o destino deles é serem governados por reis loucos. O rei deles era um maluco; substituíram o rei por outro, Bernadotte, que na mesma hora enlouqueceu, porque só um louco, sendo sueco, poderia fazer uma aliança com a Rússia. — Napoleão franziu as sobrancelhas com ar raivoso e ergueu de novo a tabaqueira até o nariz.

A cada frase de Napoleão, Balachov queria e tinha o que replicar; fazia a todo instante os gestos de um homem que desejava dizer algo, mas Napoleão o interrompia. Por exemplo, sobre a loucura dos suecos, Balachov queria dizer que a Suécia, ao lado da Rússia, era uma ilha; mas Napoleão gritou irritado a fim de abafar a sua voz. Napoleão se encontrava naquele estado de irritação em que é preciso falar, falar e falar, só para provar a si mesmo que está com a razão. Para Balachov, a situação era penosa: como embaixador, receava comprometer a sua dignidade e sentia que era necessário replicar; porém, como homem, ele se retraía moralmente diante do delírio de raiva sem motivo em que, era óbvio, Napoleão se encontrava. Ele sabia que todas as palavras ditas por Napoleão naquele momento não tinham importância, que ele mesmo, quando se lembrasse, mais tarde, se envergonharia delas. Balachov mantinha-se parado, de olhos baixos, olhando para as pernas grossas de Napoleão, que se mexiam, e tentava esquivar-se do olhar dele.

— Mas, afinal, o que me interessam esses seus aliados? — disse Napoleão. — Eu tenho aliados, aqueles poloneses: oitenta mil deles, e lutam como leões. E vão ser duzentos mil.

E provavelmente ainda mais revoltado porque ao dizer aquilo contava uma mentira flagrante, e porque Balachov, sempre na sua pose de submissão ao destino, mantinha-se parado e em silêncio diante dele, Napoleão virou-se de modo brusco, chegou bem perto do rosto de Balachov e, fazendo gestos enérgicos e rápidos com as mãos brancas, começou quase a gritar:

— Fiquem sabendo que, se vocês lançarem a Prússia contra mim, fiquem sabendo que eu vou varrê-la do mapa da Europa — disse, com o rosto pálido, desfigurado pela raiva, e bateu uma mão pequena sobre a outra, num gesto vigoroso. — Sim, eu vou empurrar vocês para a outra margem do Dvina, para a outra margem do Dniepr, e vou restabelecer contra vocês aquela barreira que a Europa, cega e criminosa, permitiu que fosse demolida.33 Sim, aí está o que vai acontecer com vocês, aí está o que vocês ganharam, ao se afastarem de mim — disse, e em silêncio percorreu várias vezes o aposento, sacudindo os ombros gordos. Colocou a tabaqueira no bolso do colete, tirou-a de novo, levou-a várias vezes até o nariz e parou na frente de Balachov. Continuou em silêncio, lançou um olhar zombeteiro aos olhos de Balachov e falou em voz baixa: — Et cependant quel beau règne aurait pu avoir votre maître! 34

Balachov, sentindo necessidade de replicar, disse que, do ponto de vista da Rússia, a situação não se apresentava com um aspecto tão sombrio. Napoleão ficou em silêncio, continuou a olhar para ele de modo zombeteiro, e era evidente que não estava nem escutando. Balachov disse que, na Rússia, esperava-se o melhor resultado da guerra. Napoleão inclinou a cabeça com ar indulgente, como se dissesse: “Eu sei, a sua obrigação é falar assim, mas você mesmo não acredita nisso, eu convenci você”.

Quando Balachov terminou de falar, Napoleão pegou a tabaqueira outra vez, aspirou nela e, como um sinal, bateu duas vezes o pé no chão. A porta abriu; um camareiro curvou-se respeitosamente, entregou um chapéu e luvas ao imperador, um outro lhe deu um lenço de nariz. Napoleão, sem olhar para eles, voltou-se para Balachov:

— Assegure ao imperador Alexandre, em meu nome — disse, após pegar o chapéu —, que tenho por ele a mesma dedicação de antes: eu o conheço perfeitamente e tenho o mais alto apreço por suas elevadas qualidades. Je ne vous retiens plus, général, vous recevrez ma lettre à l’empereur.35 — E Napoleão seguiu depressa rumo à porta. Da sala de recepção, todos se precipitaram para a frente e escada abaixo.

VII

Depois de tudo o que Napoleão lhe dissera, depois daqueles ataques de raiva e depois das últimas palavras ditas de modo seco: “Je ne vous retiens plus, général, vous recevrez ma lettre”, Balachov estava convencido de que Napoleão não só não desejava vê-lo, como faria todo o esforço para não vê-lo — o embaixador desacatado e, sobretudo, a testemunha da sua ira indecente. Mas, para sua surpresa, Balachov recebeu naquele dia, por intermédio de Duroc, um convite para sentar-se à mesa com o imperador.

No jantar, estavam Bessières, Caulaincourt e Berthier.

Napoleão recebeu Balachov com um aspecto alegre e afetuoso. Não só não havia nele uma expressão de acanhamento ou de recriminação contra si mesmo pelos arroubos da manhã, como, ao contrário, Napoleão se empenhou em animar Balachov. Era evidente que já fazia muito tempo que Napoleão estava convicto de que não existia nenhuma possibilidade de erro da sua parte e de que, no seu modo de ver, tudo o que ele fazia era bom, não porque fosse condizente com a noção do que é bom ou mau, mas porque ele havia feito.

O imperador ficou muito alegre depois do seu passeio a cavalo por Vilna, no qual multidões de pessoas haviam gritado com entusiasmo e o haviam acompanhado. Em todas as janelas das ruas por onde ele passara, foram estendidos tapetes, flâmulas e as suas insígnias, e as damas polonesas sacudiam os lenços em saudação a ele.

Durante o jantar, tendo posto Balachov ao seu lado, Napoleão tratou-o não só com carinho, mas como se o considerasse um dos seus cortesãos, uma das pessoas que apoiavam os seus planos e que deviam alegrar-se com os seus êxitos. Entre outras coisas, falou sobre Moscou e passou a fazer perguntas a Balachov a respeito da capital russa, não só como um viajante curioso indaga acerca de um lugar novo que tem intenção de visitar, mas como se estivesse convicto de que Balachov, como russo, devia ficar lisonjeado com aquela curiosidade.

— Quantos habitantes tem Moscou, quantas casas? É verdade que Moscou é chamada de Moscou, la sainte?36 Quantas igrejas existem em Moscou? — perguntava.

E, ao ouvir a resposta de que havia mais de duzentas igrejas em Moscou, ele disse:

— Mas para que esse mundo de igrejas?

— Os russos são muito devotos — respondeu Balachov.

— Aliás, um grande número de igrejas e conventos é sempre um sinal do atraso de um povo — disse Napoleão, lançando um olhar para Caulaincourt, em busca de um aplauso para aquela opinião.

Balachov respeitosamente se permitiu não concordar com a opinião do imperador francês.

— Cada país tem os seus costumes — disse.

— Mas já não existe nada parecido em nenhum lugar da Europa — disse Napoleão.

— Peço desculpas a vossa majestade — disse Balachov —, além da Rússia, há a Espanha, onde também existem muitas igrejas e conventos.

Essa resposta de Balachov, que aludia à recente derrota dos franceses na Espanha, foi altamente apreciada, mais tarde, nos relatos de Balachov na corte do imperador Alexandre, mas foi muito pouco apreciada naquele momento, no jantar de Napoleão, e passou sem ser notada.

Pelo rosto indiferente e perplexo dos senhores marechais, via-se que eles não compreendiam em que consistia aquela tirada sutil e a que aludia a entonação de Balachov. “Se por acaso ela existe, nós não a entendemos, ou então ela não tem nada de espirituoso”, dizia a expressão do rosto dos marechais. A resposta de Balachov foi tão pouco apreciada que, decididamente, Napoleão nem sequer reparou nela e perguntou a Balachov, de forma ingênua, por quais cidades passava a estrada que ia dali direto a Moscou. Balachov, que esteve alerta durante todo o jantar, respondeu que comme tout chemin mène à Rome, tout chemin mène à Moscou,37 que havia muitas estradas e que, entre aqueles vários caminhos, estava a estrada para Poltava, que Carlos XII havia escolhido,38 contou Balachov, que involuntariamente se ruborizou de prazer com a felicidade daquela resposta. Balachov mal teve tempo de terminar de dizer as últimas palavras, “Poltava”, quando Caulaincourt logo passou a falar dos incômodos da estrada de Petersburgo a Moscou e de suas lembranças de Petersburgo.

Depois do jantar, foram tomar café no escritório de Napoleão, que quatro dias antes era o escritório do imperador Alexandre. Napoleão sentou-se, mexendo o café numa xícara de Sèvres, e indicou uma cadeira ao seu lado para Balachov.

Depois do jantar, há nos homens um conhecido estado de ânimo que, mais forte do que todos os motivos racionais, obriga as pessoas a se sentirem satisfeitas consigo mesmas e a considerarem todos os outros seus amigos. Napoleão se achava nesse estado de ânimo. Parecia-lhe estar rodeado de pessoas que o adoravam. Estava convencido de que também Balachov, depois do jantar, era seu amigo e adorador. Napoleão dirigiu-se a ele com um sorriso simpático e ligeiramente irônico.

— Este é o mesmo aposento onde, pelo que me disseram, ficou alojado o imperador Alexandre. É estranho, não é mesmo, general? — disse, obviamente sem que passasse nem de longe pela sua cabeça que tal comentário poderia não ser agradável ao seu interlocutor, pois mostrava a superioridade dele, Napoleão, sobre Alexandre.

Balachov nada podia retrucar e inclinou a cabeça em silêncio.

— Sim, neste aposento, quatro dias atrás, reuniram-se Wintzingerode e Stein — prosseguiu Napoleão, com o mesmo sorriso irônico e convencido. — O que não consigo entender — disse ele — é o fato de o imperador Alexandre ter se aproximado de todos os meus inimigos pessoais. Isso eu não... entendo. Será que ele não pensou que eu poderia fazer o mesmo? — Com a pergunta, voltou-se para Balachov, e pelo visto aquela lembrança arrastou-o de novo para o trilho da raiva da manhã, ainda fresca em sua memória.

— Pois que ele saiba que vou fazer isso — disse Napoleão, levantando e afastando a xícara com a mão. — Vou enxotar da Alemanha todos os seus parentes, os Württemberg, os Baden, os Weimar... sim, vou enxotá-los. Que ele trate de preparar um refúgio para eles na Rússia!

Balachov inclinou a cabeça, mostrando com o seu aspecto que gostaria de se despedir e que só escutava porque não podia deixar de escutar o que lhe diziam. Napoleão não percebeu aquela expressão; tratava Balachov não como um emissário do seu inimigo, mas como um homem agora inteiramente devotado a ele e que devia alegrar-se com a humilhação do seu antigo senhor.

— E para que o imperador Alexandre assumiu o comando do Exército? Para que isso? A guerra é o meu ofício, mas o dele é reinar, e não comandar tropas. Para que tomou para si tal responsabilidade?

Napoleão pegou de novo a tabaqueira, percorreu o aposento várias vezes, em silêncio, e de repente, de modo inesperado, aproximou-se de Balachov e, com um leve sorriso muito convencido, rápido e simples, como se fizesse algo não só importante, mas também agradável para os interesses de Balachov, ergueu a mão até o rosto do general russo de quarenta anos e, segurando-o pela orelha, puxou-a de leve, sorrindo só com os lábios.

Avoir l’oreille tirée par l’empereur 39 era considerado uma grande honra e uma grande mercê na corte francesa.

— Eh bien, vous ne dites rien, admirateur et courtisan de l’empereur Alexandre? 40 — disse ele, como se fosse engraçado ter em sua presença um courtisan e admirateur de alguém que não ele mesmo, Napoleão. — Os cavalos para o general estão prontos? — acrescentou, inclinando a cabeça de leve, em resposta à reverência de Balachov. — Deem os meus cavalos para ele, vai ter de viajar para longe...

A carta levada por Balachov foi a última carta de Napoleão para Alexandre. Todos os detalhes da conversa foram transmitidos ao imperador russo, e a guerra começou.

VIII

Depois do seu encontro com Pierre em Moscou, o príncipe Andrei partiu para Petersburgo a negócios, como disse aos seus familiares, mas na verdade com a intenção de encontrar o príncipe Anatole Kuráguin, a quem julgava indispensável encontrar. Kuráguin, sobre o qual ele procurara informações ao chegar à cidade, já não estava em Petersburgo. Pierre tinha avisado ao cunhado que o príncipe Andrei iria procurá-lo. Anatole Kuráguin prontamente conseguiu receber uma nomeação do ministro da Guerra e partiu para o Exército da Moldávia. Ao mesmo tempo, em Petersburgo, o príncipe Andrei encontrou Kutúzov, o seu antigo general, sempre simpático a ele, e Kutúzov propôs irem os dois juntos para o Exército da Moldávia, onde o velho general tinha sido nomeado comandante em chefe. O príncipe Andrei recebeu um cargo no Estado-Maior e partiu para a Turquia.

O príncipe Andrei achava inconveniente escrever para Kuráguin e desafiá-lo. Sem que ele tivesse dado um novo motivo para um duelo, o príncipe Andrei achava que um desafio da sua parte iria comprometer a condessa Rostova, e por isso procurava ter um encontro pessoal com Kuráguin, durante o qual tinha intenção de encontrar um novo motivo para um duelo. Porém, no Exército da Turquia, ele tampouco teve ocasião de encontrar Kuráguin, que voltara para a Rússia logo depois da chegada do príncipe Andrei. Em um novo país e em novas condições de vida, para o príncipe Andrei tornou-se mais fácil viver. Depois da traição da noiva, que o abalava com tanto mais força quanto maior o seu empenho para esconder de todos o efeito disso sobre ele, as antigas condições de vida nas quais ele tinha sido feliz eram penosas para o príncipe Andrei, e mais penosas ainda eram a liberdade e a independência, que antes ele prezava tanto. Não só não pensava naquelas ideias que lhe ocorreram pela primeira vez ao fitar o céu no campo de batalha de Austerlitz, ideias que ele gostava de desenvolver em conversas com Pierre e que enchiam a sua solidão em Bogutchárovo, e depois na Suíça e em Roma, como também temia até recordar aquelas ideias, que revelavam horizontes luminosos e infinitos. Agora só lhe interessavam os assuntos mais imediatos, práticos, sem nenhuma relação com os seus interesses de antes, assuntos aos quais ele se apegava com uma avidez tanto maior quanto mais os antigos interesses estavam bloqueados para ele. Como se aquela abóbada celeste infinita e longínqua, que antes estava parada acima dele, de repente tivesse se transformado numa abóbada baixa, delimitada, que o oprimia, e na qual tudo estava claro, mas na qual nada era eterno e misterioso.

Entre as atividades que se apresentavam a ele, a do serviço militar era a mais simples e a que melhor conhecia. Na função de general de serviço no Estado-Maior de Kutúzov, ele se ocupava das tarefas com afinco e zelo, despertando a admiração de Kutúzov com a sua vontade de trabalhar e o seu esmero. Ao não encontrar Kuráguin na Turquia, o príncipe Andrei não achou necessário partir a galope atrás dele, de novo, para a Rússia; porém, mesmo assim, sabia que, por mais que o tempo passasse, não conseguiria, ao encontrar Kuráguin, apesar de todo o desprezo que tinha por ele, apesar de todas as provas que apresentava a si mesmo de que não valia a pena rebaixar-se a um conflito com ele, sabia que, ao encontrá-lo, não poderia deixar de desafiá-lo, assim como um esfomeado não consegue deixar de atirar-se sobre um prato de comida. E essa consciência de que a ofensa ainda não fora vingada, de que o rancor não fora desafogado, mas continuava no coração, envenenava a calma artificial que o príncipe Andrei construíra para si na Turquia sob a aparência de uma atividade preocupada, inquieta, e também um pouco ambiciosa e vaidosa.

No ano de 1812, quando as notícias da guerra com Napoleão chegaram a Bucareste (onde, havia dois meses, Kutúzov passava os dias e as noites na casa da amante valáquia), o príncipe Andrei pediu a Kutúzov a sua transferência para o exército ocidental. Kutúzov, a quem Bolkónski já se tornara importuno com a sua atividade, que servia como uma censura à indolência do comandante, dispensou o príncipe Andrei de muito bom grado e lhe deu uma missão junto a Barclay de Tolly.

Antes de ir para o exército, que em maio se encontrava num acampamento em Drissa,41 o príncipe Andrei passou em Montes Calvos, que ficava no mesmo caminho, a três verstas da grande estrada de Smolensk. Nos últimos três anos, a vida do príncipe Andrei dera tantas voltas, ele havia refletido e sofrido tanto, tinha visto tanta coisa (viajara para oeste e para leste), que teve uma impressão estranha e inesperada ao encontrar Montes Calvos exatamente igual a antes, em seus menores detalhes — a vida corria exatamente igual. Entrou pela alameda e pelo portão de pedra da casa de Montes Calvos como se entrasse num castelo encantado e adormecido. A mesma gravidade, a mesma limpeza, o mesmo silêncio continuavam na casa, os mesmos móveis, as mesmas paredes, os mesmos sons, o mesmo cheiro e os mesmos rostos tímidos, apenas um pouco mais velhos. A princesa Mária continuava a mesma jovem tímida, feia, que envelhecia e, sem alegria e sem nenhum proveito, consumia os melhores anos da vida, no temor e em eternos sofrimentos morais. Bourienne continuava a mesma jovem coquete, satisfeita consigo mesma, que desfrutava alegremente todos os minutos da vida, sempre repleta das esperanças mais alegres para si. Apenas ficara mais confiante, assim pareceu ao príncipe Andrei. O preceptor Dessalles, que ele trouxera da Suíça, vestia um casacão à moda russa, falava com os criados numa língua russa desfigurada, mas continuava o mesmo preceptor culto, honesto, pedante e de inteligência limitada. O velho príncipe só mudara de aparência pelo fato de, no canto da boca, notar-se a falta de um dente; quanto ao estado de ânimo, era o mesmo de antes, apenas com uma irritação ainda maior e com ainda mais desconfiança em relação ao que se passava no mundo. Só Nikóluchka havia crescido, havia mudado, estava mais corado, ganhara muitos cabelos castanhos e cacheados e, sem que ele mesmo soubesse disso, ria e se alegrava levantando o lábio inferior da boquinha bonita exatamente como fazia a falecida pequena princesa. Só ele não seguia a lei da imutabilidade naquele castelo encantado e adormecido. Porém, embora exteriormente tudo permanecesse como antes, as relações internas de todas aquelas pessoas haviam mudado desde a última vez que o príncipe Andrei estivera com elas. Os membros da família estavam divididos em dois campos, estranhos e hostis entre si, que convergiam agora só por causa da presença dele — modificando, por causa dele, a sua forma de vida habitual. A um campo pertenciam o velho príncipe, Mlle Bourienne e o arquiteto, e ao outro campo, a princesa Mária, Dessalles, Nikóluchka e todas as babás e governantas.

Durante a sua estada em Montes Calvos, todos os moradores faziam as refeições juntos, mas todos se mostravam incomodados, e o príncipe Andrei sentia que era um hóspede para o qual abriam uma exceção e que molestava a todos com a sua presença. No jantar do primeiro dia, o príncipe Andrei, incapaz de não perceber o que se passava, manteve-se calado, e o velho príncipe, notando a situação artificial em que estava o filho, também emudeceu com ar sombrio e foi para o quarto logo depois do jantar. À noite, quando o príncipe Andrei foi ao quarto do pai e, no intuito de animá-lo, pôs-se a contar sobre a campanha do jovem conde Kamiénski, o velho príncipe, de modo inesperado, começou uma conversa a respeito da princesa Mária, censurando-a por sua superstição, por sua falta de afeição por Mlle Bourienne, que, segundo as palavras do velho príncipe, era sinceramente dedicada a ele.

O velho príncipe disse que, se estava doente, era só por causa da princesa Mária; que ela o atormentava e o irritava de propósito; que estragava a educação do pequeno príncipe Nikolai com excesso de mimos e conversas tolas. O velho príncipe sabia muito bem que atormentava a filha, que a vida dela era muito penosa, mas também sabia que não podia deixar de atormentá-la e que ela o merecia. “Por que o príncipe Andrei, que está vendo isso, não me diz nada a respeito da irmã?”, pensou o velho príncipe. “O que ele está pensando? Que sou um canalha ou um velho imbecil que sem nenhum motivo se afastou da filha e aproximou de si uma francesa? Ele não entende, e por isso é preciso explicar-lhe, é preciso que ele escute até o fim”, pensou o velho príncipe. E passou a explicar as razões pelas quais não conseguia suportar o caráter estúpido da filha.

— Se o senhor não me perguntasse — disse o príncipe Andrei, sem olhar para o pai (pela primeira vez na vida, ele censurava o pai) —, eu preferiria não falar; mas se o senhor me pergunta, digo francamente ao senhor a minha opinião a respeito de tudo isso. Se existem mal-entendidos e discórdia entre o senhor e Macha, não posso de maneira alguma culpá-la... Eu sei como ela ama e respeita o senhor. Mas se o senhor me pergunta — prosseguiu o príncipe Andrei, exasperando-se, porque ultimamente andava sempre à beira da exasperação —, então eu só posso dizer uma coisa: se existem mal-entendidos, a causa deles é uma mulher insignificante que não deveria ser amiga da minha irmã.

De início, o velho fitou o filho com os olhos parados e um sorriso forçado que revelou a nova falha nos dentes, à qual o príncipe Andrei não conseguia se acostumar.

— Que amiga é essa, meu caro? Hã? Já andou conversando! Hã?

— Papai, eu preferia não ser um juiz — disse o príncipe Andrei num tom áspero e duro —, mas o senhor me provocou, e eu disse e sempre vou dizer que a princesa Mária não tem culpa, e os culpados... A culpada é essa francesa...

— Ah, ele julgou!... Julgou!... — disse o velho em voz baixa e, assim pareceu ao príncipe Andrei, com alguma perturbação, mas depois, de repente, levantou-se de um salto e começou a gritar: — Fora, fora! Não quero ver nem sombra de você por aqui!...

O príncipe Andrei quis partir na mesma hora, mas a princesa Mária convenceu-o a ficar mais um dia. Nesse dia, o príncipe Andrei não encontrou o pai, que não saiu de seus aposentos nem permitiu a entrada de ninguém, exceto de Mlle Bourienne e de Tíkhon, e perguntou várias vezes se o filho havia partido. No dia seguinte, antes da partida, o príncipe Andrei foi à ala da casa onde ficava o filho. Saudável, de cabelos cacheados como a mãe, o menino sentou-se sobre os joelhos do pai. O príncipe Andrei começou a lhe contar a história do Barba-Azul, mas antes de terminá-la perdeu-se em devaneios. Não estava pensando naquele menino bonito, seu filho, no momento em que o segurava sobre os joelhos, estava pensando em si mesmo. Com horror, procurava em si, e não encontrava, nem arrependimento por ter irritado o pai, nem pesar por (em desavença com o pai pela primeira vez na vida) separar-se do velho príncipe. O mais importante de tudo, para o príncipe Andrei, era que procurava em si e não encontrava a antiga ternura pelo filho, a qual ele contava despertar em si mesmo ao acariciar o menino e sentá-lo sobre os seus joelhos.

— Vamos, conte para mim — disse o filho. O príncipe Andrei, sem lhe responder, retirou-o dos joelhos e saiu do quarto.

Assim que o príncipe Andrei deixou para trás suas ocupações cotidianas, e sobretudo assim que voltou às suas antigas condições de vida, nas quais ainda se achava quando era feliz, o tédio da vida dominou-o com a mesma força de antes, e ele tratou de fugir o mais depressa possível daquelas recordações e de encontrar o mais depressa possível alguma ocupação.

— Você está indo embora mesmo, André? — perguntou a irmã.

— Graças a Deus, eu posso ir embora — disse o príncipe Andrei —, lamento muito que você não possa.

— Para que diz isso? — falou a princesa Mária. — Para que diz isso agora, quando você parte para essa guerra terrível e quando ele está tão velho! Mademoiselle Bourienne disse que ele perguntou por você... — Assim que a princesa Mária começou a falar disso, seus lábios começaram a tremer, e as lágrimas correram. O príncipe Andrei lhe deu as costas e pôs-se a andar pelo quarto.

— Ah, meu Deus! Meu Deus! — disse ele. — Quando a gente pensa o que e quem e que gente insignificante pode ser a causa da infelicidade dos outros! — exclamou com um rancor que assustou a princesa Mária.

Ela entendeu que, ao falar de pessoas que chamava de insignificantes, o irmão se referia não só a Mlle Bourienne, que lhe causava desgosto, mas também àquele homem que havia destruído a sua felicidade.

— André, vou pedir só uma coisa, eu lhe suplico — disse, segurando o cotovelo do irmão e fitando-o através das lágrimas com os olhos brilhantes. — Compreendo você (a princesa Mária baixou os olhos). Não pense que são as pessoas que produzem a dor. As pessoas são instrumentos Dele. — Lançou um olhar um pouco acima da cabeça do príncipe Andrei, com aquela expressão segura, habitual, com a qual se olha para o lugar conhecido onde está pendurado um retrato. — A dor é enviada por Ele, não pelas pessoas. As pessoas são o instrumento Dele, elas não têm culpa. Se lhe parece que alguém é culpado em relação a você, esqueça e perdoe. Não temos o direito de punir. E você vai compreender a felicidade de perdoar.

— Se eu fosse mulher, faria isso, Marie. É uma virtude feminina. Mas um homem não deve e não pode esquecer e perdoar — disse e, embora até aquele instante não tivesse pensado em Kuráguin, todo o rancor não vingado ergueu-se de repente dentro do seu coração. “Se a princesa Mária quer me convencer a perdoar, isso quer dizer que eu já devia tê-lo castigado há muito tempo”, pensou ele. Sem responder mais nada à princesa Mária, pôs-se a pensar agora naquele minuto alegre, rancoroso, em que ele iria se encontrar com Kuráguin, que (ele sabia) estava no Exército.

A princesa Mária implorou ao irmão que esperasse mais um dia, ela disse saber que o pai ia ficar infeliz se Andrei partisse sem se reconciliar com ele; mas o príncipe Andrei respondeu que, provavelmente, ele voltaria do Exército em breve, que escreveria sem falta para o pai e que agora, quanto mais tempo ficasse lá, mais forte se tornaria a discórdia.

— Adieu, André! Rappelez-vous que les malheurs viennent de Dieu et que les hommes ne sont jamais coupables 42 — foram as últimas palavras que ouviu da irmã, quando se despediu.

“Tem de ser assim!”, pensou o príncipe Andrei, enquanto saía pela alameda da casa de Montes Calvos. “Ela, uma criatura pobre e inocente, vai ficar à mercê de um velho enlouquecido. O velho sente que é culpado, mas não consegue mudar. O meu menino cresce e se diverte com a vida, na qual ele será, como todos, um enganado ou um enganador. Eu estou indo para o Exército, para quê? Nem eu sei, e quero encontrar o homem que desprezo, a fim de lhe dar a chance de me matar e ainda por cima rir de mim!” Eram as mesmas condições de vida de antes, mas antes elas estavam unidas umas às outras, ao passo que agora todas se desagregaram. Só imagens absurdas, uma após a outra, e sem nenhum nexo, vieram ao pensamento do príncipe Andrei.

IX

O príncipe Andrei chegou ao quartel-general do Exército no final de junho. As tropas do primeiro exército, aquele em que se encontrava o soberano, estavam no acampamento fortificado em Drissa; as tropas do segundo exército estavam recuando, no intuito de unir-se ao primeiro exército, do qual — pelo que diziam — estavam separadas por grandes tropas francesas. Todos estavam insatisfeitos com o curso geral das operações de guerra no Exército russo; mas não passava pela cabeça de ninguém o risco de uma invasão das províncias russas, ninguém supunha que a guerra poderia ir além das províncias polonesas ocidentais.43

À margem do rio Drissa, o príncipe Andrei encontrou Barclay de Tolly, a cujo serviço ele fora designado. Como não havia nenhum grande povoado ou vila nos arredores do acampamento, toda a enorme quantidade de generais e cortesãos que estavam no exército se instalaram nas melhores casas das aldeias, num raio de dez verstas do acampamento, dos dois lados do rio. Barclay de Tolly estava alojado a quatro verstas do soberano. Recebeu Bolkónski de modo frio e seco e, com o seu sotaque alemão, disse que pediria ao soberano que determinasse um posto para ele e pediu que, enquanto isso, ficasse no seu quartel-general. Anatole Kuráguin, que o príncipe Andrei contava encontrar no exército, não estava ali: estava em Petersburgo, e essa notícia agradou a Bolkónski. O interesse pelo centro onde se engendrava a imensa guerra dominava o príncipe Andrei, e ele estava contente por livrar-se, por algum tempo, da irritação que o pensamento em Kuráguin produzia nele. Nos primeiros quatro dias, durante os quais nada lhe foi exigido, o príncipe Andrei percorreu todo o acampamento fortificado e, com a ajuda de seus conhecimentos e de conversas com pessoas entendidas no assunto, tentou formar uma ideia clara da situação. Mas a questão de ser vantajoso ou desvantajoso aquele acampamento permanecia sem solução para o príncipe Andrei. Já conseguira, com base na sua experiência militar, chegar à conclusão de que, em assuntos de guerra, nada significam os planos elucubrados com a maior profundidade (como vira na campanha de Austerlitz), tudo depende de como se reage às ações inesperadas e imprevisíveis do inimigo, tudo depende de como e de quem conduz toda a operação. A fim de esclarecer para si mesmo esta última questão, o príncipe Andrei, aproveitando sua posição e seus conhecidos, tentou sondar o caráter do comando do exército, das pessoas e dos grupos que dele participavam, e chegou à seguinte conclusão quanto ao quadro geral das operações:

Quando o soberano ainda estava em Vilna, o exército tinha sido dividido em três: o primeiro exército se encontrava sob o comando de Barclay de Tolly; o segundo, sob o comando de Bagration; o terceiro, sob o comando de Tormássov. O soberano estava no primeiro exército, mas não na condição de comandante em chefe. Na ordem do dia, não estava dito que o soberano iria comandar, dizia-se apenas que o soberano estaria no exército. Além disso, o soberano, pessoalmente, não tinha a seu serviço o Estado-Maior do comandante em chefe, e sim o Estado-Maior do quartel-general imperial. A seu serviço estava o chefe do Estado-Maior imperial, o general do quartel-general, príncipe Volkónski, além de generais, ajudantes de ordens, diplomatas e uma grande quantidade de estrangeiros, mas não o Estado-Maior do Exército. Além disso, sem nenhuma função junto ao soberano, estavam ali: Araktchéiev — ex-ministro da Guerra —, o conde Bennigsen — o general mais antigo na sua patente —, o grão-duque tsarévitche Konstantin Pávlovitch, o conde Rumiántsev — chanceler —, Stein — ex-ministro prussiano —, Armfeldt — general sueco —, Pfuhl — principal autor do plano de campanha —, o general ajudante de ordens Paulucci — natural da Sardenha —, Woltzogen e muitos outros. Embora essas pessoas não tivessem cargos militares no Exército, tinham influência devido à sua posição, e muitas vezes um comandante de unidade e mesmo o comandante em chefe não sabia em que qualidade lhe faziam perguntas ou lhe davam conselhos Bennigsen, ou o grão-duque, ou Araktchéiev, ou o príncipe Volkónski, e não sabia se esta ou aquela ordem em forma de conselho provinha daquela pessoa ou do próprio soberano, e se era preciso cumpri-la ou não. Mas essa era apenas a situação exterior; o significado essencial da presença do soberano e de todas aquelas pessoas, do ponto de vista da corte (e na presença do soberano todos se tornavam cortesãos), estava claro para todos. E era o seguinte: o soberano não assumiu o posto de comandante em chefe, mas dava ordens para todo o exército; as pessoas em torno dele eram seus auxiliares. Araktchéiev era um fiel executor, guardião da ordem e guarda-costas do soberano; Bennigsen era um senhor de terras da província de Vilna, parecia fazer les honneurs 44 da localidade e no fundo era um bom general, útil para dar conselhos e para se ter sempre à mão para substituir Barclay. O grão-duque estava ali porque lhe era conveniente. O ex-ministro Stein estava ali porque era útil para dar conselhos e porque o imperador Alexandre prezava muito as suas qualidades pessoais. Armfeldt era um inimigo encarniçado de Napoleão e um general seguro de si, que tinha sempre influência sobre Alexandre. Paulucci estava ali porque era destemido e categórico nas palavras. Os generais ajudantes de ordens estavam ali porque estavam em toda parte onde estivesse o soberano e, por último — e mais importante —, Pfuhl estava ali porque havia elaborado o plano de guerra contra Napoleão e, depois de induzir Alexandre a acreditar na viabilidade desse plano, dirigia toda a operação de guerra. A serviço de Pfuhl, estava Woltzogen, que transmitia as ideias de Pfuhl de modo mais acessível do que o próprio Pfuhl, um teórico de gabinete, ríspido e arrogante até o desprezo por todos.

Além das pessoas citadas, russas e estrangeiras (em especial as estrangeiras, que, com a audácia inerente às pessoas que agem num ambiente estranho, todos os dias propunham ideias novas e inesperadas), havia ainda muitas pessoas de um grau secundário, que se mantinham junto ao exército porque ali estavam os seus superiores.

Em meio a todas as ideias e vozes daquele mundo enorme, inquieto, radiante e orgulhoso, o príncipe Andrei via mais acentuada a seguinte divisão de orientação e de partido:

O primeiro partido era o de Pfuhl e de seus seguidores, os teóricos da guerra, convencidos de que existe uma ciência da guerra e de que essa ciência tem suas leis invariáveis, as leis do movimento oblíquo, do movimento pelos flancos etc. Pfuhl e os seus seguidores queriam uma retirada para o interior do país, uma retirada segundo as leis exatas, prescritas pela suposta teoria da guerra, e em qualquer desvio de tal teoria viam apenas barbárie, ignorância ou má-fé. A esse partido, pertenciam os príncipes alemães, Woltzogen, Wintzingerode e outros, sobretudo alemães.

O segundo partido era frontalmente contrário ao primeiro. Como sempre acontece, num extremo encontram-se sempre exemplos do outro extremo. As pessoas desse partido eram aquelas que, ainda em Vilna, queriam um avanço para o interior da Polônia e liberdade em relação a quaisquer planos previamente traçados. Além de serem defensores de ações audaciosas, os representantes desse partido eram ao mesmo tempo defensores do nacionalismo, e por causa disso se mostravam ainda mais unilaterais na discussão. Esses eram russos: Bagration, Ermólov, que começava a ascender, e outros. Nessa ocasião, difundira-se uma famosa piada sobre Ermólov, de que ele teria pedido uma graça ao soberano: torná-lo alemão. As pessoas desse partido diziam, lembrando Suvórov, que não era preciso raciocinar nem espetar alfinetes em mapas, e sim lutar, vencer o inimigo, não permitir que entrasse na Rússia e não deixar que as tropas desanimassem.

Ao terceiro partido, aquele em que o soberano tinha mais confiança, pertenciam os cortesãos que faziam acordos entre as duas outras tendências. As pessoas desse partido, que na maioria não eram militares e entre as quais estava Araktchéiev, pensavam e diziam aquilo que pensavam as pessoas comuns, não tinham convicções, mas queriam dar a impressão de que tinham. Diziam que, sem dúvida, a guerra, em especial com um gênio como Bonaparte (eles o chamavam de novo de Bonaparte), exigia considerações refletidas a fundo, um saber profundo da ciência, e em tal assunto Pfuhl era genial; porém, ao mesmo tempo, era impossível não reconhecer que os teóricos muitas vezes eram parciais e que por isso não era preciso confiar neles integralmente, era preciso prestar atenção também no que diziam os opositores de Pfuhl e no que diziam as pessoas práticas, experientes em assuntos de guerra, e adotar o meio-termo de tudo isso. As pessoas desse partido insistiam em manter as posições no acampamento de Drissa conforme o plano de Pfuhl, mas em mudar os deslocamentos dos demais exércitos. Embora tal forma de ação não alcançasse nem um objetivo nem outro, as pessoas desse partido achavam que assim era melhor.

A quarta tendência era aquela cujo representante mais destacado era o grão-duque, herdeiro tsarévitche, que não conseguia esquecer a sua frustração em Austerlitz, onde ele, como numa revista de tropas, partira a galope à frente da guarda, de capacete e jaqueta de cavalaria, julgando que era fácil esmagar os franceses e, ao se ver de forma inesperada na linha de frente, só a muito custo conseguiu escapar em meio à confusão geral. As pessoas desse partido tinham, em seus juízos, a qualidade e também o defeito da sinceridade. Temiam Napoleão, nele viam a força, em si viam a fraqueza e exprimiam isso de modo franco. Diziam: “Nada sairá de tudo isso, senão mágoa, vergonha e destruição! Vejam, assim como perdemos Vilna, perdemos Vítebsk, e perderemos também Drissa. Só nos resta uma coisa inteligente a fazer, selar a paz, e o mais depressa possível, enquanto não nos enxotam de Petersburgo!”.

Tal opinião, fortemente difundida nas altas esferas do Exército, encontrava apoio também em Petersburgo, e no chanceler Rumiántsev, que por outras razões de Estado também era a favor da paz.

O quinto era o dos seguidores de Barclay de Tolly, não tanto como pessoa, mas como ministro da Guerra e comandante em chefe. Diziam: “Seja ele o que for (sempre começavam assim), é um homem honesto, competente, e não há outro melhor. Temos de dar a ele o poder de fato, porque a guerra não pode ser vitoriosa sem um comando único, e ele vai mostrar aquilo que é capaz de fazer, como já mostrou na Finlândia.45 Se o nosso exército está organizado e forte e conseguiu recuar até Drissa sem sofrer nenhum revés, devemos isso apenas a Barclay. Se agora trocarem Barclay por Bennigsen, tudo estará perdido, porque Bennigsen já mostrou sua incompetência em 1807”, diziam as pessoas desse partido.

O sexto, o dos bennigsenistas, dizia, ao contrário, que apesar de tudo não havia ninguém mais capaz e mais experiente do que Bennigsen e que, por mais que procurassem por toda parte, acabariam se voltando para ele. As pessoas desse partido demonstravam que toda a nossa retirada para Drissa tinha sido a mais vergonhosa das derrotas e uma ininterrupta série de erros. “Quanto mais erros cometem”, diziam eles, “melhor: pelo menos mais depressa compreenderemos que assim não pode continuar. E que não precisamos de nenhum Barclay, mas de um homem como Bennigsen, que já deu provas de si em 1807 e a quem o próprio Napoleão fez justiça, um homem cuja autoridade seria reconhecida de bom grado — só existe um homem assim, Bennigsen.”

O sétimo era das pessoas que sempre existem, em especial em torno dos soberanos jovens, e que eram especialmente numerosas junto ao imperador Alexandre — generais e ajudantes de ordens apaixonadamente dedicados ao soberano, não como imperador, mas como um homem a quem adoravam sinceramente e de forma desinteressada, assim como Rostóv o cultuava em 1805, e que viam nele não só todas as virtudes, mas também todas as qualidades humanas. Tais pessoas, embora se maravilhassem com a modéstia do soberano em ter recusado o comando das tropas, julgavam isso um excesso de modéstia e só desejavam uma coisa, e disso faziam questão — que o adorado soberano abandonasse a excessiva falta de confiança em si mesmo e proclamasse abertamente que se tornaria o chefe das tropas, organizasse em torno de si o quartel-general do comandante em chefe e, tomando conselhos com teóricos e práticos experientes quando necessário, comandasse ele mesmo as suas tropas, que só com isso já seriam levadas ao mais alto grau de entusiasmo.

O oitavo, o maior grupo de pessoas, que por sua enorme quantidade tinha em relação aos demais uma proporção de 99 para 1, era formado por pessoas que não queriam nem a paz, nem a guerra, nem movimentos ofensivos, nem acampamento fortificado em Drissa nem em parte alguma, nem Barclay, nem o soberano, nem Pfuhl, nem Bennigsen, mas queriam apenas uma coisa, a mais importante de todas: as maiores vantagens e recompensas para si mesmas. Naquela água turva de intrigas entrecruzadas e emaranhadas que fervilhavam no quartel-general do soberano, era perfeitamente possível alcançar sucesso em coisas que seriam impensáveis noutra época. Um, só por não querer perder sua posição vantajosa, hoje concordava com Pfuhl, amanhã com o seu oponente, depois de amanhã sustentava que não tinha opinião nenhuma a respeito de uma questão muito conhecida, só para esquivar-se da responsabilidade e para agradar ao soberano. Outro, por desejar adquirir vantagens, chamava para si a atenção do soberano, gritando bem alto aquilo que o soberano havia sugerido na véspera, debatia e gritava no conselho, batendo no peito e desafiando para um duelo os que discordavam e mostrando, com isso, que estava disposto a se sacrificar pelo bem comum. Um terceiro, entre duas reuniões do conselho e na ausência dos inimigos, simplesmente implorava para si um subsídio pago de uma só vez, em recompensa por seus fiéis serviços, ciente de que, naquele momento, jamais iriam recusar o pedido. Um quarto aparecia toda hora por acaso aos olhos do soberano, sempre assoberbado de trabalho. Um quinto, a fim de alcançar um objetivo desejado fazia muito tempo — um almoço com o soberano —, demonstrava de modo encarniçado o caráter justo ou injusto de uma opinião formulada recentemente e para isso criava argumentos mais ou menos fortes e razoáveis.

Todas as pessoas desse partido andavam à caça de rublos, medalhas, títulos, e nessa busca apenas seguiam a direção do cata-vento da indulgência do tsar, e assim que notavam que o cata-vento estava virado para um lado, toda essa massa de zangões parasitas do Exército passava a soprar para aquele mesmo lado, de modo que se tornava ainda mais difícil para o tsar virá-lo para outro sentido. Em meio à incerteza da situação, em face de perigos sérios e ameaçadores, que infundiam em tudo um caráter especialmente perturbador, em meio àquele turbilhão de intrigas, vaidades, confrontos de opiniões discordantes e de sentimentos, em face da diversidade dos povos de todas aquelas pessoas, esse oitavo partido, o maior de todos, formado por pessoas dedicadas aos seus interesses pessoais, imprimia uma grande complicação e confusão à tarefa comum. Qualquer que fosse a questão levantada, logo o enxame dos zangões parasitas, sem que tivessem ainda terminado de soar as trombetas acerca do assunto anterior, voavam para o assunto novo e, com seu zumbido, abafavam e toldavam as vozes que debatiam com sinceridade.

De todos esses partidos, na ocasião em que o príncipe Andrei chegou ao Exército, formara-se mais um, o nono partido, que estava começando a erguer a voz. Era o partido das pessoas velhas, sensatas, experientes em assuntos de Estado, que, sem partilhar nenhuma daquelas opiniões contraditórias, conseguiam examinar de forma distanciada tudo o que se passava no quartel-general e refletir em busca de um meio para sair daquela incerteza, indecisão, confusão e fraqueza.

As pessoas desse partido diziam e pensavam que todo o mal provinha sobretudo da presença do soberano com sua corte militar junto ao exército; que havia se transmitido para o exército aquela indecisa, condicional e flutuante instabilidade das relações, que podia ser conveniente na corte, mas era nociva no exército; que o soberano precisava reinar, e não comandar as tropas; que a única saída para tal situação era afastar do exército o tsar e sua corte; que a simples presença do tsar paralisava cinquenta mil soldados, necessários para garantir a sua segurança pessoal; que até o pior comandante em chefe, contanto que independente, seria melhor do que o melhor de todos tolhido pela presença e pela autoridade do soberano.

Na mesma ocasião em que o príncipe Andrei vivia em Drissa sem nenhuma atribuição, Chichkóv, secretário de Estado e um dos principais representantes desse partido, redigiu uma carta para o soberano, que Balachov e Araktchéiev concordaram em subscrever. Na carta, fazendo uso da autorização que o soberano lhe concedera para discutir o curso geral das operações, Chichkóv, respeitosamente, e sob o pretexto da necessidade de o soberano insuflar ânimo para a guerra no povo na capital, sugeria ao soberano que se afastasse das tropas.

Estimular o ânimo do povo por meio do soberano e apelar a ele em defesa da pátria — exatamente aquele estado de ânimo do povo (até certo ponto resultado da presença pessoal do soberano em Moscou) que foi a causa principal da vitória da Rússia — foi a proposta apresentada ao soberano e lhe agradou como pretexto para afastar-se do exército.

X

Essa carta ainda não tinha sido entregue ao soberano quando Barclay, durante o almoço, comunicou a Bolkónski que o soberano gostaria de falar pessoalmente com o príncipe Andrei a fim de interrogá-lo sobre a Turquia, e que o príncipe Andrei devia apresentar-se nos aposentos de Bennigsen às seis horas da tarde.

No mesmo dia, nos aposentos do soberano, chegou a notícia de um novo deslocamento de Napoleão, que podia se tornar perigoso para o Exército — notícia que mais tarde se revelou infundada. E, na mesma manhã, o coronel Michaux, ao contornar com o soberano a fortificação de Drissa, demonstrou ao soberano que o acampamento fortificado, construído por Pfuhl e considerado, até então, uma chef-d’œuvre 46 da tática que havia de aniquilar Napoleão — que o acampamento fortificado era uma bobagem e a ruína do Exército russo.

O príncipe Andrei chegou aos aposentos do general Bennigsen, que estava alojado numa pequena casa senhorial bem na beira do rio. Nem Bennigsen, nem o soberano estavam lá; mas Tcherníchev, ajudante de ordens do soberano, recebeu Bolkónski e informou-lhe que o soberano tinha ido com o general Bennigsen e o marquês Paulucci, pela segunda vez naquele mesmo dia, percorrer a muralha do acampamento de Drissa, de cuja conveniência começavam a duvidar seriamente.

Tcherníchev estava sentado com um romance francês junto à janela do primeiro quarto. Esse quarto, com certeza, antes fora um salão; nele, havia também um órgão, sobre o qual estavam empilhados alguns tapetes, e num canto estava a cama de campanha do ajudante de ordens de Bennigsen. O ajudante de ordens estava ali. Esgotado, sem dúvida, pela farra ou pelo trabalho, estava sentado sobre a roupa de cama dobrada, e cochilava. Havia duas portas no salão: uma, direto para a antiga sala de visitas; a outra, para o escritório à direita. Pela primeira porta, ouviam-se vozes que conversavam em alemão e, de vez em quando, em francês. Lá, na antiga sala de visitas, estavam reunidas, a pedido do soberano, não um conselho de guerra (o soberano gostava de indefinição), mas algumas pessoas cujas opiniões sobre as dificuldades iminentes ele desejava conhecer. Não era um conselho de guerra, mas uma espécie de conselho de escolhidos a fim de esclarecer pessoalmente o soberano a respeito de algumas questões. Para esse semiconselho foram convidados o general sueco Armfeldt, o general ajudante de ordens Woltzogen, Wintzingerode, a quem Napoleão chamava de súdito francês foragido, Michaux, Toll, o conde Stein, que nada tinha de militar, e por fim o próprio Pfuhl, que, como o príncipe Andrei ouvira dizer, era la cheville ouvrière 47 de tudo aquilo. O príncipe Andrei teve ocasião de observá-lo bem, pois Pfuhl chegou logo depois dele e seguiu para o quarto, onde se demorou um minuto para falar com Tcherníchev.

Pfuhl, à primeira vista, no seu uniforme malfeito de general russo, que lhe caía tão mal que parecia uma fantasia, pareceu alguém conhecido ao príncipe Andrei, embora nunca o tivesse visto. Nele, havia algo de Weyrother, de Mack, de Schmidt e de muitos outros teóricos generais alemães que o príncipe Andrei pudera observar, em 1805; mas Pfuhl era o mais típico de todos. Um teórico alemão como aquele, que reunia em si tudo o que havia nos outros alemães, o príncipe Andrei nunca tinha visto.

Pfuhl era de baixa estatura, muito magro, mas tinha ossos largos, aspecto grosseiro e saudável, quadril largo e escápulas ossudas. Tinha o rosto muito enrugado, com os olhos fundos. O cabelo, na frente e nas têmporas, parecia ter sido ajeitado às pressas com uma escova, e por trás ressaltavam uns cachinhos de ar ingênuo. Ele entrou no quarto olhando em volta, inquieto e zangado, como se tivesse medo de tudo no quarto amplo onde havia entrado. Segurando a espada com um movimento desajeitado, voltou-se para Tcherníchev e perguntou em alemão onde estava o soberano. Pelo visto, queria sair do quarto o mais depressa possível, terminar os cumprimentos e as saudações e pôr-se logo a trabalhar diante de um mapa, onde ele se sentia mais à vontade. Respondeu às palavras de Tcherníchev com uma apressada inclinação de cabeça e sorriu com ironia, ao saber que o soberano estava examinando a fortificação que ele, o próprio Pfuhl, havia edificado segundo a sua teoria. Em tom grave e de modo um pouco abrupto, como falam os alemães autoconfiantes, resmungou para si mesmo: Dummkopf... ou: Zu Grunde die ganze Geschichte... ou: S’wird was Gescheites d’raus werden...48 O príncipe Andrei não escutou bem e quis afastar-se, mas Tcherníchev apresentou o príncipe Andrei a Pfuhl, sublinhando que ele havia chegado da Turquia, onde a guerra terminara de forma tão exitosa. Pfuhl mal olhou, nem tanto para o príncipe Andrei mas para o seu lado, e falou, rindo: “Da muss ein schöner taktischer Krieg gewesen sein”.49 E, depois de rir com desdém, seguiu para o cômodo de onde se ouviam vozes.

Estava claro que Pfuhl, já sempre disposto a uma irritação sarcástica, nesse dia estava especialmente propenso a isso, porque haviam tomado a liberdade de, sem ele, examinar o seu acampamento e criticá-lo. Só com base naquele breve encontro com Pfuhl, o príncipe Andrei, também com a ajuda das recordações de Austerlitz, formou uma imagem clara daquele homem. Pfuhl era dessas pessoas desesperadas e eternamente autoconfiantes, a ponto de se martirizar, como só os alemães sabem ser, justamente porque só os alemães conseguem ser tão confiantes nos fundamentos de uma ideia abstrata — a ciência, ou seja, o suposto conhecimento de uma verdade absoluta. O francês é autoconfiante porque, pessoalmente, tanto pelo intelecto quanto pelo corpo, se considera irresistivelmente encantador, tanto para os homens quanto para as mulheres. O inglês é autoconfiante com base no fato de ser cidadão do país mais bem provido de comodidades em todo o mundo e também porque, como um inglês, sempre sabe o que tem de fazer, e sabe que tudo o que faz, como um inglês, é sem dúvida bom. O italiano é autoconfiante porque é agitado e, com facilidade, se esquece de si e dos outros. O russo é autoconfiante justamente porque não sabe nada nem quer saber, porque não acredita que seja possível saber alguma coisa completamente. O alemão é o autoconfiante pior de todos, o mais renitente de todos, e o mais repulsivo de todos, porque imagina que conhece a verdade, a ciência, que ele mesmo inventou, mas que para ele é uma verdade absoluta. Obviamente, assim era Pfuhl. Estava de posse de uma ciência — a teoria do movimento oblíquo, que ele deduzira da história das guerras de Frederico, o Grande, e tudo o que encontrava na história militar recente lhe parecia disparate, barbárie, uma briga medonha, na qual, de ambos os lados, se cometiam tantos erros que tais guerras nem podiam ser chamadas de militares: não se encaixavam na teoria e não podiam servir como objeto da ciência.

Em 1806, Pfuhl foi um dos autores do plano de guerra que terminou em Iena e Auerstadt; 50 porém, no desfecho dessa guerra, ele não via a menor prova da falha da sua teoria. Ao contrário, os desvios da sua teoria que foram cometidos, no seu modo de ver, constituíam a causa única de todo insucesso, e ele, com a ironia jovial que lhe era peculiar, dissera: “Ich sagte ja, dass die ganze Geschichte zum Teufel gehen wird”.51 Pfuhl era um desses teóricos que gostam tanto da sua teoria que esquecem o objetivo da teoria — a sua aplicação prática; enamorado da teoria, ele odiava qualquer prática e não queria nem saber disso. Até se alegrava com o insucesso, porque o insucesso decorrente do desvio da teoria na prática comprovava para ele apenas a correção da sua teoria.

Disse algumas palavras para o príncipe Andrei e para Tcherníchev sobre a guerra atual, com a fisionomia de um homem que sabe de antemão que tudo vai dar errado, e que até nem fica descontente com isso. Os cachinhos não penteados que ressaltavam na parte de trás da cabeça e o cabelo das têmporas alisado às pressas confirmavam isso de um modo especialmente eloquente.

Seguiu para o outro cômodo, e de lá, no mesmo instante, ouviram-se os sons graves e rabugentos da sua voz.

XI

O príncipe Andrei mal tivera tempo de seguir Pfuhl com os olhos, quando o conde Bennigsen entrou afobado e, após saudar Bolkónski com um aceno de cabeça, e sem se deter, seguiu direto para o escritório, dando algumas ordens ao seu ajudante de ordens. O soberano vinha logo atrás dele, e Bennigsen adiantou-se às pressas a fim de preparar alguma coisa e ainda ter tempo de receber o soberano. Tcherníchev e o príncipe Andrei saíram para o alpendre. O soberano, com um aspecto cansado, estava desmontando do cavalo. O marquês Paulucci dizia algo ao soberano. Com a cabeça inclinada para a esquerda, e com um ar descontente, o soberano escutava Paulucci, que falava com uma veemência incomum. O soberano avançou com a intenção evidente de pôr um fim na conversa, mas o italiano, perturbado e de cara vermelha, esquecendo as regras de etiqueta, caminhou atrás dele, continuando a falar:

— Quant à celui qui a conseillé ce camp, le camp de Drissa 52 — disse Paulucci, enquanto o soberano, ao subir a escadinha da entrada e notar o príncipe Andrei, encarou aquele rosto que não reconhecia.

— Quant à celui, sire — prosseguiu Paulucci, afobado, como se não fosse capaz de se conter —, qui a conseillé le camp de Drissa, je ne vois pas d’autre alternative que la maison jaune ou le gibet.53 Sem escutar até o fim e como se nem tivesse ouvido as palavras do italiano, o soberano, enfim reconhecendo Bolkónski, voltou-se para ele com simpatia:

— Muito prazer em vê-lo, vá para onde eles estão reunidos e espere por mim. — O soberano entrou no escritório. Atrás dele vieram o príncipe Piotr Mikháilovitch Volkónski, o barão Stein, e atrás deles as portas foram fechadas. O príncipe Andrei, fazendo uso da autorização do soberano, seguiu, ao lado de Paulucci, a quem já conhecia desde a Turquia, para a sala onde o conselho estava reunido.

O príncipe Piotr Mikháilovitch Volkónski ocupava a função de uma espécie de chefe do Estado-Maior do soberano. Volkónski saiu do escritório e, trazendo mapas para a sala e abrindo-os sobre a mesa, transmitiu as perguntas sobre as quais desejava ouvir a opinião dos senhores ali reunidos. A questão era que, de noite, chegara a notícia (que mais tarde se verificou falsa) do deslocamento dos franceses pelo flanco do acampamento de Drissa.

Armfeldt começou a falar primeiro, de modo inesperado, e para fazer face à dificuldade que se apresentava propôs uma posição completamente nova, que não se justificava de forma alguma (exceto como um desejo de mostrar que ele também podia ter uma opinião), uma posição distante das estradas de Petersburgo e de Moscou, na qual, a seu ver, o exército devia se instalar e, uma vez reunido, esperar o inimigo. Estava claro que Armfeldt já havia traçado aquele plano havia muito tempo e que agora o apresentava não só com o objetivo de responder às perguntas propostas, perguntas a que o plano não respondia, mas acima de tudo com o objetivo de aproveitar a ocasião para mostrá-lo. Era uma entre milhões de hipóteses, cada uma delas tão razoável quanto qualquer outra, que se podia considerar enquanto não se tinha ideia do caráter que a guerra tomaria. Alguns contestaram a sua opinião, outros o apoiaram. O jovem coronel Toll, com mais veemência do que os outros, contestou a opinião do general sueco e, durante a discussão, tirou do bolso lateral um caderno surrado, que pediu licença para ler. Nessa anotação desenvolvida com abrangência, Toll propunha um outro plano de campanha — inteiramente contrário ao plano de Armfeldt e ao plano de Pfuhl. Em resposta a Toll, Paulucci propôs um plano de movimento para a frente e de ataque, o único, segundo suas palavras, capaz de nos salvar da incerteza e da armadilha, como chamava o acampamento de Drissa, em que nos encontrávamos. Durante essas discussões, Pfuhl e o seu tradutor Woltzogen (a sua ponte nas relações na corte) ficaram calados. Pfuhl apenas bufava com desprezo e se virava para o lado, mostrando que nunca se rebaixaria a sequer refutar o absurdo que estava ouvindo agora. Mas quando o príncipe Volkónski, que dirigia os debates, o convidou a expor a sua opinião, Pfuhl apenas disse:

— Para que perguntar a mim? O general Armfeldt propôs uma posição formidável, com a retaguarda descoberta. Ou o ataque von diesem italienischen Herrn, sehr schön! Ou uma retirada. Auch gut.54 Para que perguntar a mim? — disse. — Afinal, vocês mesmos sabem tudo melhor do que eu. — Mas quando Volkónski, de sobrancelhas franzidas, disse que estava perguntando a sua opinião em nome do soberano, Pfuhl levantou-se, animou-se de repente, e começou a falar:

— Estragaram tudo, confundiram tudo, todos queriam saber mais do que eu, mas agora recorreram a mim: como corrigir? Não há nada a corrigir. É preciso cumprir tudo à risca, segundo os princípios que eu estabeleci — disse, batendo na mesa com os dedos ossudos. — Onde está a dificuldade? Absurdo, Kinderspiel.55 — Aproximou-se do mapa e começou a falar rapidamente, batendo o dedo magro no mapa e mostrando que nenhum acaso podia alterar a viabilidade do acampamento de Drissa, que tudo estava previsto e que, se o inimigo de fato avançasse pelo flanco, o inimigo seria inexoravelmente aniquilado.

Paulucci, que não sabia alemão, pôs-se a lhe fazer perguntas em francês. Woltzogen veio em socorro do seu chefe, que falava mal o francês, e passou a traduzir suas palavras, mal tendo tempo de acompanhar a velocidade da fala de Pfuhl, que demonstrava rapidamente que tudo, tudo, não só o que estava acontecendo, mas tudo o que podia acontecer, tudo estava previsto no seu plano e que, se agora havia dificuldades, todo o mal decorria de não terem cumprido tudo com exatidão. Ele ria sempre com ironia, demonstrava e, por fim, com desdém, parou de demonstrar, assim como um matemático para de explicar o acerto de um problema já demonstrado de diversas maneiras. Woltzogen tomou o seu lugar, continuou a explanar o pensamento dele em francês e de vez em quando dizia para Pfuhl: “Nicht wahr, Exellenz?”.56 Pfuhl, como um homem que no calor da batalha ataca soldados do seu próprio lado, gritava irritado para Woltzogen:

— Nun ja, was soll denn da noch expliziert werden? 57 — Paulucci e Michaux, a duas vozes, atacaram Woltzogen em francês. Armfeldt, em alemão, voltou-se para Pfuhl. Toll, em russo, explicava ao príncipe Volkónski. O príncipe Andrei escutava em silêncio e observava.

Entre todas aquelas pessoas, a que mais despertava simpatia no príncipe Andrei era o azedo, resoluto e absurdamente autoconfiante Pfuhl. Entre todos ali presentes, só ele parecia não desejar nada para si nem ter animosidade contra ninguém, e só almejava uma coisa: pôr em prática um plano, constituído segundo uma teoria deduzida por ele, em anos de trabalho. Ele era ridículo, era desagradável com a sua ironia, mas ao mesmo tempo inspirava um involuntário respeito pela sua ilimitada devoção a uma ideia. Além disso, em todas as palavras de todos os que falavam, com exceção de Pfuhl, havia um traço comum, que não existia no conselho de guerra em 1805 — apesar de escondido, havia agora um terror diante do gênio de Napoleão, terror que se exprimia em todas as réplicas. Supunham que, para Napoleão, tudo era possível, esperavam-no de todos os lados e, com o seu nome terrível, aniquilavam as teses uns dos outros. Parecia que só Pfuhl considerava Napoleão um bárbaro, assim como todos os oponentes da sua teoria. Mas, além do sentimento de respeito, Pfuhl inspirava no príncipe Andrei um sentimento de pena. Pelo tom com que os cortesãos se dirigiam a ele, pelo tom com que Paulucci se permitiu falar ao imperador, mas acima de tudo pela expressão de audácia do próprio Pfuhl, percebia-se que os outros sabiam, e que ele mesmo sentia, que a sua queda estava próxima. E, apesar da sua autoconfiança e da sua rabugenta ironia alemã, ele dava pena, com seus cabelos alisados nas têmporas e os cachinhos que ressaltavam na parte de trás da cabeça. Embora o ocultasse sob o disfarce da irritação e do desprezo, ele, é claro, estava em desespero, porque agora a única chance de verificar numa enorme experiência e de provar para todo mundo a veracidade da sua teoria estava escapando de suas mãos.

Os debates se prolongaram por muito tempo, e quanto mais se prolongavam mais as discussões se tornavam acaloradas e chegavam aos gritos e às acusações pessoais, e menos possível se tornava extrair qualquer conclusão geral de tudo o que era dito. O príncipe Andrei, enquanto escutava aquela conversa em diversas línguas, e as hipóteses, os planos, as refutações e os gritos, apenas se admirava com o que todos diziam. A ideia, que havia muito lhe vinha à mente com frequência, desde o tempo da sua participação na guerra, a ideia de que não há nem pode haver nenhuma ciência da guerra e que por isso não pode existir nada que se possa chamar de gênio militar, recebia agora, para ele, uma prova cabal da sua veracidade. “Que teoria e que ciência poderiam existir num assunto cujas condições e circunstâncias são desconhecidas e não podem ser determinadas, e no qual é menos possível ainda de determinar a força dos agentes da guerra? Ninguém pôde nem pode saber qual será a posição do nosso exército e a do exército inimigo daqui a um dia, e ninguém pode saber qual a força deste ou daquele destacamento. Às vezes, quando na linha de frente não há um covarde que começa a gritar: ‘Fomos cortados!’, e desanda a correr, mas em vez disso há um homem animado, corajoso, que começa a gritar: ‘Hurra!’, um destacamento de cinco mil vale um de trinta mil, como em Schöngraben, mas às vezes cinquenta mil fogem diante de oito mil, como em Austerlitz. Como pode existir uma ciência em uma matéria como essa, em que, a exemplo de todos os assuntos práticos, nada pode ser determinado e tudo depende de condições inumeráveis, cujo sentido é determinado apenas num minuto, que ninguém sabe quando vai chegar? Armfeldt diz que o nosso exército está cortado, mas Paulucci diz que pusemos o exército francês entre dois fogos; Michaux diz que a inconveniência do acampamento de Drissa consiste em que o rio está atrás, mas Pfuhl diz que nisso reside a sua força. Toll propõe um plano, Armfeldt propõe outro; e todos são bons, e todos são ruins, e as vantagens de cada posição só podem se tornar evidentes no momento em que o fato ocorre. Então, por que todos dizem: o gênio da guerra? Por acaso será gênio um homem que manda fornecer biscoitos na hora devida e manda este para a direita e aquele para a esquerda? Só porque os militares se cobrem de esplendor e de poder, massas de patifes adulam os poderosos, atribuindo-lhes qualidades de gênio, alheias a eles, chamando-os de gênios. Ao contrário, os melhores generais que conheci são gente tola ou distraída. Bagration é melhor — o próprio Napoleão reconheceu isso. E o próprio Bonaparte! Lembro o seu rosto convencido e limitado, no campo de Austerlitz. O bom comandante não só não precisa das qualidades de um gênio nem de nenhuma qualidade especial, como, ao contrário, precisa da ausência das melhores e mais elevadas qualidades humanas — o amor, a poesia, a ternura, a dúvida filosófica e questionadora. Ele deve ser limitado, firmemente convicto de que aquilo que está fazendo é muito importante (senão ele não vai ter paciência suficiente), e só assim será um comandante de valor. Deus nos livre de que ele seja um homem que ama alguém, que sente pena, que fica pensando para saber o que é justo e o que não é justo. É compreensível que, desde tempos muito antigos, tenham criado para eles a teoria dos gênios, porque eles são o poder. Uma façanha militar não depende deles, mas daquele homem que nas fileiras grita: estamos perdidos, ou grita: hurra! Só nas fileiras é possível servir com a certeza de que estamos sendo úteis!”

Assim pensava o príncipe Andrei, enquanto ouvia as conversas, e só se deu conta do que acontecia quando Paulucci o chamou, e todos já estavam se dispersando.

No dia seguinte, na revista de tropas, o soberano perguntou ao príncipe Andrei onde ele desejava servir, e o príncipe Andrei se viu excluído para sempre do mundo da corte quando, em vez de responder que desejava ficar junto à pessoa do soberano, pediu permissão para servir no Exército.

XII

Rostóv, antes do início da campanha, recebeu uma carta dos pais na qual, informando-lhe de forma sucinta sobre a doença de Natacha e sobre o rompimento com o príncipe Andrei (rompimento que explicavam por uma recusa de Natacha), pediam mais uma vez que ele se desligasse das tropas e voltasse para casa. Nikolai, após receber a carta, nem sequer tentou pedir uma licença ou o desligamento e escreveu para os pais dizendo que lamentava muito a doença de Natacha e o rompimento com o noivo e que ele faria todo o possível para atender o desejo deles. Para Sônia, escreveu uma carta à parte.

“Adorada amiga da minha alma”, escreveu.

Nada, a não ser a honra, poderia me impedir de voltar para o campo. Mas agora, à beira do início da campanha, eu me consideraria desonroso, não só perante todos os camaradas, mas também perante mim mesmo, se ao meu dever preferisse a minha felicidade, e à pátria preferisse o amor. Mas essa é a última separação. Tenha certeza de que, logo após a guerra, se eu estiver vivo e ainda for amado por você, largarei tudo e irei voando ao seu encontro, a fim de apertá-la, dessa vez para sempre, ao meu peito ardente.

De fato, só o início da campanha retinha Rostóv e o impedia de partir — como ele prometia — e casar-se com Sônia. O outono em Otrádnoie, com a caçada, e o inverno, com as festas de Natal e o amor por Sônia, abria para ele a perspectiva das tranquilas alegrias da nobreza e de um sossego que antes ele não conhecia, e que agora o atraía. “Uma esposa gentil, filhos, uma boa matilha de cães de caça, uns dez ou doze casais de galgos vigorosos, uma propriedade, vizinhos, a eleição para um cargo público!”,58 pensava. Mas agora havia a campanha, e era preciso ficar no regimento. E como isso era preciso, Nikolai Rostóv, pelo seu caráter, estava satisfeito com a vida que levava no regimento e sabia tornar aquela vida agradável para si.

Ao voltar das férias, e depois de ser recebido com alegria por seus camaradas, Nikolai foi enviado à Pequena Rússia 59 para trazer novas montarias e voltou com cavalos excelentes, que o alegraram e lhe renderam elogios dos superiores. Na sua ausência, ele foi promovido a capitão e, quando o regimento foi posto em estado de guerra com um aumento de contingente, Rostóv recebeu de novo o comando do seu antigo esquadrão.

A campanha começou, o regimento foi deslocado para a Polônia, dobraram o soldo, chegaram novos oficiais, gente nova, cavalos; e, o mais importante, difundiu-se o estado de ânimo alegre e entusiasmado que acompanha o início de uma guerra; e Rostóv, ciente da sua posição vantajosa no regimento, dedicava-se totalmente aos prazeres e aos interesses do serviço militar, embora soubesse também que, cedo ou tarde, teria de abrir mão deles.

As tropas retiraram-se de Vilna por complexas razões políticas, táticas e de Estado. Cada passo da retirada se fazia acompanhar de um complicado jogo de interesses, raciocínios e paixões no Estado-Maior. Mas, para o regimento de hussardos de Pávlograd, toda aquela marcha de retirada, na melhor fase do verão, com provisões suficientes, foi uma tarefa muito simples e divertida. No Estado-Maior podiam desanimar, inquietar-se, fazer intrigas, porém no âmago do Exército nem se perguntavam para onde iam ou por quê. Se lamentavam a retirada, era só porque tinham de deixar alojamentos a que já estavam habituados, ou afastar-se de uma polonesa bonita. Se por acaso passava pela cabeça de alguém que as coisas andavam mal, então, como convém a um bom militar, aquele que tivera tal pensamento se esforçava em ficar alegre e em não pensar sobre o rumo geral das operações, mas pensar apenas nos seus afazeres imediatos. No início, ficaram alegres, estacionados junto a Vilna, travando contato com os senhores de terra poloneses, enquanto esperavam e cumpriam as revistas de tropas feitas pelo imperador e por outros altos comandantes. Depois veio a ordem de retirar-se para Sventsiáni e de destruir as provisões que não pudessem carregar. Sventsiáni era lembrado pelos hussardos só por ser o acampamento dos bêbados, como todo o exército chamava o acampamento em Sventsiáni, e também porque os habitantes de Sventsiáni tinham muitas queixas das tropas, pois elas, aproveitando a ordem de tomar as provisões dos habitantes, a título de provisões tomavam também cavalos, carruagens e tapetes dos senhores poloneses. Rostóv se lembrava de Sventsiáni porque, logo no dia da chegada àquele lugarejo, substituiu o sargento e não conseguiu dominar os soldados do esquadrão, que se embriagavam e, sem o seu conhecimento, haviam se apropriado de cinco barricas de uma cerveja velha. De Sventsiáni, foram recuando cada vez mais, até chegar a Drissa, e mais uma vez se retiraram de Drissa, já se aproximando da fronteira russa.

No dia 13 de julho, pela primeira vez, os pavlogradenses tiveram uma missão séria.

No dia 12 de julho, à noite, véspera daquela missão, houve uma forte tempestade, com chuvas e trovoadas. O verão de 1812 foi, no geral, notavelmente tempestuoso.

Dois esquadrões do regimento de Pávlograd ficaram acampados no meio de uma plantação de centeio, que já estava formando espigas, mas tinha sido completamente pisoteado por bois e cavalos. A chuva caía torrencialmente, e Rostóv, com o jovem oficial Ilin, seu protegido, estava abrigado numa choupana feita às pressas. Um oficial do seu regimento, com uns bigodes compridos que subiam pelas bochechas, que tinha ido ao Estado-Maior e fora surpreendido pela chuva, entrou no abrigo de Rostóv.

— Estou vindo do Estado-Maior, conde. Já souberam da façanha de Raiévski? — E o oficial contou detalhes da batalha de Saltánov, que ouvira no Estado-Maior.

Enquanto apertava o pescoço, atrás do qual a água escorria, Rostóv fumava o cachimbo, ouvia sem atenção e de vez em quando lançava um olhar para o jovem oficial Ilin, que se encolhia junto a ele. Esse oficial, rapaz de dezesseis anos que entrara no regimento pouco tempo antes, era agora, em relação a Nikolai, o mesmo que fora Nikolai em relação a Deníssov, sete anos antes. Ilin se esforçava para imitar Rostóv em tudo e, como uma mulher, estava enamorado dele.

O oficial de bigodes enormes, Zdrjínski, contava de modo enfático como a represa de Saltánov era as Termópilas russas, como naquela represa o general Raiévski realizara uma façanha digna da Antiguidade. Zdrjínski contou a façanha de Raiévski, que levara para a represa seus dois filhos sob um terrível fogo do inimigo e, com eles ao seu lado, se lançou ao ataque. Rostóv ouvia o relato e, não só nada dizia para corroborar o entusiasmo de Zdrjínski, como ainda, ao contrário, tinha o ar de um homem que se envergonha daquilo que lhe estão contando, embora não tivesse nenhuma intenção de contestar. Depois de Austerlitz e da campanha de 1807, Rostóv sabia por experiência própria que, ao contar fatos militares, sempre mentiam, como ele mesmo mentia também, quando contava; em segundo lugar, ele já tinha experiência bastante para saber que, na guerra, tudo se passa de forma completamente distinta daquilo que podemos imaginar e contar. E por isso não estava gostando do relato de Zdrjínski, não estava gostando nem do próprio Zdrjínski, que com seus bigodes até as bochechas se curvava até bem perto da pessoa com quem estava falando, como era seu costume, e assim deixava Rostóv espremido na espremida choupana. Rostóv o fitava em silêncio. “Em primeiro lugar, na represa que atacaram devia haver, com certeza, tamanha confusão e tamanha aglomeração que, se Raiévski levou de fato os seus filhos, isso não poderia produzir efeito em ninguém, exceto em uns dez homens, mais ou menos, que estavam perto dele”, pensava Rostóv, “os demais nem podiam ver como e com quem Raiévski foi para a represa. E mesmo aqueles que viram isso não podiam se entusiasmar muito, porque, afinal, o que eles tinham a ver com os ternos sentimentos paternais de Raiévski, quando naquela hora eles estavam pondo em risco a própria pele? E, depois, tanto fazia tomarem ou não tomarem a tal represa de Saltánov, disso não dependia o destino da pátria, como era o caso pelo que nos contam sobre as Termópilas. Portanto, para que chegar a tanto sacrifício? E, depois, para que meter os próprios filhos aqui nesta guerra? Eu não só não mandaria o meu irmão Pétia, como não mandaria nem mesmo o Ilin, que não é meu parente, mas é um bom garoto, e me esforçaria para deixá-lo em qualquer lugar protegido”, continuava a pensar Rostóv, enquanto ouvia Zdrjínski. Mas não exprimia seus pensamentos: também nisso ele já tinha experiência. Sabia que aquele relato contribuía para a glorificação das nossas armas e que por isso era preciso dar a impressão de que não duvidava. E assim ele fazia.

— Não dá mais para aguentar — disse Ilin, que havia notado que Rostóv não estava gostando da conversa de Zdrjínski. — As meias, a camisa, e até embaixo de mim está tudo ensopado. Vou procurar um abrigo. Parece que essa chuvinha vai amainar. — Ilin saiu, e Zdrjínski foi embora.

Cinco minutos depois, Ilin, chapinhando na lama, veio depressa para a choupana.

— Hurra! Rostóv, vamos logo. Achei! Olhe lá, tem um albergue a uns duzentos passos daqui, os nossos já se juntaram lá. A gente pelo menos pode se secar, e Mária Henríkhovna está lá.

Mária Henríkhovna era a esposa do médico do regimento, alemã jovem, bonitinha, com quem o médico se casara na Polônia. O médico, ou por não ter meios, ou por não querer separar-se da jovem esposa logo nos primeiros dias do casamento, levara-a consigo para o regimento de hussardos, e os ciúmes do médico viraram um motivo habitual para piadas entre os oficiais hussardos.

Rostóv cobriu-se com a capa, berrou para Lavruchka vir atrás dele com suas coisas e seguiu com Ilin, ora desviando da lama, ora enfiando os pés em cheio nas poças, sob a chuva que amainava no escuro do anoitecer, rompido de vez em quando por relâmpagos distantes.

— Rostóv, onde está você?

— Aqui. Que relâmpago! — eles iam conversando.

XIII

Dentro do albergue abandonado, diante do qual estava parada a pequena kibítka60 do médico, já se encontravam uns cinco oficiais. Mária Henríkhovna, alemãzinha loura e carnuda, de casaquinho e touquinha de dormir, estava sentada num banco largo, no canto da frente. Seu marido, o médico, dormia atrás dela. Rostóv e Ilin, recebidos com gritos e risos alegres, entraram na sala.

— Puxa! Como estão alegres! — disse Rostóv, rindo.

— E vocês, por que ficam aí bocejando?

— Que beleza! Eles têm água escorrendo por todos os lados!

— Não pode sujar o vestido da Mária Henríkhovna — gritaram outras vozes.

Rostóv e Ilin se apressaram em achar um cantinho onde pudessem trocar a roupa molhada sem ferir o pudor de Mária Henríkhovna. Quiseram passar para o outro lado do tabique a fim de trocar de roupa; mas dentro da pequena despensazinha, ocupando todo o espaço, com uma vela acesa em cima de uma caixa vazia, estavam sentados três oficiais, que jogavam cartas e não queriam de jeito nenhum ceder o lugar. Mária Henríkhovna ofereceu-lhes uma saia sua por um tempo, para que a usassem como cortina, e atrás dessa cortina Rostóv e Ilin, com a ajuda de Lavruchka, que trouxera as trouxas, tiraram a roupa molhada e vestiram a seca.

Na estufa destroçada, acenderam o fogo. Pegaram uma tábua, apoiaram-na sobre duas selas, cobriram com um xairel, pegaram um samovarzinho, uma frasqueira, meia garrafa de rum e, depois de pedir a Mária Henríkhovna que fosse a anfitriã, todos se aglomeraram em volta dela. Um lhe ofereceu um lenço limpo para enxugar as mãozinhas encantadoras, outro estendeu o paletó sob os pezinhos dela, para protegê-los da umidade, outro cobriu a janela com a capa, para barrar o vento, outro afugentava as moscas do rosto do marido, para que ele não acordasse.

— Deixem-no — disse Mária Henríkhovna, sorrindo, tímida e feliz. — Ele está dormindo muito bem, depois de passar uma noite acordado.

— Impossível, Mária Henríkhovna — respondeu um oficial —, temos de cuidar do médico. Quem sabe assim ele tem pena de mim, quando tiver de cortar uma perna ou um braço.

Copos, só havia três; a água estava tão imunda que era impossível saber se o chá estava forte ou não; no samovar, só havia água para seis copos, e no entanto era ainda mais agradável receber o copo, cada um na sua vez, por ordem de antiguidade, das mãozinhas rechonchudas de Mária Henríkhovna, com unhazinhas curtas, mas perfeitamente limpas. Todos os oficiais, pelo visto, estavam de fato apaixonados por Mária Henríkhovna, naquela noite. Até os oficiais que jogavam cartas atrás do tabique logo deixaram o jogo e vieram para perto do samovar, rendendo-se ao espírito geral de fazer galanteios a Mária Henríkhovna. Vendo-se rodeada por uma juventude tão distinta e fina, Mária Henríkhovna ficou radiante de felicidade, por mais que tentasse esconder isso e por mais que obviamente tivesse receios a cada movimento do marido, que dormia atrás dela.

Colher, só havia uma, açúcar era o que mais havia, mas não conseguiam dissolvê-lo, e por isso ficou resolvido que ela iria mexer o açúcar de todos eles, um após o outro. Rostóv recebeu o seu copo, encheu-o de rum e pediu a Mária Henríkhovna que mexesse.

— Mas, ora, o senhor não põe açúcar? — disse, sorrindo o tempo todo, como se tudo o que ela dissesse e também tudo o que os outros dissessem fosse muito engraçado e tivesse outro sentido.

— Pois é, não pus açúcar, eu só queria que você mexesse com a sua mãozinha.

Mária Henríkhovna aceitou e começou a procurar a colher, que alguém já havia apanhado.

— A senhora use o dedinho, Mária Henríkhovna — disse Rostóv. — Vai ficar ainda mais gostoso.

— Está quente! — disse Mária Henríkhovna, ruborizando de prazer.

Ilin trouxe um balde de água e, após pingar ali algumas gotas de rum, foi até Mária Henríkhovna e pediu que mexesse com o dedinho.

— Esta é a minha xícara — disse ele. — É só colocar o dedinho que eu bebo tudo.

Quando haviam bebido o samovar inteiro, Rostóv pegou as cartas e propôs jogarem reis com Mária Henríkhovna. Tiraram a sorte para saber quem seria o parceiro de Mária Henríkhovna. Por sugestão de Rostóv, as regras do jogo determinavam que aquele que fosse o rei teria o direito de beijar a mãozinha de Mária Henríkhovna, mas quem fosse o vilão teria de preparar um outro samovar para o médico, quando ele acordasse.

— Ora, e se Mária Henríkhovna for o rei? — perguntou Ilin.

— Mas ela já é rainha! E uma ordem dela é uma lei!

Mal começou a partida, ergueu-se de repente a cabeça desgrenhada do médico por trás de Mária Henríkhovna. Já fazia tempo que ele não dormia e que escutava com atenção aquilo que diziam, e, é claro, não achava nada de engraçado, nem de divertido ou de espirituoso em tudo o que estavam dizendo e fazendo. Seu rosto estava soturno e tristonho. Ele não cumprimentou os oficiais, coçou-se e pediu licença para sair, pois estavam bloqueando o seu caminho. Assim que saiu, todos os oficiais soltaram uma alta gargalhada, mas Mária Henríkhovna ruborizou-se até as lágrimas e, quanto mais vermelha, mais encantadora se tornava aos olhos de todos os oficiais. Ao voltar para dentro de casa, o médico disse para a esposa (que já havia parado de sorrir tão cheia de felicidade e o fitava assustada, à espera de uma censura) que a chuva havia parado e que era preciso passar a noite na kibítka, do contrário roubariam tudo.

— Então vou mandar um vigia... dois vigias! — disse Rostóv. — Por favor, doutor.

— Eu mesmo ficarei de sentinela! — disse Ilin.

— Não, os senhores dormiram bem, já eu estou há duas noites sem dormir — disse o médico e sentou-se ao lado da esposa, com ar soturno, à espera do fim do jogo.

Ao verem o rosto soturno do médico debruçado na esposa, os oficiais acharam mais graça ainda, e muitos não conseguiram conter o riso, para o qual tratavam de procurar rapidamente algum pretexto justificável. Quando o médico saiu, levando a esposa, e instalou-se com ela na pequena kibítka, os oficiais deitaram no chão do albergue e cobriram-se com os capotes molhados; mas ficaram muito tempo sem dormir, ora conversando, lembrando o temor do médico e a alegria da esposa, ora dando um pulo até a entrada para depois contar o que se passava dentro da kibítka. Rostóv, cobrindo a cabeça, várias vezes tentou dormir; mas a todo instante algum comentário o distraía, a conversa de novo recomeçava, e de novo ressoava um riso gratuito, alegre, infantil.

XIV

Por volta das três horas, ninguém havia adormecido ainda, quando apareceu um sargento com a ordem de seguirem para o vilarejo de Ostrovna.


Ainda rindo e conversando, os oficiais rapidamente trataram de se preparar; puseram de novo a água suja no samovar. Mas Rostóv seguiu para o esquadrão sem esperar o chá. Já estava clareando; a garoa havia parado, as nuvens se dispersaram. Estava frio e úmido, sobretudo com as roupas que ainda não tinham secado. Ao sair do albergue no crepúsculo do amanhecer, Rostóv e Ilin deram uma espiada dentro da capota de couro da pequena kibítka do médico, lustrosa com a chuva: embaixo do avental do médico, destacavam-se os pés dele, e, no meio da kibítka, sobre um travesseiro, via-se a touquinha da esposa e se ouvia a sua respiração, enquanto dormia.

— Ela é mesmo muito graciosa! — disse Rostóv para Ilin, que viera com ele.

— Que encanto de mulher! — respondeu Ilin, com a seriedade dos dezesseis anos.

Meia hora depois, o esquadrão estava perfilado na estrada. Ouviu-se o comando: “Montar”, os soldados fizeram o sinal da cruz e começaram a montar. Rostóv, à frente, comandou: “Marche!”, e ao som do estalar dos cascos na estrada encharcada, do tilintar dos sabres e de conversas em voz baixa, os hussardos se puseram em movimento em fileiras de quatro, pela estrada grande e margeada de bétulas, atrás da infantaria e de uma bateria, que seguiam na frente.

Nuvens em farrapos, de cor azul e violeta, que se avermelhavam na alvorada, eram acossadas pelo vento veloz. Cada vez clareava mais. Via-se nitidamente o capinzinho crespo, que sempre cresce na beira das estradas vicinais, ainda molhado com a garoa da noite; os ramos pendentes das bétulas, também molhados, balançavam no vento e deixavam cair gotas reluzentes para os lados. O rosto dos soldados se destacava de modo cada vez mais claro. Ao lado de Ilin, que não se afastava dele, Rostóv cavalgava no canto da estrada, entre as duas fileiras de bétulas.

Em campanha, Rostóv se dava a liberdade de montar não um cavalo de linha de frente, mas um cavalo de cossaco. Caçador e bom conhecedor de cavalos, ele arranjara havia pouco tempo um grande e fogoso alazão do Don, no qual ninguém o alcançava no galope. Montar aquele cavalo era um prazer para Rostóv. Ele estava pensando no cavalo, na manhã, na esposa do médico, e nenhuma vez pensou nos perigos iminentes.

Antes, Rostóv sentia medo ao seguir para o combate; agora, não experimentava nem o menor sentimento de medo. Não porque estivesse habituado ao fogo (ninguém se habitua ao perigo), mas porque havia aprendido a controlar a sua alma, em face do perigo. Quando seguia para o combate, Rostóv estava habituado a pensar em tudo, menos naquilo que parecia o mais importante — o perigo iminente. No início da sua carreira militar, por mais que tentasse, por mais que se acusasse de covardia, ele não o conseguia; mas agora, com os anos, aquilo acontecia espontaneamente. Ia cavalgando ao lado de Ilin, entre as bétulas, de vez em quando arrancava folhas de ramos que vinham à sua mão, de vez em quando tocava os pés na virilha do cavalo, de vez em quando, sem se virar, devolvia o cachimbo que terminara de fumar para um hussardo que cavalgava logo atrás, com um aspecto tão sereno e despreocupado como se estivesse indo dar um passeio a cavalo. Sentia pena ao ver o rosto perturbado de Ilin, que falava muito e de maneira inquieta; por experiência própria, Rostóv conhecia aquele torturante estado de expectativa do medo e da morte em que o alferes se encontrava, e sabia que nada poderia ajudá-lo, a não ser o tempo.

Assim que o sol surgiu numa faixa limpa abaixo das nuvens, o vento cessou, como se não se atrevesse a estragar aquela manhã de verão encantadora, em seguida a uma tempestade; ainda caíam gotas, mas já na vertical — e tudo ficou calmo. O sol saiu de todo, mostrou-se no horizonte e desapareceu numa nuvem estreita e comprida que estava acima dele. Alguns minutos depois, o sol surgiu mais brilhante ainda, rompendo a orla superior da nuvem. Tudo se iluminou e reluziu. E junto com a luz, como em resposta a ela, espocaram à frente disparos de canhão.

Rostóv mal tivera tempo de refletir e determinar a distância de onde vinham os tiros, quando o ajudante de ordens conde Osterman-Tolstói chegou a galope de Vítebsk com a ordem de avançar a trote pela estrada.

O esquadrão ultrapassou a infantaria e a bateria, que também se apressavam para avançar mais rápido, desceu um morro e, depois de passar por uma aldeia vazia, sem habitantes, subiu de novo um morro. Os cavalos começavam a espumar, os soldados ficaram com o rosto vermelho.

— Alto, alinhar fileiras! — ouviu-se à frente a ordem do comandante de divisão.

— Esquerda volver, em frente, marche! — ordenaram adiante.

E os hussardos passaram pelas linhas das tropas no flanco esquerdo da posição e pararam atrás dos nossos ulanos, que estavam na primeira linha. A nossa infantaria tomou posição à direita, numa coluna cerrada — eram as reservas; acima, num morro, no ar cristalino, viam-se os nossos canhões, iluminados exatamente na linha do horizonte matinal, claro e oblíquo. À frente, depois de uma depressão, avistavam-se as colunas inimigas e os canhões. Na depressão, ouvia-se a nossa linha de frente, que já entrara em combate e trocava tiros animadamente com o inimigo.

Como se fossem os sons da música mais alegre, Rostóv se alegrou com aqueles sons, que fazia muito tempo não ouvia. Trap-ta-ta-tam! — dispararam vários tiros, um atrás do outro, ora de repente, ora depressa. De novo, tudo silenciava e, de novo, rompiam estampidos, como se alguém fosse andando e estourasse bombinhas no caminho.

Os hussardos ficaram cerca de uma hora parados no mesmo lugar. Teve início o canhoneio. O conde Osterman, com uma escolta, passou por trás do esquadrão estacionado, falou com o comandante do regimento e afastou-se na direção dos canhões, no morro.

Após a partida de Osterman, soou entre os ulanos uma ordem:

— Em colunas, formação de ataque! — À frente deles, em duas fileiras de pelotões, a infantaria abriu caminho para a passagem da cavalaria. Os ulanos avançaram, sacudindo as lanças com flâmulas, e seguiram a trote morro abaixo, ao encontro da cavalaria francesa, que havia aparecido ao pé do morro, à esquerda.

Assim que os ulanos desceram o morro, os hussardos receberam ordens de subir o morro, para dar cobertura à bateria. Na hora em que os hussardos pararam no lugar onde antes estavam os ulanos, balas voaram da linha de frente, assoviando e guinchando, e passaram longe.

Aquele som, que fazia muito não ouvia, deixou Rostóv ainda mais animado e alegre do que ao ouvir os sons dos tiros, pouco antes. Aprumou as costas, observou o campo de batalha que se avistava do morro e, com toda a alma, tomou parte dos movimentos dos ulanos. Rapidamente, os ulanos chocaram-se com os dragões franceses, algo se embaralhou dentro da fumaça, e cinco minutos depois os ulanos correram para trás, não para o lugar onde estavam antes, e sim mais para a esquerda. Entre os ulanos alaranjados, em cavalos alazões, e atrás deles, numa grande massa, viam-se os dragões franceses azuis, em cavalos cinzentos.

XV

Rostóv, com seu acurado olho de caçador, foi um dos primeiros que viram os dragões franceses azuis no encalço dos nossos ulanos. Num bando desordenado, os ulanos se aproximavam cada vez mais, enquanto os dragões franceses os perseguiam. Já se podia ver como aqueles soldados, que pareciam pequenos ao pé do morro, se entrechocavam e se atracavam, brandindo os braços ou os sabres.

Como se estivesse numa caçada, Rostóv observava o que se passava na sua frente. Sentia pelo faro que, se naquele momento os hussardos atacassem os dragões franceses, estes não iriam resistir; porém, se fossem atacar, teria de ser agora, naquele minuto, do contrário já seria tarde. Rostóv olhou à sua volta. O capitão que estava ao seu lado também não tirava os olhos da cavalaria mais abaixo.

— Andrei Sevastiánitch — disse Rostóv. — E se fôssemos lá esmagá-los...

— Seria um golpe de mestre — disse o capitão. — Mas é verdade que...

Rostóv, sem ouvi-lo até o fim, atiçou o cavalo, partiu à frente do esquadrão e mal teve tempo de dar a ordem de avançar, quando o esquadrão inteiro, tendo sentido o mesmo que ele, se precipitou atrás do seu cavalo. Ele mesmo não sabia como nem por que estava fazendo aquilo. Fazia tudo da mesma forma como agia numa caçada, sem pensar, sem refletir. Via que os dragões estavam próximos, que galopavam em desordem; sabia que não iam resistir, sabia que era uma questão de um só minuto que não voltaria se ele o perdesse. As balas assoviavam e guinchavam à sua volta de modo tão estimulante, o cavalo queria avançar com tamanha empolgação que Rostóv não conseguia contê-lo. Atiçou o cavalo, deu uma ordem e, nesse exato instante, após ouvir atrás de si o tropel do seu esquadrão em linha de ataque, a trote largo, começou a descer ao encontro dos dragões, ao pé do morro. Assim que chegaram ao pé do morro, como que espontaneamente, mudaram o passo de trote para galope, o qual foi ficando cada vez mais rápido à medida que se aproximavam dos seus ulanos e dos dragões franceses que galopavam no encalço deles. Os dragões estavam próximos. Os da frente, ao avistarem os hussardos, começaram a se virar para trás, e os de trás começaram a parar. Com a mesma sensação que tinha ao cortar o caminho de um lobo numa caçada, Rostóv, dando rédea solta ao seu cavalo do Don, galopou para cortar o caminho de fuga das fileiras dos dragões franceses em desordem. Um ulano parou, um outro a pé deitou-se no solo para não ser esmagado, um cavalo sem cavaleiro misturou-se aos hussardos. Quase todos os dragões franceses estavam galopando para trás. Rostóv, após escolher um deles, num cavalo cinzento, partiu no seu encalço. No caminho, chocou-se com um arbusto; o bom cavalo pulou por cima do arbusto, e Nikolai, mal se ajeitou sobre a sela, viu que em poucos instantes alcançaria o inimigo que havia escolhido como alvo. O francês, na certa um oficial — a julgar pelo uniforme —, havia se curvado e galopava em seu cavalo cinzento, atiçando-o com o sabre. Num instante o cavalo de Rostóv bateu com o peito na garupa do cavalo do oficial, por pouco não o derrubou e, no mesmo instante, Rostóv, sem saber por quê, ergueu o sabre e golpeou o francês.

No mesmo instante em que fazia isso, toda a empolgação de Rostóv se desfez de repente. O oficial caiu não tanto por causa do golpe do sabre, que só cortou de leve o braço acima do cotovelo, mas por causa da trombada do cavalo e do medo. Rostóv freou o cavalo e procurou com os olhos o seu inimigo para ver quem ele havia derrotado. O oficial dos dragões franceses pulava na terra num pé só, o outro pé estava preso no estribo. Pestanejava assustado, como se esperasse um novo golpe a qualquer segundo e, com o rosto franzido e uma expressão de pavor, lançou um olhar para Rostóv, acima dele. Seu rosto, pálido e respingado de lama, louro, jovem, com uma covinha no queixo e olhos azuis radiantes, não era próprio para um campo de batalha, não era o rosto de um inimigo, e sim o mais simples rosto doméstico. Antes até de Rostóv resolver o que faria com ele, o oficial começou a gritar: “Je me rends!”.61 Afobado, ele queria e não conseguia soltar o pé do estribo e, sem baixar os olhos azuis e assustados, fitava Rostóv. Os hussardos que se aproximaram aos saltos desprenderam o seu pé e o colocaram sobre a sela. Em todos os lados, os hussardos se ocupavam com os dragões: um estava ferido, mas, com o rosto ensanguentado, não entregava o seu cavalo; outro, abraçado a um hussardo, ia montado na garupa do seu cavalo; um terceiro, ajudado por um hussardo, tentava montar no seu cavalo. À frente, a infantaria francesa fugia, atirando. Os hussardos, às pressas, galoparam para trás com os seus prisioneiros. Rostóv galopou para trás com os outros, experimentando um sentimento desagradável, que apertava o seu coração. Alguma coisa desagradável, emaranhada, que ele não conseguia de maneira alguma explicar, revelou-se para ele com a captura daquele oficial como prisioneiro e com o golpe que lhe deu.

O conde Osterman-Tolstói recebeu os hussardos que voltavam, mandou chamar Rostóv, agradeceu-lhe e disse que mencionaria para o soberano o seu ato de bravura e pediria para ele a Cruz de São Jorge. Quando foi chamado para se apresentar ao conde Osterman, Rostóv, lembrando que seu ataque tivera início sem que recebesse nenhuma ordem, ficou inteiramente convencido de que o superior exigia a sua presença a fim de puni-lo por agir sem autorização. Portanto as palavras lisonjeiras de Osterman e a promessa de uma condecoração deveriam produzir um efeito ainda mais alegre em Rostóv; no entanto o mesmo sentimento desagradável, obscuro, continuou a lhe provocar uma náusea moral. “Mas, afinal de contas, o que é que está me atormentando?”, perguntou a si mesmo, ao deixar o general. “Ilin? Não, ele está ileso. De algum modo, eu me cobri de vergonha? Não. Nada disso!” Alguma outra coisa o atormentava, como um remorso. “Sim, sim, aquele oficial francês com uma covinha. Lembro bem como a minha mão se deteve, quando eu a levantei.”

Rostóv avistou os prisioneiros que estavam sendo levados e galopou na direção deles, a fim de observar o seu francês com uma covinha no queixo. Com o seu uniforme estranho, ele estava sentado no cavalo arisco de um hussardo e olhava inquieto à sua volta. Seu ferimento no braço quase nem era um ferimento. Sorriu para Rostóv de maneira fingida e acenou-lhe com a mão, em forma de cumprimento. Rostóv continuou embaraçado e como que envergonhado.

Durante todo aquele dia e no dia seguinte, os amigos e camaradas de Rostóv notaram que ele não estava aborrecido, não estava zangado, mas andava calado, pensativo e concentrado. Bebia sem vontade, procurava ficar sozinho, o tempo todo pensava em alguma coisa.

Rostóv pensava o tempo todo na sua formidável façanha, que, para a sua surpresa, lhe valera a Cruz de São Jorge e até lhe trouxera a reputação de valente — e também numa coisa que ele não conseguia entender de forma alguma. “Então quer dizer que eles têm mais medo ainda do que nós!”, pensava. “Então é só isso o que chamam de heroísmo? E por acaso eu fiz aquilo pela pátria? E que culpa tem ele, com a sua covinha e os seus olhos azuis? E como ficou assustado! Achou que eu ia matá-lo. Para que eu havia de matá-lo? Minha mão tremeu. E me deram a Cruz de São Jorge. Não estou entendendo nada, nada!”

Porém, enquanto Nikolai ia elaborando para si essas perguntas, e apesar de tudo não encontrava uma resposta clara acerca daquilo que o deixara tão abalado, a roda da fortuna, como acontece tantas vezes, girou em seu favor. Depois do combate de Ostrovna, ele foi promovido, deram-lhe um batalhão de hussardos e, quando era preciso um oficial valente, chamavam Rostóv para a missão.

XVI

Depois de receber a notícia da doença de Natacha, a condessa, ainda fraca e não de todo recuperada, partiu para Moscou, na companhia de Pétia e de todos os criados, e a família dos Rostóv mudou-se da casa de Mária Dmítrievna para a sua própria residência e se estabeleceu em Moscou.

A doença de Natacha era tão grave que, para sua felicidade e para felicidade dos pais, a ideia de tudo aquilo que tinha sido a causa da doença, a sua conduta e o rompimento do noivado, passou para o segundo plano. Ela estava tão doente que era impossível pensar em até que ponto era culpada de tudo o que havia ocorrido, num momento em que ela não estava comendo, não estava dormindo, havia emagrecido visivelmente, tossia e, como o médico dava a entender, corria perigo. Era preciso pensar apenas em ajudá-la. Os médicos vinham examinar Natacha em comitiva ou individualmente, conversavam muito em francês, em alemão, em latim, criticavam uns aos outros, receitavam os remédios mais diversos, para todas as doenças que conheciam; mas não passava pela cabeça de nenhum deles a ideia tão simples de que não podiam conhecer a doença de que Natacha padecia, assim como não se pode conhecer nenhuma doença que afeta uma pessoa: cada pessoa tem as suas peculiaridades e sempre tem a sua doença própria, nova, complicada, desconhecida pela medicina, não uma doença dos pulmões, do fígado, da pele, do coração, dos nervos etc., catalogada pela medicina, mas uma doença que consiste numa das inúmeras combinações dos sofrimentos desses órgãos. Essa ideia simples não podia passar pela cabeça dos médicos (da mesma forma que não pode passar pela cabeça de um feiticeiro a ideia de que ele não pode lançar feitiços), porque o seu ofício era curar, porque era para isso que recebiam dinheiro, e porque haviam consumido os melhores anos da vida deles naquele negócio. O principal, porém, era que tal ideia não podia passar pela cabeça dos médicos porque eles viam que eram incontestavelmente úteis, e de fato eram úteis para todos os membros da família Rostóv. Eram úteis não porque obrigavam a paciente a ingerir substâncias em grande parte nocivas (o dano era pouco sensível, porque as substâncias nocivas eram dadas em quantidades pequenas), mas eles eram úteis, necessários, indispensáveis (esta é a razão por que existem e sempre existirão curandeiros imaginários, adivinhos, homeopatas e alopatas) porque satisfaziam uma necessidade moral da paciente e das pessoas que a amavam. Satisfaziam a eterna necessidade humana da esperança de um alívio, a necessidade de solidariedade e de cuidado que sente uma pessoa na hora do sofrimento. Satisfaziam a eterna necessidade humana — que se nota numa criança, do modo mais elementar — de esfregar o lugar machucado. A criança se fere e na mesma hora corre para os braços da mãe, da babá, para que beijem e esfreguem o lugar machucado, e obtém alívio, quando esfregam ou beijam o lugar machucado. A criança não acredita que pessoas mais fortes e mais sábias do que ela não tenham meios de aliviar a sua dor. A esperança de um alívio e a expressão de solidariedade na hora em que a mãe esfrega o seu galo consolam a criança. Para Natacha, os médicos eram úteis porque beijavam e esfregavam o dodói, assegurando que logo ia passar, se o cocheiro fosse à farmácia na rua Arbat e trouxesse, em troca de um rublo e setenta copeques, um pozinho e umas pílulas dentro de uma caixinha bonita, e se aquele pozinho fosse tomado pela paciente de duas em duas horas impreterivelmente, nem mais, nem menos, junto com água fervida. O que seria de Sônia, da condessa e do conde, como poderiam ficar olhando para a fraca e exaurida Natacha sem poder tomar nenhuma providência, se não existissem aquelas pílulas em horas certas, a poção morninha, os pedacinhos de frango e todas as minúcias do dia a dia prescritas pelo médico, cuja observância era uma ocupação e um consolo para as pessoas que cercavam a paciente? Quanto mais severas e complicadas eram as regras, mais consoladora era essa atividade para as pessoas próximas. Como o conde suportaria a doença da sua filha adorada, se ele não soubesse que a doença de Natacha lhe custava mil rublos e que ele não teria dó de gastar outros mil para lhe trazer algum benefício; se ele não soubesse que, caso a filha não melhorasse, ele não teria dó de gastar ainda mais mil rublos e levá-la para o exterior, onde faria novas consultas; se ele não tivesse a possibilidade de contar em detalhes como Métvier e Feller não haviam entendido a doença, mas Friese havia entendido, e Múdrov determinara a doença melhor ainda? O que faria a condessa, se de vez em quando não pudesse discutir com a enferma Natacha porque ela não estava seguindo à risca as recomendações do médico?

— Desse jeito, você nunca vai se curar — dizia, esquecendo a sua dor, graças à irritação —, se não obedecer ao médico e não tomar o remédio na hora certa! Ora, não se pode brincar com uma coisa dessas, afinal você pode até pegar uma pneumonia — dizia a condessa, e só de pronunciar aquela palavra, que nem ela mesma compreendia, a condessa já encontrava um grande consolo. O que faria Sônia, se não tivesse a alegre consciência de que nem havia trocado de roupa nas três primeiras noites, a fim de estar a postos para fazer cumprir com rigor todas as prescrições do médico, e que ainda agora não dormia à noite para não perder a hora em que era preciso dar as pílulas só um pouco nocivas que ficavam dentro de uma caixinha dourada? Até a própria Natacha, que, embora dissesse que nenhum remédio a curaria e que tudo aquilo era tolice, também para ela dava alegria ver que, por sua causa, estavam fazendo tamanho sacrifício que ela de fato precisava tomar o remédio nas horas marcadas, e lhe dava alegria até mesmo poder mostrar, ao ignorar o cumprimento das prescrições, que não acreditava na cura e que não dava valor à própria vida.

O médico vinha todo dia, tomava o pulso, examinava a língua e, sem prestar atenção no rosto abatido de Natacha, lhe dizia coisas engraçadas. Em compensação, quando saía para o outro cômodo, a condessa vinha afobada atrás dele, e o médico, tomando um ar grave e balançando a cabeça de maneira pensativa, dizia que, embora o perigo de fato existisse, ele tinha esperança no efeito daquele último remédio, e que era preciso aguardar e observar; que a doença era sobretudo moral, porém...

A condessa, tentando esconder de si e do médico aquele gesto, metia uma moeda de ouro na mão dele e toda vez, com o coração apaziguado, voltava para junto da paciente.

Os sintomas da doença de Natacha consistiam em que ela comia pouco, dormia pouco, tossia e nunca se revigorava. Os médicos diziam que não se podia deixar a doente sem ajuda médica e por isso mantiveram Natacha no ar sufocante da cidade. No verão do ano de 1812, os Rostóv não viajaram para o campo.

Apesar da grande quantidade de pílulas ingeridas, e das gotas e dos pozinhos retirados de latinhas e de cápsulas, das quais Mme Schoss, especialista em tais assuntos, fizera uma grande coleção, apesar da ausência da vida no campo a que estava habituada, a juventude fez valer sua força: a mágoa de Natacha começou a ficar encoberta pela camada das impressões da vida diária, parou de pesar no seu coração com uma dor tão torturante, começou a se tornar passado, e Natacha começou a se recuperar fisicamente.

XVII

Natacha estava mais calma, porém não mais alegre. Não só evitava todas as circunstâncias exteriores da alegria: bailes, passeios, concertos, teatros; como não ria nenhuma vez, sem que se percebessem lágrimas por trás do riso. Ela não conseguia cantar. Assim que começava a rir, ou tentava cantar sozinha, só para si, as lágrimas a sufocavam: lágrimas de remorso, lágrimas de recordações daquele tempo irrecuperável, puro; lágrimas de desgosto por ter, de modo tão gratuito, arruinado a sua vida jovem, que poderia ter sido tão feliz. O riso e o canto, especialmente, pareciam-lhe uma profanação da sua mágoa. Sobre atitudes sedutoras, ela não pensava nenhuma vez; nem precisava se reprimir. Falava e sentia que, naquele momento, todos os homens eram, para ela, absolutamente iguais ao bufão Nastássia Ivánovna. Um guardião interior vetava com rigor toda e qualquer alegria para Natacha. E nela não havia mais todos os interesses pela vida que se encontram no reservatório da juventude, despreocupado e repleto de esperanças. Com mais frequência e de modo mais dolorido que tudo, ela recordava os seus meses de outono, a caçada, o tio, a época do Natal, que ela havia passado com Nicolas, em Otrádnoie. Daria qualquer coisa para que aquele tempo voltasse, ainda que só por um dia! Porém aquilo estava acabado para sempre. Na ocasião, não a enganara o pressentimento de que aquela situação de liberdade e de disponibilidade para todas as alegrias nunca mais havia de voltar. No entanto era preciso viver.

Para ela, era agradável pensar que não era melhor, como antes pensava, mas pior, e tremendamente pior do que todos, do que todos aqueles que existem no mundo. Mas era pouco. Natacha sabia disso e se perguntava: “E agora, o que vai haver?”. Porém não havia mais nada. Não havia nenhuma alegria na vida, e no entanto a vida ia passando. Natacha, visivelmente, tentava apenas não ser um estorvo para ninguém, não incomodar ninguém, mas, para si mesma, ela não queria nada. Afastava-se de todos na casa e só com o irmão Pétia ficava à vontade. Gostava mais de ficar com ele do que com os outros; e às vezes, quando ficava a sós com Pétia, ria. Natacha quase não saía de casa e, entre as pessoas que vinham à sua casa, só se alegrava com Pierre. Era impossível ser mais terno, cuidadoso e ao mesmo tempo mais sério, ao se dirigir a ela, do que o conde Bezúkhov. Sem se dar conta, Natacha sentia aquela ternura no trato e por isso encontrava um grande prazer na companhia de Pierre. Mas nem se sentia grata a ele por essa ternura: nada de bom da parte de Pierre lhe parecia exigir esforço. Para Pierre, pelo visto, era tão natural ser bom com todos que não havia nenhum mérito na sua bondade. Às vezes Natacha percebia um embaraço e um constrangimento de Pierre, quando na sua presença, em especial quando ele desejava lhe fazer algo agradável, ou quando ele temia que algo na conversa fosse despertar recordações penosas em Natacha. Ela percebia isso e o atribuía à sua bondade geral e à sua timidez, que a seu ver era a mesma que ele devia mostrar diante de todos. Após aquelas palavras desprevenidas, quando Pierre declarou que, se fosse um homem livre ficaria de joelhos e pediria a sua mão e o seu amor, pronunciadas num momento de tão forte emoção para ela, Pierre nunca mais falou dos seus sentimentos; e para Natacha era evidente que tais palavras, tão consoladoras para ela naquele momento, foram ditas como se dizem quaisquer despropósitos destinados a consolar uma criança que está chorando. Não porque Pierre fosse um homem casado, mas porque Natacha sentia, entre ela e ele, no mais alto grau, a força das barreiras morais — cuja ausência ela sentia com Kuráguin —, nunca lhe passaria pela cabeça que das suas relações com Pierre pudesse nascer não só um amor da sua parte, ou, menos ainda, da parte dele, como tampouco aquela espécie de amizade delicada, consciente e poética, entre um homem e uma mulher, da qual Natacha conhecia alguns exemplos.

No fim do jejum de São Pedro,62 Agrafiéna Ivánovna Belova, vizinha dos Rostóv em Otrádnoie, chegou a Moscou para rezar nos santuários moscovitas. Sugeriu a Natacha que jejuasse, e ela, com alegria, aferrou-se a essa ideia. Apesar da proibição médica de sair de manhã cedo, Natacha insistia em jejuar e preparar-se para a comunhão, e não como costumavam fazer na casa dos Rostóv, ou seja, assistindo a três missas em casa, mas como fazia Agrafiéna Ivánovna, ou seja, uma semana inteira, sem perder nem uma vez as vésperas, as matinas ou qualquer missa.

Aquele fervor de Natacha agradou à condessa; no fundo, depois do tratamento médico malsucedido, ela esperava que a oração a ajudasse mais do que os remédios e, embora com receio e às escondidas do médico, concordava com o desejo de Natacha e a confiava aos cuidados de Belova. Às três horas da madrugada, Agrafiéna Ivánovna vinha acordar Natacha e em geral já não a encontrava dormindo. Natacha temia perder a hora das matinas. Lavando-se às pressas e vestindo-se modestamente com o mais feio dos seus vestidos e com uma mantilha bem velha, estremecendo com a friagem, Natacha saía pelas ruas vazias, iluminadas pela luz cristalina da alvorada. Por conselho de Agrafiéna Ivánovna, Natacha se preparava para a comunhão não na sua paróquia, e sim na igreja em que, segundo as palavras da devota Belova, havia um sacerdote de vida mais rigorosa e elevada. Na igreja, havia sempre pouca gente; Natacha e Belova ficavam no seu lugar de costume, diante do ícone da Mãe de Deus, embutido atrás do coro esquerdo, e um sentimento novo para Natacha, de humildade diante de algo grande e incompreensível, a dominava quando, naquele horário incomum da manhã, olhando para o rosto escuro da Mãe de Deus iluminado por velas que ardiam logo abaixo e pela luz da manhã que descia da janela, Natacha escutava os sons da missa, que ela tentava acompanhar e compreender. Quando compreendia, o seu sentimento pessoal, com todos os matizes, fundia-se com a reza; quando não compreendia, dava-lhe ainda mais prazer pensar que o desejo de compreender tudo é orgulho, que é impossível compreender tudo, que basta apenas acreditar e entregar-se a Deus, que naquele momento — ela sentia — dominava a sua alma. Natacha fazia o sinal da cruz, curvava-se e, quando não compreendia, horrorizando-se com a própria baixeza, pedia a Deus que a perdoasse por tudo, tudo, e que tivesse misericórdia. As orações que ela mais repetia eram orações de arrependimento. Ao voltar para casa na primeira hora da manhã, quando só se cruzava com os pedreiros que iam a pé para o trabalho, com os porteiros que varriam as ruas, e quando dentro das casas todos ainda dormiam, Natacha experimentava o sentimento, novo para ela, da possibilidade de corrigir os seus defeitos, da possibilidade de uma vida nova, pura, e da felicidade.

Durante toda a semana em que viveu assim, aquele sentimento cresceu a cada dia. E a felicidade de comungar, ou de comunicar, como lhe dizia Agrafiéna Ivánovna, jogando com aquela palavra, lhe parecia tão grande que Natacha tinha a impressão de que não ia sobreviver àquele domingo abençoado.

Mas chegou o dia feliz, e quando Natacha, naquele domingo memorável para ela, num vestido branco de musselina, voltou para o seu lugar após o sacramento, pela primeira vez depois de muitos meses, sentiu-se tranquila, e não oprimida pela vida que se apresentava à sua frente.

Naquele dia, quando o médico chegou e examinou Natacha, mandou que continuasse a tomar os últimos pozinhos que ele havia receitado duas semanas antes.

— É imprescindível continuar, de manhã e de noite — disse ele, sinceramente satisfeito, era evidente, com o seu sucesso. — Apenas, por favor, com mais pontualidade. Fique tranquila, condessa — disse o médico em tom de gracejo, enquanto apanhava habilmente a moeda de ouro na palma da mão. — Em breve, ela estará cantando e se divertindo outra vez. O último remédio lhe fez muito, muito bem. Ela ficou muito mais animada.

A condessa olhou para os pezinhos e cuspiu,63 enquanto voltava para a sala com o rosto alegre.

XVIII

No início de julho, em Moscou, corriam rumores cada vez mais inquietantes a respeito do rumo da guerra: falavam sobre uma proclamação do soberano ao povo, sobre a vinda do próprio soberano para Moscou. E, como até o dia 11 de julho não haviam recebido um manifesto nem uma proclamação, corriam rumores exagerados sobre eles e sobre a situação da Rússia. Diziam que o soberano vinha embora porque o exército estava em perigo, diziam que Smolensk se rendera, que Napoleão tinha um milhão de soldados e que só um milagre poderia salvar a Rússia.

No dia 11 de julho, sábado, o manifesto foi recebido, mas ainda não tinha sido publicado; e Pierre, que estava na casa dos Rostóv, prometeu vir almoçar no dia seguinte, um domingo, e trazer o manifesto e a proclamação, que ele iria obter com o conde Rostoptchin.64

Naquele domingo, os Rostóv, como de costume, foram à missa na igreja particular dos Razumóvski. Era um dia quente de julho. Já às dez horas, quando os Rostóv desceram da carruagem na frente da igreja, no ar quente, nos gritos dos vendedores, nas claras e radiantes roupas de verão da multidão, nas folhas poeirentas das árvores do bulevar, nos sons da música e nas calças brancas de um batalhão que se dirigia à parada, no estrondo das rodas sobre as pedras do calçamento e no brilho radioso do sol quente, havia aquela languidez do verão que ocorre de modo agradável e desagradável e se faz sentir de maneira especialmente aguda num dia claro e quente, numa cidade. Na igreja dos Razumóvski, estava toda a nobreza de Moscou, todos conhecidos dos Rostóv (naquele ano, como que à espera de alguma coisa, muitas famílias ricas, que costumavam ir para o campo, haviam permanecido na cidade). Enquanto caminhava ao lado da mãe, atrás de um lacaio de libré que afastava a multidão, Natacha ouviu a voz de um jovem, que falou a respeito dela, num sussurro demasiado alto:

— Essa é a Rostova, a própria...

— Como emagreceu, mesmo assim está bonita!

Ela ouviu, ou lhe pareceu que foram mencionados, os nomes de Kuráguin e de Bolkónski. De resto, Natacha sempre tinha essa impressão. Sempre tinha a impressão de que todos, quando olhavam para ela, só pensavam no que havia ocorrido. Sofrendo e com a alma desfalecida, como sempre lhe acontecia no meio da multidão, Natacha, no seu vestido lilás, de seda, com rendas pretas, andava do jeito como as mulheres sabem andar — de modo tanto mais sereno e imponente quanto mais sofrida e envergonhada ela estiver, no fundo. Natacha sabia, e não se enganava, que era bonita, mas agora isso não a alegrava como antes. Ao contrário, atormentava-a mais do que tudo, ultimamente, e ainda mais naquele dia claro e quente de verão, na cidade. “Mais um domingo, mais uma semana”, dizia consigo, lembrando como estivera ali no outro domingo, “e sempre esta mesma vida sem vida, e sempre as mesmas circunstâncias em que antes era tão fácil viver. Sou bonita, jovem, e sei que agora sou boa, antes era má, mas agora sou boa, eu sei”, pensava ela, “mas passar os melhores anos da vida assim, tão em vão, sem proveito para ninguém.” Estava parada ao lado da mãe e cumprimentou com um aceno de cabeça os conhecidos que se achavam mais próximos. Natacha, por costume, observou a roupa das damas, reprovou a tenue 65 de uma dama que estava ali perto e o seu modo inconveniente de fazer o sinal da cruz com movimentos muito curtos da mão, de novo pensou com desgosto que estariam também julgando a ela, e de repente, ao ouvir os sons da missa, horrorizou-se com a sua baixeza, horrorizou-se ao ver que perdera de novo a pureza de antes.

Um velhinho de boa aparência, tranquilo, celebrava a missa com aquela solenidade dócil que tinha um efeito tão majestoso e apaziguador na alma dos fiéis. As portas do santuário principal estavam fechadas, lentamente o cortinado foi aberto; de lá, veio uma voz baixa e misteriosa. Lágrimas inexplicáveis para ela mesma acumularam-se no peito de Natacha, e um sentimento alegre e duradouro a comoveu.

“Ensine-me o que devo fazer, como devo me corrigir, para sempre, para sempre, como devo conduzir a minha vida...”, pensava.

O diácono foi para o estrado diante do santuário principal, abriu bastante o polegar para arrumar os cabelos compridos que tinham ficado por baixo da sobrepeliz, colocou uma cruz sobre o peito e passou a ler as palavras de uma oração em voz alta e solene:

— “Em paz, oremos ao Senhor.”

“Em paz — todos juntos sem diferenças de classe, sem inimigos, mas unidos pelo amor fraternal — vamos rezar”, pensou Natacha.

— “Pela paz nas alturas e pela salvação da nossa alma!”

“Pelo mundo dos anjos e pela alma de todos os seres imateriais, que vivem acima de nós”, rezou Natacha.

Quando rezaram pelas tropas, Natacha lembrou-se do irmão e de Deníssov. Quando rezaram pelos que viajavam na água ou na terra, lembrou-se do príncipe Andrei e rezou por ele, e rezou para que Deus a perdoasse pelo mal que lhe havia feito. Quando rezaram por aqueles que nos amam, ela rezou pelas pessoas da família, o pai, a mãe, Sônia, entendendo agora pela primeira vez toda a sua culpa em relação a eles, e sentiu todo o peso do seu amor por eles. Quando rezaram por aqueles que nos odeiam, ela inventou inimigos e pessoas que a odiassem, para poder rezar por elas. Natacha incluiu nos inimigos os credores e todos aqueles que tinham negócios com o seu pai e, toda vez que lhe vinha a ideia de inimigos e daqueles que nos odeiam, lembrava-se de Anatole, que lhe havia feito tanto mal, e, embora ele não fosse alguém que a odiasse, ela o perdoava com alegria, como a um inimigo. Só durante as orações Natacha se sentia capaz de recordar com clareza e alegria o príncipe Andrei e Anatole como pessoas pelas quais os seus sentimentos não eram nada, em comparação com o seu sentimento de temor e de veneração por Deus. Quando rezaram pela família do tsar e pelo Sínodo, ela se curvou de modo especialmente acentuado e fez o sinal da cruz, dizendo a si mesma que, se ela não compreendia, também não podia duvidar e, apesar de tudo, amava o Sínodo governante e rezava por ele.

Terminada a litania, o diácono cruzou a estola sobre o peito e declarou:

— “Entreguemos nosso ser e nossa vida a Cristo nosso Deus.”

“Eu me entrego a Deus”, repetiu Natacha, em sua alma. “Meu Deus, eu me entrego à Sua vontade”, pensou. “Não quero nada, não desejo nada; me ensine o que devo fazer, onde empregar a minha vontade! Deus, me tome, me tome!”, disse Natacha, com uma ansiedade comovida, sem fazer o sinal da cruz, com os braços finos para baixo, como se esperasse que dali a pouco uma força invisível fosse arrebatá-la e redimi-la de si mesma, das suas mágoas, dos seus desejos, dos seus remorsos, das suas esperanças e faltas.

Várias vezes durante a missa, a condessa se virava e olhava para o rosto comovido e de olhos brilhantes da filha e rezava a Deus para que a ajudasse.

Inesperadamente, no meio da missa e fora da ordem correta do ofício, que Natacha conhecia muito bem, o sacristão trouxe um banquinho, o mesmo em que rezavam de joelhos a oração do Pentecostes, e colocou-o à frente do santuário principal. O sacerdote veio na sua sotaina de veludo lilás, ajeitou os cabelos e, com esforço, ficou de joelhos. Todos fizeram o mesmo e, com espanto, olharam uns para os outros. Era uma oração recém-enviada pelo Sínodo, uma oração pela salvação da Rússia em face da invasão do inimigo.

— “Senhor Deus Todo-Poderoso, Deus da nossa salvação” — começou o sacerdote, com a voz clara, sem grandiloquência e dócil, com que só os recitadores religiosos eslavos sabem ler e que produz um efeito tão irresistível no coração russo. — “Senhor Deus Todo-Poderoso, Deus da nossa salvação! Tem hoje misericórdia e benevolência com Teu povo obediente, e escuta o seu apelo com compaixão, poupa-nos e nos perdoa. O inimigo espalha a confusão na Tua terra e quer transformar todo o mundo num deserto, insurgindo-se contra nós; essa gente sem lei se reuniu para destruir as Tuas propriedades, devastar a Tua pura Jerusalém, a Tua amada Rússia: os Teus templos sagrados, demolir os altares e profanar os nossos santuários. Até quando, Senhor, até quando os pecadores serão louvados? Até quando vão exercer o seu poder criminoso?

“Senhor Todo-Poderoso! Escuta a nós, os que rezamos ao Senhor: com a Tua força, dá respaldo ao nosso grande soberano, monarca honradíssimo, o nosso imperador Alexandre Pávlovitch; tem em mente a sua honestidade e a sua tolerância, trata-o com a mesma bondade com que ele trata a nós, a Tua adorada Israel. Abençoa os conselhos dele, bem como suas realizações e negócios; ampara com a Tua todo-poderosa mão direita o seu reino e lhe concede a vitória sobre o inimigo, assim como a vitória de Moisés sobre Amaleque, de Gedeão sobre Madian e de Davi sobre Golias. Protege as suas tropas; põe um arco de cobre em torno dos músculos daqueles que, em Teu nome, se ergueram em armas e cinge-os com força no campo de batalha. Ergue a lança e o escudo e Te levanta em nossa defesa, humilha e confunde aqueles que nos querem fazer mal, que eles fiquem frente a frente com o rosto das tropas fiéis a Ti como a poeira em frente ao rosto do vento, e que o Teu anjo forte os humilhe e os ponha em debandada; que uma rede tolha os seus movimentos, sem que eles saibam disso, e que as suas tramas, sem que percebam, se voltem contra eles; e que eles tombem aos pés dos Teus servos e que sejam lançados por terra pelas nossas tropas. Senhor! A Ti cabe salvar os grandes e os pequenos; Tu és Deus, o homem não prevalece contra Ti.

“Deus dos nossos pais! Lembra-te da Tua generosidade e da Tua misericórdia, de tantos séculos; não desvies o Teu rosto de nós, sê benevolente com nossas faltas, tem compaixão de nós e, na Tua grande misericórdia e em Tuas muitas graças, perdoa nossas faltas e pecados. Edifica dentro de nós um coração puro e renova uma alma justa em nosso ser; revigora em todos nós a fé em Ti, robustece a esperança, inspira a sinceridade de uns com os outros, arma-nos com a unidade de espírito na sagrada defesa da herança que deste a nós e a nossos pais, e que o cetro dos ímpios não se erga sobre aqueles que Tu abençoaste.

“Deus nosso Senhor, em quem acreditamos e em quem confiamos, não nos cubras de infâmia na expectativa da Tua misericórdia e nos dá um sinal da Tua bênção, para que aqueles que nos odeiam e odeiam a nossa fé ortodoxa vejam, cubram-se de vergonha e sejam aniquilados; e para que também todos os países vejam e saibam que o Teu nome é o do Senhor e que nós somos o Teu povo. Mostra-nos a Tua misericórdia hoje, Senhor, e nos dá a Tua salvação; dá ânimo ao coração de Teus servos, em Tua misericórdia; destrói os nossos inimigos e os esmaga sem demora sob os pés dos que são fiéis a Ti. Pois Tu és o esteio, a proteção e a vitória dos que em Ti confiam, e a Ti damos glória, ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, hoje e por todos os séculos dos séculos. Amém.”

No estado de abertura espiritual em que Natacha se encontrava, aquela oração produziu um forte efeito. Escutou cada palavra acerca da vitória de Moisés sobre Amaleque, de Gedeão sobre Madian, de Davi sobre Golias, e sobre a devastação da Tua Jerusalém e rogou a Deus, com a ternura e a brandura que enchiam o seu coração; mas não entendeu muito bem o que estava pedindo a Deus, naquela oração. Com toda a alma, ela compartilhava dos rogos pelo espírito de justiça, pelo revigoramento do coração por meio da fé e da esperança, e também para que Deus os animasse com o amor. Mas Natacha não conseguia rezar pelo esmagamento dos inimigos sob os seus pés, quando poucos minutos antes ela havia desejado ter mais inimigos, a fim de amá-los e perdoá-los. No entanto ela também não podia duvidar de uma oração feita de joelhos. Experimentava no fundo da alma um horror devoto e trêmulo perante o castigo que alcança as pessoas por causa dos seus pecados, e pensava sobretudo nos seus próprios pecados, e assim pedia a Deus que perdoasse a todos e a ela também, e que desse a todos eles e a ela também a paz e a felicidade na vida. E lhe pareceu que Deus escutou a sua prece.

XIX

Desde o dia em que, ao sair da casa dos Rostóv com a lembrança do olhar agradecido de Natacha, Pierre viu o cometa que estava parado no céu e sentiu que algo novo se revelava para ele, a questão que o atormentava sem cessar, sobre a vaidade e a insensatez de tudo o que é terreno, deixou de se manifestar no seu pensamento. Aquela questão terrível: Por quê? Para quê?, que antes se apresentava no centro de toda e qualquer atividade, agora tinha sido substituída não por uma outra questão, nem por alguma resposta à questão anterior, mas pelo conceito dela. Quando Pierre ouvia uma conversa trivial ou participava ele mesmo da conversa, quando lia ou reconhecia alguma baixeza ou estupidez humana, já não se horrorizava como antes; não se perguntava o que estimulava tanto as pessoas, quando tudo é efêmero e desconhecido, mas lembrava-se dela, na aparência com que a tinha visto na última vez, e todas as suas dúvidas desapareciam, não porque ela respondesse às questões que se apresentavam a ele, mas porque o seu conceito sobre ela o transportava instantaneamente para um domínio diferente, luminoso, de atividade espiritual, em que não podia haver justos nem culpados, um reino de beleza e de amor, para o qual viver era o bastante. Qualquer que fosse a miséria terrena que surgia à sua frente, Pierre dizia para si:

“O que importa se fulano roubou o Estado ou o tsar, e se o Estado e o tsar lhe concedem honrarias; ontem ela sorriu para mim e me pediu que voltasse, e eu a amo, e ninguém vai saber disso nunca”, pensava ele.

Pierre continuava a frequentar a sociedade, continuava a beber muito e levava a mesma vida ociosa e dissipada, porque, além das horas que passava na casa dos Rostóv, era preciso passar de algum modo as horas restantes, e os hábitos e os conhecidos que tinha feito em Moscou atraíam-no de modo inexorável para aquela vida, que o aprisionava. Porém, ultimamente, quando rumores cada vez mais alarmantes chegavam do teatro de guerra e quando a saúde de Natacha começava a melhorar e ela havia parado de inspirar nele o antigo sentimento de piedade sóbria, Pierre passou a ser dominado cada vez mais por uma inquietação que ele não compreendia. Sentia que a situação em que estava não podia se prolongar muito tempo, que estava à beira de acontecer uma catástrofe, a qual havia de transformar toda a sua vida, e com impaciência procurava em toda parte sinais dessa catástrofe iminente. Um dos irmãos maçons revelou para Pierre a seguinte profecia relativa a Napoleão, extraída do Apocalipse de São João:

No Apocalipse, capítulo 13, versículo 18, está dito: “Aqui está a sabedoria: quem tiver inteligência que calcule o número da besta: o número é de homem e o seu número é 666”.

E, no mesmo capítulo, no versículo 5: “E lhe foi dada uma boca que fala arrogâncias e blasfêmias; e lhe foi dada autoridade para dominar quarenta e dois meses”.

As letras francesas, transpostas para a representação numérica do alfabeto hebraico, no qual as dez primeiras letras representam as unidades e as outras, as dezenas, davam o seguinte significado:

 

a

b

c

d

e

f

g

h

i

k

l

m

n

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

20

30

40


o

p

q

r

s

t

u

v

w

x

y

z

50

60

70

80

90

100

110

120

130

140

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Ao escrever, com esse alfabeto de cifras, l’empereur Napoléon,66 o resultado da soma desses números dava 666, e por isso Napoleão era a besta prevista no Apocalipse. Além disso, ao escrever com o mesmo alfabeto as palavras “quarante-deux”,67 ou seja, o prazo estabelecido para que a besta proferisse arrogâncias e blasfêmias, a soma dos números que representavam quarante-deux dava de novo exatamente 666, do que se concluía que o prazo do poder de Napoleão terminava no ano de 1812, no qual o imperador francês faria quarenta e dois anos de idade. Essa profecia impressionou muito Pierre e ele muitas vezes se perguntava o que poria um termo no poder da besta, ou seja, de Napoleão, e com base nessa mesma representação de palavras por meio de números e de cálculos, tentava encontrar uma resposta para a questão que o preocupava. Em resposta a tal questão, Pierre escreveu: L’empereur Alexandre? La nation russe? Contou as letras, mas a soma dos números dava muito mais ou muito menos do que 666. Certa vez, envolvido com tais cálculos, escreveu o próprio nome — comte Pierre Besouhoff; a soma dos números também deu um resultado muito diferente. Ele mudou a grafia, pôs “z” em lugar de “s”, acrescentou “de”, acrescentou o artigo “le”, e mesmo assim não chegou ao resultado desejado. Então lhe veio à cabeça que, se a resposta para a questão estivesse contida no seu nome, seria necessário mencionar a sua nacionalidade. Escreveu le Russe Besuhof e, contando os números, obteve 671. Só 5 a mais; 5 significava “e”, o mesmo “e” que fora omitido no artigo antes das palavras “l’empereur”. Ao retirar exatamente essa letra “e”, apesar de ficar incorreto, Pierre obtinha a resposta desejada: l’Russe Besuhof, exatamente 666. Essa descoberta o perturbou. Como, de que forma ele estaria ligado aos acontecimentos grandiosos previstos no Apocalipse, isso ele não sabia; mas nem por um minuto pôs em dúvida essa ligação. O seu amor pela Rostova, o Anticristo, a invasão de Napoleão, o cometa, o 666, l’empereur Napoléon e l’Russe Besuhof — tudo isso junto tinha de amadurecer, explodir e resgatá-lo daquele mundo enfeitiçado, insignificante, dos hábitos moscovitas, do qual ele se sentia prisioneiro, e conduzi-lo para uma proeza grandiosa e para uma felicidade grandiosa.

Pierre, na véspera do domingo em que leram a prece do Sínodo, prometera aos Rostóv obter do conde Rostoptchin, com quem ele tinha boas relações, a proclamação à Rússia e as últimas notícias do Exército, e levá-las à casa deles. Pela manhã, ao ir à casa do conde Rostoptchin, Pierre encontrou lá um mensageiro que acabara de chegar do Exército.

Esse mensageiro era seu conhecido, um dos dançarinos dos bailes de Moscou.

— Pelo amor de Deus, será que não pode me ajudar? — perguntou para Pierre. — Tenho de entregar uma porção de cartas para os parentes.

Entre aquelas cartas, havia uma de Nikolai Rostóv para o pai. Pierre pegou a carta. Além disso, o conde Rostoptchin deu a Pierre a proclamação do soberano dirigida a Moscou, recém-impressa, as últimas ordens para o Exército e o último boletim ao povo de Moscou feito por Rostoptchin. Ao examinar as ordens para o Exército, Pierre encontrou numa delas, entre as notificações de feridos, mortos e condecorados, o nome de Nikolai Rostóv, condecorado com a Cruz de São Jorge de quarta classe, por ato de bravura na batalha de Ostrovna, e na mesma ordem estava a nomeação do conde Bolkónski para o comando de um regimento de caçadores. Embora ele não sentisse vontade de lembrar aos Rostóv o nome de Bolkónski, Pierre não conseguiu conter seu desejo de alegrá-los com a notícia da condecoração do filho e, guardando consigo a proclamação, o boletim e outras ordens, para levá-las em pessoa na hora do jantar, enviou de imediato para a casa dos Rostóv a ordem impressa e a carta de Nikolai.

A conversa com o conde Rostoptchin, o seu tom de preocupação e de pressa, o encontro com o mensageiro, que falou descuidadamente sobre como as coisas andavam mal no Exército, os rumores sobre espiões descobertos em Moscou, sobre um documento que circulava por Moscou no qual se comprovava que Napoleão prometera tomar as duas capitais russas até o outono, as conversas sobre a chegada do soberano no dia seguinte — tudo isso despertou em Pierre, outra vez e com força renovada, o sentimento de comoção e de expectativa que não o abandonara desde o tempo da aparição do cometa e, em especial, desde o início da guerra.

Fazia muito tempo que Pierre pensava em ingressar no serviço militar, e teria feito isso se não o tolhesse, em primeiro lugar, o fato de pertencer à sociedade maçônica, à qual estava preso por um juramento e que preconizava a paz eterna e a abolição da guerra, e, em segundo lugar, o fato de ele, por alguma razão, ao ver a grande quantidade de moscovitas que vestiam uniformes e preconizavam o patriotismo, sentir vergonha de dar tal passo. O motivo principal pelo qual Pierre não levou adiante sua intenção de entrar no Exército se encontrava na ideia obscura de que ele era l’Russe Besuhof, cujo significado era o número da besta 666, a ideia de que a sua participação na grande tarefa de pôr um termo ao poder da besta que proferia arrogâncias e blasfêmias estava definida desde a eternidade, e que por isso ele não devia assumir nenhuma responsabilidade e esperar aquilo que havia de acontecer.

XX

Na casa dos Rostóv, como sempre ocorria aos domingos, jantavam algumas pessoas mais próximas da família.

Pierre chegou mais cedo a fim de encontrá-los sozinhos.

Ele havia engordado tanto naquele ano que estaria monstruoso, se não tivesse estatura tão elevada, ombros tão robustos e se não fosse tão forte que parecia carregar com facilidade a sua corpulência.

Subiu a escada ofegante e murmurando algo para si. O seu cocheiro já nem perguntava mais se devia esperá-lo. Sabia que, quando o conde estava na casa dos Rostóv, ali ficava até a meia-noite. Os lacaios dos Rostóv precipitavam-se alegremente para segurar sua capa, receber sua bengala e seu chapéu. Pierre, por um hábito de frequentador de clubes, deixava o chapéu e a bengala no vestíbulo.

A primeira pessoa que avistou na casa dos Rostóv foi Natacha. Ainda antes de ver Natacha, na hora em que despia a capa no vestíbulo, ele a ouviu. Ela estava cantando um solfejo no salão. Pierre sabia que Natacha não cantava desde o tempo da sua enfermidade e por isso o som da sua voz o surpreendeu e o alegrou. Ele abriu a porta sem fazer barulho e viu Natacha no seu vestido lilás, o mesmo que ela havia usado na missa, andando pela sala e cantando. Ela já havia passado pela porta quando ele a abriu, mas quando Natacha se voltou de modo brusco e avistou o seu rosto gordo e admirado, ruborizou-se e veio depressa na direção de Pierre.

— Eu quero tentar cantar outra vez — disse ela. — Apesar de tudo, é uma ocupação — acrescentou, como se pedisse desculpa.

— E muito boa.

— Como estou contente que o senhor tenha vindo! Estou tão feliz hoje! — disse, com aquela animação de antes, que fazia muito Pierre não via em Natacha. — O senhor sabia, Nicolas recebeu a Cruz de São Jorge. Estou tão orgulhosa dele.

— Como não sabia?, fui eu mesmo que mandei trazerem essa ordem para cá. Bem, não quero atrapalhar a senhora — acrescentou e fez menção de seguir para a sala de visitas. Natacha o deteve.

— Conde, o que acha, é ruim que eu cante? — perguntou, ruborizada, mas sem baixar os olhos, fitando Pierre com ar interrogativo.

— Não... Por que seria? Ao contrário... Mas por que a senhora me pergunta?

— Nem eu mesma sei — respondeu Natacha depressa. — Mas não quero fazer nada que não agrade ao senhor. Confio no senhor em tudo. O senhor não sabe como é importante para mim e quanto fez por mim!... — falou depressa e não notou como Pierre se ruborizava ao ouvir aquelas palavras. — Na mesma ordem, eu vi o nome dele, Bolkónski (pronunciou o nome rápido, num sussurro), ele está na Rússia e está servindo no Exército outra vez. O que o senhor acha — falou rápido, obviamente apressando-se porque temia não ter forças para dizer —, será que ele vai me perdoar algum dia? Não vai ficar com um mau sentimento em relação a mim? O que o senhor acha? O que o senhor acha?

— Acho... — disse Pierre. — Ele não tem nada o que perdoar... Se eu estivesse no lugar dele... — No entanto, por uma associação de recordações, Pierre foi instantaneamente transportado, em imaginação, para o momento em que lhe dissera, para a consolar, que, se ele não fosse quem era, mas sim o melhor homem do mundo, e se fosse livre, ficaria de joelhos e pediria a mão dela, e o mesmo sentimento de pena, de ternura, de amor, dominou-o e aquelas mesmas palavras já estavam na sua boca. Porém Natacha não lhe deu tempo de dizê-las.

— Mas o senhor, o senhor — disse Natacha, pronunciando a palavra “senhor” com entusiasmo —, o senhor é diferente. É o mais bondoso, o mais generoso, eu não conheço um homem melhor do que o senhor, nem pode existir. Se não fosse o senhor naquela vez, eu hoje nem sei o que seria de mim, porque... — De repente, lágrimas correram dos seus olhos; ela se virou, levantou a partitura na direção dos olhos, começou a cantar e voltou a andar pelo salão.

Nesse momento, Pétia entrou na sala de visitas.

Agora Pétia era um bonito menino ruivo de quinze anos, com lábios vermelhos e fartos, iguais aos de Natacha. Estava se preparando para ingressar na universidade, mas ultimamente, junto com o seu camarada Obolénski, resolvera em segredo que ia entrar para os hussardos.

Pétia avançou de um pulo na direção do seu xará, a fim de conversar sobre um assunto sério.

Pediu a ele que procurasse saber se iriam aceitá-lo nos hussardos.

Pierre estava andando pela sala de visitas, sem escutar Pétia.

Pétia puxou-o pela mão, para chamar a sua atenção.

— Puxa, o que acha da minha ideia, Piotr Kirílitch? Pelo amor de Deus! O senhor é a minha única esperança — disse Pétia.

— Ah, sim, a sua ideia. Para os hussardos? Vou falar, vou falar. Vou falar tudo hoje mesmo.

— E então, mon cher, e então, trouxe o manifesto? — perguntou o velho conde. — E a condessinha esteve na missa na casa dos Razumóvski e ouviu uma nova prece. Muito bonita, ela achou.

— Eu trouxe, sim — respondeu Pierre. — O soberano vai chegar amanhã... Vai haver uma reunião extraordinária da corte e, pelo que dizem, vão convocar dez homens em cada mil. Mas deixe-me lhe dar os parabéns.

— Sim, sim, graças a Deus. Mas e do Exército, quais são as novidades?

— Os nossos recuaram outra vez. Dizem que já estão perto de Smolensk — respondeu Pierre.

— Meu Deus, meu Deus! — disse o conde. — Onde está o manifesto?

— A proclamação! Ah, sim! — Pierre procurou o papel nos bolsos e não conseguiu encontrar. Enquanto continuava a revirar os bolsos, beijou a mão da condessa, que havia entrado, e olhava à sua volta com ar inquieto, pelo visto à espera de Natacha, que não estava mais cantando, mas não tinha vindo para a sala de visitas.

— Puxa, não sei onde foi que enfiei — disse ele.

— Vejam só, sempre perde tudo — disse a condessa.

Natacha entrou com o rosto enternecido, comovido, e sentou-se em silêncio, olhando para Pierre. Assim que ela entrou na sala, o rosto de Pierre, até então apagado, iluminou-se, e ele, enquanto continuava a procurar o documento, voltou os olhos para ela várias vezes.

— Puxa, vou buscar, esqueci em casa. Vou agora mesmo...

— Mas vai se atrasar para o jantar.

— Ah, e o cocheiro já foi embora.

Mas Sônia, que tinha ido ao vestíbulo procurar o documento, encontrou-o dentro do chapéu de Pierre, onde ele o havia guardado cuidadosamente por trás do forro. Pierre fez menção de ler o documento.

— Não, depois do jantar — disse o velho conde, obviamente prevendo uma grande satisfação com aquela leitura.

Durante o jantar, no qual beberam champanhe à saúde do novo cavaleiro da Ordem de São Jorge, Chinchin contou as novidades da cidade, falou da doença da velha princesa georgiana, contou que Métvier havia desaparecido de Moscou e que tinham enviado um certo alemão para Rostoptchin, e o acusaram de ser um champignon (assim dizia o próprio conde Rostoptchin, em vez de chpion),68 e que o conde Rostoptchin mandara soltar o champignon e dissera ao povo que não era nenhum champignon francês, mas apenas um velho cogumelo alemão.

— Estão prendendo, estão prendendo — disse o conde. — Tenho dito para a condessa que se deve falar menos em francês. Agora não é hora.

— E já souberam? — disse Chinchin. — O príncipe Golítsin contratou um professor para lhe ensinar russo...69 Il commence à devenir dangereux de parler français dans le rues.70

— Mas, então, conde Piotr Kirílitch, se convocarem as milícias, o senhor também terá de montar um cavalo? — perguntou o velho conde, voltando-se para Pierre.

Pierre ficou calado e pensativo durante todo o tempo do jantar. Àquele comentário, olhou para o conde como se não o compreendesse.

— Sim, sim, para a guerra — disse ele. — Não! Que guerreiro sou eu? De resto, tudo é tão estranho, tão estranho! E nem eu mesmo compreendo. Não sei, e estou tão distante dos gostos militares, mas nos tempos atuais ninguém pode responder por si mesmo.

Depois do jantar, o conde sentou-se tranquilamente numa poltrona e, com o rosto sério, pediu a Sônia, famosa pelo talento para a leitura, que lesse.

— “À nossa Moscou, primeira capital do trono.

“O inimigo penetrou nas fronteiras russas com grandes forças militares. Ele vem destruir a nossa pátria adorada” — leu Sônia com cuidado, na sua voz fininha. O conde escutava de olhos fechados, com suspiros entrecortados em certas passagens.

Natacha estava sentada com o corpo esticado, atenta e fitando ora o pai, ora Pierre.

Pierre sentia sobre si o olhar de Natacha e fazia força para não se virar na sua direção. A condessa balançava a cabeça com ar de desaprovação e aborrecimento a cada expressão solene do manifesto. Em todas aquelas palavras, ela só via que os perigos que ameaçavam o seu filho não iam terminar tão cedo. Chinchin, com um sorriso zombeteiro na boca, obviamente se preparava para dizer gracejos: sobre a leitura de Sônia, sobre aquilo que o conde tinha dito, até sobre a própria proclamação, se não surgisse algum pretexto melhor.

Ao ler a respeito dos perigos que ameaçavam a Rússia, das esperanças que o soberano depositava em Moscou e, em especial, na gloriosa nobreza, Sônia, com a voz trêmula, que lhe vinha sobretudo por causa da atenção com que a escutavam, leu as últimas palavras: “Em pouco tempo estaremos junto ao nosso povo, nessa capital e em outros locais do nosso país, para consultar e guiar todas as nossas milícias, tanto as que hoje barram o caminho do inimigo como as novas que vão se formar para derrotá-lo onde quer que ele apareça. Que a ruína que o inimigo deseja lançar sobre nós recaia sobre a sua própria cabeça e que a Europa libertada da escravidão glorifique o nome da Rússia!”.

— É isso mesmo, muito bem! — gritou o conde, abrindo os olhos molhados e fungando o nariz várias vezes, como se tivessem levado um frasco de sal e vinagre às suas narinas. — Pode dizer ao soberano que todos nós vamos nos sacrificar e não vamos poupar nada.

Chinchin ainda não havia tido tempo de dizer um gracejo que já preparara a respeito do patriotismo do conde, quando Natacha se levantou de um salto e se aproximou do pai.

— Que encanto, esse papai! — exclamou ela, enquanto o beijava, e outra vez voltou os olhos para Pierre, com aquele jeito de sedução inconsciente, que Natacha havia recuperado, junto com a sua animação.

— Ora vejam, mas que patriota! — disse Chinchin.

— Não sou patriota, eu apenas... — retrucou Natacha, ofendida. — O senhor faz gracejos com tudo, mas isso não tem graça nenhuma...

— Ora, o que tem de mais os gracejos! — exclamou o conde. — Deixe que ele diga o seu gracejo, nós não vamos nos importar... Afinal, não somos alemães...

— Mas os senhores perceberam — disse Pierre — que está dito: “Para consultar”.

— Ora, seja lá para o que for...

Nessa altura, Pétia, em quem ninguém prestava a menor atenção, aproximou-se do pai e, todo vermelho, com voz entrecortada, ora grossa, ora fina, disse:

— Então agora, papai, eu vou dizer com firmeza, para o senhor e para a mamãe também, como queiram, vou dizer com firmeza que têm de me deixar entrar no Exército, porque eu não posso... é só isso...

A condessa ergueu os olhos para o céu, com horror, abriu os braços e voltou-se com ar irritado para o marido.

— Veja só o que você foi arranjar! — exclamou a condessa.

Mas o conde, naquele momento, já tinha se recuperado do entusiasmo.

— Ora, ora — disse ele. — Mais um guerreiro! Vamos deixar de bobagens: você tem de estudar.

— Mas não é bobagem, papai. Fiédia Obolénski é mais jovem do que eu e também vai, e o mais importante é que tanto faz, porque agora eu não posso estudar nada mesmo, quando... — Pétia parou, ruborizou-se a ponto de suar e exclamou: — ... quando a pátria está em perigo.

— Chega, chega de bobagens...

— Mas o senhor mesmo acabou de dizer que vai sacrificar tudo.

— Pétia, estou lhe dizendo, fique calado — gritou o conde, enquanto se voltava para olhar para a esposa, que, vermelha, fitava o filho caçula com um olhar fixo.

— Mas estou dizendo ao senhor. Olhe só, o Piotr Kirílitch vai falar...

— Pois eu estou dizendo para você que isso é um absurdo, o leite da sua mãe mal secou na sua boca e você já quer entrar no Exército! Ora, ora, eu falei, e está falado — e o conde, levando o documento consigo, na certa para ler mais uma vez no escritório antes do repouso, saiu da sala.

— Piotr Kirílitch, venha, vamos fumar...

Pierre se viu embaraçado e indeciso. Os olhos de Natacha, extraordinariamente brilhantes e vivazes, que se voltavam o tempo todo para ele de um modo mais do que carinhoso, tinham deixado Pierre naquele estado.

— Não, eu... acho que vou para casa...

— Como para casa, o senhor veio para passar a noite conosco... E é raro o senhor aparecer. Além do mais, esta minha menina... — disse o conde com simpatia, apontando para Natacha — só fica alegre com a presença do senhor...

— Sim, mas eu esqueci... Eu preciso ir para casa... São compromissos de trabalho... — falou Pierre, afobado.

— Bem, então até logo — disse o conde, enquanto saía da sala.

— Por que o senhor vai embora? Por que o senhor está perturbado? Por quê?... — perguntou Natacha para Pierre, fitando-o nos olhos de modo provocante.

“Porque eu amo você!”, quis responder Pierre, mas não falou isso, ruborizou-se até às lágrimas e baixou os olhos.

— Porque é melhor que eu venha com menos frequência à casa da senhora... Porque... não, é só que tenho compromissos de trabalho.

— Por quê? Não, diga — ia começando Natacha com ar decidido, mas de repente se calou. Os dois se olharam assustados e confusos. Ele tentou sorrir, mas não conseguiu: seu sorriso exprimia sofrimento e então ele beijou a mão de Natacha em silêncio e depois saiu.

Pierre resolveu não ir mais à casa dos Rostóv.

XXI

Pétia, depois de ter recebido uma negativa categórica, foi para o quarto e lá, isolado de todos, chorou amargamente. Todos agiram como se não tivessem percebido nada quando ele, na hora do chá, apareceu calado, com ar sombrio, de olhos chorosos.

No dia seguinte, o soberano chegou. Vários criados da casa dos Rostóv foram ver o tsar. Naquela manhã, Pétia demorou para se arrumar, penteou-se e ajeitou o colarinho igual aos adultos. Franziu as sobrancelhas diante do espelho, fez gestos, encolheu os ombros e, por fim, sem dizer nada a ninguém, pôs um quepe e saiu de casa pela porta dos fundos, tentando não ser notado. Pétia queria ir diretamente para o lugar onde estava o soberano e explicar diretamente a algum camareiro da corte (Pétia imaginava que o soberano estava sempre rodeado por camareiros) que ele, o conde Rostóv, apesar da pouca idade, desejava servir a pátria, que a mocidade não podia ser um obstáculo para a lealdade e que ele estava pronto para... Enquanto se preparava, Pétia ensaiou muitas palavras bonitas para dizer ao camareiro da corte.

Pétia contava que sua apresentação ao soberano ia dar certo justamente porque era muito jovem (Pétia achava até que ia deixar todos admirados com a sua pouca idade) e, ao mesmo tempo, com o aprumo do seu colarinho, com o seu penteado e com a grave lentidão dos seus passos, ele queria dar a impressão de um homem maduro. Porém, quanto mais andava, mais se distraía com a multidão que se encaminhava para o Krêmlin, e mais se esquecia de cuidar do porte grave e vagaroso, próprio das pessoas maduras. Ao se aproximar do Krêmlin, Pétia começou a tomar cuidado para não ser empurrado e, de modo firme, com ar ameaçador, mantinha os cotovelos erguidos e apontados para os lados. Porém, nos portões da Trindade, apesar de toda a sua firmeza, pessoas que na certa ignoravam o intuito patriótico com que ele tinha ido ao Krêmlin o espremeram de tal modo contra um muro que Pétia teve de resignar-se e parar, enquanto carruagens passavam embaixo das arcadas, buzinando e fazendo barulho. Ao lado de Pétia, estavam uma camponesa, um lacaio, dois comerciantes e um soldado na reserva. Depois de ficar parado por um tempo nos portões, Pétia, sem esperar que todas as carruagens passassem, quis ir em frente antes dos outros e começou a abrir caminho vigorosamente com os cotovelos; mas a camponesa que estava na frente dele, na qual Pétia acertou suas cotoveladas primeiro, gritou, zangada:

— O que é que há, seu nobrezinho, não está vendo, todo mundo está parado. Para que empurrar?

— Se é assim, todo mundo vai empurrar também — disse o lacaio, começou a golpear também com os cotovelos e jogou Pétia num canto fedorento da rua.

Pétia esfregou com as mãos o suor que cobria o seu rosto e ajeitou o colarinho, que ele havia arrumado em casa com tanto esmero, como faziam os adultos, e que agora estava encharcado de suor.

Pétia sentiu que não estava com um aspecto apresentável e temia que, caso se mostrasse daquele modo aos camareiros da corte, não o deixariam chegar ao soberano. Mas a aglomeração não dava a menor possibilidade de Pétia se arrumar e ir para outro lugar. Um dos generais que estavam passando era um conhecido dos Rostóv. Pétia quis pedir sua ajuda, mas achou que isso seria contrário à masculinidade. Quando todas as carruagens haviam passado, a multidão começou a jorrar e arrastou Pétia para a praça, que já estava toda tomada pelo povo. Assim que Pétia se viu na praça, ouviu nitidamente o som dos sinos e as vozes alegres do povo, que enchiam todo o Krêmlin.

Num momento, a praça aparecia espaçosa, mas de repente todas as cabeças se descobriram, todos se atiraram mais para a frente. Apertaram Pétia de tal modo que ele não conseguia respirar e todos berraram: “Hurra! Hurra! Hurra!”. Pétia levantou-se na ponta dos pés, empurrou, beliscou, mas não conseguiu ver nada, senão o povo à sua volta.

Em todos os rostos, havia uma expressão geral de afeição e de entusiasmo. Uma comerciante que estava ao lado de Pétia chorava, e as lágrimas escorriam dos seus olhos.

— Pai, anjo, paizinho! — repetia ela, enquanto enxugava as lágrimas com o dedo.

— Hurra! — gritavam de todos os lados.

Por um minuto, a multidão permaneceu num lugar; mas logo depois precipitou-se de novo para a frente.

Pétia, sem noção do que ele mesmo estava fazendo, com os dentes cerrados e os olhos esgazeados de modo feroz, atirou-se para a frente, dando cotoveladas e gritando “Hurra!”, como se estivesse pronto para matar a todos e a si mesmo naquele minuto, mas de todos os lados outras pessoas o empurraram da mesma forma, com a mesma cara feroz e também com gritos de “Hurra!”.

“Então, isto é o soberano!”, pensou Pétia. “Não, é impossível que eu mesmo lhe apresente o pedido, é atrevimento demais!” Apesar disso, ele continuou a abrir caminho de modo cada vez mais desesperado e, entre as costas das pessoas que estavam na sua frente, viu de relance um espaço vazio com um caminho atapetado de vermelho; porém naquele instante a multidão começou a ondular para trás (na frente, policiais repeliam as pessoas que se aproximavam demais do cortejo; o soberano estava vindo do palácio para a catedral da Assunção), e Pétia recebeu de surpresa uma pancada tão forte nas costelas e foi de tal modo esmagado que, de repente, tudo ficou embaçado diante dos seus olhos, e ele perdeu a consciência. Quando voltou a si, algum membro da igreja, com um tufo de cabelo grisalho atrás da cabeça, num manto esfarrapado e azul, na certa um sacristão, segurou-o com a mão por baixo da axila, enquanto com a outra mão o protegia da multidão que o imprensava.

— Pisotearam o nobrezinho! — disse o sacristão. — Onde é que nós estamos!... Devagar... Pisotearam, pisotearam!

O soberano seguiu para dentro da catedral da Assunção. A multidão se acalmou outra vez, e o sacristão levou Pétia, pálido e sufocado, para junto do Canhão-Tsar.71 Algumas pessoas tiveram pena de Pétia, e de repente a multidão inteira voltou-se para ele, e à sua volta logo se formou uma aglomeração. Os que estavam mais perto lhe prestavam ajuda, desabotoaram o seu casaquinho, acomodaram-no sobre o pedestal do canhão e repreendiam alguns — aqueles que o haviam esmagado.

— Puxa, podia ter morrido esmagado. Onde é que já se viu! É um assassinato! Olhe só, coitado, ficou branco que nem um lençol — disseram algumas vozes.

Pétia logo voltou a si, a cor retornou ao seu rosto, a dor passou e, por causa daquele aborrecimento momentâneo, ele ganhou um lugar em cima do canhão, de onde esperava poder ver o soberano, que devia voltar por ali. Pétia agora já não pensava mais em apresentar seu pedido. Só lhe interessava ver o soberano — e com isso ele já se consideraria feliz!

Durante a missa na catedral da Assunção — uma cerimônia dupla, celebração pela chegada do soberano e ação de graças pelo término da guerra contra os turcos —, a multidão se espalhou; apareceram ambulantes que gritavam seus pregões e vendiam kvás,72 bolo de mel, papoula, que Pétia apreciava muito, e ouviam-se as conversas de costume. Uma comerciante mostrava o seu xale rasgado e contava como havia custado caro; outra dizia que todos os panos de seda estavam custando caro. O sacristão que havia salvado Pétia conversava com um funcionário sobre as pessoas que, naquele dia, estavam ajudando o Reverendíssimo na missa. O sacristão repetia várias vezes a palavra “concílio”, que Pétia não entendia. Dois rapazes da cidade brincavam com jovens criadas domésticas que estavam quebrando nozes. Todas aquelas conversas, sobretudo as brincadeiras com as mocinhas, que para alguém na idade de Pétia são dotadas de um atrativo especial, agora não despertavam a sua atenção; ele se mantinha sentado no seu lugar, em cima do canhão, ainda agitado com a ideia do soberano e do seu amor por ele. A coincidência dos sentimentos de dor e de medo, na hora em que fora espremido, com o sentimento de entusiasmo reforçou ainda mais a importância daqueles minutos na sua consciência.

De repente, tiros de canhão ressoaram da beira do rio (dispararam uma salva para celebrar a paz com os turcos), e a multidão precipitou-se afoita para a beira do rio — a fim de ver os disparos. Pétia também quis correr para lá, mas o sacristão, que tomara o nobrezinho sob a sua proteção, não permitiu. Os tiros ainda prosseguiam no momento em que oficiais, generais, camareiros saíram correndo da catedral da Assunção, depois saíram mais algumas pessoas já sem tanta pressa, de novo tiraram os chapéus, e as pessoas que tinham corrido para ver os canhões correram de volta. Por fim, saíram pela porta da catedral quatro homens de uniforme e com galões. “Hurra! Hurra”, a multidão começou a gritar outra vez.

— Qual deles? Qual deles? — perguntava Pétia à sua volta com voz chorosa, mas ninguém lhe respondia; todos estavam entusiasmados demais e, depois de escolher uma daquelas quatro pessoas, que ele não conseguia enxergar com clareza por trás das lágrimas de alegria, Pétia concentrou nela toda a sua exaltação, embora não fosse aquele o soberano, e começou a gritar “Hurra!”, com voz furiosa, e decidiu que já no dia seguinte, a qualquer preço, se tornaria militar.

A multidão acorreu atrás do soberano, acompanhou-o até o palácio e começou a se dispersar. Já era tarde, Pétia não tinha comido nada, e o seu suor pingava como chuva; mas ele não foi para casa e, junto com a multidão que havia diminuído mas ainda era bastante grande, continuou na frente do palácio durante o almoço do soberano, olhando para as janelas do palácio, à espera de mais alguma coisa, com inveja tanto dos dignitários que chegavam ao pórtico para participar do almoço com o soberano quanto dos lacaios que serviam à mesa e passavam de relance pelas janelas.

Durante o almoço do soberano, Valúiev falou, depois de olhar pela janela:

— O povo ainda espera ver vossa alteza.

O almoço já havia terminado, o soberano levantou-se e, enquanto comia um biscoito, saiu para a sacada. O povo, com Pétia no meio, precipitou-se na direção da sacada.

— Anjo, pai! Hurra, paizinho!... — gritava o povo, e Pétia também, e outra vez as mulheres e os homens mais fracos, entre os quais Pétia, desataram a chorar de felicidade. Uma lasca bem grande do biscoito que o soberano segurava na mão se rompeu, caiu no parapeito da sacada e, do parapeito, caiu para a terra. Um cocheiro de casacão, que estava mais perto, atirou-se na direção daquela migalha de biscoito e agarrou-a. Algumas pessoas da multidão lançaram-se sobre o cocheiro. Ao ver aquilo, o soberano mandou que lhe trouxessem um prato de biscoitos e começou a jogar biscoitos do alto da sacada. Os olhos de Pétia encheram-se de sangue, o risco de ser pisoteado o instigava mais ainda, e ele atirou-se na direção dos biscoitos. Não sabia por quê, mas era preciso pegar um biscoito que tinha vindo da mão do tsar e também era preciso não desistir. Pétia atirou-se para a frente e derrubou uma velha que apanhava um biscoito. Mas a velha não se deu por vencida, mesmo estirada no chão (a velha segurava o biscoito e não o deixou cair da mão). Pétia repeliu com o joelho a mão da velha, agarrou o biscoito e, como se temesse perder tempo, começou de novo a gritar “Hurra!”, já com voz enrouquecida.

O soberano foi embora e, depois disso, grande parte do povo começou a se dispersar.

— Viu só, eu não disse que ainda era para esperar?... Deu certo... — falavam de vários lados, com alegria, no meio do povo.

Por mais feliz que Pétia estivesse, apesar de tudo era melancólico ir para casa e saber que todo o prazer daquele dia havia terminado. Do Krêmlin, Pétia seguiu não para casa, mas para a casa do seu camarada Obolénski, que tinha quinze anos, mas já estava se alistando no Exército. Ao voltar para casa, comunicou de forma resoluta e firme que, se não lhe dessem autorização, ele ia fugir de casa. E no dia seguinte, embora não tivesse concordado de todo, o conde Iliá Andreitch foi procurar saber como alistar Pétia para servir no Exército em algum lugar pouco perigoso.

XXII

Dia 15, pela manhã, dois dias depois disso, havia uma incontável quantidade de carruagens paradas na frente do palácio Slobóda.

Os salões estavam repletos. No primeiro, estavam nobres de uniforme, no segundo, comerciantes com medalhas, de barba e de cafetãs azuis. No salão da nobreza, havia rumor e movimento. Junto a uma mesa grande, embaixo de um retrato do soberano, em cadeiras de espaldar alto, estavam sentados os dignitários mais importantes; a maioria da nobreza, porém, andava pelo salão.

Todos os nobres, os mesmos que Pierre via todos os dias, ora no clube, ora na casa deles — todos estavam de uniforme, uns do tempo da imperatriz Catarina, outros do tempo do tsar Paulo, outros de uniformes novos, do reinado de Alexandre, outros com o uniforme comum da nobreza, e essa caracterização geral em uniforme transmitia algo estranho e fantástico àqueles rostos velhos e jovens, muito variados e conhecidos. O que impressionava em especial eram os velhos, meio cegos, desdentados, carecas, estufados com uma gordura amarela, ou então murchos, ressequidos. Em sua maioria, ficavam sentados em seus lugares, calados e, se andavam e falavam, era com a ajuda de alguém mais jovem. Assim como nos rostos da multidão que Pétia tinha visto na praça, em todos os rostos ali havia feições de um contraste chocante; a expectativa geral de algo ameaçador e também do habitual jogo de cartas vespertino, do prato do cozinheiro Petruchka, das notícias sobre a saúde de Zinaida Dmítrievna etc.

Pierre, desde manhã cedo espremido no incômodo uniforme da nobreza, que ficara apertado para ele, também se encontrava nos salões. Ele estava agitado: a reunião extraordinária, não só da nobreza, mas também da classe dos comerciantes — états généraux —,73 despertava nele toda uma série de pensamentos, abandonados havia muito tempo, mas gravados profundamente na sua alma, a respeito do Contrat social e da Revolução Francesa. As palavras da proclamação que o impressionaram, aquelas que diziam que o soberano viria à capital para consultar o seu povo, reforçavam essa sua maneira de ver. E, supondo que naquele significado se anunciava algo importante, algo que ele esperava havia muito tempo, Pierre andava, observava, escutava as conversas, mas não encontrava em parte alguma a expressão dos pensamentos que o interessavam.

O manifesto do soberano foi lido, despertou comoção, e depois todos se dispersaram e começaram a conversar. Além dos interesses habituais, Pierre ouviu comentários sobre onde os chefes da nobreza deviam ficar postados quando o soberano entrasse, quando se devia oferecer um baile ao soberano, se eles deviam espalhar-se pelos distritos ou por todas as províncias etc.; mas, assim que se tratava da questão da guerra e do motivo por que a nobreza se reunira, os comentários se tornavam hesitantes e vagos. Todos preferiam escutar a falar.

Um homem de meia-idade, viril, bonito, num uniforme de oficial da Marinha reformado, falava numa das salas, e em torno dele havia se reunido um grupo numeroso. Pierre aproximou-se do círculo formado em redor do tagarela e pôs-se a escutar. O conde Iliá Andreitch, sempre no seu cafetã de voievoda 74 do tempo da imperatriz Catarina, que circulava no meio da multidão com um sorriso simpático, conhecido de todos, também se aproximou daquele grupo e se pôs a escutar com o seu sorriso cordial, como sempre escutava, balançando a cabeça afirmativamente, em sinal de concordância com a pessoa que falava. O oficial da Marinha reformado falava de modo bastante atrevido; isso era visível pela expressão no rosto daqueles que o escutavam, e também porque as pessoas que Pierre conhecia como as mais submissas e sossegadas se afastavam com ar de desaprovação, ou o contradiziam. Pierre abriu caminho para o meio do círculo, escutou e se convenceu de que a pessoa que falava era de fato um liberal, mas num sentido completamente distinto do que Pierre pensava. O oficial da Marinha reformado falava com uma voz especialmente sonora, cantada, nobre, de barítono, rolava os erres de um modo agradável, encurtava as consoantes, a mesma voz com que gritavam: “Criado, o meu cachimbo!”, e coisas semelhantes. Ele falava com uma voz habituada à liberdade e ao mando.

— Ora, o que importa se os habitantes de Smolensk sugeriram formar milícias para o soberano? Por acaso os de Smolensk fazem as leis para nós? Se a gloriosa nobreza da província de Moscou achar necessário, ela pode demonstrar sua devoção ao soberano imperador por outros meios. Por acaso esquecemos a milícia do ano de 1807? Só serviu para enriquecer os filhos dos popes e os ladrões e trapaceiros...

O conde Iliá Andreitch, sorrindo com doçura, balançava a cabeça em sinal de aprovação.

— E por acaso as nossas milícias foram de alguma utilidade para a pátria? Nenhuma! Só arruinaram as nossas propriedades. É melhor um outro recrutamento compulsório... do contrário não vão voltar para os senhores nem soldados, nem mujiques, mas só uns depravados. A nobreza não poupa a sua vida, nós mesmos iremos, sem exceção, e vamos chamar mais recrutas, basta um chamado do serano (assim ele chamou o soberano), e nós todos morreremos por ele — acrescentou o orador exaltado.

Iliá Andreitch salivava de tanta satisfação e cutucou Pierre, mas Pierre também sentiu vontade de falar. Moveu-se para a frente, sentindo-se exaltado, sem que ele mesmo soubesse ainda por que razão, e sem que soubesse ainda o que iria falar. Assim que abriu a boca para falar, um senador, totalmente desdentado, de rosto inteligente e irritado, que estava de pé junto ao orador, interrompeu Pierre. Visivelmente habituado a travar debates e a defender pontos de vista, ele começou a falar em voz baixa, mas clara:

— Quero crer, vossa excelência — disse o senador, mascando a boca sem dentes —, que fomos chamados aqui não para discutir se no presente momento é mais conveniente para a pátria o recrutamento ou a milícia. Fomos chamados para responder à proclamação com que o soberano imperador nos honrou. Mas julgar o que é mais conveniente, o recrutamento ou a milícia, devemos deixar para uma autoridade superior...

Pierre achou, de repente, uma saída para a sua exaltação. Seus sentimentos endureceram contra o senador, que havia imposto aquela estreiteza e limitação de ponto de vista nas tarefas iminentes da nobreza. Pierre avançou e o interrompeu. Ele mesmo não sabia o que ia dizer, mas começou de modo animado, de vez em quando empregando palavras francesas e se expressando em russo de forma livresca.

— Perdoe-me, vossa excelência — começou (Pierre conhecia bem aquele senador, mas ali achou necessário tratá-lo de modo formal). — Embora eu não concorde com o prezado senhor... (Pierre hesitou. Queria dizer mon très honorable préopinant.)75 — ... com o prezado senhor... que je n’ai pas l’honneur de connaître; mas creio que a classe da nobreza foi convocada não só para expressar sua solidariedade e seu entusiasmo, mas também para discutir as providências com que podemos ajudar a pátria. Creio — disse, exaltando-se — que o próprio soberano ficaria insatisfeito se encontrasse em nós apenas os proprietários dos mujiques que daremos a ele e... a chair à canon76 que estamos prontos a fazer de nós mesmos, e não encontrasse em nós um con... con... conselho.

Muitos se afastaram do círculo, ao notar o sorriso de desdém do senador, e o fato de que Pierre falava com liberdade; só Iliá Andreitch ficou satisfeito com as palavras de Pierre, como havia ficado com as palavras do oficial da Marinha, do senador e como sempre ficava com o discurso que tinha ouvido por último.

— Creio que antes de discutir essas questões — continuou Pierre — nós devemos pedir ao soberano, pedir muito respeitosamente a sua alteza, que nos comunique qual o contingente de nossas tropas, em que situação se encontram as nossas tropas e os exércitos, e então...

Mas Pierre mal havia terminado de dizer essas palavras quando o atacaram de três lados. E quem o atacou de maneira mais forte foi um velho conhecido seu, que o tratava sempre com simpatia nas partidas de bóston, Stiepan Stiepánovitch Apráksin. Stiepan Stiepánovitch estava de uniforme e, ou por causa do uniforme, ou por outras razões, Pierre via à sua frente uma pessoa de todo diferente. Stiepan Stiepánovitch, com um rancor de velho estampado de repente no rosto, começou a gritar com Pierre:

— Em primeiro lugar, chamo a atenção do senhor para o fato de que nós não temos o direito de indagar ao soberano a respeito disso, e em segundo lugar, se a nobreza russa tivesse tal direito, o soberano não poderia nos responder. As tropas se deslocam conforme os movimentos do inimigo, as tropas diminuem e aumentam...

A voz de outro homem, de estatura mediana, de uns quarenta anos, que Pierre tempos antes via nos ciganos, a quem conhecia como um mau jogador de cartas e que também tinha vestido um uniforme, aproximou-se de Pierre e interrompeu Apráksin.

— Mas não é hora para discutir — disse a voz daquele nobre. — É preciso agir: a guerra está na Rússia. O nosso inimigo veio para destruir a Rússia, para profanar o túmulo dos nossos pais, para raptar as mulheres, as crianças. — O nobre batia no próprio peito. — Nós todos nos levantaremos, sem exceção, todos em defesa do pai tsar! — gritou, arregalando os olhos cheios de sangue. Diversas vozes de apoio soaram na multidão. — Nós somos russos e não vamos poupar nosso sangue para defender a fé, o trono e a pátria. E, se somos filhos da pátria, é preciso deixar de delírios. Vamos mostrar para a Europa como a Rússia se ergue em defesa da Rússia — gritou o nobre.

Pierre queria retrucar, mas não conseguiu dizer nenhuma palavra. Sentiu que o som de suas palavras, a despeito do sentido que pudessem conter, seria menos ouvido do que o som das palavras do nobre empolgado.

Iliá Andreitch, atrás do círculo, concordava; alguns voltaram os ombros com firmeza na direção do orador ao fim da frase e disseram:

— É isso mesmo! É isso mesmo!

Pierre quis dizer que não era contra a doação nem de dinheiro, nem de mujiques, nem de si mesmo, mas que era preciso conhecer a situação para poder ajudar, porém não conseguiu falar. Muitas vozes gritaram e falaram ao mesmo tempo, de tal modo que Iliá Andreitch não conseguia balançar a cabeça para todas elas; o grupo aumentou, desfez-se, juntou-se outra vez e deslocou-se inteiro, em meio a um vozerio, para dentro do salão principal, rumo à mesa grande. Pierre não só não conseguia falar como o interrompiam com rudeza, repeliam-no, davam-lhe as costas, como a um inimigo comum. Isso não ocorria porque estivessem descontentes com as suas palavras — já haviam esquecido a sua fala, depois da grande quantidade de palavras que vieram em seguida —, no entanto a multidão exaltada precisava ter um objeto palpável para o amor e um objeto palpável para o ódio. A Pierre, coube este último papel. Muitos oradores falaram depois do nobre empolgado e todos falaram no mesmo tom. Muitos falaram de modo belo e original.

O editor da revista O Mensageiro Russo, Glinka, que foi reconhecido (“Escritor, escritor!”, ouviu-se na multidão), disse que o inferno devia ser repelido com o inferno, que ele tinha visto uma criança sorrindo sob o clarão dos relâmpagos e o rugido dos trovões, mas que nós não seríamos como aquela criança.

— Sim, sim, o rugido dos trovões! — repetiram com aprovação nas fileiras de trás.

A multidão aproximou-se da mesa grande, onde, de uniforme, com galões, grisalhos, carecas, estavam sentados velhos septuagenários da alta nobreza que Pierre já tinha visto, quase todos, em suas casas, com seus bufões, ou nos clubes jogando bóston. A multidão aproximou-se da mesa, sem cessar o vozerio. Apertados pela multidão que pressionava contra a parte de trás do espaldar alto das cadeiras, um de cada vez, e às vezes dois juntos, os oradores falavam. Os que estavam atrás registravam aquilo que o orador deixava de dizer e se apressavam em falar o que havia sido omitido. Outros, naquele calor e aglomeração, apalpavam a cabeça no esforço de achar alguma ideia e se apressavam em dizê-la. Os velhos da alta nobreza, conhecidos de Pierre, mantinham-se sentados e se viravam para olhar ora para um, ora para o outro, e a fisionomia da maior parte deles dizia apenas que estava muito quente. Pierre, no entanto, sentia-se agitado, e o sentimento generalizado de um desejo de mostrar que estavam todos dispostos a tudo, manifesto antes nos sons e nas expressões do rosto do que no significado das palavras, contagiou também Pierre. Ele não repudiava as suas ideias, mas sentia-se culpado de alguma coisa e desejava se regenerar.

— Eu disse apenas que seria mais adequado para nós fazer uma doação quando soubermos o que é necessário — exclamou ele, tentando gritar mais alto do que as outras vozes.

Um velho mais próximo virou-se para ele, mas logo foi distraído por um grito do outro lado da mesa.

— Sim, sim, Moscou vai se render! Ela será a nossa redentora! — gritou alguém.

— Ele é o inimigo da humanidade! — gritou um outro. — Deixem-me falar... Senhores, estão me esmagando...

XXIII

Naquele momento, a passos ligeiros diante da multidão de nobres que lhe abria caminho, entrou o conde Rostoptchin, em uniforme de general, com um galão no ombro, o queixo levantado e os olhos ágeis.

— O soberano imperador virá logo — disse Rostoptchin. — Acabei de vir de lá. Creio que na situação em que estamos não há o que discutir. O soberano se dignou a nos reunir, bem como aos comerciantes — disse o conde Rostoptchin. — De lá vão fluir os milhões (apontou para o salão dos comerciantes), mas a nossa tarefa é formar as milícias e não nos pouparmos... Isso é o mínimo que podemos fazer!

Começaram as deliberações apenas entre membros da alta nobreza, sentados à mesa. A reunião inteira transcorreu em voz mais do que baixa. Dava até uma impressão de tristeza, quando, depois de todo o alarde anterior, se ouviam, uma de cada vez, as vozes velhas, que diziam, uma: “Concordo”; outra, para variar: “Sou da mesma opinião”, e assim por diante.

Mandaram o secretário redigir um decreto da nobreza de Moscou, segundo o qual os moscovitas, a exemplo dos habitantes de Smolensk, contribuiriam com dez homens em mil, e mais o equipamento completo. Os senhores que estavam sentados levantaram-se, como que aliviados, arrastaram as cadeiras para trás e saíram a andar pela sala a fim de esticar as pernas, de braços dados uns com os outros, conversando.

— O soberano! O soberano! — avisaram pelo salão, de repente, e a multidão inteira precipitou-se para a saída.

Em passos largos, entre duas filas de nobres, o soberano entrou na sala. Em todos os rostos exprimia-se uma curiosidade respeitosa e assustada. Pierre estava bastante longe e não pôde ouvir inteiramente as palavras do soberano. Pelo que escutou, só compreendeu que o soberano falava do perigo em que a nação se encontrava e das esperanças que ele depositava na nobreza moscovita. Uma outra voz respondeu ao soberano e comunicou-lhe o decreto que a nobreza acabara de elaborar.

— Senhores! — falou o soberano com voz hesitante; um sussurro percorreu a multidão, de novo tudo silenciou, e Pierre escutou com clareza a voz do soberano, abalada e agradavelmente humana, que dizia: — Eu nunca duvidei da dedicação da nobreza russa. Mas neste dia ela superou as minhas expectativas. Agradeço aos senhores em nome da pátria. Senhores, vamos agir... O tempo é o bem mais precioso...

O soberano calou-se, a multidão começou a se aglomerar em torno dele, e de todos os lados ouviram-se exclamações entusiasmadas.

— Sim, o bem mais precioso... a palavra do tsar — falou mais atrás, soluçando, a voz de Iliá Andreitch, que não escutava nada, mas entendia tudo à sua maneira.

Do salão da nobreza, o soberano passou para o salão dos comerciantes. Ficou lá cerca de dez minutos. Pierre, entre outros, viu o soberano sair do salão dos comerciantes com lágrimas de comoção nos olhos. Como souberam depois, o soberano mal havia começado o discurso para os comerciantes quando as lágrimas brotaram dos seus olhos e, com voz trêmula, ele encerrou a sua fala. Quando Pierre viu o soberano, ele estava saindo na companhia de dois comerciantes. Um era um conhecido de Pierre, um gordo otkupchik,77 o outro era o chefe dos comerciantes, de rosto magro, amarelo e de barbicha. Os dois estavam chorando. O magro tinha lágrimas nos olhos, mas o gordo soluçava como uma criança, e repetia sem parar:

— Vossa alteza, tome a nossa vida e os nossos bens!

Pierre, naquele momento, não sentia nada, senão um desejo de mostrar que estava pronto para qualquer coisa e disposto a sacrificar tudo. O seu discurso de tendência constitucional lhe parecia um motivo de censura; Pierre procurava um meio de reparar o seu gesto. Ao saber que o conde Mamónov havia oferecido um regimento completo, Bezúkhov de imediato comunicou ao conde Rostoptchin que ele ia fornecer mil homens e o seu custeio.

O velho Rostóv não conseguiu ficar sem chorar quando contou à esposa o que havia acontecido, prontamente concordou com o pedido de Pétia e foi pessoalmente alistá-lo.

No dia seguinte, o soberano partiu. Todos os nobres reunidos tiraram o uniforme, de novo tomaram seus assentos nos clubes e nas casas e, resmungando, davam ordens aos seus administradores acerca da formação das milícias, e surpreendiam-se com o que tinham feito.


1 Sistema Continental ou Bloqueio Continental: proibição de todo comércio com a Inglaterra, decretada por Napoleão em 1806, e fechamento de todos os portos europeus aos navios ingleses.

2 Francês: “Senhor meu irmão, eu consinto em entregar o ducado ao duque de Oldenburg”.

3 Referência às memórias de Napoleão redigidas pelo conde de Las Cases (Memorial de Santa Helena), no período em que o imperador ficou exilado na ilha, entre 1815 e 1821, ano de sua morte.

4 Francês: “os bons princípios”.

5 As conversações secretas de abril de 1809 obtiveram da Rússia uma promessa de neutralidade de fato. A Rússia declarou guerra contra a Áustria, mas não realizou nenhuma ação bélica efetiva.

6 Referência às hordas de hunos que vieram da Ásia Central para a Europa no início da Idade Média.

7 Francês: “verter ou não verter o sangue do seu povo”.

8 Em abril de 1812, um grande contingente do Exército francês atravessou o rio Oder e invadiu a Prússia. Criou-se uma ameaça militar direta para a Rússia.

9 Napoleão esteve em Dresden com seus aliados (o imperador da Áustria, o rei da Prússia, o rei da Saxônia e outros) em maio de 1812. Lá, recebeu toda sorte de homenagens.

10 A data aqui é indicada no calendário gregoriano, que no calendário juliano corresponde ao dia 17 de maio.

11 Referência a Adolphe Thiers, no livro História do consulado e do império.

12Napoleão alimentava nos poloneses a ideia de que poderiam se tornar independentes com a vitória das suas tropas. O rio Niemen era a fronteira entre a Rússia e a Polônia.

13 Francês: “Moscou, a cidade santa”.

14 Francês: “Desta vez a gente chega lá. Ah! Quando ele próprio se mete no assunto a coisa pega fogo... Deus do céu... Olha ele lá!... Viva o imperador! Aí estão as estepes da Ásia! No final, uma terra desgraçada. Até logo, Beauché; vou reservar para você o mais belo palácio em Moscou. Até logo! Boa sorte... Você viu o imperador? Viva o imperador!... ador! Se me nomearem governador da Índia, Gérard, eu vou fazer de você o ministro da Caxemira, fica combinado. Viva o imperador! Viva! Viva! Viva! Os patifes desses cossacos, como eles tiram o corpo fora. Viva o imperador! Olha ele lá! Está vendo? Eu o vi duas vezes, como estou vendo você agora. O pequeno cabo... Eu o vi dar a medalha para um dos velhos... Viva o imperador!”.

15 Francês: “Deus enlouquece aqueles a quem quer destruir”.

16 Barclay de Tolly, lituano, ministro da Guerra, comandava o primeiro exército ocidental; subordinado a ele estava o príncipe Bagration, general russo, comandante do segundo exército ocidental; o general de cavalaria russo Alexandr Petróvitch Tormássov comandava o terceiro exército, que protegia a região sudoeste.

17 Francês: “Senhor meu irmão. Eu soube ontem que, apesar da lealdade com que mantive meus compromissos com vossa majestade, suas tropas atravessaram a fronteira da Rússia, e acabei de receber de Petersburgo um bilhete em que o conde Lauriston [embaixador de Napoleão em Petersburgo], a respeito dessa agressão, anuncia que vossa majestade se considerou em estado de guerra comigo a partir do momento em que o príncipe Kurákin [embaixador russo em Paris] pediu seus passaportes. Os motivos nos quais o duque de Bassano [ministro do Exterior de Napoleão] baseava sua recusa de lhe entregar os passaportes não poderiam jamais me levar a supor que esse incidente servisse de pretexto para a agressão. De fato, aquele embaixador jamais foi autorizado a isso, como ele mesmo declarou, e, assim que fui informado, fiz ver a ele que eu o desaprovava e ordenei que permanecesse em seu posto. Se vossa majestade não tem a intenção de derramar o sangue de nossos povos por causa de um mal-entendido desse tipo e se consentir em retirar suas tropas do território russo, vou encarar o que se passou como se não tivesse ocorrido, e será possível um acordo entre nós. Caso contrário, vossa majestade, me verei forçado a rechaçar um ataque que nada de minha parte provocou. Depende ainda de vossa majestade evitar à humanidade as calamidades de uma nova guerra.

“Estou etc.

“(Assinado) Alexandre”

18 Italiano: “Viva o rei!”; francês: “Coitados. Não sabem que vou deixá-los amanhã”.

19 Francês: “Fiz o senhor rei para reinar à minha maneira, não à sua”.

20 Francês: “muito prazer em conhecê-lo, general”.

21 Francês: “Pois é, general, tudo está em guerra, ao que parece”.

22 Francês: “Senhor [...] o imperador meu senhor não deseja a guerra, como vossa majestade pode ver”.

23 Francês: “a realeza tem as suas exigências”.

24 Francês: “Ah, meu caro general [...] eu desejo de todo o coração que os imperadores se entendam e que a guerra iniciada a despeito da minha vontade termine o mais depressa possível [...] Não vou retê-lo mais, general; desejo o sucesso da sua missão”.

25 Francês: “Dê-me a mensagem, eu a enviarei ao imperador”.

26 Os mamelucos eram tropas de cavalaria turcas e egípcias, que Napoleão derrotou em 1798, no Egito. Rustan (1780-1845) foi trazido de lá pelo imperador e tornou-se seu guarda-costas.

27 Francês: “Senhor! O imperador, meu senhor...”.

28 Francês: “A vibração da minha panturrilha esquerda é um bom sinal em mim”. A fonte de Tolstói é o Memorial de Santa Helena.

29 Francês: “Tudo isso ele teria devido à minha amizade... Ah! Que belo reino, que belo reino!”.

30 Francês: “Que belo reino poderia ter sido o do imperador Alexandre!”.

31 Francês: “Um soberano não deve estar à frente do exército, a menos que seja um general”.

32 Francês: “minha palavra de honra que tenho quinhentos e trinta mil homens do lado de cá do Vístula”.

33 Napoleão se refere à Polônia, que a partir das últimas décadas do século xviii foi três vezes repartida entre a Rússia, a Prússia e a Áustria. Em 1810, a Rússia e a França assinaram um acordo no qual Napoleão se comprometia a nunca restabelecer o reino da Polônia.

34 Francês: “E, no entanto, que belo reino poderia ter o seu senhor”.

35 Francês: “Não o retenho mais, general, o senhor vai receber a minha carta para o imperador”.

36 Francês: “Moscou, a santa”.

37 Francês: “como todos os caminhos levam a Roma, todos os caminhos levam a Moscou”.

38 Referência à invasão da Rússia, em 1709, por Carlos xii, da Suécia, a quem Pedro, o Grande, derrotou em Poltava, obrigando o monarca sueco a escapar para a Turquia.

39 Francês: “Ter a orelha puxada pelo imperador”.

40 Francês: “E então, o senhor não diz nada, admirador e cortesão do imperador Alexandre?”.

41 Posição fortificada perto da cidade de Drissa, na margem esquerda do Dvina ocidental.

42 Francês: “Adeus, Andrei! Lembre-se de que as infelicidades vêm de Deus e de que os homens nunca são culpados”.

43 As províncias a oeste de Smolensk — incluindo aquelas anexadas à Rússia sete anos antes — continuavam a ser chamadas de “províncias polonesas”.

44 Francês: “as honras”.

45 Em maio de 1809, Barclay foi nomeado governador-geral da Finlândia, anexada à Rússia após a Guerra Russo-Sueca (1808-9). Nessa guerra, conseguiu uma vitória decisiva em Umea, após uma ousada marcha de dois dias sobre o gelo com suas tropas.

46 Francês: “obra-prima”.

47 Francês: “mola mestra”.

48 Alemão: “Imbecil... [...] Vai estragar tudo... [...] Não vai sair nada que preste”.

49 Alemão: “Deve ter sido uma bela guerra tática”.

50 Ver tomo II, segunda parte, capítulo vi.

51 Alemão: “Eu bem que avisei que tudo iria para o diabo”.

52 Francês: “Quanto àquele que recomendou esse acampamento, o acampamento de Drissa”.

53 Francês: “Quanto àquele, senhor [...] que recomendou o acampamento de Drissa, eu não vejo outra alternativa que não o hospício ou a forca”.

54 Alemão: “Desse cavalheiro italiano, muito bonito! [...] Também é bom”.

55 Alemão: “Brincadeira de criança”.

56 Alemão: “Não é isso, excelência?”.

57 Alemão: “É claro, para que tantas explicações?”.

58 Havia cargos preenchidos por eleições entre os nobres.

59 Ucrânia.

60 Carroça coberta.

61 Francês: “Eu me rendo!”.

62 O jejum de São Pedro terminava no dia 28 de junho, véspera do dia de São Pedro e São Paulo.

63 Gesto tradicional para afastar a má sorte.

64 Fiódor Vassílievitch Rostoptchin foi nomeado governador-geral de Moscou em maio de 1812.

65 Francês: “maneiras”.

66 Francês: “o imperador Napoleão”. A elisão do e do artigo “le” não foi considerada no cálculo.

67 Francês: “quarenta e dois”.

68 Russo: “Espião”.

69 Ironia a respeito do costume dos aristocratas russos de falar francês, de preferência ao russo.

70 Francês: “Começa a ficar perigoso falar francês nas ruas”.

71 Nome popular de um canhão enorme fundido em 1488 e que figura como um monumento na praça do Krêmlin.

72 Refresco fermentado de centeio.

73 Francês: “estados-gerais”. Assembleia de representantes dos três estados (ou classes sociais) na França, convocada pelo rei, no Antigo Regime.

74 Chefe militar e governador de província entre os séculos xvi e xviii.

75 Francês: “meu muito honrado preopinante”.

76 Francês: “que não tenho a honra de conhecer [...] carne de canhão” [soldados cuja vida, numa guerra, é tida como sem importância].

77 Pessoa que recebia do governo o monopólio da venda de bebida alcoólica num determinado distrito.

 

 

I

Napoleão começou a guerra contra a Rússia porque não pôde deixar de ir a Dresden, não pôde deixar de ficar com a cabeça virada por causa das homenagens que recebeu, não pôde deixar de vestir o uniforme polonês e de sucumbir à sensação de intrepidez de uma manhã de junho, não pôde refrear um acesso de raiva em presença de Kurákin e, depois, de Balachov.

Alexandre recusou todas as negociações porque se sentia pessoalmente ofendido. Barclay de Tolly se empenhava em dirigir o Exército da melhor forma possível, a fim de cumprir o seu dever e de fazer jus à fama de grande comandante militar. Rostóv lançou-se a galope contra os franceses porque não conseguiu refrear o desejo de galopar pela campina plana. E da mesma forma, em função de seus traços pessoais, de seus costumes, de suas condições e de seus objetivos, assim agiam todas as inúmeras pessoas que tomavam parte na guerra. Tinham medo, enchiam-se de vaidade, alegravam-se, ficavam ressentidas, argumentavam, supondo que sabiam o que estavam fazendo e supondo que o faziam por si mesmas, porém todas eram instrumentos involuntários da história e produziam uma obra oculta para elas, mas compreensível para nós. Esse é o destino invariável de todos os homens de ação e, quanto menos livres, mais elevados se situam na hierarquia humana.

Agora, faz muito tempo que os atores do ano de 1812 deixaram os seus postos, os seus interesses pessoais desapareceram sem deixar vestígio e, do seu tempo, só os resultados históricos se encontram à nossa frente.

Mas, se supusermos que pessoas vindas da Europa, sob a liderança de Napoleão, tinham de se embrenhar nas profundezas da Rússia e lá perecer, toda a contraditória, louca e cruel ação das pessoas que participaram dessa guerra se torna compreensível para nós.

A Providência obrigou todas essas pessoas, que pelejavam para alcançar seus objetivos pessoais, a colaborar para a concretização de um resultado enorme, que não estava nas expectativas de pessoa alguma (nem de Napoleão, nem de Alexandre, e menos ainda de qualquer um dos participantes da guerra).

Agora, está clara para nós a causa da destruição do Exército francês em 1812. Ninguém sequer discute que a causa da destruição das tropas de Napoleão foi, de um lado, a sua entrada nas profundezas da Rússia já numa fase tardia da estação, sem os preparativos necessários para o clima do inverno, e de outro lado o caráter que a guerra assumiu com o incêndio das cidades russas e com o estímulo do ódio ao inimigo, no povo russo. Mas, na época, não só ninguém previa (o que agora parece evidente) que só por esse caminho se poderia destruir o melhor Exército do mundo, com oitocentos mil soldados e com o melhor comandante, num confronto com um Exército duas vezes menor, inexperiente e chefiado por comandantes inexperientes — o Exército russo; não só ninguém previa isso, como todos os esforços da parte dos russos eram o tempo todo dirigidos para barrar a única coisa capaz de salvar a Rússia e, da parte dos franceses, apesar da experiência e do chamado gênio militar de Napoleão, todos os esforços eram dirigidos para as tropas se demorarem até o fim do verão a caminho de Moscou, ou seja, para fazer exatamente aquilo que, por força, havia de destruí-los.

Nas obras sobre o ano de 1812, os autores franceses gostam muito de dizer que Napoleão percebia o risco de estender as suas linhas, que ele procurava os combates, que os seus marechais recomendaram a ele deter as tropas em Smolensk, e acrescentam outros argumentos semelhantes para provar que já na época se compreendia o perigo da campanha; mas os autores russos gostam mais ainda de dizer que, desde o início da campanha, existia um plano de guerra ao estilo dos citas a fim de atrair Napoleão para as profundezas do território russo e associam tal plano, uns a Pfuhl, outros a algum francês, outros a Tolly, outros ao próprio imperador Alexandre, indicando bilhetes, rascunhos e cartas nos quais de fato se encontram indícios dessa maneira de agir. Mas todos esses indícios de previsão daquilo que veio a acontecer, tanto da parte dos franceses como da parte dos russos, só são apresentados agora porque os acontecimentos os justificaram. Caso os acontecimentos não se cumprissem dessa forma, tais indícios seriam esquecidos, como estão hoje esquecidos milhares e milhões de indícios e suposições contrários, que na época estavam em curso, mas revelaram-se equivocados e por isso foram esquecidos. Ao fim de todo evento, existem sempre suposições tão numerosas que, seja como for que o evento tenha terminado, sempre haverá pessoas que vão dizer: “Bem que na época eu falei que isso ia acontecer”, esquecendo por completo que, entre as inúmeras suposições, foram feitas também outras totalmente contrárias.

As suposições a respeito do conhecimento que Napoleão tinha do perigo de estender as suas linhas e, do lado dos russos, a respeito da atração deliberada do inimigo para as profundezas da Rússia pertencem obviamente a essa categoria, e só a muito custo os historiadores conseguem atribuir tais pensamentos a Napoleão e a seus marechais, e atribuir tais planos aos chefes militares russos. Todos os fatos contradizem totalmente essas suposições. Não só durante todo o tempo da guerra, do lado dos russos, não havia o desejo de atrair os franceses para as profundezas da Rússia, como foi feito de tudo para detê-los desde o momento em que entraram na Rússia, e não só Napoleão não tinha o menor receio de estender as suas linhas, como ainda festejava cada passo à frente como se fosse uma vitória, e procurava o combate com bastante indolência, e não como havia feito em suas campanhas anteriores.

Desde o início da campanha, os nossos exércitos estavam divididos, e o único objetivo que procurávamos consistia em reuni-los, embora a reunião dos exércitos não representasse nenhuma vantagem, se o que queríamos era recuar e atrair o inimigo para as profundezas do país. O imperador estava com o exército a fim de incentivá-lo a defender cada palmo da terra russa, e não para recuar. O enorme acampamento fortificado de Drissa foi construído segundo o plano de Pfuhl e não pressupunha mais retiradas. O soberano repreendia os principais comandantes a cada passo para trás. Não só o incêndio de Moscou, mas até a entrega de Smolensk ao inimigo não podiam sequer se apresentar à imaginação do imperador e, quando os exércitos russos afinal se reuniram, o soberano se enfureceu, porque Smolensk fora tomada pelo inimigo, fora incendiada e não se havia travado uma batalha geral na frente de suas muralhas.

Assim pensava o soberano, mas os chefes militares russos e todos os russos se enfureciam mais ainda com a ideia de que os nossos se retiravam para as profundezas do país.

Napoleão, depois de dividir o exército, deslocou-se para as profundezas do país e deixou passar várias oportunidades de travar batalha. No mês de agosto, Napoleão estava em Smolensk e só pensava em avançar mais ainda, embora, como vemos hoje, esse movimento para a frente fosse obviamente danoso para ele.

Os fatos dizem de modo evidente que nem Napoleão previu o perigo do deslocamento para Moscou, nem Alexandre e os comandantes russos pensavam então em atrair Napoleão, mas o contrário. Apanhar Napoleão numa armadilha nas profundezas do país não ocorria nos planos de pessoa alguma (ninguém sequer acreditava nessa possibilidade), mas ocorria no complexo jogo de intrigas, propósitos e desejos de pessoas que participavam da guerra e que nem de longe supunham aquilo que tinha de se passar e aquilo que era a única salvação da Rússia. Tudo aconteceu por acaso. Os exércitos foram divididos no início da campanha. Nós nos empenhamos em reuni-los com o evidente propósito de dar combate e conter o avanço do inimigo, mas, nesse empenho para a união dos exércitos, esquivando-se do combate com um inimigo mais forte enquanto, sem querer, recuávamos num ângulo agudo, acabamos conduzindo o inimigo para Smolensk. No entanto, além de dizer que recuamos num ângulo agudo porque os franceses se moviam entre os dois exércitos — esse ângulo se tornou ainda mais agudo, e nós recuamos mais ainda, porque Barclay de Tolly era um alemão impopular, detestado por Bagration (que ia ter de ficar sob o seu comando), e Bagration, que comandava o segundo exército, se empenhava para retardar ao máximo a união de suas tropas às de Barclay, a fim de não ficar sob o seu comando. Bagration retardava bastante essa união (embora fosse esse o principal objetivo de todos os chefes militares), porque lhe parecia que naquela marcha ele punha em perigo o seu exército, e que seria mais vantajoso recuar mais para a esquerda e mais para o sul, criando preocupação para o flanco e para a retaguarda do inimigo, e podendo completar assim o contingente do seu exército na Ucrânia. Mas parece que Bagration teve essa ideia porque não queria se subordinar ao detestado Barclay, de patente inferior à sua.

O imperador estava com o exército a fim de incentivá-lo, mas a sua presença, a ignorância quanto ao que se devia decidir e a enorme quantidade de conselheiros e de planos esgotavam a energia de ação do primeiro exército, e o exército recuava.

Estava previsto deter-se no acampamento fortificado de Drissa; mas inesperadamente Paulucci, que se imiscuíra no alto-comando, com a sua energia influenciou Alexandre, todo o plano de Pfuhl foi abandonado e todas as operações ficaram sob o comando de Barclay. No entanto, como Barclay não inspirava confiança, limitavam o seu poder.

Os exércitos estavam rachados, não havia um comando único, Barclay não era popular; mas dessa confusão, dessa fragmentação e da impopularidade do comandante em chefe alemão resultavam, de um lado, a indecisão e a fuga ao combate (do qual não poderiam se esquivar, caso os exércitos estivessem reunidos, e caso não fosse Barclay o comandante em chefe), e, de outro lado, uma indignação cada vez maior contra o alemão e uma efusão de espírito patriótico.

Por fim o soberano deixou o exército e, como o único e mais conveniente pretexto para a sua partida, escolheu-se a ideia de que ele tinha de inspirar no povo das capitais o entusiasmo para uma guerra patriótica. E aquela partida do soberano para Moscou triplicou as forças das tropas russas.

O soberano deixou o exército a fim de não obstruir a integridade da autoridade do comandante em chefe, e esperava-se que fossem tomadas medidas mais resolutas; porém a situação do comandante dos exércitos ficou ainda mais confusa e debilitada. Bennigsen, o grão-duque e um enxame de generais ajudantes de ordens continuaram junto ao exército a fim de vigiar as atividades do comandante em chefe e de estimular suas energias, e Barclay, sentindo-se menos livre ainda sob o olhar de todos aqueles “olhos do soberano”, tornou-se ainda mais cauteloso quanto a ações decisivas e se esquivava de travar batalhas.

Barclay era a favor da cautela. O tsarévitch via sinais de traição e exigia uma batalha geral. Liubomírski, Bronnicki, Wlocki e outros semelhantes fomentaram de tal modo toda essa confusão que Barclay, sob o pretexto de enviar documentos para o soberano, despachou os generais poloneses para Petersburgo e entrou em guerra aberta com Bennigsen e o grão-duque.

Em Smolensk, por fim, por mais que Bagration não o desejasse, os exércitos se reuniram.

Bagration chegou de carruagem à casa ocupada por Barclay. Barclay estava de cachecol, veio ao seu encontro e fez um relatório da situação para Bagration, de patente superior à sua. Bagration, num duelo de magnanimidade, apesar da sua patente superior, subordinou-se a Barclay; porém, mesmo subordinado, concordava ainda menos com ele. Bagration, por ordem do soberano, lhe apresenta diretamente o seu relatório. Ele escreveu para Araktchéiev:

A vontade do soberano é a minha, mas não posso de maneira alguma ficar junto do ministro (Barclay). Pelo amor de Deus, mande-me para qualquer lugar, mesmo que seja para comandar um regimento, mas aqui eu não posso ficar; o quartel-general está tão cheio de alemães que é impossível para um russo viver, e nada faz nenhum sentido. Eu achava que ia realmente servir o soberano e a pátria, mas na prática acontece que eu sirvo Barclay. Confesso que não quero.1

O enxame de Bronnickis, Wintzingerodes e outros da mesma laia envenenava mais ainda as relações dos comandantes e disso resultava ainda menos unidade. Prepararam-se para atacar os franceses diante de Smolensk. Enviaram um general a fim de observar as posições. Esse general, que detestava Barclay, foi visitar um amigo, um comandante de divisão, e depois de passar o dia com ele voltou para Barclay e condenou em todos os aspectos o futuro campo de batalha, que ele nem tinha visto.

Enquanto transcorriam as discussões e as intrigas a respeito do futuro campo de batalha, enquanto nós andávamos à cata dos franceses e nos enganávamos quanto à sua posição, os franceses atacaram a divisão de Nevérovski e chegaram às muralhas de Smolensk.

Era preciso travar uma inesperada batalha em Smolensk, a fim de salvar as nossas linhas de comunicação. Travou-se a batalha. Milhares foram mortos, de ambos os lados.

Smolensk foi abandonada, contra a vontade do soberano e de todo o povo. Mas Smolensk foi incendiada pelos próprios habitantes, enganados pelo seu governador, e os habitantes arruinados, dando um exemplo para os demais russos, foram para Moscou, pensando apenas em suas perdas e atiçando o ódio ao inimigo. Napoleão segue em frente, nós recuamos, e se alcança aquilo que vai permitir a vitória sobre Napoleão.

II

No dia seguinte à partida do filho, o príncipe Nikolai Andreitch chamou ao seu quarto a princesa Mária.

— E então, agora está satisfeita? — disse ele. — Você me fez brigar com o meu filho! Está satisfeita? Era tudo o que você queria! Está satisfeita?... Isso me faz sofrer, sofrer. Estou velho e fraco, e você queria uma coisa dessas. Pronto, alegre-se, alegre-se... — E depois disso, ao longo da semana, a princesa Mária não viu o pai. Ele ficou doente e não saía do escritório.

Para sua surpresa, a princesa Mária notou que durante aquele período de doença o velho príncipe também não admitia a presença de Mlle Bourienne. Só Tíkhon cuidava dele.

Ao fim de uma semana, o príncipe saiu e retomou de novo a vida de antes, ocupava-se das construções e dos jardins com especial afinco e rompeu todas as antigas relações com Mlle Bourienne. Sua fisionomia e seu tom frio com a princesa Mária pareciam dizer a ela: “Está vendo só? Você inventou histórias contra mim, intrigou o príncipe Andrei contra mim por causa daquela francesa e me fez brigar com ele; mas você está vendo que eu não preciso nem de você nem da francesa”.

A princesa Mária passava metade do dia com Nikóluchka, tomava as suas lições, dava-lhe aulas de língua russa e de música, e conversava com Dessalles; a outra parte do dia ela passava em seus aposentos, com livros, com a velha babá e com o povo de Deus, que às vezes ia ao seu quarto pela entrada dos fundos.

Sobre a guerra, a princesa Mária pensava como pensam as mulheres sobre a guerra. Temia pelo irmão, que estava lá, horrorizava-se, sem entender a guerra, diante da crueldade das pessoas, que as obrigava a se matarem umas às outras; mas não compreendia o sentido daquela guerra, que lhe parecia igual a todas as guerras anteriores. Ela não compreendia o sentido daquela guerra, apesar de Dessalles, seu companheiro constante, apaixonadamente interessado no andamento da guerra, tentar explicar-lhe o seu ponto de vista, apesar de o povo de Deus que vinha visitá-la falar com horror, e à sua maneira muito peculiar, dos rumores populares a respeito da invasão do Anticristo, e apesar de Julie, agora princesa Drubetskaia, que voltara a manter correspondência com ela, lhe mandar de Moscou cartas patrióticas.

“Escrevo para a senhora em russo, minha boa amiga”, escreveu Julie,

porque tenho ódio de todos os franceses, bem como pela língua deles, que eu nem consigo ouvir... Nós, em Moscou, estamos todos exaltados de entusiasmo pelo nosso imperador adorado.

O meu pobre marido suporta fadiga e fome nas tavernas de judeus; mas as novidades que tenho me animam ainda mais.

A senhora certamente ouviu falar da façanha heroica de Raiévski, que abraçou os dois filhos e disse: “Morreremos juntos, mas daqui não arredaremos pé!”. E, de fato, embora o inimigo fosse duas vezes mais numeroso que nós, não arredamos pé. Vamos passando o tempo como podemos; mas na guerra é como na guerra. A princesa Alina e Sophie ficam comigo o dia inteiro, e nós, infelizes viúvas de maridos vivos, temos lindas conversas diante das ataduras que fazemos; só está faltando a senhora, minha amiga... Etc.

A princesa Mária não compreendia o sentido daquela guerra, acima de tudo porque o velho príncipe nunca falava a respeito, não reconhecia a guerra e, durante o jantar, ria de Dessalles, que falava sobre aquela guerra. O tom do príncipe era tão calmo e seguro que a princesa Mária, sem hesitar, acreditava nele.

Durante o mês de julho inteiro, o velho príncipe esteve extraordinariamente ativo e até ganhou novo ânimo. Criou um novo jardim e um novo prédio, construído para os servos domésticos. A única coisa que inquietava a princesa Mária era que o pai dormia pouco e, alterando o seu costume de dormir no escritório, cada dia passava a noite num lugar diferente. Ora ordenava que pusessem a sua cama de campanha na entrada, ora se deixava ficar no sofá ou numa poltrona Voltaire na sala de visitas e ali cochilava sem trocar de roupa, enquanto o menino Petruchka, e não Mlle Bourienne, lia para ele; ora pernoitava na sala de jantar.

No dia 1o de agosto chegou a segunda carta do príncipe Andrei. Na primeira carta, recebida logo depois da partida, o príncipe Andrei, com submissão, pedia desculpas ao pai por ter se permitido lhe falar daquele modo e pedia que voltasse a lhe dar a sua afeição. A essa carta, o velho príncipe respondeu com uma carta afetuosa e, depois dessa carta, manteve a francesa à distância. A segunda carta do príncipe Andrei, escrita nos arredores de Vítebsk, depois que os franceses a haviam ocupado, consistia em uma sucinta descrição de toda a campanha, com um esquema desenhado na carta, e considerações sobre o andamento futuro da campanha. Na carta, o príncipe Andrei exprimia o seu desconforto com a localização do pai, muito próxima ao teatro de guerra, exatamente na linha de deslocamento das tropas, e recomendava que ele fosse para Moscou.

Durante o jantar naquele dia, quando Dessalles disse que ouvira dizer que os franceses já haviam tomado Vítebsk, o velho príncipe lembrou-se da carta do príncipe Andrei.

— Recebi hoje uma carta do príncipe Andrei — disse para a princesa Mária. — Você não leu?

— Não, mon père — respondeu a princesa, assustada. Ela não pudera ler a carta, de cuja chegada nem tinha ouvido falar.

— Ele escreve sobre a guerra, sobre isso — disse o príncipe, com aquele sorriso de desdém que se tornara um costume e com o qual sempre falava a respeito da guerra em curso.

— Deve ser muito interessante — disse Dessalles. — O príncipe está em condições de saber...

— Ah, é muito interessante! — disse Mlle Bourienne.

— Vá pegar para mim — o velho príncipe voltou-se para Mlle Bourienne. — A senhora sabe, na mesa pequena, embaixo do peso de papel.

Mlle Bourienne levantou-se alegre, de um pulo.

— Ah, não — gritou ele, de cara feia. — Vá você, Mikhail Ivánitch.

Mikhail Ivánitch levantou-se e foi ao escritório. Porém, assim que saiu, o velho príncipe olhou em volta, inquieto, jogou o guardanapo para o lado e foi ele mesmo.

— Não sabem fazer nada, sempre arrumam confusão.

Enquanto ele ia, a princesa Mária, Dessalles, Mlle Bourienne e até Nikóluchka se entreolharam em silêncio. O velho príncipe voltou a passos afobados, acompanhado por Mikhail Ivánitch, com a carta e um desenho, que ele colocou ao seu lado e não deixou que ninguém lesse durante o jantar.

Ao passar para a sala de visitas, entregou a carta para a princesa Mária e, depois de colocar à sua frente o desenho do novo prédio, no qual cravou os olhos, ordenou à filha que lesse em voz alta. Ao ler a carta, a princesa Mária lançava olhares para o pai, com ar interrogativo.

Ele observava o desenho, obviamente absorto nos próprios pensamentos.

— O que o senhor pensa sobre isso, príncipe? — permitiu-se perguntar Dessalles.

— Eu! Eu!... — disse o príncipe, como se acordasse de maneira desagradável, sem tirar os olhos do desenho da nova construção.

— É bem possível que o teatro de guerra se aproxime bastante de nós...

— Ha, ha, ha! O teatro de guerra! — disse o príncipe. — Eu já disse e volto a dizer que o teatro de guerra é a Polônia e que o inimigo jamais vai avançar além do Niemen.

Dessalles olhou com surpresa para o príncipe, que havia falado do Niemen, quando o inimigo já estava no Dniepr; mas a princesa Mária, esquecida da posição geográfica do Niemen, pensou que aquilo que o pai dizia era a verdade.

— Quando as neves derreterem, eles vão afundar nos pântanos da Polônia. Só eles eram capazes de não perceber — exclamou o príncipe, pensando obviamente na campanha de 1807, ocorrida, assim lhe parecia, pouco tempo antes. — Bennigsen deveria ter avançado mais cedo para a Prússia, a situação teria tomado outro rumo...

— Mas, príncipe — disse Dessalles, timidamente —, na carta se fala de Vítebsk...

— Ah, na carta, sim... — disse o príncipe, de má vontade. — Sim... sim... — Seu rosto, de repente, tomou uma expressão sombria. Ele ficou calado um momento. — Sim, ele escreve, os franceses foram batidos, junto a que rio mesmo?

Dessalles baixou os olhos.

— O príncipe não escreve nada a respeito disso — falou, em voz baixa.

— Será possível que não escreve? Bem, não fui eu que inventei.

Todos ficaram muito tempo calados.

— Sim... sim... Bem, Mikhail Ivánitch — disse ele, de repente, depois de levantar a cabeça e apontar para o desenho da construção. — Explique como você quer refazer isto aqui...

Mikhail Ivánitch aproximou-se do desenho, e o príncipe, depois de conversar com ele sobre o desenho da nova construção, lançou um olhar zangado para a princesa Mária e para Dessalles e foi para o quarto.

A princesa Mária viu a perplexidade e a surpresa no olhar de Dessalles dirigido para o seu pai, notou o silêncio dele e ficou chocada com o fato de o pai ter esquecido a carta do filho sobre a mesa, na sala de visitas; mas ela temia não só falar e perguntar para Dessalles sobre a causa da sua perplexidade e do seu silêncio, como temia até pensar no assunto.

À noite, Mikhail Ivánitch, enviado pelo príncipe, procurou a princesa Mária a fim de pegar a carta do príncipe Andrei que fora esquecida na sala de visitas. A princesa Mária entregou a carta. Embora isso lhe fosse desagradável, ela se permitiu perguntar a Mikhail Ivánitch o que o pai estava fazendo.

— Está sempre atarefado — respondeu Mikhail Ivánitch com um sorriso respeitoso e zombeteiro, que obrigou a princesa Mária a empalidecer. — Está muito preocupado com o prédio novo. Leu um pouco e agora — disse Mikhail Ivánitch, baixando a voz — está no escritório, parece que cuida do testamento. (Ultimamente, uma das ocupações prediletas do príncipe era cuidar de documentos que ele queria deixar após a sua morte e que chamava de testamento.)

— E vão enviar o Alpátitch para Smolensk? — perguntou a princesa Mária.

— Como não, senhora? Ele já está esperando faz tempo.

III

Quando Mikhail Ivánitch voltou com a carta para o escritório, o príncipe, de óculos, com uma viseira acima dos olhos e à luz de uma vela, estava sentado junto à escrivaninha aberta, com papéis na mão bem afastada e, numa pose um pouco solene, lia os seus documentos (anotações, como ele chamava), que deviam ser entregues ao soberano após a sua morte.

Quando Mikhail Ivánitch entrou, o velho príncipe tinha nos olhos lágrimas de recordação dos tempos em que ele havia escrito aquilo que agora estava lendo. Tomou a carta da mão de Mikhail Ivánitch, colocou-a no bolso, baixou os papéis sobre a mesa e chamou Alpátitch, que já estava esperando havia muito tempo.

Numa folha de papel, ele havia escrito aquilo de que precisava em Smolensk e, andando pelo quarto na frente de Alpátitch, que aguardava junto à porta, começou a dar ordens.

— Primeiro, papéis de carta, escute bem, oito blocos de vinte e quatro folhas, como este aqui; com as bordas douradas... olhe este modelo, tem de ser exatamente assim; verniz, lacre... conforme está no bilhete de Mikhail Ivánitch.

Andava pelo quarto e lançava olhares para um memorando.

— Em seguida, entregue ao governador em pessoa uma carta sobre as anotações.

Depois, eram necessárias fechaduras para as portas da nova construção, que precisavam a todo custo ficar da maneira como o próprio príncipe havia imaginado. Depois, era preciso encomendar uma pasta encadernada para guardar o testamento.

A lista de ordens para Alpátitch prosseguiu por mais de duas horas. E o príncipe não o liberava. Sentou-se, pôs-se a pensar, fechou os olhos e começou a cochilar. Alpátitch se mexeu um pouco.

— Bem, vá, vá; se for preciso mais alguma coisa, mandarei vir.

Alpátitch saiu. O príncipe aproximou-se de novo da escrivaninha, olhou dentro dela, remexeu seus papéis com a mão, trancou-a de novo e sentou-se à mesa para escrever a carta ao governador.

Já era tarde quando ele se levantou da mesa, depois de lacrar o envelope. Tinha vontade de dormir, mas sabia que não iria pegar no sono e que pensamentos ruins viriam à sua mente, na cama. Chamou Tíkhon e, com ele, andou pelos cômodos da casa a fim de lhe dizer onde devia armar a cama para aquela noite. Caminhava, avaliando cada canto.

Todos os lugares lhe pareciam ruins, mas o pior de todos era o sofá de costume, no escritório. O sofá era terrível para ele certamente por causa dos pensamentos opressivos que remoera quando estava deitado ali. Nenhum lugar era bom, no entanto, apesar de tudo, o melhor era um cantinho na saleta, junto ao piano: nunca havia dormido ali.

Tíkhon e o copeiro trouxeram a cama e começaram a arrumá-la.

— Não, assim, não! — começou a gritar, e ele mesmo empurrou a cama um pouco para longe do canto e depois a empurrou de novo para perto.

“Pronto, enfim já arrumei tudo, agora vou descansar”, pensou o príncipe, e deixou que Tíkhon o despisse.

Franzindo o rosto com irritação por causa do esforço que era preciso fazer para tirar o cafetã e as calças, o príncipe despiu-se, deixou-se cair pesadamente na cama e pareceu meditar com desprezo, ao olhar para as suas pernas amarelas e murchas. Não estava meditando, e sim retardando a dificuldade que o aguardava, na hora em que iria levantar aquelas pernas e virar-se sobre a cama. “Ah, como é penoso! Ah, quem dera que terminassem logo essas agruras e vocês me libertassem de uma vez!”, pensava ele. Com os lábios contraídos, ele fez pela décima vez aquele esforço e deitou. Porém, assim que deitou, a cama inteira começou de repente a se mexer debaixo dele, em movimentos regulares, para a frente e para trás, como se estivesse respirando pesadamente e empurrando. Isso acontecia com ele quase toda noite. O príncipe abriu os olhos, que mal havia fechado.

— Não me dão sossego, os malditos! — resmungou com raiva para não se sabe quem. “Sim, sim, tinha outra coisa importante, uma coisa muito importante que eu estava reservando para a hora em que eu fosse para a cama de noite. Os trincos? Não, sobre isso eu falei com ele. Não, havia outra coisa, alguma coisa na sala de estar. A princesa Mária contou alguma mentira. Dessalles falou alguma coisa, aquele palerma. Alguma coisa no meu bolso... não lembro.”

— Tíchka! Sobre o que falaram no jantar?

— Sobre o príncipe, sobre Mikhail...

— Cale-se, cale-se. — O príncipe bateu com a mão sobre a mesa. — Sim! Já sei, a carta do príncipe Andrei. A princesa Mária estava lendo. Dessalles falou alguma coisa sobre Vítebsk. Agora eu vou ler.

Mandou pegar a carta no bolso e levar para junto da cama uma mesinha com uma limonada e uma vela de cera em espiral e, depois de pôr os óculos, começou a ler. Só ali, no silêncio da noite, sob a luz fraca do quebra-luz verde, o príncipe, ao ler a carta, compreendeu por um momento, e pela primeira vez, o seu significado.

“Os franceses estão em Vítebsk, em quatro dias de marcha poderão chegar a Smolensk; talvez já estejam lá.”

— Tíchka! — Tíkhon acudiu logo. — Não, não precisa, não precisa! — exclamou.

Escondeu a carta debaixo do castiçal e fechou os olhos. E lhe vieram à mente o Danúbio, o meio-dia radioso, os bambus, o acampamento russo, e ele, um jovem general, sem nenhuma ruga no rosto, vigoroso, alegre, corado, ele entrava na barraca colorida de Potiómkin,2 e um sentimento ardente de inveja do favorito da imperatriz agitou-o, um sentimento tão forte agora como tinha sido naquela época. Lembrou-se de todas as palavras ditas no primeiro encontro com Potiómkin. E viu à sua frente uma mulher gorda, baixa, de rosto amarelado e gordo — a imperatriz-mãe, o seu sorriso, as suas palavras, quando ela pela primeira vez o recebeu e se mostrou muito gentil, e o príncipe lembrou-se daquele mesmo rosto no ataúde e da discussão que ele tivera com Zúbov, postado junto ao caixão, por causa do direito de beijar a mão da imperatriz.

“Ah, rápido, mais rápido, quero voltar àquele tempo, e que o presente termine logo de uma vez, bem depressa, para que me deixem em paz!”

IV

Montes Calvos, a propriedade do príncipe Nikolai Andreitch Bolkónski, ficava a sessenta verstas depois de Smolensk e a três verstas de Moscou.

Naquela mesma noite, quando o príncipe estava dando as suas ordens para Alpátitch, Dessalles, depois de solicitar uma conversa particular com a princesa Mária, comunicou-lhe que, uma vez que o príncipe não estava bem de saúde e não ia tomar nenhuma providência para a sua segurança, e segundo a carta do príncipe Andrei estava claro que permanecer em Montes Calvos era inseguro, ele aconselhava respeitosamente a princesa a escrever e enviar por Alpátitch uma carta para as autoridades da província em Smolensk, pedindo que lhe informassem sobre a situação e o grau de risco a que estavam expostas as terras de Montes Calvos. Dessalles redigiu para a princesa Mária uma carta ao governador, que ela assinou, e essa carta foi entregue para Alpátitch, com ordens de entregá-la ao governador e, em caso de perigo, voltar o mais depressa possível.

Após receber todas as ordens, Alpátitch, acompanhado pelos criados domésticos, com um chapéu branco felpudo (presente do príncipe) e uma bengala, como fazia o príncipe, saiu para tomar seu assento numa carruagem pequena com capota de couro, puxada por uma troica de cavalos baios bem nutridos.

Amarraram o badalo da sineta e abafaram os guizos com papéis. O príncipe não permitia que ninguém andasse de carruagem com sinetas em Montes Calvos. Mas Alpátitch adorava sinetas e guizos em viagens longas. O séquito de Alpátitch — o contador; o administrador; a cozinheira e a sua ajudante, duas velhinhas; o menino de recados, o cocheiro e diversos criados — o acompanhava.

A filha arrumou umas almofadas fofas e estampadas nas costas e debaixo de Alpátitch. Às escondidas, sua velha cunhada enfiou uma trouxinha na carruagem. Um dos cocheiros lhe deu o braço para ajudá-lo a sentar.

— Puxa vida, essas confusões de mulher! Mulheres, mulheres! — exclamou Alpátitch, num resmungo ofegante, exatamente da maneira como o príncipe falava, e sentou-se na carruagem. Depois de dar as últimas ordens sobre os trabalhos na propriedade, e nisso já sem imitar o príncipe, Alpátitch tirou o chapéu da cabeça calva e fez três vezes o sinal da cruz.

— O senhor, se houver qualquer coisa... o senhor volte, Iákov Alpátitch; em nome de Cristo, tenha pena de nós — gritou sua esposa, referindo-se aos rumores sobre a guerra e o inimigo.

— Confusões de mulheres, mulheres, mulheres — disse Alpátitch para si mesmo e se foi, olhando para os campos à sua volta, com o centeio que amarelava, com a aveia ainda verde e densa, e olhando para os campos ainda negros, que apenas começavam a ser arados pela segunda vez. Alpátitch partiu na carruagem, admirando a extraordinária safra de primavera daquele ano, mirando as faixas de campo de centeio, que em alguns trechos já começava a ser colhido, fazia os seus cálculos econômicos sobre a semeadura e a colheita e pensava se não teria esquecido alguma ordem do príncipe.

Depois de parar duas vezes na estrada a fim de alimentar os cavalos, na noite do dia 4 de agosto Alpátitch chegou à cidade.

Pela estrada, Alpátitch encontrou e ultrapassou tropas e transportes militares de carga. Ao se aproximar de Smolensk, ouviu tiros ao longe, mas os sons não o impressionaram. O que mais o impressionou foi que, ao aproximar-se de Smolensk, viu um lindo campo de aveia que alguns soldados ceifavam, obviamente para obter forragem, junto ao qual ficava um acampamento militar; essa circunstância impressionou Alpátitch, mas ele logo esqueceu o assunto, pensando nos seus problemas.

Todos os interesses da vida de Alpátitch, já havia mais de trinta anos, restringiam-se apenas à vontade do príncipe, e ele nunca saía daquele círculo. Tudo o que não dissesse respeito ao cumprimento das ordens do príncipe não só não o interessava como nem sequer existia para Alpátitch.

Ao chegar a Smolensk na noite de 4 de agosto, Alpátitch parou depois do rio Dniepr, na localidade de Gátchen, na estalagem e estação de muda de cavalos de Ferapóntov, antigo zelador do príncipe, onde já fazia trinta anos que Alpátitch estava acostumado a se hospedar. Doze anos antes, Ferapóntov, com a ajuda sutil de Alpátitch, havia comprado um bosque do príncipe, começara a fazer transações comerciais e agora era dono de uma casa, daquela estalagem e de um empório de farinha na província. Ferapóntov era um mujique de quarenta anos, gordo, vermelho, de cabelo preto, lábios grossos, nariz grosso e redondo, a mesma forma arredondada que se via nas suas sobrancelhas franzidas e negras e na sua gorda pança.

De colete e camisa estampada, Ferapóntov tinha saído para a rua e estava diante da loja. Ao ver Alpátitch, aproximou-se.

— Bem-vindo, Iákov Alpátitch. O povo está indo embora da cidade e você vem chegando — disse.

— Como assim, indo embora da cidade? — perguntou Alpátitch.

— É o que estou dizendo, o povo é burro. Todo mundo está com medo dos franceses.

— Falatório de mulher, falatório de mulher! — exclamou Alpátitch.

— Pois é isso mesmo o que eu acho, Iákov Alpátitch. Eu digo o seguinte: tem uma ordem para não deixar o inimigo passar, e então isso é o correto. E os mujiques estão pedindo três rublos para levar uma carga de carroça, não é coisa de cristão!

Iákov Alpátitch ouvia sem atenção. Pediu um samovar e forragem para os cavalos e, depois de tomar chá, deitou-se para dormir.

Durante toda a noite, tropas se movimentaram pela rua na frente da estalagem. No dia seguinte, Alpátitch vestiu um paletó que ele só usava na cidade e foi tratar dos seus assuntos. A manhã estava ensolarada, e às oito horas já fazia calor. Ótimo dia para colher cereais, pensou Alpátitch. Desde manhã cedo, ouvia-se o som de tiros atrás da cidade.

Às oito horas, tiros de canhão vieram somar-se aos disparos de fuzil. Nas ruas, havia muita gente que andava às pressas e havia também muitos soldados; no entanto, como sempre, cocheiros de praça circulavam, comerciantes estavam parados na porta das lojas e havia missa nas igrejas. Alpátitch passou nas lojas, nas repartições públicas, no correio e na casa do governador. Nas repartições públicas, nas lojas e no correio, todos falavam das tropas, do inimigo que já estaria atacando a cidade; todos perguntavam uns aos outros o que fazer e todos se esforçavam em acalmar uns aos outros.

Diante da casa do governador, Alpátitch encontrou uma grande quantidade de pessoas, cossacos e um coche de viagem que pertencia ao governador. Na varanda, Iákov Alpátitch encontrou dois senhores da nobreza, um dos quais ele conhecia. O nobre seu conhecido, um ex-comissário de polícia, disse com fervor:

— Afinal, isso não é brincadeira — disse. — Está muito bem para quem vive sozinho. Se é uma pessoa e é pobre, tudo bem, é só uma; agora, uma família de treze pessoas, e mais todos os seus bens... Levaram a gente a perder tudo, o que se pode esperar das autoridades depois disso?... Ah, deviam ser enforcados, os bandidos...

— Ora, já chega, cuidado — disse o outro.

— O que me importa? Que escutem! Afinal não somos cachorros — disse o ex-comissário de polícia e, ao olhar para o lado, viu Alpátitch. — Ah, Iákov Alpátitch, o que está fazendo aqui?

— Por ordem de sua excelência, vim falar com o senhor governador — respondeu Alpátitch, levantando a cabeça com orgulho e colocando a mão sobre o peito, o que sempre fazia quando se referia ao príncipe... — Ele se dignou a me ordenar que verificasse como andam as coisas — respondeu.

— Pois veja você mesmo, aí está — exclamou o senhor de terras —, veja a que situação eles nos levaram, não há mais transporte, nada!... Olhe lá, está ouvindo? — perguntou, apontando para o lado de onde vinha o som dos tiros.

— Levaram todos nós à morte... os bandidos! — exclamou de novo, e desceu da varanda.

Alpátitch balançou a cabeça e subiu a escada. Na sala de espera, havia comerciantes, mulheres, funcionários, que se entreolhavam em silêncio. A porta do gabinete abriu, todos se levantaram e se moveram para a frente. Da porta, saiu um funcionário, disse algo para um comerciante, chamou atrás de si um funcionário gordo, com uma condecoração em forma de cruz no pescoço, e sumiu outra vez atrás da porta, esquivando-se visivelmente de todos os olhares e de todas as perguntas dirigidas a ele. Alpátitch avançou e, na vez seguinte em que o funcionário saiu, com a mão enfiada no peito abotoado do paletó, dirigiu-se ao funcionário e lhe entregou as duas cartas.

— Para o senhor barão Asch, do general en chef príncipe Bolkónski — proclamou Alpátitch de forma tão solene e importante que o funcionário se virou para ele e pegou a carta. Alguns minutos depois, o governador recebeu Alpátitch e lhe disse, afobado:

— Comunique ao príncipe e à princesa que eu não soube de nada: agi conforme ordens superiores... Tome aqui. — Deu um papel para Alpátitch.

— De resto, como o príncipe está doente, meu conselho é que ele vá para Moscou. Eu mesmo estou de partida, agora. Comunique... — Mas o governador não terminou de falar: um oficial coberto de poeira e de suor entrou pela porta e se pôs a dizer algo em francês. No rosto do governador estampou-se o horror.

— Vá — disse, inclinando a cabeça para Alpátitch e passou a perguntar algo para o oficial. Olhares sequiosos, assustados, desamparados voltaram-se para Alpátitch quando ele saiu do gabinete do governador. Ouvindo desatento os tiros, agora mais próximos e mais fortes, Alpátitch voltou às pressas para a estalagem. O documento que o governador lhe dera dizia o seguinte:

Garanto ao senhor que a cidade de Smolensk não corre ainda o menor perigo e é improvável que venha a ser ameaçada. Eu por um lado, e o príncipe Bagration por outro, vamos nos unir diante de Smolensk, o que se cumprirá no dia 22, e os dois exércitos com suas forças somadas vão defender os nossos compatriotas da província confiada ao senhor, até que os nossos esforços afastem os inimigos da pátria ou até que sucumba o último guerreiro das nossas bravas fileiras. Com isso o senhor verá que tem todo o direito de tranquilizar os habitantes de Smolensk, pois quem é defendido por dois exércitos tão valorosos pode estar seguro da sua vitória.

(Ordens de Barclay de Tolly para o governador civil de Smolensk, barão Asch, ano de 1812.)

O povo corria inquieto pelas ruas.

Carroças abarrotadas até em cima com utensílios domésticos, cadeiras, armários, saíam a todo instante dos portões das casas e seguiam pelas ruas. Na casa vizinha à estalagem de Ferapóntov, havia carroças paradas e, despedindo-se, mulheres choramingavam e gemiam. Um cachorro vira-lata, latindo, rodopiava na frente dos cavalos atrelados.

Alpátitch, a passos mais apressados do que andava habitualmente, entrou no pátio e seguiu direto para a cocheira, rumo aos seus cavalos e à sua carruagem. O cocheiro estava dormindo; ele o acordou, deu ordem para atrelar os cavalos e foi para o vestíbulo da estalagem. Do quarto do proprietário, vinha o som de choro de criança, soluços incontidos de mulher e berros raivosos de Ferapóntov. A cozinheira adentrou correndo no vestíbulo, como uma galinha assustada, assim que Alpátitch entrou.

— Ele matou, matou a patroa!... De tanto bater, de tanto puxar!...

— Por quê? — perguntou Alpátitch.

— Ela vivia pedindo para ir embora. Coisa de mulher! Me deixe ir, dizia, não me faça morrer aqui junto com meus filhinhos; o povo todo foi embora, dizia, e eu? Aí ele desandou a bater. E bateu tanto, puxou tanto!

Alpátitch, como que em sinal de aprovação, inclinou a cabeça ao ouvir aquelas palavras e, sem querer saber de mais nada, seguiu para a porta oposta à do quarto do proprietário, o cômodo onde haviam ficado as suas compras.

— Seu desgraçado, assassino — gritou naquele instante uma mulher magra, branca, com um bebê nos braços e um lenço rasgado na cabeça, que fugiu pela porta e desceu a escadinha correndo para o pátio. Ferapóntov saiu correndo atrás dela e, ao ver Alpátitch, ajeitou o colete, os cabelos, deu um bocejo e entrou no cômodo onde estava Alpátitch.

— Puxa, já quer ir embora? — perguntou.

Sem responder e sem virar-se para olhar para o dono da estalagem, enquanto recolhia as suas compras, Alpátitch perguntou quanto devia pela hospedagem.

— Já vamos acertar as contas! E então, esteve com o governador? — perguntou Ferapóntov. — O que ficou resolvido?

Alpátitch respondeu que o governador não lhe dissera nada de preciso.

— Mas, com o nosso negócio, como vai ser possível ir embora? — disse Ferapóntov. — Como é que se vai pagar sete rublos para alguém levar uma carroça até Dorogobuj? É o que eu digo: isso não é coisa de cristão! — exclamou. — O Selivánov, sim, esse deu um belo golpe na quinta-feira, vendeu farinha para o Exército por nove rublos a saca. E então, quer tomar chá? — acrescentou. Enquanto atrelavam os cavalos, Alpátitch e Ferapóntov beberam chá e conversaram sobre o preço dos cereais, sobre a safra e sobre o tempo propício para a colheita.

— Mas parece que está ficando mais calmo — disse Ferapóntov, levantando-se, depois de beber três xícaras de chá. — Na certa, os nossos venceram. Foi dito que era para não deixar passar. Quer dizer que estamos fortes... Dizem que um dia desses Matviei Ivánitch Plátov enxotou os inimigos para o rio Marina e só num dia afogou dezoito mil.3

Alpátitch recolheu suas compras, entregou-as ao cocheiro, que entrou naquele instante, e acertou as contas com o dono da estalagem. No portão, ressoava o barulho de rodas, de cascos e de guizos das carruagens que estavam deixando a cidade.

Já passara muito do meio-dia; metade da rua estava na sombra, a outra metade estava clara, iluminada pelo sol. Alpátitch olhou pela janela e foi até a porta. De repente, ouviu-se um som estranho, de um assovio distante e de um baque, e em seguida irrompeu um tiro de canhão, que se estendeu num ronco e fez tremer os vidros.

Alpátitch saiu para a rua; dois homens corriam pela rua na direção da ponte. De várias direções, soaram assovios, baques de bala de canhão e detonações de granadas que caíam sobre a cidade. Mas esses sons quase não eram ouvidos e não chamavam a atenção dos habitantes, em comparação com os sons dos tiros que se ouviam fora da cidade. Era o bombardeio de cento e trinta peças de artilharia que Napoleão deu ordem para iniciar, às cinco horas, sobre a cidade. De início, o povo não entendeu o sentido daquele bombardeio.

Os sons das granadas e das balas de canhão que caíam despertaram, a princípio, apenas curiosidade. A esposa de Ferapóntov, que até então não parava de choramingar dentro do celeiro, calou-se, saiu para o portão com o filho nos braços, ficou observando em silêncio as pessoas e escutando os sons.

A cozinheira e um lojista também vieram para o portão. Com uma curiosidade jovial, todos se esforçavam para avistar os projéteis acima de suas cabeças. De uma esquina, vieram alguns homens conversando animadamente.

— Puxa, que força! — disse um. — Fez em pedacinhos o telhado e o teto.

— Deixou a terra toda revirada, que nem um porco — disse outro. — Isso, sim, agora ficou animado! — disse, rindo. — Ainda bem que você pulou, senão tinha virado picadinho também.

O povo se voltou para essas pessoas. Elas pararam e contaram que, bem ao seu lado, caíra uma bala de canhão em cima de uma casa. Enquanto isso, outros projéteis — ora balas de canhão, com um assovio rápido, lúgubre, ora granadas, com um silvo agradável — passavam voando o tempo todo por cima da cabeça das pessoas; mas nenhum dos projéteis caiu perto, todos iam para além. Alpátitch tomou seu assento na pequena carruagem. O dono da estalagem ficou parado no portão.

— O que é que está olhando? — gritou para a cozinheira, que, de mangas arregaçadas, saia vermelha, balançando os cotovelos nus, foi até a esquina para ouvir o que estavam contando.

— Que coisa incrível — exclamou, mas, ao ouvir a voz do patrão, voltou, ajeitando a saia arregaçada.

De novo, mas dessa vez muito próximo, algo assoviou, como se um passarinho viesse voando para baixo, um fogo flamejou no meio da rua, algo explodiu, e a rua ficou encoberta pela fumaça.

— Miserável, o que está fazendo com a gente? — começou a gritar o dono da estalagem, que veio correndo na direção da cozinheira.

Naquele instante, de vários lados, mulheres começaram a gemer em tom queixoso, crianças desataram a chorar assustadas, e o povo se aglomerou em silêncio, com o rosto pálido, em torno da cozinheira. Naquela multidão, os gritos e as exclamações da cozinheira eram ouvidos com mais força:

— Ai, ai, ai! Meus queridos! Meu queridos, gente boa! Não me deixem morrer! Meus queridos!...

Cinco minutos depois, não restava mais ninguém na rua. A cozinheira, com o fêmur quebrado por um fragmento de granada, tinha sido levada para a cozinha. Alpátitch, seu cocheiro, a esposa de Ferapóntov, seus filhos e o zelador estavam no porão, escutando atentamente. O ronco da artilharia, o assovio dos projéteis e o gemido queixoso da cozinheira, que prevalecia sobre todos os outros sons, não paravam nem por um momento. A esposa de Ferapóntov ora balançava o bebê e falava com ele, ora perguntava num sussurro lamentoso a todos os que entravam no porão onde estava o seu marido, que havia ficado na rua. O lojista, ao entrar no porão, disse que Ferapóntov tinha ido com o povo para a catedral, onde haviam erguido ao altar o ícone milagroso de Smolensk.

No pôr do sol, o canhoneio começou a amainar. Alpátitch saiu do porão e parou na porta. O céu da tarde, antes claro, estava todo encoberto pela fumaça. E, através daquela fumaça, brilhava de modo estranho a foice da lua crescente, que pairava alta no céu. Depois que o terrível ronco dos canhões silenciou, parecia haver um silêncio sobre a cidade, interrompido apenas por um rumor de passos, de gemidos, de gritos distantes e pelo crepitar de incêndios que pareciam se espalhar por toda a cidade. Os gemidos da cozinheira agora haviam cessado. Dos dois lados, erguiam-se e dissipavam-se os rolos negros da fumaça dos incêndios. Na rua, não em fileiras, mas como formigas de um formigueiro destruído, os soldados passavam andando e correndo, em diversos uniformes e em diversas direções. Diante dos olhos de Alpátitch, vários deles fugiram correndo para o pátio de Ferapóntov. Alpátitch saiu e foi até o portão. Um regimento em retirada, empurrando-se e às pressas, obstruía a rua.

— A cidade está se rendendo, fujam, fujam — disse-lhe a figura de um oficial que o avistou e logo em seguida dirigiu um grito para os soldados:

— Vou ensinar a vocês uma coisa, se ficarem fugindo para os pátios! — gritou.

Alpátitch voltou para a isbá e, depois de chamar o cocheiro com um grito, mandou que ele saísse. Atrás de Alpátitch e do cocheiro, saíram também todas as pessoas da casa de Ferapóntov. Ao ver a fumaça e até as chamas dos incêndios, agora visíveis no início do crepúsculo, as mulheres, até então caladas, de repente começaram a se lamentar, enquanto olhavam para os incêndios. Como que fazendo eco às mulheres, ouviam-se também pessoas chorando nas duas pontas da rua. Alpátitch e o cocheiro, com as mãos trêmulas, desembaraçaram as rédeas e os tirantes dos cavalos, sob o telheiro.

Quando Alpátitch saiu pelo portão, viu dentro da loja aberta de Ferapóntov uns dez soldados que, em meio a uma gritaria, enchiam sacos e mochilas com farinha de trigo e sementes de girassol. Naquele momento, de volta da rua, Ferapóntov entrou na loja. Viu os soldados, quis gritar algo, mas de repente ficou parado e, agarrando os cabelos, soltou uma gargalhada entre soluços.

— Carreguem tudo, rapazes! Não deixem nada para os demônios! — começou a gritar, e ele mesmo pegou uns sacos e arrastou-os para a rua. Alguns soldados, assustados, fugiram correndo, outros continuaram a derramar a farinha. Ao ver Alpátitch, Ferapóntov voltou-se para ele:

— Acabou-se a Rússia! — gritou. — Alpátitch! Acabou-se! Eu mesmo vou queimar. Acabou-se... — Ferapóntov correu para o pátio.

Soldados passavam sem cessar pela rua e obstruíam a passagem, por isso Alpátitch não pôde atravessar a rua e teve de esperar. A esposa de Ferapóntov e os filhos estavam sentados na telega, igualmente esperando uma oportunidade para sair.

Já era noite fechada. No céu, havia estrelas e, de vez em quando, a lua crescente rebrilhava, nublada pela fumaça. Na ladeira que ia dar na margem do rio Dniepr, as carruagens de Alpátitch e da esposa de Ferapóntov, que se moviam devagar entre fileiras de soldados e outras carruagens, tiveram de parar. Perto do cruzamento onde os veículos haviam parado, num beco, uma casa e uma loja ardiam em chamas. O incêndio já estava no final. As chamas ora morriam e sumiam na fumaça preta, ora se inflamavam brilhantes de repente, iluminando de modo nítido e estranho o rosto das pessoas que haviam se aglomerado no cruzamento. Diante do incêndio, cintilavam vultos negros, e por trás do incessante crepitar do fogo ouviam-se vozes e gritos. Alpátitch desceu da carruagem, vendo que seu veículo não poderia passar por um tempo, e voltou-se para o beco a fim de observar o incêndio. Os soldados corriam de um lado para o outro, sem parar, em volta do incêndio, e Alpátitch viu dois soldados e mais alguém de capote frisado retirarem do incêndio tábuas ainda em chamas e levarem para um pátio do outro lado da rua; outros carregavam braçadas de feno.

Alpátitch aproximou-se de uma grande multidão de pessoas diante de um armazém alto que estava em chamas. As paredes estavam todas tomadas pelo fogo, a de trás havia caído, as ripas do forro haviam desabado, as vigas estavam ardendo. Era evidente que a multidão esperava o momento em que o telhado ia desabar. Alpátitch esperava a mesma coisa.

— Alpátitch! — gritou de repente uma voz, velha conhecida sua.

— Meu Deus, vossa excelência — respondeu Alpátitch, ao reconhecer no mesmo instante a voz do seu jovem príncipe.

O príncipe Andrei, de capa, montado num cavalo murzelo, estava parado atrás da multidão e olhava para Alpátitch.

— Como veio parar aqui? — perguntou.

— Vossa... vossa excelência — falou Alpátitch e desatou a soluçar... — vossa, vossa... Estamos perdidos mesmo? Pai...

— Como veio parar aqui? — repetiu o príncipe Andrei.

Naquele minuto, o fogo ardeu com mais força e iluminou, para Alpátitch, o rosto pálido e exausto do seu jovem senhor. Alpátitch contou como tinha sido enviado até lá e como estava difícil ir embora.

— Mas e então, vossa excelência, estamos perdidos mesmo? — perguntou de novo.

O príncipe Andrei, sem responder, pegou um caderninho de anotações e, levantando o joelho, pôs-se a escrever a lápis numa folha arrancada. Escreveu para a irmã:

“Smolensk se rendeu”, escreveu ele. “Montes Calvos será ocupada pelo inimigo em uma semana. Fuja imediatamente para Moscou. Avise-me logo quando vai partir, mande um mensageiro para Usviaj.”

Depois de escrever e entregar a folha de papel para Alpátitch, o príncipe Andrei lhe explicou a maneira de conduzir a fuga do príncipe, da princesa, do seu filho e do professor, e como e para onde lhe mandar notícias o mais depressa possível. Mal havia tido tempo de terminar suas ordens quando um comandante do Estado-Maior a cavalo, acompanhado por uma comitiva, aproximou-se a galope.

— O senhor é coronel? — gritou o comandante do Estado-Maior, com um sotaque alemão, uma voz conhecida do príncipe Andrei. — Incendeiam uma casa diante do senhor, e ainda fica parado? O que isso significa? Vai responder por isso — gritou Berg, que agora era auxiliar do comandante do Estado-Maior do flanco esquerdo da infantaria das tropas do primeiro exército, um posto muito agradável e bem visível, como dizia Berg.

O príncipe Andrei fitou-o e, sem responder, continuou, dirigindo-se para Alpátitch:

— Diga então que espero uma resposta até o dia 10 e, se até o dia 10 eu não receber a notícia de que todos partiram, terei de largar tudo e ir pessoalmente a Montes Calvos.

— Príncipe, eu só falo assim — disse Berg, ao reconhecer o príncipe Andrei — porque tenho de cumprir ordens, pois eu sempre sou rigoroso no cumprimento... Por favor, o senhor me desculpe — justificou-se Berg.

Algo se rompeu dentro das chamas. O fogo esmoreceu por um instante; negros rolos de fumaça subiram em baforadas, por baixo do telhado. Algo continuava a se romper de um modo terrível dentro das chamas e uma coisa enorme desmoronou.

— Urruru! — berrou a multidão, fazendo eco ao desabamento do teto do armazém, de onde veio um cheiro de panqueca, por causa do pão queimado. As chamas irromperam e iluminaram com nitidez os rostos alegres e esgotados das pessoas em volta do incêndio.

O homem de capote frisado levantou o braço e gritou:

— Muito bem! Vai desabar! Muito bem, pessoal!...

— Aquele é o próprio dono — ouviram-se vozes.

— Então, está entendido — disse o príncipe Andrei, dirigindo-se a Alpátitch. — Faça tudo como eu lhe disse. — E, sem dizer nenhuma palavra para Berg, mudo ao seu lado, esporeou o cavalo e seguiu para o beco.

V

De Smolensk, as tropas continuaram a recuar. O inimigo avançava atrás delas. No dia 10 de agosto, o regimento comandado pelo príncipe Andrei seguia pela estrada principal e cruzou com a alameda que ia dar em Montes Calvos. O calor e a seca já duravam mais de três semanas. Todo dia, nuvens encrespadas passavam pelo céu, às vezes toldavam o sol; mas ao anoitecer o céu limpava outra vez, e o sol se punha por trás de uma névoa marrom-avermelhada. Só o orvalho forte da noite refrescava a terra. Os cereais que não tinham sido ceifados ressecavam e tombavam. Os pântanos secavam. O gado bramia de fome, sem encontrar forragem nos pastos causticados pelo sol. Apenas à noite e nos bosques havia algum frescor, enquanto o orvalho resistia. Mas na estrada, na estrada principal por onde seguia o exército, nem de noite nem nos bosques havia aquele frescor. Nem se notava o orvalho na areia poeirenta da estrada, que chegava a alcançar mais de um quarto de archin de altura. Assim que amanhecia, tinha início o movimento. As carroças de carga e a artilharia seguiam sem fazer barulho pela areia da estrada que quase tocava nos eixos, e a infantaria enterrava os pés até os tornozelos na poeira quente, fofa e sufocante, que não refrescava nem durante a noite. Parte dessa areia poeirenta era comprimida pelos pés e pelas rodas, outra parte subia no ar e pairava como uma nuvem acima das tropas, impregnava-se nos olhos, nos cabelos, nas orelhas, nas narinas e sobretudo nos pulmões das pessoas e dos animais que se deslocavam por aquela estrada. Quanto mais o sol subia, mais alta se erguia a nuvem de poeira e, através da poeira fina e quente, era possível a olho nu ver o sol, que as nuvens não ocultavam. O sol parecia uma grande esfera escarlate. Não havia vento, e as pessoas respiravam aquela atmosfera imóvel. Caminhavam com a boca e o nariz envolvidos por um lenço. Ao passar por uma aldeia, todos se atiravam na direção dos poços. Brigavam pela água e a bebiam até chegar na lama.

O príncipe Andrei comandava um regimento e a organização do regimento, o bem-estar do seu pessoal e a necessidade de receber e dar ordens mantinham-no ocupado. O incêndio de Smolensk e o abandono da cidade foram marcantes na vida do príncipe Andrei. Um sentimento novo de exasperação contra o inimigo obrigava-o a esquecer suas mágoas. Estava dedicado por inteiro aos afazeres do seu regimento, era atencioso com os seus soldados e com os seus oficiais e os tratava com brandura. No regimento, chamavam-no de “nosso príncipe”, orgulhavam-se dele e o amavam. Mas ele só era bondoso e dócil com quem fosse do seu regimento, com Timókhin e outros como ele, ou seja, pessoas absolutamente novas e oriundas de outro ambiente, pessoas que não podiam conhecer e entender o seu passado; porém, assim que topava com algum conhecido de antes, alguém do Estado-Maior, na mesma hora ficava irritadiço; tornava-se mordaz, irônico e desdenhoso. Tudo aquilo que o ligava às lembranças do passado lhe inspirava repulsa, e por isso, nas relações com o mundo de antes, ele se esforçava apenas em não ser injusto e em cumprir o seu dever.

Na verdade, tudo se apresentava sob uma luz turva, sombria, aos olhos do príncipe Andrei — sobretudo depois de terem abandonado Smolensk (que, no seu modo de ver, poderia e deveria ter sido defendida) no dia 6 de agosto, e depois que o pai enfermo fora obrigado a fugir para Moscou e abandonar para os saqueadores a sua tão querida propriedade de Montes Calvos, construída e povoada por ele; porém, apesar disso, graças ao regimento, o príncipe Andrei podia pensar num assunto completamente alheio às questões gerais — o seu regimento. No dia 10 de agosto, a coluna de que o seu regimento fazia parte chegou às imediações de Montes Calvos. Dois dias antes, o príncipe Andrei recebera a notícia de que o pai, o filho e a irmã tinham partido para Moscou. Embora nada tivesse a fazer em Montes Calvos, o príncipe Andrei, com o desejo, tão peculiar a ele, de atiçar a própria mágoa, resolveu que devia ir a Montes Calvos.

Mandou selar o seu cavalo e, no cruzamento, partiu rumo à aldeia paterna onde ele havia nascido e passado a infância. Ao passar por um lago onde sempre havia dezenas de camponesas que conversavam, enquanto batiam e enxaguavam a roupa branca, o príncipe Andrei notou que não havia ninguém no lago e notou que uma balsa estava rachada, afundada até a metade, e flutuava de lado no meio do lago. O príncipe Andrei foi até a guarita do vigia. Não havia ninguém no portão de pedra da entrada, e a porta estava aberta. As veredas do jardim já começavam a ser tomadas pelo mato, e bezerros e cavalos vagavam pelo parque inglês.4 O príncipe Andrei aproximou-se da estufa de plantas: os vidros estavam quebrados e, dos arbustos nos vasos, alguns estavam tombados, outros estavam murchos. Gritou chamando o jardineiro Tarás. Ninguém atendeu. Depois de dar a volta na estufa passando perto do jardim de inverno, viu que a cerca de ripas entalhadas estava toda quebrada e que os frutos das ameixeiras tinham sido arrancados junto com os galhos. Um velho mujique (na infância, o príncipe Andrei o via no portão) estava sentado num banquinho verde e trançava palha para fabricar uma alpercata.

Ele era surdo e não percebeu a chegada do príncipe Andrei. Estava sentado no banco onde o velho príncipe gostava de ficar e, ao seu lado, tiras de palha pendiam dos raminhos de um pé de magnólia seco e partido.

O príncipe Andrei aproximou-se da casa. No velho jardim, algumas tílias tinham sido cortadas, um cavalo malhado e um potro andavam bem na frente da casa, no meio das roseiras. A casa estava com as persianas fechadas. Uma das janelas de baixo estava aberta. Um menino da criadagem avistou o príncipe Andrei e entrou correndo na casa.

Alpátitch, depois de ter retirado a família da propriedade, havia ficado sozinho em Montes Calvos; estava sentado dentro da casa e lia a Vida dos santos. Ao saber da chegada do príncipe Andrei, saiu de casa com os óculos no nariz, abotoando o casaco, aproximou-se às pressas do príncipe e, sem dizer nada, começou a chorar, enquanto beijava o príncipe Andrei no joelho.

Depois, virou-se com vergonha da própria fraqueza e passou a informar ao príncipe a situação geral. Tudo o que era precioso e de valor tinha sido removido para Bogutchárovo. O trigo, cem quartas, também tinha sido removido; e o feno e os cereais primaveris daquele ano, uma safra extraordinária, como disse Alpátitch, foram confiscados e moídos ainda verdes pelas tropas. Os mujiques estavam arruinados, alguns também fugiram para Bogutchárovo, uma pequena parte permanecera.

O príncipe Andrei, sem escutá-lo até o final, perguntou:

— Quando meu pai e minha irmã partiram? — ou seja, quando haviam partido para Moscou. Alpátitch, supondo que a pergunta se referia à partida para Bogutchárovo, respondeu que haviam partido no dia 7 e, mais uma vez, passou a explicar a situação da propriedade, pedindo instruções.

— O senhor dá ordem para eu deixar que as tropas peguem a aveia, se assinarem um recibo? Ainda sobraram seiscentas quartas — disse Alpátitch.

“O que vou responder?”, pensou o príncipe Andrei, enquanto olhava para a cabeça careca do velho, que reluzia ao sol, e para a expressão do seu rosto, na qual transparecia a consciência de que ele mesmo compreendia o despropósito de tais perguntas e de que perguntava só para sufocar o próprio desgosto.

— Sim, deixe que peguem — respondeu.

— Se o senhor já tiver notado a desordem no jardim — disse Alpátitch —, saiba que foi impossível evitar; três regimentos pernoitaram ali, sobretudo os dragões da cavalaria. Anotei o nome e o posto do comandante para dar queixa.

— Mas e você, o que vai fazer? Vai ficar, se o inimigo tomar a propriedade? — perguntou o príncipe Andrei.

Alpátitch virou o rosto para o príncipe Andrei, fitou-o e, de repente, levantou a mão e apontou para o alto num gesto solene.

— Ele é a minha proteção, que seja feita a Sua vontade! — exclamou.

Uma multidão de mujiques e criados domésticos vinha pelo pasto na direção do príncipe Andrei, com as cabeças descobertas.

— Bem, adeus! — disse o príncipe Andrei, curvando-se para Alpátitch. — Vá embora também, leve o que puder, e mande o povo partir para Riazan ou para os arredores de Moscou. — Alpátitch agarrou-se à perna do príncipe e começou a soluçar. O príncipe Andrei afastou-o com cuidado, esporeou o cavalo e partiu pela alameda, a galope.

No jardim de inverno, com o mesmo ar apático de antes, igual a uma mosca na cara de um defunto, o mesmo velhote continuava sentado, batendo no pedaço de madeira com que fazia a alpercata de palha, e duas meninas saíram correndo da estufa, com a barra da saia levantada para levar as ameixas que tinham colhido nos arbustos ali dentro, e deram de cara com o príncipe Andrei. Ao ver o jovem patrão, a menina mais velha, com uma expressão de susto no rosto, agarrou a mão da sua companheira mais jovem e, junto com ela, escondeu-se atrás de uma bétula, sem ter tempo de recolher as ameixas verdes que tinham caído.

O príncipe Andrei lhes deu as costas, depressa e assustado, com receio de dar algum sinal de que as tinha visto. Sentiu pena daquela menina bonita e assustada. Receava olhar para ela, mas ao mesmo tempo tinha uma vontade irresistível de fazer isso. Um sentimento novo, agradável e tranquilizador o dominou quando, ao olhar para aquelas meninas, se deu conta da existência de outros interesses humanos, totalmente estranhos a ele, mas tão legítimos como aqueles a que ele se dedicava. As meninas, estava claro, queriam ardentemente uma coisa — levar dali e comer todas aquelas ameixas verdes sem serem apanhadas, e o príncipe Andrei, tanto quanto elas, desejava o sucesso da empreitada das meninas. Não conseguiu se conter e olhou para elas mais uma vez. Supondo que já se achavam livres do perigo, as duas haviam saído aos pulos do seu esconderijo e, piando algo em suas vozes fininhas, com a bainha da saia levantada, corriam rápidas e alegres pelo capim do pasto, com seus pezinhos descalços queimados de sol.

O príncipe Andrei animou-se um pouco por se afastar da área poeirenta da estrada principal onde o exército se deslocava. Mas, ainda perto de Montes Calvos, ele tomou de novo a estrada e alcançou o seu regimento no acampamento situado na represa de um pequeno lago. Já havia passado da uma hora da tarde. O sol, uma esfera vermelha na poeira, causticava de modo insuportável e queimava as costas através do paletó preto. A poeira, sempre igual, pairava imóvel acima do rumor das vozes das tropas estacionadas. Não havia vento. A caminho da represa, o príncipe Andrei sentiu o cheiro de lama e de frescor que vinha do lago. Ele queria entrar na água — por mais lamacenta que estivesse. Virou-se para olhar para o lago, de onde vinham gritos e risos. O pequeno lago lodoso e esverdeado pelo visto havia subido uns dois palmos, inundando a represa, porque estava cheio de corpos brancos e nus de soldados e de pessoas que se agitavam lá dentro, com mãos, caras e pescoços vermelhos como tijolo. Toda aquela carne humana branca e nua se agitava com gritos e risos dentro da poça lamacenta, como carpas dentro de um regador. Aquela agitação refletia uma alegria e por isso mesmo ela era especialmente triste.

Um jovem soldado louro — o príncipe Andrei ainda não o conhecia — da terceira companhia, com uma atadura embaixo da panturrilha, fez o sinal da cruz, recuou bem a fim de tomar um bom impulso, correu e jogou-se na água; outro, um sargento moreno e sempre desgrenhado, com a água pela cintura, revirando o tronco musculoso, bufava com alegria e regava a cabeça com as mãos bronzeadas até o pulso. Ouviam-se os tapinhas que eles davam uns nos outros, além de gritos e assovios.

Na margem, na represa, no lago, em toda parte, só se via a carne branca, saudável, musculosa. O oficial Timókhin, com o narizinho vermelho, estava se secando com uma toalha na represa, encabulou-se ao reconhecer o príncipe, mas mesmo assim resolveu se dirigir a ele:

— Está muito bom, vossa excelência, o senhor vai apreciar! — disse ele.

— Está lamacenta — disse o príncipe Andrei, de sobrancelhas franzidas.

— Vamos limpar num instante para o senhor. — E Timókhin, ainda despido, correu para limpar o lago.

— O príncipe quer entrar.

— Quem? O nosso príncipe? — perguntaram várias vozes e todos se alvoroçaram de tal maneira que só a muito custo o príncipe Andrei conseguiu acalmá-los. Achou melhor banhar-se no celeiro.

“Carne, corpo, chair à canon!”, pensou ele, olhando para o próprio corpo nu, que tremia, menos de frio do que de um horror e de uma repugnância que ele mesmo não entendia, ante a visão daquela enorme quantidade de corpos que se banhavam no poço lamacento.

No dia 7 de agosto, em seu acampamento na estrada de Smolensk, o príncipe Bagration escreveu o seguinte:

Prezado senhor conde Aleksei Andréievitch.

(Ele estava escrevendo para Araktchéiev, mas sabia que a carta seria lida pelo soberano, e por isso, até onde ele era capaz, pesava cada uma de suas palavras.)

Creio que o ministro já comunicou o abandono de Smolensk para o inimigo. É doloroso, triste, e o Exército inteiro está desolado por entregar de graça o local mais importante de todos. De minha parte, pedi a ele pessoalmente e do modo mais incisivo, e por fim lhe escrevi; mas ele não concordou com nada. Por minha honra, juro que Napoleão estava numa ratoeira como nunca antes estivera, poderia ter perdido metade do seu exército, e não tomar Smolensk. Nossas tropas lutaram e estão lutando como nunca. Eu, com quinze mil soldados, contive o avanço do inimigo durante mais de trinta e cinco horas; mas ele não quis resistir nem catorze horas. Isso é uma vergonha e uma mancha para o nosso Exército; e quanto a ele, me parece que não devia continuar a viver neste mundo. Se ele informar que as nossas perdas são grandes, não é verdade; talvez em torno de quatro mil, não mais, e nem mesmo isso. Mesmo que fossem dez, azar, é a guerra! Em compensação o inimigo perdeu uma multidão...

O que custaria resistir ainda mais dois dias? No mínimo, os inimigos teriam de se retirar; porque não teriam mais água para os soldados e para os cavalos. Ele me deu a sua palavra de honra de que não ia ceder, mas de repente deu instruções para a sua fuga à noite. Não é possível combater desse jeito, e daqui a pouco vamos acabar levando o inimigo direto para Moscou...

Corre o rumor de que o senhor está pensando num acordo de paz. Deus nos livre de selar a paz! Depois de todos os sacrifícios e depois de uma retirada tão louca — fazer a paz: o senhor vai pôr a Rússia inteira contra si e nos levará a ter vergonha de vestir o uniforme. Se já chegamos a este ponto, é preciso lutar, enquanto a Rússia puder e enquanto os homens estiverem em pé...

É preciso que um só comande, e não dois. O seu ministro pode ser bom para um ministério; mas como general ele não é apenas ruim, é abominável, e puseram nas mãos dele o destino de toda a nossa pátria... Eu, francamente, estou ficando louco de vergonha; perdoe-me por escrever de modo bruto. É evidente que quem recomenda fazer um acordo de paz e entregar o comando do Exército ao ministro não ama o soberano e deseja a ruína de todos nós. Assim eu lhe escrevo com franqueza: prepare a milícia. Porque o próprio ministro, de modo magistral, está conduzindo os visitantes para a capital, atrás de si. Há uma grande desconfiança em todo o Exército acerca do sr. Woltzogen, o ajudante de ordens do imperador. Dizem que ele está mais do lado de Napoleão do que do nosso lado e vive dando conselhos ao ministro. Não sou apenas respeitoso em relação a ele, submeto-me a suas ordens como um cabo, embora minha patente seja superior à dele. Isso é doloroso; mas, como amo o meu benfeitor e soberano, obedeço. Só lamento que o soberano confie o Exército glorioso a alguém assim. Imagine que com a nossa retirada perdemos mais de quinze mil soldados, de cansaço e nos hospitais; e se tivéssemos avançado, isso não aconteceria. Diga, pelo amor de Deus, o que a nossa Rússia — a nossa mãe — vai dizer de nós, por ficarmos tão apavorados, por entregarmos a pátria tão boa e tão zelosa a uns canalhas e inspirarmos em cada cidadão o sentimento de ódio e de vergonha. Do que fugimos atemorizados, de quem temos medo? Não tenho culpa se o ministro é um covarde, indeciso, lerdo, preguiçoso e tem todas as piores qualidades. O Exército inteiro chora e o cobre dos piores insultos...

VI

Entre as inúmeras maneiras de dividir os fenômenos da vida, é possível dividi-los todos entre aqueles em que predomina o conteúdo e aqueles em que predomina a forma. Entre esta última, em oposição à vida no campo, nas aldeias, nas províncias e até em Moscou, pode-se incluir a vida em Petersburgo, em especial a dos salões. Essa vida é invariável.

Desde o ano de 1805, fizemos a paz com Bonaparte e o combatemos, fizemos constituições e as rasgamos, mas o salão de Anna Pávlovna e o salão de Hélène continuavam exatamente iguais ao que tinham sido sete anos antes, o primeiro, e cinco anos antes, o segundo. Exatamente como antes, no salão de Anna Pávlovna, falavam com perplexidade sobre os triunfos de Bonaparte e viam, tanto em seus triunfos como na indulgência que os soberanos europeus mostravam com ele, uma conspiração pérfida cujo único propósito era causar perturbação e inquietação ao círculo de cortesãos que tinha em Anna Pávlovna a sua embaixatriz. Da mesma forma, no salão de Hélène, a quem o próprio Rumiántsev 5 dava a honra das suas visitas e a quem ele considerava uma mulher de inteligência notável, tanto em 1808 como em 1812 falavam com entusiasmo sobre a grande nação e o grande homem e viam com pesar o rompimento com a França, que, na opinião das pessoas que se reuniam no salão de Hélène, deveria ser encerrado com um acordo de paz.

Ultimamente, após a volta do soberano, vindo do exército, tinha havido certa agitação nesses círculos de salões adversários, e ocorreram algumas demonstrações de um contra o outro, no entanto a orientação dos círculos permaneceu a mesma. No círculo de Anna Pávlovna, só admitiam os franceses que fossem legitimistas inveterados e exprimia-se a ideia patriótica de que não era preciso ir ao teatro francês e que a manutenção da trupe de atores franceses custava o mesmo que a manutenção de todo um corpo de exército. Os acontecimentos militares eram acompanhados com fervor e prosperavam os boatos mais favoráveis sobre as nossas tropas. No círculo de Hélène, de Rumiántsev e dos franceses, desmentiam os boatos sobre a crueldade do inimigo e da guerra e discutiam todas as tentativas de Napoleão para obter um acordo de paz. Nesse círculo, criticavam aqueles que recomendavam rápidas providências para preparar a transferência da corte para Kazan, bem como a transferência dos estabelecimentos de ensino para moças patrocinados pela imperatriz-mãe. No geral, toda a questão da guerra se apresentava no salão de Hélène como manifestações vazias, que em pouco tempo terminariam num acordo de paz, e reinava a opinião de Bilíbin, que agora estava em Petersburgo e era íntimo da casa de Hélène (todas as pessoas inteligentes tinham de ir à casa dela), segundo a qual não era a pólvora e sim aqueles que inventaram a pólvora que haviam de resolver a questão. Nesse círculo, zombavam de modo irônico e muito sagaz, embora com toda a cautela, do entusiasmo de Moscou, cuja notícia chegara a Petersburgo junto com a volta do soberano.

No círculo de Anna Pávlovna, ao contrário, deleitavam-se com aquele entusiasmo e falavam sobre ele como Plutarco falava sobre os antigos. O príncipe Vassíli, que continuava a ocupar os mesmos postos importantes, constituía um elemento de ligação entre os dois círculos. Ia à casa de ma bonne amie 6 Anna Pávlovna e dans le salon diplomatique de ma fille 7 e muitas vezes, entre os incessantes movimentos de um baluarte para outro, ele se confundia e dizia no salão de Anna Pávlovna o que deveria dizer no salão de Hélène, e também o contrário.

Pouco depois da volta do soberano, o príncipe Vassíli passou a falar sobre assuntos de guerra no salão de Anna Pávlovna, julgando com severidade Barclay de Tolly, mas se via em dúvida quanto a quem indicar para o posto de comandante em chefe. Um dos convidados, conhecido como un homme de beaucoup de mérite, contou ter visto naquele dia Kutúzov, nomeado comandante da milícia de Petersburgo, presidindo na Câmara do Tesouro o alistamento dos recrutas, e permitiu-se exprimir com cautela a conjetura de que Kutúzov seria a pessoa que satisfazia todas as exigências para o posto de comandante em chefe.

Anna Pávlovna sorriu com melancolia e observou que Kutúzov só dera aborrecimentos para o soberano.

— Falei e repeti na assembleia da nobreza — interrompeu o príncipe Vassíli —, mas não me escutaram. Disse que a escolha dele para o posto de comandante da milícia não ia agradar ao soberano. Não quiseram me escutar.

— Sempre a mesma mania de oposição — continuou ele. — Mas contra quem? E tudo porque queremos macaquear o tolo entusiasmo de Moscou — disse o príncipe Vassíli, confundindo-se por um instante e esquecendo que no salão de Hélène era preciso ridicularizar o entusiasmo moscovita, mas que no salão de Anna Pávlovna se maravilhavam com aquele entusiasmo. Porém emendou-se imediatamente: — Pois é, será conveniente que o conde Kutúzov, o mais antigo general da Rússia, presida a sessão na Câmara do Tesouro, et il en restera pour sa peine?8 Será possível nomear comandante em chefe um homem que não consegue montar um cavalo, que dorme durante a reunião do conselho, um homem que tem o pior temperamento possível? Bela recomendação ele trouxe para si de Bucareste!9 Já nem vou comentar as suas qualidades como general, mas será possível num momento como este nomear um homem caduco e cego, sim, isso mesmo, cego? Vai ser uma beleza ter um general cego! Ele não enxerga nada. Só se for para brincar de cabra-cega... Não enxerga absolutamente nada!

Ninguém retrucou a isso.

No dia 24 de julho, isso era perfeitamente correto. Mas no dia 29 de julho Kutúzov recebeu o título de príncipe. O título de príncipe podia indicar que desejavam livrar-se dele — e por isso a opinião do príncipe Vassíli continuou a ser correta, embora ele já não se apressasse, agora, em exprimir tal opinião. Mas no dia 8 de agosto reuniu-se uma comissão formada pelo marechal de campo Saltikóv, por Araktchéiev, Viazmitínov, Lopukhin e Kotchubei a fim de avaliar a situação da guerra. A comissão resolveu que os fracassos decorriam da divisão de comando e, apesar de as pessoas que compunham a comissão estarem cientes da antipatia do soberano por Kutúzov, a comissão, após uma rápida deliberação, propôs nomear Kutúzov para o posto de comandante em chefe. E no mesmo dia Kutúzov foi nomeado comandante em chefe plenipotenciário do Exército e de toda a região ocupada pelas tropas.

No dia 9 de agosto, o príncipe Vassíli encontrou-se de novo no salão de Anna Pávlovna com l’homme de beaucoup de mérite. L’homme de beaucoup de mérite cortejava Anna Pávlovna, pois desejava ser nomeado diretor de um dos estabelecimentos de ensino para moças patrocinados pela imperatriz Maria Fiódorovna. O príncipe Vassíli entrou na sala com o aspecto de um vencedor feliz, um homem que havia alcançado o objeto do seu desejo.

— Eh bien, vous savez la grande nouvelle? Le prince Koutouzoff est maréchal. Todas as discórdias terminaram. Estou muito contente, muito contente! — exclamou o príncipe Vassíli — Enfin, voilà un homme 10 — exclamou ele, olhando em redor, com ar significativo e severo, para todos os que estavam na sala. L’homme de beaucoup de mérite, apesar do seu desejo de receber o posto de diretor de escola, não pôde se conter e lembrou ao príncipe Vassíli a sua opinião anterior. (Isso era uma falta de cortesia com o príncipe Vassíli no salão de Anna Pávlovna, e também com a anfitriã Anna Pávlovna, que recebera a notícia com tanta alegria; mesmo assim ele não conseguiu se conter.)

— Mais on dit qu’il est aveugle, mon prince? 11 — disse ele, lembrando ao príncipe Vassíli as suas próprias palavras.

— Allez donc, il y voit assez 12 — respondeu ligeiro o príncipe Vassíli com sua voz de baixo e tossindo de leve, a mesma voz e a mesma tosse com que resolvia todas as dificuldades. — Allez, il y voit assez — repetiu. — E o que também me deixa contente — continuou — é que o soberano lhe deu plenos poderes sobre todos os exércitos, sobre todas as regiões, poder que nunca tinha sido conferido a nenhum comandante em chefe. É um segundo autocrata — concluiu ele, com um sorriso de triunfo.

— Deus queira, Deus queira — disse Anna Pávlovna. L’homme de beaucoup de mérite, ainda um novato no ambiente da corte, disse, no intuito de lisonjear Anna Pávlovna, defendendo a opinião anterior dela sobre a questão:

— Dizem que o soberano relutou em conceder esse poder a Kutúzov. On dit qu’il rougit comme une demoiselle à laquelle on dirait “Joconde”, en lui disant: “Le souverain et la patrie vous décernent cet honneur”.13

— Peut-être que le cœur n’était pas de la partie? 14 — disse Anna Pávlovna.

— Ah, não, não — intercedeu com ardor o príncipe Vassíli. Agora ele não admitia mais trocar Kutúzov por ninguém. Na opinião do príncipe Vassíli, Kutúzov não só era o melhor, como todos o adoravam. — Não, isso é impossível, pois o soberano tinha tanto apreço por ele antes — disse.

— Queira Deus que o príncipe Kutúzov — disse Anna Pávlovna — assuma de fato esse poder e não permita que ninguém enfie pedaços de pau entre os raios das rodas, des bâtons dans les roues.

O príncipe Vassíli entendeu de pronto quem era aquele “ninguém”. Num sussurro, falou:

— Sei de fonte segura que Kutúzov exigiu, como condição imprescindível, que o tsarévitch herdeiro do trono não ficasse no Exército: Vous savez ce qu’il a dit à l’empereur? — E o príncipe Vassíli repetiu as palavras supostamente ditas por Kutúzov para o soberano: — “Não posso castigá-lo, se agir mal, nem condecorá-lo, se agir bem”. Ah! É um homem inteligentíssimo, o príncipe Kutúzov. Oh, je le connais de longue date.15

— Dizem até — falou l’homme de beaucoup de mérite, que ainda não havia adquirido o tato da corte — que o príncipe impôs uma condição indispensável: que o soberano não vá para junto do exército.

Assim que disse isso, no mesmo instante o príncipe Vassíli e Anna Pávlovna lhe deram as costas e, tristonhos, com um suspiro em face da sua ingenuidade, olharam um para o outro.

VII

Enquanto isso se passava em Petersburgo, os franceses já haviam deixado Smolensk para trás e aproximavam-se cada vez mais de Moscou. Thiers, o historiador de Napoleão, a exemplo de outros historiadores de Napoleão, na tentativa de justificar o seu herói, diz que Napoleão foi atraído contra a sua vontade para os muros de Moscou. Ele tem razão, como têm razão todos os historiadores que procuram a explicação para os acontecimentos históricos na vontade de uma pessoa; ele tem razão, assim como os historiadores russos que afirmam que Napoleão foi atraído para Moscou pela habilidade dos chefes militares russos. Aqui, além da lei da retrospecção (volta ao passado), que concebe todo o passado como uma preparação para a realização de um fato, existe ainda uma reciprocidade que confunde toda a questão. Um bom jogador de xadrez está sinceramente convencido de que sua derrota decorre de um erro seu e então procura esse erro no início do jogo, mas esquece que a cada etapa, ao longo de toda a partida, houve erros semelhantes e que nenhum de seus lances foi perfeito. O erro ao qual o jogador dirige a sua atenção só lhe parece mais saliente porque o adversário tirou proveito dele. Bem mais complexo do que isso é o jogo da guerra, que se passa em condições de tempo determinadas e onde não há uma vontade única que governa mecanismos inanimados, mas, ao contrário, tudo decorre de um conflito incalculável de vontades distintas.

Depois de Smolensk, Napoleão procurou travar combate para além de Dorogobuj, em Viazma, e depois em Tsárevo-Zaimiche; mas ocorreu que, em razão de um conflito incalculável de circunstâncias, os russos não puderam travar combate senão em Borodinó, a cento e doze verstas de Moscou. A partir de Viazma, Napoleão deu ordem para avançar direto para Moscou.

Moscou, la capitale asiatique de ce grand empire, la ville sacrée des peuples d’Alexandre, Moscou avec ses innombrables églises en forme de pagodes chinoises!16 Essa Moscou não dava sossego à imaginação de Napoleão. Na marcha de Viazma para Tsárevo-Zaimiche, Napoleão seguiu montado no seu cavalo baio marchador de crina e rabo curtos, acompanhado pela guarda imperial, por seus guarda-costas, por seus escudeiros e ajudantes de ordens. O comandante do Estado-Maior Berthier ficou para trás a fim de interrogar um militar russo da cavalaria que tinha sido feito prisioneiro. A galope, acompanhado pelo intérprete Lelorgne d’Ideville, ele alcançou Napoleão e, com o rosto alegre, freou o seu cavalo.

— Eh bien? — perguntou Napoleão.

— Un cosaque de Platow diz que a tropa de Plátov vai se unir ao grande exército e que Kutúzov foi nomeado comandante em chefe. Très intelligent et bavard!17

Napoleão sorriu, mandou dar um cavalo ao cossaco e trazê-lo até ele. Napoleão queria lhe falar pessoalmente. Alguns ajudantes de ordens partiram a galope, e uma hora depois Lavruchka, o servo que Deníssov tinha cedido para Rostóv, com uma jaqueta de ordenança, montado numa sela da cavalaria francesa, com o rosto velhaco, embriagado e alegre, aproximou-se de Napoleão. Napoleão ordenou que ele cavalgasse a seu lado e começou a perguntar:

— O senhor é cossaco?

— Cossaco, sim, senhor, vossa excelência.

“Le cosaque, ignorant la compagnie dans laquelle il se trouvait, car la simplicité de Napoléon n’avait rien qui pût révéler à une imagination orientale la présence d’un souverain, s’entretint avec la plus extrême familiarité des affaires de la guerre actuelle”,18 escreve Thiers, ao narrar esse episódio. De fato, Lavruchka, que na véspera havia se embriagado e deixara o seu patrão sem jantar, tinha sido chicoteado e mandado para a aldeia a fim de conseguir umas galinhas, onde cedeu à tentação de fazer uma pilhagem e acabou aprisionado pelos franceses. Lavruchka era um desses lacaios grosseiros, insolentes, que já viram de tudo, que consideram seu dever fazer tudo com infâmia e trapaça, que estão prontos a prestar qualquer serviço ao seu patrão e que adivinham com astúcia os pensamentos maldosos do patrão, em especial as vaidades e as mesquinharias.

Ao se ver na companhia de Napoleão, cuja identidade ele reconheceu muito bem e com facilidade, Lavruchka não ficou nem um pouco embaraçado e apenas tentava, com todo o empenho, prestar seus serviços aos novos senhores.

Sabia muito bem que aquele era o próprio Napoleão, mas a presença de Napoleão não poderia embaraçá-lo mais do que a presença de Rostóv ou de um sargento que tinha varas para açoitá-lo, porque Lavruchka não possuía nada que o sargento ou Napoleão pudessem lhe tomar.

Repetiu todas as lorotas que corriam entre os ordenanças. Boa parte daquilo era verdade. Mas quando Napoleão perguntou o que os russos achavam, se iam vencer Bonaparte ou não, Lavruchka estreitou os olhos e parou para pensar.

Percebeu ali uma astúcia sutil, como sempre enxergam astúcia em tudo as pessoas semelhantes a Lavruchka, franziu as sobrancelhas e ficou calado um momento.

— É o seguinte: se houver uma batalha — disse ele, com ar pensativo —, e for logo, então pronto, acabou-se. Mas se passarem três dias a partir de hoje, então quer dizer que essa batalha vai demorar.

Traduziram assim para Napoleão: “Si la bataille est donnée avant trois jours, les français la gagneraient, mais si elle était donnée plus tard, Dieu seul sait ce qui en arriverait”.19 Lelorgne d’Ideville traduziu sorrindo. Napoleão não sorriu, embora obviamente estivesse no mesmo estado de espírito alegre, e mandou que lhe repetissem aquelas palavras.

Lavruchka percebeu isso e, a fim de alegrá-lo, falou, fingindo não saber quem era Napoleão:

— A gente sabe que vocês têm o Bonaparte, ele venceu o mundo inteiro, mas com a gente a história é outra... — disse, sem saber como nem por que um patriotismo petulante acabou se intrometendo nas suas palavras. O intérprete traduziu aquelas palavras para Napoleão, sem a conclusão, e Bonaparte sorriu. “Le jeune cosaque fit sourire son puissant interlocuteur”,20 escreve Thiers. Depois de avançar alguns passos em silêncio, Napoleão voltou-se para Berthier e disse que ele queria verificar o efeito que teria sur cet enfant du Don 21 a informação de que a pessoa com quem estava conversando cet enfant du Don era o próprio imperador, o mesmo imperador que escreveu nas pirâmides o seu nome vitorioso e imortal.

A informação foi dada.

Lavruchka (compreendendo que faziam aquilo para deixá-lo espantado e que Napoleão achava que ele ia ficar assustado), a fim de agradar aos novos senhores, na mesma hora fingiu estar assombrado, estupefato, arregalou os olhos e fez a cara que estava acostumado a fazer quando mandavam chicoteá-lo. “À peine l’interprète de Napoléon”, escreveu Thiers, “avait-il parlé, que le cosaque, saisi d’une sorte d’ébahissement, ne proféra plus une parole et marcha les yeux constamment attachés sur ce conquérant, dont le nom avait pénétré jusqu’à lui, à travers les steppes de l’Orient. Toute sa loquacité s’était subitement arrêtée pour faire place à un sentiment d’admiration naïve et silencieuse. Napoléon, après l’avoir récompensé, lui fit donner la liberté, comme à un oiseau qu’on rend aux champs qui l’ont vu naître.” 22

Napoleão seguiu em frente, sonhando com aquela Moscou que dominava a sua imaginação, enquanto l’oiseau qu’on rend aux champs qui l’ont vu naître partiu a galope para os postos avançados, inventando de antemão tudo o que não havia acontecido e que ele iria contar aos seus amigos. Aquilo que de fato ocorrera com Lavruchka, ele não queria contar justamente porque lhe parecia uma história sem graça. Seguiu na direção dos cossacos, perguntou onde estava o regimento que formava o destacamento de Plátov e já ao anoitecer encontrou o patrão Nikolai Rostóv, que estava em Iánkovo e havia acabado de montar no cavalo a fim de dar um passeio com Ilin pelas aldeias dos arredores. Rostóv deu outro cavalo para Lavruchka e levou-o consigo.

VIII

A princesa Mária não estava em Moscou e fora de perigo, como pensava o príncipe Andrei.

Depois que Alpátitch voltou de Smolensk, o velho príncipe pareceu despertar de repente de um sono. Mandou os milicianos virem das aldeias, armou-os e redigiu uma carta para o comandante em chefe, na qual comunicava que tinha tomado a decisão de permanecer em Montes Calvos até o fim e defender-se, deixando a critério dele se devia ou não tomar medidas para a defesa de Montes Calvos, onde um dos mais antigos generais russos seria feito prisioneiro ou morreria, e anunciou para as pessoas de casa que ele ia permanecer em Montes Calvos.

No entanto, enquanto ele mesmo permanecia em Montes Calvos, tomou providências para a partida da princesa Mária, de Dessalles e do pequeno príncipe para Bogutchárovo e de lá para Moscou. A princesa Mária, assustada com a atividade febril e insone do pai, atividade que havia tomado o lugar da apatia anterior, não podia admitir deixá-lo sozinho e, pela primeira vez na vida, se permitiu desobedecer ao pai. Recusou-se a partir, e sobre ela desabou uma terrível tempestade de raiva do príncipe. Ele repisou para a filha todas as injustiças que já havia lançado contra ela. Na tentativa de incriminá-la, disse que ela o havia esgotado, que ela havia criado uma desavença entre ele e o filho, que a princesa Mária tinha desconfianças sórdidas a respeito dele, que o propósito da vida dela era envenenar a sua existência, e expulsou-a do seu escritório, depois de lhe dizer que, se ela não ia partir, isso não tinha a menor importância para ele. Disse que não queria saber da existência da filha, mas de antemão a preveniu de que não se atrevesse a aparecer diante dos seus olhos. O fato de que o pai, ao contrário do que a princesa Mária mais temia, não a mandou partir à força, apenas ordenou que ela não aparecesse mais diante dos seus olhos, alegrou a princesa Mária. Ela sabia que isso demonstrava que, no mais íntimo da alma do pai, ele estava contente por ela ficar na casa e não partir.

No dia seguinte à partida de Nikóluchka, o velho príncipe, de manhã, vestiu o uniforme completo e preparou-se para ir ao encontro do comandante em chefe. A caleche já estava pronta. A princesa Mária viu como ele, de uniforme e com todas as medalhas, saiu de casa e seguiu para o jardim a fim de passar em revista os mujiques e os criados domésticos armados. A princesa Mária estava junto à janela, escutando a voz do pai, que ressoava do jardim. De repente algumas pessoas vieram correndo da alameda com os rostos assustados.

A princesa Mária saiu para a varanda, correu para a vereda florida e dali para a alameda. Uma grande multidão de milicianos e de criados vinha ao seu encontro, e no centro daquela multidão algumas pessoas arrastavam um pequeno velhote de uniforme e medalhas, amparado por baixo dos braços. A princesa Mária correu na direção dele e, no jogo dos pequenos círculos de luz que caíam através da sombra da alameda de tílias, não conseguiu se dar conta da mudança que ocorrera no rosto dele. Viu apenas que a antiga expressão severa e decidida do rosto do velho havia mudado para uma expressão de timidez e submissão. Ao ver a filha, ele começou a mexer os lábios fracos e falou com voz rouca. Era impossível entender o que ele queria. Levantaram-no pelos braços, carregaram-no para o escritório e acomodaram-no naquele sofá que ultimamente ele tanto temia.

O médico, trazido naquela mesma noite, fez uma sangria e comunicou que o príncipe havia tido um ataque no lado direito.

Era cada vez mais perigoso permanecer em Montes Calvos e, no dia seguinte, após o ataque sofrido pelo príncipe, levaram-no para Bogutchárovo. O médico os acompanhou.

Quando chegaram a Bogutchárovo, Dessalles e o pequeno príncipe já haviam partido para Moscou.

Na mesma situação de antes, nem pior nem melhor, atacado por uma paralisia, o velho príncipe ficou três semanas em Bogutchárovo, na casa nova, construída pelo príncipe Andrei. O velho príncipe permanecia inconsciente; ficava deitado, como um cadáver desfigurado. Não parava de balbuciar, agitando as sobrancelhas e os lábios, e era impossível saber se ele tinha ou não alguma ideia daquilo que estava à sua volta. Só se podia saber com segurança que ele sofria e que ainda sentia necessidade de exprimir alguma coisa. Mas o que era aquilo, ninguém conseguia entender; seria algum capricho de doente semiensandecido, teria a ver com a situação geral, ou teria a ver com circunstâncias familiares?

O médico dizia que a agitação que o doente manifestava não significava nada, que tal agitação tinha causas físicas; mas a princesa Mária achava (e o fato de a sua presença sempre aumentar a agitação do pai corroborava a sua suposição) que ele queria lhe dizer alguma coisa. Era evidente que ele sofria, física e moralmente.

Não havia esperanças de cura. Era impossível removê-lo. O que aconteceria se ele morresse na estrada? “Não seria melhor que isso tivesse um fim, um fim completo?”, às vezes pensava a princesa Mária. Ela lhe fazia companhia noite e dia, quase sem dormir e, é terrível dizer, muitas vezes ficava ao lado do pai, não na esperança de descobrir sinais de cura, mas desejando descobrir sinais da aproximação do fim.

Por mais estranho que fosse para a princesa reconhecer em si tal sentimento, o fato é que aquilo estava dentro dela. E o que era ainda mais horrível para a princesa Mária era que, desde que o pai ficara doente (ou mesmo ainda antes, ainda antes de ela ficar ao lado do pai, esperando que algo acontecesse), haviam despertado dentro dela todos os desejos e esperanças pessoais esquecidos e adormecidos. Aquilo que durante anos não tinha passado pela sua mente, pensamentos de uma vida livre, sem o eterno pavor do pai, e até pensamentos sobre a possibilidade do amor e da felicidade familiar, vinham a todo instante a sua imaginação, como tentações de um demônio. Por mais que ela as rechaçasse, vinham à sua mente, sem cessar, perguntas sobre como ela agora, depois disso, haveria de organizar a sua vida. Eram tentações de um demônio, e a princesa Mária sabia disso. Sabia que a única arma contra ele era a prece, e tentava rezar. Parava na metade da prece, olhava para o ícone, lia as palavras da prece, mas não conseguia rezar. Sentia que agora um outro mundo tinha se apoderado dela — um mundo de atividade cotidiana, livre e difícil, totalmente oposto ao mundo moral em que ela estava antes encerrada e no qual o melhor consolo era a prece. Ela não conseguia rezar e não conseguia chorar, e os afazeres cotidianos a dominavam.

Ficar em Bogutchárovo estava se tornando perigoso. De toda parte vinham rumores sobre a aproximação dos franceses, e numa aldeia, a quinze verstas de Bogutchárovo, uma propriedade rural foi atacada por saqueadores franceses.

O médico insistia que era preciso levar o príncipe embora; o decano da nobreza mandou um funcionário falar com a princesa Mária, para convencê-la a partir o mais depressa possível. O chefe de polícia rural foi a Bogutchárovo e insistiu na mesma ideia, dizendo que os franceses estavam a quarenta verstas, que as proclamações dos franceses circulavam pelas aldeias e que, se a princesa não partisse com o pai até o dia 15, ele não poderia se responsabilizar.

A princesa resolveu partir no dia 15. Os afazeres dos preparativos e a distribuição das ordens, que todos vinham lhe pedir, mantiveram-na ocupada o dia inteiro. A noite do dia 14 para o dia 15, ela passou, como de costume, sem trocar de roupa, no quarto vizinho àquele onde estava o príncipe. Várias vezes, ela acordava e escutava os gemidos, os balbucios, o ranger do leito e também os passos de Tíkhon e do médico, que viravam o príncipe de lado sobre a cama. Várias vezes, ela ficou escutando junto à porta e lhe pareceu que agora o pai estava balbuciando mais alto do que o costume e que era virado sobre a cama mais vezes do que o costume. Ela não conseguia dormir e, várias vezes, chegou junto à porta e se pôs a escutar, com vontade de entrar, mas sem decidir-se a fazê-lo. Embora ele não o dissesse, a princesa Mária via, sabia como era desagradável, para o pai, qualquer expressão de medo por ele. A princesa havia percebido o descontentamento com que ele se esquivava do olhar involuntário e tenaz que a filha de vez em quando lhe dirigia. Ela sabia que a sua entrada à noite, num horário incomum, iria irritar o pai.

Mas ela nunca havia sentido com tanta força a ideia de perder o pai, e tal ideia nunca fora tão terrível para ela. Lembrava-se de toda a sua vida com o velho príncipe e, em todas as palavras e gestos dele, a princesa Mária encontrava uma expressão do seu amor por ela. De vez em quando, em meio a essas recordações, irrompiam na sua imaginação as tentações do demônio, pensamentos sobre o que ia acontecer após a morte do pai e sobre a forma que tomaria a sua vida nova e livre. Porém, com repulsa, rechaçava tais pensamentos. De manhã, ele ficou mais calmo, e ela adormeceu.

A princesa Mária acordou tarde. A sinceridade que acompanha o despertar deixou claro para ela o que mais a preocupava na doença do pai. A princesa acordou, escutou o que estava se passando atrás da porta e, após ouvir os gemidos do pai, disse para si mesma, com um suspiro, que tudo continuava na mesma.

— Mas o que devia acontecer? O que eu queria? Eu quero a sua morte! — exclamou, com repugnância de si mesma.

Despiu-se, lavou-se, leu as preces e saiu para a varanda. Junto à varanda, haviam deixado as carruagens sem os cavalos e dentro delas punham as bagagens.

A manhã estava amena e cinzenta. A princesa Mária se deteve na varanda, ainda horrorizada com a sua sordidez interior, enquanto tentava pôr em ordem os pensamentos, antes de entrar no quarto do pai.

O médico desceu a escada e aproximou-se dela.

— Hoje ele está melhor — disse o médico. — Eu estava à procura da senhora. É possível compreender algo do que ele está dizendo, a cabeça está mais arejada. Venha. Ele está chamando a senhora...

O coração da princesa Mária começou a bater com tanta força ao ouvir essa notícia que ela empalideceu e inclinou-se na direção da porta para não cair. Ver o pai, falar com ele, ficar sob o seu olhar, agora quando toda a alma da princesa Mária estava repleta daquelas terríveis tentações criminosas, era torturante e alegre, e também horroroso.

— Vamos — disse o médico.

A princesa Mária entrou no quarto do pai e aproximou-se da cama. Ele estava deitado, as costas um pouco levantadas na cabeceira, as mãozinhas miúdas, ossudas, cobertas de veias lilases e nodosas, estiradas sobre o cobertor, o olho esquerdo parado, olhando reto, o olho direito enviesado, as sobrancelhas e os lábios imóveis. Todo ele estava muito magro, pequeno e dava pena. Seu rosto parecia ter secado ou derretido, suas feições haviam diminuído. A princesa Mária aproximou-se e beijou a mão do pai. A mão esquerda apertou a mão dela de tal modo que ficou evidente que o pai estava à sua espera havia muito tempo. Ele começou a puxar a mão da filha e as sobrancelhas e os lábios passaram a se mexer de modo irritado.

A princesa Mária o fitou com ar assustado, tentando adivinhar o que o pai queria dela. Quando mudou de posição e chegou mais perto, de modo que o olho esquerdo dele pudesse ver o seu rosto, o pai se acalmou e, por alguns segundos, olhou fixamente para a filha. Depois os lábios e a língua começaram a se mexer, ouviram-se alguns sons e ele começou a falar, enquanto olhava para ela com ar tímido e suplicante, com receio, era evidente, de que ela não o compreendesse.

A princesa Mária, concentrando toda a força da sua atenção, olhava para o pai. O cômico esforço com que ele revirava a língua obrigou a princesa Mária a baixar os olhos e, com esforço, sufocar os soluços que queriam subir à garganta. O pai falou algo, repetiu suas palavras diversas vezes. A princesa Mária não conseguiu entender; mas tentou adivinhar o que ele estava dizendo e repetiu, em tom interrogativo, as palavras ditas pelo pai.

— Ada... e... do... — repetiu ele várias vezes.

Era impossível entender aquelas palavras. O médico achou que tinha adivinhado e, repetindo as palavras do velho príncipe, perguntou: a princesa tem medo? Ele balançou a cabeça negativamente e repetiu de novo a mesma coisa...

— A alma, a alma está doendo — concluiu e disse a princesa Mária. O pai gemeu uma confirmação, segurou a mão dela e pôs-se a apertá-la contra vários pontos do próprio peito, como se quisesse achar o lugar mais verdadeiro para ela.

— Todos os pensamentos! Em você... os pensamentos — conseguiu dizer em seguida, muito melhor e de maneira infinitamente mais compreensível, agora que estava seguro de que era entendido. A princesa Mária apertou a cabeça junto à mão do pai, tentando esconder os soluços e as lágrimas.

Ele passou a mão pelos cabelos dela.

— Chamei você a noite inteira... — disse.

— Se eu soubesse... — respondeu ela, entre lágrimas. — Tive medo de entrar.

Ele apertou a mão da princesa.

— Você não dormiu?

— Não, não dormi — respondeu a princesa Mária, balançando a cabeça. Incapaz de não se submeter ao pai, ela agora também se exprimia como ele, tentando falar mais por meio de sinais, como se tivesse dificuldade para mexer a língua.

— Querida... — ou — Amiga... — a princesa Mária não conseguiu decifrar; porém, seguramente, pela expressão do olhar do pai, tinha sido dita a palavra mais carinhosa e terna que ele jamais dissera. — Por que não veio?

“E eu, que desejava tanto a sua morte!”, pensou a princesa Mária. Ela ficou um pouco em silêncio.

— Obrigado, filha... amiga... obrigado por tudo, tudo... desculpe... obrigado... desculpe... obrigado!... — E lágrimas correram dos seus olhos. — Chame o Andriucha — disse ele de repente, e algo de tímido, infantil e incrédulo exprimiu-se no seu rosto ao fazer tal pedido. Ele mesmo parecia saber que o seu pedido não tinha razão de ser. Pelo menos, assim pareceu à princesa Mária.

— Recebi uma carta dele — respondeu a princesa Mária.

Com surpresa e timidez, o pai a fitou.

— Onde ele está?

— Está no Exército, mon père, em Smolensk.

O pai ficou muito tempo em silêncio, de olhos fechados; em seguida balançou a cabeça afirmativamente, como que respondendo à sua dúvida e confirmando que agora compreendia tudo e se lembrara de tudo, e abriu os olhos.

— Sim — disse ele com clareza e em voz baixa. — A Rússia está perdida! Eles a destruíram! — E soluçou de novo, e lágrimas correram dos seus olhos. A princesa Mária não conseguiu mais se conter e chorou também, olhando para o rosto dele.

O velho príncipe fechou os olhos outra vez. Seus soluços cessaram. Fez um sinal com a mão e com os olhos; e Tíkhon, que tinha entendido, enxugou suas lágrimas.

Depois ele abriu os olhos e falou algo que, durante muito tempo, ninguém conseguia compreender, mas por fim apenas Tíkhon entendeu e reproduziu. A princesa Mária procurou o sentido das suas palavras com base no estado de ânimo em que o pai havia falado um minuto antes. Achava ora que estava falando da Rússia, ora do príncipe Andrei, ou dela, ou do neto, ou da própria morte. E com isso não conseguia adivinhar o sentido das palavras do pai.

— Vista o seu vestido branco, eu gosto muito dele — disse o pai.

Ao compreender tais palavras, a princesa Mária começou a soluçar mais alto ainda, e o médico, tomando-a pelo braço, conduziu-a para a varanda, fora do quarto, persuadindo a princesa Mária a se acalmar e a cuidar dos preparativos da viagem. Assim que a princesa Mária deixou o quarto do velho príncipe, ele começou de novo a falar do filho, da guerra, do soberano, contraiu as sobrancelhas com irritação, passou a erguer a voz rouca e sofreu um segundo e último ataque.

A princesa Mária estava na varanda. O dia estava clareando, fazia sol e calor. Ela não conseguia compreender nada, pensar nada, nem sentir nada, senão o seu amor apaixonado pelo pai, amor que, era essa a sua impressão, ela mesma desconhecia até aquele momento. Saiu para o jardim e, soluçando, correu rumo ao lago, pelas veredas de tílias jovens, plantadas pelo príncipe Andrei.

— Sim... eu... eu... eu... eu. Eu desejava a morte dele. Sim, eu desejava que terminasse logo... Eu quis ficar tranquila... Mas o que vai ser de mim? O que vou fazer da minha tranquilidade, quando ele não existir mais? — murmurava a princesa Mária enquanto caminhava pelo jardim a passos ligeiros e apertava as mãos no peito, do qual irrompiam soluços convulsivos. Depois de dar uma volta completa no jardim, o que a levou de novo para a casa, viu que vinham ao seu encontro Mlle Bourienne (que havia ficado em Bogutchárovo e não queria sair de lá) e um homem desconhecido. Era o decano da nobreza do distrito, que viera em pessoa falar com a princesa para reforçar que era imprescindível partir o mais cedo possível. A princesa Mária ouvia e não entendia; levou-o para dentro de casa, convidou-o para almoçar e sentou-se em companhia dele. Depois, pedindo desculpas ao decano da nobreza, seguiu na direção da porta do quarto do pai. O médico, com o rosto perturbado, saiu ao seu encontro e disse que não podia entrar.

— Saia, princesa, saia, saia!

A princesa Mária voltou para o jardim, foi ao pé do morro e junto ao lago, num lugar onde ninguém podia vê-la, sentou-se na grama. Não soube quanto tempo ficou ali. Os passos de uma mulher que corria pela vereda obrigaram-na a voltar a si. Levantou-se e viu que Duniacha, sua criada de quarto, que obviamente andava afobada à sua procura, parou de repente, como que assustada com o aspecto da patroa.

— Por favor, princesa... o príncipe... — disse Duniacha, com a voz entrecortada.

— Já vou, já vou, estou indo — pôs-se a falar a princesa às pressas, sem dar tempo para que Duniacha terminasse de falar o que tinha a dizer e, esforçando-se para não olhar para Duniacha, correu na direção da casa.

— Princesa, está se cumprindo a vontade de Deus, a senhora deve estar preparada para tudo — disse o decano da nobreza, que a encontrou na porta de entrada.

— Deixe-me. Não é verdade! — gritou ela, em tom rancoroso. O médico quis detê-la. Ela o empurrou e correu na direção da porta. “Para que essas pessoas de rostos assustados ficam barrando o meu caminho? Não preciso de ninguém! E além do mais o que elas estão fazendo aqui?” Abriu a porta, e a clara luz do dia naquele quarto antes em penumbra horrorizou-a. No quarto estavam mulheres e a babá. Todos se afastaram da cama, abrindo caminho para ela. O príncipe estava deitado como antes; mas o ar severo do seu rosto sereno deteve a princesa Mária no limiar do quarto.

“Não, ele não morreu, não pode ser!”, disse a princesa Mária consigo, aproximou-se e, superando o horror que a dominara, apertou os lábios contra a face do pai. Mas na mesma hora recuou. Toda a força da ternura por ele, que ela experimentava dentro de si, desapareceu num instante e foi substituída por um sentimento de horror pelo que estava na sua frente. “Não, não é mais ele! Não é ele, só que no mesmo lugar em que ele estava há uma coisa alheia e hostil, um mistério terrível, horroroso e repugnante...” E, depois de cobrir o rosto com as mãos, a princesa Mária caiu nos braços do médico, que a amparou.

Na presença de Tíkhon e do médico, as mulheres lavaram o que tinha sido ele, amarraram a cabeça com um lenço para a mandíbula não endurecer de boca aberta e, com outro lenço, prenderam as pernas que haviam se separado. Depois vestiram-no com o uniforme e as medalhas e colocaram sobre a mesa o pequeno corpo ressequido. Só Deus sabe quem cuidou daquilo, e quando, mas tudo se fez como que por si mesmo. À noite, velas ardiam em redor do caixão, havia uma mortalha por cima do caixão, foram espalhadas folhinhas de zimbro pelo chão, embaixo da ressequida cabeça do defunto foi colocada uma oração impressa e, num canto, o sacristão lia o livro dos Salmos.

Assim como os cavalos empinam, resfolegam e se aglomeram junto a um cavalo morto, ali na sala, em torno do caixão, aglomeraram-se de repente pessoas de casa e de fora — o decano da nobreza, o estaroste, camponesas, todos de olhos fixos e assustados, faziam o sinal da cruz, curvavam-se e beijavam a mão fria e enrijecida do velho príncipe.

IX

Até o príncipe Andrei se instalar ali, Bogutchárovo sempre fora uma propriedade abandonada pelos seus senhores, e os mujiques de Bogutchárovo tinham um caráter de todo distinto dos mujiques de Montes Calvos. Diferenciavam-se pela fala, pela roupa e pelo temperamento. Eram chamados de gente da estepe. O velho príncipe elogiava-os por sua resistência no trabalho, quando vinham ajudar na colheita em Montes Calvos ou escavar fossos e canais, mas não gostava deles e de sua selvageria.

A última estada do príncipe Andrei em Bogutchárovo, com as suas inovações — hospitais, escolas e um tributo mais leve —, não suavizou o temperamento dos mujiques, ao contrário, reforçou neles os traços de caráter que o velho príncipe chamava de selvageria. Entre eles, sempre corriam boatos obscuros, ora diziam que todos seriam alistados à força nos regimentos de cossacos, ora falavam de uma nova religião à qual seriam obrigados a se converter, outras vezes falavam de uns folhetos do tsar, ou de um juramento feito pelo tsar Pável Petróvitch em 1797 (sobre o qual diziam que o tsar lhes dera a liberdade, mas os senhores de terras o impediram), ou então diziam que Piotr Fiódorovitch voltaria a reinar dali a sete anos e que todos seriam livres,23 e a vida ficaria tão simples que não haveria mais com que se preocupar. Boatos sobre a guerra de Bonaparte e a sua invasão fundiam-se, para eles, com ideias obscuras de Anticristo, fim do mundo e liberdade pura.

Nos arredores de Bogutchárovo, existiam aldeias grandes, pertencentes ao Estado e também aos senhores de terras a quem os camponeses pagavam tributo. Os senhores de terras que residiam naquela localidade eram muito poucos; os servos domésticos e os servos alfabetizados eram também muito poucos e, na vida dos camponeses da localidade, eram mais visíveis e mais fortes do que na de outros camponeses as misteriosas correntezas da vida popular russa, cujas causas e significados são inexplicáveis para os contemporâneos. Um de tais fenômenos foi o movimento ocorrido entre os camponeses da região, dez anos antes, voltado a uma migração em massa rumo a certos rios quentes. Centenas de camponeses, entre eles os de Bogutchárovo, resolveram de repente vender todo o seu gado e partiram com as famílias para algum lugar no sudeste. Assim como as aves voam para algum lugar do outro lado do oceano, aquelas pessoas precipitaram-se, com as esposas e os filhos, para um local no sudeste aonde nenhuma delas jamais tinha ido. Formaram caravanas, compravam sua liberdade individualmente ou fugiam e tomavam aquele caminho, seguiam para lá, para os rios quentes. Muitos foram castigados, mandados para a Sibéria, muitos morreram de fome e de frio no caminho, muitos voltaram por conta própria, e o movimento foi acabando por si mesmo, sem uma causa aparente, assim como havia começado. Mas as correntezas submersas não pararam de fluir no interior daquele povo e acumulavam uma força nova, que havia de se manifestar de novo, da mesma forma estranha, inesperada, e ao mesmo tempo simples, natural e vigorosa. Agora, no ano de 1812, para um homem que vivesse próximo do povo, era visível que aquelas correntezas submersas estavam em intensa movimentação e prestes a se manifestar.

Alpátitch, que tinha chegado a Bogutchárovo pouco tempo antes da morte do velho príncipe, notou que havia uma agitação entre o povo e que, ao contrário do que estava acontecendo na região de Montes Calvos, onde num raio de sessenta verstas todos os camponeses estavam indo embora (deixando para trás suas aldeias para que os cossacos as destruíssem), na região da estepe, em Bogutchárovo, os camponeses, pelo que se dizia, mantinham contato com os franceses, recebiam certos folhetos que corriam entre eles e continuavam em suas casas. Alpátitch, por meio de criados domésticos dedicados a ele, soube que o mujique Karp, que tinha viajado durante dias numa carroça do Estado e que exercia grande influência na comuna de camponeses, tinha voltado com a notícia de que os cossacos destruíam as aldeias abandonadas por seus habitantes, ao passo que os franceses nem tocavam nelas. Alpátitch soube que outro mujique, no dia anterior, tinha trazido da aldeia de Visloúkhovo — ocupada pelos franceses — um documento de um general francês no qual se declarava aos habitantes que nenhum mal seria feito a eles e que tudo o que fosse tomado seria pago, caso permanecessem em suas aldeias. Como prova daquilo, o mujique trouxe de Visloúkhovo cem rublos em cédulas (o mujique não sabia que eram falsas), dados a ele em troca de feno.

Por fim, e era o mais importante, Alpátitch soube que, no mesmo dia em que havia ordenado ao estaroste que atrelasse as carroças a fim de transportar de Bogutchárovo a bagagem da princesa, tinha havido pela manhã uma assembleia na aldeia, na qual ficara resolvido que não iriam se retirar, e sim esperar. Entretanto não havia tempo a perder. No dia da morte do príncipe, 15 de agosto, o decano da nobreza insistiu com a princesa Mária que ela devia partir naquele mesmo dia, pois se tornara perigoso continuar ali. Disse que, depois do dia 16, ele não se responsabilizaria mais. No mesmo dia da morte do príncipe, ele partiu no fim da tarde, mas prometeu voltar para o enterro no dia seguinte. Porém no dia seguinte ele não pôde vir, pois, segundo as notícias que havia recebido, os franceses tinham se deslocado inesperadamente, e ele só teve tempo para despachar da sua propriedade a família e todos os seus bens de valor.

Fazia mais ou menos trinta anos que o estaroste Dron, a quem o velho príncipe chamava de Drónuchka, administrava Bogutchárovo.

Dron era um desses mujiques vigorosos de corpo e de espírito que, tão logo ficam um pouco mais velhos, deixam crescer a barba e, sem mudar em nada, vivem até os sessenta, setenta anos, sem nenhum cabelo grisalho e com todos os dentes na boca, tão eretos e fortes aos sessenta anos como eram aos trinta.

Dron, logo depois da migração rumo aos rios quentes, da qual participara como tantos outros, fora escolhido estaroste e burgomestre em Bogutchárovo, e desde então, por vinte e três anos, cumprira essa função de forma impecável. Os mujiques tinham mais medo dele do que do patrão. Os senhores, tanto o velho príncipe como o novo, e o administrador o respeitavam e, de brincadeira, chamavam-no de ministro. Durante todo o tempo em que exerceu suas funções, nenhuma vez Dron se embriagou nem ficou doente; nunca, nem depois de uma noite sem dormir, nem depois de trabalho nenhum, demonstrava o menor cansaço e, embora analfabeto, nunca errava nenhuma conta do dinheiro e do peso da farinha, que ele vendia em enormes carregamentos, e não deixava de contar nenhuma das medas de cereal em todas as dessiatinas dos campos de Bogutchárovo.

Foi esse Dron que Alpátitch, ao chegar dos campos devastados de Montes Calvos, chamou para conversar no dia do enterro do príncipe e lhe ordenou que preparasse doze cavalos para as carruagens da princesa e dezoito carroças para os objetos que tinham de ser removidos de Bogutchárovo. Embora os mujiques pagassem tributo ao senhor de terras, o cumprimento daquela ordem não podia encontrar obstáculos, na opinião de Alpátitch, porque em Bogutchárovo havia duzentos e trinta casais de camponeses, e os mujiques eram prósperos. Mas o estaroste Dron, depois de ouvir a ordem, baixou os olhos em silêncio. Alpátitch lhe deu o nome dos mujiques que ele conhecia e que podiam trazer as carroças.

Dron respondeu que os cavalos daqueles mujiques estavam transportando outras cargas. Alpátitch deu o nome de outros mujiques, mas esses não tinham cavalos disponíveis; segundo Dron uns estavam sendo usados em carroças do governo, outros estavam fracos, e outros ainda tinham perecido por falta de comida. Na opinião de Dron, era quase impossível conseguir cavalos não só para as carroças, como também para as carruagens.

Alpátitch fitou Dron atentamente e franziu as sobrancelhas. Assim como Dron era um estaroste e mujique exemplar, também não era à toa que Alpátitch administrava as propriedades do príncipe havia vinte anos e era um administrador exemplar. Tinha um faro apuradíssimo para entender as necessidades e os instintos do povo com quem lidava e por isso era um administrador excelente. Lançou um olhar para Dron e na mesma hora compreendeu que as suas respostas não eram a expressão do pensamento de Dron, mas a expressão do estado de ânimo geral da comuna camponesa de Bogutchárovo, que já havia dominado o estaroste. Porém, ao mesmo tempo, sabia que Dron, que havia enriquecido com suas manobras e era odiado pela comuna, devia estar hesitando entre dois partidos — o dos camponeses e o dos patrões. Notava aquela hesitação no seu olhar e por isso Alpátitch, de sobrancelhas franzidas, chegou ainda mais perto de Dron.

— Drónuchka, escute aqui! — disse. — Não fique me enrolando. Sua alteza o príncipe Andrei Nikolaitch me ordenou remover todo o povo daqui e não ficar com o inimigo, e há também uma ordem do tsar para fazer isso. Então quem ficar é traidor do tsar. Está ouvindo?

— Sim, senhor — respondeu Dron, sem levantar os olhos.

Alpátitch não se satisfez com essa resposta.

— Ah, Dron, assim vamos mal! — disse Alpátitch, depois de balançar a cabeça.

— O senhor é que manda! — disse Dron com tristeza.

— Ah, Dron, deixe de conversa! — retrucou Alpátitch, retirou a mão que estava enfiada embaixo do casaco, na altura do peito, e com um gesto imponente apontou para o chão debaixo dos pés de Dron. — Eu não só enxergo por dentro de você, como vejo também embaixo de você, até três archins de profundidade — disse, olhando para o chão debaixo dos pés de Dron.

Dron ficou embaraçado, lançou um olhar fugaz para Alpátitch e de novo baixou os olhos.

— Deixe de besteira e vá avisar as pessoas que se preparem para deixar suas casas e partir para Moscou e para amanhã de manhã prepararem as carroças para as bagagens da princesa, e você trate de não ir a nenhuma assembleia. Ouviu bem?

De repente, Dron jogou-se aos seus pés.

— Iákov Alpátitch, me demita! Tome as chaves de mim, me demita, pelo amor de Cristo.

— Deixe disso! — respondeu Alpátitch em tom severo. — Eu enxergo até três archins abaixo de você — repetiu, sabendo que a sua competência para criar abelhas, o seu conhecimento da hora certa para semear a aveia, bem como o fato de ter sido capaz de agradar ao velho príncipe durante vinte anos haviam lhe trazido, desde muito tempo, a fama de bruxo e que a capacidade de enxergar até três archins debaixo dos pés de uma pessoa era um dom atribuído aos bruxos.

Dron levantou-se e quis dizer algo, mas Alpátitch interrompeu-o:

— O que é que vocês meteram na cabeça agora? Hein?... O que é que andam pensando? Hein?

— O que posso fazer com essa gente? — disse Dron. — Andam de cabeça virada. Eu bem que digo para eles...

— É o que eu estava dizendo — disse Alpátitch. — Andam bebendo, não é? — perguntou de modo sucinto.

— Andam com a cabeça virada, Iákov Alpátitch: já pegaram mais um barril.

— Escute aqui. Eu vou falar com o chefe da polícia e você vá avisar a eles que é melhor deixar de bobagem, e que as carroças fiquem prontas.

— Sim, senhor — respondeu Dron.

Iákov Alpátitch não insistiu mais. Governava aquele povo havia muito tempo e sabia que a maneira mais importante para ser obedecido era não mostrar desconfiança de que as pessoas poderiam não obedecer. Depois de obter de Dron um submisso “Sim, senhor”, Iákov Alpátitch contentou-se com isso, embora não só desconfiasse, como estivesse quase convencido de que as carroças não seriam cedidas sem a ajuda de forças militares.

E de fato, ao anoitecer, as carroças não tinham aparecido. Na taberna da aldeia houve outra assembleia, e ficou resolvido levar os cavalos para a floresta e não ceder as carroças. Sem contar nada disso à princesa, Alpátitch mandou retirar a sua própria bagagem das carroças que vieram de Montes Calvos e atrelar aqueles cavalos nas carruagens da princesa, enquanto ele ia falar com as autoridades.

X

Depois do enterro do pai, a princesa Mária ficou trancada no quarto e não deixava ninguém entrar. Uma criada chegou até a porta para avisar que Alpátitch tinha vindo perguntar quais as ordens para a partida. (Isso foi ainda antes da conversa de Alpátitch com Dron.) A princesa Mária ergueu-se do sofá onde estava deitada e, através da porta trancada, falou que não iria a lugar nenhum, nunca mais, e pediu que a deixassem em paz.

As janelas do quarto em que a princesa Mária estava deitada davam para os fundos. Ela estava deitada num sofá voltado para a parede e, remexendo nos botões da almofada de couro, só via aquela almofada, e seus pensamentos confusos concentravam-se numa só coisa: ela pensava no caráter irremediável da morte e na sua baixeza de espírito, que até então ela desconhecia e que se manifestou na ocasião da enfermidade do pai. Ela queria rezar, mas não se atrevia; no estado de espírito em que se encontrava, ela não se atrevia a dirigir-se a Deus. Ficou deitada por muito tempo nessa situação.

O sol passou para o outro lado da casa e, com os raios oblíquos do fim da tarde nas janelas abertas, iluminava o quarto e uma parte da almofada de marroquim para a qual a princesa Mária estava olhando. O fluxo dos seus pensamentos cessou de repente. De modo mecânico, ela se pôs sentada, ajeitou o cabelo, ficou de pé e foi até a janela, aspirando sem querer a friagem da tarde clara, mas ventosa.

“Sim, agora você está admirando confortavelmente o fim de tarde! Mas ele não, e ninguém vai incomodar você”, disse para si mesma e, afundando o corpo numa cadeira, deixou a cabeça tombar sobre o peitoril da janela.

Alguém com voz terna e suave chamou-a do lado do jardim e lhe deu um beijo na cabeça. Ela virou-se. Era Mlle Bourienne, num vestido preto com fitas de luto. Aproximou-se delicadamente da princesa Mária, beijou-a com um suspiro e no mesmo instante começou a chorar. A princesa Mária voltou-se para ela. Todos os atritos de antes, os ciúmes dela, voltaram à memória da princesa Mária; voltou também à sua memória a maneira como o pai ultimamente havia mudado em relação a Mlle Bourienne, não suportava vê-la e portanto eram injustas as acusações que a princesa Mária fazia no seu íntimo contra ela. “Sim, e eu, e eu que desejei a morte dele posso por acaso condenar quem quer que seja?”, pensou.

A princesa Mária imaginou de modo bem vivo a situação de Mlle Bourienne, que ultimamente se mantinha distante da sua companhia, mas ao mesmo tempo dependia dela, e morava na casa de estranhos. E a princesa teve pena de Mlle Bourienne. Fitou-a de modo dócil e interrogativo e lhe estendeu a mão. Mlle Bourienne na mesma hora começou a chorar, pôs-se a beijar a sua mão e a falar da infelicidade que se abatera sobre a princesa, mostrando-se parceira da mesma infelicidade. Falou que o seu consolo era que a princesa permitia compartilhar a sua infelicidade com ela. Disse que todos os mal-entendidos de antes tinham de ser eliminados em face de uma infelicidade maior, disse que se sentia pura perante todos e que ele estava vendo de lá o seu amor e a sua gratidão. A princesa escutou-a sem entender nenhuma palavra, mas de vez em quando lançava um olhar para ela e escutava os sons da sua voz.

— A situação da senhora é duplamente horrível, querida princesa — disse Mlle Bourienne, depois de ficar um momento calada. — Compreendo que a senhora não pôde nem pode pensar em si; mas eu, com o meu amor pela senhora, sou obrigada a fazer isso... Alpátitch esteve com a senhora? Falou com a senhora sobre a partida? — perguntou.

A princesa Mária não respondeu. Não compreendia quem devia partir, nem para onde. “Será possível tomar alguma providência agora, pensar em alguma coisa? Será que não é tudo indiferente?” Ela não respondeu.

— A senhora sabe, não é, chère Marie — disse Mlle Bourienne —, sabe que estamos em perigo, que estamos cercadas pelos franceses; viajar agora é perigoso. Se formos embora, é quase certo que seremos feitas prisioneiras, e só Deus sabe...

A princesa Mária olhou para a amiga, sem entender o que ela estava dizendo.

— Ah, se alguém soubesse como agora para mim tudo, tudo é indiferente — disse ela. — Claro, eu não gostaria, por nada neste mundo, de ficar longe dele... Alpátitch me disse alguma coisa sobre a partida... Vá conversar com ele, eu não consigo fazer nada, nem quero...

— Eu estava falando com ele. Tem esperança de que possamos partir amanhã; mas acho que o melhor, agora, seria ficar aqui — disse Mlle Bourienne. — Porque, admita, chère Marie, cair nas mãos dos soldados ou de mujiques rebelados, na estrada, seria horrível. — Mlle Bourienne tirou da bolsinha uma proclamação do general francês Rameau, num papel diferente, fabricado fora da Rússia, para que os habitantes não deixassem suas casas pois as autoridades francesas lhes concederiam a devida proteção, e entregou-a para a princesa Mária.

— Acho que o melhor é dirigir-se a esse general — disse Mlle Bourienne —, e estou convencida de que a senhora receberá o devido respeito.

A princesa Mária leu o documento, e soluços secos começaram a repuxar o seu rosto.

— Por intermédio de quem a senhora recebeu isto? — perguntou.

— Na certa souberam que sou francesa, pelo nome — respondeu Mlle Bourienne, ruborizando-se.

Com o documento na mão, a princesa Mária levantou-se da cadeira perto da janela e, com o rosto pálido, saiu do quarto e seguiu rumo ao antigo escritório do príncipe Andrei.

— Duniacha, mande chamar o Alpátitch, o Drónuchka, qualquer um — disse a princesa Mária —, e diga a Amali Karlovna que não fale comigo — acrescentou, ao ouvir a voz de Mlle Bourienne. — Vamos, depressa! Vá logo! — disse a princesa Mária, horrorizada com a ideia de que podia ficar sob o poder dos franceses.

“Se o príncipe Andrei soubesse que ela está sob o poder de franceses! Que ela, a filha do príncipe Nikolai Andreitch Bolkónski, pediu ao senhor general Rameau que lhe desse a sua proteção e tirou proveito dos favores dele!” Tal pensamento deixou a princesa horrorizada, obrigou-a a estremecer, corar e sentir um acesso de rancor e de orgulho como nunca havia experimentado. Tudo aquilo que pouco antes era penoso e sobretudo ofensivo na sua situação surgiu diante de seus olhos de modo muito vivo. “Eles, os franceses, vão se instalar nesta casa; o senhor general Rameau vai ocupar o escritório do príncipe Andrei; por diversão, vão remexer e ler suas cartas e seus escritos. Mademoiselle Bourienne lui fera les honneurs 24 de Bogutchárovo. Vão me dar um quarto por caridade; os soldados vão destroçar a sepultura ainda recente do meu pai para arrancar suas medalhas; virão me contar as vitórias sobre os russos, hipocritamente vão mostrar compaixão pelo meu sofrimento...”, pensava a princesa Mária, não com os próprios pensamentos, mas sentindo-se obrigada a pensar com os pensamentos do pai e do irmão. Para ela, pessoalmente, não tinha mais a menor importância onde ia ficar e o que aconteceria com ela; mas ao mesmo tempo sentia-se uma representante do falecido pai e do príncipe Andrei. Não podia deixar de pensar com os pensamentos deles e sentir com os sentimentos deles. O que eles diriam, o que eles fariam agora, era o que ela também sentia que era preciso fazer. Foi para o escritório do príncipe Andrei e, fazendo força para imbuir-se dos pensamentos do irmão, refletiu sobre a sua própria situação.

As exigências da vida, que ela julgava abolidas com a morte do pai, de repente, e com uma força nova, ainda desconhecida, ergueram-se diante da princesa Mária e a dominaram.

Agitada, vermelha, ela andava pelo cômodo, exigindo que viessem ter com ela ora Alpátitch, ora Mikhail Ivánovitch, ora Tíkhon, ora Dron. Duniacha, a babá e todas as criadas não sabiam de modo algum dizer até que ponto era verdadeiro o que Mlle Bourienne tinha afirmado. Alpátitch não estava em casa: tinha ido procurar as autoridades policiais. Convocado, o arquiteto Mikhail Ivánitch apareceu diante da princesa Mária com olhos meio sonolentos e nada lhe pôde dizer. Respondeu às perguntas da princesa Mária exatamente com o mesmo sorriso de concordância com que, havia quinze anos, estava habituado a responder às interpelações do velho príncipe sem nunca exprimir a própria opinião, portanto foi impossível extrair qualquer coisa de preciso de suas respostas. Convocado, o velho camareiro Tíkhon, de cabeça baixa e rosto abatido, trazendo estampada a marca de um sofrimento incurável, respondeu “Sim, senhora” a todas as perguntas da princesa Mária e mal conseguia conter os soluços, enquanto olhava para ela.

Por fim, entrou no escritório o estaroste Dron e, depois de fazer uma reverência até o chão diante da princesa, ficou parado junto à ombreira da porta.

A princesa Mária atravessou o cômodo e se deteve diante dele.

— Drónuchka — disse a princesa Mária, vendo nele um amigo seguro, o mesmo Drónuchka que, de todas as suas viagens anuais à feira de Viazma, trazia sempre para ela um pão de mel especial, que lhe dava com um sorriso. — Drónuchka, agora, depois do nosso infortúnio — começou ela, e calou-se, sem forças para continuar.

— Tudo está nas mãos de Deus — disse ele, com um suspiro. Os dois ficaram em silêncio por um momento.

— Drónuchka, não sei para onde foi o Alpátitch, não tenho com quem falar. Estão me dizendo a verdade quando afirmam que não posso ir embora?

— Por que não pode ir, vossa excelência? Pode ir, sim — respondeu Dron.

— Disseram-me que é perigoso por causa do inimigo. Meu caro, não posso nada, não entendo nada, não tenho ninguém. Quero ir a todo custo, hoje à noite ou amanhã bem cedo. — Dron ficou calado. Lançou um olhar de esguelha para a princesa Mária.

— Não tem cavalos — disse. — Já falei para o Iákov Alpátitch.

— Por que não? — perguntou a princesa.

— É a vontade de Deus — disse Dron. — Todos os cavalos que havia, o Exército pegou, e os outros morreram, pois é, este ano vai mal. E nem é hora de alimentar os cavalos, quando a gente mesmo luta para não morrer de fome! Tem gente há três dias sem comer. Eles não têm mais nada, estão arruinados.

A princesa Mária escutava com atenção o que ele lhe dizia.

— Os mujiques estão arruinados? Não têm o que comer? — perguntou.

— Estão morrendo de fome — respondeu Dron. — A questão não são as carroças...

— Mas por que você não me disse, Drónuchka? Será que não se pode ajudar? Farei tudo o que puder... — Para a princesa Mária, era estranho pensar que agora, naquele momento em que tamanho desgosto dominava a sua alma, pudessem existir pessoas ricas e pobres, que os ricos pudessem ficar sem ajudar os pobres. De modo vago, tinha ouvido falar que sempre armazenavam o cereal dos senhores e que às vezes davam esse cereal para os mujiques. Também tinha ouvido dizer que nem o pai nem o irmão recusariam o que fosse necessário aos mujiques; ela apenas receava cometer algum engano nas palavras que diria sobre a distribuição para os mujiques do cereal que ela queria ceder. A princesa ficou contente por se apresentar o pretexto de uma tarefa que lhe permitia esquecer o seu sofrimento, sem envergonhar-se disso. Passou a perguntar a Drónuchka os detalhes das necessidades dos mujiques e se havia cereais dos senhores em Bogutchárovo.

— Mas, afinal, não temos os cereais dos senhores, do meu irmão? — perguntou ela.

— O cereal dos senhores está intacto — disse Dron, com orgulho. — O nosso príncipe não deu ordem para vender.

— Distribua para os mujiques, dê tudo o que precisarem: em nome do meu irmão, eu autorizo — disse a princesa Mária. Dron nada respondeu e deu um suspiro profundo. — Distribua para eles o cereal, se for o suficiente. Distribua tudo. Eu lhe ordeno em nome do meu irmão, e diga para eles que... que o que é nosso é deles também. Não vamos poupar nada para ajudá-los. Diga isso.

Dron olhou fixamente para a princesa enquanto ela falava.

— Me demita, mãezinha, pelo amor de Deus, mande tomarem as chaves de mim — disse Dron. — Trabalhei vinte e três anos, sem fazer nada de mau; me demita, pelo amor de Deus.

A princesa Mária não entendeu o que Dron queria dela e por que pedia para ser demitido. Ela respondeu que nunca havia duvidado da dedicação de Dron e que estava pronta a fazer tudo, para ele e para os mujiques.

XI

Uma hora depois, Duniacha veio avisar a princesa que Dron tinha chegado e que todos os mujiques, por ordem da princesa, estavam reunidos no celeiro para falar com a patroa.

— Mas eu não chamei os mujiques — disse a princesa Mária. — Eu só disse para o Dron que lhes desse os cereais.

— Então, pelo amor de Deus, cara princesa, mande expulsar todos eles e não vá falar com eles. Tudo isso é só uma fraude — disse Duniacha —, e quando Iákov Alpátitch chegar nós vamos embora... E a senhora não permita...

— Que fraude? — perguntou a princesa, com espanto.

— Bem, eu não sei, mas escute o que estou falando, pelo amor de Deus. Pergunte só para a babá. Dizem que não aceitam partir, como a senhora ordenou.

— Você não sabe o que está dizendo. Pois eu nunca dei ordens para partir... — disse a princesa Mária. — Vá chamar o Drónuchka.

Dron veio e confirmou as palavras de Duniacha: os mujiques tinham vindo por ordem da princesa.

— Mas eu não chamei os mujiques — respondeu a princesa. — Você não lhes transmitiu corretamente as minhas palavras. Tudo o que eu disse foi para dar os cereais para eles.

Dron, sem responder, suspirou.

— Se a senhora ordenar, eles vão embora.

— Não, não, eu vou falar com eles — disse a princesa Mária.

Apesar dos protestos da babá e de Duniacha, a princesa Mária saiu para a varanda. Dron, Duniacha, a babá e Mikhail Ivánitch foram atrás dela.

“Sem dúvida estão pensando que estou oferecendo os cereais para que fiquem em suas casas, enquanto eu mesma vou embora, deixando todos sob a tirania dos franceses”, pensava a princesa Mária. “Vou lhes prometer cotas mensais de alimento e abrigo na nossa propriedade nos arredores de Moscou; estou convencida de que André faria ainda mais por eles, se estivesse em meu lugar”, pensou enquanto, na penumbra, se aproximava da multidão que estava no pasto junto ao celeiro.

A multidão espremida começou a se agitar, e todos, rapidamente, tiraram o chapéu. A princesa Mária, de olhos baixos e com as pernas tropeçando no vestido, aproximou-se depressa. Eram tão variados os olhos velhos e jovens voltados para ela, e eram tão diferentes os rostos que a princesa Mária não via nenhum rosto e, sentindo necessidade de falar de uma vez com todos eles, não sabia como agir. Mas novamente a consciência de que era a representante do pai e do irmão lhe deu forças e, com audácia, começou o seu discurso.

— Estou muito contente que vocês tenham vindo — começou a princesa Mária, sem erguer os olhos e sentindo que seu coração batia forte e acelerado. — Drónuchka me disse que a guerra deixou vocês na ruína. Essa infelicidade é nossa, de todos, e não vou poupar nada para ajudar vocês. Eu mesma vou partir, porque é perigoso ficar aqui e o inimigo está perto... porque... Eu darei tudo para vocês, meus amigos, e peço que peguem tudo, todo o nosso cereal, para que não passem mais necessidade. E se disserem para vocês que estou dando os cereais para que fiquem aqui, isso não é verdade. Ao contrário, peço a vocês que partam com todos os seus bens para a nossa propriedade nos arredores de Moscou, e lá eu vou acolher vocês e prometo que não vão passar necessidade. Vocês receberão casa e comida.

A princesa parou. Na multidão, só se ouvia a respiração.

— Não faço isso por mim — prosseguiu a princesa —, faço isso em nome do meu falecido pai, que era o seu bom senhor, e pelo meu irmão, e pelo filho dele.

Parou de novo. Ninguém interrompeu o seu silêncio.

— A infelicidade é nossa, de todos, e vamos dividir tudo meio a meio. Tudo o que é meu é também de vocês — disse ela, voltando o olhar para os rostos que estavam na sua frente.

Todos os olhos a fitavam com a mesma expressão, cujo sentido ela não conseguia entender. Podia ser curiosidade, devoção, gratidão ou medo e incredulidade, mas a expressão em todos os rostos era idêntica.

— Estamos muito satisfeitos com a bondade da senhora, só que não dá para a gente ficar com o cereal do patrão — disse uma voz no fundo.

— Por quê? — perguntou a princesa.

Ninguém respondeu, e a princesa Mária, correndo os olhos pela multidão, notou que agora todos os olhos que ela encontrava imediatamente baixavam.

— Por que não querem? — perguntou de novo. Ninguém respondeu.

A princesa Mária sentiu-se incomodada com aquele silêncio; tentou captar algum olhar.

— Por que não falam? — voltou-se a princesa para um velho de pé na sua frente, apoiado numa bengala. — Fale, vamos, você acha que precisam de mais alguma coisa? Eu farei tudo — disse, depois de captar o seu olhar. Mas o velho, como se tivesse ficado zangado com aquilo, baixou completamente a cabeça e falou:

— Por que temos de concordar, se não precisamos de cereal?

— Para que a gente tem de abandonar tudo? A gente não concorda, não concorda... Não aceita. A gente lamenta por você, mas não concorda. Vá embora sozinha... — irromperam vozes na multidão, de vários lados. E de novo todos os rostos da multidão mostraram a mesma expressão, que agora certamente já não era uma expressão de curiosidade e de gratidão, mas de uma firmeza rancorosa.

— Mas sem dúvida vocês não estão entendendo — disse a princesa Mária com um sorriso tristonho. — Por que não querem partir? Prometo acomodar vocês, dar comida. E aqui o inimigo vai arruinar vocês...

Mas a voz dela foi abafada pelas vozes da multidão.

— A gente não aceita, se eles vão arruinar a gente, deixe que arruínem! A gente não vai pegar o seu cereal, a gente não aceita!

A princesa Mária tentou captar de novo o olhar de alguém da multidão, mas nenhum olhar estava voltado para ela; pelo visto, os olhos se esquivavam. A princesa Mária começou a se sentir estranha e confusa.

— Vejam só, ela aprendeu bem a lição, ir atrás dela para os trabalhos forçados! Levar a casa à ruína e ainda ter de trabalhar para pagar as dívidas. Essa não! E ainda diz: eu vou dar os cereais! — soaram vozes na multidão.

A princesa Mária, de cabeça baixa, saiu do círculo e foi para a casa. Depois de repetir para Dron a ordem de preparar os cavalos para a partida na manhã seguinte, retirou-se para o quarto e ficou sozinha com seus pensamentos.

XII

Naquela noite, a princesa Mária ficou muito tempo junto à janela aberta, no seu quarto, escutando os sons das vozes dos mujiques, que chegavam da aldeia até lá, mas não estava pensando neles. Sentia que, por mais que pensasse nos mujiques, não conseguiria compreendê-los. Pensava só numa coisa — na sua infelicidade, que agora, depois da pausa causada pelos afazeres urgentes, já se tornara para ela algo do passado. Agora já conseguia lembrar, conseguia chorar e conseguia rezar. Desde o pôr do sol, o vento havia amainado. A noite estava tranquila e fresca. À meia-noite, as vozes começaram a silenciar, um galo cantou, a lua cheia começou a subir por trás das tílias, uma fresca nuvem de orvalho se erguia, e a quietude reinava sobre a aldeia e a casa senhorial.

Cenas do passado recente se apresentaram, uma após a outra, no seu pensamento — a doença e os últimos minutos do pai. E com uma alegria tristonha ela agora se detinha naquelas imagens, rechaçando com horror apenas a última imagem da morte do pai, que — a princesa sentia — ela não tinha forças para contemplar nem na sua imaginação, naquela hora misteriosa e quieta da noite. E as cenas se apresentaram para ela com tal clareza e com tantos detalhes que ora lhe pareciam ser o presente, ora o passado, ora o futuro.

E outras vezes se apresentava a ela o momento em que o pai tivera o ataque e o trouxeram do jardim de Montes Calvos, carregado nos braços, e ele balbuciava algo com a língua fraca, contraía as sobrancelhas grisalhas e olhava para ela com ar tímido e inquieto.

“Já então ele queria me dizer aquilo que me disse no dia da sua morte”, pensou a princesa Mária. “Ele sempre pensava aquilo que me disse.” E ela recordava, com todos os pormenores, a noite em Montes Calvos, na véspera do ataque, quando a princesa Mária, pressentindo uma desgraça, permaneceu junto ao pai, mesmo contra a vontade dele. A princesa não dormiu naquela noite, desceu a escada na ponta dos pés, foi até a porta do jardim de inverno, onde o pai estava passando aquela noite, ficou escutando a voz dele. Dizia algo para Tíkhon, com uma voz cansada, esgotada. Pelo visto, estava com vontade de falar. “Mas por que ele não me chamou? Por que não chamou a mim, em vez do Tíkhon?”, pensou a princesa Mária naquele momento, e agora também. “Agora ele já não poderá mais revelar para ninguém tudo aquilo que tem na alma. Nunca mais voltará, nem para ele, nem para mim, o momento em que ele diria tudo o que desejava exprimir, não para Tíkhon, e sim para mim, que o ouviria e o compreenderia. Por que não entrei no quarto, naquela hora?”, pensou a princesa. “Quem sabe ele me diria o que disse no dia da sua morte. Afinal, naquela conversa com Tíkhon, ele perguntou por mim duas vezes. Queria me ver, mas eu fiquei atrás da porta. Para ele era triste, penoso, falar com Tíkhon, que não o compreendia. Lembro que falou com Tíkhon sobre Liza como se ela estivesse viva... esqueceu que ela havia morrido, Tíkhon lembrou-lhe que ela já não existia mais, e ele pôs-se a gritar: ‘Imbecil’. Era penoso para ele. Eu fiquei atrás da porta e escutei como ele jazia na cama roncando e de vez em quando gritava: ‘Meu Deus!’. Por que eu não entrei nessa hora? O que ele podia fazer comigo? O que eu tinha a perder? Quem sabe ele teria se consolado se me dissesse aquela palavra?” E a princesa Mária, em voz alta, pronunciou a palavra que o pai lhe dissera no dia da morte. “Que-ri-da!”, repetiu a princesa Mária, e desatou a chorar com lágrimas que aliviavam a alma. Revia agora na sua frente o rosto do pai. Não o rosto que ela conhecia havia muito tempo, tal como se lembrava e via sempre de longe; mas o rosto tímido e fraco que, no último dia, inclinada na direção da boca do pai para poder ouvir o que dizia, ela observara de perto pela primeira vez, com todas as rugas e detalhes.

“Querida”, repetira ele.

“O que ele estava pensando quando falou essa palavra? O que está pensando agora?”, veio-lhe a pergunta de repente, e em resposta a princesa o avistou na sua frente com a mesma expressão que tinha no rosto quando estava no caixão, com a cabeça amarrada por um lenço branco. E o horror que a dominou, quando tocou de leve no pai e se convenceu de que aquilo não só não era ele como era algo misterioso e repulsivo, dominou-a também agora. A princesa quis pensar em outra coisa, quis rezar, mas não conseguia fazer nada. De olhos muito abertos, contemplava a luz da lua e as sombras, esperava a cada instante avistar o rosto morto do pai e tinha a sensação de que o silêncio que pairava sobre a casa e dentro da casa a mantinha acorrentada.

— Duniacha! — sussurrou a princesa. — Duniacha! — soltou um grito com voz descontrolada e, desvencilhando-se do silêncio, correu rumo ao quarto das servas, ao encontro da babá e das criadas, que já vinham correndo em sua direção.

XIII

No dia 17 de agosto, Rostóv e Ilin, acompanhados apenas por Lavruchka, que voltara do cativeiro entre os franceses, e por um ordenança hussardo do seu acampamento em Iánkovo, situado a quinze verstas de Bogutchárovo, foram dar um passeio a cavalo — para experimentar o cavalo novo comprado por Ilin e para verificar se não havia feno nas aldeias.

Nos últimos três dias, Bogutchárovo ficara entre dois exércitos inimigos, portanto, ir até lá era tão fácil para a retaguarda russa quanto para a vanguarda francesa, e por isso Rostóv, como comandante encarregado de um esquadrão, desejava tirar proveito das provisões que houvessem restado em Bogutchárovo antes que os franceses o fizessem.

Rostóv e Ilin estavam no mesmo estado de ânimo alegre. A caminho de Bogutchárovo, propriedade principesca com uma grande casa senhorial, onde esperavam encontrar uma vasta criadagem e jovens servas bonitinhas, eles ora indagavam Lavruchka a respeito de Napoleão e riam de seus relatos, ora saíam a galope a fim de testar o cavalo de Ilin.

Rostóv não sabia nem imaginava que a aldeia para onde estava indo era propriedade do mesmo Bolkónski que tinha sido noivo da sua irmã.

Na encosta que ia dar em Bogutchárovo, Rostóv e Ilin apostaram uma corrida pela última vez em seus cavalos, e Rostóv, como havia ultrapassado Ilin, chegou primeiro à rua da aldeia de Bogutchárovo.

— Você chegou primeiro — disse Ilin, todo vermelho.

— Sim, sempre na frente, tanto no prado como aqui — respondeu Rostóv, enquanto afagava o seu cavalo do Don, que espumava.

— Mas eu, aqui no meu francês, vossa excelência — disse Lavruchka, mais atrás, chamando de francês o seu pangaré de carga —, podia ter passado à frente, só que não quis humilhar.

A passo lento, aproximaram-se do celeiro, onde havia uma grande multidão de mujiques.

Alguns tiraram o chapéu, e outros, sem tirar o chapéu, observavam os recém-chegados. Dois mujiques velhos e altos, de rosto enrugado e barba rala, saíram da taverna sorrindo, e balançando-se e cantarolando uma canção incoerente, aproximaram-se dos oficiais.

— Que bravos rapazes! — disse Rostóv, rindo. — E então, têm feno?

— Iguaizinhos um ao outro... — comentou Ilin.

— Uma conve... ee... eer... sa ale... legre... — cantavam os mujiques, com sorrisos felizes.

Um mujique saiu da multidão e aproximou-se de Rostóv.

— Vocês são de que lado? — perguntou.

— Franceses — respondeu Ilin, rindo. — Veja, este aqui é o próprio Napoleão — disse, apontando para Lavruchka.

— Quer dizer que são russos, então? — perguntou de novo.

— E tem muitas tropas com vocês aqui? — perguntou um outro mujique baixinho, aproximando-se.

— Muitas, muitas — respondeu Rostóv. — E o que vocês estão fazendo aqui reunidos? — acrescentou. — Por acaso é dia de festa?

— Os velhos se reuniram para resolver um assunto da gente mesmo — respondeu o mujique e afastou-se.

Naquele momento, na estrada que vinha da casa senhorial, apareceram duas mulheres e um homem de chapéu branco, que caminhavam na direção dos oficiais.

— A de rosa é minha, trate de ficar afastado! — disse Ilin, ao avistar Duniacha, que caminhava resoluta na sua direção.

— Será nossa! — disse Lavruchka e piscou o olho para Ilin.

— O que deseja, minha beldade? — perguntou Ilin, sorrindo.

— A princesa mandou perguntar qual é o regimento e o nome dos senhores.

— Este é o conde Rostóv, comandante do esquadrão, e eu sou o humilde servo da senhora.

— Con... ve... er... sa! — cantarolava o mujique embriagado, sorrindo feliz e olhando para Ilin, que conversava com a jovem criada. Atrás de Duniacha, Alpátitch veio ao encontro de Rostóv e tirou o chapéu ainda quando estava longe.

— Permita que eu tome a liberdade, vossa excelência — disse Alpátitch com respeito, mas com relativo desdém pela juventude daquele oficial e mantendo a mão por baixo do casaco, na altura do peito. — A minha patroa, filha do general em chefe príncipe Nikolai Andréievitch Bolkónski, falecido no último dia 15, encontrando-se em apuros devido à ignorância dessa gente — apontou para os mujiques —, pede aos senhores que lhe concedam uma visita... Seria mais agradável... — disse Alpátitch com um sorriso triste — ... nos afastar um pouco... — Alpátitch apontou para os dois mujiques que insistiam em ficar em volta dele como moscas em volta de um cavalo.

— Ah!... Alpátitch... Hein? Iákov Alpátitch!... Puxa! Perdoe a gente, pelo amor de Deus. Ah!... — disseram os mujiques, sorrindo alegres. Rostóv observou os velhos embriagados e sorriu.

— Ou quem sabe isso divirta vossa excelência? — perguntou Iákov Alpátitch com um ar grave, apontando para os velhos, sem tirar a outra mão que estava enfiada embaixo do casaco, na altura do peito.

— Não, aqui não há muito com que se divertir — respondeu Rostóv e afastou-se. — O que está acontecendo? — perguntou.

— Atrevo-me a dizer a vossa excelência que o povo rude daqui não quer permitir que a senhora saia da propriedade e ameaça desatrelar os seus cavalos, de modo que a bagagem está pronta desde a manhã, mas sua alteza não pode partir.

— Não é possível! — exclamou Rostóv.

— Tenho a honra de informar ao senhor a pura verdade — repetiu Alpátitch.

Rostóv desmontou do cavalo, passou as rédeas para o seu ordenança e seguiu com Alpátitch rumo à casa, enquanto lhe perguntava sobre os detalhes da situação. Na realidade, a oferta de cereais que a princesa fizera na véspera para os mujiques, a sua conversa com Dron e as suas explicações na assembleia de mujiques complicaram de tal modo a situação que Dron devolveu as chaves em definitivo para a patroa, juntou-se aos mujiques e não apareceu para atender a exigência de Alpátitch, e, de manhã, quando a princesa mandou atrelar os cavalos para a partida, os mujiques vieram em grande multidão para o celeiro e mandaram dizer que não deixariam a princesa partir da aldeia, que havia uma ordem para ninguém ir embora e que iam desatrelar os cavalos. Alpátitch veio ao encontro deles a fim de chamá-los à razão, mas responderam (mais que todos, foi Karp quem falou; Dron não se destacou da multidão) que era impossível deixar a princesa ir embora, que havia uma ordem para isso e que, se a princesa aceitasse ficar, eles iriam servi-la como antes e lhe obedeceriam em tudo.

No momento em que Rostóv e Ilin estavam vindo a galope pela estrada, a princesa Mária, apesar dos protestos de Alpátitch, da babá e das criadas, tinha mandado atrelar os cavalos e queria partir; porém, ao ver os cavaleiros que se aproximavam a galope, os cocheiros fugiram, pensando que eram os franceses, e dentro de casa ressoou o pranto das mulheres.

— Paizinho! Pai querido! Foi Deus que mandou você — falaram vozes comovidas, na hora em que Rostóv passou pela entrada.

A princesa Mária, desamparada e sem forças, estava na sala, sentada, na hora em que trouxeram Rostóv à sua presença. A princesa não entendeu quem ele era, por que estava ali e o que ia acontecer com ela. Ao ver o rosto russo de Rostóv e ao notar, pelo seu modo de entrar e pelas primeiras palavras que disse, que era um homem do seu círculo social, a princesa observou-o com o seu olhar profundo e radioso e começou a falar com voz vacilante e trêmula de emoção. Imediatamente, Rostóv pressentiu algo de romântico naquele encontro. “Uma jovem indefesa, abatida pela dor, sozinha, abandonada à mercê de mujiques rudes e revoltados! E que destino estranho me conduziu até aqui!”, pensou Rostóv, enquanto escutava e olhava para a princesa. “E que meiguice, que nobreza em seus traços e na sua expressão!”, pensou, enquanto escutava o seu relato tímido.

Quando passou a falar sobre tudo o que havia ocorrido no dia seguinte ao enterro do pai, a voz dela começou a tremer. A princesa virou-se para o lado e depois, com receio de que Rostóv recebesse suas palavras como um desejo de despertar piedade, olhou para ele de modo interrogativo e assustado. Rostóv tinha lágrimas nos olhos. A princesa Mária percebeu isso e fitou Rostóv com gratidão e com o seu olhar radioso, que o fez esquecer a feiura do rosto dela.

— Não consigo exprimir, princesa, como estou feliz por ter vindo aqui, graças a um mero acaso, e me ponho inteiramente à sua disposição — disse Rostóv, levantando-se. — Tenha a bondade de partir, e asseguro à senhora pela minha honra que ninguém se atreverá a lhe fazer nada de ruim, caso a senhora me permita escoltá-la — e depois de curvar-se respeitosamente, como as pessoas se curvam diante das damas de sangue real, Rostóv seguiu para a porta.

Com a reverência da sua atitude, Rostóv pareceu demonstrar que, embora considerasse uma felicidade ter travado conhecimento com a princesa, não queria tirar proveito do seu momento de infelicidade para aproximar-se dela.

A princesa Mária entendeu e apreciou aquela atitude.

— Eu sou muito, muito grata ao senhor — disse a princesa em francês —, mas creio que tudo isso não passou de um mal-entendido e que ninguém tem culpa. — De repente, a princesa começou a chorar. — Desculpe — disse ela.

Rostóv, de sobrancelhas franzidas, curvou-se mais uma vez e retirou-se da sala.

XIV

— E então, é bonita? Ora, meu caro, a minha, a de rosa, é um encanto, e se chama Duniacha... — Mas, depois de olhar para a cara de Rostóv, Ilin calou-se. Viu que o seu herói e comandante se achava num estado de ânimo inteiramente distinto e numa outra ordem de pensamentos.

Rostóv virou-se para Ilin com ar zangado e, sem lhe responder, dirigiu-se para a aldeia a passos rápidos.

— Vou mostrar para eles, vou dar uma lição nesses bandidos! — falava consigo.

Alpátitch, em passos que voavam a trote, mas sem chegar a correr, conseguiu a custo alcançar Rostóv.

— Que decisão o senhor tomou? — perguntou, ao alcançá-lo.

Rostóv parou e, de punhos cerrados, com um repentino ar ameaçador, aproximou-se de Alpátitch.

— Decisão? Que decisão? Seu velho gagá! — gritou. — O que é que você está fazendo? Hein? Os mujiques se rebelam e você não consegue controlar, não é? Você mesmo é um traidor. Eu conheço vocês, vou arrancar o couro de todos... — E, como se receasse gastar à toa o estoque da sua veemência, deixou Alpátitch para trás e seguiu ligeiro adiante. Alpátitch, reprimindo o sentimento de ofensa, apressou-se a passos que voavam no encalço de Rostóv e continuou a lhe transmitir as suas considerações. Disse que os mujiques estavam obstinados, que naquele momento seria imprudente contrapor-se a eles sem contar com o apoio de forças militares, e que antes era melhor mandar vir alguns soldados.

— Vou mostrar para eles as forças militares... Eu vou me contrapor a eles — sentenciou Nikolai de forma insensata, arquejando com uma raiva bestial e absurda e com necessidade de dar vazão àquela raiva. Sem ter ideia do que ia fazer, de modo inconsciente, num passo ligeiro e resoluto, aproximou-se da multidão. Quanto mais perto, mais Alpátitch sentia que o ato impensado de Rostóv poderia produzir bons resultados. O mesmo sentiam os mujiques na multidão, que observavam o seu modo ligeiro e resoluto de andar, a firmeza do rosto e as sobrancelhas franzidas.

Depois que os hussardos entraram na aldeia e Rostóv foi ao encontro da princesa, ocorreu na multidão uma disputa importante. Alguns mujiques começaram a falar que os recém-chegados eram russos e que ficariam zangados com eles por não terem deixado a princesa partir. Dron era da mesma opinião; porém, assim que ele a declarou, Karp e outros mujiques atacaram o ex-estaroste.

— Quantos anos você se fartou de comer à custa da comuna de camponeses? — gritou Karp. — Para você, tanto faz! Vai encher o seu cofre até a boca e fugir. O que importa para você se a casa da gente fica em ruínas?

— Disseram que a gente devia ficar em ordem, que ninguém devia deixar sua casa nem tirar nenhum grão de nada... e pronto, acabou! — gritou outro.

— Era a vez do seu filho de ir para o Exército, mas você na certa teve pena do seu gorducho e alistou o meu Vanka no lugar dele — começou a falar depressa um velhinho miúdo, atacando Dron.

— Eh, no fim, todo mundo tem de morrer!

— Pois é, no fim todo mundo tem de morrer!

— Eu não sou contra a comuna — disse Dron.

— Não é contra não, encheu bem a sua pança!...

Os dois mujiques altos não paravam de falar. Assim que Rostóv, acompanhado por Ilin, Lavruchka e Alpátitch, aproximou-se da multidão, Karp, com os dedos enfiados no cinto, sorriu de leve e avançou. Dron, ao contrário, foi para as fileiras de trás, e a multidão se tornou mais compacta.

— Ei, quem é o estaroste de vocês? — gritou Rostóv, aproximando-se da multidão a passos rápidos.

— O estaroste? O que vocês querem?... — perguntou Karp.

Mas nem teve tempo de terminar de falar quando o seu chapéu voou da cabeça, que tombou para o lado, atingida por uma forte bofetada.

— Tirem o chapéu, traidores! — gritou a voz sanguínea de Rostóv. — Onde está o estaroste? — gritou com voz furiosa.

— O estaroste, chamem o estaroste... Dron Zakháritch, é o senhor — soaram aqui e ali vozes obedientes e apressadas, e os chapéus começaram a ser retirados das cabeças.

— A gente não está se revoltando, a gente está seguindo as ordens — exclamou Karp, e de repente algumas vozes mais atrás começaram a gritar, naquele instante:

— É como os velhos resolveram, tem gente demais dando ordem...

— Que conversa é essa?... Um motim!... Bandidos! Traidores! — desatou a berrar Rostóv com uma voz que não era a sua, enquanto agarrava Karp pela gola. — Amarrem este aqui, amarrem! — gritou, embora não houvesse ninguém para amarrá-lo, senão Lavruchka e Alpátitch.

Lavruchka, porém, correu na direção de Karp e amarrou seus braços pelas costas.

— Vai mandar chamar os nossos homens que estão do outro lado do morro? — gritou ele.

Alpátitch voltou-se para os mujiques, chamou dois deles pelo nome e mandou amarrar Karp. Os mujiques deixaram obedientes a multidão e começaram a tirar os cintos.

— Onde está o estaroste? — gritou Rostóv.

Dron, com o rosto franzido e pálido, destacou-se da multidão.

— Você é o estaroste? Lavruchka, amarre! — gritou Rostóv, como se aquela ordem não pudesse encontrar nenhum obstáculo. E de fato outros dois mujiques puseram-se a amarrar Dron, que, como que para ajudá-los, tirou o próprio cinto e o deu para eles.

— E vocês todos me escutem bem — Rostóv voltou-se para os mujiques. — Vão já para suas casas, e não quero ouvir mais nem um pio.

— Mas a gente não fez mal nenhum a ninguém. Foi assim, só uma bobagem da gente. Uma maluquice que deu na gente... Eu bem que avisei que não estava direito — ouviram-se vozes que se censuravam mutuamente.

— Eu bem que falei para vocês, minha gente — disse Alpátitch, retomando sua autoridade. — Não está certo, minha gente!

— Bobagem nossa, Iákov Alpátitch — responderam as vozes, e a multidão logo começou a se dispersar e a se espalhar pela aldeia.

Levaram os dois mujiques amarrados para o pátio da casa senhorial. Os dois mujiques embriagados foram atrás.

— Eh, olha só a cara dele! — disse um, voltado para Karp.

— Imagina se a gente pode falar com os patrões desse jeito! O que você estava pensando?

— Burro — confirmou o outro. — É burro mesmo!

Duas horas depois, as carroças estavam no pátio da casa senhorial de Bogutchárovo. Os mujiques agiram com presteza, colocaram nas carroças as bagagens dos senhores, e Dron, que a pedido da princesa Mária tinha sido solto do armário onde o haviam trancado, estava no pátio e controlava os mujiques.

— Não coloque isso de mau jeito — disse um dos mujiques, um homem alto, de rosto redondo e sorridente, tomando uma arca das mãos de uma servente. — Afinal, isto também custa dinheiro. Como é que pode jogar assim de qualquer jeito ou amarrar com uma corda... ela vai estragar. Assim eu não gosto. Para que tudo fique direito, tem de ser conforme a regra. Olhe aqui, é assim, a gente põe por baixo um pano de aniagem e depois cobre com palha, olha só, direitinho. É assim que eu gosto!

— Nossa, olha só os livros, quanto livro — disse outro mujique, que tinha trazido as estantes da biblioteca da princesa Mária. — Não puxa assim! Que coisa grande, gente, que livros bons!

— É, ficaram escrevendo mesmo, não perderam tempo passeando por aí! — disse o mujique alto, de cara redonda, depois de piscar o olho, e apontou para os grossos dicionários que estavam por cima.

Rostóv, como não desejava forçar a sua aproximação com a princesa, não foi ao encontro dela, ficou na aldeia esperando a sua partida. Depois que as carruagens da princesa Mária partiram, Rostóv montou no seu cavalo e acompanhou-a até a estrada ocupada pelas tropas russas, a doze verstas de Bogutchárovo. Em Iánkovo, na estalagem, Rostóv despediu-se dela respeitosamente e pela primeira vez se permitiu beijar a sua mão.

— Não diga isso, senhora — respondeu, ruborizando-se, para a princesa Mária, que havia expressado gratidão pela sua salvação (como ela classificou o ato de Rostóv) —, qualquer comissário de polícia teria feito o mesmo. Se só tivéssemos de travar guerra contra os mujiques, não teríamos deixado o inimigo chegar tão longe — disse Rostóv, que ficou envergonhado por algum motivo e tentou mudar de assunto. — Estou feliz por ter tido a chance de conhecer a senhora. Adeus, princesa, desejo a sua felicidade e o seu consolo, e desejo também poder um dia encontrar a senhora em condições mais felizes. Se não quer me deixar ruborizado, por favor, não agradeça.

Mas a princesa, se não agradeceu mais com palavras, agradeceu com toda a expressão do seu rosto radiante de gratidão e de ternura. Ela não podia acreditar que não tinha por que agradecer a ele. Ao contrário, para a princesa não havia dúvida de que, se não fosse Rostóv, certamente ela estaria perdida, ou na mão dos rebelados, ou na mão dos franceses; que ele, a fim de salvá-la, tinha se exposto a um perigo evidente e terrível; e havia menos dúvida ainda de que ele era um homem de espírito elevado e nobre, que soubera compreender a sua situação e a sua infelicidade. Os olhos bondosos e honestos de Rostóv, nos quais surgiram lágrimas no momento em que ela mesma havia começado a chorar ao lhe falar sobre a sua perda, não saíam do seu pensamento.

Quando se despediu dele e ficou sozinha, a princesa Mária de repente sentiu lágrimas nos olhos, e então, não pela primeira vez, lhe veio uma pergunta estranha: ela o amava ou não?

Mais adiante, na estrada para Moscou, apesar de a situação da princesa não ser nada alegre, Duniacha, que viajava na carruagem com ela, percebeu mais de uma vez que a princesa virava a cabeça para a janela e sorria de alguma coisa com ar alegre e tristonho.

“Pois bem, e se eu de fato me apaixonei por ele?”, pensava a princesa Mária.

Por mais vergonhoso que fosse admitir para si mesma que, pela primeira vez, se apaixonara por um homem que talvez nunca viesse a amá-la, a princesa se consolava com o pensamento de que ninguém jamais saberia disso e que ela não estaria fazendo nada de condenável se até o fim da vida, sem falar a ninguém sobre o assunto, continuasse a amar o homem por quem havia se apaixonado pela primeira e última vez na vida.

Às vezes recordava o olhar de Rostóv, a sua solidariedade, as suas palavras, e lhe parecia que a felicidade não era impossível. E então Duniacha percebia que ela, sorrindo, olhava para a janela da carruagem.

“E ele tinha de vir a Bogutchárovo justamente naquele momento!”, pensava a princesa Mária. “E a irmã dele tinha justamente de recusar a proposta de casamento do príncipe Andrei!”25 E em tudo isso a princesa Mária via a vontade da Providência.

A impressão que a princesa Mária deixara em Rostóv era muito agradável. Quando se lembrava dela, sentia-se alegre e, quando os seus camaradas, ao saberem o que havia ocorrido em Bogutchárovo, começaram a brincar com ele dizendo que foi buscar feno e acabou achando uma das noivas mais ricas da Rússia, Rostóv ficou irritado. E irritou-se justamente porque a ideia do casamento com a dócil princesa Mária, tão simpática aos seus olhos e dona de uma fortuna enorme, lhe viera à cabeça mais de uma vez, contra a sua vontade. Pessoalmente, ele não poderia almejar uma esposa melhor do que a princesa Mária: o casamento com ela faria a felicidade da condessa, sua mãe, e resolveria a difícil situação financeira do pai. Mas e Sônia? E a palavra que ele havia empenhado? E foi por isso que Rostóv se irritou, quando brincaram com ele a respeito da princesa Bolkónskaia.

XV

Depois de aceitar o comando geral dos exércitos, Kutúzov lembrou-se do príncipe Andrei e mandou-lhe uma ordem para se apresentar ao quartel-general.

O príncipe Andrei chegou a Tsárevo-Zaimiche no mesmo dia em que o conde Kutúzov passava em revista as tropas pela primeira vez. O príncipe Andrei instalou-se na aldeia, na casa do sacerdote, onde estava a carruagem do comandante em chefe, sentou-se num banco perto do portão, à espera do excelentíssimo, como todos agora chamavam Kutúzov. No campo atrás da aldeia, ouviam-se ora os sons de música militar, ora o rugido de uma enorme quantidade de vozes que gritavam “Hurra!” para o novo comandante em chefe. Logo adiante, perto do portão, a uns dez passos do príncipe Andrei, aproveitando-se da ausência do príncipe Kutúzov e do tempo excelente que estava fazendo, havia dois ordenanças, um mensageiro e um mordomo. Um pequeno tenente-coronel dos hussardos, moreno, de bigode e costeletas enormes, aproximou-se do portão, lançou um olhar para o príncipe Andrei e perguntou: o excelentíssimo não estava ali, ia demorar?

O príncipe Andrei respondeu que não fazia parte do Estado-Maior do excelentíssimo e também tinha acabado de chegar. O tenente-coronel dos hussardos voltou-se para o ordenança muito arrumado, e o ordenança do comandante em chefe lhe disse, com aquele desdém característico que os ordenanças dos comandantes em chefe usam ao falar com os oficiais:

— O quê, o excelentíssimo? Logo deve estar de volta. O que o senhor quer?

O tenente-coronel dos hussardos riu por trás dos bigodes por causa do tom de voz do ordenança, desmontou do cavalo, entregou-o para o ordenança e aproximou-se de Bolkónski, saudando-o com uma ligeira reverência. Bolkónski chegou um pouco para o lado, abrindo espaço no banco. O tenente-coronel dos hussardos sentou-se ao seu lado.

— Você também está esperando o comandante em chefe? — perguntou o tenente-coronel dos hussardos. — Dizem que é acessível a todos, graças a Deus. Chega dessa desgraça desses alemães comedores de salsicha! Não foi à toa que Ermólov pediu para ser promovido a alemão! Agora talvez os russos também possam falar. Senão, só o diabo sabe o que eles iam acabar fazendo. Só sabem recuar e recuar. O senhor tomou parte na campanha? — perguntou.

— Tive o prazer — respondeu o príncipe Andrei — não só de participar da retirada como também de perder, nessa retirada, tudo o que tinha de caro, sem falar das propriedades e da casa paterna... e do meu pai, que morreu de desgosto. Sou de Smolensk.

— Ah?... O senhor é o príncipe Bolkónski? Muito prazer em conhecer; tenente-coronel Deníssov, mais conhecido como Vaska — disse Deníssov, apertando a mão do príncipe Andrei e fitando o rosto de Bolkónski com uma atenção especialmente simpática. — Sim, ouvi falar — disse com compaixão e, depois de um breve silêncio, prosseguiu: — Isto é uma guerra ao estilo dos citas. É tudo muito bonito, mas não para aqueles que têm de pagar o pato. Então o senhor é o príncipe Andrei Bolkónski? — Ele balançou a cabeça. — Estou muito contente, príncipe, muito contente de conhecê-lo — acrescentou de novo, com um sorriso triste e apertando a sua mão.

O príncipe Andrei conhecia Deníssov pelos relatos de Natacha sobre o seu primeiro pretendente. Aquela lembrança levou-o agora, de um modo doce, e ao mesmo tempo doloroso, rumo àqueles sentimentos penosos sobre os quais já fazia tempo que não pensava, mas que mesmo assim continuavam no seu espírito. Ultimamente ele experimentara impressões tão sérias e tão variadas, como a retirada de Smolensk, a visita a Montes Calvos, a notícia recente da morte do pai — ele provara tantas emoções que aquelas lembranças fazia tempo que não lhe vinham à mente e, quando vieram, nem de longe agiram sobre ele com a mesma força de antes. Também para Deníssov, as lembranças despertadas pelo nome de Bolkónski pertenciam a um passado remoto e poético, no qual, após o jantar e depois de ouvir Natacha cantar, sem que ele mesmo soubesse como, pedira em casamento aquela mocinha de quinze anos. Sorriu com as lembranças daquele tempo e do seu amor por Natacha, mas logo passou para aquilo que agora o preocupava de modo tão apaixonado e exclusivo. Tratava-se do plano de campanha que havia imaginado durante a retirada, quando esteve nos postos avançados do Exército. Apresentara o seu plano para Barclay de Tolly e agora tinha a intenção de apresentá-lo para Kutúzov. O plano tinha por base o fato de que a linha de operações dos franceses era extensa demais, e que portanto, em lugar de atacar os franceses pelo front — ou ao mesmo tempo que se fazia isso —, cortando o caminho dos franceses, era preciso atacar as suas linhas de comunicação. Passou a expor o seu plano para o príncipe Andrei.

— Eles não podem aguentar com uma linha tão grande. É impossível, e eu garanto que sou capaz de cortar essas linhas; basta me dar quinhentos homens que eu corto as linhas deles, é seguro! Só há um método: o da guerrilha.

Deníssov levantou-se e, gesticulando, explicava o seu plano para Bolkónski. No meio da sua explanação, ressoaram, vindo do lugar onde as tropas estavam perfiladas, os gritos dos soldados, agora mais incoerentes e mais espalhados, fundindo-se com as músicas e as canções. Na aldeia, soaram gritos e o tropel de cavalos.

— Lá vem ele — gritou um cossaco que estava no portão. — Está vindo!

Bolkónski e Deníssov foram até o portão onde estava um grupo de soldados (a guarda de honra) e avistaram Kutúzov, que vinha pela rua, montado num cavalo baio pequeno. Uma enorme comitiva de generais vinha atrás dele. Barclay vinha quase ao seu lado; uma multidão de oficiais corria atrás e em volta e gritava “Hurra!”.

Seus ajudantes de ordens entraram no pátio a galope antes dele. Kutúzov, atiçando com impaciência o seu cavalo, que trotava com esforço sob o seu peso, e mexendo a cabeça sem parar, levava a mão ao gorro branco da guarda da cavalaria (com uma fita vermelha e sem viseira), que estava usando. Ao se aproximar da guarda de honra, formada por granadeiros garbosos, na maior parte condecorados, que lhe prestavam continência, ele os fitou em silêncio e com atenção durante um minuto, com o seu olhar tenaz de comandante, e voltou-se para a multidão de generais e oficiais que se achavam à sua volta. Seu rosto de repente tomou uma expressão de argúcia; encolheu os ombros num gesto de perplexidade.

— E com rapazes tão bravos só fizemos recuar e recuar! — disse ele. — Bem, até logo, general — acrescentou, e conduziu o cavalo para o portão, passando por Deníssov e pelo príncipe Andrei.

— Hurra! Hurra! Hurra! — gritaram atrás dele.

Desde a última vez que o príncipe Andrei o tinha visto, Kutúzov ficara ainda mais gordo, mais corpulento e untuoso. Mas o conhecido olho branco, a cicatriz, a expressão de cansaço no rosto e a sua figura eram os mesmos de antes. Vestia a sobrecasaca do uniforme (o chicote pendia a tiracolo, numa correia fina) e o gorro branco da guarda da cavalaria. Balançando-se e pesadamente esparramado, Kutúzov montava o seu cavalinho valente.

— Fiu... fiu... fiu... — assoviava ele baixinho, quase inaudível, quando entrou no pátio. Em seu rosto, exprimia-se a alegria da tranquilidade de um homem que tem a intenção de repousar, depois de uma cerimônia oficial. Tirou o pé esquerdo do estribo, inclinou o corpo inteiro e, franzindo o rosto por causa do esforço, passou a perna por cima da sela com dificuldade, dobrou o joelho, soltou um grasnido e baixou o corpo nos braços dos cossacos e ajudantes de ordens, que o ampararam.

Kutúzov ajeitou-se, olhou à sua volta com os olhos semicerrados e, ao enxergar de relance o príncipe Andrei e, pelo visto, sem o reconhecer, começou a andar rumo à varanda com o seu passo precipitado.

— Fiu... fiu... fiu... — assoviava ele e, de novo, olhou para o príncipe Andrei. A impressão do rosto do príncipe Andrei só depois de alguns segundos (como ocorre tantas vezes com os velhos) se ligou à lembrança da sua pessoa.

— Ah, bom dia, príncipe, bom dia, meu caro, vamos... — falou, cansado, olhando em volta, e subiu pesadamente na varanda, que rangia sob o seu peso. Desabotoou-se e sentou-se no banco que ficava na varanda.

— E o seu pai?

— Ontem recebi a notícia da morte dele — respondeu de modo brusco o príncipe Andrei.

Kutúzov, com os olhos arregalados e assustados, fitou o príncipe Andrei, depois tirou o gorro e fez o sinal da cruz: “Que ele esteja no Reino dos Céus! Que a vontade de Deus se cumpra em todos nós!”. Suspirou pesadamente com todo o seu peito e ficou em silêncio. “Eu gostava dele, respeitava-o, e lhe transmito as minhas condolências mais sinceras.” Abraçou o príncipe Andrei, apertou-o ao seu peito gordo e demorou muito tempo para soltá-lo. Quando o soltou, o príncipe Andrei viu que os lábios caídos de Kutúzov tremiam e que havia lágrimas em seus olhos. Kutúzov respirou fundo e segurou-se com as duas mãos no banco a fim de levantar-se.

— Vamos, venha comigo, vamos conversar — disse; mas naquele momento Deníssov, que se sentia tão pouco intimidado diante dos superiores como diante dos inimigos, e apesar de os ajudantes de ordens o conterem com sussurros irritados, subiu atrevidamente na varanda, batendo as esporas nos degraus. Kutúzov, com as mãos ainda apoiadas no banco, não pôde deixar de olhar para Deníssov. Este se apresentou, explicou que vinha para transmitir à sua excelência um assunto de grande importância para o bem da pátria. Kutúzov se pôs a fitar Deníssov com um olhar cansado e, com um gesto de enfado, depois de soltar as mãos e colocá-las sobre a barriga, repetiu: “Para o bem da pátria? Mas do que se trata? Diga”. Deníssov ruborizou-se como uma menina (e como era estranho ver o rubor naquele rosto bigodudo, envelhecido e embriagado) e com ar atrevido passou a expor o seu plano de cortar as linhas de operação do inimigo entre Smolensk e Viazma. Deníssov morava naquela região e conhecia bem o lugar. Seu plano parecia inquestionavelmente bom, em especial pela força da convicção que havia em suas palavras. Kutúzov olhava para os próprios pés e de vez em quando olhava para o pátio de uma isbá vizinha, como se estivesse esperando algo desagradável que viria de lá. De fato, enquanto Deníssov falava, um general com uma pasta embaixo do braço veio da isbá para onde Kutúzov estava olhando.

— E então? — exclamou Kutúzov no meio da explanação de Deníssov. — Já está pronto?

— Pronto, vossa excelência — disse o general. Kutúzov balançou a cabeça como que dizendo: “Como um homem sozinho consegue fazer tudo isso?”, e continuou a escutar Deníssov.

— Dou a palavra de honra de um oficial russo — disse Deníssov — que vou romper as linhas de comunicação de Napoleão.

— O intendente-chefe Kiril Andréievitch Deníssov é seu parente? — interrompeu-o Kutúzov.

— É meu tio, vossa excelência.

— Ah! Fomos amigos — disse Kutúzov, alegre. — Muito bem, muito bem, meu caro, fique aqui no Estado-Maior, amanhã vamos conversar. — Inclinou a cabeça para Deníssov, deu-lhe as costas e estendeu a mão para pegar os papéis que Konovnítsin lhe havia trazido.

— Vossa excelência não estaria mais confortável na parte interna da casa? — disse o general de serviço, com voz descontente. — É necessário examinar os planos e assinar alguns documentos. — Um ajudante de ordens que veio de dentro comunicou pela porta que os aposentos estavam prontos. Mas Kutúzov obviamente não queria entrar nos seus aposentos antes de estar livre de obrigações. Franziu as sobrancelhas...

— Não, mandem instalar uma mesinha aqui, meus caros, aqui eu vou examinar os planos — disse. — E, você, não vá embora — acrescentou, virando-se para o príncipe Andrei. O príncipe Andrei continuou na varanda, escutando o general de serviço.

Enquanto o general fazia o seu relatório, o príncipe Andrei ouvia o sussurro de uma voz feminina e o roçar de um vestido de seda por trás da porta de entrada. Algumas vezes, ao olhar naquela direção, ele percebeu atrás da porta uma mulher gorducha, vermelha e bonita, de vestido cor-de-rosa e um lenço de seda lilás na cabeça, com um prato na mão, que pelo visto esperava que o comandante em chefe entrasse. Um ajudante de ordens de Kutúzov explicou ao príncipe Andrei, num sussurro, que era a dona da casa, a esposa do sacerdote, que queria servir pão e sal para sua excelência. Seu marido recebera o excelentíssimo na igreja, com uma cruz, e ela estava em casa... “Muito bonitinha”, acrescentou o ajudante de ordens com um sorriso. Kutúzov virou o rosto ao escutar aquelas palavras. Ouvia o relatório do general de serviço (seu tema principal era uma crítica da posição em Tsárevo-Zaimiche) da mesma forma como tinha ouvido Deníssov, da mesma forma como, sete anos antes, tinha ouvido a discussão no conselho de guerra de Austerlitz. Pelo visto, ele ouvia só porque tinha ouvidos, que não podiam deixar de ouvir, apesar de haver um chumaço de estopa enfiado num deles; mas era óbvio que nada daquilo que o general de serviço podia lhe dizer era capaz não só de despertar sua admiração ou seu interesse como também ele já sabia de antemão tudo aquilo que lhe diziam, e Kutúzov ouvia só porque era preciso escutar até o fim, assim como é preciso escutar até o fim uma prece cantada na igreja. Tudo o que Deníssov dissera era sensato e inteligente. O que o general de serviço disse era ainda mais sensato e mais inteligente, mas mesmo assim estava bem claro que Kutúzov desdenhava o conhecimento e a inteligência e sabia que o que iria resolver a questão era uma coisa muito diferente — algo que não dependia da inteligência e do conhecimento. O príncipe Andrei acompanhava com atenção a expressão do rosto do comandante em chefe e a única expressão que conseguiu identificar foi uma expressão de enfado, de curiosidade pelo significado do sussurro da mulher atrás da porta e de desejo de manter a compostura. Estava claro que Kutúzov desdenhava a inteligência e o saber, e até o sentimento patriótico que Deníssov havia manifestado, mas desdenhava não com inteligência, não com saber, não com sentimento (porque não tentava demonstrá-los), mas desdenhava com outra coisa. Ele os desdenhava com a sua velhice, com a sua experiência de vida. A única ordem que deu Kutúzov durante aquela reunião de trabalho referia-se às pilhagens praticadas pelas tropas russas. O general de serviço, no fim do seu relatório, ofereceu ao excelentíssimo um documento para ele assinar, sobre indenizações impostas a comandantes militares a pedido de um proprietário de terras que tivera a aveia verde ceifada pelos soldados.

Kutúzov estalou os lábios e balançou a cabeça, depois de ouvir o relato do caso.

— Para a fornalha... para o fogo! Eu lhe digo de uma vez por todas, meu caro — falou —, para o fogo com tudo isso. Deixem que ceifem o cereal e queimem a lenha à vontade. Não vou ordenar nem permitir que façam isso, mas também não posso exigir uma indenização. É inevitável. Quando cortam lenha, as lascas voam. — Olhou mais uma vez para o documento. — Ah, o rigor alemão! — exclamou, balançando a cabeça.

XVI

— Muito bem, agora acabou — disse Kutúzov, assinando o último documento e, depois de levantar-se pesadamente e alisar as dobras do pescoço gordo e branco, dirigiu-se para a porta com o rosto mais alegre.

Com o sangue afluindo ao rosto, a esposa do sacerdote apanhou o prato, que, apesar de já estar preparado havia muito tempo, ela acabou não conseguindo apresentar na hora certa. E com uma reverência ofereceu-o para Kutúzov.

Os olhos de Kutúzov se contraíram; ele sorriu, segurou o queixo dela com a mão e disse:

— Como é bonita! Muito obrigado, minha cara! — Tirou do bolso da calça larga algumas moedas de ouro e colocou-as no prato para ela.

— E então, como andam as coisas? — perguntou Kutúzov, enquanto se encaminhava para o quarto indicado para ele. A esposa do sacerdote, sorrindo com covinhas no rosto vermelho, entrou atrás dele. O ajudante de ordens saiu para a varanda ao encontro do príncipe Andrei e convidou-o para o almoço; meia hora depois chamaram de novo o príncipe Andrei, para encontrar-se com Kutúzov. Kutúzov estava numa poltrona, com a mesma sobrecasaca desabotoada. Tinha na mão um livro francês e, ao ver entrar o príncipe Andrei, fechou-o, marcando a página com o cortador de papel. Era Les Chevaliers du Cygne, obra de Mme de Genlis,26 como percebeu o príncipe Andrei pela capa.

— Vamos, sente-se, sente-se aqui, vamos conversar — disse Kutúzov. — É triste, muito triste. Mas lembre, meu amigo, que sou um pai para você, um outro pai...

O príncipe Andrei contou para Kutúzov tudo o que sabia sobre o falecimento do pai e também o que tinha visto em Montes Calvos, ao passar por lá.

— A que ponto... a que ponto eles nos levaram! — exclamou de repente Kutúzov com voz emocionada, obviamente vendo com clareza, pelo relato do príncipe Andrei, a situação em que estava a Rússia. — Vamos dar tempo ao tempo — acrescentou ele, com uma expressão malvada no rosto e, pelo visto, sem vontade de continuar aquela conversa, que o deixava transtornado, disse: — Chamei você para que fique junto a mim.

— Agradeço, vossa excelência — respondeu o príncipe Andrei —, mas receio que eu não me adapte mais ao serviço no Estado-Maior — respondeu com um sorriso que Kutúzov notou. Kutúzov observou-o com ar questionador. — E sobretudo — acrescentou o príncipe Andrei — estou habituado ao regimento, fiquei apegado aos oficiais, e os soldados, parece, também sentem o mesmo por mim. Seria penoso para mim deixar o regimento. Se estou recusando a honra de ficar ao lado do senhor, acredite...

Uma expressão inteligente, bondosa e ao mesmo tempo sutilmente irônica reluziu no rosto gorducho de Kutúzov. Ele interrompeu Bolkónski:

— É uma pena, eu estava precisando de você; mas tem razão, tem razão. Não é aqui que os soldados são necessários. Há sempre conselheiros de mais e soldados de menos. Os regimentos não seriam o que são se todos os conselheiros servissem lá nos regimentos, como você. Lembro-me de você em Austerlitz... Lembro, lembro, com uma bandeira — disse Kutúzov, e um vermelho alegre surgiu no rosto do príncipe Andrei, ao ouvir aquela lembrança. Kutúzov puxou-o pelo braço, ofereceu-lhe o rosto para beijar, e o príncipe Andrei viu de novo lágrimas nos olhos do velho. Embora o príncipe Andrei soubesse que Kutúzov chorava com facilidade e que agora o tratava com carinho e pena porque desejava mostrar compaixão com a sua perda, o príncipe Andrei sentiu-se alegre e lisonjeado com aquela recordação de Austerlitz.

— Vá com Deus, siga o seu caminho. Eu sei qual é o seu caminho: é o caminho da honra. — Calou-se um momento. — Lamentei não ter você ao meu lado em Bucareste: eu precisava enviar alguém. — E, mudando de assunto, Kutúzov começou a falar da guerra turca e do acordo de paz. — Fui muito criticado — disse Kutúzov —, por causa da guerra e também por causa da paz... Mas tudo veio na hora certa. Tout vient à point à qui sait attendre.27 E lá não havia menos conselheiros do que aqui... — prosseguiu, voltando a falar dos conselheiros, que pelo visto o preocupavam. — Ah, conselheiros, conselheiros! — disse. — Se tivéssemos dado ouvidos a todos eles lá na Turquia, não teríamos assinado a paz e não teríamos posto um fim nessas guerras. Querem tudo depressa, mas o rápido acaba sendo mais demorado. Se Kamiénski não tivesse morrido, estaria perdido. Com trinta mil soldados, ele tomou fortalezas de assalto. Tomar uma fortaleza não é difícil, difícil é vencer uma campanha. E para isso não é preciso tomar de assalto e atacar, o que é preciso é paciência e tempo. Kamiénski mandou soldados para Ruchuk, mas eu só tinha isso (paciência e tempo) para mandar e desse jeito acabei tomando mais fortalezas do que Kamiénski e obriguei os turcos a comer carne de cavalo. — Balançou a cabeça. — E os franceses também vão fazer isso! Acredite na minha palavra — exclamou Kutúzov, exaltando-se, batendo no peito. — Vou pôr todos eles para comer carne de cavalo! — E de novo seus olhos ficaram brilhantes de lágrimas.

— No entanto, devemos travar combate? — perguntou o príncipe Andrei.

— Devemos, se todos quiserem isso, não se pode fazer nada... Mas, veja bem, meu caro: não existe nada mais forte do que estes dois soldados: paciência e tempo; eles fazem tudo, mas os conselheiros n’entendent pas de cette oreille-là voilà le mal. Uns querem, outros não querem. O que fazer? — perguntou, obviamente à espera de uma resposta. — Sim, o que é que você ordena? — repetiu, e seus olhos brilhavam com uma expressão profunda e inteligente. — Vou lhe dizer o que fazer — falou, uma vez que o príncipe Andrei nada respondeu. — Vou lhe dizer o que fazer e o que estou fazendo. Dans le doute, mon cher — calou-se por um momento —, abstiens-toi 28 — falou pausadamente. — Bem, adeus, amigo; lembre que compartilho com toda a alma a sua perda e que para você não sou o excelentíssimo, não sou o príncipe, nem o comandante em chefe, para você eu sou um pai. Se precisar de alguma coisa, fale diretamente comigo. Adeus, meu caro. — Abraçou-o de novo e beijou-o. E o príncipe Andrei ainda nem tivera tempo de sair pela porta quando Kutúzov, de modo tranquilizador, soltou um suspiro e tomou de novo nas mãos o romance de Mme de Genlis, Les Chevaliers du Cygne, que ele não tinha acabado de ler.

Como e por que aquilo havia ocorrido, o príncipe Andrei não conseguia explicar de forma alguma; porém, depois daquele encontro com Kutúzov ele voltou para o seu regimento tranquilizado a respeito do andamento geral da guerra e a respeito da pessoa incumbida de comandá-la. Quanto mais ele via a ausência de tudo o que era pessoal naquele velho, no qual restavam apenas, por assim dizer, os hábitos da paixão e no qual, em lugar da inteligência (agrupar os acontecimentos e extrair conclusões), restava apenas a capacidade de contemplação serena da marcha dos acontecimentos, tanto mais o príncipe Andrei se sentia tranquilo, pois tudo seria o que tinha de ser. “Ele não fará nada por si mesmo. Não vai inventar nada, não vai empreender nada”, refletia o príncipe Andrei. “Mas vai escutar tudo, lembrar tudo, vai pôr tudo em seu lugar, não vai criar obstáculos para nada que for bom nem vai permitir nada prejudicial. Ele entende que existe algo mais forte e mais relevante do que a sua vontade — a marcha inevitável dos acontecimentos — e sabe ver os acontecimentos, sabe compreender o seu significado e, à luz desse significado, sabe eximir-se de tomar parte nos acontecimentos, sabe renunciar à sua vontade pessoal, direcionada para outra coisa. E acima de tudo”, pensava o príncipe Andrei, “o que leva a gente a acreditar nele é que é russo, apesar do romance de Genlis e dos provérbios franceses; e que a sua voz tremeu, quando disse: ‘A que ponto eles nos levaram!’, e soluçou ao dizer que ia fazer os franceses ‘comer carne de cavalo’.” Esse mesmo sentimento, que todos experimentavam de modo mais ou menos confuso, estava na raiz da aprovação geral e unânime da escolha de Kutúzov para o posto de comandante em chefe, escolha que acompanhava a opinião popular e contrariava o ponto de vista dos cortesãos.

XVII

Depois que o soberano deixou Moscou, a vida da cidade voltou a correr da mesma forma habitual, e o fluxo daquela vida era tão rotineiro que era até difícil lembrar-se dos dias de entusiasmo patriótico e de exaltação, e era difícil acreditar que a Rússia estivesse de fato em perigo e que os membros do Clube Inglês fossem também filhos da pátria, prontos a fazer qualquer sacrifício por ela. A única coisa que fazia lembrar o ânimo patriótico generalizado que se manifestou durante a estada do soberano em Moscou era a exigência de contribuir com homens e dinheiro, contribuições que, assim que eram feitas, tomavam a forma de um documento legal, oficial, e pareciam inevitáveis.

Com a aproximação do inimigo de Moscou, a visão que os moscovitas tinham da própria situação não só não se tornava mais séria como, ao contrário, ficava ainda mais leviana, como sempre acontece com pessoas que veem a aproximação de um grande perigo. Em face da aproximação do perigo, sempre duas vozes falam com a mesma força no espírito do homem: uma voz, com total sensatez, diz para a pessoa refletir sobre os principais atributos do perigo e sobre os meios para livrar-se dele; a outra, mais sensata ainda, diz que é penoso e aflitivo demais ficar pensando no perigo, pois não está ao alcance do homem prever tudo e livrar-se da marcha geral dos acontecimentos, e que portanto é melhor dar as costas para o que é doloroso enquanto ele não chega e pensar no que é agradável. Na solidão, o homem segue em geral a primeira voz; em sociedade, ao contrário, obedece à segunda. Assim ocorria também agora com os habitantes de Moscou. Fazia tempo que em Moscou não se divertiam tanto como naquele ano.

Os folhetos de Rostoptchin, com desenhos que representavam uma taberna e mostravam um criado e um burguês moscovita chamado Karpuchka Tchigrin, “que, tendo ido para as milícias e bebido demais, ouviu dizer que Bonaparte queria ir para Moscou e irritou-se com isso, atacou todos os franceses com palavrões, saiu da taberna e, sob a imagem da águia, começou a falar para o povo que havia se reunido”, eram lidos e discutidos da mesma forma que os últimos versos jocosos de Vassíli Lvóvitch Púchkin.29

No clube, numa sala de canto, reuniam-se para ler aqueles folhetos e muitos gostavam da maneira como Rostoptchin pilheriava com os franceses, dizendo que eles “vão inchar com os repolhos, vão se entupir de tanto comer kacha,30 vão estourar com a sopa de repolho, todos eles são uns anões, e basta uma camponesa com um forcado para dar cabo de três franceses de uma vez só”. Alguns não aprovavam esse tom e diziam que aquilo era vulgaridade e tolice. Comentava-se que Rostoptchin expulsara de Moscou os franceses e até mesmo todos os estrangeiros, que entre eles havia espiões e agentes de Napoleão; mas falavam isso, acima de tudo, para ter a chance de transmitir as palavras mordazes ditas por Rostoptchin na ocasião da partida dos estrangeiros. Levaram os estrangeiros de barco para Níjni, e Rostoptchin lhes disse: “Rentrez en vous-même, entrez dans la barque et n’en faites pas une barque de Charon”.31 Diziam que já haviam retirado de Moscou todas as repartições públicas e então acrescentavam a piada de Chinchin de que esse era o único motivo para Moscou sentir-se grata a Napoleão. Diziam que o regimento patrocinado por Mamónov custaria oitocentos mil rublos, que Bezúkhov tinha gastado ainda mais com os seus guerreiros, mas que o melhor de tudo no gesto de Bezúkhov era que ele próprio vestiria o uniforme e seguiria a cavalo à frente do regimento, e não cobraria ingresso para quem fosse vê-lo.

— Vocês não têm pena de ninguém — disse Julie Drubetskaia, enquanto juntava pedaços de pano para fazer ataduras e os apertava em seus dedos finos, cheios de anéis.

Julie estava se preparando para partir de Moscou no dia seguinte e dava uma festa de despedida.

— Bezúkhov est ridicule, mas é tão bondoso, tão gentil. Que prazer pode haver em ser tão caustique?32

— Multa! — disse um jovem em uniforme de gala, que Julie chamava de “mon chevalier”33 e que iria junto com ela para Níjni.

Nas reuniões sociais da casa de Julie, assim como em diversas reuniões sociais de Moscou, estava estabelecido que só se devia falar em russo, e aqueles que se enganavam e diziam palavras francesas pagavam uma multa em benefício da comissão de donativos.

— Há ainda outro motivo de multa por galicismo — disse um escritor russo que estava no salão. — “Que prazer pode haver” não é russo.34

— Vocês não têm pena de ninguém — prosseguiu Julie para o miliciano, sem prestar atenção no comentário do escritor. — Sou culpada por dizer caustique — disse ela — e vou pagar, mas estou disposta a pagar de novo pelo prazer de lhe dizer a verdade; pelo galicismo, não sou responsável — dirigiu-se ao escritor. — Não tenho nem dinheiro nem tempo, como o príncipe Golítsin, para contratar um professor que me ensine a falar russo. Ah, aqui está ele — disse Julie. — Quand on... Não, não — voltou-se para o miliciano —, você não vai me pegar outra vez. Quando a gente fala do sol, logo vê os seus raios — disse a anfitriã, sorrindo, amável, para Pierre. — Acabamos de falar do senhor — disse Julie, com a desenvoltura da mentira peculiar às mulheres mundanas. — Dizíamos que o regimento do senhor certamente será melhor do que o de Mamónov.

— Ah, nem me falem do meu regimento — respondeu Pierre, beijando a mão da anfitriã e sentando-se ao seu lado. — Já me aborreci muito com isso!

— Certamente o senhor mesmo irá comandá-lo, não é? — perguntou Julie, enquanto trocava um olhar astuto e zombeteiro com o miliciano.

Na presença de Pierre, o miliciano já não se mostrava tão caustique, e o seu rosto exprimia perplexidade em relação ao que o sorriso de Julie significava. Apesar do seu ar distraído e bonachão, a personalidade de Pierre obstruía de imediato qualquer tentativa de gracejo em sua presença.

— Não — respondeu Pierre, rindo e lançando um olhar para o seu corpo grande e gordo. — É muito fácil os franceses acertarem em mim, além do mais receio que eu não consiga montar num cavalo...

Entre as pessoas escolhidas pelo grupo da casa de Julie como tema de conversa, estavam os Rostóv.

— Dizem que as finanças deles vão muito mal — disse Julie. — E ele, o próprio conde, é tão obtuso. Razumóvski queria comprar a sua casa e também a propriedade nos arredores de Moscou, mas a história está se arrastando. Ele está pedindo um valor muito alto.

— Não, parece que a venda vai se concretizar em poucos dias — disse alguém. — Embora seja uma loucura comprar qualquer coisa em Moscou, agora.

— Por quê? — perguntou Julie. — Por acaso o senhor acha que existe algum perigo para Moscou?

— Então por que a senhora está partindo?

— Eu? Mas que pergunta. Estou partindo porque... bem, porque todos estão indo embora, e além disso não sou Joana d’Arc, nem uma amazona.

— Está bem, está bem, me dê mais panos para ataduras.

— Se ele souber conduzir a negociação, vai conseguir pagar todas as dívidas — prosseguiu o miliciano, a respeito de Rostóv.

— Um velho simpático, mas muito pauvre sire.35 E por que estão morando aqui há tanto tempo? Faz tempo que ele queria ir para o campo. Nathalie, ao que parece, está bem de saúde agora, não é? — perguntou Julie para Pierre com um sorriso astuto.

— Estão esperando o filho caçula — disse Pierre. — Ele entrou para o regimento de cossacos de Obolénski e seguiu para Biélaia Tsérkov. Lá estão formando o regimento. Agora eles o transferiram para o meu regimento e esperam sua chegada a qualquer momento. Faz tempo que o conde quer partir, mas a condessa não aceita de forma alguma ir embora de Moscou enquanto o filho não chegar.

— Eu os vi anteontem na casa dos Arkhárov. Nathalie está bonita e alegre de novo. Cantou uma romança. Como tudo passa com facilidade para certas pessoas!

— O que é que passa? — Pierre não pôde deixar de perguntar. Julie deu um sorriso.

— O senhor sabe, conde, que cavaleiros como o senhor só existem nos romances de Madame de Souza.

— Como assim cavaleiro? Por quê? — perguntou Pierre, ruborizado.

— Ora, vamos, querido conde, c’est la fable de tout Moscou. Je vous admire, ma parole d’honneur.36

— Multa! Multa! — disse o miliciano.

— Ora, está certo. Nem se pode mais falar, que maçante!

— Qu’est-ce qui est la fable de tout Moscou? 37 — perguntou Pierre zangado, levantando.

— Ora, vamos, conde. O senhor sabe!

— Não sei nada — disse Pierre.

— Eu sei que o senhor e Nathalie eram amigos, e portanto... Não, eu sempre fui amiga de Vera. Cette chère Véra!38

— Non, madame — prosseguiu Pierre num tom insatisfeito. — Não tomei para mim em absoluto o papel de cavaleiro protetor dos Rostóv, e já faz quase um mês que não vou à casa deles. Mas não entendo a crueldade...

— Qui s’excuse... s’accuse 39 — disse Julie, sorrindo e balançando os retalhos de pano, e para ficar com a última palavra, no mesmo instante mudou de assunto. — Mas que coisa eu soube hoje: a pobre Marie Bolkónskaia chegou ontem a Moscou. Vocês souberam que ela perdeu o pai?


— Não é possível! Onde ela está? Eu gostaria muito de vê-la — disse Pierre.

— Ontem à noite estive com ela. Hoje ou amanhã de manhã, ela e o sobrinho vão partir para os arredores de Moscou.

— Mas como ela está? — perguntou Pierre.

— Vai bem, está triste. Mas sabe quem foi que a salvou? É um verdadeiro romance. Nicolas Rostóv. Ela estava cercada, queriam matá-la, ela foi agredida pela gente da sua propriedade. Rostóv interveio com bravura e salvou-a...

— Mais um romance — disse o miliciano. — Com certeza, essa debandada geral foi inventada para casar todas as noivas velhas. Primeiro Catiche e agora a princesa Bolkónskaia.

— O senhor sabe que eu penso de fato que ela está un petit peu amoureuse du jeune homme.40

— Multa! Multa! Multa!

— Mas como é que se diz isso em russo?...

XVIII

Quando Pierre voltou para casa, deram-lhe dois folhetos de Rostoptchin trazidos naquele mesmo dia.

No primeiro dizia-se que o boato de que o conde Rostoptchin havia proibido que a população saísse de Moscou era falso e que, ao contrário, o conde Rostoptchin estava contente porque as senhoras nobres e as esposas dos comerciantes estavam indo embora de Moscou. “Haverá menos medo e menos mexericos”, dizia o folheto, “mas garanto com a minha vida que o malfeitor não entrará em Moscou.” Tais palavras deixaram claro para Pierre, pela primeira vez, que os franceses entrariam em Moscou. No segundo folheto dizia-se que o nosso quartel-general estava em Viazma, que o conde Wittgenstein havia vencido os franceses e que, como muitos habitantes de Moscou desejavam pegar em armas, havia armas à disposição para eles no arsenal: sabres, pistolas, fuzis, que os habitantes podiam comprar por um preço baixo. O tom do folheto já não era de gracejo, como eram os diálogos de Tchigrin nos folhetos anteriores. Pierre refletiu sobre aqueles folhetos. Era evidente que a terrível nuvem de tempestade que ele havia invocado com todas as forças da alma e que ao mesmo tempo suscitava nele um horror involuntário — era evidente que aquela nuvem se aproximava.

“Devo entrar no serviço militar e me alistar no Exército ou devo esperar?”, Pierre fez a si mesmo a pergunta pela centésima vez. Pegou um baralho que estava ao seu lado na mesa e começou a jogar paciência.

— Se eu ganhar esta partida de paciência — disse consigo, após embaralhar as cartas, segurando-as na mão e olhando para cima —, se eu ganhar, significa... significa o quê?...

Antes que tivesse tempo de resolver o que significava, soou por trás da porta do escritório a voz da princesa mais velha, perguntando se podia entrar.

— Significa que tenho de entrar no Exército — disse Pierre consigo. — Entre, entre — acrescentou, voltando-se para a princesa.

(Só a princesa mais velha, a de tronco comprido e rosto de pedra, continuava a morar na casa de Pierre; as duas mais jovens tinham casado.)

— Desculpe, mon cousin, por incomodar — disse com voz abalada e em tom de censura. — Afinal, está na hora de tomar uma decisão e fazer alguma coisa! O que vai acontecer? Todos estão indo embora de Moscou, e o povo está se rebelando. Como é que vamos ficar?

— Ao contrário, tudo parece estar indo muito bem, ma cousine — respondeu Pierre com a ironia habitual que ele, sempre constrangido com o papel que assumira de benfeitor da princesa, adotava ao tratar com ela.

— Sim, vai tudo muito bem... tudo está ótimo! Hoje mesmo Varvara Ivánovna me contou como as nossas tropas estão se distinguindo. Isso há de lhes trazer muitas honrarias. E, além disso, o povo está completamente amotinado, estão parando de obedecer; minha criada já começou a me destratar. Daqui a pouco vão começar a nos espancar. Não se pode mais andar pelas ruas. E, acima de tudo, mais dia menos dia, os franceses estarão aqui, portanto, o que estamos esperando? Só peço uma coisa, mon cousin — disse a princesa —, mande que me levem para Petersburgo: seja eu o que for, o fato é que não posso viver sob o poder de Bonaparte.

— Ora, vamos, ma cousine, onde a senhora obteve suas informações? Ao contrário...

— Não vou me submeter ao seu Napoleão. Os outros podem agir como bem entenderem... Se o senhor não quiser fazer isso...

— Vou fazer, sim, vou dar a ordem imediatamente.

A princesa ficou visivelmente aborrecida por não ter com quem se irritar. Sentou-se numa cadeira, enquanto murmurava algo.

— Mas a senhora foi mal informada — disse Pierre. — Na cidade está tudo calmo, e não existe nenhum perigo. Veja aqui, agora mesmo eu estava lendo... — Pierre mostrou os folhetos para a princesa. — O conde escreve que garante com a própria vida que o inimigo não vai entrar em Moscou.

— Ah, esse seu conde — exclamou a princesa com hostilidade —, esse hipócrita, patife, foi ele mesmo que incitou o povo a se rebelar. Não foi nesses folhetos imbecis que ele escreveu que tinham de arrastar sei lá quem pela cabeleira e levar para a masmorra (que bobagem)! Quem o pegasse, dizia, teria honra e glória. Aí está o resultado da sua bajulação. Varvara Ivánovna disse que o povo por pouco não a matou porque ela falou algo em francês...

— Então, é só isso... A senhora toma tudo a ferro e fogo — disse Pierre, e começou a jogar paciência.

Apesar de ter ganhado a partida de paciência, Pierre não entrou no Exército, permaneceu na deserta Moscou, sempre na mesma inquietação, indecisão e temor, ao mesmo tempo que aguardava com alegria algo terrível.

No dia seguinte, a princesa partiu ao entardecer, e o administrador de Pierre veio à sua casa com a notícia de que o dinheiro exigido a ele para equipar o regimento não poderia ser fornecido, a menos que uma propriedade fosse vendida. O administrador, no geral, fez ver a Pierre que aquela história de regimento iria levá-lo à ruína. Pierre, com dificuldade, disfarçou um sorriso ao ouvir as palavras do administrador.

— Está bem, então venda — disse ele. — O que fazer? Agora não posso mais me esquivar!

Quanto pior era a situação das finanças em geral, e em especial das suas finanças, mais aquilo agradava a Pierre e mais evidente se tornava que a catástrofe que ele tanto esperava estava próxima. Já não restava na cidade quase nenhum conhecido de Pierre. Julie havia partido, a princesa Mária havia partido. Das pessoas mais próximas, só os Rostóv tinham ficado; mas Pierre não ia à casa deles.

Naquele dia, a fim de dar um passeio, Pierre foi à aldeia de Vorontsóvo ver um grande balão de ar construído por Leppich com o intuito de destruir os inimigos e o balão de teste que devia ser solto no dia seguinte. Aquele balão ainda não estava pronto; porém, como Pierre sabia, tinha sido construído a pedido do soberano. O soberano escreveu o seguinte para o conde Rostoptchin acerca do balão:

Aussitôt que Leppich sera prêt, composez-lui un équipage, pour sa nacelle, d’hommes sûrs et intelligents et dépêchez un courrier au général Koutousoff pour l’en prévenir. Je l’ai instruit de la chose.

Recommandez, je vous prie, à Leppich d’être bien attentif sur l’endroit où il descendra la première fois, pour ne pas se tromper et ne pas tomber dans les mains de l’ennemi. Il est indispensable qu’il combine ses mouvements avec le général en chef.41

Ao voltar de Vorontsóvo para casa e passar na praça Bolotnáia, Pierre avistou uma multidão na praça Lóbnoie,42 parou e desceu da sua caleche. Tratava-se do castigo aplicado a um cozinheiro francês, condenado por espionagem. A punição tinha acabado de terminar, e o carrasco retirava do pelourinho um homem gordo, de costeletas ruivas, meias compridas azul-marinho e jaqueta verde, que gemia de forma patética. Outro criminoso, magrinho e pálido, estava de pé ali ao lado. A julgar pelo rosto, os dois eram franceses. Com aspecto assustado e sofrido, semelhante ao que tinha o francês magro, Pierre abriu caminho no meio da multidão.

— O que é isso? Quem são? Por quê? — perguntava. Mas a atenção da multidão, funcionários, burgueses, comerciantes, mujiques, mulheres de xale e de casaco de pele, estava tão sofregamente concentrada no que se passava no centro da praça que ninguém respondia. O homem gordo se levantou, franziu o rosto, encolheu os ombros e, pelo visto, com a intenção de exprimir dureza, começou a vestir a sua jaqueta sem olhar à sua volta; mas de repente seus lábios começaram a tremer, e ele desatou a chorar, irritando-se consigo mesmo, como choram as pessoas adultas de temperamento sanguíneo. A multidão, assim pareceu a Pierre, passou a falar em voz alta a fim de sufocar em si mesma um sentimento de piedade.

— É o cozinheiro de algum príncipe...

— E então, mussiú, parece que o molho russo é picante demais para um francês... ficou ardido — disse um escrivão encarquilhado que estava ao lado de Pierre na hora em que o francês começou a chorar. O escrivão olhou à sua volta visivelmente à espera de um aplauso para a sua piada. Alguns começaram a rir, outros continuaram a olhar assustados para o carrasco, que despia outro sentenciado.

Pierre começou a resfolegar pelo nariz, contraiu o rosto e, depois de dar as costas rapidamente, voltou para a caleche, sem parar de balbuciar algo para si mesmo, enquanto caminhava para a caleche e depois sentava no banco. Ao retomar o caminho, ele estremeceu algumas vezes e gritou tão alto que o cocheiro lhe perguntou:

— O que o senhor ordena?

— Para onde você está indo? — gritou Pierre para o cocheiro, que havia entrado na rua Lubianka.

— Para a casa do comandante em chefe, como o senhor ordenou — respondeu o cocheiro.

— Imbecil! Animal! — começou a gritar Pierre, o que raramente acontecia, xingando o cocheiro. — Mandei ir para casa; e depressa, seu idiota. É preciso ir embora hoje mesmo — disse Pierre para si.

Pierre, ao ver o condenado francês e a multidão que rodeava a praça Lóbnoie, decidiu de maneira tão definitiva que não poderia permanecer mais tempo em Moscou e que iria para o Exército naquele mesmo dia que teve a impressão de que ou tinha dito aquilo para o cocheiro ou o cocheiro já devia sabê-lo por si mesmo.

Ao chegar em casa, Pierre chamou o cocheiro Evstáfievitch, que sabia tudo, era capaz de fazer tudo, conhecia Moscou inteira, e deu ordens de que à noite ia ao encontro das tropas em Mojáisk e de que mandassem para lá os seus cavalos de montaria. Tudo isso não podia ser feito no mesmo dia, e portanto, a conselho de Evstáfievitch, Pierre teve de adiar a partida para o dia seguinte, a fim de dar tempo para que os cavalos fossem na frente.

No dia 24, passado o mau tempo, o céu clareou, e naquele dia, após o almoço, Pierre deixou Moscou. À noite, ao mudar de cavalos em Perkhúchkovo, a terra tremia com o tiroteio. Às perguntas de Pierre sobre quem estava vencendo, ninguém foi capaz de dar uma resposta. (Era a batalha do dia 24, em Chevardinó.) Ao raiar do dia, Pierre aproximou-se de Mojáisk.

Todas as casas de Mojáisk estavam ocupadas pelas tropas, e na estalagem onde Pierre era esperado pelo seu cocheiro e seu cavalariço não havia vagas: tudo estava cheio de oficiais.

Em Mojáisk e ao redor de Mojáisk, havia tropas em toda parte, estacionadas e em movimento. Cossacos, infantes, cavalarianos, carroças, arcas, canhões estavam em toda parte. Pierre apressou-se para avançar ainda mais ligeiro e, quanto mais se afastava de Moscou, quanto mais profundamente mergulhava naquele mar de tropas, mais se via dominado pela angústia da inquietação e por uma alegria nova, que nunca havia experimentado. Era um sentimento semelhante ao que experimentara no palácio Slobóda, por ocasião da visita do soberano — o sentimento da necessidade de realizar algo e de sacrificar-se por algo. Pierre experimentava agora o sentimento agradável da consciência de que tudo aquilo que constitui a felicidade das pessoas, os prazeres da vida, a riqueza e até a própria vida, são tolices que dá gosto descartar, em comparação com outra coisa... Com o quê, isso Pierre não conseguia responder, nem tentava esclarecer pelo que desejava se sacrificar, mas o próprio sacrifício em si constituía, para ele, um sentimento novo de alegria.

XIX

No dia 24, houve a batalha da fortaleza de Chevardinó, no dia 25 não foi disparado nenhum tiro, nem de um lado, nem do outro, e no dia 26 ocorreu a batalha de Borodinó.

Como e para que foram oferecidas e aceitas as batalhas de Chevardinó e Borodinó? Para que foi travada a batalha de Borodinó? A batalha não teve o menor significado, nem para os franceses, nem para os russos. O resultado imediato foi e tinha de ser, para os russos, que nos aproximamos da destruição de Moscou (aquilo que mais temíamos no mundo), e para os franceses, que eles se aproximaram da destruição do exército inteiro (aquilo que eles também mais temiam no mundo). Tal resultado se mostrou perfeitamente óbvio desde o início, e no entanto Napoleão ofereceu a batalha, e Kutúzov aceitou-a.

Se os comandantes militares fossem guiados por motivos racionais, era de supor que estivesse óbvio para Napoleão que, ao percorrer duas mil verstas e travar uma batalha em que era mais do que provável que perderia um quarto do seu exército, ele estava seguramente marchando rumo à sua destruição; da mesma forma, deveria estar claro para Kutúzov que, ao aceitar a batalha e arriscar-se também a perder um quarto do exército, ele certamente perderia Moscou. Para Kutúzov, isso estava matematicamente claro, como está claro num jogo de damas que, se tenho uma peça a menos e vou fazer uma troca de peças, seguramente vou sair perdendo e portanto não devo fazer a troca.

Quando o oponente tem dezesseis peças, e eu tenho catorze, sou apenas um oitavo mais fraco do que ele; porém, quando eu tiver trocado treze peças com ele, meu oponente será três vezes mais forte do que eu.

Até a batalha de Borodinó, nossas forças e as forças francesas estavam numa proporção de aproximadamente cinco para seis, mas depois da batalha essa proporção ficou de um para dois, ou seja, até a batalha, a proporção era de cem mil para cento e vinte mil, e depois da batalha, de cinquenta para cem. Entretanto, o experiente e perspicaz Kutúzov aceitou a batalha. Napoleão, o comandante genial, como era chamado, ofereceu a batalha, perdendo um quarto do seu exército e estendendo mais ainda as suas linhas. Se dizem que, ao tomar Moscou, ele pensava em encerrar a campanha, como ocorreu ao tomar Viena, existem muitas provas contra essa tese. Os próprios historiadores de Napoleão contam que ainda em Smolensk ele quis parar, conhecia o risco da sua posição muito estendida e sabia que a tomada de Moscou não seria o final da campanha, porque em Smolensk Napoleão tinha visto em que condições os russos haviam deixado a cidade para ele, e não havia recebido nenhuma resposta às suas repetidas declarações sobre o desejo de iniciar negociações para um acordo de paz.

Ao oferecer e aceitar a batalha de Borodinó, Napoleão e Kutúzov agiram de forma involuntária e irrefletida. E os historiadores, já depois dos fatos consumados, forneceram argutas demonstrações da perspicácia e da genialidade dos comandantes, que, entre todos os instrumentos involuntários dos acontecimentos mundiais, eram os agentes mais servis e mais involuntários.

Os antigos nos deixaram exemplos de poemas heroicos nos quais o herói constitui todo o interesse da história e, até hoje, ainda não conseguimos nos habituar à ideia de que, para a nossa época, uma história desse tipo não tem sentido.

Quanto à outra pergunta — como foram oferecidas as batalhas de Borodinó e de Chevardinó, que a precedeu —, existe da mesma forma uma ideia igualmente clara e conhecida de todos, e também absolutamente falsa. Todos os historiadores descrevem a questão da seguinte maneira:

O exército russo, em retirada de Smolensk, teria procurado a melhor posição para uma batalha geral e encontrou tal posição em Borodinó.

Os russos teriam fortificado de antemão aquela posição, à esquerda da estrada (de Smolensk para Moscou) e quase em ângulo reto com ela, no sentido de Borodinó para Utítsa, no mesmo lugar onde a batalha foi travada.

Na frente dessa posição, os russos teriam erguido um posto avançado fortificado na colina de Chevardinó para observar o inimigo. No dia 24, Napoleão teria atacado e tomado esse posto avançado; no dia 26, ele atacou todo o exército russo, que estava a postos no campo de Borodinó.

Assim está dito nas histórias e tudo isso está totalmente errado, do que logo se convence qualquer um que queira penetrar na essência da questão.

Os russos não saíram em busca de uma posição melhor; ao contrário, na sua retirada deixaram para trás posições que seriam melhores do que Borodinó. Não se detiveram em nenhuma dessas posições porque Kutúzov não queria tomar uma posição que não tivesse sido escolhida por ele, porque a exigência popular de travar uma batalha ainda se manifestava com força insuficiente, porque Milorádovitch e a milícia ainda não tinham chegado, e ainda por outras razões, que são inúmeras. O fato é este: as posições anteriores eram mais fortes, e a posição em Borodinó (aquela onde a batalha foi travada) não só não era forte como não era uma posição em nada diferente de qualquer outro local no império russo que se escolhesse fincando ao acaso um alfinete no mapa.

Os russos não só não fortificaram a posição no campo de Borodinó à esquerda, em ângulo reto com a estrada (ou seja, o local onde ocorreu a batalha), como nunca, antes do dia 25 de agosto de 1812, tinham imaginado que poderia ocorrer uma batalha naquele lugar. Prova disso é, em primeiro lugar, o fato de que no dia 25 não havia naquele local posições fortificadas e que as que eles começaram a construir no dia 25 não ficaram prontas no dia 26; em segundo lugar, há a posição da fortificação de Chevardinó: o reduto fortificado de Chevardinó, à frente da posição onde a batalha foi travada, não tem nenhum sentido. Para que esse reduto foi mais reforçado do que qualquer outro ponto fortificado? E para que se esgotaram todas as energias e se perderam seis mil soldados para defendê-lo no dia 24, até tarde da noite? Para observar o inimigo, bastaria uma patrulha de cossacos. Em terceiro lugar, a prova de que a posição onde ocorreu a batalha não foi prevista e de que o reduto de Chevardinó não era um posto avançado dessa posição é o fato de que Barclay de Tolly e Bagration, no dia 25, estavam convencidos de que o reduto de Chevardinó era o flanco esquerdo da posição e que o próprio Kutúzov, numa mensagem redigida impulsivamente logo após a batalha, chama o reduto de Chevardinó de flanco esquerdo da posição. Já muito tempo depois, quando se escreveram com mais tranquilidade relatos sobre a batalha de Borodinó, inventou-se (certamente para justificar os erros do comandante em chefe, que tinha de ser infalível) a indicação equivocada e estranha de que o reduto de Chevardinó servia de posto avançado (quando se tratava apenas de um ponto fortificado do flanco esquerdo) e que a batalha de Borodinó foi travada pelos nossos numa posição fortificada e escolhida de antemão, quando a batalha ocorreu num local totalmente inesperado e quase sem fortificações.

Obviamente, o caso era o seguinte: a posição escolhida ficava junto ao rio Kolotchá, que corta a estrada principal não num ângulo reto, e sim agudo, de tal modo que o flanco esquerdo era em Chevardinó, o flanco direito perto da aldeia de Nóvoie e o centro em Borodinó, na confluência dos rios Kolotchá e Vóina. Para qualquer um que examine o campo de Borodinó sem pensar em como se deu a batalha, parece que essa posição, protegida pelo rio Kolotchá, é a posição óbvia para um exército cujo objetivo era deter um inimigo que se deslocava pela estrada de Smolensk para Moscou.

Napoleão, no dia 24, ao seguir para Valúievo, não avistou (como dizem nas histórias) a posição dos russos entre Utítsa e Borodinó (não poderia avistar tal posição, pois ela não existia) e não avistou o posto avançado do exército russo, mas saiu em perseguição da retaguarda russa no flanco esquerdo da posição dos russos, no reduto de Chevardinó e, inesperadamente para os russos, deslocou as tropas para o outro lado do rio Kolotchá. E os russos, sem tempo de travar uma batalha geral, recuaram a ala esquerda da posição que tinham a intenção de ocupar e tomaram uma nova posição, que não estava prevista nem fortificada. Ao atravessar para o lado esquerdo do rio Kolotchá, à esquerda da estrada, Napoleão deslocou toda a futura batalha da direita para a esquerda (do lado dos russos) e a transferiu para o campo entre Utítsa, Semiónovskoie e Borodinó (um campo que, em si, nada tinha de mais vantajoso do que qualquer outro campo na Rússia para posicionar as tropas) e nesse campo ocorreu toda a batalha do dia 26. De forma aproximada, o plano previsto para a batalha e da batalha de fato ocorrida é o seguinte:

 

Se Napoleão não tivesse ido, no entardecer do dia 24, para o rio Kolotchá e não tivesse ordenado o ataque ao reduto, mas começado o ataque no dia seguinte pela manhã, ninguém teria dúvida de que o reduto de Chevardinó ficava no flanco esquerdo da nossa posição; e a batalha teria se passado como esperávamos. Nesse caso, provavelmente, defenderíamos de forma ainda mais obstinada o reduto de Chevardinó, o nosso flanco esquerdo; atacaríamos Napoleão no centro ou na direita, e no dia 24 teria ocorrido uma batalha geral na posição prevista e fortificada. Mas, como o ataque ao nosso flanco esquerdo aconteceu ao entardecer, depois do recuo da nossa retaguarda, ou seja, imediatamente depois da batalha de Gridnióva, e como a retaguarda russa não quis ou não teve tempo de começar, naquele mesmo entardecer do dia 24, uma batalha geral, a primeira e principal ação da batalha de Borodinó foi perdida ainda no dia 24 e, obviamente, levou à derrota na batalha travada no dia 26.

Depois de perder o reduto de Chevardinó na manhã do dia 25, ficamos sem posições no flanco esquerdo e nos vimos na necessidade de desdobrar a nossa ala esquerda e reforçá-la às pressas, onde quer que fosse.

Mas, além de, no dia 26 de agosto, as tropas russas estarem protegidas apenas por fortificações fracas, a desvantagem daquela posição era ainda maior porque os comandantes russos, como não haviam compreendido inteiramente os fatos em curso (a perda da posição no flanco esquerdo e o deslocamento de todo o futuro campo de batalha da direita para a esquerda), permaneceram nas suas posições estendidas da aldeia de Nóvoie até Utítsa e portanto, na hora da batalha, tiveram de deslocar suas tropas da direita para a esquerda. Dessa forma, durante todo o tempo da batalha, os russos tiveram de enfrentar o exército francês inteiro, lançado contra a nossa ala esquerda, que tinha forças duas vezes menores que as do inimigo. (As ações de Poniatowsky contra Utítsa, e as de Uvárov no flanco direito dos franceses se deram de modo alheio ao andamento geral da batalha.)

Portanto, a batalha de Borodinó se passou de forma completamente distinta do que a descrevem (tentando esconder os erros dos nossos comandantes militares e, em consequência, diminuindo a glória das tropas e do povo russo).

A batalha de Borodinó não se passou na posição escolhida e fortificada, com forças apenas ligeiramente enfraquecidas do lado russo, na verdade, a batalha de Borodinó, em consequência da perda do reduto de Chevardinó, foi travada pelos russos numa posição aberta, quase sem fortificações, e com forças duas vezes menores do que as dos franceses, ou seja, em condições tais que não só era impensável bater-se por dez horas e travar uma batalha de propósito duvidoso, como era impensável manter sequer por três horas o exército a salvo da destruição completa e da debandada.

XX

Na manhã do dia 25, Pierre partiu de Mojáisk. Na descida íngreme e tortuosa da montanha na saída da cidade, ao lado da qual, à direita, ficava uma catedral onde estavam rezando uma missa e os sinos batiam, Pierre desceu da carruagem e seguiu a pé. Atrás dele, um regimento de cavalaria descia a montanha, com os cantores à frente. Na direção de Pierre, vinha subindo a estrada um comboio de carroças com feridos do combate da véspera. Os mujiques incumbidos do transporte andavam de um lado para outro, gritando para os cavalos e dando chicotadas. As carroças, dentro das quais, deitados ou sentados, havia três ou quatro soldados feridos, pulavam nas pedras espalhadas sobre a ladeira íngreme num arremedo de calçamento. Os feridos, enfaixados com trapos, pálidos, com lábios comprimidos e sobrancelhas franzidas, segurando-se nos anteparos das carroças, sacudiam e esbarravam uns nos outros. Com uma curiosidade infantil e quase ingênua, todos observavam o chapéu branco e o fraque verde de Pierre.

O cocheiro de Pierre, zangado, gritou para o comboio de feridos que eles deviam se manter do seu lado da estrada. O regimento de cavalaria que descia a montanha com seus cantores aproximou-se da caleche de Pierre e obstruiu sua passagem. Pierre se deteve, espremido na beira da estrada aberta na montanha. O sol, por trás da ladeira da montanha, não alcançava a depressão onde a estrada passava, e ali fazia frio, era úmido; acima da cabeça de Pierre, havia uma clara manhã de agosto, e o som dos sinos se propagava com alegria. Uma carroça com feridos parou na beira da estrada, bem perto de Pierre. O carroceiro, de sandálias de palha, sem fôlego, correu para a parte de trás da telega, enfiou uma pedra embaixo da roda traseira, sem nenhuma proteção pneumática, e pôs-se a ajeitar os arreios do seu cavalinho que estava parado.

Um soldado velho e ferido, com o braço enfaixado, que vinha caminhando atrás da telega, apoiava-se nela com o braço bom e voltou os olhos para Pierre.

— E então, compatriota, vão largar a gente aqui mesmo ou vão levar a gente até Moscou? — perguntou.

Pierre estava tão absorto em pensamentos que nem ouviu a pergunta. Olhava ora para o regimento de cavalaria, que agora estava passando pelo comboio de feridos na estrada, ora para a telega junto à qual estava o soldado velho e dentro da qual havia dois feridos sentados e um deitado, e lhe pareceu que ali, neles, se encontrava a solução do problema que o preocupava. Um dos soldados sentados na telega tinha, pelo jeito, se ferido na bochecha. Toda a sua cabeça estava envolta em trapos, e uma bochecha estava inchada e do tamanho da cabeça de um bêbe. A boca e o nariz estavam torcidos para o lado. Aquele soldado olhava para a catedral e se benzia. O outro, um menino, um recruta, louro e tão branco que parecia não ter sangue nenhum no rosto fino, fitava Pierre com um sorriso simpático e parado; o terceiro ferido estava deitado de bruços, e seu rosto não estava visível. Os cantores da cavalaria passaram bem perto da telega.

— Ah, ela sumiu... cabeça de porco-espinho...

— É duro viver em terra estrangeira... — iam entoando a dançante canção de soldados. Como que fazendo eco a eles, mas numa outra espécie de alegria, os sons metálicos dos sinos irrompiam no alto. E ainda com outro tipo de alegria, os raios quentes do sol se derramavam no alto da ladeira. Mas ao pé da ladeira, junto à telega com os feridos, ao lado do cavalinho sem fôlego perto do qual se encontrava Pierre, estava úmido, cinzento e triste.

O soldado com a bochecha ferida olhava zangado para os cantores da cavalaria.

— Eh, gente metida a besta! — exclamou em tom de censura.

— Não foram só soldados que vi hoje, vi mujiques também! Os mujiques também estão sendo obrigados a ir — disse com um sorriso triste o soldado que estava atrás da telega, voltando-se para Pierre. — Hoje nem estão mais separando uns dos outros... Querem empurrar o povo todo, numa palavra, é Moscou. Querem acabar de uma vez. — Apesar da obscuridade das palavras do soldado, Pierre entendeu tudo o que ele queria dizer e inclinou a cabeça em sinal de aprovação.

A estrada ficou vazia outra vez, e Pierre desceu a montanha e foi em frente.

Pierre seguiu olhando para os dois lados da estrada, em busca de rostos conhecidos, e encontrava em toda parte apenas rostos desconhecidos de militares de diversos tipos de tropas, que olhavam com o mesmo espanto para o seu chapéu branco e o seu fraque verde.

Depois de percorrer quatro verstas, encontrou o primeiro conhecido e dirigiu-se a ele com alegria. O conhecido era um dos comandantes médicos do Exército. Em sua charrete, ele veio na direção de Pierre, sentado ao lado de um médico jovem e, ao reconhecer Pierre, deu ordem de parar ao seu cossaco, sentado na boleia, no lugar do cocheiro.

— Conde! Vossa excelência, o que está fazendo aqui? — perguntou o médico.

— É que eu queria ver...

— Sei, sei, e tem mesmo muito o que ver...

Pierre desceu da carruagem e, parado, começou a conversar com o médico, explicando-lhe sua intenção de participar da batalha.

O médico aconselhou Bezúkhov a dirigir-se diretamente ao excelentíssimo.

— O senhor poderia acabar ficando em algum local ignorado, só Deus sabe onde, durante a batalha — disse ele, trocando um olhar com o colega mais jovem. — Além do mais, o excelentíssimo conhece o senhor e vai recebê-lo com boa vontade. Está resolvido, meu caro, faça isso mesmo — disse o médico.

O médico parecia cansado e afobado.

— Então o senhor acha... mas eu também queria lhe perguntar uma coisa, onde exatamente fica a nossa posição? — disse Pierre.

— A posição? — disse o médico. — Isso já não me diz respeito. Atravesse Tatárinova, estão cavando um bocado por lá. Suba num monte: de lá vai dar para ver — disse o médico.

— De lá dá para ver?... Será que o senhor não podia...

Mas o médico interrompeu-o e aproximou-se da sua charrete.

— Eu até que acompanharia o senhor, mas, Deus do céu, estou por aqui (o médico apontou para a garganta), e estou indo a galope ao encontro do comandante da tropa. Enfim, quer saber como estão as coisas para o nosso lado?... Sabe, conde, amanhã vai haver uma batalha: num exército de cem mil, temos de contar com pelo menos vinte mil feridos; mas não temos macas, nem leitos, nem enfermeiros, nem médicos para sequer seis mil feridos. Há dez mil telegas, mas precisávamos de outras coisas; o senhor faça como preferir.

O estranho pensamento de que entre aqueles milhares de pessoas vivas, saudáveis, jovens e velhas, que olhavam para o seu chapéu com uma surpresa divertida, provavelmente haveria vinte mil condenados ao ferimento e à morte (quem sabe aqueles mesmos que ele estava vendo agora), abalou Pierre.

“Talvez eles morram amanhã, então para que estão pensando em outras coisas que não a morte?” E de repente, por uma misteriosa associação de ideias, Pierre visualizou nitidamente a descida da montanha de Mojáisk, as telegas com os feridos, o comboio, os raios oblíquos do sol e as canções dos cantores da cavalaria.

“Os cavalarianos estão seguindo para a batalha e, no caminho, cruzam com os feridos, e nem por um momento vão parar para pensar naquilo que os aguarda, apenas passaram pelos feridos e mal piscaram os olhos para eles. Entre os soldados, vinte mil estão condenados à morte, e mesmo assim ainda se admiram com o meu chapéu! Que estranho!”, pensou Pierre, enquanto avançava para Tatárinova.

Na casa de um senhor de terras no lado esquerdo da estrada, estavam paradas carruagens, carroças de carga, uma multidão de ordenanças e sentinelas. O excelentíssimo estava alojado ali. Mas na hora em que Pierre chegou ele não estava, e não havia quase ninguém do Estado-Maior. Todos tinham ido à missa. Pierre seguiu em frente rumo a Górki.

Depois de subir o morro e sair numa rua pequena da aldeia, Pierre avistou pela primeira vez mujiques milicianos com uma cruz no gorro e camisa branca, que em meio a gargalhadas e conversas barulhentas, animados e suados, faziam algum trabalho no lado direito da estrada, numa vasta colina coberta de capim.

Alguns deles escavavam o morro com pás, outros levavam terra em carrinhos por cima de tábuas, e outros ainda estavam parados sem fazer nada.

Dois oficiais estavam na colina, comandando os homens. Ao avistar aqueles mujiques, obviamente ainda alvoroçados com a sua nova condição de militares, Pierre lembrou-se de novo dos soldados feridos em Mojáisk, e para ele ficou claro aquilo que o soldado queria exprimir ao dizer “querem empurrar o povo todo”. A visão daqueles mujiques barbados que trabalhavam no campo de batalha, com suas botas estranhas e desajeitadas, com seus pescoços suados, com suas camisas de golas tortas e desabotoadas, que deixavam à mostra os ossos queimados da clavícula, impressionou Pierre com mais força do que tudo o mais que vira e ouvira até então, no que diz respeito à solenidade e à importância daquele momento.

XXI

Pierre desceu da carruagem e, passando pelos trabalhadores das milícias, subiu na colina de onde, conforme lhe dissera o médico, poderia ver o campo de batalha.

Eram onze horas da manhã. O sol estava um pouco à esquerda e atrás de Pierre e iluminava com clareza, através do ar limpo, rarefeito, o vasto panorama que, erguido na forma de um anfiteatro, se abria à sua frente.

Para cima e para a esquerda daquele anfiteatro, atravessando-o, ondulava a grande estrada de Smolensk, que seguia através de uma aldeia com uma igreja branca, que ficava quinhentos passos à frente da colina e num nível mais baixo do que ela (era Borodinó). A estrada, abaixo da aldeia, passava por uma ponte e seguia por um declive e por um aclive, ondulava sempre adiante, rumo ao vilarejo de Valúievo, que se avistava a umas seis verstas dali (onde agora estava Napoleão). Para além de Valúievo, a estrada se perdia numa floresta, que amarelava o horizonte. Naquela floresta, de bétulas e abetos, à direita da estrada, ao longe, a cruz e o campanário do monastério de Kolotchá brilhavam ao sol. Por toda aquela vastidão azul, à direita e à esquerda da floresta e da estrada, em vários lugares, viam-se fogueiras fumegantes e massas indefinidas de tropas, nossas e do inimigo. À direita, ao longo do rio Kolotchá e do rio Moskvá, o solo era montanhoso e cortado por ravinas. Entre as ravinas, avistavam-se ao longe as aldeias de Bezzúbovo e de Zakhárino. À esquerda o solo era mais nivelado, havia campos de cereais e avistava-se uma aldeia incendiada e fumegante — Semiónovskoie.

Tudo o que Pierre via à direita e à esquerda era tão vago que nem o lado esquerdo nem o lado direito do campo satisfaziam plenamente a sua expectativa. Em toda parte, não havia o campo de batalha que ele esperava ver, mas campos, clareiras, tropas, matas, fogueiras fumegantes, aldeias, colinas, riachos; e, por mais que Pierre analisasse, não conseguia identificar, naquela área cheia de vida, a assim chamada posição, e não conseguia sequer distinguir as nossas tropas das tropas inimigas.

“É preciso perguntar a um entendido”, pensou, e dirigiu-se a um oficial que observava com curiosidade a sua enorme figura de civil.

— Permita-me perguntar — disse Pierre para o oficial —, que aldeia é aquela ali na frente?

— É Burdinó, não é, não? — disse o oficial, virando-se para perguntar a um camarada.

— Borodinó — corrigiu o outro.

O oficial, obviamente satisfeito com a oportunidade de falar, aproximou-se de Pierre.

— Lá estão os nossos? — perguntou Pierre.

— Sim, e mais ao longe estão os franceses — disse o oficial. — Lá longe, olhe lá, dá para ver.

— Onde, onde? — perguntou Pierre.

— Dá para ver a olho nu. Olhe lá, veja! — O oficial apontou com a mão para as fumaças que se viam à esquerda do rio, e no seu rosto se estampou aquela expressão severa e séria que Pierre via em muitos rostos que encontrava.

— Ah, aquilo são os franceses! E lá?... — Pierre apontou para a esquerda da colina, em torno da qual se avistavam as tropas.

— Aqueles são os nossos.

— Ah, os nossos! E lá?... — Pierre apontou para outra colina, ao longe, com uma árvore grande, perto da aldeia que se avistava numa ravina, onde também fumegavam fogueiras e havia alguma coisa preta.

— É ele outra vez — respondeu o oficial. (Era o reduto de Chevardinó.) — Ontem era nosso, mas agora é dele.

— Mas e a nossa posição?

— A posição? — indagou o oficial com um sorriso de contentamento. — Isso eu posso explicar ao senhor com toda a clareza, porque eu construí quase todas as nossas fortificações. Olhe, está vendo? O nosso centro fica em Borodinó, ali, olhe. — Apontou para a aldeia com uma igreja branca, situada à sua frente. — Ali, dá para atravessar o rio Kolotchá. E ali, olhe, ali onde ainda tem umas fileiras de feno ceifadas naquela parte mais baixa, olhe, ali tem uma ponte. Aquilo é o nosso centro. O nosso flanco direito, olhe onde está (e apontou muito à direita, longe, numa ravina), lá fica o rio Moskvá, e lá nós construímos três redutos muito fortificados. O flanco esquerdo... — E então o oficial se deteve. — Veja bem, é difícil explicar para o senhor... Ontem o nosso flanco esquerdo ficava lá, em Chevardinó, olhe, lá adiante, onde tem aquele carvalho. Mas agora nós recuamos, a ala esquerda agora está lá, lá... está vendo uma aldeia cheia de fumaça?... É Semiónovskoie, aqui, olhe — apontou para a colina Raiévski. — Acontece que é muito difícil que a batalha seja travada aqui. Ter trazido as tropas para cá, isso foi um engano dele; seguramente ele vai passar para o lado direito do rio Moskvá. Bem, onde quer que fique, amanhã muitos não vão mais estar aqui! — disse o oficial.

Um velho sargento que se aproximara do oficial durante a sua explanação aguardava em silêncio que o seu superior terminasse de falar; mas naquele ponto, obviamente descontente com as palavras do oficial, ele o interrompeu.

— Tem de mandar mais cestos de pedras de fortificação para lá — disse ele, em tom severo.

O oficial pareceu ficar confuso, como se tivesse entendido que era possível pensar que muitos não estariam mais ali no dia seguinte, mas não convinha falar sobre isso.

— Bem, está certo, mande a terceira companhia de novo — disse o oficial às pressas.

— E o senhor, não é um dos médicos?

— Não, eu vim por conta própria — respondeu Pierre. E desceu o morro outra vez, passando pelos milicianos.

— Ah, desgraçados! — exclamou o oficial que o seguia, tapando o nariz e passando depressa pelos trabalhadores.

— Lá estão eles!... Estão trazendo, vêm vindo... Olha eles lá... vão chegar logo... — ouviram-se vozes de repente, e os oficiais, os soldados e os milicianos correram para a frente, pela estrada.

Uma procissão saiu de Borodinó e vinha subindo o morro. À frente de todos, na estrada poeirenta, vinha a infantaria, bem alinhada, sem chapéu na cabeça, com os fuzis apontados para baixo. Atrás da infantaria, ouviam-se os cânticos da igreja.

Soldados e milicianos sem chapéu, que corriam ao encontro da procissão, ultrapassaram Pierre.

— Estão trazendo a Mãezinha! A Protetora!... A Ivérskaia!...43

— É a Mãezinha de Smolensk — corrigiu outro.

Os milicianos — os que estavam na aldeia e também os que estavam trabalhando na bateria — largaram suas pás e correram ao encontro da procissão. Atrás do batalhão, que caminhava pela estrada poeirenta, vinham sacerdotes paramentados, um velhote de klobuk,44 com membros do clero e cantores. Atrás deles, os soldados e os oficiais carregavam o grande ícone de rosto escuro, dentro de um estojo. Era um ícone trazido de Smolensk e que, desde então, era carregado pelo exército. Em volta do ícone, atrás, na frente, por todos os lados, militares em multidão corriam e curvavam-se até o chão, com a cabeça descoberta.

Após subir o morro, o ícone parou; as pessoas que carregavam o ícone num andor foram substituídas, os sacristãos acenderam os incensos de novo e teve início uma prece. Os raios quentes do sol caíam perpendiculares; uma brisa fraca e fresca brincava com os cabelos das cabeças descobertas, com as fitas que decoravam o ícone; os cânticos se propagavam num som baixo, a céu aberto. Uma enorme multidão de cabeças descobertas, formada por oficiais, soldados e milicianos, rodeava o ícone. Atrás de um sacerdote e de um sacristão, num local já preparado para isso, estavam as autoridades. Um general careca, com a Cruz de São Jorge no pescoço, estava logo atrás do sacerdote e, sem fazer o sinal da cruz (era alemão, pelo visto), esperava com paciência o fim da prece, que ele considerava necessário acompanhar, certamente para estimular o patriotismo do povo russo. Um outro general estava numa pose marcial e movia a mão na frente do peito, enquanto olhava à sua volta. No meio daquele círculo de autoridades, Pierre, que se achava na multidão de mujiques, identificou alguns conhecidos; mas não ficou olhando para eles: toda a sua atenção estava concentrada na expressão séria dos rostos da multidão de soldados e milicianos, que contemplavam o ícone com igual entusiasmo. Assim que os sacristãos, cansados (depois de terem cantado vinte preces), começaram a cantar com preguiça e de modo mecânico: “Salvai da desgraça os vossos servos, Virgem Santíssima”, e o sacerdote e o diácono responderam: “Pois todos, por Deus, acorremos a vós, como a uma muralha indestrutível, em busca de amparo”, em todos os rostos se acendeu de novo a mesma expressão de consciência da solenidade daquele instante, que Pierre tinha visto ao pé da montanha de Mojáisk e, de modo eventual, em muitos e muitos rostos que havia encontrado naquela manhã; e com maior frequência as cabeças se abaixavam, os cabelos se sacudiam e ouviam-se suspiros e as batidas das mãos no peito, ao fazerem o sinal da cruz.

A multidão em redor do ícone abriu-se de repente, e Pierre foi espremido. Alguém, na certa uma pessoa muito importante, a julgar pela pressa com que abriam caminho à sua frente, aproximava-se do ícone.

Era Kutúzov, que acabara de inspecionar a posição. Ao voltar de Tatárinova, ele se dirigiu àquela cerimônia. Pierre imediatamente reconheceu Kutúzov pela sua figura singular, que o distinguia de todos.

Numa sobrecasaca comprida sobre o corpo enorme de gordura, com as costas de ombros arredondados, a cabeça branca e descoberta, e o olho branco e vazado no rosto gorduroso, Kutúzov entrou no círculo no seu passo afobado e oscilante e parou ao lado do sacerdote. Fez o sinal da cruz com um gesto mecânico, tocou a mão na terra e, após soltar um suspiro profundo, baixou a cabeça grisalha. Atrás de Kutúzov estavam Bennigsen e a sua comitiva. Apesar da presença do comandante em chefe, que concentrava as atenções de todos os oficiais de patente superior, os milicianos e os soldados não olhavam para ele e continuaram a rezar.

Quando a prece terminou, Kutúzov aproximou-se do ícone, baixou o corpo pesadamente sobre o joelho, curvou-se até a terra e por muito tempo tentou se levantar, sem conseguir, por causa do peso e da fraqueza. Sua cabeça grisalha sacudia com o esforço. Por fim levantou-se e, com os lábios esticados de um jeito infantil e ingênuo, beijou o ícone, abaixou-se outra vez e tocou a mão na terra. Os generais seguiram o seu exemplo; depois os oficiais e, depois deles, apertando-se uns aos outros, pisando-se, arquejando e empurrando-se, com o rosto emocionado, vieram os soldados e os milicianos.

XXII

Balançando por causa do aperto da multidão que o rodeava, Pierre olhava à sua volta.

— Conde, Piotr Kirílitch! Como é que o senhor veio parar aqui? — disse uma voz. Pierre virou-se.

Boris Drubetskói, limpando com a mão os joelhos sujos (certamente também havia se ajoelhado diante do ícone) e sorrindo, aproximou-se de Pierre. Boris estava vestido com elegância, mas com um toque marcial de militar combatente. Usava uma sobrecasaca comprida e tinha um chicote a tiracolo, a exemplo de Kutúzov.

Enquanto isso, Kutúzov foi para a aldeia e sentou-se à sombra da casa mais próxima, num banco que um cossaco lhe trouxe correndo e que outro cobriu às pressas com um tapete. A imensa e radiante comitiva rodeou o comandante em chefe.

O ícone foi levado adiante, seguido pela multidão. Pierre se deteve a uns trinta passos de Kutúzov e ficou conversando com Boris.

Pierre estava explicando a sua intenção de tomar parte da batalha e de observar a posição.

— O que o senhor deve fazer é o seguinte — disse Boris. — Je vous ferai les honneurs du camp!45 O melhor lugar para o senhor ver tudo é onde vai ficar o conde Bennigsen. Eu vou estar lá, a serviço dele. Vou avisar a ele. Mas, se o senhor quiser percorrer a nossa posição, venha conosco: estamos indo agora para o flanco esquerdo. Depois voltaremos, e peço que faça a bondade de pernoitar no meu alojamento, vamos jogar uma partida de cartas. O senhor deve conhecer Dmítri Sergueitch, é claro. Olhe, ele está alojado ali — apontou para a terceira casa em Górki.

— Mas eu queria ver o flanco direito; dizem que está muito fortificado — disse Pierre. — Eu queria partir do rio Moskvá e ver toda a posição.

— Bem, depois poderemos fazer isso, mas o mais importante é o flanco esquerdo...

— Sim, sim. E onde está o regimento do príncipe Bolkónski, o senhor pode me mostrar? — perguntou Pierre.

— De Andrei Nikoláievitch? Nós vamos passar pelo seu regimento, vou levar o senhor à presença dele.

— E o flanco esquerdo? — perguntou Pierre.

— Para lhe dizer a verdade, entre nous, só Deus sabe em que situação está o nosso flanco esquerdo — disse Boris, baixando a voz, em tom confidencial. — O conde Bennigsen nem de longe planejava isso. Seu plano era fortificar aquela colina ali, olhe, e não aquela outra lá, mas... — Boris encolheu os ombros — ... o excelentíssimo não quis, ou o persuadiram do contrário. Afinal... — Boris não terminou a frase porque, naquele instante, Kaissárov, um ajudante de ordens de Kutúzov, aproximou-se de Pierre. — Ah! Paíssi Sergueitch — exclamou Boris, voltando-se para Kaissárov com um sorriso desembaraçado. — Estou justamente tentando explicar a nossa posição para o conde. É surpreendente como o excelentíssimo foi capaz de adivinhar de modo tão preciso os planos dos franceses!

— O senhor se refere ao flanco esquerdo? — perguntou Kaissárov.

— Sim, sim, exatamente. O nosso flanco esquerdo agora está muito, muito fortificado.

Apesar de Kutúzov ter dispensado do Estado-Maior todos os oficiais supérfluos, Boris, depois das mudanças promovidas por Kutúzov, conseguira dar um jeito de permanecer no quartel-general. Boris estava a serviço do conde Bennigsen. Como todas as pessoas com quem Boris se encontrava, o conde Bennigsen considerava o jovem conde Drubetskói uma pessoa inestimável.

No alto-comando do Exército, havia dois partidos claramente definidos: o partido de Kutúzov e o partido de Bennigsen, chefe do Estado-Maior. Boris fazia parte deste último partido e sabia melhor do que ninguém como, ao mesmo tempo que mostrava um respeito servil por Kutúzov, dar a impressão de que o velho não era grande coisa e de que toda a operação na verdade era orquestrada por Bennigsen. Agora se aproximava o momento decisivo da batalha, que havia de aniquilar Kutúzov e transferir o poder para Bennigsen, ou então, mesmo que Kutúzov vencesse a batalha, deixar a impressão de que tudo tinha sido feito por Bennigsen. Em todo caso, após o dia seguinte, deviam ser conferidas condecorações importantes e anunciadas promoções entre os oficiais novos. Por isso, durante todo aquele dia, Boris se encontrava num estado de animação nervosa.

Após Kaissárov, outros conhecidos de Pierre vieram ao seu encontro, e ele não teve tempo de responder às perguntas sobre Moscou, que caíam sobre ele numa enxurrada, nem teve tempo de escutar os relatos que lhe faziam. Em todos os rostos, exprimiam-se a animação e a ansiedade. Mas Pierre sentiu que a causa da agitação que se exprimia em alguns daqueles rostos se encontrava sobretudo nas questões de sucesso pessoal, e não lhe saía da cabeça a outra expressão de agitação que tinha visto em outros rostos e que falava não de questões pessoais, mas gerais, questões da vida e da morte. Kutúzov notou a figura de Pierre e o grupo formado em torno dele.

— Tenha a bondade de chamá-lo para falar comigo — disse Kutúzov. O ajudante de ordens transmitiu o desejo do excelentíssimo, e Pierre encaminhou-se para o banco. Mas, antes que chegasse, um soldado da milícia aproximou-se de Kutúzov. Era Dólokhov.

— Como é que ele está aqui? — perguntou Pierre.

— É um sujeito muito vivo, consegue chegar a toda parte! — responderam para Pierre. — Sabe, ele foi rebaixado. Agora tem de mostrar serviço. Apresentou uns planos e conseguiu penetrar nas linhas inimigas de noite... É valente!...

Pierre tirou o chapéu e curvou-se de modo respeitoso diante de Kutúzov.

— Concluí que, se eu procurasse vossa excelência pessoalmente, o senhor poderia me mandar embora, ou me dizer que já sabia de tudo o que eu estava dizendo, e então eu não me sentiria diminuído em nada... — dizia Dólokhov.

— Certo, certo.

— Mas se eu estiver certo prestarei um serviço à pátria, pela qual estou pronto a morrer.

— Certo... certo...

— E caso vossa excelência precise de um homem que não tema pela própria pele, tenha a bondade de lembrar-se de mim... Talvez eu possa ser útil a vossa excelência.

— Certo... certo... — repetiu Kutúzov, sorrindo e mirando Pierre com o olho que se estreitava.

Naquele momento, com sua habilidade de cortesão, Boris avançou ao lado de Pierre para perto do comandante e, com o aspecto mais natural do mundo, num tom de voz normal, como se prosseguisse uma conversa já iniciada, falou para Pierre:

— Os milicianos vestiram logo camisas brancas e limpas a fim de estarem prontos para a morte. Que heroísmo, conde!

Boris falou isso para Pierre obviamente com a intenção de ser ouvido pelo excelentíssimo. Sabia que Kutúzov prestaria atenção naquelas palavras, e de fato o excelentíssimo voltou-se para ele:

— O que você está dizendo sobre a milícia? — perguntou para Boris.

— Preparando-se para o dia de amanhã, para a morte, vestiram camisas brancas, vossa excelência.

— Ah!... Incrível, que povo incomparável! — disse Kutúzov e, de olhos fechados, balançou a cabeça. — Povo incomparável! — repetiu com um suspiro. — O senhor então quer sentir o cheiro da pólvora? — perguntou Kutúzov para Pierre. — Sim, é um cheiro agradável. Tenho a honra de ser um admirador da sua esposa, ela vai bem? Meu acampamento está à disposição do senhor. — E, como acontece muitas vezes com pessoas velhas, Kutúzov começou a olhar em redor com ar distraído, como se tivesse esquecido tudo aquilo que precisava dizer e fazer.

Após lembrar certamente o que estava procurando, acenou para Andrei Sergueitch Kaissárov, irmão do seu ajudante de ordens.

— Como são, vamos, me diga como são mesmo aqueles versos de Márin, aqueles versos, como são? Que ele escreveu sobre Guerákov: “Seja o mestre das tropas...”.46 Recite, recite — insistiu Kutúzov, obviamente já se preparando para dar uma risada. Kaissárov recitou... Kutúzov, sorrindo, balançou a cabeça para marcar o ritmo dos versos.

Quando Pierre se afastou de Kutúzov, Dólokhov, que se aproximara dele, segurou-o pelo braço.

— Estou muito contente de encontrar o senhor aqui, conde — falou alto, sem se constranger em nada com a presença dos demais, em tom especialmente firme e solene. — Na véspera do dia em que só Deus sabe quais de nós o destino deixará permanecer entre os vivos, estou contente com a oportunidade de lhe dizer que lamento o mal-entendido que houve entre nós e que gostaria que o senhor não guardasse de mim nenhum rancor. Peço ao senhor que me perdoe.

Pierre, sorrindo, olhou para Dólokhov sem saber o que dizer. Dólokhov, com lágrimas nos olhos, abraçou e beijou Pierre.

Boris disse algo para o seu general, e o conde Bennigsen voltou-se para Pierre e sugeriu que ele o acompanhasse às linhas do exército.

— O senhor vai achar interessante — disse ele.

— Sim, me interessa muito — respondeu Pierre.

Meia hora depois, Kutúzov partiu para Tatárinova, e Bennigsen, com a comitiva, à qual Pierre se incorporou, seguiu para as linhas.

XXIII

De Górki, Bennigsen desceu pela estrada principal rumo à ponte que o oficial havia indicado para Pierre do alto da colina como se fosse o centro da posição, e junto à qual, na margem, jaziam aromáticas fileiras de feno ceifadas pouco antes. Do outro lado da ponte, passaram pela aldeia de Borodinó, onde dobraram à esquerda, passaram por uma enorme quantidade de tropas e canhões e chegaram a uma alta colina, onde milicianos escavavam a terra. Era um reduto ainda sem nome, mas que depois recebeu o nome de reduto Raiévski, ou bateria da colina.

Pierre não prestou nenhuma atenção especial àquele reduto. Não sabia que aquele lugar seria, para ele, mais memorável do que qualquer outro local do campo de Borodinó. Depois seguiram através de uma ravina rumo a Semiónovskoie, onde os soldados estavam roubando as últimas tábuas das isbás e dos celeiros. Depois, morro abaixo e morro acima, passaram por um campo de centeio destruído, como que arrasado por uma tempestade de granizo, passaram por uma estrada recém-aberta pela artilharia sobre as trilhas do arado num campo e também por trincheiras que ainda estavam sendo escavadas.

Bennigsen parou nas trincheiras e pôs-se a olhar para a frente, na direção do reduto de Chevardinó (que no dia anterior era dos nossos), onde se avistavam alguns cavaleiros. Os oficiais disseram que lá estava Napoleão, ou Murat. E todos olharam com avidez para os cavaleiros naquela colina. Pierre também olhou para lá, tentando adivinhar qual daquelas pessoas que eles mal conseguiam enxergar podia ser Napoleão. Por fim os cavaleiros desceram da colina e sumiram.

Bennigsen voltou-se para um general que havia se aproximado e passou a explicar toda a situação do nosso exército. Pierre escutava as palavras de Bennigsen, concentrando todas as suas energias mentais para compreender a essência do combate iminente, mas sentia com pesar que suas capacidades mentais para aquilo eram insuficientes. Não compreendia nada. Bennigsen parou de falar e, ao notar a fisionomia atenta de Pierre, disse de repente, dirigindo-se a ele:

— Isso, eu creio, não interessa ao senhor, não é?

— Oh, ao contrário, acho muito interessante — repetiu Pierre, de modo não inteiramente sincero.

Das trincheiras, seguiram ainda mais para o lado esquerdo, por uma estrada que passava por um denso bosque de bétulas baixas. No meio daquele bosque, saltou na frente deles, na estrada, uma lebre marrom de patas brancas e, assustada com o tropel da grande quantidade de cavalos, ficou tão desnorteada que seguiu pulando pela estrada à frente deles por muito tempo, despertando risos e a atenção geral, e, só quando várias vozes gritaram para ela, a lebre pulou para o lado e sumiu na mata. Depois de avançar umas duas verstas pelo bosque, eles foram sair numa clareira onde estavam as tropas da unidade de Tutchkóv, cuja missão era proteger o flanco esquerdo.

Ali, na extremidade do flanco esquerdo, Bennigsen falou muito e com entusiasmo e deu ordens importantes, assim pareceu a Pierre, relativas a assuntos militares. À frente da posição das tropas de Tutchkóv, havia um monte. Aquele monte não estava ocupado por tropas. Bennigsen criticou em voz alta aquele erro, dizendo que era loucura deixar desocupado um ponto elevado de onde se tinha o controle da região e estacionar as tropas ao pé do monte. Alguns generais expressaram a mesma opinião. Um deles em especial, com fervor militar, disse que as tropas tinham sido postas ali para serem massacradas. Bennigsen, em seu próprio nome, ordenou que transferissem as tropas para o topo do monte.

Aquela medida, tomada no flanco esquerdo, obrigou Pierre a duvidar ainda mais da sua capacidade de compreender os assuntos militares. Ao escutar Bennigsen e os generais, que condenaram a posição das tropas ao pé do morro, Pierre os compreendia plenamente e compartilhava a opinião deles; mas exatamente por isso não podia entender como a pessoa que havia instalado as tropas ali ao pé do morro tinha sido capaz de cometer um erro tão crasso e flagrante.

Pierre não sabia que as tropas não estavam ali para defender a posição, como pensava Bennigsen, mas foram instaladas num local escondido para armarem uma emboscada, ou seja, para se manterem ocultas e atacar o inimigo de surpresa, quando ele avançasse.

XXIV

Na tarde clara do dia 25 de agosto, o príncipe Andrei estava deitado, apoiado nos cotovelos, num barracão destroçado na aldeia de Kniazkóvo, nos limites do local escolhido para o seu regimento. Através de um buraco na parede quebrada, ele olhava para uma faixa, ao longo do muro, formada por bétulas de trinta anos de idade, com os ramos mais baixos podados, e que se perdia na distância, olhava para um campo arado com montes de aveia abandonados e para uns arbustos junto aos quais se viam fumaças de fogueiras — as cozinhas dos soldados.

Por mais que a sua vida lhe parecesse agora estreita, inútil e penosa, o príncipe Andrei, assim como havia ocorrido sete anos antes, na véspera da batalha de Austerlitz, sentia-se agitado e irritadiço.

As ordens para a batalha do dia seguinte foram recebidas e transmitidas por ele. Nada mais havia que ele pudesse fazer. Porém os pensamentos mais simples do mundo, mais claros, e por isso mesmo terríveis, não o deixavam em paz. Sabia que a batalha do dia seguinte seria a mais terrível de todas as batalhas de que havia participado e, pela primeira vez na vida, com vivacidade, quase como uma certeza, de modo simples e horrível, a possibilidade da morte se apresentava a ele sem nenhuma relação com assuntos do dia a dia, alheia aos seus efeitos sobre os outros, mas relacionada apenas a ele mesmo, à sua alma. E, das alturas daqueles pensamentos, tudo o que antes o atormentava e o preocupava de repente se iluminou com uma luz fria e branca, sem sombras, sem perspectivas, sem definição de contornos. Toda a sua vida lhe surgiu como se fossem imagens de uma lanterna mágica para as quais ficara olhando por muito tempo, através de um vidro e sob uma luz artificial. Agora ele via de repente sem o vidro, sob a clara luz do dia, aqueles quadros mal pintados. “Sim, sim, aí estão as imagens falsas que me perturbavam, me deleitavam e me faziam sofrer”, disse para si, enquanto percorria na imaginação os quadros mais importantes da sua lanterna mágica da vida, vendo-os agora sob aquela luz fria e branca do dia — a ideia clara da morte. “Aí estão elas, as figuras mal pintadas que por alguma razão pareciam lindas e misteriosas. A glória, as vantagens sociais, o amor por uma mulher, a pátria mesma — como todos esses quadros me pareciam grandiosos, como pareciam repletos de um significado profundo! E tudo isso é tão simples, insípido e vulgar sob a luz branca e fria desta manhã que, eu sinto, está se erguendo para mim.” As três maiores mágoas da sua vida detiveram em especial a sua atenção. Seu amor por uma mulher, a morte do seu pai e a invasão francesa que tomara metade da Rússia. “O amor!... Aquela menina me parecia transbordante de forças misteriosas. Como eu a amava! Fazia planos poéticos para o amor, para a felicidade com ela. Ah, menino inocente!”, exclamou em voz alta, com raiva. “Como pude acreditar nesse amor ideal que deveria me garantir a fidelidade dela por um ano inteiro, durante a minha ausência! Como o pombo gentil da fábula, ela deveria ter definhado, depois que fui embora. E tudo isso é imensamente mais simples... Tudo isso é horrivelmente simples, vulgar!”

“O papai também construiu Montes Calvos e achou que aquele lugar era seu, que era sua a terra, o ar e os mujiques; mas veio Napoleão e, sem tomar conhecimento da sua existência, como se chuta um seixo no meio da estrada, fez em pedaços a sua Montes Calvos e toda a sua vida. E a princesa Mária diz que isso é uma provação enviada pelos céus. Mas para que uma provação, quando o meu pai já não existe mais nem voltará a existir? Nunca mais voltará a existir! Ele não existe mais! Então para quem é essa provação? A pátria, a destruição de Moscou! E amanhã serei morto... e talvez nem por um francês, mas por um dos meus próprios soldados, como aconteceu ontem mesmo, quando o fuzil de um soldado disparou, e a bala passou rente à minha orelha, e virão os franceses, vão me levar preso pelos pés e pela cabeça, vão me jogar numa cova para que eu não fique fedendo no nariz deles, e vão se formar novas condições de vida, que se tornarão igualmente rotineiras para outras pessoas, e eu não vou saber nada delas, eu não vou existir.”

Observou a faixa de bétulas com a sua imóvel coloração amarela, o seu verdor e a sua casca branca, que reluzia ao sol. “Morrer, então vão me matar amanhã, então eu não vou mais existir... Então tudo isso vai existir, mas eu não vou existir.” Imaginou nitidamente a sua ausência naquela vida. E aquelas bétulas, com sua luz e sua sombra, aquelas nuvens encrespadas, aquela fumaça das fogueiras — tudo à sua volta se transfigurou e, para ele, tomou um aspecto terrível e ameaçador. Um calafrio percorreu a sua espinha. Ele rapidamente se pôs de pé, saiu do telheiro e começou a andar.

Ao voltar, soaram vozes atrás do telheiro.

— Quem está aí? — exclamou o príncipe Andrei.

O capitão Timókhin, de nariz vermelho, ex-comandante da companhia de Dólokhov, agora, por causa da falta de oficiais, comandante de batalhão, entrou no telheiro com ar tímido. Atrás dele, vieram um ajudante de ordens e o tesoureiro do regimento.

O príncipe Andrei ergueu-se às pressas, escutou o que os oficiais tinham a lhe comunicar a respeito do serviço, transmitiu-lhes ainda algumas ordens e já ia dispensá-los quando ouviu, por trás do telheiro, uma voz conhecida, que resmungava.

— Que diable!47 — exclamou a voz de um homem que havia tropeçado em alguma coisa.

O príncipe Andrei olhou para fora do telheiro e avistou Pierre, que vinha na sua direção e que havia tropeçado num toco e por pouco não caíra. O príncipe Andrei não gostava de encontrar pessoas em geral ligadas ao seu mundo, e menos ainda Pierre, que lhe fazia lembrar todos os momentos penosos que ele havia suportado em sua última estada em Moscou.

— Ah, ora essa! — disse ele. — Como veio parar aqui? Que surpresa.

Ao mesmo tempo que dizia isso, nos seus olhos e na expressão do seu rosto, havia mais do que secura — havia uma hostilidade, que Pierre logo percebeu. Ele vinha se aproximando do telheiro no melhor estado de ânimo possível, porém, ao perceber a expressão no rosto do príncipe Andrei, sentiu-se constrangido e embaraçado.

— Eu vim... assim, sabe... vim... achei que era interessante — disse Pierre, que já repetira tantas vezes naquele dia, de maneira irrefletida, a palavra “interessante”. — Eu queria ver a batalha.

— Sei, sei, e o que os irmãos maçons dizem a respeito da guerra? Como evitá-la? — perguntou o príncipe Andrei, em tom de zombaria. — E como estão as coisas em Moscou? E a minha família? Afinal, chegaram a Moscou? — perguntou em tom sério.

— Chegaram, sim. Julie Drubetskaia me contou. Fui à casa deles, mas não os encontrei. Tinham partido para a sua propriedade nos arredores de Moscou.

XXV

Os oficiais quiseram se retirar, mas o príncipe Andrei, como se não desejasse ficar sozinho e cara a cara com o amigo, convidou-os a sentar e tomar um chá. Trouxeram bancos e o chá. Os oficiais, não sem surpresa, observavam a figura gorda, enorme, de Pierre e escutaram seus relatos sobre Moscou e sobre a posição das nossas tropas, que ele tivera ocasião de contornar. O príncipe Andrei ficou em silêncio, e o seu rosto estava tão inamistoso que Pierre, ao falar, se dirigia mais para o simpático comandante de batalhão Timókhin do que para Bolkónski.

— Então você compreendeu toda a disposição das tropas? — interrompeu-o o príncipe Andrei.

— Sim, ou melhor — respondeu Pierre —, como não sou um militar, não posso dizer que compreendi plenamente, mas mesmo assim compreendi em linhas gerais.

— Eh bien, vous êtes plus avancé que qui que ce soit 48 — disse o príncipe Andrei.

— Ah! — exclamou Pierre, com perplexidade, fitando o príncipe Andrei através dos óculos. — Bem, o que o senhor acha da nomeação de Kutúzov? — perguntou.

— Fiquei muito contente com essa nomeação, é tudo o que sei — respondeu o príncipe Andrei.

— Bem, mas diga qual é a opinião do senhor a respeito de Barclay de Tolly. Em Moscou, só Deus sabe o que falam a respeito dele. Como o senhor o avalia?

— Pergunte aqui para eles — respondeu o príncipe Andrei, apontando para os oficiais.

Pierre, com o ar condescendente e o sorriso interrogativo com que todos, sem querer, se dirigiam a Timókhin, olhou para ele.

— Achamos excelente, meu senhor, ter vindo o excelentíssimo — respondeu Timókhin em tom tímido e sem desviar os olhos do seu comandante de regimento.

— Mas por quê? — perguntou Pierre.

— Bom, veja só o caso da lenha e da comida, vou contar ao senhor. Quando a gente se retirou de Sventsiáni, ninguém podia se atrever a tocar num graveto, numa migalha, qualquer coisa. E aí a gente foi embora, e ele veio avançando, não foi, vossa excelência? — voltou-se para o seu príncipe. — Mas ninguém se atrevia. No nosso regimento, dois oficiais foram levados a julgamento por causa desse tipo de coisa. Bom, aí veio o excelentíssimo e tudo isso ficou muito fácil. Ficou excelente...

— Então por que o general havia proibido?

Timókhin olhou em volta, confuso, sem compreender como nem o que responder a tal pergunta. Pierre dirigiu a mesma pergunta ao príncipe Andrei.

— Para não devastarmos a região que estávamos abandonando para o inimigo — disse o príncipe Andrei, em tom mordaz e maldoso. — É muito compreensível: não se pode permitir que devastem a região e não se pode habituar as tropas às pilhagens. Também em Smolensk ele julgou correto que os franceses pudessem nos cercar e que tivessem mais tropas do que nós. Acontece que ele não conseguia entender — e de repente o príncipe Andrei passou a gritar, exprimindo-se numa voz fina, que pareceu escapar do seu controle —, ele não conseguia entender que nós, lá, pela primeira vez, estávamos combatendo pela terra russa, que nas tropas havia um estado de espírito que eu nunca tinha visto antes, que nós rechaçamos os franceses durante dois dias ininterruptos e que esse sucesso decuplicou as nossas forças. Ele ordenou a retirada, e todos os esforços e as perdas acabaram sendo em vão. Ele não estava pensando em traição, tentou fazer tudo da melhor forma possível, refletiu sobre tudo; mas é por isso mesmo que ele não serve. Não serve agora justamente porque vai refletir sobre tudo de modo muito ponderado e meticuloso, como é dever de qualquer alemão. Como posso lhe explicar?... Bem, digamos que o seu pai tem um lacaio alemão, é um excelente lacaio, satisfaz todas as necessidades do seu pai melhor do que você, então vamos deixar que ele trabalhe; mas, se o seu o pai adoece e fica à beira da morte, você vai afastar o lacaio e vai passar a cuidar do seu pai e a acalmá-lo melhor do que faria uma pessoa hábil, mas de fora. Assim fizeram com Barclay. Enquanto a Rússia estava com saúde, uma pessoa de fora podia servir a ela, e era um ótimo ministro, mas assim que a Rússia se viu em perigo era preciso um homem dela, nativo. E lá no clube de vocês inventaram que ele é um traidor! Caluniam Barclay com a pecha de traição, e o único resultado disso é que, depois, com vergonha de suas acusações mentirosas, de repente farão dele um herói, ou um gênio, o que será mais injusto ainda. É um alemão muito honrado e meticuloso...

— No entanto dizem que ele é um hábil comandante militar — disse Pierre.

— Não compreendo o que significa um hábil comandante militar — disse o príncipe Andrei, com zombaria.

— Um hábil comandante militar — disse Pierre —, bem, é aquele que antevê todas as possibilidades... bem, que adivinha os pensamentos do oponente.

— Mas isso é impossível — disse o príncipe Andrei, como se fosse uma questão já sabida desde muito tempo.

Pierre fitou-o com surpresa.

— Todavia — disse Pierre —, há quem diga até que a guerra é semelhante a um jogo de xadrez.

— Sim — respondeu o príncipe Andrei —, mas com uma pequena diferença: no xadrez, a cada lance, podemos pensar quanto tempo quisermos, não somos tolhidos pelo tempo, e também com mais esta diferença: o cavalo é sempre mais forte do que o peão, e dois peões são sempre mais fortes do que um peão, ao passo que na guerra um batalhão às vezes é mais forte do que uma divisão inteira, mas às vezes é mais fraco do que uma companhia. Ninguém pode saber qual a força relativa das tropas. Acredite em mim — disse ele —, se a questão dependesse das ordens do Estado-Maior, eu estaria lá dando ordens também, mas em vez disso tenho a honra de servir aqui, num regimento, com estes senhores que estão na sua frente, e acredito que de nós irá depender de fato o dia de amanhã, e não deles... O êxito nunca dependeu e não poderá depender nem da posição, nem dos armamentos, nem mesmo da quantidade de tropas; mas, menos que tudo, da posição.

— Mas então depende de quê?

— Do sentimento que existe em mim, nele — apontou para Timókhin —, em cada soldado.

O príncipe Andrei lançou um olhar para Timókhin, que fitava o seu comandante com ar temeroso e perplexo. Em contraste com o seu silêncio contido de antes, o príncipe Andrei parecia agora agitado. Era evidente que não conseguia refrear a expressão dos pensamentos que lhe acudiam de modo inesperado.

— Vencerá a batalha quem resolver com firmeza que vai vencer. Por que perdemos a batalha de Austerlitz? Nossas baixas foram quase iguais às dos franceses, mas muito cedo dissemos a nós mesmos que tínhamos perdido a batalha... e perdemos. E nos dissemos isso porque lá não tínhamos nada por que lutar: a vontade era ir embora do campo de batalha o mais depressa possível. “Perdemos... então vamos embora correndo!”... e corremos. Se não tivéssemos dito isso até o entardecer, só Deus sabe o que ia acontecer na batalha. Mas amanhã não diremos isso. Você diz: a nossa posição, o flanco esquerdo é fraco, estenderam o flanco direito — prosseguiu ele —, e tudo isso é absurdo, nada disso existe. Então, do que precisamos amanhã? Cem milhões de possibilidades as mais variadas serão decididas num piscar de olhos pelo fato de que uns vão avançar e outros vão fugir, ou eles ou os nossos, e pelo fato de que vão matar este homem e não aquele outro; mas o que estão fazendo agora, tudo isso é bobagem. A questão é que os homens com quem você percorreu a posição não só não contribuem para a marcha geral da luta, como ainda a atrapalham. Só estão preocupados com os seus interesses pequenos.

— Numa hora dessas? — perguntou Pierre em tom de censura.

— Numa hora dessas — repetiu o príncipe Andrei. — Para eles, não passa de um minuto em que se pode minar o caminho do inimigo e ganhar mais uma medalha ou mais um galão no uniforme. Para mim, o dia de amanhã significa o seguinte: exércitos de cem mil russos e de cem mil franceses vão entrar em combate, e o fato é que esses duzentos mil vão combater, e aquele que lutar com mais crueldade e tiver menos pena de si mesmo, este vai vencer. E, escute bem o que vou lhe dizer, haja o que houver, por mais que os superiores tentem estragar tudo, nós vamos vencer a batalha amanhã. Amanhã, haja o que houver, vamos vencer a batalha!

— Isso mesmo, vossa excelência, essa é a verdade, a pura verdade — exclamou Timókhin. — Quem é que vai ter pena de si mesmo numa hora dessas? Os soldados do meu batalhão, acredite, não vão nem beber vodca: não é dia para isso, eles dizem. — Todos ficaram em silêncio.

Os oficiais levantaram-se. O príncipe Andrei saiu do telheiro junto com eles, enquanto dava as últimas ordens ao ajudante de ordens. Quando os oficiais foram embora, Pierre aproximou-se do príncipe Andrei e mal fez menção de começar uma conversa quando na estrada, perto do telheiro, ressoou o tropel de três cavalos, e o príncipe Andrei, depois de lançar um olhar naquela direção, reconheceu Woltzogen e Clausewitz, acompanhados por um cossaco. Aproximaram-se, continuando a conversar, e Pierre e Andrei não puderam deixar de ouvir a seguinte frase:

— Der Krieg muss im Raum verlegt werden. Der Ansicht kann ich nicht genug Preis geben49 — disse um.

— Oh, ja — disse uma outra voz —, da der Zweck ist nur den Feind zu schwächen, so kann man gewiss nicht der Verlust de Privatpersonen in Achtung nehmen.50

— Oh, ja — concordou a primeira voz.

— Sim, im Raum verlegen 51 — repetiu o príncipe Andrei, bufando para o lado em tom mordaz, quando os dois já haviam passado. — Im Raum, foi lá que ficaram o meu pai, o meu filho e a minha irmã, lá em Montes Calvos. Para ele, isso não faz a menor diferença. Aí está o que eu ia lhe dizendo há pouco: esses senhores alemães não vão vencer a batalha amanhã, vão apenas atrapalhar, com todas as forças que tiverem, porque na sua cabeça alemã só existem raciocínios que não valem um ovo quebrado, e no coração eles não têm a única coisa que será necessária amanhã: aquilo que existe em Timókhin. Entregaram a Europa inteira para ele e depois vêm para cá nos dar lições... formidáveis professores! — E de novo sua voz soou esganiçada.

— Então o senhor acha que ganharemos a batalha de amanhã? — perguntou Pierre.

— Sim, sim — respondeu o príncipe Andrei, com ar distraído. — Uma coisa que eu faria se tivesse o poder — recomeçou a falar — era não tomar prisioneiros. Para que prisioneiros? É cavalheirismo. Os franceses devastaram o meu lar e vão devastar Moscou, eles me afrontaram e me afrontam a cada segundo. São meus inimigos, são todos criminosos, no meu modo de ver. E assim pensam Timókhin e todo o exército. É preciso executá-los. Se são meus inimigos, não podem ser amigos, a despeito do que tenha sido dito em Tilsit.

— Sim, sim — disse Pierre, fitando o príncipe Andrei com olhos brilhantes. — Estou inteiramente, inteiramente de acordo com o senhor!

A questão que inquietava Pierre desde a montanha de Mojáisk e durante todo aquele dia agora lhe parecia perfeitamente clara e solucionada. Agora ele compreendia todo o sentido e toda a importância daquela guerra e da batalha iminente. Tudo o que tinha visto naquele dia, todas as fisionomias severas e graves que tinha visto de relance se iluminaram para ele sob uma luz nova. Pierre compreendeu o calor latente do patriotismo — para usar a expressão da física — que havia em todas as pessoas que tinha visto e que lhe explicava por que tais pessoas se preparavam para a morte com tranquilidade e com aparente leviandade.

— Não tomar prisioneiros — prosseguiu o príncipe Andrei. — Só isso já mudará a guerra toda e a deixará menos cruel. Se não for assim, estamos brincando de guerra... e isso é que é maldade, nos fazermos de magnânimos e coisas desse tipo. Essa magnanimidade e cortesia são como a magnanimidade e a cortesia de uma fidalga que sente tonteiras quando vê um bezerro sendo morto; ela é tão bondosa que não pode ver sangue, mas come com apetite aquele mesmo bezerro temperado. Explicam-nos os direitos da guerra, o cavalheirismo, o respeito pelos enviados que vêm parlamentar, a clemência com os desafortunados etc. Tudo isso é absurdo. Em 1805, eu vi o cavalheirismo, os enviados para parlamentar: eles nos enganam, nós os enganamos. Saqueiam as casas dos outros, espalham dinheiro falso, pior ainda, matam os meus filhos, matam o meu pai, e ainda falam sobre os direitos de guerra e da magnanimidade com os inimigos. Não tomar prisioneiros, matar e marchar para a morte! Quem chegou aqui como eu cheguei, passando pelos mesmos sofrimentos...

O príncipe Andrei, que tinha pensado que lhe era indiferente tomarem ou não Moscou, assim como haviam tomado Smolensk, teve o seu discurso interrompido de forma abrupta por um espasmo inesperado que lhe contraiu a garganta. Deu alguns passos em silêncio, mas seus olhos reluziam de modo febril, e os lábios tremeram quando recomeçou a falar:

— Se não houvesse magnanimidade na guerra, nós só iríamos para a guerra quando valesse a pena marchar para a morte certa, como agora. Então não haveria uma guerra porque Pável Ivánitch ofendeu Mikhail Ivánitch. Mas, se é uma guerra como a de agora, então há guerra. E a força das tropas não seria como é agora. Todos esses westfalianos e hessianos52 que Napoleão está comandando não o seguiriam para o território da Rússia, nem nós iríamos combater na Áustria e na Prússia sem sequer saber por quê. A guerra não é uma amabilidade, e sim a coisa mais cruel da vida, e é preciso entender isso e não brincar de guerra. É preciso levar a sério e com rigor essa terrível necessidade. Tudo se resume a isto: pôr de lado a mentira, a guerra é a guerra, não é uma brincadeira. Senão a guerra acaba sendo esse entretenimento predileto de pessoas ociosas e levianas... A carreira militar é a mais honrosa. Mas afinal o que é a guerra, o que é necessário para o êxito em questões militares, quais são os padrões de conduta no meio militar? O objetivo da guerra é o assassinato, os instrumentos da guerra são a espionagem, a traição e o seu encorajamento, o extermínio dos habitantes, a pilhagem dos seus bens ou o roubo para o abastecimento do exército, a fraude e a mentira, chamadas de astúcias militares; os padrões de conduta da carreira militar são a ausência de liberdade, ou seja, a disciplina, a ociosidade, a ignorância, a crueldade, a depravação, a bebedeira. E apesar disso é a carreira mais alta, a mais respeitada por todos. Os reis todos, exceto o chinês, usam um uniforme militar e conferem a maior recompensa àquele que matou mais gente... Como vai acontecer amanhã, eles se reúnem para se matarem uns aos outros, ferem, aleijam dezenas de milhares de pessoas, e depois vão mandar rezar missas em ação de graças por terem matado tanta gente (cujo número ainda tratam de aumentar) e vão proclamar a vitória, supondo que quanto mais gente for massacrada maior o mérito. Como é que Deus, lá do alto, pode vê-los e escutá-los? — exclamou o príncipe Andrei com voz fina, estridente. — Ah, meu caro, ultimamente, viver tem sido penoso para mim. Vejo que comecei a entender coisas demais. E não convém ao homem provar os frutos da árvore do conhecimento do bem e do mal... Mas não será por muito tempo! — acrescentou. — Parece que você está com sono, e também já é hora de eu ir dormir. Vá para Górki — disse o príncipe Andrei, de repente.

— Ah, não! — respondeu Pierre, fitando o príncipe Andrei com olhos temerosos e compadecidos.

— Vá, vá, sim: antes de uma batalha, é preciso dormir — repetiu o príncipe Andrei. Aproximou-se rapidamente de Pierre, abraçou-o e beijou-o. — Adeus, vá embora — gritou. — Voltemos a nos ver ou não... — deu meia-volta bruscamente e foi para o telheiro.

Já estava escuro, e Pierre não conseguiu decifrar se a expressão no rosto do príncipe Andrei era de raiva ou de ternura.

Pierre ficou algum tempo em silêncio, refletindo se iria atrás dele ou se iria embora. “Não, ele não precisa!”, resolveu Pierre, “e eu sei que este foi o nosso último encontro.” Deu um suspiro profundo e voltou para Górki.

O príncipe Andrei, depois de voltar para o telheiro, deitou-se num tapete, mas não conseguiu dormir.

Fechou os olhos. As imagens se transformavam umas nas outras. Numa delas, deteve-se por mais tempo e com alegria. Recordou vividamente certa noite em Petersburgo. Natacha, com o rosto animado e afoito, lhe contava como ela, no verão anterior, tinha ido pegar cogumelos e se perdera numa grande floresta. De forma incoerente, Natacha descrevia para ele a vastidão da floresta e os seus sentimentos, a conversa com um apicultor que encontrara, e a cada minuto interrompia o seu relato e dizia: “Não, não posso, não vou contar direito; não, o senhor não vai entender”, apesar de o príncipe Andrei tranquilizá-la, dizendo que entendia, e de fato estava entendendo tudo o que ela queria dizer. Natacha estava insatisfeita com suas palavras — ela sentia que não transmitiam a sensação tremendamente poética que havia experimentado naquele dia e que ela queria exprimir. “Foi um encanto tão grande aquele velho, e estava tão escuro na floresta... e ele tinha tão bons... não, eu não sei como contar”, disse ela, vermelha e agitada. O príncipe Andrei sorriu agora com o mesmo sorriso alegre com que havia sorrido naquele momento, enquanto olhava nos olhos dela. “Eu a entendi”, pensou o príncipe Andrei. “Não só entendi, como também amei aquela força de espírito, aquela sinceridade, aquela franqueza de espírito, aquele espírito que o seu corpo parecia amarrar, aquele espírito... amei com tanta força, com tanta paixão...” E de repente lembrou-se de como aquele amor terminara. “Ele não precisava de nada disso. Ele não via nem entendia nada disso. Viu nela uma garota bonitinha, fresquinha, à qual ele não se dignou a unir o seu destino. Mas e eu? E até hoje ele está vivo e feliz.”

O príncipe Andrei, como se alguém o tivesse queimado, ergueu-se de um salto e começou a andar outra vez, de um lado para outro, na frente do telheiro.

XXVI

No dia 25 de agosto, véspera da batalha de Borodinó, o prefeito do palácio do imperador dos franceses, M. Beausset, e o coronel Fabvier chegaram ao acampamento de Napoleão em Valúievo.

Depois de vestir o uniforme palaciano, M. Beausset mandou que fossem pegar o embrulho que ele havia trazido para o imperador e entrou no primeiro cômodo da tenda de Napoleão, onde, enquanto conversava com os ajudantes de ordens de Napoleão que o rodearam, começou a desembrulhar a caixa.

Fabvier, sem entrar na tenda, ficou junto à porta, conversando com generais seus conhecidos.

O imperador Napoleão ainda não havia saído do seu dormitório e estava terminando de se arrumar. Bufando e arquejando, voltava ora as costas largas, ora o peito gordo e peludo, para a escova que o camareiro esfregava no seu corpo. Outro camareiro, com um frasco entre os dedos, borrifava água-de-colônia sobre o bem tratado corpo do imperador, com uma expressão que dizia que só ele e mais ninguém podia saber quanta água-de-colônia era preciso borrifar, e onde. Os cabelos curtos de Napoleão estavam molhados e colados na testa. Mas seu rosto, embora inchado e amarelo, exprimia um prazer físico: “Allez, ferme, allez toujours...”,53 dizia ele para o camareiro que o borrifava, ofegante e tenso. Um ajudante de ordens entrou no dormitório a fim de comunicar ao imperador quantos prisioneiros tinham sido feitos no combate do dia anterior e, cumprida sua missão, continuou junto à porta, aguardando a permissão para sair. Napoleão, de sobrancelhas franzidas, lançou um olhar de esguelha para o ajudante de ordens.

— Point de prisonniers — repetiu as palavras do ajudante de ordens. — Il se font démolir. Tant pis pour l’armée russe — disse. — Allez toujours, allez ferme 54 — exclamou, recurvando as costas e apresentando os ombros gordos ao camareiro. — C’est bien! Faites entrer monsieur Beausset, ainsi que Fabvier 55 — disse para o ajudante de ordens, com um aceno de cabeça.

— Oui, sire 56 — e o ajudante de ordens sumiu pela porta da tenda.

Dois camareiros rapidamente vestiram sua alteza, e ele, num uniforme azul da guarda, seguiu para a sala de recepção a passos firmes e ligeiros.

Beausset, naquele momento, estava com as mãos ocupadas colocando o presente que trouxera da imperatriz bem na frente do caminho do imperador, sobre duas cadeiras. Mas o imperador terminou de se vestir e saiu com uma rapidez tão inesperada que Beausset não teve tempo de preparar inteiramente a surpresa.

Napoleão percebeu sem demora o que estavam fazendo e adivinhou que ainda não estavam prontos. Não quis privá-los da satisfação de lhe fazer uma surpresa. Fingiu que não tinha visto o sr. Beausset e chamou Fabvier à sua presença. De rosto franzido, severo e em silêncio, escutou o que Fabvier lhe dizia a respeito da bravura e da dedicação das suas tropas, que combateram em Salamanca, na outra extremidade da Europa, e que só tinham um pensamento, serem dignas do seu imperador, e um só medo, deixá-lo insatisfeito. O resultado da batalha foi lamentável. Napoleão fez um comentário irônico durante a exposição de Fabvier, como se um combate não pudesse transcorrer de outro modo sem a sua presença.

— Tenho de compensar isso em Moscou — disse Napoleão. — À tantôt 57 — acrescentou e chamou Beausset, que, naquela altura, já tivera tempo de preparar a surpresa, colocando algo sobre duas cadeiras e cobrindo com um pano.

Beausset curvou-se com a reverência profunda dos cortesãos franceses, que só os antigos servidores dos Bourbon sabiam fazer, e aproximou-se, entregando um envelope.

Napoleão voltou-se para ele com ar alegre e lhe deu um puxão na orelha.

— O senhor não perdeu tempo. Muito bem. Mas o que Paris tem a dizer? — perguntou, passando subitamente da expressão severa de antes para uma fisionomia mais afetuosa.

— Sire, tout Paris regrette votre absence 58 — respondeu Beausset, da forma devida. Mas, embora Napoleão soubesse que Beausset tinha de falar aquilo ou algo semelhante, embora soubesse, em seus momentos de lucidez, que aquilo não era verdade, gostou de ouvir o que Beausset disse. E dignou-se a lhe dar outro puxão de orelha.

— Je suis fâché de vous avoir fait faire tant de chemin 59 — disse.

— Sire! Je ne m’attendais pas à moins qu’à vous trouver aux portes de Moscou 60 — disse Beausset.

Napoleão sorriu e, erguendo a cabeça com ar distraído, olhou para a direita. O ajudante de ordens, em passos deslizantes, aproximou-se com uma tabaqueira de ouro e a ofereceu. Napoleão pegou-a.

— Sim, foi até bom para o senhor — disse ele, aproximando o nariz da tabaqueira aberta. — O senhor gosta de viajar e daqui a três dias o senhor verá Moscou. Sem dúvida, o senhor não esperava conhecer a capital asiática. O senhor vai fazer uma viagem agradável.

Beausset curvou-se agradecido por aquela atenção ao seu gosto pelas viagens (que até então ele ignorava).

— Ah! Mas o que é isso? — disse Napoleão, ao notar que todos os cortesãos olhavam para algo coberto por um pano. Beausset, com sua habilidade de cortesão, sem voltar as costas para o imperador, deu um quarto de volta e recuou dois passos, ao mesmo tempo que retirava o pano que cobria o embrulho e dizia:

— Um presente da imperatriz para vossa alteza.

Era um retrato em cores claras, pintado por Gérard,61 de uma criança, o filho de Napoleão com a filha do imperador austríaco, um menino a quem por algum motivo todos chamavam de Rei de Roma.

O menino lindo, de cabelos cacheados, com um olhar semelhante ao de Cristo na Madona Sistina,62 estava representado jogando bilboquê. A bola do brinquedo representava o globo terrestre e a vareta na outra mão do menino representava um cetro.

Embora não estivesse de todo claro o que o pintor queria exprimir exatamente ao representar o chamado Rei de Roma enfiando o globo terrestre numa vareta, a alegoria pelo visto pareceu clara a Napoleão e lhe agradou bastante, como ocorrera com todos aqueles que tinham visto o quadro em Paris.

— Le Roi de Rome — disse ele, apontando para o quadro com um gesto gracioso da mão. — Admirable! — Com a capacidade peculiar aos italianos de mudar à vontade a expressão do rosto, Napoleão aproximou-se do retrato e assumiu um ar de ternura pensativa. Teve a sensação de que o que quer que ele dissesse ou fizesse naquele momento entraria para a história. Pareceu-lhe que o melhor que podia fazer naquele momento era, com toda a sua majestade — por conta da qual seu filho podia brincar com o globo terrestre num bilboquê —, dar mostras da mais simples ternura paternal, em contraste com aquela majestade. Seus olhos ficaram nublados, ele se abaixou, virou-se à procura de uma cadeira (uma cadeira surgiu de um salto sob ele) e sentou-se diante do retrato. Um gesto seu, e todos saíram na ponta dos pés, deixando o grande homem sozinho com seus sentimentos.

Depois de ficar ali por um tempo e depois de, sem saber para quê, tocar com a mão na aspereza do ponto mais importante do retrato, Napoleão levantou-se e mandou chamar de novo Beausset e o ordenança. Mandou levar o retrato para a frente da tenda a fim de não privar a velha guarda, que se mantinha em redor da tenda, da felicidade de ver o Rei de Roma, o filho e herdeiro do seu adorado soberano.

Como já esperava, enquanto estava almoçando com o sr. Beausset, a quem concedera essa honra, ressoaram na frente da tenda gritos entusiasmados de oficiais e soldados da velha guarda dirigidos ao retrato.

— Vive l’empereur! Vive le Roi de Rome! Vive l’empereur! — soaram vozes entusiasmadas.

Depois do almoço, Napoleão, na presença de Beausset, ditou sua ordem do dia para o exército.

— Courte et énergique! 63 — exclamou Napoleão, quando terminou de ler a proclamação que ele mesmo acabara de escrever de um só fôlego e sem nenhuma emenda. A ordem do dia era:

Soldados! Eis a batalha que vocês tanto desejavam. A vitória depende de vocês. Ela é indispensável para nós; nos dará tudo aquilo de que precisamos: acomodações confortáveis e um breve regresso à pátria. Comportem-se como se comportaram em Austerlitz, em Friedland, em Vítebsk e em Smolensk. Para que a posteridade mais remota se recorde com orgulho das façanhas de vocês no dia de hoje. E que digam de cada um de vocês: ele esteve na grande batalha de Moscou!

— De la Moskowa! 64 — repetiu Napoleão, convidou o sr. Beausset, grande apreciador de viagens, a acompanhá-lo em seu passeio e saiu da tenda rumo aos cavalos selados.

— Votre Majesté a trop de bonté 65 — disse Beausset em resposta ao convite para acompanhar o imperador: estava com vontade de dormir, não sabia andar a cavalo e tinha medo de montar.

Mas Napoleão acenou com a cabeça para o viajante, e Beausset teve de ir. Quando Napoleão saiu da tenda, os gritos dos membros da guarda diante do retrato do seu filho soaram ainda mais fortes. Napoleão fez cara feia.

— Tirem-no daí — disse, apontando para o retrato com um gesto elegante e majestoso. — Ainda é cedo para ele ver um campo de batalha.

Beausset, de olhos fechados e cabeça baixa, deu um suspiro profundo, indicando com esse gesto como sabia apreciar e compreender as palavras do imperador.

XXVII

Napoleão, segundo os seus historiadores, passou todo aquele dia 25 de agosto andando a cavalo, examinando o território, discutindo planos que seus marechais lhe apresentavam e dando ordens pessoalmente aos seus generais.

A linha da posição original das tropas russas ao longo do rio Kolotchá tinha se rompido, e uma parte da linha, justamente o flanco esquerdo dos russos, em consequência da tomada do reduto de Chevardinó no dia 24, fora transferida para trás. Essa parte da linha não era fortificada, não contava mais com a proteção do rio, e à sua frente havia apenas um terreno aberto e plano. Era evidente para qualquer militar ou civil que essa parte da linha tinha de ser atacada pelos franceses. Parecia que não seriam necessárias muitas considerações para chegar a tal conclusão, não seria necessária tanta reflexão e tanto esforço do imperador e de seus marechais e, no geral, não seria necessária aquela capacidade especial e superior chamada de genialidade, que tanto gostam de atribuir a Napoleão; mas os historiadores, que posteriormente descreveram aqueles acontecimentos, assim como as pessoas que então rodeavam Napoleão, e ele mesmo, pensavam de outra forma.

Napoleão percorreu o campo a cavalo, observou o terreno com ar muito compenetrado, balançava a cabeça para si mesmo de modo aprovador ou descrente e, sem explicar aos generais à sua volta o rumo compenetrado dos pensamentos que guiavam suas decisões, só lhes transmitia suas conclusões definitivas, em forma de ordens. Depois de escutar a sugestão de Davout, a quem chamavam de duque de Eckmühl, de que deviam contornar o flanco esquerdo dos russos, Napoleão respondeu que não era necessário fazer isso, sem explicar por que não era necessário. À sugestão do general Compan (incumbido de atacar as trincheiras) de que devia penetrar na floresta com a sua divisão, Napoleão expressou sua concordância, apesar de aquele a quem chamavam de duque de Elchingen — ou seja, Ney — ter se permitido observar que o deslocamento pela floresta era perigoso e podia dispersar a divisão.

Depois de examinar o terreno à frente do reduto de Chevardinó, Napoleão refletiu por algum tempo em silêncio e apontou para os lugares onde deviam instalar duas baterias até o dia seguinte, a fim de atacar as fortificações russas, e os lugares onde deviam alinhar, ao lado delas, a artilharia de campo.

Tendo dado essas e outras ordens, Napoleão voltou para a tenda e, sob o seu ditado, foi redigida a ordem de batalha.

Essa ordem, sobre a qual falam com entusiasmo os historiadores franceses e com profundo respeito outros historiadores, dizia o seguinte:

Ao raiar do dia, duas baterias novas instaladas durante a noite na planície ocupada pelo príncipe de Eckmühl vão abrir fogo contra as duas baterias do inimigo, situadas à sua frente.

Ao mesmo tempo, o comandante da artilharia do primeiro corpo, general Pernetti, com a divisão de trinta canhões de Compan e todos os canhões howitzer das divisões de Dessaix e de Friant, vão se deslocar para a frente, abrir fogo e inundar de granadas a bateria inimiga, contra a qual vão agir:

os 24 canhões da artilharia da guarda

os 30 canhões da divisão de Compan

e os 8 canhões da divisão de Friant e de Dessaix.

Ao todo, 62 canhões.

O comandante da artilharia do terceiro corpo, general Fouché, vai instalar todos os canhões howitzer do terceiro e do oitavo corpos, ao todo 16 peças, no flanco da bateria, com o objetivo de atacar com fogo cerrado a fortificação esquerda, que terá contra si 40 canhões ao todo.

O general Sorbier deve estar preparado para, à primeira ordem, atacar com todos os canhões howitzer da artilharia da guarda ou uma fortificação ou outra.

Durante o canhoneio, o príncipe Poniatowsky vai atravessar a floresta em direção à aldeia e vai contornar a posição do inimigo.

O general Compan vai se deslocar através da floresta para se apoderar da primeira fortificação.

Uma vez começada desse modo a batalha, serão dadas ordens conforme os movimentos do inimigo.

O canhoneio do flanco esquerdo vai começar assim que se ouvir o canhoneio do flanco direito. Os atiradores da divisão de Morand e da divisão do vice-rei vão abrir fogo cerrado ao verem o início do ataque do flanco direito.

O vice-rei vai tomar a aldeia e atravessar suas três pontes, chegando à mesma altura que as divisões de Morand e de Friant, que sob a sua liderança vão avançar sobre o reduto e entrar em linha com as demais tropas do exército.

Tudo isso deve ser cumprido de forma organizada (le tout se fera avec ordre et méthode),66 conservando na medida do possível tropas na reserva.

No acampamento do imperador, perto de Mojáisk, 6 de setembro de 1812.67

Essa ordem, totalmente obscura e redigida de forma confusa — se nos permitirmos encarar suas disposições sem o temor religioso pela genialidade de Napoleão — compreendia quatro pontos — quatro disposições. Nenhuma delas podia ser cumprida e nenhuma foi cumprida.

Na ordem de batalha dizia-se, em primeiro lugar: as baterias instaladas no local escolhido por Napoleão, com canhões de Pernetti e de Fouché, que deverão se unir a elas, ao todo cento e dois canhões, vão abrir fogo e varrer as trincheiras russas e o reduto. Era impossível fazer isso, pois dos lugares indicados por Napoleão as cargas não podiam alcançar as posições russas, e aqueles cento e dois canhões atiraram no vazio, até que o comandante mais próximo do local, em contradição com as ordens de Napoleão, ordenou levar os canhões para a frente.

A segunda ordem consistia em que Poniatowsky devia se deslocar para a aldeia através da floresta e contornar o flanco esquerdo russo. Isso era impossível e não foi feito porque Poniatowsky, ao se dirigir para a aldeia através da floresta, encontrou lá, barrando o seu caminho, as tropas de Tutchkóv, e não pôde contornar e não contornou a posição russa.

A terceira ordem: o general Compan vai entrar na floresta a fim de se apoderar da primeira fortificação. A divisão de Compan não tomou a primeira fortificação, na verdade foi rechaçada, porque ao sair da floresta foi obrigada a se reagrupar sob o fogo de metralha, do qual Napoleão não tinha conhecimento.

Quarta: o vice-rei vai tomar a aldeia (Borodinó) e atravessar suas três pontes, chegando à mesma altura que as divisões de Morand e de Friant (sobre as quais não se dizia de onde iriam se deslocar, nem quando), que sob a sua liderança vão avançar sobre o reduto e entrar em linha com as demais tropas do exército.

Até onde é possível entender — se não por essa frase incoerente, ao menos pelas tentativas feitas pelo vice-rei de cumprir as ordens que lhe foram dadas —, ele deveria se deslocar ao largo de Borodinó, pela esquerda, até o reduto, e ao mesmo tempo as divisões de Morand e de Friant deveriam avançar a partir do front.

Tudo isso, a exemplo de outros pontos da ordem de batalha, não foi e não podia ser cumprido. Ao passar por Borodinó, o vice-rei foi rechaçado no rio Kolotchá e não pôde seguir adiante; as divisões de Morand e de Friant não tomaram o reduto, foram rechaçadas, e o reduto, já no final da batalha, foi tomado pela cavalaria (sem dúvida, um combate não previsto por Napoleão e de todo inconcebível). Portanto nenhuma das determinações da ordem de batalha foi cumprida nem poderia ser. Mas na ordem dizia-se que, uma vez começada desse modo a batalha, seriam dadas ordens conforme os movimentos do inimigo, e por isso podia parecer que Napoleão, no início da batalha, tinha dado todas as ordens necessárias; mas não foi assim, nem poderia ser, porque durante todo o tempo da batalha Napoleão se achava tão distante que (como depois se revelou) não poderia ter conhecimento do andamento da batalha, e nenhuma ordem sua poderia ser cumprida durante os combates.

XXVIII

Muitos historiadores dizem que a batalha de Borodinó não foi vencida pelos franceses porque Napoleão estava resfriado e que, se ele não estivesse resfriado, as suas ordens, dadas antes e no decurso da batalha, teriam sido ainda mais geniais, a Rússia estaria perdida, et la face du monde eût été changée.68 Para os historiadores que consideram que a Rússia foi formada pela vontade de um só homem — Pedro, o Grande — e que a França passou da república ao império e suas tropas foram para a Rússia pela vontade de um só homem — Napoleão —, o argumento de que a Rússia continuou a ser poderosa porque Napoleão teve um grande resfriado no dia 26 é, para tais historiadores, um raciocínio perfeitamente lógico.

Se dependia da vontade de Napoleão oferecer a batalha ou não, e se dependia da sua vontade dar uma ordem ou outra qualquer, então é evidente que um resfriado, capaz de influenciar a manifestação da sua vontade, podia ser a causa da salvação da Rússia e, portanto, o camareiro que no dia 24 esqueceu de dar a Napoleão as botas impermeáveis foi o salvador da Rússia. Nessa linha de raciocínio, tal conclusão é indiscutível — tão indiscutível quanto a conclusão que, de zombaria (sem que ele mesmo soubesse de que estava zombando), fez Voltaire ao dizer que o massacre da noite de São Bartolomeu ocorreu por causa de uma indigestão de Carlos IX. Mas, para as pessoas que não admitem que a Rússia tenha sido formada pela vontade de um só homem — Pedro I — nem que o império francês tenha se constituído e a guerra contra a Rússia tenha tido início pela vontade de um só homem — Napoleão —, tal raciocínio não só parece equivocado e absurdo, como também contrário a toda essência humana. Para a questão sobre o que constitui a causa dos acontecimentos históricos, apresenta-se outra resposta, a saber, que a marcha dos acontecimentos do mundo é predeterminada de cima, depende da coincidência de todos os arbítrios das pessoas que participam de tais acontecimentos, e que a influência de Napoleão na marcha de tais acontecimentos é apenas exterior e fictícia.

Por mais estranha que pareça à primeira vista a sugestão de que o massacre da noite de São Bartolomeu, cuja ordem foi dada por Carlos IX, não ocorreu pela sua vontade, mas apenas pareceu a Carlos IX ter mandado que fizessem aquilo, e que a matança de oitenta mil homens na batalha de Borodinó ocorreu não pela vontade de Napoleão (apesar de ele ter dado ordens para o início e para o transcurso da batalha), mas apenas lhe pareceu que ele mandou fazer isso — por mais estranho que pareça tal raciocínio, a dignidade humana, que me diz que cada um de nós se não é um homem maior tampouco é um homem menor do que o grande Napoleão, nos leva a admitir essa resposta para a questão, e as investigações históricas confirmam plenamente tal hipótese.

Na batalha de Borodinó, Napoleão não atirou em ninguém e não matou ninguém. Os soldados fizeram isso. Portanto não foi ele que matou as pessoas.

Os soldados do exército francês foram matar os soldados russos na batalha de Borodinó não por causa das ordens de Napoleão, mas por sua própria vontade. O exército inteiro — franceses, italianos, alemães, poloneses, esfomeados, maltrapilhos, fatigados pela marcha —, ao ver um exército que barrava o seu caminho para Moscou, sentiu que le vin est tiré et qu’il faut le boire.69 Se Napoleão tivesse proibido suas tropas de lutar contra os russos, os soldados o matariam e partiriam para lutar contra os russos, porque isso era uma necessidade para eles.

Quando ouviram a ordem de Napoleão, que lhes oferecia, em troca da mutilação e da morte, o consolo das palavras da posteridade de que eles tinham estado na batalha de Moscou, gritaram “Vive l’empereur!”, assim como gritaram “Vive l’empereur!” quando viram a pintura de um menino que espetava uma vareta de bilboquê num globo terrestre; e assim também como gritavam “Vive l’empereur!” a cada disparate que lhes diziam. Não lhes restava mais nada para fazer senão gritar “Vive l’empereur!” e ir combater a fim de conseguir alimento e o repouso dos vencedores em Moscou. Portanto, não foi por causa das ordens de Napoleão que eles mataram seus semelhantes.

E tampouco foi Napoleão que dirigiu o rumo da batalha, porque dos termos da sua ordem de batalha nada foi cumprido, e durante o combate ele não sabia o que se passava na sua frente. Portanto, a maneira como aquelas pessoas se mataram se passou não pela vontade de Napoleão, mas de modo alheio a ela, pela vontade de centenas de milhares de pessoas que participaram da ação comum. Para Napoleão, apenas pareceu que todo o combate se passou pela sua vontade. E por isso a questão de Napoleão estar ou não resfriado não tem maior interesse para a história do que a questão do resfriado do mais insignificante dos soldados incumbidos dos transportes de carga.

Tanto menor é a importância do resfriado de Napoleão no dia 26 de agosto, porquanto as declarações dos escritores de que foi por causa do resfriado de Napoleão que sua ordem de batalha e suas ordens durante o decurso da batalha não foram tão boas como as anteriores se mostram totalmente injustas.

A ordem de batalha reproduzida aqui não foi em nada pior e até foi melhor do que as anteriores, que se referiam a batalhas vitoriosas. As ordens imaginárias dadas no decurso da batalha também não foram piores do que as anteriores, mas exatamente iguais, como sempre. Porém a ordem de batalha e as ordens dadas no decurso da batalha só pareceram piores do que as anteriores porque a batalha de Borodinó foi a primeira que Napoleão não venceu. As ordens mais belas e mais compenetradas parecem muito ruins, e todo sábio militar as critica com ar de entendido quando a batalha não foi vencida, e as piores ordens parecem muito boas, e gente séria demonstra, em tomos inteiros, o mérito de ordens péssimas quando a batalha a que elas se referem foi vencida.

A ordem de batalha redigida por Weyrother na batalha de Austerlitz era um modelo de perfeição nas obras desse gênero, mesmo assim a condenaram, e a condenaram por sua perfeição, por seu excesso de minúcias.

Napoleão na batalha de Borodinó cumpriu o seu papel de representante do poder tão bem quanto em outras batalhas, e até melhor. Não fez nada de prejudicial ao andamento da batalha; tendeu às opiniões mais razoáveis; não se confundiu, não entrou em contradição, não se desesperou e não fugiu do campo de batalha, mas, com seu grande tato e sua experiência de guerra, cumpriu com serenidade e dignidade o seu papel de comando aparente.

XXIX

Ao voltar depois de uma segunda inspeção minuciosa das linhas, Napoleão disse:

— As peças do xadrez estão na posição, a partida vai começar amanhã.

Mandou que lhe servissem um ponche, chamou Beausset e começou a conversar com ele a respeito de Paris e de algumas mudanças que tinha intenção de promover na maison de l’impératrice,70 deixando o prefeito admirado com a sua memória dos mínimos detalhes relativos à corte.

Napoleão se interessava por trivialidades, pilheriava a respeito do amor de Beausset pelas viagens e tagarelava descontraidamente, como faz um cirurgião famoso, confiante e sabedor do seu ofício, enquanto arregaça as mangas, veste o avental e o paciente é colocado na mesa de operações: “Toda a questão está nas minhas mãos e se mostra clara e bem definida na minha cabeça. Quando for preciso entrar em ação, farei isso melhor do que qualquer outro, mas agora posso fazer piadas, e quanto mais eu fizer piadas e estiver calmo, mais vocês devem se sentir seguros, calmos e admirados com o meu gênio”.

Após terminar seu segundo copo de ponche, Napoleão foi descansar, antes da séria tarefa que, assim lhe parecia, o aguardava no dia seguinte.

Tão grande era seu interesse pela tarefa que o aguardava que ele não conseguiu dormir e, apesar do resfriado que havia piorado com a umidade noturna, às três horas da madrugada saiu para a seção mais ampla da sua tenda assoando o nariz ruidosamente. Perguntou se os russos não tinham fugido. Responderam que as fogueiras do inimigo continuavam nos mesmos lugares. Napoleão balançou a cabeça em sinal de aprovação.

O ajudante de ordens de serviço entrou na tenda.

— Eh bien, Rapp, croyez-vous, que nous ferons de bonnes affaires aujourd’hui? 71 — perguntou-lhe Napoleão.

— Sans aucun doute, sire 72 — respondeu Rapp.

Napoleão fitou-o.

— Vous rappelez-vous, sire, ce que vous m’avez fait l’honneur de me dire à Smolensk — disse Rapp —, le vin est tiré, il faut le boire.73

Napoleão franziu as sobrancelhas e ficou quieto por um tempo, com a cabeça apoiada na mão.

— Cette pauvre armée — disse ele de repente —, elle a bien diminué depuis Smolensk. La fortune est une franche courtisane, Rapp; je le disais toujours, et je commence à l’éprouver. Mais la garde, Rapp, la garde est intacte? 74 — falou Napoleão em tom interrogativo.

— Oui, sire — respondeu Rapp.

Napoleão pegou uma pastilha, colocou-a na boca e olhou para o relógio. Não tinha vontade de dormir, ainda faltava muito para a manhã; já não podia mais dar ordem nenhuma para matar o tempo, porque todas as ordens haviam sido dadas e agora estavam sendo cumpridas.

— A-t-on distribué les biscuis et le riz aux régiments de la garde? 75 — perguntou Napoleão em tom severo.

— Oui, sire.

— Mais le riz? 76

Rapp respondeu que havia transmitido as ordens do soberano a respeito do arroz, mas Napoleão balançou a cabeça insatisfeito, como se não acreditasse que sua ordem tinha sido cumprida. Um criado entrou com o ponche. Napoleão mandou servir mais um copo para Rapp e, em silêncio, tomou um gole do seu.

— Não tenho paladar nem olfato — disse ele, cheirando o copo. — Esse resfriado me encheu a paciência. Ficam falando de remédios. Ora, remédios, quando nem conseguem sequer curar um resfriado? Corvisart me deu essas pastilhas, mas não servem para nada. O que elas podem curar? É impossível curar. Notre corps est une machine à vivre. Il est organisé pour cela, c’est sa nature; laissez-y la vie à son aise, qu’elle s’y défende elle-même: elle fera plus que si vous la paralysez en l’encombrant de remèdes. Notre corps est comme une montre parfaite qui doit aller un certain temps; l’horloger n’a pas la faculté de l’ouvrir, il ne peut la manier qu’à tâtons et les yeux bandés. Notre corps est une machine à vivre, voilà tout.77 — E, como se tivesse entrado pelo caminho das definições, définitions, que Napoleão tanto apreciava, apresentou de forma inesperada outra definição. — O senhor, Rapp, sabe o que é a arte da guerra? — perguntou. — É a arte de ser mais forte do que o inimigo num determinado momento. Voilà tout.

Rapp nada respondeu.

— Demain nous allons avoir affaire à Koutouzoff! 78 — disse Napoleão. — Veremos! Lembre-se de que em Braunau ele comandou o exército e durante três semanas não montou no cavalo nem uma vez para inspecionar as fortificações. Veremos!

Lançou um olhar para o relógio. Ainda eram quatro horas. Não tinha vontade de dormir, o ponche havia terminado, e não havia nada para fazer. Napoleão levantou-se, andou para um lado e para o outro, vestiu uma sobrecasaca quente, um chapéu, e saiu da tenda. A noite estava escura e úmida; caía uma umidade quase imperceptível. As fogueiras ardiam pálidas em redor, na guarda francesa, e também brilhavam ao longe através da névoa, nas linhas russas. Fazia silêncio em toda parte, e ouviam-se apenas os sussurros e o rumor dos pés das tropas francesas, que começavam a se movimentar a fim de tomar suas posições.

Napoleão ficou andando na frente da tenda, observava as fogueiras, escutava o rumor dos pés e, ao passar por um guarda alto, de chapéu de pele, que estava de vigia junto à sua tenda e que, como uma coluna preta, se esticou todo ante a aparição do imperador, parou na frente dele.

— Há quantos anos está no Exército? — perguntou com a brusquidão afetada e a branda combatividade de costume, com que ele sempre se dirigia aos soldados.

O guarda respondeu.

— Ah! Un des vieux! 79 Receberam arroz no regimento?

— Recebemos, vossa alteza.

Napoleão fez que sim com a cabeça e afastou-se.

Às seis e meia, Napoleão foi a cavalo à aldeia de Chevardinó.

O dia começou a clarear, o céu estava limpando, só uma nuvem pairava no leste. Fogueiras abandonadas terminavam de queimar na luz fraca da manhã.

À direita, ressoou um tiro de canhão grave e solitário, prolongou-se e morreu em meio ao silêncio geral. Passaram alguns minutos. Ressoou um segundo tiro, e um terceiro sacudiu o ar; um quarto ressoou mais perto e solene, em algum ponto à direita.

Ainda não haviam cessado de reverberar os primeiros tiros quando romperam outros, e outros mais, emendando-se e interrompendo-se uns aos outros.

Napoleão, com sua comitiva, aproximou-se do reduto de Chevardinó e desmontou. A partida havia começado.

XXX

Ao voltar para Górki depois de falar com o príncipe Andrei, Pierre mandou que o seu cavalariço deixasse os cavalos preparados e o acordasse de manhã cedo, e logo depois pegou no sono atrás de um biombo, num canto que Boris havia cedido a ele.

Quando Pierre acordou na manhã seguinte, já não havia ninguém na isbá. Os vidros trepidavam nas janelas pequenas. O cavalariço estava de pé a seu lado e o sacudia.

— Vossa excelência, vossa excelência, vossa excelência... — repetia o cavalariço com insistência, sem olhar para Pierre, sacudindo-o pelo ombro e, pelo visto, já sem esperança de acordá-lo.

— O que foi? Já começou? Está na hora? — exclamou Pierre, acordando.

— Ouça os tiros de canhão, excelência — disse o cavalariço, um soldado que já dera baixa das tropas. — Todos os senhores já partiram, vossa excelência dormiu demais.

Pierre vestiu-se às pressas e correu para a varanda. Ao ar livre, o dia estava claro, fresco, orvalhado e alegre. O sol acabara de escapar de detrás da nuvem que o encobria, e seus raios, cortados ao meio pelas nuvens, eram lançados nos telhados do outro lado da rua, na poeira da estrada coberta de orvalho, nas paredes das casas, nas janelas, no muro e nos cavalos de Pierre, que estavam junto à isbá. O barulho dos canhões soava cada vez mais nítido. Um ajudante de ordens e um cossaco passaram a galope pela rua.

— Está na hora, conde, está na hora! — gritou o ajudante de ordens.

Pierre mandou que o cavalariço trouxesse os cavalos atrás dele e seguiu a pé pela rua na direção da colina de onde, na véspera, tinha contemplado o campo de batalha. Na colina havia uma multidão de militares, ouvia-se uma conversa em francês entre membros do Estado-Maior e via-se a cabeça grisalha de Kutúzov, o seu gorro branco com uma fita vermelha, e a nuca grisalha afundada nos ombros. Kutúzov observava através de uma luneta a estrada principal à frente.

Ao subir os degraus para o topo da colina, Pierre lançou um olhar para a frente e perdeu o fôlego ante a beleza do espetáculo. Era o mesmo panorama que o havia encantado na véspera, no alto daquela colina; mas agora toda a região estava coberta por tropas e pela fumaça dos tiros, e os raios oblíquos do sol brilhante, que se erguia mais atrás, à esquerda de Pierre, lançavam sobre aquele panorama, no ar puro da manhã, uma luz penetrada por matizes rosados e dourados e sombras compridas e escuras. Os bosques distantes, que delimitavam o panorama, como que esculpidos em alguma pedra preciosa amarelo-esverdeada, desenhavam-se com sua silhueta ondulada no horizonte, e entre eles, além de Valúievo, passava a estrada principal de Smolensk, toda coberta de tropas. Perto, reluziam campos e arvoredos dourados. Em toda parte — à frente, à direita, à esquerda — viam-se tropas. Tudo era movimentado, majestoso e surpreendente; porém o que mais impressionou Pierre foi o aspecto do campo de batalha propriamente dito, de Borodinó e das ravinas sobre o rio Kolotchá, em ambas as margens.

Acima do Kolotchá, em Borodinó e nos dois lados, sobretudo no lado esquerdo, onde o Vóina, com suas margens pantanosas, deságua no Kolotchá, pairava essa neblina matinal que se dissolve, se dissipa e deixa transparecer o brilho do sol nascente, ao mesmo tempo que colore e delineia com encanto tudo o que se avista através dela. A fumaça dos tiros se fundia àquela neblina, e por isso os lampejos da luz da manhã rebrilhavam na fumaça e na neblina por todo lado — ora na água, ora no orvalho, ora nas baionetas das tropas, que se aglomeravam nas margens do rio e em Borodinó. Através da neblina, via-se uma igreja branca, aqui e ali os telhados das isbás de Borodinó, densas massas de soldados, carroças com caixas verdes de munição, canhões. E tudo estava em movimento ou parecia em movimento, porque a neblina e a fumaça se alastravam por toda aquela vastidão. Assim como nos locais mais baixos perto de Borodinó, cobertos pela neblina, também fora dali, mais acima e sobretudo mais à esquerda, por toda a linha das tropas, nos bosques, nos campos, nas terras mais baixas, nos topos mais elevados, brotavam do nada e sem cessar tufos de fumaça de canhão, ora isolados, ora em blocos, ora esparsos, ora frequentes, que, inflando-se, sacudindo-se, enrolando-se, fundindo-se, eram visíveis em toda aquela vastidão.

A fumaça dos tiros e também, é estranho dizê-lo, o som dos tiros produziam a principal beleza do espetáculo.

Puff! — de repente surgia uma fumaça redonda, densa, que mesclava as cores violeta, cinza e branco-leite, e bum! — irrompia, um segundo depois, o som daquela fumaça.

Puf-puf — subiam duas fumaças, empurravam-se e fundiam-se; e bum-bum — os sons confirmavam o que os olhos tinham visto.

Pierre virou-se para ver a primeira fumaça, que lhe pareceu um balão redondo e compacto, e logo em seu lugar havia bolas da fumaça que se espalhavam para o lado, e puf... (uma pausa), puf-puf — brotaram mais três, e quatro, e a cada uma, com intervalos iguais, bum... bum-bum-bum — respondiam sons bonitos, firmes, leais. Parecia ora que as fumaças corriam, ora que ficavam paradas, e diante delas eram os bosques que corriam, e também os campos e as baionetas reluzentes. Do lado esquerdo, pelos campos e arbustos, brotavam sem cessar aquelas fumaças grandes, com seus ecos festivos, e mais perto, pelas áreas mais baixas e pelos bosques, flamejavam pequenas fumaças de tiros de fuzil, que não conseguiam formar círculos, mas da mesma forma produziam seus pequenos ecos. Tra-ta-ta-tá — crepitavam os fuzis seguidamente, mas de modo inseguro e fraco em comparação com os tiros de canhão.

Pierre teve vontade de estar onde estavam as fumaças, as baionetas e os canhões reluzentes, o movimento, o barulho. Virou-se para Kutúzov e para a sua comitiva a fim de comparar sua impressão com a dos outros. Todos estavam exatamente como ele e, assim lhe pareceu, olhavam para a frente, para o campo de batalha, com o mesmo sentimento. Em todos os rostos brilhava agora aquele sentimento de calor latente (chaleur latente) que Pierre havia notado na véspera e que havia compreendido plenamente após a conversa com o príncipe Andrei.

— Vá, meu caro, vá, e que Cristo o acompanhe — disse Kutúzov para um general a seu lado, sem tirar os olhos do campo de batalha.

Ao ouvir a ordem, o general passou por Pierre a fim de descer da colina.

— Para a travessia do rio! — disse o general em tom frio e severo, em resposta a um membro do Estado-Maior que lhe perguntara aonde ia.

“Eu também, eu também”, pensou Pierre e foi atrás do general.

O general montou no cavalo que um cossaco lhe deu. Pierre aproximou-se do seu cavalariço, que trazia os cavalos. Depois de perguntar qual era o mais manso, Pierre montou no cavalo, segurou-se na crina e, com os pés virados para fora, pressionou a barriga do cavalo com os calcanhares e, sentindo que os óculos estavam escorregando e que ele não tinha condições de soltar a crina e as rédeas, seguiu a galope atrás do general, provocando sorrisos nos membros do Estado-Maior que observavam Pierre do alto da colina.

XXXI

O general atrás de quem Pierre galopava desceu o morro e virou bruscamente à esquerda, e Pierre, que o perdeu de vista, penetrou a galope nas fileiras da infantaria, que caminhavam à sua frente. Tentou sair delas, ora à direita, ora à esquerda; porém por todo lado havia soldados com aquele mesmo rosto preocupado, absorto em algum assunto invisível, mas importante, ao que parecia. Com o mesmo olhar interrogativo e insatisfeito, todos olhavam para aquele sujeito gordo, de chapéu branco, que por alguma razão ignorada os atropelava com seu cavalo.

— Por que tem de passar no meio do batalhão? — gritou um deles para Pierre. Outro cutucou o cavalo com a coronha do fuzil, e Pierre, segurando-se ao cabeçote da sela e mal conseguindo conter o cavalo, que queria disparar, galopou para a frente dos soldados, onde havia mais espaço.

Adiante havia uma ponte, e na ponte, atirando, havia mais soldados. Pierre aproximou-se deles. Sem saber, galopava na direção da ponte sobre o rio Kolotchá que ficava entre Górki e Borodinó e que, no primeiro combate da batalha (depois de tomar Borodinó), os franceses haviam atacado. Pierre viu que à sua frente havia uma ponte e que em ambos os lados da ponte e no prado, nas fileiras de feno caídas que ele notara na véspera, os soldados faziam algo dentro da fumaça; mas, apesar do tiroteio incessante que ocorria naquele local, Pierre não conseguia conceber de forma nenhuma que ali era o campo de batalha. Não ouvia o som das balas de fuzil, que assoviavam de todos os lados, nem das balas de canhão, que passavam voando por cima dele, não via o inimigo, que se achava do outro lado do rio, e ficou muito tempo sem ver mortos e feridos, embora muitos soldados caíssem perto dele. Com um sorriso que não deixava seu rosto, Pierre olhava à sua volta.

— O que está fazendo nas linhas de combate? — alguém gritou com Pierre outra vez.

— Para a esquerda, para a direita — gritavam para ele.

Pierre tomou a direita e, inesperadamente, topou com um conhecido seu, um ajudante de ordens do general Raiévski. O ajudante de ordens lançou um olhar irritado para Pierre, pelo visto também com a intenção de gritar com ele, mas ao reconhecê-lo cumprimentou-o com uma inclinação de cabeça.

— Como o senhor veio parar aqui? — perguntou e galopou adiante.

Pierre, sentindo-se deslocado e sem utilidade, temendo de novo atrapalhar alguém, galopou atrás do ajudante de ordens.

— O que está acontecendo aqui? Posso ir com o senhor? — perguntou.

— Um instante, um instante — respondeu o ajudante de ordens e galopou até um coronel gordo que estava no prado, comunicou-lhe alguma coisa e só depois se dirigiu a Pierre.

— Para que o senhor veio se meter aqui, conde? — perguntou, com um sorriso. — Sempre curioso, não é?

— Sim, sim — respondeu Pierre. Mas o ajudante de ordens deu meia-volta com o seu cavalo e seguiu adiante.

— Isto aqui não é nada, graças a Deus — disse o ajudante de ordens. — Lá no flanco esquerdo, onde está Bagration, é que a coisa está pegando fogo.

— É mesmo? — perguntou Pierre. — E onde fica?

— Vamos, venha comigo até a colina, de lá dá para ver. E na nossa bateria ainda está suportável — disse o ajudante de ordens. — E então, vem?

— Sim, vou com o senhor — respondeu Pierre, olhando à sua volta e procurando com os olhos o seu cavalariço. Só então, pela primeira vez, Pierre viu os feridos, que andavam se arrastando ou eram carregados em macas. Naquele mesmo prado com as aromáticas fileiras de feno pelo qual havia passado na véspera, um soldado jazia imóvel, atravessado nas fileiras de feno, com a barretina caída e a cabeça virada de um jeito estranho. — E aquele ali, por que não levaram? — quis perguntar Pierre; mas, ao ver o rosto severo do ajudante de ordens que se voltara para aquele mesmo lado, calou-se.

Pierre não achou o seu cavalariço e, junto com o ajudante de ordens, seguiu pela ravina rumo à colina Raiévski. O cavalo de Pierre ficou muito atrás do cavalo do ajudante de ordens e o sacudia ritmadamente.

— Parece que o senhor não está habituado a montar, não é, conde? — perguntou o ajudante de ordens.

— Não, está tudo bem, só que o cavalo pula muito — disse Pierre, com perplexidade.

— Eh!... Mas ele está ferido — disse o ajudante de ordens. — A pata dianteira direita, acima do joelho. Deve ser uma bala. Parabéns, conde — disse. — Le baptême du feu.80

Depois de passar em meio à fumaça pelo sexto corpo do exército, atrás da artilharia, que trazida para a frente disparava, ensurdecendo com seus tiros, eles chegaram a um pequeno bosque. Estava frio e silencioso no bosque, e havia um cheiro de outono. Pierre e o ajudante de ordens desmontaram dos cavalos e seguiram a pé para o morro.

— O general está aqui? — perguntou o ajudante de ordens, aproximando-se da colina.

— Estava aqui agora mesmo, mas foi para lá — responderam, apontando para a direita.

O ajudante de ordens virou-se para Pierre como se não soubesse o que fazer com ele agora.

— Não se preocupe — disse Pierre. — Eu vou para a colina, não posso?

— Sim, vá. De lá se vê tudo e não é tão perigoso. Depois virei buscar o senhor.

Pierre seguiu para a bateria, e o ajudante de ordens foi para outro lado. Eles não se viram mais e, muito depois, Pierre soube que aquele ajudante de ordens, naquele mesmo dia, perdera um braço.

A colina que Pierre subiu era a famosa elevação mais tarde conhecida entre os russos pelo nome de colina da bateria, ou bateria Raiévski, e entre os franceses pelo nome de la grande redoute, la fatale redoute, la redoute du centre,81 em torno da qual tombaram dezenas de milhares de pessoas e que os franceses consideravam como o ponto mais importante da posição.

O reduto consistia em uma colina na qual, em três lados, foram escavados fossos. Dentro dos fossos protegidos por barricadas de terra estavam dez canhões que atiravam através de buracos abertos nas barricadas.

Alinhados com a colina, de ambos os lados, havia canhões que também não paravam de atirar. Um pouco atrás dos canhões, estavam tropas de infantaria. Ao subir a colina, Pierre não tinha a menor ideia de que aquele local, com pequenos fossos de onde alguns canhões atiravam, era o lugar mais importante da batalha.

Ao contrário, parecia a Pierre que aquele lugar (justamente por ele estar ali) era um dos mais insignificantes da batalha.

Ao chegar à colina, Pierre sentou-se na extremidade de um fosso que contornava a bateria e, com um sorriso alegre e inconsciente, observava o que ocorria à sua volta. De vez em quando, sempre com o mesmo sorriso, Pierre se levantava e caminhava junto à bateria, tentando não atrapalhar os soldados que municiavam e ajustavam a pontaria dos canhões e que passavam correndo a todo instante na sua frente com sacos e munição. Os canhões daquela bateria disparavam sem cessar, um após o outro, ensurdecendo com seus estrondos e obscurecendo toda aquela área com fumaça de pólvora.

Em contraste com o pavor que se percebia entre os soldados da infantaria que davam cobertura, junto à bateria, onde uma pequena quantidade de soldados se incumbia das tarefas, confinados e isolados dos demais por um fosso — ali se sentia uma animação única e geral, como se todos fossem de uma só família.

O surgimento da figura civil de Pierre, de chapéu branco, a princípio causou uma impressão desagradável nos soldados. Ao passar por Pierre, surpresos e até assustados, os soldados olhavam de esguelha para a sua figura. O oficial de artilharia mais graduado, homem alto e de pernas compridas, com marcas de varíola, veio andando na direção de Pierre como se fosse para inspecionar a operação do canhão da extremidade do fosso e observou-o com curiosidade.

Um jovem oficialzinho de cara redonda, ainda uma verdadeira criança, pelo visto recém-saído da escola de cadetes, que comandava com todo o zelo os dois canhões confiados a ele, voltou-se para Pierre com severidade.

— Senhor, tenha a bondade de sair do caminho — disse ele. — Não pode ficar aqui.

Os soldados balançavam a cabeça em desaprovação, olhando para Pierre. Mas quando todos se convenceram de que aquele homem de chapéu branco não só não estava fazendo nada de ruim, mas apenas ficava sentado submisso na beira do fosso, ou abria caminho educadamente para os soldados, com um sorriso tímido, enquanto passava junto às baterias sob os disparos com toda a calma, como se andasse por um bulevar, então aos poucos o sentimento de perplexidade rancorosa em relação a ele começou a mudar para uma simpatia carinhosa e bem-humorada, semelhante à que têm os soldados por seus animais: cachorros, galos, bodes e outros animais em geral que vivem junto às tropas. Mentalmente, aqueles soldados logo tomaram Pierre como parte de sua família, adotaram-no, deram-lhe um apelido. Chamaram-no de “Nosso Fidalgo” e entre si riam dele com afeição.

Uma bala de canhão rompeu a terra a dois passos de Pierre. Enquanto sacudia da roupa a terra espirrada pela bala de canhão, Pierre olhava em redor com um sorriso.

— Quer dizer que o senhor não tem medo mesmo, não é, Fidalgo? — virou-se para Pierre um soldado grande e de cara vermelha, deixando à mostra os dentes brancos e fortes.

— E você por acaso tem medo? — perguntou Pierre.

— Como não? — respondeu o soldado. — Afinal, a bala não perdoa. Ela cai espirrando lama, e as tripas da gente vêm para fora. Não dá para não ter medo — disse, rindo.

Alguns soldados, com rosto alegre e afetuoso, se detiveram perto de Pierre. Pareciam não esperar que ele fosse capaz de falar como todos, e aquela descoberta os alegrou.

— A gente é soldado, é o nosso ofício. Mas um fidalgo, aqui, é de admirar. Vejam só que fidalgo!

— A seus postos! — gritou o jovem oficialzinho para os soldados que haviam se reunido em torno de Pierre. Era evidente que o jovem oficialzinho cumpria sua função pela primeira ou segunda vez e por isso tratava os soldados e os superiores com especial distinção e formalidade.

Os estrondosos disparos dos canhões e dos fuzis ficaram mais fortes em todo o campo, sobretudo à esquerda, lá onde estavam as trincheiras de Bagration, mas do lugar onde estava Pierre, por trás da fumaça dos tiros, era quase impossível enxergar qualquer coisa. Além disso, a observação do círculo de soldados que estavam na bateria (isolados de todos os demais) e que pareciam pertencer a uma só família absorvia toda a atenção de Pierre. Sua primeira emoção, de perplexidade e alegria, produzida pela imagem e pelos sons do campo de batalha, havia se transformado num sentimento diferente agora, em especial após a visão daquele soldado caído sozinho no prado. Sentado na beira do fosso, Pierre observava os rostos à sua volta.

Às dez horas, a bateria já havia perdido uns vinte homens; dois canhões tinham sido destruídos, cada vez mais frequentes eram as granadas que caíam sobre a bateria e as balas de canhão que passavam voando, assoviando e roncando pelo alto. Mas os soldados ali na bateria pareciam nem perceber aquilo; de todos os lados se ouviam vozes alegres e piadas.

— Lá vem um bolinho recheado! — gritava um soldado para uma granada que se aproximava, voando com um assovio. — Não veio para cá! Caiu na infantaria! — acrescentava outro, com uma risada, ao notar que a granada havia passado por cima e caído nas fileiras de apoio.

— É conhecida sua? — disse outro soldado, brincando com um mujique que se abaixara para uma bala de canhão que passou por cima dele.

Alguns soldados se debruçaram na beira do fosso para espiar o que se passava na frente deles.

— Afrouxaram a corrente, olhe lá, foram para trás — disseram, apontando por cima do fosso.

— Cuidem da sua missão — gritou com eles um velho sargento. — Se foram para trás, quer dizer que têm o que fazer atrás. — E o sargento puxou um dos soldados pelo ombro e lhe deu um empurrão com o joelho. Ouviu-se uma risada.

— Para o quinto canhão, rolar mais para cima! — gritaram de um lado.

— De uma vez só, todos juntos, feito os barqueiros que puxam o barco pela corda — soaram os gritos alegres dos soldados que mudavam o canhão de lugar.

— Ei, essa quase tirou o chapéu do nosso fidalgo — o gozador de cara vermelha brincou com Pierre, pondo os dentes à mostra. — Eh, sua desajeitada — acrescentou, em tom de censura, para a bala de canhão que atingiu uma roda de carroça e o pé de um homem.

— Eh, suas raposas! — riu outro, dirigindo-se aos milicianos que se abaixaram ao chegar à bateria em busca de feridos.

— Então, não gostaram desse mingau? Ah, seus corvos, ficaram com enjoo, não é! — gritaram para os milicianos que hesitavam diante de um soldado com uma perna decepada.

— Puxa, como é que pode, gente — diziam, arremedando os mujiques. — Não gostam de emoções fortes, não.

Pierre notava que depois de cada bala de canhão que caía, depois de cada baixa, inflamava-se mais ainda a animação geral.

Como ocorre numa nuvem de tempestade que se aproxima, lampejos de um fogo que ardia oculto chamejavam, cada vez mais frequentes e mais brilhantes, no rosto de todas aquelas pessoas (como que numa recusa daquilo que estava acontecendo).

Pierre não olhava para a frente, para o campo de batalha, e não tinha interesse em saber o que se passava lá: estava totalmente entretido na contemplação daquele fogo que ardia cada vez mais e que parecia (assim ele sentia) arder também na sua alma.

Às dez horas os soldados da infantaria que estavam à frente da bateria, nos arbustos e junto ao riacho Kámenka, bateram em retirada. Da bateria, via-se como passavam correndo para trás, carregando os feridos apoiados nos fuzis. Um general com sua comitiva subiu à colina e, após falar com um coronel, olhou para Pierre com ar irritado e desceu novamente, depois de ordenar que os infantes estacionados atrás da bateria para lhe dar cobertura se deitassem, a fim de ficar menos expostos aos tiros. Atrás daquelas fileiras de infantaria, à direita da bateria, ouviu-se um tambor, gritos de comando e, da bateria, viu-se como as fileiras de infantes avançaram.

Pierre olhou por cima da barricada. Um rosto em especial se destacou aos seus olhos. Era um oficial que, com o rosto pálido e jovem, andava para trás, levava a espada baixa e olhava inquieto para os lados.

As fileiras de infantes desapareceram na fumaça, ouviam-se seus gritos arrastados e o constante tiroteio de fuzis. Alguns minutos depois, uma multidão de feridos e de macas veio de lá. Na bateria, granadas começaram a cair a intervalos ainda menores. Diversos soldados jaziam sobre a terra e não eram removidos. Em torno dos canhões, os soldados se movimentavam ainda mais animados e dispostos. Ninguém mais prestava atenção em Pierre. Duas vezes gritaram irritados com ele porque estava no caminho. O oficial mais graduado, de cara zangada, a passos largos e rápidos, passava de um canhão a outro. O oficial jovem, ainda mais corado, comandava os soldados com maior zelo ainda. Os soldados traziam a munição, viravam-se, carregavam os canhões e cumpriam sua missão com uma tensa galhardia. Moviam-se aos pulos, como se estivessem sobre molas.

A nuvem de tempestade se aproximou, e em todos os rostos ardeu brilhante aquele fogo cujo chamejar Pierre vinha observando. Ele estava junto ao oficial mais graduado. O oficialzinho jovem veio correndo na sua direção, com a mão erguida na barretina.

— Tenho a honra de informar, senhor coronel, que só restam oito cargas de munição. O senhor ordena que continuemos a atirar? — perguntou.

— Fogo de metralha! — gritou o oficial mais graduado, sem responder, olhando para fora da barricada.

De repente, algo aconteceu; o oficialzinho soltou uma exclamação e, dobrando o corpo, sentou-se na terra, como um pássaro alvejado na asa. Tudo se passou de um modo estranho, obscuro e velado, aos olhos de Pierre.

Balas de canhão assoviavam uma após a outra e batiam na barricada, nos soldados, nos canhões. Pierre, que antes não tinha ouvido aqueles sons, agora só ouvia aquilo e mais nada. Ao lado da bateria, à direita, com um grito de “Hurra”, os soldados corriam não para a frente, mas para trás, assim pareceu a Pierre.

Uma bala de canhão atingiu bem a extremidade do fosso, onde estava Pierre, a terra espirrou, uma bolinha preta surgiu diante de seus olhos, e no mesmo instante houve um baque. Os milicianos que tinham vindo para a bateria correram para trás.

— Mais fogo de metralha! — gritou o oficial.

O sargento correu para o oficial mais graduado e, num sussurro assustado (como um mordomo, durante um jantar, informa ao dono da casa que não há mais vinho para servir), disse que não havia mais munição.

— Bandidos, o que estão fazendo? — começou a gritar o oficial, virando-se para Pierre. O rosto do oficial mais graduado estava vermelho e suado, os olhos entrecerrados cintilavam. — Corra para as reservas, mande trazer caixas de munição! — gritou colérico, desviando os olhos de Pierre e dirigindo-se a um de seus soldados.

— Deixe que eu vou — respondeu Pierre. O oficial, sem lhe responder, seguiu a passos largos para o outro lado.

— Não atirem... Vamos esperar! — gritou.

O soldado que recebera a ordem de ir buscar munição esbarrou em Pierre.

— Eh, Fidalgo, isto aqui não é lugar para você — disse e correu para baixo. Pierre correu atrás do soldado, desviando-se do local onde o jovem oficialzinho estava sentado.

Uma bala de canhão, outra e mais outra passaram por cima dele, caíram mais adiante, ao lado, atrás. Pierre desceu a colina correndo. “Para onde vou?”, pensou de repente, já correndo na direção das carroças com caixas verdes de munição. Parou indeciso entre ir para a frente ou para trás. De repente uma pancada terrível jogou-o para trás, sobre a terra. No mesmo instante o fulgor de uma grande labareda iluminou-o, e no mesmo instante irromperam um estrondo, um estalo e um assovio que o ensurdeceram e ficaram ressoando em seus ouvidos.

Quando voltou a si, Pierre estava sentado com as mãos apoiadas na terra; a carroça de munição, perto da qual ele estava, não existia mais; só havia tábuas e trapos verdes queimados e espalhados pela grama chamuscada, e um cavalo passou por ele a galope arrastando os restos dos varais de uma carroça, enquanto outro, assim como Pierre, estava caído sobre a terra e soltava gritos estridentes e prolongados.

XXXII

Pierre, atordoado pelo medo, ergueu-se de um salto e correu para trás, rumo à bateria, como se fosse o único refúgio de todos os horrores que o rodeavam.

Na hora em que Pierre entrou na barricada, notou que não se ouviam tiros na bateria, mas que algumas pessoas estavam fazendo alguma coisa ali. Pierre não teve tempo de entender quem eram aquelas pessoas. Viu o coronel mais graduado deitado na beira da barricada, de costas para ele, como se estivesse olhando algo lá embaixo, e viu um soldado que antes havia chamado sua atenção e que agora se debatia na frente de pessoas que o seguravam pelo braço e gritava: “Irmãos!”, e viu ainda algo estranho.

Mas não teve tempo de entender que o coronel estava morto, que o homem que gritava “Irmãos!” era um prisioneiro, que diante dos seus olhos outro soldado foi apunhalado pelas costas com uma baioneta. Mal Pierre entrou correndo na barricada, um homem magricela, amarelo, de rosto suado e de uniforme azul, com a espada na mão, correu para ele gritando algo. Defendendo-se instintivamente do golpe, pois os dois, sem ver, corriam um de encontro ao outro, Pierre levantou as mãos e segurou o homem (era um oficial francês), com uma mão no ombro e a outra na garganta. O oficial largou a espada e segurou Pierre pela gola.

Por alguns segundos, os dois, com olhos assustados, fitaram um ao outro, ambos perplexos, olhando um rosto desconhecido, sem saber o que estavam fazendo nem o que deviam fazer. “Fui feito prisioneiro por ele ou eu é que o fiz prisioneiro?”, pensavam ambos. Porém era evidente que o oficial francês estava mais inclinado a achar que tinha sido feito prisioneiro, porque a mão forte de Pierre, movida por um pavor inconsciente, apertava sua garganta com força cada vez maior. O francês quis dizer algo na hora em que, de repente, logo acima da cabeça deles, uma bala de canhão passou bem baixo, com um assovio terrível, e Pierre teve a impressão de que a cabeça do oficial francês fora arrancada, tamanha a rapidez com que ele a abaixou.

Pierre também curvou a cabeça e abriu as mãos. Sem pensar mais em quem tinha feito o outro prisioneiro, o francês correu para trás, rumo à bateria, e Pierre correu morro abaixo, tropeçando nos mortos e feridos, que, assim lhe parecia, o seguravam pelos pés. Mas Pierre mal teve tempo de chegar lá embaixo quando surgiu uma multidão compacta de soldados russos que vinham na sua direção e que, caindo, tropeçando e gritando, alegres e enfurecidos, corriam para a bateria. (Foi o ataque cujo mérito Ermólov atribuiu a si mesmo, dizendo que só a sua bravura e a sua sorte tornaram possível realizar tal proeza, o ataque em que se conta que ele jogou para os soldados, no alto da colina, todas as condecorações da Cruz de São Jorge que tinha no bolso.)

Os franceses que haviam tomado a bateria fugiram. Nossas tropas, aos gritos de “Hurra”, perseguiram os franceses até tão longe que foi difícil detê-los.

Desceram da bateria com os prisioneiros, entre os quais um general francês ferido, a quem os oficiais rodeavam. A multidão de feridos, conhecidos e desconhecidos de Pierre, russos e franceses, com o rosto desfigurado pelo sofrimento, caminhava, se arrastava e era trazida da bateria em macas. Pierre subiu na colina onde havia passado mais de uma hora e, daquele círculo familiar que o havia adotado como um igual, não encontrou ninguém. Eram muitos ali os mortos que ele não conhecia. Mas conhecia alguns. O jovem oficialzinho estava sentado, ainda como se tivesse dobrado o corpo, na beira da barricada, numa poça de sangue. O soldado de cara vermelha ainda se contorcia, mas não o removeram.

Pierre correu para baixo.

“Não, agora eles vão parar com isso, agora eles vão ficar horrorizados com o que fizeram!”, pensava Pierre, caminhando sem nenhum propósito atrás de uma multidão de macas que estavam sendo carregadas para fora do campo de batalha.

Mas o sol, toldado pela fumaça, ainda estava alto, e à frente e sobretudo à esquerda, perto de Semiónovskoie, algo fervilhava em meio à fumaça, e o barulho dos tiros, da fuzilaria e do canhoneio não só não enfraquecia como se tornava ainda mais forte, até o desespero, como um homem que, esgotado, grita com as últimas forças.

XXXIII

O combate principal na batalha de Borodinó ocorreu numa área de mil sájeni, entre Borodinó e as trincheiras de Bagration. (Fora dessa área, de um lado, os russos fizeram na metade do dia uma demonstração da cavalaria de Uvárov, e, do outro lado, para além de Utítsa, houve um confronto entre Poniatowsky e Tutchkóv; mas foram dois combates isolados e fracos em comparação com o que se passava no meio do campo de batalha.) No terreno entre Borodinó e as trincheiras, no bosque, numa extensão aberta e visível de ambos os lados, passou-se o principal combate da batalha, da maneira mais simples, sem manobras engenhosas.

A batalha começou com um canhoneio de várias centenas de canhões, de um lado e do outro.

Depois, quando a fumaça obscureceu o campo inteiro, duas divisões, a de Dessaix e a de Compan, moveram-se na fumaça à direita (do lado dos franceses), contra as trincheiras, e à esquerda as tropas do vice-rei marcharam contra Borodinó.

O reduto de Chevardinó, onde estava Napoleão, ficava a verstas de distância das trincheiras e a mais de duas verstas de distância de Borodinó, em linha reta, e por isso Napoleão não podia ver nada do que ocorria lá, a não ser a fumaça, que se fundia com a neblina e encobria toda aquela área. Os soldados da divisão de Dessaix, que rumavam contra as trincheiras, estiveram visíveis somente até descerem na ravina que os separava das trincheiras. Assim que desceram na ravina, a fumaça dos tiros de canhão e de fuzil se tornou tão densa nas trincheiras que encobriu toda a encosta daquele lado da ravina. Através da fumaça, vislumbrava-se ali apenas algo preto — provavelmente pessoas, e às vezes o brilho de baionetas. Mas do reduto de Chevardinó era impossível enxergar se estavam em movimento ou parados, se eram os franceses ou os russos.

O sol subia brilhante e, com raios oblíquos, batia direto no rosto de Napoleão, que olhava para as trincheiras com a mão fazendo sombra acima dos olhos. A fumaça se estendia na frente das trincheiras e ora parecia que a fumaça se deslocava, ora parecia que as tropas se deslocavam. De quando em quando se ouviam gritos por trás dos tiros, mas era impossível saber o que estava ocorrendo.

Napoleão, de pé na colina, olhava através de uma luneta, e no pequeno círculo da luneta via a fumaça e as pessoas, às vezes os seus, às vezes os russos; mas, quando voltava a contemplar a olho nu, Napoleão não sabia mais onde estava aquilo que tinha visto.

Napoleão desceu da colina e se pôs a andar de um lado para outro.

De vez em quando parava, escutava os tiros e lançava um olhar para o campo de batalha.

Não só do local baixo onde ele estava, não só da colina onde agora estavam alguns de seus generais, mas também das trincheiras onde agora estavam os soldados ora russos, ora franceses, juntos e alternadamente, mortos, feridos e vivos, assustados ou desnorteados, era impossível entender o que se passava naquele lugar. Durante várias horas, naquele lugar, em meio ao incessante tiroteio de fuzis e de canhões, ora apareciam só os russos, ora só os franceses, ora os infantes, ora os cavalarianos; apareciam, caíam, atiravam, entravam em choque, sem saber o que fazer uns com os outros, gritavam e corriam para trás.

Os ajudantes de ordens que Napoleão tinha enviado e os ordenanças de seus marechais voltavam a galope do campo de batalha trazendo relatórios sobre o andamento dos combates; mas todos aqueles relatórios eram fictícios: porque no calor da batalha é impossível dizer o que se passa num dado momento, e porque muitos ajudantes de ordens nem chegavam ao verdadeiro local da batalha, apenas repetiam o que ouviam de terceiros; e também porque, enquanto um ajudante de ordens percorria as duas ou três verstas que o separavam de Napoleão, as circunstâncias já haviam mudado, e as notícias que ele trazia já tinham se tornado incorretas. Assim, um ajudante de ordens enviado pelo vice-rei chegou a galope e trouxe a notícia de que Borodinó tinha sido tomado e a ponte sobre o rio Kolotchá estava em poder dos franceses. O ajudante de ordens perguntou a Napoleão se suas ordens eram para atravessar a ponte. Napoleão ordenou que as tropas ficassem na margem, em linha, e esperassem; mas não só no momento em que Napoleão dava essa ordem, como ainda no momento em que o ajudante de ordens estava deixando Borodinó, a ponte já tinha sido retomada e queimada pelos russos, naquele mesmo combate de que Pierre havia tomado parte, logo no início da batalha.

Um ajudante de ordens veio a galope das trincheiras, com o rosto assustado e pálido, e comunicou a Napoleão que o ataque tinha sido rechaçado, Compan estava ferido e Davout tinha morrido, mas, enquanto isso, as trincheiras foram tomadas por outra parte das tropas francesas, no exato instante em que o ajudante de ordens dizia que os franceses tinham sido rechaçados, e Davout estava vivo, apenas levemente machucado. À luz de tais informações necessariamente fictícias, Napoleão deu suas ordens, que ou já tinham sido cumpridas antes de serem formuladas ou já não podiam ser cumpridas, e não foram.

Os marechais e os generais que se encontravam a uma distância menor do campo de batalha, mas que a exemplo de Napoleão não participavam da batalha propriamente dita e só de vez em quando se deixavam ficar ao alcance de uma bala, sem nada perguntar a Napoleão, tomavam suas decisões e davam suas ordens sobre de onde e para onde atirar, para onde a cavalaria devia galopar e para onde os infantes deviam marchar. Mas também as suas ordens, a exemplo das ordens de Napoleão, só eram cumpridas num grau ínfimo e muito raramente. Na maioria das vezes, ocorria o contrário do que tinha sido ordenado. Os soldados que recebiam ordens de ir para a frente eram alvo do fogo de metralha e fugiam; os soldados que recebiam ordens de ficar estacionados, de repente, ao ver surgir diante de si tropas russas que ninguém esperava, às vezes fugiam, outras vezes se precipitavam para a frente, e a cavalaria, sem receber ordens, se lançava no encalço de russos em fuga. Assim, dois regimentos de cavalaria galoparam para o outro lado da ravina de Semiónovskoie e, mal chegaram ao topo da encosta, deram meia-volta e galoparam para trás a toda a velocidade. Assim também se movimentavam os soldados da infantaria, às vezes correndo para um local totalmente distinto daquele para onde tinham ordens de ir. Todas as ordens sobre onde e quando deslocar os canhões, quando os soldados da infantaria deviam atirar, quando os cavalarianos deviam atropelar os infantes russos — todas essas ordens eram dadas pelos comandantes que estavam mais perto da batalha, nas fileiras, sem nada perguntar a Ney, a Davout e a Murat, muito menos a Napoleão. Eles não temiam nenhuma punição por não cumprir as ordens ou por darem ordens não autorizadas, porque numa batalha está em jogo aquilo que é mais precioso para um homem — a própria vida —, e às vezes parece que a salvação repousa numa corrida para trás, outras vezes numa corrida para a frente, e as pessoas que estão no calor da batalha agem conforme o estado de ânimo em que se encontram no momento. Na realidade, porém, todos aqueles movimentos para a frente e para trás não aliviavam nem alteravam a situação das tropas. Todas as suas fugas e os seus ataques quase não causavam baixas: as portadoras das baixas, das mortes e das mutilações eram as balas de canhão e de fuzil que voavam por toda parte naquela área onde as pessoas se movimentavam atabalhoadamente. Assim que aquelas pessoas deixavam para trás a área onde as balas de canhão e de fuzil voavam, seus superiores, que estavam na retaguarda, as punham em forma, submetiam-nas à disciplina e, sob a influência da disciplina, de novo os soldados entravam na zona de fogo, onde (sob a influência do temor da morte) de novo perdiam a disciplina e se moviam atabalhoadamente, ao sabor do estado de ânimo da multidão.

XXXIV

Os generais de Napoleão — Davout, Ney e Murat —, que se encontravam perto da zona de fogo e às vezes até penetravam lá, em diversas ocasiões fizeram entrar na zona de fogo imensas massas de tropas bem-ordenadas. Mas ao contrário do que havia ocorrido invariavelmente em todas as batalhas anteriores, em lugar da esperada notícia da fuga do inimigo, as massas de tropas bem-ordenadas retornavam de lá em multidões desnorteadas, assustadas. Os superiores de novo organizavam as tropas, mas o contingente era cada vez menor. Na metade do dia, Murat enviou a Napoleão o seu ajudante de ordens, requisitando reforços.

Napoleão estava sentado ao pé da colina e bebia o seu ponche, quando chegou a galope o ajudante de ordens de Murat com a garantia de que os russos seriam derrotados se sua alteza lhe desse mais uma divisão.

— Reforços? — disse Napoleão com severa surpresa, olhando para o bonito e jovem ajudante de ordens, de cabelos compridos, pretos e revoltos (a maneira como Murat também usava seus cabelos), como se não compreendesse suas palavras. “Reforços!”, pensou Napoleão. “Mas que mais reforços eles ainda estão querendo, quando têm nas mãos metade do exército para atacar uma ala fraca de russos sem fortificações?”

— Dites au roi de Naples — falou Napoleão com severidade — qu’il n’est pas midi et que je ne vois pas encore clair sur mon échiquier. Allez...82

O bonito e jovem ajudante de ordens de cabelos compridos, sem tirar a mão da espada, deu um suspiro profundo e partiu a galope outra vez para onde as pessoas estavam sendo mortas.

Napoleão levantou-se e, após mandar chamar Caulaincourt e Berthier, começou a conversar com eles sobre assuntos que nada tinham a ver com a batalha.

No meio da conversa, que estava começando a interessar a Napoleão, os olhos de Berthier se voltaram para um general que vinha galopando num cavalo suado, com sua comitiva, na direção da colina. Era Belliard. Desceu do cavalo, aproximou-se do imperador a passos ligeiros e, de maneira ousada, com voz alta, passou a demonstrar a necessidade de reforços. Deu sua palavra de honra e garantiu que os russos estariam perdidos, se o imperador enviasse mais uma divisão.

Napoleão encolheu os ombros, nada respondeu e continuou caminhando. Belliard passou a falar alto e de modo veemente com os generais da comitiva que o cercavam.

— O senhor é muito impetuoso, Belliard — disse Napoleão, aproximando-se de novo do general que havia chegado. — É fácil enganar-se no calor do fogo. Vá e observe bem, depois então volte para falar comigo.

Belliard mal teve tempo para sumir de vista quando, do outro lado, chegou a galope outro enviado do campo de batalha.

— Eh bien, qu’est-ce qu’il y a? 83 — disse Napoleão, no tom de voz de um homem irritado com os contratempos constantes.

— Sire, le prince... — começou o ajudante de ordens.

— Está pedindo reforços? — exclamou Napoleão com um gesto raivoso. O ajudante de ordens fez que sim com a cabeça e começou a explicar; mas o imperador lhe deu as costas, andou dois passos, parou, voltou e chamou Berthier. — Temos de mandar tropas de reserva — disse, abrindo um pouco os braços. — Quem é que vamos mandar para lá, o que o senhor acha? — perguntou para Berthier, aquele oison que j’ai fait aigle,84 como Napoleão o chamaria tempos depois.

— Senhor, por que não manda a divisão de Claparède? — disse Berthier, que sabia de cor todas as divisões, regimentos e batalhões.

Napoleão fez que sim com a cabeça.

O ajudante de ordens partiu a galope ao encontro da divisão de Claparède. Minutos depois, a jovem guarda, que estava atrás da colina, se pôs em movimento. Napoleão mirou em silêncio naquela direção.

— Não — virou-se de repente para Berthier —, não posso mandar Claparède. Mande a divisão de Friant — disse.

Embora não houvesse nenhuma vantagem em mandar a divisão de Friant em lugar da divisão de Claparède, e houvesse até uma óbvia inconveniência e um atraso em deter, naquela altura, a divisão de Claparède e mandar a de Friant, a ordem foi cumprida com rigor. Napoleão não via que, em relação às suas tropas, desempenhava o papel de um médico que apenas atrapalha com seus remédios — papel que ele mesmo percebia e condenava com toda a razão.

A divisão de Friant, como as outras, estava oculta na fumaça do campo de batalha. De diversos lados, continuaram a chegar ajudantes de ordens a galope e todos, como se tivessem combinado, diziam a mesma coisa. Todos pediam reforços, todos diziam que os russos resistiam em suas posições e faziam un feu d’enfer,85 no qual as tropas francesas se derretiam.

Napoleão estava sentado, pensativo, numa cadeira dobrável.

Sem comer nada desde a manhã, M. Beausset, que adorava viajar, veio até o imperador e respeitosamente tomou a liberdade de propor que sua alteza almoçasse.

— Espero que agora eu já possa congratular vossa alteza pela vitória — disse.

Napoleão, em silêncio, balançou a cabeça negativamente. M. Beausset, supondo que a negativa se referia à vitória, mas não ao almoço, permitiu-se comentar, de modo ao mesmo tempo jocoso e respeitoso, que não havia no mundo motivo para não almoçar, quando se podia fazê-lo.

— Allez-vous...86 — Napoleão falou de repente, com ar sombrio, e lhe deu as costas. Um sorriso beatífico, de remorso, de pesar e de admiração, acendeu-se no rosto do sr. Beausset, e ele se afastou a passos deslizantes na direção de outros generais.

Napoleão experimentava um sentimento opressivo, semelhante ao que experimenta um jogador que, depois de apostar loucamente seu dinheiro e ganhar sempre, de repente, na hora em que se detém para ponderar todas as possibilidades do jogo, sente que, quanto mais refletir sobre os seus lances, mais segura será sua derrota.

As tropas eram as mesmas, os generais eram os mesmos, os mesmos foram os preparativos, a mesma disposição, a mesma proclamation courte et énergique, ele era o mesmo, sabia disso, sabia que agora ele era até muito mais experiente e hábil do que antes, até o inimigo era o mesmo de Austerlitz e Friedland; contudo, por efeito de algum encanto, o terrível ímpeto do seu braço caía sem força.

De outras vezes, todos os antigos métodos lhe trouxeram infalivelmente o êxito: a concentração da bateria num só ponto, o ataque das reservas para romper as linhas, o ataque da cavalaria des hommes de fer87 — todos aqueles métodos já tinham sido aplicados, e não só não havia a vitória como de todos os lados chegavam as mesmas notícias sobre generais mortos e feridos, sobre a necessidade de reforços, sobre a impossibilidade de expulsar os russos e sobre a desordem das tropas.

Antes, após duas ou três ordens, duas ou três frases, marechais e ajudantes de ordens chegavam a galope com o rosto alegre para lhe dar os parabéns, anunciavam ter tomado como troféus um exército de prisioneiros, des faisceaux de drapeaux et d’aigles ennemis,88 canhões e comboios de carga, e Murat pedia apenas permissão para deixar a cavalaria saquear as carroças. Assim tinha sido em Lodi, Marengo, Arcola, Iena, Austerlitz, Wagram etc. etc. Agora algo estranho se passava com suas tropas.

Apesar da notícia da tomada das trincheiras, Napoleão viu que não estava ocorrendo, nem de longe, o mesmo que em suas batalhas anteriores. Via que o mesmo sentimento que ele experimentava também experimentavam todos à sua volta, pessoas com muita experiência em batalhas. Todos os rostos estavam abatidos, todos os olhares se evitavam mutuamente. Só Beausset não conseguia entender o significado do que estava acontecendo. O próprio Napoleão, com sua longa experiência de guerra, sabia muito bem o que significava uma batalha que, no decurso de oito horas, ainda não estava ganha pelas tropas atacantes, depois de terem sido empregadas todas as forças disponíveis. Sabia que aquilo era quase uma batalha perdida e que o menor acaso poderia agora — naquele tenso ponto de oscilação em que a batalha se encontrava — destruir a ele e suas tropas.

Quando Napoleão reconstituiu em pensamento toda a estranha campanha na Rússia, na qual não obteve vitória em nenhuma batalha, na qual em dois meses não foi tomada nenhuma bandeira, nenhum canhão, nenhum corpo de exército, quando olhava para o rosto disfarçadamente abatido das pessoas à sua volta e ouvia as mensagens de que os russos continuavam em suas posições — um sentimento terrível, semelhante ao que experimentava em sonhos, o dominou, e passaram pela sua cabeça todas as circunstâncias funestas que poderiam destruí-lo. Os russos podiam atacar a sua ala esquerda, podiam romper o seu centro, uma bala de canhão enlouquecida podia matá-lo. Tudo isso era possível. Em suas batalhas anteriores, ele só refletia sobre as circunstâncias do êxito, mas agora representava em pensamento uma inumerável quantidade de circunstâncias funestas e já aguardava todas elas. Sim, era como um sonho em que um homem imagina a agressão de um malfeitor e agita os braços e golpeia o malfeitor com uma força terrível, que sabe que deve aniquilá-lo, mas sente que seu braço, impotente e mole, tomba como um trapo, e o horror da destruição irremediável se apodera do homem indefeso.

A notícia de que os russos estavam atacando o flanco esquerdo do exército francês despertou em Napoleão esse horror. Em silêncio, ficou sentado ao pé da colina, na cadeira dobrável, de cabeça baixa e com os cotovelos apoiados nos joelhos. Berthier se aproximou e sugeriu que percorressem as linhas a cavalo a fim de verificar a situação do combate.

— O quê? O que o senhor está dizendo? — disse Napoleão. — Sim, mande trazer um cavalo.

Ele montou e seguiu para Semiónovskoie.

Dentro da fumaça de pólvora que se dissipava lentamente em toda aquela área por onde Napoleão passava — cavalos e gente jaziam em poças de sangue, isolados ou amontoados. Um horror tamanho, uma tal quantidade de mortos em uma área tão pequena, nunca tinha sido visto nem por Napoleão nem por seus generais. O barulho dos canhões, que havia dez horas não cessava e exauria os ouvidos, conferia um significado especial ao espetáculo (como a música de fundo numa representação de quadros vivos). Napoleão alcançou o topo de Semiónovskoie e através da fumaça avistou uma fileira de homens em uniformes de uma cor a que seus olhos não estavam habituados. Eram os russos.

Em fileiras cerradas, os russos mantinham-se atrás de Semiónovskoie, e da colina seus canhões não paravam de roncar e fumegavam em suas linhas. Já não havia batalha. Havia uma matança contínua, que não podia ser guiada por ninguém, nem por russos nem por franceses. Napoleão freou o cavalo e caiu outra vez no silêncio pensativo do qual Berthier o havia retirado; Napoleão não podia interromper o combate que se passava à sua frente e à sua volta e que acreditavam ser comandado por ele, que acreditavam estar sujeito a ele, e pela primeira vez, em razão do insucesso, o combate lhe pareceu desnecessário e horroroso.

Um dos generais que vieram para junto de Napoleão tomou a liberdade de lhe sugerir que a velha guarda entrasse no combate. Ney e Berthier, que estavam ao lado de Napoleão, trocaram olhares e sorriram com desdém da sugestão insensata daquele general.

Napoleão baixou a cabeça e ficou um longo tempo em silêncio.

— À huit cents lieus de la France je ne ferai pas démolir ma garde 89 — disse e, virando o cavalo, seguiu para trás, rumo a Chevardinó.

XXXV

Kutúzov estava sentado, a cabeça grisalha inclinada, o corpo pesado afundado no banco forrado com um tapete, o mesmo lugar onde Pierre o vira naquela manhã. Não dava nenhuma ordem, apenas aceitava ou recusava o que lhe sugeriam.

— Sim, sim, faça isso — respondia a diversas sugestões. — Sim, sim, vão, meus caros, verifiquem — dirigia-se ele ora a um, ora a outro dos que estavam perto; ou: — Não, não precisa, é melhor esperar — dizia. Escutava com atenção as mensagens que lhe traziam, dava ordens quando os subordinados exigiam; mas, ao ouvir as mensagens, ele parecia não se interessar pelo sentido das palavras que lhe diziam, e sim por alguma outra coisa, pela expressão do rosto, pelo tom da fala dos informantes. Com a experiência de longos anos de guerra, Kutúzov sabia e, com a mente dos idosos, compreendia que era impossível para um homem comandar centenas de milhares de pessoas que lutavam contra a morte e sabia que o destino de uma batalha era decidido não pelas ordens do comandante em chefe, não pelo lugar onde estavam as tropas, não pela quantidade de canhões e de pessoas mortas, mas por aquela força impalpável chamada espírito da tropa, e Kutúzov acompanhava essa força, comandava à luz dela, na medida do possível.

A expressão do rosto de Kutúzov era de uma atenção calma, concentrada, e de uma tensão que só a custo superava o cansaço do corpo velho e fraco.

Às onze horas da manhã, trouxeram-lhe a notícia de que as trincheiras tomadas pelos franceses tinham sido retomadas, mas que o príncipe Bagration tinha sido ferido. Kutúzov soltou uma exclamação e balançou a cabeça.

— Vá ao encontro de Piotr Ivánovitch90 e saiba em detalhes como ele está — disse a um dos ajudantes de ordens e, depois disso, voltou-se para o duque de Württemberg, que estava atrás dele: — sua excelência faria a bondade de assumir o comando do primeiro exército?

Logo depois que o duque partiu, quando ele ainda não havia tido tempo de chegar a Semiónovskoie, um ajudante de ordens do duque voltou e comunicou ao excelentíssimo que o duque estava pedindo mais tropas.

Kutúzov fez cara feia e enviou para Dokhtúrov uma ordem para assumir o comando do primeiro exército e pediu que o duque voltasse, pois, disse ele, não podia dispensar sua companhia num momento tão importante. Quando chegou a notícia de que Murat fora feito prisioneiro,91 e os membros do Estado-Maior cumprimentaram Kutúzov, ele sorriu.

— Esperem, senhores — disse. — A batalha está vencida, e na captura de Murat não há nada de extraordinário. Mas é melhor esperar antes de comemorarmos. — Todavia enviou um ajudante de ordens para transmitir aquela notícia às tropas.

Quando Cherbínin veio a galope do flanco esquerdo com a notícia da tomada das trincheiras e de Semiónovskoie pelos franceses, Kutúzov, pelos sons que vinham do campo de batalha e pelo rosto de Cherbínin, já havia adivinhado que as notícias não eram boas e se levantou como que para esquentar as pernas, tomou Cherbínin pelo braço e levou-o para o lado.

— Vá até lá, meu caro — disse para Ermólov. — Veja se não se pode fazer alguma coisa.

Kutúzov estava em Górki, no centro da posição das tropas russas. O ataque desfechado por Napoleão contra o nosso flanco esquerdo foi repelido várias vezes. No centro, os franceses não tinham se deslocado além de Borodinó. Do flanco esquerdo, a cavalaria de Uvárov forçou os franceses a fugir.

Pouco antes das três horas, os ataques dos franceses cessaram. No rosto de todos os soldados que vinham do campo de batalha e dos que se achavam à sua volta, Kutúzov lia a expressão de uma tensão que havia alcançado o mais alto grau. Kutúzov estava satisfeito com o sucesso do dia, acima das expectativas. Mas as forças físicas estavam abandonando o velho. Sua cabeça baixava diversas vezes, profundamente, como se caísse, e ele cochilou. Trouxeram o seu almoço.

Woltzogen, um ajudante de ordens do tsar, o mesmo que havia passado pelo príncipe Andrei e dito que era preciso que a guerra im Raum verlegen, e que Bagration tanto detestava, aproximou-se de Kutúzov na hora do almoço. Woltzogen veio a mando de Barclay com um comunicado sobre o andamento dos combates no flanco esquerdo. O sensato Barclay de Tolly, vendo a multidão de feridos em retirada e a desordenada retaguarda do exército, ponderou todas as circunstâncias do combate, concluiu que a batalha estava perdida e, com essa notícia, enviou o seu favorito ao comandante em chefe.

Kutúzov mastigava com dificuldade um pedaço de galinha assada e fitou Woltzogen com olhos alegres que se estreitavam.

Woltzogen, movendo as pernas de modo displicente, com um meio sorriso de desprezo nos lábios, aproximou-se de Kutúzov, com a mão tocando ligeiramente a pala da barretina.

Woltzogen tratava o excelentíssimo com certa negligência afetada, cujo propósito era mostrar que ele, como um militar de educação elevada, deixava para os russos a idolatria daquele velho inútil, enquanto ele mesmo sabia com quem estava lidando. “Der alte Herr (como chamavam Kutúzov no seu círculo de alemães) macht sich ganz bequem”,92 pensou Woltzogen e, depois de olhar com severidade para os pratos que estavam na frente de Kutúzov, começou a relatar para o velho senhor a situação no flanco esquerdo da maneira como Barclay lhe havia ordenado e como ele mesmo a encarava e compreendia.

— Todos os pontos da nossa posição estão nas mãos do inimigo, e não há meios de retaliar, pois não há tropas; eles fugiram, e não há possibilidade de detê-los — informou.

Kutúzov parou de mastigar, admirado, como se não compreendesse o que estavam dizendo, e fitou os olhos de Woltzogen. Ao perceber a perturbação de des alten Herrn, Woltzogen falou com um sorriso:

— Não me julguei no direito de esconder do excelentíssimo aquilo que vi... As tropas estão em completa desordem...

— O senhor viu? O senhor viu?... — gritou Kutúzov, de sobrancelhas franzidas, levantando-se rapidamente e avançando na direção de Woltzogen. — Como o senhor... como o senhor se atreve?... — gritou, fazendo gestos de ameaça com as mãos trêmulas e sufocando. — Como o senhor se atreve, prezado senhor, a dizer isso para mim? O senhor não sabe de nada. Vá dizer da minha parte ao general Barclay que seu comunicado é falso e que o verdadeiro rumo da batalha é mais bem conhecido por mim, comandante em chefe, do que por ele.

Woltzogen quis replicar algo, mas Kutúzov o interrompeu.

— O inimigo foi repelido no flanco esquerdo e batido no direito. Se o senhor enxergou mal, prezado senhor, não se permita dizer aquilo que não sabe. Tenha a bondade de ir ao encontro do general Barclay e lhe dizer que tenho a firme intenção de atacar o inimigo amanhã — disse Kutúzov com severidade. Todos ficaram em silêncio e ouvia-se apenas a respiração pesada do velho general ofegante. — Foram batidos em toda parte, pelo que agradeço a Deus e às nossas bravas tropas. O inimigo foi derrotado, e amanhã vamos enxotá-lo da terra sagrada da Rússia — disse Kutúzov, fazendo o sinal da cruz; e de repente soluçou com as lágrimas que lhe acudiram. Woltzogen, encolhendo os ombros e torcendo os lábios, afastou-se em silêncio para o lado, surpreso über diese Eingenommenheit des alten Herrn.93

— Pronto, aqui está o meu herói — disse Kutúzov para um general bonito, gorducho, de cabelo preto, que naquele momento vinha subindo a colina. Era Raiévski, que havia passado o dia inteiro no ponto principal do campo de Borodinó.

Raiévski comunicou que as tropas continuavam firmes em suas posições e que os franceses não se atreviam mais a atacar. Ao ouvir isso, Kutúzov disse, em francês:

— Vous ne pensez donc pas comme les autres que nous sommes obligés de nous retirer?94

— Au contraire, Votre Altesse, dans les affaires indécises, c’est toujours le plus opiniâtre qui reste victorieux — respondeu Raiévski — et mon opinion...95

— Kaissárov! — gritou Kutúzov para o seu ajudante de ordens. — Venha cá e escreva a ordem do dia para amanhã. E você — voltou-se para um outro —, percorra as linhas e comunique que amanhã vamos atacar.

Enquanto transcorria a conversa com Raiévski e o ditado da ordem do dia, Woltzogen voltou de onde estava Barclay e comunicou que o general Barclay de Tolly desejava uma confirmação escrita da ordem dada pelo marechal de campo.

Kutúzov, sem olhar para Woltzogen, ordenou que redigissem a ordem que o ex-comandante em chefe, de forma bastante compreensível, desejava ter por escrito a fim de evitar uma responsabilidade pessoal.

E, por nexos indefiníveis e misteriosos que sustentam em todo um exército o mesmo estado de ânimo, o chamado espírito do exército, que constitui o nervo principal da guerra, as palavras de Kutúzov, sua ordem para a batalha no dia seguinte, foram transmitidas ao mesmo tempo de uma ponta a outra das tropas.

Longe, não eram as mesmas palavras, não era a mesma ordem que se transmitiam nos últimos elos dessa cadeia. Nos relatos transmitidos de boca a boca nos diversos confins do exército, nada havia de semelhante ao que Kutúzov dizia; mas o sentido de suas palavras foi comunicado em toda parte, porque o que Kutúzov dizia provinha não de elucubrações astutas, mas de um sentimento que havia na alma do comandante em chefe, assim como na alma de todos os russos.

E, ao saber que no dia seguinte iríamos atacar o inimigo, ao receber das esferas superiores do Exército a confirmação daquilo em que desejavam acreditar, aquela gente esgotada, hesitante, sentiu-se consolada e animada.

XXXVI

O regimento do príncipe Andrei estava nas forças de reserva, que até pouco antes das duas horas se encontravam inativas atrás de Semiónovskoie, sob pesado fogo de artilharia. Pouco antes das duas horas, o regimento, que já havia perdido mais de duzentos homens, foi deslocado para a frente, por um campo de aveia pisoteada, na área entre Semiónovskoie e a bateria da colina, onde naquele dia foram mortos milhares de pessoas e para onde, pouco antes das duas horas, foi dirigido o fogo concentrado e intenso de várias centenas de canhões inimigos.

Sem recuar da posição e sem disparar nem um cartucho, o regimento perdeu ali um terço do seu contingente. Na frente e sobretudo no lado direito, em meio à fumaça que não se dissipava, os canhões retumbavam, e de misteriosas zonas de fumaça que obscureciam toda a área à frente, com um zunido ligeiro e sibilante, sem pausa, voavam balas de canhão, e granadas assoviavam lentamente. De vez em quando, como que para dar um descanso, passavam quinze minutos em que todas as balas de canhão e granadas passavam voando por cima dele, mas outras vezes, em poucos minutos, vários homens eram tomados do regimento, e mortos eram removidos, e feridos eram carregados sem cessar.

A cada novo golpe, menos possibilidade de vida restava para os que ainda não tinham sido mortos. O regimento se mantinha em colunas de batalhões, dispostas a intervalos de trezentos passos, mas, apesar disso, todos no regimento se encontravam sob o efeito de um mesmo estado de ânimo. Todos no regimento estavam igualmente calados e soturnos. Raramente se ouvia uma conversa entre as fileiras, mas a conversa sempre silenciava assim que se ouvia o impacto de uma bala de canhão e o grito: “Padiola!”. Grande parte do tempo, por ordens dos superiores, os homens do regimento ficavam sentados no chão. Um tirava a barretina, desfazia minuciosamente os nós e amarrava de novo os cordões; outro espalhava barro seco entre as mãos e friccionava a baioneta; outro afrouxava o cinto e ficava mexendo na fivela; outro esticava e enrolava de novo as perneiras e calçava a bota outra vez. Alguns construíam abrigos com terra do campo lavrado ou trançavam cestinhos com palhas do restolho. Todos pareciam inteiramente absortos naqueles afazeres. Quando pessoas eram feridas e mortas, quando passavam as padiolas, quando os nossos recuavam, quando em meio à fumaça se viam as grandes massas do inimigo, ninguém prestava a menor atenção em tais circunstâncias. Quando passavam à frente a artilharia e a cavalaria e se viam os movimentos dos nossos infantes, ouviam-se de todos os lados comentários elogiosos. Porém mereciam as maiores atenções acontecimentos totalmente marginais, sem nenhuma relação com a batalha. Como se a atenção daquelas pessoas moralmente esgotadas repousasse em tais acontecimentos rotineiros, triviais. Uma bateria de artilharia passou na frente do regimento. Numa das carroças de munição da artilharia, um cavalo enrolou-se nos arreios. “Ei, olhe o cavalinho!... Dê um jeito! Vai cair... Eh, não estão vendo?...”, gritavam a uma só voz de todas as fileiras do regimento. De outra vez, a atenção geral se dirigiu para um pequeno cachorro marrom que só Deus sabe de onde tinha saído e que, com o rabo erguido e firme, correu a passos nervosos pelo meio das fileiras e de repente, por causa de uma bala de canhão que assoviou e caiu ali perto, encolheu o rabo e fugiu para o lado. Em todo o regimento irromperam gargalhadas e gritos. Mas distrações desse tipo duravam só alguns minutos, e as pessoas já estavam sem comer e sem agir havia oito horas, sob o incessante horror da morte, e rostos pálidos e franzidos ficavam cada vez mais pálidos e franzidos.

O príncipe Andrei, exatamente como todos no regimento, pálido e de rosto franzido, andava para cima e para baixo por um prado junto a um campo de aveia, de uma ponta à outra, com as mãos cruzadas nas costas e a cabeça baixa. Ele não tinha o que fazer nem o que ordenar. Tudo se resolvia sozinho. Os mortos eram retirados do front, os feridos eram carregados, as fileiras eram fechadas. Se alguns soldados corriam, deixando suas posições, logo depois voltavam às pressas. De início, o príncipe Andrei, tomando como seu dever estimular a bravura dos soldados e lhes dar exemplo, passava caminhando entre as fileiras; mas depois se convenceu de que não tinha nada para ensinar a eles. Todas as forças da sua alma, assim como em todos os soldados, estavam inconscientemente dirigidas apenas para evitar a contemplação do horror da situação em que estavam. Ele caminhava pelo prado, arrastando os pés, arrepiando a grama e observando a poeira que cobria suas botas; ora andava a passos largos, tentando pisar nas pegadas deixadas pelos ceifeiros, ora contava os próprios passos e calculava quantas vezes precisava andar de uma ponta à outra para percorrer uma versta, ora arrancava flores dos absintos que cresciam na ponta do prado, esfarelava as flores na palma das mãos e sentia o cheiro forte e amargo. De toda a atividade de pensamento da véspera, não restava nada. Não estava pensando em nada. Com o ouvido cansado, escutava sempre os mesmos sons, distinguia o silvo das balas em pleno voo dos estampidos dos tiros, observava os rostos familiares dos homens do primeiro batalhão e esperava. “Lá está ela... vem de novo na nossa direção!”, pensava, escutando o assovio de algo que se aproximava, vindo da área encoberta pela fumaça. “Uma, outra! E mais uma! Caiu!...” Detinha-se e olhava para as fileiras. “Não, escaparam. Mas esta agora acertou.” E recomeçava a andar, tentava dar passos maiores para chegar na ponta com dezesseis passos.

Assovio e baque! A cinco passos dele uma bala de canhão rompeu o solo seco e desapareceu na terra. Um frio involuntário correu pelas suas costas. De novo olhou para as fileiras. Provavelmente muitos tinham sido feitos em pedaços; uma grande multidão se aglomerou no segundo batalhão.

— Senhor ajudante de ordens — gritou ele. — Ordene que não se aglomerem. — O ajudante de ordens, depois de cumprir a ordem, aproximou-se do príncipe Andrei. Do outro lado, veio a cavalo o comandante do batalhão.

— Cuidado! — ouviu-se o grito assustado de um soldado e, como um passarinho assovia num voo ligeiro e pousa na terra, a dois passos do príncipe Andrei, perto do cavalo do comandante do batalhão, uma granada caiu sem fazer muito barulho. O cavalo, primeiro, sem se perguntar se era bom ou ruim expressar medo, relinchou, resfolegou, por pouco não derrubou o major, e galopou para o lado. O horror do cavalo contagiou as pessoas.

— Deite! — gritou a voz do ajudante de ordens, que se jogou na terra. O príncipe Andrei ficou indeciso. A granada, como um pião, fumegando, rodopiava entre ele e o ajudante de ordens deitado, na beira do campo lavrado e do prado, perto de um arbusto de absinto.

“Será que isto é a morte?”, pensou o príncipe Andrei enquanto, com um olhar totalmente novo, invejoso, fitava o capim, o absinto e o jato de fumaça que saía da granada preta que rodava. “Não posso, não quero morrer, eu amo a vida, amo este capim, a terra, o ar...” Pensou isso e ao mesmo tempo lembrou que estavam olhando para ele.

— Que vergonha, senhor oficial! — disse para o ajudante de ordens. — Que... — Não terminou de falar. Ao mesmo tempo ouviu-se uma explosão, um assovio de estilhaços, semelhante a uma janela espatifada, um cheiro asfixiante de pólvora, e o príncipe Andrei foi lançado para o lado e, com o braço para cima, caiu deitado sobre o peito.

Vários oficiais correram para perto dele. Do lado direito da barriga, formava-se uma grande mancha de sangue.

Os milicianos das padiolas foram chamados e ficaram atrás dos oficiais. O príncipe Andrei estava deitado sobre o peito, de cara para o capim, e respirava pesadamente, resfolegante.

— Ora, por que estão parados?, venham logo!

Os mujiques se aproximaram, seguraram-no pelos ombros e pelas pernas, mas ele soltou um gemido de dar pena, os mujiques se entreolharam e o baixaram à terra outra vez.

— Peguem, carreguem, tanto faz! — gritou uma voz. Pegaram-no outra vez pelos ombros e colocaram-no na padiola.

— Ah, meu Deus! Meu Deus! O que é isso?... A barriga! É o fim! Ah, meu Deus! — ouviram-se vozes entre os oficiais. — Ela passou tirando um fininho da minha orelha — disse o ajudante de ordens. Os mujiques apoiaram a padiola sobre os ombros e partiram às pressas pela mesma trilha que já haviam pisado, rumo ao hospital de campanha.

— Acertem o passo!... Eh!... Esses mujiques! — gritou um oficial, retendo pelos ombros os mujiques, que andavam de forma irregular e sacudiam a padiola.

— Cuidado aí, hein, ô Khviédor, ô Khviédor — disse o mujique que ia na frente.

— Assim, isso mesmo, muito bom — disse com alegria o de trás, acertando o passo.

— É vossa excelência? Hã? O príncipe? — falou com voz trêmula Timókhin, que se aproximou e deu uma olhada na padiola.

O príncipe Andrei abriu os olhos e da padiola, onde sua cabeça jazia bem funda, olhou para quem havia falado e depois fechou as pálpebras.

Os milicianos levaram o príncipe Andrei para a floresta, onde estavam as carroças de transporte de feridos e onde ficava o hospital de campanha. O hospital de campanha consistia em três tendas ampliadas, com as abas levantadas, na orla de um bosque de bétulas. No bosque estavam as carroças para feridos e os cavalos. Os cavalos comiam aveia em sacos presos à cabeça enquanto pardais desciam voando na sua direção e bicavam os grãos caídos. Os pardais, ao sentir o cheiro de sangue, voavam para as bétulas, grasnando impacientes. Em volta das tendas, numa área de mais de duas dessiatinas, sentadas, deitadas, em pé, havia pessoas ensanguentadas em roupas diversas. Em torno dos feridos, com o rosto abatido e atento, havia uma multidão de soldados padioleiros, que os oficiais incumbidos de manter a ordem tentavam em vão afastar dali. Sem obedecer aos oficiais, os soldados continuavam parados, apoiados nas padiolas e, como se tentassem compreender o significado difícil do espetáculo, observavam fixamente o que se passava à sua frente. Das tendas, vinham ora clamores irados, ora lamentos queixosos. De vez em quando enfermeiros saíam de lá correndo para buscar água e indicavam os que deviam ser trazidos para dentro. Os feridos, esperando pela sua vez junto às tendas, ofegavam, resmungavam, choravam, gritavam, praguejavam, pediam vodca. Alguns deliravam. Os padioleiros do príncipe Andrei, por ser ele comandante de regimento, passaram na frente dos feridos ainda sem curativos, levaram-no até bem junto de uma das tendas e ali pararam, à espera de ordens. O príncipe Andrei abriu os olhos e durante muito tempo não conseguiu compreender o que se passava à sua volta. O prado, o absinto, o campo lavrado, a bolinha preta rodopiante e sua violenta explosão de amor à vida voltaram à sua memória. A dois passos, falando alto e chamando a atenção geral para si, apoiado numa forquilha, com a cabeça enfaixada, estava um sargento bonito, alto, de cabelo preto. Tinha sido ferido na cabeça e na perna pelas balas. Em volta dele, ouvindo suas palavras com avidez, reunia-se uma multidão de feridos e padioleiros.

— A gente pôs eles para correr de lá de um jeito que deixaram tudo para trás, até o rei deles largaram para trás! — gritava o soldado olhando à sua volta com os olhos pretos e ardentes, que brilhavam. — Era só mandar as reservas naquela mesma hora que aí, meus irmãos, não tinha sobrado nenhum, porque, acreditem no que estou dizendo...

O príncipe Andrei, como todos os que estavam perto do narrador, olhava para ele com um olhar radiante e experimentava um sentimento consolador. “Mas, afinal, agora não é tudo indiferente?”, pensou ele. “O que existirá lá e o que existia aqui? Por que é tão penoso para mim separar-me da vida? Havia nesta vida algo que não entendi e que não entendo.”

XXXVII

Um dos médicos, com um avental ensanguentado e mãos pequenas e ensanguentadas, numa das quais trazia um charuto entre o mindinho e o polegar (para não sujá-lo), saiu da tenda. O médico levantou a cabeça e pôs-se a olhar para os lados, mas por cima dos feridos. Era evidente que queria descansar um pouco. Depois de virar a cabeça por algum tempo para a esquerda e para a direita, deu um suspiro e baixou os olhos.

— Está bem, num instante — respondeu a um enfermeiro que lhe havia apontado o príncipe Andrei, e mandou levá-lo para dentro da tenda.

Na multidão de feridos que esperavam socorro, ergueu-se um murmúrio.

— Pelo visto também no outro mundo só tem lugar para os senhores — exclamou um deles.

Levaram o príncipe Andrei para dentro e o colocaram numa mesa que acabara de ser limpa e na qual o enfermeiro estava lavando alguma coisa. O príncipe Andrei não conseguia distinguir o que havia na tenda. Gemidos queixosos de todos os lados, a dor torturante no fêmur, na barriga e nas costas tomava sua atenção. Tudo o que via ao redor se fundia numa única impressão geral de um corpo humano nu, ensanguentado, que parecia encher por completo aquela tenda baixa, assim como algumas semanas antes, num dia quente de agosto, aquele mesmo corpo enchera o poço lamacento na estrada de Smolensk. Sim, era o mesmo corpo, a mesma chair à canon, cujo aspecto já então, como numa previsão do que agora acontecia, despertara horror no príncipe Andrei.

Na tenda havia três mesas. Duas estavam ocupadas, na terceira puseram o príncipe Andrei. Deixaram-no sozinho algum tempo, e ele não pôde deixar de ver o que faziam nas outras duas mesas. Na mesa mais próxima, estava sentado um tártaro, provavelmente um cossaco — a julgar pelo uniforme, largado ao seu lado. Quatro soldados o seguravam. Um médico de óculos cortava alguma coisa nas suas costas musculosas e morenas.

— Ui, ui, ui!... — parecia rosnar o cossaco, e de repente, após levantar o rosto moreno, de maçãs salientes e nariz chato, pondo à mostra os dentes brancos, começou a se contorcer, a se debater e a berrar com guinchos estridentes, cortantes e longos. Na outra mesa, perto da qual se aglomerava muita gente, um homem grande, corpulento, estava deitado de costas, com a cabeça tombada para trás (os cabelos encaracolados, a cor do cabelo e a forma da cabeça pareceram estranhamente familiares ao príncipe Andrei). Alguns enfermeiros punham seu peso sobre o peito daquele homem e assim o mantinham preso. Uma perna branca, grande e carnuda sacudia-se o tempo todo, de modo rápido e constante, em palpitações febris. O homem soluçava e sufocava convulsivamente. Dois médicos calados — um estava pálido e tremia — faziam algo sobre a outra perna daquele homem, vermelha. O médico de óculos terminou de cuidar do tártaro, no qual vestiram às pressas um capote, e esfregando as mãos aproximou-se do príncipe Andrei.

Lançou um olhar para o rosto do príncipe Andrei e virou-se às pressas.

— Tirem a roupa dele! O que estão esperando? — gritou zangado para os enfermeiros.

O príncipe Andrei lembrou-se da infância mais remota, quando o enfermeiro, com mãos afobadas e de mangas arregaçadas, desabotoou sua roupa e o despiu. O médico inclinou-se até chegar bem perto da ferida, apalpou-a e deu um suspiro profundo. Depois fez um sinal para alguém. A dor torturante dentro da barriga obrigou o príncipe Andrei a perder a consciência. Quando voltou a si, os ossos partidos do fêmur tinham sido retirados, pedaços de carne tinham sido cortados, e a ferida estava envolta por uma atadura. Respingaram água no seu rosto. Assim que o príncipe Andrei abriu os olhos, o médico inclinou-se sobre ele, beijou-o em silêncio nos lábios e afastou-se às pressas.

Depois dos sofrimentos que suportara, o príncipe Andrei sentia um bem-estar que havia muito não experimentava. Todos os melhores e mais felizes momentos da sua vida, em especial da infância mais remota, quando trocavam sua roupa e o acomodavam na cama pequena, quando a babá cantava para ele dormir, quando enterrava a cabeça no travesseiro e se sentia feliz só com a consciência de estar vivo, surgiam na sua imaginação não como algo do passado, mas como a realidade.

Em torno do ferido ao seu lado, cuja cabeça vista de perfil parecia conhecida do príncipe Andrei, os médicos se agitavam; eles o levantavam e o acalmavam.

— Mostrem-me... Aaaaah! Ah! Aaaaah! — ouvia-se o seu lamento assustado, entrecortado por gemidos e subjugado pelo sofrimento. Ao ouvir aqueles gemidos, o príncipe Andrei quis chorar. Ou porque estava morrendo sem glória, ou porque era triste para ele separar-se da vida, deixar para trás aquelas recordações de infância irrecuperáveis, ou porque estava sofrendo, os outros estavam sofrendo e aquele homem gemia de modo tão triste à sua frente, ele tinha vontade de chorar com lágrimas de criança, lágrimas boas, quase alegres.

Mostraram para o ferido a perna amputada, com sangue coagulado e ainda com a bota calçada.

— Ah! Aaaah! — o ferido se pôs a soluçar como uma mulher. O médico que estava na frente do ferido, encobrindo o seu rosto, afastou-se.

— Meu Deus! O que é isso? Por que ele está aqui? — disse o príncipe Andrei para si.

No desgraçado, choroso e debilitado de quem haviam acabado de tirar uma perna, ele reconheceu Anatole Kuráguin. Seguraram Anatole pelos braços e lhe ofereceram água num copo, cuja borda seus lábios trêmulos e inchados não conseguiam alcançar. Anatole gemia profundamente. “Sim, é ele mesmo; sim, é o homem ligado a mim de modo tão próximo e tão penoso”, pensou o príncipe Andrei, ainda sem compreender claramente o que se passava na sua frente. “Em que consiste o laço entre esse homem e a minha infância, a minha vida?”, perguntou para si, sem achar a resposta. E de repente lhe veio uma lembrança nova, inesperada, de um mundo infantil, puro e amoroso. Lembrou-se de Natacha tal como a vira pela primeira vez, no baile de 1810, com o pescoço comprido e os braços finos, o rosto assustado, feliz, pronto para se entusiasmar, e o amor e a ternura por ela, ainda mais fortes e mais vivos do que nunca, despertaram em sua alma. Lembrou-se agora do laço que havia entre ele e aquele homem que, entre as lágrimas que inundavam os olhos inchados, o fitava de modo turvo. O príncipe Andrei lembrou-se de tudo, e a compaixão veemente e o amor por aquele homem encheram o seu coração feliz.

O príncipe Andrei não conseguiu mais se conter e começou a chorar com lágrimas ternas e amorosas, pelas pessoas, por si mesmo, pelas ilusões delas e por suas próprias ilusões.

“A compaixão, o amor por nossos irmãos, pelas pessoas que nos amam, o amor por aqueles que nos odeiam, o amor pelos inimigos — sim, esse amor que Deus preconizou na Terra, esse amor que a princesa Mária me ensinou e que eu não compreendia; é disso que me arrependo na vida, é isso o que eu faria se ainda ficasse, se eu ainda vivesse. Mas agora já é tarde. Sei disso!”

XXXVIII

O aspecto terrível do campo de batalha, coberto de cadáveres e de feridos, somado ao peso que sentia na cabeça, às notícias de que vinte generais conhecidos seus tinham sido mortos ou feridos e à consciência da fraqueza de seu braço antes poderoso produziram uma impressão inesperada em Napoleão, que em geral gostava de contemplar os feridos e os mortos, pondo à prova desse modo a sua força de espírito (assim ele pensava). Naquele dia, o aspecto terrível do campo de batalha derrotou a força de espírito, em que ele supunha estar seu mérito e sua grandeza. Afastou-se às pressas do campo de batalha e voltou para a colina de Chevardinó. Amarelo, inchado, pesado, com olhos turvos, nariz vermelho e voz rouca, Napoleão ficou sentado na cadeira dobrável, ouvindo sem querer os sons dos tiros, e não tirava os olhos do chão. Com uma aflição doentia, aguardava o fim daquela batalha, de que ele se considerava a causa, mas à qual não era capaz de pôr um fim. Um sentimento humano e pessoal prevaleceu por um momento sobre a miragem artificial da vida que, desde muito tempo, o dominava. Napoleão remeteu a si mesmo aos sofrimentos e à morte que via no campo de batalha. O peso na cabeça e no peito o fez lembrar que os sofrimentos e a morte eram possíveis também para ele. E naquele momento não quis para si nem Moscou, nem a vitória, nem a glória. (Para que precisava de mais glória?) Agora só desejava repouso, tranquilidade e liberdade. No entanto, quando estivera no topo de Semiónovskoie, o comandante da artilharia lhe sugerira levar algumas baterias para aquele cume a fim de reforçar o fogo contra as tropas russas concentradas à frente de Kniazkóvo. Napoleão concordou e ordenou que lhe trouxessem notícias sobre o resultado alcançado por aquelas baterias.

Um ajudante de ordens veio avisar que, por ordem do imperador, duzentos canhões tinham sido apontados contra os russos, mas que os russos apesar disso continuavam em sua posição.

— Nosso fogo despedaça as suas fileiras, mas eles resistem — disse o ajudante de ordens.

— Ils en veulent encore!...96 — disse Napoleão com voz rouca.

— Sire? — repetiu o ajudante de ordens, que não tinha ouvido.

— Ils en veulent encore — rosnou Napoleão com voz áspera e de sobrancelhas franzidas —, donnez-leur-en.97

Mesmo sem a sua ordem, cumpria-se aquilo que Napoleão queria, e ele só dava ordens porque achava que era isso o que esperavam dele. E outra vez foi levado para o seu mundo artificial de miragens de grandezas indefinidas, e de novo (como um cavalo atrelado à roda de uma engrenagem imagina que faz algo para si) Napoleão se pôs resignadamente a desempenhar o papel triste, cruel, penoso e desumano que lhe fora destinado.

E não foi a única vez nem o único dia em que ficaram obscurecidas a razão e a consciência daquele homem, sobre quem pesava mais do que sobre qualquer outro participante da batalha toda a carga do que havia acontecido; no entanto, até o fim da vida, ele nunca foi capaz de entender o bem, a beleza, a verdade, nem de entender o sentido de suas ações, que eram demasiado contrárias ao bem e à verdade, demasiado distantes de tudo o que é humano, para que ele pudesse compreender seu significado. Napoleão não conseguia renunciar a suas ações, enaltecidas em meio mundo, e por isso tinha de renunciar à verdade, ao bem e a tudo o que é humano.

Aquele não foi o único dia em que Napoleão, ao percorrer o campo de batalha, coalhado de mortos e de pessoas mutiladas (por causa da sua vontade, segundo ele pensava), calculou, ao olhar para aquelas pessoas, quantos russos havia para cada francês e, enganando-se, encontrou motivo para regozijar-se ao ver que havia cinco russos para um francês. Aquele não foi o único dia em que escreveu uma carta para Paris dizendo que le champ de bataille a été superbe,98 porque nele havia cinquenta mil cadáveres; mas também na ilha de Santa Helena, no silêncio da solidão, onde ele dizia ter a intenção de dedicar seu lazer à narração dos feitos grandiosos que realizara, escreveu:

La guerre de Russie eût dû être la plus populaire des temps modernes: c’était celle du bon sens et des vrais intérêts, celle du repos et de la sécurité de tous; elle était purement pacifique et conservatrice.

C’était pour la grande cause, la fin des hasards et le commencement de la sécurité. Un nouvel horizon, de nouveaux travaux allaient se dérouler, tout plein du bien-être et de la prospérité de tous. Le système européen se trouvait fondé; il n’était plus question que de l’organiser.

Satisfait sur ces grands points et tranquille partout, j’aurais eu aussi mon congrès et ma sainte-alliance. Ce sont des idées qu’on m’a volées. Dans cette réunion de grands souverains, nous eussions traité de nos intérêts en famille et compté de clerc à maître avec les peuples.

L’Europe n’eût bientôt fait de la sorte véritablement qu’un même peuple, et chacun, en voyageant partout, se fût trouvé toujours dans la patrie commune. J’eusse demandé toutes les rivières navigables pour tous, la communauté des mers, et que les grandes armées permanentes fussent réduites désormais à la seule garde des souverains.

De retour en France, au sein de la patrie, grande, forte, magnifique, tranquille, glorieuse, j’eusse proclamé ses limites immuables; toute guerre future purement défensive; tout agrandissement nouveau, antinational. J’eusse associé mon fils à l’empire; ma dictature eût fini, et son règne constitutionnel eût commencé...

Paris eût été la capitale du monde, et les Français l’envie des nations!...

Mes loisirs ensuite et mes vieux jours eussent été consacrés, en compagnie de l’impératrice et durant l’apprentissage royal de mon fils, à visiter lentement et en vrai couple campagnard, avec nos propres chevaux, tous les recoins de l’empire, recevant les plaintes, redressant les torts, semant de toutes parts et partout les monuments et les bienfaits.99

Destinado pela Providência ao papel lamentável e compulsório de verdugo dos povos, Napoleão se persuadia de que o objetivo de suas ações era o bem dos povos e de que ele podia governar o destino de milhões de pessoas e, por meio do poder, fazer boas ações!

“Des 400000 hommes qui passèrent la Vistule”, escreveu ele sobre a guerra russa,

la moitié étaient Autrichiens, Prussiens, Saxons, Polonais, Bavarois, Wurtembergeois, Mecklenbourgeois, Espagnols, Italiens, Napolitains. L’armée impériale proprement dite était pour un tiers composée de Hollandais, Belges, habitants des bords du Rhin, Piémontais, Suisses, Genevois, Toscans, Romains, habitants de la 32me division militaire, Brême, Hambourg, etc.; elle comptait à peine 140000 hommes parlant français. L’expédition de Russie coûta moins de 50000 hommes à la France actuelle; l’armée russe dans la retraite de Wilna à Moscou, dans les différentes batailles, a perdu quatre fois plus que l’armée française; l’incendie de Moscou a coûté la vie à 100000 Russes, morts de froid et de misère dans les bois; enfin, dans sa marche de Moscou à l’Oder, l’armée russe fut aussi atteinte par l’intempérie de la saison; elle ne comptait à son arrivée à Wilna que 50000 hommes, et à Kalisch moins de 18000.100

Napoleão imaginava que a guerra contra a Rússia havia ocorrido por sua vontade, e o horror que acontecera não abalava sua alma. Com destemor, atribuía a si toda a responsabilidade dos fatos, e sua mente obscurecida enxergava uma justificação no fato de que, entre as centenas de milhares de vidas perdidas, havia menos franceses do que hessianos ou bávaros.

XXXIX

Várias dezenas de milhares de homens jaziam mortos, em diversas posições e em diversos uniformes, nos campos e nos prados que pertenciam aos senhores da família Davídov e também aos camponeses da Coroa, nos mesmos campos e prados onde, havia centenas de anos, os camponeses das aldeias de Borodinó, Górki, Chevardinó e Semiónovskoie faziam a colheita e punham o gado para pastar. Nos hospitais de campanha, numa área de uma dessiatina, o capim e a terra estavam encharcados de sangue. Uma multidão de feridos e de não feridos, gente de diversas seções dos exércitos, com o rosto assustado, de um lado recuavam a duras penas para Mojáisk, do outro lado recuavam para Valúievo. Outra multidão, esgotada e faminta, conduzida por seus comandantes, seguia para a frente. Outra ainda permanecia em sua posição e continuava a atirar.

Sobre todo o campo, antes tão alegre e bonito, com o cintilar das baionetas e os vapores no sol da manhã, havia agora uma neblina de umidade e de fumaça e um cheiro estranho e ácido de salitre e de sangue. Nuvens haviam se fundido, e uma garoa começava a borrifar os mortos, os feridos, os apavorados, os exaustos e os hesitantes. Como se dissesse: “Chega, chega, gente. Parem... Ponham a cabeça no lugar. O que estão fazendo?”.

Esgotadas, sem alimento e sem repouso, as pessoas dos dois lados começaram igualmente a ter dúvidas e a se perguntar se deviam ainda atirar umas contra as outras, e em todos os rostos se percebia uma hesitação, e em todos os espíritos erguia-se igualmente a pergunta: “Para quê, por que devo matar e ser morto? Quem quiser que mate, quem quiser que faça, eu não quero mais!”. Tal pensamento, ao entardecer, havia amadurecido na alma de cada soldado. A qualquer momento, todas aquelas pessoas poderiam se horrorizar com o que estavam fazendo, largar tudo e fugir para qualquer lugar.

Porém, embora já no fim da batalha os soldados sentissem todo o horror de suas ações, embora fossem ficar contentes de parar, uma força inexplicável, misteriosa, continuava ainda a governá-los e, turvos de pólvora e de sangue, os artilheiros, entre os quais de cada três só um havia sobrevivido, cambaleantes e ofegantes de cansaço, levavam as balas, carregavam os canhões, faziam pontaria, acendiam os pavios; e as balas voavam da mesma forma veloz e cruel de ambos os lados e despedaçavam o corpo humano, e continuava a se cumprir a estranha tarefa que se cumpria não por vontade das pessoas, mas por vontade de quem governava as pessoas e os mundos.

Quem visse a retaguarda em desordem do exército russo diria que bastaria mais um pequeno esforço dos franceses para aniquilar o exército russo; e quem visse a retaguarda dos franceses diria que bastaria mais um pequeno esforço dos russos para destruir os franceses. Mas nem os franceses nem os russos faziam esse esforço, e as chamas da batalha se extinguiam lentamente.

Os russos não faziam tal esforço porque não estavam atacando os franceses. No início da batalha, eles se limitaram a permanecer no caminho para Moscou, bloqueando a passagem, e continuavam parados ali no fim da batalha, assim como haviam ficado no início. Porém, ainda que o objetivo dos russos fosse rechaçar os franceses, não poderiam fazer um último esforço porque todas as tropas russas estavam abatidas, não havia nenhuma parte do exército que não houvesse sofrido com a batalha, e os russos, permanecendo em suas posições, haviam perdido metade das tropas.

Os franceses, com a lembrança de todas as vitórias dos quinze anos anteriores, com a certeza da invencibilidade de Napoleão, com a consciência de que eram senhores de uma parte do campo de batalha, de que haviam perdido apenas um quarto do seu efetivo e de que tinham ainda intactos os vinte mil soldados da guarda, não teriam dificuldade em fazer aquele esforço a mais. Os franceses, que atacavam o exército russo com o objetivo de rechaçá-lo de sua posição, deveriam fazer tal esforço, porque enquanto os russos continuassem barrando o caminho para Moscou, como faziam desde o início da batalha, o objetivo dos franceses não seria alcançado, e todo o seu esforço e todas as suas baixas seriam em vão. Mas os franceses não fizeram tal esforço. Alguns historiadores dizem que bastaria a Napoleão pôr em ação a sua velha guarda intacta para vencer a batalha. Dizer o que aconteceria se Napoleão tivesse empregado a sua guarda é o mesmo que dizer o que aconteceria se o outono se tornasse primavera. Isso não podia acontecer. Napoleão não empregou sua guarda não porque não o quis, mas porque era impossível. Todos os generais, oficiais e soldados do Exército francês sabiam que era impossível fazer aquilo, porque o abatimento de ambos os exércitos não permitia.

Não era só Napoleão que experimentava um sentimento de sonho, o sentimento de que o terrível ímpeto do seu braço tombava impotente, mas todos os generais, todos os soldados do Exército francês que participavam ou não da batalha, depois de todas as experiências das batalhas anteriores (nas quais o inimigo fugia após esforços dez vezes menores), experimentavam igualmente um sentimento de horror perante aquele inimigo que, após perder metade das tropas, resistia da mesma forma ameaçadora que no início da batalha. A força moral do Exército agressor francês estava esgotada. A vitória obtida pelos russos em Borodinó não foi o tipo de vitória determinada por pedaços de pano hasteados em varas, a que chamam de bandeiras, ou por áreas que as tropas ocupam antes e ocupam depois — mas uma vitória moral, que convence o oponente da superioridade moral do inimigo e de sua própria impotência, essa foi a vitória obtida pelos russos em Borodinó. A invasão francesa, como uma fera enraivecida que sofre em seu avanço uma ferida mortal, sentia que estava perdida; mas ela não podia parar, assim como o Exército russo, duas vezes mais fraco, também não podia sair do seu caminho. Depois do impulso inicial, as tropas francesas ainda puderam rolar até Moscou; mas lá, sem nenhum esforço novo da parte das tropas russas, elas tinham de sucumbir, derramando até o fim o sangue da ferida mortal recebida em Borodinó. A consequência direta da batalha de Borodinó foi a fuga inexplicada de Napoleão, que partiu de Moscou, regressando pela antiga estrada de Smolensk, a destruição de quinhentos mil invasores e o aniquilamento da França napoleônica, sobre a qual, em Borodinó, pela primeira vez, se abateu a mão de um oponente com força espiritual superior.


1 Tolstói cita a carta que Bagration escreveu em 29 de julho de 1812.

2 Talvez recordações da Guerra Russo-Turca (1768-74).

3 Referência a um ataque ocorrido em 7 de julho de 1812, na província de Smolensk. Plátov foi um dos heróis populares da campanha de 1812.

4 Tipo de jardim em que as árvores são dispostas sem ordem geométrica, em voga na época.

5 Ministro do Exterior na época.

6 Francês: “minha boa amiga”.

7 Francês: “no salão diplomático da minha menina”.

8 Francês: “e seus esforços serão em vão?”.

9 Referência ao Tratado de Bucareste, assinado por Kutúzov no fim da Guerra Russo-Turca (1806-12), vencida pelos russos. O tratado reafirmava o controle do Império Otomano sobre a Moldávia e a Valáquia e cedia a Bessarábia à Rússia.

10 Francês: “E então, já sabem da grande novidade? O príncipe Kutúzov é marechal [...] Enfim, aí está um homem”.

11 Francês: “Mas não dizem que ele é cego, meu príncipe?”.

12 Francês: “Ora, vamos, ele enxerga o suficiente”.

13 Francês: “Dizem que ele ficou vermelho como uma mocinha para a qual se lê ‘Joconda’, quando ele disse: ‘O soberano e a pátria conferem ao senhor esta honra’”. “Joconda” é um poema de La Fontaine (1621-95) tido na época como indecente.

14 Francês: “Talvez no seu íntimo ele não fosse dessa opinião”.

15 Francês: “Os senhores sabem o que ele disse para o imperador? [...] Ah, eu o conheço de longa data”.

16 Francês: “Moscou, a capital asiática deste grande império, a cidade sagrada dos povos de Alexandre, Moscou, com suas inúmeras igrejas em forma de pagode chinês!”.

17 Francês: “Um cossaco de Plátov [...] Muito inteligente e falante”.

18 Francês: “O cossaco, sem saber em companhia de quem se encontrava, pois a simplicidade de Napoleão nada tinha capaz de revelar a uma imaginação oriental a presença de um soberano, conversou com a maior familiaridade sobre as questõs da guerra atual”.

19 Francês: “Se a batalha for travada em três dias, os franceses vencerão, mas, se for travada mais tarde, só Deus sabe o que vai acontecer”.

20 Francês: “O jovem cossaco fez sorrir o seu poderoso interlocutor”.

21 Francês: “sobre essa criança do Don”.

22 Francês: “Assim que o intérprete de Napoleão [...] terminou de falar, o cossaco, dominado por uma espécie de estupor, não proferiu mais nenhuma palavra e seguia adiante com os olhos fixos naquele conquistador, cujo nome havia chegado até ele, através das estepes do Oriente. Toda a sua loquacidade subitamente se desfez, para dar lugar a um sentimento de admiração ingênua e silenciosa. Napoleão, depois de o haver recompensado, lhe deu a liberdade, como a um passarinho que é devolvido aos campos que o viram nascer”.

23 Referência ao tsares Paulo I (1796-1801) e Pedro iii (1728-62), este deposto em 1762 por uma conspiração palaciana que levou ao trono Catarina ii.

24 Francês: “lhe fará as honras”.

25 Na tradição russa, a mulher não devia casar com o cunhado. Se o príncipe Andrei tivesse casado com Natacha Rostova, haveria um impedimento para a princesa Mária casar com Nikolai Rostóv.

26 Os cavaleiros do cisne, romance histórico sobre uma ordem de cavalaria do século xv, escrito pela francesa Félicité de Genlis. Ver tomo I, primeira parte, nota 102.

27 Francês: “Tudo vem na hora devida para quem sabe esperar”.

28 Francês: “Não pensam desse modo, esse é o problema [...] Na dúvida, meu caro [...] abstenha-se”.

29 Tolstói cita um trecho de um livreto popular, impresso em xilogravura e publicado em 1o de julho de 1812. A águia era o símbolo do império russo. Vassíli Lvóvitch Púchkin (1779-1830) era poeta e tio de Aleksandr Púchkin.

30 Mingau ou papa de aveia.

31 Francês: “Tenham juízo, entrem no barco e não o transformem numa barca de Caronte”. Referência à barca que na mitologia grega leva as almas para o inferno.

32 Francês: “é ridículo [...] cáustico”.

33 Francês: “meu cavaleiro”.

34 Referência à construção afrancesada que o personagem usou ao falar em russo.

35 Francês: “desamparado”.

36 Francês: “é a história do momento em toda a Moscou. Palavra de honra, o senhor me espanta”.

37 Francês: “Qual é a história do momento de toda a Moscou?”.

38 Francês: “A querida Vera!”.

39 Francês: “Quem se desculpa... se acusa”.

40 Francês: “um pouquinho enamorada do jovem”.

41 Francês: “Assim que Leppich estiver pronto, providencie para a sua nacele uma tripulação, formada por homens de confiança e inteligentes, e envie uma mensagem para o general Kutúzov para preveni-lo. Eu o instruí sobre o assunto.

“Recomende, por favor, a Leppich que preste bastante atenção no lugar onde ele vai descer pela primeira vez, para que não se engane e não venha a cair nas mãos do inimigo. É indispensável que ele combine os seus movimentos com o general em chefe”.

42 Praça de Moscou onde se cumpriam os castigos e as execuções das pessoas condenadas.

43 Ícone assim denominado por causa do Monastério de Ibéria (Ivérskaia), situado no monte Athos, na Grécia, região venerada pelos cristãos ortodoxos.

44 Cobertura de cabeça provida de véu, usada por sacerdotes ortodoxos.

45 Francês: “Eu lhe farei as honras do campo!”.

46 Serguei Nikíforovitch Márin (1775-1813), ajudante de ordens do tsar Alexandre i que compunha poemas humorísticos; G. V. Guerákov: oficial e professor da Escola Militar, autor de poemas patrióticos bombásticos.

47 Francês: “Que diabo!”.

48 Francês: “Ora, então você está à frente de todos”.

49 Alemão: “A guerra precisa ser levada para uma área mais vasta. Não posso louvar o bastante tal ponto de vista”.

50 Alemão: “Ah, sim [...] o único objetivo é enfraquecer o inimigo, portanto não se pode levar em conta a perda de indivíduos em particular”.

51 Alemão: “Uma área mais vasta”.

52 A Westfália e Hesse eram regiões da Alemanha tomadas por Napoleão em 1807.

53 Francês: “Vamos lá, com firmeza, não pare...”.

54 Francês: “Nada de prisioneiros [...] Eles é que estão se destruindo. Pior para o exército russo [...] Vamos lá, com firmeza, não pare”.

55 Francês: “Muito bem, mande entrar o senhor Beausset, e também Fabvier”.

56 Francês: “Sim, senhor”.

57 Francês: “Até já”.

58 Francês: “Senhor, Paris inteira lamenta a vossa ausência”.

59 Francês: “Lamento ter obrigado você a fazer uma viagem tão longa”.

60 Francês: “Senhor! Eu não esperava outra coisa senão encontrá-lo às portas de Moscou”.

61 François-Pascal Gérard (1779-1837), pintor francês.

62 Referência a um quadro do pintor italiano Rafael, do século xvi.

63 Francês: “Curta e enérgica!”.

64 Francês: “Aí está Moscou!”.

65 Francês: “É muita bondade de vossa majestade”.

66 Francês: “tudo se realizará com ordem e método”.

67 A data aqui é indicada no calendário gregoriano, que no calendário juliano corresponde ao dia 25 de agosto.

68 Francês: “e a face do mundo teria mudado”.

69 Francês: “o vinho está aberto, e é preciso bebê-lo”.

70 Francês: “casa da imperatriz”.

71 Francês: “Então, Rapp, o senhor acha que faremos um bom trabalho hoje?”.

72 Francês: “Sem dúvida nenhuma, senhor”.

73 Francês: “O senhor se lembra que me concedeu a honra de me dizer em Smolensk [...] o vinho está aberto, é preciso bebê-lo”.

74 Francês: “Pobre exército [...] ele diminuiu muito desde Smolensk. A fortuna é uma verdadeira cortesã, Rapp; eu sempre disse isso e começo a prová-lo. Mas e a guarda, Rapp, a guarda está intacta?”.

75 Francês: “O arroz e os biscoitos foram distribuídos aos regimentos da guarda?”.

76 Francês: “O arroz também?”.

77 Francês: “Nosso corpo é uma máquina de viver. É organizado para isso, é sua natureza; deixe a vida seguir seu curso, que ela se defenda sozinha: ela fará mais do que se nós a paralisarmos, entupindo-a de remédios. Nosso corpo é como um relógio perfeito que deve andar por certo tempo; o relojoeiro não tem a faculdade de abri-lo, só pode manejá-lo às cegas e de olhos vendados. Nosso corpo é uma máquina de viver, e isso é tudo”.

78 Francês: “Amanhã teremos de enfrentar Kutúzov!”.

79 Francês: “Ah! Um dos antigos!”.

80 Francês: “O batismo de fogo”.

81 Francês: “o grande reduto, o fatal reduto, o reduto do centro”.

82 Francês: “Diga ao rei de Nápoles [...] que ainda não é meio-dia e que ainda não vejo com clareza o meu tabuleiro de xadrez. Vá...”.

83 Francês: “Ora, muito bem, o que está havendo?”.

84 Francês: “aquele ganso que transformei em águia”.

85 Francês: “um fogo do inferno”.

86 Francês: “Vá embora...”.

87 Francês: “dos homens de ferro”.

88 Francês: “feixes de bandeiras e de águias inimigas”.

89 Francês: “Não vou destruir a minha guarda a oitocentas léguas da França”.

90 Referência a Bagration.

91 A notícia era um engano. Tratava-se do general Bonami.

92 Alemão: “O velho senhor [...] se instalou com conforto”.

93 Alemão: “com aquela obstinação do velho senhor”.

94 Francês: “O senhor então não pensa como os outros que somos obrigados a nos retirar?”.

95 Francês: “Ao contrário, vossa alteza, nas situações indecisas é sempre o mais obstinado que sai vitorioso [...] e minha opinião...”.

96 Francês: “Eles querem mais!”.

97 Francês: “Eles querem mais [...] deem o que eles querem”.

98 Francês: “o campo de batalha esteve soberbo”.

99 Francês: “A guerra da Rússia deveria ser a guerra mais popular dos tempos modernos: foi a guerra do bom senso e dos interesses verdadeiros, a guerra do repouso e da segurança de todos; foi puramente pacífica e conservadora.

“Foi uma guerra pela grande causa, o fim das incertezas e o começo da segurança. Um horizonte novo, novas tarefas iriam surgir, um horizonte pleno de bem-estar e de prosperidade para todos. O sistema europeu já estava fundado; a questão se resumia a organizá-lo.

“Satisfeito com esses pontos e tranquilo quanto a tudo mais, eu também promoveria o meu congresso e a minha santa aliança. Essas são ideias que me foram roubadas. Nessa reunião de grandes soberanos, teríamos tratado de nossos interesses em família e prestaríamos contas aos povos como um servidor ao seu amo.

“A Europa, desse modo, em pouco tempo haveria de ser verdadeiramente um só povo, e cada um, ao viajar por toda parte, estaria sempre em uma pátria comum. Todos os rios seriam navegáveis para todos, haveria a comunidade dos mares, e a partir de então os grandes exércitos permanentes seriam reduzidos apenas à guarda dos soberanos.

“De regresso à França, no seio da pátria, grande, forte, magnífica, tranquila, gloriosa, eu teria proclamado suas fronteiras imutáveis; toda guerra futura seria puramente defensiva; toda ampliação nova seria antinacional. Eu integraria meu filho ao império; minha ditadura terminaria, e o seu reinado constitucional iria começar...

“Paris seria a capital do mundo, e os franceses seriam a inveja das nações!...

“Então meus lazeres e meus dias de velhice seriam consagrados, na companhia da imperatriz e durante o aprendizado real do meu filho, a visitar lentamente, com nossos próprios cavalos, como um autêntico casal de campônios, todos os rincões do império, recebendo as queixas, corrigindo os erros, semeando em toda parte monumentos e boas ações.”

100 “Dos quatrocentos mil homens que cruzaram o rio Vístula” [...] “metade eram austríacos, prussianos, saxões, poloneses, bávaros, wurtemberguianos, mecklemburguianos, espanhóis, italianos, napolitanos. O exército imperial, propriamente dito, era na sua terça parte composto de holandeses, belgas, habitantes das margens do Reno, piemonteses, suíços, genoveses, toscanos, romanos, habitantes da trigésima segunda divisão militar, de Bremen e Hamburgo etc.; apenas cento e quarenta mil homens falavam francês. A expedição à Rússia custou a vida de menos de cinquenta mil homens à França atual; o exército russo na retirada de Vilna a Moscou, nas diversas batalhas, perdeu quatro vezes mais do que o exército francês; o incêndio de Moscou custou a vida de cem mil russos, mortos de frio e de inanição, nas matas; enfim, na sua marcha de Moscou a Oder, o exército russo foi também atingido pelas intempéries da estação; na sua chegada a Vilna, contava com não mais de cinquenta mil homens, e em Kalisch, com menos de dezoito mil”.

 

 

I

Para a mente humana, é incompreensível a continuidade absoluta do movimento. As leis de qualquer movimento só se tornam compreensíveis para o homem quando ele observa unidades arbitrariamente separadas daquele movimento. Porém, ao mesmo tempo, dessa divisão arbitrária do movimento contínuo em unidades descontínuas decorre grande parte das ilusões humanas.

É famoso o chamado sofisma dos antigos, que consiste em que Aquiles nunca vai conseguir alcançar a tartaruga que caminha na sua frente, apesar de Aquiles caminhar dez vezes mais depressa do que a tartaruga: assim que Aquiles percorrer a distância que o separa da tartaruga, ela já terá se adiantado um décimo daquela distância; Aquiles vai percorrer essa distância, mas a tartaruga terá se adiantado a centésima parte dela, e assim por diante, ao infinito. Esse problema parecia insolúvel para os antigos. O absurdo da conclusão (de que Aquiles nunca vai alcançar a tartaruga) decorria apenas de que se admitiam unidades de movimento separadas de forma arbitrária, ao passo que o movimento de Aquiles e também o da tartaruga se realizavam de modo contínuo.

Tomando unidades de movimento cada vez menores, nós apenas nos aproximamos da solução do problema, mas jamais a alcançaremos. Só admitindo uma grandeza infinitesimal e sua progressão ascendente até um décimo e fazendo a soma em progressão geométrica alcançaremos a solução da questão. Um novo ramo da matemática que descobriu a arte de operar com grandezas infinitesimais e com outras questões mais complexas do movimento fornece agora as respostas a problemas que pareciam insolúveis.

Esse novo ramo da matemática, desconhecido dos antigos, ao examinar as questões do movimento admitindo grandezas infinitesimais, ou seja, aquelas em que se recupera a condição principal do movimento (a continuidade absoluta), corrige desse modo o erro inevitável que a mente humana não pode deixar de cometer quando examina unidades descontínuas de movimento em lugar do movimento contínuo.

Na busca das leis do movimento histórico ocorre exatamente o mesmo.

O movimento da humanidade, decorrente de um número infinito de vontades pessoais, ocorre de forma contínua.

A compreensão das leis desse movimento é o objetivo da história. Mas para apreender as leis do movimento contínuo, soma de todas as vontades das pessoas, a mente humana admite unidades arbitrárias, descontínuas. O primeiro método da história consiste em tomar uma série arbitrária de acontecimentos contínuos e considerá-la separadamente das demais, quando não existe e não pode existir o início de nenhum acontecimento, mas sempre um acontecimento contínuo, que decorre de outro acontecimento. O segundo método consiste em considerar a ação de um homem, um rei, um comandante militar, como a soma das vontades das pessoas, quando a soma das vontades das pessoas nunca se expressa na atividade de um personagem histórico.

A ciência histórica, em sua marcha, toma sempre unidades cada vez menores para exame, e com esse método almeja se aproximar da verdade. No entanto, por menores que sejam as unidades tomadas pela história, sentimos que a admissão de uma unidade separada de outra, a admissão de um início de qualquer fenômeno e a admissão de que as vontades de todas as pessoas se expressam nas ações de um personagem histórico são de todo falsas em si mesmas.

Qualquer dedução da história, sem o menor esforço da parte da crítica, se desintegra como cinzas, sem nada deixar de si, apenas porque a crítica escolhe por objeto de observação uma unidade descontínua, maior ou menor; do que ela terá sempre direito, uma vez que a unidade histórica escolhida é sempre arbitrária.

Apenas admitindo uma unidade infinitesimal para observação — o diferencial da história, ou seja, as tendências homogêneas das pessoas — e alcançando a arte de integrar (fazer a soma dessas unidades infinitesimais), podemos esperar apreender as leis da história.

Os primeiros quinze anos do século XIX na Europa revelam um extraordinário movimento de milhões de pessoas. As pessoas abandonam suas ocupações habituais, precipitam-se de um lado da Europa para outro, saqueiam, matam-se umas às outras, regozijam-se e desesperam-se, e todo o curso da vida se transforma em alguns anos e revela um movimento intenso, que de início segue de modo crescente e depois declina. Qual é a causa de tal movimento ou devido a que leis isso ocorre?, pergunta a mente humana.

Os historiadores, ao responder a essa questão, nos apresentam os atos e as palavras de algumas dezenas de pessoas em um dos prédios da cidade de Paris, designando tais atos e palavras com o nome de revolução; depois fornecem uma biografia minuciosa de Napoleão e de algumas pessoas simpáticas e hostis a ele, relatam as influências de algumas dessas pessoas sobre outras e dizem: aí está por que se deu tal movimento, e eis as suas leis.

Mas a mente humana não só se recusa a acreditar nessa explicação como diz francamente que o método de explicação não é correto, porque mediante tal explicação um fenômeno mais fraco é tomado como causa de um fenômeno mais forte. A soma das vontades das pessoas fez a revolução e Napoleão, e só a soma daquelas vontades tolerou e aniquilou ambos.

“Mas toda vez que houve conquistas, houve conquistadores; toda vez que houve uma revolução num país, houve grandes homens”, diz a história. De fato, toda vez que surgiram conquistadores, houve guerras, responde a mente humana, mas isso não prova que os conquistadores foram a causa das guerras e que seria possível descobrir as leis da guerra na ação pessoal de um homem. Toda vez que eu, olhando meu relógio, vejo que o ponteiro se aproximou do dez, ouço que numa igreja próxima começam a tocar os sinos, mas do fato de que toda vez que o ponteiro marca dez horas os sinos começam a tocar eu não tenho o direito de concluir que a posição do ponteiro é a causa do movimento dos sinos.

Toda vez que vejo uma locomotiva se pôr em movimento, ouço o som de um apito, vejo uma válvula ser aberta e o movimento das rodas; mas disso não tenho o direito de concluir que o apito e o movimento das rodas são a causa do movimento da locomotiva.

Os camponeses dizem que no final da primavera sopra um vento frio porque os brotos do carvalho se abrem, e de fato na primavera sempre sopra um vento frio quando os brotos se abrem. No entanto, embora eu não conheça a causa de soprar um vento frio quando os brotos do carvalho se abrem, não posso concordar com os camponeses que a causa do vento frio seja o desabrochar dos brotos de carvalho, porque a força do vento se encontra fora do alcance da influência dos brotos. Vejo apenas uma conjunção de circunstâncias que ocorre em qualquer fenômeno da vida, e vejo que, por mais que eu examine e por mais minuciosamente que observe o ponteiro do relógio, a válvula e as rodas da locomotiva e os brotos do carvalho, não reconheço a causa do ressoar dos sinos, do movimento da locomotiva e do vento da primavera. Para tanto tenho de mudar completamente meu ponto de observação e estudar as leis do movimento do vapor, dos sinos e do vento. O mesmo precisa fazer a história. E já foram feitas experiências sobre isso.

Para o estudo das leis da história temos de mudar completamente o objeto de observação, deixar em paz os reis, os ministros e os generais, e examinar os elementos infinitesimais, homogêneos, que dirigem as massas. Ninguém pode dizer até que ponto é dado ao homem alcançar por esse caminho o entendimento das leis da história; mas é evidente que só por esse caminho se encontra a possibilidade de apreender as leis da história, e nesse caminho a mente humana ainda não aplicou a milionésima parte dos esforços que os historiadores aplicaram na descrição das ações de diversos reis, comandantes militares e ministros, bem como na explanação das próprias ideias acerca de tais ações.

II

As forças de doze nacionalidades da Europa irromperam na Rússia. As tropas russas e a população se retiraram, evitando o confronto, até Smolensk, e de Smolensk até Borodinó. As tropas francesas, com um impulso cada vez mais forte, se precipitaram rumo a Moscou, objetivo do seu movimento. Ao se aproximar do objetivo, a força do seu impulso aumenta, como a velocidade de um corpo que cai aumenta à medida que ele se aproxima do solo. Às suas costas, há milhares de verstas de um país faminto e hostil; à sua frente, dezenas de verstas que os separam do seu objetivo. É isso que sentem todos os soldados do exército napoleônico, e a invasão avança por si mesma, apenas pela força do impulso.

Nas tropas russas, à medida que recuam, inflama-se cada vez mais um espírito de exasperação contra o inimigo: ao recuar, as tropas se concentram e crescem. Em Borodinó ocorreu o confronto. Nenhum dos dois exércitos se desfez, mas as tropas russas, imediatamente após o confronto, recuaram de modo tão necessário quanto uma bola recua ao chocar-se com outra bola que veio rolando ao seu encontro com um impulso mais forte; e dessa mesma forma necessária (embora tivesse perdido toda a sua força no choque), a bola da invasão, que avançava com tamanho ímpeto, continuou a rolar ainda por certa distância.

Os russos recuaram cento e vinte verstas — para além de Moscou, e os franceses chegaram a Moscou e lá se detiveram. Durante cinco semanas depois disso, não houve nenhuma batalha. Os franceses não se mexeram. Semelhante a uma fera mortalmente ferida, que, perdendo sangue, lambe as feridas, eles ficaram cinco semanas em Moscou, sem realizar nada, e de repente, sem nenhum motivo novo, bateram em retirada: lançaram-se pela estrada de Kaluga (depois de uma vitória, pois de novo ficaram senhores do campo de batalha, em Malo Iaroslávets) e, sem travar nenhuma batalha séria, fugiram ainda mais depressa para além de Smolensk, para além de Vilna, para além de Bereziná e para mais além ainda.

Na noite de 26 de agosto, Kutúzov e todo o Exército russo estavam convencidos de que a batalha de Borodinó tinha sido uma vitória. Kutúzov assim escreveu para o soberano. Kutúzov ordenou que as tropas se preparassem para uma nova guerra a fim de liquidar o inimigo, não porque ele quisesse enganar quem quer que fosse, mas porque sabia que o inimigo estava derrotado, assim como sabiam disso todos aqueles que tomaram parte na batalha.

Porém, naquela mesma noite e no dia seguinte, começaram a chegar, uma após a outra, notícias de baixas incríveis, notícias da perda de metade do exército, e uma nova batalha se revelou fisicamente impossível.

Era impossível travar batalha antes de reunir as informações, antes de recolher os feridos, antes de renovar o estoque de munição, antes de contar os mortos, antes de nomear os novos comandantes em lugar dos que haviam morrido, antes que os soldados estivessem alimentados e tivessem recuperado as horas de sono perdidas.

Entretanto, logo depois da batalha, na manhã seguinte, as tropas francesas (por força do ímpeto do movimento, agora como que aumentado na razão inversa do quadrado da distância) já se moviam por si mesmas de encontro às tropas russas. Kutúzov queria atacar no dia seguinte, e o exército todo queria o mesmo. Mas para atacar não bastava o desejo de fazer isso; era necessário que fosse possível fazê-lo, e tal possibilidade não existia. Era impossível não recuar um dia de marcha, e depois, da mesma forma, era impossível não recuar mais um dia de marcha, e ainda um terceiro, até que, por fim, no dia 1o de setembro — quando o exército se aproximava de Moscou —, apesar de toda a força do sentimento que se erguia nas fileiras das tropas, a força das coisas exigiu que as tropas fossem para trás de Moscou. E as tropas recuaram mais um dia de marcha, o último, e entregaram Moscou para o inimigo.

Para pessoas habituadas a pensar que os planos de guerra e de batalha são traçados pelos comandantes militares exatamente como cada um de nós, sentado em seu gabinete, debruçado sobre mapas, faz considerações sobre que disposições foram adotadas, ou teriam sido, nesta ou naquela batalha, surgem perguntas sobre por que Kutúzov, na retirada, não agiu desta ou daquela forma, por que não tomou posição à frente de Fili, por que não recuou de uma vez pela estrada de Kaluga, por que abandonou Moscou etc. Pessoas habituadas a pensar assim esquecem ou ignoram as condições inevitáveis em que sempre se passa a ação de todo comandante em chefe. A atividade de um comandante militar não tem a menor semelhança com a atividade que nós imaginamos, sentados livremente num gabinete, analisando esta ou aquela campanha num mapa, com uma quantidade conhecida de tropas, de um lado e de outro, num território conhecido, e começando nossas considerações num momento dado e conhecido. Um comandante em chefe nunca se encontra no início de nenhum acontecimento, condição em que nós sempre encaramos um acontecimento. Um comandante em chefe sempre se encontra no meio de uma série de acontecimentos em movimento e assim nunca, em nenhum minuto, é capaz de refletir sobre todo o significado do acontecimento em curso. De modo imperceptível, minuto a minuto, o acontecimento toma a forma do seu significado, e a cada momento dessa coerente e ininterrupta transformação do acontecimento, o comandante em chefe está no centro de complicadas manobras, intrigas, preocupações, dependências, poderes, projetos, conselhos, ameaças, embustes, encontra-se o tempo todo na necessidade de responder a uma quantidade inumerável de perguntas que lhe são propostas, sempre contraditórias entre si.

Em tom sério, os entendidos nos dizem que Kutúzov, ainda muito antes de Fili, deveria ter deslocado as tropas pela estrada de Kaluga, e que alguém chegou até a lhe sugerir tal projeto. Mas diante de um comandante em chefe, sobretudo num momento difícil, não há apenas um projeto, mas sempre dezenas ao mesmo tempo. E cada um desses projetos, fundados em estratégia e tática, se contradizem uns aos outros. A missão do comandante em chefe parece consistir apenas em escolher um dos projetos. Mas nem isso ele pode fazer. Os acontecimentos e o tempo não esperam. Propõem a ele, digamos, no dia 28, seguir pela estrada de Kaluga, mas naquele momento chega a galope um ajudante de ordens a mando de Milorádovitch e pergunta se agora devem entrar em confronto com os franceses ou recuar. Então, naquele instante, ele precisa dar uma ordem. Mas a ordem de recuar nos obriga a dar uma volta para poder tomar a estrada de Kaluga. E logo depois do ajudante de ordens, um intendente pergunta para onde levar as provisões, e o chefe dos hospitais de campanha pergunta para onde levar os feridos; e um cocheiro de Petersburgo traz uma carta do soberano, que não admite a possibilidade de entregar Moscou, e um rival do comandante em chefe, que faz intrigas contra ele (sempre existem os rivais, e são vários), sugere um novo projeto diametralmente oposto ao plano de sair pela estrada de Kaluga; e as energias do próprio comandante em chefe exigem sono e repouso; e um general venerável deixado de lado na distribuição de medalhas vem se queixar, e os habitantes imploram proteção; um oficial enviado para observar o território volta e faz um relatório totalmente contrário ao que apresentou um oficial enviado antes dele; e um espião, um prisioneiro e um general que fizeram uma operação de reconhecimento — todos descrevem de forma diferente a posição do exército inimigo. Pessoas habituadas a não entender ou a esquecer essas condições necessárias da atividade de todo comandante em chefe nos apresentam, por exemplo, a posição das tropas em Fili e com isso supõem que o comandante em chefe podia, no dia 1o de setembro, resolver de forma totalmente livre a questão de entregar ou de defender Moscou, quando, com as tropas russas a cinco verstas de Moscou, tal questão nem poderia existir. Quando se resolveu tal questão? Foi em Drissa, e também em Smolensk, e de modo mais perceptível no dia 24, em Chevardinó, e no dia 26 em Borodinó, e em todos os dias, horas e minutos da retirada de Borodinó até Fili.

III

As tropas russas, após se retirarem de Borodinó, pararam em Fili. Ermólov, que tinha ido inspecionar a posição, aproximou-se do marechal de campo.

— Não é possível combater naquela posição — disse ele. Kutúzov fitou-o com ar surpreso e obrigou-o a repetir as palavras que dissera. Quando ele terminou de falar, Kutúzov lhe estendeu a mão.

— Dê-me sua mão — disse, e, depois de virar a mão de Ermólov como se fosse tomar o pulso, disse: — Você está doente, meu caro. Pense bem no que está dizendo.

Kutúzov, na colina Poklónaia, a seis verstas dos portões de Dorogomílov, desceu da carruagem e sentou-se num banco à beira da estrada. Uma imensa multidão de generais se reuniu à sua volta. O conde Rostoptchin, vindo de Moscou, uniu-se a eles. Toda aquela companhia ilustre, distribuída em alguns círculos, conversava entre si sobre as vantagens e as desvantagens da posição, sobre a situação das tropas, sobre os planos propostos, sobre a situação de Moscou, sobre questões militares em geral. Todos sentiam que, embora não tivessem sido convocados com tal propósito, embora a reunião não tivesse recebido esse nome, tratava-se de um conselho de guerra. Todas as conversas se mantinham no âmbito das questões gerais. Se alguém comunicava ou discutia notícias pessoais, fazia-o em sussurros, e logo depois passava outra vez a tratar de questões gerais: não se notava nenhum gracejo, nenhum riso, nenhum sorriso sequer entre todas aquelas pessoas. Todos, com esforço, era evidente, tentavam manter-se à altura da situação. E todos os grupos, conversando entre si, tentavam manter-se próximos do comandante em chefe (cujo banco constituía o centro daqueles grupos) e falavam de modo que ele pudesse ouvir. O comandante em chefe escutava e de vez em quando pedia que repetissem o que estavam dizendo à sua volta, mas ele mesmo não intervinha nas conversas e não exprimia nenhuma opinião. Na maior parte das vezes, ao escutar a conversa de um determinado círculo, ele, com ar de decepção — como se o que estavam dizendo não fosse de forma alguma o que ele esperava saber —, virava-se para outro lado. Uns falavam sobre a posição escolhida, criticando não tanto a posição em si, mas sobretudo a capacidade intelectual daqueles que a escolheram; outros provavam que o erro tinha sido cometido antes, que a batalha deveria ter sido travada dois dias antes; outros ainda falavam da batalha de Salamanca, sobre a qual contavam apenas o que dissera um francês de uniforme espanhol chamado Crossart, que havia acabado de chegar. (Esse francês, junto com um dos príncipes alemães que serviam no Exército russo, analisava o cerco de Saragoça prevendo a possibilidade de defender Moscou da mesma forma.) No quarto círculo o conde Rostoptchin dizia que estava pronto a morrer com a milícia de Moscou para defender os muros da capital, no entanto não podia deixar de lamentar o estado de desinformação em que fora deixado e que, se tivesse sabido daquilo antes, as coisas teriam corrido de outro modo... Os de um quinto círculo, dando mostras da profundidade de suas concepções estratégicas, falavam da direção que as tropas deviam tomar. Os de um sexto círculo diziam uma tolice completa. O rosto de Kutúzov ficava cada vez mais preocupado e tristonho. E em todas aquelas conversas Kutúzov via o mesmo: não havia a menor possibilidade física de defender Moscou, no sentido pleno da expressão, ou seja, a tal ponto inexistia essa possibilidade que, se algum comandante em chefe louco desse ordem de travar batalha, a consequência seria uma confusão, e mesmo assim não haveria nenhuma batalha; não haveria porque todos os altos comandantes não só reconheciam que aquela posição era impraticável como também, em suas conversas, só discutiam o que sucederia ao inevitável abandono de tal posição. Como os comandantes poderiam conduzir suas tropas num campo de batalha que consideravam impraticável? Os demais oficiais e até os soldados (que também discutiam) reconheciam que a posição era impraticável, e por isso não podiam ir combater com a certeza da derrota. Se Bennigsen insistia na defesa daquela posição e outros ainda a debatiam, a questão já não tinha sentido em si mesma, fazia sentido apenas como um pretexto para a disputa e a intriga. Assim entendia Kutúzov.

Bennigsen, tendo optado por tal posição, ostentando com fervor o seu patriotismo russo (o que Kutúzov não podia escutar sem franzir o rosto), insistia na defesa de Moscou. Kutúzov via tão claro como o dia qual era o objetivo de Bennigsen: no caso do fracasso da defesa — jogar a culpa em Kutúzov, que havia conduzido as tropas sem travar batalha até os Montes dos Pardais; no caso de vitória — atribuir o sucesso a si mesmo; no caso da renúncia ao combate — afastar dos seus ombros o crime de abandonar Moscou. A questão das intrigas não preocupava agora o velho. Uma questão terrível o preocupava. E para essa questão não ouvia de ninguém uma resposta. A questão agora, para ele, consistia no seguinte: “Será possível que fui eu quem deixou Napoleão vir até Moscou, e quando foi que fiz isso? Quando foi que isso ficou decidido? Será que foi ontem, quando mandei para Plátov a ordem de retirada, ou anteontem, quando fui cochilar e ordenei que Bennigsen assumisse o comando? Ou será que foi antes?... Mas quando, quando essa coisa terrível ficou decidida? Moscou tem de ser abandonada. As tropas têm de recuar, e é preciso dar essa ordem”. Dar aquela ordem terrível lhe parecia o mesmo que renunciar ao comando do Exército. E além de gostar do poder, além de estar habituado a ele (as honrarias concedidas ao príncipe Prozoróvski, sob cujas ordens ele havia servido na Turquia, o deixavam estimulado), Kutúzov tinha a convicção de que a ele estava destinada a salvação da Rússia e que só por isso, contra a vontade do soberano e pela vontade do povo, tinha sido escolhido para o cargo de comandante em chefe. Kutúzov estava convencido de que só ele podia manter-se no comando do Exército naquelas difíceis circunstâncias, de que só ele em todo o mundo estava em condições de encarar sem pavor o seu oponente, o invencível Napoleão; e se horrorizava com o pensamento da ordem que teria de dar. No entanto era preciso tomar uma decisão, era preciso interromper as conversas à sua volta, que tinham começado a tomar um caráter demasiado livre.

Kutúzov chamou para perto de si os generais mais velhos.

— Ma tête, fût-elle bonne ou mauvaise, n’a qu’à s’aider d’elle-même 1 — disse, levantando-se do banco, e seguiu para Fili, onde estavam suas carruagens.

IV

Na ampla e agradável isbá do mujique Andrei Savostiánov, às duas horas, o conselho se reuniu. Os mujiques, as mulheres e as crianças daquela numerosa família de mujiques se aglomeravam na parte dos fundos, do outro lado do vestíbulo. Só a neta de Andrei, Malacha, menina de seis anos, a quem o excelentíssimo havia agradado, dando-lhe um pedacinho de açúcar enquanto bebia o chá, estava na parte principal da isbá, em cima da estufa. Da estufa, Malacha observava tímida e alegre o rosto, o uniforme e as medalhas dos generais, que entravam um após o outro e sentavam em bancos largos no recanto do oratório, ao pé dos ícones. O próprio vovô, como Malacha chamava Kutúzov para si mesma, estava sentado um pouco afastado deles, no canto escuro atrás da estufa. Estava afundado numa cadeira dobrável e o tempo todo soltava gemidos e esticava a gola do capote, que embora desabotoado parecia apertar seu pescoço. As pessoas que entravam, uma após a outra, se aproximavam do marechal; ele apertava a mão de alguns, inclinava a cabeça para outros. O ajudante de ordens Kaissárov fez menção de puxar a cortina da janela em frente a Kutúzov, mas Kutúzov abanou a mão para ele com ar contrariado, e Kaissárov entendeu que o excelentíssimo não queria que vissem o seu rosto.

Em volta da rústica mesa de abeto, sobre a qual havia mapas, planos, lápis, papéis, reuniu-se tanta gente que os ordenanças trouxeram mais um banco e o colocaram junto à mesa. Nesse banco sentaram-se os recém-chegados: Ermólov, Kaissárov e Toll. Bem embaixo dos ícones, no primeiro lugar, com a condecoração de São Jorge no pescoço, o rosto pálido e doentio e a testa alta que se fundia com a cabeça pelada, estava sentado Barclay de Tolly. Havia dois dias que uma febre o atormentava, e naquele momento ele estava trêmulo e abatido. A seu lado estava Uvárov e com voz baixa (como falavam todos) comunicou algo a Barclay, fazendo gestos rápidos. O pequeno e gorducho Dokhtúrov, de sobrancelhas erguidas e mãos cruzadas sobre a barriga, escutava com atenção. Do outro lado estava sentado o conde Osterman-Tolstói, com os cotovelos apoiados na mesa e as mãos segurando a cabeça grande de feições valentes e olhos brilhantes, e parecia mergulhado nos próprios pensamentos. Raiévski, com expressão de impaciência, torcendo para a frente os cabelos negros das têmporas com um gesto mecânico, lançava olhares ora para Kutúzov, ora para a porta de entrada. O rosto firme, bonito e bondoso de Konovnítsin brilhava com um sorriso afável e astuto. Ele havia encontrado o olhar de Malacha e, com os olhos, fazia-lhe trejeitos que obrigavam a menina a sorrir.

Todos esperavam Bennigsen, que, sob o pretexto de ter ido inspecionar de novo a posição, estava na verdade terminando o seu jantar suculento. Esperaram-no das quatro até as seis horas e durante todo esse tempo não deram início à reunião, travando em voz baixa conversas secundárias.

Só quando Bennigsen entrou na isbá, Kutúzov saiu do seu canto e aproximou-se da mesa, mas de um modo que seu rosto não ficasse iluminado pelas velas que estavam sobre a mesa.

Bennigsen abriu o conselho com a questão: “Abandonar sem luta a antiga e sagrada capital da Rússia ou defendê-la?”. Em seguida, um silêncio geral e demorado. Todos franziram as sobrancelhas, e no silêncio ouviram-se as tosses e os bufos irritados de Kutúzov. Todos os olhos o fitavam. Malacha também olhava para o vovô. Entre todos, era ela quem estava mais perto de Kutúzov e via como o rosto dele estava franzido: ele estava a ponto de chorar. Mas isso não durou muito tempo.

— A antiga e sagrada capital da Rússia! — exclamou ele de repente, com voz irritada, repetindo as palavras de Bennigsen e desse modo mostrando a nota falsa daquelas palavras. — Permita que eu diga a vossa excelência que essa questão não tem sentido para um russo. (Ele deixou o corpo pesado inclinar-se para a frente.) É impossível formular tal questão, e tal questão não tem sentido. A questão por que fiz reunir este conselho é uma questão militar. A questão é a seguinte: “A salvação da Rússia está no exército. Vale mais a pena correr o risco de perder o exército e Moscou, travando uma batalha, ou ceder Moscou sem batalha? Eis a questão sobre a qual desejo conhecer a opinião dos senhores”. (Recostou-se de novo no espaldar na cadeira.)

Teve início uma discussão. Bennigsen ainda não considerava a partida perdida. Admitindo a opinião de Barclay e de outros sobre a impraticabilidade de travar uma batalha defensiva em Fili, Bennigsen, imbuído de patriotismo russo e de amor por Moscou, propunha deslocar as tropas do flanco direito para o esquerdo durante a noite e atacar a ala direita dos franceses no dia seguinte. As opiniões se dividiram, houve discussões com manifestações a favor e contra aquela opinião. Ermólov, Dokhtúrov e Raiévski concordaram com a opinião de Bennigsen. Guiados pelo sentimento de uma necessidade de sacrifício ante a perda da capital, ou por outras considerações pessoais, esses generais pareciam não compreender que aquele conselho de guerra não podia alterar a marcha inevitável dos fatos e que Moscou já estava de fato abandonada. Os outros generais compreendiam isso e, deixando de lado a questão sobre Moscou, falavam sobre a direção que as tropas agora deviam tomar em sua retirada. Malacha, que sem baixar os olhos observava o que se passava na sua frente, entendia de outro modo o significado daquele conselho. Parecia-lhe que a questão era apenas uma briga pessoal entre o “vovô” e o “abas-compridas”, como ela chamava Bennigsen. Malacha via que os dois se enraiveciam quando falavam um com o outro e no seu íntimo ela tomava o partido do vovô. No meio da conversa, Malacha notou um olhar rápido e dissimulado que o vovô lançou na direção de Bennigsen e logo depois, para sua alegria, notou que o vovô, depois de dizer algo para o abas-compridas, deixou-o sem ação: Bennigsen ficou vermelho de repente e, com ar irritado, começou a andar pela isbá. As palavras que produziram tal efeito em Bennigsen foram as da opinião expressa por Kutúzov, em voz calma e baixa, sobre a vantagem e a desvantagem da proposta de Bennigsen: o deslocamento do exército do flanco direito para o flanco esquerdo durante a noite a fim de atacar a ala direita dos franceses.

— Eu, senhores — disse Kutúzov —, não posso aprovar o plano do conde. Um deslocamento das tropas a uma curta distância do inimigo sempre traz perigos, e a história militar confirma essa noção. Assim, por exemplo... (Kutúzov pareceu pensar um pouco, em busca de um exemplo, enquanto lançava um olhar claro, ingênuo, para Bennigsen.) Vejamos o caso da batalha de Friedland, que, como o conde lembra bem, eu creio, só não foi... um sucesso completo porque nossas tropas se reagruparam a uma distância muito próxima do inimigo... — Seguiu-se um silêncio momentâneo, que a todos pareceu muito demorado.

O debate de novo recomeçou, mas havia pausas a todo instante, e tinha-se a sensação de que não havia mais o que falar.

Durante uma daquelas pausas, Kutúzov deu um suspiro profundo, como se tivesse intenção de falar. Todos se voltaram para ele.

— Eh bien, messieurs! Je vois bien que c’est moi qui paierai les pots cassés2 — disse. E, levantando-se devagar, aproximou-se da mesa. — Senhores, escutei a opinião dos senhores. Alguns não vão concordar comigo. Mas eu (ele fez uma pausa), com o poder a mim conferido pelo soberano e pela pátria, eu... ordeno a retirada.

Depois disso os generais começaram a se dispersar com a mesma discrição solene e silenciosa com que as pessoas se dispersam após um enterro.

Alguns generais, em voz baixa, num diapasão muito diferente daquele com que falavam durante o conselho, comunicavam algo ao comandante em chefe.

Malacha, a quem estavam esperando para jantar havia muito tempo, desceu da estufa de costas e com cuidado, procurando com a pontinha dos pés descalços as beiradas da estufa, e, atrapalhada entre as pernas dos generais, esgueirou-se para a porta.

Depois que se livrou dos generais, Kutúzov ficou um longo tempo sentado, recostado na cadeira, sempre pensando na mesma questão terrível: “Quando, quando afinal ficou decidido que Moscou seria abandonada? Quando se fez aquilo que decidiu a questão e quem é o culpado?”.

— Isso, isso eu não esperava — disse para o ajudante de ordens Schneider, que veio falar com ele já tarde da noite. — Isso eu não esperava! Isso eu não esperava!

— O senhor precisa repousar, vossa excelência — disse Schneider.

— Isso não vai ficar assim! Eles vão comer carne de cavalo, como os turcos — exclamou Kutúzov, batendo o punho gordo sobre a mesa. — Vão, sim, é só...

V

Em contraste com Kutúzov, naquele instante, num acontecimento ainda mais grave do que a retirada do exército sem luta, a saber, a evacuação de Moscou e o incêndio da cidade, Rostoptchin, que nos é apresentado como o mentor de tal acontecimento, agia de modo muito diferente de Kutúzov.

Tal acontecimento — a evacuação de Moscou e o incêndio da cidade — era tão inevitável quanto o recuo das tropas sem luta para além de Moscou, depois da batalha de Borodinó.

Todo russo, não com base em deduções, mas com base no sentimento que existe em nós e que já existia em nossos pais, podia adivinhar o que veio a acontecer.

A partir de Smolensk, em todas as cidades e aldeias da terra russa, sem a participação do conde Rostoptchin e de seus panfletos, passou-se o mesmo que em Moscou. O povo esperava o inimigo com indiferença, não se revoltou, não se agitou, não fez ninguém em pedaços, apenas esperou com calma o seu destino, sentindo dentro si as forças para descobrir, no minuto mais difícil, aquilo que se devia fazer. E, assim que o inimigo se aproximava, os elementos mais ricos da população iam embora, deixando para trás suas propriedades; os mais pobres ficavam e queimavam e destruíam o que restava.

Existia e existe na alma dos russos a consciência de que assim havia de ser, e de que assim sempre seria. E tal consciência e, mais que isso, o pressentimento de que Moscou seria ocupada estavam presentes na sociedade moscovita no ano de 1812. Os que começaram a deixar Moscou já em julho e no início de agosto mostraram que esperavam isso. Os que foram embora levando o que podiam carregar, deixando para trás a casa e a metade dos bens, agiam assim por causa daquele patriotismo latente (latent) que não se exprime por meio de frases, nem por meio da morte de crianças para salvar a pátria nem por outras ações afetadas, mas se exprime de forma imperceptível, simples, orgânica e por isso produz sempre os resultados mais poderosos.

“É uma vergonha fugir do perigo; só os covardes estão fugindo de Moscou”, diziam para eles. Rostoptchin em seus panfletos queria persuadi-los de que fugir de Moscou era desonroso. Eles tinham vergonha de ser chamados de covardes, tinham vergonha de ir embora, mas mesmo assim iam embora, sabendo que era preciso. Por que iam embora? É impossível supor que Rostoptchin os assustasse com os horrores que Napoleão praticara em outras terras conquistadas. Partiram, e primeiro partiram os ricos, as pessoas instruídas, que sabiam muito bem que Viena e Berlim tinham ficado inteiras e que lá, durante a ocupação de Napoleão, os habitantes passavam seu tempo alegremente com franceses encantadores, na época tão apreciados pelos russos, e sobretudo pelas damas.

Eles partiram porque, para a gente russa, não pode haver a questão: será bom ou ruim viver em Moscou sob o domínio dos franceses? Era impossível viver sob o domínio dos franceses: isso era o pior de tudo. Foram embora ainda antes da batalha de Borodinó, e ainda mais depressa depois da batalha de Borodinó, a despeito do apelo para a defesa, apesar da proclamação do comandante-geral de Moscou3 sobre sua intenção de levantar o ícone de Nossa Senhora Ivérskaia e ir combater, e apesar dos balões que, do ar, haviam de liquidar os franceses, e apesar de todos os disparates que Rostoptchin escrevia em seus panfletos. Eles sabiam que as tropas deviam lutar e que, se elas não conseguissem, era impossível ir com mocinhas e criados para Tri Góri a fim de combater Napoleão, e sabiam que era necessário partir, por mais penoso que fosse abandonar seus bens à destruição. Eles partiram e não ficaram pensando no significado sublime da rica e enorme capital abandonada e, é claro, transformada em cinzas por seus habitantes (uma grande cidade de madeira abandonada devia ser incendiada); eles partiram cada um por si e, no entanto, foi só porque partiram que se cumpriu o grande acontecimento que permanecerá para sempre como a maior glória do povo russo. Aquela senhora da nobreza que, ainda no mês de junho, com seus negros e seus bobos, partiu de Moscou rumo à sua aldeia em Sarátov, com a obscura consciência de que não era serva de Bonaparte e com receio de que a detivessem por ordem do conde Rostoptchin, realizava de modo simples e sincero a grande obra que salvou a Rússia. Esse mesmo conde Rostoptchin, que ora ofendia aqueles que partiam de Moscou, ora transferia da cidade as repartições públicas, ora distribuía armas imprestáveis para a gentalha embriagada, ora levava ícones em procissões, ora proibia o sacerdote Avgustin4 de remover da cidade ícones e relíquias, ora confiscava todas as carroças particulares que havia na cidade, ora usava cento e trinta e seis carroças para transportar para fora da cidade o balão de gás feito por Leppich, ora insinuava que ia atear fogo em Moscou, ora contava como havia incendiado sua casa, ora escrevia uma proclamação para os franceses na qual os reprovava solenemente por ter destruído o seu orfanato; ora assumia a glória do incêndio de Moscou, ora o repudiava, ora ordenava ao povo capturar todos os espiões e levá-los para ele, ora censurava o povo por fazer isso, ora deportava de Moscou todos os franceses, ora deixava ficar na cidade a sra. Aubert-Chalmé, que era o centro de toda a população francesa de Moscou, mas sem nenhum sentimento de culpa ordenava prender e expulsar à força o velho e honrado diretor do correio Kliutcharióv; ora reunia o povo em Tri Góri para combater os franceses, ora, a fim de livrar-se do povo, entregava a ele um homem para ser morto, enquanto ele mesmo fugia pelos portões dos fundos; ora dizia que não ia sobreviver ao infortúnio de Moscou, ora escrevia num álbum, em francês, versos sobre seu papel naquela situação5 — esse homem não entendia o significado do acontecimento em curso, queria apenas fazer ele mesmo algo que espantasse os outros, realizar algo patriótico e heroico e, como um menino, brincava com o fato grandioso e inevitável do incêndio e do abandono de Moscou e, com sua mão pequena, tentava ora incentivar, ora conter a vazão da enorme torrente do povo que o arrastava consigo.

VI

Hélène, que regressara de Vilna a Petersburgo com a corte, encontrava-se numa situação difícil.

Em Petersburgo, Hélène gozava da proteção especial de um magnata que ocupava um dos cargos mais elevados do Estado. Em Vilna, ela se tornara íntima de um jovem príncipe estrangeiro. Quando voltou a Petersburgo, o príncipe e o magnata estavam ambos em Petersburgo, ambos cobraram seus direitos, e para Hélène se apresentou um problema ainda novo em sua carreira: conservar a relação estreita com ambos, sem ofender nem um nem outro.

O que pareceria difícil e até impossível para outras mulheres não obrigou a condessa Bezúkhova a refletir sequer um momento; obviamente não era à toa que gozava da reputação de mulher inteligentíssima. Se começasse a ocultar suas ações, se tentasse se desvencilhar da situação embaraçosa por meio da astúcia, acabaria pondo tudo a perder, reconhecendo sua culpa; mas Hélène, ao contrário, como uma pessoa verdadeiramente grande, capaz de fazer tudo o que quer, imediatamente se colocou na posição de quem está com a razão, como ela acreditava sinceramente, e pôs todos os outros na posição de quem tem a culpa.

Na primeira vez em que o jovem estrangeiro se permitiu lhe fazer uma censura, ela, erguendo com orgulho a cabeça bonita e, voltando-se de lado para ele, disse em tom firme:

— Voilà l’égoïsme et la cruauté des hommes! Je ne m’attendais pas à autre chose. La femme se sacrifie pour vous, elle souffre, et voilà sa récompense. Quel droit avez-vous, monseigneur, de me demander compte de mes amitiés, de mes affections? C’est un homme qui a été plus qu’un père pour moi.6

O personagem quis dizer algo. Hélène o interrompeu.

— Eh bien, oui — disse ela. — Peut-être qu’il a pour moi d’autres sentiments que ceux d’un père, mais ce n’est pas une raison pour que je lui ferme ma porte. Je ne suis pas un homme pour être ingrate. Sachez, monseigneur, pour tout ce qui a rapport à mes sentiments intimes, je ne rends compte qu’à Dieu et à ma conscience7 — concluiu, colocando a mão sobre o peito bonito e empinado, e olhando para o céu.

— Mais écoutez-moi, au nom de Dieu.8

— Épousez-moi, et je serai votre esclave.9

— Mais c’est impossible.10

— Vous ne daignez pas descendre jusqu’à moi, vous...11 — disse Hélène e começou a chorar.

O personagem se pôs a consolar a condessa; Hélène, entre lágrimas (como que fora de si), disse que nada a impedia de casar, que havia outros casos (na época ainda eram poucos os casos, mas ela citou Napoleão e outras figuras ilustres), disse que nunca tinha sido esposa do seu marido, que fora levada a um sacrifício.

— Mas as leis, a religião... — disse o personagem, já capitulando.

— As leis, a religião... Mas para que elas teriam sido inventadas, se não pudessem resolver isso? — disse Hélène.

O ilustre personagem ficou surpreso ao ver que um raciocínio tão simples não tivesse passado pela sua cabeça e foi pedir o conselho dos irmãos santos da Companhia de Jesus, com os quais mantinha relações estreitas.

Alguns dias depois, numa das festas fascinantes oferecidas por Hélène em sua casa de campo na Ilha de Pedra, ela foi apresentada a um certo M. Jobert, velho encantador, de cabelos brancos como neve e olhos negros e brilhantes, un jésuite à robe courte,12 que durante muito tempo, no jardim, sob a luz da iluminação artificial e ao som da música, conversou com Hélène sobre o amor a Deus, a Cristo, ao coração da Mãe de Deus e sobre os consolos alcançados nesta vida e na outra por meio da verdadeira e única religião católica. Hélène ficou sensibilizada e por diversas vezes surgiram lágrimas nos olhos dela e nos de M. Jobert, e a voz deles tremeu. Uma dança, para a qual um cavalheiro veio convidar Hélène, interrompeu sua conversa com seu futuro directeur de conscience,13 mas no dia seguinte, à tarde, M. Jobert veio sozinho à casa de Hélène e a partir de então passou a vir com frequência à casa dela.

Um dia, levou a condessa a uma igreja católica, onde ela ficou de joelhos diante do altar, ao qual foi conduzida. O velho francês encantador colocou a mão na cabeça de Hélène e, como ela mesma contava mais tarde, Hélène sentiu algo semelhante a uma lufada de ar fresco que desceu por sua alma. Explicaram-lhe que aquilo era la grâce.14

Depois a conduziram a um abade à robe longue,15 que ouviu sua confissão e perdoou seus pecados. No dia seguinte, trouxeram-lhe uma caixa, onde estava o sacramento da comunhão, e a deixaram na casa dela, à disposição de Hélène. Após alguns dias, Hélène, para sua satisfação, soube que agora havia ingressado na verdadeira Igreja católica e que dali a alguns dias o próprio papa iria receber notícias dela e lhe mandaria certo documento.

Tudo o que durante aquele tempo faziam em volta dela e com ela, toda a atenção dirigida a ela por pessoas tão inteligentes, expressa de formas tão agradáveis e refinadas, e a pureza de pomba em que agora ela se encontrava (durante todo aquele tempo, usava vestidos brancos com fitas brancas) — tudo aquilo lhe dava prazer; mas nem aquele prazer desviava Hélène, por nenhum minuto, do seu objetivo. E, como em questões de esperteza sempre acontece de o tolo levar vantagem sobre os inteligentes, ela, entendendo que o objetivo de todas aquelas palavras e cuidados era, sobretudo, após convertê-la ao catolicismo, tomar seu dinheiro em favor das instituições dos jesuítas (sobre o que já haviam feito alguns comentários para ela), Hélène, antes de dar dinheiro, insistia em que fizessem com ela os diversos procedimentos que a livrariam do marido. No seu modo de ver, o significado de toda religião consistia apenas em manter o decoro na satisfação dos desejos humanos. E com tal objetivo, numa de suas conversas com o padre confessor, Hélène exigiu dele com tenacidade uma resposta para a questão sobre até que ponto ela estava presa ao seu casamento.

Estavam sentados na sala junto à janela. Era o pôr do sol. Da janela vinha o cheiro das flores. Hélène estava de vestido branco, transparente nos ombros e no peito. O abade, bem alimentado, de queixo gordo e bem barbeado, boca agradável e firme e mãos brancas suavemente cruzadas sobre os joelhos, estava perto de Hélène e, com um sorriso sutil nos lábios, com ar sereno — embevecido pela visão da sua beleza, de vez em quando olhava o rosto dela, enquanto explicava seu ponto de vista sobre a questão que lhes interessava. Hélène sorria inquieta, olhava para os cabelos crespos do padre, para as faces gordas, morenas e bem barbeadas, e esperava a todo momento uma nova guinada na conversa. Mas o abade, embora obviamente embevecido com a beleza e com a proximidade de sua interlocutora, estava seguro do domínio do seu ofício.

O rumo do raciocínio do diretor de consciência era o seguinte. Na ignorância do significado daquilo que estava fazendo, a senhora deu o voto de lealdade matrimonial a uma pessoa, que, por sua vez, ao contrair matrimônio sem acreditar no significado religioso do matrimônio, cometeu um sacrilégio. Tal matrimônio não teve o duplo significado que deve ter. Mas, apesar disso, o juramento da senhora a prendeu. A senhora se arrependeu dele. O que a senhora cometeu, assim? Péché véniel16 ou peché mortel?17 Péché véniel, porque praticou sua ação sem má intenção. Caso a senhora, agora, com o objetivo de ter filhos, contrair novo matrimônio, então o pecado da senhora poderia ser perdoado. Mas a questão se desmembra outra vez em duas: primeiro...

— Mas eu creio — falou de repente Hélène, já entediada, com seu sorriso encantador — que, ao me converter à religião verdadeira, não posso estar presa por aquilo que uma religião falsa me impôs.

O directeur de conscience ficou deslumbrado ao ver a questão exposta com a simplicidade de um ovo de Colombo. Ficou embevecido com a inesperada rapidez dos êxitos de sua aluna, mas não pôde renunciar ao seu edifício de argumentos, construído à custa de tantos trabalhos intelectuais.

— Entendons-nous, comtesse 18 — disse ele com um sorriso e passou a refutar os argumentos da sua filha espiritual.

VII

Hélène compreendeu que a questão era muito simples e fácil do ponto de vista espiritual, mas que seus diretores de consciência criavam dificuldades só porque temiam a forma como as autoridades seculares iriam encarar a questão.

E por conta disso Hélène resolveu que era preciso preparar a opinião da sociedade para o caso. Despertou os ciúmes do velho magnata e lhe disse o mesmo que tinha dito ao primeiro pretendente, ou seja, apresentou a questão de tal modo que a única maneira de ele ter direito a Hélène era casar-se com ela. De início, o personagem velho ficou tão chocado com aquela proposta de casamento com uma mulher cujo marido ainda estava vivo quanto havia ficado o personagem jovem; mas a certeza inabalável de Hélène de que aquilo era tão simples e natural quanto casar com uma jovem solteira também produziu efeito sobre ele. Caso Hélène deixasse transparecer mínimos sinais de hesitação, de vergonha ou de dissimulação, sem dúvida sua causa estaria perdida; mas não só não houve tais sinais de dissimulação e de vergonha como, ao contrário, ela com simplicidade e ingenuidade cordial contou para seus amigos íntimos (e eles eram Petersburgo inteira) que o príncipe e o magnata lhe haviam feito propostas de casamento e que ela gostava de ambos e receava magoar um ou outro.

Espalhou-se imediatamente por Petersburgo o rumor não de que Hélène queria se divorciar do marido (se tal rumor se espalhasse, muitos se voltariam contra aquela intenção ilegal), mas espalhou-se abertamente o rumor de que a infeliz e interessante Hélène se achava num dilema, sem saber com qual dos dois devia se casar. A questão já não consistia em saber até que ponto aquilo era possível, mas só em determinar qual dos dois partidos era mais vantajoso e como a corte iria encarar a questão. Havia de fato algumas pessoas obstinadas, incapazes de se erguer à altura da questão, pessoas que viam naquele intento uma afronta ao sacramento do matrimônio; mas eram poucas, e ficavam em silêncio, ao passo que a maioria se interessava pela questão da felicidade que Hélène alcançaria e de qual dos dois seria a melhor opção. Mas sobre se era bom ou ruim casar enquanto o marido ainda estava vivo, sobre isso não conversavam, porque tal questão obviamente já estava decidida por pessoas mais inteligentes do que eu ou você (como diziam), e duvidar da justeza de tal solução significava correr o risco de deixar patente a própria tolice e uma inaptidão para viver na sociedade.

Só Mária Dmítrievna Akhrossímova, que chegara a Petersburgo naquele verão para encontrar-se com um de seus filhos, se permitia exprimir abertamente sua opinião, contrária à opinião geral. Ao encontrar Hélène num baile, Mária Dmítrievna a deteve no meio do salão e, em meio ao silêncio geral, com sua voz rude, disse para ela:

— Quer dizer que por aqui vocês começaram a casar de novo, com o marido ainda vivo. Vai ver que você está achando que inventou essa novidade, não é? Passaram na sua frente, querida. Já inventaram isso faz muito tempo. Fazem isso em todos os... — Depois de tais palavras Mária Dmítrievna, com um gesto ameaçador bem conhecido, arregaçando sua manga larga e olhando em volta com ar severo, atravessou o salão.

Embora fosse temida, Mária Dmítrievna era encarada em Petersburgo como motivo de pilhéria e, portanto, das palavras ditas por ela só retinham os termos rudes e os repetiam aos sussurros entre si, supondo que naquelas palavras estava todo o sal do que tinha sido falado.

O príncipe Vassíli, que nos últimos tempos andava esquecendo muitas vezes aquilo que dissera, e assim repetia centenas de vezes as mesmas coisas, sempre dizia, quando calhava de ver a filha:

— Hélène, j’ai un mot à vous dire — dizia, conduzindo a filha para um canto e tomando-a pelo braço. — J’ai eu vent de certains projets relatifs à... Vous savez. Eh bien, ma chère enfant, vous savez que mon cœur de père se réjouit de vous savoir... Vous avez tant souffert... Mais, chère enfant... ne consultez que votre cœur. C’est tout ce que je vous dis.19 — E, sempre escondendo a mesma emoção, ele encostava sua face à face da filha e se afastava.

Bilíbin, com sua inesgotável reputação de homem inteligentíssimo e de amigo desinteressado de Hélène, um desses amigos que as mulheres ilustres sempre têm, os homens amigos, que nunca podem ter o papel de enamorados, Bilíbin certa vez, em petit comité, exprimiu para sua amiga Hélène seu ponto de vista sobre toda aquela questão.

— Écoutez Bilibine (Hélène sempre tratava amigos como ele pelo sobrenome de família) — e ela tocou sua mão branca, cheia de anéis, na manga do fraque de Bilíbin. — Dites-moi comme vous diriez à une sœur, que dois-je faire? Lequel des deux? 20

Bilíbin contraiu a pele acima das sobrancelhas e, com um sorriso nos lábios, refletiu um momento.

— Vous ne me prenez pas en desprevenido, vou savez — disse ele. — Comme véritable ami, j’ai pensé et repensé à votre affaire. Voyez-vous. Si vous épousez le prince (era o jovem) — ele dobrou um dedo — vous perdrez pour toujours la chance d’épouser l’autre, et puis vous mécontentez la cour. (Comme vous savez, il y a une espèce de parenté.) Mais si vous épousez le vieux comte, vous faites le bonheur de ses derniers jours, et puis comme veuve du grand... le prince ne fait plus de mésalliance en vous épousant21 — e Bilíbin descontraiu a pele.

— Voilà un véritable ami! — disse a exultante Hélène, e tocou de novo a mão na manga de Bilíbin. — Mais c’est que j’aime l’un et l’autre, je ne voudrais pas leur faire de chagrin. Je donnerais ma vie pour leur bonheur à tous deux 22 — disse ela.

Bilíbin encolheu os ombros, querendo dizer que nem mesmo ele poderia ser de alguma ajuda para tal sofrimento.

“Une maîtresse femme! Voilà ce qui s’appelle poser carrément la question. Elle voudrait épouser tous les trois à la fois”,23 pensou Bilíbin.

— Mas me diga como o marido, como o seu marido, encara essa questão — perguntou Bilíbin, que, apoiado na solidez da sua reputação, não teve receio de fazer uma pergunta tão ingênua. — Ele aceitaria?

— Ah! Il m’aime tant! — disse Hélène, a quem por alguma razão parecia que Pierre também a amava. — Il fera tout pour moi.24

Bilíbin franziu a pele, o que significava que se preparava para dizer um mot.

— Même le divorce 25 — disse ele.

Hélène deu uma risada.

Entre as pessoas que se permitiam pôr em dúvida a legalidade do hipotético casamento estava a mãe de Hélène, a princesa Kuráguina. Ela vivia atormentada pela inveja que sentia da própria filha e agora, quando o objeto da inveja era algo muito próximo ao coração da princesa, ela não conseguia se resignar àquela ideia. Aconselhou-se com um sacerdote russo sobre as condições em que era possível um divórcio e um novo casamento enquanto o marido estivesse vivo, e o sacerdote lhe disse que aquilo era impossível e, para alegria da princesa, mostrou-lhe um texto do Evangelho em que (assim parecia ao sacerdote) se rejeitava frontalmente a possibilidade de um novo casamento enquanto o marido estivesse vivo.

Munida de tais argumentos, que a ela pareciam incontestáveis, a princesa, de manhã bem cedo, a fim de encontrar a filha sozinha, foi à casa de Hélène.

Após ouvir as objeções da mãe, Hélène sorriu de maneira dócil e zombeteira.

— De resto, está escrito claramente: quem casar com esposa divorciada... — falou a velha princesa.

— Ah, maman, ne dites pas de bêtises. Vous ne comprenez rien. Dans ma position, j’ai des devoirs 26 — disse Hélène, passando da língua russa, na qual sempre lhe parecia haver certa imprecisão ao tratar do seu caso, para o francês.

— Mas, minha amiga...

— Ah, maman, comment est-ce que vous ne comprenez pas que le saint père, qui a le droit de donner des dispenses...27

Naquele momento, a dama de companhia que morava com Hélène entrou no quarto para comunicar que sua alteza estava no salão e queria vê-la.

— Non, dites-lui que je ne veux pas le voir, que je suis furieuse contre lui, parce qu’il m’a manqué de parole.28

— Comtesse, à tout péché miséricorde 29 — disse, entrando, um jovem louro de rosto e nariz compridos.

A velha princesa levantou-se respeitosamente e fez uma reverência. O jovem que entrara não lhe deu atenção. A princesa fez um gesto com a cabeça para a filha e se esgueirou pela porta.

“Não, ela está certa”, pensou a velha princesa, cuja convicção inteira se fez em pedaços ante o aparecimento de sua alteza. “Ela está certa; mas como é que nós, em nossa mocidade irrecuperável, ignorávamos isso? E seria tão simples”, pensava a velha princesa, ao sentar-se na carruagem.

No início de agosto, o caso de Hélène estava perfeitamente definido, e ela escreveu para o marido (que a amava muito, assim ela pensava) uma carta, na qual lhe comunicava sua intenção de casar com N. N. e o fato de que havia se convertido à única religião verdadeira e lhe pedia que cumprisse todas as formalidades necessárias para o divórcio, sobre as quais o portador da carta lhe daria os esclarecimentos.

“Sur ce, je prie Dieu, mon ami, de vous avoir sous Sa sainte et puissante garde. Votre amie Hélène.” 30

Essa carta foi levada à casa de Pierre no momento em que ele estava no campo de batalha de Borodinó.

VIII

Já no fim da batalha de Borodinó, depois de ter corrido pela segunda vez para a bateria de Raiévski, Pierre dirigiu-se com uma multidão de soldados por um barranco rumo a Kniazkóvo, chegou ao hospital de campanha e, ao ver sangue e ouvir gritos e gemidos, seguiu adiante às pressas, misturado com a multidão de soldados.

A única coisa que Pierre queria agora, com todas as forças de sua alma, era deixar para trás o mais depressa possível as impressões terríveis pelas quais havia passado aquele dia, voltar para as condições de vida habituais e dormir tranquilamente no seu quarto, na sua cama. Só nas condições de vida habituais ele sentia que teria possibilidade de compreender a si mesmo e tudo aquilo que tinha visto e experimentado. Mas as condições de vida habituais não existiam mais em parte alguma.

Embora balas de canhão e de fuzil não assoviassem ali na estrada por onde ele andava, em todos os lados havia o mesmo que no campo de batalha. Havia pessoas que sofriam, pessoas esgotadas e de vez em quando pessoas indiferentes, havia o mesmo sangue, os mesmos capotes de soldados, os mesmos sons de tiros, embora distantes, mas que mesmo assim despertavam pavor; além disso, havia abafamento e poeira.

Ao percorrer mais ou menos três verstas até a grande estrada de Mojáisk, Pierre sentou-se à beira do caminho.

O crepúsculo baixou sobre a terra, e o estrondo das armas silenciou. Pierre recostou-se apoiado nos braços dobrados e ficou muito tempo deitado, olhando para as sombras que se deslocavam à sua frente, no escuro. A toda hora tinha a impressão de que, com um assovio terrível, uma bala de canhão vinha voando sobre ele; Pierre estremecia com um sobressalto e se levantava. Não sabia dizer havia quanto tempo estava ali. No meio da noite, três soldados que traziam lenha se instalaram ao seu lado e começaram a fazer uma fogueira.

Os soldados, olhando de esguelha para Pierre, acenderam a fogueira, puseram uma panela sobre o fogo, esmigalharam bolachas dentro dela e acrescentaram banha de porco. Um cheiro agradável de comida e de carne gordurosa se misturou com o cheiro de fumaça. Pierre levantou-se e suspirou. Os soldados (eram três) comiam sem prestar atenção em Pierre e conversavam entre si.

— Mas e você, quem é? — um dos soldados voltou-se de repente para Pierre, pelo visto querendo dizer com aquela pergunta exatamente o que Pierre imaginava: se você quiser comer, damos comida para você, é só dizer se é um homem honesto.

— Eu? Eu?... — disse Pierre, sentindo a necessidade de rebaixar o mais possível sua posição social, a fim de ficar mais próximo e mais compreensível para os soldados. — A rigor, sou oficial da milícia, só que meus amigos não estão aqui; cheguei ao campo de batalha e me perdi dos meus camaradas.

— Veja só! — disse um dos soldados.

Outro soldado balançou a cabeça.

— Ei, coma aqui o que quiser da nossa boiazinha! — disse o primeiro e deu para Pierre, que se aproximara dele, uma colher de pau.

Pierre sentou-se junto ao fogo e começou a comer a boiazinha, a papa que estava dentro do caldeirão e que lhe pareceu a refeição mais saborosa de todas que já havia provado. Enquanto Pierre, debruçado avidamente sobre o caldeirão, levava à boca grandes colheradas, mastigava uma após a outra, e seu rosto ficava bem visível à luz do fogo, os soldados o fitavam em silêncio.

— Para onde é que você tem de ir, hein? Diga lá! — pediu outra vez um deles.

— Para Mojáisk.

— Escuta, você não é nobre, não?

— Sou.

— E qual é seu nome?

— Piotr Kirílovitch.

— Pois então, Piotr Kirílovitch, vamos andando, a gente vai levar você.

Na escuridão completa, os soldados e Pierre seguiram para Mojáisk.

Os galos já estavam cantando quando eles chegaram a Mojáisk e começaram a subir o morro íngreme da cidade. Pierre andava junto com os soldados, totalmente esquecido de que sua estalagem ficava no pé do morro e que já havia passado. Não teria se lembrado disso (tal o seu estado de perplexidade) se no meio do morro não tivesse esbarrado com o seu escudeiro, que tinha ido procurá-lo na cidade e estava voltando para a estalagem. O escudeiro reconheceu Pierre pelo chapéu, branco no meio da escuridão.

— Vossa excelência — exclamou ele —, já estávamos desesperados. Por que está a pé? E, por favor, para onde está indo?

— Ah, pois é — disse Pierre.

Os soldados se detiveram um momento.

— Olha só, quer dizer que achou seus amigos, hein? — disse um deles.

— Pronto, adeus! Piotr Kirílovitch, é isso, não? Adeus, Piotr Kirílovitch! — disseram as outras vozes.

— Adeus — disse Pierre e seguiu com o seu escudeiro na direção da estalagem.

“Tenho de dar alguma coisa para eles!”, pensou Pierre, e meteu a mão no bolso. “Não, não é preciso”, uma voz lhe disse.

Não havia vagas nos quartos da estalagem: estavam todos ocupados. Pierre foi para o pátio e, cobrindo-se com o capote até a cabeça, deitou na sua carruagem.

IX

Assim que Pierre pousou a cabeça no travesseiro, sentiu que ia pegar no sono; mas de repente, com uma nitidez quase de realidade, ouviu um bum-bum-bum de tiros, soaram gemidos, gritos, detonações de granadas, veio um cheiro de sangue e de pólvora, veio um sentimento de horror, e o medo da morte o dominou. Abriu os olhos assustado e levantou a cabeça para fora do capote. Tudo estava em silêncio no pátio. Só um ordenança estava passando pelos portões, batendo os pés na lama, e trocou uma palavra com o porteiro. Por cima da cabeça de Pierre, sob o interior escuro do telheiro de ripas, pombos moveram-se bruscamente por causa do movimento que ele fizera ao se levantar. O pátio da estalagem estava impregnado de um aroma tranquilo e alegre para Pierre naquele momento, um cheiro de feno, de estrume e de alcatrão. Entre dois telheiros pretos, via-se o céu limpo e estrelado.

“Graças a Deus que aquilo acabou”, pensou Pierre, cobrindo de novo a cabeça. “Ah, como o medo é horrível e como eu me rendi a ele de modo vergonhoso! E eles... eles, o tempo todo, até o fim, ficaram firmes, calmos...”, pensou. Eles, no entendimento de Pierre, eram os soldados — os que estavam na bateria, os que lhe deram comida na estrada e os que rezaram diante do ícone. Eles — aqueles estranhos, desconhecidos dele até então —, eles se destacavam de todas as outras pessoas de modo claro e incisivo em seu pensamento.

“Ser soldado, um simples soldado!”, pensou Pierre, enquanto adormecia. “Ingressar nesta vida comum com todo o meu ser, imbuir-me daquilo que os faz ser assim. Mas como livrar-se de tudo o que é supérfluo, diabólico, de todo o fardo dessa pessoa exterior? Houve um tempo em que eu podia ser assim. Podia ter fugido do meu pai, como eu queria. Eu podia também, depois do duelo com Dólokhov, ter recebido a ordem de ir servir como soldado.” E passou de relance na imaginação de Pierre o almoço no clube em que desafiou Dólokhov, e também a imagem de seu benfeitor em Torjók. E surgiu na mente de Pierre uma sessão solene da loja maçônica. A loja ficava no Clube Inglês. E alguém conhecido, íntimo, querido, estava sentado na cabeceira da mesa. Era ele, ele! O benfeitor. “Mas ele não morreu?”, pensou Pierre. “Sim, morreu; mas eu não sabia que estava vivo. E que pena eu sinto de que ele esteja morto e como estou feliz por ele estar vivo outra vez!” De um lado da mesa, estavam sentados Anatole, Dólokhov, Nesvítski, Deníssov e outros semelhantes (no sonho, a categoria daquelas pessoas estava tão claramente definida na mente de Pierre quanto a categoria das pessoas a quem ele chamava de eles), e aquelas pessoas, Anatole, Dólokhov, gritavam bem alto, cantavam; mas por trás de seus gritos se ouvia a voz do benfeitor, que falava sem cessar, e o som das palavras dele era tão impressionante e contínuo como o rumor do campo de batalha, mas era também agradável e reconfortante. Pierre não entendia o que o benfeitor estava falando, mas sabia (as categorias de pensamento também não estavam claras no sonho) que o benfeitor falava sobre o bem, sobre a possibilidade de ser aquilo que eles eram. E eles, de todos os lados, com seus rostos simples, bondosos, firmes, rodeavam o benfeitor. Mas, embora fossem bondosos, não olhavam para Pierre, não o conheciam. Pierre quis chamar a atenção deles para si e falar. Pierre se levantou, mas no mesmo instante suas pernas ficaram geladas e nuas.

Sentiu vergonha e, com a mão, cobriu as pernas, das quais o capote de fato havia caído. Por um momento, Pierre, ajeitando o capote, abriu os olhos e avistou os mesmos telheiros, as colunas, o pátio, mas tudo aquilo agora estava azulado, luminoso, encoberto por lantejoulas do orvalho ou da geada.

“Está amanhecendo”, pensou Pierre. “Mas não é isso. Preciso escutar e entender as palavras do benfeitor.” De novo se cobriu com o capote, mas já não havia nenhuma loja maçônica, nenhum benfeitor. Só havia pensamentos, expressos de modo claro com palavras, pensamentos que alguém dizia ou que o próprio Pierre formulava.

Ao lembrar mais tarde de tais pensamentos, apesar de terem sido provocados pelas impressões daquele dia, Pierre se convenceu de que era alguém fora dele que os dizia. Nunca, assim lhe pareceu, ele estivera em condições de, em vigília, pensar e exprimir assim seus pensamentos.

“A guerra é a mais difícil submissão da liberdade do homem às leis de Deus”, disse a voz. “A simplicidade é a obediência a Deus; Dele não se pode escapar. E eles são simples. Eles não falam, mas fazem. A palavra dita é de prata, mas a não dita é de ouro. Uma pessoa não pode dominar nada enquanto temer a morte. E aquele que não teme a morte é senhor de tudo. Se não houvesse sofrimento, o homem não conheceria o seu limite, não conheceria a si mesmo. O mais difícil (em sonho, continuou Pierre a pensar ou a ouvir) consiste em ser capaz de, na alma, unir o significado de tudo. Unir tudo?”, disse Pierre para si. “Não, unir, não. É impossível unir os pensamentos, mas atrelar todos esses pensamentos — eis o que é preciso! Sim, é preciso atrelar, é preciso atrelar”, repetiu Pierre para si com uma exaltação interior, sentindo que exatamente com aquelas, e só com aquelas palavras, se exprimia o que ele queria expressar e se resolvia toda a questão que o atormentava.

— Sim, é preciso atrelar, está na hora de atrelar.

— É preciso atrelar, está na hora de atrelar, vossa excelência! Vossa excelência — repetia uma voz. — É preciso atrelar, está na hora de atrelar...

Era a voz do escudeiro, que tentava acordar Pierre. O sol batia em cheio no rosto de Pierre. Ele olhou para o pátio imundo da estalagem, no centro do qual, junto ao poço, soldados davam de beber a seus cavalos magros e de onde carroças estavam saindo pelo portão. Pierre virou-se com repulsa e, de olhos fechados, tombou de novo no assento da carruagem. “Não, eu não quero isso, não quero ver nem entender isso, quero entender aquilo que se revelou para mim durante o sonho. Mais um segundo apenas, e eu compreenderia tudo. O que devo fazer? Atrelar, mas como atrelar tudo?” E Pierre sentiu com horror que todo o significado daquilo que ele vira e pensara no sonho tinha sido destruído.

O escudeiro, o cocheiro e o porteiro disseram a Pierre que um oficial havia chegado com a notícia de que os franceses tinham se aproximado de Mojáisk e que os nossos tinham ido embora.

Pierre levantou-se e, depois de ordenar que atrelassem os cavalos e fossem ao seu encontro, seguiu a pé através da cidade.

As tropas tinham ido embora e deixaram cerca de dez mil feridos. Os feridos ficavam à vista, nos pátios e nas janelas das casas, e se acumulavam pelas ruas. Nas ruas, em volta das carroças que deviam transportar os feridos, ouviam-se gritos, xingamentos e pancadas. Pierre cedeu sua carruagem, que o alcançara, a um general ferido, seu conhecido, e foi com ele para Moscou. No caminho, Pierre soube da morte do seu cunhado e da morte do príncipe Andrei.

X

No dia 30, Pierre voltou para Moscou. Quase nos portões da cidade, veio ao seu encontro um ajudante de ordens do conde Rostoptchin.

— Estamos à procura do senhor em toda parte — disse o ajudante de ordens. — O conde precisa ver o senhor sem falta. Pede que o senhor vá agora mesmo ao encontro dele para tratar de um assunto muito importante.

Pierre, em vez de ir para casa, pegou um coche de praça e seguiu ao encontro do governador-geral da cidade.

O conde Rostoptchin havia chegado à cidade apenas naquela manhã, vindo de sua datcha em Sokólniki, nos arredores de Moscou. A antecâmara e a sala de recepção da casa do conde estavam repletas de funcionários, que tinham acudido por força de uma exigência dele ou em busca de suas ordens. Vassíltchikov e Plátov já haviam falado com o conde e lhe explicaram que era impossível defender Moscou e que a cidade ia se render. Embora tais notícias fossem escondidas dos habitantes, os funcionários e os chefes de diversas repartições sabiam que Moscou ficaria nas mãos do inimigo, assim como o sabia o conde Rostoptchin; e todos eles, a fim de se livrar da responsabilidade, vinham à procura do governador-geral da cidade com perguntas sobre como deviam cumprir as tarefas a eles confiadas.

No momento em que Pierre entrou na sala de recepção, o mensageiro enviado pelo Exército estava saindo do gabinete do conde.

O mensageiro abanava a mão com desalento ante as perguntas que lhe dirigiam e assim atravessou o salão.

Enquanto aguardava na sala de recepção, Pierre observava em redor os diversos funcionários, velhos e jovens, militares e civis, importantes e sem importância, que estavam naquele aposento. Todos pareciam descontentes e inquietos. Pierre aproximou-se de um grupo de funcionários em que havia um conhecido seu. Após cumprimentarem Pierre, continuaram a conversa.

— Se ele for deportado e depois voltar, não haverá mal nenhum; mas, na situação em que está, não se pode garantir nada.

— Mas veja só o que ele escreve — disse outro, apontando para uma folha impressa que segurava na mão.

— Isso é outra questão. Para o povo, isso é necessário — disse o primeiro.

— O que é? — perguntou Pierre.

— Ora, veja aqui, é um novo panfleto.

Pierre tomou-o nas mãos e pôs-se a ler:

O excelentíssimo príncipe,31 a fim de unir-se mais depressa às tropas que estão indo ao seu encontro, atravessou Mojáisk e ocupou uma posição fortificada onde o inimigo não o alcançará com rapidez. Daqui foram enviados ao encontro dele quarenta e oito canhões, com munição, e o excelentíssimo diz que irá defender Moscou até a última gota de sangue e que está pronto a combater até nas ruas. Vocês, irmãos, não reparem no fato de as repartições públicas estarem fechadas: a situação voltará necessariamente ao normal, e com nossas cortes de justiça daremos uma lição a esse canalha! Quando chegar a hora, vou precisar de jovens tanto da cidade como do campo. Darei o aviso um ou dois dias antes, mas agora não é preciso, e assim fico em silêncio. É bom que venham com um machado, um ancinho também não é ruim, mas o melhor mesmo é uma forquilha de três pontas: um francês não pesa mais do que um feixe de centeio. Amanhã, depois do almoço, vou levantar o ícone de Nossa Senhora Ivérskaia no hospital de Catarina, para o bem dos feridos. Lá, vamos abençoar a água: eles vão ficar curados mais depressa; e agora eu estou bem de saúde: estive doente da vista, mas agora estou enxergando com os dois olhos.

— Mas pessoas do Exército me disseram — comentou Pierre — que é totalmente impossível combater na cidade, e que a posição...

— Pois é. Era disso mesmo que estávamos falando — disse o primeiro funcionário.

— E o que isto aqui significa: estive doente da vista, mas agora estou enxergando com os dois olhos? — perguntou Pierre.

— O conde estava com terçol — respondeu um ajudante de ordens, sorrindo. — E ficou muito preocupado quando eu lhe disse que o povo andava perguntando o que é que ele tinha. Mas e então, conde — disse de repente o ajudante de ordens com um sorriso, dirigindo-se a Pierre —, ouvimos dizer que o senhor está com problemas familiares, é verdade? Parece que a condessa, sua esposa...

— Eu não soube de nada — disse Pierre com indiferença. — O que foi que o senhor ouviu dizer?

— Bem, o senhor sabe, as pessoas inventam muito. Estou dizendo o que ouvi falar.

— E o que foi que ouviu?

— Andam dizendo — respondeu o ajudante de ordens, de novo com aquele sorriso — que a condessa, sua esposa, está se preparando para partir para o exterior. Com certeza não tem fundamento...

— Pode ser — disse Pierre, olhando em redor com ar distraído. — Mas quem é ele? — perguntou, apontando para um homem baixo e velho, num casacão azul e limpo e de barba grande e branca como a neve, sobrancelhas iguais à barba e rosto vermelho.

— Aquele? É só um comerciante, ou melhor, um taberneiro, Verecháguin. O senhor deve ter ouvido falar da história da proclamação.

— Ah, então esse é Verecháguin! — disse Pierre, lançando um olhar para o rosto firme e sereno do velho comerciante e procurando nele uma expressão de traição.

— Esse não é o próprio. É o pai daquele que escreveu a proclamação — disse o ajudante de ordens. — O jovem está na cadeia e parece que as coisas para ele não vão por um bom caminho.

Um velhinho, com uma medalha em forma de estrela, e outro, um funcionário alemão, com uma medalha em forma de cruz no pescoço, aproximaram-se dos homens que estavam conversando.

— Veja bem — disse o ajudante de ordens —, é uma história complicada. Uns dois meses atrás, apareceu aquela proclamação. Avisaram ao conde. Ele mandou investigar. Gavrila Ivánitch foi apurar, a proclamação havia passado exatamente por sessenta e três pessoas. Procuram uma delas e perguntam: quem lhe deu? Fulano. Procuram esse fulano: quem lhe deu? E assim sucessivamente, até que chegam ao Verecháguin... Um comerciante sem instrução, sabe, um simplório — disse sorrindo o ajudante de ordens. — Perguntam a ele: quem lhe deu? E o importante é que já sabemos quem lhe deu. Não poderia ser outro que não o diretor do correio. Mas, é claro, entre eles havia um conluio. Responde: ninguém me deu, eu mesmo redigi. Aí ameaçaram e pediram, mas ele só dizia isto: eu mesmo redigi. Assim comunicaram ao conde. O conde mandou trazê-lo à sua presença. “Quem lhe deu a proclamação?” “Eu mesmo redigi.” Mas o senhor conhece o conde! — disse o ajudante de ordens, com um sorriso orgulhoso e alegre. — Ele se irritou de um modo medonho, imagine só: quanto descaramento, que falsidade e que obstinação!...

— Ah! O conde queria que ele denunciasse Kliutcharióv, entendo! — disse Pierre.

— Nada disso — falou o ajudante de ordens, assustado. — Sem isso, Kliutcharióv já tinha muitos pecadinhos para expiar, e por isso foi deportado. A questão é que o conde ficou muito perturbado. “Como é que você pôde escrever?”, disse o conde. Pegou na mesa a Gazeta de Hamburgo. “Aqui está ela. Você não redigiu, mas traduziu, e traduziu muito mal, porque você, seu idiota, não sabe nada de francês.” O que o senhor acha disso? “Não”, diz ele, “não li nenhum jornal, eu mesmo redigi.” “Se é assim, você é um traidor, levarei você a julgamento e você será enforcado. Diga, quem lhe deu a proclamação?” “Não vi jornal nenhum, eu mesmo redigi.” E ficou nisso. O conde mandou trazer o pai dele: não adiantou nada. Foi levado a julgamento, e parece que o condenaram aos trabalhos forçados. Agora o pai veio pedir clemência para o filho. Mas o rapaz é um inútil! O senhor conhece esse tipo de filhinho de comerciante, metido, sedutor, ouve por alto uma aula ou outra e já acha que nem o diabo pode com ele. Pois ele é um rapazinho desse tipo! O pai é taberneiro aqui na ponte de Pedra, na taberna há um ícone grande de Deus Todo-Poderoso, pintado com um cetro na mão, e na outra mão, um globo; pois ele levou esse ícone para casa por alguns dias e o que foi que ele fez? Achou um pintor sem-vergonha e...

XI

No meio daquela nova história, vieram chamar Pierre para falar com o governador-geral.

Pierre entrou no gabinete do conde Rostoptchin. No momento em que Pierre entrava, Rostoptchin, de rosto franzido, estava esfregando a testa e os olhos com a mão. Um homem baixo dizia algo e, assim que Pierre entrou, calou-se e saiu do gabinete.

— Ah! Bom dia, grande combatente — disse Rostoptchin, assim que o homem saiu. — Ouvi falar de suas prouesses! Mas não se trata disso. Mon cher, entre nous, o senhor é maçom? — disse o conde Rostoptchin em tom severo, como se houvesse algo de ruim naquilo, mas que ele tinha a intenção de perdoar. Pierre ficou em silêncio. — Mon cher, je suis bien informé,32 mas sei que há maçons e maçons, e espero que o senhor não pertença àqueles que, sob o pretexto da salvação da humanidade, querem destruir a Rússia.

— Sim, sou maçom — respondeu Pierre.

— Pois é, aí está, meu caro. O senhor, eu creio, não ignora que os srs. Speránski e Magnítski foram mandados para o seu devido lugar; o mesmo foi feito com o sr. Kliutcharióv, e também com outros, que sob o pretexto de construir um templo de Salomão tentavam demolir o templo da própria pátria. O senhor pode compreender que para isso existem motivos e que eu não poderia deportar o diretor do correio da cidade se não fosse um homem nocivo. Agora mesmo eu soube que o senhor emprestou sua carruagem para levá-lo para fora da cidade e soube até que o senhor recebeu dele alguns documentos para ficarem sob sua custódia. Gosto do senhor e não desejo o seu mal e, como o senhor é duas vezes mais jovem do que eu, aconselho o senhor, como um pai, a cortar toda relação com esse tipo de pessoa a partir de agora, o mais depressa possível.

— Mas de que é culpado Kliutcharióv? — perguntou Pierre.

— Isso compete a mim saber, e não ao senhor me perguntar — gritou Rostoptchin.

— Se o acusam de ter difundido proclamações de Napoleão, isso não foi provado — disse Pierre (sem olhar para Rostoptchin) —, e Verecháguin...

— Nous y voilá — de súbito, com as sobrancelhas franzidas, Rostoptchin interrompeu Pierre, gritando ainda mais alto. — Verecháguin é um traidor e um renegado que recebeu uma pena mais do que merecida — disse Rostoptchin com o ardor da raiva com que falam as pessoas ao recordarem uma ofensa. — Mas não chamei o senhor para discutir minhas ações, e sim para lhe dar um conselho, ou uma ordem, se o senhor assim desejar. Peço ao senhor que corte relações com cavalheiros como Kliutcharióv e que vá embora da cidade. E não vou aceitar mais tolices de quem quer que seja. — E, certamente se dando conta de que estava gritando com Bezúkhov, que ainda não era culpado de nada, acrescentou, após segurar a mão de Pierre num gesto amigável: — Nous sommes à la veille d’un désastre public, et je n’ai pas le temps de dire des gentillesses à tous ceux qui ont affaire à moi. A cabeça fica rodando! Eh bien, mon cher, qu’est-ce que vous faites, vous personnellement?33

— Mais rien34 — respondeu Pierre, sempre sem levantar os olhos e sem alterar a fisionomia pensativa.

O conde franziu as sobrancelhas.

— Un conseil d’ami, mon cher. Décampez et au plus tôt, c’est tout ce que je vous dis. À bon entendeur, salut! Adeus, meu querido. Ah, sim — gritou para Pierre, na porta. — É verdade que a condessa caiu nas garras dos saints pères de la Société de Jésus?35

Pierre não respondeu e, taciturno e irritado como nunca o viam, saiu do gabinete de Rostoptchin.

Quando chegou em casa, já havia escurecido. Umas oito pessoas estavam ali naquela noite. O secretário de um comitê, o coronel do seu batalhão, o administrador, o mordomo e várias pessoas com solicitações. Todos tinham assuntos a tratar com Pierre, questões que ele precisava resolver. Pierre não entendia nada, não estava interessado naqueles assuntos e a todas as perguntas dava respostas que o livrassem daquelas pessoas. Por fim, ao se ver sozinho, rompeu o lacre e leu até o fim a carta da esposa.

“Eles... os soldados da bateria, o príncipe Andrei morto... o velho... Simplicidade é obediência a Deus. É preciso sofrer... o significado de tudo... é preciso combinar... a esposa vai casar... É preciso esquecer e compreender...” E ele, indo para a cama sem trocar de roupa, desabou sobre o leito e pegou no sono imediatamente.

Quando acordou no dia seguinte pela manhã, o mordomo veio comunicar que tinha vindo um funcionário da polícia enviado expressamente por Rostoptchin para saber se o conde Bezúkhov tinha ido embora ou se estava indo embora.

Umas dez pessoas que tinham assuntos a tratar com Pierre o aguardavam na sala. Pierre vestiu-se às pressas e, em vez de ir falar com aqueles que o esperavam, foi para a varanda dos fundos e de lá saiu pelo portão.

Desde aquele momento até o fim da destruição de Moscou, ninguém na casa de Bezúkhov, apesar de todas as buscas, viu Pierre nem soube onde ele se encontrava.

XII

Até o dia 1o de setembro, ou seja, até a véspera da entrada do inimigo em Moscou, os Rostóv ficaram na cidade.

Após o ingresso de Pétia no regimento dos cossacos de Obolénski e de sua partida para Biélaia Tsérkov, onde estava se formando aquele regimento, a condessa vivia atemorizada. O pensamento de que seus dois filhos estavam na guerra, de que os dois tinham saído de debaixo da sua asa, de que hoje ou amanhã um deles, ou quem sabe os dois juntos, como acontecera com os três filhos de uma conhecida sua, podiam ser mortos, veio-lhe à cabeça pela primeira vez naquele verão, e agora com uma nitidez cruel. Ela tentou exigir que Nikolai ficasse ao seu lado, quis ela mesma ir ao encontro de Pétia, arranjar uma vaga para ele em algum lugar em Petersburgo, mas nem uma coisa nem outra se mostrou possível. Pétia não podia voltar, senão junto ao seu regimento ou se fosse transferido para outro regimento na ativa. Nikolai estava no Exército em algum lugar e, depois da sua última carta, em que descrevia minuciosamente o encontro com a princesa Mária, não dera mais notícias. A condessa não conseguia dormir à noite e, quando adormecia, via em sonhos os filhos mortos. Depois de muitos conselhos e muitas conversas, o conde concebeu por fim um meio de acalmar a condessa. Obteve a transferência de Pétia do regimento de Obolénski para o regimento de Bezúkhov, que estava sendo formado nos arredores de Moscou. Embora Pétia fosse continuar no serviço militar, com a transferência a condessa tinha o consolo de ver pelo menos um filho sob a sua asinha e nutria a esperança de arranjar as coisas para o seu Pétia de tal modo que ele não ficasse longe e sempre fosse designado para postos onde não tivesse, de maneira nenhuma, de entrar em combate. Enquanto apenas Nicolas estava em perigo, a condessa tinha a impressão (e até se recriminava por isso) de que ela amava mais o filho mais velho do que todos os outros; porém quando o mais novo, aquele levado, que não estudava direito, que vivia quebrando coisas em casa e incomodando a todos, aquele Pétia de nariz arrebitado, com seus olhos alegres e pretos, as faces coradas com um ligeiro início de barba, foi parar no meio daqueles homens grandes, temíveis, cruéis, que brigavam lá longe e não se sabia por quê, e que ainda por cima encontravam nisso uma alegria — então a mãe teve a impressão de que ela amava aquele filho mais, imensamente mais, do que todos os outros filhos. Quanto mais próxima a data em que o esperado Pétia devia voltar para Moscou, mais aumentava a inquietação da condessa. Ela já estava pensando que nunca chegaria a ter tal felicidade. A presença não só de Sônia, mas também da querida Natacha e até do marido irritava a condessa. “Para que eu quero todos eles, não preciso de ninguém, a não ser de Pétia!”, pensava.

Nos últimos dias de agosto, os Rostóv receberam a segunda carta de Nikolai. Ele escreveu da província de Voróniej, para onde fora enviado a fim de conseguir cavalos. A carta não tranquilizou a condessa. Saber que um filho estava fora de perigo a deixava ainda mais aflita com Pétia.

Apesar de quase todos os conhecidos dos Rostóv terem deixado Moscou desde o dia 20 de agosto, apesar de todos tentarem persuadir a condessa a partir o mais depressa possível, ela não queria saber de partir enquanto não voltasse o seu tesouro, o adorado Pétia. No dia 28 de agosto, Pétia chegou. O carinho doentiamente apaixonado com que a mãe o recebeu não agradou ao oficial de dezesseis anos. Apesar de a mãe esconder do filho sua intenção de não permitir mais que ele saísse de debaixo de sua asinha, Pétia entendeu logo os planos da mãe e temia instintivamente ficar muito apegado aos carinhos da mãe, virar mulherzinha (assim ele mesmo pensava), e tratava a mãe com frieza, evitava-a e, durante a sua estada em Moscou, ficava quase exclusivamente na companhia de Natacha, pela qual sempre tivera uma afeição singular, fraternal e quase enamorada.

No dia 28 de agosto, por um descuido habitual do conde, nada ainda estava pronto para a partida, e as carroças, que eram esperadas de suas propriedades de Riazan e de Moscou, a fim de retirar de casa todos os pertences da família, só chegaram no dia 30.

De 28 a 31 de agosto, Moscou inteira ficou num estado de agitação e de confusão. Todos os dias milhares de feridos na batalha de Borodinó eram trazidos aos portões de Dorogomílov e levados para todas as partes da cidade, e milhares de carroças com habitantes e seus pertences saíam pelos outros portões. Apesar dos panfletos de Rostoptchin, por indiferença a eles ou por causa deles, as notícias mais contraditórias e estranhas se espalhavam pela cidade. Uns diziam que não iam deixar ninguém sair da cidade; outros, ao contrário, contavam que todos os ícones tinham sido retirados das igrejas e que todas as pessoas seriam retiradas da cidade à força; outros diziam que tinha havido outra batalha perto de Borodinó e que os franceses tinham sido arrasados; outros, ao contrário, diziam que todas as tropas russas tinham sido aniquiladas; outros falavam da milícia de Moscou, que iria se colocar, junto com o clero, à frente de Tri Góri; outros, na surdina, diziam que Avgustin não teria permissão para partir, que traidores tinham sido capturados, que os mujiques estavam se rebelando e assaltando os que partiam da cidade etc. etc. Mas isso era só o que falavam; na verdade, tanto os que partiam quanto os que ficavam (apesar de não ter havido ainda o conselho de guerra em Fili, no qual seria decidido que era preciso abandonar Moscou) — todos sentiam, embora não o dissessem, que Moscou iria se render forçosamente e que era preciso ir embora o quanto antes e salvar seus pertences. Sentiam que, de uma hora para a outra, tudo havia de se desfazer e se modificar, mas até o dia 1o de setembro nada ainda havia mudado. Assim como um criminoso levado ao suplício sabe que dali a pouco chegará o seu fim, e apesar disso ainda olha à sua volta e ajeita na cabeça o chapéu mal colocado, também Moscou involuntariamente prosseguia sua vida habitual, embora soubesse que estava próxima a hora do fim, quando se fariam em pedaços as relações de vida convencionais, às quais as pessoas estavam habituadas a se sujeitar.

No decorrer daqueles três dias que antecederam a captura de Moscou, toda a família Rostóv se achava ocupada com diversas preocupações práticas. O cabeça da família, o conde Iliá Andreitch, rodava a cidade sem cessar em busca dos rumores que vinham de todos os lados e, em casa, dava ordens vagas, superficiais e afobadas quanto aos preparativos da partida.

A condessa acompanhava a arrumação das coisas, estava insatisfeita com tudo e vivia o tempo todo atrás do seu Pétia, cheia de inveja de Natacha, com quem ele passava todo o tempo. Apenas Sônia tomava conta dos assuntos práticos: a arrumação das coisas para a viagem. Mas Sônia andava especialmente triste e calada ultimamente. A carta de Nicolas, na qual ele mencionava a princesa Mária, despertou especulações alegres da condessa, que disse, em presença de Sônia, que via no encontro da princesa Mária com Nicolas a mão da Providência divina.

— Nunca senti alegria — disse a condessa — com o noivado entre Bolkónski e Natacha, mas sempre desejei, e é esse o meu pressentimento, que Nikólienka se casasse com a princesa. Como seria bom!

Sônia sentia que aquilo era verdade, que a única possibilidade de resolver a situação financeira dos Rostóv era um casamento com uma noiva rica e que a princesa era um bom partido. Mas, para ela, era muito amargo. Apesar de sua tristeza ou, talvez, exatamente por causa de sua tristeza, Sônia assumia todas as tarefas difíceis na organização da retirada e do empacotamento das coisas e ficava ocupada dias inteiros. O conde e a condessa se dirigiam a ela quando era preciso dar alguma ordem. Pétia e Natacha, ao contrário, não só não ajudavam os pais como, na maioria das vezes, incomodavam e atrapalhavam todos em casa. E quase o dia inteiro se ouviam na casa suas corridas, seus gritos e suas risadas gratuitas. Riam e se divertiam sem que houvesse nenhum motivo de riso; mas tinham uma alegria e uma exaltação na alma, e por isso qualquer coisa que acontecia, por pouco que fosse, era para eles motivo de alegria e de riso. Pétia estava alegre porque, tendo saído de casa menino, voltara (como todos lhe diziam) um belo rapaz; estava alegre porque estava em casa e porque, de Biélaia Tsérkov, onde não se esperava nenhuma batalha em breve, ele viera parar em Moscou, onde em poucos dias iriam entrar em combate; e sobretudo estava alegre porque Natacha, cujo estado de espírito ele sempre acompanhava, estava alegre. Por sua vez, Natacha estava alegre porque havia ficado triste por muito tempo e agora nada lhe trazia à lembrança a causa da sua tristeza, e ela estava saudável. Além disso Natacha estava alegre porque havia uma pessoa que a adorava (a adoração dos outros era o lubrificante das engrenagens indispensável para que o mecanismo de Natacha se movimentasse com liberdade), e Pétia a adorava. Acima de tudo, os dois estavam alegres porque a guerra estava nas proximidades de Moscou, ia haver combate nos portões da cidade, armas iam ser distribuídas, todos iam fugir, estavam partindo não se sabia para onde, estava acontecendo algo totalmente fora do comum, e isso é sempre uma alegria, em especial para um jovem.

XIII

No dia 31 de agosto, um sábado, na casa dos Rostóv tudo parecia de pernas para o ar. Todas as portas estavam escancaradas, todos os móveis tinham sido removidos ou haviam mudado de lugar, os espelhos e os quadros tinham sido retirados das paredes. Nos quartos havia arcas, feno espalhado, papel de embrulho e cordas. Os mujiques e os servos domésticos, carregando objetos, andavam a passos pesados no soalho. Carroças de mujiques aglomeravam-se no pátio, algumas já carregadas até em cima e amarradas, e outras ainda vazias.

As vozes e os passos da enorme criadagem e dos mujiques que chegavam com carroças ressoavam, e eles gritavam uns para os outros no pátio e dentro da casa. O conde, desde a manhã, tinha ido não se sabia para onde. A condessa, que estava com dor de cabeça por causa do tumulto e do barulho, estava deitada num sofá novo com uma compressa banhada em vinagre na cabeça. Pétia não estava em casa (tinha ido visitar um camarada seu, com quem pretendia obter uma transferência da milícia para o exército regular). Sônia estava na sala cuidando do empacotamento dos cristais e das porcelanas. Natacha estava sentada no chão do seu quarto todo desmontado, entre vestidos, fitas e xales espalhados e, olhando imóvel para o chão, segurava nas mãos um velho vestido de baile, o mesmo (já fora de moda) em que tinha ido pela primeira vez a um baile em Petersburgo.

Natacha sentia vergonha de não fazer nada em casa, quando todos se mostravam tão ocupados, e por diversas vezes, desde a manhã, havia tentado se envolver nos afazeres; mas seu espírito não estava voltado àqueles afazeres; e ela não podia e não era capaz de realizar nada senão com todo o seu espírito, com todas as suas energias. Tinha se colocado ao lado de Sônia na hora de embalar as porcelanas, queria ajudar, mas logo desistiu e foi para o quarto embalar suas coisas. De início alegrou-se por distribuir seus vestidos e suas fitas para as criadas, mas depois, quando ainda assim foi necessário embalar tudo o que restara, isso lhe pareceu maçante.

— Duniacha, você arruma para mim, querida? Está bem? Está bem?

E, quando Duniacha prontamente prometeu fazer tudo, Natacha sentou-se no chão, segurou nas mãos o vestido antigo e se pôs a pensar em coisas completamente diferentes daquilo que deveria preocupá-la no momento. Daquelas reflexões em que estava absorta, Natacha foi despertada pelas vozes das servas domésticas no quarto das criadas, contíguo ao seu, e pelo barulho dos seus passos afobados, que foram do quarto das criadas para a varanda dos fundos. Natacha levantou-se e olhou pela janela. Na rua, estava parado um imenso comboio de feridos.

As criadas, os lacaios, a governanta, a babá, o cozinheiro, os cocheiros, os mensageiros, os ajudantes de cozinha estavam parados no portão, olhando para os feridos.

Natacha pôs o lenço branco sobre os cabelos e, segurando o lenço pelas pontas com as duas mãos, saiu para a rua.

A antiga governanta, a velha Mavra Kuzmínichna, destacou-se da multidão que se achava no portão e, aproximando-se de uma carroça com toldo feito de esteira de casca de tília, falou com um jovem oficial pálido, deitado dentro da carroça. Natacha adiantou-se alguns passos e parou, tímida, ainda segurando o lenço sobre a cabeça, e tentou escutar o que a governanta dizia.

— Quer dizer que você não tem ninguém aqui em Moscou? — disse Mavra Kuzmínichna. — O senhor ficaria mais confortável em alguma casa... Quem sabe não podia ser na nossa mesmo? Os patrões estão indo embora.

— Não sei se iam permitir — respondeu o oficial, com voz fraca. — O comandante está ali... pergunte a ele — e apontou para um major gordo que vinha retornando pela rua, junto à fileira de carroças.

Com olhos assustados, Natacha lançou um olhar para o rosto do oficial ferido e logo em seguida caminhou na direção do major.

— Os feridos não podem ficar na nossa casa? — perguntou ela.

Com um sorriso, o major pôs a mão na pala do quepe.

— Qual deles lhe agrada, senhorita? — disse o major, sorrindo e estreitando os olhos.

Natacha repetiu a pergunta com tranquilidade, e seu rosto e toda a sua atitude, apesar de continuar segurando o lenço pelas pontinhas sobre a cabeça, estavam tão sérios que o major parou de sorrir e, depois de refletir um momento, como se perguntasse a si mesmo em que medida aquilo era possível, respondeu afirmativamente.

— Ah, sim, pode sim, como não — disse ele.

Natacha inclinou a cabeça de leve e, a passos ligeiros, voltou na direção de Mavra Kuzmínichna, que estava ao lado do oficial e conversava com ele, cheia de compaixão.

— Pode, sim, ele disse que pode! — falou Natacha, num sussurro.

A carroça coberta do oficial virou e entrou no pátio da casa dos Rostóv, e a pedido dos habitantes da cidade dezenas de carroças com feridos começaram a entrar nos pátios das casas da rua Povarskaia. Natacha obviamente estava gostando muito daquelas relações com pessoas novas, alheias às condições de vida habituais. Ela e Mavra Kuzmínichna tentavam abrigar no seu pátio o maior número possível de feridos.

— Mas vai ser preciso avisar o seu pai — disse Mavra Kuzmínichna.

— Não tem importância, não tem importância, não faz diferença! Por um dia, vamos ficar na sala. Podemos ceder a eles nossa parte da casa.

— Ora, veja lá, patroazinha, pense bem! Mesmo no anexo, no quarto dos criados solteiros, no quarto da babá ou em qualquer outro, vai ser preciso pedir permissão.

— Está bem, vou pedir.

Natacha correu para a casa e entrou na ponta dos pés pela porta entreaberta da sala de estar, de onde vinha um odor de vinagre e de gotas de Hoffman.36

— Está dormindo, mamãe?

— Ah, que sono! — disse a condessa, acordando naquele instante.

— Mamãe, querida — disse Natacha, pondo-se de joelhos na frente da mãe e aproximando seu rosto do rosto da mãe. — Desculpe, por favor, me desculpe, nunca mais vou acordar a senhora. Mavra Kuzmínichna me mandou vir aqui, trouxeram feridos para cá, oficiais, a senhora deixa, não deixa? Eles não têm para onde ir; sei que a senhora vai deixar... — falou Natacha depressa, num só fôlego.

— Que oficiais? Quem foi que trouxeram? Não estou entendendo nada — disse a condessa.

Natacha deu uma risada, a condessa também sorriu de leve.

— Eu sei que a senhora vai deixar... Vou lá dizer isso. — E Natacha, depois de dar um beijo na mãe, levantou-se e foi para o pátio.

No salão, encontrou o pai, que voltava para casa com notícias ruins.

— Demoramos demais a partir! — disse o conde, que não pôde conter a irritação. — O clube está fechado, e até a polícia está indo embora.

— Papai, não tem importância se eu convidar os feridos para ficar em nossa casa? — disse Natacha.

— Claro que não — disse o conde, distraído. — O problema não é esse, e agora peço que não se preocupe com bobagens e ajude a embalar nossas coisas para irmos embora, embora, e nós vamos embora amanhã... — E o conde deu ordens nesse sentido para o mordomo e para os criados. Na hora do jantar, Pétia voltou e contou suas novidades.

Disse que naquele momento o povo estava apanhando armas no Krêmlin, que embora num panfleto de Rostoptchin estivesse dito que ele daria um grito de alarme com um ou dois dias de antecedência, certamente já tinham sido tomadas providências para que no dia seguinte todo o povo fosse para Tri Góri com as armas e que lá ocorreria uma grande batalha.

A condessa, com um horror tímido, observava o rosto alegre e afogueado do filho no momento em que dizia aquilo. Ela sabia que, se dissesse qualquer palavra pedindo que Pétia não fosse àquela batalha (sabia que ele se alegrava com a batalha iminente), Pétia iria falar qualquer coisa sobre os homens, a honra, a pátria — alguma coisa absurda, masculina, obstinada, contra a qual era impossível fazer qualquer objeção, e a causa da condessa estaria perdida, e por isso, na esperança de arranjar tudo de tal modo que pudesse escapar daquilo e levar Pétia consigo, como sua defensora e guardiã, ela nada disse para Pétia, mas depois do jantar chamou o conde e, com lágrimas, implorou que ele levasse Pétia embora o quanto antes, naquela mesma noite se possível. Com uma astúcia feminina involuntária, ela, que até então demonstrara um perfeito destemor, disse que morreria de medo se eles não partissem da cidade naquela mesma noite. A condessa, sem fingimentos, agora tinha medo de tudo.

XIV

Mme Schoss, que tinha ido visitar a filha, aumentou mais ainda o temor da condessa com relatos sobre o que tinha visto na rua Miasnitskaia, num empório de bebidas. Ao voltar pela rua, a caminho de casa, ela não pôde passar por causa da multidão bêbada que se revoltara na frente do empório. Pegou um coche de praça e tomou um desvio por uma travessa para poder chegar em casa; e o cocheiro lhe disse que o povo tinha arrebentado os barris do empório de bebidas, que aquela era a ordem que haviam recebido.

Depois do jantar, com uma afobação alvoroçada, todos na casa dos Rostóv cuidaram de embalar os objetos da casa e de fazer os preparativos para a partida. O velho conde, que de repente resolvera pôr mãos à obra, depois do jantar não parava de ir e voltar entre o pátio e a casa, gritando de modo incoerente para os criados cheios de pressa, apressando-os ainda mais. Pétia dava ordens no pátio. Sônia não sabia o que fazer sob a influência das ordens contraditórias do conde e ficava totalmente desnorteada. Os criados, gritando, discutindo e fazendo barulho, corriam pelos cômodos e pelo pátio. Natacha, com o ardor característico que mostrava em todas as situações, de repente também pôs mãos à obra. De início, sua interferência nos trabalhos foi recebida com desconfiança. Dela, todos esperavam brincadeiras e não queriam lhe dar ouvidos; mas ela, com obstinação e ardor, exigia obediência, zangava-se, ficava à beira de chorar por não lhe darem ouvidos e, por fim, conseguiu que confiassem nela. Sua primeira proeza, que custou enormes esforços e lhe deu autoridade, foi o empacotamento dos tapetes. O conde possuía em casa caros tapetes gobelins e tapetes persas. Quando Natacha se lançou ao trabalho, no salão havia duas arcas abertas: uma cheia de porcelanas quase até a boca, a outra com tapetes. Ainda havia muita louça sobre as mesas e muito mais louças não paravam de ser trazidas dos armários. Era preciso começar a arrumar outra arca, a terceira, e os criados foram buscá-la.

— Sônia, espere, vamos arrumar tudo aqui — disse Natacha.

— Impossível, patroazinha, já tentamos — disse um copeiro.

— Não, espere, por favor. — E Natacha começou a retirar da arca pratos e travessas envoltos em papel. — As travessas têm de ir aqui, dentro dos tapetes — disse ela.

— Já vai ser uma graça de Deus se a gente conseguir pôr só os tapetes em três arcas — disse o copeiro.

— Espere, espere, por favor. — E Natacha, rapidamente, com destreza, começou a arrumar. — Isso não precisa — disse ela, indicando uns pratos de Kíev. — Isto aqui, sim, isto vai dentro dos tapetes — disse, referindo-se a umas travessas da Saxônia.

— Deixe disso, Natacha; agora chega, nós vamos arrumar — disse Sônia, em tom de censura.

— Eh, patroazinha! — disse o velho lacaio. Mas Natacha não se rendia, retirava todas as coisas e rapidamente recomeçava a arrumar, decidindo que não era preciso levar os surrados tapetes feitos em casa e a louça comum. Quando tudo havia sido retirado, começavam a guardar outra vez. E de fato, depois de pôr de lado quase tudo o que era barato, tudo aquilo que não valia a pena levar, todas as coisas de valor couberam em duas arcas. Só a tampa da arca dos tapetes não queria fechar. Era possível ainda retirar algumas coisas, mas Natacha fazia questão de que aquilo fosse feito à sua maneira. Ajeitou, mudou de lugar, apertou, obrigou o copeiro e Pétia, que ela havia convocado para a tarefa da arrumação das arcas, a apertarem a tampa e ela mesma fez um esforço desesperado.

— Agora chega, Natacha — disse Sônia. — Estou vendo que você tem razão, mas é só tirar alguma coisinha que está por cima.

— Não quero — gritou Natacha, segurando com uma mão os cabelos soltos sobre o rosto suado, enquanto com a outra mão comprimia os tapetes. — Vamos lá, Pétia, aperte mais, aperte! Vassílitch, vamos apertar! — gritava. Os tapetes se espremeram, e a tampa se fechou. Natacha, batendo palmas, dava gritos de alegria, e surgiram lágrimas em seus olhos. Mas isso durou só um segundo. Num instante ela foi tratar de outro assunto, e agora já confiavam nela inteiramente, e o conde não se zangou quando lhe disseram que Natália Ilínitchna havia alterado as ordens dele, e os criados vinham perguntar a Natacha: deviam amarrar as coisas na carroça? Já estava carregada o suficiente? Os trabalhos andaram mais depressa graças às ordens de Natacha: as coisas desnecessárias foram deixadas de fora, e as coisas mais caras foram arrumadas da maneira mais compacta possível.

Porém, por mais que todos se empenhassem, nem tudo estava arrumado quando já era tarde da noite. A condessa havia adormecido, e o conde, adiando a partida para a manhã, foi dormir.

Sônia e Natacha dormiram na saleta, sem trocar de roupa.

Naquela noite, ainda mais um ferido foi trazido pela rua Povarskaia, e Mavra Kuzmínichna, que estava parada junto ao portão, abrigou-o na casa dos Rostóv. Aquele ferido, segundo as especulações de Mavra Kuzmínichna, era um homem muito importante. Era transportado num coche com a capota fechada, totalmente coberto por um avental. Na boleia, junto com o cocheiro, vinha sentado um velho camareiro de ar venerável. Atrás, numa charrete, vinham um médico e dois soldados.

— Por favor, fiquem em nossa casa, por favor. Os patrões vão partir, a casa toda vai ficar vazia — disse a velha, dirigindo-se ao velho serviçal.

— Ah, sim, pode ser — respondeu o camareiro, suspirando. — Parece que não vamos chegar em casa com ele vivo! Temos nossa casa em Moscou, mas está longe, e não tem ninguém lá.

— Os senhores nos deem a honra de ficar em nossa casa, tem de tudo na casa de nossos senhores, por favor — disse Mavra Kuzmínichna. — Mas o que há, ele está muito mal? — acrescentou ela.

O camareiro sacudiu a mão no ar.

— Achamos que nem ia chegar até aqui! Tenho de perguntar ao médico se pode. — E o camareiro desceu da boleia e foi até a charrete.

— Está certo — disse o médico.

O camareiro voltou para o coche, lançou um olhar para ela, balançou a cabeça, mandou o cocheiro virar e entrar no pátio e se deteve ao lado de Mavra Kuzmínichna.

— Nosso Senhor Jesus Cristo! — exclamou ela.

Mavra Kuzmínichna sugeriu que levassem o ferido para dentro de casa.

— Os patrões não vão reclamar... — disse ela. Mas era preciso evitar que subissem a escada, e por isso levaram o ferido para o anexo da casa e o puseram no antigo quarto de Mme Schoss. Aquele ferido era o príncipe Andrei Bolkónski.

XV

Havia chegado o último dia de Moscou. Era um dia claro e alegre de outono. Era domingo. Como acontecia nos domingos comuns, os sinos tocavam em todas as igrejas, chamando para a missa. Parecia que ninguém ainda era capaz de compreender o que aguardava Moscou.

Só dois sinais do estado da sociedade indicavam a situação em que se achava Moscou: o populacho, ou seja, a classe das pessoas pobres, e o preço das coisas. A imensa multidão de trabalhadores fabris, de criados e de mujiques, à qual se misturavam funcionários públicos, seminaristas, nobres, tinha saído naquele dia, de manhã cedo, rumo a Tri Góri. Depois de esperar por Rostoptchin, que lá não apareceu, e tendo se convencido de que Moscou seria entregue ao inimigo, aquela multidão se espalhou por Moscou, pelas lojas de bebidas e pelas tabernas. Os preços naquele dia também indicavam a situação geral. O preço das armas, do ouro, das carroças e dos cavalos não parava de subir, enquanto o valor do papel-moeda e dos artigos de uso comum na cidade não paravam de baixar, de tal modo que na metade do dia houve casos de cocheiros que pegaram objetos caros, como tecidos, e trocaram por coisas que valiam a metade do preço daqueles objetos, ao passo que um cavalo de mujique podia ser vendido por quinhentos rublos; já móveis, espelhos, objetos de bronze eram oferecidos de graça.

Na antiga e imponente casa dos Rostóv, a desintegração das condições de vida anteriores se manifestava de maneira muito fraca. Em relação aos criados, acontecera apenas que, naquela noite, entre a vasta criadagem, três homens foram embora; mas nada tinha sido roubado; e quanto ao valor dos bens da família parecia que as trinta carroças vindas das aldeias dos Rostóv valiam uma enorme fortuna, alvo da inveja de muitos, pelas quais ofereceram imensas somas de dinheiro; desde a tarde anterior até a manhã do dia 1o de setembro, ordenanças e criados de vários oficiais feridos foram enviados ao pátio da casa dos Rostóv, também se arrastaram até lá os próprios feridos que estavam instalados na casa dos Rostóv e em casas vizinhas e suplicaram aos servos dos Rostóv que conseguissem com os patrões a cessão de carroças para poderem deixar Moscou. O mordomo a quem dirigiam tais pedidos, embora tivesse pena dos feridos, negava categoricamente, dizendo que não se atrevia sequer a mencionar o assunto ao conde. Por mais que aqueles feridos dessem pena, era evidente que, se cedessem uma carroça, não haveria motivo para não cederem outra, e todas elas — ceder até as carruagens da família. Trinta carroças não poderiam salvar todos os feridos e, numa catástrofe generalizada, era impossível não pensar em si e em sua família. Assim o mordomo pensava em favor do seu patrão.

Ao acordar na manhã do dia 1o, o conde Iliá Andreitch saiu do quarto sem fazer barulho a fim de não acordar a condessa, que só pegara no sono ao amanhecer, e no seu roupão lilás de seda saiu para a varanda. As carroças estavam no pátio, com as bagagens amarradas. Junto à varanda, estavam as carruagens. O mordomo estava parado perto da entrada, conversando com um velho ordenança e com um oficial jovem, pálido, de braço enfaixado. O mordomo, ao ver o conde, fez com a mão um sinal severo e enfático ao oficial e ao ordenança, para que fossem embora.

— E então, está tudo pronto, Vassílitch? — perguntou o conde, esfregando a careca, olhando com simpatia para o oficial e para o ordenança e inclinando a cabeça para eles. (O conde gostava de caras novas.)

— Se quiser, podemos atrelar os cavalos agora mesmo, vossa excelência.

— Puxa, que ótimo, assim que a condessa acordar, e que Deus nos ajude! E o senhor, quem é? — dirigiu-se ao oficial. — Está na minha casa? — O oficial chegou mais perto. Seu rosto pálido se inflamou de repente com um vermelho-claro.

— Conde, faça a gentileza, permita que eu... pelo amor de Deus... parta para algum lugar nas carroças do senhor. Não tenho nada aqui comigo... Não me importo... de ir numa carroça... — Mal o oficial terminara de falar, o ordenança dirigiu-se ao conde com o mesmo pedido, agora em favor do seu senhor.

— Ah! Sim, sim, sim — exclamou o conde às pressas. — Com todo o prazer, todo o prazer. Vassílitch, providencie para liberar uma ou duas carroças, ora, como não... pois então... o que for necessário... — disse o conde, dando ordens vagas com expressões indefinidas. Mas naquele momento a expressão ardente de gratidão do oficial logo definiu melhor o que ele havia ordenado. O conde olhou à sua volta: no pátio, no portão, na janela do anexo, viam-se feridos e ordenanças. Todos olhavam para o conde e se aproximavam da varanda.

— Por favor, vossa excelência, venha à galeria: quais são as suas ordens a respeito dos quadros? — perguntou o mordomo. E o conde entrou na casa junto com ele, repetindo sua ordem de não negar um lugar aos feridos que pedissem para partir.

— Ora, afinal, podemos nos desfazer de algumas coisas — acrescentou em voz baixa e misteriosa, como se receasse que alguém o ouvisse.

Às dez horas a condessa acordou, e Matriona Timoféievna, sua ex-criada de quarto, que cumpria em relação à condessa a função de chefe de polícia, veio comunicar à ex-patroa que Mária Karlovna estava muito aborrecida e que não podiam deixar para trás os vestidos de verão das patroazinhas. Ao apurar por que Mme Schoss estava aborrecida, a condessa descobriu que haviam retirado sua arca de uma carroça e que estavam descarregando todas as carroças — retiravam os pertences da família e em seu lugar iam colocar os feridos, que o conde, em sua inocência, dera ordens para transportar. A condessa mandou chamar o marido.

— O que é isso, meu amigo? Disseram que estão tirando as coisas das carroças?

— Veja, ma chère, eu queria mesmo lhe dizer... ma chère condessazinha... um oficial veio falar comigo, pediram para ceder algumas carroças aos feridos. Afinal, tudo isso são coisas que podemos substituir; e como é que vamos deixar essa gente para trás, imagine só!... Na verdade, eles estão em nossa casa, fomos nós que os chamamos, os oficiais estão aqui... Entende, eu creio, na verdade, ma chère, pois é, ma chère... vamos deixar que eles partam nas carroças... também não há tanta pressa assim... — O conde falou isso de modo tímido, como sempre falava quando o assunto era dinheiro. A condessa por sua vez já estava acostumada com aquele tom, que sempre pressagiava um negócio ruinoso para os filhos, como a construção de alguma galeria ou estufa de plantas, a montagem de uma peça de teatro ou de um concerto musical dentro de casa — a condessa estava acostumada e considerava sua obrigação sempre se contrapor ao que fosse dito naquele tom tímido.

Ela adotou sua fisionomia submissa e chorosa e disse para o marido:

— Escute, conde, você levou as coisas a uma situação em que ninguém nos dará nada pela casa, e agora também quer aniquilar todas as nossas coisas, o patrimônio dos nossos filhos. Meu amigo, eu não concordo, não concordo. Você é que manda! Para os feridos, existe o governo. Eles sabem. Veja bem: os Lopukhin, em frente a nós, levaram tudo o que tinham há dois dias. É assim que as pessoas agem. Só nós somos tolos. Tenha pena, se não de mim, pelo menos dos nossos filhos.

O conde abanou os braços e, sem nada dizer, saiu.

— Papai! O que o senhor está fazendo? — perguntou Natacha, que tinha vindo para o quarto da mãe atrás dele.

— Nada! Não é da sua conta! — exclamou o conde, zangado.

— Não, eu escutei — disse Natacha. — Por que a mamãe não quer?

— O que você tem a ver com isso? — gritou o conde. Natacha foi até a janela e pensou um pouco.

— Papai, Berg está chegando à nossa casa — disse ela, olhando pela janela.

XVI

Berg, genro dos Rostóv, já era coronel, com as medalhas de Vladímir e de Anna no pescoço, e continuava a ocupar o mesmo posto tranquilo e agradável de auxiliar de um comandante no Estado-Maior, auxiliar do comandante da primeira seção do Estado-Maior do segundo corpo do exército.

No dia 1o de setembro, ele veio do exército para Moscou.

Nada tinha a fazer em Moscou; mas notou que todos no exército pediam para ir a Moscou e lá faziam alguma coisa. Julgou que era necessário também pedir licença para tratar de assuntos domésticos e familiares.

Berg, em sua caleche elegante, puxada por uma parelha de cavalos bem nutridos, iguais aos de um príncipe, vinha na direção da casa do sogro. Observou atentamente as carroças espalhadas pelo pátio e, ao entrar na varanda, pegou um lenço limpo e nele deu um nó.

Do vestíbulo, num passo flutuante, impaciente, ele adentrou correndo a sala e abraçou o conde, beijou as mãozinhas de Natacha e de Sônia e, apressadamente, perguntou pela saúde da mamãe.

— Como vamos pensar na saúde numa ocasião como esta? E então, me conte — disse o conde. — O que vai fazer o exército? Vai recuar ou vai haver mais uma batalha?

— Só Deus eterno, papai — respondeu Berg —, pode decidir o destino da pátria. O exército arde com um espírito de heroísmo, e agora os chefes, provavelmente, estão reunidos num conselho de guerra. O que vai acontecer não se sabe. Mas garanto ao senhor que, em termos gerais, papai, tamanho espírito heroico e essa autêntica bravura ancestral do Exército russo, que ele... eles — Berg tentou se corrigir — provaram ou mostraram na batalha do dia 26, não existem palavras capazes de descrever essas coisas... Garanto ao senhor, papai (bateu no próprio peito, assim como havia feito um general ao falar na sua frente, embora com certo atraso, porque era preciso bater no peito ao dizer as palavras “Exército russo”), garanto ao senhor francamente que nós, os comandantes, não só não precisamos incentivar os soldados a lutar nem fazer nada parecido, como tivemos até de conter à força essas, essas... sim... proezas de uma bravura ancestral — disse, falando depressa. — O general Barclay de Tolly pôs em risco a própria vida em toda parte à frente das tropas, garanto ao senhor. O nosso corpo de exército ficou estacionado na encosta de um morro. O senhor pode imaginar! — E então Berg contou tudo o que lembrava dos diversos relatos que ouvira na ocasião. Natacha, com um olhar fixo que constrangia Berg, fitava-o como se procurasse em seu rosto a solução para um problema.

— Um heroísmo tão grande e tão generalizado como o demonstrado pelas tropas russas é impossível de imaginar e de louvar o bastante! — disse Berg, olhando para Natacha e, como se quisesse lisonjeá-la, sorria para ela, em resposta ao seu olhar obstinado... — “A Rússia não está em Moscou, está no coração de seus filhos!” Não é isso, papai? — disse Berg.

Naquele momento, da saleta, com um ar cansado e descontente, veio a condessa. Berg levantou-se de um pulo e, às pressas, beijou a mão da condessa, perguntou sobre a sua saúde e, expressando sua condolência com um meneio de cabeça, ficou parado ao lado dela.

— Sim, mamãe, garanto à senhora com toda a franqueza, são tempos difíceis e penosos para todos os russos. Mas para que inquietar-se tanto? Vocês ainda terão tempo para partir...

— Não entendo o que as pessoas estão fazendo — disse a condessa, voltando-se para o marido —, me disseram agora que ainda não está nada pronto. É preciso que alguém tome providências. Numa hora dessas é que lamento a falta de Mítienka. Isso não vai ter fim!

O conde quis falar alguma coisa, mas obviamente se conteve. Levantou-se da cadeira e foi até a porta.

Berg, naquele instante, como que para assoar o nariz, pegou o lenço e, olhando para o nó, refletiu um momento e balançou a cabeça com ar tristonho e significativo.

— Ah, tenho um pedido importante a fazer ao senhor, papai — disse.

— Hm?... — falou o conde, parando.

— Passei agora mesmo pela casa de Iussúpov — disse Berg, rindo. — O administrador lá é meu conhecido, veio correndo e perguntou: o senhor não quer comprar uma coisa? Entrei por curiosidade, entende, e lá havia uma comodazinha e um lavatório. O senhor sabe como a Véruchka deseja esses móveis e como nós dois discutimos por causa disso. (Quando começou a falar da comodazinha e do lavatório, Berg não pôde deixar de adotar um tom de alegria pelo próprio conforto.) Que encanto! O móvel se abre sozinho e tem um compartimento secreto inglês, sabe? Há muito tempo que Vérotchka quer essa peça. Assim, eu gostaria de lhe fazer uma surpresa. Vi na casa do senhor tantos mujiques com carroças no pátio. Ceda-me uma só, por favor, pagarei bem por isso e...

O conde franziu o rosto e tossiu de leve.

— Peça para a condessa, não sou eu quem dá as ordens.

— Se for difícil, por favor, pode deixar — disse Berg. — Eu só queria muito fazer isso por causa da Véruchka.

— Ah, que todos vocês vão para o diabo, para o diabo, para o diabo!... — começou a gritar o velho conde. — Minha cabeça está rodando. — E saiu da sala.

A condessa começou a chorar.

— Sim, sim, mamãe, são tempos muito penosos! — disse Berg.

Natacha saiu junto com o pai e, como se tivesse tomado uma decisão difícil, foi de início atrás dele, mas depois desceu a escada correndo.

Na varanda estava Pétia, ocupado em distribuir armas para as pessoas que iam sair de Moscou. No pátio, as carroças carregadas continuavam em seu lugar. As cordas de duas delas tinham sido soltas, e numa delas estavam embarcando um oficial, amparado por um ordenança.

— Você sabe por quê? — perguntou Pétia para Natacha (Natacha entendeu que Pétia queria dizer: por que o pai tinha discutido com a mãe). Ela não respondeu. — É porque o papai quis ceder todas as carroças aos feridos — disse Pétia. — Vassílitch me contou. Para mim...

— Para mim — quase gritou Natacha de repente, voltando seu rosto enraivecido para Pétia —, para mim isso é um horror tão grande, uma abominação tão grande, um... nem sei! Por acaso nós somos alemães?... — Sua garganta começou a tremer com soluços espasmódicos, e ela, temendo disparar à toa a carga da sua raiva, virou-se e precipitou-se com ímpeto pela escada. Berg estava sentado ao lado da condessa e a consolava de forma respeitosa e filial. O conde, com um cachimbo nas mãos, caminhava pelo cômodo, quando Natacha, com o rosto desfigurado pela raiva, irrompeu como um furacão e, a passos ligeiros, aproximou-se da mãe.

— É um horror! É uma abominação! — começou a gritar. — Não pode ser isso o que a senhora ordenou.

Berg e a condessa fitaram Natacha com perplexidade e susto. O conde parou junto à janela e escutou com atenção.

— Mãezinha, não é possível; veja o que está acontecendo no pátio! — começou a gritar Natacha. — Eles vão ser deixados para trás!...

— O que deu em você? Eles, quem? O que você quer?

— Os feridos, é deles que estou falando! Não é possível, mãezinha; é uma coisa que nunca se viu... Não, mãezinha, querida, não é assim, desculpe, por favor, querida... Mãezinha, mas para que precisamos das coisas que estamos levando, veja o que está acontecendo no pátio... Mãezinha!... Não é possível!...

O conde ficou parado junto à janela e, sem virar o rosto, escutava as palavras de Natacha. De repente fungou e chegou o rosto mais perto da janela.

A condessa lançou um olhar para a filha, viu seu rosto cheio de vergonha pela mãe, viu sua emoção, compreendeu por que o marido agora não estava olhando para ela e, com ar encabulado, olhou à sua volta.

— Ah, então façam como quiserem! Por acaso estou impedindo alguém? — disse ela, ainda sem se render de todo.

— Mãezinha, querida, me desculpe!

Mas a condessa afastou a filha e se aproximou do conde.

— Mon cher, tome as providências necessárias... Não entendo mesmo disso — falou, baixando os olhos com ar de culpa.

— Os ovos... os ovos dão lições à galinha... — exclamou o conde entre lágrimas de felicidade e abraçou a esposa, que ficou feliz de esconder o rosto envergonhado no peito do marido.

— Paizinho, mãezinha! Posso cuidar de tudo? Posso? — perguntou Natacha. — E mesmo assim ainda vamos levar tudo o que é mais necessário... — disse Natacha.

O conde balançou afirmativamente a cabeça para ela, e Natacha, com a corrida rápida com que antes brincava de pega-pega, atravessou a sala, passou pela antessala e desceu a escada rumo ao pátio.

Os criados se reuniram ao redor de Natacha e não conseguiram acreditar na ordem estranha que ela estava transmitindo, até que o próprio conde, em nome da esposa, repetiu as ordens de ceder todas as carroças aos feridos e guardar as arcas nos depósitos. Ao compreender as ordens, os criados, com alegria e ansiedade, puseram mãos à obra na nova tarefa. Para os criados, agora, aquilo não só não parecia estranho como, ao contrário, parecia que não podia mesmo ser de outro modo; exatamente da mesma forma que, quatro horas antes, a ninguém parecia estranho que os feridos fossem deixados para trás e que os objetos, sim, fossem levados nas carroças, mas parecia que não podia mesmo ser de outro modo.

Todas as pessoas da casa, como que para compensar o fato de antes não terem se ocupado daquilo, lançaram-se com ansiedade à nova tarefa de acomodar os feridos nas carroças. Os feridos se arrastaram de seus aposentos e, com rosto pálido e alegre, cercaram as carroças. Nas casas vizinhas também se espalhou a notícia de que havia carroças, e os feridos de outras casas começaram a vir para o pátio dos Rostóv. Muitos feridos pediram que não fossem retirados os objetos das carroças e que apenas os acomodassem em cima das bagagens. No entanto, uma vez que a tarefa de descarregar as bagagens havia começado, já não era mais possível parar. Não fazia diferença deixar tudo para trás ou só a metade. No pátio, jaziam de qualquer jeito as arcas com louças, peças de bronze, quadros, espelhos, que tinham sido arrumadas com tanto esforço na noite anterior, e todos ainda continuavam a procurar algum modo de descarregar esta ou aquela bagagem e abrir espaço em mais uma carroça.

— Ainda é possível pegar mais quatro — disse o administrador. — Vou ceder a minha charrete, senão onde vamos transportá-los?

— Sim, cedam a carroça com o meu guarda-roupa — disse a condessa. — Duniacha pode ir comigo na minha carruagem.

Liberaram também a carroça do guarda-roupa e a levaram para os feridos que estavam duas casas adiante. Todos os criados e as pessoas da casa estavam animados e alegres. Natacha se encontrava numa animação entusiasmada e feliz como havia muito não experimentava.

— Onde a gente vai amarrar? — perguntaram os criados, que estavam tentando acomodar uma arca no estreito estribo traseiro de uma carroça. — Vai ter de deixar pelo menos uma carroça.

— O que tem dentro? — perguntou Natacha.

— Os livros do seu conde.

— Pode deixar. Vassílitch, descarregue. Não precisa levar.

A charrete estava lotada de gente; não sabiam onde acomodar Piotr Ilitch.

— Ele vai na boleia. Você não vai na boleia, Pétia? — gritou Natacha.

Sônia também não parava de se movimentar; mas o objetivo de sua agitação era diferente do objetivo de Natacha. Ela arrumava as coisas que era preciso deixar para trás; anotava tudo, conforme o desejo da condessa, e tentava levar consigo o máximo que podia.

XVII

Antes das duas horas, as quatro carruagens dos Rostóv estavam paradas junto à varanda, carregadas e atreladas. As carroças com os feridos saíam do pátio uma após a outra.

O coche em que levavam o príncipe Andrei, ao passar diante do alpendre, chamou a atenção de Sônia, que com uma jovem criada cuidava de arranjar o assento da condessa na sua enorme carruagem alta, que estava parada junto à varanda.

— De quem é esse coche? — perguntou Sônia, pondo a cabeça para fora, pela janela da carruagem.

— A senhora não soube, patroazinha? — respondeu a criada de quarto. — O príncipe está ferido: ele passou a noite na nossa casa e também vai partir com os senhores.

— Mas quem é? Qual o nome dele?

— Aquele mesmo que antes foi o noivo aqui em casa, o príncipe Bolkónski! — respondeu a criada com um suspiro. — Dizem que não vai durar muito.

Sônia saltou da carruagem e correu ao encontro da condessa. A condessa, já vestida para a viagem, com um xale e um chapéu, andava cansada pela sala à espera das pessoas da família para rezarem todos juntos, de portas fechadas, antes da partida. Natacha não estava ali.

— Maman — disse Sônia —, o príncipe Andrei está aqui, ferido, à beira da morte. Ele vai conosco.

A condessa arregalou os olhos assustada, agarrou a mão de Sônia e olhou em redor.

— E Natacha? — exclamou.

Para Sônia e para a condessa, aquela notícia teve, no primeiro momento, apenas um significado. As duas conheciam a sua Natacha, e o horror ao pensar no que aconteceria com ela ao saber daquilo abafou, em ambas, qualquer compaixão pelo homem a quem as duas amavam.

— Natacha ainda não sabe. Mas ele vai conosco — disse Sônia.

— Você disse que ele está à beira da morte?

Sônia fez que sim com a cabeça.

A condessa abraçou Sônia e começou a chorar.

“Os caminhos de Deus são inescrutáveis!”, pensou ela, sentindo que em tudo o que se passava agora começava a se manifestar a mão todo-poderosa antes oculta ao olhar das pessoas.

— Bem, mamãe, está tudo pronto. O que a senhora tem?... — perguntou Natacha, que entrou correndo, com o rosto animado.

— Não é nada — disse a condessa. — Está tudo pronto, então vamos. — E a condessa inclinou-se na direção da sua bolsinha a fim de esconder o rosto perturbado. Sônia abraçou Natacha e beijou-a.

Natacha dirigiu a ela um olhar interrogativo.

— O que você tem? O que foi que aconteceu?

— Nada... Não...

— Uma coisa muito ruim para mim?... O que é? — perguntou Natacha em tom incisivo.

Sônia deu um suspiro e nada respondeu. O conde, Pétia, Mme Schoss, Mavra Kuzmínichna, Vassílitch entraram na sala e, depois de fecharem as portas, sentaram todos e, em silêncio, sem olhar uns para os outros, ficaram quietos alguns segundos.

O conde levantou primeiro e, após suspirar alto, pôs-se a fazer o sinal da cruz diante dos ícones. Todos fizeram o mesmo. Em seguida o conde abraçou Mavra Kuzmínichna e Vassílitch, que iam ficar em Moscou, e, na hora em que pegaram sua mão e beijaram seu ombro, o conde lhes deu umas pancadinhas nas costas, enquanto lhes dizia alguma coisa vaga, em tom afetuoso e tranquilizador. A condessa saiu para a sala do oratório, e Sônia foi encontrá-la ali, de joelhos, diante dos ícones que tinham restado dispersos pela parede. (Os ícones mais preciosos para as tradições da família estavam sendo levados com eles.)

Na varanda e no pátio, os criados que iam partir, a quem Pétia havia armado com sabres e adagas, com as calças enfiadas no cano alto das botas e cintos e correias muito apertados, despediam-se daqueles que iam ficar.

Como sempre acontecia nas despedidas, muita coisa tinha sido esquecida e estava mal-arrumada, e durante bastante tempo dois lacaios ficaram postados dos dois lados da portinhola aberta e da escadinha da carruagem, prontos para ajudar a condessa a subir, enquanto as criadas não paravam de correr, trazendo almofadas e trouxas, da casa para as carruagens, para a charrete, para a sege, e no sentido contrário.

— Estão sempre esquecendo alguma coisa! — disse a condessa. — Você sabe muito bem que não posso sentar desse jeito. — E Duniacha, com os dentes cerrados e sem nada responder, com uma expressão de censura no rosto, jogou-se dentro da carruagem para rearrumar o assento da condessa.

— Ah, essa gente! — disse o conde, balançando a cabeça.

O velho cocheiro Efim, o único com quem a condessa admitia viajar, sentado bem alto na sua boleia, nem olhava para trás para ver o que estavam fazendo. Com seus trinta anos de experiência, sabia que ainda iria passar um bom tempo até lhe dizerem “Deus nos acompanhe!”, que ainda lhe diriam para parar mais duas vezes e iriam buscar coisas que tinham esquecido, e depois disso ainda iriam detê-lo mais uma vez, e a própria condessa poria a cabeça para fora da janela, na sua direção, e lhe pediria em nome de Cristo Deus para ir com mais cuidado nas ladeiras. O cocheiro Efim sabia disso e portanto, com mais paciência do que seus cavalos (em especial o alazão da esquerda — Falcão, que batia a pata no chão e, mordendo, repuxava o freio), esperava o que ia acontecer. Por fim, todos se acomodaram; recolheram a escadinha e guardaram-na dentro da carruagem, fecharam a portinhola, mandaram buscar uma caixa correndo, a condessa pôs a cabeça para fora e disse o que devia dizer. Então Efim lentamente tirou o chapéu da cabeça e se benzeu. O postilhão e todos os criados fizeram o mesmo.

— Deus nos acompanhe! — disse Efim, pondo o chapéu na cabeça. — Em frente! — O postilhão tocou os cavalos adiante. O cavalo da direita fez força contra os arreios, as molas altas estalaram e a carroceria sacudiu. Um lacaio saltou para a boleia com o veículo em movimento. A carruagem saiu do pátio aos solavancos pelo calçamento irregular, as outras carruagens vieram atrás e o comboio se estendeu adiante pela rua. Nas carruagens, na sege e na charrete todos fizeram o sinal da cruz diante da igreja que ficava em frente. Os criados que iam ficar em Moscou caminhavam de ambos os lados das carruagens, acompanhando.

Natacha poucas vezes havia experimentado um sentimento tão alegre como o que experimentava agora, sentada na carruagem ao lado da condessa e olhando para os muros da conturbada e abandonada Moscou, que iam passando lentamente por ela. De vez em quando, punha a cabeça na janela e olhava para trás e para a frente e via o longo comboio de feridos que os precedia. Quase à frente de todos, ela avistou a capota fechada do coche do príncipe Andrei. Natacha não sabia quem estava ali e, toda vez que avaliava a extensão do comboio, seus olhos procuravam aquele coche. Natacha sabia que ele avançava à frente de todos.

Em Kúdrino, das ruas Nikítski, Présnia, Podnovínski, vieram vários comboios semelhantes ao dos Rostóv e, ao passar na rua Sadóvaia, as carruagens e as carroças já formavam duas fileiras.

Ao contornar a torre Súkharev, Natacha, que observava com rapidez e curiosidade o povo que ia a pé ou em carroças, exclamou de repente com alegria e surpresa:

— Paizinho! Mamãe, Sônia, olhem, é ele!

— Quem? Quem?

— Vejam, puxa, é Bezúkhov! — disse Natacha, debruçada na janela da carruagem e olhando para um homem alto e gordo, num cafetã de cocheiro, obviamente um nobre disfarçado, pelo jeito de andar e pela atitude, que ao lado de um velho amarelado e sem barba, num capote frisado, passava embaixo do arco da torre Súkharev.

— Puxa, é Bezúkhov, de cafetã, com um velhinho do lado! Puxa — disse Natacha —, vejam, olhem lá!

— Mas, não, não é ele, não. Será possível, mas que tolice.

— Mamãe — gritou Natacha. — Aposto minha cabeça que é ele! Garanto a vocês. Espere, espere! — gritou para o cocheiro; mas o cocheiro não podia parar, porque da rua Mechánskaia vieram mais carruagens e carroças e gritaram para os veículos de Rostóv que seguissem adiante e não impedissem a passagem dos outros.

De fato, embora já estivessem muito mais à frente do que antes, todos os Rostóv avistaram Pierre, ou um homem extraordinariamente parecido com Pierre, num cafetã de cocheiro, caminhando pela rua com a cabeça curvada e o rosto sério, ao lado de um velhinho pequeno e sem barba, com jeito de lacaio. O velhote notou o rosto voltado para ele na janela da carruagem e, tocando respeitosamente o cotovelo de Pierre, disse-lhe alguma coisa, apontando para a carruagem. Pierre demorou bastante a entender o que ele estava dizendo; a tal ponto parecia imerso nos próprios pensamentos. Por fim, quando compreendeu, olhou para onde ele estava apontando e, ao reconhecer Natacha, no mesmo instante, cedendo ao primeiro impulso, caminhou na direção da carruagem. Porém, depois de dar alguns passos, pareceu lembrar-se de algo e parou.

O rosto de Natacha, que despontava da janela da carruagem, irradiava um carinho jocoso.

— Piotr Kirílitch, venha cá! Viu como a gente reconheceu logo o senhor? Que coisa fantástica! — gritou ela, estendendo a mão para ele. — Como é que o senhor está assim? Para que isso?

Pierre segurou a mão estendida e, andando (pois a carruagem continuou a se movimentar), beijou-a desajeitadamente.

— O que há com o senhor, conde? — perguntou a condessa com voz admirada e condoída.

— O quê? O quê? Por quê? Não me pergunte — disse Pierre e olhou para Natacha, cujo olhar alegre e radiante (ele o sentia, mesmo sem olhar para ela) o dominava com seu encanto.

— O que o senhor vai fazer? Ou vai ficar mesmo em Moscou? — Pierre ficou calado um momento.

— Em Moscou? — disse em tom interrogativo. — Sim, em Moscou. Adeus.

— Ah, quem dera eu fosse homem. Ficaria aqui com o senhor, a todo custo. Ah, como seria bom! — disse Natacha. — Mamãe, deixe, também vou ficar. — Pierre olhou para Natacha com ar distraído e quis dizer alguma coisa, mas a condessa o interrompeu:

— O senhor esteve na batalha, nós soubemos.

— Sim, estive — respondeu Pierre. — Amanhã vai haver outra batalha... — começou, mas Natacha o interrompeu.

— Mas o que há com o senhor, conde? Está diferente...

— Ah, não pergunte, não me pergunte, eu mesmo não sei de nada. Amanhã... mas não! Adeus, adeus — exclamou. — São tempos horríveis! — E, deixando-se ficar para trás, afastou-se pela calçada.

Natacha ainda ficou muito tempo debruçada na janela, com a cabeça para fora, irradiando na direção dele um sorriso carinhoso, alegre e também um pouco jocoso.

XVIII

Pierre, desde quando sumira de casa, morava já fazia dois dias na residência abandonada do falecido Bazdiéiev. Acontecera o seguinte:

Ao despertar no dia seguinte ao seu regresso a Moscou e ao seu encontro com o conde Rostoptchin, Pierre levou muito tempo sem entender onde estava e o que queriam dele. Quando, entre os nomes de outras pessoas que o aguardavam na sala de espera, avisaram que o aguardava também o francês que havia trazido a carta da condessa Hélène Vassílievna, veio-lhe de repente aquele sentimento de perturbação e desespero ao qual ele costumava sucumbir. De súbito lhe pareceu que agora tudo estava acabado, tudo era confusão, tudo era ruína, que não havia o justo, nem o culpado, que não haveria mais nada pela frente e que não existia saída para aquela situação. Sorrindo de maneira estranha e balbuciando algo, Pierre ora sentava no sofá com ar desamparado, ora levantava, ia até a porta e espiava por uma fresta a sala de espera, ora voltava atrás abanando as mãos e agarrava um livro. Mais uma vez o mordomo veio avisar que o francês que trouxera a carta da condessa queria muito falar com ele, ainda que só por um minuto, e também que da parte da viúva de I. A. Bazdiéiev vieram pedir que ele aceitasse ficar com os livros do falecido, pois ela mesma estava de partida para o campo.

— Ah, sim, já vou, espere... Ou melhor... Não, vá dizer que irei logo — disse Pierre ao mordomo.

Porém, assim que o mordomo saiu, Pierre pegou o chapéu que estava sobre a cadeira e saiu pela porta dos fundos do gabinete. No corredor, não havia ninguém. Pierre atravessou todo o comprido corredor até a escada e, com o rosto franzido, apertando a testa com as mãos, desceu até o primeiro patamar. O porteiro estava postado junto à porta principal. Do patamar onde Pierre havia descido, outra escada conduzia à porta dos fundos. Pierre seguiu por aquela escada e saiu para o pátio. Ninguém o viu. Mas na rua, assim que ele saiu pelo portão, o cocheiro que estava junto à carruagem e o porteiro viram o patrão e tiraram o chapéu para ele. Ao sentir olhares dirigidos a ele, Pierre agiu como um avestruz que enfia a cabeça numa moita para não ser visto; baixou a cabeça e, acelerando o passo, seguiu adiante pela rua.

Entre todas as tarefas que se apresentavam a Pierre naquela manhã, a questão dos livros e dos papéis de Ióssif Alekséievitch lhe pareceu a mais premente.

Pegou o primeiro coche de praça que passou e mandou seguir para os Poços do Patriarca, onde ficava a casa da viúva Bazdiéieva.

Enquanto olhava o tempo todo para os veículos de carga que se moviam de todos os lados saindo de Moscou e ajeitava o seu corpo obeso para não escorregar da charrete velha, Pierre, com um sentimento alegre, semelhante ao que experimenta um menino que foge da escola, começou a conversar com o cocheiro de praça.

O cocheiro lhe disse que naquele momento estavam distribuindo armas no Krêmlin e que no dia seguinte o povo iria todo para o portão de Tri Góri e que lá haveria uma grande batalha.

Ao chegar aos Poços do Patriarca, Pierre procurou a casa de Bazdiéiev, aonde fazia muito tempo que não ia. Aproximou-se do portão. Guerássim, o mesmo velhinho amarelo e sem barba que Pierre tinha visto cinco anos antes com Ióssif Alekséievitch em Torjók, veio atender suas batidas na porta.

— Ela está em casa? — perguntou Pierre.

— Por causa das circunstâncias atuais, Sofia Danílovna e seus filhos partiram para a aldeia de Torjók, vossa excelência.

— Mesmo assim vou entrar. Preciso separar os livros — disse Pierre.

— Por favor, tenha a bondade, o irmão do falecido, que esteja no Reino dos Céus, Makar Alekséievitch, está aqui, mas, como o senhor bem sabe, ele tem a cabeça fraca — disse o velho criado.

Makar Alekséievitch, irmão de Ióssif Alekséievitch, como Pierre sabia, era meio louco e bebia sem parar.

— Sim, sim, eu sei. Vamos, vamos... — disse Pierre e entrou na casa. Um velho alto, careca, de roupão, nariz vermelho e galochas nos pés sem meias, estava de pé no vestíbulo; ao ver Pierre, resmungou alguma coisa com irritação e saiu para o corredor.

— Era muito inteligente, mas agora, como o senhor pode ver, ficou fraco do juízo — disse Guerássim. — Gostaria de ir ao escritório? — Pierre fez que sim com a cabeça. — Como ficou trancado, o escritório continuou como estava antes. Sofia Danílovna deu ordem para que, caso o senhor viesse, os livros fossem liberados.

Pierre entrou no mesmo escritório sombrio onde ele, ainda em vida do seu benfeitor, havia entrado com tamanho estremecimento. O escritório, agora empoeirado e intacto desde o momento da morte de Ióssif Alekséievitch, estava ainda mais sombrio.

Guerássim abriu uma veneziana e saiu na ponta dos pés. Pierre deu a volta no escritório, aproximou-se de uma estante em que estavam os manuscritos e pegou um dos mais importantes para a ordem sagrada em outros tempos. Eram as autênticas atas escocesas com comentários e explicações do benfeitor. Pierre sentou-se diante de uma escrivaninha empoeirada e colocou o manuscrito à sua frente, abriu-o, fechou-o e por fim, pondo os papéis de lado, com a cabeça apoiada nas mãos e os cotovelos na mesa, pôs-se a refletir.

Diversas vezes, Guerássim veio cuidadosamente olhar no escritório e viu que Pierre estava sentado na mesma posição. Passaram mais de duas horas. Guerássim se permitiu fazer um barulho na porta a fim de chamar a atenção de Pierre para si. Pierre não o ouviu.

— O senhor quer que dispense o cocheiro?

— Ah, sim — disse Pierre, acordando e levantando afobado. — Escute — disse, segurando Guerássim pelo botão do casaco e olhando de cima para o velhinho, com olhos brilhantes, úmidos e arrebatados. — Escute, você sabe que amanhã vai haver uma batalha?...

— Disseram — respondeu Guerássim.

— Peço que você não diga a ninguém quem sou eu. E faça o que vou dizer...

— Sim, senhor — disse Guerássim. — Quer que mande trazer algo para comer?

— Não, mas preciso de outra coisa. Preciso de uma roupa de camponês e de uma pistola — disse Pierre, e ficou vermelho de repente.

— Sim, senhor — respondeu Guerássim, depois de refletir um momento. Pierre passou o resto daquele dia sozinho no escritório do benfeitor, andando de um canto a outro, com ar inquieto, e falando sozinho, como Guerássim podia ouvir, e pernoitou ali mesmo num leito preparado para ele.

Guerássim, que como um criado experiente tinha visto muita coisa estranha ao longo da vida, encarou a mudança de Pierre sem surpresa e, pelo visto, ficou satisfeito por ter alguém a quem servir. Naquela mesma tarde, sem indagar nem a si mesmo qual a necessidade daquilo, trouxe para Pierre um cafetã e um chapéu e prometeu comprar no dia seguinte a pistola pedida. Makar Alekséievitch por duas vezes naquela tarde, estalando suas galochas no chão, veio até a porta e parou, olhando para Pierre com simpatia. No entanto, assim que Pierre se voltou para ele, nas duas vezes Makar Alekséievitch apertou as abas do roupão em torno do corpo, irritado e encabulado, e retirou-se às pressas. Quando Pierre, vestido no cafetã de cocheiro que Guerássim tinha comprado e desinfetado a vapor especialmente para ele, saiu com o velho criado para comprar uma pistola na torre Súkharev, encontrou os Rostóv.

XIX

Na noite de 1o de setembro, foi transmitida a ordem de Kutúzov para a retirada das tropas russas através de Moscou em direção à estrada de Riazan.

As primeiras tropas se puseram em movimento à noite. As tropas que seguiram à noite não tinham pressa, moviam-se devagar e com tranquilidade; no entanto, ao raiar do dia, ao se aproximar da ponte Dorogomílov, as tropas em movimento avistaram à sua frente tropas que se espremiam e se afobavam para cruzar a ponte e que subiam pelo outro lado, bloqueando ruas e vielas, enquanto atrás delas vinha pressionando uma interminável massa de tropas. E uma inquietação e uma pressa sem motivo dominaram as tropas. Todos se precipitaram à frente, em direção à ponte, na ponte, nos botes e no vau do rio. Kutúzov mandou que o levassem para a outra margem do rio Moskvá através de ruas secundárias.

Às dez horas da manhã do dia 2 de setembro, no bairro de Dorogomílov, só restavam as tropas da retaguarda. O exército já estava na outra margem do rio Moskvá e fora de Moscou.

Nessa mesma altura, às dez horas da manhã do dia 2 de setembro, Napoleão estava com suas tropas na colina Poklónaia e contemplava o espetáculo que se revelava à sua frente. Do dia 26 de agosto ao dia 2 de setembro, desde a batalha de Borodinó até a entrada do inimigo em Moscou, em todos os dias daquela semana agitada, memorável, havia aquele clima outonal extraordinário, que a todos sempre causava admiração, em que um sol baixo arde mais quente do que na primavera, em que tudo cintila no ar rarefeito e puro, a tal ponto que chega a ferir os olhos, um clima em que o peito se anima e se refresca, ao inalar o ar perfumado do outono, em que até as noites são quentes e em que nessas noites, sombreadas e quentes, estrelas douradas tombam do céu o tempo todo, causando espanto e alegria.

No dia 2 de setembro, às dez horas da manhã, fazia um tempo assim. A luminosidade da manhã era mágica. Do alto da colina Poklónaia, Moscou se estendia ampla, com seu rio, seus bosques e igrejas, e parecia viver sua vida, palpitante com suas cúpulas como estrelas sob os raios do sol.

Ante a visão da cidade estranha, com as formas inauditas de uma arquitetura incomum, Napoleão experimentou a curiosidade invejosa e inquieta que sentem as pessoas ao ver uma forma de vida alheia, que por sua vez não as conhece. Era evidente que aquela cidade, com todas as suas forças, vivia sua própria vida. Por aqueles sinais indefiníveis graças aos quais se pode distinguir com precisão, mesmo à distância, um corpo vivo de um corpo morto, Napoleão, da colina Poklónaia, via a palpitação da vida na cidade e como que sentia a respiração daquele corpo grande e belo.

Todo russo, ao contemplar Moscou, sente que ela é uma mãe; todo estrangeiro, ao contemplá-la, ignorando seu significado maternal, não pode deixar de sentir o caráter feminino da cidade, e Napoleão sentiu isso.

— Cette ville asiatique, aux innombrables églises, Moscou la sainte. La voilà donc enfin, cette fameuse ville! Il était temps 37 — disse Napoleão e, descendo do cavalo, mandou desdobrar à sua frente o mapa daquela Moscou e chamou o intérprete Lelorgne d’Ideville. “Une ville occupée par l’ennemi ressemble à une fille qui a perdu son honneur”,38 pensou ele (como já havia falado para Tutchkóv em Smolensk). E daquele ponto de vista ele contemplava a beldade oriental até então nunca vista e que jazia à sua frente. Para ele mesmo era estranho que, por fim, tivesse realizado seu desejo mais antigo, que lhe parecia impossível. Na luz clara da manhã, Napoleão olhava ora a cidade, ora o mapa, examinando detalhes daquela cidade, e a certeza da posse o perturbava e o assustava.

“Mas poderia ser de outro modo?”, pensou. “Aí está ela, essa capital, aos meus pés, à espera do seu destino. Onde está Alexandre agora, e o que pensa ele? Estranha, bela, majestosa cidade! E que estranho e majestoso é este minuto! Sob que luz eles estarão me vendo!”, pensou, referindo-se a suas tropas. “Aí está ela, a recompensa para todos esses homens de pouca fé”, pensou, olhando para sua comitiva e para as tropas que se aproximavam e se punham em forma. “Basta uma palavra minha, um movimento da minha mão, e será destruída a antiga capital des czars. Mais ma clémence est toujours prompte à descendre sur les vaincus.39 Tenho de ser magnânimo e verdadeiramente grande. Mas, não, não é verdade que estou em Moscou”, passou-lhe pela cabeça de repente. “Todavia aí está ela, deitada aos meus pés, rebrilhando e brandindo suas cúpulas douradas e suas cruzes aos raios do sol. Mas vou poupá-la. Nos ancestrais monumentos da barbárie e do despotismo, inscreverei grandiosas palavras de justiça e de misericórdia... É isso o que vai doer mais fundo em Alexandre, eu o conheço. (Napoleão achava que o sentido principal daquilo que se passava se resumia numa disputa pessoal entre ele e Alexandre.) Do alto do Krêmlin, sim, lá está o Krêmlin, sim, darei a eles leis de justiça, mostrarei a eles o sentido verdadeiro da civilização, obrigarei gerações de boiardos40 a recordar com amor o nome do seu conquistador. Direi aos seus representantes que eu não queria e não quero a guerra; que travei a guerra só contra a política mentirosa da corte, que eu amo e respeito o tsar Alexandre e que vou selar em Moscou condições de paz dignas de mim e de meus povos. Não quero tirar vantagem da sorte na guerra para humilhar um soberano respeitado. Boiardos, eu lhes direi: não quero a guerra, quero a paz e o bem-estar de todos os meus súditos. De resto, sei que a presença deles vai me inspirar e lhes falarei, como sempre falo: com clareza, de modo solene e imponente. Mas será mesmo verdade que estou em Moscou? Sim, lá está ela!”

— Qu’on m’amène les boyards 41 — voltou-se para a comitiva. Um general com uma comitiva exuberante prontamente partiu a galope para trazer os boiardos.

Passaram-se duas horas. Napoleão almoçou e ficou de novo no mesmo lugar, na colina Poklónaia, à espera da delegação. Seu discurso para os boiardos já estava claramente traçado em sua imaginação. Ia ser repleto de dignidade e de grandeza, como Napoleão a compreendia.

O tom de magnanimidade com que Napoleão tencionava agir em Moscou acabou por arrebatar o próprio Napoleão. Em sua imaginação, ele marcava um dia de réunion dans le palais des czars,42 onde haviam de se reunir os dignitários russos e os dignitários do imperador francês. Mentalmente, nomeava um governador-geral da cidade capaz de atrair a simpatia da população para Napoleão. Ao saber que em Moscou havia muitas instituições de caridade, ele, em sua imaginação, resolveu que todas aquelas instituições seriam inundadas por suas benesses. Refletiu que, assim como na África fora preciso vestir um albornoz de árabe numa mesquita, também em Moscou teria de ser piedoso, como os tsares. E, a fim de tocar em definitivo o coração dos russos, ele, a exemplo de todos os franceses, que não eram capazes de conceber nada de sensível sem referências a ma chère, ma tendre, ma pauvre mère,43 Napoleão resolveu que mandaria inscrever em todas aquelas instituições, com letras grandes: Établissement dédié à ma chère mère.44 Não, simplesmente: Maison de ma mère 45 — resolveu consigo mesmo. “Mas será possível que estou de fato em Moscou? Sim, lá está ela à minha frente. Mas por que está demorando tanto a aparecer uma delegação da cidade?”, pensou.

Enquanto isso, nas últimas fileiras da comitiva do imperador, em sussurros, tinha lugar um nervoso conselho entre seus generais e marechais. Os enviados em busca de uma delegação voltaram com a notícia de que Moscou estava vazia, de que todos haviam partido e deixado a cidade. Os rostos dos membros do conselho estavam pálidos e perturbados. Não era o fato de Moscou ter sido abandonada por seus habitantes que os assustava (por mais importante que parecesse aquele fato), mas a forma de comunicar isso ao imperador, a forma de não deixar sua alteza naquela situação terrível, chamada de ridicule pelos franceses, comunicar-lhe que durante todo aquele tempo estava esperando os boiardos em vão, que havia uma multidão de bêbados e mais ninguém. Uns diziam que era preciso a todo custo formar uma delegação qualquer, outros contestavam aquela opinião e afirmavam que era preciso, com cuidado e inteligência, preparar o imperador para lhe anunciar a verdade.

— Il faudra le lui dire tout de même... — diziam os senhores da comitiva. — Mais, messieurs...46 — A situação era ainda mais penosa porque o imperador, enquanto refletia sobre seus planos de magnanimidade, andava impaciente de um lado para outro diante do mapa, protegendo de vez em quando os olhos do sol com a mão, ao olhar para a estrada que vinha de Moscou, e sorria com orgulho e alegria.

— Mais c’est impossible...47 — diziam os senhores da comitiva, encolhendo os ombros, sem se decidir a pronunciar a terrível palavra implícita: le ridicule...

Enquanto isso, o imperador, cansado da espera vã e sentindo, com seu instinto de ator, que o minuto grandioso estava se prolongando em demasia e começando a perder a grandeza, fez um sinal com a mão. O tiro de um canhão de aviso ressoou, e as tropas, que cercavam Moscou por vários lados, começaram a se deslocar em direção à cidade, pelos portões de Tver, Kaluga e Dorogomílov. Cada vez mais depressa, ultrapassando umas às outras, as tropas se moviam a passo ligeiro e a trote, sumindo nas nuvens de poeira que elas mesmas levantavam e propagando pelo ar o estrondo de seus gritos que se fundiam.

Entusiasmado pelo movimento das tropas, Napoleão chegou aos portões de Dorogomílov com as tropas, mas lá novamente se deteve e, depois de descer do cavalo, ficou andando por muito tempo junto ao platô de Kámmer-Kolléjski, à espera de uma delegação da cidade.

XX

Enquanto isso, Moscou estava vazia. Ainda havia pessoas na cidade, restava ainda a quinquagésima parte de seus habitantes, mas ela estava vazia. Estava vazia assim como fica vazia uma colmeia moribunda sem sua rainha.

Numa colmeia sem rainha já não existe vida, mas a um olhar superficial ela parece tão viva como as outras colmeias.

Assim, aos raios quentes do sol do meio-dia, as abelhas esvoaçam em torno da colmeia sem rainha, tão alegremente como fazem em torno de outras colmeias ainda vivas; também dela vem um cheiro de mel, que se sente de longe, e as abelhas voam para dentro e para fora da colmeia. Mas basta examiná-la com atenção para compreender que na colmeia já não existe vida. As abelhas não voam como nas colmeias vivas, não há o mesmo cheiro nem o mesmo zumbido que impressionam o apicultor. Quando o apicultor bate na parede de uma colmeia doente, em lugar da resposta de antes, o zumbido unânime e imediato de dezenas de milhares de abelhas que levantam ameaçadoramente a parte posterior do corpo e, com a batida rápida das asas, produzem aquele som aéreo e cheio de vida — em vez disso, respondem-lhe zunidos dispersos que ressoam de maneira oca em diversos lugares da colmeia vazia. Do buraco da porta, já não vem mais, como antes, o cheiro inebriante, aromático, de mel e de veneno, não vem de lá um cheiro quente de plenitude, mas sim, junto com o cheiro de mel, um cheiro de vazio e de podridão. Na porta não há mais os guardiões prontos a morrer em defesa da colmeia, com os ferrões levantados, trombeteando ameaças. Não há mais aquele som calmo e uniforme da efervescência do trabalho, como o som de água na fervura, e escuta-se o rumor sem harmonia e disperso da desordem. Para dentro e para fora da colmeia, tímidas e ágeis, voam abelhas ladras, pretas, compridas, lambuzadas de mel; elas não picam, mas fogem diante do perigo. Antes, as abelhas só entravam na colmeia com carga e saíam descarregadas; agora saem carregadas. O apicultor abre a parte de baixo da colmeia e observa o que se passa ali dentro. Em lugar de abelhas pretas, polpudas, amansadas pelo trabalho, penduradas em cachos até o assoalho (a parte mais baixa da colmeia), presas às patas umas das outras e segregando cera com um incessante zunido de trabalho, há abelhas sonolentas, encolhidas, que vagam distraídas em direções diferentes, no fundo e nas paredes da colmeia. Em lugar do assoalho limpo, recoberto de cera, soprado pelo ventilador das asas, no fundo jazem migalhas de cera, excrementos de abelhas e abelhas meio mortas, que quase não conseguem mexer as patas, além de outras totalmente mortas, deixadas ali.

O apicultor abre a parte de cima e observa a cabeça da colmeia. Em lugar das compactas fileiras de abelhas, cravadas em todos os espaços dos favos, que mantêm os filhotes aquecidos, ele vê o trabalho engenhoso e complexo dos favos, mas já não com o aspecto de juventude que havia antes. Tudo está desolado e imundo. As ladras — as abelhas pretas — vão e vêm ligeiro, furtivas, em sua labuta; as abelhas, apáticas, miúdas, como se fossem velhas, vagam lentamente, não impedem a entrada de ninguém, não querem nada e perderam o sentimento da vida. Os zangãos, as vespas, os abelhões e as borboletas voam ali dentro e batem atabalhoadamente de encontro às paredes da colmeia. Aqui e ali, entre os alvéolos com filhotes mortos e mel, de vez em quando se ouve de vários lados um ronco zangado; em algum lugar, duas abelhas, por força de um hábito antigo e da memória, limpam o interior da colmeia e, com um esforço que vai além de suas energias, arrastam para fora uma abelha morta, sem saber para que ainda fazem isso. Num outro canto, duas abelhas velhas brigam preguiçosamente, ou se limpam, ou se alimentam uma à outra, sem que se possa saber se fazem isso de maneira hostil ou amistosa. Num outro lugar ainda, uma multidão de abelhas, espremendo-se umas às outras, ataca uma vítima, a espanca e a sufoca. E a abelha, enfraquecida ou morta, devagar, de leve, como uma penugem, tomba sobre um amontoado de cadáveres. O apicultor abre as duas portas do meio a fim de examinar o ninho. Em lugar dos compactos círculos pretos formados por milhares de abelhas unidas, costas com costas, protegendo o supremo segredo da procriação, ele vê centenas de carcaças de abelhas cansadas, semimortas e adormecidas. Estão quase mortas, sem se dar conta disso, naquele santuário que elas guardavam e que já não existe mais. Delas vem um cheiro de podridão e de morte. Só uma ou outra ainda se mexe, se levanta, voa debilmente e pousa na mão do inimigo, sem forças para morrer, enquanto lhe dá uma ferroada — as outras, mortas, caem com a leveza de escamas de peixe. O apicultor fecha a colmeia, marca com um giz e, na hora escolhida, despedaça e queima a colmeia.

Assim estava vazia Moscou, quando Napoleão, cansado, inquieto e de cara fechada, andava de um lado para outro junto ao platô de Kámmer-Kolléjski esperando a chegada de uma delegação, o que, apesar de mera formalidade, representava no seu modo de ver uma indispensável observação das regras de decoro.

Nos diversos cantos de Moscou, as pessoas se movimentavam sem nenhum sentido, por força de costumes antigos e sem compreender o que estavam fazendo.

Quando Napoleão, com o devido cuidado, foi avisado de que Moscou estava vazia, lançou um olhar irritado para quem lhe veio dar a notícia, virou-se de costas e continuou a andar em silêncio.

— Tragam minha carruagem — disse Napoleão. Tomou seu lugar na carruagem ao lado do ajudante de ordens de serviço e seguiu para o subúrbio da cidade.

“Moscou déserte. Quel événement invraisemblable!”,48 disse consigo.

Napoleão não entrou na cidade, ficou numa estalagem no subúrbio de Dorogomílov.

Le coup de théâtre avait raté.49

XXI

As tropas russas tinham atravessado Moscou das duas horas da madrugada até as duas horas da tarde e haviam arrastado consigo os últimos feridos e habitantes que ainda estavam deixando a cidade.

Durante o deslocamento das tropas, as maiores aglomerações se verificaram na ponte de Pedra, na ponte do rio Moskvá e na ponte do rio Iaúza.

No momento em que as tropas, bifurcando-se em torno do Krêmlin, se comprimiram para cruzar a ponte de Pedra e a ponte do rio Moskvá, um número enorme de soldados, aproveitando a parada e o congestionamento, voltaram das pontes e, furtivamente e em silêncio, passaram pela igreja de Basílio Bem-Aventurado e pelos portões de Borovítski, de volta para o morro, para a praça Vermelha, onde sentiam, por intuição, que poderiam se apoderar de bens alheios sem nenhum esforço. Uma multidão de pessoas, como a que se vê quando são oferecidas mercadorias a preço baixo lotou todas as travessas e as esquinas de Gostíni Dvor, o bairro do mercado popular. Mas não havia as vozes simpáticas, melosas e aliciadoras dos comerciantes, não havia os ambulantes nem a colorida multidão de mulheres compradoras — só havia uniformes e capotes de soldados sem fuzis, soldados que saíam calados das ruazinhas com seus fardos e que tinham entrado ali sem fardo nenhum. Os comerciantes e os vendedores (eram poucos), como que perdidos, andavam no meio dos soldados, abriam e fechavam suas lojas e retiravam eles mesmos as mercadorias, junto com seus ajudantes, e as levavam para qualquer lugar. Na praça de Gostíni Dvor, estavam os tamboreiros, e soou o toque de reunir. Mas o som dos tambores, em vez de, como antes, obrigar os soldados ladrões a correr para atender ao chamado, obrigou-os, ao contrário, a fugir para longe dos tambores. No meio dos soldados, entre os becos e as lojinhas, moviam-se pessoas de cafetãs cinzentos e cabeça raspada.50 Dois oficiais, um só de cachecol sobre o uniforme, montado num cavalo magro e cinza-escuro, e o outro de capote e a pé, estavam parados numa esquina da rua Ilínka e conversavam. Um terceiro oficial veio a galope até onde os dois estavam.

— O general deu ordens para expulsar todos imediatamente, a todo custo. Disse que nunca se viu nada igual! Metade do contingente debandou.

— Aonde você vai?... Vocês vão para onde?... — gritou ele para três infantes que, sem os fuzis, com as abas dos capotes levantadas, se esgueiraram depressa ao lado dele para as ruazinhas. — Parem, canalhas!

— Pois é, tente só detê-los! — retrucou outro oficial. — Não vai reuni-los; é preciso ir em frente o mais depressa possível, para que os que ainda restaram não fujam, e pronto!

— Ir em frente como? Estão parados lá, houve um congestionamento na ponte, e ninguém anda. Será que não devíamos estender uma corrente para que os últimos não debandem?

— Vá logo! Expulse todos daqui! — gritou o oficial mais velho.

O oficial de cachecol desmontou do cavalo, convocou um tamboreiro e seguiu com ele por baixo das arcadas. Alguns soldados lançaram-se a correr em bandos. Um comerciante com bolhas vermelhas nas bochechas, em torno do nariz, com uma expressão de cálculo inabalável e calma no rosto farto, aproximou-se rapidamente do oficial, com ar sabido, esfregando as mãos uma na outra.


— Vossa excelência — disse ele —, faça a misericórdia de nos defender. Nós não incomodamos com ninharias, estamos à disposição dos senhores! Por favor, leve agora umas roupas, para um homem tão nobre, duas peças não é nada, o prazer é todo nosso! Porque compreendemos muito bem, mas isto aqui já é puro roubo! Por favor! Não poderia pôr guardas, só para que pudéssemos fechar...

Alguns comerciantes se aglomeraram em torno do oficial.

— Eh! Não adianta conversa fiada! — disse um deles, magro, de rosto severo. — Depois de ter a cabeça cortada, não adianta chorar pelos cabelos. Levem o que quiserem! — Abanou o braço com um gesto enérgico, virando-se de lado para o oficial.

— Para você, Ivan Sidóritch, é fácil falar — exclamou irritado o primeiro comerciante. — Por favor, vossa excelência.

— O que está dizendo? — gritou o magricela. — Tenho cem mil mercadorias em três lojas aqui. Por acaso é você quem vai proteger isso depois que as tropas forem embora? Eh, povo, contra o poder de Deus não há braço que aguente!

— Por favor, vossa excelência — disse o primeiro comerciante, curvando-se numa reverência. O oficial continuava perplexo, e no seu rosto se percebia a indecisão.

— E o que eu tenho a ver com isso? — gritou ele de repente e avançou a passos ligeiros pela ruazinha. Numa loja arrombada, ouviam-se socos e xingamentos, e quando o oficial se aproximou um homem de cabeça raspada e casaco cinzento rústico saltou empurrado para fora.

Aquele homem, esgueirando-se curvado, passou ligeiro pelo oficial e pelo comerciante. O oficial se lançou sobre os soldados que estavam dentro da loja. Mas naquele momento soaram gritos terríveis vindos da imensa multidão na ponte do rio Moskvá, e o oficial correu para a praça.

— O que foi? O que foi? — perguntou, mas seu camarada já havia partido e galopava na direção dos gritos, passando pela igreja de Basílio Bem-Aventurado. O oficial montou seu cavalo e partiu atrás dele. Quando se aproximou da ponte, viu dois canhões retirados das carroças, a infantaria atravessando a ponte, várias carroças viradas, vários rostos assustados e rostos de soldados que riam. Ao lado dos canhões, estava uma carroça puxada por uma parelha. Atrás das rodas traseiras da carroça, quatro cães borzói estavam amarrados pela coleira. Na carroça, havia uma montanha de coisas, e por cima de tudo, junto a uma cadeirinha de criança com as pernas voltadas para o alto, estava uma camponesa que berrava de modo desesperado e estridente. Os camaradas contaram ao oficial que os gritos da multidão e os berros da camponesa se deviam ao fato de o general Ermólov, ao saber que os soldados tinham debandado para invadir as lojas enquanto a multidão de habitantes congestionava a ponte, dera ordem para retirar os canhões das carroças e, a fim de dar o exemplo, disparar contra a ponte. As pessoas na multidão, virando as carroças, esmagando-se umas às outras, gritaram em desespero e, aos empurrões, liberaram a ponte, e assim as tropas puderam avançar.

XXII

Enquanto isso, a cidade propriamente dita estava vazia. Pelas ruas não havia quase ninguém. Os portões e as lojas estavam todos trancados; aqui e ali, perto das tabernas, ouviam-se gritos isolados ou canções de bêbados. Ninguém caminhava pelas ruas, e raramente se ouviam passos de pedestres. A rua Povarskaia estava em completo silêncio e deserta. No imenso pátio da casa dos Rostóv, havia restos de feno espalhados, excrementos dos cavalos, e não se via absolutamente ninguém. Dentro da casa dos Rostóv, que ficara com todos os seus pertences, havia duas pessoas na sala principal. Eram o porteiro Ignat e Michka, um menino da criadagem, neto de Vassílitch, que ficara em Moscou junto com o avô. Michka abriu a tampa do clavicórdio e tocou no teclado com um dedo só. O porteiro, sorrindo alegre com as mãos na cintura, estava parado diante de um espelho grande.

— Olhe só que bonito! Hein? Que tal, tio Ignat! — disse o menino, começando de repente a bater nas teclas com as duas mãos.

— Ora, vejam só! — respondeu Ignat, admirando-se do seu rosto cada vez mais sorridente no espelho.

— Seus sem-vergonha! Seus sem-vergonha! — soou atrás deles a voz de Mavra Kuzmínichna, que entrou sem fazer barulho. — Seu cara gorda, para que fica aí arreganhando os dentes desse jeito? Vocês acham que não têm o que fazer? Lá fora está tudo desarrumado, Vassílitch mal se aguenta nas pernas. Vamos logo!

Ignat, depois de parar de sorrir e baixar os olhos com resignação, ajeitou a cintura da calça e se retirou da sala.

— Titia, vou tocar bem de leve — disse o menino.

— Eu é que vou te bater de leve. Seu moleque! — gritou Mavra Kuzmínichna, brandindo a mão para ele. — Vá preparar o samovar para o seu avô.

Mavra Kuzmínichna, depois de sacudir a poeira, fechou a tampa do clavicórdio, deu um suspiro profundo, saiu da sala e trancou a porta principal.

Ao sair para o pátio, Mavra Kuzmínichna se deteve para pensar aonde deveria ir agora: iria para o anexo tomar chá com Vassílitch ou para a despensa arrumar o que ainda não tinha sido arrumado?

Na rua silenciosa, soaram passos ligeiros. Os passos pararam junto ao portão; o ferrolho começou a chacoalhar sob a mão que tentava arrombá-lo.

Mavra Kuzmínichna foi na direção do portão.

— Quer falar com quem?

— O conde, o conde Iliá Andreitch Rostóv.

— E o senhor, quem é?

— Sou um oficial. Tenho de falar com ele — disse uma voz russa, senhorial e agradável.

Mavra Kuzmínichna abriu o portão. E um oficial de dezoito anos, cara redonda, um tipo de rosto parecido com o dos Rostóv, fez menção de entrar no pátio.

— Foram embora, meu caro. Ontem à tardinha eles foram embora — disse Mavra Kuzmínichna em tom afetuoso.

O jovem oficial, parado no portão, como que indeciso entre atravessar o portão ou não, estalou a língua nos dentes.

— Ah, que aborrecimento!... — exclamou. — Estive aqui ontem mesmo... Ah, que pena!...

Mavra Kuzmínichna, enquanto isso, observava com atenção e simpatia as conhecidas feições da família Rostóv no rosto do jovem, bem como o capote esfarrapado e as botas surradas que usava.

— Para que o senhor queria falar com o conde? — perguntou ela.

— Agora... já não adianta! — exclamou o oficial com irritação e recuou do portão, como se tivesse a intenção de ir embora. De novo parou, indeciso. — Veja bem — disse ele, de repente. — Sou parente do conde, e ele sempre foi muito bom comigo. Então, olhe só (com um sorriso bondoso e alegre, apontou para suas botas e para sua capa), usei até acabar, e além do mais também não tenho dinheiro; e assim eu queria pedir ao conde...

Mavra Kuzmínichna não o deixou terminar de falar.

— O senhor espere um minutinho, meu caro. Só um minutinho — disse ela. E assim que o oficial tirou a mão do portão, Mavra Kuzmínichna virou-se e, com seus passinhos ligeiros de velha, foi para o pátio dos fundos, rumo ao seu anexo.

Na hora em que Mavra Kuzmínichna foi para o seu quarto, o oficial, de cabeça baixa e olhando para suas botas esburacadas, sorriu de leve e pôs-se a vagar pelo pátio. “Que pena eu não ter chegado a tempo de ver o titio. E que velhinha formidável! Para onde ela correu? E como é que vou saber por que ruas posso alcançar mais depressa o regimento, que a esta hora já deve estar nos portões Rogójski?”, pensava o jovem oficial enquanto isso. Mavra Kuzmínichna, com o rosto assustado e ao mesmo tempo decidido, trazendo nas mãos um lencinho quadrado e dobrado, veio detrás da quina da casa. A alguns passos do oficial, ela desdobrou o lenço, retirou dali uma nota branca de vinte e cinco rublos e entregou-a às pressas ao oficial.

— Se suas excelências estivessem em casa, está claro, eles, por causa do parentesco, receberiam o senhor como se deve, mas o que se pode... agora... — Mavra Kuzmínichna ficou vermelha e confusa. Mas o oficial, sem recusar e sem se apressar, pegou a nota e agradeceu a Mavra Kuzmínichna. — Se o conde estivesse em casa... — Mavra Kuzmínichna continuou a falar, desculpando-se. — Cristo o proteja, meu caro! Que Deus o ajude — disse Mavra Kuzmínichna, curvando-se numa reverência enquanto andava atrás dele. O oficial, como que rindo de si mesmo, balançando a cabeça e sorrindo, partiu quase correndo pelas ruas vazias para alcançar seu regimento na ponte do rio Iaúza.

E Mavra Kuzmínichna, com os olhos molhados, ainda ficou muito tempo na frente do portão aberto, balançando a cabeça com ar pensativo e sentindo um inesperado acesso de ternura e de compaixão maternal por aquele oficial desconhecido.

XXIII

Numa casa ainda inacabada na rua Varvarka, embaixo da qual havia uma loja de bebidas, ouviam-se gritos e canções de bêbados. Em bancos e mesas, numa sala pequena e imunda, estavam sentados uns dez trabalhadores de fábrica. Bêbados, suados, de olhos turvos, abrindo muito a boca e fazendo força, todos eles cantavam uma certa canção. Eles cantavam de modo desencontrado, com dificuldade, com esforço, obviamente não porque estivessem com vontade de cantar, mas só para mostrar que estavam bêbados e que se divertiam. Um deles, um rapaz louro e alto, de casaco azul e limpo, estava de pé junto deles. Seu rosto, de nariz fino e reto, seria bonito se não fossem os lábios finos, comprimidos, que não paravam de mexer, e os olhos turvos, imóveis e contraídos. O rapaz estava junto aos que cantavam e, pelo visto, imaginando ser outra coisa, balançava acima da cabeça deles, de modo solene e incisivo, o braço branco e nu até o cotovelo e se empenhava em manter os dedos estranhamente separados. A manga do casacão a toda hora se desenrolava, descia, e ele, com a mão esquerda, arregaçava a manga de novo com todo o zelo, como se houvesse algo especialmente importante no fato de aquele braço branco e robusto ficar sempre nu. No meio da canção, na saleta da frente e na varanda, ouviram-se gritos de briga e socos. O rapaz alto sacudiu o braço.

— Chega! — gritou em tom imperativo. — Uma briga, pessoal! — E, sem parar de arregaçar a manga do casaco, saiu para a varanda.

Os trabalhadores de fábrica foram atrás. Os trabalhadores de fábrica que estavam bebendo na taberna naquela manhã sob a regência do rapaz alto haviam trazido da fábrica peças de couro para o taberneiro, e por isso lhes serviam bebida. Os ferreiros da ferraria vizinha, ao ouvir a bagunça na taberna, acharam que ela estava sendo saqueada e quiseram entrar ali à força. Na varanda, irrompeu uma briga.

O taberneiro estava brigando com um ferreiro na porta e, quando os trabalhadores de fábrica saíram, o ferreiro se desvencilhou do taberneiro, mas caiu de cara no calçamento da rua.

Outro ferreiro partiu para a porta e, com o peito, jogou o taberneiro no chão.

O rapaz de manga arregaçada, na corrida, deu um soco na cara do ferreiro que irrompera na porta e gritou feito um louco:

— Pessoal! Estão batendo nos nossos!

Naquele momento, o primeiro ferreiro se levantou do chão e, enxugando o sangue no rosto ferido, começou a gritar com voz chorosa:

— Guarda! Mataram!... Mataram um homem! Irmãos!...

— Ai, meu Deus, bateram até matar, mataram um homem! — esganiçava-se uma camponesa que saíra de um portão vizinho. A multidão se aglomerou em torno do ferreiro ensanguentado.

— Será que você já não roubou bastante o povo? Tirou até a camisa da gente — falou uma voz, dirigindo-se ao taberneiro. — Para que ainda foi matar um homem? Seu bandido!

O rapaz alto, parado na varanda, voltava os olhos turvos ora para o taberneiro, ora para o ferreiro, como que resolvendo contra quem devia brigar agora.

— Assassino! — gritou de repente para o taberneiro. — Amarrem esse sujeito, pessoal!

— Essa é boa, quero ver me amarrarem! — gritou o taberneiro, desvencilhou-se das pessoas que o atacaram, tirou o chapéu da cabeça e jogou-o no chão. Como se aquilo tivesse de fato algum significado misteriosamente ameaçador, os trabalhadores de fábrica que rodeavam o taberneiro ficaram parados, indecisos. — Eu conheço muito bem a lei, meu irmão. Vou levar a questão às autoridades. Acha que não vou? Hoje em dia ninguém pode sair por aí roubando, não! — gritou o taberneiro, pegando o chapéu no chão.

— Vamos lá, quero ver! Vamos lá, quero ver! — repetiam um para o outro o taberneiro e o rapaz alto, e os dois juntos seguiram pela rua. O ferreiro ensanguentado foi atrás deles. Os trabalhadores de fábrica e os curiosos foram atrás, entre gritos e falatórios.

Na esquina da rua Marosséika, em frente a uma casa grande de venezianas fechadas, na qual havia a tabuleta de um sapateiro, estavam uns vinte sapateiros de rostos cansados, homens magros, exauridos, de túnicas e casacos em farrapos.

— Ele tem de pagar a gente direito! — disse um artesão magro, de barbicha rala e sobrancelhas franzidas. — Puxa vida, ele sugou o nosso sangue e agora acha que está tudo certo. Ficou uma semana inteira enrolando a gente. Agora que enrolou a gente até o fim ele foi embora.

Ao ver o povo e um homem ensanguentado, o artesão que falava ficou calado, e todos os sapateiros, com uma curiosidade afoita, uniram-se àquela multidão em movimento.

— Para onde está indo essa gente toda?

— Ora, para onde mais? Para a polícia, claro.

— E é mesmo verdade que nossas forças foram derrotadas?

— O que é que você acha? Olhe o que o povo anda dizendo.

Ouviram-se perguntas e respostas. O taberneiro, aproveitando-se do aumento da multidão, afastou-se e voltou para a sua taberna.

O rapaz alto, sem notar o sumiço do seu inimigo taberneiro, não parava de falar, brandindo o braço nu, e assim chamava para si a atenção geral. Era em volta dele sobretudo que o povo se comprimia, supondo que dele viria a solução para as perguntas que a todos preocupavam.

— Ele vai ver só o que é a lei, o que é a ordem, para isso é que a autoridade é nomeada! Não é como estou dizendo, cristãos ortodoxos? — disse o rapaz alto, sorrindo de modo quase imperceptível.

— Ele está pensando que não existem autoridades? E por acaso se pode viver sem as autoridades? Se fosse assim, ia ter ladrão para todo lado.

— Quanta conversa fiada! — reagiram na multidão. — Acha que eles iam abandonar Moscou desse jeito? Contaram essa lorota para você, e você acreditou. Tem tanta tropa da gente andando por aí. Deixe ele ir! Para isso é que existem as autoridades. Gente, vamos ouvir o que aquele ali está falando — diziam, apontando para o rapaz alto.

Junto aos muros de Kitai-Gorod,51 outra pequena aglomeração de pessoas rodeava um homem de capote frisado, que segurava uma folha de papel na mão.

— Um decreto, estão lendo um decreto! Estão lendo um decreto! — ouviu-se na multidão, e o povo se precipitou na direção do leitor.

O homem de capote frisado estava lendo a proclamação de 31 de agosto. Quando a multidão o rodeou, ele pareceu encabulado, mas, ante a exigência do rapaz alto, que havia aberto caminho até perto dele, começou a ler a proclamação, de início com um ligeiro tremor na voz.

— “Amanhã de manhã irei ao encontro do excelentíssimo” — leu ele. (— O excelentíssimo! — repetiu o rapaz alto, sorrindo e de sobrancelhas franzidas.) — “Para discutir com ele, tomar providências e ajudar as tropas a aniquilar os canalhas; nós também vamos dar um sufoco neles...” — prosseguiu o leitor e parou. (— Viu só? — gritou o rapaz alto em tom de triunfo. — Por causa da gente ele percorre qualquer distância...) — “... Vamos pôr esses visitantes para correr e mandar todos eles para o inferno; vou voltar para o jantar, e aí vamos resolver nosso problema, vamos pôr mãos à obra, vamos agir, trabalhar e acabar com a raça desses canalhas.”

As últimas palavras foram pronunciadas pelo leitor em meio a um completo silêncio. O rapaz alto baixou a cabeça com ar tristonho. Estava claro que ninguém havia compreendido aquelas últimas palavras. Em especial as palavras “vou voltar para o jantar” causaram uma evidente aflição, tanto nos ouvintes como no leitor. A percepção do povo estava afinada num tom muito alto de irritabilidade, e aquilo era demasiado simples e desnecessariamente compreensível; era algo que qualquer um deles poderia dizer, e por isso não poderia ser dito num decreto oriundo da mais alta esfera do poder.

Todos ficaram num silêncio abatido. O rapaz alto movia os lábios e se balançava para lá e para cá.

— Era melhor perguntar para ele!... Não é ele, ali?... Vamos lá perguntar!... Como não, vamos logo... Ele vai dizer... — ouviu-se de repente nas fileiras de trás da multidão, e a atenção geral voltou-se para o coche do chefe de polícia, que chegara à praça, acompanhado por dois dragões da cavalaria.

O chefe de polícia, que naquela manhã, por ordem do conde, tinha ido queimar os barcos, e por causa daquela atribuição havia ganhado uma grande soma de dinheiro, que naquele momento se achava dentro do seu bolso, ao ver a multidão que se deslocava na sua direção, ordenou ao cocheiro que parasse.

— O que há com esse povo? — gritou para as pessoas que, dispersas e tímidas, se aproximavam do coche. — O que há com esse povo? Estou perguntando, não estão ouvindo? — repetiu o chefe de polícia, sem receber resposta.

— Eles, vossa excelência — disse o leitor de capote frisado —, eles, vossa excelência, pela proclamação do excelentíssimo conde, sem poupar a própria pele, queriam servir nas tropas, e não é para fazer nenhuma revolta, como está dito pelo excelentíssimo conde...

— O conde não foi embora, está aqui, e vocês vão receber ordens dele — disse o chefe de polícia. — Vamos em frente! — disse para o cocheiro. A multidão se deteve, aglomerada em torno dos que escutaram o que o policial tinha dito, e ficou olhando o coche que se afastava.

O chefe de polícia, naquele momento, olhou para trás assustado, falou algo para o cocheiro, e seus cavalos andaram mais depressa.

— É uma trapaça, pessoal! Vamos à casa dele! — gritou a voz do rapaz alto. — Não vamos deixar ele escapar, pessoal! Ele tem de responder para a gente! Agarrem ele! — começaram a gritar, e o povo abalou a correr no encalço do coche.

A multidão atrás do chefe de polícia, num alarido estrondoso, tomou a direção da rua Lubianka.

— Quer dizer que os nobres e os comerciantes foram embora e deixaram a gente para trás? Por acaso nós somos cachorros, é? — ouvia-se na multidão de maneira cada vez mais constante.

XXIV

No anoitecer do dia 1o de setembro, depois do seu encontro com Kutúzov, o conde Rostoptchin, desgostoso e ofendido por não ter sido convidado para participar do conselho de guerra, por Kutúzov não ter prestado nenhuma atenção em sua proposta de tomar parte na defesa da capital, e surpreso com o novo ponto de vista que foi revelado a ele no acampamento, segundo o qual a questão da tranquilidade da capital e do seu sentimento de patriotismo era não só secundária mas também totalmente supérflua e insignificante — desapontado, ofendido e admirado com tudo aquilo, o conde Rostoptchin voltou para Moscou. Depois de jantar, o conde deitou-se num canapé sem trocar de roupa e, antes da uma hora da madrugada, foi acordado por um mensageiro que lhe trouxe uma carta de Kutúzov. Na carta era dito que, como as tropas estavam se retirando pela estrada de Riazan para trás de Moscou, seria conveniente que o conde mandasse funcionários da polícia para acompanhar a passagem das tropas pela cidade. Aquela notícia não era nenhuma novidade para Rostoptchin. Não só por causa do encontro com Kutúzov na véspera, na colina Poklónaia, como também por causa da própria batalha de Borodinó, depois da qual todos os generais que chegavam a Moscou diziam a uma só voz que era impossível travar outra batalha, e também porque, com permissão do conde, todas as noites, os bens do erário público tinham sido removidos da cidade, e metade dos habitantes havia ido embora, o conde Rostoptchin sabia que Moscou seria abandonada ao inimigo; mas, apesar de tudo isso, o fato de tal notícia ser transmitida em forma de um simples bilhete com uma ordem de Kutúzov e recebida à noite, durante o primeiro sono, surpreendeu e irritou o conde.

Tempos depois, em suas memórias, ao explicar suas ações naquela ocasião, o conde Rostoptchin escreveu várias vezes que, naquele momento, ele tinha dois objetivos principais: de maintenir la tranquillité à Moscou et d’en faire partir les habitants.52 Se acreditarmos nesse duplo objetivo, todas as ações de Rostoptchin se mostram irrepreensíveis. Por que não foram levadas de Moscou as relíquias sagradas, as armas, a munição, a pólvora, os suprimentos de comida, e por que milhares de habitantes foram enganados com a ideia de que Moscou não seria entregue e dessa forma foram levados à ruína? Para preservar a tranquilidade na capital, responde a explicação do conde Rostoptchin. Para que foram removidas pilhas e pilhas de papéis inúteis das repartições do governo, o balão de Leppich, além de muitas outras coisas? Para deixar a cidade vazia, responde a explicação do conde Rostoptchin. Basta apenas admitir que algo ameaça a tranquilidade pública para que qualquer ação se torne justa.

Todos os horrores do Terror se basearam apenas na preocupação com a tranquilidade pública.

Mas em que se baseava o temor do conde Rostoptchin quanto à tranquilidade pública em Moscou, em 1812? Qual era a causa de supor que havia na cidade uma tendência para a convulsão social? Os habitantes haviam partido, as tropas, em retirada, enchiam Moscou. Por que o povo havia de se rebelar por isso?

Não só em Moscou, mas em toda a Rússia, não ocorreu nada semelhante a uma convulsão social por causa da invasão do inimigo. Nos dias 1o e 2 de setembro, mais de dez mil pessoas estavam em Moscou e, exceto pela multidão que se reuniu no pátio da sede do governo, convocada pelo próprio governador-geral, nada aconteceu. É evidente que se devia esperar menos ainda qualquer agitação popular, se, depois da batalha de Borodinó, quando a rendição de Moscou se tornou algo óbvio, ou pelo menos provável — em vez de agitar o povo com distribuição de armas e com panfletos, Rostoptchin houvesse tomado medidas para remover da cidade todas as relíquias sagradas, a pólvora, a munição e o dinheiro e tivesse informado francamente ao povo que a cidade ia se render.

Rostoptchin, homem impulsivo e sanguíneo, sempre voltado para as altas esferas da administração, apesar de ter um sentimento patriótico, não tinha a menor noção de como era o povo que ele pensava governar. Desde o início da invasão do inimigo em Smolensk, Rostoptchin, em sua imaginação, atribuiu-se o papel de guia do sentimento popular — o coração da Rússia. Não só lhe parecia (como parece a todo administrador) que ele dirigia as ações externas dos habitantes de Moscou, como também lhe parecia que ele governava o estado de ânimo dos habitantes mediante suas proclamações e seus panfletos, redigidos naquele idioma fanfarrão que o povo despreza em seu próprio meio e que não entende quando o escuta vindo de uma autoridade. O belo papel de guia do sentimento popular agradava tanto a Rostoptchin, ele se apegou de tal modo a esse papel, que a necessidade de deixar aquele papel, a necessidade de abandonar Moscou sem nenhum lance de efeito heroico, o apanhou de surpresa, e de repente seus pés perderam o chão onde ele se mantinha de pé, e o conde ficou decididamente sem saber o que fazer. Embora soubesse daquilo, Rostoptchin, até o último minuto, não acreditou com toda a sua alma no abandono de Moscou e não fez nada com esse objetivo. Os habitantes foram embora contra o desejo do conde. Se as repartições do governo foram evacuadas, isso aconteceu apenas por exigência dos funcionários, com os quais o conde concordou a contragosto. Ele próprio só estava interessado no papel que atribuíra a si mesmo. Como acontece com frequência com pessoas dotadas de uma imaginação impetuosa, ele já sabia desde muito tempo que Moscou seria abandonada, mas só o sabia pelo raciocínio, sem acreditar nisso com toda a sua alma e sem que a imaginação o transportasse para a nova situação.

Toda a sua atividade, diligente e enérgica (em que medida era útil ao povo e se refletia nele, isso é outra questão), toda a sua atividade estava voltada apenas para suscitar nos habitantes o sentimento que o próprio conde experimentava — o ódio patriótico aos franceses e a confiança em si mesmo.

Mas quando os acontecimentos tomaram suas proporções genuínas, históricas, quando pareceu insuficiente apenas por meio de palavras exprimir seu ódio aos franceses, quando se tornou impossível até por meio do combate exprimir aquele ódio, quando a confiança em si se mostrou inútil em relação à única questão pertinente a Moscou, quando toda a população, como um só homem, deixando seus bens para trás, se precipitou para fora de Moscou, mostrando com essa ação negativa toda a força do seu sentimento popular — então o papel escolhido por Rostoptchin de repente se mostrou absurdo. De repente ele se sentiu isolado, fraco e ridículo, sem chão sob os pés.

Ao receber, despertado de seu sono, o bilhete frio e imperativo de Kutúzov, Rostoptchin sentiu-se tanto mais irritado, porquanto se sentia culpado. Tudo aquilo que precisamente tinha sido confiado a ele, todos os bens do erário público que ele deveria ter retirado da cidade continuavam em Moscou. Não era possível retirar tudo.

“Quem é o culpado disso, quem permitiu isso?”, pensava ele. “Claro, não sou eu. Eu tinha tudo preparado, eu mantive Moscou sob controle, isso sim! E aí está a que situação eles nos levaram! Miseráveis, traidores!”, pensava ele, sem definir bem quem eram os miseráveis e traidores, mas sentindo necessidade de odiar aqueles indefinidos traidores, os culpados da situação falsa e ridícula em que ele se encontrava.

Durante toda aquela noite, o conde Rostoptchin emitiu ordens que, de todos os cantos de Moscou, vinham pedir a ele. Os mais chegados ao governador-geral nunca tinham visto o conde tão sombrio e tão abalado.

“Vossa excelência, vieram do departamento do patrimônio, da parte do diretor, pedir instruções... do consistório,53 do Senado, da universidade, do asilo de crianças, e o sufragâneo mandou... pergunta... Que ordens o senhor tem para o corpo de bombeiros? O diretor da prisão... O diretor do manicômio...” — a noite inteira, sem cessar, vieram procurar o conde.

A todas as perguntas, o conde dava respostas curtas e zangadas, que demonstravam que suas ordens agora eram desnecessárias, que tudo o que ele havia preparado com tanto zelo agora tinha sido estragado por não se sabia quem, e que a esse alguém caberia toda a responsabilidade por tudo o que viesse a acontecer agora.

— Escute, diga para esse cretino — respondeu o conde a uma pergunta do departamento das heranças — que ele tem de ficar e guardar seus documentos. Mas por que está me perguntando essas besteiras sobre o corpo de bombeiros? Eles têm cavalos, não têm? Então que vão para Vladímir com eles. Não os deixem para os franceses.

— Vossa excelência, chegou o supervisor do manicômio, o que o senhor ordena para ele?

— O que eu ordeno? Que deixe todos ir embora e pronto, acabou-se... Deixem os doidos soltos na cidade. Se doidos estão no comando de nossos exércitos, essa é a vontade de Deus.

À pergunta sobre os prisioneiros que estavam nos calabouços, o conde gritou irritado para o diretor:

— O que quer? Que lhe dê uma escolta de dois batalhões que não existem? Solte-os, solte todos eles!

— Vossa excelência, há presos políticos: Mechkóv, Verecháguin.

— Verecháguin! Ele ainda não foi enforcado? — gritou Rostoptchin. — Tragam-no para cá.

XXV

Pouco antes das dez horas da manhã, quando as tropas já se deslocavam através de Moscou, a ninguém mais ocorria a ideia de pedir instruções ao conde. Todos os que podiam partir haviam partido por conta própria; os que ficaram resolviam sozinhos o que precisavam fazer.

O conde mandou trazer os cavalos para levá-lo a Sokólniki e, soturno, irritado e calado, ele se mantinha em seu gabinete, de braços cruzados.

Em tempos de calma, sem tumulto, a todo administrador parece que é apenas graças aos seus esforços que se movimenta toda a população sob a sua responsabilidade e, nessa consciência da própria necessidade, todo administrador sente uma recompensa importante por seus trabalhos e esforços. É compreensível que, enquanto o mar da história está calmo, o administrador-governante, que se move em seu frágil barquinho preso por uma vara ao navio do povo, tenha a impressão de que são seus esforços que movem o navio a que ele está preso. Porém basta erguer-se a tormenta, o mar agitar-se, que o navio logo se move por si só, e então já é impossível se iludir. O navio segue o próprio curso, imenso, independente, a vara não alcança mais o navio em movimento, e o governante, de repente, passa da posição de soberano, fonte de poder, à posição de um homem insignificante, imprestável e fraco.

Rostoptchin sentia isso, e isso o irritava.

O chefe de polícia, a quem a multidão havia detido, junto com o ajudante de ordens que viera comunicar que os cavalos estavam prontos, foram ao encontro do conde. Ambos estavam pálidos, e o chefe de polícia, depois de informar que havia cumprido sua missão, comunicou que, no pátio do conde, havia uma multidão enorme que desejava vê-lo.

Rostoptchin, sem nada responder, levantou-se e, a passos ligeiros, encaminhou-se para a sua luxuosa e clara sala de visitas, aproximou-se da porta da sacada, empunhou a maçaneta, largou-a e seguiu para uma janela, de onde se podia ver toda a multidão. O rapaz alto estava nas fileiras da frente e, com rosto severo, brandindo o braço no ar, dizia algo. O ferreiro ensanguentado, com ar sombrio, estava ao seu lado. Através da janela, ouvia-se o rumor das vozes.

— A carruagem está pronta? — disse Rostoptchin, afastando-se da janela.

— Está pronta, vossa excelência — respondeu o ajudante de ordens.

Rostoptchin aproximou-se de novo da porta da sacada.

— O que eles querem? — perguntou o conde para o chefe de polícia.

— Vossa excelência, eles dizem que se reuniram para combater os franceses, conforme as suas ordens, e gritaram alguma coisa sobre uma traição. É um bando de desordeiros, vossa excelência. Só a custo consegui escapar. Vossa excelência, tomo a liberdade de sugerir...

— Queira se retirar, sei muito bem o que fazer, sem as sugestões do senhor — gritou Rostoptchin, zangado. Ficou parado junto à porta da sacada, olhando para a multidão. “Aí está o que fizeram com a Rússia! Aí está o que fizeram comigo!”, pensou Rostoptchin, sentindo erguer-se na sua alma uma raiva incontrolável, contra qualquer um a quem se pudesse atribuir a causa de tudo o que havia acontecido. Como ocorre muitas vezes com pessoas impulsivas, a raiva já o havia dominado, mas ele ainda procurava um alvo para a raiva. “La voilà la populace, la lie du peuple”,54 pensou ele, olhando para a multidão, “la plèbe qu’ils ont soulevée par leur sottise. Il leur faut une victime”,55 passou pela sua cabeça, enquanto olhava para o braço que o rapaz alto brandia no ar. E por isso mesmo lhe veio à cabeça que ele próprio precisava daquela vítima, algo que servisse de alvo para sua raiva.

— A carruagem está pronta? — perguntou ele outra vez.

— Está pronta, vossa excelência. O que ordena a respeito de Verecháguin? Ele está aguardando na porta — respondeu o ajudante de ordens.

— Ah! — exclamou Rostoptchin, como que sacudido por uma lembrança inesperada.

E, após abrir a porta rapidamente, saiu a passos resolutos para a sacada. O rumor das vozes cessou de súbito, gorros e bonés foram tirados das cabeças, e todos os olhos se ergueram para o conde que havia surgido.

— Bom dia, minha gente! — disse o conde, rápido e alto. — Obrigado por terem vindo. Daqui a pouco irei ao encontro de vocês, mas antes de tudo temos de acertar as contas com um bandido. Temos de castigar o bandido que levou Moscou à ruína. Esperem-me! — E, da mesma forma ligeira, o conde voltou para a sala, depois de bater a porta com força.

Um murmúrio de contentamento e aprovação percorreu a multidão. “Vocês vão ver como ele acaba com a raça desses bandidos! E você ainda dizia que os franceses... Ele vai mostrar para você como é que se faz!”, diziam as pessoas, como se recriminassem umas às outras pela falta de confiança.

Alguns minutos depois, um oficial saiu pela porta da rua, deu uma ordem, e os dragões se perfilaram. A multidão se deslocou sofregamente do pátio diante da sacada para a frente da varanda. Saindo a passos rápidos e raivosos para a varanda, Rostoptchin lançou um olhar afobado à sua volta, como se procurasse alguém.

— Onde está ele? — disse o conde e, no mesmo instante em que ele falava, avistou, entre dois dragões, um jovem que vinha de trás do prédio, de pescoço fino e com metade da cabeça raspada,56 onde os cabelos apenas começam a crescer. O jovem estava vestido num casaco esfarrapado de pele de raposa, forrado com um pano azul, que em outros tempos tinha sido elegante, e em calças de prisioneiro sujas, feitas de cânhamo, metidas nos canos de botas surradas, magras e sem graxa. Nas pernas fracas, magras, pendiam pesadas correntes, que tolhiam os passos hesitantes do jovem.

— Ah! — disse Rostoptchin, desviando seu olhar do jovem de casaco de pele de raposa e apontando para o degrau mais baixo da escadinha da varanda. — Coloquem-no aqui! — O jovem, tilintando as correntes, avançou com movimentos pesados para o degrau indicado; enquanto repuxava com o dedo a gola apertada do casaco, virou duas vezes o pescoço fino, suspirou e, com um gesto submisso, entrecruzou na frente da barriga as mãos finas de quem não conhece o trabalho braçal.

Por alguns segundos, enquanto o jovem se instalava no degrau, o silêncio prosseguiu. Só nas fileiras de trás, onde todas as pessoas faziam pressão para se aproximar do mesmo ponto, ouviam-se gemidos, resmungos, empurrões e batidas de pés no chão, quando mudavam de lugar.

Rostoptchin, esperando que Verecháguin parasse no local indicado, franziu as sobrancelhas e esfregou o rosto com a mão.

— Minha gente! — disse Rostoptchin com voz metálica. — Esse homem, Verecháguin, é o miserável que levou Moscou à ruína.

O jovem de casaco de pele de raposa estava parado numa atitude submissa, as mãos cruzadas na frente da barriga, e um pouco torto. Descarnado, com uma fisionomia desesperançada, seu rosto jovem, desfigurado pela cabeça raspada, estava inclinado para baixo. Às primeiras palavras de Rostoptchin, ele ergueu a cabeça devagar e olhou para o conde, de baixo para cima, como se quisesse falar algo para ele, ou pelo menos fitá-lo nos olhos. Mas Rostoptchin não olhou para o jovem. No pescoço fino e comprido do jovem, uma veia se dilatou e ficou azul por trás da orelha, como uma corda, e de repente seu rosto ficou vermelho.

Os olhos de todos estavam voltados para ele. O jovem fitou a multidão e, como que respaldado pela expressão que descobriu no rosto das pessoas, ele sorriu de modo tímido e triste, baixou a cabeça outra vez e ajeitou a posição dos pés no degrau.

— Ele traiu seu tsar e sua pátria, ele se bandeou para Bonaparte, entre todos os russos, só ele desgraçou o nome russo, e por causa dele Moscou vai ser destruída — disse Rostoptchin com voz firme, incisiva; mas de repente baixou um olhar rápido para Verecháguin, que continuava na mesma atitude submissa. Como se aquele olhar tivesse inflamado o conde, ele ergueu a mão e quase berrou para o povo: — Castiguem-no conforme o julgamento de vocês! Eu o entrego a vocês!

O povo ficou calado, e todos se limitaram a comprimir-se mais ainda uns contra os outros. O forte aperto de uns contra os outros, o abafamento do ar viciado, a incapacidade de se mexer e a espera de algo desconhecido, incompreensível e terrível criavam uma sensação insuportável. As pessoas que estavam nas primeiras filas, que viam e ouviam tudo o que se passava à sua frente, com os olhos cada vez mais arregalados e assustados e a boca escancarada, reunindo todas as energias, continham em suas costas a pressão dos que estavam atrás.

— Deem uma surra nele!... Deixem o traidor morrer para que aprenda a não envergonhar o nome russo! — gritou Rostoptchin. — Façam o homem em pedaços! Eu ordeno! — Sem entender nenhuma palavra, mas apenas ouvindo o som raivoso da voz de Rostoptchin, a multidão começou a gemer e a se aproximar, mas se deteve outra vez.

— Conde!... — falou, durante um minuto de silêncio que se formou outra vez, a voz tímida e ao mesmo tempo teatral de Verecháguin. — Conde, só Deus está acima de nós... — disse Verecháguin, levantando a cabeça, e de novo a veia grossa se encheu de sangue no seu pescoço fino, e a cor vermelha veio e se foi rapidamente do seu rosto. Ele não terminou de falar o que pretendia.

— Façam o homem em pedaços! Eu ordeno!... — vociferou Rostoptchin, que de repente ficou pálido, assim como Verecháguin.

— Empunhar sabres! — gritou o oficial dos dragões, pegando ele mesmo um sabre.

Outra onda, ainda mais forte, percorreu a multidão e, ao alcançar as primeiras filas, a onda empurrou os que estavam na frente e, oscilando, arrastou-os até bem perto da escadinha da varanda. O rapaz alto, com uma expressão de pedra no rosto e com o braço erguido e parado, pôs-se ao lado de Verecháguin.

— Façam o homem em pedaços! — disse, quase num sussurro, o oficial dos dragões, e um dos soldados, de repente, com o rosto desfigurado pela raiva, golpeou Verecháguin na cabeça com o lado sem fio da espada.

“Ah!”, exclamou Verecháguin de modo breve e surpreso, olhando em volta assustado e como que sem entender por que tinham feito aquilo com ele. O mesmo gemido de surpresa e horror percorreu a multidão.

“Ah, meu Deus!”, ouviu-se a exclamação triste de alguém.

Mas, depois da exclamação de surpresa, Verecháguin soltou um grito lastimoso de dor, e esse grito foi sua perdição. A barreira do sentimento humano, tensionada ao mais alto grau, e que ainda continha a multidão, rompeu-se no mesmo instante. O crime havia começado, era necessário levá-lo até o fim. O gemido lastimoso de censura foi abafado pelo rugido raivoso e aterrador da multidão. Como a sétima e última onda que rompe o casco de um navio, levantou-se das fileiras de trás a última onda, irresistível, estendeu-se até as fileiras da frente, derrubou-as e engoliu a todos. O dragão que dera o golpe quis repetir o gesto. Verecháguin, com um grito de horror, protegendo-se com as mãos, jogou-se na direção da multidão. O rapaz alto, sobre quem ele foi cair, agarrou entre as mãos o pescoço fino de Verecháguin e, com um grito selvagem, tombou junto com ele aos pés do povo, que se comprimia e urrava.

Uns espancavam e arrastavam Verecháguin, outros, o rapaz alto. E os gritos das pessoas pisoteadas e daquelas que tentavam salvar o rapaz alto só serviam para atiçar a fúria da multidão. Durante muito tempo, os dragões não conseguiram libertar o operário ensanguentado e quase morto de tanto apanhar. E por muito tempo, apesar de toda a afobação impetuosa com que a multidão tentava concluir de uma vez a tarefa iniciada, as pessoas que espancavam, sufocavam e arrastavam Verecháguin não conseguiram matá-lo; a multidão comprimia aquelas pessoas de todos os lados e oscilava de um lado para outro com elas no centro, como uma só massa, sem dar a elas a possibilidade de liquidar Verecháguin, nem de soltá-lo.

“Um machado, batam com um machado, que tal?... pisotearam... Traidor, vendilhão de Cristo!... vivo... está vivo... ladrão tem mesmo de apanhar. Com o machado!... Ainda está vivo?”

Só quando a vítima havia parado de se debater, e seus gritos deram lugar a um estertor prolongado e uniforme, a multidão começou, apressadamente, a abrir espaço em torno do cadáver ensanguentado, estendido no chão. Todos os que se aproximavam e lançavam um olhar para o que tinha sido feito recuavam com ar de horror, censura e surpresa.

“Ah, meu Deus, que fera é essa gente, como é que o rapaz podia ficar vivo?”, ouvia-se na multidão. “Tão novo, o rapaz... devia ser filho de um comerciante, mas que gente!... Dizem que não foi ele... Como é que não foi ele?... Ah, meu Deus... Espancaram outro também, dizem que quase morreu... Eh, que gente... Eles não têm medo de pecado...”, diziam agora as mesmas pessoas, olhando com expressão dolorosa e patética o corpo morto, com o rosto azulado manchado de sangue e poeira e o pescoço fino e comprido cortado.

Um policial zeloso, julgando indecente a presença do cadáver no pátio de sua excelência, ordenou aos dragões que o puxassem para a rua. Dois dragões agarraram as pernas desfiguradas e arrastaram o corpo. A cabeça ensanguentada, manchada de poeira, raspada e morta, presa ao pescoço comprido, sacolejava de um lado para outro ao ser arrastada pela terra. O povo se comprimia, afastando-se do cadáver.

Na hora em que Verecháguin tombou, e a multidão, com um urro selvagem, se aglomerou à sua volta e começou a espancá-lo, Rostoptchin de repente ficou pálido e, em vez de ir para a saída dos fundos, onde seus cavalos atrelados o aguardavam, seguiu pelo corredor a passos rápidos, de cabeça baixa, sem saber ele mesmo aonde ia nem para quê, andando pelo caminho que ia dar nos aposentos do térreo. O rosto do conde estava pálido, e ele não conseguia deter um tremor no queixo, como se estivesse com febre.

— Vossa excelência, por aqui... aonde o senhor deseja ir?... Por aqui, por favor — dizia atrás dele uma voz trêmula, assustada. O conde Rostoptchin, incapaz de responder qualquer coisa, voltou-se com obediência e seguiu na direção que lhe indicavam. A carruagem estava na saída dos fundos. Dali também se ouvia o alarido distante da multidão furiosa. O conde Rostoptchin sentou-se às pressas na carruagem e mandou seguir para sua casa nos arredores da cidade, em Sokólniki. Ao sair na rua Miasnitskaia e não ouvir mais os gritos da multidão, o conde começou a se arrepender. Agora, com desagrado, lembrava-se da agitação e do medo que ele havia mostrado diante de seus subordinados. “La populace est terrible, elle est hideuse”,57 pensou ele em francês. “Ils sont comme les loups qu’on ne peut apaiser qu’avec de la chair.”58 “Conde, só Deus está acima de nós!”, lembrou-se de repente das palavras de Verecháguin, e um desagradável sentimento de frio correu pelas costas do conde Rostoptchin. Mas tal sentimento foi passageiro, e o conde Rostoptchin sorriu de si mesmo com desdém. “J’avais d’autres devoirs”,59 pensou ele. “Il fallait apaiser le peuple. Bien d’autres victimes ont péri et périssent pour le bien public”,60 e passou a pensar nas obrigações comuns que ele tinha com relação à sua família, à sua capital (posta sob sua tutela) e a si mesmo — não como Fiódor Vassílievitch Rostoptchin (ele supunha que Fiódor Vassílievitch Rostoptchin se sacrificava pelo bien public), mas como governador-geral, representante do poder e plenipotenciário do tsar. “Se eu fosse apenas Fiódor Vassílievitch, ma ligne de conduite aurai été tout autrement tracée,61 mas eu tinha de salvaguardar a vida e a dignidade do governador-geral.”

Balançando de leve nas molas macias da carruagem e sem ouvir mais os sons terríveis da multidão, Rostoptchin acalmou-se fisicamente e, como sempre acontece, junto com a tranquilidade física, a razão forjou para ele também motivos para a tranquilidade moral. A ideia que tranquilizou Rostoptchin não era novidade. Desde que o mundo existe e as pessoas se matam umas às outras, jamais um homem cometeu um crime contra um semelhante sem se tranquilizar com essa mesma ideia. Essa ideia é le bien public, o que se supõe ser o bem das outras pessoas.

Para um homem não dominado pela paixão, esse bem jamais se dá a conhecer; mas um homem que cometeu um crime sempre sabe com segurança em que consiste esse bem. E Rostoptchin agora sabia o que ele era.

Graças aos seus raciocínios, ele não só não se condenava pelo crime que havia praticado, como ainda achava motivos para se comprazer por ter sabido, de maneira tão hábil, aproveitar-se daquilo à-propos62 — castigar um criminoso e ao mesmo tempo acalmar a multidão.

“Verecháguin foi julgado e condenado à pena de morte”, pensou Rostoptchin (embora Verecháguin tivesse sido condenado pelo Senado apenas aos trabalhos forçados). “Ele era um traidor e um renegado; eu não podia deixá-lo impune e por isso je faisais d’une pierre deux coups;63 dei uma vítima para o povo a fim de acalmá-lo e ao mesmo tempo puni um malfeitor.”

Depois de chegar à sua casa nos arredores da cidade e de tomar as devidas providências domésticas, o conde se tranquilizou de todo.

Meia hora depois, o conde seguia de carruagem através dos campos de Sokólniki, puxado por seus cavalos velozes, sem pensar mais no que havia ocorrido e pensando e ponderando apenas naquilo que iria acontecer. Agora ele estava indo para a ponte do rio Iaúza, onde lhe disseram que estava Kutúzov. O conde Rostoptchin preparava em pensamento as censuras ferozes e cortantes que diria a Kutúzov por causa do seu embuste. Faria aquela velha raposa da corte sentir que a responsabilidade por toda a desgraça que havia de se produzir em função do abandono da capital, da ruína da Rússia (como pensava Rostoptchin), repousava apenas sobre sua cabeça velha e destituída de razão. Refletindo de antemão naquilo que ia dizer para ele, Rostoptchin se remexia furiosamente dentro da carruagem e olhava para os lados com aparência irada.

Os campos de Sokólniki estavam desertos. Só no fim, no asilo de pobres e no manicômio, viam-se grupos de pessoas de roupas brancas e outras iguais a elas que andavam isoladas pelo campo, gritando algo e sacudindo os braços.

Uma delas correu para barrar o caminho da carruagem do conde Rostoptchin. E o próprio conde Rostoptchin, seu cocheiro e os dragões, todos olharam com um obscuro sentimento de horror e de curiosidade para aqueles loucos soltos e em especial para um que vinha correndo na direção deles.

Balançando-se em suas pernas magras e compridas, vestido num roupão esvoaçante, o demente corria com ímpeto, sem desviar os olhos de Rostoptchin, gritava algo para ele com voz rouca e fazia sinais para que parasse. Coberto por tufos desiguais de barba, o rosto sombrio e solene do louco era magro e amarelado. Suas pupilas pretas, como ágata, corriam inquietas para baixo, nos olhos amarelo-açafrão.

— Chega! Pare! Estou mandando! — gritava com voz estridente e, de novo, ofegante, gritou algo com gestos e entonação imponentes.

Ele emparelhou com a carruagem e correu ao seu lado.

— Três vezes me mataram, três vezes ressuscitei dos mortos. Me apedrejaram, me crucificaram... Eu vou ressuscitar... vou ressuscitar... vou ressuscitar. Esquartejaram meu corpo. O reino de Deus será destruído... Três vezes vou destruí-lo e três vezes vou reerguê-lo — gritava ele, com a voz cada vez mais alta.

O conde Rostoptchin de repente empalideceu, da mesma forma como havia empalidecido no momento em que se lançaram contra Verecháguin. Virou o rosto.

— Vá... vá mais depressa! — gritou para o cocheiro, com voz trêmula.

A carruagem ganhou mais velocidade, os cavalos se esforçaram ao máximo; porém o conde Rostoptchin ouviu ainda por muito tempo, atrás de si, o grito louco, desesperado, que se afastava, e diante dos seus olhos via apenas o rosto surpreso, assustado e ensanguentado, do traidor de casaco de pele.

Por mais que aquela lembrança fosse recente, Rostoptchin sentia agora que ela se cravara em seu coração a fundo, até sangrar. Ele agora sentia com clareza que o rastro de sangue daquela recordação jamais deixaria de estar vivo e que, ao contrário, quanto mais distante, aquela recordação terrível haveria de viver de modo ainda mais cruel e torturante no seu coração, até o fim da vida. Ele ouvia, assim lhe parecia agora, os sons das próprias palavras: “Façam este homem em pedaços, me obedeçam!”. “Por que disse aquelas palavras? Falei por acaso, assim, sem pensar... Podia não ter dito isso (pensou ele): então nada teria acontecido.” Via o rosto assustado e depois, de repente, ferrenho, implacável, do dragão que deu o golpe de espada, e o olhar mudo, tímido, de censura que o rapaz de casaco de pele de raposa lançou sobre ele... “Mas eu não fiz isso por mim. Tive de agir dessa forma. La plèbe, le traître... le bien public”,64 pensou ele.

Na ponte do rio Iaúza, as tropas continuavam a se comprimir. Fazia calor. Kutúzov, de rosto contraído, desolado, estava sentado num banco perto da ponte e se entretinha riscando a areia com o cabo de um chicote, quando uma carruagem se aproximou a galope com estrondo. Um homem em uniforme de general, chapéu emplumado, com olhos esquivos ora raivosos, ora assustados, aproximou-se de Kutúzov e começou a falar em francês. Era o conde Rostoptchin. Disse a Kutúzov que estava ali porque Moscou e a capital já não existiam mais, e agora só havia o exército.

— Seria diferente se vossa excelência não tivesse me dito que não abandonaria Moscou sem travar mais uma batalha: nada disso teria acontecido! — disse ele.

Kutúzov olhou para Rostoptchin e, como se não compreendesse o significado daquelas palavras, esforçou-se com afinco para ler uma coisa diferente que naquele minuto aparecia escrita no rosto do homem que estava falando com ele. Rostoptchin, embaraçado, calou-se. Kutúzov balançou a cabeça de leve e, sem desviar o olhar inquiridor do rosto de Rostoptchin, falou em voz baixa:

— Sim, eu não vou abandonar Moscou sem travar uma batalha.

Ou Kutúzov pensava em algo completamente distinto ao dizer aquelas palavras ou as disse de propósito, ciente de sua falta de sentido, mas o conde Rostoptchin nada retrucou e afastou-se às pressas de Kutúzov. E, coisa estranha! O governador-geral de Moscou, o orgulhoso conde Rostoptchin, tomando na mão um açoite, seguiu na direção da ponte e, aos gritos, começou a dispersar as carroças que barravam o caminho.

XXVI

Antes das quatro horas da tarde, as tropas de Murat entraram em Moscou. À frente, vinha a brigada de hussardos de Württemberg, e atrás deles, a cavalo, com uma grande comitiva, o rei de Nápoles em pessoa.

Mais ou menos na metade da rua Arbat, perto da igreja de São Nicolau, Murat se deteve, esperando notícias da brigada que seguira na frente, a respeito da situação em que se encontrava a fortaleza da cidade, “le Kremlin”.

Em redor de Murat, reuniu-se um pequeno grupo de pessoas, alguns dos habitantes que haviam permanecido em Moscou. Todos, com uma perplexidade tímida, fitavam o estranho comandante de cabelos compridos, todo ornamentado de penachos e ouro.

— Que tal, olhe só, não é ele, esse daí, o rei deles? Nada mal! — ouviam-se vozes baixas.

Um intérprete aproximou-se do grupo de pessoas.

— Tire o chapéu... o chapéu — começaram a falar na multidão, dirigindo-se uns aos outros. O intérprete dirigiu-se a um velho porteiro e perguntou se o Krêmlin estava longe. O porteiro, escutando com perplexidade o sotaque polonês, estranho para ele, e sem reconhecer nos sons da fala do intérprete o idioma russo, não compreendeu o que lhe diziam e escondeu-se atrás dos outros.

Murat aproximou-se do intérprete e mandou perguntar onde estavam as tropas russas. Um dos russos entendeu o que lhe perguntavam, e diversas vozes começaram a responder ao intérprete. Um oficial francês das fileiras da frente aproximou-se de Murat e informou que os portões da fortaleza estavam fechados e que, provavelmente, havia ali uma cilada.

— Muito bem — disse Murat e, voltando-se para um dos senhores da sua comitiva, mandou destacar quatro canhões leves e disparar contra os portões.

As peças de artilharia saíram de trás da coluna, levadas a trote, passaram por Murat e avançaram pela rua Arbat. Depois de descer até o fim da rua Vzdvíjenka, a artilharia se deteve, e os canhões foram alinhados na praça. Vários oficiais franceses puseram os canhões em posição, prepararam tudo e ficaram olhando para o Krêmlin através de lunetas.

No Krêmlin, soaram os sinos para as vésperas, e aquele retinir perturbou os franceses. Entenderam que era um sinal para os canhões. Alguns soldados da infantaria correram para os portões Kutafiev. Nos portões, havia barricadas de toras e tábuas. Dois tiros de fuzil soaram por baixo dos portões, assim que um oficial e seu destacamento se aproximaram correndo. O general que estava junto aos canhões gritou algumas palavras para o oficial, que logo voltou correndo com seus soldados.

Ouviram-se ainda mais três disparos vindos dos portões.

Um tiro feriu a perna de um soldado francês e gritos estranhos de algumas vozes ressoaram por trás das barricadas. No rosto do general, dos oficiais e dos soldados franceses, ao mesmo tempo, como que obedecendo a uma ordem, a expressão de alegria e de tranquilidade de antes deu lugar a uma expressão tenaz, concentrada, de presteza para o combate e de sofrimento. Para todos eles, desde o marechal até o último soldado, aquele lugar não era a rua Vzdvíjenka, a rua Mokhovaia, a torre Kutáfia e os portões Tróitsa, era, sim, o novo cenário de um novo campo de batalha, provavelmente sanguinolenta. E todos se preparavam para a batalha. Os gritos que vinham dos portões silenciaram. Os canhões foram deslocados. Os artilheiros sopraram, com a ponta em brasa, as varetas usadas para acender os pavios. O oficial deu o comando “feu”,65 e dois sons sibilantes, metálicos, irromperam um depois do outro. Cargas de metralha explodiram contra os portões de pedra e as barricadas de toras; e duas nuvens de fumaça subiram e flutuaram sobre a praça.

Alguns instantes depois, quando o som dos tiros parou de ressoar nas pedras do Krêmlin, ouviu-se um som estranho por cima das vozes dos franceses. Um enorme bando de gralhas se ergueu de detrás dos muros e, grasnando e estalando milhares de asas, puseram-se a rodar pelo ar. Junto com aquele som, irrompeu um grito humano solitário nos portões, e por trás da fumaça, surgiu a figura de um homem sem chapéu, de cafetã. Segurando um fuzil, ele apontou para os franceses. Feu! — repetiu o oficial de artilharia, e ao mesmo tempo irromperam um tiro de fuzil e dois tiros de canhão. A fumaça cobriu os portões outra vez.

Por trás das barricadas, nada mais se mexeu, e os infantes franceses, com os oficiais, seguiram na direção dos portões. Nos portões, jaziam três homens feridos e quatro mortos. Dois homens de cafetã fugiram para baixo, ao longo das muralhas, rumo a Známenka.

— Enlevez-moi ça 66 — disse o oficial, apontando para as toras e para os cadáveres; e os franceses, depois de matarem os feridos, jogaram os cadáveres por cima do muro. Quem eram aquelas pessoas, ninguém sabia. “Enlevez-moi ça”, foi a única coisa que se disse a respeito deles. Depois foram retirados e jogados longe, para que seu fedor não empesteasse o ar. Apenas Thiers dedicou à memória deles algumas linhas eloquentes: “Ces misérables avaient envahi la citadelle sacrée, s’étaient emparés des fusils de l’arsenal, et tiraient (ces misérables) sur les Français. On en sabra quelques-uns et on purgea le Kremlin de leur présence”.67

Murat foi informado de que o caminho estava livre. Os franceses cruzaram os portões e começaram a montar acampamento na praça do Senado. Pelas janelas do Senado, os soldados jogaram as cadeiras para a praça, a fim de fazer fogueiras.

Outros destacamentos atravessaram o Krêmlin e acamparam nas ruas Marosséika, Lubianka e Pokróvka. Outros ainda acamparam nas ruas Vzdvíjenka, Známenka, Nikólskaia, Tvierskaia. Em toda parte, ao não encontrar os donos das casas, os franceses se instalavam não como em aposentos de uma cidade, mas como num acampamento que se alastrava pela cidade.

Embora esfarrapados, esfomeados, exauridos e reduzidos a um terço de seu contingente original, os soldados franceses entraram em Moscou ainda em ordem e disciplina. Eram tropas exauridas, esgotadas, mas ainda assustadoras e combativas. Mas foram tropas só até o momento em que seus soldados entraram nas casas. Assim que os membros dos regimentos começaram a se dispersar pelas residências vazias e luxuosas, as tropas desapareceram para sempre, e em seu lugar surgiram, não habitantes, nem soldados, mas algo intermediário, denominado saqueadores. Quando, cinco semanas depois, aquelas mesmas pessoas saíram de Moscou, já não constituíam mais uma tropa. Era uma multidão de saqueadores, na qual cada um levava ou arrastava consigo um punhado de objetos que lhe pareciam valiosos e necessários. O objetivo de todas aquelas pessoas ao sair de Moscou não consistia, como antes, em conquistar, mas apenas em manter a posse do que haviam tomado. A exemplo do macaco que, depois de enfiar a mão no gargalo estreito de uma jarra e agarrar um punhado de nozes, não abre o punho cerrado a fim de não deixar cair o que pegou, e assim termina por se perder, os franceses, ao deixarem Moscou, tinham obviamente de encontrar sua perdição, porque arrastavam consigo o que haviam saqueado, e abandonar aquele saque era, para eles, tão impossível quanto, para o macaco, abrir o punho cheio de nozes. Dez minutos depois da invasão de qualquer bairro de Moscou pelas tropas francesas, já não restava mais nenhum soldado e nenhum oficial. Pelas janelas das casas, viam-se pessoas de capotes e de botas com polainas que andavam pelos aposentos às gargalhadas; nos porões, nas adegas, pessoas como aquelas tratavam de se apoderar de provisões; nos pátios, pessoas como aquelas abriam ou arrombavam os portões dos depósitos e dos estábulos; nas cozinhas, acendiam o fogo e, com as mangas arregaçadas, assavam, ferviam, mastigavam, assustavam, faziam rir e acariciavam as mulheres e as crianças. E em toda parte, nas lojas e nas residências, aquelas pessoas eram numerosas; mas as tropas já não existiam.

Naquele mesmo dia, ordens e mais ordens foram reverberadas pelos comandantes franceses no sentido de impedir que as tropas se dispersassem pela cidade, impedir com rigor a violência contra os habitantes e a pilhagem, e com esse fim iria se realizar à noite uma chamada geral; mas, a despeito de tais medidas, as pessoas que antes formavam uma tropa se espalharam pela cidade rica e vazia, abundante de confortos e provisões. Como um rebanho faminto segue de forma compacta por um campo nu, mas se dispersa incontrolavelmente assim que chega a uma pastagem opulenta, também a tropa se dispersou incontrolavelmente pela cidade opulenta.

Em Moscou não havia habitantes, e como água na areia, os soldados se infiltravam na cidade e se alastravam por todos os cantos, na forma de uma estrela incontrolável, a partir do Krêmlin, onde haviam entrado em primeiro lugar. Os soldados da cavalaria, ao entrar numa casa abandonada com todos os pertences e encontrar cocheiras não só para seus cavalos como ainda algumas de sobra, apesar disso iam para uma outra casa vizinha, que lhes parecia melhor. Muitos ocupavam diversas casas, faziam marcas de giz para indicar quem as ocupava, discutiam e até brigavam com outros pelotões. Soldados que ainda não tinham conseguido se instalar corriam pelas ruas para observar a cidade e, ouvindo dizer que tudo estava abandonado, se empenhavam em chegar aonde pudessem pegar de graça coisas de valor. Os comandantes iam até lá para deter os soldados e eles mesmos, sem querer, eram arrastados para as mesmas ações. Na rua Kariétni Riad, havia lojas e carruagens abandonadas, e os generais se aglomeravam ali, escolhendo carruagens e coches para si. Os habitantes que restavam convidavam os comandantes para ficar em suas casas, esperando com isso prevenir-se dos roubos. As riquezas eram um abismo cujo fundo os olhos não alcançavam; em toda parte em torno dos lugares ocupados pelos franceses, havia lugares ainda desconhecidos, não ocupados, onde, assim parecia aos franceses, existiam riquezas ainda maiores. E Moscou os sugava para cada vez mais longe, em seu interior. Da mesma forma que depois que se derrama água na terra seca desaparece a água e também a terra seca, assim também, depois que as tropas esfomeadas entraram na cidade vazia e opulenta, aniquilaram-se as tropas e aniquilou-se a cidade opulenta; e nasceu a imundície, nasceram os incêndios e a pilhagem.

Os franceses atribuíram o incêndio de Moscou au patriotisme féroce de Rostoptchine; 68 os russos, ao fanatismo dos franceses. Na realidade, uma causa para o incêndio de Moscou, no sentido de se imputar a responsabilidade do incêndio a esta ou àquela pessoa, uma causa como essa não existiu e não poderia existir. Moscou ardeu porque foi posta numa situação em que qualquer cidade de madeira tinha de pegar fogo, a despeito de haver ou de não haver na cidade cento e trinta bombas contra incêndio defeituosas. Moscou tinha de arder porque seus habitantes a haviam abandonado, da mesma forma como é inevitável que pegue fogo um monte de aparas de madeira sobre o qual, ao longo de vários dias, caem faíscas. Uma cidade de madeira onde, com a presença dos moradores, dos proprietários e da polícia, já havia incêndios quase todos os dias no verão não podia deixar de se incendiar quando nela não estavam seus habitantes, e sim tropas que fumavam cachimbo, faziam fogueiras na praça do Senado com as cadeiras dos senadores e acendiam fogo para comer duas vezes por dia. Basta uma tropa, em tempo de paz, acampar em alojamentos de madeira numa determinada localidade para que o número de incêndios nessa localidade aumente na mesma hora. Em que grau deve aumentar a probabilidade de incêndios numa cidade de madeira vazia onde se instala uma tropa estrangeira? Le patriotisme féroce de Rostoptchine e o fanatismo dos franceses aqui não têm culpa. Moscou começou a se incendiar por causa dos cachimbos, das cozinhas, das fogueiras, da negligência dos soldados inimigos, residentes em casas que não lhes pertenciam. Se houve incêndios propositais (o que é mais do que duvidoso, uma vez que ninguém tinha motivo para causar um incêndio, ademais, algo perigoso e problemático de se fazer), não se pode tomar tais incêndios propositais como a causa, pois sem eles o resultado teria sido o mesmo.

Por mais que fosse lisonjeiro aos franceses culpar a selvageria de Rostoptchin, e aos russos culpar o malfeitor Bonaparte, ou mais tarde colocar uma tocha heroica na mão do seu povo, é impossível não enxergar que é impossível existir uma causa imediata para o incêndio, porque Moscou tinha de pegar fogo, como têm de pegar fogo qualquer aldeia, fábrica e qualquer casa cujos donos foram embora e onde pessoas estranhas passam a mandar e a cozinhar para si. Moscou foi incendiada por seus habitantes, é verdade; mas não pelos habitantes que ficaram nela, e sim por aqueles que a abandonaram. Moscou, ocupada pelo inimigo, não ficou intacta, como Berlim, Viena e outras cidades, só porque seus habitantes deram pão e sal e as chaves da cidade para os franceses, mas porque a abandonaram.

XXVII

A absorção dos franceses, que se alastrou por Moscou em forma de estrela no dia 2 de setembro, só ao anoitecer alcançou o bairro onde Pierre morava.

Após os dois últimos dias, passados em solidão e de maneira totalmente fora do comum, Pierre se encontrava num estado próximo à loucura. Uma ideia única e insistente dominava todo o seu ser. Ele mesmo não sabia como e quando lhe havia ocorrido, mas aquela ideia o dominava agora de tal modo que ele não lembrava nada do passado e não compreendia nada do presente; e tudo o que via e escutava se passava à sua frente como num sonho.

Pierre saía de casa só para se desvencilhar da complicada barafunda de exigências da vida, que o enredavam e que ele, no estado em que se encontrava, era incapaz de resolver. Foi à casa de Ióssif Alekséievitch sob o pretexto de organizar os livros e os documentos do falecido, apenas porque procurava um alívio para as preocupações da vida — e em sua alma a lembrança de Ióssif Alekséievitch estava ligada a um mundo de pensamentos tranquilos e solenes, totalmente opostos à barafunda ansiosa para a qual Pierre se sentia arrastado. Procurava um refúgio tranquilo e de fato encontrou-o no escritório de Ióssif Alekséievitch. Quando sentou no silêncio de morte do escritório e descansou a cabeça nos braços sobre a empoeirada escrivaninha do falecido, em sua imaginação, de modo calmo e expressivo, uma após a outra, começaram a surgir as recordações dos últimos dias, em especial da batalha de Borodinó e da sensação, para ele indefinível, de sua insignificância e falsidade na batalha, em face da verdade, da simplicidade e da força daquela categoria de pessoas que tinham ficado gravadas em sua alma sob o rótulo de eles. Quando Guerássim veio despertá-lo de seu devaneio, acudiu-lhe a ideia de tomar parte na esperada — como ele sabia — defesa popular de Moscou. E com tal objetivo pediu imediatamente a Guerássim que lhe trouxesse um cafetã e uma pistola e comunicou-lhe a intenção de, escondendo sua identidade, ficar na casa de Ióssif Alekséievitch. Depois, ao longo do primeiro dia passado em solidão e ócio (Pierre tentou várias vezes, sem conseguir, concentrar sua atenção nos manuscritos maçônicos), voltou mais uma vez ao seu pensamento, de forma confusa, a ideia que já lhe ocorrera antes sobre o significado cabalístico do seu nome associado ao nome de Bonaparte; mas a ideia de que ele, l’Russe Besuhof, estava predestinado a pôr fim ao poder da besta lhe veio apenas como mais um dos devaneios que passavam pela sua imaginação, de forma gratuita e sem deixar vestígios.

Quando, depois de comprar o cafetã (apenas com o objetivo de participar da defesa popular de Moscou), Pierre encontrou os Rostóv, e Natacha lhe disse: “O senhor vai ficar? Ah, que bom!”, em sua cabeça cintilou a ideia de que de fato, mesmo que tomassem Moscou, seria bom para ele ficar na cidade e executar aquilo a que estava predestinado.

No dia seguinte, com o único pensamento de não ter piedade de si mesmo e de não ficar de maneira alguma abaixo deles, Pierre seguiu com o povo rumo aos portões de Tri Góri. Mas, quando voltou para casa convencido de que não iriam defender Moscou, de repente Pierre sentiu que aquilo que antes lhe parecia apenas uma possibilidade, agora se tornara uma necessidade e algo inevitável. Ocultando sua identidade, ele tinha de ficar em Moscou, encontrar Napoleão e matá-lo, para desse modo ou perecer ou pôr fim à desgraça de toda a Europa, que na opinião de Pierre provinha apenas de Napoleão.

Pierre conhecia todos os detalhes do atentado contra a vida de Bonaparte cometido por um estudante alemão em Viena em 1809 e sabia que o estudante tinha sido fuzilado. E o risco a que ele expunha sua vida a fim de executar seu projeto o estimulava ainda mais.

Dois sentimentos igualmente fortes atraíam Pierre de forma irresistível para a execução do projeto. O primeiro era o sentimento da necessidade de sacrifício e de sofrimento, em face da consciência da desgraça geral, o mesmo sentimento que, no dia 25, havia levado Pierre para Mojáisk e para o calor da batalha, e agora o levava a fugir de sua casa e, em lugar dos luxos e das comodidades habituais, o levava a dormir num sofá duro, sem trocar de roupa, e a comer a mesma refeição que Guerássim; o outro era aquele sentimento vago, exclusivamente russo, de desprezo por tudo o que é convencional, artificial, humano, por tudo aquilo que é tido pela maioria das pessoas como o bem supremo do mundo. Pierre experimentara pela primeira vez aquele sentimento estranho e fascinante no palácio Slobóda, quando sentira de repente que a riqueza, o poder, a vida, tudo aquilo que com tamanho esforço as pessoas constroem e preservam, se tem algum valor, resume-se ao prazer com que podemos pôr tudo isso de lado.

É esse sentimento que leva um recruta-caçador69 a beber sofregamente até o último copeque, que leva um bêbado a quebrar espelhos e vidros sem nenhum motivo visível, mesmo sabendo que isso vai lhe custar todo o dinheiro que possui; o sentimento que leva um homem a praticar atos loucos (no sentido vulgar), como que para pôr à prova seu poder pessoal e sua força, exprimindo a presença de um juízo supremo sobre a vida, situado fora das circunstâncias humanas.

Desde o dia em que experimentou pela primeira vez esse sentimento no palácio Slobóda, Pierre se viu o tempo todo sob sua influência, mas só agora havia encontrado uma satisfação plena para ele. Além disso, no momento presente, tudo o que Pierre já havia realizado naquela direção respaldava seu propósito e o privava da possibilidade de renunciar a ele. Sua fuga de casa, seu cafetã e a pistola, a declaração feita para os Rostóv de que ia ficar em Moscou — tudo não só perderia o sentido, como se tornaria desprezível e ridículo (algo a que Pierre era sensível), caso ele, depois de tudo, a exemplo de tantos outros, partisse de Moscou.

A condição física de Pierre, como sempre acontece, acompanhava sua condição moral. A comida grosseira a que não estava acostumado e a vodca que bebera naqueles dias, a ausência de vinho e de charutos, a roupa de baixo imunda e que não era trocada, as duas noites que havia dormido só pela metade, deitado num sofá curto e sem roupa de cama — tudo isso impelia Pierre a um estado de irritação próximo da demência.

Já havia passado de uma da tarde. Os franceses já tinham invadido Moscou. Pierre sabia disso, mas em lugar de agir ele só pensava no seu projeto, analisando todos os mínimos detalhes futuros. Pierre, com seus devaneios, não fazia uma ideia clara nem dos procedimentos para a realização do ataque nem da morte de Napoleão, porém, com uma nitidez fora do comum e com um prazer desolado, imaginava a própria morte e sua bravura heroica.

“Sim, sozinho por todos, tenho de agir ou perecer!”, pensava ele. “Sim, eu irei... então, de repente... com uma pistola ou com uma adaga?”, pensava Pierre. “De resto, tanto faz. Não eu, mas a mão da Providência vai executar você, é o que eu digo (Pierre pensava as palavras que iria pronunciar ao matar Napoleão). Muito bem, me prendam, me executem”, dizia também Pierre, falando para si mesmo com uma expressão triste mas firme no rosto, baixando a cabeça.

Na hora em que Pierre, de pé no meio do escritório, argumentava dessa forma para si mesmo, a porta se abriu, e na soleira surgiu a figura totalmente transformada do antes tímido Makar Alekséievitch. Seu roupão estava aberto. O rosto estava vermelho e desfigurado. Era óbvio que estava bêbado. Ao ver Pierre, ele se perturbou por um minuto, mas, notando a perturbação também no rosto de Pierre, na mesma hora ganhou ânimo e, com as pernas finas e cambaleantes, avançou até o meio do escritório.

— Eles ficaram com medo — disse com voz rouca e confiante. — Eu digo: não vamos nos render, eu digo... não é isso, cavalheiro? — Refletiu um pouco e de repente, ao ver a pistola sobre a mesa, agarrou-a com uma rapidez inesperada e fugiu para o corredor.

Guerássim e o porteiro, que foram atrás de Makar Alekséievitch, o detiveram no vestíbulo e tentaram tomar a pistola. Pierre, saindo para o corredor, olhava com pena e com repulsa o velho semilouco. Makar Alekséievitch, o rosto contraído com o esforço, segurava a pistola e gritava com voz rouca, visivelmente se imaginando em alguma cena grandiosa.

— Às armas! Abordagem! Mentiroso, não vai tomar isso de mim! — gritava ele.

— Solte, por favor, solte. Tenha a bondade, por favor, largue. Vamos, por favor, patrão... — dizia Guerássim, que tentava cuidadosamente virar Makar Alekséievitch para a porta, segurando-o pelos cotovelos.

— Quem é você? Bonaparte!... — gritou Makar Alekséievitch.

— Isso não é bom, senhor. Por favor, vá para o seu quarto, o senhor deve descansar. Por favor, solte a pistolinha.

— Fora daqui, escravo desprezível! Não me toque! Está vendo? — gritou Makar Alekséievitch, brandindo a pistola. — Abordagem!

— Agarre — sussurrou Guerássim para o porteiro.

Seguraram Makar Alekséitch pelos braços e o arrastaram para a porta.

O vestíbulo se encheu de um alarido horroroso e de sons arquejantes e bêbados de uma voz sem fôlego.

De repente um grito novo, feminino e estridente irrompeu na cozinha, e a cozinheira entrou correndo no vestíbulo.

— São eles! Meu paizinho!... Meu Deus, são eles. Quatro, a cavalo!... — gritava ela.

Guerássim e o porteiro soltaram Makar Alekséievitch e, no corredor silencioso, ouviram-se claramente as batidas de várias mãos na porta da frente.

XXVIII

Pierre, que havia resolvido em seu íntimo que, até a execução do seu projeto, não deveria revelar nem seu nome nem seu conhecimento da língua francesa, ficara de pé na porta entreaberta do corredor com a intenção de esconder-se no instante em que os franceses entrassem. Mas os franceses entraram, e Pierre não se afastou da porta: uma curiosidade irresistível o retinha ali.

Eram dois. Um era oficial, alto, enérgico, bonito, o outro pelo visto era um soldado ou um ordenança, baixote, magro e moreno, com faces encovadas e ar estúpido. O oficial, apoiando-se numa bengala e mancando, avançou. Depois de dar alguns passos, como se tivesse chegado à conclusão de que aquelas acomodações eram boas, parou, virou-se para os soldados que tinham ficado na porta e, com voz alta e autoritária, gritou para eles que trouxessem os cavalos. Feito isso, o oficial, erguendo o cotovelo com um gesto elegante, ajeitou o bigode e tocou no chapéu com a mão.

— Bonjour la compagnie! 70 — exclamou, alegre, sorrindo e olhando em volta.

Ninguém respondeu nada.

— Vous êtes le bourgeois? 71 — perguntou o oficial para Guerássim.

Guerássim fitou o oficial com ar assustado e interrogativo.

— Quartire, quartire, logement — disse o oficial olhando de cima, com um sorriso indulgente e simpático, para o homem baixinho. — Les Français sont de bons enfants. Que diable! Voyons! Ne nous fâchons pas, mon vieux 72 — acrescentou, dando um tapa no ombro do assustado e silencioso Guerássim. — Ah ça! Dites donc, on ne parle donc pas français dans cette boutique? 73 — acrescentou, olhando em redor e localizando Pierre com os olhos. Pierre recuou para trás da porta.

O oficial voltou-se de novo para Guerássim. Exigia que Guerássim lhe mostrasse os cômodos da casa.

— Não está o patrão... Não compreendo... O meu do senhor... — disse Guerássim, tentando inverter a ordem das palavras para torná-las mais compreensíveis.

O oficial francês, sorrindo, agitou as mãos na frente do nariz de Guerássim, dando a entender que ele também não o compreendia e, mancando, seguiu para a porta onde Pierre estava. Pierre quis recuar a fim de se esconder, mas no mesmo instante viu a porta da cozinha abrir e surgir Makar Alekséitch com a pistola nas mãos. Com a astúcia de um louco, Makar Alekséitch olhou para o francês e, erguendo a pistola, fez pontaria.

— Abordagem!!! — gritou o bêbado, apertando o gatilho da pistola. O oficial francês virou-se na direção do grito, e no mesmo instante Pierre atirou-se sobre o bêbado. Na hora em que Pierre segurou e levantou a pistola, Makar Alekséitch caiu, com o dedo no gatilho, e ressoou um tiro abafado que envolveu todos na fumaça de pólvora. O francês ficou pálido e atirou-se para trás, na direção da porta.

Esquecido da intenção de não revelar seu conhecimento da língua francesa, Pierre, após tomar a pistola e jogá-la longe, foi correndo para o oficial francês e lhe falou em francês.

— Vous n’êtes pas blessé?74 — disse.

— Je crois que non — respondeu o oficial, apalpando-se —, mais je l’ai manqué belle cette fois-ci — acrescentou, apontando para o emboço espatifado na parede. — Quel est cet homme?75 — disse o oficial, lançando para Pierre um olhar severo.

— Ah, je suis vraiment au désespoir de ce qui vient d’arriver — falou depressa Pierre, totalmente esquecido do seu papel. — C’est un fou, un malheureux qui ne savait pas ce qu’il faisait.76

O oficial se aproximou de Makar Alekséitch e agarrou-o pela gola.

Makar Alekséitch, com os lábios abertos, como que à beira de dormir, balançou-se, recostando-se na parede.

— Brigand, tu me la paieras — disse o francês, afastando a mão. — Nous autres nous sommes cléments après la victoire: mais nous ne pardonnons pas aux traîtres 77 — acrescentou com uma seriedade sombria no rosto e com um gesto enérgico e bonito.

Pierre, falando em francês, continuou tentando persuadir o oficial a não castigar aquele homem bêbado e louco. O francês escutava em silêncio, sem mudar o aspecto sombrio, e de repente se virou para Pierre com um sorriso. Fitou-o em silêncio por alguns segundos. O rosto bonito ganhou uma expressão trágica e afetuosa, e o homem lhe estendeu a mão.

— Vous m’avez sauvé la vie! Vous êtes Français 78 — disse ele. Para o francês, aquela conclusão era incontestável. Só um francês era capaz de praticar um gesto nobre, e salvar a vida dele, M. Ramballe, capitaine du treizième léger,79 era sem dúvida o mais nobre dos gestos.

No entanto, por mais incontestável que fosse tal conclusão, e também a convicção do oficial que nela se baseava, Pierre julgou necessário desapontá-lo.

— Je suis Russe 80 — disse Pierre depressa.

— Ti-ti-ti, à d’autres — disse o francês, balançando o dedo na frente do nariz e sorrindo. — Tout à l’heure vous allez me conter tout ça — disse ele. — Charmé de rencontrer un compatriote. Eh bien! Qu’allons-nous faire de cet homme? 81 — acrescentou, voltando-se para Pierre, já como se fosse um irmão. O tom e a expressão do oficial francês diziam que, mesmo que Pierre não fosse francês, tendo recebido tal título, o mais alto do mundo, agora não poderia mais recusá-lo. À última pergunta do francês, Pierre explicou mais uma vez quem era Makar Alekséitch, explicou que, pouco antes da chegada deles, o homem bêbado e louco roubara uma pistola carregada, que ainda não haviam conseguido tomar de suas mãos, e pediu que deixasse o seu ato sem punição.

O francês encheu o peito e fez um gesto majestoso com a mão.

— Vous m’avez sauvé la vie. Vous êtes Français. Vous me demandez sa grâce? Je vous l’accorde. Qu’on emmène cet homme 82 — exclamou, rápido e enérgico, o oficial francês, tomou Pierre pelo braço, a quem havia promovido a francês por ter salvado sua vida, e entrou com ele nos outros cômodos da casa.

Os soldados que estavam na porta, ao ouvirem o tiro, entraram no vestíbulo perguntando o que havia ocorrido e demonstrando sua disposição de castigar os culpados; mas o oficial os deteve com rigor.

— On vous demandera quand on aura besoin de vous 83 — disse ele. Os soldados saíram. O ordenança, que enquanto isso tivera tempo de visitar a cozinha, aproximou-se do oficial.

— Capitaine, ils ont de la soupe et du gigot de mouton dans la cuisine — disse. — Faut-il vous l’apporter? 84

— Oui, et le vin? 85 — disse o capitão.

XXIX

O oficial francês e Pierre entraram juntos na casa. Pierre julgou que era seu dever assegurar ao capitão que ele não era francês e fez menção de se retirar, mas o oficial francês não quis nem ouvi-lo. Mostrava-se a tal ponto cordial, afável, simpático e sinceramente agradecido por sua vida ter sido salva que Pierre não teve coragem de recusar isto a ele e sentou-se ao seu lado no salão, o primeiro cômodo em que entraram. À declaração de Pierre de que não era francês, o capitão, obviamente sem compreender como era possível recusar um título tão lisonjeiro, encolheu os ombros e disse que, caso Pierre quisesse a todo custo passar por russo, que fosse assim então, mas que ele, apesar disso, continuaria eternamente unido a Pierre por um sentimento de gratidão, por ter salvado sua vida.

Se aquele homem fosse dotado da mínima capacidade de compreender os sentimentos dos outros e adivinhasse as emoções de Pierre, provavelmente Pierre teria se esquivado do capitão; mas a animada impermeabilidade do homem a tudo aquilo que não fosse ele mesmo acabou vencendo Pierre.

— Français ou prince russe incognito — disse o francês, lançando um olhar para as roupas imundas, embora finas, de Pierre e para o anel na sua mão —, je vous dois la vie, je vous offre mon amitié. Un Français n’oublie jamais ni une insulte ni un service. Je vous offre mon amitié. Je ne vous dis que ça.86

Nos sons da voz, na expressão do rosto, nos gestos do oficial, havia tamanha simpatia e gratidão (no sentido francês) que Pierre, respondendo com um sorriso inconsciente ao sorriso do francês, apertou a mão que lhe foi oferecida.

— Capitaine Ramballe du treizième léger, décoré pour l’affaire du sept — apresentou-se ele, com um sorriso satisfeito e irreprimível que franzia seus lábios por baixo do bigode. — Voudrez-vous bien me dire à présent, à qui j’ai l’honneur de parler aussi agréablement au lieu de rester à l’ambulance avec la balle de ce fou dans le corps? 87

Pierre respondeu que não podia dizer seu nome e, ruborizado, enquanto tentava inventar um nome, começou a falar sobre os motivos por que não podia dizer aquilo, mas o francês o interrompeu bruscamente.

— De grâce — disse ele. — Je comprends vos raisons, vous êtes officier... officier supérieur, peut-être. Vous avez porté les armes contre nous. Ce n’est pas mon affaire. Je vous dois la vie. Cela me suffit. Je suis tout à vous. Vous êtes gentilhomme? — acrescentou, com um matiz de pergunta. Pierre inclinou a cabeça. — Votre nom de baptême, s’il vous plaît? Je ne demande pas davantage. Monsieur Pierre, dites-vous... Parfait. C’est tout ce que je désire savoir.88

Quando serviram carne de cordeiro assada, um omelete e um samovar, e trouxeram vodca e vinho que os franceses tinham levado consigo de uma adega russa, Ramballe pediu a Pierre que tomasse parte naquele almoço e ele mesmo, sem demora, com avidez, como um homem saudável e faminto, começou a comer, mastigando depressa com seus dentes fortes e o tempo todo lambendo os beiços e dizendo excellent, exquis! 89 Seu rosto ficou vermelho e coberto de suor. Pierre estava faminto e participou do almoço com prazer. Morel, o ordenança, trouxe uma caçarola com água quente e dentro dela colocou uma garrafa de vinho tinto. Além disso, trouxe uma garrafa de kvás, que ele pegou na cozinha para experimentar. Aquela bebida já era famosa entre os franceses e havia recebido um nome. Eles a chamavam de limonade de cochon (limonada de porco), e Morel enalteceu a limonade de cochon que havia encontrado na cozinha. Porém, como o capitão tinha um vinho que apanhara em seu trajeto por Moscou, ele deixou o kvás para Morel e tomou para si a garrafa de bordeaux. Envolveu o gargalo num guardanapo e serviu o vinho para si e para Pierre. A fome saciada e o vinho animaram mais ainda o capitão, e ele falou sem parar durante o almoço.

— Oui, mon cher monsieur Pierre, je vous dois une fière chandelle de m’avoir sauvé... de cet enragé... J’en ai assez, voyez-vous, de balles dans le corps. En voilà une (ele mostrou o lado do corpo) à Wagram, et de deux à Smolensk — ele mostrou uma cicatriz que tinha na face —, et cette jambe, comme vous voyez, qui ne veut pas marcher. C’est à la grande bataille du sept, à la Moskowa que j’ai reçu ça. Sacré Dieu, c’était beau. Il fallait voir ça, c’était un déluge de feu. Vous nous avez taillé une rude besogne; vous pouvez vous en vanter, nom d’un petit bonhomme. Et, ma parole, malgré la toux que j’y ai gagnée, je serais prêt à recommencer. Je plains ceux qui n’ont pas vu ça.90

— J’y ai été 91 — disse Pierre.

— Bah, vraiment! Eh bien, tant mieux — disse o francês. — Vous êtes de fiers ennemis, tout de même. La grande redoute a été tenace, nom d’une pipe. Et vous nous l’avez fait crânement payer. J’y suis allé trois fois, tel que vous me voyez. Trois fois nous étions sur les canons et trois fois on nous a culbutés et comme des capucins de carte. Oh! c’était beau, monsieur Pierre. Vos grenadiers ont été superbes, tonnerre de Dieu. Je les ai vu six fois de suite serrer les rangs, et marcher comme à une revue. Les beaux hommes! Notre roi de Naples qui s’y connaît a crié: bravo! Ah, ah! soldat comme nous autres! — disse ele sorrindo, depois de um minuto de silêncio. — Tant mieux, tant mieux, monsieur Pierre. Terribles en bataille... galants... — piscou o olho, com um sorriso —, avec les belles, voilà les Français, monsieur Pierre, n’est-ce pas?92

O capitão estava numa alegria tão inocente e simpática, estava tão pleno de si e tão satisfeito consigo mesmo, que Pierre olhava para ele com alegria e quase sem piscar. É provável que a palavra “galant” tenha levado o capitão a pensar na situação de Moscou.

— À propos, dites donc, est-ce vrai que toutes les femmes ont quitté Moscou? Une drôle d’idée! Qu’avaient-elles à craindre? 93

— Est-ce que les dames françaises ne quitteraient pas Paris, si les Russes y entraient? 94 — disse Pierre.

— Ah, ah, ah!... — gargalhou o francês, alegre, cordial, dando um tapinha no ombro de Pierre. — Ah! Elle est forte celle-là — exclamou. — Paris? Mais Paris... Paris...95

— Paris la capitale du monde...96 — disse Pierre, concluindo o que queria dizer.

O capitão fitou Pierre. Tinha o costume de parar no meio de uma conversa e olhar fixamente, com olhos zombeteiros e afetuosos.

— Eh bien, si vous ne m’aviez pas dit que vous êtes Russe, j’aurai parié que vous êtes Parisien. Vous avez ce je ne sais quoi, ce...97 — e depois de fazer esse elogio, olhou-o de novo em silêncio.

— J’ai été à Paris, j’y ai passé des années 98 — disse Pierre.

— Oh, ça se voit bien. Paris!... Un homme qui ne connaît pas Paris, est un sauvage. Un Parisien, ça se sent à deux lieues. Paris, c’est Talma, la Duchesnois, Potier, la Sorbonne, les boulevards — e, ao notar que o desfecho era mais fraco do que o início, acrescentou depressa: — Il n’y a qu’un Paris au monde. Vous avez été à Paris et vous êtes resté Russe. Eh bien, je ne vous en estime pas moins.99

Sob o efeito do vinho que bebera e depois dos dias passados em solidão, com seus pensamentos sombrios, Pierre experimentava um prazer involuntário na conversa com aquele homem alegre e simpático.

— Pour en revenir à vos dames, on les dit bien belles. Quelle fichue idée d’aller s’enterrer dans les steppes, quand l’armée française est à Moscou. Quelle chance elles ont manqué celles-lá. Vous moujiks c’est autre chose, mais vous autres gens civilisés, vous deviez nous connaître mieux que ça. Nous avons pris Vienne, Berlin, Madrid, Naples, Rome, Varsovie, toutes les capitales du monde... On nous craint, mais on nous aime. Nous sommes bons à connaître. Et puis l’empereur! 100 — continuou, mas Pierre o interrompeu.

— L’empereur — repetiu Pierre, e seu rosto de repente tomou uma expressão triste e embaraçada. — Est-ce que l’empereur?...101

— L’empereur? C’est la générosité, la clémence, la justice, l’ordre, le génie, voilà l’empereur! C’est moi, Ramballe, qui vous le dis. Tel que vous me voyez, j’étais son ennemi il y a encore huit ans. Mon père a été comte émigré... Mais il m’a vaincu, cet homme. Il m’a empoigné. Je n’ai pas pu résister au spectacle de grandeur et de gloire dont il couvrait la France. Quand j’ai compris ce qu’il voulait, quand j’ai vu qu’il nous faisait une litière de lauriers, voyez-vous, je me suis dit: voilà un souverain, et je me suis donné à lui. Eh voilà! Oh, oui, mon cher, c’est le plus grand homme des siècles passés et à venir.102

— Est-il à Moscou?103 — perguntou Pierre, gaguejando e com um rosto culpado.

O francês fitou o rosto culpado de Pierre e riu.

— Non, il fera son entrée demain 104 — respondeu e continuou seus relatos.

A conversa foi interrompida pelos gritos de algumas vozes no portão e pela entrada de Morel, que veio comunicar ao capitão que haviam chegado uns hussardos de Württemberg e queriam alojar os cavalos no mesmo pátio onde estavam os cavalos do capitão. O problema decorria principalmente do fato de os hussardos não compreenderem o que lhes diziam.

O capitão mandou chamar à sua presença o primeiro-sargento e, com voz severa, perguntou a que regimento ele pertencia, quem era o seu superior e com que fundamento ele se permitia ocupar um alojamento que já estava ocupado. Às duas primeiras perguntas, o alemão, que compreendia mal o francês, disse qual o seu regimento e quem era o seu superior; mas à última pergunta, que ele não havia entendido, respondeu, inserindo pedaços de palavras francesas nas frases em alemão, que estava encarregado de providenciar alojamentos para seu regimento e que seu superior lhe dera ordens para ocupar todas as casas em sequência. Pierre, que sabia alemão, traduziu para o capitão o que o alemão tinha dito e traduziu para a língua alemã a resposta do capitão ao hussardo de Württemberg. Tendo compreendido o que lhe diziam, o alemão desistiu e levou seus homens dali. O capitão saiu para a varanda e, com voz alta, deu algumas ordens.

Quando voltou para a sala, Pierre estava sentado no mesmo lugar onde se sentara antes, a cabeça baixa entre as mãos. Seu rosto exprimia sofrimento. De fato, ele estava sofrendo naquele instante. Quando o capitão saiu, e Pierre ficou só, de repente ele acordou e compreendeu a situação em que se achava. Não que Moscou tinha sido ocupada, nem que os felizes vencedores eram os senhores da cidade e lhe concediam sua proteção — por mais que tais coisas fizessem Pierre sofrer duramente, não era isso o que o atormentava naquele momento. O que o atormentava era a consciência da própria fraqueza. Algumas taças de vinho e a conversa com aquele homem simpático aniquilaram o estado de ânimo intensamente sombrio em que Pierre tinha vivido naqueles últimos dias e que era necessário para a execução do seu projeto. A pistola, o punhal, o casacão de camponês estavam prontos, Napoleão chegaria no dia seguinte. Pierre continuava, como antes, a considerar útil e digno matar o malfeitor; mas sentia que agora ele não faria mais aquilo. Por quê? Ele não sabia, mas tinha uma espécie de pressentimento de que não iria executar o seu projeto. Lutava contra a consciência da própria fraqueza, mas sentia vagamente que não iria vencê-la, que a sequência anterior de pensamentos sombrios a respeito de vingança, assassinato e autossacrifício havia se desmanchado como cinzas, ao contato com o primeiro homem que apareceu.

O capitão entrou mancando de leve e assoviando alguma coisa.

A tagarelice do francês, que antes divertia Pierre, agora lhe pareceu repulsiva. A musiquinha que assoviava, seu jeito de andar, o gesto de torcer o bigode — tudo lhe parecia agora ultrajante.

“Vou embora já e não direi mais nenhuma palavra para ele”, pensou Pierre. Pensou assim, mas enquanto isso continuava sentado no mesmo lugar. Um sentimento estranho de fraqueza o acorrentava ao seu lugar: ele queria, mas não conseguia levantar e ir embora.

O capitão, ao contrário, parecia muito alegre. Percorreu a sala duas vezes. Seus olhos rebrilhavam, e o bigode se contorcia de leve, como se ele sorrisse para si mesmo, de alguma anedota divertida.

— Charmant — disse ele, de repente —, le colonel de ces Wurtembourgeois! C’est un Allemand; mais un brave garçon, s’il en fut. Mais Allemand.105

Sentou-se de frente para Pierre.

— À propos, vous savez donc l’allemand, vous? 106

Pierre fitou-o em silêncio.

— Comment dites-vous asile en allemand? 107

— Asile? — repetiu Pierre. — Asile en allemand... Unterkunft.

— Comment dites-vous? — indagou o capitão, depressa e incrédulo.

— Unterkunft — repetiu Pierre.

— Onterkoff — disse o capitão e fitou Pierre durante alguns segundos, rindo com os olhos. — Les Allemands sont de fières bêtes. N’est-ce pas, monsieur Pierre? — concluiu ele. — Eh bien, encore une bouteille de ce bordeaux moscovite, n’est-ce pas? Morel, va nous chauffer encore une petite bouteille. Morel! 108 — gritou o capitão com alegria.

Morel trouxe velas e uma garrafa de vinho. O capitão observou Pierre à luz das velas e, era evidente, ficou impressionado pelo rosto transtornado do seu interlocutor. Ramballe, com uma aflição e uma solidariedade sinceras no rosto, chegou mais perto de Pierre e curvou-se na sua direção.

— Eh bien, nous sommes tristes — disse ele, tocando na mão de Pierre. — Vous aurais-je fait de la peine? Non, vrai, avez-vous quelque chose contre moi? — perguntou de novo. — Peut-être rapport à la situation? 109

Pierre nada respondeu, mas fitou os olhos do francês com afeição. Aquela expressão de solidariedade lhe agradou.

— Parole d’honneur, sans parler de ce que je vous dois, j’ai de l’amitié pour vous. Puis-je faire quelque chose pour vous? Disposez de moi. C’est à la vie et à la mort. C’est la main sur le cœur que je vous le dis 110 — disse, apontando para o peito.

— Merci 111 — respondeu Pierre. O capitão fitou Pierre atentamente, como tinha feito pouco antes, ao saber como se dizia asilo em alemão, e seu rosto iluminou-se de repente.

— Ah, dans ce cas je bois à notre amitié! 112 — gritou com alegria, e serviu dois copos de vinho. Pierre pegou um e serviu dois copos e bebeu de um só gole. Ramballe também bebeu seu copo até o fim, apertou de novo a mão de Pierre e, com uma pose melancólica e pensativa, apoiou os cotovelos na mesa.

— Oui, mon cher ami, voilà les caprices de la fortune — começou. — Qui m’aurait dit que je serais soldat et capitaine de dragons au service de Bonaparte, comme nous l’appellions jadis. Et cependant me voilà à Moscou avec lui. Il faut vous dire, mon cher — continuou, com a voz melancólica e ritmada de um homem que se prepara para contar uma história comprida —, que notre nom est un des plus anciens de la France.113

E, com a franqueza fácil e ingênua de um francês, o capitão contou a Pierre a história de seus ancestrais, sua infância, sua juventude e sua vida de adulto, falou de todos os seus parentes, de suas propriedades, das relações familiares. “Ma pauvre mère” 114 desempenhava, é claro, o papel principal naquele relato.

— Mais tout ça ce n’est que la mise en scène de la vie, le fond c’est l’amour! L’amour! N’est-ce pas, monsieur Pierre? — disse o capitão, animando-se. — Encore un verre.115

Pierre bebeu de novo e serviu uma terceira dose.

— Oh! Les femmes, les femmes! 116 — e o capitão, fitando Pierre com os olhos brilhantes, começou a falar sobre o amor e sobre os seus casos românticos. Eram muito numerosos, e não era difícil acreditar nisso, vendo o rosto bonito e satisfeito do oficial e a animação entusiasmada com que ele falava sobre as mulheres. Apesar de todas as histórias de amor de Ramballe terem o toque de obscenidade em que os franceses veem exclusivamente o fascínio e a poesia do amor, o capitão contava suas histórias com uma convicção tão sincera de que só ele havia provado e compreendido todo o fascínio do amor, e descrevia as mulheres de modo tão atraente que Pierre o escutava com curiosidade.

Era evidente que l’amour de que o francês tanto gostava não era o tipo de amor simples e rasteiro que Pierre sentira tempos antes pela sua esposa, nem o amor romântico inflado por ele mesmo, que sentia por Natacha (Ramballe desprezava igualmente os dois tipos de amor — um era l’amour des charretiers,117 o outro, l’amour des nigauds);118 l’amour que o francês cultuava consistia principalmente na artificialidade das relações com as mulheres e numa mistura de deformidades que conferiam ao sentimento seu encanto principal.

Assim, o capitão contou a comovente história do seu amor por uma marquesa fascinante de trinta e cinco anos e, ao mesmo tempo, por uma criança de dezessete anos, encantadora e inocente, filha da marquesa fascinante. Narrou a batalha de magnanimidade entre a mãe e a filha, cujo desfecho foi que a mãe, sacrificando-se, ofereceu a filha em casamento para o seu amante, e ainda agora, já passado tanto tempo de tais recordações, aquilo comovia o capitão. Depois contou um episódio em que o marido representava o papel de amante, e ele (o amante) o papel de marido, e alguns episódios cômicos dos souvenirs d’Allemagne,119 onde asile se diz Unterkunft, onde les maris mangent de la choucroute120 e onde les jeunes filles sont trop blondes.121

Por fim um último episódio na Polônia, ainda fresco na memória do capitão, que ele contou com gestos rápidos e rosto afogueado, consistia em que ele tinha salvado a vida de um polonês (nos relatos do capitão, havia sempre um episódio de salvamento de uma vida), e o tal polonês confiara a ele sua esposa fascinante (Parisienne de cœur),122 enquanto ele mesmo partia para servir no Exército francês. O capitão ficou feliz, a fascinante polonesa quis fugir com ele; porém, movido pela generosidade, o capitão devolveu a esposa ao marido, e lhe disse: “Je vous ai sauvé la vie et je sauve votre honneur!”.123 Ao repetir tais palavras, o capitão enxugou os olhos e se refez, sacudindo a cabeça, como que para rechaçar a fraqueza que o dominava diante daquela recordação comovente.

Ao escutar os relatos do capitão, como acontece muitas vezes nas horas tardias da noite e sob o efeito do vinho, Pierre acompanhava tudo o que o capitão dizia, compreendia tudo e, ao mesmo tempo, acompanhava uma série de recordações pessoais, que de repente, ele não sabia o motivo, surgiram em seu pensamento. Enquanto ouvia aqueles casos de amor, de repente seu próprio amor por Natacha lhe veio à memória de forma inesperada e, selecionando na imaginação as cenas daquele amor, Pierre mentalmente as comparava com as histórias de Ramballe. Enquanto acompanhava uma história sobre a luta entre o dever e o amor, Pierre via à sua frente todos os mínimos detalhes de seu último encontro com o objeto do seu amor, perto da torre de Súkharev. Na hora, o encontro não produzira efeito sobre Pierre; não se lembrara dele nenhuma vez. Mas agora lhe parecia que o encontro tinha algo de muito importante e poético.

“Piotr Kirílitch, venha cá, eu reconheci logo”, ouvia agora as palavras ditas por ela, via à sua frente os olhos dela, o sorriso, o chapeuzinho de passeio, as tranças bem apertadas... e algo emocionante, comovente, revelava-se para ele em tudo aquilo.

Encerrado o relato sobre a polonesa fascinante, o capitão voltou-se para Pierre e perguntou se ele já havia experimentado sentimentos semelhantes, o impulso de sacrificar-se por amor e a inveja de um marido legítimo.

Instigado por aquela pergunta, Pierre levantou a cabeça e sentiu necessidade de expressar o que ocupava seu pensamento; passou a explicar que ele entendia o amor e a mulher de maneira um pouco diversa. Disse que, em toda a sua vida, tinha amado e amava só uma mulher e que essa mulher nunca poderia pertencer a ele.

— Tiens! 124 — exclamou o capitão.

Em seguida, Pierre explicou que amava aquela mulher desde pequeno; mas não se atrevia a pensar nela, porque ela era jovem demais, e ele era um filho ilegítimo e sem bens. Mas depois, quando ganhou nome e fortuna, não se atrevia a pensar nela porque a amava demais, colocava-a numa posição elevada demais, acima de todo o mundo e por isso, mais ainda, acima dele mesmo. Ao chegar a esse ponto do seu relato, Pierre voltou-se para o capitão e perguntou: ele entendia aquilo?

O capitão fez um gesto que dizia que, mesmo se ele não estivesse entendendo, queria que continuasse.

— L’amour platonique, les nuages...125 — resmungou ele. Ou o vinho que bebera, ou a exigência de franqueza, ou o pensamento de que aquele homem não conhecia e não ia reconhecer nenhum dos personagens da sua história, ou tudo isso junto, algo desatou a língua de Pierre. E ele, com boca meio mole e olhos turvos, fitando o vazio, contou toda a sua história: seu casamento, a história do amor de Natacha por seu melhor amigo, a traição dela, todas as suas complicadas relações com ela. Instigado pelas perguntas de Ramballe, Pierre contou aquilo que de início estava escondendo — sua posição na sociedade e até revelou seu nome.

O que mais impressionou o capitão no relato era que Pierre era um homem muito rico, que possuía dois palácios em Moscou e que havia abandonado tudo e não fugira de Moscou, ficara na cidade, escondendo o nome e o título.

Já tarde da noite, os dois saíram juntos para a rua. A noite estava quente e clara. À esquerda da casa, brilhava o clarão do primeiro incêndio iniciado em Moscou, na rua Petróvka. À direita, no alto, estava a lua crescente e, no lado oposto, pendia o cometa brilhante que, na alma de Pierre, estava associado ao seu amor. No portão, estavam Guerássim, o cozinheiro e dois franceses. Ouviam-se os risos e a conversa que se passava entre eles, numa língua mutuamente incompreensível. Olhavam para o clarão que se avistava na cidade.

Nada havia de terrível num pequeno incêndio distante, numa cidade enorme.

Olhando o céu alto e estrelado, a lua e o clarão, Pierre experimentou uma ternura alegre. “Puxa, mas que bonito. Puxa, o que mais é preciso?!”, pensou. E de repente, quando se lembrou de seu projeto, sua cabeça girou, ele sentiu-se mal, a tal ponto que teve de se apoiar num muro para não cair.

Sem se despedir de seu novo amigo, Pierre afastou-se do portão a passos instáveis e, voltando para seu quarto, deitou no sofá e na mesma hora adormeceu.

XXX

As tropas em retirada e os habitantes em fuga olhavam de diversas ruas, e com diversos sentimentos, o clarão do primeiro incêndio que se manifestou no dia 2 de setembro.

O comboio dos Rostóv, naquela noite, estava parado nos Mitíchi,126 a vinte verstas de Moscou. No dia 1o de setembro, eles haviam partido tão tarde, a estrada estava tão atravancada de carroças e de tropas, tantas coisas tinham sido esquecidas, obrigando os criados a voltar para buscá-las, que ficou resolvido que iam pernoitar a cinco verstas de Moscou. Na manhã seguinte partiram tarde, e houve novamente tantas interrupções que só conseguiram chegar até os Grandes Mitíchi. Às dez horas, os srs. Rostóv e os feridos que viajavam com eles se alojaram nos pátios e nas isbás de uma grande aldeia. A criadagem, o cocheiro dos Rostóv e os ordenanças dos feridos, depois de terem cuidado de seus senhores, jantaram, deram forragem aos cavalos e foram para a varanda.

Numa isbá vizinha, estava o ajudante de ordens de Raiévski com a mão fraturada, e a dor terrível que sentia o forçava a gemer queixosamente e sem parar, e tais gemidos ressoavam de maneira terrível na escuridão da noite de outono. Na primeira noite, aquele ajudante de ordens havia pernoitado no mesmo pátio onde ficaram os Rostóv. A condessa disse que não conseguia ficar de olhos fechados com aqueles gemidos e, nos Mitíchi, mudou-se para uma isbá pior só para ficar mais longe do ajudante de ordens ferido.

Na escuridão da noite, por trás de uma volumosa carroça que estava na entrada, um dos criados notou mais um pequeno clarão de incêndio. Fazia tempo que tinham visto um clarão, e todos souberam que os Pequenos Mitíchi estavam em chamas, incêndio ateado pelos cossacos de Mamónov.

— Mas olhem aquilo lá, meus irmãos, outro incêndio — disse o ordenança.

— Pois é, disseram que os cossacos de Mamónov puseram fogo nos Pequenos Mitíchi.

— Foram eles! Mas aquilo não são os Pequenos Mitíchi, fica depois.

— Olhem lá, fica bem em Moscou.

Dois criados desceram da varanda, deram a volta para o outro lado da carroça e subiram nos estribos.

— Fica mais para a esquerda! Puxa, os Mitíchi ficam bem para cá, aquilo está do outro lado.

Alguns criados vieram se unir aos primeiros.

— Puxa, é o maior fogaréu — disse um. — Tem um incêndio em Moscou, minha gente, ou então em Suchévski, ou quem sabe em Rogójski.

Ninguém respondeu àquela observação. Durante muito tempo, os criados ficaram observando em silêncio o fulgor distante das chamas do novo incêndio.

Um velho, o camareiro do conde (como o chamavam), Danilo Teréntitch, chegou perto do grupo e gritou para Michka.

— O que você está olhando, seu conversa-fiada... O conde está lá chamando, e não vem ninguém; vá arrumar as roupas.

— Está bem, só vim pegar água — disse Michka.

— E o senhor, o que acha, Danilo Teréntitch, aquele clarão lá vem de Moscou? — perguntou um dos lacaios.

Danilo Teréntitch nada respondeu, e de novo todos ficaram em silêncio por muito tempo. O clarão se alastrava e cintilava cada vez mais distante.

— Deus me perdoe!... está ventando e está seco... — disse de novo uma voz.

— Olhe só como andou. Meu Deus! Já dá para ver até os corvos. Deus perdoe os nossos pecados!

— Na certa vão apagar.

— Quem vai apagar? — ouviu-se a voz de Danilo Teréntitch, que tinha ficado em silêncio até então. Sua voz era calma e vagarosa. — É Moscou mesmo, irmão — disse ele. — Ela, a mãezinha branquinha... — Sua voz se partiu, e de repente o velho soluçou. E parecia que todos só estavam esperando aquilo para compreender o significado daquele clarão. Ouviram-se suspiros, palavras de prece e os soluços do velho camareiro do conde.

XXXI

O camareiro voltou e comunicou ao conde que Moscou estava em chamas. O conde vestiu o roupão e saiu para olhar. Sônia, que ainda não tinha trocado de roupa, foi junto com ele, e também Mme Schoss. Só Natacha e a condessa ficaram no quarto. (Pétia não estava mais com a família: tinha seguido na frente com seu regimento, em marcha rumo a Tróitsa.)127

A condessa começou a chorar ao saber da notícia do incêndio de Moscou. Natacha, pálida, com olhos parados, sentada num banquinho ao pé dos ícones (o mesmo lugar onde estava desde a chegada), não prestava a menor atenção nas palavras do pai. Ela escutava o incessante gemido do ajudante de ordens, a três casas dali.

— Ah, que horror! — disse Sônia, que voltou do pátio assustada e trêmula de frio. — Acho que Moscou inteira está em chamas, é um clarão horrível! Natacha, venha cá olhar, da janela dá para ver — disse para a irmã, visivelmente querendo entreter Natacha com alguma coisa. Mas Natacha olhou para ela como se não entendesse o que estavam lhe pedindo e de novo fixou o olhar num canto da estufa. Natacha se achava naquele estado de apatia desde a manhã, desde o momento em que Sônia, para surpresa e irritação da condessa, não se sabe para quê, achara necessário informar Natacha a respeito do ferimento do príncipe Andrei e de sua presença no comboio que os acompanhava. A condessa se zangara com Sônia de um modo que era raro acontecer. Sônia havia chorado, pedira desculpas e agora, como que tentando expiar sua culpa, não parava de dar atenção à irmã.

— Veja, Natacha, que incêndio terrível — disse Sônia.

— O que está pegando fogo? — perguntou Natacha. — Ah, sim, é Moscou.

E, como que para não ofender Sônia com uma negativa e para livrar-se dela, Natacha aproximou a cabeça da janela, olhou fixamente, como se não conseguisse enxergar nada, e de novo foi sentar no mesmo lugar de antes.

— Mas você não viu?

— Sim, claro, vi, sim — respondeu com uma voz que implorava que a deixassem em paz.

A condessa e Sônia entenderam que Moscou, o incêndio de Moscou, ou o que quer que fosse, afinal, não poderia ter importância para Natacha.

O conde foi de novo para trás do biombo e deitou-se. A condessa se aproximou de Natacha, tocou as costas da mão na sua cabeça, como fazia quando a filha estava doente, depois tocou sua testa com os lábios, como que para saber se a filha não estava com febre, e beijou-a.

— Você está com frio. Está tremendo toda. Era melhor deitar — disse ela.

— Deitar? Sim, está certo, vou deitar. Vou deitar agora mesmo — disse Natacha.

Desde que, naquela manhã, contaram para Natacha que o príncipe estava gravemente ferido e que seguia com o comboio dos Rostóv, ela fizera, no primeiro momento, muitas perguntas sobre o príncipe — para onde ia, como estava, se o ferimento era perigoso, se ela podia vê-lo. Mas, depois que lhe disseram que não era possível ver o príncipe Andrei, que ele estava gravemente ferido, mas que sua vida não estava em perigo, Natacha, obviamente sem acreditar no que lhe diziam, mas convencida de que, por mais que ela perguntasse, iriam responder sempre a mesma coisa, havia parado de fazer perguntas e de falar. Durante todo o caminho, com os olhos muito abertos que a condessa conhecia muito bem e cuja expressão ela tanto temia, Natacha se mantinha imóvel, sentada num canto da carruagem, da mesma forma como estava agora, no banco. Refletia sobre alguma coisa, estava decidindo alguma coisa, ou até já havia decidido em seu pensamento — a condessa sabia disso, mas o que Natacha havia decidido a condessa não sabia, e isso a atormentava terrivelmente.

— Natacha, troque de roupa, minha querida, deite na minha cama. (Só haviam feito a cama para a condessa; Mme Schoss e as duas jovens patroas iam dormir no chão, em cima da palha.)

— Não, mamãe, vou deitar aqui no chão — disse Natacha irritada, aproximou-se da janela e abriu-a. Os gemidos do ajudante de ordens eram ouvidos mais fortes ainda através da janela aberta. Natacha pôs a cabeça para fora, no ar úmido da noite, e a condessa viu que os ombros finos dela se sacudiam com os soluços e esbarravam no caixilho da janela. Natacha sabia que não era o príncipe Andrei que estava gemendo. Sabia que o príncipe Andrei estava deitado dentro de uma isbá contígua ao vestíbulo, na mesma propriedade onde elas se encontravam; mas foram aqueles gemidos terríveis e incessantes que levaram Natacha a chorar. A condessa e Sônia se entreolharam.

— Venha deitar, minha querida, venha deitar, minha amiga — disse a condessa, tocando a mão de leve no ombro de Natacha. — Vamos, venha deitar.

— Ah, sim... Já vou, estou indo, já vou deitar — disse Natacha, trocando de roupa às pressas e puxando os cordões da cintura da saia. Depois de baixar o vestido e pôr uma camisola, Natacha, com as pernas dobradas, sentou-se na cama preparada para ela no chão e, puxando para a frente, por cima do ombro, sua trança fina e curta, começou a amarrá-la. Os dedos finos, compridos e habilidosos desmancharam, entrelaçaram e amarraram a trança com rapidez e agilidade. A cabeça de Natacha, com um gesto habitual, girou de um lado para outro, mas os olhos febrilmente abertos fitavam imóveis em frente. Quando os preparativos para a noite terminaram, Natacha baixou o corpo em silêncio sobre o lençol estendido por cima da palha, rente à porta.

— Natacha, deite no meio — disse Sônia.

— Não, vou ficar aqui — falou Natacha. — Deite logo — acrescentou, aborrecida. E afundou o rosto no travesseiro.

A condessa, Mme Schoss e Sônia trocaram de roupa às pressas e se deitaram. Só a lamparina dos ícones ficou acesa no quarto. Mas o pátio estava iluminado pelo incêndio nos Pequenos Mitíchi, a duas verstas dali, e ressoavam os gritos bêbados das pessoas que estavam na taberna, arrombada pelos cossacos de Mamónov, no outro lado da rua, e o tempo todo ouviam-se os gemidos do ajudante de ordens.

Natacha ficou escutando durante muito tempo os sons de dentro e de fora que chegavam até ela e não se mexia. Ouviu de início a prece e os suspiros da mãe, os rangidos da cama debaixo dela, o ronco familiar de Mme Schoss, acompanhado de um assovio, a respiração suave de Sônia. Depois a condessa chamou Natacha. Ela não respondeu.

— Parece que está dormindo, mamãe — disse Sônia em voz baixa. A condessa, depois de ficar calada um instante, chamou de novo, mas dessa vez ninguém respondeu.

Pouco depois, Natacha escutou a respiração ritmada da mãe. Natacha não se mexia, apesar de seu pequeno pé nu, despontando para fora do cobertor, estar encostado no chão frio.

Como que celebrando sua vitória sobre todos, um grilo começou a cantar dentro de uma rachadura na parede. Um galo cantou ao longe, outros mais perto responderam. Na taberna, os gritos silenciaram, só se ouviam os mesmos gemidos do ajudante de ordens. Natacha levantou-se um pouco.

— Sônia? Está dormindo? Mamãe? — sussurrou. Ninguém respondeu. Natacha levantou-se devagar e com cuidado, fez o sinal da cruz e pôs com cuidado a sola estreita e flexível do pé descalço no chão frio e imundo. Uma tábua do piso rangeu. Tateando rapidamente com os pés, Natacha correu alguns passos como um gato e segurou-se na maçaneta fria da porta.

Parecia-lhe que algo pesado batia ritmadamente em todas as paredes da isbá: era seu coração partido que batia, morto de medo, de pavor e de amor.

Ela abriu a porta, atravessou a soleira e pisou na terra fria e molhada do vestíbulo. O frio envolvente refrescou-a. Natacha resvalou o pé num homem que dormia, passou por cima dele e abriu a porta da isbá onde estava o príncipe Andrei. Naquela isbá, estava escuro. Num canto ao fundo, sobre um banco, junto à cama onde havia algo estendido, uma vela de sebo ardia coberta de fuligem, como um cogumelo.

Natacha, desde aquela manhã, quando lhe contaram sobre o ferimento e sobre a presença do príncipe Andrei, resolvera que tinha de vê-lo. Não sabia por que tinha de fazer aquilo, mas sabia que o encontro seria angustiante e por isso mesmo estava ainda mais convencida de que era necessário.

Ela havia passado o dia inteiro na esperança de vê-lo à noite. Mas, agora que chegara o momento, veio-lhe o temor do que iria ver. Estaria ele desfigurado? O que teria sobrado dele? Não estaria como aquele ajudante de ordens que não parava de gemer? Sim, estaria assim mesmo. Na imaginação de Natacha, ele era a personificação daqueles gemidos horríveis. Quando ela avistou um volume indistinto num canto e por engano achou que os joelhos, erguidos debaixo do cobertor, eram os ombros, Natacha visualizou em pensamento um corpo horrível e parou, horrorizada. Mas uma força irresistível a atraiu para a frente. Deu um passo com cuidado, mais um, e se viu no meio de uma isbá pequena, atravancada de bagagens. Na isbá, ao pé dos ícones, um outro homem estava deitado sobre um banco (era Timókhin), e mais dois homens estavam deitados no chão (eram o médico e o camareiro).

O camareiro levantou-se um pouco e sussurrou algo. Timókhin, sofrendo com as dores da perna ferida, não dormia e, de olhos bem abertos, fitava a estranha aparição de uma menina de camisolão branco e touca de dormir. As palavras sonolentas e assustadas do camareiro: “O que foi? O que a senhora quer?”, serviram apenas para obrigar Natacha a andar mais depressa na direção daquilo que estava deitado no canto. Por mais estranho que fosse aquele corpo, por mais que não parecesse humano, Natacha tinha de vê-lo. Esquivou-se do camareiro: a fuligem escorreu pelo sebo derretido da vela, e ela viu nitidamente o príncipe Andrei, deitado com os braços largados por cima do cobertor e tal como ela sempre o tinha visto.

Era o mesmo de sempre; mas a cor afogueada de seu rosto, os olhos brilhantes, cravados nela com arrebatamento, e sobretudo o pescoço infantil e delicado que sobressaía da gola do camisolão aberta para o lado conferiam a ele um aspecto especial, inocente, de menino, que no entanto ela jamais tinha visto no príncipe Andrei. Aproximou-se dele e, num movimento ligeiro, flexível, jovem, pôs-se de joelhos.

Ele sorriu e lhe estendeu a mão.

XXXII

Sete dias haviam se passado desde que o príncipe Andrei recobrara os sentidos na enfermaria do campo de batalha de Borodinó. Durante todo aquele tempo, ele estivera num estado de quase constante inconsciência. O estado febril e a inflamação no intestino, causada por um ferimento, na opinião do médico que acompanhava o ferido, iriam com certeza tirar sua vida. Mas no sétimo dia ele comeu com prazer um pedaço de pão com chá, e o médico notou que sua temperatura havia baixado. O príncipe Andrei, pela manhã, voltou à consciência. A primeira noite depois da partida de Moscou estava bastante quente, e o príncipe Andrei foi acomodado para pernoitar no coche; porém, nos Mitíchi, o próprio ferido pediu que o descessem para tomar chá. A dor que lhe causou a transferência para dentro da isbá obrigou o príncipe Andrei a gemer alto, e ele perdeu de novo a consciência. Quando o instalaram num leito de campanha, ficou deitado muito tempo de olhos fechados e sem se mexer. Depois abriu os olhos e sussurrou baixinho: “Onde está o chá?”. Aquela lembrança de um pequeno detalhe da vida impressionou o médico. Tomou-lhe o pulso e, para sua surpresa e insatisfação, notou que o pulso havia melhorado. O médico percebeu aquilo com insatisfação porque, pela sua experiência, estava convencido de que o príncipe Andrei não poderia sobreviver e que, caso não morresse agora, morreria algumas semanas depois, só que com mais sofrimento. Junto com o príncipe Andrei, estavam levando o major Timókhin, de nariz vermelho, do seu regimento, e com a perna ferida na mesma batalha de Borodinó, que fora se unir a ele em Moscou. Os dois eram acompanhados pelo médico, pelo camareiro do príncipe, por seu cocheiro e por dois ordenanças. Deram chá para o príncipe Andrei. Bebeu com sofreguidão, enquanto os olhos febris fitavam a porta à sua frente, como que tentando compreender e lembrar algo.

— Não quero mais. Timókhin está aqui? — perguntou. Timókhin arrastou-se sobre o banco em sua direção.

— Estou aqui, vossa excelência.

— Como está o ferimento?

— O meu? Não é nada. E o do senhor? — O príncipe Andrei ficou de novo pensativo, como se recordasse alguma coisa.

— Será que pode conseguir um livro? — disse ele.

— Que livro?

— O Evangelho! Eu não tenho.

O médico prometeu que ia providenciar e pôs-se a perguntar ao príncipe como ele estava se sentindo. O príncipe Andrei respondeu de má vontade, mas de modo razoável, todas as perguntas do médico e depois disse que queria que pusessem uma almofada cilíndrica embaixo do seu corpo, do contrário aumentava o incômodo e a dor. O médico e o camareiro ergueram o capote que o cobria e, torcendo o nariz ante o cheiro pesado de carne pútrida que exalava do ferimento, puseram-se a observar aquele lugar terrível. O médico ficou muito insatisfeito com alguma coisa, modificou algo no curativo, virou o corpo do ferido de modo que ele recomeçou a gemer e, devido à dor que sentiu no instante em que foi virado, perdeu de novo a consciência e começou a falar de modo delirante. Dizia o tempo todo que lhe trouxessem logo o tal livro e o colocassem embaixo dele.

— O que custa a vocês fazerem isso? — dizia ele. — Não tenho o livro, arranjem um, por favor, ponham embaixo de mim só um minutinho — dizia com voz patética.

O médico saiu para o vestíbulo a fim de lavar as mãos.

— Ah, gente sem consciência, francamente — disse o médico para o camareiro, que entornava água nas suas mãos. — Foi só eu ficar um minuto sem olhar e vocês colocaram o homem deitado em cima do ferimento. É tanta dor que até me admiro que ele tenha suportado.

— Achei que tinha de colocar virado para baixo, ah, meu Jesus Cristo — disse o camareiro.

Pela primeira vez, o príncipe entendeu onde estava e o que estava acontecendo com ele e lembrou que estava ferido e que, no instante em que o coche parou nos Mitíchi, ele havia pedido que o levassem para dentro da isbá. Depois de perder de novo a consciência por causa da dor, voltou a si outra vez na isbá, quando tomava chá, e ali novamente, depois de repassar em pensamento tudo o que havia ocorrido com ele, viu, da maneira mais nítida possível, o momento em que, na enfermaria do campo de batalha, ante a visão do sofrimento de um homem que ele detestava, vieram-lhe aqueles pensamentos novos que lhe traziam uma promessa de felicidade. E tais pensamentos, embora de modo vago e obscuro, dominavam agora sua alma outra vez. Lembrou que agora ele tinha uma felicidade nova e que aquela felicidade tinha algo em comum com o Evangelho. Por isso havia pedido o Evangelho. Mas a posição ruim em que tinham colocado o seu ferimento e o modo como viraram seu corpo embaralharam de novo seus pensamentos e, pela terceira vez, o príncipe Andrei voltou para a vida já quando era noite e tudo estava em silêncio. Todos dormiam à sua volta. Um grilo cantava do outro lado do vestíbulo, alguém gritava e cantava na rua, baratas rastejavam pela mesa e pelos ícones e uma mosca gorda de outono esvoaçava perto dele, na cabeceira da cama e em torno da vela de sebo acesa ao seu lado, como um grande cogumelo e coberta de fuligem.

Sua alma não se encontrava num estado normal. Um homem saudável em geral pensa, sente e lembra ao mesmo tempo uma quantidade inumerável de coisas, mas tem o poder e a força de escolher uma sequência de ideias ou de fatos e concentrar toda a sua atenção nessa sequência de fatos. Um homem saudável, num momento de reflexão profunda, se interrompe a fim de dizer uma palavra cordial a uma pessoa que acabou de chegar e depois retorna aos seus pensamentos. Porém, nesse aspecto, a alma do príncipe Andrei não se encontrava num estado normal. Todas as energias de sua alma estavam mais ativas, mais claras do que nunca, mas elas agiam alheias à sua vontade. Os pensamentos e as imagens mais diversas dominavam-no ao mesmo tempo. De quando em quando, seu pensamento de repente começava a trabalhar, e com tamanha força, clareza e profundidade como nunca havia sido capaz em estado saudável; mas de repente, em meio a seus trabalhos, o pensamento se embaralhava, era substituído por alguma imagem inusitada, e não havia forças para voltar para ele.

“Sim, revelou-se para mim uma felicidade nova, inalienável do homem”, pensou, deitado na semiescuridão da isbá silenciosa, fitando à sua frente com olhos febris, fixos e muito abertos. “A felicidade se encontra fora das forças materiais, fora das influências materiais exteriores sobre o homem, a felicidade só da alma, a felicidade do amor! Qualquer pessoa pode compreender isso, mas conceber e prescrever isso só é possível para Deus. Mas como Deus prescreveu essa lei? E por que seu filho...?” E de repente a cadeia de pensamentos se embaralhou e o príncipe Andrei ouviu (sem saber se era em seu delírio ou na realidade), ouviu uma voz baixa, sussurrante, que repetia ritmadamente e sem parar: “Piti-piti-piti”, e depois “ti-ti”, e de novo “piti-piti-piti”, e de novo “ti-ti”. Ao mesmo tempo, ao som daquela música sussurrante, o príncipe Andrei sentia que, acima do seu rosto, em cima e bem do meio do seu rosto, erguia-se uma espécie de construção estranha, aérea, feita de agulhas ou de lascas finas. Ele sentia (embora isso lhe fosse penoso) que precisava a todo custo manter o equilíbrio para que a construção que se erguia não desabasse; mas a construção, mesmo assim, desabava e novamente se erguia devagar, aos sons da música sussurrante. “Sobe! Sobe! Estica e sobe sem parar!”, dizia consigo o príncipe Andrei. Ao mesmo tempo que percebia o sussurro e a sensação daquela construção de agulhas que se erguia e se elevava, o príncipe Andrei também via, a intervalos, uma luz vermelha num círculo em redor da vela e ouvia o rumor das baratas e das moscas que resvalavam no travesseiro e em seu rosto. E toda vez que uma mosca encostava em seu rosto ela produzia uma sensação de queimadura; no entanto, para sua surpresa, apesar de a mosca bater na mesma área em que a construção se erguia no seu rosto, a mosca não a destruía. Mas além disso havia uma coisa importante. Era uma coisa branca na porta, era a estátua de uma esfinge, que também o oprimia.

“Mas talvez seja o meu camisolão de dormir em cima da mesa”, pensou o príncipe Andrei, “e aquilo são minhas pernas, e aquilo é a porta; mas por que não para de subir e avançar e piti-piti-piti e ti-ti... e piti-piti-piti... Chega, pare, por favor, basta”, pedia penosamente o príncipe Andrei a alguém. E de repente o pensamento e o sentimento de novo voltaram à tona com uma força e uma nitidez extraordinária.

“Sim, o amor (pensou de novo com perfeita clareza), mas não o amor que ama algo, para algo ou por causa de algo, e sim o amor que experimentei na primeira vez, quando, morrendo, vi meu inimigo e mesmo assim o amei. Experimentei o sentimento de amor que é a própria essência da alma e para o qual não é necessário um objeto. Também agora estou experimentando esse sentimento abençoado. Amar o próximo, amar os seus inimigos. Amar todos — amar a Deus em todas as manifestações. Amar uma pessoa querida é possível com um amor humano; mas só é possível amar um inimigo com o amor divino. E por isso eu experimentei tamanha alegria quando senti que amava aquele homem. O que houve com ele? Estará vivo?... Amando com o amor humano, é possível passar do amor ao ódio; mas o amor divino não pode mudar. Nada, nem a morte, nada pode destruí-lo. Ele é a essência da alma. E quantas pessoas odiei na minha vida. E, entre todas as pessoas, não amei e odiei ninguém tanto quanto a ela.” E, nitidamente, viu Natacha em pensamento, não como ele a representava antes, só com seu encanto, que lhe dava alegria; mas pela primeira vez representou sua alma. E compreendeu o sentimento de Natacha, seu sofrimento, sua vergonha, seu remorso. Agora pela primeira vez ele compreendia toda a crueldade de sua rejeição, via a crueldade da sua ruptura com ela. “Se eu pudesse ver Natacha de novo, ainda que só uma vez. Uma vez só, olhar aqueles olhos, dizer...”

E piti-piti-piti e ti-ti, e piti-piti — pam, uma mosca bateu... E sua atenção de repente foi levada para outro mundo de realidade e de delírio, no qual algo especial estava acontecendo. Naquele mundo, como antes, a construção continuava a se erguer, não desabava, algo continuava a se esticar, o círculo vermelho da vela continuava a arder, o mesmo camisolão-esfinge estava deitado junto à porta; mas, além de tudo isso, algo rangeu, entrou o aroma de uma aragem fresca, e uma nova esfinge branca, de pé, surgiu diante da porta. E na cabeça daquela esfinge havia um rosto branco e os olhos brilhantes da mesma Natacha em que ele estava pensando pouco antes.

“Ah, como é penoso este delírio incessante!”, pensou o príncipe Andrei, tentando banir aquele rosto da sua imaginação. O príncipe Andrei quis voltar para o mundo anterior, de pensamento puro, mas não conseguiu, e o delírio arrastou-o para os seus domínios. A voz que sussurrava baixinho continuava seu balbucio cadenciado, algo apertava, puxava, e o rosto estranho estava parado na sua frente. O príncipe Andrei reuniu todas as suas forças para voltar a si; mexeu-se, e de repente algo começou a retinir em seus ouvidos, os olhos ficaram turvos, e ele, como um homem que afunda na água, perdeu a consciência. Quando voltou a si, Natacha, a mesma Natacha viva que ele, entre todas as pessoas do mundo, mais queria amar com aquele amor novo, puro e divino que agora havia se revelado a ele, estava à sua frente, de joelhos. Ele compreendeu que aquela era a Natacha viva, real, e não ficou surpreso, mas alegrou-se em silêncio. Natacha, de joelhos, fitava-o com ar assustado e fixamente (ela não podia se mexer), contendo o choro. Seu rosto estava pálido e imóvel. Só na parte inferior algo palpitava.

O príncipe Andrei suspirou com alívio, sorriu e estendeu a mão.

— A senhora? — disse ele. — Que felicidade!

Natacha, com um movimento rápido, mas cuidadoso, aproximou-se dele, de joelhos, segurou sua mão com cuidado, curvou o rosto sobre ela e pôs-se a beijá-la, quase sem encostar os lábios.

— Perdoe! — disse Natacha num sussurro, de cabeça baixa e lançando para ele um olhar de relance. — Perdoe-me!

— Amo a senhora — disse o príncipe Andrei.

— Perdoe...

— Perdoar o quê? — perguntou o príncipe Andrei.

— Perdoe-me pelo que eu... eu fiz — disse Natacha num sussurro entrecortado, quase inaudível, e pôs-se a beijar a mão dele muitas vezes, quase sem encostar os lábios.

— Amo você mais, melhor do que antes — disse o príncipe Andrei, erguendo o rosto de Natacha com a mão, de modo que pudesse fitá-la nos olhos.

Aqueles olhos, cheios de lágrimas felizes, fitavam-no com timidez, compaixão e com uma alegria amorosa. O rosto magro e pálido de Natacha, com os lábios inchados, mais do que feio, estava horrível. Mas o príncipe Andrei não via aquele rosto, via os olhos radiantes, que eram lindos. Por trás deles, ouviam-se vozes.

O camareiro Piotr, agora totalmente desperto, acordou o médico. Timókhin, que durante todo aquele tempo não tinha dormido por causa da dor na perna, havia muito que estava vendo tudo o que se passava e, esforçando-se para cobrir seu corpo despido com o lençol, encolhia-se no banco.

— O que é isso? — perguntou o médico, levantando-se um pouco. — Senhora, por favor, saia.

Naquele instante, uma jovem criada, enviada pela condessa atrás da filha, bateu à porta.

Como uma sonâmbula despertada no meio do sono, Natacha saiu do quarto, voltou para a sua isbá e, chorando, tombou no leito.

Desde aquele dia, durante a longa viagem dos Rostóv, em todas as pausas e paradas noturnas, Natacha não se afastava do ferido Bolkónski, e o médico teve de reconhecer que ele não esperava encontrar naquela mocinha nem tamanha firmeza, nem tamanha habilidade no trato com o ferido.

Por mais terrível que parecesse para a condessa a ideia de que o príncipe Andrei podia (com toda a probabilidade, segundo as palavras do médico) morrer nos braços da sua filha durante a viagem, ela não podia se opor a Natacha. Por causa da aproximação agora estabelecida entre o ferido príncipe Andrei e Natacha, veio à mente da condessa a ideia de que, no caso de ele se curar, as antigas relações entre o noivo e a noiva seriam retomadas, no entanto, ninguém, e menos ainda Natacha e o príncipe Andrei, falava sobre isso: a questão indefinida e em suspenso da vida ou da morte, não só de Bolkónski, mas da Rússia, mantinha na sombra todas as outras conjeturas.

XXXIII

No dia 3 de setembro, Pierre acordou tarde. Tinha dor de cabeça, havia dormido sem trocar de roupa, e agora a roupa pesava em seu corpo, e no seu espírito havia a confusa sensação de algo vergonhoso que ele havia feito no dia anterior; essa coisa vergonhosa tinha sido a conversa com o capitão Ramballe.

O relógio marcava onze horas, mas lá fora parecia particularmente escuro. Pierre levantou-se, esfregou os olhos e, ao ver a pistola com o cabo entalhado que Guerássim havia colocado de novo sobre a escrivaninha, Pierre lembrou onde estava e o que tinha de fazer exatamente naquele dia.

“Será que não estou atrasado?”, pensou Pierre. “Não, na certa ele não fará sua entrada em Moscou antes do meio-dia.” Pierre não se permitia especular sobre aquilo que o aguardava, mas tratou de agir com a maior rapidez possível.

Depois de ajeitar a roupa, Pierre pegou a pistola e fez menção de sair. Mas então, pela primeira vez, passou-lhe pela cabeça a ideia de que era preciso encontrar um modo de levar a arma, pois não podia sair à rua com ela na mão. Mesmo por baixo do casacão largo, era difícil disfarçar a pistola volumosa. Não era possível fazer a arma passar despercebida nem por trás do cinto, nem debaixo do braço. Além disso, a pistola estava descarregada, e Pierre não tivera tempo de carregá-la. “Tanto faz, uso o punhal”, disse Pierre a si mesmo, muito embora, quando havia refletido sobre a execução do seu projeto, ele tivesse concluído que o erro principal do estudante que cometera o atentado em 1809 consistira em querer matar Napoleão com um punhal. Todavia, como o objetivo principal de Pierre não era executar o que havia planejado, e sim mostrar a si mesmo que não havia renunciado ao seu projeto e que estava fazendo tudo para que ele fosse executado, apanhou às pressas o punhal denteado e sem fio, com bainha verde, que havia comprado junto com a pistola ao pé da torre de Súkharev, e escondeu-o por baixo do colete.

Depois de prender o cinto do cafetã e de enfiar o gorro bem fundo na cabeça, Pierre, tentando não fazer barulho nem encontrar o capitão, atravessou o corredor e saiu para a rua.

O incêndio para o qual ele havia olhado com tamanha indiferença na noite da véspera tinha aumentado de maneira notável durante a madrugada. Moscou estava em chamas já em vários locais. Ardiam ao mesmo tempo Kariétni Riad, Zamoskvoriétche, Gostíni Dvor, Povarskaia, as barcas no rio Moskvá e o mercado de madeira na ponte Dorogomílov.

O caminho de Pierre se estendia pelos becos até a rua Povarskaia e de lá para a rua Arbat, rumo à igreja de São Nicolau, que ele já definira em sua imaginação, fazia muito tempo, como o lugar onde havia de executar o seu projeto. Na maioria das casas, os portões e as persianas estavam fechados. As ruas e as esquinas estavam vazias. O ar cheirava a fumaça e a queimado. Vez ou outra, andando pelo meio da rua, apareciam russos de feições inquietas e temerosas e franceses com aspecto de gente não da cidade, mas dos acampamentos militares. E tanto os russos como os franceses olhavam com espanto para Pierre. Além da grande estatura e do corpo volumoso, além da expressão estranha, sombria, concentrada e sofrida do rosto e de toda a sua pessoa, os russos olhavam para Pierre porque não entendiam a que classe social poderia pertencer aquele homem. Já os franceses o seguiam com os olhos, admirados sobretudo porque, ao contrário de todos os outros russos, que olhavam para os franceses com medo ou curiosidade, Pierre não prestava a menor atenção neles. Junto ao portão de uma casa, três franceses explicavam algo para uns russos que não os compreendiam e detiveram Pierre para perguntar se ele não sabia falar francês.

Pierre balançou a cabeça negativamente e seguiu adiante. Em outro beco, uma sentinela que guardava uma caixa verde128 gritou para ele, e, só quando o grito rude se repetiu e soou o estalo de um fuzil que a sentinela ergueu e apoiou no ombro, Pierre entendeu que tinha de passar para o outro lado da rua. Pierre não escutava nem via nada à sua volta. Com horror e pressa, carregava seu projeto dentro de si, como algo terrível e alheio a ele, receoso — à luz da experiência da noite anterior — de perdê-lo de algum modo. Mas Pierre não estava fadado a levar intacto o seu ânimo até o destino. Mesmo que nada o detivesse em seu caminho, seu projeto não poderia ser executado porque Napoleão, mais de quatro horas antes, havia passado do subúrbio de Dorogomílov para o Krêmlin, através da rua Arbat, e agora, no estado de ânimo mais sombrio possível, se encontrava sentado no gabinete do tsar no palácio do Krêmlin e dava ordens minuciosas e detalhadas sobre as medidas que deviam ser tomadas rapidamente para apagar o incêndio, prevenir as pilhagens e acalmar os habitantes. Mas Pierre não sabia disso; totalmente absorto no que tinha pela frente, atormentava-se como uma pessoa que tenta de modo obstinado realizar algo impossível — não por causa das dificuldades, mas em razão da estranheza do projeto em face da sua natureza pessoal; ele se atormentava com medo de fraquejar no momento decisivo e, desse modo, perder o respeito por si mesmo.

Embora não visse nem ouvisse nada à sua volta, escolhia o caminho por instinto e não se enganou ao tomar os becos que levavam à rua Povarskaia.

À medida que Pierre se aproximava da Povarskaia, a fumaça ficava cada vez mais forte, fazia até calor por causa das chamas do incêndio. De vez em quando saltavam línguas de fogo dos telhados das casas. Havia muita gente na rua, e aquela gente estava aflita. Mas Pierre, embora sentisse que algo fora do comum ocorria à sua volta, não se dava conta de que se aproximava do incêndio. Ao percorrer um atalho que passava por um espaço amplo e vazio, contíguo à rua Povarskaia de um lado, e do outro ao jardim da casa do príncipe Gruzínski, Pierre ouviu de repente, perto dele, o choro desesperado de uma mulher. Ele parou, como se tivesse despertado de um sono, e ergueu a cabeça.

Ao lado do atalho, sobre o capim seco e poeirento, estavam jogados e amontoados os objetos de uma casa: colchões, um samovar, ícones e arcas. Sobre a terra, ao lado das arcas, estava sentada uma mulher magra e não muito jovem, com os dentes superiores compridos e salientes, de casacão preto e gorro. Balançando o corpo e balbuciando alguma coisa, a mulher chorava, soluçando. Duas meninas, de dez e doze anos, com vestidinhos sujos e curtos e de casaquinhos, olhavam para a mãe com uma expressão de perplexidade nos rostos pálidos e assustados. O menino caçula, de uns sete anos, com um sobretudo e um quepe enorme, emprestado de alguém, chorava nos braços de uma velha babá. Uma criada suja e descalça estava sentada numa arca e, depois de desmanchar a trança esbranquiçada, arrumava os cabelos estorricados, verificando que cheiro tinham. O marido, baixo e atarracado, de uniforme, suíças enroladas e têmporas lisas, que fitava o vazio por baixo de um quepe com o rosto imóvel, puxava as arcas colocadas umas sobre as outras e retirava umas roupas, de debaixo delas.

A mulher quase se jogou aos pés de Pierre, quando o viu.

— Meu irmão, cristão ortodoxo, salve, ajude, meu caro!... Alguém me ajude — exclamou entre soluços. — A menina!... A filha!... Deixaram minha filha menor!... Foi queimada! Ah-ah-aah! Para que foi que cuidei tanto de você... Ah-ah-aah!

— Chega, Mária Nikoláievna — disse o marido em voz baixa, obviamente só para se justificar diante de um desconhecido. — A irmãzinha deve ter levado, senão onde é que ela estaria? — acrescentou.

— Monstro! Bandido! — começou a gritar a mulher com raiva, parando de chorar de repente. — Você não tem coração, não tem pena dos seus filhinhos. Um outro teria apanhado no fogo. Mas isso é um monstro, não é gente, não é um pai. O senhor é um homem nobre — voltou-se a mulher para Pierre, balbuciante, soluçante. — Estava pegando fogo do lado... passou para a nossa casa. A criada gritou: está pegando fogo! Tratamos logo de pegar nossas coisas. A gente correu do jeito que estava... Foi isto o que a gente apanhou... Os ícones e a cama que ganhei de presente, mas todo o resto foi perdido. Pegamos as crianças, mas não a Kátietchka. Ah, meu Deus! Ah-ah-aah! — E de novo desatou a soluçar. — Minha filhinha querida foi queimada! Foi queimada!

— Mas onde, onde foi que a deixaram? — perguntou Pierre. Pela expressão animada do seu rosto, a mulher entendeu que aquele homem podia ajudá-la.

— Meu amigo! Meu pai! — começou a gritar, agarrando-se à perna de Pierre. — Benfeitor, traga paz ao meu coração... Aniska, venha cá, sua nojenta, mostre para ele — gritou para a criada, abrindo a boca com irritação, e com aquele movimento deixou seus dentes compridos mais salientes ainda.

— Leve-me até lá, leve-me até lá, eu... eu... vou fazer, eu... — dizia Pierre com voz afobada e ofegante.

A criada suja veio de detrás de uma arca, ajeitou a trança, suspirou e, com os pés descalços e lerdos, seguiu pelo atalho. Pierre parecia ter acordado de repente para a vida, após um desmaio profundo. Tinha a cabeça bem levantada, os olhos acesos com um brilho de vida e seguiu a criada em passadas ligeiras, ultrapassou-a e saiu na rua Povarskaia. A rua inteira estava coberta por uma nuvem de fumaça preta. Línguas de fogo saltavam aqui e ali no meio da nuvem. Uma grande multidão se comprimia diante do incêndio. No meio da rua estava um general francês, que dizia algo para as pessoas em volta. Pierre, acompanhado da criada, queria se aproximar do lugar onde estava o general; mas os soldados franceses o detiveram.

— On ne passe pas 129 — gritou uma voz.

— Por aqui, tio! — exclamou a criada. — Vamos pelo beco, vamos passar por Nikulin.

Pierre deu meia-volta e seguiu a criada, dando pulos de vez em quando, a fim de poder acompanhá-la. A criada atravessou a rua correndo, virou à esquerda num beco e, passando por três casas, entrou num portão à direita.

— Olhe, é aqui — disse ela e, atravessando o pátio correndo, abriu um portãozinho numa cerca de tábuas, parou e indicou para Pierre um pequeno barracão de madeira que estava queimando, quente e brilhante. Um lado tinha desabado, o outro estava em chamas, e as labaredas saltavam cintilantes através de buracos nas janelas e no telhado.

Quando Pierre entrou pelo portãozinho, foi cercado pelo calor e se viu obrigado a parar.

— Qual é, qual é a casa de vocês? — perguntou.

— Ah-ah-aah! — gemeu a criada, apontando para o barracão. — Aquilo ali, era lá que a gente morava. Pegou fogo, queimou, minha Kátietchka, meu tesouro, minha patroazinha adorada, ah-ah! — gemeu Aniska ante a visão do incêndio, sentindo a necessidade de exprimir também seu sentimento.

Pierre precipitou-se na direção do barracão, mas o calor era tão forte que ele foi obrigado a fazer uma curva em torno do barracão e foi sair junto a uma casa grande que ainda ardia só de um lado do telhado e em volta da qual fervilhava uma multidão de franceses. De início, Pierre não entendeu o que estavam fazendo aqueles franceses, que carregavam algumas coisas; porém, ao ver na sua frente um francês bater num mujique com o lado sem fio da espada e tomar dele um casaco de pele de raposa, Pierre compreendeu confusamente que estavam saqueando as casas, mas nem teve tempo de se deter naquele pensamento.

O estalo e o estrondo das paredes e dos tetos que desmoronavam, o assovio e o chiado das chamas, os gritos nervosos das pessoas, a visão das luminosas nuvens de fumaça, oscilantes, espessas e negras, que ora se contraíam, ora se elevavam entre fagulhas brilhantes, e as chamas de um lado vermelhas, concentradas como um feixe, e do outro douradas, em flocos, que atravessavam as paredes, e também a sensação do calor, da fumaça e dos movimentos rápidos produziram em Pierre aquela agitação habitual nos incêndios. Tal agitação era particularmente forte em Pierre porque, de repente, ante a visão do incêndio, ele se sentiu livre do peso de seus pensamentos. Sentiu-se jovem, animado, ágil e resoluto. Contornou o barracão pelo lado da casa e quis correr logo para a parte que continuava de pé, quando bem em cima de sua cabeça ouviram-se algumas vozes gritando e, em seguida, o estalo e o retinir de algo pesado que tombou ao seu lado.

Pierre olhou para cima e, pelas janelas da casa, avistou os franceses, que arrombavam as gavetas de uma cômoda repleta de objetos de metal. Outros soldados franceses que estavam embaixo foram na direção das gavetas.

— Eh bien, qu’est-ce qu’il veut celui-lá?130 — gritou um dos franceses para Pierre.

— Un enfant dans cette maison. N’avez-vous pas vu un enfant?131 — falou Pierre.

— Tiens, qu’est-ce qu’il chante, celui-lá? Va te promener132 — ouviu-se uma voz e um dos soldados, obviamente com medo de que Pierre cismasse de tomar os objetos de prata e de bronze que estavam nas gavetas, aproximou-se dele de modo ameaçador.

— Un enfant? — gritou um francês de cima. — J’ai entendu piailler quelque chose au jardin. Peut-être c’est son moutard au bonhomme. Faut être humain, voyez-vous...133

— Où est-il? Où est-il?134— perguntou Pierre.

— Par ici! Par ici! — gritou o francês, apontando para o jardim que ficava atrás da casa. — Attendez, je vais descendre.135

E, de fato, um minuto depois, o francês pequeno e de olhos pretos, com uma espécie de mancha na cara e só de camisa, saltou da janela do primeiro andar e, batendo no ombro de Pierre, foi correndo com ele para o jardim.

— Dépêchez-vous, vous autres — gritou para seus camaradas. — Commence à faire chaud.136

Depois de correr para trás da casa por um caminho salpicado de areia, o francês segurou o braço de Pierre e apontou para um canto. Embaixo de um banco, jazia uma menina de três anos, num vestidinho cor-de-rosa.

— Voilà votre moutard. Ah, une petite, tant mieux — disse o francês. — Au revoir, mon gars. Faut être humain. Nous sommes tous mortels, voyez-vous 137 — e o francês com a mancha na cara voltou correndo na direção de seus camaradas.

Pierre, sufocando de alegria, correu na direção da menina e quis tomá-la nos braços. Mas, ao ver o homem estranho, a menina doentia, escrofulosa, de aspecto desagradável como a mãe, começou a gritar e saiu correndo. Pierre, no entanto, agarrou-a e levantou-a nos braços; ela berrava com voz desesperada e raivosa e, com as mãozinhas miúdas, tentava se desprender dos braços de Pierre e o mordia com a boca babada. Pierre foi dominado por um sentimento de horror e de repulsa, semelhante ao que experimentava ao tocar em qualquer bichinho pequeno. Mas fez um esforço contra si mesmo para não soltar a criança e voltou correndo com ela rumo à casa grande. Porém já era impossível passar por aquele caminho; a criada Aniska não estava mais lá, e Pierre, com um sentimento de compaixão e de repulsa, apertando contra si da maneira mais delicada de que era capaz a menina que sofria, molhada e soluçante, atravessou o jardim correndo, em busca de outra saída.

XXXIV

Quando Pierre, depois de correr por pátios e becos, voltou com seu fardo para o jardim da casa de Gruzínski, na esquina da rua Povarskaia, no primeiro instante não reconheceu o local de onde havia saído pouco antes em busca da criança: estava coalhado de gente e de objetos retirados de dentro das casas. Além das famílias russas com os bens que haviam salvado do incêndio, havia também vários soldados franceses com diversos uniformes. Pierre não prestou atenção neles. Apressou-se em localizar a família do funcionário, a fim de devolver a filha à mãe e voltar logo para salvar mais alguém. Pierre tinha a impressão de que ainda precisava fazer muita coisa, e sem demora. Inflamado pelo calor e pela corrida, Pierre experimentava naquele momento, com mais força do que antes, a sensação de juventude, ânimo e determinação que o havia dominado na hora em que correra para salvar a criança. A menina agora tinha ficado quieta e, com as mãozinhas agarradas ao cafetã de Pierre, estava parada em seus braços e, como um animal selvagem, olhava à sua volta. Pierre de vez em quando olhava para a menina e sorria de leve. Parecia-lhe estar vendo algo de uma inocência comovente e angelical naquele rostinho assustado e doentio.

No lugar de antes, não estavam mais nem o funcionário nem sua esposa. Pierre, a passos ligeiros, seguiu no meio do povo, fitando os diversos rostos com que topava em seu caminho. Não pôde deixar de notar uma família georgiana ou armênia, formada por um homem muito velho, bonito, com um rosto de tipo oriental, num casaco novo forrado de pele de carneiro e botas novas; uma velha do mesmo tipo e uma jovem. Essa mulher muito jovem pareceu a Pierre um primor de beleza oriental, com suas sobrancelhas pretas, finas, desenhadas em arco, o rosto comprido, bonito, extraordinariamente delicado e corado, e sem nenhuma expressão. No meio dos objetos jogados e entre a multidão na praça, ela, no seu requintado casacão de cetim, com um xale lilás-claro cobrindo a cabeça, fazia lembrar uma delicada planta de estufa que fora largada na neve. Estava sentada sobre umas trouxas, um pouco atrás da velha e, com os olhos pretos, grandes, imóveis e puxados, de cílios compridos, olhava para o chão. Era evidente que ela sabia de sua beleza e tinha receio disso. O rosto impressionou Pierre, e ele, em sua afobação, ao passar ao longo de uma cerca, olhou para ela várias vezes. Quando chegou ao fim da cerca e não achou as pessoas que estava procurando, Pierre parou e olhou ao redor.

A figura de Pierre com a criança nos braços era agora ainda mais notável do que antes, e à sua volta juntaram-se algumas pessoas, mulheres e homens russos.

— Perdeu-se de alguém, meu caro? O senhor pertence à nobreza, não é? Que criança é essa? — perguntaram.

Pierre respondeu que a criança pertencia a uma mulher de casacão preto que estava sentada com os filhos naquele local e perguntou se alguém não sabia aonde a mulher tinha ido.

— Puxa, devem ser os Anférov — disse um velho sacristão, dirigindo-se a uma camponesa com marcas de varíola no rosto. — Deus nos ajude, Deus nos ajude — acrescentou, com a voz muito grave que costumava usar.

— Que Anférov nada! — disse a camponesa. — Os Anférov partiram ainda de manhã. Vai ver é de Mária Nikoláievna, ou então dos Ivánov.

— Ele está dizendo que é uma mulher, mas Mária Nikoláievna é uma dama — disse um servo doméstico.

— Sim, vocês a conhecem, tem os dentes para a frente, é magra — disse Pierre.

— Então é a Mária Nikoláievna mesmo. Eles foram para o jardim quando esses lobos atacaram — disse a camponesa, apontando para os soldados franceses.

— Ah, Deus nos ajude — acrescentou de novo o sacristão.

— O senhor pode ir por ali, olhe, eles estão lá. Ela também. Estava chorando, se lamentando — disse de novo a mulher. — Ela está lá. Olhe ali.

Mas Pierre não estava escutando a mulher. Já fazia alguns segundos, sem baixar os olhos, observava algo que acontecia a poucos passos dele. Olhava para a família de armênios e para dois soldados franceses que haviam se aproximado deles. Um dos soldados, homem pequeno e nervoso, estava com um capote azul, preso na cintura por um cordão. Tinha um quepe na cabeça, os pés descalços. O outro, que impressionou particularmente Pierre, era um homem magro, louro, alto, de ombros curvados, movimentos vagarosos e uma expressão idiota no rosto. Vestia um casaco frisado, calças azuis e botas de cano alto esfrangalhadas. O francês pequeno, sem botas, de capote azul, ao aproximar-se dos armênios, perguntou alguma coisa e logo em seguida quis segurar os pés do velho, mas o velho começou a descalçar as botas às pressas. O outro francês, de casaco, parou na frente da bela armênia e, em silêncio, imóvel, com as mãos nos bolsos, ficou olhando para ela.

— Segure aqui, segure a criança — exclamou Pierre, entregando a menina e dirigindo-se à camponesa, afobado e em tom imperativo. — Entregue a menina, vá, entregue! — quase gritou para a mulher, enquanto colocava no chão a menina, que chorava, e voltou os olhos de novo para os franceses e para a família de armênios. O velho já estava descalço. O francês pequeno tomou dele a última bota e bateu uma bota contra a outra. O velho, gemendo, falava algo, mas Pierre só via isso de relance; toda a sua atenção estava voltada para o francês de botas que, naquela altura, balançando o corpo devagar, se aproximara da jovem, tirara as mãos dos bolsos e a havia segurado pelo pescoço.

A bela armênia continuava imóvel, sentada na mesma posição, com os cílios compridos baixados e como se não visse e não percebesse o que o soldado fazia com ela.

Enquanto Pierre percorria ligeiro os poucos passos que o separavam dos franceses, o saqueador alto, de casaco, arrancou um colar do pescoço da jovem, e ela, agarrando o pescoço com as mãos, gritou com voz estridente.

— Laissez cette femme! 138 — gritou Pierre com voz rouca, puxou pelo ombro o soldado alto de costas curvadas e jogou-o para o lado. O soldado caiu, levantou-se e correu para trás. Mas seu camarada largou as botas, sacou da baioneta e moveu-se na direção de Pierre com ar terrível.

— Voyons, pas de bêtises! 139 — gritou ele.

Pierre estava num daqueles ímpetos de raiva em que não se dava conta de nada e nos quais suas forças se decuplicavam. Atirou-se contra o francês descalço e, antes que o soldado pudesse levantar a baioneta, já o havia jogado no chão e o espancava com os punhos cerrados. Ouviu-se um grito de aprovação da multidão em volta, ao mesmo tempo que surgiu da esquina uma patrulha de ulanos franceses a cavalo. Os ulanos, a trote, vieram na direção de Pierre e do francês e cercaram os dois. Pierre não se dava conta de nada do que se passava ao redor. Percebeu que batia em alguém, que batiam nele, e no final sentiu que mãos o seguravam, que um bando de soldados franceses estava de pé à sua volta e vasculhava suas roupas.

— Il a un poignard, lieutenant 140 — foram as primeiras palavras que Pierre compreendeu.

— Ah, une arme! 141 — disse um oficial e voltou-se para o soldado descalço que tinha sido capturado junto com Pierre.

— C’est bon, vous direz tout cela au conseil de guerre — disse o oficial. E em seguida virou-se para Pierre: — Parlez-vous français, vous? 142

Pierre olhou à sua volta com os olhos injetados de sangue e não respondeu. Na certa, seu rosto tinha um aspecto muito terrível, porque o oficial disse algo num sussurro, e mais quatro ulanos separaram-se do pelotão e postaram-se de ambos os lados de Pierre.

— Parlez-vous français? — repetiu a pergunta o oficial, mantendo-se afastado dele. — Faites venir l’interprète.143 — Da esquina, veio um homem miúdo, em trajes civis russos. Por sua roupa e modo de falar, Pierre logo reconheceu nele um francês de uma das lojas moscovitas.

— Il n’as pas l’air d’un homme du peuple 144 — disse o intérprete, depois de olhar para Pierre.

— Oh, oh! Ça m’a bien l’air d’un des ces incendiaires — disse o oficial. — Demandez-lui ce qu’il est?145 — acrescentou.

— Quem é você? — perguntou o intérprete. — Deve responder às autoridades — disse ele.

— Je ne vous dirai pas qui je suis. Je suis votre prisionnier. Emmenez-moi 146 — disse Pierre de repente, em francês.

— Ah, ah! — exclamou o oficial, franzindo as sobrancelhas. — Marchons!147

Em torno dos ulanos, havia se formado uma multidão. Entre todos, quem estava mais perto de Pierre era a camponesa com marcas de varíola no rosto e ainda com a menininha nos braços; quando a patrulha se pôs em movimento, ela foi junto.

— Para onde estão levando você, meu amigo? — perguntou ela. — E a menininha, e esta menininha aqui, onde é que vou colocar, se não for deles? — disse a camponesa.

— Qu’est-ce qu’elle veut, cette femme?148 — perguntou o oficial.

Pierre parecia estar embriagado. Sua condição transtornada ficou ainda mais forte ao ver a menina que ele havia salvado.

— Ce qu’elle dit? — exclamou ele. — Elle m’apporte ma fille que je viens de sauver des flammes — exclamou. — Adieu!149 — E, sem saber como lhe viera aquela mentira gratuita, seguiu adiante entre os franceses, a passos resolutos e solenes.

O pelotão de franceses era um dos que tinham sido enviados pelas ruas de Moscou por ordem de Durosnel a fim de evitar os saques e, sobretudo, prender os incendiários que, segundo a opinião geral que se formara naquele dia no primeiro escalão do comando francês, eram a causa dos incêndios. O pelotão entrou e saiu de algumas ruas, prendeu ainda mais uns cinco russos suspeitos, um lojista, dois seminaristas, um mujique, um servo doméstico, além de diversos saqueadores. Mas, entre todos os suspeitos, o que mais parecia suspeito era Pierre. Quando todos chegaram a um alojamento montado numa casa grande, junto à muralha de Zúbov, que estava sendo usado como prisão, Pierre foi separado dos outros e mantido sob vigilância rigorosa.


1 Francês: “Boa ou ruim, minha cabeça só pode contar consigo mesma”.

2 Francês: “Bem, senhores, estou vendo que sou eu quem vai pagar pelas jarras quebradas”.

3 Referência a Rostoptchin.

4 Referência ao arcebispo de Moscou, Aleksei Vassílievitch Avgustin (1766-1822).

5 Je suis né Tartare / Je voulous être Romain. / Les Français m’apellèrent barbare, / les Russes , George Dandin [Nasci tártaro. / Queria ser romano. / Os franceses me chamavam bárbaro, / os russos, George Dandin]. (N. A.)

6 Francês: “Eis o egoísmo e a crueldade dos homens! Eu não esperava outra coisa. A mulher se sacrifica pelos senhores, ela sofre, e aí está a recompensa. Que direito tem, monsenhor, de me exigir esclarecimentos sobre minhas amizades, minhas afeições? É um homem que foi mais que um pai para mim”.

7 Francês: “Muito bem [...] Talvez ele tenha por mim outros sentimentos que não os de um pai, mas isso não é motivo para que eu lhe feche a minha porta. Não sou um homem para ser ingrata. Saiba, monsenhor, em tudo o que diz respeito aos meus sentimentos íntimos, só presto contas a Deus e à minha consciência”.

8 Francês: “Mas me escute, em nome de Deus”.

9 Francês: “Case comigo, e serei sua escrava”.

10 Francês: “Mas é impossível”.

11 Francês: “O senhor não se digna a descer até mim, o senhor...”.

12 Francês: “jesuíta de batina curta” [membro leigo da Companhia de Jesus].

13 Francês: “diretor de consciência”.

14 Francês: “a graça”.

15 Francês: “de batina comprida” [membro da Companhia de Jesus].

16 Francês: “Pecado venial”

17 Francês: “pecado mortal”.

18 Francês: “Entendamo-nos, condessa”.

19 Francês: “Hélène, tenho uma coisa para lhe dizer [...] Ouvi rumores de certos projetos relativos a... A senhora sabe. Bem, minha querida criança, a senhora sabe que meu coração de pai rejubila de saber que a senhora... A senhora sofreu muito... Mas, querida criança... não consulte senão o seu coração. É só o que lhe digo”.

20 Francês: “Escute, Bilíbin [...] Diga-me como diria para uma irmã, o que devo fazer? Qual dos dois?”.

21 Francês: “A senhora não me pegou desprevenido, a senhora bem sabe [...] Como amigo verdadeiro, pensei e repensei a respeito do seu caso. Veja bem. Se a senhora se casa com o príncipe [...] perde para sempre a chance de casar com o outro, e assim desagrada à corte. (Como a senhora sabe, existe uma espécie de parentesco.) Mas, se a senhora se casa com o velho conde, fará a alegria de seus últimos dias e depois, como viúva do grande... o príncipe já não fará um casamento desigual ao casar com a senhora”.

22 Francês: “Isto é que é um amigo de verdade [...] Mas acontece que amo a um e a outro, não queria causar mágoa a eles. Daria minha vida pela felicidade dos dois”.

23 Francês: “Que mulher sagaz! Isso é o que se chama apresentar a questão de modo claro. Ela gostaria de casar com os três ao mesmo tempo”.

24 Francês: “Ah! Ele me ama tanto! [...] Ele fará tudo por mim”.

25 Francês: “Inclusive o divórcio”.

26 Francês: “Ah, mamãe, não diga bobagens. A senhora não entende nada. Na minha posição, eu tenho certas obrigações”.

27 Francês: “Ah, mamãe, como a senhora não compreende que o santo padre, que tem o direito de conceder autorizações...”.

28 Francês: “Não, diga a ele que não quero vê-lo, que estou furiosa com ele porque me faltou com a palavra”.

29 Francês: “Condessa, para todo pecado há misericórdia”.

30 Francês: “Dito isso, rezo a Deus que mantenha o senhor sob a Sua santa e poderosa proteção. Sua amiga Hélène”.

31 Referência a Kutúzov.

32 Francês: “proezas [...] Meu caro, entre nós [...] Meu caro, sou bem informado”.

33 Francês: “Chegamos ao ponto [...] Estamos à beira de uma catástrofe pública e não tenho tempo de dizer gentilezas a todos que têm assuntos a tratar comigo [...] Pois então, meu caro, o que o senhor anda fazendo, o senhor pessoalmente?”.

34 Francês: “Nada”.

35 Francês: “Um conselho de amigo, meu caro. Dê o fora daqui o mais depressa possível, é tudo o que tenho a dizer. Para bom entendedor, meia palavra basta [...] santos padres da Companhia de Jesus?”.

36 Medicamento composto de éter sulfúrico e álcool.

37 Francês: “Esta cidade asiática, de incontáveis igrejas, Moscou, a santa. Enfim, aí está ela, a famosa cidade! Já era tempo”.

38 Francês: “Uma cidade ocupada pelo inimigo parece uma jovem que perdeu a honra”.

39 Francês: “dos tsares. Mas minha clemência está sempre pronta a baixar sobre os vencidos”.

40 Classe dos senhores feudais na Rússia e nos países eslavos. Quando Napoleão invadiu a Rússia, essa classe já estava extinta havia cem anos.

41 Francês: “Tragam-me os boiardos”.

42 Francês: “reunião no palácio dos tsares”.

43 Francês: “minha querida, minha terna, minha pobre mãe”.

44 Francês: “Estabelecimento dedicado à minha querida mãe”.

45 Francês: “Casa de minha mãe”.

46 Francês: “Vai ser preciso lhe dizer, de todo jeito... [...] Mas, senhores...”.

47 Francês: “Mas é impossível...”.

48 Francês: “Moscou deserta. Que acontecimento inverossímil!”.

49 Francês: “O lance teatral não deu certo”.

50 A cabeça raspada indicava que eram prisioneiros, evadidos dos presídios.

51 Cidade Chinesa, bairro de Moscou.

52 Francês: “manter a tranquilidade em Moscou e fazer os habitantes partirem”.

53 Instituição eclesiástica com funções jurídicas.

54 Francês: “Aí está a ralé, a escória do povo”.

55 Francês: “a plebe que eles sublevaram por causa da sua burrice. Precisam de uma vítima”.

56 Alguns prisioneiros tinham a cabeça raspada pela metade, a fim de serem logo identificados em caso de fuga.

57 Francês: “O populacho é terrível, é ignóbil”.

58 Francês: “São como lobos a que só se pode aplacar com carne”.

59 Francês: “Eu tinha outras obrigações”.

60 Francês: “Era preciso aplacar o povo. Muitas outras vítimas pereceram e vão perecer em nome do bem público”.

61 Francês: “minha linha de conduta seria traçada de forma completamente distinta”.

62 Francês: “de modo oportuno”.

63 Francês: “matei dois coelhos com uma cajadada só”.

64 Francês: “A plebe, o traidor... o bem público”.

65 Francês: “fogo”.

66 Francês: “Tirem isso daí”.

67 Francês: “Aqueles miseráveis tinham invadido a cidadela sagrada, pegaram fuzis no arsenal e atiraram (os miseráveis) contra os franceses. Alguns receberam uns golpes de sabre, e assim se purgou o Krêmlin de sua presença”.

68 Francês: “ao patriotismo feroz de Rostoptchin”.

69 Falso recruta, que entrou no Exército em lugar de outra pessoa.

70 Francês: “Bom dia a todos!”.

71 Francês: “O senhor é o dono da casa?”.

72 Francês: “Alojamento [o oficial parece tentar pronunciar a palavra russa ‘kvartira’] [...] Os franceses são bons meninos. Que diabo! Vamos! Nada de ficar aborrecido, meu velho”.

73 Francês: “Ora essa! Diga lá, então ninguém fala francês neste lugar?”.

74 Francês: “O senhor não está ferido?”.

75 Francês: “Creio que não [...] mas desta vez escapei por pouco [...] Quem é esse homem?”.

76 Francês: “Ah, estou de fato consternado com o que acabou de acontecer [...] É um louco, um infeliz que não sabia o que estava fazendo”.

77 Francês: “Bandido, você me paga [...] Nós somos clementes depois da vitória: mas não perdoamos os traidores”.

78 Francês: “O senhor salvou minha vida! O senhor é francês”.

79 Francês: “Sr. Ramballe, capitão do décimo terceiro ligeiro”.

80 Francês: “Sou russo”.

81 Francês: “Ora, conte outra [...] Em breve o senhor vai me contar tudo isso [...] Encantado de encontrar um compatriota. Pois bem! E o que vamos fazer com esse homem?”.

82 Francês: “O senhor salvou minha vida. O senhor é francês. O senhor me pede um favor? Eu o concedo. Levem esse homem daqui”.

83 Francês: “Os senhores serão chamados quando forem necessários”.

84 Francês: “Capitão, eles têm sopa e um assado de coxa de carneiro na cozinha [...] Devemos trazer para o senhor?”.

85 Francês: “Sim, e o vinho?”.

86 Francês: “Francês ou príncipe russo incógnito [...] devo minha vida ao senhor, ofereço ao senhor minha amizade. Um francês não esquece jamais nem um insulto nem um favor. Ofereço ao senhor minha amizade. É tudo que tenho a dizer”.

87 Francês: “Capitão Ramballe do décimo terceiro ligeiro, condecorado pelo combate do dia 7” [referência à batalha de Borodinó, que os russos datam segundo o calendário juliano no dia 26 de agosto] [...]O senhor faria a bondade de me dizer agora com quem tenho a honra de falar de maneira tão agradável, em vez de estar deitado na ambulância com a bala daquele louco dentro do corpo?”.

88 Francês: “Por favor [...] Compreendo as razões do senhor, o senhor é um oficial... oficial de alto escalão, talvez. O senhor pegou em armas contra nós. Isso não é da minha conta. Eu devo a vida ao senhor. Isso me basta. Estou às suas ordens. O senhor é um nobre? [...] Qual é o seu prenome, por favor? Não peço mais nada. Senhor Pierre, o senhor diz... Perfeito. É tudo que desejo saber”.

89 Francês: “excelente, delicioso!”.

90 Francês: “Sim, meu caro senhor Pierre, tenho de acender uma vela para o senhor, por ter me salvado... daquele enfurecido... Veja, eu já tenho balas demais no corpo. Olhe uma aqui [...] foi em Wagram e essas duas foram em Smolensk [...] e esta perna, como o senhor está vendo, que não quer mais andar. Foi na grande batalha do dia 7, em Moskowa [referência à batalha de Borodinó], que recebi este ferimento. Santo Deus, foi bonito. Só vendo, foi um dilúvio de fogo. Vocês nos obrigaram a pagar um preço alto; podem se vangloriar disso, puxa vida. E, palavra de honra, apesar da tosse que peguei, eu estaria disposto a recomeçar. Tenho pena de quem não viu aquilo”.

91 Francês: “Estive lá”.

92 Francês: “Ora, é verdade? Ah, melhor ainda [...] Vocês são inimigos ferozes, afinal. O grande reduto foi tenaz, caramba. E vocês nos fizeram pagar muito caro. Fui lá três vezes, este aqui que você está vendo. Três vezes nós chegamos até os canhões e três vezes nos derrubaram como um castelo de cartas. Ah! Foi bonito, senhor Pierre. Os seus granadeiros foram soberbos, palavra. Eu os vi cerrar fileiras seis vezes seguidas e marchar como numa revista de tropas. Que beleza de homens! Nosso rei de Nápoles, que sabe das coisas, gritou: bravo! Ah, ah! Soldados como nós! [...] Melhor assim, melhor assim, senhor Pierre. Terríveis em batalha... garbosos... [...] Com as beldades os franceses são assim, senhor Pierre, não é?”.

93 Francês: “A propósito, me diga, é verdade que todas as mulheres foram embora de Moscou? Que ideia engraçada! O que tinham elas a temer?”.

94 Francês: “Por acaso as mulheres francesas não iriam embora de Paris se os russos entrassem na cidade?”.

95 Francês: “Ah! Essa é demais [...] Mas Paris... Paris...”.

96 Francês: “Paris, a capital do mundo”.

97 Francês: “Ora, se o senhor não tivesse me avisado que é russo, eu teria até apostado que é parisiense. O senhor tem esse não sei o quê, esse...”.

98 Francês: “Estive em Paris, passei alguns anos lá”.

99 Francês: “Ah, isso se vê logo. Paris!... Um homem que não conhece Paris é um selvagem. Um parisiense a gente sente a duas léguas. Paris é Talma, a Duchesnois, Potier, a Sorbonne, os bulevares [...] Só existe uma Paris no mundo. O senhor esteve em Paris e continuou russo. Pois bem, minha estima não é menor por isso”. O capitão Ramballe cita três atores de grande fama na época: François-Joseph Talma (1763-1826); Catherine Joséphine Raffin, a Duchesnois (1777-1835), e o comediante Charles Gabriel Potier (1774-1838).

100 Francês: “Voltando a falar das damas de vocês, dizem que são bem bonitas. Que ideia infeliz ir se enterrar nas estepes, quando o exército francês está em Moscou. Que oportunidade elas perderam. Os seus mujiques, isso é outra história, mas vocês, pessoas civilizadas, deveriam nos conhecer melhor. Tomamos Viena, Berlim, Madri, Nápoles, Roma, Varsóvia, todas as capitais do mundo... As pessoas têm medo de nós, mas têm amor por nós. Vale a pena nos conhecer. E, além disso, o imperador!”.

101 Francês: “O imperador [...] Será que o imperador?...”.

102 Francês: “O imperador? É a generosidade, a clemência, a justiça, a ordem, o gênio, isso é o imperador! Sou eu, Ramballe, quem diz. Olhe para mim, eu também era inimigo dele oito anos atrás. Meu pai era um conde emigrado... Mas ele me venceu, esse homem. Ele me arrebatou. Não pude resistir ao espetáculo de grandeza e de glória com que ele cobriu a França. Quando compreendi o que ele queria, quando percebi que ele construía para nós uma liteira de louros, veja o senhor, eu disse para mim mesmo: isto, sim, é um soberano, e eu me entreguei a ele. Aí está! Ah, sim, meu caro, é o maior homem de todos os séculos, passados e futuros”.

103 Francês: “Ele está em Moscou?”.

104 Francês: “Não, ele vai chegar amanhã”.

105 Francês: “Encantador [...] o coronel dos soldados de Württemberg! É um alemão; mas é um bravo rapaz, de fato. Mas é alemão”.

106 Francês: “A propósito, o senhor então sabe alemão, não é?”.

107 Francês: “Como se diz asilo em alemão?”.

108 Francês: “Os alemães são uns bichos arrogantes. Não é, senhor Pierre? [...] Pois bem, mais uma garrafa desse bordeaux moscovita, não é mesmo? Morel, esquente para nós mais uma garrafinha. Morel!”.

109 Francês: “Ora, então estamos tristes [...] Será que fiz o senhor sofrer? Não, de verdade, o senhor tem alguma coisa contra mim? [...] Talvez por causa da situação?”.

110 Francês: “Palavra de honra, sem falar do que eu lhe devo, sinto amizade pelo senhor. Posso fazer alguma coisa pelo senhor? Estou à sua disposição. Para a vida e para a morte. Digo isso com a mão no coração”.

111 Francês: “Obrigado”.

112 Francês: “Ah, nesse caso eu bebo à nossa amizade!”.

113 Francês: “É, caro amigo, esses são os caprichos da fortuna [...] Quem diria que eu viria a ser soldado e capitão dos dragões a serviço de Bonaparte, como o chamávamos antigamente. E no entanto aqui estou em Moscou, com ele. Tenho de lhe dizer, meu caro [...] que nosso nome é um dos mais antigos da França”.

114 Francês: “Minha pobre mãe”.

115 Francês: “Mas tudo isso não passa do cenário da vida, a essência é o amor! O amor! Não é isso, senhor Pierre? [...] Mais um copo”.

116 Francês: “Ah! As mulheres, as mulheres!”.

117 Francês: “o amor dos carroceiros”.

118 Francês: “o amor dos tolos”.

119 Francês: “memórias da Alemanha”.

120 Francês: “os maridos comem chucrute”.

121 Francês: “as mocinhas são louras demais”.

122 Francês: “Parisiense de coração”.

123 Francês: “Salvei sua vida e estou salvando sua honra!”.

124 Francês: “Ora essa!”.

125 Francês: “O amor platônico, as nuvens...”.

126 Aqueduto construído no século xviii.

127 Localidade situada a setenta quilômetros de Moscou, onde fica um famoso mosteiro.

128 Caixa que continha pólvora ou armas.

129 Francês: “Não pode passar”.

130 Francês: “Ora, o que é que esse daí está querendo?”.

131 Francês: “Uma criança dentro desta casa. Não viram uma criança?”.

132 Francês: “Ora bolas, que é que esse daí está resmungando? Vá passear”.

133 Francês: “Uma criança? [...] Ouvi alguma coisa guinchando no jardim. Vai ver é o pirralho desse sujeito. A gente tem de ser humano, afinal...”.

134 Francês: “Onde ele está? Onde ele está?”.

135 Francês: “Por aqui! Por aqui! [...] Espere, vou descer”.

136 Francês: “Vamos rápido aí, pessoal [...] Está começando a ficar quente”.

137 Francês: “Aí está o seu pirralho. Ah, uma menina, melhor ainda [...] Adeus, meu gordo. A gente tem de ser humano. Somos todos mortais, afinal”.

138 Francês: “Deixem essa mulher em paz!”.

139 Francês: “Vamos lá, deixe de bobagem!”.

140 Francês: “Ele tem um punhal, tenente”.

141 Francês: “Ah, uma arma!”.

142 Francês: “Muito bem, você vai explicar tudo isso no conselho de guerra [...] O senhor fala francês?”.

143 Francês: “O senhor fala francês? [...] Mandem vir o intérprete”.

144 Francês: “Ele não tem o aspecto de um homem do povo”.

145 Francês: “Ora, ora. Está me parecendo que é um desses incendiários [...] Pergunte a ele, quem ele é?”.

146 Francês: “Não vou dizer quem sou eu. Sou seu prisioneiro. Levem-me”.

147 Francês: “Marche!”.

148 Francês: “O que quer essa mulher?”.

149 Francês: “O que ela está dizendo? [...] Ela está me trazendo minha filha, que acabei de salvar das chamas [...] Adeus!”.

 

 

I

Nas altas esferas de Petersburgo, naquela ocasião, e com mais ardor do que nunca, ocorria uma luta entre o partido de Rumiántsev, dos franceses, e o de Maria Fiódorovna, do tsarévitche e outros, abafada como sempre pelo zumbido dos zangões da corte. Mas a vida tranquila e luxuosa de Petersburgo, preocupada apenas com fantasmas e reflexos da vida, transcorria como antes; e, a julgar pelo transcorrer daquela vida, era preciso fazer um grande esforço para perceber o perigo e a situação difícil em que se encontrava o povo russo. Continuavam as mesmas recepções e bailes, o mesmo teatro francês, os mesmos interesses da corte e das repartições e as mesmas intrigas. Só nas mais altas esferas se faziam esforços para recordar os problemas da situação real. Contava-se em voz baixa como as duas imperatrizes1 agiam de forma oposta naquelas circunstâncias tão difíceis. A imperatriz Maria Fiódorovna, preocupada com o bem-estar das instituições de caridade e de ensino sob sua proteção, deu ordens para transferir todos os institutos para Kazan, e os objetos daqueles prédios já estavam preparados para o transporte. Já a imperatriz Elizavieta Alekséievna, quando lhe perguntavam quais eram as suas ordens, dignava-se responder, com o patriotismo russo que lhe era peculiar, que não podia dar ordens sobre instituições estatais, pois isso competia ao soberano; quanto ao que se referia a ela pessoalmente, apenas se dignava dizer que seria a última a deixar Petersburgo.

No dia 26 de agosto, no mesmo dia da batalha de Borodinó, houve uma festa à noite na casa de Anna Pávlovna, cuja atração principal deveria ser a leitura de uma carta de sua eminência o metropolita, escrita por ocasião do envio ao soberano de uma imagem do venerável São Sérgio. Aquela carta era considerada um modelo de eloquência patriótica religiosa. Sua leitura seria feita pelo príncipe Vassíli em pessoa, famoso por sua arte da leitura. (Ele lia até para a imperatriz.) O que se considerava a arte da leitura era derramar as palavras em voz alta, melodiosa, entre uivos de desespero e murmúrios de ternura, de maneira totalmente independente do seu significado, de modo que, completamente ao acaso, uma palavra se erguia num uivo e outra virava um murmúrio. Tal leitura tinha um significado político, como tudo nas festas noturnas em casa de Anna Pávlovna. Àquela festa deviam comparecer algumas personalidades importantes, nas quais era preciso despertar um sentimento de vergonha por continuarem indo ao teatro francês e inspirar um ânimo patriótico. As pessoas já estavam reunidas fazia muito tempo, mas Anna Pávlovna ainda não estava vendo na sala todos aqueles que tinham de estar ali e por isso conduzia todas as conversas sem dar início à leitura.

A novidade daquele dia em Petersburgo era a doença da condessa Bezúkhova. Alguns dias antes, a condessa havia adoecido inesperadamente, faltara a algumas reuniões das quais era ela o ornamento, e soube-se que não estava recebendo ninguém e que, em lugar dos médicos famosos de Petersburgo que habitualmente a tratavam, ela se confiara aos cuidados de certo médico italiano, que a estava tratando com um método novo e fora do comum.

Todos sabiam muito bem que a doença da encantadora condessa provinha do constrangimento de estar casada com dois maridos ao mesmo tempo e que o tratamento do italiano consistia na eliminação de tal constrangimento; mas, em presença de Anna Pávlovna, não só ninguém se atrevia a pensar naquilo, como parecia que ninguém sequer sabia do assunto.

— On dit que la pauvre comtesse est très mal. Le médecin dit que c’est l’angine pectorale.2

— L’angine? Oh, c’est une maladie terrible!3

— On dit que les rivaux se sont réconciliés grâce à l’angine...4

A palavra “angine” era repetida com grande compaixão.

— Le vieux comte est touchant à ce qu’on dit. Il a pleuré comme un enfant quand le médecin lui a dit que le cas était dangereux.5

— Oh, ce serait une perte terrible. C’est une femme ravissante.6

— Vous parlez de la pauvre comtesse — disse Anna Pávlovna, que se aproximou. — J’ai envoyé savoir de ses nouvelles. On m’a dit qu’elle allait un peu mieux. Oh, sans doute, c’est la plus charmante femme du monde — disse Anna Pávlovna, sorrindo do próprio entusiasmo. — Nous appartenons à des camps différents, mais cela ne m’empêche pas de l’estimer, comme elle le mérite. Elle est bien malheureuse7 — acrescentou Anna Pávlovna.

Supondo que com essas palavras Anna Pávlovna levantava ligeiramente a cortina de mistério que encobria a doença da condessa, um jovem descuidado permitiu-se exprimir surpresa com o fato de não terem chamado médicos famosos e de a condessa estar se tratando com um charlatão, que podia usar métodos perigosos.

— Vos informations peuvent être meilleures que les miennes — replicou de repente, e em tom venenoso, Anna Pávlovna ao jovem inexperiente. — Mais je sais de bonne source que ce médecin est un homme très savant et très habile. C’est le médecin intime de la reine d’Espagne.8 — E assim, depois de aniquilar o jovem, Anna Pávlovna voltou-se para Bilíbin, que falava sobre os austríacos em outro círculo, tinha contraído a pele do rosto e obviamente se preparava para relaxar a pele outra vez, a fim de dizer un mot.

— Je trouve que c’est charmant!9 — disse ele, a respeito de um documento diplomático enviado para Viena junto com bandeiras austríacas tomadas por Wittgenstein, le héros de Pétropol 10 (como era chamado em Petersburgo).

— Como era, como era? — voltou-se Anna Pávlovna, provocando um silêncio para que ouvissem o mot, que ela já conhecia.

E Bilíbin repetiu literalmente as seguintes palavras escritas por ele no despacho diplomático:

— L’empereur renvoie les drapeaux autrichiens — disse Bilíbin —, drapeaux amis et égarés qu’il a trouvés hors de la route11 —, concluiu Bilíbin, relaxando a pele.

— Charmant, charmant — disse o príncipe Vassíli.

— C’est la route de Varsovie, peut-être12 — disse o príncipe Hippolyte de repente e em voz alta. Todos se voltaram para ele, sem compreender o que queria dizer com aquilo. O príncipe Hippolyte também olhou à sua volta com uma surpresa alegre. Assim como os demais, ele também não entendia o que suas palavras significavam. Ao longo de sua carreira diplomática, várias vezes ele havia notado que palavras ditas daquela forma repentina pareciam muito sagazes e, sempre que tinha uma chance, falava daquele modo as primeiras palavras que lhe viessem aos lábios. “Pode ser que dê certo”, pensava ele, “e se não der, eles saberão como dar um jeito.” De fato, no momento em que um silêncio embaraçoso dominava a todos, entrou no salão aquela pessoa insuficientemente patriótica que Anna Pávlovna estava esperando para transmitir uma advertência, e ela, sorrindo e ameaçando Hippolyte com o dedo, convidou o príncipe Vassíli para a mesa, trouxe para ele duas velas e um manuscrito, e pediu que começasse a leitura. Todos ficaram em silêncio.

— “Misericordiosíssimo soberano imperador!” — exclamou em tom severo o príncipe Vassíli e voltou um olhar para o público, como que perguntando se alguém tinha algo a dizer contra aquilo. Mas ninguém disse nada. — “Moscou, primeira capital do trono, a Nova Jerusalém, vai receber o seu Cristo” — e de repente enfatizou a palavra “seu” —, “assim como a mãe acolhe em seus braços os filhos zelosos, e, em meio às trevas que se levantam, contemplando a glória radiante do vosso poder, canta de júbilo: Hosana, bem-aventurado o que chega!” — O príncipe Vassíli pronunciou as últimas palavras com voz chorosa.

Bilíbin observava com atenção as próprias unhas, e muitos, visivelmente, se mostravam intimidados, como que perguntando de que tinham culpa. Anna Pávlovna, como uma velha que reza ao receber a comunhão, repetia antecipadamente as palavras que viriam a seguir: “Que o incauto e insolente Golias...”, sussurrou ela.

O príncipe Vassíli prosseguiu:

— “Que o incauto e insolente Golias dos confins da França envolva as plagas da Rússia com seus horrores mortíferos; a fé dócil, a funda do Davi russo, partirá de súbito sua orgulhosa cabeça sequiosa de sangue. Esta imagem do venerável Sérgio, ancestral guardião da felicidade de nossa pátria, será apresentada à vossa alteza imperial. Lamento que minhas forças debilitadas me impeçam de desfrutar a contemplação de vossa magnificência. Ergo fervorosas orações aos céus, para que o Todo-Poderoso engrandeça a estirpe dos justos e leve a bom termo os desejos de vossa majestade.”

— Quelle force! Quel style!13 — ouviram-se elogios ao leitor e ao autor. Animados pelo discurso, os convidados de Anna Pávlovna ficaram conversando durante muito tempo sobre a situação da pátria e fizeram diversas conjeturas sobre o desfecho da batalha que deveria ser travada dali a alguns dias.

— Vous verrez14 — disse Anna Pávlovna — que amanhã, dia do aniversário do soberano, receberemos uma notícia. Estou com um bom pressentimento.

II

O pressentimento de Anna Pávlovna de fato se cumpriu. No dia seguinte, na hora da missa no palácio em homenagem ao aniversário do soberano, o príncipe Volkónski foi chamado à igreja e recebeu um envelope do príncipe Kutúzov. Era o relato de Kutúzov, escrito em Tatárinova, no dia da batalha. Kutúzov escreveu que os russos não haviam recuado nem um passo, que os franceses tinham sofrido baixas imensamente maiores do que as nossas, que ele estava escrevendo às pressas, do campo de batalha, e que não tivera tempo de reunir as últimas informações. Portanto, era uma vitória. E prontamente, ali mesmo na igreja, deram graças ao Criador por sua ajuda e pela vitória.

O pressentimento de Anna Pávlovna se cumpriu, e na cidade, a manhã toda, reinava um estado de espírito alegre e festivo. Todos julgavam ter sido uma vitória completa, e alguns já falavam da captura do próprio Napoleão, de sua deposição e da escolha de um novo governante para a França.

Longe dos fatos e em meio às condições de vida da corte, era muito difícil que os acontecimentos repercutissem em sua plenitude e com toda a sua força. Os acontecimentos em geral se agrupam, espontaneamente, em torno de algum incidente particular. Desse modo, agora, a principal alegria dos cortesãos se apoiava tanto no fato de termos vencido quanto na circunstância de a notícia da vitória ter chegado justamente no dia do aniversário do soberano. Era como uma surpresa bem oportuna. A mensagem de Kutúzov comunicava também as baixas sofridas pelos russos, entre elas citava Tutchkóv, Bagration, Kutáissov. Também o lado triste dos acontecimentos, ali no ambiente petersburguês, agrupou-se em torno de um fato — a morte de Kutáissov. Todos o conheciam, o soberano o adorava, era jovem e interessante. Naquele dia, todos que se encontravam diziam:

— Que coincidência espantosa. Bem na hora da missa. Que perda, a de Kutáissov! Ah, que pena!

— O que foi que eu lhes disse sobre Kutúzov? — dizia agora o príncipe Vassíli, com o orgulho de um profeta. — Sempre disse que era o único capaz de derrotar Napoleão.

Mas no dia seguinte não chegaram notícias do Exército, e a opinião geral começou a ficar inquieta. Os cortesãos sofriam com o sofrimento em que se achava o soberano por causa da falta de informações.

— Que situação, a do soberano! — diziam os cortesãos, e em vez de enaltecerem Kutúzov, como faziam dois dias antes, agora o condenavam por ter sido a causa das inquietações do soberano. O príncipe Vassíli naquele dia já não se vangloriava mais de seu protégé Kutúzov, e sim guardava silêncio quando se falava do comandante em chefe. Além disso, ao final daquele dia, como se tudo conspirasse para lançar os habitantes de Petersburgo no abatimento e na inquietação, veio somar-se mais uma notícia terrível. A condessa Elena Bezúkhova morreu subitamente daquela doença terrível sobre a qual era tão agradável conversar. Oficialmente, nas altas esferas, todos diziam que a condessa havia morrido de um terrível ataque de angine pectorale, mas os círculos íntimos contavam detalhes de como le médecin intime de la reine d’Espagne prescrevera a Hélène pequenas doses de um certo remédio para produzir um determinado efeito; porém, atormentada porque o velho conde a desprezava e porque o marido (o infeliz e depravado Pierre), a quem ela havia escrito, não lhe respondera, Hélène tomara de uma só vez uma dose enorme do remédio prescrito pelo médico e morrera entre tormentos, antes que pudessem socorrê-la. Diziam que o príncipe Vassíli e o velho conde foram tomar satisfações com o italiano; mas o italiano havia mostrado tais escritos da infeliz falecida que eles prontamente o deixaram em paz.

As conversas em geral se concentravam em torno de três acontecimentos tristes: a desinformação do soberano, o perecimento de Kutáissov e a morte de Hélène.

Três dias depois do comunicado de Kutúzov, chegou a Petersburgo um senhor de terras vindo de Moscou, e por toda a cidade espalhou-se a notícia da capitulação de Moscou aos franceses. Era horrível! Em que situação ficaria o soberano? Kutúzov era um traidor, e o príncipe Vassíli, por ocasião das visites de condoléances15 que lhe faziam em razão da morte da filha, dizia a respeito de Kutúzov, antes louvado por ele mesmo (em sua dor, era desculpável que esquecesse o que dissera antes), que era mesmo impossível esperar algo diferente de um velho cego e depravado.

— Só me admiro que tenha sido possível confiar o destino da Rússia a uma pessoa como essa.

Enquanto a notícia não era oficial, podia-se ainda duvidar dela, mas um dia depois chegou o seguinte comunicado do conde Rostoptchin:

Um ajudante de ordens de Kutúzov me trouxe uma carta na qual exige oficiais de polícia para acompanhar o exército na estrada de Riazan. Diz que, com pesar, vai deixar Moscou. Soberano! O gesto de Kutúzov decide a sorte da capital e do vosso império. A Rússia vai estremecer ao tomar conhecimento da capitulação da cidade onde se concentram os esplendores da Rússia, onde repousam os restos mortais dos vossos antepassados. Seguirei o exército. Removi tudo, resta-me chorar o destino de minha pátria.

Após receber essa mensagem, o soberano mandou, pelo príncipe Volkónski, o seguinte rescrito:

Príncipe Mikhail Ilariónovitch! Desde o dia 29 de agosto não recebo nenhuma notícia do senhor. Nesse meio-tempo, no dia 1o de setembro, recebi do governador-geral de Moscou, via Iaroslavl, a triste notícia de que o senhor resolveu deixar a cidade com o exército. O senhor mesmo pode imaginar o efeito que tal notícia produziu em mim, e o seu silêncio aumenta meu assombro. Junto com esta, envio o general ajudante de ordens príncipe Volkónski a fim de saber do senhor a respeito da posição do exército e das razões que o levaram a tomar uma resolução tão lamentável.

III

Nove dias depois do abandono de Moscou, chegou a Petersburgo um enviado de Kutúzov com a notícia oficial do fato. O enviado era o francês Michaux, que não sabia russo, mas que quoique étranger, Russe de cœur et d’âme,16 como ele mesmo dizia.

Imediatamente, o soberano recebeu o enviado em seu gabinete, no palácio da Ilha de Pedra. Michaux, que nunca tinha visto Moscou até a campanha militar e que não sabia falar russo, sentiu-se no entanto emocionado ao se ver diante de notre très gracieux souverain17 (como ele escreveu), com a notícia do incêndio de Moscou, dont les flammes éclairaient sa route.18

Embora a fonte de chagrin19 do sr. Michaux devesse mesmo ser outra que não aquela de onde provinha a mágoa dos russos, Michaux tinha o rosto tão desolado, quando foi conduzido ao gabinete do soberano, que o soberano imediatamente lhe perguntou:

— M’apportez-vous de tristes nouvelles, colonel? 20

— Bien tristes, sire — respondeu Michaux, baixando os olhos com um suspiro. — L’abandon de Moscou.21

— Aurait-on livré mon ancienne capitale sans se battre? 22 — exclamou o soberano depressa, inflamando-se de repente.

Michaux transmitiu respeitosamente o que Kutúzov lhe havia ordenado — ou seja, que não havia possibilidade de lutar diante de Moscou e que, como restava apenas fazer uma opção — perder o exército e Moscou, ou perder só Moscou —, o marechal teve de escolher a segunda opção.

O soberano escutou em silêncio, sem olhar para Michaux.

— L’ennemi est-il en ville?23 — perguntou.

— Oui, sire, et elle est en cendres à l’heure qu’il est. Je l’ai laissée toute en flammes24 — disse Michaux em tom resoluto; porém, lançando um olhar para o soberano, Michaux horrorizou-se com o que tinha feito. O soberano começou a respirar de modo ofegante, rápido, o lábio inferior começou a tremer e imediatamente os lindos olhos azuis ficaram molhados de lágrimas.

Mas isso durou só um minuto. O soberano franziu as sobrancelhas de repente, como que censurando a si mesmo por sua fraqueza. E, erguendo a cabeça, dirigiu-se a Michaux com voz forte.

— Je vois, colonel, par tout ce qui nous arrive — disse ele —, que la Providence exige de grands sacrifices de nous... Je suis prêt à me soumettre à toutes Ses volontés; mais dites-moi, Michaux, comment avez-vous laissé l’armée, en voyant ainsi, sans coup férir, abandonner mon ancienne capitale? N’avez-vous pas aperçu du découragement?...25

Ao ver que seu très gracieux souverain havia se acalmado, Michaux também se acalmou, mas ele não teve tempo de preparar uma resposta para a pergunta direta e essencial do soberano, que exigia também uma resposta direta.

— Sire, me permettez-vous de vous parler franchement en loyal militaire?26 — disse, a fim de ganhar tempo.

— Colonel, je l’exige toujours — disse o soberano. — Ne me cachez rien, je veux savoir absolument ce qu’il en est.27

— Sire! — disse Michaux com um sorriso sutil e quase imperceptível nos lábios, depois de conseguir preparar sua resposta em forma de um leve e respeitoso jeu de mots.28 — Sire! J’ai laissé toute l’armée, depuis les chefs jusqu’au dernier soldat, sans exception, dans une crainte épouvantable, effrayante...29

— Comment ça? — interrompeu o soberano, franzindo as sobrancelhas com ar severo. — Mes Russes se laisseront-ils abattre par le malheur... Jamais!...30

Era exatamente o que Michaux esperava para inserir o seu jogo de palavras.

— Sire — disse ele, com uma expressão jovial e respeitosa —, ils craignent seulement que Votre Majesté par bonté de cœur ne se laisse persuader de faire la paix. Ils brûlent de combattre — disse o delegado do povo russo — et de prouver à Votre Majesté par le sacrifice de leur vie, combien ils lui sont dévoués...31

— Ah! — disse o soberano, com calma e com um brilho afetuoso nos olhos, batendo no ombro de Michaux. — Vous me tranquillisez, colonel.32

O soberano baixou a cabeça e ficou algum tempo em silêncio.

— Eh bien, retournez à l’armée — disse ele, erguendo os ombros outra vez e dirigindo-se a Michaux com um gesto afetuoso e magnânimo —, et dites à nos braves, dites à tous mes bons sujets partout où vous passerez, que quand je n’aurai plus aucun soldat, je me mettrai, moi-même, à la tête de ma chère noblesse, de mes bons paysans et j’userai ainsi jusqu’à la dernière ressource de mon empire. Il m’en offre encore plus que mes ennemis ne pensent — disse o soberano, cada vez mais empolgado. — Mais si jamais il fut écrit dans les décrets de la Divine Providence — disse, erguendo com emoção seus olhos belos, dóceis e brilhantes — que ma dynastie dût cesser de régner sur le trône de mes ancêtres, alors, après avoir épuisé tous les moyens qui sont en mon pouvoir, je me laisserai croître la barbe jusqu’ici (o soberano mostrou com a mão o meio do peito), et j’irai manger des pommes de terre avec le dernier de mes paysans plutôt que de signer la honte de ma patrie et de ma chère nation, dont je sais apprécier les sacrifices!...33 — Depois de dizer essas palavras com voz inflamada, o soberano virou-se de repente, como se desejasse esconder de Michaux as lágrimas que vieram a seus olhos e andou até o fundo de seu gabinete. Ficou lá alguns momentos, voltou na direção de Michaux a passos largos e, com um gesto forte, apertou seu braço um pouco abaixo do cotovelo. O rosto belo e dócil do soberano ficou vermelho, e os olhos arderam com um brilho de determinação e de cólera.

— Colonel Michaux, n’oubliez pas ce que je vous dis ici; peut-être qu’un jour nous nous le rappellerons avec plaisir... Napoléon ou moi — disse o soberano, tocando no peito. — Nous ne pouvons plus régner ensemble. J’ai appris à le connaître, il ne me trompera plus...34 — E o soberano ficou em silêncio de sobrancelhas franzidas. Ao ouvir aquelas palavras, ao ver a expressão de firme determinação nos olhos do soberano, Michaux, quoique étranger, mais Russe de cœur et d’âme, sentiu-se, naquele momento solene, enthousiasmé par tout ce qu’il venait d’entendre35 (como disse mais tarde), e nas expressões que usou em seguida retratou tanto seus sentimentos quanto os do povo russo, do qual se considerava o representante.

— Sire! — disse ele. — Votre Majesté signe dans ce moment la gloire de la nation et le salut de l’Europe! 36

O soberano despediu-se de Michaux com uma inclinação de cabeça.

IV

Ao pensar naquele tempo em que metade da Rússia estava ocupada e os habitantes de Moscou fugiam para províncias distantes, enquanto se formavam milícias e mais milícias para a defesa da pátria, nós, que não vivemos aquele tempo, não podemos deixar de imaginar que todos os russos, dos pequenos aos grandes, estavam ocupados apenas em sacrificar-se, em salvar a pátria ou em chorar sua ruína. Todos os relatos redigidos naquele tempo, sem exceção, falam apenas em autossacrifício, amor à pátria, desespero, tristeza e heroísmo dos russos. Na realidade não era assim. Temos tal impressão só porque vemos no passado apenas o interesse histórico geral daquele tempo e não vemos todos os interesses pessoais, humanos, que tinham as pessoas daquele tempo. Na realidade, porém, os interesses pessoais do momento eram a tal ponto mais importantes do que os interesses gerais que, por causa deles, não se sentia (nem sequer se notava) o interesse geral. A maior parte das pessoas daquele tempo não prestava a menor atenção no curso geral dos acontecimentos e guiava-se apenas pelos interesses pessoais do momento. E eram essas as pessoas cujas ações eram as mais úteis naquele tempo.

Aqueles que tentavam compreender o curso geral dos acontecimentos e, com sacrifício e heroísmo, queriam participar deles, eram os membros mais inúteis da sociedade; viam tudo invertido, e tudo aquilo que faziam como algo útil se revelava um absurdo inútil, a exemplo dos regimentos de Pierre, de Mamónov, que pilhavam as aldeias russas, a exemplo das ataduras de linho preparadas pelas damas da nobreza, que nunca chegavam aos feridos, e assim por diante. Até aqueles que, pelo gosto de se mostrar inteligentes e de dar voz a seus sentimentos, debatiam a situação existente na Rússia, não podiam deixar de pôr em suas palavras a marca do fingimento ou da mentira, ou de uma condenação e de uma raiva inúteis contra pessoas acusadas de algo cuja culpa não podia ser atribuída a ninguém. Nos acontecimentos históricos, é mais evidente do que em qualquer outro caso a proibição de provar o fruto da árvore do conhecimento. Só a ação inconsciente dá frutos, e a pessoa que desempenha um papel nos acontecimentos históricos nunca entende seu significado. Se tenta compreendê-lo, dá-se conta de que isso é infrutífero.

O significado dos acontecimentos na Rússia era tanto menos percebido quanto mais próxima fosse a participação da pessoa. Em Petersburgo e nas cidades de província distantes de Moscou, as damas e os homens em uniforme da milícia pranteavam a Rússia, a capital, e falavam em autossacrifício etc.; mas no exército, que havia se retirado de Moscou, quase não falavam ou pensavam em Moscou e, ao ver o incêndio da cidade, ninguém jurava vingança contra os franceses, mas sim pensava no próximo terço do soldo que ia ser pago, na próxima parada para descanso, na quitandeira Matriochka e coisas desse tipo...

Nikolai Rostóv, sem nenhum propósito de autossacrifício, e sim por acaso, como a guerra o surpreendeu no serviço militar, tomou parte na defesa da pátria de forma direta e constante, e por isso encarava o que se passava na Rússia sem desespero e sem conclusões sombrias. Se lhe perguntassem o que pensava da situação da Rússia, diria que não pensava nada, que para isso existiam Kutúzov e os outros, e que tinha ouvido dizer que o contingente dos regimentos seria completado, que talvez a luta ainda fosse se prolongar por muito tempo e que, naquelas circunstâncias, não ficaria espantado se dali a uns dois anos lhe dessem um regimento para comandar.

Por encarar as coisas desse modo, ele não só não sentiu nenhum pesar por saber que não ia participar da última batalha, quando recebeu a notícia de que tinha sido designado para ir a Voróniej a fim de comprar montarias para a divisão, como sentiu até um enorme contentamento, que não escondeu de seus camaradas, que compreendiam aquilo perfeitamente.

Poucos dias antes da batalha de Borodinó, Nikolai recebeu dinheiro e documentos e, depois de enviar alguns hussardos na frente, partiu para Voróniej em cavalos de uma estação de muda.

Só quem viveu isso, ou seja, passou vários meses ininterruptos na atmosfera da guerra, da vida militar, pode entender o prazer que Nikolai experimentou quando se afastou da região que as tropas ocupavam com suas operações de juntar forragem, com seus veículos de provisão, com suas enfermarias de campanha; quando, sem os soldados, sem as carroças, marcas infames da presença de um acampamento militar, Nikolai avistou aldeias com mujiques e camponesas, casas senhoriais, campos e gado que pastava e estações de muda com seus vigias adormecidos. Nikolai sentiu uma alegria tão grande como se visse aquilo pela primeira vez. O que o surpreendeu e o alegrou foi ver mulheres, jovens e saudáveis, sem que houvesse dez oficiais fazendo a corte a cada uma delas, mulheres que ficavam contentes e lisonjeadas porque um oficial de passagem lhes dizia uns gracejos.

No estado de ânimo mais alegre possível, Nikolai chegou à noite a uma estalagem em Voróniej, pediu tudo aquilo de que estava privado no Exército havia muito tempo e, no dia seguinte, muito bem barbeado e limpo, vestido num uniforme de gala que havia muito tempo não usava, foi apresentar-se às autoridades locais.

O chefe da milícia era um general do serviço público civil, homem velho que obviamente estava eufórico com seu cargo e posto militar. Recebeu Nikolai com um aspecto zangado (pensando que aquilo era próprio de um militar), interrogou-o com ar importante e, como se tivesse direito a isso, pareceu avaliar o curso geral dos acontecimentos, aprovando ou desaprovando. Nikolai estava tão alegre que aquilo apenas o divertiu.

Do chefe da milícia, ele seguiu ao encontro do governador. O governador era um homem pequeno e vivaz, totalmente simples e afetuoso. Indicou para Nikolai as cavalariças onde poderia conseguir cavalos, recomendou-lhe um mercador de cavalos na cidade e prometeu toda a assistência.

— O senhor é filho do conde Iliá Andréievitch? Minha esposa foi muito amiga de sua mãe. Às quintas-feiras dou um sarau em minha casa; hoje é quinta-feira, peço o favor de me visitar, sem cerimônia — disse o governador, e despediu-se.

Logo em seguida, Nikolai tomou cavalos de uma estação de muda, chamou o sargento para acompanhá-lo e seguiu a galope rumo a uma cavalariça a dez verstas, que pertencia a um senhor de terras. Todos aqueles primeiros momentos da estadia em Voróniej foram alegres e fáceis para Nikolai, e, como costuma acontecer quando a pessoa está bem-disposta, tudo andava bem e dava certo.

O senhor de terras que Nikolai foi procurar era um velho solteirão cavalariano, grande entendido em cavalos, caçador, dono de tapetes que pendurava nas paredes, de um licor centenário, de um velho vinho húngaro e de cavalos prodigiosos.

Em duas palavras, Nikolai comprou por seis mil rublos dezessete garanhões escolhidos (como ele dizia) para servirem de modelo para suas montarias. Depois de almoçar e beber um pouco do vinho húngaro, Rostóv trocou dois beijos no rosto com o senhor de terras, a quem já havia passado a tratar por “você”, e fez o caminho de volta a galope pela estrada deplorável, no mesmo estado de ânimo alegre, apressando o cocheiro o tempo todo a fim de poder chegar a tempo de comparecer ao sarau na casa do governador.

Nikolai trocou de roupa, perfumou-se, lavou a cabeça com água fria e, embora um pouco tarde, mas com uma expressão já pronta: “Vaut mieux tard que jamais”,37 apareceu na casa do governador.

Não era um baile, e ninguém tinha dito que ia haver dança; mas todos sabiam que Katierina Petróvna ia tocar valsas e escocesas no clavicórdio e que as pessoas iam dançar, e todos, já prevendo isso, foram até lá como se fossem a um baile.

A vida provinciana em 1812 era exatamente como sempre fora, apenas com a diferença de que a cidade estava mais animada por causa da chegada de muitas famílias ricas vindas de Moscou e porque, como em tudo o que acontecia na Rússia naquele tempo, notava-se certo relaxamento — perder os dedos ou perder a mão, tanto faz —, e a conversa trivial, indispensável entre as pessoas, que antes tratava do tempo e dos conhecidos comuns, agora tratava de Moscou, das tropas e de Napoleão.

A sociedade, reunida na casa do governador, era a melhor sociedade de Voróniej.

Havia muitas damas, havia alguns moscovitas conhecidos de Nikolai; mas não havia nenhum homem que pudesse rivalizar com o conde Rostóv, cavaleiro agraciado com a medalha de São Jorge, um hussardo da cavalaria, e além do mais simpático e bem-educado. Entre os homens, havia um prisioneiro italiano — oficial do Exército francês —, e Nikolai sentiu que a presença do prisioneiro fazia sobressair ainda mais a sua importância — um herói russo. Era uma espécie de troféu. Nikolai tinha aquela sensação, parecia-lhe que todos viam o italiano daquela forma, e Nikolai tratou-o com respeito, dignidade e comedimento.

Assim que Nikolai entrou, em seu uniforme de hussardo, exalando à sua volta um aroma de perfume e de vinho, enquanto dizia e também ouvia várias vezes as palavras ditas por ele: vaut mieux tard que jamais, as pessoas o rodearam; todos os olhares se voltaram para ele, e na mesma hora Nikolai sentiu que havia ocupado uma posição adequada na província, a posição de favorito universal, algo sempre agradável, mas que agora, após um longo período de privação, o inebriava de prazer. Nas estações, nas estalagens e na casa do senhor de terras com as paredes forradas de tapetes, havia jovens criadas que ficaram lisonjeadas com a sua atenção; mas ali, no sarau do governador (assim parecia a Nikolai), havia uma inesgotável quantidade de jovens damas e mocinhas bonitas que esperavam com impaciência apenas que Nikolai voltasse para elas sua atenção. As damas e as mocinhas flertavam com ele, e as velhas, desde o primeiro dia, conspiravam sobre como casar e pôr no caminho da vida séria aquele jovem hussardo farrista. Entre estas últimas estava a própria esposa do governador, que recebeu Rostóv como se fosse um parente muito chegado e que o chamava de “Nicolas” e “você”.

Katierina Petróvna de fato pôs-se a tocar valsas e escocesas, e começaram as danças, nas quais Nikolai, com sua perícia, cativou mais ainda toda a sociedade da província. Ele assombrou a todos também pela maneira peculiar e desenvolta de dançar. O próprio Nikolai ficou um pouco admirado com sua maneira de dançar naquela noite. Nunca dançava assim em Moscou e até consideraria indecente e mauvais genre38 uma forma de dançar tão desenvolta; mas ali sentiu necessidade de assombrar a todos com algo extraordinário, algo que deviam tomar como habitual nas capitais, mas ainda desconhecido na província.

Durante a noite inteira, o que mais chamou a atenção de Nikolai foi uma lourinha de olhos azuis, formosa e bem fornida, esposa de um dos funcionários da província. Com a fé ingênua, típica dos rapazes dominados pela alegria, de que as esposas dos outros foram criadas para eles, Rostóv não se afastava daquela dama e tratava seu marido de maneira amigável, ligeiramente conspiratória, como se, embora não falassem disso, soubessem como os dois iriam se entender esplendidamente — isto é, Nikolai e a esposa daquele marido. O marido, contudo, parecia não compartilhar aquela fé e tentava tratar Rostóv de maneira sombria. Mas a ingenuidade simpática de Nikolai era tão ilimitada que às vezes o marido, sem querer, entregava-se ao estado de ânimo alegre de Nikolai. No fim do sarau, no entanto, à medida que o rosto da esposa ficava cada vez mais vermelho e animado, o rosto do marido ficava mais abatido e pálido, como se a cota de animação fosse uma só para os dois e, à medida que ela aumentava na esposa, diminuía no marido.

V

Com um sorriso que não deixava seu rosto, Nikolai estava sentado numa poltrona, ligeiramente curvado para a frente, inclinado para bem perto da lourinha, e lhe dizia elogios mitológicos.

Mudando a posição das pernas de forma muito vistosa, com suas perneiras bem apertadas, propagando um aroma perfumado, admirando ora sua dama, ora a si mesmo e as formas bonitas de suas pernas embaixo das calças de montaria bem justas, Nikolai dizia à lourinha que desejava raptar uma dama ali em Voróniej.

— Qual?

— Ela é fascinante, divina. Tem os olhos (Nikolai fitava sua interlocutora) azuis, a boca de coral, uma brancura... — fitou seus ombros —, o porte... de uma Diana...

O marido aproximou-se e perguntou à esposa, em tom sombrio, sobre o que ela estava falando.

— Ah! Nikita Ivánitch — disse Nikolai, levantando-se de modo cordial. E, como se quisesse que Nikita Ivánitch tomasse parte de seus gracejos, começou a informá-lo também de sua intenção de raptar uma lourinha.

O marido sorriu com tristeza; a esposa, com alegria. A simpática governadora, com ar desaprovador, aproximou-se.

— Anna Ignátievna quer ver você, Nicolas — disse ela, com uma voz que marcou de tal modo as palavras “Anna Ignátievna” que Rostóv imediatamente compreendeu que Anna Ignátievna era uma dama importante. — Vamos, Nicolas. Pois você não me permite que o chame assim?

— Ah, sim, ma tante. Mas quem é ela?

— Anna Ignátievna Malvíntseva. Ouviu falar de você por intermédio da sobrinha, que você salvou... Não adivinha?...

— Salvei tantas! — disse Nikolai.

— A sobrinha dela é a princesa Bolkónskaia. Está aqui em Voróniej com a tia. Oh! Como ficou vermelho! Será que...?

— Não, nem pense nisso, ma tante.

— Está bem, está bem. Oh! Como você é!

A governadora conduziu-o a uma velha alta e muito gorda, de touca azul, que tinha acabado de jogar uma partida de cartas com as pessoas mais importantes da cidade. Era Malvíntseva, tia da princesa Mária por parte de mãe, viúva rica e sem filhos, que sempre havia morado em Voróniej. Estava contando as cartas quando Rostóv se aproximou. Com ar severo e importante, entrecerrou os olhos, fitou-o e depois continuou a repreender o general que a vencera no jogo.

— Estou muito contente, meu caro — disse ela, e lhe estendeu a mão. — Peço que faça a bondade de vir à minha casa.

Depois de falar sobre a princesa Mária e sobre o falecimento do pai dela, o qual pelo visto não agradava a Malvíntseva, e depois de perguntar o que Nikolai sabia a respeito do príncipe Andrei, que também, pelo visto, não era objeto de sua estima, a velha importante despediu-se dele, repetindo o convite de vir à sua casa.

Nikolai prometeu ir e ruborizou-se outra vez, quando se despediu de Malvíntseva com uma reverência. Ante a lembrança da princesa Mária, Rostóv experimentou um sentimento de timidez e até de temor, incompreensível para ele mesmo.

Ao se afastar de Malvíntseva, Rostóv quis voltar para as danças, mas a pequena governadora colocou sua mãozinha rechonchuda sobre a manga de Nikolai, disse que precisava falar com ele e levou-o para uma saleta com um divã, de onde os que ali estavam saíram imediatamente a fim de não atrapalhar a governadora.

— Sabe, mon cher — disse a governadora com uma expressão séria no rosto pequeno e bondoso. — Esse seria um ótimo partido para você; quer que eu aproxime os dois?

— Quem, ma tante? — perguntou Nikolai.

— A princesa. Katierina Petróvna fala de Lili, mas para mim, não: é a princesa. Quer? Estou convencida de que sua maman vai ficar feliz. Sinceramente, que moça, que encanto! E ela não é tão feia assim.

— Nem um pouco — disse Nikolai, como que ofendido. — Eu, ma tante, como convém a um soldado, nunca faço a corte e também não recuso nada — disse Rostóv, antes que tivesse tempo de pensar no que estava dizendo.

— Então, lembre bem: isso não é nenhuma brincadeira.

— Claro que não!

— Certo, certo — disse a governadora, como se estivesse falando consigo mesma. — E mais uma coisa, mon cher, entre autres. Vous êtes trop assidu auprès de l’autre, la blonde.39 O marido já está que dá pena, sinceramente...

— Ah, não, eu e ele somos amigos — disse Nikolai, com espírito inocente: nem passava pela sua cabeça que um entretenimento tão divertido para ele pudesse ser algo sem a menor graça para outra pessoa.

“Mas que tolice fui dizer para a governadora!”, deu-se conta Nikolai, de repente, durante o jantar. “Ela está prestes a dar os primeiros passos para acertar um casamento, mas e a Sônia?...” E quando se despedia da governadora, e ela, sorrindo, disse-lhe mais uma vez “Pois bem, não esqueça”, ele a levou para o canto:

— Ocorre que a verdade é que tenho de lhe dizer uma coisa, ma tante...

— O quê, o quê, meu amigo; vamos sentar ali.

Nikolai de repente sentiu o desejo e a necessidade de contar àquela mulher quase desconhecida todos os seus pensamentos sinceros (que não contaria nem à mãe, nem à irmã, nem a um amigo). Mais tarde, quando se recordou daquele inexplicável arroubo de franqueza, que nada havia provocado e que no entanto trouxe para ele consequências muito importantes, Nikolai teve a impressão (como sempre acontece às pessoas) de que havia tido um súbito acesso de loucura; mas aquele rompante de franqueza, junto com outros fatos menores, teve para ele e para toda a família enormes consequências.

— Veja, ma tante. Minha maman há muito tempo quer me casar com uma mulher rica, mas essa ideia, casar por dinheiro, me causa repulsa.

— Ah, sim, compreendo — disse a governadora.

— Mas a princesa Bolkónskaia é outra história; em primeiro lugar, digo à senhora com sinceridade, ela me agrada muito, ela me toca o coração, e, além disso, depois que a encontrei numa situação como aquela, tão estranha, me vem muitas vezes a ideia de que isso é o destino. Entenda bem: maman há muito tempo pensava nisso, mas antes não havia calhado de nos encontrarmos, por um ou outro motivo, isso não havia ocorrido: não tínhamos nos encontrado. E enquanto Natacha era noiva do irmão dela era impossível para mim pensar em casar com a princesa. Mas tinha de acontecer de eu me encontrar com ela justamente quando o casamento de Natacha havia se desfeito, e depois de tudo... Pois bem, aí está. Não contei isso para ninguém. Só para a senhora.

A governadora apertou seu cotovelo com gratidão.

— A senhora conhece Sophie, minha prima? Eu a amo, prometi casar com ela, e vou casar... Portanto, entenda bem, senhora, não pode haver nenhuma discussão sobre isso — disse Nikolai, sem jeito e ruborizando-se.

— Mon cher, mon cher, como você encara as coisas! Pois afinal Sophie não tem nada, e você mesmo disse que os negócios do seu pai andam de mal a pior. E a sua maman? Isso vai matá-la de um só golpe. Além do mais, Sophie, se for uma jovem de bom coração, que vida terá ela? Sua mãe desesperada, os negócios arruinados... Não, mon cher, você e Sophie têm de compreender isso.

Nikolai ficou em silêncio. Achou agradável ouvir aqueles argumentos.

— Apesar disso, ma tante, não pode ser — disse ele com um suspiro, após um momento de silêncio. — E será que a princesa iria me querer? E ela está de luto outra vez. Será possível pensar nesse assunto?

— Por acaso você acha que vou casar os dois imediatamente? Il y a manière et manière40 — disse a governadora.

— Que casamenteira é a senhora, ma tante... — disse Nicolas, beijando sua mãozinha rechonchuda.

VI

Ao chegar a Moscou depois de seu encontro com Rostóv, a princesa Mária encontrou lá seu sobrinho com o preceptor e uma carta do príncipe Andrei, indicando o caminho que ela devia seguir para chegar a Voróniej e encontrar a tia Malvíntseva. Os afazeres da partida, a preocupação com o irmão, a organização da vida numa casa nova, pessoas novas, a educação do sobrinho — tudo isso havia sufocado na alma da princesa Mária aquele sentimento parecido com uma tentação que a atormentava desde o tempo da doença e da morte do pai e sobretudo após o encontro com Rostóv. Ela estava triste. Agora, depois de passar um mês em condições tranquilas de vida, a tristeza pela perda do pai, que em sua alma se associava à ruína da Rússia, se tornava cada vez mais forte. Estava angustiada: a ideia dos perigos que rondavam seu irmão — a única pessoa próxima que lhe restava — a atormentava sem cessar. Vivia preocupada com a educação do sobrinho, tarefa para a qual se sentia constantemente incapaz; porém no fundo de sua alma ela estava em paz consigo mesma, uma paz que provinha da consciência de que havia esmagado dentro de si os sonhos e os desejos pessoais ligados ao surgimento de Rostóv.

Quando, no dia seguinte ao seu sarau, a governadora foi à casa de Malvíntseva e, depois de falar com a tia a respeito de seus planos (e ressalvar que, apesar de ser impossível sequer pensar num pedido formal de casamento naquelas circunstâncias, mesmo assim era possível aproximar os jovens, permitir que se conhecessem), e quando, após receber a aprovação da tia, a governadora falou sobre Rostóv em presença da princesa Mária, elogiou-o e contou como ficou vermelho quando ela mencionou a princesa — a princesa Mária não experimentou nenhuma alegria, e sim um sentimento de mal-estar: sua paz interior não existia mais, e de novo se erguiam os desejos, as dúvidas, as acusações e as esperanças.

Nos dois dias seguintes a essa conversa, dias que antecederam a visita de Rostóv, a princesa Mária não parou de pensar em como devia se comportar em relação a Rostóv. Ora decidia que não sairia para a sala quando ele estivesse na casa da tia, que em seu luto fechado seria indecente receber visitas; ora achava que isso era uma grosseria em face do que Rostóv havia feito para ela; ora lhe vinha à cabeça a ideia de que a tia e a governadora tinham feito planos a respeito dela e de Rostóv (os olhares e as palavras das duas pareciam, às vezes, confirmar tal suposição); ora a princesa dizia para si que só ela, com sua depravação, poderia pensar tal coisa sobre as duas: elas não poderiam esquecer que, em sua situação, quando ainda não havia retirado da gola as fitas de luto, uma tal iniciativa matrimonial seria ofensiva para ela e também para a memória de seu pai. Na hipótese de ela vir para a sala ao encontro dele, a princesa Mária imaginava as palavras que ele lhe diria e as que ela lhe diria; e tais palavras lhe pareciam ora injustamente frias, ora dotadas de uma importância excessiva. O que mais temia no caso de encontrar-se com Rostóv era o constrangimento que achava que ia tomar conta dela e que se faria visível tão logo estivesse em presença dele.

Mas quando, no domingo, após a missa, o lacaio veio à sala comunicar que o conde Rostóv havia chegado, a princesa não manifestou nenhum constrangimento; apenas um leve rubor tomou suas faces, e os olhos brilharam com uma luz nova e radiante.

— A senhora esteve com ele, titia? — perguntou a princesa Mária com voz tranquila, sem saber ela mesma como conseguia se mostrar exteriormente tão calma e natural.

Quando Rostóv entrou na sala, a princesa baixou a cabeça por um momento, como que para dar tempo ao visitante de cumprimentar a tia, e depois, na hora em que Nikolai se dirigiu a ela, ergueu a cabeça e, com os olhos brilhantes, encontrou seu olhar. Com um movimento gracioso e cheio de dignidade, ela se ergueu ligeiramente, com um sorriso alegre, estendeu-lhe a mão fina, delicada, e começou a falar com uma voz em que vibraram pela primeira vez sons femininos e novos, que vinham do peito. Mlle Bourienne, que estava na sala, olhou para a princesa Mária com admiração e espanto. Nem a mais hábil sedutora poderia fazer uma manobra melhor num encontro com um homem a quem era preciso agradar.

“Ou o preto lhe cai muito bem, ou de fato ficou mais bonita, e eu não percebi. E acima de tudo, que tato e que graça!”, pensou Mlle Bourienne.

Se a princesa Mária estivesse em condições de refletir naquele momento, ficaria ainda mais admirada do que Mlle Bourienne com a transformação que nela ocorria. Desde o minuto em que viu o rosto atraente e querido, uma nova força de vida tomou conta dela e obrigou-a, para além de sua vontade, a falar e a agir. Seu rosto, desde o instante em que Rostóv entrou, transfigurou-se subitamente. Da mesma forma como uma lanterna de vidro pintado e entalhado, quando sua luz interna é acesa, projeta de repente nas paredes, com uma beleza inesperada e fulminante, seu complexo trabalho artístico que antes parecia tosco, escuro e sem sentido, assim também se transfigurou de repente o rosto da princesa Mária. Pela primeira vez, todo o puro trabalho espiritual interior que ela vivenciara até então se manifestou exteriormente. Todo o seu trabalho interior, sua insatisfação consigo, seu sofrimento, a aspiração ao bem, a docilidade, o amor, o autossacrifício — tudo brilhava agora naqueles olhos radiantes, no sorriso sutil, em todos os traços de seu rosto meigo.

Rostóv percebia tudo isso de modo tão claro como se já conhecesse a vida dela inteira. Sentia que a criatura à sua frente era totalmente distinta e melhor do que todas as que havia conhecido até então, e sobretudo melhor do que ele mesmo.

A conversa foi a mais simples e trivial possível. Falaram sobre a guerra e, como todos, não puderam deixar de exagerar sua tristeza com aquele fato, falaram sobre o último encontro, e nesse ponto Nikolai tentou mudar de assunto, falaram da simpática governadora, sobre os familiares de Nikolai e da princesa Mária.

A princesa Mária não falou do irmão, desviou a conversa para outro tema assim que a tia começou a falar sobre Andrei. Era visível que ela podia falar fingidamente sobre os infortúnios da Rússia, mas seu irmão era um assunto demasiado próximo a seu coração, e ela não queria e não podia falar dele de modo leviano. Nikolai percebeu isso, assim como, com uma perspicácia de observação estranha a ele, percebia em geral todas as nuances da personalidade da princesa Mária, as quais só vinham confirmar sua convicção de que ela era uma criatura completamente única e extraordinária. Nikolai, exatamente da mesma forma que a princesa Mária, ficava vermelho e embaraçado quando alguém lhe falava sobre a princesa e até quando pensava nela, mas em sua presença sentia-se perfeitamente livre e falava não o que havia preparado de antemão, mas aquilo que lhe vinha à cabeça no momento, e sempre era algo pertinente.

Durante a breve visita de Nikolai, num momento de silêncio, como sempre acontece onde há crianças, Nikolai voltou-se para o pequeno filho do príncipe Andrei, acariciou-o e perguntou se queria ser um hussardo. Segurou o menino nos braços, pôs-se a sacudi-lo sobre os joelhos e virou-se para a princesa Mária. Um olhar doce, feliz e tímido acompanhava o menino querido nos braços do homem querido. Nikolai também percebeu aquele olhar e, como se tivesse entendido seu significado, ruborizou de prazer e começou a beijar o garoto com alegria e contentamento.

A princesa Mária não saía de casa por estar de luto, e Nikolai não julgava apropriado visitá-la; apesar disso a governadora deu seguimento à sua função de casamenteira, transmitiu a Nikolai o elogio que a princesa Mária fizera a seu respeito, e vice-versa, e insistiu em que Rostóv devia declarar-se à princesa Mária. Com esse fim, ela organizou um encontro entre os jovens na casa do arcipreste antes da missa.

Embora Rostóv dissesse à governadora que não faria nenhuma declaração à princesa Mária, prometeu ir.

Assim como em Tilsit Rostóv não se permitira duvidar de que era bom aquilo que todos julgavam ser bom, também agora, após uma breve mas sincera luta entre a tentativa de construir sua vida segundo a própria razão e a submissão obediente às circunstâncias, ele optou pela última e rendeu-se ao poder que o arrastava não sabia para onde e (ele sentia) de modo irresistível. Nikolai sabia que, depois de ter feito sua promessa a Sônia, declarar seu sentimento à princesa Mária seria o que ele chamava de uma infâmia. E sabia que jamais cometeria uma infâmia. Mas sabia também (e nem tanto sabia como sentia no fundo da alma) que, rendendo-se agora ao poder das circunstâncias e das pessoas que as governavam, ele não só não faria nada de ruim, como faria algo muito importante, mais importante do que qualquer outra coisa que havia feito na vida.

Depois do encontro com a princesa Mária, embora seu modo de vida permanecesse exteriormente o mesmo, todos os prazeres de antes perderam seu encanto, e ele pensava muitas vezes na princesa Mária; mas nunca pensava nela como pensava em todas as jovens, sem exceção, que encontrava na sociedade, nem com o entusiasmo com que ele, tempos antes e por muito tempo, havia pensado em Sônia. Como quase todos os rapazes honestos, Nikolai pensava em todas as jovens da sociedade como futuras esposas e, na imaginação, encaixava-as em todas as circunstâncias de uma vida conjugal: um roupão branco, a esposa junto ao samovar, uma carruagem de mulher, criancinhas, maman e papa, a relação das crianças com ela etc. etc., e tais imagens do futuro lhe davam prazer; mas, quando pensava na princesa Mária, com quem desejavam casá-lo, Nikolai não conseguia imaginar nada de uma futura vida conjugal. Quando tentava, o resultado era canhestro e falso. Ele apenas se sentia assustado.

VII

A terrível notícia da batalha de Borodinó, de nossas baixas em mortos e feridos, e a notícia ainda mais terrível da perda de Moscou foram recebidas em Voróniej em meados de setembro. A princesa Mária, que só soube do ferimento do irmão pelos jornais e não tinha nenhuma notícia precisa sobre ele, estava se preparando para partir em busca do príncipe Andrei, pelo que Nikolai tinha ouvido dizer (ele mesmo não se encontrara mais com ela).

Ao receber a notícia da batalha de Borodinó e do abandono de Moscou, Rostóv não experimentou desespero, raiva ou desejo de vingança e sentimentos semelhantes, mas em compensação tudo em Voróniej se tornou maçante, penoso, tudo parecia vergonhoso e opressivo. Todas as conversas que escutava lhe pareciam falsas; não sabia o que pensar de tudo aquilo e sentia que só quando voltasse ao regimento tudo ficaria claro de novo para ele. Apressou-se em concluir as aquisições dos cavalos e muitas vezes se irritava sem razão com seu criado e com seu sargento.

Alguns dias antes da partida de Rostóv, celebrou-se na catedral uma missa de ação de graças pela vitória alcançada pelas tropas russas, e Nikolai foi à cerimônia. Ficou um pouco atrás do governador e se manteve até o fim com ar de austeridade militar, enquanto refletia sobre os assuntos mais diversos. Quando a cerimônia terminou, a governadora o chamou.

— Você viu a princesa? — perguntou ela, apontando com a cabeça uma dama de preto que estava atrás do coro.

Nikolai reconheceu na mesma hora a princesa Mária, não tanto pelo seu perfil, que se distinguia embaixo do chapéu, mas pelo sentimento de cautela, medo e compaixão que o dominou de pronto. A princesa Mária, obviamente absorta nos próprios pensamentos, persignava-se pelas últimas vezes enquanto saía da igreja.

Nikolai fitou seu rosto com admiração. Era o mesmo rosto que vira antes, havia nele a mesma expressão simples de um sutil trabalho espiritual interior; mas agora estava iluminado de um modo totalmente distinto. Havia nele uma comovente expressão de tristeza, de prece e de esperança. Como acontecera antes com Nikolai em presença da princesa, ele, sem esperar a recomendação da governadora para ir ao encontro dela, sem perguntar a si mesmo se seria bom, apropriado, dirigir-se a ela ali na igreja, aproximou-se da princesa e lhe disse que tinha ouvido falar de seu desgosto e que compartilhava sua dor com toda a alma. Assim que ouviu a voz de Nikolai, uma luz radiosa acendeu no rosto da princesa, iluminando ao mesmo tempo sua tristeza e sua alegria.

— Eu só queria lhe dizer, princesa — falou Rostóv —, que, caso o príncipe Andrei Nikoláievitch não estivesse vivo, como ele é comandante de um regimento, o jornal teria noticiado imediatamente.

A princesa olhou para ele sem compreender suas palavras, mas alegrou-se com a expressão de compaixão que havia em seu rosto.

— E também que, pelos muitos casos de que tenho conhecimento, sei que um ferimento com estilhaços (nos jornais se falava em granada), quando não é mortal de imediato, se revela uma coisa muito ligeira — disse Nikolai. — É preciso esperar pelo melhor, e estou convencido de que...

A princesa Mária interrompeu-o.

— Ah, seria uma coisa terrí... — começou ela e, sem concluir por causa da emoção, com um gesto gracioso (como tudo o que fazia diante dele), inclinou a cabeça, lançou um olhar de gratidão para Nikolai e seguiu na direção da tia.

Naquela noite, Nikolai não foi visitar ninguém e ficou em casa a fim de acertar certas contas com os vendedores de cavalos. Quando terminou essa tarefa, já era tarde para ir a qualquer lugar, mas ainda era cedo para dormir, e Nikolai ficou andando de um lado para outro em seu quarto durante muito tempo, refletindo sobre sua vida, o que raramente acontecia com ele.

A princesa Mária produzira nele uma impressão agradável já em Smolensk. O fato de ter encontrado a princesa em tais circunstâncias e o fato de a mãe, certa vez, ter apontado justamente a princesa Mária como uma noiva rica levaram Nikolai a prestar uma atenção especial nela. Em Voróniej, por ocasião de sua visita, a impressão também foi não só agradável como forte. Nikolai ficou impressionado com a beleza moral, diferente, que notou na princesa dessa vez. No entanto ele se preparava para partir, e não passava pela sua cabeça a ideia de que iria lamentar deixar Voróniej e perder a chance de ver a princesa Mária. Mas o encontro com ela na igreja, naquele dia (Nikolai sentia isso), se cravara mais fundo em seu coração do que ele havia previsto, e mais fundo do que ele desejava, para a própria tranquilidade. O rosto pálido, fino, tristonho, o olhar radioso, os movimentos discretos, graciosos e acima de tudo o desgosto profundo e meigo que se exprimia em todas as suas feições o perturbavam e provocavam sua curiosidade. Nos homens, Rostóv não tolerava ver a expressão de uma vida espiritual superior (por esse motivo não gostava do príncipe Andrei), e desdenhosamente chamava isso de filosofia, devaneio; mas na princesa Mária, justamente por causa daquele desgosto que revelava toda a profundidade de um mundo espiritual alheio a Nikolai, ele sentia uma atração irresistível.

“Que moça formidável deve ser! Igual a um anjo!”, dizia consigo. “Por que não sou livre? Por que fui tão apressado com a Sônia?” E sem querer fazia uma comparação entre as duas: em uma a pobreza e na outra a riqueza daqueles dons espirituais que Nikolai não tinha e aos quais, por isso mesmo, ele dava um valor tão alto. Experimentou imaginar o que aconteceria se fosse livre. De que modo faria seu pedido de casamento e como ela viria a ser sua esposa? Não, ele não conseguia imaginar isso. Ficava assustado e não conseguia visualizar nenhuma imagem clara. Com Sônia, havia muito que já formara um quadro do futuro, e tudo era simples e claro, justamente porque tudo já tinha sido previsto e ele conhecia tudo o que existia em Sônia; mas com a princesa Mária era impossível imaginar uma vida futura, porque ele não a compreendia, só a amava.

Os devaneios sobre Sônia tinham algo de divertido, algo de jogo. Mas pensar na princesa Mária era sempre difícil e um pouco terrível.

“Como ela reza!”, lembrou Nikolai. “Era evidente que estava pondo toda a alma na prece. Sim, essa é a prece que remove montanhas, e estou convencido de que sua prece será atendida. Por que eu não rezo por aquilo de que preciso?”, lembrou Nikolai. “Do que preciso? De liberdade, de um rompimento com Sônia. Ela disse a verdade”, lembrou-se das palavras da governadora. “O que vou conseguir casando com Sônia é apenas gerar infelicidade. A confusão, a mágoa de maman... o dinheiro... a confusão, uma confusão terrível! E eu nem a amo. Sim, eu não a amo como é preciso. Meu Deus! Livre-me desta situação horrível, sem saída!”, começou a rezar de repente. “Sim, a prece remove montanhas, mas é preciso acreditar, e não rezar como fazíamos eu e Natacha quando éramos crianças e rezávamos para que a neve virasse açúcar e depois saíamos correndo para fora de casa a fim de provar e ver se a neve tinha virado açúcar. Não, agora eu não estou rezando por essas besteiras”, disse ele, colocou de lado o cachimbo e, de mãos juntas, postou-se diante de um ícone. Enternecido com a lembrança da princesa Mária, começou a rezar como havia muito tempo não fazia. Tinha lágrimas nos olhos e na garganta, quando Lavruchka chegou à porta com alguns papéis.

— Idiota! Por que entra assim, se ninguém chamou? — disse Nikolai, rapidamente mudando de posição.

— Da parte do governador — disse Lavruchka, com voz sonolenta. — Chegou o correio e tinha carta para o senhor.

— Está bem, obrigado, agora vá embora!

Nikolai pegou duas cartas. Uma era da mãe, a outra, de Sônia. Reconheceu as duas pela letra e abriu primeiro a carta de Sônia. Mal leu algumas linhas, seu rosto empalideceu, e seus olhos se arregalaram de susto e de alegria.

— Não, não é possível! — exclamou em voz alta. Incapaz de continuar sentado onde estava, pôs-se a andar pelo quarto com a carta nas mãos, lendo-a. Correu os olhos pela carta, depois leu-a até o fim outra vez, mais uma e, de ombros erguidos e braços abertos, parou no meio do quarto, de boca aberta e olhos vidrados. Aquilo pelo qual tinha acabado de rezar, com a confiança em que Deus atenderia sua prece, havia se realizado; mas Nikolai estava espantado como se aquilo fosse algo extraordinário, como se jamais contasse com algo assim e como se justamente o fato de aquilo se realizar tão rapidamente comprovasse que não vinha de Deus, a quem tinha pedido, mas de uma coincidência banal.

O que parecia um nó impossível de desfazer, e que amarrava a liberdade de Nikolai, foi desfeito com aquela carta de Sônia, inesperada (assim parecia a Nikolai) e que nada havia provocado. Ela escrevia que as últimas circunstâncias infelizes, a perda de quase todos os bens dos Rostóv em Moscou, o desejo da condessa, manifestado muitas vezes, de que Nikolai casasse com a princesa Bolkónskaia, e o silêncio e a frieza de Nikolai nos últimos tempos — tudo isso somado a obrigava a decidir pelo cancelamento da promessa dele e a lhe dar plena liberdade.

“Seria muito penoso para mim pensar que posso ser uma causa de desgosto e de discórdia na família que me fez tanto bem”, escreveu ela, “e meu amor tem por único propósito a felicidade daqueles a quem amo; por isso imploro ao senhor, Nicolas, que se considere livre e saiba que, apesar de tudo, ninguém pode amá-lo com mais força do que sua Sônia.”

As duas cartas vinham de Tróitsa. A outra carta era da condessa. Na carta, descrevia os últimos dias em Moscou, a partida, o incêndio e a destruição de todo o patrimônio. Na carta, entre outras coisas, a condessa contava que o príncipe Andrei estava entre os feridos que viajavam junto com eles. Seu estado era muito grave, mas agora o médico dizia haver mais esperança. Sônia e Natacha, como enfermeiras, estavam cuidando dele.

No dia seguinte, com aquela carta, Nikolai foi ao encontro da princesa Mária. Nem Nikolai nem a princesa Mária disseram nenhuma palavra sobre o que poderiam significar as palavras “Natacha está cuidando dele”; mas graças àquela carta Nikolai de repente se aproximou da princesa numa relação quase familiar.

No dia seguinte, Rostóv acompanhou a princesa até Iaroslavl e, dias depois, ele mesmo partiu de volta para o seu regimento.

VIII

A carta de Sônia para Nikolai, que realizou o que ele pedira em sua prece, foi escrita em Tróitsa. O motivo da carta foi o seguinte. A ideia do casamento de Nikolai com uma noiva rica dominava cada vez mais a velha condessa. Ela sabia que Sônia era a principal barreira para isso. E a vida de Sônia na casa da condessa tornara-se cada vez mais penosa ultimamente, sobretudo após a carta de Nikolai que descrevia seu encontro com a princesa Mária em Bogutchárovo. A condessa não perdia uma única chance de lançar a Sônia um insulto ou alguma alusão cruel.

Porém, alguns dias antes da partida de Moscou, transtornada e nervosa com tudo o que se passava, a condessa chamou Sônia a seu quarto e, em vez de acusações e cobranças, com lágrimas nos olhos, dirigiu a ela uma súplica para que fizesse um sacrifício e rompesse sua ligação com Nikolai, pagando desse modo tudo o que tinha sido feito por ela.

— Não ficarei tranquila enquanto você não fizer essa promessa.

Sônia desatou a chorar histericamente, respondeu entre soluços que faria tudo, que estava pronta a fazer qualquer coisa, mas não fez uma promessa direta e, em seu íntimo, não conseguia se decidir quanto àquilo que dela exigiam. Era preciso se sacrificar pela felicidade da família que a havia criado e educado. Sacrificar-se pela felicidade dos outros era um hábito de Sônia. Sua posição na casa era tal que só no caminho do sacrifício ela podia demonstrar sua dignidade, estava habituada a isso e gostava de se sacrificar. Mas antes, em todas as ações de autossacrifício, ela reconhecia com alegria que, ao sacrificar-se, aumentava seu próprio valor aos seus olhos e aos olhos dos outros e se tornava cada vez mais digna de Nicolas, que ela amava mais que tudo na vida; mas agora seu sacrifício tinha de consistir em abrir mão daquilo que representava o prêmio por todos os sacrifícios e todo o sentido da vida. Pela primeira vez, Sônia sentiu-se amargurada com aquelas pessoas, que tinham feito tanto bem para ela apenas para martirizá-la de modo ainda mais doloroso; sentiu inveja de Natacha, que nunca havia experimentado nada semelhante, nunca tivera de fazer sacrifícios, antes obrigava os outros a sacrificar-se, e mesmo assim era adorada por todos. Pela primeira vez Sônia sentiu que, do seu amor puro, sereno, por Nicolas, de repente começara a crescer um sentimento impetuoso, que estava acima dos princípios, da virtude e da religião; e, sob o efeito de tal sentimento, Sônia, cuja vida dependente dos outros lhe ensinara a arte da discrição, depois de responder à condessa involuntariamente em termos gerais e indefinidos, passou a evitar conversas com ela e resolveu aguardar um encontro com Nikolai, não para liberá-lo, mas, ao contrário, para unir-se a ele para sempre.

As agruras e o horror dos últimos dias que os Rostóv passaram em Moscou sufocaram em Sônia os pensamentos sombrios que a oprimiam. Alegrava-se de encontrar nas questões práticas um alívio para eles. Mas, quando soube da presença do príncipe Andrei em sua casa, apesar de toda a sincera compaixão que sentia por ele e por Natacha, o sentimento alegre e supersticioso de que Deus não queria que ela fosse separada de Nicolas dominou-a. Sônia sabia que Natacha amara apenas o príncipe Andrei e que continuava a amá-lo. Sabia que agora, reunidos em circunstâncias tão terríveis, iriam se apaixonar outra vez, e assim, por causa do parentesco entre o príncipe Andrei e a princesa Mária, Nikolai não poderia se casar com ela. Apesar do horror de tudo aquilo que havia se passado nos últimos dias e também durante os primeiros dias da viagem, aquele sentimento, aquela consciência de uma intervenção da Providência em seus assuntos pessoais alegraram Sônia.

No convento de Tróitsa, os Rostóv fizeram a primeira parada de um dia em sua viagem.

Na hospedaria do convento, os Rostóv ocuparam três quartos grandes, um dos quais ficou para o príncipe Andrei. Naquele dia, o ferido estava muito melhor. Natacha estava com ele. No quarto vizinho estavam o conde e a condessa, conversando respeitosamente com o superior do convento, que viera visitar seus antigos conhecidos e benfeitores. Sônia estava ali também, atormentada pela curiosidade sobre o que Natacha e o príncipe Andrei estariam conversando. Através da porta, ela escutava o som da voz deles. A porta do quarto do príncipe Andrei se abriu. Natacha saiu com o rosto emocionado, e sem notar o monge que se levantou e, arregaçando um pouco a manga muito larga, moveu a mão direita na direção dela, foi ao encontro de Sônia e segurou sua mão.

— Natacha, o que foi? Venha cá — disse a condessa.

Natacha aproximou-se para receber a bênção do monge, e o superior recomendou que pedisse a ajuda de Deus e do santo padroeiro do convento.

Logo depois da saída do superior, Natacha segurou a mão da amiga e foi com ela para um cômodo vazio.

— Sônia, será possível? Será que ele vai continuar vivo? — disse ela. — Sônia, como estou feliz e como estou infeliz! Sônia, querida... tudo é como antigamente. É só ele continuar vivo. Ele não pode... porque, porque... — E Natacha desatou a chorar.

— Pronto! Eu sabia disso! Graças a Deus — exclamou Sônia. — Ele vai viver!

Sônia estava tão emocionada quanto a amiga — com seu terror e sua amargura, e com seus pensamentos íntimos, que não revelara a ninguém. Alegre, Sônia beijava e consolava Natacha. “Tomara que continue vivo!”, pensava ela. Depois de chorar, conversar e enxugar as lágrimas, as duas amigas foram até a porta do quarto do príncipe Andrei. Natacha abriu a porta com cuidado e olhou para dentro. A seu lado, Sônia ficou junto à porta entreaberta.

O príncipe Andrei estava deitado, o peito erguido, recostado em três travesseiros. Seu rosto pálido estava sereno, os olhos fechados, e via-se que ele respirava ritmadamente.

— Ah, Natacha! — quase gritou Sônia de repente, agarrando o braço da prima e recuando da porta.

— O que foi? O que foi? — perguntou Natacha.

— É aquilo, é aquilo, lembra?... — disse Sônia, com o rosto pálido e a voz trêmula

Natacha fechou a porta sem fazer barulho e foi com Sônia até a janela, ainda sem entender do que ela estava falando.

— Não lembra — disse Sônia com o rosto assustado e muito sério —, não lembra quando olhei para você no espelho, para ver o futuro?... Em Otrádnoie, no Natal... Lembra o que eu vi?...

— Sim, sim! — disse Natacha, arregalando os olhos e lembrando vagamente que, na ocasião, Sônia tinha dito algo sobre o príncipe Andrei, que ela vira deitado.

— Lembra? — prosseguiu Sônia. — Naquela hora eu vi e contei a todos, a você, à Duniacha. Eu vi que ele estava deitado numa cama — disse ela, e a cada detalhe que acrescentava fazia um gesto com a mão e erguia um dedo —, e que ele tinha fechado os olhos, e que ele tinha um cobertor cor-de-rosa, e que estava com as mãos cruzadas — disse Sônia e, à medida que descrevia os pormenores vistos por ela agora, convencia-se de que eram os mesmos que tinha visto naquele dia.

Naquele dia, Sônia não tinha visto nada, mas contou o que lhe veio à cabeça; porém aquilo que imaginou naquele dia lhe parecia tão real quanto qualquer outra recordação. Do que ela havia contado naquele dia — que ele se virou para ela, sorriu e que estava coberto por algo vermelho —, Sônia não só se lembrava, como estava firmemente convencida de que ela tinha visto e contado, naquele dia, que ele estava coberto por algo cor-de-rosa, exatamente um cobertor cor-de-rosa, e que ele estava de olhos fechados.

— Sim, sim, era exatamente isso, cor-de-rosa — disse Natacha, que também agora, ao que parecia, lembrava que Sônia tinha dito cor-de-rosa, e exatamente nisso ela via algo extraordinário e da maior importância.

— Mas o que isso quer dizer? — perguntou Natacha, com ar pensativo.

— Ah, não sei, puxa, como tudo isso é extraordinário! — disse Sônia, segurando a cabeça.

Após alguns minutos, o príncipe Andrei chamou, e Natacha foi até ele; e Sônia, experimentando uma agitação e uma ternura que raramente experimentava, ficou junto à janela, refletindo sobre aquelas circunstâncias extraordinárias.

Naquele dia houve a chance de mandar cartas para o exército, e a condessa escreveu uma carta para o filho.

— Sônia — disse a condessa, levantando a cabeça, que estava voltada para a carta, quando a sobrinha passou por ela. — Sônia, você não vai escrever para Nikólienka? — perguntou a condessa em voz baixa e trêmula, e pela expressão de seus olhos cansados que fitavam através dos óculos Sônia entendeu tudo o que a condessa queria dizer com tais palavras. Naquele olhar se exprimia uma súplica, o pavor de uma recusa, a vergonha de ser preciso pedir e a disposição de um ódio implacável, no caso de uma recusa.

Sônia aproximou-se da condessa e, pondo-se de joelhos, beijou sua mão.

— Vou escrever, maman — disse ela.

Sônia estava dócil, comovida e submissa devido a tudo o que havia ocorrido naquele dia, em especial devido à misteriosa concretização da profecia que tinha acabado de presenciar. Agora que ela sabia que, por causa da retomada das relações entre Natacha e o príncipe Andrei, Nikolai não podia casar com a princesa Mária, Sônia sentia com alegria o retorno de seu espírito de autossacrifício, com que estava habituada e gostava de viver. Com lágrimas nos olhos e com a alegria da consciência de estar praticando uma ação generosa, rompendo várias vezes em lágrimas, que turvavam seus olhos negros e aveludados, ela escreveu a carta cujo recebimento deixou Nikolai tão impressionado.

IX

No corpo da guarda, para onde Pierre fora levado, o oficial e os soldados que o prenderam tratavam-no com hostilidade, mas ao mesmo tempo com respeito. Com relação a Pierre, ainda havia neles certa dúvida sobre quem ele podia ser (talvez fosse alguém muito importante), e havia também uma hostilidade por causa da luta corporal que travara contra eles, ainda fresca em sua memória.

Mas quando, na manhã do dia seguinte, houve a troca de guarda, Pierre sentiu que para a nova guarda — o oficial e os soldados — ele já não tinha o mesmo significado que tinha para aqueles que o haviam prendido. E, de fato, naquele homem gordo e grande, de cafetã de mujique, os guardas do dia seguinte já não enxergavam o homem vivo que havia lutado tão bravamente com os saqueadores e com os soldados da escolta e que dissera uma frase solene a respeito da criança que salvara, mas viam apenas o décimo sétimo dos prisioneiros russos capturados por algum motivo, por ordem do alto-comando. Se havia algo especial em Pierre era apenas seu aspecto tímido, concentrado e pensativo, e a língua francesa que ele, para admiração dos franceses, falava muito bem. Apesar disso, naquele mesmo dia, Pierre foi levado para junto de outros suspeitos capturados, pois o quarto que ele ocupava foi requisitado por um oficial.

Todos os russos que estavam presos junto com Pierre eram pessoas de classe social inferior. E todos eles, cientes de que Pierre era um nobre, mantinham distância, ainda mais porque falava francês. Com tristeza, Pierre ouvia zombarias a seu respeito.

No dia seguinte, à tarde, Pierre soube que todos aqueles presos (e provavelmente ele também) seriam julgados como incendiários. No outro dia, levaram Pierre e os demais a uma casa onde estavam um general francês de bigode branco, dois coronéis e outros franceses com echarpes enroladas nas mãos. Pierre e os demais foram interrogados com a precisão e a minúcia habituais no trato com os suspeitos e que, supostamente, se destinam a vencer as fraquezas humanas; perguntaram a cada um quem era, de onde vinha, que objetivo tinha etc.

Tais perguntas, que deixavam de lado o essencial do caso vivido e excluíam toda possibilidade de revelação daquilo que era o essencial, a exemplo de todas as perguntas feitas nos julgamentos, não tinham outro objetivo que não o de formar um canal por onde os juízes desejavam que corressem as respostas do acusado e que, desse modo, o levaria ao fim desejado, a saber, a condenação. Assim que Pierre começava a falar algo que não satisfazia o objetivo da condenação, fechavam o canal, e a água podia correr para onde bem entendesse. Além disso, Pierre também experimentava aquilo que todos os acusados experimentam nos tribunais: uma perplexidade quanto ao motivo por que lhe faziam todas aquelas perguntas. Tinha a sensação de que era só por complacência ou cortesia que empregavam aquela astúcia de formar um canal. Sabia que estava sob o poder daquelas pessoas, que só o poder o trouxera ali, que só o poder dava a eles o direito de exigir respostas para as perguntas, que o único objetivo daquela assembleia era condená-lo. Por isso, como havia o poder e o desejo de condenar, não havia necessidade nem da astúcia das perguntas, nem do tribunal. Era evidente que todas as respostas tinham de servir à condenação. Mas, quando lhe perguntaram o que estava fazendo quando foi preso, Pierre respondeu, com um toque trágico, que estava levando para os pais uma criança qu’il avait sauvé des flammes.41 E por que ele havia brigado com os saqueadores? Pierre respondeu que fora defender uma mulher, que a defesa de uma mulher maltratada é dever de todo homem, que... Mandaram que parasse de falar: isso não tinha a ver com o assunto. Por que estava no pátio de uma casa em chamas, onde fora visto por testemunhas? Ele respondeu que tinha ido ver o que estava acontecendo em Moscou. Outra vez, mandaram que parasse de falar: não lhe perguntaram para onde ia, mas por que se encontrava junto a um incêndio. Quem era ele?, repetiram a primeira pergunta, à qual tinha dito que não queria responder. De novo respondeu que não podia falar daquilo.

— Que fique registrado, isso é ruim. Muito ruim — disse-lhe em tom severo o general de bigode branco e cara vermelha, corada.

No quarto dia, começaram os incêndios na muralha de Zúbov.

Pierre e mais treze prisioneiros foram levados ao vau da Crimeia,42 para a cocheira da casa de um comerciante. Ao passar pelas ruas, Pierre sufocava com a fumaça que parecia pairar sobre a cidade inteira. Viam-se incêndios em várias direções. Pierre não compreendia ainda o significado de Moscou estar em chamas e, com horror, olhava para os incêndios.

Pierre passou mais quatro dias na cocheira da casa no vau da Crimeia e, ao longo desses dias, em conversas com os soldados franceses, soube que todos os presos ali estavam aguardando, para qualquer dia, uma decisão do marechal. Que marechal, Pierre não conseguiu saber dos soldados. Para os soldados, era evidente que o marechal representava um escalão de poder supremo e um tanto misterioso.

Aqueles primeiros dias, até 8 de setembro — dia em que levaram os prisioneiros para um segundo interrogatório —, foram os mais árduos para Pierre.

X

No dia 8 de setembro, na cocheira onde estavam os prisioneiros, entrou um oficial muito importante, a julgar pelo respeito com que os guardas se dirigiam a ele. O oficial, provavelmente do Estado-Maior, com uma lista de nomes nas mãos, procedeu a uma chamada de todos os russos, chamando Pierre de celui qui n’avoue pas son nom.43 E, depois de lançar um olhar indiferente e descuidado a todos os prisioneiros, ordenou ao oficial da guarda que vestisse e arrumasse todos de modo conveniente, antes de serem conduzidos ao marechal. Uma hora depois chegou um pelotão de soldados, e Pierre e os outros treze foram levados para o Campo da Virgem.44 O dia estava claro e ensolarado depois da chuva, e o ar estava extraordinariamente limpo. A fumaça não pairava baixo, como no dia em que levaram Pierre do corpo da guarda na muralha de Zúbov; a fumaça subia em colunas no ar limpo. Não se via o fogo dos incêndios em lugar nenhum, mas colunas de fumaça se erguiam de todos os lados, e Moscou inteira, tudo o que Pierre conseguia avistar, era uma só montanha de cinzas. De todos os lados, viam-se ruínas, com fornos e chaminés que continuavam em pé, e raramente paredes queimadas nas casas de pedra. Pierre observava as ruínas e não reconhecia locais da cidade que conhecia bem. Aqui e ali, viam-se igrejas que tinham sobrevivido. O Krêmlin, que se mantinha intacto, branquejava ao longe com suas torres e o campanário de Ivan, o Grande. Perto, brilhava a cúpula do monastério Novodiévitchi, cujo sino particularmente sonoro se ouvia tocar. O toque do sino fez Pierre lembrar que era domingo, dia da Natividade da Virgem. Mas pelo visto ninguém queria comemorar aquele dia de festa: em toda parte havia ruínas calcinadas e, do povo russo, só se encontrava de vez em quando pessoas assustadas, em andrajos, que se escondiam quando avistavam os franceses.

Era óbvio que o ninho russo fora destruído e aniquilado; mas, a par da destruição da ordem da vida russa, Pierre sentia de forma inconsciente que, por cima do ninho destruído, se estabelecia uma ordem francesa, bem diferente, porém firme. Sentia isso no rosto dos soldados, que caminhavam alegres e animados, em fileiras retas, enquanto escoltavam Pierre e os outros criminosos; sentia isso no aspecto de um importante funcionário francês que veio em sua direção numa carruagem puxada por uma parelha e guiada por um soldado. Pierre sentia isso nos sons alegres da música militar que vinha do lado esquerdo do campo e, sobretudo, sentia e entendia isso na lista que, naquela manhã, o oficial francês viera ler ao fazer a chamada dos prisioneiros. Pierre fora preso por um grupo de soldados, fora levado para lá e para cá com dezenas de outras pessoas; parecia que podiam esquecer-se dele, confundi-lo com outros. Mas não: as respostas que dera ao interrogatório voltaram para Pierre na forma da denominação: celui qui n’avoue pas son nom. E, sob tal denominação, terrível para Pierre, levavam-no agora para algum lugar, com a convicção incontestável, estampada em seus rostos, de que Pierre e todos os demais prisioneiros eram exatamente aqueles que eram necessários e de que os levavam para onde era necessário. Pierre sentia-se uma lasca insignificante que caíra nas rodas de uma máquina desconhecida para ele, mas que trabalhava com eficácia.

Pierre e os outros criminosos foram levados para o lado direito do Campo da Virgem, não longe do mosteiro, para uma casa grande e branca, com um jardim imenso. Era a casa do príncipe Cherbátov, onde Pierre estivera muitas vezes em visita ao dono da casa e onde agora, como soube pela conversa dos soldados, se alojava o marechal, o duque de Eckmühl.45

Levaram-nos à varanda e introduziram um por um pela porta da casa. Pierre foi o sexto a entrar. Através da galeria envidraçada, do vestíbulo, da antessala, bem conhecidos de Pierre, levaram-no até o escritório comprido e de teto baixo, à porta do qual estava um ajudante de ordens.

Davout estava sentado no fim do cômodo, diante de uma mesa, com os óculos no nariz. Pierre foi até bem perto dele. Davout, sem erguer os olhos, visivelmente tentava decifrar um documento que estava na sua frente. Sem erguer os olhos, perguntou em voz baixa:

— Qui êtes-vous? 46

Pierre ficou calado, porque não tinha forças para falar. Para Pierre, Davout não era um simples general francês: para Pierre, Davout era um homem famoso por sua crueldade. Enquanto fitava o rosto frio de Davout, que, como um professor severo, aceitava esperar a resposta com paciência até determinado momento, Pierre sentia que cada segundo de demora podia custar sua vida; mas não sabia o que dizer. Falar o mesmo que havia falado no primeiro interrogatório, ele não conseguia; revelar sua classe e posição social era temerário e vergonhoso. Pierre ficou calado. Mas, antes que Pierre pudesse tomar alguma decisão, Davout levantou a cabeça, ergueu os óculos até a testa, entrecerrou os olhos e observou Pierre com atenção.

— Eu conheço esse homem — disse ele com voz fria, medida, obviamente calculada para assustar Pierre. O frio que antes estava correndo pelas costas de Pierre agarrou sua cabeça como uma tenaz.

— Mon général, vous ne pouvez pas me connaître, je ne vous ai jamais vu...47

— C’est un espion russe 48 — interrompeu Davout, voltando-se para outro general que estava no escritório e que Pierre não havia notado. E Davout lhe deu as costas. Com um inesperado rugido na voz, Pierre de repente começou a falar.

— Non, monseigneur — disse ele, lembrando de modo inesperado que Davout era duque. — Non, monseigneur, vous n’avez pas pu me connaître. Je suis un officier militionnaire et je n’ai pas quitté Moscou.49

— Votre nom? 50 — repetiu Davout.

— Besouhoff.

— Qu’est-ce qui me prouvera que vous ne mentez pas?51

— Monseigneur! — exclamou Pierre, não com voz ofendida, mas de súplica.

Davout ergueu os olhos e observou Pierre fixamente. Durante alguns segundos, os dois se fitaram um ao outro, e aquele olhar salvou Pierre. Naquele olhar, alheio a todas as circunstâncias da guerra e do julgamento, estabeleceram-se relações humanas entre aquelas duas pessoas. Naquele único minuto, os dois pressentiram vagamente uma enorme quantidade de coisas e entenderam que os dois eram filhos da humanidade e que eram irmãos.

No primeiro olhar de Davout, que mal havia levantado os olhos de sua lista, onde questões humanas e a vida eram designadas por números, Pierre não passava de uma circunstância; e Davout poderia dar um tiro nele sem o menor peso na consciência; mas agora já via em Pierre um homem. Refletiu um pouco.

— Comment me prouverez-vous la vérité de ce que vous me dites?52 — perguntou Davout com frieza.

Pierre lembrou-se de Ramballe e mencionou seu nome, seu regimento e a rua onde ficava a casa.

— Vous n’êtes pas ce que vous dites 53 — falou de novo Davout.

Com voz trêmula e entrecortada, Pierre passou a citar provas da veracidade de sua afirmação.

Mas naquele momento entrou um ajudante de ordens e comunicou algo para Davout.

Davout de repente ficou exultante com a notícia trazida pelo ajudante de ordens e começou a abotoar-se. Era evidente que se esquecera totalmente de Pierre.

Quando o ajudante de ordens o recordou do prisioneiro, Davout franziu as sobrancelhas, inclinou a cabeça na direção de Pierre e disse que o levassem. Mas para onde deviam levá-lo, Pierre não sabia: de volta para o pardieiro ou para o local preparado para as execuções, que seus camaradas lhe haviam mostrado, ao passarem pelo Campo da Virgem.

Ele virou a cabeça e viu que o ajudante de ordens estava perguntando algo outra vez.

— Oui, sans doute!54 — disse Davout, mas a que se referia o “sim” ele não sabia.

Mais tarde, Pierre não lembrava como e por quanto tempo havia caminhado pela rua, nem para onde tinha ido. Ele, num estado de completa inconsciência e estupor, sem nada ver à sua volta, movia as pernas junto com os outros, até que todos pararam, e ele se deteve. Durante todo o tempo, só havia um pensamento na cabeça de Pierre. Era o seguinte: afinal, quem, exatamente quem o condenara à morte? Não foram as pessoas que o interrogaram na comissão: entre elas, nenhuma queria e, estava claro, não podia fazer aquilo. Não fora Davout, que o havia olhado de forma tão humana. Mais um minuto e Davout teria compreendido que eles agiam mal, mas o ajudante de ordens, ao entrar, havia impedido que esse minuto chegasse. E estava claro que o ajudante de ordens não tinha feito aquilo com má intenção, mas também poderia não entrar. Afinal, quem foi que o condenara à morte, o assassinara, retirara sua vida — a vida de Pierre, com todas as suas memórias, aspirações, esperanças, pensamentos? Quem tinha feito aquilo? E Pierre sentiu que não havia sido ninguém.

Era um sistema, um acúmulo de circunstâncias.

Uma espécie de sistema estava assassinando a ele, Pierre — tomava dele a vida, tudo, e o aniquilava.

XI

Da casa do príncipe Cherbátov, levaram os prisioneiros direto para baixo, pelo Campo da Virgem, à esquerda do monastério Diévitchi, e seguiram rumo a uma horta, onde havia um poste fincado na terra. Atrás do poste tinha sido cavada uma vala grande, junto à qual havia um monte de terra recém-escavada, e perto da vala e do poste havia uma grande multidão, num semicírculo. A multidão era formada por um pequeno número de russos e por um grande número de soldados das tropas napoleônicas desmobilizadas: alemães, italianos e franceses em uniformes diferentes. À esquerda e à direita do poste, estavam perfiladas tropas francesas, de uniformes azuis, dragonas vermelhas, botas com perneiras e barretinas.

Os criminosos foram colocados em ordem, conforme a posição dos nomes na lista (Pierre era o sexto), e levados na direção do poste. De repente soaram alguns tambores dos dois lados, e com aquele som Pierre teve a sensação de que uma parte de sua alma lhe escapava. Ele perdeu a capacidade de pensar e de raciocinar. Só conseguia ver e ouvir. Só tinha um desejo — o desejo de que aquela coisa terrível se cumprisse o mais rápido possível e de que fosse feito o que tinha de ser feito. Pierre virou-se para seus camaradas e observou-os.

Os dois homens da ponta eram presidiários de cabeça raspada. Um, alto e magro; o outro, moreno, peludo, musculoso, de nariz achatado. O terceiro era um criado de uns quarenta e cinco anos, de cabelos grisalhos e corpo cheio, bem alimentado. O quarto era um mujique muito bonito com uma barba russa bem farta e olhos pretos. O quinto era um operário, amarelo, magro, pequeno, de uns dezoito anos, de túnica camponesa.

Pierre ouviu que os franceses discutiam sobre como deviam atirar — em um de cada vez ou dois a dois? “Dois a dois”, respondeu com frieza e calma o oficial mais graduado. Houve uma movimentação nas fileiras de soldados, e dava para notar que todos tinham pressa — e tinham pressa não como as pessoas se apressam para fazer algo que todos compreendem, e sim como quem tem pressa para terminar algo necessário, mas desagradável e inconcebível.

Um funcionário francês de echarpe se aproximou do lado direito da fila de criminosos e leu a sentença em francês e em russo.

Em seguida, dois pares de franceses aproximaram-se dos criminosos e, segundo a indicação do oficial, seguraram os dois presos que estavam na frente. Os presos pararam ao chegar ao poste e, enquanto sacos eram trazidos, eles olhavam em redor, como um animal ferido olha para o caçador que se aproxima. Um deles não parava de se benzer, o outro coçava as costas e fazia com os dentes movimentos semelhantes a um sorriso. Os soldados, com mãos afobadas, vendaram os olhos de ambos, cobriram a cabeça deles com os sacos e amarraram os dois no poste.

Doze atiradores com fuzis saíram das fileiras com passos medidos, firmes, e pararam a oito passos do poste. Pierre virou o rosto para não ver o que ia acontecer. De repente ouviram-se um estalo e um estrondo, que a Pierre pareceram mais altos do que os trovões mais tenebrosos, e ele voltou o rosto. Havia uma fumaça, e os franceses, com rosto pálido e mãos trêmulas, faziam algo perto da vala. Levaram outros dois. Da mesma forma, com os mesmos olhos, os dois olharam para todos, em vão, pedindo proteção em silêncio, só com os olhos, e obviamente sem entender nem acreditar no que ia acontecer. Não conseguiam acreditar porque só eles sabiam o que era sua vida para eles, e por isso não entendiam e não acreditavam que pessoas pudessem tirar sua vida.

Pierre não queria olhar e de novo virou o rosto; mas de novo uma espécie de explosão tremenda abalou seus ouvidos e, junto com aquele som, ele avistou a fumaça, o sangue de alguém e o rosto pálido e assustado dos franceses, que de novo faziam algo perto do poste, empurrando-se uns aos outros com mãos trêmulas. Pierre, com a respiração arquejante, olhou à sua volta, como que perguntando: o que é isso? A mesma pergunta estava em todos os olhares que cruzavam com o olhar de Pierre.

No rosto de todos os russos, no rosto dos soldados e oficiais franceses, em todos sem exceção, Pierre distinguia o mesmo alarme, o mesmo terror e a mesma luta que havia em seu coração. “Mas, afinal, quem está fazendo isso? Todos eles estão sofrendo como eu. Então, quem é? Quem?”, explodiu por um segundo na alma de Pierre.

— Tirailleurs du quatre-vingt-sixième, en avant!55 — gritou alguém.

Levaram o quinto, que estava ao lado de Pierre — só ele. Pierre não compreendeu que estava salvo, que ele e todos os restantes tinham sido levados ali só para presenciar a execução. Com um horror sempre crescente, sem sentir nem alegria nem alívio, Pierre olhava o que faziam. O quinto era o operário de túnica camponesa. Assim que o seguraram, o operário recuou horrorizado e agarrou-se em Pierre (Pierre se sacudiu e se desvencilhou dele). O operário não conseguia andar. Foi arrastado, preso pelas axilas, enquanto gritava alguma coisa. Quando chegaram ao poste, de repente ele se calou. Pareceu compreender algo, de repente. Compreendeu que era inútil gritar, ou que era impossível que pessoas o matassem, mas ficou junto ao poste, esperando que fosse vendado como os outros, e olhava à sua volta com olhos brilhantes, como um animal ferido.

Pierre já não conseguia se obrigar a virar o rosto e a fechar os olhos. Sua curiosidade e sua agitação, assim como de toda a multidão, diante daquele quinto assassinato, haviam chegado ao auge. A exemplo dos outros, o quinto parecia tranquilo: ajeitou a túnica junto ao corpo e coçou um pé descalço com o outro pé descalço.

Quando começaram a vendar seus olhos, ele mesmo ajeitou na nuca o nó que o estava machucando; depois, quando o encostaram no poste ensanguentado, ele se inclinou para trás e, como aquela posição era incômoda, ajeitou-se melhor, pôs os pés juntos e relaxou calmamente. Pierre não tirava os olhos dele, não perdia o menor movimento.

É quase certo que soou uma ordem, é quase certo que depois da ordem soaram tiros de oito fuzis. Mas Pierre, depois, por mais força que fizesse para lembrar, não ouvia o menor som de tiros. Só via que de repente, por algum motivo, soltavam o operário das cordas, aparecia sangue em dois lugares, e as mesmas cordas, por causa do peso do corpo mole, se desprendiam, e o operário caía sentado, com a cabeça abaixada de modo estranho e a perna dobrada. Pierre correu na direção do poste. Ninguém o conteve. Em torno do operário, pessoas assustadas, pálidas, faziam algo. O maxilar inferior de um francês velho e bigodudo tremeu quando ele retirou as cordas. O corpo caiu. Os soldados arrastaram-no às pressas e desajeitadamente para trás do poste e o jogaram na vala.

Era evidente que todos sabiam, sem sombra de dúvida, que eles eram criminosos e que precisavam esconder rapidamente os vestígios de seu crime.

Pierre lançou um olhar para a vala e viu que o operário jazia lá dentro com os joelhos virados para cima, perto da cabeça, e um ombro mais alto do que o outro. Aquele ombro levantava e abaixava em espasmos ritmados. Mas as pazadas de terra já se espalhavam sobre todo o corpo. Um dos soldados gritou para Pierre, com voz zangada, raivosa e doentia, para que ele voltasse. Mas Pierre não compreendia, continuava junto ao poste, e ninguém veio tirá-lo dali.

Quando a vala já estava toda cheia de terra, soou uma ordem. Levaram Pierre para seu lugar, e os soldados franceses que estavam em fileiras de ambos os lados do poste deram meia-volta e puseram-se a andar a passos ritmados, passando pelo poste. Os vinte e quatro atiradores que estavam no meio do círculo, com os fuzis descarregados, correram para ocupar seus lugares, enquanto as fileiras de soldados iam passando por eles.

Pierre observava agora com olhos apáticos aqueles atiradores que, aos pares, saíam correndo do círculo. Todos, exceto um, se integraram aos pelotões. Um soldado jovem com o rosto mortalmente pálido, a barretina de gala tombada para trás e o fuzil abaixado, continuava parado diante da vala, no mesmo lugar de onde havia atirado. Como um bêbado, ele cambaleava, dava alguns passos para a frente e outros para trás, em busca de um ponto de apoio para o corpo, à beira de cair. Um soldado velho, um sargento, saiu das fileiras, segurou o soldado jovem pelo ombro e puxou-o para o pelotão. A multidão de russos e de franceses começou a se dispersar. Todos caminhavam em silêncio, de cabeça baixa.

— Ça leur apprendra à incendier 56 — disse um dos franceses. Pierre virou-se para quem havia falado e viu que era um soldado que queria de alguma forma consolar-se do que tinha sido feito, mas não conseguia. Sem concluir o que havia começado a dizer, ele abanou a mão no ar e foi em frente.

XII

Depois da execução, separaram Pierre dos outros suspeitos e puseram-no sozinho numa igreja pequena, devastada e incendiada.

Pouco antes da noite, o sargento da guarda e dois soldados entraram na igreja e comunicaram a Pierre que ele fora absolvido e que agora ficaria nas barracas dos prisioneiros de guerra. Sem entender o que lhe diziam, Pierre levantou-se e foi com os soldados. Levaram-no para uns barracões na parte alta do campo, construídos de pranchas, tábuas e ripas queimadas, e o conduziram para dentro de um deles. No escuro, uns vinte homens, de diferentes povos, rodearam Pierre. Pierre olhava para eles sem entender quem eram aquelas pessoas, o que faziam ali e o que queriam dele. Ouvia as palavras que lhe diziam, mas não extraía delas nenhuma conclusão e nenhum nexo: não compreendia seu significado. Respondia ao que lhe perguntavam, mas não sabia nem para quem estava falando, nem como eles interpretavam suas respostas. Olhava para os rostos e para os vultos, e todos lhe pareciam igualmente sem sentido.

Desde o momento em que Pierre viu aquele terrível assassinato, cometido por pessoas que não queriam fazer aquilo, parecia que tinham arrancado de sua alma a mola que tudo sustentava e que fazia tudo parecer vivo, e tudo desmoronou, num absurdo amontoado de destroços. Embora Pierre não se desse conta, dentro dele tinha sido aniquilada a fé no aprimoramento do mundo, na humanidade, na sua própria alma e em Deus. Tal estado já fora experimentado antes por Pierre, mas nunca com tamanha força como agora. Antes, quando aquele tipo de dúvida ocorrera a Pierre, tais dúvidas tinham origem em sua própria culpa. E no fundo da alma Pierre sentiu, na ocasião, que a redenção daquele desespero e daquelas dúvidas estava dentro dele mesmo. Agora, porém, sentia que sua culpa não era a causa, que o mundo desmoronara diante de seus olhos e só restaram escombros sem sentido. Sentia que não estava em seu poder voltar a ter fé na vida.

À sua volta, no escuro, as pessoas estavam paradas: sem dúvida, algo nele lhes interessava muito. Contaram algo, perguntaram sobre alguma coisa, depois o levaram para algum lugar, e ele, afinal, se viu num canto do barracão, entre pessoas que falavam umas com as outras, de vários lados, e riam.

— Pois é, meus irmãos... aquele mesmo príncipe, que (com uma ênfase especial na palavra “que”)... — dizia uma voz no canto oposto do barracão.

Sentado sobre a palha, junto à parede, em silêncio e imóvel, Pierre ora fechava, ora abria os olhos. Mas, assim que fechava os olhos, via à sua frente o rosto terrível do operário, terrível acima de tudo por causa de sua simplicidade, e o rosto dos assassinos involuntários, ainda mais terríveis, por causa de sua angústia. E Pierre abria os olhos de novo e fitava, de maneira vazia, o escuro à sua volta.

A seu lado, inclinado, estava sentado um homem miúdo, cuja presença Pierre percebeu de início pelo cheiro forte de suor que dele se desprendia a cada movimento de seu corpo. Esse homem, no escuro, fazia algo com os pés, e, apesar de não enxergar seu rosto, Pierre sentia que o homem olhava fixamente para ele. Observando no escuro, Pierre entendeu que o homem estava tirando o sapato. E Pierre se interessou pela maneira como ele fazia aquilo.

Depois de soltar o cadarço que amarrava um pé, ele enrolou cuidadosamente os cadarços e logo passou a cuidar do outro pé, lançando um olhar para Pierre. Enquanto uma das mãos pendurava o cadarço, a outra mão já tratava de desenrolar o outro pé. Com movimentos circulares igualmente cuidadosos, ágeis, que se seguiam uns aos outros num ritmo contínuo, o homem se descalçou, pendurou o calçado num gancho cravado num ponto acima de sua cabeça, pegou um canivete, cortou alguma coisa, fechou o canivete, colocou embaixo da cabeceira da cama e, sentando-se mais comodamente, abraçou com os dois braços seus joelhos erguidos e fitou Pierre de frente. Pierre teve a sensação de algo agradável, tranquilizador e concentrado naqueles movimentos ágeis, na maneira confortável como ele se acomodou em seu canto e até no cheiro daquele homem, e Pierre o fitava, sem baixar os olhos.

— Tem visto muita desgraça na vida, não é, patrão? — falou de repente o homem miúdo. E na voz cantada do homem havia tal expressão de bondade e franqueza que Pierre quis responder, mas sua mandíbula começou a tremer, e ele sentiu as lágrimas. O homem miúdo, no mesmo instante, sem dar a Pierre tempo para exprimir sua perturbação, começou a falar com a mesma voz simpática. — Ah, meu amigo falcãozinho, não fique triste — disse ele, com a bondade cantada e carinhosa com que falam as velhas camponesas russas. — Não fique triste, amiguinho: uma hora para sofrer, cem anos para viver! Pois é, meu caro. E a gente vai vivendo aqui, graças a Deus, sem ofender ninguém. Nessa gente, também há pessoas boas e pessoas más — disse ele e, ainda falando, flexionou os joelhos com um movimento ágil, levantou-se e, tossindo, foi para algum lugar.

— Ei, seu vira-lata, está aí! — Pierre ouviu a mesma voz carinhosa, na ponta do barracão. — Está aí, seu vira-lata, lembra de mim, não é? Pronto, pronto, agora chega. — E o soldado, enxotando um cachorrinho que pulava nas pernas dele, voltou para seu lugar e sentou-se. Nas mãos, tinha algo enrolado num trapo.

— Tome, coma, patrão — disse ele, voltando ao tom respeitoso de antes, enquanto desenrolava e oferecia a Pierre algumas batatinhas assadas. — Teve sopa no almoço. E umas batatinhas boas demais!

Pierre tinha ficado o dia inteiro sem comer, e o cheiro da batata lhe pareceu extraordinariamente agradável. Agradeceu ao soldado e começou a comer.

— E aí, que tal? — disse o soldado, sorrindo, e pegou uma das batatinhas. — Tome aqui para você. — Pegou de novo o canivete, cortou a batatinha ao meio sobre a palma da mão, salpicou um pouco de sal, que estava enrolado no trapo, e ofereceu a Pierre. — Batatinhas boas demais — repetiu. — Tome, pegue mais um pouco.

Pierre teve a impressão de que jamais havia comido nada tão saboroso.

— Não, para mim isto aqui já está bom — disse Pierre. — Mas para que atiraram naqueles infelizes!... O último tinha uns vinte anos.

— Tsc, tsc... — disse o homem miúdo. — Que pecado, que pecado... — acrescentou depressa e, como se as palavras estivessem sempre prontas em sua boca e voassem dali espontaneamente, ele prosseguiu: — Mas, patrão, como aconteceu de o senhor ficar em Moscou?

— Eu não achava que eles fossem chegar tão depressa. Fiquei por acidente — disse Pierre.

— E como foi que prenderam você, falcãozinho? Na sua casa?

— Não, eu fui a um lugar que estava pegando fogo e ali me prenderam, me julgaram sob a acusação de ser incendiário.

— Onde tem julgamento, tem mentira — afirmou o homem miúdo.

— E você está aqui há muito tempo? — perguntou Pierre, terminando de mastigar a última batatinha.

— Eu? No domingo, me prenderam num hospital em Moscou.

— E quem é você, um soldado?

— Do regimento de Ápcheron. Estava morrendo de febre. Não disseram nada para a gente. Nós éramos uns vinte, todos de cama. E a gente nem imaginava, nem sonhava com nada disso.

— E é triste para você ficar aqui? — perguntou Pierre.

— Como é que não vai ser, meu amigo? Me chamam de Platon; o sobrenome é Karatáiev — acrescentou, obviamente a fim de facilitar a maneira de Pierre se dirigir a ele. — Na tropa, me chamavam de falcãozinho. Como é que não vou ficar triste, meu amigo? Moscou é a mãe das cidades. Como é que não vou ficar triste vendo uma coisa dessas? Mas a minhoca rói o repolho e acaba morrendo antes dele: assim falavam os antigos — acrescentou, depressa.

— Como é, como é que você disse? — perguntou Pierre.

— Eu? — perguntou Karatáiev. — Eu digo: o homem põe e Deus dispõe57 — disse ele, pensando que repetia o que tinha dito antes. E, logo em seguida, prosseguiu: — Mas e o senhor, patrão, tem terras, não é? E uma casa, não é? Na certa, a despensa bem cheinha, não é? E uma senhora também, não é? E os pais velhos estão vivos, não estão? — continuou perguntando, e, embora Pierre não enxergasse no escuro, sentia que o soldado franzia os lábios num contido sorriso de carinho, enquanto fazia aquelas perguntas. Sua tristeza foi evidente quando soube que Pierre não tinha pais, em especial que não tinha mãe. — Uma esposa para dar conselhos, uma sogra para desejar saúde, mas não tem nada igual à mãezinha querida da gente! — disse ele. — Bem, e filhos, não tem? — continuou a perguntar. A resposta negativa de Pierre obviamente o entristeceu outra vez, e ele acrescentou depressa: — Ora, são gente nova, Deus ainda há de permitir, vão vir, sim. É só viver no juízo...

— Mas agora tanto faz — disse Pierre, sem querer.

— Ah, você é um homem bom — retrucou Platon. — Na miséria e na prisão, nunca diga não. — Sentou-se melhor, tossiu, visivelmente se preparando para um relato comprido. — Pois é, meu caro amigo, eu antigamente morava numa casa boa — começou. — Uma propriedade rica, muita terra, os mujiques viviam bem, e nossa casa era de dar graças a Deus. O paizinho saía para ceifar junto com a gente. Todo mundo vivia bem. Éramos verdadeiros cristaneses.58 Mas aí aconteceu... — E Platon Karatáiev contou uma história comprida, que ele foi a uma floresta de outra pessoa para pegar lenha e foi apanhado por um vigia, contou que o chicotearam, julgaram e mandaram para o Exército.59 — Pois é, meu amigo — disse, e sua voz se modificou por causa do sorriso —, acharam que era um castigo, mas foi uma alegria! Se não fosse meu pecado, meu irmão é que teria ido para o Exército. E meu irmão caçula tem cinco filhos pequenos, enquanto eu, veja só, deixei só uma soldada, a minha mulher. A gente teve uma menina, mas Deus levou antes de eu virar soldado. Eu voltei uma vez, de licença, vou contar para você. Chego lá e vejo que estão vivendo melhor do que antes. O terreiro cheio de animais de criação, as mulheres em casa, dois irmãos fora, ganhando salário. Mikhail, o caçula, estava em casa. O paizinho vem e diz: “Para mim, todos os filhos são iguais: qualquer dedo mordido dói do mesmo jeito. E se não tivessem levado Platon, tinha ido o Mikhail”. Chamou todos nós, pode crer, pôs a gente diante de um ícone. “Ô Mikhail”, diz ele, “vem cá, se inclina aqui até o chão, e você também, mulher, e os netos também, vamos lá. Entenderam?”, ele disse. Pois é, meu caro amigo. O destino dá as cartas. E a gente fica julgando tudo: isso não é bom, aquilo não é direito. Nossa felicidade, amiguinho, é feito a água na rede do pescador: a gente puxa, a rede incha, mas quando a gente levanta, não tem nada. Pois é. — E Platon, sentado em cima da palha, mudou de posição.

Depois de ficar calado um pouco, levantou-se.

— Sabe, acho que vou dormir, não quer, não? — disse e logo começou a se benzer, enquanto dizia: — Nosso Senhor Jesus Cristo, São Nicolau abençoado, Frola e Lavra,60 Nosso Senhor Jesus Cristo, São Nicolau abençoado! Frola e Lavra, Nosso Senhor Jesus Cristo, nos perdoe e nos salve! — concluiu, curvou-se até o chão, levantou-se, deu um suspiro, sentou-se na palha. — Pronto, pois é. Deus, faça a gente dormir que nem uma pedra e acordar que nem um pão fresco — disse e deitou-se, esticando o capote por cima do corpo.

— Que prece foi essa que você fez? — perguntou Pierre.

— Ahn? — exclamou Platon (ele já estava dormindo). — Eu? Rezei para Deus. Ué, você não reza?

— Rezo, sim — disse Pierre. — Mas o que era aquilo que você falou: Frola e Lavra?

— Mas é claro — respondeu Platon depressa —, são os padroeiros dos cavalos. E a gente tem de ter pena dos bichos — disse Karatáiev. — Olhe só, o vira-lata ficou todo enroladinho. Está se esquentando, o filho de uma cadela — disse, apalpando o cachorro que estava aos seus pés; virou-se outra vez e dormiu imediatamente.

Lá fora, soavam gritos e lamentos ao longe e, através das fendas do barracão, via-se o fogo; mas dentro do barracão estava quente e tranquilo. Pierre ficou muito tempo acordado, deitado no escuro, de olhos abertos, no seu lugar, escutando o ronco ritmado de Platon, deitado perto dele, e sentia que o mundo, antes em escombros, agora se erguia na sua alma com uma beleza renovada e fundações novas e sólidas.

XIII

Dentro do barracão em que Pierre foi deixado e onde passou quatro semanas, estavam presos vinte e três soldados, três oficiais e dois funcionários públicos.

Depois, todos eles surgiam na memória de Pierre como que numa névoa, mas Platon Karatáiev permaneceu para sempre na alma de Pierre como uma recordação muito forte e preciosa e como a personificação de tudo o que é russo, bom e redondo. Quando, no dia seguinte, ao amanhecer, Pierre olhou para seu vizinho, a primeira impressão de algo redondo se confirmou inteiramente: toda a figura de Platon, em seu capote francês com uma corda amarrada na cintura, quepe e alpercatas de palha, era redonda, as costas, o peito, os ombros, até os braços, que ele mantinha sempre na posição de quem vai abraçar alguma coisa, eram redondos; o sorriso agradável e os olhos grandes, afetuosos e marrons eram redondos.

Platon Karatáiev devia ter uns cinquenta anos, a julgar por suas histórias sobre as campanhas militares de que havia participado como soldado veterano. Ele mesmo não sabia sua idade, e não havia meios de determinar quantos anos tinha; mas seus dentes brancos, brilhantes e fortes, que sobressaíam em dois semicírculos toda vez que ele ria (o que fazia muitas vezes), estavam todos bonitos e inteiros; não havia nem um fio de cabelo grisalho na barba nem na cabeça, e todo o seu corpo tinha um aspecto de flexibilidade e sobretudo de firmeza e resistência.

Seu rosto, apesar das pequenas rugas redondas, tinha uma expressão de inocência e juventude; sua voz era agradável e melodiosa. Mas a peculiaridade mais importante do seu modo de falar era a espontaneidade e a presteza. Era evidente que ele nunca pensava no que dizia e no que ia dizer; e por isso, na rapidez e na autenticidade de sua entonação, havia uma persuasão fora do comum e irresistível.

Seu vigor físico e sua agilidade nos primeiros tempos de prisão eram tais que ele dava a impressão de não saber o que eram o cansaço e a doença. Todos os dias, de manhã e de noite, ao deitar-se ele dizia: “Deus, faça a gente dormir que nem uma pedra e acordar que nem um pão fresco”; de manhã, ao levantar-se, contraía os ombros sempre do mesmo jeito e dizia: “Deitei, fiquei encolhido, acordei, fiquei erguido”. E, de fato, bastava deitar que logo estava dormindo como uma pedra, e bastava acordar que logo, sem perder um segundo, ia se ocupar de alguma tarefa, como as crianças que acordam e na mesma hora vão pegar seus brinquedos. Ele sabia fazer tudo, não muito bem, mas não de todo mal. Assava, cozinhava, costurava, aplainava madeira, remendava botas. Estava sempre ocupado e só à noite se permitia conversar, o que adorava fazer, e cantar. Cantava não como os cantores, que sabem que as pessoas estão escutando, mas como os pássaros, obviamente porque para ele era tão necessário emitir aqueles sons como é necessário espreguiçar-se ou andar para se aquecer; e aqueles sons eram sempre finos, meigos, quase femininos, tristonhos, e seu rosto nessas horas ficava muito sério.

Depois de ser feito prisioneiro e ter deixado a barba crescer, era visível que Platon tinha se desvencilhado de todos os hábitos impostos a um soldado, que lhe eram estranhos, e voltara aos seus costumes populares e camponeses de antes.

— O soldado de licença deixa a camisa para fora da calça — dizia ele. Falava com relutância de seus tempos de soldado, embora não se queixasse, e muitas vezes repetia que durante todo o tempo de serviço nunca havia sido surrado. Em seus relatos, de preferência, contava suas antigas e obviamente queridas recordações de “cristanês”, como ele denominava a vida camponesa. Os provérbios que enchiam sua fala não eram, na maioria, indecentes e grosseiros como os provérbios ditos pelos soldados, eram esses adágios populares que, tomados isoladamente, parecem insignificantes, mas que de repente, quando usados a propósito, ganham a importância de uma sabedoria profunda.

Muitas vezes ele dizia exatamente o contrário do que tinha dito antes, mas as duas coisas eram justas. Adorava falar e falava bem, enfeitando seu discurso com expressões afetivas e provérbios que, para Pierre, pareciam inventados pelo próprio Platon; mas o principal encanto de seus relatos residia em que, neles, as ações eram as mais simples possíveis, às vezes as mesmas coisas que Pierre via normalmente sem prestar atenção ganhavam o caráter solene de coisas veneráveis. Platon adorava escutar as lendas que um soldado contava à noite (sempre as mesmas), porém acima de tudo gostava de escutar histórias da vida real. Sorria com alegria ao ouvir tais histórias, interrompia e fazia perguntas destinadas a esclarecer para si mesmo o que havia de importante naquilo que lhe contavam. Afeições, amizades, amores, tal como Pierre os entendia, Karatáiev não tinha nada disso; mas amava e vivia amorosamente com tudo aquilo que a vida punha em seu caminho, em especial com as pessoas — não as pessoas já conhecidas, mas aquelas que por acaso estivessem na frente de seus olhos. Amava seu vira-lata, amava os camaradas, os franceses, amava Pierre, que era seu vizinho; mas Pierre sentia que Karatáiev, apesar de toda a sua ternura carinhosa por ele (por meio da qual, inconscientemente, fazia justiça à vida espiritual de Pierre), não ficaria triste nem por um minuto se os dois se separassem e fossem cada um para um lado. E Pierre começava a experimentar o mesmo sentimento em relação a Karatáiev.

Para todos os demais prisioneiros, Platon Karatáiev era um soldado absolutamente comum; chamavam-no de falcãozinho ou de Platocha, diziam-lhe gracejos amistosos, mandavam-no pegar encomendas. Mas para Pierre ele continuou sempre tal como lhe havia surgido na primeira noite, como uma incompreensível, redonda e eterna personificação do espírito da simplicidade e da verdade.

Platon Karatáiev não sabia nada de cor, a não ser suas orações. Quando falava, parecia começar sem saber como ia terminar.

Quando Pierre, às vezes abalado com o sentido de suas palavras, pedia para ele repetir, Platon não conseguia lembrar o que tinha dito um minuto antes — da mesma forma como não conseguia de jeito nenhum repetir para Pierre as palavras da letra de sua canção predileta. Dizia “minha betulazinha” e “estou com enjoo”, mas as palavras acabavam não fazendo nenhum sentido. Ele não entendia e não conseguia entender o significado das palavras tomadas separadamente da fala. Toda palavra e todo ato seu eram a manifestação de um processo que ele ignorava e que vinha a ser a sua vida. Mas sua vida, tal como ele mesmo a via, não tinha sentido como uma vida isolada. Só tinha significado como uma parte do todo, que ele sentia constantemente. Suas palavras e seus atos fluíam dele tal como o perfume sai da flor, direto, necessário e constante. Não conseguia entender o valor nem o sentido dos atos e das palavras tomados isoladamente.

XIV

Depois de receber de Nikolai a notícia de que seu irmão estava com os Rostóv, em Iaroslavl, a princesa Mária, apesar de a tia tentar dissuadi-la, na mesma hora começou a preparar-se para viajar, e ainda quis levar o sobrinho. Ela nem perguntou se era difícil ou fácil, possível ou impossível, não quis saber de nada: sua obrigação era não só estar ao lado do irmão, talvez moribundo, como também fazer todo o possível para levar o filho até ele, e a princesa Mária tratou dos preparativos para a viagem. Se o próprio príncipe Andrei não havia se comunicado com ela, isso significava, no entender da princesa Mária, que ele estava fraco demais para escrever, ou que considerava aquela longa viagem árdua e perigosa demais para ela e para o filho.

Em poucos dias, a princesa Mária estava pronta para partir. Seu comboio consistia numa enorme carruagem principesca, na qual ela havia chegado a Voróniej, carroças e carroções para as bagagens. Com ela, seguiram Mlle Bourienne, Nikóluchka com o preceptor, a velha babá, três criadas jovens, Tíkhon, um jovem lacaio e o heiduque, que a tia mandara com ela.

Nem se podia pensar em seguir pela estrada habitual para Moscou, e por isso o caminho tortuoso pelo qual a princesa Mária tinha de viajar — passando por Lípetsk, Riazan, Vladímir, Chúia — era muito longo, não tinha estações de muda de cavalos, sem falar que era muito árduo e, nas imediações de Riazan, onde diziam que havia franceses, era até perigoso.

Durante aquela viagem difícil, Mlle Bourienne, Dessalles e as criadas da princesa Mária ficaram admirados com sua firmeza de espírito e com sua atividade. Deitava-se depois de todos, levantava-se antes de todos, e nenhuma dificuldade conseguia detê-la. Graças à sua atividade e energia, que estimulavam seus acompanhantes, ao fim do segundo dia eles já estavam perto de Iaroslavl.

Nos últimos dias de sua estada em Voróniej, a princesa Mária havia experimentado a melhor felicidade de sua vida. Seu amor por Rostóv já não a atormentava, não a perturbava. Aquele amor enchia toda a sua alma, tornara-se parte inseparável dela mesma, e a princesa não lutava mais contra ele. Nos últimos dias, a princesa Mária se convencera — embora nunca dissesse isso para si mesma com palavras claras e definidas — de que era amada e amava. Convencera-se disso em seu último encontro com Nikolai, quando ele veio comunicar que seu irmão estava com os Rostóv. Nikolai não fez a menor alusão ao fato de que agora (no caso do restabelecimento do príncipe Andrei) as antigas relações entre ele e Natacha poderiam ser retomadas, mas a princesa Mária viu pelo seu rosto que ele sabia e pensava isso. E no entanto sua atitude para com ela — cautelosa, terna e amorosa — não só não se alterou, como às vezes a princesa Mária chegava a pensar que ele parecia até estar alegre, porque agora o parentesco entre ele e a princesa Mária lhe permitia exprimir mais livremente seu amor-amizade por ela. A princesa Mária sabia que estava amando pela primeira e última vez na vida e sentia que era amada, e estava feliz e tranquila naquela relação.

Mas essa felicidade apenas do lado espiritual não só não impedia que ela sentisse com toda a força o desgosto pela situação em que o irmão se encontrava, como, ao contrário, essa tranquilidade unilateral do espírito lhe dava a grande possibilidade de dar vazão a seus sentimentos pelo irmão. Tal sentimento era tão forte nos primeiros momentos de sua partida de Voróniej que quem passava por ela, ao ver seu rosto esgotado, desolado, se convencia de que ela ia adoecer durante a viagem; mas justamente as dificuldades e os afazeres da viagem, que a princesa enfrentou com tamanha energia, salvaram-na em pouco tempo de sua tristeza e lhe deram forças.

Como sempre acontece durante uma viagem, a princesa Mária só pensava na viagem, esquecida do seu objetivo. Porém, ao aproximar-se de Iaroslavl, quando se revelou novamente o que poderia estar à sua espera, e não mais num intervalo de muitos dias, e sim naquele mesmo fim de tarde, sua agitação chegou ao extremo.

Quando o heiduque, enviado na frente para Iaroslavl, a fim de saber onde estavam os Rostóv e em que situação se encontrava o príncipe Andrei, encontrou diante dos portões a grande carruagem, que estava chegando, ficou horrorizado ao ver a palidez terrível do rosto da princesa, que despontou da janela, voltando-se para ele.

— Já soube de tudo, senhora princesa: os Rostóv estão na praça, na casa do comerciante Brónnikov. Perto daqui, logo acima do Volga — disse o heiduque.

A princesa Mária fitou seu rosto com ar assustado e interrogativo, sem entender o que ele estava dizendo, sem entender por que não respondia à pergunta principal: e o irmão? Mlle Bourienne fez essa pergunta em lugar da princesa Mária.

— E o príncipe? — perguntou ela.

— Sua excelência está com eles, na mesma casa.

“Portanto ele está vivo”, pensou a princesa e perguntou em voz baixa:

— Como ele está?

— Os criados disseram que continua na mesma situação.

O que significava “continua na mesma situação” a princesa não se dispôs a perguntar e, com um imperceptível olhar de relance para Nikóluchka, de sete anos, que estava sentado à sua frente e se alegrava por estar numa cidade, ela baixou a cabeça e não a levantou até que a pesada carruagem, sacudindo e rangendo, parou em algum lugar. A escadinha estalou com força ao ser baixada.

As portinholas foram abertas. À esquerda, havia água — um rio grande; à direita, havia uma varanda; na varanda, havia pessoas, uma criada e uma jovem rosada com uma grande trança preta, que sorria de maneira forçada e desagradável, assim pareceu à princesa Mária (era Sônia). A princesa subiu depressa a escada, e a jovem que sorria de maneira forçada falou: “Por aqui! Por aqui!”. E a princesa se viu num vestíbulo, diante de uma velha com um rosto de tipo oriental, que veio ao seu encontro com expressão comovida. Era a condessa. Ela abraçou a princesa Mária e pôs-se a beijá-la.

— Mon enfant! — exclamou ela. — Je vous aime et vous connais depuis longtemps.61

Apesar de toda a emoção, a princesa Mária entendeu que era a condessa e que era preciso lhe dizer algo. Sem que ela mesma soubesse como, pronunciou também algumas palavras respeitosas em francês, no mesmo tom das palavras ditas a ela, e perguntou:

— Como está ele?

— O médico disse que não há perigo — respondeu a condessa, mas, ao mesmo tempo que dizia isso, ergueu os olhos com um suspiro, e nesse gesto havia uma expressão contrária a suas palavras.

— Onde ele está? Posso vê-lo, não posso? — perguntou a princesa.

— Agora mesmo, princesa, agora mesmo, minha amiga. Esse é o filho dele? — perguntou a condessa, voltando-se para Nikóluchka, que entrou com Dessalles. — Nós acomodamos todos eles, a casa é grande. Ah, mas que menino encantador!

A condessa conduziu a princesa até a sala. Sônia começou a conversar com Mlle Bourienne. A condessa acariciava o menino. O velho conde entrou e cumprimentou a princesa. O velho conde havia mudado extraordinariamente desde a última vez que a princesa o tinha visto. Antes, era um velhinho animado, alegre, seguro de si; agora, parecia uma pessoa desnorteada, de dar pena. Ao falar com a princesa, ele olhava para trás o tempo todo, como se perguntasse a todos se não estava fazendo algo inconveniente. Depois da destruição de Moscou e de seu patrimônio, expulso à força de seu círculo rotineiro, ele parecia haver perdido a consciência de sua importância e vivia com a sensação de que não tinha mais um lugar na vida.

Apesar da comoção em que se achava, apesar do desejo único de ver o irmão o mais depressa possível, e apesar do aborrecimento de, naquela hora em que tudo o que desejava era vê-lo, tomarem seu tempo e elogiarem seu sobrinho de modo forçado, a princesa notava tudo o que se passava à sua volta e sentia a necessidade de, por um tempo, submeter-se àquele novo estado de coisas em que ela fora parar. Sabia que tudo aquilo era necessário, e era penoso para ela, mas não ficou aborrecida com eles.

— Esta é minha sobrinha — disse o conde, apresentando Sônia. — A senhora princesa não a conhecia, não é?

A princesa virou-se para ela e, tentando sufocar um sentimento hostil que se ergueu em sua alma em relação àquela moça, beijou-a. Mas era penoso para ela o fato de o estado de ânimo de todos à sua volta ser algo tão distante do que ela trazia no espírito.

— Onde ele está? — perguntou de novo, dirigindo-se a todos.

— Está lá embaixo, Natacha está com ele — respondeu Sônia, ruborizando-se. — Foram avisar. A senhora princesa não está cansada?

Nos olhos da princesa surgiram lágrimas de desgosto. Ela se virou e quis perguntar de novo à condessa por onde devia ir para chegar até ele, quando na porta soaram passos leves, afoitos, que pareciam alegres. A princesa virou-se e viu Natacha, que entrou quase correndo, a mesma Natacha que, num encontro em Moscou muito tempo antes, havia deixado nela uma impressão tão desagradável.

Mas a princesa mal teve tempo de lançar um olhar para o rosto de Natacha e logo compreendeu que ela era sua sincera companheira de sofrimento e por isso sua amiga. Precipitou-se ao seu encontro, abraçou-a e começou a chorar no seu ombro.

Assim que Natacha, que estava sentada à cabeceira do príncipe Andrei, soube da chegada da princesa Mária, saiu do quarto sem fazer barulho, com aqueles passos ligeiros e também alegres, como pareciam à princesa Mária, e foi correndo ao seu encontro.

No rosto comovido de Natacha, quando entrou correndo na sala, havia uma só expressão — uma expressão de amor, de amor ilimitado por ele, por ela, por tudo aquilo que fosse próximo da pessoa amada, uma expressão de pena, de sofrimento pelos outros e de um desejo fervoroso de abrir mão de tudo para ajudá-lo. Era visível que, naquele momento, no espírito de Natacha, não havia nenhum pensamento a respeito de si mesma, nem de suas relações com o príncipe Andrei.

A perspicaz princesa Mária, ao primeiro olhar para o rosto de Natacha, havia compreendido tudo isso e, com um prazer aflitivo, chorava no ombro dela.

— Vamos lá, vamos falar com ele, Marie — disse Natacha, levando-a para outro cômodo.

A princesa Mária ergueu o rosto, enxugou os olhos e voltou-se para Natacha. Ela sentiu que, por meio de Natacha, iria entender e saber tudo.

— O que... — começou a perguntar, mas parou de repente. Sentiu que era impossível perguntar ou responder com palavras. O rosto e os olhos de Natacha na certa falavam tudo de modo mais claro e profundo.

Natacha fitou-a, mas pareceu ficar com medo e em dúvida: devia dizer ou não tudo o que sabia? Teve a impressão de que, diante daqueles olhos radiantes que penetravam no mais fundo de seu coração, era impossível não contar tudo, toda a verdade, tal como Natacha tinha visto. O lábio de Natacha de repente começou a tremer, rugas monstruosas se formaram em torno da boca e, rompendo em soluços, Natacha cobriu o rosto com as mãos.

A princesa Mária compreendeu tudo.

Mas, apesar disso, tinha esperança e perguntou com palavras nas quais não acreditava:

— Mas como está seu ferimento? Qual é seu estado geral?

— A senhora, a senhora... vai ver — mal conseguiu dizer Natacha.

As duas ficaram algum tempo ao lado do quarto do príncipe, no térreo, a fim de parar de chorar e poder entrar no quarto dele com o rosto calmo.

— Como a doença tem caminhado? Faz muito que piorou? Quando isso aconteceu? — perguntou a princesa Mária.

Natacha contou que no início havia o risco da febre e das dores, mas em Tróitsa aquilo havia passado, e o médico só temia uma coisa — o fogo de Antónov.62 Mas aquele risco tinha passado. Quando chegaram a Iaroslavl, a ferida começou a supurar (Natacha já conhecia tudo o que dizia respeito à supuração etc.), e o médico disse que a supuração podia melhorar. Veio a febre. O médico disse que aquela febre não era perigosa.

— Mas dois dias atrás — disse Natacha —, de repente, aconteceu isso... — Ela reprimiu o choro. — Não sei a causa, mas a senhora vai ver como ele está.

— Ficou fraco? Ficou magro?... — perguntou a princesa.

— Não, não é isso, mas é pior. A senhora vai ver. Ah, Marie, Marie, ele é bom demais, ele não pode, não pode viver... porque...

XV

Quando Natacha abriu a porta, com um gesto já habitual, e fez a princesa entrar na sua frente, a princesa Mária logo sentiu os soluços subirem na garganta. Por mais que tivesse se preparado, por mais que tentasse se acalmar, sabia que não teria forças para vê-lo sem chorar.

A princesa Mária entendeu o que significavam as palavras de Natacha: dois dias atrás, aconteceu isso. Entendeu que ela queria dizer que ele havia se acalmado de repente e que essa calma, essa serenidade, eram os sinais da morte. Ao se aproximar da porta, ela já via na imaginação o rosto do Andriucha que ela conhecera nos tempos de infância, meigo, dócil, sereno, mas que depois ele mostraria muito raramente e que por isso produzia um efeito tão forte sobre ela. Sabia que o irmão lhe diria palavras ternas, delicadas, como as que o pai lhe dissera diante da morte, e que ela não suportaria aquilo e desataria a chorar junto a ele. Porém mais cedo ou mais tarde isso teria de acontecer, e ela entrou no quarto. Os soluços contidos pressionavam cada vez mais sua garganta, enquanto com seus olhos míopes ela ia distinguindo o vulto do irmão e reconhecendo suas feições, até que viu o rosto e seu olhar encontrou o dele.

Estava deitado num sofá, escorado em travesseiros, num roupão de pele de esquilo. Estava magro e pálido. A mão magra, branca, transparente, segurava um lenço, a outra mão tocava no bigode fino e crescido, com movimentos tranquilos dos dedos. Seus olhos fitaram as pessoas que entraram.

Ao ver o rosto dele e encontrar seu olhar, a princesa Mária moderou a rapidez de seus passos e sentiu que as lágrimas secaram de repente e que os soluços cessaram. Ao captar a expressão do rosto e do olhar do príncipe Andrei, ela intimidou-se de repente e sentiu-se culpada.

“Mas de que eu sou culpada?”, perguntou para si. “Porque você está viva e pensa na vida, enquanto eu...”, respondeu o olhar frio e severo do irmão.

Em seu olhar profundo, que olhava não para fora, mas para dentro, havia quase uma hostilidade, quando ele se virou para a irmã e para Natacha.

Beijou a irmã, segurando sua mão, como era costume entre os dois.

— Como vai, Marie, como conseguiu chegar aqui? — perguntou ele, com uma voz tão sem brilho e alheia como seu olhar. Se ele soltasse um grito estridente e desesperado, esse grito teria causado menos horror à princesa Mária do que aquela voz.

— E o Nikóluchka, você trouxe? — perguntou ele, também com voz lenta e apagada, e com um evidente esforço de memória.

— Como está sua saúde? — disse a princesa Mária, surpresa ela mesma com o que estava falando.

— Minha amiga, isso você deve perguntar ao médico — disse ele e, fazendo um visível esforço para se mostrar carinhoso, falou só com a boca (era evidente que não estava nem de longe pensando no que dizia): — Merci, chère amie, d’être venue.63

A princesa Mária apertou a mão dele. O príncipe Andrei franziu as sobrancelhas de modo quase imperceptível com aquele aperto de mão. Ficou calado, e ela não sabia o que dizer. Compreendeu o que havia acontecido com ele, dois dias antes. Nas palavras, no tom de voz, sobretudo naquele olhar — um olhar frio, quase hostil —, sentia-se uma indiferença, tão terrível para os vivos, a respeito de tudo o que era mundano. Era evidente que agora ele só compreendia com dificuldade tudo o que era vivo; mas ao mesmo tempo sentia-se que ele não compreendia os vivos não porque estivesse privado das faculdades do entendimento, e sim porque compreendia outra coisa, algo que os vivos não compreendiam e não podiam compreender e que o absorvia por completo.

— Sim, como o destino nos guiou de maneira estranha! — disse ele, rompendo o silêncio e apontando para Natacha. — Ela cuida de mim o tempo todo.

A princesa Mária ouvia e não entendia o que ele estava dizendo. O sensível, o meigo príncipe Andrei, como podia ele falar assim diante daquela que ele amava e que também o amava? Se estivesse pensando em viver, não falaria naquele tom frio e ofensivo. Se ele não soubesse que ia morrer, como poderia não ter pena dela e como poderia falar assim com ela? A única explicação possível era que, para o príncipe Andrei, não fazia mais nenhuma diferença, e isso porque algo muito mais importante tinha sido revelado a ele.

A conversa era fria, incoerente e interrompida a todo instante.

— Marie veio por Riazan — disse Natacha. O príncipe Andrei não percebeu que ela chamava sua irmã de Marie. Já Natacha, ao chamá-la assim na frente dele, notou isso pela primeira vez.

— Sei, e então? — disse ele.

— Contaram a ela que Moscou inteira ardeu em chamas, que pode ser que...

Natacha parou: era impossível falar. Era evidente que ele fazia esforço para escutar e mesmo assim não conseguia.

— Sim, pegou fogo, é o que dizem — disse ele. — É uma pena — e pôs-se a olhar para a frente, enquanto os dedos repuxavam o bigode distraidamente.

— E você encontrou o conde Nikolai, Marie? — perguntou de repente o príncipe Andrei, obviamente com o intuito de ser simpático. — Ele mandou uma carta para cá e disse que gostou muito de você — prosseguiu de modo simples, tranquilo, obviamente incapaz de compreender todo o complexo significado que tinham aquelas palavras para as pessoas vivas. — Se você também gostou dele, seria muito bom... que os dois se casassem — acrescentou um pouco mais depressa, como que ficando alegre com as palavras que procurava havia muito tempo e que enfim havia encontrado. A princesa Mária escutava suas palavras, mas não tinham para ela nenhum sentido que não o de comprovarem que ele agora se encontrava estranhamente distante de todos os vivos.

— Mas para que falar de mim? — disse ela em tom calmo e olhou para Natacha. Sentindo o olhar dela, Natacha não olhou para a princesa. De novo, todos ficaram em silêncio.

— André, você não quer... — falou de repente a princesa Mária, com voz trêmula. — Você não quer ver o Nikóluchka? Ele se lembra de você o tempo todo.

O príncipe Andrei sorriu de modo quase imperceptível pela primeira vez, mas a princesa Mária, que conhecia tão bem seu rosto, compreendeu com horror que não era um sorriso de alegria, de ternura pelo filho, mas de sereno e suave desdém pelo fato de a princesa Mária ter empregado o que, na opinião dela, seria o último recurso para tocar seus sentimentos.

— Sim, vou ficar muito feliz de ver Nikóluchka. Ele está bem de saúde?

Quando levaram até ele Nikóluchka, que olhava assustado para o pai, mas não chorava, porque ninguém estava chorando, o príncipe Andrei beijou-o, e era evidente que não sabia o que lhe dizer.

Quando Nikóluchka foi retirado do quarto, a princesa Mária aproximou-se de novo do irmão, beijou-o e, incapaz de conter-se mais, desatou a chorar.

Ele olhou fixamente para a irmã.

— Você chora pelo Nikóluchka? — disse ele.

A princesa Mária, chorando, balançou a cabeça afirmativamente.

— Marie, você conhece o Evan... — mas calou-se de repente.

— O que você está dizendo?

— Nada. Não é preciso chorar aqui — disse ele, fitando a irmã com o mesmo olhar frio.

Quando a princesa Mária começou a chorar, ele compreendeu que ela estava chorando porque Nikóluchka ia ficar sem pai. Com um grande esforço, ele tentou se virar na direção da vida e adotar o ponto de vista deles.

“Sim, para eles isso deve parecer muito triste!”, pensou. “Mas como isso é simples!”

“Os pássaros do céu não semeiam, não colhem, mas o vosso Pai lhes dá o que comer”, disse ele para si, e quis também dizer aquilo para a princesa. “Mas, não, eles compreenderão isso sozinhos, ou não compreenderão nunca! O que não podem compreender é que todos esses sentimentos, a que dão tanto valor, todos os nossos sentimentos, todos esses pensamentos que nos parecem tão importantes — tudo isso é desnecessário. Nós não podemos compreender uns aos outros.” E ele ficou em silêncio.

O pequeno filho do príncipe Andrei tinha sete anos. Mal sabia ler, não conhecia nada. Depois daquele dia, ele aprendeu muitas coisas ao longo da vida, adquiriu experiência, capacidade de observação; mas, se naquele momento ele possuísse todas as capacidades que veio a adquirir mais tarde, não teria compreendido de maneira melhor e mais profunda do que então compreendeu todo o significado da cena que viu entre o pai, a princesa Mária e Natacha. Ele compreendeu tudo e, sem chorar, saiu do quarto, chegou perto de Natacha, que havia saído atrás dele, e fitou-a de modo humilde, com os belos olhos pensativos; seu rubro lábio superior levantado tremeu, ele encostou a cabeça nela e desatou a chorar.

A partir desse dia, o menino evitava Dessalles, evitava a condessa, que o cercava de carinhos; ou ficava só ou se aproximava timidamente da princesa Mária e de Natacha, a quem ele parecia estimar ainda mais do que a tia, e de modo sereno e tímido se apegava a elas afetuosamente.

A princesa Mária, ao deixar o quarto do príncipe Andrei, compreendeu plenamente tudo o que o rosto de Natacha lhe dissera. Ela não falava mais com Natacha sobre a esperança de salvar a vida do irmão. A princesa revezava com Natacha a cabeceira do sofá e não chorava mais, porém rezava o tempo todo, voltando-se com a alma para o eterno, o inescrutável, cuja presença era agora tão palpável junto ao homem que morria.

XVI

O príncipe Andrei não só sabia que ia morrer como sentia que estava morrendo, que já estava meio morto. Experimentava a consciência de um alheamento em relação a tudo o que era terreno e uma alegre e estranha leveza da existência. Sem se apressar e sem se perturbar, esperava o que tinha de acontecer. Aquela presença terrível, eterna, desconhecida, que ele sentira o tempo todo no decorrer de sua vida agora estava próxima dele e — graças àquela estranha leveza da existência que ele experimentava — estava até quase ao alcance da mão, palpável. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Antes, ele temia o fim. Por duas vezes havia experimentado o sentimento terrível e torturante do medo da morte, do fim, e agora já não compreendia tal sentimento.

A primeira vez que experimentou aquele sentimento foi quando uma granada rodopiou como um pião à sua frente e ele olhou para o restolho, para os arbustos, para o céu, e soube que diante dele estava a morte. Quando voltou a si depois do ferimento e, em sua alma, como que instantaneamente livre da opressão da vida que a tolhia, desabrochou a flor do amor eterno, livre, independente desta vida, ele já não temia a morte e não pensava nela.

Naquelas horas de solidão aflitiva e de semidelírio que vivera após sofrer o ferimento, quanto mais refletia sobre o novo princípio do amor eterno, que havia se revelado a ele, tanto mais rejeitava a vida terrena, sem que ele mesmo se desse conta disso. Amar tudo, todos, sempre se sacrificar pelo amor, significava não amar ninguém, significava não viver essa vida terrena. E, quanto mais ele se impregnava desse princípio do amor, mais rejeitava a vida e derrubava de maneira mais cabal a terrível barreira que, sem amor, se ergue entre a vida e a morte. Quando, naqueles primeiros momentos, o príncipe Andrei lembrou-se de que tinha de morrer, disse para si mesmo: pois bem, tanto melhor.

Mas, depois da noite nos Mitíchi, quando, num semidelírio, apareceu à sua frente aquela que ele desejava, e quando ele, após comprimir os lábios na mão dela, começou a chorar com lágrimas silenciosas e alegres, o amor por uma mulher infiltrou-se imperceptivelmente no seu coração e de novo o amarrou à vida. E pensamentos alegres e ansiosos começaram a lhe ocorrer. Ao recordar o instante em que viu Kuráguin na enfermaria de campanha, ele agora não conseguia reviver aquele sentimento: atormentava-o a questão de saber se estava vivo ou não. E não se atrevia a fazer tal pergunta.

Sua doença seguia seu curso físico, mas aquilo a que Natacha se referia ao dizer isso aconteceu com ele tinha ocorrido dois dias antes da chegada da princesa Mária. Foi a última luta moral entre a vida e a morte, na qual a morte conquistara a vitória. Era a consciência inesperada de que ele ainda estimava a vida, que lhe oferecia o amor de Natacha, e o último e débil ataque de horror diante do desconhecido.

Estava entardecendo. Como de costume depois do almoço, ele estava com uma febre suave, e seus pensamentos eram extraordinariamente claros. Sônia estava junto à mesa. Ele cochilava. De repente, uma sensação de felicidade o dominou.

“Ah, foi ela que entrou!”, pensou.

De fato, no lugar de Sônia estava Natacha, que havia acabado de entrar, com passos inaudíveis.

Desde o momento em que Natacha passou a cuidar do príncipe Andrei, ele sempre experimentava a sensação física de sua proximidade. Ela estava sentada numa poltrona, de lado para o príncipe Andrei, na frente da luz da vela, fazendo sombra para ele, e tricotava uma meia. (Ela havia aprendido a tricotar meias desde o dia em que o príncipe Andrei lhe dissera que ninguém sabia cuidar tão bem dos doentes como uma velha babá que tricotava meias e também que nessa ocupação havia algo de tranquilizador.) Os dedos finos de Natacha manejavam com rapidez as agulhas, que de vez em quando batiam uma na outra, e ele tinha uma visão clara do perfil pensativo do rosto abaixado de Natacha. Ela fez um movimento — a bola de tricotar escorregou de seus joelhos. Ela teve um sobressalto, olhou para o lado, na direção dele e, protegendo a vela com a mão, curvou-se com um movimento cuidadoso, flexível e preciso, apanhou a bola no chão e retomou a posição anterior.

O príncipe Andrei olhou para Natacha sem se mexer e viu que, depois daquele movimento, ela precisaria respirar fundo e encher o peito, mas evitava fazer isso e só respirava com muito cuidado.

No mosteiro de Tróitsa, tinham falado sobre o passado, e ele disse para Natacha que, se ficasse vivo, seria eternamente grato a Deus por seu ferimento, que o havia levado de volta para ela; mas desde então os dois nunca mais tinham falado sobre o futuro.

“Poderia ser ou não?”, pensava ele agora, enquanto olhava para Natacha e escutava o leve ruído de aço das agulhas. “Será possível que o destino me trouxe para perto dela de maneira tão estranha só para morrer?... Será possível que a verdade da vida se revelou para mim só para que eu viva na mentira? Eu a amo mais do que tudo no mundo. Mas o que devo fazer, se eu a amo?”, disse consigo, e de repente gemeu sem querer, por força do hábito que havia adquirido com seus sofrimentos.

Ao ouvir o gemido, Natacha guardou a bola de tricotar, curvou-se na direção dele e, de repente, notando seus olhos brilhantes, aproximou-se com um passo leve e debruçou-se.

— O senhor não está dormindo?

— Não, estou há muito tempo olhando para a senhora; percebi quando a senhora entrou. Ninguém como a senhora me proporciona esse silêncio suave... essa luz. Eu quero é chorar de felicidade.

Natacha chegou mais perto dele. Seu rosto brilhava de uma alegria extasiante.

— Natacha, amo a senhora demais. Mais do que tudo no mundo.

— E eu? — Virou-se de costas por um instante. — Mas por que demais? — perguntou.

— Por que demais?... Bem, o que a senhora acha, o que a senhora sente na alma, com toda a alma: eu vou viver? O que lhe parece?

— Tenho certeza, tenho certeza! — quase gritou Natacha, segurando as mãos dele num gesto apaixonado. Ele ficou em silêncio.

— Como seria bom! — E, segurando a mão dela, beijou-a.

Natacha ficou feliz e emocionada; e imediatamente lembrou que era impossível, que ele precisava se acalmar.

— Mas o senhor não dormiu — disse ela, reprimindo sua alegria. — Tente adormecer... por favor.

Ele soltou-a, depois de apertar sua mão, e Natacha foi na direção da vela e sentou-se de novo, na mesma posição de antes. Voltou-se duas vezes para olhar para ele, e os olhos do príncipe Andrei brilharam ao encontrar os dela. Natacha estabeleceu para si uma tarefa a ser cumprida em seu trabalho de tricô e disse para si mesma que, enquanto não a terminasse, não olharia de novo para ele.

De fato, pouco depois ele fechou os olhos e adormeceu. Dormiu um pouco e acordou de repente, suando frio e aflito.

Ao adormecer, pensava sem parar naquilo que vinha pensando durante todo aquele tempo — sobre a vida e a morte. E mais sobre a morte. Sentia-se mais perto dela.

“Amor? O que é o amor?”, pensou ele. “O amor atrapalha a morte. O amor é a vida. Tudo, tudo o que entendo, só entendo porque amo. Tudo é, tudo existe só porque eu amo. Tudo está ligado só por ele. O amor é Deus, e morrer significa que eu, uma partícula de amor, vou voltar para a fonte universal e eterna.” Tais pensamentos lhe pareciam consoladores. Mas eram só pensamentos. Algo faltava neles, algo neles era unilateralmente pessoal, intelectual — não havia provas. E havia a mesma inquietação e obscuridade. Ele adormeceu.

No sonho, viu que estava deitado naquele mesmo quarto onde estava de fato, só que não estava ferido, mas saudável. Muitas pessoas variadas, insignificantes, indiferentes, aparecem diante do príncipe Andrei. Ele fala com elas, discute sobre algo supérfluo. Elas estão se preparando para ir a algum lugar. O príncipe Andrei recorda de modo vago que tudo aquilo é insignificante e que ele tem outros afazeres muito importantes, mas continua a falar palavras vazias e engenhosas, causando admiração nas pessoas. Aos poucos, de modo imperceptível, todas aquelas pessoas começam a desaparecer, e tudo é substituído por uma só pergunta a respeito do fechamento de uma porta. Ele se levanta e caminha na direção da porta a fim de empurrar o trinco e fechá-la. Tudo depende de ele conseguir fechar a porta. Ele caminha, se apressa, seus pés não se movem, e ele sabe que não vai conseguir fechar a porta, mesmo assim, dolorosamente, emprega todas as suas forças. E um temor torturante o domina. Esse temor é o medo da morte: atrás da porta, está aquilo. Mas ao mesmo tempo que ele, fraco e sem jeito, se arrasta para a porta, aquela coisa horrorosa, empurrando do outro lado, começa a abrir a porta. Não é algo humano — é a morte que força a porta, e é preciso contê-la. Ele agarra a porta, emprega suas últimas energias — já é impossível trancar — apenas segurá-la; mas suas forças estão debilitadas, abatidas, e, empurrada pelo horror, a porta abre e fecha outra vez.

Novamente, aquilo empurra do outro lado. Os últimos esforços, sobre-humanos, são inúteis, e as duas partes da porta se abrem sem fazer ruído. Aquilo entrou, e aquilo é a morte. E o príncipe Andrei morreu.

Mas, no mesmo instante em que morria, o príncipe Andrei lembrou que estava dormindo e, no mesmo instante em que morria, fez um esforço e acordou.

“Sim, era a morte. Eu morri — eu acordei. Sim, a morte é um despertar!”, a ideia se acendeu de repente em seu espírito, e a cortina que até então ocultava o desconhecido foi erguida diante de seu olhar espiritual. Naquela leveza que não o abandonou mais a partir de então, ele sentiu como que uma libertação de energias, antes presas dentro dele.

Quando, voltando a si e suando frio, ele se remexeu no sofá, Natacha se aproximou e perguntou o que ele tinha. Ele não respondeu e, sem compreendê-la, fitou-a com um olhar estranho.

Foi isso o que tinha acontecido com ele dois dias antes da chegada da princesa Mária. Desde aquele dia, como disse o médico, a febre debilitante adquiriu outro caráter, mas Natacha não se interessava pelo que o médico dizia: ela via aqueles terríveis sinais morais, para ela mais incontestáveis do que tudo.

A partir daquele dia, teve início para o príncipe Andrei, junto com o despertar do sono, o despertar da vida. E, comparado à duração da vida, aquele despertar não lhe pareceu mais demorado do que o despertar do sono, em comparação com a duração do sonho.

Nada havia de terrível e de brusco naquele despertar, relativamente lento.

Seus últimos dias e horas transcorreram de modo habitual e simples. A princesa Mária e Natacha, que não se afastavam dele, sentiam isso. Não choravam, não se abalavam e, no final, percebendo isso elas mesmas, já não era mais dele que cuidavam (ele já não existia, ele as havia deixado), e sim da recordação mais imediata que tinham dele — o seu corpo. Os sentimentos das duas eram tão fortes que o lado exterior e terrível da morte não as afetava, e elas não julgavam necessário tornar mais amargo seu desgosto. Não choraram nem diante dele, nem sem ele, e entre si nunca falavam sobre ele. Sentiam que não podiam exprimir em palavras o que haviam compreendido.

Ambas viam como ele se desprendia delas e afundava mais e mais, lenta e serenamente, para não se sabe onde, e ambas entendiam que aquilo era o que tinha de acontecer e que assim era bom.

Deram a confissão e a comunhão ao príncipe Andrei; todos foram se despedir dele. Quando lhe trouxeram o filho, tocou nele os lábios e virou o rosto para o outro lado, não porque lhe fosse penoso ou triste (a princesa Mária e Natacha compreenderam isso), mas porque o príncipe Andrei supôs que aquilo era tudo o que exigiam dele; mas, quando lhe disseram para dar a bênção ao filho, ele fez o que exigiam e olhou em volta, como que perguntando se ainda teria de fazer mais alguma coisa.

Quando passaram os últimos estremecimentos do corpo, que o espírito havia deixado, a princesa Mária e Natacha estavam presentes.

— Terminou?! — disse a princesa Mária, depois que o corpo dele ficou imóvel por alguns minutos, esfriando, estirado na frente delas. Natacha aproximou-se, lançou um olhar para os olhos mortos e apressou-se em fechá-los. Fechou-os e não os beijou, mas tocou os lábios naquilo que era a recordação mais imediata dele.

“Para onde foi? Onde está agora?...”

Quando o corpo vestido e lavado jazia dentro do caixão sobre a mesa, todos se aproximaram para se despedir dele, e todos choraram.

Nikóluchka chorava com uma perplexidade dolorosa, que partia seu coração. A condessa e Sônia choravam com pena de Natacha e também porque ele não existia mais. O velho conde chorava porque sentia que em breve ele também daria aquele mesmo passo terrível.

Natacha e a princesa Mária agora também choravam, mas não por causa de sua dor pessoal; choravam devido à comoção reverente que dominara seus espíritos, em face da consciência do simples e solene mistério da morte, que havia se cumprido diante delas.

 

1 Referência à viúva do tsar Paulo i (Maria Fiódorovna) e à esposa do tsar Alexandre i (Elizavieta Alekséievna).

2 Francês: “Dizem que a pobre condessa está muito mal. O médico diz que é angina do peito”.

3 Francês: “Angina? Ah, é uma doença terrível!”.

4 Francês: “Dizem que os rivais se reconciliaram graças à angina...”.

5 Francês: “Dá pena de ver o velho conde, pelo que dizem. Chorou como uma criança quando o médico lhe disse que o caso é perigoso”.

6 Francês: “Ah, será uma perda terrível. É uma mulher deslumbrante”.

7 Francês: “Vocês estão falando da pobre condessa [...] Mandei alguém saber como ela está. Disseram que estava um pouco melhor. Ah, sem dúvida, é a mulher mais encantadora do mundo [...] Pertencemos a campos diferentes, mas isso não me impede de estimá-la, como ela merece. É muito infeliz”.

8 Francês: “As informações do senhor podem ser melhores do que as minhas [...] Mas sei de boa fonte que esse médico é um homem muito preparado e hábil. É o médico particular da rainha da Espanha”.

9 Francês: “Acho isso encantador”.

10 Francês: “o herói de Petropol”.

11 Francês: “O imperador devolve as bandeiras austríacas [...] bandeiras amigas e extraviadas que ele encontrou fora da estrada”. A mensagem se refere ao fato de que a Áustria e a Rússia haviam feito uma aliança pouco antes, mas agora, na invasão da Rússia, as tropas da Áustria combatiam ao lado de Napoleão.

12 Francês: “É a estrada de Varsóvia, talvez”.

13 Francês: “Que força! Que estilo!”.

14 Francês: “Vocês verão”.

15 Francês: “visitas de condolências”.

16 Francês: “embora estrangeiro, era russo de coração e de alma”.

17 Francês: “nosso muito amável soberano”.

18 Francês: “cujas chamas iluminavam sua estrada”.

19 Francês: “desgosto”.

20 Francês: “O senhor me traz notícias tristes, coronel?”.

21 Francês: “Bem tristes, senhor [...] O abandono de Moscou”.

22 Francês: “Terão entregado minha antiga capital sem lutar?”.

23 Francês: “O inimigo está na cidade?”.

24 Francês: “Sim, senhor, e a esta hora ela está feita em cinzas. Quando a deixei, estava totalmente em chamas”.

25 Francês: “Entendo, coronel, em vista de tudo o que está acontecendo conosco [...] que a Providência exige de nós grandes sacrifícios... Estou pronto a me submeter a todas as Suas vontades; mas diga-me, Michaux, como o senhor deixou o exército, quando este se viu assim, abandonando minha antiga capital sem disparar um tiro? O senhor não terá percebido algum abatimento?”.

26 Francês: “Senhor, me permite falar francamente, como um militar leal?”.

27 Francês: “Coronel, é o que eu sempre exijo [...] Não me esconda nada, quero saber absolutamente o que se passa”.

28 Francês: “jogo de palavras”.

29 Francês: “Senhor! Deixei todo o exército, desde os chefes até o último soldado, sem exceção, num temor assustador, medonho...”.

30 Francês: “Como assim? [...] Os meus russos se deixaram abater com a infelicidade... Nunca!...”.

31 Francês: “Senhor [...] eles temem apenas que vossa majestade, por bondade de coração, se deixe persuadir a selar um acordo de paz. Eles ardem de vontade de combater [...] e de provar a vossa majestade, pelo sacrifício da própria vida, como são devotados ao seu soberano...”.

32 Francês: “O senhor me tranquiliza, coronel”.

33 Francês: “Pois bem, volte para o exército [...] e diga aos nossos bravos, diga a todos os meus bons súditos por toda parte onde o senhor passar, que quando eu já não tiver mais nenhum soldado irei eu mesmo, à frente da minha querida nobreza, dos meus bons camponeses, e usarei até o último recurso do meu império. Ele ainda me oferece mais do que meus inimigos imaginam [...] Mas, se algum dia for escrito nos decretos da Divina Providência [...] que minha dinastia deva cessar de reinar no trono de meus ancestrais, então, depois de ter usado todos os meios que estiverem em meu poder, deixarei a barba crescer até aqui [...] e prefiro comer batatas com o último de meus camponeses a assinar a vergonha de minha pátria e de minha querida nação, cujos sacrifícios eu sei bem avaliar!...”.

34 Francês: “Coronel Michaux, não esqueça o que lhe digo aqui; um dia talvez recordemos isto com prazer... Napoleão ou eu [...] Nós não podemos reinar juntos. Aprendi a conhecê-lo, ele não me enganará mais...”.

35 Francês: “Entusiasmado por tudo o que tinha acabado de ouvir”.

36 Francês: “Vossa majestade assina neste momento a glória da nação e a salvação da Europa!”.

37 Francês: “Antes tarde do que nunca”.

38 Francês: “de mau gosto”.

39 Francês: “meu caro, entre outras. O senhor se mostra insistente demais com a outra, a loura”.

40 Francês: “Há maneiras e maneiras”.

41 Francês: “que ele havia salvado das chamas”.

42 Local de Moscou onde mais tarde foi construída a ponte da Crimeia.

43 Francês: “aquele que não confessa seu nome”.

44 Localidade de Moscou, perto do monastério Novodiévitchi, mencionado a seguir.

45 Título atribuído ao marechal Davout.

46 Francês: “Quem é o senhor?”.

47 Francês: “Meu general, o senhor não pode me conhecer, eu nunca vi o senhor...”.

48 Francês: “É um espião russo”.

49 Francês: “Não, monsenhor [...] Não, monsenhor, o senhor não pode me conhecer. Sou oficial das milícias e não saí de Moscou”.

50 Francês: “O nome do senhor?”.

51 Francês: “E o que me prova que o senhor não está mentindo?”.

52 Francês: “Como o senhor vai me provar a verdade do que está dizendo?”.

53 Francês: “O senhor não é o que está dizendo”.

54 Francês: “Sim, sem dúvida”.

55 Francês: “Atiradores do octogésimo sexto, à frente!”.

56 Francês: “Isso vai ensinar essa gente a pôr fogo”.

57 Muitas tiradas deste personagem são rimadas, à maneira de ditos populares.

58 Em russo, as palavras “cristão” e “camponês” são muito semelhantes. O personagem faz uma mistura de ambas em sua pronúncia.

59 O serviço militar podia servir de pena jurídica e durava muito tempo. Vinte e cinco anos era o tempo normal, nessa época.

60 Santos protetores dos animais domésticos. Os nomes latinos são Florus e Laurus.

61 Francês: “Minha criança! [...] Amo a senhora e a conheço há muito tempo”.

62 Fogo de Antónov: gangrena. Referência a Santo Antônio, da Igreja católica, tido como capaz de curar essa doença.

63 Francês: “Obrigado, cara amiga, por ter vindo”.

 

 


C   O   N   T   I  N   U   A