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GUERREIROS DA LUZ Vol.I / I. & E. Mastral
GUERREIROS DA LUZ Vol.I / I. & E. Mastral

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

GUERREIROS DA LUZ

Volume I

Primeira Parte

 

Houve um tempo na minha vida em que estive sentado diante de uma mesa farta, um verdadeiro banquete!

O deleite já começava pelos olhos... o que eles contemplavam era algo lindo: uma mesa magnificamente adornada, taças de cristal com bordas e bases de ouro, bandejas de prata, louças das mais finas, arranjos florais belíssimos! Ao estender as mãos sentia na pele a maciez da toalha de seda.

Logo o jantar estaria servido, um sublime aroma subia pelos ares invadindo minhas narinas. Soberbo! O aroma prenunciava o restante... era difícil conter a expectativa, a vontade quase incontrolável de saborear o quanto antes aquelas iguarias exóticas, bem preparadas, de sabor certamente tão inigualável quanto o seu cheiro!

A única coisa capaz de conter a ansiedade era reclinar-me nas confortáveis poltronas que circundavam a grande mesa, revestidas de veludo vermelho. E escutar... ao fundo... uma melodia agradável... suave... que me fazia experimentar uma tranqüilidade na alma, uma sensação de acolhimento, e me punha viajando nos seus acordes diferentes, inumanos.

Enfim, o jantar!

Quando provei a primeira iguaria senti um sabor nunca antes experimentado!... Eu gostaria de continuar vivendo apenas para estar ali, naquele lugar, provando daquelas coisas.

Porém... muito tempo depois... soube que aquele banquete estava envenenado... nada visível aos olhos, muito menos detectável por qualquer sentido humano. Mas lentamente me matava, com veneno letal, fazendo-me sofrer cada dia mais... vagarosamente roubava a vida... sugava-a inexoravelmente... e com muita dor. Tudo aquilo pelo que vivi não me trouxe vida, mas morte.

Isso é o que o inimigo das nossas almas faz. Engana nossos sentidos. Nos faz crer que desfrutamos o melhor... quando na verdade estamos sendo contaminados por um veneno malévolo que nos levará à Morte Eterna.

Quando saí da Irmandade, e as perseguições iniciais cessaram, acreditei que eles haviam desistido. Mas, depois, numa análise mais cautelosa, imaginei que, por algum motivo eles realmente tinham acreditado na minha morte. Ou porque Deus me encobriu... ou porque os demônios mentiram lá dentro... não saberia dizer. Fato é que nunca tinha visto, ou ouvido falar, de pessoas que tivessem conseguido escapar daquele Inferno, e sobreviveram!

Não há perdão. O preço da traição é a morte!

Imaginei se, porventura, não haveria outros assim como eu... que escaparam também... e de alguma forma as Entidades foram enganadas, e foram levadas a acreditar que seus desertores estavam aniquilados!

Nada disso importava. Não naquele momento. O que importava então era apenas uma coisa, que eu era um sobrevivente!. Deus estava me guardando!

Nunca mais consegui falar com o Pastor Brintti, ou saber dele, até então o outro "único sobrevivente" que eu conhecia. O único que não caíra diante dos Encantamentos da Irmandade!

Ele sumiu... mas isto é outra história.

Passei a freqüentar uma Igreja próxima de minha casa, em Perdizes. Era excelente para mim! Tinha vários amigos, a Palavra era boa, havia muito convívio entre nós! Me sentia como que fazendo parte de uma nova família!

E o que era melhor: ali nunca falavam do diabo! Era como se ele nem existisse! Afinal, a Bíblia fala de tantas outras coisas, por que falar justo do diabo? Eu gostava daquilo! Me fez achar, ao meu modo, que ali era um lugar seguro para mim! Uma Igreja que nunca, jamais, a Irmandade pensaria em infiltrar. Conseqüentemente... nunca me encontrariam novamente!

A Igreja era, sem dúvida, um apoio e um refúgio para mim. Comecei a conhecer cada vez mais Aquele que me resgatou do Inferno na Terra, Jesus Cristo!

E me senti protegido.

Mesmo assim... nunca saía sem meu 38 preso à cintura. Era minha "segurança extra".

Fui levando minha vida como qualquer outro, mas ainda com muitas seqüelas das contaminações a que fui submetido... tinha ocasionalmente pesadelos horríveis... certas noites e datas, quando eu sabia o que eles estariam fazendo... me apavorava só de pensar... às vezes era invadido por uma forte angústia...

Neste sentido estava só, terrivelmente só!

Decidi nunca contar para ninguém o que tinha visto e vivido. Levaria aquele segredo para o túmulo comigo... se eu não falasse nada... não me localizariam... e poderia viver minha vida em paz. Finalmente em paz!

Meu pai faleceu... no mês nove... e em meio a este turbilhão... a certeza de que eu seria o próximo! Mas então conheci uma mulher! Uma mulher que Deus estava mandando para ficar ao meu lado!

Pela primeira vez, nem sei explicar o por que, decidi confiar a alguém minha história. Talvez me pesasse demais e eu nem tivesse me dado conta; ou talvez tivesse simplesmente chegado a hora. Ao menos alguém mais iria saber... eu não seria mais o único! Aquela solidão terminaria.......

Desabafei... chorei... contei minha história a ela, a Isabela! A história de um ex-Filho do Fogo!

Esta mulher futuramente tornar-se-ia minha Auxiliadora, minha companheira, uma guerreira ao meu lado.

 

Mas, então, um dia... fui localizado! Não sei como... mas eles deixaram bem claro que haviam me achado. Fiquei apavorado! Senti muito medo, sabia exatamente qual era o destino dos traidores... teria uma morte horrível e lenta... em breve viriam me buscar... tinha pouco tempo.... diante deles meu revólver seria tão letal quanto uma arma de brinquedo... aquilo de nada valeria para me defender! E, mesmo que valesse... eles não têm medo de morrer pela "causa".

Nada poderia me livrar do meu terrível destino...

Deus... Deus meu, ajude-me! Mas naquele momento parecia que o céu era de bronze... não conseguia crer que Deus pudesse me ouvir!

Esta é a história que conta não apenas como Ele me ouviu, mas agiu...!

Isabela foi a primeira pessoa que foi colocada ao meu lado. E como tudo tem que começar por algum lugar... é muito importante apresentá-la a vocês! Para que entendam o propósito de Deus em nos aproximar.

Gostaria que ela mesma fizesse isso.

Leiam com atenção estas linhas, pois a história desta vida foi escrita por Deus!

Isabela Conta

Introdução

Meu nome é Isabela.

Ou melhor, Isabela é o nome pelo qual vocês irão me conhecer porque, da mesma maneira que todos os demais, este também é fictício. Antes de falar sobre mim mesma, começando pelo começo, quero que todos tenham um pequeno vislumbre dos estranhos dias que estamos vivendo como parte do nosso aprendizado, como conseqüência do destino que nos foi proposto.

Não foi fácil, certamente que não foi... quando conheci Eduardo jamais poderia supor a trajetória que devia ser percorrida.

Hoje, no entanto... não escolheria outro caminho. Porque este, embora muito árduo, nos revelou o Senhor dos Exércitos.

 

Eu estava ali parada, pensando. Com a cabeça apoiada nos braços olhava para a lua que estava quase cheia e aparecia bem à minha frente no céu repleto de nuvens escuras. Em pouco mais de uma semana, Eduardo e eu completaríamos nosso primeiro aniversário de casamento.

Parecia até um milagre termos conseguido concretizar — enfim — aquele nosso sonho.

Realmente, uma parte dele tinha sido alcançada, não restava dúvida quanto a isso. Estávamos casados!

Mas... aquele primeiro ano tinha sido completamente atípico, além de tudo quanto eu pudesse imaginar. Muito diferente do que eu tinha sonhado para mim! Bem, talvez "diferente" não seja exatamente a palavra certa, é antes um pequeno eufemismo, uma tentativa de deixar a coisa um pouco mais leve. A verdade é que vivemos um período muito duro, o que por certo não traduz o desejo do coração da maioria das moças. Perdemos muito de um lado... ainda que lucrássemos de outro!

Mas, sinceramente falando... já nem parecia que estávamos vivendo no mundo real. Quero dizer, nossa vida não parecia real, parecia um conto de ficção alucinado, onde contracenávamos com personagens estranhíssimos!

E onde a realidade parecia mais assustadora do que qualquer tipo de fantasia.

Foi com a cabeça repleta destes pensamentos que me sentei ali fora, na varanda, naquela noite de vento fresco. Olhei para o reflexo tênue e ligeiramente prateado da luz da lua que caía sobre o jardim. As noites de lua cheia eram muito bonitas naquele lugar, por causa da luminosidade que causavam. Pena que agora houvesse nuvens demais no céu! O vento fazia com que deslizassem rapidamente, escuras e esfiapadas, e não se via quase estrela alguma.

Fiquei olhando o vaguear das nuvens no céu e as idéias deslizaram pela minha mente quase tão rápido quanto elas. Sem me dar conta de que estava novamente refletindo naquilo, aquela cascata mental continuou rolando à medida que meus olhos pulavam de um ponto a outro do jardim.

"Deus é fiel!... Ele não fez o que fez até agora para que, no último instante, eles sejam vencedores".

Aquela sensação leve de expectativa vinha me acompanhando de forma mais intensa naqueles dias. Difícil traduzi-la em palavras. Não era temor propriamente dito, nem dúvida. Apenas aquela sensação estranha, incontida, totalmente nova, que nos cobria como um manto. E cuja palavra mais próxima para defini-la era aquela: expectativa.

Uma expectativa acompanhada da latejante pergunta:

"O que vai acontecer, afinal de contas?"

Porque, ao que parecia, diante de tudo o que foi vivido principalmente nos últimos três a quatro anos ... a bem da verdade qualquer coisa poderia acontecer!

Certamente que Deus vinha provando o Seu Poder e, principalmente, a Sua Fidelidade dia após dia... mas parecia que, a partir daquele mês, e especialmente no desenrolar dos próximos dias... qualquer artimanha terrível do inimigo não seria por demais estranha. Isso quer dizer que nada seria sobrenatural demais... ou irreal demais para ser verdade.

Nossa parte era confiar. E vigiar. Mas as emoções por vezes ficavam um pouco mais alvoroçadas. E eu tinha a sensação de que algo de medonho estava por vir.

Eu e Eduardo nos sentíamos como que dentro de um barco. Há muito tempo que nós tínhamos entrado nele ao aceitar um chamado muito especial do Senhor. Fomos navegando ao sabor da correnteza dada pelo Espírito de Deus.

Mas à medida que começaram as chuvas e as tormentas daquele mar cada vez mais bravio, tivemos que ceder ao Senhor todas as coisas. Inclusive os nossos remos, por assim dizer. Deus estava no comando do barco, e já não havia como desembarcar dele. Não havia como voltar atrás. A desistência — o desembarque — significava a morte, tão-somente. Não havia outra opção. Ou continuávamos descendo a correnteza naquele barco, nas Mãos do Senhor... ou desistíamos dando espaço para a morte. O que estava feito, estava feito.

Agora — nos próximos dias — sobreviria a mais terrível de todas as tempestades. E a nós cabia a fé, tão-somente. Nada havia para ser feito, apenas crer. Crer que o nosso Capitão seria mais do que suficiente para nos livrar daquela horrível situação, trazendo-nos a vitória e levando-nos ao almejado porto seguro.

Ergui os olhos para a mancha escura à minha frente, elevada um pouco acima do horizonte. Durante o dia nós podíamos contemplar uma parte dos montes verdes que circundavam todo o Vale. Mas à noite estes nada mais eram do que manchas escuras com um ou outro ponto de luz.

"Elevo os olhos para os montes, de onde me virá o socorro? O meu socorro vem do Senhor, que fez os Céus e a Terra"!

Aquele versículo Bíblico tinha se tornado uma espécie de Rhema para mim e ecoava dia após dia, momento após momento desde que nos havíamos mudado para aquela casa. Pouco menos de um mês antes. Ele aparecia dentro de mim num sussurrar; antes mesmo que eu pudesse tomar tento, lá estava ele:

"Elevo os olhos para os montes, de onde me virá o socorro? O meu socorro vem do Senhor, que fez os Céus e a Terra"!

Era engraçado como Deus parecia falar através daquele texto, particularmente ali, naquele lugar. Rodeado de montes. E aquela promessa era o meu consolo, a minha esperança. De que o socorro viria, estaria presente. O Senhor dos Céus e da Terra traria o socorro no momento exato!

Me acomodei melhor na cadeira de balanço puxando o capuz para bem perto do rosto. O ventinho estava frio. Lembranças e mais lembranças foram vagueando diante dos meus olhos. E lembrei-me da cidade de São Paulo, onde nasci e cresci, aonde não se vêem os montes que o Criador formou, antes somente montes de pedra e concreto. Quanta diferença...

Desde que Deus confirmara Sua Vontade em nos trazer àquele local não muito distante da capital eu não cessava de olhar à volta contemplando a natureza. Era tudo tão bonito, tão, tão bonito!

Verde, verde por todos os lados, flores, árvores, terra, cheiro perfumado de mato. E aquele sol todo que fazia tudo brilhar e ficar ainda mais lindo. Logo nos primeiros dias comentei com Eduardo que Deus estava ali cumprindo um antigo desejo do meu coração. O campo sempre me fascinou!

Em São Paulo, sol e calor em demasia só tornam o dia-a-dia mais duro e sofrido. Cedo ou tarde as pessoas acabam tendo que sair da frente do ar-condicionado para enfrentar a vida. E que dizer da chuva? Ela só deixava o trânsito horrivelmente congestionado, os bairros periféricos alagados e só tragédia atrás de tragédia restava daquele belo espetáculo da natureza.

Não que eu não gostasse de São Paulo, mesmo com todas as suas agruras. Longe de mim! Gostava, é verdade. A grande metrópole também tinha seus encantos.

Mas em nossa nova casa era diferente. Até os temporais, tão comuns naquela época do ano, eram maravilhosos. As nuvens densas e cinzentas fechavam o horizonte e podia-se perceber a chuva caindo ao longe. E logo o vento mudava, soprava forte trazendo a água que respingava na varanda, mas que mesmo assim não me fazia ficar dentro de casa.

A chuva era bela, o sol era belo, a vista era bela. Deus tinha sido bom em nos levar àquele lugar, mesmo contrariando todas as nossas probabilidades e possibilidades imediatas.

A decisão de nos mudarmos foi tomada completamente do dia para a noite.

Não estávamos satisfeitos com o apartamento que alugamos para iniciar nossa vida de casados e apesar de, humanamente falando, não estarmos em condições de fazer a mudança, o Senhor havia providenciado tudo de uma forma rápida e perfeita. Pedimos um sinal claro da parte Dele antes de efetivarmos o contrato. E, frente à resposta positiva, realmente nos aventuramos a abandonar a cidade.

"Abandonar" também é modo de dizer: nossa vida continuava lá, pelo menos três vezes por semana íamos a São Paulo. Mas agora tínhamos um novo refúgio para chamar de lar. Aliás, esse é um termo que nunca se encaixou muito bem no antigo apartamento.

Enfim... tudo estava bom, estava ótimo! Aquela casa era tudo o que estávamos precisando e querendo.

Sorri involuntariamente e lembrei-me do dia da mudança: eu estava tão exausta que quando o caminhão terminou de despejar as nossas coisas e ameaçava uma garoinha leve, senti um nó entupindo a garganta ao ver toda aquela bagunça espalhada nos quatro cantos da enorme casa. Não pude reter algumas lágrimas. Minha vontade, naquele momento, era voltar ao Shopping e a tudo o que eu conhecia.

Como explicar aquele sentimento estranho e contraditório? Eu queria sair de São Paulo... mas agora parecia tão estranho estar ali. Tão vazio! Tão cheio de inseguranças! No fundo eu já não conseguia reconhecer a minha vida, e isso nada tinha a ver com o fato de estar casada. Nem era culpa de Eduardo. Se ao menos nossa realidade pudesse ser classificada como "normal".

Mas nossos dias eram tudo, menos "normais".

Eduardo foi compreensivo e carinhoso diante das minhas lágrimas de desabafo e temor. Me abraçou e riu um pouco, procurando descontrair a tensão, fazendo-me perceber que estávamos em nosso lar e tudo ia ficar bem. Não sou de chorar, realmente não sou. É preciso uma boa dose de mal estar para me derrubar, mas aquela mudança tão radical parecia ser apenas uma gotinha a mais de água naquele copo já prestes a transbordar.

No entanto, aquele estado de ânimo não durou muito. Me senti melhor logo, e tratamos de arrumar o mínimo de coisas para que pudéssemos passar a noite. Ela chegou devagar por causa do horário de verão. E, já noite fechada, depois de tomarmos um lanche, sentados na sala nos quedamos a escutar o silêncio. Era bom demais! Nem televisão nós tínhamos ainda por falta de verba para comprar uma antena parabólica.

A sala era enorme, de chão de ardósia verde. Nas paredes brancas havia dois janelões e uma porta de vidro de correr bem no meio, que dava para o jardim. De onde eu estava sentada, de costas para um dos janelões, podia ver parte da cozinha ampla, clara. Era gostosa aquela sensação de espaço, os poucos móveis que tínhamos ficavam espalhados aqui e ali. Observei o meu piano encostado na parede perto da porta. Tinha sido presente do meu pai. Era quase estranho vê-lo

ali, como se não fizesse parte daquele lugar.

Ficamos conversando e escutando o barulhinho dos grilos. Que barulhinho delicioso!

— Realmente... este lugar não tem um pingo de segurança! — comentamos um com o outro lá pelas tantas.

De fato. Não havia grade alguma nas janelas!

— Melhor a gente não encucar com isso...

Apesar disso, antes de irmos deitar, Eduardo percorreu cada cômodo trancando portas e passando cadeados nas janelas. Também não parecia seguro deixar a porta de vidro que dava para o jardim aberta à noite. Olhei pela janela da sala e contemplei a alameda de terra batida e as casas silenciosas da vizinhança banhadas pela fraca luz da rua. Era um pouco assustador.

Nunca fui apavorada. Mas também nunca fui perseguida como acontecia agora. Agora era diferente. Havia pesadas ameaças que pairavam sobre as nossas cabeças..........

O dia seguinte espantou os fantasmas, com seu sol forte e luminoso. E o desconforto durou apenas mais uma ou duas noites. Eu continuava sorrindo sem querer ao recordar-me daqueles primeiros dias.

Então começamos a notar que o vizinho ao lado sequer trancava o portão, fosse dia ou fosse noite. Assim, aos poucos, Eduardo foi largando mão de passar cadeado em tudo, e eu aproveitava o ar fresco da noite enrolada no meu blusão azul, apelidado de "carneiro" porque era todo felpudo. Sentada no chão da varanda (ainda não tínhamos a cadeira de balanço), eu apenas deixava o tempo passar, olhando a noite, olhando o céu, sentindo o cheiro perfumado daquele lugar, escutando os barulhinhos que só a noite no campo produz. Ficava ali durante muito tempo... só pensando... orando um pouco. Vigiando nossos gatinhos até que se acostumassem bem com o novo local.

Eu precisava de paz. Procurava por ela. Foi ali que comecei a experimentar um pouco daquilo que eu tanto ansiava.

Havia paz... e ainda que fosse aquela paz estranha no meio da tribulação, no meio da guerra, no meio do confronto... era paz. Paz no meio daquela sensação de expectativa.

O clímax estava próximo. O dia marcado. Dia nove de março. O aniversário de 33 anos de Eduardo estava às portas. Menos de vinte dias depois do nosso primeiro aniversário de casamento.

Haveria um confronto de vida ou morte. A honra do príncipe das Trevas estava em jogo. Ele haveria de fazer tudo o que fosse possível para cumprir o seu decreto e a sua maldição sobre as nossas vidas.............................

A lua foi encoberta quase completamente pelas nuvens e eu olhava para ela fixamente, sempre refletindo:

"Deus nos preparou para estes dias, tenho certeza disso... Ele nos forjou ao longo dos anos para que estivéssemos prontos justamente para este tempo de agora. Prontos para a tempestade! Seja lá o que for que vá acontecer... vai acontecer porque Deus permitirá. E porque estamos preparados. É isso. Deus conta conosco! Temos que estar firmes".

E embora não nos sentíssemos tão preparados assim, o esforço maior estava em nos apegarmos às promessas do Senhor.

Haveria confronto. Mas o Senhor dos Exércitos iria adiante de nós!

 

Esta história começou bem antes. Mais de cinco anos distanciavam esta noite de lua cheia repleta de lembranças do dia em que conheci Eduardo.

Esta é a história que vamos contar agora.

Ela fala sobre como Deus trabalhou para transformar duas pessoas. Um rapaz saído das profundezas do Satanismo e uma moça perfeitamente comum. Ele nos chamou, e fez com que atravessássemos um longo deserto. Nessa travessia, o inimigo chegou muito perto, com toda sorte de artimanhas, seduzindo algumas vezes, com muito furor em outras. Foi também neste deserto que o caráter do Criador foi sendo revelado, dia a dia, num longo período de treinamento, que ainda não terminou.

Mas hoje podemos dizer, como o Salmista: "Foi-me bom ter passado pela aflição, porque antes andava errado. Mas agora guardo os Teus preceitos".

Deus está recrutando muitos. Da mesma forma como Ele nos recrutou, outros tantos estão sendo chamados. Haverá um remanescente. Um grupo de soldados valentes, capazes de enfrentar a Guerra dos últimos dias. Guerra contra Principados e Potestades, contra os verdadeiros adoradores do diabo.

Os Filhos do Fogo.

Sim, será uma guerra sangrenta, sem tréguas, sem clemência. Para isso, o Senhor está levantando o Seu Exército!

Um Exército de homens e mulheres que conhecem verdadeiramente o Poderoso El-Shaddai, o Grande Eu Sou, o Deus acima de todos os Deuses; e O obedecem.

Que estão dispostos a pagar o preço que lhes for proposto.

E que serão chamados Guerreiros da Luz!

 

Mas voltemos ao princípio de nossa história. Seria natural que eu quisesse adiantar o mais depressa possível este relato, contar logo o que aconteceu depois que conheci Eduardo. Mas não seria o mais sábio no momento. É preciso que uma pequena parte do meu perfil humano seja colocado antes, um pouquinho da minha história de vida. As raízes da personalidade são tão longínquas, não é mesmo? O modo de ser e agir vem das mais remotas fases da existência.

Portanto, rapidamente eu terei que recuar ainda um pouco mais no calendário, voltar anos e anos, dar uma olhadinha neles, observar alguns detalhes, tirar algu­mas conclusões. O bom personagem de uma história não é aquele que aparece e simplesmente acontece! Mas aquele cujas nuanças da alma tornam-se tão desnudas, tão transparentes, e cujos pensamentos e sentimentos são descortinados de tal modo que aqueles que lêem quase podem adivinhar as suas ações e reações. Porque esta alma tornou-se conhecida, quase explícita aos olhos de quem vê.

Se tal descrição de caráter tem valor num personagem de verdade, muito mais importante num ser humano que está fazendo as vezes de "personagem". Pois assim é que é. Isabela acabou sendo uma pessoa que virou personagem desta história, assim como Eduardo. Mas Isabela sente, como qualquer pessoa sente, alegria e dor. Ela gostaria de poder explicar o por que da alegria e da dor. Explicar quem ela é. E isso leva um pouco de tempo.

Vamos a isso, portanto! Embora seja difícil para mim falar sobre mim... não há outra saída!

O desenrolar da minha vida foi muito diferente da vida de Eduardo. Mas acho que nós começamos mais ou menos da mesma maneira. Ou seja: brincando. E, ao brincar, fomos descobrindo quem nós éramos e do que gostávamos.

Minha infância foi muito boa, pelo que me recordo dela. Durante a semana meus pais trabalhavam, minha mãe era bióloga, meu pai um funcionário público que atuou em diversas áreas dentro da Educação e do Esporte. Eu e meu irmão Marco ficávamos na escolinha pré-primária meio período. No outro período era hora de brincar em casa. A gente fazia praticamente tudo o que se podia fazer num quintal espaçoso de uma casa de classe média paulistana. Correr, gritar, saracotear. Quase tudo era permitido. Em casa. Jamais na rua.

Geralmente nós nos dávamos muito bem. Eu era mais velha quase dois anos. Talvez por isso, vez por outra eu acabasse "judiando" um pouco dele, como quase todos os irmãos mais velhos. Marco costumava acreditar que eu era muito boazinha. Sempre.

Mas nem sempre eu era tão boazinha assim, e vivia inventando um jeito qualquer de me impor e levar vantagem sobre ele, que era mais plácido e mais inocente. Mas não fazia muitas maldades! No restante do tempo, nós aproveitávamos a companhia um do outro e brincávamos juntos. Sempre supervisionados por uma babá que fazia de tudo para pôr ordem no pedaço.

Nos finais de semana, íamos brincar no Parque do Ibirapuera. Todos os domingos a gente saía para passear na companhia dos meus pais, que consideravam sagrado aquele tempo em família. Depois nós almoçávamos fora. Eu e meu irmão Marco dávamos palpite sobre qual restaurante seria melhor. Churrasco, comida chinesa, comida italiana, comida árabe eram as sugestões de sempre.

Nas férias recordo-me de longas viagens por todo o Brasil, de Gramado a Manaus e Ilha do Marajó, de Recife a Brasília. Muitos são os slides e fotografias desta época que, para mim, são a recordação de um tempo perfeito.

Crescemos um pouco. Mudamos da "casa velha" para outra não tão querida, mas também boa e espaçosa. E comecei o primeiro ano da escola primária.

Quem me levou à escola no primeiro dia de aula foi meu pai, depois que minha mãe me fez entender porque eu não podia mais continuar na escolinha antiga. Ela só ia até o pré-primário.

Cheguei um pouco tarde e os alunos que faziam parte da minha classe já estavam todos sentados nas suas carteiras. E não havia nenhuma para mim.

Então meu pai foi, ele mesmo, buscar uma carteira em outra sala. Recordo-me como se fosse hoje, ele entrou com a pequena mesa nos braços e me ajeitou na primeira fila. Claro, aquele era meu pai! O meu herói, o meu ídolo, o meu maior referencial. A pessoa mais importante.

Quando ele acenou, se despedindo, fiquei ali sozinha sem medo. Algumas crianças choravam todos os dias, mas eu sabia que ia ficar só apenas por um tempo. Fiz amizades com as meninas, me enturmei. Eu gostava da escola.

Quando eu estava na terceira série, o Marco entrou na primeira. A partir daí eu sempre procurava cuidar dele ao meu modo. E o defendia em eventuais brigas com os meninos, sempre muito fiel neste aspecto: ninguém encostava a mão no meu irmãozinho na minha frente.

Certa ocasião, não muito depois dessa época, uma vez meu pai falou-me algo que guardei comigo pelo resto da vida:

— Fique sempre do lado do seu irmão. Ele é da sua família, o seu único irmão. Mesmo que ele esteja errado, fique do lado dele. Em casa vocês acertam os erros.

Sim, certamente eu faria isso. Fosse a situação que fosse. Aprendi desde cedo que família é família, e o laço que une os membros de uma mesma casa é diferente de qualquer outra ligação. É uma aliança que deve, pelo menos em tese, ser indissolúvel. Eu gostaria que fosse sempre assim...

Sei que meus pais primaram para que nosso lar fosse um refúgio, no sentido literal da palavra. Procuraram criar ali um recanto de aconchego, compreensão, incentivo, amor. Assim foi durante a nossa infância!

Como já disse, cresci dentro dos quadrantes da nossa casa, não nos era permitido brincar na rua. Mas as crianças da vizinhança podiam vir brincar no nosso quintal. O que aconteceu bastante nessa época. Nós tínhamos bastante espaço e muita alegria. Eram brincadeiras de todos os tipos: correrias de bicicleta, patins, bolas de vôlei e futebol, uma balança para balançar, uma casinha de boneca para entrar dentro. E uma gritaria...

— Elefante colorido! — Que cor?! — Azul!!

— ÊÊÊÊÊÊÊHHHHH!!!!!!!!

Correria. Gritos. Risadas. Haja ouvidos!

Quando criança, eu era irrequieta, inventadora de moda, arteira, cheia de energia, de idéias, de criatividade. A alegria era minha maior marca. E o mais importante de tudo... inventar, inventar, inventar!

Sempre muito moleca, meus passatempos preferidos eram as brincadeiras de correr. Pega-pega, esconde-esconde, polícia e ladrão, elefante colorido. Não gostava de trocar roupinhas de bonecas, brincar de faz-de-conta e de fazer comidinha. Eu gostava de subirem muros... em árvores... em lajes... no telhado... e de desmontar as grandes almofadas do sofá para construir casinhas e entrar dentro.

Não raro meus pais chegavam e davam com a sala de pernas para o ar, os sofás depenados e nós dois embaixo de uma enorme casinha de almofadões. Uma vez fizemos uma casinha com uma mesa empilhada sobre quatro banquetas, no quintal, e as paredes foram feitas de tábuas e toalhas presas em cima por tijolos mal posicionados. Se tudo aquilo desabasse sobre as nossas cabeças talvez não sobrasse muita coisa!

Em suma, estava sempre aprontando alguma, correndo, descabelada, descalça, rindo, importunando, amolando, assobiando, gritando. Marco não ficava atrás, nessa idade ele queria me imitar em tudo. Eu era um referencial para ele.

Realmente minha infância foi feliz. E acho que meus pais foram até que muito condescendentes conosco porque, afinal... estávamos em São Paulo e não é fácil criar filhos numa grande metrópole. E, apesar de não sair na rua, nunca me senti presa nem tolhida. Meu pai dizia que a rua não ensinava nada de bom. No que ele estava coberto de razão. Ou a gente brincava em casa, ou ia brincar na casa de alguém.

Na verdade, nunca nos faltou companhia.

Meu pai tinha montado uma pequena escolinha de xadrez, por puro hobbie, e dava aulas em casa, à noite, para as crianças do pedaço. As mesmas que vinham brincar de tarde voltavam à noite, de banho tomado e cabelinhos assentados. Nos idos de antigamente, meu pai tinha sido responsável pela implantação do ensino de xadrez nas escolas públicas de uma cidade do interior.

De resto, à medida que crescíamos, eram muitas as oportunidades oferecidas a nós. Afinal, era preciso direcionar melhor a nossa energia de uma forma criativa, visando resultados mais proveitosos do que apenas uma casa de pernas para o ar. Foi aberto um leque de opções, e fiz de tudo um pouco, desde artes plásticas até diversos tipos de esportes. Mas tanto eu quanto Marco revelaríamos em breve uma forte inclinação para a música. Meus pais investiriam muito tempo e dinheiro nesse assunto.

Eu costumava escutar dos meus pais uma sincera explicação para tais investimentos. Eles diziam não ter grandes coisas para nos deixar de herança. Por esse motivo, nossa herança seria a melhor educação que fosse possível a eles nos dar. Fomos muito estimulados em diversas áreas, até que as habilidades natas começaram a aparecer. Nós dois éramos um tanto precoces, gostávamos de assuntos que normalmente as crianças não têm interesse. O fato de sermos casei­ros ajudava. Aprendemos a ser caseiros, nossa vida era ali mesmo, e certamente que não era ruim estar em casa.

Alguns percalços familiares desta época, problemas de relacionamento entre meus pais, aparentemente, acabaram sendo contornados e a vida continuou como dantes.

A adolescência não me tirou a paixão pelas invencionices, pela brincadeira, pelo riso... ainda que tudo isso desse lugar, pouco a pouco, por outros aspectos do comportamento. Normalmente este é um processo natural, a gente vai crescendo, amadurecendo, e se descobrindo. A personalidade vai sendo delineada. Às vezes há alguns acidentes de percurso que transtornam um pouco a formação do caráter. Quer dizer, nem tudo que é puramente genético sobrevive e se manifesta. O meio externo também tem sua participação.

Comigo não foi diferente...

Alguns problemas na escola, quando eu tinha 12 para 13 anos, me impactaram bastante negativamente pela primeira vez. Eu costumava ser muito faladeira e espevitada, engraçada, e isso acabava arrebanhando sempre comigo um grupinho disposto a perturbar a aula. Foi assim durante todo o primário, foi assim na quinta série, na sexta...

Então, quando íamos começar a sétima série fui arrancada sem dó da minha turma e colocada sozinha na outra classe. Aquilo foi terrível! Todos as minhas inseparáveis amigas ficaram longe de mim. E as inseparáveis "Mosqueteiras" perderam uma grande aliada. Os professores e a direção da escola tinham achado por bem cortar o mal pela raiz e, segundo eles, separar a líder do motim sem dúvida traria paz e sossego a todos.

Oh! Mas aquilo não me caiu bem! Fosse apenas a separação e talvez as conseqüências não fossem tão ruins, mas acontece que a outra turma era também o reduto dos repetentes. E um grupo desses moleques achou de pegar no meu pé. Foi muito difícil. Creio que aqueles meninos me queriam lambendo os seus pés, exatamente como a maioria das meninas de treze anos. Mas eu não ia com a cara deles, eram o que se poderia chamar de "barra meio pesada". E penso que, talvez até mesmo inconscientemente, eles tenham achado que deviam me dobrar.

Até hoje penso porque tanta implicância, e porque tanta maldade da parte deles. Eu nunca tinha feito nada contra ninguém, por que não me deixavam em paz?

Juntando tudo, e o fato de estar em fase muito crítica do crescimento, foi a receita certa para me afetar bastante. O processo de introspecção durou dois anos. Foi lento e gradativo, ninguém percebeu de pronto, nem eu mesma. Mas ao final do primeiro grau eu já estava bem diferente, e tinha também perdido boa parte de minha espontaneidade. Um dos traços de caráter mais interessantes da minha pessoa. Nunca mais fui a mesma.

Quando meus pais começaram a dar pelo ocorrido, ainda no final da sétima série, algumas transformações já tinham tido lugar. Naturalmente não posso atribuir toda a mudança aos problemas na escola, mas também fica muito difícil estabelecer a linha limite. E algumas vezes me ponho a pensar:

"E se nada daquilo tivesse acontecido? E se eu tivesse começado a minha adolescência normalmente, sentindo-me plenamente aceita como tinha sido até então? E se eu não tivesse cruzado com aqueles meninos que diziam coisas horríveis, por vezes até obscenas, me incomodavam o tempo todo... será que as raízes da minha auto-estima teriam sido outras? Será que eu olharia para o espelho e veria ali uma outra Isabela?!"

Eu me espantava porque agora conseguia passar a manhã toda de boca fechada na sala de aula. Se aparecesse pouco, pensava eu, aquela turma repararia menos em mim e me deixaria em paz. Mas apesar daquele ostracismo auto-infligido, até mesmo meu pai teve que intervir, a seu modo, para pôr ordem na situação. Uma vez que a Diretora da escola não tinha pulso muito firme.

Fui deixada quieta depois que a situação foi colocada em pratos limpos pelo método mais eficaz de todos. Pelo medo. Algumas famílias daqueles meninos, os piores, foram procuradas pelo meu pai. Ele era muito enérgico e firme. E, diante de ameaças muito sérias e bem claras, os pais deles acharam por bem manter seus filhos afastados de mim. E foram transferidos de escola. Aquilo de certa forma serviu de exemplo aos demais, e ninguém se atreveu a passar novamente de pato a ganso comigo.

Meu pai me defendeu. Mas eu já não era a mesma Isabela de antes.

Fiz outras amigas, deixei as antigas. Me adaptei novamente. Um pouco da espontaneidade antiga voltou, mas aquela marca de rejeição ficou fincada muito fundo na minha alma. Não me dei conta tão cedo do quanto tinha sido ferida no coração, do quanto tinha olhado para mim mesma e me achado diferente, inadequada... e muito pior do que os demais.

Muito menos eu podia supor que não tinha sido por acaso, como veria muito, muito tempo depois.

Apesar disso, boa parte do que seria a minha personalidade no futuro estava formada. Eu era naturalmente estudiosa, por vezes pesquisava sozinha assuntos que me interessavam. Na escola, era quase sempre responsável, mesmo sem muita cobrança. Observadora, mas dinâmica na hora de pôr a mão na massa. Firme, sem ser arrogante. Sonhadora, sim, mas sem tirar demais os pés no chão. Meu temperamento era fácil de lidar, mas sempre fui muito certa dos meus gostos pessoais. Aos poucos eu me tornaria alguém de temperamento bastante forte. Forte até demais, e isso me atrapalharia algumas vezes.

Problemas à parte, nesta época minha família tinha recém adquirido uma casa na praia, um sonho muito antigo. Nos primeiros anos foi muito bom, um paraíso, íamos para lá quase todos os finais de semana, todas as férias; nas férias alguns primos e tios iam também.

E tudo continuava sendo, sempre, muito familiar. Os adultos descansavam. Nós, os adolescentes, fazíamos longas jornadas de bicicleta, caçávamos siris com o picaré, pegávamos mariscos, aproveitávamos o sol e a praia, as noites iluminadas pela lua, os sorvetes (a única sorveteria do Balneário era ótima!), a mesa de pingue-pongue, os passeios com a jangada... e eu adorava comprar tranqueiras na feirinha de artesanato. Pintar a cerca e caiar de branco os pés dos coqueiros era também um entretenimento no qual eu e Marco nos esmerávamos.

E a Flicka! Que não parava de rebolar na areia, sempre latindo para todo mundo, correndo para pegar a nossa bola de tênis! E mergulhava no meio das ondas para trazer de volta seu bastão de madeira. Quando a gente a deixava sozinha em casa era batata que não demorava muito e lá vinha ela, correndo a milhão com as orelhinhas para trás, louca para nos encontrar. Ela era muito esperta, só faltava falar, sabia exatamente onde nós estávamos na praia, por mais gente que tivesse à volta. Ela adorava entrar na água e brincar com a gente.....ah! Dá saudades desse tempo tão bom!

Meu pai estava sempre por ali capinando o jardim, com o seu chapelão de palha enfiado na careca, e no finalzinho da tarde às vezes ia à praia, quando o sol estava mais fraco. Ou então, muito de manhãzinha. Ele tinha a pele e os olhos muito claros e não podia de jeito nenhum com o sol. Aliás, ele nem curtia muito essa história de praia, mas a aquisição da casa foi para satisfazer a família. Antes do almoço tinha uma caipirinha de vez em quando, a casquinha de siri feita pela mamãe, ou mariscos bem temperados.

Era assim que era: sem arruaça, sem bagunça, sem exageros. Apenas gostoso, divertido, ameno. Verdade que a vizinha incomodava bastante com a sua música alta. Este foi um dos motivos que fizeram com que meu pai, almejando um lugar de descanso, se desencantasse com a casa. Outro problema foram os assaltos, tão freqüentes naquele lugar que só ficava cheio em época de temporada. Aos poucos fomos deixando de ir tanto para lá.

Mudei de Colégio após um seleto "Vestibulinho" e comecei o primeiro ano do Colegial em escola particular. Era um dos melhores Colégios de São Paulo. Larguei a antiga rotina da escola que freqüentei durante oito anos, todo o primeiro grau, e que tanto mal me tinha feito nos últimos dois anos.

A mudança me fez bem. Agora era muito diferente, as pessoas eram diferentes e o estudo exigia muito mais. Meu dia-a-dia era a escola, as provas, o estudo de piano, o esporte, as amigas. Nos finais de semana normalmente não saía muito, estudava, lia, escrevia, desenhava. Ou então a gente ia para a praia. Nessa, época já não havia muita disposição dos meus pais em sair todos os finais de semana, nem era necessário. A semana de todos já era corrida o suficiente.

Mas a adolescência é uma fase difícil e cheia de contradições. Por mais que eu amasse meus pais, uma hora a gente começa a mudar. Começa a divergir, a defender

ideais, a querer ver a vida pelo próprio prisma e não somente pelo prisma deles. Até então eu tinha aceitado que a vida era o que era porque meus pais diziam que assim era. Mas comecei a ver com meus próprios olhos, comecei a enxergar simplesmente... diferente! Não necessariamente pior ou melhor, apenas diferente. Comecei a ver o mundo com a lente dos meus olhos, e com a minha intuição, e com a minha personalidade, e através dos meus pensamentos.

Se por um lado eu era uma pessoa única, criada de uma forma particular, por outro não era diferente de ninguém: queria poder sair às vezes, chegar mais tarde, estar em turma, conhecer gente. Ter um namorado. E aí começaram os problemas.

 

Quando saía, saía chateada, ou preocupada. Preocupada se ia haver, ou não, bronca depois. Por mais que avisasse, pedisse com antecedência, e procurasse aceitar as imposições de horários, nem sempre havia muita boa vontade. Compreendo que era uma questão de proteção e cuidado. Mas... parece que não estava havendo meio-termo.

Enfim, esse meu início de "rebeldia" — que nem chegou a ser uma rebeldia propriamente dita — acabou logo. Primeiro porque normalmente eu acabava concordando com meus pais, não queria magoar ninguém. Nunca foi minha intenção magoar ninguém. E depois porque logo, aos 16 anos, conheci Jesus. Daí, minha nova vida com Deus ajudou, de certa forma, a coibir alguns tipos de comportamentos. Dentre eles aquela pseudo-rebeldia.

Embora meus pais tivessem aceitado Jesus na mesma época, por causa de um mal entendido logo no primeiro Culto, nunca mais pisaram dentro de Igreja Protestante. Como novos convertidos que eram, compreendo que ficava difícil digerir certas coisas.

Então eu ia sozinha, com Marco.

E eles estavam satisfeitos que tivéssemos encontrado um caminho novo e, certamente, bom. Por isso permitiam que fôssemos aos Cultos e acampamentos evangélicos sem problemas. Além do que os programas da Igreja sempre terminavam cedo mesmo. Então tudo se acertou e para mim estava bem.

Começou um período ao qual novamente eu me adaptei, ainda que minha essência alegre e criativa continuasse a mesma.

Todos os dias de manhã meu pai me levava cedinho para o Colégio, eu tinha novas amigas inseparáveis, e outros interesses. Estava de olho em um lindo menino da classe, curtia um amor platônico e infantil. Eu era muito romântica, sonhadora, sensível, não via maldade nem imperfeições no amor, que era sincero e cheio de idealismos.

Fiquei de olho no menino. Mas só. Nunca deu em nada. Embora durante o terceiro ano do Colegial eu tivesse armado mil e uma "armadilhas" para fisgá-lo, ele não caiu em nenhuma. Ou melhor, quase nenhuma! Ele dançou comigo no Baile de Formatura. Só comigo! Minhas amigas achavam-me super corajosa por tentar tão ardentemente conquistar o inconquistável. Realmente eu era muito fiel àquele sentimento! Meus olhos e meu coração só tinham espaço para ele.

Até apareceram outros pretendentes, mas eles não despertaram o meu coração, embora fossem Cristãos também. Mais de um pretendente, por sinal. Mas eu queria o menino da escola, não havia jeito.

"Que pena que não deu certo...", pensei comigo mesma por muito tempo.

Mas, corações apaixonados à parte, nessa altura havia muito mais em que pensar. Já tinha feito um pouco de várias coisas: ginástica olímpica, natação e saltos ornamentais. Agora, com 16 anos, estava na fase do tae-kwon-do. Continuava levando o piano a sério e o Vestibular estava chegando. Isso quer dizer que eu tinha que estudar, de fato.

Meus 17 anos me pegaram em cheio levando uma vida bastante regrada. Mas não bitolada. Eu estudava o suficiente, sem exageros, sem achar que a vida era somente aquilo. Sempre detestei gente bitolada.

No entanto, as pressões para fazer a escolha de uma futura carreira profissional começaram a perturbar minha alma. E comecei a impacientar-me em relação ao que prestaria no Vestibular. Eu tinha feito um "Teste de Interesses" no Colégio e o resultado não me surpreendeu. Estourou lá em cima na área de Música, Artes e Literatura. A seguir, com pontuação não tão surpreendente, veio a área de Ciências Biológicas.

Bem... interesse é interesse, e a gente até pode ter! Mas qual carreira poderia encaixar-se dentro daquele perfil? Conversei com meus pais, procurei pensar bastante, orientar-me o melhor possível. Por sinal era o que todos estavam fazendo no Colégio. Era um momento delicado e importantíssimo das nossas vidas.

Até uma certa altura de minha vida eu tivera pretensões de seguir a carreira de Música. Mas um estudo deficiente do instrumento nos primeiros anos fez com que eu perdesse um tempo precioso na minha vida de musicista. E embora alguns professores garantissem que eu era talentosa, quando se fala em carreira profissional de Música Erudita a coisa não é assim tão simples. E o tempo da infância é fundamental. Uma vez pouco aproveitado, isso pode custar caro. E, para mim, custou mesmo. Em se tratando de música não profissional, cheguei mesmo a tocar bem. Mas isso nunca me serviu para nada.

Eu sabia que não estava apta a prestar um Vestibular imediatamente na área de piano. Também não era vantajoso esperar. Aliás, eu já não estava tão certa assim que esse era o meu caminho.

Que me restava?

Bem, eu amava as Artes em geral! Além da música, fascinava-me especialmente a parte de Teatro e tudo o que se referia às Artes Cênicas. Eu gostaria muito de ter estudado algo nessa área, não necessariamente eu me tornaria uma atriz a mais nessa vida... mas, quem sabe... roteirista, diretora, sei lá...! Deveria haver algum campo para atuar! Bom... mas isso estava absolutamente fora de cogitação. Meu pai já me tinha feito perceber que essa tara teatral não era do seu agrado, em hipótese alguma. Não adiantava querer bater de frente com ele outra vez e insistir naquilo.

A primeira vez em que nos pegamos nesta divergência eu tinha 14 anos e fazia Teatro na escola. Embora a princípio ele tivesse deixado, depois começou a não gostar e foi uma época de muita confusão em casa. Não adianta querer discutir hoje quem tinha razão. Mas eu nunca fiz nada demais, nunca fiz nada tão terrível... não me drogava, não era leviana... dentro do possível procurava ser o mais obediente que podia. Ele também poderia ter sido mais flexível!

Ser adolescente não é fácil. Também não é fácil ser pai de adolescente! Mas o que se podia depreender disto tudo?

Em suma: eu sabia que aquela paixão tinha que ser sufocada. Meu pai tinha trabalhado um tempo em contato com grupos de Teatro quando estava mais ligado ao ensino do xadrez nas redes de ensino. E era categórico em afirmar que tudo de ruim vinha de dentro desses grupos. Ele preferia estar morto a me ver envolvida com algo assim, tinha verdadeira ojeriza pelo fato de que eu pudesse ser atriz.

Certamente não poderia ir em frente, ainda que houvesse muito a ser feito na área das Artes Cênicas. Eu teria adorado ser, não atriz, mas diretora! Já imaginou? Desde criança que eu montava peças em casa, tinha até escrito uma peça na época em que participava do grupo de Teatro na escola. Mas, enfim... nem pensar! Sequer cogitei naquilo por mais do que alguns minutos. Não seria aceita de qualquer forma.

Então continuei pensando que rumo tomar na vida.

De resto... e a Literatura? Também ela não me oferecia grandes oportunidades em termos de profissão, pelo que concluí logo. Engraçado pensar nisso, mas a primeira coisa que eu desejei "ser quando crescer" foi isso: escritora. Desde que a caneta me caiu nas mãos, logo depois de alfabetizada, não parei mais de escrever. O mais interessante é que eu me empenhava naquilo de uma forma totalmente natural, sem pensar porque o fazia. Apenas escrevia. Por pura diversão! Para mim escrever era isso: diversão. Ainda criança ganhei um concurso de Literatura na escola, e recebi junto uma menção honrosa porque a minha história — A Floresta Encantada — ficou encaixada dentro da categoria de "Livro", e não apenas "Conto".

Depois, ao longo dos anos, acabei por escrever mais três livros — três romances — mas nunca os mostrei a ninguém. Não sabia se aquilo poderia ter ou não algum valor literário de fato, mas a verdade é que aqueles montes e montes de folhas rabiscadas terminaram empurradas cuidadosamente para o fundo da gaveta. Além destes, os vários volumes de diários ficavam guardados sigilosamente na escrivaninha. Era a história da minha vida. Isto também contribuiu para aumentar o gosto e a destreza pela escrita, mas dentro daquele mundo certamente ninguém teria entrada.

E a chavinha da gaveta jazia pendurada atrás do quadro de gatinhos, ano após ano.

Ao longo da minha vida acadêmica os professores costumavam elogiar mi­nhas redações, especialmente durante o Cursinho. Eu estava acostumada com os elogios, mas o que eu poderia fazer com isso, afinal? Escrever bem me serviria para alguma coisa? Quem sabe, talvez... Jornalismo??? Ora, ora.... acho que meu problema era gostar de muitas coisas ao mesmo tempo. E, pior do que isso, gostar de coisas que não me garantiriam nenhuma carreira promissora!!

Percebi logo que interesse é interesse, vocação é vocação... e profissão é profissão. Eu tinha que optar por algo que me garantisse a independência e o sossego profissional depois. Meu pai vivia dizendo que seria muito bom se eu pudesse abraçar uma carreira liberal, autônoma. Ele tinha razão, eu sabia. E estava falando com conhecimento de causa porque ele mesmo não era subalterno de ninguém, antes aquele que dava as ordens, que tinha poder para resolver as coisas a seu modo.

Se eu fosse levar em conta apenas minha alegria e facilidade em criar coisas novas, o ideal teria sido mesmo partir para a área de Propaganda e Marketing, Publicidade... mas naquela época, tanto Jornalismo como Propaganda simplesmente caíram no esquecimento. Nem me pergunte por quê. Talvez tenha sido por falta de informação. Talvez tenha sido um percalço do destino.

"Mas como?", vocês hão de me perguntar. "Se você estava justamente procurando por isso?".

Sim, eu estava. Se fosse hoje, não teria dúvidas quanto a seguir este rumo. Mas as informações não chegaram de maneira imparcial naquela época. Elas já vieram "viciadas", por assim dizer, porque eu fiz um terceiro ano voltado para Ciências Biológicas em decorrência do teste de interesses. E ali, 80% dos alunos ia fazer Medicina. Quase não havia informação despretensiosa e interessante sobre outros cursos, informação real. Durante o ano todo eu ouvi falar sobre a área de Saúde como sendo o único caminho possível.

Naquele ano havia apenas uma única turma voltada para a área de Humanas. Mas ela era visivelmente discriminada pelos demais, tanto os que faziam curso de Exatas e Biológicas, quanto os das classes Unificadas. Eles eram apelidados nos bastidores de "Elite do Lixo", uma maldosa menção ao fato de pertencerem a um Colégio de elite mas estarem dispostos a se dedicar a carreiras "pouco nobres".

Tinha sido criado um rótulo, um estereótipo... um preconceito! Hoje percebo que isso pesou muito mal na minha própria escolha.

Por outro lado, a opinião do meu pai contava muito. Por sinal, não tinha mais nada nesta vida que contasse tanto. A aprovação dele era tudo. Comecei a ver como iria resolver aquela parada. O que deveria escolher???

Eu poderia escolher qualquer coisa... desde que estivesse dentro da área Biológica. Nunca ninguém me disse isso, nem impôs isso. Mas acho que eu entendia assim, entendi que esse era o caminho correto a seguir. Deveria deixar de lado essa história de Música... Artes... Literatura... bobagens semelhantes.

Eu adorava animais, adorava e respeitava a natureza acima de tudo. Então, num voto de misericórdia, pensei que poderia tentar unir o útil ao agradável. Veterinária, nem pensar. Eu gostava de animais saudáveis. Mas então, quem sabe, Oceanografia? Ou talvez... Agronomia?

O melhor Instituto para estudo da Oceanografia ficava, naquela época, no Rio Grande do Sul. Não me animei muito, ou sei lá o que me fez vacilar. Também procurei informar-me melhor sobre Agronomia, até fui assistir a uma palestra sobre isso no Colégio. Mas me pareceu, depois do entusiasmo inicial, que aquilo também não era exatamente o que eu estava querendo.

Como meu perfil era completamente voltado para a área de Humanas, mas eu não podia dar vazão a isso, foi um passo tentar fazer uma mistura das Ciências Biológicas com as Humanas.

A primeira delas, e a que me pareceu mais interessante e promissora, foi Psicologia. Eu gostava muito das nuanças da mente humana, dos desvarios do id, tudo que dissesse respeito à psique. Desde adolescente, tinha andado às voltas com a prática científica da hipnose e leituras como a "Psicanálise dos Contos de Fadas". Sim, agora parece que eu estava chegando perto!

Satisfeita, cheguei a anunciar o fato praticamente como uma decisão já tomada. Em casa, conversa vai, conversa vem, meus pais procuraram balizar da melhor forma. E acabamos chegando à conclusão de que talvez fosse melhor prestar um Vestibular de Medicina. Eu poderia ser Médica Psiquiatra.

E quando uma das minhas amigas de infância, muito apreciada pelos meus pais, revelou sua decisão categórica pela área Médica notei a clara apreciação deles em relação a isso. Sem querer, demonstraram por ela o orgulho que eu queria que sentissem por mim. E mesmo gostando do mar profundo que era a alma humana, acabei vítima de um golpe do meu próprio inconsciente: em pouco tempo acabei optando também por seguir aquele caminho que desde o início parecia ser um único.

Engraçado como a coisa acontece e a gente não se dá conta. Se eu fosse parar para pensar, Medicina foi a única opção que, em criança, recusei.

"Eu? Passar a minha vida toda dentro de um Hospital?. Deus me livre!"

No fim, tudo aquilo que tocava fundo o meu ser, que vinha de dentro e me despertava, e para o que eu sentia uma inclinação natural... deixei de lado, abandonei...

Naturalmente isso também não aconteceu por puro e mero acaso. Mas, fato é que assim aconteceu.

 

Definido o meu objetivo, fui atrás dele. Fiz o melhor Cursinho da época. E com 18 anos ingressei em uma das mais cobiçadas Faculdades de Medicina do Brasil, após um ano inteiro de muito, muito estudo. A época das provas me pegou cansada e um pouco estressada, o primeiro dia de exame foi difícil. Passei o tempo todo com uma terrível dor de estômago, mas mesmo assim me saí bem. Depois me acalmei para as próximas provas. O resultado foi que entrei em todas as Faculdades que prestei.

Claro que aquilo foi motivo de muita festa! E o início do ano letivo tinha um sabor de conquista. Eu iria estudar exatamente aonde tinha me proposto.

Os anos na Faculdade terminariam por lapidar o meu ser. A experiência seria benéfica em alguns sentidos. Nem tão benéfica em outros. A vida transforma a gente, não há dúvida. Alguns se adaptam mais facilmente, outros são donos de personalidades incomuns e, por isso, sofrem mais. Mas a verdade é que todos são marcados! Mais uma vez... eu não fui diferente. Posso dizer que àquela altura minha personalidade já estava praticamente formada. Descobri-me mais determinada do que antes, dona de uma mente racional e lógica. Em contrapartida, a sensibilidade, a intuição, uma certa introspecção melancólica. Precisava estar sozinha um pouco para manter o equilíbrio. Mas adorava longos "papos-cabeça" com alguma cabeça interessante, e mantinha o interesse por aquilo que traz sabor à vida, ainda que não sirva para mais nada: a beleza da música, das palavras, a alegria de uma boa gargalhada, o amor pela natureza.

E ali estava eu: uma das calouras da Medicina! Não posso dizer que não estava gostando do curso, pelo contrário. O estudo do corpo humano é fascinante! Conhecer seus processos bioquímicos e biofísicos, a fisiologia dos diversos sistemas, a intimidade de cada célula, a Anatomia... era tudo muito bonito! Futuramente, ser capaz de entender como funcionam os processos patológicos e o que fazer para diagnosticá-los não deixava de ser um estimulante exercício mental.

Logo nas primeiras semanas eu ficava pensando em como se faria aquele milagre: aprendermos tudo aquilo, nos prepararmos para a vida de Médicos.

Parecia realmente um milagre. Eu e os demais calouros escutávamos de orelhada a conversa dos veteranos no centro acadêmico ou no nosso clube exclusivo, e eles falavam naturalmente tantos termos técnicos misturados com a conversa do dia-a-dia que havia entre nós uma incomensurável distância!

— Será que nós também vamos ficar assim?— indagávamos uns aos outros. — Será que nós também vamos falar desse jeito quando estivermos no mesmo estágio que eles?!

Era esperar para ver. O tempo e o esforço de cada um fariam o resto.

A Anatomia — matéria que foi dada logo de cara no primeiro ano — não causou em nenhum de nós os seus tão comentados efeitos. Aquelas histórias que ouvíamos contar antes de ingressar efetivamente na Faculdade: mal estar, gente vomitando e desmaiando dentro do laboratório repleto de cadáveres. Acho que isso era mais comum nos idos de antigamente, quando as pessoas não estavam tão acostumadas a um dia-a-dia recheado de sangue e violência, coisas que a mídia faz questão de trazer para bem perto.

A bem da verdade, foi realmente muito divertido comprar nossos kits de bisturi e pinças, e colocar mãos à obra! Ou melhor, mãos ao cadáver.

A mim me coube, como primeira tarefa, dissecar uma perna junto com mais duas moças. O primeiro bloco era de "Sistema Locomotor". Ensinaram-nos como separar a pele e a gordura da musculatura, e lá fomos nós. O Atlas de Anatomia ficava apoiado na mesa e volta e meia um pingo de algum material orgânico caía ali acidentalmente. Ossos do ofício! Sujar um Atlas lindo daqueles era até um crime...

Mas o fato é que depois de um tempo a gente podia até mesmo comer lanche no laboratório, bem em cima das peças recém dissecadas, sem nenhum pudor. O único incômodo real era mesmo aquele forte cheio de formol. Ninguém ligava muito para o que estava ali, na nossa frente, em cima das mesas.

Somente uma vez, já no final do primeiro ano, quando passávamos pelo bloco de "Cabeça e Pescoço", foi que parei para pensar um pouco mais no aspecto mórbido da situação.

Certa noite, após as aulas, eu e mais dois colegas estávamos estudando para a prova final. A prova prática consistia em identificar as estruturas nas próprias peças. Isto é... nos cadáveres. Então nós tínhamos que passar horas e horas debruçados sobre eles, estudando cada fiozinho de nervo, veia e artéria, cada músculo, cada pedacinho. Era necessário ter tudo na ponta da língua porque a prova prática tinha bastante peso e muito pouco tempo para ser feita.

Antes do estudo propriamente dito eu e o Anderson não resistimos à tentação de assustar a Mariana. Apagamos todas as luzes do laboratório e ficamos escondidos debaixo de uma das mesas, rindo baixinho. Mas ela não entrava nunca, então cansamos de esperar. Fomos ver e Mariana estava emburrada lá fora, cheia do nosso sumiço. Deixamos de lado as brincadeiras e fomos estudar.

E lá estavam elas, montes e montes de cabeças humanas dentro de uma caixa d'água repleta de formol. O formol fazia a gente lacrimejar os olhos e dava um pouco de alergia, mas não havia outra solução senão rebuscar no recipiente à cata das melhores.

— O que vocês acham desta? — perguntou o Anderson.

— Não está boa, olha só, o nervo facial está arrebentado!

— Mas esta aqui tá legal para estudar os vasos do pescoço. Depois a gente pega outra melhor para ver o facial!

Fui procurando também, era melhor já deixar todas as cabeças separadas sobre a mesa para depois começar o estudo. E quando eu pesquei uma delas pela orelha não pude conter um riso nervoso. E comentei com meus amigos:

— Pôxa vida, o que é que nós estamos fazendo aqui, hein, pessoal?! Que coisa mais macabra!

A Faculdade estava mergulhada em silêncio sepulcral, não havia ninguém pelos corredores. Então continuamos rindo e rindo para dissipar aquela sensação de estranheza. Realmente não era a coisa mais divertida e linda do mundo olhar para aqueles rostos.

Era muito diferente de ver um braço, um pé, ou mesmo vísceras espalhadas. Um rosto era sempre um rosto! Era pessoal. E me fazia pensar um pouco. Onde estava o espírito daquelas pessoas naquele momento? O que restou dos seus corpos estava ali, naquele laboratório... mas... e a vida que saiu do corpo?....

"Como é bom ser filha de Deus e saber para onde vai o meu espírito depois da minha morte!"

Aliás, em relação a este aspecto, eu não fiz qualquer segredo diante da turma. Logo todos sabiam que eu era Cristã. Já nas primeiras semanas de aula cheguei inovando e fazendo uma pesquisa com os colegas sobre questões religiosas. O que pensavam sobre Deus, sobre alguns temas Bíblicos, se acreditavam no diabo. Era engraçado! Em Deus todo mundo dizia acreditar. Mas poucos pareciam preocupados com o diabo, antes deixavam esse tipo de assunto para os ignorantes e supersticiosos. Confesso que não foi muito sábio da minha parte expor-me tanto logo de cara. Eu deveria ter me aberto mais devagar. Mas de qualquer forma aquilo serviu para identificar os Cristãos da turma. Só havia um: o rapaz japonês que estranhou um pouco a abertura fácil da minha fé. O Carlos. E até me disse para tomar cuidado:

— Você pode ser julgada.

Não liguei muito, mas ele tinha razão.

A maioria não estava nem aí para esse tipo de coisa, e minha atitude gerou um certo afastamento de algumas pessoas, ostensivamente. Havia quem detestava taras religiosas. Ao longo dos anos eu teria que pagar um preço por isso. Desprezo de alguns, críticas... especialmente quando minha crença me impulsionava a agir de modo diferente da maioria.

Por exemplo: eu não colava nas provas nem passava cola. Durante toda a minha vida acadêmica sentei nas barbas do professor, sempre na segunda ou terceira fileira, justamente para evitar esse tipo de coisa. Não era questão de ser chata. Achava que isso desagradava a Deus, então não fazia. E dizia porque não fazia. E pronto.

Uma vez conseguiram roubar uma prova em branco de Biofísica, uma matéria que reprovava bastante. A avaliação seria dali a alguns dias e diversas resoluções circularam pela classe, apavorada com as muitas notas baixas no primeiro teste. O próprio Carlos veio me oferecer uma das correções. Foi realmente uma tentação, mas fiz força para não aceitar, não quis. Não dei nem uma olhadinha, apesar de estar morrendo de medo da Biofísica! Fui a única aluna da classe que fez isso.

Mas acabaram descobrindo depois, alguém dedurou. Foi pior para todos e meio mundo ficou em recuperação. Eu também. E paguei o pato de ter que resolver uma prova muito mais difícil. Mas eu costumava confiar que Deus me daria a sabedoria necessária, a memória necessária. Me ajudaria a estudar as coisas que de fato iam cair. Porque geralmente era impossível estudar tudo. A quantidade de matéria era absurda, eram calhamaços e calhamaços de leituras e informações, tinha que ser um estudo direcionado.

Houve vezes em que minutos antes das provas lia ainda um ponto ou outro, e aquele era exatamente o que caía na avaliação. Às vezes eu orava e pedia a Deus que me fizesse estudar o mais importante, o que ia ser cobrado.

Muitas vezes não colei, e fui melhor do que os que colavam. Outras vezes, fui pior do que os que resolviam as provas em duplas. Mas estava com a consciência limpa. Não queria me enganar. E não tinha medo de ser diferente da maioria. Meus amigos mais próximos respeitavam. Cada um na sua.

Outro aspecto que acabou me separando um pouco da maneira de pensar do resto da turma foram as festas. Eu fui nas primeiras. Mas não ficava bêbada. Nem "ficava" com ninguém. Logo deixei de ir, porque para mim não trazia nenhum prazer. Deixou de me interessar. Porque não combinava com meu estilo de vida. O clima das festas era meio de baixaria, e eu não curtia esse tipo de coisa.

Também havia a questão do esporte. Desde o Colegial eu estava acostumada a participar das competições, gostava bastante. Quando entrei na Faculdade, era minha intenção continuar com aquela prática. Entrei no time de vôlei das calouras. Em relação ao jogo até que teria me dado bem, mas, que azar! Não era mais como no Colégio, o pessoal ligado ao Centro Esportivo da Faculdade era terrível. E todas as músicas de torcida eram cheias de palavrões, simplesmente não dava para cantar aquilo! Eu era Cristã! Não dava mesmo! Me senti um peixe fora d'água.

As grandes e famosas competições que reuniam as Escolas de Medicina de São Paulo eram, no meu entender, impossíveis de freqüentar. Acostumada com os acampamentos evangélicos... para mim era demais!! O pessoal bebia, aprontava e aproveitava para extravasar o lado mais obscuro da alma de uma forma ruim. A rivalidade entre as Escolas chegava às raias do exagero, não era saudável. Os mais novos sofriam mais, coitado do calouro que não caísse no gosto dos veteranos. As brincadeiras eram de mau gosto. Eu queria distância daquilo.

Naturalmente que posturas assim, um tanto "extremas", criavam um desconforto de alguns em relação à minha pessoa. Eu não era "como eles". O simples fato de não estar à vontade, por mais que nada dissesse, soava como uma afronta. Tinha que pagar o preço também por isso. Mas tinha aprendido a fazer as minhas escolhas. Todo mundo já era praticamente adulto, todo mundo tem que aprender a tomar suas decisões baseadas naquilo em que acredita. Eu fiz as mi­nhas, nem por isso fui uma "excluída" da turma. Tinha quem pensasse como eu, mesmo não sendo Cristão; tinha também quem não pensasse como eu, mas ainda assim me respeitasse. E vice-versa. Como já falei, também respeitava os outros, não tinha nada a ver com o que eles escolhiam para eles mesmos.

Meus principais amigos eram todos diferentes da maioria. Tinha a Mariana, que também adorava Música e Arte, era firme no seu jeito de ser, diferente. E foi uma das minhas alunas de piano. Tinha a Cíntia, que veio comigo do Colegial, a gente já tinha história junto.

Tinha o Anderson, pianista e romântico como eu, e que também queria ser Psiquiatra. A gente vivia competindo no piano, tocando um para o outro, vendo quem tocava melhor. Provando um ao outro porque os compositores Românticos eram melhores do que os Clássicos e Barrocos... ou não Ele tocava Schubert, eu também. Ele tocava Chopin, eu também. Ele tocava Beethoven, eu também. Ele tocava Bach... mas não gostava muito de Bach. Às vezes, eu também. Anderson caçoava de mim quando me via ensaiando trechos da Rapsódia Húngara de Liszt:

— Isso não é música pra mulher tocar... precisa de muita força!

Ah, sim? Essa é uma música para bons pianistas, sabe? — eu dava risada de volta. — Você, por acaso, toca a Rapsódia Húngara?

— Meu estilo é mais ortodoxo!

As pessoas passavam e às vezes paravam para escutar. A gente não ligava, continuávamos nas nossas acaloradas discussões. Mariana reclamava.

— Que tal vocês tocarem, hein?

Tinha também o Philippe, que gostava de Artes Marciais, era muito inteligente mas com umas idéias filosóficas meio fora de freqüência. Tinha até mesmo feito um pouco de Filosofia antes de partir para a Medicina. Mas queria ser Psiquiatra. E eu lhe dei um dos filhotes da Flycka.

E tinha também o Abreu, revoltadíssimo com Religião e fundador de uma doutrina própria batizada de Abreuísmo. Uma aberração! Vê se pode! Pura infantilidade, no fundo, e vontade de chamar a atenção. Para variar... Psiquiatria era seu lema! Os futuros Psiquiatras da turma eram, que a modéstia me perdoe, muito mais interessantes e versáteis do que o resto!

Eu tinha evangelizado todos os meus amigos, do meu jeito. Costumavam, a princípio, fazer muitas perguntas. E depois argumentavam, questionavam, retrucavam, filosofavam. Eu sempre rebatia numa boa, disposta a ouvir e a convencê-los de que eu estava certa. Sempre gostei de uma discussão produtiva. Eu não ia desprezá-los por pensarem diferente de mim, muito pelo contrário, eram mentes inteligentes que precisavam de Jesus. Mas, mesmo que não tenham querido se envolver com Cristianismo, o fato é que a amizade ficou. Era gente boa, legal, e com quem convivi bastante.

Eles sempre acharam estranho que Deus pudesse fazer parte da minha vida daquela maneira. Era uma coisa nova. Mariana se incomodava menos mas os outros cutucavam, volta e meia vinham com seus questionamentos. O Anderson era o mais incomodado: quase todos os dias dava um jeito de me espetar, fazer deflagrar alguma discussão envolvendo o Cristianismo.

Eu percebia o quanto a sua alma estava árida...

Mas os meus amigos de verdade, aqueles que me foram realmente caros durante

a Faculdade, eram os que freqüentavam o grupinho evangélico, a A.B.U.. Não que a gente tenha sido acompanhado pela A.B.U. de verdade, não foi isso. Era uma coisa meio independente mas nós adotamos o nome. Nos reuníamos duas vezes por semana, houve períodos em que até três vezes. Para estudar a Palavra, louvar, orar juntos. Mais até do que isso, caminhar juntos!

Ali eu encontrei identidade, claro, como não poderia deixar de ser.

Quando cheguei, fui bem recebida, apesar de que o grupo estava quase em fase de extinção. Só tinha umas quatro pessoas. Tomei para mim a tarefa de mudar aquela realidade, comecei a inventar coisas novas, e não sei como foram aparecendo outros Cristãos. Mais tarde ganhei o apelido de "Motorzinho" da A.B.U. por causa da minha vontade e facilidade em animar todo mundo.

Esse primeiro núcleo seria formado por pessoas especiais. Logo havia alunos de todos os anos e ali eu iria conhecer aqueles que seriam companheiros durante todos os anos que passaria na Faculdade. A empatia entre nós era total. Meus principais amigos eram a Mayra, a Daisy Liu, a Maria Alice, a Andreza, o Edílson, o Fabiano, a Lara, o Wilson e o Shin. Mas havia outros participantes. Dentre eles, o Carlos. Excetuando ele e eu, todos estavam mais adiantados. A Mayra e o Shin eram os mais velhos, estavam já no quinto ano!

Ah! Era um verdadeiro oásis no meio daquele deserto.

Muito diferente dos amigos da classe, porque nós falávamos a mesma linguagem! E desde o início fomos aprendendo os princípios básicos do Cristianismo da melhor maneira: convivendo uns com os outros e procurando colocar em prática o que a Bíblia dizia.

Um incentivava e lapidava o outro. Um ensinava e aprendia com o outro. Apesar de cada um ter uma denominação diferente, e quase metade ser de orientais, principalmente chineses, vivíamos em completa paz porque havia respeito. E porque o nosso denominador comum era Cristo.

Quarta-feira era dia de estudo na hora do almoço. Divididos em duplas, montávamos estudos muito bons para compartilhar com os demais. Quarta-feira era também dia de Evangelismo, ou seja, o dia em que estávamos preparados para receber visitas. Era praxe todos os estudos terminarem sempre com uma mensagem sobre a cruz, sobre a salvação, independente do tema.

Sexta-feira à noite era dia de Louvor e Oração. A gente se reunia às seis horas e sempre louvávamos ao Senhor durante quase uma hora. Era um momento incrivelmente especial, um momento de restauração, de refrigério, dei paz. Normalmente, o Shin ou o Wilson tocavam violão, às vezes o Carlos, e a gente ia pedindo esta ou aquela canção. Montamos até várias pastas com as letras das músicas. Na hora da reunião, era só distribuir as pastas para todo mundo poder cantar acompanhando a letra.

Depois do Louvor, a gente compartilhava: a Faculdade, os problemas, a família, coisas que Deus estava falando, mostrando... pedindo, ensinando... desafios, expectativas... derrotas, vitórias... etc.

Aí a gente se dividia em grupinhos de três ou quatro pessoas para orar pelos pedidos que tinham sido colocados. Era assim mês após mês, ano após ano.

A reunião de sexta-feira terminava lá pelas nove horas da noite. A gente não tinha pressa de terminar porque aquele era um momento especial. E era especial porque não era fingido, não era hipócrita, ninguém precisava "fazer de conta". Isso era o melhor de tudo!

Quando a gente entrava ali, podia ser a gente mesmo. As fraquezas, as dificuldades, os problemas, tudo isso que era natural do ser humano... não era desprezado, nem muito menos julgado. Nós não tratávamos nossa própria humanidade como defeito. Não era preciso esconder, o melhor era expor tudo isso e, juntos, com a ajuda de Cristo, tentar ser pessoas melhores!

Procurávamos realmente nos tratar um ao outro. As conquistas individuais eram motivo de alegria e não faltavam elogios quando alguém conseguia superar uma barreira. Reinava entre nós uma interessante sinceridade, algo de fato diferente. Nunca mais experimentei isso em nenhum outro lugar. A gente se sentia mesmo fazendo parte de uma pequena família, se sentia aceito, se sentia cuidado. Deus cuidava de nós tendo como instrumento os amigos que estavam ali mesmo.

Pode até parecer uma visão poética, mas era assim mesmo. Foi assim. Foi real! Hoje me parecem tempos tão, tão distantes... como se outra pessoa os tivesse vivido. Mas ainda guardo na memória o bem que me acrescentou.

Claro que havia uma parte da A.B.U. que era "flutuante". Gente que vinha às vezes, gente que vinha de fora. Mas aquele miolo, aquele núcleo do qual eu fazia parte, esse era de fato muito unido. Talvez fôssemos cerca de dez a doze pessoas que se tornaram muito amigas durante alguns anos.

Mas não somente ficávamos trancados dentro da nossa sala, dentro do "cirquinho" da Patologia. Os que já tinham mais visão nessa área incentivavam aqueles que não tinham: "O sal não pode ficar dentro do saleiro se quiser salgar."

Então, às vezes, a gente organizava cruzadas evangelísticas pelo Hospital.

Outras vezes, queríamos alcançar os nossos próprios colegas de turma: daí montamos um jornalzinho Cristão para circular na Faculdade, pena que só deu para lançar duas edições. Falta de verba. Mas valeu a tentativa! Algum barulho bem que a gente fez.

Outras ocasiões favorecíamos o convívio entre as várias células de A.B.U. que existiam em outros cursos da Universidade. Acabamos conhecendo muita gente, e eles também nos conheceram. Todo entrosamento entre os Cristãos era válido! Eu gostava muito de estar no meio deles.

Doutra feita, montamos uma peça de Teatro evangelística. Foi coisa da Andreza. Ia haver uma Semana Cultural na Faculdade e todo mundo podia participar com qualquer tipo de coisa. Sem mais essa nem aquela, Andreza primeiro inscreveu a A.B.U. e depois nos comunicou. Tínhamos menos de um mês para inventar algo e participar. Todo mundo deu duro, ajudando de uma forma ou de outra. Eu estava empolgada com a peça, não poupei esforços.

No dia da nossa apresentação o anfiteatro da Faculdade estava cheio. Até meus pais foram também! E meu pai gostou muito da peça.

Com o passar do tempo, com o aumento das atividades acadêmicas e a proximidade da Formatura, algumas pessoas deixavam de vir às reuniões. Mas chegavam calouros e, dentre eles, sempre havia um Cristão.

No entanto, algumas destas amizades transcenderam as reuniões. Tornaram-se mais sólidas. Seria assim comigo e com Mayra durante um bom tempo. Nós duas, com Edílson e Cristiane, uma colega que fazia Terapia Ocupacional, encaramos seriamente o Evangelismo no Hospital. Uma vez por semana nós levávamos a Palavra aos doentes, e foi assim durante muito tempo. Até depois da minha Formatura!

A A.B.U. tornou a Faculdade mais leve, sem sombra de dúvida.

Mas, voltemos ao curso de Medicina!! Já deu para explicar bem o que era a A.B.U.!

O primeiro e o segundo ano foram bastante teóricos, uma carga imensa de teoria. Mas na segunda metade do terceiro ano começamos a entrar em contato maior com os pacientes. E tivemos uma matéria chamada Propedêutica Médica, ou seja, grosso modo, trata-se da arte de "colher uma história clínica e examinar um paciente".

Pode parecer fácil, mas no começo não era muito fácil. E os próprios doentes chegavam a esquecer-se um pouco das agruras da internação e divertiam-se em observar-nos, a nós, os alunos, cheios de cuidados e gentilezas, fazendo vez após vez várias perguntas semelhantes. Normalmente os pacientes eram realmente pacientes e não se importavam em gastar muito tempo conversando conosco. Aquilo que um Médico experiente consegue em meia hora, nós levávamos mais ou menos uma hora e meia.

Era imprescindível não deixar escapar nenhum detalhe importante! Mas, mesmo assim, eles escapavam. É porque, no começo, nós não sabíamos perguntar exatamente o que era importante, nem o que fazer para conduzir uma entrevista que nos levasse o mais perto possível de algo que pudesse assemelhar-se a um diagnóstico.

Mas errando, a gente aprendia. O normal era "tirar a história" em duplas, ou trios, e depois as discutíamos com os Assistentes. No início, ao chegarmos com elas, os Médicos Assistentes nos faziam perceber quantos dados fundamentais tinham sido esquecidos.

— A paciente teve dor? Ótimo, e o que mais?

— Bom, começou com a dor abdominal...

— Mas como foi essa dor? Quer dizer, era uma dor de que tipo? Era em cólica, por exemplo, ou era constante?

— Bom, pelo que ela falou, parece que era em cólica.

— Mas era, ou não era? Vocês não podem ter dúvidas quanto a isso. Depois voltem lá para perguntar. E como quantificar a intensidade desta dor? Era de fato algo importante? Dor é algo muito subjetivo. É importante saber se a paciente suava frio ou tinha taquicardia durante as crises de dor, ou se não conseguia dormir, por exemplo. Via de regra, qualquer dor que não impeça o sono não é muito significativa, por mais que o paciente insista em dizer que "doía muito". Percebem? E em que região do abdome?

— Ah! Na parte de cima!

— Tem fatores de melhora, ou piora? Houve algum fator desencadeante?

— ?

— Quer dizer, piora com alimentos, por exemplo? Ou melhorou com algum tipo de medicação? Há quanto tempo ela está tendo dor? Tem algum outro fator associado?

— Ela teve vômitos.

— Somente vômitos? Você sabe se ela teve febre no mesmo período?

— Hum... não perguntamos.

— Ela teve diarréia?

— Ah, sim, comentou sobre isso também.

— E o aspecto desta diarréia?

— Pôxa, não perguntamos.

— É fundamental saber se tinha sangue, ou resíduos, ou pus, e também a intensidade dela. Quantas vezes por dia ela ia mesmo no banheiro? Voltem lá e melhorem a história. Daí vamos discutir o exame físico!

E assim por diante. Dia a dia aprendíamos como pode ser cheia de detalhes uma dor de barriga, ou uma dor de cabeça. Pelo menos teoricamente. Não havia muita prática realmente falando, a gente ainda não conseguia juntar todas as informações muito bem. O exame físico era outro problema. No início, examinar era muito difícil.

Mas chegou o quarto ano, e ele vinha cheio de desafios porque era o momento em que de fato entraríamos em contato com Medicina. Pelo menos a pontinha dela!

Os primeiros três anos deveriam ter dado base suficiente e nos preparado para compreender como a Patologia acontece, e que passos seguir para diagnosticá-la. Até o final do quarto ano não se espera que o aluno tenha em mente a terapêutica, ou seja, o tratamento. Apenas uma boa avaliação clínica do paciente, indicação de exames laboratoriais e, se possível, uma aproximação o mais fidedigna possível da doença em questão.

No quarto ano a gente começa a perder o medo de entrar em contato com os doentes, de conversar com eles, examiná-los. Os erros muito crassos também deixam de acontecer. Aos poucos começamos a ganhar segurança.

Mas também nos deparamos com algumas matérias meio cabeludas, cheias de exigências, e que tinham a fama de reprovar. Por exemplo, a Cadeira de Moléstias Infecciosas, ou M.I., como nós a chamávamos.

As provas teóricas eram bastante duras, muito específicas. Em seis semanas, por três vezes fomos submetidos a quatro horas de escrita ininterrupta e apressada, o dedo terminava machucado pela caneta mas somente assim tínhamos chance de responder a prova toda.

A quantidade de matéria é muita, vai além do que é possível assimilar de fato. Como os professores não estão muito preocupados em pegar na mãozinha de ninguém, eles querem mesmo é o resultado, cada aluno tem que acertar o seu ritmo, o seu jeito de estudar.

Cada final de semestre era sempre a mesma coisa: uma turma extenuada e cheia de gente com gripe. Excesso de trabalho e falta de sono fazem com que a imunidade caia um pouco.

Certa ocasião, na época das provas práticas da Cadeira de Clínica Médica do quarto ano, após muitas aulas e estudo, estávamos reunidos para o grande desafio: a avaliação final daquele curso. E o pior: era individual! Quem não passasse perdia a chance de começar o Internato (período do quinto e sexto anos) com a turma. Durante o Internato a turma toda seria dividida em grupos fixos de 14 a 16 alunos e, durante os dois próximos anos, rodaríamos juntos por todas as clínicas do Hospital. A reprovação fazia com que o estudante que "caísse de turma" perdesse o seu grupo. A sua Panela. E isso era uma horrorosa e medonha possibilidade, um fantasma terrível, algo realmente inominável!!!

Veja bem, o clima dentro da Faculdade era de muita competitividade. Na verdade, as amizades leais e sinceras eram poucas. Por isso, cair de turma significava deixar de lado os amigos e colegas com os quais você já conviveu durante quatro anos e se adaptou, para ser obrigado a passar os dois próximos anos com pessoas que, a princípio, são desconhecidas... bem, certamente esse não era o prato predileto de ninguém! Aquelas provas, ao lado do curso de Moléstias Infecciosas, eram as grandes barreiras para o início do Internato.

Eu gostava de Clínica, e M.I. também era muito interessante. Estudei muito. Não queria correr riscos! Fechei minha nota antes da última prova em quase todas as disciplinas da M.I. e saí-me bem — Graças a Deus! — nas provas de Clínica.

Na última delas peguei um doente de bom nível, que informava bem, e ele contou-me uma história clara. Examinei-o depois e ele não tinha nenhuma alteração de exame físico no momento. Não era bem o que eu estava esperando daquela prova porque os Professores garantiram que ia cair, principalmente, casos de cardiologia, pneumologia e nefrologia. Matérias que tinham sido mais vistas durante o curso teórico.

Mas como eram muitos os alunos não foi possível que todos recebessem um caso desses. Eu não fui uma das privilegiadas, como logo notei ao tirar a história do meu paciente. Me veio uma batedeira no peito, mas procurei me controlar.

"O que será que esse cara teve???", indaguei de mim para mim assim que ouvi as queixas de febre e convulsões.

Procurei fazer uma boa história e um bom exame. Sabia que não me exigiriam o diagnóstico porque o caso não era cardíaco, nem pulmonar, nem nefrológico. Então, sindromizei bem o quadro neurológico e apresentei bem o caso. Depois, durante a discussão, quase bati o martelo na meningite. Fui aprovada, bem como os meus colegas de Panela. E fechamos bem o quarto ano!

A medida que avançávamos na nossa carreira Médica as férias também progressivamente diminuíam assustadoramente. Enquanto todos os demais cursos da Universidade contavam com mais de três meses de férias por ano, depois do quarto ano, nós, da Medicina, tínhamos apenas um. Dividido entre as férias de julho e dezembro. Não precisa nem dizer que não dava para descansar muito! Era só um coffee-break.

E lá estávamos, prontos para dar início ao Internato. Mês após mês eu iria conviver apenas com aquelas mesmas pessoas que faziam parte do meu grupo.

As rivalidades dentro desses grupos — as "Panelas" — existiam, e por vezes podiam chegar às raias do insuportável. Nossos colegas de Panela seriam mais próximos do que membros da família. Passaríamos dia e noite juntos.

O entrosamento, portanto, era condição fundamental para se conseguir sobreviver àquele período. Nós já não éramos responsáveis apenas por nós mesmos, como tinha sido até então, mas teríamos que aprender a trabalhar em grupo de verdade. A Panela deveria mover-se de forma sincronizada, sendo uns pelos outros em toda divisão de trabalho. E Plantões. Porque, agora, nós não nos livraríamos mais deles. A partir dali, trabalho árduo não ia faltar. Por isso a sincronia entre nós faria o dia-a-dia mais harmonioso e enfrentaríamos mais facilmente as dificuldades do Hospital. As Panelas também recebiam nota pelo entrosamento e trabalho em equipe. Gente problemática influenciava todo o resto.

Há basicamente dois tipos de pessoas com quem trabalhar: aqueles que aprendem a conviver bem com a pressão emocional e física, a lidar com o seu próprio estresse; que sabem que não estão sozinhos no mundo e que um dia vem sempre após o outro... e os que só pensam em si mesmos, em como levar vantagem, em como sair na frente, em como bajular melhor este ou aquele "poderoso". Sempre interesseiros. Egoístas. Neurotizados. Robotizados. Nunca facilitam nada para ninguém.

Pôxa vida, nem sempre era fácil! Trabalhar dentro de uma Panela problemática podia ser uma tarefa hercúlea e infeliz. Eu sabia que minha Panela reunia gente muito diferente e alguns eram, decididamente, difíceis de lidar. Mas somente o correr dos dias revelaria de fato quem era quem. No Internato fica muito difícil esconder a verdadeira cara. Cedo ou tarde tudo fica patente aos olhos de todos, porque o tempo de convivência é maior, muito maior do que com qualquer outra pessoa. Inclusive, como já falei, a família. Podia-se dizer que nossa família era a Panela para os próximos dois anos!

Eu aprendi que é melhor dividir o trabalho, ser uns pelos outros em tudo o que for possível, facilitar as trocas de plantões, ser flexível, prestar favores com generosidade. Porque, no outro estágio, eu é que podia estar precisando de uma cobertura. O mais triste é quando se faz um favor várias vezes e, quando se precisa, aquele que recebeu não tem boa vontade para retribuir.

Realmente enfrenta-se todo tipo de pressão dentro do Hospital. Toda pressão é naturalmente maior quando o cansaço físico é grande, e esse era o feijão com arroz. Aí é tempo de aprender — ou não — a lidar com isso! Com a exaustão, com o estresse, com o excesso de trabalho, com condições de trabalho inóspitas.

No mês de janeiro daquele ano começamos pela Obstetrícia, a primeira Clínica do Internato. Foi o primeiro dia em que pudemos vestir roupas brancas de verdade, ao invés de apenas o avental sobre a roupa comum! Era um grande privilégio, um lugar conquistado! Finalmente tínhamos também o direito de pendurar o estetoscópio no pescoço, agora um verdadeiro instrumento de trabalho.

Ninguém se atreveria a fazer tais coisas antes do quinto ano. Seria motivo de chacotas infindáveis porque todo mundo sabe que, até então, é ridículo querer "parecer Médico". Somos bem zero à esquerda, conhecendo a coisa meio teórica, meio prática, mas muito aquém do necessário para estar integrados à rotina do Hospital.

Mas, detalhes à parte, o Internato é um período importantíssimo que reserva um sem-número de experiências que, finalmente, nos capacitarão a receber o título de Doutores.

Não há como contar muito sobre isso, traduzir em poucas linhas. Só quem esteve dentro de um Hospital, estudou Medicina, sabe do que eu falo. Para estes certamente eu não precisaria contar como é passar a noite numa UTI, onde tudo pode virar de pernas pro ar em pouco tempo porque pacientes graves são instáveis... ou na porta do Pronto-Socorro Cirúrgico, onde a gente percebe que politraumatizados gravíssimos existem, e aparecem toda hora, de todo jeito: motoqueiros arrebentados, atropelados, baleados, esfaqueados. Às vezes a polícia vem junto e fica por ali. Um dia, na hora do almoço, um jovem bem barbeado e bem vestido chegou com um tiro direto no coração. Não deu para fazer nada. Estragou o plantão de muita gente.

Eu também não precisaria contar como é o dia-a-dia numa enfermaria infantil, ou numa enfermaria de pacientes terminais, ou numa enfermaria de pacientes psiquiátricos. Ou naquela onde estão os pacientes que, embora não morram, nunca mais andarão pelas próprias pernas.

Particularmente estressante é a rotina nos boxes do Pronto-Socorro da Clínica Médica, onde tem tanta AIDS, tantos pacientes encacados ao mesmo tempo, tantos e tantos casos raros ou estranhos que não conseguem internação, e acabam mor­rendo ali mesmo.

É difícil olhar pela primeira vez nos olhos da família que acaba de perder um ente querido, ou acompanhar de perto o processo de morte daquele mesmo paciente. Ver os seus exames lentamente piorando à medida que o corpo também deteriora, e o estado de consciência rebaixa.

Por outro lado, é especial a emoção de acompanhar de perto um trabalho de parto e receber nos braços um recém-nascido saudável. Ou não. Da mesma maneira, faltam palavras precisas para descrever aquela sensação de alegria sutil que nos sobrevém quando aquele doente que passou semanas sendo tratado finalmente recebe alta. E se despede com lágrimas nos olhos, e agradece.

Nessas horas a gente olha e acha que vale a pena...

Mas há também os momentos duros, quando percebemos que a Panela está com problemas, que as brigas estão se avolumando, que não há tempo suficiente para estudar tudo, que os Médicos Assistentes não têm educação para tratar conosco, nem o pessoal de enfermagem, e até mesmo os pacientes exigem além da conta. Quando o cansaço é tanto que parece que nada mais existe além dele. Quando o sofá duro do PSC é o único lugar de "descanso" numa noite de trabalho infernal e interminável, alternando entre o Centro Cirúrgico e o atendimento das fichas. Pôxa, não é justo ter que viver assim...

Nessas horas a gente olha e acha que não vale a pena!

O desânimo dura um dia, ou dois... ou até mesmo três ou quatro. Mas aí a gente olha para frente e continua caminhando, continua lutando, continua aprendendo. Fazendo a nossa parte.

Durante o Internato, seja qual for a educação que tenhamos recebido, sejamos duros na queda ou sensíveis, a verdade é que um vírus acaba nos contaminando com quase cem por cento de certeza. É muito difícil escapar de ser infectado por ele, o processo é quase natural. É o vírus da frieza, da indiferença.

Difícil dizer se é uma forma inconsciente de autoproteção diante da dor e do sofrimento humano, ou se simplesmente o contato freqüente com a doença e a morte nos deixa com a mente cauterizada.

Normalmente deixamos de nos importar muito com o paciente em si, com o ser humano. E pensamos somente na doença. Não raro, embora os professores procurem manter acesa um mínimo a chama da misericórdia, durante as visitas os pacientes são tratados como "o linfoma do leito 12", ou aquele "estranho lúpus", ou "o aneurisma de aorta abdominal". Às vezes escapava, mesmo sem querer. Algumas vezes na frente do pobre doente.

Era preciso tomar cuidado.

O ano letivo foi caminhando e poucos meses depois do início do Internato, ainda no primeiro semestre, uma coisa estranha passou a acontecer comigo. Pela primeira vez comecei a pensar algo totalmente absurdo: parar um pouco os estudos, trancar a matrícula. Nem eu sei bem o que desencadeou aquela torrente de senti­mentos estranhos. E inexplicáveis!

Mas a verdade é que, de repente, eu me via pensando nisso.

Procurei entender o que estava acontecendo. Talvez houvesse explicações lógicas. Tinha que ter uma explicação para aquele desejo que começou a me perseguir.

Bom, é verdade que eu vinha cansada demais, saturada demais! Minha Panela estava passando por conflitos bem sérios, todo mundo brigava com todo mundo, o ambiente de trabalho estava péssimo! E isso é um eufemismo!

Mas não era desculpa, até a gente se adaptar levava um tempo mesmo. Eu não podia simplesmente culpar as circunstâncias externas, claro que elas tinham o seu valor, mas não era esse o verdadeiro motivo...

Levei um tempo para conseguir formular uma opinião que me parecesse fidedigna, que realmente traduzisse aquilo que eu sentia no coração. O que mais me pesava era aquela sensação indistinta, latente, meio sem forma, bem lá no fundo... e que dizia... ou melhor, berrava... lá dentro... e eu não tinha querido ouvir até então:

"A Medicina está me roubando!!!"

Sim, era isso, era fato! Como continuar fazendo vistas grossas, deixar que ela continuasse dominando toda a minha vida?! Tudo o que eu tinha de melhor ela acabou tirando de mim, aos poucos é verdade, mas sem um pingo de compaixão, de trégua!

A Medicina é exclusivista, não aceita concorrentes. Eu havia parado de estudar piano há quase dois anos, e também a natação que fazia à noite. Já não escrevia, não pintava quadros, não lia muito (a não ser livros de Medicina), não tinha tempo para mais nada que não se referisse ao Hospital, aos doentes, aos Plantões, à profissão. Não tinha outros programas, não tinha amigos que não fossem Médicos. Não tinha tempo, não tinha tempo, não tinha tempo para nada!!!

Muito bem. Nada mais justo, não é? Afinal, era "assim mesmo".

Mas tinha um pequeno detalhe: acontece que eu não estava satisfeita! E, quando dei por mim, ali estava eu com aquele lamentoso queixume, com aquela triste constatação:

"Puxa vida! Quando escolhi estudar Medicina era para isso me acrescentar algo! Não escolhi desfazer-me de todo o resto da minha vida em função dela, jogar tudo fora!".

Então contemplei a realidade da minha escolha, observei aterrorizada o que aquilo significava de fato. Não haveria outra alternativa, esse era o destino de todo Médico: dedicar-se e render-se exclusivamente à "Deusa"! E nada mais. Nada escapava ao domínio da Medicina. Ela era a prioridade absoluta na nossa vida, tudo que não se encaixasse com ela tinha que ser simplesmente banido.

Dia após dia, semana após semana, mês após mês aquela certeza me consumia, me perseguia. E eu começava a fazer comparações, claro, com exemplo que estava mais próximo de mim. Meu irmão.

Há um ano, Marco tinha ido estudar música no exterior. Aquilo me doía um pouco no coração. Não pelo fato dele estar lá, mas pelo fato de eu não ter conseguido a mesma felicidade em relação ao meu futuro. Ele estava seguindo o instinto do seu coração, dando vazão a si mesmo... e eu... ainda que gostasse do que fazia... aquilo nunca tinha queimado no meu coração como outras coisas queimaram!

Eu sempre morri de vontade de estudar fora, sair um pouco do País. Marco não. Mas agora ele estava fora, e eu presa no Hospital! Literalmente presa, cada vez mais!

O futuro se me anunciava sombrio. Se quisesse levar uma vida "normal", fazendo tudo o que tinha vontade, no mínimo teria que me desdobrar em duas ou três. Impossível. Mas uma vida apenas como Médica não seria gratificante, nem mesmo suportável, não me faria feliz! Pelo prisma desta perspectiva o futuro me entristecia e assustava ao mesmo tempo.

"Quem corre por gosto não cansa", não é assim que diz o ditado popular? Está aí uma grande verdade. Comecei a perceber, embora fizesse força para empurrar aquilo de volta para dentro, que talvez eu não estivesse "correndo por gosto".

Mas o que eu podia fazer, meu Deus?!! Estava no quinto ano!

Aquilo me corroía por dentro, aquela insatisfação. Eu estava com 22 anos e tinha investido todo o meu esforço para percorrer aquele caminho. Me desfiz de tudo o mais que pudesse atrapalhar, inclusive sonhos de infância, talentos naturais e outros projetos de vida. Como podia ser que agora eu não estava encontrando alegria na minha carreira?! Não, não, não!!! Eu não podia me dar ao luxo de desistir.

Durante alguns meses, até mais ou menos o final do quinto ano, fiz força para deglutir, esquecer, amarrar, sublimar, destruir aqueles sentimentos indiscretos e incoerentes. Eu não ia jogar fora aqueles suados cinco anos de Faculdade e começar tudo de novo. Era impensável!

Mas algo não estava bem, decididamente não estava bem. E estava sendo mais forte do que eu...

Associado a isso, havia um outro problema. Desta vez relacionado à questão familiar. Eu comia, dormia, tomava banho e tinha minha vida quase toda centralizada no Hospital. Quando estava em casa, estava podre de cansada, sem paciência com ninguém. A convivência familiar agora era muito pouca. Com certeza não era mais como na infância, ou mesmo na adolescência. Ou até mesmo nos primeiros anos da Faculdade. Eu tinha perdido também aquela parte.

Hoje vejo isso com maior clareza, mas na época aquela sensação de amargura simplesmente me dominava. Eu vinha agressiva, irritada, angustiada. E minha personalidade muito forte, igualzinha à do meu pai, começou certa altura a fazer com que nós dois entrássemos em sérias divergências.

Começou... quando teria começado? Hoje é muito difícil saber. Havia coisas tão antigas e tão incrustadas no nosso relacionamento que já não sabíamos encontrar os verdadeiros por quês de cada problema. Divergências eu tive com ele desde a adolescência, apesar do meu chamego, mas foi mais fácil contornar. Havia mais válvulas de escape!

Meu pai era bom, muito bom, vivia para a família. Era generoso, interessado nos filhos, incentivador. Mas compreendo melhor agora que uma coisa ele nunca incentivou: o diálogo franco. Sei que certamente isso foi resquício da sua própria educação, vinda de uma família italiana e de um pai bastante duro e austero. Então cresci vendo que problemas maiores nunca eram solucionados de fato, antes eram abafados em nome de algo maior: o amor e a paz em família.

Esse era um bom motivo. A gente acabava por esquecer, deixava para lá.

Mas a alma não esquece, aí é que está! Achar que problemas resolvem-se por si mesmos, passam, são simplesmente esquecidos... belo equívoco! Na verdade não se resolvem... acabam acumulados, constroem imensas muralhas no inconsciente...e voltam à tona com força multiplicada. Muitas vezes de formas incompreensíveis.

Não vi como foi que aconteceu, não sei como aconteceu, mas de repente me deparei com o fato consumado: as coisas estavam mudadas entre nós. Especialmente entre mim e meu pai. Torno a dizer, não sei quando foi que mudou.

Simplesmente percebi um abismo, um afastamento. Eu não me sentia compreendida de forma alguma. Parecia que tinha sido esquecida, deixada de lado em prol do Marco, a estrela da família desde que foi para o exterior.

Em contrapartida, talvez eles possam refutar o que digo afirmando que fui eu que me afastei, fui eu que me tornei intratável, indiferente, irritável, sempre com uma boa resposta na ponta da língua para desacatar a todos.

Nisso terão razão. Toda história tem dois lados, certamente eles também têm o seu ponto de vista. De fato não estava sendo boazinha muitas vezes. Mas ninguém podia supor o que me ia alma a dentro... e esse é o meu ponto de vista!

Acho que o que eu sentia, no fundo, era falta dos meus pais; principalmente do meu pai, em quem fui sempre tão ligada. Sempre tive adoração por ele!

No entanto, afastado do serviço por licença Médica, agora ele passara a cuidar exclusivamente das coisas do Marco, dos seus concertos e recitais, da temporada nas férias.

E eu estava sempre distante de tudo e todos. Era apenas um reflexo de algo maior.

Não foi intencional por parte de ninguém, antes puramente circunstancial. E como eu já disse: quase nunca estava em casa, passava o dia todo fora, às vezes algumas noites, outras vezes boa parte do final de semana, as férias eram muito curtas... além disso, minha angústia interna me fazia intratável. Pode parecer infantil, mas também não consegui lidar com o fato de ter sido deixada de lado. Não que isso fosse real de fato... mas foi real para mim.

E foi uma somatória.

Acho que a coisa começou a degringolar mais ou menos por aí. Estava tudo aparentemente equilibrado até então, mas a estrutura do castelo de cartas era frágil. Aquele equilíbrio não era real.

Em certo momento, mesmo sem perceber, acho que comecei a culpar os meus pais por causa da minha decisão pela Medicina. Mais ainda, culpei-os por ter sido tolhida na minha liberdade de escolher outra coisa. Foi um processo inconsciente naquele momento. As fichas só começaram a cair muito tempo depois.

Então eu percebi aquilo que era obscuro anos atrás: no fundo, o que queria a todo custo era a aprovação deles. Queria que tivessem orgulho por mim e pelo que eu fazia. Quando criança eu tinha sido a Princesa "folheada a ouro" (por causa das sardas), sem dúvida a queridinha do papai. Mas o Marco tomou o meu lugar, desviava para si todas as atenções, o tempo todo.

Comecei a ver que o esforço que eu estava fazendo para continuar sendo a "queridinha" não estava mais dando em nada. Estava pagando um alto preço, muito alto mesmo, que era estudar Medicina! E não tinha o que mais queria. Atenção. Aprovação.

Não era culpa deles! Eu sei disso. Nem dos meus pais, nem do Marco. Algumas vezes me disseram que meu problema era justamente esse, inveja do meu irmão. Grande erro: eu tinha, sim, muito orgulho da conquista dele, de coração! Era sempre a primeira a sair batendo palmas nos recitais. Mas queria ter conseguido conquistar algo semelhante. Isto é, a alegria de fazer o que se gosta... e ainda ser aplaudido por isso! Eu não estava fazendo o que realmente gostava, e muito menos era aplaudida. Triste sina... se pelo menos eu não fosse aplaudida, mas tivesse me tornado uma alegre Publicitária...

Mas ali estava eu: irrevogavelmente destituída do meu lugar de Princesa. E sem opções na manga.

Não pretendo achar culpados porque, a bem da verdade, não creio que existam. Mas agora estava presa numa gaiolinha dourada. Ou melhor, super dourada porque os de fora sempre ficavam muito admirados da minha capacidade em enfrentar a Faculdade de Medicina. Era uma massagem no ego, apesar de que nunca liguei para isso.

Não obstante, todo o esforço que tinha feito até então não mantivera o meu posto, e as brigas e divergências já faziam com que eu e meu pai não tivéssemos muitas coisas em comum.

O quinto ano terminou, mas eu estava infeliz com tudo.

Apesar de que volta e meia meu pai prometia labutar por uma bolsa no exterior para a minha Residência Médica, exatamente como tinha feito com o Marco, eu não conseguia me entusiasmar com aquilo.

— Você só precisa dizer que especialidade quer seguir — falava ele.

— Pôxa! É que eu ainda não decidi.

"Como se eu soubesse!", pensava depois com meus botões.

A verdade é que eu não queria ir para o exterior estudar Medicina, aquilo simplesmente me trancaria mais ainda dentro de uma existência que eu já não estava certa de querer. Estava perdendo anos da minha vida que não voltariam mais, desperdiçando a chance de mudar de rumo. Se é que essa possibilidade ainda existia.

"Mas mudar de rumo como! Como posso mudar a ordem das coisas? Como ter de volta uma vida que me agrade?!"

Houve uma sutil manipulação velada na época do Vestibular. Claro que eles queriam o melhor! Mas erramos. E eu estava colhendo os frutos de toda aquela confusão! E, de quebra... eles também!

Eu tinha escolhido ser Médica por causa deles, mas agora era obrigada a car­regar aquela cruz... por que eles não poderiam ter carregado a cruz de me deixar escolher livremente? O que pelo menos me daria uma chance maior de ser feliz depois?

Decidi trancar a matrícula.

Não foi uma decisão fácil, oh! Não, de modo algum! Eu me via entre a cruz e a caldeirinha, completamente dividida.

De repente, me bateu a louca e não quis pensar mais. Se pensasse muito, não fazia. Então tranquei a matrícula pouco menos de 11 meses antes da Formatura. Foi uma verdadeira loucura parar o ritmo alucinante em que vivia, em pleno início de sexto ano!

Aquela era uma tentativa quase desesperada de coordenar um pouco as emoções, pensar, buscar orientação de Deus. Eu precisava parar um pouco, colocar a cabeça no lugar, me aconselhar. Para depois conseguir terminar, e terminar bem, o meu curso.

Os primeiros dias foram difíceis. Viajei correndo para um Congresso Evangélico que duraria uma semana. Se eu faltasse durante uma semana, nem que quisesse poderia voltar atrás na minha decisão.

Quando voltei, e me vi em casa, senti-me entre aliviada e apavorada ao mesmo tempo. Era muito estranho ter todo o tempo livre.

Ninguém entendeu nada. Mas meus pais procuraram respeitar minha decisão, pelo menos de início. Mas, decididamente, eles não entenderam. Comentei que desejava fazer um pouco de Terapia, conversar, buscar entender melhor o momento que estava vivendo.

Procuramos uma psicóloga Cristã. Já nem me recordo quem deu a indicação. Mas fui ao encontro dela. Numa das primeiras sessões lembro-me que ela comentou comigo as palavras do meu pai:

— Queremos que você possa ajudar a nossa filha! — tinha dito ele.

Aquele "nossa filha" me tocou muito, muito. Nem posso dizer quanto!...

Que bom que meu pai estava querendo que eu melhorasse e procurava respeitar minhas dificuldades, mesmo que minha atitude extrema fosse literalmente incompreensível para ele. Sei que eles procuraram fazer o melhor por mim. Mas o problema é que, tempo demais em casa, confusão armada. Por mais que nos esforçássemos. Pelas menores coisas.

Aquele foi um ano muito difícil. Não gosto de recordar-me dele. Mais para a frente o Senhor revelaria o cerne disso tudo, o quanto boa parte do meu caminho tinha sido traçado pelo inimigo das nossas almas. Graças a Deus, o Senhor em tudo era Soberano desde aquela época, mas isso não me isentou de passar por um contexto espiritual muito forte. E que não vem ao caso agora.

Aquele ano foi triste em todos os aspectos. Foram muitas incertezas, desilusões, amarguras, desapontamentos e frustrações. Além disso, algumas circunstâncias fugiram ao meu controle, o meu lado emocional suplantou o racional e acabei por bater completamente de frente com o meu pai. Dessa vez foi de frente mesmo. Como meu pai costumava ser inflexível quando confrontado na sua maneira de ser, não havia meio termo possível para o nosso impasse. Foi pior ter parado a Faculdade do que ter continuado.

Embora continuasse orando, indo à Igreja, procurando acertar, procurando ajuda... foi mais forte do que pude suportar!

Só vim a entender anos mais tarde. Pena que certas coisas não podem voltar atrás, e ser simplesmente apagadas. Um rastro maligno ficaria na minha vida. Essa época foi marcada por traumas profundos, um revestimento ruim e amargo cobriu a minha vida. Eu me sentia pior, muito pior. Devastada por dentro. Com a alma à beira de um colapso.

Posso resumir tudo numa linha: mesmo sem querer, as circunstâncias naquele ano colaboraram para que eu fizesse muito mal ao meu pai; e ele fez muito mal a mim.

O meu coração acreditava naquilo: que eu era a causadora de todos os males, a destruidora da família, o pomo da discórdia, a ovelha negra, a ingrata e todos os demais adjetivos pejorativos que pudesse encontrar. Realmente comecei a acreditar que era ruim. Ruim de fato! E que nada de bom poderia me acontecer; eu teria, de alguma forma, que pagar por todo o mal que tinha feito.

Foi basicamente nesta época que passei a não confiar muito nas pessoas, especialmente nos Cristãos. Aqueles de quem sempre tive vontade de estar perto já me pareciam diferentes. Não o pessoal da A.B.U., que já tinha se formado e cuidava da vida, mas aqueles que conheci melhor na Igreja que passei a freqüentar. Parecia tudo uma grande falsidade!

De fato, o ser humano é difícil de lidar. Especialmente aqueles que se julgam grandes detentores da Verdade. O melhor a fazer era estar sempre precavida, bem precavida. Até prova em contrário, todos têm um enorme potencial de magoar. Decepções sucessivas com a Igreja, com os líderes que supostamente poderiam me ajudar... mas não o fizeram... os irmãos com quem eu poderia ter contado... mas não pude... tudo isso terminou resultando numa briga com o próprio Deus. Eu me sentia magoada até mesmo com Ele.

Em suma, não queria saber de mais nada. Foi um período longo, difícil e muito solitário. Todos os dias assaltava-me aquela terrível sensação de que era melhor estar morta. A sensação de morte me perseguia dia após dia.

Retomei os estudos no ano seguinte.

Mas o problema principal, o familiar, não tinha sido resolvido. Tentei me ajustar com minha família. Tentei. Mas não consegui. Agora era mais comum no que antes meu pai estar totalmente fechado para mim. Podia passar dias, até semanas sem me olhar, mesmo que eu falasse com ele. A indiferença era dez vezes mais insuportável do que gritos e discussões! Nada tinha o poder de me arruinar mais do que aquilo. Imagino que ele também sofresse com esse estado de coisa, mas não demonstrava. A impressão que me dava é que podia estar morta e isso não faria diferença alguma. Como me anular mais ainda? O que eu devia fazer? Até quando ia pagar pelos meus erros?!

A melhor coisa era mesmo retomar os estudos, já chegava mesmo o tempo. Estava cansada de viver aos trambolhões, sem objetivo. A Terapia não estava acrescentando nada, eu não tinha nenhuma perspectiva de fazer algum outro curso, ou mesmo viajar, ficar fora um pouco. Tudo isto somado me fez olhar com novos olhos para a Faculdade. Fiquei com vontade de retornar, talvez antes eu estivesse apenas cansada e o cansaço me fez ver as coisas distorcidas.

Agora era "vai ou racha". Terminaria o sexto ano.

Tive a grande sorte de pegar uma Panela muito boa, entrosada, responsável. Maravilhosa. A adaptação foi quase imediata, sem dúvida muito melhor do que com a anterior. Felizmente agora tinha um bom grupo de trabalho e algumas pessoas que, como eu, eram bastante adeptas do riso. Não importava o que carregava na alma. Ainda existia um pouco de criança em mim. Estar perto deles fez-me lembrar um pouco dos meus antigos tempos de menina. Eu adorava uma baguncinha, uma palhaçada, uma brincadeira. Quem me conhece, sabe disso. Se me deixassem à vontade, meu natural era ser alegre.

Na hora do almoço nós nunca falávamos dos doentes, mas sempre de outras coisas. E ríamos, ríamos a mais não poder. Era até um riso nervoso, puramente para espantar o estresse, liberar as profundezas contidas do ser (e também algumas endorfinas).

Uma vez, no meio do riso comecei a chorar, não sabia nem por quê. E depois voltei a rir, no meio do choro.

Uma das minhas colegas, rindo também, comentou:

— Acho que você não está muito bem, hein?!

Mas como rir era uma verdadeira Terapia.................... vivas ao riso!

Em abril daquele ano tive uma perda importante, o falecimento de um amigo que tinha AIDS e que eu vinha acompanhando espiritualmente há um bom tempo. Grande parte dos meus problemas em casa foi por sua causa, mas quando ele finalmente morreu foi praticamente impossível que eu me conformasse com aquilo.

Eu estava começando o estágio mais puxado do sexto ano, o Pronto-Socorro Cirúrgico. Durante três semanas podíamos esquecer o que era descanso no sentido literal da palavra. Ali naquele lugar só havia cama para os Médicos mais graduados. Para os internos — nós — não havia nem sequer uma cadeira. Sinal que, nós caçoávamos, espera-se que no PSC você sequer pense em sentar! Aliás, de madrugada, quando a exaustão era demais... tinha o sofá...

E me afundei no serviço para anestesiar os sentimentos ruins.

No entanto fiz um bom sexto ano.

Uma vez, quando eu estava de plantão na chamada "Retaguarda" do Pronto-Socorro da Clínica Médica, uma espécie de semi-intensiva que variava o número de leitos de acordo com o próprio movimento do PS, recebi sincero elogio de um dos Assistentes que foi passar a visita comigo.

Na verdade, quem passava a visita era eu, isto é, falava sobre todos os pacientes internados e discutia com ele as diretrizes para conduzi-los o resto do período. Eu estava sinceramente ligada nos pacientes, interessada em aprender e, ao final da visita, diante dos comentários que eu mesma fazia dos doentes e das condutas, ele disse:

— Muito bem. Você está com uma boa visão de Clínica!

Passei feliz o resto do plantão por causa daquilo. Era bom ser reconhecida nos meus conhecimentos. Fui dormir tarde, embalada pelo som dos dois "Birds" que insuflavam ar nos pulmões dos meus doentes. Se o som mudasse, acordava imediatamente.

Em outras duas ou três ocasiões, pessoas diferentes comentaram sobre a facilidade que eu tinha com os procedimentos cirúrgicos.

— Você tem mão boa, firme! — comentou uma vez um Residente que me ensinava a passar um tipo de cateter endovenoso: o intracath. — Você devia fazer Cirurgia!

E isso não era cantada.

Uma Assistente da Obstetrícia falou mais de uma vez a mesma coisa, que eu tinha uma mão privilegiada. E que os meus pontos ficavam bonitos!

Talvez fosse por causa do piano, a gente aprende a ter um bom controle dos dedos, acho que era isso! Mas uma outra coisa que ajudava era o fato de eu ser muito calma para fazer esse tipo de coisa. Normalmente ouvia antes as instruções e fazia sem medo de errar porque, se errasse, o erro também faz parte. E normalmente me dava bem.

Até mesmo Mayra, que já era Residente, uma ou outra vez elogiou, ao me ver com o livro de Clínica Médica debaixo do braço:

— Você gosta de estudar, né? Tá sempre com esse livro!

Ela foi sempre minha amiga. Na verdade, uma das minhas melhores amigas, alguém de quem nunca tinha me distanciado. Nessa época eu compartilhava praticamente tudo com a Mayra, com o Edílson. Não me afastei deles mesmo durante o tempo em que estive com a matrícula trancada. Não fosse essa válvula de escape, a presença destes amigos, nem sei...

Embora parecesse que eu tinha conseguido dar a volta por cima, afinal retomara os estudos e, mais do que isso, estava indo bem, às vezes tinha uma recaída. Eram momentos de profunda tristeza, e desânimo, e dor, e solidão. Um profundo desejo de morrer me assaltava... mas eu jamais teria coragem de fazer algo contra mim mesma.

No entanto podia sumir por um tempo, esquecer, apagar... quando tudo parecia insuportável demais e eu nem sabia por que, quando estar perto daqueles que sorriam parecia ser indescritivelmente doloroso...

No segundo semestre daquele ano o Brasil ganhou a Copa do Mundo. Não assisti ao jogo. Estava no meu quarto, dormindo, depois de uma boa dose de vinho e comprimidos para dormir. Naquele dia tinha visita em casa, nem sei se ficaram sabendo, muito menos o que pensaram. No mínimo, que eu era uma desequilibrada. Perdi um dia de Faculdade, nem consegui acordar, e isso me rendeu um plantão extra. E só. A vida continuava. Meu pai não me falou nada, acho que ele levava aquilo como uma afronta pessoal.

Eu queria deixar de sentir aquela dor. Aquele desconforto. Aquela decepção. Aquela solidão tão intensa. Aquele sentimento horrível de desvalia! Que aparecia do nada... e também ia embora sem motivo aparente.

Eu achava que a maior parte das vezes tais sentimentos ruins eram fruto das brigas que iam e vinham dentro de casa, vez após outra, por motivos que já nem entendia. Meu amigo tinha morrido... ele já não era causa de desavenças, então... que estava acontecendo? Que motivo podia ser tão forte assim?! Eu tinha retomado os estudos. Mas não era perfeita! Nunca poderia ser perfeita, será que não podiam me dar um desconto?

Eu sei que errei em muita coisa, briguei, desrespeitei, bati o pé. Mas... eu também não compensava tudo isso, de uma certa forma? Não virava as noites na rua, não aparecia grávida em casa, não usava drogas, não bebia, não namorava, quase nunca chegava tarde, e quando chegava, avisava. Além disso, era um motivo de orgulho aparente, não era? Afinal... estava prestes a formar-me Doutora por uma das melhores Faculdades.

O que mais? Quanta perda...! Não valeu a pena tanta desavença. Quanta vida perdida. Quanta mágoa. Mas não era só isso... qual seria a causa maior que tanta angústia?

O resultado disso: quer fosse verdade, ou não, eu me sentia excluída, julgada e, pior do que tudo: condenada. Nada que eu fizesse poderia me redimir.

Sentia muita culpa. Culpa por tudo. Por querer, por não querer; por falar, por não falar; por agir, por reagir; por ser... por não ser. Nada parecia estar bom.

Que pena. Nós tínhamos tudo para dar certo. Para ir bem, de vento em popa. Eu amava meus pais. Eles me amavam. Mas alguma coisa saiu errada. Muito errada. E já não havia como descobrir o que tinha dado errado.

 

Essa história é muito mais comprida, muito mais cheia de detalhes e muito mais profunda do que pude narrar até aqui. Mas isto é o suficiente.

Eu não sabia que algumas das facetas da minha personalidade estavam sendo marcadas. De um lado, elas foram marcadas por Deus. No futuro eu teria capacidade de viver sob grande pressão, conseguiria caminhar e ir adiante com perseverança, mesmo a despeito das circunstâncias, das dificuldades, da dor e da tristeza. Esse traço de caráter precisaria existir.

De outro lado, embora sequer suspeitasse, minha vida estava sendo também marcada pelo inimigo. O motivo? Levaria ainda um bom par de anos para que ele me fosse revelado.

E foi exatamente assim que cheguei àquela Igreja lá para os lados de Perdizes.

 

Mayra, que já estava formada há quatro anos, vinha freqüentando aquela Igre­ja em Perdizes há algum tempo e garantiu-me que valia a pena conhecer. Quem sabe não dava certo de freqüentarmos juntas?

Fui. Estava na hora de fazer as pazes com Deus, e não queria mais freqüentar a antiga. Num domingo, apareci. Era um lugar grande freqüentado por gente, na maioria, de classe média, bem apessoada. O Louvor foi bom. Não me recordo da pregação, mas o fato da minha amiga estar ali do lado era o que realmente contava.

Mas naquela primeira vez as pessoas não me pareceram interessantes, nem eu queria conhecer ninguém. No entanto, havia a possibilidade de começar um aconselhamento com um dos Pastores. Mayra tinha falado muito bem dele. E eu nunca fugi disso, ao contrário. Sempre busquei muito aconselhamento, sempre busquei estar perto daqueles que podiam ajudar-me a balizar a vida. Pena que não era sempre que pessoas estivessem à disposição.

Ela apresentou-me o Pastor William logo naquele primeiro domingo e ele percebeu, pela minha cara, que o negócio deveria ser sério. Mayra já tinha dito que ia trazer uma amiga que estava precisando de ajuda. E ele disse logo:

— Vamos começar o quanto antes. Não vamos deixar passar mais tempo. Nós estamos aqui para te ajudar — a voz dele soou bondosa, até paternal.

Quase abri as lágrimas ali mesmo, mas me contive a tempo. Marcamos então o horário e eu realmente fui nas datas marcadas. O Pastor William costumava atender com um outro colega na sala, o Pastor Ronaldo. Era prudente essa atitude por isso não me incomodei, ainda que aquele outro fosse um pouco seco. Meu discurso era sempre o mesmo. O grande nó na minha vida era um só! E não se tratava exatamente do problema com a Medicina pois, no momento, a alegria pela proximidade da Formatura me mantinha sob controle.

A questão era aquela mesmo: eu só queria conseguir resolver o conflito familiar e viver em paz! Aliás, "paz" era uma palavra que não fazia parte do meu vocabulário há muito tempo, embora em tudo procurasse fazer o meu melhor. Era difícil entender porque Deus não me atendia, porque não me ajudava, porque aquela situação não mudava, ano após ano.

Passei a freqüentar os Cultos e esforcei-me em dar a volta por cima. Essa foi sempre uma característica minha. Eu dificilmente me deixaria sucumbir. Meu coração podia estar arrasado por dentro, mas por fora eu continuava levando a vida. Tinha meus amigos e meus afazeres. Uma hora tudo iria se acertar. Pelo menos eu assim esperava. Fosse como fosse a tempestade, eu me esforçava para sair dela!

Fui conhecendo pessoas na Igreja, enturmando-me na medida do possível. Aí começou a ficar gostoso, porque os relacionamentos é que deixam tudo mais colorido. Um dia fomos todos ao Teatro assistir "Carmen". Isso foi pouco depois que Mayra começou a namorar um moço da Igreja. Ela veio me contar a novidade certa tarde, ali mesmo na rua, na calçada em frente à Igreja. Eu estava encostada em um dos carros estacionados na guia. Cruzei os braços e fui sincera:

— Puxa, fico contente por você, Mayra... mas muito chateada por mim. — disse sem muitos rodeios. — Você sabe, né?

Ela sabia, melhor do que ninguém. Entendeu. Eu estava com 25 anos recém-completados e já duvidava no meu íntimo de que Deus tivesse realmente um companheiro separado para mim. Mas quis saber os detalhes, curiosa:

— E aí? Quando é que vocês começaram?

Mayra foi contando e eu fiquei feliz por ela. Muitas vezes nós duas batemos papo falando sobre os nossos sonhos de namorados, casamento, filhos.

— E quando é que eu vou conhecer o dito cujo, hein?

— Ah, hoje! Hoje ele vai estar aí! Era meados do mês de agosto e o tempo logo começaria a esquentar. Ficamos

conversando ali na porta na Igreja até a hora do Louvor. Então entramos e participamos do Culto.

Naquele dia, depois que fui devidamente apresentada ao namorado da Mayra, nós estávamos por ali mesmo conversando com outros amigos, fazendo parte do burburinho e do passa-passa de gente no final da pregação. Então chegou o Alberto. Ele era uma das pessoas que me ciceroneavam na Igreja, com a Mayra, para me ajudar na integração com os outros. Não fazia muito tempo nós tínhamos ido juntos a uma festa na casa de um casal de diáconos. Ele era muito simpático comigo, mas veio com um pedido impossível de atender:

— Sabe o que é? — e comunicou-me que estava tentando ajudar um rapaz da Igreja cujo pai vinha doente, internado numa das UTI’s de minha Faculdade.

— Ele não está aqui hoje, senão te apresentava. Será que dava para você passar lá de vez em quando? Fazer uma visita para o pai dele?

Era impossível. Não era corpo mole, não. Era de fato impossível. Humanamente falando, eu estava completamente sem tempo. Principalmente porque o lugar onde estava internado o pai dele ficava tremendamente distante de onde eu passava os meus dias e noites.

— Pôxa... sem chance! Se isso tivesse sido há dois meses, até que teria tempo. Mas agora estou diametralmente oposta! Me desculpa, Alberto...

Eu não queria recusar, mas tinha pela frente os blocos de "pior" fama na Faculdade. Isto é, aqueles que "arrancavam o couro" dos pobres sextoanistas que já estavam com um pé para fora da Graduação e com o outro dentro da Residência Médica.

— Ah! Tudo bem, então. Eu pensei que ficava fácil.

— Ficaria... se eu estivesse mais perto. Mas estou mesmo muito longe. Não tenho tempo para sair. Não me custaria nada, estou até acostumada a visitar os doentes com o pessoal do grupinho de evangelismo, mas...

Ele me tranqüilizou.

— Não esquenta, não. Tem gente que está indo!

Depois disso o tempo voou, nem pude estar todos os domingos no Culto por causa dos plantões. Deu para ir só uns dois domingos naquele mês de agosto. Então entrou o mês de setembro. Eu já tinha até esquecido do tal rapaz com o pai doente.

Mas num dos domingos de setembro, um dos Pastores avisou todo mundo, antes do início do Culto:

— Antes de começarmos a nossa pregação de hoje quero dar oportunidade para que o Eduardo venha até aqui. Nosso irmão me pediu que abrisse este espaço porque ele queria agradecer publicamente à Igreja pelos préstimos que recebeu durante a enfermidade do seu pai — e o Pastor fez um gesto amigável com a mão. — Pode vir aqui, Eduardo!

Estiquei o pescoço do lugar onde eu estava sentada ao lado de Mayra e mais alguns conhecidos.

— Ah! Esse era aquele que o Alberto falou, né?

— É ele sim. Você não o conhecia?

— Não, não houve oportunidade, eu não podia ir visitar o pai dele. Parece que ele faleceu, não foi?

— É, faz uns dias, avisaram a Igreja... Eu estava um tanto condoída com a situação. "Coitado", pensei eu.

Então vi uma cabeça que deslizou ali na frente, ao longe, pelo lado direito. Ele subiu ao púlpito aceitando o microfone que lhe estenderam e falou com voz firme, sem muitas delongas, mas em tom que revelava de fato um sentimento de gratidão:

— Realmente eu queria estar agradecendo pela dedicação de alguns irmãos, por toda a colaboração que deram à minha família. Deus levou o meu pai, mas estamos em paz, com o coração tranqüilo, sabendo que ele foi liberto das suas dores. E agradeço também a todos vocês, pelas suas orações, pelas palavras de incentivo, pelo carinho da Igreja.

Enquanto Eduardo falava, eu fiquei olhando longamente para ele. Observei-o atentamente quando entregou de volta o microfone e desceu. Eu o segui com os olhos até que se sentasse, desaparecendo da minha vista.

Alguma coisa nele mexeu comigo.

"Puxa, que rapaz simpático esse... realmente foi uma pena que não pude fazer nada para ajudar. Cá pra nós: teria tido a oportunidade de conhecer o bambino! E bem simpático, bonito! Realmente, realmente.... é uma pena!"

Acabou o Culto. Quando ia saindo ao lado de Mayra, depois de um bate-papo rápido com o pessoal, vi Eduardo outra vez, cercado por várias pessoas numa roda. Olhei de longe, e fui embora.

Mas dali para frente eu estava sempre de olho nele. E comentava com Mayra, entre risos:

— Esse Eduardo é uma graça!

Mas não houve nenhum ensejo para qualquer aproximação.

Foi assim até uma certa tarde de sábado, quando eu estava na Igreja participando do ensaio do coral. Cantar em corais sempre foi um dos meus fracos, por isso quando avisaram da Cantata de Natal, achei um espaço para vir participar também. Troquei meus plantões, ajeitei meu horário de forma a ter a maior parte dos sábados livre. Não resisti mesmo, eu gostava muito de cantar. Vide que eu, Mayra, Edílson e Cris continuávamos cantando no Hospital.

Outro motivo para participar era o fato de que aquilo me ajudaria mais ainda a entrosar-me depressa com o pessoal.

E bem que a gente se divertia! Eu era contrai to. Não havia muitas contraltos, e nem todas realmente tinham vocação para o negócio. Mas todo mundo estava se esmerando, ia realmente ficar lindo! Até porque aquele tenor que destoava dos demais, cantando muito alto, já parecia ter sido enfim domesticado. E a gente já não ouvia a voz dele sobressaindo por cima das outras. Que legal!

Estávamos orgulhosos da nossa Cantata! Aquele foi um dos primeiros ensaios em que realmente nossa voz ressoou bonita nos ares do grande salão vazio da Igreja. Como o chão era de cimento, sem carpetes, e as paredes estavam nuas, isso ajudava mais ainda a fazer o som ressoar.

Quando estávamos quase no fim do ensaio, quem é que eu vejo entrar no enorme salão? Uma figura já conhecida. Bem, conhecida de vista. Era Eduardo que vinha chegando, sozinho, e sentou-se lá no fundo, numa das últimas cadeiras. E ficou quietinho escutando.

Não demorou muito e fomos dispensados pelo Pastor William (que também estava dando uma de maestro). Logo o som de canto foi substituído pelo barulho de vozes e risadas do pessoal, em grupos, animado.

Conversa vai e vem, eu estava numa rodinha com o Alberto, a Alicinha e a Carô, que usava um enorme brinco com uma pena de arara. E mais um ou dois. Mayra não participava do coral, portanto nesse dia ela não estava. Alicinha tinha me convidado para ir até sua casa após o ensaio, ia reunir um pequeno grupo para jogar conversa fora e comer pizza. Eu já havia aceitado, de bom grado, disposta a aproveitar um pouco com o pessoal.

Vi que Eduardo rodava no meio das pessoas com aparente bom humor, rindo e sorrindo abertamente. Eu olhava de vez em quando, mas não fiz nenhuma menção de forçar um encontro. Já sabia por experiência própria que esse tipo de coisa não dá muito certo. Nada de arrumar confusão!

Mas, de repente, sem mais essa nem aquela, Eduardo rodopiou tanto que aca­bou chegando bem ali no grupo em que eu estava.

— E aí, Betão? — veio ele falando e batendo no ombro do Alberto.

— Fala, Edu... tudo em cima?

Ele não precisou de convite para chegar, muito menos para ficar conversando na nossa roda. Era extrovertido e muito dado.

"É bonito esse moço!", eu continuava admirando, mas totalmente na minha. Poupei-me de fazer uma entrada triunfal e exagerada, de demonstrar interesse de graça. Continuei conversando como se nada fosse.

Depois de alguns minutos, o Alberto virou para a Alicinha e comentou: — Precisamos ir, não?

— Pois é! Vê pra mim se vai mais alguém? ! Eu só preciso falar com a Alessandra um minutinho!

— Nossa! Cadê o Pastor William? — exclamou a Caro balançando a pena de arara — Tenho que falar com ele também.

Nem sei como o pessoal debandou tão rápido, em segundos todo mundo tinha mais o que fazer e saíram deixando-me frente a frente com Eduardo. Parecia até combinado, mas foi totalmente espontâneo. E tão rápido que nem eu nem ele soubemos o que fazer, visivelmente "abandonados".

Antes que pudéssemos dizer qualquer coisa, o Alberto, num gesto casual, voltou o corpo na nossa direção como quem se esqueceu de algo. Logo após ter dado alguns poucos passos, olhou para trás e perguntou cortesmente:

— Vocês já se conhecem?

Sorri ao mesmo tempo em que Eduardo. E respondemos em coro:

— Não! Não nos conhecemos.

— Boa hora para se conhecerem, então!

E fez as honras da casa. Alberto continuava no papel de bom anfitrião. Mesmo depois da festa na casa dos diáconos, sempre que podia, continuava a apresentar-me devidamente a todo mundo. Pois ele era do tipo que "conhecia todo mundo". Agora, para minha alegria, ele dava uma totalmente dentro mesmo sem saber!

Pediu licença e disse que já voltava. Ele também ia à casa da Alicinha.

"Que deixa, hein?!!!", refleti, ao mesmo tempo em que me voltava para o jovem à minha frente.

Começamos a conversar e, para ser sincera, recordo-me muito pouco do que dissemos um ao outro logo de cara. Mas certamente que não me esqueci da sensação diferente, muito rápida e sutil, que invadiu meu coração como um sopro de afirmação e logo dissipou:

"Mais tarde eu vou dizer que foi o Espírito de Deus que nos colocou frente a frente nessa Igreja..."

Lembro-me desta frase que me brotou na mente ainda antes que eu pudesse armar o melhor sorriso e uma boa frase de início. Não sou de ter esse tipo de coisa, foi até esquisito. Mas não dei bola.

Trocamos algumas amenidades. Ele perguntou há quanto tempo eu estava na Igreja, se estava gostando, coisa e tal. Eduardo já não era tão novato quanto eu, freqüentava ali já havia mais ou menos um ano. Depois ele perguntou algo sobre se eu trabalhava, ou estudava, e ficou sabendo que eu estava para me formar na Faculdade de Medicina. Eu já sabia que este tipo de informação às vezes assustava um pouco os rapazes que não eram do meu círculo. Não queria ter dito logo de cara, mas ele perguntou... então tive que responder.

Eduardo não pareceu espantado nem coagido diante daquilo, achou muito legal e perguntou logo em qual Faculdade eu estudava.

Eu expliquei, e uma vez tocado no assunto Medicina, foi um passo para ele falar do pai que tinha estado internado no Hospital. Eu comentei que já sabia, dei minhas condolências da melhor forma.

— Mas eu estou bem agora — reiterou Eduardo. — Ele estava sofrendo muito, e foi melhor assim. Tenho um amigo que é Médico, ele está no primeiro ano da Residência e estava estagiando na UTI neste período. Nos ajudou muito! Será que você não conhece ele?

— Ah! Bom... a Faculdade é grande. É difícil conhecer as pessoas pelo nome, a não ser que sejam da nossa própria turma. Qual é o nome dele?

— Aloísio Aretti.

— Nossa, mas que mundo pequeno! Ele se formou no ano passado, não foi? Eu conheço, sim, foi da minha turma... é que eu tranquei a matrícula, sabe? Então fiquei um ano atrasada. Não é ele que namora uma chinesa?

— Isso mesmo! A Yi! Pôxa, que coincidência. Ele é meu amigo há muito tempo, foi meu aluno de Arte Marcial.

— Arte Marcial? Você tem alguma coisa a ver com isso? Você pratica?

— Pratico Kung Fu.

— Mas que legal! Sério que você faz isso mesmo?

— Lógico que é sério!

Continuamos conversando um pouco sobre aquilo. Mas depois ele acabou por tocar num assunto pouco interessante. Para mim, é claro! Pois comentou da noiva. Alguma coisa sobre comprar, ou ter comprado um coelho para ela, que morava em Ribeirão Preto. O coelho era o que menos importava, mas aquela história de noiva.....!

— Ah, que jóia! — comentei, toda sorridente e me fazendo de tola. Não deixei transparecer minha decepção em hipótese alguma.

"Pôxa... eu que estava sendo muito inocente em pensar que um pãozinho desses ia estar dando sopa por aí até agora!"

E fiquei frustrada.

Não demorou muito e Alberto voltou para avisar-me que um casal que ia à casa da Alicinha não poderia mais nos acompanhar no programa e que, portanto, podíamos nos aviar. — OK! Aí ele se voltou para Eduardo:

— Você não faz parte do coral e apareceu aqui de gaiato, agora bem que podia vir junto com a gente, não quer?

— Ah! Alberto, não sei, não... eu precisava ficar em casa um pouco, descansar...

— Que é isso? Não vai ficar em casa sozinho, não! Em pleno sábado? Conta aí que programão que você descolou pra hoje! Ver o "Sabadão Sertanejo"? Vamos com a gente! Espairece um pouco a cabeça, vai! Nada de ficar sozinho curtindo fossa.

Ele não demorou muito pensando, e concordou.

— Tá bom, fui convencido. Só vou até em casa, então, e já volto.

— Vai até em casa?! — estranhei.

— É que eu moro aqui em cima mesmo, só algumas casas pra cima, ali na esquina da rua.

— Então vai lá, avisa sua mãe que nós estamos te esperando. — retrucou o Alberto meio afoito. E já sumiu de novo.

Eduardo despediu-se de mim com educação e falou:

— Isabela é o seu nome, né? Até mais, então, a gente se vê. Você vai também, né?

— Vou. Vou!

Naquele momento realmente eu acreditei que ele estava indo dar satisfações à sua mãe. Mal sabia eu que há muito Eduardo não tinha desses hábitos, mais ou menos uns 75 anos! Muito mais tarde fiquei sabendo a sua verdadeira intenção: pentear o cabelo, escovar os dentes... estar apresentável para o caso de "pintar uma oportunidade".

Olha só se pode! Mesmo convertido, Eduardo ainda guardava aquela maneira antiga de pensar e agir. Como diziam seus amigos, "é melhor estar sempre prevenido". Ele subiu a rua pensando:

"Minha primeira impressão? Bom... é uma moça bonita. É Médica, é crente! Pode ser um bom partido".

E acrescentaria, anos mais tarde:

— É verdade que não reparei demais, estava chateado por causa do meu pai. Mas estava vivo, né?!

E eu nem desconfiei. Também, desconfiar do quê? Ele era noivo, não era?

Justamente por isso tratei de ir saindo logo. Combinei com Alberto que seguiria o carro da Alicinha, ela estava lhe dando carona e imaginei que Eduardo também iria junto com eles. Nem fiquei esperando na porta da Igreja porque não queria forçar a barra para que Eduardo viesse comigo. Afinal, aquela história de noiva era fria! Eu não queria nenhum tipo de encrenca para o meu lado.

— Tá bom, esperamos você ali na esquina, segue o Escort preto!

— Falou!

Fui pegar o meu carro: um fusquinha vermelho que era uma verdadeira relíquia de família, com quase 30 anos de uso, e que estava parado na descida lá embaixo.

Quando eu estava descendo a rua após ter me despedido de algumas pessoas, reparei que Eduardo tinha surgido nem sei de onde, e vinha atrás de mim, todo lampeiro. E convidou-se sem cerimônia. Na verdade, nem se convidou; antes afirmou, sorridente:

— Vou com você.

Não me dei por achada. Respondi sem pestanejar:

— Tudo bem vir comigo, mas não sei se você vai achar o meu carro muito confortável. Você pode ir com eles! — e refleti: "Por que é que ele não vai com os outros?"

— Não. — disse Eduardo. — Senão você vai sozinha.

— Tá bom. Vamos lá. Ele está ali embaixo, na esquina!

A partir daí começaria uma sucessão de fatos que, certamente, não fosse a intervenção Divina... não teriam resultado em coisa alguma! Bem mais uma sucessão de desencontros do que de encontros.

Era o início de uma noite quente na boca da Primavera.

No caminho a conversa continuou, e acabamos de novo mencionando o Aloísio, único elo entre nós. Mas eu não estava a fim de falar de Aloísio, então perguntei do Kung Fu. E Eduardo foi falando e falando do que parecia ser uma grande paixão. Contou que praticava há muitos anos, contou dos títulos conquistados. E que seu sonho era ter uma Academia.

— Pôxa! Muito jóia você ter ganhado estes campeonatos! Então você deve ser bom mesmo, hein? — perguntei com curiosidade.

— Agora estou um pouco fora de forma. Tive que largar durante um tempo por causa do serviço, mas estou retomando.

Eu, sinceramente, achei mesmo muito jóia tudo aquilo. E não foi para fazer média. Eu apreciava a beleza do Kung Fu, conhecia dos mesmos filmes de TV que Eduardo já tinha cansado de ver. Eu também tinha praticado tae-kwon-do. Daí foi a vez dele quase não acreditar. Fez a pergunta visivelmente espantado:

— Então você gosta mesmo disso? Está mesmo falando sério!

— Ué! Por que a surpresa?

— Xiii, é porque em casa todos detestam! Até mesmo a minha noiva. Depois que ganhei os títulos estava classificado para disputar o Mundial em Taiwan, não deixa de ser uma conquista, né? Mas eles nem ligam pra isso. Logo que comecei, tive que quebrar algumas lanças para levar adiante o Kung Fu.

— Pôxa... mas que coisa.... era para todos eles terem orgulho de você. — achei super esquisito, mas não me cabia fazer qualquer comentário. — Mas e aí? Você foi para Taiwan?

— Não tive patrocínio. — ele respondeu meio jururu. E mudou de assunto.

Mais tarde eu viria saber porque lhe faltara o patrocínio.

Só então reparei melhor na calça de moletom surrada e nas sapatilhas design chinês. Dei uma risadinha significativa.

— Pelo visto você estava praticando antes de chegar à Igreja hoje...

— Pois é, costumo treinar bastante aos sábados. Mas hoje quando cheguei escutei o coral cantando. Estava bem bonito, sabia?

— É mesmo, é? Dava pra escutar lá da sua casa?!

— Direitinho! Daí perdi a vontade de ficar em casa, resolvi subir até aqui. Às vezes eu faço isso, sabe? Sempre sei o que está rolando na Igreja porque escuto tudo lá de casa! — e riu.

Eduardo estava sempre rindo, sorrindo. Era simpático. O que será que ele fazia? Então perguntei.

— Você trabalha com quê?

— Sou Analista Financeiro numa Multinacional — respondeu ele.

Eu nem sabia o que era aquilo. Minha cultura fora do âmbito da Medicina não era das melhores.

— E que Faculdade você fez? — a pergunta era óbvia.

Ele me explicou da melhor maneira que pôde porque não tinha curso superior. Naquela altura não me convenceu muito, ainda que Eduardo procurasse ser muito convincente. Pelo menos foi sincero.

— Eu até entrei na Faculdade, sabe? Queria muito fazer Administração de Empresas, mas eu ia me casar na época... e minha noiva não me incentivou a levar adiante essa história.

Outra vez me custou compreender aquela postura. Até franzi as sobrancelhas.

— Pôxa, mas o que uma coisa tem a ver com outra? Desde quando estudo é uma coisa supérflua? Que pena!...

— Pois é! Mas não me faz muita falta...

No futuro eu veria que realmente ele estava falando a verdade. Não lhe fazia muita falta mesmo. Eduardo tivera uma maneira muito peculiar de aprender tudo que era necessário para desempenhar bem sua função. Como eu mesma viria a constatar.

— E você não pensa em voltar a estudar?

— Hoje já fica mais difícil, né?... Quando passa o tempo da gente fazer alguma coisa, ele não volta mais. Mas eu já aprendi o que precisava aprender.

A conversa continuou rolando sem paradas até a casa da nossa amiga.

Ela morava num lugar legal, uma casa bonita, espaçosa, de bom gosto. Tinha até uma piscina no meio de um pequeno jardim cheio de plantas. Foi exatamente naquele lugar que nós nos acomodamos, depois de sermos recebidos alegremente pelo pai dela. Na varanda, sentados em cadeiras à volta de uma mesa, aquele foi um encontro extremamente agradável.

Alicinha estava recebendo em casa um rapaz que tinha vindo da França, uma espécie de intercâmbio. O objetivo de reunir o grupinho era justamente para que o francês pudesse conhecer melhor alguns brasileiros. O pai dela zanzou um pouco por ali, conversando amistosamente e fazendo as honras da casa. Ele me fez lembrar do meu pai, que também gostava de receber gente em casa, de oferecer uma bebidinha, fazer todo mundo se sentir bem recebido, à vontade.

Sinceramente falando... aquela noite teve um colorido todo especial! O clima estava diferente, gostoso, informal, acolhedor. As pessoas eram agradáveis, a conversa foi agradável, nos entrosamos muito bem, tudo estava muito bom. Conversamos, demos risada, falamos de tudo um pouco ao som suave de MPB, depois do Louvor.

Fazia calor, mesmo ali no quintal cheio de plantas. Quando chegaram as nossas pizzas comemos ao ar livre. A tônica da noite, durante todo o tempo, era confraternizar e estar juntos.

Foi gostoso demais! Mais tarde a conversa mudou de rumo e cada um acabou falando um pouco de si mesmo, do trabalho, dos estudos, dos planos para o futuro. Todos eles eram um pouco mais velhos do que eu, e cada um tinha uma vida bem peculiar, bem diferente da minha.

Alicinha dava aulas particulares de línguas: inglês, francês e italiano. Fazia traduções também. O Alberto era psicomotricista. O tal francês tentava enrolar um português bem falho e não conseguia terminar as frases, então Alicinha ajudava. Parece que, assim como ela, ele também era professor.

Mas Eduardo, sem dúvida, pelo menos para mim, era o mais interessante.

Lembro-me que enquanto ele falava de si mesmo, primeiro do serviço e depois dos Mestres de Kung Fu, eu admirava o seu rosto e me convencia definitivamente de que ele era uma pessoa muito interessante!

Educado, bonito, desenvolto, simpático... mas que coisa! Ele tinha uma noiva, então nada de ficar animada! Só de pensar em arrumar um interesse qualquer por alguém compromissado já me fazia estremecer. Por isso eu o tratei normalmente, da mesma maneira que os demais, e nem sentei ao lado dele. Fiquei perto da Alicinha.

Eduardo falava com tanto entusiasmo e com tanto conhecimento do Kung Fu que, mesmo se de antemão eu não gostasse daquilo, sairia gostando, só pela maneira como ele falava.

Depois alguém falou alguma coisa sobre a sua namorada. (Perdão, a noiva)! Eles já a conheciam porque mais de uma vez ela tinha vindo visitar a Igreja junto com Eduardo. Daí procurei prestar bastante atenção quando o Alberto perguntou, ingenuamente, quando é que ele casava. Eduardo falou, explicou, mas não ficou bem claro.

Em suma: ela estava em Ribeirão, ele estava aqui... havia uma longa distância... portanto... e Eduardo logo mudava de assunto.

Sempre fui muito sensível, de pescar as coisas no ar. A verdade é que na minha mente ficou uma estranha dúvida, uma sensação leve...

"Que esquisito esse jeito de falar... nem parece que ele gosta dela..."

Quem ama e está noivo e pretende casar-se deveria, pelo menos em tese, falar sobre a noiva com certo gosto. E ele nem mencionava a moça para nada. Parecia não ter prazer naquele assunto.

Mas, fosse como fosse... ele era noivo! E ponto final!

Tocava um CD bem gostoso, músicas do Caetano, da Gal, da Betânia. Depois que terminamos a sobremesa Alicinha acabou tocando um pouquinho de piano. Eu fui obrigada a enrolar também, apesar de que estava parada há mais de dois anos.

— Você toca bem, hein, menina?! — elogiou Eduardo.

— É só impressão. Não está mais tão bom quanto antes!

— Imagine se não está bom! — fez o Alberto com o jeitão dele. — Se eu sentasse nesse piano, então você ia ver só que coisa!

— Quer dizer que você parou de estudar? Mas está tão bom!

— Bom!! Você também não acha que seu Kung Fu não é mais como antes, como você mesmo disse? Não falou que está destreinado?

— E estou mesmo!

— Pois comigo é a mesma coisa.

— É verdade, os outros até podem se derreter, né? Mas a gente é que sabe se está legal ou não o que fazemos.

Fiquei quieta, mas ele continuou puxando conversa enquanto a Alicinha voltava para o piano. Eu não queria dar muita trela. "Noivo, noivo, noivo, noivo!" Mas ele parecia gostar de conversar comigo. Então continuou:

— É que para estar em forma, as coisas vão muito além do que a maioria pensa, não é?

Concordei.

— Acho que em se tratando do atleta deve ser até mais difícil, porque o corpo tem que acompanhar o ritmo. Eu não preciso treinar muita aeróbica para tocar!

— Isso lá é mesmo! Na época das competições até a dieta é fundamental. Pra mim era um sufoco ficar sem Coca-Cola, por exemplo! Mas tem umas outras coisinhas que ajudavam um pouco quando eu roubava na dieta.

— Ah, é? Como o quê, por exemplo?

— Pó! — e Eduardo sorriu com ar maroto. — Pó?...— não entendi.

— É. Umas droguinhas.

Olhei bem para ele. Não parecia ter pinta de quem fizesse tal coisa, fiquei até admirada.

— Você usou isso!

Ah! Antes! Faz muito tempo. Agora eu sou convertido, né?

Pois é. — retruquei. — Faz muito bem.

O pessoal começou a cantar um Louvor enquanto a Alicinha acompanhava no piano. Cantamos também, um após o outro. Depois veio mais uma rodada de refrigerante e o pai da Alicinha ofereceu um licorzinho a todo mundo. Então escutei o cachorro latindo no quintal. Saí para dar uma espiada nele.

Era um Pastorzão que estava preso atrás de um portãozinho. O portão parecia pequeno demais para conter aquele cachorro enorme e cheio de maus bofes. Eu adorava animais, mas não cheguei muito perto. Logo Eduardo veio atrás e começou a comentar algo sobre o cachorro. Fez algumas brincadeiras, e comecei a rir. Ele era engraçado!

Novamente, muito mais tarde, eu acabaria por saber também o rumo dos seus pensamentos:

"Caramba... essa moça é até interessante. Tem o próprio carro, sinal que é independente. Gosto disso! Toca piano... é talentosa! Mas como é difícil de dar bola! Qualquer outra já estaria demonstrando um pingo de interesse, trocando uns olhares. Mas ela não me dá bola. Que coisa!!"

Logo o pessoal estava de volta, vieram atrás da gente:

— Ah, vocês estão aí!

Apesar de estar uma delícia aquele convido com o pessoal, começou a ficar tarde e achei que era melhor ir me despedindo.

— Ah, é cedo! — falou a Alicinha.

— Também acho, mas não dá. Tenho mesmo que ir. Senão acaba dando confusão em casa!

Como o francês não tinha que ir pra casa, e o Alberto tinha vindo de carona com a Alicinha, e Eduardo comigo... estavam os dois a pé. Restava a possibilidade de voltarem comigo aproveitando a carona até uma parte do caminho.

— Então nós vamos contigo, Isabela! — falou logo o Alberto. — Você pode nos deixar lá por perto da Igreja?

— Claro! — respondi. — Vamos lá!

Fomos todos descendo as escadas juntos. Na frente da casa, ao lado do pai, Alicinha explicou como fazíamos para sair dali. — Entendi,é fácil!

— Tchau!

— Tchau, tchau! E eu pisei no acelerador. Normalmente eu costumava correr um pouco, mesmo sem perceber, e Alberto logo se rebelou:

— Isabela, vai mais devagar, que eu quero chegar vivo! — ele chacoalhava no banco de trás depois que passei rápido sobre uma lombada meio encoberta. — Acho que é por isso que o Senhor não te dá outro carro, sabia? Já imaginou? Era capaz de você não sobreviver!

Dei risada com gosto. Alberto também, Eduardo também. E fomos o resto do caminho conversando e rindo na maior alegria.

Tinha sido realmente uma noite como há tempos não acontecia. Deu mesmo para descontrair! Só o tanto de risada que demos... e nisso todo mundo se conheceu melhor. Mas o melhor de tudo é que não tinha sido nada premeditado!

Especialmente no que se referia a Eduardo, fiquei com a consciência super tranqüila. Aconteceu porque aconteceu.

Comentei o quanto antes com Mayra.

— Ah, sabia da última, Mayra? Conheci aquele Eduardo tão gracinha que eu já tinha te falado! Mas, puxa vida, que droga, ele tem uma noiva, que pena...

— Acho que eu até sei quem é. Vi a tal uma vez com ele!

— Mas foi tão estranho! Ele fala muito pouco da coitada, fala sem sentimento, parece uma coisa tão fria! Será que é só coisa da minha cabeça? Parece que ele nem gosta dela, sabe? Alguém que está em vias de se casar deveria falar da própria noiva com mais alegria.

— Sabe que você está falando... como eu disse, lembro dessa moça, um dia destes ela estava aí na Igreja. Perguntaram do casamento, para quando que era. Ela ainda tentou brincar um pouco, falou alguma coisa do tipo: "Olha aí, Eduardo. Tá vendo?" Alguma coisa nesse sentido. Mas ele nem respondeu, ficou roxo, super constrangido, e não fez comentários. Parece mesmo uma coisa estranha.

Dei de ombros. Mas não resisti:

— E como é que ela é? Muito bonitona?

— Ah, eu não diria "bonitona"... ela é normal!

— Também, eu não tenho nada com isso! Para todos os efeitos, ele está noivo e eu não vou atrás de ninguém.

Mayra concordou.

— Acho mesmo muito sábio da sua parte! — exclamou, sorridente, com conhecimento de causa.

Ela conhecia o meu lado romântico impulsivo-inusitado-incontrolado. Algumas vezes ela tivera o privilégio de ver-me embevecida por alguém, e sabia que eu não media muito as conseqüências quando o coração estava em jogo. Era meio maluquinha nesse sentido.

E eu me esforcei para não ficar pensando.

 

No final de semana seguinte, na Igreja, para variar eu estava conversando com Mayra e Carô na porta, esperando o Culto começar, quando vi Eduardo descendo a rua. Logo estava ali pertinho. Ele cumprimentava as pessoas, aí me viu de longe e acenou. Veio direto para o nosso lado.

— Oi, Isabela, tudo bem? Como foi a semana?

— A minha tudo bem. E a sua?

— Tudo bem também.

— Você já conhece a Mayra?

Os dois sorriram rapidamente um para o outro. E Eduardo falou:

— Acho que de vista!

Então, eu apresentei minha amiga devidamente. Ficamos conversando um pouquinho até que ele pediu licença para ir falar com outras pessoas. Nos próximos dois domingos ele agiria assim: chegava todo sorridente, solícito. Nunca me ignorava. Mas não dava tempo da gente trocar mais do que meia dúzia de frases porque logo ele explicava:

— Dá uma licencinha, amiga? Eu preciso falar com aquela pessoa.

— Fica a vontade! — eu respondia sem deixar de sorrir, e sem aparentar nenhum desconforto.

Por que deveria me importar?

"Ele é noivo. Não corro atrás de noivo. Pois ele que vá falar com quem quiser, e eu com isso? Quem veio me cumprimentar foi ele!"

Apesar disso, aquela atitude me magoava ligeiramente. Eu era, para ele, aquilo mesmo: uma amiga, nada mais.

No futuro os pensamentos de Eduardo seriam desnudados:

"É isso que eu tenho que fazer para ela vir atrás de mim. Dou uma trelinha, uma corda! E saio de cena. Tenho certeza que ela vem correndo atrás para puxar conversa!"

Era assim que ele pensava. Eu, ao contrário, sequer cogitava nisso. O seu tiro saiu pela culatra, ele caiu do cavalo porque não fui puxar conversa. Pela primeira vez, a sua "técnica" não parecia funcionar.

Ele estava jogando. Eu não.

Então ia sentar-me, prestar atenção no Louvor que estava quase começando. Acomodava-me no lugar de sempre, perto de Mayra. Nunca sequer mudei de lugar, procurando um mais estratégico.

Num certo dia, não muito depois do encontro na casa da Alicinha, Eduardo me largou sozinha depois de ter sido super simpático, como sempre. Foi falar com não sei quem. E eu não pensei mais em nada, sentei, fechei os olhos, comecei a cantar, a participar do Louvor. Mas então senti alguém encostar no meu ombro. Era Eduardo, que apareceu de repente com seu eterno sorriso. Eu estava sentada na ponta da fileira, mas Mayra rapidamente pulou uma cadeira e deixou propositadamente espaço para que ele sentasse ao meu lado.

Depois de um tempo, ela cochichou.

— Ele estava ali pertinho, na outra fileira, e estava olhando para cá. Então fiz sinal para que ele viesse sentar com a gente.

— Você! Sua espertinha.

Assim começou meu relacionamento com Eduardo, de maneira bem natural, sem forçar nada. Ninguém planejou aquilo! Como Alberto já fazia parte do meu círculo de amizades, e Eduardo tinha ficado muito amigo dele por causa do seu pai, foi um passo para que todos nós nos enturmássemos. Alicinha também fazia parte do meu grupo de amigos mais próximos, assim como a Carô e mais alguns colegas do coral.

Eduardo acabou sendo aceito naturalmente na nossa turma, pois se entrosava fácil. O fato de ser muito extrovertido ajudava. Aliás, reparei que ele conhecia muita gente. Aliás... gente até demais, para o meu gosto! Com isso quero dizer: mulheres até demais! Tinha em especial um trio de amigas que não desgrudava dele, e elas não me pareciam lá muito confiáveis. Entendam o que eu quero dizer sem que eu tenha que dizer. Não eram confiáveis. Era só dar uma olhadinha e sacar.

Um dia Eduardo apresentou-me uma delas. A Babi. Que estava treinando Kung Fu com ele no parque. Uma vez por semana.

— Ah. É mesmo?! — indaguei.

E minha vontade imediata foi convidar-me para ir também. Mas resisti em tempo, antes de dar mancada.

"Que bobagem é essa que você está fazendo, dona Isabela? Esse rapaz é noivo!!! Enfia isso na sua cabeça!"

A outra me observava. Deu para notar que ela não bateu muito bem comigo, mas procurou não demonstrar. Sei lá o que pensava. Vai ver achou que eu ia ser sua rival! Porque estava na cara que ela queria curtir um pouco com ele. Fiquei na minha.

E Eduardo pensava consigo mesmo, desapontado:

"Tudo bem, a Babi sempre flertou comigo, mas provocar ciúmes parece que também não é o caminho com essa garota...".

Sinceramente... em momento algum achei que ele estivesse tentando despertar algum tipo de ciúmes em mim. Por que em mim? Não era difícil perceber o quanto Eduardo era perseguido na Igreja. Descaradamente. E não somente as moças mais velhas iam atrás. Até mesmo algumas adolescentes ficavam de cochichos e risadinhas quando ele estava por perto.

Eu cochichava com Mayra, observando de longe:

— Parecem borboletinhas esvoaçando ao redor dele! Ela meneava a cabeça, concordando.

— São umas menininhas bobinhas, né? — Bobinhas, sim!Hum!

Aquelas que treinavam Kung Fu com ele ali mesmo na Igreja eram especialmente as mais risonhas. A Igreja tinha um programa esportivo, uma espécie de escolinha de esportes. E convidaram Eduardo para dar aula. E — mas que estranha "coincidência" — o grupo dele só tinha alunas!

Num futuro bem próximo eu viria a tirar um baratinho com ele por causa disso.   Onde já se viu? Nenhum varão da Igreja estava interessado na Arte da Guerra? Somente as doces menininhas?"

Por causa dessas e outras é que eu procurava me abster ao máximo e manter meu relacionamento nos padrões puros da amizade. O jogo de gato e rato ficou naquilo. Eu pensava que eu era o gato (e, aliás, fazia força para não seguir os instintos felinos). Mas estava enganada, ele era o gato.

Só que eu não percebi.

Foi assim durante um mês e pouco, talvez.

Até que eu e Mayra resolvemos montar ali na Igreja, para o final do ano que se aproximava, a mesma peça que havíamos encenado na Faculdade durante a Semana Cultural com a A.B.U, há uns três anos. Tinha ficado muito bonita, legal mesmo. E era uma maneira de fazermos alguma coisa diferente para a Igreja, além de nos divertirmos um pouco.

A peça precisava de oito participantes. Eu, Mayra, e mais seis. A Alicinha, claro. Alberto, embora convidado, não quis participar da peça. Achava que não era o seu metiê. Mas indicou outros colegas, o Heliton e o Sálvio. Pedimos autorização ao Pastor William, que foi simples e categórico na resposta depois que explicamos do que se tratava.

— Eu confio no que vocês fizerem. O que fizerem, certamente será bem feito. Podem montar a peça.

— Oba, oba, oba!!! — nós duas saímos radiantes.

Talvez não fosse o melhor momento para aquilo. Mayra já trabalhava, mas eu estava quase no final do sexto ano. Só que alguma coisa para ajudar a refrescar a cuca ia bem, sem dúvida. Eu estava necessitada daquele refrigério! De fato estava me adaptando bem à nova Igreja.

Então nós nos reunimos. Eu, Mayra, Alicinha, Heliton e Sálvio. E pensamos em que pessoas poderiam ser convidadas para fazer os outros personagens. Nessa ocasião nós estávamos passando o dia todo na Igreja, era um sábado e estava havendo uma conferência evangélica. No intervalo, nós nos reunimos.

— Precisamos de alguém para ser o personagem principal. Outro faz o papel de Deus, outro é o diabo. As outras cinco pessoas, que somos nós, terão cada uma a sua própria cena. — expliquei com entusiasmo. — Quem vocês sugerem? Quem gosta de Teatro?

E fomos atrás dos outros participantes, conforme sugerido: o Márcio e o Walter. Faltava um. Já nem sei quem sugeriu. Mas acho que foi a Alicinha quem falou:

— Essa cena do esportista... quem sabe não pode ser algum outro esporte? Vocês estavam acostumados a fazer com um jogador de basquete, mas poderia ser um artista marcial, por exemplo. Daí podíamos convidar o Eduardo!

Fiquei quieta e deixei o pessoal decidir. Nem pus a colher torta no meio.

— E será que ele é chegado nessas coisas? — conjeturou o Sálvio. — Não sei se ele tem jeito de quem gosta de Teatro!

— Mas não custa tentar! — reiterou a Mayra, sem perder a deixa.

Era a hora do almoço. A tarde haveria uma parte especial do curso na qual seríamos divididos em grupos. Alicinha, Mayra e eu combinamos, então, que acabando o curso iríamos juntas bater na casa de Eduardo. Não me culpei por aquilo, não tinha sido idéia minha.

Meu grupo foi um dos primeiros a terminar, e fiquei esperando pelas duas. Mas não acabava, não acabava.... e o tempo estava fechando, já começava a garoar. Eu não queria ir sozinha até lá, mas diante do mau tempo não resisti e resolvi adiantar o expediente. Saí caminhando apressada os poucos metros que separavam a Igreja da casa de Eduardo.

Toquei a campainha um tantinho tensa. A garoinha estava fina e ventava um pouco. Foi ele mesmo quem abriu a janela da sala para receber-me com um sorriso:

— Olá, amiga! Que traz você aqui?

— Oi, Eduardo! Tudo bem? Na verdade é rapidinho, essa chuvinha atrapalha e já estou indo. Vou direto ao assunto: tenho um convite para te fazer.

— Espera aí que eu vou abrir a porta pra você entrar.

— Não, não! — recusei polidamente. — Está tendo um curso na Igreja e não vou demorar. Sabe o que é? Nós estamos pretendendo montar uma peça muito jóia, e está faltando uma pessoa para fazer o papel do esportista. Se você estiver a fim... poderia fazer uma coreografia de Kung Fu, eu acho que ia ficar muito bom!

Expliquei em rápidas palavras do que se tratava e vi que ele concordou sinceramente de bom grado. Ficou até que bem animado.

— Ah! Eu quero participar, sim! Que bom que vocês lembraram de mim.

— Então ficamos combinados. Vamos marcar um dia para todo o grupo se reunir e começamos os ensaios. Nós avisamos você, tá?

— Tá ótimo. Fico aguardando. Você não quer mesmo entrar?

— Não, hoje não dá mesmo. Já tenho que voltar pra Igreja. Obrigada!

— Eu é que agradeço! Tchau, hein? — Tchau!

E voltei. Super contente!

Quanto a ele... Eduardo voltaria para dentro de casa com a sensação meio turva de que Deus talvez estivesse respondendo às suas orações. Eu não sabia a quantas andava o relacionamento dele com a noiva, mas naquele exato momento em que toquei a campainha, interrompi suas orações.

Orações que pediam ao Pai por uma companheira de verdade, uma mulher que fosse escolhida e trazida por Deus. O seu antigo relacionamento estava falido há muito tempo. Muitas vezes ele comentaria isso comigo mais tarde: que eu interrompi a sua oração com a campainha!

"Puxa, Deus... será que é ela?"

Mesmo sem perceber ele acabou fazendo uma comparação involuntária com... bem... com Thalya. Embora a essa altura eu nem soubesse quem era Thalya. Ela também era independente, tocava piano, pintava quadros, era inteligente. (Leia Filho do Fogo).

Aconteceu no início, mas logo Eduardo iria perceber que havia gritantes diferenças. E estas diferenças, fariam a diferença. Thalya seria esquecida de uma vez por todas!

Nós não tínhamos como saber naquele dia, mas estávamos marcados um para outro. Desde o primeiro instante ficou a marca. Invisível, sim... mas indelével.

 

Já nem sei como fiquei sabendo. No entanto, logo escutei o boato. Que não era bem boato, era verdade, segundo Eduardo mesmo confirmou. Eu nunca perguntava nada diretamente a ele, era melhor deixar que os outros fizessem perguntas. Não achava prudente entrar com questionamentos demais. Mas sempre tinha um dito cujo por perto que acabava fazendo as perguntas que eu não fazia e que tinha tanta vontade de ver respondidas.

— Quer dizer que você terminou mesmo o seu noivado, Eduardo?

Foi no ensaio da peça mesmo, o Alberto que acabou trazendo o assunto à baila.

Eduardo não fez segredos. Respondeu alto e claro enquanto todos desviavam para ele os olhos. Eu inclusive.

— Meu noivado era virtual, estava falido há anos — explicou Eduardo sem traumas. — Desta vez o ponto final é de verdade. Já estávamos afastados há um bom tempo, eu ia para Ribeirão só de vez em quando. Para cumprir um protocolo. A gente tinha se acostumado com essa situação. Mas agora é definitivo.

Vi que Mayra deu-me uma discreta olhadinha e eu fiz cara de quem não está nem aí, mas por dentro achando que era demais para ser verdade.

Depois daquele dia eu me sentia mais à vontade com ele. O caminho estava livre.

Certamente que o problema agora eram aquelas "borboletas" todas. Especialmente agora elas esvoaçavam mais, afinal ele estava "free" outra vez! Realmente Eduardo atraía atenções femininas. Quando vim a questionar, muito depois, ele explicou-me sinceramente e sem divagações:

— Eu estava com a guarda aberta. Estava procurando!

— Não precisava estar tão aberto assim! — eu retrucava. Para mim, era fato. E irritava-me! Que bando de mulherada!

Certa ocasião, depois do término do Culto, algumas pessoas iam a uma pizzaria e eu também tinha sido convidada. Fiquei sabendo que Eduardo recusara o convite dizendo que já tinha combinado antes um outro programa. Quando entrei no carro, vi pelo espelho retrovisor ele ir subindo a rua junto com aquele trio de moças que moravam juntas e faziam Kung Fu no parque. Ele vivia lá na casa delas.

Senti o sangue me subir à cabeça e decidi que Eduardo era mulherengo demais para o meu gosto. E era melhor deixar ele pra lá!!!

Numa outra ocasião, toda a mocidade da Igreja estava animada para ir a um barzinho porque um dos caras do Louvor tocava ali de vez em quando. Fui com Mayra e Alicinha. Quando chegamos, assim que terminei de subir as escadas e rumei para a mesa onde estava o pessoal da Igreja, dei de cara com Eduardo. Estava sentado logo na ponta, perto de Elaine, uma das moças daquele trio, uma moreninha de cabelo encaracolado. Eles estavam num papo só deles, muito íntimo, pareceu-me. E ela estava com uma cara meio séria.

Fiz questão de sentar bem longe. Ele olhou para mim, eu acenei de volta apenas para ser educada. Fui me acomodar na outra extremidade da mesa, perto do palco. Era bom cortar aquela história de vez, e pela raiz!

Eu estava brava, e um tanto frustrada. Eduardo contou-me depois a sua própria reação:

— Quando vi você entrar, tive tanta vontade de ir sentar lá na frente com você...! Ficava só olhando você de costas, ao lado da Mayra.

— Mas não foi. Por que não foi???

Ele estava tentando desvencilhar-se da Elaine. Como era ela uma amiga mais antiga teve mais tempo para sentir esperanças em relação ao Eduardo. De fato durante algumas semanas ele havia dado um pouco de corda, se aberto um pouco mais para ela. Ficaram no banho-maria, mas Elaine estava cansada de esperar pelos finalmente. E literalmente "atacou" Eduardo dentro da sua casa. O ataque não surtiu o efeito desejado, e ela estava muito brava pelas suas constantes recusas. De modo que naquele dia Eduardo estava pondo os "pingos nos is" de forma definitiva.

Mas a verdade é que eu não tinha bola de cristal e, na minha visão, achei que ele estava era paquerando a moça. Quantos desencontros!

Quando acabou o show e todo mundo foi descendo, saindo na rua para pegar os carros, nem vi mais Eduardo. Ou melhor: depois que fiz o contorno com meu próprio carro e ia voltando sozinha pela avenida, para pegar o rumo de casa, eu o vi caminhando junto com mais quatro pessoas, dentre elas a moreninha. Olhei de novo pelo retrovisor e só vi quando ele passou o braço pelos ombros dela. Confesso que fiquei arrasada:

"Será que ele já está namorando de novo??"

Eduardo daria muita risada das minhas interpretações:

— Que nada. Aquele abraço foi o prêmio de consolação! Eu estava dizendo: continuamos amigos, e só amigos, tá?

Mas eu fui para casa na fossa. Que pena! Que pena! Depois, nem quis saber se ele estava mesmo namorando, ou não. Que me importava?

 

Nossos ensaios continuaram normalmente. Eu coordenava a peça de forma incansável, ensinava o melhor possível como cada um deveria fazer o seu papel. Nunca era difícil ficar até mais tarde ou marcar ensaios extra, às vezes para uma ou duas pessoas apenas, aqueles que estavam encontrando mais dificuldade no papel. O importante era termos um bom resultado.

Acho que todo o grupo me via mais ou menos como diretora porque: tudo o que tinha que ser resolvido, e as sugestões que apareciam, vinham parar direto nas minhas mãos. E perguntavam o que eu achava. Namorando ou não, Eduardo não desgrudava muito. Se tivesse marcado ensaiou extra com um ou dois, logo ele aparecia, vindo do nada. Quase sempre. Eis aí uma súmula dos seus pensamentos, totalmente desconhecidos para mim: "Via o fusca chegando na Igreja e logo ia tomar banho, me perfumar para chegar lá... por acaso... deixei rolar... estava bom!"

Naquela tarde fomos subindo alegremente as escadas que nos levavam ao andar superior, para a sala onde estávamos acostumados a ensaiar. Tinha mais gente na Igreja, cuidando de outras coisas, mas nós não permitíamos que ninguém viesse assistir os ensaios. Queríamos que fosse uma completa surpresa!

Alicinha carregava nos braços o rádio-gravador, item totalmente indispensável por causa da importante trilha sonora.

— Olha só, Isabela, pensei nisso aqui para incrementar a roupa da roqueira! — falou ela.

Mayra era a roqueira, e estava literalmente adorando o papel. Assim como eu, ela adorava esse tipo de atividade. Nós duas tínhamos muito em comum, a mesma vontade de bagunçar, de agitar uma coisa diferente.

— O que foi que você trouxe?

Mayra foi correndo espiar enquanto eu ajudava Walter a tirar as cadeiras no meio do caminho e abrir espaço. Ele e Alicinha iam fazer papel de Médico e enfermeira. Para Alicinha era algo novo, mas Walter também era Médico, Residente de Cirurgia da nossa Faculdade.

Enquanto a gente esperava pelos outros, não faltavam risadas e todo tipo de brincadeira. Um falava mais alto que o outro, todo mundo estava entusiasmado com o progresso da peça e fazíamos planos para melhorar este ou aquele detalhe.

Não demorou muito e o Heliton foi chegando. Estava com um sorriso de orelha a orelha, e trazia consigo uma sacola.

— Gente! Agora que vocês vão ver como a minha fantasia tá legal! Arrumei um negócio jóia!

Ele ia fazer o papel de diabo e levava mesmo muito jeito. Era o melhor ator! Todo mundo chegou perto dele para ver. Cada vez mais o grupo se unia, se divertia, se ajudava mutuamente em prol de um objetivo comum. Para muitos de nós, aquele era o melhor momento da semana!

Em seguida foi a vez de Sálvio chegar junto com o Márcio. Sálvio fazia o papel de Jesus. E Márcio ficou com o papel principal. No começo ele não estava se saindo muito bem porque tinha de participar de todas as cenas, mas agora já estava mais à vontade. Todo mundo tinha incentivado, todo mundo tinha ajudado, todo mundo tinha orado para que ele conseguisse dar de si o melhor.

Dessa vez Eduardo chegou por último. No meio do trança-trança e do fala-fala e do mexe-mexe do pessoal eu estava muito ocupada para dar-lhe qualquer atenção exclusiva. Todo mundo falava comigo de todos os lados. E então uma voz decretou que talvez já fosse hora de começar.

— Já tá todo mundo aqui! Vamos começar?

— É isso aí! Vamos!

Era uma coisa bonita aquela peça! Não tinha diálogos, somente música o tempo todo, havia uma maneira toda peculiar da gente comunicar o enredo sem precisar falar nada. Alguns recursos especiais como slides e luzes ajudavam em momentos especiais; por exemplo, durante a criação do mundo. Dava até arrepio de tão lindo!

Sem dúvida que não foi difícil logo todos estarem apaixonados pela peça. E davam sangue, suor, lágrimas — e tempo! — para montar aqueles pouco mais de 25 minutos de apresentação. Eu adorava estar envolvida com aquilo. A expressão da arte, da docilidade, da beleza. Um pouco da alma de cada um se expressava através daquele trabalho. Cada vez que meus pés pisavam em um palco eu sentia como se fosse um momento mágico, incrivelmente especial.

Mas antes que efetivamente a gente começasse a ensaiar, Eduardo fez questão de mostrar-me a coreografia que estava preparando.

— Isabela, queria que você desse uma olhada... — ele se afastou um pouco mais para o canto da sala. E mostrou rapidamente o que sabia fazer.

Observei sinceramente admirada.

— Uau! Está super lindo, Eduardo! — falei ainda antes dele terminar, sem me conter. Até esqueci da Elaine.

E não era demagogia. Não é que ele sabia mesmo aquela coisa de Kung Fu e tinha uma invejável performance?! Eduardo deu um chute alto de giro no fim.

— Está super legal! Super legal, de verdade! Vai incrementar pra caramba a apresentação!

— Eu posso colocar também uma coreografia com alguma arma, se você quiser. O que você acha? Que tal espada? Ou nunchaku?

— Eu acho que não precisa mudar nada, mas se você achar que vale a pena, ótimo, vai ficar melhor ainda. Prepare isso para a próxima vez!

Na outra vez ele trouxe o nunchaku. Todo mundo reuniu-se em volta para ver como é que ele "mexia aquela coisa". Eu conhecia um pouco por causa dos filmes. Mas quando Eduardo começou, todo o pessoal saiu correndo e foi ficar a uma distância segura. Ficaram encolhidinhos, fingindo-se de muito assustados só para mexer com ele.

Eduardo parou e fez uma cara engraçada:

— Não precisa fugir, gente!

— Caramba! — falou o Heliton. — Se arrebentar essa corrente aí alguém está morto! Com a velocidade desses pauzinhos ...

— Não tem perigo! Pelo visto só a Isabela confia em mim, foi a única que não correu para longe!

— OK! OK! Vamos orar para começar o ensaio! — eu falei logo. — Temos que ver se essa seqüência vai encaixar com a música, Edu! Não sei se não vai ficar fora do ritmo. Você tentou treinar com a música?

Durante o ensaio tratamos de experimentar. Todo mundo opinou e palpitou. O nunchaku só tem graça se for veloz e não ornou bem com o tipo de melodia. Mas quando Eduardo mostrou uma outra seqüência de movimentos, dessa vez feitos com espada... ficou demais! Todo mundo bateu palmas com entusiasmo.

— Tá dez, cara! — exclamou o Marcio. — Só não sei como é que eu vou te acompanhar, nem adianta querer que eu faça qualquer um desses movimentos.

Uma das necessidades da peça era que Márcio de certa forma imitasse, ou acompanhasse, cada um dos outros personagens.

— Não tem problema! — sugeriu a Mayra — Você podia ensinar alguns movimentos de corpo bem fáceis para ele, Eduardo!

Todo mundo achou que essa era a solução. Os dois marcaram de se encontrar durante a semana para ensaiarem juntos e, no próximo ensaio, tudo já estaria pronto.

Aliás, havia muita coisa para correr atrás, dentre elas a trilha sonora, que precisava ser adaptada. No final do ensaio eu estava combinando como faria para gravar as músicas, porque elas tinham que ser cuidadosamente encaixadas com as cenas. Muita coisa tinha sido mudada, especialmente na cena do Eduardo e do Walter, na minha também. Eu fazia o papel da "menina bonita" da peça. Essa minha cena tinha sido bem incrementada com uma dança, acabamos criando em conjunto, todo mundo foi dando opiniões e no fim estava tudo bem diferente do que no começo. Estava super legal!

De forma que era necessário gravar uma outra fita. Dava muito trabalho, pôxa, como dava! Eu já tinha confeccionado a primeira trilha sonora há três anos, para a apresentação da Faculdade junto com o pessoal da A.B.U., e sabia muito bem disso. Eu e o Edílson levamos quase o dia todo para gravar vinte minutos de fita. Além do quê era preciso uma aparelhagem especial, não serviam gravadores caseiros.

Fomos atrás dos recursos e um dos rapazes do Louvor tinha a aparelhagem necessária em sua casa. A qual ofereceu gentilmente. Enquanto eu acertava os detalhes, combinando dias e horários, Eduardo ofereceu-se para ir comigo.

— Não é justo você fazer todo o trabalho sozinha. Vou junto para te ajudar. Fiquei espantada com tanta boa vontade. Mas realmente não seria necessário.

— Eu faço tudo sozinha numa boa, eu adoro lidar com isso. Pra mim não é trabalho nenhum!

— Mas eu tenho tempo para te acompanhar, você não quer companhia. "Bom... fazer o quê, né? Vou recusar esse gentil oferecimento?!" Então aceitei de bom grado e marcamos uma data comum.

Muito tempo depois Eduardo me contaria a verdade:

— Eu me ofereci antes que outro fizesse. Especialmente o Walter! Não queria você muito perto daquele Médico!

Muito esperto. Muito esperto.

Então eu levei aquela pilha de discos e passamos uma tarde inteira no estúdio do jovem do Louvor. Trabalhamos bastante, cronometrando tempos, juntando pedaços e mais pedaços de músicas diferentes, tornando as junções entre elas praticamente imperceptíveis. Até que a trilha sonora da peça ficou um luxo! Jóia, muito jóia!

Só quando o trabalho já estava muito bem encaminhado foi que, lá pelas tantas, lembrei de tirar da bolsa um chocolatão de 200 gramas que fez Eduardo arregalar os olhos. E fizemos uma pequena pausa para esfriar a cabeça.

— Pôxa vida, você é precavida!

Foi uma tarde ótima, demos muita risada, conversamos bastante. À noite o rapaz e sua jovem esposa encomendaram uma pizza e comemos todos juntos. Para variar, perguntaram pela noiva de Eduardo. E ele explicou novamente que não estava mais compromissado.

Quando cheguei em casa, estava um pouco preocupada. Era a primeira vez que nós dois tínhamos tido tanto tempo juntos. Eduardo era muito legal, um cara interessantíssimo, simpático, bonito, inteligente... mas... e se aquilo não nos levasse a nada? No meu coração, amizade não bastava.

Dei um suspiro e continuei sentindo um leve mal estar diante das possibilidades. Eu não podia correr o risco de me envolver demais e ficar de cabeça virada logo às portas do final do ano, às portas da prova de Residência. Que loucura! Eu me conhecia.

Era tão difícil crer que fosse dar certo...

 

Já estávamos no início de novembro e em poucos dias terminaria o último estágio do sexto ano. Obstetrícia.

Uau, eu estava cansada! Em poucas semanas viria a primeira fase da prova de Residência. Mas, pelo menos os compromissos no Hospital estavam terminando, e aí era só estudar.

Na Igreja, tudo continuou como antes. Ou melhor... quase como antes. Algumas coisas aos pouquinhos estavam mudando. Estariam mesmo? Eu não podia afirmar que sim com 100% de certeza. No domingo seguinte, depois do Culto, eu conversava com Eduardo sobre algumas necessidades da peça, e então ele comentou. Finalmente!

— Pôxa, mas a gente só conversa de "trabalho", né, Isabela? Bem que a gente podia sair um dia destes para conversar de outras coisas, o que você acha?

O convite foi plenamente casual. Podia não ser nada demais, simplesmente um amigo convidando uma amiga. Eu tinha vários amigos com quem saí mais de

uma vez. Eu acreditava que podia existir amizade entre homem e mulher, talvez realmente fosse apenas isso. Mas no íntimo senti acender uma luzinha. Será?... Não tinha porque recusar. Apesar de tudo, fiz questão de aceitar com uma evasiva:

— É, quem sabe... um dia destes pode até ser mesmo. Questão da gente combinar. — também não podia ser evasiva demais.

Eduardo não perdeu a deixa e continuou, naturalmente:

— Sábado, então, depois do ensaio da peça. Tudo bem pra você?

— Hum... preciso dar uma olhadinha na minha escala de plantões. Se estiver de "pré-plantão" não é muito bom, mas se estiver livre pode ser!

Ele esperou que eu consultasse a agenda. Eu sabia que não tinha nenhum plantão. Sempre muito falador e bem humorado, Eduardo despediu-se de mim e foi conversar com outras pessoas depois que nos acertamos.

Esperei pelo sábado com certa expectativa. Despedimos do pessoal e fomos comer no "Viena" do Shopping Paulista. Agora a gente já se conhecia bem melhor e o tempo passou ultra rápido.

Foi muito, muito bom. Pedimos a "cestinha aperitivo", que vinha com diversos tipos de salgadinhos, e refrigerantes. Aproveitei para saber mais sobre ele, sobre o Kung Fu, sobre o noivado terminado. Sobre o trabalho.

— Acabei de sair da Empresa aonde trabalhava. Meu contrato era temporário!

— Ah, é? O que é isso?

— Eu fui contratado porque a Empresa estava desenvolvendo um trabalho específico. Fui contratado por seis meses, e agora esse trabalho já acabou. Agora me ponho em campo para arrumar outra coisa!

— Pôxa, que pena...

— Mas não tem problema, não! Isso é assim mesmo.

Quis saber um pouco mais sobre o que era ser Analista Econômico-Financeiro. Eduardo foi falando, eu escutava com interesse e atenção. Era gostoso conversar com ele. Para ser sincera, nem vi quem estava sentado ao nosso lado. Não podia mais negar que estava ficando a fim de verdade.

Dei um jeito de perguntar sutilmente se ele estava namorando Elaine, ainda que tal questionamento me parecesse dispensável... afinal, o que estaria ele fazendo comigo em plena noite de sábado se tivesse namorada?

Mas eu queria ter certeza. Eduardo não sabia que eu tinha visto aquela sua saída triunfal do barzinho, abraçado com ela, duas semanas antes. Sempre é bom saber em que terreno se está pisando.

Ele riu um pouco.

— Por que você acha que eu estou namorando?

Procurei não dar bandeira. Eu tinha ficado louca da vida por causa daquele dia, mas não podia admitir isso. Não queria admitir que tinha reparado neles.

— Bom... só me pareceu que vocês estavam namorando.

Mas Eduardo entendeu.

— De fato a gente procurou se conhecer melhor, e por ela estaríamos juntos agora. Mas não deu muito certo pra mim. Achei melhor me afastar um pouco.

Eu assenti com a cabeça, meio sorridente. Já sabia o que queria. E mudamos de rumo. Eduardo deu a deixa:

— Mas me fala um pouco de você, Isabela. Eu não sei nada e você já sabe bastante sobre mim.

— Hum... não tem muito que falar de mim, Eduardo! E depois, você já sabe, sim! Estou quase me formando, estou na dúvida se presto Psiquiatria ou M.I. na Residência. Deveria estar estudando mais, mas não estou. Estudei piano, e larguei... que mais?!?

— Pôxa, como se isso não fosse nada, hein? É difícil conhecer alguém como você! Você é uma pessoa diferente.

— Você acha?

— Eu acho, sim. Normalmente as pessoas são tão... previsíveis!

— E eu não sou?

— Nem um pouco.

Ele quis saber um pouco da Faculdade. Fui falando. Depois pulei para a Prova de Residência, meu atual motivo de preocupação.

— Depois de terminar a Residência ganhamos o título de especialista na área. Mas estou muito na dúvida. Se prestar Psiquiatria, que gosto bastante, isso significa abandonar a Clínica para sempre. Quando entrei na Faculdade, entrei para fazer Psiquiatria. Mas agora já não sei se é exatamente isso que eu quero. Também gosto de Clínica. Por outro lado, posso prestar M.I. porque estarei em contato com Clínica por mais tempo.

— Você tem que decidir logo, né?

— E como! Tenho dois amigos próximos que estão também na Infectologia. Talvez eu encare também! De certa forma, eu já estou bastante familiarizada com ela por causa do nosso trabalho de evangelismo no Hospital.

— Vocês evangelizam no Hospital ? Me empolguei e comecei a explicar:

— Desde o primeiro ano da Faculdade que faço parte de um grupinho de Cristãos, um grupinho de A.B.U.. Conheci a Mayra lá, quando estava no primeiro ano. Quase toda a minha experiência Cristã vem dali. Desde que eu estava no segundo ano que procuramos fazer aquilo que Deus diz: "Pregar o Evangelho a toda criatura". Fizemos o possível para ser bênção ali. Eu, a Mayra, o Edílson e a Cris formamos um grupinho para levar a Palavra até os doentes. Uma vez por semana.

— É mesmo, é, Isabela? — Eduardo parecia achar interessante de verdade. — Esse é um trabalho diferente!

— E hoje é um trabalho até mais consciente do que antes. À medida que começamos a ficar mais tempo dentro do Hospital e menos tempo na Faculdade, é natural que algumas coisas acabem mudando. Aquela gente precisa disso, o que é uma noite por semana? Nós costumamos visitar os pacientes da M.I., quase sempre os doentes com AIDS. Convivemos muito com eles, acho que Deus colocou um peso todo especial no nosso coração. Não é todo mundo que consegue estar ali. Temos visto Deus fazer muita coisa!

— Eles se convertem mesmo? Você já viu isso?

— Muita gente se converte, sim! A gente usa um jeito meio diferente para evangelizar, sabe? Com música! O Edílson toca violão e nós três cantamos, usamos as canções como veículo para as nossas mensagens. Sempre que você começa com música o caminho é mais fácil! É diferente de você chegar e simplesmente ir falando. A música prepara os corações, a mensagem depois parte da própria letra. Eu, a Mayra e a Cris temos um tom de voz bem parecido, fácil da gente se entrosar, e o Edílson faz uma boa segunda voz. Nem precisa muito ensaio. Os doentes gostam bastante! Aqueles que ficam muito tempo internados esperam a gente semana após semana. Deus tem tempo de trabalhar, os mais duros têm tempo para quebrantar-se. Se bem que, olha, por um outro lado... quando a pessoa não quer, pode estar morrendo que não muda de idéia, não se abre para Deus.

— É?

— Já vi acontecer. Certa ocasião... nessa época a gente ainda evangelizava na Enfermaria do Pronto-Socorro... tinha uma mulher internada ali que era meio esquisita. Ela veio de dentro da Igreja Protestante, veio de família evangélica. Mas estava tão cauterizada, tão amarga e tão cheia de doutrinas paralelas super estranhas que não escutava o que a gente dizia. Chegava a ser rude com a gente! Desacatava, atrapalhava as visitas, respondia torto. E não queria orar nem receber orações. Um dia, a Andreza ficou um tempão com ela enquanto a gente cantava, explicou o plano da salvação, quis orar... mas não adiantou! Depois soubemos que ela morreu na noite seguinte. E não se reconciliou com Deus, por mais que a gente tivesse falado...

— Isso é uma coisa que acontece...

— Em compensação, outros estão super abertos. Parece que estão ali apenas para se converter... e morrer! Uma vez oramos numa noite com um paciente que estava muito mal. Mas Deus permitiu que ele tivesse lucidez suficiente para entender. No dia seguinte, tinha ido. Uma outra paciente, eu me lembro bem, ela tinha síndrome hepato-renal e estava confusa, faz parte do quadro... gastei um tempo enorme para fazê-la compreender o plano da salvação e confessar Jesus. Pouco tempo depois ela também entrou em coma, e morreu. Uma outra paciente dessa mesma época era arredia no começo e costumava atrapalhar a gente quando íamos até lá. Eu já estava até irritada com ela, todas as semanas era a mesma coisa. Só que um dia entrei no quarto e ela estava sozinha. Não podia virar as costas, simplesmente, então me aproximei e comecei a conversar. Em pouco tempo ela estava tão quebrantada que chorava, e repetia a toda hora: "Pôxa, mas isso que você está falando está me ajudando tanto!" E se converteu. Depois adorava a gente.

— Pôxa... quantas experiências você tem!

— Ah! Nem digo que tenho "experiência'... mas a gente até que tem algumas histórias pra contar desses pacientes. É interessante ver como Deus prepara as pessoas e as situações. Uma vez eu estava dando acompanhamento para um paciente aidético recém convertido. Ele já ia ter alta. Uns dias antes da alta transferiram um rapaz de outro quarto, e puseram bem ali ao lado dele. À medida que eu tentava passar um pouco das bases do Amor de Deus, o tal do recém-chegado não conseguia nem disfarçar o interesse! Incrível, Eduardo! Ele quase caía da cama de tanto se inclinar para o nosso lado! — até dei risada me lembrando. — Ele só faltava me pedir: "fala comigo também!". Então fui conversando com ele, perguntei seu nome, há quanto tempo estava internado... e seja conhecia Jesus! Quase não precisou mais nada, o rapaz se derreteu todo, de verdade, tão sedento estava! Deu até dó. Quis orar, aceitar Jesus. Depois, os dois oravam juntos no quarto. Um dia fui visitá-lo, depois que o outro teve alta. O leito estava vazio. Fiquei sabendo que ele tinha complicado durante a noite, foi para a U.T.I. e mor­reu! Você vê, né? Deus o levou àquele quarto só para ouvir a Palavra e se conver­ter.

— Que legal.... conta mais alguma história!

— Você acha isso legal? Já não cansou de escutar?

— Não, estou achando bacana, é uma coisa diferente para mim.

— Teve uma outra paciente.... esta foi a primeira pessoa que eu levei a Cristo! Estava ainda no segundo ano da Faculdade. Foi lá no Pronto Socorro. Ia ter aula mais tarde naquela manhã e então aproveitei para ir ao Hospital falar de Jesus. Falei a manhã toda e ninguém se converteu. Quando já estava para ir embora, com o horário estourando, evangelizei só mais uma paciente. Mas, Edu, sério! Se eu soubesse de antemão o que a mulher tinha, nem teria chegado perto, naquelas alturas. Não estava acostumada com as doenças graves, com a morte... e ela sofria de uma doença rara e muito séria. É difícil isso, né? Só mesmo por Deus para a gente ter o que dizer para esses pacientes. Afinal... que coisa boa você pode dizer para alguém que vai morrer? Mas a mulher se converteu genuinamente, e eu passei quase 40 dias acompanhando, levando a Palavra duas ou três vezes por semana.

Eduardo escutava e eu estava falante:

— Especialmente esses pacientes com AIDS, eles sofrem muito. AIDS é uma doença daquelas! Aliás, um desses pacientes ficou muito meu amigo, e... infelizmente acabei tendo uns problemas. Meu pai não me perdoou até hoje.

— Por quê?

— Ele não gostava que eu tivesse muito contato com eles.

Pôxa, mas você trabalha no Hospital! — Sim, mas fora do horário de serviço, a título de evangelismo... ele não estava lá muito satisfeito. Acabei desobedecendo muito à minha família por causa desse amigo, com quem convivi muito. Ele morreu há seis meses... não foi um pedaço fácil. Eu gostava muito dele.

E achei melhor encurtar aquela conversa.

— Mas... é gratificante esse negócio de evangelismo. Já evangelizei em favela, em praça pública, no meio da rua, em praia também. Faz quase um ano que participei de um trabalho com aquela Missão JOCUM, como voluntária. Fui em dois "Impactos", como ele dizem! Por sinal o último foi no Carnaval. Passamos quatro dias no sambódromo. E o primeiro dia foi debaixo de chuva!

Eduardo me olhava compenetrado. Pelo visto ele nunca tinha conhecido ninguém que fizesse isso. Será que achava algum tipo de fanatismo?

— Você já ouviu falar da JOCUM, não? Ele balançou a cabeça negativamente.

— Nunca fui muito ligado nessas coisas...

— Aliás... sabe que eu entreguei minha vida para isso mesmo? — falei meio que sem pensar, numa atitude de confiança.

— Como assim?

— Desde que eu me converti que todo apelo missionário me toca muito. E até engraçado, mas sempre que escutava alguém desafiando e falando para a gente entregar a vida para Missões... lá estava eu, indo à frente. Lembro-me que fiz isso muitas vezes. Inclusive... — e parei um pouco, relembrando —... eu não estava ainda na Faculdade, já faz bastante tempo. Uma vez participei de um acampamento para jovens na primeira Igreja que freqüentei, onde fui batizada. No último dia teve um Culto da fogueira. Estava um frio danado! A pessoa que dirigiu o Culto convidou todo mundo a fazer um ato profético no final. Quem quisesse participar, que pegasse um graveto do chão e jogasse na fogueira. Simbolizando uma entrega total da sua vida a Cristo. Mesmo que a fornalha fosse quente, muito quente! Aquele ato queria dizer que estávamos dispostos a enfrentar essa fornalha. Lembro que fiz isso com o coração sincero!

Fiquei um pouco quieta, até que ele perguntou:

— E então?

— Bem... às vezes fico pensando... talvez Deus não tenha aceitado a minha entrega, porque, afinal de contas, não sou e nem vou ser Missionária. Eu fiz Medicina. Não é isso?!

Já se tinham passado muitos anos. Os sonhos antigos tinham passado.

— Enfim... Deus é quem sabe, não? — acabei sorrindo de novo, recordando-me. — Acho que meus pais tinham um pouco de medo dessa minha tara! Eu às vezes dizia que ia ser Missionária. Aí, depois que viajei com a JOCUM conheci vários Missionários. Teve um de quem me aproximei, um cara muito jóia, ficamos bem amigos. Uma vez ele até veio assistir comigo um concerto de violinistas que meu pai organizou. Mas meu pai não foi muito com ele e fez um pouco de birra, tratou o coitado meio mal. Acho que de puro medo! Vai saber, né? De repente, se algo mais acontecesse entre a gente eu acabava concretizando o meu sonho de ser Missionária antes do que todo mundo pensava. Porque se eu não tinha estudado para ser Missionária... casando com um deles... tudo se resolvia! Eduardo sorria de leve enquanto observava melhor o meu rosto.

— E não deu certo?

— Não! Uma das minhas sinas é ser meio desencontrada nesse aspecto. Se eu gosto, ele não gosta... se ele gosta... eu não gosto! Mais ou menos por aí.

— E quantos namorados você já teve?

— Já te respondi. Nunca namorei. —Vá!

— Sério, pô! Você não acredita?

Ele ficou quieto e eu procurava imaginar no que estaria pensando. Vai ver pensando que eu era alguma extraterrestre!

— Você acha que eu sou uma extraterrestre? — brinquei. — Pra ficar com o cara errado, melhor não ficar, você não acha? Oportunidade todo mundo sempre tem! Eu também tive.

Aí Eduardo concordou:

— Bom... nisso você tem toda razão. Eu também não gosto dessa coisa de "ficar por ficar". Legal que você também pense assim! Depois... nunca ter namorado não é nenhum motivo de vergonha — respondeu ele com sinceridade. — É bem melhor assim do que ao contrário.

— Conheci um moço que me disse exatamente isso. Ele achava isso uma virtude! Quase rolou. Ficou no quase!

— Tá na hora de sair do quase, hein? Encostei a mão na cabeça, meio sem jeito.

— Quem é que sabe? Ou melhor, Deus sabe! — passei a peteca pra ele. — E você? Quantas dúzias já namorou? — lembrei-me do quanto eu o achava mulherengo.

— Dúzias?! Um pouquinho menos do que isso. Não muitas. De verdade umas três ou quatro.

Continuei cutucando-o e rindo. Como se ele me enganasse!

— E de mentirinha? Quantas? Eduardo riu um pouco também.

— Algumas. Mas veja, essa minha noiva, a Camila... ex-noiva! Ficamos juntos quase doze anos.

Quase caí da cadeira.

— Doze?!!! Tá brincando, hein? E por que vocês não casaram?

Ele começou a contar um pouco sobre o relacionamento com ela, e explicou melhor porque tinha terminado. Voltou a repetir:

— Já tinha acabado há muito tempo. Terminei de uma vez por todas agora!

— Pôxa, que barra pra essa menina também, né, Eduardo? Não deve ter sido fácil pra ela... já que gostava de você ainda.

— Mas não dava mais, Isabela! Eu estava orando, pedindo a Deus para me ajudar nisso. Quanto mais eu continuasse, pior ia ficar. Nosso relacionamento não tinha mais futuro.

Nem toquei mais no assunto. Que coisa mais complicada! E a conversa mudou de rumo de novo, mais centrada nele do que em mim. Eu gostava de escutar, mas por fim já estava tarde e eu disse que era melhor irmos andando. Não queria me atrasar muito para chegar em casa.

Saímos lado a lado, satisfeitos, ainda rindo, tornando aquele momento muito agradável. Na verdade eu não conseguia parar de sorrir perto de Eduardo.

Pegamos o carro no estacionamento, eu ofereci carona. Era caminho mesmo.

A Avenida Paulista foi curta demais naquela noite. O vento entrava quente pelas janelas escancaradas e eu queria poder continuar conversando até o dia seguinte. Mas logo parei o carro em frente à casa de Eduardo. Ele não tinha carro, mas já estava até meio acostumado com o meu fusquinha. Ao despedir-se, comentou casualmente:

— Hoje foi muito legal. Mas não deu tempo de você me contar tudo sobre você. Contou só do Hospital, do Evangelismo. Isso é muito pouco! Precisamos repetir, e aí você vai falar de você mesma desde o início. Que tal no outro final de semana?

Abri o sorriso e dessa vez não me fiz de rogada. Ele não estava mesmo namorando com Elaine.

— Tá bom! Qualquer coisa você me liga, mas se a gente não se falar mais, fica combinado assim: sexta-feira, no mesmo horário e no mesmo lugar! Boa sorte na sua procura de emprego!

Fui para casa pensando, tinha sido tudo tão legal...

 

Da segunda vez que voltamos ao Viena, jantamos de verdade. Enquanto eu passava manteiga no pãozinho ciabatta, Eduardo fez questão que eu começasse logo a falar de mim mesma. Fui falando, compartilhando, totalmente à vontade, sendo eu mesma. Dificilmente eu fazia "tipo", nunca fui do tipo que "faz tipo". Uma das minhas principais características era ser transparente, verdadeiramente transparente.

Assim foi naquela noite. Estávamos vivendo uma fase muito gostosa, a de descobrir um ao outro!

Falei sobre como tinha sido e como era a minha vida, meus desejos para o futuro, meus planos, meus sentimentos. Ele falava dele, vez por outra. Aos poucos foi comentando um pouco do seu passado, e contou algumas das suas peripécias na "29" (Leia Filho do Fogo).

Aquele dia foi o dia das risadas! Rimos muito das histórias de Eduardo! Era tão difícil de acreditar! Olhando para aquele simpático moço de 27 anos parado ali na minha frente, quem podia dizer o quanto tinha aprontado1.!!

Edu, você era terrível! Como que sua família suportou?

— Eles não suportaram. Chegou uma hora que eles largaram mão!

Às vezes eu ria. Às vezes ficava condoída. Às vezes espantada. Comecei a conhecer o verdadeiro Eduardo. O Eduardo que tinha usado drogas, roubado... o Eduardo explosivo, violento, incontido...

Mas também o Eduardo engraçado, bem-humorado, de bom coração... especial! O lado rebelde e inconseqüente dele, no fundo, me punha animada e me lavava a alma. Porque, sem dúvida alguma, eu gostaria de ter feito algo semelhante. Não me entendam mal, não estou falando necessariamente de roubar, espancar os outros ou algo assim. Mas a minha alma bem que teve vontade, mais de uma vez, de chutar para o alto os protocolos.

Como seria ter coragem de não estar nem aí para o sistema?

— Eu te entendo, pode crer...! — falei. E entendia mesmo.

A diferença entre nós dois é que eu tinha ficado quieta. E ele tinha gritado bem alto! Para quem olhava de fora, podia parecer que nós não tínhamos muita coisa em comum: o "rebelde" e a "certinha". Mas não era bem assim. No fundo do meu sangue corria, vez por outra, a mesma insatisfação, a mesma revolta, uma certa porção de ira, de tormento, de furor. Para mim tinha faltado apenas a coragem de gritar, de explodir... não a vontade!

Por incrível que pareça eu podia compreender em parte as razões que levaram Eduardo a fazer o que fez na época da "29". E não o culpava! Quem era eu pra isso?!

Mas eu constatava algo que se tornava cada vez mais claro.

Nossas vidas tinham seguido por trilhas diferentes, mas em muitos aspectos acabaram por produzir o mesmo tipo de sentimento. Para dizer a verdade, o conhecimento mútuo nos fazia bem mais próximos do que distantes. Eu percebia que as diferenças não eram tantas assim. Creio que ele também!

E voltava a pensar, enquanto observava Eduardo falando. Ele era inteligente, carismático, educado, muito cavalheiro. Mas o que será que estava pretendendo em relação a mim???

A certa altura ele me olhou e falou em tom sincero, mas custei a acreditar. Seria mesmo verdade ou só brincadeira?

— Quanto mais eu te conheço mais vejo o seu valor, sabe, Isabela? É como se eu tivesse achado uma arca de tesouro. E quanto mais rebuscasse lá dentro, mais coisas preciosas descobrisse.

— Nossa, que exagero, Edu! Até parece, vai!

— Não duvide. Estou falando sério.

Balancei várias vezes a cabeça, meio desconfiada.

— Bem... OK, então... obrigada! — e não soube o que mais dizer.

Meu problema estava em ser precavida demais. Eduardo estava mesmo falando sério. Por mais que naquela hora eu não pudesse sondar perfeitamente seu coração, era assim que ele estava pensando:

"Convidei-a pra sair, mas não estava botando fé... achava que preferisse o outro, o Walter, o Médico. Mas ela está aqui comigo... eu falo, e ela entende. Entendei E também entendeu quando falei da teoria da relatividade! Ela aceitou sair comigo... tudo bem, isso é bom e trágico ao mesmo tempo. Bom porque aceitou... trágico porque não tenho muito dinheiro... nem tenho carro... nem emprego... sou pobre! A dama que vai me levar pra casa! Vou ter que procurar minha honra durante semanas! Embora tenha outras opções para escolher, só tenho olhos para ela. Não tem ninguém decente à minha volta... as outras meninas da Igreja são fúteis, vulgares, fáceis. Isabela não. Ela é direita, não parece volúvel, seu vocabulário é polido, tem modos! E... é imprevisível como a Thalya, não? Um pouco louquinha... como Thalya também era. Mas é muito mais inteligente! Depois... Isabela não é aquela crente bitoladona... no fundo, no fundo parece que não dá muito valor para as regras. Parece querer conhecer outras coisas, não se prende numa caixinha.... está aberta! Desde que seja lícito. Gosto disso! Quanto mais conheço ela, mais descubro um conjunto de valores especiais... valores raros... preciosos... que, pôxa vida, eu nunca encontrei em uma única pessoa! Tem senso de lealdade, é esforçada, não se conforma com os erros, procura acertar... é Cristã, toma atitudes que me agradam! É bem-humorada, meiga, sincera. Não é orgulhosa, não vive andando o tempo todo de branco, com estetoscópio no pescoço, falando que é Médica. Metida! Gosta de esportes! E tem urna carinha de boneca......".

Pode parecer bastante, mas é ele quem está dizendo.

Nosso encontro terminou mais uma vez com gosto de pouco. Parecia haver muita coisa a ser dita, muito a ser dividido, muito a ser percebido. Mas muito pouco tempo para isso.

Em casa, durante a noite, fiquei meio inquieta, incomodada. À medida que meu interesse crescia eu ficava ansiosa em saber o que estaria se passando com ele. Seria correspondida... ou não? Eu não sabia exatamente o que ele estava pensando. Hesitava em ser dada demais, mas não podia dizer que não estava envolvida.

Desabafei com Mayra no dia seguinte:

— O que será que ele quer comigo? Cheguei no ponto sem retorno, Mayra... agora estou interessada mesmo! E ele, que será que vai dar, hein?

Mayra balizava:

— Ihh, Chopi! (às vezes ela me chamava assim). — Vê se vai com calma! Ponha a cabeça no lugar.

Eu dava risada e me remexia.

Mas está difícil! Agora a coisa pegou! — e dava mais risada de puro nervosismo. — Que hora para tudo isso acontecer, tenho que estudar! Ai, meu Deus!

Mayra também dava risada.

— Se acalma!

— É isso! Mas e se eu perder a cabeça, Mayra?

— Nããão.... não vai perder, não. — Mayra conhecia esse meu lado— Já tinha visto algumas vezes. — Chopi, trata de ficar boazinha.

— Tá! Vou fazer o possível.

Nesse dia, sábado, estava havendo ensaio do coral na Igreja. Eduardo estava zanzando por lá desde o início, e havia muito mais gente porque l°g° depois ja era o horário do Culto dos Jovens.

Qual não foi minha surpresa quando vi Eduardo sentado a distância, lá no fundo do salão, no maior papo com uma moça da Igreja!! Eu sabia muito bem que ela estava "à procura" do seu futuro marido e não gostei nada, nada.

Quase não conseguia mais cantar, só olhava de esguelha, procurando não dar a menor importância. E sem deixá-lo perceber, é lógico!!! Mas intimamente furiosa com tanta desfaçatez.

"Eu sabia! Esse cara não é diferente de nenhum outro!! Passa horas conversando comigo num dia, e no dia seguinte já está todo derretido com outra. Ele deve fazer isso com todas, eu não sou nada de especial para ele. Que safado... E ainda bem debaixo do meu nariz! Arca de tesouro, hein? Pois sim.

Nem bem terminou o ensaio e eu sabia que ele deveria vir falar comigo, como sempre. E veio, o salafrário, acompanhado justamente da dita cuja. Ele estava particularmente animado e sorria muito. Mas não me cativou! Procurei me conter ao máximo para não deixar passar nenhuma impressão do meu descontentamento. Não ia lhe dar todo este ponto!!

Eu me convencia a mim mesma:

"Isabela, não banque a troglodita. Mas deixe-o aí falando sozinho! Que fique de conversinha com essa fulana, pouco me importa. Ele que não me merece! .

E alto:

— Oi, Eduardo! Oi, Luana! Tudo bem?

Eduardo ria e me abraçou carinhosamente. Foi a primeira vez que ele fez isso. Mas não fiquei muito tempo no abraço e já pedi licença:

— Tenho que falar com a Mayra!

No banheiro, com ela, explodi de raiva.

— E pode isso? Ontem ficou comigo até tarde e hoje passou o ensaio inteiro de conversa com essa Luana?

— Calma! Não vai perder a cabeça!

Mayra deu conselho certo.

— Está tudo indo tão bem! Não coloca tudo a perder, né? — continuou ela. Fiquei quieta. Mas nem procurei Eduardo depois. Sorte que não precisei esperar muito. Logo ele estava ali na minha frente, acompanhado do Alberto.

Algo ele deve ter lido no meu semblante. Tão logo Alberto desviou sua atenção para falar outra pessoa, Eduardo declarou com sinceridade:

— Eu gostei muito mais de conversar com você... — e deu-me um bombom! Com um sorriso maravilhoso.

Bom observador. Ele tinha percebido a bobagem.

Quem resiste? Não consegui conter um sorriso meio encabulado, meio aliviado, meio denunciador dos meus sentimentos.

— Hum.

E tudo voltou a ficar às boas.

O que eu não sabia é que tinha sido de propósito. Eduardo também estava tentando dar a cartada final, só que na certeza. Depois que realmente começamos a namorar ele me contou sua verdadeira intenção:

— Eu queria ter certeza que você tinha algum interesse real em mim! — disse-me Eduardo. — Era difícil afirmar ao certo porque o seu jeito de agir era muito, muito diferente do costumeiro. Mesmo dentro da Igreja nunca vi ninguém agir com tanta integridade, tanta discrição. Eu sei perceber quando uma mulher está dando bola! Mas você não era clara em momento algum, que coisa! Que raio de mulher difícil!! E eu não queria quebrar a cara. Não queria arriscar sem ter certeza. Afinal... — e nesse momento Eduardo assumia o seu olhar maroto. — Eu nunca levei um "não"! Claro que não queria que justamente agora, com você, fosse a primeira vez. Porque estava mesmo gostando de você! Nada melhor do que uns ciúmes bem feitos para ver se te desestabilizava um pouco, pelo menos!

— Te garanto que você usou o método errado! Quase que deu o efeito contrário!

— Mas eu tinha que usar algum método. Nada parecia funcionar, eu já estava querendo dar o "bote"! — brincou ele.

Foram muitos os nossos "desencontros". Nem dá para contar tudo! Mas o tempo todo foi assim: ele fazendo alguma coisa e eu entendendo outra, eu achando que estava demonstrando interesse, e ele não percebendo!

Um dia saímos todos juntos com uma galera da Igreja para comer pizza. Tudo termina em pizza no Brasil, né? Eu e Eduardo sentamos na ponta da mesa e conversamos tanto que o pessoal começou a pegar no nosso pé. Elaine estava numa diagonal, de frente para Eduardo, e só faltava nos fuzilar. É que o trio de amigas tinha oferecido carona a Eduardo para ir à pizzaria, mas ele dispensou Porque ia comigo. Elaine não se conformou, depois desse dia nem olhava na minha cara.

Nosso interesse parecia mútuo, mas ninguém dava o primeiro passo! Durante todo este período eu orava a Deus pedindo que Ele não deixasse eu me enganar, não me deixasse ficar sofrendo à toa. E se realmente Eduardo e eu tínhamos alguma coisa em comum, que pudéssemos nos acertar de uma vez por todas.

Finalmente... ninguém agüenta mais tanta novela...

A definição só veio no começo de dezembro. Um dia, ele quase falou!

A gente estava conversando na porta da Igreja, depois do Culto. E conversamos tanto que só ficamos nós dois ali, junto com o porteiro. Quando finalmente nos despedimos, Eduardo disse alguma coisa sobre ter sido flechado.

— Flechado? Tem alguma flecha voando por aí? — perguntei, entendendo.

— Tem, sim. E dessa vez foi um "ataque apache"!... Sorri abertamente, mas não disse nada.

Nem dormi direito.

 

Depois daquele plantão terrível na UTI da Clínica Médica eu estava literalmente exausta. Durante o dia os pacientes ficaram compensados, bonzinhos... mas à noite, justo no meu horário, todos resolveram complicar e foi impossível pregar olho. passei a noite toda só correndo para cima e para baixo, "buchando" (gíria que quer dizer, literalmente, "descascar o abacaxi").

Saí do Hospital depois de 36 horas, minha cabeça latejava levemente e a visão parecia um pouco turva. Uma sensação a que eu já estava acostumada. Quando eu estava cansada demais levava mais tempo para conseguir relaxar. Pelo menos comigo acontecia assim, apesar da exaustão eu não conseguia desligar e era difícil conciliar o sono. Normalmente só nos recuperamos bem de um plantão desses depois de dois dias.

Antes de deitar, Eduardo ligou e acabamos ficando bastante tempo no telefone. A desculpa dele era falar algo sobre a coreografia de Kung Fu na peça, mas depois enveredamos para outros assuntos. Foi nesse dia que, pela primeira vez, acabei perguntando algo sobre a sua conversão.

— Desde quando você é convertido, Eduardo?

— Há uns três anos, por aí — e não disse mais nada. Pelo que perguntei novamente:

— Mas... e antes de você se converter? Você seguia alguma outra religião, acreditava em alguma coisa? Ou era só como a maioria, um católico não praticante?

Pergunta-chave. Mas eu não sabia. Eduardo foi sincero, tão sincero que nem ele mesmo entendeu. E acabou respondendo em tom de voz até corriqueiro.

— Ah... antes de me converter eu andei dando uma olhada em tudo quanto é coisa, sabe? Conheci mesmo um pouco de tudo: mórmons, espíritas, umbandistas, testemunha de Jeová, Rosa Cruz... Budismo também, claro! Por causa do Kung Fu! Sempre fui meio andarilho!

— E mesmo, é? Pôxa...

Mas ele não tinha acabado. E sem que eu perguntasse acrescentou algo, aparentemente o dado mais importante:

— Mas eu não me identifiquei com nada disso, por incrível que pareça... aquilo Que mais mexeu comigo foi mesmo o Satanismo.

Pausa. De ambos os lados.

Procurei não mudar meu tom de voz, mas aquela declaração me soou completamente estranha, esdrúxula. Até mesmo inusitada.

— Ah. Satanismo?! — eu tinha que dizer alguma coisa. — Caramba... mas... você também foi atrás disso, Eduardo?

Minha cabeça não tinha uma idéia formada sobre aquilo, nenhuma mesmo.

"Deve ser alguma espécie de seita, que coisa mais louca!" Imediatamente formei uma imagem mental sombria e imaginei um lugar que pessoas que gostam de hard rock deviam adorar. Flashes de conjuntos de rock brotaram diante dos meus olhos, muita gritaria, máscaras horríveis e músicas horríveis, algumas orgias... essa foi a idéia mais Satânica que pude conceber naquela hora.

— Mas.... e então?!. — inquiri à guisa de resposta.

— Bom... — Eduardo foi categórico: — Deixa pra falar sobre isso numa outra ocasião. Hoje já está tarde, e você está cansada do plantão.

Suspirei. Ele tinha razão. Deixei pra lá aquela história de Satanismo. Eduardo tinha sido tão maluquinho, pelo que eu já conhecia dele, que aquilo só poderia ser mais uma das suas peripécias sem maiores conseqüências.

Antes de me despedir pra valer, anunciei:

— Eu deixei uma música aqui à mão, gravada no toca-fitas. Vou colocar pra você escutar um pouco, pra dormir que nem um anjo. É super linda, quer ouvir um pouco?

— Claro...

Apoiei o telefone sobre a caixa de som e coloquei a música. Era tão, tão linda, ficamos os dois ouvindo, um de cada lado da linha.

Eu gostava de todo tipo de música, desde que fosse agradável de ouvir. Sendo assim, qualquer coisa servia: erudita de todos os tipos, especialmente os românticos e barrocos; ópera; MPB; músicas típicas de outros países; canções nostálgicas de outras décadas... fossem românticas ou agitadas, ou esquisitas, chiques ou bregas... até aquilo que ninguém ouvia... se eu gostasse, eu ouvia. Mas não curtia sertanejo nem rock pesado.

Quando acabou já estava bem sonolenta. Peguei o fone de volta:

— E aí? Gostou? Gravei pra você!

A voz dele estava diferente, sensibilizada. Emocionada.

— Pôxa, se gostei... nunca ninguém fez isso pra mim, colocar uma música pra ouvir no telefone! Gostei mesmo, Gata!

Acho que foi a primeira vez que ele me chamou assim dessa forma. — Tchau, um beijo!

Fui dormir satisfeita pensando se ele costumava chamar todas as moças de gata.

 

Hoje sei que Eduardo tentou um pouco de tudo para abrir caminho até o meu coração. Sem perceber que já era dele desde o primeiro momento!

Apelou para ciúmes, indiferença. Tentou pegar pelo lado "materno", daí brincava com as crianças da Igreja na minha frente. Tentou ser "bonzinho", e então começou a participar de um dos programas de assistência social que a Igreja desenvolvia. E ver se isso surtia algum tipo de resultado positivo da minha arte. Logo que via o meu fusquinha estacionado por perto, saía de casa e voava para lá.

Usou de todos os meios. Eu não conhecia Eduardo tão bem assim, não sabia que nunca ele tinha gasto tanto tempo para conquistar alguém.

Para encurtar a história: finalmente foi dado o xeque-mate. Quase três meses de caça-caça!

Nós já éramos amigos, e certo final de tarde íamos ao cinema. Eduardo estava novamente trabalhando, portanto muito mais abonado. E foi encontrar-se comigo após o serviço no Shopping Paulista. Infelizmente peguei um trânsito monstruo­so, atrasei-me muito. O coitado estava lá, todo lindo de terno e gravata, com uma sacolinha na mão. Mas a carinha, que vi de longe, revelava o quanto estava cheio de esperar.

Cheguei apressada.

— Oi, me desculpe, Eduardo! O trânsito estava um horror. A carinha passou de enfadada para satisfeita.

— Tudo bem, não faz mal. Você quer jantar antes do cinema? Vamos comer no Viena? Estou morto de fome.

— Vamos indo. E como foi o seu dia? Fomos tagarelando até lá.

Fizemos os pedidos, comemos muito bem, o tempo foi passando. Eu observava Eduardo encher o seu prato de ketchup, foi com ele que aprendi a comer ketchup. Antes eu só gostava de mostarda.

Meu suco de abacaxi com hortelã já estava no fim, e eu estava ansiosa em me acertar com ele. Já estava cansada de tanta enrolação!

O suco acabou, bem no momento em que Eduardo fazia uma longa pregação astronômica, falando sobre seus conhecimentos da órbita dos planetas e seus satélites. Eu olhava para ele tentando adivinhar aonde ele queria chegar com aquela lenga toda. Eu sabia que volta e meia Eduardo engrenava nesse tipo de assunto, ele ficava encantado porque eu entendia o que ele falava.

Mas naquele dia... realmente... bom, deixa pra lá!

Pedimos a sobremesa: pudim de leite condensado. Lá no fundo da alma eu orava ao Senhor.

"Deus, se o Senhor preparou alguma coisa entre a gente, que essa situação de indecisão chegue logo ao fim! Não estou mais agüentando... "

Pedimos nosso cafezinho e aí Eduardo finalmente disse alguma coisa com segundas intenções.

— Você sabe que a Lua gira ao redor da Terra, né? E nunca se afasta dela, o tempo pode passar, mas a Lua sempre vai continuar girando em torno da Terra. — compreendi perfeitamente o que ele queria dizer. Ele estava dando voltas para chegar justamente ali.

Nem parei pra pensar e impulsivamente reclamei, sorrindo:

Tudo bem essa conversa toda, Eduardo, que nunca se afasta! Mas também nunca se aproxima, não é, fica o tempo todo só rodando sem chegar a lugar nenhum!!

TUM! Pela expressão do rosto dele, imediatamente vi que tinha falado demais. E fiquei quieta, talvez tivesse dado a deixa fora de hora. Tratei de terminar meu café rapidamente para disfarçar um pouco. Eduardo também ficou mudo durante alguns segundos, os quais me pareceram intermináveis. Mas não deixou passar a oportunidade. Dessa vez ele tinha certeza.

E então falou logo:

— Eu ainda não estava certo se era recíproco...

— Você acha que eu ia ficar saindo sempre com você, e tudo o mais, se não tivesse nada em mente? O que você acha que estou fazendo aqui com você? — tive que sorrir. Era incontrolável.

— Mas, Isabela, você não demonstrou muito. Eu ainda estava na dúvida, e eu não queria fazer nada na dúvida. Você é uma pessoa importante pra mim, não queria tomar nenhuma atitude que pudesse estragar o que a gente construiu até agora.

Ele pegou de leve na minha mão e completou, sorrindo, mas ao mesmo tempo com seriedade:

— E... mas de hoje não ia passar, não! Eu já tinha decidido que ia pôr tudo a limpo. — e sorriu mais abertamente, com aquele ar maroto. — Você sabe o que é isso?!.

Olhei para a sacola que ele puxou da cadeira. Estendeu-a para mim. — É pra você!

— Caramba, obrigada! — e eu estava sem jeito. Não achava que fosse para mim.

Dentro dela estava um embrulho grande e muito bonito, meio fofo. Acompanhado de um cartão do Garfield, que li meio sem graça. Então abri o pacote e era um enorme bicho de pelúcia, um porquinho cor de salmão vestido com jaquetinha e boné de couro preto.

— Nossa, mas que graça, Eduardo! Super lindo! Adorei!

— Eu não queria dar ursinho, é tudo a mesma coisa. Queria te dar alguma coisa diferente. Quando vi esse porco, não resisti. Como você pode notar... de hoje não passava!

Eu continuava olhando para o porquinho, apertando-o, e meu rosto certamente demonstrava uma parte da alegria que estava por dentro.

— Tem um pouco a ver com você, não? — perguntei a ele. — Essa jaqueta de couro.... esse bonezinho... acho que ele é um porquinho meio malandro, né? Um porquinho rebelde!

— Acho que tem um pouco a ver comigo, sim! Mas agora eu não sou mais um malandro, um rebelde! — e ele ria. — Agora eu sou convertido! Esse porquinho é um rebelde bonzinho.

Eduardo segurava na minha mão e eu fiquei olhando para ele com uma mistura de sentimentos. Alegria, segurança e insegurança ao mesmo tempo, certeza... incredulidade!... É isso! Nem parecia que a gente estava mesmo ali, que a gente estava namorando. Eu tinha esperado muito por esse dia. Finalmente os desencontros tinham chegado ao fim.

Depois do jantar fomos ao cinema e o filme foi um verdadeiro abacaxi. Já não agüentava mais. Não demoraria muito a perceber que Eduardo tinha uma enorme capacidade de optar por filmes horríveis. Eu detestava ficção científica! Junto comigo ele aprenderia a gostar de filmes melhores, filmes de vida, com alguma mensagem boa.

Voltamos juntos, ele despediu-se e me convidou para ir ao aniversário da sua prima no dia seguinte. Aceitei de bom grado e Eduardo deu-me um beijinho de leve.

Na volta para casa, dirigi quase sem ver o caminho. Fui dormir literalmente nas nuvens. Ou melhor... nem dormi! Passei a noite toda pensando que tinha dado certo!

"Eu orei. Deus atendeu! Então é porque ele deve ser... aquele!

Aquele... de quem o Senhor já havia falado, tantos anos antes. Nove anos antes, para ser exata, no dia da minha conversão.

— Deus está guardando o seu namorado — tinham me dito.

Fiquei quieta. Isso era coisa para se dizer? Mas naquele mesmo ano, eu não sabia... Eduardo tinha passado pelo Rito de Iniciação. (Leia Filho do Fogo).

Ao longo dos anos, Deus repetiria mais duas vezes sobre o homem que estava guardando para mim. Como eu nunca tinha namorado... no meu íntimo ficava claro... Eduardo era ele!

 

Naquela semana deveriam começar as nossas apresentações do Coral. Além de cantar na Igreja duas vezes, o Pastor William tinha agendado algumas apresentações em alguns shoppings de São Paulo. A primeira ia ser no Shopping Eldorado.

Embora eu houvesse comentado com Mayra sobre o início do namoro com Eduardo, ainda não era do conhecimento da Igreja. Eu sabia que Eduardo tinha terminado com Camila oficialmente há quase dois meses, mas acho que pouca gente da nossa Igreja estava a par disso. O pessoal do grupo de Teatro sabia, e mais algum que tinha conhecido Camila pessoalmente. Eu mesma nunca a tinha visto.

Naquele dia depois do serviço, Eduardo acompanhou-me à apresentação no Shopping Eldorado. Ia ser lá pelas sete e meia, oito horas da noite, e como a Cantata inteira durava uns 45 minutos, podíamos até mesmo passear um pouco no Shopping mais tarde.

Chegamos de mãos dadas para assumir publicamente o relacionamento. Para mim era realmente diferente estar junto com alguém, e perceber que as pessoas à nossa volta percebiam isso. E tiravam, lógico, suas conclusões.

Era ainda um pouco estranho, eu me sentia observada e analisada. Mas procurei não me incomodar porque, afinal de contas, era algo natural. Nós éramos um novo casal chegando no pedaço!

Começamos a conversar com o pessoal do Coral, todo mundo circulava por ali, uniformizado, rindo, confraternizando. Muitos membros da Igreja também estavam presentes somente para assistir à estréia. Mas somente alguns colegas do grupo de Teatro é que vieram nos dar os parabéns pelo namoro.

E aí aconteceu algo muito desagradável. Para minha surpresa, assim que as pessoas começaram a tomar posição em seus lugares, o Pastor Luís, muito chegado do Pastor William, chamou-me de lado.

— Isabela, por favor, não leve a mal o que eu vou dizer... mas eu preciso te transmitir um recado dos Pastores. Hoje nós gostaríamos de pedir que você não cantasse na apresentação.

Ele procurou falar brandamente. Mas não entendi de pronto.

— Por quê? — indaguei.

— Bem, acontece que vocês dois apareceram aqui de mãos dadas... e isso infelizmente está gerando um pouco de questionamentos. Vamos conversar melhor depois, mas pelo que eu tinha entendido do Eduardo...

Eduardo adiantou-se e nem o deixou continuar, ainda que procurasse manter-se controlado:

— Sim, imagino o que vocês devem estar pensando, mas gostaria de deixar claro que isso está sendo um engano. A Isabela começou a namorar comigo há dias, e eu já terminei com Camila há quase dois meses.

— Mas veja bem, Eduardo, em momento algum você nos comunicou isso. Para todos os efeitos Camila continua sendo sua noiva — tornou o Pastor Luís.

Aquilo foi como uma ducha de água fria. Eduardo ia continuar questionando, mas procurei interromper logo.

"Para bom entendedor, meia palavra basta" Não é o que diz o ditado? Então me adiantei:

— Tudo bem, Pastor. Pode ficar despreocupado porque não vou cantar.

Ele ainda me pediu desculpas, e afastou-se. Fiquei muito passada. Justo eu, que procurava ser irrepreensível nesse aspecto. Eu não tinha feito nada errado!... Eduardo estava muito irritado.

— Mas que afronta! Pôxa, que espécie de comportamento é esse? Desde quando eu preciso comunicar à Igreja que terminei um noivado e comecei um outro namoro?! Nunca soube que precisava dar esse tipo de satisfação. Mesmo porque, não era segredo pra ninguém, tinha muita gente que já sabia! Que falta de consideração com você! Foi a todos os ensaios e agora não pode cantar?!

Eu nunca tinha visto Eduardo tão irritado até então. Procurei acalmá-lo, apesar de que estava muito entristecida. Nem entendi muito bem o porquê daquela postura.

— Tudo bem, olha, não tem problema...

— Vamos embora! Não vamos mais ficar aqui! — reclamou ele categoricamente, impulsivo.

— Não, não, não! Não podemos fazer isso, vai soar como uma afronta. Nós não temos nada a temer, não estamos fazendo nada errado. Olha, veja de outra maneira... tente entender por outro lado... afinal, eles não podem adivinhar, né?

—   Mas isso é uma injustiça com você! Você não precisa passar por esse constrangimento todo de graça. O melhor é a gente ir embora!

— Mas, Eduardo, eles são Líderes, são os responsáveis pela Igreja, pelo Coral. Se por acaso eles viram alguma coisa que levantou poeira, a obrigação é averiguar. Isso pesa sobre a Liderança, entenda que se eles vêem algo "estranho", e não fazem nada... Deus vai cobrar deles depois! Isso é muito sério.

Eduardo não estava para muita conversa, injuriado com aquela desfeita. Mas procurei conversar e balizar a situação dos Pastores, evitar que ele se exaltasse. Eu ainda não conhecia aquele lado da Igreja, do povo evangélico. Conhecia, sim, a indiferença, a hipocrisia. Mas no futuro eu iria ver muito dessa outra coisa: para julgar, "enxergar pêlo em ovo" todo mundo está sempre pronto.

— Entende isso? — continuei. — Eles têm que tomar cuidado com todas as coisas.

— Mas é muito injusto com você! — insistia Eduardo. — Por mim a gente ia embora.

— Mas eu quero ver o Coral cantar. Afinal, eu vim aqui pra isso!

E ficamos ali. Assisti meus colegas se apresentarem. Olhando de longe para mim, estranhavam que eu tivesse participado dos ensaios e agora não estivesse ali no meio deles. Ficou um burburinho meio chato, uns olhares aqui e ali. Agüentei o constrangimento, chateada. No final da Cantata o pessoal nos cumprimentava, mas dava para sentir um certo arzinho de julgamento no ar. Eu cumprimentava de volta, sorrindo. Mas fiquei magoada. E Eduardo ficou indignado.

Realmente nenhum de nós tinha julgado necessário informar nada, se soubéssemos teríamos feito. Nem meus pais conheciam Eduardo ainda! Fomos pegos de surpresa.

No meio do tumulto, depois da apresentação, o Pastor Neliton e a esposa chegaram perto de nós para tentar remediar a situação. Mas saí dali sentindo-me mal, com uma sensação de estar fazendo algo errado. Uma sensação de culpa.

— Pôxa, ficou uma impressão tão ruim... parece até que eu estou fazendo uma coisa ilícita.

— Fica tranqüila! Vou conversar com eles e esclarecer tudo.

Eduardo conversou com os Pastores durante a semana. No domingo, no final do Culto, o Pastor William veio até mim. E pediu perdão em nome de todos com luvas de pelica. Eu só escutei, mas depois deixei bem claro, numa boa:

— Tudo bem... eu não sou a outra de ninguém, não, viu, Pastor?

— Foi necessário. Mas você está liberada para voltar ao Coral.

Esse foi o primeiro de muitos percalços que ainda teria por causa do nosso namoro. Somente muito mais tarde fomos perceber — e entender — que já havia um contexto espiritual maligno pairando sobre nós. Desde aquela época. Desde o primeiro momento. Nenhum de nós dois sabia o que ainda teríamos que enfrentar.

Mas, por hora, graças a Deus, tudo parecia resolvido.

O pessoal do Teatro tinha percebido o problema. No outro ensaio tivemos que explicar tudo em poucas palavras. O pessoal até se absteve de comentar muito, ficaram meio chocados porque eram nossos amigos. E acharam, muito in off, que tinha sido "excesso de zelo Pastoral".

Enfim... deixamos pra lá.

Agora era tratar de me acostumar com aquela nova condição: a de namorada! Claro que era preciso eu me acostumar, nunca tinha passado por aquilo que antes.

Mas aí começou o segundo capítulo. Foi durante a semana mesmo, e só fiquei sabendo depois, pelo Eduardo.

Camila tinha telefonado casualmente para a casa dele e, falando com dona Odete, comentou que Eduardo estava demorando muito em voltar a Ribeirão para vê-la. E queria saber quando é que ele ia.

— Mas, Eduardo, você não tinha terminado o namoro? — perguntei meio indignada e querendo saber muito bem daquela história.

— Terminei, Gatinha, terminei! Pôxa vida! Lembra aquele dia em que teve um show de música na Igreja? Com aquele cantor que veio de fora, lembra?

— Ah! Lembro bem! Lembro mesmo.

"E como não lembrar??"

Continuei falando:

— No final eu a chamei para ir com o pessoal comer uma comida italiana, todo mundo ia... mas você disse que tinha compromisso. Até estavam com você uns amigos que não eram convertidos. Lembro que um deles era bem cabeludão!

— Foi isso mesmo! Eu tinha chamado os meus amigos pra assistir o show justamente na intenção de evangelizar. Sabe como é, né? Eles não viriam à Igreja escutar uma pregação, mas para o show bem que vieram! Como o cara ia cantar músicas evangélicas junto com música popular, achei uma boa oportunidade. Mas a Camila apareceu do nada nessa ocasião, veio para São Paulo atrás de mim sem me avisar. Eu tinha terminado com ela já naquela época. Mas esse era o jeito dela mesmo, ela nunca aceitava o fim do namoro. Deixava passar um tempo e vinha atrás de novo. Então tive que deixar meus amigos depois do show e resolver aquela parada. A última vez que estive em Ribeirão tinha deixado bem claro que não ia mais voltar, que estava acabado..., mas Camila não escuta, não entende! E agora, mesmo assim ela ainda veio me procurar de novo...

— Mas você deixou claro mesmo?! Ele sorriu e tentou explicar:

— Eu já não te disse como é que foi o nosso relacionamento? Nós terminamos o namoro um truzilhão de vezes! Na cabeça dela, era só mais um piripaque meu Mas naquela noite no show nós saímos, fomos tomar um café. E pus fim de novo! Terminei! Acabei! Isso já faz uns dois meses, exatamente como te falei. Mas agora ela achou de ligar pra minha mãe como se nada tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse dito nadai Foi perguntando se ela sabia quando eu ia pra lá, pediu o telefone do meu novo serviço, assim, desse jeito!

— E o que foi que sua mãe disse?

— Ela explicou que eu estava namorando. — E aí? Eduardo tinha um ar de enfado. Sacudiu a cabeça, um pouco contrariado.

— Camila ficou enfurecida e imediatamente mandou uma carta para o Pastor Neliton. Ele é um conhecido antigo da família, do Pastor Sérgio, irmão dela. Em suma: o Pastor Neliton marcou um encontro comigo, para "conversarmos". Isso foi ontem à noite. Mostrou a carta. Só aí que fiquei sabendo da carta.

— OK, e o que ela dizia nessa carta?

— Bem, o que você acha? Foi aquela ladainha! Que nós ficamos juntos durante quase 12 anos, que somos praticamente casados, vê só se pode! E que terminar um noivado assim não tinha cabimento, afinal de contas, ela não tinha dito "não"! Só eu que falei "não"!...

— Ué, ela acha que precisa de um advogado para vocês se separarem? Ser praticamente casada não é ser casada de fato.

— Pois é, na carta Camila explica o que ela acha. Que a nossa separação é mais ou menos como um divórcio, e se ela não disse "não", então eu tenho que continuar atrelado. — Eduardo suspirou. — Olha só a que ponto chegou... eu expliquei como dava. Fiz o Pastor entender que esse noivado estava terminado há meses, mas Camila ainda não entendeu e nem aceitou a situação. O questionamento dele é outro... o tempo todo ele me perguntava se eu tinha mesmo certeza do que estava fazendo, se valia a pena jogar fora aqueles 12 anos... pra pensar melhor, essas coisas.

Escutei, mas nem fiz questão de especular muito. A única coisa que me interessava saber no momento foi aquilo que perguntei:

— E você...? Pretende voltar para ela, como das outras vezes? Eduardo sorriu e me abraçou com carinho. Como sempre.

— É claro que não, Gatinha! De jeito nenhum. Agora eu encontrei a mulher certa.

Aquilo era o que me bastava. Eu compreendia que um namoro de tantos anos deveria realmente causar um baque emocional muito grande. Eu compreendia que ela deveria estar sofrendo. Mas... o que podia fazer? Apenas esperar que o — Você explicou tudo para o Pastor Neliton? Senão, vamos acabar tendo problema...

— Eu expliquei. Contei como era o nosso relacionamento, que não dava mais, que nós nunca seríamos felizes. Mas não sei se ele entendeu... ele conhece Camila há muito tempo, já tem uma opinião pré-formada. Até o final ele continuava dizendo para eu orar a respeito, pensar melhor, conversar com ela... — Eduardo sacudiu a cabeça. — Mas eu não tenho mais nada pra conversar com Camila. Quanto mais mexer nessa situação, pior!

Mas, mesmo sem mexer, a situação piorou ainda mais. Até aquele momento eu não sabia que dona Odete punha lenha na fogueira. Em vez de desestimular Camila, ela a incentivava a continuar tentando.

Alguns dias depois deixei Eduardo em casa antes de voltar para a minha. Somente no dia seguinte é que fiquei sabendo. Eduardo nem pôde ficar ali. Camila tinha vindo de Ribeirão novamente e estava acampada na casa da "sogra", exatamente como tinha se acostumado a fazer. Como se o relacionamento dos dois continuasse em pé.

Quando Eduardo entrou, ela estava sentada na sala toda sorridente, e já foi pedindo para sair. Ele ficou bravo e recusou-se a conversar outra vez.

— Tudo o que eu tinha pra te dizer eu já disse, Camila! — e foi dormir em casa da avó.

Custei a acreditar no que ouvia, mas não me intrometi. Não era da minha alçada.

"Mas que coisa", pensei comigo mesma.

Como sua primeira estratégia não tinha dado certo, então Camila foi pessoalmente falar com o Pastor Neliton. Que, para todos os efeitos, estava do lado dela. Chorou, chorou as pitangas... e continuava cercando Eduardo por todos os lados, inclusive no serviço. Mas como ele continuasse se recusando a encontrá-la, Camila teve que voltar para Ribeirão.

Então telefonava, mas Eduardo desligava dizendo mais uma vez que eles já tinham conversado o necessário. Aí Camila passou a mandar cartas, as quais Eduardo me mostrava.

Eu sentia uma ponta de pena. Tentei sugerir:

— Não seria melhor você ir até Ribeirão e conversar de novo com ela?

— Não. Eu já conversei. Não tem mais o que conversar. Eu conheço Camila. Agora ela tem é que entendeu!

E não arredou pé.

Mas na Igreja ficou uma situação delicada por causa do bafafá que ela criou diante do Pastor Neliton. E as fofocas começaram logo. O problema é que em momento algum as pessoas vieram falar comigo, nem mesmo os Pastores. Para todos os efeitos, eu estava sendo a pedra de tropeço.

Ficava sabendo de tudo o que falavam, todos os comentários maldosos, todos os julgamentos, todas as opiniões... porque dona Odete gentilmente incumbia-se de repassar tudo ao Eduardo. Ela também freqüentava a Igreja, embora não fosse convertida, e discutir o nosso relacionamento tornou-se assunto de primeira linha.

Fui ficando extremamente chateada. Escutei de tudo um pouco. Quase sempre de pessoas que conheciam muito pouco do contexto de Eduardo e Camila. E pior! menos ainda do meu com ele.

— Ah! Mas o seu filho é um louco de jogar fora um namoro tão longo, tão antigo! Que absurdo! Esse tipo de coisa com a outra não tem a menor chance de dar certo. — especulavam com dona Odete.

Ou então:

— A Camila é uma moça tão boa, o que está acontecendo com Eduardo? Mas o pior de tudo eram as comparações. Camila era uma pessoa, eu era outra. Ela gostava de um tipo de coisa, eu gostava de outra.

Por exemplo, para Camila roupa tinha que ser "certinha". O meu estilo já era mais despojado. Pois até da minha roupa falaram! Do meu jeito de ser, de tudo! Tudo foi colocado em cheque. Tudo foi comparado. E, claro... naturalmente Camila era melhor em tudo.

Pelo menos era assim que dona Odete repassava ao Eduardo. Só que ela repassava apenas o que convinha.

Aliás, o aspecto familiar foi outro capítulo. E esse eu nunca consegui entender direito...! Na casa de Eduardo fui tratada de uma forma, no mínimo, muito estranha.

Nem bem comecei o namoro e procurei fazer o melhor possível, usei das boas maneiras que aprendi em casa. Da boa educação que todo ser humano deve ter. Como estivesse perto do Natal presenteei a mãe dele e a avó com uma lembrancinha, como manda o protocolo da boa etiqueta.

Sempre gostei da avó de Eduardo; e procurava conversar bastante com dona Odete, no começo eu a achava simpática. Mas na primeira reunião de família, um aniversário, percebi que ninguém perdeu muito tempo comigo. Afinal, eu era somente "mais uma". Os irmãos dele não fizeram nenhuma questão de que eu me sentisse à vontade, e uma das primas, que sempre foi apaixonada por Eduardo, fez questão de jogar seu charminho na minha frente.

Achei um comportamento meio esquisito, mas realmente não liguei, outra vez. Para mim era suficiente o desejo de Eduardo em querer permanecer comigo. Tudo aquilo ia passar. Pelo menos foi assim que pensei.

Os comentários logo começaram também ali dentro.

"Ela é estranha... é estranho ver Eduardo com ela. Camila já fazia parte da família."

Eduardo não teve muita sabedoria na sua sinceridade. Ao querer manter-me inteirada daquele bombardeio a que ele também estava sendo submetido logo de cara, sem querer envolveu-me naquela delicada e desagradável situação.

Não imaginei que ia encontrar tanta resistência por parte das pessoas no nosso namoro. Para mim aquele deveria ter sido um período especial, gostoso... eu tinha imaginado tudo diferente! Sempre pensei como seria ter cunhados, cunhadas, sogra, sogro... como seria pertencer também a outra família! Ser recebida por outra família.

Mas aquele estado de coisa foi criando dentro de mim um sentimento de desalento e desconforto. Havia no ar uma rejeição gratuita, um julgamento precipitado... eles nem se deram ao trabalho de me conhecer, de saber quem eu era, como eu era.

E se não era realmente "estranha" antes, acabei ficando depois, é claro. Nunca eu sabia que espécie de comentários fariam assim que eu virasse as costas.

Por um lado, eu compreendo que a substituição era difícil para todos eles. Especialmente depois de 12 anos. Por outro, era injusto comigo porque eu estava acabando de chegar, completamente alheia a esse contexto, e era tão gente quanto Camila.

Se era difícil para eles, muito mais para mim! Que estava entrando em contato pela primeira vez com a família de um namorado.

Mas, problemas à parte... nosso relacionamento estava indo de vento em popa! As atitudes sinceras de Eduardo me faziam sentir segura e tranqüila da sua escolha.

 

Mexericos à parte... a vida continuava e eu tinha mais com o que me preocu­par. Ainda bem que agora já não tinha mais aula e nem plantões.

Finalmente acabou o sexto ano, e agora toda a correria e esforço eram por causa da prova de Residência.

Estava havendo uma série de aulas-dica, como nós as chamávamos, uma espécie de revisão rápida das principais Clínicas. No entanto, a grande verdade era simples: o que a gente sabia, sabia. O que não sabia, era melhor nem estressar muito. O tempo era curtíssimo para rever e relembrar os pontos mais importantes.

Levantava-me pela manhã e já tratava de me pôr em campo para estudar. Logo chegaria a primeira fase. Era imprescindível que eu me concentrasse.

Mas como estava sendo difícil!!! Esforcei-me bastante naqueles dias, mas não foi exatamente como deveria. Somando-se ao cansaço natural do fim do ano, eu estava toda hora a me pegar com a cabeça nas nuvens, só pensando em Eduardo.

A primeira fase era uma prova de cem questões de múltipla escolha que englobava tudo de tudo.

Estudei o que deu. Principalmente Obstetrícia e Ginecologia, que tinha menos matéria mas cairia a mesma quantidade de questões a respeito. Estudei bastante Cirurgia, principalmente Geral, Urgências e Gástrica. Um pouco de Pediatria. Relembrei algumas fórmulas para calcular os soros de hidratação infantil, pontos quentes. Clínica nem peguei, ia confiar naquilo que tinha aprendido na prática durante a Faculdade e as provas. Medicina Preventiva também nem olhei. Dei uma relembrada em coisas importantes de Otorrino e Oftalmo, que por vezes caíam uma ou outra questão. Dermatologia também precisava dar uma vista d'olhos.

Durante esses dias costumava ficar em casa estudando o dia inteiro, só saía para as aulas de revisão. No final do dia encontrava com Eduardo, afinal precisava manter minha sanidade mental, era importante estar bem descansada na prova. Mas não consegui estudar o quanto gostaria, infelizmente. Minha mente estava cansada, meu corpo estava cansado.

Não era privilégio meu. Meus amigos da Panela e os colegas de turma não estavam menos exaustos. A maioria ia levando no piloto automático, sem parar muito pra pensar. Era melhor não pensar, não respirar, não fazer nada a não ser estudar para a primeira fase.

E chegou o dia! Não sou estressada, nem nervosa, nem desesperada. Mas a responsabilidade era muita e não dormi bem à noite, acabei indo bem mal dormida, isso sim! Minha vista pesava e eu sentia aquela leve dor de cabeça logo cedo, fruto do cansaço.

Fiz a prova. Não saí lá muito satisfeita, mas agora estava feito. O resultado viria em duas semanas, logo depois da Colação de Grau. Os aprovados deveriam então preparar-se para a segunda fase, específica da área que cada um estava prestando. Eu tinha me decidido pela M.I., e deveria fazer uma prova que duraria dois dias no início de janeiro. Isto é, se fosse aprovada na primeira fase, a prova de conhecimentos gerais.

Descansei um ou dois dias e já comecei a estudar para a outra etapa. Não dava para esperar sair o resultado. Agora era menos matéria, apenas M.I.. No entanto, a prova era bem mais específica.

Estava quase chegando o dia da Colação de Grau. Mas eu não me sentia completamente feliz porque, para variar, eu e meu pai estávamos brigados. Nem me pergunte o motivo, eu já não sabia. Até mesmo durante aquele período de provas importantes ele não estava falando comigo.

Eu tinha ficado muito triste porque depois do meu último dia de aula, quando efetivamente terminei o sexto ano, minha mãe fez surpresa comprando um lindo bolo da "Brunella" e uma champagne rosé (que eu adoro) para comemorar. Mas ele nem falou comigo! Não quis participar. Não me deu os parabéns!...

Cortamos o bolo sozinhas, apenas eu e ela, e tudo aquilo não teve gosto de celebração. Meu coração também tinha sido cortado. A atitude dele me fazia questionar todo aquele meu esforço, a vitória de ter terminado a Faculdade... como se aquilo não significasse nada. Embora devesse significar algo, afinal... ele também queria aquilo, não era?

Lembrei da época do Vestibular, quando eu tinha escolhido fazer aquele curso também para dar alegria a eles. O mais incrível é que durante as provas do Vestibular meu pai também estava brigado comigo! Que estranha coincidência!

Durante quase todo o período de exame nós nem nos falamos... ele nem me olhava... no íntimo torcia pela minha aprovação mas, por fora... me ignorava!

Eu estava esgotada daquilo. O ano todo tinha sido arrastado pelas brigas. Vez por outra, minha mãe o acompanhava no silêncio. Uma hora resolvia, depois piorava de novo. Aí resolvia... piorava... Pôxa vida! Eu realmente não sabia mais o que fazer, não queria magoar meu pai. Eu já havia conversado com ele uma ou duas vezes, procurava me explicar, me desculpar, entendê-lo e me fazer entender. Mas logo a situação voltava à estaca zero. Não sei porque a gente vivia assim. Onde estavam os motivos reais? Sim, porque tudo bem, eu não era perfeita... mas quem é? Quem é?!

Comentei com Eduardo minha preocupação:

— Minha Formatura não vai ter o menor sentido se meu pai estiver mudo comigo... já não sei o que fazer sobre isso. Meu irmão também não vai estar, só vai conseguir vir do exterior na boca do Natal! Que grande significado isso pode ter assim desse jeito?!!

— Você não pode conversar com ele sobre isso?

— Eu já conversei! Não sei mais o que dizer! Mas depois fiquei pensando e resolvi tentar mais uma vez.

Um dia eu estava na cozinha de casa estudando à tarde, aproveitando o sol gostoso que batia ali naquela hora. Aí ele abriu a porta e entrou, em silêncio.

O incômodo silêncio se manteve por alguns instantes, enquanto ele enchia um copo de água. Criei coragem e comecei:

— Pai... eu queria te dizer que a Formatura é na semana que vem. Mas se você estiver brigado comigo não vai ter significado pra mim, vai estar tudo estragado. Eu... não quero estar brigada com você... — e já nem conseguia falar direito, com a voz embargada. Como aquela situação me fazia mal! — Se eu estou magoando você por algum motivo, quero te pedir desculpas... porque eu não quero magoar ninguém. Seja o que for que eu tenha feito, não estou fazendo de propósito. Você pode pensar que é de propósito, mas não é!

E continuei ainda, até que ele disse que tudo bem, que estava tudo bem.

Eu realmente creio que meu pai se esforçava para me perdoar. Pelo menos, parecia ser assim. Mas como era grande a sua dificuldade em dialogar, por mais que sofresse com a situação ele também não dava o braço a torcer.

Às vezes me ponho tentando explicar o inexplicável, fico pensando... e tiro minhas conclusões.

De um lado, tinha a frustração dele: constatar que nem sempre eu era exatamente aquilo com que ele tinha sonhado. Talvez meu pai olhasse para mim e percebesse outras coisas, coisas com as quais ele não sabia lidar. Outras maneiras de pensar, de agir, de ver o mundo. Acho que ele não aceitou as minhas diferenças, não conseguiu abdicar do seu próprio sonho de ter uma filha perfeita.

Eu não era perfeita, eu era apenas eu, apenas Isabela!

Em nenhum momento da minha vida meu pai realmente conversou comigo, procurou me conhecer, saber quem eu era. Ele precisaria ter olhado para dentro daquela menininha que ele viu nascer, a "Princesa folheada a ouro", e em quem depositou tantas expectativas... querendo enxergar o que de fato estava ali, a pessoa que eu realmente era.

Era necessário meu pai ter visto a realidade, e aceitado essa realidade mesmo sabendo que nem sempre a realidade é como se gostaria! Creio que todas as vezes que ele esperou algo de mim, sonhou com algo, e no fim isso não se concretizou, acabou havendo uma decepção. Essa decepção aconteceu não porque eu fosse uma filha má, mas porque era uma expectativa irreal dele, uma expectativa falsa. A esperança de alguém que não chegou a me conhecer bem, mas sonhou muitas coisas para mim... e acreditou no sonho!

Ele acabava se decepcionando e creio que, até mesmo, me culpando por não ser a Isabela que ele queria. Como sei que fui uma filha muito esperada, muito desejada... parece que nas minhas mãos ficou indiretamente a missão de fazê-lo feliz. Mas eu não fui capaz. Não totalmente. Não retinha nas mãos todo este poder!

E aí vinha a minha parte, o meu lado da questão. Eu me frustrava por isso, por decepcioná-lo. E, decepcionando-o, pagava o preço por isso. Era roubada do lugar de "princesa", dos sorrisos, dos aplausos, do incentivo. Ficava frustrada por ser privada da totalidade do seu amor!

Meu pai era tudo pra mim... a pessoa mais importante da minha vida... por isso era tão difícil. Mas depois daquela breve conversa na cozinha as coisas melhoraram novamente, e ele voltou a falar comigo.

No dia da Formatura todo mundo estava chique e animado. E embora o Marco não pudesse vir, alguns parentes do interior de São Paulo deveriam estar presentes.

Saímos no começo da noite, eu, meu pai e minha mãe. No local da Formatura os fotógrafos não paravam de nos iluminar com seus flashes desde a hora em que descíamos do carro. Durante todo o tempo eles nos fotografavam no saguão, dando dicas, fazendo seu trabalho com esmero para, depois, termos muitas opções para montar o Álbum de Formatura. Havia luzes por todos os lados, pessoas bem vestidas, sorridentes, de peito estufado por fazerem parte da família de algum formando. Beijos, mil beijos; e abraços, abraços e mais abraços, e festejos de todas as formas!

Nossa beca era muito bonita, elegante, de boa qualidade, ornada com aqueles babados brancos e a faixa verde da Medicina. Sei que sou suspeita para falar, mas nós estávamos muito bonitos! Isso!

É muito difícil expressar em palavras a alegria e orgulho daquele momento, o sabor daquela conquista. Agora eu estava feliz, agora minha satisfação era completa e eu podia experimentar com gosto aquela sensação: eu era Médica!

Mais feliz ainda eu estava porque haveria ali mais uma pessoa que já me era cara ao coração. Eduardo.

Nesse dia iria apresentá-lo à minha família. Dá para imaginar como tudo estava sendo realmente especial para mim!

Eduardo viria com o Sálvio, do nosso grupo de Teatro, para aproveitar a carona. Eu não o vi antes de entrar no salão imenso onde efetivamente se daria a Colação de Grau. Tudo que eu sabia era que ele estaria ali, em algum lugar no meio daquela multidão, meu namorado estaria ali para participar comigo daquela data!

O pessoal da turma estava particularmente efusivo naquela noite, particularmente radiante. Todo mundo sabia que preço tinha sido pago para ocupar um lugar naquele grupo.

Quando fomos entrando por uma das laterais levemente iluminadas, tentando nos manter em fila, indo em direção aos nossos lugares, ao me voltar para a direita dei de cara com meu pai. Ele estava na ponta da passarela bem ali ao lado, xeretando em tudo, observando, como era de seu costume.

Todo mundo estava mais solto nesse dia, eu também. Por isso gritei para chamar a atenção dele. Foi espontâneo, quase um ato reflexo, completamente impensado:

— Pai!!! — e acenei para ele.

Ele retribuiu o aceno de forma espontânea também, natural... quase um ato reflexo. E naquele momento tão desprevenido de encontro, de repente pareceu que tudo estava como antes: eu era a filhota, e ele era meu orgulhoso Papai, sempre satisfeito com tudo o que eu fazia.

Fiquei pensando, depois, na expressão dos nossos rostos durante o instante que durou aquele gesto tão simples, tão sincero! Um aceno... mas que tirou de nós dois uma breve expressão daquele amor de antigamente.

A figura do meu pai era sempre fundamental. Nada poderia sobrepujá-lo, encobri-lo, ofuscá-lo. Quer me aprovasse, quer me desaprovasse. Quer para o bem, quer para o mal.

Em alguns momentos ele determinava, de certa forma, boa parte do meu estado de espírito. Podia determinar a minha felicidade ou a minha tristeza... a minha vitória... ou minha derrota!

 

Durou um tempo enorme a Colação. Naturalmente foi bem nos conformes, exatamente como deve ser: infindável e cheia de discursos dos Doutores, dos Mestres, dos Figurões da Universidade.

Quando fui chamada para ir à frente, recebi meu diploma e o anel foi colocado simbolicamente no meu dedo.

— E conferimos a você, Isabela Rolti, o Grau de Médico! Que coisa!!

Depois que encerrou a Formatura, Eduardo acabou me achando no meio da minha parentela; no meio da confusão, dos apertos de mão, dos beijos, dos abraços e dos sorrisos de orelha a orelha. Agora eu era a "Doutora Isabela" e todos pareciam satisfeitos.

— Oi, Eduardo, que bom que você apareceu!

No meio de mais fotos com a família, tirei com ele também, com a Mayra, o irmão dela e o Sálvio. Mas como a confusão estivesse muita naquele momento, ainda não era hora de apresentar Eduardo aos meus pais.

— Aliás, onde será que estão os meus pais? Já me perdi deles!

— Não, olha ali, eles estão ali conversando! — falou a Mayra. — Ah, é mesmo! Meus pais conversavam com os parentes que não viam já há algum tempo.

Eles ainda não sabiam quem era Eduardo, eu estava cercada de pessoas e Eduardo era apenas mais um.

Então finalmente era hora de ir embora. Eduardo estava lá um pouco apreensivo quando despediu-se do Sálvio, eu percebi. Mas procurava manter o tom descontraído de sempre, fez uma brincadeirinha, procurou relaxar.

— Vá orando por mim no caminho de volta porque vou conhecer o pai dela, a família toda! — brincou ele para o Sálvio.

— Vai tranqüilo, bonitão desse jeito que você está todo mundo vai te adorar! — Sálvio também não perdeu a oportunidade de retribuir a brincadeira.

Era verdade que Eduardo ia mesmo ser apresentado na melhor hora, até para os parentes do interior, tudo de uma vez.

Eu já tinha conhecido a família dele no tal aniversário, mas Eduardo sempre teve uma namorada a tiracolo desde que saiu das fraldas. Quando não era Camila, tinha sempre alguma outra! Portanto, para eles não era nenhuma novidade Eduardo estar namorando!

Muito diferente era o meu caso, nós sabíamos. Claro que todos estavam na expectativa de quem seria o tal pretendente!

Dias antes, quando meu pai indagou-me querendo saber o que Eduardo fazia profissionalmente, eu não consegui explicar muito bem. Não lembrava direito daquele termo "Analista Econômico Financeiro". Meu pai talvez não tenha entendido muito bem, mas deixou passar e esperou pela hora oportuna. Que era agora!

Depois de muito bem despedidos de todos, eu e Eduardo nos encaramos sorridentes e com uma leve sensação de expectativa. Era tocar para a segunda parte, irmos atrás de minha família.

Saí de braço dado com ele para encontrar todo mundo lá fora. Eles estavam parados numa roda, conversando enquanto esperavam por mim. Eu senti os olha­res a distância, até que foi engraçado. Acho que talvez meus pais já tivessem comentado algo com os outros, e todos logo olharam na nossa direção. Na cabeça deles estava a questão:

"Então... esse que é o cara!"

Eduardo estava muito elegante no seu terno e gravata, e percebi uma certa admiração misturada com curiosidade por parte de alguns parentes. Meu pai estava muito à vontade. Veio ao nosso encontro, sorrindo, junto com minha mãe. E apertaram cordialmente a mão de Eduardo.

— Pai... Mãe... este é o Eduardo! — apresentei. As mesuras foram trocadas adequadamente. Então meu pai perguntou:

— Vamos indo? Você janta com a gente, né? Eduardo assentiu.

Eu e ele caminhamos de mãos dadas até o carro, trocando olhares significativos vez por outra. Embora eu nada dissesse, sabia que Eduardo tinha causado boa impressão.

Não houve muito tempo nem oportunidade, mas foi isso mesmo: ele agradou à primeira vista. O jantar transcorreu normalmente apesar de que ficamos sentados perto de minhas primas, longe dos meus pais. Como meu pai fosse um exímio observador, dotado de uma "anteninha" extremamente sensível e aguçada, certamente estava radiografando tudo!

Eduardo fez questão de mostrar-se sensível e solícito comigo. Até na hora em que comecei a sentir frio, ele foi o primeiro a oferecer-me o seu blêiser.

No final da noite, meu pai o deixou em casa. Naquela hora eu não falei nada, mas no dia seguinte sorrateiramente perguntei o que ele tinha achado do Eduardo. E meu pai respondeu:

— Parece ser um moço simpático!

Suspirei de alívio. Embora não acrescentasse maiores comentários eu sabia que aquilo, partindo dele, era bom sinal.

Quando me lembrava daquele missionário da JOCUM ficava até com pena...

 

No dia em que saía o resultado da primeira fase da prova de Residência eu estava numa tremenda expectativa! A coisa mais terrível que podia acontecer a um sextoanista era não conseguir vaga no curso escolhido.

Tive que sair com minha mãe pela manhã para resolver algumas coisas. Depois aproveitamos para passar na Faculdade porque o resultado estaria afixado ali a partir das 11 horas. Ela estacionou em frente, ficou me esperando no carro, e eu entrei sozinha. Sentia o coração batendo na garganta. Aquilo significava tanta coisa!

Vi logo um burburinho diferente ali na entrada, tinha um bom número de pessoas aglomeradas, empilhando-se próximas umas das outras procurando nas várias listas os seus números. De fato a parede inteira estava repleta de papéis cheios de listagens de números. Vi que não seriam colocados os nomes dos alunos, apenas os nossos números de inscrição.

Dei uma olhada no meu número, que era bem comprido, com uns seis ou sete dígitos, e passei a procurá-lo na listagem. Enfiei a cabeça no meio de outras cabeças igualmente ansiosas e percorri os olhos apressadamente. Minhas mãos já estavam frias e a boca meio seca. Os que já tinham passado zanzavam ainda por ali, com largos sorrisos, comentando a vitória uns com os outros e atrapalhando quem queria ver o seu próprio resultado.

Finalmente enxerguei uma numeração próxima daquela que eu tinha em mãos. Mas, para minha surpresa e infelicidade, a listagem pulava o meu número e continuava adiante. Olhei e olhei, diversas vezes, sentindo de imediato uma tristeza incalculável.

Como realmente não encontrasse o meu número, afastei-me das listas ainda completamente baratinada, com a cabeça rodando. Eu procurava entender o que tinha acontecido. A nota de corte estava publicada... pôxa, o que teria acontecido? Será que eu não tinha conseguido atingir nem aquela pontuação?

Uma colega de classe veio toda sorridente para mim, mostrando no ar alegre que tinha sido aprovada, e perguntou:

— E aí, Isabela, foi bem? Eu não soube o que responder:

— Ah.... mais ou menos...

Ela compreendeu imediatamente o que aquela resposta significava e nem conseguiu dizer mais nada, afastou-se sem maiores comentários. Eu me sentia péssima.

Tive que sair o quanto antes dali e voltei para o carro. Minha mãe me aguardava cheia de ansiedade.

— E então? — perguntou-me ela.

Com a cara um tanto apreensiva, respondi:

Não deu. Não passei.

Ela ficou visivelmente chateada. E não sabia o que dizer.

— Não me diga uma coisa dessas...

— Pois é. Por essa eu também não esperava. — e fiquei muda.

Ninguém esperava por isso. Eu nunca tinha sido reprovada em prova alguma de importância. Tinha que acontecer isso justamente agora, num ponto tão crítico da minha existência?!

Mas não entrei em crise. Cheguei em casa e procurei não pensar no assunto. Não fiquei chorando nem arrancando os cabelos, como eu sabia que muitos faziam. Mais tarde comunicamos ao meu pai, que ficou muito chateado também. Mas ninguém me culpou e nem me acusou de nada. Foi somente um momento de profunda tristeza.

Agora eu só precisaria descansar um pouco, pôr a cabeça no lugar. Resfriar a tensão. Nem parei para pensar no que aquilo significava e o que eu faria no ano seguinte.

À noite fiquei um tempão no telefone. Eu não tinha vontade de ligar para ninguém e dar uma notícia daquela. Mas as pessoas me ligaram.

Primeiro falei com Eduardo, que procurou animar-me o melhor possível e me fazer ver que não era o fim do mundo. Ele sempre tinha uma visão otimista das coisas, e conseguiu levantar um pouco meu astral. Me consolou, me animou, e fiquei melhorzinha. Mayra ligou depois e tive que contar que não tinha dado certo. Edilson, que também já era Residente, ligou também. E ficou decepcionado.

Que droga!!!

Em três dias era véspera de Natal. Marco chegou bem de viagem e todos nós procuramos esquecer aquele mau pedaço.

Foi aí que aconteceu uma reviravolta pela qual eu não esperava! Deus que salvou a situação, porque eu nem estava mais pensando naquilo, já estava conformada. Mas precisava pegar uns documentos na Faculdade antes de dar o ano por encerrado.

Fui logo depois do Natal. Enquanto eu esperava que providenciassem o que precisava, fiquei ali mesmo ao lado da listagem dos aprovados para a segunda fase da Residência. Meus olhos vagueavam à toa, eu olhava distraída ora para os quadros na parede, ora para as próprias paredes, ora para as janelas, ora para o chão. Ora para quem passava por ali.

Então olhei para a listagem... à toa... e então... simplesmente meus olhos de­ram bem em cima do meu número!!! Isso mesmo, nada mais, nada menos do que ele mesmo, bem ali no meio de um sem-número de outros pequenos números. Só mesmo Deus para fazer desviar meu olhar e bater bem ali em cima!

Voei para lá sem acreditar! E só então percebi o que tinha acontecido de errado. Havia duas listagens, só que não estava escrito isso em nenhum lugar, pelo menos que eu tivesse visto. Uma das listagens tinha como referência dois zeros antes do início da seqüência numérica. A outra tinha três zeros de referência. E eu estava inserida nesta segunda classificação. Ali estava o meu número! Tinha sido aprovada!

Saí de lá esfuziante, super alegre, e fui correndo contar a todo mundo que tinha ficado decepcionado antes. Estudei com mais afinco do que se tivesse sabido antes do Natal! Aliás, se perdesse mais alguns dias estaria ferrada do mesmo jeito, porque não haveria tempo hábil para estudar toda a matéria da segunda fase. Todo mundo ficou satisfeito.

Deu tudo certo! Fui para as provas confiante após ter estudado bastante e estar bem preparada. Saí-me bem, o meu caso clínico foi o segundo melhor discutido, caiu uma Endocardite Bacteriana cheia de rococós; e também respondi bem às questões escritas. Logo o resultado saiu. Eu era um dos oito Residentes escolhidos para começar a trabalhar no início de fevereiro.

De alma lavada, aproveitei o resto do mês de janeiro — três semanas — para recuperar-me daquele ano atribulado e cheio de percalços. Que tinha, graças a Deus, terminado muito bem! Pois agora eu não estava mais sozinha, tinha Eduardo ao meu lado; e fechara com chave de ouro a minha Faculdade.

Naquele mês de janeiro Eduardo conheceu meu irmão Marco que, além de descansar, preparava-se para uma temporada de concertos pelo interior de São Paulo. Ele veio em companhia de uma moça estrangeira, uma jovenzinha loira e magricela, bem bonitinha, também estudante de música, e que iria acompanhá-lo nos concertos.

Nós nos conhecemos no PlayCenter. Marco ia levar sua amiga e então eu e Eduardo combinamos de encontrá-los lá. Marco e Eduardo se conheceram naquele dia. Acho que meu irmão estava ainda desconfiado com meu namorado. Mas, diferente do meu pai, a sua primeira pergunta em relação a ele foi "se era Cristão".

"Sim", eu tinha respondido, "ele é Cristão".

Virada esta página, a partir daí acho que o maior interesse de Marco era ouvir sobre o Kung Fu pessoalmente. Eu já havia comentado sobre isso, pois ele também gostava.

Marco era muito espontâneo, então, logo após as apresentações, na fila de um dos brinquedos, lançou a sua primeira pergunta:

— Você fala chinês?

— Não, só arranho umas palavras.

— Você sabe como se diz idiota em chinês? Eduardo até achou graça e riu.

— Por quê? Você tá me chamando de idiota?!

Aí foi a vez de Marco rir, e o ambiente descontraiu.

Embora Eduardo não comentasse nada comigo, ele estava curioso para conhecer o Músico de quem já tinha tanto ouvido falar em minha casa. Como falavam muito, imaginou que Marco se achasse o "tal". Aos poucos os dois se conheceriam melhor e a primeira impressão seria balizada. Eduardo percebeu que Marco tinha hábitos diferentes, é verdade, mas um bom coração, e era sim­ples como pessoa.

Aliás, naquele primeiro encontro, falando em "hábitos diferentes" Eduardo só estranhou a roupa: Marco estava usando uma bermuda estampada com uma camiseta de gola pólo fechada até em cima (naquele sol de rachar), e meias sociais pretas com tênis! Realmente, às vezes Marco não prestava muita atenção nas roupas que escolhia.

Eduardo pensou no fundo:

"Bom... é Músico, né? Músico é assim...".

Ainda naquele mês de janeiro Eduardo e eu fomos assistir a um dos concertos. A convite do meu pai. Viajamos de ônibus para encontrar minha família numa cidade do interior. Passamos o final de semana na companhia deles. Não era possível ficar mais porque Eduardo trabalhava na segunda-feira, mas ele voltou muito entusiasmado e satisfeito por ter sido tão bem tratado pelos meus pais. Comemos bem, passeamos, aproveitamos a piscina do Hotel.

O restante daquelas férias serviu para consolidar o início do nosso namoro, e também foi tempo suficiente para que Eduardo acabasse plenamente aceito por minha família. Logo ele tinha opinião formada:

O Seu Orpheu é uma pessoa distinta, me tratou super bem, foi amável e aces­sível... me surpreendeu, pensei que fosse me deparar com uma pessoa dura... convidou-me para ir à churrascaria duas vezes, não me julgou e nem me encheu de perguntas, não fez da nossa convivência um interrogatório. Não ficou forçando situações para ver como eu reagia... tudo isso me deixou lisonjeado. Na churrascaria, até cantou junto com o dueto que tocava música nas mesas. Foi muito simpático. Dona Márcia também me pareceu uma pessoa distinta. Ela apenas me olhava bastante, sem falar muito. Observava... devia gostar muito de plantas porque uma vez, em casa de Isabela, Marco me pediu para mostrar como se mexia o nunchaku. Fiz alguns movimentos e aceitei de leve algumas folhas da samambaia. Marco ficou em pânico, me avisou para tomar cuidado. Eu achei estranho... não eram só umas folhinhas??? Depois o Marco também mostrou o que sabia fazer. Tocar. Eu fingi que adorei! Mas era muito distante do meu mundo. Percebi que eles não falavam muito de Isabela, e a melhor maneira de agradar a família era falar sobre as coisas do Marco. Toda família tem dessas coisas. Em termos gerais, fiquei bastante satisfeito!"

Passou o mês de janeiro.

Voltei para o Hospital, comecei a Residência. Eduardo estava trabalhando como Analista Econômico-Financeiro num lugar bom, de fácil acesso, e já com a promessa de, em um ano, substituir seu chefe (que esperava completar o tempo para aposentadoria) na área de Supervisão. Meu salário aumentou como Residente, ainda que fosse uma quantia simbólica, e Eduardo também já tinha recebido seu primeiro pagamento na nova Empresa.

Logo fiquei sabendo a seqüência dos meus estágios e como ficariam os plan­tões. Que não eram muitos no primeiro ano. Por isso eu e Eduardo normalmente nos víamos quase todo dia. Em suma: tudo estava muito bem!

Pouco antes do carnaval, Marco foi embora de novo. Eduardo veio conhecer nosso trabalho de Evangelismo no Hospital, visitou alguns doentes conosco, viu de perto que campo enorme era aquele. Ele gostou bastante, conheceu melhor o Edilson e a Cris, conviveu mais com a Mayra. Nessa época ela estava namorando com Walter, pois aquele antigo namoro não tinha dado certo.

Edílson foi muito simpático com os nossos namorados que não sabiam cantar, eram super desafinados e estragavam a harmonia do nosso conjunto. Ele procurou ensaiar bastante com Eduardo e Walter. Mas realmente não surtiu muito efeito, apesar da paciência do Edílson os dois não tinham nascido para ser cantores.

Edílson até brincava:

— Acho que é melhor a gente arrumar um chocalho e um triângulo para eles tocarem!

Todo mundo ria e concordava. Mas algumas músicas bem que eles aprenderam e nos ajudaram.

Apesar de que volta e meia meu pai implicava que eu estava vendo demais o Eduardo, e que isso não era bom, tudo estava sob controle. Mas, à medida que correu o mês de fevereiro, eu e meu pai voltamos a nos desentender.

Quase tudo era motivo para um campo de batalha... mas o principal motivo continuava sendo meu horário de chegada. Ele continuava implicante em relação a isso, mesmo quando eu avisava. O que sempre fazia. E nem era sempre que chegava mais tarde. E mais tarde era pouco depois da meia-noite!

Pôxa, não era muito para uma paulistana de 25 anos, Médica, adulta, Cristã, com a cabeça no lugar. Que trabalhava o dia inteiro. Aquilo realmente me revoltava! Ele podia me deixar viver sem tanta pressão...

Nos finais de semana eu e Eduardo saíamos um pouco, íamos a algum lugar diferente, jantávamos fora. Durante a semana a gente se acostumou a comer no Shopping, bater papo, olhar umas vitrinas... nada de mais! Aí eu o deixava em casa e ia para a minha.

Mas meu pai me queria em casa às dez e pouco no máximo, e não dava! Era um horário meio impraticável de cumprir, no melhor da conversa, no melhor do programa, tinha que interromper tudo e voltar correndo. Então procurava telefonar, dizer onde estava, e que ia atrasar um pouquinho.

Talvez eu pudesse ter cedido um pouco mais..., mas no meu coração achava que já tinha cedido muito. E aquela implicância, para mim, era gratuita. Então meu pai ora falava comigo, ora não falava... ah, meu Deus!...

Um outro pequeno percalço aconteceu mais ou menos na mesma época. Eduardo tinha me contado sobre uma certa moça. Thalya. Com quem tivera um relacionamento há algum tempo e que freqüentara a "Seita".

Impressionou-me saber que ela ainda freqüentava tal lugar, mesmo que eu não soubesse exatamente que lugar era aquele. Ainda. Eduardo nunca entrou em muitos detalhes no início do nosso namoro sobre aquela história de Satanismo. Falou só um pouco. Mas certamente a tal Thalya deve ter sido importante de alguma forma. Senão Eduardo não teria com ele um xérox grande de uma foto dela.

Logo no começo do namoro ele mostrou-me a gravura. Não me enciumei, não havia motivo para isso. O percalço mesmo veio depois.

— Ela é bonita! — eu havia dito. — Por que você não tem a foto de verdade?

— Eu joguei fora todas elas já faz tempo. Guardei esse xérox nem sei porque. Mas agora vou jogar também!

E um dia, no finalzinho de fevereiro, Eduardo saiu do serviço com uma história e tanto para me contar. Naquela tarde eu tinha saído mais cedo do Hospital e fui buscá-lo. Ele foi falando logo de cara:

— Sabe quem esteve aqui? Apareceu do nada, e veio me ver? Não dava para adivinhar, então esperei.

— Thalya. — declarou ele.

— Sério?! Mas o que ela veio fazer aqui? Ou melhor... como ela descobriu que você trabalhava aqui?

Eu viria a saber que Satanistas não precisam que ninguém lhes forneça nenhum tipo de endereço. Mas Eduardo desconversou.

— Deve ter sido a minha mãe.

— E então? Qual foi a dela? — eu não entendia o significado daquilo, muito menos consegui perceber as conseqüências. Estas últimas eu iria entender somente anos mais tarde.

Eduardo contou mais ou menos. Muita coisa ele omitiu, contou o que era possível contar naquelas alturas.

— Bem, ela apareceu com um carro importado e vestida de um jeito que parou a Empresa. O segurança da portaria nem questionou nada, simplesmente deixou ela entrar... quando dei por mim já estava na porta da minha sala! O segurança tinha acabado de interfonar. Disse que minha namorada estava subindo, então pensei que fosse você.

Dei de ombros, um pouco indignada. Mais até com o segurança do que com ela.

— O porteiro sabe muito bem quem é sua namorada! Que cara de pau, hein?

— Pois é. Mas sabe como é que é, né? "Homem é tudo igual", não é o que dizem? Pois ele não achou nada de mais eu ter várias namoradas. Depois, ela também não fez nenhuma questão de passar despercebida. E... em suma, me convidou para voltar.

— Ah, sim, voltar pra ela. Que graça!

— Eu não quis dar trela, na verdade nem deixei ela entrar na minha sala, não deixei nem sentar! Foi uma conversa rápida, curta e grossa, em outra sala. E definitiva. — então Eduardo afirmou categoricamente: — Não se preocupe... ela não vai mais me procurar!

Percebi que ele estava um tanto irado, com o semblante fechado, carrancudo.

— Bom, mas foi só isso, assim, sem mais nem menos? O que mais que ela te disse?

— Foi muita desfaçatez! Disse que eu não precisava de nada daquilo, de empreguinho idiota, chefe, salarinho no fim do mês. Que podia sair dali com ela naquele instante e mudar a minha vida. Voltar a ter o que eu tinha. Voltar para a família que eu tinha. Ao lado dela nada iria me faltar. De fato, Thalya está podre de rica! Falou do meu aniversário. Que eu podia pedir a ela o que quisesse, coisas que faz muito tempo que não tenho... que ela era a mulher certa pra mim, que me queria outra vez, que eu tinha sido o melhor dos amantes etc. .. etc. ...! Estou falando só porque você perguntou! Agora diz que não pode viver sem mim. Mas isso é só o jogo dela. Já veio se insinuando, mas não aceitei esses golpes sujos! Por sinal, está viúva, imagine só!

— Mas ela tinha casado?

— Tinha. Há uns dois anos, mais ou menos. Mas foi arranjado. Era estratégico. Eu não entendia bem o que ele estava dizendo.

— Estratégico?

— É. O cara era um europeu, alguém de muita posição. Ela precisava estar perto dele. Entende? Mas agora ele morreu. Estrategicamente.

Fiquei quieta, tentando absorver as informações.

— Você quer dizer que... mataram o tal cara? Eduardo não se fez de rogado.

— Isso é muito comum.

— Meu Deus do céu! Mas que espécie de "seita" é essa? E agora ela está atrás de você de novo?!

— Mas não se preocupe, já disse. Ela entendeu bem dessa vez! Eu soube machucar um pouco, eu a conheço. Disse aquilo que sabia que ia ferir. Ela já sabia que estou com outra pessoa. Ofendeu muito você. Tem muita raiva. Não gostei do que ela disse, da atitude dela! Devolvi à altura.

Eduardo estava amenizando bastante. Mas até então eu não podia saber, não conhecia o contexto, não conhecia o passado. Pensei que era apenas um "ciúme recolhido", algo como Camila estava tendo.

Por isso achei que aquela raiva de Thalya era puramente crise de ciúmes. Algo humano. Compreensível. Mas como eu estava enganada! Não era uma raiva humana, de forma alguma, como eu viria saber. Era uma ira demoníaca!

Eduardo sabia com o que estava lidando e o que significava a ida dela até ele. Depois de tanto tempo. Então sua postura foi o mais firme possível. Mas, por dentro, ele se sentiu abalado. Porque tinha sido encontrado.

Eduardo terminou de contar o ocorrido:

— Ela quase chorou com o que eu te disse. E não foi fingimento, não, realmente eu consegui atingir no lugar certo.

— E daí?

Levei-a pra porta, até lá embaixo, pra fora da Empresa.

— Hum, vai dizer que você não deu nem um beijinho, nem pra cumprimentar?

— Claro que não! Ela bem que tentou ir além, mas não deixei. — e Eduardo estava sendo muito sincero. Seu semblante continuava irritado. — Só encostei nela pra apertar bem o seu braço, com força mesmo, para levá-la para a rua. Me irritou muito!! Nunca tinha sentido raiva dela, até hoje! Ficou até a marca no seu braço. E todos viram isso.

— E não entenderam porque você dispensava assim uma mulher tão magnífica — falei com ar significativo.

— Mas isso é assim mesmo. É o esperado. Até fizeram comentários na Empresa. Não fiquei enciumada. Acreditava nele. E não liguei muito, apenas perguntei meio curiosa:

— E como é que ela está hoje, hein, Edu? Continua como antes? Ele não me enganou:

— Mais bonita ainda do que antes. Mas é uma beleza que já não me atrai. Ela é feia por dentro! Não tem nada no coração, é uma pessoa ruim. E ela acelerou o seu carro importado e saiu cantando o pneu. Disse que não voltaria mais, que eu não a veria mais.

— Acho isso ótimo! Que grude que certas pessoas têm com você.

Aquilo passou, e não dei mais importância. Porém eu fiquei na ignorância de uma parte dos fatos que, naturalmente, Eduardo não contou. Ou melhor, contou de forma amenizada. Ele omitiu que Thalya saiu cega de ódio, ameaçando, fazendo Eduardo lembrar-se de certos textos da Bíblia Satânica.

"Poder à força, morte aos fracos", tinha dito a moça. "Ela é fraca! E vai experimentar o Poder da nossa força!"

Naquele completo descontrole, Thalya vomitou todo o seu ódio contra mim.

"Ela vai pagar por isso!! Ela está pensando que vai tomar o meu lugar! Ninguém fica com o lugar que é meu. Essa (...) vai ser completamente destruída. Ela e tudo o que é dela. Nós vamos nos empenhar nisso!"

Thalya voltaria a ligar para Eduardo alguns dias depois. Disse que estava de partida para a Europa novamente. E que não pretendia voltar. Novamente ele guardou consigo o resto:

"Mas aguarda pra ver o que acontece... vocês dois vão se arrepender!"

 

Depois daquilo, cutuquei um pouco o Eduardo sobre aquela história de Satanismo. Ele era sempre um pouco reticente em abrir aquele quarto escuro do seu passado, mesmo para mim, mas respondia às minhas perguntas.

— Eduardo, alguma vez você já contou pra alguém sobre essas coisas?

— Muito pouco. Eu até tentei, sabe? Comentei de leve com o Pastor Neliton.

Mas ele não parece acreditar muito, não parece entender. Não parece disposto a me escutar. Talvez seja até melhor! Até agora tinha imaginado que se não falasse sobre isso... posso fazer de conta que não aconteceu. Tudo o que eu quero é não me lembrar disso! Passei muito tempo tentando esquecer... esquecer de tudo.

— Mas esquecer por quê? Não é bom ficar guardando assim esse tipo de coisa. Não era melhor tentar conversar sobre isso? Você não acha?

— Não gosto de falar nesse assunto. É que não foi um tempo bom na minha vida, sabe?

Eu cutucava um pouco mais. Estava longe de ser uma mera questão de curiosidade da minha parte, mas no meu íntimo eu parecia perceber, sentir... que Eduardo carregava uma espécie de cruz, algo que lhe fazia mal. Parecia guardar com ele alguma coisa terrível.

Muito aos pouquinhos, à medida que eu perguntava com delicadeza, com jeito, ele foi contando algumas coisas sobre a Irmandade. Mas não falou que era a "Irmandade". Nunca usava esse nome, dizia apenas "a Seita". E me explicava devagar um aspecto ou outro. Se abria muito aos poucos.

Aos poucos, sim, Eduardo era evasivo, arredio. Mesmo assim, eu percebia que aquela era uma necessidade premente, ele precisava falar mas não tinha ainda encontrado um ouvido fiel para ouvir. Então eu escutei. Porque queria ajudá-lo. Eduardo precisava dessa ajuda, compreendi a necessidade e a importância de que ele pusesse tudo para fora.

E ele pensava lá com seus botões, pesando a situação:

"Isabela é muito leal e muito honesta. São os pilares do seu caráter. Seu senso de lealdade é fantástico, acima até dos Satanistas. Sob este aspecto poderia compará-la a uma Satanista, que engraçado! Isso me dá confiança para falar... sinto que não vou ser julgado, ou condenado. Não vou ser tratado com preconceito. Preciso de alguém para me abrir... acho que ela é pessoa certa, sempre me tratou diferente, com respeito".                                                                                          

Quanto a mim, quanto ao que escutei... é difícil dizer o que pensei sobre aquilo. Para ser sincera imaginava que algumas daquelas coisas estivessem fora de moda desde a Idade Média. Nunca me passou pela cabeça que algo assim pudesse acontecer no nosso tempo, muito menos... no nosso País!

Era uma realidade assustadora, mas eu ainda estava entrando em contato com a periferia daquela história. Nem dormi bem por alguns dias, pensando no pouco que ele me contara. Naqueles primórdios eu estava longe de compreender o que era de fato a Irmandade. O conhecimento viria aos poucos, muito aos poucos.

Um dia ele me falou sobre o Rito de Iniciação. E enquanto falava, de repente mordeu a língua tão forte que depois não parava mais de sangrar. Nós dois ficamos quietos, como se aquilo fosse uma espécie de aviso. De que ele estava falando demais.

Entreolhamo-nos com ar sério depois que Eduardo voltou do banheiro. Aquilo tudo parecia muito estranho. Eu não tinha uma idéia real do Reino Espiritual, pelo menos não a idéia que eu viria ter mais tarde. Sabia o que a maioria dos Cristãos costuma saber, acreditava no que a maioria costuma acreditar. Por isso não ima­ginei que demônios pudessem realmente estar ali à nossa volta, espionando, monitorando nossos passos, ouvindo, interferindo. Levando informações!

Sim, hoje sei que todos os nossos passos estavam sendo observados.

Eduardo conhecia esse lado muito bem, e desde o encontro com Thalya tinha certeza que seus antigos amigos — agora inimigos? — estavam bem perto. Não obstante, ele não tinha a menor idéia do que fazer para se defender...

Naqueles dias nasceu a idéia. Não era ainda o momento certo, ainda não era a hora de pôr mãos à obra... mas a idéia vinha em primeiro lugar do coração de Deus! Nós é que não sabíamos disso ainda.

E comentei com Eduardo:

— Talvez você devesse escrever um livro sobre a sua vida. Acho que seria de muita valia para muita gente...

— Quem sabe? — e Eduardo não achava que isso fosse realmente acontecer algum dia.

— Estou falando sério! O que você acha? Eu posso escrever! Você me conta, e eu escrevo.

Não deixava de ser uma idéia. Mas, mesmo parecendo boa, no fundo do meu coração não acreditei realmente naquilo. Que um dia esse livro chegasse mesmo à existência. Na verdade, nem sei porque falei, nem sei porque sugeri. E um dia decidimos começar.

— Vamos começar pelo começo! — disse eu. — Pelo começo mesmo! Quer dizer... pela sua infância. Vamos conversar um pouco sobre isso? Me conta aí, vai! Me fala de você mesmo.

E Eduardo começou. Percebi de imediato que não tinha me enganado, parecia fazer-lhe bem falar sobre si mesmo. Ele nunca tinha parado para fazer isso, não daquele jeito. Nós dois gostávamos daqueles momentos de viagem ao passado.

Eu não sabia exatamente o que ia encontrar. A gente foi simplesmente falando: muita coisa ele dizia e eu anotava o que era importante. Eduardo me contou histórias da infância, da adolescência... eu fazia perguntas... minhas perguntas faziam com que ele pensasse... e reavaliasse muita coisa.

Juntos nós descobrimos algumas raízes ocultas da personalidade, algumas lembranças já quase esquecidas, alguns detalhes que se revelariam importantes. Nem tudo o que ele falou virou livro. Mas serviu para que a gente se conhecesse bem melhor.

E finalmente dei o pontapé inicial. Comecei a pôr tudo no papel. À medida que desenvolvia os temas, ia descobrindo outras coisas por mim mesma, sem querer analisava intuitivamente tudo o que ele tinha me contado.

— Sabe o que eu penso disso? Me corrija se eu estiver errada... — voltava eu depois para ele. — Será que isso aqui que aconteceu lá atrás não serviu para gerar outras coisas em você?

E percebia aqueles aspectos do comportamento que Eduardo nunca tinha mencionado. Coisas que ele não tinha falado diretamente. Que nem ele mesmo tinha percebido.

— Sabe que eu acho que você tem razão? Nunca tinha parado pra pensar nisso!

Mas acho que é por aí.

E fomos como que montando um quebra-cabeça, remexendo em coisas antigas, procurando pedaços daquela história.

Se escrever um livro e conhecer melhor Eduardo não fossem motivo suficiente para as nossas conversas, havia ainda um último motivo: eu adorava ouvir ele falar! Nunca encontrei alguém com tanta coisa pra contar! Gostava mesmo de ficar na escuta.

Ele tinha experiências e mais experiências, casos e mais casos para dividir comigo, tantas e tantas coisas. Eu queria rebuscar mesmo no meio daquilo tudo.

Foi um tempo muito gostoso aquele em que Eduardo me contou pela primeira vez da sua infância e adolescência, seu Kung Fu, suas namoradas, Camila, a "29" as brigas, as bagunças.... era tanta coisa que não caberia num livro só!

Eduardo tinha em mim uma ouvinte incansável. E raro era o dia em que a gente sentava para jantar ou tomar um sorvete, que eu não pedisse:

— Ah Nenê! Me conta alguma história? Me conta uma história engraçada. Vamos morrer de dar risada? Conta da "29"!

Nenê era o apelido que eu tinha dado a ele. Porque Eduardo, para mim, tinha carinha de nenê. E ficou Nenê!

Aí a gente conversava, conversava, conversava. Pra ele também foi bom, uma verdadeira terapia. Ele precisava falar. Eu tinha o tempo e a vontade de ouvir.

 

No princípio de março Eduardo completou 28 anos, e eu procurei paparicá-lo bastante. Fui comprar uma camisa nova e perfume francês, também escrevi um cartãozinho todo especial que eu mesma confeccionei. Estava muito feliz com nosso namoro! Ele era especial!

Um dia, tomando sorvete no Shopping, ele me disse algo diferente num relampejo de sinceridade:

— Sabe, Gatinha... a gente se conhece há pouco tempo mas eu acho que estou começando a te amar.

Eu não conhecia Eduardo o suficiente para alcançar melhor o significado de tal declaração. Ele nunca tinha sido fiel a ninguém, nunca tinha se importado com ninguém de verdade. Nunca tinha amado ninguém. Certamente aquele era um sentimento novo par:a ele. Um sentimento ainda não experimentado, e que ele pôde perceber como sendo amor.

Mas eu não sabia disso ainda!

E aquela frase meio de supetão, apesar de me agradar, assustou um pouco também. De modo que retruquei, meio rápida:

— Ah, Edu... acho que você não sabe bem o que está dizendo. Afinal, o que é o amor? O amor de verdade! É cedo para dizer isso, acreditar nisso. Você nem me conhece direito ainda.

— Mas você é diferente. Você pode até não saber, mas eu sei!

— Se daqui a um ano, ou dois, você continuar sentindo a mesma coisa, é porque é verdadeiro. Mas tudo o que sentimos hoje... pode não ser! Só o tempo faz a gente saber se ama ou não alguém.

Mesmo porque, eu não tinha outros parâmetros, Eduardo era o primeiro. Ficava difícil saber ao certo se aquilo era o verdadeiro amor.

Ele ficou calado um pouco mas não deu mostras de chatear-se, apenas mudou de assunto e não repetiu aquelas palavras. Pelo menos, não de imediato.

Eu não queria me iludir, nem iludi-lo. A extrema sinceridade do meu coração me fazia tomar muito cuidado com as palavras. Palavras tocam o coração dos outros. Por isso precisam ser verdadeiras, ser bem escolhidas! Eu não queria brincar com coração de ninguém. Gostava, sim, de Eduardo, bastante! Estava muito satisfeita com o namoro, com tudo o que representava para mim. Não tinha dúvidas do nosso relacionamento. E confiava bastante em Eduardo.

No entanto o amor verdadeiro precisa ser provado. Se ele fosse provado... e subsistisse... então é porque era amor de fato!

E nós não tínhamos passado ainda por isso, estávamos na fase doce do relacionamento, onde tudo são flores, e sorrisos e amenidades. Onde a paixão deixa tudo cor-de-rosa!

O nosso amor seria provado no futuro. Extremamente provado! E isso nos faria perceber quanto amor havia entre nós. Somente o amor, e a Mão Protetora do Altíssimo nos permitiria atravessar tudo aquilo.

Mas naquele momento me faltavam realmente os parâmetros, eu não tinha experiência nenhuma. Por isso contava com o tempo. E torcia, intimamente, que aquele amor fosse de fato verdadeiro.

Naquela tarde Eduardo não disse, mas depois eu viria saber o que ele estava sentindo. A princípio, não tinha querido se envolver de novo com alguém, não tão cedo. Eduardo imaginava um relacionamento como algo que já nasce morto e só piora com tempo. Não tinha sido boa a experiência anterior. Ele preferia não repetir mais isso e aproveitar sua vida de solteiro.

Mas...

— Passei a experimentar um sentimento novo... — diria ele, muito tempo depois — e gostei do que estava descobrindo. Com as outras eu queria apenas o momento, não tinha a expectativa do próximo encontro. Com a Thalya, por exemplo... não ficava ansiando pela presença dela. Tanto fazia... se tivesse um bom momento num dia, não ficava na expectativa de que no próximo dia aquilo fosse se repetir... era como ir a um parque, ou um cinema... naquele momento era bom, me diver­tia... mas depois esquecia, não ficava pensando em como o filme tinha sido legal, logo tudo se esvaía da minha mente. Com Isabela senti um pouco de medo... pois percebi que estava ansiando pela presença dela... e eu não queria isso para mim, via meus amigos sofrendo por causa de mulheres, não queria ficar assim! Não ter controle sobre os sentimentos faz com que a gente se torne escravo deles. Mas com Isabela... eu ficava na expectativa... não tinha outro jeito.

No entanto minha ingenuidade atrapalhou um pouco no início. E um certo padrão de comportamento meu veio incomodar muito Eduardo. Depois que a onda perigosa passou, acabei sabendo ao certo o que tinha acarretado. Isto é: que Eduardo quase mudasse de idéia em relação a mim.

Começou assim: não tinha com quem conversar sobre aquele meu amigo que tinha morrido de AIDS.

Por muito tempo a imagem dele ainda ficou presente, e presente a dor da perda! E eu acabava falando demais no assunto, mas porque confiava tanto em Eduardo que não via motivo para esconder meus sentimentos e pensamentos. Eu só queria compartilhar, desafogar, vomitar aquilo tudo. Era terapêutico, hoje percebo isso. Ia me fazendo arrancar a lembrança do coração... o sofrimento, a tristeza, a angústia de ver alguém querido morrendo diante dos seus olhos. Porque ele era muito querido para mim, até demais... demais a ponto de parte do meu coração ser dele.

Nunca escondi isso. Foi isso também o que meu pai viu, e ficou horrorizado. Por isso ele queria me impedir de continuar a ver meu amigo, mas eu não consegui obedecer, não pude concordar. Nunca entramos em acordo.

Acima de tudo me perseguia um senso de dever. Meu amigo tinha se convertido verdadeiramente, e pelas minhas mãos... mas não havia ninguém para acompanhá-lo. Eu o tinha levado à Igreja, tinha tentado dividir aquela responsabilidade com alguém. Mas não havia ninguém. Ninguém gosta de trabalhos assim.

Como eu poderia isentar-me também? Viraria as costas como todo mundo? Fecharia os olhos para não ter que ver algo tão terrível?! Eu não podia me comportar dessa maneira... fui adiante. Vivi um período gratificante por um lado, mas tenebroso por outro.

E o pior é que agora Eduardo estava interpretando tudo muito mal! Via as fotos do Renato no quarto, alguns pertences, presentes... e ficava achando que ele mesmo não passava de um mero substituto, alguém que eu estava usando para esquecer aquele que não ia mais voltar.

O "amor da minha vida", segundo Eduardo.

Quando ouvi isso fiquei até indignada. Quanto engano! Que bobagem!

Um dia conversamos sobre isso, e Eduardo disse que não queria mais falar sobre aquilo, explicou como enxergava a situação. Fiquei muito magoada, ele estava vendo tudo distorcido.

Era difícil compreender porque eu tinha que apagar pedaços da minha vida por causa do namoro. Tinha sido uma coisa passageira, exatamente como outras tantas vezes.

Era um ciúme tolo, e se eu fosse dar de me implicar em relação a Camila e todas as outras? Ou com a tal da Thalya?!

— Mas eu não falo de Camila o tempo todo — falou Eduardo. — Não tenho mais nada com Thalya também!

— Eu também não falo dele o tempo todo, é puro exagero seu, né?! Na verdade, falar sobre ele é um voto de confiança que dou a você. A quem mais posso contar uma história louca dessas?! A quantas pessoas você pensa que eu contei isso? Não pensei que precisasse ter segredos com você, nem esconder nada. Isso foi uma coisa séria na minha vida, foi por isso que briguei tanto com meu pai no ano em que tranquei a matrícula! Como você pode ter ciúmes de alguém que não existe mais?!?

— É difícil competir com essas coisas idealizadas. Eu terminei com Camila, mas você escolheria quem se Deus tivesse curado o seu amigo? — retrucava Eduardo. — Você ficava comigo ou com ele?

— Você não entende. São coisas diferentes! É claro que eu ia ficar com você, você e ele são coisas que não se comparam. O que eu sinto por você é totalmente diferente!

Foi a nossa primeira divergência. Mas tratei de compreender, de respeitar aquilo. Desculpei-me e procurei fazer diferente. Eduardo tinha entendido mal aquele meu momento, era a sua limitação.

Então fui deixando de falar, enterrando a lembrança. Saindo do luto. Nunca mais fui ao cemitério levar flores no túmulo dele. Aos poucos retirei as fotos, me desfiz dos objetos. Aos poucos.

Na medida em que foi deixando de ter importância.

Mas aquilo balançou o relacionamento recém iniciado. Se Eduardo soubesse... entendesse...! Ele sempre seria o escolhido!

 

Mas ninguém poderia prever que uma sombra muito grande viria sobre a minha família pouco antes do término daquele mês de março. Não gosto de falar sobre isso, portanto vou ser bem breve.

Naquela semana meu pai viajou alguns dias com minha mãe, estavam no interior, na casa de uma das suas irmãs. Ele não passou muito bem, já tinha alguns problemas de saúde, tomava medicação, mas aparentemente foi algo isolado.

Mesmo assim, logo na outra semana voltou ao Médico, ao cardiologista que o acompanhava ali mesmo num departamento do Hospital da Faculdade. Não pude estar presente na consulta por causa do meu horário, mas dei uma passada lá, disse um "oi" pra eles e adiantei os exames tanto quanto consegui. Meu pai tinha esquecido a chave trancada dentro do carro. Tive pena deles por causa daquele transtorno e dei um jeito de, eu mesma, arrumar um arame e abrir o vidro por fora. Tinha uma frestinha, e consegui sem demora.

Daí corri lá de volta, entreguei a chave e fui cuidar dos meus afazeres. Um dos exames ficou marcado para aquela sexta-feira, então nesse dia eu acompanhei os dois, meu pai e minha mãe. Papai fez um ultra-som de aorta abdominal. Não deu nada de errado, conversei depois com Médico que fez o exame. Também aproveitei aquele tempo para acertar com outro cardiologista, um Professor, para que o acompanhasse de perto. Ficou tudo combinado.

Saímos de lá no horário de almoço. Estava garoando fininho e tive que voltar logo para a UTI sem almoçar, nem nada. Tinha usado o período do almoço para correr atrás daqueles exames e daqueles Médicos.

Passei o resto do dia ocupada e saí tarde, apareceu internação de última hora. Como era sexta-feira, Eduardo estava à minha espera na porta do prédio principal. Eram quase sete horas da noite.

Fomos direto refrescar a cabeça, jantamos e eu telefonei pra casa dizendo que ia atrasar um pouco. Cheguei um pouco além do que meu pai gostaria.

Abri a porta, cumprimentei. Mas ele não me respondeu. Eu estava muito cansada e fui logo deitar. No dia seguinte acordei tarde, minha mãe estava na cozinha e me pediu que fosse até o quarto ver porque meu pai estava demorando. Ele sempre tinha sido madrugador.

Entrei. Chamei-o. Mas já não se podia fazer mais nada. Ele tinha falecido no começo da manhã. Tive que providenciar tudo sozinha, junto com Eduardo. Mayra ajudou fornecendo o atestado de óbito e ficando conosco a maior parte do tempo.

 

Os sentimentos ficam amortecidos por causa do impacto. Não existem palavras para explicar o que se passa por dentro.

Mas depois aquilo tudo começa a borbulhar, sobe à tona, se derrama numa torrente de sentimentos profusos e terríveis.

Marco quase teve uma comoção nervosa do outro lado do mundo, e não havia o que pudesse ser feito. Ele só pôde vir uma semana depois.

Nada parecia ser capaz de consolá-lo. Minha mãe também não estava bem, e eu tentei ser a mais forte de todos. Não ficar chorando pelos cantos da casa e, ao invés disso, procurar ser um esteio para eles.

Mas longe deles, sozinha com Eduardo, ficava chorando sem saber direito o que sentia.

Passei alguns dias afastada do Hospital. Eduardo visitou-nos diariamente. Meu pai era o sustentáculo da família e não esperávamos um falecimento tão súbito. Todos estavam completamente sem chão. Como seria dali para frente?

Voltei para o Hospital depois daqueles dias de reclusão e trabalhei mais uma semana na UTI.

Mas não conseguia me concentrar em nada, nada, nada. Sempre com boa memória, agora eu tinha que anotar tudo num papel e passava o dia inteiro relembrando quem era quem, qual exame era de qual paciente, e que medicação cada um tomava. Não conseguia guardar, não conseguia saber direito o que estava fazendo, era impossível. Estava além das minhas forças.

Fora isso, o Residente do terceiro ano que estava passando pelo estágio comigo não era dos mais compreensivos. Sem paciência, só me enchia o dia todo, pegava no pé de todo mundo criando um péssimo ambiente de trabalho. Conversei com a outra Residente e acabei optando por conversar com o Preceptor da UTI. E pedi um afastamento mais prolongado.

Passei talvez umas duas semanas em casa, talvez três. Até que encerrasse aquele estágio que eu já tinha perdido. Então, num ápice de esforço, retomei o trabalho. Passei pela enfermaria da M.I., mas não conseguia estudar, tudo parecia tedioso, pesado, insuportável.

Mesmo assim, terminei o estágio. Só que, para azar da minha sorte, a escala levou-me ao bloco mais puxado do primeiro ano, a UTI da Pneumologia. Fui levando como deu, usei de todas as minhas forças e determinação. Finquei pé e dei todos os plantões.

 

Não foi nada fácil. Quando me lembro daquele período sinto até um mal-estar.

Às vezes tinha plantão de 12 horas no sábado e no domingo. Não saía pra nada, ficava das sete da manhã às sete da noite no Hospital, para emendar direto com outra semana. Durante a semana todos os dias eram iguais, das sete da manhã até sete da noite. Quando tinha plantão no meio da semana emendava 24 horas.

Algumas vezes, quando eu estava de plantão à noite e ia dormir no Hospital, Eduardo dava um jeito de vir visitar-me. Um dia chegou lá pelas nove da noite na companhia de um primo. Eu tinha deixado com ele um avental, então Eduardo entrou decidido pelo PS, dizendo ao segurança:

— Ele está comigo! — referindo-se ao primo.

Assim pensavam que o primo era paciente do "Doutor" Eduardo. Naquela noite ele me trouxe pães de queijo e Coca-Cola! Os dois foram muito bem-vindos: Eduardo e o lanche!

Era tão bom que ele aparecesse, quebrava um pouco a minha rotina, me ajudava a levantar a cabeça. E lembrar que existiam outras coisas além daquela UTI. Mas nunca dava tempo de ficar no blá-blá-blá, tinham que ser visitinhas rápidas. Pois não podia me atrasar com os pacientes, no mais tardar umas dez horas da noite passava com o Médico Assistente a última visita.

Daí a gente torcia para que os pacientes não complicassem.

Mas de noite quase sempre era impossível dormir. Os Médicos Assistentes dormiam em outro lugar, mas nós, os Residentes, tínhamos um único quarto. E o único quarto era dividido com o Residente da UTI ao lado, a da Clínica Médica. Isso queria dizer que o sono girava também em função disso, se qualquer um dos pacientes complicasse, ninguém dormia.

Claro que esse era exatamente o esperado, oito pacientes graves sempre têm muita chance de perturbar à noite. Se a minha UTI estivesse calma era quase certo que a UTI da Clínica complicava, e vice-versa. E então a enfermagem não parava de entrar no nosso quarto para nos chamar.

Como eu vinha cansada... ! Às vezes não me julgava capaz de dar andamento na minha vida, no meu trabalho, por mais que me esforçasse. Eu simplesmente estava em outro mundo.

Mesmo as visitas de Eduardo não eram suficientes para me ajudar completamente. E havia vezes em que ele perdia a viagem.

Um dia Eduardo combinou de visitar-me à noite e tudo estava lindamente calmo por ali, sem nada de especial para fazer. Daria tempo para a gente ficar conversando bastante tempo ali na salinha ao lado. Isso certamente tornaria aquele plantão mais leve.

Mas pouco antes dele chegar, uma paciente que estava em choque séptico precisou de um Swan-Ganz e o Residente do terceiro ano ficaria ali comigo até que déssemos o trabalho por encerrado. Ia demorar um bom tempo, o Swan-Ganz é um tipo bastante complicado de cateter. E então eu disse para Eduardo nem esperar.

Outra vez ele chegou e eu estava com um dos ventiladores artificiais pifados, bombeando ar manualmente para os pulmões de um paciente. A enfermeira avisou que ia demorar para arrumar outro aparelho. Novamente não valia a pena ele ficar ali esperando.

De vez em quando Eduardo cruzava com outros Médicos ali na salinha. Eles cumprimentavam e acabavam perguntando:

— Você também é Médico?

— Não sou, não... he he he ! — respondia Eduardo meio sem graça. E para mim, cochichando, mais tarde:

— Essa história de me disfarçar de Médico! Quando perguntam, dá vontade de responder que "sou pai de santo"!

Eu tinha que rir com suas piadinhas. Sei lá o que os outros pensavam de vê-lo daquele jeito.

Apesar de tudo, foi um estágio muito bom, daqueles em que dá pra aprender bastante. Estudava, é fato, mas estava sem muita vontade, sem paciência com nada e nem ninguém. Não parecia haver sentido naquela existência que estava levando! Fazia por fazer; estudava por estudar.

Quando terminei aquele mês de UTI, percebi que aquela idéia não me saía da cabeça, e mais ainda... tinha ganhado corpo: eu estava novamente pensando em jogar tudo pro alto. Não conseguia me livrar daquela sensação ruim, desgastante... já não via motivo em continuar indo ao Hospital todos os dias. Um peso de toneladas me esmagava os ombros.

Então, uma tarde, conversando com Eduardo, acabei tomando a decisão: queria largar a Residência.

Até hoje não sei o que me deu, e nem porque ele concordou comigo. Não consegui entender porque concretizei minhas intenções de fato.

Algum tempo depois eu me perguntaria se tinha sido uma espécie de punição inconsciente...

"Meu pai morreu, eu era Médica e não pude fazer nada, não pude mudar esse destino... meu pai morreu, e morreu entristecido comigo... ele não está mais aqui e eu não posso me restaurar... "

Mesmo que nem tudo fosse verdade, naquele momento de instabilidade emocional meu inconsciente armazenou essas informações. A perda do meu pai fez com que eu mesma introjetasse dentro de mim estas sensações, essas idéias, essas afirmações, essas conclusões... e depois mais um monte delas... desvairadas... cortantes... completamente indigestas. Engolir tudo aquilo foi como beber veneno!

O veneno ia começar a circular pelo meu corpo. Eu faria coisas estranhas em função dele. A primeira delas foi abandonar a Residência. Uma conseqüência de estar envenenada.

Então fui conversar com os professores e, apesar de que ainda foram condescendentes e quiseram novamente dar-me licença, recusei. Tornei definitiva a minha decisão. Abandonei a M.I.

Não sei se foi o certo. Mas não consegui tomar outra atitude, nem escolher outro caminho.

Tempos depois fiquei pensando em uma segunda possibilidade, uma outra forma de explicar para mim mesma porque fiz aquilo.

"A ausência do meu pai talvez tenha me libertado desta vida de Médica de uma vez por todas. Se ele estivesse vivo eu jamais largaria a Residência. Sei disso."

Então entendi que minha decisão era fruto destas duas coisas. Era fruto desta somatória.

No entanto, havia algo mais. Faltavam dados para mim.

Aquele era um também o início da destruição prometida. Só que eu não sabia...

Eduardo não me falou... mas sabia que algo ia acontecer. Tentou achar o Pastor Brintti novamente, sem sucesso (Leia Filho do Fogo). Sabia que qualquer pessoa lhe daria uma resposta padrão: "Deus é maior!"

Ele torceu para que não acontecesse nada. Mas sentia como se viesse um meteoro em nossas direções, e nada houvesse para impedi-lo.

Como se defender?

 

A partir daí começaria um dos períodos mais difíceis da minha vida. Pouco a pouco veria tudo desmoronar, tudo em que eu tinha investido tempo e dedicação. Eduardo era a peça-chave que me ajudou a permanecer em pé.

Ele continuava trabalhando normalmente, de forma que eu passava os dias sozinha até o horário de saída dele. Arrumei então um emprego de meio período que pagava bem, em relação à Residência.

Aquele emprego não me desgastaria como o trabalho no Hospital e ainda me garantiria sustento pessoal que, naquela hora, era a única coisa que importava. Não houve nenhuma dificuldade em empregar-me, bastou uma curta conversa com o responsável, e logo assumi o lugar.

Trabalhava dezoito horas semanais divididas em três vezes num "Serviço de Remoção". Ou seja, eu somente tinha que transportar pacientes de um lado para o outro, de ambulância. Meu papel era exclusivamente não deixar que nada acontecesse durante o trajeto.

Mas como o tal emprego era chatíssimo!

Não agüentei por muito tempo. Normalmente eles faziam a gente ficar além do horário e não pagavam hora extra. O tempo que eu passava lá esperando as remoções era insuportável, nem tinha uma sala confortável para ficar. O mais interessante mesmo era empoleirar na mureta de entrada para ver o movimento da rua, ver passar os transeuntes. Isso me distraía e fazia com que o tempo passasse mais rápido. Às vezes eu comprava um picolé e ficava ali no solzinho da manhã.

Saí logo dali e fui fazer um outro "bico". Trabalhei então numa rede de Ambulatórios escolares que era coordenada por um Médico Pediatra. Meu serviço era atender aos estudantes. Que normalmente não tinham nada e estavam só a fim de sair da aula para um passeiozinho! Eram só dores de cabeça, cólicas, crises de asma, bobagens assim... e eu tinha que ter toda a paciência do mundo. Confesso que paciência não estava sendo o meu forte naqueles dias!

Claro que também não suportei aquele serviço infame!

Então acabei trabalhando numa Academia que me pagava até que bastante bem. Fazia exames Médicos. Era super tranqüilo, sem estresse nenhum... e tão repetitivo e tedioso que... enfim, o inevitável... acabei largando!

E desta vez foi de verdade. Nem eu me reconhecia! Não conseguia mais levar adiante a minha vida, e muito menos aqueles empregos tolos e aborrecidos. Precisava parar. Era preciso atender às gritantes solicitações da minha alma. Dificilmente abandono as coisas sem tentar muito antes. Aquele era o meu limite.

Embora não percebesse claramente, minhas atitudes e incapacidade de avançar de forma coerente revelavam o quanto estava desestruturada. A melhor opção foi o refúgio da minha casa. Então foi o que fiz: larguei tudo o que dizia respeito à prática clínica. E simplesmente fiquei em casa.

No início foi bem difícil. Era estranhíssimo não ter nada para fazer. Bom... mas eu não conseguiria mesmo fazer nada, nem que quisesse. Me sentia extremamente cansada de tudo. Continuava sem conseguir me concentrar em nada, me entreter com nada. Não conseguia querer nada. Essa era a verdade. Eu não queria nadai Só que o tempo passasse e, passando, me trouxesse paz de alguma forma.

Todo esse processo que acontecia comigo não era consciente. Não era algo que eu tivesse parado pra pensar e decidisse por mim mesma. A realidade é que não escolhi as coisas dessa maneira, apenas aconteceu assim. Foi o curso natural. E eu me vi numa espécie de deserto, um tempo de reclusão, de fuga, de um desespero silencioso. Interno. Só meu.

Não se exteriorizou muito. A primeira e principal conseqüência daquela agonia interna foi a incapacidade de desenvolver qualquer atividade útil. Mas não creio que eu me desse conta desta agonia, deste sofrimento. Estava ali. Mas não tinha passado plenamente para a consciência. Estava guardado. Escondido. Amortecido. Eu não me dava conta plenamente. Estava muito abaixo da superfície.

Tudo o que consegui perceber foram os seus efeitos... eu vivia em função deles... porque eram mais fortes do que eu. Por fora, aparentemente, estava bem. Uma boa parte do tempo. Em outros momentos, estava mal. Passava do riso ao mau humor, tinha as emoções instáveis.

Estar com Eduardo era a única válvula de escape, a única saída possível. Não creio que conseguisse suportar aquela fase sozinha, quanto mais superar.

Ele foi tão importante naquele tempo que, para mim, o dia só começava na hora em que eu o encontrava, depois do serviço. Quando a gente saía para comer, conversar, dar um pouco de risada, e ele me contava coisas do serviço, do dia-a-dia.

Eduardo foi muito presente em todos os sentidos. Foi paciente e amoroso, nunca economizava esforços para me agradar, tudo o que eu precisasse e estivesse ao seu alcance ele procurava dar e fazer. Eduardo não economizou em atenção, em carinho, em compreensão.

Agora já me conhecia melhor. Gostava de mim por mim mesma, e já não fazia nenhuma comparação inconsciente com Thalya. Eu a havia suplantado.

Naquele período, Eduardo também foi muito solícito para com minha mãe. Começou a freqüentar minha casa mais assiduamente porque sentia intimamente ser necessária a sua presença. Agora éramos apenas nós duas e a casa parecia muito vazia. Marco estava novamente fora e só voltaria no meio do ano.

Minha mãe desdobrou-se como pôde para continuar dando andamento na agenda de concertos de meu irmão, coisa que antes era função do meu pai. Aos poucos aquilo começou a minguar, e realmente os últimos concertos agendados foram naquele mês de julho. Depois parece que as portas se fecharam completa­mente. Todo o esforço de minha mãe em continuar aquele trabalho foi cada vez mais dando em nada. Ia começar um período muito difícil para minha família, certamente o mais difícil de todos. E era apenas o começo.

Mas Mamãe apegou-se à Igreja. O que nunca tinha acontecido, aconteceu então. E, como recém convertida, ela teve assistência durante um tempo da minha antiga Igreja.

E que mais...?

Eu tinha começado uma Terapia com uma Psicóloga Cristã há alguns meses. Ela foi indicada por alguns irmãos da nossa Igreja que também faziam análise. As referências que recebi foram ótimas, ela parecia ser uma pessoa de muita confiança. A própria esposa do Pastor William, que também era Psicóloga, tinha me aconselhado a fazer aquele tipo de trabalho.

Então, ao invés de continuar conversando com o Pastor William e o Pastor Ronaldo, passei a pagar pelas consultas com a Psicóloga. Nossa Igreja julgava muito importante e benéfico aquele tratamento da alma.

Eu estava gostando bastante da Terapia, era melhor do que aquela que tinha começado na época em que tranquei a matrícula. Agora parecia ser uma coisa mais profunda, o que era bom, porque aos poucos a gente vai aprendendo a se conhecer melhor.

Foi importante especialmente naquele momento difícil.

No final de junho comentei com Eduardo:

— Meu irmão vem para as férias com uma amiga de novo, uma pianista. Apesar de haver poucos concertos. Mas não era bem quem ele queria, a amiga dele não poderá vir, não sei por que. Ele vem com essa outra moça meio que de última hora.

De fato a tal da moça veio. Mas era tão estranha, tão esquisita... e acabou ficando quase três meses em casa! Só deu confusão. O clima foi mesmo daqueles, porque tudo estava horrível, nós também estávamos horríveis com os recentes acontecimentos. Ter alguém estranho dentro de casa era pesado, pelo menos para mim. A moça não falava inglês fluente, nem nós. Foi difícil ter que conviver com alguém que não falava a minha língua e o tempo todo estava ali. Porque agora eu também estava ali o tempo todo! E aquilo me incomodava bastante. Não gostava de sentir-me observada, tirava minha liberdade.

Sei que para minha mãe também não devia ser fácil!

Depois de dois meses, quando finalmente ela ia embora, um ou dois dias antes do embarque, tudo acertado... e de repente apareceram aquelas lesões de catapora no seu corpo. E não pôde embarcar. Aquilo custou mais um mês no Brasil, e o restante das férias do Marco.

Confesso que eu não agüentava mais! Três meses é muito tempo. Por mais boa vontade que se possa ter... todo mundo é humano, tem limitações.

Bastava estar sentada à mesa e saía alguma confusão, normalmente eu acaba­va sendo acusada de alguma coisa, porque o normal era que eu fosse a errada. Marco era o filho que estava fora, o filho esperado. O bom filho. Já eu era a que tinha jogado tudo fora. A filha má!

Mesmo sem perceber, minha família acabava me pondo na tribuna dos réus. Por causa disso eu estava sempre envolvida em uma cena de constrangimento atrás da outra. Em quase todas as confusões lá estava eu, a destruidora de lares. Agora imaginem só os olhares daquela menina estranha, as caras de julgamento. É fácil fazer ar de santo e apenas observar o circo pegar fogo! Isso era o que mais me exasperava...

Minha mãe não se conformava que eu estivesse em casa sem fazer nada, e mais de uma vez ela me mandou arrumar um emprego e trabalhar. Eu não tinha dinheiro para nada. Aquilo era uma coisa constrangedora porque dependia de minha mãe para tudo. Quem pagava agora minha Terapia era ela. E não era barato. Eduardo supria uma boa parte das minhas necessidades de bom grado. Comprava roupas, cosméticos, objetos de uso pessoal.

Engordei, o que era terrível, o pior de todos os castigos.

Eu me sentia um lixo, um verdadeiro lixo, nada mais do que um lixo! Minha depressão foi tão grande que a Psicóloga achou por bem mandar-me a um colega Psiquiatra para uma avaliação. Ela achava que eu deveria tomar medicação, mas somente o Médico poderia receitá-la.

No dia da entrevista fui sozinha até o consultório dele. Lá pelas tantas não resisti e perguntei:

— Quanto disso que eu estou vivendo hoje pode ser... digamos assim... "espiritual"? Pergunto isso porque sei que o senhor também é Cristão e entende que nem tudo é apenas problema da alma...

Ele parou de escrever durante um tempo, mas não hesitou na resposta.

— Olha, não acho que isso tenha alguma coisa a ver com demônios, se é isso que você está dizendo. Minha opinião sobre isso está formada, na verdade essa história de demônios é fruto principalmente da cultura afro que está impregnada no nosso povo. Jesus já venceu na cruz e a batalha já terminou. O Amor de Deus permeia tudo.

Entendi bem o que ele quis dizer, para bom entendedor meia palavra basta. Que opinião mais estranha!... Completamente fora de tudo o que eu já tinha ouvido. Como que ele podia acreditar em algo assim?!

Em outras palavras:

— Demônios não existem. São fruto de imaginações férteis, de pessoas ignorantes, de culturas místicas... — continuou ele.

— Ah! — procurei dar um tom de voz normal à interjeição. Fiquei quieta e deixei de lado.

"Nesse aspecto acho que ele não está muito apto para opinar, não..."

Mas o que eu vinha sentindo não parecia ser só uma depressão. Mesmo sem saber das ameaças de Thalya, tinha que haver uma influência espiritual maligna em algum lugar. Não era possível... eu conhecia os sinais clínicos da depressão; e, mesmo que não fosse só isso, compreendia que estava também passando pelo luto. Mas parecia ir além. Além disso!

Só eu sei como me senti. Caindo num poço que não tinha fundo, sem conseguir contemplar nada. Mas, mesmo que houvesse um fundo espiritual no meu caso, eu não tinha nenhuma idéia de como lidar com isso. Aliás... não tinha condições de fazer nada; orar, jejuar, buscar ajuda.

Saí do consultório Médico com a receita, eu tomaria remédios durante mais de um ano. Não foi somente aquele remédio que eu tomei naquele período. Ao todo eram sete tipos diferentes: para emagrecer, para dormir, para tratar distúrbios hormonais...

Esses distúrbios hormonais apareceram e demoraram muito a resolver. Já em se tratando de distúrbios do sono, isso era coisa antiga. Eu nunca tinha sido mesmo uma pessoa de dormir bem, exatamente como meu pai.

Mas então o problema cresceu vertiginosamente e as situações de desconforto potencializaram assombrosamente. Todo tipo de alteração eu consegui ter: ou não conseguia pegar no sono... ou acordava muito tempo antes do horário, e não voltava a dormir... ou acordava vezes sem conta durante a noite. Essa foi a pior de todas, eu chegava a acordar seis, sete vezes durante a noite. Não dormia mais do que uma hora, uma hora e meia seguidas. E essa mutilação de sono durou meses. Dá para imaginar o quanto eu estava cansada? Mais ainda do que antes, porque agora o fato de ficar em casa estava muito longe de ser sinônimo de descanso.

As pessoas olhavam de fora e talvez pensassem que eu era mais uma daquelas vagabundas que encostam o corpo e são parasitas da família. Mas só eu sei o que passei. Uma coisa é certa: sempre fui ativa e dinâmica. Aquele marasmo não combinava comigo. Quem me conhecia melhor, sabia que alguma coisa estava errada.

Bem... mas se por um lado eu vivia isso, era no meu íntimo que vivia. Comentava com a terapeuta todas as coisas, desabafava, contava como estava me sentindo. Quanto a Eduardo, encontrei nele um companheiro fiel e um coração disposto a ajudar. Ele ajudava na medida em que, ao seu lado, eu encontrava sossego, descontraía e, principalmente, podia ser eu mesma!

Podia brincar, rir, falar sobre qualquer coisa... e também chorar se fosse preciso. Ele conheceu todas as facetas da minha personalidade, ele viu o que mais ninguém viu. Eduardo viu a verdadeira Isabela. O bom e o ruim.

Na verdade, ele foi, antes de tudo, um grande amigo. Era isso o que eu mais precisava. Porque os namorados primeiro têm que ser grandes e indispensáveis amigos. Se assim não for, acho que o relacionamento não tem o menor futuro.

 

Passaram-se os meses. Agora já se podia dizer que o nosso relacionamento tinha futuro. A gente se via com muita freqüência. Isto quer dizer: todos os dias. Todos os dias eu o esperava na saída do serviço. A gente jantava no Shopping nos dias em que ele não dava aula de Kung Fu. Há alguns meses Eduardo retomara a prática do Kung Fu. E dava aulas numa pequena academia de ginástica perto do trabalho. E, pasmem! Eu era sua aluna!

Adorei, foi bem legal. Primeiro porque achava o máximo ver Eduardo dar aula, meu namorado era um chuchu! Depois, porque tinha vantagens em ser a "primeira-dama das Artes Marciais": Eduardo tinha desconto na minha mensalidade.

Ele reclamava que eu era indisciplinada pacas, numa boa, e não tinha um pingo de respeito por ele como Professor. No que sou obrigada a discordar! Eduardo queria que eu pedisse licença para sair e entrar na sala, como qualquer aluno. Não me importava de fazer isso, mas às vezes ficava parada na porta esperando, e ele nem olhava para mim. Então, fazer o quê...? Entrava e saía ao meu bel-prazer.

— Isabela, você é aluna, tem que se comportar como aluna! Como fica minha moral na frente dos outros alunos? — Eduardo pegava no meu pé.

— Então olha pra mim! Além de ser aluna, em primeiro lugar sou namorada, tá? Não me deixa parada na porta!

Ele não ligava muito, nem eu. Mas procurei fazer como ele queria. Eduardo procurou também olhar com mais rapidez na minha direção. Fora isso, ele costumava elogiar:

— Você é uma boa aluna, com facilidade em aprender e que não tem medo de jogar o corpo no chão. Como você gosta de dar mortal, hein?

— Pois é, Nenê, eu adoro! Pena que não sai muito bom, você tem que me segurar...

— Mas vê se não fica dando muito palpite no meu esquema de aula, você gosta de sugerir que eu dê aquilo que você gosta de fazer.

— Até parece!

— Você tem que parar de ser indisciplinada, não gosta de fazer flexão de braço, eu vejo muito bem, sempre fica fazendo abdominal nessa hora.

— Não gosto de flexão de braço. Mas como estão as minhas seqüências, hein? Hein? Os Toy Cha? Vou poder fazer exame? Eu aprendi tudo, tudinho, estou sabendo tudo!

— Sem flexão de braço você não passa — dizia Eduardo com ar irônico. Eu fazia bico. Aí ele voltava a dar uma opinião sincera:

— Os Toy Cha estão bons, sua postura está boa e você tem boa coordenação motora. Aprende fácil! Mas vai cair flexão de braço...

Treinei flexão de braço.

Eu também adorava organizar os "eventos" de Eduardo. Ia ter uma

apresentação de todas as modalidades da academia, e ele iria participar fazendo uma demonstração. Me empolguei com o assunto, ajudei em tudo, insisti que Eduardo contasse toda a história da Arte Marcial para contextualizar a apresentação. E isso em perfeita sincronia com a música. Eu organizei tanto o texto quanto a música.

Eduardo reclamava:

— Mal chego na sua casa... e tome ensaio do texto, com musiquinha de fundo... aiiiii!

Só queria ajudar.

Fora isso, eu também podia fazer outras aulas além do Kung Fu. Costumava sumir de propósito só para mexer com Eduardo que, quando assustava, já não sabia mais onde eu estava. Podia estar fazendo flamenco, ou cárdiofunk. As donas da academia já estavam meio implicadas comigo. E questionavam com Eduardo:

— Sua namorada está fazendo todas as aulas de todas as modalidades que temos aqui... nós oferecemos apenas uma aula de demonstração em uma modalidade... ela fez um monte de aulas!

Eduardo ria, e eu também. Ele não me dava bronca.

— Basta ter uma regrinha para você desrespeitar, Isabela!

— Eu não sabia, eu pedi aos professores, como eles deixaram... não foi de propósito!

Logo depois, Eduardo recebia outra reclamação da namorada:

— Ela está monopolizando a única esteira da academia... ela não pode usar os aparelhos de musculação...

Como eu tinha muita resistência, ficava às vezes uma hora na esteira. E realmente experimentei um pouquinho da musculação.

Novamente Eduardo dava risada, nos bastidores, é claro. E me pedia para usar a esteira em horários que tivessem poucos alunos. E explicava:

— A musculação é só mesmo para quem faz matrícula.

Obedeci.

Falando em alunos, fizemos amizade com alguns daqueles que faziam Kung Fu. Dentre eles, uma menina que era minha companheira. Uma vez todos nós saímos para comer pizza e tomar sangria. A gente dava tanta risada que não conseguia nem comer!

Realmente Eduardo e eu éramos muito amigos, não existiam segredos um com o outro. Brigas aconteciam às vezes, mas eram por motivos pouco consistentes. E pouco freqüentes.

Novamente chegou dezembro e a época das festas de fim de ano. Eduardo e eu completamos um ano de namoro. Estávamos animados para comemorar a data.

Há seis meses tínhamos comprado alianças de prata. A aliança de compromisso. Bonita, e com o nome gravado dentro, era gostoso tê-la no dedo. Agora, no início do segundo ano de relacionamento, começamos a pensar realmente no noivado. Nós nos conhecíamos melhor e sabíamos que valia a pena investir um no outro. Por incrível que pareça... Eduardo era fiel a mim!

Claro, eu achava isso muito natural. Nem podia ser diferente. Ele era extremamente sincero e devotado a mim, e vice-versa. Mas antes ele nunca tinha sido desse jeito. "Fidelidade" era uma palavra que não existia no seu vocabulário. No entanto agora que eu conhecia bem Eduardo, percebia o quanto ele estava mudado nesse aspecto. O quanto ele tinha sido transformado!

Obviamente que ele continuava levando as suas cantadas, as moças continuavam atrás dele. Mas Eduardo já não queria se envolver, não dava a mínima abertura. Era engraçado ver — e ouvir contar — as cortadas que ele dava de vez em quando na mulherada mais ousada. Não dava espaço mesmo, não brincava. Era sério de verdade! E eu estava satisfeita.

Então, por tudo isso, e por muito mais... a gente estava super feliz em comemorar um ano!! Combinamos direitinho aonde a gente ia, um barzinho super gostoso, aconchegante, com mesinhas ao ar livre, lá nos Jardins.

Nessa época eu e Eduardo ainda gostávamos dessa onda de barzinho, de vez em quando bem que a gente ia. Hoje já não tem mais graça, a gente cresce e muda a cabeça. Mas naquelas alturas...

A transformação de caráter, essa coisa de deixar o mundo e abraçar mais e mais a vida Cristã acontece na medida em que vemos necessidade de fazer isso. O ser humano nunca vê essa necessidade sem ser confrontado antes, sem ser colocado em xeque. Sem perceber as conseqüências funestas dos seus atos.

Nós dois éramos Cristãos e queríamos levar o Cristianismo a sério. Isso era fato. Mas ainda havia em nós um monte de coisas a serem lapidadas. Coisas que a gente não enxergava. Tudo isso foi um processo. Essa transformação. Não aconteceu do dia para a noite!

Por sinal, os barzinhos acabaram sendo outra fonte de "desabafo" para mim. Porque, apesar do período crítico ter passado, eu ainda sentia a minha vida em ruínas e, vez por outra, um certo mal-estar me pegava. Mas eu tinha aprendido, sem querer, que beber um pouco além da conta dava uma tremenda aliviada na tensão!

Foi sem querer mesmo! Até aquele época da minha vida eu nunca tinha bebido de verdade, não via graça. Mas um dia a gente estava fazendo um pouco de hora no SESC, depois do serviço de Eduardo, e resolvemos ir comer alguma coisa ali na chopperia. Olhando para o cardápio vi aqueles todos, com nomes pitorescos, e a descrição bem embaixo.

Eu gostava de bebidas doces então resolvi provar um deles. Escolhi um tal de "Ondas Tropicais", preparado com curaçau blue e tequila. Eduardo não fez caso que eu pedisse o meu drink. Então pedi mesmo!

Tinha realmente uma cor bonita, azulado de verdade, cheio de gelo e enfeitado com um chapeuzinho colorido. O gosto era melhor ainda, nem parecia forte! Por isso fui tomando sem cuidado nenhum. Desceu liso, maravilhoso...

"Mas como essas bebidas enganam... eu não sabia disso... acho que está subindo um pouquinho. Só um pouquinho..!

Continuamos conversando, comendo uma tábua de frios para acompanhar. Os frios não serviram para atenuar o efeito e então eu senti aquela sensação pela primeira vez: tudo estava meio diferente, estava mais colorido, mais engraçado... a cabeça parecia um pouco leve, me sentia animada...

Quando fui pegar não sei o quê na bolsa, ela pareceu mais pesada do que o normal e caiu no chão.

E aquilo foi a coisa literalmente mais engraçada, mais engraçada do mundo!

Comecei a rir. Tanto que não conseguia mais parar. E ria, ria, ria, apoiava a cabeça na mão, na mesa, e era só quá, quá, quá!

— Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah!!! Ai... que graça!

Já estava passando mal de tanto rir, as lágrimas já pulavam dos olhos.

Eduardo achou graça, e até mesmo o garçom que estava nos servindo também parecia se divertir porque eu já tinha passado da conta.

Realmente...! Mas como aquela sensação era divertida! Como tirava dos ombros um peso incrível, como fazia a vida parecer bem melhor... como aliviava!!!

Eduardo pagou a conta depois que rimos muito, e quando saímos para a rua eu ainda estava alegre, cantarolando e pulando, feliz da vida. Ia saltitante pela calçada.

Depois disso volta e meia eu queria experimentar de novo a mesma sensação. E bebia mesmo!

Naquela época, Eduardo não via mal. Já tinha visto coisa pior na "29", já tinha ele mesmo bebido muito. Então deixava eu aproveitar porque não achava que fosse nada demais. Desde que ele estivesse sóbrio.

— Alguém tem que estar sóbrio! — ele dizia sem pruridos.

Eduardo sabia que eu não estava num dos dez melhores momentos da minha existência. Se aquilo me deixava mais aliviada, ele concordava também.

Hoje vejo quão perto eu andei do precipício...!

De repente, eu podia desenvolver de fato alguma dependência química, ficar dependente do álcool de verdade! No fundo, no fundo aquilo era uma literal explosão da minha alma. Essa explosão se manifestou de várias formas: o abandono do trabalho, os problemas de saúde, de sono, de depressão, as brigas familiares... e, agora, a última delas. Encher a lata!

Em última análise, todo o meu comportamento podia ser traduzido em uma só palavra. Um grito agudo. Um desabafo de quem passou muito tempo com a válvula da panela de pressão entupida.

A morte do meu pai foi o estopim da explosão.

E a explosão, ruidosa, não é bonita de se ver. Faz o maior estrago, a maior sujeira, a maior mixórdia. E pode machucar quem está por perto.

Mas nem eu nem Eduardo queríamos perder tempo filosofando nisso. A gente queria só poder curtir um pouco! Naquela comemoração de um ano não foi diferente. Ou melhor, em certo sentido foi diferente. Eu não imaginava que ia acontecer como aconteceu.

Saímos os dois da minha casa no começo da noite, embonecados, bem vestidos, e fomos para o tal barzinho nos Jardins. Há alguns dias Eduardo tinha me dado o seu presente, não conseguia esperar pelo dia. Ele nunca conseguia fazer surpresa, sempre estragava antes.

Deu-me um lindo bicho de pelúcia, um macaco que eu tinha achado uma graça, e uma linda corrente de ouro com um pingente muito delicado, de ouro com esmeralda. Tudo acompanhado de cartão, uma belezinha!

Naquele ano não tinha dinheiro próprio para comprar presente para Eduardo, então comprei duas camisas com o dinheiro dele mesmo. Eu gostava muito de dar-lhe presentes, nem precisava ser uma data especial. Mas... naquele dia não dava!

A noite estava quente. Descemos do carro, caminhamos de mãos dadas até aquele lugarzinho gostoso, bem freqüentado, sem bagunça, com uma música agradável.

Fizemos planos para o noivado. Para o ano que estava vindo. E decidimos que nos casaríamos o quanto antes. Ficamos sonhando e fazendo castelos no ar durante um tempo, embalados pelo vento e pela música.

Mas Eduardo voltou à realidade comentando novamente o quanto estava insatisfeito na Empresa em que trabalhava. Apesar de ter sido já promovido a Supervisor de Produto, o salário não compensava tanto. Mas o pior mesmo é que o seu antigo chefe não estava querendo se aposentar de verdade. O cargo era oficial na carteira de trabalho de Eduardo, mas não na prática. Pelo que ele estava enviando currículos para outras Empresas.

— Pôxa, se eu ganhasse numa Empresa na mesma proporção que ganho dando aulas de Kung Fu... — suspirou Eduardo.

Ele estava coberto de razão.

— Isso lá é verdade, Nenê! Proporcionalmente falando, o Kung Fu compensa bem mais. Se você tivesse muitos alunos e se dedicasse em tempo integral... já imaginou como não seria?!

Eduardo ficou meio quieto, pensativo.

— Mas não é uma coisa muito convencional, você sabe, né?

— Ah! Mas e daí? Por que precisa ser convencional? Por que você não tenta mandar o seu currículo de Kung Fu para grandes Academias, Eduardo? Você tem que pensar grande, já parou pra pensar que o seu perfil é perfeito para isso? Você tem um currículo invejável, conquistou títulos, tem anos de experiência. O que mais poderão querer? Além disso, Nenê é gato, é lindo! — passei a mão de leve no seu rosto. — A boa aparência conta quando se trata de publico classe A! Comecei a me animar.

— Então?... Por que você não tenta?

Eduardo parou um pouco para pensar. Seu semblante se iluminava aos poucos:

— Será mesmo que daria certo? Nunca parei pra pensar nas grandes redes de Academias, essas Academias de elite... será que daria certo?

— Não custa nada você tentar, manda o currículo, Nenê. O máximo que pode acontecer é não te aceitarem. Mas não vejo por que não aceitariam. Já imaginou?! Seria tão jóia pra gente...

— É tão bom fazer algo de que se gosta muito!

— Eu sei. Você foi legal comigo naquele impasse de Medicina. Eu quero que você tenha também a chance de dar um outro rumo na sua vida. Quem sabe não é por aí? Olha só... já imaginou se você desse aulas na Mega Athletic Center, por exemplo? Ou na Thriatlon ? Ou na Coliseum? Hein, hein?!

— É! Essas Academias funcionam mesmo como uma grande Empresa, sabia? Os Professores têm todos os benefícios trabalhistas, todas as garantias.

— Vamos fazer assim... eu estou com mais tempo que você. Vou organizar o seu currículo de Artes Marciais, tá bom? Faço um currículo bem legal, e começamos a distribuir. Aguardamos pra ver no que dá!

— Pôxa, Gatinha, Legal! É isso aí!

— E, olha, Eduardo! Vou te dar um conselho construtivo... eu assisti à sua aula teórica lá na Academia. É bom, sem dúvida, ter umas aulas teóricas. É um super diferencial! Mas deixa um pouco a desejar em didática. Você tem conteúdo, mas precisa aprender a passar bem este conteúdo. Por que a gente não tenta desenvolver um curso teórico mesmo? Um curso de verdade?

Minha cabeça deu voltas diante da idéia inusitada, mas que pareceu tremenda de boa. Eduardo também se entusiasmou logo de cara. Continuamos matraqueando enquanto comíamos, nos contagiando mutuamente com as idéias.

Até aí, nada de mais. Eram sonhos lícitos, planos plausíveis. A gente procurava dar um rumo ao nosso futuro com as ferramentas que tínhamos nas mãos. Se desse certo eu não precisaria mais voltar à Medicina, e Eduardo faria algo totalmente aprazível. Parecia um caminho lógico a seguir.

— Você podia desenvolver uma apostila direcionada ao curso de Kung Fu. — continuei. — De tempos em tempos os alunos teriam as aulas. Continua valendo aquela pequena avaliação teórica para mudar de estágio, como você já esta acostumado. Mas eles teriam um bom material de estudo! Podemos também diversificar um pouco, ensinar não somente a história do Kung Fu e das armas, mas também um pouco de fisiologia do esporte, noções de Anatomia e nutrição, coisas práticas voltadas para a prática esportiva. Uma coisa bacana de verdade. O que você acha?!!

Diante da nova proposta Eduardo pareceu animado.

— Sabe que você tem razão? Isso vai dar todo um diferencial para o meu curso, é algo é difícil de encontrar. Aliás, quem deveria dar essas aulas de fisiologia, Anatomia, noções básicas do esporte, dentro do contexto Médico... deveria ser você! Inclusive, se eu disser que o curso é supervisionado por uma Médica...

— Aí já não sei, Nenê. — interrompi. — Não gosto muito de me expor na frente. A gente até pode pensar nisso depois, só que vai ser você que vai dar as aulas, a princípio! Mas não tenho nada contra organizar tudo no papel. Quer dizer, montar a apostila. Me passa o material que eu vou organizar as aulas de Kung Fu, tá? Também monto as outras, monto o curso todo e te ensino a parte Médica... vai ser legal! Assim arrumo uma boa coisa pra fazer! Ficar olhando para as paredes é que não dá!

— Tudo bem. Eu tenho um monte de textos, xérox de pedaços de livros, é daí que eu tiro as informações.

— Sim, ótimo que você tem o material. Mas isso tem que ser mastigado, não adianta passar os textos integrais para os alunos. Eu vou montar as aulas de forma a que elas sejam, na verdade, uma espécie de "aula resumida", esquematizada apenas. Nada que dispense a sua aula, entendeu? E vou montar umas coisa legais de Medicina também. Coisas práticas. Acho que vai ficar muito bom! E quando você oferecer o trabalho nas grandes Academias, já pode dizer que você também dá uma parte teórica. Vai fazer a diferença! Pode crer!

Ficamos ainda um bom tempo nos deleitando com aquela idéia que tinha nascido ali, do nada. Podia mesmo ser algo bom. Eduardo era um ótimo professor, paciente, interessado... e um ótimo atleta. Tinha tudo para dar certo. Eu ia ajudá-lo no que podia para dar mais certo ainda!

— Quem sabe no futuro nós não teremos a nossa própria Academia? — exclamei.

— Esse sempre foi o meu sonho! — exclamou Eduardo de volta, realmente animado.

— Mas não é uma idéia impossível! Já parou pra pensar nisso? Você tem tudo o que precisa. E eu sou Médica, sem dúvida ajuda. A gente pode conseguir!

— É. Acho que podemos, sim!

— Mas tem que ser uma Academia diferente, Eduardo! Em outros moldes, com padrões diferentes. Sabe? Um lugar onde as pessoas aprendessem a cuidar da saúde em primeiro lugar, onde fossem informadas de verdade, onde existissem outros cursos paralelos. Até mesmo uma Biblioteca!

Nos deleitamos naquela idéia. Aquele seria um sonho que caminharia conosco durante um bom tempo. Mas era preciso começar do começo. Eu montaria a apostila.

A noite estava sendo agradável, mas lá pelas tantas cansamos de ficar ali. Pagamos a conta e saímos novamente em direção ao carro, abraçados, curtindo a nossa comemoração. Mas ainda estava cedo e eu tinha permissão para ficar fora mais tempo naquele dia. Aquele negócio de horário continuava me irritando. Tinha a sensação de que nunca podia fazer nada!

— Pôxa, está muito cedo para a gente voltar, Nenê! Vamos fazer alguma outra coisa... temos que aproveitar esse dia, não é?

Eduardo estava no volante e olhou pra mim, condescendente:

— E o que você quer fazer, "Mô"?

— Ah, sei lá! E se a gente fosse em outro barzinho? Vamos fazer um "tour" de barzinho?

— Você quer? — Eduardo ria.

— Hum... e por que não?

Ele concordou de pronto.

— Se Gatinha quer.

— Então ganha! — completei. — Oba! Oba!

— É isso aí! E vamos onde?

— Que tal ali na Praça Pan-americana? No Senzala?

Volta e meia a gente ia lá. Os preços eram acessíveis e o lugar, gostozinho se estivesse calor. As mesinhas eram ao ar livre. Fomos. Estava cheio de gente, faltava até vaga para estacionar perto. Já estava mais tarde então era a hora do "point" mesmo. Caminhamos um pouco, eu estava animadíssima com a perspectiva da Academia e queria comemorar.

— Eduardo, vamos comemorar a nossa idéia!

Entramos, conseguimos uma mesa. Pegamos os cardápios. Eu também estava alegríssima por fazer algo diferente. E rebelde! Para os meus padrões. Estava cansada de fazer tudo certo. Ninguém parecia dar muito valor quando eu fazia tudo certo! Agora podiam falar com vontade, me crucificar à vontade... ia fazer errado mesmo! E pronto!

— O que vai ser? — perguntou o garçom.

— Uma porção de fritas e coquetel de morango.

Eu já tinha bebido um pouquinho no outro barzinho. Mas não estava nem aí. Bebi o meu coquetel rapidinho, depois bebi até o de Eduardo. Aquela sensação hilariante começou a me invadir de novo. E comecei a perder a noção do aceitável. Por isso não ficamos lá muito tempo:

— Vamos continuar! — falei, decidida.

— Ao "tour" de barzinho!

Antes de sairmos, Eduardo comprou um terceiro coquetel para viagem. De coco. Não demorou nada, nada e enxuguei o terceiro coquetel sem dó nenhuma. Quase duma vez.

— Me dá um gole? — pediu Eduardo na direção do carro.

— Muito tarde! — e aspirei o canudinho ruidosamente — SSHHRRRRUUUPPP!!! — Você já bebeu tudo, Isabela? Meu Deus, mas que rapidez!

OK! Edu! Vamos para outro barzinho! Vamos lá no Pantanal!

— Olha... tem certeza?

— É isso aí! Vamos encher a cara! — eu já estava travada.

Exatamente aquela sensação que era boa! Queria prolongá-la ao máximo. Tinha que continuar bebendo!

Como eu disse, Eduardo achava que eu precisava extravasar de vez em quando, então nem sequer hesitou. Não fui capaz de descer no Pantanal, um outro lugar que íamos às vezes, na verdade nem fazia diferença. Eu já estava tão grogue que fiquei sozinha dentro do carro enquanto ele foi comprar a bebida para mim. E me diverti muito bem, sozinha, colocando a mão no teto do carro e me debruçando sobre o vidro da frente, e achando aquilo tudo muito legal.

Ele entrou no carro e eu comentei com ele:

— Fiquei aqui cantando, e pus a mão no teto!

— Pôxa, que legal, hein? Você quer mesmo tomar um porre, né?

— Quero!! É isso aí! O que é que você me trouxe, Nenê?! Dá aí!

— Uma caipirinha de vodka!

Enxuguei em instantes a tal caipirinha. Então Eduardo achou que eu já tinha bebido bastante, e decretou:

— Bom, vamos indo pra casa, tá? Até lá você já vai estar boa.

Quanta ilusão... no meio do caminho a graça acabou. E comecei a sentir um terrível mal-estar. Minha vista estava turva e eu não me sentia bem. Na porta da casa de Eduardo a coisa piorou. Eu sentia muita vontade de ir ao banheiro, mas não conseguia descer para ir até lá. Minhas lembranças ficaram um pouco turvas nesse pedaço, mas Eduardo contou que eu chorava e pedia que ele não fosse embora.

— Tá tudo assim, ó.....! — e eu mostrava com as duas mãos que estava tudo girando.

E eu travei mesmo, falava mole, enrolava a língua. O pior é que comecei a sentir enjôo de estômago. Daí a coisa apagava, minha noção de tempo foi para o espaço. Eduardo já estava sem entender. Eu já tinha bebido outras vezes na mesma proporção sem ter tido aquele revertério. Eu capotava, dormia, acordava, falava bobagens, voltava a dormir. Reclamava do estômago.

E assim passou uma hora. Nem me dei conta.

Então Eduardo resolveu que tinha que me levar em casa. Mas aí ficava difícil para ele voltar, estava tarde e não haveria mais ônibus. Então pediu ao Roberto, seu irmão, que o acompanhasse até minha casa. Para trazê-lo de volta depois.

Lembro-me pouco da viagem. Apenas percebi que, volta e meia, minha cabeça sacolejava pendurada pela janela.

— Eu abri a janela pra você respirar melhor. Achei que ia fazer bem. — comentou Eduardo depois. — Você estava travada demais, não achei que fosse acontecer isso. Pensei que ia ser como das outras vezes, que logo você já estava bem de novo.

Mas a verdade é que nem eu e nem ele nos lembramos que eu vinha tomando uma medicação forte para dormir naqueles dias. Acho que deu uma potencializada daquelas. Eu não tinha bebido tanto assim!

Na porta de minha casa foi outro drama. Eduardo queria que eu descesse, mas era impossível.

— Eu não consigo, Nenê, não consigo! Não consigo... — eu me desesperava sempre com aquela voz pastosa. — Não dá pra levantar. Quero ir ao banheiro!

Nisso passou mais quase uma hora, segundo contou Eduardo no dia seguinte. Então ele resolveu me carregar até lá dentro. O Roberto já estava dormindo no seu carro, estacionado em frente. Eduardo teve realmente que me carregar, eu não conseguia dar um passo. Meu corpo parecia feito de chumbo. Minha mãe estava deitada e não apareceu quando entramos na sala e ele me pôs no sofá.

— Você precisa de um café bem forte! — lembro-me que ouvi Eduardo comentar. Escutei vagamente os barulhos na cozinha, o "plim" do microondas quando o Nescafé fortíssimo ficou pronto. Eduardo trouxe e me ajudou a beber uns goles.

Estava intragável!!

O efeito foi imediato, em segundos vomitei tudo ali mesmo, no sofá e no tapete. O alívio foi instantâneo também, senti-me bem melhor. Mas não deu tempo de mais nada, minha mãe entrou na sala.

— Meu Deus, mas o que aconteceu? — escutei-a dizer. Eduardo tentou explicar, eu tentei explicar.

— Acho que comi algo que me fez mal. — tentei parecer o mais normal possível.

Missão impossível.

Eduardo fez coro ao meu argumento e ela deixou por menos naquele instante. Embora fosse perfeitamente capaz de adivinhar o que estava acontecendo, a julgar pelo adorável cheiro que inundou a sala. Vômito de bebida é realmente adorável!!!

Eduardo tratou de limpar tudo, eu capotei no sofá. Não conseguia abrir os olhos. De vez em quando a consciência aparecia, no meio de uma névoa conseguia vislumbrar Eduardo com um balde... com um pano...

Ninguém tentou me colocar na cama, e embora eu estivesse a ponto de estourar de vontade de ir ao banheiro, nem pensei em tentar também. Sentia-me incapaz de mexer um músculo.

Dormi ali mesmo até quase o amanhecer. Acordei desesperada de vontade de fazer xixi. Fui. Depois deitei no quartinho dos fundos, meu atual lugar de recolhimento. Há alguns meses a dona da casa ao lado da minha, que estava para alugar, colocou ali uma caseira. Ela tinha uma filha e um cachorro, e berrava com ambos o dia todo. Começava às sete da manhã, de domingo a domingo.

E se havia algo que me deixava muitíssimo irritada era ser acordada por ela todos os dias. Como meu sono vinha extremamente mutilado, tive que me mudar para o quartinho de despejo, no fundo do quintal, numa desesperada tentativa de ter sossego.

Realmente dali eu não escutava nada, pena que o local não fosse nada aconchegante. Tinha uma cama, mas muita bagunça em volta. Fiquei por ali até que minha mãe investiu pesado e comprou uma janela e uma porta anti-ruído. Foi a minha sorte! E eu também dormia com rolhas nos ouvidos.

No dia seguinte eu estava cansada e com o estômago ruim, o intestino também. Mas como minha mãe deixou por menos, eu também não liguei muito. Mas fiquei espantada com o acontecido. Eu tinha tomado um porre daqueles! Nunca imaginei que pudesse acontecer comigo...

 

Apesar de que a nossa idéia de montar um curso diferenciado de Kung Fu fosse boa, naquela época do ano era bobagem ir atrás. Logo viria o Natal e a passagem do ano. Ninguém faz nada nessa época, portanto deixamos para o outro ano.

Aliás, falando do ano que chegava, prefiro até dispensar comentários sobre as comemorações. Marco não pôde vir, de forma que a família de meu pai, que morava no interior, convidou-nos para as festas. Foi muito gentil da parte deles, mas sem meu pai aquilo tudo perdia boa parte do brilho. Minha mãe estava triste, e eu mesma me recordo muito pouco de tudo.

Eduardo foi conosco, o que ajudou um pouco a diluir a sensação de desconforto. Mas eu queria mais era que tudo passasse logo e a vida voltasse ao normal, no início de janeiro.

A entrada do novo ano me pôs bem mais aflita em relação ao que eu iria fazer de minha vida. Não havia uma cobrança plenamente aberta, mas tudo o que é velado causa mais tormento. Sei que minha mãe devia estar tão aflita quanto eu, pois de vez em quando ela perguntava algo, ou dava umas indiretas.

Mas eu própria me cobrava bastante! Era extremamente difícil para alguém que nunca parou na vida ficar sem saber que rumo dar nas coisas. Não sabia em que direção apontar o leme. Estava — é óbvio — muito pouco satisfeita com a situação presente, mas também completamente sem saber o que fazer.

Sentia-me à deriva, perdida, confusa. Eu queria fazer algo... era preciso fazer algo, dar um sentido maior para os meus dias. Mas o quê! Era uma grande, uma enorme dificuldade... tinha perdido a capacidade de saber o que me daria prazer. Profissionalmente falando, quero dizer.

Porque o prazer pelo prazer não podia ser. A profissão tem que ter uma faceta útil, porque senão também deixa de ser prazerosa. Pelo menos eu pensava assim. Mas estava incerta quanto ao meu futuro como Médica e não conseguia sequer pensar em arrumar um emprego nas mesmas bases daqueles que tinha acabado de experimentar.

Então fui à Faculdade informar-me sobre alguns cursos. A Andreza, minha amiga da A.B.U., nessa altura também Residente, me dera ótimas referências sobre um curso de Acupuntura. Seria uma maneira de diversificar os meus conhecimentos e, quem sabe, no futuro, aquilo não me seria uma outra fonte de trabalho?

Fiz a inscrição, por sorte, no último dia. E também interessei-me por um curso de Medicina Esportiva. Seria ótimo, porque se nós realmente investíssemos naquela coisa da Academia eu estaria com a minha vida profissional feita. Não havia curso melhor do que aquele para dar continuidade aos meus conhecimen­tos. Parecia realmente uma direção vinda de Deus! A solução!!!

Ambos os cursos tinham duração de um ano, mas a carga horária da Acupuntura era três vezes menor do que a do outro curso.

Em fevereiro, comecei as aulas animada.

À medida que o curso de Acupuntura avançava, comecei a pensar um pouco mais sobre aquilo. Embora tivesse lá meus questionamentos sobre aquela prática, porque já tinha "ouvido falar", fiquei pensando se aquilo teria alguma influência subliminar ou não. Procurei conversar com os Cristãos, informar-me melhor. Mas ninguém parecia querer saber, ou importar-se com aquilo.

Apenas Andreza, que já tinha até mesmo se formado naquele curso e agora era instrutora, falou sobre sua opinião pessoal:

— Alguns pontos eu prefiro não agulhar.

Mayra e Lara também participavam comigo das aulas. Mas não chegamos a nenhuma conclusão.

Um dia perguntei a Eduardo:

— Você algum dia ouviu algo sobre a Acupuntura, na Seita?

Ele me explicou um pouco sobre o conceito dos chakras, e dos Portais, coisas até então pouco familiares para mim.

— Caramba, mas por que você não disse isso antes? Me deixa ir fazer um curso assim?

— O problema não é a Acupuntura em si, entende? Na verdade, a ciência é milenar e as bases científicas de fato existem. Mas você sabe que o diabo pode se aproveitar de coisas que lhe interessam, especialmente se for de fácil manipulação. E onde há o desconhecimento de Deus, é fácil para o diabo agir. Lógico que se a manipulação foi feita por Cristãos, não creio que haja problema!

— Nossa... mas então... que coisa!

Na verdade, estava procurando uma desculpinha. Eu não estava gostando daquele curso, sem dúvida o de Medicina Esportiva era muito mais interessante. Acabei largando a Acupuntura e fiquei só com o outro. Estava aprendendo coisas legais, coisas úteis, e quando tivéssemos a Academia eu ia poder fazer muito bom uso daquele conhecimento.

O ano continuou correndo sem grandes novidades no primeiro semestre. Acabei montando a tal da apostila para Eduardo, o curso de Medicina Esportiva ajudou-me muito com conceitos e informações utilíssimas. Montei também um belo currículo para ele.

Pouco antes que tudo ficasse pronto, Eduardo resolveu voltar a treinar firme. Se pretendia investir num futuro que levasse em conta a Arte Marcial, tinha que estar em forma plenamente. E isso ele não ia conseguir apenas se desse aulas. Precisava treinar, e treinar pra valer. Eu dei todo o incentivo, realmente orgulhava-me dele e queria vê-lo novamente no ápice da forma.

— Vou atrás de um antigo Mestre, o Mestre Zhy! — comentou ele comigo certo dia. — Depois que terminei o Ton Long comecei um terceiro estilo, e treinei com ele. É conceituadíssimo!

— Pôxa, Nenê, vai mesmo! Legal!... Ué? Você fez outro estilo?

— Fiz. Mas não me formei. Agora ele precisa me aceitar de volta, e isso não é tão fácil. Tem sempre uma fila de espera. Ele não aceita alunos principiantes. Vou ter que conversar... antigamente ele gostava muito de mim!

— Como foi que você começou a treinar este estilo? Faz tempo?

— Eu não era ainda convertido. Estava na Seita. Na época eu era Professor da ADINK e dava o meu curso de armas, aquele que eu te falei. Isso fazia com que eu fosse um dos Professores mais respeitados e requisitados naquela academia. Era uma academia de porte mesmo, com mais de 2000 alunos! Mas aí nosso Mestre regional teve um problema com seus superiores, os responsáveis pela rede de academias da ADINK. E foi afastado. Muitos Professores da ADINK acabaram saindo de lá por causa disso. A administração da academia viu-se obri­gada a permitir que alguns Professores assumissem mais horários. Eu fui um dos selecionados para dar mais aulas, o que foi ótimo para mim! Nesse ínterim, foi requisitado um novo Mestre para assumir a academia, que foi desligada da rede ADINK, e tornou-se independente. Mestre Zhyang aceitou o posto. Ele era Mes­tre do estilo Serpente, e logo tratou de agendar uma reunião com todos os Profes­sores. Lembro-me bem que era um sábado. Camila foi terminantemente contra que eu fosse. Ela já ficava sozinha a maior parte da semana e era muito justa sua recusa. Mas eu precisava estar lá!

— Você, hein? Coitada...

— Pela manhã eu havia dado cobertura a um Professor amigo meu, e aí a mãe dela ligou, aflita, dizendo que Camila tinha se machucado. A raiva dela era tanta com minha reunião que, ao bater uma porta com toda a força, prendeu o dedo do pé e ficou sem a unha. Assim que conseguiu se acalmar e cuidar da primeira dor, cismou que um vaso estava esteticamente mal posicionado. Resolveu mudar de lugar. Deu um mau jeito nas costas, e travou a coluna. Estava imóvel estirava no chão da sala, com muita dor, e explodindo de raiva! Eu conseguia escutá-la falando: "Se ele estivesse aqui, eu não precisava ter mudado o vaso de lugar, agora eu que me ferro, enquanto ele dá aulas para as galinhas da academia. Aquilo não é academia é uma 'granja'". Tive que ir embora por causa disso. Depois fiquei sabendo que naquela reunião o Mestre Zhy, dentre outras coisas, criticou meu curso de armas. Como o curso despertava ciúmes na maioria, ninguém me defen­deu. A alegação dele era que as armas são características de estilos próprios. O que eu ensinava, embora fosse de fato um estilo "livre", estava embasado na filosofia do tradicional Shaolin. Shaolin quer dizer "jovem floresta". Assim como acontece na natureza, que é livre, o estilo Shaolin também é. Assim eu via e entendia. Mas Mestre Zhy ficou com uma má impressão a meu respeito, só que não pôde extinguir meu curso.

— Pôxa... foi uma implicância meio de graça!

— Depois que ele pichou injustamente o meu curso, eu também fiquei de ovo virado para ele! E esperei a primeira oportunidade para termos uma conversa "casual". Claro que eu não queria ter que ir atrás dele! Apesar de conhecer seu renome e respeitá-lo pela sua Arte Marcial, de puro orgulho não fui ter aula de imediato com ele. Mas estava frustrado! Mestre Zhy tinha aberto uma classe especial só para alunos de elite, para começarem o estilo da Serpente. Queria muito participar daquelas aulas, mas também não queria dar o braço a torcer. Então, tentei fazer com que ele percebesse em mim potencial a ponto de me querer como discípulo. Eu sabia a que horas ele costumava chegar na academia, daí chegava um pouco antes, me aquecia, e ficava perto do Mudjong. Esperando. Assim que percebia que ele estava chegando, começava minha performance com todo o ímpeto. Eu era bom naquilo. No nunchaku também, podia usar os dois para chamar sua atenção. Vi que ele dava umas olhadinhas e logo virava de costas. Não falava nada. Neca do Mestre Zhy abrir a boca. Nem ligava...

Eu já estava rindo. Eduardo continuou.

— Ele não olhava muito na minha cara e nem eu na dele. Depois que viu minhas habilidades com o nunchaku achei que pelo menos viria falar comigo. Nada! Eu detestava ser ignorado! Como nada aconteceu, chamei meu amigo Frank para uma luta amistosa bem diante dos olhos do Mestre Zhy. Ele era seu aluno predileto. Eu não machucaria Frank e nem ele a mim, mas seria ótima oportunidade para demonstrar tudo o que eu sabia. Neste dia, ainda fiquei falando alto e mostrando a medalha que tinha ganhado em outros campeonatos, brincando com Frank, e dizendo: "Você vai ter a honra de lutar com um campeão". Tinha que chamar a atenção do Mestre a todo custo. Fiz poses, desferi meus golpes mais bonitos, pulei, voei, saltei, chutei, quase distendi a perna, mas estava dando o máximo! Mas ele simplesmente olhou com desprezo e foi embora... que raiva senti dele!

— Quero só ver como vai terminar essa história.

— Um dia, no meio de uma aula dele, pedi licença para atravessar o salão. Ele deve ter pensado que eu só ia até o vestiário ali atrás, e permitiu. Qual não foi sua surpresa quanto comecei a chutar compulsivamente o saco de pancada.

— Eduardo! Que absurdo! No meio da aula do cara!

— Eu estava ficando nervoso... pô! Ele olhou pra mim com um ar frio. Ah! Parecia que enfim ia me dar atenção. Só que se limitou a dizer que eu não poderia usar o saco de pancada durante sua aula. Que droga! Já estava ficando alucinado! Não havia outro jeito, eu teria mesmo que falar com ele! Então fui chegando como quem não quer nada, mas com todo respeito. E disse: "Mestre! Posso te fazer uma pergunta?". Ele não respondeu, só fez que sim com a cabeça, sério. Fui adiante: "Você acha que a lança pode vencer o nunchaku? Porque com o nunchaku nas mãos eu sou muito bom, e acho muito difícil existir uma arma capaz de me vencer se eu estiver com o nunchaku nas mãos".

— Pouco arrogante, hein? Como você era... modesto!

— Mas escuta só... ele estava vestindo uma jaqueta sobre a camisa. Tirou e respondeu: "Pois eu não preciso de mais nada além disso aqui". E me mostrou a jaqueta. Claro que eu tive que dar risada! "Quer dizer que você pode me vencer com uma jaqueta! A mim? E armado com o nunchaku? Ah, ah, ah, ah, ah, ah!".

Eu também ri, Eduardo tinha umas histórias engraçadas. E foi adiante:

— "Pegue seu nunchaku", foi tudo o que ele disse. "Não, não... Mestre.... eu não quero machucá-lo!", fui respondendo. Eu sabia que um só golpe racharia um crânio em dois. Um osso humano se rompe com o impacto de seis libras. O nunchaku pode chegar a ter um impacto de mais de 800 libras quando usado em alta velocidade! Aí brinquei: "Vou pegar o nunchaku de espuma, tá?" E ele: "Não. Pegue o seu nunchaku". "Mestre! E melhor eu pegar o de espuma. Não preciso machucá-lo". O Mestre Zhy ficou apenas parado, olhando pra mim, com a jaqueta apoiada nas costas. "Quando quiser", falou de novo. Eu tinha certeza de que ia machucar ele. Não era bem mais fácil apenas me responder à pergunta: nunchaku versus lança... quem vence?

— E aí?

— Ainda insisti mais um pouquinho: "Bom... Mestre... então pelo menos tira o óculos, né?!". Ele sequer se alterou. E ainda falou grosso: "Pára com isso. Você vai ou não usar logo o que sabe?" Faltava amabilidade naquela atitude. Bom... estava pedindo. Se se machucasse, o problema era dele. O máximo que podia acontecer era eu ficar no lugar dele como Mestre da academia. "É isso que você quer? Você pediu!" Me senti seguro, afinal tinha gente olhando. Ele era o Mestre, não iria me machucar. Para todos os efeitos, eu era o "discípulo". Só que eu podia machucá-lo... e pensei: "Vou com tudo em cima. Quando correr a notícia de que eu destruí o Mestre Zhy... quebrei uma costela... ou um braço... ou o joelho... claro, não vou atacar na cabeça, mas quem sabe se eu tirar os óculos dele com uma chakada...". Então saquei meu nunchaku e fiz várias manobras diante dele, rasgando o ar. Eu queria impressionar e à minha volta todos cochichavam. Só o Mestre Zhy continuava quieto, esperando. Parti para cima dele com toda a agressividade, e... nem vi o que aconteceu! Até hoje não sei direito como ele fez aquilo, nem percebi... mas o fato é que quando dei por mim eu já estava sem o nunchaku... caído no chão... e enforcado com a manga da jaqueta!!!!!

— Ah, ah, ah, ah, ah! Levou a pior!

— Quando bati nele tive a impressão de bater numa espuma; o nunchaku perdeu a força e a velocidade, algo o puxou das minhas mãos com força... em milésimos de segundo já me senti voando para o chão... a consciência plena só me voltou quando Mestre Zhy educadamente desenrolou a jaqueta do meu pescoço. E com calma, virou de costas foi embora. Não falou nada! A humilhação do dia... da semana... do mês.... não, não, não!!!! Todos olharam mas eu corri atrás dele. E gritei, um pouco irritado: "Mestre!!! Espere! Mais uma vez! Eu usei a estratégia errada!". Ele me ignorou e continuou indo embora. "Mestre! Me dá mais uma chance, mais uma chance só. Ou você tá com medo?!"

Eduardo, que teimosia! Ah, ah, ah, ah, ah, ah!

— Pois é... mas fiquei inconformado. Então ele voltou o rosto para mim, deu uma risadinha e falou, desta vez em outro tom: "Mas você é teimoso, né?".

— Não falei?

— Aquilo não era possível!!! Nem liguei. Já fui falando de novo: "Então? Tá pronto?! Tá?". Mestre Zhy pegou sua jaqueta e jogou no ombro do mesmo jeito. Eu pensei comigo: "Desta vez vou envergonhá-lo. Uso uma finta, finjo que vou atacar no rosto e ataco embaixo! É impossível ele não cair nessa, isso sempre funciona". E fiz. Ataquei ferozmente e com toda minha força. Como ele conseguiu, só ele mesmo é que sabe, Isabela! Fiz que ia desferir um golpe no seu rosto e chutei violentamente o joelho, mas Mestre Zhy ergueu a perna de uma maneira que não pude ver... e chutou meu rosto! Isto é, só encostou, deu um tapinha leve. De efeito moral. Eu me assustei e perdi o rebolado, e ele, sem esperar mais nada, me deu um rodo por trás que me pôs espatifado no chão. PLOFT! E de novo virou as costas e foi embora! Eu fiquei completamente aturdido, indignado. Então Frank bateu no meu ombro, falando com aquela voz resignada: "Eduardo....o Zhy é formado na China. Ele é um Mestre chinês. Não viaja" Levantei impressionado.

— E o que você fez?

— Deixei passar dois dias... só dois. Mestre Zhy nem olhava pra mim. Então fui atrás dele de novo: "Mestre! Olha... luta comigo. Só no braço! Usando as pernas pode ser que você seja melhor, mas com os braços... você me viu treinando no Mudjong, não viu? Duvido que você tenha a coragem de treinar comigo. Luta comigo... usando só os punhos!".

— Lá vai!

— Mestre Zhy deu risada bem-humorado. Talvez estivesse começando a ir com a minha cara. Realmente eu era teimoso mesmo! Lutamos. Eu me esfalfando com golpes e mais golpes, e ele na maior tranqüilidade. E me provocava: "Isso é tudo que você sabe? Acabou?" Fiquei furioso, e atacava mais ainda, com mais ferocidade. Mas não consegui vencê-lo! E toda hora voltava à carga, dando risada: "Isso é o máximo que você pode fazer? É?" E TUM! Me acertou um único golpe. Fiquei sem respirar de dor. Mestre Zhy nem bateu com força... só tocou. Que coisa absurda. Fiquei irritadíssimo. Assim que me recuperei, estava mais enfezado: "Não é possível! Valendo perna, então!" — Eduardo até gesticulava, revivendo a indignação do momento. — Daí ele disse que para mim podia estar valendo, mas ele não ia usar as pernas. Parece que gostava daquilo, da minha insistência. Não esperei segunda ordem, fui para cima dele babando. Eu tinha que conseguir acertar um golpe, um golpe só!!! Mas quem me dera! Foi ele que me acertou mais um

tranco no braço, no nervo. Não doeu, mas fiquei com o braço dormente, paralisa­do. Travou. Para Mestre Zhy foi o que bastou. Então ele falou comigo pela pri­meira vez: "Você quer aprender Kung Fu?" Dei um muxoxo, vencido. E disse que sim, perguntei humildemente se ele podia me ensinar. Então me chamou para participar do treino de elite. Foi o que fiz. No sábado lá estava eu para participar. Desfilando com meu novo uniforme colorido, que alguns ainda debochavam chamando de "Capitão América". Qual não foi minha surpresa... lá vem ele: "Muito bem, sente e assista". "Não. Eu vim treinar!"; "Hoje você assiste". Fiquei assistindo aula por um mês, ele não me deixava participar. Depois, minha forma de participar foi guardando as coisas usadas em aula. Dando uma varridinha na sala. Já fazia dois meses que eu estava esperando para iniciar meu aprendizado no estilo da Serpente. Mas finalmente chegou a hora, e comecei. Na Irmandade já tinham me avisado que o conhecimento adquirido nas técnicas do estilo da Serpente seria muito benéfico para mim, seria um Kung Fu do qual Lúcifer se agradaria mais do que os outros anteriores. (Leia Filho do Fogo). No entanto, Mestre Zhy acabou não ficando muito tempo na ADINK. Passou a dar aulas no bairro da Liberdade, para um grupo extremamente seleto. Fui aceito neste grupo. O estilo da Serpente tem seis estágios. Eu cheguei ao quarto estágio, um grau bastante avançado. Aqui no Brasil, naquela época, o aluno mais antigo do Mestre Zhy estava no quinto estágio. Até mesmo Frank ficou para trás, estava no terceiro estágio quando eu já tinha passado para o quarto.

— Que legal, Nenê!

— Mas aí, o pior... um pouco antes da minha conversão ao Cristianismo Mestre Zhy expulsou-me da academia.

— Nossa! Mas por quê?

— Aquele meu amigo Frank tinha me mostrado um movimento lindo com a lança, mas não me ensinou como fazer. Disse que não podia me ensinar, que era o Zhy que ia fazer isso, um aluno não podia ensinar a outro aluno, senão era problema na certa. Além disso... já por várias vezes Mestre Zhy tinha me advertido para não usar a lança! Mas, juro, eu nem dormia mais pensando em como fazer aquele lindo movimento. Daí, numa hora em que ele não estava olhando, peguei a lança para tentar imitar. Toda hora dava um jeitinho de chegar antes do Zhy na academia só para pegar aquela arma. No começo ele só me dava umas olhadas tortas, mas como eu insistisse, então me advertiu verbalmente. Reclamei: "Pôxa, eu só estou querendo treinar esse movimento!" — Que teimoso...

— Pois é. Mestre Zhy deixou claro que não queria ser contestado. Mas eu continuei treinando escondido dele, daí consegui a proeza e aprendi sozinho aquele movimento! Um dia, tão feliz estava porque havia conseguido, que rodava a lança para cima e para baixo, sozinho no salão, depois que os alunos tinham saído e a academia estava vazia. De repente... oh, azar! Na minha empolgação acabei deixando a lança voar bem em cima do altar, e derrubei a fotografia do venerável pai do Mestre Zhy! O porta-retrato quebrou e aquilo era algo inominável! Senti meu sangue gelar e corri para recolher os cacos antes que alguém aparecesse. Mas não deu tempo, enquanto tentava encobrir a bagunça ouvi os passos do Mestre Zhy. Levantei com a lança debaixo do braço e os cacos na mão. Na pressa da agitação ainda tropecei e acabei caindo para trás, um vexame! A ponta da lança espetou e furou o saco de pancada, outro acidente que não podia ter acontecido em hipótese nenhuma!

— Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah!!!!

— Em suma... Mestre Zhy perdeu a compostura ao ver a foto do seu pai no chão e o altar desarrumado. Expulsou-me aos berros, acusando-me de ter desonrado a memória do seu pai. Saí de lá chocado, sem ter tempo de dizer nem uma palavra, explicar nada, muito menos implorar clemência. Acabei ficando uns meses sem treinar, mais logo eu me converti. Então esse acabou sendo um detalhe de menor importância.

— Que história! Será que ele vai te aceitar de novo agora?

— Vou tentar, né?

Eduardo foi atrás e acabou sendo aceito facilmente, pulou uma fila de espera enorme, passou na frente de todos. Depois de ter feito um teste prático. Acho que o tal mestre Zhy realmente gostava dele!

Era hora de entrar em forma de novo! Eduardo estava felicíssimo e eu também. Estávamos caminhando no rumo certo!

A única chatice é que eu nunca podia ver os treinos, como gostaria. A Academia não era aberta ao público. Apenas uma vez por mês, se fosse avisado antes e recebêssemos permissão, algumas pessoas podiam entrar para ver. Mas nesses dias, conforme Eduardo comentou, nunca se treinava nada de importante. Nada de técnicas avançadas. Nada de muitas acrobacias.

Fui assistir umas duas vezes, louca de curiosidade. O lugar era muito diferente, tinha sempre uma musiquinha chinesa de pano de fundo, a luminosidade não era das melhores. Havia instrumentos engraçados espalhados por todo o recinto, coisas que os guerreiros usavam para treinar desde os primórdios da Arte Marcial. Havia um altar que ficava lá na frente, cheio de coisas.

E eu mantinha os olhos bem abertos para não perder nada.

Havia duas ou três moças apenas, mas que eram boas atletas, pelo que pude perceber. E para falar a verdade, todo mundo ali era bom no que fazia. Parecia um mundo à parte. Para mim foi bem divertido e o tempo passou logo.

Num desses dias, eles treinaram um pouco da técnica de Chikow, achei esquisitíssimo! (Leia Filho do Fogo). Uma ou outra pessoa parecia estar em transe, pareciam manipular uma energia qualquer. Ela parecia estar ali, no ar, a volta deles, plenamente palpável!

Esquisito!...

E embora algo muito no íntimo nos alertasse sobre aquilo, não foi nada a que déssemos muito ouvido. Deus já estava nos sinalizando alguma coisa. Uma espécie de sinal vermelho. Mas não paramos para ouvir, muito menos para obedecer. Se Eduardo largasse o Kung Fu, que seria dos nossos sonhos?!? Deus não podia querer isso...

 

Embora Eduardo continuasse praticando Kung Fu com seriedade, levando em conta nossos planos futuros... dá para acreditar que eu não consegui levar adiante o curso de Medicina Esportiva, apesar do entusiasmo com a possibilidade da Academia? Nem eu mesma me reconhecia! Da Acupuntura já tinha desistido. E mais ou menos no meio do ano o de Medicina Esportiva, mesmo sendo muito legal, também me desinteressou.

Hoje compreendo perfeitamente o que aconteceu. O curso era dividido em vários módulos, cada módulo acontecia em um departamento diferente da Faculdade. Um dos blocos, durante um mês, aconteceria justamente num departamento do Hospital que eu não conseguia entrar. Pelo menos, não naquele momento.

Naquele lugar meu pai tinha passado os seus últimos dias, tinha feito os seus últimos exames. Ali ele tinha estado na véspera da sua morte. Eu não tinha forças em mim mesma para entrar naquele local, quanto mais durante um mês inteiro.

Na época inventei mil desculpas para mim mesma, no fundo eu sabia qual era o verdadeiro motivo. Mas não importava, eu não queria entrar lá. Não queria, não conseguiria! Aquilo me travou completamente.

Logo depois do falecimento do meu pai, eu sonhava todas as noites com o Médico que o atendera naquela semana. Que não fizera um diagnóstico preciso, sei lá!

Aquilo foi um tormento tão grande para mim, e os sonhos se repetiram tanto, que minha Psicóloga orientou-me a ir até o Hospital. Falar com ele. Este episódio tinha acontecido alguns meses antes do começo do curso, quase um ano depois da morte dele.

Hesitei, hesitei. Mas fui. Primeiro atrás do prontuário. Encontrei, mas não a informação que eu queria. Achei até estranho porque mais de uma vez eu tinha visto o prontuário do meu pai. Finalmente criei coragem para procurar o tal do Médico. Fui até meio rude, chorei, perguntei por que ele não tinha pedido pelo menos um Raio X de tórax diante daquele quadro.

Foi um mau pedaço.....a explicação dele é o que menos importa, não mudaria as coisas... mas depois disso pelo menos eu deixei de sonhar com o Médico.

Por causa de tudo isso eu não queria entrar naquele prédio. A possibilidade de ver aquele Médico, de ver pacientes com problemas semelhantes... impossível!

E larguei o curso.

Na primeira semana o Coordenador me procurou, pediu que eu fosse conver­sar com ele. Eu praticamente não tinha faltas, certamente ele me convenceria a continuar. Por isso não fui, ignorei completamente. Larguei tudo outra vez, pouco depois do meio do ano.

As coisas somente pioraram. Eu estava de novo na estaca zero!!! Todo o meu esforço dava em nada. Novamente vieram as cobranças porque agora estava novamente em casa, sem fazer nada. Eu ainda não estava bem, não estava bem mesmo! Continuava com meus tratamentos de saúde, tomando medicação, dormindo muito mal.

Nunca sonhava nada bom. Freqüentemente meu pai estava nos meus sonhos, mas sempre brigando, ele estava sempre contrariado comigo. Acordava com uma sensação horrível no peito. Estes sonhos foram assim durante muito tempo. Muito tempo.

Naquele ano, meu aniversário passou em brancas nuvens, com todos preocupados com o concerto do Marco, que seria no mesmo dia. Minha mãe saiu logo cedo, e estava também brigada comigo, pra variar. Eu fiquei fechada no meu quarto a maior parte do dia, até que Eduardo chegasse do serviço.

Me encontrou chorando e muito deprimida naquele dia de muita descompensação. Ele foi o meu consolo, o único que conseguiu me animar. E à noite, quando fomos todos para o concerto, eu já estava um pouco melhor. No fim da apresentação Marco dedicou-me a última música.

Haveria um coquetel depois. Era um clube muito chique de São Paulo e aqueles concertos haviam chegado em boa hora. Duas moças estrangeiras tinham vindo com Marco para acompanhá-lo nos concertos. Eu me esforçava muito para conviver, mas não era fácil para mim. Mesmo porque durante todo aquele ano uma de minhas primas do interior morou em casa também. Estava fazendo um curso e precisava ficar em São Paulo.

Isso queria dizer que a casa estava cheia.

Qualquer problema, qualquer situação desagradável em família e quase sempre eu tinha que estar envolvida. Ou melhor: tinha que ficar exposta! Eu estava chata, ninguém tinha obrigação de ser paciente comigo. Por isso só queria ficar sozinha. Era melhor assim, eu não me sentia compreendida, antes me sentia julgada.

Apesar de não querer me expor, não tinha onde ficar! O que mais me incomodava era o fato de que todo mundo estava ali, presenciando aquela situação ruim. O período em que larguei o curso coincidiu exatamente com o momento em que a casa estava mais lotada. Era horrível esbarrar com pessoas estranhas o tempo todo!

Foram períodos de muita dor e solidão naquele ano. Excetuando o companheirismo de Eduardo e os encontros com Mayra, não suportaria aquele período tão sombrio e tão incerto, de tantas cobranças e tantas desavenças. A Terapia também ajudava. Mas não fazia milagres, claro!

Naquele dia do meu 27° aniversário aproveitei para tomar outro belíssimo porre. No coquetel depois do concerto, imprudentemente eles serviram excesso de bebidas alcoólicas com muito pouco alimento sólido. Eu fui bebendo, misturei champagne com vinho branco e com whiskey. Nunca tinha tomado whiskey, mas rindo e rindo com Eduardo e minha prima (que também enxugava), nem me dei conta de que era melhor reduzir a dose.

Aquela risada compulsiva tinha um indescritível poder relaxante!!

Quase que o vexame foi ali mesmo. Até a hora de sairmos não tínhamos feito nada grave, embora minha prima bebesse bastante também. Mas quando entramos no carro, capotei no banco de trás e comecei logo a sentir aquele forte enjôo.

Tentei por toda lei controlar-me ao máximo. Entrei em casa sentindo o estômago virar e nem deu para chegar até o meu destino: o banheiro. Vomitei foi ali mesmo, na sala, e Eduardo e minha mãe tiveram que cuidar da sujeira enquanto eu caía que nem morta na cama.

Tinha virado hábito. Sempre que eu podia, exagerava mesmo. Na semana seguinte Mayra tinha acertado de fazer uma festinha dançante no salão de festas da casa dela.

Mayra inaugurou aquele moda na Igreja, e fizemos vários bailinhos gostosos em sua casa com o pessoal da Mocidade. Mayra era louca para dançar, assim como eu e mais alguns colegas. Dentre estes, a maioria dos nossos colegas do grupo de Teatro.

Eu tinha feito dança de salão durante um ano, antes de conhecer Eduardo, mas depois tive que parar por motivo de força maior. Eduardo não gostava! Mas ali, nas nossas festinhas, ele não se incomodava, inclusive participava.

Nossas festas eram super relaxantes! A gente dançava sem parar, o ambiente era familiar e acolhedor, todo mundo conhecia todo mundo. Cada um trazia um prato de qualquer coisa, alguns refrigerantes e água, e pronto! A noite estava completa! Ali eu podia até mesmo dançar com alguns amigos do Teatro, sozinha, em grupo.

E era uma excelente válvula de escape para todo mundo. Todo mundo concordava que não tinha nada melhor do que gastar energia dançando! Lá pelas tantas tinha quem acabasse tirando o sapato para poder dançar até não ter mais perna para dançar. Eu era uma das adeptas desse método.

Combinamos de fazer mais uma, com a desculpa do meu aniversário, apesar de que já tinha passado. Mas a verdade é que nesse dia cada um acabou trazendo mais alguém. Acabou tendo mais gente de fora do que de dentro. Minha prima que estava morando em casa, que não era crente, foi junto na festa. Levou sua irmã com o namorado também. Eles trouxeram escondido algumas bebidas. Foi o suficiente para beber bastante!

Nem me importava muito. Desde que me ajudasse a sair da realidade por algumas horas.

 

No segundo semestre, nosso plano de ir atrás das grandes Academias tinha que se concretizar. Não estava no nosso destino... mas a gente não sabia disso. Mandamos os currículos esperançosos. Não levou muito tempo e logo começaram a chegar as respostas.

No começo nem acreditamos que aquilo poderia ser verdade!

Os resultados estavam sendo muito positivos, os coordenadores de Esportes Marciais das Academias logo entravam em contato com Eduardo, interessados em marcar entrevistas. Ele vinha cheio de notícias:

— Olha só, Gatinha, adivinhe com quem falei hoje! Boas notícias!

— Conta aí, conta aí!

— Me ligaram daquela enorme Academia, a Mega Athletic Center, e marcaram uma entrevista. Estão bastante interessados.

— Oba! Não te disse que você tem tudo para dar certo nessa área?! Fomos juntos à entrevista. Era dentro de um Shopping. Enquanto ele

conversava, eu fiquei xeretando pela Academia. Era tudo enorme, nunca tinha entrado naqueles lugares onde tudo é de última geração, tudo elitizado, tudo super bem montado, as salas lindas, cheias de espelhos, de cores. Era realmente de babar, pra quem gosta disso é um prato cheio!

Eduardo saiu da entrevista com uma cara ótima, fomos tomar um café para conversarmos. Eu estava exultante.

— Adivinha só de quanto é o salário!

Nem dava para acreditar! Eduardo foi falando, contando os benefícios. Era de fato uma ótima oportunidade.

— Estou praticamente contratado. Gostaram muito de mim, do meu currículo e só vão esperar um dos coordenadores voltar de férias. Então fechamos o contrato. Adoraram a idéia do curso teórico! Encheram a bola, que meu perfil é excelente, minha experiência é excelente, enfim... sou tudo o que eles estavam precisando para lidar com o público que freqüenta essa Academia. Disseram que é difícil achar um Professor de Arte Marcial que possa trabalhar aqui porque o esporte em si sempre foi coisa que atrai outra classe de pessoas! Mas que eu sou excelente... etc... etc...!

Eu não cabia em mim de contente. Aquele era um futuro perfeito para nós dois!

Logo outras entrevistas aconteceram. Numa das Academias, a Thriatlon, iam começar imediatamente a divulgação do novo curso, chegaram a pedir fotos de Eduardo para fazer cartazes, e marcaram uma apresentação. Tiramos montanhas de fotos artísticas, lindas! Na outra, a melhor de todas, aquela que nós estávamos realmente cobiçando com todas as forças, a Coliseum, o coordenador afirmou com todas as letras:

— Considere-se professor desta Academia, pode até vir aqui treinar todos os dias, se quiser. Você já tem entrada livre! Estamos apenas terminando a reforma de uma das alas novas, vamos ter ainda mais espaço, coisa de um mês mais ou menos. Então vamos abrir o seu curso na ala nova.

Foi super simpático e até mesmo levou Eduardo para conhecer a sala que seria dele. Estava realmente quase pronta. A Academia era o sonho de todo Professor, e de todo aluno. Um verdadeiro show! Tinha de tudo, e tudo era mega! Ficamos esperando para comemorar de verdade quando o contrato fosse efetivado! Fazia tempo que a gente não se sentia tão animado com alguma coisa. Eduardo já estava pleiteando um novo emprego há algum tempo, escolhendo com calma, sem pressa nem precipitação. Quando saísse do cargo de Supervisor de Produto queria ter o pé no chão e a cabeça fria, consciente de haver ganhado na mudança.

Mas diante da nossa quase absoluta certeza de que ele seria aceito como professor da Coliseum, Eduardo fez um acordo na Empresa. Foi mandado embora sem problemas, o seu chefe até lamentou a decisão. E Eduardo recebeu todos os seus direitos contratuais.

Daí ficamos à espera das confirmações. Enquanto isso, Eduardo continuou treinando com mestre Zhy três vezes por semana à noite, e dando aulas na pequena academia da qual já fazia parte e aonde eu era sua aluna. Duas vezes por semana. Foi aí que aconteceu uma coisa estranha...

Todas as Academias, antes tão interessadas e já praticamente fechando os contratos, começaram subitamente a dar pra trás.

O coordenador da Mega Athletic Center que voltou de férias não se empolgou em contratar mais um Professor, embora os demais tivessem garantido que ele iria adorar. As fotos e cartazes, a apresentação marcada na Thriatlon... foi tudo cancelado do nada. E a tal reforma da Coliseum nunca mais que acabava.

No entanto, como o responsável da Coliseum continuava incentivando Eduardo, sempre reafirmando as mesmas coisas cada vez que ele telefonava, continuamos na expectativa. Para todos os efeitos, Eduardo logo estaria ativo na Academia, o coordenador chegou mesmo a apresentá-lo a outros professores... — Este é o nosso futuro colega, o professor Eduardo! Parecia muito estranho que, de repente, tudo desse errado daquela maneira. Não podia ser que fosse acontecer a mesma coisa com a Coliseum!

Diante da incerteza, passamos a orar pedindo a Deus que ele confirmasse a vaga. E que, se não fosse propósito Dele, que fechasse suas portas de vez. Claro que esse não era o nosso desejo, mas alguma coisa parecia estar errada. Que horrível que era a indecisão! Não podíamos esperar a vida toda!

Embora a rescisão contratual e o salário da academia onde Eduardo dava aulas suprissem nossas necessidades, aquele dinheiro extra não ia durar para sempre. Apenas o salário da academia não seria suficiente porque Eduardo ganhava por aluno, não tinha salário fixo como acontecia nas grandes Academias.

Não queríamos desistir da idéia. A única possibilidade que sobrava seria investir um pouco mais em marketing. Ou seja, organizamos uma apresentação.

Isso talvez trouxesse mais alunos ali na academia de bairro. Assim ganharíamos tempo esperando pela resposta da Coliseum e talvez Eduardo não precisasse procurar serviço em outra Empresa.

Não ficamos com medo do trabalho duro, nem de tentar uma coisa nova. Tanto Eduardo quanto eu tínhamos coragem suficiente para tentar o inusitado! Então fomos atrás, fizemos a divulgação por nós mesmos, passamos vários dias distribuindo panfletos nos faróis e nas portas das escolas do bairro, no Shopping, nos arredores. Procurando arrebanhar gente para a tal apresentação.

Passamos alguns dias nessa tarefa insólita, debaixo de sol e até de chuva. Se a gente não corresse atrás do que queria, ninguém faria isso por nós!...

Enquanto isso, a gente ia orando.

No dia da apresentação, apesar dos nossos esforços, não tinha praticamente ninguém. Eduardo saiu-se bem, mas incrivelmente teve um mal-estar no meio da coisa, do nada. Algo totalmente incomum. Sentiu vertigens, vista escura, taquicardia e falta de ar.

No final das contas, todo aquele esforço foi em vão. Frustrados, começamos a achar que não ia ter outro jeito a não ser Eduardo voltar a trabalhar normalmente numa Empresa. Ele não tinha nada contra o trabalho na área Financeira, mas é lógico que ele estaria muito mais feliz trabalhando com o Kung Fu.

Será que o diabo estava impedindo Eduardo de fazer o que ele gostava, de ter um bom emprego? No nosso íntimo é claro que existia essa possibilidade, o diabo sempre quer atrapalhar a vida dos Cristãos. Mas lá no fundo começamos a imaginar que talvez fosse Deus que não quisesse esse caminho para ele. Para nós.

Mesmo assim, nós ainda não estávamos dispostos a levar isso muito a sério.

A Coliseum acabou dando uma resposta tola. De repente começaram a achar que o curso de Eduardo iria conflitar com o curso de Kung Fu que já existia. Mesmo tendo acabado a reforma, telefonaram e optaram por não contratá-lo de imediato. Uma maneira polida de recusar!

Foi realmente uma grande decepção! Aquela comemoração que nós queríamos fazer nunca aconteceu. A apostila que eu desenvolvi não estava servindo para nada. Tudo parecia atravancado! Que frustração enorme! Nada dava certo!

Não poderíamos continuar assim, de forma que Eduardo foi novamente em busca de emprego. E continuou dando aulas naquela academiazinha, não deixava de ser um bico para ganhar um pouco mais.

Naquela época ele não tinha nenhuma dificuldade em empregar-se, apesar de não ter o curso superior. Ele me explicava o milagre:

— Eu aprendi na prática, não há problema quanto a isso! Mas acontece que, para participar de qualquer processo de seleção, preciso apresentar o diploma. Para que me deixem pelo menos concorrer à vaga, preciso do diploma do curso superior.

— Sim, já sei dessa história. — eu sabia de uma parte dos métodos pouco convencionais que Eduardo teve para ascender profissionalmente. (Leia Filho do Fogo).

E você vai usar o mesmo recurso de sempre? — perguntei.

— Sim, claro, né? Afinal, trata-se apenas de um pedaço de papel. O importante é que eu saiba o que é preciso saber.

Concordei.

Nós sabíamos que aquilo era algo delicado. Nos perguntávamos se agradava a Deus. No entanto, o que fazer?! Estas eram as regras. A gente tinha que dançar segundo as regras, e não havia nenhuma chance de Eduardo conseguir um cargo como o que ele estava acostumado... sem ter feito Faculdade.

Eduardo tinha como comprovar o curso que ele nunca fizera. Wang — seu antigo amigo chinês — tinha podido ajudá-lo nisso, o que fizera de bom grado. Os dois falsificaram vários diplomas, de vários cursos. Era o que Eduardo precisava para apresentar nas entrevistas.

Muitas coisas seriam confrontadas nas nossas vidas. Mas ainda não tinha chegado o tempo! Estava próximo, nós não sabíamos, mas estava vindo. Nós teríamos que deixar de lado muita coisa.

Como eu já disse, embora fôssemos Cristãos, muita coisa em nossas vidas ainda não tinha sido confrontada. Enquanto isso não acontecesse de forma mais impactante, nós não poderíamos discernir muito bem como agia e reagia o Mundo Espiritual à nossa volta.

Eduardo havia contado bastante sobre a tal da Seita, mas nada muito profundo, ele mesmo tinha receio de tocar no assunto. Longe de nós viver em função daquilo, a gente tinha mais o que fazer. Como cuidar da vida, pensar no futuro, fazer planos. Não paramos para pensar no que Deus queria do futuro. Ou o que o diabo estava inventando.

Eu sabia daquele tal decreto, por exemplo, aquela maldição — de que Eduardo não completaria 33 anos de idade. Embora aquilo incomodasse, procurava pensar como todos os Cristãos pensam:

"Mas Deus é mais Poderoso!"

Realmente Deus é mais Poderoso. Mas aquela era uma atitude simplista e, mais ainda... conformista! Um tanto triunfalista... em outras palavras: errada!

Porque nos isenta de toda a responsabilidade. Dizemos "Deus é quem faz" e, indiretamente, nos acomodamos. O conhecimento da letra, da Palavra Logos, não nos traz revelação — necessariamente — de quem é o Criador. Ouvir falar Dele não é o mesmo que andar com Ele.

Para que isso aconteça, para que a gente saia da letra para a Vida, é preciso acontecer alguma coisa! Quem transforma é o Espírito Santo, claro, mas muitas vezes as ferramentas do processo são as mais diferentes possíveis. Até mesmo o inimigo serve para isso.

Conosco não ia ser diferente. Estava chegando o tempo. Teria que haver algo mais que se tornasse mola propulsora da transformação. A mola propulsora seria aquele rio, caudaloso, de águas barrentas, com corredeiras fortes que arrastam tudo que vêem pela frente. Um rio que estava nascendo no coração da Irmandade, e nos abalroaria. Dele jorrariam uma série de eventos intempestivos que mudariam nossas vidas.

Essa tormenta veio da Irmandade. Sim. Mas o processo como um todo nasceu no coração de Deus! Era exatamente isso que nós não tínhamos a menor idéia naquela época. Então... como haveríamos de aprender? Ou melhor, o que havia para ser aprendido? Como aprender aquilo que a gente não sabe que tem que aprender?

O Cristianismo que eu conhecia era aquele, não havia outro! Meu coração sempre esteve disposto a agradar a Deus. Nem sempre conseguia fazer certo, só que eu queria fazer certo! Queria muito, sinceramente.

Mas naquela vida que levava com Deus havia uma zona nebulosa, cheia de aspectos pouco compreendidos. Eu sabia que havia um algo mais. Algo mais parecido com a vida abundante mencionada na Palavra. Mas e aí? A gente quase nunca via quem experimentasse isso de fato! Parecia ser algo para uns poucos privilegiados, os grandes Pregadores, os Profetas de Deus... não era em todo lugar que se podia encontrar pessoas que viveram grandes coisas com o Senhor.

Não fazia parte do dia-a-dia dos reles mortais!

Além disso, por mais que antigamente eu tivesse pensado num futuro como Missionária, nada acontecera em minha vida que trouxesse direção neste sentido. E Eduardo, decididamente, não era a pessoa mais disposta a encarar algo semelhante.

Que fazer?...

Nada melhor do que ir levando a nossa vidinha, fazendo os nossos planos. Não havia por que mudar.

Tinha voltado a escrever o livro da vida de Eduardo, mas em ritmo de cruzeiro, dedicando-me principalmente ao começo, isto é, às experiências com a "29". Depois passava meses sem escrever nada. Não acreditava que aquilo fosse virar um livro de verdade, um dia. Era melhor esquecer tudo. Nosso futuro era montar uma Academia, essa era a verdade. E ponto final!

O melhor era cuidar da vida!!

Esse era o meu modo de pensar. Íamos viver o melhor possível como Cristãos, mas ninguém tinha que ficar em função daquele passado vivido na Seita. Naquela época, embora eu não soubesse, Eduardo pensava diferente. Ele achava que não viveria. Que realmente não escaparia. Que, uma vez chegado o seu tempo, nada poderia livrá-lo da vingança de Lúcifer.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

 

Eduardo não demorou a estar muito bem empregado novamente. Numa conhecida Multinacional, como Analista Econômico-Financeiro. Um belo emprego!

Eu observava aquele bom desempenho e, embora não me agradasse o diploma falso, orgulhava-me de Eduardo por sua inteligência e versatilidade. O diploma era falso, mas a sua inteligência, real. Concorreu com mais de oitenta candidatos e passou por uma peneira fina bastante difícil. Fez dois testes muito específicos, além das entrevistas. Todos os outros candidatos tinham a Faculdade, alguns até mesmo duas Faculdades.

Mas foi Eduardo que ocupou uma das três vagas disponíveis. A outra foi também preenchida, mas a terceira ficou em aberto porque não encontraram alguém à altura. Aquela era uma Empresa reconhecida por ser criteriosa na escolha dos funcionários.

No dia em que Eduardo tinha a última entrevista, fui esperá-lo na saída. Aquele dia seria decisivo. Ele veio ao meu encontro satisfeito por poder dar-me a boa notícia:

— Tive hoje a entrevista com aquele diretor todo-poderoso. Ele me elogiou bastante... fui bem! E estou empregado. Eu fiquei muito feliz, orgulhosa dele.

— Pôxa, mas que bom, Nenê! A gente tem que comemorar! Vamos comemorar?

— Pode ser, vamos jantar no Viena?! Durante o caminho fomos conversando.

— Realmente você sabe mesmo, hein? Sabe, tenho que te confessar... eu não acreditava muito nessa sua história, não! De ter aprendido sem estudar. Mas agora tive que acreditar, vi com meus olhos. Você conseguiu um emprego muito bom! Se não soubesse realmente, não ia ter a mínima chance.

— Sem estudar, em termos... eu estudei, só que de maneira pouco convencional! O diretor disse que eu sou muito promissor, tenho futuro... — Eduardo até ficou emocionado, quase derrubou uma lágrima. Não era sempre que as pessoas viam algum valor nele.

— Coitadinho!... — falei dando uns tapinhas no seu ombro enquanto dirigia, procurando brincar. — Mas não fica assim, isso é ótimo, ó... tá vendo como você é uma pessoa de valor?! Uma pessoa especial, inteligente, capaz? Viu?

— Pois é, "Mô", pois é! Que bom!

E assim Eduardo começou a trabalhar ali. A segunda metade do segundo semestre daquele ano já tinha começado. Quando saiu o primeiro salário dele, resolvemos comemorar de novo e fazer um programa diferente.

Eu gostava muito de Teatro e de dança, isso não é novidade para ninguém. Então me interessei por uma peça associada com dança flamenca. Não era muito barato, mas ficaria poucos dias em cartaz. Despertou-me muito o interesse. Chamava-se "O Amor Bruxo".

Combinamos com mais três ou quatro pessoas da Igreja, compramos os ingressos com antecedência e arrumamos um ótimo lugar.

Foi divertido, e a apresentação, maravilhosa. Eu gostei bastante!

Mas nesse dia comecei a perceber melhor uma faceta de Eduardo que até então eu não conhecia. Não seria bem uma faceta, talvez não seja esse o termo, era antes uma deficiência... um problema!

Eu sabia que o problema existia, mas não tinha visto necessidade de parar pra pensar mais tempo no assunto. Não parecia ser um problema muito importante. Mas naquela ocasião comecei a imaginar que talvez fosse apenas a ponta de um iceberg...

Naquela noite, saímos do Teatro e eu o deixei em casa antes de ir para a minha. Como de costume. Liguei pra ele em seguida, avisei que tinha chegado bem, demos boa noite um ao outro e fomos dormir.

"Dormir", modo de dizer! Desde que deixara o curso de Medicina Esportiva que novamente quase inverti o dia pela noite. Eu gostava muito de ficar acordada até de madrugada, até três, quatro horas da manhã. E acordava tardíssimo no outro dia.

Não deixava de ser uma espécie de fuga, porque no meu íntimo eu pensava: "Para que acordar cedo? Eu não tenho nada para fazer... vou ficar olhando para as paredes o dia todo!"

Até então, tinha estado ocupada com a apostila de Kung Fu. Mas agora já terminara aquele trabalho que me custou algumas semanas. O livro da história de Eduardo eu simplesmente não escrevia mais, tinha parado de novo.

Então acordava tarde mesmo, já ia direto para o almoço. Enrolava um pouco de tarde, via TV. Não conseguia fazer nada de produtivo, não tinha nenhuma vontade. Aí tomava banho e ia ao encontro de Eduardo no final da tarde. Assim foram os meus dias em todo o restante daquele ano tão incerto, naqueles três meses que se seguiram à entrada de Eduardo no emprego.

No dia seguinte à apresentação de Flamenco, liguei para Eduardo à tarde, para dar um "oi", como sempre. Fiz a pergunta costumeira:

— Você descansou bem, Nenê? Dormiu bem? E a resposta veio meio cansada, meio evasiva:

— Ah! Mais ou menos, não dormi muito bem, não...

Eu estava sempre preocupada com o descanso de Eduardo, com sua saúde, de forma que fiz a pergunta óbvia:

— Pôxa, mas você estava tão cansado ontem... o que foi que aconteceu?

— Sei lá. — começou ele. — Acho que tive uma insônia... Mas o tom de voz dele não me convenceu.

— Insônia?! Vá! Você nunca tem insônia! O que aconteceu, Eduardo? Seus irmãos fizeram barulho, ou a sua mãe?

Insisti um pouco ainda, até que finalmente veio a verdadeira resposta.

— E que aquele espetáculo de ontem... algumas partes me lembraram um pouco dos Rituais.

— Da Seita?

— É! Sabe, aquela parte quando teve toda aquela fumaça, aquela luz avermelhada. Não me causou uma boa sensação... e depois acabei sonhando coisas ruins.

— Mas que tipo de coisas ruins, Nenê? Pôxa vida... já não é a primeira vez que acontece, né? — eu estava condoída e preocupada ao mesmo tempo.

— Volta e meia eu acabo sonhando. Às vezes alguma coisa do dia-a-dia me desperta a lembrança, e depois... sabe como é que é o subconsciente, o inconsciente...

Eu queria poder ajudá-lo. Não era bom que ele vivesse daquele jeito, atormentado por fantasmas do passado.

— Tudo aquilo foi muito traumático, né, Nenê? Mas olha... deve ter uma maneira de melhorar isso. Não digo que uma Terapia, porque você não pode sair por aí contando essas coisas para um terapeuta... mas quem sabe uma Cura Interior? Você já ouviu falar sobre isso?

— Cura Interior?! O que é isso?

— Bom, a nossa Igreja não tem essa visão, mas na minha antiga Igreja eles ensinavam um pouco. Eu aprendi lá. Através da oração, confessando pecados antigos, renunciando envolvimentos com coisas do diabo, você obtém uma cura que, de outra forma, não aconteceria! Entende?

— Mais ou menos. Nunca ouvi falar disso.

— Não são todas as Igrejas que têm esse conhecimento. Mas talvez a gente pudesse tentar ir atrás. Você não pode viver assim, na pior das hipóteses a única coisa que pode acontecer é não dar certo. Mas temos que tentar buscar uma solução, você não pode carregar esse peso todo com você. Deus pode te curar! Ele não quer que você viva assim!

Eduardo não parecia muito convencido, e murmurou meio contrariado:

— Mas eu fiz de tudo pra esquecer o que aconteceu. Durante anos lutei comigo mesmo para simplesmente apagar da minha mente essa história, esquecer que isso um dia existiu, que fez parte da minha vida. Lutei muito! E acho que consegui. Não me lembro facilmente dessas coisas, só quando alguma coisa puxa o fio da meada...

— Então, tá vendo? É sinal de que ainda está tudo lá. — eu procurava convencê-lo. — Sabe... isso que você tem feito é uma fuga, eu compreendo que esse foi o melhor caminho até agora. Esquecer, simplesmente. Mas pense bem... você não é uma pessoa "desmemoriada". Quer dizer, por mais esforço que faça pra esquecer, não vai esquecer de verdade. Vai somente fazer de conta que aquilo não está mais lá. Mas por mais que você se esforce, essas lembranças nunca vão te dar paz, porque não foram tratadas, entende? Cedo ou tarde você vai acabar sendo influenciado por elas, se é que já não é. Falar sobre isso talvez seja uma boa maneira de você ser curado. Podemos pedir pra Deus trazer cura à sua alma! Para que você fique livre desse tormento nas lembranças, desse peso... e então, mais tarde quando você estiver bem, elas vão acontecer naturalmente. Os seus sentimentos em relação às lembranças é que terão mudado. E não vão mais te causar mal!

Eu acreditava que aquilo poderia ser solução de fato. Senão, nunca teria incentivado Eduardo a isso.

Ele parece que ficou pensativo, mesmo assim ainda tentou achar argumentos contra:

— Você sabe que eu não posso falar sobre isso com qualquer um. É uma coisa muito séria. Vou falar com quem? Depois... sempre ouvi dizer que Cristo já me perdoou. Eu não preciso ficar falando sobre isso, Ele já não me perdoou?

— Claro que já te perdoou, você é filho de Deus! Mas você está colhendo conseqüências da sua vida pregressa. E Deus quer que você esteja bem, que viva em paz. Como você pode viver em paz tendo pesadelos, sonhando com Rituais, sendo incomodado por coisas até bobas no cotidiano? Um pouco de sangue, combinações de cores, certas músicas... sabe o que tudo isso me mostra?

— Hum?

— Que por mais esforço que você tenha feito, tudo isso está muito vivo aí dentro. E você precisa da libertação dessas coisas!

— Mas Cristo não pode me curar se eu pedir?

— Poder, pode. Mas acho que, de certa forma, nas nossas orações nós sempre temos pedido por isso, não é? Você já é convertido há vários anos, já foi batizado, já confessou seus pecados, freqüenta uma Igreja, procura levar uma vida reta, limpa, já foi muito transformado, já não é mais a mesma pessoa de antes... aparentemente... não está faltando nada, né?! Mas eu te conheço, eu sei que você não está mentindo quando diz o quanto certas coisas têm o poder de te perturbar. Não é sempre, mas acontece.

— E?

— Não é mesmo? É isso que estou dizendo, talvez você precise de mais alguma coisa. No seu caso, talvez seja preciso. Lá no texto de Tiago diz para que a gente "confesse os pecados uns aos outros, para sermos curados". Sinal que existem certos aspectos da nossa vida, certas práticas, certas influências anteriores que necessitam de uma ação especial do Espírito de Deus para que a gente tenha a cura. Talvez você tenha que confessar o seu pecado a alguém... para receber essa cura.

Eduardo ficou de pensar melhor a respeito. E eu fiquei também com aquilo na cabeça. Eu não saberia explicar porque aquele era o caminho certo, mas na minha cabeça, era o certo!

Sim, eu conhecia e tinha ouvido falar de vários Ministérios para os quais a palavra "Ministração" já soava como heresia. Mas não era essa a minha visão, nem o que eu tinha aprendido até então. Eu sabia que a quebra de vínculos e de

maldições tinha sua importância. Eu mesma já tinha passado por aquilo. Sentia que Eduardo precisava da mesma coisa.

Ficava a grande questão. Era preciso encontrar alguém com capacidade de fazer isso, e fazer bem feito. Alguém que tivesse um Ministério sério naquela área, que tivesse bastante experiência.

Deus precisava pôr a Sua Mão naquela história sem pé nem cabeça de Eduardo Eu sabia pouco, como falei antes ele nunca tinha nem sequer mencionado a palavra "Irmandade". Sempre se referia como sendo "a Seita", ou "a Church".

Por isso não tinha uma idéia global de tudo o que acontecera com ele, apenas episódios isolados, conceitos isolados. Nunca tinha ouvido falar melhor sobre a intensidade de tudo aquilo, daquela vida estranha que ele tinha levado durante seis anos.

Às vezes Eduardo também mencionava Marlon, mas nunca tinha dito nada sobre os outros. Comentava muito superficialmente sobre Thalya. E ia ficando por isso mesmo. Eduardo era evasivo o suficiente para parecer que falava bastante, mas sem entrar a fundo.

Mas de repente eu sentia no meu íntimo aquela necessidade: Eduardo precisava ser ministrado. Precisava!

E concordou em pedir uma sugestão ao Pastor da Igreja que minha mãe freqüentava, que eu e Marco também tínhamos freqüentado antigamente.

Nossa atual Igreja não tinha essa visão nessa área. Eu e Eduardo sabíamos disso. Eles tinham visões especiais de outras áreas, por exemplo, a questão da assistência social, da comunhão entre os irmãos. Esse era um ponto positivo e forte ali entre eles.

Só que desde que Eduardo tinha em vão tentado conversar com o Pastor Neliton que nunca mais abriu a boca.

— Respeito muito os Pastores da nossa Igreja, eles me acolheram e procuraram fazer o melhor por mim dentro daquilo que julgaram necessário. Dentro daquilo que eles conhecem! Mas eu sei que não têm visão dessa parte de Batalha Espiritual e desses negócios de Ministração... aliás, no começo eu vim freqüentar esta Igreja justamente por causa disso. Parecia ser um ótimo esconderijo. Embora a pregação fosse boa, eles nunca mencionavam o diabo, a luta, essas coisas. A "Church" nunca se incomodaria com uma Igreja assim. Portanto, era um ótimo lugar para me entrosar... jogar bola... conviver. Mas estaria escondido! O Culto era dinâmico, alegre, agitado... eu gostava... e sabia que nunca iam me achar ali!

Fomos então conversar com o Pastor titular da outra Igreja. Eu não achava que ele mesmo iria ministrar Eduardo, mas queria ouvir sua opinião. Queria ter o aval de alguém para procurar outra pessoa que tinha em mente. Não podia fazer nada às loucas, de forma nenhuma!

Assim foi. Eduardo já tinha conversado uma ou outra vez com o Pastor da Igreja de Mamãe, tínhamos estado lá algumas vezes. Mas naquele dia nós fomos ao seu encontro com a pergunta nos lábios. Explicamos em poucas palavras que tipo de envolvimento Eduardo tivera no passado.

— E achamos que ele está precisando passar por uma Ministração, ser libertos desses traumas, desse jugo... o que o senhor acha?

— Eu acho que é muito válido! — respondeu ele de imediato e com seriedade. — Pelo que vocês estão dizendo, acho até que é fundamental.

Era o que eu queria escutar. Realmente era o caminho, não importava o que pensavam os nossos próprios Pastores.

— Mas não sei se eu seria a pessoa ideal. — continuou ele, talvez pensando que fôssemos lhe pedir aquilo. — Embora compartilhe da visão e da necessidade da Ministração, tenho muito pouca experiência na área. E pelo pouco que vocês estão falando, dá para ver que foi um envolvimento muito pesado.

— O senhor tem razão! — continuei. — Se não for pra fazer bem feito, o melhor é nem mexer, não é?

Ele assentiu várias vezes com a cabeça, ainda sem dizer nada. Sem sugerir ninguém. Então perguntei:

— Olha... eu não conheço pessoalmente essa pessoa... mas já ouvi falar bastante dela. E queria sua opinião, a opinião de mais alguém. Pensei em ir atrás da Grace.

O nome era familiar para a maioria dos Evangélicos, embora as opiniões se dividissem muito a respeito dela. Havia quem fosse terminantemente a favor e quem fosse terminantemente contra.

— O que o senhor acha?! — indaguei sem mais rodeios. Ele não titubeou.

— Acho perfeito! Vocês devem mesmo procurá-la. Talvez seja a pessoa ideal, e já que você mesma teve essa direção...

— Bom... não dá pra dizer que foi uma "direção", mas não consegui pensar em mais ninguém.

De fato. Grace era um nome chave.

— Procurem a Grace. Procurem! Certamente vai ser bom para vocês. — concluiu o Pastor.

Saímos de lá com sentimentos ainda um pouco divididos. Eu estava decidida em ir atrás do Ministério da Grace. Mas Eduardo estava um pouco confuso, um pouco temeroso sobre o que aconteceria se eu tivesse sucesso na minha empreitada.

— Você tem certeza de que isso é mesmo necessário? — falou ele demonstrando preocupação. — Eu estou bem! Pra que ficar mexendo nisso?

— Ah, Nenê! Eu não tenho tanta certeza assim de que você está bem. E eu quero que você fique bem... tudo o que eu quero é isso! Você acha que vou fazer alguma coisa para te prejudicar? Mas você precisa contar essa história pra alguém nem que seja uma vez só. É preciso colocar tudo pra fora, Nenê! Tenho certeza de que vai ser terapêutico, vai fazer bem! Deixa eu tentar encontrar essa mulher, vá! Se depois de conhecê-la ela não te inspirar confiança, sempre é tempo de voltar atrás e procurar outra pessoa. Não é?

Procurei falar com todo o carinho e boa vontade do mundo. Concordo que era uma decisão difícil e delicada para ele. Para nós dois, a bem da verdade, porque aquilo era um desconforto também para mim. Além da responsabilidade, lógico, porque se não fosse a minha insistência Eduardo nunca pensaria em desnudar-se assim.

— Edu... você não tem que carregar esse peso sozinho. Está muito pesado pra você, eu sei. Por mais que você não fale a respeito, eu sei disso. Algumas atitudes, alguns "deslizes", por assim dizer, contam muito mais do que você diz. E acho que é importante a gente procurar ajuda. Não se preocupe. Vamos estar juntos nessa coisa toda! Eu vou estar junto com você.

Então ele concordou:

— Tá bom. Tenta encontrar essa tal de Grace. E aí veremos!

 

Eduardo Conta

Capítulo 7

Eu pensei que Isabela não teria sucesso, e que não encontraria Grace. Por isso fiquei mais tranqüilo. No entanto, não foi tão difícil quanto pensei. Grace tinha alguns livros publicados e Isabela foi pelo caminho certo, ligou para a Editora, ficou sabendo a que Ministério ela estava ligada. Grace era, antes de tudo, uma Missionária.

Daí Isabela ligou para o Ministério do qual ela fazia parte. Ali, rodando um pouco de pessoa em pessoa, logo conseguiu um número que, conforme lhe disseram, era da sua secretária. E ligou para tomar informações.

De fato era da secretária da Grace.

Isabela logo estava de posse dos dados que precisávamos. Veio me contar, toda satisfeita.

— Ela me disse que, antes de passar pela Ministração, a pessoa interessada tem que fazer um curso dirigido pela Grace. Dura um final de semana.

— Ah! Então não tem jeito mesmo da gente marcar uma entrevista antes?

— Não tem jeito. E assim que funciona, ela só ministra depois que as pessoas fazem o curso.

— Bom... e quando é que é o curso?

- Aqui em São Paulo não tem mais nenhum esse ano. Pra gente, o mais próximo é em Santo André. Em dezembro.

— Pôxa... só em dezembro? — intimamente eu estava aliviado.

— Só em dezembro. Os outros são completamente fora de mão, em cidades bem mais distantes.

— Me passa então a data para anotar na agenda.

— Ela me deu os dias, vai ser no início de dezembro. Ou seja, ainda tem bastante tempo.

Nada havia a fazer senão esperar.

Eu não liguei a mínima, pelo contrário, pensei que tinha me livrado da boa. Marquei a data na agenda e tratei de esquecer delas. Mas estava era enganado que Isabela me deixasse comer broa.

A vida continuou rolando normalmente. Eu já estava adaptado no emprego, mas Isabela se estressava porque o fim do ano estava próximo e ela não tinha a mínima idéia do que faria quando chegasse o novo ano. Eu tentava ajudar da melhor maneira que podia, e no meu entender o melhor era não forçar nenhuma decisão precipitada. No que dependia de mim, ela teria o tempo que precisasse para voltar a estar bem e pensar com calma.

Qual não foi minha surpresa quando ela me contou a intenção de prestar novamente uma Residência. Psiquiatria. A partir daí, até tentou estudar um pouco. Nesse ínterim, entrou o mês de novembro.

Certa tarde eu estava no serviço e, de repente, Isabela me ligou pela segunda vez. A gente já tinha se falado "oi"... o que será que ela queria?

— Oi, "Mô"! Que foi?

— Oi, Nenê, sabe que é? Eu estava aqui em casa e, de repente, do nada... me veio uma sensação sobre o tal curso da Grace. Relativizei um pouco, afinal faltam ainda várias semanas. Quer dizer, faltavam! Resolvi dar uma ligadinha para a secretária, só por desencargo de consciência. Pra saber em que pé andava o curso, se era aquilo mesmo. Sei lá! E para meu espanto e indignação: o curso foi antecipado, vai ser neste mesmo final de semana. Isto é, daqui a dois dias!

— Puxa vida! Mas já?! Mas não era em dezembro?

— Seria, mas a data foi mudada. Fiquei aflita que não desse tempo de fazer a inscrição!

— Então a gente não vai, né?

— Vaaaaamos, sim! Pode fazer por telefone, ou mesmo na hora.

— Tem que pagar alguma coisa?

— O preço é praticamente simbólico.

— Ah, ótimo! — mas eu não estava nem um pouco satisfeito.

Isabela conseguiu me convencer. Mas não antes que eu retrucasse um pouco.

— Eu estava programando outra coisa para o fim de semana! — reclamei. — Queria levar você para comer algo diferente, você precisa espairecer a cabeça. Não precisa?

Mas ela nem me deixava continuar muito.

— Mas, Eduardo, isso a gente pode fazer em qualquer outro final de semana. Neste é melhor que a gente vá pra Santo André. Afinal, tínhamos combinado assim, não foi?

— Mas, caramba! Eu não esperava que fosse ser agoral Precisava me preparar psicologicamente para isso!!!

— Eu sei, mas foi um imprevisto. E se eu não tivesse ligado hoje? Já imaginou? Foi Deus quem não deixou a gente perder esse curso, sinal que deve ser mesmo a direção certa. Vai... não complica... eu vou estar junto com você!

Concordei meio a contragosto.

— Puxa, isso vai ser jogo duro. Começa quando mesmo?

— Sexta-feira à noite.

— Sexta??? E a gente vai se mandar na sexta pra esse fim de mundo?

— Dá um jeitinho de sair mais cedo, Nenê. Não é o fim do mundo. Diz que você vai fazer um curso, inventa alguma coisa, né? É por uma boa causa!

Suspirei fundo, mas não tive outra alternativa senão concordar.

Desliguei o telefone ainda suspirando. E intimamente torcendo para que realmente Grace não fosse aquilo que esperávamos e nem pudesse nos ajudar, pretendia me esquivar a todo custo, e se ela me decepcionasse logo de cara, seria difícil Isabela convencer-me a uma segunda tentativa.

Bem lá no fundo da alma eu tinha uma mínima esperança de que aquilo me ajudasse. Bem mínima. Não deixava de ser um risco. Eu estava no escuro.

"Puxa vida! Mais essa...!"

 

Saímos com bastante antecedência na sexta-feira. Eu realmente procurei me esforçar, mas não estava muito animado. Isabela tentou por toda lei incentivar-me e deixar-me à vontade.

— Mas o que a gente está mesmo indo fazer lá? — perguntei meio mal-humorado.

— Nenê, nós já não conversamos sobre isso? Esqueceu? Vamos procurar alguém que possa ajudar você. Você precisa de ajuda, só não quer admitir isso.

Isabela sempre teve uma sensibilidade à flor da pele. Não adiantava querer esconder, dar uma de João-sem-braço. Era muito difícil que eu admitisse uma fraqueza, até mesmo para mim. Mas tudo o que eu não dizia, Isabela acabava pressentindo. Eu sabia que ela estava com a razão, mas estava muito receoso do que poderia acontecer.

Depois, tudo podia acabar numa enorme perda de tempo!

Pelejamos bastante para descobrir o caminho, estava muito trânsito, estava tudo caótico! Mas afinal achamos a tal da Igreja. Era pequena. Pequena mesmo, quase uma casinha. Uma Assembléia de Deus.

Olhei para a fachada azul e branca, já estava escurecendo. Que vontade de dar meia-volta! Não fosse a curiosidade de conhecer a tão falada Grace. Chegamos perto para tomar informações, havia ali na porta um burburinho de pessoas. Nos acotovelamos no meio do pessoal que se aglomerava em torno de uma mesinha.

— Acho que ali estão fazendo as inscrições. — murmurou Isabela. Era fato.

Nossos crachás já estavam à disposição porque Isabela tinha passado os dados por telefone. Eu paguei e nós nos acomodamos. Faltava ainda um certo tempo para começar. Eu nunca tinha estado numa Igreja tão pequena. Não demorou muito e a Igrejinha praticamente lotou. E começou o Louvor.

— Eu estou curiosa para saber quem é a Grace.... — cochichou Isabela antes de se concentrar no Louvor. — Será que ela já está aí?

— Deve estar, já está quase na hora!

Logo fomos satisfeitos na nossa curiosidade. Esticamos um pescoço comprido quando percebemos que o Louvor terminava e os responsáveis pelo curso tomavam lugar à frente.

Grace era bem diferente do que imaginávamos, uma senhora pequenina, que falava baixo, com o cabelo todo arrumadinho. Naquela noite houve uma introdução do assunto. Saímos tarde, voltamos para São Paulo sabendo que no dia seguinte teríamos uma visão mais completa de tudo.

O curso começava cedinho, de forma que nem deu para dormir muito.

Confesso que eu estava interessado em saber que tipo de coisa ela iria falar, o que ela sabia, afinal. Mas não foi tudo que compreendi logo de cara. Algumas coisas me tocaram bastante, outras nada me disseram. Gostei especialmente da palavra da própria Grace, mas havia outras pessoas com quem ela dividia os horários das palestras.

A parte que nós estávamos esperando, a Ministração, foi explicada logo cedo no sábado. Cada participante preencheria uma ficha bastante extensa que abordava de tudo. Respondendo àquele questionário haveria um desnudamento dos tipos de envolvimentos e práticas significativas que a pessoa tivera no passado.

Por exemplo: a ficha abordava todo tipo de seitas e práticas religiosas, desde as mais comuns, até as esotéricas, ou já indo mais para o lado satânico da coisa. Um segundo aspecto eram as outras coisas que a pessoa tinha feito, e que não necessariamente tinham a ver com práticas religiosas. Todo tipo de perversões e práticas ilícitas. Prostituição, adultérios, homossexualismo, estupros, etc. ..

A terceira parte importante da ficha dizia respeito a sentimentos pessoais. Se éramos constantemente perseguidos por este ou aquele tipo de sentimentos negativos, ou por sonhos repetitivos. Coisas tais como angústia, depressão, medos diversos, vontade de morrer, etc. .. deveriam ser citados.

Segundo nos foi explicado, aquela ficha enorme deveria ser preenchida com o máximo de detalhes e o mais sinceramente possível para que a equipe de Grace pudesse ajudar a todos o melhor possível. Esclareceram que todas as práticas descritas na ficha tinham sido exaustivamente pesquisadas e biblicamente comprovadas.

Isto é, se a pessoa tinha entrado em contato com aqueles tipos de práticas e situações abriram o que chamaram de "legalidade". A partir daí haveria um canal aberto para a atuação de demônios. O diabo é legalista e uma vez que tenhamos aberto a porta, ele entra para ficar. Quando renunciamos àquelas práticas, confessando os pecados e pedindo perdão ao Pai, as portas de entrada são cober­tas pelo sangue do Cordeiro. E os demônios não podem mais atuar.

Isabela já conhecia a doutrina, e eu também não questionei nada. Aquilo parecia lógico. Eu sábia perfeitamente que os demônios eram legalistas! E como eram!

Fiquei mais tranqüilo ao perceber que Grace tinha uma outra noção do mundo espiritual, não era uma louca a mais no mundo. Só não sabia se a Ministração ia funcionar do jeito como ela estava falando. Eu conhecia os demônios....

Quanto a isso, a experiência seda totalmente nova para mim.

— Não é possível que a equipe ministre individualmente todas as pessoas. Seria algo impossível! — explicou um senhor logo que recebemos as fichas. — Mas todos os formulários serão analisados e vocês podem ser selecionados para uma Ministração individual. Se você não for selecionado, não se preocupe. Deus está no controle de tudo, e certamente as renúncias coletivas já produzirão coisas novas na sua vida. E se você for selecionado, se seu nome for mencionado, levante o braço e confirme a sua presença quando nós chamarmos.

Preenchemos a ficha e entregamos de volta ainda no sábado de manhã para serem analisadas e selecionadas. Mas, independentemente disso, todos que estavam participando do curso seriam levados a fazer todas as renúncias coletivamente.

Eu tinha preenchido minha ficha com esmero, criei coragem para ser razoavelmente sincero diante daquelas pessoas que não conhecia. Minha ficha ficou recheada de informações justamente na sessão em que — creio — a maioria não tem nada a dizer. Tudo relacionado ao Ocultismo e à Magia Negra. O que não havia na ficha, eu mesmo acrescentei.

Isabela também preencheu a sua e imaginou que não seria selecionada, embora no íntimo até quisesse. Passou boa parte do sábado, o almoço inclusive, e nos preparamos para outro período. À tarde houve mais uma palestra e uma pessoa da equipe começou a falar os nomes daqueles que seriam ministrados ainda naquele dia Os demais poderiam ir embora.

Isabela torcia muito, no seu coração, para que eu fosse logo selecionado. Ela não achava possível que a minha ficha passasse em branco. No que eu também concordava...                                                                

Mas não fui selecionado no sábado. Provavelmente seria no dia seguinte. Isabela, sem dar-se por achada, no meio do empurra-empurra para sair da Igreja viu Grace de longe. E me cutucou:

— Olha lá Eduardo! Vamos lá falar com ela?!

Concordei sem muitas palavras, e nos esforçamos para chegar lá. Isabela bateu no seu ombro:

— Grace!? Oi, tudo bem? — ela não sabia o que dizer, Grace parecia muito apressada e nos olhou de passagem.

Então Isabela resolveu ir direto ao assunto de uma vez:

— Sabe o que é? — e apontou para mim. — Ele foi Satanista e nós queríamos muito falar com você sobre isso e...

Grace interrompeu sem deixá-la concluir a frase.                               (

— Agora não posso conversar com vocês. Preencham a ficha.

E continuou o seu caminho sem mais essa nem aquela. Isabela ficou super frustrada, mas ainda assim procurou continuar me incentivando. Não queria que o meu coração fosse contaminado com nada.

Mesmo assim eu não entendi a atitude da Grace:

— Eu já imaginava essa atitude — respondi com certa amargura, demonstrando despeito e um tantinho de irritação ao mesmo tempo.

Confesso que eu estava com muita má vontade. Por que tinha que me expor com uma pessoa que nem parava para falar comigo?

Isabela foi branda.

— Pô, Eduardo, você nem a conhece. Vai ver está com pressa mesmo, muito ocupada! Se todo mundo pará-la no corredor, como é que fica também? Depois... não se preocupe. Quando a Grace ler a sua ficha vai querer te conhecer, pode crer! Não tem outra possibilidade!

Nem respondi.

Se ela não me chamasse, quem chamaria???!

 

Madrugamos no domingo, porque naquele manhã nós faríamos as principais renúncias coletivas.

— Oi, "Mo", bom dia! — falei ao entrar no carro cumprimentando Isabela. Ela não perderia as renúncias em hipótese alguma e passou com o carro em minha casa bem cedinho.

— Oi, Nenê!

A manhã parecia que ia entrar com tudo, fazer um solzão daqueles. Mas por hora ainda estava fresquinho, gostoso, e ninguém precisava colocar agasalho.

— Dormiu bem, Nenê?

— Dormi, sim.

— Então... caminho da roça!

O caminho da roça era pegar a Praça Panamericana e depois a Marginal Pinheiros, e foi o que Isabela fez. Fomos conversando pelo caminho.

— Interessante aquilo que foi dito ontem sobre aquele assunto, né? Eu concordava em parte.

— Em algumas coisas eles têm razão, mas não em tudo. Sabe aquilo que também foi comentado... — e eu opinava.

Mas em última análise nós estávamos satisfeitos em estar concluindo o curso. E, claro, na expectativa quanto à Ministração.

De repente, o carro começou a fazer um barulho horroroso. "BRRRRRRRRRRRRRRRRR"!

— Nossa! Que que é isso?!! — exclamou Isabela. — Olha só, até o painel está chacoalhando!

O barulho era tanto que parecia que o motor estava a ponto de explodir.

— Olha só, Edu! Olha a direção!

— Caramba, tá tremendo!

— Vou parar!

Isabela deu seta e foi encostando. E o barulhão continuava, bem como a vibração:

"BRRRRRRRRRRRRRRRRR" |

Ela parou o fusca e eu desci. Estávamos no começo da Marginal e os carros passavam por nós a toda velocidade.

— Vou dar uma olhadinha. Não tem porque fazer isso.

— É verdade! Esse tipo de barulho nunca aconteceu! Era só o que faltava! — continuou Isabela pondo a cabeça para fora da janela.

Ela ficou dentro do carro enquanto abri o capo. Eu pensava comigo, meio apreensivo:

"Era mesmo só o que faltava....! Meu Deus do Céu!"

Não porque estivesse receoso em perder o curso, seria por causa de uma fatalidade. Mas ficar ali parado na Marginal, isso sim, era terrível! Voltei para dentro:

— Não estou vendo nada de errado. Vamos continuar.

Isabela deu a partida de novo e embicou para a pista. Nos primeiros segundos... nada. Eu e ela nos entreolhamos. Mas não deu outra!

"BRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRR!!!!"

— Nossa! Parece que vai explodir o carro!

Isabela encostou de novo. E já estava meio exaltada.

— Eduardo, vamos orar. Vamos orar porque desse jeito nós não vamos conseguir chegar a lugar nenhum! E isso não é possível!!!

— OK! Vamos orar!

Eu comecei e ela concluiu. E pediu lá do seu jeito, meio nervosa:

— Pai! Que toda retaliação e impedimento do inimigo caiam por terra. Porque nós precisamos chegar no curso da Grace! Então nos ajuda e faz esse carro andar em segurança.

Oramos mais um pouco. Mas no íntimo do coração nós tínhamos lá nossas dúvidas se não estávamos tomando uma atitude extremista e ridícula. Vai ver era uma coisa totalmente natural e nós é que estávamos viajando na maionese, influenciados pelas palestras recém escutadas.

Nos sentimos um tantinho ridículos, é verdade.

Olhamos um para a cara do outro sem dizer palavra alguma e Isabela tornou a dar partida no carro. Girou a chave fortemente. Nós dois estávamos com o coração na mão. E a verdade é que, influência espiritual ou não, não tivemos mais problema algum até o nosso destino. E nem depois, durante a semana. Nunca mais o carro fez um ruído como aquele.

Somente quando descemos na porta da Igreja foi que comentamos um com o outro:

— É... parece que o diabo não queria mesmo que a gente viesse... — comecei eu, um pouco impressionado.

Isabela balançou a cabeça repetidas vezes, com ênfase:

— Pois não é mesmo?! Acho que devia ser isso mesmo!

— Que coisa, né? Então é porque nós estamos no lugar certo. Ela olhou bem para mim, aliviada:

— É, Nenê. Acho que sim, né?...

E fomos nos sentar, pois já estava quase dando o horário do início do Louvor. O povo estava mais animado do que no começo. O último dia sempre é melhor do que o primeiro, pelo menos Isabela dizia que era assim. Eu não tinha tanta experiência, mas dava para notar que realmente o pessoal estava diferente.

E finalmente chegou o momento da Ministração coletiva. Eu não sabia exatamente o que aquelas orações poderiam mudar em nossas vidas... mas no fundo do peito eu esperava que aquele fosse realmente o caminho. Isabela estava convencida da necessidade daquilo. Ela estava ali por minha causa, essa era a verdade. E eu somente esperava que ela estivesse certa!

Então, toda a Igreja ficou de pé. A ficha que todos nós tínhamos preenchido na véspera seria agora lida do início até o fim, em atitude de oração. E, como Igreja, todos nós pediríamos perdão por aqueles pecados, renunciaríamos àquelas práticas.

— Mesmo que você em especial não tenha cometido todos esses pecados, ore do mesmo jeito. — explicou alguém lá na frente. — Uma vez confessados os pecados, vamos pedir que Deus feche essas portas em nossas vidas e nos liberte de toda influência maligna. Esse é um momento muito importante!

Então, assim como Neemias identificou-se com o pecado do povo de Israel, e como levou o povo a pedir perdão coletivamente, naquele momento nós faríamos algo semelhante.

— Eu vou orar e toda a Congregação repetirá depois de mim! — continuou instruindo a pessoa lá na frente. — Os ministradores vão estar circulando todo o tempo, se alguém sentir algo diferente, ou algum mal-estar, pode chamar a pessoa mais próxima de você.

Começamos a orar, repetindo conforme o dirigente conduzia. Fomos passando e renunciando às mais diferentes práticas e envolvimentos, explícitas ou implícitas.

Tudo foi correndo normalmente, passamos por diferentes aspectos dentro do Catolicismo, Espiritismo, Umbanda, Quimbanda, Candomblé, Nova Era e práticas esotéricas das mais diversas. Até que começamos a entrar nas questões mais ligadas ao Ocultismo e à Magia.

Comecei então a sentir algo estranho. Uma leve vertigem, uma sensação leve de falta de ar. Procurei me apoiar no encosto do banco da frente. Nem reparei que estava deixando de repetir as palavras da oração. Foi aí que escutei a voz de Isabela no meio daquela sensação incômoda:

— Repete, Eduardo, repete...!

Isso me trouxe um pouco de volta para a realidade, então repeti a última frase. Mas me sentia meio zonzo, perdi um pouco do equilíbrio. Isabela me amparou com seu próprio corpo e continuou incentivando:

— Vai, continua repetindo! Senhor, ajuda ele!

Nem percebi que era ela que me dava sustentação, só fiquei sabendo mais tarde, quando ela comentou comigo. O tempo todo eu estive meio fora de sintonia, mas acho que consegui repetir tudo, apesar da dificuldade.

Quando terminou, Isabela estava um pouco impressionada, e perguntou-me o que tinha acontecido.

— O que aconteceu?

— Como assim?

— Você se sentiu incomodado com essa parte da oração?

— Não... acho que não sei dizer... acho que um pouco!

Ela parecia ter tido uma idéia melhor do que acontecera. Ao que parece, eu não me recordava muito bem de tudo. As recentes sensações pareciam estar meio fora de foco, meio apagadas na minha mente.

Isabela estava satisfeita com o resultado, embora ligeiramente apreensiva. Aquela renúncia tinha incomodado os demônios. Sinal que realmente havia problemas de ordem espiritual não tratados. E isso significava que realmente estávamos seguindo a trilha certa. Tudo o que tinha acontecido naquela manhã confirmava isso. O problema com o carro parecia agora muito mais claro, os demônios não queriam que eu fizesse aquela renúncia.

Pouco antes do almoço foi lida a lista de pessoas que seriam ministradas naquela tarde. Tanto eu quanto Isabela estávamos incluídos.

— Olha aí! Viu só como você foi chamado? — exclamou Isabela, satisfeita, enquanto íamos caminhando devagar em direção à porta, depois do encerramento das atividades. — Até eu fui chamada! Nem pensei que isso fosse acontecer!

— Bom... isso é bom! Então vamos tratar de almoçar alguma coisa.

— Isso! Logo temos que estar de volta.

Foi difícil achar aonde comer ali naquele fim de mundo, em pleno domingo. A comida não estava das melhores, mas foi a única coisa que achamos.

Voltamos. Isabela, na expectativa. Eu já não era um dos dez mais à vontade.

— Mas o que será que vai acontecer? Nós já não renunciamos tudo de manhã? O que mais tem para ser feito?! — eu perguntava, volta e meia.

— Bom, provavelmente eles vão fazer algo mais minucioso, mais detalhado. Te dar uma atenção especial.

Eu sorria de leve, procurando esconder o desconforto daquela situação nova. Isabela procurava tranqüilizar-me.

— Olha, não fica pensando assim, não. Com medo do que vai acontecer. Pensa que é importante tudo isso, e você vai simplesmente estar orando junto com servos de Deus. Orando por um objetivo comum. Que mal pode fazer isso, não é? Mal não vai fazer. Depois você tem que pensar que é Deus que vai atuar, não são as pessoas. Certamente isso vai te fazer bem, não vai acontecer nada de ruim. Ao contrário.

— É. Acho que você tem razão. Estou preocupado à toa. Depois... se isso não fosse de Deus, o diabo não estaria incomodado. E já deu pra perceber que ele está incomodado!

Descemos do carro, entramos novamente no Templo. Sentamos para esperar.

A Igreja estava agora praticamente vazia, silenciosa, e o calor pairava no ar, quieto, pesado, sonolento. Algumas pessoas que iam ser ministradas aglomeravam-se pelos bancos, liam a Bíblia ou conversavam baixo entre si. Duas mulheres lá no fundo estavam orando e nós, mais na frente, escutávamos vez por outra algumas palavras.

Ficamos trocando impressões, observando, tecendo expectativas, procurando não deixar que o assento ficasse duro demais. Por isso mais de uma vez levantamos, fomos xeretar no quadro de avisos da Igreja, fomos ao banheiro. Sentamos de novo.

As pessoas iam sendo chamadas devagar para serem ministradas. Isabela lutava um pouco com o sono. Eu estava cansado, mas ansioso. Finalmente alguém apareceu e chamou o nome de Isabela.

— Tchau, Edu! — despediu-se ela rapidamente. — Boa sorte para você na sua Ministração.

Eu sorri de volta.

— Tchau!

Fiquei esperando ainda mais quase uma hora e meia. Já estava cansando de esperar, observando as pessoas irem entrando. Já quase não havia mais ninguém ali, só eu. Quando dei por mim, Isabela estava de volta.

— Você ainda não foi? — indagou ela espantada.

— Ainda não. Mas me conte como foi!

— Ah, acho que foi bom. Tenho que receber pela fé o que Deus fez! Mas não dá pra dizer que a gente não fica se sentindo um pouco desconfortável, meio receosa na frente de pessoas desconhecidas. Apesar de já ter passado antes por isso, na minha antiga Igreja. Foi um senhor que me ministrou, tinha também uma mulher que ficou orando o tempo todo. Ele conduziu os pontos da Ministração. Na minha ficha os mais importantes eram uma série de sentimentos ruins, as práticas antigas não são das mais relevantes. Mas o que doía mais fundo na minha alma era por causa do meu pai, né?... — e Isabela tinha dificuldade para falar naquilo. — Custei pra falar que não conseguia entender porque tinha sido daquele jeito... mas quase não consegui falar muito sobre isso.

Eu fui escutando sem falar nada.

— Expliquei como pude sobre ele, e oramos também por isso. Depois que acabou, ele me ungiu com óleo e a mulher que intercedia falou comigo antes que eu saísse da sala: "O seu pai não morreu. Ele somente adormeceu. Deus quer que você saiba disso!".

Era difícil para Isabela entender. Não sei se era o tempo de entender. Era tempo de sentir dor por causa daquilo. Um dia ela haveria de ficar livre daquela dor.

Alguém me chamou! Levantei como uma mola, quase sem escutar o que Isabela estava me dizendo. Ela me conhecia o suficiente para saber que eu estava um pouco apreensivo. — Vou indo!

— Vai, Nenê, vai com Deus. Tô aqui esperando.

 

Entrei na sala e já levei um susto, dei de cara com um monte de gente. Imaginei que, assim como tinha sido com Isabela, alguém estaria ali para me ministrar junto com apenas mais uma pessoa. No entanto, para minha surpresa, a sala estava cheia!

Estranhei um pouco. A Grace mesmo estava lá, e me recebeu bem, com um sorriso:

— Pode sentar aqui, fica à vontade!

— Obrigado. — pensei que ela fosse mandar os outros saírem... mas que nada! Sentei e esperei. Eles ficaram todos lá, olhando para mim, quietos, enquanto Grace conversava comigo. Não entendi o por que daquele ar interrogativo que tinham no semblante.

— Tudo o que você escreveu é verdade? — começou Grace, de sola.

Não entendi exatamente o que ela queria, mas respondi. À medida que Grace ia perguntando e eu respondendo, percebi que os demais ainda não sabiam exatamente o que eu tinha escrito na ficha e nem quem eu era.

Grace fez mais algumas perguntas a respeito da ficha, testando o entendimento.

— Quem escreveu a Bíblia Satânica?

Quando falei, ela imediatamente deu-se por satisfeita. E explicou:

— É necessário eu te perguntar isso porque às vezes encontro pessoas que se dizem Satanistas, mas quando vou averiguar de perto, vejo que não é bem isso.

Acho que eu devia estar com uma cara de interrogação porque Grace continuou esclarecendo:

— Essas pessoas vão ficar aqui para interceder em concordância, e também para me ajudar caso seja necessário.

Fiquei imaginando o que ela queria dizer com isso.

"Ajudar em quê? Será que eles acham que eu posso ficar possesso?!"

Observei um pouco melhor e, pelo número de pessoas presentes, acho que eles estavam julgando isso algo muito provável! Encarei os rostos que me olhavam e percebi que havia um clima de temor entre eles. Em Grace não... mas os demais agora pareciam estar com medo de mim.

Antes de começarmos a Ministração propriamente dita, Grace colocou na minha frente um cesto de lixo.

— Se você sentir vontade de vomitar, pode usar isso aqui. Continuei quieto. Mas intimamente eu já não entendia mais nada.

"Que coisa mais louca! Por que cargas d'água eu teria vontade de vomitar?"

Acho que eu ainda devia estar olhando para o cesto de lixo quando, de repente, todo mundo começou a orar junto. Procurei ter uma atitude condizente, mas achei a oração tão estranha quanto o resto.

Grace pedia cercos de anjos, e muralhas de fogo, e tapetes de fogo, e "selava" o lugar. O pessoal que estava junto orava com ímpeto, agitando os braços, às vezes tinha até quem sapateasse mais forte, ou batesse palmas. Não entendi a metade. Mas mantive a cabeça baixa, me contive um pouco. Não estava acostumado com aquilo.

"Será que todo esse pessoal sabe mesmo o que está fazendo? Olha só onde eu vim parar!"

Mas a verdade é que foi criado ali um clima diferente. Pude perceber.

Depois aquele clamor diminuiu e eles passaram a interceder baixo. Somente Grace começou a conduzir a Ministração. Ela me tratou bem durante todo o tempo, foi bastante simpática.

— Você já participou da Ministração coletiva, já sabe como é. — disse ela. — Vamos fazer a mesma coisa com o que você escreveu além disso.

E então eu fui renunciando a todas as práticas que eu tinha escrito. E ela ia me ungindo com óleo também. Nesses momentos Grace orava sozinha e eu mantinha os olhos fechados a maior parte do tempo.

Mas num determinado momento... aconteceu um negócio estranho...

— Estenda a sua mão que eu vou ungir também a marca que fizeram... — pediu Grace (Leia Filho do Fogo).

Estendi a mão sem abrir os olhos. Já fazia tempo que não havia nenhum clamor, estava todo mundo orando baixinho. O ambiente estava calmo, nada havia que pudesse ter de alguma forma me sugestionado, causado alguma "alucinação".

— Senhor Deus, queima agora essa cicatriz, destrói essa marca no Reino Espiritual.

Senti que ela pegava minha mão, mas aí, quando Grace ungiu a marca que eu tinha na mão esquerda e que foi feita no Rito de Iniciação... eu senti literalmente queimar! Quando ela colocou o óleo, senti como se o óleo estivesse quente! Queimou mesmo, de verdade. Senti dor física!

— Aii! Você queimou a minha mão!

E pulei de susto, arrancando a mão.

— Mas tem que queimar mesmo, irmão! Fiquei indignado.

— Você colocou óleo fervendo na minha mão?! — invoquei com a Grace, recla­mando meio irado. — Puxa vida, você jogou óleo quente na minha mão? Mas isso tem cabimento?!!

— O óleo não está quente, não... está igual, como antes. — respondeu Grace, super calma. — Quer ver?

Eu não conseguia acreditar e tive mesmo que ver de perto. Peguei o frasco, pus o óleo na minha mão. Nem sabia o que dizer. Fiquei mudo.

— Puxa vida, está normal...

— Agora o diabo não vai mais ver essa marca. É como se ela não existisse mais.

Fiquei super encafifado, mas a Ministração continuou normalmente.

O mais interessante é que o Ministrador que estava sentado na minha frente passou mal. Foi ele quem teve vontade de vomitar, e quase aconteceu mesmo. Mais tarde eu iria entender que esse tipo de coisa é comum: os intercessores podem ter reações de identificação com a pessoa que está sendo ministrada. O mover do Reino Espiritual causa reações físicas muitas vezes.

Eu não senti nada, mas o intercessor sentiu no meu lugar! Essa manifestação, somada à sensação de ter sido queimado pelo óleo, foram dois sinais que Deus usou naquele dia para me mostrar que estava realmente agindo.

Quando saí de lá, já tinham passado quase duas horas e meia. Isabela estava ansiosa, me aguardando sozinha nos bancos da Igreja. A tarde tinha corrido vagarosa e modorrenta para ela, mas quando me viu de longe, descendo as escadas do púlpito, saindo da salinha lá de trás, logo abriu um largo sorriso.

Levantou, veio ao meu encontro. E olhava para mim tentando adivinhar tudo de uma vez.

— Puxa, você está com uma carinha tão feliz!! Como é que foi?! Demorou pra caramba, Nenê, mas pelo jeito foi bom, heim?! Me conta, me conta! Você precisa esperar por mais alguma coisa?

— Não, não. Podemos ir embora!

Fomos saindo em passos largos, abraçados e animados.

— Conta, Nenê, conta! Eu orei por você enquanto você estava lá dentro. Orei pela Ministração, para que Deus fizesse o que tinha que fazer, e usasse os Ministradores para cumprir o Seu propósito. E que você pudesse ser curado na sua alma. Depois fiquei a tarde toda vendo as pessoas que entravam e saíam, e o salão que ia esvaziando. Às vezes eu voltava a orar, e me perguntava o que estaria rolando lá dentro, o que será que estava acontecendo pra demorar tanto!

— Obrigado, Gatinha, realmente foi bom, sabe...? Eu não esperava que fosse ser assim. Agora estou me sentindo bem melhor!

Uma vez na rua, indo em direção ao carro, Isabela me olhou melhor.

— É... deve ter sido uma coisa bem intensa... você está todo suado!

— Ah! — dei risada com vontade. — Está quente, mas isso não é suor, não! E óleo. Fui ungido, quase que tomei um banho de óleo.

Ela passou a mão no meu cabelo. O resíduo cheiroso do óleo de unção ficou impregnado nos seus dedos.

— Puxa, é óleo mesmo! Puxa, te encharcaram mesmo. Não vai ser por falta de óleo que você não vai ser liberto! Mas sabe que você está com uma expressão diferente mesmo, Edu? Bem diferente de quando você entrou... não sei dizer... bem mais feliz. Parece até que rejuvenesceu alguns anos. Está mais Nenê do que antes...

— É? — fiquei com os olhos um pouco marejados. — Mas eu estou feliz mesmo! Entramos no carro e ela pediu novamente, desta vez mais enfática:

— Mas agora me conta tudo! Desde o começo, direitinho, tudo o que aconteceu!

— É... a gente fez certo. Realmente Deus provou pra mim que fizemos certo. Pode ter certeza que alguma coisa vai mudar depois desse fim de semana.

Agora eu estava tão convicto quanto ela. Isabela me olhava e olhava, de uma maneira diferente, percebendo algo novo em mim.

— Deus fez alguma coisa nova, diferente.... foi muito bom a gente ter vindo — continuei.

— E pensar que quase que a gente não chegava aqui hoje, hein? Mas graças a Deus deu tudo certo! Que alívio que dá!

— A Grace acha que ainda tem algumas coisas para Ministrar. Pediu que eu entrasse em contato com a secretária dela no começo do ano que vem. Esse ano ela está com todo o tempo tomado, mas acho que ainda vamos nos encontrar.

— Tá bom, mas agora conta!

Enquanto Isabela dirigia, eu fui contando tudo. Em mais de um momento me senti emocionado. Estava certo de que Deus tinha feito coisas novas na minha vida, não me sentia merecedor, mas estava feliz porque Deus tinha feito mesmo assim...

Ele sabia que eu precisava de algumas evidências palpáveis. Tinha tido! Foi algo muito novo.

 

Durante a semana, fiquei pensando. Apesar de sentir que alguma coisa tinha mudado eu não sabia exatamente o que tinha mudado. Somente uma coisa me deixou refletindo um pouco, levemente apreensivo:

"Será que falei alguma coisa que não devia? Será que falei alguma coisa que possa criar problema pra mim??"

Eu sabia o que poderia criar problemas: revelar os segredos!

Falar que dentro da Irmandade acontecem sacrifícios humanos... bom, isso e até primário! Todo mundo sabe que o Satanismo tem dessas coisas, até mesmo seitas simpatizantes do Ocultismo fazem isso. Quer dizer... Grace já sabia, não era novidade alguma para ela! Equivale a dizer algo mais ou menos do tipo: Fiz parte de uma quadrilha, e essa quadrilha assaltava!"

Ou seja essa informação é óbvia, todo mundo sabe que bandido assalta, mata. Da mesma forma, Grace não precisava ir muito longe para saber que dentro do Satanismo acontecem mortes de pessoas.

Isso é uma coisa. Eu sabia muito bem.

Mas se eu dissesse — "Fiz parte de uma quadrilha, e essa quadrilha tinha envolvimento com o Presidente da República, e nós o subornávamos, de forma que fazia tudo o que nós queríamos".

Aqui já é bem diferente. Trata-se de um segredo do crime organizado.

Revelar segredos da Irmandade estava fora de cogitação. Isso, sim, me assustava muito... falar da estratégia, do planejamento para o final dos tempos, articulações políticas, os processos de alguns Ritos especiais, até sacudi a cabeça. Eu não tinha intenção alguma de fazer isso! (Leia Filho do Fogo).

Isabela tinha razão, falar seria muito importante para mim, seria terapêutico! Dividir um pouco aquela experiência haveria de fazer com que eu me sentisse melhor Mas longe de mim entrar em detalhes comprometedores!

"Se eu ficar apenas na periferia da coisa, tudo bem... só não posso chegar no coração da Irmandade. Acho que assim eles não vão se sentir nem ofendidos, nem incomodados com o fato de eu estar falando."

Apesar de Isabela estar sempre comigo, eu sentia muita falta de um grupo de apoio. Eu sempre fiz parte de grupos: a "29", o Kung Fu,a Irmandade. Por isso o que eu mais queria era estar novamente dentro de um grupo, um grupo de verdade! Pessoas em quem eu pudesse confiar e que me ajudassem a por para fora as dores da minha alma.

Mesmo que eu não tivesse intenção de falar tudo, eu achava que apenas uma pessoa — no caso, Grace — não teria condições de carregar sozinha aquele peso. Quer dizer eu me sentia carregando 200 quilos nas costas... mesmo que dividisse isso com alguém, e passasse 100 quilos para essa pessoa, ainda assim seria pesado para mim e para ela.

Mas num grupo é diferente: cada um fica com uma parte, com uma fração daqueles 200 quilos. Eu experimentei na minha vida. E sempre soube que é muito mais fácil para um grupo enfrentar uma situação difícil, carregar muito peso, do que apenas duas ou três pessoas sozinhas! Nesse sentido eu tinha uma remotíssima esperança. Estava procurando. E esperando!

Ainda não tinha aparecido ninguém. Só a Isabela!

 

Realmente nossos caminhos iriam cruzar muito com os da Grace, embora ainda não soubéssemos disso.

Chegou o Natal e entrou mais um ano. Eu e Isabela completamos dois anos de relacionamento. Agora ela já não era apenas minha namorada, já estávamos noivos há dez meses.

Agora nós íamos muito pouco à nossa Igreja. Algumas situações de constrangimento haviam feito com que deixássemos de nos sentir plenamente à vontade naquele lugar. E a gente ia cada vez menos. Os problemas criados no começo do nosso namoro por causa de Camila e também por causa da minha família haviam deixado seqüelas.

O principal deles é que Isabela não foi plenamente aceita tanto pela Igreja como pela minha família. E isso gerava várias situações desagradáveis. Na Igreja, algumas pessoas com quem eu tivera amizade antes de conhecer Isabela continuavam me cumprimentando normalmente. Mas nem olhavam para ela.

Às vezes nós chegávamos de mãos dadas, e pessoas cumprimentavam-me fazendo de conta que ela não estava ali. Especialmente as mulheres faziam questão de ignorá-la! Isso era um pouco de despeito, eu sei, mas mesmo casais mais velhos e algumas pessoas da liderança pareciam olhar para Isabela de forma estranha. Em todos os sentidos ela parecia ser uma peça fora do contexto, uma intrusa, alguém que não devia estar ali ao meu lado. Alguém que tinha "destruído" meu relacionamento com Camila.

O fato de estarmos noivos e usarmos uma aliança bastante chamativa não parecia fazer a menor diferença. Hoje eu percebo claramente o quanto isso era uma influência espiritual... mas naquela época o clima foi ficando ruim para o nosso lado, especialmente para o lado dela.

Minha mãe em especial criava algumas confusões. Uma delas foi queixar-se diretamente com o Pastor Luís sobre nós dois. Acho que ele percebeu que a história estava mal contada, então marcou um encontro com todos nós: eu, Isabela, minha mãe... e ele!

Ficou claro, depois da exposição, aonde estavam os pontos obscuros e quem tinha razão. Depois da conversa, Isabela procurou pôr um ponto final naquela situação, tratou de perdoar minha mãe e conviver bem.

Não era nossa intenção mudar de Igreja, nem sabíamos para onde ir. Mas estava uma coisa chata. Então passamos a freqüentar o Culto de vez em quando Às vezes já estávamos na porta da Igreja, estacionando o carro... e Isabela começava a chorar, indisposta com a situação que teria de enfrentar. Um problema a mais no meio de tantos. E a gente acabava não indo!

Não tivemos férias em janeiro, eu continuei trabalhando e Isabela, mesmo em casa, estava longe de ter descansado muito. Aliás, preocupada em colocar sua vida em ordem, ainda naquele mês arrumou um emprego decente. Tinha tentado prestar Psiquiatria, mas não passou.

Isabela fazia força para recuperar-se. Decidiu-se a retomar as rédeas de sua vida e foi contratada com facilidade por um Convênio Médico para atuar meio período num Ambulatório de Empresa.

Parecia algo bom, mas Isabela estava tremendamente receosa de não conseguir levar adiante, como já tinha sido até então, em todas as suas tentativas. Ela orou bastante para que Deus a ajudasse em sua vida profissional. Seu maior temor era acabar largando aquele emprego em poucas semanas. Mas isso não podia acontecer.

A maior vantagem era que, embora longe de sua casa, seu trabalho ficava muito perto do meu trabalho. Muitas vezes ela saía do serviço e vinha almoçar comigo antes de voltar para casa.

Logo nos primeiros dias eu perguntava como ela estava indo, procurando incentivar.

— Está tudo bem... — disse ela. — O único "senão" é essa sensação de que não vou conseguir levar adiante sem a ajuda de Deus. Praticamente todos os dias eu vou orando pelo caminho, pedindo que Deus me dê força e capacidade para manter o meu emprego. Porque realmente eu não encontro essa força em mim mesma. Tenho muito medo de jogar tudo pro alto outra vez! Não quero fazer isso... não quero ficar em casa sem fazer nada... quero me esforçar para que tudo fique bem!

Se foi ou não efeito da Ministração, isso não podemos afirmar com certeza... mas o fato é que Isabela conseguiu voltar ao trabalho. Ela voltou e manteve o seu emprego durante um bom tempo.

No final do mês de janeiro nós dois já tínhamos entrado em contato com a secretária da Grace. Ficamos sabendo que em março iria começar um curso dado por ela. Isabela teve vontade de fazer, e acabamos sendo incentivados pela própria Grace.

Para isso era necessário a aprovação dos Pastores da nossa Igreja; eles deviam enviar uma carta de autorização para que a gente pudesse se inscrever. Mas eles não pareciam dispostos a aprovar nosso pedido. Não tinham muita simpatia pelo Ministério da Grace e, como insistíssemos, apesar de não nos proibirem... também não incentivaram.

Conversamos com Grace sobre aquela dificuldade, pelo telefone, falamos que eles nos tinham dado uma aprovação verbal. Então ela aprovou assim mesmo a nossa inscrição.

No primeiro dia do curso nós estávamos lá. Embora tivesse estado com ela pessoalmente apenas uma vez, Grace lembrava-se de mim e quis orar comigo antes de começar a aula. Nesse dia ela conheceu efetivamente Isabela. Conversamos um pouco, ela quis saber se estávamos bem. Depois orou.

Fazia pouquíssimo tempo que eu tinha começado a orar em línguas. (Efeito da Ministração???). Tinha acontecido de uma maneira peculiar, enquanto eu orava sozinho, em casa. Foi bastante diferente porque nunca tinha escutado aquilo. Na Igreja não havia uma posição doutrinária que desse ênfase aos dons do Espírito, por isso desde a minha conversão não tinha aprendido quase nada sobre tais coisas. Nem conhecido ninguém que orasse em línguas. Conhecia só de "orelhada".

Mas naquela noite, no meu quarto, de repente comecei a falar coisas estranhas. E ainda que relativizasse um pouco, comecei aprender a dar vazão àquela manifestação.

Isabela já tinha sido batizada no Espírito Santo anos antes, foi ela que me incentivou e explicou o que significava aquilo. Fomos prudentes em pedir que Deus trouxesse confirmação. Eu não queria falar nada que não viesse Dele!

Naquele dia, orando com Grace, sem querer eu e ela pronunciamos uma frase inteira em línguas, da mesma forma, ao mesmo tempo. Até mesmo Grace olhou para mim e sorriu.

Mas a verdade é que depois daquele dia nunca mais voltamos ao curso. Nem me lembro mais qual foi o impedimento. Talvez não fosse mesmo o tempo. No entanto isso serviu para nos aproximarmos mais de Grace. Logo viriam outras etapas a serem cumpridas, cada uma no devido tempo.

 

Quando chegou perto do Carnaval, Isabela estava empenhada em convencer-me a ir para o Acampamento. Fazia talvez uns dois anos que ela não aparecia — por causa dos afazeres da Faculdade — mas agora daria certo porque não trabalharia no feriado. E nem eu!

Isabela e Marco participavam daquele encontro há cerca de dez anos, todo ano. Tinham um vínculo todo especial com aquela Igreja Presbiteriana de uma cidadezinha do interior.

— A gente se converteu lá! Quer dizer, eu já tinha aceitado Jesus em oração, mas foi lá que entendi melhor e realmente fiz minha decisão! A Mocidade dessa Igreja é a maior da região, e realmente tem algo de diferente no relacionamento deles. Uma coisa sincera, especial. Algo que não se encontra na cidade grande, sabe? Acho que é um pouco por isso que eu e o Marco gostamos tanto daquele "pedacinho de céu".

Mas eu ainda não compreendia bem o contexto de Acampamento. Embora Isabela falasse e elogiasse, eu tinha a impressão de que devia ser algo chato.

Lembrei das Igrejas tradicionais que freqüentei na época que namorava Camila...

— Mas, puxa vida... será que é legal mesmo?

— Nós já não somos tão "jovens" assim, o pessoal mudou desde a época em que eu era adolescente... mas com certeza vai ser muito melhor do que ficar por aqui. É melhor a gente receber um pouco da Palavra. Não temos ido muito ao Culto!

— Eu já vi os preparativos que a nossa Igreja faz quando tem Acampamento! E é um pouco diferente do que você está contando!

Ela deu de ombros.

— Os Acampamentos que a nossa Igreja organiza são muito elitistas! Custam os olhos da cara e é mais um evento social do que espiritual. Não é por aí. A gente está indo tão pouco à nossa Igreja... vamos nesse que você vai gostar.

— Você disse que as acomodações são péssimas...

— Isso lá são mesmo. É uma verdadeira "Favela", sabe? Todo mundo empilhado. Mas talvez a gente consiga ficar na casa de alguém. O Marco disse que vê isso se a gente for.

— E o que mais a gente faz em Acampamento além de dormir empilhado?

— Ah, Nenê, é legal! Tem estudo toda manhã e toda noite, durante o dia tem jogos, confraternização. O pessoal é bacana. E seria bom sair daqui um pouco!

Eu não estava muito convencido, mas acabei concordando.

— Tudo isso é muito novo pra mim. Nunca fui a nenhum Acampamento.

— Puxa, mas a Camila não ia? Vai dizer que ela nunca te arrastou pra nenhum?!

— Ela não ia.

— Bom... mas agora você vai. Tentei contestar mais um pouco:

— E mesmo quando tinha, eu sei que os lugares eram da hora! Nada que não tivesse piscina, cavalos, quadras de tênis. Mas nessa tal cidade não tem nada! Você disse que lá não tem nada!

— E sabe que isso é que é o melhor? A gente tem tempo para conviver uns com os outros. Tem só um campinho de futebol. De terra. É só uma chácara pequena! Tem um salãozinho aonde fazem os Cultos. E mais dois alojamentos com "treliches".

— Que são "treliches"?

— São camas de três andares! Mas antes não tinha nem isso. Quando eu era adolescente tinha só uma casinha aonde as meninas dormiam no chão. E uma outra casinha, menor ainda, onde dormiam os meninos. Eles também montavam umas barracas de acampar, porque não cabia todo mundo na casinha. Era só isso. Mas era tão bom!... A gente se divertia muito, além de aprender!

— Nossa... dá até medo de chegar nesse Acampamento. — pensei um pouco mais. — Mas você está certa. Vamos receber um pouco da Palavra de Deus. Depois pode ser que a gente nem tenha que dormir lá.

Isso eu até que espero mesmo. Porque é jogo duro! Na verdade, ninguém dorme nada, e no último dia está todo mundo o pó!

— E isso é que é o bom?

— Era bom, sim! Não dormir também faz parte! Na última noite normalmente tinha peças de Teatro e havia serenata de madrugada. Talvez seja assim até hoje. Eu gostava de participar das pecinhas... e era uma delícia também sair enrolada no cobertor pra fazer serenata na porta dos meninos. Normalmente eles já tinham vindo fazer também, no dia anterior. Uma vez o Marco fez uma serenata só dele. Foi tocando nas janelas do nosso alojamento. A mulherada só faltava se dependurar pra fora, cochichando e tendo piripaques.

Dei risada.

— E daí?

— Daí, nada. O máximo que você pode fazer é acender e apagar a luz. É o sinal pra dizer que estamos gostando. As meninas não podiam aparecer de pijama na frente dos meninos e vice-versa! Isso a direção do acampamento não ia gostar nem um pouco...

Dessa vez fiz um comentário sincero: — Parece legal...

— E era, viu, Nenê? Sabe o que era melhor? É que as brincadeiras eram inocentes! Tinha regra e normalmente as regras eram cumpridas. Mas dava pra se divertir do mesmo jeito, a gente se divertia de uma maneira mais pura! Ver aqueles adolescentes se comportarem bem foi uma lição de vida para mim e para o Marco na época da nossa conversão. Acabamos vendo na prática que Jesus podia fazer diferença na vida de muita gente! Aquilo falou muito mais alto do que 100 pregações.

— OK! Então está decidido. Vamos pro Acampamento!

— Legal!

E fomos mesmo. Marco tinha arrumado um lugar para a gente ficar. Isabela pousaria na casa de uma antiga amiga que agora já estava casada. E eu ficaria na casa de outro casal de nossa idade. Mas só para dormir. Durante todo o dia ficaríamos na chácara.

Para Isabela foi bom rever uma parte daquela antiga Mocidade, daqueles jovens e adolescentes que agora já eram adultos e tinham feito parte de momentos importantes da sua vida. Os Acampamentos tinham sido momentos importantes para ela. Fui sendo apresentado. Alguns agora estavam até casados, formados. Outros tinham saído da cidade e estudavam fora. Mas vieram para casa durante o Carnaval. E pintavam por ali para participar um pouco.

A grande maioria era de gente mais nova, pessoas que Isabela não conhecia.

— Aquele ar de família que tinha aqui já é diferente hoje... o Acampamento cresceu, o clima mudou um pouco... não é mais a mesma coisa. Eu também mudei! Mas rever algumas caras antigas me dá uma sensação de nostalgia. De saudade!

Ela se divertia relembrando o que tinha acontecido em anos anteriores! Certa mente aquela Igreja e aquelas pessoas tinham tido um sabor todo especial para Marco e Isabela... foram ingredientes de Deus nas suas vidas, de uma maneira que nenhuma outra Igreja de São Paulo tinha conseguido ser.

 

Na noite do domingo nós dois estávamos na fila da janta. Isabela conversava com Karine e mais uma ou duas meninas da sua época. Eu acabei sendo alvo das atenções do Pastor que estava palestrando no Acampamento, mesmo sem querer.

Pura coincidência, diria eu, porque ele também tinha que esperar que a fila, meio morosa, caminhasse. A melhor coisa para fazer o tempo passar era puxar conversa com o indivíduo mais próximo. E pelo visto, aquele Pastor gostava de falar, puxou conversa comigo, e logo estava entretido no maior bate-papo. Como eu respondesse bem e também fizesse perguntas, ele não parava mais.

Volta e meia Isabela dava umas olhadas. Ela sabia que eu também era bom de prosa, não precisava dar muita corda. Comecei mesmo a falar e falar, como se já o conhecesse há tempos.

Finalmente a fila andou e chegamos ao nosso destino. Macarrão, frango, salada de tomate, beterraba, essas coisas. Eu e Isabela sentamos para comer numa das pontas de uma mesa. No meio da confusão de vozes que se misturavam e a gritaria peculiar de alguns grupos de adolescentes mais efusivos, Isabela me perguntou:

— Você e o Pastor engrenaram a maior conversa, hein? O que vocês tanto falavam?

— Ah, nada de mais... no começo! Mas você sabe que ele veio com uma conversa meio esquisita, do nada. Imagina que começou a me dizer, sem mais essa nem aquela, que volta e meia tinha que lidar com casos de pessoas endemoninhadas.

— Ué? Mas assim, sem mais nem menos?!

— É, nem sei porque a conversa tomou esse rumo... a gente estava só comentando do Acampamento, coisas assim. Mas aí ele disse que Deus queria ensinar alguma coisa pra ele nessa área, que sempre que tinha alguém envolvido com demônio acabava vindo parar na sua mão, etc. .. etc. .. e que ele não sabia o que fazer sobre isso! Foi mais um desabafo...

Isabela deu mais uma garfada na comida, retrucando:

— Justo com quem ele vai comentar isso...

— Pois é, eu só escutei. Mas ele parecia tão sincero e tão humilde em assumir que não sabia lidar com esse tipo de coisa que até deu dó...

Isabela olhou bem para mim mudando um pouco o tom de voz:

— Mas você não foi falar nada pra ele, não é, Eduardo?!

— Ah, Gatinha, quando vi, já tinha falado.

— Eduardooo!

— Sim, mas não é o que você está pensando. Eu não disse nada assim, comprometedor... só falei que realmente Deus deveria estar querendo ensinar-lhe alguma coisa. Comentei que tinha feito parte de uma Seita, mas não entrei em nenhum detalhe de nada. E que o Mundo Espiritual era real... ele parecia tão perdido nos seus questionamentos.

— Hum. E daí?

— Ele ficou embasbacado com a minha colocação! Achou que Deus deveria ter me colocado ali perto dele, na fila, só pra dizer isso. E que se eu tinha alguma experiência nessa área era para poder ensiná-lo, ajudá-lo a resolver as suas dúvidas. Eu falei que também não era assim... quem era eu pra ensinar alguma coisa a ele? Um Pastor? Mas já começou a me encher de perguntas. Coisas básicas, tolas... questionamentos até primários sobre o diabo.

— Ai, ai, ai, ai, ai... será que isso é certo? Será que é tempo de você sair falando sobre isso? Talvez até vá chegar o tempo de você falar, mas você mal começou a ser Ministrado, mal começou a sua libertação. Não sei o que pensar....

Eu tinha deixado a parte crítica para o final. Não queria deixar Isabela nervosa, tentei não deixar o tiro sair pela culatra. E acrescentei, em tom neutro, cutucando o frango. Como quem não está dizendo nada demais:

— Ele até cogitou que eu desse um testemunho aqui no Acampamento...

— Testemunho?!! — exclamou Isabela, indignada.

— Alguma coisa básica. Ele acha que isso é direção de Deus.

— Eu não sei se isso é direção de Deus, não! — ela já estava começando a se exaltar. — Não vai me dizer que você concordou!

— Não concordei coisa nenhuma. Ao contrário. Disse que achava que não era o tempo! Nós até poderíamos conversar melhor sobre o assunto, no sentido de esclarecer algumas dúvidas. Mas daí a falar para toda a Igreja...

— Bom, realmente espero que tenha encerrado por aí.....

— Não sei se ele entendeu bem. Ele crê terminantemente que eu tenho que dar um testemunho. E que ia colocar isso em oração hoje à noite com mais pessoas.

Isabela nem conseguiu comer direito, não se sentia à vontade com aquela situação. Eu também estava meio inquieto. Por outro lado, nós também não queríamos correr o risco de impedir Deus de fazer algo, sermos empecilhos contra a obra de Deus. Ela não sabia o que pensar, eu muito menos.

Isabela acabou comentando com Marco, que sabia um pouquinho da minha história. E para minha surpresa ele achou que podia mesmo ser até providência Divina.

— Afinal... — disse ele. — Para que o Eduardo teria passado por tudo o que passou? Se não for para edificar a Igreja agora?

— Eu sei disso, mas a gente tem que pensar que deve existir um preparo para isso, né?

Realmente, nós não conhecíamos muito sobre um tema simples: o tempo de Deus! Uma coisa era certa, se Deus tinha me resgatado, algum propósito Ele havia de ter. Isso era inquestionável, ainda que nós não soubéssemos qual era esse propósito. Mas creio que erramos ao nos precipitarmos em relação ao mo­mento e à maneira de fazer.

Diz o ditado que "Deus escreve certo por linhas tortas". Mas ditado popular não é o mesmo que princípio Bíblico. Isabela estava inclinada a achar que realmente não era o tempo certo. Mas a verdade é que todo mundo ficou de orar por aquilo naquela noite para buscar de Deus a direção.

Naquela época nós tínhamos uma idéia diferente da Igreja e do povo de Deus. Uma idéia mais poética. Como que se Deus falasse quase audivelmente com os líderes, especialmente com os Pastores. E que a direção que Deus desse a eles era praticamente incontestável.

Mais tarde, a gente veria que nem sempre é assim. E que mesmo os líderes podem ouvir o que querem. Às vezes o que ouvem pode não ser a vontade de Deus, mas a deles.

Mas quem iria questionar isso? Não seria eu, muito menos Isabela. Portanto, acabamos ficando um pouco à mercê daquela situação. Fomos coagidos a fazer uma coisa com a qual não sentíamos paz, com a desculpa de que aquilo era vontade de Deus... é fácil para os outros espiritualizarem tudo, mesmo que o façam de boa vontade! Nós éramos ingênuos naquele tempo...

No dia seguinte, o Pastor Décio veio falar comigo.

— O grupo de oração orou muito durante a noite. Tenha certeza absoluta de que esta é a direção do Espírito Santo: que você testemunhe! Esse é o propósito da sua vinda ao Acampamento.

Eu e Isabela acabamos por concordar. E ficou marcado para a manhã do dia seguinte, o último dia do Acampamento.

— Pobre Eduardo... — falou Isabela resignada. — Você ficou realmente preocupado, né?

— Mas quem sou eu pra contestar? — respondi. — Ele é o Pastor, deve saber ouvir a voz de Deus melhor do que nós...

Ela ficou quieta por alguns instantes, pensando. No fim acabou por convencer-se.

— Talvez seja então a vontade de Deus mesmo, Nenê. Talvez seja mesmo a direção certa...

Oramos um pouquinho juntos, para que Deus desse as palavras certas. Isabela não fazia idéia real do que realmente tinha sido aquilo. Eu não queria envolver-me com aquele passado novamente, um passado que eu pensava estar completamente enterrado. Só queria mexer nisso para ser Ministrado! Logo perceberia que tudo aquilo não estava tão morto e tão enterrado. Foi um erro ter aceitado aquela imposição do Pastor!...

Divulgaram a mudança na programação do Acampamento, não seria o Pastor Décio a pregar na última manhã. Começaram a circular os buchichos: alguém que tinha tido um envolvimento com as Trevas viria dar o seu testemunho.

Eu não contestei mais nada, apenas aceitei. Teria que enfrentar aquela situa­ção, falar de coisas que me atemorizavam muito, continuar desenterrando uma história que preferia ver esquecida. Isabela era a única que percebia meu sofri­mento... a única que enxergava melhor o meu interior, o meu coração.

Nem eu mesmo conseguia vislumbrar quanta dor e quanto medo ainda estavam abrigados ali dentro.

 

A manhã da terça-feira de Carnaval amanheceu belíssima, ensolarada.

Isabela já estava diante do seu pão com manteiga e do seu café com leite quando apareci. Ela veio direto ao meu encontro. Queria ver como estava o meu estado de ânimo.

— E aí, dormiu bem? Como é que você tá?!

— Dormi mais ou menos... fiquei um pouco preocupado! — procurei amenizar de leve.

Ela também procurava fazer parecer que estava tudo bem, mas olhou para mim um tanto penalizada. No seu íntimo, Isabela preocupava-se comigo. "Tadinho....", pensava consigo mesma. Mas falou alto:

— Não se preocupe, vai dar tudo certo.... — ela não sabia mais o que dizer. — Olha, Deus está no controle... nós oramos, não foi?

—É!

— Então... tudo vai dar certo! Agora não pense mais nisso, venha tomar o seu café.

Marco apareceu logo, procurou também me animar do seu jeito.

E por fim chegou a hora do Louvor que daria início ao Culto da manhã. Toda hora Isabela me olhava procurando adivinhar o rumo dos meus pensamentos e sentimentos. Eu não queria que ela ficasse preocupada, mas foi impossível... estava mais quieto do que de costume. Sentia-me progressivamente enregelando, a perturbação crescendo, e eu orava no meu coração frases atropeladas e um pouco perdidas.

Mesmo que eu não estivesse tão quieto, Isabela teria percebido. Dificilmente ela deixava de sentir o clima que pairava no ar. Por este motivo também pedia por mim silenciosamente... que Deus nos guardasse, acalmasse e direcionasse.

Sentamo-nos no nosso lugar de costume, perto da porta de entrada. Isabela segurou minha mão para que a gente pudesse orar juntos um pouco.

— Nossa, Edu!! Sua mão está gelada!

— Ah, só um pouquinho... já vai passar. Ela me conhecia.

— Se vai passar ou não, isso não pode ficar assim! Não é justo com você, não é certo! Ninguém está se preocupando com você. Temos que orar junto com o Pastor, onde já se viu?

Ela olhava ao redor procurando por ele. Nesse exato minuto o Pastor Décio estava passando ali perto, lá fora, em direção ao alojamento. Isabela não pensou duas vezes, pulou da cadeira e correu atrás imediatamente. Eu estava petrificado a cadeira, e petrificado fiquei. Observei Isabela gesticulando ao mesmo tempo em que falava com ele.

— Pastor, nós temos que orar com o Eduardo! Ele não pode testemunhar assim, está bem nervoso, eu conheço ele. — Isabela me contou depois qual foi sua "sutil" abordagem.

Ele passava a mão na cabeça, num jeito calmo e simples. Foi também direto na resposta:

— Ah.....! Você tem razão. Eu me esqueci! Vou reunir o pessoal.

— É, faça isso mesmo Pastor, não podemos deixá-lo sozinho desse jeito. Enquanto o Pastor Décio ia atrás do grupo de oração, Isabela voltou para me chamar. Fez sinal de longe também para Marco e Karine. Em pouco tempo, enquanto o Louvor continuava adiante, um grupo de jovens se reuniu nos pedriscos perto do salão. Seria aquele o grupo de oração?!?

— Queria pedir desculpas ao Eduardo porque realmente me esqueci de orar junto com ele!

Eu assenti com a cabeça enquanto Isabela voltava segurar minha mão com força. Então oramos todos juntos, pedindo que Deus guardasse aquele lugar e usasse a minha vida. E que o diabo fosse impedido de agir.

Depois da oração, parece que me senti melhor. Mas eu e Isabela ainda estávamos um pouco tensos com aquela iminente exposição. Agora... era vai ou racha! Num futuro não muito distante eu começaria a aprender que não bastam boas intenções para efetivamente resistir ao inimigo.

Realmente testemunhei. Contei algumas coisas, alertei para a realidade da ação do inimigo, contei como entrei e como saí da Irmandade. Sem usar o nome "Irmandade", me referia como sendo a "Seita". Fui falando e, em dado momento, acabei comentando sobre algo que, talvez, foi o que causou mais impacto naquela platéia.

— A Maçonaria é um dos braços do Satanismo. — nem sei como cheguei àquela informação, muito menos por que usei daquela informação.

E na hora nem cogitei que repercussão aquilo teria. A Palavra de Deus não volta vazia... embora naquele momento eu estivesse debaixo de uma Vontade permissiva de Deus — e não da sua Vontade perfeita — Ele usou aquele momento para trazer bênção. Confrontou vidas... salvou vidas... e trouxe revelação àquela Igreja!

Depois de mais ou menos uma hora e meia de silêncio e atenção absoluta, acabei. Eu não sabia o que fazer depois, se devia orar, se devia fazer apelo... por sorte o Pastor tomou logo a liderança. Orou, fez apelo. E Deus usou aquele momento para realizar muitas coisas.

No resto do dia eu quase não consegui ver a cara da minha noiva. E nem ela, a minha. Eu literalmente fiquei envolvido por uma roda de pessoas curiosas e cheias de perguntas que me assediavam como abelhas em torno de um pote de mel. Isabela foi muito paciente e deixou-me responder o que podia, alertar, orar... além de esquivar-me das perguntas mais impertinentes e especulativas.

Fomos embora à noite, debaixo de uma chuva calorosa de abraços e palavras de incentivo. De repente, eu tinha virado o herói do Acampamento. Gostei do carinho, fazia muito tempo que as pessoas não me tratavam daquele jeito. Sei que havia muita carência na minha alma. Eu queria um grupo, precisava de um grupo! Isso fazia com que muitas vezes eu confundisse as coisas e aceitasse quase ser sugado vivo pelos outros. Especialmente Isabela, neste aspecto com os pés mais no chão do que eu, saiu um pouco cansada de tanto as pessoas correrem atrás de mim.

Durante a viagem de volta fomos conversando, animados com o que Deus tinha feito.

— Acho que eu devia retomar a escrita do nosso livro, né, Edu? — perguntou ela. — Você já parou pra pensar que talvez Deus tenha um Ministério pra você?

Suspirei:

— Pode até ser. Mas, da minha parte... eu não quero Ministério nenhum, não! Minha vida está boa do jeito que está!

— Se Deus te chamasse para o Ministério hoje você não ia querer, então?

— É uma pergunta difícil de responder. Mas se dependesse de mim — hoje! — eu não queria. Não estou preparado pra isso. É uma coisa diferente, uma coisa nova. Mas a princípio... eu não quero!

— É... se Deus quiser isso vai ter muito o que trabalhar primeiro. — ela também suspirou um pouco. — Mas sabe que eu não vejo isso com maus olhos? De repente... vai saber, né?

"Ela diz isso porque não sabe bem do que está falando...", pensei comigo mesmo.

E nem toquei mais nesse assunto. Voltamos para São Paulo e para nossa vida. Agora era retomar o dia-a-dia, o trabalho, os afazeres de sempre.

 

Em poucas semanas acabamos sabendo o que vinha rolando naquela Igreja depois do meu testemunho. Nem sei bem quem falou, ou como a informação chegou até nós.

Creio que foi mais ou menos na época da Páscoa. Naquele feriado nós resolvemos fazer o curso de "Batalha Espiritual a Nível Estratégico" que nos foi indicado pela Grace.

Isabela não sabia exatamente o que queria dizer aquela expressão toda, mas estava empenhada em me ajudar. E como o incentivo tinha vindo da própria Grace — que até estaria presente no evento de quatro dias — ela insistiu bastante comigo.

— Nós precisamos aprender mais.

— Vai ser aquela canseira! O curso dura o dia inteiro, e são quatro dias...

— Melhor nem pensar nisso. Se a gente ficar pensando que temos que trabalhar na segunda-feira nem vamos descansar no feriado... melhor não ficar pensando! Vamos fazer e pronto!

Então fizemos a inscrição para o curso que seria dado, na maior parte, por um preletor internacional. O programa foi mesmo bem puxado, da manhã até altas horas da noite.

Resolvi entrar em contato com o Pastor Décio, afinal não era ele que estava procurando saber mais justamente sobre Batalha Espiritual? Liguei e convidei-o para vir. Marco já estava no exterior, mas Dona Márcia concordou em hospedá-lo.

E então ele veio. Todas as manhãs, bem cedinho, nós saíamos os três juntos para o curso, no centro da cidade. Geralmente Isabela dirigia e Pastor Décio ia conversando comigo, emendando um assunto no outro. Ele era extremamente falante. Falava até demais, inclusive no meio das palestras, desviando a minha atenção.

Já acostumada às aulas da Faculdade, Isabela se mantinha concentrada o tempo todo. Alguns aspectos da abordagem daquele assunto a tinham fascinado, especialmente a vasta bagagem daquele preletor que conhecia culturas e culturas em todo o mundo.

Acho que Pastor Décio não escutou muito. Volta e meia Isabela fazia um leve comentário:

— Ssshhhhh!.

A visão daquele homem era interessante, parecia conhecer bem o mundo espiritual povoado pelos demônios. Era o primeiro que sabia melhor do que falava, o primeiro que eu percebi ter uma visão com um pouco mais de alcance. Isabela começou a entender como demônios podem infiltrar-se numa cultura, como podem dominar um território. Até então, esse tipo de informação era totalmente novo para ela.

Mas não para mim... espantei-me que aquele homem pudesse saber daquelas coisas!

Isabela anotou tudo o que foi possível, e até emprestou suas anotações para que o Pastor Décio copiasse o que ele tinha perdido enquanto conversava.

Mais tarde comentou comigo sobre o seu entusiasmo com o assunto:

— Interessante o que ele comentou, não acha?

— O mais interessante é como eles sabem disso. — retruquei. Ela pegou a afirmação na unha:

— Como assim?! O que você quer dizer com isso? Quer dizer que ele está certo no que disse?!

Isabela era esperta! Desconversei um pouco, sorrindo.

— É... ele falou com propriedade. Nunca vi nenhum Cristão que tivesse uma visão assim dessa questão dos demônios territoriais. Realmente... ele acertou muita coisa!

Eu ainda conhecia pouco a maneira de Deus agir, pois sempre estive dentro de Igrejas tradicionais e sem visão de Batalha Espiritual. Já não questionava o fato de que Deus era o Criador de tudo, portanto muito mais Poderoso do que o diabo. Mas eu não entendia ainda como é que Deus se comunicava com seus filhos.

— Bom, não é só o diabo que fala com os seus seguidores, né? Tal seria! Deus também fala! E também traz revelações. Ele não "acertou" pura e simplesmente, como se tivesse adivinhado. Talvez pela primeira vez você esteja tendo contato com líderes que realmente ouvem a voz de Deus e recebem informações valiosas do Espírito Santo — falou Isabela espevitada.

— É. Realmente é algo novo. Ele não podia ter adivinhado. De fato... ele acertou em muita coisa!

 

Além de gostar muito do curso, foi aí que ficamos sabendo o que tinha acontecido na Igreja.

Ali havia uma aliança com a Maçonaria! O Pastor titular era Maçom, bem como grande parte da liderança. Como eu tinha falado sobre a relação entre Satanismo e Maçonaria, ainda que sutilmente, aquilo acabou caindo como uma bomba no meio daquele povo.

Burburinhos cada vez maiores e uma grande desconfiança começaram a se alastrar.

Mas a coisa não parou por aí.

Embora essa não fosse a visão geral da Igreja, muita gente começou a perceber que Luz e Trevas não podem estar misturadas.

Vieram à luz as bases em que aquela Igreja era conduzida pelo Pastor Maçom. Realmente havia um grande jugo. Por exemplo, não havia mais reunião de oração. Afinal...

"Orar para quê? Deus é Pai e sabe do que precisamos."

Esse foi o argumento do Pastor para acabar com a reunião. Os jovens reuniam-se na casa de um membro abastado financeiramente toda semana... e que era Maçom.

O líder do Louvor... era Maçom também. Havia Maçons entre os presbíteros e entre os membros. As máscaras começaram a cair. Ficou claro para muitos que aquilo não podia continuar. Tudo bem que os Maçons assistissem ao Culto, afinal podiam converter-se dessa maneira. Mas daí a exercer aquela enorme quantidade de cargos de liderança... isso era completamente fora do propósito de Deus.

Até aí, tudo bem. O problema era que não se podia destituir ninguém porque não havia Poder para isso. O Pastor titular ainda tinha a supremacia. Os meses foram passando.

Marco, que veio nas férias do meio do ano, conseguiu convencer uma parte dos jovens a começar uma vigília de oração uma vez por semana. Ele mesmo encabeçou a lista e foi o grande incentivador do projeto. Realmente a vigília começou a acontecer na casa de alguém, e estavam firmes. Apesar das perseguições e insinuações dos Maçons, que não estavam gostando nem um pouco da situação.

Marco leu sobre Maçonaria e montou uma apostila sobre o assunto. Levou e distribuiu ao pessoal da vigília. Ver como funcionava a Maçonaria só fez com que eles se empenhassem mais.

Montes e montes de sujeira começaram a aparecer, Ministérios e líderes totalmente contaminados e vinculados com o pecado por anos a fio. Mas enfim... uma vitória! O Pastor titular acabou sendo deposto pelo Conselho e o Pastor Décio assumiu o seu lugar em um ano.

Mas as retaliações vieram muito pesadas, de todas as formas.

E a verdade é que eles não conseguiram segurar o rojão. Não se submeteram a Deus. Talvez tenham dado a luta por encerrada uma vez que o Pastor Décio assumiu o cargo. Mas a guerra mal tinha começado, havia tanto a fazer.......

Várias vezes falamos para o Pastor Décio convidar a equipe da Grace para visitar sua Igreja e ajudá-los na libertação. Mas não parecia haver interesse. Eles foram alertados vezes sem conta durante todo o processo, que foi moroso e cheio de detalhes. Mas infelizmente faltou pulso firme e vontade de fazer a Vontade de Deus.

A reunião de oração acabou por desfazer-se, os jovens voltaram a reunir-se na casa do tal "irmão" Maçom. O Pastor Décio sofreu ameaças, seu filho teve um acidente e foi operado. E ele acabou com medo de continuar confrontando os Maçons.

Além do que, como ir contra eles? Eram os mais bem dotados financeiramente falando. E ele não confiou que Deus o honraria no final daquela luta. Ficou em cima do muro, tentando agradar a gregos e troianos. Isso tudo acabou fazendo com que o seu coração se contaminasse, e ele perdesse o prumo da visão.

Aquele estado de coisas também não durou muito. Não adiantou tentar colocar panos quentes naquele vespeiro em polvorosa. A Igreja rachou, perdeu membros e ficou pior do que antes. O Culto continuou frio, amarrado e terrível.

Deus havia trazido toda a podridão à tona. Era papel deles entristecer-se com aquilo, pedir perdão e colocar todo o lixo do diabo para fora. Até mesmo aquele Templo aonde eles se reuniam estava cheio de símbolos Maçons espalhados por todo o recinto. Já tinha sido construído com aquele propósito. Toda sua fundação estava contaminada.

Mas nada foi feito. Uma pena.

A verdade é que, quando Deus revela os intentos ocultos do maligno, o inimigo se enfurece. Vem uma luta terrível, um confronto de forças. E é nesse período em que temos que nos submeter completamente à vontade e direção de Deus. É tempo de confessar o pecado e abandoná-lo, de fechar as brechas.

O pecado revelado e não devidamente tratado traz derrota e desgraça.

 

Quanto a nós... depois que esbarramos naquela Igreja mais do que contaminada, e sem querer cutucamos o ninho das vespas... quando os abalos começaram a repercutir... chegaram, sem dúvida, até nós. Mas levaria ainda algumas semanas. Depois da Páscoa eu e Isabela estávamos decididos a encontrar uma nova Igreja. Não era possível que ficássemos soltos por aí? nós tínhamos comentado com Grace a respeito da posição dos nossos Pastores, um pouco contra tudo aquilo que estávamos aprendendo.

— É... — fez Grace devagar. — Vocês não podem mesmo ficar perdidos por aí, vocês têm que fazer parte de um Ministério que está engajado em Batalha Espiritual.

Ela parou e pensou um pouco. Grace conhecia uma quantidade enorme de Igrejas!

— Por que vocês não vão visitar a Igreja do Pastor Joel? Ele não é o titular, mas é um guerreirão! Tenho muita expectativa nele, Eduardo precisa de alguém que o acompanhe de perto... alguém ombro a ombro. Acho que ele é a pessoa certa, e também fica bem fácil pra vocês, a Igreja é perto de onde vocês moram.

Eu e Isabela ficamos animados porque de fato aquela Igreja ficava a meio caminho entre a casa dela e a minha. Era de muito fácil acesso! Achamos que aquela indicação tinha sido preparada por Deus.

Certo domingo do mês de abril resolvemos então dar um pulo até lá. Na "Comunidade Evangélica Nova Videira".

Chegamos quando o Louvor estava começando. Era uma igreja mais ou menos do mesmo porte da nossa, com mais ou menos a mesma quantidade de membros e do mesmo poder sócio-econômico. Gostamos muito do Louvor e também da pregação. Estávamos curiosos em conhecer o Pastor titular e fazíamos imagens dentro da nossa cabeça.

Quando efetivamente ele apareceu, e pregou, superou nossas expectativas. Trouxe uma Palavra bastante abençoada! Naquele dia ainda não descobrimos quem era o Pastor Joel, mas não faltaria oportunidade. Então começamos a freqüentar aquela Igreja durante algumas semanas.

Ao final delas, estávamos satisfeitos. O Louvor era gostoso, a Palavra era edificante... apesar de ainda não conhecermos ninguém, resolvemos realmente ficar por ali!

Eu estava sentindo falta dos amigos que tinha deixado na outra Igreja. Mas sabia que era fundamental estarmos num lugar com outra visão... os novos amigos haveriam de vir. Quem sabe não estava chegando o tempo de pertencer àquele novo grupo? Aquele grupo que eu tanto almejava, um grupo de apoio?

Enquanto isso não acontecia, Isabela e eu fomos atrás de dois líderes que ela conhecia. Um era Pastor da Igreja de Dona Márcia, e outro era Missionário da JOCUM. Hoje ficamos pensando porque fizemos isso...

Na nossa alma parecia haver uma certa urgência, uma necessidade grande de falar com alguém. Eu compartilhei a periferia da minha história com eles, uma pontinha de nada. Me receberam bem, escutaram, oraram conosco, incentivaram... foram muito solícitos e amorosos! Mas a verdade é que ninguém sabia dizer algo além do que eu estava acostumado a ouvir. Eu conhecia as promessas da Bíblia, e sabia do Poder maior de Deus. Mas queria tanto escutar alguma outra coisa!

Eu tinha visto Grace duas ou três vezes, e havia passado por uma Ministração. Apesar de aquilo ser fundamental, era pouco para a minha alma. Precisava muito de outras pessoas perto de mim! Ah, meu Deus, como precisava! Grace estava sempre viajando, ela não podia "tomar conta" de nós.

É difícil explicar... mas eu sentia alguma coisa diferente no ar... sentia cheiro de fumaça no ar! Mais ou menos como se houvesse alguém à espreita, e eu estivesse vulnerável... e a qualquer momento um golpe pudesse ser desferido contra mim, e acabasse comigo. Não era exatamente uma sensação na alma... ia além disso, parecia ser uma percepção além do natural. Havia alguma coisa que eu não sabia dizer o que era, nem o que poderia me fazer... por perto!

Não me lembro de ter comentado estas impressões com Isabela, mas creio que ela também não se sentia em paz. Assim como eu, no seu íntimo havia um sinal de alerta, um sinal de perigo, um sinal de fogo. Tanto é que partiu dela a sugestão de procurar aqueles líderes.

No fundo, no fundo da nossa alma havia uma necessidade. A necessidade de escutar de alguém que "tudo daria certo", mas não de uma maneira simplista. Havia uma ameaça de morte que pairava no ar, havia um decreto... nós dois não falávamos muito sobre isso, mas aquilo incomodava.

"Você não vai completar 33 anos de idade..."

Eu me julgava escondido. Mas, e se algum dia eles me achassem? Eu estava tendo que falar algumas coisas, por mais que fossem coisas sem muita importân­cia, e se um dia eles me encontrassem?! Não haveria escapatória possível... eu conhecia o Poder do Encantamento!

Por isso, e por muito mais, nós queríamos estar dentro de um pelotão do Exército de Deus. Dentro dele estaríamos seguros... mas, fora... fora não há proteção! Não obstante, parecia estar demorando muito para encontrar aquele pelotão! Fazer parte dele!

Já fazia algumas semanas que estávamos freqüentando a nova Igreja.

"Mas ainda não conhecemos ninguém...", e aquilo me incomodava.

Às vezes, em casa de minha mãe, costumava descer até o porão para fazer alguma coisa, para pegar um livro ou outra coisa qualquer, e me sentia mal ali embaixo. Era como se Abraxas estivesse me olhando, me observando. Ele não aparecia, não se materializava... mas eu me sentia observado.

"Será que isso é coisa da minha cabeça?..."

Nesse tempo eu não sabia conceituar o que era uma opressão, não tinha idéia do que fosse isso. Tinha poucas ferramentas para usar em prol de mim mesmo no Reino Espiritual.

Mas aquela sensação continuava, eu sentia que ele estava ali. De repente, agora era como se eu não fosse mais bem vindo àquele lugar, dentro da minha própria casa! Fosse persona non grata lá dentro.

Uma sensação esquisita...

Fora isso, algumas vezes aconteciam outras coisas que me davam a impressão de "cheiro de fumaça". De haver algo esquisito no ar...

A primeira delas, se bem me lembro, foi em junho.

Ia haver uma festa especial da Empresa para comemorar o dia dos namorados. Seria no Club Hom's, na Avenida Paulista, e os convites já estavam à venda. Tão logo soube do evento — que o Club Hom 's seria fechado para os funcionários da minha Empresa — fiquei entusiasmado. Mais por Isabela do que por mim. Eu ainda me lembrava das aulas de dança que ela quase que tinha me "obrigado" a freqüentar.

Não tinha dado muito certo, na época, por motivos óbvios: não conseguia ver Isabela dançar com mais ninguém que não fosse eu. Mesmo assim, eu tinha aprendido os passos básicos de vários ritmos. Isso queria dizer que nós podíamos nos divertir bastante!

Cheguei para contar a novidade, todo animado: — Olha só, "Mô"! Vai ter um baile dos namorados no Club Hom's!

Isabela se interessou de imediato.

— Sério, é? Puxa vida, que legal!

— É só para os funcionários da Empresa. Você vai querer ir?

— Puxa, mas nem! A gente podia também chamar mais alguém, mais algum casal. Quem sabe a Mayra não está a fim de ir?

E quem a gente chama pra fazer par com ela?

Mayra não estava mais namorando com Walter. Então Isabela sugeriu:

— Será que o Alberto não gostaria? Ele também gosta de dançar!

— Então vou convidá-lo! Você chama a Mayra.

Isabela ficou bastante feliz com a oportunidade, e embora dançar não fosse a mais prazerosa atividade para mim, fiquei contente em poder fazer minha noiva contente. Assim combinados, entrei logo em contato com Alberto. Isabela fez o mesmo com a Mayra.

Como os dois toparam o programa, comprei os convites.

Daí ficamos fazendo planos para a grande noite.

— Vai ser um baile de verdade mesmo! Não vai ser discoteca, vai ser dança de salão. Bem do jeito que você gosta, hein, menina?!

— Pois é, já faz tempo que a gente não arruma um bailinho na casa da Mayra, agora esse veio de encomenda!

— Todo mundo vai. Todo mundo do meu departamento.

Assim ficamos esperando pela data. Ia cair numa sexta-feira, dia 13. Data sugestiva para os supersticiosos! Mas não para a gente, era só mais uma sexta-feira como outra qualquer. Naquela época do ano já estava fazendo um friozinho, ia ser gostoso sair à noite.

Fui para o serviço na sexta-feira como fazia todos os dias, ia de ônibus fretado. Lá pelo meio da manhã liguei para Isabela no seu serviço. Ela entrava bem cedinho, às sete horas, mas depois das nove já estava mais livre.

— Oi, Gatinha! Bom dia! E aí, como é que está o trampo?

— Oi, Nenê, tá tudo bem... o pessoal já tá começando a ficar gripado, sabe como que é, né? E você?

— Aqui tudo normal, hoje foi dia de reunião logo cedo. Aquela história do RDF! — dei até umas risadinhas. — Meu chefe quer atingir a meta de qualquer jeito neste mês! Hoje é dia de "vamos lá"!

— Vocês e essas metas que nunca dão certo...

— Tá animada pro baile?

— Com o baile eu estou, e você? Descansou bem à noite? Hoje o Nenê vai ter que dançar muuuito com a Gatinha!

— O Nenê vai dançar, fica tranqüila, Gatinha! Mais tarde te ligo na sua casa, pra gente combinar melhor o horário. Combinei com o Alberto na porta do Club.

Tá bom, Nenê... deixa eu desligar que tem ficha aqui... — Falô, "Mô"!

O restante da manhã transcorreu sem novidades. Veio a hora do almoço, mais ou menos meio-dia. Descemos todos, almoçamos, descontraímos. Eu subi um pouco antes dos meus colegas ao departamento para fazer umas coisinhas.

Logo eles vieram entrando. Aí um deles olhou para mim e falou:

— Sua cara tá esquisita! Tá vermelha!

O pessoal do meu departamento tinha o hábito de tirar sarro de tudo. Por isso, não liguei para o comentário:

— E daí?

— Não, não é brincadeira... sua cara tá vermelha mesmo, tá meio empipocada. Um outro concordou com o primeiro:

— É mesmo, Mastral! Vai dar uma olhada no banheiro.

Parecia que eles estavam falando sério, então fui ver. Olhando no espelho, percebi que minha pele apresentava uma reação parecida com urticária. Só no rosto e no pescoço.

"Ué... que negócio mais estranho... será que estou com alguma alergia?"

Relembrei mentalmente se tinha passado alguma coisa diferente no rosto. Não tinha. Eu estava usando os mesmos cosméticos e as mesmas roupas de sempre.

"Bom, acho que vai passar sozinho".

Voltei para o setor e continuei trabalhando normalmente. Lá pelo meio da tarde, embora me sentisse bem, a tal reação não melhorou.

Um dos meus colegas me olhou melhor.

— Gozado... você não estava assim há pouco tempo. Parece que está mais vermelho ainda... será que foi alguma coisa que você comeu?

— Acho que não. Não deu nem tempo de absorver a refeição e já tinha aparecido isso. O pessoal notou logo que subiram do refeitório!

— Se você não melhorar, dá um pulinho até a enfermaria! Mesmo assim, não quis dar o braço a torcer.

— Ah, não deve ser nada! Acho que já, já passa.

Não paravam de comentar. Quem passava perto dava o alarido após olhar para mim rapidamente:

— Eduardo, seu rosto está todo vermelho! Você está se sentindo bem?

— A bem da verdade, até que estou... só está meio calor aqui, não?

— Nossa, vai até à enfermaria! Não fica aqui desse jeito, dá uma passadinha no Médico.

Então acabei concordando. Não estava melhorando, o que seria aquilo? Meu chefe nem estrilou, apesar do RDF e das metas, e me mandou à enfermaria. O Médico não estava naquele horário, mas a enfermeira me garantiu que ele chegaria logo.

— Será que você está com sarampo? — indagou ela.

— Não estou sentindo nada. Não pode ser sarampo!

Subi para o departamento outra vez sem dar maior atenção para aquilo. Eu não estava me sentindo mal, não podia ser nada grave. Voltei mais tarde para falar com o Médico.

Logo de cara ele achou que podia ser uma reação alérgica. Mas, ao verificar a temperatura, descartou a hipótese. Eu estava com febre de 39°.

— Mas eu estou me sentindo bem! Só está meio calor.

— Deixa eu ver a sua garganta. Hummm... — ele me olhou de volta. — Sua garganta está ótima! Esse rash cutâneo, com essa febre, bem podia mesmo ser um sarampo— até mesmo uma rubéola. Mas você só tem lesões no rosto, teria que estar aparecendo no corpo todo. Essas doenças infantis, quando acontecem no adulto, são até que bem floridas, você ia ficar cheio de gânglios... estaria com a garganta ruim... se fosse sarampo ia aparecer uma lesão característica na garganta. Esquisito! Por outro lado, reação alérgica não dá esse febrão. Você tem certeza que não passou nada diferente no rosto?

— Certeza absoluta! Não fiz nada de diferente...

— Muito menos foi o almoço, não?

— Acho que não... todo mundo comeu a mesma coisa, não tinha nada de especial... e assim que subi para o departamento já estava com o rosto assim.

Ele me examinou muito bem e me encheu de perguntas. No final, com um sinal de interrogação no semblante, apenas medicou a febre e explicou:

— Tem coisas em Medicina que a gente não consegue explicar bem. O seu quadro é estranho, não parece ser alérgico, mas também não dá para a gente afirmar que é uma doença infecciosa. Vou te dispensar hoje, e se você não melhorar... a gente investiga melhor.

Voltei para minha sala pensativo.

Por dentro parecia que alguma coisa me incomodava. Aquele versículo do Salmo 91, o que fala sobre "a seta que voa ao meio-dia", ecoava no meu espírito.

Não dei atenção. Aquilo não tinha o menor senso, a menor lógica!

"Seta que voa ao meio-dia..."

Não gastei mais do que alguns segundos lembrando daquilo, eu conhecia aquele demônio, era familiar para mim. Trata-se de um Principado forte... mas por que eu estaria sendo vítima de um Encantamento, se eles não sabiam onde eu estava?...

Não orei, recusei-me a pensar naquilo. E, uma vez de volta ao departamento, tratei de cuidar dos meus afazeres. Logo era hora de ir embora e Isabela viria buscar-me, portanto nem iria usar o atestado Médico.

"Não está melhorando... eu queria que melhorasse... hoje é sexta-feira, dia 13, mas... não! Me recuso a aceitar essa hipótese!"

Mesmo assim, aquela história de "seta que voa ao meio-dia" continuava na minha cabeça.

Quando deu o horário de saída, desci e Isabela já estava parada lá na frente, dentro do fusquinha. Assim que abri a porta e ela olhou para mim, notou as lesões.

— Nenê! O que você fez no rosto? — Nem eu sei...

Ela se inclinou para olhar melhor.

— Parece urna reação alérgica...

Fui explicando tudo para ela enquanto pegávamos a Marginal. Quando acabei de falar, Isabela indagou logo:

— E você orou? Orou depois que lembrou do versículo? — Não.

— Mas, Nenê... puxa... você devia ter orado! Você passou a tarde toda assim, e nem sequer colocou isso para Deus? E se for mesmo um ataque?

— Ah. Não orei...

Mais tarde nós dois oramos juntos porque Isabela fez questão. Eu não estava no melhor da minha forma física, mas mesmo assim fomos à festa. Embora Isabela estivesse preocupada com meu estado de saúde, eu não quis frustrá-la e nem desmarcar com os nossos amigos.

— Eu estou bem!

— Você tem certeza? A gente pode não ir!

— Não, não... estou bem.

A festa foi boa, deu pra gente dançar bastante, dar umas boas risadas junto com Mayra e Alberto. Mas aquilo ficou na minha cabeça.

"Será...?"

Algumas datas são mais fortes do que outras para demônios atuarem, alguns horários também. Se eu fosse levar em conta a Numerologia, uma sexta - treze tinha um contexto espiritual mais forte do que uma outra data qualquer...

O fato é que no dia seguinte a reação já era praticamente inexistente. Parecia que eu tinha tomado um banho de sol. No outro dia não tinha mais nada.

Se este fosse um fato isolado, não daria maior importância a ele. Mas a verdade é que nas últimas semanas eu e Isabela começamos a ter estranhas brigas, sempre nos finais de semana. Isso não era comum. Durante a semana, quando havia pouco tempo para estarmos juntos, tudo corria às mil maravilhas. Mas nos fins de semana, quando era tempo de relaxarmos nossa cabeça, brigas aconteciam e nos roubavam a paz. O descanso era prejudicado de uma forma tremenda.

Nossa saúde estava sempre abalada por gripes que se sucediam. Volta e meia eu comecei a ter dores de estômago fortes e inexplicáveis.

Aquilo parecia mais do que coincidência.

Mas nós não pudemos, naquele momento, fazer qualquer tipo de associação destes fatos com o evento do testemunho que dei no Carnaval. Afinal, fazia quatro meses que tinha acontecido! Quem ia pensar nessa associação?!

Acho mais plausível acreditar que tenha sido uma somatória.

Primeiro, claro, houve a minha Ministração com a Grace, no final do ano passado. Sem dúvida alguma aquelas renúncias, confissões e orações de guerra tinham causado seu abalo no Reino Espiritual.

Depois, aquele testemunho que acabou trazendo revelações importantes para uma Igreja não podia ser desconsiderado.

E ainda, em terceiro lugar, Deus nos havia mostrado nossa nova Igreja. Agora estávamos freqüentando um lugar aparentemente bem diferente daquele de onde tínhamos vindo.

O Reino das Trevas começou a mover-se. Mas... eu não estava escondido?...

Se nós tivéssemos nos limitado a participar da Ministração e ido em busca de uma nova Igreja, creio que Deus talvez nos tivesse mantido escondidos por mais tempo. Mas a precipitação em testemunhar, em fazer aquilo que Deus não tinha mandado fazer, acabou sendo a brecha para que a Irmandade me localizasse.

O entendimento destas coisas demorou a vir. Na verdade, só veio muito tempo depois. As coisas começaram a acontecer, mas, enquanto aconteciam, mais assemelhavam-se a fatos isolados, coincidências, acasos... nada que nós enxergássemos como fazendo parte de um todo, de um processo novo que começava em nossas vidas.

Nós não estávamos entendendo nada. Muito menos associando isso a alguma espécie de ataque do inimigo.

Mas aí aconteceu um fato novo.

 

Era um começo de noite, Isabela e eu entramos no Fran 's Café para fugir do ventinho gelado do começo do inverno. A gente adorava ir lá para tomar capuccino e comer pão de batata.

Nada tinha acontecido de especial naquele dia, mas eu me sentia um pouco estranho, meio apreensivo. Isabela costumava notar essas mudanças de humor com facilidade porque não faziam parte do meu temperamento cotidiano.

Normalmente eu estava alegre, brincando. Mas já fazia algum tempo que estava mais calado, introspectivo, meio alheio a tudo. Desde a tarde que vinha assim.

Isabela estava falante enquanto desembrulhava uma das mentinhas de chocolate que acompanhavam o café. Estávamos sentados numa mesinha perto da porta e dali dava para perceber o vento que agitava tudo à volta. Talvez chovesse mais tarde. Na avenida Heitor Penteado o fluxo de automóveis e coletivos iria até tarde.

— Tá tudo bem mesmo, Nenê? — perguntou Isabela mais uma vez. Ela já havia perguntado várias vezes.

Olhei para ela, notei seu rosto apreensivo. Naquele dia Isabela usava um casaco jeans por cima da roupa branca que lhe dava um ar despojado. Dessa vez, demorei um pouco mais na resposta.

— Não sei... hum.....Gatinha. — olhei em derredor sem entender direito aquela sensação que me assaltava tão de repente. — Eu acho que preciso telefonar para a minha casa agora.

Naturalmente que ela não entendeu o meu senso de urgência, mas continuou sentada na mesinha enquanto eu caminhei rapidamente em direção ao telefone público ali no canto.

Aquela sensação que tinha me invadido de repente, enquanto eu tomava o meu café, era algo totalmente diferente de tudo que eu já tinha sentido. Que seria aquilo, meu Deus?!! Parecia que uma luz vermelha tinha acendido dentro de mim, um sinal de alerta.

Foi mais ou menos como se eu pudesse pressentir um perigo no ar, mas não da maneira humana. Todo mundo já teve um pressentimento pelo menos uma vez na vida, isso é uma característica da alma humana. Mas não era um pressentimento daquele tipo, não era o tal do "sexto sentido". O ser humano liga seu sistema de alerta quando os seus sentidos físicos percebem o perigo à volta. Por exemplo, na iminência de um acidente, todo mundo é capaz de antecipar que algo ruim vai acontecer.

Mas não era isso. De alguma forma que não poderia explicar, eu estava captando aquela iminência de perigo, mas não sabia qual dos meus sentidos estava sendo usado para me trazer aquela informação. Podia realmente pressentir o perigo, mesmo sem vê-lo. Não era uma sensação vaga, antes bastante intensa, bastante certeira. E tinha certeza daquilo, de alguma maneira eu tinha certeza absoluta... mas não era uma informação que vinha da minha alma; vinha do meu espírito, mas eu não sabia disso ainda.

Não tinha idéia, nunca tinha ouvido falar e muito menos sabia o que era o discernimento espiritual. Por isso nem pensei nisso, sequer me passou pela cabeça que Deus pudesse estar me dizendo algo, sinalizando algo.

Então liguei, falei com minha mãe. Voltei para nossa mesa em poucos minutos. Isabela se assustou com a expressão do meu rosto. Era difícil falar qualquer coisa, ela notava que eu estava diferente, alguma coisa dentro de mim alterou minhas feições.

— Está tudo bem? — perguntou ela meio preocupada. — O que aconteceu? Aconteceu alguma coisa?

Não respondi de imediato. Peguei o cardápio nas mãos somente para ter o que pegar.

— Eu já te explico. Deixa só eu metabolizar um pouco...

— Meu Deus, aconteceu alguma coisa ruim?!

Não, não... só foi.... diferente, é isso. Foi uma coisa diferente!

Ela me deixou comigo mesmo por um tempo, pedimos outros capuccinos. Isabela, apreensiva com o que poderia estar ocorrendo, não agüentou e perguntou de novo.

— Mas o que aconteceu, Edu? Tá tudo bem mesmo?! Me conta o que está acontecendo, vai... desse jeito não consigo nem aproveitar o café!

Então falei. Mas devagar, escolhendo as palavras, um pouco confuso ainda com o que tinha acontecido.

— Eu não sei te explicar bem o que foi. Mas logo que a gente entrou aqui, fui invadido por uma sensação diferente. Como se algo me dissesse que eu tinha que ligar pra casa.

— Como assim?!

— Não sei explicar. Uma sensação... como se alguém me dissesse: "Liga pra casa... tem algo lá que você precisa saber agora".

Era isso mesmo. Aquela sensação me mostrava, além do perigo, que havia algo na minha casa que eu precisava saber naquele momento.

— Mas quando foi isso, foi aqui mesmo?

— Isso. Aqui mesmo, quando a gente entrou. A próxima pergunta dela era óbvia:

— Bom.... e tinha algo que você precisava saber?

Balancei afirmativamente a cabeça. Nem eu conseguia entender aquilo, tinha acontecido comigo, mas eu não sabia explicar como tinha acontecido!

— Tinha mesmo. — E o que era?!!

— Uma carta. Tem uma carta pra mim lá. Chegou hoje. Uma carta dos Estados Unidos.

Fiquei mudo e ela também. Isabela não queria perguntar mais nada embora dessa vez fosse a sua vez de mudar a expressão do rosto. Acompanhei seus pensamentos:

"Só tem um lugar de onde pode ter partido essa carta...".

Mas eu não queria aceitar de imediato a hipótese.

. — E você conhece alguém nos Estados Unidos...? — perguntou Isabela, apenas por perguntar.

Nós dois nos entreolhamos desconfortavelmente. Eu ainda tentava filtrar tudo aquilo, não conseguia entender, por que eu tinha ficado sabendo da carta antes de ver?

— Bem... alguém, não.

Isabela suspirou de leve, cheia da mesma sensação de mal estar que também teimava em invadir-me:

— Eduardo, não vai me dizer que isso aí é da Church! — exclamou ela.

— Pois é, acho que é, sim. Minha mãe leu no envelope que veio de São Francisco. Ela não sabia o que dizer. Nossos capuccinos jaziam esquecidos sobre a mesa.

— Mas por que isso agora, meu Deus? Por que será?!

— Não sei. Mas olha, não vamos pensar nisso. Vamos tomar o nosso café e depois ficamos sabendo.

Mas ela não conseguia parar de conjeturar a respeito.

— E como será que você ficou sabendo antes de ver carta? Será que foi mesmo Deus que avisou?

— Eu não sei o que pensar, Isabela. Depois pensamos nisso. Não deve ser nada de importante. — e eu sorri procurando tranqüilizá-la. — Agora vamos aproveitar o nosso café!

"Será que é Deus falando comigo?"

Mas não imaginava que Deus pudesse falar daquela maneira. Então, naturalmente... não tinha sido Deus! Tinha sido um pressentimento, apenas isso. A gente sempre escuta aquela coisa das pessoas falando: "Estou tendo um mau pressentimento". Isso é fato, é comum!

Era isso.

Mas aquela sensação indistinta e totalmente ímpar que tive, pela primeira vez naquela noite, viria a confirmar-se vez após vez. Foi a primeira manifestação do Dom de Discernimento que o Senhor estava me dando. Nós viríamos a precisar disso no futuro!

Como não adiantava mesmo ficar pensando naquilo, acabamos por deixar de lado o assunto. Era melhor aproveitamos o momento de descontração um com o outro.

Quando saímos, estava frio e caía uma chuvinha. Isabela me deixou em casa, que era bem pertinho dali. Nós nos despedimos com um beijo e um abraço. Sempre me olhando significativamente, com um certo pesar, Isabela esperou que eu destrancasse o portão antes de acelerar o carro. Acenou de longe e certamente foi para sua casa pensando que naquele momento eu deveria estar abrindo o envelope que tinha vindo dos Estados Unidos.

Foi exatamente o que fiz assim que pus os pés em casa.

Antes disso, perguntei a minha mãe:

— Está tudo bem?

— Tá, sim. Por quê? — Ah! Por nada...

E fui direto xeretar na estante onde ficava a correspondência. Assim que olhei o envelope, toda e qualquer dúvida que ainda pudesse existir no meu coração se desvaneceu. Eu conhecia aquele material, conhecia aquele tipo de papel... era um envelope pardo, mais grosso do que o convencional e um pouco maior. Num dos cantos estava impresso um pequeno logotipo... que eu também conhecia...

"Mister Daniel Mastral......hum..."

A primeira idéia que me veio à mente foi aquela mesmo: "Localizado..."

Mas aí pensei melhor, talvez eles estivessem apenas jogando verde pra colher maduro. Talvez eles quisessem ter certeza de que eu estava morto... porque, no meu coração, eu tinha uma forte convicção de que realmente eles pensaram que eu estava morto. Eles sempre me disseram que os poucos gatos pingados que tentaram escapar da Irmandade tinham morrido. O fato de Thalya ter me procurado parecia não existir. Não fazer diferença. Tinha sido há tanto tempo, uma manifestação tão isolada...

"Eu sei que eles foram enganados, eu sei que os demônios foram enganados e eles pensam que eu morri."

Eu acreditava que, se ficasse quieto, se não falasse nada de importante, se não chamasse a atenção de ninguém... eles nunca iriam me descobrir!

Olhei para o envelope antes de abrir. Não adiantava esperar mais, rasguei-o e abri. Esperava ansiosamente que fosse um engano, esperava que não passasse de um alarme falso.

Mas não era.

Desdobrei o papel parecido com um pergaminho. No alto da página, o pentagrama. Inspirei fundo. Estava em inglês. Eram frases curtas, escritas com letras grandes.

"Por que cargas d'água eles estão fazendo contato?? Depois de tantos anos...!?"

Muito difícil dizer o que senti ao tomar nas mãos o conteúdo da carta. O que tanto temi, enfim acontecia. Não era como a visita isolada de Thalya. Era uma manifestação mais formal. Não havia a menor sombra de dúvida. Eles tinham me encontrado... a partir daí, eu sabia, era uma contagem regressiva e inexorável.

Hoje percebo com mais clareza porque Deus me sinalizou antes, daquela maneira estranha, fazendo-me sentir o perigo exalando no ar. Era porque a carta estava consagrada, aquilo não era somente papel. Deveríamos ter orado antes. Logo observei aquelas manchas em tom marrom, como que respingadas sobre o papel. Eram manchas de sangue, eu sabia disso, mas... naquela hora estava perdido! O que deveria fazer a respeito?

Nem parei para pensar naquele sangue, muito menos para orar quebrando o Encantamento. Aliás, eu não sabia como fazer isso, não sabia o que fazer para lidar com aquela situação. Eu não sabia como lutar! Tudo em que conseguia pensar era aquilo, que eles tinham me achado!...

Esforcei-me para tentar entender com rapidez de que se tratava aquilo. Estava meio assustado e não conseguia traduzir literalmente, mas entendi uma ou outra coisa.

"Deve haver um dicionário de inglês em algum lugar..."

Enquanto eu procurava, o telefone tocou. Mais depressa do que de costume.

Era Isabela que tinha chegado em casa e me ligava imediatamente.

— E aí? Leu?

— Mais ou menos. Está em inglês.

O meu inglês continuava tão bom quanto antes. Isso é... continuava péssimo. O dela também não era muito bom, mas Isabela reclamou, ansiosa:

— Lê aí, então! Vamos tentar ver o que diz.

Comecei a ler e ela tentava entender. Mas foi impossível!

Então ficou para o dia seguinte. Se eu tivesse comentado com Isabela sobre as manchas de sangue, sobre a certeza que eu tinha de que aquilo estava consagrado, certamente nós teríamos orado. Ela tinha uma visão a mais de Batalha Espiritual, ela sabia melhor o que fazer, pelo menos teoricamente. Mas eu quis poupá-la dos detalhes. No entanto, todo o meu esforço seria vão, eu queria poupá-la de algo que o próprio Deus não a pouparia.

No serviço, tirei um xérox do pergaminho que exibia o símbolo da Alta Magia e passei a cópia para Isabela em casa, por fax. Tão logo traduziu a carta, ela me ligou no serviço. Leu o texto todo. O que estava escrito queria dizer, em poucas palavras: "Nós te achamos. Nós sabemos que você esta ai."

Depois dessa constatação, procuramos ser otimistas e não nos deixarmos levar.

— Em suma... é uma espécie de evocação bem suave do passado, você não acha? Estão sendo bem sutis... — começou Isabela.

— É mais ou menos por aí. Nas entrelinhas eles querem tocar no lado emocional da coisa e me convencer do quanto errei em abandonar a Irmandade. "Abandonei aqueles por quem fui amado... etc. ..etc. .."

— E o Poder que isso representava...

— Muito educadamente estão alertando para eu ficar com a boca fechada, não sei se você percebeu.

— Percebi, sim. "Conservar o silêncio é conservar a vida". — não era o fim do mundo, ela procurava se convencer disso. — Não é intimidadora às claras, nem grosseira. Eu acho mesmo o máximo essa história de procurarem lembrar do quanto você foi "amado". É brincadeira! — a voz dela soava num misto de inconformismo e espanto. E completou: — O que eles querem dizer com isso aqui: "Você se lembra daquele dia no Teatro? Aquilo era Poder de fato?" Do que estão falando, você sabe?

— Sei, sei... já nem me lembrava mais. Depois eu te falo, agora não dá.

— Tá bom, Nenê... mas, olha... não vamos dar bola pra isso, né? — ela queria sentir o quanto aquilo poderia ter me abalado a alma.

— Claro que não! Mas o que eles disseram era previsível.

— Por que será que fizeram isso?

— Não sei.

— E a carta de verdade?

— Já joguei fora. Queimei! Não queria ficar com aquilo mais tempo.

Puxa, eu queria ter visto.

— Parecia um papiro. Mas não era bom guardar comigo até o fim do dia. Essas coisas vêm contaminadas!

Isabela ainda não entendia bem o contexto dos objetos consagrados e dos Encantamentos. Mas concordou. Embora um pouco frustrada. Mais tarde eu lhe explicaria tudo direitinho...

Fiquei pensando muito depois. Eu conhecia a Irmandade. Aquela carta parecia muito mais uma advertência de um amigo, do que uma clara ameaça da Organização. Pensei inclusive que ela poderia ter partido do próprio Marlon. O burburinho gerado dentro daquela Igreja toda contaminada com Maçonaria deveria ter despertado alguma suspeita. A que só a alta cúpula da Irmandade teria acesso!

A alta cúpula da Irmandade me conhecia, e alguém deve ter percebido que eu estava começando a "pôr as manguinhas de fora". Por esse motivo, penso que aquela carta não foi realmente uma ameaça, mas uma orientação de um amigo. Um sinal de "tome cuidado".

Hoje eu percebo que de fato Deus tinha me preservado, tinha me mantido escondido. Claro, desde que comecei a namorar Isabela que o Reino Espiritual estava se movendo, os demônios estavam alertas... mas eles não tinham autorização de contar isso para os Filhos do Fogo! Porque a História está nas mãos de Deus!

Porém, a partir do momento em que, de forma imprudente, me expus... fiz o que não devia fazer... aquela proteção de Deus foi retirada. E a Irmandade pôde me ver, pôde seguir o meu rastro. Isso ia acontecer de qualquer maneira, em algum momento. Mas talvez acontecesse mais tarde, não sei. Talvez fosse de outra maneira.

Mas o fato é que foi assim.

Além disso, eu tinha começado a ser ministrado pela Grace... tinha mudado de Igreja......hoje eu consigo somar as peças. Mas não naquele momento, naquele momento eu não entendia porque eles haviam conseguido me encontrar.

Aquela carta foi um marco. Estava começando um novo período. Naturalmente... a gente não tinha a menor condição de se dar conta disso!

 

Naquele mês de junho, na véspera do aniversário de Isabela, Grace tinha marcado uma nova Ministração. Nós não questionamos aquilo... parecia estar claro para todos que havia muito a ser tratado na minha vida. A própria Grace demonstrava uma especial preocupação para comigo, um senso de responsabilidade, por assim dizer.

Afinal, eu tinha ido parar bem ali, bem nas suas mãos. Já se haviam passado mais de seis meses desde o curso, desde nosso primeiro encontro. Mas como ela mesma explicou, a Ministração que acontece dentro dos seminários é mais ou menos como um pronto-socorro.

— A gente faz o que é possível dentro do tempo que dispomos... Deus usa, Deus age... mas, Eduardo, no seu caso vamos ter que fazer um trabalho mais minucioso, talvez mais prolongado. Talvez você precise de mais de uma Ministração.

Grace estava com a agenda cheia, lotada de afazeres, de viagens. Depois que ela nos viu no Congresso de Batalha Espiritual, na época da Páscoa, parece que aquele senso de responsabilidade voltou a falar mais alto. E logo ela marcou uma data para nos encontrarmos e efetivamente darmos continuidade à Ministração.

E era naquele dia. Na véspera do aniversário de Isabela.

Não questionamos dia e hora, simplesmente demos um jeito de estar lá. Era importante.

 

Cerca de um mês depois deste episódio, uma nova pessoa entrou em cena na minha vida e na vida de Isabela. A princípio, nós não imaginamos o quanto ela seria importante.

Aconteceu assim: certo dia estávamos na nova Igreja, a Comunidade Evangélica Nova Videira, e Marco, que estava passando férias no Brasil, foi conosco para conhecer.

Nessa ocasião, num determinado momento do Culto, uma senhora teve a palavra para compartilhar um breve testemunho. Nada demais, ficamos olhando enquanto aquela senhora ligeiramente gordinha e de cabelos pretos subiu ao púlpito. Aí ela foi falando, sem delongar-se excessivamente, foi contando sobre uma viagem que ela tinha acabado de fazer. Tinha sido uma viagem Missionária e, neste País ao qual ela se referia, os vínculos com a Maçonaria eram muito fortes.

Até aí, tudo bem. Quando chegou o final do Culto, Marco correu atrás da mulher todo entusiasmado.

— Que legal que ela tem experiência com Maçonaria! Pode servir para aqueles nossos amigos do interior!

Eu e Isabela não ligamos muito, nem fomos junto com ele. Observei que Marco conversava com a tal senhora, mas de longe. Não foi nada que tivesse me chamado a atenção. No entanto, para nossa surpresa, ele marcou uma conversa com ela para um outro dia. E fez questão que Isabela e eu estivéssemos junto.

— Quem sabe ela não pode ajudar você também, Eduardo? Parece que ela tem experiência nessa área.

Nem sei porque concordamos. A verdade é que a gente precisava conhecer alguém naquela Igreja, por que não começar com aquela diaconisa? O objetivo principal era esse, conhecermos alguém, começarmos por algum lugar...

Assim, ficou então combinado e marcado.

Mas fomos ao encontro sem qualquer expectativa maior, na verdade era Marco quem tinha mais interesse naquela mulher por causa da Maçonaria. E, para ser sincero, na verdade ela não tinha realmente experiência nessa área, foi apenas um testemunho isolado, fruto de uma viagem. Ela não lidava com isso no dia-a-dia! Nem sequer estava exibindo aquele rótulo de quem tem alguma coisa a ver com Batalha Espiritual.

Então, se formos parar pra pensar... nosso encontro aconteceu quase que do nada! Aconteceu porque tinha que acontecer.

No dia do encontro, sentamos todos numa salinha ali mesmo na Igreja, em roda, e foi Marco que começou a falar. Isabela estava muda, e eu também. Embora Dona Clara me tivesse parecido uma pessoa boa, eu não tinha nada para conversar com ela.

Marco foi discutindo aquela coisa toda de Maçonaria, contando da Igreja dos seus amigos, e nós fomos ouvindo. Só que lá pelas tantas ela falou:

— Mas, olha... quem se envolve com uma coisa dessas está perdido... não tem mais jeito! Não tem volta!

Eu já estava calado, mas nessa altura fiquei completamente estarrecido. Acho que Isabela sentiu-se exatamente do mesmo jeito.

"Puxa, é melhor eu nem falar nada mesmo...", cochichei para meus botões.

Marco percebeu que a coisa ia ficar feia, então cortou o assunto de Maçonaria e explicou:

— Bom, vamos logo ao que interessa... a verdade é que nós marcamos essa reunião com a senhora não só por causa disso que eu estou falando. Mas é que o Eduardo foi Satanista... e acho que ele precisa de ajuda.... e então....

Justamente nessa hora Dona Clara mudou a expressão do rosto e exclamou:

— Fiquem aqui e orem em línguas porque está vindo um ataque! O ataque esta aqui! — daí levantou e saiu da sala aos trancos e barrancos, rapidamente.

Não entendi nada, sinceramente. Eu não estava acostumado com essa linguagem meio pentecostal e, na minha cabeça, eu pensei que aquilo fosse literal. Fiquei completamente aparvalhado, sem saber o que fazer. O que ela queria dizer com "o ataque está aqui"?!

Tudo em que pude pensar foi que devia ter gente estranha na porta da Igreja. E como ela tinha se manifestado daquele jeito exatamente na hora em que Marco falou de Satanismo...

"Meu Deus... acho que acharam a gente! Será que acharam a gente?"

Como para mim o ataque era literal e devia haver pessoas invadindo a Igreja naquele exato instante, certamente Dona Clara saiu correndo para ir... em defesa, o que mais!? Ou melhor, talvez tivesse ido chamar alguém que pudesse defender a Igreja do ataque. Chamar mais gente, chamar a polícia... talvez Dona Clara tivesse recebido uma ordem clara de Deus e estivesse indo trancar a porta, ou avisar alguém!

Naqueles poucos segundos que sucederam a saída dela tudo isso passou pela minha mente, em flashes. Eu tinha certeza que não era algo espiritual, do jeito que ela falou tinha que ser uma coisa física realmente, havia pessoas ali.

No entanto, logo me dei conta do meu erro. Olhei para Isabela que, apesar de estranhar um pouco aquela atitude, orava em línguas baixinho. Marco fazia a mesma coisa. A sala jazia em silêncio, eles não conversavam entre eles, mas não pareciam preocupados. Eu não sabia o que fazer! Apesar de ter acontecido comigo algumas vezes, aquela coisa de oração em línguas, eu continuava relativizando tudo, achando que fosse mais fruto da alma do que realmente manifestação de Deus.

Quando finalmente Dona Clara voltou, tratou de explicar com mais calma:

— Tive que ir ao banheiro... senti na hora que era um ataque, eu estava bem antes!

Ao perceber do que se tratava, fiquei um pouco frustrado. Quebrou um pouco o meu respeito inicial por ela...

Mesmo assim, retomamos o assunto e ela explicou melhor o que tinha querido dizer sobre "não ter mais jeito" para pessoas que se envolveram com Maçonaria:

— Eu quis dizer que "não tem mais jeito" quando falta o arrependimento. Porque pessoas que vão tão a fundo nessas coisas normalmente acabam perdendo a capacidade de se arrepender. Entraram tão de cabeça, e a lavagem cerebral foi tão grande que eles não conseguem mais ouvir e nem acreditar na Palavra de Deus. Mas é claro que se acontecer da pessoa se arrepender, sempre tem jeito, sim! Deus sempre vai libertar e fazer uma coisa nova na vida dessa pessoa. Entenderam?

Fizemos que sim com a cabeça, um pouco mais aliviados. Se ela acreditasse mesmo naquilo não ia ter como irmos adiante na conversa. Então Dona Clara quis saber melhor de que se tratava o meu envolvimento. Mas eu não estava disposto a falar, então falei muito pouco, abri muito pouco, dei uma pálida idéia. Isabela, prudente, também não entrou em qualquer detalhe.

Fiquei olhando fixamente para ela, sondando suas reações. E, incrivelmente... ela não me olhou como um objeto de curiosidade! Isso me espantou!

Ela simplesmente terminou a reunião orando conosco. E disse que durante a semana conversaria com o Senhor para saber que atitude tomar em relação a nós. "Nós", ela queria dizer: eu e Isabela.

— Eu entendo que a situação de vocês é muito delicada e séria. Já que vocês de certa forma vieram procurar ajuda, tenho que buscar do Senhor a estratégia certa.

Quando saímos de lá, Isabela comentou comigo:

— O que você achou dela?

— É uma senhora simpática... e você?

— É simpática.

Jamais nos passou pela cabeça a resposta que Dona Clara teria para nos dar no próximo domingo. Ela realmente nos surpreendeu:

— O Senhor me mandou acompanhar vocês, orar com vocês uma vez por semana.

E falou aquilo simplesmente, com simplicidade mesmo, como se não estivesse fazendo nada de mais. Apenas cumprindo uma ordem de Deus.

Aceitamos. Nem sei porque aceitamos. Aconteceu porque tinha que acontecer!

 

Foi assim que eu me aproximei tanto de Grace quanto de Dona Clara. Parece que Deus tinha mesmo inclinado o coração delas na nossa direção. Não que a gente visse isso com esta clareza naquela época, naquele momento. Vemos isso hoje, porque o passar dos anos nos mostrou aquilo que naquele momento nós não tínhamos condição de perceber.

Ou seja: não aconteceu por vontade humana, nem nossa nem delas. Mas foi vontade de Deus. Ele tinha um propósito muito especial em colocar aquelas duas senhoras, aquelas duas mulheres perto de nós. O tempo mostraria isso!

Nós íamos precisar daquela sustentação.

 

Eu não conhecia a Grace ainda. Tinham sido apenas dois encontros! A princípio, não tinha muito que afirmar sobre ela. Quer dizer, excetuando o fato de que me pareceu uma pessoa cheia de idéias meio estranhas, Grace parecia ser boa pessoa.

A despeito disso, no começo eu achava tudo muito esquisito. Partindo do seu próprio linguajar: ela estava acostumada a usar termos muito simbólicos, falava em escudos espirituais, em "amarras", em "fios", etc. E eu não conhecia essa linguagem, não conhecia essa "liturgia", por assim dizer.

Também tinha aqueles termos estranhos: amarrado, amordaçado... acorrentado. No início, eu entendia isso literalmente. E imaginava o demônio realmente acorrentado. Mas, por outro lado, achava muito difícil que isso realmente estivesse acontecendo.

Aos poucos fui percebendo que existia uma restrição de vocabulário humano para descrever estas situações; então, aquele jargão na verdade significava muito mais do que a palavra em si podia expressar.

Entendi que termos como "amarrar", "acorrentar" eram apenas força de expressão. Aquilo queria dizer, em outras palavras, que nós estávamos impedindo um demônio de agir, ou pelo menos estávamos restringindo os seus movimentos, a sua atuação. Equivale a dizer "amarrei o seu carro"; e isso não quer dizer que passamos correntes em volta dele. Quer dizer que tiramos a gasolina, ou tiramos uma peça fundamental do motor...

No entanto, logo de cara, durante o curso que tínhamos feito no ano passado, em alguns momentos eu tinha a impressão de que estava lidando com pessoas que beiravam o fanatismo. Estranhei muito o Louvor de Palmas que fizemos no curso e também o conteúdo das visões que as pessoas diziam ter.

No entanto, quando fiquei frente a frente com ela na sala pela primeira vez, Grace me tratou bem. Me tratou com carinho, com respeito e com amor. Deu-me atenção. Eu não estava acostumado a receber esse tipo de tratamento por parte dos Cristãos. Por isso a atitude humana de Grace me fez enxergá-la de outra maneira.

"Independente do que ela possa crer, está me tratando como pessoa."

Foi isso que me fez dar um passo em direção a ela, aceitar bem a primeira Ministração e me permitir participar de outra. Na pior das hipóteses, aquilo ia servir para que eu pudesse conhecê-la melhor.

Essa foi minha impressão inicial. Depois, eu iria encontrar Grace ainda umas três ou quatro vezes naquele ano. O conhecimento veio aos poucos, lógico... eu via Grace raramente, quando muito conversava com ela pelo telefone.

Era comum que ela me fizesse algumas perguntas. Por exemplo:

— Mas o que esse demônio faz?

Várias vezes Grace me indagou sobre esse tipo de coisa durante as Ministrações. E eu não conseguia entender direito esse tipo de questionamento.

"Não é assim que funciona...", eu refletia.

Então procurava explicar da melhor maneira, mas na minha mente a resposta mais adequada para esse tipo de pergunta seria:

"Bem, demônio faz maldade."

Perguntar o que o demônio faz parecia supérfluo, não parecia ser digno de nota. Me soava mais ou menos como tentar explicar que o peixe nada, e que o leão mata para comer porque é um carnívoro...

Estava me parecendo que a maioria dos Cristãos pensava que os demônios só fizessem uma determinada coisa, e somente aquilo! E não é assim que funciona. Assim como seres humanos fazem muitas coisas, têm capacidade para desenvolver várias atividades ao longo da sua existência, assim também os demônios.

Comecei a perceber que os Cristãos tinham mesmo essa idéia errônea: que existe um demônio que causa doenças, outro demônio que mata, outro demônio que induz ao homossexualismo, por exemplo. E que o demônio que mata, só faz isso... e o que induz ao homossexualismo também só faz isso.

Na verdade, todos eles podem fazer tudo isso, especialmente quando se trata de Principados e Potestades. Eu tinha convivido com eles, eu sabia disso. Então, aquilo que Grace entendia como sendo uma exclusividade de um demônio, na verdade era a sua especialidade! Porque um determinado demônio que faz muitas coisas — como destruir, causar doenças, produzir inclinações lascivas num ser humano — pode ter um talento maior para causar loucura, por exemplo. Ou seja, causar loucura, causar perturbações mentais é a especialidade dele. Aquilo que ele faz melhor.

Do mesmo jeito os seres humanos também têm seus talentos: alguém pode ter uma facilidade especial para a música, ou para o esporte. Mas essa pessoa não passa a vida inteira apenas tocando, ou praticando esportes. Nesse sentido, os demônios se comportam da mesma maneira, eles não são robôs condenados a fazer a mesma coisa durante toda a Eternidade. Seria subestimar muito a Criação de Deus. Inclusive eles têm o livre-arbítrio, têm vontade própria. Têm sentimentos e personalidades diferentes uns dos outros. Não são clones uns dos outros! Eles podem escolher fazer ou não determinada coisa.

Porém, claro que a essência deles é sempre a mesma, isto é, destruir aquilo que Deus criou, destruir a obra-prima de Deus que é o homem. Por esse motivo eu achava tão estranho quando Grace me perguntava o que um determinado demônio fazia.

Essa foi a primeira das constatações que fiz naquela época, a primeira das idéias equivocadas difundidas entre o povo de Deus. Isso certamente trazia conseqüências na interpretação do mover espiritual. Por exemplo: às vezes, em seminários ou congressos, eu ouvia pessoas contando testemunhos e histórias de como este ou aquele demônio havia sido derrotado em uma comunidade. Ou em um bairro ou uma cidade.

— Era um demônio que agia através das drogas. Mas então esse demônio foi identificado e confrontado, então teve que sair daquele lugar. Durante meses não se sentiu mais cheiro de droga ali naquele bairro, ou naquela cidade.

No entanto, aquela porta que tinha sido fechada — as drogas — era apenas uma das maneiras daqueles demônios agirem naquela região. Aquela porta tinha sido fechada, e nisso o povo de Deus se julgava vencedor daquela batalha. Relaxavam. Mas aí os demônios continuavam agindo: sem confrontação, começavam, por exemplo, a aumentar a prostituição. E através disso novamente as drogas eram introduzidas na região.

Era preciso que os Cristãos aprendessem a olhar para os demônios de uma maneira mais global. Eles não são seres tolos, desprovido de inteligência e estratégia. Quanto mais alta a patente, mais mordazes, astutos e imprevisíveis eles se tornam. Por esse motivo, muitas vezes o terreno que é ganho pelo Povo de Deus acaba sendo entregue novamente nas mãos do inimigo. E a situação volta a piorar!

— E Dagom? Quem é Dagom? — indagaram-me certa vez.

Respondi que era considerado um príncipe dos ares e que uma das suas especialidades era causar fenômenos da natureza, tempestades, vendavais, esse tipo de coisa.

Foi aí que comecei a perceber dentro do povo de Deus outra coisa estranha. Muitas vezes as pessoas falavam coisas do tipo:

— Aquele fulano ficou possesso por Belzebu! Ou:

— Enfrentamos Mengueleshe.

Ou:

— Destronamos Leviathan!

Informações como essas, às vezes, eram usadas a nível individual e de forma literal. Quer dizer, não havia uma idéia clara da questão hierárquica dentro dos exércitos demoníacos. Dentro daquilo que vi e aprendi na Irmandade, essas três afirmações são falsas se formos levar em conta que estamos tratando de pessoas. Por exemplo, numa guerra qualquer, dentro do âmbito humano, é verdadeiro dizer:

— Derrotamos Napoleão! Ele foi derrotado!

Isso quer dizer que foram destruídas algumas tropas, ou mesmo um pelotão inteiro de Napoleão. Mas não quer dizer que todo o seu exército foi derrotado, e muito menos que ele mesmo foi derrotado! Porque normalmente os grandes líderes de um exército sequer vão para o campo de batalha. Não há confronto direto com o general!

No Reino Espiritual é a mesma coisa, normalmente os Grandes Príncipes do Inferno, os grandes Principados e Potestades não saem do seu posto para ir atrás de pessoas. Eles têm uma posição muito mais estratégica do que braçal. Um Principado só sai do seu ponto estratégico se a batalha for extremamente séria, se estiver em jogo alguma coisa muito especial, e sempre referente à Irmandade.

O próprio presidente e os grandes líderes dos Estados Unidos não foram lutar no Vietnã, ou em outros países que participaram da Segunda Guerra Mundial. Quem guerreava nestes lugares eram os soldados, capitães, tenentes do Exército. As ordens partiam de cima, mas os grandes figurões não intervinham pessoal­mente. Teria que acontecer uma tragédia seríssima para o presidente americano ir ao campo de guerra.

Traduzindo: jamais um demônio de alta hierarquia sairia para visitar um crente qualquer dentro da sua casa... ou invadiria uma Igreja qualquer. Ele fica no seu quartel-general dando ordens aos seus comandados. Estes, sim, podem ter contato físico e direto com pessoas, causando endemoninhamento. Estes, sim, são alvos mais fáceis de serem confrontados.

Um Principado tem muita relação com regiões, mas eles também não ficam lá o tempo todo, pregados no chão, não estão assim tão disponíveis. Por mais que um grande general ou um presidente sejam tão humanos quanto os demais, isso não se aplica aos demônios. O Poder de um Principado é infinitamente maior do que o dos seus subalternos. Se ele se fizesse presente em algum lugar, a situação seria muito diferente... muito diferente mesmo!

Para realmente incomodar um demônio destes, o futuro da Irmandade dentro desta região tem que estar em jogo. Às vezes o povo de Deus tem "vitórias aparentes" quando são fechados muitos terreiros de umbanda, ou muitos centros espíritas de uma determinada região.

Mas isso não importa para a Irmandade. Isso não tem valor em si mesmo! Então, quando comecei a perceber essas idéias difundidas entre o povo de Deus, fiquei um pouco abismado, um pouco chocado. Porque elas me pareciam primárias!

Tomemos por base o antigo exército romano: uma legião era composta por seis mil homens. Mas entre eles existiam arqueiros, flecheiros, infantaria, cavalaria, etc. Ou seja, há várias divisões.

Com os demônios é da mesma maneira: cada um tem sua especialização de ofensiva, cada um utiliza suas armas peculiares, seu jeito próprio de agir. Isto pode ser comparável às divisões encontradas dentro do exército romano. Isto é, alguns atuarão mais na mente, outros mais nas emoções, outros podem causar destruição em todos os sentidos. Destruição da alma, do espírito, do corpo. Dos bens.

Cada um tem uma especialização dentro de uma área, e grupos de demônios que têm a mesma especialidade estarão debaixo da orientação de um comandante. Normalmente esses comandantes são Principados e Potestades. Mas estes últimos não entram diretamente na guerra, pelo menos não na guerra do dia-a-dia dos Cristãos. Para um Principado ou uma Potestade sair do seu quartel-general e dirigir-se a um Cristão, pessoalmente... é algo muito sério e que não acontece com freqüência.

A Igreja de Cristo, na grande maioria das lutas diárias, enfrenta subalternos destes demônios. Embora muitos insistam em dizer que foram visitados "pelo próprio Satanás", só o que têm a contar sobre a forma de agir desse opositor já descarta de pronto esta possibilidade.

Aí é que entra o nosso engano. Por exemplo, uma "cavalaria" espiritual que conta com 300 demônios tem por comandante Abadom. Um destes cavaleiros está numa casa, ou numa Igreja, e acaba sendo identificado. Apenas um destes 300 que compõem aquela cavalaria é confrontado e expulso. Nem por isso podemos esquecer dos outros 299, e muito menos dizer que Abadom foi derrotado. Isso e uma coisa totalmente diferente! Em momento algum aquele exército foi venci o e muito menos o próprio Abadom.

Foi no congresso de Batalha Espiritual a Nível Estratégico que comecei a ouvir algo mais fidedigno. O preletor era muito inteligente e falou com propriedade. Percebi logo que ele tinha uma boa noção da questão "legalidade", entendia melhor como funcionava o domínio territorial, e até mesmo experiências com materializações demoníacas ele tinha tido.

O que mais me chamou a atenção é que ele falava muito na questão de "retirar a legalidade". E esse era o ponto chave! Bingo! Não adianta mandar um demônio embora, ainda que corretamente identificado, sem retirar a legalidade das mãos dele.

Naquela altura não somei as informações, era muito cedo para isso. Mas à medida que ia conhecendo Grace, percebi que ela fazia aquilo que aquele preletor tinha explicado. Quer dizer, por mais que de início não entendesse suas idéias, na prática ela fazia exatamente isso: retirava a legalidade.

Como os demônios são seres legalistas, ela ia de encontro ao cerne da questão. Batia exatamente no ponto certo. Mas isso eu só fui perceber realmente muito mais para frente.

Porque... para ser sincero...

A Ministração era uma verdadeira incógnita para mim! Pelo menos foi assim logo no começo.

Estava ali uma prática cheia de uma série de coisas que eu não entendia! Não entendia como ex-Satanista nem como Cristão. Desde o linguajar até mesmo alguns aspectos do ritualismo que parecia haver ali.

Essa história de "rito" me incomodou um pouco. Eu sabia perfeitamente o que era um rito e qual a necessidade deles dentro do contexto da Irmandade.

Quando se faz um rito para um demônio, o que é aquilo? Na verdade é uma sinalização espiritual, você está dizendo para aquele demônio: eu estou aqui! Isso é necessário porque os demônios não são onipresentes. Mas Deus é onipresente, então o rito é dispensável, nós podemos orar em qualquer lugar e Deus responde pela Graça, em todo lugar.

Mas na Ministração parecia haver um "rito", era preciso preencher a ficha, era necessário fazer aquelas orações de renúncia olhando para os olhos de outra pessoa... muitas vezes tinha que repetir a oração que Grace fazia com minha própria boca. Tudo isso acabava de certa forma confrontando com aquilo que eu já tinha aprendido sobre Deus.

Por que Deus precisava daquele "rito" para operar? Quem precisa dessa sina­lização espiritual é o diabo, não Deus. Quer dizer, eu não precisaria necessaria­mente estar ali, passar a tarde inteira junto com Grace, junto com um intercessor, ser ungido com óleo, repetir todas aquelas orações, confessar todas aquelas coisas, uma por uma, naquela sessão desgastante... eu poderia orar no ônibus, orar na calçada da minha casa... e não ia ser a mesma coisa?

No começo, esse foi o meu principal questionamento. Eu não entendia. Mas obedeci, porque precisava da ajuda de alguém, queria ser curado. Pensei comigo mesmo:

"Não vou questionar. Muita gente faz isso, muita gente não se submete à Ministração... Isabela mesmo disse isso! Não importa, vou fazer! Tem tanto louco por aí que se submete a cada absurdo, que usa de terapias alternativas, dorme com pirâmide na cabeça... e eu não vou fazer uma coisa simples como conversar, compartilhar, orar em concordância?... Não vai me fazer nenhum mal!"

Aquele foi o meu livre-arbítrio. Assim eu fiz.

Grace várias vezes falou sobre os textos que dizem para nós levarmos as cargas uns dos outros, confessarmos os pecados uns aos outros para sermos curados.

Não havia dúvida de que o fato de falar fazia bem para mim.

No entanto, aquela história do "rito" ficou na minha cabeça durante um bom tempo. Eu queria pelo menos entender porque precisava ser assim, porque não teria o mesmo efeito se eu orasse sozinho. Em outras palavras, porque era necessário o "rito" da Ministração.

A obediência foi a porta de entrada para que eu compreendesse. Deus não respondeu ao meu questionamento de imediato. Foi somente por meio da obediência em me submeter que eu fui percebendo, na prática, que seguir aqueles passos fazia com que Ele operasse de outra maneira. De uma maneira que eu nunca tinha experimentado.

Esse foi um primeiro aspecto, aquilo que eu experimentei na prática. Mas aí, de repente, Deus deixou de lado aquela experiência prática e me mostrou que havia outros "ritos" que Ele tinha instituído. Por exemplo, Jesus instituiu a Ceia e nós fazemos isso até hoje. O Batismo é um outro rito.

Essas práticas nada mais são do que sinalizações espirituais de Verdades maiores. Ninguém nunca tinha me falado isso, mas em determinado momento me enxerguei compreendendo essa Verdade. Um dia eu estava lendo a Bíblia e vi ali o rito: a Ceia. E Jesus disse para fazermos aquilo, exatamente daquele jeito, em memória d’Ele até a sua volta. Ou seja, é como se Deus nos dissesse:

"Faça isso porque você gosta de Mim, porque você Me conhece, porque você tem aliança Comigo".

Todo Cristão sabe que somente assim a Ceia tem valor. É um externar da nossa fé, não se trata do rito pelo rito.

Então compreendi que Deus não estava descartando certos tipos de rito, desde que eles não sejam fruto de pura religiosidade. Eles têm que ser expressão de algo maior que está dentro do nosso espírito. Apenas a liturgia da coisa não tem nenhum valor, então entendi que a Ministração tinha esse "quê" de "rito", mas não era um "rito" propriamente dito. Não se tratava de uma fórmula mágica, na verdade era a maneira que Grace encontrou de padronizar aqueles momentos. De não se esquecer de fazer nada que fosse importante, de tornar mais fácil o entendimento e aplicação daquilo que ela tinha recolhido durante anos e anos de experiência.

"Rito" foi o nome que eu dei, na minha ignorância inicial. Mas estava longe de o ser na realidade. Visto que normalmente Grace nem se programava para as minhas Ministrações. Nós nos esquecemos completamente da ficha, ela não tinha nenhum valor no meu caso. Grace trabalhava de acordo com a direção que Deus dava em cada momento, dentro daquilo que ela compreendia como sendo fundamental, mas sempre embasada nas informações que eu trazia na hora. Sempre atenta às direções dos intercessores.

E eu queria me libertar.... isso era um fato incontestável. Para isso eu tinha procurando Grace. Então usei de um raciocínio lógico. Da mesma forma como um leigo não tem condições de entender grande parte dos procedimentos Médicos, mas ainda assim aceita a direção que lhe é dada sem contestar... eu podia fazer a mesma coisa.

Mesmo não entendendo, todo doente que quer melhorar, obedece. E eu tinha começado a ver Grace como uma espécie de "Médica Espiritual", alguém que me mandava fazer algumas coisas que eu não entendia. Mas decidi obedecer, porque precisava ser curado. Como leigo, não ia questionar a direção da Médica. E não questionei. Em alguém eu precisava confiar, e Grace tinha me conquistado pelo método mais simples de todos. Pelo amor.

E eu também confiava em Isabela, e Isabela insistia em afirmar que tudo aquilo tinha seu valor, que era importante.

Então me entreguei de corpo e alma. Repetia aquelas orações, fazia aquelas renúncias, orava e orava com Grace, aceitava a direção que me era dada. Percebi que, à medida que eu me submetia, confessava, orava, me permitia ser ungido com óleo... Deus operava de outra forma.

Agora eu já não achava que a Ministração fosse um "rito", eu percebia que era uma forma especial de pedir e dar vazão ao mover de Deus.

Os resultados não vieram de imediato. Não foi na primeira, nem na segunda nem na terceira vez. Mas.....uma hora eles começaram a chegar! Mesmo sem eu perceber, mesmo sem me dar conta...

Quando vislumbrei os primeiros resultados na minha vida, isso foi o passo inicial para finalmente começar a juntar as peças daquele quebra-cabeça. Comecei a perceber como funcionava a Ministração. Que resultados eram esses?

De repente, eu ia dormir e já não acordava mais no meio da noite com pesadelos — de repente parece que o medo se dissipava; de repente... minha confiança em Deus já não era a mesma, estava diferente, eu conseguia ver Deus de uma outra maneira.

Comecei também a sentir uma restauração verdadeira de Deus, eu percebia que a sua cura estava se derramando sobre mim, sobre a minha vida.

Durante as Ministrações, muitas vezes senti a presença de Deus naquele lugar. Comecei a ver melhor quem Ele era, e quem eu era para Ele. Mas não de uma maneira subjetiva, não como se fosse o delírio de um coração sedento. Sempre fui muito racional, mas as visitações do Senhor durante as Ministrações fizeram com que eu desse crédito real àquilo.

Havia momentos em que eu chorava por lembrar das coisas que queria esquecer, Mas a partir de um determinado momento, que não sei precisar exatamente quando começou... o meu choro já não era simplesmente pela lembrança de coisas ruins, mas era um choro de quebrantamento, de arrependimento. E isso foi muito novo para mim porque eu não imaginava que pudesse experimentar isso. O convencimento genuíno do pecado, da justiça e do juízo.

Não sei como explicar... mas começaram a vir à tona na minha alma sentimentos até então desconhecidos para mim, e que eu não imaginava que pudessem existir. Eram outros sentimentos, não parecia que partiam de mim mesmo. Especialmente o arrependimento.

Certa ocasião, eu comentei sobre uma investida da Irmandade e das suas conseqüências funestas. Eu falei apenas por falar, porque precisava confessar aquilo, liberar aquilo. Quando orei pedindo perdão, mesmo sem perceber, fiz a coisa meio da boca para fora, de maneira até automática.

Então, depois Grace orou também, e desta vez, ao invés de levar adiante a Ministração, ela pediu que Deus derramasse sobre mim o espírito de arrependimento.

Isabela, que sempre estava comigo nas Ministrações, comentou mais tarde que também ela orou nesse mesmo sentido.

Eu fiquei quieto, de olhos fechados, acompanhando a oração da Grace... e, de repente, fui invadido por uma sensação completamente nova... uma verdadeira conscientização do mal....! Naquele momento eu percebi que tinha sido uma ferramenta nas mãos do diabo para prejudicar aquelas pessoas, para causar destruição. De repente, foi como se eu pudesse imaginar as cenas que eu não tinha vivido, o impacto daquilo tudo. Um monte de coisas me passava pela cabeça, e então veio o arrependimento. De verdade.

Quando tive consciência daquilo, eu me sentia indigno até mesmo de pedir perdão a Deus. Achava que não merecia perdão, que o mal com o qual estive envolvido não poderia mais ser perdoado. Pensei comigo mesmo:

"Se alguém fizesse isso pra mim, eu não ia perdoar... então, como Deus pode me perdoar agora?"

Naquele choro que me brotou da garganta, eu só chorava e chorava, não conseguia falar nada. Escutei, no meio do meu próprio tormento, a voz de Grace. Ela orava novamente, só que agora era para que eu pudesse receber e aceitar o perdão do Pai.

Mesmo assim não parei de chorar; era um choro diferente, quase compulsivo, sôfrego... um choro de quem sente que não há mais solução. Como se Deus fosse me virar as costas. Naquele momento, então, compreendi a Graça de Deus. Aquilo que antes era teórico, se tornou real. O que era letra se me tornou em vida! Nada que eu pudesse fazer poderia me libertar daquele horror, apenas a Graça de Deus através de Jesus Cristo.

Demorou um pouco, mas enfim consegui pedir perdão... e também receber o perdão do Pai.

Foi uma experiência real, foi um contato real com a presença de Deus, com o Amor Dele, e também com a sua Justiça.

Por tudo isso e um pouco mais é que eu comecei a ver que havia uma Força muito grande, uma força muito maior por trás daqueles gestos da Grace, por trás daquelas palavras de renúncia, por trás daquele "rito" que se chamava Ministração. A Força do Deus Todo-Poderoso!

Notei, espantado, que certas coisas que antes me causavam muito mal à simples lembrança, agora já não tinham o mesmo efeito. Parece que o impacto das lembranças ia sendo atenuado progressivamente. Deus não estava me desmemoriando, eu continuava lembrando de todas as coisas. Embora tivesse pedido a Ele muitas vezes que me fizesse esquecer de toda aquela história, essa foi uma graça que Ele não me concedeu. Mas o meu posicionamento diante da lembrança começou a ser outro.

Foi também nas Ministrações que comecei a ver o sobrenatural de Deus pela primeira vez. Como se tudo isso que eu já disse não pudesse ser classificado de sobrenatural! Mas estou falando de outro tipo de sobrenatural...

Até então, eu apenas tinha visto o sobrenatural do lado do diabo. Mas os intercessores, todas as vezes, traziam alguma coisa específica, fruto de revelação (conforme eles diziam) e que não podiam ser conhecidas de antemão.

Eu ficava muito encafifado no começo, muito admirado para ser sincero. Porque apenas eu e os demônios sabíamos de certas coisas, coisas que volta e meia eles estavam falando. Mas eles não tinham entrado em contato com os demônios... portanto, como podiam saber? Como é que alguém que não esteve cercado de demônios podia saber aquilo que só eu sabia?

Claro, eu já conhecia uma parte da essência de Deus, a sua Onisciência. Não questionava isso de forma alguma, sabia que Ele era muito maior... e, Ele sim, sabia de todas as coisas! O que realmente me surpreendia é que até então eu nunca tinha encontrado ninguém que fosse de fato usado por Deus àquele ponto. Que tivesse contato com Ele dessa forma!

Os intercessores traziam palavras de conhecimento, traziam visões, acertavam em cheio no ponto certo, falavam de situações que eu tinha vivido, até mesmo de promessas que eu recebi dentro da Irmandade.

"Que coisa mais incrível! Deus fala mesmo com eles!" Daí ficavam outros questionamentos de outra ordem:

"Por que Deus mostrou? E por que mostrou com tantos detalhes?"

Mas ainda não era hora de compreender isso. Nem mesmo de saber que aquele tipo de manifestação do Espírito de Deus não era privilégio de alguns.

Além das revelações, um daqueles intercessores, Ricardo, falava também das dores de estômago que sentia, especialmente nos dias da Ministração. Exatamente iguais às minhas. Era mais uma vez aquela coisa da identificação que o intercessor pode sentir com a pessoa ministrada. Igualzinho como foi na minha primeira Ministração, com o homem que quase vomitou no balde.

Agora eu percebia isso sem a menor sombra de dúvida, que aqueles momentos da Ministração se tornavam palco de um confronto de forças. Eu entendia que, de certa forma, essas forças estavam me disputando. Disputar não era bem a palavra, mas havia um mover muito forte do Reino Espiritual.

De um lado havia uma somatória de autoridade humana, porque estávamos num pequeno grupo, com um propósito específico, e Deus usava isso para trazer à luz o seu próprio mover. E havia a força contrária... dos demônios.

Por que isso acontecia?

Havia claramente uma insistência do inimigo em não querer que eu estivesse lá, em não querer que as Ministrações acontecessem. Por outro lado, havia também uma insistência de Deus em querer justamente o contrário. De repente, eu me vi no centro daquele confronto. E eu sabia muito bem que os demônios não se manifestam sem motivo.

Se havia um confronto tão claro, sinal que havia Poder na Ministração, aquilo que estávamos fazendo realmente mexia com o Mundo Espiritual.

Pela primeira vez eu enxergava o confronto de um outro ângulo. Até então eu o tinha visto apenas pelo ângulo da Irmandade e, por esse ângulo, ninguém nunca prevaleceu, pelo menos que eu tivesse visto. Excetuando o Brintti. Mas eu não sabia aonde ele estava. Nem mesmo se estava vivo.

Agora, pela primeira vez eu estava vendo como o Poder do Inferno podia ser confrontado e até mesmo anulado por aquela guerreira de Deus, a Grace. Antes das Ministrações eu não tinha a menor idéia do que fazer para resistir à força e ao Poder que a Irmandade representava.

Deus me queria pelo Amor, pelo Amor que Ele tinha por mim... e a Irmandade me queria porque eu era o traidor... ou porque eu era estratégico. Ninguém sabia disso ainda, somente eu. E ali estavam aquelas duas forças... um dos lados, o lado do inimigo, oferecia resistência... o outro lado, o lado do Pai, me atraía pelo Amor... eu queria ficar do lado do Pai.

Grace podia me ajudar... agora eu percebia que somente ela podia fazer isso.

Ela me apresentava a algo novo.

A cada encontro eu via um pouco deste Amor de Deus na vida da Grace. Pela maneira como ela falava comigo, pela maneira como me tratava, me olhava. Algumas vezes, com muita admiração, eu enxerguei nela um vislumbre daquilo que eu tinha visto no Pastor Brintti, naquele dia... naquele confronto! (Leia Filho do Fogo).

Foi inevitável fazer a comparação, de repente, num relance, eu vi... aquele brilho. Até então nunca tinha visto nenhum Cristão com aquele brilho.

Foi então que aquele pensamento inicial desapareceu completamente, aquela idéia que eu tinha tido a respeito dela, de uma pessoa fanática e cheia de idéias esquisitas. Aquele sofisma, aquela fortaleza mental desabou, a resistência inicial caiu por terra.

Agora eu não obedecia a Grace apenas por obedecer. Agora eu queria obedecer porque ela era realmente um instrumento de Deus! Comecei a ver tudo com outros olhos, comecei a ver aquela mulher como alguém que amava muito a Deus, como uma pessoa sincera que Deus tinha indiscutivelmente separado para me ajudar.

Grace sempre me cativou pela sua humildade, pela sua simplicidade... não era altiva nem orgulhosa, eu estava acostumado com outro tipo de gente. Sempre tinha visto um outro tipo de postura dos Cristãos. Normalmente os Cristãos eram pessoas de peito empinado, cheios de quererem se achar donos da verdade. "Eu sei tudo!" Era assim desde o tempo em que eu freqüentava a Irmandade.

Mas Grace muitas vezes se colocava como aprendiz, e explicava:

— Olha, eu vou ter que te fazer umas perguntas... porque o seu caso é novo para mim. Não leve a mal, tá?

Não me incomodava.

Eu estava sentindo a diferença na minha vida, era algo real, palpável! E novamente me veio aquela idéia do Médico: às vezes ele manda fazer um tratamento que parece ser uma loucura aos olhos humanos. Mas aí a gente faz, e melhora... é curado! O que mais há para questionar?

A meu ver, nada.

E isso não quer dizer que ao longo das Ministrações não haveria muitas experiências que eu poderia chamar de "estranhas". Mas todas elas traduziram o Amor de Deus por mim, a alegria que Ele mesmo sentia ao presenciar aquela libertação, o desejo de me restaurar. Eu precisava destas sinalizações de Deus. Traziam paz e edificação. Traziam direção. Tiravam o peso.

Nunca uma Ministração foi igual à outra... e nunca eu saí de lá sem ter recebido um toque especial da parte do Senhor. Houve momentos muito difíceis, outros quase sublimes...

A partir de um dado momento eu já não me sentia mais falando para as portas ou para as paredes, ou apenas para as pessoas que estavam ali. Não... era muito diferente... como se de fato Deus estivesse ali naquela sala me ouvindo, se alegrando com a minha restauração.

Isso me mostrava quanto era querido, quanto era especial para o Pai. Era quase como se Deus estivesse me montando de novo! Como se tivesse sido quebrado, partido em pedaços, e Ele estivesse recolhendo esses pedaços, peça por peça, para montar outra vez.

E eu experimentava esse mover, sabia que era uma montagem feita com carinho, com paciência, com perseverança, com amor, com tolerância... e de uma forma que eu não tinha experimentado com mais ninguém. Era uma coisa totalmente única, uma coisa sem parâmetros.

A Ministração, para mim, foi isso: um remontar. Eu não imaginava que pudesse existir algo assim, que Deus pudesse fazer algo assim comigo. Ele permitiu que eu fosse quebrado pelo diabo e pelo pecado... depois, quebrantado pelo arrependimento... e então Ele interveio e fez uma coisa totalmente nova. Através da Graça e do Amor. E aí, quando Deus faz de novo... quando Ele reconstrói alguém, fica sem emendas... Ele faz o impossível!

Tem um ditado popular que diz que quando um vaso de cristal quebra, depois de colado já não é a mesma coisa. Mas com Deus não é assim, com Deus fica mais perfeito ainda do que antes.

 

Durante aqueles períodos de Ministrações, comecei também a ver outras facetas do caráter de Isabela. Agora eu a via como alguém muito perseverante, pois estava ao meu lado em cada minuto destas Ministrações. Não como uma mera espectadora, mas como alguém participante daquilo. Percebi que Isabela me ama­va de verdade. Não conseguia imaginar outra pessoa que pudesse escutar aquelas coisas e ainda assim continuar ao meu lado, sem me condenar, sem me criticar, sem apontar o dedo.

Ela nunca fez isso. Isso me fez perceber que o seu amor era genuíno, era verdadeiro. Ela não estava comigo por interesse, aliás, interesse no quê? O que eu tinha para oferecer, para dar? O que eu era na ordem das coisas?

"Puxa, Deus colocou a pessoa certa do meu lado..."

E aquilo me trazia segurança. Quem mais poderia estar passando por tudo aquilo comigo? Eu não conseguia imaginar ninguém...

Por sinal, muitas coisas que eu já tinha comentado com Isabela antes da Ministração, por alto a princípio, agora estavam claras e patentes porque a Ministração é um processo muito detalhista. Certos detalhes das primeiras Ministrações eu sabia tão bem quanto ela que nunca tinha comentado.

Aí ficava um pouquinho apreensivo.

"Nossa, agora ela vai entrar em estado de choque...", pensava eu comigo mesmo algumas vezes.

Realmente, Isabela ficava chocada. Na hora da Ministração. Mas depois, ela me espantava pelas atitudes que tomava, porque não eram atitudes pré-moldadas, eram realmente sinceras, realmente espelho do seu coração. E ela dizia:

— Que bom que Deus restaurou, que bom que você está melhor...

E era sempre assim. Ela nunca me acusava. Nunca queria saber detalhes mórbidos, nunca ficava me incomodando com coisas nada a ver. Só queria a minha cura, o meu bem-estar!

 

Quanto a Dona Clara, embora ela fosse uma pessoa simples, a gente percebia isso até mesmo pelo seu vocabulário, tinha um Cristianismo que espelhava muita firmeza. Logo de cara, foi a fé que Dona Clara tinha o que mais me impressionou!

À medida que passavam as semanas e nós nos encontrávamos para orar, começamos a conhecê-la melhor. Eu percebi que fé firme ela tinha! Percebi que ela realmente acreditava naquilo que estava falando. Isto é, sabia do que estava falando e falava com muita convicção. Essa foi outra característica que eu não estava acostumado a encontrar nos Cristãos. Até então eu tinha conhecido pessoas de fé mais instável; quando se trata de coisas muito importantes, ou que envolvam realmente o sobrenatural de Deus, a tendência é titubear um pouco.

Mas Dona Clara não era assim. A sua maneira de falar era sempre convicta sempre falava com muita sabedoria e com muita certeza... com tanta certeza... que eu a admirava muito por isso! Ela nunca falava "eu acho"... ou "quem sabe". ou "talvez".... quando se tratava da Palavra de Deus ela sempre afirmava categoricamente que "é assim", ou "é isso".

Além disso, Dona Clara simplesmente nos acolheu. A mim e a Isabela. E isso era bom! Por causa disso, assim como Grace, demos um voto de confiança para Dona Clara. Valia a pena estar perto dela. Bastava eu não delatar nada de importante.

Claro que a confiança veio aos poucos também. Mesmo porque com ela nós não tratávamos dos mesmos assuntos que tratávamos com Grace, era outra coisa. Eram coisas pessoais, coisas do dia-a-dia, problemas pessoais, problemas familiares, problemas profissionais, conselhos...

Ela trazia uma segurança toda especial, trazia urna tranqüilidade. Nós sentíamos conforto nisso, sentíamos que havia mais alguém conosco.

"Nós não estamos sozinhos, tem mais alguém conosco, e alguém firme..."

Perto dela realmente a gente parava de sentir medo, parava de sentir receio, conseguia enxergar as coisas por um outro prisma. Eu e Isabela muitas, e muitas vezes comentamos isso. Ela conseguia trazer para nós aquela esperança, aquela coisa nova que eu tinha tanto querido encontrar em um grupo de apoio. E nisso eu fui vendo a grandeza de Deus... o que elas eram? Grace e Dona Clara? Mulheres!

Humanamente falando, elas não ofereciam perigo para ninguém... mas espiritualmente falando, eram pessoas muito ousadas e usadas. De início, ainda que eu não as tivesse visto como guerreiras, à medida que a pressão foi aumentando e tudo foi afunilando... elas foram as únicas que ficaram de pé, em momento algum elas recuaram. Souberam lidar com aquela situação de pressão e continuar olhando adiante, continuar olhando para Deus. E nisso elas foram também sustentáculo para nós.

Aquilo me surpreendeu.

Nisso eu vi a Força de Deus, aquilo tinha que ser expressão da Força de Deus.

À medida que as Ministrações foram correndo, e os aconselhamentos com Dona Clara também, eu ficava de olho nelas. Queria saber o que ia acontecer com elas. E, embora viessem pressões e retaliações, elas ficaram em pé. Isso me fez ver que Deus realmente tinha colocado a mim e a Isabela perto de pessoas fiéis, perto de dois pilares de sustentação. Eu tinha imaginado um grupo maior, com homens... nunca pensei em duas senhoras... nisso Deus mostrou Sua Grandeza! Ele usa o coração que está disposto.

Se fosse pensar bem, Isabela tinha sido o primeiro sustentáculo, sem o qual eu não teria encontrado os outros dois. Ela também não recuou, mas permaneceu ao meu lado.

Também tinha uma fé especial, mas de uma outra maneira. O seu coração era puro, ela queria agradar a Deus de verdade. Mesmo que nem sempre conseguisse, ela queria. E Isabela, a despeito de todas as dificuldades que enfrentou, não desistia! Não desistia de Deus, não desistia de tentar.

Nisso percebi que estava cercado, não por um pelotão de guerreiros como tinha imaginado, como eu tinha em mente... mas por três mulheres!

 

Agora que já apresentei devidamente aquelas que iam caminhar conosco durante um bom tempo, Grace e Dona Clara, posso retomar nossa história. Realmente a carta da Irmandade tinha sido um marco. Tudo iria mudar aos poucos depois dela...

Poucos dias antes da gente conhecer Dona Clara, eu e Isabela brigamos por algum motivo tolo. Nossas brigas eram assim: começavam por alguma bobagem e se estendiam por horas a fio. A gente não conseguia se acertar muito rápido, um assunto puxava outro e a coisa não saía do lugar. Isso foi numa sexta-feira do mês de julho daquele ano. Mais precisamente, dia 18 de julho. Outra data significativa.

Eu estava cansado de uma semana inteira de serviço, e Isabela também. Mas finalmente conseguimos nos resolver mais ou menos antes que eu fosse para minha casa.

Cheguei super cansado, um pouco estressado. Não queria saber de mais nada e fui logo dormir. No entanto, aquela noite seria diferente das outras noites.

Para começar, dormi mal. Era muito difícil que isso acontecesse, em geral eu pegava no sono facilmente e só acordava no dia seguinte. Por algum motivo fiquei me remexendo, cochilava e acordava de novo.

Então eu dormi. Dormi de vez.

Lá pelas tantas, não saberia precisar o horário, talvez umas três da manhã, e aquele barulhinho começou a me incomodar.

— TTTRRRRRIIIIMMM!!! TTRRRIIIMMMM! TTTTRRRIIIIMMM!

Foi tão insistente que de repente me vi desperto. No começo não consegui identificar o que era, totalmente zonzo.

— TTRRRRIIIIMMMM!!!

Pulei da cama aos trambolhões. Meus irmãos resmungaram um pouco, reclamando do telefone. Se eles já estavam deitados, era sinal de que a hora estava de fato avançada. Minha mãe pelo visto não acordou, senão teria atendido em seu próprio quarto. Ou então, ela não estava mesmo a fim de atender.

Então desci a escada para pegar o telefone da sala.

"Que droga... não pára de tocar! Será que é o Wang?!", raciocinei rapidamente. (Leia Filho do Fogo).

Wang costumava fazer isso vez por outra, ele viajava muito e me ligava de madrugada porque nos Estados Unidos ainda era cedo. Ele dava pouca importância ao fuso horário, e me ligava pra bater papo, para contar como estava indo, essas coisas.

— TTRRIIMMMMM!

— Alô!?

No primeiro instante ninguém respondeu. Por algum motivo qualquer eu sabia que não era Wang, alguma intuição lá no fundo me dizia que era outra coisa... e então ouvi a voz dele. Igualzinha como era, parecia que nada havia mudado, quase como se eu tivesse falado ontem com ele... um eco do passado.

A voz de Marlon soou claríssima pelo telefone numa conhecida saudação em aramaico.

Meu susto foi tão grande que emudeci. Senti um arrepio me percorrendo pela coluna, o estômago contraiu imediatamente. Não achei nenhuma palavra para dizer. Sentia somente as batidas surdas do meu coração. Tanto tempo havia passado... eu pensava que eles tinham esquecido de mim... por que ele estava ligando?!...

Senti minha mente sendo bombardeada por uma profusão de pensamentos incoerentes, sentimentos desordenados brotaram do meu coração. Aquela sensação durou alguns segundos que me pareceram intermináveis.

Eu deveria ter respondido à saudação com outro cumprimento.

Quando alguém te diz "Bom-dia", você responde "Bom-dia"... quando os muçulmanos dizem "Assalam Aleikum", deve-se responder "Aleikum Assalam"...

Mas eu não pude dizer nada nesse sentido. Embora a resposta daquele cumprimento em aramaico me brotasse na mente, jamais poderia transformá-la em palavras. Então ele continuou:

— Eu fico muito contente em saber que você está bem... — continuou Marlon então, tranqüilo, amigo, paternal.

Parecia realmente que Marlon tinha recém descoberto que eu ainda existia e estava feliz com isso. Minhas suspeitas se confirmaram, durante todos aqueles anos Marlon e os outros tinham ficado pensando que eu estava morto. Por que Thalya nada dissera?

— É você, Marlon?

— Claro! Quem mais poderia ser?

— Como é que você me achou?

— É... levou um tempo... algum tempo! Mas estou muito feliz em saber que você está bem, que você está vivo! E que, de alguma forma, você está sendo preservado.

— Deus está me preservando!

— Não... você está sendo preservado por aquele que é o seu verdadeiro pai... Lúcifer. Ele sempre soube de tudo, os demônios da mais alta hierarquia sempre souberam que você estava vivo. Eles preferiram te preservar por algum tempo para te oferecer uma nova chance. E na verdade é isso! Chegou o tempo, e você terá essa nova chance. Lúcifer esperou para fazer mais ou menos como foi com o filho pródigo. Quando ele quebrou a cara, voltou correndo para casa. Já que você queria tanto, agora você experimentou como é vagar pelo mundo...

Percebi naquele momento que talvez eles tivessem dado uma boa explicação sobre meu paradeiro dentro da Irmandade. Talvez a minha fuga tivesse sido encoberta e se eu aceitasse o convite para retornar... seria como se nunca tivesse saído! A grande maioria das pessoas talvez não tenha tido acesso àquela informação. A história da minha fuga deve ter sido guardada a sete chaves.

Realmente... não eram muitas as pessoas que sabiam daquela minha desavença com o Brintti! (Leia Filho do Fogo). Teria sido muito fácil para Zórdico, para Marlon, para o meu grupo de Fire's Sons ter ficado com a boca fechada... se isso tivesse sido exigido pelos demônios! Eles inventariam que eu tive que viajar para ser treinado em outro país, por exemplo, ou qualquer coisa que o valha. Não seria muito difícil explicar a minha ausência. E a coisa nunca sairia da alta cúpula.

— Escuta... então você quer dizer... que eu só estou vivo porque o diabo não quis me matar?

— Mas é claro. Ou você acha que teria algum obstáculo pra isso?

— Se ele não quer me matar, então é sinal que Lúcifer gosta de mim...

— Lógico! Ele sempre te amou, sempre vai te amar. Nós te amamos muito! Aliás, você está fazendo muita falta no nosso meio. Agora a gente sempre comenta de você, você está fazendo falta nas nossas rodas de conversa.

Começou a contar do pessoal, falou sobre Zórdico, sobre Thalya...

— Olha   está chegando o tempo de você ser lançado no âmbito político. O fim do Terceiro Ciclo está aí mesmo! — o tom de voz dele mudou de entusiasmado para ligeiramente melancólico. — Por que você fez isso...? O que foi que fizeram com você? O que que aconteceu?

Marlon falou em tom tão paternal que aquilo me comoveu um pouco. O tom da voz dele me fazia sentir saudade daquilo que eu não tinha mais, a companhia de alguém... apesar de não ter tido grandes decepções com a Igreja (ainda), me sentia só às vezes. Com a mudança para a Comunidade, eu tinha perdido o contato com aqueles antigos colegas. E acho que eu estava particularmente sensível naquele momento também porque tinha brigado com Isabela.

Mesmo assim, não ia admitir nada para ele:

— Mas eu estou bem!

— Não... você está dizendo pra você mesmo que está bem, mas na realidade você não está! Se você olhar à sua volta vai ver que não está bem... o que é "estar bem" pra você? Nós queremos o seu bem, eu sei o que é melhor pra você. O seu pai sabe o que é o melhor! Você sabe muito bem que não está bem... afinal, só tem sido subtraído das coisas, e nós, ao contrário! Nós sempre acrescentamos coisas à sua vida, nunca subtraímos nada. Hoje a sua paz está sendo subtraída, a sua tranqüilidade, a sua harmonia, pessoas da sua família...

Nesse momento não entendi se ele estava se referindo ao meu pai, ou era apenas o fato de minha mãe e meus irmãos nunca terem entendido a minha conversão. Pelas minhas costas, eu era sempre a chacota da família por ter "virado crente". Quando eu era Satanista estava bem de vida, tinha bastante dinheiro, um emprego maravilhoso... era para isso, para esses estereótipos que minha família olhava. Nesse sentido, sim, eu podia me considerar uma pessoa à parte deles

Lembro-me que certa vez, muito de leve, comentei com minha mãe que tinha ficado "possesso". Ela achou aquilo uma arrematada loucura! No entender deles, eu estava mais louco do que antes. Embora tivesse compartilhado minha fé, e embora tivesse mudado muito de vida... nenhum deles quis abraçar o Cristianismo. E eu era visto de uma forma negativa por ser Cristão.

Marlon continuou no seu tom nostálgico e paternal, relembrando momentos que passamos juntos. Parecia sincero no seu falar. Não questiono as ordens que ele certamente recebeu por trás... dos demônios e da hierarquia. Mas Marlon, como pessoa, gostava de mim e sentia sinceras saudades. Assim como eu também sentia saudades, não da Irmandade, mas dele.

Embora tudo aquilo mexesse um pouco comigo, não quis escutar mais. Eu estava determinado em seguir adiante pelo caminho que achava certo, queria continuar caminhando com Deus. Deus tinha me resgatado... e eu também tinha visto a Força Dele no Brintti. Pelo que retruquei:

— Mas aquele Pastor vocês não derrubaram.

— E você sabe dele? Você procurou saber como ele está hoje? — dessa vez a voz de Marlon veio sarcástica, debochada. — Ou você acha que ele está em pé ainda?

Aquela foi a gota d'água para me deixar na dúvida. Alterei o tom de voz, um tanto indignado:

— Ah! Quer saber, Marlon? Não quero mais falar com você! Vou desligar, vou dormir... me dá licença!

— Tá bom... eu só vou te dar um último aviso: você não é mais filho do Fogo. Agora... o Fogo pode te queimar!

E desligou. Tinha lançado uma semente.

Subi as escadas devagar, refletindo. Ele tinha vindo me oferecer uma chance, uma nova chance.

"Será mesmo que as portas ainda estão abertas pra mim?"

Por um lado eu achava que sim; por outro, não acreditava que pudesse ser perdoado pelo que fiz. Mas se fosse pensar bem...

"Eu não fiz nada demais, não contei os segredos, estou quieto no meu canto... eles podem muito bem estar vendo isso como uma recaída, um erro igualzinho a outros que cometi enquanto ainda estava lá."

Fiquei com a hipótese da porta aberta. Se eu tivesse sido apenas mais um dentro da Irmandade, tenho certeza que Lúcifer adoraria beber meu sangue. Mas eu não tinha sido qualquer um... eu era uma peça importante, uma peça-chave. Por esse motivo talvez Lúcifer ainda me quisesse realmente, por isso manteve encoberto o meu "deslize".

"O Terceiro Ciclo ainda não terminou... para todos os efeitos, ainda há tempo hábil para o meu retorno."

É totalmente dispensável dizer que o que restou da noite serviu para tudo, menos para o meu descanso. Fiquei com tudo aquilo na cabeça.

"Agora eles sabem que eu estou vivo... é só uma questão de tempo... se eu não aceitar regressar..."

Ainda antes de pegar no sono, pensei comigo mesmo que se a minha nova opção de vida — ser Cristão —, não desse em nada, ainda teria chance de recuar.

"Eu ainda não cheguei no ponto sem retorno. E, se tiver me enganado, se a vida Cristã não for tudo aquilo que estou pensando... talvez eu volte!"

Na manhã seguinte, não me sentia bem. No fundo, eu sabia que não queria aceitar a proposta. Por mais que Marlon tivesse procurado me fazer ver o quanto eu tinha perdido, a verdade é que eu não queria voltar à Irmandade. Eu não conseguia acreditar que tinha me enganado ao tornar-me Cristão, eu estava bem, estava gostando daquela vida!

Mesmo que não tivesse mais o dinheiro, o glamour, cheio de amigos ao meu redor... eu estava gostando de ser Cristão! Por causa de Deus! Ele estava me conquistando. Eu queria aprender mais, conhecer mais de Deus, estava aberto para isso.

"Deus não pode ser uma farsa!"

E estava também começando a conhecer um outro lado do meio evangélico: o lado da Batalha. Até então, eu tinha conhecido uma Igreja mais voltada para o lado social do Cristianismo. Mas ao lado de Grace eu teria condições de ver melhor como um Cristão pode se defender dos ataques do diabo. Pela primeira vez eu ia ver como isso funcionava.

Por outro lado, sabia que, se recusasse, colheria terríveis conseqüências. Estava descoberto agora, eles sabiam de mim...

No sábado, saí logo cedo e fui dar uma volta no parque perto de casa. Pensei bastante, orei. Mas nada pareceu me ajudar. Na hora do almoço falei com Isabela pelo telefone e combinamos de nos encontrarmos. Fui para a casa dela de ônibus.

Logo ela percebeu que eu não estava muito bem. Mas a princípio pensou que fosse por causa da briga do dia anterior.

— Nenê, não fica assim, não! Olha, agora já tá tudo bem de novo.

Ainda que eu não fosse dizer a ela que sentia meus dias chegando ao fim, a iminência de um tempo terrível, tinha que contar sobre o telefonema. Então abri o jogo:

— Eles me ligaram ontem...

A expressão do seu rosto mudou. Ela sabia do que eu estava falando.

— Como assim?!... Ontem à noite?

— De madrugada.

— Mas por quê? — o seu semblante demonstrava desalento e temor. — O que foi que eles te disseram?

— Foi rápido. Mas deram o recado — suspirei e contei exatamente como tinha sido.

— E quem que te ligou...?

— O Marlon.

Ela ficou olhando pra mim, eu fiquei olhando pra ela. Eram situações totalmente novas. Dizer o que diante daquilo? Procuramos orar juntos e não nos deixarmos influenciar. Deus era maior, isso era um fato. Era um fato que entendíamos com a nossa mente. Mas as emoções ficam um pouco em polvorosa diante de um perigo real.

É fácil dizer que "Deus é maior" quando nada nos ameaça, nem perturba. Muito diferente é ver o meteoro vindo em sua direção. Aí a gente pensa: "Deus é mesmo maior do que esse meteoro?... E mesmo que seja... se houver um propósito em... deixá-lo passar?"

No final do dia eu e ela nos sentíamos um pouco melhor.

— Já entregamos pra Deus... não vamos mais ficar pensando nisso!

 

Outros quatro telefonemas sucederiam a este. Marlon ligou-me em casa de Isabela e no serviço, sempre em datas cabalísticas, sempre depois de alguma situação de desconforto entre Isabela e eu. Mais ou menos um por mês, de julho a outubro, o último no dia 31 de outubro.

As conversas foram curtas e se resumiam em mostrar-me que eu tinha feito a escolha errada. Marlon procurou me fazer ver que as coisas iriam piorar caso continuasse me recusando a atendê-los.

Muitas vezes foi deixado bem claro:

— Não adianta. Ninguém vai te ajudar! Ninguém vai ficar do seu lado, você está no meio de um grupo dividido. Entrou num exército dividido, e esse exército dividido não vai prevalecer. Nós somos unidos, por isso somos fortes. Lembra do "Poder à força, morte aos fracos"? Nós temos Poder porque somos unidos, a união gera a força. E o Poder é acrescentado a ela! Mas você está num meio dividido, num meio fraco. O que é a Igreja? Que loucura é essa? Um briga com o outro, um apunhala o outro. Você nunca vai ter apoio, nunca vai ter amigos. Nunca ninguém vai estar do seu lado, inclusive seu Pastor! Pode escrever o que estou te dizendo: você nunca vai ser acolhido ali porque ali não é o seu lugar! Nós somos a sua verdadeira família. Pare de resistir contra isso!

Eu achei aquilo uma afronta.

— Pois você vai ver! — Então veremos!

Notei que o tom das nossas conversas estava mudando. Ele já não me saudava em aramaico e estava implicado com a minha postura de recusa.

 

Grace queria que nós repetíssemos o curso dela, então aproveitamos porque ia haver um outro em São Paulo mesmo. Na véspera do curso, novamente tive um rash cutâneo, só que dessa vez foi sarampo. Eu tinha tomado vacina, e tive a doença atenuada. Mas com isso, gorou o curso.

Se foi coincidência ou não, não sei. Mas aconteceu no dia 18 de agosto. No final do mês de agosto, Grace marcou outra Ministração. Havia tanta coisa a ser trabalhada que em dez dias ela marcou mais uma.

Agora Isabela e eu realmente passamos a pedir muito mais a Deus pela nossa proteção. Normalmente era ela quem me convidava a orar, que começava as orações. A despeito disso, coincidência ou não, nossas brigas aumentaram.

Coincidência ou não, o intercessor tinha visto uma nuvem de demônios ao nosso redor na última Ministração. Além disso, ele tivera uma visão com dois demônios, um maior do que o outro, e que os dois estavam furiosos comigo.

Coincidência ou não, eu tinha tido um sonho poucos dias antes, e nesse sonho havia dois cachorros prestes a me atacar. Mas não eram cachorros comuns, eram quase dois monstros.

Grace procurava ganhar terreno nas Ministrações. Esse era o único caminho possível, completar a minha libertação.

Isabela estava muito cansada, às vezes passava mal. Certa noite, depois do Culto, vomitou sem qualquer motivo aparente. Novamente, coincidência ou não, ela também começou a ter problemas no seu emprego.

Nós estávamos mais conscientes de que havia uma batalha ao nosso redor. Dona Clara nos incentivava e ela mesma também orava conosco todas as semanas. Aliás, nesse período começamos a nos tornar bastante amigos, da maneira como um casal jovem pode ser amigo de uma senhora mais idosa.

Durante a semana, do nosso jeito, nós fazíamos as nossas orações de guerra, sempre pedindo a proteção e pedindo que Deus cancelasse as maldições que porventura estivessem sendo lançadas contra a minha vida. Afinal, eles tinham me descoberto. E se tinham descoberto, certamente não iam ficar parados.

Tudo o que estava acontecendo, se fôssemos olhar isoladamente, não era motivo para preocupação. Afinal... sonhos, brigas, enfermidades, problemas no emprego, cansaço físico, cansaço emocional... não se pode culpar o diabo por tudo!

Mas havia aquela sensação de ameaça pairando no ar, e não era somente comigo. Isabela também sabia que alguma coisa parecia estar sendo armada em torno de nós. Nós não queríamos ficar elucubrando nada, mas parecia difícil caminhar. Tudo parecia ficar mais difícil.

Em setembro, exatamente no dia da Festa da Primavera, nós dois oramos muito. Nesse dia, recebi mais um telefonema da Irmandade. Não demorou muito desde o último. Nós já estávamos até ficando acostumados! Desta vez foi Zórdico quem ligou. E foi em casa de Isabela!!!

Nós estávamos nos preparando para almoçar, no domingo. Dona Márcia preparava o frango assado na cozinha e nós conversávamos diante da mesa cheia de petiscos. O Wolfi, o Gorbie e a Bitinha, os cachorros, estavam animadíssimos na porta esperando pelas guloseimas que Isabela lançava toda hora.

O telefone tocou e ela foi atender. Mas a pessoa do outro lado não se manifestou

— Alô? Alô?

Nada. Então desligou.

Alguns minutos depois, tocou de novo. Eu já ia levantando, mas ela foi mais rápida.

— Deixa que eu atendo... — foi novamente até a sala. — Alô?

E então outra vez ninguém se manifestou. Isabela tornou a desligar, mas dessa vez entrou na cozinha com uma expressão diferente no rosto. Ela parecia adivinhar de que se tratava. Não me falou nada, mas eu li no seu olhar, e ela certamente leu no meu. Já tinha acontecido por três vezes, com Marlon.

Dona Márcia, alheia a tudo isso, abria a porta do forno para regar o frango com molho novamente. Tentamos continuar o nosso aperitivo, intimamente esperando que o telefone não tornasse a tocar. Mas não adiantou. Menos de cinco minutos depois fomos outra vez interrompidos pelo toque. Dessa vez eu me adiantei. Atendi.

Senti um mal-estar invadindo meu coração. Era exatamente aquilo que suspeitávamos, mas eu não esperava ouvir a voz de Zórdico. Escutei Isabela falando até mais alto e puxando conversa com Dona Márcia, para disfarçar. Ela nem percebeu. Mas Isabela notou que eu fiquei uns minutos no telefone e desliguei sem dizer palavra.

Entrei na cozinha de novo e olhei para ela. E ela para mim. Aquela troca de olhares dizia tudo.

Assim que pudemos nos falar sem que Dona Márcia percebesse, ela perguntou:

— Quem era?

— Era alguém de lá.

— Mas quem? Você conhecia?

— Não tenho muita certeza.... — procurei disfarçar, nunca tinha citado o nome de Zórdico até então.

— E o que ele falou?!

— "Já não te dissemos que ninguém vai te ajudar? Por que você insiste nesse caminho? Saiba que se você continuar insistindo, as coisas só vão piorar pra você. Você está no lugar errado, o que que você tá fazendo aí nessa casa?! Pois essa casa vai ser derrubada, nós vamos destruir todos eles e você vai junto de encomenda!"

Sempre ficava uma sensação de mal-estar depois destes telefonemas; nesse dia não foi diferente. O adorável frango de Dona Márcia já não tinha o mesmo gosto, apesar de que digerimos aquelas palavras mais depressa do que das outras vezes.

Que fazer a respeito? Não havia muita coisa. Oramos, e deixamos para lá.

Durante a semana compartilhamos com Dona Clara, e fizemos orações de guerra várias vezes, tanto juntos quanto separados. No final daquela semana uma semana muito atribulada, cheia de opressão, cheia de problemas, sentimos a necessidade de fazer um jejum. Um jejum de quatro semanas.

Aquele era um período crítico, eu sabia. Certamente a Festa da Primavera tinha acrescentado mais Encantamentos contra nós, sabia que era assim que funcionava! Sabia exatamente que desde o início da primavera, eles haviam enviado tropas de demônios contra mim. A semana densa já era resultado daqueles Feitiços.

Cinco dias depois de iniciado o período de jejum, eu, Isabela e Dona Márcia saímos para almoçar. Nós não estávamos proibidos de almoçar, apenas cortamos alguns alimentos.

Nesse dia fui tomado, pela segunda vez, por aquela mesma sensação que experimentara no Fran's, quando soube da carta de São Francisco. Foi igualmente estranho, nós tínhamos acabado de chegar ao restaurante, Isabela tinha ido ao toalete junto com Dona Márcia.

Então veio aquela coisa estranha dentro de mim. Um sinal de alerta, um sinal de perigo... só que, dessa vez, o perigo estava em casa de Isabela. Alguma coisa estava acontecendo lá.

Chacoalhei a cabeça, um tanto aturdido. Relativizei novamente:

"Isso é coisa da minha cabeça... não tem o menor sentido... ".

Isabela e Dona Márcia voltaram, sentaram-se à mesa, e eu tratei de não pensar mais naquilo. A sensação permaneceu durante algum tempo ainda, mas depois esqueci dela.

O almoço foi agradável, depois fomos tomar um café no Shopping. Somente mais tarde voltamos para casa. Para a casa de Dona Márcia.

Isabela foi até o quarto, a porta que dava para os fundos do quintal tinha ficado aberta. Ela saiu ali no terraço, de onde podia ver os cachorros atrás da cerca de madeira.

— Nenê! Vem aqui um pouco!

Foi até lá. Isabela tinha aberto a cerca e observava o Wolfi.

— Olha só, olha só como ele está todo ensangüentado! Meu Deus do Céu, será que ele brigou com o Gorbie enquanto a gente estava fora?

— Será possível? Eles costumam fazer isso?

— Não, só sai briga aqui se for por causa de ciúme. Só sai briga se tiver alguém perto! Nunca aconteceu deles brigarem sozinhos! Será possível que foi isso?!

Isabela olhava o Wolfi, afastava o pêlo para ver de onde tinha saído sangue, se tinha algum sinal de mordida. Ao mesmo tempo, olhava para o Gorbie que, lampeiro, abanava o rabo e se torcia todo de alegria.

— Que aconteceu, Wolfinho? Você brigou, meu chuchu?

O Wolfi não tinha nenhuma marca de mordida, e o Gorbie não tinha sangue. De onde teria saído aquele sangue que estava no pêlo do Wolfi?

— Nossa, Eduardo... olha só a boca dele! É daqui que está saindo sangue, olha só, ainda está sangrando!

— Puxa vida, é mesmo! Será que o Gorbie mordeu ele na boca?

— Não, impossível...

Foi aí que o Wolfi pôs a língua mais para fora, e vimos o estrago. Ele tinha um furo nela, tão profundo que tinha perfurado.

Isabela se condoia, o rosto demonstrando toda a tristeza e preocupação. O tom de voz soou profundamente magoado.

— Mas o que será que aconteceu? Certamente não foi o Gorbie, será que ele mordeu a língua, ele mesmo se mordeu?

Wolfi devia estar sentindo bastante dor, mesmo assim abanava o rabo e fazia festa.

— Puxa vida... acho melhor levá-lo ao veterinário.

Como era domingo, não poderíamos levá-lo no Hospital Veterinário da USP, o lugar mais confiável. Pelo que tivemos que procurar um Médico particular que estivesse de plantão.

Isabela entrou em casa e, preocupada, comunicou a Dona Márcia.

— Vamos ter que levar o Wolfi ao veterinário. Ele perfurou a língua e está sangrando bastante!

— Nossa! Que aconteceu?

— Não sei. Mas também não vou deixar ele assim.

Isabela pegou a lista telefônica e conseguiu descobrir um veterinário de plantão, num bairro que julgamos ser confiável. Nunca se sabe que tipo de Médicos atendem por aí. Isabela sempre fazia restrições a consultórios e profissionais de quem não tivesse indicação alguma.

O resto da tarde de domingo se perdeu nesse problema. Pusemos o Wolfi no carro e o levamos.

O consultório estava vazio, portanto não esperamos muito. Explicamos o que aconteceu e o veterinário examinou o Wolfi. Nós aguardávamos pela sua opinião, ansiosos. Depois de várias perguntas, depois do exame, ele falou:

— É estranha essa lesão. Nunca vi isso! O que acho mais provável, é que talvez ele tenha tido uma convulsão e se machucou sozinho. Ele já teve isso antes?

— Não...

— Pode acontecer, animais dessa idade podem desenvolver um quadro convulsivo... uma epilepsia! Ele já está com 10 anos, não é? Mas como está bem, é um animal forte, vou dar uma medicação pra dor, um antibiótico e vamos aguardar.

Nós agradecemos. Ele fez uma medicação injetável ali, na hora, e prescreveu a receita dos medicamentos a serem dados em casa. Enquanto eu pagava a consulta, Isabela olhava para o Wolfi com ar triste.

Saímos de lá no cair da noite. Na volta, já compramos os remédios e logo que chegamos em casa, Isabela estava pensativa:

— Será mesmo que ele teve uma convulsão?

A dúvida ficou no ar. Mas não demorou muito a ser sanada. Na hora do lanche, escutamos o Gorbie latindo compulsivamente, em tom estranho, nervoso, inquieto.

Isabela correu na porta da cozinha e teve tempo de ver a convulsão. Bastante assustada, ela correu para o quintal. A crise foi rápida, tônico-clônica, durou alguns segundos. Depois ele ficou ofegando, os olhos esquisitos, esbugalhados, a saliva escorrendo um pouco pela boca. A língua voltou a sangrar e o furo se transformou num rasgo.

Gorbie e Bitinha latiam sem parar, tornando a confusão ainda maior, e Isabela gritava com eles para que ficassem quietos enquanto tentava acudir o Wolfi.

Mas logo aquele estado meio torporoso passou, ele levantou e caminhou normalmente, parecia que nem tinha acontecido nada!

Isabela também se ergueu, observando-o.

— Foi uma crise rápida, é bem mais rápido do que em seres humanos... um ser humano não volta assim rápido de uma crise tônico-clônica.

Depois de observar um pouco mais, ligamos para o veterinário. Ele passou um anticonvulsivante pelo telefone mesmo. Gardenal.

Mais tarde, comentei com Isabela sobre a sensação que tinha tido na hora do almoço.

— Mas, Eduardo... por que você não falou nada??

Não sei, achei que fosse coisa da minha cabeça...

Isabela não me culpou por não ter dito nada. Será que tinha sido novamente um aviso de Deus? E se Deus avisou, será que se tivéssemos orado na hora nada daquilo teria acontecido? Nunca vamos saber, porque não oramos. Porque eu não falei nada.

Naquele mês, em outubro, gorou o segundo encontro com o Pastor titular da nossa Igreja, o Pastor Lucas. O primeiro encontro não tinha dado certo, por algum motivo que já não me lembro. Recebi um telefonema da Igreja adiando para nova data.

Que era naquele dia, mais ou menos no meio do mês.

Eu e Isabela chegamos à Igreja com antecedência. Eu estava meio cismado pelo que Marlon me havia dito, sobre ninguém ficar ao meu lado, inclusive meu Pastor. Isso não podia ser, eu nem o conhecia ainda, a não ser de vista. Na hora em que o conhecesse, que ele soubesse melhor da minha história, tudo daria certo.

Chegou o horário do encontro e a secretária nos avisou que ia atrasar um pouco, que ele estava com pessoas na sala. Então ficamos por ali, zanzando, olhando o mural, lendo o que estava afixado.

Mas aí... novamente comecei a sentir aquilo. Aquela sensação. Mas era diferente dessa vez, não parecia ser um alerta de nada, era só uma sensação ruim. Simplesmente ruim. Parecia a presença de um demônio, não um demônio grande, forte, Poderoso como eu conheci na Irmandade. Era um demônio menor... mas estava ali, na Igreja... lá em cima!

Eu não sabia o que fazer, e de novo me recusei terminantemente a acreditar naquilo que meu espírito captava. Não sabia ainda que aquilo era um Dom.

Como a sensação continuasse, comecei a me sentir até mal, não estava agradável ficar ali dentro.

"Não é possível, isso tem que ser coisa da minha cabeça... eu estou dentro da Igreja, será possível que tem um demônio aqui?"

Por mais que eu soubesse que demônios entram, sim, dentro de Igrejas, naquela hora não quis pensar nisso. Então saí, fui ficar lá no jardim, lá fora. Ali a sensação era menor, me sentia mais confortável. Apesar de estar batendo sol, eu não gostava de ficar direto naquele sol forte, preferia o sol à presença daquele demônio!

Fiquei quieto, olhando os carros que passavam pela rua, os ônibus, os transeuntes; observava as casas em frente e o velhinho que vendia doces na porta de sua casa. Até achei graça. Ele tinha armado a sua barraquinha na garagem do sobradinho quase em frente. Não deixava de ser uma boa ocupação!

De repente...

— Ô, Nenê, eu estava te procurando! Por que você sumiu? Por que você quer ficar aqui nesse calor, não é melhor ficar lá dentro, no fresquinho?

— Ah! Tá bom aqui! Isabela ficou um pouco comigo, mas realmente o sol estava forte.

— Vamos esperar lá dentro, Nenê. Tá muito quente aqui fora! — e dessa vez ela me olhou melhor, desconfiada. — Me conta isso direito, vai. Por que você veio ficar aqui?

Então contei. Isabela me olhava com ar admirado e falou:

— Será que a gente não deve orar, então?

— Se ele entrou aqui, é porque tem permissão para entrar...

— Mas não vamos ficar aqui, não! Vamos lá para dentro, vamos orar um pouco. Então fomos sentar dentro do templo, na última fileira de cadeiras. Lado a lado, Isabela preparava-se para orar quando escutamos a gritaria vindo lá de cima. Nos entreolhamos.

— Nossa.....tem alguém possesso aí! Deus te sinalizou mesmo!

Foi minha vez de ficar espantado. Novamente eu tinha pressentido. Nem parecia uma coisa real!

— Vamos orar aqui debaixo pra ajudar eles que estão lá em cima! Oramos um pouco. Foi rápido. Logo percebemos que o barulho cessou. Esperamos ainda um pouco mais, apenas para receber da secretária da Igreja a notícia de que nosso encontro teria que ser cancelado. Ficamos muito chateados, mas não havia nada que pudéssemos fazer.

Dentre outras coisas pessoais comentamos depois com Dona Clara, um pou­co frustrados, que já era o segundo encontro com o Pastor Lucas que gorava. Oramos para que pudesse acontecer. E já que estávamos falando do Pastor Lucas, acabei lembrando de outro Pastor, no final da nossa reunião:

— Eu estou meio cismado por causa do Brintti! — e eu expliquei rapidamente para ela quem era o Brintti. — Eu já fiz de tudo pra encontrar esse homem! Mas ninguém tem sinal dele! A verdade é que ele está vivo, a Grace me disse que o encontrou em Israel há alguns anos, e que nessa ocasião ele comentou que estava passando por muitos problemas. Mas nem mesmo a Grace consegue saber dele agora. Mas Marlon falou com muita convicção... eu sei que eles podem jogar verde pra colher maduro... mas eu gostaria tanto de saber onde ele está, como ele está! O Feitiço que foi feito contra ele naquela época foi muito forte, eu nunca tinha visto nada tão forte...

— Vamos orar por ele, né, "Bem"? Vamos estar cobrindo em oração, porque ele também é alvo. No tempo certo, o Senhor vai preparar um encontro de vocês!

Foi o que fizemos. Nós não sabíamos aonde estava o Pastor Brintti, mas Deus sabia... e nossas orações podiam alcançá-lo aonde quer que fosse!

O resto da semana correu normalmente, ou seja, daquele mesmo jeito meio atravancado, meio dificultoso; onde quer que pudéssemos ter algum problema, esse problema acontecia. Nós dois sabíamos que aquilo era espiritual... porque, se não fosse, ultrapassava as leis da probabilidade. Ou então, teríamos que admitir que nós estávamos debaixo da influência da "lei de Murphy". A "lei de Murphy" estava agora se cumprindo nas nossas vidas bem mais do que antes!

Dois dias depois do encontro que não aconteceu, eu e Isabela tínhamos ido ao Wal Mart porque estávamos pesquisando preços de televisão. Já estávamos noivos há mais de um ano, tínhamos intenção de casar, e Isabela não tinha uma televisão no seu quarto. Às vezes era bom que ela tivesse o seu refúgio, tinha tudo no seu quarto, até aparelho de som. Mas não tinha televisão.

Então a gente estava tentando comprar uma televisão bem legal, que depois já servisse como compra de casamento.

Mas não conseguimos olhar nada, sem mais essa nem aquela comecei a sentir aquela terrível dor de estômago. Eu não tinha comido nada de diferente, não tinha feito nada diferente! Mas meu estômago começou a se contorcer fortemente, quando vinha a eólica eu quase não me agüentava. Nosso passeio ficou estragado e tivemos que voltar para casa. Sugestivo ou não, isso foi no dia 18.

Seis dias depois, no serviço, de maneira totalmente inexplicável, começou de novo a mesma dor. A medicação não fazia muito efeito, a dor passava quando queria...

Nessa semana quem passou mal também foi a nossa poodle preta, a cachorrinha que nós tínhamos em casa de minha mãe. O mais interessante foi que eu pressenti antes, como das outras vezes, como tinha sido com o Wolfi.

Quanto ao nosso jejum de quatro semanas, estávamos levando a sério, procu­rando orar mais e ler mais a Bíblia também. Mesmo assim, no primeiro e no segundo final de semana de outubro nós caímos. Quer dizer, brigamos! Isso estragava o nosso período de descanso, nos punha desanimados... eram brigas que começavam por motivos muito tolos, muito corriqueiros, mas atingiam proporções desastrosas. Não havia explicação para aquilo!

No meio de todas aquelas lutas esparsas, um ponto de vitória naquele mês foi que no terceiro e quarto finais de semana, assim que a fumaça começou a surgir no ar, conseguimos abortar o problema. Não brigamos!

Outro ponto positivo foi que Isabela retomou a escrita do livro Filho do Fogo. Ainda que estivesse no começo, era importante dar seqüência. Normalmente ela usava períodos livres dentro do horário de trabalho para fazer aquilo. Ao invés de ficar à toa, ela permanecia no consultório entretida com a escrita.

Outra coisa boa foi que no fim de outubro daquele ano nos tornamos membros da Comunidade. Já estávamos freqüentando há quase seis meses.

 

Chegou o 31 de outubro e tudo o que nós podíamos fazer era orar. Ou melhor, continuar orando! E esperar. Esperar que nada acontecesse.

Naturalmente era esperar demais, e no fundo do coração sabíamos que seria impossível não haver nenhuma manifestação da parte deles. Isso não quer dizer que as manifestações fossem diretas, excetuando os telefonemas. Mas agora já era claro, percebíamos um padrão de eventos. Que a gente podia brincar, e chamar de lei de Murphy, mas é claro que não era nada disso!

Houve um outro telefonema. Foi o quinto. E logo cedo, no meu serviço.

Foi Zórdico outra vez. Assim que atendi fiquei completamente estupefato.

— Nós estamos te observando bem de perto. Bem mais perto do que você imagina. E não há nada à tua volta! Você não tem proteção nenhuma.

Naquela hora soube exatamente do que ele estava falando. Lembrei-me que Grace havia pedido uma proteção especial, havia pedido a presença dos anjos. Pelo visto, Zórdico também sabia disso. E zombava.

— Cadê os anjos que te guardam? Cadê a proteção? Estamos mais perto do que você pode supor, estamos vigiando e controlando cada passo que você dá. Você quer conservar a sua existência? Não vai ser levando essa vida medíocre de Cristão que isso vai acontecer, se os anjos realmente te guardassem não seria tão fácil assim para nós te vigiarmos de perto.

O tom de Zórdico era agressivo, quase ameaçador. Marlon sempre teve mais paciência comigo, mas eu sabia que Zórdico era outro tipo de pessoa. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, mencionou Isabela.

— Você fez a escolha errada. Essa mulher que você escolheu só vai te trazer destruição, vai trazer desgraça e ruína pra tua vida. A sua alma gêmea está aqui, não está aí perto de você. Você já deve ter percebido que não dá certo se envolver com essa raça medíocre!

E nisso ele estava falando de todos os Cristãos.

— E essa fulana que te acompanha, essa tal de Grace... não pense que ela é tudo isso, não! Espere e você vai ver, ela nunca enfrentou esse tipo de batalha. Ela é soldado raso ainda, não tem patente, muito menos autoridade para confrontar o nosso exército. Ela fez umas batalhas regionais. Enfrentou o "Paraguai"! É muito diferente de enfrentar os "Estados Unidos"!!! Ela não conhece esse tipo de guerra. As pessoas da equipe dela são orgulhosas, altivas, arrogantes... estão a serviço de si mesmas! Essa tal de Grace vai ficar sozinha nesse barco.

Eu tentei dar uma boa resposta:

— Deus cuida dos pássaros do campo. Vai cuidar de mim também. Nada vai me faltar.

Eu falei, mas lá no fundo não sabia realmente se acreditava naquilo. Sabia muito bem o que estava enfrentando, eu conhecia o Poder que eles tinham. Eles estavam movimentando as peças, como num jogo de xadrez. Lentamente. Sem pressa. Para que a pressa? Era melhor ir devagar, fazendo aquele calor intensificar aos poucos, exatamente como vinha sendo. Uma coisa aqui... outra ali. Não estavam parados. E certamente estavam articulando, encantando pessoas, lançando Feitiços... para fazer com que eu me decepcionasse com a Igreja e com aqueles que estavam à minha volta.

Somente assim teriam chance de me recuperar, teriam chance de me persuadir a voltar para eles.

Se eles conseguissem fazer com que eu passasse pelo deserto, em todos os sentidos, aquilo me faria refletir se tinha tomado a atitude certa ou não.

Dei de ombros.

— Hum.

Mas o mal-estar ficava por dentro. Como lidar com aquilo??

 

Naquele mesmo dia a Grace ligou, para saber de nós. Ligou em casa de Isabela. Era mais fácil me achar lá do que em minha própria casa. Oramos mais uma vez cancelando a atuação do inimigo, e ela marcou mais uma Ministração para dali a cinco dias.

Contatamos também Dona Clara e Ricardo, para orar e pedir oração.

Aqueles momentos no telefone depois nos davam uma sensação reconfortante de proteção. Não havia mais nada que pudesse ser feito.

Karine, a amiga daquela cidadezinha de interior, também ligou. Ela estudava em São Paulo e de vez em quando vinha à nossa Igreja, de forma que convivíamos bastante com ela. Nos limitamos a dizer que tudo estava bem.

Aquela fumaça estava ficando mais escura. Eu sabia que eles não estavam com pressa. Mas agora, mais do que antes, podia perceber um mover diferente no Reino Espiritual.

 

— Decidi vender o revólver! — exclamei para Isabela certo dia.

— Decidiu, é? E por quê? — Ah... acho que é melhor!

— Mas por quê?

— Eu preciso ir me desvinculando dessas coisas. Acho que não é bom andar armado!

Era um final de semana e, para variar, nós estávamos dando um rolê pelo Shopping. Estava tudo bem cheio, gente andando por todos os cantos, a praça de alimentação também estava lotada. Eu não gostava muito do Shopping aos sábados e domingos, mas também não dava para ficar em casa o tempo todo. Sair um pouco, mesmo que no meio de um Shopping cheio, sempre ajudava a espairecer a cabeça!

Como quase todas as vezes, a gente foi jantar no Viena.

— Mas você não disse que ia deixar o revólver em casa? — tornou Isabela.

— Eu estou tentando deixar, faz até um bom tempinho que não pego ele... mas, sei lá! Acho mesmo que talvez seja hora de me livrar disso...

Isabela pensou um pouco. Por um lado ela desejava me incentivar; por outro...

— Será mesmo que você não vai precisar dele nunca mais?

Eu entendi a pergunta. Os recentes acontecimentos deixavam a gente pensando um pouco. Será que andar armado não faria toda a diferença num momento crucial?

— Quero crer que Deus vai me proteger... quem vive pela espada, morre pela espada.

— Talvez seja mesmo o melhor. Tem gente que tem cabeça para andar maquinado, mas não sei se é nosso caso! — e Isabela deu uma risadinha de leve. — A gente já escapou de cada uma! Tem coisas que só pela Graça de Deus mesmo! Lembra daquela história da dança?!

— Puxa, se me lembro! Olha, vou te falar um negócio... aquilo ali foi por Deus mesmo! Até hoje não sei como é que eu consegui me controlar. Acho que foi porque o cara baixou a bola!

— Ai, Eduardo! Só você...

— Até parece que você é muito calma! Eu e Isabela começamos a rir.

— Hoje a gente dá risada... mas naquele dia eu queria te matar! — exclamou Isabela no meio do riso.

— A culpa foi sua!

— Foi minha... só porque você quer! Que coisa!

Começamos a lembrar do episódio enquanto esperávamos pelo prato.

Tudo começou porque Isabela adorava dança! Esse foi um belo problema entre nós dois logo de cara. Quando começamos o namoro ela fazia um curso de danças de salão que adorava! Levava jeito, tinha ritmo, facilidade em aprender os passos. Em suma: tinha até futuro! Se não parasse de aprender, certamente saberia bastante.

No comecinho do nosso namoro eu estava fazendo de tudo para agradar Isabela. Por isso, durante as férias, logo depois que ela entrou na Residência, fomos fazer um curso de pagode, em dez aulas. Lá na academia de dança que ela freqüentava.

— Eu concordei em fazer aula, em aprender a dançar. — exclamei. — Esse ponto você tem que me dar, eu tentei te agradar porque você estava toda entusiasmada. Me esforcei!

— E não era pra estar? Um dos meus maiores desejos era ter um parceiro pra dançar comigo. Não era possível que você não conseguisse fazer certos movimentos básicos, pôxa vida! Alguém que faz coisas dificílimas no Kung Fu não ia acertar uns passinhos simples de dança?

 

— Não é tão fácil assim. Eu não estava condicionado a fazer aqueles movimen­tos.

A gente começou a rir lembrando daquilo. As vezes era engraçado recordar certas coisas.

— Edu, você não tinha um pingo de boa vontade.

— Tinha, sim. Mas aqueles movimentos eram estranhos.

— Não tinha nada de estranho, caramba! Eu cansava de dizer que você tinha que dar o passo de lado no ritmo. Era má vontade mesmo!

— Era má vontade nada! No Kung Fu eu nunca faria um passo como aquele. Dar um passo daquele jeito desprotege a região genital!

Isabela balançava a cabeça, achando graça na lembrança e contrariada ao mesmo tempo.

— Eduardo! Era dança! Entendeu? Não era luta! Chutar não faz parte da coreografia!!

Até teria sido legal se tivesse dado certo. Mas eu não me sentia à vontade, nem aprendia facilmente.

— Estava tudo indo tão bem, Eduardo... puxa, por que você teve que engrossar? — lembrou Isabela de novo.

— A culpa foi daquele rodízio especial, deram chance para as damas escolherem os cavalheiros... você tinha que ter me escolhido!! — e dei uma leve risada.

— Agora você acha engraçado, né? Mas na hora... coitado do cara!

Pois é isso mesmo! Você tinha que ter me tirado pra dançar com você!

— Mas você dançava muito mal, Eduardo! Eu queria poder dançar com alguém que soubesse dançar, né? E eu juro que não percebi que você não gostou... não foi de propósito.

— Fiquei tão irado e tão cheio de indignação que minha vontade era dar um tiro em cada um. Depois ele foi dançar com você de novo.

— Nenê, era uma aula!

— Pois eu não via a hora que chegasse o fim daquela aula.

Ficamos sérios por um momento, relembrando o ápice daquela história. Isabela continuou:

— Bem que eu achei que você estava meio estranho quando a aula acabou... estava meio mudo, nem imaginei qual era o problema.

— Eu estava fervendo de raiva, não conseguir tirar os olhos do cara, ele estava acabando de se encontrar com a namorada que tinha chegado. E pensei: "Que cara de pau desse vagabundo, acabou de dar em cima da minha namorada, e agora vai dar uma de santo na frente da dele!"

E Isabela até elevou as mãos à cabeça, vislumbrando novamente a cena.

— Eu não acreditei no que eu vi, juro, Eduardo! De repente, do nada... você voou pra cima dele! Empurrou o coitado na parede e encostou o revólver na cabeça dele!

— Ai, Isabela, foi mesmo, mas eu perdi a cabeça. E gritei: Te mato! Não estou brincando! Eu te mato!!! — repeti as palavras.

Apesar da trágica situação que estávamos rememorando, Isabela não se conteve e começou a rir de novo.

— Eduardo, a gente ri pra não chorar, viu? Ele nem esboçou reação, cada vez se encolhia mais, quando lembro da cara de pavor que ele estava... ficava só balançando a cabeça e dizendo que sim, sim, sim!

— O colarinho dele ficou todo amarfanhado!

— Coitado!!! E quando você empurrou ele com força, amassou ainda mais!

— Eu nem sabia o que estava acontecendo. Quando vi, você já estava descendo as escadas, todo furioso. Fui atrás de você, né, fazer o quê? Daí, na rua você pulou e acertou um soco com toda a força na placa de zona azul, sim, eu lembro muito bem do seu ataque de raiva!

— Você estava toda emburrada.

— Claro que eu estava emburrada, né? Você queria que eu estivesse como? Resultado: embora Isabela já tivesse virado aquela página, eu sabia que ela ficava com uma pontinha de tristeza por causa da dança. Então perguntei:

— Mas por que mesmo que a gente começou a falar sobre isso?

— Porque você disse que ia vender o revólver... mas, não sei, não! Você já tinha tentado aposentar a arma antes, lembra? E também não deu certo!

— Quando foi isso? Não estou lembrado... Isabela começou a rir de novo com todo gosto.

— Ah, pois você esqueceu? Esqueceu que comprou o "choque"!

— Putz, é mesmo!! Já tinha esquecido!

— Quando você resolveu que ia aposentar o revólver, comprou aquele aparelhinho de eletrocutar os outros! Ah, ah, ah, ah! Só você mesmo, Eduardo!

— Mas, Isabela! Eu queria mesmo largar o revólver, queria! Então achei que a melhor coisa era ir deixando aos poucos de andar armado. Deixei o revólver em casa, mas ainda não conseguia sair na rua totalmente desarmado. Então achei que se eu usasse uma coisa mais inócua, iria me acostumando aos poucos.

— E o tiro saiu pela culatra! Acho que aquele cara tá tentando saber até hoje o que foi que aconteceu. Ah, ah, ah, ah, ah, ah! — Isabela até chorava de tanto rir.

Ficamos ainda mais um bom tempo rindo daquilo.

— Eu estava super feliz porque há vários dias que estava deixando o 38 em casa. Mas aí, naquele dia, saí cedinho para o trabalho, como sempre. Não tinha nem muita gente na rua, eu estava na minha, tava até cantando um Louvorzinho...

— Sério, é? Você estava cantando? — indagou ela.

— Tava, "Mô"! Nenê estava cantando.

Isabela novamente passou a mão pelo meu rosto, sorrindo.

— Tadinho, foi ficar bravo logo de manhã. Mas também, aquele sujeito bem que mereceu.

— Pois então, de repente eu vejo aquele cara da carrocinha laçando um pobre cachorrinho! E foi arrastando o coitadinho sem a menor dó.

— Que coisa horrível, coitadinho dele! Você fez muito bem.

— Eu tentei primeiro pelo método pacífico: corri atrás do cara e falei que o cachorro era meu, que eu tinha esquecido o portão aberto e ele veio atrás. E perguntei todo educado se ele podia me devolver o bicho. Aí ele me deu aquela respostinha, disse que "não"! Pedi por favor, fui mesmo educado... e ele só apontou para a caminhonete, para o telefone que estava escrito. E me disse que se eu quisesse o cachorro de volta, tinha que ir lá. — fechei os olhos e pus as mãos sobre os olhos. — Ai, me subiu um sangue, olhei pra cara dele e o cara continuava mascando aquele chiclete, com aquele ar de pouco caso... então não tive dúvida! peguei o meu choque e bbbbzzzzzz! Eletrocutei ele! Bem no peito!

— Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah!!!! Ele mereceu!!!

— Mereceu!! Eu nunca tinha experimentado o choque, fiquei até espantado com o resultado. Ele desabou, simplesmente desabou! E o cachorrinho saiu correndo, levando a cordinha amarrada no pescoço, e tudo! O cara ficou no chão, meio bobo, meio zureta... foi tudo muito rápido! Tinha um outro cara dentro da caminhonete que veio saindo, perguntando se ele estava passando mal.

— E você?

— Eu fui indo embora, ninguém viu nada, quem ia imaginar uma coisa dessas? Quando estava na esquina, ainda olhei pra trás... o homem já estava levantando do chão, pondo a mão na cabeça, pondo a mão no peito... já estava bem, já! Foi só um susto.

— Mas o cachorrinho foi salvo, que bom!

— Cada uma, né? E nisso acabou não dando nada certo, acabei ficando com o choque e com o revólver. Aos poucos fui voltando a andar com o cano. Até você andava armada, lembra? Com o revólver do seu pai!

— Eu sei, você achava isso bom... eu também não tinha nada contra. Tem gente que nem pega em armas, eu não me importo.

— Numa cidade dessas, uma cidade louca como São Paulo! Eu achava bom mesmo que você tivesse ficado com o revólver do seu pai e andasse com ele.

— Por sinal ele está lá, no meu criado-mudo. A Marina, nossa empregada, nem tira o pó da mesinha, de tanto medo de encostar na arma. Quando fica muito sujo, eu mesma que tenho que tirar o pó.

— É, você não pode falar nada de mim! Você não é nem uma flor-que-se-cheire! Você também é super agressiva, se fosse homem ia viver dando pancada em todo mundo. Se hoje você já arruma confusão em cada esquina, imagina só se não fosse crente.

— Ah! Que absurdo você está dizendo, Eduardo! Não é assim como você está falando, não! Pra variar você tá exagerando.

— Eu estou exagerando?! Você não vê como que você é no trânsito?

— No trânsito é outra história.

— Outra história, nada! Qualquer dia você pode acabar arrumando uma bagunça de verdade. Você é que não consegue se enxergar na direção, você se transforma quando está dirigindo! Lembra daquela vez que você esmurrou aquele carro?! Lembra??

Isabela desatou a rir de novo. Aquele jantar estava sendo um dos mais hilariantes dos últimos tempos!

— Mas também quem mandou a pessoa fechar o cruzamento? Ah! Eu não consegui me conter.

— Pois é, você fala de mim, mas eu bem que me lembro. Não acreditei, quando vi você já tinha aberto a janela do carro e passou xingando e esmurrando a traseira da mulher.

— Quem manda entupir a minha passagem?

— E daquela vez lá no Embu?

— Ah, Nenê! Você está desenterrando cada coisa... aquilo foi outra coisa, aquele cara mereceu!

— Ele estava manobrando, Isabela! Nem estava vendo você.

— A obrigação de todo motorista é ver, ora essa. Mesmo porque, eu dei uma buzinadinha, dei um toquinho todo educado, não queria arrumar confusão. Mas aí o cara ficou se fazendo de morto só porque eu sou mulher, homem não respeita mulher na direção. Você sabe muito bem que é assim! Custava ele ter me dado passagem, custava ter afastado o carro só um pouquinho para eu passar, custava? Também, levou! E aí deu passagem!

— É, deu passagem porque você bateu no carro dele...

— Foi uma batidinha de nada, vá! Só pra ele se tocar. Eu fingi que não sabia manobrar naquele espaço tão pequeno, ele não queria puxar o carro pra frente, não é? Foi a escolha dele, não foi? Pois então... eu sou mulher, não sou? Mulher dirige maaaal... bati nele "sem querer"! Que fosse reclamar pro bispo. Ele é que não quis dar passagem.

— Sem querer foi aquele dia no Shopping!

— Não, naquele dia foi querendo mesmo. — e Isabela chacoalhou a cabeça. — Mas que mulher mais folgada, Eduardo! Você não viu? Depois que pedi passagem ali no estacionamento... com educação... você sabe muito bem que eu peço sempre com educação primeiro! E não é que a mulher me olha pelo retrovisor e faz que nem aí?! Que folgada, que raiva!!

Foi a vez de eu dar risada. Só de lembrar daquilo eu não conseguia parar:

— Só vi a cabeça da mulher pulando. Sem mais, nem menos você de repente... BUM! Quase que a cara da mulher se estatelou no painel. Ah, ah, ah, ah, ah!

— Que exagero, Eduardo! Até parece que foi assim tão forte.

— Foi forte, sim. Você é que perdeu a noção!

— Mas viu como esse tipo de coisa funciona? Viu como ela saiu rapidinho da minha frente?

— E teve também aquela outra vez... Isabela me interrompeu.

— Ah! Chega de ficar falando de mim! Já sei, já sei. A gente tem o mesmo gênio ruim.

Se fosse só isso. Na verdade, Isabela também tinha uma capacidade toda especial de me incitar à ira também. Pelo menos era assim no começo, e não que ela fizesse isso de propósito. Fazia parte da sua personalidade ficar esquentada com coisas tolas, ela também tinha pavio curto. Aliás, era até mais curto do que o meu.

 

Depois da minha conversão eu tinha procurado por toda lei dominar a minha agressividade. Uma boa parte dela tinha sido milagrosamente transformada do dia para a noite, sem que eu tivesse que fazer força. Mas à medida que os anos foram passando parece que Deus começou a me confrontar pouco a pouco. Era fato que Ele queria mais domínio próprio na minha alma. Eu sentia que agora era a minha vez. Eu tinha que fazer a minha parte.

O grosso Ele tinha tirado... agora queria limpar um pouco mais a minha personalidade... com a minha participação. Ia mexer um pouco mais. Comecei a ficar incomodado. Se havia uma coisa que eu queria muito, era dominar aquele instinto de violência e ira que sempre tinha sido um traço muito forte do meu caráter.

Certa ocasião procurei me aconselhar com um Pastor itinerante que vi pregar e que tinha sido um gângster barra pesada no passado. A pregação dele me tocou muito, bem como seu testemunho. Especialmente sugestivo foi o fato dele comentar sobre a agressividade que dominava sua vida naquela época de incredulidade.

Dei um jeito então de fazer a pergunta:

— E agora, Pastor? Como você lida com isso, com a ira, a violência?

Eu queria escutar dele a resposta padrão, que Deus o havia transformado como tinha feito com a água que virou vinho, nas Bodas de Caná. Como num passe de mágica. Mas não foi isso que ele disse, fiquei até surpreso.

— O Senhor tem me dado graça, e dia-a-dia eu tenho conseguido ser transformado. Mas ainda está lá dentro... está dominado, mas está lá dentro. Mas eu oro a Deus que me ajude, porque eu sei que, ainda hoje, seria capaz de matar um homem.

A sinceridade dele me surpreendeu muito, apesar de que não escutei o que queria. E fiquei pensando... eu conhecia a minha índole. Quando me irava, perdia a cabeça completamente, perdia também a noção de tudo. Se desse o primeiro golpe, não era mais capaz de parar. Eu sabia disso. Então, quando aquele processo começou na minha vida, eu procurava nunca bater em ninguém. Me controlava para não ter que dar o primeiro golpe. Mas revidava sempre de outra maneira.

Por exemplo, lembro-me de uma vez em que, depois que eu e Isabela fizemos ginástica, resolvemos comer num restaurante vegetariano nos Jardins que ela gostava bastante. Fomos para lá satisfeitos, aproveitando a tarde de sábado. Estacionamos com certa dificuldade porque ainda não tinha sido liberada a zona azul. Mas o lugar era perfeitamente livre, perto de uma guia rebaixada.

Na pontinha da guia rebaixada tinham colocado um daqueles postinhos de concreto para demarcar que, a partir dali, não se podia estacionar. O fusca coube e não ultrapassou o limite da guia rebaixada, embora ficasse bem pertinho.

Fomos comer, conversamos bastante, foi agradável. Quando voltamos, o tal postinho de concreto estava encostado no fusca, e tinha ali um arranhão que... será que tinha sido feito pelo poste...? Não sabíamos.

Ficamos na dúvida, mas era certo que antes o carro estava bem mais distante daquele postinho! Eu olhei e não gostei. Bem em frente tinha uma padaria, então mandei Isabela entrar no carro. Mas eu mesmo não entrei, fiquei ali fora, observando, com a cara meio fechada.

Resolvi entrar na padaria falando em tom de voz meio alto, e fui perguntando para o rapaz do caixa sem muita educação:

— Esse poste é de vocês, por acaso?!

— Não, não... é da mulher aí do lado, ela vive implicando com quem estaciona perto da garagem dela.

— Ah, é? Mas eu nem cheguei perto da garagem dela. Não invadi a guia rebaixada!

Saí da padaria e olhei para cima, para o segundo andar da casa. Apareceu, então, do nada, a tal da mulher na janela lá em cima:

— É isso mesmo, fui eu que tirei o poste do lugar, aqui é a minha garagem. Fiquei super irritado com tanta desfaçatez. Sem mais essa nem aquela, para grande surpresa da mulher, peguei o poste nas mãos. Como fosse pesado demais, arrastei-o até perto do portão dela para, então, literalmente, arremessá-lo contra as grades. Deu uma boa e bela amassada. Com um grito, a cabeça dela desapareceu da janela. Claro que vinha voando para baixo.

— Vamos embora! — falei para Isabela.

Eu entrei no carro e ela acelerou. Só tive tempo de ver a cara da mulher aparecendo no jardim, atarantada. E ficou lá atrás, gritando. Em vez de se assustar e achar tudo um horror, Isabela achou graça, nem ligou que o portão tivesse amassado. Ela também tinha riscado o nosso carro, que nem estava defronte à garagem.

Cada coisa feia!

Mas aí que estava o problema. Depois de convertido, e especialmente depois que comecei a namorar Isabela, situações semelhantes se repetiam vez após vez. Era uma provocação aqui, era um insulto ali, era um desrespeito qualquer, era uma arbitrariedade e outra... parecia haver um campo minado à nossa volta! E Isabela não fazia nada para me conter!...

Nesse mesmo episódio, essa pequena confusão com essa mulher, mais tarde quem terminou o serviço foi ela. Algumas semanas depois fomos novamente almoçar naquele mesmo restaurante, só que dessa vez Dona Márcia, a mãe de Isabela, estava junto. E não é que a mulher reconheceu o nosso carro e a gente também?

Nós havíamos parado quase no mesmo lugar, já esquecidos do que tinha acontecido. Quando demos por nós, a mulher estava vindo no nosso encalço. Falava toda hora que tinha avisado a polícia. Era pura provocação, claro!

Isabela pediu calmamente para Dona Márcia entrar no restaurante e nós continuamos caminhando até o final da rua. Dona Márcia nem notou. E a mulher vindo atrás de nós, com aquela cometa no nosso ouvido.

Lá pelas tantas, Isabela se irritou e mandou a mulher passear, gritou que não estava nem aí com ela e muito menos com a polícia.

— Você riscou o nosso carro, nós amassamos o seu portão, e daí? E vê se dá sossego!

Até estranhei aquela reação explosiva. A mulher nem retrucou mais nada, virou as costas e foi embora. Com toda calma, Isabela terminou:

— E agora vamos almoçar!

Sem dúvida, esse era um aspecto de fragilidade no nosso relacionamento. Eu alimentava a ira dela, e ela alimentava a minha. Mas aí eu queria dar um passo a mais, não queria simplesmente estar à mercê daqueles sentimentos. E comecei realmente a me esforçar nesse sentido.

Então veio uma segunda fase.

Às vezes a gente estava descontraído, contente, se divertindo, completamente desarmado em todos os sentidos. E sempre acontecia do mesmo jeito, aí era Isabela quem se irritava com alguma coisa qualquer, ou com alguém. Ela até tinha razão de se irritar, algumas vezes. Parece que nós conseguíamos sempre atrair uma provocação gratuita.

Mas nas outras vezes acontecia porque Isabela era um pouquinho brava mesmo. Quero dizer... tinha o sangue meio quente e não gostava de aceitar desaforos de ninguém. Mesmo que não fossem realmente desaforos. A culpa era da sua índole agressiva. Não do mesmo modo que a minha, é claro que Isabela nunca mataria ninguém de pancadas, ou com um tiro. Embora ela garantisse que teria coragem para matar se a vida dela estivesse em risco, ou a de algum dos seus familiares.

Aliás, não fôssemos convertidos e teríamos — penso eu — nos tornado algum tipo de "Bonnie e Clyde" brasileiros. A gente tinha tudo para isso! E talvez tivéssemos o mesmo fim deles.

Até apelidei Isabela mais tarde de Pit Gatinha, um singelo derivado de Pit Bull. Isabela era invocada, sem dúvida, e aí estava a questão: seu temperamento meio agressivo muitas vezes continuava despeitando em mim aqueles antigos sentimentos. Aqueles com os quais eu estava agora lutando com unhas e dentes para remover de mim mesmo. A ira, o descontrole, a agressividade. Se sair sozinho já era perigoso, com Isabela ficava mais perigoso ainda.

Confesso que, no início, ao invés de ajudar, o jeito da minha namorada mais estimulou coisas ruins do que ajudou a apagar. Pelo menos, nesse sentido.

Se por um lado Isabela era romântica, sensível, com aquele feeling apurado para perceber as coisas e as pessoas.... sentir o cheiro, ver através delas... por outro lado era determinada, irritadiça, agressiva, impulsiva.

Por causa dessa sensibilidade ela se ressentia, se magoava, se irava com mais facilidade. Tinha o humor um tanto ou quanto instável. Podia estar muito bem num minuto, e logo depois, muito mal. Assim era.

Então decidi conversar, pôr tudo aquilo em pratos limpos.

— Você precisa me ajudar, Isabela. — eu havia dito isso ao perceber que ela se irritava porque agora eu estava sendo calmo demais. — Eu não sei direito o que é meio termo. Ou arrebento alguém... ou não faço nada. Se eu der o primeiro soco, não consigo me controlar depois. Então, preciso prestar atenção para nunca chegar nesse extremo, entende? Coisas menores, coisas menos ofensivas... tenho que deixar passar. Mas por um outro lado, sempre que procuro me conter, sinto que você cobra uma atitude minha.

— Me desculpe, Nenê, mas realmente às vezes não entendo. Você não precisa matar alguém, nada disso, pra mostrar que desgostou de algo. Precisa é saber agir com moderação.

— Eu sei, eu entendo isso... na minha mente. Mas não é assim que funciona, eu tenho tentado fazer morrer isso dentro de mim, destruir. É uma coisa terrível! Eu não posso me desestabilizar...

Ela entendia. E não entendia ao mesmo tempo.

Por isso foi muito difícil a gente conseguir virar essa página. A gente não conseguia agir certo, a voz da própria alma falava mais forte nessa época. Nós não éramos dos mais dóceis, essa é a verdade. E um sem-número de coisinhas acabava irritando. A maior parte das vezes a gente deixava passar, claro. Éramos Cristãos! Não podíamos simplesmente ser Bonnie e Clyde, por mais vontade que, às vezes, a gente tivesse. Se não fosse por Deus talvez coisas mais sérias tivessem acontecido.

— Antes eu não tinha nada a perder, Gatinha. Era fácil dar uma de louco! Mas hoje eu tenho muito a perder. Não posso te colocar em risco também.

Situações de incrível desconforto e que envolviam estranhos viviam acontecendo. Era impressionante o modo como havia pessoas capazes de agir de maneira totalmente absurda conosco, de graça! Mas, graças a Deus, eu estava melhorando e só perderia o controle se alguém chegasse a encostar em mim de verdade, se partisse mesmo para a agressão física.

Caso contrário, eu conseguiria me manter calmo.

Sendo assim, eu já não demonstrava aquela ira que podia incitá-la, mas a sua ira ainda podia incitar a minha. Somente depois que Isabela começou a compreender essa minha fraqueza, depois que passamos a orar especificamente por isso, pedindo o livramento do Senhor, é que as coisas de fato começaram a melhorar um pouco.

"Melhorar" é modo de dizer, porque logo de cara as situações capazes de nos desestabilizar continuaram acontecendo com muita freqüência. Era em todo lugar, a toda hora. Foi um processo.

Lembro-me especialmente de uma ocasião em que um casal pegou descaradamente a vaga que eu estava aguardando no estacionamento. O homem olhou para minha cara e estacionou, sem mais essa nem aquela, com a maior desfaçatez do mundo. Eu senti a raiva subindo por todo o meu corpo, minha boca estava até seca. Se dependesse da minha vontade, ah! Se fosse antes, se eu não fosse convertido...

Isso foi logo depois que eu e Isabela começamos a orar por este aspecto. Nesse dia, ela conseguiu me ajudar:

— Nenê, se acalma... esse homem não está normal, pára pra pensar... quem faz um negócio desse e ainda olha daquele jeito, tá procurando briga mesmo, ou é louco. Tá na cara que ele está sendo manipulado por demônios. Não vamos cair na armadilha!

Foi difícil. Foi dificílimo! Não pela atitude dele em si, mas pelo que eu estava sentindo naquela hora. Há momentos em que nada mais importa a não ser a vontade de se vingar. Mas Isabela me ajudou, e oramos um pouco ali no carro mesmo. Entramos no Shopping, eu ainda estava emburradíssimo, não conseguir tirar a cabeça daquilo.

— Pô, Eduardo, não fica assim, não... deixa isso pra lá. Vamos procurar fazer a nossa parte e acertar.

— Tá bom — e me esforcei realmente para não ficar remoendo.

Entramos numa loja grande e qual não é a minha surpresa quando vejo o tal do cara bem ali na minha frente. Naquele dia, Deus me capacitou a tomar uma atitude totalmente fora dos meus padrões. Acalmei-me e fui lá falar com ele. Falei numa boa, expliquei que era melhor ele não fazer esse tipo de coisa toda hora, porque tinha me irritado bastante e podia chegar um dia que ele encontrasse alguém mais esquentado.

Daí apertei a mão do cara, disse que tinha tido que ir ali falar com ele pra poder me acalmar. Fui sincero. E, incrível! Naquela hora ele já nem parecia o mesmo, foi super gentil, pediu desculpas e tudo o mais. Foi uma vitória!

Mas nós só conseguimos chegar naquele ponto porque antes tínhamos andado pela beira do precipício. E durante muito tempo, mesmo sendo Cristãos, parecia que a qualquer minuto podíamos fazer uma besteira. Eu tinha essa consciência! Só não sabia o que fazer para lidar com isso.

Não muito tempo antes, numa situação semelhante, nossa reação natural tinha sido bem diferente. Isto é, final de semana num Shopping lotado, uma mulher pegou a minha vaga no estacionamento. O que foi que nós dois fizemos? Abrimos um risco monstruoso de cabo a rabo na lateral do carro dela.

Eu e Isabela, de alma lavada, saímos de lá satisfeitos e fomos passear como se nada tivesse acontecido, sem a menor culpa na consciência.

Uma vez um vizinho tratou mal Dona Márcia, e Isabela escutou. Ela perdeu o controle totalmente, saiu na rua como um cão raivoso. Acho até mesmo que assustou o tal vizinho com sua agressividade, um senhor implicante, porque ele foi voltando para a casa dele. Depois disso, Isabela nem dormia:

— Meu pai esteve aqui durante vinte anos e esse homem não achou hora de tratar ninguém mal. Agora, porque meu pai não está aqui, vou agüentar o desaforo? Vou ver ele tratar a minha mãe com falta de educação e não faço nada?

Quase fizemos a coisa errada, quase falei com meus antigos amigos da "29". Eles iam adorar fazer um estrago na casa daquele sujeito. Mas ele tinha um cachorro, e foi isso que nos segurou. Ficamos com medo que eles matassem o cachorro. Então deixamos passar.

Tivemos muitas outras situações de muito risco para nós dois.

A pior delas aconteceu numa ocasião em que tínhamos deixado o fusca no mecânico. Eu tinha recebido indicação fidedigna, não era um lugar qualquer. O carro estava morrendo e largando a gente na mão toda hora, portanto ficou retido mais de uma semana para fazer as coisas mais urgentes. Era final de ano e nós iríamos viajar para o interior, para casa de uma tia de Isabela. O carro tinha que estar bom pra pegar a estrada!

Na antevéspera do Ano Novo, na véspera da viagem, fui buscar o carro. O mecânico me garantiu que tudo estava em ordem, eu paguei e fomos embora. Três ou quatro quadras mais para baixo o carro morreu, e não pegou mais! Nós dois ficamos furiosos, e eu voltei para falar com o homem.

Eram mais de seis horas da tarde e ele estava fechando o estabelecimento. Afinal, o dia seguinte era 31 de dezembro.

Comecei a conversa em tom educado: eu tinha pagado pelo conserto, ele tinha que me entregar o carro em ordem. Nada mais justo! Mas para minha surpresa o homem foi super estúpido, me tratou mal... quis devolver o dinheiro, mas dinheiro não resolvia meu problema. Quando insisti em que ele desse um jeito no carro, a coisa ficou feia. Isabela entrou no meio da confusão e também perdeu a compostura.

Em suma: no meio do bate-boca o mecânico me ameaçou com uma garrafa, foi o que bastou para me alucinar. Saquei o revólver e encostei na cabeça dele. Não fosse pelas palavras de Isabela não sei que teria feito.

— Esse cara não vale isso!! Não vai se sujar por causa de um lixo desses! Mas ela nem estava nervosa por causa do revólver, nem pelo que podia acontecer. Estava nervosa mesmo era com a falta de bom senso daquele cara. Nem sei o que foi que me segurou naquele dia. Foi um milagre...

Por causa disso, e tudo o mais que não cabe contar aqui nessa história, é que eu tinha para mim mesmo a certeza: precisava de domínio próprio! Era algo urgente, algo extremamente necessário. E me convenci de que a primeira coisa a fazer era me livrar da arma.

À medida que lutamos em oração por isso, as coisas foram acontecendo. Hoje é muito mais difícil que eu perca o controle, e Isabela também aprendeu a ficar mais calma. Não viramos "perfeitos", mas aprendemos a ser mais vigilantes. E também que essa vigilância precisa ser constante.

Aquele era um ponto fraco nosso, uma porta aberta ao diabo nas nossas vidas. Se nós continuássemos seguindo aquele caminho, haveria de chegar a hora em que colheríamos as conseqüências dos nossos atos.

Por isso, além de orar, naquele momento queria me desfazer realmente do revólver. Eu não tinha temperamento para andar com ele, podia ser uma desgraça na minha mão.

Claro que me desarmar foi um processo. Eu relutei muito. O revólver estava sempre dentro da minha pasta durante o período de serviço. Antes do expediente, estava na minha cintura; depois do expediente, voltava para lá, embora eu fosse de ônibus fretado e voltasse de ônibus fretado. À noite, não saía da minha cabeceira. Eu nunca saía de casa para nada sem estar armado. Até mesmo na Igreja eu ia armado.

Eu me sentia ameaçado, sempre me senti assim. Muito mais depois que saída Irmandade. Parecia haver um perigo oculto em cada esquina.

A arma era como um Isaque para mim, por mais que eu soubesse ser melhor me desfazer daquilo... não conseguia! Por mais que parecesse que eu estava mudado em relação à minha índole agressiva, eu sabia que ainda estava lá dentro. Havia ainda um fogo dormente dentro de mim. Eu sabia que armado eu era mais perigoso.

Mas queria muito me acertar com Deus, queria entregar aquele Isaque a Deus.

Até mesmo Grace tinha falado sobre isso.

Então, realmente eu vendi o revólver logo depois daquele dia no Viena. Também vendi o aparelho de choque. Mas aí eu andava com meu butterfly dentro do bolso, o nunchaku dentro do carro... e o facão de cortar mato do pai de Isabela também!

Depois... fui largando. A ponto de não andar com arma nenhuma. Estava totalmente nas mãos de Deus. Mas levou meses, levou anos!

O processo de santificação não acontece do dia para a noite. E, em algumas áreas, quando a gente sobe um degrau percebe que tem outro logo ali na frente.

Em relação à ira, mais tarde Deus cobraria outros aspectos. Mais tarde.

 

Naquela época Deus cobrou a arma. Mas não só. Ainda em relação àquele caráter violento que eu tinha, também trouxe o Kung Fu à baila. Começou assim...

Mestre Zhy tinha me convidado a participar de um importante campeonato de Arte Marcial que se realizaria em São Francisco, na Califórnia. Se eu aceitasse a proposta, teria de treinar muito e me submeter a um preparo todo especial.

Ainda que me sentisse lisonjeado num primeiro momento, depois aquilo não caiu bem no meu coração. Comentando com Isabela, ficamos foi muito desconfiados daquilo. Não porque o convite tivesse partido do Mestre Zhy, ele não tinha culpa alguma nessa história. Mas talvez houvesse uma manipulação espiritual por trás daquele convite, não seria difícil influenciar aquele homem, fazendo-o mandar-me aos Estados Unidos. Talvez o diabo me quisesse em São Francisco! E essa fosse uma maneira de me atrair até lá. Não senti paz alguma, e tive de recusar o convite.

Nessa época comentamos esse assunto também com Grace, que ficou bastante intranqüila. Apesar disso, em momento algum ela me disse para sair, para largar o Kung Fu. Ela se limitava a dizer, seriamente:

— Você podia estar orando a respeito... vamos ver o que Deus fala, o que Ele dirige... não sei se é conveniente você continuar envolvido com esse tipo de coisa. Eu vou estar também orando por você!

Isso era uma coisa que eu não queria nem escutar. Isabela também não estava muito aberta a isso. Parecia impensável que Deus fosse exigir aquilo de mim. Orei algumas vezes, mas não achava que Deus fosse me responder. E continuei treinando normalmente.

Então, Mestre Zhy convidou-me para participar de uma apresentação regional, dali a alguns meses. Nessa ocasião seria apresentada a Dança do Dragão, dentre outras coisas. Ele foi muito jóia, conhecia o meu potencial e queria me incentivar, sei disso. Por isso ofereceu-me um lugar de destaque: fazer a coreografia da cabeça. São necessárias três pessoas para compor o Dragão, e a parte mais importante é a da cabeça.

Embora me sentisse honrado, e tivesse gostado muito de participar da apresentação, novamente não houve paz dentro de mim.

No entanto, esse tipo de coisa eu ainda podia aceitar ou não. A verdade é que começaram a acontecer outras coisas dentro da academia, e com essas eu não sabia lidar. Porque não me era dado direito de recusa.

A coisa começou a complicar para o meu lado por causa disso.

Primeiro que Mestre Zhy já estava meio cismado comigo por causa das minhas recentes mudanças de comportamento, por causa das recentes recusas. Pode-se dizer que eu estava meio entalado na sua garganta. Não aceitar aquela honra e voto de confiança era ofensivo.

Depois foi por causa da reverência. Logo no início da aula, com aquela música chinesa de fundo, nós éramos obrigados a reverenciar a fotografia do pai dele. Aquele mesmo quadro que eu tinha quebrado, anos antes. Como não me sentisse à vontade em continuar fazendo esse tipo de coisa, anteriormente tão comum, fui conversar com ele.

— Olha, Zhy... eu sou Cristão... e minha crença não permite que eu me curve diante dos ídolos.

— Mas não é um ídolo! É meu pai! Você não tem respeito? Isso é um sinal de respeito, você não está idolatrando nada, é um cumprimento! — e ficou furioso. — É meu pai!

— Tá, tá... tá bom! — notei que ia ser difícil entrarmos em acordo.

Mas nisso ele ficou de olho em mim. Até então eu tinha evitado me curvar, ficava bem no fundo da fila, apenas parado no meio dos outros. E não me curvava. Só que agora Mestre Zhy estava desconfiado e, na próxima aula, percebi que ele estava me observando. Então me curvei. Mas ao mesmo tempo, resmunguei comigo mesmo:

— Esse gesto tá quebrado em nome de Jesus!

Falei baixinho, mas acho que ele escutou alguma coisa porque estava me rondando, meio por trás. E não deixou passar. Pegou-me pelo braço e me levou para um canto mais afastado dos outros alunos.

— Venha cá!

Eu o acompanhei e escutei o sabão:

— Como assim, "tá quebrado"? Por acaso você quer quebrar de novo o meu retrato, você não ficou contente daquela vez? Quer dizer que foi de propósito? Você quer quebrar o retrato do meu pai de novo?! Você já não quebrou uma vez?

— Não, não... claro que não, Zhy! Aquilo lá foi uma outra situação! Foi um acidente! Eu não falei nada!

— Falou sim. Eu escutei alguma coisa que "tá quebrado"!

Tentei rapidamente imaginar alguma rima qualquer que pudesse me livrar daquela fria. Mas não consegui pensar em nada. Dei a pior desculpa de todas:

— Não foi nada, acho que eu pensei alguma coisa alto.

— Mas não tem que pensar! Você está reverenciando. Respeita! É meu pai! Não tive outra alternativa senão reverenciar e ainda por cima ficar quieto.

Falava só na minha mente que aquele gesto estava quebrado! Porque Mestre Zhy não desgrudava o olho de mim.

Mas eu não estava satisfeito. Então fui tentar falar com ele de novo.

— Zhy... desculpa a insistência, e tal, mas... tá vendo aquele mudjong ali? Aquele objeto de madeira?

— Sim.

— Pois é... você reverenciaria o mudjong?

— Claro que não. É madeira.

— Você reverenciaria uma árvore?

— Lógico que não.

— Tá bom. Então imagine que eu pegasse uma árvore... e fosse esculpir alguma coisa. Aí eu esculpo, por exemplo, a figura do seu pai... você reverenciaria o seu pai?

— Bom, mas aí tem a imagem do meu pai. Aí é respeito!

— OK, mas e se não fosse a figura do seu pai, então, fosse a figura de outra pessoa qualquer?

— Isso é uma questão de respeito! É por respeito. Se a árvore lembra uma pessoa, eu posso fazer por respeito. Não há nenhum problema nisso.

Não adiantava. Ele não entendia o meu ponto de vista.

— Mas, Zhy... você também não está entendendo o que eu quero dizer, pra mim é como se eu estivesse fazendo reverência para uma árvore, para um tronco! Eu não me sinto bem com isso! Eu não vou reverenciar árvore... tronco! Eu não me sinto bem em reverenciar um quadro... eu não acredito nisso. O seu pai pode ter sido uma ótima pessoa, mas morreu...

— Mas o espírito dele está aqui. O espírito dele vem aqui.

Falei com toda a educação, tentei mesmo fazer com que ele me compreendesse.

— Zhy, eu não creio assim... você crê em Deus, Zhy?

— Creio.

— Você já leu a Bíblia?

— Não. Eu creio em Buda, e Buda nos aproxima de Deus. Deus é sem forma, é algo que vem de dentro do coração. Deus é Tin-Fa. Coração puro. As pessoas que têm coração puro encontram Deus.

Vi que não ia ter jeito mesmo. Se quisesse continuar ali, ia ter de continuar reverenciando aquele retrato. Eu tinha de fazer. Embora fizesse apenas de corpo presente.

Mas não gostava, me sentia muito mal. O tempo todo, todas as vezes eu ficava me lembrando de Sadraque, Mesaque e Abedenego.

"Eles não se curvaram... mas se eu não me curvar, vou ser expulso daqui! E não vou mais poder treinar Kung Fu."

Que dilema! Eram aulas tão boas, uma academia tão boa.

Foi aí que, acho até que de propósito, Mestre Zhy me incumbiu de cuidar do altar. As coisas só estavam piorando para o meu lado.

Eu, duas moças bem adiantadas no estilo, e o aluno mais antigo da academia ficamos incumbidos do altar. Cada um tinha uma função específica. A minha era esquentar a água.

Eu devia ligar uma espiriteira e deixar a água esquentando naquele foguinho, naquela chaleira enorme, antiga, meio amassada. Depois tinha de fazer o chá. E entregava para uma das meninas, de maneira reverenciai, aquele chá. Uma parte dele ficava no altar para ir se volatilizando para o pai do Zhy. O resto da água era bebido por todos alunos, durante o treino.

Eu não podia dizer "não", então pensei que esquentar água e fazer chá... talvez tudo bem!

Depois de algumas vezes, reclamei com Mestre Zhy:

— Puxa, Zhy! Me desocupa disso, vá! Puxa, qualquer um pode ferver a água.

— Mas como você não quer? Eu te dei uma posição de honra. E você vem desprezar?

— Eu sei disso. Mas é que eu não quero ter que fazer nada em relação a esse altar.

Ele não gostou muito, mas acabou me deixando livre da função.

Outro problema foi a questão do uniforme. Eu só tinha uma camiseta da academia, não estava me sobrando dinheiro para comprar mais. Então procurava fazer o possível, colocava uma camiseta branca embaixo da camiseta da academia para que durasse mais. Por causa disso às vezes ia sem a camiseta correta, simplesmente porque estava lavando. Mestre Zhy não gostava muito. Teve outro dia em que me atrapalhei e esqueci a sapatilha. Então fui treinar de meia. Dá pra imaginar, né?

Na verdade começaram a acontecer uma sucessão de pequenos episódios que culminavam em uma sucessão de broncas.

Certa ocasião cheguei antes do horário do treino e fiquei por ali um pouco. Tinha uma lousa numa das paredes com umas coisas escritas em chinês. Apaguei uns pedaços e fiquei fazendo desenhos pra matar o tempo, achei que não tinha problema.

— Mas o que você está mexendo aí? Isso é a minha aula! — gritou Mestre Zhy.

— Ah! Eu pensei que isso fosse da aula passada... me desculpe.

Tudo estava colaborando para que ele pegasse implicância comigo. Depois que comecei a orar, até mesmo com a técnica do Kung Fu eu passei a ter problemas. Ficava cansado com mais facilidade, tinha dificuldades para absorver os movimentos novos. E eram coisas simples, coisas com as quais nunca me atrapalhei.

Parecia que minha mente estava bloqueada para aquilo que tinha sido sempre a minha vida!

Por causa disso eu levava mais bronca ainda, quando Mestre Zhy pedia para ver a técnica, não admitia nenhuma seqüência torta nem malfeita. Quando terminava o treino eu saía todo humilhado, já estava me sentindo um rato!

— O que está acontecendo com você? — ele me perguntava. Nem eu sabia explicar.

Na verdade, tudo ali na academia estava me deixando mal, estava me deixando pra baixo. Então... foi assim que comecei a entender que talvez Deus realmente não quisesse que eu levasse adiante o Kung Fu. Aquilo tudo, aquela seqüência de problemas e confusões... era direção para eu ir embora.

Certa noite, depois de sair tarde do treino, caminhei algumas quadras até o metrô como sempre fazia. Aquele trecho tinha algumas casas de prostituição, e quando passei, vi aquelas pessoas na calçada totalmente à deriva, servindo ao diabo, prostituindo o corpo... e parece que alguma coisa me dizia que aquilo também servia para mim. Que eu também estava prostituindo o meu corpo pelo fato de estar gastando minha energia com algo que não era saudável, uma coisa que não agradava a Deus... do mesmo jeito que aquelas pessoas que serviam o mundo.

Percebi que eu estava dando mais valor à destreza e à força do meu punho, confiando mais no meu braço e na minha performance física do que em Deus; reverenciando ídolos e fazendo alianças em jugo desigual.

Em outras palavras, cultuando a mim mesmo.

Sem esquecer que estava também de certa forma cultuando a violência, por mais que a Arte Marcial preze a paz, ainda assim é a Arte da Guerra!

Aquela foi uma triste constatação. Pelo menos no tocante à minha alma.

Se eu quisesse realmente vencer a minha carne, vencer a ira, a agressividade, a violência... não podia mais manter aquela porta aberta na minha vida.

No meu caso — e hoje eu vejo que essa foi uma direção Rhema para mim — manter o Kung Fu seria manter nas mãos do diabo uma pedra contra mim, seria manter uma porta sempre aberta aos demônios.

Deus estava começando a lidar mais profundamente com aquele aspecto do meu caráter. A ira. Talvez o aspecto mais difícil de ser tratado. Aquele foi o começo.

Um dia, então, tomei a decisão.

"Vou parar com o Kung Fu."

Eu nunca imaginei que isso pudesse ser possível.

O Kung Fu estava entranhado na minha alma, no meu corpo, era quase como um vício. Fazia parte do meu dia-a-dia de tal maneira que se eu não praticasse, me sentia indefeso. Quer dizer, abandonar aquilo significava deixar de ser capaz de me defender sozinho. Abandonar o Kung Fu se traduzia em desproteção!

Fosse como fosse, eu entendi a direção de Deus. Não foi ninguém que me obrigou. Eu que entendi que isso era o certo. Fui falar com Mestre Zhy.

— Olha, Zhy... eu não vou mais praticar Kung Fu. Eu te agradeço muito por tudo que você me ensinou.

Ele quis saber por que, ao que respondi, sem mais rodeios:

— Eu me converti ao Cristianismo, e existem divergências de pensamento e de crença entre o Cristianismo e o Budismo. Infelizmente você não é flexível, você não está respeitando a minha liberdade, quer impor a sua religião pra mim, pra todo mundo que pratica Kung Fu. E eu não posso aceitar isso! — como minha decisão já estava tomada, pude me abrir um pouco.

— Se é isso que você quer, então está bem.

Eu fui embora. E para minha surpresa, não tive mais vontade de praticar Arte Marcial. Foi realmente uma coisa que Deus tirou com a mão de dentro de mim. Eu sentia falta, sim, de esporte. Tanto é que futuramente viria a praticar apenas ginástica.

 

Fazia três meses que nós estávamos de carro novo!

Puxa vida, que alegria tão grande! Era o nosso primeiro carro, um Fiat Palio 1.0, totalmente "pelado". Melhor dizendo: sem nenhum acessório. Nem mesmo o espelho retrovisor direito. Foi o que deu pra gente fazer, estávamos os dois trabalhando, bem empregados, e realmente precisando de um veículo melhor!

Então, mais do que fé naquele momento, foi com a calculadora em mente que decidimos por um financiamento em 36 parcelas.

Dona Márcia foi nossa fiadora, e apesar da alegria que nos invadia quando fechamos o negócio na concessionária, um friozinho na barriga também se fazia sentir. Era nossa primeira conta de peso, o primeiro compromisso financeiro que eu e Isabela assumíamos juntos.

Isabela foi quem fez os orçamentos nas concessionárias, era ela quem rebuscava nos jornais de domingo, procurando as melhores ofertas. Depois, telefonava para as concessionárias e fazia os orçamentos pelo telefone. Aí, não resistia e ligava para meu serviço à tarde, toda entusiasmada, toda falante, me contando das opções.

Quando a gente saía juntos e Isabela via um Fiat Palio estacionado no Shopping, ou no supermercado, dava uma disfarçadinha e corria para olhar por dentro.

— Olha só, Eduardo! Olha só como é lindo por dentro!

— Vão pensar que você é uma roubadora de carros, pelo jeito como olha... Ela disfarçava um pouco, e novamente voltava a olhar.

— Puxa, esse painel é bonito... comparado ao do fusca...

Isabela estava na febre. Mas não tiro sua razão. Ela havia dirigido o fusca muito mais do que eu. E não que fosse algum problema dirigir um fusca, o problema era dirigir aquele fusca!

Isabela tinha carta desde os 21 anos, dirigia no trânsito de São Paulo todo santo dia. Virava-se super bem com o guia de ruas, não tinha nenhum lugar que ela não conseguisse encontrar com o mapa na mão. Claro que eu tinha menos experiência do que ela, afinal... o tempo tinha passado e eu ainda não sabia dirigir!

Como boa "professora"... Isabela decidiu que se eu não tinha conseguido aprender a dançar muito bem, talvez pudesse aprender a dirigir. Um dia ela resolveu que definitivamente era preciso que eu aprendesse a lidar com um carro.

Isso tinha sido ainda no primeiro ano de namoro.

28 anos, Nenê! Você não quer que eu te ensine? Você está me ensinando Kung Fu, eu te ensino "carro"!

Eu tinha procurado fazer parecer que sabia dirigir. E contei a lorota:

— Eu sei dirigir, sim! Não muito bem, mas sei. Só não tenho carro! Mas o meu amigo chinês, o Wang, me deixava dirigir o carro dele.

Isabela já tinha ouvido falar de Wang e de uma série de aventuras que passamos juntos. Certamente foi um tempo divertido para mim, logo depois que me converti. Wang passava em minha casa, à noite, a gente saía com outros amigos, conhecíamos pessoas, conquistávamos as menininhas, aprontávamos um pouco... no bom sentido!

O máximo que a gente fazia era dar uns tiros em orelhões, para treinar. Uma vez demos uns tiros numa loja de vasos de barro, dessas que vendem plantas... os vasos eram ótimos alvos! Placas de trânsito também.

Porque sim, claro, a. conversão também é um processo. Há uma série de coisas que acontecem instantaneamente no momento em que aceitamos Jesus, mas depois o processo continua. E muitos outros aspectos vão mudando, devagar.

Quando eu me converti, e deixei a Irmandade, eu e Wang nos tornamos muito mais próximos. Foi uma amizade sincera e muito bacana. Depois Wang foi fazer pós-graduação no exterior, então nos afastamos. Mas volta e meia ele vinha para o Brasil, e quando não vinha, me ligava. Sem se preocupar com o fuso horário. Ele nunca ligou muito para isso!

— OK, se o Wang te ensinou e você sabe, pode dirigir o fusca, então. Quer? — havia dito Isabela, para me testar.

Então fui obrigado a dizer a verdade.

— Bem... ele bem que tentou me ensinar!

A verdade é que eu não sabia muito bem, não.

— Hum. Quer dizer, então, que você sabia dirigir? — Isabela me perguntava com arzinho irônico.

Fui sincero, amarrei no rosto um sorrisinho amarelo.

— Ah, eu fiquei com vergonha de admitir isso. Você é mulher e dirige, e eu não sei. Isso não é justo!

Isabela poderia ajudar-me, sem dúvida. E aí começou a saga da direção. Nós íamos até a Cidade Universitária, ou então perto de casa mesmo. E ela me ensinava, exatamente como tinha aprendido.

Levei um tempo para acostumar-me a dirigir um patrimônio que não era meu, tinha muito receio de estragar o carro. Dirigia devagar, quase parando, mesmo depois de semanas. Depois de meses!

Toda hora ela me dava umas broncas porque não era uma instrutora das mais pacientes. Ela não gostava de ver nada errado durante muito tempo! Seu jeito de dirigir era muito peculiar, eu costumava dizer que Isabela não dirigia como uma dama.

— Você tem um volante agressivo! Corre muito, faz manobras ousadas. As mulheres não devem dirigir assim!

— Ah! Tá querendo dizer o quê? Que as mulheres não sabem dirigir?! Pois saiba que eu dirijo muito bem!

Não tenho como não admitir... mas ela mostrava facilidade com a direção, a bandida! E era meio impulsiva, acho que dirigir ajudava Isabela a descarregar um pouco da tensão. Isso queria dizer que ela não respeitava absolutamente nenhuma regra de trânsito. Farol vermelho era o mesmo que nada. Limite de velocidade idem. Placas de trânsito não mereciam respeito, calçada e rua eram a mesma coisa. Contramão estava sempre valendo desde que encurtasse o caminho, ou a livrasse do congestionamento. Aliás, com congestionamento valia mesmo de tudo: desde a contramão, até passar pela calçada, dar fechadas, dar ré pelo acostamento para fugir por outra avenida.

Esse era o dia-a-dia de São Paulo. Por conseguinte, o dia-a-dia de Isabela. Às vezes eu dava risada:

— Você avançou dois metros com toda essa manobra, e continua parada. Que bela estratégia essa sua.

— Sim, mas quando o verde abrir eu passo primeiro. Se estivesse lá atrás era capaz de ficar outra vez parada nesse farol.

Nesse aspecto confesso que talvez eu tenha sido meio mal ensinado. Isabela queria que eu fizesse como ela. Isto é, vermelho era igual a verde, especialmente se fosse de noite. Amarelo merecia sempre uma acelerada, fosse dia ou fosse noite.

— Típico! Mais um paulistano que sabe manejar um carro... uns melhor do que outros, mas... — Isabela nunca deixava de me provocar.

Eu provocava de volta:

— É... mas você desceu a Rebouças com o breque de mão puxado. Você contou! Começaram a buzinar porque estava saindo fumaça do carro.

— Eu sei, eu sei! Mas aí eu estava de pós-plantão! Foi um lapso, não estragou nada!

No futuro eu viraria um tremendo "Speed", pelo menos eu achava que sim. (Já Isabela não compartilha desta minha visão).

Um dia ela passou um bom tempo contando as peripécias daquele carro e, depois da aula de direção.

— Ele foi até o Chile e voltou, Nenê! Meu pai rodou meio Brasil com ele.

— Sério que vocês foram com esse carro até o Chile?!

— Se fomos! Atravessamos a Cordilheira dos Andes, mas isso não é nada! Sabia que o vidro dianteiro estourou no meio do caminho? Não sei o que foi, talvez um choque térmico, mas a verdade é que estávamos a 1500 quilômetros do Brasil e a 2000 quilômetros do Chile. Detalhe: a três dias do Natal! Meu pai fez de tudo, mas não encontrou vidro semelhante para substituir. Não tinha outra opção e fomos daquele jeito mesmo. Passamos pelos Andes enrolados em cober­tores, sentindo aquele ventinho frio. Sorte que era verão, né?

— Caramba, seu pai foi corajoso...

— E o que ele ia fazer? Só no Chile encontramos peça para o Volkswagen. A gente ia ficar ali, parado no meio do nada? Meu pai tinha muita experiência na direção. Um dia desses pergunta para a minha mãe cada aventura que eles não viveram por essas estradas desse nosso Brasil! — começou a dar risada. — Puxa, mas essa do Chile foi demais, sabia? No fim todo mundo acabou picado por abelhas, entrava de tudo dentro do carro, você sabe.

— Faz muito tempo isso?

— Faz, sim. Eu tinha uns 13 anos na época.

— Mas o fusca era bom naquela época, hoje ele já está meio debilitado! Debilitado era até um elogio. Isabela continuou:

— Você nem imagina o que eu já passei com esse carro! Cada uma! Ele é muito velho, toda hora dá problema. Olha só... durante a época da Faculdade ele teve várias fases. Teve uma época que ele não pegava, a não ser no tranco. Então eu tinha sempre de estacionar em uma descida, em uma subida, sem ninguém nem na frente nem atrás, pra conseguir ligá-lo depois. Fiquei expert em fazer o carro pegar no tranco, pode crer! Depois, teve uma época em que ele não tinha limpador de pára-brisa. Mas eu me acostumei a dirigir mesmo debaixo das maiores chuvas. É só perceber bem o vulto dos carros e conhecer bem o caminho que tudo dá certo! O problema era se o carro morresse na chuva. Porque aí não pegava também. Uma vez atrapalhei todo o trânsito, tive de descer no meio da rua, debaixo do maior toro, correr até um posto de gasolina e pedir que alguém me ajudasse a empurrar. Aí pegava no tranco. Era sempre assim, se morresse eu parava as primeiras pessoas que estivessem passando e pedia que empurrassem o carro.

— Não acredito nisso!

— Mas foi assim mesmo. Meu pai bem que consertava o carro, mas voltava a pifar. O carro é velho, o que se há de fazer? Depois, veja só... teve também a época em que o breque de pedal não estava funcionando, então tinha de brecar no breque de mão.

Nós dois já estávamos rolando de rir.

— E teve a época em que, não sei por que, se tirasse o pé do acelerador, ele ia roncando cada vez menos... e morria. Piorou tanto, que se eu tirasse o pé do acelerador pra brecar, para parar num farol, por exemplo... e o carro já pifava! A solução era deixar o motor bem acelerado. O carro ia berrando, quase deixava a gente surda!

— Ah! Eu sei como é isso!

— E agora, veja: o carro não tem seta, não abre o vidro da direita, não tem velocímetro nem marcador de gasolina. Aliás, esse é um problema também, você tem que aprender a saber se tem gasolina! É só dar uma brecada meio brusca e olhar o ponteiro. Se der uma leve mexidinha é sinal que tem gasolina. Mas se não mexer é bom parar no primeiro posto. Eu já fiquei na rua muitas vezes por causa disso. Aí tinha de largar o carro e campear gasolina a pé!

— Isabela, você também, hein? Tem de prestar mais atenção.

— Uma vez eu estava pós-plantão, super cansada, achei que a gasolina ia dar... no fim fiquei parada na Marginal Tietê à noite, o barato saiu caro.

Eu achava um absurdo essas histórias. E tão preocupado estava que sempre colocava muita gasolina no carro, para que Isabela não corresse o risco de ficar parada pela cidade.

— Eu admiro sua independência, acho o maior legal você pegar o carro e sair por aí, sem depender de ninguém, mas olha... você tem que se cuidar um pouco melhor. E se acontece alguma coisa?

— Acontece nada, Nenê, acontece o quê?! Depois é super natural eu sair sozinha, sempre foi assim, tinha minha vida, meus estudos, meu trabalho... não há motivo para tanta admiração. Eu não gosto de ter de depender dos outros. Nada como resolver tudo por mim mesma, sabe? Depender da boa vontade alheia é a maior roubada!

— Mas bandido continua existindo, e eu conheço isso muito bem. A oportunidade faz o ladrão a maior parte das vezes, sabia?

— Tá bom, tá bom. A gente enche o tanque toda semana e não vai mais acontecer. Mas aconteceu algumas vezes ainda. Realmente aquele fusca era uma coisa! E embora a gente corresse atrás dos danos, era consertar uma coisa e quebrar outra. Dona Márcia vivia boquejando, dizendo que a gente estava destruindo o carro, mas não era bem assim. O carro já estava destruído, já estava destruído desde a época que Isabela estava na Faculdade. A gente simplesmente corria atrás dos reparos normais de um carro muito usado.

Uma época começamos a escutar um barulho estranho cada vez que passávamos sobre uma lombada, na rua.

— Mas que coisa esse barulho.

Quando finalmente levamos ao mecânico para ver o que havia, a surpresa!

Aquele barulho era nada mais, nada menos do que a bateria que raspava nas lombadas. O fundo do carro, completamente destruído daquele lado, estava deixando a bateria literalmente cair na rua. Percebemos que o banco do carro, do mesmo lado, começava a envergar. Parte dele já estava aparecendo no fundo do carro.

Não tínhamos dinheiro suficiente para fazer o conserto de imediato, então o mecânico colocou ali um pedaço de madeira para sustentar a bateria. Do jeito que deu, simplesmente para ela não cair no asfalto. E ninguém mais sentava daquele lado, íamos os dois sentados do lado esquerdo do carro, um na frente e outro atrás. Parecia o motorista levando a dondoca para passear no banco traseiro! A gente morria de dar risada!

Aliás, o fusca sempre teve muitos buracos no fundo. Toda vez que chovia entrava água e ficava tudo ensopado por dentro.

Realmente foram muitas as peripécias com o carro. Volta e meia ele voltava a morrer e só pegava no tranco, sempre precisando ser empurrado. Cada situação constrangedora, dependendo de onde acontecesse!

E quando pifava bem na frente do meu serviço? Lá ia eu, de terno e gravata, todo arrumado, empurrar o carro para que Isabela pudesse fazê-lo pegar! No dia seguinte, agüentava as piadinhas dos colegas. Sempre tirando um baratinho! Então Isabela, quando ia me buscar, normalmente chegava em cima da hora e esperava com o motor ligado.

E quando morria no posto de gasolina?

— Por favor, complete o tanque! — eu pedia educadamente.

Aí, na hora de ir embora: "Nhém, nhém, nhém, nhém, nhém!!!!"

Quem disse que o adorável fusquinha iria nos poupar daquele carão mais uma vez?

Então eu descia e, com o frentista empurrava o carro. E Isabela fazia pegar no tranco.

— Brigadão aí, hein?!

A gente saía rindo, que coisa mais chata! Cada lugar pra pifar!

Um dia Isabela, eu e Dona Márcia tivemos de ir até o Hotel Macksoud Plaza. Ela ia encontrar-se com uma pessoa que dirigia um quarteto de cordas e que estava interessada em patrocinar uns Recitais do Marco. O quarteto tocava ali no Hotel. Tudo bem até aí, mas na hora da saída os manobristas é que vinham dirigindo os carros, trazendo de dentro do estacionamento. Um carrão atrás do outro.

De repente... eis que lá vem o nosso fusquinha. Todos ficaram olhando. Primeiro para nós e depois para o fusquinha, que berrava estridentemente: "Pó, pó, pó, pó, pó, pó, pó, pó!"

Ele tinha passado pela funilaria e estava com um dos pára-lamas preto, ainda sem pintura... lindo, lindo, lindo!

Depois que entramos, eu malhei a porta do meu lado. BUM! Ela não estava fechando, a não ser daquele jeito. Tinha de ir alguém pelo lado de fora para levantá-la e fechá-la, mas não perdemos tempo com isso naquela hora.

Eu e Isabela saímos rindo, Dona Márcia reclamava que estávamos acabando com o carro!

— Mãe, nós estamos consertando o carro! Acabamos de fazer funilaria. Outra vez ainda, no Shopping, para variar nós dois íamos jantar no Viena. O estacionamento do terceiro piso estava tão vazio que Isabela não achou que fosse encher muito.

— Meio de semana, né?

Então, prevendo as complicações na hora de sair, deixou o carro em posição bem fácil para empurrar. Isto é... ocupando três vagas na horizontal.

O segurança veio imediatamente, surgindo não sei de onde. E perguntou:

— A senhora vai deixar o carro assim? Confesso que paciência não era mesmo o seu forte.

— Vou, é melhor assim. Porque o estacionamento tá vazio mesmo, e depois esse carro não vai querer pegar na volta. Ele está com defeito.

O cara procurou ser polido e explicou:

— Mas você não pode deixar o carro desse jeito. Isabela se irritou um pouquinho:

— Mas acontece que ele não vai pegar na volta, sabia? E daí, como é que fica? Na volta, você vai ter de empurrar o carro!

Ele foi irredutível:

— Mas não posso permitir que a senhora deixe o carro assim. Eu balizei a questão:

— Tudo bem, Gatinha, vai... põe o carro direito, na volta eu empurro. Ela abriu a porta reclamando:

— É! Mas quem devia empurrar o carro tinha de ser esse cara aí. Puxa, eu estou explicando, pra que implicar assim? O estacionamento está vazio!

Eu costumava brincar com ela, dava uma cutucadinha para acalmá-la:

— Brava. Como a Isabela é brava! Ela é bra-va! Ela acabava rindo:

— Isso! Quer dizer, isso nada! Brava, nada. Esse guardinha é que é um chato! Nesse dia, por sorte o carro pegou na volta. Milagre!

Mas os problemas maiores mesmo eram os sustos! Um dia, no meio da manhã, recebi um telefonema de Isabela:

— Nenê, o carro pifou... estou parada aqui na ponte da Cidade Jardim, a CET me rebocou até aqui... já avisei no serviço que estou com problema. Mas não sei o que fazer, será que você não podia vir aqui me ajudar?

Isabela estava ultra calma, dificilmente ela perdia a esportiva com as panes do fusca. Eu é que quase subi pelas paredes de saber que minha noiva estava largado no meio do nada, sem ter para onde ir!

— Antigamente eu costumava deixar o carro estacionado aonde fosse, pegava um ônibus e só comunicava a meu pai. Normalmente ele acabava vindo depois, pegava o fusca, levava ao mecânico, eu não tinha de me preocupar com nada! Mas agora... fazer o quê, né? Tenho de chamar o Nenê!

Fiquei super nervoso. Desliguei o telefone quase em pânico, avisei meu chefe, e uma colega de trabalho me levou até a ponte da Cidade Jardim. Assim que cheguei, ainda do outro lado da Marginal, vi o fusca parado ali no acostamento.

Fizemos o contorno e minha colega estacionou atrás do fusca.

— Cadê Isabela?!

Fiquei super assustado, imaginando mil coisas. Tudo me passava pela cabeça! Imaginei então que ela devia ter telefonado do orelhão mais próximo. Mas por que não tinha voltado para o carro?

Subi correndo a ladeira que me levava até a altura da ponte. Dali, ao longe, podia avistar um orelhão. Corri até lá. Isabela estava sentada numa mureta perto do telefone, comendo um chocolate. Na maior tranqüilidade!

— Gatinha! O que você tá fazendo aqui? Você quase me matou de susto! Abracei Isabela. Ela não entendia o meu nervosismo.

— Mas, Nenê... eu não te disse que ia ficar esperando do lado do telefone? Tá um solzinho tão bom aqui! Eu tinha uns trocados na bolsa e comprei esse chocolate ali na esquina. Quer um pedaço?

— Agora não. Vamos tentar resolver o carro!

— Sabe o que eu acho que é? Gasolina! Acho que o ponteiro não estava mexendo, e eu achei que dava para chegar ao serviço.

— Vou despachar a minha colega. Ela ficou esperando ali embaixo!

Minha colega foi embora e eu e Isabela fomos andando até o posto mais próximo. Compramos gasolina num saquinho e levamos até o fusca. Bingo! Demorou um pouco, mas ele pegou.

— Olha que eu estou acostumada com esse carro... mas dessa vez esse ponteiro me enganou! Agora ele vai ficar engasgando. Acho que entra sujeira na bomba de gasolina quando a gente a usa até o osso.

— A gente vive de susto em susto. Agora você me leva até o serviço de volta, e depois vai para o seu.

— Puxa, Eduardo, sabe... bem que a gente podia começar a fazer um orçamento. Quem sabe dá pra comprar um carro novo?

A gente até que estava merecendo. E então foi assim.

No dia em que fomos à concessionária para pegar o nosso Palio 1.0 vermelho Córdoba não dava nem para acreditar que fosse verdade! Eu nem quis pôr a mão na direção, empurrei logo para Isabela, a "professora". Na verdade, não gostaria de admitir, né? Mas eu tinha medo de bater o carro novo!

Isabela não se intimidou e estreou o Palio. A gente não cabia em si de alegria! Valia a pena aquela dívida de 36 meses. Só de pensar que agora o carro tinha seta, tinha limpador de pára-brisa, os vidros das janelas abriam, não entrava água pelo fundo, não morria! E o marcador de gasolina funcionava! Sem contar com a aparência estética, nada de pára-lama faixa preta.

Depois disso a gente vivia lavando o carro, encerando, passando "pretinho" nos pneus, passando silicone no painel... pondo perfume, adesivo... penduricalhos...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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