Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
GUERREIROS DA LUZ
Volume II
Primeira Parte
O mês de janeiro e o de fevereiro gastamos em preparativos para o casamento. Melhor dizendo, no início da segunda quinzena de janeiro ainda estávamos anestesiados e preocupados. E Eduardo não tinha emprego. Mesmo assim, a primeira coisa que fomos fazer foi procurar onde morar.
Sem isso, não adiantava pensar em mais nada.
Decidimos o quanto seria aceitável gastar em aluguel levando em consideração o nosso salário conjunto; isto é, o quanto a gente ganhava quando eu e Eduardo trabalhávamos. Aquilo era somente um período.
— Quase metade do mês já foi e quem casa, quer casa. Ou melhor, apartamento... será que vou me adaptar? Nunca morei em prédio. Parece uma coisa tão aglomerada, né? — comentei com Eduardo. — Vamos procurar com cuidado, tenho pavor de barulho de vizinho, barulho de música alta. Já tive muita experiência prévia...
Eduardo se espantava com minha capacidade de discernir sons praticamente inaudíveis para ele, especialmente sons vibratórios. Eu simplesmente escutava, e aquilo me incomodava sobremaneira. Cada um é cada um. Eu era assim.
Eduardo compreendia a necessidade de encontrarmos um lar onde pudéssemos viver bem neste sentido. Não queríamos prédio com playground; também seria legal achar um andar alto. Quem sabe, uma rua de descida... assim não acumulava gente fazendo barulho na porta.
Agendamos com corretores, mas nenhum deles nos apresentou nada de que gostássemos.
Então, passando certo dia pela região onde gostaríamos de morar, a costumeira chuva da tarde já deixava o céu preto sobre nós, vimos uma agradável rua com várias placas de "aluga-se".
Apesar do cansaço e do fato de já estarmos indo embora, nos entreolhamos. E decidimos ver. Aqueles prédios eram ruins, mas na rua de cima, numa ladeira não muito íngreme, perto de algumas árvores lá estava o prédio de doze andares, com uma fachada bem simpática. A chuva já caía sobre nós, mas nem nos demos muito ao trabalho de nos espremermos embaixo do guarda-chuva.
Fomos olhar. A chave estava lá, o porteiro nos entregou na mão e subimos sozinhos. Era o apartamento 92.
Percebemos que o apartamento era muito claro e espaçoso, tinha excelente vista para a Avenida Heitor Penteado. Não tinha nenhum outro prédio à volta e a gente podia ver tudo ao redor, havia muito espaço aberto no horizonte. Uma localização realmente privilegiada. Ficava a duas quadras do Metrô Vila Madalena.
O mês de janeiro e o de fevereiro gastamos em preparativos para o casamento. Melhor dizendo, no início da segunda quinzena de janeiro ainda estávamos anestesiados e preocupados. E Eduardo não tinha emprego. Mesmo assim, a primeira coisa que fomos fazer foi procurar onde morar.
Sem isso, não adiantava pensar em mais nada.
Decidimos o quanto seria aceitável gastar em aluguel levando em consideração o nosso salário conjunto; isto é, o quanto a gente ganhava quando eu e Eduardo trabalhávamos. Aquilo era somente um período.
— Quase metade do mês já foi e quem casa, quer casa. Ou melhor, apartamento... será que vou me adaptar? Nunca morei em prédio. Parece uma coisa tão aglomerada, né? — comentei com Eduardo. — Vamos procurar com cuidado, tenho pavor de barulho de vizinho, barulho de música alta. Já tive muita experiência prévia...
Eduardo se espantava com minha capacidade de discernir sons praticamente inaudíveis para ele, especialmente sons vibratórios. Eu simplesmente escutava, e aquilo me incomodava sobremaneira. Cada um é cada um. Eu era assim.
Eduardo compreendia a necessidade de encontrarmos um lar onde pudéssemos viver bem neste sentido. Não queríamos prédio com playground; também seria legal achar um andar alto. Quem sabe, uma rua de descida... assim não acumulava gente fazendo barulho na porta.
Agendamos com corretores, mas nenhum deles nos apresentou nada de que gostássemos.
Então, passando certo dia pela região onde gostaríamos de morar, a costumeira chuva da tarde já deixava o céu preto sobre nós, vimos uma agradável rua com várias placas de "aluga-se".
Apesar do cansaço e do fato de já estarmos indo embora, nos entreolhamos. E decidimos ver. Aqueles prédios eram ruins, mas na rua de cima, numa ladeira não muito íngreme, perto de algumas árvores lá estava o prédio de doze andares, com uma fachada bem simpática. A chuva já caía sobre nós, mas nem nos demos muito ao trabalho de nos espremermos embaixo do guarda-chuva.
Fomos olhar. A chave estava lá, o porteiro nos entregou na mão e subimos sozinhos. Era o apartamento 92.
Percebemos que o apartamento era muito claro e espaçoso, tinha excelente vista para a Avenida Heitor Penteado. Não tinha nenhum outro prédio à volta e a gente podia ver tudo ao redor, havia muito espaço aberto no horizonte. Uma localização realmente privilegiada. Ficava a duas quadras do Metrô Vila Madalena.
O apartamento estava com a reforma e a pintura recém terminadas. Uma graça.
Ficamos apaixonados, os dois.
O aluguel era um pouco acima do que pretendíamos, mas não muito. Saímos de lá entre esfuziantes e esperançosos, colocamos imediatamente aquele assunto diante de Deus.
Quando Eduardo conversou com o proprietário, ele renegociou o valor do aluguel, diminuindo-o um pouco. Para encurtar a história: acabamos indo ver mais uma vez o apartamento e fechamos o negócio. O dono facilitou muito a tramitação.
Quando minha mãe assustou, já tínhamos alugado o apartamento. Foi nessa hora que ela percebeu que era para valer.
Logo fomos até lá com Dona Clara para consagrar o local a Jesus. Ungimos tudo.
E eu insisti em mudar a cor da parede da sala... fiz tudo sozinha, pintei de amarelinho bebê, ficou lindo!
Depois... o resto! Como era caro casar!!! É muito caro fazer tudo ficar bonito, enfeitado, como nós imaginávamos. E foi muito pouco tempo para arrumar tudo, uma verdadeira maratona!
A primeira coisa que tivemos que excluir foi a festa. Dura decisão. Depois de rodar São Paulo provando docinhos horríveis percebemos que uma festa nos padrões que a gente queria estava fora de questão. Não era questão de querermos luxo... mas tinha que ser um lugar charmozinho, com uma comidinha gostosa.
Então tentamos ver na nossa Igreja se seria possível oferecer um bolo com refrigerante aos convidados, no próprio templo. Uma solução plausível pois não queríamos deixar de comemorar, nem fazer festa só para alguns. Mas não permitiram por receio de que o carpete da Igreja sujasse com bolo.
Só restava uma saída, não era das melhores, mas... a única! Minha mãe encomendou o bolo, os docinhos e salgados, e convidamos os padrinhos para virem em casa depois da cerimônia. Eu me lembrava de Jesus transformando água em vinho nas Bodas em Caná, não havia mal algum em festejar. Mas isso não saiu de acordo com nossos sonhos.
Que pena... teria gostado de fazer uma recepção melhor! Eu não era o tipo de noiva presunçosa que só quer complicar. Só queria um casamento charmoso e cheio de significado, acima de tudo!
A despeito dos contratempos, íamos entregando a Deus cada detalhe e pedindo todo o tempo que nosso casamento fosse uma verdadeira Celebração! Se aquele dia estava chegando... se Deus tinha permitido isso... então tinha que ser uma Celebração. Não a nós... mas a Ele! Seria um dia de muita gratidão, um dia de muita alegria pela Fidelidade da Sua Aliança para conosco.
Deus já tinha preparado cada pedacinho do nosso casamento antes da fundação do mundo. Bastava a gente buscar Dele as soluções certas. Cada detalhe... cada decisão... cada desejo, especialmente do meu coração... foi incansavelmente apresentado diante do Pai.
Levamos muito tempo para acertar a decoração para a Igreja. Conseguimos a mais bonita dentro do que era possível gastar. Eu não gostava de nada convencional demais. Aquelas típicas guirlandas enormes e rebuscadas, mais parecidas com enfeites de velório, era tudo o que havia de monstruoso! Optamos por rosas, só rosas, em arranjos originais. Ficou diferente e sem exageros.
Depois percebemos que se quiséssemos uma lua-de-mel teríamos que abdicar de mais alguma coisa. Foi uma decisão triste, mas excluímos o serviço profissional de filmagem. Um simpático casal da nossa Igreja com quem havíamos feito aconselhamento pré-nupcial fez a filmagem em sua própria filmadora. Só íamos fazer as fotografias, porém o rapaz, inconformado, fez o filme.
Queríamos que alguém cantasse ou tocasse ali ao vivo. Mas qualquer conjunto mais decente também era caro demais... nem fui procurar. Para fazer malfeito, melhor não fazer. Na maioria nos casamentos o conjunto sempre canta e toca muito mal! Ser obrigada a ouvir "Ave-maria" ou "Jesus, alegria dos homens" ao lado de outras canções batidas era impensável. Montamos nós mesmos um CD com uma especial seleção de músicas. Aquilo traria um clima todo especial ao casamento. Essa economia fez com que pudéssemos acertar a lua-de-mel.
Mesmo assim, tivemos que espremer o dinheiro ao máximo.
Ao invés de comprar fogão e geladeira foi necessário investir no microcomputador, pois eu não poderia interromper a escrita do livro. Também não foi possível comprar máquina de lavar. Nem de roupa, nem de louça. Nem máquina de secar roupa. Nem qualquer tipo de eletrodoméstico.
A única coisa que compramos, além do computador, foi a cama e o colchão. Uma cama king-size, de madeira, muito bonita. A TV e vídeo nós já tínhamos. Tinha sido possível comprar novamente uma televisão, mas não deu para fazer o mesmo com a geladeira.
Ganhamos uma geladeira pequena de Dona Clara e minha mãe, graças a Deus! Seu Benito tinha facilidade em comprar mais barato esse tipo de produto de uma determinada marca.
Nosso único descontentamento vinha quando nos lembrávamos de todas as pessoas que conhecíamos e que ganhavam apartamento mobiliado, carro e tudo o mais de parentes e amigos, enchiam um quarto inteiro com presentes de casamento.
Conosco não seria assim. Nós sabíamos disso. Mas a nossa confiança maior era saber que Deus era nosso Provedor, e tudo o que Ele julgasse essencial... nos traria às mãos!
Mais para o fim do mês havia outro detalhe essencial. A roupa de Eduardo precisava da minha assistência, o pobrezinho estava perdido. Eu e minha mãe o ajudamos a escolher e alugar o traje. Gastamos o que foi preciso, já tínhamos decidido não dispensar todos os acessórios, e tudo ia ser nos conformes. Fomos a uma das melhores lojas da Rebouças.
Os trajes ali eram impecáveis, o senhor que nos atendeu era um perfeito gentleman. Eduardo ficou lindo para valer! E compramos sapatos novos na própria loja.
— Quando o noivo ajoelha não é bonito aparecer o solado do velho sapato — disse o homem que nos atendia.
Certíssimo! Não economizamos na roupa de Eduardo.
Indicamos aquela loja para todos os homens que seriam padrinhos, seis ao todo. Eles alugaram trajes iguais para o conjunto ficar perfeito. As madrinhas capricharam nos seus longos, estavam lindas, elegantes, uma com um vestido diferente da outra.
Optamos por apenas seis casais de padrinhos, três ao meu lado, três ao lado de Eduardo, apenas pessoas significativas para nós. Dentre elas estavam Grace, Dona Clara e minha mãe. Dispensamos os protocolos, não adiantava encher o púlpito de gente. Somente pensamos naqueles que fariam diferença para nós naquela celebração.
Faltava meu vestido.
Depois de olhar dezenas de vezes as minhas revistas de noivas, criei na mente direitinho como seria o vestido. A primeira costureira que entrei em contato começou de cara me recriminando por não estar com o vestido já pronto há três meses, no mínimo.
— Há três meses eu nem sabia se ia ou não casar... — limitei-me a responder, já impaciente.
Tudo o que eu não precisava era alguém a me dizer o que podia dar errado, e o que eu deveria ter feito, e não fiz. Sempre fui muito calma, controlada, sem acessos de histeria. Mas organizar aquele casamento em tão pouco tempo, sozinha com Eduardo, fazendo malabarismos orçamentários... tudo isso realmente tinha me estressado.
A costureira foi tão implicante naquele dia, querendo toda hora me provar que ela sabia tudo sobre casamentos, e ela tinha razão, e ela sabia a maneira certa de fazer tudo, que desisti! Arrumei outra indicação. Só queria alguém que fizesse o vestido do meu jeito, sem me deixar louca!
A outra costureira foi mais acessível, mas realmente se admirou que eu tivesse deixado tudo para a última hora... me poupei de explicar... enfim... mãos à obra! Faltavam só vinte dias para o casamento quando ela começou a confeccionar o vestido.
Eu e minha mãe corremos atrás dos tecidos. Foi uma aventura sair por São Paulo em busca dos preços mais acessíveis. Não havia outra alternativa: 25 de Março! Essa foi a parte mais "corajosa" daquela empreitada de casamento, enfrentei o trânsito, o calor, o horário do rush e as chuvas típicas da estação.
Já estava exausta e sem paciência. Saía do serviço e passava o dia correndo. Estava até com labirintite. Não suportava nem ouvir minha própria música, em casa. Parecia ressoar no meu ouvido e aumentar minha irritação.
Eu não gostava de nada muito luxuoso, nem cheio de brilhos e lantejoulas, caudas excessivamente longas; nem nada muito fofo ou flutuante à lá "noivinha de bolo". E também nada muito clean, muito liso. O meu estilo era romântico, gracioso: flores, rendinhas, botõezinhos em fileiras.
Até mesmo a costureira comentou quanto tempo fazia que não costurava um vestido como o que eu queria.
— Hoje em dia as moças querem mostrar tudo!
Demorei a achar a renda como queria. Mas era lindíssima! Não fiz apenas detalhes de renda sobrepostos no vestido, mas toda a sobressaia e a cauda, e também a borda do decote e das mangas eram de renda aguypur. O recorte era floral, em tons de branco e um discreto dourado. Completei com um véu delicado, um buquê de rosas, grinalda de mini-rosas naturais e sapatos revestidos com o mesmo tecido do corpete.
Tudo ficou pronto. Nada foi por acaso. Nada foi feito apenas por fazer. Tudo foi escolhido para ser símbolo de algo maior, símbolo de algo espiritual.
Nós estaríamos, em breve, celebrando a nossa aliança de amor. E também uma outra Aliança... com Deus... através do Seu Filho. Ainda que não fosse possível providenciar para o dia do casamento, por causa do tempo corrido, nossas alianças teriam dizeres especiais na parte interna: não apenas o nome um do outro, e a data do casamento. Mas uma frase de indiscutível valor profético, "o amor jamais acaba".
Era uma data especialmente significativa. Por esse motivo oramos muito. Também para que todo aquele que entrasse na Comunidade naquele dia próximo percebesse, mais do que uma simples cerimônia "religiosa", a Unção e a Presença de Deus.
O que nós mais queríamos era a aprovação do Senhor, e a Sua Bênção.
Então preparamos o coração de todos os convidados desde os dizeres no convite:
"Uma Celebração da Gratidão;
Pois Deus é a Fortaleza do nosso coração, a nossa Herança para sempre,
O Rochedo da nossa Salvação.
Cantaremos ao Senhor enquanto vivermos!
Uma Celebração do Amor;
Que é paciente e bondoso, não busca os seus próprios interesses e alegra-se com a verdade.
O Amor tudo sofre, tudo crê, tudo espera e suporta.
Jamais acaba!
Com as bênçãos de nossas mães, e na saudosa lembrança de nossos pais, no próximo dia e hora, estaremos celebrando nosso Matrimônio na Comunidade Evangélica Nova Videira, localizada no endereço abaixo.
Isabela e Daniel."
Enfim chegou o dia.
Havia previsão de chuva para o fim da tarde, como quase sempre acontece na época do Verão. A manhã tinha sido abafada e o céu esteve claro, mas depois do almoço o tempo ficou meio cinzento, o vento soprava as folhas e a poeira de São Paulo. Eu estava um pouco incomodada que o temporal pudesse atrapalhar alguma coisa. Mas, no final não fez diferença... choveu só de tarde, e não na hora do casamento.
Tinha sido um dia diferente.
Acho que eu era muito diferente das outras noivas, talvez por isso.
Claro que uma moça de 29 anos teve muito tempo na vida para esperar por aquela data, pensar naquela data. Não é todo dia que se amanhece com esta expectativa!
"Hoje é o dia do meu casamento!"
Sim. Aquele era o dia do meu casamento.
Ainda que não tivesse sido criada nos moldes antigos, preparando-me exclusivamente para um dia ser esposa de alguém... certamente que aguardei muito por aquele dia! Acho que no entender dos meus pais, e especialmente no do meu pai, o objetivo principal da minha existência não fosse exatamente me casar. Mas é claro que qualquer moça normal quer se casar, mesmo que ela não admita ou perceba isso.
Procurei acordar mais tarde, mas, para variar, não dormi bem. Estava bem cansada. Nem pensei em almoçar, só comi alguma bobagem leve.
Fiquei zanzando por ali, tomei meu banho e lembrei-me dos sonhos, dos pedidos que fizera a Deus sobre o meu marido. Ao longo dos anos. E das Promessas de Deus, também ao longo dos anos. Desde a primeira delas, quando o Senhor dissera que estava "guardando meu namorado". Mais tarde, Ele também diria que eu era "costela de um homem". E até mesmo que meu casamento já era uma realidade no Reino Espiritual, exatamente como me havia dito aquela senhora, uma irmã que freqüentou a minha primeira Igreja.
— Eu vi seu casamento... você estava linda! Vi seu marido. Ele é um homem que tem um Ministério, ele vai te ensinar a caminhar nesse Ministério.
Há tantos anos tinha sido tudo isso... tinha acontecido antes que eu conhecesse Eduardo!
Aquilo foi um bálsamo para mim. Não conseguia conceber minha existência na ausência de alguém para partilhá-la comigo.
É claro que de tudo isso eu me recordei. E agora era o dia.
Eu tinha sonhado com aqueles casamentos de filme água com açúcar, meus prediletos. Onde tudo acontece num passe de mágica! A festa maravilhosa, todos ajudando, colaborando de alguma maneira, paparicando a noiva. Presentes enchendo o quarto, uma viagem inesquecível, uma séria de alegrias indescritíveis!
Porque, afinal... aquele era o dia do meu casamento! E devia ser- pelo menos assim se dizia —, o dia mais feliz da minha vida! Isso é o que toda noiva merece.
Eu queria tudo o que o casamento prometia, tudo o que ele poderia me dar. Tinha escolhido Eduardo para compartilhar em amor o resto da minha vida, constituir meu lar e minha família ao seu lado.
Queria o que todas querem: amor, alegria, saúde e paz!
Muita coisa não foi exatamente como eu imaginava, mas o principal superou minhas expectativas. Entrei com Marco, a única pessoa plausível para substituir meu pai. Se ele não pudesse ter vindo, entraria sozinha na Igreja. Eduardo entrou com sua mãe. O irmão do meu pai, um dos meus tios favoritos, fez par com minha mãe, como Padrinho.
Mais tarde, quando as pessoas que estavam presentes comentaram o casamento, quase sempre choravam e diziam que nunca tinham visto um casamento tão bonito. Um casamento tão cheio de significado.
Duas pessoas que não se conheciam trouxeram para nós visões do Reino Espiritual: a presença de um carpete de fogo ao longo do caminho, até chegar ao altar. A presença de uma comitiva de anjos junto comigo, e outra junto com Eduardo. A presença de um anjo indescritivelmente forte, um anjo ruivo... em pé ao lado do púlpito. Glória a Deus!
Sem que a gente falasse nada, o Pastor Jaime fez uma pregação sobre aliança. E durante a bênção final, da qual Grace se incumbiu a pedido nosso, quase choramos.
Realmente Deus atendeu nosso pedido. Foi uma celebração espiritual. Havia um clima diferente no ar, uma unção diferente. Que todos foram capazes de perceber, crentes ou incrédulos.
Assim disse a Grace, para encerrar a cerimônia:
— E agora... que Aquele que caminhou em íntima comunhão com o primeiro casal nos dias da sua felicidade pura, o Príncipe da Paz que produziu grande alegria nas festas das Bodas de Caná... Aquele que vive nos corações de vocês... faça do seu novo lar um templo da Presença e da Glória de Deus, uma morada de amor, paz e alegria. Eu os abençôo, Daniel e Isabela, com a bênção de José. Vocês são ramos frutíferos, ramos frutíferos junto à Fonte de Deus, cujos galhos ultrapassam os seus limites. Os flecheiros lhes deram amargura, e os flecharam, e os perseguiram. Porém o seu arco permanece firme e os seus braços foram fortalecidos pelas Mãos do Todo-Poderoso de Jacó, o Pastor, o Rochedo de Israel,
Pai do nosso Senhor Jesus Cristo. Ele os ajudará e os abençoará com as bênçãos dos céus em cima, com as bênçãos do abismo que j az embaixo, e com as bênçãos sobre a terra. Que a Graça do nosso Senhor Jesus Cristo, o Amor do Pai e a Comunhão do Espírito Santo estejam com vocês e com seu novo lar, em primeiro lugar. E também com todos nós. Em nome de Jesus Cristo, amém!
Voltamos da Lua-de-mel no domingo à noite. Demoramos bastante para pousar porque havia muito tráfego aéreo, isso atrasou bastante nosso vôo. Eu já estava ficando inquieta, estava tarde, nós estávamos cansados e no dia seguinte teria que trabalhar.
Finalmente tivemos autorização e pudemos pousar em Congonhas, onde minha mãe estava nos esperando. Para variar, chovia bastante em São Paulo e o aeroporto estava lotado.
Nem acreditei quando nos encontramos com ela, já com as malas acomodadas nos carrinhos, e fomos embora. Contamos um pouco da viagem enquanto eu mesma dirigia o carro da minha mãe. Ela não enxergava bem à noite.
Ficamos no apartamento e ela foi embora direto, não era hora de pensarmos em mais conversas, em mostrar fotografias. Eu estava exausta e sabia que era imprescindível descansar um pouco já que tinha uma semana de trabalho cheia pela frente.
— Tchau, Dona Márcia! — falou Eduardo, se despedindo. — Amanhã nós vamos mostrar as fotos e dar os presentes...
— Tchau, mãe... obrigada pela carona. Até amanhã.
— Tchau! Descansem bem.
Subimos para nosso apartamento e era um verdadeiro alívio estarmos chegando em casa. A viagem tinha sido boa, mas agora era preciso pôr os pezinhos no chão. Eduardo abriu a porta enquanto eu me encostava na parede. Entramos, e... embora fosse ótimo ter chegado em casa... era muito estranho estar ali! Nós não tínhamos aonde nos sentar porque não havia nenhuma cadeira. Não era possível apoiar as coisas em cima de nada porque não havia nada. Levaria um bom tempo para que aquele apartamento ficasse com cara de lar.
Deixamos as malas e pacotes no chão da sala. Olhamos um para o outro:
— Então? — fez Eduardo. — Essa é casa da Gatinha!
— Eu sei... é que eu ainda não me sinto em casa aqui...
— É... eu também não. Mas tudo vai melhorar, você vai ver!
Eduardo me abraçou e me levou até a janela da sala.
— Olha só... olha que vista bonita que tem da nossa janela.
Fiquei olhando para fora, para as luzes, para o tempo úmido e escuro. Senti até um nó na garganta. Era uma sensação muito estranha. A gente estava em casa, mas não se sentia em casa... não era nada acolhedor!
Resolvi tomar logo o meu banho para não dar vazão àqueles sentimentos. Fui procurar roupas limpas no armário do quarto enquanto Eduardo se acomodava no chão da sala para ver um pouco de televisão.
Depois do banho me senti um pouco melhor. Tinha escolhido dois conjuntos de toalhas que combinavam, um para mim, outro para Eduardo.
— Nenê! Pode tomar seu banho, eu já saí! — gritei para ele do quarto. Eduardo entrou no chuveiro enquanto eu arrumava nossa cama, que tinha ficado desarrumada desde a primeira noite, há uma semana. Com aquela confusão de documentos, não tinha dado tempo de deixar tudo em ordem.
Minha mãe bem que tinha pedido a chave do apartamento, a intenção dela era levar Marina até lá para arrumar tudo. Mas Eduardo, ciumento em relação ao nosso pequeno lar, preferiu que ninguém entrasse lá na nossa ausência.
Depois que ele saiu do banho ficamos conversando um pouco sobre as principais providências que precisávamos tomar para conseguir viver ali.
— Precisamos ir ao supermercado — falei eu. — Graças a Deus que temos a geladeira.
— Minha avó falou que ia nos dar uma mesinha de cozinha... amanhã mesmo vou ver isso, se o presente dela está de pé. Se não, não tem nem aonde a gente sentar pra comer.
— Faça isso, então, Nenê. Só estou preocupada por causa do fogão. Como é que nós vamos cozinhar sem fogão, sem forno?
— Meu irmão me prometeu um microondas. Se realmente ele fizer isso, quebramos o galho com microondas.
— Puxa vida, será? Será que dá para fazer comida no microondas? Mesmo porque, eu preciso aprender a cozinhar um pouco...
Ficamos quietos um pouco, pensativos. Agora a gente começava aos poucos a cair na realidade, nos deparando com os problemas simples do dia-a-dia.
— Vai dar tudo certo, menina. Aos poucos a gente vai pondo essa casa em ordem.
— Isso, Nenê. No final da semana tudo isso já vai estar com outra cara. Não agüentei assistir televisão. Estava muito cansada, realmente exausta.
Precisava estar bem para o dia seguinte.
— Acho que vou dormir, Nenê... na minha cabeça sempre fiz planos de casar durante as minhas férias, voltar de uma Lua-de-mel e ter pelo menos mais duas ou três semanas para descansar bastante, para pôr tudo no lugar, para me acostumar com tudo... mas não deu pra ser assim, né? Então... tenho que pôr a cabeça no lugar porque a vida continua!
— Tá bom, "Mô"... descansa bastante!
Fui deitar ainda pensando nisso: que a vida continuava. Eu estava feliz de estar casada, mas também me sentia assustada com toda aquela responsabilidade nova.
Dormi mais ou menos. O despertador tocou na manhã seguinte e eu me esforcei para abrir os olhos. Eduardo cocou minha cabeça com carinho, me estimulando a despertar.
— Vá levantando! — ele mesmo pulou da cama.
Toda minha vida gostei de marcar o despertador alguns minutos antes do necessário só para poder ficar enrolando na cama. Naquela manhã não foi diferente. Tudo o que eu queria era não ter que ir! Havia tanta coisa a ser feita em casa...
Mas eu não podia me atrasar em hipótese alguma, não podia dar o menor motivo para perder meu emprego pois meu salário era nossa única fonte de renda. O restante do dinheiro que tínhamos no banco serviria para aparar as arestas até que Eduardo arrumasse outro trabalho. Portanto tinha que ser economizado ao máximo.
Eu ainda estava na cama, de olhos abertos, olhando para as paredes nuas do nosso quarto, ouvindo pela primeira vez o ruído do tráfego da avenida. Era um som bastante diferente para mim, em casa de minha mãe era bem mais silencioso. Eu escutava também um ou outro barulho que vinha de outros apartamentos, uma batida, uma janela que era aberta, às vezes um móvel que arrastava. Aqueles sons também eram novos para mim.
Eu me sentia meio sem chão com tudo aquilo, com aquela situação tão tremendamente nova que chegava a se traduzir em desconforto. Nunca imaginei que fosse me sentir daquele jeito... mas a verdade é que levaria vários meses até que eu me adaptasse.
Um cheiro de pão torrado começou a invadir o ar, puxando minha atenção daqueles pensamentos. Não demorou muito e Eduardo entrou no quarto trazendo um pouco de refrigerante (que tinha sobrado do casamento) e duas fatias de pão de fôrma torrado na nossa torradeira nova.
— Puxa vida, Nenê, não precisava...
— É pra Gatinha... — Eduardo me deu um beijo de bom-dia colocando a bandejinha sobre a cama. — Você precisa se alimentar antes de ir para o serviço!
— Eu tinha até esquecido desse pão de fôrma! Ainda bem que tinha manteiga! — eu me acomodei e reclamei com ele. — Mas eu vou tomar café sozinha, é? Você vai ficar aí me olhando em vez de comer junto?
— É a Gatinha que vai trabalhar, o Nenê fez pra ela!
— Não, senhor, torra lá duas fatias para você e vem comer comigo. Eduardo correu para a cozinha e logo estava de volta. Aquele foi nosso primeiro café da manhã em casa. Foi curto. Comemos rápido porque eu tinha um horário estreito. Corri para o banheiro e me arrumei em dez minutos.
Quando entrei na sala e vi que nossa televisão estava tomando um verdadeiro banho de sol, falei para ele antes de sair:
— Nenê, precisamos tirar essa televisão daí, vai torrar tudo!
— Não se preocupe, vou dar um jeito nisso... vai indo, para você não se atrasar!
Ele me acompanhou até a porta e ficou esperando até o elevador chegar. Acenei para ele, me despedindo:
— Te encontro na hora do almoço, na casa da minha mãe. Você pega as lembrancinhas deles? Não sei nem onde é que estão!
— Tá bom, vai com Deus.
Claro que a gente teria que almoçar na casa da minha mãe, nós não tínhamos como fazer almoço e não íamos gastar para comer fora. Peguei o Palio na garagem e fui embora, olhando o relógio.
"Hoje vou sentir o trânsito, vou saber se dá para sair neste horário ou se tem que ser mais cedo..."
Eu tinha uma grande responsabilidade para com meu trabalho agora, muito diferente de quando eu morava na casa da minha mãe. Naquela época, se perdesse o emprego, não haveria piores conseqüências. Mas agora nós tínhamos vários compromissos financeiros, especialmente com aquele aluguel. Eu me sentia tensa com esta perspectiva. Seria tão bom se eu me sentisse mais satisfeita com meu trabalho....
"Quem corre por gosto, não se cansa."
Que tremenda verdade nesse ditado popular! Como eu sabia disso.
"Se pelo menos eu estivesse correndo por gosto, teria mais certeza de todas as coisas. Teria certeza de ser capaz!"
Eu me sentia muito cansada. E tinha medo por causa disso. Medo de não conseguir dar conta. Fui orando um pouco pelo caminho, percebi que teria que sair mais cedo. Havia um bom trânsito até lá.
A manhã correu normalmente, meus colegas de trabalho elogiaram muito o casamento.
— Foi uma coisa linda! Nunca vimos um casamento tão lindo!
— E como foi a Lua-de-mel?
Depois de contar um pouco das novidades e agradecer, atendi minhas consultas. O tempo passou rápido e logo já era hora de ir embora. Passei pela recepção ao meio-dia em ponto.
— Tchau, meninas! Até amanhã.
— Tchau, doutora. Até amanhã.
Quando cheguei em casa de minha mãe, não demorou nem cinco minutos e Eduardo chegava também.
— Comecei a correr as agências de emprego. Agora é uma boa hora para arrumar trabalho, é a hora que todo mundo está voltando das férias, entrando no ritmo outra vez, e contratando funcionários. Acho que logo, logo já vou estar empregado!
Nós havíamos revelado apenas um rolo de filme. Foi o que deu para mostrar a minha mãe. Demos também os presentinhos, algumas peças de artesanato típico. Minha mãe adorava artesanato!
— Bom... — falei para Eduardo mais tarde. — Eu acho que a gente precisa fazer um supermercado, ter pelo menos algumas coisas para lanche em casa.
— Vamos no Wal Mart, então?
Minha mãe tinha que ir ao banco, então nos despedimos e cada um foi para o seu lado.
No Wal Mart eu me sentia perdida! O que deveria comprar? Estava meio em pânico.
— Eu sempre fiz compras como filha... sabe como que é, né? As minhas compras eram bolacha, chocolate, iogurtes... mas não sei nem o que comprar para fazer uma casa funcionar. O que a gente faz?
— Acho que meu irmão vai mesmo me dar um microondas. Vai vir livro de receitas, eu acho...
— Não sei se dá para cozinhar tudo no microondas.
A situação seria muito cômica se não fosse trágica. Eu tinha sido criada para ter uma profissão, não para ser dona-de-casa! Minha mãe sabia fazer as coisas, mas eu não sabia. Mesmo assim tivemos bom humor para dar algumas risadas. Só de curiosidade fomos olhar os preços dos fogões. Era impensável fazer aquele gasto. Então vimos um daqueles pequenos botijões de gás acoplados a uma pequena boca de fogão, daqueles que se usam em acampamento. Não era caro.
— Olha só... e se a gente levasse um desses? Quebra um galho, serve como fogão!— falei.
Eduardo achou boa a sugestão, aquele era um item de primeira necessidade. Então pusemos aquilo no carrinho, compramos leite, pão, umas frutas, iogurte. Eu não passava sem frutas e sem iogurte.
Daí fomos comprar as coisas principais: peguei um pacote de açúcar, outro de farinha, um pacote de arroz, outro de feijão e...
— Que tipo de tempero será que eu levo, hein? Não tenho idéia...
Escolhi algumas coisas que eu sabia que minha mãe comprava, mas que eu não sabia como usar. Deixava para descobrir isso depois.
— Vou levar uns saquinhos de Sazón. E também Caldo Knorr... não, melhor levar o Maggi, está mais barato...
Levei um tempo enorme para fazer aquela compra, pesquisando os preços mais baratos de todas as coisas. Levei também macarrão, a salvação da pátria porque eu sabia fazer macarrão! Escolhemos os molhos mais baratos.
— Acho que a gente merece levar um chocolatinho, pelo menos... qual você prefere, Eduardo?
— Podemos pegar uma caixa de Bis. — Tá bom.
Compramos também produtos de uso pessoal, e também um pequeno suporte para pregar na parede do banheiro a fim de apoiá-los dentro do box. A grande dificuldade foi quando chegamos à seção de produtos de limpeza. Não havia nada mais distante do meu mundo do que aquela seção.
— E agora? — indagou Eduardo.
— Sei lá! Como é que nós vamos lavar a roupa sem máquina de lavar??
— Vamos ter que lavar no tanque!
— Você por acaso já lavou roupa no tanque? — Não.
— Pois é... vai ser um trabalho de Hércules. Acho que vou pedir para Marina lavar a roupa suja da viagem, e depois a gente vai se virando.
— Mesmo assim, é melhor a gente levar o sabão em pó, roupa suja vai ter todo dia, no final da semana já vamos ter que lavar por nossa própria conta.
Escolhemos um sabão em pó barato, pegamos também detergente, sabão em pedra, desinfetante, álcool... e demos a compra por encerrada! Quando fomos pagar, me assustei com o valor.
— Nossa... — cochichei para Eduardo. — Não levamos quase nada... Saímos de lá com o coração um pouco incomodado.
Chegando em casa arrumamos tudo na geladeira e na despensa. Durante o resto da semana procuramos pôr as coisas em ordem. Era preciso abrir os pacotes de presente. O que ganhamos de mais útil foi um conjunto de louça para quatro pessoas e um jogo de cinco panelas. Ganhamos também um outro conjunto de pratos, mais elegante, fazendo conjunto com as xícaras. Dentre outras coisas, vieram duas torradeiras, dois ferros elétricos, dois tapetes, dois conjuntos de talheres para o dia-a-dia. O restante das coisas era mais simples, embora a maioria fosse útil.
Minha mãe me comprou naquela semana algumas coisas básicas e baratas, como escorredor de prato, suporte de sabão para pôr na pia, um conjunto de copos, cestinho de lixo para banheiro, cesto de lixo para a cozinha, sacos de lixo (que nós dois esquecemos de comprar), saboneteira, coisinhas assim.
Eduardo colou alguns papelões na janela da sala, para impedir o sol de entrar com tanto vigor. O problema é que por causa disso também não podíamos abrir a janela. Uma conhecida nossa havia prometido me fazer uma cortina, mas ficou por isso mesmo.
Foi também Eduardo que se incumbiu da roupa, depois de se informar com a Marina como fazer para lavar roupa no tanque.
— Não é difícil... eu vou cuidar disso, é um Trabalho muito pesado para você.
— Onde vamos pendurar? — perguntei, olhando para a pequena área de serviço.
— Pois é, esquecemos de comprar o varal. Isso é imprescindível!
Eu lavei toda a louça que ganhamos, as panelas, arrumei tudo. Era preciso arrumar também nossas coisas de escritório, parecia que tinha explodido uma bomba no quarto que transformamos em escritório! Estava cheio de caixas pelo chão, tudo bagunçado. Não tínhamos tido tempo de fazer isso antes do casamento.
Levou bem algumas semanas até estar tudo arrumado.
Realmente a avó de Eduardo nos presenteou com a mesa da cozinha, o que foi uma verdadeira bênção! Eduardo foi com ela na loja escolher, e logo entregaram. Era uma mesa redonda de um metro. Como era bom poder sentar à mesa para comer. Depois, minha mãe nos deu duas toalhas redondas para que ficasse tudo direitinho.
Quando olhei a pilha de roupas que Eduardo tinha lavado, me assustei. Era hora de passar tudo! Lá fui eu fazer mais uma coisa que nunca tinha feito, a não ser de maneira esporádica. Às vezes, quando precisava de uma blusa ou uma calça no final de semana, eu mesma passava se por acaso Marina não tivesse feito. Mas nunca cuidei de toda a roupa!
Enfim... vivendo e aprendendo!
Mas havia a parte boa: estávamos casados! Agora a gente não precisava mais ficar pensando em casamento, já tinha passado, já tinha passado aquela etapa.
Outro pedaço bom foi a ótima padaria que descobrimos perto de casa. No começo, nós usávamos uma ali na avenida. Mas depois passamos a comprar na "Dona Deôla", onde só tinha coisas gostosas! Era muito bom fazer um chá e comer com broinhas de fubá ou trouxinhas de maçã, meus preferidos.
Durante a semana eu almoçava no serviço. Eduardo enganava com qualquer bobagem na rua porque passava quase todos os dias procurando emprego. À noite a gente tomava lanche, ou então fazia sopa pronta, ou macarrão no nosso fogãozinho de acampamento. A gente se virava como dava. O microondas demorou ainda mais de um mês para chegar.
Mais ou menos dez dias depois que voltamos da Lua-de-mel, minha mãe pegou uma gripe forte. Ela tinha um problema de saúde muito antigo e muito delicado, uma anemia auto-imune que ativava volta e meia, sempre em vigência de friagem ou infecções. Quer dizer: a anemia era desencadeada principalmente durante o inverno. Naquele ano, aquela gripe fora de hora fez com que ela começasse a passar muito mal.
Em anos anteriores minha mãe quase faleceu por causa dessa doença, passou meses internada. Era algo sério, que não podia ser negligenciado. Por isso, quando comentou comigo que sua urina estava de cor diferente, imediatamente soube de que se tratava:
— Então você está tendo hemólise...
Embora ela não quisesse, levei-a para o Hospital. Marco já tinha viajado, de forma que fomos apenas eu e Eduardo com ela, demos entrada no Pronto-socorro da minha Faculdade. No meu íntimo, eu esperava que o tratamento pudesse ser feito em casa.
O Médico colheu os exames pela urgência, e ficamos esperando o resultado. Eu estava muito nervosa. Das outras vezes em que minha mãe ficou ruim meu pai ainda estava conosco. Mas, desta vez, eu estava sozinha. Além do que, nosso contexto espiritual causava um enorme peso sobre os meus ombros. Não queria falar nada, mas ficava pensando se aquilo tinha alguma coisa a ver com as ameaças que tínhamos recebido.
Quando o Médico veio com o Hemograma, avisou que seria necessária a internação. Não dá nem para descrever a minha sensação naquela hora.
— Nós vamos encaminhá-la para o Hospital de referência.
Eu sabia exatamente como funcionava aquela tramitação. Os Hospitais de referência eram longe e ruins. Fiquei literalmente em pânico. Fui conversar com Eduardo:
— Estão querendo transferir... não pode acontecer isso, eles não podem transferir. Não confio nestes outros Hospitais, só confio que ela fique aqui.
Comecei a chorar de desespero.
— Não posso autorizar uma coisa dessas — continuei. — Por outro lado, ela não pode ir para casa...
— Então conversa com ele. Afinal, você fez Faculdade aqui.
— Vamos orar. Se Deus abrir uma vaga para ela aqui, então concordamos com a internação. Se não abrir uma vaga, então vou levá-la para o Hospital do Servidor Público, onde ela já ficou internada mais de uma vez.
Oramos. Eu me sentia com uma enorme responsabilidade nas mãos. Então fui conversar com o Médico, que eu não conhecia.
— Olha... sei que você está seguindo o procedimento, mas... eu sou ex-aluna daqui. E sei que sempre tem vaga, os Assistentes sempre conseguem dar um jeito...
Nem precisei continuar. A atitude dele mudou completamente.
— Ah, você é ex-aluna? Mas por que você não falou antes? Eu vou ver o que dá pra fazer...
A vaga apareceu. Eu sabia disso. Sempre há vagas na Enfermaria, mas as internações são escolhidas a dedo, só quando o caso tem bastante interesse acadêmico. Ele mesmo veio me procurar:
— Ela vai ficar aqui. Já dei andamento na internação. — Puxa... obrigada!
— Você já devia ter dito logo que era ex-aluna.
— Eu não imaginei que ela fosse ter que ficar.
— Tudo bem, fica tranqüila. Logo, logo ela já sobe.
Minha mãe não ficou satisfeita com a notícia. Mesmo assim, concordou. Com tanto bom grado quanto era possível naquela situação. Mas eu me sentia péssima, partida por dentro. Além de muito preocupada em deixá-la ali sozinha, agora que eu sabia da influência da Irmandade.
Enquanto esperávamos que a internação se efetivasse, e alguém descesse da enfermaria para buscá-la, Eduardo procurava tranqüilizar-me. Como estivesse demorando, fui de novo atrás do Médico.
— Estamos esperando alguém da enfermagem descer. Já liberamos a internação, está tudo certo.
— Você só está esperando a enfermagem? — É.
— Eu posso subir com ela, então. Assim agiliza um pouco.
Ele adorou a sugestão. Assim não precisava mais ficar pensando naquilo.
— Faz isso. É melhor assim.
Não perdi tempo. Minha mãe estava acomodada na maca e, para mim, não era segredo algum empurrar aquela maca e subir até a Enfermaria da Clínica Médica. Uma vez instalada, observamos que o quarto triplo tinha apenas mais uma paciente internada. Mas ela estava passeando um pouco pelo corredor, de forma que minha mãe pôde se acomodar antes mesmo de conhecer a companheira de quarto.
— Pede para Marina me arrumar uma sacola com algumas camisolas, pede os livros que estão em cima do criado-mudo, as palavras cruzadas, a escova de dentes, sabonete, essas coisas...
Eu estava triste. Me segurei para não chorar na frente dela. Então Eduardo nos conduziu em oração antes de irmos embora. Pedimos pela proteção de Deus, a presença dos anjos, abençoamos aquele lugar, aquele leito, toda a medicação que ela fosse tomar. Não tínhamos óleo ali conosco, mas realmente pedimos que Deus a guardasse.
Quando não havia mais nada a ser feito, e minha mãe estava acomodada na sua cama, nos despedimos.
— Amanhã eu trago tudo que você pediu — avisei.
A outra paciente, uma senhora não muito idosa, veio entrando no quarto. Parecia simpática, e não demoraria muito para que as duas estivessem conversando.
— Então nós vamos indo...
— Vai dar tudo certo, e logo a senhora já vai estar de novo sassaricando por aí. — Eduardo também abraçou minha mãe.
Saímos de lá e entramos no elevador. Eu estava calada, sentia meu coração apertado. Eduardo me abraçou.
— Fica em paz, Gatinha... Deus vai estar tomando conta dela... Ainda chorei um pouco mais. E acrescentei:
— Não posso esquecer de pedir para Marina colocar comida pra Viola no terraço. Pra amanhã, depois do serviço, passo lá pra pegar as coisas e levo no Hospital...
Na primeira semana de março, poucos dias depois que voltamos da Lua-de-mel e ainda estávamos totalmente perdidos na nossa nova casa, começou o curso da Grace. O curso de Ministradores, duas vezes por semana, à noite, tinha duração de pouco mais de três meses e visava preparar pessoas para exercer aquele trabalho: ministrar pessoas.
Optamos por ir de metrô. Nosso apartamento ficava a duas quadras do metrô, e depois a gente tinha de andar só mais umas três quadras para chegar ao local do curso. Era melhor do que enfrentar o trânsito na hora do rush.
No primeiro dia do curso Eduardo não estava bem. Passou mal a tarde toda com aquela dor abdominal terrível que volta e meia o acometia. Fui à farmácia comprar Buscopan para ele.
— Olha, Nenê... — falei estendendo o copo com água onde já tinha pingado as gotas de medicamento. — Toma tudo.
Ele estava derrubado. O remédio não fez efeito, pelo contrário, a dor aumentou e ele começou a ter enjôo. Voltei à farmácia para comprar também Plasil.
Ele tomou, mas de novo não adiantou nada. Pelo contrário, desta vez ele vomitou muito. Foi um vômito tão violento que no dia seguinte Eduardo estava até mesmo com dor muscular na região do pescoço. Ele saiu do banheiro com o rosto pálido.
— Acho melhor te dar uma medicação injetável... — eu olhava para ele preocupada.
Fui pela terceira vez à farmácia e comprei Buscopan e Plasil injetável.
— Tem certeza que precisa disso? Eu vou melhorar... — reclamava Eduardo. — Não quero tomar injeção.
— Não tem jeito, Nenê. Já tentei te dar medicação via oral, não tem jeito. Apliquei a medicação e deixei que ele descansasse. No finalzinho da tarde ele acordou e estava melhor. Fomos ao curso da Grace mesmo assim.
Na semana seguinte, aconteceu de novo. Eduardo começou com violentas dores de estômago e teve que novamente tomar Buscopan endovenoso. Poucos dias depois, também no dia do curso da Grace, mais uma vez Eduardo começou a passar mal.
— Mas eu vou no curso assim mesmo... com dor, ou sem dor.
Fomos orando durante o caminho, pedindo a Deus por livramento e proteção. Cada vez que ele se contorcia de dor, nós orávamos mais. Sempre baixinho, sem chamar a atenção das pessoas, mas sabendo que Deus estava nos ouvindo. Foi assim dentro do metrô, foi assim enquanto caminhávamos a pé.
Quando chegamos no curso, uma das primeiras pessoas que vimos foi Ricardo. Ele nos cumprimentou e nós fomos colocar nossas coisas nas cadeiras, para guardar lugar.
Não demorou quase nada e Ricardo veio atrás de Eduardo. Chamou-o de canto e logo os dois subiram para o andar superior para falar com Grace. Eu fiquei esperando embaixo, sem saber o que os dois tinham ido fazer lá em cima.
Quando Eduardo voltou, tinha o semblante diferente:
— Sabe de uma coisa? Sabe o que que Ricardo queria?
— Não. O quê?
— Veio me dizer que assim que nós entramos, ele teve uma visão e viu Abraxas nas minhas costas. Contou para Grace, e ela me chamou lá em cima. Os dois oraram por mim. Não sinto mais um pingo de dor!
Fiquei bastante satisfeita em que Deus tivesse revelado a causa da dor, tinha atendido nossa oração. Mas me senti bastante entristecida porque ninguém me chamara para orar por mim.
— Puxa vida... minha mãe está internada... e ninguém nem mesmo me chama pra ir com você, pra gente orar junto.
— Sobe lá, Gatinha. Sobe lá e pede para eles orarem por você também... Tão chateada fiquei que resolvi mesmo subir. Vi Ricardo ali mesmo na escada e falei:
— Olha, fiquei chateada de você não ter me chamado para vir junto. Acho que não custava nada, né?
Ele se desculpou e chamou uma das mulheres da equipe e os dois oraram por mim. Normalmente eu não teria me dado a esse trabalho, mas me sentia muito fragilizada por causa da minha mãe. Contei para Grace, mais tarde, e ela garantiu que estariam orando.
No dia seguinte, conforme ficamos sabendo, Ricardo foi super-retaliado. Ficou com os mesmos sintomas digestivos de Eduardo, e também a sua cachorra passou mal.
Todos esses episódios aconteceram nos primeiros quinze dias da nossa vida de casados. Certamente que não foi um começo muito fácil. Mesmo quando tudo corre bem, e cada coisa está no seu lugar, ainda assim a adaptação pode ser difícil. Quanto mais desse jeito, com tudo de pernas para o ar!...
Para a gente não estava sendo nem um pouco fácil, especialmente para mim.
Como se tudo isso não bastasse, logo percebi que nosso apartamento era especialmente barulhento. Por causa do vizinho de baixo. Ele tocava música alta a tarde toda, eu escutava a vibração daquele bate-estaca, um barulho literalmente insuportável para os meus ouvidos.
Aquilo me punha muito mais irritada. Talvez por isso aquelas vertigens continuassem, desde antes do casamento que eu estava tomando remédio para labirintite. Volta e meia eu tinha isso, geralmente quando estava muito cansada e muito tensa. Creio que, diante das atuais circunstâncias, era perfeitamente explicável aquele pequeno problema de saúde.
A cada dia que passava, eu me sentia mais cansada do que no dia anterior. Até mesmo minha própria música me irritava! Eu sempre gostei muito de música, todo o tempo que estava em casa costumava ter sempre um CD tocando. Baixo, é claro! Minha música era sempre somente para eu ouvir. Mas eu não conseguia escutá-la, parecia que até aquilo me incomodava.
À noite, quando me deitava, escutava pessoas arrastando móveis em algum lugar acima da minha cabeça. Quando eu estava quase pegando no sono, de repente, BRUMMM!! Aquele barulho me punha novamente em estado de alerta. Quando estava quase cochilando de novo: BRUUUMMM!
— Meu Deus do céu... em nome de Jesus, faz esse barulho acabar! Comecei a chorar de desespero. E Eduardo entrou no quarto e me encontrou naquele estado.
— Eu tenho que trabalhar, tenho de acordar cedo... não consigo dormir! Oramos um pouco juntos.
— Vou procurar saber que barulho é esse amanhã. Parece de móveis arrastando, mas não entendo por que as pessoas ficam arrastando móveis a essa hora da noite.
No dia seguinte, Eduardo foi se informar. No apartamento em cima do nosso moravam apenas duas senhoras, o apartamento era todo acarpetado e elas garantiram que não arrastavam móveis. Foi uma incógnita.
Eram muitas as responsabilidades da casa. Eu não sabia direito por onde começar, limpava o que dava, como dava. Todas as tardes eu ia visitar minha mãe, às vezes Eduardo podia ir comigo. Apesar de só haver dois períodos de visitas na semana, eu entrava a hora que queria no Hospital. Sabia todas as passagens, todas as entradas, além do que ainda tinha meu crachá antigo. Eduardo entrava comigo. Quando não dava para ir de tarde, a gente ia de noite.
Eu tinha informado Dona Clara, pedindo oração. E também comuniquei às pessoas que freqüentavam a célula com minha mãe, na Igreja dela. Na quinta-feira seguinte, o primeiro dia oficial de visita, três senhoras da Igreja foram visitá-la. Dona Clara também teve tempo de ir.
Tive que avisar Marco também. Era importante que ele estivesse ciente de tudo o que acontecia.
Não sei se por coincidência, ou por fruto das nossas orações, mas essa foi a internação mais curta da minha mãe. Cerca de nove ou dez dias, apenas. Em outra ocasião, ela tinha ficado quase três meses.
Que alívio que foi quando ela estava de novo em casa! E, muito satisfeita ela estava também porque tinha levado uma das companheiras de quarto a aceitar Jesus. E depois essa moça acabou sendo batizada na sua Igreja. Foi a primeira pessoa que minha mãe levou a Cristo.
Nosso primeiro ano de casamento seria muito difícil. A gente sentia uma carga negativa pairando no ar. Não era fruto de discernimento, como aconteceu algumas vezes com Eduardo. Mas era uma sensação constante de desconforto espiritual. Por um lado, nós acreditávamos que Deus estava conosco. Pelo menos nós estávamos realmente buscando fazer a vontade dele. Por outro lado nós não tínhamos nos esquecido das ameaças que estavam sobre a nossa cabeça.
Por causa dessas sensações, tão difíceis de descrever em palavras, é que começamos a nos questionar se não deveríamos fazer um jejum.
Todo o resto nós já estávamos fazendo, tudo aquilo que era possível de ser feito. Não estávamos de braços cruzados! Nossa semana era atribulada: tínhamos o curso da Grace duas vezes por semana, às terças e quintas. O seminário na Igreja era uma vez por semana, às sextas. Uma vez por semana nós também começamos a participar de uma reunião de oração ministrada por Sarah e Jefferson, às segundas. Nas quartas-feiras participávamos dos Cultos do Pastor Joel, além de continuarmos nos encontrando com Dona Clara. Domingo era dia de Culto também.
Isso quer dizer que apenas aos sábados não tínhamos nenhum compromisso com a Igreja. Isso para nós era muito importante, queríamos buscar a face do Senhor, além de sentir que havia pessoas perto de nós. Mesmo que fossem apenas os outros alunos do seminário, ou do curso da Grace, ou mesmo da reunião de Sarah: pessoas que conhecíamos apenas de vista. Eram muitas pessoas ao nosso redor, mas poucas efetivamente conosco.
Num dos encontros com Dona Clara, enquanto orávamos no final, Eduardo novamente recebeu de Deus uma revelação:
— Foi diferente... enquanto a gente orava em línguas, foi como se eu pudesse entender algumas frases daquilo que eu dizia... era como se Deus me pedisse um tempo especial com Ele, um tempo a sós. Senti também uma sensação grande de aconchego, de ser pego no colo, de ser abraçado. Ele me disse que vai chegar um tempo em que eu vou saber quem são os lobos em pele de cordeiro, só de olhar para eles... — e nessa hora seus olhos ficaram marejados de lágrimas.
Aquilo de certa forma veio de encontro ao desejo que já estava no nosso coração, o de jejuar. Não digo nem que fosse realmente um desejo, era antes uma sensação de urgência, de necessidade. Nós estávamos casados há menos de um mês! A última coisa que queríamos fazer era um jejum... teria sido bem melhor curtir a nossa nova casa, a nossa Lua-de-mel, a companhia um do outro... mas não foi assim conosco.
Mesmo que não houvesse aquele contexto espiritual, ainda assim nossa casa não era aconchegante, faltava tudo, faltava dinheiro para tudo, não tínhamos lazer de espécie alguma... até mesmo a academia já tínhamos deixado de freqüentar há mais de dois meses. Quando íamos ao supermercado, era para comprar meia dúzia de coisinhas indispensáveis. E era meia dúzia mesmo, das marcas mais baratas, coisas que nunca comprei antes!
Nosso dinheiro deveria durar até abril. Eduardo imaginava que até esta data já estaria empregado. No entanto, já passava da metade de março e nada acontecia apesar das nossas orações. Talvez realmente estivesse faltando um jejum! Parecia haver uma densa nuvem ao nosso redor, e ela não se dissiparia apenas com oração.
Eduardo tinha novamente ficado até o final de um processo de seleção. No dia da última entrevista oramos juntos, pedimos a Deus que abrisse aquela porta, oramos com todas as nossas forças e fé. No entanto, nada aconteceu. Escolheram o outro candidato e descartaram Eduardo.
Realmente nenhum de nós tinha imaginado que o início do casamento seria daquele jeito.
Então, dada a certeza de que era necessário jejuar, restava saber o período a ser guardado. Durante alguns dias perguntamos ao Senhor, individualmente, quanto tempo Ele queria. Sabíamos que há certas castas que só podem ser confrontadas mediante jejum e oração.
Nossa angústia ia — naturalmente — crescendo a olhos vistos. Eu percebia que Eduardo não dormia bem à noite, às vezes levantava e ficava na sala, esperando o sol nascer enquanto orava. Eu acordava no meio da noite para ir ao banheiro e via que ele não estava na cama. Algumas vezes fui até a sala, e ele estava lá.
Era como se, lá no seu inconsciente, ele esperasse o nascer do sol para pedir que Deus trouxesse também uma luz no fundo daquele túnel. Ele procurava ver na Criação de Deus uma parte do Poder de Deus... de certa forma, observar o nascer do sol o convencia de que Deus era muito Poderoso!
Outras vezes era ele quem dormia, e eu acabava levantando, sentindo tanta angústia que precisava desabafar um pouco com Deus. Então me acomodava no travesseiro que ficava encostado na parede, e que nos servia de sofá, e com muitas lágrimas pedia a Deus pelo livramento. Chorava, chorava, pedia uma solução, pedia força para continuar trabalhando, e também por Eduardo, para que o Senhor acalmasse o seu coração.
À medida que passavam os dias, nós conversávamos um com o outro, sem saber o que fazer. Meu salário dava para pagar o aluguel, a prestação do carro e as principais contas. Mas depois disso sobravam apenas algumas quireras...
— Nós pedimos a Deus confirmação da data do casamento. Houve unanimidade em todas as pessoas — falava Eduardo. — Deus tem que nos sustenta! Seria inconcebível eu voltar para casa da minha mãe, e você voltar para a casa da sua.
— É verdade. Não é possível uma coisa dessas...
Eu entendia o desespero de Eduardo. Ele era o homem, era o provedor... era responsável pelo sustento financeiro da nossa casa. Eu nunca cobrei Eduardo de nada, eu via o seu esforço, a sua determinação, a quantidade de agências que visitava, a quantidade de processos de seleção a que se submetia. Não raro passava o dia inteiro na rua, sem comer praticamente nada. Mas eu compreendia que em primeiro lugar o sustento vinha de Deus! Por isso não o cobrava... simplesmente esperava que Deus suprisse as nossas necessidades. Se Deus não fizesse isso, não seria Eduardo que poderia fazê-lo.
Mas ele não se conformava, ele mesmo se cobrava e cobrava e cobrava. Eu procurava tranqüilizá-lo:
— Nenê... você está fazendo sua parte... se Deus não deu ainda o emprego, e eu não sei por que está sendo assim, mas... a culpa não é sua!
— Eu sei o que "eles" estão fazendo, primeiro deletaram a nossa conta do banco, há um ano. Depois, me mandaram embora do meu emprego, pouco antes do casamento. E agora, pouco a pouco nosso dinheiro está minguando! Deve haver algum Encantamento muito forte que está me impedindo de arrumar trabalho, isso nunca aconteceu antes, não é possível! Eles vão continuar arroxando cada vez mais... e Deus não faz nada?!
— Nenê, eu não sei por que está acontecendo assim... mas temos que ser fortes, temos que continuar acreditando que Deus é Deus. E que a culpa não é sua!
Nos nossos aconselhamentos com Dona Clara ele sempre se queixava, aflito:
— Eu quero trabalhar, quero sustentar a minha casa... tirei Isabela de dentro da casa dela, e o que posso oferecer para ela agora? Se Deus quer me dar um Ministério, então que aconteça logo... mas nada acontece, e eu não posso ficar de braços cruzados esperando! Esperando que nosso dinheiro acabe e a gente morra de fome!
De certa forma, esse era um dos principais motivos do jejum: pedir direção a Deus! Não era nem questão de pedir emprego, mas que Deus nos pusesse no caminho certo. Tudo parecia muito nebuloso, muito fechado, muito difícil...
— Realmente nós queremos fazer a coisa certa, não podemos errar, não queremos errar! Se Deus tem para nós um Ministério, como Ele mesmo disse... então que essas portas se abram duma vez. Mas, se não é isso... então que Deus abra a porta de emprego para o Eduardo, porque também não podemos viver assim, debaixo dessa pressão — expliquei a Dona Clara.
— Mesmo porque não é justo Isabela ficar trabalhando sozinha, ficar sustentando a casa sozinha... não foi assim que Deus idealizou o casamento. Não é este o padrão Bíblico! Eu sou o homem, eu tenho que ser o provedor! Não estou entendendo por que este emprego não aparece, por mais que a gente ore... nós não temos nenhum respaldo agora, não temos mais dinheiro no banco, Deus permitiu que assim fosse... agora Ele tem que cuidar de nós! Temos procurado fazer a nossa parte, Ele tem que fazer a Dele.
Dona Clara escutava nossos desabafos. E incentivou o jejum:
— Deus permitiu o casamento, e está no controle de toda esta situação de desconforto. Eu vejo que realmente é tempo de vocês jejuarem. Embora exista a promessa de Deus a respeito do Ministério, isso também precisa ser gerado em oração!
Durante a semana, eu demorei a aceitar aquilo que Deus parecia estar dizendo.
"Será que é isso mesmo? Será que temos que jejuar 40 dias?"
Quando Eduardo falou também nos 40 dias, então não tivemos mais dúvidas.
Mas na nossa alma.... diante de toda aquela pressão e todo aquele cansaço.... realmente parecia uma tarefa sobremodo pesada!
— Puxa. Nunca imaginei que ia começar minha vida de casada jejuando 40 dias — ponderei.
— Pois é, Isabela... nem eu! Mas acho que realmente essa é a direção de Deus para nós, nesse momento.
— E como é que vamos fazer? — tentei me sentir animada.
— Bom... eu pensei em tirar alguns alimentos...
— Eu pensei nisso também, mas também acho que devemos guardar um bom período do dia em jejum completo.
— Vamos tirar as coisas que mais gostamos. Refrigerante... café...
— Doces... chocolate e sorvete... massas... — continuei eu.
— Carne vermelha também. É muito difícil ficar sem carne vermelha!
— Tá bom. Então a gente tira estas coisas, e ficamos em jejum da meia-noite até às seis da tarde, todos os dias. São 18 horas de jejum completo. Às seis da tarde a gente pode comer, mas só o que for permitido.
— Que é quase nada, né?
— Também não é assim, podemos comer arroz, feijão, frango, salada, fruta... Eduardo sorriu.
— Hum... que delícia!
— Delícia mesmo é não poder comer meus doces. Eu não faço isso nem quando estou de dieta, a única coisa que segura a minha boca nesse sentido é um jejum!
— Para mim, o que me faz mais falta é o café e o refrigerante...
— Então, quando começamos? Agora que Deus já deu a direção, podemos começar.
— Amanhã temos encontro com a Dona Clara, vamos pedir para ela nos ungir. Ela é autoridade sobre nós, vamos orar em concordância para que Deus nos dê força para sermos fiéis nesses 40 dias.
Foi assim que fizemos. Essa foi a primeira vez que pedimos para uma figura de autoridade nos ungir. Notamos a diferença desde o início, parecia haver realmente uma disposição diferente, um vigor diferente. Mas também sentimos a pressão espiritual, como não poderia deixar de ser.
Nosso jejum começou exatamente no dia da Festa do Outono. Só viemos a nos dar conta disto muito tempo depois, porque não foi planejado. Mas Deus, em sua infinita Sabedoria e Onisciência, sabia que aquele era o momento certo. Mas não seria nem um pouco fácil. Não apenas pela privação das coisas que gostávamos, uma a mais no meio de tantas outras privações que já existiam... mas principalmente porque aquilo ia sacudir o Reino Espiritual. A lembrança mais vivida daquele período é a do tremendo cansaço... um indescritível e anormal cansaço.
Eu me levantava da cama pela manhã com vontade que já fosse outra vez de noite, para ir de novo para a cama. Nunca tive que depender tanto de Deus para conseguir ir todos os dias ao trabalho, chegar no horário, não faltar.
Eu estava acostumada a roubar uns minutinhos, tanto na entrada quanto na saída, exatamente como faziam os outros Médicos. A gente podia tranqüilamente chegar meia hora mais tarde, quarenta minutos mais tarde, e sair mais cedo na mesma base. Em todos os meus empregos esse sempre foi um tipo de padrão comum de conduta.
Essa foi a primeira coisa que o Senhor começou a confrontar na minha vida. Logo Ele me convenceu de que não me queria tendo um comportamento igual ao de todo mundo. Passei então a levantar mais cedo e a chegar exatamente no horário. Durante todo o trajeto até lá eu ia orando, me consagrando, apresentando petições, conversando com Deus.
Depois de estacionar o carro, subia minha costumeira ladeira. Mas era como se tivesse duzentos quilos sobre os ombros, quase arrastava os pés. Eu não conseguia me recuperar daquele cansaço. Mesmo assim, ia cantando minha musiquinha:
— Cada metro desta terra que eu piso, o lugar que ponho a planta dos meus pés, o Senhor Jesus me deu como herança...
Ungi também a minha sala e a minha mesa logo no começo do jejum. Eu tinha a mais absoluta certeza de que meu emprego estava na mira do inimigo. Obvio. Se eles queriam secar toda nossa fonte de sustento, meu trabalho era o próximo que deveria ir para o espaço. Mas eu não iria entregá-lo nas mãos do inimigo! No que dependesse de mim, iria mantê-lo, custasse o que custasse.
— Consagro este emprego a Ti, consagro esta sala, consagro o meu lugar como Médica... me livra do ataque dos meus inimigos, declaro que tomo posse do meu emprego, declaro que ele me pertence, o Senhor me deu, e eu quero conservá-lo! Vou ficar neste lugar, neste cargo, até o último dia que o Senhor permitir que eu esteja aqui.
Como estivesse chegando mais cedo, todas as manhãs tinha quase uma hora para ler a Bíblia. O Ambulatório estava vazio, nenhum dos Médicos chegaria antes de oito e quarenta, oito e cinqüenta. Não começaríamos a atender as consultas antes das nove. Eu me sentia meio otária chegando ali às oito horas cravado. Ninguém fazia aquilo!
Mas o Senhor estava me requerendo aquela fidelidade. Jamais me passaria pela cabeça, como era tão freqüente antes, contar alguma mentira para poder faltar e descansar um dia ou dois.
De vez em quando eu me recordava, sorrindo, das histórias que eu e Eduardo inventávamos para dar um chute no serviço. Normalmente ele ligava falando que a doutora Isabela tinha tido um problema:
— Faleceu uma tia dela do interior, e Isabela teve que viajar até Matão para levar a mãe. O enterro vai ser hoje à tarde, mas como é muito longe, ela só volta amanhã. Estou ligando pra avisar que ela não vai poder vir ao serviço hoje e amanhã.
— Ah! Coitada da Doutora. Manda os pêsames pra ela. Tudo bem por aqui, diz para ela ficar descansada.
Mais de uma vez nós dois fizemos isso. Hoje... seria impensável armar uma arapuca daquelas! Era fácil entender por que Deus queria tratar aquela minha fraqueza. Então não roubava nem mesmo um minuto no horário de serviço, sabia que se fizesse isso estaria abrindo uma brecha, estaria dando legalidade para o inimigo me dar uma rasteira. Poderia até mesmo tomar o meu emprego! Eu tinha plena consciência disso agora.
Como era difícil!...
Não bastasse ficar esperando todo mundo chegar de manhã, quando eram onze horas, onze e quinze, o pessoal da área Médica já começava a debandar. Mas eu ficava até meio-dia, certinho. Não tinha coragem nem mesmo de sair cinco minutos antes.
"Se eu sair antes, é batata que vai aparecer alguma consulta grave, e vai sobrar pra mim..."
Então, não havia outra maneira a não ser me alinhar.
Além de direção, aquele jejum era também para consagração. Nós tínhamos consciência de que devíamos estar nos entregando totalmente a Deus, e à Sua vontade... não percebemos exatamente isto naquela época, mas durante o jejum Deus nos falou bastante sobre santificação. Sobre alinhar a vida.
Ainda em relação ao emprego, certo dia saí com uma estranha convicção no coração, como se Deus estivesse realmente me dizendo:
"Você não está aí para sustentar a casa, você está aí para aprender a obedecer. Quando aprender tudo que Eu quero que você aprenda, Eu mesmo vou tirar você daí."
Quando cheguei em casa comentei com Eduardo sobre aquilo.
— É verdade. Nunca tinha pensado sob este prisma.
— Pode ser que não esteja conseguindo fazer o melhor, no rigor da palavra, mas Deus sabe que estou fazendo o melhor que posso! Não falto... não minto... não roubo no horário... procuro ter a maior paciência que posso com as pessoas! É muito duro trabalhar em convênio, como é duro...! Todo mundo se julga sempre no direito de exigir mil e uma.
O jejum trouxe também algumas revelações. A primeira delas veio na Páscoa. Nós iríamos almoçar em casa de minha mãe, então Eduardo levantou mais cedo e foi visitar dona Odete. Era melhor fazer aquilo pela manhã porque depois, no final da tarde, já iríamos direto para a Igreja.
Então ele resolveu ir tomar um café da manhã de Páscoa com a mãe. Ou melhor, apenas acompanhá-la no café, porque Eduardo não podia comer por causa do jejum. Eu levantei um pouco mais tarde naquele domingo, me arrumei, dei um jeitinho muito mixuruca na casa, e fiquei esperando por ele.
Eu gostava de escutar o barulhinho da chave quando girava na fechadura da porta. Era sinal de que Eduardo já estava chegando. Eu estava ainda lá dentro, e foi ele que veio ao meu encontro.
Assim que olhei para ele, achei que não estava dos mais normais:
— Ué... que foi?
— Não foi nada.
— Mas você não está com a cara boa. Vai dizer que sua mãe disse alguma coisa que você não gostou?
Eduardo não sabia disfarçar muito bem.
— Não foi bem isso...
— Pois eu não estou dizendo? Tô vendo que você está com a cara esquisita! Que que aconteceu?
— Ela me falou uma coisa... que eu ainda estou tentando digerir... Fiquei até meio inquieta. E indaguei, meio afoita:
— Conta, Nenê...
— Não sei por que saiu esse assunto, não sei por que acabei perguntando aquilo.
— Aquilo o que!
— Sobre o meu pai...
Fiquei quieta um pouco. Sabia a que Eduardo se referia.
— Quer dizer... seu pai mesmo, ou...
— Não... não o meu pai, quer dizer...
— Conta direito, vai.
— Bom... sempre existiu essa questão no ar, de que meu pai não era meu pai de verdade. Mas nunca minha mãe admitiu que aquilo fosse verdade. Mas meu pai já morreu, eu já estou casado... não sei por que, me deu na telha de perguntar mais uma vez. Ela estava meio nostálgica, comentando que meu pai tinha morrido... que o Roberto estava trabalhando no Rio... que eu tinha casado... que a casa estava cada vez mais vazia... então... perguntei! Ela estava sozinha e pela primeira vez falou a verdade.
Eu só escutava. Eduardo continuou.
— Imaginei que como minha mãe estivesse se sentindo mais frágil naquele momento, talvez me respondesse. A bem da verdade, isso sempre me incomodou. Eu precisava saber! Queria ter certeza daquela história, porque nunca me senti filho do meu pai. Ele nunca me tratou bem, e como bebesse, acabava sempre me jogando na cara que eu não era filho dele. Quando a pessoa bebe pode tanto falar besteira, quanto deixar escapar grandes segredos! Uma pessoa assim já não controla a sua razão, e quase sempre ele me dizia, nas brigas: "Você não é meu filho, você é uma desgraça que eu tive que suportar"! Do mesmo jeito, quando eu causava algum problema em casa, ele reclamava com minha mãe dizendo que: "O seu filho fez isso, seu filho fez aquilo"! Aí minha mãe costumava retrucar dizendo que não tinha me trazido para casa de enxoval, que ele tinha participação naquilo. E meu pai respondia categoricamente: "Com esse não, com esse eu não tive participação nenhuma"!
Olhei para Eduardo com certa compaixão. É claro que ele tinha uma grande mágoa no coração.
— Ele sempre me tratou diferente. E isso sempre ficou na minha cabeça... outra coisa que me deixava desconfiado era minha avó. Depois que ela começou a ficar meio esclerosada, volta e meia falava demais, falava para minha mãe que ela devia "ter ficado com aquele outro moço, afinal você sofreu muito com esse seu marido, que bebe demais. Aquele é que era bonzinho". Mas minha mãe sempre desconversou, sempre procurou encobrir tudo. Eu não sabia se minha avó estava confundindo as coisas, ou se estava mesmo falando a verdade. Aí, durante o café, preparei muito bem o terreno e por fim falei para minha mãe que não tinha mais sentido ficar escondendo tudo de mim. Eu gostaria de saber de quem eu era filho de verdade! E perguntei: "Afinal de contas... eu sou ou não sou filho do meu pai?" Para minha surpresa, ela me respondeu diferente pela primeira vez. E disse: "Pai é aquele que cria, esse que é o pai verdadeiro... não é aquele que gera". Quando ela falou aquilo, não precisava nem dizer mais nada.
— Eduardo... você não vai me dizer que ela falou... aquilo! — eu estava embasbacada.
Eduardo balançou a cabeça afirmativamente.
— Pois falou...
— Então é verdade mesmo? — eu custava a acreditar, mesmo sabendo que tinha sido eu a levantar aquela hipótese pela primeira vez.
Certa ocasião, estava assistindo televisão e vi Marlon. Eu sabia do relacionamento dos dois, do vínculo entre ele e Eduardo, inclusive que Marlon sempre tratou Eduardo por "meu filho".
— Você nunca imaginou a possibilidade do Marlon ser seu pai? — eu tinha perguntado para ele na época.
Aquilo nunca tinha passado pela cabeça de Eduardo. Mas pelo visto ele tinha ficado pensando...
— Quando pressionei um pouco mais, ela simplesmente falou. Contou como foi, como aconteceu... disse que ele se chamava Marlon... falou a descrição física... a idade... não entendo por que ele nunca me disse.
A voz de Eduardo ficou um pouco embargada. Ele olhava pela janela do escritório, com os olhos cheios de lágrimas. Abracei-o, sem saber direito o que dizer.
— Você gosta muito dele, né?...
Ele fez que sim. Ficamos quietos um pouco, e então ele continuou, contou-me toda a história. Não havia a menor sombra de dúvida (Leia Filho do Fogo). Eduardo ficou o resto do dia meio que em estado de choque, pensativo, calado. Não era para menos! Até eu estava assombrada.
— Nenê, veja por um outro ângulo... isso é uma grande revelação, algo que Deus está trazendo à tona, uma parte da sua história muito importante e que você não tinha consciência! Isso muda tudo! Taí muita coisa para ser ministrada...
Embora Eduardo soubesse disso, naquela hora não queria nem falar em Ministração.
Isso aconteceu no domingo de Páscoa. Na segunda-feira de tarde nós estávamos excepcionalmente em casa e o nosso bip tocou. Na verdade não era nosso, era de Karine, aquela moça nossa amiga que estudava em São Paulo e freqüentava a Igreja conosco. Como não tínhamos telefone, ficávamos incomunicáveis. Isso não era nada bom, especialmente porque minha mãe agora morava sozinha.
Então Karine nos emprestou o seu bip por tempo indeterminado. Pelo menos era uma maneira de comunicação com o resto do mundo. Para nossa surpresa — melhor dizendo, desagradabilíssima surpresa — o recado que foi aparecendo não trouxe nada de bom. Mas, de certa forma, terminou de confirmar aquilo que já sabíamos.
O bip tocou e eu pensei que fosse minha mãe. Quando fui ao encontro de Eduardo, ele me mostrou a mensagem, passando-me o aparelho. Nem consegui acreditar no que estava lendo. Devolvi o bip para ele muda.
— Não é possível que isso está acontecendo...
Eduardo olhou mais uma vez a mensagem.
— Pois está.
Dizia algo mais ou menos assim: "Agora que você já conhece a verdade, ela te libertará. Você sabe que está no lugar errado, agora não tem mais dúvidas sobre quem é a sua verdadeira família". E assinou, incrivelmente, com as iniciais do seu nome verdadeiro.
Embora fosse uma pergunta tola para se fazer, não pude pensar em nada melhor naquele momento.
— Mas não é possível que eles já descobriram o número deste bip... será o benedito!!
Nós dois ficamos com uma desagradável sensação engastalhada dentro da alma. Às vezes, quando o emocional se abalava muito, era tão difícil ficar sem comer nada... dava uma vontade louca de encher a barriga de comida, descarregar de alguma forma. Mas não havia qualquer válvula de escape...
Quando contamos, Grace não acreditou muito nessa história. Parecia mirabolante demais e de início ela preferiu acreditar que fosse mais uma mentira daqueles Satanistas para envolverem Eduardo. Não discutimos com ela, mas nós dois tínhamos absoluta certeza de que era verdade, mesmo porque estávamos em período de jejum, buscando a Deus todos os dias, tanto separados quanto em concordância. Orávamos por direção, por proteção e por consagração.
Diante disso, Deus permitiria que uma mentira como aquela passasse por verdade? Nós não críamos nisso, pelo contrário, sabíamos que Deus estava atendendo nossas orações, Ele tinha mandado uma nova direção em termos de Ministração. Algo totalmente novo!
No fundo sabíamos — pelo menos assim esperávamos — que a principal direção que estávamos buscando também viria. Tinha a ver com a questão Ministerial. Todos os dias suplicávamos a Deus que nos guiasse, que abrisse as portas que Ele tinha para nós, fosse de emprego ou de Ministério, que nos transformasse, que nos forjasse, que nos limpasse, que nos capacitasse a continuar caminhando...
Já tínhamos começado a segunda metade do jejum. Como nós encontrássemos com Ricardo quase toda semana por causa do curso da Grace, certa ocasião ele nos avisou que, orando por nós, tinha discernido no espírito muito ataque contra o meu emprego.
Já não era a primeira vez que ele nos dava uma direção nesse sentido. Não era novidade, mas a diferença é que agora eu estava muito mais alinhada. Mesmo assim, sentíamos necessidade de que mais pessoas que intercedessem por nós. Grace costumava nos cobrar:
— Vocês precisam arrumar dez intercessores pessoais. Eu peço isso para todo mundo que faz o meu curso! Geralmente peço por escrito, inclusive. Vocês estão procurando intercessores?
— Não sei onde vamos encontrar esses intercessores... não temos muito acesso à liderança da nossa Igreja, como você mesma sabe. A única pessoa que ora por nós a Dona Clara... tem também a Sarah e o Jefferson, que dizem que oram em concordância com um grupo especial que eles têm... fora isso...
Grace ficava incomodada com aquilo. E não se conformava.
— Mas vocês não podem ficar assim descobertos. Tentem ver se vocês arranjam mais pessoas na Igreja de vocês.
Quando saímos do curso naquela noite, voltando para casa de metrô, conversávamos a respeito.
— Tem um grupo de guerreiras na Igreja... — falei.
— Você acha que devemos abrir o jogo com elas? Será que não vai parecer que estamos passando por cima do Pastor Lucas? Afinal, ele nunca me liberou para testemunhar na Igreja, de repente vai achar que estou desobedecendo a sua autoridade se começar a falar da minha vida para outras pessoas ali dentro...
— Imagine! Isso não tem nada a ver, estamos apenas pedindo oração pessoal! Mas podemos perguntar para Dona Clara o que ela acha, e que foi a Grace que pediu...
— Então vamos fazer isso.
No fundo, no fundo nós queríamos muito mais pessoas perto de nós. Havia um casal na Igreja, aquele mesmo com quem tínhamos feito aconselhamento de casais, que sempre nos garantia sua fidelidade em oração. Mas agora eles tinham um filho pequeno, nunca dava certo da gente encontrar com eles.
Dona Clara achou muito bom nós termos decidido buscar mais ajuda. Tendo o aval dela e o incentivo de Grace, compreendemos que talvez essa fosse mesmo a direção de Deus. Dona Clara se ofereceu para intermediar o contato. Ela conversou com cinco pessoas que se intitulavam guerreiras, que estavam sempre envolvidas com Batalha Espiritual. Nós conhecíamos todas elas de trocarmos pequenas conversas.
No final de um Culto de domingo, Dona Clara nos disse que podíamos falar com elas porque já estavam avisadas da nossa necessidade. Então Eduardo foi atrás, na tentativa de marcar uma data para nos encontrarmos durante a semana. Enquanto isso, eu continuei conversando com Dona Clara.
Mais tarde, em casa, enquanto quebrávamos o jejum daquele dia com os alimentos que podíamos consumir, ele me contou que tinha conseguido falar com uma delas. Sentamos na nossa mesa redonda, lado a lado, prontos para tomar nosso lanche. Eu tinha colocado um CD suave no aparelho de som e não havia barulho naquela hora nos outros apartamentos.
— E aí? Como ficamos?
— Marquei para quarta-feira, ao invés de nos encontrarmos com Dona Clara, vamos nos encontrar com elas. As três diaconisas, uma outra irmã que não conheço, e a Pastora Alice.
— A Pastora Alice? Mas ela nunca nem olha pra gente! Tem certeza que é bom fazer isso, abrir nossa vida com uma pessoa totalmente desconhecida e que nunca nem nos cumprimenta?
— Eu não vou questionar... vamos ver no que dá. De certa forma, estamos cumprindo uma ordem da Grace! De repente, vai que Deus está mesmo levantando estas pessoas para estarem ao nosso lado? A pessoa com quem falei foi categórica em dizer que todas elas vão ficar do nosso lado, que a vitória é nossa, que vamos derrotar o inimigo, esses demônios vão ter que recuar etc.!
Fiquei quieta, um pouco insatisfeita com a presença da Pastora Alice. Mesmo assim, não retruquei.
— Elas só vão conseguir realmente ficar conosco se Deus estiver chamando... se assim não for, logo, logo já vão desistir!
— Isso é verdade. A Irmandade foi bastante firme em dizer que todos aqueles que se aproximassem de nós, eles iriam derrubar. Vamos ver no que dá essa coisa toda. Nós estamos fazendo nossa parte, que é sinalizar uma necessidade, sinalizar que estamos precisando de ajuda... agora, cabe a Deus levantar as pessoas certas...
No dia do encontro, chegamos na Igreja antes do horário. Era um final de tarde e não havia praticamente ninguém por ali. Ao passarmos diante da Secretaria cumprimentamos as duas secretárias, Nadia e Sheila, e entramos. Fomos direto para a salinha lá do fundo, aonde combinamos. Ficamos por ali dando uma olhadinha nos murais, conversando um pouco, esperando. Logo deu o horário.
— Por enquanto não dá pra gente considerar isso um atraso... agora que está dando a hora certa! — comentei com Eduardo.
Depois de um tempo, cansamos de ficar ali de pé, e fomos nos sentar numa das salas. Deixamos a porta aberta para que não tivessem dúvida onde nós estávamos.
Passou talvez mais um quarto de hora. Finalmente, a Pastora Alice apareceu.
— Olá! A Paz do Senhor! Tudo bem com vocês?
— Tudo bem com a gente. E com você?
— Está tudo bem, graças a Deus.
Ficamos calados um momento, esperando se ela iria falar alguma coisa a respeito das outras. Como nada dissesse, Eduardo perguntou. Ela pareceu surpresa:
— Não estava sabendo que elas vinham... mas... o Senhor sabe de todas as coisas! Se elas não estão aqui, é porque o Senhor não preparou isso. A que horas vocês marcaram reunião?
— Às cinco.
— Pois então... já são quase cinco e meia! Eu acho que quem chegou, chegou... se elas não estão aqui, vamos começar a reunião só nós três.
Pensei ter ouvido um leve tom de despeito na voz dela. Pelo visto, ela não devia ter as outras em muito alta conta. Ela continuou:
— Acho que Deus preparou apenas para que eu estivesse aqui... então, não vamos mais perder tempo! Eu estou acostumada com esse tipo de coisa, com a guerra! Não sei como dizer, mas Deus chama cada um para um lugar. Eu acho que hoje este é o meu lugar.
Assentimos, concordando sem retrucar.
— Então? Vamos orar para começar?
Foi o que fizemos, em seguida ela quis saber um pouco melhor por que estávamos procurando ajuda dela.
— A Dona Clara não te falou? — indaguei.
— Não quis adiantar muita coisa... e disse que o Eduardo se envolveu com uma seita satânica... mas não disse muito mais.
— E... é mais ou menos isso, mas a verdade é que... Ela interrompeu.
— Vocês não precisam me contar nada, não é isso que eu quero saber! Quais são suas necessidades hoje?
— É preciso somente contextualizar um pouco — retomei. — A verdade é que existem alguns decretos contra nós... e por causa disso estamos passando algumas dificuldades... — eu não sabia como me explicar em tão poucas palavras.
— Entendo.
Explicamos sucintamente o que deu, sem falar demais, expondo nossos principais motivos de oração.
— Grace espera que nós tenhamos mais intercessores, mais pessoas compromissadas com a gente — falou Eduardo. — Por isso resolvemos pedir ajuda a você, e também às outras diaconisas.
— Eles disseram que quem se levantasse para estar ao nosso lado, iria ser
derrubado... realmente não é fácil encontrar pessoas que estejam dispostas... esse, sem dúvida, é um motivo de oração! Gostaríamos que Deus trouxesse outras pessoas para caminhar ao nosso lado.
— No que depender de mim, quero ter uma aliança com vocês. Quero estar ao lado de vocês nesta guerra! — falou ela com bastante convicção. — Eu estou aqui para isso!
Fora isso, ela anotava na agenda alguns pontos da conversa, ouvindo com atenção.
— Que mais?
— Bem... há vários meses nossa situação financeira tem piorado gradativamente. Isso também foi algo que eles prometeram fazer, e também disseram que ninguém nos ajudaria.
— Disseram, como? — dessa vez ela perguntou. — Como assim? É algum tipo de discernimento que vocês estão tendo, ou...
— Não. É literal mesmo, eles falaram tête à tête.
— Ah, mas é mesmo? Chega nesse ponto? Fizemos que sim.
— Mas não se preocupem. Deus é maior, e vai pôr um ponto final nessa história!, — Então compartilhou conosco rapidamente uma das suas histórias de Batalha
Espiritual. Nós escutamos. Depois, Eduardo continuou falando:
— Então estamos com a nossa situação financeira bastante abalada, eu não consigo arrumar emprego e o salário de Isabela cobre nossas despesas, mas não sobra.
— Diga-se de passagem que ele foi despedido também debaixo de um decreto...
— Quanto a isso não posso ajudar muito — fez a Pastora Alice. — Não teria para quem encaminhar um currículo seu. Mas posso cuidar para que vocês sejam incluídos na lista da cesta básica. Afinal, temos que procurar suprir a necessidade imediata.
— Isso seria bom, não deixa de ser uma ajuda. Ela anotou novamente na agenda.
Fomos conversando sobre assuntos paralelos, nos conhecendo um pouco melhor também. Compartilhamos rapidamente nossos sentimentos de solidão, de temor, de inquietação. Nossas principais necessidades foram expostas. Lá pelas tantas, ainda explicando sobre todos os roubos que vínhamos sofrendo nos últimos meses, Eduardo comentou:
— E você acredita, Pastora? Até mesmo o meu dente quebrou! A impressão que dá é que nossa fonte de sustento está secando, e todos os gastos extras que podem surgir, acabam aparecendo também. Você sabe também que no começo do ano temos que pagar o IPVA, tivemos muita despesa com o casamento, apesar de termos feito tudo de maneira simples... Realmente precisamos de um milagre de Deus!
Eu complementei o assunto:
— Essa história de dentista é fogo. É muito caro hoje em dia, enquanto essa situação perdurar, não podemos custear nada disso. Eu também estou com um dente meu que está meio doendo... mas como a gente vai pensar em ir ao dentista?
— Mas você sabe que talvez para isso tenha jeito. Conheço uma moça da Igreja que é dentista, vou comentar com ela sobre vocês! Quem sabe não dá tudo certo?
Por aquela nós não esperávamos, realmente o comentário sobre os dentes era mais para exemplificar exatamente como estava nossa situação. Nunca imaginamos que ela conhecesse uma dentista! Ficamos realmente bastante satisfeitos!
— Puxa, isso seria ótimo! — falei, agradecida.
Eduardo estava ligeiramente tocado pela atitude sincera que a Pastora estava tendo. Depois, antes de começarmos a orar efetivamente, achei melhor ser sincera. E falei com toda a delicadeza que me foi possível, mas também com bastante transparência:
— Olha... nós queríamos mesmo te agradecer pela sua disposição... quando você entrou aqui hoje, e mais ninguém veio, realmente fiquei meio cabreira. É que nós estamos na Igreja há dois anos, e nunca consegui conversar com você, cada vez que nos cruzamos... bem... a impressão que me dá é que você nunca olha na minha cara.
Pastora Alice pareceu entender.
— É muito bom você estar me falando isso, porque realmente não foi de propósito. É o meu jeito mesmo, às vezes estou distraída, às vezes não enxergo direito... mas não tem nada melhor do que a sinceridade! Você não é a primeira pessoa que me fala isso.
— Você me desculpe, mas achei melhor falar agora... porque nunca entendi a sua posição muito bem.
Então oramos em concordância pelos nossos principais motivos, depois nos despedimos realmente agradecidos. Tínhamos ficado juntos mais ou menos uma hora. Foi o suficiente para que nossa impressão a respeito dela mudasse. A caminho de casa, fomos comentando:
— Puxa... realmente ela foi simpática...
— De fato. Não esperava isso. Parecia preocupada em suprir as nossas necessidades dentro do que está ao seu alcance!
— Ainda bem que fomos sinceros também na questão de nos acertarmos... eu também não ia muito com ela — falou Eduardo.
— Foi melhor. E ela entendeu. Agora tudo pode ser diferente!
No dia seguinte, recebemos um bip da Pastora Alice. Ela nos mandou um versículo Bíblico sobre comunhão entre irmãos, e terminou dizendo que estava orando por nós. Eu e Eduardo ficamos bastante sensibilizados, agradecidos a
Deus por Ele estar levantando mais aquela pessoa.
Eduardo desceu e foi até o orelhão da esquina, como estávamos acostumados a fazer cada vez que a gente recebia um bip e tinha que dar retorno a alguém. Ficamos sabendo que uma das diaconisas tinha tido um problema em casa, bastante sério por sinal, e estava morando na casa de uma das Pastoras da Igreja. Quanto às outras, nunca soubemos o que aconteceu. Elas não vieram falar conosco, em momento algum. Foi como se nunca tivessem marcado nenhum encontro.
— Pelo menos podemos dizer para Grace que tentamos...
De resto, durante a semana a Pastora Alice nos incluiu na lista da cesta básica, mandou avisar que já íamos começar a receber no próximo mês. Além disso, domingo nos comunicou que já tinha falado com a dentista. Mas acho que confundiu alguma coisa, porque falou apenas sobre o problema do dente de Eduardo.
— Você pode ir lá falar com ela, Eduardo! Ela não vai te cobrar nada — disse ela.
— Que bom, Pastora! Ela está sabendo também do dente da Isabela?
— Não sei. Eu só falei sobre você.
Agradecemos, mas ficamos sem entender por que ela não tinha dito nada a meu respeito. Afinal, nem um de nós dois tinha pedido nada. Pelo contrário, tinha sido só um comentário sobre aquele problema. Não questionamos, mas a partir daí ficava chato pedir para a dentista olhar também a minha boca.
— Acho que não fica chato, não... — falou a Pastora Alice. — Você mesmo pode falar, Eduardo!
Fiquei um tantinho chateada.
— Pôxa... como que ela esqueceu desse jeito de falar de mim? Está parecendo Ricardo, que chama só você para orar!
Eduardo deu um muxoxo ressentido.
— Tudo bem. Quando falar com ela pelo telefone, pergunto se você pode ir também.
Na segunda-feira mesmo ele ligou. Marcou um horário, e a moça foi bastante solícita. Mas quando Eduardo falou sobre mim, ela deu a entender que não estava gostando muito. Quando Eduardo comentou sobre a conversa, eu já imaginava aquilo mesmo:
— Tá vendo? Fica parecendo que nós somos dois oportunistas. Você consegue um tratamento de graça, e quer me empurrar para ganhar também. Seria diferente se a Pastora tivesse falado desde o início que nós dois estávamos precisando! Desse jeito fica muito chato, fica parecendo que a gente quer explorar ela. Eu não vou, não...
— Vamos juntos, sim! Não custa nada para ela só olhar sua boca e fazer um orçamento. De repente, nem é tanta coisa, nem fica tão caro. Se ela dividir, quem sabe...
— Você sabe muito bem que não temos um tostão para gastar com dentista. Isso está fora de cogitação! Eu não vou.
— Até lá a gente vê, tá? Vamos juntos, eu converso com ela pessoalmente... quem sabe, né?
— Para que dia você marcou?
— Marquei para sexta-feira!
Na sexta-feira de tarde fomos juntos ao dentista. Eu estava morrendo de vergonha, me sentia como uma mendiga passando a cartola. Ela foi simpática com Eduardo, mas me deixou sozinha na sala de espera.
Quando Eduardo voltou com seu dente consertado, falou para eu entrar que a moça estava me esperando para dar uma olhadinha na minha boca. Eu estava super constrangida!
Entrei. Sentei. Ela olhou.
— Você tem uma cárie em dois dentes inferiores. O Eduardo me pediu para dar uma olhadinha só para ver o que tinha pra fazer...
— Ah, obrigada. Agora vou pensar direitinho quando é que vai dar para fazer, você podia montar um orçamento pra gente?
— Com certeza.
Fui levantando da cadeira porque ela não deu nenhuma continuidade, não disse que ia fazer, nem que não ia fazer. Eu me toquei. Ela me acompanhou de volta à sala de espera, nos despedimos. Fomos embora. Muito frustrados.
— Tá vendo? — falei, toda sentida. — Não sei por que você me fez vir aqui! Podia ter passado sem essa... ela não me tratou com cortesia, realmente só faltou dizer o quanto eu era oportunista.
Eduardo estava triste. Nem sabia o que dizer.
— Pelo menos você consertou seu dente — continuei. — E aquele meu dente que estava sensível não tem cárie, é coisa mesmo da minha hipersensibilidade dentária! E estas cáries... bom... não tem problema ficar cariado um pouco mais de tempo.
— Realmente não entendi a atitude dela, foi tão educada comigo, conversou o tempo todo, fez questão de dizer que qualquer problema posso voltar... depois, com você... não entendo! Não entendo essa posição.
— Deixa pra lá. Nada de novo debaixo do sol! Aliás, eu vi mesmo o quanto ela ficou conversando com você.
— Você notou, é? Pensei que tivesse sido só minha impressão...
— Eu cheiro essas coisas de longe, não entendo o que essas moças pensam! Será que não deu para perceber a aliança no seu dedo, não? Ou será que ela é muito pequenininha, passou despercebida?
— Pois é... várias vezes ela falou que era solteira, e estava procurando o homem ideal, mas ainda não tinha encontrado. Ficou falando das qualidades dela, do que ela gosta, do que ela não gosta... ela também conversou com você?
— Ah! Conversou, sim! Para dizer que você tinha pedido para olhar a minha boca. E depois para dizer que eu tinha duas cáries!
— Puxa......o que será que ela espera com esse tipo de atitude?
Dei de ombros, irritada com todo aquele constrangimento.
A verdade é que naquele mesmo dia quebrou outro dente de Eduardo!! Decididamente aquilo não era uma coisa normal.
— Eu não vou voltar lá para consertar este outro dente... agora fica assim mesmo, é tudo no fundo, nem aparece! Pena que incomoda, mas também logo, logo me acostumo.
Na mesma semana o dente que aquela dentista tinha consertado quebrou de novo. Eduardo foi obrigado a voltar lá. Então, ela colou o pedaço que tinha caído. Mas este novo conserto também não durou, voltou a cair.
— Não volto mais! — exclamou Eduardo, revoltado. — Ela nunca mais falou do seu dente! E fica com umas conversas nada a ver pra cima de mim... vou esquecer disso, pronto!
Mais ou menos dez dias depois do nosso encontro com a Pastora Alice, ela mesma telefonou para Eduardo. Quando cheguei do serviço naquela tarde, Eduardo me contou o ocorrido.
— Você nem vai acreditar no que me disse a Pastora Alice...
Fui colocando minhas coisas no chão da sala. Olhei para Eduardo com ar indagativo.
— Que foi?
— Ela foi direto ao assunto, começou dizendo de cara que nunca tinha sentido tamanha destruição na vida dela como está experimentando nesta última semana. Palavras dela, hein? "Tenho orado e Deus me mostrou que tem um Principado de Destruição por trás de tudo isso... e todos aqueles que se aproximam de vocês, sofrem a influência dele. Eu estou de cama, estou urinando sangue, com cálculo renal... estou com problemas aqui em casa, meu marido está com problemas..."
— Nossa... e aí? Mas ela está bem, está se tratando?
— Sim, quanto a isso ela está se tratando, sim... mas... não sei... depois disso não sei se ela vai querer continuar orando conosco.
— Mas ela disse isso?
— Dizer, ela não disse. Mas... não sei, não.
— Engraçado ela ter falado esse negócio de Principado de Destruição. Eu nem ia comentar nada com você, porque não tenho discernimento espiritual, essas coisas assim certeiras. Mas realmente nestes dias de jejum... não faz nem muito tempo, uns dois ou três dias... estava orando lá no serviço, de manhã, como sempre faço... e me veio isso na cabeça. Que estávamos enfrentando o "Destruidor"!
— Ela disse isso. Sobre a sua certeza de que havia um Principado de Destruição nessa história, disse que Deus havia mostrado tratar-se de um demônio que tinha assolado o antigo povo de Israel... isto é certo!
Foi minha vez de arregalar os olhos.
— Como assim, você sabe que demônio é esse?!
— É isso mesmo, um Principado de Destruição que teve muito a ver com a perseguição do povo de Deus... o nome dele é Abadom...
— Será possível uma coisa dessas? Deus tinha te falado isso?
— Não é preciso ir muito longe para perceber a destruição à nossa volta. Mesmo porque, eu tinha feito aliança com Abadom num daqueles Ritos de Abertura de Portais.
Fiquei muda. Eduardo também. Parecia muito clara a direção de Deus, muito clara a revelação.
Fato é que, depois daquilo, nunca mais a Pastora Alice voltou a se encontrar conosco. Simplesmente desistiu. Não voltou mais a falar sobre encontros, sobre orações, ou sobre continuar a ter aliança conosco. Na verdade, nunca houve aliança alguma. Pouco a pouco, voltou a ter o mesmo comportamento de antes: quer dizer, nem mesmo nos olhava, quanto mais dizer que nos cumprimentava. Bastante desapontados, continuamos nos encontrando com Dona Clara. Ela já sabia de tudo o que tinha acontecido.
Havia um certo temor pairando no ar. A verdade é que algumas pessoas sabiam da história de Eduardo, aquilo de alguma forma tinha vazado. Às vezes, na Igreja, pessoas nos olhavam com olhares assustados quando pensavam que não estávamos vendo.
Mas estava escrito no rosto de alguns deles que tinham pavor só de estar perto de nós dois.
Dona Clara orou conosco, e confirmou uma direção que nós mesmos tínhamos tido, nem me pergunte como. Simplesmente, a gente sabia que tinha que ser assim. Quando Dona Clara falou a mesma coisa, concordamos dizendo que aquela também era nossa impressão.
— Vocês não repreendam este demônio, não fiquem confrontando o Poder dele, entenderam? Se limitem a pedir cobertura para Deus, se limitem a pedir proteção... façam a parte de vocês, continuem com o jejum, peçam a presença dos anjos e do sangue de Cristo sobre vocês. Mas não façam Batalha Espiritual!
Pode parecer uma direção estranha: não mandar embora aquele que estava vindo contra nós! Mas aquilo testificou sobremaneira nos nossos corações. O que Dona Clara estava dizendo não era nenhuma direção nova, antes traduzia o que já estava dentro de nós mesmos. Eu e Eduardo não assumíamos aquela postura triunfalista de ficar batendo no peito, chamando os demônios para briga, para o "Pau". Recitando versículos de que "Deus é maior". Respeitávamos o Poder deles, e naquele momento parecia claro que não tínhamos autoridade espiritual para confrontar Abadom.
Nós ainda não podíamos divisar por que Deus permitia tudo aquilo. Mais tarde, quando entendemos que era necessário atravessar aquele deserto, e aprendermos coisas que só são ensinadas no deserto, aquele demônio foi um instrumento nas mãos de Deus para nos lapidar. Naquele momento, o cerne do aprendizado era outro. Não era guerrear! Não era hora de guerrear!
Assim terminou a nossa tentativa de arrebanhar intercessores. Pelo menos em nossa Igreja.
De tudo aquilo, restou a cesta básica. Que não resolvia nosso problema, porque vinha muito óleo, muito arroz, muito feijão, muito sal e açúcar... a única coisa que a gente realmente aproveitava era o macarrão, a lata de molho, a bolacha cream cracker, as latas de sardinha, de milho...
O mês de abril chegou ao fim, nosso dinheiro de reserva tinha definitivamente acabado. A partir daquele momento, acumularíamos dívida em cima de dívida.
Em contrapartida, o jejum estava quase terminando.
Mais ou menos naqueles dias, num final de semana, fomos a um batismo que aconteceria na casa de Sarah e Jefferson. Ela iria batizar duas pessoas. Já fazia um bom tempo que nós não nos víamos pessoalmente, e eles nos receberam muito bem, com largos sorrisos.
Todos os preparativos estavam prontos, houve um pequeno Culto antes, e depois haveria um almoço para todos. Tinha bastante gente! A casa deles era bem grande e o batismo seria feito ali mesmo, na piscina. Estava um lindo dia de sol!
Quando terminou o Culto, Sarah pediu que nós todos fôssemos indo para a beira da piscina e nos mantivéssemos em espírito de oração. Logo depois começou o batismo. Eu estava parada não muito distante da água, de braços dados com Eduardo. Eu gostava de ver batismos!
Orando pela mulher que estava ali na água, de repente algo me fez desviar a atenção para Eduardo. Ele estava com aquela estranha expressão no rosto. E olhava para cima.
Puxei de leve o braço dele, e cochichei:
— O que foi, Nenê?
Ele nem pareceu me escutar. Adivinhei logo o que deveria estar acontecendo. Vi que algumas lágrimas escorreram pelo seu rosto, então ele olhou para os lados, vagarosamente. Depois tornou olhar para cima... aí olhou para trás! Eu também olhei para trás mesmo sabendo que não iria ver nada. Fiquei quieta e apenas esperei.
Quando ele pareceu voltar a realidade, perguntei mais uma vez:
— O que foi que você viu?
— Eu ainda estou processando... daqui a pouco te conto.
Quando terminou o batismo, nós dois estávamos com o coração bastante sensível. Enquanto todos foram se dispersando, à espera do almoço, o Louvor continuou tocando, vindo do aparelho de som. Aquela bonita tarde continuava em andamento...
Parados ali no jardim, numa sombra, estava ansiosa em que Eduardo me contasse o que tinha acontecido.
— Eu estava ali parado, estava orando pela pessoa dentro d'água, tinha os olhos meio fechados, meio abertos... então parece que vi uma luz mais forte na minha frente! Até pensei comigo mesmo: "Puxa, será que o sol já mudou de posição?". A luz era forte, mas não ofuscava... tentei abrir melhor os olhos e de repente a imagem dele se formou.
— Do anjo ruivo?
— Minha vista foi como que se acostumando até que aquele contorno deixou de ser apenas um contorno... e ele apareceu!
— Garanto como ele estava em cima do muro. Eu via você olhando para cima como se estivesse vendo alguma coisa em cima do muro!
— Não... ele estava ali mesmo, no jardim. Mas é que ele é muito grande!
— Caramba! Deve ser mesmo... pra mim, estava em cima do muro. Eduardo se emocionou um pouco ao lembrar da fisionomia do anjo ruivo.
— Ele estava olhando para nós, pra nós dois, e estava sorrindo! Então percebi que aquela pessoa que estava sendo batizada tinha um anjo ao lado dela... e quando ela saiu da piscina, aquele anjo a acompanhou, e ficou bem perto. Quase que tocava nela. Então me veio um sentimento, uma convicção forte de que Deus estaria trazendo uma restauração específica na vida daquela mulher. Depois disso percebi que algumas pessoas que estavam ali em volta da piscina tinham também anjos perto delas. Eu podia perceber a luminosidade forte que emanava deles! Mas não eram grandes como o anjo ruivo, nem tinham os adornos azuis e dourados nas roupas, nem os braceletes até os cotovelos como ele. Eram apenas um pouco mais altos do que os seres humanos. Mas eu não conseguia vê-los de forma definida, não conseguia divisar o rosto ou as roupagens. Muito diferente da visão do anjo ruivo, que era perfeita, eu podia vê-lo tão bem quanto vejo você! Os braceletes dele reluziam! E ele mesmo é incrivelmente grande, forte... a manga da camisa tinha um tom de azul lindo, diferente, e ele usava como que umas ombreiras azuis também. De um tom azul-celeste, mas quando o dia está começando a anoitecer.
Eu também me emocionei com o relato.
— Que lindo...
— Depois que vi aqueles anjos à volta das pessoas, olhei primeiro para o meu lado. Depois para o outro lado... e nada! E pensei, apenas: "Por que eles têm uma guarda... e nós não temos? Será que não tem ninguém tomando conta da gente?". Olhei novamente para o anjo ruivo e ele me deu um sorriso, como quem diz: "Que pergunta boba!". Então ele apontou para mim e para você, apontou com dois dedos, o indicador e o médio, na nossa direção. Depois, apenas com o indicador, apontou acima do nosso ombro, para trás de nós...
— Eu vi você olhando! Vi você olhar para os lados, depois para trás! Até olhei também!
— Quando olhei para trás, pude contar oito na fileira da frente... mas era tão — somente a fileira da frente, atrás deles tinha um verdadeiro pelotão. Enchiam o quintal da Sarah e ultrapassavam os limites dele... a impressão que eu tinha é que aquele grupo de anjos chegava até lá fora, na rua. Tinha muitos, muitos! Talvez uns cinqüenta!
— Nossa! Sério? Então Deus aumentou a guarda, antes eram só doze com cada um de nós!
— A luta está aumentando... todos eles eram como o anjo ruivo, enormes, usavam os braceletes, tinham aquelas ombreiras... mas estavam com espadas empunhadas na mão. Eu fiquei completamente fascinado por aquelas espadas! Estavam desembainhadas, com a ponta virada para baixo, apoiadas no chão, e eles as seguravam com as duas mãos, a mão direita no cabo, e a outra mão sobreposta. O brilho delas era indescritível! Estavam cravejadas de pedras de cores azuladas, prateadas, douradas! E a lâmina da espada era... era pura luz... pura luz! Não trazia nenhuma sensação de que fosse de metal. Mas também não era de fogo... a melhor palavra é essa mesmo, luz! Espadas de luz!
— Puxa... que coisa linda! E você não viu o rosto de nenhum daqueles que estavam na frente?
— Não. Me chamou muito a atenção aquelas espadas... não conseguia ver mais nada! Só consegui vislumbrar toda aquela luminosidade que emanava deles, daquele pelotão... que ia até a rua!
Tive que rir.
— Eduardo! E então? Depois você olhou pra frente de novo.
— Aqueles oito que pude ver melhor tinham o rosto voltado na nossa direção... — novamente a voz de Eduardo ficou embargada, como sempre acontecia. Ele ainda não adiantava o relato. — Estavam muito compenetrados. Ficou claríssimo que estavam ali montando guarda, tomando conta da gente!... Daí voltei a olhar para o anjo ruivo, com o coração extasiado e grato ao mesmo tempo por ele ter revelado a nossa guarda. Então ele me fez um sinal, ergueu a mão e fez com o polegar e o indicador como se fossem os dois ponteiros de um relógio... entendi muito fortemente... as impressões que vêm do espírito nessas horas são muito marcantes! E eu entendi que o tempo estava perto... estava chegando...
— Tempo de quê? — indaguei de pronto.
Eduardo falou de maneira simples e convicta ao mesmo tempo.
— Do nosso Ministério. Do nosso Ministério começar! O Ministério de verdade. Compreendi que aquele era um sinal para nossa tranqüilidade. Como se me dissesse: "Fica tranqüilo. Deus está guardando vocês. Nós estamos com vocês!"
No 37° dia do jejum, uma segunda-feira, aconteceu o pior.
Na sexta-feira anterior havia um recado para mim na casa de minha mãe. Eu tinha deixado o telefone dela como contato no meu serviço. De tardezinha minha mãe nos passou um bip pedindo que a gente ligasse para ela.
— Como tenho que ir à padaria, já vou descer já e aproveito para dar o retorno — falou Eduardo. — Você quer que eu traga broinhas para o café?
— Pode ser, Nenê! — eu estava saindo do banho e gritei de dentro do quarto. Ouvi a voz de Eduardo já na porta:
— Tá bom, estou indo, "Mô"!
Ele levou mais ou menos uma meia hora para voltar. Vinha com as broinhas, e também com um recado bastante estranho do meu trabalho.
— É um recado da sua chefe. Pediram para você comparecer na segunda-feira às oito horas da manhã lá no prédio central deles...
— Ué? — estranhei. — Mas por quê?
— Disseram que é uma reunião.
Fiquei com a pulga atrás da orelha. Alguma coisa não me caiu bem naquela informação.
— Mas que reunião? Ninguém falou nada, ninguém comentou nada no serviço... que será?
Não arriscamos cogitar nada. A melhor coisa a fazer era esperar para ver. Durante o final de semana ainda oramos em relação àquilo, já entregando a Deus aquela reunião. Algo nos dizia que talvez não fosse uma boa notícia.
— Essa mulher não é de confiança... todo mundo tem o pé atrás com ela... Na segunda-feira, levantei bem mais cedo porque o prédio central ficava lá perto da ponte da Cidade Jardim, e tinha muito trânsito de manhã. Não queria me atrasar.
Cheguei às oito horas em ponto. Me fizeram esperar um pouco. Mas logo a dita cuja apareceu e, educadamente, convidou-me a entrar na sala dela. A conversa foi bem simples, aliás, curta e grossa. Eu estava sendo sumariamente demitida por um motivo fútil.
— Nós recebemos algumas reclamações sobre você. Em especial nos chamou a atenção esta aqui.
Ela estendeu o prontuário para mim. Eu sabia do que se tratava.
— Acho que você também deve estar lembrada desta paciente, você estava lá naquele dia, lembra? Eu até comentei com você sobre ela.
— Pois é, eu me lembro.
— Eu expliquei o que aconteceu naquele dia. E você concordou comigo, disse que estava certa.
— Mas depois tivemos problemas no departamento, porque ela foi embora do mesmo jeito.
Não tinha nem pé nem cabeça aquela história. Tratava-se de uma funcionária que apareceu no Ambulatório com um furúnculo na parte posterior da coxa. Eu examinei. Estava um pouco edemaciado, com uma leve hiperemia, nada de excepcional. Não tinha formado abscesso. Ela queria porque queria ser dispensada
Eu expliquei que se tivesse um abscesso que necessitasse ser drenado, certamente seria o caso dela ficar em casa uns dois ou três dias depois da drenagem' Mas daquele jeito não justificava a dispensa. Realmente não achei nada terrível, eu conhecia muito bem um abscesso infectado, tinha drenado montanhas deles na Faculdade. Até para os maiores a gente costumava dar cinco a sete dias de dispensa. Aquilo na perna dela era pouco mais do que uma espinha!
Pelo que expliquei calmamente sobre a medicação e orientei o retorno caso piorasse. Se piorasse, ela teria que voltar para a gente drenar. Mas a mulher virou um bicho!
Por uma casualidade minha chefe estava lá naquele dia, de forma que eu tinha comentado com ela em primeira mão. A reação dela tinha sido:
— Você fez bem. A gente tem que ter pulso firme com este pessoal.
Como explicar agora que eu estava sendo chamada à ordem por causa justo daquilo??
A bem da verdade, nem consegui entender direito por que ela estava me demitindo. Reclamou que eu não estava anotando as consultas direito no prontuário. Uma coisa totalmente nada a ver, ser sucinta não significa deixar de fazer. Eu tinha consciência de fazer meu trabalho direito. Mas logo percebi que não haveria argumentação possível com ela. A decisão já estava tomada!
Então fui até meio irônica:
— Gozado que o elogio que a Diretora do Departamento Financeiro me fez está passando despercebido agora, né? Vocês querem ver apenas o que querem ver, e não os fatos.
Um dia, quinze minutos antes do meio-dia, só eu estava no Ambulatório, claro! Todos os outros já tiniram saído antes da hora. Então chegou aquela mulher, uma funcionária de alto escalão da Empresa.
— Eu não tinha vindo antes porque imaginei que fosse passar... mas não passou, então corri aqui agora, quase no horário de almoço, porque foi a hora que consegui sair.
Ela foi me contando uma história digestiva com sintomas um pouco nebulosos, que tinha começado naquela mesma manhã. Umas dores abdominais estranhas que começaram na região umbilical, um episódio de vômito, sem diarréia, com febre. Examinei o abdome e pensei logo em apendicite. O que acontece com os diagnósticos de apendicite é que são difíceis de serem feitos clinicamente.
Pelo sim, pelo não, expliquei no que estava pensando e achei melhor encaminhá-la para o seu Hospital de referência. Que era nada mais, nada menos do que o Einstein. Nem passava pela cabeça da mulher estar com apendicite.
—Você tem certeza, doutora? A senhora acha mesmo que eu tenho que ir para o Hospital? Se a senhora disser que sim, eu vou... mas se dependesse de mim, ficava aqui mesmo no serviço.
— Eu acho melhor você ir — e expliquei detalhadamente.
Não porque ela fosse Diretora, eu nem sabia qual era o seu cargo, mas porque fiquei com dó. Ela estava tão preocupada com o serviço que não queria sair de jeito nenhum, bem diferente daqueles outros pacientes folgados. Fiz um encaminhamento detalhado e mandei-a direto para o Pronto-socorro Cirúrgico.
Depois, até esqueci.
Umas duas semanas mais tarde a mulher veio até o Ambulatório somente para me agradecer. Contou que tinha sido operada naquele mesmo dia e o Médico do Einstein tinha me elogiado pelo diagnóstico.
— O diagnóstico de apendicite é difícil de ser feito... a Médica da sua Empresa está de parabéns!
Ela me contou que ia fazer um elogio formal à chefia do Ambulatório.
Não bastasse isso, minha própria chefe havia me agradecido pessoalmente pela colaboração durante a auditoria dos exames periódicos. Quem é que havia feito todos eles? A doutora Isabela, a otária que agora estava sendo mandada embora por puro capricho.
Levantei-me e não dei muita trela para os comentários sarcásticos que ela me fez antes de apertar minha mão. Que vontade de esmurrar aquela cara falsa dela!
— Numa próxima ocasião você procure fazer melhor o seu trabalho.
— Eu já faço bem meu trabalho. Pena que você não é capaz de ver isso!
Saí de lá completamente perdida. Meu emprego era nosso último recurso.
"Bem que Ricardo comentou que tinha visto um ataque contra o meu trabalho... mas, Senhor.... realmente não dá para entender! Faltam apenas três dias para acabar esse jejum e Você me apronta uma dessa?"
Quando cheguei, meu carro tinha sido multado. Eu não tinha visto que justamente ali era zona azul. Arranquei a multa do limpador de pára-brisas furiosa e inconformada. Entrei no carro olhando para o vazio, tive até que pensar um pouco para lembrar o caminho de casa.
Naquela manhã Eduardo não tinha nenhuma entrevista marcada, teria apenas no dia seguinte. Só imaginava a cara dele quando eu entrasse porta adentro com aquela adorável notícia...
Fui para casa devagar, orando, perguntando para Deus o que Ele queria com tudo aquilo. Se já estava difícil com meu salário, imagine agora sem ele! Justamente agora quando nossa reserva no banco tinha minguado, o resquício da rescisão de Eduardo. Isso queria dizer que nós somente contávamos com o saldo de salário que eu iria receber...
É dispensável dizer o quanto aquilo nos entristeceu e abalou. Mas não ficamos nos lamentando, nem chorando. Tinha que estar no controle de Deus, afinal... o jejum estava acabando. Nós tínhamos incessantemente buscado Deus naquele período, clamado, suplicado por direção, pedido por consagração das nossas vidas ao Senhor. Além disso, orar por proteção era algo diário.
Se assim acontecia, era porque o Senhor estava permitindo. Eu tinha procurado me alinhar em todas as coisas no emprego. Tinha consciência de ter feito o melhor possível, não tinha entregado nas mãos do inimigo aquilo que era meu, como fiz das outras vezes. Eu tinha consciência disso, tinha certeza absoluta. Mais tarde eu perceberia que Deus estava esperando apenas aquilo de mim: alinhamento. No momento em que eu me alinhei, Ele me tirou de lá. Porque já tinha falado que eu não estava trabalhando para sustentar a casa, mas ali eu ia aprender a obedecer.
Mas naquela segunda-feira, 37° dia de jejum... realmente não pensei em nada disso. Eduardo também não. Muito menos minha mãe, que ficou muito triste e preocupada com a nossa situação que se apertava.
— No jornal de domingo sai bastante anúncio de emprego. — falei. — Sempre arrumei emprego em uma semana, dez dias, nunca foi diferente. Não tenho outra alternativa senão procurar outro, não é?
— Você devia descansar um pouco — fez Eduardo, inconsolável.
— Não posso fazer isso, você sabe... tenho que partir imediatamente pra outra!
Que o diabo estava por trás disso, era certo. Eles tinham cantado a bola muitas vezes! Nós entendíamos que havia nessa situação uma permissão do Senhor. Ainda estava longe o dia de compreendermos por que Deus dava essa permissão... mas uma certeza nós tínhamos, que o diabo vinha contra nós, sim... mas debaixo desta permissão de Deus.
Certamente que aquele momento foi muito bem escolhido, oh, como foi. Extremamente bem planejado. Nossos inimigos estavam longe de serem idiotas, davam a cartada no momento exato...! Eles haviam dito sobre o deserto financeiro que iríamos enfrentar. Aquele era só mais um passo nessa direção. Nós havíamos recebido um ou dois bips naquele sentido, nas entrelinhas ficava claro que a situação iria piorar e nós não receberíamos ajuda de ninguém. Eram mensagens curtas, de uma ou duas frases. Mas serviam para colocar um enorme peso nas nossas costas.
E agora, estava acontecendo...
Logo eu viria a perceber que não seria fácil arrumar outro emprego.
Conforme fui percebendo nas entrevistas, segundo me informaram, havia pouco mais de dois meses tinha sido aprovado um certo ISO dentro do Sistema de Saúde. Isso queria dizer que eles não estavam mais aceitando Médicos sem Residência comprovada. O que até então nunca tinha sido problema, passou a ser.
Ninguém estava mais levando em conta a Faculdade que eu tinha feito, muito menos que aquilo era suficiente para exercer aquele cargo simples de Ambulatório de Clínica Geral. Os raros empregos que apareciam eram todos irregulares, não registravam, eram nos cafundós do Judas... uma coisa impensável!
Eu não fiz corpo mole. Toda semana procurava no jornal, telefonava para os Convênios. E neca!
A partir daí, sem renda de espécie alguma, começamos a nos virar de uma maneira desesperada. Economizávamos ao máximo, mas a gente precisava comer, precisava pôr gasolina no carro, precisava continuar pagando as contas e o aluguel... então, como foi que nos viramos?
Eu tinha dois cartões de crédito. Começamos a fazer supermercado com cartão de crédito. E pôr gasolina em postos que cobravam mais caro, mas em contrapartida também aceitavam cartão de crédito. O saldo de salário que recebi deu para pagar mais um mês de aluguel.
Continuávamos suplicando a Deus que abrisse uma porta de emprego para Eduardo, pois se ele fosse empregado daria para segurar a barra por mais algum tempo. Como nada acontecesse, logo Eduardo começou a sacar do Cred-Cash pequenas quantias, que usávamos para despesas urgentes.
Quando chegou a primeira fatura dos cartões de crédito, conseguimos segurar a avalancha pagando apenas a quantia mínima. A partir daí, era repetir a operação. Além disso, começamos a detonar o cheque especial, porque não tinha outra solução.
Nesse ínterim, acabamos comentando com Sarah e Jefferson sobre nossa situação. Nas reuniões de segunda-feira pedíamos oração a eles, compartilhávamos um pouquinho de toda aquela tempestade.
— Podem ter certeza de que isso está sendo treinamento para vocês! — costumava dizer Sarah, nos incentivando. — Quando o Senhor der livramento, vocês vão ver o quanto aprenderam.
Ela falava com convicção e nós nos sentimos animados. No fundo, a gente sabia que ela tinha razão. A melhor coisa a fazer era continuar orando, continuar indo ao Culto, continuar freqüentando seminário, continuar freqüentando o curso da Grace... enfim, continuar levando nossa vida "normalmente".
Claro que uma vida normal nós não estávamos tendo. Os demais tomavam consciência dos nossos problemas e intercediam por nós uma vez por semana. Mas todo o resto do tempo éramos nós que vivíamos em função daqueles problemas. Nossa vida era essa: procurar emprego, economizar, não ter um sono tranqüilo. E, principalmente, não nos desesperarmos com isso. Mas nos mantemos fiéis em tudo ao Senhor.
De fato não ficamos revoltados com Deus. Isso em momento algum aconteceu. A gente continuava tirando força dos momentos de adoração nos Cultos de quarta e domingo. Geralmente saíamos de lá renovados, revigorados pelo Louvor e pela Palavra.
Creio também que o jejum nos havia fortalecido para aquele período. Embora a gente não estivesse compreendendo, tínhamos plena convicção de que era necessário continuar caminhando. Haveria de chegar o momento em que Deus traria realmente o livramento! Pelo menos, tínhamos que continuar crendo nisso...
Eduardo havia dito que talvez fosse necessário a gente ler o livro de Jó. Mas eu não quis fazer isso. Ficava apavorada só de pensar. Ele leu, mas eu não consegui. A gente ia passar por um período difícil, e eu não queria antecipar nada lendo a Bíblia. Preferia ler outros textos, meditar em outras coisas.
Outra coisa que não quis ler foi o livro de Rebecca Brown. Um dia, no curso da Grace, folheamos rapidamente um dos livros dela. O pouco que li me fez ter certeza que não queria saber de mais nada. Era identificação demais naquele momento. Eu não suportaria!
Preferia não ter que imaginar o que viria pela frente. Preferia esperar para ver o que ia acontecer, e não ficar sonhando de antemão com possíveis tragédias...
Sarah e Jefferson tinham uma grande convicção de que Deus estava nos Preparando para um grande Ministério. Então, resolveram dar uma oportunidade de sermos treinados neste sentido.
— Já que vocês dois não estão trabalhando, querem nos acompanhar em uma ou outra viagem? Vocês podem estar conosco nos trabalhos Missionários que fazemos, nas Igrejas que visitamos... a gente sairia na sexta-feira e voltaríamos no domingo, isso não vai atrapalhar a semana de vocês, nem a busca de emprego — sugeriu Sarah certo dia, pouco depois de encerrarmos o jejum.
— Puxa, seria uma coisa boa...
Ela explicou um pouco melhor que tipo de trabalho eles desenvolviam. Realmente seria interessante poder acompanhá-los, poder aprender um pouco mais com eles. Mas, acima de tudo, nos alegramos porque, de certa forma, era a primeira direção que vinha até nós depois dos 40 dias.
Neste dia ela falou ainda um pouco mais:
— Nós estamos praticamente de partida do Brasil. Estamos indo para o exterior, para os Estados Unidos. Eu gostaria muito de sair daqui com uma equipe. Orem a respeito, mas pensamos em vocês e num outro casal amigo nosso.
Quanto a isso nada dissemos na hora, apenas achamos uma sugestão curiosa e interessante. Ela falou bastante naquela noite sobre isso, contou muita coisa sobre os Estados Unidos, muita coisa sobre seu próprio Ministério. Saímos de lá tarde, quase de madrugada.
Fizemos muitas perguntas, escutamos muitas histórias. Ela nos contou como tinha sido seu chamado ministerial, algumas experiências que tinha vivido. A gente gostava de conversar com ela.
Saímos de lá naquela noite dispostos a acompanhá-los na viagem, e também dispostos a orar a respeito dos Estados Unidos. Se por um lado era uma proposta tentadora, por outro nós jamais daríamos qualquer passo sem ter certeza de ser aquela a direção de Deus.
Mas ficamos pensando... a gente tinha orado tanto por aquilo! Por direção...
— Se eu ainda estivesse empregada, não poderíamos viajar com eles — comentei enquanto dirigia o Palio a caminho de casa. — Não teria jeito de trabalhar a semana inteira e ainda viajar a trabalho no final de semana. Do jeito que estou cansada, não ia agüentar este repuxo. Mas, agora que perdi o emprego...
Fomos nos deitar naquela noite bem mais aliviados, mais satisfeitos. Pelo menos, alguma coisa estava acontecendo na nossa vida.
Eu não estava podendo escrever o livro como gostaria até aquele momento. A partir daquela data, logo depois da minha demissão, embora continuasse procurando emprego, agora tinha todo o tempo da semana livre. Sentei no computador e comecei a escrever desabaladamente. Tinha que terminar de digitar a parte que estava escrita à mão, e depois, era preciso escrever toda a terceira parte do livro. O que era bastante coisa!
Nossa semana era assim: Eduardo passava quase o dia todo na rua procurando trabalho incansavelmente. Eu fazia das tripas coração para suportar o barulho do meu vizinho e ainda assim me concentrar na escrita do livro.
Não raro eu passava oito, às vezes dez... às vezes até doze horas por dia no computador. Começava mais ou menos a uma hora da tarde, depois de comer alguma coisa. Trabalhava até de tardezinha, quando Eduardo chegava. Então a gente tomava um café enquanto ele me contava as novidades, depois ele ia tomar banho, descansar. Então eu continuava trabalhando. Geralmente era Eduardo quem fazia um arroz com carne moída mais tarde. Nós tínhamos ganhado o microondas e aprendemos a fazer um arroz bem gostoso nele. Depois de várias tentativas, aprendemos também a temperar a carne moída. Outras vezes, a gente fazia macarrão. Outras vezes, era só sanduíche mesmo. Outras vezes, sopa pronta. Outras vezes, eu fazia sopa de verdade. Sopa de legumes, ficava bem boa! Como não tínhamos forno comum, não dava para fazer muita coisa. Mas a gente ia se virando.
Nosso arroz, em especial, era um espetáculo! Aprendemos a fazer um tempero todo especial, misturando com milho, ervilha, azeitona, queijo.
Depois da janta quase sempre nós tínhamos algum compromisso com a Igreja. Na volta, Eduardo ia direto para a cama porque levantava cedo. E eu voltava para o computador. Aquele era o horário que mais rendia para mim, eu sentia aquele silêncio caindo ao meu redor cada vez mais, à medida que entrava a madrugada. Finalmente não havia mais barulho de nenhum vizinho, e a avenida ficava praticamente silenciosa.
Deus me deu uma força muito especial nesse período.
Eduardo costumava brincar comigo:
— A Gatinha é uma máquina de trabalho!
— Eu me esforçava assim na Faculdade, nos plantões, nos estudos, sempre que era preciso... não iria me esforçar agora para escrever esse livro? Já está atrasado... o anjo ruivo tinha dito que estaria publicado até o final do ano passado. Já estamos em maio deste ano, tem que acabar o quanto antes.
Realmente eu sentia aquele senso de urgência dentro de mim. Era tão forte que eu não fazia outra coisa a não ser escrever, escrever e escrever. No tempo que me sobrava, eu e Eduardo gravávamos as fitas que me permitiriam romancear a história.
O tempo passava voando à noite. Durante a parte da tarde às vezes eu tinha sono e me sentia letárgica. Às vezes era preciso me obrigar a continuar trabalhando, e o trabalho não rendia tanto. Nunca funcionei muito bem na parte da tarde. No entanto, de noite uma força diferente me invadia. A inspiração também parecia ser diferente. Eu não via o tempo passar, cada vez que olhava para o relógio na minha frente os ponteiros tinham rodado bastante sem que me desse conta.
Fazia uma pausa de quando em quando, ia até a cozinha e punha uma xicarazinha de água no microondas durante um minuto. Aquilo era suficiente para fazer um Nescafé bem gostoso. Eu levava meu café para o computador, e tomava com uma ou duas bolachas, às vezes um bombom. Aquilo tinha um gosto indescritível, me trazia conforto naquelas noites longas de trabalho árduo.
Vez por outra levantava para esticar as costas durante dois ou três minutos, e olhava pela janela do apartamento... não tinha ninguém na rua, nenhum carro... eu ficava pensando naquela estranha história que nós dois estávamos vivendo. Ficava introspectiva por alguns instantes, pensando por que Deus tinha me escolhido... por que eu estava ali, naquele quarto, escrevendo aquela história.
Mas eu não perdia tempo, nunca parava mais do que cinco minutos. Quando meus olhos começavam a arder e pesar de cansaço, era hora de salvar o trabalho do dia em disquete. Aquilo era muito importante!
Eu trabalhava normalmente até três ou quatro da manhã. Às vezes até mais tarde. Uma ou outra vez fui deitar quando o dia estava clareando. Entrava de mansinho no quarto para não incomodar Eduardo. De manhãzinha, ele saía de mansinho do quarto para não me incomodar.
Se precisasse sair, ele saía. Se não, me ajudava com o serviço da casa porque sabia o quanto eu estava atarefada com o livro. Quanto a mim, dormia normalmente até meio-dia. Então começava tudo de novo. Com certeza não era uma vida de casados normal. Era tudo, menos normal.
Outro aspecto desta falta de normalidade era que, com quase três meses de casada eu ainda não conseguia olhar para aquele apartamento e ver nele um lar. Algumas vezes chorava por causa disso. Não era apenas pelo fato de ter saído da casa da minha mãe, ter deixado aquela segurança. Era mais por causa da extrema inquietação causada pela vida que levávamos. Para dizer a verdade, nós nem conseguíamos reconhecer a nossa vida! Nada mais parecia estar no lugar, não havia nenhum ponto de apoio sólido.
Claro, a presença de Eduardo era para mim um ponto de apoio. Mas, se parasse para contemplar muito todo o resto... acabava ficando um pouco deprimida. Então, às vezes me batia uma saudade grande da casa da minha mãe. Só de estar ali, de ver o Gorbie, a Harpa, a Viola, a Marina, minha mãe... tudo aquilo parecia ter um efeito analgésico na minha alma. Sim, de fato esta é a melhor palavra... analgésico! Por alguns momentos parecia haver terra firme sob meus pés outra vez, por alguns momentos parecia que naquela casa eu estaria intocada.
Por outro lado, no apartamento... tinha a impressão de que qualquer coisa podia acontecer. Tudo podia desmoronar a qualquer momento!
Claro que eu não acreditava que tudo fosse de fato desmoronar, tinha que acreditar que Deus iria nos valer. Mas minhas emoções se ressentiam, sem dúvida.
Por isso, às vezes me dava um faniquito à noite, uma sensação de inquietação, de angústia... Eduardo já conhecia essa reação. Então perguntava:
— Você quer dar um pulo na casa da sua mãe?
— Vamos, então? Queria ver a Viola... estou com saudade dela.
Aí a gente ia, aparecia lá de surpresa. Imediatamente me sentia melhor, ia para a cozinha tomar lanche, conversar com minha mãe. Uma vez, de madrugada senti uma vontade louca de comer pão-de-ló. Não tinha forno em casa, então fomos para a casa da minha mãe. Fizemos o bolo, comemos, batemos papo. Outra vez demos um pulo lá só para fazer macarrão!
Daí eu voltava para o apartamento me sentindo um pouco mais centralizada nas minhas emoções.
Mas claro que não era sempre que isso acontecia. Era de vez em quando, quando acumulava muita tensão, quando eu estava muito cansada, quando tinha falado demais sobre os assuntos do livro. Não tinha outro jeito de adiantar o trabalho a não ser trabalhando muito... eu ficava mergulhada naquilo noite e dia. E se por um lado nosso dia-a-dia não ajudava muito, remexer o passado de Eduardo ajudava menos ainda.
O fato é que tinha que "respirar" Satanismo. Dia após dia, semana após semana. Mês após mês.
Fizemos a primeira viagem com Sarah e Jefferson.
Eles passaram no nosso apartamento na sexta-feira de manhã, conforme combinado. Eduardo estava particularmente animado, cheio de entusiasmo com a perspectiva de estarmos juntos. Eu gostava muito de Sarah e Jefferson, mas estava desgastada pelo trabalho excessivo com o livro. Talvez já tenha dito isso mais de uma vez, mas eu me sentia extremamente cansada. No entanto, compreendemos que aquela era uma direção de Deus. Pelo menos assim nos pareceu a princípio.
Então, embora me sentisse pressionada para terminar a escrita, sabia ser importante participar da viagem.
Quando o interfone tocou, nós já estávamos prontos e com as coisas à mão. Descemos com Sarah, que tinha subido para usar o banheiro, e encontramos Jefferson parado com o carro na calçada. Assim como tínhamos feito com Sarah, abraçamos Jefferson entre sorrisos. O porteiro do nosso prédio ficou olhando, certamente estranhando aquela amizade com uma diferença de idade tão grande entre nós. Jefferson já tinha o cabelo quase todo branco.
Ele acomodou nossas mochilas no carro e todos nós entramos para dar início àquela primeira aventura Ministerial. Dia-a-dia nós dois aprendíamos a gostar mais daquele casal. Já fazia mais de um ano que vínhamos mantendo um relacionamento que, agora, tinha tudo para estreitar. Nossa amizade e admiração eram sinceras, gostávamos deles pela pessoa deles. A reciprocidade da sua amizade parecia ser também sincera.
Fomos conversando de tudo um pouco, entre risadas, entre brincadeiras. Logo pegamos a estrada. O aparelho de som do carro tocava Louvor baixinho e não atrapalhava o diálogo.
— Então, estão animados? — perguntou Sarah lá pelas tantas. Nós confirmamos.
— Cremos que isso está sendo preparado por Deus. Agradecemos muito a vocês pela oportunidade que estão nos dando.
— Nós não fazemos esse tipo de coisa com qualquer um, queremos que isso fique claro desde já. Mas vemos em vocês muito potencial, reconhecemos que Deus está preparando vocês dois para um grande Ministério. É muito difícil achar líderes que estejam dispostos a dar oportunidade àqueles que estão começando... nós queremos fazer isto por vocês! Reconhecemos o seu coração sincero em agradar a Deus, reconhecemos uma busca genuína.
Não era distante a cidade aonde íamos. Paramos no caminho para tomar um café e estava sendo tudo muito agradável. Não parecia esgotar o assunto nem a conversa. Quando retomamos a viagem, Sarah e Jefferson começaram a contar um pouco da história da Igreja que estávamos indo visitar.
— Tudo começou com este casal de Pastores que nós discipulamos. Já estamos treinando esta Igreja faz tempo. Eles têm sido muito obedientes a Deus, são pessoas que têm muito dinheiro, mas muito dinheiro mesmo, e é fácil a gente se desviar da Vontade de Deus quando é assim. Mas é gente muito boa, vocês vão gostar deles, do Adriano e da Noemi.
Ela foi contando como o Pastor Adriano tinha se convertido, como foi o seu processo de libertação, como era a Igreja deles.
— Eles literalmente jogaram fora obras de arte caríssimas! Entenderam que precisavam agradar a Deus.
Ele e a esposa, Noemi, eram os principais Pastores, juntamente com o filho Amauri e a sua recém conquistada esposa, Luciana.
— Desta vez estamos indo especialmente para ungir Pastora a nora deles, a Luciana. Ela queria ser ungida por mim de qualquer jeito, então esperaram até que a gente pudesse ir. Essa Igreja é como se fosse uma filha nossa! — falou Sarah.
Durante um bom tempo eles ficaram contando sobre a unção de todos eles, especialmente do Pastor Amauri.
— Ele já manifestou a unção de Evangelista, começou assim o seu Ministério. Depois manifestou a unção Profética. Mas agora, nós o consideramos um Apóstolo. — Jefferson continuou.
— A Noemi e a Luciana têm chamado Pastoral realmente. Mas o Adriano, embora seja Pastor, tem mais uma unção de Mestre!
Eu ouvia tudo aquilo e me sentia extremamente pequena. Quem era eu diante de tudo aquilo? Por uns instantes, já não sabia o que estava indo fazer lá. Eu era somente a Isabela. Eu não tinha a menor idéia de qual fosse a minha unção. De repente, não tinha a menor idéia se aquele era o lugar certo para mim... será mesmo que eu tinha que estar naquela viagem??
— Nós falamos de vocês para eles. Certamente vão se tornar seus intercessores, eles são guerreiros de verdade, são guerreirões! Podem ter certeza que eles não vão ficar intimidados com nada. O Pastor Amauri e a Luciana têm praticamente a idade de vocês, certamente vão fazer amizade... é também por isso que estou com tanta expectativa neste nosso encontro!
Eduardo falava várias vezes a mesma coisa, eu sabia o quanto ele estava ansioso em conhecer aquelas pessoas. Talvez Deus realmente estivesse nos trazendo àquele lugar para conhecermos gente que seria capaz de estar ao nosso lado, que seria capaz de ter uma aliança verdadeira conosco. Seria muito legal a gente poder contar depois para Dona Clara e Grace!
Depois mudamos novamente de assunto, Sarah foi explicando alguns dos tópicos que costumava ensinar nos seus seminários. Continuamos escutando, fazendo perguntas, procurando aprender com a experiência dela. Quando a gente não entendia alguma coisa — Sarah tinha algumas idéias diferentes em relação a alguns pontos doutrinários — procurávamos ir mais a fundo e esclarecer nossas dúvidas.
Quando assustamos, já estávamos entrando em uma chácara. A alameda de terra dava lugar a uma estrada de pedra, daqueles tijolinhos de pedra, que ia terminar numa enorme e bonita garagem de pedra. Sarah havia comentado sobre a casa deles, tinha dito que era um verdadeiro castelo, construído sob medida no exato estilo que o casal gostava.
Apenas os dois moravam naquela chácara agora. O Pastor Amauri e sua esposa Luciana moravam na cidade próxima, na casa deles, e somente viriam mais tarde, para o jantar.
Fomos apeando do carro, e enquanto Jefferson abria o porta-malas para tirar nossa bagagem, a Pastora Noemi apareceu.
— Olá, amada! — ela abraçou imediatamente a Sarah. — Estava esperando vocês até mais cedo!
Ela também abraçou Jefferson, enquanto o Pastor Adriano aparecia também. Esperamos que eles terminassem os cumprimentos, os sorrisos e os abraços, para então sermos devidamente apresentados.
— Este é que é o Eduardo, aquele rapaz de quem falei. E esta é a esposa dele, a Isabela.
— Sejam bem-vindos! Espero que vocês gostem da estadia.
Fomos entrando na casa. Daquele ângulo a gente não podia ver o resto da propriedade, que ficava para o outro lado. Mas dava para sentir o silêncio daquele lugar. Eu estava tão cheia da barulheira do vizinho que intimamente agradeci a Deus por ele me proporcionar dois dias de sossego. Quem sabe ali conseguia dormir melhor.
A Pastora Noemi nos levou até nossos quartos, Sarah e Jefferson costumavam ficar sempre no mesmo, um quarto no fundo do corredor. A casa era enorme, cheia de salas e de passagens. O quarto que nos coube ficava no início do corredor e não tinha cama de casal.
— Espero que vocês não se importem, não tínhamos outra cama de casal para emprestar a vocês.
— Imagine, não se preocupe com isso, está ótimo!
Mais tarde conhecemos melhor o restante da casa e da chácara. Era um lugar realmente muito bonito, gostoso, com uma área enorme ao redor. Havia um lago com patos, que o Pastor Adriano mesmo tinha mandado construir, com um bosque ao redor, uma trilha para caminhar dentro do bosque. Caminhamos um pouco, conhecemos tudo, elogiamos tudo.
Mais tarde, depois do jantar, conhecemos o Pastor Amauri e sua esposa Luciana, que seria ungida Pastora no dia seguinte.
Fomos dormir tarde naquela noite. Felizmente, de fato a chácara era silenciosa.
Sarah havia pedido a Eduardo que desse um pequeno testemunho na Igreja, para os jovens. Nós dois não questionávamos as diretrizes dela porque tínhamos muito respeito pelos dois. Ninguém parou pra pensar se aquilo era realmente a coisa certa a fazer.
Nós estávamos debaixo de um ataque violento e não havia cobertura de oração. Eu já tinha aprendido que aquilo era uma coisa fundamental! Sinceramente eu não me sentia à vontade com aquela situação. No entanto, não seria eu a questionar coisa alguma.
No dia seguinte, assim aconteceu. Eu orei em línguas durante todo o tempo em que Eduardo falou. Sarah tinha intenção de abrir o período após o testemunho para o pessoal fazer perguntas. Mas depois que Eduardo entregou o microfone para Sarah, no final, e ela orou, e Jefferson também orou, e o grupo de Louvor voltou a tocar (com muita unção, por sinal), o clima mudou bastante ali na Igreja.
Não seria inteligente interromper aquele mover do Espírito Santo para fazer perguntas. Então aquela idéia foi deixada de lado, e continuamos durante um bom tempo em adoração e oração.
Notei que aquela era uma Igreja aparentemente bastante avivada, as pessoas se movimentavam bastante, batiam muitas palmas, erguiam as mãos, choravam, riam, se emocionavam...
Eduardo tinha mais facilidade para se entregar a este mover, talvez porque já tivesse contemplado várias vezes o sobrenatural de Deus, tanto nas visões angelicais, como nas experiências com discernimento espiritual. Mas eu estava entrando num período um pouco estranho da minha vida com Deus... como vou explicar isso?
Eu acreditava em Deus, acreditava piamente no sobrenatural de Deus! Mas eu particularmente nunca havia experimentado isso, não de verdade, como tinha sido com Eduardo. Desde o período do jejum que eu vinha sentindo uma falta especial destas coisas. A fé deve existir independentemente daquilo que vemos, "bem aventurados aqueles que não viram, mas creram...".
Sim, eu sabia disso, nunca baseei minha fé naquilo que pudesse ver ou sentir para mim bastava o fato de estar escrito. Isso era mais importante do que tudo!
Então, quando observei as pessoas tão eufóricas ao meu redor, sem exceção, novamente me sobreveio aquela sensação do início da viagem: parecia que estava no lugar errado, parecia que somente eu não estava sendo tocada da mesma maneira que os demais. Parecia haver alguma coisa errada somente comigo.
Então, em vez de me alegrar, me entristeci naquele momento...
"Quem sou eu? Quem sou eu para estar aqui? Eu sei quem eu sou, e sei que não tenho nada de especial em mim..."
Me sentia muito mal em não conseguir rir como os outros, em não conseguir me alegrar como os outros. Em não conseguir sentir como a maioria parecia estar sentindo! Um peso se abateu sobre o meu coração, não saberia nem explicar direito em palavras... apenas uma tristeza profunda.
Quando voltamos para casa, Eduardo estava falante e satisfeito, bem como todos os demais. Mas aquela sensação me perseguia e, embora me esforçasse, estava mais calada do que antes. Talvez as pessoas reparassem, talvez não. Eu esperava que não reparassem...
Naquela noite, no nosso quarto, Eduardo perguntou o que eu tinha. Esforcei-me para explicar, mas não sei se consegui me fazer entender.
— Por que você não conversa sobre isso com a Sarah? — incentivou ele. Talvez fosse uma boa sugestão.
— Acho que vou fazer isso — eu confiava nela. Então Eduardo sorriu de novo.
— Mas eu tenho uma coisa legal pra te contar. No final nós estávamos ali, lado a lado, orando, lembra?
— Lembro.
— E daí veio aquela senhora falar comigo... ainda no meio do Louvor. Mas antes ela tinha falado com a Sarah, perguntando se podia compartilhar a visão comigo.
— Que visão?
— Ela me falou que tinha visto ao nosso lado — ao nosso lado, viu? — um anjo muito grande, com asas, que refletia uma luz dourada. Como ela nunca tinha visto nada igual, foi primeiro perguntar para Sarah. E a Sarah disse que, pela descrição, aquele anjo era um Querubim. Ele estava ali conosco!
Fiquei quieta um pouco. Eduardo continuou:
— Sarah comentou comigo que isso era um sinal evidente da nossa mudança de patente. Parece que, ao terminarmos esses 40 dias de jejum, Deus está renovando a nossa guarda... aumentando a nossa guarda!
No dia seguinte pela manhã, domingo, levantei depois de todo mundo. Eduardo já tinha passado a manhã toda falando novamente, só que dessa vez ali mesmo na chácara, a portas fechadas, apenas para os chamados "guerreiros da Igreja".
Sarah e Jefferson dirigiram aquele período mais ou menos como Grace tinha feito, pedindo que ele contasse esta ou aquela experiência, este ou aquele fato. Quando levantei, antes do almoço, ele me contou rapidamente como tinha sido. Mas falou algo que não gostei.
— O Jefferson me fez falar algumas coisas que acho que seria melhor não ter dito, eram particularidades da Ministração... — Eduardo estava um pouco passado, mas não queria admitir isso. — Antes mesmo de começar a reunião, ele já tinha falado tudo...
Fiquei incomodada, sentindo um peso no estômago:
— Peraí! Como assim? Ele falou sem pedir a sua permissão, sem perguntar se podia? Só porque participou de duas Ministrações junto com a Grace, só porque ouviu algumas coisas, isso não significa que sejam coisas que podem ser espalhadas desse jeito! Que ele pode ir falando por aí...
— Pois é, Isabela, mas agora não tem jeito... ele já tinha falado antes de mim. Veio dizendo que aquelas pessoas eram todas guerreiras, eram de confiança, não tinha problema, era importante que eu falasse, essas coisas... não me deu nenhuma chance de decidir coisa alguma!
Fiquei indignada. Embora gostasse muito de Sarah e Jefferson, eles não podiam passar desse jeito por cima da nossa vontade. Mais ainda, da nossa vida. Eduardo tinha o semblante cansado. E acrescentou:
— Depois do almoço, tem mais... eles querem que eu fale mais algumas coisas somente para os Pastores. Quer dizer, aquelas coisas que eles acham mais importantes, mais sérias...
Não havia como a gente se esquivar daquilo. Depois, no final, como recompensa todos oraram por nós com muita intensidade. Houve uma sessão de abraços, de lágrimas e de promessas de aliança. O Pastor Adriano colocou a mão no ombro de Eduardo e afirmou, entre lágrimas:
— Se algum dia chegar a tempestade, aqui tem teto...
Eduardo chorou, comovido, olhando bem fundo nos olhos daquele homem que lhe prometia acolhimento. Eu o conhecia bem, sabia que ele estava entendendo aquelas palavras de maneira literal.
No final da tarde eu já havia pedido a Sarah para conversar com ela sobre aquele meu assunto. Como estávamos todos cansados, ficou para o dia seguinte. Resolvemos ficar para o Culto da noite e voltar apenas na segunda-feira para São Paulo. Afinal, nenhum de nós tinha compromisso na segunda-feira de manhã.
Assim fizemos. Então todo mundo aproveitou para descansar um pouco no final da tarde.
Eu não me sentia bem. Estava com dor de estômago e indisposição. Tentei dormir, mas não consegui. Mas o fato de ficar deitada um pouco ajudou. À noite estava fazendo bastante frio, naquele final de outono. E eu me sentia como se um caminhão tivesse me atropelado. Eduardo olhou para mim e ficou com pena:
— Acho melhor você não ir à Igreja... melhor você ficar aqui descansando deitada...
Ele se aproximou de mim, sentou-se na beirada da cama e encostou a mão na minha testa. Eu estava com muito frio, tinha colocado toda a coberta em cima da minha cama.
— Será que você está com febre? — Não sei. Mas estou com frio.
— Acho melhor você ficar.
— Vou ficar me sentindo culpada...
— Mas eu estou vendo, você não está bem... eu te conheço! No meu íntimo não me sentia à vontade em ficar sozinha na casa embora fosse esta a minha vontade. Tinha sido um final de semana agradável e desgastante ao mesmo tempo. Porém algo me dizia que se ficasse deitada seria muito julgada, seria mal interpretada.
Eduardo foi falar com Sarah, que veio até nosso quarto.
— Se você não está bem, é melhor mesmo você ficar...
Eu sabia que Sarah talvez fosse a única que não estava me julgando. Mas eu sabia que os outros todos não pensavam assim. Eu não tinha sentido da parte deles todo o amor que diziam ter. Na verdade, em momento algum conversaram comigo, quiseram saber qualquer coisa a meu respeito, sobre minha pessoa. O final de semana inteiro apenas cercaram Eduardo, interessados numa única coisa: Satanismo.
Eu percebia que Eduardo era tratado como se fosse um bibelô, um objeto a ser observado, analisado... quisera eu estar enganada, mas o tempo mostraria que não estava. Eduardo foi o centro das atenções porque ele era o ex-Satanista, a fonte das informações que eles desejavam ter. E eu, o que era? Apenas uma pessoa comum, apenas a esposa dele... apenas alguém mais que estava ali.
Durante todo aquele final de semana eu cruzei com aquelas Pastoras o dia inteiro naquela casa, na mesa de refeições, na varanda, na Igreja, na sala onde Eduardo ficou testemunhando... mas ninguém me olhou como um ser humano que necessitava ser tratado como ser humano, ninguém me tratou como uma pessoa!
Por causa disso eu já estava me sentindo pouco à vontade. Eduardo não entendia isso, Eduardo era cercado... todos queriam conversar com ele, todos queriam estar perto dele, todos queriam perguntar alguma coisa a ele. Era fácil confundir essa atenção com amor...
Na verdade, havia apenas um interesse por causa da sua história.
Mas eu não tinha nenhuma história para contar, eu fui tratada como uma pessoa normal, por isso pude perceber melhor onde estava exatamente o coração daquelas pessoas. E, como pessoa normal, não recebi nenhuma atenção especial.
Infelizmente... o coração deles não estava em nós. Estava na história.
Talvez tudo aquilo estivesse me pondo doente, porque era um final de semana falso. A gente estava ali não para aprender, mas para saciar a curiosidade daquelas pessoas...
Eu não conseguia concatenar as idéias, não conseguia pensar, não conseguia chegar a nenhuma conclusão lógica... por um lado confiava em Sarah... sabia que ela estava fazendo o melhor. Por outro lado, aquela viagem não estava me caindo bem... uma coisa não parecia estar casando com a outra... além disso, aquele cansaço... aquele mal-estar... me sentia sugada.
Tudo que queria era não ser julgada, não ficar em evidência. Pelo menos, não numa evidência negativa! Tudo aquilo estava borbulhando dentro de mim, então quando Sarah fez a sua sugestão, recusei.
— Não, está tudo bem... vou tomar um banho, me aprontar rápido e já desço. Vou com vocês!
— Tem certeza?
— Tenho. Tenho certeza.
Saí da cama, entrei no chuveiro, me troquei. Depois do banho quente estava mais inteira. Enquanto esperávamos na porta da casa pela manobra dos carros, Pastora Noemi perguntou se eu estava melhor.
— Estou, sim.
E a conversa morreu ali. Parecia que ela não ia com a minha cara por algum motivo. Na Igreja, durante o Louvor, abri meu coração diante de Deus. Algumas lágrimas escorreram pelo meu rosto, contei a Ele como me sentia, e também tudo o que não conseguia entender, mas que estava lá, bem lá dentro, bem lá na minha alma.
Não fiquei em pé apenas por estar indisposta, mas meu coração estava adorando ao Senhor. De repente, Pastora Noemi estava ali do meu lado. Ergui para ela uma face cheia de lágrimas, de olhos vermelhos.
— Procure se colocar em pé. Dê um sinal ao Senhor para que Ele possa agir! Me levantei mais por respeito do que por concordar com o que ela estava dizendo.
— Não estou muito bem... depois, se a senhora quiser, posso contar mais ou menos...
Eu queria dizer que novamente aquele mesmo sentimento do outro Culto estava invadindo todo o meu ser: eu via as pessoas felizes, pulando... e não conseguia sentir aquele mover na minha vida. Isso me entristecia muito.
Ela fez que sim, assentindo. Foi bom ter ido, escutava a Palavra.
Depois que voltamos para casa, jantamos e ficamos todos ao redor da mesa escutando Sarah e Jefferson contarem histórias de viagens. Demos muita risada com algumas, foi divertido. Depois, Pastor Adriano e Noemi contaram também sobre algumas viagens que tinham feito. Eu e Eduardo não tínhamos nenhuma viagem para contar, então ficamos escutando. Fomos dormir de madrugada.
No dia seguinte, quando levantei, para variar depois de todo mundo, Sarah logo me chamou para termos aquela conversa que eu queria.
Eu tinha aprendido a gostar dela. Quando subimos para o nosso quarto e sentamos frente a frente, cada uma em uma cama, olhei para ela com simpatia. Entrava um sol pela janela, o que me fazia sentir bem melhor do que na véspera, com todo aquele frio.
— Vamos orar primeiro? — indagou ela sorrindo.
Concordei. Sarah tinha uma disposição diferente, especial. Não levei muito tempo para compartilhar aqueles estranhos sentimentos.
— Não faz muito tempo, Sarah. Antes, eu costumava ficar super feliz quando Eduardo tinha alguma visão de anjo, ou quando Deus trazia para ele algum discernimento espiritual. Não deixava de ser uma direção para mim também! Mas de uns tempos pra cá, isso tem mudado... não vou dizer que estou com inveja dele, porque não é nada disso, longe de mim! Aliás, Deus sabe disso muito bem... pensei um pouco a respeito, tentando entender melhor esse sentimento. Mas, ah! A coisa é muito simples: se Deus quer que eu continue trilhando este caminho, Ele vai ter que me dar alguma experiência sobrenatural! Estou sendo muito sincera com você, pode até parecer criancice da minha parte...
— Não é criancice, não! Vivendo o que vocês estão vivendo, nada mais justo!
— Eu nunca fiquei cobrando essas coisas de Deus, achava mais importante ter fé na Bíblia, na Palavra escrita. Sempre tive um pouco de medo dessas manifestações sobrenaturais... porque a maior parte das vezes, pelo menos na minha experiência passada, percebi que elas não vinham de Deus, mas eram fruto da alma das pessoas, da vontade das pessoas... então tinha minhas restrições. Você sabe do que eu estou falando, é uma coisa complicada.
— Eu sei, sim. Infelizmente, a Igreja de Cristo está cheia de profetadas, cheia de fogo estranho. É prudente a gente tomar cuidado com isso.
— Pois então! Mas de uns tempos pra cá eu tenho visto que os Dons verdadeiros existem, não só pela manifestação na vida de Eduardo, mas também na vida do Ricardo, aquele intercessor da Grace. Sarah, é incrível quando Deus de fato se move e mostra alguma coisa! Aí é certeiro, é verdadeiro, é preto no branco, não tem conversa... não é aquela coisa nebulosa, aquela coisa que a gente não consegue digerir, aquelas profecias que nunca se cumprem, aquelas direções absurdas, que as pessoas insistem em dizer que vieram de Deus. Todo mundo já viu muito disso! Mas agora... eu estou meio que num beco sem saída... agora eu sei que os Dons verdadeiros são palpáveis! Algo real! Uma coisa que eu quero muito... não estou nem falando de receber um Dom específico de Deus, mas de ter pelo menos uma experiência sobrenatural com Ele...
— O seu desejo é justo, é genuíno. O apóstolo Paulo nos incentiva a buscar os Dons, nos incentiva a buscar o sobrenatural de Deus. Não é errado buscar isso como uma conseqüência da vida que levamos com Deus, como uma conseqüência da nossa consagração. Claro, não devemos buscar o sobrenatural pelo sobrenatural, naquela ânsia de apenas ver coisas acontecendo, a gente não tem que se mover por vista... e eu sei que este não é o seu caso... se achasse que fosse, nem estaria te incentivando!
— É que eu só tenho visto o sobrenatural do diabo... eu vejo eles cantando a bola, e a coisa acontecendo, vejo eles decretando... e no final, tudo se cumprindo. Vou te dizer uma coisa: assim tá difícil! Eu sei que eu não vou conseguir continuar se Deus não me atender, sei que vou acabar desistindo, jogando tudo pro alto! Eu me conheço, sei como estou me sentindo... como que jogada para as traças! É como se Deus olhasse para Eduardo como o filhinho preferido Dele, e não estivesse se importando comigo... eu sei que Eduardo precisava muito, muito mais do que eu. Nós oramos muito por isso! Mas agora... quem está precisando sou eu! Cada vez que ele recebe um presente desses de Deus, que tem um discernimento, uma visão... me desculpe, mas eu fico com raiva até! Estou te falando isso porque confio em você, e também porque Deus já sabe... fico com raiva porque parece que Deus não percebe o quanto estou precisando ver alguma coisa mais! Não vou ser falsa de dizer que tudo bem continuar caminhando por fé, estou sendo clara em dizer que agora preciso ver!
Depois daquela explicação, Sarah disse que certamente iríamos orar naquele sentido, mas antes ela queria saber se eu já tinha passado pela Libertação.
— Olha, Sarah... eu já busquei várias vezes. A primeira foi quando ainda ia à minha antiga Igreja, a Igreja que minha mãe freqüenta hoje, antes de conhecer Eduardo. Eu busquei a libertação, sim, porque achava que precisava. Tinha um pequeno grupo ali que trabalhava com isso. Preenchi a ficha e fui ministrada. Mas, sinceramente... não notei qualquer mudança. Apesar disso eu sempre acreditei nessa questão da libertação, tanto é que quando conheci Eduardo fui eu que o incentivei a procurar a Grace. Aí, durante o curso dela, fiz novamente a libertação, tanto em grupo, como individualmente. Foi até um senhor que me ministrou... agora, não sei se sou eu que não consigo receber as coisas que Deus faz... ou qual é o problema. Porque de novo...
— Não adiantou, né? Ergui um pouco os ombros, meio constrangida, sem saber o que falar.
— Então... não acho que o problema está nas pessoas, acho que o problema está em mim, eu que não consigo...
— Às vezes não é isso. Claro, Deus sempre vai atuar, de uma maneira ou de outra. Mas existe uma coisa que a gente não pode esquecer, que é a unção da pessoa que ministra. Tem gente que realmente foi chamada para isso, mas tem outros que estão no lugar errado... cheios de boa intenção, mas no lugar errado. Aí a coisa fica meio atravancada! Mas quando você se submete à Ministração no tempo certo, com a pessoa certa, tudo flui diferente.
— Eu imaginei que fosse isso. Tanto é que quando chegamos na Comunidade Evangélica, nossa Igreja, conheci lá uma Pastora que fez parte da equipe da Grace durante vários anos. E ela me ministrou algumas vezes, inclusive Dona Clara participou como intercessora. Eu sei que Deus fez alguma coisa, como não podia deixar de ser...
Fiquei quieta. Sarah completou:
— Mas ainda assim, você não se sente liberta? Você se envolveu com muita coisa no passado, era muito complicada sua libertação?
— Essa é a questão: não! Nunca me envolvi com nada, nunca fiz nada, minha libertação é a coisa mais simples do mundo.
— A Cura Interior você fez comigo no ano passado, não foi?
— Foi, sim. Bem no final do ano, pouco antes do casamento.
— E você não sentiu a diferença?
— Não sei dizer... no começo, parece que sim. Mas depois, não sei dizer. Por isso que eu acho que deve ter alguma coisa errada comigo. Mas eu não queria simplesmente desistir!
— A Cura Interior às vezes é longa. Deus trata uma ferida, depois trata outra, depois Ele trata outra. Nem sempre tudo vai acontecer numa única vez. Pode ser que esteja chegando tempo de você ser ministrada de novo. Pode ser que seja a hora de entrar numa outra fase, esses sintomas que você está apresentando, essa inquietação, esse incômodo... são apenas sinal verde para novamente você se submeter à Ministração.
— Não tinha pensado nisso, mas é verdade, eu vejo pelo Eduardo mesmo. Quando a gente acha que acabou tudo, vem mais alguma coisa à tona. Realmente Deus começou a tratar algumas feridas minha desde aquelas Ministrações com a Pastora da Comunidade. A gente esbarrou em algumas delas, tratamos de alguns pontos principalmente familiares... depois, naquela tarde, com você, foi muito diferente... muito diferente das outras vezes, e não duvido que Deus tratou outras coisas.
— Pra mim está claro que você precisa muito desta parte, desta parte da Cura Interior. Quando você estiver curada, vai conseguir ver o Senhor de uma outra maneira, vai conseguir receber o Amor do Senhor de uma outra maneira, vai conseguir enxergar tudo por um outro prisma! Quando a gente está muito ferido, essas coisas impedem a gente de levar uma vida cristã saudável.
— Eu sei, sabe... acho sinceramente que eu já deveria estar diferente... eu não sei te dizer, quando eu comparo a minha vida com a de Eduardo, vejo que com ele funcional Parece que as Ministrações vão exatamente no ponto certo. Por isso tem resultado! Mas comigo — e agora posso fazer uma comparação — não é assim que acontece. Não sei dizer o que é, mas a verdade é que sinto como se déssemos voltas e mais voltas, mas nunca conseguíssemos atingir o lugar certo. Não me pergunte qual é esse lugar certo, é apenas uma sensação que eu tenho... de que a gente tem tratado a periferia. E por causa disso, não consigo ir pra frente.
Depois disso, ela me perguntou de novo sobre minhas relações familiares. Eu sabia que ainda havia em mim muitas feridas nesta área. Fui sucinta porque não havia tempo hábil, mas completei:
— Você está perguntando uma coisa certa... muita coisa na minha vida está atravancada por causa de coisas que aconteceram dentro da família. Muita coisa que eu não consigo nem sequer falar a respeito — senti minha voz embargada.
Sarah compreendeu.
— Você precisa ser curada. Vai ver como muita coisa vai mudar depois disso. Estou pretendendo levar você e Eduardo para o meu grupo de elite, aquele grupo, sabe?
Nós sabíamos. Sarah tinha um grupo pequeno e fechado de mulheres, de guerreiras, que se reuniam uma vez por semana na sua casa.
— A reunião é toda quarta-feira de manhã. Agora que vocês estão mais livres, podem participar. Não era tempo ainda, vocês não estavam preparados antes. Mas agora sinto paz no Senhor em levá-los para lá. Vocês podem começar a participar das reuniões de oração conosco. E podemos marcar um dia para você ser ministrada nessa área de Cura Interior.
— Que bom!
— Mas desta vez vou pedir para o Jefferson, ele tem muita unção nessa área. Quando Deus realmente o usa, as coisas acontecem!
Aquilo foi como uma luz no fundo do túnel para mim. Quem sabe aquela não era realmente a solução? Sarah sorriu e me animou:
— Você vai ver só. Deus vai fazer muita coisa! E você já está com uma cara melhor!
Sorri em resposta.
— Acho que sim.
— Então vamos orar, vamos colocar todas essas coisas diante de Deus. E você vai ver que o sobrenatural vai vir... naturalmente] Claro que você não pode continuar andando em aridez, mas tudo isso é por causa das feridas.
Oramos. E saí de lá me sentindo mais animada.
Quanto à Pastora Noemi, ela não veio me procurar para conversarmos. Eu havia dito que conversaria com ela, mas ela não pareceu interessada, e eu também não estava disposta a repetir tudo para uma pessoa em quem não confiava. Por isso deixei por menos.
Logo depois do almoço, tomamos o rumo de casa, após longas despedidas e várias promessas por parte deles. Pastor Adriano nos ofertou R$ 210,00. Quando Sarah e Jefferson nos deixaram em casa, Sarah nos acompanhou até o saguão do apartamento. Ali, nos estendeu um cheque de R$ 350,00.
— Este dinheiro nos foi ofertado pelo Pastor Adriano. Não costumamos fazer isso, mas vamos repassar o valor a vocês...
Nossa surpresa foi tão grande na hora que nem reparamos direito na somatória daqueles dois cheques, o nosso e o dela. Foi só mais tarde, em casa, que demos atenção: o valor era exato o da prestação do financiamento do Palio!
Aquele seria o primeiro mês em que não teríamos de onde tirar esse pagamento. Mais tarde, depois de agradecer novamente a Sarah e Jefferson, Eduardo até tirou uma cópia xérox daqueles cheques. Para ficar documentado que Deus tinha sido preciso em trazer a provisão!
Mas nós nunca mais veríamos nenhum dos Pastores daquela Igreja. Tinha ficado nas entrelinhas que eles estavam interessados em manter uma aliança conosco, pelo menos de intercessão. Mas não aconteceu assim. A tempestade veio, e eles não se importaram, nunca responderam nenhuma das nossas cartas, nunca nos deram mais nenhum sinal de vida.
Uma vez saciada a sua curiosidade, esqueceram de nós.
Eduardo em especial ficou muito triste, extremamente triste. Ele tinha acreditado naquelas palavras. Tinha acreditado que eles pudessem ser nossos intercessores, nossos amigos.
Mas não passou de mais um alarme falso.
Quanto a mim, durante aqueles dias fiquei particularmente introspectiva pensando naquela questão das Ministrações. Agora parecia estar surgindo mais uma oportunidade... eu queria aproveitá-la! Não iria desistir tão facilmente assim. Eu acreditava no Poder de Deus, tinha que funcionar também comigo.
Eu costumava anotar em tópicos os principais pontos levantados durante as minhas Ministrações, aqueles que mexiam mais comigo, aqueles que eu tinha certeza que vinham de Deus. Assim anotados eu não corria o risco de me esquecer deles. Fui remexer um pouco naquilo. Muita coisa eu já não me recordava, muitas "coincidências" e semelhanças tinham me passado despercebidas.
Aquela primeira Ministração, na minha antiga Igreja, tinha sido inócua. Mas a Pastora Ana, aquela que me ministrou tendo Dona Clara por intercessora, em nossa Igreja atual, já tinha mexido em alguns pontos importantes. Os mais importantes eram familiares, mas naquela altura eu não conseguia falar muito bem sobre meu pai. Só de pensar naquilo, ficava travada.
Com a cabeça apoiada nos braços, deitada no chão da nossa sala, ouvindo uma música suave, comecei a relembrar.
Especialmente no nosso último encontro, Deus preparou para que o marido da Pastora Ana orasse por mim. Ele não me conhecia, a não ser de vista. Não tinha participado do processo da Ministração conosco, mas assim Deus preparou e fez.
— Ele te ungiu para pregar boas-novas aos cativos...! Embora você seja cristã, não está vivendo a plenitude da Vida, mas é isso que você busca, por isso o Senhor vai te colocar de volta no trilho.
Aquele era o desejo mais premente do meu coração. Eu queria aquela vida! Eu queria a vida em abundância.
— Você é linda para o Senhor, Ele conhece o teu corpo desde o ventre materno, o teu rosto, o teu cabelo, o número de sapato e de roupas. O Senhor fez tudo exatamente como é, e fez você linda e perfeita...
Eu entendi perfeitamente porque Deus orientava o Pastor a falar daquela maneira. Aquilo testificava para mim. A seguir falou do fardo pesado que eu estava carregando sobre os ombros, sobre as costas.
— O fardo do Senhor é leve e Ele pode tirar esse peso de cima de você. Pediu então para que Deus resumisse a minha alegria, eu tinha certeza que era Ele quem me falava aquelas coisas. Depois o Pastor repreendeu o espírito de morte, aquele que tem me roubado, destruído e bloqueado. E afirmou categoricamente:
— Este não é um demônio qualquer, mas um forte Principado.
Ele me ungiu as mãos e profetizou pela primeira vez sobre um Dom que o Senhor me daria. Essa profecia veio muitas vezes depois, sempre da mesma maneira.
Então continuou:
— Eu, o Senhor, te levanto como guerreira, para desbaratar as forças inimigas, com poder. Eu te dou este poder. Percorri a Terra procurando pessoas, tem quem suba nos púlpitos e fale, mas sem ter o coração sincero. Eu conheço o teu coração e sei que há sinceridade nele. Eu te escolhi, filha minha, não tema! Não há acusação sobre você. Eu te falarei nestes tempos, com voz suave e baixinho. Preste atenção no que Eu vou te dizer.
A Pastora Ana não havia compartilhado nada com ele sobre a minha Ministração.
Por isso, quando ele falou do peso que eu sentia e da vontade de levar uma vida cristã abundante, em restituir a alegria, libertar-me da acusação, do forte espírito de morte, e também do chamado ministerial... tive que reconhecer que tudo aquilo vinha do Alto!
Isso tinha acontecido poucos dias antes da visitação que Eduardo tivera com o anjo ruivo. Nessa ocasião, Deus falou novamente sobre o meu chamado, confirmou-o através da boca daquele anjo.
Nove meses depois, depois de 21 dias de jejum, eu passei por uma outra
Ministração de Cura Interior. Desta vez foi com Sarah e uma das mulheres que faziam parte da sua equipe. Assim como eu estava vendo na equipe da Grace pessoas que realmente têm Dom de visão e de discernimento, aquela mulher que me ministrou também tinha. Seu nome era Suzana.
Foi um episódio muito diferente para mim. Durou algumas horas. Eu não precisei falar nada, mas apenas fiquei deitada enquanto ela orava de acordo com as visões que Deus ia trazendo. Ela não sabia absolutamente nada a meu respeito, nunca tinha me visto na vida, Sarah não havia dito nada a ela propositalmente.
Aquele foi um período em que, não sei se decorrência direta do mover espiritual causado pelo jejum, mas vinha me sentindo muito cansada. Espiritualmente cansada.
A Ministração começou imediatamente com a visão de um anjo que chegou com uma bandeja cirúrgica nas mãos. Prenunciando que ia haver ali uma manipulação para cura! Era uma alegoria clara sobre a intervenção do Médico dos Médicos em alguém que está doente.
Depois Deus foi mostrando alguns momentos específicos da minha vida. Mostrou-me no período dos quatro aos seis anos, com uma risada alegre, gostosa, que foi sempre uma característica minha. Suzana viu o quanto eu era afoguetada, bagunceira... Deus me mostrava batendo portas, jogando as coisas, rindo e rindo.
Aos 14 anos, ela viu que tinha um muro me separando dos meus pais. Aos 17, ela me via começando a mudar, me olhando no espelho. Essa informação foi extremamente precisa porque eu escrevi exatamente isso no meu antigo diário, aos 17 anos. A mudança, que geralmente ocorre nas moças aos 15, comigo veio aos 17.
Então com 18, 19 anos ela viu Deus me trazendo muitos livramentos. Os anjos corriam à minha frente para me proteger. Mais tarde ela me viu com um avental branco, de tênis, carregando minhas coisas no braço direito, muito triste e muito preocupada. Porque precisava tomar uma decisão. Aquilo bateu no meu coração. Certamente tinha sido a época em que optei por abandonar a residência.
Mas ela garantiu:
— Deus não te deixou tomar a decisão errada!
Eu acompanhava suas orações orando em línguas, de olhos fechados. Eu não sabia exatamente o que ela estava vendo, a maioria das visões só foram compartilhadas mais tarde, depois que terminou a Ministração. Mas eu conseguia compreender do que ela estava falando, e de acordo com que Deus mostrava, ela ia orando.
Depois, Deus começou a fazer uma cura em regra na minha vida. Eu já tinha entendido a questão da linguagem simbólica das Ministrações. Por isso não estranhei quando ela foi falando dos diversos órgãos que estava vendo, e o que acontecia com eles.
Aconteceu uma limpeza geral no fígado e nos rins. Destes saía uma água muito preta. Compreendo que estes órgãos têm alguma coisa a ver com a desintoxicação do organismo. De certa forma, Deus estava dizendo que Ele estava me limpando de tudo aquilo que era prejudicial na minha vida, toda contaminação, toda impureza.
Eu sabia quantas impurezas existiam na minha alma, nas minhas emoções... traumas... sentimentos distorcidos... mágoas... aquela água preta simbolizava tudo isso. Pelo menos foi assim que entendi.
Ela viu também Deus restaurando neurônios na minha mente. Mas o que estava mais feio, segundo ela contou depois, era o meu coração. Havia nele feridas como aquelas de joelho, que a gente faz quando cai no chão, e elas estavam cheias de crostas.
Então veio um anjo que segurou o meu coração e foi limpando, limpando, tirando aquelas crostas. Então ela pôde ver como eram profundas aquelas feridas!
— Aí o anjo passou em cima uma coisa chamada... chamada dake... — falou Suzana no final. — Eu não sabia o que era aquilo, mas o Senhor falou que você sabia o que era.
Tive que sorrir.
— Não é dake, é Dakin, uma espécie de desinfetante que a gente usa no Hospital! Suzana também viu que havia um anjo que limpava os meus ovários. E disse que Deus me tinha feito fértil. Essa foi também uma informação que me veio várias vezes, de várias pessoas diferentes. Por algum motivo Deus queria me fazer saber que Ele estava protegendo o meu sistema reprodutor. Naquela época não entendi, mas o futuro mostraria o porquê daquela revelação.
Deus mostrou que eu me sentia como que querendo parar, de tanto cansaço, mas ainda não era hora do meu corpo parar.
Uma das coisas que mais me chamaram a atenção foi quando ela disse que tinha visto um anjo que me trazia uma caixinha. E nela estava escrito "espontaneidade e alegria"! Aquelas palavras eram certeiras demais para serem mero fruto do acaso, e passarem despercebidas.
Suzana também viu quando Deus me deu um espelho, e disse que eu ia poder me ver com novos olhos. Falou algumas coisas extremamente pessoais sobre a maneira como eu via a mim mesma, e também algo muito específico sobre relacionamentos de amizade.
Depois de toda esta fase de limpeza do meu corpo, Suzana viu a abertura de um quarto. E dali os anjos tiravam coisas velhas e antigas. Eu não compreendi o que isso poderia ser, compreenderia apenas no futuro.
Então, depois de limpa, eu recebi uma roupa nova. E sobre meu corpo foi passada uma substância fluída, alguma coisa como um bálsamo. Nesse ponto Suzana queria me abraçar, mas por algum motivo não conseguiu chegar perto de mim por causa da presença de um anjo enorme que estava bem ali, de costas para ela e de frente para mim. Era ele quem me abraçava!
— Então vi descortinar-se um caminho à sua frente, e na beira deste caminho, que ia muito longe, estava escrito "A segurança é o Senhor". E Ele já estava indo à sua frente. Às vezes eu não compreendia exatamente todas as visões, mas o Senhor me dizia que você estava entendendo. Jesus disse que te ama muito, eu vi e senti muito isso, muito amor nesta Ministração. É como se você fosse uma queridinha especial para Deus! Em algum momento eu vi você, seu irmão e sua mãe vestidos com vestes brancas, e havia um anjo que passava uma espécie de esparadrapo em torno de vocês. Isso se refere a esta vida! Não é a vida futura, na glória. Eu vi um braço quebrado, e o Senhor falou que esse braço representava a sua família. Mas ele foi enfaixado por algum tempo. E depois, quando aquela faixa foi retirada, o osso não tinha cicatriz. Isso tem a ver com a sua vida familiar.
Eu ouvi tudo com atenção.
— Deus vai te dar alguns presentes. Outros estão sendo preparados e estão guardados — disse ela por fim.
Naquela tarde eu saí de lá muito contente. Sabia que Deus tinha feito alguma coisa que eu ainda não podia contemplar, mas Ele tinha feito. E eu queria muito receber!
Depois disso vieram dias de muita opressão e desânimo.
Me virei de bruços sobre o tapete. Até suspirei, relembrando aquelas coisas.....
"Eu sei que Deus fez.... não tenho a menor dúvida disso. Mas eu não sei se consegui receber! O tempo passou, já são quase oito meses desde esse dia. E nem tudo eu consigo ver na minha vida, nem tudo consigo perceber na minha vida. Parece demorado demais comigo, o que está acontecendo? Será que eu não estou tendo fé suficiente?! Eu vejo que o processo de Ministração funciona de uma forma diferente com Eduardo, por que comigo parece tão demorado, por que parece que eu não consigo contemplar os resultados?"
Havia algo escondido na minha vida, na minha história, no meu passado. Eu não sabia disso, não tinha a menor idéia. Deus mostraria o cerne daquela questão, mas não ainda! Não tinha chegado o tempo.
Por ora, eu iria continuar tentando... eu tinha que continuar tentando!
Era como havia dito: "Se Deus quer que eu continue trilhando este caminho, Ele tem que mostrar algo mais, eu tenho que ver a Deus, não posso apenas continuar ouvindo falar Dele, não posso viver das experiências sobrenaturais do Eduardo... a minha vida tem que mudar, tenho que conhecer Deus melhor, tenho que conhecê-Lo face a face, e se tem alguma coisa na minha vida que está impedindo isso... eu vou continuar correndo atrás, continuar tentando!"
A maneira que entendia, a maneira de "continuar tentando" era uma só: novamente buscar a Ministração, a Cura Interior. Compreendia que aquelas duas Ministrações anteriores tinham tido a sua razão de ser, tinham tido o seu significado. Era como aquela história da cebola: Deus vai descascando, vai tirando as películas externas para conseguir chegar ao miolo.
"Talvez Deus não tenha ainda chegado ao cerne, talvez ainda não tenha tocado o verdadeiro ponto nevrálgico da minha alma. Eu sei, eu sinto Ele não terminou de me curar. Eu já entendi que isso é um processo... Ele tem que continuar."
Como Médica, eu sabia que o processo de cura de algumas doenças é lento, doloroso e precisa de várias intervenções. Tanto medicamentosas quanto cirúrgicas, dependendo do mal em questão. Isso me fazia aceitar que a cura da alma muitas vezes não é diferente.
Então fiquei esperando ansiosamente pela Ministração que Sarah iria marcar para mim com o Jefferson.
Foi com entusiasmo e expectativa que eu e Eduardo fomos à primeira reunião do grupo da Sarah. Aquele que ela chamava "grupo de elite", e que se reunia toda quarta-feira de manhã, na casa dela. Aquele era um grupo que Sarah estava treinando, um grupo de guerreiras, e ela nos esclareceu que escolhia a dedo as pessoas, não era aberto a qualquer um.
Sarah havia dito que Grace estava sendo usada no processo de libertação de Eduardo, mas o seu grupo seria uma fonte de resistência para nós. Ela tinha certeza que nós precisávamos daquele grupo. No começo, achamos que realmente estávamos no lugar certo. Afinal, continuávamos naquela busca por intercessores.
Mas não foi assim que aconteceu. Nosso relacionamento não chegou a durar dois meses.
Naquela manhã Sarah já havia adiantado sobre a nossa vinda e as mulheres estavam, assim como nós, na expectativa. Suzana era uma das mulheres que faziam parte do grupo. Aliás, o grupo só tinha mulheres. Uma meia dúzia. Jefferson participava de vez em quando.
Naquele primeiro dia Sarah pediu que Eduardo compartilhasse brevemente seu testemunho para que elas nos conhecessem melhor.
Então participamos da oração depois disso. Foi um período gostoso e especial. Mesmo assim eu ainda continuava me sentindo daquela mesma maneira, incomodada por não estar sentindo o mover de Deus como os demais.
Todas elas eram mais velhas do que nós, casadas, e no final nos cercaram para conversar:
— Podem contar conosco para o que precisar! — disse uma delas.
— Sintam-se acolhidos no nosso meio, nós queremos ter uma aliança com vocês.
Depois da reunião, depois que elas foram embora, ainda ficamos ali para almoçar com Sarah e conversar durante a tarde.
Na semana seguinte, após a reunião, de livre e espontânea vontade Sarah abriu um pouco nossos problemas financeiros diante daquelas mulheres. Nós ficamos um pouco constrangidos, em momento algum tivemos coragem de pedir qualquer coisa para Sarah ou Jefferson. Eles estavam muito bem financeiramente, mas nós não estávamos ali por causa disso, Deus conhecia nosso coração.
Todas aquelas mulheres eram também bastante abastadas financeiramente. E Sarah pediu que, se Deus assim confirmasse, elas pudessem ofertar alguma coisa. Nós dois não estávamos acostumados com essa situação, era ainda algo que nos punha bastante envergonhados.
Depois que Sarah computou a oferta, e nos entregou mais tarde, percebemos que dava um valor redondo de R$ 400,00. Três dias antes nós havíamos ofertado para Karine R$ 40,00. Dada a nossa situação, aquele era um valor substancial, mas Karine estava sem emprego e passando por muita dificuldade. Como fosse nossa amiga, ajudamos como pudemos.
— Puxa... — falei com Eduardo enquanto nós dois esperávamos na sala pelo almoço. — Você reparou que Deus nos deu dez vezes a quantia que ofertamos para Karine?
— É mesmo!
Sarah tinha nos convidado para almoçar novamente, e dava ordens na cozinha. Quando ela voltou, compartilhamos imediatamente. Assim como nós, ela também ficou bastante satisfeita com a Fidelidade inequívoca de Deus.
Na terceira reunião, uma das senhoras do grupo trouxe para nós algumas roupas. Havia em especial um casaco preto que me serviu muito bem. Até mesmo um sapato novo ela me deu.
Ainda com o porta-malas do carro aberto, ela olhou para nós dois e falou:
— Vocês dois são como filhos para mim...
Como nós estivéssemos procurando um grupo que nos acolhesse, e não tínhamos encontrado na Igreja, nem na Igreja do Pastor Adriano, ficamos tocados, pensando e sonhando...
— Será que estas vão ser realmente as intercessoras que Deus está colocando no nosso caminho? — perguntou Eduardo quando voltávamos para casa.
— Quem sabe, né? Por enquanto, está tudo indo bem!
Recebemos mais algumas ofertas naquele mês. Foi o que salvou as nossas contas, isso fez com que o cartão de crédito e o cheque especial durassem ainda um pouco mais. Três dessas ofertas vieram de três mulheres deste grupo. Grace nos ofertou também. Aquele casal de Missionários que freqüentava nossa Igreja também. Até mesmo Dona Clara nos deu uma quantia simbólica uma vez, dentro da sua possibilidade. Tudo isto somado deu R$ 1.500,00!
Mesmo assim, nós dois sem emprego, com o orçamento totalmente estourado, ainda faltava. Nós orávamos a Deus em concordância, em concordância com Dona Clara, e esperamos para ver o que ia acontecer. As pessoas mais próximas de nós sabiam das nossas necessidades.
Certa noite, Eduardo estava quase que em franco desespero por causa de contas que tínhamos que pagar no dia seguinte. Impreterivelmente. E não tínhamos quase que nem um centavo no bolso. Eu acordei tarde de manhã porque também tinha deitado muito tarde, de madrugada, como era meu costume por causa da escrita do livro.
Nem bem abri os olhos e ele entrou no quarto, me comunicando antes mesmo que eu me levantasse:
— Deus foi fiel! A Grace me mandou um bip agora dizendo que acabou de depositar R$ 1.000,00 na nossa conta. É um dinheiro do seu Ministério, e ela está podendo nos emprestar. Não tem pressa para pagar! Isso salva a nossa situação no último instante!
Compartilhamos aquela bênção com todos que oravam por nós: Dona Clara e o grupo da Sarah.
Dona Clara continuava sempre a mesma, mas começamos pouco a pouco a notar uma diferença na posição das mulheres do grupo. Um dia, uma delas comentou que aquela que nos havia ofertado as roupas e nos chamado de filhos estava sendo retaliada. E estava com medo. Nunca mais ela nos ajudou de nenhuma forma.
Uma outra, que tinha pedido o currículo de Eduardo para levar ao marido, um empresário de alto escalão, veio com uma resposta negativa. Ela tinha nos dito antes que o marido dela era o responsável pelo departamento, ele contratava quem queria, a palavra final vinha dele. Ela tinha certeza que ele poderia empregar Eduardo porque estava precisando justamente de alguém na área.
Mas depois, conversa vai, conversa vem dentro do próprio grupo ficamos sabendo que ela havia repensado aquela decisão. Era uma coisa muito séria colocar alguém como Eduardo no departamento do marido dela, as coisas podiam ficar muito complicadas para eles. Espiritualmente falando.
Sarah tinha pedido que Eduardo desse um pequeno testemunho na casa de uma dessas mulheres, a mais simples do grupo, porque ela enfrentava problemas com os filhos. Um pequeno número de pessoas se reuniu ali e Eduardo compartilhou. Não muito depois disso a casa dela quase pegou fogo num acidente banal. Mas eles entenderam o recado!
Todas as mulheres do grupo eram casadas, mas algumas tinham bastante problema com os maridos. Os problemas aumentaram.
A verdade é que em pouco mais de um mês elas já tinham percebido um levante espiritual intenso. Não que alguém tenha nos dito isso cara a cara, verbalizado ipsis litteris. Mas as mudanças de atitude começaram a se fazer sentir. Especialmente quando Sarah e Jefferson viajaram aos Estados Unidos para resolver seus assuntos pessoais.
Nesse período, nós deveríamos continuar freqüentando o grupo uma vez por semana, mas sem a presença de Sarah. Foi neste momento que nosso relacionamento com elas degringolou. Aliás, não poderíamos nem chamar aquilo de relacionamento! Nosso contato tinha se limitado a quatro ou cinco vezes, era algo que estava ainda começando.
Eu mesma nunca havia conversado de maneira pessoal com nenhuma delas! Meu contato maior era com Suzana, que tinha me ministrado, mas não tinha passado muito disso. Não houvera tempo hábil porque quando acabava a reunião de oração normalmente elas tinham horário para pegar os filhos na escola, saíam bastante apressadas. Eduardo e eu ficávamos sozinhos com Sarah.
Então não tinha ainda acontecido um estreitamento maior por fatores puramente circunstanciais. Se continuássemos a nos relacionar, certamente haveríamos de realmente forjar uma aliança. Mas não deu tempo...
Sarah havia orientado, antes da sua partida:
— Cuidem bem deles enquanto estamos fora.
Foi o que elas tentaram fazer. Não duvido da boa intenção de todas. Mas aquele foi um momento que os demônios usaram para pôr fogo naquela situação e confundir muitas mentes. A presença de Sarah, creio eu, impunha um certo respeito. Mas quando ela se afastou, várias foram as brechas que os demônios encontraram para atuar.
Nenhuma delas era membro de Igreja. Não tinham cobertura de oração de nenhuma liderança, excetuando Sarah. Mas mesmo Sarah e Jefferson não pertenciam a uma Igreja. Era um grupo meio solto, mas eles acreditavam ter um chamado especial para altos níveis de guerra. Eu e Eduardo em momento algum questionamos aquilo, nossa confiança em Sarah e Jefferson era total.
Mas hoje entendemos a importância de uma cobertura ministerial. Entendemos a importância de uma rede de intercessores, a importância de passar por um processo de santificação, de fechar as brechas em nossas próprias vidas.
Embora não soubéssemos, muitas delas tinham brechas abertas. Problemas familiares, pequenas rivalidades, feridas não curadas. Nós não poderíamos dizer o que mais havia, mas certamente havia alguma coisa, e aquelas portas abertas facilitaram a ação do inimigo.
Se não fosse assim, não teria terminado como terminou.
Eduardo e eu, desde o período do namoro e do noivado, experimentamos diversas vezes algumas brigas de caráter estranho. Na época nós não entendemos muito bem, nem discernimos perfeitamente a questão espiritual nestas situações.
Elas aconteciam sempre do mesmo jeito, começavam por um motivo banal, tolo, corriqueiro... mas o seu desenrolar era desastroso! A ira despertada tanto na vida dele quanto na minha era a porta fundamental que se abria para a atuação dos demônios.
Então, podemos dizer que uma parte da culpa era nossa.
Por outro lado, não fosse o nosso contexto espiritual e o chamado de Deus, nós dois teríamos tido uma trajetória diferente. Quer dizer, se o nosso relacionamento não fosse tão visado pelo Inferno e pela Irmandade, temos certeza absoluta que nada disso teria acontecido.
Olhando por este ângulo... a outra parte da culpa não era nossa Era uma conseqüência direta dos ataques do diabo.
Todas as pessoas cometem erros, todas as pessoas têm fraquezas. Muitas destas fraquezas são consideradas perfeitamente "normais", sem muita importância. Se a gente fosse pensar assim, não havia muita coisa em nós que pudesse ser considerada uma ferramenta tão destrutiva, por si só. A agressividade? A impulsividade do caráter? Não... humanamente falando, nem eu nem Eduardo éramos tão "ruins"... nenhum de nós tinha um poder tão grande de destruição...
Hoje tenho certeza de que nada disso, nada na nossa alma, por si só, poderia causar tanta desgraça. Tanta angústia. Tanto desespero. Era alguma coisa mais, alguma coisa que vinha de fora. Alguma coisa que sabia exatamente aonde tocar. Com muita inteligência descobria as menores frestas, e com indescritível habilidade manipulava a mim e a ele. Transformava aquilo que era meramente humano em algo totalmente sobrenatural. Fazia uso das fraquezas não tratadas da alma, e construía em cima delas uma resposta totalmente maligna, que nos levou a situações de absoluto desespero, à beira do precipício, quase às portas da morte.
Não haveria palavras fortes o suficiente para expressar aquilo que passamos a viver naquele primeiro ano de casados. E também no segundo ano. Em se tratando de brigas. Elas passariam a ter um mórbido colorido...
Assim aconteceu conosco.
Começamos a perceber que os menores deslizes de caráter eram indescritivelmente potencializados pelos demônios. Aqueles desentendimentos pequenos, que todo casal tem, afirmo isso categoricamente, todo casal tem, começaram a transformar-se em situações desesperadoras. Começava como um sopro, nada muito sério, nada muito grande, uma pequena faísca no relacionamento, uma rusga... ou, como Eduardo ironicamente gostava de dizer: "uma mudança no vento..."
Mas aquela mudança de vento explodia numa terrível tempestade de violência...
Acontecia uma vez por mês, às vezes duas. Eram horas de uma incalculável e monstruosa tortura emocional, física e espiritual. Depois, milagrosamente, vinha a reconciliação. E passávamos o resto do mês como se aquilo nunca tivesse acontecido.
Então vinha novamente aquele sopro...
Não fizermos segredo disso para Grace e Dona Clara. Buscamos conselho, buscamos oração... a princípio sem sucesso.
A Irmandade jurou destruir o nosso relacionamento. Não aconteceu como eles queriam por Misericórdia Divina. Mas chegou muito perto disso!
Se por um lado nossa fonte de sustento tinha secado progressivamente e a maioria das pessoas que se aproximavam de nós era derrubada, uma após outra... o ataque principal, o ataque maciço, o ataque mais ferrenho foi sobre o
relacionamento. Foi sobre a nossa aliança!
Não temos nenhum orgulho das nossas brigas. Antes nos envergonhamos delas sobremaneira. Mas foi assim que aconteceu. Muitos momentos dessa história não são bonitos de serem contados, não são agradáveis. Até hoje ainda mexem conosco. Foram terríveis, e expuseram toda a podridão da nossa alma.
Fomos culpados porque erramos muitas vezes, porque o processo de santificação não tinha sido completado em nós. Mas também fomos vítimas. Vítimas nas mãos de um terrível e inclemente algoz. Os Poderes de Principados e Potestades do Inferno...
Quase que em cem por cento das vezes essas brigas aconteciam em dias numerologicamente específicos. Era uma marca dos Filhos do Fogo, eles faziam de propósito para sinalizar muito bem. E sempre precediam golpes maiores. Agora não apenas sobre Eduardo, mas também sobre mim.
O diabo conhecia isso muito bem. Ele sabia tocar nas feridas mais profundas.
A primeira vez que recebi um recado pessoal da Irmandade foi depois de uma dessas brigas. O bip tocou e nós olhamos, ainda estremecidos. Dizia assim:
"Você está sendo uma ótima aliada. Você será a coroa da nossa vitória. Em breve terá a sua recompensa. Leviathan."
O gosto daquelas palavras... era poderosamente amargo. Me corroía como um câncer e contaminava o coração de Eduardo. Eu logo começaria a escutar palavras semelhantes muitas vezes, vindas de todos os lados. Dentro da Igreja haveria poucos capazes de repetir para mim as palavras de Deus... mas muitos que fariam coro com os demônios!
Num desses dias estrategicamente bem elaborados Eduardo foi sozinho à reunião do grupo de Sarah. Eu não tinha dormido praticamente nada à noite, chorando, e não tive condições de ir com ele. Eu já tinha faltado na outra semana porque tinha ido dormir muito tarde e estava gripada. Nessa ocasião uma das mulheres, a que tinha unção especial para adoração e sempre presidia o período de Louvor, tinha convidado a mim e a Eduardo para um tempo de adoração juntos. De tarde, na casa dela.
Eu não estava presente, mas ela fez o convite a Eduardo e ficou marcado para aquele dia. Não fosse o nosso desentendimento da véspera, eu estaria lá.
Quando Eduardo chegou, ninguém perguntou por mim. A reunião transcorreu normalmente e depois, no final, essa moça se aproximou dele e muito naturalmente perguntou:
— Vamos indo?
Eduardo não entendeu bem.
— Vamos indo aonde?
— Para minha casa. A gente tinha combinado na semana passada, lembra?
— Mas a Isabela não veio, não acho muito bom irmos só nós dois... vamos
deixar para outra ocasião.
— Não tem nenhum problema, meu marido também não está em casa, não precisamos desperdiçar essa oportunidade de buscar a Deus.
Eduardo achou esquisitíssimo, e recusou. Achava incabível ficar sozinho com aquela mulher, na ausência do marido dela, na minha ausência... pode ser até que não tivesse nada demais, mas devemos fugir até mesmo da aparência do mal.
Embora concordasse com a decisão de Eduardo, ela o aconselhou:
— Deus me disse que a estratégia para sua vida é Louvor e adoração.
— Bom... eu sei do Poder disso tudo, mas não é apenas isso.
Ele não ia ficar discutindo com ela todos os pormenores da nossa vida, ou porque ele tinha chegado nessa conclusão. Mas ela deu a entender que não gostou muito.
No meio das despedidas, antes de sair, Eduardo ainda comentou com todas:
— Que pena que minha esposa não pôde vir... foi uma reunião tão boa! — e nisso eu sei que ele estava falando sinceramente, a sua raiva já tinha passado e ele estava com remorso. Depois de ouvir isso, ainda sem falar nada a meu respeito, uma delas começou:
— Olha, nós temos uma coisa para te falar... não deixa o diabo tirar essa coisa preciosa que Deus te deu.
Eduardo imediatamente pensou que elas estivessem se referindo a mim. Talvez tivessem discernido de alguma maneira os nossos problemas pessoais.
— De fato... eu tenho realmente procurado cuidar bem dela, mas... Para sua surpresa, não era nada daquilo.
— Não, não! A gente não está falando dela, nós estamos falando deste grupo! Este grupo é especial, Deus te deu! Vai preparado porque quando você chegar em casa vai ter que enfrentar Jezabel... tem um Principado dentro da sua casa que está usando sua esposa para destruir você e o seu Ministério.
Parecia uma coisa tão fora de propósito que Eduardo nem soube o que responder.
— Eu acho que vocês estão vendo a coisa um pouco distorcida...
Elas mantiveram-se firmes em sua posição. Eduardo voltou para casa pensativo, apesar daquilo não ter caído bem no seu espírito, havia a situação do dia anterior... estrategicamente bem planejada!
Eu estava em casa, muito triste, fragilizada, mas extremamente ansiosa em fazer as pazes com Eduardo. A primeira coisa que ele fez foi praticamente despejar aquelas afirmações sobre mim.
— Mas por que elas estão dizendo isso? Eu sempre gostei de ir ao grupo, estava aprendendo a confiar nelas. Nunca imaginei que fossem falar desse jeito. Elas nem me conhecem, praticamente nunca conversaram comigo. Eu nunca te impedi de ir lá, você não foi ficar em adoração porque não quis, porque não era certo...
Ainda magoado, Eduardo usou aquela acusação para se justificar. Para aumentar ainda mais a dor no meu coração. Perdi o controle novamente, aquelas palavras tinham poder de facas afiadas na minha carne.
— Isso é mentira! Eu sempre estive ao seu lado, sempre te incentivei, sempre fiz tudo por você! Não sou perfeita, mas nunca pretendi destruir ninguém, isso é um absurdo! Não é possível que você acredite nisso!
— Não sou eu que estou dizendo, é Deus quem está dizendo!
— Se destruísse o seu Ministério, estaria destruindo o meu Ministério, você não foi chamado sozinho. Faço parte disso também! Eu não quero fazer nada disso, nunca fiz nada disso! — eu gritava, cada vez mais nervosa. — Não é possível que você acredite nisso!
Minha reação desastrosa irritou Eduardo novamente. Ele sabia usar muito bem as palavras contra mim. A coisa pegou fogo novamente. Somente fomos nos acertar muito mais tarde...
Depois disso, Eduardo por livre e espontânea vontade não voltou ao grupo. Eu não tinha dito nada, foi ele que veio comentar:
— Vou esperar a Sarah e o Jefferson voltarem... é melhor assim! Continuamos levando nossa vida normalmente. Sempre encontrando com Dona Clara, isso nunca nós tínhamos deixado de fazer. Ela sabia das reuniões com o grupo da Sarah, por isso eu compartilhei com ela aquela triste situação. Dona Clara, que realmente me conhecia há mais de dois anos, que conversava comigo todas as semanas, ficou indignada com aquele posicionamento.
— Isso é pura carne, pura alma, pura direção da alma! Essas coisas acontecem, "Bem"...! O "cão" é esperto e usa as pessoas. É melhor mesmo vocês esperarem a Sarah voltar... está havendo alguma confusão aí nesse meio... Deus jamais ia agir dessa maneira, Deus jamais coloca peso! Deus é sempre cavalheiro, Ele usa de uma arma poderosa, do Amor. Essa direção nunca ia vir de Deus. Por mais que realmente estivesse acontecendo alguma coisa nesse sentido — e eu sei que não está — o Espírito Santo ia falar com Amor... Ele ia te constranger pelo Amor.
Eu suspirei aliviada. Aquilo me trazia uma sensação incrível de leveza.
— A senhora acha mesmo?
— Eu tenho certeza disso.
Aproveitamos para orar em concordância quebrando as palavras que tinha recebido através do bip. De certa forma, aquelas mulheres repetiram as palavras daquele demônio. A que ponto pode chegar a manipulação das mentes! Eu e Eduardo já tínhamos quebrado aquilo, mas era bom fazer em concordância com Dona Clara.
Ainda por esses dias, chegamos no curso da Grace um pouco mais cedo, e logo ela veio falar conosco.
— Faz tempo que não conversamos, né? Eu vejo vocês toda terça e quinta, mas quase não dá pra gente se falar.
Compartilhamos com ela como andavam as coisas conosco. Ela escutou atentamente e depois foi chamar alguém da sua equipe para ajudar a orar em concordância por nós naquele momento.
Grace orou, nos ungiu. Quando ia dando por encerrada aquela breve conversa, a intercessora que estava ali presente interrompeu:
— Tem só mais uma coisa... Deus está mostrando um ataque muito grande contra a vida da Isabela. Eles concentraram suas forças contra ela, mais até do que em relação a Eduardo. Havia uma feiticeira morena que estava fazendo Encantamentos contra ela...
— Não faz muito tempo o Ricardo comentou que tinha visto uma Feiticeira loira fazendo Encantamento contra mim... — lembrei.
Não precisava ir muito longe para saber que se tratavam de Thalya e de Rúbia. Oramos para desfazer tudo aquilo.
Pouco antes de Sarah e Jefferson viajarem aos Estados Unidos e nós termos toda aquela confusão com o grupo, eu tinha participado de um excelente processo de seleção. A coisa era perfeita demais, maravilhosa demais. Se desse certo, eu ficaria muito satisfeito! Meus entrevistadores estavam bastante entusiasmados comigo e eu me sentia também bastante otimista.
No entanto, não me perguntem como, tudo aquilo deu pra trás. De repente. A vaga foi cancelada de maneira inusitada. Pediram-me mil desculpas, os entrevistadores estavam tão frustrados quanto eu.
Aquilo teve um efeito desastroso sobre mim. Fazia muito tempo que não me sentia tão desanimado. Mais um processo de seleção que terminava em nada! De nada haviam adiantado nossas orações e súplicas. Eu não entendia mais nada, não sabia mais o que fazer, nem onde procurar trabalho.
Era quase o final do mês de junho e eu não tinha idéia de como arrumar dinheiro para pagar minhas contas. Não havia outra solução senão ir em busca de outros processos de seleção. Eu continuava me esforçando o quanto podia, gastando a sola do sapato nas ruas. Mas me sentia perdido, não sabia a quem recorrer...
Por outro lado, eu e Isabela começamos a estranhar muito a atitude de Sarah e Jefferson.
— Eles não deram nem um telefonema para nós... — comentei com Isabela certo dia. Eu já vinha pensando naquilo havia algum tempo.
— É...
— Eu acho isso muito estranho, quando eles saíram daqui sabiam exatamente da nossa situação delicada. Que tudo à nossa volta estava estourando, debaixo de decreto do inimigo. Sarah sempre deixou bem claro que ela tinha um chamado de guerra contra Principados e Potestades! Não entendo esse tipo de aliança...
Isabela estava pensando mais ou menos da mesma maneira.
— A Grace já nos ligou de fora do país mais de uma vez. A distância nunca anulou a responsabilidade e interesse que ela tem por nós. Realmente, não custava nada dar uma ligadinha...
— Eles mais de uma vez nos chamaram de filhos. Mas eu me sinto abandonado! Nessas horas eu vejo que não existe aliança verdadeira entre a gente, eu não consigo conceber aliança nessas condições.
— E mesmo... eles sempre nos chamaram de filhos, de "amados". Nos convidaram para formar uma equipe e viajar aos Estados Unidos... mas parece que se esqueceram completamente de nós. Me sinto mais ou menos como você, largada à própria sorte!
Naquele momento aquilo pesou muito. Certo ou errado, nossas emoções estavam à flor da pele. Um telefonema teria feito toda a diferença, com um telefonema eles estariam demonstrando interesse pela nossa vida e pela nossa situação. Algo de que muito necessitávamos!
Demonstrar interesse não tinha preço para nós! Não queríamos dinheiro, nunca pedimos nada. A gente compartilhava os problemas com eles da mesma maneira que compartilhávamos com Dona Clara e Grace. Não tinha uma segunda intenção. Aliás, vez por outra a gente até deixava por menos... era um pouco incômodo falar de assuntos financeiros com eles porque Sarah e Jefferson tinham condição real de nos ajudar nessa área. Era bem mais fácil falar com Dona Clara e Grace porque elas não tinham a mesma facilidade.
Então, compartilhar com eles tinha o mesmo intuito de compartilhar com elas: era buscar sustento espiritual. Se ia haver sustento financeiro, isso não sabíamos. E nem esperávamos. Deus é que ia falar com eles. Ou não.
Pelo visto, Deus não havia falado nada porque eles pareciam não estar nem um pouco preocupados se a gente tinha sido despejado, se estava faltando comida em casa... aquela atitude, naquele momento, nos feriu bastante.
Eles não tinham obrigação de ajudar com dinheiro. Aliás, nesse sentido nunca ajudaram mesmo. Mas depois que cativaram o nosso coração, depois que conquistaram a nossa confiança, tinham obrigação de pelo menos demonstrar interesse. Especialmente Sarah já tinha certeza de que realmente deveríamos ir com eles aos Estados Unidos. Isso implicava uma aliança muito forte! Pelo menos nós assim enxergávamos.
Sarah sempre procurava fazer o que podia. Quando íamos à sua casa geralmente ela nos dava coisas para comer, para levar para casa. Nos emprestou também um pequeno fogãozinho de acampamento que era melhor do que o nosso, cozinhava tudo muito mais rápido. Ainda assim, era um fogão de acampamento. Ela costumava levá-lo em viagens de carro.
Mas, naquele momento... faltou o interesse! Isso pesou muito.
Nós tínhamos atendido às suas solicitações em todos os momentos. Compartilhamos o testemunho todas as vezes que pediram, com todas as pessoas que quiseram. Além daquela primeira viagem para o interior, fizemos mais duas. Eu fui exposto diante de pessoas, sem cobertura de oração e sem preparo. E isso foi por amor a eles, por respeito a eles, por respeito à autoridade espiritual que julgávamos que eles tinham. Mas até mesmo num saguão de hotel eu tive que falar. Um dos Pastores não agüentou o levante espiritual, e dormiu quase o tempo todo. Jefferson também foi dormir.
A única que sustentou todos aqueles momentos de testemunho foi Isabela, sempre orando em línguas. Mesmo estando muito gripada e com febre, ela foi a única que orou naquele saguão de hotel enquanto eu falava.
Fazia já um bom tempo que estávamos buscando resposta de Deus a respeito daquela questão de acompanhá-los aos Estados Unidos. Tínhamos comunicado a Grace, que não interferiu na nossa opinião, mas disse que estaria orando por isso. Dona Clara também tinha sido comunicada. Elas foram as duas únicas pessoas com quem falamos sobre aquele convite.
Quanto a nós, vínhamos literalmente suplicando a Deus que nos desse um sinal claro. Não podíamos errar, era impensável tomar a direção errada, sair do caminho da Vontade perfeita de Deus. Embora tenhamos ficado interessados — e tentados — com aquele convite, era fundamental saber se Deus estava ou não naquela história.
Nós tínhamos muito carinho e apreço por Sarah e Jefferson. Realmente não cremos que tenham agido com dolo. Mas, naquela situação desesperadora e crítica, não conseguimos mais vê-los da mesma maneira. Por si só, aquilo já era um sinal claro. Já não testificava no nosso íntimo formar uma equipe com eles. A lealdade daquela aliança não parecia sólida.
E o tempo foi passando. E nada deles entrarem em contato. Aquilo realmente foi me irritando. E aí aconteceu a gota d'água.
Uma pessoa próxima deles... e próxima de alguém da nossa Igreja... sabendo do nosso contato com Sarah e Jefferson, comentou comigo:
— Sabia que o Jefferson está aqui no Brasil? Aquilo foi uma incrível surpresa.
— Está, é?
Ficamos sabendo que ele tinha vindo apenas durante uma semana para cuidar de assuntos profissionais, coisas importantes que tinha que resolver. Sozinho, sem a Sarah. Nós sabíamos do que se tratava, e ele tinha estado do lado de nossa casa havia poucos dias. Tinha passado a poucas quadras da nossa casa...! Mas não ligou, não se comunicou, não quis nem saber...
Ficamos chocados. Talvez essa não seja a palavra, mas traduz parte do nosso sentimento. Foi um duro golpe, porque confiávamos neles. Imaginávamos aquela indiferença partindo de qualquer pessoa, menos deles!
Neste mesmo período outras pequenas informações acabaram chegando até nós. Coisas que nunca compreendemos. E de fonte segura.
Nossa decisão estava tomada. Aquilo bastava. E foi tomada com convicção. Podia não ser culpa deles, mas também não era nossa. Tínhamos confiado até aquele momento. Mas depois que o elo de confiança é quebrado, fica muito difícil. Não que fôssemos deixar de ter amizade, mas não poderíamos chamar aquela amizade de aliança e muito menos mudar a nossa vida em função dela.
Mesmo por aqueles dias, recebemos um bip desagradável. Que, claro, como sempre vinha espetar exatamente na ferida. Quando lemos, soubemos imediatamente do que eles estavam falando. De quem.
Começava assim: "Elevo os olhos para os montes, de onde me virá o socorro?"
A princípio, enquanto as letrinhas corriam pelo visor, imaginamos que era algum conhecido mandando uma mensagem de incentivo. Mas logo vimos que não era nada disso...
"O socorro não vai vir nem de cima, nem de baixo, e muito menos de quem está ao seu lado. Você perdeu a chance. Leviathan."
Diante de toda aquela somatória, optamos por escrever uma carta falando a respeito da nossa decisão, da nossa decepção, de todas estas coisas. Não queríamos sair mexericando, nem fofocando. O melhor a fazer era falar diretamente com eles.
— Remoer tudo isso não é a coisa certa... — comentamos um com o outro.
— Também acho. O diabo está por trás desta situação. Se não formos claros, a coisa pode distorcer ainda mais. Eles precisam saber como nós estamos nos sentindo!
Então, aquela carta na verdade era um desabafo. Não era uma acusação. A gente só queria ser sincero, ser transparente. Se quiséssemos criar contenda, teríamos saído falando mal pelas costas deles. Isso nós nunca fizemos! Realmente preferimos ser transparentes, era o único modo de acertar aquela situação. Esse era o nosso desejo: acertar a situação.
Por isso até mesmo dissemos isso no final da carta: estamos falando com vocês, estamos falando para vocês.
Talvez tenhamos errado em escrever. Na nossa ansiedade e amargura, não pedimos opinião para ninguém, e fizemos a coisa no impulso. Esse foi nosso erro. Nossos sentimentos eram até justificáveis, mas teria sido melhor esperar que eles regressassem para conversar frente a frente. Teria sido melhor falar, do que escrever.
Mandamos a carta. Que ficou esperando por eles.
Certo dia, o bip tocou. Era Sarah. Eu desci e fui telefonar do orelhão.
— Oi, amado! Como é que você está? — a voz de Sarah vinha efusiva pelo telefone. Ela começou a contar sobre os Estados Unidos. — Foi tudo bem, foi tão bom! Conhecemos a Igreja, conhecemos o Pastor, falamos de vocês, está tudo certo... vão se preparando!
Eu fui ouvindo o que ela dizia. Mas em certo momento, acabei perguntando:
— Sarah, você recebeu a nossa carta?
— Nem deu tempo de olhar. Como ficamos muito tempo fora, tem um monte de correspondência aqui.
— Ah! Então acho que vou te adiantar... pode ser? — fui falando com educação, calmamente.
Comecei a explicar sobre os nossos sentimentos, nossa frustração, como tínhamos ficado chateados porque eles não telefonaram, etc. etc.
— Puxa vida, Sarah... nem um telefonema... vocês esqueceram da gente!
— Mas eu tentei ligar! Mas como estão mudando os sistemas de telefonia aí no
Brasil, não consegui ligação.
— Será possível? Porque Marco tem ligado do exterior normalmente. Pode ter sido uma coincidência, mas entenda a nossa posição, se foi isso que aconteceu eu entendo que você se preocupou. Mas o Jefferson esteve aqui no Brasil e aí não tinha nenhum problema com o telefone.
— Mas ele estava muito ocupado... foi um tempo corrido.
— Sarah, eu até entendo. Mas nunca a coisa é tão corrida que não dá tempo nem de telefonar. Será que vocês não tinham nem curiosidade de saber o que tinha acontecido conosco? Vocês sabiam exatamente da nossa história, sabiam aquilo que poucos sabiam. Quando vocês foram embora, sabiam que a nossa situação estava crítica. Se ele estivesse realmente interessado, inclusive porque vocês tentaram ligar e não conseguiram... teria tido tempo de dar um alô. Não estou falando isso para acusar ninguém, não me entenda mal. Nós gostamos muito de vocês! Mas foi difícil lidar com isso. Realmente a gente ficou se sentindo jogado para as traças, como se vocês nem nos conhecessem...
Falei com toda a sinceridade do mundo. Sarah compreendeu de imediato.
— Nisso você até tem razão. Um telefonema não custava nada. Acho que foi tudo um grande mal-entendido, porque nós também amamos vocês. Mas eu tinha certeza que você estava empregado, Deus tinha me falado que você estava empregado! Por isso não me preocupei...
— Mas não foi assim que aconteceu. — Puxa vida...
Ela foi conversando comigo naturalmente, sem sentir-se ofendida. E, aos poucos, tudo o que estava escrito na carta, eu falei ali para ela. No final da nossa conversa eu já estava mais calmo e realmente não teria nenhum problema em liberar perdão a eles. Também entendi que eles não tinham feito de propósito.
— Então vamos marcar um dia para a gente conversar. Nós quatro, pessoalmente, e vamos pôr um ponto final nessa história.
— Eu acho isso ótimo. Mas, Sarah... entenda que estivemos orando... nossa amizade vai continuar a mesma, mas Deus não confirmou no nosso coração a ida para os Estados Unidos. Podemos conversar sobre isso melhor quando nos encontrarmos.
Senti que ela ficou um pouco chocada. Certamente não esperava por aquela reação. Não vamos querer nos justificar... mas estávamos debaixo de muita pressão e talvez nossa reação tenha sido um pouco exacerbada. Hoje a gente já não se incomodaria tanto com o fato de sermos momentaneamente esquecidos. Sabemos que isso acontece. Muitas vezes, infelizmente, o povo de Deus se comporta assim mesmo.
Mas naquela época eu acreditava. Eu acreditava nas palavras, eu acreditava nas promessas, eu acreditava que quando alguém me chamava de filho... estava querendo dizer isso mesmo! Quando Marlon me chamou de filho eu experimentei uma coisa diferente. Infelizmente, eu ainda não estava plenamente curado. E aquilo me feriu profundamente.
Apesar disso, a decisão sobre os Estados Unidos não tinha nada a ver com aquilo. Era uma convicção diferente, uma convicção de que não era o tempo, não era o modo.
— Tudo bem, Eduardo. Vamos nos encontrar e conversar pessoalmente. Da minha parte está tudo bem!
Marcamos o encontro. Quando desliguei o telefone, minha impressão é de que estava tudo bem. Da mesma maneira como nós seríamos capazes de entender e perdoar aquilo que vimos como sendo um deslize deles, imaginei que eles também seriam capazes de entender a nossa mágoa até mesmo infantil, e nossa recusa daquele convite ministerial. Saberiam separar as coisas! Nada disso precisaria ter abalado nossa amizade.
Mas não aconteceu como a gente previa. No dia do encontro, Jefferson estava frio. Nos cumprimentou, mas não ficou na sala para participar da conversa. Ficou trabalhando no escritório e só voltou para se despedir.
Sarah explicou que ele tinha ficado muito chateado com a carta. Irado, inclusive. Nem sequer deixou Sarah ler o que estava escrito, embora fosse exatamente aquilo que eu tinha dito pelo telefone. E que ela já entendera.
A reunião entre nós três foi boa. Conversamos longamente, expusemos mutuamente nossos sentimentos e compreendemos que tudo aquilo poderia ser perdoado e esquecido. Foi o que fizemos, nós pedimos perdão, e ela também. Depois oramos por Jefferson para que Deus acalmasse seu coração e preparasse o momento certo de uma nova conversa.
No final, nos abraçamos e ficamos aguardando.
Um pouco antes de sair, comentamos também sobre a posição que as mulheres do grupo tinham tomado em relação à Isabela. Explicamos que tinha sido por isso que não voltamos às reuniões.
— Elas são inexperientes ainda...
Fato é que aquela postura de Jefferson impediu que a gente continuasse convivendo como antes. No nosso coração, ele estava perdoado. Restava que ele também nos perdoasse pela precipitação em expor nossas emoções feridas...
Meses mais tarde, tornamos a escrever uma carta para Jefferson. Uma carta só para ele. Explicamos novamente o que havia acontecido, como tinha ficado nosso coração, que nossa intenção não era ofendê-lo. Que realmente nós o tínhamos visto um pouco como pai, e justamente por ele ser caro ao nosso coração é que tinha doído tanto aquela aparente indiferença. Justamente porque eles representavam algo para nós!
Então pedimos novamente que ele nos desse a chance de acertarmos o relacionamento, que pudéssemos ter aquela conversa.
Mas não tivemos resposta.
Ainda em outra ocasião, quando ele foi ungido Pastor, eu telefonei no dia especialmente para cumprimentá-lo. E falei outra vez:
— Olha... não viaja sem antes a gente se encontrar. Não vamos deixar essa pendência nas nossas vidas!
— Vamos ver se marcamos.
Mas não marcou. Foi uma pena que tivesse sido assim. Todas as tentativas de nos aproximarmos de outras pessoas, embora quiséssemos muito, terminavam em frustração.
Mais uma vez cheguei ao final de outro processo de seleção.
Durante todo o período nós estivemos orando, Isabela e eu, por cada etapa. Porém, à medida que eu ia avançando, continuávamos orando mais por obediência do que por convicção. Era necessário manter tudo aquilo debaixo de uma cobertura específica, mas a gente já não conseguia acreditar que Deus fosse realmente nos coroar com vitória.
Por algum motivo Ele se mantinha calado, por algum motivo Ele não me abria aquela porta de emprego.
Nossas orações já não pediam pelo emprego, mas para que Deus fizesse a Sua Vontade Soberana nas nossas vidas. E se era preciso passar por aquele deserto, que assim o fosse, que Ele nos desse a Sua Força.
No fundo dos nossos corações sabíamos que Deus estava no controle daquela situação!
No final daquela manhã recebi um bip da agência de empregos. Telefonei em seguida, esperançoso.
— Você poderia vir aqui hoje? — falou a selecionadora.
— Posso, sim.
Eu conhecia um pouco do protocolo. Eu já tinha feito a entrevista final na Empresa, de forma que, se ela estava me chamando para ir diretamente à agência, talvez fosse para me dar uma boa notícia. Quando a notícia não era tão boa assim, normalmente comunicavam por telefone mesmo.
Me arrumei todo, super lampeiro. Por mais que Deus tivesse falado em Ministério, se nada acontecia, eu não podia ficar esperando de braços cruzados, morrendo de fome!
Fui, já imaginando que certamente seria contemplado e pensando no que fazer para agüentar até o recebimento do meu primeiro salário. Minha cabeça fazia contas e mais contas, incessantemente, imaginando o que era mais urgente e o que poderia ser deixado para um pouco mais tarde.
Quando saí, Isabela ainda estava dormindo, de forma que eu esperava poder dar-lhe uma boa notícia tão logo acordasse, fazendo surpresa.
Quando cheguei à agência, fiquei aguardando um pouco como era praxe, estava tudo lotado. Como eu estava animado, aquilo realmente pareceu "um pouco". Na verdade, tomei o maior chá de cadeira...
Quando finalmente a moça me chamou, foi para me dar a péssima notícia de que eu não tinha sido aprovado. Mais uma vez! Exatamente como estava acontecendo desde novembro do ano passado, quase nove meses! Aquele já deveria ser o duodécimo processo de seleção, pelo menos, em que eu chegava à final... e dava com os burros n'água! Morria na praia!
Ela deve ter percebido pelo meu rosto que a notícia teve o efeito mais ou menos de um banho de água gelada...
— Mas, olhe, não fique desanimado! Eu chamei você aqui para dar a resposta pessoalmente porque tenho um outro processo começando, que se encaixa perfeitamente no seu perfil, numa ótima Empresa também, e gostaria de saber se você quer participar.
— Claro, né? É preciso continuar tentando.
Saí de lá anestesiado. Estava muito, muito triste. Novamente sem saber para onde ir e muito menos o que fazer. De quebra eu não tinha quase que nem um tostão no bolso. Para não ser excessivamente dramático, tinha R$ 5,00!
Perdi minha oportunidade de fazer uma surpresa para Isabela e, de repente, não parecia uma boa idéia ir direto para casa. A tarde estava findando e os ônibus estariam muito cheios.
Então resolvi dar um pulo ao Shopping Paulista, ali perto, para tentar esfriar um pouco a minha cabeça.
Fui caminhando devagar, subi a Avenida Brigadeiro sem conseguir prestar atenção em nada, perdido nos meus próprios pensamentos, remoendo aquelas sensações ruins, aquela incerteza, aquele sentimento de angústia, aquela impressão de que cada vez mais o chão saía de debaixo dos meus pés...
Nada parecia ter graça para mim naquele momento, me senti profundamente deprimido.
"Vou sentar um pouco e tentar me acalmar, pensar no que fazer... vou tomar um café, para isso ainda tenho dinheiro."
A praça de alimentação estava praticamente vazia, ainda não era hora de pico no Shopping. Comprei um cafezinho expresso ali mesmo na gôndola, bem perto de onde tinha a sorveteria por quilo da Ofner e a Baked Potatoe.
Sentei diante do meu café e por algum motivo até me esqueci de tomá-lo, fiquei apenas observando a fumacinha que saía de dentro da xícara. O café na verdade era uma desculpa, uma válvula de escape. Mais tarde poderia dizer a mim mesmo que aquele dia não tinha sido de todo perdido, afinal sentei para tomar um café no Shopping! Mas eu não tinha nem forças para tomá-lo...
Suspirei. Não contemplava nenhuma saída, a única coisa que podia perceber é que cada vez mais tudo estava ficando pior. O que seria de nós?! Estar ali não me acalmava, de modo algum, pelo contrário... foi me dando um desespero intenso... aquela angústia aumentava.
"Casei... e nenhum de nós dois quer voltar pra casa da mamãe! Não é possível que isso vá acontecer. Por que Deus permitiu o casamento, então? Nós nos aconselhamos com todo mundo, todo mundo nos incentivou apesar da situação, todo mundo acreditou que era tempo. Quer dizer, todo mundo se enganou?!."
Lá estávamos nós, Isabela e eu, naquela sinuca de bico. E me lembrei do que Marlon tinha dito... realmente não conseguia ver muitas pessoas me ajudando. Especialmente aquelas que tinham condição! Embora batêssemos de porta em porta, elas também se fechavam uma após a outra. Me senti revoltado.
Eu sabia perfeitamente a que espécie de ajuda ele tinha se referido, Marlon estava falando de uma ajuda financeira. Ele me avisara de que eu ia precisar disso, desde aquele dia, no ponto de ônibus, quando me ofereceu R$ 5.000,00!
Eu continuava olhando a fumaça no café sem vê-la, quando de repente alguém interrompeu o rumo dos meus pensamentos. Eu nem os tinha visto chegar, quando dei por mim uma voz me perguntou, com extrema educação:
— Você dá licença da gente sentar aqui com você?
Quando olhei para cima vi um homem que estava em pé na minha frente, ao lado de duas moças. Eu o reconheci imediatamente. Era Górion, um antigo amigo que tinha feito parte do meu Grupo de Conselho, na Irmandade. Minha reação? A bem da verdade, nenhuma. Olhei e continuei anestesiado. Eu ainda não conseguia vê-los como meus inimigos em potencial. Tudo que podia perceber é que ali na minha frente estava uma pessoa que eu conhecia. Alguém com quem tinha convivido durante muito tempo. Quanto às outras duas, não sabia quem eram.
— Pode sentar — falei, sem ênfase.
Os três se acomodaram. Górion olhou para mim e tinha um semblante sincero de compaixão. Começou sem muitos rodeios, dispensando explicações.
— Você não precisa estar passando por isso... pra que isso? Até quando você vai insistir no erro? — falava com voz mansa, sem tom de acusação. — Você não vê que nada está dando certo, que ninguém está do seu lado? Os crentes gostam de bater no peito e falar que "é mais forte aquele que está em nós do que aquele que está no mundo"... mas... como pode haver força no meio da desunião? Como pode haver força na divisão? Você está vendo isso com seus próprios olhos hoje de maneira mais clara do que nunca. O próprio Jesus já disse que uma casa dividida não prevalece! Então... cadê a força? A força está na unidade! Nós somos unidos. E ainda te amamos muito. Você está fazendo falta...
Não parei para pensar naquela hora que, para todos os efeitos, a data limite já tinha esgotado. Talvez essa história de data limite tivesse sido tão-somente mais uma cartada deles. Como quisessem uma resposta rápida da minha parte, usaram aquilo para me pressionar, me obrigar a tomar a decisão logo.
Mas talvez aquele não fosse ainda de fato o último instante.
E como eu tinha tomado uma decisão contrária ao que eles imaginavam, acabaram mudando a estratégia e agora novamente tentavam me persuadir a voltar.
Era isso. Aquilo passou em milésimos de segundo pela minha mente.
— Você vai ser bem-vindo! — continuou Górion sem pestanejar. — Olha, deixa te apresentar as nossas companheiras...
Ele falou o nome das moças, que sorriram para mim e estenderam a mão. Não me lembro dos nomes, nem estendi a mão de volta. Uma delas, a que me olhava com mais interesse, ainda cochichou para ele, meio sorridente:
— Então esse que é a alma gêmea da Tassa? — E parecia muito espantada. Não tenho idéia do que ela podia estar pensando, mas pelo visto eu devia ser uma pessoa muito comentada no meio deles.
Górion mudou um pouco a expressão do rosto, fez apenas um sinal de "sim" com a cabeça, e ao mesmo tempo um "fica quieta". Seu olhar foi um pouco mais enérgico para ela. Ele tinha plena consciência de que não estava ali para brincadeiras, era uma situação séria e delicada. Hoje sei que talvez fosse muito mais séria e delicada para eles do que para mim.
— Você conquistou uma patente dentro do Reino de Deus. Isso é claro. Aliás, nós só pudemos nos aproximar e sentar aqui nessa mesa com você porque houve um acordo entre as nossas Guardas. Nós temos os nossos Guardiões, você sabe... mas você também tem um Guardião! Digamos que houve uma permissão da parte dele na nossa aproximação... é um encontro autorizado! — ele sorriu. — Nossos Guardiões entraram em acordo! E se houve esse sinal verde para nós, talvez esse seja realmente... um sinal. Um sinal de que você pode escolher...
Certamente meu "Guardião" estava muito bem posicionado ali ao meu lado. Talvez por isso Górion tivesse sido um pouco ríspido com aquela moça bisbilhoteira. Qualquer passo em falso poderia ser fatal! A velha história daqueles que vibram muito negativo chegando perto de alguém que vibra muito positivo... (Leia Filho do Fogo).
Mas naquele momento não pensei em nada disso, apenas continuei olhando para ele, esperando, sem dar resposta. Na verdade, me sentia sem forças para nada. Então Górion empurrou na minha direção um envelope grande que envolvia alguma coisa.
— Aqui estão as nossas verdades, para que você não esqueça. Esta é a verdadeira verdade que liberta! A Verdade que você vive... é uma mentira. Quem vive a Verdade, afinal? Os crentes, de uma forma geral, vivem uma mentira! Uma fachada... um farisaísmo. Mas nós, não. Você sabe disso. Acho que você já teve tempo suficiente para comparar.
Ele não estava batendo de frente comigo, não estava me recriminando, apenas falava com mansidão. Então peguei o envelope e abri para ver o que tinha dentro. Era um livreto de capa preta, com o pentagrama e o bode desenhado nele...
— É claro que esta não é a mesma bíblia que você conheceu, e que tinha com você, inclusive... mas que, infelizmente, você destruiu...! Este é o nosso livro doutrinário. Tem sido hoje uma das nossas ferramentas mais poderosas para recrutar pessoas, em todos os segmentos, em todos os cantos do mundo. Já foi traduzida para muitos idiomas! Então... releia, né? Você vai relembrar as nossas verdades.
Abri o livro e, por algum motivo que não entendi, estava em inglês. Acho que eles deviam estar lembrados que eu não era fluente no inglês, no entanto... ali estava ela, uma bíblia satânica. Resumida, sim, mas ainda assim... uma bíblia satânica.
Suspirei, passei a mão pela cabeça. E não falei nada novamente. Não estava a fim de falar nada. Continuei escutando. Górion carregava consigo uma mochila. Ele colocou a mochila no colo e tirou de dentro dela um outro pacote. Um embrulho de papel pardo.
— Aqui tem US$ 30.000. Nós estamos dando isso para você como uma ajuda, não estamos te comprando, hein, por favor... é realmente uma ajuda, porque sabemos da sua dificuldade. Nós te amamos de verdade, por isso estamos te oferecendo isso. Queremos o melhor para você... e já que ninguém do seu lado te ajuda, nem nunca vai te ajudar, nós estamos te ajudando! Demonstrando que de fato nós nos preocupamos com você...
Ele fez uma pausa. Eu esperei.
— Isso aqui vai fazer com que você consiga pensar, refletir. Porque ninguém consegue pensar nesse estado que você está! O que Deus está fazendo com você, e o que a Igreja está fazendo com você não se faz nem com o pior dos bandidos na face da Terra! Você está sendo torturado física, emocional e espiritualmente. Então... esse dinheiro vai trazer um pouco de tranqüilidade para a tua alma, paz no seu espírito... equilíbrio para sua mente. E você vai conseguir ponderar as coisas, vai chegar à conclusão óbvia: onde está a verdadeira Verdade, a verdadeira vida! Realmente entenda este nosso passo como uma ajuda que estamos te dando voluntariamente, não se trata de te "comprar". Só queremos que você tenha a cabeça fria para poder pensar.
Górion empurrou o pacote na minha direção. E aquilo ficou diante dos meus olhos.
— Repensa — disse ele mais uma vez. E fez uma pequena pausa antes de dar continuidade. — Fora isso, há algo mais em que repensar... esse casamento que você fez só está te trazendo ruína e destruição. Nós estamos te esperando de braços abertos, você sempre foi especial... — Górion emocionou-se um pouco, deixando cair algumas lágrimas.
Ele pareceu muito sincero. Eu olhei novamente para aquele tijolo na minha frente. Era realmente um tijolo! Um tijolo de dinheiro... e pensei lá com meus botões, a mente voando tão rápida quanto o vento...
"Eu só tinha R$ 5,00 no bolso... agora tenho R$ 4,00 porque comprei o café... depois que pegar condução, vou ter apenas R$ 3,00... eu posso voltar para casa com esses R$ 3,00, ou... posso voltar com US$ 30.000!"
O pensamento que se seguiu imediatamente após foi a respeito do dinheiro que tinha sumido da nossa conta, havia pouco mais de um ano.
"Puxa vida... Deus está restituindo! Está tirando do ímpio para dar ao justo! E está vindo com juros, aqui tem mais do que nós tínhamos antes..." Naquela época o dólar estava praticamente empatado com o real. "Eu mereço isso!"
E estava pronto para aceitar. Pus a mão em cima do dinheiro, para puxar pra mim. Mas imediatamente veio um alerta no espírito, um sinal vermelho. Certamente era o discernimento que Deus tinha me dado, mas naquela hora tão imprópria?!
Fui invadido por uma sensação ruim, ruim, um mal-estar, uma angústia forte... aquele foi o "não" mais claro que eu já tinha ouvido de Deus até então. Era um sinal de morte. De luto. Uma sensação sombria, de pesar, densa. Indescritível. Realmente uma coisa horrível. Horrível!
"Meu Deus do céu..."
Eu praticamente podia ouvir dentro de mim aquela voz que me dizia, fortemente:
"Não aceita. Não aceita! Isso vai dar legalidade, essa é a chave, essa é a porta.
Não abre essa porta."
Como estivesse ainda com a mão sobre o dinheiro, lentamente empurrei-o de volta na direção de Górion.
— Não... isso eu não posso aceitar... mas o livro eu aceito!
Peguei o livreto para mim. Deus não tinha sinalizado nada perigoso naquilo. Na verdade, eu gostaria de mostrá-lo para Grace. Mesmo porque, nem que quisesse poderia lê-lo.
Górion olhou primeiro para o pacote. Depois, quando ergueu os olhos para mim, eles já estavam diferentes. Demonstravam irritação. Mas não ódio. Apenas irritação... indignação... o semblante de quem se sente afrontado com tal negativa. As duas também olhavam para mim com uma mistura de admiração e espanto.
Então ele me olhou fundo e falou baixinho. Bem baixinho. Isso é uma característica deles, dos Satanistas. Podem lançar o mal e a morte sem fazer escândalo.
— Se vocês botarem os pés nos Estados Unidos, a família de vocês vai sofrer as conseqüências aqui. Nós vamos acabar com eles! Ali é o olho do ciclone... vocês não estão nem preparados para isso, para pisar naquela terra.
Novamente. Nossa vida parecia um livro aberto! Então eles sabiam daquele convite...
Górion simplesmente continuou, quase sem piscar:
— Aquele crentinho de bosta, por exemplo, vai invejar os mortos. Ele vai buscar a morte e não vai encontrar... vai desejar a morte, e a morte não irá ao encontro dele. Porque aquilo que está reservado para a vida dele é sofrimento, muito sofrimento, muita dor! E com isso nós estamos fazendo um benefício a você, não é mesmo? No seu coração também há ira... mas você não pode fazer isso com suas próprias mãos! E por quê? Porque Deus não permite que você faça, quer que você dê a outra face. Pois nós não damos a outra face! Nós vamos te vingar... porque ainda amamos você.
Também entendi o que ele estava falando. Já fazia até que um bom tempo, mas uma vez Marco e eu brigamos feio. Naquela ocasião, não fosse pela intervenção de Isabela, eu e ele teríamos cortado relações. Mas ela, com toda a intensidade do seu coração, com toda súplica e perseverança, me fez ver que também aquilo era um golpe do diabo. Falou sobre sua família, cuja marca era a divisão. E que se eu cedesse a isso, à divisão entre nós dois — Marco e eu — seria somente um trunfo a mais para o diabo.
— A carreira dele está morta. Nós nunca vamos permitir que ele suba um degrau. Górion era uma importante peça dentro do contexto publicitário brasileiro.
Ele era um dos 90 escolhidos que preparariam o cenário político brasileiro para o advento do anticristo (Leia Filho do Fogo). Estes 72 homens e 18 mulheres estariam quase todos inseridos na política, mas também penetrariam alguns patamares importantes da mídia.
Depois disso, ele simplesmente se preparou para ir embora.
— E você tem certeza do que está fazendo? — ainda se referia ao dinheiro. Assenti. Mas foi muito difícil. Se dissesse que foi fácil, estaria mentindo.
— Tenho. Deus vai cuidar de mim...
— Espero que você esteja certo... — ele tocou no meu ombro, com pesar. Levantaram os três, e foram embora. Instintivamente baixei os olhos para o café. Ele continuava ali, exatamente do mesmo jeito. Mas já não saía fumaça. Me passou pela cabeça aquilo que Marlon costumava falar sobre o café... que tinha uma moeda no fundo...
"Absorver o negro... para conhecer a verdade... meu Deus, quanto engano!" Levantei os olhos num misto de sentimentos contrários e estranhos. Agora minha alma estava gritando. Na hora, eu tinha escutado o espírito. Mas agora, era minha alma que falava.
"Será mesmo que não devia ter aceitado??"
Vi os três caminhando, descendo pela escada rolante.
"Se correr atrás deles, e falar que eu quero... acho que eles me dão o dinheiro!"
Mas repensei. Não. Deus iria dar um jeito. Orei ali um pouco, num desabafo:
— Eu estou sendo fiel... ah, Deus, que o Senhor também seja Fiel! Foi muito, muito difícil!
Novamente me bateu aquele desespero. Larguei o café ali mesmo, praticamente corri até o banheiro. Tranquei a cabine e chorei, chorei, chorei... depois saí, lavei o rosto... e fui embora para casa com a bíblia satânica.
Quando cheguei, já era noite. Isabela estava na cozinha tentando inventar um jantar. Notei pelo seu rosto que tinha estado bastante preocupada.
Nem bem abri a porta da rua e ela me olhou ali da cozinha. A cozinha ficava bem pertinho da porta.
— Nenê... puxa, aonde você andou, hein? Quando acordei você não estava em casa, não deixou nenhum recado... e já é noite! Chegou uma hora que eu não conseguia fazer mais nada, não conseguia escrever, não conseguia me concentrar em nada de preocupação com você. Fiquei orando... e pensando onde você podia estar. Que aconteceu?
Dei um longo suspiro.
— Deixa eu ir ao banheiro, já te conto.... Quando voltei, ela terminava de pôr a mesa.
— Senta, Nenê... improvisei como deu... não sei se está muito bom.
— Ah! está bom, sim.
Sentamos, nos servimos. Não tinha nada de especial: arroz, carne moída, tomate... mas estava gostoso!
Eu ainda me sentia passado, chocado, anestesiado. E muito desanimado. Isabela certamente notou meu estado de ânimo. Mas ficou esperando que eu falasse. Então, comecei contando que o emprego não tinha dado certo.
Ela não falou nada. Naturalmente que ficou triste, mas não era a primeira vez que ela ficava triste por causa disso.
— Não consigo entender... é quase como se Deus estivesse dizendo: "Você é capaz, Eduardo... como você mesmo vê, todas as vezes você vai até a final... Eu sei que você sabe, e Eu quero que você saiba que você sabe! Mas Eu não quero abrir essa porta de trabalho"...
Fiquei quieto por um pouco. Talvez ela tivesse razão. Cada vez mais eu também começava a crer nesta possibilidade. Deus estava permitindo aquela situação porque, por algum motivo, era preciso atravessar aquele deserto. Mas aquele deserto estava árido, estava escaldante, estava desesperador...
— Não acredito que isso seja pura obra da Irmandade. Lógico, eles estão lançando Encantamentos... mas Deus está permitindo. Afinal, nossas orações têm que ter algum poder! Quem sabe, mais tarde... a gente consiga entender o por que disso tudo.
Mas ela também estava desanimada. Aquela foi uma tentativa de fazer com que eu me sentisse melhor. Mas agora, pela primeira vez, nós dois estávamos abatidos ao mesmo tempo. Até então, não tínhamos recordação de nenhum outro momento semelhante. Em quase todas as lutas, ou um, ou outro estava mais forte. Se eu estava fraco, Isabela conseguia estar forte, e me animar. Se era ela que estava muito ruim, eu conseguia me manter em pé.
Mas naquela noite não foi assim. Especialmente depois que contei o que aconteceu no Shopping. Isabela ouvia, calada, introspectiva. Não soube muito bem o que dizer, compreendia o quanto aquilo tinha sido difícil para mim. E não estava sendo menos difícil para ela.
— Até quando isso vai continuar?... Não sei até quando vamos suportar esse tipo de coisa.
— Será que deveria ter aceitado o dinheiro? — falei com inquietação. Nesse momento, Isabela foi veemente.
— Imagina, Eduardo! Dinheiro do diabo?!. Ainda bem que você não fez uma loucura dessas. Vai saber o que podia acontecer depois. Se você aceitasse, era bem capaz de estar com alguma doença grave daqui a um mês.
Interessante ela ter falado aquilo. Porque quando toquei o pacote senti aquele terrível peso de morte.
— Você tem certeza? Tem certeza de que fiz o certo? — precisava escutar aquilo de novo.
— Lógico, Nenê... você ainda tem dúvida? Graças a Deus que você não aceitou nada deles. Graças a Deus!!
Oramos, nos reconciliamos totalmente. Mas aquela tristeza ficou no nosso coração. Ficamos três dias muito mal, foi algo realmente inédito. Por mais árdua que tivesse sido a luta até então, nunca ficamos três dias seguidos quase que em estado de depressão. Parecia haver um peso de morte sobre nós. Uma coisa diferente, mais densa, mais tenebrosa. Oramos, mas nossas orações não pareciam ter impacto. Eram desanimadas, melancólicas... assim nós nos sentíamos.
Numa daquelas três noites, Isabela sentou no meu colo, na cozinha, e ficamos abraçados... choramos enquanto orávamos. Tanto no meu coração quanto no dela parecia haver uma certeza de que não viveríamos muito.
— Vamos aproveitar o tempo que nos resta...
Além disso, Isabela em especial se preocupava muito com sua família. O ataque à casa dela não era uma coisa nova para nós. Desde que Deus tinha me dado o Dom de discernimento volta e meia eu percebia coisas em relação a eles. A primeira vez já fazia bastante tempo, tinha sido logo depois que o anjo ruivo derramou aquela unção sobre mim. Um dia, por um motivo que já não me recordo, combinamos de nos encontrarmos todos na Igreja. Eu fui antes com Isabela, e mais tarde Marco chegou com Dona Márcia. Nós dois estávamos lá na frente, e antes do Culto começar vi quando eles entraram.
De repente, até levei um susto! Junto com eles estava entrando um demônio grande, forte.
Toda procura por ajuda sempre era frustrada. Isabela se esforçava... conversou primeiro com os Pastores da Igreja de Dona Márcia. Tudo o que nós queríamos era que eles dessem um acompanhamento mais próximo, um discipulado, que orassem junto com ela. Dona Márcia costumava fazer todos os cursos da Igreja, costumava estar presente às reuniões de célula, era participante e ativa.
Apesar disso, não conseguimos que eles assumissem o compromisso de pastoreá-la melhor. Um dos Pastores foi uma única vez à casa de Dona Márcia, garantiu que estaria vindo toda semana, mas por algum motivo nunca mais voltou. Alegou falta de tempo, coisas tolas.
As dificuldades de relacionamento na família de Isabela eram profundas, era algo que fugia ao controle de todos. Por mais que quisessem acertar, parecia não estar ao alcance deles. Depois do nosso casamento, progressivamente o relacionamento entre Isabela e Dona Márcia foi melhorando. Mas não estava nada bem entre Marco e a mãe, às vezes parecia também que Isabela e Marco nem se conheciam, nem eram irmãos. Isso mortificava Isabela. Ela orava muito nesse sentido, sempre pedindo que eu orasse junto, buscando de Deus uma solução. Não se conformava em pensar que não havia solução!
Todo acompanhamento que tentávamos conseguir para Marco também não durava muito, não dava certo. Naquela época ele estava sem Igreja, e nas férias começou a freqüentar conosco ali na Comunidade. Mas quando ia embora para o exterior, ficava muito sozinho, muito sem acompanhamento. Parecia haver uma imensa e inexpugnável muralha cercando a família de Isabela do resto do mundo. E isso a incomodava demais.
Conversamos também com Grace, pedimos oração, conversamos com Dona Clara... mas a verdade é que todo acompanhamento não durava muito.
Quanto a nós... depois daqueles três dias, durante o Culto, na Igreja, fomos renovados. De uma maneira sobrenatural, intensa, vigorosa. Aqueles sentimentos de morte e de opressão nos abandonaram totalmente. Não era a primeira vez que isso acontecia, nós tínhamos momentos de desespero, momentos de desânimo, de abatimento, de dor, de solidão, de tristeza, de insegurança, de dúvida... mas não permanecíamos neste estado por muito tempo.
Geralmente, o recebimento da Palavra, o Louvor e a adoração, o aconselhamento, as orações individuais e em concordância, a presença do Espírito Santo de Deus... tudo isso tinha o Poder de nos fortalecer e reanimar.
O que trazia tanto cansaço para nós é que estes momentos de baixa, embora fossem momentos, eram muito numerosos! Quase todos os dias havia muito desgaste, muitas situações de estresse.
Desta vez tinha sido diferente, tinha durado três dias, mas agora tornávamos a sentir paz no meio daquela luta. Quando digo paz não estou querendo fazer poesia, não quero com isso dizer que a gente dormia muito bem à noite, que a gente não se preocupava com as contas, que não tinha temor pelo que poderia acontecer. Mas aquela sensação de morte tinha sido retirada!
A Luz de Deus incidiu sobre nós e nos iluminou. Nosso espírito foi novamente invadido pela convicção de que havia um deserto, sim, para ser atravessado, um deserto longo e solitário... mas o Senhor dos Exércitos iria conosco!
Por sinal... nossa situação financeira foi salva pelo gongo mais uma vez! De novo, foi Grace. Nos emprestou novamente R$ 1.000,00!
A Ministração de Isabela com Jefferson não tinha dado certo. Duas vezes ele marcou e desmarcou, antes da viagem aos Estados Unidos.
Já fazia alguns meses que Grace tinha intenção de ministrá-la. Ao longo daquele tempo em que Grace tinha o cuidado de mim, aos poucos foi conhecendo também Isabela. E tinha ficado clara a necessidade de Cura Interior.
Nós tínhamos comentado sobre a tentativa frustrada de Sarah e Jefferson, então Grace espremeu sua agenda, ciente de que, agora, cuidar dela também se tratava de uma urgência.
Ficou marcado para dia 30 de junho, uma tarde como outra qualquer.
Quando chegamos à Igreja onde Grace costumava atender naquela época, estava tudo vazio e silencioso. Tivemos que bater várias vezes na porta de vidro, espiando através dela, até que Grace aparecesse.
Entramos, nos cumprimentamos, fomos entrando na sala. Desta vez Isabela estava um pouco mais calada do que normalmente. Enquanto a intercessora não chegava, Grace quis saber um pouco de nós. Compartilhamos, e depois Grace começou a conversar mais especificamente com ela.
— Grace... vou te ser sincera... — respondeu Isabela — eu já fui ministrada tantas vezes, e não senti uma melhora real, que agora estou um pouco desacreditada. Não estou me sentindo muito bem nestes dias e, a bem da verdade, acho que não vai acontecer nada dessa vez também. Se depender da minha fé... estou sendo sincera: estou sem fé! No fundo, no fundo eu queria muito que alguma coisa nova acontecesse. Por isso que estou aqui, por causa desse fiapo de esperança. Mas a minha dúvida é certamente bem maior do que o fiapo.
Isabela era sempre muito franca. Não fazia média para que os outros gostassem dela, para que pensassem que ela era algo além da realidade.
— Que é isso, irmã? — falou Grace com convicção, mas carinhosa. — Às vezes é assim mesmo, eu já vi vários casos assim, sabe?... Que a pessoa vinha e ficava do mesmo jeito, vinha e ficava do mesmo jeito. Mas, de repente, Deus mostrava alguma coisa a mais, e então acontecia! A cura pode ser um processo lento...
Mesmo sem perceber, Isabela foi falando dos seus sentimentos, ali mesmo na conversa:
— Eu gostaria de acreditar que Deus realmente se importa comigo, que realmente me ama... eu sei que me ama porque está escrito na Bíblia...
— Mas você não sente isso de forma pessoal, não é? —Mais ou menos...
Grace começou a fazer algumas perguntas sobre seu passado, para entender qual seria a provável origem daquele sentimento. Foi perguntando sobre o relacionamento familiar. E Isabela começou a contar a história do seu pai. Não era fácil para ela. Seu rosto estava triste e abatido.
— Então... eu sinto como se tivesse perdido o amor dele. E perdi o amor dele por ser ruim, por ser uma filha ruim. Quer dizer, talvez meu pai não tenha deixado de me amar, mas não era mais a mesma coisa. E o pior de tudo é que talvez ele tenha pensado que eu não o amava mais. Isso machucou muito o coração dele — seus olhos já estavam marejados. Ela se esforçou para continuar falando.
— Você perguntou da minha família, estou contando... durante um tempo, logo depois que meu pai morreu... não... acho que até mesmo antes disso, acho até que desde a época da Faculdade, desde a época em que tranquei a matrícula... eu me sentia como se tivesse que pagar por alguma coisa. Pagar pelo mal que tinha feito, pagar pela tristeza que tinha causado à minha família. E se tinha que pagar, é sinal de que nunca ia acontecer nada de bom comigo. No meu íntimo, eu sentia como se só houvesse dois caminhos para mim, ou a morte, ou a loucura.
Grace queria entender melhor.
— Mas o que você fez? O que você fez para ter sido tão ruim assim como você está dizendo?
Isabela parou para pensar. Tinha dificuldade em encontrar a resposta certa.
— Bom... eu não sei direito... mas sei que eu dei muita tristeza, isso é um fato. Nunca foi minha intenção, Deus sabe disso, eu amava meus pais, minha família... mas, amando ou não, o fato é que eu causei tristeza, eu causei dor.
— Sim, mas como foi que você fez isso?
— Porque eu queria outras coisas! Acho que o início de tudo foi isso, eu era diferente do que eles imaginavam, especialmente meu pai... e nisso começamos a ter divergências, começamos a brigar... algumas vezes eu desobedeci... gritava, era mal-educada. Acho que foi isso.
— Os pais da gente às vezes erram porque pensam que os filhos são exclusividade deles, possessão deles. Os filhos deveriam ser do Senhor, para seguir o caminho que o Senhor determinasse. Às vezes, a origem de muitos problemas está aí.
— Eu sei disso. Eu entendo isso. Mas a questão não é essa... a questão é que eu fiz mal! Se eles agiram errado comigo, se eu agi errado com eles, a bem da verdade nem importa, o que importa é a resultante. E a resultante foi muito ruim. — E Isabela insistia naquele ponto.
Eu procurei ajudar.
— É que ela também escutou muita coisa nesse sentido.
— Mais ou menos...
— Eu fui testemunha muitas vezes. E mesmo antes de eu conhecer Isabela, isso já acontecia.
Ela foi entrando mansinho naquele assunto.
— Às vezes eu merecia escutar.
— Mas o que é que te diziam? — perguntou Grace.
— Ah, deixa ver... — ela ficou quieta um pouco, pensando. Nesse ínterim, ouvimos batidas na porta de vidro.
— Deve ser Angélica! — explicou Grace. E levantou para ir abrir a porta. Quando a Angélica entrou, desculpou-se pelo ligeiro atraso. Devia fazer apenas quinze minutos que estávamos ali. Grace nos apresentou a ela. Era uma moça mais ou menos da nossa idade, que nunca tínhamos visto antes.
— A gente estava só conversando, mas agora que você chegou vamos começar direito. Vamos orar...
Depois de consagrar o local, pedir a proteção de Deus, orar por mim e por Isabela, ungir Angélica para aquele momento, Grace sentou-se e retomou a conversa de onde tinha parado.
— Então? Você pode me contar o que costumava escutar?
— Engraçado... não me lembro de tudo, parece que me dá um branco na cabeça... nunca tinha parado pra pensar muito bem nisso, mas parece que uma boa parte ficou apagada.
— Quando alguém é submetido a uma agressão verbal, uma agressão emocional, a coisa é tão séria quanto uma agressão física. Como um estupro, ou como quando a criança é molestada sexualmente. Esse tipo de agressão física — a sexual — causa os mesmos efeitos que a agressão emocional.
— Essa é uma palavra forte, Grace! — Isabela até sorriu. — Meus pais sempre quiseram o melhor para mim! Isso com certeza, não questiono em momento algum.
— Eu sei... — falou Grace com mansidão. — Mas às vezes, na falta de sabedoria, os pais acabam ferindo os filhos. Mesmo querendo o melhor para eles!
— Bom... muitas vezes eu acabei escutando algumas coisas do tipo: "Você está acabando com a vida do seu pai, está acabando com a nossa vida... está destruindo a família... está sendo a causa da desgraça..." — ela ficou quieta de novo. — Coisas nesse sentido... mas acho que de vez em quando, eu acabava escutando muito. Mas é porque também estava fazendo as coisas errado!
— Querer ser você mesma não é errado. Pelo que eu sei da sua história, e conheço de você...
— Mas você não me conhece, Grace! Você não sabe tudo. Interrompi de novo.
— Os seus pais não sabiam o que é ter um filho que dá dor de cabeça. Se eu tivesse sido filho deles, teriam visto a diferença. Você sempre fez tudo certo, sempre procurou agradar, sempre quis fazer o melhor. Não chegava drogada em casa, não arrumou filho na rua...
— Eu sei — fez Isabela. — Mas...
Foi a vez de Grace mudar o rumo do assunto. Creio que ela já estava percebendo o que acontecia.
— Você escutou muitas vezes que era uma filha ruim, que estava causando o mal. Isso é um fato. Como você mesmo disse, não é?
— É
— E você acredita nisso? Você acredita realmente que é má? Isabela inspirou fundo. Pensou um pouco, e respondeu logo:
— Eu acho que sim. Porque eu estou olhando para o resultado, entende, Grace? Se eles chegaram a pensar tudo aquilo de mim... se tudo que eles falavam era verdade pra eles... então... a verdade é uma só: que, mesmo não querendo, eu provoquei essa reação neles. Entende o que estou querendo dizer? Nesse sentido, então eu acredito que seja uma pessoa ruim. Porque eu fiz eles sofrerem, essa é a realidade. E é uma realidade que não pode ser mudada!
— Mas eles também fizeram você sofrer.
As lágrimas brotaram instantaneamente, embora ela fizesse força para não chorar. Aquilo era uma pequena parte de uma dor muito grande.
— Fizeram... mas eu sei que não foi de propósito... a pior coisa... a pior coisa... pior do que eles falarem mal... era não falarem! Era me ignorar. Fazer de conta que eu não existia.
— Isso doeu muito, né? — falou Grace.
Isabela apenas assentiu, enxugando as lágrimas, incapaz de falar. Grace se ergueu, quieta, todos estavam quietos. Pegou os lenços de papel e estendeu a ela. Isabela enxugou os olhos e o nariz, de repente vomitou tudo:
— Eu falava com meu pai, mas ele não me respondia... passava dias, até semanas sem falar comigo, às vezes eu nem sabia direito por quê. Não tinha nada que me cortasse tanto quanto isso. Algumas vezes minha mãe acabava ficando do lado dele, mesmo que não fosse do feitio dela agir assim. Era como se eles não me enxergassem, como se não se importassem comigo, com nada, se eu morresse talvez não fizesse diferença nenhuma. Sempre que eu escutava eles falando baixo na cozinha ou na sala, ficava atrás da porta para escutar. Porque cada vez que ouvia os dois conversando, tinha a impressão que estavam falando de mim. Falando mal de mim. Às vezes, estavam mesmo... estavam reclamando de alguma coisa. E meu pai chegava a dizer "Deixa ela pra lá, ela que se arrebente... ela faz tudo isso de propósito, para afrontar a gente...". — Isabela chorava mais ainda. — Entende o que eu estou dizendo? Ele acreditava nisso! Se acreditava, é porque para ele era verdade. E se era verdade, se todos eles diziam isso, inclusive meu irmão, depois... é porque é verdade mesmo. Eu devo ser isso mesmo, eu devo ser exatamente isso que eles dizem! Marco ficava fora a maior parte do ano... mas quando ele chegava, tenho certeza que muitas vezes escutou essas coisas. Uma vez ele mesmo me disse. Estavam todos em casa, tudo estava bem... então eu cheguei da rua. Aí meu pai disse ao Marco: "Aguarda só um pouco. Nossa paz já vai acabar. Espera pra ver...". E aí, o Marco disse que não demorou muito e eu já estava brigando com a minha mãe na cozinha. Então... não interessa o que eu diga, não importa o meu ponto de vista. Eles eram a maioria, deveriam estar certos em algum momento. Talvez eu fosse realmente egoísta, insensível, a fonte de todos os males! Eu não consigo me sentir feliz, apesar de que hoje estou melhor... mas na época em que tranquei a matrícula, até mesmo estar perto de pessoas felizes fazia com que me sentisse mal. Era como se eu não fizesse jus a nada daquilo, como se tivesse cometido um crime e agora tivesse que pagar por ele, e alegria fosse uma coisa que eu nunca teria na vida. Ou, se tivesse, seria por pouco tempo......só que aí... no meio disso tudo... meu pai morreu.
Isabela teve que se esforçar para continuar falando.
— Ele morreu acreditando em tudo isso... não tem mais jeito, não tem nenhum jeito de consertar isso. Essa mágoa vai me acompanhar pelo resto da vida! De que ele morreu pensando tudo aquilo de mim.
— Você se sente culpada pela morte de seu pai?
— De certa forma, sim......
A conversa girou um pouco mais de tempo naquele mesmo sentido. Realmente Isabela carregava uma culpa indescritível dentro de si. O resumo de todos aqueles meandros era esse: culpa, culpa e mais culpa.
Grace se limitou a levantar, ficou parada ao lado de Isabela e a abraçou pelos ombros. Não havia muito mais a ser dito, agora somente o Espírito Santo de Deus poderia fazer algo. Pessoa nenhuma podia fazer nada, podia mudar a maneira dela pensar, de ver a si mesma. Ninguém podia dar alívio nenhum a ela. Apenas Deus.
— Pai... Isabela foi muito machucada. Ela foi muito ferida... e o Senhor conhece cada uma destas feridas. Queremos te pedir que o Senhor venha derramar o Teu bálsamo sobre todas elas. O Senhor conhece a dor e angústia desse coração. Venha visitar a Tua filha agora...
Grace foi orando neste sentido durante um tempo. Depois continuou pedindo que ela pudesse experimentar o Amor de Deus.
— Pai, o teu amor por Isabela é muito grande, o Senhor Jesus morreu por Isabela, Ele veio ao mundo por causa dela. O Teu Amor é perfeito, e nós agradecemos porque ele é incondicional. Isabela foi amada até hoje de maneira condicional. Mas Te pedimos que ela venha conhecer o Teu Amor. Ela tem olhado para o Teu Amor através do padrão que ela conhece. Ela se decepcionou muito com o pai dela... ele não teve culpa, era isso que ele conhecia, era assim que ele sabia ser. Por isso hoje ela não consegue perceber, nem receber o Teu Amor de Pai!
Grace orava bastante nesse sentido, suplicando a Deus, sempre abraçando Isabela, para que ela pudesse ter um encontro real com o Deus Pai.
— Você conseguiu receber isso, sentir o Amor do Pai? — indagou Grace em seguida.
— Eu quero receber... Deus sabe que eu quero.
— Mas você não sente nada agora?
— Ah.....— Isabela tentou se explicar. — Eu não sou muito de ficar sentindo essas coisas, não!
Depois de conversarem um pouco mais, Grace quis orar novamente, usando uma outra estratégia:
— Deus, peço a Ti que o Senhor faça uso desta figura para ajudar a Tua filha — então Grace foi pedindo a Isabela para imaginar uma pequena história. — Imagine que você é uma ovelha. Que esta ovelha, que é muito bonita, muito especial, está andando no campo ao lado do Pastor.
Grace fazia uma pausa. Então perguntava:
— Consegue imaginar isto?
De olhos fechados, Isabela concordou.
— O que o Pastor está fazendo com a ovelha?
Depois de um breve silêncio, sem abrir os olhos, Isabela falou:
— Ele está brincando com ela...
Conforme Isabela diria depois, era fácil imaginar um homem brincando com um bichinho.
— Ele gosta da ovelha, passa a mão na cabeça dela, abraça, sorri... Ele gosta muito dela!
— Enquanto Ele brinca com você, e vocês correm pelo campo, acabam chegando perto de um rio... um rio muito bonito... você também consegue ver isto, vocês dois na beira deste rio?
— Consigo... um rio de águas brilhantes, porque o sol bate nas águas. Eu gosto quando o sol bate na água e fica tudo brilhando...
— Então o Pastor entra na água com a ovelha, como ela está com o pêlo sujo, Ele lava a ovelha. Quando saem da água, ela está bem limpinha. Depois disso, os dois caminham pelas Veredas da Justiça.
Grace ficou quieta, esperando. Isabela falou novamente:
— Ele vai andando e a ovelha vai trotando do lado, ela corre de um lado pro outro, está alegre. Sempre que olha para trás, o Pastor está ali, Ele a chama de volta, ela vem correndo... quando ela se distrai com as coisas no caminho, Ele grita para ela lá da frente, e espera ela vir correndo atrás.
— Depois disso vocês dois andam pelo Vale da Sombra da Morte. Mas Ele diz para você... o que Ele diz para você?
Isabela deu levemente de ombros.
— Acho que alguma coisa como: "Não se assuste. Eu estou com você".
— O que mais ele diz?
Isabela certamente se baseou naquilo que ela mesma diria para um animalzinho de estimação:
— "Minha querida, como você é linda, como você é fofinha..."
Naquele momento, embora a história não fosse real, nem Isabela estivesse tendo visões verdadeiras, aquela alegoria ajudou-a a sentir o Amor de Jesus. Através da figura da ovelha, ela pôde vislumbrar uma outra forma de Amor.
— Quando o Pastor é crucificado, a ovelha faz o que? A resposta não demorou muito.
— Ela fica ali... fica olhando para a Cruz... a ovelha gosta muito do Pastor, ela não quer ir embora sem Ele...
— Depois, ela também fica esperando do lado de fora da sepultura.... —É.
— Quando o Pastor ressuscita, os dois saem para caminhar em campos cheios de flores. Depois vocês se sentam à mesa do Banquete. Você pode ver a mesa? Pode ver o que tem para comer?
— Tem o que eu mais gosto de comer. Tem uma massa... e muitas flores na mesa, é uma mesa muito bonita.
Eu não sabia, nem mais ninguém, mas nessa altura Isabela já não conseguia se enxergar como uma ovelha. Agora ela já era uma pessoa.
— Então o Pastor toma um cálice nas mãos. Ele dá esse cálice para você beber... esse cálice que Jesus te dá, o que você gostaria de beber das mão Dele?
Isabela chorava novamente. Uma única palavra brotou de dentro dela.
— Alegria.
Depois que terminou de orar, Grace apenas ficou em silêncio, abraçando Isabela.
O único ruído era do seu choro. Aos poucos, foi se acalmando. Grace tornou a sentar-se, sempre olhando para ela.
— O Amor de Deus por você é muito grande. O Amor Dele é perfeito! Você vai aprender a receber esse Amor, vai aprender a conhecer o Deus que é Pai. Você não tem conseguido perceber o quanto Deus Te ama... muitas vezes, quando a gente tem uma decepção muito grande com o amor paternal humano, transferimos isso para Deus.
— Acho que eu tenho conhecido Deus como autoridade... não como pai!
— Eu queria agora que você orasse, liberando perdão para seu pai. E também pedindo perdão por tudo aquilo que você fez de errado. Errar é uma característica do ser humano. Todo filho vai errar... mas cabe ao pai saber entender isso, saber perdoar.
— Isso é uma coisa que eu nunca senti. Eu nunca senti que meu pai realmente me perdoou por nada.
— Então faça isso agora.
Isabela continuou se esforçando para mexer em todas aquelas coisas dolorosas. Pediu perdão a Deus, sempre com lágrimas. E terminou dizendo:
— O Senhor sabe que eu não queria magoar ninguém! Eu nunca quis fazer isso, eu o amava! Eu nunca quis gritar com ele, ser mal-educada, desobedecer, mentir... mas acabei fazendo. Acabei decepcionando. Que o Senhor possa me perdoar de todas essas coisas...
Quando ela ergueu a cabeça, Grace indagou.
— E você recebeu o perdão de Deus?
— Hum... acho que recebi, né? Porque a Bíblia diz que se a gente confessar os nossos pecados, Ele é fiel e justo para...
Grace interrompeu.
— Mas não é isso que eu estou perguntando, eu sei que você sabe o que a Bíblia diz... mas você recebeu de fato esse perdão? Em outras palavras... você se sente perdoada?
Isabela era sempre sincera. Suspirou.
— Grace, eu quero crer nisso... mas, se fosse dizer pra você que me sinto perdoada agora... não é bem assim...
— Você é que não consegue se perdoar, não é?
Ela apenas fez que sim com a cabeça.
— Isso já é outra história. Acho que vai ser um processo.
— Então vamos orar por isso. Se Deus já te perdoou, você também tem que se perdoar.
Grace orou nesse sentido, e Isabela também. Aquilo era uma coisa muito forte incrustada no coração dela. Então Angélica comentou:
— Eu vi agora, Grace... posso compartilhar a visão? —Claro...
Angélica se voltou para Isabela e falou:
— Você foi colocada numa gaiola, ficou presa nessa gaiola depois dos 18 anos. Então vi que tinha sido colocado um véu sobre essa gaiola para que você não conseguisse mais enxergar a Luz de Deus.
— Você se lembra de algo que tenha acontecido nesta época?
— De importante, não... esses problemas que estou falando foram mais tarde... eu entrei na Faculdade com essa idade.
— Vamos orar então para que você possa sair dessa gaiola... Depois disso, Angélica comentou de novo:
— Eu a vi sair da gaiola, houve um Encantamento que foi destruído. Mas aconteceu também outra coisa muito legal, vi um anjo enorme através dela... enorme mesmo! E quando você, Grace, orou para que aquela gaiola fosse destruída, vi o anjo ficar com as costas cravejadas de setas! Ele estava com os dois braços abertos, atrás dela, para proteger. E as setas que deveriam pegar nela, pegaram nas costas dele.
Explicar sobre os espíritos em prisão.
Depois dessa fase, Grace olhou para as frases de acusação que tinha anotado em sua agenda.
— Vamos renunciar a todas essas sentenças. — Então ela mesma começou a orar neste sentido, trazendo para a vida de Isabela o contrário de todas aquelas frases de destruição. E Isabela ia repetindo.
— Eu não nasci para ser maldição, eu nasci para ser bênção... não nasci para destruir, nem ser destruída. Deus não me criou para ser arruinada, para ter o meu coração arruinado, as minhas emoções arruinadas. Deus não me criou para o mal, mas para o bem, eu sou filha de Deus, amada por Ele, especial para Ele... não sou causa de males, não sou fonte de males, não sou a causa da destruição da família, não sou a causa da destruição e da morte do meu pai...
Assim elas continuaram, durante um bom tempo.
Depois Grace explicou:
— Vou te dar depois uma ficha que tem uma série de versículos que falam sobre a nossa posição em Cristo. Quer dizer... o que você é para Cristo, e em Cristo.
Angélica comentou novamente.
— Eu vi que o Senhor te deu um colar de pérolas. Mas não foi agora, foi antes. Eu te vi numa mesa de banquete, com Jesus, aos 18 anos. Você estava linda! Estava com um vestido de princesa, com o cabelo arrumado para cima, assim, todo cheio de cachinhos. E nesse dia, nesse banquete, Ele te deu esse colar. Ele quer que você saiba disso, que Ele te fez princesa antes de você ter sido "destronada"! Para Ele, você sempre foi, você nunca deixou de ser!
Isabela não comentou, talvez nem tenha se lembrado neste momento. Mas seu pai costumava chamá-la de princesa. Depois disso, Isabela foi aprofundando ainda mais nos seus sentimentos.
— Não foi somente a informação do meu pai que ficou arquivada na minha mente. Desde os 12 anos, quando fui mudada de classe na escola, que comecei a escutar mensagens negativas a meu respeito. Depois que me converti, isso diminuiu, ficou amortecido. Mas aí começaram os piores problemas dentro de casa. Marco tomou o meu lugar... ficou sendo a referência do bom filho, e eu a referência da filha má. E hoje... meu relacionamento com Marco é praticamente zero. A impressão que tenho é que ele também me culpa por todas essas coisas. Mas não é culpa dele... se eu acreditei em tudo isso, e conhecia um outro lado da moeda, o meu lado da história... se eu acreditei... imagina ele! Ouvindo meus pais falarem, observando as situações por um prisma talvez um pouco distorcido... bom, a verdade é que aquele relacionamento gostoso que tivemos até a adolescência não existe mais. Parece até um castigo! Eu me lembro que uma vez, numa viagem com meus pais, a gente fazia planos loucos para o futuro. Nessa época a gente queria montar um hotel em forma de pirâmide, imagine só! E nesse dia me lembro muito bem que disse a mim mesma: "Não importa o que aconteça, nem o que a gente vai fazer... mas eu gostaria de estar sempre ao lado do Marco!" E hoje percebo que isso também não aconteceu...
Isabela fez uma pausa. Depois continua:
— Agora que estou casada... de certa forma essas mensagens negativas continuam existindo, mas estão se somando a outras. Eu escuto do diabo as mesmas coisas... escuto coisas ruins vindas da Irmandade... eu sei que é o diabo falando, mas isso mexe comigo. Por vezes as pessoas dentro da Igreja também não têm muita sabedoria para falar. E tem também a questão das nossas brigas... entre eu e Eduardo... não é segredo para você. E, mesmo sem querer, não sei... Eduardo acaba me dizendo coisas ruins também. Coisas que são ditas na hora da raiva, mas que acabam engrossando tudo aquilo que eu sinto dentro de mim, Pode parecer uma coisa boba, mas quando alguém diz para você uma coisa que já está lá dentro... na verdade essa pessoa não está dizendo... ela está repetindo aquilo que eu mesma já disse para mim! Entende, Grace? Cada vez que alguém diz que eu não presto, que eu vou ser causa de destruição... causa da destruição de alguém... que sou a errada... é como se fosse um eco! Um eco do meu próprio coração, porque o meu coração já grita isso o tempo todo.
— Você sabe que não é nada disso, que o diabo é sujo... e Eduardo diz isso para você?
— Às vezes, quando a gente briga, ele acaba repetindo as mesmas coisas.
— Mas ele diz isso mesmo, ou é você que acha que ele diz?
— Não, ele diz... ele diz literalmente. Acaba sendo influenciado pelo que a Irmandade fala, depois é criada uma situação de desconforto entre a gente, eu me comporto mal... e escuto o que não quero.
Novamente Grace fez uma pausa e colocou tudo isso em oração. Era um processo desgastante.
— Sabe... alguns anos atrás uma vez tive vontade de perguntar para o pessoal da A.B.U. se eles costumavam pensar em morte. Porque, para mim, era uma coisa tão comum. Pensar em morte, sentir a sensação de morte, para mim era uma coisa praticamente diária. A ponto de me perguntar se todo ser humano é assim também...
— E por que você pensava nisso?
— Não sei, Grace, não me pergunte... eu sei que tinha alguns motivos, mas às vezes aquele sentimento parecia me perseguir de maneira muito insistente.
— Isso ainda é assim?
— Acho que sim...
Grace inspirou fundo. Pediu que ela explicasse melhor aquilo.
— Algumas vezes tenho a sensação de que não encontro a causa... não consigo encontrar o fio da meada de tudo isso! Parece que os efeitos estão desproporcionais em relação às causas... algo mais ou menos assim. Essa coisa de morte é antiga, nem sei... nem sei! Pode ser que seja só decorrência de todo esse processo que levou a um sentimento muito grande de desvalia. Hoje já não me sinto tanto assim, mas houve tempos em que eu me sentia a pior de todas, a criatura mais terrível na face da terra. Às vezes queria morrer... às vezes achava que a vida não valia a pena. Podia ser só depressão. Eu sei que isso existe, é um quadro psiquiátrico. Mas de qualquer forma, parecia ir além...
Grace foi perguntando um pouco sobre a infância, perguntando sobre a origem daqueles sentimentos. Parecia haver uma lacuna. Isabela não conseguia encontrar nada que justificasse tudo aquilo.
— O problema familiar veio depois. É uma coisa de certa forma mais recente. Não sei dizer... quando paro pra olhar humanamente vejo que minha família tinha tudo para ter dado certo, para termos um relacionamento sólido e saudável. Meus pais se esforçaram, eu e Marco também. Eu não sei dizer o que aconteceu que nos levou a uma situação tão ruim.
— É como se tivesse acontecido alguma coisa, ou coisas, que tivessem feito com que o curso da história fosse esse. Mas você não sabe dizer o que foi.
— É isso. A gente nunca se envolveu com nada espiritual pesado, nada de muito sério. Mas eu me lembro que algumas vezes, quando criança, via minha cama cercada de monstros. Monstros mesmo, em toda a volta da cama desde a cabeceira até o pé, dos dois lados. Eu os via de noite... não sentia medo, mas também não gostava muito deles. Um pouco mais tarde, mas ainda na infância, certas noites eu me sentia estranhamente inquieta. Eu era criança ainda. Alguma coisa me dizia que aquela noite ia ser ruim. Quando me vinha aquele sentimento, sabia que tinha alguma coisa ruim na noite. Outras vezes, lembro-me que falava para mim mesma: "Esta noite vai ser boa...". Porque eu não sentia aquela coisa no ar.
Nem tudo ficaria claro naquele dia. Havia coisas escondidas na vida dela, coisas de que ela não tinha ciência. Deus começaria a revelar aos poucos. O tempo estava chegando!
No final daquela Ministração, Angélica compartilhou outra coisa que Deus lhe tinha mostrado.
— Aquele anjo que estava atrás de você tinha um jarro na mão, um jarro com óleo. Ele veio para derramar aquilo sobre você, mas ele só pode derramar um pouco. Por que você precisa ter mais fé!
— Eu quero ter. Mas muitas vezes não consigo. Eu vejo que sempre é o Eduardo que recebe as visões dos anjos, que tem discernimento, e nada acontece comigo.
— Mas daqui para a frente isso vai ser diferente! — afirmou Grace. Enquanto Grace saía da sala, ficamos conversando um pouco. Isabela explicou melhor:
— Falei isso para Grace enquanto você ainda não tinha chegado.
— Foi isso que Deus me mostrou. Que você tinha chegado aqui muito desanimada, sem acreditar que fosse acontecer alguma coisa... mas à medida que Ele for te curando, isso vai mudar.
Quando Grace voltou, aproveitei para mostrar a Bíblia satânica.
— Olha, Grace, está aqui aquilo que te falei. Queria muito te mostrar. Acho que posso ficar com ela, não? Mais tarde, pode ser usada para ser mostrada nas Igrejas.
Grace pegou o livreto de capa preta e começou a orar, sem responder nada.
— Senhor, passa Teu Fogo aqui, livra de toda contaminação... — Grace abriu o livro de boca para baixo sobre o cestinho de lixo. — Limpa toda, toda a sujeira do diabo, e que isso aqui seja só um livro. Todo Encantamento e maldição que ele carrega, nós cancelamos em nome de Jesus!
Enquanto Grace fazia isso, Angélica olhava com ar de nojo.
— Ui, que que é isso? Nossa, está saindo cada coisa nojenta daí de dentro! — e intercedia, ainda com os olhos fixos no livro.
Grace terminou e me devolveu o livro. Angélica olhou para mim, e falou para Grace:
— Olha... eu não sei o que é isso aí... mas eu acho que ele ainda precisa ser ministrado, porque eu vi... o braço dele se transformando! Sabe, aquele braço ali de repente ficou completamente diferente, ficou como... nem sei explicar....
Grace estava com pressa e não deu muita atenção. Se limitou a dizer:
—Ele está sendo mesmo ministrado, ainda não acabou. Se vocês me dão licença, preciso só ir até ali falar com aquela pessoa... antes, vamos encerrar essa Ministração, orar por eles e limpar esta sala!
Algumas pessoas da equipe estavam ali fora. Grace era realmente ocupada, e nos largou os três ali. Isabela ficou conversando com Angélica, tinha achado a moça simpática de cara e não resistiu à tentação de fazer uma pergunta sobre as visões. Quis saber como tinha começado, como tinha sido receber aquele Dom.
Eu fiquei conversando um pouco ali fora, e depois fomos embora. Demos carona a Angélica até uma estação do metrô. E seguimos nosso caminho.
Aquela Ministração tinha sido um marco fundamental na vida de Isabela. Ela seria o estopim inicial de outras revelações que o Senhor traria, em momento oportuno. No entanto, o Reino das Trevas estava furioso. Como viríamos a perceber, ou melhor... como ela viria a perceber, sempre que Deus procurava fazer alguma coisa por ela no sentido de curá-la, isso levantaria uma forte oposição do Inferno.
Situações seriam criadas em torno de Isabela para que, em poucos dias, voltasse a escutar coisas ruins. E realmente era questão de dias! Aquela era uma arma poderosa que a machucava, e no fim fazia com que terminasse por declarar as mesmas palavras de destruição contra si. Ela mesma.
Nunca fui muito observador a ponto de perceber estes padrões de acontecimentos. Muitas vezes ela chamaria minha atenção, mas nesse momento em especial não fui capaz de fazer muita empatia com ela. Não conseguia compreender a profundidade daquela dor. Não conseguia compreender como sendo uma coisa tão importante.
Na verdade, ela não chegava sequer a passar pela convalescença. As feridas recém tratadas eram violentamente esfaqueadas outra vez!...
Aquela sensação muito leve que Isabela abrigava no coração, aquela sensação de acolhimento dada por Jesus, aquele começo de alívio... era interrompido e substituído novamente por sentimentos de morte e rejeição. Em franco desespero, com sua própria boca ela novamente tomava para si aquelas maldições.
Depois da Ministração com Sarah tinha sido a mesma coisa. Ela não conseguia ter tempo para se recuperar. Parecia haver uma ofensiva inexorável para impedir que ela se curasse!
O Inferno se movia rapidamente, lançavam seu ataque rápido e brutal. Parecia haver um particular interesse em que ela nunca se curasse!
Na minha falta de sabedoria e de entendimento acabei sendo muitas vezes co-participante desse processo contrário. Se por um lado eu queria muito ver Isabela bem... por outro, às vezes me sentia incapaz de ajudar! Eu ainda não tinha entendido a essência do verdadeiro amor, que transcende o material. Sempre estava especialmente preocupado se ela ia poder ter as coisas que queria... me partia o coração sentir que Isabela queria comprar alguma coisa, e eu não tinha como lhe dar. Não queria que ela sentisse fome, nem frio, nem passasse por nenhuma privação.
Mas eu não tinha entendido que precisava cuidar da alma dela! Nenhuma dor física se comparava à dor da sua alma... e eu não sabia lidar com isso.
Palavras são as piores armas... por vezes não as usava bem. Nada bem.
Nossas guerras entre quatro paredes não trouxeram nenhum benefício. Nem a mim, muito menos a ela.
De resto, naquele mês de julho nossa situação financeira estava mais crítica ainda do que antes.
Numa atitude extremista, fui conversar com o Pastor Lucas. Fui muito sincero e reclamei com ele. Como Dona Clara tivesse me incentivado a procurar sua ajuda, não me fiz de rogado.
— Pastor, realmente estou precisando de apoio da Igreja. Estou sempre aqui, em todos os Cultos, dou meu dízimo... e quando me tornei membro da Comunidade Evangélica lembro-me muito bem das palavras do Pastor que nos recebeu. Ele disse que nós tínhamos direitos e deveres! Eu creio estar cumprindo com meus deveres! Realmente, espero que o senhor entenda que tenho direito de ser ajudado. A minha situação é crítica!
Pastor Lucas entendia que tinha falhado comigo algumas vezes. Naquele momento, foi humilde em pedir perdão pela omissão. Eu expliquei detalhadamente o que estava acontecendo. Ele deve ter percebido o quanto eu estava angustiado.
— O senhor tinha prometido me ajudar encaminhando meu currículo... mas não fez! Também falou que ia me dar o sapato e as roupas... não quero ser grosseiro, mas é preciso que alguém me ajude!
— Você tem razão no que está falando. Olha... — pôs a mão no bolso e tirou alguns dólares. — Eu só estou com isso aqui comigo. Mas pode considerar como sendo uma primeira oferta. Vou pedir para Dona Clara... Dona Clara tem acompanhado vocês, não?
— Sim, ela tem, sim.
— Vou fazer o seguinte... vou pedir a ela para encabeçar uma lista e recolher algumas ofertas, uma coisa pessoal. Ela vai falar com as pessoas de forma casual sobre um casal, sem dizer que são vocês, e quem quiser pode ofertar. A primeira oferta é a minha:
Fiquei até sem jeito.
— Eu te agradeço muito. Entenda que, se eu não puder contar com a minha própria Igreja... com quem vou poder contar?
Eu queria ardentemente que a irmandade estivesse errada. Eles falaram muito que eu não receberia ajuda do Pastor Lucas, nem da Igreja, nem daqueles que estavam próximos de mim.
De fato ele pediu a Dona Clara para recolher a oferta. Com sabedoria, Dona Clara foi conversando com algumas pessoas da Igreja, e aquele dinheiro nos salvou naquele mês. Continuamos estourando o cheque especial e o cartão de crédito depois disso. Por um verdadeiro milagre, no final do mês o banco mandou um comunicado para Isabela. Eles estavam oferecendo um empréstimo no valor de até R$ 1.000,00, com facilidades de pagamento!
Ela sempre tinha sido boa correntista. Mas não tenho idéia de como aquilo aconteceu, fato é que pudemos retirar aquele dinheiro. Foi realmente uma pena que Isabela não tivesse tido condições de cobrir aquelas férias, naquele convênio!...
Como continuasse procurando emprego, apesar de já ter certeza de que não conseguiria — por causa da Residência — Isabela esbarrou numa boa proposta. Estavam procurando uma pessoa para cobrir férias no mês de julho, num lugar de fácil acesso, com um salário adequado.
Como eram só férias, e como o currículo dela fosse bom — eles sempre levavam muito em conta a Faculdade que ela tinha feito — optaram por contratá-la. Isabela ficou bastante feliz porque aquele dinheiro garantia o mês de agosto para nós.
— Me explicaram que como é só um mês, vão dispensar a burocracia da residência. Eles têm plena convicção de que eu posso fazer o trabalho, especialmente porque já fiz esse tipo de serviço durante dois anos.
Quando fomos levar os documentos para que ela pudesse pegar aquela vaga, tivemos mais um problema: o CRM não estava pago! Claro, a gente mal tinha dinheiro para comer e pagar as contas, claro que o CRM não estava pago! Normalmente nem se consultava isso, mas aquela Empresa consultou.
— Tudo bem... é só você pagar e a vaga continua sendo sua!
— Ah, OK... muito obrigada!
Isabela nem teve coragem de falar mais nada. Se poupou de explicar que não tinha dinheiro para aquilo.
Assim fomos levando aquele mês de julho. Estava frio, e o Fran's ficava bem pertinho de casa, dava para ir a pé. No entanto, naquele primeiro ano de casamento, nosso sonho de sair à noite, andando, para tomar capuccino com pão de batata, depois voltar para casa, andando... sentindo o friozinho... não foi satisfeito!
Essa era uma época em que vivíamos de economia em economia. Agora, Isabela comia sempre o "fim" das coisas. Essa história do "fim" tinha ficado famosa, porque Dona Márcia costumava comentar que Isabela nunca raspava nada: sempre ficava um restinho do requeijão, um restinho da geléia, um restinho do leite, um restinho da comida...
Isabela ria e comentava, assentindo:
— Não sei por que, mas não gosto do "fim"...
Mas em casa, agora, sempre que tinha um requeijão, ou uma geléia, ou um queijo... a gente comia tudinho, até acabar! O que não faz a necessidade! Bendito "fim"! Mas nunca faltou nada, o essencial nós sempre tínhamos, o Senhor era Fiel nesse aspecto.
Certa ocasião, ainda durante as viagens com Sarah e Jefferson, Isabela queria um queijo fresco. Fazia bastante tempo que ela não comia esse tipo de queijo, e só não comprou porque estava caro. Só tinha pedaços grandes no supermercado.
Então, numa das viagens, alguém deu de presente para Sarah um queijo fresco. E ela, sem saber, deu o queijo para nós.
Nessas pequenas coisas Deus provava Sua Fidelidade. Fomos experimentando isso no dia-a-dia. Isabela ficou feliz da vida com o queijo!
Uma vez, estávamos esperando a cesta básica, e Isabela estava contando com o pacote de bolachas. Mão sei por que, naquele mês não veio. Frustrada, Isabela reclamou com Dona Márcia. Daí Dona Márcia acabou comprando vários quitutes para nós! A gente evitava ficar falando essas coisas com ela, Isabela imaginava que sua mãe fosse ficar preocupada demais, e não queria isso. A gente sabia que tudo aquilo estava no controle de Deus.
Claro... havia momentos em que eu me descontrolava um pouco, como quando fui falar com o Pastor Lucas! Mas a gente estava vendo a provisão de Deus! Como estava! Não foi uma nem duas vezes que o dinheiro chegou até nós na última hora. Na hora em que tudo ia explodir, eu ia deixar de pagar as contas, o aluguel... alguma coisa acontecia!
Geralmente era assim. Experimentamos muito disso naqueles meses.
Independente disso, nossa vida era bem restrita. Como já disse, não faltava o básico, mas não sobrava para absolutamente mais nada. E o básico... era assim: a gente não escolhia mais marca de xampu nem de condicionador, tinha que ser o mais barato. E um frasco só para os dois! Isabela não comprava mais biscoitos da sua marca preferida. Agora ia no mais barato. Eles tinham um ótimo gosto! Ela também não comprava mais geléia importada, tinha que ser a geléia daquelas baratinhas mesmo.
Uma coisa me surpreendia em Isabela nestas horas. Ela nunca reclamava! Não ficava me azucrinando, exigindo as coisas, reclamando daquela escassez. Isabela nunca tinha passado por uma situação semelhante em toda sua vida, nunca tinha lhe faltado nada. Mas eu sabia que não é fácil, às vezes, abdicar de pequenos prazeres. Como entrar no supermercado e deixar de levar um monte de coisas que a gente gostaria. Como poder fazer uma pequena viagem...
Cortar o cabelo era outra coisa supérflua. Eu cortava quando não tinha mais jeito, naqueles barbeiros de bairro, uma coisa terrível! Isabela não cortava. Prendia o cabelo e dizia:
— Entre fazer um corte medonho, e esperar... melhor esperar que alguma coisa aconteça e eu possa ir cortar onde estou acostumada!
Por causa disso alguns momentos tinham para nós um significado especial.
Era muito gostoso tomar chá no final da tarde, por exemplo! A gente não ia se privar até mesmo disso, então comprávamos alguma coisa gostosa na padaria e fazíamos um lanche em casa. Não fosse o eterno barulho do vizinho, teria sido mais gostoso morar no apartamento.
Mas no final da tarde, começo da noite, normalmente a coisa silenciava.
Então, as lembranças mais gostosas dessa época são destes cafés que a gente
fazia. Era gostoso pôr a mesa, eu coava o café, e a gente sentava para conversar e comer alguma coisa. Era muito bom!
De vez em quando Dona Márcia dava um dinheirinho pra gente, quantias simbólicas: R$ 50,00, R$ 100,00. Mas, às vezes, a gente estava sem nada e de repente caía na nossa mão R$ 10,00! Incrível como R$ 10,00 podiam ser a festa: dava pra gente ir ao Shopping, tomar um café, dividir um sorvete, comprar uma meia para Isabela. Quando estou falando meia, estou falando meia mesmo: ela gostava daquelas meias coloridas, com bichinhos, de cano curto. Comprar um presente era sempre uma boa coisa! Claro que a gente deixava o carro na rua, fora do estacionamento do Shopping. Seria impensável gastar R$ 2,00 ou R$ 3,00 com estacionamento!
No mês de julho também chegou o nosso conjunto de sofás. O aniversário de Isabela caía no final de junho, e Dona Márcia quis nos abençoar com alguma coisa bem útil. Nada era melhor do que os sofás. Fomos todos juntos ao Lar Center, eu e Isabela escolhemos o conjunto do nosso gosto: um sofá de dois lugares e outro de três lugares, em tom creme, com estampa de flores. Muito bonito! Dona Márcia dividiu em quatro vezes e nos deu um ótimo presente!
Quando chegou a entrega, a gente nem acreditava que ia poder assistir televisão sentados no sofá, em vez de deitados no chão. Nossa sala ficou bem mais acolhedora. Havia alguns meses nós tínhamos tirado o papelão da janela e colocado uma cortina feita com três cangas que Isabela tinha. Eu arrumei um tubo de PVC e ela costurou as cangas pela ponta. Ficou bem legal! Deu um ar colorido no ambiente. Quando batia sol, a sala adquiria uma tonalidade meio colorida também.
Com muito esforço conseguimos comprar duas prateleiras. Prateleira é modo de dizer, compramos duas tábuas em casa de material de construção e instalamos na parede com suporte embaixo. Nós compramos uma, e Dona Márcia nos deu outra de presente. Isabela passou verniz, e finalmente tivemos aonde apoiar algumas coisas. Uma ficou na cozinha, um lugar fundamental porque ali não tinha armário, e a outra ficou no escritório.
Desse jeito a gente ia vivendo. Com bom humor, porque a maior parte das vezes somente o bom humor se apresentava como solução para aquelas pequenas agruras. O nosso bom humor fazia com que aquela cortina de cangas, por exemplo, fosse a coisa mais linda do mundo.
O bom humor também fazia com que a gente não se importasse em cozinhar no fogãozinho de acampamento. Pelo menos a gente tinha aquela chama! Era comum eu entrar na cozinha e o bujãozinho estar ali, bem no meio da cozinha, no chão, cozinhando lentamente o nosso macarrão.
Era muito bom também quando vinha algum brinde na cesta básica. Alguém da Igreja trabalhava na Nestlé e, me parece, de vez em quando os funcionários ganhavam alguns estoques de alimentos que estavam com o prazo de validade estourando. Isso era doado para a Igreja, e colocado na cesta básica.
Então às vezes vinha uma torta congelada. Mas a gente não tinha forno para fazer a torta, então era preciso cozinhá-la no microondas. Quase derretia a torta, ela ficava mole, mas para nós era um verdadeiro manjar!
Aliás, não fosse o fato de podermos comer na casa de Dona Márcia, teríamos até passado fome. Mas não passamos, graças a Deus! Naquele tempo Deus nos dava de pouco em pouco o maná para cada dia, a porção certa para não faltar e não sobrar. Nisso, mesmo que a gente não quisesse, teria que admitir que Deus estava sendo um Fiel Provedor. O mais difícil era acalmar a ansiedade da alma. Eu, em especial, ficava muito ansioso. Eu era o homem naquela casa!
Normalmente Isabela procurava me animar, me incentivar a ficar calmo. A gente procurava não olhar para as pessoas... olhando para elas, seria mais fácil acreditar que a Irmandade tinha razão. Mas a gente procurava olhar para Deus o tempo todo, e o nosso coração estava sempre grato a Ele, sempre tínhamos disposição de adorar, louvar, de ouvir a Palavra. Essa era a nossa força! Essa era a nossa esperança.
Isabela costumava dizer:
— Uma hora isso vai chegar ao fim. Tem que chegar ao fim! A gente tem que agüentar até lá. Deus está vendo tudo isso... Quanto a isso, não tínhamos a menor dúvida.
Mas... bem que Deus podia dar um jeito de nos arrumar uma máquina de lavar! A única coisa que estava fazendo falta mesmo era isso! Eu já estava cheio de lavar roupa no tanque... não poderia deixar Isabela fazer aquele serviço pesado. Quanto a ela, o que mais sentia falta era de uma faxineira! Mas esse era um luxo impensável. Na minha casa nunca tivemos empregada, mas Isabela não estava acostumada. Haja boa vontade!
No final de julho, toda hora Isabela comentava comigo sobre os arremates finais no livro.
— Escolhi um nome... vamos ver o que você acha! Eu tinha pedido para você pensar também, mas pelo visto...
— Pois é. Que nome você pensou?
— Filho do Fogo.
— Filho do Fogo! Só isso?
— Só. Acho que isso diz tudo. O que você acha?
Não demorei a responder.
— Gostei. Taí!
Isabela tinha trabalhado como uma condenada. Finalmente tinha chegado a hora de imprimir tudo para ela reler pela última vez.
— Eu já tinha relido mais de uma vez na tela do computador. Mas agora quero ver no papel, tenho que ter certeza de que está tudo em ordem, todos os acontecimentos narrados direitinho, na seqüência certa, enfim... tenho que ler mais uma vez!
Ela estava particularmente feliz com o término do trabalho.
— Não acredito que estou terminando! Não acredito que consegui escrever este livro! Especialmente agora, nestes últimos meses de tanta instabilidade, foi o tempo em que mais trabalhei... graças a Deus, graças a Deus! Estou acabando!
Aí dava até umas dançadinhas de alegria. Em outros momentos, ficava abatida.
— Puxa vida... que história... e como é que vai ser quando a gente publicar? Sei que Deus disse, mais... você sabe, né?
— Sei.
Eu não quis reler o livro. Não queria mais pensar naquilo. Já bastavam as Ministrações e as conversas com Isabela. Queria confiar que o livro tinha ficado bem escrito. Por sinal, essa era uma das preocupações dela:
— Será que ficou bom? Será que as pessoas vão gostar? Será que esse livro vai ser bem aceito do ponto de vista literário?
— É preciso a gente mandar para a Grace. Se ela concordar com tudo que está escrito, então publicamos.
Isabela se sentia bastante inquieta. Aquele era um trabalho que tinha durado quatro anos. Somente ela sabia do esforço, do empenho, da dedicação empenhada no livro. Ela, e o Senhor. Isabela sabia quantas horas tinham sido gastas no trabalho. As horas de conversa, as horas de escrita, as horas de leitura, as horas de releitura.
Nós dois sabíamos quanta dor, quantas lágrimas, quantas noites insones. Quanta oração e jejum para que Filho do Fogo viesse à luz. Inclusive antes de escrever o final da história, Isabela fez três dias de jejum. Nas últimas reuniões com Dona Clara, falava incessantemente sobre isso:
— Eu preciso conseguir escrever um final impactante! Agora, todo esse lixo satânico tem que ser quebrado, tem que ser encarado por todos os leitores como lixo. Não sei se tenho condições de fazer isso, tenho medo de não conseguir... preciso realmente de uma capacitação de Deus! Nós já fizemos muito jejum, e já oramos muito pelo Filho do Fogo. Mas o final é importantíssimo!
Aquela era uma grande vitória. Independente do que ia acontecer, fosse conosco, ou mesmo se a repercussão não se mostrasse satisfatória... estava cumprido! Aquela direção e ordem de Deus estavam cumpridas! Que alívio e que alegria! Só nós dois sabíamos realmente o preço altíssimo que tinha sido pago para que o livro existisse. Agora ele estava ali: um bolo de folhas de papel sulfite.
— Puxa vida!!! — exclamava Isabela. — Eu passo o dia inteiro lendo e não acaba! Não consigo terminar de ler... não imaginei que tinha ficado tão grande! Quantas páginas será que vai dar?
Nós tínhamos recebido uma indicação de Sarah sobre uma pessoa que sabia fazer diagramação e que poderia nos ajudar inclusive com a capa. Nenhum de nós dois tinha a menor idéia do que fazer para publicar um livro! Mesmo porque, também não tínhamos dinheiro para isso!
— Se Deus quer a publicação, vai trazer os recursos — falei eu.
Telefonei para o rapaz, Fábio, e conversei com ele. Fábio já estava sabendo do que se tratava pela Sarah.
— Vocês precisam de alguém que faça a capa, né? Eu fiz a capa do CD de um grupo de Louvor que a Sarah e Jefferson conhecem. Quando o Senhor manda, costumo fazer coisas assim! Gosto muito dessa parte artística, embora não seja minha profissão... mas vamos conversar pessoalmente, vou ajudar vocês.
Encaminhamos para Grace o material tão logo Isabela conseguiu terminar de lê-lo. Deixamos claro que ela tinha pouco tempo para dar uma opinião. Sabíamos que a publicação estava atrasada. Não queríamos mais perder tempo!
Enquanto Grace lia as folhas de sulfite, levamos o disquete para Fábio. Ou melhor... os disquetes!
Naquela tarde ele havia marcado conosco um encontro em seu escritório. Ele era arquiteto. Nos atendeu muito bem, foi muito solícito e simpático. Explicamos mais ou menos do que se tratava, se bem que Sarah tivesse adiantado.
— Vocês precisam da capa, e de alguém que faça a diagramação, não é?
A diagramação consistia em transformar as folhas sulfite em páginas de livro. Depois disso, ele mesmo se ofereceu para fazer os fotolitos. Os fotolitos eram o material final usado pela gráfica para imprimir o livro. Tudo aquilo tinha um custo. Mas Fábio logo foi falando:
— De vez em quando me aparece gente pedindo para fazer capa de livro, pedindo para fazer alguma coisa assim. Nem sempre sinto paz, e se não sinto, não faço. Mas quanto a vocês, tenho certeza de que isto aqui está no Coração de Deus! Sei que vou enfrentar muita guerra, mas estou acostumado... pode deixar que vamos levar isso adiante, sim! Com certeza a Igreja de Cristo precisa deste livro.
Quando fomos discutir a capa, já tínhamos uma idéia em mente. Antes que pudéssemos dizer qualquer coisa, Fábio comentou:
— Deus está me mostrando essa capa... pode ser um pentagrama no chão, com alguma coisa saindo de dentro dele, uma fumaça...
— Pôxa, foi mais ou menos isso que a gente pensou! — falou Isabela.
— Ela queria fazer o pentagrama na capa, um pentagrama de pedra — continuei eu. — Depois eu imaginei que este pentagrama poderia estar rachado, aberto... mostrando que seus segredos estão sendo desvendados. Mas não tínhamos imaginado um no chão.
— Bom, já que o Senhor está confirmando, não se preocupem que vou fazer o melhor!
Foi um tempo precioso e agradável aquele que passamos ali. Quando fomos embora, sentíamos um grande alívio! Estava tudo em andamento... Quando chegamos de volta ao carro, estava multado.
— Mais essa! Por que multaram, aqui é proibido? Com tanto dinheiro sobrando, ainda vem multa!
— Paciência. Vamos embora.
Chegou o mês de agosto. Sexta-feira, dia 13, o bip tocou. Dia sugestivo. Eu estava saindo do banho, foi Isabela quem olhou o recado. Ela veio bater na porta do banheiro, nem esperou para entrar.
— Eduardo, olha só esse recado. "Entrar em contato com Fernando, da Academia Coliseum, telefone tal, sobre proposta de trabalho." O que você acha disso?
Eu estava terminando de me arrumar e olhei para ela. Seu semblante estava iluminado, mas ao mesmo tempo ela queria ouvir minha opinião.
— Esse Fernando é um dos donos da academia, aquele mesmo com quem falei naquela época. Lembra? Ele tinha me apresentado a outros Professores, já falava que eu podia me considerar Professor...
— Bem que eu achei que era ele! Que raio de proposta será essa? O que será? Fiquei pensativo. Já fazia um bom tempo! Se tivesse acontecido antes...
— Vou ligar pra ele e saber o que ele quer. Se for o que estou pensando... Ela completou meu pensamento.
— Será que ele quer que você vá trabalhar lá agora? Pelo visto, ainda tem seu currículo.
— É o que parece! Só não sei como ele arrumou o número deste bip. Como estivesse pronto, desci e fui direto para o orelhão. Sentia até o estômago meio contraído. Já imaginava o que ele ia dizer. Mas eu tinha entregado o Kung Fu para Deus! Eu tinha feito isso... debaixo de uma direção clara. Sacudi a cabeça.
"Melhor ver logo do que se trata em vez de ficar pensando..."
Liguei e falei com ele.
— Olá, Eduardo! Quanto tempo!
— Oi, Fernando! Como é que você arrumou o meu número?
— No seu currículo tinha o telefone da sua casa. Liguei lá e falei com sua mãe, ela disse que você tinha casado e ainda estava sem telefone. Me deu esse número do bip!
—Ah!
— Que bom que você está me dando retorno rápido. Tenho uma boa notícia pra te dar.
— Pois não.
— Você sabe que ampliamos a academia, né? Naquela época em que a gente se conheceu, a reforma estava terminando. Estou contratando pessoal, e tinha o seu currículo aqui comigo. Enfim... vamos ao que interessa! Estou precisando de um Coordenador de Esportes Marciais!
— Coordenador?
— É. Deixa te explicar melhor! Naquela época você pleiteou um cargo de Professor... pena que não deu certo. Mas agora, quando eu estava olhando seu currículo, pensei em te propor uma coisa ainda melhor. Liguei para o seu último Mestre, o Mestre Zhy. Ele falou muito bem de você, deu ótimas referências... te encheu a bola, cara! Confirmou que você ganhou mesmo aqueles títulos, confirmou todo o seu currículo. Você sabe que isso é praxe, né? Eu tenho um nome a zelar, você sabe... —Sim, claro...
— Então... minha proposta é a seguinte: quero você aqui para tomar conta do Departamento de Esportes Marciais. Ou seja, ser o Chefe dos Professores! Confio em você, você tem cacife, tem o perfil ideal para isso. Estou pensando em diversificar um pouco, lembrei que você desenvolveu também um curso teórico, estou também pensando em criar cursos específicos para crianças, cursos específicos para mulheres... gostaria também de organizar campeonatos entre academias, enfim... tem muito trabalho te esperando! E você terá todo o meu aval para fazer o que quiser! Os Professores vão ficar sob a sua supervisão. Trocando em miúdos, você seria o Professor dos Professores. O seu currículo é muito bom! Sua experiência é fantástica! De resto, podemos conversar melhor pessoalmente... mas já posso adiantar que o salário é de R$ 3.000,00, só pra você começar. Quando a gente efetivar, vamos reformular isto. Os meus Coordenadores ganham muito bem! Além disso, você vai ter todos os benefícios de uma grande Empresa: temos uma assistência Médica ótima e todo o resto. De quebra, você já pode começar a vir pra academia. Ela está aberta para você em todas as modalidades, inclusive as modalidades aquáticas. Para sua esposa também! Reparei que faz um tempo que vocês não aparecem por aqui... espero que esse seja um incentivo para vocês.
Meu coração estava até apertado. Eu nem sabia o que dizer.
— Bom, Fernando...
— Vem aqui na segunda-feira, hoje eu estou de saída. Conversamos tudo direitinho na segunda. Fiquei sabendo que você não está trabalhando... acho que realmente eu nasci com o pé-direito virado pra Lua, porque agora posso pegar você aqui pra mim! Segunda-feira está bom para você?
—Tá. Tá bom, sim...
— OK, Eduardo! Estou te aguardando!
Subi para o apartamento em estado de choque. Nem sabia o que pensar... ou melhor... eu sabia, sim! Não era possível que algo assim estivesse acontecendo. Quando abri a porta, Isabela veio ao meu encontro com o rosto cheio de expectativa.
— Então? Era aquilo? Ele te ofereceu o cargo de Professor?
Suspirei. Dei até uma risada, para disfarçar minha tensão.
— Mais do que isso... você não vai acreditar...
A medida que contava a ela, Isabela me olhava com ar sério. Chegava a torcer as mãos, nervosa.
— Então... é um cargo de chefia! Não quer dizer que você tenha que dar aula!
— Não é bem assim... se a gente vai desenvolver cursos específicos, eu vou ter que treinar os Professores. Treinar... é treinar! Tem campeonatos para organizar... ai, meu Deus!
Isabela até pôs as mãos na cabeça.
— "Ai meu Deus" digo eu! Não é possível... não é possível, você vai ter que recusar? Aquilo que a gente sempre quis, tudo com que a gente sempre sonhou! Será mesmo que não podemos aceitar?
—Não sei... não sei.
Isabela estava mais nervosa do que eu. Nossa inquietação foi tão grande que não conseguimos pensar em mais nada o dia inteiro. Resolvemos dar uma volta no Shopping, fazer qualquer coisa que tirasse nossa cabeça do assunto. Mas a gente não conseguia falar de outra coisa.
Isabela chorava. Não conseguia se conformar.
— Deus não pode estar fazendo uma coisa dessas! Pôxa... Ele já está exagerando! Não vou agüentar ter que passar por isso... não vou agüentar! Ele permite que o nosso sonho chegue até as nossas mãos, e pede pra gente recusar? Simplesmente dizer "Não, obrigado"? O que mais que Deus está querendo, deixar a gente louco?! — e chorava mais.
Consegui me sentir mais conformado que ela. Aquele era só mais um detalhe do preço a ser pago. A partir do momento em que aceitamos o chamado... aceitamos o chamado! Eu tinha muita convicção de que não poderia retomar o Kung Fu. Era só mais uma armadilha do Inferno. Vinha na hora H!
— Eles querem uma legalidade. Querem uma brecha qualquer! Eu sei que não posso aceitar...
— Deus está exigindo demais da gente! — agora Isabela estava irada. — Estou me sentindo sem chão! Temos que continuar bancando os mendigos, passando a cartola para os outros, quando os outros na maior parte das vezes não dão a mínima pra gente! E aí aparece uma oportunidade dessas. Estou cheia de ter que pedir dinheiro para quem quer que seja, estou cheia de ter de contar com a Igreja, ter que contar com a boa vontade dos irmãos! A gente tem toda a capacidade de ganhar a vida pela nossa própria conta. Não queria ter que depender da Igreja! Você vê como as pessoas olham pra gente, como olham com desprezo, como se a gente fosse lixo... o que eles pensam de nós, que somos dois pés-rapados que estão sempre precisando da ajuda de alguém! Não me conformo! Não me conformo! A gente já tinha esquecido disso tudo, desse negócio de Kung Fu. Precisa Deus deixar essa coisa vir bater na nossa porta de novo??!
Lá pelas tantas, resolvemos ligar para Dona Clara. Mais por desencargo de consciência do que qualquer outra coisa. Eu sabia que direção deveria tomar.
Enquanto eu estava no telefone com ela, observava Isabela andando de um lado para o outro no Shopping, se debruçando na amurada, inquieta e triste. Dona
Clara repetiu o que eu já sabia:
— Isso é uma armadilha, sim... agora que vocês estão às portas de lançar o livro... ele é sujo mesmo! Mas fiquei firme, Deus vai honrar tudo isso.
— Olhe, Dona Clara, que Ele honre mesmo. Não está sendo fácil tudo isso! Se fosse um tempo atrás, eu não pensaria duas vezes...
— Pois é isso mesmo. "Bem"... hoje vocês são provados de acordo com a maturidade que alcançaram. A nossa carne tem de morrer mesmo, a nossa vontade. É o preço... é como se Deus estivesse dando a chance de vocês escolherem mais uma vez. Se vão aceitar o chamado, por amor a Ele... ou se vão seguir a vida que vocês mesmos programaram... — ela falava com voz de quem se compadece, de quem faz empatia. Mas de quem sabe exatamente o que deve falar. — Se tivesse alguma dúvida do que estou dizendo, iria orar antes. Mas não tenho nenhuma dúvida.
— Eu sei. Eu também não tenho dúvida. Mas causa uma tristeza muito grande. A senhora sabe da nossa situação... não sei o que vai ser do dia de amanhã!
— Eu sei. Mas fiquem firmes! Tudo isso vai ter a sua recompensa.
— Tudo bem, Dona Clara — suspirei profundamente. — Só queria ter certeza da sua opinião. Esteja orando por nós, esteja orando pela Isabela... ela está num desespero só! Ora fica brava, ora chora... dessa vez foi pega em cheio.
— Ela está aí?
— Tá, sim. A senhora quer falar com ela?
— Veja se ela quer falar comigo.
Apenas olhei para Isabela, fiz sinal de longe. Ela recusou.
— Acho que agora ela não está em condições, Dona Clara.
— Vou estar orando. E vamos em frente, né? Vamos continuar caminhando! A vitória vai ser também proporcional a essa luta, vocês vão ver!
— Obrigado.
— A gente tá aqui para isso, né? — e riu, naquele jeito característico dela. — Fica com Deus!
Isabela veio para perto de mim.
— Dona Clara ficou brava que não quis falar com ela?
— Não, ela entendeu.
— Eu não tinha condições. Não queria ouvir ninguém me dizendo nada, me consolando, dizendo que tudo vai melhorar, que Deus é bom, que a gente tem que agüentar... por enquanto eu estou brava, não quero escutar nada disso! Até agora, nunca uma decisão foi tão dura para mim! — e chorava de novo. — Me sinto crucificada!
— E... de certa forma ela disse mais ou menos isso. Que a nossa vontade tem que morrer!
— Eu sei, entendo isso. A cruz é a morte do desejo, e a morte de toda a sua vontade. Mas isso dói muito! Quando penso em tudo que a gente perdeu... eu estava conformada, nunca fiquei reclamando! Mas não queria ter que desistir disso de novo. Eu sempre te admirei muito por causa do Kung Fu, ia adorar ver você com aquele uniforme da academia... sabe? Depois, a gente não tem dinheiro para pagar a ginástica, é uma coisa importante para nós, mas ninguém vai pagar academia pra gente! É isso que não me conformo, ter que continuar mendigando quando temos toda a condição de viver pela gente mesmo.
— Mas você sabe que a gente não pode aceitar, não é? Ela ficou quieta um pouco. Então admitiu:
— Só não sei por que Deus permite isso...
Realmente a gente só iria entender muito mais tarde. Houve época na nossa vida em que não pensaríamos nem um pouco se Deus estava gostando ou não das nossas decisões. Mas agora, já era diferente. Nós jamais sairíamos da trilha certa de nossa livre e espontânea vontade. Se Deus não queria... por mais que nos doesse... sabíamos que o melhor era não querer também!
Aquilo era somente uma prova. Deus estava dizendo: "Conheço o desejo do coração de vocês... hoje vocês têm a oportunidade de escolher. Vocês podem Me obedecer, por amor a Mim... ou podem obedecer a si mesmos, por amor a vocês".
Tudo aquilo era treinamento. Tudo aquilo era lapidação de caráter. Momentos muito dolorosos, mas tinha sido assim também com os homens de Deus da Bíblia. Não ia ser diferente conosco. Aquela provação — dura, sim — veio. Fomos provados... e aprovados! Nem sempre obedecer é fácil. Mas a gente tinha aprendido que a obediência era o ponto chave. Sem ela, não chegaríamos a lugar nenhum!
Isabela ainda chorou muito naquela noite. Mas a partir do dia seguinte, começou a se recuperar. Já não chorava, embora continuasse triste. Eu não estava menos triste, mas tanto eu quanto ela estávamos convictos de que aquele era o caminho certo. Oramos pedindo força, pedindo a restauração, pedindo o livramento. Não estávamos mais agüentando viver daquele jeito incerto e inseguro. Vivíamos por fé. Mas o deserto não podia durar muito mais tempo. Pelo menos, não daquele jeito.
Na segunda-feira fomos até a academia. Não poderia simplesmente recusar por telefone, queria poder conversar cara a cara com Fernando. Isabela ficou me esperando, vagando pelas vitrinas sem enxergá-las. Eu fui sozinho.
Quando entrei na sala de Fernando, ele me recebeu sorridente e animado.
— Oi, Eduardo! Senta aí, vamos conversar. Hoje posso te explicar com muito mais calma o que te disse... vamos fazer um trabalho bem diferente, tenho certeza que você vai gostar bastante. Quase todo mundo que começa aqui com a gente, vai ficando eternamente! Eu procuro incentivar os meus funcionários, os Professores, é muito importante para mim — para nós — que eles estejam satisfeitos. Se estiverem satisfeitos, vão fazer um bom trabalho, e nós também vamos ficar satisfeitos!
Ele já ia sentando também, quando se lembrou:
— Ah! Quanto é que você calça, e qual seu número de roupa? Já vou pedir para te trazerem os conjuntos de uniforme e o tênis Reebokl A academia fornece tudo para você.
Tive que interrompê-lo, polidamente. Ele estava completamente certo de que eu ia aceitar proposta.
— Fernando... espera só um pouco. Eu não posso aceitar este emprego.
Ele até emudeceu. Sentou-se.
— Não pode? Você arrumou algum outro emprego melhor?
— Não. Não é isso.
— O que foi? Você não está satisfeito com o salário? Olha, isso a gente pode conversar, podemos renegociar o valor desde já...
Balancei diversas vezes a cabeça.
— Não é isso, o salário inicial está bom. Mas... é que eu sou Cristão. E, algum tempo atrás Deus me pediu que entregasse a Ele o Kung Fu.
Fernando me olhava sem entender.
— Entregar o Kung Fu?
— É, não sei como te fazer entender, mas Deus me mostrou que não era bom que eu continuasse praticando Arte Marcial, isso estimula a violência, vai contra os princípios do Cristianismo. Mesmo porque, a Filosofia Budista é contrária ao que eu creio agora. Naquela época eu ainda não tinha entendido isso, mas depois que entendi, deixei de praticar Kung Fu. Não poderia voltar atrás nessa minha decisão...
Ele mudou a expressão do rosto.
— Deixa ver se estou entendendo... então Deus não quer que você tenha um bom emprego, é isso?
— Não é isso. Deus quer o melhor para mim. E hoje eu sei que Kung Fu não é o melhor para mim. Gostaria de te agradecer pela proposta, de você ter se lembrado de mim, ter me dado seu voto de confiança. Humanamente falando, eu gostaria muitíssimo de aceitar! Mas hoje, o Kung Fu realmente não faz mais parte da minha vida. Não queria te dizer isso pelo telefone, por isso vim pessoalmente...
Ele demorou a responder alguma coisa. Sacudiu a cabeça levemente, e seu olhar demonstrava pesar. Percebi que ele não compreendia minha justificativa, estava imaginando que eu tinha me tornado mais um daqueles crentes lunáticos.
— Bom... de fato é uma pena, eu lamento muito... mas não me resta nada a fazer a não ser respeitar sua decisão. Eu espero que você esteja certo! — foi ligeiramente irônico. — Espero que Deus te arrume um outro emprego melhor do que este...
— Deus vai cuidar de mim. Muito obrigado pela sua proposta.
Ele se levantou, e eu fiz o mesmo. Apertamos nossas mãos. Até hoje, ele me olha esquisito. Levaria ainda mais de um ano para que Isabela e eu voltássemos a ter condição de pagar a ginástica. Fernando me reconhece, e cumprimenta com
educação. Mas sempre me olha esquisito, de longe, nunca mais conversou comigo. Nem quer saber o que faço da vida. Quando saí, Isabela me esperava na porta. Trocamos um sorriso entristecido.
— Como foi?
— Hum... fiz a coisa certa. Sei disso. Mas ele pensa que sou louco... espero que Deus traga o livramento logo!
Fomos dar uma volta ali mesmo, mas tudo parecia meio cinzento. Pouco depois disso, o bip tocou. Era Grace. O orelhão estava ali mesmo na nossa frente, fui telefonar e saber o que ela queria.
Ela havia terminado de ler o livro.
— Está muito bom... você sabe que eu tenho o meu dia todo organizado, e os horários bem cronometrados. Mas não conseguia parar de ler, tinha dias em que acabava perdendo meu horário. Isabela está de parabéns! Ela é uma grande escritora! Por outro lado... essa é uma história muito forte, não tinha uma idéia da coisa como um todo... vai ter uma repercussão enorme na Igreja. Mas fico um pouco preocupada com vocês... estive até mesmo pensando se não seria melhor a gente tentar ver alguma proteção policial... sabe, eu conheço um policial que é crente...
— Grace... daquilo que está por vir, nenhum homem vai poder nos proteger! Quer dizer, Deus mandou escrever. Agora, se Ele não nos proteger... não vai haver quem possa fazer isso.
— Ah, você tem razão! É que realmente fiquei preocupada... Conversamos um pouco mais e depois Grace quis falar com Isabela.
— Você gostou, então? — eu escutava Isabela dizendo. — Ufaa! Grace, você não imagina que peso você me tira das costas... nem sei o que ia fazer se você achasse que o livro estava uma droga!
— Não, não... a leitura está muito boa! Você é uma tremenda escritora! Mas estava dizendo para Daniel sobre a minha preocupação...
— Minha preocupação maior, Grace, para ser sincera... é pela minha família! Se eu fosse sozinha no mundo, estaria mais tranqüila. Agora... seja o que Deus quiser. Mas espero que Ele esteja protegendo minha família. Por favor, Grace... ore por eles! Você sabe o quanto eles têm sido atacados, e sabe que eles têm sido ameaçados claramente. Por outro lado, estão com muito pouco acompanhamento da Igreja... não sei mais o que fazer, nem a quem recorrer... além do quê... faz sete dias que Eduardo viu um demônio com Marco. Foi meio estranho, ele estava estudando na sala, e quando nos despedimos, Eduardo estava na porta e viu um demônio forte, bem grande, atrás dele. Estava encapuzado, de forma que não dava para ver o rosto, mas Eduardo reparou muito nas mãos. Eram mãos cadavéricas, certamente um demônio de morte, da casta de Nosferatus, pelo que Eduardo percebeu... ele tinha uma corrente nas mãos, e essa corrente passava pelo pescoço do Marco. Tentamos conversar com a Pastora Ana, você conhece ela, ela me ministrou lá na Comunidade, junto com Dona Clara. E esteve tentando dar um acompanhamento para o Marco também. Sinalizamos para ela isso aí. Logo, logo ele vai embora para o exterior outra vez, não pode ir desse jeito! Mas acontece que estamos com uma hóspede aqui, uma pessoa que Marco quer que se converta. Acredita que ela foi com ele no dia da reunião com a Pastora Ana e Dona Clara, no dia da reunião que era dele, que era para ele ser tratado! Então, em vez de a Pastora Ana ter tomado cuidado com ele, orado por ele, gastaram todo o tempo da reunião falando com aquela menina que não quer saber de nadai Ela já foi muito bem evangelizada, continua rejeitando, não está nem aí, me desculpe falar assim, mas aquele tempo era do Marco. Ela não tinha nem que ter entrado na sala, eu e Eduardo ainda comentamos isso. Se você tivesse marcado uma Ministração com ele, era com ele! Jamais você ia deixar aquela menina entrar no meio, e ainda por cima roubar a reunião. Elas perderam muito tempo, não oraram pelo Marco. Ficou tudo por isso mesmo. Foi um verdadeiro roubo do diabo! Fomos falar com elas de novo, nós estamos orando, mas elas são responsáveis por ele. Só vão ter mais um encontro... se é que vai ter mais um... além disso, Eduardo sonhou alguns dias antes disso que a casa da minha mãe estava cheia de Sadraques! Realmente, Grace, esteja orando por eles... minha família é alvo!
— Estarei orando por eles.
As duas continuaram conversando, então Isabela contou sobre Fábio, sobre o andamento prático da publicação. Falou também sobre o emprego da academia. Grace também foi categórica em afirmar que se tratava de uma armadilha.
— Ontem, no Culto, Dona Clara nos disse que foi muito retaliada. Depois que nos deu aquele conselho de realmente não aceitar o emprego, começou a ter muita tosse e sua mãe acabou indo parar no Pronto-socorro. Ela soube discernir muito bem a seta. Hoje já está melhor... esteja orando também por Dona Clara, as coisas esquentam pro lado dela às vezes — pediu Isabela. — Graças a Deus que Dona Clara não se deixa abater, ela sempre tem uma visão muito balizada de Deus, e entende que isto também é treinamento para ela.
Depois que Isabela desligou o telefone, nós nos abraçamos conscientes de estarmos caminhando na direção certa. Como ela continuasse bastante triste, fiz o que pude para animá-la.
— Dinheiro para um cafezinho a gente tem. Vamos lá?
— Vamos, sim.
De mãos dadas, fomos tomar nosso café ali mesmo. Entramos. Era uma loja que vendia CD e que tinha no andar superior um Cyber Café. — Senta, "Mô". Fui comprar o café. Quando sentei diante dela, Isabela enxugava as lágrimas.
— Você ainda está triste por causa da academia?
— Estou, mas não é isso... fiquei também preocupada com o que a Grace disse, que o livro é forte, e que ela pensou até em proteção policial... sei lá! Não estou muito bem...
— Vai dar tudo certo, menina... Deus vai nos proteger. A gente não chegou até aqui para agora acabar desse jeito. Você vai ver. Procura se acalmar
Fomos conversando, fomos falando de outras coisas, procuramos relaxar
Três dias depois disso, o dia 19 de agosto começou com uma manhã fria apesar do sol. Quando Isabela levantou, mais tarde, convidei-a para ir comigo até a padaria comprar alguma coisa para gente tomar café.
— Como está frio... dá até preguiça da gente se vestir...
— Mas veste uma roupa qualquer, só pra gente ir à padaria.
Isabela fez isso mesmo. Estava ainda triste, mas já não falava da academia. Era algo que já tinha ficado no passado. Então nem se arrumou direito, e explicou:
— Não vou nem descer do carro, só vou com você até lá para ver um pouco a cara da rua.
Fomos. Comprei o necessário e voltei para o carro.
Isabela tinha ficado esperando, e quando entrei, ela olhou no relógio lembrando que aquele era o dia em que Dona Márcia estava se encontrando com Dona Clara para orar. Nós tínhamos incentivado muito esses encontros.
— Puxa vida... será que minha mãe saiu na rua com esse frio?
Dona Márcia tinha um problema sério de circulação, além da anemia auto-imune. Suas mãos, o nariz, a ponta das orelhas, os pés e toda parte do corpo mal agasalhada ficavam roxos diante da exposição ao frio. Era uma coisa que doía muito, além de bastante perigosa, porque as extremidades podiam inclusive chegar ao extremo da gangrena. Também essas partes expostas ao frio predispunham à hemólise. Ela precisava se resguardar ao máximo.
— Ela não vai conseguir ir para casa dirigindo desse jeito, vai chegar lá passando mal, com a mão e os pés congelados... será que ela ainda está lá, Eduardo?
— Pode ser... você quer ir até lá buscar ela?
— Se ainda estiver lá, eu acho melhor — fez Isabela com o semblante preocupado.
— Então, só se a gente telefonar para a Igreja... se Dona Márcia estiver lá, pedimos para alguém avisar que a gente está indo buscar. Se tentarmos ir direto, capaz da gente perder a viagem porque está em cima da hora.
— Ali tem um orelhão — apontou Isabela.
Desci e fui telefonar. Quem atendeu na secretaria da Igreja foi a Nadia. Expliquei do que se tratava.
— Elas devem estar na salinha lá do fundo... será que você poderia fazer o favor de olhar se minha sogra ainda está aí? Se estiver, pede pra ela esperar que nós vamos passar para buscá-la.
— Olha, agora não vai dar... eu estou sozinha aqui na secretaria. A Sheila foi almoçar.
— Mas a Igreja está vazia, não está? Você leva menos de dois minutos para ir até lá dar o recado e voltar... é realmente uma coisa importante, Nadia, ela tem um problema de saúde muito sério, e...
— Mas não dá mesmo, a Igreja não está vazia, não. As mulheres estão chegando aqui para o Culto.
— Ah! que bom, se tem gente aí então você poderia pedir pra alguém dar o recado para minha sogra? Eu realmente só queria saber se ela está aí. Se estiver, vamos buscar...
— Você me desculpe, mas eu tenho mais o que fazer! — continuou ela no mesmo tom rude. — Não dá mesmo para ir lá ver.
— Você podia pedir para o Alex?
Alex era filho de Dona Clara, e trabalhava ali na secretaria.
— O Alex está no banheiro.
Evitei discutir mais. Deveriam dar cursos de boas maneiras às secretárias de igrejas, pois estão representando ali o Ministério. Se fosse numa empresa, esta conduta seria motivo de demissão.
— Tá bom, obrigado pela sua colaboração, tá?
— De nada.
Voltei para o carro irritado.
— Isabela, é melhor a gente ir direto porque a Nadia está ocupada demais para andar vinte metros até a sala onde está Dona Clara.
Ela não acreditou no que estava ouvindo.
— Como assim?
— É isso mesmo que você está ouvindo, ela é crente! Por que você quer esperar alguma coisa de uma "irmã"? — Falei em um desabafo, irritado!
Isabela não se conteve. Era pedir demais, concordo.
— Mas o que que ela pensa que é? Minha mãe é uma pessoa de idade, com problemas de saúde, com problemas sérios de saúde! Não estou pedindo para ela ir daqui até a China! Que enormidade que estou pedindo! Para que serve a Igreja ter secretária, então? — levantou e saiu do carro. Foi direto pro orelhão.
Eu só fiquei olhando de longe, Isabela estava muito irritada. Era a gota d' água da sua semana.
— ...Escuta, Nadia, posso saber por que você não pode ver se minha mãe ainda está aí? Ela não passa bem no frio, e... eu sei que você já falou com o Eduardo... eu sei! — o tom de voz dela já estava se alterando. — Você me desculpe, mas eu acho que você não está sendo nem um pouco educada!...
Isabela ficou olhando para o telefone. Cheguei perto.
— Você acredita que ela me bateu o telefone na cara? Pois eu vou ligar de novo!
Na segunda vez, Isabela acabou sendo realmente ríspida:
— Que você está pensando que é, hein? Você só sabe ser Cristã no domingo, das seis às oito da noite? O resto da semana você não é Cristã, é assim que trata as pessoas? Para que serve essa secretaria idiota, para que que você serve?... É isso mesmo que você está ouvindo...
Desta vez foi Isabela quem bateu o telefone na cara dela.
— Vamos até lá.
Quando chegamos à Igreja, obviamente Dona Márcia não estava lá. Dona Clara estava de bico conosco. Claro, ela escutou a versão do Alex. Que Isabela tinha sido ultra grossa, tinha tratado mal a Nadia, queria exigir isto e aquilo. Nem bem desligamos o telefone, então a Nadia achou imediatamente que pudesse perder um minuto para ir até a sala. Depois, fez toda a cena na frente do Pastor Jaime. Chorou, reclamou.
Isabela estava muito indignada. Nem se deu ao trabalho de explicar nada naquela hora, pela cara de Dona Clara não ia adiantar muito. A frase da Nadia refletia o pensamento da grande maioria dos Cristãos:
— Eu não tenho nada a ver com o seu problema! — disse ela para Isabela. Aquilo estragou completamente o seu dia. Especialmente porque Dona Clara tinha comentado que Dona Márcia chegou chorando na Igreja por causa da dor.
Fomos embora nós dois, mas não conseguíamos nos conformar. Como era possível que alguém que se diz Cristã pudesse, de graça, fazer uma coisa daquelas. A gente conhecia a Igreja muito bem, estava cheio de mulheres ali... não custava nada, não custava nada...
Fazia tempo que Isabela não se sentia tão afrontada, tão injustiçada, tão atacada.
— É impressionante o que o diabo não consegue fazer com os Cristãos... é impressionante!
Tentamos nos acalmar por toda a lei. Mas não sei o que aconteceu. Lá pelas cinco horas da tarde, começamos a brigar. Isabela estava com os nervos à flor da pele, era muita, muita pressão. Eu não estava menos incomodado.
Aquela somatória toda deflagrou a confusão. Que tormento, que desespero! A vontade que nós dois tínhamos era de nos atirarmos pela janela do apartamento.
Naquela noite, Marco tinha um concerto, e nós iríamos assistir. Resolvi tomar banho e me arrumar, já era tarde, eu não agüentava mais discutir. E Isabela ficou chorando, sentada na cama. Estava outra vez naquele estado crítico de desespero e agonia.
Quando saí do banho, ela ainda estava ali. Já tinha perdido a paciência e falei em tom de voz ríspido:
— Você vai, ou vai ficar?
— Vou ficar.
— Você que sabe — respondi do banheiro, sem me importar.
Quando entrei no nosso quarto, ela ainda estava sentada na cama. Dei a volta, queria pegar os lenços de papel que estavam no chão, do meu lado da cama. O lado oposto à porta. Quando cheguei lá e me abaixei pra pegar os lenços, de repente senti uma forte opressão. Ergui o corpo e voltei o rosto na direção de onde eu pressentia aquela coisa ruim.
Não estava esperando por aquilo, ali perto da porta, enorme, forte como um touro, com as costas um pouco encurvadas, o demônio olhava para mim. Eu o via como via Isabela, completamente nítido, completamente real!
Um calafrio me passou pela espinha, num segundo. Senti medo, o que mais? Eu olhava para ele e ele para mim pelo que me pareceu muito tempo. Tinha aquele olhar horrível de ódio e a cara que lembrava alguns traços de lobo, com pêlos e focinho curto. Era um Principado, porque vi os braceletes no seu braço quando ele os ergueu, em posição de quem prepara o bote.
Sem desviar o olhar, falei para Isabela:
— Vamos orar agora... — eu não queria ter que dizer o que estava vendo.
Ela deve ter percebido que alguma coisa estava errada, que eu estava vendo alguma coisa, então concordou de pronto. Eu olhava para ele, e continuava sentindo medo. Ele me olhava com olhar desafiador, sempre ali, com os braços abertos, os dedos em garra, olhando para nós. Não nos tocou, mas pelo visto não tinha intenção de sair dali.
— Fecha teus olhos... — falei a Isabela. Comecei a orar, sem saber direito como fazê-lo. — Oh! Senhor Deus e Pai, nos ajuda... — senti minha voz embargada. — Em nome de Jesus, te peço que o Senhor faça sair daqui todo enviado do Inferno...
Eu orava de olhos abertos, fixando o demônio, pois tinha impressão de que a qualquer momento iria pular sobre nós. Isabela começou a orar comigo, em concordância, no sentido de fazer resistência àquela invasão.
Mais uma vez, nós tínhamos aberto a porta com nossas próprias mãos. Só que desta vez Deus me permitia ver quem estava ali.
Havia uma Bíblia sobre a cama, percebi que Isabela estendeu a mão para pegá-la. Eu não queria que ela se mexesse, nem que abrisse os olhos, tinha receio que pudesse ver aquele vulto horrível que estava à nossa frente, e se assustar.
— Fecha teus olhos... só continua orando...
— Só quero pegar a Bíblia... — murmurou Isabela.
Eu lutava para continuar com os meus olhos abertos, mas o Principado me encarava com ar ligeiramente zombador, como se não se importasse com aquela oração recém iniciada. Então, por algum motivo, indignei-me com aquela atitude de desprezo do demônio.
— Senhor, cadê Teus anjos?! Cadê os anjos que nos acompanham? Cadê o Querubim que o Senhor disse que estava conosco? Envia Teu Querubim aqui, Deus! Envia a Guarda, nos ajuda, Senhor Deus!!
Isabela deveria estar orando também, mas de repente eu me esqueci dela. Naquele instante em que fiz essa oração desesperada, era como se eu já nem estivesse mais ali... na minha frente, como que vinda de fora do apartamento, ao longe, pude divisar uma luz azul e dourada.
Já não existia a parede do quarto, nem a janela, nem nada......
Ali ao longe, eu apenas podia contemplar naquela luz que vinha chegando perto de nós. Simplesmente perdi noção de tempo e espaço, minha atenção foi desviada totalmente para a presença daquela luz.
"Que será aquilo...?"
Por visão periférica, percebi que o vulto daquele demônio simplesmente se desvaneceu, num átimo de segundo. A presença da luz foi suficiente para que ele imediatamente saísse dali. Mas eu continuava olhando... porque com ela, com a luz... estava vindo uma indescritível sensação de Poder!...
Eu olhava, e olhava, e olhava, e a luz foi se aproximando até estar bem perto de nós. Então, aquele anjo de luz apareceu diante dos meus olhos! A luz simplesmente formou o contorno dele, rapidamente, e ele apareceu!
Eu não sabia dizer o que me impressionava mais... se a visão, ou se a sensação que emanava dele. Meu corpo parecia não agüentar, comecei a tremer e a chorar, lembro que não conseguia articular palavras com nexo, e apenas balbuciava, meio que com o rosto enterrado no colchão, meio que olhando para ele:
— É muito poder... é muito poder!
Só conseguia chorar. E ficar prostrado sobre a cama. A presença dele fazia parecer que meu corpo poderia desvanecer ali mesmo, naquele exato instante! Ergui um pouco a cabeça no meio daquele emaranhado profuso de sensações inéditas, e continuei olhando, e vi que ele tinha asas enormes. Ele era enorme, enorme, maior do que o anjo ruivo, uma altura colossal!
Parecia que asas estavam cruzadas na frente do seu corpo assim que ele chegou, mas então ele as colocou para trás... pelo menos foi o que pude perceber. Só que muito maior, muito maior do que o seu corpo, era aquela sensação de Poder que ele irradiava! Muito forte, muito forte! Não conseguia olhar muito para ele, mas não era por causa do ofuscamento. A sua luz não ofuscava tanto, era aquele Poder! Ao mesmo tempo, eu também me sentia invadido por uma sensação de paz e de amor. Compreendia que aquela era a essência daquele ser....
Realmente perdi a noção de tudo por algum tempo. Já não sabia se estava no quarto, onde estava... tudo girava em torno da presença daquele anjo.
Então ele abriu a boca e falou comigo:
— Abre tua boca e repete essas palavras para ela... eu tenho um recado a transmitir.
A primeira sensação que me invadiu foi do mais completo espanto. E lembro-me que fiquei frustrado porque ele não queria falar comigo. Mas parecia que tinha vindo por causa de Isabela.
Então ele começou a falar, e eu fui repetindo na medida do possível, na medida do que eu conseguia, porque sentia meu corpo desabando diante dele.
— Deus ouviu tua oração, e Ele conhece a tua dor. Ele recolheu as tuas lágrimas no cálice!
De tempos em tempos eu tinha que parar, minha voz saía entrecortada e dificultosa. Continuei repetindo aquele recado, devagar:
— Você pediu uma prova de que teu Deus é mais Poderoso do que aquele que anda pelo mundo. Hoje você vai ter! Depois desta noite você não será mais a mesma. Vou derramar uma unção que vai tocar no seu corpo, na sua alma e no seu espírito. Eu trago vida para o seu espírito, revigoro a tua alma e dou força aos seus músculos. Você é amada, filha minha, e Eu te escolhi para esse tempo. Não tenha medo. Nada vai acontecer. Você e os seus serão guardados por Mim. Eu vou te dar coragem e paz.
Então ele repetiu aquelas palavras. E eu também repeti mais uma vez:
— Você pediu uma prova do Poder de Deus...
Então o anjo olhou para mim e pediu que eu estendesse a mão. A minha mão esquerda. Ergui lentamente o braço, trêmulo, chorando, gemendo. Aí ele esticou a própria mão e tocou na minha aliança. Então virou a própria mão com a palma para cima, entendi que eu deveria fazer o mesmo. Voltei a palma da minha mão para cima imitando o seu gesto.
Nesse momento vi outro anjo, um pouco menor do que ele, mas que trazia um jarro dourado. Este outro olhou para mim e sorriu. Ergueu o jarro e despejou o conteúdo dele na minha mão.
Eu chorava e gemia mais ainda, parecia que ia ter uma crise nervosa, porque senti aquilo cair! Literalmente! Brilhava como se fossem lingotes de ouro em estado líquido, era brilhante como ouro líquido...
Ouvi a voz do primeiro anjo novamente. Uma voz Poderosa:
— Ergue tua cabeça...
— Ergue a tua cabeça — repeti.
Acho que Isabela deve ter entendido e obedecido, porque ele mesmo tocou na minha mão e a empurrou na direção dela. Ela continuava ali ao meu lado, de olhos fechados, mas eu quase nem a enxerguei.
Aí aquele anjo falou, no momento em que eu derrubava aquela substância sobre a cabeça dela... e eu transmiti suas palavras:
— Aqui está a prova que Me pediste! Esta é a tua prova. Dessa noite em diante você não olhará mais para baixo, mas para cima... porque a Força vem do Alto! Essa é a capacitação que você tem pedido e a prova que tem clamado. Isso é para que você saiba que Deus ouve. No tempo certo, teus olhos vão contemplar o Mundo Espiritual.
Então falou novamente de um Dom que o Senhor lhe daria.
— Isso vai acontecer quando você estiver preparada — finalizou ele.
Eu chorava muito e sentia minha mão queimando. Queimava e formigava, estava meio insensível. Falei compulsivamente:
— Senhor, perdoa nossa incredulidade, perdoa, perdoa! Como duvidar deste Poder?!
Não sei a que horas o anjo desapareceu. De repente, ele não estava mais lá, então olhei para Isabela e vi o rosto dela brilhando por causa do óleo. Eu tinha até medo de voltar a tocar naquela substância. Aí olhei para minha própria mão, ela tremia muito, então tentei segurá-la para que parasse de tremer. Não consegui me comportar de maneira normal, estava completamente descontrolado:
— Não ficou nada na minha mão... o... olha... não ficou nada aqui! Ficou tudo... — chorei mais ainda. — Ficou tudo em você!
Isabela me olhava sem compreender muito bem. Eu enterrei o rosto no colchão e chorava compulsivamente, enquanto isso ela tentava me puxar pelos ombros, preocupada com meu estado.
— Eduardo, que aconteceu? Por que você está assim?
— Eu vi! Eu vi! Eu vi! — levantei da cama e fui até o banheiro, coloquei minha mão debaixo d'água. Ela continuava queimando.
Isabela olhava ainda sem entender. Seus olhos também estavam cheios de lágrimas, mas ela não estava naquele estado de histeria em que eu me encontrava. Esperou que eu conseguisse me acalmar, o que foi acontecendo aos poucos.
— Foi ele que trouxe esse óleo para te ungir! Só então Isabela percebeu.
— Esse óleo não é nosso?! Eu pensei que era nosso... — seu rosto estava espantado, quase incrédulo. — Eu não entendi porque você estava colocando tanto óleo em mim... desde o início da nossa oração percebi que você estava vendo alguma coisa! Fiquei orando em línguas, concordando com você... mas aí percebi que você devia estar vendo alguma outra coisa! Alguma coisa boa! Você falava em línguas o tempo todo, e de vez em quando vinha uma frase em português... eu entendi que Deus estava me trazendo uma Palavra!
— Não! Falei em português o tempo todo! Não falei em línguas hora nenhuma!
— Falou, sim. A maior parte do tempo! O anjo deve ter falado com você em línguas, e você respondia em línguas. Consegui compreender que você estava repetindo algumas coisas para que eu pudesse entender... mas... nunca imaginei que esse óleo...
Ela passou a mão na cabeça, sentiu nos dedos a textura, cheirou, ainda com semblante estarrecido. Aliás, estávamos os dois completamente estarrecidos! Não foi bem naquela hora que conseguimos nos comunicar. Estávamos por demais em estado de choque. Eu, especialmente, não conseguia nem conversar direito, só pensando naquela aparição. No que aquilo significava... a gente não tinha sequer a dimensão do que aquilo significava!
Fazia mais ou menos um ano e meio que eu tinha sido ungido no meu quarto pelo anjo ruivo. Agora acontecia com Isabela!
Ela foi tomar banho, alegre e pensativa ao mesmo tempo. Eu tive que ir pegar o frasco do nosso óleo para cheirar. Tinha que comparar o cheiro... inspirei fundo... era bem diferente!
Fomos ao concerto do Marco. Chegamos atrasados, mas fomos. Minha mente estava longe, voando, pensando na visitação. Isabela se sentia igualmente embasbacada. Mas, de uma forma diferente, porque ela não tinha sentido aquilo que senti. Ela estava mais leve, mais feliz, e puxava conversa o tempo todo.
— Por que sua mão estava tremendo? — perguntou ela depois de indagar várias vezes sobre o anjo.
— Não sei... ela estava queimando...
— Quando o óleo caiu em mim, estava normal, como que em temperatura ambiente...
Apesar das suas perguntas, eu não estava a fim de muito papo. Primeiro, fiquei muito enciumado. Já fazia um tempo que eu não via nenhum anjo, e quando ele vem... vem para ela! Também estava ainda um pouco irritado por causa da briga, por causa do dia desgastante que a gente tinha tido.
Isabela, ao contrário, parecia ter-me perdoado completamente e estava muito satisfeita. Mesmo assim, não cheguei a contar tudo em detalhes para ela naquela noite.
No dia seguinte, minha alma ainda falava alto. Sentia-me inconformado, relegado para segundo plano. Quase brigamos de novo. Acabei fazendo Isabela chorar antes de contar-lhe exatamente o que tinha ocorrido.
— Puxa, Eduardo... — falou ela depois, entristecida com minha atitude. — É sempre você quem vê os anjos... mas eu também sou filha! Deus também se importa comigo. E depois, a sua experiência foi mais forte do que a minha, porque, pra variar, foi você quem viu... e Deus te mostrou, para você falar pra mim. Aquele que está na condição de Profeta não pode reter o recado de Deus.
A medida que ela falava, fui desanuviando o semblante. Caí em mim. Que papel ridículo e egoísta eu estava fazendo! Eu ainda não tinha dito do meu ciúme. Mas ela percebeu. E perguntou:
— Por acaso você está enciumado?
Olhei para ela sorrindo, envergonhado. Nem respondi. Isabela devolveu o sorriso, e veio junto um olharzinho meio zombeteiro. Mas carinhoso ao mesmo tempo.
— Nenê! Você ficou com ciúme de mim por causa do anjo? Quer dizer, eu não posso receber nenhum presente de Deus, só você! Você acha que é o grande queridinho?
Tive que brincar um pouco, então fiz beiço de menino mimado, para mexer com ela. Tinha entendido o quanto estava errado na minha postura. Aquilo fez com que finalmente conseguíssemos fazer as pazes de vez. Ela estava tentando desde a véspera, eu é que estava sendo irredutível. Então contei tudo direitinho. Tudo o que me lembrei.
— Você não tinha falado tudo isso na hora... algumas frases vinham em línguas, e outras em português. A minoria...
Ficamos calados lado a lado, sentados no Palio, pensando. Perdidos naquela experiência.
— E por que será que ele tocou na sua aliança?
— Eu entendi que era um respeito pela minha posição de marido. É engraçado, mas algumas coisas vêm forte no espírito, você simplesmente sabe que é aquilo. Ele poderia simplesmente ter jogado o óleo diretamente em você, mas entendi que Deus queria me usar por causa da minha posição de marido. Creio que Deus estava também me ensinando algo mais sobre isso. Tenho responsabilidade em relação a você! Acho que é algo mais ou menos assim.
— Puxa... se a gente pudesse quantificar a dimensão disto, não?... É uma coisa tão incrível que, se não tivesse acontecido com a gente, eu não ia acreditar. Ia achar que a pessoa tinha viajado na maionese, era maluca... ou estava mentindo! Só acredito porque foi com a gente... porque vi com meus próprios olhos — disse Isabela.
— Aí você disse uma coisa certa. Como o Reino Espiritual é real... cada coisa tão... não tenho nem palavras pra dizer. Ah! Ele disse que Deus tinha ouvido a sua oração. Que oração que você fez?
— Aí é que tá... — Isabela suspirou, com olhar distante. — Sabe que eu nem achei que tinha orado? Foi naquele dia em que estivemos recusando o emprego na academia. Depois a gente falou com a Grace pelo telefone, ela comentou sobre a sua preocupação, sobre aquela história de cerco policial... lembra?
Assenti. Ela continuou.
— Eu estava triste... e quando a gente foi tomar aquele cafezinho lá no Cyber Café, enquanto você estava lá comprando, me veio uma sensação tão ruim... então eu falei, num desabafo, nem considerei aquilo uma grande oração. Ou melhor, nem considerei uma oração! Só falei algo assim: "Ai, Deus, fala comigo dessa vez! Diz para seu anjo falar comigo desta vez! Me mostra, me dá uma prova de que Você é maior!"
— Foi só isso?
— Foi. Na verdade, Deus sabia muito bem do que eu estava falando. De repente me deu um medo, uma sensação de insegurança... mas acho que é porque eu tive que respirar dia e noite aquela doutrina satânica, aquelas experiências... depois, nosso dia-a-dia não ajuda muito. A história que a gente vive é a coisa mais estranha do mundo, ameaças, coisas horríveis... a Irmandade fala, e as coisas acontecem... nem sei! Embora eu saiba que Deus é maior, estava quase chegando ao cúmulo de pensar que, como pai, o diabo faz mais pelos seus filhos, do que Deus faz por nós... e aí desabafei! Precisava que Deus me desse uma prova de que Ele era maior... Deus entendeu, sabia que não era puro capricho da minha parte! Até agora não consigo acreditar que isso aconteceu... como Deus está escutando tudo mesmo!
— Que será aquela coisa que ele falou das lágrimas no cálice?
— Não sei.
Depois, quando compartilhamos com Dona Clara e Grace, as duas únicas pessoas para quem contamos esta experiência, uma delas mencionou o texto Bíblico do Salmo 56.8 "(...) recolheste minhas lágrimas no Teu odre; não estão elas inscritas no Teu livro?"
Que experiência indescritível... como Deus era real, como seu Poder era real!
Grace tinha marcado mais uma Ministração para mim em agosto. Não necessariamente porque Angélica havia visto alguma coisa, mas também porque Isabela, agora que tinha toda a história completa na sua cabeça, raciocinava a todo vapor.
Na verdade, não foi apenas uma Ministração, acabaram sendo duas. Ricardo já não fazia parte da equipe da Grace por isso a Ministração aconteceu com intercessores que não conhecíamos. Aquilo foi bom em parte, porque aquelas pessoas nunca tinham me visto mais gordo na vida, e muito menos sabiam qualquer coisa a meu respeito.
A maneira como Deus se manifestou foi incontestável!
Não se tratava mais de revelar segredos, afinal, aos poucos eu tinha feito isso. Em dado momento, especialmente nos últimos meses, percebi que tinha chegado ao ponto sem retorno. Quer falasse, quer não falasse... a partir do momento em que recusei a oferta de Marlon, creio que já não faria qualquer diferença.
Apesar de eles me dizerem que eu seria bem-vindo de volta, como afirmou Górion, a verdade é que parecia mais lógica a alternativa de que eles adorariam colocar as mãos em mim e me matar com muito gosto. Então... perdido por um, perdido por mil! Não havia mais por que guardar segredo sobre os segredos. Então, não me policiei mais. Fui falando, e contei muita coisa para Isabela nos últimos seis meses por causa da escrita em ritmo acelerado. Tudo estava agora escrito no livro que iríamos publicar em breve.
Isso me dava uma sensação de alívio. Quer morresse, quer vivesse... ali estava! Eu tinha feito a minha parte.
Por isso, em se tratando da Ministração, agora sobravam detalhes a serem tratados — não exatamente detalhes, eram coisas importantes. Mas só fomos perceber o quanto eram importantes depois de ter uma visão completa da minha passagem pela Irmandade.
Naquele dia tinha ficado claro, Isabela mesmo havia salientado aquele ponto, era necessário renunciar ao meu Destino Espiritual.
— Você estava na Irmandade para cumprir um propósito, não é assim? Acho que é muito importante ministrar este aspecto. Os "finalmente" de tudo que você passou eram um só: desempenhar um papel que o diabo tinha preparado para você. Também é preciso ministrar aquela história da paternidade... se o seu pai é o Marlon, isso muda tudo...
Grace concordava com ela. Mas ainda não estava disposta a aceitar Marlon como meu pai. Pelo que fomos deixando isso para depois, e tanta coisa Deus mostrou, que no final só fomos tratar disto no final do ano!
Quando chegamos para aquela Ministração não sabíamos ainda quem seria o intercessor. Grace garantiu que ia selecionar uma pessoa que tivesse dom de visão, algo importante nas minhas Ministrações. Quando vi quem era, fiquei um pouco com o pé atrás. Eu tinha ficado ligeiramente implicado com aquele rapaz porque ele costumava conversar muito durante as aulas do curso da Grace.
Um dia, a Grace pediu que ele orasse repreendendo um ataque que ela vinha passando por causa do seu Ministério, então ele obedeceu, ficou em pé e levou todos os alunos do curso a orarem em concordância. De repente, gritou bem alto:
— Eu estou vendo ele! — referindo-se ao demônio contra o qual estávamos guerreando.
A Grace até encolheu. Achamos super esquisito. E agora, era exatamente ele que estava ali. No entanto, nossa visão seria mudada a partir daquele momento.
Assim que entramos na sala e terminamos as apresentações rápidas, sentamos todos para começar a orar. Logo de cara, o rapaz, de nome Celso, falou sobre dois espíritos humanos que estavam ali na porta, querendo entrar. Nós nos entreolhamos, nós três. Eu sabia, Isabela sabia, Grace sabia do contexto espiritual que enfrentávamos. Celso não.
Grace ainda perguntou sobre a aparência dos espíritos humanos, testando o entendimento.
— É um homem mais velho, de cinqüenta e poucos anos, de cabelo grisalho, bem vestido; e está com uma moça mais nova...
— Essa moça é loira ou morena? — tive de perguntar.
— Loira.
Novamente não falamos nada, mas era muito óbvio do que se tratava.
— Não sei se tem alguma coisa a ver com a Ministração, mas foi o que Deus me mostrou... — ainda disse o Celso.
Oramos a respeito, especificamente impedindo a entrada deles na nossa sala. Grace não falou nada, nós também não falamos nada. Mas de cara, aquilo me impressionou! Não existia nenhuma probabilidade de alguém acertar na mosca deste jeito! A não ser que Deus estivesse realmente revelando...
— Eles foram embora? — foi a única coisa que Grace perguntou depois da oração.
— Eles não foram embora, mas ficaram ali fora... não podem entrar aqui.
A segunda coisa que me chamou muita atenção naquela Ministração foi que, não demorou muito, e Celso viu uma urna em visão.
— Deus está me mostrando uma urna, eu não sei se entendi a visão direito, mas essa urna tem a ver com ele — e apontou para mim.
Nós estávamos ali para ministrar a questão do Destino Espiritual. Antes mesmo que tivéssemos tocado nesse assunto, Deus estava mostrando o rumo a tomar em oração.
— Sim, isso tem a ver com o seu chamado político.
Eu sabia que Celso não podia ter tirado aquela visão do nada, aquela revelação de si mesmo, por pura coincidência.
Outro ponto importante da Ministração foi quando ele trouxe a visão de um guarda-roupa cheio de vestes. Estas visões vinham em momentos estratégicos, normalmente depois de pedidos de perdão, de renúncias específicas. Imediatamente Deus mostrava o próximo ponto a ser tratado.
— Neste guarda-roupa tem 70 vestes, e elas estavam preparadas para você... — foi explicando Celso. — Você chegou a usar algumas destas vestes, mas foram poucas. Só que o guarda-roupa inteiro já estava preparado... para o futuro!
A princípio não entendemos direito por que Deus estava mostrando vestes. Mas depois ficou mais claro, por que Celso mesmo explicou melhor a visão.
— São vestes de Poder. Era como se fossem patamares de Poder a serem alcançados, patentes que você iria galgar!
— Sim, eu entendo... a minha trajetória era longa.
— É como se todo o destino dele tivesse sido meticulosamente traçado. As vestes são justamente isso: um destino previamente traçado! Simbolizam o Poder que ele teria, mas também que o diabo já tinha planejado tudo. Nós sabemos que foi isso mesmo, ele não era uma pessoa comum dentro da irmandade — falou Isabela.
— Isso faz muito sentido — concordou Grace.
Oramos sobre tudo aquilo. Então Deus mostrou mais coisa.
— Duas destas vestes não eram para ele... uma era para um homem, e outra para um demônio, os dois muito ligados ao Eduardo. Como se isso fosse uma coroa de vitória que eles receberiam por terem feito o trabalho que fizeram... algo neste sentido. Uma espécie de recompensa!
— O Marlon e o Abraxas! — exclamou Isabela. — Aqueles que foram responsáveis pelo treinamento e capacitação do Eduardo como que receberiam uma coroa especial por isso — fez Isabela seriamente outra vez. — Isso tudo é muito certeiro!
Concordei com ela. Naquele momento, julgamos que o demônio fosse Abraxas de fato. Em breve nós veríamos que não se tratava dele. O condecorado seria Leviathan. Mas naquele momento tratamos como se fosse.
— Eu vi também algumas coroas — continuou Celso. — Essas coroas também eram para você! Realmente... eu não sei com que você se envolveu, mas o que eu estou vendo denota um Poder muito grande, um Poder claro. Deus me mostra também que você tinha controle sobre alguma coisa... você controlava alguma coisa. Já tinha um poder de controle, uma das coroas você já usava, mas havia um Poder muito maior reservado para o futuro!
Aquilo tinha sua razão de ser. Todas aquelas informações, somadas, mostravam que o meu Destino Espiritual escrito pelo diabo era grande, era Poderoso, era especial. Aquilo que ele tinha reservado para mim era "glorioso". Foi uma Ministração muito específica neste aspecto.
Nossas orações levaram à destruição daquele guarda-roupa, das vestes, das coroas. Eu renunciei a tudo aquilo. Depois, mais para a frente, enquanto Grace me ungia, creio que foi novamente Isabela quem falou: agora ela era muito mais participativa do que antes. E suas colaborações tinham sempre um valor especial.
— Tinha um Portal que era mais importante para o seu Destino Espiritual do que os outros, não é?
— Tinha, claro. Do alto da cabeça!
Quando Grace orou sobre ele, e ungiu o local, e eu renunciei ao Destino Espiritual que a sua abertura me proporcionaria, aquele destino para o qual tinha nascido, segundo a Irmandade, e etc. etc... algo diferente aconteceu. Desta vez Deus trouxe uma visão ao Celso bastante significativa.
No entender da Irmandade eu havia sido gerado justamente para cumprir um propósito. O fato de saber que Marlon era meu pai tornava a questão do Destino Espiritual muito mais complexa.
— Enquanto você estava orando sobre a cabeça dele, Grace, eu vi um poço aberto... um poço negro, muito profundo, como se fosse realmente até o Inferno. E no momento em que você ungiu, eu vi como se houvesse óleo escorrendo pelas paredes deste poço.
Aquilo me fez lembrar de uma outra descida ao Inferno, quando eu tinha sido marcado por Belfegór. Aquele demônio seria um dos primeiros que me estariam dando capacitação especial, futuramente, para cumprir aquilo que tinha sido determinado por Lucifér (Esta grafia está propositadamente incorreta para enfatizar a pronúncia adotada nos bastidores da Irmandade).
— Depois que o óleo escorreu, aquele poço fechou! Ficou lacrado.
— Graças a Deus — disse Grace.
Também aquele detalhe Celso desconhecia. A figura do poço era muito profunda, mostrava que aquilo agora estava cancelado. O poço tinha sido lacrado! E aconteceu exatamente na hora em que o Portal foi ungido e eu renunciei ao plano de Lucifér para mim.
Enquanto a gente se regozijava, comentando o que tinha acontecido, e o que Deus tinha feito, Celso acrescentou:
— Não foi só isso... Deus te deu uma chave também. Essa chave fechou o poço... mas ela ficou com você, ela serve para abrir também uma outra porta.
— Que porta? — perguntamos Isabela e eu em uníssono.
— Aí eu já não sei. Só sei que Deus te deu a chave. Essa chave não é para qualquer um... além da chave, Deus te deu uma caixa de presente e uma nova coroa! — os olhos do Celso ficaram até meio lacrimejantes, ele se emocionou ao falar: — Eu realmente não sei o que você fez, nem com que você se envolveu, mas ficou muito claro para mim hoje que o diabo te deu muita coisa... mas Deus vai te dar muito mais!
Na minha concepção, imaginei que a tal chave serviria para abrir uma porta de emprego. Ou, então... a porta do Ministério, quem sabe?! Tinha de ser isso!
Nós dois saímos muito impactados daquela Ministração porque Deus tinha trazido uma revelação muito contundente. Todas as vezes que Celso abriu a boca foi para acrescentar dados essenciais, certeiros e que fugiam totalmente da possibilidade de uma coincidência. O mover de Deus foi muito diferente naquela ocasião, bem diferente de como acontecia com Ricardo. Embora Ricardo trouxesse coisas importantes, nunca tinha sido daquela maneira tão forte. Foi uma coisa muito especial! A manifestação do Poder de Deus era indiscutível.
A segunda Ministração importante naquele período foi mais ou menos um mês depois, na casa da Grace. Foi uma Ministração longa, mas que também trouxe uma manifestação singular em termos de revelações e do mover de Deus. A intercessora, Sandra, também não nos era familiar. Enquanto conversávamos com Grace a respeito dos pontos a serem ministrados, de repente Sandra interrompeu:
— Ô, Grace... não quero cortar o que vocês estão falando, mas estou vendo a mesma coisa já faz tempo... — ela estava um pouco inquieta, com uma certa sensação de urgência no tom de voz. — Estou vendo ele preso dentro de uma gaiola, sobre um precipício e, embaixo, neste precipício, tem muito fogo. A corrente que está segurando a gaiola está por um fio... acho melhor a gente orar e pedir para Deus tirar ele deste lugar porque a corda está quase arrebentando. Fora da gaiola tem um dragão e uma serpente olhando com fúria!
Grace concordou de pronto. Isabela já tinha sido vista dentro de uma gaiola, agora pelo visto era minha vez. Não estranhamos, já estávamos acostumados que às vezes a Ministração era direcionada por visões de revelação. Nem sempre era possível compreender a profundidade e o significado completo das visões, mas a prudência e a experiência mostravam que o melhor era não esperar. Se Deus estava insistindo naquela visão, o melhor era orar logo a respeito. A figura do dragão era muito óbvia: tratava-se de um símbolo de Satanás; já a serpente era símbolo de Leviathan.
"Muito sugestivo."
Grace se colocou em posição de orar por aquilo e pediu que eu fechasse os olhos. Então, depois de orar para que Deus me tirasse daquele lugar, ela pediu:
— Eduardo, agora você vai sair, OK?
Naturalmente, durante a oração eu fui formando uma imagem mental da situação, baseado no que a Sandra dissera. E, também na minha imaginação, eu tinha que sair dali. Relativizei um pouco e usei das informações que já tinha formatado dentro da minha cabeça:
"Bom, essa é só uma maneira terapêutica de lidar com a informação... não quer dizer que eu vou sair literalmente... quando eu orar declarando que estou saindo desta gaiola, isso vai ser uma espécie de ato profético!"
Eu já não questionava estas coisas. Já tinha me imaginado dentro daquela gaiola, sobre um abismo muito grande, e a minha gaiola estava no extremo de um penhasco... bem perto dela havia uma ponte estreita que levava ao outro extremo do penhasco. Uma ponte frágil... e a porta da gaiola de repente estava aberta.
"Tudo bem, é só me imaginar saindo daí e atravessando aquela ponte."
Aí aconteceu algo interessante, na minha mente a imagem travou! Isto é, eu não conseguia me imaginar saindo daquela prisão... por mais que tentasse. Durante alguns segundos fiquei refletindo comigo mesmo.
"Como é que eu não tenho controle sobre essa situação, por que eu não consigo imaginar que estou saindo da gaiola e atravessando a ponte?"
Na minha imaginação as pernas estavam moles, não me carregavam, eu não conseguia levantar e sair. Minha mente não conseguia pensar aquilo que eu desejava pensar! Então percebi que isso era literal, era físico... eu sentia essas sensações fisicamente...
Então, antes que pudesse imaginar qualquer outra coisa, senti algo que se aproximou de mim, e me pegou... alguém me pegou e me carregou, e isso foi literal, eu senti acontecer assim... com força e ao mesmo tempo com suavidade, alguém me carregou nos braços, como se eu fosse uma coisa especial, preciosa... e Ele me levou para fora da gaiola... aí eu já não sentia mais medo, porque aquela ponte era muito frágil, muito estreita, muito instável... mas quando nós passamos por ali.... não balançou...
Abri os olhos entre emocionado e encafifado. Como Sandra agora estivesse calma a respeito da visão, não falei nada de imediato. Isabela foi a única que notou a expressão do meu rosto. E perguntou:
— Que aconteceu, Eduardo?
Contei meio por alto, não tinha idéia de como explicar aquilo. Novamente Deus me surpreendia com Sua maneira ímpar de agir.
O segundo ponto importante neste dia foi que novamente a intromissão dos espíritos humanos se fez presente. Só que dessa vez de outra maneira. Ele se apresentou com uma espécie de armadura. Pelo menos foi assim que Deus mostrou para Sandra. Grace ficou indignada:
— Eu sei que aqui na minha casa tem uma blindagem muito espessa, como que esses fulanos vão entrando assim desse jeito?
Ao que parece, aquele espírito humano tinha entrado graças àquela proteção. Que Deus mostrava como sendo uma "armadura". Não que o fosse de fato, porque muitas vezes a linguagem da Ministração é simbólica, no entanto tinha de ser uma espécie de proteção. Não podemos saber exatamente o que isso significa, ou o que foi que eles usaram para conseguir atravessar o cerco dos anjos e dos muros de fogo.
Mas o que Deus estava querendo revelar naquele momento é que havia algum tipo de Encantamento, alguma coisa nova, talvez, e que isso estava permitindo aos espíritos humanos furarem o bloqueio de fogo que havia ali ao redor da casa.
Embora não possamos explicar, e muito menos saber do que se trata, fato é que estava acontecendo.
Diante daquela revelação, oramos especificamente contra a presença daquele espião. Até que Deus mostrasse, também em visão, que ele tinha tido que sair dali.
Depois a Ministração continuou, ainda levando em consideração a questão do Destino Espiritual. Dessa vez, Sandra continuou dando seqüência em visões totalmente certeira e específicas, exatamente como tinha acontecido com Celso.
Logo ela falou em um trono e em vestes de príncipe. Aquilo foi muito, muito interessante, porque era exatamente a mesma linguagem que tinha sido dada ao Celso na Ministração anterior. No entanto, eu já tinha renunciado àquilo, portanto Sandra não estava falando da mesma coisa. Ela estava dando continuidade ao mesmo assunto, mas abordando outro aspecto.
Celso tinha falado em vestes. Sandra acrescentava algo mais: ela falou em vestes de príncipe, o que já quer dizer uma outra coisa. As vestes que Celso tinha visto denotavam Poder, além de mostrar que um caminho vinha sendo traçado. "Vestes de príncipe" já tinha uma conotação maior, pois nem todo aquele que tem Poder é efetivamente um príncipe. E depois ela acrescentou:
— Deus disse que, assim como nos Estados Unidos vai haver um homem, um homem especial, que vai preparar o caminho para o anticristo naquele país... assim também era você aqui no Brasil!
Aquilo veio mais ou menos como uma pancada na cabeça, no bom sentido!
— Puxa vida... Deus te revelou mesmo isso! — exclamei. — Eu estava mesmo compromissado com o preparo do Brasil para isso mesmo.
Sandra tinha tido a revelação, naquele momento, sem nenhuma informação prévia... de que em determinadas regiões do Globo haveria um homem, ou um pequeno grupo, compromissado com o preparo para a vinda do anticristo. Era realmente uma pancada na moleira!
Ela tinha ido além na afirmação dela, pois tinha falado que eu seria um homem, um homem específico. Naquele momento, eu apenas me recordava de ser um dos noventa. O resto viria com o tempo. Eu tinha me esquecido...
Por ora, era tratar aquilo que tínhamos em mãos...
Ficou claro que, na Ministração anterior eu tinha renunciado ao meu destino de uma forma "geral". Agora, pelo que parecia, Deus queria que eu renunciasse à função que eu teria naquele destino. A verdade é que meu cargo não era apenas político, ia muito além, embora eu não tivesse lembrança... era muito mais... como viria a ser descoberto em mais alguns meses, pouco menos de um ano.
Por isso Deus estava insistindo naquele ponto. Ele não queria mais que eu tão-somente renunciasse ao destino como um todo, destruindo-o e aceitando em seu lugar aquilo que Jesus tinha para mim. Agora era preciso ser específico. Ou seja: teria que renunciar ao fato de ter sido um dos preparadores do anticristo, renunciar ao fato de que tinha sido gerado para isso, que a minha mente e o meu coração e as minhas potencialidades foram preparadas para isso. Sem dúvida, algo muito mais profundo...
Sandra ainda trouxe à tona um detalhe específico ritualístico, algo que nem eu me recordava mais de que se tratava. Foi Isabela quem lembrou, porque estava com a história fresca na cabeça, por ter terminado de escrever o livro. Novamente o dardo aceitava no centro do alvo. Na verdade, aquelas visões não acrescentavam nada novo a nós... mas a indiscutível clareza de cada uma delas foi a maneira de Deus mostrar exatamente como dirigir as nossas orações!
De resto, ficou óbvio no restante da Ministração que todas as visões tinham a ver com ataques específicos sobre a minha vida.
Isabela e eu saímos estupefatos de lá naquela noite! Com a maneira sobrenatural com que Deus tinha tratado aquele assunto. Fomos comer alguma coisa em casa, e não conseguíamos parar de comentar os detalhes da Ministração. Era completamente impressionante! O agir de Deus era impressionante...
Com isso, alívio! Tudo aquilo estava cancelado, tudo aquilo era mais lixo que tinha sido arrancado da minha vida! Sem dúvida, já não era sem tempo... o cerco iria apertar muito mais, gradativamente, à medida que se aproximasse a data marcada para nossa morte. Tanto a minha, quanto a de Isabela.
Era preciso que todas as brechas estivessem fechadas!
Depois da Festa da Primavera daquele ano sentimos a coisa mais densa.
Os problemas se avolumavam, tanto financeiros quanto de relacionamento entre nós. Havia uma angústia muito grande que tomava conta cada vez que brigávamos. Quanto ao dinheiro para nosso sustento diário, o nome de Isabela já tinha sido protestado e não havia mais nenhum limite de cartão de crédito nem de cheque especial.
Começamos a cogitar em vender o Palio para conseguir sobreviver mais alguns meses. Aquilo seria literalmente jogar o carro no lixo, transformá-lo em nada, mas seria uma maneira de ganhar tempo.
Não havia mais de onde tirar sustento, e não havia ninguém a quem pedir ajuda. As poucas pessoas em quem confiávamos, Grace e Dona Clara, não tinham condições de fazer nada além de orar. De resto, os poucos com quem compartilhamos alguma coisa vinham com respostas padrão, chavões evangélicos, nada que pudesse nos ajudar. Como falou a noiva de um antigo amigo de Isabela:
— Luta todo mundo passa, irmã! — com ar de sabe-tudo, e nenhuma compaixão.
Continuar falando o quê depois daquilo? Ela não sabia que há níveis de luta. Ou será que todos cristãos são como Paulo, como Davi, ou como Moisés? Certa noite, estávamos comentando que precisaríamos de mais ou menos R$ 1.500,00 para conseguir segurar o orçamento durante mais algum tempo. "Algum tempo" era só maneira de dizer, aquele dinheiro era a quantia mínima para evitar que tudo voasse pelos ares!
Se esse dinheiro não aparecesse, a única solução era realmente vender o carro. Não iríamos ganhar muito, porque ele ainda estava alienado, faltavam nove prestações.
Naquela noite, oramos muito pedindo a Deus pela provisão. Além disso fizemos uma coisa que nunca tínhamos feito antes, mas cremos ter sido direção de Deus. Entregamos a Ele tudo o que tínhamos... os nossos poucos bens, nosso carro, nossas coisas... e, então, o mais difícil: entregamos nossa saúde, nossa vida... foi com lágrimas e muita dor que depositamos no altar de Deus a vida um do outro. Isabela entregou minha vida diante Dele, sabendo que ela não lhe pertencia, e eu fiz o mesmo.
Foi um momento duro o desta entrega. Sabíamos — tínhamos plena certeza e convicção — que nossa vida já não era nossa, e que qualquer coisa que fosse acontecer estava nas mãos do Senhor. Não havia nada que pudéssemos fazer para nos livrar, para nos salvarmos a nós mesmos. Não adiantava continuarmos nos agitando, era preciso relaxar porque nosso destino estava traçado. Não pelo diabo, mas por Deus!
"Aquietai-vos, e sabei que Eu sou Deus..."
Apresentamos a Deus o desejo do nosso coração: que era sobreviver, sem dúvida! Conseguir atravessar aquela tempestade e chegar com vida do outro lado. Se ia sobrar alguma coisa... nós não sabíamos. Mas bastava que terminássemos com vida. Deus havia permitido que chegássemos num momento de completa renúncia.
Os remos não estavam mais em nosso poder. Se estávamos dentro de um barco, sendo levados pela correnteza, havia muito tempo que os remos estavam nas mãos do Deus Todo-Poderoso, o Grande El-Shaddai! Não adiantava nos debatermos... Ele iria nos levar aonde quisesse. Ou então, aquele barco acabaria por virar, e nós iríamos desaparecer. Nisso seria também cumprida a Vontade de Deus. Não havia nada que pudéssemos fazer para impedir isso.
Portanto, aquela entrega. Fizemos de todo o nosso coração. É difícil entregar tudo que se tem a Deus, quando se sabe que realmente Ele pode tomar tudo... e nós teríamos que dizer, como Jó: "O Senhor deu, o Senhor tirou, louvado seja o Nome do Senhor!" Por algum motivo que talvez ainda nos fosse desconhecido, porque os pensamentos de Deus são mais Altos do que os nossos, a verdade é que a partir daquele momento nós nos preparamos para qualquer coisa....
Depois daquela oração ficamos mais aliviados. Nossa esperança era a certeza de saber que Deus estava no controle. Não importava o que fosse acontecer... só ia acontecer porque Deus permitiria! Essa era uma convicção forte. Nossas vidas não estavam na mão do diabo, estavam na mão de Deus.
No final do mês de agosto eu tinha começado a escrever uma apostila, por sugestão do Pastor Lucas, para preceder o lançamento do livro. A princípio, seria apenas um material de divulgação. Nunca me passou pela cabeça que aquela apostila seria material de trabalho no futuro. Eu montei o esqueleto, com os principais assuntos, e Isabela tratou de dar o polimento, reescrever alguns trechos, acrescentar outras informações...
Aquela apostila foi uma criação feita por nós dois! Levou algumas semanas. Mas logo ela estaria pronta! Talvez Grace nos ajudasse a divulgar o material e aquilo se tornasse alguma fonte de sustento para nós... antes da publicação do livro.
Por falar em Grace... ela estava preocupada em continuar sustentando sozinha a nossa vida. Espiritualmente falando. Ela sabia que Dona Clara era outro importante pilar, estava firme e fiel desde o início. Mas Grace já tinha lido o livro... então entendia agora, melhor do que antes, a gravidade da publicação! Entendia o risco que nós estávamos correndo. E não queria assumir toda aquela responsabilidade sozinha!
Por esse motivo resolveu abrir para sua equipe um pouco do nosso contexto, para que eles pudessem estar intercedendo por nós com conhecimento de causa. Seria um sustento para nós, e também um sustento para ela. Uma vez que nós não tínhamos outros intercessores...
Não achamos ruim, uma vez que o livro logo iria sair e aquelas informações viriam a público. Isto é, o livro viria a público... não necessariamente o conteúdo das Ministrações! Alguns aspectos deveriam ter sido mais bem preservados, todavia, naquela altura apenas confiamos em Grace.
Fato é que, como não tivéssemos conseguido nenhum intercessor em nenhum outro lugar, Grace os estava providenciando para nós. Sua própria equipe.
A primeira vez em que nos reunimos com eles foi durante a sua própria reunião. Nós costumávamos chegar mais tarde, lá pelas dez da noite, dez e meia, quando eles estavam finalizando seus assuntos. Então podíamos compartilhar alguns motivos de oração, e orar com eles.
Naquela noite estava bem frio, o inverno estava chegando ao fim, mas ventava um vento gelado. Isabela, friorenta, reclamava do frio o tempo todo. Grace demorou um pouco a abrir a porta. A gente nunca escutava a campainha da calçada.
Então alguém abriu a cortina da sala e espiou, fez um aceno. Logo vieram abrir a porta. Eles estavam todos sentados no sofá e nas cadeiras, lotando a salinha da Grace. Da porta, demos um "Oi" geral e nos acomodamos no fundo, perto da porta, quietos, para não atrapalhar o final da reunião.
Logo Grace chamou a gente para sentar mais perto, no sofá. Estava reunida ali boa parte da equipe dela. Pela primeira vez nós íamos orar em concordância com um grupo assim, que era mais sólido aparentemente. E estava envolvido com Batalha Espiritual. Grace já havia adiantado alguma coisa sobre nós, e acrescentou:
— O que eles estão passando, mais ninguém aqui passou. Eles precisam muito, muito de cobertura de oração!
As pessoas lançavam para nós olhares diferentes. Havia quem olhasse com simpatia, havia quem olhasse com curiosidade, havia quem olhasse de maneira neutra. E então alguém falou:
— Eu estou vendo as costas dela esquartejadas, e a cabeça está partida. De dentro da cabeça entram e saem demônios!
Para nossa surpresa, não era eu que estava naquelas condições, mas Isabela. Não que fosse de fato uma surpresa, o ataque era sobre ela também. Mas como veríamos naquela noite, naqueles tempos o ataque estava concentrado nela.
— Vamos orar a respeito.
Foi levantado um clamor ali. Quando terminou, outra pessoa falou também:
— Tem também uma lança que está atravessando as costas dela.
Mas a visão mais surpreendente foi a de um homem com armadura negra que estava atrás de Isabela, com as mãos na sua nuca. Antes de colocarmos este ponto em oração, uma mulher que estava entrando na equipe aquele dia, e participava da reunião pela primeira vez, pelo que entendemos, fez um comentário um pouco fora:
— Você já renunciou ao pacto que fez com as Trevas? — indagou ela olhando para Isabela. Isabela se voltou na direção da pessoa, sem entender.
— Eu não fiz pacto nenhum. Não sou eu a ex-Satanista. É ele! Eu só sou casada com ele.
Naquele momento Grace não se deu ao trabalho de ficar explicando nada. A mulher ficou quieta sem palpitar mais nada.
Quando todos nós oramos a respeito daquele homem de armadura que estava no canto da sala, parado, começamos a nos surpreender um pouco. Aquela mesma revelação já tinha vindo durante a minha Ministração. Novamente eles estavam enviando um espião com uma proteção especial capaz de perfurar o bloqueio de Deus. Um espírito humano "paramentado"!
As visões não vinham de uma só pessoa, isso é o que era mais interessante. Mas se complementavam. Novamente salientaram muito bem que não se tratava de um demônio, mas de um homem. Um homem com armadura!
Um clamor de resistência muito grande foi levantado no sentido de expulsar dali aquele intruso. No entanto, quando terminou, alguém indagou:
— E então? Ele foi embora?
A pessoa que estava tendo as visões do intruso balançou a cabeça negativamente.
— Não foi embora. Continua ali mesmo, ali no canto, parado... eu ainda estou vendo!
Durante alguns segundos, o silêncio percorreu a sala. Certamente aquela não era a resposta esperada. Mas não aconteceu assim.
— Então vamos orar de novo! — sugeriu alguém.
Assim foi feito. Com mais ímpeto do que da primeira vez. Vozes se elevaram, altas, alguns braços até se ergueram ao ar. Eu e Isabela participamos da oração mas não interferimos em nada do que estavam deblaterando entre si. Não queríamos atrapalhar.
— E agora? — perguntou Grace.
— Olha... não sei o que está acontecendo, mas ele continua aqui, não foi embora, não...
Dessa vez houve um silêncio ainda maior. E depois a indignação percorreu todo mundo. Alguém cogitou:
— Ele está vestido com uma armadura, não é? O que é que combate o ferro da armadura? Vamos pedir para Deus enviar um anjo com um maçarico! Grace, ora neste sentido! Se ele está usando uma armadura, vamos rasgar esta armadura!
Em outras palavras, Deus na sua Onisciência sabia disso, "pedir o maçarico" queria dizer pedir o antídoto específico. De alguma maneira aquele espírito humano estava usando de um Encantamento peculiar, e embora nós não pudéssemos dizer o que era, Deus sabia.
Pedir que Deus enviasse um anjo com maçarico queria dizer que Deus enviasse um anjo capaz de destruir especificamente aquela proteção. A proteção que fazia com que aquele homem conseguisse permanecer ali no nosso meio, a despeito das orações convencionais!
Ninguém usou essa linguagem rebuscada, mas a experiência deles ao longo dos anos fez com que percebessem que, algumas vezes, Deus trazia armas específicas, estratégias específicas. Por isso, pedir a Deus um maçarico não soou como algo estratosférico para ninguém ali.
Pode parecer uma coisa estranha, muito estranha... mas a verdade é que funcionou!. Aquele lança-chamas espiritual afugentou o espião. A coisa era forte mesmo. Não tinha terminado ainda.
— E então? Não vai dizer que ele ainda está aqui?
— Dessa vez ele foi embora, mas levou o nome dos familiares de todos os que estão aqui. Saiu ameaçando a família de todo mundo, e está indo colocar os nomes num caldeirão.
Novamente: "colocar num caldeirão" era uma figura de linguagem, uma linguagem metafórica que, em outras palavras, queria dizer "submeter a um Encantamento".
Pelo que alguém sugeriu novamente:
— Vamos pedir para Deus enviar um anjo, e interceptar esse espírito! Oramos todos neste sentido, com todo ímpeto. Quem não conhecesse muito em este contexto certamente há de imaginar que estávamos todos ficando avariados mentalmente.
Quando terminamos, todos os olhares se desviaram na direção da mulher que estava tendo as visões. Todo mundo lhe lançou piscadelas indagativas esperando que ela se pronunciasse. A resposta não foi encorajadora.
— Não adiantou. Deus enviou um anjo, mas mesmo assim o espírito escapou. E nossos nomes já estão dentro do caldeirão.
Todo mundo se entreolhou, procurando algo para dizer. Realmente havia um ar de incredulidade na maioria dos rostos! Era muita ousadia do diabo.
Deus mostrava que, a fim de evitar que os familiares fossem atingidos, seria necessário orar ainda mais uma vez. O processo de retaliação não tinha sido abortado.
Desta vez, Grace foi a que ficou mais indignada. E usou de um ato profético para orar mais uma vez.
— Senhor, usa minha vida neste momento. Permita que espiritualmente eu possa ir até este caldeirão, até o lugar onde ele está! Em nome de Jesus, estou diante dele! Eu calço minha mão com a proteção de uma luva, de uma luva que o Senhor me dá agora! Eu coloco minha mão dentro dele e tomo nossos nomes de dentro deste caldeirão! Na tua misericórdia, peço que o Senhor ouça nossas orações agora e destrua todos os planos do inimigo.
De pé no meio da sala, ao dizer estas palavras, Grace como que enfiou a mão dentro daquele caldeirão e tirou aquilo que era nosso, que não pertencia a eles.
— E agora, em nome de Jesus, eu tomo todo o conteúdo deste caldeirão e derramo no chão, torno completamente sem efeito toda tentativa de retaliação sobre nós e sobre nossas famílias! Passa Teu Fogo aqui e queima toda impureza. Limpa também minha mão de toda contaminação do inimigo.
— Amém! — fizemos todos nós em concordância.
Já fazia um bom tempo que estávamos às voltas com aquele espírito humano vestido de armadura. Olhamos para a pessoa das visões.
— Agora funcionou! Deus queimou tudo aquilo que estava dentro do caldeirão e realmente permitiu que Grace tirasse os nomes de lá!
Um burburinho de animação percorreu a sala.
— Arre!
Diante de um ataque tão maciço sobre Isabela, parece ter ficado claro para alguém, depois disso, que Isabela tinha que pedir perdão por um pecado. A pessoa sinalizou essa direção, e tentou ajudar, à sua maneira:
— Você se arrepende de ter se casado com ele? Isabela foi veemente na resposta.
— Não, de forma nenhuma. Isso não. Mas eu sei... eu acho que sei do que Deus está falando, que pecado é esse, eu sei...
— Então, por favor, se ajoelhe aí no meio...
Eu não tinha idéia do que Isabela ia orar, mas ela parecia ter certeza do que precisava ser feito. De cabeça baixa, entre lágrimas, foi falando na frente de todos os presentes:
— Oh! Senhor... eu sei que o Senhor é mais forte do que o diabo, sempre soube disso com a minha mente, porque está escrito na tua Palavra. E eu não questiono, Tu o sabes... apesar disso... o Senhor também sabe que rumo meus pensamentos tomaram... o Senhor sabe quanto tive que absorver da doutrina satânica, quanto que eu tive que mergulhar nela, e quantos problemas nós temos enfrentado... não tem sido fácil, meu Pai! Dia e noite fiquei em função da doutrina da Irmandade, das práticas da Irmandade... e o meu cotidiano refletia boa parte daquilo que eu estava escrevendo. O Senhor sabe que algumas vezes pensei, no meu íntimo, que, como pai... o diabo tem sido melhor para os filhos dele do que o Senhor é para nós, os Teus filhos! Cheguei ao cúmulo de pensar nisso! Que existem dois pais... e o diabo, no final das contas, aqui nessa Terra, é um pai melhor do que Deus. Às vezes tenho ficado revoltada com tudo que tivemos de passar. Embora continue crendo que o Senhor é o Deus Todo-Poderoso, questionei o Teu Amor por nós. Na minha mente eu sei que o Senhor é Pai, que o Senhor é Amor e tudo o mais que a Palavra diz... é nas minhas emoções que algumas vezes fica difícil aceitar! E muitas vezes de certa forma "invejei" a maneira como Satanás trata seus filhos. Eu te peço perdão por isso, porque esse é um pensamento errado, um pensamento distorcido... que o Senhor possa me perdoar disso tudo! O diabo é falso e mentiroso, ele não busca os interesses de ninguém a não ser dele mesmo... o bem que ele faz é apenas aparente! O Teu Bem é perfeito... e é eterno! Me ajuda a continuar caminhando, me ajuda ao olhar para Ti e Te conhecer cada vez mais. O Senhor sabe que eu quero isso. Eu rejeito cada um destes pensamentos distorcidos!
Isabela chorou ao fazer aquela oração. Mas teve humildade em admitir a quantas andava o seu coração. A cabeça partida, e os demônios que entravam e saíam, certamente estavam trabalhando de forma muito profunda na mente dela. Claro que ela não ia poder resistir muito tempo com pensamentos como aqueles.
Mas a verdade é que em momento algum houve muita oração a respeito do livro, a respeito da proteção da mente dela. Afinal, tudo que ela estava escrevendo, de certa forma também estava experimentando no dia-a-dia...
Grace ainda comentou, penalizada:
— Quando li o livro, fiquei horrorizada por sua causa... falei comigo mesma: "Coitadinha... como que essa menina conseguiu escrever uma coisa dessas?" Eu imagino como não ficou o seu coração, a sua mente, as suas emoções... Graças a Deus que hoje estamos colocando um basta nesse ataque terrível que está sobre sua vida!
As costas esquartejadas e a lança atravessando o tórax prenunciavam um ataque de morte. Nenhuma novidade. Mas saímos de lá naquela noite um pouco impressionados. Isabela até chorou de novo.
Uma coisa era quando as visões aconteciam durante a Ministração, era um outro contexto. Não estávamos esperando por uma revelação tão contundente de um ataque tão claro sobre Isabela. De certa forma, era um ataque "gratuito". Mas não no entender dos Satanistas. Sem ela, aquele livro jamais chegaria ao conhecimento da Igreja. O ódio que tinham de Isabela era "justificável" por este lado... mas também pelo fato dela continuar ao meu lado.
Certa tarde, recebi um bip de uma pessoa da equipe da Grace. Telefonei em seguida e ela me explicou que estava com algumas dúvidas, precisava conversar comigo. Eu a atendi. Esther veio em casa e passou comigo uma tarde. Ela era uma senhora simpática e me fez muitas perguntas a respeito de como ela poderia resistir aos ataques que vinha enfrentando. Trouxe algumas frutas, alguns legumes, algumas coisas de comer para nos presentear.
Já de noite, tendo Esther compartilhado sobre os problemas que ela, o marido, e a filha estavam vivendo, terminamos nossa conversa. Oramos juntos, e eu falei rapidamente sobre nossa situação financeira, pedindo que também estivesse orando por nós. Tive um pouco de vergonha e receio de ser tão específico. Por isso não disse que estava sem nenhum centavo no bolso, nada, nada, nada... não queria aparecer melodramático, nem que a estava coagindo a me ajudar!
Depois que ela foi embora, eu estava um pouco triste. No meu coração, já me via realmente tendo que vender o Palio, nosso único bem, para pagar o aluguel. Embora estivéssemos orando, inclusive Grace e Dona Clara faziam o mesmo, não parecia haver saída para nós.
Já informados sobre o preço da publicação do livro, precisávamos de R$ 5.000,00 para dar de entrada na gráfica. Se Deus pretendia efetivamente publicá-lo, Ele teria que nos trazer esse dinheiro nas mãos. No entanto, entendíamos que era preciso fazer a nossa parte! Não podia ficar em casa, de braços cruzados, esperando que o dinheiro viesse voando de algum lugar! Então procurei sinalizar essa necessidade a três pessoas que, eu sabia, podiam ajudar.
Escrevi uma carta para Jefferson, e outra para o Pastor Adriano. Na carta, pedi emprestado R$ 5.000,00. Dei como garantia o carro, isto é, caso o livro não vendesse, caso acontecesse alguma tragédia, meu carro valia mais do que R$ 5.000,00! Realmente não estávamos querendo dinheiro dado, não estávamos pedindo oferta, aliás, aquilo nem nos passava pela cabeça. Não queríamos dinheiro para pagar nossas contas, para comprar comida... queríamos tão-somente aqueles R$ 5.000,00 emprestados para poder dar a entrada na gráfica.
Apesar de todos os problemas que Fábio estava enfrentando, mais cedo ou mais tarde o material estaria pronto. Não íamos gastar com a capa, com a diagramação, com os fotolitos... mas a impressão do livro era bem cara! Mais de R$ 15.000,00, um dinheiro com o qual nem sonhávamos! Esse preço ficou meio salgado porque o livro Filho do Fogo, inacreditavelmente, ficou duplo, com dois volumes.
Isabela ficou bem espantada:
— Pôxa! Não imaginei que tinha escrito tanto! Isso porque muita coisa eu cortei, especialmente na época da "29". Eram tantas e tantas histórias, que no final das contas acabei me empolgando. Depois, quando fui reler o livro, tive que cortar alguma coisa.
Nosso livro era totalmente "antitudo". Era grosso demais... o povo Evangélico não gosta de ler... éramos autores totalmente desconhecidos... Foram algumas coisas que nos disseram. Tudo parecia conspirar contra nós.
Nós tínhamos procurado por uma Editora, e nada melhor do que tentar uma que já tivesse publicado livros de Batalha Espiritual. No entanto, o editor quis mexer no texto, queria contratar uma pessoa para transformar o livro num volume só. Cortar algumas coisas... mudar outras...
Isabela foi absoluta e terminantemente contra.
— Em hipótese alguma! Em hipótese alguma! — ela quase subia pelas paredes. O livro Filho do Fogo era realmente um "filho" para ela!
Eu concordei. Embora não tivesse lido o livro, Grace tinha lido. E, agora, também uma pessoa da equipe dela, um homem que trabalhava com revisão literária. Os dois tinham sido unânimes em elogiar o material. Fábio tinha lido boa parte ao trabalhar em cima da diagramação. Foi também categórico na sua posição: tinha que ficar como estava.
— Quero crer que, embora seja muito grande e caro, todo aquele que começar a lê-lo vai ter interesse em ir até o fim. É o que eu espero. Mesmo porque, é interesse de Deus! Foi o anjo ruivo que veio dizer que o tempo era curto, que essa revelação era importante. Foi preciso contar a história de uma maneira a fazer sentido, e não dá pra fazer sentido se não for contada devagar. Eu sinto muito. Não vou fazer nada para mudar o livro. Está escrito. É aquilo lá!
Mesmo porque, Isabela e eu tínhamos orado muito para escrever aquilo. Deus não havia se posicionado contra... creio que se Ele assim quisesse, teria feito, porque nas nossas orações com Dona Clara, muitas vezes demos liberdade ao Espírito Santo para mudar o que quisesse, inspirar como quisesse. Fomos muito sinceros nas nossas orações, especialmente Isabela, sobre quem estava praticamente toda a responsabilidade. Ela realmente queria acertar, realmente queria trazer para o papel as palavras inspiradas por Deus. Em primeiro lugar, o livro tinha que agradar a Deus, tinha que cumprir o propósito de Deus. Se estivéssemos certos de estar agradando a Deus acima de todas as coisas, o resto viria por si.
Depois de tanta oração... iríamos nós entregar o livro para outra pessoa reescrevê-lo? Por melhor profissional que fosse tal pessoa, estaria faltando a unção. Esta unção tinha sido dada para Isabela...
Estávamos tendo também dificuldade, por causa disso, para encontrar uma Editora que publicasse o livro. Nós não conhecíamos a tramitação dentro do mercado literário, mas era um preço absolutamente irrisório aquele que iríamos ganhar para cada volume vendido. Lembro-me que quando comentei com Isabela, ela ficou tão triste que chorava, não conseguia falar de outra coisa:
— Quer dizer que a gente come o pão que o diabo amassou e agora vamos ganhar essa mixaria para vender o nosso livro? Isso é injusto!
— Mas é assim que funciona, qualquer Editora funciona assim...
— Depois de todo o trabalho que eu tive, depois de tudo que a gente passou... só posso pensar que é injusto ganhar tão pouco! Prefiro fazer um livro por minha conta e vender por minha conta. Quantos livros a gente vai ter que vender para conseguir manter o padrão de vida que tínhamos antes, quando a gente trabalhava.. Como é que nós vamos viver deste jeito? — e chorava. — Esse não é um livro comum, eu sei que preço foi pago para pôr isso no papel...
Eu sabia que não era ganância. Era pura frustração! Nem eu nem ela nunca tínhamos sido gananciosos. Eu estava mais conformado porque, confesso... não fui eu que passei noites em claro, lendo e relendo até a exaustão tudo aquilo — Quando Isabela orou, e pedimos para Deus dar uma direção, ela falou exatamente isto diante de Deus, reclamou com o Pai sobre aquilo que julgava ser injusto.
Publicar o livro era uma esperança para nós, de ter de onde tirar nosso sustento e saldar nossas dívidas. Por outro lado, comercializar Filho do Fogo por conta própria, sem selo editorial, impediria que ele fosse vendido em livrarias. E isso nós também não podíamos fazer, seria impedir que a informação se propagasse rapidamente. Ia contra a direção de Deus! Portanto, estávamos numa sinuca de bico....
Continuamos orando pedindo a direção certa. Perguntando a Deus como fazer. Isabela compartilhou sua frustração e desgosto com Dona Clara por causa da parte financeira.
— Eu trabalhei muito para isso, estou só querendo uma remuneração justa pelo meu trabalho. E quando falo em trabalho, Deus sabe do que eu estou falando! — até se exaltou. — Qual é o preço justo a ser pago pelo Filho do Fogo! Não estou falando dos homens, porque os homens estão debaixo de um sistema injusto. Mas Deus é totalmente justo! Quanto vale esse trabalho? Quanto vale estarmos com o pescoço na guilhotina por causa deste livro? Quanto vale colocarmos nossa família em risco... isso não tem preço! Podem olhar pra mim e falar que estou errada, podem olhar para mim e me julgar! Mas eu sempre vou dizer: não tem preço!
E estava realmente indignada. Por isso continuamos orando para ver que solução Deus daria.
Não recebi resposta sobre o empréstimo dos R$ 5.000,00, o que particularmente me frustrou muito. Pastor Adriano nunca me respondeu uma linha. Sarah respondeu ao meu e-mail com uma frase: estaremos orando a respeito, Deus abençoe etc. e tal!
Isabela já esperava exatamente aquela atitude, portanto não se incomodou muito. Ainda faltava algum tempo até que Fábio terminasse de aprontar os fotolitos. Só então o livro estaria completamente pronto para ser rodado na gráfica. Isabela imaginava que Deus, sendo Deus, traria o dinheiro.
— Essa parte nós não temos como resolver. Estamos orando, estamos contatando pessoas... mas não podemos fabricar dinheiro! Quanto a isso Deus é que vai ter que dar um jeito.
Tentamos ainda conseguir aquele valor emprestado com uma Pastora de nossa Igreja, a Pastora Ruth. Nós já a conhecíamos das suas palestras e a admirávamos. Ela era abastada financeiramente, mesmo que seu marido não pudesse nos ajudar pessoalmente com aquela quantia, ele conhecia outros empresários. R$ 5.000,00 não é nada para quem tem dinheiro!
Sabíamos que a Pastora Ruth estaria dando uma palestra sobre adolescente naquele sábado, na Comunidade.
Combinamos então de assistir à palestra e conversar com ela no final. Logo depois do almoço, um pouco antes da gente sair da casa de Dona Márcia, onde tínhamos almoçado, o telefone tocou. Fui atender.
Escutei, e desliguei. Isabela me olhou apenas esperando que eu me pronunciasse. Ela também já sabia que se tratava de mais um recado da Irmandade. Nos encaramos e dei levemente de ombros:
— Disseram que ela não vai nos ajudar. — Fui curto e grosso.
Isabela nem fez comentários. Durante o caminho, oramos. Não havia muito mais a ser feito. Tinha sido um banho de água fria, mas mesmo assim iríamos tentar.
A palestra foi boa, nos divertimos bastante. Nós dois éramos o único casal mais jovem ali. Todos os demais estavam participando realmente com um propósito bem definido, lidar com seus filhos adolescentes. Talvez não tenham entendido muito bem nossa presença.
No final, nos aproximamos dela e não fizemos de conta que estávamos ali apenas por causa da palestra. Seria hipocrisia da nossa parte. Pelo que, mortos de vergonha — era uma situação bastante desconfortável — falamos do que se tratava.
— Se você souber de alguém que possa nos ajudar... não queremos dinheiro dado... seria emprestado, e nosso carro fica como garantia... — tentamos explicar, meio sem jeito. Só estávamos fazendo aquilo porque não podíamos ficar de braços cruzados. O Senhor queria aquela publicação.
Ela se limitou a responder o essencial, o que era de praxe. Mas nunca voltou a nos procurar para dar resposta, como prometera. Ficou tudo por isso mesmo.
Entrou o mês de outubro.
Poucos dias depois disso, nossa situação financeira estourou. Pelo pouco que compartilhamos com Dona Márcia, ela estava mais angustiada do que nós. Várias vezes ela ajudou com pequenas quantias, mas não tinha a menor possibilidade de nos ajudar com o que precisávamos. Marco estava passando dificuldades financeiras sérias no exterior. Todas as economias de Dona Márcia tinham sido usadas para que ele não passasse fome naquele lugar tão longe da família! Até isso parecia algo premeditado... Se ele não estivesse precisando tanto, certamente teria sobrado um pouco mais para nós.
Então.......de repente um verdadeiro milagre aconteceu! Foi de fato um milagre, fomos salvos pelo gongo! Ou melhor: fomos salvos por Deus, no último instante.
Esther me bipou com recado que nos trouxe muita esperança, embora ainda não soubéssemos exatamente do que se tratava. Ela dizia que estava com a pessoa que tinha uma oferta para nos dar. Pedia que entrássemos em contato.
Aquilo foi uma imensa alegria para nós. Estávamos pensando em vender o Palio para pagar nossas contas e também dar entrada no livro. Isso era mais importante do que qualquer coisa. Mas agora parecia que alguma coisa ia acontecer. Desci e fui ligar para ela.
— Oi, irmão. Vocês poderiam vir aqui hoje? É que tem uma pessoa que gostaria de ofertar para vocês. A Grace comentou comigo sobre a situação delicada que vocês estão vivendo, você mesmo não falou muito... Então ontem eu estive
conversando com ela, e falei sobre essa oferta... E ela me aconselhou a ir adiante... Esther morava fora de São Paulo. Era bem longe. Então, com sinceridade procurei saber melhor sobre o que ela estava falando:
— Esther, sabe que que é... Essa oferta é uma oferta de quê? Porque já teve quem nos ofertasse cebola, batata, alho... Se tivesse me interessado, poderia também ter ido buscar uma oferta de esparadrapo, algodão e gaze...
Ela entendeu muito bem.
— Não, não... essa pessoa quer dar uma oferta em dinheiro. Então, se vocês puderem vir...
Embora Esther não tivesse dito a quantia, valia a pena fazer aquela pequena viagem, nem que fosse por causa de R$ 100,00 ou R$ 200,00.
Conversei com Isabela e tratamos de nos arrumar. Esther tinha marcado um horário mais ou menos dentro do que ela podia. E assim nós fomos. Não foi muito difícil achar a casa dela. Nem bem estacionamos o carro e ela já aparecia no portão. No seu jeitinho calmo de ser, foi fazendo a gente entrar, foi falando dela, do marido, da filha, contando várias coisas... nós esperamos pelo que viria.
Ansiosamente.
Então Esther nos levou até uma sala nos fundos da casa e começou a explicar:
— Durante um bom tempo funcionou aqui uma reunião de oração que nós dirigíamos. Depois de um tempo, essa reunião de oração tinha virado uma pequena Igreja, chegamos a comprar mais cadeiras para organizar o local... mas aí, por algum motivo, não foi pra frente.
Calmamente Esther nos mostrou a sala, contou como funcionava a reunião de oração, mostrou as cadeiras. A gente não estava entendendo direito até que ela falou:
— Nós recolhemos o dízimo... e depositamos numa conta. Nunca mexemos nessa conta, eu não sei nem quanto é que tem... mas nós sabíamos que um dia Deus ia mostrar o que fazer com este dinheiro.
Começamos a compreender. Mas achamos que talvez estivéssemos compreendendo errado. E perguntei:
— Mas então... é você que quer nos ofertar?
Ela assentiu. Sem fazer alarido e sem ficar envaidecida, continuou no mesmo jeito simples:
— Deus me colocou no coração uma quantia. Então fui conversar com a Grace, queria ter certeza de que isso era a coisa certa a fazer. E ela foi categórica: "Se Deus mandou você fazer, faça! Não tenha medo, faça! Eles estão precisando muito" — ela sorriu para nós. — A Grace gosta muito de vocês!
Tivemos que sorrir de volta.
— Nós também gostamos muito dela!
Calmamente Esther continuou contando. Quanto a nós, era difícil controlar a expectativa. Queríamos logo chegar aos finalmente. Só íamos acreditar que era verdade quando Deus realmente nos trouxesse aquela oferta nas mãos. Não sabíamos o quanto ela pretendia, mas depois de explicar tudo isso, convidou:
— A conta está lá no banco. Eu realmente não sei quanto tem. Se tiver menos do que aquilo que o Senhor me colocou no coração... já conversei com meu marido, e vamos inteirar. Foi esse o trato que fizemos com Deus, mas vamos dar a quantia certa, a quantia que Ele falou! Vamos até o banco?
Completamente sem jeito, quase mudos, concordamos. Ela mesma dirigiu e foi conversando conosco sobre vários assuntos até chegarmos. Entramos no banco e deixamos que ela fosse resolver o que era preciso. Talvez ela estivesse querendo tirar um saldo, sei lá. Ficamos sentados num banco enquanto Esther foi até a mesa do gerente.
Demorou um bom tempo, eu e Isabela ficamos conversando, sem atrapalhar Esther. Até que então ela fez um sinal para nós. Eu me aproximei; Isabela procurou manter a discrição e continuou sentada no banco. Era uma situação nova para nós. Embora ela estivesse tratando aquilo com naturalidade, ciente de estar fazendo a vontade de Deus, para nós era constrangedor... uma situação realmente muito estranha!
— Já está tudo certo! Já consultei a conta e já sei quanto tem! — o rosto dela estava radiante. — Não vou precisar inteirar nada porque a quantia estava certa, tinha exatamente a soma que Deus me falou. É confirmação de sobra! Eu só preciso do número da sua conta...
— Você prefere transferir?
— Não, vou fazer um DOC.
— Não precisa gastar dinheiro com isso, você pode me dar em mãos... — eu me sentiria mais incomodado ainda se ela tivesse que gastar mais um real com a tramitação.
— Assim é mais seguro... — e então sorriu de novo. — Vou mandar R$ 7.000,00 para vocês!
Quando ela falou aquela quantia, fiquei olhando de olhos arregalados. Procurei as palavras certas, mas não encontrei.
— Esther... eu... olha, não sei o que te dizer... nunca imaginei uma coisa dessas, é realmente... realmente Deus é Deus!
— Irmão, de fato agradeça a Deus. E agradeça também a Grace, que me animou a fazer a coisa certa. O Senhor tinha falado em R$ 7.000,00... e sabe quanto tinha na conta?
Era um valor que já não me recordo, mas algo como 7.030...7.040, algo assim. O DOC consumiu a maior parte deste excedente. Quando falei para Isabela, enquanto Esther ficava ali esperando os finalmente da tramitação, ela também não acreditou. Ficamos os dois boquiabertos, emocionados, completamente sem fala.
— Deus é fiel... realmente não tem nada melhor do que servir a Deus! A gente passa por luta, mas vê também essas coisas tremendas acontecerem!
Nosso sentimento era da mais completa estupefação, para dizer o mínimo. Enquanto estávamos ali no banco, demorou um tempo para a ficha cair, demorou um tempo para a gente conseguir acreditar que era verdade!
Na volta para casa, conversando com Esther, contamos um pouco da busca daquele dinheiro. R$ 5.000,00 eram para o livro. Depois de retirar o dízimo, nos sobrariam R$ 1.300,00. Como eu e Isabela estávamos precisando de mais ou menos R$ 1.500,00 para salvar nossa situação financeira pelos próximos dias — sem ter que vender o carro! — a quantia que Deus estava enviando era, mais uma vez, exatamente a essencial!!!
O resto do dia foi de regozijo. Tomamos um chá com Esther na casa dela, conversamos com o marido que chegou mais tarde. Saímos de lá no final da tarde, com uma alegria indescritível!
Oramos agradecendo a Deus pelo livramento, pela Fidelidade e por mais aquele sinal de que estávamos no caminho certo. Os R$ 5.000,00 eram o sinal perfeito, eram um sinal verde das Alturas para continuarmos indo adiante!
Restava agora saber o que fazer a respeito da Editora. Era o último passo! Já tínhamos o dinheiro, logo Fábio terminaria o trabalho... faltava a questão da Editora. Dona Clara nos tinha tranqüilizado.
— Vamos continuar orando... Deus vai dar toda a solução. Não apenas parte dela, mas toda!
Estávamos no meio do mês de outubro. Não ignorávamos que a tendência da guerra era somente aumentar. A Irmandade tinha dito: "Esse filho não vai nascer"!
E no entanto, ele estava nascendo. Mas o 31 de outubro também se aproximava, mais uma vez. A direção de Deus foi muito clara, logo no dia seguinte ao recebimento da oferta, começamos um jejum até a data do Sabbath.
A diferença desta vez é que Deus trouxe a direção de ungir nossa casa todos os dias. Nós costumávamos fazê-lo, mas não todos os dias. Neste período, no entanto, quando quebrávamos o jejum no final do dia, orávamos em concordância e ungíamos a casa. Era preciso que estivéssemos o mais bem preparados possível para o fim do mês.
Na verdade, o Sabbath dura três dias. O primeiro dia é no dia 30 de outubro. Este é um dia de preparo para todo o ritualismo da Festa. O segundo dia, a celebração a Lucifér, acontece no dia 31. O dia seguinte, dia 1o de novembro, é conhecido mundialmente como "Dia de Todos os Santos". Na verdade, depois da celebração a Lucifér, a cultura católica difunde uma celebração a todos os "santos". Dentro da Irmandade está acontecendo exatamente isso, uma festa de todos os demônios. Os demônios foram todos reunidos para a Festa, no dia 31, e no dia seguinte estão soltos, com mais energia e vigor...
Passados os três dias, segundo a Irmandade, a resultante fica pairando nos ares: logo depois... Dia dos Mortos! Aqueles que cultuam os demônios sem saber, aqueles que cultuam falsos deuses, estão mortos.
Foi um período bastante intenso de oração. Nos últimos sete dias antes do 31 de outubro, a direção foi que ungíssemos também a casa de Dona Márcia. A gente já tinha explicado para ela a necessidade da unção. E, como líder espiritual daquela casa, ela deveria fazer isso.
Dona Márcia fazia, mas não com a freqüência e assiduidade que deveria.
Então, por sugestão de Dona Clara, pedimos a ela que nos passasse a autoridade momentaneamente. Ela concordou. Oramos, e Dona Márcia falou com sua boca que durante aqueles dias nos passava autoridade espiritual para que pudéssemos ungir a sua casa.
Ela tinha uma idéia do meu envolvimento, mas não completa. E era claro que aquela casa era um alvo. Por isso se faziam necessárias oração específica e unção específica naquele período.
Procuramos seguir à risca aquelas direções. Não foi fácil e, naturalmente, os demônios procuravam criar impedimentos, contendas, confusões. Mas fomos fiéis em todos os 14 dias do jejum. Ungi também a casa de minha mãe e de minha avó uma vez, aquilo parecia ser suficiente. Eles não eram o alvo. Nunca foram!
Depois do Sabbath, no primeiro salto de 9 dias, ficamos bem. A fumaça de toda e qualquer confusão foi apagada antes que o incêndio começasse. No segundo salto de 9 dias, no dia 18 de novembro, também fomos vitoriosos.
Naquela semana estivemos participando de um "Congresso de Conquista de Cidades" numa grande Igreja de São Paulo. Grace estava lá, e também o Pastor Lucas, ambos como palestrantes. Nossa apostila tinha ficado pronta e conseguimos fazer algumas para vender. Naquela época, nossa apostila era de papel sulfite xerocado com espiral. Eu tinha conseguido um lugar no centro da cidade que fazia por um preço muito bom!
Vendemos todas, e aquele foi um dinheiro bem-vindo!
Como toda a equipe de Grace estivesse presente neste congresso, foi fácil para eles perceberem o ataque de um espírito humano sobre nós dois. Aquilo já não nos surpreendia. Foi Sandra quem teve a visão, e a princípio não sabia sequer distinguir se era realmente uma visão ou se ela estava vendo uma pessoa de verdade. O homem se aproximou de nós dois, por trás, olhando furiosamente, devagar. E quando passou atrás de nós, fez alguns gestos na nossa direção. Então Sandra, de longe, simplesmente não o viu mais. Soube que se tratava de uma visão.
Lá fomos nós novamente orar sobre aquilo.
No dia 27 de novembro, terceiro salto de 9 dias, Isabela e eu tivemos uma briga horrível. Desta vez acabamos tendo derrota, a fumaça se transformou em fogo. Eu saí, tinha ido à Igreja. Isabela ficara em casa. E recebeu um bip. No pior momento, no momento em que estava mais fragilizada... era sempre assim! Eles iam sempre bater no mesmo ponto.
E o bip dizia o seguinte: "Você é mulher virtuosa, com quem sempre podemos contar. Você vai colher os frutos no seu marido. Ele não será mais o mesmo".
Mais uma vez aquelas palavras tinham gosto de fel.
Por mais que a gente jejuasse e orasse, aquela era mesmo uma luta sem tréguas, uma luta onde não podíamos nem sequer piscar, onde um simples tropeção podia ser o prenuncio de um tombo muito maior.
A angústia seria muito mais intensa à medida que se aproximasse o final do ano.
Porém, uma coisa boa tinha acontecido no começo daquele mês: Pastor Lucas tinha dado ordem a Dona Clara para que recolhesse, todas as quartas-feiras pela manhã, no Culto de mulheres, uma oferta para nós. Essas ofertas nos seriam repassadas, embora as mulheres não soubessem exatamente qual era o casal que estava sendo abençoado.
Aqueles R$ 1.500,00 tinham servido para tapar um rombo imediato, mas não tínhamos de onde tirar o sustento. Então, como o livro estava em vias de sair, Pastor Lucas nos ajudou daquela maneira. Às vezes vinha uma quantia simbólica; às vezes, vinha uma quantia bem melhor!
No final de novembro, Dona Clara também nos deu uma boa notícia. Eu, especialmente, vibrei!
— Estou ganhando uma máquina de lavar nova! — veio falando Dona Clara. — E vou mandar consertar a velha. Daí, mando para vocês!
— Puxa vida, a senhora nem imagina o que está me dizendo! Finalmente vou poder sair daquele tanque! — falei com entusiasmo.
— Não é uma máquina nova, nem é grande. Mas eu acho que vai poder ajudar vocês até estarem mais estabilizados.
— Muito obrigada, hein, Dona Clara! A senhora nem imagina que bênção que vai ser isso! — concordou Isabela, sorridente.
Dona Clara não estava menos sorridente.
— Ah, eu imagino, sim! Que bom que posso abençoar vocês!
Também naquele mês de novembro tivemos uma nova e inusitada aquisição. Um dos motivos por que Isabela ainda sentia falta da casa de Dona Márcia, e tinha dificuldade em ver nosso lar como um lar de verdade, era a falta que ela sentia dos animais. Claro que esse não era o principal motivo, a questão maior era a somatória de todas as coisas que estávamos vivendo desde o dia em que nos casamos. Desde as dificuldades de relacionamento exacerbadas pelo contexto espiritual, até a falta das mínimas coisas para tornar nosso apartamento confortável.
Isabela sentia falta de cortinas, de quadros, de abajures... claro, coisas totalmente supérfluas diante do resto! Mas aqueles detalhes, bem... aqueles detalhes tinham o poder de transformar um ambiente árido num ambiente gostoso... um ambiente tosco num ambiente aconchegante.
Óbvio que não havia dinheiro para cortinas, quadros ou abajures. Mas os animais também ajudam a dar vida à casa, e quanto a isso... Isabela começou a ficar literalmente encantada com o gatinho que apareceu no quintal da vizinha de Dona Márcia. Ela estava vazia havia muito tempo, lugar perfeito para uma gata da vizinhança dar cria!
A primeira vez em que Isabela escutou aquele suave miadinho caía uma daquelas chuvinhas de Primavera, quase Verão. Nós estávamos ali em casa de Dona Márcia e, curiosa, Isabela foi espiar pela janela.
— Olha, Eduardo! Tem um gatinho ali! Saiu debaixo daquela tábua. Assim que ele viu a mãe chegando, saiu de lá e veio miando!
De fato assim tinha sido, mas ao escutar o som da nossa voz, o gatinho azulou. O mesmo não aconteceu com a mãe dele que, diante da menor festa de Isabela, vinha correndo para o nosso lado do muro. Isabela não resistiu e saiu debaixo da garoa, foi agradar a mamãe-gata.
— Olha só que bonitinha! Está ronronando... será que ela está com fome?
Sem esperar a resposta, Isabela foi buscar um pouco de ração da Harpa e da Viola. A gata vira-lata nunca tinha comido nada tão bom! Isabela espalhou os grãos em cima do muro e ela comeu até se fartar. Quanto ao filhotinho, nem sinal!
Depois desse dia, bastava fazer um "pssss, psss, psss" que a mamãe-gata vinha correndo! Volta e meia, ela era pega dormindo no jardim. Isabela achava a coisa mais linda do mundo, e estava de olho no gatinho. A gente só conseguia vê-lo de relance, ou de cima da laje na casa de Dona Márcia, de onde podíamos ver o quintal da casa da vizinha, ou pelo muro do jardim.
— Você quer o gatinho pra você, né? — Isabela estava tão fascinada com a possibilidade de ter um bichinho em casa que, mesmo não achando muita graça em gatos, não podia recusar uma coisa tão simples. Ela já tinha passado tanta privação... pelo menos, aquele gato não ia custar nada! — Eu vou pegar ele pra você!
Isabela só faltou dar uns pulinhos. Na verdade, ela até deu mesmo.
— Você acha, Nenê? Você acha que podemos ter o bichinho no apartamento? Será que ele vai se adaptar?
— Adaptar ele vai... resta conseguir pegar o danadinho!
Realmente não foi tarefa fácil. Cada vez que nós o enxergávamos, e eu pulava o muro, ele corria e se escondia. Não dava para imaginar onde podia ser, revirei tudo e não encontrei sinal do gato. Mas era certeza que ele tinha corrido para o fundo do quintal!
Tivemos que esperar mais alguns dias até tornar a vê-lo. Um dia, na hora do almoço, olhamos pelo muro e ele estava lá, no fundo do quintal, brincando com o rabo da mãe, aproveitando o sol. Falei bem baixinho:
— Ele tem o peito e as patas brancas! Isabela cochichou de volta:
— Vou subir lá na laje. Espera eu chegar lá, não faz barulho... aí você pula o muro e eu vou conseguir ver onde é que ele se esconde!
Dito e feito. O lugar era dos mais improváveis: um pequeno ralo no cantinho da parede. Bichinho esperto! Ninguém imaginaria que ele passasse por um buraquinho tão pequeno! Durante um bom tempo tentamos tirá-lo de lá. Ficamos quietos ao lado do ralo esperando que ele saísse. Mamãe-gata veio ronronar ao nosso lado. Escutando o barulho dela, ele pôs a cabeça para fora. Mas nem bem percebeu nossa presença e deu meia-volta imediatamente. Não ia ser fácil. Jogamos ração para tentar atraí-lo. Escutamos o "croc, croc, croc", mas ele não veio.
Isabela estava frustrada.
— Puxa vida, nunca vamos conseguir pegar este gato!
Agora era questão de honra. Na próxima vez, pensamos de maneira mais inteligente que ele. Isabela levou para a laje uma enorme almofada do sofá de Dona Márcia. Quando eu pulasse o muro, antes que ele corresse para o seu abrigo, ela tentaria tapar o buraco do ralo com a almofada, atirando-a de cima da laje.
Dessa vez deu certo! Isabela acertou em cheio e eu corri atrás dele. Como fosse pego de surpresa com a entrada da sua toca fechada, perdeu o rebolado. Foi assim que eu consegui pegá-lo. Coitadinho! No começo deu dó!
— Tão pequenininho e me fez "Fúúú", essa imitação de tigrinho!
Eu entrei com ele na mão e encontrei Isabela que descia da laje, toda animada:
— Oba, oba! Deixa eu ver ele!
O gatinho estava com ar de desconsolo.
— Tadinho... está assustado! Vamos ver se ele quer comer...
A princípio, ele não quis nada. Deixamos dentro de uma caixinha de sapato, preso no banheiro, até a hora de voltarmos para nossa casa. Quando chegamos lá, naquele ambiente totalmente estranho, começamos a acariciá-lo, tratá-lo bem. Isabela o atiçou com um fiozinho. Ele não resistiu e, timidamente, começou a brincar. Logo estava adaptado!
Não estragava nada, não sujava nada, fazia suas necessidades na areia de gatos. Ninguém precisou ensinar. Quando ficava solto em casa, à tarde, dormia quietinho no sofá. Ganhou minha confiança.
Nós o chamamos de Mambo, e logo percebi que era muito legal ter um gato. Ele brincava muito, dava mil cambalhotas, tinha uma energia impressionante! A gente morria de dar risada com ele, era muito divertido. Às vezes, a gente estava assistindo televisão, e de repente alguém mexia o dedo do pé. Imediatamente Mambo "atacava" aquele dedo que tinha ousado se mexer. A gente tomava o maior susto porque não estava esperando.
Ele escalava o sofá, grudando com aquelas unhas afiadas, e depois se atirava para o chão, rolava, pulava para o sofá de novo, subia até o nosso ombro, até a nossa cabeça, se deixasse... para ter sossego, só se a gente o pusesse preso na cozinha!
Mas realmente Mambo deu uma nova vida à nossa casa.
Nós dois nunca conseguimos aceitar de bom grado pessoas que não gostam de animais. Especialmente se essas pessoas são Cristãs! A Criação de Deus é maravilhosa, e quem se diz Cristão deveria, pelo menos em tese, respeitar os animais e a natureza. Um verdadeiro Filho de Deus sabe que tudo isso "é bom", não judia dos bichos, não estraga as plantas, não polui o meio ambiente!
Então veio o Merengue...
Por um acaso, Dona Márcia tinha visto aquele gatinho ser atropelado, provavelmente era da mesma ninhada. A pessoa que atropelou não estava nem aí, então Dona Márcia, pensando no que Isabela teria feito, foi atrás do bichinho que fugiu e se escondeu na casa da vizinha da frente. Depois de um pouco de trabalho, a filha da vizinha conseguiu pegá-lo.
No dia seguinte nós o levamos ao veterinário. Tinha fraturado a bacia. Não tinha muito o que fazer além de medicação para a dor, reforço alimentar e repouso. Então levamos o segundo gato para casa!
Sinceramente... no começo eu detestava o Merengue. Eu queria apenas um gato, não dois! Merengue parecia uma tripinha: era pele e osso, uma coisinha que cabia na palma da mão. Feio, sujo, fedido. E doente!
Mas Isabela, com todo amor e paciência do mundo, medicava o bichano no horário certo e lhe dava também muita comida. Para variar, logo no começo o Mambo fez "Fúúú", mas logo no minuto seguinte já estava interessado em brincar.
Mas o Merengue não podia brincar, tinha que ficar em repouso.
Assim ele ficou durante um mês. De tripinha, virou uma bola! De tanto comer e dormir. Toda noite Isabela o pegava, numa cestinha, porque estava muito sujo e não podia tomar banho ainda, e sentava na frente da televisão com aquele "incenso" no colo. Ficava agradando, conversava com ele... dizia que ele também precisava de carinho para melhorar mais rápido.
Ao final de um mês, Merengue estava bom e já não queria ficar preso dentro do banheirinho da lavanderia. Ficou com uma das perninhas ligeiramente torta, mas aquilo não afetava em nada a sua locomoção, que era perfeita.
Era divertido observar os dois brincando pela casa! Uma correria, um sobe-sobe pelas coisas, a gente ria com as estripulias dos nossos dois "filhos". Comecei a ficar satisfeito e realmente foi um privilégio ter dois filhotes de gato em casa. Logo começamos a dar as vacinas, com sacrifício, sim, mas aquilo era muito importante.
Mambo e Merengue trouxeram vida e alegria para nós!
Depois de muito esforço, Fábio finalmente deu o trabalho por encerrado. Quase quatro meses se haviam passado. Isabela e eu começamos a conferir os fotolitos. Era preciso olhar página por página. Nossa expectativa era muito grande, nem parecia verdade que o livro Filho do Fogo estava ali, diante dos nossos olhos, nas nossas mãos, praticamente pronto!
Não tinha sido muito fácil fazer aqueles fotolitos. Fábio teve vários tipos de problema, dentre eles pedaços do texto que sumiam misteriosamente, e seu computador que explodiu. Explodiu mesmo, Fábio perdeu a máquina. Detalhe: uma pessoa que trabalhava ali no escritório, que também era crente e estava participando daquele projeto junto com ele, em visão viu um demônio marretando o computador.
Nós não tínhamos visto ainda a capa, Fábio dava os últimos retoques mas confiamos nele. Ficou combinado que ela seria mandada diretamente para a gráfica.
Já estávamos dispostos a abdicar do selo editorial, pelo menos numa primeira edição. Com a divulgação do livro, talvez tivéssemos uma boa proposta mais para a frente. Qual não foi minha surpresa quando um Pastor de nossa Igreja, o Pastor Ubiratan, que era dono de uma pequena Editora, me ofereceu o selo.
Nós o conhecíamos muito pouco, porque era Pastor de outra unidade da Comunidade. Todo nosso contato tinha se limitado a algumas aulas que tivemos com ele no seminário. Por sinal, era quase a data da nossa Formatura! Isabela e eu fazíamos parte do pequeno contingente que iria se formar. Mas, enfim, não é isso que importa! Nosso contato com Pastor Ubiratan não era muito maior do que "Boa-noite", "Até logo", etc...
Mas, pelo visto, ele tinha ficado sabendo da nossa necessidade... parece que já tinha ouvido falar sobre alguém ali na Igreja que tinha sido Satanista. Mas não tinha associado essa informação à minha pessoa. Quando soube, simplesmente ofereceu o selo. Tudo continuava como antes, isto é, nós bancaríamos o livro do nosso bolso, ele não ia interferir em nada. Mas a diferença é que, caso houvesse oportunidade de comercializar Filho do Fogo em livrarias, esta porta não estaria fechada.
O gasto ia ser integral nosso, mas o lucro também. Não tínhamos a menor idéia se o livro venderia bem, ou não. Mas sentimos paz em fazer daquela maneira. Pelo menos... numa primeira instância! Pelo visto, ele também, porque me falou:
— Eu nem sei o que está escrito nesse livro... mas creio que Deus está me dando essa direção. Então, vamos fazer! Vou mandar o logotipo do selo para a gráfica, e está tudo certo.
Diante disso, estava pronto! Nós dois estávamos muito alegres com aquela vitória! Todos os detalhes estavam acertados, tudo tinha chegado às nossas mãos!
Agora era hora de firmar o contrato na gráfica. Só consegui fazê-lo porque o Pastor Ubiratan foi meu avalista. Ele já era um cliente antigo daquela gráfica, e... bom... eu estava desempregado havia um ano e não tinha um gato para puxar pelo rabo! Mambo e Merengue que me perdoem, mas o deles não servia para nada.
Quando fui inquirido, falei a verdade: que Deus estava na história daquele livro, que eu não tinha emprego, nem dinheiro para pagar, muito menos minha esposa... mas certamente Deus iria nos honrar e nos dar as condições de arcar com as parcelas no devido momento. Fiz um adiantamento e o restante, mais de R$ 12.000,00, pude parcelar em três vezes: 30, 60 e 90 dias depois da entrega. Sem dúvida nenhuma que era uma dívida daquelas! Não era bom nem parar pra pensar o quanto significavam aqueles números...
Isabela nem me acompanhou na tramitação, aquela foi uma das poucas coisas que fiz sozinho naqueles meses. A gente sempre fazia tudo junto. Mas ela estava tensa com a negociação e preferiu ficar de longe para não atrapalhar.
Naquela época nós não estávamos pensando mais em sentir medo. Deus estava resolvendo cada detalhe! Isso queria dizer que Ele estava no controle de tudo.
Agora era só esperar. Bastava terminarmos de rever os fotolitos. Marcamos de antemão o lançamento oficial para dia 16 de janeiro, queríamos fazer um Culto de agradecimento e Louvor a Deus. Por incrível que pareça, Grace poderia estar presente, mesmo sendo no meio das férias dela. Tudo isso tinha um significado especial para nós!
Naquele período começamos a enfrentar um pouco de resistência por parte de algumas pessoas da Igreja. Parte da minha história já tinha vazado, e sabiam que nós íamos lançar um livro. Havia quem estivesse bastante apavorado com aquilo. Foi a primeira vez que escutamos algo no sentido:
— A Comunidade está sendo retaliada por causa de vocês!
Não seria a primeira vez nem a última que pessoas se colocariam desta forma. Nós seríamos os "culpados" por todos os problemas que as pessoas passassem a ter.
De resto, como se isso não bastasse, nossos problemas pessoais continuavam mais intensos. Tínhamos equilibrado um pouco a parte financeira, mas agora coisas estranhas aconteciam em casa. O que estava incomodando mais, pela insistência com que acontecia, era o fato do abajur acender sozinho. Isabela tinha aquele abajurzinho havia bastante tempo, ele acendia pelo toque, não tinha interruptor. Bastava encostar nele, e acendia. Era um abajur já antigo, que ela tinha trazido da casa de Dona Márcia, e nunca tinha feito nada daquele tipo. Agora, do nada, ele começava a acender.
Nunca acontecia quando a gente estava perto. Pensamos que poderia ser alguma alteração de força, então fizemos a experiência, e nada. Pensamos que poderia ser alguma interferência de outro objeto elétrico, como o chuveiro... também fizemos a experiência, mas nada do abajur acender. Uma última tentativa seria o contato de alguma coisa, alguma roupa, quem sabe (como se roupas pudessem sair voando por aí, mas era melhor ter certeza). Nada. Então... talvez uma corrente de vento: mas a corrente de vento também não acendia o abajur.
Cada vez que nós o encontrávamos aceso era como se o inimigo dissesse para nós: "Vocês pensam que são intocáveis? Pois não são... entro aqui a hora que eu quero. Estou só esperando a hora certa!"
Aquilo já estava incomodando, não queríamos colocar tudo na balança do sobrenatural... mas mesmo assim, durante as duas Ministrações que tive em dezembro, pedimos para Grace orar conosco em concordância sobre aquilo.
Numa das Ministrações a Sandra estava conosco. Quando terminamos de orar, ela tinha tido uma visão. Nosso principal questionamento era que, se fosse um fenômeno espiritual, que o Senhor pudesse confirmar e, mais do que isso, acabar com aquilo. Se fosse um demônio que estava entrando em casa, apesar da unção, ou se fosse um espírito humano... alguma coisa nós tínhamos que fazer para acabar com a invasão.
— Eu vi que é um fogo do Inferno que acende o abajur. O que é isso, eu não sei... mas que é espiritual, isso é!
Oramos ali, em concordância. Demorou algum tempo para acontecer de novo, mas continuou acontecendo. Havia uma insistência grande daquele fenômeno em continuar, e nossas orações não pareciam surtir efeito, nossa casa parecia continuar vulnerável àquela intromissão do inimigo...
Se fosse só o abajur, seria mais fácil fazer vista grossa. Mas outras coisas estranhas aconteciam.
A janela da lavanderia insistia em aparecer aberta. Mesmo estando fechada com o trinco, ela abria. Aquela corrente de vento invadia a cozinha e fazia as portas baterem com estrondo. Quando íamos ver, era a janela... era impressionante como aquilo dava uma sensação de desproteção! O que deveríamos fazer para impedir aquilo?!
O mais assustador foi quando a bola dos gatos apareceu destroçada. Era uma pequena bola, pouco maior do que uma de pingue-pongue, de borracha maciça, bem dura. Eu não conseguia amassá-la com as mãos. Talvez um filhote de cachorro de porte médio conseguisse fazer aquilo. Mas jamais um filhote de gato.
Um dia entramos na cozinha de tarde e encontramos a bola literalmente picada, os pedacinhos espalhados pelo chão. Eu olhei para Isabela e ela para mim.
— Oh, puxa.....que danadinhos! — fez Isabela primeiro, sem convicção.
— Pois é...
Num primeiro momento nenhum de nós queria admitir que era impossível o Mambo ou o Merengue terem feito aquilo... mas não queríamos assustar um ao outro. Tudo aquilo era muito, muito estranho...! Para ser sincero, todos aqueles fenômenos tinham um recado embutido em si mesmos: "Suas orações não estão adiantando de nada, estamos entrando aqui dentro da casa de vocês. Aguardem!"
Eles haviam prometido que o final do mês de dezembro seria a data da morte de Isabela. Por mais que não crêssemos que nossa história terminaria assim, com Eduardo e Isabela simplesmente morrendo, aquilo tudo tinha...
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